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Series & Trilogias Literarias
Sean O’Neill tinha significado tudo para Eleanor de Warenne, mas desde que ele tinha deixado o solar de sua família e tinha desaparecido, ninguém havia voltado a ter notícias dele. Inclusive Eleanor tinha abandonado toda esperança de voltar a vê-lo e se comprometeu com outro. Então, a somente uns dias de suas bodas, Sean apareceu de novo… mas o moço que tinha sido seu protetor durante a infância se converteu em um estranho embrutecido pelo tempo que tinha passado na prisão. E era um fugitivo.
Cansado e angustiado, Sean sofreu uma grande impressão ao descobrir que a pequena Elle se converteu na bela e desejável Eleanor. Embora se negasse a pô-la em perigo, sua decisão de afastar-se dela se viu posta a prova pela determinação de uma mulher que não ia permitir que a abandonasse de novo.
Askeaton, Irlanda, junho de 1814
A chamada do desconhecido. Estava ali, a seu redor, em seu interior; a chamada da aventura era uma inquietação insistente. Nunca a tinha sentido com mais força, e era impossível seguir ignorando-a durante mais tempo.
Sean O’Neill se deteve no pátio do solar que tinha sido de sua família durante quatro séculos. O tinha reconstruído os muros que tinha a frente com suas próprias mãos. Tinha ajudado aos artesãos do povo a substituir as janelas, e os antigos chãos de pedra do interior.
Com um exército de faxineiras, tinha resgatado as espadas queimadas do salão principal, todas elas heranças da família. Entretanto, as tapeçarias que adornavam a estadia se queimaram por completo.
Também tinha arado os campos carbonizados e enegrecidos junto aos arrendatários das terras dos O’Neill, dia após dia e semana após semana, até que a terra foi fértil de novo. Tinha fiscalizado a seleção, compra e transporte do gado caprino e bovino que tinha substituído aos rebanhos destruídos pelas tropas britânicas naquele negro verão de 1798.
Naquele momento, erguido sobre seus arreios, com os alforjes cheios, observava como as ovelhas pastavam com suas crias nas colinas que havia detrás da casa, sob os primeiros raios de sol.
Ele tinha reconstruído aquele imóvel com o suor de sua frente, e às vezes, com lágrimas também. Tinha reconstruído Askeaton para seu irmão maior, durante os anos que Devlin tinha passado no mar, como capitão da marinha real, lutando na guerra contra os franceses.
Devlin tinha voltado para casa uns dias antes com sua mulher americana e sua filha. Licenciou-se da marinha e Sean sabia que ia ficar em Askeaton. E assim era como deviam ser as coisas.
Sentiu inquietação. Não estava seguro do que era o que queria, mas sabia que sua tarefa ali tinha terminado. Havia algo ali fora, esperando-o, algo grande que o chamava como as sereias chamavam os marinheiros. Só tinha vinte e quatro anos e sorria ao sol, exultante e preparado para qualquer aventura que o destino queria lhe propor.
—Sean! Espera!
Sentiu uma breve incredulidade ao ouvir a voz da Eleanor de Warenne. Entretanto, deveria ter sabido que ela estaria acordada a aquelas horas, e que o surpreenderia enquanto ele se dispunha a partir.
Desde o dia em que a mãe de Sean se casou com o pai da Eleanor, esta se tinha convertido na sombra de Sean. Aquilo tinha ocorrido quando ela era uma pequena de dois anos e ele era um sombrio menino de oito.
Quando eram meninos, Eleanor o tinha seguido como um cachorrinho, algumas vezes divertindo-o e outras vezes incomodando-o. E quando ele tinha começado a restauração das terras de sua família, ela tinha estado a seu lado, de joelhos, tirando pedras rotas do chão com ele. Quando Eleanor tinha completo dezesseis anos, tinham-na enviado a Inglaterra; após, já não parecia a pequena Elle. Sean se voltou para ela com desconforto.
E ela o alcançou apressadamente. Sempre tinha tido um passo de pernadas largas, nunca o passo gracioso de uma dama. Aquilo não tinha trocado, mas sim todo o resto. Sean ficou muito tenso, porque ela estava descalça e só levava uma camisola de algodão branco.
E naquele instante, não soube quem era a mulher que o estava chamando. A camisola lhe acariciava o corpo como uma luva de seda, indicando curvas que ele não podia reconhecer.
—Aonde vai? Por que não me despertou? Irei montar com você! Podemos jogar uma carreira até a igreja e voltar —disse Eleanor.
De repente, entretanto, ficou calada, imóvel, olhando com os olhos muito abertos aos alforjes do cavalo de Sean. O sorriso lhe tinha apagado dos lábios. Ele notou sua surpresa, seguida pela compreensão.
Sempre pensaria em Elle como uma menina pouco elegante, alta e desajeitada tivesse a idade que tivesse, com a cara muito magra e angulosa, e com o cabelo recolhido em umas tranças que lhe chegavam à cintura. O que lhe tinha ocorrido naqueles dois anos? Sean não estava seguro de quando se desenvolveram em seu corpo aquelas curvas tão pouco recatadas e femininas, ou de quando lhe tinha arredondado as faces, convertendo-se em um oval perfeito.
Ele afastou a vista do pescoço de sua camisola, que lhe tinha parecido indecente. Depois afastou a vista de seus quadris, que não podiam pertencer a Elle. Ardiam-lhe as bochechas.
—Não pode ir por aí em camisola. Alguém vai vê-la! —exclamou.
A noite anterior, Sean tinha estado sentado frente a ela na mesa, e também havia se sentido incômodo; cada vez que olhava para Elle, ela sorria e tentava manter o olhar. Depois, Sean tinha feito todo o possível por evitar o contato visual.
—Viu-me mil vezes de camisola —disse ela lentamente— Aonde vai?
Ele a olhou. Seus olhos não tinham mudado, e Sean se sentia agradecido por aquilo. Tinham a cor do âmbar e a forma de uma amêndoa, e neles, ele sempre tinha podido decifrar o estado de ânimo de Elle, seus pensamentos, suas emoções. Naquele momento, ela estava preocupada. A reação de Sean foi imediata: sorriu para reconfortá-la. De algum modo, seu dever tinha sido sempre aliviar os medos de Elle.
—Tenho que ir —explicou-lhe— Mas voltarei.
—O que quer dizer? —perguntou-lhe ela com incredulidade.
—Elle, há algo aí fora, e preciso encontrá-lo.
—O que? —perguntou ela, com um olhar de horror— Não! Aí fora não há nada! Eu estou aqui!
Sean ficou calado, sem apartar a vista de Elle. Ele sabia, como todo mundo de suas duas famílias, que ela sempre tinha tido um amor tolo e selvagem por ele. Ninguém sabia exatamente quando, mas de menina, Elle tinha decidido que o queria e que um dia se casaria com ele.
A Sean o divertiam aquelas afirmações. Sempre tinha sido consciente de que ela superaria aquelas tolices com a idade. Não tinham sangue comum, mas ele a considerava uma irmã. Eleanor era a filha de um conde, e um dia se casaria com um homem de título ou muito rico, ou ambas as coisas.
—Elle —lhe disse ele com tranqüilidade— Askeaton pertence a Devlin. Agora já está em casa. E eu tenho a sensação de que há algo mais para mim aí fora. Preciso ir. Quero ir.
Ela tinha empalidecido.
—Não! Não pode ir !Não há nada aí fora, do que está falando? Sua vida está aqui! Nós estamos aqui, sua família, e eu. E Askeaton é seu também, tanto como de Devlin!
Ele decidiu não rebater aquilo, porque Devlin tinha comprado Askeaton do conde oito anos antes. Titubeou, tentando encontrar as palavras adequadas para que ela o compreendesse.
—Tenho que ir. Além disso, você já não me necessita. Cresceste —disse, e seu sorriso se apagou— Logo lhe enviarão de volta a Inglaterra, e já não pensará mais em mim. Terá muitos pretendentes —acrescentou, e sem saber porquê, aquela idéia lhe pareceu estranha e desagradável— Volta para a cama.
Uma expressão de pura determinação se refletiu no semblante de Elle, e ele se sentiu tenso. Quando ela tinha um objetivo, não havia forma de lhe impedir que o conseguisse.
—Vou com você —anunciou.
—É obvio que não!
—Não pense partir sem mim! Vou pedir que me selem um cavalo! —gritou ela, dando a volta para entrar correndo à casa.
Sean tomou pelo braço e fez que se girasse. Assim que sentiu seu corpo suave contra o seu, falhou-lhe o cérebro. Imediatamente, separou-a de si.
—Sei que sempre te saíste com a tua em tudo, me incluindo a mim. Mas esta vez não.
—Esteve se comportando como um idiota desde ontem! Ficou me evitando! E não se atreva a negá-lo. Nem sequer me olhava —exclamou Elle— E agora diz que me deixa?
—Parto. Não estou te deixando. Simplesmente, vou.
—Não o entendo —disse ela com os olhos cheios de lágrimas— Leve-me com você!
—Vai voltar para a Inglaterra.
—Odeio-o!
Claro que o odiava. Elle era uma flor silvestre, não uma rosa de estufa. Criou-se com cinco irmãos e tinha nascido para percorrer as colinas da Irlanda a cavalo, não para dançar nos eventos sociais londrinos. Naquele momento, ali, frente a ele, com as bochechas úmidas de lágrimas, parecia novamente uma menina de oito anos, afligida pelo desgosto e muito vulnerável.
E imediatamente, ele tomou entre seus braços, como tinha feita centenas de vezes antes.
—Não passa nada —disse-lhe brandamente.
Entretanto, no momento em que sentiu seus seios contra o seu peito, soltou-a. Notou que lhe ardiam as bochechas.
—Vai voltar? —perguntou-lhe ela, aferrando-se a seus braços.
—Claro que sim —disse ele com secura, tentando se afastar.
—Quando?
—Não estou seguro. Em um ou dois anos.
—Um ou dois anos? —repetiu ela, chorando— Como pode fazer algo assim? Como pode me deixar durante tanto tempo? Eu já sinto falta de você! É meu melhor amigo! Eu sou sua melhor amiga! Não vai sentir falta de mim?
Ele se rendeu e tomou a mão.
—Claro que vou sentir falta de você —lhe disse brandamente. Era a verdade.
—Prometa-me que vai voltar por mim —lhe rogou ela.
—Prometo-lhe —respondeu Sean isso.
Enquanto se olhavam fixamente, unidos pelas mãos, ela chorava. Com delicadeza, ele se soltou. Era hora de partir. Voltou-se para o cavalo e elevou a perna para o estribo.
—Espera!
Ele se deu a volta pela metade, e antes de que pudesse reagir, ela passou-lhe os braços pelo pescoço e o beijou.
Sean se deu conta do que estava ocorrendo. Elle, a pequena Elle, alta e magricela, o suficientemente temerária para saltar da velha torre de pedra que havia detrás da casa e de rir enquanto o fazia, estava-o beijando nos lábios. Mas aquilo era impossível, porque quem estava entre seus braços era uma mulher, a proprietária de um corpo suave e quente, com uns lábios abertos e ardentes.
Horrorizado, Sean se retirou de um salto.
—O que é isso?
—Um beijo, tolo!
Ele se limpou a boca com o dorso da mão, sem sair de seu assombro.
—Não gostou? —perguntou-lhe Elle com incredulidade.
—Não, não gostei—gritou Sean.
Havia-se posto furioso, com ela e consigo mesmo. Subiu ao cavalo rapidamente e a olhou. Ela estava soluçando em silêncio, cobrindo a boca com a mão.
Ele não podia suportar que chorasse.
—Não chore. Por favor.
Ela assentiu e lutou contra o pranto até que cessou.
—Prometa-me outra vez que voltará.
Ele tomou ar.
—Prometo-lhe que voltarei.
Ela o olhou com os olhos cheios de lágrimas.
Então, Sean sorriu, embora também tinha vontade de chorar. Depois agitou as rédeas de seu cavalo e começou a galopar. Não queria sair tão rapidamente, mas não podia presenciar mais o sofrimento de Eleanor. Quando se sentiu seguro de que podia fazê-lo, olhou para trás.
Ela não se moveu. Seguia junto às portas de ferro do imóvel, olhando como ele se afastava. Eleanor elevou a mão, e inclusive da distância, ele percebeu seu medo e sua tristeza.
Ele também elevou a mão para saudá-la. Possivelmente aquilo fora o melhor, pensou, tremendo por dentro. Voltou-se para o caminho e seguiu avançando para o este.
Quando chegou à primeira colina, deteve-se uma última vez. Pulsava-lhe o coração com força, rapidamente, inquietantemente. Olhou de novo a sua casa. O edifício se via tão pequeno como uma casa de brinquedos. Havia uma pequena figura branca junto às portas de ferro. Elle seguia sem mover-se.
E se perguntou se o que estava procurando não o tinha já em seu poder.
Capítulo 1
7 de outubro, 1818, Adare, Irlanda
Em três dias ia casar-se. Como tinha ocorrido aquilo?
Em três dias ia casar-se com um cavalheiro ao que todo mundo considerava perfeito para ela. Em três curtos dias, ia converter-se na esposa de Peter Sinclair. Eleanor de Warenne estava assustada.
Ia tão inclinada sobre o lombo de seu cavalo que só via sua
pelagem e sua crina. Esporeou-o para que galopasse mais rapidamente, mais perigosamente. Eleanor queria correr mais que seu nervosismo e seu medo.
E brevemente, conseguiu-o. A sensação de velocidade se fez absorvente; não podia haver outro sentimento nem outros pensamentos. O chão a era um borrão sob os cascos do cavalo. Finalmente, o presente se desvaneceu. A euforia se apropriou dela.
O amanhecer iluminava o pálido céu. Finalmente, Eleanor se esgotou, e também o semental que montava. Ergueu-se e o animal diminuiu o passo. Imediatamente, ela recordou de seu iminente matrimônio.
Eleanor fez que o cavalo diminuísse a velocidade até o trote. Tinha chegado ao ponto mais alto da colina, e olhou para baixo, para sua casa. Adare era a cabeça das terras de seu pai, que abrangiam três condados, cem povos, milhares de granjas e uma mina de carvão muito produtiva, além de várias pedreiras.
Mais abaixo, a colina se convertia em um espesso bosque, e mais à frente, em uma pradaria exuberante que, atravessada por um rio, terminava nos jardins que rodeavam a enorme mansão de pedra que era seu lar. Aquela mansão, que tinha sido reformada cem anos antes, era um retângulo de três pisos, com uma dúzia de colunas que sujeitavam o telhado e o frontón triangular. Havia duas asas mais detrás da fachada, uma reservada para a família, e a outra para seus convidados.
Sua casa estava, naquele momento, abarrotada de pessoas da família e convidados. Assistiriam trezentas pessoas ao enlace, e os cinqüenta membros da família do Peter estavam alojados nesta asa. O resto ficavam nas estalagens dos povos e no Grande Hotel de Limmerick.
Eleanor olhou para o imóvel, sem fôlego, suarenta; a trança lhe tinha desfeito, e vestia um par de calças que tinha roubado séculos atrás de algum de seus irmãos. Depois de sua apresentação na sociedade, dois anos antes, tinham-lhe pedido que montasse com um traje de amazona adequado para uma dama.
Entretanto, criou-se com três irmãos e com dois meio-irmãos, e pensava que aquilo era absurdo. Após, tinha começado a montar ao amanhecer para poder montar escarranchada e fazer saltos, coisas impossíveis de levar a cabo com saia. A sociedade consideraria seu comportamento reprovável, e também seu prometido, se descobrisse que ela gostava de montar e vestir-se como um homem.
É obvio, não tinha intenção de permitir que ninguém a descobrisse. Queria casar-se com Peter Sinclair, verdade?
Eleanor não pôde suportá-lo, então. Tinha pensado que sua pena e sua preocupação tinham acontecido fazia muito tempo, mas naquele momento tinha o coração destroçado. Sabia que devia casar-se com Peter, mas com suas bodas tão perto, tinha que admitir uma verdade terrível e aterradora. Já não estava segura. E mais importante ainda, tinha que saber se Sean estava vivo ou morto.
Eleanor guiou ao cavalo colina abaixo. Tinha o pulso acelerado por causa de uns sentimentos que não queria experimentar. Ele a tinha deixado quatro anos antes. E no ano anterior, ela tinha conseguido aceitar a realidade de seu desaparecimento. Depois de esperar sua volta durante três intermináveis anos, depois de negar-se a acreditar a conclusão a que tinha chegado sua família, despertou-se uma manhã com uma horrível certeza. Sean tinha partido para sempre. Não ia voltar. Todos tinham razão: ele não havia tornado a dar sinais de vida. Quase com toda segurança, devia estar morto.
Durante vários dias tinha permanecido encerrada em seu quarto, chorando a morte de seu melhor amigo, do menino com o que tinha passado a maior parte de sua vida, do homem ao que amava. E à quarta manhã, tinha saído de seu quarto e tinha ido ver seu pai.
—Estou pronta para me casar, pai. Eu gostaria que encontrasse um candidato apropriado.
O conde, que estava sozinho na sala do café da manhã, olhou-a boquiaberto.
—Alguém com um bom título e rico, alguém a quem goste da caça tanto como a mim, e pessoalmente atrativo —tinha prosseguido Eleanor. Já não ficavam emoções. Acrescentou com expressão sombria—: De fato, deverá ser um cavaleiro excepcional, ou não conseguiremos nos levar bem.
—Eleanor… —disse o conde, ficando em pé—, tomou a decisão correta.
Ela tinha evitado a questão.
—Sim, sei.
Depois, partiu antes de que seu pai pudesse lhe perguntar qual era o motivo de tão súbita mudança de opinião. Eleanor não queria falar de seus sentimentos com ninguém.
Um mês depois tinha tido lugar a apresentação. Peter Sinclair era o herdeiro de um condado e de umas terras situadas no Chatton, e sua família era rica. Tinha sua mesma idade, e era bonito e encantador. Era um cavaleiro perito, e criava cavalos puro sangue.
Eleanor tinha sentido desconfiança por sua origem inglesa, já que durante suas duas temporadas sociais em Londres tinha sofrido a perseguição de alguns mulherengos, mas, ao conhecê-lo, tinha sentido simpatia por ele quase imediatamente. Ele tinha se comportado de um modo sincero desde o começo. Aquela mesma noite, ela tinha decidido que o matrimônio com ele seria possível. A celebração das bodas se fixou para pouco depois, dada a idade da Eleanor.
De repente, ela se sentiu como se estivesse sobre um cavalo selvagem, um ao que não podia controlar. Tinha montado durante toda sua vida, e sabia que o único recurso que tinha era saltar.
Entretanto, ela nunca tinha fugido de nada, nunca em seus vinte e dois anos de vida. Em vez disso, tinha exercitado sua vontade e sua habilidade sobre o cavalo e tinha conseguido controlá-lo.
Havia tentando convencer-se de que todas as noivas estavam nervosas antes das bodas; depois de tudo, sua vida estava a ponto de mudar para sempre. Não só se casaria com Peter Sinclair, mas também iria viver em Chatton, na Inglaterra, dirigiria sua casa e, logo, levaria seu filho no ventre. Deus, poderia fazê-lo?
Oxalá soubesse, ao menos, o que tinha ocorrido a Sean.
Entretanto, provavelmente nunca saberia. Seu pai e Devlin tinham passado anos buscando-o, inclusive através da polícia, os Bow Street Runners. Entretanto, ninguém o tinha encontrado. Sean O’Neill tinha desvanecido.
Uma vez mais, amaldiçoou-se por havê-lo deixado partir. Eleanor tinha tentado detê-lo; deveria havê-lo tentado com mais ímpeto.
Bruscamente, Eleanor deteve suas arreios e fechou os olhos com força. Peter seria um marido perfeito, e ela estava muito afeiçoada com ele. Sean não estava. Além disso, Sean nunca a tinha olhado do mesmo modo em que a olhava Peter. Seu prometido era bom, divertido, encantador, loiro e bonito. Estava louco pelos cavalos, como ela. Era uma estupenda partida, tal e como haveriam dito as debutantes dos bailes aos que ela se viu obrigada a assistir.
Eleanor esporeou ao cavalo para que seguisse avançando. Não sabia por que se estava mentindo daquela maneira. Peter era um bom homem, mas, como ia casar se com ele quando existia a mais mínima possibilidade de que Sean estivesse vivo? Por outra parte, já não podia romper os contratos de matrimônio!
De repente, sentiu um profundo pânico. Em Londres, ela tinha sido todo um fracasso. Odiava os bailes, onde a desprezavam por ser irlandesa e alta, e porque preferia os cavalos às festas. Os ingleses tinham sido terrivelmente condescendentes. E estava segura de que também seria um fracasso em Chatton. Embora Peter nunca tivesse questionado sua origem, quando a conhecesse também seria condescendente com ela.
Porque ela não era uma dama o suficientemente educada para ser uma esposa inglesa. As damas não montavam a cavalo escarranchado, com calças e a sós ao amanhecer. E embora algumas eram o suficientemente valentes para ir à caça da raposa, as damas não disparavam carabinas nem praticavam a esgrima. Peter não a conhecia absolutamente.
As damas não mentiam.
Era como se Sean estivesse a seu lado, lhe cravando um olhar cheia de acusações. Oxalá ele não a tivesse deixado. Como era possível que aquilo seguisse lhe fazendo dano, a ponto de casar-se, e quando tinha investido um ano inteiro de sua vida em sua relação com Peter?
Fechou os olhos outra vez e viu de novo a um homem alto, moreno, de olhos assombrosamente chapeados.
«As damas não mentem, Elle».
Eleanor não pôde suportar aquela pontada de tristeza. Não necessitava aqueles pensamentos naquele preciso instante. Não queria os ter.
—Vá! —exclamou, quase chorando— Deixe-me em paz, por favor!
Entretanto, o dano permanecia. Ela tinha se atrevido a deixá-lo entrar de novo em sua mente, e a tão somente uns dias de suas bodas, parecia que não ia partir.
Eleanor conhecia Sean desde que eram meninos. A mãe de Sean ficou viúva durante um terrível massacre provocado pelos ingleses, e seu pai, que também era viúvo por aquela época, casou-se com a Mary O’Neill e tinha acolhido a Sean e a seu irmão. Embora nunca os tinha adotado legalmente, tinha criado aos meninos O’Neill junto a seus três filhos e a Eleanor, tratando-os como se também fossem deles.
Eleanor tinha tantas lembranças… Inclusive quando era um bebê que mau andava, pensava que Sean era um príncipe, embora em realidade sua família era da pequena nobreza irlandesa, e católicos empobrecidos.
Ela tinha engatinhado atrás dele, chamando-o, tentando segui-lo a todas as partes. Ao princípio, ele tinha sido amável e a tinha levado sobre os ombros, ou a tinha puxado da mão para devolver-lhe a sua babá. Entretanto, sua amabilidade se converteu em irritação quando Eleanor tinha crescido e, de menina, tinha começado a esconder-se na classe em que ele tomava suas lições, e lhe tinha aconselhado como fazer melhor as coisas. Sean chamava o professor e dizia a Eleanor que partisse e se ocupasse de seus assuntos. Por desgraça, inclusive aos seis anos, Eleanor se dava melhor em matemática que a ele.
Se a Sean lhe ocorria escapar das lições durante um dia, ela o seguia até o lago, decidida também a pescar. Sean tentava assustá-la com os vermes, mas Eleanor o ajudava a pô-los nos anzóis. Ela também era melhor nisso.
—Está bem, má erva, pode ficar —resmungava ele finalmente.
Uma antiga dor estava se apropriando dela, mas entretanto se deu conta de que também estava sorrindo. Tinha desmontado e caminhava com as rédeas do cavalo na mão. Já estava perto dos estábulos, e enquanto avançavam, o animal pastava com satisfação.
A Eleanor lhe encheram os olhos de lágrimas. Sean não estava ali. Ela desejava com todo seu coração que voltasse, ela sentia falta dele, mas do que servia? A lógica dizia que se tivesse querido voltar, já o teria feito. E o sentido comum lhe dizia, além disso, algo muito mais doloroso: Sean nunca tinha demonstrado que sentisse por ela outra coisa que afeto fraternal.
Ao chegar junto a uma das entradas do imóvel, Eleanor se deu conta de que lhe aproximava um homem. Imediatamente reconheceu seu irmão maior, Tyrell. Ele estava tão ocupado com todos os assuntos das terras, o condado e a família que já não passavam muito tempo juntos, mas não havia nenhum homem mais sólido ou melhor que ele.
Um dia, Tyrell se converteria no patriarca da família, e teria que lhe expor todos os problemas e as crises, tanto pessoais como de outra classe, para que resolvesse. Ela o admirava muito. Era seu irmão favorito.
Tyrell se deteve ante ela, e Eleanor se alegrou muito de havê-lo encontrado. Era um homem alto, musculoso e moreno. Sorriu e disse a sua irmã:
—Me alegro de ver que está bem. Vi-te da janela, e quando desceu do cavalo, temi que tivesse ocorrido algo de mau.
Eleanor esboçou um sorriso forçado. Sentia-se triste e frágil.
—Estou bem. Decidi deixar pastar um pouco ao Apollo, isso é tudo.
Tyrell a olhou fixamente.
—Sei que sempre gostou de madrugar, mas acreditava que tínhamos feito o trato de que não montaria deste modo enquanto tivéssemos tantos convidados.
Eleanor tentou seguir sorrindo, mas evitou seu olhar.
—Tinha que montar esta manhã.
—O que te ocorre? —perguntou-lhe Tyrell sem rodeios, e carinhosamente, tirou-a da mão— À maioria das noivas gostariam de poder dormir mais para estar mais belas, carinho —lhe disse.
—Dormir mais não me vai cortar a estatura —respondeu ela com sarcasmo— As belezas de verdade não são tão altas como os homens, e mais altas que seus maridos.
Ele sorriu brevemente.
—Decidiste que quer um marido mais alto? É um pouco tarde para trocar de opinião.
Demônios, o primeiro pensamento de Eleanor foi que a Sean apenas lhe chegava pelo queixo, inclusive com as botas postas. Consternada, Eleanor mordeu o lábio.
—Tenho muito carinho por Peter —murmurou— Não me importa que nossos olhos estejam à mesma altura quando eu estou descalça.
—Me alegro, porque ele está muito apaixonado por você —lhe disse Tyrell seriamente.
—Acredita de verdade? Vou contribuir uma grande fortuna ao matrimônio.
—É muito evidente que está apaixonado, Eleanor. Por que está inquieta?
—Estou confusa —respondeu ela com um suspiro.
Ela assinalou-lhe um banco de pedra com uma expressão amável. Entregou-lhe as rédeas do cavalo e ambos se sentaram.
—Seriamente aprecio Peter —disse— É muito inteligente e considerado, e desfrutei durante o tempo que passamos juntos. Sabe que detesto os bailes, mas estes últimos meses, com ele a meu lado, não me importou dançar.
—Ele foi bom com você, Eleanor —lhe disse Tyrell— Toda a família está de acordo nisso. Vai convertê-la em uma dama elegante e convencional.
—Eu tentei seriamente ser uma dama —disse ela.
«As damas não mentem, Elle».
De novo, Eleanor sentiu pânico. Levantou-se com brutalidade.
—Tyrell! Sean está me obcecando. Não posso fazê-lo! De verdade, não posso! Deveríamos cancelar as bodas. Não me importa me converter em uma solteirona.
Ele abriu os olhos de par em par.
—Eleanor, o que é o que motivou isto agora? —perguntou-lhe com cautela.
—Não sei! Se ao menos soubéssemos onde está Sean… se soubéssemos o que lhe ocorreu…
Tyrell permaneceu em silêncio.
Ela encheu aquele silêncio.
—Sei que você pensa que está morto. Sei o que disse a polícia. Eu ainda sinto falta dele —sussurrou Eleanor.
E para seu assombro, deu-se conta de que seguia sentindo tanto como se lhe atravessassem o coração com uma faca.
Tyrell lhe passou o braço pelos ombros.
—Quiseste-o durante toda a vida, e leva quatro anos longe daqui. Estou seguro de que uma parte de você terá saudades para sempre dele. Peter é uma grande partida para você, Eleanor, em todos os sentidos, e eu estou muito contente porque sei que além disso está verdadeiramente apaixonado por você.
Ela apenas o ouviu.
—Mas como vou fazer tudo isto se me sentir assim? Estou tão inquieta! É quase como se Sean estivesse aqui e me impedisse de seguir adiante. Vou ser a esposa de Peter Sinclair. Vou ter seus filhos. Vou viver em Chatton.
—E se Sean estivesse aqui as coisas seriam distintas?
—Sim! —respondeu ela, e se ruborizou— Compreendo o que quer dizer. Ele nunca me quis como me quer Peter. Sei, Ty, então por que tenho que estar pensando nele em todas as horas?
—Todas as noivas ficam muito nervosas antes de suas bodas, ou ao menos, isso me falaram —lhe disse Tyrell com um sorriso reconfortante— Possivelmente esteja procurando desculpas para postergar o evento, ou possivelmente para fugir.
Ela o observou atentamente.
—Possivelmente tenha razão. O que deveria fazer?
—Eleanor. Já esperaste durante quatro anos por Sean. O que deveria fazer? Esperar outros quatro?
Aquilo era o que seu coração desejava. Finalmente, Eleanor disse:
—Ele não está morto, Ty. Sei. Sinto muito. Está muito vivo. Tem-me feito muito dano, mas um dia voltará e nos contará o que ocorreu e por que.
—Espero que tenha razão —disse Tyrell com seriedade— Uma pessoa muito sábia disse uma vez que nós não escolhemos o amor. O amor nos escolhe. O amor verdadeiro nunca morre, Eleanor.
—E o que faço? —perguntou-lhe em tom suplicante sua irmã.
—Sinceramente, não me surpreende que se sinta atormentada por suas lembranças justamente antes de suas bodas. Tendo em conta o passado, seria estranho que não pensasse nele. Mas isso não significa que tenha que cancelar suas bodas com o Sinclair.
—O que quer dizer?
—Eleanor, desejo que tenha uma vida própria. Seu lar, sua família, um futuro com a alegria dos filhos. Sean nunca correspondeu a seus sentimentos, e não sabemos onde está ou se voltará algum dia. Sinclair te está oferecendo um futuro de verdade. Acredito que seria um engano que o abandonasse no altar. Não encontrará uma oportunidade assim de novo. Sinclair é estupendo para você.
Eleanor se deu conta de que não lhe importava o que lhe estava dizendo. Encurvou-se sobre o banco, consumida de desesperança e dúvida.
Tyrell seguiu falando com delicadeza.
—Sinclair é um homem honrável, e se apaixonou por você. Seriamente está pensando em romper o compromisso por causa da remota possibilidade de que Sean volte e se dê conta de que te quer?
Ela se sentia tão afligida que não podia pensar com claridade. Tyrell tinha razão. Estava sendo absurda. E tinha dado sua palavra a Peter Sinclair.
—Claro que, se você não quisesse nada com Sinclair, eu não quereria que se casasse com ele —prosseguiu seu irmão— Mas, por isso vi, acredito que lhe tem muito carinho. Tenho me sentido muito feliz ao te ver rir de novo, Eleanor. E nunca pensei que te veria sorrir durante um baile.
Eleanor respirou profundamente e tomou uma decisão.
—Tem razão. Sou muito afortunada. Peter tem título, é rico, bonito e bom, e além de me querer. Devo ser a parva maior do mundo por pensar em romper este compromisso por causa de um homem que não me quer, que nem sequer está aqui. Um homem que todo mundo dá por morto.
—Nunca foste parva —replicou Tyrell—, mas me alegra que siga adiante com as bodas. Não sou capaz de explicar-lhe o prazer que experimentará ao ter uma família própria.
—Você escandalizou a toda a sociedade ao escolher Lizzie em vez de se casar segundo seu dever, Ty. Casou-se por amor, por amor verdadeiro; assim que eu não estou tão segura de que vá desfrutar de tudo o que você tem.
—Nunca saberá se não o tenta —disse ele— Eu nunca a animaria a este matrimônio se não tivesse grandes esperança para ele. Quero que se sinta amada e que seja feliz, Eleanor. Todos o queremos.
Ela o abraçou.
—É meu irmão favorito! Havia-lhe dito isso?
Ele riu.
—Acredito que sim —lhe disse ele com um sorriso de afeto— E, Eleanor? Não se volte muito masculina, por favor.
Ela sorriu.
—Como é um truque, não tem que temer que meu caráter se transforme muito. Não é prova disso meu traje? —disse, e assinalou as calças que levava postos.
Tyrell não baixou o olhar.
—Sobre este tema, tenho uma objeção. Eleanor, por favor, me prometa que voltará a pôr o traje de montar. Ao menos, até depois das bodas e da lua de mel. E te aconselho que depois peça ao Peter humildemente que te permita montar escarranchado. Não me cabe dúvida de que poderá convencê-lo de algo que deseje de verdade.
Ela suspirou.
—Tentarei ser humilde, Ty. E tem razão. Não preciso montar um escândalo. Entrarei em casa sem que ninguém me veja. Estão levantados os cavalheiros?
—Um grupo deles tem intenção de ir de pesca, assim agora estão na sala do café da manhã. Sugiro-te que atravesse o salão de baile. As senhoras estão dormindo, salvo minha esposa —disse ele, com um sorriso.
—Obrigado, Ty. Obrigado por seus conselhos. Acalmaste-me muito. Agora me sinto muito melhor.
Tyrell lhe beijou a bochecha.
—Dá a casualidade de que acredito que está fazendo o correto. Acredito que, com o tempo, seu amor pelo Peter aumentará. Quando tiver seus filhos não o lamentará. Você merece a vida que ele te pode oferecer. Sinclair pode te dar muitas coisas.
—Sim. Tem razão. De fato, sempre tem razão —disse Eleanor, e sorriu a seu irmão. Nunca estava de mais adular ao herdeiro do condado.
Ele riu.
—Minha esposa não estaria de acordo. Não tem por que ser lisonjeadora, querida.
—Mas se for o mais sábio de todos meus irmãos! Importaria-se de levar ao Apollo ao estábulo, por favor? —perguntou-lhe.
—É obvio.
Eleanor o abraçou e caminhou para a casa para entrar em salão de baile pela terraço.
Tyrell ficou ali, olhando-a. Seu sorriso se desvaneceu. Ele tinha sido muito afortunado na vida por ter podido casar-se por amor. E sabia que Eleanor estava tão apaixonada por Sean como sempre. Nunca tinha sido mais evidente. Durante todos aqueles meses passados, ela tinha estado atuando.
Tyrell não podia deixar de pensar em todo aquilo. Sua mulher o tinha convertido em um romântico. Desejava com todas suas forças que as circunstâncias fossem distintas, e que sua irmã pudesse casar-se com quem de verdade era seu amor. Entretanto, aquilo não era possível, e Sinclair lhe estava oferecendo um futuro.
Embora Sean voltasse naquele mesmo momento, não podia oferecer nada a Eleanor.
Tyrell ficou muito tenso. Tinha-lhe oculto a verdade a sua irmã, e desejava que fosse o correto.
Porque a noite anterior, depois do jantar, o comandante do regimento estacionado ao sul de Limerick, o capitão Brawley, tinha pedido uma audiência com o conde. Tyrell também tinha assistido, posto que era seu direito. E o jovem capitão lhes havia dito que haviam descoberto o paradeiro de Sean O’Neill.
Tyrell e seu pai tinham sabido que Sean tinha estado encarcerado durante os dois últimos anos em uma prisão militar em Dublín; aquilo lhes tinha produzido uma forte impressão. Segundo o capitão, Sean tinha sido acusado de traição. Não havia explicação para aquele confinamento tão largo nem do motivo pelo que as autoridades não tinham informado à família. Então, Brawley lhes tinha contado a notícia mais impressionante de todas: Sean tinha escapado três dias antes.
Sean O’Neill se tinha convertido em um fugitivo procurado pelas autoridades, que tinham posto preço a sua cabeça.
E Tyrell esperava que aparecesse em Adare em qualquer momento.
Capítulo 2
Todo mundo pensava que o inferno era um fogo abrasador. Todo mundo se equivocava.
O inferno era a escuridão. O silêncio, o isolamento. Ele sabia. Acabava de passar dois anos ali. Três dias antes, tinha escapado.
A luz fazia mau nos seus olhos, e os sons normais o assustavam; os ingleses o perseguiam, e não tinha intenção de deixar-se pendurar. Por todas aquelas razões, tinha estado ocultando-se no bosque durante o dia e avançando caminho ao sul de noite. Haviam-lhe dito que em Cork havia homens que o ajudariam a fugir do país. Homens radicais, homens que também eram traidores, como ele, e que não tinham nada que perder salvo a vida.
Estava a ponto de amanhecer. Ele estava coberto de suor, depois de ter viajado da prisão de Dublín aos subúrbios de Cork em tão somente três dias, a pé.
Quando se tinha dado conta de que possivelmente nunca saísse do buraco negro de sua cela, tinha começado a exercitar seu corpo para manter-se forte, ao tempo que planejava uma fuga. Exercitar o corpo tinha sido fácil. Tinha encontrado um oco na parede, e o tinha usado para pendurar-se dele e subir a pulso.
No piso tinha feito flexões, e tinha mantido em forma as pernas fazendo exercícios de esgrima. Entretanto, seu corpo não estava acostumado a andar nem a correr. Os músculos que não tinha usado durante dois anos lhe gritavam de dor. E os pés era o que mais lhe doía de tudo.
Exercitar a mente tinha sido muito mais difícil. Concentrou-se em problemas matemáticos, em geografia, em filosofia e nos poemas. Rapidamente se tinha dado conta de que devia manter a mente ocupada, porque do contrário não podia evitar pensar. E o pensamento o fazia recordar, e recordar só lhe provocava desespero e medo.
Na mão levava uma tocha. A tocha era seu tesouro mais prezado. Depois de ter estado imerso na escuridão durante dois anos, uma fonte de luz era algo muito importante para ele.
Sean O’Neill olhou para céu. Tinha começado a esclarecer-se; já não necessitava a luz para seguir. O outro único sobrevivente de Kilvore lhe havia dito que chegasse a uma determinada granja o mais rapido que pudesse, e ele sabia que devia continuar, superar seu medo. Com cuidado, apagou a tocha.
Blarney Road, a estrada em que estava, conduzia ao centro do povoado. Um pouco mais adiante estava a granja Connelly. Tinham-lhe assegurado que ali encontraria ajuda.
Enquanto caminhava pelo bosque, sem atrever-se a usar a estrada, a não ser avançando em paralelo a ela, pulsava-lhe o coração com força. Durante as três largas noites que tinha passado viajando, tinha evitado todas as estradas e inclusive os caminhos, mantendo-se nas colinas e o bosque.
Tinha ouvido tropas uma vez, a cento e cinqüenta quilômetros ao norte do lugar no que se encontrava naquele momento. A horas de Dublín, tinha ouvido um rodeio de cavalos e se apareceu em caminho das altas rochas do topo de uma colina. Abaixo, viu os uniformes azuis de um regimento de cavalaria. A última vez que tinha visto a cavalaria, tinham morrido duas dúzias de homens, e também mulheres inocentes e meninos. Aterrorizado, Sean havia tornado a se esconder no bosque.
O céu começou a ficar de cor rosa pálido. Aquele dia tampouco ia chover. Começou a ficar tenso, mas estava muito perto de seu objetivo para deter-se. Sofreria à luz do dia, por muito que lhe custasse. Os sons do bosque que despertava já estavam começando a sobressaltá-lo; os pássaros que começavam a cantar nos ramos das árvores lhe fizeram chorar, como cada manhã desde que tinha conseguido escapar. Era um som precioso, tão inestimável como a tocha que levava na mão.
A estrada se curvou, e apareceu uma casa de campo com o telhado de palha. Detrás da casa havia um campo de milho e um abrigo.
Sean se deteve detrás de uma árvore, com a respiração entrecortada, e não do exercício, mas sim do medo. Resultava-lhe muito difícil ver além da casa, do semeado e do abrigo, devido a que na prisão os olhos lhe tinham debilitado muito. Finalmente, percebeu um movimento entre a casa e o campo de milho; era um homem, ou ao menos isso lhe pareceu. Desejou com todas suas forças que fosse Connelly.
Sean olhou para ambos os lados da estrada, mas não divisou a ninguém. Não confiava em sua vista, assim emprestou atenção para perceber algum som. Quão único ouviu foi o canto dos pássaros, e depois de um momento, pensou que também poderia detectar o rangido das folhas, o sussurro da brisa.
Pensou que estava sozinho.
E começou a suar de novo.
Naquele momento, o coração lhe pulsava desbocadamente. Saiu do bosque à estrada, quase esperando que uma coluna de soldados se lançasse sobre ele sem piedade. Entretanto, não apareceu nenhum soldado, e ele tentou respirar com mais calma. Não o conseguiu. Estava muito assustado.
Piscou contra o céu brilhante e seguiu cruzando a estrada.
O homem o viu e se deteve.
Sean amaldiçoou sua visão e seguiu para diante. Tentou falar com grande esforço. Justo antes de que o confinassem no isolamento mais absoluto, tinha havido um assassinato na prisão, seguido de um terrível caos. O tinham golpeado grosseiramente, e no distúrbio, tinham-lhe talhado o pescoço. Depois, ninguém tinha enviado a um médico para que o atendesse, e durante uns dias Sean se debateu entre a vida e a morte.
Pouco a pouco, entretanto, curou-se, embora não por completo. Já não podia falar com facilidade; de fato, formar as palavras lhe custava um esforço desonesto, e lhe resultava exaustivo. É obvio, não tinha tido que falar com ninguém durante dois anos, e uma vez que se deu conta de que logo que podia fazê-lo, não o tinha tentado.
Naquele momento, tentou pronunciar a palavra que tinha em mente.
—Connelly? —disse lentamente, e ouviu sua própria voz, rouca e desagradável.
O homem se aproximou dele.
—Você é O’Neill —lhe disse seu interlocutor, e o puxou pelo braço.
Sean ficou impressionado ao sentir seu roce, e alarmado ao dar-se conta de que o esperavam. Fez um gesto de dor e se afastou do outro homem.
—Como sabe?
—Temos nosso próprio correio secreto —respondeu Connelly. Era um homem grande, forte, com um largo nariz vermelho e os olhos azuis, muito brilhantes—Me mandaram uma mensagem. Será melhor que entre.
Sean seguiu o homem à casa, e quando a porta esteve fechada, sentiu um grande alívio.
—Minha senhora já está com as galinhas —lhe disse Connelly— Agora é John Collins —lhe explicou. Enquanto falava, olhava a Sean com preocupação crescente— Parece um esqueleto, moço. Darei-te de comer e uma lâmina para que se barbeie. Malditos sejam esses desgraçados ingleses!
Sean se limitou a assentir, e se apalpou a espessa barba. Não tinha podido barbear-se durante dois anos.
Connelly titubeou, mas depois lhe disse:
—Sinto o que ocorreu em Kilvore. Sinto-o muito. Sinto por sua esposa e seu filho.
Sean se ergueu. Na mente se formou uma imagem imprecisa de uma cara doce com os olhos bondosos, cheios de esperança. Peg se tinha desvanecido em uma lembrança pouco definida e dolorosa, sem cor, embora ele sabia que ela tinha o cabelo ruivo. A Sean lhe encolheu a alma.
No princípio tinha sofrido, durante muitos meses. Naquele momento, entretanto, já só ficava o sentimento de culpa. Estavam mortos por sua culpa.
—Não fica outro remédio que partir do país. Sabe?
Sean assentiu, aliviado por que tivessem interrompido seus pensamentos. Tinha aprendido como evitar toda lembrança de seu breve matrimônio, salvo nas horas da madrugada.
—Sim.
—Bom. Vá diretamente pelo Blarney Road até o Blarney Street. Pode cruzar o rio pela primeira ponte. Segue o rio, te levará até o cais, Anderson Quay. O sapateiro O'Dell te dará alojamento.
Sean assentiu de novo. Tinha perguntas, sobre tudo, quando poderia encontrar uma passagem e quanto teria que pagar, mas de momento, sentia-se exausto e faminto. Só tinha comido uma fatia de pão em três dias. E falar lhe resultava uma difícil tarefa. Tentou formar as palavras e inquiriu:
—Quando? Quando… poderei sair do país?
—Sente-se, moço —disse Connelly com expressão grave— Não sei. Todas as manhãs, ao meio dia, vá ao Oliver Street. Procura um cavalheiro que leve uma flor branca na lapela. Ele poderá te dizer o que precisa saber. Eu só sou um granjeiro, Sean.
—Meio-dia —repetiu Sejam— Hoje? Tenho que ir… hoje?
—Não sei se o cavalheiro estará ali hoje ou amanhã, ou ao dia seguinte. Mas é um homem bom. É toda uma ajuda para os patriotas. Chama-se McBane. Não o perca.
McBane, pensou Sean, e assentiu.
Connelly se voltou e foi para a despensa. Depois voltou com um prato de batatas cozidas e uma grande fatia de pão com queijo. A Sean lhe fez a boca água.
A mesa estava coberta com uma toalha branca; a cristaleira era do Waterford, a porcelana importada e os talheres de prata. A estadia estava iluminada por enormes candelabros, e os serventes uniformizados serviam bandejas de veado, cordeiro e salmão. As mulheres levavam seda e jóias, e os homens o traje de ornamento. O perfume flutuava no ar…
Sean se sobressaltou. Não tinha direito a recordar aquilo. negava-se a identificar aquelas lembranças nem ao homem a quem pertenciam.
Em vez disso, começou a comer rapidamente o pão e o queijo. O único passado que queria recordar era o mais recente, sua vida na granja dos Boyle. De outro modo, nunca poderia pagar pelo que lhes tinha feito.
O ruído era ensurdecedor.
Sean se deteve o passar a entrada do bar, afligido pela cacofonia de sons. Teve o impulso quase irresistível de tampar aos ouvidos com as mãos. As conversações escandalosas, as gargalhadas, o arrastar das cadeiras, o tinido das latas eram uma inundação de sons que ameaçava imobilizando. Sean ficou rígido de tensão. E as luzes brilhantes eram cegadoras.
Tinha saído da granja uma hora depois de chegar ali, e tinha seguido as instruções de Connelly. O sapateiro, a quem tinha encontrado com facilidade, tinha-o agasalhado em uma pequena habitação que tinha sobre sua oficina.
O que sim lhe tinha resultado difícil tinha sido percorrer a cidade, que despertava a aquelas horas, com todo seu tumultuar. Sean tinha ficado afligido com a presença de tanta gente, tão a pé como a cavalo, ou em carretas e carruagens, e com tanta conversação e movimento. E também havia muita sujeira, muita fuligem, fumaça e lixo. Sentia-se estranho, um intruso, como um granjeiro do norte que nunca tivesse estado em uma cidade.
Não tinha conseguido acostumar os sentidos a semelhante descarga de estímulos durante as poucas horas que tinha passado ali. E naquele momento, ao entrar no pub, teve que tampar os olhos com as mãos. Sentiu uma quebra de onda de pânico, e seu primeiro instinto foi fugir.
Entretanto, conservou a capacidade de raciocinar. Sua mente pôde discernir que aquele estabelecimento público abarrotado era preferível ao escuro buraco que tinha sido sua cela. E se disse que, ao final, acostumaria-se ao ruído, à luz e à multidão.
Respirou profundamente e começou a avançar por entre a gente, com cuidado de evitar o contato físico com outros. Tinha divisado uma mesa solitária ao fundo, na penumbra; quando chegou a ela, sentiu-se mais seguro, aliviado. Sentou-se contra a parede, de modo que tinha as costas protegida e podia abranger toda a estadia com o olhar.
Observou aos trinta ou quarenta homens que estavam presentes ali, todos bebendo, rindo, falando ou jogando cartas ou jogo de dados. Uma vez mais, sentiu-se como um intruso. Aqueles homens eram irlandeses, como ele. Uma vez, ele tinha estado disposto a dar a vida defendendo-os contra a tirania e a injustiça, e quase o tinha feito. Naquele momento não sentia nenhum vínculo com eles. Não sentia nada absolutamente, salvo confusão e surpresa.
Foi então quando viu aproximar-se de um homem que levava uma jaqueta de lã azul, uma flor silvestre na lapela e uma pequena carteira na mão. Como temia uma armadilha, Sean deixou sua adaga, que tinha roubado ao guarda da prisão ao escapar, sobre sua coxa, sob a mesa.
O cavalheiro o viu e se deteve ante a mesa.
—Collins?
Sean assentiu ao ouvir seu sobrenome falso. Depois lhe assinalou a cadeira.
O homem se sentou.
—Deram-me sua descrição —disse— Por desgraça, tem exatamente o aspecto que teria um delinqüente fugitivo.
Sean fez caso omisso daquele comentário. O homem era alto e era ruivo. Levava um traje de boa lã e uns sapatos reluzentes. Claramente, era de classe alta. Provavelmente, era o homem que Connelly lhe tinha indicado, alguém chamado Rory McBane.
Sean demorou um momento em falar. Resultava-lhe um pouco mais fácil que ao princípio.
—Está sozinho?
—Não me seguiram —respondeu McBane, observando-o com cautela— Tive muito cuidado. E você?
Sean assentiu. Seu interlocutor seguiu olhando-o fixamente, como se estivesse tentando discernir a quem estava ajudando naquela ocasião. Possivelmente McBane soubesse que o buscavam por assassinato. Possivelmente soubesse que era um assassino e tivesse medo.
—Tudo o que precisará está nessa carteira —lhe disse McBane depois de um silêncio tenso— Há um pouco de dinheiro e uma muda de roupa. Também uma passagem para Hampton, Virginia, em um navio de mercadorias americano, o Ou. S. Firo. Sairá depois de amanhã com a primeira maré.
Logo seria livre. Em questão de dias, estaria cruzando o oceano, afastando-se dos ingleses e da Irlanda, a terra onde tinha crescido e tinha passado a maior parte de sua vida. Sabia que devia dar graças ao McBane, mas em vez disso, o coração lhe acelerou, como se estivesse tentando lhe dizer algo. Sabia que deveria sentir-se exultante ou aliviado, mas não notava nenhuma daquelas coisas.
O cristal tilintou. As suaves conversações se aconteceram a seu redor. E uns olhos de cor âmbar, brilhantes e risonhos, sustentaram-lhe o olhar.
Sean sentiu uma forte tensão. Não entendia por que, de repente, a mente lhe estava jogando aquela má passada. Estava muito enjoado. Possivelmente estivesse voltando-se louco, por fim. Não podia deixar-se levar ali onde suas lembranças queriam transladá-lo. Não podia retornar para aquela vida! O pânico se apropriou dele.
—Necessita de uma boa lâmina de barbear —lhe disse McBane, e a interrupção foi bem-vinda— Vi um póster da polícia com seu retrato. Parece-se muito. Tem que tirar essa barba.
Sean ficou olhando. Ele tinha usado a lâmina do Connelly, mas não era de boa qualidade. E McBane tinha razão. Necessitava um bom barbeador, uma escova do cabelo e sabão.
E sua cabeça seguia vagando.
Uns olhos chapeados, brilhantes, agradáveis, devolviam-lhe o olhar do espelho. Ali se refletia um homem bonito, moreno, que se estava barbeando pela manhã. Naquele reflexo, havia umas cortinas de veludo abertas. Fora, o céu estava azul, esplêndido, e as colinas eram maravilhosamente verdes. Espionavam-se as ruínas de uma torre da janela. E se via o mar.
Sean! Vai seguir perdendo o tempo, ou vamos montar a cavalo?
—Está bem? —perguntou-lhe McBane.
Sean não entendeu a pergunta. O que lhe estava acontecendo? Não podia pensar naquele passado. Ele tinha se casado com Peg Boyle, decidido a conseguir amá-la algum dia, e a ser um bom pai para seu filho e para o filho que levava no ventre. Peg era a única mulher da que tinha que lembrar-se. Naquele momento, deliberadamente, recordou-a entre seus braços, golpeada, maltratada, sangrando até morrer.
—Olhe, Collins, tenho entendido que aconteceu um inferno. Estamos no mesmo bando. Sou irlandês, como você. Além disso, também ouvi dizer que é você nobre de nascimento, e isso é algo mais que temos em comum. Não tem bom aspecto. Posso lhe ajudar de algum jeito? —perguntou-lhe McBane, que embora tinha uma expressão de perplexidade, também estava preocupado.
Sean não era capaz de encontrar alívio no presente naquele momento.
—Por que… está fazendo isto? —perguntou-lhe. Queria saber por que um cavalheiro arriscaria sua vida por ele.
—Já te falei. Ambos somos irlandeses, e eu sou um patriota. Você lutou pela liberdade de uma maneira, e eu luto de outra, normalmente, com minha pluma, mas algumas vezes, também, ajudo a homens como você.
Sean tentou sorrir.
—Obrigado —disse com a voz rouca.
—Há algo mais que necessite?
Sean negou com a cabeça. Quão único precisava era navegar para uma terra diferente, para uma vida distinta. Uma vez que o conseguisse, possivelmente deixasse de recordar aqueles momentos de uma vida que tinha deixado atrás, e que o torturavam.
McBane se inclinou para ele.
—Então, deite-se e descanse até que parta o Firo. Eu vou para Cork esta noite, mas pode me localizar em Adare. Está a só meio-dia de caminho daqui, e nossos amigos comuns podem me levar uma mensagem.
Sean sabia que seu corpo tinha permanecido imóvel, mas o coração lhe tinha dado um salto no peito, com uma força dolorosa e exaustiva. Teve a sensação de que McBane acabava de apunhalá-lo. Seria aquilo uma armadilha, depois de tudo? Ou era sua memória a que de novo o estava torturando com crueldade? Acabava McBane de referir-se a Adare?
McBane ficou em pé.
—Que Deus o acompanhe — disse a Sean.
Ele, aturdido, não respondeu.
McBane fez um som de lástima, e depois deu a volta e abriu passo entre a multidão. Sean permaneceu sentado, paralisado. Deveria deixar que McBane partisse; do contrário, ia perder o que ficava de força de vontade. Mas, e se McBane era parte de uma armadilha?
Sean não ia voltar para a prisão e não ia deixar que o pendurassem.
Sean seguiu McBane com o olhar. Esperou que chegasse até a saída, e depois tomou a carteira e saiu atrás dele. Seguiu-o sigilosamente e o agarrou por detrás para aprisioná-lo contra um muro. McBane ficou paralisado.
—Não… vai… para Adare —grunhiu Sean, furioso— Isto é uma brincadeira… ou uma armadilha.
—Collins! —ofegou McBane— Está louco? Que demônios está fazendo?
—O que se propõe? Que… armadilha é esta? —insistiu Sean.
—O que me proponho? Estou tentando ajudá-lo a sair do país, idiota. Não devem nos ver juntos! Minhas opiniões contra os ingleses são bem conhecidas. Maldito seja! Te procuram por toda parte na cidade!
Sean o empurrou com mais força contra o muro.
—Não pode ir para Adare! É um truque! —gritou-lhe.
—Um truque? Está louco! Ouvi dizer que o tiveram em isolamento durante dois anos. Perdeu a cabeça! Vou para Adare porque sou amigo da família da noiva.
E Sean perdeu o controle.
Adare era seu lar.
Os prados verdes e os jardins de Adare eram tão espetaculares que os grupos de veraneantes ingleses pediam permissão para visitá-los. Freqüentemente, também pediam permissão para visitar a mansão, e normalmente lhes concedia se o conde ou a condessa estavam na residência.
Sean estava tremendo. Não, Sean O’Neill tinha crescido ali. Ele se tinha convertido em John Collins.
—Está muito pálido —lhe disse McBane— Solte-me, por favor.
Mas Sean não o ouviu.
Aquela manhã tinham tido aula de ciência e humanidades com o tutor, o senhor Godfrey. Depois tinham passado a tarde praticando a esgrima com um professor italiano, ensaiando passos com o professor de baile e aprendendo técnicas avançadas de equitação. Havia cinco moços, jovens, bonitos, fortes, preparados, privilegiados e mais que um pouco arrogantes. E também estava Elle.
—Há… umas bodas?
—Sim. Umas bodas muito importante, de fato.
Sean fechou os olhos. Não queria recordar um tempo em que tinha tido uma gratificante sensação de pertencer a uma grande família, de segurança, de paz; mas já era muito tarde.
Tinha um irmão, uma cunhada e uma sobrinha; tinha uma mãe e um padrasto; e tinha meio-irmãos, e também tinha Elle. Sean não podia respirar; estava tentando com todas suas forças manter fechada a comporta que continha suas lembranças; se deixava escapar algum, seguiriam-lhe milhares, e nunca conseguiria evitar aos ingleses, nunca poderia fugir do país, não sobreviveria.
Afastou-se de McBane. O suor lhe escorregava pelas costas. McBane estava muito molesto. Ergueu-se e arrumou a roupa. Depois, sua irritação se transformou em preocupação ao ver Sean.
—Encontra-se bem?
McBane tinha mencionado a uma noiva. Sean o olhou.
—Quem se casa?
McBane o olhou com grande surpresa. Depois respondeu com cautela:
—Eleanor de Warenne. Conhece a família?
Sean ficou tão aniquilado que não podia mover-se; a impressão que se levou derrubou todas as barreiras que ele tinha ereto para evitar viajar de volta ao passado. E Elle estava na porta de seu quarto, em Askeaton, com o cabelo recolhido em uma larga trança, vestida para montar, com uma das camisas de Sean e um par de calças de Cliff. Aquilo era impossível.
—Por que demora tanto? —perguntou-lhe— Temos o dia livre! Acabou-se de arranhar queimaduras da madeira. Falou que podíamos passear em Doam's Rock. O cozinheiro preparou a comida em um pacote, e os cães estão lá fora, impacientes.
Sean tentou recordar a idade que tinha Elle então. Era muito antes de sua primeira temporada. Possivelmente tivesse treze ou quatorze anos, porque era alta e magra. Não pôde evitar recordá-lo de tudo.
Ele estava sorrindo.
—As damas não entram sem chamar nas habitações dos cavalheiros, Elle.
Tinha o torso nu. Voltou-se do espelho e tomou uma camisa branca.
—Mas você não é um cavalheiro, verdade?
Ele se abotoou a camisa tranqüilamente.
—Não, você não é uma dama.
—Graças a Deus!
Ele tentou não rir.
—Não use o nome de Deus em vão! —exclamou.
—Por que não? Você o faz muito pior. Ouço-te jurar quando está zangado. Os meninos podem dizer palavrões, e as garotas devem mover os quadris quando andam, e levar horríveis espartilhos!
Ele olhou seu corpo magro.
—Você nunca terá que levar espartilho.
—E é uma sorte! —afirmou Elle.
Finalmente, sua cara se escureceu. Passou por diante dele e se sentou na cama desfeita.
—Sei que sou muito pouco adequada para ser uma dama… —suspirou ela— Estou a regime para engordar. Comi duas sobremesas todos os dias. Não aconteceu nada. Estou sentenciada.
Então, Sean não pôde evitar rir.
Ela ficou furiosa e lhe lançou um travesseiro.
—Elle, há coisas piores que estar magra. Provavelmente, algum dia deixará de está-lo. - disse.
Entretanto, não podia imaginá-la de outro modo que não fosse muito ossuda e muito alta.
Ela se levantou da cama.
—Fala isso para me consolar. Também me disse que deixaria de crescer faz dois anos.
—Estou tentando que se sinta melhor. Vamos. Se ganhar até Doam's Rock, pode ficar aqui um dia mais.
Seus olhos brilharam.
—De verdade?
—De verdade —confirmou ele com um sorriso— O último que cheguar parte a casa hoje —disse, e se dirigiu para a porta.
Com um grito, ela o adiantou e saiu voando para as escadas.
Ele estava rindo, e quando esteve montado a cavalo, ela levava várias colinas de vantagem.
Sean se separou de McBane, tremendo. Não podia pensar naquilo. Precisava tomar aquele navio e zarpar para a América.
Quantos anos tinha Elle?, perguntou-se sem poder evitá-lo. A última vez que a tinha visto tinha dezoito. Sean tentou desesperadamente fechar o passo daqueles pensamentos em sua mente, mas era muito tarde. Uma imagem inesquecível se formou em sua cabeça: Elle, com sua camisola de renda branca, junto às portas de Askeaton, uma figura pequena e triste que ele via do topo da colina. Elle não se movia. E ele não precisava estar junto a ela para saber que estava chorando.
Me prometa que voltará por mim.
Sean se sentia muito doente naquele momento. Logo que podia respirar.
—Com quem… vai casar-se? —sussurrou. Acaso ela se apaixonou?
—Por que me pergunta isso? —inquiriu McBane— A conhece?
Sean olhou para McBane, e por fim, viu-o. Tinha que sabê-lo.
—Com quem se casa?
McBane ficou assombrado.
—O noivo é o filho de um conde, Peter Sinclair.
Ao dar-se conta de que Elle ia casar se com um inglês, Sean exclamou:
—Com um maldito britânico!
McBane disse com cautela:
—Tem título e fortuna, e se diz que é um homem bonito. Ouvi comentar que é muito bom matrimônio. De fato, minha esposa me falou que Sinclair está muito apaixonado e que ela também é muito feliz. Olhe, Collins, dou-me conta de que está consternado. Mas o estará mais ainda se uma patrulha nos surpreender aqui. Tem que voltar para seu esconderijo até que tenha que tomar o navio para a América.
Tinha razão. Sean lutou por recuperar o sentido comum. Em um dia partiria a América. Era questão de vida ou morte. O que fizesse Eleanor, com quem se casasse, não era assunto dele. No passado, ele a teria protegido com sua vida, mas então era um homem diferente, com outra vida. Sean O’Neill tinha morrido pouco depois daquela terrível noite em Kilvore. Converteu-se em um assassino procurado pelas autoridades inglesas.
Embora queria fazê-lo, não podia voltar, porque Sean O’Neill não existia.
Já só era John Collins.
Olhou para McBane.
—Tem razão.
—Que Deus o acompanhe, Collins. Que Deus o acompanhe.
Capítulo 3
—Antes de que nós cavalheiros nos retiremos a tomar o licor, eu gostaria de fazer um brinde —disse o conde de Adare.
Todo mundo ficou em silêncio. Sentados à mesa do jantar havia cinqüenta convidados e toda a família de Warenne, exceto Cliff, que ainda tinha que chegar, além de Devlin e Virginia O’Neill. A mesa estava vestida com as melhores toalhas de linho e servida com os cristais e a porcelana mais delicada. Havia centros de flores da estufa da condessa. O conde presidia o jantar, e a condessa estava sentada frente a ele.
Eleanor viu que seu pai sorria. Tinha um olhar de calidez e bondade nos olhos profundamente azuis. Estava olhando a toda sua família e a seus convidados, e finalmente se fixou nela. Ela não podia olhá-lo nos olhos; sabia que seu pai estava muito contente por que se casasse com o Peter, e não queria que supusera que tinha passado todo o dia feita um molho de nervos. Sua conversação com o Ty não tinha tido um efeito muito duradouro.
Peter estava sentado a seu lado. Ele tinha sido muito atento durante toda a noite, e estava muito bonito com seu traje de etiqueta. No princípio, para Eleanor tinha sido difícil rir e fingir que não passava nada de mau.
Entretanto, e embora não gostasse muito, tinha tomado duas taças de vinho tinto, e com o álcool se acalmou.
Imediatamente, tinha desfrutado ao escutar tudo o que dizia Peter, e tinha estado rindo durante quase todo o tempo. Eleanor nunca se deu conta de quão gracioso era seu prometido. E se perguntou por que nunca se deu conta de que também era muito bonito.
Se não tivesse sido escandaloso, possivelmente tivesse tomado uma terceira taça de vinho, pena a que o jantar já tinha terminado. Então, teria podido flutuar durante o resto da noite.
Peter lhe murmurou ao ouvido, para que ninguém mais pudesse ouvi-lo:
—Encontra-se bem?
Ela sorriu.
—Foi uma noite maravilhosa.
Ele arqueou as sobrancelhas com surpresa.
—Todas as noites são maravilhosas se as compartilhar contigo —respondeu.
Eleanor notou que se derretia com uma agradável sensação. por que tinha tido dúvidas sobre aquele matrimônio?
—É um romântico, Peter —lhe disse, rindo, e lhe deu com o cotovelo no braço.
—Sempre fui um romântico no que a você concerne.
Ela o olhou abanando as pestanas. Como podia ser tão afortunada? Por que tinha estado desgostada? Não o recordava com claridade.
A condessa estava sentada frente ao conde, ao outro extremo da mesa. Lorde Henredon, o pai de Peter, estava a sua direita. Mary disse brandamente:
—Querido? Todos estamos esperando.
O conde pigarreou. Afastou a vista de sua filha e se fixou nas caras espectadores de seus convidados.
—Não sei como lhes explicar quão feliz estou porque minha querida e bela filha tenha decidido, por fim, casar-se. E estou ainda mais feliz de que vá se casar com o jovem Sinclair. Evidentemente, a mudança de opinião requeria ao homem adequado. Não recordo havê-la visto nunca mais ditosa. Pelos noivos. Que seu futuro esteja cheio de amor, paz, alegria e risada —disse o conde, e elevou sua taça. Depois, continuou—: Também queria lhes agradecer a lorde e lady Henredon por sua ajuda na organização destas monumentais bodas, e quero dar as graças a todos nossos convidados por estar aqui. Sobre tudo, ao senhor e a senhora McBane, a lorde e lady Houghton, a lorde e lady Barton, nesta reunião familiar, que espero que seja primeira de muitas ocasiões felizes. E finalmente, quero lhe dar as graças ao jovem Sinclair. Peter, obrigado por fazer feliz a minha filha.
Depois de seu brinde de agradecimento, o conde se sentou, olhando carinhosamente para Eleanor.
—Também eu gostaria de fazer um brinde —interveio Tyrell, sorrindo enquanto ficava em pé— Pelo homem que se atreve a casar-se com minha irmã. A faça feliz, ou terá que se ver com seus cinco irmãos —disse para Peter.
Sinclair sorriu.
—Viverei para fazer feliz a Eleanor —disse galantemente. Depois acrescentou com desconcerto—: Desculpa… Eleanor tem quatro irmãos, não?
Eleanor notou que lhe apagava o sorriso dos lábios. Tinha três irmãos e dois meio-irmãos. Todo mundo sabia. Não sabia também Peter? Mas Sean se foi, estava desaparecido.
—Falei algo inapropriado? —perguntou Sinclair com grande confusão— Cliff não chegou ainda, mas com ele, seriam quatro irmãos.
Eleanor cravou os olhos na toalha. De repente, mesmo com os efeitos do vinho, sentia-se triste. Onde estava Sean? Por que não estava ali? Não queria voltar para casa?
O vinho lhe tinha nublado a inteligência. Sean não estava ali, assim, como ia casar-se? Não podia haver bodas sem Sean, porque ele era o homem com quem se supunha que ia casar-se. De repente, Eleanor teve uma pontada de pânico.
—Sinto muito, Eleanor —murmurou Tyrell.
Ela o olhou. Os efeitos do vinho se dissiparam como se tivesse se inundado em uma banheira de água fria. Ia casar-se com o Peter, não com Sean. Queria Peter, ou quase, e tinha que tomar uma terceira taça de vinho antes de que a noite se danificasse.
Devlin O’Neill interveio. Tinha sido capitão da marinha britânica, e ainda conservava a pele bronzeada e o cabelo loiro pelo sol.
—Estou seguro de que terá ouvido os rumores, Peter. Tenho um irmão pequeno, mas desapareceu faz quatro anos. Ninguém viu a Sean, nem soube nada dele, após.
Sinclair ficou consternado.
—Não, não o tinha ouvido. Deus Santo, sinto-o muitíssimo, capitão —disse para Devlin. A Eleanor não ficava vinho na taça. Olhou fixamente o cristal, desejando não ter conhecido nunca a Sean, porque lhe estava destroçando o que se supunha que devia ser o dia mais feliz de sua vida. E ela era feliz, verdade? Gostava de como Peter a olhava, e como sorria. Tinha sido muito feliz um momento antes! ia sentir falta de Sean para sempre, mas também ia casar-se com um homem maravilhoso, perfeito, embora fora inglês.
—Peter? —disse-lhe, sonrrindo— Eu gostaria muito de tomar outra taça de vinho —pediu. Entretanto, ele não teve oportunidade de lhe responder.
—Pelo Sinclair —disse Rex de Warenne. Tinha perdido a perna direita na guerra; naquele momento, ficou em pé com ajuda de sua muleta— O marido perfeito para nossa irmã. Eleanor, não há nenhuma noiva mais afortunada que você.
Eleanor olhou para Rex, perguntando-se se estava burlando dela. Tinha mudado tanto desde que havia retornado da guerra…
—Sou a mulher mais afortunada da Irlanda —disse com veemência.
Todo mundo a olhou.
Eleanor se perguntou, horrorizada, se tinha falado as palavras.
Rex arqueou as sobrancelhas com ceticismo.
—Seriamente?
Eleanor o olhou novamente, e pensou que ele sabia exatamente como se sentia. Claro que ele tinha muita afeição ao vinho, e ao brandy, sobre tudo desde que tinha perdido a perna. Possivelmente lhe desse outra taça de vinho, discretamente, no caso de ter cometido a terrível gafe de embriagar-se em companhia tão educada.
As damas não se embebedam, Elle.
Eleanor se sobressaltou no assento. Deu-se a volta para procurar a Sean, mas não havia ninguém atrás dela.
—Eleanor? O que ocorre? —perguntou-lhe Peter rapidamente, preocupado.
—Está aqui? —disse ela, agarrando-se ao respaldo de sua cadeira.
O conde ficou em pé com decisão.
—Acredito que deveríamos ir tomar os licores. Eleanor?
Eleanor se deu conta de que tinha estado a ponto de sentar-se de costas na cadeira. Sean não estava ali. Ela se sentiu tão decepcionada que lhe custou manter a compostura sob tantas olhadas.
Peter permaneceu sentado junto a ela. Enquanto os homens saíam, Rex se aproximou deles coxeando. Era um homem muito moreno e musculoso, a viva imagem de Tyrell, salvo que tinha os olhos marrons e não azuis.
—Sinto muito, Eleanor. Não deveria descarregar meu mau humor em você nesta ocasião tão feliz.
Ela tinha deixado de entender a seu irmão anos antes, quando Rex havia tornado da guerra, cheio de amargura e ferido, e naquela ocasião, tampouco tinha nem idéia do que queria dizer. Sorriu e disse, agitando a mão com exagero:
—OH, Rex. É meu irmão favorito, e não pode fazer nada de mau. Sabe, não?
Rex olhou para Peter.
—Perdoa um momento, Peter —lhe disse.
Depois tomou pelo braço a seu irmão e a afastou da mesa.
—Está bêbada! —exclamou em um cochicho.
—Sim, verdade? —respondeu ela com um grande sorriso— Agora começo a entender por que você gosta tanto beber. Poderia me conseguir outra taça de vinho tinto, por favor?
—Claro que não —respondeu ele, que estava entre divertido e horrorizado—, Está pensando em sabotar suas próprias bodas?
Eleanor decidiu analisar a palavra sabotagem.
—Mmm. Sabotagem significa ruína, não? Mas, em um sentido político? É uma sabotagem um ato político? Por que estamos falando de sabotagem?
—Deveria ir para seu quarto —disse Rex com firmeza, mas lhe tremiam os lábios como se estivesse tentando não sorrir.
—Não até que não me tenham beijado —afirmou ela, e se afastou de seu irmão. Dirigiu-se para Peter com um sorriso.
As damas se retiraram a um salão contigüo. Seu prometido a estava esperando a sós junto à mesa.
—Vai tudo bem? —perguntou-lhe.
Eleanor ficou surpreendida pela pergunta.
—Claro que sim —respondeu, e o tirou do braço— Estou com você —acrescentou.
Ele se ruborizou.
—Eleanor, você nunca bebe. Possivelmente devesse avisar a alguma de suas cunhadas e te dar boa noite por hoje.
—Essa é uma idéia péssima! —exclamou ela, e se aproximou mais de Peter— Não estivemos a sós nem um momento durante todo o dia —lhe disse brandamente— Não quer que vamos ver as estrelas?
Ele se ruborizou ainda mais.
—Ia sugerir justamente isso. Você se adiantou.
—Me dá muito bem adiantar aos meninos, e aos homens —respondeu ela com franqueza. Monto e disparo melhor que ninguém.
Ele a olhou com os olhos totalmente abertos.
—OH —murmurou ela. «As damas não montam e não disparam», pensou. «As damas não mentem»— As damas não mentem —disse em voz alta.
—Desculpa?
Possivelmente conversar não foi a melhor ideia de todas. Eleanor sorriu e empurrou ele, brandamente, para as portas da terraço. Peter relaxou e lhe permitiu que o guiasse para fora.
Sean subiu os degraus do terraço. Estava deserto e sem iluminar, e inclusive antes de cruzá-la, viu o interior da casa, onde havia uma reunião. Aproximou-se de uma das grandes janelas e olhou o salão.
Presidindo a mesa estava o homem que o tinha acolhido em sua casa depois do assassinato de seu verdadeiro pai, que o tinha criado, que lhe tinha ensinado a nobreza e a honra, que o tinha querido como a um filho próprio. Sean se aferrou à parede da casa. Os joelhos lhe fraquejavam.
E depois viu seu irmão.
Devlin estava em pé. Era um homem alto e forte. Sua mulher estava sentada a seu lado. Sean tinha reconstruído Askeaton para Devlin, e voltaria a fazê-lo sem pensá-lo, se fosse necessário. Também daria a vida por seu irmão maior.
Tragou saliva. A bela esposa de Devlin, Virginia, parecia muito feliz, e ele se alegrou com todo seu coração pelos dois. Ela tinha salvado a alma de seu irmão anos antes, e por aquilo, Sean sempre a quereria.
Seus meio-irmãos também estavam ficando em pé. Havia um ambiente festivo, quente e luminoso na estadia.
E a Sean lhe resultou impossível não recordar todos os momentos que tinha passado naquele salão com seu pai, com seus irmãos, com sua mãe e com Elle. Como a maré do mar irlandês, as sensações e os momentos o empaparam, lhe exigindo atenção, inspeção, rememoração: uma manhã de Natal, uma tarde escura e fria, noites agradáveis frente ao fogo, veladas de família, camaradagem fraternal e brandy. Sean teve que sacudir com força a cabeça para livrar do passado.
Por que estava fazendo aquilo? Recordar a vida que tinha deixado atrás não ia ajudá-lo a evitar aos ingleses e fugir do país. Em uns minutos, roubaria um cavalo dos estábulos e ficaria em caminho para Cork. Chegaria ali antes do amanhecer. Depois, zarparia para a América.
Mas ainda não podia partir.
Recordou-se que estava fazendo aquilo porque Elle ia casar se.
Sean apertou a cara contra o cristal, observando como Tyrell apertava o ombro de Devlin. Os dois homens estavam rindo de algo enquanto saíam do salão com outros, e a Sean lhe resultou impossível negar o desejo que sentia de entrar naquela casa e formar de novo parte de sua família. Desejava-o tanto que teve que fazer um esforço muito grande por não deixar-se levar. As autoridades inglesas tinham posto preço a sua cabeça por traição, e ele não tinha intenção de afundar ao conde e a seus irmãos consigo.
As mulheres estavam levantando também, preparando-se para sair do salão. Sean reconheceu a Virginia; Tyrell rodeou com o braço a uma dama. O resto do grupo não lhe resultava familiar, salvo sua mãe. A condessa seguia tão elegante como sempre, mas ele se deu conta de que tinha envelhecido. E não se enganou: seu desaparecimento devia lhe haver causado muita dor.
Então, Sean se fixou na dama que caminhava junto ao Rex. E ficou paralisado.
Tinha mudado, mas ele a reconheceria em qualquer parte. E sentiu tanto alívio que esteve a ponto de deprimir-se contra a janela. Elle.
Já não ficava nada daquela menina magra e intrépida. Entretanto, se se atrevia a recordar a última noite que tinha passado em casa, teve que reconhecer que quatro anos antes tinha deixado na porta do imóvel a uma mulher que estava florescendo e que já não tinha nada de menina. Sean tinha esquecido o quão alta que era. Os ângulos e os planos de seu corpo se converteram em curvas voluptuosas. A menina desajeitada era uma mulher muito bela, tanto que poderia deixar sem sentido a um homem.
Ao observá-la enquanto enrolava a seu irmão, Sean teve a sensação de que o mundo inteiro se voltava do reverso.
Teve pânico. O que estava fazendo?
Ao ser consciente de que estava observando a Elle com fome e necessidade, cambaleou-se.
Aquilo era impossível, pensou com incredulidade, com espanto. Não podia desejar a uma mulher a que tinha considerado sua irmã durante toda sua vida. Seu corpo estava respondendo como o faria ante qualquer mulher bela, devido aos dois anos de celibato que tinha passado na prisão.
Elle estava caminhando junto ao Rex e sorrindo a um cavalheiro loiro, ao que tomou pelo braço. Sean se deu conta de que aquele devia ser Sinclair. Era um homem bonito e privilegiado, com os gestos de um nobre. Sean o desprezou a primeira vista.
Deu-se conta de que estava tremendo de desespero. Estava furioso com ela, com Sinclair, consigo mesmo. É obvio que Elle tinha crescido. Ele tinha todo o direito de sentir-se surpreso ao ver a beleza em que se converteu, mas não tinha direito a sentir nenhuma outra coisa. E aonde ia ela com o Sinclair, de todos os modos?
Deu-se conta de que o salão tinha ficado vazio, e ouviu abrir a porta da terraço. Imediatamente, ouviu também a risada de Elle. Embora aquele som lhe resultava familiar, também tinha algo estranho e novo. Sua risada tinha trocado. Converteu-se em uma risada sedutora.
O apertou as costas contra a parede. O casal apareceu ante sua vista, caminhando para a balaustrada. Estavam tão absortos um no outro que não se precaveram de sua presença. Ela também se movia de um modo distinto. Seus passos eram largos, mas o movimento de seus quadris tinha sensualidade, algo que ele odiou imediatamente. Movia-se como uma mulher que sabia que a apreciavam e a admiravam, que a observavam.
—Te falei quão bonita está esta noite? —perguntou-lhe Sinclair, tomando ambas as mãos.
Sean se afogou em silêncio.
—Parece-me que não —respondeu Eleanor, sorrindo—Mas se o tiver feito, sempre pode me dizer isso outra vez.
Estava paquerando! Quando tinha aprendido Elle a paquerar?
—É tão preciosa —sussurrou Sinclair.
Sean detestou sua voz enrouquecida. Não deveriam estar a sós na terraço, de noite. E onde estavam os outros? Ela tinha quatro irmãos para fazer o papel de acompanhantes. Por que não havia nenhum que o estivesse fazendo?
—E você, senhor, é muito galante e encantador —respondeu brandamente Elle— Sou muito afortunada por me casar com um homem assim.
—Com respeito a você, um homem nunca será o suficientemente galante nem encantador —respondeu Sinclair.
Acaso não sabia que sua prometida era um demônio? Não sabia que galopava, que dava murros e que soltava impropérios? Não sabia que caçava e pescava? Ou acaso Elle se converteu em uma debutante e uma coquete?
—Me alegro de que seja tão encantador —sussurrou Elle— Te encontro verdadeiramente encantador, embora tenha os olhos azuis.
Sean não entendeu a que se referia, e pareceu que Sinclair tampouco.
Houve então um silêncio tenso.
Sean teve vontades de dar um murro à parede, porque soube que Sinclair ia beijá-la.
—Posso te beijar, Eleanor? —perguntou-lhe.
—Pensava que nunca foste perguntar-me isso. - disse ela com uma suave gargalhada.
Com incredulidade, Sean viu como Sinclair a tomava entre seus braços e inclinava a cabeça para ela. A lua escolheu aquele preciso momento para aparecer por entre as nuvens e iluminou aos amantes. Sinclair tinha fundido sua boca com a dela, e lhe estava devolvendo os beijos obstinada a seus ombros.
Sean se apoiou contra o muro, furioso e paralisado, ofegando, e afastou o olhar. Não podia assimilar que aquela mulher sensual que estava nos braços daquele homem fosse Elle. Não podia aceitar que fosse Elle que estava emitindo aqueles sons suaves de prazer. Ela se tinha convertido em uma mulher muito desejável, mas Sean sabia que não tinha direito a sentir por ela a luxúria que estava sentindo.
—Eleanor, quero-te.
A declaração entrecortada de Sinclair chamou de novo a atenção de Sean para o casal. Sinclair lhe tinha tomado a face entre as mãos, e estava tremendo visivelmente enquanto lhe sorria como se estivesse apaixonada por ele.
—Estou tentando ser um cavalheiro com todas minhas forças —sussurrou Sinclair—, mas me está pondo isso muito difícil.
—Estamos sozinhos —murmurou Elle— Ninguém saberá se está sendo um cavalheiro ou não esta noite.
Sean ia intervir, mas se conteve bem a tempo. Acaso estava sugerindo Eleanor que Sinclair se tomasse mais liberdades? Ela tinha sido uma menina selvagem e obstinada, e Sean sabia que era uma mulher muito apaixonada. Teria se deitado já com seu prometido? Elle nunca se negava nada que quisesse, e ele a conhecia o suficientemente bem para saber que sua virgindade não lhe importaria nada.
E se estavam beijando de novo.
Então, Sean deu um murro na parede. Demônios, onde estavam seus irmãos? Ia ter que presenciar aquilo durante toda a noite? Porque não acreditava que pudesse suportá-lo.
Elle se sobressaltou em braços de Sinclair.
—O que foi isso? —perguntou, olhando a seu redor.
Sean esqueceu seu dilema e tentou voltar-se invisível contra a parede.
—A que se refere? —perguntou-lhe Sinclair com a voz rouca.
—Não o ouviu? —perguntou Elle— É possível que alguém nos esteja espiando?
—Querida, quem ia espiar-nos?
—Rex, é você? —perguntou Eleanor com cara de poucos amigos.
—OH, Deus —disse Sinclair— Seus irmãos são muito protetores contigo, o qual é muito louvável, é obvio, mas todos e cada um deles me deixou muito claro que devia ser todo um cavalheiro até que estejamos casados —lhe explicou, e depois pigarreou— Possivelmente devêssemos entrar de novo.
Elle sacudiu a cabeça.
—OH, não se preocupe por eles! Dá-lhes muito bem mandar e ordenar. Eu posso dirigir a meus irmãos. Não tenha medo! Estou desfrutando muito de seus beijos, Peter —acrescentou atrevidamente.
Sean teve vontades de agarrá-la pelas orelhas como quando tinha onze anos e de que se convertesse de novo em uma menina inocente.
De repente, a porta do terraço se abriu e soaram uns passos. Sean reconheceu Rex, e então se deu conta de que tinha perdido a metade da perna direita e de que caminhava com muleta. Ficou olhando a seu irmão, consternado.
Ele não sabia.
Tinha estado afastado de casa durante tanto tempo que, como ia ou como foi que seu meio-irmão tinha sofrido semelhante ferida?
Rex se aproximou coxeando aos amantes.
—Pareceu-me conveniente interromper esta encantadora cena. Vocês dois não estão casados ainda —disse com um sorriso desprovido de alegria.
E naquele mesmo instante, Sean reconheceu a uma alma gêmea. Rex tinha trocado do interior. Embora ele nunca tinha lamentado a perda de sua própria alma, sim sofreu pela perda de Rex.
—Tenho vinte e dois anos —disse Elle— Não necessito vigilantes.
—Não estou de acordo contigo —respondeu Rex— Vamos? —acrescentou, embora não era uma pergunta.
Elle se zangou.
—OH, tinha me esquecido, é superior a mim, sir Rex —lhe disse com desdém a seu irmão.
Assim Rex tinham concedido um título de nobreza. Sem dúvida, pensou Sean, o teria ganho no campo de batalha, e se sentiu muito contente por seu irmão.
—Só até que tenha se casado —disse Rex com calma, e fez um gesto aos amantes para que o precedessem para o salão.
Sean viu como Elle exibia seu infame mau caráter soprando enquanto caminhava, e como Sinclair, aborrecido, seguia-a. Sinclair nunca seria capaz de dirigir Elle, pensou, mas não sentiu nenhuma satisfação. Estava pensando no fato de que, em duas noites, Elle ia estar na cama daquele homem, e com todos os direitos.
De repente, Rex ficou muito tenso.
Sean deixou de respirar, consciente de que Rex acabava de sentir sua presença no terraço. Rex, a ponto de entrar na casa, voltou-se e olhou para todas partes, incluindo o muro no que se estava escondendo Sean.
E durante um momento, Sean pôde jurar que Rex lhe tinha visto, que seus olhares se cruzaram.
Mas se equivocou, porque Rex se voltou e entrou coxeando na casa. Sean ficou sozinho, tragando o sabor amargo que lhe tinha produzido na boca tudo o que acabava de ver e ouvir.
Capítulo 4
Amanheceu um novo dia. Eleanor não tinha podido dormir apenas, tão somente uma ou duas horas. E durante aquele tempo, tinha sonhado com Sean, não com Peter. Em seus sonhos, Sean tinha voltado para casa, mas tinha mudado e tinha um rasgo inquietante e escuro. Ela tinha despertado assombrada, acreditando por um momento que seus sonhos eram reais. E quando se deu conta de que só eram sonhos, havia-se sentido totalmente abatida.
Aquele dia, fez galopar a seu cavalo tão rápido como pôde. Inclinada sobre o pescoço do garanhão como um cavaleiro de Newmarket, fez que tomasse uma curva especialmente marcada.
E um homem saltou diretamente a seu caminho.
Eleanor puxou as rédeas com todas suas forças. O homem permaneceu ali, sem alterar-se, como se fosse de pedra. O animal se ergueu sobre os quartos traseiros e Eleanor reagiu. Quando conseguiu acalmá-lo um pouco, deu-se conta de que nunca tinha estado mais furiosa.
—Idiota! —gritou, elevando a vara. Seu primeiro instinto foi golpear a aquele intruso— Quer morrer? É um louco que quer suicidar-se?
Tentou que o cavalo seguisse avançando, decidida a rodear ao homem, mas ele agarrou as rédeas.
Eleanor se enfureceu muito mais, mas também sentiu medo. Ninguém a tinha abordado nunca, daquela maneira. Esporeou ao cavalo, mas então seu olhar se cruzou com o daquele homem.
E o coração lhe paralisou no peito durante um segundo. Depois começou a pulsar desbocadamente. Ela só sentiu incredulidade e euforia.
Sean estava no caminho, ante ela. Sean tinha voltado para casa.
E Eleanor soube, imediatamente, que lhe tinha ocorrido algo horrível. Em um segundo, deu-se conta de que estava cheio de cicatrizes e muito magro. Mas era Sean. Com um grito de alegria, desceu do cavalo de um salto. Lançou-se para ele tão rapidamente que esteve a ponto de atirá-lo ao chão. Abraçou-o com todas suas forças e se aferrou a ele.
Sem poder evitá-lo, começou a chorar.
Tinha-o jogado muito de menos. Só então se deu conta de que tinha sido como se lhe tivessem tirado o coração do peito enquanto continuava pulsando.
Ele não se moveu, mas emitiu um gemido rouco.
Aquele som cortou o júbilo de Eleanor, seu alívio. Deu-se conta de que estava enganchada a seu corpo magro e musculoso com tanta força como podia. Não queria soltá-lo no caso dele se desvanecer no ar. Ele tinha o queixo apoiado na cabeça, e ela tinha a cara metida em seu pescoço. Sean sempre tinha sido magro, mas naquele momento só tinha músculo e ossos, sem mais carne. E aquele som rouco tinha sido de dor e angústia. O que lhe ocorria?
De todos os modos, tinha voltado para casa, tinha voltado para casa com ela, por ela. Eleanor notou uma enorme pressão por dentro, uma poderosa combinação de todos seus sentimentos passados e presentes, de havê-lo jogado tanto de menos e de necessitá-lo naquele momento. Ainda o queria. Nunca tinha deixado de querê-lo. Eleanor elevou o rosto e sorriu.
Ele não lhe devolveu o sorriso. Tinha uma expressão de cautela, e se afastou rigidamente dela.
Eleanor se angustiou. Não era possível que Sean desconfiasse dela. Aproximou-se para abraçá-lo de novo e disse:
—Sabia que voltaria.
Ele a esquivou.
—Não.
—Sean, não o que? Voltou para casa!
Sean não respondeu. Limitou-se a olhá-la fixamente. Quando ela o olhou nos olhos, tentando desentranhar aquele misterioso comportamento, só viu um olhar vazio e desconfiança.
Eleanor ficou assombrada, afundada; eles nunca tinham tido segredos um para o outro. Os expressivos olhos de Sean sempre tinham estado abertos para ela. Seus preciosos olhos cinzas podiam brilhar de risada, de afeto, de bondade, ou podiam obscurecer-se com ira, com determinação. Quantas vezes tinham intercambiado um olhar e cada um deles tinha sabido o que pensava o outro?
E seu rosto também tinha mudado, pensou Eleanor. Estava descarnado, e tinha as bochechas e os olhos afundados. Ela viu que tinha cicatrizes no rosto e no pescoço e se estremeceu. Alguém tinham tentado lhe cortar a garganta!
—OH, Sean —começou a dizer, mas quando tentou lhe acariciar uma marca branca que tinha na cara, ele se afastou.
Ela ficou imóvel. Sua primeira impressão tinha resultado ser certa. A Sean tinha ocorrido algo muito mau. Fosse o que fosse, ela estava ali para ajudá-lo.
—Está bem?
—Comprometeste-se —disse ele.
Falou com um sussurro que logo que era audível, como se tivesse perdido a voz recentemente. E a estava olhando com tal intensidade que ela titubeou.
—Como? —perguntou-lhe com confusão.
Entretanto, ele já não a estava olhando nos olhos. Seu olhar se deslizou da boca de Eleanor até seu seio. Ela levava, de fato, uma das velhas camisas de Sean. Ele seguiu baixando o olhar até o cinturão de couro que levava na cintura, e depois até seus quadris.
De repente, Eleanor se deu conta de como devia estar com aquelas calças de homem. Levava anos vestindo-se de forma masculina para montar a cavalo, e Sean a tinha visto com aquele traje tão atrevido mil vezes. Entretanto, naquele instante, ela se sentiu impudica, indecente, nua.
Em seu corpo se criou um vazio.
Pela primeira vez na vida, Eleanor entendeu o que era o desejo. Porque o espaço que notava tão oco em seu interior lhe causava dor, e entendeu a necessidade de tomar a Sean para que pudesse enchê-lo.
Ela acreditava que tinha sentido desejo antes. Tinha desfrutado dos beijos de Peter, certamente, e antes de que Sean partisse de Askeaton, tinha-o olhado e tinha almejado ser objeto de seus desejos, que tomasse entre seus braços, que a beijasse. Entretanto, então era muito jovem e inocente para sentir o que estava sentindo naquele momento. A pressão do desejo era algo que a consumia.
Resultou-lhe difícil falar.
—Voltou para casa —disse tremendo— O que te ocorreu? Onde esteve? —perguntou-lhe.
Ele a olhou fixamente.
—Ouvi dizer que vai se casar.
Assombrada, Eleanor se mordeu o lábio. Acaso não tinha fantasiado, secretamente, com a idéia de que ele aparecesse no último momento para salvá-la daquelas bodas com outro homem?
—Sim, Sean. Estou prometida —lhe disse, mas não queria falar de Peter nem de suas bodas naquele momento.
—As bodas é… dentro de dois dias —sussurrou ele, entrecortadamente, como se lhe custasse muito falar.
—É um engano —respondeu ela com um sorriso tremente—Não me vou casar com Peter.
Sean piscou, mas não disse uma só palavra.
Eleanor queria voltar a tocá-lo, mas tinha medo de tentá-lo. Estendeu o braço e lhe acariciou a mão. Queria agarrar-lhe e não soltá-la nunca mais.
—Faz tanto tempo! Todo mundo pensa que morreu, Sean. Eu quase o tinha acreditado também. Mas você me prometeu isso. Prometeu-me que voltaria, e o cumpriu.
Ele afastou o olhar.
—Sinto muito. Não queria… fazer mau a ninguém.
Seu comportamento e sua forma de falar eram tão estranhos… a situação resultava embaraçosa, e aquilo não era possível, porque eles dois eram muito amigos.
—O que te ocorreu? O que se passa com sua voz? Por que está tão magro? Por que não nos tem escrito alguma vez? Sean… mudou tanto!
—Não podia me comunicar com vocês. Estive… na prisão.
—No cárcere? —perguntou ela com um ofego de incredulidade— Por isso tem todas essas cicatrizes? OH, Deus! Por isso está tão magro? Mas, por que esteve no cárcere? Você é o homem mais honrado que conheço!
Entretanto, Eleanor se deu conta de que aquilo explicava sua prolongada ausência e sua falta de comunicação com a família.
Ele olhou para chão.
—Não deveria estar aqui. Escapei.
Imediatamente, Eleanor entendeu as implicações do que ele acabava de dizer.
—Estão-lhe procurando?
—Sim.
Ela sentiu medo imediatamente. Sean não podia voltar para o cárcere. Não haveria nada que lhe impedisse de ajudá-lo!
—Tem que se esconder! Acredita que lhe seguiram até aqui?
—Não.
Eleanor assentiu com alívio.
—Pode se esconder em um compartimento dos estábulos.
—Não. Não vou ficar.
Eleanor pensou que o tinha ouvido mau. Sean acabava de chegar; não era possível que iria deixá-la outra vez.
—O que quer dizer? —perguntou-lhe.
—Vou sair… do país.
—Mas se acaba de chegar! —gritou ela, desesperada e assustada, e o puxou pela mão. Tinha a pele áspera e calejada, mas ao menos a Eleanor resultava familiar.
Ele a soltou e sacudiu a cabeça, sem falar. Depois a observou um instante e sussurrou:
—Mudaste.
Claro que tinha mudado. E embora suas palavras careciam de paixão, e não eram uma indireta, aquela intensidade tão entristecedora tinha retornado. Em resposta, ela ficou imóvel, e imediatamente sentiu que o desejo se apropriava de seu corpo.
Conseguiu assentir e, depois, respondeu com cautela:
—Cresci. Você também mudou.
A tensão encheu o silêncio. Crepitava como o fogo, dançando entre eles, quente e brilhante. Estava Eleanor confundida, ou Sean sentia a mesma necessidade, o mesmo desejo que ela? Ele nunca a tinha olhado de uma maneira tão penetrante como naquele momento. Nunca tinha havido entre eles uma situação tão embaraçosa e tensa. No passado, sua relação era fácil e ligeira, uma afinidade natural, um vínculo de afeto. O que podia significar aquela tensão?
Eleanor estremeceu.
—Quanto tempo esteve na prisão? O que fez?
Os olhos de Sean se obscureceram.
—Dois anos.
A Eleanor lhe escapou um ofego de horror.
—Havia um povoado. Já não existe.
Ela conhecia a história de sua gente, de sua terra. Aquela era uma história de saques, roubos, de direitos de nascimento perdidos ou arrebatados, de violações e assassinatos. Um dos piores massacres da história da Irlanda levou o pai de Sean. Eleanor não tinha que conhecer os detalhes para entender a Sean.
Certamente, tinha havido um protesto ou uma revolta, e as tropas britânicas tinham ido sufocá-la. Sem dúvida, a defesa da aristocracia latifundiário tinha acabado na destruição de um povo inteiro. E Sean tinha estado envolto.
Sean tinha passado toda a vida cuidando de Askeaton, e aquilo incluía defender os direitos dos arrendatários irlandeses de suas terras. Eleanor não tinha que lhe perguntar de que lado tinha estado naqueles sucessos.
—Morreu algum soldado inglês? Levava armas?
Levar armas no condado de Limerick era um ato de traição, porque equivalia a opor-se às autoridades britânicas; o condado se regia pela Ata de Insurreição desde antes de que Sean partisse.
O assentiu.
—Sim, morreram soldados. E levávamos facas e rastelos.
Se tivesse tido uma cadeira, Eleanor teria se deixado cair dela. Ficou pálida. Não conhecia a revolta da que ele falava, mas não tinha importância. Se tinham morrido soldados na confrontação, Sean estava em grave perigo. Possivelmente tivesse sido acusado de traição. Eleanor estava aterrorizada por ele.
—No inverno de faz dois anos penduraram a uma dúzia de homens, Sean, e deportaram a muitos mais! Culparam-nos de insurreição! Papai já não é magistrado; preferiu demitir de seu posto. Fizeram-lhe uma acusação de parcialidade porque se atreveu a defender a nossa gente. O capitão Brawley é o comandante da guarnição do condado, e ele esteve atuando como juiz —ela explicou a Sean entre lágrimas.
—Sinto-o —disse ele, aborrecido.
Eleanor sacudiu a cabeça.
—Devlin e ele chegaram a cometer perjúrio com a esperança de salvar a alguns dos acusados. Ele deixou seu posto porque não podia manter o condado sob controle, porque já não podia proteger aos nossos —prosseguiu Eleanor.
Depois tentou recuperar a compostura. Caminhou para ele, mas ele se retirou uns quantos passos atrás, como se soubesse que ela ia tentar abraçá-lo. Aquela determinação de Sean de manter a distância física entre eles a consternava, mas além disso estava começando a assustá-la. O que lhe tinha ocorrido para que se tornasse tão desconfiado, tão distante?
—Sean, não me importa o que fez, nada mudou entre nós. Você é meu melhor amigo, e estou disposta a fazer tudo por você. Tudo! —exclamou fervientemente— Sean, por que não me deixa te abraçar?
—Tudo mudou.
—Não, Sean. É evidente que passou por uma terrível experiência, mas o que eu sinto por você não mudou. Minha lealdade permanece intacta. Ajudarei a você a se esconder e depois iremos ver papai para resolver isto. Assim poderá ser livre e voltar para casa.
Sean abriu os olhos de par em par.
—Não vai dizer nada ao conde! —exclamou— Quer que… o acusem de conspiração? Quer que lhe confisquem suas terras? Aos traidores não permitem conservar seu títulos… nem seus pertences! —Sean estava tão agitado que gritava, mas com aquela voz tão rouca.
Eleanor estava espantada.
—Acusaram-lhe de traição?
Ele assentiu com os olhos muito brilhantes.
—Mas aos traidores os enforcam! —gritou ela. As execuções eram sumárias e rápidas.
Ele agitou a mão para descartar com desdém aquele comentário.
—Deixa. Vou para a América.
Eleanor cambaleou. América estava muito longe! Entretanto, Sean tinha razão quanto a que seu pai não podia ser considerado conspirador com os crimes de seu enteado. As páginas da história da Irlanda estavam cheias de histórias de títulos e terras requisitadas. Por outra parte, ela não podia permitir que Sean partisse para América.
—Não tem por que fugir a América —disse com desespero—Devlin pode nos ajudar.
—Não a nós. E tampouco vai ajudar a mim.
—Mas… Devlin quererá te ajudar. É um dos homens mais ricos da Irlanda, e tem bons contatos no governo. De fato, tem muitas amizades no Almirantado…
—Não! —interrompeu-a ele, tremendo—Será que não quer… entendê-lo? O homem que partiu faz quatro anos não vai voltar! —disse com fúria.
Eleanor se acovardou, mas ao menos sentiu alívio ao vê-lo reagir com veemência ante alguma coisa.
—Sim retornou. Está ante mim!
—Morreu. Sean O’Neill morreu.
Eleanor ficou horrorizada com aquela afirmação, e pior ainda, pelo fato de que ele queria fazer acreditar.
—Sou John Collins! E não vou arrastar Devlin… ao inferno.
—Se Sean estivesse morto, eu saberia! —replicou ela, lhe golpeando o peito com força. Ele se sobressaltou, e ela voltou a golpeá-lo—Se Sean estivesse morto, não estaria tentando proteger a seu irmão! Não sei quem é John Collins, nem quero sabê-lo! —disse, com o rosto banhado em lágrimas.
E então se deu conta de que ele lutava por conservar a compostura. Ao dar-se conta da força daquela batalha, Eleanor ficou imóvel. Posou-lhe a mão na bochecha, e Sean deixou de tremer. Tinha a mandíbula mau barbeada, mas não lhe importou. Queria-o mais que nunca, e aquilo era impossível.
Ao acariciá-lo, instantaneamente lhe formou um redemoinho por dentro. Sentia um amor, um medo e uma necessidade imensos. Oxalá a abraçasse; Eleanor se conformaria com aquilo, face aos impulsos de seu corpo.
—Não chore.
Eleanor não se deu conta de que as lágrimas seguiam derramando-se de seus olhos. Então, o dique se rompeu e o pranto correu livremente.
—Como pode me pedir que não chore quando lhe perseguem os ingleses e está pensando em partir de novo de casa? Preciso te abraçar e te acariciar, e não me deixa fazê-lo. Vai voltar algum dia? E está muito magro! —disse entre soluços.
—Eleanor, por favor… Elle…
As lágrimas cessaram. Fazia tanto tempo que não ouvia como Sean a chamava por aquele nome que só ele usava … Eleanor desejou com todo seu coração algo impossível, que ele sorrisse como sempre fazia quando lhe acontecia algum aborrecimento. Ela não se moveu, porque ainda tinha a mão estalada em sua bochecha. Entretanto, ele se afastou.
—O conde não pode me ajudar… Devlin não pode me ajudar tampouco —lhe disse em voz baixa—Tem que entendê-lo.
—Entendo-o! Mas Devlin sim pode ajudar. Ele nunca fugiria desta situação, nunca te deixaria sozinho como se fosse um covarde. Devlin sentiu sua falta tanto como eu!
—Matei a um soldado —disse ele— Me julgaram e me declararam traidor. Ninguém pode me ajudar. Amanhã… parto para América.
Eleanor se sentiu devastada. As pernas lhe falharam. E ele, instintivamente, estendeu-lhe a mão para sujeitá-la.
—Sente-se -disse— antes que desmaie.
Sean sabia muito bem que Eleanor não desmaiou em toda sua vida. Ela o ignorou.
—Quando parte seu navio?
—Amanhã de noite —respondeu ele lentamente.
Entretanto, ao olhá-lo nos olhos, Eleanor detectou um sentimento de culpa neles. E soube que estava mentindo. Eleanor logo que pôde acreditá-lo, porque Sean jamais lhe tinha mentido. Entretanto, sim havia duas coisas que estavam muito claras: Sean tinha que esconder-se até que partisse, e ela ia com ele.
—Partirei com você.
Sean a olhou com os olhos totalmente abertos.
—Você vai se casar.
—Vou contigo, e não te ocorra tentar me deter —lhe disse com ferocidade.
Ele já a tinha deixado uma vez, e ela não ia permitir lhe que voltasse a fazê-lo.
Entretanto, seus olhares chocaram e ele disse:
—Não, não vai vir comigo. Tem que se casar.
—Certamente, saberá que já não posso me casar com ele, agora que está aqui.
—Ontem à noite parecia que lhe professava um grande carinho.
—Do que está falando? —perguntou Eleanor com as bochechas avermelhadas— Estava ali? Não, isso não é possível! —exclamou com incredulidade.
Entretanto, recordou de repente todos os detalhes da noite anterior, e se sentiu humilhada. Sabia que estava embriagada, e que tinha falado arrastando as palavras ante toda a família do Peter e outros cinqüenta convidados.
—Por que não estava acompanhada? —perguntou-lhe Sean com aspereza.
Eleanor se sentia assombrada e horrorizada. Recordou que estava no terraço, beijando-se com seu prometido, e que lhe tinha pedido que a beijasse ainda mais. Ardiam-lhe as bochechas.
—Quanto viu? —balbuciou. Ela se tinha comportado de um modo pior que pouco adequado. Tinha sido atrevida. Tinha sido desavergonhada.
—Tudo —respondeu Sean.
Deu-se a volta e se afastou dela com inquietação. Eleanor se deu conta, de repente, de que se movia de uma forma distinta, como se estivesse rígido e dolorido.
Encontrou uma pedra e se sentou. Devia tentar lhe dar uma explicação? O que podia lhe dizer?
—Sinto carinho pelo Peter…
—Não me importa —respondeu ele de maneira cortante, e se voltou para ela. Ele também estava ruborizado.
—É meu prometido —argumentou Eleanor.
—Assim que vai se voltar inglesa? —perguntou Sean com ironia.
Ela negou com a cabeça.
—Viveremos em Yorkshire… quero dizer, íamos viver ali, no Chatton, mas…
—Mudou! —exclamou Sean— Odiou as duas temporadas de Londres… Elle nunca partiria da Irlanda!
—Eu não quero partir de Adare! —gritou ela.
—Então não o faça! —gritou ele a sua vez, mas aquele esforço lhe fez tossir, e sua voz voltou a debilitar-se— Sabe ele que… sabe disparar… a algo que se mova no bosque?
Ela estava se desesperada.
—Sean, pare. Faz-te mal falar tanto —lhe rogou, e ficou em pé para tentar abraçá-lo. Ele não o permitiu.
—Viu-te… vestida como um homem? —prosseguiu com sarcasmo e ira— Te viu com… calças? Com botas? Com esse cinturão?
—Sean, já basta!
—Ele não quer a Elle!
—Por que está fazendo isto?
—Quer a essa mulher… à coquete!
Ela sacudiu a cabeça.
—Mudei, sim. Agora sou uma mulher e você não tinha direito a me espiar enquanto beijava ao Peter. E tem razão, não me conhece. Entretanto, como pudeste você desaparecer durante quatro anos? Como? E como pudeste voltar e me espiar? E agora quer partir outra vez, sem mim!
—Sim!
Então, Eleanor tentou esbofeteá-lo.
Sean apanhou seu pulso antes de que pudesse fazê-lo.
Ela não queria golpeá-lo, porque ele estava ferido, e ela o queria. Mas Sean tinha estado lhe fazendo umas recriminações muito cruéis sobre Peter, e Peter era irrelevante para eles naquele momento. Queria explicar-lhe mas também lhe falhou a voz.
Porque ao olhá-lo nos olhos, deu-se conta de que cintilavam. E se deu conta de que o que ardia neles não só era a ira, mas também também o ciúmes. Ele não a soltou; de fato, ao agarrá-la pelo pulso tinha puxado ela, e Eleanor sentia as coxas em contato com as pernas de Sean.
Já lhe pulsava o coração a uma velocidade incontrolável, mas naquele momento começou a lhe saltar no peito, enquanto se dava conta do quão duras e musculosas que eram suas coxas. Duras… e masculinas. Por instinto, ela moveu o corpo até que seus seios estiveram em contato com o torso de Sean. Então, ele ficou imóvel, e naquele momento, Eleanor se deu conta de que daria tudo por estar entre seus braços fazendo o amor com ele, acariciando-o sem inibições, beijando-o, e aceitando em troca seus beijos e suas carícias. E ele soube, porque cravou o olhar em seus lábios.
—Tem razão —sussurrou Eleanor— Peter não deseja a Elle. Mas você sim.
Sean apertou-lhe o pulso e a atraiu para si com mais força. Ao sentir seus mamilos endurecidos através do fino tecido de sua camisa, Sean abriu muito os olhos, e depois a soltou.
—Não. Elle era uma menina, e já não existe.
Eleanor ficou olhando-o com fixidez, tentando recuperar a compostura, enquanto ele caminhava de um lado a outro, tenso e tremente.
—Sean —disse ela—, estou aqui. A única coisa que passa é que cresci.
Então ele soltou uma gargalhada seca, sem alegria.
Eleanor se aproximou lentamente a ele. Ele a olhou com uma expressão vazia.
—Você pertence… ao Sinclair.
—Não! Pertenço a você!
Ele se sobressaltou, deu-se a volta e começou a afastar-se rapidamente.
Eleanor correu atrás dele e o adiantou.
—Tem que se esconder. Te ajudarei.
—Esconderei-me no bosque esta noite.
—E depois partirá? Ao amanhecer? —perguntou-lhe ela.
Sean titubeou.
—Sim.
Ela tomou uma decisão: estaria preparada para partir ao amanhecer. De fato, estava começando a conceber uma estupenda idéia.
—Não. No bosque não pode se esconder. É perigoso.
Sean a olhou com desconfiança.
—Pode se esconder no meu quarto.
Capítulo 5
Tudo estava em jogo, e Eleanor sabia. A vida e a liberdade de Sean, e também seu futuro com ele. Negava-se a pensar no fato de que ele não tinha aceito sua oferta de acompanhá-lo a América.
Negava-se a pensar em todos os anos que tinham compartilhado, durante os quais, nenhuma só vez havia dito que a quisesse. Em vez disso, Eleanor se concentrou na maneira em que ele a tinha olhado e no desejo que tinha sentido por parte de ambos. A Eleanor não parecia possível ter interpretado mal aquilo.
Tinham acordado que ele ficaria no bosque durante o dia, porque não havia maneira de que entrasse na casa sem ser visto. Sabendo que Sean havia retornado e que o buscavam as autoridades, temeu uma chegada iminente das tropas britânicas. Ele não tinha nenhum temor e guardava a calma; tinha insistido em que os ouviria chegar muito antes de que pudessem encontrá-lo.
O plano de ambos consistia em que ele subiria à casa na hora do jantar, quando a família, seus convidados e os serventes estivessem ocupados.
Finalmente, Eleanor tinha tido uns momentos para assimilar o que tinha ocorrido. Nunca deixaria de querer a Sean, mas ele se converteu em um traidor sentenciado. Sabia que todos os membros de sua família lutariam para que Sean recuperasse sua liberdade e seu bom nome, se tivessem a oportunidade.
Entretanto, também sabia que ninguém, nem seu pai, nem sua mãe nem seus irmãos, permitiriam nunca o matrimônio entre eles dois naquelas circunstâncias.
Se ele tivesse voltado para casa com o mesmo status que tinha quando tinha partido, não teria sido difícil convencer a seu pai que lhes permitisse casar-se por amor. A família de Sean era antiga; seus antepassados tinham sido grandes senhores que tinham regido a metade da Irlanda, mas seu pai era o filho menor de um homem empobrecido.
Em realidade, o pai de Sean tinha arrendado Askeaton de Esclareça, embora aquelas terras tivessem pertencido muitos anos atrás aos O’Neill. Ainda assim, o conde lhe concederia a mão de sua única filha a seu enteado, e lhes teria concedido um pequeno imóvel onde viver. Sua existência teria sido singela, e Eleanor não teria se importado.
Mas o conde nunca aprovaria aquele matrimônio na situação atual, nem sequer embora Sean tivesse pedido sua mão, coisa que não tinha feito, e ninguém lhe permitiria que fugisse com ele de adivinhar seus planos. Eleanor se entristeceu ao pensar que, de repente, sua grande família ia separar-se.
Entretanto, Sean e ela passariam a noite juntos, e ela estava impaciente por voltar a estar com ele. Tinha que saber tudo o que lhe tinha ocorrido. Ele havia se tornado distante, como um estranho perigoso. Certamente, sua desconfiança para ela se apagaria. E sua insistência em que Sean O’Neill estava morto era algo absurdo. Sean O’Neill estava muito vivo, embora estivesse magro e cheio de cicatrizes, e embora tivesse a voz afogada e rouca. Haviam-lhe inflingido feridas, sim, mas não estava morto. As feridas sanavam, e Sean também se curaria. Eleanor se asseguraria disso.
Quando chegou ao terraço de pedra da casa, diminuiu o passo e olhou cautelosamente a seu redor. Seus passeios matinais acabavam normalmente antes das sete, antes de que o sol tivesse começado a esquentar. Naquele momento eram mais das sete, e o sol já estava alto e quente. Se eram perto das oito, seu pai e seus irmãos estariam tomando o café da manhã; as senhoras estranha vez desciam de suas habitações antes das dez.
Rex apareceu ante ela; tinha estado sentado sozinho na terraço. Eleanor se sobressaltou. Ele sorriu e se aproximou de sua irmã coxeando.
— Te assustei? —perguntou-lhe com curiosidade.
—Sim —respondeu Eleanor com nervosismo.
Ele a observou atentamente.
—Hoje cavalgou um pouco mais tarde que o habitual.
Eleanor se deu conta, alarmada, de que seu irmão suspeitava de algo. Rex era completamente de confiança, e sempre se deu muito bem com Sean. Tinham a mesma idade. Se ela não estivesse decidida a permanecer junto a Sean, iria para Rex em busca de ajuda e conselho. Mas naquele momento, conteve aquele impulso. Sean lhe tinha deixado muito claro que não queria que ninguém da família se visse envolto em sua fuga, e Rex não quereria absolutamente que ela escapasse com ele, como tampouco o desejariam seu pai e o resto de seus irmãos.
Rex sorriu ligeiramente.
—Está muito vermelha. Não faz tanto calor ainda —lhe disse—Há algo que queira me contar?
Eleanor esboçou um sorriso forçado.
—Chego tarde, e venho correndo do estábulo. Não quero que nenhum dos Sinclair me veja vestida desta maneira.
—Quer que comprove se o caminho está livre? —ofereceu-se ele.
Ela assentiu e lhe acariciou a mão.
—Isso seria estupendo.
—Vamos —disse Rex— Eu irei primeiro.
Uns momentos depois, Rex lhe indicou que o salão estava vazio, e ela o atravessou como um raio. Percorreu o corredor e subiu as escadas a salvo. Acima se encontrou com uma donzela, Beth; aproveitou para lhe pedir que descesse à cozinha e preparasse um pacote com pão, queijo, carne e vinho, e que o deixasse fora da porta da cozinha. Beth desceu apressadamente para cumprir suas ordens, e Eleanor continuou seu caminho.
Teve que tomar ar para acalmar-se. Estava tão aflita com o assombroso descobrimento de que Sean havia retornado que lhe resultava difícil pensar com claridade. Ele também necessitava de roupa. Correu pelo corredor por volta do quarto de Cliff ; seu irmão era um corsário que passava a maior parte do tempo no mar, perseguindo piratas e fortuna, e estranha vez estava em casa. Eleanor tinha sabido, por uma ruborizada donzela, que tinha aparecido na noite anterior, mais tarde que as doze, mas a tempo para unir-se a alguns dos convidados em uma partida de cartas.
Ela bateu na porta, mas não obteve resposta. Então, entrou diretamente.
O querto era grande e estava luxuosamente mobiliado. As paredes eram azuis, tinha uma chaminé de mármore e uma cama com dossel no centro. O leito tinha cortinas, assim era difícil de distinguir, mas Eleanor viu seu irmão dentro.
—Cliff ! —disse ela, aproximando-se.
Ele se incorporou; tinha o torso nu, e tinha ficado assombrado ao vê-la. Eleanor se deu conta de que não estava sozinho. Ela ficou vermelha como um pimentão enquanto via que a mulher que estava com ele se escondia sob as mantas.
—Alguma vez pode bater na porta? —exclamou Cliff.
Como todos os homens de Warenne, era alto, de boa constituição e incrivelmente bonito. Como Eleanor, tinha o cabelo loiro escuro, mas com mechas esclarecidas pelo sol e pelos anos que tinha passado no mar. E estava tão bronzeado como os piratas aos que dava caça.
—Acaba de voltar para casa. E não pode manter as mãos quietas nenhuma só noite? —reprovou-lhe Eleanor.
De todos seus irmãos, Cliff era o mais famoso por ser um mulherengo.
—E você não vê que estou ocupado? —grunhiu ele— Te importaria partir ? —perguntou-lhe, ruborizado.
Ela começou a divertir-se. Cliff nunca se sentia incômodo por nada, e Eleanor se perguntou quem seria a mulher com quem estava. Dirigiu o olhar para a cama. Sabia que seu irmão tinha deixado de perseguir as donzelas quando tinha quatorze anos, que era a idade a que partiu de casa para correr sua primeira aventura; portanto, sua acompanhante devia ser uma das damas convidadas à bodas. E isso significava que era uma das mulheres da família de Peter, ou a esposa de um de seus melhores amigos.
—Já está bem —disse Cliff.
Colocou um lençol à cintura com uma destreza que dava a entender que tinha feito aquilo muitas vezes. Depois desceu da cama de um salto.
Eleanor se afastou de seu alcance rapidamente.
—Necessito um pouco de roupa —disse, e se deu a volta, correndo para o corredor.
—Isso já o vejo! —rugiu ele.
Ela deixou a porta do quarto ligeiramente aberta, e ouviu que seu irmão colocava umas calças.
—Cliff, por favor, necessito de suas calças, uma camisa e uma jaqueta —lhe explicou.
E assim que falou, deu-se conta de que tinha cometido um engano; em sua ansiedade por ver Sean vestido apropiadamente, delatou-se. Deu-se a volta, mas seu irmão já tinha saído ao corredor e, com cuidado, fechou a porta atrás dele.
Ela se mordeu o lábio, preparada para sair correndo.
—Em outra ocasião.
Ele a apanhou pelo braço.
—Está meio nu —lhe advertiu ela.
—O que está tramando? —perguntou-lhe ele, fazendo caso omisso de seu comentário— Se casa amanhã pela tarde. Se isso não for suficiente para se converter em uma dama, não sei o que fará falta. Seu prometido te viu vestida assim? —disse-lhe.
Ela olhou com doçura aos brilhantes olhos azuis de seu irmão.
—A donzela que te viu ontem à noite disse que no princípio pensou que era um bandoleiro, e depois, um pirata.
Ele entendeu o que queria dizer, e se cruzou de braços.
—Eu posso me vestir como um bárbaro se quiser, mas você não pode escolher como se veste. Além disso, cheguei diretamente de meu navio.
Ela suspirou.
—Cliff, por favor, me dê a roupa. Explicarei isso, mas não agora.
Ele a observou com curiosidade.
—Tem algum problema?
Ela ficou imóvel. Cliff tinha ido a casa diretamente desde seu navio.
—Está ancorado em Limerick? —perguntou-lhe lentamente, com o coração acelerado.
—E se o estou?
Ela se mordeu o lábio. Cliff era o dono de seus próprios navios, e levava cinco anos percorrendo o mundo. Tinha uma carreira que falava por si mesmo. Só no ano anterior tinha capturado a onze piratas, o qual era uma façanha assombrosa. Aos vinte e seis anos, já o reconhecia como um dos grandes corsários de seu tempo. Sean não queria que Devlin se visse envolto em sua fuga, e tinha razão; Devlin estava casado e tinha dois filhos, e devia cuidar de seu lar para deixar-lhe em herança a seus meninos. Entretanto, Cliff era um aventureiro. Não tinha esposa, e possivelmente permaneceria solteiro toda a vida. E tinha o valor de dez homens.
Ele poderia levá-los a liberdade, pensou Eleanor. Mas, como ia convencê-lo de que a levasse a ela também, se não tinha conseguido convencer a Sean?
—Eleanor, que problema tem? —perguntou-lhe com aspereza.
Ela decidiu picar um pouco Cliff.
—Pode me dar a roupa e se reunir comigo mais tarde? Contarei-lhe isso tudo depois.
—Quando? —perguntou-lhe ele, desconfiadamente.
—Podemos nos ver na galeria, antes do jantar —respondeu ela, e sorriu—Explicarei tudo isso. Mas agora necessito da roupa.
—Vai fugir, verdade? Vai fugir do Sinclair, disfarçada de homem.
—Cliff. —tentou protestar ela.
—Eleanor, não tem por que fugir. Por Deus, para onde vai? Como vai viver? Se não quer se casar com Sinclair, iremos ver o conde e o diremos. Eu te apoiarei.
A ela lhe encheram os olhos de lágrimas.
—Teria sido meu irmão favorito se tivesse estado mais aqui —sussurrou.
—Deixa que me vista. Depois iremos falar com Edward —disse ele. Extranhamente, nunca chamava a seu pai de outra coisa que não conde ou Edward.
Acariciou-lhe o braço.
—Não vou escapar. Quero contar-lhe isso tudo, mas não agora. Mais tarde.
Ele a olhou fixamente.
—Estou confuso. Vai casar-se com o Sinclair?
Ela sacudiu a cabeça.
—Não. Já não.
—Então, vai deixá-lo plantado no altar?
—Oxalá pudesse fazer as coisas de outro modo, mas não posso.
—Não vou esperar na hora do jantar para averiguar o que está acontecendo —disse ele acaloradamente— E não me diga que não vai escapar. Vejo-o em seus olhos. Você nunca me enganou, Eleanor.
—Nunca estava aqui —exclamou ela— Eu tinha dez anos quando você escapou, Cliff. Agora já sou uma mulher adulta, e sei o que estou fazendo. Me deixe a roupa, e se reúna comigo às seis esta tarde. E não diga a ninguém nada do que falamos!
A negativa estava ali, em seus penetrantes olhos azuis.
—Por favor —lhe rogou ela.
Finalmente, ele assentiu.
—Está bem —disse Cliff — Mas não estou satisfeito.
Ela se voltou antes de que ele pudesse vê-la sorrindo. Não tinha sido fácil manipular a seu irmão, mas ao final, como sempre, Eleanor tinha saído com a sua.
Quando chegou ao claro onde tinha deixado a Sean, não havia nem rastro dele. Por um instante, lhe parou o coração, e teve medo de que ele tivesse partido de novo e a tivesse deixado.
Entretanto, ele saiu do bosque.
—O que está fazendo aqui? —disse-lhe com aborrecimento— Te disse que iria à casa esta noite!
Ela desceu do cavalo. Ia vestida de amazona e tinha montado a mulher.
—Não ia deixar que morresse de fome durante todo o dia.
Ele estava zangado. Tomou as rédeas do cavalo enquanto ela tirava a bolsa de comida dos alforjes da sela.
—Maldita seja! Elle… lhe seguiram?
—Não. Tive muito cuidado —respondeu Eleanor, e se concentrou no fardo que tinha entre os braços. Estar com Sean era entristecedor.
—É quase meio-dia! —exclamou ele— Alguém deve te-la visto.
—Não se preocupe. Fingi que me encontrava mal para evitar a companhia feminina, e fui sozinha ao estábulo. Vamos, aqui tem. Há pão, queijo, presunto e vinho —disse, e lhe entregou a comida.
Ele a olhava com fixidez, assim que ela sorriu.
—E também há roupa limpa —acrescentou.
—Obrigado —disse ele por fim, embora com o semblante muito sério.
Sentou-se no chão e abriu a bolsa. Olhou-a, e depois lhe deu uma dentada ao queijo. Naquele momento, ela se deu conta de quão faminto estava Sean, e também de que tinha feito muito bem ao levar a comida. Em poucos minutos ele tinha devorado tudo.
Teriam-lhe feito passar fome na prisão? Eleanor teve que afastar o olhar para que ele não se desse conta de quão desgostada estava.
De repente, Sean disse:
—Elle, não te deixei nada de comida.
Ela respirou profundamente e se voltou para ele de novo, sorridente.
—Não tenho fome.
—Você sempre tem fome —replicou ele brandamente.
O presente desapareceu, e ela soube que ele também o estava sentindo. Eleanor sempre tinha tido um grande apetite para ser uma mulher, e ninguém sabia melhor que Sean. Ela recordou um daqueles largos dias em Askeaton, quando ambos trabalhavam juntos para reconstruir a casa das ruínas abrasadas às que tinha ficado reduzida. Naqueles tempos, comiam no chão, sentados ante a chaminé.
—Tomei um bom café da manhã —mentiu.
—Quer um pouco de vinho? —perguntou-lhe ele, enquanto ficava em pé.
Então, ela constatou que verdadeiramente Sean se movia com rigidez, com estupidez, como se lhe doesse.
—Não, obrigado —respondeu.
Então, Sean desarrolhou a garrafa com uma enorme faca, e a olhou com vacilação.
Eleanor o entendeu.
—Não me importa. Não me ofenderá por beber da garrafa.
Ele assentiu e começou a beber lentamente. E então, Eleanor aproveitou a oportunidade para desfrutar do fato de olhá-lo. Possivelmente estivesse mais magro que nunca, mas seguia sendo o homem mais bonito que ela tivesse visto na vida, e isso não tinha mudado. Os traços de seu rosto eram mais duros e marcados, mas os ângulos seguiam sendo preciosos e perfeitos. Quando eram meninos, ele era tão bonito e ela tão insípida, que freqüentemente tinham brincado sobre isso.
E, apesar de sua magreza, seu corpo também era perfeito, forte e duro. Ela passou o olhar por seus quadris estreitos e recordou todas as vezes que o tinha espiado, atrevidamente, enquanto ele fazia amor com alguma das moças do povoado. Sean tinha sido muito mulherengo quando era jovem, e ela havia visto muitas mais partes de seu corpo do que tivesse devido.
Elevou os olhos, ruborizada, pensando em que ele era excessivamente viril, consciente de que Sean ficou imóvel. Como seria saboreá-lo? Como seria receber seus beijos, seus beijos de verdade?
—Não o faça —lhe advertiu ele de repente.
Ela ficou tensa.
—Eu… não… estou fazendo nada —respondeu Eleanor, e pigarreou—Sean, está ferido? Coxeia.
—Estou cansado —disse ele—E estou dolorido —admitiu.
Eleanor tentou imaginar-se como seria passar dois anos completos em uma prisão, sem poder caminhar nem montar a cavalo. Naquilo, Sean e ela eram iguais: a nenhum dos dois gostavam de estar dentro de casa.
—Tem que descansar.
—E você tem que… voltar para casa. Seu comportamento desta manhã… foi muito suspeito.
—Eu gostaria de falar com você primeiro —disse ela.
Sean a olhou desconfiadamente.
E Eleanor ergueu a cabeça. Por que pensava Sean que tinha que proteger-se dela?
—Sean, estou de seu lado. Só de seu lado. Sabe, não é?
—Elle… não é inteligente que… me ajude.
Ela sabia que não serviria de nada discutir.
—Cliff voltou ontem à noite.
A expressão de Sean relaxou.
—Como vai? Ainda segue navegando pelas Antilhas e pela África, capturando piratas… ganhando prêmios… comercializando com seda e vinho… seduzindo princesas Hasburgo?
—Seduziu a uma princesa austriaca? —perguntou Eleanor com um sorriso de admiração. Aquilo seria próprio de seu temerário irmão— Sim, nunca está em casa. Sempre está navegando. Acredito que tem feito uma fortuna. Não mudou muito —acrescentou.
Sean moveu os lábios, como se queria sorrir.
—Muito bem… pode ser que Cliff seja um corçario, mas é o mais novo dos irmãos. Pode fazer o que quiser… é afortunado.
—Igual a você que fez o que queria? —perguntou ela, pensando no dia em que ele a tinha deixado.
Sean apertou a mandíbula e se deu a volta.
Eleanor o agarrou pelo braço.
—Sinto muito!
Ele retirou o braço e se virou de novo para Eleanor.
—Não, sou eu quem sente. Fiz mal. Não voltarei a… fazê-lo de novo.
—Me alegro tanto de que tenha voltado para casa! —respondeu Eleanor, a ponto de abraçá-lo. Desejava com todas suas forças tomar seu rosto entre as mãos.
Entretanto, ele deu-se conta de qual era seu desejo, porque se afastou dela uns quantos passos. Então, Eleanor se umedeceu os lábios com nervosismo.
—Tem navios.
Os olhos de Sean brilharam.
—Tem navios rápidos. Tem um em Limerick. Sean, Cliff pode nos ajudar a sair do país!
Ele a capturou antes de que ela pudesse dar-se conta.
—O que lhe falou? —perguntou-lhe, soltando-a imediatamente.
—Não lhe falei nada ainda! Mas ele tem suposto que quero escapar. Acredita que não quero me casar, e tem razão.
—Pois me parece que não.
—Como?
—Se não quer ao Sinclair… por que estava ontem entre seus braços?
Ela sentiu que lhe ardiam as bochechas.
—Queria… saber como é que ele beijava.
O olhos de prata de Sean voltaram a brilhar, e ela rogou que a beijasse.
—Não faça isso —lhe disse ele com tensão—Não brinque comigo como brinca com Sinclair.
—Agora sou uma mulher —disse ela—Sean, certamente se deu conta disso!
—Mas, por que não me escuta? Por que me olha desse modo? Não permitirei que brinque comigo, Eleanor!
—Não sei a que se refere. Não estou brincando com você nem com ninguém. Sean.
—Mas não quer me escutar! Eu não sou esse homem… não sou ele.
Ela sacudiu a cabeça.
—Nunca acreditarei nisso.
—Não sei o que quer, mas eu não lhe posso dar isso. Deixa de me olhar! —gritou ele.
—Não posso. Tem que saber o muito que senti a sua falta, e o muito que te quero.
No momento em que confessou seus sentimentos, ruborizou-se.
Sean ficou boquiaberto. Estava meio furioso, meio surpreso.
—Volta com Sinclair… Eleanor… seu futuro está na Inglaterra. Seu futuro está com ele.
—Já não. Está com você, na América, ou onde você for.
Sean estava tremendo, e Eleanor também.
—É uma mucosa teimosa!Tinha me esquecido quão difícil pode chegar a ser!
—E você está perdendo o tempo tentando me convencer de que se converteu em um criminoso, em um homem horrível! —replicou ela.
Entretanto, suas palavras tinham feito mal. De verdade pensava que era uma mucosa malcriada? Teria se enganado ao pensar que ele a tinha olhado como a uma mulher desejável?
O rosto de Sean se converteu em uma máscara de frieza.
—Mas agora sou um criminoso… um assassino… um foragido.
Ela sacudiu a cabeça.
—Por que está fazendo isto? Quer me dar medo?
—Deveria me temer —respondeu Sean, olhando a fixamente à boca, tremendo.
E então, Eleanor não teve nenhuma dúvida. Aquele olhar era masculino, potente e cálido. Era cru e básico, mas claro. E Eleanor entendeu também seus tremores; eram de desejo. Eleanor não pensou, mas sim reagiu: lentamente, elevou a mão e a posou em seus lábios.
—Não me importa que morreram soldados por sua causa. Não me importa que estive na prisão nem que escapou nem que seja um fugitivo. Nunca terei medo de você, Sean.
—Então é tola —replicou ele com crueldade. Afastou-lhe a mão de sua boca mas a sujeitou com força entre eles, e sentiu como os nódulos de Eleanor lhe roçavam o peito— Quando vai entendê-lo? Sean já não existe, mas eu estou aqui. Você pode se chamar Elle… ou Eleanor, não me importa. Eu estive encarcerado durante dois anos. Me tentar neste momento… não é uma boa idéia. Tem que ter medo de mim. Precisa me temer agora.
Passou um momento antes de que ela entendesse o que ele queria dizer. E ao ver seus olhos acesos de luxúria, Eleanor se encolheu.
—OH, Meu Deus! Está tentando me dizer que não sente nada por mim, que simplesmente precisa usar a qualquer mulher neste momento?
—Sim.
Aquela resposta cruel foi uma punhalada para Eleanor.
—Não acredito em você —sussurrou. Não podia ter mudado tanto— Você nunca me usaria. Morreria antes de me usar.
Sean lhe apertou tanto a mão que, por um momento, Eleanor ficou assustada. Seria certo que se converteu em um completo estranho? Entretanto, quão único fez Sean foi deslizar o olhar sobre seu traje de montar de cor marrom escura como se o estivesse tirando do corpo.
—Sean morreria antes —disse brandamente.
—Não. Pode ser que seja um traidor, mas não é um monstro. Não sei por que quer que pense o contrário, mas me nego.
Ele a soltou e a olhou com aborrecimento.
Então, Eleanor virou e se afastou dele, mais afetada do que ele pudesse imaginar. Não podia respirar, mas não podia acreditar que Sean lhe fizesse mal. De repente, ele estava atrás dela, e Eleanor ficou muito tensa, mas não se moveu.
Passou um interminável momento antes de que lhe falasse.
—Falo sério. Tem que ter medo… e tem que ir.
Ela lutou por respirar. Lutou por ele, por eles.
—Não tenho medo de você, Sean. E se me deseja desse modo, é porque eu sou Elle e Eleanor, não porque você seja um delinqüente que tem necessidade de estar com uma mulher.
Ele emitiu um som rouco.
—Tem que… deixá-lo.
Eleanor se voltou e encarou ele.
—Não vou me render.
Ele piscou.
Entretanto, lhe custou fazer prova de valor o fato de elevar a mão e lhe acariciar a cicatriz da bochecha para demonstrar que não tinha tido êxito em seu intento de afugentá-la.
—Parece que depois de tudo não remói. Parece que eu te conheço melhor que você mesmo.
Sean afastou o rosto de sua mão.
—Está chorando… outra vez.
Ela não se deu conta. Deixou cair a mão a um lado.
—Está sofrendo… e eu sofro também, quando te olho.
—Não quero sua compaixão!
—Não é compaixão. Sofro por você e por tudo o que te passou. E quando me permitir isso, consolarei-te.
—Não estarei aqui —insistiu ele.
—Nunca necessitou mais de mim como agora —disse ela com decisão, fazendo caso omisso de seu comentário— Não te abandonarei agora, quando tem tantos problemas. Mas devemos seguir falando esta noite. Será melhor que volte para casa antes que sintam minha falta.
—Essa não é boa idéia —disse ele— O melhor é eu que fique escondido no bosque. Viajarei de noite.
Ela se alarmou.
—Não! —exclamou, e se aproximou dele apressadamente— Sean, temos tanto do que falar! Passaram muitas coisas desde que se foi! Não quer saber nada sobre o matrimônio de Tyrell? Gallant é todo um campeão. Lembra-se dele? Era muito pequeno quando foi. Sean, poderá se banhar com água quente, com sabão. E já pedi uma comida; haverá faisão, presunto e bacalhau, salmão e galinha da Guinea assada. E esse veio da Borgoña que você gosta tanto!
Ele empalideceu.
—Está tentando me subornar?
—Se for necessário… —disse ele com seriedade.
—Sinto-me tentado… mas minha resposta é não. Parto, e não vou voltar.
Com delicadeza, ela o puxou pela a mão. Ele se sobressaltou, mas Eleanor não fez conta.
—O que falou antes era verdade? Passou dois anos de celibato no cárcere? —perguntou-lhe.
Ele apartou a mão.
—Que demônios?
Então, Eleanor sentiu um calor espesso por dentro.
—Acredito que tinha quatorze anos quanto teve seu primeira amante. Sei. Espiei-te.
—Sempre estava espiando.
—E desde aquele momento, houve muitas saias ligeiras. Dois anos? —disse com a voz rouca— Não imagino que tenha podido estar sem uma amante durante tanto tempo —disse. Tinha ido além de si mesma; de algum modo, converteu-se em uma sedutora com o atrativo mais antigo de todos.
Ele tinha avermelhado e estava rígido.
—Por que está fazendo isto?
—Como se arrumou com isso? Não sonhava com uma amante? —sussurrou ela, com as bochechas ardendo— De noite, sentia as carícias de uma mulher e seu corpo suave?
Ele se limitou a olhá-la, mas tinha os olhos muito brilhantes.
—Possivelmente sonhava com meu corpo, com minhas carícias.
Ele fez um gesto de dor.
—Sabe o que sinto por você —sussurrou— Assim vá em casa esta noite, Sean, porque eu cuidarei de você.
E soube que tinha tido êxito, porque o desejo de Sean estava entre eles, cada vez mais intenso.
Capítulo 6
Sean tinha o mesmo pesadelo todas as noites. Tinha-a tido tantas vezes que sabia o que estava sonhando assim que começava, mas aquilo não contribuía para diminuir seu pânico, seu medo, seu horror. Paralisado, só podia observar a sucessão de eventos daquela noite sangrenta sem poder fazer nada por evitar a massacre dos aldeãos e o assassinato de sua mulher e de seu filho.
Peg lhe sorria, mas sempre tinha a mesma pergunta no olhar: «por que não me quer, Sean?».
Ele queria ir junto a ela e lhe pedir perdão, e lhe dizer que sim a queria, embora teria sido uma mentira. Casou-se com ela devido às circunstâncias, e os dois sabiam.
—Quando vai me devolver o navio? —perguntou-lhe Michael, que aparecia no sonho, com a pele estranha e cinza, e com o cabelo, que uma vez tinha sido ruivo, quase negro.
Sean o tinha castigado aquela noite por responder mal a sua mãe, e lhe tinha tirado um navio de madeira esculpido com o que brincava. Aquele brinquedo era um presente de seu pai, um marinheiro que tinha desaparecido no mar. Naquele momento Sean tinha o barquinho de madeira no bolso, embora estivesse dormindo. Não teve oportunidade de responder.
A multidão de aldeãos furiosos apareceu, e ele soube que tinha que deter sua marcha antes de que chegassem ante as portas do imóvel de lorde Darby. Sabia o que ocorreria se apareciam frente a aquela grade de ferro. Sabia porque tinha estado ali, não só três anos antes, naquela noite sangrenta, mas também de menino, o dia que seu próprio pai tinha dirigido um grupo similar contra os britânicos.
Ele tenta lhes dizer que não serviria de nada fazer aquilo, mas não tinha voz. Não podia falar. Cada vez sentia mais pânico. Tentou agarrar pelo braço Boyk, o pai de Peg, mas o homem nem sequer se deu conta. Tentou agarrar Flynn, mas Flynn se desvaneceu ante seus olhos. O imóvel estava ardendo, os soldados estavam ali, e ele cravava uma adaga no ventre de um casaca vermelha, um moço, em realidade, e então o menino o olhava com uma pergunta nos olhos, por que? E quando o deixava no chão, dava-se conta de que estava olhando os olhos azuis e cintilantes de um oficial inglês. O coronel Reed o estava olhando com ódio.
Sean entendeu o que pretendia Reed. Tentou lhe dar caça, mas o oficial galopava cada vez mais rapidamente e ele não pôde alcançá-lo. Passaram os dias, e ele seguia correndo desesperadamente para a casa de campo onde tinha escondido a sua família; entretanto, embora corria, sabia o que ia encontrar, e estava doente de medo e angústia. Chegou muito tarde, a casa era um inferno, e gritou seus nomes, mas Michael tinha desaparecido, e quando encontrou Peg, abraçou-a enquanto agonizava…
Sean gritou e se sentou de repente, empapado de suor.
Durante um instante, esteve em outro lugar, em um povoado muito pobre a uns quantos quilômetros de Kilvore. Durante um momento, só houve fumaça e fogo, gritos e o som dos cascos dos cavalos, que se retiravam. Sean se afogava, soluçando por sua mulher agonizante e seu filho desaparecido. Tentou respirar.
Recuperou a prudência e voltou para a realidade. Não estava em Kilvore. Não estava junto ao inferno de chamas onde tinha morrido sua mulher. Ficou em pé. Estava sozinho no bosque. O cavalo que tinha roubado no dia anterior em Cork estava pastando tranqüilamente a uns metros de distância, preso a um ramo para que não escapasse.
Sean estava tremendo violentamente. Não podia acalmar-se. Só podia esperar que o tremor cessasse. Caminhou até a borda da clareira, caiu de joelhos e vomitou.
Depois se sentou no chão com os olhos fechados, recordando que estava em Adare. Seu lar, o lar onde se criou, estava do outro lado do bosque. Naquela enorme casa estavam o conde, a quem queria como a um pai, sua mãe e seus irmãos.
Ficou em pé. Elle também estava ali.
Mas já não era Elle. Encolheu-lhe o estômago. O coração se acelerou. Voltou a sentir pânico, e era tão intenso que já não pôde tentar negá-lo.
Elle tinha se convertido em uma mulher muito bela, uma mulher a quem mau reconhecia. Entretanto, seguia sendo temerária e obstinada, embora aquela menina magricela se desvaneceu. Ele podia tentar convencer-se de que era normal que, em seu estado de celibato, seu corpo respondesse ao estímulo de uma mulher tão bela.
Entretanto, mau tinha olhado a nenhuma outra mulher quando passava pelas ruas de Cork. Nem sequer a bela filha do sapateiro lhe tinha suscitado interesse.
Havia dito a sério para Eleanor que devia temê-lo. Devia temer sua luxúria e também a quão ingleses o perseguiam; Sean queria afugentá-la. Detestava a forma em que ela o olhava. Não queria admitir o fato de que ela seguisse querendo-o, possivelmente mais que nunca. Não obstante, ela não se deixou amedrontar, e não parecia que iria a sair correndo. Pior ainda, tinha-lhe devotado sua cama.
Tinha-lhe devotado seu corpo.
Ele nunca aceitaria aquele oferecimento, embora com apenas pensá-lo se sentisse excitado. Possivelmente ela estivesse preparada para lhe entregar seu corpo, mas queria que entregasse o coração em troca.
E aquilo nunca ia acontecer.
Embora estava seguro de que Sean O’Neill estava morto e enterrado, uma parte daquele homem tinha sobrevivido, porque não podia usá-la, embora queria fazê-lo desesperadamente. E não só era porque pertencesse a outro homem; não queria lhe fazer mais dano do que já lhe tinha feito.
Além disso, ele ia deixá-la, e ela ia se casar com outro homem. Deus, como odiava ao Sinclair! Embora sempre tinha sabido que Elle se casaria com um homem de título e com fortuna, naquele momento tinha o frenético desejo de impedir as bodas. Seu corpo ardia em desejos de aceitar o oferecimento de Elle e leva-la para à cama. Sean não entendia a si mesmo.
Tentou lutar contra aquela ira inexplicável. Era um bom matrimônio, mesmo que Sinclair fosse inglês. De todos os modos, ele partia a América, e não havia modo de que ela o acompanhasse, porque os ingleses o perseguiam, e se os apanhavam juntos, possivelmente ela corresse a mesma sorte que Peg.
Sean se ajoelhou e vomitou outra vez.
De onde tinha saído aquela idéia? Perguntou-se, enquanto, enjoado, procurava apoio contra o tronco de uma árvore. Ele não ia levar Elle consigo porque não era o suficientemente canalha para convertê-la em sua amante, e Sean nunca ia casar-se novamente. Não ia levar Elle consigo porque ela merecia casar-se com o herdeiro de um título e uma fortuna, e merecia um futuro cheio de paz.
Vou com você.
Eu também quero ir caçar!
Sean ficou tenso. Uma lembrança no que não queria pensar lhe penetrou na mente.
Com tranças, e vestida para montar a cavalo, ela o estava olhando furiosamente. Deu uma patada no chão. Ele suspirou. Sabia que aquilo ocorreria se ela se inteirava de que foram-se de caça durante dois dias. Tinha rogado para Tyrell que não lhe mencionasse aquela expedição de caça. Aquela semana, em particular, Sean não tinha podido tirar-lhe de cima quase em nenhum momento.
—Tem nove anos e é uma garota, embora pareça que quer ser um menino. Não vai vir conosco —lhe disse ele firmemente.
—Sim vou—replicou ela, dando outra patada— E o que tem de mau que queira ser um menino? Ser uma garota é uma tolice! Eu gosto de caçar! Eu gosto de pescar! Eu gosto das minhocas! Não sou pequena. Papai levou você para caçar quando tinha nove anos.
—Como sabe? Você era somente um bebê —replicou ele.
Molesto, deu a volta para sair do quarto.
—O perguntei, e ele me contou isso.
Ele se deteve em seco e ela colidiu contra suas costas.
—Alguma vez alguém te disse que é mais astuta do que te convém? Não vai vir, Elle. Se não tomar cuidado, se converterá em um menino, e então morrerá sendo uma solteirona!
Ela começou a chorar.
—Odeio ser uma garota! Espero me converter em um menino para poder ser como você.
Não havia resposta possível parar aquilo. O pior de tudo era que Sean sentia pena por ela, e culpado por ser cruel, assim olhou ao céu com resignação e partiu. Assombrosamente, umas horas depois, enquanto o grupo de caça estava em caminho, não havia nem rastro de Elle.
Ele se perguntou se seria possível que ela tivesse se rendido, mas tinha muitas dúvidas. Estaria zangada, encerrada em seu quarto? Estaria chorando ainda? Encolheu-lhe o coração. Normalmente, seu pranto era teatro, mas de todas formas Sean detestava que chorasse.
Umas poucas horas depois, estavam a quilômetros de Debite. detiveram-se para descansar, e dar de beber aos cavalos e comer um pouco. Sean tinha se esquecido de Elle; Cliff estava lhes contando a história de sua última conquista, uma dama que tinha uma dúzia de anos mais que ele, e que era a prometida de um dos amigos de seu pai. Mas então, o pônei ruivo e gordo de Elle apareceu no acampamento sem cavaleiro.
Sean se sentiu paralisado pelo medo.
Os irmãos se separaram para procurá-la. Sua mente se viu invadida por imagens de Elle estendida no caminho com o pescoço quebrado, uma das causas mais comuns de morte. Aquilo era culpa dele, e rezou para que estivesse bem. Se lhe tivesse ocorrido algo grave, não se perdoaria nunca…
Encontrou-a percorrendo o caminho, suja e triste, de pescoço ileso. Quando ela o viu, a cara se iluminou como um farol e deu um grito enquanto corria para ele com os braços estendidos.
Ele desceu de um salto do cavalo, correu para ela e lhe deu um abraço.
—No que estava pensando? —perguntou-lhe, quase zangado— Está bem?
Ela assentiu, com os olhos muito abertos, em tom grave.
—Sean, dormi!
Ele não podia acreditar que ficou adormecida sobre o pônei. Voltou a abraçá-la e não a soltou.
—Dentro de uma hora terá escurecido, e há lobos no bosque —lhe disse Sean, com a voz entrecortada— Elle, me prometa que nunca voltará a ser tão tola.
Ela o olhou muito séria.
—Só queria ir com você.
Sean se sentou na base de uma árvore. Ele já não tinha quinze anos, e ela já não tinha nove. Uma vez, ela o tinha manipulado com facilidade. Entretanto, aqueles dias tinham terminado. Ninguém podia manipulá-lo já, e menos Elle, sobre tudo porque já não era uma menina molesta.
Sabe o que sinto por você.
Venha para casa esta noite e eu cuidarei de você.
Ficou em pé; imediatamente, havia-se sentido muito excitado, e lhe faltava o ar. A Elle tinham mimado muitas coisas quando era menina. De repente, teve vontades de tomá-la pelas orelhas, como se aquilo pudesse corrigi-la. Entretanto, ela não tinha tentado comportar-se como uma dama enquanto crescia e, claramente, nada tinha mudado. As convenções e o adequado não lhe interessavam nada. Não era difícil de imaginar que Sinclair estivesse apaixonado.
Cobriu o rosto com as mãos. Alguém tinha que levá-la com mão de ferro. Possivelmente uma vez tivesse podido ser ele. Não obstante, Elle tinha um pai e três irmãos para fazê-lo. Um deles, ou possivelmente Devlin, deveria falar seriamente com ela. Nenhuma mulher de sua classe deveria fazer uma proposta tão atrevida a um homem. Aquela forma de falar era perigosa.
No que estava pensando Elle?
Sabe o que sinto…
Vêem para casa esta noite…
Sean olhou seus arreios. Deveria subir no cavalo e afastar-se rapidamente de Adare.
Não ia à casa aquela noite.
Embora isso significasse que não voltaria a vê-la.
—Rex —disse Cliff, e se deteve na soleira da biblioteca.
Rex estava de costas para ele, olhando a chaminé vazia. Claramente, estava inquieto. Entretanto, voltou-se rapidamente para ouvir a voz de Cliff, e sorrindo, aproximou-se dele. Os irmãos se abraçaram com carinho.
—Como está? —perguntou-lhe Cliff.
Não tinha estado em casa no ano anterior, e naquela ocasião, era Rex quem não estava em Adare, embora se tinham visto em Harmon House, em Londres, o inverno anterior.
—Estou bem. E você tem muito bom aspecto —disse Rex, olhando-o dos pés a cabeça— Nem sequer esta roupa tão elegante pode dissimular o fato de que se converteste em um pagão, Cliff.
Cliff riu. Sabia que levava o cabelo muito comprido, mas não entendia por que a gente pensava que parecia um bárbaro ou um árabe de cabelo loiro. Ninguém sabia que vivia com uma faca no cinturão, um estilete na manga e uma adaga na bota.
—Parece-me que você se tornou muito imaginativo. Como vão as coisas pelo Cornwall?
Rex agitou a cabeça.
—Bem. Nada novo.
Cliff se aproximou do bar e serviu duas taças de uísque.
—Então, por que passa a vida aqui? Deve estar muito aborrecido.
—Estive fazendo melhoras no imóvel. É minha forma de vida —disse Rex, enquanto aceitava o licor que lhe oferecia seu irmão.
Cliff sabia que Rex e ele eram diferentes como a noite e o dia; entretanto, não entendia por que alguém quereria encerrar-se em um imóvel na metade de nenhuma parte.
—Espero que tenha uma amante bela para te esquentar a cama.
—Tenho donzelas bem dispostas —disse Rex— Não posso me permitir uma beleza.
Em Cliff se apagou o sorriso dos lábios. Ele nunca se incomodaria com uma donzela. A noite anterior, tinha visto lady Barton jogando às cartas e as tinha arrumado para ocupar um lugar na mesa. Uma rápida paquera tinha produzido o resultado que ele desejava. Se uma mulher não era muito bela, não lhe interessava. Possivelmente devesse lhe procurar a seu irmão uma bonita cortesã. Certamente, ajudaria-lhe a passar o momento.
—Por que me olha com essa cara? Você é rico e bonito. Não precisa pagar pelo serviço. Eu sim.
Cliff tomou uma decisão. Enviaria ao Rex um presente, um presente muito sedutor.
—Não lhe olho de maneira nenhuma. Se quer formar parte da aristocracia rural, não tentarei te dissuadir. E algumas mulheres lhe consideraram muito mais atrativo que eu.
Era a verdade. Não podia ser que Rex pensasse que era discapacitado por sua perna amputada…
Rex fez um gesto negativo com a cabeça.
—Acredito que isso é uma história muito antiga, irmão. E era meu uniforme o que encontravam atrativo, não a mim.
Cliff desconfiou de sua resposta, mas até certo ponto, Rex tinha razão. As mulheres adoravam a qualquer soldado uniformizado durante a guerra, sobre tudo a um oficial de cavalaria.
—Temo um armadilha —disse Rex bruscamente— Espero não estar envolto. Você sempre foi muito impetuoso. Assombra-me que siga com vida, tendo em conta seu status atual.
Cliff não tinha intenção de mencionar a seu irmão o presente que pensava lhe fazer. Seria uma surpresa.
—Refere a meu status de corsário?
—Refiro-me a que é um caçador de piratas, o qual significa que está em perigo constante de se afogar ou de acabar na forca —respondeu Rex.
Cliff sorriu.
—Na Berbería decapitam a seus inimigos. Os mouros e os turcos também o fazem. Os espanhóis têm um novo truque; chamam-no o passeio pela tabela.
—Que agradável —ironizou Rex enquanto se sentava, estirando a perna sã e esfregando a coxa direita, que lhe terminava por cima do joelho. Eleanor e você são muito parecidos —disse distraídamente.
Cliff se sentou frente a ele.
—Bem! Esse é precisamente o tema de que queria falar com você!
—Da semelhança que compartilha com nossa irmã?
—É que não fica inteligência? Não, irmão, quero falar de nossa irmãzinha e de suas próximas bodas.
Rex sorriu ligeiramente, sem alegria.
—Quer que ponhamos em comum nossas impressões?
—Exatamente —respondeu Cliff com seriedade.
Eleanor tinha começado a preparar uma pequena bolsa de viagem com o mais imprescindível. Enquanto o fazia, começou a pensar em Peter e no fato de que suas bodas estava fixada para o dia seguinte.
A Eleanor lhe encolheu o coração. Oxalá Peter fosse feio, mau e cruel, mas não, não era nenhuma daquelas coisas. Pelo contrário, era bonito e bom. E ela ia abandoná-lo no altar. Oxalá, pensou Eleanor de novo, pudesse lhe economizar aquele sofrimento.
De repente, uma imagem lhe cruzou a mente: Peter ante o altar, esperando sua chegada. Mas a noiva não aparecia.
Ao princípio haveria confusão. Todo mundo, a família e os convidados, pensariam que ia chegar tarde. Entretanto, criaria-se o caos quando todos se dessem conta de que tinha desaparecido; pior ainda, que tinha fugido.
Eleanor sentiu medo. Ninguém sabia que Sean havia retornado, assim que ninguém saberia que escapou com ele, mas de todos os modos, ultimamente se tinha falado muito dela devido a suas bodas. Enviariam uma patrulha a procurá-la, e as autoridades receberiam aviso. E então, Eleanor se deu conta de que se deixasse Peter, conduziria aos ingleses diretamente para Sean.
Assombrada, Eleanor se deu conta de que suas bodas deviam ser canceladas naquele minuto. Devia deixar de ser a noiva naquele mesmo instante, mas sabia que seu pai nunca acessaria a romper o contrato nupcial às poucas horas de celebrar o matrimônio. Ao menos, sem uma boa razão.
Eleanor não podia perder novamente a Sean. Tinha que haver alguma solução, e naquele momento, lhe ocorreu qual poderia ser.
Devia convencer Peter para que a abandonasse.
Devia ser ele quem rescindisse aquele contrato matrimonial.
Eleanor não o pensou duas vezes. Correu em busca de seu prometido e o encontrou na terraço junto a sua linda irmã, lady Barton, e o marido dela, lorde Barton. Depois de saudá-los agradavelmente, Eleanor propôs ao Peter dar um passeio pelo jardim. Peter a puxou pelo braço e ambos desceram do terraço lentamente.
Pulsava-lhe o coração apressadamente, devido ao nervosismo e o temor. Peter merecia amor e lealdade, e não o mau trato que estava a ponto de receber.
—Está muito calada! —exclamou ele— Vai tudo bem?
Ela o olhou a seus olhos azuis e se deu conta de que ele estava preocupado.
—Desejaria me desculpar por meu comportamento de ontem à noite.
Peter abriu os olhos de par em par e depois avermelhou.
—Eu desfrutei muito vendo as estrelas contigo, Eleanor —lhe disse em voz baixa.
Eleanor não queria mencionar os beijos e a reação que tinham suscitado nela devido a sua embriaguez, mas aquilo era precisamente o que devia fazer. Tragou saliva e disse:
—Meu comportamento foi completamente inapropriado. Peço que me perdoe!
—Querida! Não há nada impróprio no que fizemos ontem à noite. Amanhã pela tarde seremos marido e mulher.
Ela sabia que se ruborizou.
—Estava bêbada —disse sem rodeios.
Claramente, Peter ficou estupefato por aquele comentário tão atrevido.
—Já tinha me dado conta.
Ela se mordeu o lábio. Odiava mentir, mas não ficava mais remédio. Tentaria convencer o de que gostava de muito beber.
—Eu adoro tomar uma taça de vinho. Ou duas.
Ele se sobressaltou.
—Querida, eu nunca te vi beber, além de um sorvo de champanha de vez em quando, desde que nos conhecemos.
A Elle ardiam-lhe as bochechas.
—Não queria que soubesse.
Assombrado, Peter a olhou com fixidez.
—O que está tentando me dizer?
—Pareço-me um pouco com Rex —disse ela, sentindo-se muito mal.
—Quer dizer que… não acredito! Entendo que a seu irmão dói a perna, mas ele bebe pela manhã… e ao meio dia! Não me diga que você bebe durante todo o dia, também!
Eleanor não pôde fazê-lo.
—Não, só queria dizer que eu gosto do vinho… e eu gosto de seus efeitos. Eu gosto de um pouco muito… para uma dama. Não queria que se surpreendesse… depois de que nos casemos.
Ele a olhou com os olhos entreabertos. Depois lhe disse:
—Eleanor, se você gosta de tomar um copo de vinho, eu estarei encantado de agradá-la. No Chatton temos uma boa adega em que, embora não deveria admiti-lo, há muito bons vinhos franceses. Poderemos desfrutar de uma garrafa pelas noites! De fato, eu prefiro não beber sozinho.
Ela girou a cabeça. Aquele ardil não tinha funcionado.
—A todas as mulheres gostam de uma taça de bom vinho, ou de xerez. Ou é que também você gosta do conhaque e os charutos?
Ela brincou com um dos laços de seu vestido.
—Não, não bebo conhaque e… —Eleanor se interrompeu— ouvi dizer que em Paris há damas que fumam.
A ele lhe saíram os olhos das órbitas.
—Sim, há. Não são damas. Não irá me dizer que fuma, não é?
Peter estava horrorizado; Eleanor se deu conta e não sentiu nenhuma satisfação a respeito.
Então pensou que devia lhe dizer a verdade. Diria-lhe que era um homem maravilhoso, mas que não podia casar-se com ele porque estava apaixonada por outro homem.
—Monto a cavalo igual a homem.
Peter piscou.
—Desculpa?
—Monto um garanhão, de pernas abertas, com roupa masculina. É muito mais cômodo que montar com traje de amazona —acrescentou.
—Sei. Sei de suas cavalgadas ao amanhecer.
Ela ficou boquiaberta.
—Sabe?
Ele sorriu.
—Observo-a quando posso. É magnífica. Cavalga tão bem, ou melhor, que qualquer homem que conheça. Ver você montar esse cavalo ao amanhecer é maravilhoso. Confesso que ao princípio fiquei horrorizado. Não por sua habilidade como cavaleiro, mas sim pela roupa. Mas então me dava conta de que não poderia montar como o faz se levasse um traje de amazona. Seria impossível. Entendo que leve calças. E me alegro de que tenha me contado, querida.
Eleanor estava perplexa.
—Como pode ser tão complacente? As damas não cavalgam escarranchado em calças! É algo terrivelmente impróprio!
—Mas você sim o faz, e é uma dama. A dama que quero. Por que te parece tão estranho? Eu nunca tinha conhecido uma mulher como você. É tão orgulhosa, tão bela e tão original! Por que acha que estou tão apaixonado? Deus Santo, Eleanor, nunca havia sentido nada parecido por ninguém, e nunca poderei senti-lo por outra pessoa, porque não há ninguém como você no mundo.
A Eleanor fraquejaram as pernas. Ele a ajudou a sentar-se em um dos bancos do jardim. Peter a queria por quem era, não por quem aparentava ser. Como era possível? Com desespero, olhou-o enquanto ele se ajoelhava frente a ela na erva.
—É que não quer a uma dama de comportamento impecável em sua casa? —perguntou-lhe em tom suplicante— Os ingleses são tão impecavelmente educados!
—Eu não sou assim. E meus amigos tampouco. Eles já lhe adoram! —assegurou-lhe ele com um sorriso de ternura— Por que está tão desgostada?
—Não estou segura de que seja a melhor esposa para você -conseguiu lhe dizer Eleanor.
—Não importa —respondeu ele— Eu estou seguro de que é a esposa perfeita para mim.
Eleanor voltava apressadamente para seu quarto, dividida entre o desespero por sua relação com Peter e a angústia de saber que veria Sean em poucas horas, mas que aquela seria com toda probabilidade a última vez que pudesse estar com ele. Se ela não aparecia na igreja no dia seguinte, se escapasse com Sean, seria a causa de sua captura e sua execução.
Não podia ser sua ruína, e estava começando a dar-se conta de que teria que deixar que partisse a América sem ela. Ficou branca, e não podia riscar nenhum plano que lhe permitisse fugir com ele. Não era a liberdade de Sean mais importante que qualquer outra coisa? Não era capaz o amor de fazer o mais doloroso dos sacrifícios? Entretanto, aquele era muito difícil de suportar. E, de repente, dois homens lhe bloquearam o caminho.
Rex sorriu, mas sem alegria.
—Tem pressa? —perguntou-lhe amavelmente.
Ela olhou o estranho sorriso de seu irmão e depois se fixou em Cliff, que estava ajudando Rex a impedir o caminho escada acima a Eleanor. A expressão de suas caras era muito parecida, e ela soube que a tinham descoberto.
Deu a volta para fugir, mas Cliff a agarrou pelo braço antes que pudesse fazê-lo.
A contra gosto, ela se voltou para olhá-lo.
—Nós gostaríamos de falar com você —lhe disse.
E Rex assinalou para a porta de um pequeno salão que usavam pouco, quando só estavam na casa um ou dois membros da família. Eleanor entrou com passo inseguro, seguida por seus dois irmãos. Cliff fechou a porta da estadia.
—Como está a noiva? —perguntou Rex a Eleanor.
—Muito nervosa, como é de esperar, não?
Cliff disse:
—Acreditava que tinha decidido deixar Peter plantado no altar.
Consternada, Eleanor olhou para Rex e viu que o comentário de Cliff não o tinha deixado surpreso nem um pouco.
—Já vejo que me traiu —disse para Cliff, mas estava muito nervosa para poder zangar-se com ele— O que lhe falou?
Cliff sorriu.
—Tudo o que sei e suspeito.
Rex interveio:
—Eu também tinha minhas suspeitas, de todos os modos. Ontem à noite estava apaixonada, ou ao menos isso parecia. Hoje vai deixar plantado a seu prometido, e está procurando roupa de homem. Que estranho é tudo isto, sobre tudo conhecendo-a tão bem como conheço. Você não é má. Se tivesse mudado de opinião com respeito ao Sinclair, sei que teria falado com papai. Minha irmãzinha nunca deixaria plantado a seu noivo no altar.
Eleanor sabia que não devia mostrar nem a mais mínima debilidade, mas estava paralisada. Não podia falar.
—Ocorreu algo, Eleanor, para que troque de opinião quanto ao Sinclair? —perguntou-lhe Rex brandamente.
Sean alguma vez lhe perdoaria que o traísse, mas, e se contasse a verdade a seus irmãos? Possivelmente eles pudessem ajudá-lo a fugir… e embora ela o delatasse, ele conservaria a vida e ganharia a liberdade.
—Todas as noivas ficam nervosas —disse, tremendo— Todas as mulheres têm momentos de indecisão.
Cliff a olhou com desconfiança.
—Minha irmã sempre sabia o que queria e como consegui-lo. O que te passa, Eleanor? Por que está a ponto de chorar? Por que está pensando em abandonar Sinclair? Por que queria roupa minha esta manhã?
Antes de que Eleanor tivesse a oportunidade de responder, Rex acrescentou:
—Com quem vai fugir, Eleanor? Sean voltou?
Então, ela o olhou fixamente e assentiu.
—O… está em uma situação muito grave. Necessita dos dois —disse, e começou a chorar.
—Onde está? —perguntou-lhe Cliff com suavidade, e lhe pôs a palma da mão sobre o ombro— Sabe que faremos tudo por ajudá-lo, embora tenha vontade de matá-lo por fazê-la tanto dano.
Eleanor o olhou entre as lágrimas.
—Está em perigo de morte, mas pensa, como sempre, em proteger a todo mundo salvo a si mesmo…
Cliff e Rex intercambiaram um olhar, e Rex falou.
—Se tiver estado com Sean, saberá que seus delitos são muito graves e que devemos agir com rapidez.
Ela sentia tanta angústia que o fato de que seus dois irmãos soubessem da situação de Sean apenas lhe surpreendeu.
—Quando o averiguaram? E por que não haviam me dito isso?
—Faz duas noites, o capitão Brawley passou por aqui para perguntar ao conde e ao Tyrell o que sabemos. E como não sabíamos nada até o momento, não tínhamos nada relevante que lhe dizer —lhe explicou Rex.
—Alguém iria me dizer a verdade? —perguntou Eleanor com amargura.
—Acredito que todos pensamos que não necessitava esta distração a poucos dias de suas bodas. E claramente, esse julgamento era correto.
—E quando souberam a verdade sobre Sean? —gritou ela, que tinha começado a sentir-se indignada— OH, deixa que eu o adivinhe! Assim que entrou pela porta! Eu sou só uma mulher, assim não precisava saber que o homem ao que quis durante toda minha vida ainda estava vivo e que necessitava de minha ajuda!
—Entendemos que creia que ainda está apaixonada por ele, mas Sean precisa sair do país, e eu tenho intenção de ajudá-lo. Necessita de minha ajuda, não a sua, Eleanor —disse-lhe Cliff, olhando-a fixamente.
Eleanor sacudiu a cabeça.
—Rogou-me que lhe guardasse o segredo. Tem medo de que confisquem o condado da família, que Devlin perca o imóvel… e tem razão.
Cliff arqueou as sobrancelhas.
—E você tinha planejado fugir com ele. Espero, Eleanor, que tenha recuperado o bom senso, porque abandonar Sinclair no altar e fugir com Sean só pode lhe fazer mais dano, não ajudá-lo.
—Já sei! —gritou Eleanor— Mas você não pode entender! Você nunca esteve apaixonado! Senti a falta dele terrivelmente durante estes dias. Acreditava que ia morrer de pena. E agora, você vai levá-lo para muito longe. Não voltarei a vê-lo mais, e não poderei convencê-lo de que eu sou a mulher a que deve querer.
—Onde está? —perguntou-lhe Cliff, que claramente tinha decidido fazer caso omisso do desafogo de Eleanor.
—No bosque —respondeu ela, e explicou brevemente a seus irmãos como podiam encontrá-lo.
—Está ferido? —inquiriu Cliff.
—Está cheio de cicatrizes e muito magro. Tem a voz débil e estranha. Está terrivelmente ferido, não fisicamente, a não ser na alma —disse ela, e teve que sentar-se.
—Assim pode montar a cavalo e andar?
—Sim! Mas sofre muita dor, Cliff. Embora já sei que você não pode entendê-lo.
Ele ficou rígido.
—Detesto vê-la tão angustiada, mas dadas as circunstâncias não me desagrada que a tenha rechaçado. Sean não tem futuro. Você não tem futuro com ele. Seu futuro está com o Sinclair.
—É arrogante e obtuso! —gritou ela— Espero que o Cupido te transpasse com uma de suas flechas e a dama se dê conta de que não é mais que um inculto.
—É minha única irmã, e meu dever é cuidar e fazer o que me parece melhor para você —replicou Cliff. Depois se voltou para o Rex— Prefiro que deixemos o conde, Ty e Devlin na ignorância. Enviarei a um homem ao Limerick para avisá-los de que preparem o navio para zarpar. Veremo-nos abaixo em cinco minutos.
E antes de que Rex pudesse assentir, Cliff saiu da habitação.
Eleanor ficou olhando-o fixamente, com vontade de lhe jogar um livro nas costas. Rex tomou uma cadeira e se sentou a seu lado. Estendeu-lhe seu lenço imaculadamente branco e ela tomou para secar os olhos.
—Eu te entendo—disse ele em voz baixa— Entendo o alcance de seu amor. Ou ao menos, isso acredito. E também entendo o alcance do sacrifício que vai fazer.
Ela ficou imóvel e o olhou aos olhos.
—Obrigada.
—É muito valente, Eleanor, mas seu valor nunca esteve em questão.
—Tenho o coração quebrado —respondeu ela.
—É um idiota —disse Rex com veemência— E tenho intenção de dizer-lhe isso. Qualquer homem, salvo Cliff, claro, daria o braço direito por ser amado dessa maneira.
—Antes da guerra foi um romântico. Vejo que segue sendo—sussurrou Eleanor.
Ele lhe acariciou um cacho.
—Arrumarei um encontro para que possam despedirem-se.
Eleanor ficou totalmente surpreendida; depois, tomou as mãos ao Rex.
—Obrigado, Rex… obrigado!
Ele sorriu.
—O que? Não vai insistir em que sou seu irmão favorito?
Não ficavam mais palavras. Limitou-se a assentir e secou as lágrimas com o lenço.
Rex tomou a muleta e ficou em pé.
—Fez o melhor para nosso meio-irmão.
Eleanor fechou os olhos. A dor que sentia era dilacerante. Passou um instante antes de que pudesse falar de novo.
—Sei —sussurrou.
Capítulo 7
Sean entrou pela janela do quart de Eleanor e, uma vez dentro, teve que deter-se. Tinha estado em seu dormitório muitas vezes, mas nunca desde que partiu, quatro anos antes.
Afastou as grossas cortinas de veludo dourado e olhou lentamente a seu redor. Antes, o quarto de Eleanor era azul e branco, mas tinha sido redecorada em cores douradas e verdes. Resultava luxuosa e feminina, o dormitório de uma mulher, não de uma menina. Era sensual.
Sean viu a mesa, posta para um. Ela se tinha assegurado de que a comida estivesse esperando-o, e ele sentiu gratidão. Então pensou em Rex e em Cliff, a quem tinha visto buscando-o pelo bosque; Eleanor o tinha traído e isso lhe tinha enfurecido, mas ele tinha evitado a seus irmãos com facilidade. Não deveria ter ido a casa. Deveria estar no caminho de Cobh. Entretanto, tinha que despedir-se de Eleanor; não podia partir sem vê-la de novo.
Naquele momento, a imagem de Eleanor lhe enchia a mente, tal e como estava em braços de Sinclair na noite anterior, apaixonada, com a respiração entrecortada, obstinada aos braços do outro homem. Sean quis ser capaz de esquecer sua maldita oferta; estava-lhe afetando terrivelmente. Sabia que precisava liberar a tensão. Haveria prostitutas no navio; sempre as havia.
Ele jamais tinha estado com uma prostituta. Sempre tinha havido mulheres que o perseguiam; mas queriam a Sean O’Neill, o jovem filho de um nobre irlandês; nenhuma daquelas amantes do passado o olharia de novo. E ele tampouco as olharia a elas.
Enquanto observava o luxuoso quarto de Eleanor, perguntou-se pela centésima vez como era possível que sua vida tivesse chegado a aquela situação.
Converteu-se em semelhante estranho, inclusive para si mesmo? Queria permanecer desvinculado daquele outro homem, o jovem sólido e responsável que tivesse feito algo por sua família. Entretanto, dava-se conta de que os dois anos que tinha passado na prisão não tinham sido suficientes para destrui-lo. Enquanto estava ali, tinha pensado que aquele jovem tinha desaparecido para sempre; entretanto, confundiu-se.
Possivelmente a nova vida que o esperava na América o conseguisse. Se não, teria que ruir por si mesmo aquela ponte que o unia com o passado. Não podia continuar deixando-se levar pelas lembranças de sua vida anterior.
E sobre tudo, não podia recordar aquele vínculo especial que o tinha unido a Eleanor; quando eram meninos, adolescentes, ele teria feito de tudo para protegê-la. Mas já não compartilhavam aquele vínculo, e era Sinclair quem devia cuidá-la.
Sean se sentou na borda da cama, e o suave colchão cedeu instantaneamente sob seu peso. Tinha perdido a sua melhor amiga muito tempo atrás, e não havia forma de retroceder na vida. Não entendia por que estava em seu quarto e nem por que lhe tinha feito aquela maldita oferta.
Tinha que permanecer no presente, decidiu. Era muito perigoso fazer outra coisa. Elle tinha desaparecido, e ele já não tinha amigos. E o que tinha que recordar, acima de tudo, era sua condição de traidor e fugitivo.
Entretanto, precisava despedir-se dela.
Eleanor tinha alegado uma dor de cabeça que sentia seriamente para desculpar-se da velada daquela noite. O jantar tinha sido interminável; ela não tinha podido deixar de pensar que Cliff e Rex não tinham encontrado a Sean no bosque. Ele tinha desaparecido, e ela sabia que havia partido.
Era incrível. Sean tinha ido. Nem sequer tinham tido oportunidade de despedir-se.
—Eleanor, carinho —disse-lhe a condessa, aproximando-se dela.
Imediatamente, Eleanor ficou rígida. Teve que respirar profundamente antes de dar a volta para olhar a sua mãe no rosto.
A condessa, Mary de Warenne, era uma mulher muito bela. Não era a mãe de Eleanor, na realidade, a não ser a mãe de Devlin e Sean; mas a mãe de Eleanor tinha morrido em seu nascimento, e até os dois anos, a tinham criado uma babá e seu pai. Mary era a única mãe que Eleanor tinha conhecido e a queria profundamente. De fato, sempre tinha desejado em segredo parecer-se mais à condessa, que era elegante, gentil e generosa sem limites.
Eleanor tentou sorrir.
Mary se deteve ante ela.
—Querida minha, dei-me conta de que está muito angustiada. Você gostaria de falar comigo disso?
—Não posso.
Mary a observou com um olhar penetrante.
—Todas as noivas se preocupam e ficam nervosas antes das bodas, mas temo que aqui há algo mais. Só quero te ajudar.
A Eleanor lhe encheram os olhos de lágrimas. Sabia que a condessa tinha chorado em privado por Sean, e que acreditava que seu filho estava morto. E embora sua mãe tivesse perdido a esperança dois anos antes, Eleanor não queria lhe mencionar aquele tema tão doloroso. Entretanto, não teve que fazê-lo.
—Querida, tem que ver com Sean?
Eleanor assentiu.
—Sinto tanto a falta dele que me dói o peito.
—Todos sentimos falta dele —disse Mary com uma infinita tristeza— Mas eu acreditava que você tinha continuado com sua vida. Acreditava que queria de verdade o Peter, e que possivelmente estava se apaixonando por ele. Seu pai e eu nos sentíamos muito contentes e aliviados porque parecia que lhes levavam muito bem.
—Eu também acreditava —respondeu Eleanor—, mas me equivoquei. Só posso amar a um homem, e esse homem é Sean.
A condessa empalideceu. Depois passou o braço pela cintura de sua filha
—Filha… eu sei o que é ter carinho a um homem, casar-se bem… e amar a outro, carinho.
Eleanor tinha ouvido a história de amor de seu pai e a condessa muitas vezes, mas nunca por boca de nenhum dos dois.
—É certo? Não queria a seu primeiro marido? —sussurrou.
Mary sorriu.
—Queria Gerald porque era meu dever. Era um bom homem, e era o pai de meus dois filhos. Entretanto, quando Edward me resgatou dos ingleses, depois da morte de Gerald, encontrei o amor e a paixão de verdade. Conheci seu pai uns cinco anos depois de que Gerald e eu tivéssemos casado, quando acabávamos de nos converter em seus arrendatários. Embora me negava a admitir que havia algo entre nós, acredito que, do primeiro momento em que vi Edward no salão de nossa casa, soube que era alguém distinto dos outros. Parece-me que, durante anos, só trocamos umas poucas frases. Ele era amável e correto. Mas Eleanor, quando por fim me tomou entre seus braços a primeira vez, soube que nunca tinha entendido o amor até aquele momento.
Suas histórias eram tão parecidas, mas tão distintas ao mesmo tempo…
—O que está tentando me dizer?
Mary lhe acariciou a bochecha.
—Quero que tenha o que eu tenho, querida.
Ela pôs-se a tremer.
—Eu nunca poderei ter o que você tem. Sempre quis a Sean. Ele não me quer. Desculpe-me. Estou muito cansada e quero subir para o meu quarto
—Eleanor! Por favor! Estou muito preocupada com você!
Mas Eleanor já estava subindo as escadas a toda pressa. Na porta de seu quarto, deteve-se. Sentia uma aguda dor nas têmporas. Por fim teria tempo para estar a sós e sofrer pela perda de Sean. Quantas vezes iria romper o coração pelo mesmo homem?
Eleanor entrou em seu quarto e fechou a porta. Então viu a preciosa mesa em que tinha disposto o jantar para Sean. Tinha esquecido de dizer à donzela que o cancelasse tudo. Observou as bandejas cobertas, e então, sentiu que lhe acelerava o coração.
O prato estava usado. Havia alguns restos de comida. Com incredulidade, olhou a garrafa de vinho, que estava quase vazia.
E então, ele saiu de atrás do cortinado dourado da janela. Imediatamente, seus olhares ficaram apanhados.
Sean tinha ficado.
Eleanor nunca havia se sentido tão feliz de ver alguém. Correu para ele e o abraçou com força. E então, aquele terrível sentimento de solidão, de perda, de frio, desapareceu.
Ele a tomou pelas mãos e a separou de seu corpo.
—Você disse a eles —disse-lhe em tom de acusação.
—Adivinharam, Sean. Tinha que dizer-lhes que estava aqui. Só querem te ajudar.
Ele sacudiu a cabeça.
—Pedi-te… roguei que guardasse o segredo. Te expliquei …
—Eles me obrigaram! Cliff quer te levar longe daqui em seu navio, esta noite.
Ele a olhou fixamente, com os olhos brilhantes.
E, quando ele não respondeu e seguiu olhando-a como um homem olhava a uma mulher que desejava, Eleanor recordou sua proposição, e também o fato de que aquela era a última noite em que poderiam estar juntos.
O desejo se apropriou de seu corpo.
Sean havia retornado para deitar-se com ela.
Ambos tinham a respiração entrecortada. Eleanor se umedeceu os lábios.
—Sean…
Ele apertou a mandíbula.
—Não vim… para isso.
—Então, por que? Para que veio ao meu quarto?
Ele se encolheu de ombros e deu a volta para que ela não pudesse seguir olhando-o nos olhos.
—Por que retornou? —insistiu ela, que necessitava desesperadamente de uma resposta— Se não voltou para me levar com você e não veio para ver a família, por que voltou?
—Não sei! —exclamou ele, angustiado— Inteirei-me das bodas.
—Mas não veio para impedi-la.
—Não.
Aquela não era, certamente, a resposta que Eleanor queria ter ouvido.
—Senti tanta saudades de você… E vou continuar sentindo a sua falta quando se for. Sean, você não sentiu falta de mim ?
Ele tinha uma expressão tensa no semblante.
—Ao princípio foi duro.
Era quase impossível entendê-lo naquele momento, quando antes, Eleanor podia quase lhe ler o pensamento.
—O que quer dizer?
—Não importa! Agora não! —respondeu ele, furioso.
Eleanor estremeceu, temerosa do que ele pudesse estar dizendo.
Antes de que ela pudesse falar, ele disse:
—Seu vestido é verde.
—Sim.
—As mulheres solteiras se vestem de branco.
Ela tinha escolhido aquele vestido com grande cuidado para o adeus que Rex lhe tinha prometido, mas quando se inteirou de que Sean já tinha ido, não tinha tido tempo de tira-lo. Era de um verde escuro, profundo, e se supunha que devia levá-lo depois das bodas. Na realidade, era o vestido mais chamativo e sedutor que possuía.
E o tinha posto para impressionar Sean. O tinha colocado para conseguir que a olhasse tal e como o estava fazendo agora, com uns olhos atrevidos e ardentes. Havia dito que não ia aceitar seu oferecimento, mas então, por que a olhava assim?
—Eu não gosto dele —disse Sean de repente.
E aquelas palavras fizeram mal a Eleanor.
—É um vestido muito bonito.
—Eu não sei nada de moda.
—Peter gosta deste vestido. Olhou-me muito, e me pediu que fôssemos dar um passeio pelo jardim depois de jantar, mas eu lhe disse que não.
Aquela última frase era uma mentira.
Ele avermelhou.
—Não siga.
—Que não siga com o que? Que não siga te dizendo que sou desejável para outro homem, quando você diz que não? E quando o que diz é claramente uma mentira?
Ele se sobressaltou.
—Te falei… que não vim… por você esta noite.
—Então, por que veio?
—É de outro homem!
—Não. Não é verdade.
—Quebrou… seu compromisso com ele?
Ela ficou calada, tensa.
—Isso pensava eu… Bem! —disse Sean, e começou a caminhar pelo dormitório.
—Sean, minha oferta segue de pé.
Ele tropeçou e se voltou para ela.
—Não!
—Sean, sempre fomos sinceros um com o outro.
—Essa era Elle.
—Sei que não me quer, não do mesmo modo que eu quero a você. Mas Elle cresceu. Acreditava que nos já tínhamos concordado com isso.
—Ontem à noite… estava com Sinclair… gemendo.
—Deixa que termine, por favor!
—Por que? Amanhã… estará na cama… com Sinclair!
—Eu não quero ao Peter. Não quero me casar com ele. Mas, por que se importa? Por que está zangado? E não me diga que não o está! Sean, possivelmente esta seja a última vez que nos vejamos.
—Eu… não estou zangado. Quero falar do Sinclair!
—Não —respondeu ela, tremendo— Eu quero falar desta noite. Quero falar de fazer amor com você, agora!
Sean gritou. Estava zangado, mas também estava horrorizado, e Eleanor sabia.
—Deveria… se casar com Sinclair! Esse matrimônio é bom, maldita seja. Títulos, terras, riqueza… não pode falar desse modo! Entende-o?
—Por que? Porque sente uma tentação tão forte que possivelmente perca o controle? Falei a sério quando te disse que não tenho medo! Faça amor comigo, Sean. Só uma vez, para que possa recordá-lo para sempre.
Ele tinha ficado petrificado, olhando-a fixamente. Passaram uns segundos e, finalmente, lhe acariciou a bochecha. Ele se encolheu, mas seguiu imóvel.
Sean estava tremendo, mas não se afastou. Seus olhares ficaram presos, e ela soube que ele estava liberando uma batalha. Então viu que fechava os olhos. Eleanor ofegou brandamente, e Sean gemeu.
Alguém bateu na porta.
Sean abriu os olhos, e ela viu o medo refletido neles.
—Lady Eleanor? —perguntou uma voz feminina.
—É sua donzela? —sussurrou Sean, que tinha empalidecido.
—Direi-lhe que vá embora! —respondeu Eleanor, tomando-o pela mão.
Sean tinha estado a um segundo da derrota, e ela sabia. A donzela não tinha podido chegar em pior momento. Certamente, Sean estava pensando em escapar para não ser descoberto.
Ele sacudiu a cabeça.
—Responde com normalidade —disse a Eleanor. Depois se afastou e desapareceu detrás das cortinas da janela.
A donzela chamou novamente.
—Lady Eleanor?
Eleanor abriu a porta e deixou entrar a donzela.
—Milady, por que demorou tanto em responder?
Só sua donzela pessoal, que a conhecia desde seu nascimento, podia ser tão atrevida.
—Fiquei dormindo, Lettie —mentiu Eleanor, olhando de novo para as cortinas. Sabia que Sean não tinha partido, porque sentia sua intensa presença.
—Ajudarei-a a colocar a camisola, senhora —disse Lettie. Foi diretamente ao armário e tirou a camisola branca de Eleanor.
Eleanor esteve a ponto de lhe dizer que se trocaria mais tarde. Entretanto, era tarde, e não tinha nenhuma desculpa para não permitir à donzela que a ajudasse a preparar-se para deitar-se. Lettie pôs a camisola sobre a cama, como sempre, e rapidamente, começou a desabotoar as costas do vestido de Eleanor.
Eleanor ficou tensa quando Lettie lhe tirou o vestido pela cabeça. Logo que podia respirar. Lettie começou a afrouxar as cintas do espartilho para tirar-lhe também. Quando o objeto caiu, Eleanor se inclinou para tirar as ligas. Sentia-se nua e tinha as bochechas ardendo. Tinha o pulso forte e rápido, e sentia um comichão selvagem na pele. Logo que podia acreditar o que estava fazendo, e estava segura de que ele a estava olhando.
A luxúria de Sean, seu desejo, seu desespero, combinaram-se e tinham formado um elemento tangível que enchia o dormitório.
Quando acabou de tirar as meias e os sapatos, Eleanor titubeou, tremendo incontrolavelmente, temendo que sua donzela notasse algo estranho. Sabia que as carícias de Sean não iriam ser como os tenros beijos de Peter. Estava segura disso. Não podia esperar. Necessitava-o naquele mesmo instante.
E então, sua regata desapareceu também, e Lettie começou a lhe desatar a cinta das calças. Eleanor não podia pensar em outra coisa que nas mãos de Sean sobre sua pele, sobre seus quadris, em sua boca lhe beijando o pescoço.
De repente, a camisola lhe caiu sobre os ombros e se deslizou por todo seu corpo. Era de um algodão fino e branco. Eleanor mau podia mover-se. Lettie começou a lhe tirar as forquilhas do cabelo, e quando o deixou solto, o escovou. Depois começou a dividir-lhe em mechas.
—Não. Não desejo uma trança esta noite, Lettie. Obrigado —disse, e antes de que sua donzela pudesse emitir uma exclamação de surpresa, sorriu-lhe com firmeza— Boa noite, Lettie. Estou esgotada.
Depois, acompanhou à donzela para a porta e, quase sem dar-se conta, viu-se fechando a porta com chave. Só podia pensar em Sean. O ar do quarto se tornou em um pouco pesado pelo calor e a tensão.
Eleanor ouviu que ele se aproximava.
Deu-se a volta e apoiou as costas na porta.
Sean cruzou a distância que os separava de duas grandes pernadas. Tinha os olhos muito abertos, duros, ferozes.
Eleanor sentiu uma extrema excitação, inclusive medo. Tinha-o provocado, e sabia que ele tinha perdido o controle. Estava muito excitado, tanto que ela notou uma linha larga e dura em suas calças. E a sua vez, ela sentiu um espasmo de prazer que lhe lambia entre as coxas.
Ele não se deteve.
Ela se arqueou contra a porta, ofegando.
Sean a tomou pelos ombros e seus olhares se chocaram.
Era Sean, mas Eleanor nunca o tinha visto assim. Estava louco de desespero e luxúria.
E ela soube que queria ver afeto e amor em seu olhar.
Entretanto, também sabia que tinha amor suficiente para os dois.
—Sean —sussurrou, e lhe acariciou a bochecha.
Ele lhe cravou um olhar abrasador. Suas bocas estavam a milímetros de distância.
—Muito tarde! —disse ele, e a apertou contra seu corpo inflamado, rígido, enquanto abria a boca para beijá-la.
Seus lábios estavam cheios de uma insaciável avareza. Ela ficou quieta, obstinada a seus ombros, enquanto ele a beijava profundamente, umidamente, lambendo-a por dentro. O coração de Eleanor estalou quando ele apertou todo seu corpo contra ela.
Eleanor se deu conta de que nunca tinha sabido o que era a paixão. Suspirando, devolveu-lhe os beijos, explorando-o com a língua, e ele gemeu de prazer. Suas mãos encontraram os seios de Eleanor e, de um puxão, Sean rasgou a camisola e a tirou.
Ela notou vibrações de prazer enquanto ele brincava com seus mamilos, com as bocas fundidas em uma. Então, o torso de Sean esmagou os seios, enquanto suas costas ficavam pegas à porta, quando a virilidade enorme de Sean se deslizava entre suas coxas.
Eleanor teve vertigens e sentiu cada vez um desejo mais profundo, uma excitação mais vibrante.
Sean também estava tremendo, e se apertou contra ela, enquanto lhe beijava o pescoço. Eleanor o notava quente e duro entre as coxas.
Ela começou a voar e a desfazer-se, e gemeu de prazer contra sua boca.
Ele a agarrou pelas nádegas nuas.
—Por favor —disse entre ofegos— Elle, por favor, me deixa te preencher.
Ela entendeu que a necessitava e a desejava como nunca tivesse desejado a nenhuma outra.
—Sean! —suspirou, e seguindo um instinto antigo, elevou uma perna e lhe rodeou a cintura com ela.
Ele emitiu um grunhido, o som mais belo que ela tinha nunca ouvido, e a ajudou a elevar a outra perna, e depois se enterrou nela.
Houve uma breve dor, e depois só um prazer escuro, uma fricção quente, um calor úmido e profundo, e Eleanor sentiu uns espasmos selvagens. Ele era muito grande e enchia completa e perfeitamente seu corpo. E a investia rapidamente, com força, ofegante, decidido, enquanto Eleanor se aferrava a ele soluçando de prazer. Por fim, emitiu um grito de liberação.
Ele também gemeu no climax, e depois se derrubou contra ela, enquanto as convulsões sacudiam seu corpo.
A tensão foi dissipando-se em ondas. Ela seguia agarrada ao corpo de Sean, tentando recuperar a respiração, querendo-o mais que nunca, tanto, que lhe doía a alma. Lentamente, baixou as pernas, e ele a sustentou até que posou os pés no chão. Eleanor seguia abraçada a ele, com força; estava começando a entender o que acabava de ocorrer.
—OH, Sean —sussurrou.
Ele ficou muito tenso entre seus braços.
Naquele momento, Eleanor se deu conta de que tinha recuperado o sentido comum, como ela.
E Sean se ergueu, olhando-a com os olhos muito abertos, com uma expressão que ela tinha desejado ver de novo em seu rosto.
A estava olhando com uma profunda impressão.
—Não —lhe disse Eleanor.
Ele se separou de um salto.
—Sean! Não! Não é nada mau! —disse ela desesperadamente, tentando sorrir— Te quero!
Ele se retirou, olhando-a com incredulidade. E então, Eleanor se deu conta de que ele tinha começado a desprezar-se naquele mesmo instante.
—Não vá —sussurrou— Te quero. Volta.
Ele sacudiu a cabeça. Deu-se a volta e correu para a janela.
Eleanor o chamou entre soluços.
Mas Sean já tinha ido.
Capítulo 8
Eleanor apareceu à janela e o viu correndo pelo jardim, um borrão pálido entre as sombras escuras da noite. Naquele instante, recordou que as autoridades buscavam a Sean, e que muitos de seus convidados ainda estariam acordados, jogando cartas ou bilhar no piso de abaixo. Só aquilo impediu que o chamasse.
Separou-se da janela, horrorizada. Sean não podia partir daquela maneira. E menos ainda depois do que tinha ocorrido.
Eleanor se aproximou rapidamente à cama e colocou a bata enquanto atravessava a habitação. O corredor estava iluminado com spots; ela o percorreu a toda pressa. Subiu as escadas até o piso seguinte; o primeiro quarto era de Rex, e não se deteve. Simplesmente, entrou.
Rex estava acordado. Estava sentado em um sofá, frente à chaminé, ainda vestido com o traje. Ao vê-la, levantou-se alarmado e se aproximou dela.
—Eleanor!
Eleanor sabia que não devia permitir que ninguém averiguasse o que tinha ocorrido realmente aquela noite. Deu-se conta de que tinha o rosto úmido, e de que devia ter chorado.
—Rex, Sean acaba de partir da casa. Por favor!
—Eleanor! —repetiu Rex, angustiado, furioso— O que passou? Te fez mal?
Eleanor se sobressaltou ao ver que seu irmão se enfureceu ao suspeitar o pior, ao suspeitar a pura verdade. Ela conseguiu sorrir para tranqüilizá-lo.
—Não vou voltar a ver Sean, e tenho o coração quebrado. Discutimos e ele partiu antes de que pudéssemos nos despedir. Poderia encontrá-lo? Cliff e você têm que ajudá-lo a escapar, e eu preciso vê-lo uma última vez, ao menos, era a verdade. Tinha que haver uma despedida final.
Rex ficou olhando-a com uma expressão de suspeita.
—Esteve em seu quarto?
Ela elevou o queixo.
—E onde íamos ver-nos, se não?
—Tem que me dizer a verdade —insistiu ele com aspereza.
Ela o interrompeu.
—Estou dizendo a verdade! Sean me recitou todas as vantagens que tem meu matrimônio com Peter. De fato, quer que me case com ele. Por isso me desgostei tanto.
Rex a escrutinou durante um instante, e depois assentiu.
—Vou tentar encontrá-lo. Vista-se. Se o encontrar, vou levá-lo para Limerick, e ali poderão despedir-se.
Sem esperar sua resposta, Rex saiu do quarto e foi para a porta de Cliff. Eleanor esperou um momento mais, para assegurar-se de que Cliff respondesse, o qual fez, e depois ela voltou para seu quarto no segundo piso. Se alguém podia encontrar a Sean, eram seus irmãos.
Fechou a porta e se apoiou contra ela, recordando com nitidez todos os detalhes do episódio sexual que acabava de compartilhar com Sean. E se pôs-se a tremer, de repente.
A tinha usado?
Sentiu um nó de angústia na garganta. Tinha havido uma grande paixão entre os dois; Eleanor nunca esqueceria como a tinha beijado Sean. Mas tudo tinha ocorrido em poucos minutos. Sean a tinha beijado como se queria beijá-la para toda a vida… ou a tinha beijado como um homem que tinha passado dois anos de reclusão e celibato? Tinha algum significado sua paixão?
Eleanor se deu conta de que se sentou no chão, com as costas contra a porta.
Ela tinha se jogado nos braços de Sean, negando-se a escutar algo que ele tinha repetido: que não queria ter uma relação com ela. Possivelmente devesse havê-lo escutado. Possivelmente, por uma vez, devesse ter emprestado mais atenção ao que queria outra pessoa, e não ao que ela mesma desejava. Não tinha havido nenhum sorriso de ternura, nenhum olhar. Eleanor se sentiu muito mal, mas, entretanto, não lhe havia dito Sean muitas vezes que tinha mudado?
Quando voltou Rex, tinha amanhecido. Eleanor tinha permanecido sentada na mesma posição, abraçando os joelhos contra o peito. Tinha recapitulado todas as palavras e os gestos que se dedicaram Sean e ela desde sua volta, incluídos os momentos que tinha passado entre seus braços aquela noite. Só podia tirar uma conclusão: ela o queria, e sempre o quereria, por muito escuro e estranho que se tornou; mas ele não queria a ela.
No passado, a tinha adorado como irmã e amiga, mas inclusive aquilo o tinha perdido. Sean tinha mudado, e já nada voltaria a ser igual.
Eleanor ficou em pé. Sentiu o corpo dolorido por causa da perda de sua virgindade. Abriu a porta e viu Rex. Estava muito sério, e ela soube, sem necessidade de ouvi-lo, que seu irmão não tinha encontrado a Sean.
—Sinto muito. Tornou-se ardiloso como uma raposa, Eleanor. Não há nem rastro dele.
Ela assentiu com os lábios apertados.
Rex estava muito aborrecido.
—Está segura de que não te fez mal?
Ela negou com a cabeça.
—Dormiste um pouco?
—Não.
Rex suspirou.
—Eleanor, vai casar-se em umas horas. Precisa dormir um pouco —lhe disse afetuosamente a sua irmã.
—Quero a Sean —sussurrou ela.
—Sei. Carinho, tudo terminou. Embora ele te quisesse, Cliff tem razão. Com ele não tem futuro. Além disso, não te quer como você desejaria. Se o fizesse, não teria te deixado chorando desta maneira. E não estaria alterando a celebração de suas bodas; impediria-a.
Aquelas palavras lhe fizeram mal. Eleanor soluçou, e Rex a abraçou.
—Descansa um pouco —lhe aconselhou com suavidade.
Eleanor assentiu.
Eleanor desceu as escadas. Dormir tinha resultado impossível. Se ia casar-se, necessitaria ajuda para arrumar-se; do contrário, os trezentos convidados, sua família e seu noivo iriam dar-se conta de que à noiva ocorria algo de mau.
Encontrou a sua cunhada Lizzie, a esposa de Tyrell, na cozinha, fiscalizando a preparação do menu. Depois de lhe agradecer tudo o que estava fazendo por ela, pediu-lhe que mais tarde subisse para ajudá-la a vestir-se e a maquiar-se para a cerimônia. Lizzie assentiu, com certa preocupação, mas antes de que pudesse lhe fazer alguma pergunta, Eleanor saiu da cozinha rapidamente.
Não tinha vontades de encontrar-se com nenhum convidado, assim para evitar o salão principal, saiu por uma porta lateral para poder entrar em asa familiar da casa por uma entrada traseira. Estava a ponto de fazê-lo quando detectou um borrão de cor vermelha pela extremidade do olho. Inclusive a distância, deu-se conta de que o capitão Brawley estava no caminho que levava a fachada principal do edifício.
O capitão tinha recebido um convite à bodas, porque o conde desejava estar em bons términos com os soldados ingleses. Brawley era o oficial de grau mais alto do condado, e estava ali com outros cinco soldados, imerso em uma conversação aparentemente muito intensa, todos a cavalo. Eleanor não o pensou duas vezes; levantou-se a saia e correu pela grama para eles.
—Capitão! —gritou, ao ver que se dispersavam— Capitão Brawley!
Imediatamente, ele se voltou no cavalo e abriu os olhos de par em par.
—Lady Eleanor —disse, desmontando imediatamente.
O oficial lhe fez uma reverência. Era um homem de uns vinte e cinco anos, de cabelo negro e olhos azuis. Embora era muito bonito e encantador, Brawley não era um mulherengo nem um farrista, a não ser sério e responsável e sempre muito cortês. Entretanto, a Eleanor parecia pouco interessante.
Eleanor sorriu com o coração acelerado. Tinha que saber o que faziam o capitão e seus homens em Adare. Ele tinha sido convidado à bodas, mas seus homens não. Não podia ser que estivessem procurando a Sean!
—Capitão, bom dia.
—Lady Eleanor, espero não ser uma moléstia para você, e muito menos em um dia como o de hoje —disse o capitão Brawley, e se ruborizou ligeiramente.
—Não me está incomodando, capitão, posto que sou eu a que veio a saudá-lo. Chegou muito cedo para as bodas. Nem sequer me vesti! —disse, com um sorriso forçado.
—Lady Eleanor, temo que estou ocupando seu tempo. Posso acompanhar a à casa?
—Então, já veio para as bodas? Nem sequer chegou o meio-dia —insistiu ela, sem aceitar sua evasiva.
Ele titubeou.
—Não, em realidade, vim a atender outros deveres, mas não perderei a cerimônia —disse ele, com um sorriso de amabilidade.
Eleanor temeu o pior. Tinha ido a Adare a procurar Sean? Por que outra razão ia estar ali? Tinha tanto medo que começou a tremer visivelmente.
Imediatamente, ele a sujeitou pelo braço.
—Lady Eleanor! Vai desmaiar? Está muito pálida.
—Capitão, deve me dizer a verdade.
—Deixe que encontre um lugar onde possa sentar-se e irei procurar ajuda.
Eleanor se aferrou a sua mão.
—Ontem recebi terríveis notícias. Meu meio-irmão Sean esteve na prisão, e escapou recentemente. Então encontro a você aqui com seus homens. Por favor, se está procurando o irmão ao que tanto quero, deve me dizer isso.
—Lady Eleanor —disse ele depois de uma pausa tensa— Temo que não possa falar deste assunto com você.
—Não está aqui! —gritou ela— Se Sean estivesse aqui, teria vindo para ver-me, sobre tudo em uma data como hoje.
Brawley a olhou como se estivesse muito afetado.
—Seriamente acredita que está aqui? —insistiu ela, lhe soltando a mão— Sean e eu nos criamos juntos baixo este teto. Estou tão preocupada com ele! E digam o que digam que tem feito, equivocam-se. Sean é inocente.
—Lady Eleanor, se sua família pensar que é melhor não informá-la do que ocorreu, eu não posso ser o que o faça —disse ele com firmeza.
Ela começou a chorar.
—Como vou casar hoje sem saber se está vivo ou morto? Sem saber se está seguro? Sem saber onde está?
—Por favor, lady Eleanor! —disse-lhe Brawley, lhe estendendo seu lenço branco— Temo que tenho ordens de registrar o imóvel. Entretanto, minhas ordens não se apóiam em provas de que seu irmão tenha estado aqui. De fato, nossa busca demonstrou o contrário. Seu irmão não voltou para Adare —acrescentou, e tentou sorrir para reconfortá-la— Assim certamente estará a salvo, esteja onde esteja.
—Então, a busca terminou?
Ele apartou o olhar.
—Temo que não. Por lei, é um fugitivo, e tenho ordens de capturá-lo.
—E é isso o que vai fazer? —perguntou ela com amargura— Incluso sabendo que é inocente?
—Sua lealdade para seu irmão é louvável, milady. Eu seria igualmente leal se estivesse em seu lugar. Mas sou um soldado, lady Eleanor, e devo obedecer ordens.
—E quais são essas ordens?
—É um homem perigoso! Por que se atormenta desta maneira no dia de suas bodas?
Ela voltou a agarrá-lo.
—Há mais, verdade? Por que não quer me dizer isso. E Sean não é perigoso!
Brawley teve que lutar consigo mesmo. Escapou dela e sussurrou:
—Querem-no vivo ou morto, lady Eleanor. Sinto ter que ser eu quem o diga. Eleanor gritou.
Eleanor estava sentada frente a sua penteadeira, vestida de noiva, com suas duas cunhadas; Virginia, a esposa de Devlin,que acabava de lhe dizer que estava maravilhosa com seu traje branco.
A Eleanor não importava. Não podia tirar da cabeça as palavras do capitão Brawley. Rezava para que Sean estivesse em um navio caminho do oceano Atlântico.
Olhou-se no espelho. Estava muito pálida, tanto, que parecia que estava doente, ou de luto. E realmente estava de luto, pensou, pela perda de seu melhor amigo e do homem que amava. Perguntou-se se estaria de luto para sempre.
E para piorar as coisas, ia descer as escadas e casar-se com o Peter, que era um homem honorável que a queria. Eleanor sabia que tinha sido muito injusta com Peter a noite anterior, e sabia que ia ser casando-se com ele.
Lizzie se aproximou de Eleanor e lhe pôs a palma da mão no ombro.
—Querida, não falou nenhuma só palavra em uma hora. Podemos falar? Porque Ginny e nos estamos assustadas.
Eleanor fechou os olhos com desespero.
—Eleanor? —disse Virginia— Está-se comportando como se tivesse morrido alguém, não como uma noiva feliz.
Eleanor olhou a suas belas cunhadas através de seu reflexo no espelho.
—Morreu alguém. E eu não quero Peter. Não posso fazer isto. Peter não o merece.
Virginia e Lizzie intercambiaram um olhar de consternação.
—Quem morreu? —perguntou-lhe Lizzie com preocupação.
—Eu. Eu morri, e isto deve ser o inferno.
—Vou procurar à condessa —disse Lizzie, pálida de angústia— Está com a ama de chaves, acredito, mas agora é necessária aqui.
—Sean esteve aqui —disse Eleanor.
Lizzie soltou um ofego, e Virginia a olhou com os olhos exagerados.
—Eleanor, o que está dizendo? —perguntou-lhe Virginia.
—Ele não me quer —prosseguiu Eleanor— Fui uma idiota. E o pior é que eu sim quero a ele.
Virginia se mordeu o lábio.
—Onde está? Deus Santo, os soldados estiveram aqui o outro dia e esta manhã… Devlin tem que inteirar-se de que seu irmão está perto!
—Foi ontem à noite. Não vai voltar. Vai para a América —disse Eleanor, como se estivesse em transe.
—Tenho que dizer para Devlin —disse Virginia, correndo para a porta.
Lizzie tomou a mão de Eleanor para obrigá-la a que a olhasse aos olhos.
—Por que não o falou a ninguém?
—Ele me pediu que não o fizesse, mas o disse para Cliff e o Rex.
Lizzie se sobressaltou.
—Eu tenho que dizer ao Tyrell. Estará bem se deixá-la sozinha? —perguntou-lhe.
Eleanor assentiu distraídamente.
—Não vou me casar. Nem hoje nem nunca. Possivelmente deva entrar em um convento.
—Não se mova daqui —lhe disse Lizzie— até que venha alguém.
Depois lhe apertou a mão e partiu.
E Eleanor ficou sozinha. secou-se uma lágrima que lhe corria pela bochecha. Ao menos, Sean tinha uma vantagem de doze horas sobre o Brawley e seus homens, ou possivelmente mais, se Brawley não tinha encontrado seu rastro.
De repente, sentiu-se como se alguém a estivesse vigiando e olhou ao espelho. Então, viu um par de olhos chapeados no reflexo do espelho.
Sean estava atrás dela.
Eleanor ficou em pé.
—Sean!
Ele sacudiu a cabeça. Tinha um olhar de desassossego.
—Vim… o sinto, Elle. Sinto muito te haver feito mal.
—Quero-te.
—Não diga isso. O que fiz foi muito mal. Odeio-me a mim mesmo por isso. Sinto muito! Como posso desfazê-lo? Como?
—Não importa —sussurrou ela— Quão único importa é que retornaste —disse. Depois, deu-se conta com horror das implicações da presença de Sean na casa— Sean! Estão-lhe procurando!
—Sei. Partiram faz… uma hora. Não passa nada. Não me apanharão —respondeu ele. Depois olhou o vestido de noiva de Eleanor e voltou a olhá-la aos olhos— Eu não queria… te fazer dano. A você não. Não sei o que ocorreu… nem por que. Estou envergonhado.
—Não me fez mal —mentiu ela— Não pode me fazer dano. Nada do que faça ou diga poderá trocar meus sentimentos por você.
—Não diga isso, por favor. Eleanor… esta noite, com o Sinclair… tem que fingir.
De repente, ela se deu conta do que lhe acabava de dizer. referia-se a sua noite de bodas!
—Não!
—Finge… dor. Ele nunca saberá. Ele te quer.
—Deixa-o! —disse ela entre soluços— Não vou me casar com ele. Não posso fazê-lo!
—Deve fazê-lo. Ele cuidará de você porque… eu não posso —lhe disse Sean. Tinha uma expressão de dor, e os olhos cheios de lágrimas.
Ela não podia falar, não podia respirar. O desespero a afogava.
—Adeus —disse Sean, com um sorriso triste.
—Não —sussurrou Eleanor.
Então, ele se deu a volta.
Eleanor voltou para a vida.
—Não! —exclamou, e correu atrás dele para a janela, que estava totalmente aberta— Sean, não pode ir sem mim!
Não lhe fez caso e saiu pela janela.
—Sean!
Mas ele já estava descendo ao balcão do piso inferior.
—Sean, me leve com você!
Ele não olhou para cima. Saltou ao ramo do carvalho que havia sob a janela de Eleanor e dali, ao chão.
Eleanor deu a volta, agarrou a saia do vestido e atravessou correndo a habitação. Quando saiu ao corredor se topou com uma donzela que levava uma bandeja de bebidas e que teve que afastar-se para evitar o choque. Eleanor nem sequer se deteve; desceu as escadas de dois em dois. Depois dela, a cauda do vestido flutuava como um véu interminável de cetim e seda.
Deu-se conta de que havia centenas de convidados pela casa. A Eleanor não importou, e fez caso omisso das expressões de surpresa e os murmúrios que se produziam a seu passo. Atravessou o vestíbulo e viu que o pai de Peter, lorde Henredon, o conde de Chatton, estavam olhando-a com estupefação.
—Abram as portas, idiotas! —gritou aos dois porteiros uniformizados que guardavam a entrada.
Eles obedeceram imediatamente.
—Eleanor! —disse Devlin, que se aproximava dela, em tom de ordem.
Eleanor apenas o ouviu. Saiu da casa, e imediatamente viu Sean, que estava a meio caminho para os estábulos. Ela se levantou a saia novamente e pôs-se a correr.
—Sean!
Ele se voltou e a viu. Depois fugiu a toda pressa.
Eleanor viu uma moço que lhe levava um cavalo, e sua decisão se reforçou ainda mais.
—Sean! —gritou com tanta força como pôde, e se tropeçou na erva.
Ele montou de um salto e a olhou. Separavam-nos duzentos metros.
Eleanor teve que deter-se para tomar ar, com uma aguda dor em um flanco. Percebeu vagamente que se estava formando uma multidão a suas costas, ouviu murmúrios de excitação, e soube que Devlin e Cliff estavam atrás dela. Um de seus irmãos soltou uma imprecação.
Cliff disse:
—Devlin, retornaram.
Eleanor não podia apartar o olhar de Sean, mas não teve que fazê-lo para saber que Cliff se referia aos soldados. Sabia que se olhasse para a casa, veria-os aproximando-se de cavalo.
Sean esporeou ao cavalo negro e galopou para o bosque para fugir.
Não. Eleanor se levantou a saia e começou a correr para ele.
—Sean! —gritou— Sean!
De repente, o enorme cavalo deu a volta, e Sean estava galopando para ela.
Eleanor estendeu a mão.
Sean tinha ao cavalo a todo galope, e quando estava a tão somente uns metros, seu olhar se encontrou com o de Eleanor. Ela se sentiu exultante. Ele voltava para leva-la.
Suas mãos se tocaram, aferraram-se a uma à outra.
E Eleanor saltou à garupa do cavalo enquanto ele atirava dela. Elle se agarrou à cintura de Sean e enterrou a face em suas costas. Sean girou ao cavalo de novo; detrás deles soaram gritos de assombro, ordens de alto e exclamações.
Eles galoparam para o bosque.
Capítulo 9
O que tinha feito?
E a que distância estavam seus perseguidores?
Eleanor permaneceu atrás dele enquanto galopavam entre as árvores. Sean sentia suas mãos, ligeiras mas firmes, na cintura. Ela montava tão bem como qualquer homem, e mantinha o equilíbrio à perfeição. O que tinha feito? Sentia seus seios, suaves e cheios, nas costas, e percebia sua presença atrás dele com toda intensidade.
Também, com toda intensidade, tinha na mente a imagem da casa que acabavam de deixar atrás, cheia de convidados. Devlin também estava ali, e o conde e sua mãe, e ele sabia que todos deviam estar estupefatos.
Ele acabava de roubar à noiva.
Estava aniquilado com o que tinha feito, mas já não importava. Sean conhecia aqueles bosques tão bem como quando era jovem; tinha-os percorrido mil vezes em perseguição de Elle quando era uma menina pequena e selvagem. Virou, pela décima vez, para tomar outro atalho, que por fim os levou para o rio largo e profundo que discorria para o sul desde o Shannon. Eleanor fazia o caminho com a bochecha apoiada contra seu ombro, mas naquele momento, quando deteve o cavalo, ela se ergueu. Foi um alívio para ele, posto que sabia que já não era a menina de antes, a não ser toda uma mulher.
—Sean —lhe disse com a voz rouca— Podemos despistá-los no rio.
É obvio que ela sabia qual era sua intenção. Seguia sendo a mulher mais inteligente que ele tivesse conhecido. Sean desceu do cavalo e a olhou.
Estava deslumbrante com seu vestido de noiva, as bochechas avermelhadas e os olhos brilhantes. A larga cauda branca tinha manchado, e caía pendurando pela garupa do cavalo até o chão. Parecia farrapos. Ele teve medo de que as partes de tecido tivessem deixado um rastro para os cavalos.
Não deveria estar admirando-a, nem naquele momento, nem em nenhum outro. Só tinha voltado para casa para lhe dizer como enganar ao Sinclair em sua noite de bodas e, mais importante ainda, para desculpar-se e lhe pedir um perdão que não merecia. E tinha querido lhe dizer adeus por última vez. Em vez disso, tinha-a seqüestrado.
Sentiu uma pontada de pânico. Ainda não sabia o que era o que lhe tinha empurrado a voltar-se atrás por ela. Sean tinha visto os soldados subir para a casa. Deveria ter seguido cavalgando para o bosque. Entretanto, tinha ouvido como ela gritava seu nome, como o tinha feito tantas vezes antes, de menina, e sem dar-se conta, fazia girar ao cavalo para recolhê-la.
—Sean? —disse ela nervosamente, com o olhar cravado nele. Estava esperando a que atuasse de algum modo.
Sean sentia um pânico cada vez maior. Tinha medo.
Os ingleses iriam atrás deles. Sabia que tinha posto a Eleanor em perigo de morte.
—Sean? O que vamos fazer?
Ele se sobressaltou. Não podia lhe fazer aquilo.
—Os despistaremos no rio.
—Eu também caminharei —disse ela com decisão— Assim nos moveremos com mais rapidez. Mas não posso andar com o vestido pela água.
Aquilo era evidente. A ampla saia e a cauda seriam um pesado lastro. Ela não tinha acabado de dizer aquelas palavras quando ele já tinha a adaga na mão.
—Fica quieta —lhe disse.
Ela assentiu, e olhou com os olhos muito abertos como Sean cortava a cauda do vestido.
—Me dê a faca —disse ela, enquanto se deslizava até o chão.
Então, cortou também a saia à altura dos quadris, e ficou somente com uma combinação rosa e com o sutiã. Ele se ruborizou ao vê-la. Tomou um ramo e começou a apagar seus rastros enquanto ela conduzia o cavalo até a água. Enquanto começavam a caminhar pelo leito do rio, Eleanor lhe perguntou:
—A quanta distância acha que estão?
—Poderíamos havê-los perdido por completo… ou poderiam estar a uns minutos.
—Estou segura de que Devlin e Cliff estavam atrás de mim quando veio para me pegar. Sei que terão feito algo para nos ajudar a escapar.
Tinha razão. Sean esperava que, fosse o que fosse, tivesse sido discreto. E começou a dar-se conta de que Elle não era a única a que tinha posto em perigo; toda sua família corria um grave risco por causa de suas ações.
—O que vamos fazer, Sean? —perguntou-lhe ela com preocupação.
—Continuaremos avançando até que escureça… descansaremos… e seguiremos.
—Aonde vamos?
—A Cork.
—Cliff tem um navio em Limerick.
Ele não respondeu. Quanto menos soubesse, melhor. Elle estava em perigo. Podiam lhe fazer pagar por seus crimes, como tinham feito pagar a Peg e ao Michael.
Sentiu-se angustiado, incapaz de deter seus pensamentos.
Ela estava pálida de medo.
—Tem que detê-los. Não permita que vão—rogou Peg— Os matarão a todos. Sean, por favor!
Seu medo era muito real, e ele nunca o esqueceria. O tinha ido atrás de seu pai, o dirigente da manifestação, porque o tinha prometido a Peg. Desde sua chegada ao povoado, no ano anterior, a gente tinha ido a ele em busca de conselho e liderança. E como ele tinha sido o senhor de Askeaton durante todos aqueles anos durante os que seu irmão maior estava no mar, tinha ocupado naturalmente aquela posição.
Tinha prometido a Peg que impediria a catástrofe, mas era muito longe. Duas dúzias de homens mau armados já se enfrentaram a lorde Darby. Tinham formado uma barreira que não permitia passar a carruagem do nobre a seu imóvel. Darby tinha uma escolta formada pelo coronel Reed e cinco homens mais. antes de dar-se conta, estava negociando com Darby para que não executasse um despejo, com a esperança de acabar com aquele distúrbio; mas Darby se negou.
Os homens se tornaram loucos; tinham parado a carruagem e tinham tirado Darby a rastros. Dois dos soldados foram golpeados até a morte. Reed e os outros três tinham fugido. Os homens tinham prendido Darby, que não deixava de choramingar, até a árvore mais próxima. Sean tinha suplicado que não o matassem; entretanto, o inglês tinha terminado enforcado.
Depois, o homens tinha descendido até a residência de Darby e a tinham queimado, fazendo caso omisso quando lhes tinha rogado que se retirassem. Sean, vencido e incapaz de presenciar tanta destruição, tinha voltado para sua casa. Depois tinham chegado os reforços ingleses, e o massacre tinha começado.
Quando terminou, todos os homens do povoado de Kilraddick tinham morrido, salvo Flynn e ele mesmo. Sean tinha matado a um soldado. Sabia, por instinto, que devia encontrar Peg e a Michael e fugir. A pé, coxeando por uma ferida de baioneta, tinha deslocado até o povoado. Peg o estava esperando pálida de medo. Não tinha havido tempo para explicar nada, só para recolher seus escassos pertences. Levou Michael e a ela ao povoado mais próximo.
No dia seguinte, Sean contou toda a verdade a Peg. Ela chorou as mortes de seu pai e de todos outros. E depois, disse-lhe que estava esperando um filho dele. Sean se casou com ela no dia seguinte.
Como não foi nenhum soldado para buscá-lo, começaram a albergar a esperança de que o tivessem dado por morto no incêndio de Darby. Começaram a perder um pouco de medo, e então chegou a tristeza por todos os que tinham morrido e o desejo de vingança. Entretanto, Sean sabia que não era possível.
E quando Peg lhe perguntou onde iriam viver, deu-se conta de que se converteu em um homem casado.
Sean tinha ficado olhando-a aniquilado, incapaz de entender como e quando se casou com aquela mulher a que não conhecia na realidade, e a que não amava. Uns olhos de cor âmbar o tinham obcecado, e a culpa se apropriou dele.
Timidamente, Peg lhe havia dito que queria fazer planos para o nascimento de seu filho. E timidamente também, havia-lhe dito que necessitavam de sua própria casa e, se possível, outra granja.
De repente, deu-se conta de que tinha uma esposa e um filho de que era responsavel, e outro filho em caminho. Estavam muito perto de Kilvore e da guarnição inglesa de Drogheda. Sabia que devia levar a sua família para Askeaton. O coronel Reed nunca o buscaria ali, e embora o fizesse, não lhe ocorreria pensar que o filho do conde era o mesmo homem que tinha estado presente no levantamento de Kilvore.
Mas então se deu conta de que não podia levá-los para casa. O que diria seu irmão? O que diriam o conde e a condessa? O que pensariam?
O que pensaria Elle?
Alojaram-se em uma casa de aluguel do povoado, e ele ficou pensando naquilo, até que uns gritos de alarme o tinham tirado de sua inquietação e sua indecisão. Declarou-se um incêndio. Agradecido pela distração, ele se tinha unido aos homens que tentavam apagá-lo. Quando tudo tinha terminado, Sean comprovou com assombro que tinha anoitecido; e então, deu-se conta de que a casinha onde ele se alojava também estava ardendo.
Entendeu o acontecido, e sentiu horror. E viu a cavalaria afastando do povoado, e soube o que tinha ocorrido…
Sean correu.
Só havia uma casa incendiada, e era a sua. O telhado de palha era um inferno. As paredes estavam começando a arder. Gritou chamando Peg e Michael. Arrancou a camisa do corpo e a usou como máscara para não inalar a fumaça. Dentro, as chamas devoravam os móveis e as portas. Sean encontrou Peg inconsciente no chão, com a roupa feita farrapos, sangrando por suas numerosas feridas, agarrada ao brinquedo de madeira do menino. Ela tinha morrido em seus braços, e Michael não tinha podido encontrá-lo…
E naquele momento, Elle estava a seu lado, e os ingleses estavam perseguindo-os.
Teve terror ao pensar em que o passado pudesse repetir-se. Não havia nada tão importante como proteger Elle, conseguir que voltasse a salvo a casa. Não podia deixá-la só no bosque, assim que a levaria a Cork, onde encontraria uma escolta que a acompanhasse de volta a Adare. Um homem como Reed não lhe faria mal detrás dos sólidos muros daquela casa. Mas, e se o conde não podia protegê-la contra uma acusação criminal? Se não podiam feri-la como tinham destroçado Michael e Peg, possivelmente fizessem outra coisa: ela não seria a primeira mulher a que encerravam na Torre para o resto de sua vida, acusada de conspiração e traição.
Não, pensou Sean com fúria; aquilo tampouco ia ocorrer. Mas sentia tanto pânico que lhe resultava difícil pensar.
—Sean? Por que não partiu ontem à noite?
Ele não queria pensar na noite anterior, jamais. E tampouco queria falar com Elle daquela noite.
—Sim parti.
—Mas retornaste.
Ele preferiu não responder.
Eleanor tomou pelo braço. Fez que se detivesse na água e que se girasse para ela.
—Obrigado —lhe disse brandamente.
Ele escapou de sua mão.
—Disse-te adeus.
—Mas não era uma despedida. Isto é um novo começo.
—Maldita seja! Quando se tornou… tão tola? —explorou ele— Poderia estar casada com esse inglês… Sinclair! Em vez disso está aqui, metida na água gelada, perseguida pelos ingleses!
—Eu não quero ao Peter —reiterou ela com obstinação.
—Isso não tem importância —sentenciou Sean enquanto retomava a marcha pelo rio— Ninguém se casa por amor.
—Não estou de acordo! —exclamou Eleanor, seguindo-o— Papai quer à condessa, e se casou com ela por amor. Tyrell se casou por amor, mas claro, você não sabe, porque não estava aqui. E Devlin? Você sabe tão bem como eu que também se casou por amor!
—Temos uma família pouco corrente, não? Mas Rex não se casou por amor… E Cliff não vai se casar! E eu…
Sean ficou calado. Ele tampouco se casou por amor. Casou-se porque tinha deixado grávida a Peg e ela o necessitava desesperadamente. Entretanto, ao final, não tinha sido capaz de protegê-la.
—Você o que? —perguntou-lhe ela com desconcerto, tomando-o pelo braço.
Ele deu um puxão para livrar-se de sua mão e seguiu guiando o cavalo pelas rédeas. Elle não disse nada mais. Sabia quando devia insistir e quando devia deixar um assunto, no momento.
—Acredito que estamos avançando a bom passo —disse, como se sua discussão prévia não tivesse ocorrido— Não nos detivemos, mas teremos que descansar em algum momento, sobre tudo pelo Saphyr.
Sean não acreditava que tivessem passado mais de duas horas desde que tinham saído de Adare, mas Eleanor tinha razão. Tinham caminhado a bom ritmo.
—Deixaremos o rio em meia hora e entraremos no bosque outra vez.
—Sean! —exclamou Eleanor, e se aferrou a seu braço— Ouviste isso?
Ele não esperou para discernir se o que tinha ouvido ela era o ruído de seus perseguidores ou não.
—Vamos —disse.
Correu com o cavalo à borda oposta com Eleanor a seu lado. Entregou-lhe as rédeas e ela correu com o animal para a espessura. Ele tomou um pedaço da cauda do vestido de noiva, que se tinha enrolado no braço, atou-o a um ramo e apagou seus rastros. Depois seguiu Eleanor ao bosque.
Encontrou-a e se deteve, respirando profundamente. E então, ouviram vozes, apenas perceptíveis, mas não muito longe. Eram ingleses. Uma das vozes dava as ordens com claridade.
Elle se voltou para lhe falar.
Sean lhe pôs a mão sobre a boca e a aproximou do corpo. Ela ficou imóvel. Sean lhe sussurrou:
—Vêm pelo rio. Estão perto.
Ela assentiu, com os olhos muito abertos.
Lentamente, tirou a mão de seus lábios, e com a outra mão começou a acariciar o pescoço do cavalo. O animal podia delatá-los com facilidade.
Apareceram quatro soldados pelo rio, em fila, percorrendo ambas as bordas com o olhar. E o quinto cavaleiro era Devlin O’Neill.
Ao vê-lo, a Sean lhe encolheu o coração. Sabia o que estava fazendo seu irmão: Devlin tinha convencido ao oficial ao mando para que lhe permitisse unir-se à busca. Devlin tinha reputação de ter sido um comandante implacável durante a guerra. A maioria dos mandos navais o temiam e o respeitavam. Provavelmente, não lhe teria resultado difícil convencer ao oficial para que lhe deixasse acompanhar ao grupo.
E estava ali para ajudar a Sean escapar.
O olhar de Devlin virou para eles, como se tivesse localizado o lugar onde estavam escondidos.
Sean rodeou a Eleanor com um braço e notou sua tensão. Ela tentou lhe sorrir, mas estava pálida de medo.
—Senhor! —gritou um dos soldados— Devem ter retomado o caminho pelo bosque muito mais abaixo. Aqui não há nem rastro de um cavalo nem de um homem.
—E você, capitão? O que opina? —perguntou com tensão o oficial.
—Acredito que foi muito inteligente por sua parte enviar a Limerick a metade de seus homens. Não há nenhuma sinal que indique que passaram por aqui —respondeu Devlin— A cauda do vestido teria deixado alguns farrapos.
Sean olhou Elle nos olhos. Devlin devia ter encontrado numerosos pedaços de tecido pelo caminho, e os tinha escondido, ou distraído a atenção dos soldados para que não os encontrassem.
—Acredito que tem razão, capitão O’Neill. Acredito que foram ao norte, para Limerick, e que estamos seguindo é um rastro falso. Não vimos nenhum ramo rota, nenhuma rastro de cavalo, nem um pedaço do vestido de sua irmã. E está notavelmente acalmado, senhor.
—Já falei uma vez, e eu não gosto de me repetir, que meu irmão não é um perigo para ninguém, e que os cargos dos que lhe acusa são falsos —disse Devlin com um sorriso frio— Vi muitos testemunhos falsos enquanto servia a Grã-Bretanha, capitão.
—Se tiver razão, quanto antes capturemos a seu irmão, antes poderá limpar seu nome. Adiante!
Os soldados e Devlin dirigiram os cavalos para a borda oposta e se voltaram por onde tinham chegado. Quando desapareciam entre o bosque, Devlin não se voltou nenhuma só vez.
—Viu-nos —sussurrou Elle.
—Sim. Afastou-os de nós —disse Sean.
O irmão pequeno que havia nele desejou seguir Devlin e lhe pedir ajuda. Mas ele era um homem, não um menino, e seu irmão tinha muito que perder. Sean olhou Elle, que tinha se sentado no chão.
—Foram-se. Hoje não voltarão.
Ela assentiu, sem dizer uma palavra.
—Estiveram perto… mas o conseguimos —disse ele. Desejava com todas suas forças conseguir lhe arrancar um sorriso, porque queria reconfortá-la— Elle… eles me querem , não a você.
—Exato —disse ela, enquanto começava a tirar os sapatos e as meias empapadas— Esse capitão era Brawley, Sean. Eu falei com ele esta manhã. Tem ordens de te capturar, e tem liberdade para usar todos os métodos para consegui-lo.
Sean desceu o olhar. Tinha entendido. Brawley tinha permissão para apanhá-lo vivo ou morto.
Elle olhou para seus pés descalços.
—Devlin estava tentando convencê-lo de que é inocente. Eu também o tentei. Mas conheço um pouco a esse homem, e sei que é um soldado. Devlin pode tentar persuadi-lo até que não fique voz, e não servirá de nada. Pode ser que tenhamos conseguido um dia extra, mas Brawley vai fazer de tudo o que esteja em sua mão para te capturar.
—Tentou lhe rogar… negociar com um oficial britânico?
Ela assentiu.
—Não tinha outro remédio.
Sean se ajoelhou e a tomou pelos ombros.
—Não quero… que volte a se aproximar… alguma vez a um soldado, entendido? —ordenou-lhe, e esteve a ponto de agitá-la devido ao medo e a fúria que sentia.
—Queria averiguar o que ele sabia. Só queria ajudar! Tem muito medo, vejo-o em seus olhos. É o único que percebo. Nunca te tinha visto assustado desta maneira.
—Tenho medo por você! —gritou ele sem poder conter-se.
Ela empalideceu.
—Como?
Sean fechou os olhos, tremendo.
—Temos que continuar… Iremos para o oeste. Há mais bosque, e isso será vantajoso para nós. Mas demoraremos mais em… chegar ao Cork.
—Não quero que se preocupe por mim —disse-lhe ela lentamente— Sean, é sua vida a que está em perigo, não a minha.
Aquelas palavras lhe fizeram mal. Mais tarde, quando estivessem em um lugar mais seguro, em seu quarto em Cork, lhe diria que tinha decidido enviá-la para casa. Não queria provocar uma discussão naquele momento.
—Será melhor que vamos.
Ela titubeou. Depois, lentamente, ficou em pé, como se estivesse dolorida.
Ele se deu conta imediatamente.
—O que te passa nos pés?
—É pelos sapatos novos —respondeu ela, mordendo o lábio.
Ordenou-lhe que se sentasse de novo e se ajoelhou ante ela. Então lhe tirou um dos sapatos, e ao ver as solas, sua expressão se tornou grave.
Ela estava ferida, e ele tinha que curá-la. Olhou para cima.
—Posso caminhar —disse ela com teima.
—Não. Vai a cavalo até que paremos para passar a noite —replicou ele. Usarei o tecido da cauda para fazer umas vendagens.
Era quase meia-noite quando Devlin entrou pela porta principal de Adare. O capitão Brawley o acompanhou; o resto dos soldados permaneceu fora. Imediatamente, apareceram Cliff, Tyrell e Rex, o conde, a condessa e Peter Sinclair. Ele último estava pálido e tinha os olhos totalmente abertos.
Devlin olhou para Cliff nos olhos, e Cliff esboçou o mais ligeiro dos sorrisos.
Devlin sabia que Cliff tinha cavalgado como se a alma fosse perseguida pelo diabo através dos bosques para Limerick, e não para preparar seu navio para que zarpasse ao amanhecer; daquilo já se ocupou a noite anterior. Seu irmão tinha deixado um rastro falso para os soldados, e pelo olhar de satisfação de seus olhos, parecia que os militares tinham mordido o anzol.
—Encontrou-os? —perguntou o conde a Brawley, evitando cuidadosamente olhar para Devlin.
—Temo que não. Parece que se dirigiram para Limerick. Esperarei ter notícias dos homens aos que enviei ao norte —respondeu Brawley.
O conde assentiu.
—Agradeço-lhe os esforços que está fazendo em meu nome, Thomas —disse— Estou desesperado por encontrar a meu filho.
Brawley vacilou.
—Sei que o está, milord. Esperemos que haja uma conclusão satisfatória para este assunto —disse.
Depois fez uma reverência e partiu.
O conde se dirigiu ao jovem Sinclair.
—Peter, quer se unir a seu pai e a mim para tomar uma taça? No momento não podemos fazer nada mais.
Sinclair olhou com desconcerto para Devlin.
—O delinqüente é seu irmão, capitão! É certo que pensa que foi para Limerick? E o que ocorre com Eleanor? Todo mundo diz que não há perigo para ela por parte de seu irmão, mas eu não estou de tudo convencido!
—Meu irmão é inocente —disse Devlin, tomando ao Peter pelo ombro.
—É acusado de assassinato, senhor, de assassinato e traição! —exclamou Sinclair.
—Sean é um cavalheiro, não um assassino. E é um patriota.
—Um patriota irlandês, possivelmente?
—Somos parte da União —replicou Devlin em seu tom mais autoritário— Ele é tão patriota como você. Eleanor é sua meio-irmã, e nunca lhe faria mal. Muito ao contrário, daria sua vida por ela.
Sinclair assentiu, finalmente, embora seguisse consternado.
—Nunca entenderei por que se foi com ele.
O conde se aproximou de Sinclair.
—Eleanor sempre foi impetuosa. Tentemos não nos preocupar. Sean a manterá a salvo e eu estou seguro de que os encontrarão amanhã mesmo. Deixará de angustiar-se quando puder falar com ela e nós, é obvio, começaremos a limpar o nome de Sean dessas terríveis acusações.
Sinclair olhava a um nada. Depois de um instante, sacudiu a cabeça e murmurou:
—Desculpem. Acredito que vou sair ao jardim. Preciso pensar.
Quando saiu, Rex disse com tensão:
—Um de nós tem que estar com ele. Poderia ser um bom aliado se apanharem a Sean.
—Tem razão —disse o conde— Tyrell, vá acalmar ao jovem Sinclair. Convença-o de que Sean foi acusado falsamente, e quando o tiver conseguido, convença-o de que Eleanor atuou por amor a seu meio-irmão —acrescentou com seriedade.
Tyrell assentiu e saiu atrás de Sinclair.
—O que passou? —perguntou o conde para Devlin.
—Foram ao sul, a Cork. Estavam a uns seis quilômetros daqui, do outro lado do rio. Entretanto, assegurei-me de que não deixassem rastro e Brawley acredita que foram para Limerick.
O conde assentiu e se voltou para Cliff.
—Pode zarpar ao amanhecer?
—Posso ter meu navio em Cobh em dois dias, como muito —respondeu Cliff — Mas, o que acontecerá a Eleanor?
Houve um breve silêncio. Então, a condessa interveio, olhando só para o conde.
—Ela é uma mulher adulta, e nunca deixou de querer a Sean.
—E se não conseguir anular sua condenação? E se não haver anistia? É um fugitivo da lei, Mary, e terá que partir do país. E se o apanham e ela está com ele? E se a acusam de traição e conspiração?
Mary tinha empalidecido.
—Se ele quer estar com ela, nunca a convenceremos de que o abandone —disse— Querido, sei que está zangado com Sean, mas eu conheço meu filho. Apaixonou-se por ela, Edward. Não há outra explicação para seu comportamento.
—Neste momento, não estou seguro de que me importem seus sentimentos para Eleanor —disse o conde com brutalidade— Sinclair é um bom partido. Tem título, riqueza e, além disso, não é um foragido que vá pôr em perigo a vida de Eleanor.
Mary ficou tensa.
—Mesmo sabendo que Eleanor quis a meu filho durante toda sua vida, seria capaz de ir contra eles?
—Antes de que Sean levantasse as armas contra os britânicos, teria permitido essa união. Criei-o como meu filho… é meu filho! Mas não esperará que permita que Eleanor se case com um foragido.
—Se for isso o que eles querem, então isso é o que espero, sim.
Uma terrível tensão se deu procuração de todos os presentes.
Devlin se interpôs entre eles. Sorriu para sua mãe e depois se dirigiu ao conde.
—Edward, isso é intranscendente neste momento. Não estamos falando a um possível matrimônio entre Eleanor e Sean. Não sabemos o que pretendem fazer. Entretanto, eu sim sei que Sean nunca poria em perigo a Eleanor deliberadamente, porque embora só seja como irmã, ele a quer muito.
—Mas o tem feito —replicou Edward— E eu tenho medo pelos dois.
—Sei. Entretanto, não o apanharão. E prefiro ser eu quem translada a Sean a costas estrangeiras.
Cliff tomou pelo braço a seu irmão.
—Devlin, você tem esposa e dois filhos, e eu não tenho a ninguém. Eu cuidarei de Sean. E se Eleanor estiver com ele, também cuidarei dela. Eu posso navegar e vencer a qualquer um, e isso inclui qualquer navio britânico que possa sair em nossa perseguição.
—Se acredita sinceramente que é invencível, levará uma decepção, moço. Há uma base naval em Cobh, ou se esqueceu?
Cliff sorriu com frieza.
—Nunca perdi uma batalha e não penso fazê-lo agora. E quanto os marinheiros que há ali, a metade são delinqüentes em trabalhos forçados que saltarão à água ao primeiro sinal de perigo.
Rex se aproximou deles.
—Agora vão começar a competir um contra o outro? Não! Não importa quem leve Sean para longe da Irlanda, com ou sem Eleanor, possivelmente nunca possa voltar. Portanto, tenho um plano.
Mary tinha se sentado. Tinha uma expressão de profunda angústia e os braços cruzados sobre o peito.
—Por favor, Rex —disse.
—Cliff pode navegar até Cobh, mas será nosso chamariz. Devlin, você deve comprar em segredo um navio armado e rápido. Esse navio também irá para Cobh. Quando encontrarmos Sean, Cliff pode zarpar e distrair aos britânicos. Devlin poderá levar Sean a um lugar seguro sem sofrer perseguição. Enquanto, eu vou para Cork —disse Rex— Se partir agora, chegarei poucas horas depois que eles, assim que seu rastro permanecerá fresco.
Soou uma tosse e todos os presentes se voltaram para a porta. Rory McBane estava na soleira.
—Decidi intervir —disse—, porque vão necessitar de minha ajuda.
****
O sol se pôs por fim. Eleanor nunca tinha desejado tanto que anoitecesse. Enquanto Sean acomodava ao cavalo, o esgotamento se apropriou dela. Caminhou coxeando até uma pequena clareira de erva e estendeu a cauda de seu vestido, dobrando-a várias vezes. Depois se sentou. Apesar do cansaço, do frio e da fome que sentia, nunca tinha sido tão feliz.
Sean havia voltado para procurá-la. Era um sonho feito realidade, um milagre. A noite anterior tinha mudado tudo. Era evidente que ele correspondia seus sentimentos, ou ao menos, estava começando a fazê-lo. E como tinham conseguido livrar-se dos soldados, o pior tinha passado. Logo chegariam em Cork, e em pouco tempo estariam de caminho a América.
Eleanor observou Sean. Do outro extremo da pequena clareira, ele deve ter percebido seu olhar e se voltou para ela.
—Como está? —perguntou-lhe, aproximando-se.
—Estou exausta, tenho frio e tenho fome! Mas estou muito bem, Sean.
Ela mesma se deu conta do aveludado que se tornou seu tom de voz.
Ele ficou tenso.
—Não quero acender uma fogueira —lhe disse lentamente.
—Acredito que poderemos sobreviver sem ela —respondeu Eleanor com um sorriso suave.
Ele a olhou brevemente aos olhos.
—Tem frio, e esta noite vai refrescar ainda mais… Não temos nada salvo a cauda do vestido…
Imediatamente, ela pensou na maneira mais evidente de remediar aquilo e sorriu. Em seus braços, ela nunca passaria frio. E naquela ocasião haveria amor entre eles, não só uma paixão explosiva.
—Não me preocupa o frio —murmurou.
Sean se sobressaltou.
—O que significa… isso? —perguntou-lhe.
Eleanor se levantou e tomou a mão.
—Tem medo incluso de me olhar! —exclamou— Sean, se houver alguém que deveria estar envergonhado pelo que ocorreu ontem à noite, sou eu.
Ele puxou a mão e se liberou dela.
—Há pão e queijo nesta alforja —disse ele.
Ajoelhou-se e abriu a bolsa de viagem parar tirar a comida. Entretanto, ela insistiu:
—Sean, minha conduta foi reprovável, é certo, mas…
Ele elevou o olhar e o cravou nela.
—Não quero falar do que ocorreu ontem à noite!
Ela fez um gesto de dor.
—Sei que o tema não é de tudo correto, mas ao menos, seu comportamento demonstra que ainda é um cavalheiro.
Ele ficou em pé, incrédulo.
—Que meu comportamento demonstra que sou um cavalheiro? Está louca?
Ela se ruborizou. Sentia-se muito insegura.
—Eu te animei…
—Já falei que não quero falar de ontem à noite. No que a mim concerne, nunca ocorreu.
Ela o olhou sem dar crédito ao que acabava de ouvir.
—Não o entendo. Por que está tão zangado? Está zangado comigo?
—Não estou zangado contigo. Estou zangado comigo por ter te usado ontem à noite —disse, e avermelhou violentamente— Estou tão zangado que não me suporto!
—Mas você veio para me buscar.
—Eu voltei para me despedir. Come! —ordenou-lhe, tentando resolver a questão.
—Mas não partiu. Veio por mim. Não é?
—Oxalá… não o tivesse feito.
Ela ofegou de espanto para ouvi-lo e cobriu o coração com ambas as mãos.
—Oxalá não houvesse retornado por mim?
—Passei a vida… te protegendo. Agora não deveria estar comigo.
—Não estou de acordo! E não posso acreditar que estejamos discutindo por isso, quando estou aqui contigo e ontem tomou minha virgindade.
—O que quer dizer?
—Pensava que essa era a razão pela qual havia retornado a me buscar. Pelo o que ocorreu no meu quarto.
—No que está pensando?
—Já não sou virgem. Tem o dever de se casar comigo e me levar aonde vá.
Ele se limitou a olhá-la fixamente.
—OH, Deus —sussurrou ela— Não pensa em se casar comigo, não é verdade?
Sean negou com a cabeça.
—Penso em mandá-la para casa, em Adare. Ali, o conde poderá te proteger.
Ela gritou e afogou o grito tampando a boca com a mão.
—Eu sinto muito —prosseguiu ele— O sinto muitíssimo! Não queria que ocorresse nada do que ocorreu. Disse que devia se casar com Sinclair. Mas já não sou um cavalheiro. Sean O’Neill morreu. Disse-lhe isso, mas não me escutou. Você não pode escapar com um fugitivo. Por que não é razoável? —disse-lhe com desespero.
Ela se enfureceu.
—Então, por que demônios me levou contigo? Se não é para me converter em uma mulher honesta, para que? Não o entendo!
—Não sei! —gritou ele— Não sei! Maldita seja! Você estava me chamando a gritos, como sempre fazia quando tinha algum problema. Eu voltei por você… como o tenho feito tantas vezes no passado!
Ela o esbofeteou com todas suas forças. O som da bofetada estalou como um látego.
—Já não sou aquela garotinha que você cuidava! Sou a mulher que tirou sua virgindade. E agora, o que sou para você? Os restos? Um lixo de que pode se desfazer?
Sean sacudiu a cabeça com os olhos cheios de lágrimas.
—Sinclair te quer.
—Não vou voltar com ele. Além disso, ele não me aceitaria!
Quis esbofeteá-lo de novo, mas ele apanhou seu pulso antes de que o conseguisse.
—Elle! —disse ele, enquanto ela lutava para liberar-se— Devo te proteger… por favor, entende-o. Sinclair é inglês. Se casar-se com ele, ninguém a perseguirá, ninguém te fará mal. Ele a manterá a salvo!
Ela escapou, por fim, furiosamente.
—Agora é você que está louco. Ele nunca me aceitará de novo depois do que tenho feito. Abandonei-o no altar! Ninguém me vai fazer mal, salvo você!
Passou um terrível momento. Depois, lenta e calmadamente, ele disse:
—Você diz que me quer… como a um irmão. E como minha irmã, você devia me ajudar a escapar. Sinclair acreditará em você. Há formas de conseguir… que acredite em você.
Ela estava tremendo.
—Fui uma idiota. Ofereci meu corpo, teria dado minha vida por você, e para que? Para que me trate assim? Quiseste-me alguma vez, inclusive quando fomos meninos?
Eleanor se sentia como se lhe tivessem atravessado o coração. Começou a caminhar cegamente para o bosque.
—Maldita seja! —disse ele, e a seguiu.
Apanhou-a e a arrastou para a clareira de novo.
—O que está fazendo? Há lobos!
—Neste momento não me importa! Quero me afastar de você todo o possível! —gritou-lhe.
Retorceu-se grosseiramente até que ele a soltou. Secou as lágrimas que lhe tinham derramado pelas bochechas rapidamente, porque não queria que ele a visse chorar; entretanto, seu pranto não cessou.
—Aprendi a lição. Não me quer, nunca me quis. Eu também vou deixar de te querer. Não merece meu amor!
Ele estava imóvel, olhando-a fixamente.
—Bem —disse.
Aquela não era a resposta que ela queria ouvir.
—Ontem à noite me usou, sim. Acredito que isso é exatamente o que falou. Ontem à noite, eu fui sua prostituta.
Ele inalou bruscamente.
—Não! Isso não é certo!
—Eu queria que me fizesse amor, Sean. Que tola eu fui! Isso não foi o que ocorreu,não é verdade?
Ele não disse nada durante um longo momento.
—Não —respondeu lentamente— Isso não foi o que ocorreu.
Então, ela o golpeou de novo, e ele o permitiu.
Capítulo 10
Sean a observou.
Elle estava tombada de costas para ele. Envolta na cauda do vestido. A noite tinha caído, pesada e escura, mas o céu estava cheio de estrelas. Sean se sentia aliviado que não fizesse tão frio como ele tinha pensado. Sabia que ela dormiu, por fim, porque sua respiração se tornou tranqüila, profunda e rítmica.
Ele estava sentado com as costas apoiadas no tronco de uma árvore, fazendo o primeiro turno de vigilância. Entretanto, a noite era silenciosa e não parecia que houvesse nenhuma ameaça. Se sua situação tivesse sido distinta, aquela noite teria sido perfeita para desfrutar e descansar.
Entretanto, não havia nada do que desfrutar.
Sean sabia que havia tornado a fazer mau a Eleanor, inclusive de uma maneira mais terrível que a noite anterior, e não podia suportá-lo.
«Vou deixar de te querer», havia-lhe dito ela.
Sean não queria recordar aquelas palavras. Sabia que era o melhor que podia acontecer. Ele nunca tinha pedido nem desejado aquele amor, aquela lealdade, aquela confiança. Entretanto, a declaração das intenções de Eleanor não lhe tinha aliviado. Extranhamente, suas palavras o tinham assustado.
Jogou uma olhada breve, cauteloso, pelo perímetro da clareira, e depois cobriu o rosto com as mãos. Ela tinha mudado tanto… e ao mesmo tempo, não tinha mudado absolutamente. Sean não sabia o que fazer. É obvio, ela devia deixar de querê-lo. Tinha que querer ao Sinclair e casar-se com ele. Entretanto, poderiam voltar a ser amigos? Sean nunca havia se sentido mais confuso. As lembranças o assaltaram; Elle de menina, perseguindo-os a ele e a seus irmãos; Elle crescendo, espiando-o inclusive quando ele tinha uma aventura; Elle a seu lado, com as mãos esfoladas, com o rosto queimado pelo sol, reconstruindo Askeaton.
Sean fechou os olhos com força. Nunca poderia suportar que ela o odiasse, embora o compreenderia. Tinha todos os motivos para odiá-lo, mas ele não se via capaz de aceitar aquele ódio. Não entendia como sua relação, desenvolvida durante toda uma vida, tinha chegado a semelhante final; tinha feito mal que ela tinha terminado por detestá-lo.
Entretanto, se aquele ódio servia para mantê-la a distância, ele devia fomentá-lo. Necessitava que Elle seguisse zangada com ele para afastá-la, para empurrá-la para os braços de outro homem. Ele não podia lhe oferecer nada, nada salvo uma existência proscrita e, por alma, uma casca vazia.
Ele já não tinha coração, e portanto era incapaz de amar a ninguém. Assim deviam ser as coisas.
Eleanor estava muito rígida atrás de Sean enquanto ele abria a porta da habitação, em um corredor estreito, escuro e sujo. Aquele quarto era o lugar onde Sean e ela iriam esconder-se; estava sobre a oficina do sapateiro do povoado, em uma rua que dava a um dos muitos canais que atravessavam Cork. Não havia luz, e o edifício cheirava a vinagre. Ou seria ferrugem?
A porta que Sean estava abrindo tinha um buraco entre dois tablones. Certamente, uma vez tinha sido verde; naquele momento, entretanto, era cinzenta.
Sean se afastou e a olhou.
—Não é muito… mas é um bom esconderijo —lhe disse lentamente.
Eleanor não lhe devolveu o olhar. Passou por diante dele, com cuidado de não roçá-lo, e se deteve em meio do quarto. Sean a seguiu e fechou a porta com chave. Havia uma cama pobre, uma mesa e duas cadeiras desvencilhadas, uma estufa de ferro e um cabideiro. A janela, cujos cristais estavam muito sujos, tinha umas cortinas descoloridas. No cabideiro havia um traje de homem com colete e uma camisa enrugada. Baixo aqueles objetos, no chão, havia um par de sapatos e algumas meias três-quartos. Aquela roupa de bom corte era uma incongruência em relação com o resto da estadia.
—Sei que nunca… estiveste em um… lugar assim —disse Sean com tensão—, mas não será para muito tempo.
Eleanor se aproximou coxeando à janela e viu um dos canais do rio Lê. Havia algumas barcaças, e uma delas, cheia de passageiros, estava a ponto de amarrar no cais. Deu as costas à cena e tomou uma das cadeiras para sentar-se. Enquanto tirava os sapatos, tentou decidir se devia lhe fazer caso omisso durante o tempo que ficava juntos, sobre tudo tendo em conta que ele queria recuperar sua atenção. Entretanto, aquele comportamento teria sido infantil por sua parte, porque ela queria lhe responder, assim por fim o olhou.
—Sim, já sei que não será muito tempo. Vai me enviar rapidamente para casa. E quando será isso? —perguntou-lhe com amargura.
—O quanto antes possível… não posso te mandar para casa com qualquer um, Elle —disse, e se ruborizou— Eleanor —disse, corrigindo-se— Tenho que encontrar uma escolta para você. Alguém em quem pode confiar… alguém que te proteja com sua vida.
Assim tinha se convertido em Eleanor, pensou ela.
—E antes de partir, vai me dar instruções precisas de como enganar ao Peter para que acredite que ainda sou virgem? —perguntou-lhe com frieza.
Sean fez um gesto de dor. Estava rubro naquele momento.
—Sim —respondeu, e se deu a volta, com as mãos nos bolsos.
—Possivelmente o melhor seja que me instrua agora —disse ela— É um perito na disciplina de acabar com a inocência das mulheres e depois as educar para que sejam boas atrizes?
Ele girou para ela de novo.
—Entendo que esteja zangada comigo. Tem motivos!
—Não estou zangada —disse ela, e ficou em pé— Me dei conta de que tem razão. Mudou. Sean O’Neill já não existe. Assim que seja possível, eu gostaria de voltar para casa com meu prometido. Estava apaixonada por ele antes de que chegasse, e não sei o que me aconteceu para olhar a um homem como você.
Sean empalideceu.
Ela queria feri-lo, e sabia que o tinha conseguido. Viu a dor refletida em seu olhar. Não lhe importou. Tinha chegado a hora de voltar para casa e casar-se com Sinclair. Mas, Deus Santo, não podia evitar pensar que Sean já tinha sofrido o suficiente.
Seu semblante se converteu em uma máscara sem expressão. aproximou-se da estufa e começou a pôr troncos dentro.
Naquele quarto fazia frio, e ela não pôs objeções. Deu-se conta de que estava muito tenso e zangado. Naquele momento, Eleanor desejou não haver dito coisas tão cruéis.
—Posso te ajudar?
—Não.
Sean, acendeu o fogo com as pedras e, quando esteve ardendo, fechou a portinhola da estufa. Sem olhá-la, aproximou-se de uma cadeira, separou-a da mesa e se sentou. Assim que o fez, estirou suas largas pernas e deixou cair a cabeça para trás. E então, Eleanor se deu conta de que estava completamente exausto.
—Deve estar muito cansado. Por que não tira as botas? —disse-lhe.
Embora não tinha vontade de lhe sorrir, Eleanor seguia sendo uma pessoa com compaixão, e não ia tratar Sean de uma maneira diferente a que tivesse tratado a qualquer um em sua situação.
Então, ele começou a atirar de uma de suas botas, e ela se deu conta de que estava muito pálido e tinha gotas de suor na frente, como se estivesse sofrendo muito. Sem poder evitá-lo, levantou-se e se aproximou.
—Eu o farei —lhe disse.
Seus olhares se cruzaram. Imediatamente, ele baixou o seu.
—Obrigado.
Eleanor se colocou frente a Sean e, com ambas as mãos, agarrou a bota e atirou com força. A bota saiu; Sean ofegou, pálido como o lençol da cama.
Imediatamente, ela soube por que. Tinha os meias três-quartos feitos farrapos, e os pés inchados e sangrantes. No que tinha estado pensando Eleanor? Sean tinha estado em uma cela durante dois anos. Não estava acostumado a caminhar, e tampouco a levar botas. E ela esteve se queixando de umas quantas bolhas.
—Sean… —sussurrou, sofrendo imediatamente por ele.
Sean estava recuperando a cor. Tirou a meia três-quartos manchada de sangue e o lançou a um lado. Depois agarrou a outra bota, mas lhe afastou as mãos.
—Eu o farei —disse, com o estômago encolhido.
Ele a olhou.
—Faz-o com rapidez.
Eleanor assentiu e atirou da outra bota. Naquela ocasião, Sean não emitiu o mais mínimo som. Eleanor se ajoelhou a seus pés e lhe tirou a outra meia três-quartos.
—Tenho que descer para procurar água. Temos sabão?
Ele tinha a cabeça jogada para trás e estava respirando profundamente. Passou um momento antes de que respondesse, e o fez sem olhá-la.
—Estou bem.
Entretanto, tinha a camisa empapada de suor.
—Não, não está bem. E, a menos que queira ter uma infecção grave, devo te lavar os pés, Sean. Por que não me falou nada?
—Tinha outras coisas nas que pensar —respondeu ele, e fez gesto de ficar em pé.
Ela o empurrou para a cadeira de novo.
—Irei procurar a água e o sabão. Fica sentado.
Ele não disse nada, assim Eleanor se levantou, tomou um balde que havia junto ao lavabo, onde havia também uma pastilha de sabão de lejía[1], e desceu ao pequeno pátio traseiro, onde encontrou uma bomba de água. Encheu o balde rapidamente e voltou para o quarto sem que ninguém a visse.
Quando entrou, ele seguia na cadeira, mas estava profundamente adormecido.
Naquele momento, Eleanor esqueceu o dano que lhe tinha feito, seu rechaço. Esqueceu seu aborrecimento. Estava muito preocupada com ele, e não tinha forma de desfazer-se daqueles sentimentos. Ele estava esgotado e tinha feridas; e além disso, tinha lesões em algum lugar profundo e escuro da alma. Como ia continuar zangada com ele? Se não o ajudasse, quem iria fazê-lo?
Enquanto se ajoelhava frente a Sean, perguntou-se em que situação os deixava aquilo. Entretanto, enquanto começava a lhe lavar os pés, pensou em que lhe tinha deixado muito claro que para eles não haveria nenhuma situação, e tinha razão. Nunca estariam juntos de novo. Nunca saltariam de uma ponte ao rio para banhar-se, nem correriam pelos campos de cultivo, nem pintariam um muro de branco.
De repente, deteve-se, afligida por uma insuportável tristeza. Tinha perdido a seu melhor amigo, e ao mesmo tempo ao homem ao que amava. Nunca poderia perdoá-lo por usá-la do modo em que o tinha feito, embora ela mesma o tivesse animado. Entretanto, ia impedir que tivesse uma infecção, e também ia ajudá-lo a que escapar do país são e salvo.
Eleanor terminou de lhe lavar os pés e o olhou. Ele continuava profundamente adormecido, mesmo que estivesse em uma cadeira desvencilhada e em uma posição muito incômoda. E enquanto ele dormia, ela teve a oportunidade de estudá-lo. Tinha o rosto muito mais magro, e uma cicatriz na bochecha direita, mas seus traços seguiam sendo duros e perfeitos, familiares para ela, de uma maneira que lhe produzia dor, mas que ao mesmo tempo estava maravilhosa. Permanecer firme em suas novas convicções para ele ia resultar lhe muito difícil, pensou.
Afastou o balde de água e o trapo que tinha usado e depois, sem despertá-lo por completo, pediu-lhe que se levantasse. Ele a olhou sem enfocar a vista e sorriu brandamente.
—Elle —sussurrou.
Eleanor sabia que não estava de tudo consciente, mas aquele murmúrio e aquele sorriso lhe provocaram uma profunda felicidade. Não tinha visto um sorriso dele desde que tinha voltado para casa, mas naquele momento de descuido provocado pelo esgotamento, Sean tinha tentado fazê-lo.
Ela daria algo por conseguir que sorrisse de novo. Conseguiria que o velho Sean voltasse para seu lado?
Sean se aproximou da cama puxando-lhe brandamente pela mão e se estendeu sobre o colchão, fazendo que ela caísse a seu lado. Eleanor conteve a respiração; temia que ele despertasse e se desse conta do que estava fazendo e a rechaçasse de novo. Entretanto, Sean a abraçou e voltou a sumir-se em um profundo sono.
Ela ficou olhando-o enquanto ele dormia. Permaneceu entre seus braços, sem mover-se, porque não queria afastar-se dele. Elevou cuidadosamente a mão e a posou na bochecha; e sem que pudesse evitá-lo, o amor lhe inflamou o peito novamente. Naquele momento, soube que nunca deixaria de querê-lo, e teve que render-se. Permaneceu ali, entesourando todas as lembranças possíveis daquele momento, sabendo que seria único.
Umas horas depois, levantou-se. Sean não havia tornado a despertar. Eleanor se aproximou da janela. Era pela tarde já, e ela não tinha conseguido dormir nada. Estar com Sean lhe produzia um caos de emoções, e não sabia quanto tempo mais poderia suportá-lo.
De repente, teve a sensação de que a observavam e se voltou para a cama. Sean estava convexo de flanco, de cara a ela, estudando-a com seus preciosos olhos cinzas.
—Está acordado —disse-lhe, e sorriu um pouco, com uma pontada de excitação no coração, algo que não queria nem devia sentir.
—Quanto tempo dormi?
—Quatro ou cinco horas. É tarde. Ouvi que o relógio da igreja dava as cinco.
Então, ele se incorporou e se levantou da cama, olhando-a.
—Saíste?
Ela negou com a cabeça.
Sean atravessou o quarto, tomou as meias três-quartos limpas e as pôs. Eleanor o observou.
—Aonde vai? —perguntou-lhe. Não gostava da idéia de que ele saísse.
—Necessitamos de comida… lençóis… mais roupa—disse.
Enquanto calçava as botas, fez um gesto de sofrimento.
Eleanor se mordeu o lábio. Ele tinha que curar-se, não devia ir por aí caminhando para fazer recados, tratando de evitar encontrar-se com os soldados da guarnição da cidade.
—Eu irei.
—Não. Você espera aqui.
Ela tentou sorrir.
—Acredito que deveria descansar.
Sean tinha dado ao dono dos estábulos um dos brincos de diamantes de Eleanor para lhe pagar o alimento e o emprego do Saphyr. Ela tomou o outro brinco e o mostrou.
—Há um armazém na esquina. Não está longe. Estou segura de que ali poderei comprar pão e queijo, e possivelmente um pouco de bacon. Temos uma frigideira? Usarei este brinco como pagamento. Teremos crédito durante meses.
Ele a olhou com cautela.
—O que pretende?
Ela sabia perfeitamente o que lhe estava perguntando, mas fingiu que não o entendia. Depois de tudo, só umas horas antes tinha estado furiosa com ele.
—Eu me sinto bem, e você não. Sempre nos cuidamos um ao outro. Eu sairei. De todos os modos, preciso tomar um pouco o ar.
—Faz um momento… me odiava.
—Não acredito que possa te odiar, Sean, por muito que tenha mudado. E não tem sentido que sigamos zangados. Sempre fomos amigos.
—Quer que sejamos… amigos? —perguntou-lhe ele com incredulidade— Me perdoa?
—Se está me pedindo que te perdoe por me haver tratado como uma amante sem importância, como tratava às filhas dos granjeiros e a suas namoradas, não, não vou te perdoar por isso —respondeu Eleanor. Entretanto, não estava zangada, e se sentia como se já o tivesse perdoado— Trarei o jantar, Sean. E mais meias três-quartos.
—Não —respondeu ele com firmeza.
—Por que?
—Soldados… há uma guarnição ao oeste da cidade!
Ele estava muito aborrecido, e ela não entendia o motivo.
—Do que está tentando me proteger? É você quem necessita de amparo, não eu!
—Não deixe entrar ninguém —disse ele— Fecha a porta com o ferrolho —lhe ordenou.
—Do que tem medo, Sean? Não o entendo!
Ele apertou a mandíbula.
—Já te falei! Não importa o que eu diga… o que você diga… te acusarão de ser minha cúmplice, de ter conspirado comigo. Isso é traição. Nunca deixarei que vá ao cárcere… por meus pecados! —disse, com os olhos brilhantes.
Ela ficou imóvel, alarmada. Por que tinha falado de seus pecados? Sua intuição lhe deu a entender que aquilo era a raiz de suas feridas.
—Refere a seus delitos. Quer dizer que não permitirá que vá ao cárcere por seus crimes. E ninguém vai me obrigar a pagar pelo que você tem feito, Sean.
Ele deu a volta, tremendo, e tomou o balde.
—Vou pegar água —disse-lhe. Abriu a porta, e antes de sair, voltou-se para ela—: Fecha com os ferrolhos, Eleanor.
Ela apenas o ouviu partir. Inclusive sabendo que se converteu em um homem tão escuro, aquelas palavras eram muito estranhas. Sean não era um religioso fervente; ela sabia que acreditava em Deus, como a maioria da gente. Entretanto, não acreditava que se referisse às mortes dos soldados, que tinham acontecido a causa do patriotismo, como pecados. Entretanto, Eleanor se recordou que estava formulando hipótese sobre Sejam, o homem que tinha sido uma vez, não o homem que era no presente.
A lógica, não obstante, estava clara: se Sean se referiu a seus crimes como pecados, era porque se culpava por algo terrível. Seria aquela a causa de sua mudança?
De repente, ele entrou no quarto com o balde cheio de água, e se enfureceu.
—Não tinha fechado com o ferrolho!
—Só saiu durante um momento.
—Mas te falei que fechasse!
Ela não ia discutir com ele sobre sua desobediência.
—Por que disse pecados em vez de crimes?
E imediatamente, ele afastou o olhar.
—Foi um engano —disse, e se encolheu de ombros.
—Não, não acredito. Acredito que te ocorreu algo. Ou que ocorreu algo a alguém. Mas não era um soldado. Você não se culparia pela morte de um soldado em uma batalha.
—Não sei a que se refere —disse ele, com os olhos totalmente abertos pela surpresa.
E então, Eleanor soube que tinha dado com a verdade.
—Possivelmente te ajude falar disso.
—Não. Vou conseguir comida e roupa.
—Foi por esse motivo que mudou? É por um segredo escuro, profundo, um pecado que cometeu?
—Não siga —lhe disse ele, e a agarrou pelo braço.
—Deixa que te ajude —lhe suplicou Eleanor, sussurrando, e lhe acariciou a bochecha.
Sean lhe afastou a mão. Passou um momento antes de que pudesse falar de novo.
—Não pode. Ninguém pode —sentenciou, e saiu do quarto dando uma portada.
Naquela ocasião, Eleanor fechou a porta com ambos os ferrolhos.
Capítulo 11
A ansiedade de Eleanor era cada vez maior. Sean estava fora mais de uma hora. Não teria demorado tanto se só tivesse ido à loja da esquina a comprar comida e outras coisas. Ela estava descalça, junto à janela; pôs as calças que havia no cabide e a camisa enrugada, para poder olhar pela janela enquanto o esperava. Desde seu posto de observação não via a esquina mais longínqua, onde estava a loja.
Por que demorava tanto?
Justo quando ela se convenceu por completo de que ele tinha problemas, viu-o caminhando pela rua. O coração lhe acelerou e se sentiu tremendamente aliviada.
Sean levava vários pacotes na mão. Levava comida para o quarto, e o que era mais importante, não estava ferido nem tinha sido capturado. Ela esteve a ponto de sorrir, mas não chegou a fazê-lo. Sean não estava sozinho.
Havia uma mulher de baixa estatura com ele, caminhando a seu lado. Tinha o cabelo escuro, encaracolado, e era bonita e gordinha. Ambos se detiveram na rua de abaixo, à entrada da sapataria, e Eleanor os observou. Enquanto conversavam, a moça não deixava de tocar o braço de Sean; Eleanor reconhecia uma paquera quando o via. Sabia exatamente o que estava ocorrendo. Se Sean não se deitou com aquela mulher, ia fazê-lo logo.
Eleanor agarrou o batente. Custava-lhe respirar. Não era possível que estivesse ciumenta; ela ia voltar para casa para casar-se com Sinclair. Queria fazê-lo, porque o homem ao que queria tinha mudado tanto que ela já não o conhecia. Entretanto, seu raciocínio não conseguiu acalmar suas emoções frenéticas.
Sentiu-se tão mal que teve que afastar-se da janela para não seguir vendo a cena. A porta de baixo se abriu e se fechou.
—Elle.
Eleanor se aproximou da porta do quarto, deteve-se ali um instante para respirar profundamente e, com calma, abriu ambos os ferrolhos.
Ele a olhou e se sobressaltou.
—Está bem?
Ela tentou sorrir.
—Demorou muito. Não pude evitar de me preocupar.
Ele a olhou com desconfiança e entrou no quarto. Eleanor fechou a porta. Ele depositou as bolsas de papel sobre a mesa enquanto ela o observava. Então, Sean lhe disse:
—Venha se sentar. Enfaixarei seus pés.
—Meus pés estão perfeitamente bens. Você é o que necessita de ataduras. Quem é sua amiga? —perguntou antes de poder evitá-lo, e ficou horrorizada. Notou que lhe ardiam as bochechas.
—Como diz?
Ela se mordeu o lábio, arrependendo-se profundamente de ter formulado aquela questão.
—Refere-se a Kate?
Eleanor vacilou, e depois se encolheu de ombros com tanta despreocupação como pôde.
—É a filha do sapateiro —lhe explicou —Disse a ela que é minha irmã.
—O que apropriado —respondeu Eleanor.
—Viu-nos entrar. É um pouco… bisbilhoteira. Tinha que lhe contar algo. Falei que se chama Jane. E acredita que eu me chamo John Collins. Importaria-se se sentar, por favor?
Eleanor queria saber se tinham se deitado. Se tinham estado naquela cama, ela não voltaria a dormir ali. Não era assunto dela, mas a machucava.
Sean avermelhou.
—Não me deitei com ela, se for o que está pensando.
Ele ainda podia lhe ler a mente!
—Não! —disse ela, sorrindo, e se sentou— Nem sequer me tinha passado pela cabeça.
Sean assentiu, como se quisesse dar por resolvido aquele assunto.
—Comprei um peru assado para jantar na estalagem que há à na volta da esquina —disse.
Abriu um pequeno armário que havia sobre o lavabo e tirou dois pratos, duas taças de latão e alguns talheres. Eleanor viu que tinha posto uma garrafa de vinho tinto sobre a mesa. Os aromas que emanavam da bolsa de papel eram muito apetitosos. Ele pôs a mesa enquanto Eleanor abria o pacote de carne; depois, Sean desarrolhou a garrafa.
—Viu soldados? —perguntou ela.
—Não. Mas vi uma fragata no porto da ilha… a HMS Gallantine.
—Conhece esse navio?
—Devlin o capturou dos franceses faz anos… Tenho feito algumas perguntas. Tem trinta e dois canhões. Possivelmente amanhã vou dar uma olhada.
Ela ficou assombrada, e não de uma maneira agradável.
—E no que isso pode interessar a você? Que diferença há entre nove canhões ou trinta?
—Só me interessa… se for me perseguir quando eu zarpar.
A Eleanor lhe encolheu o estômago.
— Já comprou a passagem?
—Como vou fazer isso? —perguntou-lhe ele, surpreso— Antes tem que voltar para casa —disse. Com brutalidade, tomou a garrafa de vinho e serviu dois copos. Depois se deteve— Me esqueci de que não bebe.
—Não tem importância —disse ela.
Nunca tinha necessitado sentir os efeitos do vinho como agora. Ele lhe entregou o copo, e suas mãos se roçaram. Sean baixou o olhar e deu um sorvo em seu copo. Eleanor acreditou que ele tremia, mas não podia estar segura. Notava certa tensão em seus ombros. Deixou o copo sobre a mesa, intacto.
—Estive pensando nisso.
—No que?
—Acredito que deveria partir do país antes de que eu volte para casa. Quero saber se escapou são e salvo.
—Claro que não! —respondeu ele com firmeza, e se deu a volta com uma ira evidente.
—Pode ser que nossa amizade tenha mudado—disse Eleanor—mas antes estávamos muito unidos. Devo-lhe isso, Sean. Quantas vezes você me resgatou de mim mesma enquanto crescia? Em consciência, não posso te deixar aqui sozinho.
—Você não me deve nada, Elle… Eleanor. Eu não poderia seguir vivendo… não suportaria… se permitisse que te ocorresse algo pelo que eu tenho feito.
—Agora tampouco o suporta —se atreveu a dizer ela— OH, Sean! Por que? O que te ocorreu para que se culpe dessa maneira, para que te odeie tanto? Por que mudou assim? Onde está o homem ao que eu queria, no que confiava?
—Devemos comer! —estalou ele.
Pegou uma das cadeiras e tomou assento. Depois cravou o garfo em sua comida e começou a tomar bocados sem pausa.
Ela soube que tinha dado no prego. Estava descobrindo seus sentimentos, mas não sua origem. Sentou-se também, e observou que Sean tinha consumido quase a metade do prato, ansiosamente.
—Sean, não insistirei mais. Desfruta da comida —lhe sussurrou.
Ele se deteve. O garfo ficou no ar, a meio caminho de sua boca. Posou-o no prato e terminou de mastigar. Olhou-a de uma maneira inquietante.
—Por favor —disse ela, com um sorriso.
Então, ele voltou a comer, com calma esta vez. Eleanor não esperava que falasse, e suas palavras a surpreenderam.
—Sempre estava bisbilhotando e espiando —lhe disse Sean, olhando à mesa— Foi impossível. Eu não podia ter secretos.
Ela se estremeceu.
—Não queria ser tão chata. Queria-te tanto! Tinha que estar com você todo o tempo. Não podia me conter.
Ele tinha as bochechas tintas. Não elevou a vista.
—Tão impossível —repetiu brandamente.
—Mas de todos os modos, você me ajudava sempre que tinha algum problema, resgatava-me quando me metia em alguma confusão.
—Sim, é certo.
—Recorda aquela vez em que me disse que não me banhasse no lago porque tinha chovido durante toda a semana? É obvio, eu não te fiz conta.
Ele elevou o olhar lentamente.
—Você nunca fazia conta.
—Fiquei presa em uns ramos, e teria me afogado, se não fosse por você que se atirou na água e me salvou —rememorou ela com um sorriso— Eu tinha oito ou nove anos.
—Dez —corrigiu ele— Tinha dez anos, porque eu tinha dezesseis.
—Como pude esquecer isso? Foi o ano em que chegou a nova governanta! Era loira, muito bela, e você estava em sua cama no momento seguinte da sua chegada em Adare.
Sean ficou olhando-a fixamente.
Eleanor se deu conta de que, imediatamente, a tensão se apropriou do ambiente, quente e sexual. Seu coração começou a pulsar com lentidão, pesadamente.
—Era muito esbelta, e alta para ser mulher.
Ele baixou as pálpebras.
Lady Celia era muito parecida com a Eleanor naquele momento: loira, alta e esbelta. Sean tinha estado muito enamorado com ela, e Eleanor tentou não pensar em que havia muitas coincidências.
—Deveria comer—disse ele.
—Estava apaixonado?
Ele se encolheu de ombros.
—Sempre estava apaixonado… mas nunca durava.
—Então não era amor. O amor de verdade nunca morre.
—Só tinha dezesseis anos.
Ela sorriu.
—E quando eu completei os dezesseis, papai e mamãe me obrigaram a me apresentar na sociedade. Lembra-se disso?
Sean torceu os lábios.
—Sentia-o muito por você.
—Ninguém o sentia mais que eu! —exclamou ela.
Tinha odiado as temporadas sociais que tinha passado em Londres. Eram para ela um borrão de tristeza e imposições. Para Eleanor, sua apresentação tinha sido um cárcere, também.
Entretanto, Sean a tinha resgatado inclusive naquele momento.
—Você veio a meu primeiro baile. Não tinha me lembrado. Foi tão horrível!
—Sinto muito. Sinto ter burlado de seu vestido.
E ela tinha esquecido. Seu primeiro vestido de festa era muito bonito, mas ela se sentia muito alta e magra então. E o era. Sean tinha rido dela, e ela tinha lhe dado um murro no estômago, com tanta força, que ele tinha solto um ofego de dor e se dobrou para diante. Eleanor o tinha odiado naquele momento, porque ele tinha razão: um vestido de festa não ia mudar quem era.
Entretanto, quando lhe tinha pedido seu primeiro baile, quando a tinha acompanhado à pista, ela tinha se agarrado a seu braço com firmeza, e havia se sentido agradecida e orgulhosa. Tinha falhado alguns passos, mas ele a tinha guiado com tanta desenvoltura que ninguém se deu conta. Ela estava aterrorizada ao começar o baile, mas no final, divertiu-se.
—Dançou comigo —disse-lhe lentamente— E agora sei, exatamente, por que sempre te quis tanto.
Sean ficou em pé.
—Come.
Ela sacudiu a cabeça e afastou o prato. Também ficou de pé.
—Sean, necessito de você. Tem que voltar a ser como foi antes.
Ele se afastou, sacudindo a cabeça com veemência.
—Por favor! —suplicou-lhe Eleanor— Temos que falar do passado desta maneira. Temos que voltar juntos a Askeaton e percorrer o andar de acima. Devlin não terminou o terceiro andar.
Sean estava incrédulo… ou temeroso.
—Podemos terminar juntos essas habitações. E o que te está atormentando desaparecerá, eu sei!
—Nunca desaparecerá! Deixa de me pedir… o que não posso te dar!
—Não estou pedindo seu amor —exclamou ela— Posso renunciar a seu amor. Mas quero que volte a ser você, maldito seja!
Sean ergueu uma mão para afasta-la de si.
—Não!
Eleanor caminhou para ele e se deteve tão perto que seu nariz quase roçava a palma da mão de Sean.
—Não, não pode levantar sua mão para que eu parta como se fosse um fantasma que te roubou a alma. Eu não vou te roubar nada, mas Deus sabe que outra pessoa sim o tem feito. Sei que posso te ajudar.
Ele tinha a respiração entrecortada.
—Alguns secretos devem ser secretos sempre. Eu mudei. O cárcere faz isso aos homens!
—Foi algo tão mau? —Eleanor tinha que saber— O que aconteceu com sua voz? Por isso está tão magro?
—Foi mau… foi espantoso… como estar enterrado em um buraco negro.
Ela não o entendia. Não podia ser que estivesse falando literalmente.
—Sean, não quer dizer que esteve encarcerado em um buraco, verdade?
Ele não respondeu. Só a olhou fixamente.
—OH, Deus Santo —sussurrou Eleanor, horrorizada, ao ver a resposta em seus olhos— Esteve em um fosso durante dois anos?
—Não importa.
—Sim me importa! —Eleanor estava desolada.
Ele devia ter cicatrizes mais profundas do que ela tinha suposto. E, entretanto, os horrores físicos que tinha sofrido empalideciam em comparação com a culpabilidade que o afligia.
—Sinto muito. Sinto-o muitíssimo.
—Não sinta —lhe pediu ele.
Entretanto, Eleanor não cedeu.
—Sei que não é um covarde, e mesmo assim está fugindo de mim, de algo e de alguém. Não é verdade? Não está tratando de escapar dos ingleses, mas sim daquilo do que se sente culpado.
Ele sacudiu a cabeça e se aproximou da porta para abrir os ferrolhos. Imediatamente, a cólera de Eleanor se desvaneceu.
—Sean, não vá. Aonde quer ir?
Sean apoiou a frente contra a porta, com a respiração entrecortada.
—Não insistirei mais. Não direi nada mais. Mas meus sentimentos não vão mudar
Ele emitiu um gemido áspero, desdenhoso.
—Não é seguro que saia tanto, e sabe. Estamos escondidos.
Sean se separou da porta.
—Você come e deita… eu vigiarei.
Ela sorriu fracamente.
—Muito bem —disse.
Não obstante, quando se sentou à mesa, frente a seu prato, não estava pensando no jantar. Olhou a Sean, que tinha se aproximado da janela. Ele não estava fugindo dela, mas sim de si mesmo, e Eleanor tinha que deter aquela escapada de algum jeito. Ia encontrar o homem que amava e o ia despertar novamente à vida.
Além do pequeno fogo que ardia na estufa, não havia nenhuma outra luz no quarto. Faziam turnos para vigiar, porque Eleanor tinha insistido. Sean estava profundamente adormecido na única cama do quarto, e Eleanor estava sentada junto à janela. Estava contente de ter um pouco de solidão; assim podia pensar com calma, e fazer planos.
Estava totalmente decidida. De um modo ou outro, ia ajudar a curar as feridas de Sean, e a que se encontrasse a si mesmo de novo.
Voltou a olhá-lo. Era difícil não fazê-lo. Cada vez que via seu rosto, lhe removia o coração de amor e de desejo. O peito de Sean se elevava e se afundava com um ritmo tranqüilo; ele não tinha movido um só músculo desde que se deitou na cama.
De repente, entretanto, Sean se esticou. Eleanor pensou que devia estar despertando.
Ele começou a revolver-se com inquietação, e murmurou algo em sonhos.
Estava sonhando. Ela decidiu não incomodá-lo e foi para a janela. Ao olhar à rua, divisou a primeira luz cinzenta do amanhecer no céu negro.
Sean gritou.
Alarmada, Eleanor se voltou e viu que, aparentemente, ele seguia dormindo. Tinha a frente coberta de suor, e a camisa empapada. Preocupada, ela não soube se devia despertá-lo ou não.
Sean começou a soluçar.
—Não!
Eleanor ficou petrificada para ouvir o som de um pranto masculino. E então correu para ele, aterrorizada.
—Sean —lhe disse, e posou a mão em seu ombro.
Mas ele ficou imóvel. Sua respiração voltava a ser rítmica. Tinha as bochechas úmidas pelas lágrimas. Com o que estava sonhando? Por que chorava? Só tinha sido um sonho, mas sem dúvida tinha que ver com o que lhe atormentava tanto. Aquilo que lhe obcecava em suas horas de vigília também o obcecava em seus sonhos.
Ela vacilou, mas finalmente cedeu ante o impulso que tinha. sentou-se na cama, junto a seu quadril, e tomou sua mão. E quase imediatamente, ele a cobriu com a outra e a agarrou com força.
—Elle!
Eleanor se sobressaltou, porque seu grito foi de pânico.
—Sean, acorda —disse-lhe.
—Não! Elle, maldita seja, não você, é Peg!
De repente, lhe soltou a mão e se incorporou de repente, com o rosto branco. Seu olhar era de horror, desfocado.
E ela o agarrou pelo ombro para reconfortá-lo enquanto a mente lhe enchia de perguntas. Quem era Peg? Tinha ouvido aquele nome corretamente? Estava sonhando Sean com outra mulher?
Seus olhares se encontraram, e ela se deu conta de que ele tinha uma cor esverdeada, doentio. Sean saltou da cama e correu para o extremo oposto da habitação. Ali tomou o urinol e vomitou.
Ela ficou imóvel.
Sean continuou vomitando, e ela, muito preocupada como para não intervir, aproximou-se e lhe pôs uma mão sobre as costas.
—Sean, não passa nada. Sou eu, Elle. Tiveste um pesadelo, mas já terminou.
Ele seguiu ajoelhado sobre o urinol, respirando com dificuldade. A tensão tinha convertido suas costas em um molho de nós.
—Sean?
—Já te ouvi —disse, entre ofegos— Estou bem.
Não estava bem, mas ela não o disse.
—Elle, me dê um momento. Por favor.
Ela assentiu e se afastou para que ele pudesse recuperar a compostura e limpar-se.
Ele ficou em pé, cambaleando-se um pouco. Depois se aproximou do lavabo e lavou a boca com vinho. Eleanor viu como secava as lágrimas com a manga.
O que tinha que ver com ela uma mulher chamada Peg? E com em recente passado de Sean?
Ele se voltou lentamente para ela e a olhou com fixidez.
—Só foi um pesadelo… devo ter comido algo em mal estado. Você se encontra bem? —perguntou-lhe.
Entretanto, quando desviou o olhar, Eleanor soube que aquela conversação era um truque.
Ele era preparado, mas não tanto como ela.
—Não. Suponho que tive sorte. Quer que desça para procurar água fresca? —perguntou-lhe, sorrindo como se não tivesse passado nada.
—Eu irei.
—Sean —perguntou-lhe ela— Com o que estava sonhando?
Ele ficou gelado.
—Não recordo.
—Chamaste-me.
Ele avermelhou.
—Não me lembro.
Eleanor respirou profundamente e lhe tocou a manga da camisa.
—Sean, quem é Peg?
Ele ficou perplexo.
Eleanor tragou saliva.
—Chamou por uma mulher de nome Peg.
—Só era um sonho.
—Sei. Mas te desgostaste muito, e às vezes, sonhamos com nossa vida…
Ele a interrompeu sem contemplações.
—Não conheço ninguém chamada Peg —disse.
Abriu ambos os ferrolhos e saiu do quarto.
Sean estava mentindo. Ela tinha visto a mentira em seus olhos. Sabia quem era Peg, mas não queria dizer-lhe. Pouco tempo depois, voltou com dois baldes de água. Fechou a porta de uma patada e deixou ambos os baldes sob o lavabo.
—Quase amanheceu. Gostaria de tomar o café da manhã pão-doces recém feitos? —perguntou-lhe ele em voz baixa.
Os deliciosos aromas da padaria de abaixo se colocaram na habitação.
—Não tenho fome —disse Eleanor, entretanto. E com muito cuidado, acrescentou—: Tem pesadelos freqüentemente?
—Não.
—Isso é um alívio. Sean, de verdade pensa que os ingleses lhe estão procurando tão ao sul? Disse-me que a prisão da que escapou estava em Drogheda.
Ele cruzou os braços.
—A prisão está ao sul de Drogheda. O que está tentando averiguar?
—Só me perguntava… se tiver acontecido dois anos no cárcere, onde esteve os outros dois anos?
—Estive em um povoado. Você não o conhece.
—Possivelmente sim…
—Não, não acredito. O que é o que quer saber?
—Esteve desaparecido durante quatro anos! Quero saber onde esteve durante os dois primeiros.
—Deveria deixar de me perguntar.
—Por que?
—Porque você não vai gostar da resposta.
—Estava com Peg.
—Para de me perguntar —advertiu-lhe ele— Pare!
—Estava com ela? Havia outra mulher? Há outra mulher? —perguntou ela.
—Estava-os ajudando, isso é tudo! —gritou Sean— Por que segue bisbilhotando, perguntando? Por que, maldita seja?
Sean tinha passado dois anos com outra mulher? Ajudando-a a que? Ela estava muito afetada, e Sean sabia, porque se aproximou, tentando conter seu mau humor. Quando teve recuperado o controle, perguntou-lhe:
—Não importa, Elle… você vai voltar para casa com o Sinclair. Eu vou partir para a América.
—Sim importa —sussurrou ela— Importa muito —disse, e o agarrou pelo braço— A queria?
Sean estremeceu.
E Eleanor se deu conta de que seus temores eram certos.
—Não —disse ele, assombrando-a— Não, não a queria.
Capítulo 12
—Isto é impossível —disse Tyrell, enquanto percorria a pernadas a estadia— Eu estou aqui em casa, sem fazer nada, enquanto Eleanor e Sean estão por aí, em algum lugar… e Sean está fugindo para salvar a vida.
Deteve-se frente ao fogo. Sua esposa estava sentada em um sofá, junto à condessa. Lizzie se levantou e se aproximou dele.
—Rex está em Cork, e já enviou uma mensagem. Cliff chegará ali pela manhã. Seu pai está na metade do caminho para Londres para fazer uma petição de perdão. Tyrell, alguém tem que estar aqui.
—Sou consciente de que o condado é o prioritário, acredite em mim —disse com amargura— Parece que o dever tornou a me apanhar.
Lizzie cruzou um olhar com a condessa.
—Sei que preferiria ir para Cork em pessoa e procurar por toda a cidade, mas o condado requer sua presença. Sean não quereria que você se envolvesse e pusesse em perigo tudo o que tem esta família.
—Devlin foi a Cobh fazer a compra —comentou a condessa. Tinha o semblante pálido de tensão e fadiga.
—E se soubere, que tomou parte nisto, ele também poderia perdê-lo tudo —disse Tyrell— E quanto a meu querido amigo McBane, estrangularia-o por ter esperado toda a tarde antes de nos dizer o que sabia!
—Ele também está cometendo de traição —disse Lizzie para defender a seu cunhado— Deveria lhe agradecer por ajudar a Sean, quando nem sequer sabia de quem se tratava.
—Graças a Deus pelo Rory —sussurrou a condessa— Lizzie, como está sua irmã?
Georgina, a irmã de Lizzie, estava casada com o McBane.
—Muito tranqüila. Estou segura de que Georgina conhece de primeira mão as atividades clandestinas de seu marido. Todos são homens fortes, decididos e valentes. OH, Mary, imagino o que deve estar sentindo, porque eu quero muito a Eleanor, e ao ter ouvido falar tanto de Sean, também o quero a ele. Nossos homens os salvarão. Deve acreditá-lo, porque eu acredito.
Mary a abraçou.
—O dia em que se converteu em minha filha nossa família recebeu uma grande bênção —disse a sua nora.
—Por fim, algo com o que estou de acordo —afirmou Tyrell.
Naquele momento, bateram na porta. Tyrell se voltou.
—Entre —disse.
Um servente fez uma reverência.
—Milord, um tal coronel Reed veio falar com você. Diz que é um assunto de suma importância.
Tyrell olhou para sua mãe e sua esposa. Depois disse ao servente:
—Diga-lhe que entre.
—Não será necessário.
Um oficial loiro e bonito entrou no salão. Levava o uniforme dos Dragões; seu passo era enérgico, e o olhar de seus olhos azuis, frio duro.
—Senhor de Warenne, ao fim nos conhecemos —disse, e se inclinou. Suas palavras tinham um tom de sarcasmo.
—Coronel —disse Tyrell cautelosamente. Depois se girou para as damas— Nós gostaríamos de falar em privado.
—É obvio.
Lizzie lhe sorriu, e ambas as mulheres saíram seguradas pelo braço.
—Gostaria de tomar algo? —perguntou-lhe Tyrell ao oficial. Sentia muita desconfiança; nunca tinha ouvido falar dele, e não o conhecia. Tinha medo de que as notícias que levasse aquele homem fossem más— Um vinho, um uísque?
—Não, obrigado —disse Reed com a sombra de um sorriso nos magros lábios— Vim falar com você sobre o condenado fugitivo, Sean O’Neill.
Tyrell se sentiu furioso imediatamente para ouvir que se referiam daquela maneira tão desrespeitosa a seu irmão, mas se limitou a inclinar a cabeça. Perder o controle não ajudaria a Sean.
—Houve notícias? —perguntou em um tom de calma.
—Não. A busca continua. Eu gostaria que você me contasse o que sabe.
—O que sei? —perguntou. Fez-lhe muito mais difícil controlar-se naquele momento, porque sua ira se converteu em raiva— Meu meio-irmão esteve encarcerado durante dois anos e nunca se avisou a sua família. O que sei? —repetiu com frieza— Meu irmão foi condenado por traição, mas sua família nunca teve notícias de nenhum julgamento. Não sei de nada, senhor.
—Estou seguro de que o exército já se desculpou ante sua família pela falta de protocolo.
—Prender a meu irmão em um cárcere, mantê-lo em confinamento isolado durante dois anos, não é uma falta de protocolo.
Reed suspirou.
—Sim, foi um terrível engano, verdade? Mas eu não vim aqui a falar do sistema penitenciário na Irlanda. Pôs-se O’Neill em contato com vocês depois de escapar?
—Não.
—Mas esteve ontem aqui. Viram-no trezentas pessoas.
—Eu também o vi. Essa foi, francamente, a primeira vez que via Sean em quatro anos.
Tyrell se deu conta de que necessitava de um gole, e se serviu um uísque.
—Assim não sabia que estava vivendo em Kilvore antes da rebelião que houve ali?
—Informaram-me muito recentemente, depois da fuga de Sean. Não conheço esse povoado.
—É um pequeno povoado de granjeiros que está ao sul da Drogheda. E quando O’Neill se casou, não lhes enviou uma carta para dar-lhes a feliz noticia?
Tyrell ficou perplexo.
—Está casado?
Só pôde pensar em Eleanor. Ia ficar destroçada quando se inteirasse daquilo.
—Vejo que lhe surpreende.
—Nenhum de nós sabia nada dele fazia quatro anos. Coronel Reed, você parece um homem razoável e ardiloso. Pode ser que houvesse um levantamento em Kilvore, mas posso lhe assegurar que meu irmão não esteve envolto. Ele formou parte da aristocracia irlandesa desde o dia em que meu pai se casou com sua mãe, quando ele era um menino pequeno. Senhor, outra pessoa deve ter dirigido a aqueles camponeses.
Entretanto, o problema era que Sean sempre tinha estado de parte dos granjeiros e os camponeses. Tyrell temeu o pior.
Reed arqueou as sobrancelhas.
—Mas ele não é nobre, não? Seu pai era um arrendatário de Adare, não é assim? Sua família é católica, e não tem títulos, nem tampouco fortuna, além da que armazenou o capitão O’Neill em sua carreira naval.
—O que é o que quer dizer? Meu meio-irmão cresceu na habitação que há junto à minha, senhor, e sempre desfrutou dos mesmos privilégios que eu. Meu irmão é inocente das acusações que pesam sobre ele. Outro deve ter encabeçado a aqueles camponeses —repetiu Tyrell.
Reed sorriu fríamente.
—Asseguro-lhe que foi ele. Eu estava ali, lorde de Warenne.
Tyrell ficou rígido de temor.
—Deve estar equivocado.
—É você muito leal. Claro que os irlandeses são muito leais, já sejam católicos ou protestantes, não?
Tyrell esteve muito perto de perder os estribos naquele momento.
—Não venha nos caluniar, coronel. E menos aqui e agora, quando sou o suficientemente hospitalar para lhe permitir estar em minha casa.
Reed não se amedrontou, mas se desculpou.
—Rogo-lhe que me perdoe. Não era essa minha intenção —disse, e acrescentou com brutalidade—: Eu gostaria de falar com sua irmã, lady Eleanor.
—Eu também. Por desgraça, como certamente você já sabe, não está aqui.
—Então, não retornou depois de fugir com seu meio-irmão?
—Não, senhor. E ela não fugiu com Sean. Sempre foi muito impulsiva. Estou seguro de que se sentiu exultante ao ver nosso irmão de novo, depois de quatro anos de separação, e essa alegria a levou a comportar-se de tal modo. Acredito que não pensou em suas ações. Simplesmente, queria vê-lo e falar com ele.
—Seriamente? No dia de suas bodas? —perguntou Reed, próximo de dar uma gargalhada.
—Seriamente. Minha irmã está apaixonada por seu prometido. Isto não é um assunto de risada, Coronel.
Reed seguiu sorrindo.
—Desculpo-me. Pensa que ela esteve em contato com O’Neill desde que ele escapou, antes de partir de Adare ontem?
—Está dizendo que minha irmã é uma traidora, senhor? —inquiriu Tyrell.
Sentia uma angústia fria por dentro. Tinha medo por Eleanor. Aquele homem era uma ameaça, não só para Sean, mas também para ela.
—Claro que não. Mas eu gostaria de ter as coisas claras. Por que ia lady Eleanor iria partir de suas próprias bodas com seu meio-irmão?
—Acredito que já o expliquei. E para responder a sua pergunta, coronel, minha irmã não tinha tido notícias de Sean durante quatro anos, da noite em que ele partiu de casa.
—Então, responda a isto: por que O’Neill a levou?
—Não sei. Quando fomos pequenos, Sean e Eleanor eram inseparáveis, mesmo que entre eles há uma diferença de idade de seis anos.
—Assim estão muito unidos —particularizou Reed com astúcia.
—Estavam muito unidos —corrigiu Tyrell.
Houve uma pausa. Depois, Reed disse:
—Há rumores, entretanto… ouvi dizer que a seqüestrou e que a usará para sair do país.
—Meu irmão é um cavalheiro, coronel. Ele nunca seqüestraria a ninguém, e menos ainda a sua própria irmã.
—O’Neill é o responsável pela morte de sete soldados e de um recluso da prisão. Isso, milord, não é próprio de um cavalheiro.
—Repito que Sean é inocente dos cargos que lhe imputam. Sei —afirmou Tyrell, no tom mais condescendente e intimidante que pôde, mesmo que não soubesse de nada.
Entretanto, Reed lhe devolveu um olhar frio.
—Outros dizem que lady Eleanor não é sua irmã de verdade.
—Como diz?
—Ouvi outros rumores, inclusive em seus estábulos; diz-se que lady Eleanor é algo mais que uma meio-irmã para O’Neill, e que está apaixonada por ele.
—Minha irmã está apaixonada por seu prometido, lorde Sinclair —insistiu Tyrell. Não devia permitir que Reed soubesse nunca a verdade do grande amor que Eleanor sentia por Sean.
Reed sorriu.
—Suponho que já o descobriremos. Se souber algo do paradeiro de O’Neill, é seu dever, como cidadão britânico, comunicar-me isso Estou seguro de que sabe que, se não o fizer, converterá-se em cúmplice de seus crimes.
—Serei o primeiro em lhe dizer onde está se me inteirar disso —mentiu Tyrell.
Finalmente, Reed riu, com uma gargalhada vazia e desprovida de alegria, e partiu.
Tyrell esperou até que ouviu fechar a porta principal. Depois lhe deu uma patada à porta do salão com todas suas forças, e a madeira rangeu.
Estava muito angustiado. Sean estava em grave risco, e Eleanor também.
Pior ainda, Reed era um adversário muito perigoso; todo o instinto de Tyrell o estava dizendo.
Era quase meio-dia. O céu estava cinza e ameaçava chover. Eleanor estava sentada na cama, com os joelhos abraçados contra o peito. Sean tinha saído durante umas horas, e ela não podia relaxar-se até que ele estivesse de novo no quarto. Ele tinha saído da cidade para dar uma olhada à fragata que permanecia ancorada aos subúrbios da cidade, e lhe havia dito que tinha que resolver alguns assuntos mais.
Ela não tinha querido lhe perguntar quais eram aqueles assuntos, mas sabia. Sean tinha que comprar uma passagem para a América, e também tinha que encontrar uma escolta para que a acompanhasse a Adare; entretanto, ela não ia voltar para casa tão facilmente. Não pensava deixar Sean daquela maneira. E quem era Peg?
Temia saber a verdade, mas estava disposta a suportá-la, fosse qual fosse. Se não o fazia, como ia ajudar a Sean a voltar a ser o homem que sempre tinha sido?
Fora começou a chover. Eleanor correu para a janela para fechá-la. Naquele preciso instante, viu Sean percorrendo a rua e se apoiou contra o batente, debilitada pela sensação de alívio. Um momento depois, ele batia na porta, e ela se apressava a abrir.
Sean entrou. Estava molhado. Eleanor correu os ferrolhos da porta e se voltou para ele.
—Está bem? —perguntou-lhe. Ia perguntar lhe onde tinha estado, mas ficou calada.
Sean tinha tirado a camisa empapada, e tinha deixado à vista seu torso belo e magro. Mas quando se voltou a estender a camisa no respaldo de uma cadeira, Eleanor viu uma dúzia de cicatrizes largas e brancas como cobras em suas costas. Ao dar-se conta de que o tinham açoitado grosseiramente, soltou um ofego de espanto.
Ele se voltou para ela, surpreso.
Eleanor estava tremendo.
—Sean! O que te passou?
Ele ficou imóvel; sua surpresa se desvaneceu, e a olhou com cautela.
—Já sabe. Estive no cárcere.
—Açoitaram-lhe?
—Não importa… faz muito tempo.
—Por que lhe açoitaram?
Sean suspirou.
—Elle, era como um esporte para os guardas… o novo recluso… o traidor ao que iriam enforcar logo.
—Mas… tem tantas cicatrizes —sussurrou ela.
Ele não respondeu.
Ela se mordeu o lábio.
—Enfureceram-se contigo, verdade? Não foi só uma vez. Açoitaram-lhe muitas vezes mais.
—Não precisa sabê-lo.
—Sim o necessito, Sean.
—E que diferença há? São cicatrizes… me curei.
—Seriamente? Porque eu não acredito que tenha se curado de nada, salvo a pele.
Ele se deu a volta e se apoiou no lavabo.
—Por que lhe puseram em isolamento, Sean? —perguntou-lhe ela muito brandamente, enquanto lhe posava a mão nas costas.
—Matei a outro recluso.
Ela ficou horrorizada.
—Matou a um detento?
Sean se voltou bruscamente e Eleanor se retirou um passo.
—Não me olhe assim!
—Não o entendo.
—Tinha que proteger a alguém… a um moço! Ninguém mais podia fazê-lo!
—Estava protegendo a um menino?
—Sim. Tinham-no violado… tinha que detê-lo. De todos os modos, morreu na seguinte ocasião. Chamava-se Brian. Não entendia aquele mundo… se não era um canalha, era outro.
Eleanor se voltou e começou a chorar sem poder evitá-lo. Chorou por aquele menino chamado Brian e por Sean.
—Elle, não chore —rogou-lhe ele com a voz rouca.
Eleanor não queria chorar, assim assentiu e se enxugou as lágrimas.
Ele a agarrou pelos pulsos, surpreendendo-a.
—Já terminou todo… aquele inferno. Já não importa.
Eleanor não o contradisse, mas sabia que lhe importaria sempre.
—Por que… por que permaneceu em isolamento durante dois anos?
Sean soltou-lhe os pulsos.
—O diretor da prisão foi despedido pouco depois de que eu chegasse. O novo era um bêbado. Eu não sabia então… não soube até que escapei. Acreditei que passaria naquele buraco para o resto de minha vida.
—Quer dizer que o segundo diretor alguma vez soube que estava ali?
Ele assentiu.
—Sim, mas isso foi uma sorte; do contrário, me teriam enforcado.
—Mas alguém deve ter ido te ver durante todo esse tempo. Davam-lhe de comer, não?
—Havia uma fresta na porta. Davam-me de comer como a um cão… aos guardas parecia muito gracioso. O diretor não sabia que eu estava ali… os guardas sabiam mas não lhes importava… não via ninguém, Elle. Não vi ninguém até o dia em que escapei!
Eleanor se encolheu de dor.
—Que canalhas. Como escapou?
—Tomei ao diretor como refém.
—Assim, finalmente, o diretor se precaveu de sua existência?
Ele negou com a cabeça.
—Foi um terceiro diretor. Lorde Harold. Veio a desculpar-se pelo que tinha ocorrido comigo… —Sean deixou escapar uma gargalhada de amargura— Eu estava desesperado.
—Assim esteve planejando o que iria fazer quando alguém fosse te ver.
—Sim.
—Graças a Deus, tudo terminou. Para sempre.
Ele arqueou as sobrancelhas.
—Você acredita? —perguntou-lhe, afastando-se dela.
Eleanor se apoiou no lavabo, olhando-o.
—E o julgamento? É evidente que não estava ali, mas de todos os modos, condenaram-lhe.
—As coisas se fazem assim todo o tempo. É uma medida militar.
—Então, acredita que sua condenação é legal? Possivelmente possa ser anulada.
—Possivelmente. Provavelmente não.
—Sean, você nunca vai voltar a sofrer assim!
—Não se sinta mal por mim.
Como não ia senti-lo por ele? Eleanor sabia que se se atrevia a falar mais, podia afugentá-lo, mas tinha que continuar.
—Sonha com isso? Tem pesadelos com a escuridão e a solidão dessa cela?
Seu semblante refletiu uma terrível tensão.
—Sean? É Peg? Sonha com ela?
—Por que tem que seguir? —explorou ele— Por que?
—Vou ajudá-lo, Sean —disse Eleanor com firmeza— vou ajudá-lo a esquecer todos estes anos de horror.
Sean a olhou com incredulidade.
—Não!
—É que não quer recuperar sua vida? Ou é que prefere Peg? —disse ela, e assim que teve pronunciado aquelas palavras, lamentou-o.
Ele ficou furioso.
—Alguma vez você para, verdade?
—Não vá, sinto muito! Não insistirei mais… Sean!
Mas era muito tarde. Ele já tinha saído pela porta.
Sean se deteve no pátio que havia depois da sapataria e se apoiou contra a parede; fechou os olhos e tentou acalmar-se. Por que tinha Eleanor que farejar em seus assuntos daquela maneira? Não sabia que suas perguntas eram como adagas que lhe cravavam nas vísceras?
Peg estava morta. Ele não ia falar dela nunca mais, e menos ainda com Elle.
Cobriu o rosto com as mãos. Tinha o profundo desejo de subir no quarto de novo e permitir que ela o abraçasse. Em parte, pensava que se o fazia ela conseguiria afastar seus demônios; mas nunca cederia ante aquele impulso, porque sabia que seu corpo traiçoeiro responderia ante o inocente gesto de consolo de Elle. Ele nunca tinha ardido com tanto calor, nunca havia se sentido tão explosivo e desesperado. Ela tinha se transformado em uma mulher muito bela, e o fato de que fosse tão tentadora lhe causava uma grande confusão.
Entretanto, estava seguro de uma coisa: ia lamentar durante toda sua vida os momentos de paixão que tinha compartilhado com ela.
Aquela manhã tinha ido às margens do rio e tinha observado, através de sua luneta, a HMS Gallantine. Parecia uma fragata muito veloz, uma vez que levava muitos canhões. Além disso, tinha ido visitar O'Connor, que tinha estado de acordo com ele em que McBane seria o melhor acompanhante para levar Elle de volta para Adare. Era um cavalheiro, assim que se comportaria honrávelmente com ela, e provavelmente a protegeria com sua vida se fosse necessário. O'Connor lhe havia dito que tentaria ficar em contato com McBane. Se não o conseguia, ele mesmo levaria Elle a Adare.
—Sean?
Sean ficou muito rígido para ouvir uma voz feminina. Voltou-se, e se deu conta de que Kate se aproximou dele.
—O que faz aqui fora? Está bem?
Ele sabia o que ela desejava; Kate o tinha deixado bem claro com seus olhares e seus roce desde que se viram pela primeira vez. E ele também a desejava. Estava tenso e desesperado. Sabia que não lhe pediria amor em troca do sexo. Sabia que poderia ir com ela ao estábulo, que estava ao outro lado do pátio, e que poderiam acomodar-se em um compartimento limpo.
—Sim, estou bem —respondeu ele, sem mover-se.
—Me alegro —murmurou a moça, e lhe acariciou a bochecha.
Só havia uma razão para que ele não respondesse a aquela carícia, e estava esperando-o no piso de acima. Ela saberia o que tinha feito assim que ele entrasse pela porta. Olharia-o e saberia, e sofreria outra vez.
Ele já se odiava a si mesmo por lhe haver feito mal. Como ia voltar a fazê-lo?
Kate lhe deslizou a mão pelo pescoço e pela pele nua e quente do peito.
Sean respirou profundamente e lhe agarrou a mão pelo pulso para retirá-la. Ela elevou os olhos e se ruborizou. Ele ia começar a desculpar-se; tinha as palavras na ponta da língua. Entretanto, deu-se conta de que não estavam sozinhos.
Elle estava detrás da esquina da entrada do pátio, olhando-os com os olhos totalmente abertos.
Sean empurrou Kate, esquecendo-se dela naquele momento. Sabia que devia gritar a Elle que as damas não espiavam, mas não o conseguiu. Só ficou olhando-a, e ela seguiu olhando para ele.
No seguinte instante, ela deu a volta e saiu correndo.
Sean se deu conta de que Kate estava a seu lado, com uma expressão de surpresa e entendimento.
—Sinto-o —lhe disse.
—Não é sua irmã —sussurrou a moça.
Sean não a ouviu. Já estava correndo detrás de Elle.
Elle chegou ao quarto e fechou de uma portada. Estava tremendo incontrolavelmente. Não podia tirar da mente a imagem de Sean com Kate, ali abaixo, envoltos em uma atmosfera de luxúria. Ela não titubeou: fechou a porta com ambos os ferrolhos.
Respirou profundamente e se disse que não deveria dar importância aquele assunto. Ela sabia que Sean estava deitando-se com Kate, ou que se estava preparando para fazê-lo. Por que ia importar-se? Sean já não era o mesmo, e ela não queria ao homem em que se transformou. Tinha tomado a decisão de curá-lo para poder recuperar a seu melhor amigo, e se tinha a sorte de consegui-lo, haveria outras mulheres para ele, porque Sean era viril e apaixonado. Teria que aceitá-lo mais tarde ou mais cedo, assim, por que não naquele momento?
Ele bateu na porta.
—Elle. Abre.
Ela olhou a porta. Com um impulso infantil, disse:
—Não.
—Elle. Abre a porta e me deixe entrar. Estou molhado… e tenho frio.
—Duvido-o —replicou ela— Eu acredito que tem muito calor.
—Vamos, abre a porta para que possamos falar.
Ela teve a sensação de que não devia fazê-lo, mas finalmente obedeceu.
Ele entrou no quarto, lançou-lhe um olhar de recriminação e fechou a porta de novo.
—Eu acreditava que… tinha crescido e tinha superado a necessidade de me espiar.
—Não estava espiando —mentiu ela— Necessitávamos de água e se esqueceu levar o balde.
—Estava espiando —disse ele— Escuta, eu não desejo Kate.
—Sim a deseja.
Ele tinha ruborizado.
—Não… não Kate.
Ela ficou imóvel, e o ar que havia a seu redor começou a vibrar. Seu corpo também.
—A que se refere? —perguntou-lhe.
Ele fez um gesto de impotência, e depois lhe passou o olhar pelos seios e os quadris. Depois fechou os olhos, como se queria deixar de observar a de um modo tão atrevido e masculino, e lhe deu as costas.
Eleanor tragou saliva. Estava dizendo que desejava a ela? Porque ela também o desejava a ele, desesperadamente, muito mais que nunca.
—Elle… eu não me deitei com Kate… não o tenho feito e não vou fazê-lo.
Ela não o entendia. Olhou o horrível tecido de aranha de cicatrizes que lhe cobria as costas.
—Por que não? No passado nunca foi muito exigente. Não o entendo. Poderia estar com Kate agora mesmo.
Então, posou a mão sobre as costas de Sean e lhe acariciou.
—Não —sussurrou ele.
—Sean —murmurou Eleanor.
E sentiu que ele tremia. Ela posou a outra mão sobre outro nó de cicatrizes. Inclinou-se e lhe beijou a pele enrugada.
—Não… não—ofegou ele.
Ela percebeu que estava a ponto de render-se. Quase sem respiração, dobrou-se para diante até que lhe apertou as costas com os seios suaves. Depois lhe percorreu a pele com os lábios, beijando-o lentamente. Sean estremeceu e sussurrou:
—Quer que… te faça mal?
—Não. Já sofri suficiente. Sean, não me fará mal.
E então, beijou-o em um lado do pescoço que, em contraste com as cicatrizes, era suave e liso.
Sean se afastou e escapou de suas mãos, e a olhou com os olhos selvagens e quentes.
—Por que? Por que quer… me seduzir de novo?
—Porque eu também preciso estar contigo! Porque é um homem apaixonado, e eu sou uma mulher apaixonada.
«E porque te quero», pensou.
—Não faça que isto seja mais difícil do que já é.
—Sean, você mudou —sussurrou Eleanor—, mas ainda te desejo. Inclusive mais que antes.
—Não quero voltar a te fazer dano! Por favor!
—Não me fará mal.
—Sim. Você tem que voltar para Adare —disse ele— Tem que se casar com Sinclair.
—E você tem que ir a América. Sei. Mas, o que isso tem que ver com hoje, com esta noite? —perguntou-lhe com suavidade.
Ele ficou imóvel, respirando profundamente.
—Sean?
—Não posso te dar… amor.
—Não estou pedindo que me dê nada mais que prazer —sussurrou ela, e naquele momento, suas palavras eram certas. Ele empalideceu— Estou te pedindo prazer, Sean. Necessito que me dê prazer, agora.
E ele avermelhou violentamente. Seu olhar chapeado cintilou, e se aproximou dela com brutalidade.
Eleanor suspirou, e em um instante estava entre seus braços, recebendo seus beijos.
—Elle —sussurrou ele contra sua boca enquanto lhe desabotoava a camisa— Elle…
Eleanor ofegou quando Sean lhe cobriu os seios com as mãos. Brevemente, ele afastou a boca de seus lábios e a olhou aos olhos. E sorriu.
Ela ficou atônita, mas não havia tempo para pensar. Ele fez que se arqueasse sobre seu ombro, beijando-a com dureza, furiosamente. E então, levantou-a e a arrastou para a cama, estendeu-se sobre ela e encontrou seu mamilo com a boca.
Uma sensação deliciosa, em parte prazenteira, em parte dolorosa, atravessou-a. Eleanor desfaleceu e começou a procurar o selvagem prazer que se apropriava dela. Queria que Sean se apresasse.
E ele estava lutando com suas calças. Ela notou como os tirava enquanto lhe beijava a face, os lábios, a garganta, os seios. Tremiam-lhe as mãos à medida que cobria a pele que antes tinha beijado. Eleanor não podia suportar o puro prazer que lhe produzia seu contato. Seu corpo se tornou tão tenso que pensava que possivelmente fosse romper-se.
De repente, lhe agarrou os quadris e a colocou na cama. Começou a explorar a planície que havia ao redor de seu umbigo com a língua e a boca. Eleanor ficou muito tensa; os lábios de Sean estavam fazendo que a carne de seu sexo se expandisse de uma forma impossível, que pulsasse com uma urgência insuportável. Retorceu-se com impotência sob sua língua, enquanto ele a deslizava para mais e mais abaixo. Eleanor ofegou quando ele começou a lhe acariciar o sulco de seu sexo. Ficou imóvel, enquanto o coração ameaçava explodir no peito.
Eleanor começou a desfazer-se e, enquanto se fazia pedacinhos, a língua de Sean se voltou mais atrevida e insistente, imprudente e habilidosa. Ela estalou uma e outra vez enquanto ele alimentava seus gemidos sem descanso, até que já não ficou nada mais que dar.
Então, ele se levantou e se tombou sobre ela. Eleanor o olhou e ele a olhou também, com uns olhos ardentes.
—Necessito-te —disse-lhe bruscamente.
Ela sabia, e sorriu, lhe acariciando a bochecha.
Sean deslizou um braço baixo ela, inclinou-se e a beijou de novo, com um beijo cheio de urgência, mas controlado, reprimido. Depois se liberou da calça e seu sexo apertou o de Eleanor. Elle ofegou, sentindo rapidamente o novo despertar do desejo.
E Sean titubeou. Eleanor o olhou.
—Está segura? —perguntou-lhe ele.
Elle acariciou-lhe uma das cicatrizes das faces.
—Sim.
Nunca tinha estado mais segura de nada.
Sean assentiu e fechou os olhos. Tinha o mais nítido desejo escrito na cara, e se moveu contra ela, apertando seu calor.
—Elle…
—Não me fará mal —sussurrou ela— Apresse-se, Sean, te quero!
Ele ofegou. Pelas bochechas lhe derramaram gotas de suor… ou lágrimas. Ele a beijou e começou a mover-se. O amor que ela sentia e que lhe enchia o peito foi substituído por algo urgente e intenso. Eleanor se aferrou a seus ombros, sentindo um redemoinho de tensão que aumentava rapidamente, de uma maneira impossível, até que se rompeu.
Sean ofegou, movendo-se cada vez mais rapidamente, com mais força, enquanto Eleanor girava pela habitação; os gemidos de Sean se fizeram mais intensos, mesclando-se com os dela, até que ele também chegou ao climax.
Eleanor caiu flutuando, lentamente, até a cama de novo. Abraçou o corpo úmido de Sean enquanto ele se tombava sobre o flanco, e ela começou a pensar. Temia que queria tanto a Sean tal e como era naquele momento, tanto como tinha querido ao homem que tinha sido uma vez. Beijou-lhe a bochecha úmida, temerosa do que podia chegar depois.
Ele tinha ficado completamente depravado. Entretanto, naquele momento ficou tenso de novo. Elevou a cabeça, e seus olhares se cruzaram.
—Está… bem?
Eleanor se alarmou. Como podia amar o homem em que se converteu Sean? Como não ia amá-lo? E em que situação ficava ela? Embora Sean tivesse tanta paixão, isso não significava necessariamente que tivesse amor para ela, e Eleanor se prometeu que não o necessitava, de todos os modos, que só o necessitava completo e curado de novo.
—Elle… Eleanor?
Ela odiava quando se corrigia.
—Sigo sendo Elle, mas adulta.
Sean a olhou de uma maneira estranha, sem felicidade.
Eleanor tomou sua camisa e a fechou sobre o peito. Depois deslizou as pernas nuas sob o lençol e atirou dela até a cintura.
—Sim —disse, tragando saliva— Estou bem. Foi… muito bonito.
Ele seguiu olhando-a.
E ela conseguiu seguir sorrindo.
Entretanto, Sean não lhe devolveu o sorriso. Titubeou, como se também se sentisse inseguro.
Ela se obrigou a falar em tom de despreocupação.
—Estou bem. Fazer o amor… quer dizer, me deitar com você foi maravilhoso. E isso foi tudo, claro. Tudo o que queria.
Sean a olhou como se fosse o monstro do lago Ness.
O sorriso de Eleanor se desvaneceu, e teve que reprimir a dor que começou a sentir.
—Porque isso é tudo o que você quer. Paixão. Uma companheira de cama. Uma amante.
Sean se sentou e se voltou, de modo que ela não pudesse ver como se fechava as calças. Depois a olhou. Ela tinha se coberto até o pescoço.
—Quero que esteja a salvo. Isso é tudo o que quero —disse, e se levantou— Irei pegar água para que possa se banhar.
Eleanor não queria banhar-se. Sabia que não devia lhe pressionar.
—Quer que esteja segura…em Adare.
—Exato —respondeu Sejam, de caminho à porta.
Ela sabia que não devia acrescentar «com Sinclair». Mas havia algo inegável: Sean sentia uma grande atração por ela; se sentia algo mais profundo, não seria capaz de enviá-la a casa com seu prometido. Se ele sentia algo mais profundo por ela, quereria levar-lhe a América.
Na porta, Sean se voltou de repente.
—É incrivelmente bela… Eleanor.
Ela ficou rígida. Não gostava da expressão de seu rosto, nem seu tom de voz, e sabia que havia uma objeção atrás daquela frase.
—Merece mais que uma noite… em minha cama.
Ela não vacilou.
—Sim, é certo.
E depois, quase desejou não lhe haver dito o que ficava no coração.
Ele estava tão resignado… era tão infeliz…
—Sinto-o —lhe disse Sean.
Eleanor se tampou até o queixo e o viu sair uma vez mais.
Capítulo 13
De repente, a habitação ficou vazia. Eleanor respirou profundamente, tremendo. Uns momentos antes, quando estavam fazendo o amor, havia-se sentido mais perto que nunca de Sean. Entretanto, claramente, ele tinha acabado por lamentar o que acabavam de fazer. Eleanor sabia que ele tinha suportado mais sofrimento do que nenhum homem deveria suportar, mas não entendia por que Sean não era capaz de aceitar que se necessitavam um ao outro, nem por que não era capaz de permitir que o amor crescesse entre eles.
Começou a despir-se, negando-se a sentir dor, tentando entendê-lo tudo. Possivelmente, quando soubesse mais sobre o que tinha ocorrido naqueles quatro anos, seu comportamento fosse mais compreensível. Mas, quanto tempo ficava antes de que ele partisse a América e ela se visse obrigada a voltar para casa?
De repente, Eleanor sentiu uma aguda dor no pé, e se deu conta de que tinha pisado em algo. Agachou-se e viu uma pequena figura de madeira esculpida no chão. Imediatamente, soube que tinha caído do bolso das calças de Sean, e a recolheu. Era um barquinho de um só mastro, delicioso nos detalhes. Por seu tamanho, soube que era de um menino.
Sentiu-se muito inquieta. Por que tinha Sean aquele barquinho no bolso? Quantos secretos estava ocultando? Primeiro estava Peg, e depois, havia também um menino em seu passado?
Ele entrou no quarto. Seus olhares se cruzaram, mas ele afastou a vista. Aproximou-se de uma banheira que havia em uma esquina do quarto.
—Vou enchê-la para que possa banhar-se — disse sem olhá-la.
Jogou o balde de água na banheira, e se dirigiu novamente à porta.
—Sean, espera.
—Não.
—Não te entendo!
—Sei. Já não pode me entender. Mudei. Acreditava que estavamos de acordo nisso… eu fui sincero. Avisei que não podia te dar nada mais que uma hora na cama… e você disse que me entendia. Mas não dizia a verdade —disse ele em tom de acusação.
Ela vacilou.
—Acreditava que podia me conformar com a paixão, mas me equivoquei.
Sean ficou pálido.
—Vou por mais água.
Ela o agarrou pelo braço.
—Isso foi algo mais que paixão, Sean!
—Não… você não sabe nada. Até a outra noite, foi inocente. Não quero falar disto —sentenciou ele, e saiu.
Quando voltou, com as bochechas avermelhadas, não a olhou. Jogou outro balde de água na banheira.
—Esperarei no pátio —disse com tensão.
Ela ficou em pé de um salto.
— Já comprou a passagem para a América?
Passou um instante antes de que ele respondesse.
—Ainda não.
Ela sentiu tanto alívio que não pôde conter uma exalação.
Entretanto, Sean a olhou com gravidade.
—Elle… quero dizer, Eleanor. Isto foi uma má idéia. De novo, foi minha culpa. Eu me responsabilizo… por favor, não chore —acrescentou em tom de súplica.
—Não estou chorando.
—Mas está sofrendo… o vejo em seus olhos. Tenho te feito mal.
—Não entendo como pode me acariciar e me beijar tal e como o tem feito, e dizer logo que não era mais que sexo. Queria-me quando fomos meninos, não o negue! E quando crescemos, fomos muito amigos. Fazíamos quase tudo juntos. Agora sou uma mulher e também compartilhamos a paixão. Temos feito tudo juntos, não?
—Não faça isto —advertiu ele.
Mas ela não podia parar, não pôde conter-se.
—Sei que o prenderam durante dois anos. Sei que o açoitaram brutalmente. Sei que aquela noite morreram soldados no povo, e sei que você se culpa por isso. Mas, Sean, todo isso já terminou. É o passado. Por que não quer que vá contigo? Por que? Está tentando se castigar por algo? Pensa em negar-se a felicidade para sempre? Eu te fiz feliz faz uns minutos, e poderia voltar a fazê-lo. Poderíamos compartilhar a cama todas as noites, e uma vida! Já somos muito amigos! Eu poderia ter a seus filhos, Sean.
Ele tinha ficado branco como a neve.
—Tem que ter mais orgulho. Não pode rogar a um homem seu amor.
—Não estou rogando que me queira. Estou assinalando algo que é evidente. Eu acredito que você me quer. Pode negá-lo? —disse ela, a modo de desafio. Depois, teve medo de respirar.
Ele ficou em silêncio, negando-se a responder.
—Não acreditava que pudesse negá-lo —sussurrou Eleanor, tremendo.
—Não quero te fazer dano de novo —repetiu Sean.
—Fará-me muito mais dano se desaparecer de minha vida para sempre — disse ela com veemência— E quem cuidará de você na América? Quem curará essas cicatrizes?
—Disse… que já estão curadas.
—Os dois sabemos que isso é mentira.
—E se nos capturam?
—E se não nos capturam?
Ele deu um passo atrás, sacudindo a cabeça.
—Não entende… o que podem fazer os soldados ingleses.
—Mas a mim não! Eu sou uma mulher, uma dama, a filha de um conde. Sean, se deixarmos que Cliff nos ajude, não nos apanharão. Ele é tão perigoso como qualquer pirata.
—Não quero que o pendurem a meu lado! —gritou-lhe Sean— E não quero que você sofra por mim!
Eleanor se assustou. Ele estava tão angustiado que ela se desprezou a si mesma por pressioná-lo daquela maneira. Titubeou, e depois sussurrou:
—Há mais coisas, não é verdade? Há algo terrível que não me contou. Algo que faz que tenha muito medo por mim, por Cliff, por todos nós. OH, Deus, Sean… o que te ocorreu realmente naquela prisão?
O semblante de Sean estava tão tenso que parecia que ia se quebrar. Ele sacudiu a cabeça como se não pudesse falar, e se fez um terrível silêncio.
Eleanor tinha medo de imaginar que demônios podiam estar perseguindo-o.
—Sabe que pode confiar em mim —lhe disse— Seja o que for o que está escondendo, seu segredo está a salvo comigo.
Ele respirou profundamente. Passou outro comprido momento antes de que falasse, e quando o fez, seu tom de voz era de uma profunda angústia.
—Não posso te dar o que quer… não posso, Elle.
E de repente, ela percebeu toda sua dor, derramando-se em ondas enormes que emanavam dele. Se Sean tivesse começado a chorar, Eleanor não se teria surpreso.
Aproximou-se dele e o abraçou com suavidade.
—Não te pressionarei mais, Sean. Mas me deixe que te console. Isso sim poderá permiti-lo.
Durante um minuto, ele ficou quieto, respirando profundamente. Então, quando recuperou o controle, afastou-se dela.
—É uma mulher muito boa —lhe disse com um olhar de ternura. As comissuras dos lábios se elevaram com a mais ligeira imitação de um sorriso.
Elle acariciou-lhe a bochecha.
—Antes tinha uma covinha. Quero vê-lo outra vez. Vi-o antes. Sorriste-me justo antes de me levar a essa cama.
Ele sacudiu a cabeça como se estivesse negando algo, mas Eleanor não soube se se negava a reconhecer que tinha sorrido de verdade, possivelmente pela primeira vez em anos, ou que desejasse voltar a sorrir. Então, o olhar de Sean caiu na mesa, e ele se sobressaltou.
—De onde tiraste isso? —perguntou-lhe.
Surpreendida, Eleanor o viu se aproximar correndo à mesa e meter o navio de madeira ao bolso. Voltou-se, olhando-a com incredulidade e recriminação.
E Eleanor teve terror pelo que aquele navio pudesse significar para ele.
—Encontrei isso no chão —lhe explicou lentamente, com a boca seca— Sean, por que leva sempre essa figura? É uma lembrança?
Sua expressão era tensa.
—Sim.
Deu-se a volta e tomou o balde.
Então, ela se aproximou da porta e lhe cortou o passo.
—Não o entendo. O que significa? Quem lhe deu isso? É de um menino?
Ele apertou os dentes.
—Desculpe-me.
—É o brinquedo de um menino? —insistiu ela.
—Sim, é de um menino —disse ele— Era do Michael… Michael, meu filho. Michael… que está morto.
Então, Sean a empurrou e saiu apressadamente, mas ela não pôde mover-se; ficou-se paralisada pelo medo e a profunda impressão que se levou.
Sean tinha um filho? Um filho que tinha morrido?
Era aquela a causa de sua tristeza, de sua amargura, das sombras de seus olhos e de sua pena?
Quando ele voltou, jogou o último balde de água na banheira com movimentos de aborrecimento.
—Não sabia que teve um filho —sussurrou ela— Sean, sinto muito.
Ele se voltou para ela de repente.
—Meu dever era protegê-lo.
—Como morreu?
—Os soldados jogaram fogo a minha casa. Não puderam me encontrar assim que mataram a ele —disse, tremendo— Não quero falar disso. Por que não pode me deixar em paz?
—Entendo o doloroso que deve ser. Mas não é sua culpa.
—Sim o é.
Eleanor se deu conta de que estava no certo ao pensar em que ele se culpava por aquela terrível tragédia. Oxalá tivesse estado equivocada.
—Não, Sean. Os responsáveis pela morte do Michael são os soldados que tocaram fogo a sua casa. Você é um homem bom e honrável. Se tivesse estado ali aquele dia, teria dado sua vida por ele, e sabe. Não pode se culpar. Sean, me olhe.
Ele obedeceu.
—Tem que deixar de se culpar. Isso não devolverá ao Michael. Mas você já sabe.
—Quantas vezes salvei a você? —perguntou-lhe com um sussurro— Entretanto, não pude salvar Michael. Falhei. Por que?
Finalmente, derramou uma lágrima pela bochecha. Eleanor a apanhou com os dedos. Tomou as bochechas com as mãos enquanto observava como sua angústia se transformava em desespero. Ela queria lhe dizer que não podia fugir do assassinato de Michael durante toda a vida. Em vez disso, deslizou os dedos por sua pele.
Nada importava, pensou Eleanor, salvo que ele estivesse tão ferido, que sofresse tanto. Sean a necessitava. Embora só fosse temporalmente, ela podia reconfortá-lo.
—Quero-te tanto… —murmurou.
Sean a olhou, e os olhos se encheram de lágrimas. E então, sacudiu a cabeça.
Ela não soube se estava negando-se a aceitar sua declaração de amor, ou protestar pelo que ela se propunha, mas Eleanor sabia exatamente como podia consolá-lo. Fechou os olhos e o beijou.
Ele ficou imóvel, permitindo-a que o beijasse, e ela saboreou seus lábios e suas lágrimas salgadas.
E então, tomou entre seus braços e a beijou também, profunda e desesperadamente.
Naquela ocasião, quando ele se deitou a seu lado, Eleanor se aconchegou contra seu flanco e apoiou a bochecha em seu peito. Sentiu a tensão que se apropriava do corpo de Sean em resposta e rezou. Então, lentamente, ele deslizou a mão por seu ombro e a abraçou. Eleanor fechou os olhos para conter as lágrimas. Ele não a tinha afastado de si; aquilo era um começo, e ela foi plenamente consciente.
Sean não disse nada.
Eleanor esperou até que recuperou a calma, e pensou de novo em seu filho, Michael. Tinha muitas perguntas, mas sabia que não era o momento de mencionar aquele tema tão doloroso novamente.
Além disso, queria permanecer todo o possível no lugar no que estava, entre seus braços, em sua cama, abraçada a ele. Queria desfrutar daquele momento, entesourá-lo. Pô-lhe a mão sobre o peito e o acariciou para reconfortá-lo. Queria lhe beijar a pele com todo o amor que estava sentindo, mas se conteve. Então, seu estômago começou a rugir devido à fome.
Ela olhou para cima e ele olhou para baixo. Ele tinha um olhar suave, curiosa. E então, sorriu.
—Trarei o jantar.
Deu-lhe um salto o coração ao ver aquele sorriso. E a devolveu, com o queixo apoiado em seu peito.
—Escureceu. Possivelmente não seja bom momento para passear pelas ruas da cidade.
—Eu também tenho fome — disse ele— A escuridão é melhor. Posso me mover sem que ninguém me veja, e a estalagem não está longe.
Por um momento, ela posou a mão sobre seu estômago duro, desfrutando da suavidade de sua pele e do fato de que lhe estivesse permitindo tais liberdades. Então, recordou a grossa e áspera rede de cicatrizes que ele tinha nas costas e se angustiou. Incorporou-se na cama. Não queria que ele voltasse a sofrer em toda a vida.
—Eu irei pelo jantar. Eu irei à estalagem.
Ele estava olhando-lhe o seu seio.
—Não.
Eleanor se deu conta de que a estava admirando, e se sentiu atrativa. Seu primeiro impulso foi levantar os lençóis, mas não o fez.
—Sean, já não sou uma menina. Não necessito que proteja a cada passo que dê. A estalagem está à volta da esquina…
—Não —disse ele. Tomou uma ponta do lençol e a pôs sobre o seio— As damas são pudicas — indicou-lhe, em tom de reprovação.
Ela teve que sorrir.
—Mas faz muito tempo que chegamos à conclusão de que eu não sou uma dama.
E ele sorriu também. Depois se levantou.
—Como pude esquecer?
Ela o devorou com o olhar enquanto ele tomava sua roupa. Enquanto colocava as calças, Sean a olhou e se ruborizou.
—As damas não são tão atrevidas.
Ela se encolheu de ombros.
—É magnífico… por que não posso te olhar? Os homens olham às mulheres todo o tempo.
Sean suspirou e colocou a camisa.
—Não pode… é impróprio… sabe.
—Odeio ser tão educada —declarou ela.
Então ele a olhou fixamente.
—Sean?
—Você sim é uma dama… só que não uma dama convencional. Que nunca se esqueça.
—Eu finjo que sou uma dama quando tenho que fazê-lo, que é a maior parte do tempo. Mas já sabe que odeio ter vestidos, e tomar o chá, e ir a bailes. Nem sequer aprendi a dançar bem.
Ele a observou, divertido.
—Só você… se atreveria a ser tão sincera.
—Sean, vejo-te a covinha —disse ela.
Então, ele se ergueu, surpreso, e o sorriso lhe apagou dos lábios.
Eleanor se perguntou se acaso estava decidido a sofrer. levantou-se e lhe disse:
—Sean… te ver sorrir é maravilhoso.
Ele abriu os olhos de par em par.
—Deveria se vestir —sussurrou, e enquanto o fazia, ruborizou-se.
Ela se sentia tão cômoda com ele que não se deu conta de que estava nua. Tomou o lençol da cama e se envolveu nele.
—Acredito que já deve conhecer meu corpo centímetro a centímetro.
Ele avermelhou mais.
—Mas não me importa —acrescentou Eleanor.
Pareceu que ele se zangava.
—Elle, espero que atue deste modo tão atrevido só comigo. Ninguém mais o entenderia… nem o aceitaria.
Ela se cruzou de braços.
—OH, refere-se ao Sinclair? —perguntou, com o coração acelerado pela ansiedade.
Ele elevou o queixo.
—Com ele, também.
—Não esperará de verdade que volte com ele, depois do que compartilhamos hoje.
—Já falamos sobre isto.
—Não houve uma conversação lógica, e além disso, foi ontem. Foi uma ordem, uma instrução, tua decisão, não minha.
—Por que temos que debatê-lo outra vez?
—Porque uma coisa é cometer um engano uma vez, um engano tolo e sem significado, e outra muito distinta é enganar a um homem bom e honesto quando nós dois decidimos nos converter em amantes! —replicou Eleanor, furiosa.
Ele a olhou de esguelha.
—As coisas não mudaram… Sinclair poderá protegê-la —afirmou, e se dirigiu para a porta.
—Não necessito que me protejam dos ingleses, mas você alguma vez acreditará?
Sean se voltou para ela.
—Eu era um animal… enjaulado. Foi uma loucura… foi o inferno. Desta vez, pendurarão-me. E você? Quer passar o resto da vida na Torre? Ou prefere viver uma existência privilegiada como lady Sinclair?
—Não está sendo razoável. Ninguém vai me encerrar na Torre. Tem algo que ver o medo irracional que sente com o que ocorreu ao Michael?
Ele se negou a responder.
—Não posso deixar sua cama e me casar com Peter —disse ela com sinceridade— Da-se conta de que é algo desprezível?
Ele amaldiçoou.
—Sabia que era um engano. Já tenho tudo arrumado para que volte para casa amanhã. E combinamos que fingiria que é virgem com o Sinclair. Prometeu-me isso.
—Eu não te prometi tal coisa. E além disso, seu monólogo a respeito disso teve lugar antes de que passasse uma tarde inteira desfrutando de meus favores.
—Não…
—Não o que? Não quer que te peça que faça o mais honrável? Já cometi esse engano, e você se negou a se casar comigo. Não sou tola, não voltarei a usar essa carta.
—Então, o que quer?
—Não posso te deixar assim, Sean. Se for a América sozinho, não terá a ninguém que te cure. Disse que ninguém pode te ajudar, mas não é certo. Eu sim posso. Ajudarei. Sou sua metade… —disse ela, e conseguiu sorrir entre as lágrimas.
Ele tinha empalidecido.
—Morreria antes de te pôr em perigo.
—E eu morreria antes de te deixar partir deste modo.
—Não! —exclamou ele— Quando vai entendê-lo? Isto não é seguro. Não deveria ter retornado por você. Estaria casada, a salvo, com Sinclair. Maldita seja, Elle!
—Quer me enviar para casa, aos braços de outro homem? Não posso acreditar. Você quer estar comigo! Necessita-me, Sean!
—Não necessito de ninguém! Só necessito de ar, água, comida… você me necessita , não o reverso, e sempre me necessitaste.
Ela retrocedeu.
—Assim deixa de insistir no contrário! Eu nunca te pedi amor, nunca! —continuou ele, cego de fúria— Se as coisas fossem distintas, poderia ser honrável e me casar com você. Mas você está comprometida, assim me esqueça. Esqueça tudo! Tem que se casar com Sinclair, e não comigo. Eu sou um traidor que acabará nas galeras… e maldita seja, se for ter meu filho, ele o criará como inglês, e o menino nunca sofrerá indignidades, nem injustiça! —gritou.
Eleanor estremeceu. Como doía a verdade.
—Tem razão. Eu sempre te quis e te necessitei. E você? Acaso renegou meu afeto, minha confiança e minha lealdade? E também detestou estar na cama comigo faz um momento?
Ele estava ofegando.
—Isso não é justo.
—Não, não o é. Não é justo que me deixou faz quatro anos e não voltou a dar sinais de vida, e possivelmente teve uma relação com outra pessoa. Não é justo que tenha voltado para casa justo agora e tenha me levado com você justo no dia de minhas bodas. Não é justo que tenha se deitado comigo e depois se negue a fazer o que é correto. Não, não é justo, Sean.
Sean a olhava fixamente, sem dizer uma palavra.
Ela se umedeceu os lábios. Já não podia parar.
—Tem-me feito muito dano desde que foi e agora que retornou, também. Sean, dá-se conta de que alguma vez me fez mal quando crescemos juntos? Foi para mim um herói.
—Já basta.
—Possivelmente não necessitasse a uma mucosa que te espiava todo o tempo, ou a uma adolescente que se esfolou as mãos alegremente te ajudando a reconstruir sua casa. De fato, estou segura de que tivesse tido uma infância muito feliz sem mim, e que tivesse reconstruído Askeaton de todos os modos.
—Sinto muito —disse ele.
—Não! Você falou, e agora eu quero falar. Precisa de mim. Está sofrendo pela morte de Michael, e pelos dois anos que passou no cárcere, e possivelmente por mais coisas, não sei. Precisa de mim como nunca precisou de outra pessoa, nem a nenhuma outra coisa. Mais que o ar, a comida e a água.
Sean se apoiou no respaldo de uma cadeira.
—E sabe o que outra coisa que entendi esta tarde? Que te quero com todo meu coração, não só pelo que foi, mas também pelo o que é agora.
Sean fechou os olhos.
—Então está louca.
—Sim, provavelmente tem razão. Mas hoje vi a verdade. Está fugindo do assassinato de Michael. Muito bem. Mas de mim não pode fugir. Quero ser sua mulher, e se tiver que fazê-lo, esperarei tanto como seja necessário.
Ele ficou branco. —Não.
E ela começou a tremer.
—Não vou voltar para casa e me casar com Sinclair, Sean.
—Falei que não! —rugiu ele— Quando vai entender? Casei-me com Peg. Não vou me casar contigo!
Capítulo 14
Eleanor pensou que tinha ouvido mau. Era impossível que Sean se casou com outra mulher. O coração começou a pulsar tão depressa que se sentiu enjoada e débil. Teve que agarrar-se ao respaldo de uma cadeira, porque o quarto começou a girar a seu redor.
—Não está casado —disse com a voz afogada.
—Peg morreu.
O quarto se transformou em um borrão. A figura de Sean se apagou ante seus olhos. Como podia estar acontecendo aquilo?
Eleanor o tinha amado do primeiro momento em que o tinha visto, e nunca tinha deixado de querê-lo, nem sequer depois que ele tirou sua virgindade de uma maneira tão insensível.
E ele se casou com outra.
—Toma —disse Sean, lhe oferecendo um copo de água— Toma um gole. Vai se sentir melhor.
Ela fez caso omisso de seu oferecimento. Como podia ter-se casado com outra?
—Por que? —sussurrou.
—Ela está morta, Elle. Por minha culpa… os dois estão mortos —lhe disse com a voz rouca— Deveria se sentar.
Eleanor se sentou. Notou que tinha o rosto úmido, e se deu conta de que estava chorando.
—Como pôde se casar com outra mulher?
Sean a tomou pela mão.
—Não é o que pensa. Eu não a queria.
—Quanto tempo esteve casado com ela? —insistiu Eleanor, com a voz afogada pelas lágrimas.
Ele sacudiu a cabeça.
—Não muito. Por favor, não chore.
—Mas se supunha que você iria se casar comigo —sussurrou Eleanor.
Ele ficou tenso.
—Vou procurar o jantar —disse. Foi para a porta, e ali se voltou— Fecha com os ferrolhos.
Eleanor não se moveu. Aquele pensamento a estava obcecando: Sean tinha se casado com uma mulher chamada Peg. Sua mente se voltou cruel, decidida a torturá-la. Viu uma mulher incrivelmente bela, irlandesa, é obvio, possivelmente a filha de outro conde. Loira, bonita, perfeita. Viu Sean com aquela mulher, sua esposa, rindo, apaixonado.
Tentou recordar-se que lhe havia dito que não a queria, mas começou a chorar. Conhecia Sean o suficiente para saber que sim lhe tinha importado aquela mulher. Tinha se importado, possivelmente muito, possivelmente tanto como lhe importava ela mesma.
Eleanor chorou com mais intensidade. Era tola. Ele a tinha usado da mesma maneira que usava a mulheres como Kate. E ela tinha sido o suficientemente ingênua para pensar que tinha feito amor com ela. Faria amor com Peg com um desejo tão explosivo? Claro que sim, depois de tudo, casou-se com ela!
Eleanor não podia respirar. Começou a afogar-se por falta de ar. Mas não importava, já não se importava se morria ou vivia. Só sabia uma coisa: devia afastar-se de Sean. Ele era um traidor, em todos os sentidos da palavra. Tinha sido um traidor com ela, com eles.
Nunca ia perdoá-lo.
Desceu as escadas cambaleando, e se deu conta, muito tarde, de que estava descalça. Seguiu descendo de todos os modos, cega pelas lágrimas. Na rua, observou que havia mil estrelas brilhando no céu, e que o extremo da rua estava iluminado com uma só luz de gás. Eleanor correu.
Quando tomou a esquina, viu três soldados britânicos percorrendo a rua. Parecia que estavam bêbados. Eleanor se meteu em um portal e se escondeu.
Algum tempo depois, quando os soldados já tinham desaparecido, começou a chover.
Eleanor nem sequer o notou. Tinha muito frio para dar-se conta do gelo que havia coberto seu coração e sua alma.
Sean se sentia doente. Enquanto subia lentamente as escadas, não podia deixar de recordar o terrível golpe que levou Eleanor, sua dor. Entretanto, ela tinha reagido com desproporção para ouvir a notícia de que ele tinha estado casado; comportou-se como se ele a tivesse traído.
Quando tinha se casado com Peg, Sean se encontrava em estado de choque pela massacre de Kilvore; não tinha tido tempo de pensar, nem de assimilar o acontecido. A pena tinha sido entristecedora.
E ele nunca, em nenhum momento de sua relação com Eleanor, tinha-lhe dado a entender que pudesse querê-la como ela o queria a ele.
«Promete que voltará por mim?».
«Prometo-lhe isso».
Sean se sentiu muito tenso. Quando a deixou nas portas de Askeaton, ele sabia que Eleanor tomou aquela promessa no sentido mais literal da palavra, quando ele não tinha aquela intenção. Era tudo aquilo culpa dela, finalmente?
O primeiro que tinha feito quando tinha chegado a Adare tinha sido espiá-la, e depois, lhe dar a conhecer sua presença, e depois lhe fazer amor. E no dia anterior, Sean tinha cedido ante seus desejos mais selvagens e tinha passado a tarde com ela.
Sabia que não deveria te-la tocado nenhuma só vez. É obvio que ela devia ter expectativas, porque em realidade não entendia o perigo ao que estava exposta. Qualquer mulher de honra esperaria que ele se casasse com ela, mas Elle também queria seu amor, quando ele já não tinha nada que lhe dar a ninguém, nem sequer a ela.
Seguiu subindo, mas a metade da estreita e escura escada, deteve-se e começou a tremer. O que lhe estava ocorrendo? Como era possível que tivesse voltado para casa e se enredou tanto na vida de Elle, deixou-se apanhar por ela? Sua existência se tornou negra e escura a noite em que tinham morrido Peg e Michael.
Já era muito tarde, mas naquele momento, sentado na penumbra, pensou em Elle, e então, a escuridão se converteu em algo quente e luminoso. Elle sempre tinha sido o sol de sua vida. Quando ela sorria, ele sentia um incrível calor, não só no corpo, mas também também na alma, no coração. Entretanto, já não sabia como podia lhe pedir perdão, e não se atrevia a consolá-la.
Continuou subindo cansadamente; antes de chegar ao último degrau, viu que havia luz no corredor, e ficou gelado. A porta do quarto estava aberta.
Deixou cair a bolsa de comida que levava e correu para o quarto. Com apenas um olhar, deu-se conta de que Eleanor se foi. Então, gritou de angústia. Viu as botas que lhe tinha comprado, e soube que se foi descalça. Sem deter-se nem um minuto, deu-se a volta e baixou as escadas de dois em dois. Entretanto, pensou que tinha sorte, porque ela não teria podido ir muito longe.
Um momento depois, Sean estava montado em Saphyr, percorrendo a rua. Cobriria muita mais distancia a cavalo que a pé. Eleanor podia estar em qualquer lugar.
Teria ocorrido a ela a idéia de voltar para casa a pé?
Conhecendo-a, era possível.
Sean tinha conseguido acalmar-se um pouco; seu pânico tinha diminuído, mas seguia sentindo medo pela segurança de Eleanor. Uma mulher bela, caminhando sozinha por uma estrada pública, vestida de homem, atrairia a atenção de indivíduos desagradáveis, inclusive embora ela pudesse evitar aos soldados.
Sean esporeou ao Saphyr.
O amanhecer iluminava com uma luz cinza pálido o porto que havia ao sudeste da cidade. Sean estava sobre seu cavalo no topo de uma colina, muito assustado por Eleanor para sentir cansaço. Rapidamente, deu-se conta de que se ela optasse por ficar na cidade e esconder-se, ele não poderia encontrar ela. Então, tinha decidido dirigir-se ao norte, para Limerick, mas não tinha encontrado nem rastro dela na estrada principal. Rendeu-se ao dar-se conta de que não podia ter chegado tão longe caminhando descalça.
Onde poderia estar? Estaria bem? E se a tinham assaltado, ou algo pior? A teriam capturado os soldados? Sean estava a beira do pânico, e tinha dificuldades para pensar com claridade.
Então, teve uma idéia. Sabia que Cliff e seu irmão queriam ajudá-lo, mesmo contra a seus desejos. Tirou a luneta do bolso e começou a observar com atenção o panorama que se estendia baixo ele.
No porto havia uma dúzia de botes e balandros; alguns barquinhos de pesca já estavam fazendo-se ao mar. O único navio grande era o HMS Gallantine. Sean seguiu percorrendo todo seu campo de visão com a luneta, e por fim, sorriu.
Havia outra fragata, muito maior, com mais armamento que o navio da Marinha britânica, e com o casco pintado de vermelho e negro. Só Cliff tinha um navio pintado com cores tão atrevidas. Se não se equivocava, aquela era Fair Lady.
Sean pediria a seu irmão que o ajudasse a encontrar Eleanor. Deixou o cavalo no cais mais próximo e tomou um pequeno bote de pesca. Começou a remar furiosamente para a fragata de seu irmão. No meio do caminho, ouviu o vigilante dar o aviso. Quando chegou até o casco do navio, havia vários marinheiros esperando-o. Lançaram-lhe uma escada de corda. A primeira vista, Sean tomou aos homens por piratas e mouros. Mas o homem que estava no corrimão da amurada não era um mouro. Embora estava muito bronzeado do sol e levava um brinco de ouro, era Cliff o que estava por cima dele.
Quando teve preso o bote, Sean subiu rapidamente até a convés do navio de seu irmão. Cliff lhe passou um braço pelos ombros e o dirigiu para seu camarote.
—Está louco? —perguntou em voz baixa. Depois disse, em tom de autoridade—: Que ninguém se aproxime deste navio e que ninguém saia dele.
Ouviram-se gritos de «À ordem, capitão».
—Eu também me alegro de ver-te —respondeu Sean ironicamente— O que? Não leva anéis de ouro?
Cliff riu então, e lhe cedeu o passo a seu camarote. A estadia estava pintada de um vermelho escuro muito surpreendente, e mobiliada com peças e tecidos exóticos.
Cliff fechou a porta com o pé e abraçou a Sean com todas suas forças.
—Sean, maldito seja!
Sean se fixou em seu irmão, que não tinha visto em mais de quatro anos; Cliff estava navegando pelo mundo quando ele tinha partido. Cliff era dois anos mais jovem que ele, mas devido a sua natureza atrevida, tinham estado muito unidos quando meninos. Possivelmente aquela afinidade se devesse a que eram dois extremos opostos: Cliff era um demônio desde o dia em que nasceu, e Sean era cauteloso, conservador e responsável.
—Faz muito tempo —disse.
—Sim —respondeu Cliff, cruzando os braços— Chegamos ontem à noite, às doze. Assim que os britânicos saibam que estou aqui, começarão a me espiar —disse, e olhou a seu irmão de pés a cabeça. O sorriso lhe apagou dos lábios— Apenas se parece com o irmão com o que cresci. Está bem, Sean?
Sean não respondeu.
—Viu a Elle? —perguntou-lhe.
Cliff se sobressaltou.
—Não, não a vi. Mas ela está com você, não?
Sean teve que sentar-se.
—Não, não está comigo. Temo que necessito sua ajuda.
Cliff o agarrou pelo ombro.
—Ne diga o que ocorreu —pediu calmadamente— E faremos planos.
Sean o olhou.
—Elle se foi… fui um idiota, Cliff. Disse-lhe a verdade… que tinha casado com outra mulher—explicou-lhe. Ao ver a expressão de surpresa de Cliff, prosseguiu— Peg morreu.
Cliff ficou olhando com gravidade. Quando falou de novo, tinha a voz rouca.
—Sinto-o muito, Sean. Entretanto, não acreditaria que Eleanor ia suportar essa notícia. Esperou que voltasse durante esses quatro anos, Sean. Todos a vimos sofrer por você.
Sean sacudiu a cabeça.
—Disse-lhe que voltaria porque pensava fazê-lo. Nunca pensei que passaria dois anos me apodrecendo no cárcere!
—Como te ocorreu levantar-se em armas contra os ingleses?
—Tentei deter os camponeses… para que não assaltassem o imóvel do Darby —respondeu Sejam.
—Há alguma testemunha? Porque o coronel Reed jura que te viu dirigindo a manifestação, não tentando deter os camponeses.
Sean ficou gelado.
—Reed?
Cliff lhe deu uns golpes nas costas.
—O coronel Reed visitou Tyrell, e ele me contou a conversa que tiveram. Parece que ele é quem dirige sua busca.
Sean ofegou. A cabeça começou a lhe dar voltas.
—Cliff, Reed é um assassino. Ele matou a Peg e ao Michael!
—Acredita que ele matou sua esposa e o seu filho? Está seguro?
—OH, sim o estou. E temo que possa fazer mau a Elle! Deve me ajudar a encontrá-la! Onde está agora Reed?
—Quão último sei é que estava em Limerick. Sean, encontraremos a Eleanor. Rex, Devlin e Rory McBane estão em Cork. Eles nos ajudarão. Entendo que esteja assustado por ela, mas não é Eleanor que está em perigo. Pode ser que Reed seja um assassino, mas nunca faria mal à filha do Adare. Isso seria um suicídio político! Deve relaxar. Eu estou muito mais preocupado por você. Queria zarpar imediatamente e te levar a costas estrangeiras. Não tem sentido que fique aqui. Não dei permissão a meus homens para que possamos partir dentro de umas horas. A maré será favorável até meia amanhã.
—Não vou a nenhum lugar! —exclamou Sean— Não o entende. Reed é perigoso. Não tem moral. Seus homens violaram a minha mulher, Cliff, e a golpearam até matá-la! Ela pagou pelo que eu fiz… era um castigo por meus pecados!
Sean teve que sentar-se novamente. Logo que podia respirar.
—Reed perguntou para Tyrell sua relação com Elle.
Sean começou a tremer.
—Mas Eleanor é valente, por não mencionar que é forte, e que dispara melhor que muitos homens. Está armada?
—Não.
Cliff ficou muito sério.
—Isso é uma má sorte. Entretanto, saberá proteger-se. Provavelmente volte para o lugar onde estavam se escondendo. Mas eu enviarei uma mensagem ao Rex e Devlin. Eles a buscarão pelo caminho de Adare, e nós zarparemos imediatamente.
—Não vou a nenhuma parte! —repetiu Sean— Partirei quando Elle esteja a salvo.
Cliff o olhou com fixidez.
—Está apaixonado por minha irmã?
A Sean lhe encolheu o coração. Não se atrevia a responder-se aquela pergunta. Aproximou-se até o olho de boi, que estava aberto, e inspirou profundamente. O mar estava em calma.
—Tenho que resgatá-la. Sempre cuidei dela. É minha responsabilidade que chegue em casa sã e salva. E que se case com o Sinclair —disse. voltou-se para seu irmão. Cliff o estava olhando com cepticismo— Cliff… me prometa que se assegurará de que se case com o Sinclair.
—Não o entendo —disse Cliff, lentamente— Se agora tem sentimentos por minha irmã, e ela te quer, por que vai enviá-la para casa? Por que não a leva contigo? Isso é o que ela quer. E começo a pensar que você também.
Então, Sean ficou furioso.
—E se Reed nos captura? Elle tem que casar-se com o Sinclair!
—Sinto muito por sua esposa, Sean. Entretanto, acredito que estou compreendendo todos os detalhes desta crise —disse, lentamente— Sean, aceitará-a agora Sinclair?
—Elle só tem que lhe dizer… que escapou com seu irmão… que é a mais leal das meio-irmãs.
Cliff não se deixou distrair.
—Isso não é o que te perguntei. Você nunca se aproveitaria dela —disse, em tom de afirmação.
E Sean não pôde evitar sentir uma tremenda tensão. As bochechas lhe avermelharam.
Cliff abriu os olhos desorbitadamente. Sean não teve tempo de reagir. Recebeu um murro tão forte que caiu ao chão. De ali, olhou a seu irmão. Cliff tinha uma adaga na mão.
—Desgraçado! Canalha! Se não tivéssemos sido criado juntos, como irmãos, te mataria!
Sean ficou em pé.
—Adiante —disse— Dê outro golpe. Tem razão. Sou um canalha. Faz o que queira.
Cliff conteve o impulso de golpeá-lo. Depois sacudiu a cabeça.
—Maldito seja —disse ferozmente— Não sente saudades que Elle te deixasse. E por que teve que lhe dizer que tinha se casado, se sua mulher morreu?
—Não sei! Já não me entendo mesmo.
Cliff ficou tenso, como se se tivesse ficado assombrado.
Houve um grande silêncio.
Sean se sentou de novo.
—Estou pedindo sua ajuda. Ela deve voltar para casa. Deve casar-se com o Sinclair antes de que a alguém lhe ocorra acusa-la de conspiração ou de qualquer outro delito… antes de que Reed a encontre.
—Você é quem deveria casar-se com ela, e não Sinclair —respondeu Cliff.
—E assim poderão nos pendurar juntos! Essa seria uma boa notícia para a condessa, não te parece?
—Não me deixou terminar. Se as circunstâncias fossem diferentes, eu mesmo te levaria ao altar, fossem quais fossem seus desejos —afirmou Cliff com os olhos muito brilhantes— Está bem. De acordo. Porei-me imediatamente em contato com o Rex e Devlin e concentraremos nossos esforços em encontrar Eleanor. E depois o que? E se demorarmos dias em encontrá-la? E se lhe capturam enquanto isso?
—Minha fuga não é a prioridade —disse Sejam.
Cliff o olhou com os olhos entreabridos.
—Sabe, Sean? Comporta-se de uma maneira muito parecida com um homem apaixonado.
—Não me importa o que pense.
—Poderia me agradar um pouco, de todos os modos, porque riscamos um plano. Eu serei um chamariz e, enquanto as autoridades me perseguem, Devlin te levará longe daqui.
—Não quero que você se envolva… nem Devlin tampouco. Eu comprarei minha própria passagem. Obrigado —lhe disse com gravidade, enquanto se dirigia para a porta.
Imediatamente, Cliff lhe cortou o passo.
—Nego-me a que rechace a ajuda. Não poderá consegui-lo sozinho.
—Deixe-me passar, Cliff —lhe disse Sean— Te deixei que me golpeasse faz um momento… mas lhe advirto isso, já não sou o mesmo menino calado que antes.
Cliff titubeou. Depois se separou da porta.
—Está bem. Não me dá medo, Sean, mas me dou conta de que segue sendo generoso e nobre. Como posso me pôr em contato contigo quando encontrarmos a Eleanor? —perguntou-lhe.
Enquanto o fazia, caminhou para um armário e o abriu. dali tirou uma pistola, munição e uma adaga, e as entregou a seu irmão.
—Disse que McBane estava com o Rex e Devlin?
Cliff assentiu.
—Você não o conhece, mas forma parte da família.
—Em realidade, sim o conheço —disse Sean— E ele me conhece , mas com o nome do John Collins. Pergunte ao McBane. Saberá como me encontrar.
—A cada momento sinto mais curiosidade —comentou Cliff ironicamente.
—Disso estou seguro —respondeu Sejam— Cliff, ponha a salvo Eleanor. Prometa-me isso.
—Se esquece que é minha irmã pequena. Eu também morreria para que ela estivesse a salvo.
—Obrigado —disse Sean com alívio.
Cliff o abraçou.
—Cuide-se, demônios —lhe disse com a voz rouca.
Sean assentiu e partiu.
Capítulo 15
O capitão Brawley se sentia inquieto. Levava quase dois anos ao mando da pequena guarnição de Kilraven Hill, no condado de Limerick. Além disso, desde que o conde de Adare tinha deixado seu posto de juiz, também tinha estado administrando a justiça.
Entretanto, o quartel geral do forte de Kilraven já não lhe resultava familiar. Na sala de espera havia dois novos assessores, que tinham usurpado o posto dos seus, e seu escritório pessoal tinha sido ocupada pelo coronel Reed. De fato, o coronel Reed tinha tomado o mando.
Reed estava sentado no escritório de Brawley, estudando alguns expedientes com impaciência. Brawley sabia que estava repassando documentos relativos ao mando do regimento, mas havia um retrato de Sean O’Neill no centro do escritório, e outro pego na parede, depois dele.
Brawley queria que apanhassem ao filho do conde tanto como qualquer outra pessoa, porque estava seguro de que O’Neill tinha posto em perigo a lady Eleanor. Entretanto, Reed olhava aquele retrato de O’Neill cada minuto. E Reed tinha o olhar mais frio que Brawley tivesse visto. Sobre tudo, cada vez que olhava aquele retrato.
A intensidade do coronel lhe punha nervoso. Ele tinha estudado o expediente O’Neill com suma atenção. Era o regimento de Reed o que estava de guarda aquela desventurada noite em que os camponeses se levantaram.
Seus soldados tinham asfixiado a rebelião, mas não tinham podido impedir que o imóvel e a casa de Darby fossem completamente destruídas; depois, todos os homens do povo tinham morrido. Reed tinha sido quem tinha redigido o relatório inicial. E tinha sido quem tinha apressado a O’Neill e o tinha levado a prisão uma semana depois.
E naquele momento estava em Limerick, a centenas de quilômetros de sua zona de mando, decidido a apanhar outra vez a O’Neill. Brawley estava seguro de que aquilo se converteu em algo pessoal para o coronel.
Em conseqüência, Brawley tinha escrito uma carta ao major Wilkes, que estava ao mando militar da metade sul do país. A carta só pedia elucidação de seu papel naquela perseguição, e mencionava a intervenção de Reed em um distrito que não lhe estava atribuído.
Entretanto, Brawley não tinha mandado ainda aquela carta. Era soldado até o mais profundo de seu ser, e seu instinto era o de aceitar a autoridade e acatar as ordens. Preferia evitar enviar aquela carta ao major Wilkes se podia evitá-lo. Desejava lhe conceder a seu superior, Reed, o benefício da dúvida.
Reed o olhou naquele momento, com os olhos brilhantes e frios.
—Brawley, o que quer?
—Os soldados voltaram de Limerick, senhor. Não encontraram a O’Neill, se é que de verdade se encontra ali.
Reed se apoiou no respaldo da cadeira, sorrindo sem alegria.
—Não, não está ali. De Warenne zarpou um dia depois de que O’Neill escapasse de Adare. Fair Lady leva a poucos quilômetros de Cork da meia-noite de ontem. Acredito que O’Neill está em Cork.
Brawley sentiu uma pontada de excitação.
—Senhor! Tenho sua permissão para levar a uma dúzia de soldados ali?
—Não —respondeu Reed, ficando em pé.
Brawley ficou perplexo e decepcionado.
—Senhor, pode ser que lady Eleanor esteja em perigo. Acredito que ele a tomou como refém.
Reed descartou aquele comentário com um gesto desdenhoso da mão.
—Duvido-o. Inclusive você disse que ela partiu voluntariamente com ele.
—Isso foi o que pareceu —respondeu Brawley com insegurança— Mas eu a conheço um pouco. É uma grande dama, senhor, embora seja original. Pode que O’Neill a tenha persuadido para que partisse com ele, simplesmente, para valer-se dela como refém. Devemos resgatá-la antes de que sofra algum dano.
—E a resgataremos quando O’Neill seja capturado —disse Reed, que deu uns golpes no ombro de Brawley— Tenho espiões em Cork, capitão, vigiando o navio de Warenne. Sean O’Neill irá direto à armadilha que lhe estendi, pode estar seguro.
Brawley o olhou aos olhos e se estremeceu.
Alguém bateu na porta. Ambos os militares se voltaram, e viram entrar um jovem sufocado pelo exercício, suando profusamente. Não levava uniforme, mas ao Brawley pareceu vagamente familiar. Reed lhe fez um gesto para que entrasse.
—Sargento Lewes, passe. O que averiguou?
—O’Neill subiu ao Fair Lady ao amanhecer, coronel. Esteve com Warenne durante meia hora.
Reed arqueou as sobrancelhas e sorriu.
—Bem feito! Onde está agora O’Neill?
Lewes titubeou.
—Não sei.
Ao Reed lhe apagou o sorriso dos lábios.
—Que demônios significa isso?
—Coronel, senhor! Deixei meu posto para informá-lo no momento em que ele desceu do navio. Essas eram minhas ordens, senhor.
—Maldito idiota! —rugiu Reed.
Lewes empalideceu.
—Tinha ordens de averiguar seu paradeiro —gritou Reed, congestionado de ira— e me informar. Quem está vigiando agora o navio? —perguntou Reed— Ou zarpou o Fair Lady também?
—John Barret, senhor, está espiando o navio.
—Está despedido —disse Reed com desprezo.
Brawley estava assombrado pelo que acabava de presenciar. Ele não sabia que Reed tinha homens posicionados em Cork, vigiando Cliff de Warenne. Era evidente que Reed desejava permanecer à sombra, e embora Brawley sabia que não estava em situação de questionar o que faziam seus superiores, sentiu-se mais inquieto que nunca.
—Senhor, eu conheço muito bem Cork, e tenho contato com o prefeito e os vereadores. Também conheço Cobh.
—Já sei, capitão. Tenho lido seu expediente não uma vez, a não ser várias —respondeu Reed com frieza— Tenho outros homens em Cork. Ouvi que foi um Blueboy que ajudou a O’Neill em primeiro lugar. Ontem conseguimos infiltrar um dos nossos em suas filas. Quando O’Neill fizer contato com seus amigos de novo, teremos notícias delas.
—Senhor —disse Brawley, que estava suando.
Reed arqueou uma sobrancelha e esperou.
—E se ele pensar que é perigoso fazer contato com os Blueboy esta vez?
—Então, necessitará da ajuda de seu irmão. Por isso, com esta nova informação, você vai para Cork com um destacamento. Acampará nos subúrbios da cidade. Leve um ou dois homens para vigiar Fair Lady. Eu enviarei a mensagem a nosso novo espião. De qualquer dos dois modos, apanharemos a O’Neill.
—Sim, senhor —disse Brawley, aliviado por ver um pouco de ação.
Só tinha que rezar para que Eleanor de Warenne estivesse bem, e que seu irmão não pensasse usá-la para fugir das autoridades.
—Suas ordens seguem sendo as mesmas. Capturar O’Neill, vivo ou morto. Não importa; esta vez será enforcado.
—Sim, senhor.
—E se lhe apresenta a ocasião, detenha a mulher.
Brawley se assustou.
—Como diz?
—Se descobrir o paradeiro de lady de Warenne independentemente de O’Neill, pode ser que ela tenha informações muito úteis. A detenha e a traga diretamente aqui.
Sua inquietação se intensificou.
—Sim, senhor.
E Reed soube, porque o olhou com um sorriso zombador.
—Acalme-se, capitão. Se tiver razão, a senhora tem mais que temer de seu irmão foragido que de mim. Além disso, duvido que a descubra sozinha —disse com os olhos brilhantes.
Brawley soube que sua frase tinha um dobro sentido, mas não o entendeu.
Sean subiu às escuras as escadas para seu quarto, pensando em que precisava descansar uma hora antes de continuar a busca de Elle. Ao chegar ao patamar, entretanto, descobriu uma pilha de farrapos que antes não estavam ali. Com o coração em um punho, descobriu que ali havia mais que roupa, e gritou de alívio.
—Elle!
Elle estava deitada contra a parede, tremendo, olhando-o fixamente. Ele se ajoelhou e a abraçou, e se deu conta de que estava empapada. Ela se estremeceu e o empurrou.
—Sou eu —disse-lhe ele rapidamente, ignorando os protestos e abraçando-a com mais força. Estava muito molhada e muito fria.
—A porta está fechada —sussurrou ela com a voz rouca.
Ainda ajoelhado, olhou-a nos olhos. O coração lhe encolheu ao ver a pena crua que lhe refletia no olhar. Ela seguia destroçada pelo que ele tinha feito, mas de todos os modos tinha voltado para seu lado.
—Sei. Não queria deixá-la aberta se por acaso os ingleses encontrassem o esconderijo. Tem que se esquentar —disse rapidamente, ficando em pé.
Tremiam-lhe as mãos enquanto tentava colocar a chave na fechadura. Tinha passado toda a noite sob a chuva? Por que não tinha procurado refúgio?
—Só vim pelo Saphyr. Vou voltar para casa —disse ela, em voz tão baixa que logo que resultava audível.
—Tem que se secar. Consegui um escolta para que acompanhe a casa. Não pode ir sozinha.
Ela se encolheu de ombros.
Sean lhe estendeu a mão, mas ela não a aceitou.
—Elle… Eleanor, deixa que te ajude.
Ela não respondeu; ficou em pé por si só, mas fez um gesto de dor.
A ele lhe acelerou o coração de angústia enquanto abria a porta. Foi diretamente para a estufa e acendeu o fogo. Lentamente, olhou-a, e notou que lhe encolhia o estômago.
Parecia como se tivesse caído ao rio; estava empapada e tinha sangrantes feridas nos pés.
—O que te passou?
Ela se encolheu de ombros novamente e cruzou a habitação, coxeando.
Então, Sean se deu conta de que sua intenção era deitar-se diretamente na cama. Ele a puxou pelo braço.
—Tem que tirar essa roupa molhada.
Eleanor o atravessou com o olhar.
—Não acredito. Não se você ficar no quarto.
A Sean doeram aquelas palavras como a ferida de uma adaga.
—Esperarei no corredor —disse, e saiu lentamente do quarto.
Da soleira, olhou atrás, mas ela não se moveu. Sean se deu conta de que estava chorando.
Finalmente, tinha quebrado o seu coração. E muito tarde, deu-se conta de que nunca o recuperaria.
Sean saiu e fechou a porta, tentando reprimir um medo repentino. Assim deviam ser as coisas, porque ela superaria aquele golpe e poderia entregar-se ao Sinclair. Ele deu a volta e chutou a parede com tanta força que sentiu uma dor aguda dos dedos até o quadril. Entretanto, não conseguiu desafogar-se, nem encontrar calma nem alívio. Finalmente, tudo tinha terminado.
Quando passou tempo suficiente, bateu na porta, mas não obteve resposta. Apareceu timidamente a cabeça e a viu na cama, envolta em uma manta. Então entrou e fechou detrás de si.
—Tem que se deitar junto ao fogo —disse-lhe brandamente.
Ela não respondeu.
—Elle?
Não houve resposta, e Sean se deu conta de que dormiu profundamente.
Ele se sentou junto a ela, perguntando-se se teria estado de pé toda a noite, vagando pelas ruas da cidade, só e com o coração destroçado. Tinha feito mal à pessoa que mais lhe importava na vida.
«Quer a minha irmã?».
Aquela pergunta era como uma armadilha, mas ele não ia morder a isca. O que sentia em realidade não era relevante. Deu-se conta de que tinha tomado a mão de Elle. Estava gelada.
Sean se rendeu. Tirou as botas e se deitou a seu lado. Tomou-a entre seus braços. Ela estava muito fria, flácida como uma boneca de trapo.
Ele era quem tinha provocado aquilo.
—Elle, sinto-o —sussurrou. Beijou-lhe a bochecha e começou a chorar— Deveria ter te falado de Peg assim que voltei para casa… mas tinha medo. Sabia que me odiaria por ter me casado com ela… nunca a quis. Como eu poderia quere-la? Quero a você —disse.
E então se deu conta de que aquilo que acabava de dizer era a verdade.
Fechou os olhos, abraçando-a com força, e se permitiu por fim identificar o que sentia. Ao fazê-lo, ficou impressionado por sua enormidade, sua intensidade, seu poder.
Sabia o que ocorreria se se atrevia a querê-la. Sofreria como tinha sofrido Peg. E ele era um homem sentenciado; não tinha mudado nada, salvo que seu coração queria algo que nunca poderia ter.
—Sean? Tenho frio —murmurou Eleanor.
Sean ficou tenso, e seus olhares se cruzaram. O de Eleanor estava desfocado, era incoerente.
Ele tentou lhe sorrir.
—Sei. Logo entrará em calor. E estará segura. Prometo-lhe isso.
Ela sorriu, e a confiança que Sean tinha pensado que não voltaria a ver lhe encheu o olhar.
—Estou segura —murmurou ela, e lhe beijou a bochecha.
Depois, ficou imóvel.
Sean se deu conta de que ficou profundamente adormecida; o tremor tinha cessado. Suspirou, aliviado, e a abraçou contra seu peito. Beijou-lhe a cabeça, pensando nos sentimentos, que acabava de descobrir, abandonando-se a eles. Não sabia quando se apaixonou por ela, mas Eleanor tinha sido sua vida desde que se conheceram. Se tivesse tido uma posição distinta na vida, seu coração estaria esperançoso e alegre. Decidiu não analisar mais as coisas. Estava sobressaltado, e em metade daquele milagre, soube que guardaria aquele momento em sua alma e se aferraria a ele para sempre.
A realidade devia esperar.
E quando amanheceu de novo, saiu da cama e fez os acertos necessários para o futuro que não iriam compartilhar.
Quando Eleanor despertou, demorou um momento em recordar onde estava.
O sol entrava pela janela de uma habitação escassamente mobiliada. O fogo ardia em uma estufa de ferro, perto de um lavabo. Ela estava deitada em uma cama pequena, com um único
travesseiro, um lençol e uma fina manta.
E então, Eleanor viu Sean.
Estava entrando no quarto com uma feixo de lenha nos braços.
Naquele momento, recordou também que ele tinha voltado para casa, que ela tinha abandonado Peter no altar; que estavam em Cork, escondendo-se das autoridades, e que Sean se casou com uma mulher chamada Peg.
Teve a entristecedora sensação de que aquilo não podia estar acontecendo. Sentou-se lentamente na cama, subindo a manta até o pescoço. Nunca havia sentido tanta dor.
Sean já não lhe pertencia. Nunca lhe tinha pertencido.
—O que aconteceu comigo? Onde está minha roupa? —perguntou com a voz rouca.
Ele pôs a lenha em uma cesta, junto à estufa, evitando seu olhar.
—Você escapou de meu lado. Depois voltou, gelada e empapada.
E, de repente, ela recordou que tinha passado a noite frente a uma porta, tremendo de frio, chorando por causa de um sentimento de perda que nunca antes tinha experimentado.
Ele se incorporou e a olhou.
—Comprei um pouco de roupa —lhe disse, e fez um gesto para o cabideiro que havia no quarto.
Ali havia um vestido, roupa interior, um casaco e um chapéu. No chão, havia um par de botas e meias.
Ela se perguntou se teria ficado com um pouco de dinheiro, mas depois se negou a preocupar-se com ele. Era um traidor, e não para a autoridade, a não ser para ela, para eles dois. Não tinha intenção de permitir que lhe esquecesse.
—Onde estão minhas calças? —inquiriu em tom grave.
—Queimei-as.
—Como se atreve? —gritou ela, e sentiu uma enorme raiva— As quero!
—Queimei-as. Não pode andar por aí vestida de homem. Quando estiver em casa, estou seguro de que convencerá ao Tyrell para que te dê alguma de suas coisas. Agora sairei para que se vista.
—OH, sim, vá ter com Kate! Foi ela quem te deu essa roupa?
—Na realidade, comprei-a em uma loja.
—Entretanto, a roupa de Kate teria sido perfeita para mim, não? Porque eu não sou diferente dela. Não sou diferente de uma criada ou da filha de um granjeiro. Não sou diferente de uma prostituta.
Sean ficou branco.
—Pelo amor de Deus, não faça isto.
—Que não faça o que? Não quer que te diga que me tratou igual trata às fulanas que você levava para o estábulo quando éramos adolescentes? —perguntou-lhe com os olhos cheios de lágrimas, encolerizada— Como se atreveu a queimar minhas calças?
Ele exalou longamente.
—Sinto muito. Sinto-o por tudo o que aconteceu. Não é a filha de um granjeiro, e não é uma prostituta. Sei que me quer… sou um canalha. Usei-te e não há desculpa —disse, e deu a volta para sair do quarto.
Ela se deslizou da cama envolta na manta.
—Não te quero!
Sean cambaleou e girou para ela.
—Foi um canalha quando eu era uma menina e sei de primeira mão. E segue sendo um canalha! É um mentiroso, Sean, um mentiroso e um miserável canalha!
Ele não se moveu. Não falou. Estava tão quieto que parecia esculpido em pedra, uma magnífica estátua masculina.
—Defenda-se! —gritou-lhe ela, tremendo de raiva.
Ele sacudiu a cabeça.
Eleanor não vacilou. Esbofeteou-o com todas suas forças.
Sean fez um gesto de dor, mas além disso seguiu imóvel.
—Só para que não haja mal-entendidos, te odeio—disse Eleanor.
Sean assentiu e saiu do quarto.
Eleanor interrou o chapéu tanto como pôde na cabeça, enquanto seguia Sean para o cais, para manter o rosto oculto. Ele tinha se disfarçado com uma peruca antiquada. Ela tinha uma peso insuportável no peito, mas aquilo era o que queria naquele momento: voltar para casa. Sean havia falado que Cliff a levaria até Limerick em seu navio. A viagem por terra era muito mais curta, mas ela queria evitar qualquer conversação com Sean. E parecia que ele tinha o mesmo desejo, porque não tinham cruzado mais que duas palavras desde sua discussão anterior.
Parecia que Sean tinha muita pressa, e ela não podia deixar de perguntar-se o que significava aquilo. As autoridades já estavam os perseguindo?
O cais apareceu ante sua vista, e imediatamente, Eleanor viu Fair Lady, ancorado a certa distância da costa. Também viu um navio de guerra da marinha britânica e, sob sua bandeira, ela se estremeceu. Havia uns alguns soldados casaca vermelha no convés, mas pelo resto o navio estava silencioso.
Ela se sentiu muito inquieta ao ver os soldados.
—Por que Cliff tem que me levar para casa quando poderia te levar para outro país? Está claro que vocês dois chegaram a algum tipo de acordo.
—Cliff vai levá-la para casa. Ele e eu o combinamos assim —lhe confirmou ele com firmeza.
—Não me interprete mal —replicou Eleanor— Quero ir em seguida paraa casa. Não há nada que deseje mais. Entretanto, decidi que prefiro voltar por terra. Cliff pode zarpar com você a bordo.
—Não. Assim que você embarcar, eu comprarei uma passagem… em outro navio —disse ele.
—Não me importa o que você faça quando estiver fora da Irlanda. Mas aqui há muitos soldados. Eu viajarei de carruagem.
—Não temos tempo para discutir, Eleanor. Os planos já foram feitos. E Cliff te protegerá.
—E quem protegerá você, Sean? —perguntou-lhe ela em tom de hostilidade.
—Mas se você me odeia.
—Odeio-te, sim, mas não desejo sua morte —respondeu Eleanor.
Então, de repente, lhe perguntou:
—Alguma vez me perdoará, não é verdade?
Ela o olhou nos olhos. Tremendo, endureceu-se para proteger-se de seu olhar.
—Não.
—Isso me parecia —murmurou Sean.
Eleanor estava sentada no assento traseiro de uma carruagem, sozinha, envolta em uma suave capa de lã que pertencia à esposa de Connelly. Havia tantos soldados no cais que finalmente não tinha podido aproximar-se para embarcar no embarcação de Cliff, e finalmente, voltava para casa por terra.
Connelly tinha se devotado a levá-la para Adare e, por fim, Eleanor ia a caminho de casa. Tentava não pensar nem sentir nada, mas lhe resultava difícil. Nunca voltaria a ver Sean O’Neill. Seus caminhos não voltariam a cruzar-se. Não deveria lhe doer tanto, depois do que lhe tinha feito; mas Deus Santo, doía-lhe.
Eleanor estremeceu de tristeza. A gente dizia que o tempo curava as feridas, mas ela sabia que nunca conseguiria curar-se. O ódio era um refúgio, mas não podia odiar de verdade a Sean. aferraria-se a sua cólera todo o tempo que podia, mas seu coração sabia que não era uma ira real.
Sentia muita pena.
De repente, Connelly se voltou para trás com uma expressão de angústia. Ela também se voltou.
Uma nuvem de pó enchia o ar. Um grupo de cavaleiros se aproximava rapidamente a eles.
Eleanor se agarrou à portinhola da carruagem enquanto Connelly diminuía a velocidade do veículo. A nuvem de pó se transformou em uma dúzia de homens a cavalo, todos eles vestidos com o uniforme dos Dragões. E o único oficial que vestia de vermelho não era outro que o capitão Thomas Brawley.
Imediatamente, ela sentiu medo por Sean, e ao mesmo tempo sentiu alívio por não conhecer seus planos. Tremendo, Eleanor se deu conta de que devia convencer aos soldados de que Sean partiu da Irlanda dias antes, de que já estava em alta mar.
E, naquele momento, não sentiu ódio, só um feroz e leal desejo de proteger ao homem ao que tinha querido durante toda sua vida. Baixou a voz e disse para Connelly:
—Não fizemos nada mau.
Connelly estava muito pálido.
—Pendurarão-me se me descobrem.
—Deixe que eu falo —indicou-lhe Eleanor.
Brawley se aproximou dela.
—Lady de Warenne! —exclamou com evidente alívio.
Ela sorriu.
—Capitão.
Imediatamente, ele desmontou e percorreu a Eleanor com o olhar, inspecionando de um modo clínico, não insolente.
—Encontra-se bem?
—Passei uma experiência horrível —disse brandamente— Graças a Deus que está aqui.
—O que lhe ocorreu? —perguntou-lhe ele, enquanto a ajudava a descer do carro— Onde está O’Neill?
—Partiu —disse, e os olhos lhe encheram de lágrimas— Me abandonou na cidade faz dias, senhor, e eu fiquei perdida e sozinha. Depois de vagar pelas ruas sob a chuva, fiquei terrivelmente doente com febre. Despertei em uma granja, e este bom granjeiro não só me cuidou, mas também se ofereceu a me levar para casa quando me senti melhor.
Brawley a olhou fixamente.
—Ainda não tem bom aspecto, lady Eleanor. Sinto muitíssimo que tenha passado por esse transe, mas devo lhe fazer uma pergunta: sabe aonde foi Sean O’Neill?
—Só sei que embarcou, mas não sei para onde se dirigia.
—Disse-lhe o nome do navio?
Ela sacudiu a cabeça, aliviada ao comprovar que, aparentemente, Brawley acreditava. E, para continuar com a farsa, perguntou:
—Sabe como está meu prometido? —disse, deixando que as lágrimas lhe caíssem pelas bochechas— Nunca me perdoará pelo que fiz.
Brawley lhe ofereceu seu imaculado lenço e ela secou as lágrimas.
—Estava muito preocupado a última vez que o vi, lady Eleanor. Estou seguro de que, uma vez que você o explique tudo, ira perdoa-la. O’Neill a obrigou a fugir com ele, não é verdade?
Como era possível que Brawley pensasse aquilo, quando meio condado a tinha visto perseguir Sean vestida de noiva?
—Estava preocupada com ele, como sabe. Queria detê-lo, e quando vi que não ia ficar, decidi-me a ir com ele para poder averiguar a verdade. Quando partimos de Adare, não podia voltar. Disse-me do primeiro momento que me deixaria sozinha assim que chegássemos em Cork.
—É um homem sem escrúpulos —disse Brawley.
—Devo voltar para casa —disse —prometi uma soma de dinheiro a O'Brien por me levar a casa tão amavelmente —acrescentou, para não revelar a identidade de Connelly— Se não se importar, continuaremos nosso caminho. Estou ansiosa por me reunir com minha família, e com Peter.
—Lady Eleanor, entendo-o, mas… é que tenho ordens de levá-la para Kilraven Hill.
—E por que deve me levar ao forte? —perguntou ela, alarmada.
—Meu comandante deseja falar com você. Não fica outro remédio que conduzi-la ao Kilraven Hill. Sinto muito, mas devemos preceder à guarnição aqui presente.
Naquele momento, em seu estupor, Eleanor recordou as palavras de Sean. Ele tinha insistido em que poderiam acusá-la de vários crimes e ela não o tinha acreditado. Começou a assustar-se. Entretanto, estava segura de que seu pai nunca permitiria que lhe ocorresse nada.
—Sou prisioneira, senhor?
Brauley se ruborizou.
—É obvio que não! O coronel Reed só deseja falar com você. Eu estarei encantado de acompanhá-la a casa assim que termine a entrevista.
Eleanor disse:
—Mas se lhe contei tudo o que sei, senhor.
—Lady Eleanor, pode ser que, sem dar-se conta, você possua algumas pistas úteis para averiguar o paradeiro de O’Neill.
Pode que seja capaz de identificar aos traidores com os que esteve associado. O coronel Reed só quer lhe fazer umas quantas perguntas. Sei que está cansada e angustiada, e que isto é uma grande moléstia. Desculpo-me no nome do coronel, mas devo levá-la ao Kilraven.
Claramente, não podia manipular ao Brawley naquele momento. Eleanor assentiu então, fazendo ornamento de toda a dignidade e o aprumo que pôde reunir.
—Entendo que só está cumprindo com seu dever, senhor. Não resistirei.
—Muito obrigado, lady Eleanor —respondeu Brawley fervientemente— Lamento muito estar incomodando-a neste momento de necessidade.
Eleanor, de algum modo, conseguiu sorrir.
Capítulo 16
Kilraven Hill era uma praça fortificada muito antiga, estabelecida séculos atrás, durante a última parte do reinado da rainha Isabel. Algumas parte da muralha original ainda se mantinham em pé. Estava a umas cinco horas de Adare e de Limerick, o suficientemente perto como para que Eleanor estivesse familiarizada com aquele forte, mas ela nunca a tinha visitado.
Naquele momento, enquanto sua carruagem passava por entre a muralha, com o Connelly sentado junto a ela, de mãos atadas, Eleanor estremeceu. Brawley lhe havia dito que não era uma prisioneira, mas naquele momento ela se sentia como tal.
Connelly já não estava pálido. Tinha passado as horas anteriores em silêncio, e de vez em quando, ela o tinha ouvido rezar. Era irlandês, católico e plebeu, e tinha ajudado a escapar um traidor. Se era afortunado, livraria-se da forca e só seria deportado.
—Milady —disse a Eleanor de repente, olhando-a— Também rezei por você.
A Eleanor lhe encolheu o estômago de angústia.
—Senhor Connelly, correu um grande risco por me acompanhar a casa; assim que chegue, farei tudo o que esteja em minha mão para que o liberem.
Ele sacudiu a cabeça.
—Tenho esposa e dois filhos. Também estou preocupado por eles.
Eleanor lhe tocou o braço.
—Eu me ocuparei deles —lhe disse— É uma promessa.
Ele assentiu, aliviado.
O carro se deteve frente a um enorme edifício de pedra, e Brawley se aproximou para abrir a porta.
—Lady Eleanor? Disse , com um sorriso amável—, chegamos ao quartel geral da fortaleza. Por favor?
—O que ocorrerá a O'Brien? —perguntou para Brawley enquanto, com sua ajuda, descia do carro.
—Será encarcerado até que se celebre seu julgamento.
—Então, já o acusaram?
Brawley se ruborizou.
—Não sei.
—É que não há justiça neste mundo? —perguntou ela—, Não lhe ocorreu que pode ser inocente dos crimes dos que vocês querem lhe acusar?
Brawley baixou o olhar.
—Lady Eleanor, temos espiões em Cork há dias, e Connelly foi identificado imediatamente como Blueboy por nossos homens. Temos uma testemunha que afirmará que ajudou a Sean O’Neill desde que este chegou à cidade. Mas tem razão. Possivelmente isto seja um mal-entendido e eu me apressei a julgar a situação.
—Obrigado —disse Eleanor com tensão.
Estava horrorizada pelo fato de que tivessem identificado ao Connelly com tanta rapidez; ela tinha estado encobrindo-o, e isso a convertia também em cúmplice.
Entretanto, Brawley não fez nenhum comentário a respeito. Acompanhou-a ao interior do edifício com expressão grave, e depois a conduziu a um escritório.
Por fim quanto entraram, Eleanor viu um retrato de Sean pendurado na parede, atrás do escritório do despacho, e empalideceu. O pôster estava muito longe para ler o que dizia, mas ela soube que nele se oferecia uma recompensa pela captura de Sean. Sentiu uma pontada de angústia no estômago.
Brawley lhe sorriu para reconfortá-la.
—Farei que lhe tragam um chá com biscoitos. Já foram avisar ao coronel, e virá em poucos minutos.
Ela ficou olhando o pôster, e logo que ouviu o Brawley. Voltou-se para o jovem e lhe sorriu.
—Foi muito amável. Obrigado por me facilitar uma situação tão difícil, capitão.
—Não será difícil absolutamente, lady Eleanor.
Ela sorriu de novo.
—Pode avisar a meu pai que estou aqui?
—O conde está em Londres, trabalhando para conseguir o perdão para seu irmão.
Eleanor sentiu uma grande esperança, mas a expressão de seu rosto não se alterou. Brawley lhe fez uma reverência e saiu do despacho, fechando a porta. Ela ficou muito animada; seu pai era um homem com muito poder e riqueza, e quando se propunha conseguir algo, nunca fracassava. O conseguiria o perdão para Sean e aquele pesadelo terminaria!
Não se atreveu a pensar o que poderia significar para ela o final do status de fugitivo de Sean. Não podia permitir-se albergar mais esperanças. Aproximou-se do escritório e passou atrás dele. Olhou ao pôster, e se sentiu ainda mais decidida. O papel declarava que Sean ia armado e que era perigoso; dizia que se tratava de um delinqüente e um traidor fugido da prisão. Devia ser detido por qualquer meio, vivo ou morto. E se oferecia uma recompensa de dez libras por ele.
—Pode levar o pôster como lembrança, se o desejar.
Ela ficou muito tensa e se voltou. Seu interlocutor tinha aberto a porta com sigilo. Era um homem de olhos azuis, frios como o gelo, e embora tinha um sorriso no rosto pálido e ovalado, a amabilidade não lhe alcançava o olhar.
O coronel se inclinou ante ela.
—Lady Eleanor de Warenne, suponho.
A ela lhe acelerou o coração. Teve que recordar-se que não tinha nenhuma razão para temer a aquele homem. Era um oficial e um cavalheiro.
—Sim. Coronel Reed?
Ele a estava estudando com tal intensidade que o alarme dela se intensificou. O exame era cru e vil, de algum modo, porque não perdia nenhum detalhe; parecia um granjeiro que ia comprar um cavalo. Ela se amassou dentro da capa, fechando-lhe com força sobre o peito.
—Gostaria de ficar com o pôster de seu irmão? —perguntou-lhe.
—Não desejo ter uma lembrança de uma experiência tão terrível.
—Estou seguro de que foi algo muito duro —respondeu ele— Por favor, sente-se. Claramente, está exausta. Deve contar-me tudo.
Eleanor permitiu-lhe que a guiasse para a cadeira que havia frente ao escritório, e ele tomou assento frente a ela.
—Contará-me tudo isso, não é verdade, lady de Warenne?
—É obvio —disse ela, e se secou os olhos com o lenço, como se estivesse a ponto de chorar— Sou uma tola, senhor. Quando vi meu irmão, depois de tantos anos de separação, senti-me afligida! Acabava de saber que era um fugitivo, mas também sabia que não podia ser culpado de nenhum crime! Fui com ele porque tinha que saber a verdade. Não me dei conta de que, quando partimos de Adare, perseguiriam-nos, e que não poderia voltar tão facilmente.
O capitão Reed estava sorrindo. Estava divertindo-se. E naquele instante, Eleanor soube que não podia manipular aquele oficial como o fazia com o jovem Brawley.
—Vamos ao grão, lady Eleanor?
—Desculpe?
—Devo encontrar seu meio-irmão, e sou um homem impaciente. Importaria-lhe deixar de dizer estupidezes?
A ela lhe acelerou o coração.
—Meu nome é lady de Warenne, coronel.
Como se atrevia a lhe falar de um modo tão atrevido e tão grosseiro? Eleanor estava perplexa.
Ele riu.
—Se o preferir assim, lady deWarenne… onde está O’Neill?
—Está de caminho a Sicilia, senhor.
—Sicilia? Acreditava que não conheciam seu destino.
Assim que ele tinha tido ocasião de falar com o Brawley.
—Dissimulei, coronel. Sean me rogou que não revelasse seus planos, mas agora tenho frio e estou cansada, e quero ir para casa, assim decidi contá-lo tudo. Direi-lhe a verdade para poder ir para Adare. Não temos forças navais no Mediterrâneo? Estou segura de que encontrarão a Sean se se esforçarem.
Reed se apoiou no respaldo da cadeira e ficou olhando-a fixamente, até que ela se ruborizou.
—E de repente, deseja que seu meio-irmão seja apanhado?
—Meu irmão é um cavalheiro, senhor, não um criminoso. Sei que isto é um terrível engano, e que quando estiver frente às autoridades, o assunto será resolvido. Nunca estive mais segura de algo, e desejo que volte para casa. Tentei raciocinar com ele, mas não quis me escutar —disse Eleanor com um suspiro— Mas assim é Sean. Algumas vezes, é muito irracional.
O vago sorriso de Reed não vacilou.
—E em que navio viaja? E quando desembarcará?
—Ignoro ambas as coisas. Entretanto, sim sei que me deixou em Cork a mesma manhã em que chegamos, faz quatro dias. Deixou-me ali, só e perdida! Nunca o perdoarei, senhor!
—Que revoltante. Assim passou três dias só em Cork e hoje, o quarto dia, decidiu de repente voltar para casa…
—Estava muito doente! Vaguei pelas ruas, de noite, sob a chuva. Fiquei inconsciente. Tive que dormir em um portal. Passaram vários dias antes de que recuperasse forças suficientes para pedir ajuda a um pedestre, e então, esse bom granjeiro foi amável e se ofereceu a me trazer para casa. É obvio, recompensarei-lhe o esforço.
Ele emitiu um som de incredulidade.
—Claro. Esse bom granjeiro é um Blueboy, e você sabe disso. É um traidor da coroa, um traidor que aspira à revolução e à anarquia. E isso é antes de que fosse em ajuda de seu irmão foragido. Bem —prosseguiu Reed, ante o olhar de espanto de Eleanor— Assim passou todo o tempo em Cork, vagando pelas ruas, sem lar…
—Passei dois dias delirando, coronel. E então, caminhei a uma granja, e ali despertei. Acaso duvida de minha palavra? —perguntou-lhe com indignação.
Sem deixar de sorrir amavelmente, ele ficou em pé.
—Acredito que é uma embusteira.
Ela gritou de indignação e ficou também de pé.
—Como se atreve? —perguntou, mais à frente do assombro.
Nunca, nenhuma mulher nem nenhum homem se dirigiram a ela com tal falta de respeito.
—Sente-se—ordenou-lhe ele.
Ela fez caso omisso da ordem.
—Não! De fato, vou para casa. Você, senhor, não é um cavalheiro, e terá notícias de meu pai, o conde —disse-lhe, com o semblante lívido.
E o coronel Reed começou a rir dela.
Eleanor não dava crédito ao que via. Começou a sentir medo de verdade.
Reed saiu de detrás de seu escritório e se dirigiu para ela.
—Seu pai, querida minha, não está no país.
—Senhor, este não é um comportamento apropriado.
Ele sorriu.
—As mentiras não são de meu agrado… Eleanor.
E, naquele instante, quando ele se atreveu a pronunciar seu nome de uma maneira tão desrespeitosa, ela soube que estava em perigo. De repente, recordou o medo que sentia Sean por sua segurança. De repente, começou a entender por que Sean tinha tanto medo por ela. Eleanor começou a afastar-se do coronel, até que topou com a parede.
—Meu nome é lady de Warenne.
Reed não se deteve até que ficou a poucos centímetros dela.
—Acredita que sou tolo? Um completo idiota? —perguntou-lhe brandamente.
—Com exceção de —lhe disse ela desesperadamente, ao sentir seu fôlego na cara.
—Eu sou o que dá as ordens aqui —lhe recordou ele— Pode cooperar, e voltará para casa relativamente ilesa. Ou pode mentir, e pagará as conseqüências. Serão graves.
—Como se atreve a me tratar como a uma plebéia, senhor? Sou uma dama, e…
—Acredito que os dois sabemos que não é nenhuma dama.
Ela ofegou.
—Reconheço a uma qualquer quando a vejo.
Por instinto, ela tentou esbofeteá-lo; entretanto, ele apanhou seu pulso e começou a retorcer-lhe com tanta força que ela pensou que ia partir-se a em dois. Aos poucos instantes, a habitação começou a apagar-se. Milagrosamente, a pressão diminuiu, e Eleanor notou que lhe punham um frasco de sal sob o nariz.
—Não —disse, tentando apartar a cara daquele aroma tão horrível.
—Dirá-me o que quero saber —replicou Reed com aspereza— E não permitirei que desmaie.
—Não —gemeu ela.
Mas ele manteve as sal sob seu nariz, e o mundo deixou de dar voltas. O braço lhe doía terrivelmente, tanto, que pensou que possivelmente a tivesse quebrado. Nunca tinha estado tão assustada.
—O’Neill é seu amante, e você não é mais que uma traidora, como ele—disse-lhe Reed grosseiramente, e a rodeou com seu braço.
Eleanor lutou inutilmente, até que se deu conta de que ele queria sentá-la de novo na cadeira. Afundou-se nela e se agarrou o braço. Tentou respirar profundamente e pensar, mas estava muito assustada para planejar alguma saída naquele momento.
—Que desafortunada foi sua queda pelas escadas —disse ele— A seguinte queda será pior. Imagino que se romperá algum osso.
Ela ficou imóvel.
—Sim, Eleanor, romperei-a em pedaços para conseguir o que quero. Quero apanhar a seu amante. Deveriam havê-lo enforcado por ter matado a meus homens, faz dois anos. Esta vez pagará por seus crimes.
—Está louco —disse ela, e finalmente, entendeu os medos de Sean. Eleanor sabia que estava em perigo, em perigo mortal— Meu pai e meus irmãos…
—Nunca saberão o que lhe ocorreu! Se me obrigar a pegá-la, assegurarei-me de que desapareça sem deixar rastro —disse-lhe ele, e de repente, agarrou-lhe a cara e fez que elevasse o queixo— Assim não me faça feri-la, lady de Warenne. Se dá valor a sua vida, dirá-me onde está O’Neill. E eu estarei disposto, inclusive, a lhe economizar a infâmia do castigo por envolver-se com um traidor.
Eleanor não disse nada. Estava tremendo como uma folha.
—Diga-me onde está.
—Não sei.
Ele ficou surpreso. Voltou-se para o escritório, e Eleanor esperou algo horrível. Quando Reed se deu a volta de novo, fez que se levantasse da cadeira, e Eleanor viu que tinha um abrecartas magro e delicado nas mãos.
—Dá valor a sua vida, Eleanor? —perguntou-lhe, enquanto tomava uma mecha de seu cabelo.
Ela se sentiu aliviada. Parecia que aquele louco só tinha intenção de lhe cortar o cabelo. Entretanto, Reed baixou o abrecartas e cortou o cordão que lhe sujeitava a capa ao pescoço. O objeto caiu ao chão; então, ele levantou o bordo do corpo de seu vestido com o abrecartas. Ela se deu conta de que lhe ia cortar o vestido, como tinha feito com a capa.
—Não —disse, com a voz quebrada.
—Pudor em uma prostituta irlandesa? Que estranho. Onde está seu amante?
Eleanor fechou os olhos. Tinha tanto medo que nem sequer podia rezar.
Então, sentiu e ouviu rasgar ao tecido do sutiã. Ela gemeu e abriu os olhos, enquanto ele cortava, com calma, as capas de algodão e deixava exposto seu corpo.
Imediatamente, Eleanor fechou os olhos novamente e tentou pensar. Estava indefesa, e aquele homem estava abusando dela de um modo que nunca se atreveu a imaginar. Despiria-a por completo? Violaria-a?
—Olhe-me —lhe ordenou ele.
Eleanor abriu os olhos e se encontrou com aquele olhar frio e brilhante.
—O que vai fazer? —perguntou-lhe enquanto, com grande dignidade, tentava tampar-se com o vestido rasgado.
Ele sorriu, divertido.
—Continuarei até que me diga o que quero ouvir. Não me obrigue a fazer isto, Eleanor.
—Não lhe estou obrigando a fazer nada. Tem que usar estes métodos tão baixos para vingar a seus homens? Sean não dirigiu o levantamento!
—Deus, todos os irlandeses, selvagens e assassinos, ladrões… nunca mudarão. Dediquei minha vida a trazer a justiça a essa terra pagã, mas é uma tarefa impossível. Possivelmente não saiba onde está agora. Me diga onde se escondiam em Cork.
—Certamente, seus espiões já o terão descoberto.
Reed deu-lhe um forte golpe na cara e se afastou.
Eleanor chorou em silêncio, até que o batimento do coração e da dor que sentia no maçã do rosto diminuiu. Quanto mais teria que suportar? Ia torturá-la e violá-la, porque Reed tinha algo contra tudo o que era irlandês e não tinha limites morais. Ela tinha que encontrar a maneira de interromper aquele interrogatório; tinha que ganhar tempo para poder escapar.
Reed se sentou em seu escritório, observando-a com cepticismo.
—Está apaixonada por ele? —perguntou-lhe com uma gargalhada de incredulidade— E para que tanta lealdade? Ele não a ama.
Eleanor não titubeou, e a penosa realidade do matrimônio de Sean com outra mulher se desvaneceu.
—Eu o quero, e nunca o delatarei.
—Pergunto-me se alguma vez ele pensou em você quando estava na cama com aquela bonita ruiva, sua mulher, noite após noite.
Eleanor se sentiu mortificada, profundamente ferida. Reed tinha razão, Sean não tinha estado pensando nela quando se casou com Peg. Estava segura.
—Ah, assim que lhe tem feito mal. Casou-se com Peg Boyle, não com a grande lady Eleanor. Eu teria eleito a você. Seus atributos são mais de meu gosto —disse, lhe olhando o peito diretamente.
Era um ser repugnante. Eleanor se negou a responder.
—OH, vamos. Falemos da esposa de Sean. Não quer saber coisas de Peg Boyle? Era uma mulher muito bela, com a cabeleira ruiva e a pele imaculada. Era magra, perfeita. Feminina e sedutora. Mas eu nunca tive a oportunidade de provar seus encantos. Meus homens sim.
Eleanor estava aniquilada.
—Espero que esteja mentindo!
—Estou-lhe dizendo a verdade. Não podia capturar a ele, assim que me assegurei de que ela pagasse por seus crimes. Está você disposta a dar sua vida por ele, também?
Eleanor o atravessou com o olhar.
—Estou disposta a morrer.
Ao Reed lhe apagou o sorriso. Sua voz ficou reduzida a um sussurro.
—Ela não queria morrer, lutou até o final. Se a morte não lhe assustar, terei que lhe buscar um destino pior. Claro que, se confessar, economizará-se receber novos insultos.
—Embora lhe dissesse agora onde está Sean, você não poderia me deixar partir. Diria a meus irmãos o que me tem feito, e pagaria um preço muito alto.
Ele se inclinou para ela.
—Não pode me vencer. Não quererá que nenhum de seus irmãos agrida a um oficial britânico, verdade?
Eleanor se deu conta de que tinha razão. Embora escapasse, Reed nunca ia pagar o que lhe estava fazendo, porque ela não queria que seus irmãos tentassem vingar-se de um soldado britânico.
—O’Neill é homem morto, com sua ajuda ou sem ela. Sugiro-lhe que pense como será passar o resto da vida em uma prisão cheia de ladrões, assassinos e traidores, porque isso é o que vai ocorrer: vou ocupar me de que a encerrem de por vida. Pense- disse, e súbitamente, saiu do despacho.
Eleanor se afundou na cadeira, tremendo. Tinha-o acreditado. De repente, perdeu a confiança em sua capacidade para suportar as ameaças daquele homem. Era um maníaco, e sua loucura não tinha limites. Secou-se os olhos e ficou em pé, cambaleando-se. aproximou-se da janela.
Estava anoitecendo, embora o forte continuava nítido; possivelmente Brawley a ajudasse. Se se inteirasse do trato que estava recebendo, sem dúvida protestaria. Nenhum cavalheiro permitiria que se tratasse com tanta crueldade a uma dama. Entretanto, os dois soldados que faziam guarda às portas do edifício não resultavam familiares, e o desespero se apropriou dela.
Reed a aterrorizava.
E sabia que ia rompe-la em pedaços.
Capítulo 17
Brawley estava caminhando justo à saída do escritório onde Reed estava entrevistando lady Eleanor. Era incrível, mas Reed não lhe tinha permitido estar presente durante a conversação, nem tampouco tinha permitido que levasse o chá à dama. Eleanor de Warenne estava exausta, e ele queria aliviar seu mal-estar, mas Reed se negou.
Brawley já não confiava em seu superior. Aquela entrevista durava muito, e além disso, ele tinha ouvido um grito de angústia.
Voltou-se para o sargento de guarda e lhe perguntou:
—Ouviu isso?
O sargento Mackenzie o olhou.
—Sim, senhor.
Brawley quis entrar no despacho. O que estava ocorrendo ali, pelo amor de Deus? Sabia que Reed não era um cavalheiro, e à medida que passava o tempo, sentia-se mais e mais inquieto. Tentou ouvir através da porta, mas só percebeu silêncio. E aos poucos instantes, o coronel Reed saiu.
Brawley ficou rígido. Reed nem sequer se deteve. Indicou ao Brawley que o seguisse com um gesto, enquanto cruzava a sala de espera e saía à rua.
Reed lhe falou rapidamente.
—Pode levar agora o chá a lady de Warenne. Tem que simpatizar com ela, e depois, ajudará-a a escapar.
Brawley estava aturdido. Não entendia nada.
—Desculpe?
—Não seja idiota —lhe espetou Reed— Quero que ajude a escapar a lady de Warenne. Ela conduzirá a O’Neill, se é que ele continua no país.
—Senhor, acredito que ela voltará para Adare, que era seu primeiro destino.
—Não me importa o que você creia, Brawley. Só quero que siga minhas ordens. Planeje uma fuga com ela, e nós a seguiremos como se segue a uma raposa até sua toca.
—Senhor, é lady Eleanor uma prisioneira? De outro modo, não vejo por que teria que escapar.
—Mentiu sobre O’Neill. Não é livre para partir. Sei que você está embevecido com ela, mas é uma traidora, exatamente igual a O’Neill.
Se não levasse o uniforme, Brawley lhe teria desafiado a duelo. Entretanto, ficou calado, pensando na carta que tinha enviado ao major Wilkes. Antes de partir de Kilraven Hill para interceptar a lady Eleanor, tinha enviado aquela missiva. Ao princípio se havia sentido mau por isso; entretanto, naquele momento estava muito aliviado.
Reed emitiu um som de desgosto e sacudiu a cabeça.
—Leve-lhe o chá, planeje a fuga e depois venha a me informar —ordenou ao Brawley, e desapareceu na escuridão da noite.
Brawley chamou o despacho, mas não obteve resposta. Insistiu, mas o resultado foi o mesmo. Depois, abriu a porta. A habitação estava em penumbra, porque não havia nenhum abajur aceso, mas viu a Eleanor imediatamente.
—Capitão —disse ela com a voz rouca.
Ele sorriu e se voltou para seu ajudante, que levava a bandeja do chá.
—Acenda os abajures, por favor.
O homem obedeceu e saiu do despacho. Então foi quando Brawley se deu conta do que acontecia. Lady Eleanor estava junto à janela, agarrando-se ao peitilho do vestido.
Horrorizado, ele viu que o objeto parecia farrapos.
—Deus Santo! O que ocorreu?
—Não importa.
—É obvio que sim!
Brawley avermelhou e a olhou com atenção. Ela tinha os nódulos brancos. Ao observar seu rosto, ele se deu conta de que tinha a marca de um golpe na bochecha.
Já não estava espantado. Sentia-se doente.
Aproximou-se dela apressadamente.
—Por favor, me permita ajudá-la- disse com a voz afogada.
Reed fez aquilo? Tinha golpeado a uma mulher? Tinha-lhe rasgado o vestido? E que mais tinha feito?
Ela tinha os olhos cheios de lágrimas, mas mantinha alta a cabeça.
—Obrigado… obrigado, capitão.
Então, Brawley a acompanhou até a cadeira, e ela se deixou cair.
—Chamarei o médico da guarnição —disse ele.
Eleanor negou com a cabeça.
—Ajude-me… por favor… Thomas.
—Claro que a ajudarei. Mas primeiro acredito que necessita atenção médica.
—Não. Me inchará a cara, mas não me importa. Entretanto, sim eu gostaria que me enfaixasse o braço.
Então, ele olhou seu braço e o encontrou arroxeado.
Era muito cavalheiro para perguntar que mais lhe tinha feito Reed, mas temeu o pior. Aquele homem estava louco.
—Agora volto —disse.
—Não! —exclamou ela, e ao ficar em pé de um salto, o vestido lhe abriu— Não me deixe sozinha. Ele voltará! Envie a alguém pelas ataduras, o rogo.
Então, ele se deu a volta e começou a desabotoar a jaqueta do uniforme. A tirou e a entregou a Eleanor com mãos trementes, sem olhá-la. Ela a pôs, e então, Brawley foi para a porta e pediu ao ajudante faixas limpas. Depois, voltou a fechar.
—Obrigado —sussurrou ela.
—Vou tirá-la a daqui esta noite —anunciou-lhe ele.
Ela o olhou esperançosamente.
—É possível? Há algum modo de escapar deste forte… e desse louco?
—Há um modo, e eu o encontrarei —respondeu ele com firmeza.
Eleanor fechou os olhos, respirando profundamente. E quando olhou ao Brawley de novo, sorriu.
Eleanor não sabia que hora era, mas estavam viajando por uma estrada iluminada pela lua cheia. Pensou que deviam estar perto da meia-noite. Acabavam de sair do forte, a pé; Brawley tinha ordenado que lhes deixassem dois cavalos no bosque. Ela se tinha posto a camisa de alguém, suspeitava que de Brawley, e uma capa. Parecia que estavam sozinhos, sem perseguidores. Tudo tinha sido muito fácil, e Eleanor desconfiava.
A estrada se bifurcava um pouco mais à frente. Um caminho levava ao sul, ao Cork, e o outro ao nordeste, para Adare e Limerick.
Ela deteve suas arreios e olhou ao Brawley.
—Deveríamos entrar no bosque. Ele vai descobrir que escapei e mandará me buscar.
—Não importa —respondeu Brawley, olhando-a fixamente—s está nos seguindo inclusive enquanto você fala.
Ela gritou. Ia esporear ao cavalo e sair rapidamente, mas ele agarrou as rédeas.
—Lady Eleanor! Eu sou leal a você! Deve me escutar.
Eleanor tinha tanto medo que apenas o entendia. Entretanto, devia a vida a Thomas Brawley e, por algum motivo, tinha terminado confiando nele.
—O que quer me dizer?
—Reed me pediu que a ajudasse a escapar. Ele acredita, erroneamente, é obvio, que você irá para Cork, com seu meio-irmão. Espera que você o conduza a O’Neill. Mas você vai para Adare, e eu a acompanharei para que chegue sã e salva.
Eleanor o olhou fixamente.
—Lady Eleanor?
Ela se inclinou para ele.
—Devo-lhe mais do que posso te pagar —sussurrou; e sem prévio aviso, estendeu o braço e lhe arrebatou a carabina do ombro.
Rapidamente, tirou o seguro, embora não apontou totalmente para Brawley.
Ele ficou olhando-a boquiaberto.
—Thomas! Sinto-o muitíssimo, mas vou para Cork, não para Adare. Reed é um louco, e devo me assegurar de que Sean saia do país. Se Reed me tratou com tanto desprezo a mim, o que faria com ele?
Brawley tinha empalidecido.
—Ele insistiu em que você iria com seu irmão, e eu não acreditei. Acreditava que você voltaria para casa! Minha querida lady Eleanor, por favor, reflita. Tem razão, Reed está louco. Entretanto, eu enviei uma carta ao major Wilkes, e não permitirão ao Reed que siga comportando-se deste modo.
—Espero que tenha razão. Entretanto, devo avisar a Sean.
—Então, me permita que a acompanhe para Cork. Por favor, lady Eleanor. Sou um cavalheiro, e não posso permitir que percorra o caminho sozinha, e de noite.
Eleanor não queria envolvê-lo em seus planos.
—Se acompanhar-me a Cork, podemos dizer que eu escapei aqui e que você me perseguiu até os subúrbios da cidade —lhe propôs.
—Sim, podemos dizer isso —respondeu Brawley que tinha entendido que ela não permitiria que ninguém, nem sequer ele, aproximasse-se do esconderijo de Sean. Assentiu e lhe estendeu a mão— Por favor?
Eleanor entregou-lhe a carabina. Uma nuvem passou por diante da lua. Eles esporearam seus cavalos e saíram cavalgando para a escuridão.
Sean tinha comprado uma passagem para a França. Ali, desde a Normandía, partiria por fim para a América. Seu navio, de nacionalidade francesa, zarpava no dia seguinte. Sean se sentia como se estivesse no meio de um pesadelo.
Estava cortando lenha para o granjeiro O'Riley, porque sentia que devia fazer algo para recompensar à generosidade com a que aquele homem o tinha ajudado a ocultar-se. Entretanto, suas ações eram algo mecânico, porque não podia pensar nem sentir. sentia-se aturdido e intumescido, vagamente triste.
Entretanto, Elle estava a salvo em Adare. Teria chegado no dia anterior, tarde. Sean não podia regozijar-se, mas estava aliviado.
Brandiu o machado e cortou um grosso tronco. Embora o céu cinza pressagiava chuva, ele não sentia frio e tirou a camisa. Só sentia frio na alma. O futuro sem Elle lhe parecia tão negro como o buraco onde tinha passado dois anos de sua vida.
Sean ouviu que se aproximou um cavaleiro e ficou muito tenso. Estava no pátio traseiro da casa, não longe do pequeno celeiro onde O'Riley guardava sua apreciada colheita. Rapidamente, Sean se aproximou da casa e ficou junto à parede, com machado na mão. E olhou ao redor da esquina.
Então, os batimentos de seu coração se detiveram.
Eleanor estava descendo de um cavalo do exército: levava o vestido que ele tinha comprado, uma camisa de homem e uma capa marrom. Ela começou a correr para a porta principal, mas Sean sabia que não havia ninguém na casa. Assim, saiu de seu esconderijo.
—Elle.
Ela se deteve e se girou para ele.
—Não partiu! —gritou.
O coração de Sean voltou para a vida. Começou a pulsar grosseiramente, com força, prazer e alegria. Precisava vê-la uma vez mais. Estava garoando naquele momento, mas no pátio reinava o sol. Sean se deu conta de que estava sorrindo.
Quando ela se aproximou, ele viu que tinha um hematoma na face.
Elle se lançou a seus braços.
—Não é nada, de verdade. Kate me disse onde podia te encontrar. Sean, tenho notícias!
O medo e o alarme se apropriaram dele. Forçou-se a apartar a vista de seu hematoma e a olhou aos olhos. Neles viu refletido o temor.
—O que te aconteceu? —perguntou-lhe em voz baixa.
—Há um espião entre os Blueboys, Sean. Não está a salvo aqui. Os soldados apanharam ao Connelly e a mim na estrada.
Sean olhou então seu braço, que tinha enfaixado. O sangue lhe subiu à cabeça e o ensurdeceu. De repente, a imagem de Peg lhe encheu a mente.
—Caí do cavalo —lhe disse ela.
Sean nunca tinha ouvido uma mentira tão grande.
—Tropecei —tentou lhe explicar ela.
—Tem feridas graves?
—Não estou ferida —respondeu Eleanor com um sorriso forçado— Sean, devo te advertir… o coronel Reed está em Kilraven Hill e confessou que matou a sua esposa!
Ele ficou imobilizado pela impressão.
—É um louco —sussurrou ela, e os olhos lhe encheram de lágrimas— Vem por você, Sean. Tinha que te dizer.
Reed tinha feito aquilo a Eleanor, e ele sabia.
—Vai me contar isso todo… Eleanor —lhe ordenou ele, em um tom tão duro que não se reconheceu a si mesmo.
—Sean! Não tenho nada que te dizer, salvo que ele enviou a seus soldados a assassinar a sua pobre mulher. Tenho muito medo dele, e você também deveria o ter.
Naquele momento, Sean só sentia uma raiva fria e calma.
—Assim que um espião nos delatou. Capturaram-lhe os soldados e lhe levaram ante o Reed… ao Kilraven Hill.
Ela o estava observando com os olhos totalmente abertos. Estava tão pálida que o hematoma ressaltava em sua pele.
—Não passou nada.
Sean teve uma convulsão.
—Como chegaste aqui?
Ela tragou saliva.
—O capitão Brawley me ajudou a escapar.
—Não minta para mim —lhe disse ele.
—Mas estou bem.
—Reed te golpeou, não é verdade? Tocou em você também? —perguntou-lhe Sean, e em sua mente, Reed se voltou vermelho, estalou em chamas.
Ela começou a sacudir a cabeça com um gesto negativo, mas então a emoção trocou e se converteu em uma afirmação. Começou a chorar em silêncio.
Sean se disse que ia matar o coronel Robert Reed.
—Tranqüila —sussurrou-lhe em voz baixa, para acalmá-la, e a abraçou— Elle, estou aqui, e não permitirei que te toque de novo.
Ela assentiu.
—Tinha tanto medo…
—O que te fez? —perguntou-lhe, assombrado de como podia manter um tom tão acalmado, quando estava além da raiva.
—Foi muito grosseiro. Sean, ele não tem medo de ninguém, nem sequer de papai nem de Tyrell. Ninguém tinha se dirigido a mim desse modo, e muito menos… —Eleanor se interrompeu por causa do pranto.
— Te violentou?
—Não.
—Então, por que leva uma camisa de homem sobre o vestido?
—Não… não… fez o que você perguntaste. Utilizou um abrecartas afiado para me rasgar o corpo do vestido —disse ela, e apartou a vista, muito pálida.
Ele a abraçou novamente, e ela se aferrou a seu corpo com força. Enquanto Sean lhe acariciava o cabelo, perguntou-lhe:
—Onde está agora Reed?
—Não sei —murmurou ela contra seu pedio— Disse ao Brawley que me ajudasse a escapar, porque queria nos seguir; pensou corretamente que eu viria a ver-te. Sean, que coisas me disse!
Ele a olhou aos olhos, cheios de angústia, e voltou a lhe acariciar o cabelo.
—Quando estiver a salvo de novo, em Adare, esquecerá que alguém se atreveu a te tratar dessa maneira. E Brawley?
—Deixei-o faz horas. Convimos que ele não averiguaria seu paradeiro. Acredito que despistamos aos soldados, mas é evidente que Reed deve estar registrando Cork.
Ele assentiu. Não seria difícil fazer que Reed saísse de seu esconderijo. E Sean começou a desfrutar da expectativa de enfrentar-se a ele e estrangulá-lo com suas próprias mãos.
Ela o entendeu tudo, porque disse:
—Não pode agredir a outro oficial. Não pode. Não permitirei.
Sean acariciou-lhe a bochecha intacta.
—Sinto muito, Elle, mas Reed vai pagar… sua tendência ao assassinato.
—Ele o matará.
Sean sabia que era provável, mas mentiu.
—Golpearei-o quando menos o espere… na escuridão, como um covarde. Não saberá o que lhe tem caído em cima. Tudo isto terminará, Elle, e você poderá dormir tranqüilamente pelas noites.
—Eu não sou que tem pesadelos! Não sou que não pode dormir pelas noites pelo que Reed fez a Peg e a seu filho. Não procure vingança por mim. Eu estou bem, Sean. Por favor, não vá pelo Reed. Papai está tramitando seu perdão em Londres enquanto falamos. Mas se atacar ao Reed, nunca haverá nenhum perdão!
—Não poderia viver com a consciência tranqüila se deixasse que saísse impune pelo que te tem feito.
—Eu estou bem! —gritou ela, chorando— Mas nunca tinha visto um olhar assim em seus olhos. Não poderei te fazer mudar de opinião, verdade? Vai tentar se vingar, e os dois sabemos que isso será sua morte.
—Não chore por mim —lhe disse ele; desejava poder lhe economizar aquele momento— Venham comigo —sussurrou, e se abraçaram com força— Elle… não me solte. Nunca.
Elle se manteve imóvel entre os braços de Sean. Sabia que estava tão apaixonada por ele como sempre. Tinha medo, não só de Reed, mas também do que Sean pudesse estar planejando.
—Temos que ir —disse— Sean, o navio de Cliff está perto? Embora o estejam vigiando, Fair Lady é nossa melhor fonte para escapar.
—Quero que suba a esse navio —afirmou ele com decisão— Tem razão. Devemos ir.
Entretanto, ela entendeu perfeitamente quais eram suas intenções.
—Maldito seja! Acredita que vai poder me deixar com o Cliff enquanto você se suicida ao ir procurar Reed? —disse-lhe desesperadamente— Não faça isto, Sean. Se insistir para que eu vá para casa com o Sinclair, farei-o. Você pode ir a América e eu irei para casa.
Ele a olhou com os olhos cheios de tristeza.
—É muito tarde para negociações. Vamos. Iremos os dois em seu cavalo.
Eleanor se afastou dele.
—Não. Não vou deixá-lo para que possa te destroçar a vida.
—Não me obrigue a subir ao cavalo pela força.
—Se me quiser, deve escolher a vida, e não ir em busca de Reed.
—Isso não é justo.
—Não há nada justo! —gritou ela.
Ele sacudiu a cabeça com ira e se dirigiu para o outro extremo da casa, onde ela tinha deixado a arreios. E Eleanor ouviu os cavaleiros.
Também Sean os ouviu. Voltou-se com os olhos muito abertos.
—Entra na casa —disse com tensão— Há um alçapão junto à cama. Usa-a.
—Não vou deixá-lo —replicou ela— Nem sequer tem uma arma!
—Tenho minhas mãos —disse Sean, lhe lançando um olhar de fúria. Depois rodeou a casa.
Eleanor o seguiu, esperando encontrar ao Reed e a seus homens no pátio. Já estava imaginando o ataque de Sean e suas conseqüências; quase podia ver seu corpo ensangüentado no chão. Entretanto, Sean se deteve em seco, e ela se topou contra suas costas. Então viu Devlin, Tyrell e Rex.
Eles detiveram suas montarias ao outro extremo do pátio, e durante um instante todos os homens se olharam. Fez-se um profundo silêncio. Depois, Eleanor se deu conta de que os três a observavam. Adiantou a Sean e disse:
—Têm que deter Sean! —dirigiu-se para Devlin, porque ele era o irmão maior de Sean— Quer matar ao coronel Reed!
Seus irmãos desmontaram, e Devlin chegou primeiro junto à Eleanor. Percorreu seus rasgos com o olhar, e depois foi para Sean. Outros ficaram observando-os.
—Maldito idiota! —disse Devlin.
Depois abraçou a Sean como se fosse um menino, e se aferrou a ele durante um comprido momento.
Eleanor nunca se havia sentido mais aliviada. Girou-se para o Tyrell e Rex.
—Têm que detê-lo, Ty.
—Farei o que esteja em minha mão. Está ferida.
—Um pouco!
Tyrell tomou-lhe o queixo e a olhou aos olhos.
—Tem que fazer uma escolha, Eleanor. Deve escolher entre Sean, que possivelmente nunca sobreviva a estes sucessos, e Sinclair, que permanece em Adare, esperando sua volta. E tem pouco tempo.
Eleanor se voltou para olhar Sean.
Devlin que tinha solto Sean estava observando-a fixamente, com um olhar amplo e intenso.
—Não há nenhuma escolha que fazer. Ela escolhe Sinclair —afirmou.
Eleanor gritou, e viu como a ele lhe enchiam os olhos de lágrimas.
Sean nem sequer o olhou.
—Elle…
Ela estava chorando, sacudindo a cabeça, lhe pedindo em silêncio, uma vez mais, que trocasse de opinião.
Ele se tinha ficado pálido.
—Devo fazê-lo. Nunca poderá suportar a carga do que ocorreu… Se permitisse que Reed ficasse impune.
—Estou bem —repetiu ela.
—Não está bem! E ele dará conta por seu monstruoso comportamento. Os dois sabemos que eu… não sobreviverei a este dia.
Ela se lançou sobre ele. Estava soluçando, e não podia articular palavra. Entretanto, Sean sorriu.
—Se as coisas fossem diferentes, se pudesse viver a vida de novo, nunca teria partido de Askeaton faz quatro anos. Se não fosse um fugitivo… me casaria com você. Te Amo, Elle.
Eleanor fraquejou. Tyrell teve que sujeitá-la para que não caísse no chão.
—Vou levá-la para Cliff —disse-lhe brandamente— Rex e Devlin ficarão com Sean.
Ela negou com a cabeça; queria lhe dizer que ficaria junto a ele até que tudo terminasse. Não ia se afastar de Sean naquele momento.
Ouviram-se cascos de cavalos.
E Eleanor soube que se tratava de Reed e seus soldados. Deu-se a volta, cambaleando-se, e viu chegar a uma dúzia de militares, que se detiveram no pátio dianteiro da casa. O coronel os dirigia.
Fez-se um terrível silêncio, interrompido só pelos relinchos dos cavalos e o tinido de seus arreios.
Sean estava sorrindo.
Eleanor não podia apartar a vista da cena. Estava aterrorizada.
Ele olhou para Devlin. Devlin desembainhou a espada, a mesma que tinha levado quando era capitão da marinha, e a lançou a seu irmão. Eleanor notou que lhe encolhia o coração de medo enquanto Sean tomava com facilidade pelo punho. Seu olhar se fixou novamente em Reed.
Reed sorriu.
—Um ninho de víboras… ou deveria corrigir minhas palavras? Um ninho de traidores irlandeses —murmurou, agradado. O’Neill, está detido.
—Desmonte —lhe disse Sean, com uma voz tão suave que logo que foi audível; entretanto, todos os presentes souberam exatamente quais eram suas intenções.
—Prendam-no - ordenou Reed a seus homens.
—Covarde —lhe disse Sean.
O sorriso de Reed se desvaneceu. Com agilidade, desceu do cavalo. Eleanor estava cada vez mais angustiada.
Os dois homens se enfrentaram um ao outro como professores de esgrima, com as espadas preparadas para golpear.
—Em guarda —murmurou Reed.
Eleanor sabia que todos seus irmãos eram magníficos espadachins, mas Sean não tinha tomado uma espada em dois anos, ou possivelmente em mais tempo. Estava em desvantagem. O coração lhe pulsava violentamente enquanto via como os dois homens se encetavam no combate. Suas espadas entrechocarão e ressonaram, golpe detrás golpe; Sean avançava; Reed se retirava; Reed avançava, Sean se retirava. Os segundos se converteram em agonizantes minutos, e parecia que alguém ia morrer aquele dia. Suas espadas não deixavam de cruzar-se no ar.
Sean fez uma ameaça com a espada e atacou, e de repente, a ponta de seu fio estava dentro da jaqueta azul do Reed, à altura de seu ombro. Sean a retirou e todos comprovaram que havia sangue na espada.
Com um grunhido, Reed atacou de novo, e suas espadas ficaram apanhadas.
Eleanor começou a ter esperança.
Sean atacou fortemente de novo, e com incredulidade, Eleanor viu como a espada de Reed caía ao chão. Reed ficou gelado, imóvel.E então, com um sorriso, Sean pôs a ponta da espada contra o coração de Reed.
—Não! —gritou Eleanor— Sean, não faça isso!
Sean ficou rígido.
—Prendam-no —ordenou Reed.
Uma dúzia de espadas ressonou. Doze soldados o rodearam, apontando-o imediatamente com os floretes, à cabeça e ao corpo, a centímetros de seu corpo.
Eleanor soube que tudo tinha terminado. Sentia a Sean naquele momento, com ela, dentro dela, uma parte de seu ser, e pôde lhe ler o pensamento, sentir o que desejava. Queria matar. Estava a ponto de matar. E então, os soldados o matariam a ele.
Soou um disparo.
A espada de Sean caiu de sua mão.
Assombrada, Eleanor viu Rex em posição de tiro, apoiado na muleta, com a pistola apontando diretamente para Sean e Reed.
O pátio cobrou vida. Inclusive antes de que Reed falasse, vários soldados sujeitaram a Sean.
—Os grilhões —cuspiu Reed.
—Não! —gritou Eleanor.
Sean foi preso para os cavalos do grupo militar.
Eleanor começou a se agitar para liberar-se das mãos de Tyrell.
—Eleanor! —ele seguiu a impedindo de ir ter com Sean.
E ela o odiou.
—Solte-me! —gritou-lhe— Deixa que me despeça dele. Ty me deixe!
—Não.
—Montem —disse Reed, que já estava sobre seus arreios. Depois se dirigiu aos irmãos—: Não tenho conflitos aqui, sobre tudo, com você, capitão —disse olhando ao Devlin, e depois ao Rex—: Nem com você, comandante.
Depois fez girar ao cavalo e indicou a seus homens que deviam começar a marcha.
Sean estava no meio, montado escarranchado com as mãos algemadas por diante. O grupo de homens começou a mover-se.
Eleanor lutou com o Tyrell. Deu-lhe uma patada e o arranhou, e de repente, Tyrell a soltou.
—Eleanor, não.
Mas ela se elevou as saias e pôs-se a correr depois da cavalaria. Passou por entre os cavalos gritando:
—Sean!Sean!
Então chegou até ele e se agarrou a sua perna.
—Sean!
Ele apertou a mandíbula. Sentia fortes batimentos do coração nas têmporas. Negou-se a olhá-la.
Ela não pôde seguir durante mais tempo a velocidade do trote dos cavalos. Tropeçou e os animais passaram a seu lado, deixando-a atrás.
Quando tiveram desaparecido depois da primeira curva do caminho, alguém se deteve seu lado. Era Tyrell.
—Vamos, Eleanor, é hora de voltar para casa.
Capítulo 18
Estava chovendo quando Eleanor chegou em Adare. Tinha viajado desde Cork com Rex; ele tinha segurado as rédeas de seu cavalo à carruagem. Eleanor sentia um enorme temor que lhe impedia de respirar com facilidade. Não podia deixar de ver Sean capturado pelos britânicos. Nunca esqueceria a expressão estóica de seu rosto enquanto o levavam, nunca esqueceria como se negou a olhá-la. Naquele momento, ele já estaria em Kilraven Hill, encarcerado.
Eleanor olhou para Rex, que tinha estado em silencio durante a maior parte da viagem, tão absorto em seus pensamentos como ela.
—Reed é um louco —disse de repente Eleanor— Pode que lhe ocorra fazer mal a Sean só para divertir-se, ou pior ainda, enforcá-lo antes de que haja notícias de Londres.
—E por isso —respondeu Rex—, Tyrell foi diretamente à fortaleza, para assegurar-se de que o coronel espere ordens de seus superiores.
—Tyrell não tem nem idéia de com quem está tratando! —disse-lhe Eleanor. Tinham estado subindo pelo comprido caminho de cascalho do imóvel, e a casa apareceu ante eles— Reed não tem medo dele, nem de papai, nem de ninguém desta família.
—Devlin está com Tyrell —respondeu Rex com calma— Não acredito que nenhum homem se em frente a eles sem temor. Reed é um valentão, Eleanor, por isso te atacou: você é uma moça e indefesa. Os valentões são uns covardes.
Eleanor se deu conta de que Rex tinha em mente um terrível destino para Reed, mas não podia pensar naquele assunto. Quando a carruagem se deteve, olhou para a casa com tristeza.
—Possivelmente devêssemos ir a Londres a averiguar o que conseguiu papai —disse ela— Mas, por outra parte, não quero deixar Sean. Rex, tenho que vê-lo.
Rex tomou a mão com firmeza.
—Eleanor, Peter está aqui.
—Peter está em casa? Me esperando? —perguntou, consternada.
—Isso eu temo. Acredito que deve se controlar e dissimular. Não servirá de nada deixar que Peter se dê conta de que está loucamente apaixonada por Sean.
—Não posso, Rex. Não poderei fazê-lo. Agora não. Estou aterrorizada por Sean.
—Terá que fazê-lo —respondeu Rex— Mas, certamente, ele entenderá que queira ir para seu quarto rapidamente —acrescentou, e assentiu para lhe dar valor.
Daquele modo, Eleanor teria uma pausa até o dia seguinte. Entretanto, Peter quereria uma explicação.
—Devo deixá-lo —sussurrou ele— E não tenho suficiente coragem para inventar uma desculpa, nem para encontrar um modo agradável de fazê-lo.
—E eu devo adverti-la que não seja sincera com o Sinclair. Eleanor, se Sean não obtém o perdão, você também poderia estar em perigo.
—Eu também sou uma traidora. Já não posso negá-lo, e não quero. Possivelmente seja o melhor. Se pendurarem a Sean, eu quero morrer com ele.
—Não diga isso! —exclamou Rex, que tinha ficado lívido— Não são Romeo e Julieta! Vou dizer o que tem que fazer, e por uma vez em sua vida, vai obedecer. Não vai falar com ninguém, Eleanor, salvo com o Sinclair, e lhe contará a mesma história que contou ao Reed. Jogava muito de menos a seu meio-irmão, e como acreditava em sua inocência, queria que ele mesmo te dissesse a verdade. E na excitação do momento, partiu de Adare com Sean. Não o ajudou deliberadamente a escapar, mas quando foi com Sean, já não podia voltar. Ele te abandonou ao chegar em Cork, e você voltou para lhe advertir contra Reed depois de sua captura. Ele é seu adorado meio-irmão, Eleanor —lhe disse com aspereza— Nada mais.
Eleanor se encolheu de ombros.
—Há muitas testemunhas que me viram partir da fortaleza e ir diretamente em procura de Sean. Que irmã ia comportar se assim?
—Uma irmã que quer advertir a seu irmão de que um louco vai atrás dele. Antes de que isto acabe, possivelmente se casar com o Sinclair é o melhor que poderia fazer. Possivelmente seja sua única opção.
—Não! Não posso me casar com ele! Quero a Sean, e em caso de que não o ouvisse, ele me quer também.
Eleanor sacudiu a cabeça, chorando.
—Quero a Sean. Sou sua amante! E não penso negá-lo.
Rex se enfureceu.
—Se Sean sobreviver, terá que me dar explicações por isso. Assim tem intenção de contar ao Sinclair a verdade? Ele te quer, Eleanor, e foi honrável e bom contigo. Inclusive está em Adare agora, morto de preocupação por você. E você vai destroçá-lo com a verdade?
—Claro que não vou dizer a verdade ao Peter. Já lhe tenho feito mal, e não o merece, e eu não quero aumentar sua dor. Mas não posso me casar com ele, Rex. Estou apaixonada por Sean.
—Inclusive Sean deseja que se case com Sinclair.
Eleanor lhe deu as costas e olhou para fora da carruagem com angústia. Sean tinha insistido em que se casasse com o Sinclair durante todo o tempo. E havia o tornado a dizer no mesmo momento em que lhe tinha declarado seu amor. Olhou para Rex e lhe disse:
—Em certo modo, tem razão. Direi ao Peter o mesmo que contei ao Reed, já que é uma versão adoçada dos fatos.
Rex suspirou.
—Eleanor, só quero te proteger no caso desta situação piorar.
—Entendo-o. Mas deixemos meu futuro, porque não é o que está pendente de um fio neste momento.
—Amanhã falaremos outra vez disto —lhe disse Rex, em um tom mais suave—, quando houver retornado Tyrell.
Eleanor teve então uma sensação de inquietação.
—Não estará pensando em me obrigar a ir ao altar quando voltar Ty, não é verdade?
Rex sorriu fracamente quando apareceram os serventes, aproximando-se apressadamente à carruagem sob a chuva; mas não respondeu.
Horrorizada, Eleanor se deu conta de que ele estava sopesando-o. Entretanto, não teve ocasião de pressionar a seu irmão para lhe surrupiar a verdade, porque alguém abriu sua porta. A condessa saiu naquele momento da casa e a esperou na escada, e Peter apareceu a seu lado.
Com a ajuda de um lacaio, Eleanor desceu do carro e subiu rapidamente os degraus até que esteve sob a coberta. Sua mãe a abraçou com força.
—Mãe —sussurrou, olhando ao mesmo tempo o tenso rosto de Peter.
A condessa suspirou, contendo as lágrimas.
—Estou bem, mamãe.
—E Sean? —perguntou-lhe a condessa, tomando as mãos, com os olhos muito abertos, cheios de temor.
Eleanor tentou controlar-se.
—Capturaram-no, mãe —murmurou. E quando a condessa começou a cambalear-se, disse rapidamente—: Mas está vivo, e está ileso!
Apesar de tudo, a condessa teve que apoiar-se em Peter Sinclair. Ele olhou a Eleanor e lhe perguntou:
—Está bem?
Ela assentiu, com um tremendo sentimento de culpa.
Rapidamente, Rex se uniu a eles e todos entraram na casa. A condessa olhou para Eleanor com os olhos cheios de lágrimas.
—Passei tanto medo por você e por Sean… aonde o levaram?
—Ao Kilraven Hill —respondeu Eleanor.
Sabia que sua mãe tinha muitas perguntas que lhe fazer, mas não se atrevia às formular.
—Querida —lhe disse a condessa—, precisa descansar. Pedirei que lhe preparem um banho quente e te enviarei o jantar a sua habitação. Eu mesma te atenderei.
Eleanor entendeu. A condessa desejava leva-la a um retiro seguro, e a visitaria ali.
—Sim, preciso descansar. Estou esgotada —disse.
Então se voltou lentamente para o Peter, tremente, com as bochechas avermelhadas. Houve um interminável momento de silêncio, cheio de tensão. Entretanto, Eleanor percebeu alívio e angústia no olhar de Peter. Quanto se teria imaginado?
—Sinclair —disse Rex—, eu gostaria de falar com você.
Peter não afastou a vista de Eleanor.
—Posso falar primeiro com minha noiva?
A Eleanor lhe encolheu o coração. Como podia querer ainda casar-se com ela?
—Eleanor passou por uma terrível situação —disse Rex com firmeza—; foi apreendida e interrogada pelos britânicos, quando é inocente de todo delito. Deve retirar-se para seu quarto.
Peter empalideceu.
—Eleanor, está ferida? —perguntou-lhe, e fixou a vista no hematoma que ela tinha na bochecha.
Eleanor negou com a cabeça.
—Passei-o muito mal —respondeu— Peter, sinto muito o que ocorreu.
Peter tomou-lhe ambas as mãos.
—Eu dou graças a Deus porque ter retornado comigo —sussurrou.
Eleanor não soube o que fazer. Queria retirar as mãos, mas não se atrevia.
—Está segura de que está bem? —perguntou-lhe ele.
—Sim. Devo uma explicação —disse ela, mas ele a interrompeu.
—Sua mãe e seu irmão têm razão. Deve ir para seu quarto. Precisa descansar. Vou chamar ao médico de sua família. Assim que se sinta melhor, podemos falar.
Como tinha podido esquecer o bom e considerado que era aquele homem?
—Obrigado —disse Eleanor.
Ele sorriu.
A cela da prisão tinha luz e ar, mas nem sequer assim, Sean pôde controlar seu pânico. Não podia respirar. Ouviu o golpe do ferro quando a porta se fechou atrás dele. Ouviu a fechadura. E começou a afogar-se em seu próprio medo.
Reed riu.
—Vai chorar como um menino, O’Neill? Não se preocupe —lhe disse— Sua estadia aqui não será larga. O enforcarão em poucos dias, porque tenho intenção de que se faça justiça.
Sean se agarrou ao muro e lutou por respirar e por conservar a prudência. Entretanto, não conseguiu acalmar-se.
—E Eleanor? —ofegou.
—Sua amante, indiscutivelmente, está com sua família —disse Reed com sarcasmo.
—Ela é inocente! —gritou Sean— É minha meio-irmã!
Reed soltou uma gargalhada.
—É sua prostituta irlandesa, e os dois sabemos. Tão bonita, tão suave… sinto não ter tido oportunidade de terminar o que comecei com ela.
Sean gritou e se voltou violentamente para ele.
—Vou matá-lo, miserável —lhe disse.
—Como? Com palavras? Deveria ter visto o horror que se refletiu em seu olhar quando lhe cortei o vestido, O’Neill. Verdadeiramente, é uma mulher muito bela.
Sean se lançou para Reed, mas ele estava ao outro lado das grades, e só teve que dar um passo atrás para ficar fora do alcance do prisioneiro.
—Pagará pelo que tem feito.
—Ou possivelmente ela seja quem pagará pelo que tem feito você? —perguntou-lhe Reed— Os dois são igualmente culpados, e se saberá muito em breve. Ela será acusada de conspiração. Acredito que isso me agradará muito mais que violá-la ou matá-la. Passará a vida na pobreza, no cárcere, sozinha.
Sean se agarrou as grades, tentando controlar o impulso de lançar-se novamente para aquele homem.
—Haverá justiça —disse Reed com frieza.
—Me alegro de que queira justiça, coronel —disse Tyrell.
Sean se sobressaltou ao vê-lo aparecer, seguido de Devlin, no corredor das celas, da sala de espera.
—Será muito mais fácil de conseguir se todos trabalhamos pelo mesmo objetivo honrável.
Sean, finalmente, conseguiu o ar que necessitava desesperadamente. Tyrell e Devlin estavam ali. Embora seu destino era inalterável, eles nunca permitiriam que aquele louco fizesse mal a Eleanor.
—A justiça requer que O’Neill seja enforcado, e sabe —disse Reed.
—Não. Isso seria outra justiça, e eu quero lhe recordar agora que meu meio-irmão sofreu a mais grave injustiça à mãos do exército, por sua culpa. Esteve em uma prisão britânica durante dois anos, falsamente acusado. Adare está em Londres enquanto falamos. Haverá uma investigação minuciosa sobre o ocorrido aquela noite em Kilvore, e sobre a captura, a condenação e o encarceramento de Sean.
Sean se surpreendeu um pouco, porque não tinha pensado na possibilidade de que se realizasse uma investigação; entretanto, a voz de Tyrell tinha tanta autoridade que Sean se sentiu reconfortado.
Reed tinha um ligeiro sorriso.
—E que sentido tem isso? Não o entendo, milord.
—Há uma testemunha daqueles sucessos, coronel, e meu irmão o vai levar a Londres. Sean nunca cometeu traição, e quando se demonstrar, será absolvido. Advirto-lhe que o mantenha são e salvo até que chegue esse dia —disse Tyrell com frieza.
Reed ficou olhando fixamente e se gargalhou de novo.
— Quem lhes permitiu entrar?
—Brawley. E se acredita que poderá me negar o acesso a meu meio-irmão a partir deste momento, depois de dois anos da prisão indevida, está equivocado.
Ao Reed cintilaram os olhos.
—Não há testemunhas. Eu não tenho feito nada incorreto!
Tyrell sorriu perigosamente. —Há tocado a minha irmã.
Sean ficou tenso. Quanto sabia Tyrell?
Passou um momento antes de que Reed respondesse.
—Entrevistei-a com todo o devido respeito. Parece que tropeçou e caiu quando a transportavam para a minha sala . Eu nunca tocaria a uma dama.
Tyrell se inclinou para, ele.
—Sua carreira terminou, coronel.
Reed se sobressaltou. Depois disse com desprezo:
—Não me ameace.
E saiu.
Sean se apoiou contra a parede. O ódio tinha diminuído, e também o pânico. Sentia-se extranhamente calmo.
—Tyrell, não. Não o provoque. É muito perigoso. Pode ir atrás de Eleanor quando tiver acabado comigo.
—Não tenha medo. Sean. De fato, tenho intenção de destrui-lo.
—Então, terá que esperar seu turno —disse Sean.
Tyrell arqueou as sobrancelhas.
—Você já tem feito suficiente, sugerio que deixe Reed para mim.
Devlin passou junto a Tyrell e se agarrou as barras.
—Está doente —disse com preocupação.
Sean esteve a ponto de rir.
—Já não posso estar doente —respondeu, mas se enxugou o suor da frente.
—Como posso te ajudar? —perguntou-lhe Devlin em tom grave.
Seu irmão sabia que para ele, estar de novo em uma cela era como estar enterrado vivo. Sean sacudiu a cabeça. Depois tentou respirar lenta, profundamente, com os olhos fechados.
—Não há suficiente ar aqui —disse com dificuldade— Mas sei que tudo está em minha cabeça.
—Tem febre? —perguntou-lhe Devlin.
—Não. Mas estou louco. Acabei perdendo a cabeça —respondeu. Sentou-se no chão, com a cabeça afundada entre os ombros. Nenhum dos irmãos disse nada. Por fim, ele continuou—: Não me importa o que me passe. Estou disposto a morrer. Foi meu destino todo o tempo, e não posso evitá-lo mais. Mas Elle… —disse, elevando a cabeça para eles— Devem protegê-la. Devlin, encontre um modo de desvinculá-la de mim. Reed a ameaçou.
—Reed vai ser deportado em um navio a Austrália —disse Tyrell— Maldito seja! Eleanor está envolvida, e há uma dúzia de soldados como testemunhas. Acaso apareceu de propósito no dia de suas bodas para lhe sabotar a vida?
—Já está bem de recriminações —interveio Devlin.
Sean falou com lentidão.
—Tem que haver um modo… possivelmente um intercâmbio… sua liberdade por minha vida.
—Não! —disse Devlin.
—Não o entende —lhe disse - Eu Sean morreria feliz se soubesse que ela vai ter uma existência plácida, segura.
—Sim o entendo. Entendo que está apaixonado pela Eleanor! Não haverá semelhante intercâmbio. O primeiro é o primeiro. enviei a meus homens a procurar o Flynn. E Cliff está de caminho ao Kilvore, se é que não chegou já. Encontrarão-no, Sean. Será absolvido de todas as acusações, de um modo ou outro.
—Como pode estar tão seguro?
Devlin sorriu.
—Possivelmente não reconheça ao Flynn a próxima vez que o veja.
Se não encontrassem ao Flynn, um impostor ocuparia seu lugar. Sean sentiu esperança, mas era perigoso albergá-la muito tempo.
—Houve mortes de soldados aquela noite. Ao final, eu também tomei as armas.
—Tentou deter os rebeldes —exclamou Tyrell— E é um nobre, não um camponês. Além disso, tem o caso de sua esposa e seu filho. Eles também merecem justiça.
A culpa que tinha estado roendo a alma a Sean durante tanto tempo voltou a aflorar.
—Como? O que é o que sabe deles?
Devlin o olhou com compaixão.
—Eleanor nos contou isso, Sean. Sinto muito.
—Então, deve conhecer a história completa —lhe disse.
- Eles pagaram por meus crímes. Reed se assegurou disso.
—Então, a investigação dará como resultado seu encarceramento —afirmou Tyrell.
Sean ficou em pé lentamente e olhou a seus irmãos.
—Estão equivocados —disse— Na Irlanda não há justiça, e nunca a houve. Reed vai sair disto impune, e vão enforcar-me. E, embora não me matassem, irei a América, sozinho. Quanto a Eleanor… não a quero da forma que ela deseja —ao dizer aquilo, viu como Tyrell se sobressaltava— Ela me seduziu. É uma mulher bela, e eu já não sou o mesmo homem que era. Tenho que deixá-lo mais claro?
Tyrell tinha ficado pálido.
—Se for uma brincadeira, é de muito mal gosto.
—Sabem que sempre fui um mulherengo —disse ele, encolhendo-se de ombro— Passei dois anos só em um buraco, e depois, Eleanor me ofereceu algo que não pude rechaçar —terminou, e não se incomodou em continuar.
Devlin o observou com atenção. Depois, disse:
—Foi muito convincente. Por que fala essas coisas, Sean? Eu vou me assegurar de que o liberem.
Sean sacudiu a cabeça. Resultava-lhe difícil falar.
—Quero que ela esteja a salvo. Se assegure de que se case com o Sinclair —pediu ao Devlin— Quero que me dê sua palavra.
Devlin o olhou com fixidez. Depois respondeu.
—Não lhe vou prometer isso.
Capítulo 19
Eleanor se deteve na entrada do salão, tremendo. Peter era a única pessoa presente na estadia, e estava sentado ante a chaminé, olhando as chamas. Claramente, estava distraído em seus pensamentos.
Era a mesma tarde de sua chegada. Eleanor titubeou. Sua intenção tinha sido permanecer em seu quarto tanto tempo como fosse possível, supostamente, para repousar, mas em realidade era para evitar Peter.
Entretanto, não podia descansar pensando em que Sean estava detento a umas poucas horas de Adare, e em que sua vida estava em perigo. E para piorar as coisas, Eleanor era muito consciente da presença de Peter em sua casa, e do muito injustamente que o tinha tratado.
Devia-lhe mais que uma explicação, devia-lhe uma desculpa. Além disso, tinha que cancelar seu compromisso, de uma vez por todas.
—Peter?
Ele ficou de pé de um salto, assombrado de vê-la, e se aproximou correndo a seu lado.
—Eleanor! Por que não está acima, descansando? Ao menos até que chegue o doutor e te examine.
Ela se mordeu o lábio.
—Não posso descansar. Temos que falar, Peter.
Ele ficou gelado.
—Não sei como te dizer —começou Eleanor—, o muito que lamento me haver comportado assim no dia de nossas bodas.
Ele tinha empalidecido. Fechou a porta.
—Entendo-o, Eleanor —disse com a voz rouca.
Ela se surpreendeu.
—Como pode entendê-lo?
Peter se adiantou com as bochechas avermelhadas.
—Entendo que Sean é seu meio-irmão. Ouvi dizer que de menina o adorava. Também ouvi que esteve no cárcere durante dois anos, e que ninguém de sua família sabia se estava vivo ou morto. Deve ter sido terrível para todos vocês!
Eleanor não podia acreditar que fosse tão pormenorizado.
—Minha família chegou à conclusão de que tinha morrido, mas eu nunca cheguei a acreditá-lo —sussurrou ela.
—Me alegro muitíssimo de que esteja vivo —declarou Peter— Além disso, sua família insiste em sua inocência. Eu logo serei parte desta família, também, e me aliarei com todos vocês, Eleanor.
Ela não dava crédito que pudesse ser tão gentil. Observou-o, tentando encontrar um olhar de acusação em seus olhos. Não a havia. Queria dizer que ainda pretendia casar-se com ela? Eleanor não queria lhe dizer mais mentiras.
—Quando apareceu Sean, Peter, eu me senti afligida. Até que me disse a verdade, não sabia que o tinham acusado de traição e que o tinham enviado a prisão. Quando soube que as autoridades o estavam procurando para justiçá-lo na forca, tinha que ir com ele. Possivelmente com um pouco de ingenuidade, pensei que devia ajudá-lo a sair do país a qualquer preço.
—Entendo-o. Entretanto, as autoridades não devem saber nunca.
—Como pode dizer que o entende? Por que não me odeia? Te deixei plantado no altar! Ou ao menos, isso parece, Peter. E essa não era minha intenção!
Tomou as mãos.
—Entendo-o porque te quero.
Eleanor ficou petrificada.
—Como vai me querer agora?
—E como não vou te querer?
Ela tirou brandamente suas mãos, e se afastou. Se Peter ficasse furioso e lhe tivesse feito todo tipo de acusações, as coisas teriam sido muito mais fáceis. Ela não sabia o que fazer ante tanta lealdade e tanta confiança, coisas que não merecia absolutamente. Deu-se conta de que teria que lhe dizer toda a verdade.
—Quero a Sean.
Ele, imediatamente, aproximou-se.
—Eleanor! Já sei que quer a todos seus irmãos! Sei que quer a Sean. E enviei meu pai a Londres para ajudar a seu pai para que consiga o perdão para ele.
Durante um instante, Eleanor não pôde compreender tanta generosidade.
—Lorde Henredon é primo do primeiro-ministro.
—Isso mesmo —disse Peter, e voltou a tomar suas mãos— Meu pai fará tudo o que estiver em sua mão para conseguir esse perdão. Tem muitos contatos, e eu sou otimista.
Eleanor teve que sentar-se. Olhou para Peter, tentando compreendê-lo.
—Por que está fazendo isto?
Ele não sorriu.
—Logo será minha esposa. Seus problemas são meus. Se Sean é seu irmão, também é meu irmão. Quando se dará conta de que eu faria tudo por você?
Seus olhos se encheram de lágrimas.
—Ainda deseja se casar comigo, depois de que te deixei plantado no altar?
—Deixou-me por uma causa nobre! —exclamou ele. Depois se ajoelhou ante ela— É uma mulher de honra, Eleanor, de grande lealdade, e eu admiro isso tanto como todo o resto. Confio em você. Como não ia confiar? E farei tudo para que seja minha esposa.
Eleanor notou que lhe ardiam as bochechas por causa da culpa, inclusive embora estivesse tentando entender seu uso das palavras e seu ardor.
—Peter —disse em voz baixa, ainda decidida a contar-lhe tudo—, não deveria…
Ele ficou em pé e a interrompeu.
—Quando recebermos as notícias do perdão de Sean, casaremo-nos imediatamente, mas esta vez sem tanta pompa.
A ela lhe diminuiu o ritmo do coração. Olhou para Peter. Não tinha dúvida de que a queria, mas se perguntou se saberia a verdade sobre seu amor por Sean. Havia algo antinatural em seu desejo de confiar nela e acreditá-la.
—Sean será perdoado, Eleanor. Meu pai nunca fracassa em seus propósitos. Estou seguro de que logo receberemos a notícia e poderemos celebrar nossa união.
Ela ficou imóvel. De repente, a mensagem de Peter tinha ficado muito claro. Tinha enviado a seu poderoso pai a Londres para que ajudasse ao Edward a administrar aquela anistia, e esperava que se celebrasse seu matrimônio quando tudo estivesse resolvido. Naquele momento, ela se sentiu apanhada e manipulada. Entretanto, era aquela a intenção do Peter?
Estava-lhe oferecendo um trato? Estava Peter lhe pedindo sua mão em matrimônio em troca da liberdade e a vida de Sean?
—Eleanor, acreditava que estaria mais satisfeita com a notícia —disse Peter com rigidez.
Ela ficou em pé com um sorriso. Depois de tudo, estava presa, mas aquele era um pequeno preço que pagar pela segurança de Sean.
—Estou muito contente. Peter, obrigado. Obrigado por tudo o que tem feito em nome de meu irmão.
Ele sorriu.
—Não tem que me agradecer, Eleanor. Só tem que me prometer que, esta vez, não me deixará plantado no altar.
—Claro que não —respondeu ela— Só tem que fixar uma nova data, e sua noiva estará ali.
Peter sorriu, e ela viu uma expressão de alívio em seu semblante.
—Então, vamos dar a boa notícia à família.
Eleanor assentiu. E pareceu que ele ficava satisfeito por que seu trato tivesse ficado tacitamente selado.
Eleanor teve que recordar-se continuamente de quão afortunado era aquele giro do destino. Sean ia conseguir sua liberdade, e o único que ela tinha que fazer em troca era casar-se com um nobre que a queria. Encontraram à condessa na sala de música, sentada ao piano, com os dedos no teclado, fazendo um esforço por tocar. Mary elevou o olhar e esboçou um débil sorriso.
—Há esperança —lhe disse Eleanor brandamente, enquanto se sentava junto a sua mãe no banco— O pai de Peter está em Londres, administrando o perdão para Sean. Há uma grande esperança.
A condessa a rodeou com um abraço.
—Estou muito assustada para ter esperança.
Eleanor se mordeu o lábio. Depois olhou para a soleira, onde estava Peter.
—Peter e eu vamos casar-nos no momento em que recebamos a boa notícia.
A condessa olhou ao Peter. Ele sorriu e lhe fez uma reverência.
—Com sua permissão, é obvio, senhora.
Mary se voltou com desconcerto para sua filha.
—Querida?
Eleanor sorriu para ela com uma expressão forçada.
—Queria te dar a noticia mamãe-disse e lhe beijou a bochecha.Depois ficou em pé—Agora vou voltar para o meu quarto descançar.
Mary assentiu, aparentemente sem palavras.
No corredor Eleanor estava a ponto de se desculpar ante a Peter, quando ouviu agitação no vestíbulo.A voz de autoridade de Tyrell ressonou e o coração de Eleanor se acelerou. Peter a tirou do braço.
—Já que seu pai não está em Adare, não te parece que possivelmente deveríamos informar a seu irmão o que pensamos fazer?
Eleanor apenas o ouviu. Estaria bem Sean? O teria visto Tyrell e teria podido falar com ele? E Reed? Ela correu para ambos quando se dirigiram para o vestíbulo.
Tyrell estava entrando na biblioteca quando o encontraram.
—Ty! —exclamou Eleanor, correndo atrás dele.
Ele se voltou. Tirou a jaqueta, e tinha as calças e as botas cheias de barro e úmidas. Inclusive a camisa tinha salpicaduras. Ele olhou para Eleanor e seu prometido.
—Por que não está descansando em seu quarto?
A ela lhe caiu a alma aos pés. Tyrell estava terrivelmente sério.
—Não posso descansar. Estou muito emocionada —disse com um sorriso falso— Peter perdoou meu comportamento e vamos nos casar muito em breve.
A expressão de Tyrell não se alterou. Manteve o olhar de sua irmã, e ela soube que ele suspeitava de tudo.
—Alegro-me —disse— Peter, eu adoraria tomar algo com você para celebrá-lo. Eleanor, se nos desculpar?
Ela interveio.
—Ty, há certas coisas das que devemos falar —disse.
Peter fez uma reverência.
—Tome o tempo que precise —murmurou, e saiu da biblioteca.
—O que ocorreu? Como está Sean? Viu-o?
—Fala como uma verdadeira noiva —disse ele com sarcasmo.
Depois se deu a volta e se serviu um copo de uísque.
—Não se atreva a me repreender pelo amor que sinto! Lamento muito não poder querer ao Peter, seriamente. Está bem Sean?
—Está tão bem como cabe esperar, acredito —respondeu Tyrell— O que lhe ocorreu, Eleanor?
—Esteve dois anos encerrado em um buraco onde não podia ver, ouvir nem pensar com ninguém. Foi como se estivesse enterrado em vida. E antes, torturaram-no, açoitaram-no. E antes… me disse que os homens de Reed violaram e assassinaram a sua mulher, e que seu filho morreu no incêndio que provocaram em sua casa. Tudo para castigá-lo por seus supostos crimes. Está destroçado pela culpa.
—Está irreconhecível —disse Tyrell lentamente, está de causar pena.
—Deveria havê-lo visto faz uma semana, quando mau podia pronunciar uma frase coerente. Deveria ver as cicatrizes que tem nas costas. E deveria ter visto seus olhos, escuros, vazios e cheios de desespero.
Tyrell a olhou fixamente. Depois de uma pausa, disse:
—Tomou a decisão correta com respeito ao Sinclair.
Eleanor teve que conter as lágrimas.
—Não tinha escolha. Fiz um trato com o demônio: me casar com um homem ao que não quero para poder conseguir a liberdade do homem que amo.
Tyrell deixou o copo, já vazio, sobre uma mesa, e a tomou pelo ombro.
—Ele mudou, e não para melhor. Sempre quererei a meu meio-irmão, mas não é o melhor homem para você, Eleanor. Só pode causar dor a uma mulher, e não acredito que seja capaz de te dar o grande amor que desejas.
Eleanor temeu que Tyrell tivesse razão, mas sacudiu a cabeça e deixou que seu coração falasse por ela.
—Justo antes de que o capturassem de novo, Sean tinha começado a ser ele mesmo. Tinha começado a sorrir. Começou a falar do passado e a compartilhar seus demônios comigo. Sei que se tivesse a oportunidade de estar com ele, poderia ajudá-lo a recuperar-se. Mas não vou ter essa oportunidade; vou casar-me com Peter, e o pai de Peter vai obter o perdão para Sean. E Sean ficará sozinho com suas cicatrizes e suas feridas —disse, reprimindo um soluço.
—Não estará sozinho —respondeu Tyrell com a voz rouca— Devlin e Virginia o ajudarão. Todos o faremos.
Não, pensou ela, insuportavelmente triste. Não o conseguiriam, porque ela estaria em Chatton, sendo a esposa leal e carinhosa de outro homem. Deu-se a volta para que seu irmão não pudesse ver a profunda dor que sentia.
—É o melhor —disse Tyrell— Eleanor, eu teria medo se ficasse com o homem no que se converteu.
Eleanor se girou para ele como um raio.
—Equivoca-se! Sean me quer, e daria sua vida por me proteger.
—A vida com ele seria escura e triste, e ele só te faria mal. Deve acreditar em mim.
Não lhe disse que daria algo por compartilhar com Sean aquela vida escura, embora lhe fizesse mal.
—Estão o tratando bem?
Tyrell assentiu.
—Entretanto, acredito que seria melhor que não estivesse encerrado durante muito tempo. Não acredito que possa dirigir bem o fechamento, mentalmente.
Ela estremeceu de medo.
—Preciso vê-lo.
—Não.
—Não estou pedindo a sua permissão. Vou vê-lo embora tenha que ir sozinha. E depois do que sofri à mãos do coronel Reed, é seu dever assegurar-se de que posso visitar Sean com segurança.
—Porá em perigo seu futuro com Sinclair! —exclamou Tyrell.
—Não. Já menti suficiente, e direi ao Peter que devo visitar Sean.
E Tyrell capitulou.
—Está bem. Te levarei amanhã, depois do café da manhã.
Eleanor tinha pedido para Tyrell que a esperasse fora. Enquanto um guarda a conduzia até a cela de Sean, ela estava ansiosa por vê-lo, mas também temerosa do que pudesse encontrar. Quando se aproximou, viu que ele estava estendido em um camastro no chão, e durante um momento, embora era meio-dia, acreditou que estava dormindo. Entretanto, fazia um dia ensolarado e brilhante, como se queria compensar a garoa do dia anterior, e a luz do dia se derramava dentro da cela. Sean tinha os olhos abertos e estava olhando ao teto, com a respiração entrecortada. Elle correu para sua cela.
—Sean!
De repente, ele a olhou e ficou em pé.
—Elle —ofegou.
Imediatamente, Eleanor viu que tinha cortes na frente e no rosto.
—Por favor, me deixe entrar —disse ao guarda, tentando conter o medo que sentia.
—Sinto muito, mas ninguém pode entrar —respondeu o soldado.
—Está ferido! —gritou ela com fúria— Está doente!
—Está louco —disse o soldado— Louco de atar.
Depois, afastou-se para a sala de espera. A porta se fechou atrás deles.
—Tem razão —disse Sean— Não deveria estar aqui.
Eleanor se agarrou as grades. Entendia seu pânico, e queria acalmá-lo.
—Sean, tudo vai sair bem. Tyrell está lá fora, e em um ou dois dias, será livre.
Seu olhar lhe deu a entender que não acreditava.
—Não deveria ter vindo. Viu ao Reed?
—Não, não o vi. Recebeu-nos Brawley. Tenho boas notícias.
—Que notícias?
—O pai do Peter é parente do primeiro-ministro. Também foi a Londres pedir o perdão para você. Todos somos muito otimistas, Sean.
Sean ficou olhando-a com uma expressão de dureza. Naquele momento, ela soube que entendia o que tinha feito.
—Não tenho escolha —sussurrou— É um pacto tácito, mas um pacto ao fim e ao cabo. Seu pai está lutando por conseguir que lhe liberem, e quando ele voltar, casaremo-nos.
—Bem —disse ele. Entretanto, sua respiração se fez dificultosa outra vez.
—Não! Respira fundo, Sean! —pediu-lhe ela— Te quero muitíssimo. Faria tudo para te ver livre.
Ele elevou uma mão tremente.
—Isto é o melhor. É o que eu queria. Nunca terminará como Peg…
Ela não podia suportar que ele seguisse culpando-se por sua morte.
—Você não a matou. Casou-se com ela, o qual é muito diferente. Reed ordenou a seus homens que a matassem. Reed a assassinou.
—Foi minha culpa. É que não o entende? Se eu não tivesse casado com ela, ela não teria tido que pagar pelo que eu fiz. Supunha-se que devia protegê-la, supunha que devia amá-la… e não fiz nada disso!
—Teria-a protegido se tivesse estado ali aquela noite. Sei porque te conheço —gritou Eleanor.
Ele se retirou.
—Nem sequer posso ver já sua face. Não me lembro de como era.
Naquele instante, ela sentiu toda sua dor e toda sua culpa.
—OH, Sean. Tem que deixar de se torturar. Se ela te queria, nunca o teria culpado do que ocorreu, e estou segura de que te queria muito.
Sean ficou olhando, e por fim, começou a chorar. Eleanor não sabia o que fazer, porque nunca tinha visto um homem chorar assim. Assim, esperou.
Quando ele falou de novo, tinha a voz rouca.
—Ela me olhava com tanta confusão… não tinha que me perguntar isso mas eu sabia… não podia entender por que não a queria.
Eleanor não sabia o que dizer.
—Ela foi muito afortunada por ser sua esposa. Estou segura de que se sentia assim.
—Possivelmente eu pudesse esquecer, alguma vez, o que fiz a Peg… mas nunca poderei esquecer o que fiz ao Michael! Deus, Elle!
Eleanor ficou muito tensa. Sean só tinha falado uma vez sobre o Michael. De repente, ela se deu conta de que ele não era capaz de falar do menino. E soube que Michael era o motivo principal da tortura de Sean.
—Quantos anos tinha?
—Seis.
—De que cor tinha o cabelo?
—Ruivo. Tinha o cabelo vermelho como o entardecer—lhe disse, sorrindo entre as lágrimas— Era um arteiro, Elle… sempre estava metendo-se em confusões… mas eu sabia que só queria minha atenção.
Ela sorriu, secando-os olhos.
—Adorava-te, verdade?
Sean assentiu, incapaz de dizer uma palavra.
—Pode contar-me isso Sean. Conte-me o que lhe ocorreu.
—Não sei… ninguém sabe. Um menino doce, inocente… provavelmente morreu no incêndio, me chamando para que o salvasse, me esperando… e eu não cheguei.
Eleanor colocou a mão por entre as grades e tomou-lhe a mão. E então, ele estava apoiando-se contra ela, chorando de dor, emitindo uns terríveis sons que lhe saíam diretamente não do peito, mas sim de sua alma escura. Eleanor conseguiu deslizar os braços entre as grades e o abraçou.
—Sinto muito —sussurrou.
Sean seguiu chorando, obstinado a ela.
E então, quando finalmente cessaram as lágrimas, ficou imóvel. Deixou que o abraçasse durante um momento mais, antes de inspirar entrecortadamente e afastar-se. Seus olhares se cruzaram.
—Era um bom menino. Eu queria ser seu pai —disse-lhe Sean.
—Sei.
—Falhei aos dois, a Peg e ao Michael.
—Você não falhou a ninguém. Tentou deter o levantamento, levou a sua família, fugiu de Kilvore, e não podia saber que os soldados se vingariam em sua família no povoado do lado.
Ele suspirou.
—Não deixo de pensar em muitas coisas… se eu não tivesse estado em outro incêndio aquele dia, se eu não tivesse me casado com Peg, se tivesse conseguido deter os camponeses e que não atacassem o imóvel de Darby… Elle… estou cansado de pensar no que tivesse podido ocorrer. Estou cansado de pensar nestes quatro anos.
Ela se sentiu aliviada.
—É lógico. Sean, sei que queria castigar a si mesmo, e o conseguiste. Não pode voltar atrás no tempo e trocar o que ocorreu. Você é um homem bom. Por que acredita que Peg te queria? por que acredita que Michael queria ser seu filho? Porque os dois sabiam quão nobre é.
Sean emitiu um grunhido afogado.
—Eu nunca pensei em me casar com ela, Elle. Disse-me que estava grávida uns dias depois do massacre. Eu estava sob uma impressão muito forte, ela tinha perdido a seu pai, e de repente, estávamos nos casando.
—Entendo-o.
—Seriamente? Entende de verdade, Eleanor? Me perdou?
Elle sorriu-lhe, recordando a angústia que lhe tinha causado sua traição.
—Entendo-o. Entendo-o completamente porque te conheço muito bem, e essa é a razão pela que te perdoei.
Ele sorriu com alívio.
—Pensei em você aquele dia. Estava muito incômodo. Tinha muitas lembranças; foi uma menina impossível. Justo antes de partir de Askeaton, não podia identificar a aquela menina com a mulher em que se tinha convertido. Recorda a noite em que parti?
—Nunca a esquecerei. Tentei te beijar e você ficou horrorizado —disse ela, e se ruborizou.
—Tinha medo —lhe explicou ele.
—Não importa.
—Seriamente?
—Estamos de acordo em que não podemos voltar atrás.
—Mas eu te falhei, não? Você confiava em mim, e eu te deixei. Falhei.
—Não me falhou. Prometeu que voltaria, e o fez. Sempre confiarei em você, Sean.
—Aquela promessa significou coisas diferentes para cada um de nós —replicou Sean.
Elle se sentiu tensa, porque sabia o que lhe ia dizer.
—Me alegro de que vá casar-se com o Sinclair.
Aquelas palavras nunca tivesse querido as ouvir.
—Não.
—Ele te cuidará porque te quer. Antes, essa era minha responsabilidade; agora, será a sua.
—Parece que tudo terminou! Seguiremos sendo amigos! —exclamou ela— Isso nunca mudadrá!
Sean lançou-lhe um olhar estranho.
—Não acredito que possamos seguir sendo amigos.
Ela gritou sem podê-lo evitar, espantada.
—Pode ser que me converta na esposa de Sinclair, mas sempre te quererei exatamente como te quero agora. Sempre será meu melhor amigo, sempre será aquele a quem acode quando estiver necessitada. Você é minha alma, meu coração!
Ele sacudiu a cabeça, como se estivesse tentando conter as lágrimas. Finalmente, disse:
—Tem que continuar.
—E me afastar de você? Alguma vez. O que fará quando for um homem livre?
—Se me liberarem, partirei para a América.
—Não. Voltará para casa, a Askeaton; esse é o lugar onde tem que estar.
—Estando você e seu marido a uns quantos quilômetros de Adare? Não, este já não é meu lugar.
—Claro que sim! Não terminamos todas as habitações! Posso ir ajudá-lo, de vez em quando, quando Peter e eu vamos de visita a Adare, no verão.
—Não pode se casar com ele e ter a mim também.
—Você é meu melhor amigo! Claro que posso!
—Elle, deixa-o! Tudo vai mudar. Vai ser a esposa de outro homem. E não importará onde eu esteja, ou o que esteja fazendo, porque será feliz. Sei que terá esquecido disto… de nós.
Ela estava horrorizada.
—Como pode pensar semelhante coisa? Me esquecer de nós? Eu nunca me esquecerei… Sean, prometo-te que quando for livre…
—Não! Não!
Eleanor o olhou, estupefata.
—Não me peça que me esqueça de você —rogou-lhe desesperadamente.
—Não chore! —disse ele— Por favor, isto é o melhor.
—O melhor é que eu cumpra meu trato com Peter e me case com ele. Estou prometida. Mas também é melhor que você permaneça em sua casa, onde está a gente que te quer; e nós seguiremos sendo bons amigos.
Sean riu com amargura e sacudiu a cabeça.
—Este debate é absurdo, porque provavelmente me enforcarão. Deveria ir.
A ela lhe passou pela cabeça que aquele era o final, então, porque ele não via a possibilidade de continuar com sua relação. Sean estava completamente decidido, e Eleanor sentiu pânico. Não podia suportar perder a Sean daquele modo.
—Não posso ir. Não posso ir assim!
—Me alegro por você… Eleanor.
—Não! Sou Elle… sempre serei Elle!
Ele respirou profunda, lentamente.
—Vai ter uma boa vida. Terá filhos, possivelmente tenha uma menina descarada como você foi de pequena. Me alegro muito por você.
Ela negou com a cabeça.
—Não vou partir ainda. Quando voltaremos a nos ver?
—Sabe que essa não é boa idéia. Sabe que isto é um adeus.
Ela soluçou, aferrando-se as barras de ferro.
E Sean se deu a volta enquanto chamava o guarda.
Capítulo 20
—Querida?
Eleanor estava na estufa de sua mãe, com umas luvas de couro e uma pá entre as mãos. Embora fazia muito frio e estava garoando, na estufa fazia calor. Eleanor nunca tinha sentido inclinação pelas mudas, até no mês anterior, mas a estufa da condessa se converteu em seu refúgio, onde podia trabalhar em uma atmosfera cálida e úmida, isolada, com a única companhia de seu coração intumescido.
—Querida? —disse Peter de novo, hesitante.
Eleanor ficou quieta. Não se voltou para ele, consciente de que Peter estava na entrada da estufa. Tinham passado trinta e dois dias e seis horas desde que tinha visto Sean em Kilraven Hill. Naquele tempo, seu prometido a tinha tratado com muito respeito e cautela, como se tivesse medo de que ela pudesse romper-se se ele dizia a palavra equivocada ou usava o tom equivocado. Eleanor passava a maior parte do tempo no estufa, e quando o tempo o permitia, colocava uma velha camisa de Sean e umas calças e saía a cavalgar pelas colinas. Dormia muito, com aquela camisa de Sean entre os braços. Não tinham tido notícias de seu pai, nem tampouco de lorde Henredon.
Eleanor respirou profundamente, sorriu com firmeza e se voltou para Peter.
—Olá. Tornei-me a esquecer o tempo? —perguntou-lhe.
Entretanto, sabia perfeitamente que hora era. Levava um pequeno relógio de bolso no interior do sutiã, e em realidade, fazia trinta e dois dias, seis horas e vinte minutos desde que tinha visto por última vez a Sean.
Peter sorriu. Entrou na estufa, fechou a porta e sorriu.
—Vou para Limerick com o Rex. Necessita de algo?
—Algo para ler seria maravilhoso —respondeu ela.
Peter assentiu, observando-a com atenção.
—Pensava que possivelmente quisesse outro livro —disse ele, com um esforço evidente por parecer alegre— Como vai semeia?
—Muito bem —respondeu Eleanor, assinalando a mesa de trabalho que havia detrás de si— Tome o tempo que queira, Peter, e desfruta na cidade —lhe disse.
—Pararemos ali para tomar um jantar ligeiro —lhe comentou ele.
Com um gesto vacilante, tomou a mão enluvada como se queria levar-lhe aos lábios. Eleanor ficou tensa, mas em seguida se relaxou, posto que Peter não podia lhe beijar a mão. A luva estava cheia de terra.
Peter a olhou aos olhos e lhe beijou ligeiramente a bochecha.
—Eleanor, odeio ver-te triste. Possivelmente o fato de estar aqui esperando a conhecer o destino de seu irmão não seja a melhor ideia. Possivelmente devêssemos zarpar para Chatton. Estou seguro de que ao Cliff não importaria nos levar a Inglaterra.
Cliff tinha ficado no país; seu navio estava ancorado no porto de Limerick. Eleanor estava segura de que não partiria até que Sean tivesse sido perdoado, como também estava segura de que pensava tirar Sean do cárcere e levar-lhe do país se aquele perdão era negado. De fato, tinha passado várias noites em Askeaton com Devlin e Rex, e sabia que se formou uma conspiração para resolver o pior dos problemas. É obvio, Devlin tinha partido pouco depois da captura de Sean; ele também estava em Londres, procurando apoio para a liberação de seu irmão no Almirantado.
—Não posso partir —disse Eleanor. Nem sequer tentou sorrir naquela ocasião— Se seu irmão estivesse na mesma situação de perigo em que se encontra Sean, você não o abandonaria.
Peter tinha uma expressão grave.
—Tem razão, é obvio. Mas isto está sendo muito comprido. Só recebemos uma breve carta de seu pai, em que dizia que esperava o melhor. Estou começando a me preocupar, querida.
Eleanor retirou a mão e se abraçou, sem preocupar-se com a terra.
—Os esforços de seu pai e do meu não fracassarão —disse com convicção— E além disso, Devlin também está em Londres, e ele segue sendo um herói naval.
—Sei que está tentando ser valente, mas me rompe o coração ve-la tão triste, Eleanor.
Peter não podia saber a causa real de sua dor.
—Logo teremos notícias —insistiu ela— Muito em breve. Estou segura.
—É tão valente! —exclamou ele— Ao menos, Cliff encontrou ao Flynn. Ele é nossa testemunha ante os fatos daquela noite terrível.
Eleanor assentiu.
Um Cliff triunfante tinha levado ao Flynn a Adare duas semanas antes. Imediatamente, enviaram uma mensagem ao conde para avisá-lo.
—Estou segura de que meu pai chegará em qualquer momento com boas notícias —disse.
Peter a tomou pelo ombro, e ela se viu obrigada a olhá-lo aos olhos.
—Quero lhe alegrar —lhe disse ele— Como posso consegui-lo?
—Traga-me uma novela nova —respondeu ela com um sorriso— Sabe que isso me alegrará muito.
—Está bem. Então, nos veremo mais tarde.
Eleanor titubeou, e depois, deixou-se levar por um impulso.
—Peter!
Surpreso, ele se voltou para ela.
—Obrigado por sua amabilidade e sua compreensão. Sinto não ser mais divertida.
Então, Peter tomou-a entre seus braços. Surpreendida, Eleanor ficou rígida, porque não se abraçaram desde sua volta.
—Não quero que dissimule para me fazer feliz —lhe disse ele— Só quero ver como lhe brilham os olhos de alegria outra vez.
—Voltarei a ser a mesma, seriamente. Só preciso saber que Sean será um homem livre.
—Nossos pais não falharão —respondeu ele— Eleanor?
Eleanor viu seu olhar e soube o que ia ocorrer. Era inevitável, depois de tudo. Peter e ela se casariam assim que obtiveram o perdão de Sean, e ela deveria compartilhar o leito de seu marido.
Peter a beijou com ligeireza; Eleanor conseguiu sorrir e lhe devolver ao Peter um beijo suave, inseguro.
—Não sei se deveria ser tão atrevido agora —sussurrou ele.
—Se quer ser atrevido, está em seu direito. Estamos prometidos —disse Eleanor com firmeza.
Depois fechou os olhos e esperou outro beijo. Naquela ocasião, correspondeu-o com mais ardor.
Finalmente, Peter se afastou, com um olhar confuso e apaixonado. Acariciou-lhe a bochecha e lhe disse:
—É preciosa, inclusive quando tem as mãos manchadas de terra. Até a noite, então.
Eleanor assentiu sem deixar de sorrir. Depois, ele se deu a volta e saiu do estufa. Então, ouviu um suave ruído, não longe da porta de entrada, mas a pouca distância dela. Voltou-se com os olhos muito abertos, e viu Cliff detrás de uma palmeira, observando-a atentamente.
Eleanor não entendia como tinha podido entrar sem que nem Peter nem ela o ouvissem; devia ter entrado pela porta traseira. Seu irmão caminhou para ela, e Eleanor lhe aproximou ansiosamente.
Todos os dias, alguém da família ia ao Kilraven visitar Sean, com a única exceção dela mesma. Não podia ir, porque se o fazia, não receberia uma bem-vinda por parte de Sean. Todos seus irmãos lhe contavam com sinceridade como estava Sean quando ela perguntava. É obvio, ela só o fazia em momentos de privacidade. Naquele instante, retorceu-se as mãos.
—Como vai?
—E você? Está bem? —perguntou-lhe Cliff, arqueando as sobrancelhas.
—Não acaba de visitar Sean?
—Não. Hoje foram vê-lo a condessa e Lizzie, e ainda não retornaram.
Sentiu uma profunda decepção; entretanto, nunca havia nada novo que contar; Sean continuava sentindo ansiedade e brotos ocasionais de claustrofobia, mas aparentemente, estava aprendendo a controlar melhor aqueles momentos. Seus irmãos diziam a Eleanor que estava animado. Eleanor estava segura de que todos mentiam e de que Sean estava resignado a acabar na forca.
Cliff posou uma mão sobre o ombro.
—Se não puder beijar a seu prometido, como vai ter filhos com ele? —perguntou-lhe em tom afetuoso.
Ela se ruborizou.
—Acredito que isso se faz todo o tempo.
—Então, agora é uma mulher do mundo?
—Parece-me que todo mundo o suspeita.
Ele se ruborizou, porque todos tinham passado por cima cuidadosamente o alcance da relação de Eleanor com Sean; mas ao Cliff lhe obscureceu o olhar.
—Ele admitiu a verdade ante mim, Eleanor. Estive a ponto de estrangulá-lo.
—Eu não sou a que necessita que me defenda. É Sean.
—Sua honra sim necessita defesa, e sabe tão bem como eu. Este não é o tema do que eu vinha a te falar, mas possivelmente não haja melhor momento que este.
—Não me arrependo, Cliff.Dei a Sean meu coração faz muito tempo, e nunca o recuperarei. Sei que desaprova o que ocorreu em Cork, mas não me importa. Se estivesse na mesma situação, não trocaria minha forma de atuar.
Ele se cruzou de braços.
—Está grávida?
—Não acredito —mentiu ela.
A verdade era que não tinha tido o período ainda. Eleanor não se atreveu a enfrentar-se à possibilidade de que pudesse estar grávida de Sean. Já tinha suficiente preocupando-se com seu destino.
Cliff a olhava fixamente.
Eleanor se ruborizou e se deu a volta, mas ele a tirou do braço.
—Há alguma possibilidade de que esteja grávida de Sean? —perguntou-lhe com firmeza.
Ela avermelhou por completo, e ele entendeu qual era a resposta. Abriu os olhos desorbitadamente.
—Pensaste bem em tudo isto? —perguntou-lhe com incredulidade.
—Não posso pensá-lo agora —disse ela.
Entretanto, não tinha que pensá-lo conscientemente. Sabia que seria muito feliz se podia ter um filho de Sean. E também sabia que, se estava grávida, diria ao Peter a verdade. Não sabia o que ocorreria depois. Duvidava que Peter fosse capaz de lhe perdoar semelhante ofensa. Ele não quereria criar ao filho de outro homem como próprio. Por outra parte, ele a queria, e tinha o espírito mais generoso que Eleanor tivesse conhecido. Quanto a Sean, tinha-lhe deixado as coisas claras: se o liberavam partiria. E se havia um menino, queria que o criasse Peter.
—Será melhor que comece a pensá-lo. - disse Cliff.
E, de repente, Eleanor soube que tinha notícias. Então, agarrou-o pela manga.
—O que ocorre? Por que veio? O que veio me dizer?
Ele a abraçou para sujeitá-la.
—Tenho notícias, Eleanor. Avistou-se o navio de Devlin na costa, e tinha as bandeiras içadas. O conde está com ele, e têm o perdão para Sean.
Sean já não tinha medo do sonho. Desde que o tinham prendido aquela última vez, o sonho se converteu em seu aliado, porque de repente podia dormir profundamente e, durante a maior parte do tempo, sem sonhos. E quando realmente sonhava, voava a lugares do passado, onde havia calidez e calma, a lugares onde queria ir.
Eram dias preguiçosos do verão, nos que perseguia a Eleanor pela erva de Adare, dias cheios de risadas e esperança; noites em Askeaton, noites nas que Elle e ele estavam tão cansados depois de trabalhar tanto que caíam rendidos, cada um em sua cama; havia jantares e festas quando ela vinha para casa de Londres. Em seus sonhos, ele se maravilhava de sua beleza e não entendia como podia ter estado tão cego durante tanto tempo. Também havia momentos de amor, durante os dias que tinham passado em Cork, momentos selvagens, quentes, intensos…
—O’Neill!
Sean ouviu seu nome, mas se negou a responder.
—O’Neill —repetiu aquela voz.
Sean cedeu. Incorporou-se, deixando a um lado os sonhos de Elle e de seu lar, e se enfrentou ao capitão Brawley, que tinha entrado em sua cela. Devlin estava com ele. Levava um mês sem ver seu irmão, porque Devlin tinha ido a Londres a suplicar por sua vida. Gravemente, Sean ficou em pé; deu-se conta de que tinha chegado o momento da verdade. Olhou a seu irmão, e Devlin lhe lançou um sorriso resplandecente.
OH, Deus, seria possível que estivesse livre?
—Concederam-lhe o perdão —disse Brawley.
Sean não podia acreditá-lo.
—É oficial. É você um homem livre —disse-lhe o jovem oficial, e lhe estreitou a mão.
Aniquilado, Sean olhou ao Devlin.
—É verdade —lhe confirmou seu irmão, e se fundiu em um abraço com ele— Parabéns.
Era livre. Começou a assimilar o enorme sorriso de Devlin e a expressão de satisfação de Brawley. Era livre; não iriam pendurá-lo. Iria viver.
Tinha que contar a Elle!
—Todo mundo veio buscá-lo —disse-lhe Devlin, lhe dando golpes nas costas— Esta noite o celebraremos!
Sean não saía de seu assombro. De repente, estava saindo da cela com seu irmão, que não o soltava, como se soubesse que estava muito impressionado para conduzir-se por si mesmo. Assim que saiu à sala que havia fora do módulo do cárcere, viu sua mãe e ao conde, ambos com um sorriso nos lábios. Depois viu Tyrell e a Lizzie, a Virginia e ao Rex, e ao Cliff. Todos sorriam, todos riam, todos estavam felizes. E depois, Sean se deu conta de que Elle não estava ali.
Elle não tinha ido.
Com um grito de alegria, Mary o abraçou, chorando de alívio. Ele rodeou a sua mãe com os braços, assombrado por que Elle não estivesse ali. Entretanto, o choque estava amortecendo-se; a realidade fria estava ocupando seu lugar. Claro que não tinha ido; estava em seu lugar, com Sinclair. Teriam se casado já? Ele tinha tido bom cuidado, durante aquele último mês, de não perguntar por ela.
—Sean, rezei muito para que chegasse este dia —disse-lhe a condessa— Está tão magro! Vai vir para casa, a Adare?
Sentiu uma sacudida no coração. Estendeu a mão ao conde, mas seu padrasto o puxou para abraçá-lo com força.
—Bem-vindo a casa, filho —lhe disse, com os olhos úmidos.
—Obrigado, pai. Obrigado pelo que tem feito.
O conde o puxou a mão e não a soltou.
—É meu filho. Daria a vida por você, Sean; mas não teria tido êxito sem o Henredon. Em Londres fizeram ouvidos surdos a minhas súplicas, ao princípio —lhe disse, olhando-o aos olhos.
Sean entendeu. O pai do Peter tinha sido chave para conseguir aquela liberação. É obvio que tinha feito tudo que estava em sua mão, porque Eleanor cumpriria sua parte do trato.
—Então —disse ao conde—, tenho uma grande dívida com ele e com seu filho.
—Sim —disse o conde— Entretanto, também deve a si mesmo uma vida de alegria.
Sean sabia que em sua vida não haveria felicidade sem Elle. Mas assim deviam ser as coisas. Deu-se a volta para encarar o seu irmão mais velho
Tyrell deu um passo adiante.
—Já tivemos suficiente tristeza nesta família. Acredito que terá que celebrar isto por todo o alto —disse com um sorriso— Podemos fazer uma grande festa nas férias.
Rex se aproximou coxeando.
—Bem-vindo —disse a Sean, abraçando-o.
Cliff lhe deu umas palmadas nas costas.
—Foste perdoado —lhe murmurou ao ouvido.
Assombrado, Sean o olhou.
—Mas tem que se reunir com a Eleanor —acrescentou suave mas firmemente, com um significado que só ia dirigido a Sean.
Sean não soube com segurança o que queria lhe dizer seu irmão. Então, Virginia se aproximou também a saudá-lo, e por fim pôde conhecer a esposa de Tyrell.
Sean sorriu e olhou para Devlin. Seu irmão disse:
—Acredito que possivelmente Sean precise passar uma noite tranqüila em Askeaton. E eu darei uma festa para celebrar sua volta em uns dias. Mãe, por que não vem conosco? Edward? Possivelmente possam passar um ou dois dias em minha casa.
—Encantada —respondeu Mary, sorrindo.
Deu a mão ao Edward, que assentiu.
Sean estava aliviado. Deveria celebrá-lo, mas não queria. Sean olhou além dos membros de sua família, para as janelas abertas. Era novembro, e o dia era cinza e pálido; uns quantos soldados estavam caminhando pelo pátio. Entretanto, Elle não estava ali fora, esperando-o. Claro que ele não esperava que tivesse acudido; ficou com o Sinclair, e isso era o que ele queria em realidade.
Sean se perguntou quanto tempo poderia seguir mentindo a si mesmo.
Ao final, houve celebração. Consumiram-se numerosas garrafas de vinho da Borgonha, e depois, licores, mas já tinha passado a meia-noite, e os condes, Devlin e sua esposa se retiraram. Sean estava sentado a sós, no salão, frente à chaminé; observava ausentemente as chamas.
Por fim estava começando a acreditar de verdade que era um homem livre, e que o horror dos dois anos passados tinha terminado. Entretanto, não encontrava a tranqüilidade nem o alívio. Só sentia uma pena profunda e escura, e um agudo arrependimento. Precisava ver Elle uma última vez, mas tinha medo do que podia acontecer se se encontrassem novamente.
Devia a vida ao Sinclair; ele devia ceder a Elle a aquele homem, também.
Sinclair e Henredon eram quem lhe tinha salvado a vida. Ele não podia ir ver Elle e lhe dizer o muito que tinha saudades, e o muito que a queria. Inteirou-se de que se casariam em poucos dias, durante o fim de semana, e ele sabia que tinha que partir do condado antes de que aquilo acontecesse. Assim, nem sequer poderia lhe dizer adeus.
Não. Já se tinham despedido, um mês antes, na cela.
«Nunca te esquecerei! Sempre será meu melhor amigo… você é meu coração, minha alma!».
A imagem de Elle lhe encheu a mente. Sean tinha muitas coisas que lhe dizer. Queria ter uma oportunidade mais para vê-la. Naquela ocasião, diria-lhe algo mais que adeus; diria-lhe que ela era sua outra metade, que era sua melhor metade, que a queria e que sempre a tinha querido, e que sua vida sempre estaria sombria sem ela.
Ficou em pé, tomou uma garrafa de brandy vazia e a estampou contra a parede. Não podia ir vê-la por que não confiava em si mesmo. Possivelmente voltasse a roubar à noiva, e ele era um homem honrável, que queria fazer o que era correto.
Partiria de Askeaton, e naquela ocasião, também deixaria a Irlanda, para que ela pudesse ser livre. Com o tempo, Sinclair a faria feliz, por muito que ela o negasse.
—Sean?
Sean se voltou para ouvir a voz de seu irmão. Devlin o estava olhando com curiosidade.
—Não posso dormir.
Devlin entrou na sala e, como de costume, nada lhe escapou. Olhou a garrafa quebrada e depois disse a seu irmão:
—Agora é um homem livre. É evidente que está apaixonado pela Eleanor. Por que está fazendo isto?
Sean emitiu um som áspero.
—Ela fez um pacto com o Sinclair. Seu matrimônio por minha vida.
E, enquanto olhava para Devlin, pensou que tinha razão. Por que estava fazendo aquilo? Não podia suportar a idéia de que Eleanor se casasse com outro homem. Ele era o herói de Elle, e ninguém mais poderia ter aquele privilégio.
—Rompa-o. - disse Devlin brandamente.
Sean não o ouviu; já se dirigia para a porta. Tinha chegado o momento de que Sinclair e ele tivessem uma conversa. Tinha uma grande dívida com aquele homem, mas não podia lhe ceder o amor de sua vida. Sean tinha um futuro, e queria que Elle formasse parte dele.
—Toma uma carruagem —lhe disse Devlin— As estradas estão molhadas.
Sean não respondeu, já se tinha partido.
Capítulo 21
Sean tinha podido ir a Adare sempre que desejava. Depois de cavalgar como um louco na escuridão, entrou na casa como se ainda vivesse ali. Teve uma rápida conversação com o lacaio da porta, por quem soube que Sinclair estava na casa. Sentiu uma injeção de adrenalina enquanto caminhava pela casa dormida. A conversação que desejava manter com o Sinclair não podia esperar até o dia seguinte. Sean se dirigiu apressadamente para esta asa e bateu na porta do quarto de Sinclair.
Passou um breve momento e a porta se abriu. Peter Sinclair estava sonolento, confuso. Não se conheciam, e Sinclair despertou imediatamente.
—Desculpe? Há um incêndio?
Sean sabia que não devia desprezar a aquele homem e, em realidade, não o desprezava. Entretanto, estava ciumento, e o sentia no tutano dos ossos.
—Sinclair, isto não pode esperar. Devemos falar.
A expressão de Sinclair se endureceu. Olhou-o fixamente e passou um instante antes de que perguntasse:
—É você O’Neill?
—Sim.
—Espere cinco minutos, então —disse, e entrou em seu quarto para vestir-se.
Sean aguardou no corredor, passeando-se de um lado a outro com os punhos apertados, consciente de que sua vida com Elle estava em jogo. A porta de Sinclair se abriu de novo e o prometido de Elle apareceu com umas calças e uma bata. Seus olhares se cruzaram.
Sean se recordou a si mesmo que aquele homem e seu pai lhe tinham salvado a vida.
—Tenho uma dívida muito grande com você e com seu pai —disse sem rodeios— E não há maneira de que possa pagar-lhe.
Sem afastar a vista dele, Sinclair se meteu as mãos nos bolsos da bata.
—Faria tudo por minha noiva —disse— Não tem que me pagar nada.
—Seriamente? —perguntou Sean— Por que não?
—Logo seremos irmãos —disse Sinclair— Assim é a meu ver. E, é obvio, eu tenho que fazer todo o possível para que não justicem a meu irmão.
—E, se nos convertermos em irmãos por meio de um matrimônio, também seremos amigos?
—É obvio. Não tinha que ter vindo esta noite, O’Neill. Se desejava me agradecer por meus esforços em seu nome, podia ter esperado até manhã.
—Vim a lhe agradecer, sim. Mas há mais. Todo mundo o tem em grande estima, Sinclair. Hão-me dito que é um cavalheiro, e um bom partido para Elle. Sei que a quer. E sei também que pode lhe dar todas as comodidades que ela se merece, por não mencionar o título de nobreza. Eu apoiei este matrimônio. Também tenho uma grande opinião de você.
Sinclair ficou rígido.
—Falou em tempo passado —disse lentamente.
—Conheci Elle quando era uma menina de dois anos, mimada e precoce. Desde aquele dia, passei a vida cuidando dela. Protegê-la está em minha natureza, e quero o melhor para ela. Por isso aprovava seu matrimônio com você.
Sinclair avermelhou.
—Ouvi a história familiar. Sei que estavam muito unidos. Do contrário, por que teria estado ela tão devastada estas últimas semanas por sua situação com as autoridades?
—Acredito que você conhece a resposta.
—Eleanor é muito leal. Adora a sua família. Sobre tudo, a você, seu meio-irmão e seu herói.
—É muito leal, sim. Nesse ponto estamos de acordo. Sinclair, é algo mais que isso. Mas você já sabe, verdade?
Sinclair estava terrivelmente contrariado.
—Pelo amor de Deus… meu pai, a meu pedido, moveu montanhas para lhe salvar a vida, O’Neill.
—É isso o que quer realmente? Um matrimônio apoiado na gratidão? O pagamento de uma dívida?
—Não o compreendo, O’Neill.
—Eu cresci considerando Elle minha meio-irmã. Já não a vejo desse modo.
Sinclair abriu uns olhos como pratos.
—Como?
—Sempre quis Elle. Agora a amo mais profundamente que nunca, e é a mulher com a que quero compartilhar minha vida.
Sinclair sacudiu a cabeça.
—Maldito seja! Não faça isto agora, O’Neill! Fiz todo o possível para conseguir sua liberdade, para que Eleanor não ficasse destroçada! Deve-me isso!
—Sei que a quer, e também sei que lhe devo a vida. Mas não posso lhe pagar com a mulher a que quero. Vim por minha noiva.
Sinclair ficou destroçado. Deu-se a volta, tremendo, e depois voltou a olhar a Sean.
—Ela também está apaixonada por você, verdade?
—Sim.
—Tentei com todas minhas forças negar esse amor. É obvio, ouvi os rumores! E o que me quer dizer, em realidade? Seqüestrou deliberadamente a minha noiva para jogar por terra nossas bodas?
—Não estava planejado —disse Sean, sentindo muita simpatia por aquele homem— E eu não conhecia o alcance de meus sentimentos por Elle até que as autoridades me capturaram em Cork.
—Está-me pedindo que ceda a minha prometida?
—Sim.
Aquele momento foi interminável.
—Não! —gritou Peter— Ela me aprecia, e você não tem nada que lhe oferecer; só uma vida de dificuldades. Não tem dinheiro, e tem caído em desgraça. Eu posso cuidá-la como se fosse uma rainha. Se realmente a quiser, deve renunciar a ela. Quererá que tenha a existência que eu posso lhe oferecer.
Sean ficou furioso, porque Sinclair tinha razão. Passou um instante antes de que voltasse a falar, e o fez com calma.
—Casaria-se com ela sabendo que está apaixonada por outro homem?
Peter ficou em silêncio. Sean se deu conta de que estava lutando contra a complexidade de seus sentimentos. Sean também o estava fazendo.
E Sean se deu conta de que aquele homem estava tão apaixonado por Elle como ele mesmo.
—Peter —lhe disse lentamente—, o que faria se ela… for ter meu filho?
Sua intenção não era sabotar a situação, mas tinha que sabê-lo.
Peter ficou lívido, com os olhos exagerados.
Sean rezou, sabendo que suas preces não teriam resposta.
Peter negou com a cabeça e respirou profundamente.
—Maldito seja. Assim é como me paga o que tenho feito. Não posso deixar de querer a Eleanor, do mesmo modo que não posso fazer que meu coração deixe de pulsar. Se ela estiver grávida, que o esteja. Criarei a esse menino como se fosse meu. Quererei-o e o protegerei como se fosse meu. Tem que ir-se, O’Neill. E lhe sugiro que se vá para longe, porque Eleanor e eu nos casaremos dentro de dois dias.
Sean estava fora de si. Sinclair não só queria a Elle, mas também estava disposto a aceitar a seu filho. Ele podia dar tudo a Elle, e também ao menino; e Sean lhe devia a vida. Só havia uma saída possível: honrar o pacto com aquele homem.
E Sean levou a cabo a façanha maior de sua vida: fez uma reverência. Depois, deu-se a volta e partiu.
Eleanor observava sua imagem no espelho do penteadeira, consciente de que em seu olhar se revelavam todas suas emoções. Sean era um homem livre, e estava a poucos quilômetros da casa. Entretanto, em dois dias, ela ia casar-se com Peter Sinclair. Não sabia o que podia fazer. Resultava-lhe difícil atuar de acordo com os ditados do orgulho e a prudência; resultava-lhe difícil seguir em Adare.
Alguém bateu na porta.
Eleanor ficou surpreendida. Eram as oito da manhã. Supôs que algum de seus irmãos teria ido vê-la; assim que se levantou e abriu a porta. Ao ver Peter, seu assombro foi enorme. Ele tinha os olhos avermelhados, como se tivesse estado acordado toda a noite, ou como se tivesse estado chorando.
—Peter?
—Temos que falar —lhe disse ele.
E, de um modo inusitado Peter, passou por diante dela ao interior do quarto, aparentemente, alheio ao feito de que era impróprio que um homem estivesse ali, a sós, com ela.
Consciente de que ele tinha algo muito importante que lhe dizer, Eleanor fechou a porta, completamente despreocupada do correto.
—Peter, parece que está muito aborrecido. Por favor, não me dê más notícias.
Ele sacudiu a cabeça.
—Acredito que a notícia que te trago é boa.
—Mas, por sua expressão, parece que alguém morreu.
—Não morreu ninguém —lhe disse ele, e lhe tornou a mão— Te quero com todo meu coração, Eleanor. A quiz do primeiro momento em que nos conhecemos, e sempre te quererei.
Eleanor se sentiu mais alarmada então que nunca. Sabia que Sean era um homem livre, e se sentia como se a estivessem encerrando em um ataúde. Não soube o que dizer.
—Eu te aprecio muito. Sabe,não éverdade? —murmurou.
—Sss —disse ele, com uma lágrima na bochecha. Depois se aproximou dela e a beijou brandamente— Vim me despedir.
Ela acreditou que o tinha ouvido mau.
—Como?
—Sou um cavalheiro, Eleanor. Como vou obrigá-la se casar comigo se vi claramente o muito que quer a outro homem?
Ela emitiu um gemido de angústia, com as bochechas ardendo.
—Não quer admiti-lo? Você ama a Sean O’Neill. Me aprecia, como acaba de dizer, mas isso é tudo. Faz muitos anos, deu-lhe seu coração a O’Neill, e sei que nunca me poderá dar isso .
Eleanor se cambaleou.
—Peter, você foste tão bom… estou disposta a me casar contigo no sábado, como combinamos. Estou preparada para ser uma boa esposa, perfeita, se é que posso consegui-lo. Salvaste-lhe a vida a Sean! E eu te aprecio muito.
Peter se secou os olhos com o dorso da mão.
—Está disposta a se casar, está preparada para ser uma perfeita esposa…
—Digo-o a sério —declarou ela.
—Porque me deve a vida de Sean?
Ela não soube o que responder.
—Sim —sussurrou.
—Eu te quero o suficiente para te deixar livre. Ele não pode te dar a mesma vida que eu, mas você é uma mulher apaixonada e sei, por muito que não queira admiti-lo, que não será feliz com uma fortuna se o homem ao que quer não está a seu lado. Estou rompendo nosso compromisso, Eleanor, para que possa estar com Sean.
—Peter! —exclamou ela, e tomou o rosto entre ambas as mãos— Não te deixarei se me diz que quer se casar. Devo-lhe isso. Sean e eu lhe devemos isso! Tentarei te fazer feliz!
Ele negou com a cabeça.
—Acreditava que poderia me casar contigo deste modo, como pagamento de uma dívida, mas não posso fazê-lo. Acreditava que poderia passar por cima de seu amor por outro homem, mas não posso. Quero-te, e quero que seja feliz, embora para isso tenha que te entregar a O’Neill.
Eleanor começou a chorar.
—Nunca tinha conhecido a ninguém tão generoso como você.
—E eu nunca tinha conhecido a ninguém tão apaixonada e valente como você —respondeu ele— O’Neill esteve antes aqui. Será melhor que vá com ele, porque estava muito aborrecido quando se foi.
Eleanor assentiu. Antes de ir-se, abraçou Peter Sinclair com força, pela última vez. Depois, pôs-se a correr.
Enquanto percorria rapidamente a distância que havia desde o Adare a Askeaton, pensou em que Sean tinha decidido que ela devia casar-se com o Sinclair. Depois, recordou aquela noite de quatro anos antes, quando ele se partiu sem lhe emprestar atenção a suas súplicas para que ficasse. Tinha medo de seu rechaço. Dois anos no cárcere e as mortes de Peg e de Michael o tinham convertido em um homem escuro, ferido e complicado. Entretanto, ela nunca se renderia no referente a seu futuro.
Seu cavalo estava soprando de esgotamento quando chegaram às portas de Askeaton Hall. Eleanor correu para a porta principal, que se abria naquele momento. Por ela saía Sean, que começou a descer as escadas com uma bolsa ao ombro. Era algo que Eleanor já tinha vivido antes.
Deteve-se, ofegante, e fixou o olhar naquela maldita bolsa de viagem. Depois, dirigiu a vista para o rosto tenso de Sean.
—Aonde vai? —perguntou-lhe com a voz entrecortada.
—Te falei que deixaria o país. E o que faz aqui? —perguntou-lhe ele a sua vez, surpreso.
—Não pode ir, Sean. Não pode me deixar!
—Não posso ficar. Não confio em mim mesmo o suficiente para ficar —respondeu ele.
—O que significa isso? —inquiriu ela, e o tirou da mão. Para sua surpresa, ele a agarrou com tanta força que quase lhe fez mal. Parecia que não estava disposto a soltá-la.
—Faz um mês roubei uma noiva, e não acredito que seja inteligente pôr a prova outra vez minha resolução —afirmou ele com tensão.
—Não vou casar-me com o Peter.
—Os dois o devemos. E por isso vou: para poder ser um homem de honra.
Naquele momento, Eleanor se deu conta de que Sean queria levar-lhe do altar novamente.
—Sean, ele tem quebrou o compromisso.
—O que? Falei com ele faz umas horas, e me disse que não pensava fazê-lo. Tem a justiça de seu lado, assim sou eu quem deve te deixar.
—Não —lhe disse Eleanor, sorrindo, porque se tinha dado conta de que Sean tinha ido falar com o Peter para lutar por seu futuro— Peter quebrou o compromisso porque é nobre e generoso, e sabe que te quero.
Sean a olhou com incredulidade. Durante aqueles instantes, Eleanor conteve a respiração.
—Vai deixá-la… por você? Por nós?
Ela assentiu. Sean estava começando a sorrir, mas estava aturdido.
—O que lhe disse?
—Disse-lhe que te queria. Não como meio-irmã, a não ser para compartilhar minha vida contigo, e todo meu futuro —disse ele, com um olhar suave— Elle, quero-te. De fato, não posso viver sem você.
Eleanor começou a chorar e o abraçou.
—Quando me declarou seu amor em Cork, depois de que lhe capturassem os soldados, pareceu-me um sonho que tinha chegado muito tarde. Quanto tempo esperei para que pronunciasse essas palavras! —exclamou, chorando e rindo ao mesmo tempo— Esperei toda uma vida a que me declarasse seu amor, Sean!
Ele a tomou as faces entre as mãos.
—E eu fui um idiota ao não ver o que tive ante o nariz durante os últimos vinte anos.
—Como iria saber que uma menina de dois anos era seu destino? —brincou ela.
Então, Sean ficou sério e a observou com soma atenção.
—Possivelmente soubesse, e por isso passei a vida cuidando de você. Ainda preciso te cuidar, Elle, por muito forte que você seja… quero passar o resto de minha vida te protegendo.
Sua voz se converteu em um sussurro. Eleanor fechou os olhos quando suas bocas se fundiram em um beijo. Suspirou. Não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo seriamente, que o futuro fora dele.
—Posso fazê-lo? —perguntou-lhe ele, lhe roçando os lábios uma vez mais.
Ela se aferrou a sua camisa e respondeu:
—Só se me converter em uma mulher honesta.
Ele arqueou as sobrancelhas.
—Mas se você for uma mulher muito honesta…
Eleanor puxou-lhe a camisa como advertência.
—Digo-o a sério! Vai casar-se por fim comigo, Sean?
Ele sorriu com uma alegria que lhe encheu o olhar.
—Demônios, Elle! Não vai me deixar perguntá-lo? As damas não pedem o matrimônio!
—Eu sim! —disse ela, com o coração acelerado enquanto esperava sua resposta.
Ele ficou de joelhos.
—Fará-me a honra de converter-se em minha esposa? Terá a meus filhos e levará meu lar? Perdoa-me por não ter tido sentido comum até agora?
Ela assentiu, sem poder articular palavra, e ele se incorporou. Finalmente, entendeu-o: Sean a queria. Correspondia a seu amor, e podiam embarcar-se juntos na maravilhosa viagem da vida.
—Sean, isto é como um sonho. Estive-te esperando durante tanto tempo…
Ele a abraçou.
—Sei. É só que não sabia que as coisas podiam ser assim entre nós. Foi muito difícil ver como se convertia em uma mulher. Durante muito tempo não podia acreditar que estivesse crescendo. Elle, necessito-te. Necessito seu sorriso e sua risada, necessito sua esperança. Quero me afastar desse lugar de escuridão e culpa. Não quero voltar ali jamais. encontrei a paz e a luz contigo.
—Nunca voltará para essas sombras, Sean —sussurrou ela— Eu me assegurarei de que assim seja.
—Então, vêem comigo ao futuro. A nosso futuro —pediu Sean, sonriendo com ternura.
—Não poderia me impedir isso embora quisesse!
Eleanor sorriu. Com um sentimento de infinita felicidade, rodeou-o entre seus braços.
—Tratei de fazê-lo, como um tolo —disse ele, com verdadeiro arrependimento— Elle, acredita que possa estar grávida?
—Parece mais provável cada dia que passa —respondeu ela, e o olhou aos olhos, escrutinando sua expressão— Sean, quero ter seu filho tanto como quero nosso futuro.
Sean recordou a Peg. De repente, via-a com claridade, com cor, e para sua surpresa, sem culpa, sem arrependimento, só com uma vaga tristeza. E pensou em Michael.
—Se for um menino, podemos chamá-lo Michael.
—Isso eu gostaria.
Eleanor lhe acariciou a bochecha.
—Irei onde você queira —lhe disse brandamente, e o beijou— E sei que não acreditará, mas o seguirei, não o dirigirei.
E Sean quis rir, porque não acreditou. Entretanto, seu corpo forte e quente lhe estava provocando muitas lembranças, e ele fez uma pausa antes de lhe devolver o beijo.
—Eu gosto que dirija —lhe disse—, sempre e quando estiver aqui para te seguir e arrumar o que desfizer a seu passo.
Com impaciência, Elle voltou a beijá-lo, larga, lenta, intimamente.
—Agora o estou fazendo, claramente.
Passou um comprido momento antes de que ele pudesse falar de novo.
—Deus —sussurrou— Agora, vamos anunciar a notícia.
E, segurados um no braço do braço, entraram em procurar o conde e à condessa de Adare para compartilhar sua alegria, sua boa nova.
Epílogo
Kilvore, Irlanda, fevereiro de 1819
O dia era cinza e frio; o vento soprava com força. Eleanor estava sentada junto a Sean na parte traseira de uma carruagem. Sean tinha estado muito calado enquanto atravessavam o povoado, mas como lhe estava agarrando a mão, sabia que não estava tenso. Eleanor lhe colocou a palma sobre seu ventre volumoso, porque seu filho estava dando chutes, e ele sorriu com calidez.
—Está bem? —perguntou-lhe ela brandamente.
Ele tinha estado observando a rua, flanqueada de casas brancas com telhados de palha. De vez em quando, algum pedestre passava apressadamente por ali, lutando contra o vento e o frio.
—Estou bem. Sei que deveria me sentir triste, mas não é assim. Estou impaciente, Elle.
Ela sorriu, aliviada.
—Isso é estupendo —disse.
Por fim, seus demônios se desvaneceram.
Casaram-se o fim de semana no que ela tinha decidido celebrar suas bodas com Peter. A cerimônia tinha sido íntima, com a assistência da família mais próxima. O conde tinha dado sua aprovação, é obvio, quando eles lhe tinham anunciado suas intenções. Lorde Henredon se havia posto furioso e brigou com o Edward. Peter Sinclair se partiu da Irlanda, caminho da América. Eleanor tinha ouvido dizer que tinha ido ao oeste; como não necessitava fortuna, converteu-se em um aventureiro.
Elle tinha quebrado o coração, e Peter não ficou para assistir a suas bodas; entretanto, despediram-se como amigos. Eleanor lhe tinha agradecido novamente por sua generosidade, e lhe havia dito que significava muito para ela. Peter lhe tinha desejado uma vida cheia de felicidade.
A carruagem se deteve. O chofer abriu a porta; Sean baixou e se voltou para ajudá-la descender a Eleanor. Ela, com um buquê de flores na mão, olhou a seu redor e encontrou rapidamente o cemitério do povoado. Teve uma entristecedora sensação de tristeza; já não odiava a Peg, e desejava que tivesse tido um destino diferente. Sean a tirou da mão e juntos entraram em cemitério em silêncio.
Passaram uns minutos antes de que Sean encontrasse a tumba de Peg. Os habitantes do povoado de Kilraddick tinham posto uma pequena lápide com uma inscrição que dizia:
Margaret Boyle O’Neill Amada filha e mãe 1790—1816
Eleanor deixou o buquê de flores sobre a tumba e olhou a Sean. A mesma tristeza que ela sentia se refletia em seus olhos. Com expressão de desconcerto, perguntou:
—Onde está a tumba de Michael? Por que não está enterrado junto a sua mãe?
Embora não tivessem encontrado seu corpo, deveria haver uma tumba junto à de sua mãe. Antes que Eleanor pudesse responder, ouviu um grito e se girou. Havia um homem magro junto à porta do cemitério, e ela reconheceu ao Jamie Flynn imediatamente.
Levou-se a cabo uma minuciosa investigação em torno do que tinha ocorrido em Kilvore e Kilraddick. Assombrosamente, tinham aparecido mais testemunhas além de Flynn, e como resultado de suas declarações, o coronel Reed tinha sido julgado por uma corte marcial e expulso do exército. Entretanto, antes de que pudesse celebrar um julgamento contra ele pelo assassinato de Peg Boyle e seu filho, tinha desaparecido. Corria o rumor de que estava de caminho para as Antilhas, que se tinham convertido em um refúgio para militares convertidos em piratas.
Flynn se aproximou, sorrindo.
—Perguntava-me quando chegaria, milord.
—Flynn! —disse Sean, abraçando-o afetuosamente— Sou o senhor O’Neill, e sabe. Não tenho título.
—Para mim é milord —afirmou Flynn obstinadamente— Disse que viria em fevereiro, e cumpriu sua palavra.
Flynn tinha partido de Limerick dois meses antes, depois de declarar.
—Sim, voltei com minha esposa. E viemos para ficar.
Flynn se entusiasmou.
—Acreditava que só ia vir a nos visitar!
—Temos outros planos —disse Sean, e atraiu a Eleanor para si.
—Ouvi dizer que há um novo senhor na casa, mas ninguém o viu ainda.
Sean intercambiou um olhar com Eleanor. Ela teve que sorrir enquanto ele falava.
—Sei. Os tempos trocaram, Flynn. É um novo dia, uma nova era. Não haverá mais tirania aqui.
—Milord… quero dizer, senhor. Como sabe? Conhece novo dono? É um bom homem?
Sean continuou sonriendo.
—Eu sou o novo dono, Flynn. Comprei o imóvel de Darby.
De fato, tinha sido o conde quem tinha comprado o imóvel para eles como presente de bodas. Flynn estava assombrado; tinha os olhos cheios de lágrimas.
—Milord, este é um grande dia! Vou contar a todo mundo! —exclamou, e se secou os olhos com as mãos— E senhor, também é um grande dia para você.
—O que quer dizer? —perguntou Sean, confundido.
—Olhe para lá —lhe disse Flynn, com um enorme sorriso.
Eleanor se voltou na direção que tinha indicado Flynn. Um menino passou junto à porta do cemitério. Levava um grosso casaco e um gorro de lã, e se deteve quando Flynn o chamou. O menino titubeou, e depois começou a caminhar para eles.
—Tenho que dar a notícia a todo mundo —disse Flynn, e passou junto ao menino de caminho à saída.
—OH, Deus —disse Sean de repente.
Eleanor se alarmou.
—O que te ocorre?
Mas ele não a ouviu.
—Michael? —disse, dirigindo-se ao menino— Michael Boyle O’Neill, é você? —Sean começou a correr.
Eleanor emitiu um grito de alegria.
O menino assentiu.
—Sou Michael Boyle O’Neill —confirmou em um sussurro— Papai? Retornou?
Sean o abraçou sem poder conter-se. E Michael, que só tinha oito anos e não tinha visto Sean durante os dois últimos, aceitou o abraço sem nenhum protesto. De repente, quando se deu conta do que tinha podido significar aquela separação, Sean o soltou.
—Sabe quem sou? Lembra-se de mim? —perguntou-lhe depois de ficar de joelhos a seu lado.
Michael assentiu com seriedade.
—Casou-se com minha mamãe. Foi meu papai. Flynn me disse isso, mas eu também me lembro.
—Ainda sou seu pai —disse Sean, lhe beliscando brandamente a bochecha— Acreditava que tinha morrido no incêndio! O que aconteceu, Michael? Onde estiveste?
—A família O'Rourke me levou para viver em sua casa depois do incêndio e mudamos ao Raharney, onde há mais família —disse o menino, com um sorriso— Mas voltamos aqui no outono. Flynn me viu quando voltou do tribunal. Disse que você voltaria, e retornaria. Ainda é meu papai? A senhora O'Rourke diz que é muito difícil dar de comer a todos. Tem cinco filhos.
Sean ficou em pé, chorando, e assentiu. Depois se meteu a mão ao bolso e tirou o pequeno navio de madeira. Michael abriu os olhos de par em par. Sean tomou pelo ombro.
—Lembra-se disto? É seu.
Michael assentiu.
—Tive-o no bolso desde o incêndio. Quer devolta?
Michael assentiu novamente. Tomou o barquinho e o sujeitou com força contra seu peito.
Sean segurou a mão do menino e se voltou para Eleanor.
—Elle —lhe disse com a voz afogada— É Michael, meu filho.
A Eleanor pulsava o coração rapidamente. Algumas vezes, pensou, a vida era justa. E ao olhar ao menino, sentiu uma imensa alegria e um imenso amor. Deu-lhe graças a Deus por aquele milagre.
—Olá —disse ao Michael— Chamo Eleanor. Me alegro muito de te conhecer, Michael.
Michael a olhou, e depois olhou a Sean, e logo a olhou a ela de novo.
—Vai viver também com meu papai? —perguntou-lhe com curiosidade.
—Eu adoraria, se não se importa.
Michael se ruborizou.
—Não me importa —disse, e olhou a Sean— É alta —disse, e Sean riu— E bonita.
—É muito alta e muito bonita —conveio Sean, e tirou da mão ao Michael— E agora é minha esposa, Michael. Importa-se?
—Não —disse o menino— Não me importa.
Sean lhe deu uns golpes nas costas.
—Então, vamos ver nossa nova casa —lhe disse, e se voltou para Elle— Obrigado.
Tomou a outra mão e lhe disse:
—Não tem nada que me agradecer.
—Tudo tenho que lhe agradecer isso —a corrigiu ele— Vamos?
Segurados pelo braço, começaram a ascender pela rua; Michael corria diante deles, jogando e assinalando todas as casas e às pessoas com as que se cruzavam. Os habitantes do povoado saíam a saudá-los, os homens sorrindo e levantando o chapéu, as mulheres fazendo reverências. Sean e Eleanor receberam saudações como milord e milady.
Ao pouco tempo deixaram a última casa atrás. Frente a eles, erguiam-se dois muros de pedra com umas portas de ferro forjado. Na colina que havia depois dos muros estava a grande casa.
Estava calcinada pelo incêndio da noite fatídica, mas a pedra e as janelas resultavam extranhamente acolhedoras. Eleanor olhou a Sean, e seus olhos ficaram apanhados. Demorariam muitos meses em reconstruir aquela casa, em arrumar o imóvel, mas quando tivessem terminado, sua casa seria tão bela como Askeaton, daquilo não havia dúvida. Eleanor pensou em seu filho caminhando entre aqueles muros, e pensou em Michael perseguindo a seu irmão ou irmã antes de que caísse.
E, pela primeira vez, Eleanor soube que ia ter uma menina.
—Está queimado —disse Michael com sobressalto— E dizem que há fantasmas!
—Duvido que haja fantasmas —respondeu Sean com um sorriso— E vamos reconstruí-la, Michael, cômodo por cômodo , nos três. Vais ajudar Elle e a mim?
Michael assentiu com veemência.
E enquanto atravessavam as portas, Eleanor olhou a inscrição que havia na placa de bronze que tinham encarregado para o imóvel. Tinham-na batizado de novo, em honra de Peter. chamava-se Sinclair Hall.
Brenda Joyce
O melhor da literatura para todos os gostos e idades