Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOVA GERAÇÃO / John Galsworthy
A NOVA GERAÇÃO / John Galsworthy

 

 

                                                                                                                                   

 

 

 

 

Admiravelmente traduzido pela grande escritora brasileira Rachel de Queiroz, conclui-se com este terceiro volume o célebre romance de John Galsworthy, «A Família Forsyte», que o público ledor português transformou num «best-seller», em paralelo com o assinalado  êxito da sua adaptação televisiva.

Rachel de Queiroz tenta explicar-nos porquê quando escreveu: «Graças a laboriosas pesquisas, cheguei à convicção de que a maioria das pessoas lê romances para divertimento. Assim é e assim será sempre.

Sejam, porém, quais sejam os seus motivos, eu alimento para com todos os leitores de romances um sentimento ardente de afeição, e, por nada no mundo, procuraria decepcioná-los. Nunca! Estabelecido isso, ouso declarar, na paz do meu coração e na serenidade da minha consciência, que, se eles desejam divertimento, conseguirão isso dentro das páginas deste livro. Terão divertimento às mancheias nesta história dos Forsyte. Encontrarão divertimento e talvez algo mais duradoiro, se o procurarem. Digo tudo isto com todas as reservas e qualificações que a estrita verdade exige de qualquer pronunciamento de opinião. Mr. Galsworthy jamais será considerado fútil por ninguém, e nem mesmo os mais exigentes leitores o julgarão desinteressante.»

 

 

 

 

ENCONTRO

Na tarde de 12 de Maio de 1920, Soames Forsyte saiu do Knightsbridge Hotel, onde estava hospedado, com a intenção de visitar a exposição de pintura de uma galeria em Cork Street e dar uma olhadela para o futuro. Pôs-se a caminhar. Desde a guerra, nunca apanhara um táxi, se o podia evitar. Na sua opinião, os motoristas eram gente estúpida e incivil, embora, agora que a guerra terminara, com a oferta de mão-de-obra a tornar-se muito maior que a procura, eles, de acordo com os costumes da natureza humana, já fossem voltando aos modos antigos. Mas Soames não lhes perdoava, identificando-os intimamente com desagradáveis lembranças, e agora, obscuramente, como todos os membros da sua classe, identificando-os também com a revolução. A enorme ansiedade que o maltratara durante a guerra e a ansiedade maior que o possuíra depois de iniciada a paz produzira consequências psicológicas importantes na sua tenaz natureza. Tantas vezes se imaginara arruinado que deixara de acreditar na possibilidade material desse facto. Pagando quatro mil libras anuais de imposto sobre a renda, ninguém pode propriamente queixar-se. Uma fortuna de um quarto de milhão - sobrecarregada apenas com a manutenção de uma filha e da esposa, distribuída em vários empregos de capital - oferecia uma garantia substancial até mesmo contra aquela «ideia selvagem» de um levantamento de capitais. Quanto à confiscação dos proventos de guerra, isso era-lhe inteiramente favorável, porque não auferira directamente nenhum e aquilo «servia os direitos dos mutilados de guerra»! No entanto, o preço dos quadros subira mais que tudo, e ele hoje realizava mais com as suas colecções do que nunca pensara antes do início da guerra. Os raids aéreos também tinham agido benèficamente sobre um espírito congènitamente cauteloso e tornado mais áspero um carácter já de si intratável. O perigo de se ver inteiramente dispersa faz que uma pessoa se torne menos apreensiva quanto a dispersões mais parciais, decorrentes de impostos e moratórias - enquanto o hábito de condenar a imprudência dos Alemães conduz naturalmente a condenar os trabalhistas, se não abertamente, pelo menos no santuário da nossa alma.

Soames caminhava. Tinha muito tempo a perder, pois Fleur só iria encontrar-se com ele na galeria às quatro horas, e ainda eram apenas duas e meia. Era bom para ele caminhar - tinha o fígado ligeiramente inflamado e os nervos à flor da pele. A mulher estava sempre fora quando ele vinha para a cidade e a filha ficava a revolver os armazéns, como costumavam fazer agora as raparigas, depois da guerra. Aliás, ele ainda deveria dar graças a Deus por ela ser tão jovem que não a convocaram para nenhum trabalho de guerra. Não que ele não houvesse apoiado a guerra com toda a sua alma, desde o início, mas seria muito diferente ter de apoiá-la com os corpos de sua mulher e sua filha - havia uma marca arcaica dentro dele, fixada não se sabe por quem, que o fazia abominar qualquer extravagância emocional. Por exemplo, opusera-se tenazmente a que Annette - que ainda era tão atraente em 1914, pois só tinha trinta e quatro anos - fosse para a França, sa chère patrie, como se pusera a dizer, tratar dos seus braves poilus. Arruinar a saúde e a beleza! Como se ela fosse realmente uma enfermeira! E, decididamente, sustara aquele entusiasmo. Que costurasse para eles em casa ou lhes fizesse meias de lã! Ela não fora, naturalmente, mas desde então nunca mais se mostrara a mesma. Crescera a sua má tendência de troçar do marido, não abertamente, mas por mil maneiras indirectas. Quanto a Fleur, a guerra resolvera o desagradável problema em que se debatiam: se deviam ou não mandá-la para um colégio. Era melhor para ela manter-se afastada da mãe, enquanto ela se preocupava com a guerra, e afastá-la também dos raids aéreos e do impulso de fazer coisas extravagantes. De forma que a confiou a um internato de uma cidade do Oeste do país, que lhe pareceu digno da filha, e sentiu horrivelmente a falta dela. Fleur! Nunca- se arrependera do impulso que o fizera chamá-la por esse nome estrangeiro - embora tal nome significasse uma acentuada concessão ao francês. Fleur! Um lindo nome - e uma linda rapariga. Porém inquieta - muito inquieta e voluntariosa! Sabendo muito bem a extensão do poder que tinha sobre o pai, Soames muitas vezes reflectira no erro que cometia em adorar e amimar excessivamente a filha. Um velho a adorar alguém! Já tinha sessenta e seis anos! Já estava em declínio, mas não o sentia, porque - felizmente talvez -, considerando a juventude e a beleza de Annette, o seu segundo casamento resultara numa associação muito fria. Ele só experimentara na vida uma única paixão - por sua primeira mulher, Irene. Sim, e aquele indivíduo, o seu primo Jolyon, que fugira com ela, andava muito abatido, diziam. Não era de admirar - com setenta e dois anos e já com vinte anos do terceiro casamento!

Soames parou um momento na sua caminhada para se apoiar às grades do Row. Um sítio ideal para reminiscências, a meio caminho daquela casa de Park Lane, onde ele nascera e onde lhe haviam morrido os pais, e a pequena casa de Montpellier Square, onde, trinta e cinco anos atrás, decorrera a sua primeira edição de casamento. Agora, depois de vinte anos da segunda edição, aquela velha tragédia parecia-lhe sucedida numa existência anterior - existência que terminara com o nascimento de Fleur, em lugar do filho que ele desejara. Já há muitos anos que ele deixara de lamentar, mesmo vagamente, o filho que não lhe nascera, pois Fleur preenchera as aspirações do seu coração. Afinal, ela usava-lhe o nome, e ele ainda não consentia em encarar a possibilidade de a ver mudá-lo. E realmente, se alguma vez meditava em tal calamidade, consolava-se com o vago pensamento de que a faria tão rica que ela poderia deixar de usar, e mesmo extinguir, o nome do homem que viesse a ser seu marido. E porque não, se, segundo o parecia, as mulheres eram actualmente iguais aos homens? E Soames, secretamente convencido de que elas não o eram, passava vigorosamente a mão pelo rosto, até encontrar o confortador volume do seu queixo. Graças aos seus hábitos abstémios, não se tornara gordo, nem flácido, o nariz continuava pálido e afilado, o bigode grisalho cortado curto, o olhar inalterado. Uma ligeira inclinação corrigia a expansão que lhe dera ao rosto o alteamento da fronte provocado pelas entradas no cabelo grisalho. Poucas mudanças operara o tempo no «mais avisado» dos jovens Forsyte, segundo dissera Timothy - o último dos velhos Forsyte, que completara recentemente o seu centésimo primeiro aniversário. A sombra dos plátanos caía-lhe sobre o caro chapéu de feltro. Ele abandonara as cartolas - não valia a pena mostrar-se rico num tempo como o de agora. Plátanos! Os seus pensamentos dirigiam-se para Madrid - na Páscoa que precedera a guerra, ele, desejoso de fazer um juízo definitivo sobre um determinado quadro de Goya, viajara até lá, a fim de estudar o pintor na sua própria terra natal. E Goya impressionara-o - grande classe, real génio! E, por mais alto que estivesse cotado, a sua cotação tenderia sempre a subir. A segunda fase da mania do público por Goya seria ainda maior que a primeira. E ele comprou o quadro. Naquela visita à Espanha, Soames fizera uma coisa que nunca havia feito antes: encomendara uma cópia de um fresco chamado La Vendimia, onde havia uma figura de rapariga com as mãos nos quadris que lhe recordara a filha. Tinha agora essa cópia na sua galeria de Mapledurham - e achava-a medíocre: ninguém pode copiar Goya. No entanto, ficava a olhá-la longamente, quando a filha não estava em casa, por amor de uma certa reminiscência irresistível que havia na luz, no erecto equilíbrio da figura, na separação das sobrancelhas castanhas e arqueadas, nos olhos escuros e sonhadores. Era curioso que Fleur tivesse olhos escuros - porque os da mãe eram azuis! Porém, os olhos da avó Lamotte eram escuríssimos. Recomeçou a andar em direcção a Hyde Park Corner. Em toda a Inglaterra não havia mudança maior que no Row! Nascido praticamente dentro dos seus limites, Soames podia recordá-lo desde o ano de 1860. Quando era garoto, traziam-no entre as crinolinas, para apreciar os dandies de suíças, montando a cavalo numa postura de dragões de cavalaria, os penteados de grandes caracóis transbordantes e as cartolas brancas, o ar displicente daquilo tudo, o homenzinho de pernas tortas, metido numa sobrecasaca vermelha, que costumava introduzir-se por entre os elegantes, com vários cães presos em trelas na mão, tentando sempre vender um a sua mãe: spaniels, galgos italianos, que farejavam a crinolina de Emily - já hoje não se via desses cães. Aliás, já não se vê nada fino, distinto, além de trabalhadores sentados em estúpidas filas, sem nada para olhar, mulherzinhas espalhafatosas de calças e chapéu de coco montando escarranchadas, ou erráticos coloniais em horrendos sendeiros de aluguer, e, aqui e alem, rapariguinhas montadas em póneis, velhos senhores dando exercício ao fígado ou um oficial de cavalaria a treinar o seu amimal. Nem um puro-sangue, nem grooms, nem cortesias, nem mexericos - nada. Só as árvores eram as mesmas - as árvores, indiferentes às gerações e ao declínio da espécie humana. Uma Inglaterra democrática, desgrenhada, apressada, ruidosa e aparentemente sem nenhuma elevação. E algo de exigente e requintado que havia na alma de Soames revoltava-se contra aquilo. Fora-se para sempre o borough fechado, fidalgo e envernizado! Riqueza havia - oh, sim,, ele próprio era um homem mais rico do que seu pai jamais fora. Mas as maneiras, o saber, a qualidade, tudo desaparecera, engolfado numa enorme, horrenda e acotovelante multidão, que tresandava a gasolina. Pequenas excrescências de gentileza e fidalguia apareciam ainda aqui e além, dispersas é chétives, como diria Annette, mas nada de firme e coerente para se olhar. E nessa nova barafunda de péssimas maneiras e decadência moral, sua filha - flor da sua vida - andava mergulhada. E quando os tais trabalhistas apanhassem o Poder - se algum dia o apanhassem -, o pior então sucederia!

Passou sob o arco, que, felizmente, já não estava desfigurado pelo seu holofote. «Era melhor que eles pusessem um holofote no próprio caminho e iluminassem bem a sua preciosa democracia!» E encaminhou os passos ao longo das fachadas de clubes de Picadilly. George Forsyte, naturalmente, devia estar

sentado à sacada do Iseeum. Engordara tanto que passava quase todo o tempo ali, semelhante a um olho imóvel, sardónico, zombeteiro, anotando a decadência dos homens e das coisas. E Sloames apressou o passo, sentindo-se, como sempre, constitucionalmente incomodado sob o olhar do primo. Diziam que George, em plena guerra, escrevera uma carta aos jornais, assinada «Um Patriota», queixando-se contra a histeria do Governo, que cortara as rações de aveia dos cavalos de corrida. Sim, lá estava ele, alto, enorme, limpo, bem barbeado, com os cabelos lisos e ainda abundantes, perfumados sem dúvida pelas melhores loções, com um papel cor-de-rosa na mão. Bem, aquele não mudara! E talvez pela primeira vez na vida Soames sentiu uma espécie de simpatia por aquele homem chocarreiro. Com o seu peso, os seus cabelos repartidos com perfeição, o olhar taurino, era como uma garantia de que a velha ordem ainda teria algum brilho. Viu George agitar o papel róseo, como se o convidasse a subir - talvez quisesse perguntar-lhe qualquer coisa acerca das suas propriedades. Ainda estavam sob a direcção de Soames, porque, apesar de se ter transformado em sócio comanditário do escritório naquele doloroso período de vinte anos atrás, quando se divorciara de Irene, Soames, quase insensivelmente, retivera entretanto nas suas mãos o controle dos negócios pessoais dos Forsyte.

Hesitando apenas um momento, fez um gesto de assentimento e subiu. Desde a morte do cunhado, Montague Dartie, em Paris - sobre a qual ninguém poderia fazer um juízo certo senão que não se tratara de suicídio-, o Iseeum Club tornara-se mais respeitável aos olhos de Soames. Também George, sabia-o ele, deixara para trás as loucuras da mocidade, entregara-se definitivamente às alegrias da mesa, comendo tudo o que servisse para lhe diminuir o peso, e possuindo apenas «um ou dois cavalicoques para lhe darem interesse à vida». E Soames reuniu-se pois ao primo na varanda, sem o embaraçador sentimento de indiscrição que até então sentira.

George estendeu-lhe a mão aberta.

- Não o vejo desde a guerra - disse. - Como vai sua mulher?

- Vai bem, obrigado - respondeu friamente Soames.

Alguma obscura piada arredondou a gorda face de George e os olhos dele alegraram-se.

- Aquele belga, Profond, é actualmente membro deste clube. É um sócio extraordinário.

- Realmente! - murmurou Soames. - A respeito de que me queria você falar?

- A respeito do velho Timothy. Pode esticar as canelas a qualquer momento. Creio que já fez o testamento.

- Sim.

- Bem, você ou qualquer pessoa deve ir dar-lhe uma olhadela... é o último da irmandade. Já fez cem anos, sabe. Dizem que parece uma múmia. Onde é que você o vai pôr? Deveria ter direito a uma pirâmide.

Soames sacudiu a cabeça.

- Em Highgate, no mausoléu da família.

- Sim, creio que as velhotas sentiriam a falta dele, se o pusessem em qualquer outro lugar. Dizem que ele ainda toma um certo interesse pelo que come. Teima em viver, você compreende. Será que nós outros temos alguma coisa dos velhos Forsyte? Em dez deles, a média de idade é oitenta e oito anos. Andei a verificar isso.

- É tudo? - perguntou Soames. - Tenho de ir andando. «Diabo insociável!», pareciam dizer os olhos de George.

- Sim, é tudo. Vá vê-lo no mausoléu onde está. O velho deve querer fazer alguma profecia. - A careta morreu-lhe nas gordas curvas do rosto, e George acrescentou: - Vocês, advogados, já inventaram algum meio de ludibriar esse infernal imposto sobre a renda? Atinge os que têm rendimentos fixos de herança como o Diabo em pessoa. Eu, que estava acostumado a ter por ano duas mil e quinhentas libras, tenho agora umas miseráveis mil e quinhentas. E o custo da vida duplicou.

- Então - murmurou Soames - o turf está em perigo. Sobre o rosto de George agitou-se um sardónico movimento

de autodefesa.

- Bem - disse ele -, obrigaram-me a não fazer nada, e aqui estou eu, secando ao sol, ficando cada dia mais pobre. Esses trabalhistas tencionam tomar conta de tudo de uma hora para a outra. E que é que você pretende fazer da vida, quando isso acontecer? Eu vou trabalhar seis horas por dia, ensinando aos políticos como apreciar uma pilhéria. Aceite o meu palpite, Soames, entre para o Parlamento, garanta as suas quatrocentas libras e dê-me o emprego.

E, como Soames se retirava, George voltou à sua cadeira na varanda.

Soames avançou por Picadilly, mergulhado em reflexões decorrentes das palavras do primo. Ele sempre fora trabalhador e poupado... George sempre pródigo e mandrião. No entanto, se começasse realmente uma confiscação, seria ele - o trabalhador e o económico - o prejudicado! Aquilo era a negação de todas as virtudes, o desmoronar de todos os princípios dos Forsyte! Poderia a civilização construir-se sobre outros princípios? Soames achava que não. Bem, de qualquer modo não lhe confiscariam os quadros, pois não lhes conheceriam o valor. Porém, que poderiam eles valer, então, se aqueles maníacos se pusessem a dissolver o capital?

«Não me importo comigo», pensava ele. «Na minha idade. posso viver com quinhentas libras por ano, sem sentir nenhuma diferença.»- Mas Fleur! Aquela fortuna tão amplamente capitalizada, aqueles tesouros tão cuidadosamente escolhidos e guardados, eram tudo para a filha. E se as coisas se alterassem de tal maneira que já não lhe fosse possível deixá-los para ela, então a vida não teria sentido. E que lhe adiantava ir ver aquela louca exposição futurista, a fim de saber se aquilo tinha algum futuro?

No entanto, ao chegar à galeria de Cork Street, Soames pagou o seu shilling, agarrou um catálogo e entrou. Umas dez pessoas rondavam por lá. Soames pôs-se a andar e dirigiu-se para o que lhe pareceu representar um candeeiro de rua depois da colisão de um ónibus. Estava afastado uns três passos da parede e tinha esta legenda: «Júpiter». Examinou a coisa com curiosidade, pois agora dedicava uma certa atenção à escultura. «Se isto é Júpiter», pensou ele, «gostaria de saber com que se parece Juno.» E subitamente viu Juno - do lado oposto. Parecia-se com uma bomba que possuísse dois braços, ligeiramente recoberta de neve.

E estava ainda a olhá-la, esgazeado, quando dois dos visitantes se aproximaram. «Épatant!», ouviu um deles dizer.

«Que gíria!», rosnou Soames para si próprio.

A voz do outro rapaz replicou:

- Tolice, meu velho. Isso aí é uma pilhéria. Ao fabricar esse Júpiter e essa Juno, o autor pensava: «Vamos ver até onde vai a capacidade de engolir do idiota do público.» E vocês engoliram ambos.

- Você é que é um cretino! Vospovich é um inovador. Então não vê a sátira que há nesta escultura? O futuro das artes plásticas, da música, da pintura e até mesmo da arquitectura, está na sátira. O povo já está farto até à garganta de sentimentalismos.

-Bem, pois eu não deixo assim mesmo de me interessar um pouco pela beleza. E combati durante a guerra. O senhor deixou cair o seu lenço, cavalheiro.

Soames viu um lenço erguido defronte de si. Agarrou-o com uma certa suspeita natural e aproximou-o do nariz. Tinha o cheiro autêntico - uns longes de água-de-colónia - e as suas iniciais a um canto. Ligeiramente tranquilizado, ergueu os olhos até ao rosto do rapaz: orelhas sensíveis, boca risonha, com um bigode que parecia uma escova sobre os cantos dos lábios - tudo isso junto a uma aparência normalmente vestida.

- Obrigado - disse ele. E, movido por uma espécie de irritação, acrescentou: - Gostei de ouvi-lo dizer que aprecia o que é belo. Isso é raro, hoje em dia.

- Adoro-o - retorquiu o moço. - Porém, o senhor e eu somos os últimos da velha guarda, sir.

Soames sorriu.

- Se realmente se interessa por pintura - disse ele -, tome o meu cartão. Posso mostrar-lhe alguns belos quadros, num domingo destes, se o senhor quiser descer o rio e chegar até lá.

- É muito gentil, sir. Correrei para lá, como um pássaro. O meu nome é Mont. Michael Mont. - E tirou o chapéu.

Soames, já lamentando aquele impulso, ergueu ligeiramente o chapéu em resposta, com um olhar de viés para o companheiro do rapaz, que exibia uma gravata purpurina, umas suíças espantosas e um ar escarninho - como se fosse um poeta!

Era aquela a primeira indiscrição que Soames cometia desde há muitíssimo tempo, e, sentindo necessidade de se isolar, sentou-se num gabinete lateral. Que demónio o possuíra, fazendo-o oferecer o seu cartão àquele jovem estouvado, que se fazia acompanhar de um fenómeno daqueles?

E Fleur, sempre no fundo do seu pensamento, mostrou-se como a figurinha que salta de dentro de um relógio ao bater das horas. Na parede oposta ao pequeno gabinete havia uma enorme tela com grandes borbulhas quadradas cor de tomate pintadas nela, e nada mais - tanto quanto Soames podia ver do lugar onde estava. Olhou para o catálogo: «N.o 32 A Cidade Futura - Paul Post.» «Deve ser sátira, também», pensou Soames. «Que coisa!» Mas o seu segundo impulso foi mais cauteloso. Não devia condenar apressadamente. Aquelas criações riscadas e listradas de Monet tinham-se tornado um trunfo - delas saiu a escola «listrada». E Gauguin. Porque, mesmo depois das Pós-impressionistas, houvera alguns pintores que não eram de desprezar. E, na verdade, durante os trinta e oito anos da sua vida de connoisseur, assistira a tantos «movimentos», vira variar tanto o fluxo e o refluxo do gosto e da técnica, que não se poderia dizer nada de definitivo além de que havia dinheiro a ganhar a cada mudança da moda. Aquilo, pois, também poderia ser um desses casos a respeito dos quais se deve ou sufocar um instinto primordial ou perder o mercado.

Ergueu-se e parou diante do quadro, procurando com esforço olhá-lo com os olhos das outras pessoas. Acima das borbulhas cor de tomate havia o que lhe pareceu um pôr-do-sol, até que alguém, de passagem, comentou: «Ele traçou maravilhosamente os aviões, não traçou?» Por baixo das borbulhas havia uma listra branca com riscas verticais pretas, às quais até então Soames não pudera atribuir qualquer significação, quando outro visitante notou: «Que expressão ele soube dar a esse fundo!» Expressão? Expressão de quê? Soames voltou para a sua cadeira. A coisa era «rica», como o teria dito seu pai. Expressão! Ah, mas segundo ouvira, agora, no Continente, todos eram expressionistas!

De forma que a coisa já estava então a chegar ali! E Soames recordou a primeira epidemia de gripe em 1887-ou 88-, partida da China, conforme se dizia. Aquilo era uma epidemia legítima!

Apercebeu-se da presença de uma mulher e de um rapaz, em pé, entre ele e a Cidade do Futuro. Estavam de costas, mas subitamente Soames pôs o seu catálogo diante do rosto, e, puxando o chapéu sobre a testa, olhou pela frincha que se formara entre os dois obstáculos. Não podia enganar-se com aquele dorso, ainda elegante, embora os cabelos se houvessem tornado grisalhos. Irene! A sua esposa divorciada - Irene! E o rapaz, sem dúvida, era o filho dela-filho daquele vJolyon Forsyte -, o filho deles, seis meses mais velho que Fleur. E, remoendo no espírito os amargos dias do divórcio, ergueu-se a fim de sair do campo visual deles. Mas, rapidamente, voltou a sentar-se. Ela voltara a cabeça para falar ao filho. O perfil ainda se mantinha tão jovem que os cabelos grisalhos pareciam empoados para uma máscara e os seus lábios sorriam de um modo como jamais Soames, seu primeiro possuidor, os vira sorrir. Admitiu, irritado, que ela ainda era bonita e, de corpo, quase tão jovem como sempre. E como o rapaz sorrira em resposta à mãe! A emoção constrangeu o coração de Soames. Aquele espectáculo feria o seu sentimento de justiça. Invejava a Irene aquele sorriso do rapaz. Ultrapassava de muito o sorriso que lhe dava Fleur, e era concedido indevidamente. Aquele rapaz deveria ser filho dele, Fleur deveria ser filha dela, se Irene houvesse procedido bem. Tirou o catálogo da frente do rosto. Se ela o visse, melhor! Era uma lembrança da sua má conduta em presença do filho, que decerto não sabia nada a esse respeito, seria provavelmente um salutar toque do dedo daquela Némesis que, certamente, cedo ou tarde, a visitaria. Depois, consciente de que tais pensamentos eram extravagantes num Forsyte da sua idade, Soames olhou o relógio. Mais de quatro! Fleur estava atrasada. Fora a casa da prima, Imogen Cardigan, e lá deveriam ter-se entretido a tagarelar e a fumar. Ele ouviu o rapaz rir e dizer vivamente: «Garanto, mamã, que este é um dos desvalidos da tia June.»

- Paul Post. Sim, creio que é, querido.

A última palavra provocou um pequeno choque em Soames.

Nunca ouvira Irene usá-la. Foi então que ela o viu. Nos olhos de Soames deveria ter aparecido algo idêntico ao olhar sardónico de George Forsyte, porque a mão enluvada de Irene crispou-se nos folhos da saia, as sobrancelhas ergueram-se, o rosto tornou-se de pedra. E ela saiu dali.

- Isso é uma garantia - disse o rapaz, segurando-lhe de novo o braço.

Soames pôs-se de pé e seguiu-os. O rapaz era bonito, com um queixo de Forsyte, profundos olhos cinzentos, mas com qualquer coisa de ensolarado levemente espalhado sobre ele, como se o houvessem borrifado com um copo de velho sherry - o sorriso, talvez, ou os cabelos. Muito melhor do que o mereciam - aqueles dois! Saíram-lhe da vista, entraram na sala vizinha, e Soames continuou a olhar a Cidade do Futuro, mas não a via. Um leve sorriso encrespava-lhe os lábios. Sentia um certo desprezo pela veemência dos seus sentimentos durante todos aqueles anos. Fantasmas! Mas afinal, quando envelhecemos, que vemos atrás de nós além de fantasmas? É verdade que havia Fleur! E ele fixou o olhar na entrada. Já estava atrasada - mas na certa ainda o iria fazer esperar! E subitamente apercebeu-se de uma espécie de brisa humana - um pequeno e esguio vulto vestido num djibbah verde-mar, com um cinto de metal e uma rede a prender-lhe os cabelos de ouro avermelhado, já estriados de branco. Ela conversava com os frequentadores da galeria e havia algo de familiar no seu aspecto - os olhos, o queixo, o cabelo, o espírito-, algo que sugeria um pequeno e feroz terrier antes do seu jantar. Sem dúvida nenhuma era June Forsyte! A sua prima June - e caminhando directamente para o seu esconderijo! Ela sentou-se junto dele, mergulhada numa reflexão qualquer, agarrou um caderninho e pôs-se a escrever notas a lápis..Soames continuava sentado imóvel. Que coisa infernal aquilo do parentesco! «Repugnante», ouviu-a murmurar. Depois, como pressentindo a presença de um estranho, ela olhou-o. Acontecera o pior.

- Soames!

Soames voltou ligeiramente a cabeça.

- Como vai? - disse ele. - Não a vejo há vinte anos.

- Pois é. Que foi que o trouxe aqui?

- Os pecados - respondeu Soames. - Que droga!

- Droga! Oh, sim, naturalmente. Este pintor ainda não tem cartaz.

- Nunca o terá - disse Soames. - É um peso morto.

- Naturalmente que é.

- Como é que sabe?

- Esta galeria é minha. Soames bufou de surpresa.

- Sua? Por que diabo mantém uma exposição como esta?

- Não trato a Arte como secos e molhados. Soames apontou para a Cidade do Futuro.

-Olhe para aquilo. Quem irá viver numa cidade como aquela?

June contemplou o quadro por um momento.

- Éuma visão - disse ela.

- Coa breca!

Houve um silêncio, depois June ergueu-se. «É doida!», pensou ele.

- Bem - disse Soames -, você encontrará aqui o seu irmão, junto com uma mulher muito minha conhecida. Se quer um bom conselho, feche esta exposição.

June olhou-o.

- Oh, Forsyte! - disse, saindo imediatamente.

Havia um ar de perigosa decisão na sua leve e alada figura. Forsyte! Naturalmente, ele era um Forsyte. E ela também o era! Porém, desde o momento em que, rapariga ainda, June trouxera Bosinney para lhe despedaçar a vida, Soames nunca perdoara isso à prima - e nunca o perdoaria. E agora era - ainda solteira - proprietária de uma galeria de arte! Subitamente, Soames apercebeu-se de quão pouco andava informado sobre os feitos e atitudes da sua família. As velhas tias da casa de Timothy já haviam morrido há muitos anos e não havia nenhum ponto de reunião para as novidades. Que tinham feito todos eles durante a guerra? O filho de Roger filho fora ferido, o segundo filho de St. John Hayman morrera, o primogénito de Nicholas filho recebera uma alta condecoração, ou coisa parecida.

Todos haviam participado um pouco da luta, segundo acreditava. Aquele filho de Jolyon e Irene é que deveria ser muito moço para combater, e a sua própria geração era velha de mais, embora Giles Hayman houvesse conduzido ambulâncias da Cruz Vermelha e Jesse Hayman ocupasse um posto na milícia civil - aqueles «Siameses» sempre haviam sido uns camaradas no desporto! Quanto a si próprio, fizera doação de uma ambulância automóvel, lera os jornais até adoecer, atravessara muitas angústias, não comprara roupas, perdera sete quilos de peso. E não sabia que mais poderia fazer na sua idade. Com efeito, pensando nisso agora, impressionou-o o facto de a sua família ter encarado esta guerra de modo muito diferente de como encarara a guerra dos Boers - acusada de haver esgotado todos os recursos do Império. É verdade que na outra guerra o seu sobrinho Val Dartie fora ferido, o primeiro filho de Jolyon morrera de tifo, os "Siameses)" haviam ido para a África com o seu regimento de cavalaria e June servira como enfermeira. Mas tudo aquilo fora considerado extravagância - enquanto «nesta» guerra toda a gente cooperara com o seu quinhão, tanto quanto lhe era possível, evidentemente. Parecia ser a prova do crescimento de alguma coisa - ou o declínio de uma outra coisa. Seria que os Forsyte tinham ficado menos individualistas, mais imperiais, menos provincianos? Ou era simplesmente porque todos odiavam os Alemães? Porque não vinha Fleur, obrigando-o a sair dali? Viu June, Irene e o rapaz voltarem juntos da outra sala e passarem pelo extremo oposto. O rapaz parou defronte de Juno. E subitamente, do outro lado da estátua, Soames avistou a sua própria filha com os super-cílios erguidos ao máximo. Pôde ver os olhos dela a deslizarem de lado para o rapaz, e o rapaz olhá-la também. Então Irene enfiou a mão no braço do filho e fê-lo andar. Soames viu-o olhando em torno e Fleur a olhá-los enquanto os três se afastavam.

Uma voz disse calorosamente:

- Um pouco obscuro, não é, sir?

Era o rapaz que lhe apanhara o lenço e que passava de novo por ali. Soames assentiu com a cabeça.

- Não sei até onde eles irão.

- Oh, tudo acabará muito bem, sir- respondeu animadamente o rapaz. -Não vão para lugar nenhum.

A voz de Fleur disse:

- Olá, papá! Cá está o senhor! - precisamente como se fosse ela quem estivera esperando.

O rapaz, tirando o chapéu, continuou o caminho.

- Bem - disse Soames, olhando-a de cima a baixo -, você é o que se pode chamar uma moça pontual!

Aquele seu tesouro preciosíssimo era de estatura mediana, com cabelos curtos, castanho-escuros, os olhos também castanhos, um pouco afastados, tinham as córneas tão brancas que luziam ao seu mover, e em repouso eram quase sonhadores sob o branco puríssimo das pálpebras franjadas de cílios pretos muito espessos. Tinha um perfil encantador e nada do pai no rosto, salvo o queixo resoluto. Sabendo que a sua expressão se abrandava quando a olhava, Soames franziu o cenho, para preservar o seu ar pouco emotivo, característico dos Forsyte. Sabia que ela estava sempre a aproveitar-se da sua fraqueza.

Enfiando a mão pelo braço do pai, ela perguntou:

- Quem é aquele rapaz?

- Apanhou o meu lenço. Conversávamos acerca de quadros.

- Está com intenção de comprar isto, papá?

- Não - disse Soames, chocarreiro. - Nem aquela Juno para que estava a olhar.

Fleur pendurou-se no braço dele.

- Oh, não diga! É uma exposição fantasmagórica!

Na porta de entrada passaram pelo rapaz chamado Mont e pelo seu companheiro, mas Soames deteve-se ante um quadro intitulado Os Intrusos Serão Perseguidos e mal se apercebeu do cumprimento do moço.

- Bem - perguntou ele na rua -, quem foi que encontrou em casa de Imogen?

- A tia Winifred e aquele Monsieur Profond.

- Oh - resmungou Soames. - Aquele sujeito! Que é que a sua tia vê nele?

- Não sei. Parece interessante. A mamã diz que gosta dele. - Soames rosnou. - O primo Val e a mulher também estavam lá.

- O quê! - exclamou Soames. - Pensava que eles tinham voltado para a África do Sul.

- Oh, não! Venderam a fazenda. O primo Val vai treinar cavalos de corrida no Sussex. Arranjaram uma linda casa nobre antiga. Convidaram-me para ir lá.

Soames tossiu. As notícias eram-lhe desagradáveis. - Como é a mulher dele?

- Muito calada, mas bonita, achei eu. Soames tossiu novamente.

- O seu primo Val é um sujeito meio doido.

- Oh! Não, papá. Os dois adoram-se. Prometi ir no sábado ou na próxima quarta-feira.

- Treinar cavalos de corrida!-disse Soames. Era uma extravagância, mas não uma razão para o seu desagrado. Por que diabo não ficara o sobrinho na África do Sul? O seu divórcio já fora assunto bastante desagradável, mesmo não levando em conta o casamento de Val com a filha do cúmplice de sua mulher. E, além disso, irmã de June, irmã também daquele rapaz para quem Fleur estivera a olhar junto à bomba-deusa. Se não tomasse cuidado, ela acabaria por saber tudo acerca daquelas velhas desgraças! Coisa desagradável! Estavam a rondá-lo, naquela tarde, como um enxame de abelhas! - Não gosto disso! -acrescentou.

- Quero ver os cavalos de corrida - disse Fleur - e eles prometeram-me que eu montaria. O primo Val não pode andar muito, como sabe, mas monta perfeitamente. Vai ensinar-me a galopar.

- Corridas! - disse Soames. - É uma pena que a guerra não tenha acabado com isso! Creio que ele herdou a mania do pai.

- Não sei nada a respeito do pai dele.

- Não - retorquiu Soames com asco. - Ele interessava-se por cavalos e quebrou o pescoço em Paris ao subir uma escada. Foi um alívio para a sua tia.

E franziu o cenho à lembrança do inquérito que ele realizara em Paris, seis anos atrás, a respeito daquela queda de escada, pois Montague Dartie não o poderia realizar. Era uma escada comum, normalíssima, numa casa onde jogavam bacarat. As suas vitórias, ou o modo como as celebrara, haviam subido à cabeça do cunhado.

O inquérito policial francês fora muito negligente e aquilo dera-lhe um trabalhão.

Uma palavra de Fleur distraiu-lhe a atenção.

- Olhe. As pessoas que estavam connosco na galeria!

- Que pessoas? - resmungou Soames, que sabia perfeitamente de quem se tratava.

- Eu acho aquela mulher linda.

- Vamos entrar na confeitaria - disse abruptamente Soames. E, segurando-lhe o braço com a mão como uma garra, fê-la entrar na casa. O gesto, partindo de Soames, era surpreendente, e ele perguntou quase ansioso: - Que é que você quer?

- Oh, não quero nada. Tomei um cocktail e comi um lunch enorme.

- Temos de tomar alguma coisa, uma vez que estamos aqui - murmurou Soames, segurando-lhe o braço. - Dois chás - pediu. - E duas daquelas tortas de nozes.

Porém, mal se sentara, a alma dele saltou da cadeira. Aqueles três - aqueles três vinham a entrar! Ouviu Irene dizer qualquer coisa ao filho e a resposta do rapaz:

- Oh, não, mamã. Este lugar é muito bom. E os três sentaram-se.

Naquele momento, um dos mais penosos da sua existência, rodeado de fantasmas e de sombras do passado, na presença das duas únicas mulheres que amara no mundo - a mulher de quem se divorciara e a filha -, Soames tinha muito menos receio delas que da sua prima June. Ela podia fazer uma cena - podia apresentar os dois primos, ela era capaz de tudo. Mordeu apressadamente a torta e um pedaço de noz entalou-se na dentadura. E, procurando arranjá-la com o dedo, olhava para Fleur.

Ela mastigava, sonhadora, mas os seus olhos não se afastaram do rapaz. O Forsyte dentro de Soames disse: «Pensa, sente, e estás perdido!» E mexia desesperadamente os dedos. Dentadura! Seria que Jolyon usava uma dentadura? Seria que aquela mulher também usava dentadura? Houvera um tempo em que a vira sem usar nada! Isso era alguma coisa, de qualquer modo, e nunca lhe poderia ser roubado. E ela sabia disso, embora pudesse sentar-se ali calma e senhora de si, como se nunca houvesse sido sua mulher.

Um humor ácido percorreu-lhe o sangue de Forsyte, uma dor subtil, que apenas a espessura de um cabelo separava do prazer no seu coração. Se ao menos June não tomasse de repente o freio nos dentes!

«É claro, tia June.»

Então ele chamava tia à irmã? Bem, na verdade, ela já devia ter cinquenta anos.

- É claro que acho muito bonito você estimá-los. Apenas, aceitar aquilo tudo...

Soames arriscou um olhar. Os olhos bem abertos de Irene estavam pousados devotamente no filho. Ela tivera aquele olhar para Bosinney, para o pai daquele menino e para o filho! Tocou no braço de Fleur e disse:

- Bem, já está farta?

- Só mais um, papá, por favor.

Ela ia adoecer! E Soames dirigiu-se à caixa a fim de pagar. Quando voltou, viu Fleur de pé junto à porta, segurando um lenço que evidentemente o rapaz lhe entregara.

- F. F. - ouviu-a dizer. - Fleur Forsyte... sim, é meu. Muito obrigada.

Santo Deus! Ela imitara a cena que lhe contara ter-se passado na galeria!

- Forsyte? Mas é também o meu nome. Talvez sejamos primos.

- Na verdade! Devemos ser. Não há outros. Eu vivo em Mapledurham. E o senhor?

- Em Robin Hill.

As perguntas e as respostas sucederam-se tão rapidamente que tudo estava dito antes que ele pudesse levantar um dedo. Viu o rosto de Irene animar-se ante um sentimento violento, fez uma ligeira inclinação de cabeça e segurou o braço de Fleur.

- Vamos! - disse ele. Ela não se moveu.

- Não ouviu, papá? Não é esquisito? Os nossos nomes são os mesmos. Seremos primos?

- O quê? Forsyte? Talvez primos afastados.

- O meu nome é Jolyon, sir. Jon, na intimidade.

- Oh! Ah! - disse Soames. - Sim, primos afastados. Como vai? Prazer em vê-lo. Adeus.

E afastou-se.

- Muitíssimo obrigado - disse ainda Fleur. - Au revoir!

- Au revoir! - ouviu o rapaz responder.

 

A LINDA FLÉUR FORSYTE

Ao sair da confeitaria, o primeiro impulso de Soames foi censurar a filha por ter deixado cair o lenço, mas ela poderia muito bem responder-lhe: «Aprendi consigo!» O seu segundo impulso fora deixar que as coisas adormecidas continuassem assim. Ela perguntou meigamente:

- Porque é que não gosta daqueles primos, papá? Soames ergueu o canto do lábio.

- Que é que lhe faz pensar isso?

- Cela se voit.

«Salta aos olhos!» Que maneira de explicar as coisas!

Depois de vinte anos de vida com uma mulher francesa, Soames ainda tinha uma precária simpatia pela língua dela, linguagem de teatro e cúmplice, no seu espírito, de todos os refinamentos da ironia doméstica.

- O quê? - perguntou ele.

- O papá deve conhecê-los, e não deu mostras disso. Vi-os a olharem para nós.

- Nunca vi aquele rapaz em toda a minha vida - respondeu Soames, falando com absoluta verdade.

- Não, mas já tinha visto as outras, querido.

Soames tornou a olhá-la. Que bicho a mordera? Seria que Winifred, Imogen ou Val Dartie lhe haviam dito qualquer coisa?

A mais longínqua referência ao velho escândalo sempre fora cuidadosamente afastada dos ouvidos da rapariga, e Winifred estava prevenida de que Fleur não devia ouvir um murmúrio sequer a tal respeito, quando estivesse em sua casa. Tanto quanto a filha o poderia saber, ele nunca fora casado antes. Mas os olhos escuros da pequena, cujo lampejo meridional e limpidez às vezes o assustavam, encontraram os seus com perfeita inocência.

- Bem - disse ele -, o seu avô e o avô dele, que eram irmãos, tiveram uma briga. As duas famílias não se conhecem uma à outra.

- Que romântico!

«Bem, que é que ela agora quer dizer com isto?», pensou o pai. Aquela palavra parecia-lhe extravagante e perigosa - era como se ela houvesse dito: «Que lindo!»

- E devem continuar a não se conhecerem uma à outra - acrescentou ele, lamentando imediatamente a ameaça que havia na sua voz.

Fleur sorria. Na época actual, quando os jovens se orgulhavam em escolher os seus próprios caminhos e não prestavam a mínima atenção a qualquer espécie de preconceitos de decência, ele dissera exactamente as palavras necessárias para desafiar a desobediência da filha. E então, recordando a expressão do rosto de Irene, tornou a suspirar.

- Que espécie de briga? - ouviu Fleur perguntar.

- Por causa de uma casa. É uma história muito velha para Lhe interessar. O seu avô morreu no dia em que você nasceu. Tinha noventa anos.

- Noventa? E ainda há mais Forsytes além desses?

- Não sei - disse Soames. - Estão todos dispersos agora. Os da velha geração morreram todos, excepto Timothy.

Fleur bateu as mãos.

- Timothy? Não é delicioso?

- Absolutamente - argumentou Soames.

Ofendia-o o facto de ela considerar Timothy «delicioso» - uma espécie de insulto à sua estirpe. Esta nova geração zombava de tudo o que fosse sólido e tenaz. «Você deve ir ver o velho. Talvez ele queira fazer alguma profecia.» Ah! Se Timothy pudesse ver a ruidosa Inglaterra dos seus sobrinhos-netos, certamente se abriria em imprecações. E involuntariamente Soames lançou uma olhadela ao Iseeum. Sim, George ainda estava à janela, com o mesmo papel cor-de-rosa na mão.

- Onde é Robin Hil, papá?

Robin Hill! Robin Hill, que centralizara toda aquela tragédia! Que quereria ela saber?

- No Surrey - murmurou ele. - Perto de Richmond. Porquê?

- E a tal casa é lá?

- Que casa?

- A casa que provocou a briga.

- Sim. Mas porque é esse interesse todo? Vamos voltar para casa amanhã. É melhor que cuide dos seus vestidos.

- Ora,, papá! Já cuidei de tudo. Então é uma intriga de família? É como na Bíblia ou em Mark Twain... a coisa mais excitante do mundo! Que parte tomou o papá no caso?

- Não se preocupe com isso.

- Oh! Então não tenho de tomar parte no ódio?

- Quem lhe mandou tomar parte?

- Você, querido.

- Eu? Eu disse que não tinha nada com isso.

- É exactamente o que eu penso. Então está bem.

Ela era esperta de mais para ele, fine, como às vezes lhe chamava Annette. E ele disse, para lhe distrair a atenção, parando em frente de uma loja:

- Vi aqui uma renda que, pensei, há-de agradar-lhe. Depois que pagou a renda e voltaram a caminhar, Fleur perguntou:

- Não acha que a mãe daquele rapaz é, na idade dela, a mulher mais linda, que já viu?

Soames estremeceu. Era incrível como ela conseguira perturbá-lo.

- Não sei se reparei nela.

- Oh, querido, vi muito bem o cantinho dos seus olhos.

- Você vê tudo... e muito mais, está a parecer-me!

- Com quem se parece o marido dela? Deve ser seu primo em primeiro grau, já que o seu pai e o dele eram irmãos.

- Segundo eu soube, já morreu - disse Soames com súbita veemência. - Deixei de o ver há mais de vinte anos.

- Que era ele?

- Pintor.

- É uma coisa bonita.

As palavras «Se quer ser-me agradável, tire essa gente da cabeça» subiram aos lábios de Soames, mas conteve-as. Não devia consentir que ela lhe percebesse os sentimentos.

- Ele insultou-me certa vez - respondeu.

Os vivos olhos da moça demoraram-se no rosto do pai.

- Bem vejo! O papá não se vingou, e isso ainda o rói. Pobre papá! Fico cada vez mais interessada!

Ele sentia-se realmente como uma pessoa deitada no escuro com um mosquito a zumbir-lhe junto ao rosto. Aquela pertinácia da parte de Fleur era nova para ele, e, quando chegaram ao hotel, ele disse, aborrecido:

- Fiz o que pude. E agora chega de falar daquela gente. Vou ficar lá em cima até à hora do jantar.

- Eu fico sentada aqui.

Com um olhar de despedida para a filha, reclinada numa poltrona - olhar meio de ressentimento!, meio de adoração-, Soames entrou no elevador e subiu até ao seu apartamento no quarto andar. Parou junto à sacada da sala de estar, que dava para o Hyde Park, e ficou a tamborilar os dedos no peitoril. Os seus sentimentos estavam confusos, coléricos, perturbados. O latejar daquela velha ferida, cicatrizada pelo tempo e por novos interesses, misturava-se ao desprazer e à inquietação. Além disso, sentia uma ligeira dor na boca, que o pedaço de noz magoara. Annette já teria voltado? Não que ela pudesse ser-lhe de qualquer utilidade naquela emergência. Sempre que a mulher llhe fazia perguntas a respeito do seu primeiro casamento, ele mandava-a calar, e ela não sabia nada acerca dessa união, além de que fora a grande paixão da vida do marido e que o seu casamento com ela, Annette, não fora mais que um arranjo doméstico. Ela,, aliás, sempre lançara mão dessa circunstância e utilizara-a, por assim dizer, comercialmente. Soames escutou, Um som - o vago murmúrio de movimentos femininos - vinha até ele através da porta. Annette chegara. E ele bateu à porta.

- Quem é?

- Eu - disse Soames.

Annette estava a mudar de roupa e ainda não se vestira de todo - uma bela figura defronte do espelho. Havia uma certa magnificência nos seus braços, nas espáduas, nos cabelos- que tinham escurecido depois que ele a conhecera-, no roliço do pescoço, na seda das suas roupas íntimas, nos grandes olhos azuis de cílios escuros. Aos quarenta anos, Annette ainda era, indiscutivelmente, tão bonita como sempre fora. Uma rica propriedade, uma excelente dona de casa, uma mãe bastante sensível e afectuosa. Se ao menos ela não fosse às vezes tão francamente cínica a respeito das relações entre ambos! Soames, que não tinha mais afeição pela mulher do que ela tinha por ele, sentia uma espécie de mágoa na sua susceptibilidade britânica por ela nunca ter tentado pôr o mais ténue véu de sentimento sobre a associação deles. Igual à maioria dos seus conterrâneos e suas mulheres, ele mantinha a opinião de que o casamento deve ser baseado no amor recíproco e que, quando o amor de um casamento desaparece, ou quando se descobre que o amor nunca existiu, e a união carece portanto dessa base indispensável, não se deve admitir isso. Se o casamento existe e o amor falta - devemos proceder como se o amor existisse! Marido e mulher concordam ambos nesse ponto - sem o cinismo, o realismo e a imoralidade dos Franceses!

E, acima de tudo, isso é necessário no interesse da propriedade. Ele sabia que ela sabia que ambos sabiam que não havia amor entre os dois, mas ele ainda esperava que ela não admitisse tal coisa, por palavras ou por obras, e não podia compreender quando ela se referia à hipocrisia dos Ingleses. E perguntou:

- Quem foi que você convidou para o Shelter na próxima semana?

Annette, delicadamente, dava aos lábios um toque de bâton embora Soames sempre tivesse desejado que ela não o fizesse.

- A sua irmã Winifred, os Cardigan - e deu aos olhos um leve toque de negro - e Prosper Profond.

- Esse belga? Porquê?

Annette volveu preguiçosamente o pescoço, tocou nos cílios e disse:

- Ele diverte Winifred.

- Prefiro alguém que divirta Fleur. Ela é voluntariosa de mais.

- Voluntariosa? É a primeira vez que percebe isso, meu amigo? Ela nasceu voluntariosa, como você diz.

Numca perderia aquele sotaque afectado ao pronunciar os «ar»? Tocou no vestido que ela tirara e perguntou:

- Que andou a fazer?

Annette olhou para o reflexo do marido que se projectava no espelho. Os seus lábios sorriram, meio alegre, meio ironicamente:

- Andei a divertir-me.

- Oh! - respondeu Soames, de mau humor. - Com ninharias, imagino. - Era essa a sua expressão para designar a incompreensível peregrinação de loja em loja com que as mulheres se comprazem. - Fleur já preparou as toilettes de Verão?

- Você não me pergunta pelas minhas.

- Você não se importa se eu pergunto ou não.

- Realmente. Bem, já preparou. E eu preparei as minhas... terrivelmente caras.

- Hum! - resmungou Soames. - Que é que esse tal Profond faz na Inglaterra?

Annette soergueu as sobrancelhas, que acabara de arranjar.

- Tem um iate.

- Ah! É um sujeito aborrecido.

- Às vezes - retorquiu Annette. E o seu rosto mostrava uma expressão de divertimento. - Mas às vezes é muito divertido.

- Ele tem sangue de negro. Annette endireitou-se.

- Sangue de negro? A mãe dele era arménienne.

- Então é isso - resmungou Soames. - Ele percebe alguma coisa de quadros?

- Percebe de tudo... é um homem do mundo.

- Bem, arranje alguém para Fleur. Quero distraí-la. Vai no sábado para casa de Val Dartíe e da mulher. Não gosto nada disso.

- Porque não?

Já que os motivos não podiam ser explicados sem entrar na história da família, Soames respondeu apenas:

- Serão mais aborrecimentos. Já os tenho de sobra.

- Gostei de Mrs. Val. É muito calada e bonita.

- Não sei nada sobre ele, excepto... Mas isto é novo. - E Soames apanhou um vestido de último modelo de sobre a cama.

Annette recebeu-o das mãos dele.

- Quer abotoar-me os colchetes?

Soames abotoou-a. Olhando uma vez por sobre o ombro da mulher, em direcção ao espelho, viu a expressão do seu rosto, um pouco divertida, um pouco contida, como dizendo: «Obrigada, você nunca há-de aprender!» Não, graças a Deus ele não era um francês! E acabou com um gemido e estas palavras:

- Está decotado de mais. - E atravessou a porta, desejoso de se afastar da mulher e voltar para junto de Fleur.

Annette apanhou um arminho de pó de arroz e exclamou subitamente:

- Que vous êtes grossier!

Ele conhecia a expressão... e compreendia-a.

A primeira vez que a ouvira, confundira-a com grocei - taberneiro. E, quando se informou melhor, não soube se deveria ficar aliviado ou não. Ele não era grosseiro! Se era grosseiro, que seria então esse sujeito do quarto vizinho, que arrotava horrendamente todas as manhãs, ou as pessoas que se reuniam na sala do hotel e consideravam elegante só falar de modo que toda a gente pudesse ouvi-las - a grasnar idiotices!

Grosseiro porque dissera que o vestido dela estava decotado de mais! Pois estava mesmo! E saiu sem dar resposta.

Chegando à sala, pela entrada do fundo, viu imediatamente Fleur, no mesmo lugar onde a deixara: sentada, de pernas cruzadas, balançando lentamente o pé calçado em meia de seda e sapatinho cinzento, sinal certo de que estava a sonhar. Os olhos dela também o atestavam - ficavam assim ausentes, às vezes. Mas de repente ela voltou a si e ficou tão viva e inquieta como um macaquinho. Entendia de tudo, tão cônscia de si - e tinha só dezanove anos! Qual

era aquela palavra odiosa? Flapper (1) - horríveis jovens, esganiçadas, ruidosas, com as pernas à mostra! As piores delas eram como pesadelos, as melhores pareciam anjos empoados! Fleur não era uma flapper, não era uma dessas raparigas que só se exprimiam em gíria - essas mulherzinhas sem educação. No entanto, era assustadoramente voluntariosa, cheia de vida e decidida a gozar essa vida. Gozar! A palavra não despertava qualquer terror puritano em Soames, mas despertava-lhe o terror adequado ao seu temperamento. Ele sempre receara gozar o dia de hoje, com medo de já não gozar o dia de amanhã. E era assustador que a filha dispusesse de idêntica salvaguarda. A própria maneira como a pequena se afundava na poltrona o mostrava: perdida nas suas cismas. Ele nunca se perdera em qualquer cisma, nunca houvera nada que o raptasse do mundo. De quem ela herdara aquilo é que ele não o sabia! De Annette é que não! É verdade que Annette, quando era rapariga e ele rondava em torno dela, tinha às vezes um olhar cismador. Bem, mas já o perdera!

Fleur ergueu-se da poltrona com um modo inquieto e dirigiu-se para uma mesa de escrever. Apanhando tinta e papel, começou a escrever uma carta, como se não tivesse tempo para respirar antes de a acabar. E de súbito avistou o pai. O ar de desesperada absorção desvaneceu-se e ela sorriu, atirou um beijo e fez uma cara engraçada, como se estivesse um pouco intrigada e um pouco maçada.

Ah! Ela era fine, fine.

 

*1. Flapper - expressão em moda na década de 1920 para designar as esbeltas raparigas do pós-guerra. (N. da T.)

 

EM ROBIN HILL

Jolyon passara o décimo nono aniversário do filho calmamente em Robin Hill, tratando dos seus negócios. Fazia tudo calmamente, nestes últimos tempos, porque o seu coração andava muito débil, e, como todos os da família, desagradava-lhe a ideia de morrer.

«A qualquer momento - e nada de abalos.» Ele recebera aquilo com um sorriso- a reacção natural dos Forsyte diante de uma verdade desagradável. Porém, sentindo um aumento de sintomas, quando, de comboio, regressava a casa, compreendeu bem a sentença que pesava sobre ele. Deixar Irene, o filho, a casa, o trabalho - embora trabalhasse muito pouco ultimamente! Deixamos, para penetrar na escuridão desconhecida - para o estado inimaginável, para o nada total, onde não poderia ter consciência sequer do vento que lhe atirava folhas sobre o túmulo, nem do cheiro das ervas e da relva, para aquele nada que, por mais que ele houvesse feito para o conceber, nunca conseguira. Pelo contrário, conservara mesmo a esperança de poder ver ainda aqueles que amava! Para realizar mentalmente isso, seria preciso afrontar muitas angústias pungentes. Antes de chegar a casa, no dia da consulta, resolvera esconder o seu estado a Irene. Tinha de ser mais cuidadoso que homem nenhum fora até então, porque a menor coisa poderia trair o seu segredo e abalá-la tanto como o abalara a ele. O médico dissera-lhe que tudo o mais estava bem - e setenta anos não é uma grande idade. Ele disporia de muito tempo ainda - se pudesse.

Tal conclusão, a que vinha obedecendo há dois anos, desenvolveu amplamente o lado mais subtil do carácter de Jolyon. Sendo já de natureza pouco violenta - excepto quando tinha os nervos excitados-, Jolyon tornou-se o controle feito homem. Aquela doentia paciência dos velhos que não conseguem excitar-se era mascarada nele pelo sorriso que os lábios mantinham sempre, até quando estava só. E estudava continuamente todas as maneiras de encobrir a sua forçada falta de actividade.

Troçando de si próprio por trabalhar tão pouco, fingiu ter-se convertido à Vida Simples, abandonou o vinho e os charutos e começou a beber uma qualidade especial de café que não continha cafeína. Em resumo, resguardou-se tanto quanto o seria possível a um Forsyte da sua condição, sob a égide da sua indulgente ironia. livre de indiscrições, já que a mulher e o filho estavam em Londres, passara os lindos dias de Maio a arrumar calmamente os seus papéis, de forma a poder morrer qualquer dia sem trazer inconveniente para ninguém, e organizou um relatório completo sobre o estado das suas propriedades. Fechou toda a documentação no velho armário chinês que fora de seu pai, guardou a chave num envelope e escreveu sobre ele estas palavras: «Chave do armário chinês, onde se encontra um relatório completo sobre os meus haveres. J. F.» Pôs o envelope no bolso interior do casaco, de maneira que ficasse sempre com ele, em caso de acidente. E então, pedindo o chá, foi tomá-lo sob o grande carvalho.

Tudo vive sob sentença de morte, e Jolyon, cuja sentença apenas era mais precisa e mais premente, já se acostumara tanto a ela que, tal como toda a gente, pensava noutras coisas. Pensava agora no filho.

Jon fazia dezanove anos naquele dia, e não chegara ainda a nenhuma decisão sobre a sua vida. Educado, não em Eton, como o pai, nem em Harrow, como o irmão mais velho, mas num desses estabelecimentos que são indicados como libertos dos males do sistema das Public School e detentores apenas do que elas têm de bom - e realizam ou não tais vantagens -, Jon acabara o curso em Abril, perfeitamente ignorante do que desejava ser. A guerra, que prometia prolongar-se indefinidamente, terminara exactamente quando ele já estava prestes a entrar para o exército, seis meses antes do tempo devido. Isso apanhara-o tão de repente que ainda não se acostumara à ideia de que, agora, já poderia escolher por si mesmo. Travara diversas discussões com o pai, onde, depois de afirmar calorosamente que estava pronto a dedicar-se a qualquer coisa - excepto, naturalmente, a Igreja, o Exército, a advocacia, o palco, a Bolsa, a medicina, o comércio e a engenharia -, Jolyon concluíra claramente que Jon não estava disposto a ocupar-se com coisa alguma. Ele próprio também se sentira assim, quando tinha a mesma idade. Mas com ele, aquele agradável vácuo fora cedo ocupado por um casamento prematuro, de tão infelizes consequências. Forçado a tornar-se agente de seguros do Loyd's, voltara à prosperidade antes que o seu talento artístico frutificasse. Mas Jon não nascera para pintor: Jolyon convencera-se disso quando tentara ensinar o rapaz a desenhar porquinhos e outros animais e, graças a essa aversão por tudo, ele concluiu que o rapazinho talvez viesse a ser um escritor. Mantinha porém a opinião de que a experiência era necessária até mesmo para essa profissão - de forma que conviria a Jon ir para a Universidade, viajar e frequentar jantares elegantes. Depois disso, ver-se-ia, ou melhor, não se veria nada, decerto. Mas jon, mesmo diante de todas essas seduções, continuava indeciso. Tais discussões com o filho haviam confirmado em Jolyon a sua dúvida: se o mundo mudara realmente. O povo dizia que aquela era uma nova Era. E com a profundidade de alguém que não está radicado de mais a nenhuma era, Jolyon compreendia que, sob uma superfície ligeiramente diversa, a Era ainda era justamente a que fora. O género humano continuava dividido entre duas espécies: os poucos que traziam a «especulação» na alma e os muitos que não tinham nada. E havia ainda um círculo de híbridos, tal como ele próprio, a separar as duas espécies. Jon parecia ter o seu quinhão na especulação. E o pai considerava isso uma má expectativa.

Com uma expressão mais profunda no seu sorriso habitual, ouvira o rapaz dizer, quinze dias atrás:

- Eu gostaria de experimentar a agricultura, papá. Não lhe sairia muito caro. Parece-me a única espécie de existência que não acarreta mal para ninguém. Excepto a arte, naturalmente, em que não posso sequer pensar.

Jolyon acentuou o sorriso e respondeu:

- Muito bem. Quer regressar ao que era o primeiro dos Jolyon, em 1760. Isso prova a teoria dos ciclos, e, incidentalmente, não há dúvida de que você conseguirá plantar melhores nabos do que ele.

Um pouco constrangido, Jon respondeu:

- Mas não acha que seja um belo projecto, papá?

- Provavelmente, meu filho. E, se realmente deseja fazer isso, fá-lo-á melhor que muitos homens... o que já não é pouco.

A si mesmo, entretanto, ele disse: «Não fará nada disso. Vou dar-lhe quatro anos. De qualquer forma, é um trabalho sadio e sem perigos.»

Depois de discutir o assunto e de consultar Irene, escreveu à filha, Mrs. Val Dartie, perguntando-lhe se eles conheciam algum fazendeiro vizinho nos Downs que recebesse Jon como praticante. A resposta de Holly foi entusiástica. Havia um sujeito excelente, muito pertinho, e ela e Val achavam magnífica a ideia de Jon ir viver com eles.

O rapaz deveria pois partir no dia seguinte.

Misturando o chá com uma gota de limão, Jolyon olhava para as folhas do velho carvalho e para aquela paisagem que ele apreciava havia já trinta e dois anos. A árvore sob a qual estava não parecia nem um dia mais velha.

Tão jovens as folhinhas de ouro queimado, tão velha a casca cinzento-esverdeada e alvacenta do tronco! Uma árvore carregada de recordações, que ainda poderia viver centenas de anos, e, a menos que algum bárbaro a cortasse, veria a velha Inglaterra atravessar todas as coisas de agora!

Lembrava-se de certa noite, três anos antes, quando, olhando da janela, com o braço em torno de Irene, vira um avião alemão rondando, segundo lhe pareceu, sobre o velho carvalho.

No dia seguinte encontraram uma cratera de bomba num campo da granja de Gage. Isso fora antes de ele saber que estava sob sentença de morte. Quase desejara que a bomba acabasse com ele. Ter-se-ia poupado a uma porção de inquietações, a muitas horas de frio medo comprimindo-lhe a boca do estômago. Contara viver até à idade normal de todos os Forsyte - oitenta e cinco ou mais, quando Irene tivesse setenta anos. Agora ela sentir-lhe-ia a falta. E ainda existia Jon, mais importante na vida dela que o próprio marido, Jon, que adorava a mãe.

Sob aquela árvore, o velho Jolyon soltara o seu último suspiro, enquanto esperava a chegada de Irene, que caminhava através do campo. E Jolyon cismava absurdamente se, já que pusera as suas coisas numa ordem perfeita, não seria melhor fechar os olhos e ir-se embora também. Havia algo de pouco digno naquele apego parasitário ao fácil fim de uma vida, da qual só lamentava duas coisas: o longo afastamento entre ele e o pai, quando era jovem, e a tardia realização do seu casamento com Irene.

Donde estava sentado, podia ver um grupo de macieiras em flor. Nada na Natureza o comovia tanto como árvores frutíferas em flor e o seu coração doeu-lhe de súbito porque nunca mais as veria florir de novo. Primavera! Decididamente, nenhum homem deveria ser obrigado a morrer enquanto o seu coração estivesse bastante jovem para apreciar a beleza!

Os melros cantavam incansavelmente nos arbustos, as cotovias voavam alto, as folhas sobre ele cintilavam e sobre o campo despejava-se uma gama inimaginável de verde das folhagens temporãs, douradas pela luz uniforme do sol, que se ia desfazendo no azul esfumado do horizonte longínquo.

As flores de Irene, nos seus canteiros, desabrochavam individualmente naquela tarde - pequenas afirmações alegres de vida. Só pintores chineses e japoneses, e talvez Leonardo, sabiam reproduzir esse pequeno ego desabrochado em cada flor pintada, em cada pássaro ou animal-o ego, o sentimento da espécie e, ao mesmo tempo, a universalidade da vida. Esses, sim, é que eram homens! «Não fiz nada que possa viver!», pensava Jolyon. «Fui um amador, um simples amador, nunca um criador. Afinal, ainda deixo Jon atrás de mim, quando partir.»

Que sorte o rapaz não ter sido apanhado por aquela guerra pavorosa! Poderia também ter sido morto, tal como o pobre Jolly fora, há vinte anos atrás, no Transval. Jon faria alguma coisa, algum dia, se, imaginativo como era, a Era não o estragasse! O seu desejo de se dedicar à agricultura não devia ser mais que uma inclinação sentimental e provavelmente a última. E nesse momento exacto viu os dois regressando através do campo: Irene e o rapaz, vindos ambos da estação, de braços dados. E, erguendo-se, caminhou até ao novo roseiral, para os encontrar.

Naquela noite, Irene entrou no quarto do marido e sentou-se junto à janela. Ficou sentada, sem falar, até que ele disse:

- Que sucedeu, meu amor?

- Tivemos um encontro hoje.

- Com quem?

- Com Soames.

Soames! Ele afastara esse nome do seu pensamento já há dois anos, pois sentia que era mau para si. E agora o coração batia-lhe de modo desconcertante, como se quisesse deslizar de dentro do peito.

Irene continuou calmamente:

- Ele e a filha estavam na exposição e depois na confeitaria onde tomámos chá.

Jolyon ergueu-se e pôs-lhe a mão no ombro.

- Como está ele?

- Grisalho, mas, no resto, o mesmo.

- E a moça?

- Bonita. Aliás, Jon achou-a linda.

O coração de Jolyon bateu mais forte. O rosto da mulher tinha uma expressão endurecida e enigmática.

- Você disse... - começou ele.

- Não. Mas Jon sabe o nome deles. A pequena deixou cair o lenço e ele apanhou-o.

Jolyon sentou-se na cama. Que má sorte!

- June estava consigo? Ela meteu-se na história?

- Não. Mas tudo decorreu de uma maneira estranha e desagradável, e Jon percebeu-o.

Jolyon aspirou longamente o ar e disse:

- Muitas vezes perguntei a mim mesmo se procedíamos bem mantendo tudo isso oculto dele. E ele acabará por descobri-lo sozinho, qualquer dia.

- Quanto mais tarde, melhor, Jolyon. Os jovens têm o julgamento tão severo, tão duro! Quando você tinha dezanove anos, que pensaria de sua mãe se ela houvesse feito o que eu fiz?

Sim! Era esse o caso. Jon idolatrava a mãe e nada sabia das tragédias, das inexoráveis necessidades da vida, nada das garras que prendem as criaturas a um casamento infeliz, nada de ciúme e paixão - não conhecia nada disso ainda!

- Que foi que lhe disse?

- Que eram parentes, mas que nós não nos dávamos com eles. Que você nunca gostara muito da família deles, nem eles de si. Creio que ele irá fazer-lhe perguntas.

Jolyon sorriu.

- Esse promete ocupar o lugar dos raids aéreos. Afinal, já se sentia a falta deles.

Irene fitou-o.

- Nós sabíamos que isso aconteceria qualquer dia. Ele respondeu, com uma súbita energia:

- Não admito a ideia de que Jon possa vir a censurá-la. Não o deve fazer, nem em pensamento. Ele tem imaginação e compreenderá, se tudo lhe for explicado claramente. Creio que será melhor falar com ele antes que o informem de outra maneira.

- Ainda não, Jolyon.

Isso era muito dela - não tinha capacidade de previsão e nunca ia ao encontro de um aborrecimento. E afinal - quem o poderia dizer? - talvez ela tivesse razão. Era mau agir contrariando o instinto maternal. Talvez fosse melhor deixar o rapaz ignorante, se possível - até que a experiência lhe desse elementos bastantes para julgar com justeza todos os valores daquela velha tragédia, até que o amor, o ciúme e a saudade houvessem aperfeiçoado a sua caridade. Como antes, poderiam continuar a tomar precauções - todas as precauções possíveis. E muito depois de Irene o ter deixado, ele ficou acordado, recapitulando essas precauções. Precisava de escrever a Holly, dizendo que Jon não conhecia nada a respeito da história da família. Holly era discreta, deveria contar com a discrição do marido, cuidaria disso! Jon poderia levar a carta com ele, quando fosse para lá no dia seguinte. E, assim, o dia em que ele pusera em ordem os seus documentos terminou com as badaladas do relógio do estábulo. E outro dia começou para Jolyon, nas sombras de uma desordem espiritual que não pode ser arranjada com nenhum documento...

No seu quarto, que fora outrora a nursery, Jon estava também desperto, presa de uma sensação desmentida por todos os que ainda não a sentiram: amor à primeira vista! Sentira o começo disso quando vira aqueles olhos escuros a brilharem sobre ele, do outro lado da Juno - a convicção de que ela era «o seu sonho». De forma que tudo o que se seguira lhe parecera ao mesmo tempo natural e miraculoso. Fleur! O nome dela, sozinho, já era bastante para alguém terrivelmente susceptível ao encanto das palavras. Numa idade homeopática, quando rapazes e raparigas eram coeducados e tão misturados na vida que o sexo ficava quase abolido, Jon era singularmente retrógrado. A sua modern school recebia apenas os rapazes e as suas férias eram passadas em Robin Hill, com colegas ou apenas na companhia dos pais. Nunca fora, pois, antecipadamente vacinado contra os germes do amor graças a pequenas inoculações do veneno. E agora, no escuro, a sua temperatura subia rapidamente. Conservava-se deitado, insone, recordando Fleur - rememorando-lhe as palavras, especialmente aquele «Au revoir!», tão meigo e tão vivo.

Estava ainda tão desperto pela madrugada que se levantou, calçou uns sapatos de ténis, vestiu umas calças e uma camisola, desceu em silêncio a escada, e passou pela varanda do escritório. Começava a clarear e vinha de fora um cheiro de relva. «Fleur!», cismava ele. «Fleur!» Fora de casa, tudo estava misteriosamente branco e nada despertara ainda, excepto os pássaros, que iniciavam os seus gorjeios. «Vou até ao bosque», resolveu ele. Correu através do campo, chegou ao lago exactamente quando o Sol começava a erguer-se e passou para o bosque. Campânulas azuis tapetavam o chão e sobre o local pairava um certo mistério, como se o ar fosse ali composto de uma qualidade mais romântica. Jon

aspirou-lhe a frescura e pôs-se a contemplar as campânulas na luz da madrugada. «Fleur!» Combinava bem com ela! E ela vivia em Mapledurham, um nome bonito, também, lá pelas margens do rio. Poderia procurar no mapa. Queria escrever-lhe. E ela responderia? Oh! Responderia. Ela dissera: «Au revoir!» Não dissera adeus. Que sorte ter deixado cair o lenço. Nunca a teria conhecido se não fosse aquilo. E quanto mais ele pensava naquele lenço mais a sua sorte lhe parecia espantosa. Fleur! Sentia-se prestes a escrever um poema.

Jon permaneceu entregue a esses devaneios durante mais de meia hora, depois voltou para casa, e, agarrando uma escada de mão, subiu até à janela do seu quarto. Depois, lembrando-se de que deixara aberta a janela do escritório, desceu e fechou-a, após ter retirado a escada, para afastar quaisquer sinais dos seus feitos da madrugada. Aquilo era profundo de mais para ser revelado a qualquer alma mortal - até mesmo à sua mãe.

 

O MAUSOLÉU

HÁ casas cujas almas passaram para o limbo do tempo, deixando os seus corpos no limbo de Londres. Essa ainda não era inteiramente a condição da casa de Timothy em Bayswater Road, porque a alma de Timothy ainda mantinha um pé no corpo de Timothy Forsyte e Smither mantinha a atmosfera imutável - o cheiro de cânfora e de vinho do Porto daquela casa, cujas janelas só eram abertas duas vezes ao dia, para arejar.

Para a imaginação dos Forsyte, aquela casa era hoje uma espécie de caixa de pílulas chinesa - uma série de leitos, no último dos quais jazia Timothy.

Ninguém conseguia avistá-lo - pelo menos era o que diziam os membros da família que, levados pelo velho hábito ou pela saudade dos ausentes, batiam lá e pediam notícias do velho tio. Assim era Francie, hoje inteiramente emancipada de Deus - ela confessava francamente o seu ateísmo-, Euphemia, emancipada do velho Nicholas, Winifred Dartie, emancipada do seu «homem do mundo».

É verdade que, afinal, toda a gente agora estava emancipada ou dizia que o estava - o que talvez não fosse realmente a mesma coisa.

Quando Soames tomou pois a direcção da estação de Paddington, na manhã seguinte àquele encontro, não tinha muita esperança de ver Timothy em carne e osso. O seu coração abalou-se um pouco enquanto ficou de pé, em plena luz do sol, na soleira recém-lavada daquela pequena casa onde quatro Forsyte haviam vivido - e hoje só um restava, tal como uma mosca de Inverno-, a casa donde Soames entrara e saíra vezes sem conta, liberto ou sobrecarregado com o fardo dos mexericos da família, a casa dos «velhos» de um outro século, de uma outra era.

A vista de Smither, ainda espartilhada até às axilas - porque as tias Hester e Juley nunca tinham considerado elegante a nova moda de espartilhos aparecida lá por 1903-, trouxe um pálido sorriso amigável aos lábios de Soames. Smither, ainda fielmente arranjada dentro dos velhos moldes, no mínimo pormenor, uma criada inestimável, sorriu também para ele, com estas palavras:

- É Mr. Soames, depois deste tempo todo! Como vai, sir? Mr. Timothy vai ficar muito contente quando souber que o senhor esteve aqui.

- Como vai ele?

- Oh! Já está razoavelmente caduco, sir. Porém, na verdade, é um homem extraordinário. Como eu disse a Mrs. Dartie, quando ela esteve aqui da última vez: «Miss Forsyte, Miss Juley e Miss Hester gostariam de ver como ele ainda aprecia uma maçã assada.» Mas está inteiramente surdo. E eu às vezes penso que é uma felicidade. Porque não sei mesmo o que teríamos feito com ele durante os raids aéreos.

- Ah - disse Soames. - E que é que vocês lhe faziam?

- Deixávamo-lo deitado na cama e ligávamos a campainha para a adega, de forma que pudéssemos ouvir se ele tocasse. Nunca o deixaríamos perceber que havia uma guerra. Como eu disse à cozinheira: «Se Mr. Timothy tocar, é preciso fazer o que ele mandar. E eu subo. As minhas finadas patroas teriam um ataque se soubessem que ele tocou e ninguém atendeu.» Porém, ele dormiu como um santo durante todos os raids. E durante um raid que ocorreu de dia estava a tomar banho. E foi uma sorte, porque poderia ter visto o povo a correr à rua e a olhar para o céu... ele vai sempre olhar a rua, pela janela.

- Com efeito! - murmurou Soames. Smither estava a ficar

tagarela! - Quero apenas dar uma olhadela e ver se precisa de alguma coisa.

- Sim, sir. Creio que não há nada, só um cheiro de ratos na sala de jantar, que não sabemos donde vem. É engraçado que tenham aparecido lá, onde não há uma migalha desde o dia em que Mr. Timothy deixou de descer para as refeições... exactamente antes da guerra. Mas são uns bichos esquisitos: a gente nunca sabe onde vão aparecer.

- Ele levanta-se da cama?

- Oh, sim, sir! Faz um pouco de exercício, entre a cama e a janela, todas as manhãs, para não se arriscar a uma mudança de ar. E vive muito satisfeito: todos os dias, regularmente, pede o testamento, e fica com ele um pouco. Isso é uma grande consolação para ele.

- Bem, Smither, eu quero vê-lo, se for possível, pode ser que tenha qualquer coisa para me dizer.

Smither corou, por cima dos seus espartilhos.

- Oh, que momento! Quer que eu o acompanhe numa volta pela casa, sir, enquanto mando a cozinheira preparar Mr. Timothy?

- Não, vá você mesmo prepará-lo - disse Soames. - Eu posso dar a volta pela casa sozinho.

Ninguém gosta de se mostrar comovido diante de ou trem. e Soames sentia que iria comover-se rondando por aquelas salas, tão saturadas de recordações. Quando Smither, estalando de excitação, o deixou, Soames entrou na sala de jantar e aspirou-lhe o odor. Na sua opinião, não era um cheiro de ratos, mas de um começo de caruncho, e ele examinou o forro. Não podia afirmar se aquela camada de pintura era da idade de Timothy. A sala fora sempre a mais moderna da casa, e um débil sorriso encurvou os lábios e as narinas de Soames. Paredes de um rico verde encimavam os painéis de carvalho e um pesado lustre de metal pendia do tecto, dividido por imitações de vigas. Os quadros haviam sido comprados por Timothy no Jobson's, sessenta anos atrás: três naturezas-mortas assinadas Snyder, dois desenhos levemente coloridos, representando um rapaz e uma moça, que tinham as iniciais «J. R.» - Timothy sempre pretendera que essas iniciais deveriam significar «Joshua Reynolds», mas Soames, que admirava os desenhos, descobrira que elas significavam apenas John Robinson - e um Morland duvidoso, onde se via um pónei branco. Grandes reposteiros vermelho-escuros, dez cadeiras de mogno, de dorsos altos e assentos também vermelho-escuros, um tapete turco, uma mesa de jantar de mogno tão grande quanto a sala era pequena - tal era a sala em que Soames não se recordava de ter havido a menor mudança, nem na alma nem no corpo, desde que ele tinha quatro anos de idade. Olhou especialmente para os dois desenhos e pensou: «Comprarei isso, no dia do leilão.»

Da sala de jantar passou para o escritório de Timothy. Não se lembrava de jamais ter entrado naquela sala. Era cheia de livros do chão até ao tecto, e ele olhou-os com curiosidade. Uma das paredes parecia devotada a livros educativos que a firma de Timothy publicara há duas gerações passadas - havia ali às vezes vinte exemplares do mesmo livro. Soames leu-lhes os títulos e encolheu os ombros. Na parede do meio viam-se exactamente os mesmos livros que havia na biblioteca de James, em Park Lane - facto que o fez supor que o pai e Timothy tinham ido juntos um dia ao mesmo livreiro e feito a aquisição de um idêntico lote de livros. Aproximou-se da terceira parede com mais interesse. Ali, naturalmente, deveriam estar os livros do gosto pessoal de Timothy. E estavam. Os livros não eram livros, eram imitações de madeira. A quarta parede era toda ocupada por uma grande janela, coberta por pesadas cortinas.

E, junto à janela, uma grande cadeira com uma estante de leitura de mogno pregada a ela, onde se via um número amarelecido do Times datado de 6 de Julho de 1914 -dia em que pela primeira vez Timothy deixou de descer, como se se preparasse para a guerra - e parecia estar a esperá-lo. A um canto estava um globo representando este mundo nunca visitado por Timothy, profundamente convencido da irrealidade de tudo que não fosse a Inglaterra e permanentemente medroso do mar, no qual se sentira muito mal certa vez, numa tarde de domingo, em 1836, num passeio de barco organizado em Brighton, em companhia de Juley e Hester, Swithin e Hatty Chessman - tudo por culpa de Swithin, que estava sempre a inventar coisas e que, graças a Deus, também se sentira mal. Soames sabia tudo a esse respeito, pois ouvira a narrativa seguramente umas cinquenta vezes da boca de cada um dos seus participantes. Caminhou até ao globo e fê-lo girar, o objecto soltou um leve estalido e moveu-se cerca de dois centímetros, levando consigo uma louva-a-deus que morrera sobre ele na latitude 44.

«Mausoléu», pensou Soames. George tinha razão. E dirigiu-se para o lado da escada. A meio caminho, parou diante da caixa de vidro de pássaros empalhados que haviam sido a delícia da sua infância. Não pareciam nem um dia mais velhos, suspensos em arames sobre ervas dos pampas. Se se abrisse a caixa, os pássaros não gorjeariam, mas o conjunto todo dissolver-se-ia em pó, supunha Soames. Seria melhor pô-la assim mesmo no leilão! E subitamente tomou-o uma saudade da tia Ann - pobre velha tia Ann! - segurando-o pela mão, defronte da gaiola de vidro, e dizendo: «Olhe, Soames! Não são lindos e brilhantes, esses beija-flores?» Soames recordava a sua resposta: «Não estão a beijar flor nenhuma, tia.» Devia ter então seis anos, vestido num fato de veludo preto com colarinho azul - lembrava-se muito bem daquele fato! A tia Ann, com os seus caracóis postiços, as suas mãos que pareciam aranhas e o seu grave e velho sorriso aquilino - uma linda dama antiga, a tia Ann! E ele caminhou para a porta da sala de estar. A cada um dos lados dessa porta estavam grupos de miniaturas. Essas, certamente ele compraria! Miniaturas das suas quatro tias, uma do seu tio Swithin, adolescente, e uma do tio Nicholas ainda menino. Haviam sido pintadas todas por uma jovem senhora amiga da família-em 1830-, quando as miniaturas eram consideradas coisa muito elegante, principalmente sendo, como eram, pintadas em marfim. Muitas vezes ele ouvira a história dessa moça: «Muito talentosa, meu caro. Ela tinha, na verdade, um fraco por Swithin, mas pouco depois ficou tuberculosa e morreu, como Keats - «nós sempre dissemos isso.»

Bem, cá estavam elas! Ann, Juley, Hester, Susan - quase uma menina. Swithin, com os seus olhos azuis cor do céu, faces de rosa, caracóis amarelos, colete branco - grande como sempre-, e Nicholas, semelhante a um cupido, com o olhar voltado para o céu. E agora que pensava nisso, via que o tio Nick sempre fora assim - um homem encantador até à morte. Sim, a moça devia ter tido talento, e as miniaturas conservavam um certo cachet próprio. Soames abriu a porta da sala de estar. Fora tudo espanado, os móveis estavam descobertos, as cortinas corridas, precisamente como se as tias ainda a ocupassem, na sua paciente espera. E um pensamento lhe ocorreu: «Quando Timothy morresse - porque não? - não seria quase um dever conservar aquela casa, como a de Carlyle, e pôr do lado de fora uma placa e franqueá-la aos visitantes? Um espécime de residência vitoriana - «entrada um shilling com direito ao catálogo.» Afinal, era o que poderia haver de mais completo, e talvez a coisa mais morta de Londres hoje em dia. Perfeita no seu gosto especial e na sua cultura - isto é, se ele levasse de volta, para a sua própria colecção, os quatro quadros de Barbizon que lhes dera. As paredes ainda azul-celeste, as cortinas verdes, bordadas com flores vermelhas e fetos, as tenazes de ferro fundido defronte do guarda-fogo, o armário de mogno, com portas de vidro, onde se viam pequenos bibelots, os escabelos estufados, Keats, Shelley, Southey, Cowper, Coleridge, o Corsário de Byron (e nada mais) e os poetas vitorianos numa prateleira de estante. O armário com embutidos de madrepérola, forrado de pelúcia vermelho-escura, cheio das relíquias de família: o primeiro leque de Hester, as fivelas dos sapatos do pai, o «Superior Dosset», três escorpiões engarrafados, um amarelíssimo dente de elefante mandado da Índia pelo tio-avô Edgar Forsyte, que trabalhara no comércio de juta, um pedaço de papel, recoberto com uma escrita semelhante a patas de aranha, recordando sabe Deus o quê! E quadros cobrindo as paredes - todos aguarelas, salvo aqueles quatro Barbizon, parecendo estrangeiros ali, ou pelo menos visitantes duvidosos - quadros brilhantes e ilustrativos: Falando às Abelhas, Chamando o Barco e dois no estilo de Frith - cheios de casquilhos e crinolinas-, presentes de Swithin. Oh. muitos, muitos quadros, para os quais Soames já olhara milhares de vezes, numa espantada fascinação, uma maravilhosa colecção de molduras luzentes, douradas, esculpidas.

E o piano de cauda, bem espanado, hermeticamente fechado como sempre, e o álbum de algas do mar da tia Juley, e as cadeiras de pernas esbeltas, mais fortes do que pareciam. A um dos lados da lareira, o sofá de seda carmesim, onde a tia Ann, e depois dela a tia Juley, gostavam de se sentar, em frente da luz, espigadas como um fuso, e, do outro lado da lareira, a única cadeira confortável, de costas para a luz, propriedade da tia Hester. Soames não podia tirar os olhos dali: parecia vê-las todas, sentadas em redor de si.

Ah, a atmosfera da sala, mesmo agora, a abundância de estofos, de cortinas de renda engomada, os saquinhos de lavanda, as asas ressequidas de abelhas. «Não», pensava ele, «não resta outra igual, devia ser conservada.» Sim, coa breca, poderiam rir daquilo, mas, graças a um amável padrão de vida nunca abandonado, graças a um luxo de tacto, de nariz, de olhos e sentimentos,-.aquele ambiente era muito superior ao vácuo de hoje em dia - com os seus comboios subterrâneos e automóveis, o tabagismo perpétuo, as pernas cruzadas, as raparigas de colo nu, que mostravam em baixo até aos joelhos e em cima até à cintura - espectáculo agradável para o sátiro que há em todo o Forsyte, mas que dificilmente realiza a ideia que eles têm a respeito de uma senhora -, com os pés enrolados em torno das pernas da cadeira enquanto estão à mesa e os seus «Até logo» e os seus «Meu velho» e as suas gargalhadas - raparigas que lhe davam arrepios todas as vezes que via Fleur em companhia delas, como também lhe davam arrepios as mulheres mais velhas, de olhar duro e que sabiam cuidar da vida. Não! As suas velhas tias, se nunca abriram o espírito a nada, nem os olhos, nem mesmo as janelas, pelo menos tinham maneiras, tinham um padrão de vida, tinham reverência pelo passado e pelo futuro.

Com um sentimento quase de choque, fechou a porta e subiu a escada na ponta dos pés. As paredes mantinham-se na mesma perfeita ordem de há cinquenta anos, forradas todas de papel oleado. Ao cimo da escada, hesitou entre quatro portas. Qual delas seria a de Timothy? E escutou. Um som, semelhante ao que faz um garoto a cavalgar um cavalo de pau, chegou-lhe aos ouvidos. Devia ser Timothy! Bateu, e a porta foi aberta por Smither, com o rosto muito vermelho.

Mr. Timothy estava a dar o seu passeio, e ela não conseguira fazê-lo esperar pelo sobrinho. Se Mr. Soames quisesse ir para o fundo do quarto, poderia vê-lo através da porta.

Soames foi para o fundo do quarto e ficou a olhar.

O último dos velhos Forsyte estava de pé, movendo-se para diante e para trás, com a mais impressionante lentidão e uma perfeita concentração nos seus problemas íntimos. O percurso era feito entre a cama e a janela, numa distância de mais ou menos três metros. A parte inferior do seu rosto quadrado, que há muito tempo não via navalha, estava coberta por uma barba de neve, cortada o mais rente possível, e o queixo parecia tão largo como a fronte, povoada de cabelos inteiramente brancos, enquanto o nariz e as faces eram de um tom amarelo. Uma das mãos segurava uma forte bengala, a outra enfiava-se na gola do robe de chambre, sob o qual se podia ver os seus tornozelos calçados de meias de lã e os pés enfiados em sandálias leves. A expressão era a de um menino contrariado, ocupado em fazer algo muito difícil. De cada vez ele dava a volta e erguia a bengala, depois batia com ela no chão, como para mostrar que poderia dispensá-la.

- Ainda parece forte - disse Soames, sustendo o fôlego.

- Oh, sim, sir. O senhor devia vê-lo tomar banho. É uma maravilha, adora banhar-se.

E aquelas palavras, ditas em voz alta, deram uma explicação a Soames: Timothy voltara à primeira infância.

- Ele toma algum interesse pelas coisas em geral? - perguntou, também em voz alta.

- Oh, sim, sir. Interessa-se pela comida e pelo testamento. Vale a pena vê-lo, virando e revirando o testamento na mão, sem o ler, naturalmente. E pergunta sempre também o preço dos consolidados- e eu escrevo uma cotação para ele, em letras bem grandes, é claro. Escrevo sempre a mesma - a de 1914, quando ele leu pela última vez. Pedimos ao médico que lhe proibisse ler os jornais quando a guerra rebentou. Oh, ele deve ter sentido muito a falta, a princípio, mas logo se acostumou, porque compreendia que aquilo o fatigaria. E ele é uma maravilha para poupar energia, como ele mesmo costumava dizer às minhas finadas patroas, que Deus tenha em Sua guarda! Vivia a ralhar com elas por causa disso, todas três eram tão activas, lembra-se, Mr. Soames?

- Que acontecerá se eu entrar no quarto? - perguntou Soames.- Será que ele se lembra de mim? Fui eu que fiz o testamento dele, sabe, depois de Miss Hester ter morrido, em 1907.

- Oh, isso - respondeu Smither, indecisa - não posso assumir a responsabilidade de dizer. Creio que ele o reconhecerá, é realmente um homem maravilhoso para a idade que tem.

Soames atravessou a porta e, esperando que Timothy se voltasse, disse em voz alta:

- Tio Timothy!

Timothy arrastou a meia volta e parou. - Quem é? - perguntou ele.

- Soames! - gritou Soames no tom mais alto da sua voz, segurando-lhe a mão: - Soames Forsyte!

- Não! - disse Timothy. E, deixando cair pesadamente a bengala no chão, continuou a andar.

- Não pareceu incomodar-se - disse Soames.

- Não, sir - disse Smither, inteiramente abatida. - O senhor vê, ele ainda não acabou o exercício. Com ele, tem de ser cada coisa por sua vez. Creio que hoje à tarde ele vai perguntar-me se o senhor veio por causa do gás, e há-de ser um trabalho fazê-lo compreender quem era.

-Acha que deveria ter um homem aqui para cuidar dele? Smither levantou as mãos.

- Um homem! Oh, não. A cozinheira e eu damos conta perfeitamente. Um homem estranho, aqui, haveria de o pôr louco imediatamente. E as minhas patroas não gostariam da ideia de haver um homem dentro de casa. Além disso, temos orgulho em cuidar dele.

- O médico vem sempre?

- Todas as manhãs. Fez um preço especial para tantas visitas, e Mr. Timothy está tão acostumado que dá muito pouca atenção, excepto para mostrar a língua.

- Bem - disse Soames, voltando-se. - É uma coisa triste e dá-me muita pena.

- Oh, sir - respondeu ansiosamente Smither -, não pense assim. Agora, que não se preocupa com coisa alguma, é que realmente ele está a gozar a vida. É como eu digo à cozinheira. Mr. Timothy é mais homem do que antes. O senhor vê, quando ele não está a andar ou a tomar banho, está a comer, e quando não está a comer está a dormir.

É sempre assim. Não tem uma dor ou uma preocupação que o atormente.

- Bem - disse Soames -, realmente é alguma coisa. Vou-me embora. De qualquer modo, deixe-me ver o testamento dele.

- Tenho de esperar um pouco para o apanhar, sir. Ele esconde-o debaixo do travesseiro, e pode ver-me enquanto estiver acordado.

- Quero apenas ver se é o mesmo que eu fiz - disse Soames. - Dê uma olhadela à data, qualquer dia, e mande-me dizer.

- Sim, sir, porém, tenho a certeza de que é o mesmo, porque eu e a cozinheira fomos as testemunhas - não se lembra? - e lá estão os nossos nomes, no mesmo lugar onde os escrevemos.

- Muito bem - disse Soames. Lembrava-se. Smither e Jane haviam sido consideradas testemunhas idóneas, e, não recebendo nada no testamento, não havia receio de que elas apressassem a morte de Timothy. Isso fora - ele próprio o admitira - uma precaução lamentável, mas Timothy fizera questão dela, e, afinal, a tia Hester já lhes deixara um bom legado. - Muito bem - acrescentou Soames. - Adeus, Smither. Cuide dele, e, se ele disser qualquer coisa, preste atenção e mande-me contar.

- Oh, sim, Mr. Soames. Pode ficar descansado. Foi tão agradável vê-lo. A cozinheira vai ficar excitadíssima quando eu contar a sua visita.

Soames apertou-lhe a mão e desceu a escada. Ficou de pé, durante dois grandes minutos, junto ao porta-chapéus no qual pendurara tantas vezes o seu próprio chapéu. «É assim que tudo passa», pensava ele. «Passa e recomeça de novo. Pobre velho!» E apurou o ouvido, como se o ruído de Timothy arrastando o seu cavalo de pau pudesse descer do andar de cima ou o fantasma de um velho rosto se pudesse mostrar entre as bandeiras e uma velha voz pudesse dizer: «Ora vejam, é o querido Soames, e nós que já estávamos a notar que já não o víamos há uma semana inteira!»

Nada - nada! Apenas o cheiro de cânfora e a réstia de sol carregada de poeira que vinha da janela alta. A velha casa! Um mausoléu! E, girando sobre os calcanhares, saiu e apanhou o comboio.

 

A CHARNECA NATIVA

«Os seus pés sobre a charneca nativa, O seu nome - Val Dartie.»

Com este pensamento, Val Dartie, com quarenta anos de idade, saía bem cedinho, naquela mesma manhã de quinta-feira, da velha casa senhorial que alugara ao norte do Sussex Downs. O seu destino era Newmarket. Não ia lá desde o Outono de 1899, quando fugira de Oxford para assistir ao Cambridgeshire.

Parou à porta para beijar a mulher e pôs uma garrafa de vinho do Porto no bolso.

- Não puxe muito pela sua perna, Val, e não aposte de mais.

Apertando a face dela contra a sua e com os olhos dentro dos dela, Val sentia seguros tanto a perna como o bolso. Seria bem moderado. Holly tinha sempre razão - tinha uma aptidão natural para isso. Para ele, o facto não era tão notável como para os outros - que o sabiam meio-sangue Dartie. Desde o seu romântico casamento com a prima, durante a guerra dos Boers, fora-lhe perfeitamente fiel, e isso já durava há vinte anos - e fiel sem nenhum sentimento de sacrifício ou tédio. Ela era tão viva, tão esperta, que sempre o vencia em tudo. Como eram primos, haviam decidido - desnecessariamente, na verdade - que não teriam filhos. Embora um pouco mais pálida, ela ainda guardava as feições, a esbeltez e os cabelos escuros da mocidade. Val admirava particularmente a capacidade que Holly tinha de viver a sua própria vida, ao lado da vida dele, que ela partilhava inteiramente. E cada vez montava melhor a cavalo. Abandonara a música, começara a ler tremendamente - novelas, poesias, tudo. Na fazenda deles, na colónia do Cabo, cuidara dos garotinhos das negras e das mulheres de modo maravilhoso. Era realmente perfeita, embora não fizesse alarde disso e não tivesse "ares". E, apesar de não ser notável pela humildade, Val acabara por sentir que ela lhe era superior - e não lhe tinha rancor por isso, o que representava um grande tributo. Toda a gente poderia ver que ele nunca olhava para Holly sem que ela o notasse, mas que ela, muitas vezes, o olhava sem que o marido o percebesse.

Beijaram-se à saída de casa, porque não o poderiam fazer na plataforma da estação onde ela o iria levar para trazer o carro de volta. Queimado e crestado pelo clima da colónia e pelas vicissitudes da convivência eterna com os cavalos, com o handicap da perna defeituosa - relíquia da guerra dos Boers e que provavelmente o livrara de morrer na última guerra -, Val ainda tinha muito do rapaz que fora nos tempos do seu namoro: o seu sorriso era ainda amplo e encantador, os cílios mais escuros e espessos que nunca, com os olhos de um cinzento brilhante fuzilando entre eles, as sardas mais acentuadas, o cabelo um pouco grisalho nas frontes. Via-se logo que era um homem que vivera activamente «entre cavalos», num clima ensolarado.

Dando a volta ao carro, junto ao portão, perguntou:

- Quando vem Jon?

- Hoje.

- Quer alguma coisa para ele? Posso trazer no sábado.

- Não. Mas pode vir no mesmo comboio que Fleur: à uma e quarenta.

Val deu toda a velocidade ao Ford - ainda dirigia como um homem de país novo e más estradas, que recusa comprometer-se e espera o Diabo a qualquer volta.

- Aquela é uma pequena que sabe o que quer - disse ele. - Essa visita incomoda-a?

- Sim.

- O tio Soames e o seu pai... foi um pouco desastrado, não?

- Ela não sabe de nada, ele também não sabe, e nada deve ser dito, naturalmente. Será apenas por cinco dias, Val.

Segredo inviolável! Muito bem! Se Holly achava que estava bem, estava bem. Olhando astutamente para ele, ela disse:

- Notou como ela praticamente se fez convidar?

- Não!

- Pois foi. Que é que pensa dela, Val?

- Bonita e inteligente. Mas é capaz de tudo, se se enfurecer.

- Estive a pensar - murmurou Holly - se ela representa a mulher moderna. Uma pessoa sente-se estrangeiro ao chegar à pátria no meio disto tudo.

- Você? Você adapta-se às coisas tão rapidamente! - Holly deslizou a mão para o bolso do casaco dele. - Você vence qualquer um em sabedoria - disse Val, animador. - Que é que você pensa daquele belga, Profond?

- Penso que ele é realmente «um bom diabo», como dizem. Val fez uma careta.

- Parece-me uma ave estranha, principalmente para amigo da nossa família. Na verdade, a nossa família anda em águas bem turvas, com o tio Soames casado com uma francesa e seu pai casado com a primeira mulher de Soames. Os nossos avós teriam um ataque se vissem isto!

- Isso aconteceria com os avós de todo o mundo, meu caro.

- Este carro - disse Val subitamente - precisa que eu lhe bata. Não tem pernas para aguentar a subida: tenho de arranjar maneira de lhe enfiar o focinho na descida se quiser apanhar o comboio.

Aquela terminologia traía o seu interesse exclusivo por cavalos, interesse que sempre o impedira de simpatizar realmente com um automóvel, e a condução do Ford sob as suas mãos, comparada com a condução de Holly, era sempre digna de nota. No entanto, conseguiu apanhar o comboio.

-Tome cuidado, ao voltar para casa. Esse diabo, se puder, acaba por atirá-la ao chão. Adeus, querida.

- Adeus - respondeu Holly. E ele beijou-lhe a mão.

No comboio, depois de um quarto de hora de indecisão entre lembranças de Holly, o seu jornal da manhã, a paisagem luminosa e as suas remotas recordações de Newmarket, Val mergulhou nos mistérios de um livrinho quadrado, todo cheio de nomes, pedigrees, garanhões e notas acerca de feitos e formas de cavalos. O Forsyte que havia nele conseguira prevalecer no mais forte do sangue e cada dia abafava mais o Dartie que tentava subsistir fracamente. Voltando à Inglaterra, depois da venda lucrativa da fazenda e das coudelarias na África do Sul e observando que o sol luzia raramente, Val dissera a si mesmo: «Preciso absolutamente de descobrir um novo interesse na vida, ou este país só me dará tédio. Caçadas só, não basta. Vou criar cavalos e treiná-los.» E, com a agudeza e a decisão adquiridas graças à longa residência num país novo, Val vira logo o ponto fraco da moderna criação. Viviam todos hipnotizados pelas modas e pelos preços altos. Ele iria comprar os cavalos pela estampa e deixar que os nomes se fizessem!

No entanto, já estava hipnotizado pelo prestígio de uma certa raça! Meio consciente disso, pensava: «Há qualquer coisa no diabo deste clima que faz que andemos sempre dentro do mesmo círculo. Mas, de qualquer forma, tenho de possuir um exemplar de sangue Mayfly.»

E, com esses pensamentos, atingiu a Meca das suas esperanças. Era uma daquelas calmas reuniões favoráveis a quem preferia antes olhar cavalos do que a boca dos bookmákers, e Val encaminhou-se para o paddock. Os seus vinte anos de vida colonial haviam-no afastado do dandismo em que nascera e dado a simplicidade essencial ao criador de cavalos, aguçando-lhe o olhar contra o ridículo das afectações de linguagem de certos ingleses e o papaguear de certas inglesas. Holly não fazia nada daquilo, e Holly era o seu modelo. Observador rápido, com recursos, Val ia logo ao coração de uma transacção, a um cavalo. E, com essa sua maneira de proceder, interessava-se agora por uma potra de sangue Mayfly, quando uma voz suave disse:

- Mr. Val Dartie? Como vai sua senhora? Espero que vá bem. - E viu junto dele aquele belga que encontrara em casa de sua irmã Imogen. - Prosper Profond.. encontrámo-nos num almoço - explicou a voz.

- Como vai? - murmurou Val.

- Vou muito bem - respondeu Monsieur Profond, sorrindo com uma certa brandura inimitável. «Um bom diabo», chamara-lhe Holly. Bem, ele parecia-se um pouco com um diabo, com a sua barbicha preta e pontuda, um ar meio sonolento e bem-humorado, olhos bonitos, inesperadamente inteligentes.

- Há aqui um cavalheiro que deseja conhecê-lo,., um primo seu... Mr. George Forsyde.

Val viu um grande vulto, um rosto barbeado, taurino, um pouco inclinado, com um ar sardónico a luzir no olhar cinzento. Lembrava-lhe um pouco os velhos tempos em que o pai o levava a jantar no Iseeum Club.

- Muitas vezes assisti a corridas em companhia de seu pai - disse George. - Como vai a sua criação? Gostaria de comprar um dos meus sendeiros?

Val fez uma careta, para esconder a súbita impressão de que o fôlego lhe faltava no peito. Eles não acreditavam em nada, nem mesmo em cavalos. George Forsyte, Prosper Profond! O Diabo em pessoa não ficaria mais desiludido que aqueles dois.

- Eu não sabia que o senhor era um apaixonado por corridas - disse ele a Prosper Profond.

- E não sou. Sou pelos iates. Só me preocupo com iates, mas gosto de me avistar com os meus amigos. Eu trouxe um almoço, Mr. Val Dartie... um almocinho. Se aceita qualquer coisa, tenho algumas provisões, não muitas, no meu carro.

- Obrigado - retorquiu Val. - O senhor é muito amável. Mas eu pretendo ir-me embora dentro de um quarto de hora.

- Acabaremos antes disso. Mr. Forsyde vem.

E Mr. Profond, com o seu sotaque meloso, insistia, apontando com o dedo enluvado: «Um carrinho, com um almocinho.» E pôs-se a andar, elegante, sonolento, distante, seguido por George Forsyte, limpo, gigantesco, com o seu ar de truão.

Val continuou a olhar para a potra Mayfly. George Forsyte, realmente, já era um velho, mas aquele Profond deveria ter a sua idade. Val sentia-se extremamente jovem e tinha a impressão de que a potra Mayfly era um brinquedo que ambos cobiçavam. O animal perdera a realidade.

«Esta èguazinha», parecia-lhe ouvir a voz de Monsieur Profond, «que é que o senhor vê nela? Todos nós devemos morrer!»

E George Forsyte, amigo íntimo de seu pai, ainda a frequentar corridas! A raça Mayfly - haveria alguma melhor que outra? Era muito capaz de receber uma inutilidade em troca do seu dinheiro.

«Não, cos diabos», resmungou subitamente. «Se não é bom criar cavalos, não é bom fazer nada no mundo. Para que foi que vim aqui? Vou comprá-la.»

Voltou as costas à pista e ficou a olhar o refluxo de visitantes no paddock. Velhos connoisseurs, vistosos camaradas de ar astuto, judeus, treinadores que ostentavam o ar de quem nunca cometeu o pecado de olhar para um cavalo em toda a vida, altas e sedutoras mulheres de ar lânguido ou mulheres masculinizadas que falavam em voz aguda, rapazes que procuravam mostrar que levavam aquilo a sério, dois ou três deles apenas com um único braço!

«A vida aqui dança uma ronda», pensava Val. «Um sino toca, os cavalos correm, o dinheiro muda de dono. Depois o sino volta a tocar, os cavalos correm de novo e o dinheiro volta para donde veio.»

Mas, alarmado com a própria filosofia, voltou ao portão do paddock, a fim de assistir a um galope da potra Mayfly. Ela caminhava bem. E Val encaminhou-se para o «carrinho». O «almocinho» era daquela espécie com que muitos homens sonham, mas apenas poucos gozam, e, depois de terem terminado, Monsieur Profond voltou para o paddock em companhia de Val.

- A sua esposa é uma senhora encantadora - foi o seu surpreendente comentário.

- A mais encantadora que conheço - replicou secamente Val.

- Sim - continuou Monsieur Profond. - Tem um rosto lindo. Eu admiro mulheres lindas.

Val olhou-o suspeitoso, mas havia algo de bondoso e directo no pesado diabolismo do seu companheiro, e isso desarmou-o por um instante.

- Sempre que o senhor quiser, estarei pronto a proporcionar-lhes um pequeno cruzeiro no meu iate.

- Obrigado - disse Val, de novo irritado. - Ela odeia o mar.

- Também eu - retorquiu Monsieur Profond.

- E que é que então o senhor faz nesse iate? Os olhos do belga sorriram.

- Oh, não sei. Já fiz tudo. Esta é a última coisa em que me ocupo.

- Deve ser uma ocupação... pelo menos cara. Eu precisaria de uma razão mais forte que a sua.

Monsieur Prosper Profond ergueu os supercílios e estendeu o seu grande lábio inferior.

- Sou um homem abastado-disse ele.

- O senhor esteve na guerra?

- S-sim. Também fiz isso. Fui atingido pelos gases. Foi um «pequeno» desagradável. - E sorriu, com um profundo e sonolento ar de prosperidade, como se ela derivasse do seu nome. Val não pôde decidir se ele dizia «pequeno» em vez de «pouco» por deficiência de linguagem ou por pura afectação. O sujeito era evidentemente capaz de tudo. E entre o círculo de compradores que rodeava a potra, que vencera a sua corrida, Monsieur Profond disse: - O senhor é comprador no leilão?

Val acenou que sim. Mas, com aquele sonolento Satã ao seu lado, sentia-se com carência de fé. Embora protegido contra os golpes da Providência pela previdência do avô, que lhe deixara uma renda inalienável de mil libras por ano, à qual se somavam as outras mil de Holly, legadas também pelo avô dela, Val não dispunha de capital para grandes despesas, pois dispendera quase tudo o que realizara com a venda da sua fazenda na África do Sul nas suas novas instalações do Sussex. E pôs-se a pensar: «Bolas! Já está acima das minhas possibilidades!» O seu limite - seiscentas libras - fora excedido, e ele deixou de lançar no leilão. A potra passou para setecentas libras e cinquenta guinéus. E ele começava a afastar-se, vexado, quando a voz de Monsieur Profond lhe disse ao ouvido:

- Bem, comprei essa potra, mas não a quero. Leve-a e ofereça-a à sua senhora.

Val olhou para o sujeito com renovada suspeita, mas o bom humor nos olhos do outro era tal que ele não pôde ofender-se.

- Fiz uma boa porção de dinheiro durante a guerra - começou Monsieur Profond, em resposta àquele olhar. - Tinha fábricas de armamentos. E gostaria de gastar esse dinheiro. Estou a ganhar cada vez mais. E gasto muito pouco comigo próprio. Gosto que os meus amigos participem do meu dinheiro.

- Posso comprar-lha pelo preço que lhe custou - disse Val com súbita decisão.

- Não - disse Monsieur Profond. - Leve-a. Não a quero.

- Não pense nisso! Não se pode..,

- Porque não? - sorriu Monsieur Profond. - Sou um amigo da sua família.

- Setecentas libras e cinquenta guinéus não são um maço de cigarros - disse Val, impaciente.

- Muito bem. Pois então o senhor guarde-a até que eu a reclame. Entretanto, faça o que quiser com ela.

- Enquanto ela for sua - disse Val -, não me importo.

- Então está bem - murmurou Monsieur Profond, afastando-se.

Val olhava-o. Ele podia ser «um bom diabo», mas naquele instante não o parecia. Viu-o reunir-se a George Forsyte e depois não voltou a vê-lo.

Passou aquela noite, depois das corridas, na casa da mãe, em Green Street.

Winifred Dartie, com sessenta e dois anos, estava maravilhosamente conservada, levando-se em conta os trinta e três anos em que suportara Montague Dartie, até ter a sorte de ser libertada por um feliz acidente de escada em França. E era para ela uma violenta alegria ver de volta da África do Sul o seu filho favorito, vê-lo tão pouco mudado e ter simpatizado com a mulher dele. Winifred, que lá por 187..., antes do seu casamento, estivera na linha de vanguarda da liberdade, prazeres e elegância, confessava que a sua juventude fora muito ultrapassada pelas donzelas de hoje em dia. Pareciam, por exemplo, encarar o casamento como um incidente, e Winifred muitas vezes lamentava não ter feito o mesmo, pois um segundo, terceiro ou quarto incidente poderia ter-lhe garantido um companheiro de menos luzidas bebedeiras. É verdade que, apesar de tudo, ele lhe dera Val, Imogen, Maud, Benedict - já quase coronel e mutilado da guerra -, nenhum dos quais se divorciara até então. A correcção dos filhos sempre surpreendia os que lhes recordavam o pai, mas, como ela gostava de verificar, todos eram Forsyte, saíam ao seu sangue, com excepção talvez de Imogen. A filha do seu irmão, Fleur, é que realmente intrigava Winifred. A rapariga era tão inquieta como qualquer outra das jovens modernas. «Ela é uma pequena chama numa corrente de ar», dissera uma vez Prosper Profond depois de um jantar. Mas Fleur não se agitava inconscientemente, nem falava no registo mais alto da voz.

O sólido forsytismo do carácter de Winifred instintivamente pressentia o sentimento que havia no ar - os hábitos das raparigas modernas e a divisa delas: «Ou tudo ou nada! Gasta, que amanhã talvez estejamos pobres!» Ela discernia entretanto uma qualidade compensadora em Fleur: quando a pequena punha os seus desejos numa determinada coisa, não descansava enquanto não a conseguisse - acontecesse o que acontecesse depois-, embora ainda fosse moça de mais para demonstrar isso abertamente.

Além disso, a pequena era uma «linda coisinha» e herdara da mãe o bom gosto francês para se vestir - consideração da maior importância para Winifred, uma apaixonada do «estilo» e da distinção que tão cruelmente a decepcionara no caso de Montague Dartie.

Discutindo Fleur com Val, ao pequeno-almoço de sábado, Winifred desvelou ante o filho um pouco do esqueleto da família.

- Aquele caso entre o seu sogro e a sua tia Irene, Val... uma coisa velha como o mundo, realmente... Fleur não deve ouvir a menor alusão a ele. Poderia causar muitos aborrecimentos. O seu tio Soames faz muita questão disso. De forma que você deve ter cuidado.

- Sim! Mas surgiu uma complicação infernal. O irmão mais novo de Holly vem morar connosco, para praticar agricultura. E já está lá em casa.

- Oh! - disse Winifred. - Que gaffe! Como é ele?

- Só o vi uma vez em Robin Hill, quando estivemos aqui, em mil novecentos e nove. Estava pintado de listras azuis e amarelas e era um bonito menino.

Winifred pensou que, com efeito, devia ser bonito, e disse em tom de consolação:

- Bem, Holly é muito sensível, saberá como levar as coisas. Não vou dizer nada ao seu tio, pois isso só iria atormentá-lo. É uma grande consolação tê-lo de novo perto de mim, meu filho, agora que já estou a ficar velha.

- A ficar velha! Porquê? A senhora está mais jovem que nunca. Esse tal Profond, mamã, que tal é?

- Prosper Profond! Oh! É o homem mais divertido que conheço.

Val rosnou qualquer coisa e contou a história da potra.

- Isso é muito dele - murmurou Winifred. - Faz toda a espécie de coisas.

- Pois olhe - disse asperamente Val -, a nossa família não tem tido muita sorte com essa casta de gente. São brilhantes de mais para nós.

Aquilo era verdade, e Winifred demorou um pouco antes de responder:

- Oh, bem! Mas ele é um estrangeiro, Val. Devemos ser condescendentes.

- Bem, de qualquer forma, vou tratar da potra e treiná-la para ele.

Beijou a mãe, pedindo-lhe a bênção, recebeu um beijo, deixou-a para procurar o seu bookmaker no Iseeum Club e depois encaminhou-se para a Victoria Station.

 

JON

Mrs. Val Dartie, depois de vinte anos de residência na África do Sul, sentia-se "profundamente apaixonada" - felizmente por algo que lhe pertencia, pois o objecto da sua paixão era a paisagem que se descortinava das suas janelas, na luz fria e clara dos verdes Downs. Aquilo era a Inglaterra, finalmente! A Inglaterra, mais linda ainda do que ela o sonhara. Com efeito, a sorte guiara Val Dartie na escolha de um sítio no South Downs, realmente encantador quando o sol brilhava. Holly herdara bastante do olhar do pai para aprender a rara qualidade dos seus contornos e a sua irradiação calcária. E subir pelas ravinas e vaguear entre Chanctonbury e Amberley era também uma delícia, que ela raramente partilhava com Val, cuja admiração pela Natureza se confundia com um instinto forsytiano de possuir um pedaço daquilo ou de calcular as condições da relva para os exercícios dos seus cavalos.

Dirigindo o Ford, de volta para casa, com uma divertida lentidão, ela prometia a si mesma que o primeiro emprego que faria de Jon seria levá-lo consigo e mostrar-lhe a paisagem sob aquele céu de Maio.

Ela esperava o irmão mais novo com todas as suas reservas de maternidade ainda não esgotadas por Val. Na visita de três dias a Robin Hill, logo depois da sua chegada à pátria, não se avistara com o rapaz, que estava então no colégio, de maneira que a sua recordação dele era igual à de Val: um rapazinho queimado de sol, todo listrado de azul e amarelo e emboscado junto ao lago.

Aqueles três dias em Robin Hill haviam sido excitantes, tristes, embaraçantes. Lembranças do irmão morto, lembranças do namoro com Val, o envelhecimento do pai, que já não via há vinte anos - algo funéreo na sua irónica gentileza, que não podia escapar a alguém que tinha um instinto muito subtil, e, acima de tudo, a presença da madrasta - que ela vagamente identificava com a "moça de cinzento" dos seus tempos de criança, quando o avô ainda era vivo e Mademoiselle Beauce se zangara tanto com aquela intrusa que viera dar-lhe aulas de música. Tudo isso confundia e torturava um espírito que sonhara encontrar Robin Hill imutável. Mas Holly era adepta da teoria de guardar as coisas para si mesma - e tudo parecera ter-se passado muito bem.

O pai beijara-a quando ela se despediu, com lábios que - ela tinha a certeza - estavam a tremer.

- Então, minha querida - dissera ele -, a guerra não mudou Robin Hill, pois não? Se ao menos você houvesse podido trazer Jolly de volta! Será que concorda com as invenções dos espiritistas? Quanto a mim, creio que quando o carvalho morre, morre de verdade. - E ao sair do aconchego do abraço da filha, ele provavelmente compreendeu que se traíra, porque reassumiu logo o seu tom de ironia. - Espiritismo... palavra esquisita. Quanto mais insistem em prová-la, só conseguem desvirtuá-la.

- Como? - perguntou Holly.

- Ora! Olhe para as fotografias de presenças desencarnadas. É preciso algo material... de sombra e luz, para poder apanhar a fotografia. E com isso acabamos por chamar a qualquer matéria espírito e a qualquer espírito matéria. Não sei para quê.

- Mas o senhor não acredita na sobrevivência da alma, papá?

Jolyon olhara-a e a tristeza que ela lhe leu no rosto impressionou-a profundamente.

- Bem, minha filha, eu gostaria de que algo escapasse à morte. Mas, pelo que pude verificar durante a vida, nada mais vi além de telepatia, subconsciência, tudo emanações deste mundo, e que não podem portanto provar nada. Pudera eu! Mas os desejos geram pensamentos, não geram evidências.

Holly encostara os lábios à testa do pai com o sentimento de que aquilo confirmava a teoria dele de que toda a matéria estava a tornar-se espírito - aquela fronte parecia realmente quase insubstancial.

A mais pungente lembrança daquela visita foi, contudo, quando, despercebida, viu a madrasta ler para si mesma uma carta de Jon. Aquilo, pensou Holly, era a coisa mais linda a que ela já assistira. Irene, absorvida na carta do filho, estava sentada junto a uma janela, e a luz caía-lhe sobre o rosto e sobre os finos cabelos grisalhos, os lábios moviam-se sorridentes, os olhos escuros riam, dançavam, enquanto a mão que não segurava a carta estava cerrada contra o aperto. Holly recuou como ante uma visão de perfeito amor, convencida de que Jon deveria ser encantador.

Quando o viu, ao chegar da estação, com uma maleta em cada uma das mãos, sentiu as suas predisposições confirmadas. Jon parecia-se um pouco com Jolly, aquele perdido ídolo da sua infância, mas era menos enérgico, menos sisudo, com olhos mais profundos e cabelos de uma cor mais viva, porque não usava chapéu, de qualquer forma, um "irmãozinho" interessantíssimo!

A sua polidez um pouco hesitante encantou Holly, já habituada à arrogância de maneiras dos jovens, e ele sentia-se perturbado porque ela ia conduzir o carro de volta para casa, em vez de ser ele a conduzi-lo. Não queria guiar um pouco? Não, eles não tinham carro em Robin Hill - desde a guerra, é claro -, de forma que ele só experimentara guiar automóvel uma única vez, e esbarrara num barranco, de modo que Holly não devia pensar em experimentar-lhe a habilidade... O seu riso, suave e contagioso, era muito atraente, embora aquelas coisas que ela estava a ouvir fossem quase obsoletas. Quando chegaram a casa, o pai entregou-lhe uma carta, que ela leu enquanto o irmão se lavava - uma rápida carta, que entretanto deveria ter custado muito esforço:

 

             Minha filha,

Você e Val não devem esquecer que Jon nada sabe a respeito da história da família. A mãe dele e eu ainda o consideramos

muito moço para isso. O rapaz é muito afectuoso e é a menina dos olhos dela. Verbum sapientibus.

       Seu pai afectuoso - F.

 

Era tudo, mas renovou em Holly um sentimento de inquietação ante o pensamento da próxima vinda de Fleur.

Depois do chá, ela cumpriu a promessa que fizera a si mesma e levou Jon até à colina. Tiveram uma longa conversa, sentados no chão coberto de sarças e urzes, à beira de uma antiga pedreira de greda.

Florinhas do campo estrelavam o declive verde, cotovias e tordos cantavam no matagal e de vez em quando uma gaivota, procurando a terra, girava muito branca contra o céu pálido, onde uma Lua vaga ia subindo. Uma fragrância deliciosa chegava até eles, como se criaturinhas invisíveis estivessem a destilar e a desprender perfumes sob as folhas da relva.

Jon, que caíra em silêncio, disse subitamente:

- Isto é maravilhoso! O voo das gaivotas, os chocalhos das ovelhas...

- Voo das gaivotas, chocalhos das ovelhas... Você é um poeta, menino!

Jon suspirou.

- Oh, não! Não tenho jeito!

- Experimente! Na sua idade, eu fazia poesia.

- Você? A mamã também me diz que experimente! Tem alguns dos seus versos que me mostre?

- Meu caro - murmurou Holly -, estou casada há dezanove anos. E só escrevi versos quando me queria casar.

- Oh - disse Jon, com o rosto voltado para o outro lado.

A única face que a irmã podia ver era de uma cor magnífica. Estaria Jon "fisgado", como dizia Val? Já? Mas, se era assim, tanto melhor, porque não se aperceberia da jovem Fleur. Além disso, na segunda-feira já ele iniciaria o seu aprendizado de agricultura. E Holly sorriu. Era Burns que seguia o arado, ou apenas Piers Plowman?

Actualmente, parecia que todos os rapazes e todas as raparigas eram poetas, a julgar pelos livros que lia deles na África do Sul, importados de Hatchus & Bumphards. E, com efeito, bons. Oh! Com efeito, muito melhores que os seus velhos versos. Mas a verdade é que a poesia desenvolvera-se muito dos tempos dela para cá - simultaneamente com os automóveis. Uma outra longa conversa depois do jantar, junto à lareira do hall de baixo, deu-lhe a sensação de que pouco lhe faltava para conhecer inteiramente o rapaz - excepto uma certa coisa de real importância. Despediu-se dele à porta do quarto de dormir que lhe preparara com a convicção de que iria amá-lo e que Val iria gostar dele. Era vivo, mas não em excesso, era um esplêndido ouvinte, simpático, reticente acerca de si mesmo. Evidentemente amava o pai e adorava a mãe e gostava mais de montar a cavalo, remar e esgrimir do que de jogar quaisquer jogos. Salvava mariposas da luz das velas, não podia suportar aranhas, mas preferia atirá-las pelas janelas, enroladas em papel, a matá-las. Numa palavra, era adorável. Holly foi para a cama a pensar que Jon sofreria terrivelmente se alguém o ferisse. Mas quem o feriria?

Jon, por seu lado, sentou-se desperto junto à janela, tendo à mão um papel e um lápis: escrevia o seu primeiro «poema de verdade». Fazia-o à luz da vela, porque a luz do luar não chegaria para isso e dava apenas para cobrir tudo com um ar meio sobrenatural, como um revestimento de prata. Uma noite realmente propícia à companhia de Fleur - passear com ela, levá-la até às colinas, e mais longe ainda.

E Jon, com a sua fronte ingénua profundamente enrugada, riscava o papel, apagava o que escrevera, tornava a escrever - fazia tudo o que era necessário para a realização de um trabalho de arte - e sentia o que devem sentir os primeiros ventos da Primavera quando praticam os seus cantos iniciais por entre os rebentos das flores. Jon era um desses rapazes - raros, aliás - cujo amor da beleza, trazido do lar, não se estragara na vida do colégio. Guardara-o escondido consigo, naturalmente, de maneira que nem o mestre de desenho o percebesse, mas lá estava, rico e luminoso, dentro de si. E o seu poema parecia-lhe tão mesquinho e enfático quanto a noite era alada. Mas, mesmo assim, continuava. Era uma tolice, mas era melhor que nada como expressão do inexprimível. E pensou com uma espécie de decepção: «Não poderei mostrá-lo à mamã.» Dormiu maravilhosamente bem, quando dormiu, submerso pela novidade.

 

FLEUR

Para evitar complicações de perguntas que não poderiam ser respondidas, tudo o que Holly disse a Jon foi: - Vem uma moça com Val, para passar o fim-de-semana. Pela mesma razão, a Fleur fora dito apenas o seguinte:

- Temos um rapaz a passar uns tempos connosco.

Os dois poldros, como Val lhes chamava nos seus pensamentos, encontraram-se entretanto de uma maneira que, sendo imprevista, não deixava nada a desejar. Foram apresentados por Holly:

- Este é Jon, meu irmão, Fleur é sua prima, Jon.

Jon, que atravessava uma varanda, saindo da luz forte do sol, ficou tão confuso pela natureza providencial daquele milagre que teve tempo de ouvir Fleur dizer calmamente «Como está?», como se nunca o houvesse visto antes - e compreendeu pelo imperceptível movimento que ela fizera com a cabeça que ele nunca a vira antes. Inclinou-se entretanto por sobre a mão dela de um modo entusiástico e ficou mais silencioso que uma pedra. Sabia que seria melhor não falar. Uma vez, quando menino, surpreendido a ler, à noite, quando deveria estar a dormir, ele dissera, desculpando-se: «Estava só a virar as folhas, mamã.» E a mãe respondeu: "Jon, nunca minta, porque o seu rosto desmente sempre o que você está a dizer.»

Essa frase de Irene determinara nele uma falta de confiança que sempre o impossibilitara de dizer mentiras. Escutou entretanto as rápidas e agudas observações de Fleur sobre a beleza de tudo, obsequiou-a com doces e geleia e saiu dali o mais depressa que pôde. Dizem que no delirium tremens vê-se um objecto fixo, normalmente escuro, que subitamente muda de forma e de posição. Jon via o objecto fixo: tinha olhos escuros e cabelos mais ou menos escuros também, mudava de posição, mas nunca de forma. E a consciência de que havia entre ele e o citado objecto um entendimento secreto - entretanto impossível de compreender - abalava-o tanto que ele pôs-se a esperar febrilmente e começou a recopiar o seu poema - que, naturalmente, nunca ousaria mostrar a ela - até que o som de cavalos em marcha o fez erguer-se, e, olhando pela janela, viu-a a cavalgar em companhia de Val. Era evidente que ela não perdia tempo, mas o espectáculo encheu-o de mágoa. Se ainda não houvesse recuado, no seu assustado êxtase, teria sido também convidado para o passeio. E, sentando-se junto à janela, viu-a desaparecer, aparecer de novo na volta da estrada, esconder-se e emergir mais uma vez, por um minuto, no claro contorno dos Downs. «Tímido estúpido!», pensou ele. «Perco sempre as minhas oportunidades.»

Porque não tinha ele confiança em si e rapidez? E, enterrando o queixo nas mãos, imaginava o passeio que poderia estar a dar na companhia dela. Um fim-de-semana não era mais que um fim-de-semana, e já perdera três horas dele. Conheceria alguém, sem ser ele próprio, capaz de ser tão idiota? Não conhecia.

Vestiu-se cedo para o jantar e foi o primeiro a descer. Não queria perder mais tempo. Mas não pôde encontrar-se com Fleur, que chegou em último lugar. Sentou-se defronte dela, na mesa do jantar, e aquilo era terrível,-impossível dizer qualquer coisa, com receio de dizer a coisa indevida, impossível manter os olhos fixos nela de um modo natural, em suma, era impossível tratar normalmente alguém que, em imaginação, ele já levara às colinas, e até mais longe, consciente, durante todo o tempo, de que deveria parecer, não só a ela mas a todos, um rematado idiota, Sim, era terrível! E ela estava a conversar tão bem, roçando com uma asa viva este assunto e aquele.

Era maravilhoso que ela houvesse aprendido uma arte que a ele parecia tão desagradavelmente difícil!

Ela deveria considerá-lo um caso perdido, com toda a certeza.

Os olhos da irmã, fixos nele com certo espanto, fizeram-no por fim olhar para Fleur, mas instantaneamente os olhos dela, grandes e vivos, pareceram dizer-lhe: «Oh, pelo amor de Deus!», obrigando-o a olhar para Val, enquanto uma careta deste último o fazia olhar para a sua costeleta, que afinal não tinha olhos nem fazia caretas, comendo-a apressadamente.

- Jon pretende ser agricultor - ouviu Holly dizer. - Agricultor e poeta.

Ele olhou repreensivamente para a irmã, viu-lhe o cómico bater das pálpebras, semelhante ao do pai, e riu, começando a sentir-se melhor.

Val contava o incidente de Monsieur Prosper Profond, e nada poderia ser mais favorável, porque, ao fazer a sua narrativa, ele olhava para Holly, enquanto Fleur o escutava com os supercílios ligeiramente carregados, como preocupada com qualquer coisa, e Jon sentia-se realmente livre para a olhar. Ela trajava um vestido branco muito simples e muito bem feito, tinha os braços nus e trazia uma rosa branca nos cabelos. E aquele momento de contemplação livre, seguindo-se aos primeiros instantes de constrangimento, fizeram que Jon a visse sublimada, como alguém que vê no escuro uma árvore esguia, recebia-a como o verso de um poema que cintila diante dos olhos do espírito ou uma melodia que flutua à distância e depois morre.

Ele conjecturava qual seria a idade dela - pois parecia muito mais senhora de si e experiente do que ele. Porque não podia ele dizer que já se haviam falado? Lembrou-se subitamente do rosto de Irene no encontro da confeitaria - enigmático, magoado, quando ela respondeu: «Sim, são parentes, mas não nos damos com eles.» Era impossível que sua mãe, que amava a beleza, não admirasse Fleur, se a conhecesse!

Só com Val, depois do jantar, ele bebia deferentemente o seu cálice de vinho do Porto e respondia às perguntas que lhe fazia esse recém-encontrado cunhado.

Quanto à equitação - sempre a primeira consideração para Val -, podia dispor do cavalo castanho, arriá-lo e desarriá-lo pessoalmente e tomar mais ou menos conta do animal, Jon disse que estava acostumado a fazer isso tudo em casa, percebendo que subira imediatamente na estima do seu hospedeiro.

- Fleur - disse Val - ainda não monta muito bem, mas tem jeito. Naturalmente, o pai dela é incapaz de distinguir um cavalo de uma carriola. Seu pai monta?

- Montava, mas actualmente ele... você sabe, ele... Parou, tanto odiava a palavra «velho». Seu pai estava velho - e não estava velho. Não, nunca!

- Realmente - murmurou Val. - Eu conheci seu irmão em Oxford, anos atrás... aquele que morreu na guerra dos Boers. Tivemos uma luta em New College Gardens. Foi uma história esquisita - acrescentou ele, pensativo. - Muita coisa decorreu dessa luta.

Os olhos de Jon arregalaram-se. Tudo o impelia para pesquisas históricas, quando a voz da irmã disse gentilmente da porta: «Venham cá os dois!» E ele ergueu-se com o coração pulsando por uma coisa muitíssimo mais moderna.

Como Fleur declarara que deveria ser maravilhoso ir para fora de casa, todos lhe realizaram o desejo. A luz do luar branqueava tudo e um velho relógio de sol fazia uma grande sombra. Dois maciços de buxo, em ângulo recto, escuros e quadrados, fechavam a entrada do pomar. Fleur circundou esse obstáculo.

- Venham! - gritou ela. Jon olhou os outros e seguiu a pequena que corria por entre as árvores, semelhante a um fantasma. Tudo nela era adorável, espumante, e sentia-se no ar um cheiro de velhos troncos e de urtigas, Fleur desapareceu. Ele pensou que a perdera, e de repente quase caiu sobre ela. que estava de pé, quieta. - Não é bonito? - exclamou Fleur.

- Realmente! - respondeu Jon.

Ela avançou, inclinou-se sobre umas florinhas, apertando-as entre os dedos, e disse:

- Creio que posso chamar-lhe jon?

- Também o creio.

- Muito bem. Você sabe que existe uma velha intriga entre as nossas famílias?

- Intriga? Porquê? - gaguejou Jon.

- É tudo tão romântico e ingénuo! Foi por isso que eu dei a entender que nunca nos tínhamos encontrado. Vamo-nos levantar cedo, amanhã de manhã, e dar um passeio antes do pequeno-almoço, para esclarecer isso? Detesto tratar lentamente as coisas. E você?

Jon murmurou um assentimento entusiástico.

- Às seis horas, então - disse ela. - Achei a sua mãe linda.

- Sim, ela é linda - disse Jon fervorosamente.

- Adoro toda a espécie de beleza - continuou Fleur -, quando é excitante. Não gosto absolutamente nada da arte grega.

- Não? Não gosta de Eurípides?

- Eurípides? Oh, não! Não posso suportar dramas gregos. Acho que a beleza é sempre vivaz. Gosto de olhar para um quadro, por exemplo, e depois correr para fora. Não posso suportar uma porção de coisas reunidas. Olhe! - Ela ergueu o seu ramo florido.- Isto é melhor que todo o pomar, não é? - E subitamente, com a outra mão, segurou a mão de Jon. - De todas as coisas do mundo, não acha que a prudência é a mais pavorosa? Cheire o luar!

Encostou o ramo ao rosto de Jon e este assentiu estouvadamente que, entre todas as coisas do mundo, a prudência era a pior, e, inclinando-se, beijou a mão que segurava o ramo.

- Isso é bonito, é uma coisa dos tempos antigos - disse Fleur calmamente. - Você é terrivelmente calado, Jon. Aliás, eu gosto do silêncio, quando ele é animado. - E soltou a mão. - Você desconfiou que eu deixei cair o meu lenço de propósito?

- Não! - gritou Jon, profundamente chocado.

- Bem, pois deixei. Vamos voltando, ou então eles pensam que nos afastámos de propósito.

E novamente ela correu como um fantasma por entre as árvores. Jon seguiu-a, sentindo o amor no coração, enquanto o luar cobria tudo com a sua luminosidade branca e extraterrena. Chegaram ao local donde tinham partido e Fleur pôs-se a andar pausadamente.

- Isto aqui é realmente maravilhoso - disse ela, sonhadora, dirigindo-se a Holly.

Jon guardou silêncio, desejando, com poucas esperanças, que

ela considerasse aquele silêncio movimentado, mas Fleur apenas lhe dirigiu uma despedida distraída e lenta, o que o fez pensar que estivera a sonhar.

No seu quarto, Fleur atirou fora o vestido, e, envolvida numa camisa sem forma, com a rosa branca ainda nos cabelos, parecia uma musmé, sentada de pernas cruzadas na cama, escrevendo à luz da vela:

 

           Queridíssima Cherry,

Acho que estou apaixonada. Ele é quase um menino, meu primo em segundo grau, cerca de seis meses mais velho, mas, na realidade, dez anos mais novo que eu. Os rapazes sempre se apaixonam por moças mais velhas, e as moças por rapazes mais novos, ou então por velhos senhores de quarenta anos. Não ria, mas os olhos dele foram as coisas mais verdadeiras que já vi, e ele é, na verdade, divinamente silencioso! Tivemos um primeiro encontro romântico em Londres, junto à Juno de Vospovitch. E agora ele está a dormir no quarto vizinho, enquanto o luar cobre o jardim. Amanhã de manhã, antes que qualquer pessoa acorde, iremos passear por este país de fadas que é o Downs. Há uma velha intriga entre as nossas famílias, o que torna a coisa realmente apaixonante. Sim! E eu vou precisar de subterfúgios, usar o seu nome para convites fingidos... se... você sabe o quê. Meu pai não quer que nós tenhamos amizade um com o outro, mas não posso evitar isso. A vida é muito curta. Ele tem a mãe mais bonita do mundo, com cabelos brancos e uns olhos muito escuros no rosto jovem. Estou hospedada em casa da irmã dele, que é casada com meu primo. Está tudo numa complicação danada, mas pretendo arrancar explicações dela amanhã. Nós sempre falámos do amor como de uma brincadeira desportiva. Pois bem, tudo aquilo era tolice: só o começo é que é brincadeira - e quanto mais depressa descobrir isso, minha cara, melhor para si.

Jon - não é grafia fonética, é diminutivo de Jolyon, que é o nome de família, na nossa família, dizem - é da espécie dos que iluminam e desaparecem. Tem cerca de um metro e setenta de altura - ainda está a crescer e suponho que vai ser poeta. Se se rir de mim, rompo consigo para sempre. Estou a ver diante de nós toda a espécie de dificuldades, mas bem sabe que quando quero uma coisa obtenho-a. Um dos principais eleitos do amor é que se sente o ar como que habitado - como quem vê um rosto no luar-, e a gente sente-se a dançar e leve ao mesmo tempo, com uma sensação engraçada, tal como um contínuo cheiro de laranjeiras em flor. Este é o meu primeiro amor, e sinto que será o último, o que é um absurdo, naturalmente, de acordo com todas as leis da Natureza e da moral. Se se rir de mim, sou capaz de a matar, e se falar nisto a alguém, nunca mais lhe perdoo. É isto mesmo, e creio até que acabarei por não mandar esta carta. De qualquer modo, vou dormir sobre ela. Então, boa noite, minha Cherryzinha!

           Sua Fleur

 

IDÍLIO NA RELVA

Quando aqueles dois jovens Forsyte emergiram da ravina e ergueram o rosto para o Sol não havia uma única nuvem no céu e os Downs estavam cobertos de orvalho. Tinham feito um certo esforço para subir a encosta e resfolegavam um pouco. Se tinham alguma coisa a dizer, não a diziam, e caminhavam em plena manhã, em jejum, sob o canto das cotovias. A fuga de casa fora divertida, mas na liberdade das alturas o sentimento de conspiração desapareceu e deu lugar à mudez.

- Nós cometemos um erro - disse Fleur, depois de já terem subido uma milha. - Estou com fome.

Jon tirou do bolso uma barra de chocolate. Partilharam-na ambos, e então as suas línguas desataram-se. Discutiram a natureza das suas vidas domésticas recíprocas, a existência prévia de ambos, e tudo tinha um quê de fascinante irrealidade, naquelas altitudes solitárias. Só havia uma coisa sólida no passado de Jon: a mãe. E uma única coisa sólida no passado de Fleur: o pai. E daquelas duas figuras, que eram vistas à distância, com expressão desaprovadora, falaram pouco.

O Down mergulhava e erguia-se depois contra Chanctonbury Ring, avistava-se além um pedaço distante de mar e um grande gavião voava contra o Sol nascente, de forma que o pardo-escuro

das suas asas parecia vermelho. Jon tinha paixão por pássaros e uma aptidão natural para se manter imóvel, a espiá-los, sem os assustar. Dotado de uma vista excelente e com muito boa memória para aquilo que o interessava, era capaz de os distinguir a todos pelo ouvido. Mas em Chanctonbury Ring não havia nenhum - a grande faia imponente estava vazia de vida e quase provocava arrepios àquela hora matinal.

Era agora a vez de Fleur. Ela falou de cães e da maneira como as pessoas os tratavam. Era horrível vê-los presos a correntes. Ela tinha vontade de matar gente capaz disso. Jon estava atónito ao vê-la tão humanitária. Ela conhecia um cão. pertencente a um proprietário vizinho, que de tanto viver acorrentado, num canto da capoeira, fizesse o tempo que fizesse, acabara por perder a voz de tanto ladrar!

- E a miséria disso - acrescentou ela veementemente - é que se o desgraçado não ladrasse a cada pessoa que passava não seria mantido ali acorrentado. Acho que os homens são uns brutos. Duas vezes soltei o cachorro, às escondidas, e ele quase me mordeu em ambas as vezes. Depois, parecia que ia ficar louco de alegria, mas acabava sempre por voltar para casa, e lá o acorrentavam de novo. Se eu pudesse, acorrentava também o dono dele. - Jon via os dentes e os olhos dela a luzir. - Tinha vontade de o marcar na testa com uma palavra: "Bruto". Isso haveria de o ensinar!

Jon concordou que seria um bom remédio.

- É o sentimento de propriedade - disse o rapaz - que faz que as pessoas acorrentem o que é seu. A geração passada não pensava noutra coisa senão em propriedade. E foi por isso que houve a guerra.

- Oh - disse Fleur -, nunca pensei nisso. A sua família e a minha brigaram por causa de uma propriedade. E, de certo modo, nós já esquecemos isso, e creio que a sua gente também.

- Oh, sim, felizmente. Acho que eu não tenho a menor habilidade para ganhar dinheiro.

- Se você tivesse, não creio que gostasse de si.

Jon deslizou trèmulamente a sua mão sob o braço dela.

Fleur fixou o olhar no espaço em frente e cantou:

 

       Jon, Jon, the farme's son,

       Stole a pig and away he run! (1)

 

O braço de Jon rodeou-lhe a cintura.

- Foi muito rápido - disse FLeur calmamente. - Você faz sempre isso?

Jon deixou cair o braço, mas, quando ela riu, voltou a enlaçá-la. E Fleur recomeçou a cantar:

 

       O who will o'er the downs so free

       O who will with me ride?

       O who will up and follow me? (2)

 

- Cante, Jon!

Jon cantou. As cotovias também cantavam e os sinos de uma igrejinha madrugadora soavam lá longe. E eles prosseguiram, estrofe após estrofe, até que Fleur disse:

- Oh, meu Deus! Estou com fome!

- Oh! Sinto muito. Ela encarou-o.

- Jon, você é realmente um amor.

E apertou a mão dele contra o peito. Jon quase desmaiou de felicidade. Um cão amarelo e branco, perseguindo uma lebre, afastou-os. Viram o cão e a lebre desvanecerem-se na encosta, e Fleur disse com um suspiro:

- Ele nunca a apanhará, graças a Deus! Que horas são? O meu relógio parou. Nunca dou corda.

Jon olhou o seu relógio.

- Sim, senhor! O meu também parou.

 

*1. Jon, Jon, filho do lavrador.

Roubou um porco e fugiu a correr!

  1. Oh, quem quer passear pelas dunas, livremente,

Oh, quem quer cavalgar comigo,

Oh, quem quer subir e acompanhar-me?

 

E continuaram a andar de novo, mas apenas com as mãos dadas.

- Se a relva estivesse enxuta - disse Fleur -, poderíamos sentar-nos durante um momento.

Jon tirou o casaco, e ambos se sentaram em cima.

- Que cheiro! É tomilho!

Jon pôs novamente o braço em torno da cintura da pequena, e ambos ficaram um instante em silêncio.

- Nós somos uns tontos - exclamou Fleur, pondo-se de pé. - Vamos chegar tremendamente atrasados, apareceremos com ar de culpa, e eles ficam logo alerta. Escute, Jon! Nós saímos apenas para aumentar o apetite para o pequeno-almoço e perdemo-nos. Está bem?

- Sim - respondeu Jon.

- Isto é sério. Senão eles atrapalham-nos. Você mente bem?

- Creio que não. Mas vou tentar. Fleur enrugou a testa.

- Você bem vê - disse ela. - Creio que eles não querem que nós sejamos amigos.

- Porque não?

- Já lhe disse porquê.

- Mas isso é uma tolice.

- Sim, mas você não conhece meu pai!

- Creio que ele é louco por si.

- Compreende-se, sou filha única. E você também, por parte de sua mãe. Não é um azar? Esperaram tanto por esse único filho... e enquanto estavam à espera foi como se estivessem mortos.

- Sim - respondeu Jon -, a vida é estupidamente curta. E nós queremos viver para sempre e saber tudo.

- E amar toda a gente?

- Não! Só quero amar uma vez... a si.

- Com efeito! Você está a progredir! Oh, olhe! É aqui a pedreira velha. Já não devemos estar muito longe. Vamos correr.

Jon seguiu-a, pensando, assustado, se a teria ofendido. A pedreira estava cheia de sol e de zumbidos de abelhas. Fleur atirou os cabelos para trás.

- Bem - disse ela -, em caso de acidente, você deve dar-me um beijo, Jon.

E estendeu-lhe a face. Num êxtase, o rapaz beijou aquela face macia.

- Agora lembre-se: nós perdemo-nos. E deixe a coisa comigo, tanto quanto for possível. É mais seguro. Procure mostrar-se desagradável comigo.

Jon abanou a cabeça.

- Isso é impossível!

- Só para me agradar. Até às cinco horas, de qualquer modo.

- Toda a gente vai perceber - disse Jon, receoso.

- Bem, faça o melhor que puder. Olhe! Lá estão eles! Ponha o chapéu! Oh, você não trouxe chapéu! Bem, vamos! Afaste-se de mim e mostre-se mal-humorado.

Cinco minutos depois, entrando em casa e fazendo o possível para se mostrar de mau humor, Jon ouviu a clara voz dela, na sala de jantar:

- Oh, estou simplesmente esfomeada! Ele quer ser agricultor... e perde-se pelo campo! Esse rapaz é um idiota!

 

GOYA

O almoço acabara e Soames subira para a galeria de pintura na sua casa de Mapledurham. Estava, como Anmette dizia, «amolado». Fleur ainda não voltara para casa. Esperavam-na na quarta-feira, telegrafara que só viria na sexta, e agora, sexta, só viria no domingo à tarde. E cá estavam a tia dela, os primos Cardigan e aquele sujeito Profond - e tudo vazio como um buraco, por falta de Fleur. Ele parou diante do Gauguin - único ponto triste da sua colecção. Comprara aquela coisa horrível juntamente com dois Matisse, antes da guerra, porque estavam a fazer um grande barulho acerca desses pós-impressionistas. E Soames cismava se Profond quereria comprar-lhe aquilo - o sujeito parecia não saber o que fazer ao dinheiro - quando ouviu a voz da irmã dizer:

- Acho isso horrível, Soames. E viu Winifred, que o seguira.

- Oh, você acha? - disse ele secamente. - Pois dei quinhentas libras por este quadro.

- Imagine! As mulheres negras não são assim. Soames soltou um riso irritado.

- Você não subiu aqui para me dizer isso.

- Não. Você sabe que o filho de Jolyon está em casa de Val e da mulher?

Ele voltou-se bruscamente.

- O quê?

- Sim - assentiu Winifred. - Foi passar uns tempos com eles, para praticar agricultura. - Soames afastara-se, mas a voz da irmã perseguia-o enquanto ele andava de cá para lá. - Avisei Val de que nada deveria ser dito a nenhum dos dois a respeito daquelas velhas histórias.

- Porque não me disse nada antes? Winifred sacudiu os seus fortes ombros.

- Fleur faz o que quer. Você amimou-a de mais. Além disso, meu filho, qual é o perigo?

- O perigo? - resmungou Soames. - Bem, ela...

Mas conteve-se. A Juno, o lenço, os olhos de Fleur, as suas perguntas, e agora aquele adiamento na sua volta, - os sintomas pareciam-lhe tão sinistros que, fiel por natureza, não queria dividi-los com ninguém.

- Creio que está a dar importância demasiada a isso - disse Winifred. - Se eu fosse você, contava todas essas velhas histórias à pequena. Não adianta pensar que as moças de agora são como as de antigamente. Onde elas aprendem o que sabem, não posso dizer, mas parece que entendem de tudo. - No rosto de Soames, fechado como sempre, passou uma espécie de espasmo, e Winifred acrescentou, apressadamente: - Se você não quer falar com ela, posso fazê-lo em seu lugar.

Soames abanou a cabeça. A menos que não houvesse uma necessidade absoluta, não consentiria em revelar à filha adorada aquele velho escândalo que tanto lhe feria o orgulho.

- Não - disse ele. - Ainda não. Não, enquanto eu puder evitá-lo.

- Tolice, meu caro. Lembre-se de que muita gente sabe!

- Vinte anos é muito tempo - murmurou Soames. - Além da nossa família, quem mais se lembra disso?

Winifred calou-se. Inclinava-se cada dia mais para aquela paz e aquele silêncio de que Montague Dartie a privara na sua mocidade. E, como os quadros a deprimiam, depressa saiu dali.

Soames encaminhou-se para o canto onde, lado a lado, pendiam o seu Goya autêntico e a cópia do fresco La Vendimia.

A sua aquisição do Goya autêntico ilustrava muito bem a teia de interesses e paixões que enreda a mosca azul da vida humana. O antigo e nobre proprietário do Goya autêntico entrara na posse do quadro durante certa guerra espanhola - num saque, para falar claro. O nobre proprietário ficou entretanto na ignorância do valor da sua aquisição, até que lá por 1890 um crítico empreendedor descobriu que o pintor espanhol chamado Goya fora um génio. Era apenas um Goya regular, mas quase único na Inglaterra, e o nobre proprietário tornou-se um homem notório. Possuidor de muitas coisas e daquela aristocrática cultura que, independente do mero prazer dos sentidos, obedece ao sonoro princípio de que um gentleman deve conhecer tudo e interessar-se pela vida, tencionara não se desfazer de um objecto que, enquanto estivesse vivo, contribuía para a sua reputação, mas, depois de morto, tencionava legá-lo à nação. Felizmente para Soames, a Câmara dos Lordes foi violentamente atacada em 1909, e o nobre [proprietário sentiu-se alarmado e colérico. E cismava: «Se eles pensam que de qualquer modo têm garantida a minha herança, estão muito enganados. Enquanto me deixaram gozar a vida calmamente, a nação poderia contar com o legado dos meus quadros por ocasião da minha morte. Mas se a nação se compraz em mortificar-me, em irritar-me, diabos me levem se não vendo a tralha toda! Eles não podem ao mesmo tempo apoderar-se da minha tranquilidade pública e da minha propriedade privada!»

Revirou no espírito estas cogitações durante vários meses, até que numa bela manhã, depois de ler o discurso de um certo estadista, telegrafou ao seu procurador, dizendo-lhe que trouxesse ao castelo o perito Bodkin. Depois de estudar a colecção, Bodkin - cuja opinião em mercados de quadros era tão incontestável - declarou que, se tivesse carta branca para vender os quadros no estrangeiro, obteria preços infinitamente melhores que na Inglaterra. E apontava a Alemanha, a América e outras praças interessadas em vendas de arte. O espírito público do nobre proprietário era muito conhecido - mas os quadros eram únicos. O nobre proprietário meteu aquela opinião no seu cachimbo e fumou-a durante um ano inteiro. Ao fim desse tempo, tornou a ler no mesmo jornal novo discurso daquele mesmo estadista, e telegrafou ao seu procurador:

«Dê carta branca a Bodkin.» Foi nessa emergência que Bodkin concebeu a ideia que impediu o Goya e algumas outras preciosidades de deixarem o país natal do nobre proprietário. Com uma das mãos, Bodkin ofereceu os quadros aos compradores estrangeiros, com outra mão, organizou uma lista de coleccionadores particulares britânicos. Depois de obter o que ele considerava as mais altas ofertas do ultramar, submeteu os quadros e as ofertas à apreciação dos coleccionadores nacionais e convidou-os a mostrarem o seu patriotismo propondo uma contra-oferta. Em três casos, nos vinte e um quadros propostos, inclusive o Goya, ele teve êxito. E porquê? Um dos coleccionadores particulares era fabricante de botões - fazia-os em tão grande número que desejava que sua esposa fosse chamada Lady Botões. Comprou naturalmente um dos quadros a alto preço e ofereceu-o ao país. Aquilo fazia parte, diziam os seus amigos, do seu «jogo político». O segundo dos coleccionadores era americanófobo e comprou um único quadro para «irritar os diabos dos ianques». O terceiro coleccionador foi Soames, que, mais sóbrio que os outros dois, comprou um quadro, e, como viera de uma visita a Madrid, escolheu o Goya. Pelo que vira na Espanha, tinha a certeza de que o Goya ainda subiria de valor, não estava actualmente nas alturas, mas subiria. E, olhando para aquele retrato, meio à maneira de Hogarth e Monet, mas com profundas características próprias de beleza e técnica, sentia-se perfeitamente satisfeito e seguro de que não cometera um engano, apesar do preço que pagara, o mais alto que já desembolsara até então por um quadro. E lá estava ele, pendurado junto à cópia de La Vendimia. E lá estava a rapariga, a olhá-lo com o seu jeito sonhador - o jeito que ele preferia, porque se sentia muito mais seguro quando ela o olhava assim.

Estava ainda mergulhado na sua contemplação quando um cheiro de charuto lhe feriu as narinas e uma voz disse:

- E então, Mr. Forsyde, que é que o senhor pretende fazer com esta pequena colecção?

Era o belga, que, como se o seu sangue flamengo já não bastasse, tinha ainda a mãe arménia! Dominando uma irritação natural, Soames disse:

- O senhor é entendido em pintura?

- Bem, eu também já adquiri algumas.

- Pós-impressionistas?

- S-i-m, com efeito, gosto deles.

- Que é que o senhor pensa disto? - disse Soames, apontando o Gauguin.

Monsieur Profond estendeu o lábio inferior e a barbicha pontiaguda.

- Muito bonito, com efeito. Quer vendê-lo?

Soames reteve o seu «De um modo particular, não», pois não queria regatear com aquele estrangeiro.

- Sim - disse.

- Quanto quer por ele?

- O que dei.

- Muito bem - disse Monsieur Profond. -- Gostarei de adquirir esse quadrinho. Pós-impressionistas... morreram tremendamente, mas são todos divertidos. Não me importo muito com quadros, mas já adquiri alguns... uns poucos.

- Com que é que o senhor se importa? Monsieur Profond encolheu os ombros.

- A vida dos homens é vergonhosamente parecida com a de um bando de macacos batendo-se por cocos vazios.

- O senhor é jovem - disse Soames.

Se aquele indivíduo queria fazer uma generalização, não precisava de sugerir que as formas de propriedade careciam de solidez!

- Não me espanto - continuou Monsieur Profond, sorrindo. - Nascemos, morremos. Metade do mundo morre de fome, na minha pátria, financio o sustento de um grande número de crianças. Mas para quê? Seria talvez melhor que atirasse o meu dinheiro ao rio.

Soames olhou-o, depois, voltou as costas e olhou para o Goya. Não entendia o que queria aquele sujeito.

- Qual a soma que devo anotar no cheque? - continuou Monsieur Profond.

- Quinhentas libras - disse Soames laconicamente. - Mas não desejo que o senhor o adquira se o seu interesse pelo quadro não chega até essa quantia.

- Está muito bem - disse Monsieur Profond. - Gostarei muito de possuir o quadro.

Escreveu o cheque com uma caneta de tinta permanente pesadamente incrustada de ouro. Soames viu-o agir, sentindo-se pouco à vontade. Por que diabo o sujeito adivinhara que ele pretendia vender o quadro? Monsieur Profund estendeu-lhe o cheque.

- Os Ingleses são muito engraçados a respeito de pintura - disse ele. - Assim também são os Franceses, e assim é o meu povo. São todos engraçadíssimos.

- Não o compreendo - disse Soames secamente.

- É como os chapéus - continuou enigmaticamente Monsieur Profond. - Pequenos ou grandes, de aba virada ou aba baixa, conforme a moda. Muito engraçado.

E, sorrindo, desapareceu da galeria, azul e sólido, tal como o fumo do seu excelente charuto.

Soames segurara o cheque com o sentimento de que o valor intrínseco da sua propriedade fora posto em questão. «É um cosmopolita», pensou ele. vendo Profond emergir na varanda, em companhia de Annette, e sair em direcção ao rio. O que sua mulher via naquele homem, ele não o sabia - além do facto de ele falar a sua língua nativa -, e perpassou-lhe no espírito o que Profond chamaria «uma pequena dúvida»: se Annette não seria bonita de mais para andar a passear com alguém tão «cosmopolita». Mesmo àquela distância, podia ver ainda o fumo azul do charuto de Profund espiralando no ar límpido, os seus borzeguins cinzentos e o chapéu cinzento - o sujeito era um dandy! E viu o rápido volver da cabeça de Annette, tão bem posta no seu lindo pescoço e nos ombros apetitosos. Aquele jeito dela de virar o pescoço sempre lhe parecera um pouco excessivo, no género rainha de beleza - e não muito distinto. E espiou-os enquanto prosseguiam no passeio, ao longo do caminho do fim do jardim. Um rapaz vestido num fato de flanela reuniu-se a eles - um visitante de domingo, sem dúvida, que acabava de subir o rio. Soames voltou ao seu Goya. Estava ainda a fitar a réplica de Fleur e meditando nas notícias de Winifred, quando a voz da mulher disse:

- Mr. Michael Mont, Soames. Você convidou-o para ver os seus quadros.

Era o rapaz entusiasmado da exposição de Cork Street!

- Dei uma volta para o ver, sir. Moro apenas a quatro milhas de Pangibourne. Lindo dia., não acha?

Confortando-se com os resultados da sua expansividade, Soames perscrutava o visitante. A boca do rapaz era excessivamente grande e crespa - parecia estar sempre a fazer trejeitos. Porque não deixava crescer o resto daquele bigodinho idiota, que o tornava parecido com um bufão de music-hall? Por que diabo os jovens de agora deliberadamente se tornavam ridículos usando no lábio aquelas escovas? Uff! Jovens idiotas, afectados! Sob outros aspectos, ele era apresentável, e o seu fato de flanela muito bem cuidado.

- Prazer em vê-lo! - disse.

O rapaz, que voltava a cabeça para todos os lados, parecia extático.

- Bem vejo! - exclamou. - «Alguns» quadros!

Soames viu, com uma sensação indefinível, que ele dirigira o comentário à cópia do Goya.

- Sim - disse secamente. - Isso não é um Goya. É uma cópia. Mandei fazê-la porque me recorda minha filha.

- Por Júpiter! Juro que conheço esse rosto, sir. Ela está aqui? A franqueza do interesse do moço quase desarmou Soames.

- Estará depois do chá - disse ele.

- Vamos ver os quadros?

E Soames recomeçou aquela ronda que nunca o fatigava. Não esperara muita inteligência da parte de quem tomara uma cópia pelo original, mas, à medida que passavam de secção para secção, de período para período, sentia-se admirado pela franqueza e precisão dos comentários do moço. Naturalmente agudo, e até mesmo sensual sob a sua máscara, Soames não tinha gasto trinta e oito anos na sua única mania sem aprender sobre pintura algo mais que o seu valor mercantil. Ele representava, na verdade, o elo intermediário entre o artista e o público comercial. A arte pela arte, naturalmente, era uma tolice, mas a estética e o bom gosto eram indispensáveis. A apreciação de um bom número de pessoas de bom gosto é que dava a uma obra de arte o seu permanente valor mercantil, ou, por outras palavras, era o que transformava um quadro numa «obra de arte». Não havia nenhum padrão estabelecido.

E ele estava suficientemente acostumado a visitas sem opinião própria e sem olhos, para se intrigar perante alguém que, diante de Mauve, de James Maris, de Matthew, não hesitava em dar a sua opinião, franca e lúcida, embora emitida numa gíria irreverente. Mas só depois de ver o rapaz assobiar diante de Whistler, com as palavras: «O senhor acredita que ele tenha alguma vez visto uma mulher nua, sir?», Soames comentou:

- Que faz o senhor, Mr. Mont, se posso perguntar?

- Eu, sir? Eu pretendia ser pintor, mas a guerra atrapalhou-me os planos. E nas trincheiras, o senhor compreende, pus-me a sonhar com a Bolsa... lugar agasalhado e quente, sem barulho de mais. Porém a paz também atrapalhou isso... Fui desmobilizado há cerca de um ano. Que é que me recomenda, sir?

- Você tem dinheiro?

- Bem - respondeu o rapaz -, tenho pai. Fi-lo viver durante a guerra, de modo que ele tem de me fazer viver agora. Embora eu tenha de concordar que é justo ele agarrar-se aos seus bens... - Soames, pálido e na defensiva, sorriu. - O velho teve um ataque quando eu lhe disse que ele ainda tinha de trabalhar. Ele é proprietário territorial, imagine. E isso é uma doença fatal.

- Este é o meu Goya autêntico - disse Soames secamente.

- Coa breca! Este é bom! Vi uma vez um Goya em Munique que me deixou tonto. Uma velha absolutamente diabólica, vestida numas rendas esplêndidas. Ele é que nunca se preocupou com o gosto do público. Era um sujeito puramente «explosivo». Deve ter derrubado um monte de convenções, no tempo em que viveu. Como pintava! A pintura de Goya faz que a de Velázquez pareça muito rígida, o senhor não acha?

- Não tenho nenhum Velázquez - disse Soames. O rapaz fitou-o.

- Não - disse ele. - Só países e negociantes podem possuir um quadro dele, creio eu. Já pensei: porque é que os países que estão em bancarrota não obrigam os seus profiteurs a comprar os seus Velázquez, e Tizianos, e outros que tais, e depois não emitem uma lei determinando que todos os possuidores de quadros de velhos mestres sejam obrigados a exibi-los nas galerias públicas? Seria uma solução.

- Vamos tomar chá?

As orelhas do rapaz pareciam pender-lhe do crânio. «Ele não é denso», pensava Soames, seguindo-lhe as premissas.

Goya, com a sua satírica e inigualada precisão, a sua linha original, o desafio das suas luzes e sombras, poderia ter reproduzido admiravelmente o grupo que se reunira em torno da mesa de chá de Annette, sob o caramanchão. Só ele. talvez, entre todos os pintores, seria capaz de fazer justiça à luz do sol que se filtrava através da cortina de trepadeiras, à palidez das pratas, às xícaras de louça antiga, às finas rodelas de limão no chá de âmbar pálido, justiça a Annette, no seu vestido de renda negra, havia qualquer coisa da ardente espanhola na beleza dela, embora lhe faltasse a espiritualidade daquele tipo incomum, a Winifred, com os seus cabelos brancos e rijamente cintada, a Soames, na sua distinção grisalha, ao vivaz Michael Mont, de olhar e ouvido agudos, a Imogen, morena, apetitosa ao olhar, começando a engordar ligeiramente, a Prosper Profond, com o seu ar de quem quer dizer «Bem, Monsieur Goya, qual é a utilidade que há em pintar esta pequena festa?» Finalmente, a Jack Cardigan, com o seu olhar fixo e luzente, o seu ar sanguíneo e queimado de sol, que era como a confissão do princípio que o governava: «Sou inglês e vivo para manter-me em boa forma.»

Era curioso notar, de passagem, que aquela mesma Imogen que, certa vez, em casa de Timothy, declarara que jamais se casaria com um «bom homem» - pois eles eram muito estúpidos - houvesse casado com Jack Cardigan, em quem a boa saúde havia destruído todas as marcas do pecado original, e dificilmente ela poderia distinguir entre outros dez mil ingleses aquele que escolhera para dormir ao seu lado. E ela gostava de dizer a respeito do marido, no seu modo «divertido»: «Jack vive numa boa forma espantosa! Nunca esteve doente um único dia na vida. Atravessou toda a guerra sem um arranhão. Vocês realmente não podem imaginar como ele é sadio!» E, realmente, Jack vivia em tão boa forma que nem sabia ver quando ela estava a fazer flirt - o que era, de certo modo, uma consolação. Aliás, ela ainda o amava, tal como se pode amar uma máquina desportiva - e amava os dois pequenos Cardigan feitos pelo modelo do pai.

Os olhos dela, naquele momento, estavam justamente a comparar o marido com Prosper Profond. Não havia nenhum «pequeno» desporto nem jogo que Mr. Profond não houvesse praticado, desde o skitte à pesca com arpão, e enjoara-se de todos eles. Imogen desejava às vezes que Jack também os enjoasse, mas o marido continuava a praticá-los todos e a falar deles com o entusiasmo singelo de um colegial que aprende hockey e garantia que quando chegasse à idade do tio Timothy ainda jogaria golf no tapete do quarto.

Agora mesmo, estava ele a contar os seus triunfos desportivos da manhã e incitava Prosper Profond a jogar uma partida de ténis depois do chá - haveria de lhe fazer bem - «para se manter em boa forma»!

- Mas para que serve estar em boa forma? - disse Monsieur Profond.

- Sim, sir - murmurou Michael Mont -, para que é que o senhor quer estar em boa forma?

- Jack - gritou Imogen, encantada -, para que é que você quer estar em forma?

Jack Cardigan fitou-os do alto de toda a sua saúde. As perguntas pareciam o zumbido de um mosquito, e ele ergueu a mão para o enxotar. Durante a guerra, naturalmente, mantivera-se em forma para matar alemães, agora que aquilo acabara, não sabia para que estaria em forma e parecia-lhe de mau gosto qualquer explicação do princípio que o fazia viver.

- Mas ele tem razão - disse inesperadamente Monsieur Profond. - Não nos resta mais nada além de nos mantermos em forma.

Aquele dito, muito profundo para uma tarde de domingo, teria passado sem resposta -mas não para uma natureza azougada como a do jovem Mont.

- Isso mesmo! - exclamou ele. - Foi esta a grande descoberta da guerra. Nós todos pensávamos que estávamos a progredir... e vimos agora que estamos apenas a mudar.

- Para pior - disse Monsieur Profond afavelmente.

- Como você é animador, Prosper! - murmurou Annette.

- Vamos jogar ténis! - disse Jack Cardigan.

- O senhor está

a ficar corcunda. Depressa corrigiremos isso. O senhor joga, Mr. Mont?

- Bato na bola, sir.

Naquela emergência, Soames ergueu-se, movido pelo profundo instinto de preparação do futuro que o guiava na existência.

- Quando Fleur chegar... - ouviu ele dizer a Jack Cardigan. Ah, porque não chegava ela? Atravessou a sala de estar, o

hall, o pórtico que dava para a estrada, e ficou de pé, escutando a aproximação de um carro. Até o campo estava endomingado, os lilases, em plena floração, embalsamavam o ar. Viam-se pequenas nuvens, iguais a penas de pato, iluminadas pelo sol. Vieram-lhe de súbito recordações do dia em que Fleur nascera, e ele esperara, tomado de agonia, com a vida dela e a da mãe balançando nas mãos. Salvara-a então, para vir a ser a flor da sua vida.. E agora! Seria que ela iria trazer-lhe desgostos... mágoas? Não estava a gostar do caminho que as coisas começavam a tomar. Um melro quebrou-lhe a cisma com um canto vesperal! - um grande melro pousado no pé da acácia. Soames, naqueles últimos anos, tomara um interesse real pelos pássaros, e ele e Fleur costumavam passear por ali, a espiá-los. Os olhos dela eram agudos como agulhas e sabiam descobrir todos os ninhos. Viu o cão de Fleur, um retriever, deitado numa réstia de sol, e chamou-o.

- Olá, meu velho, também está à espera dela!

O cão aproximou-se lentamente, abanando a cauda, e Soames, mecanicamente, fez-lhe festas na cabeça. O cão, os pássaros, os lilases, tudo para ele era evocação de Fleur, nem mais, nem menos. «Sou louco de mais por ela», pensava ele. «Louco de mais!» Ele era como um homem que manda os seus navios para o mar e não os segura. Novamente sem seguro, tal como naquele tempo, tantos anos atrás, quando vagueava mudo e ciumento no deserto de Londres, morrendo por aquela mulher - a sua primeira mulher... a mãe daquele rapaz infernal. Ah, era o carro, finalmente! Parou, retiraram a bagagem, mas Fleur não vinha nele.

- Miss Fleur preferiu vir a pé, sir.

Andar a pé todas aquelas milhas? Soames fixou o homem: a cara dele mostrava um começo de sorriso. Porque estaria ele a rir? E voltou-se rapidamente, dizendo:

- Muito bem, Sims!

E dirigiu-se para casa. Subiu mais uma vez à galeria de quadros. Tinha dali uma vista da margem do rio, e ficou de pé, com os olhos fixos lá, esquecido de que se passaria uma hora antes de Fleur poder aparecer. Vir a pé! E o sorriso do homem... O rapaz...

Afastou-se abruptamente da janela. Não podia espiá-la. Se ela desejava esconder-lhe alguma coisa, tinha direito a isso, ele é que não podia espiá-la. O seu coração parecia vazio e uma amargura subia-lhe do peito até à boca. Os gritos de Jack Cardigan perseguindo a bola e o riso do jovem Mont subiam na calma da tarde e chegavam até ele. Soames esperava que eles estivessem a fazer aquele sujeito Profond correr. E a pequena de La Vendimia continuava com o seu braço no quadril e com os seus olhos sonhadores a fitá-lo. «Fiz tudo o que pude por ela», pensou ele, «desde o tempo em que você não me chegava aos joelhos. E agora você não vai... não vai magoar-me, pois não?»

Mas a cópia de Goya não respondeu, brilhando na sua cor que ia começando a escurecer. «Não há vida real nisto», pensou Soames. «Porque não vem ela?»

 

TRIO

Por entre todos esses Forsyte da terceira geração, e podia-se até dizer da quarta, reunidos em Wansdon, nos Downs, um fim-de-semana que se prolongava por nove dias levara os traços pessoais de cada um, graças à tenacidade recíproca,, a um ponto de tensão quase máxima. Nunca Fleur se mostrara tão fine, Holly tão vigilante, Val tão absorto nas suas cavalariças, Jon tão silencioso e perturbado. Tudo o que ele aprendeu de agricultura, durante a semana inteira, não pesaria sobre uma pluma. Jon, cuja natureza era essencialmente adversa à intriga e cuja adoração por Fleur o dispunha a considerar indecente qualquer Meio de esconder tal adoração, irritava-se, impacientava-se, embora obedecendo, aproveitando com alívio os poucos momentos em que os dois se viam a sós.

Na quinta-feira, estavam os dois na varanda da sala de estar, vestidos para o jantar, e ela disse-lhe:

- Jon, vou voltar para casa no domingo, no comboio que sai às três e quarenta da estação de Paddington. Se você for para casa no sábado, pode no domingo ir encontrar-me em Paddington e acompanhar-me depois na viagem. Você, de qualquer modo, teria de ir para casa, não era?

Jon acenou que sim.

- Faço tudo para estar ao seu lado - disse ele. - Queria apenas saber que necessidade eu tenho de fingir.

Fleur tocou com o dedinho a palma da mão dele.

- Você não tem instinto, Jon. Deve deixar essas coisas comigo. Isso que existe entre a nossa gente é sério. Nós temos de manter a nossa amizade secreta, actualmente, se quisermos contimuar juntos. - A porta abriu-se, e ela acrescentou em voz alta: - Você é um tonto, Jon.

Algo se revolveu dentro de Jon. Ele não podia suportar aqueles subterfúgios acerca de um sentimento tão natural, tão irresistível, tão doce.

Na sexta-feira à noite, pelas onze horas, arrumara já a maleta e estava debruçado à janela, meio infeliz, meio mergulhado num sonho relativo à estação de Paddington, quando ouviu um som débil, o som que faria uma unha arranhando a porta do quarto. Voou à porta e escutou. Novamente o som, era uma unha. Abriu. Oh! Que coisa adorável entrou por ela!

- Queria mostrar-te a minha máscara - disse Fleur., compondo a posição ao pé da cama dele.

Jon soltou um longo suspiro e encostou-se à porta. A aparição trazia uma musselina branca na cabeça, um flichou envolvendo-lhe o colo nu e um vestido cor de vinho, cuja saia tufava em grandes folhos sob a cintura delgada. Tinha uma das mãos no quadril e o outro braço erguido, em ângulo recto, segurando um leque que lhe tocava a cabeça.

- Este leque devia ser uma cesta de uvas - sussurrou ela -, mas não trouxe a cesta para cá. É o meu vestido de Goya. E esta é a atitude do quadro. Você gosta?

- É um sonho.

A aparição deu uma pirueta.

- Toque e veja. - Jon ajoelhou e tocou reverentemente na saia. - Cor de uva - continuou o murmúrio -, tudo cor de uva... La Vendimia... a vindima. - Os dedos de Jon tocavam levemente a cintura esbelta e ele ergueu os olhos cheios de adoração. - Oh, jon - sussurrou a aparição, que se inclinou depois, beijou-lhe a testa e se desvaneceu.

Jon ficou de joelhos, e a sua cabeça caiu sobre a cama.

Quanto tempo esteve assim, nunca o soube. O pequeno ruído da unha dela à porta, os pés, o roçagar das saias - tal como num sonho -, tudo aquilo o absorvia inteiramente, e perante os seus olhos fechados o vulto da rapariga desenhava-se, murmurante e sorridente, e um ténue perfume de narciso flutuava no ar. Na sua fronte, onde ela o beijara, ele sentia um pequeno ponto frio, tal como a marca de uma flor. O amor enchia-lhe a alma, esse amor de rapaz por rapariga, que sabe tão pouco e espera tanto que não consente em condescender com o mundo e que se transformará, com o tempo, numa fragrante lembrança, uma paixão seca, um companheiro importuno, ou, em muitos casos, uma vindima plena e suave, com a cor do sol nos seus cachos.

Já bastante foi dito acerca de Jon Forsyte, nestas e noutras páginas, para se compreender o grande espaço que se interpusera entre ele e o seu tetravô, o primeiro Jolyon, na sua propriedadezinha à beira-mar, no Dorset. Jon era sensitivo como uma rapariga, mais sensitivo que noventa por cento das raparigas de hoje em dia, imaginativo como um dos pintores "desvalidos" da sua meia-irmã June, afectivo quanto naturalmente o poderia ser um filho de tal pai e tal mãe. E entretanto, na sua contextura íntima, havia algo herdado do antepassado, o fundador da família - uma secreta tenacidade da alma, um receio de mostrar os seus sentimentos, uma determinação especial para não aceitar derrotas. Rapazes sensíveis, imaginativos, afectuosos, sentem-se mal nos colégios, mas Jon, instintivamente, apelara para a sua natureza secreta, e conseguira ser apenas normalmente infeliz nos seus tempos de escola. Apenas com sua mãe, até então, ele fora inteiramente franco e natural, e quando foi para Robin Hill, no sábado, sentia o coração pesado porque Fleur lhe dissera que não deveria ser nem franco nem natural com aquela a quem, até então, ele nunca escondera nada e não deveria dizer-lhe que eles se tinham encontrado novamente - embora ele calculasse que ela já o deveria saber. E aquela restrição parecia-lhe tão intolerável que telegrafou uma desculpa para casa e deixou-se ficar em Londres. E a primeira coisa que a mãe lhe disse foi isto: - Então você encontrou-se lá com a nossa amiguinha da confeitaria, Jon? Como a achou, na segunda entrevista?

Com alívio e entusiasmo, Jon respondeu:

- Oh, lindíssima, mamã.

O braço de Irene apertou o dele.

Jon nunca a amara tanto como naquele minuto que parecia desmentir todos os receios de Fleur e aliviar-lhe a alma. Virou-se para olhar a mãe, mas havia algo no seu rosto sorridente, algo que ele talvez só houvesse visto antes uma vez, algo que lhe paralisou as palavras que borbulhavam dentro dele.

Podia o medo associar-se a um sorriso? Se o podia, era o medo que ele lia no rosto da mãe. E apressadamente Jon pôs-se a falar de outras coisas, de agricultura, de Holly e dos Downs. Falando depressa, esperava que ela voltasse a aludir a Fleur. Mas ela não o fez. Nem o pai a mencionou, embora, naturalmente, também soubesse da estada da pequena em casa da filha. E que privação. que falta de realidade havia no seu silêncio acerca de Fleur - quando ele estava com o coração cheio dela -, quando sua mãe tinha o coração tão cheio de Jon e o pai tinha o seu tão cheio de Irene! E assim o trio passou a tarde e a noite de sábado.

Depois do jantar, a mãe tocou. Parecia que procurava tocar todas as músicas que Jon preferia, e ele sentou-se, com uma das pernas dobradas, a mão mergulhada nos cabelos, onde os dedos de Fleur haviam estado. Olhava para a mãe enquanto ela tocava. mas via Fleur - Fleur no pomar, ao luar, Fleur na duna alta. à luz do sol, Fleur mascarada, inclinando-se, murmurando, parando, beijando-lhe a testa. Um instante, enquanto escutava, esqueceu-se de si mesmo e olhou para o pai, na outra poltrona. Que estaria o pai a contemplar com aqueles olhos absortos? A expressão do seu rosto era triste e enigmática. E aquilo encheu-o de uma espécie de remorso, fazendo-o erguer-se e vir sentar-se no braço da cadeira de Jolyon. Dali não podia ver-lhe o rosto, e tornou a ver Fleur nas mãos da mãe, delgadas e brancas sobre as teclas, no seu perfil, nos cabelos prateados. E fora, na grande sala, através da janela aberta, lá estava a enluarada noite de Maio.

Quando foi para a cama, a mãe entrou no quarto. Parou junto à janela e disse:

- Esses ciprestes que seu avô plantou cresceram maravilhosamente.

Sempre achei que ficavam mais lindos à luz do luar. Queria que você tivesse conhecido seu avô, Jon.

- A mamã já estava casada com o papá em vida dele? - perguntou Jon subitamente.

- Não, meu querido. Ele morreu em mil oitocentos e noventa e dois . muito velho, com oitenta e cinco anos, creio eu.

- O papá parece-se com ele?

- Um pouco, mas é mais subtil, e não é tão sólido, é verdade.

- Conheço o retrato do avô. Quem o pintou?

- Um dos "desvalidos" de June. Mas é realmente bom. Jon passou a mão sobre o braço da mãe.

- Fale-me da briga da família, mamã. Ele sentiu-a estremecer.

- Não, meu querido. Seu pai é que lhe deve falar qualquer dia, quando achar que o deve fazer.

- Então isso é sério - disse Jon, com a respiração suspensa.

- Sim. - E seguiu-se um silêncio, durante o qual nenhum dos dois sabia se era o braço de uma ou a mão do outro que tremia mais. - Algumas pessoas - acrescentou docemente Irene - pensam que faz mal ficar de costas para a Lua. Eu sempre gostei disso. Olhe para as sombras dos ciprestes! Jon, seu pai acha que devemos ira Itália, você e eu, por uns dois meses. Você gostaria?

Jon retirou a mão do braço da mãe. A sua sensação era dolorosa e confusa. A Itália em companhia da mãe! Uma quinzena atrás, aquilo parecia-lhe a perfeição, mas agora enchia-o de tristeza. E ele sentiu que aquela sugestão repentina tinha ligação com Fleur. E gaguejou:

- Oh, sim... Apenas.,, não sei. Devo ir... agora que estou a começar? Preferia pensar mais um pouco, antes de decidir.

A voz dela respondeu, fria e amorável:

- Sim, meu querido. Pense mais um pouco. Mas é melhor viajar agora do que quando já estiver a trabalhar a sério. A Itália com você deve ser linda!

Jon pôs o braço em torno da cintura dela, ainda delgada e firme como a de uma moça.

- Acha que podemos deixar o papá? - disse ele fracamente, sentindo-se inteiramente vil.

- Foi seu pai que sugeriu isso. Ele acha que você deve conhecer a Itália antes de se instalar definitivamente em qualquer coisa.

O sentimento da própria vileza morreu em Jon. Ele compreendia, sim, compreendia que o pai e a mãe não estavam a falar francamente, tal como ele próprio. Queriam afastá-lo de Fleur. O seu coração endureceu. E, como se sentisse o desenvolvimento desse processo, a mãe disse:

- Boa noite, querido. Durma bem, e pense nisso mais tarde. Mas seria adorável!

Apertou-o contra si tão rapidamente que ele não pôde ver-lhe o rosto. E Jon ficou de pé, sentindo-se tal como se sentia quando era um garoto travesso, triste porque não amava os seus naquele momento, e ao mesmo tempo sentindo-se justificado aos próprios olhos.

Mas Irene, depois de parar um pouco no seu próprio quarto, atravessou o quarto de vestir e entrou no quarto do marido.

- E então?

- Ele diz que quer pensar nisso mais tarde, Jolyon. Olhando-lhe os lábios, que mostravam um débil sorriso, Jolyon disse calmamente:

- Seria melhor que você me houvesse deixado falar com ele e liquidar isso. Afinal, Jon tem o instinto de um gentleman. E ele precisa apenas compreender...

- Ele não pode compreender! É impossível.

- Creio que, na idade dele, eu teria compreendido. Irene segurou-lhe a mão.

- Você sempre foi mais realista que Jon... e nunca foi tão inocente.

- Isso é verdade - retorquiu Jolyon. - É engraçado, não é? Você e eu seríamos capazes de contar a nossa história ao mundo inteiro, sem a menor partícula de vergonha, mas o nosso filho faz-nos emudecer.

- Nós nunca nos importámos com que o mundo nos aprovasse ou não.

- Jon nunca nos desaprovaria!

- Oh, Jolyon, desaprovaria. Ele está apaixonado, sinto que está apaixonado. E dirá a si mesmo: minha mãe casou uma vez sem amor! Como pôde fazer isso? Há-de parecer-lhe um crime! E foi um crime!

Jolyon segurou-lhe a outra mão e disse com um sorriso triste:

- Porquê, neste mundo, nascemos nós jovens? Imagine se a gente nascesse velho, e fosse ficando jovem com o passar do tempo, saberíamos compreender por que razão as coisas acontecem, e abriríamos mão de toda essa maldita intolerância. Mas você deve saber que, se o rapaz está realmente apaixonado, não esquecerá, vá ou não vá à Itália. Ele é de uma raça tenaz e deve compreender, por instinto, porque está a ser afastado. Nada o curará senão o choque de saber tudo.

- Deixe-me tentar, de qualquer modo.

Jolyon ficou um momento sem falar. Entre a espada e a parede - a dor de uma temida revelação e a mágoa de separar-se da mulher durante dois meses -, secretamente preferia a primeira, mas, se ela preferia a última, tinha de concordar. Afinal, devia ir habituando-se àquela partida para a qual não há volta. E, segurando-a nos braços, beijou-lhe os olhos e disse:

- Como quiser, meu amor.

 

DUETO

Aquela "pequena" emoção, o amor, cresce quando se vê ameaçada de extinção, Jon chegou a Paddington meia hora antes do tempo marcado, e, uma semana inteira antes, segundo lhe pareceu. Ficou em pé junto ao balcão de livros, segundo fora combinado, entre uma multidão de viajantes de domingo, vestido num fato de tweed, com o coração a saltar-lhe no peito, tanta era a emoção. Leu o nome de todos os romances do mostruário, e acabou por comprar um, para evitar que o caixeiro o olhasse com suspeita, O livro chamava-se O Coração da Pista - o que deveria significar alguma coisa, embora ele não atinasse com o que fosse. Comprou também A Dama do Espelho e O Camaroteiro.

Cada minuto era comprido como uma hora e cheio de horríficos pensamentos. Depois de dezanove minutos, ele viu-a chegar, trazendo uma maleta e um carregador que lhe levava a bagagem. Chegou rapidamente, mostrando-se fria. Cumprimentou-o como se ele fosse um irmão.

Jon admirava-lhe a espantosa presença de espírito.

- Será que não podemos tomar um compartimento só para nós? - sussurrou ele.

- Não vale a pena. É um comboio que pára em todas as estações. Talvez só depois de Maindenhead. Mostre-se natural, Jon.

Jon torceu as feições numa carranca. Entraram. Oh, céus, mais dois animais de passageiros! Ele pagou ao carregador sem naturalidade, confuso. Aquele bruto não merecia nada pelo doce trabalho de carregar as malas de Fleur e olhava-os como se estivesse a compreender tudo. Fleur deixou cair A Dama do Espelho e inclinou-se para a frente.

- E então? - disse ela.

- Parece que se passaram quinze dias.

Fleur concordou, e o rosto de Jon iluminou-se imediatamente.

- Mostre-se natural - murmurou Fleur, soltando uma risada. Aquilo feriu-o. Como poderia ele mostrar-se natural, com a

Itália suspensa sobre a cabeça? Queria contar-lhe a coisa com jeito, mas agora já não podia conter-se.

- Querem que eu vá passar dois meses na Itália, em companhia de minha mãe.

Fleur baixou os cílios e ficou um pouco pálida, mordendo os lábios.

- Oh! - exclamou ela.

Foi tudo o que disse, mas foi muito.

Aquele «Oh!» era apenas uma ligeira indecisão, para se preparar para a resposta. E ela veio:

- Você deve ir!

- Ir? - disse Jon em voz estrangulada.

- É claro.

- Porém... dois meses... é horrível.

- Não - insistiu Fleur. - Seis semanas. Você então mostrará que me esqueceu. E encontrar-nos-emos na National Gallery, no mesmo dia em que você voltar.

Jon riu.

- Porém, suponha que seja você que me tenha esquecido - murmurou ele por entre o barulho do comboio. Fleur abanou a cabeça. - Pode aparecer algum cretino...

O pé da pequena tocou o seu.

- Nenhum cretino... - disse ela, erguendo A Dama do Espelho.

O comboio parou. Dois passageiros saíram e um entrou.

- Eu morro se não ficarmos sós um instante - disse Jon.

O comboio pôs-se em marcha e Fleur novamente se inclinou para Jon.

- Nunca hei-de esquecê-lo - disse ela. - E você?

- Nunca! Você escreve-me?

- Não. Mas você pode escrever-me. Para o meu clube. Ela tinha um clube! Era uma pequena maravilhosa!

- Você tentou puxar por Holly? - perguntou ele.

- Sim, mas não consegui nada. E eu não quis forçar.

- Que poderá haver? - perguntou Jon.

- Acabaremos por descobrir.

Um longo silêncio seguiu-se, até que Fleur disse:

- Chegámos a Maindenhead. Levante-se, Jon! - O comboio parou. O passageiro saiu e Fleur puxou a porta. - Depressa - gritou ela. - Segure a porta. Mostre-se o mais desagradável possível.

Jon assoou-se e fez uma carranca. Nunca na sua vida fizera tantas carrancas! E uma senhora idosa recuou, outra segurou o trinco, que girou, mas a porta não se abriu. O comboio pôs-se em movimento e a moça dirigiu-se para outro compartimento.

- Que sorte - exclamou Jon, voltando para junto de Fleur. - Não abriu!

- Sim - disse Fleur. - Eu estava a segurar.

O comboio andava mais depressa, e Jon caiu de joelhos.

- Olhe para o corredor - murmurou ela. - E... depressa! Os lábios dela encontraram os dele. E, embora o beijo durasse

apenas dez segundos, a alma de Jon fugiu-lhe do corpo e foi para tão longe que, mesmo depois de já estar sentado diante dela, ainda se mostrava pálido como um morto.

Ouviu-a suspirar, e aquele som pareceu-lhe o mais precioso que jamais ouvira - uma deliciosa declaração de que ele significava alguma coisa para ela.

- Seis semanas não é, na verdade, muito tempo - disse Fleur. - E você pode facilmente transformar dois meses em seis semanas se se mostrar despreocupado e nunca der sinal de que está a pensar em mim. - Jon arquejou. - Você não compreende. Jon, que isso é necessário para os convencer? Se você, quando voltar, não mostrar mais interesse por mim, eles pararão com a impertinência a nosso respeito. Só lamento a viagem não ser para a Espanha.

O papá diz que há uma moça num quadro de Goya, em Madrid, que se parece muito comigo. Apenas, ela não é... Temos uma cópia do quadro em casa.

Aquilo foi para Jon como um raio de sol atravessando o nevoeiro.

- Iremos para a Espanha - disse ele. - A mamã não vai importar-se... ela nunca esteve lá. E meu pai admira muitíssimo Goya.

- Oh, seu pai é pintor, não é?

- É apenas aguarelista - disse honestamente Jon.

- Quando chegarmos a Reading, Jon, salte primeiro, vá até Caversham Lock, e lá espere por mim. Mandarei o carro para casa e direi que prefiro ir andando pelo atalho.

Jon agarrou-lhe a mão, agradecido, e os dois ficaram em silêncio, perdidos do mundo inteiro e com um olho no corredor. Mas o comboio parecia andar agora duas vezes mais rápido, e o seu som perdia-se quase no som dos suspiros de Jon.

- Estamos a chegar - disse Fleur. - O atalho é horrivelmente exposto. Mais um! Oh! Jon, não se esqueça de mim.

Jon respondeu com beijos. E logo depois um rapaz vermelho e distraído poderia ser visto a saltar do comboio e a correr ao longo da plataforma, procurando no bolso o bilhete.

Quando afinal ela se encontrou com ele no atalho, um pouco aquém de Caversham Lock, Jon fez um esforço e conseguiu um certo equilíbrio. Se tinham de se separar, não devia fazer uma cena!

Uma brisa leve, soprando na margem do rio, agitava os ramos dos salgueiros, exibindo à luz do sol o avesso branco das folhas. e acompanhava os namorados com um suave murmúrio.

- Eu disse ao motorista que estava com as pernas dormentes da viagem - disse Fleur. - Você mostrou-se natural, quando saltou?

- Não sei. Que é «natural»?

- O natural em você é mostrar-se seriamente feliz. Quando o vi pela primeira vez, compreendi que não se parecia em nada com as outras pessoas.

- Foi exactamente o que eu pensei também quando a vi E imediatamente descobri que nunca poderia amar mais ninguém.

Fleur riu.

- Nós somos absurdamente jovens. E sonhos de amor, em jovens, são coisa antiga e fora de moda, Jon. Além disso, representam um desperdício incrível. Pense em quanto você poderia gozar a vida. Ainda nem sequer começou. É uma vergonha, realmente. E o mesmo se dá comigo. Nem acredito!

Jon sentiu-se mergulhado em confusão. Como poderia ela dizer tais coisas exactamente no momento em que iam separar-se?

- Se você pensa assim - disse ele -, não poderei fazer essa viagem. Direi à mamã que pretendo começar já a trabalhar. Posso sempre alegar as condições actuais do mundo!

- As condições actuais do mundo?

Jon enterrou profundamente as mãos nos bolsos.

- Isso mesmo - respondeu. - Pense no povo, na quantidade de gente que morre por aí à míngua!

Fleur abanou a cabeça.

- Não, eu nunca procurarei sentir-me infeliz.

- Infeliz? Mas esse estado de coisas é vergonhoso, e naturalmente todos temos de procurar melhorá-lo.

- Oh, sim, eu sei isso. Mas ninguém pode ajudar a massa. jon. É um caso perdido. Quando se melhora a situação deles por um lado, imediatamente eles se deixam cair por outro. Veja como o povo vive, sempre a lutar, a conspirar, a brigar, embora morra aos montões o tempo todo. São uns loucos!

- Você não tem pena?

- Oh, pena... sim, mas não iria tornar-me infeliz por causa deles. Não adianta.

E os dois ficaram em silêncio, perturbados por aquele primeiro mergulho na natureza íntima um do outro.

- Eu acho que o povo é composto de brutos e idiotas - disse Fleur, obstinadamente.

- Eu penso que eles são uns pobres infelizes, umas pobres vítimas - retorquiu Jon.

E sentiam-se como se houvessem brigado naquele momento supremo e dramático, com a separação já a anunciar-se, pois não podiam ir além daquela última abertura entre os salgueiros,

- Bem, vá ajudar as suas pobres vítimas, e não pense mais em mim.

Jon parou. O suor perlava-lhe a fronte e as pernas tremiam-lhe. Fleur também parara e olhava severamente para o rio.

- Eu preciso acreditar em certas coisas - disse Jon. numa espécie de agonia. - Todos temos direito à vida.

Fleur riu.

- Sim. É um direito que você não exercerá, se não tomar cuidado. Mas talvez a sua concepção de gozar a vida seja tornar-se infeliz por suas próprias mãos. Há muita gente que pensa assim.

Ela empalidecera, os seus olhos estavam escuros, os lábios eram uma linha estreita. Porque olhava obstinadamente para a água? Jon tinha o sentimento irreal de que estavam a viver uma cena de romance, onde o amante é obrigado a escolher entre o amor e o dever. Mas nesse momento ela fitou-o. Não podia haver nada mais embriagador que aquele olhar luminoso. Agiu sobre Jon exactamente como o tinir da corrente age sobre um cão - trouxe-o de volta para ela. abanando a cauda e com a língua de fora.

- Não seja tolo - disse a moça. - O tempo é tão curto! Olhe, Jon. daqui você pode ver-me quando eu cruzar o rio. Ali, depois da curva, é que começa o bosque.

jon viu um paredão, uma chaminé ou duas, um pano de parede entre árvores - e sentiu o coração a bater fortemente.

- Não posso perder mais tempo. Não vale a pena ir mais adiante dessa cerca... tudo é aberto para lá. Vamos despedir-nos aqui.

Caminharam lado a lado, de mãos dadas, silenciosamente, em direcção à cerca coberta de trepadeiras, em plena floração, branca e rósea.

- O meu clube é o Talismãn, em Straton Street, Picadilly. As cartas ficam inteiramente seguras, e eu passo lá pelo menos uma vez por semana.

Jon acenou que sim. O seu rosto estava extremamente tenso e os olhos fitavam um ponto fixo diante de si.

- Hoje é vinte e três de Maio - disse Fleur. - No dia nove de Julho, às três horas, estarei defronte do Baco e Ariadne. Está certo?

- Está certo.

- Se você estiver a sentir-se tão triste como eu, está tudo muito bem. Deixe essa gente passar!

Um homem e uma mulher, com um garoto pela mão, passeavam, endomingados.

O último deles atravessou a cancela.

- Domesticidade! - disse Fleur, encostando-se à cerca de espinheiros. As flores rodearam-na toda e um cacho cor-de-rosa encostou-se-lhe ao rosto. Jon afastou-o ciumentamente com a mão.

- Adeus, Jon.

Durante um segundo, ficaram com as mãos estreitamente apertadas. Então os lábios encontraram-se pela terceira vez, e quando se separaram Fleur afastou-se e correu em direcção à cancela. Jon ficou onde ela o deixara, com a testa encostada àquele cacho róseo que tocara a face da rapariga. Fora-se! Por uma eternidade - por sete semanas menos três dias! E ali estava ele a vê-la desaparecer. Correu à cancela. Ela caminhava rapidamente, nas pegadas do garoto endomingado. Voltou a cabeça, e ele viu-a acenando um leve gesto de adeus. E então pôs-se a andar mais depressa, até que a família de passeantes lhe obstruiu a visão de Fleur.

A letra de uma canção cómica

 

Paddington groan.., worst ever know He gave a sepukhral Paddington groan. (1)

 

veio-lhe à cabeça, fazendo-o correr de volta à estação de Reading. Durante todo o caminho de regresso para Londres e depois para a Wadson, Jon ficou sentado, com o O Coração da Pista aberto sobre os joelhos, quebrando a cabeça num poema tão cheio de ritmo que não comportava rima.

 

*1. Um gemido de Paddington.., pior nunca ouvi

Pois ele soltou um sepulcral gemido de Paddington

 

CAPRICHO

Fleur apressou-se. Tinha necessidade de movimento rápido. Estava atrasada e precisava usar de toda a sua finura quando chegasse. Passou a estação e o hotel, e estava prestes a tomar o ferry para atravessar o rio quando viu um botezinho, com um rapaz de pé dentro dele, seguro aos ramos da margem.

- Miss Forsyte - gritou o moço. - Deixe-me levá-la para o outro lado. Vim de propósito para isso. - Ela olhou, espantadíssima. - Não se assuste. Acabo de tomar chá com a sua família. Pensava que ainda a veria no fim da tarde. Este é o meu caminho. Vou de volta para Pangbourne. O meu nome é Mont. Vi-a na exposição de pintura... não se lembra... quando seu pai me convidou para ver os quadros dele?

- Oh - disse Fleur -, sim. O lenço.

Era por intermédio daquele rapaz que ela hoje tinha Jon. E, segurando-lhe a mão, Fleur pulou para o bote. Ainda comovida e sem fôlego, ficou sentada em silêncio. Mas não o rapaz. Ela jamais vira alguém dizer tanto em tão pouco tempo. Disse-lhe a sua idade, vinte e quatro anos, o seu peso, setenta e dois quilos, a sua residência, não longe dali, descreveu-lhe as suas sensações sob o fogo e o que sentiu quando foi apanhado pelos gases, criticou a Juno, mencionou a sua própria concepção da deusa, comentou a cópia de Goya, disse que não achava Fleur tão parecida assim com La Vindimia, fez um esboço rápido das condições da Inglaterra, falou em Monsieur Profond - ou como quer que fosse o seu nome -, um sportman espantoso. Achava que o pai dela tinha alguns quadros "formidáveis" e algumas « drogas. E fez votos para ter novas oportunidades de fazer com ela a travessia do rio, porque ele era, na verdade, um remador de confiança, perguntou a opinião da pequena acerca de Tchekov e deu-lhe a sua, mostrou o desejo que tinha de poderem os dois ir qualquer dia juntos assistir ao ballet russo, considerou o nome de Fleur Forsyte simplesmente audacioso, amaldiçoou o seu nome, Michael, e mais ainda o sobrenome, Mont, referiu-se ao pai e disse que, se ela queria ler um bom livro, deveria ler Job - o pai dele era exactamente igual a Job, quando este ainda possuía terras.

- Mas Job só possuía rebanhos e era nómada - murmurou Fleur.

- Ah - respondeu Michael Mont -, eu bem queria que o meu velho fosse nómada. Não que eu cobice as terras dele. A propriedade de terras é intolerável hoje em dia. não acha?

- Nunca possuímos terras na nossa família - disse Fleur. - Sempre possuímos outras coisas. Creio que um dos meus tios-avós tinha uma granja em Dorset. por razões sentimentais, porque nós descendemos dessa zona.., mas deu-lhe mais despesas que prazer.

- Ele vendeu-a?

- Não. Guardou-a.

- Porquê?

- Porque ninguém a compraria.

- Bom para o velho!

- Não, não foi bom para ele. O papá disse que isso o desgostava,. Chamava-se Swithin.

- Que nome estranho!

- O senhor não acha que nós estamos a distanciar-nos, em vez de nos aproximarmos? A margem está a afastar-se.

- Esplêndido! - gritou Michael Mont, lançando vagamente os remos. - Gosto muito de encontrar uma pequena que sabe onde tem o nariz.

- Gosto mais de encontrar um rapaz que também o saiba. O jovem Mont ergueu uma das mãos aos cabelos.

- Cuidado! - gritou Fleur. - Olhe o remo!

- Está bem! O remo é forte.

- O senhor não se importa de remar? - disse Fleur severamente. - Eu quero saltar.

- Ah! - exclamou Mont. - Mas, quando saltar, não a verei mais, hoje. Fini, como dizia a menina francesa quando subia para a cama, depois de terminar a oração. , Você não abençoa o dia que lhe deu uma mãe francesa e um nome igual ao seu?

- Gosto do meu nome - disse Fleur -, mas foi o papá que me pôs o nome de Fleur. A mamã queria que eu me chamasse Marguerite,

- Seria um absurdo. Você importa-se de me chamar M. M. e deixa que eu lhe chame F. F.? É do espírito da nossa época.

- Não me importo, não, contanto que possa saltar. Mont apanhou um pequeno caranguejo e respondeu:

- Olhe esse tolo!

- Por favor, reme.

- Estou a remar. - E deu algumas remadas, olhando-a com lastimosa energia. - Naturalmente você já sabe - disse ele pausadamente - que eu vim aqui para a ver, e não aos quadros de seu pai?

Fleur ergueu-se.

- Se você não remar, eu salto para a água e vou a nado.

- Deveras? Então eu posso saltar depois de você.

- Mr. Mont, estou atrasada e cansada. Por favor, ponha-me imediatamente na margem.

Quando ela pisou afinal no pequeno desembarcadouro do jardim, ele ergueu-se e, agarrando os cabelos com ambas as mãos olhou-a.

Fleur sorriu.

- Não ria! - gritou o impossível Mont. - Sei que vai dizer «Desaparece, pateta!»

Fleur virou-se e fez-lhe um aceno com a mão.

- Adeus, Mr. M. M. - E desapareceu por entre as roseiras Olhou para o seu relógio de pulso e para as janelas da casa, que lhe pareceu curiosamente desabitada. Passava das seis! Os pombos já estavam a aninhar-se, o sol-poente batia no pombal, na nevosa plumagem dos pássaros e no topo das árvores do bosque. Veio-lhe aos ouvidos o som de bolas de bilhar chocando-se. Jack Cardigan, sem dúvida. E o sussurrar das folhas de um eucalipto dava um tom meridional àquele jardim inglês. Ela chegou à varanda, e ia atravessá-la quando parou ao ouvir o som de vozes na sala de estar, à esquerda. Mamã! E Monsieur Profond.

Por trás da cortina de trepadeiras da varanda, ela ouviu estas palavras:

- Não posso, Annette.

Saberia o pai que ele tratava a mãe por «Annette»? E, como era sempre partidária do pai - os filhos tomam sempre o partido de um dos pais, quando não há harmonia entre o casal -, ela parou, indecisa. A mãe falava na sua voz baixa, agradável, ligeiramente metálica, e ela apanhou apenas uma palavra: «Demain.» E a resposta de Profond: «Muito bem.» Fleur franziu a testa. Ouviu-se um pequeno ruído no silêncio, e, depois, a voz de Profond: «Vou dar uma volta.»

Fleur pulou a janela da copa. E ele apareceu, atravessou a varanda, saindo da sala de estar em direcção ao jardim. O som das bolas de bilhar que ela deixara de escutar enquanto procurava ouvir outra coisa fez-se ouvir. Então sacudiu-se, passou para o hall e abriu a porta da sala de estar. A mãe estava sentada no sofá entre as duas janelas, de pernas cruzadas, a cabeça repousando numa almofada, os lábios entreabertos, os olhos semicerrados. Parecia extraordinariamente bonita.

- Ah, cá está você, Fleur! O seu pai já começava a afligir-se.

- Onde está ele?

- Na galeria dos quadros. Suba!

- Que é que vai fazer amanhã, mamã?

- Amanhã? Vou a Londres com a sua tia.

- Calculei que fosse. Pode trazer-me uma sombrinha?

- De que cor?

- Verde. Todos se irão embora também, creio eu.

- Sim. todos. Vá consolar seu pai. Dê cá um beijo.

Fleur atravessou a sala, parou, recebeu um beijo na testa, e viu a forma de um corpo desenhada nas almofadas do sofá, ao lado da mãe. Então subiu para o andar superior.

Fleur não era de modo algum uma pequena antiquada que exigisse da vida dos pais a mesma regulamentação que era imposta à sua. O que queria era governar a sua vida, e não a dos outros e, ademais, crescia nela o instinto de aproveitar tudo o que pudesse ser vantajoso ao seu próprio caso. Sentia que num ambiente doméstico perturbado teria mais probabilidade de vencer a sua batalha pelo amor de Jon. Mas nem por isso deixava de se sentir magoada como uma flor por uma brusca rajada de vento. Se aquele homem estivera realmente a beijar a sua mãe, aquilo era sério - e o seu pai deveria tomar conhecimento do facto. «Demain.» «Muito bem!» E a mãe indo a Londres! Entrou no seu quarto de dormir e chegou até à janela, para refrescar o rosto, que de súbito se tornara ardente.

Jon deveria estar agora na estação! Que saberia o seu pai a respeito de Jon? Provavelmente tudo - ou quase tudo!

Mudou de vestido, de maneira a parecer que já chegara há algum tempo, e correu para a galeria.

Soames continuava obstinadamente de pé defronte do seu Alfred Stevens - o seu quadro predilecto. Não se voltou ao som da porta que se abria, mas ela sabia que ele ouvira e sabia que ele estava magoado. Chegou docemente por trás do pai, pôs-lhe os braços em torno do pescoço e esticou o rosto sobre o ombro dele, até que lhe encontrou a face. Era um golpe que nunca falhava, mas falhava agora, e ela augurou o pior.

- Bem - disse ele gelidamente -, então já voltou!

- Isso é tudo o que tem a dizer-me, papá mau? - murmurou Fleur.

E encostou a face contra a dele.

Soames desviou a cabeça tanto quanto pôde.

- Porque me deixou nesta aflição, abandonando-me completamente?

- Querido, não estive a fazer mal nenhum.

- Mal nenhum! Como se você soubesse o que é mal e o que é bem.

Fleur deixou cair os braços.

- Pois então, querido, conte-me o que há. E seja inteiramente franco.

E encaminhou-se para o sofá junto à janela.

O pai afastara-se do quadro e estava de pé. Parecia muito triste. «Ele tem pés pequenos e bonitos», pensou a pequena, procurando apanhar-lhe o olhar, que pela primeira vez fugia ao seu.

- Você é a minha única consolação - disse Soames subitamente -, e vai-se embora dessa maneira.

O coração de Fleur começou a bater.

- Vou-me embora como, querido?

E novamente Soames lhe lançou um olhar que, se não fosse a afeição contida nele, poderia ser chamado furtivo.

- Você sabe do que estou a falar. Não quero ter nada em comum com esse outro ramo da nossa família.

- Sim, papazinho, mas não sei por que razão eu... eu não deva ter.

Soames girou sobre os calcanhares.

- Não pretendo entrar em explicações. Você deve confiar em mim, Fleur!

O modo como ele disse aquelas palavras comoveu Fleur, mas ela pensou em Jon, e ficou em silêncio, batendo o sapato contra o rodapé da parede.

Inconscientemente, assumira uma atitude moderna, com uma perna passada sobre a outra, o queixo no punho, o outro braço atravessando o busto, e a mão segurando o cotovelo oposto, não havia nela uma linha que não estivesse deslocada, e no entanto, a despeito disso tudo, mantinha uma certa graça.

- Você conhece os meus desejos - continuou Soames -, e demorou-se lá quatro dias mais do que pretendia. E quero crer que aquele rapaz voltou hoje consigo. - Fleur ergueu os olhos para o pai. - Não estou a perguntar-lhe nada - prosseguiu Soames. - Nunca faço indagações a seu respeito.

Fleur ergueu-se subitamente, olhando através da janela, com o queixo ainda nas mãos. O Sol desaparecera por detrás das árvores, os pombos já se tinham agasalhado no pombal, o som das bolas de bilhar subia até ali e uma ligeira irradiação vinha da mesa onde Jack Cardigan jogava.

- Se isso pode fazê-lo mais feliz - disse ela de repente -, prometo-lhe que não o verei durante as próximas seis semanas.

Ela não estava preparada para a espécie de tremor que empanou a nitidez da voz do pai.

- Seis semanas? Seis anos! Sessenta anos seria melhor. Não se engane a si mesma, Fleur. Não se engane a si mesma! - Fleur voltou-se, alarmada, e Soames aproximou-se para lhe olhar o rosto. - Não me diga - continuou ele - que terá sido louca bastante para alimentar qualquer outro sentimento que não seja um simples capricho. E isso já seria de mais! - E Soames riu..

Fleur, que nunca o vira rir assim, pensou: «Então a coisa é profunda! Oh! Que será?» E, pondo a mão sobre o braço do pai, disse ligeiramente:

- Não, naturalmente, capricho. Apenas eu gosto dos meus caprichos, mas não gosto dos seus, querido.

- Os meus caprichos! - disse amargamente Soames, voltando-lhe as costas.

A luz lá fora desaparecera e coava uma brancura marmórea vinda do rio. As árvores tinham perdido toda a sua alegria de colorido. E ela sentiu uma súbita fome pelo rosto de Jon, pelas suas mãos, pela sensação dos lábios dele contra os seus. E, cruzando apertadamente os braços sobre o peito, forçou um pequeno riso.

- Ó, Iá Iá! «Que pequena confusão», como diria Profond! Papá, não gosto daquele homem.

Ela viu-o parar e tirar qualquer coisa do bolso do peito.

- Não gosta? E porquê?

- Por nada - murmurou Fleur. - Outro capricho!

- Não - disse Soames. - Não é capricho! - E rasgou aquilo que tinha nas mãos. - Você tem razão. Eu também não gosto dele!

- Olhe! - disse Fleur em voz baixa. - Lá vai ele! Odeio aqueles sapatos que não fazem barulho.

Sob a luz desfalecente, Prosper Profond caminhava com as mãos nos bolsos, assobiando de leve sob a barba. Parou e deu uma olhadela para o céu, como se dissesse: «Não espero muito dessa pequena Lua.»

Fleur recuou.

- Não parece um gatarrão? - sussurrou ela.

E o som das bolas de bilhar que se chocavam tornou a subir,

como se Jack Cardigan houvesse reduzido o gato, a Lua, o capricho e a tragédia a isto apenas: «Fora o vermelho!»

Monsieur Profond transformara o seu assobio num cantarolar que lhe saía por sob a barba. Que era aquilo? Ah, sim, o Rigoletto: «La Donna é Mobile». Exactamente o que ele deveria pensar. E Fleur apertou o braço do pai.

- Vagabundo! - murmurou, enquanto ele contornava a esquina da casa.

Passara já aquele triste momento que divide o dia e a noite, mas ainda havia um pouco de luz e calor, perfumado do aroma de espinheiros brancos e dos lilases no ar à beira-rio.

Um melro, subitamente, começou a cantar. Jon já deveria estar em Londres, àquela hora, talvez no parque, atravessando o Serpentine, pensando nela! Um leve ruído a seu lado fê-la voltar os olhos. O pai estava ainda a amarrotar o papel entre as mãos. Fleur viu que era um cheque.

- Já não lhe vendo o meu Gauguin - disse Soames. - Não vejo o que é que sua tia e Imogen vêem nele.

- Ou a mamã.

- A sua mãe!

«Pobre papá», pensou Fleur. «Ele numca parece feliz - e nunca é realmente feliz. Não quero tornar-lhe as coisas piores, mas na certa o farei, quando Jon voltar. Mas agirei o mais escondido possível.»

- Vou vestir-me - disse ela.

No seu quarto, teve um ímpeto de vestir o seu trajo «capricho». Era de lamé de ouro com pequenos calções do mesmo tecido, apertado nos tornozelos, com uma Capa de pajem caindo sobre os ombros, sapatinhos cor de ouro e um elmo alado de Mercúrio, também dourado. E por sobre tudo espalhavam-se pequenos sinos de ouro, especialmente no elmo. A qualquer movimento de cabeça eles soavam. Quando ficou pronta, sentiu-se realmente infeliz, porque Jon não podia vê-la, e dava-lhe pena também que aquele turbulento rapaz, aquele Michael Mont, não pudesse também vê-la. Mas o gongo soara e ela desceu.

Fez sensação na sala de estar. Winifred considerou o trajo «muito interessante». Imogen estava deslumbrada. Jack Cardigan chamou-lhe «estupefaciente», «espantoso», «de abafar», «formidável». Monsieur Profond, com os olhos sorridentes, disse que «achava o pequeno trajo muito lindo». A mãe, muito bonita no seu vestido preto, ficou sentada a olhá-la e não disse nada. Restou apenas o pai para chamar os outros ao senso comum.

- Porque é que vestiu isso? Não vai a nenhum baile de máscaras.

Fleur fez uma pirueta e os guizos tocaram.

- Capricho!

Soames olhou-a algum tempo, e depois, afastando-se, ofereceu o braço a Winifred. Jack Cardigan segurou o de Annette. Prosper Profond, o de Imogen. Fleur caminhou sozinha, com os seus guizos tocando...

A "pequena Lua" logo desapareceu, e a noite de Maio caiu, macia e quente, envolvendo no seu colorido roxo e na sua fragrância biliões de caprichos, de intrigas, de paixões, de saudades, de desejos de homens e mulheres. Felizes estavam Jack Cardigan, que ressonava encostado ao alvo ombro de Imogen, ou Timothy, no seu mausoléu, velho de mais para outras coisas que não fossem os desejos vegetativos de um bebé. Muitos outros ficavam acordados, insones, ou sonhavam assustados com o pandemónio do mundo.

O orvalho caía e as flores fechavam-se. O gado já pastava nas margens do rio, sentindo com a língua a erva gorda que não podia ver. E os carneiros, no Down, dormiam quietos como se fossem de pedra. Os faisões, nas altas árvores de Pangbourne, as calhandras nos seus ninhos espinhentos do cimo do Wandson, as andorinhas nas goteiras de Robin Hill, e os pardais de Mayfair, todos dormiam um sono sem sonhos, na doçura da noite calma. A potra Mayflay, mal acostumada à sua nova morada, embaraçava-se um pouco na palha fresca, e as poucas coisas vivas dentro da noite - morcegos, mariposas, mochos - sentiam-se vigorosos dentro da escuridão tépida. Mas a paz daquela noite jazia na calma da própria Natureza, sem colorido nem movimento.

Os homens e as mulheres, sozinhos, cavalgando os cavalos de pau da angústia ou do amor, arremetiam pelas ondulosas espirais do sonho, devaneavam na solidão.

Fleur, debruçada à janela, ouviu o relógio do hall bater doze horas, o saltar de um peixe na água, o roçar das folhas de faia agitadas pela brisa que soprava do rio, o distante rolar de um comboio nocturno - e de vez em quando esses sons vindos da escuridão que ninguém pode definir, suaves e obscuras expressões de emoções desconhecidas de homens e animais, aves e máquinas, ou talvez de desaparecidos Forsytes, Darties, Cardigans, em incursões nocturnas por aquele mundo onde outrora andaram os seus espíritos encarnados. Mas Fleur não escutava esses sons, o seu espírito, longe dos desencarnados, voava com a velocidade de um comboio para uma sebe florida, correndo atrás de Jon, tenaz na evocação daquela imagem proibida e no som da sua voz, que era agora tabo. E, enrugando o nariz, procurava no perfume que vinha da noite, da margem do rio, a revivescência daquele momento em que a mão de Jon lhe afastara do rosto o cacho de flores. Muito tempo esteve reclinada vestida na sua roupa de fantasia, desejosa de queimar as asas à chama da vida. Entretanto, as mariposas roçavam-lhe a face, na sua peregrinação à lâmpada do toucador, ignorantes de que nas casas dos Forsytes não há chamas abertas. Até que finalmente a moça se sentiu sonolenta, e, esquecendo os seus guizos, rapidamente adormeceu.

Através da janela do seu quarto, deitado ao lado de Annette, Soames, insone também, ouvira um leve tinir, que poderia ser provocado pelas estrelas ou pelas gotas de orvalho caindo sobre as flores - se fosse possível ouvir tais sons.

«Capricho!», pensou ele. «Não posso dizer. Ela é voluntariosa. E que poderei fazer? Fleur!»

E pela "pequena noite" dentro ele ficou a meditar.

 

MÃE E FILHO

Dizer que Jon acompanhara de má vontade Irene na viagem a Espanha seria mediocremente verídico. Ele foi como iria um cão de boa natureza, que acompanhava a dona num passeio, embora tendo deixado em casa um suculento osso de carneiro. E andava sempre a pensar naquilo. Os Forsyte, quando privados do seu osso, ficam de mau humor, mas Jon tinha pouca disposição para o mau humor. Adorava a mãe, e aquela era a sua primeira viagem. A Itália transformara-se na Espanha, mediante esta sua simples frase: «Preferia ir a Espanha, mamã. A mamã já esteve na Itália tantas vezes, e eu gostaria que nós ambos víssemos coisas novas.»

O rapaz era astuto, ao mesmo tempo que ingénuo. Nunca esqueceu que teria de reduzir os dois meses a seis semanas, e ao mesmo tempo não mostrar nenhum sinal visível de que alimentava essa pretensão. E, tratando-se de alguém tão preso ao seu osso abandonado e tão fixado a uma ideia, constituiu um razoável companheiro de viagem, indiferente de onde e para onde iam, superior à comida dos hotéis e admirando amplamente um país que se mantém estranho aos mais viajados ingleses. A decisão de Fleur, recusando-se a escrever-lhe, fora de profundo alcance, pois libertara-o de toda a febre ou esperança, à chegada a um local novo, permitindo-lhe dedicar imediatamente toda a sua atenção aos burricos, aos carrilhões, aos padres, aos pátios, aos mendigos, às crianças, aos galos de grande crista, aos sombreros, às sebes de cactos, às brancas aldeias montanhosas, às cabras, às oliveiras, às planícies verdejantes, aos pássaros que cantavam em leves gaiolas, às quedas de água, ao pôr-do-sol, aos melões, às mulas, às grandes igrejas, aos quadros e às montanhas que se azulavam num horizonte fascinador.

Como já estavam no Verão, gozaram a ausência de compatriotas. Jon, que, tanto quanto era possível saber-se, não tinha em si uma gota de sangue que não fosse inglês, sentia-se com frequência desusadamente infeliz na presença dos seus próprios patrícios. Via que eram incapazes de qualquer extravagância e tinham das coisas uma visão muito mais prática que ele próprio. Confiou à sua mãe que se supunha um animal anti-social, pois achava esplêndido estar longe de qualquer pessoa que pudesse estar a falar de coisas em que toda a gente fala. E Irene respondera simplesmente:

- Sim, Jon, eu compreendo.

Naquele isolamento, teve oportunidades únicas para apreciar o que a poucos filhos é dado ver - a amplitude do amor maternal. E esse conhecimento tornou-o mais sensível ainda. O povo meridional do país onde estavam estimulava a sua admiração pelo tipo de beleza dela. Habituara-se a chamar espanhola à mãe, e hoje via bem quão diferente ela era. A beleza de Irene não era nem inglesa, nem francesa, nem espanhola, nem italiana - era especial. E apreciava também, mais que nunca, a subtileza do instinto da mãe. Não poderia dizer, por exemplo, se ela notara a sua absorção na pintura de Goya La Vindimia ou se ela descobriu que ele a fora rever furtivamente depois do almoço, e novamente, na manhã seguinte, para se demorar diante do fresco toda uma meia hora, pela segunda e pela terceira vez. Não era Fleur, naturalmente, mas era bastante parecida para lhe fazer doer o coração - dor tão cara aos amantes -, recordando-a de pé, junto à sua cama, com a mão a acariciar-lhe os cabelos. E, tendo comprado um postal que reproduzia o quadro. Jon adquiriu rapidamente o mau hábito de o trazer no bolso e de vez em quando olhá-lo furtivamente, mau hábito que rapidamente deveria ser descoberto por uns olhos aguçados pelo amor, pelo receio ou pelo ciúme.

E os olhos da mãe eram aguçados por estes três sentimentos. Em Granada, deixou-se facilmente apanhar, sentado num banco de pedra nos jardins da colina do Alhambra, donde fingia contemplar a paisagem. A mãe, pensava ele, devia estar a examinar os potes de goivos e as acácias, quando a voz dela disse:

- É o seu Goya favorito, Jon?

Ele atalhou, tarde de mais no entanto, um movimento idêntico aos que fazia no colégio para esconder algum documento sub-reptício, e respondeu:

- Sim.

- Realmente, é lindo, mas eu creio que prefiro o Guarda-Sol. Seu pai quase enlouquece com os Goya. Creio que ele os viu quando esteve aqui na Espanha em noventa e dois.

Em noventa e dois! Nove anos antes de ele nascer! Quais teriam sido as existências anteriores de seu pai e de sua mãe? Se tinham o direito de interferir no seu futuro, certamente ele tinha o direito de interferir no passado de ambos! E ergueu os olhos para a mãe. Mas havia algo no rosto de Irene - um ar de vida duramente vivida, a marca misteriosa de emoções, experiências e sofrimentos - que lhe parecia, com a sua incalculável profundidade, a sua perseguida santidade, transformar qualquer curiosidade numa impertinência. A mãe devia ter tido uma vida maravilhosamente interessante. Era tão linda e tão... tão... Jon não podia exprimir o que sentia acerca dela. Ergueu-se e ficou a contemplar a cidade, a planície verde de searas, o anel de majestosas montanhas luzindo ao sol. A vida dela era como o passado daquela velha cidade mourisca, cheia, profunda, remota - e a vida dele era como a própria infância, desesperadamente ignorante e inocente!

Diziam que naquelas montanhas do Oeste, que se erguiam sobre a planície azul-esverdeada, como por sobre o mar, os Fenícios haviam vivido outrora - uma raça escura, estranha, secreta - sobre aquela terra. A vida da mãe era assim desconhecida para ele, tão secreta como o passado fenício da cidade aos seus pés, cujos galos cantavam e cujas crianças brincavam e cresciam alegremente, dia a dia. E ele sentia-se magoado por ela conhecer tudo acerca dele e ele nada saber a respeito dela, excepto que o amava e ao pai, e que era linda.

A sua ignorância inexperiente - não ganhara nada com a guerra, ao contrário de quase todos os outros rapazes - fazia-o sentir-se diminuído aos seus próprios olhos.

Naquela noite, da varanda do seu quarto, Jon ficou a olhar para os telhados da cidade, que pareciam colmeias embutidas em azeviche, marfim e ouro. E muito depois, já deitado, ainda ficou insone, escutando o grito dos serenos quando as horas batiam e compondo mentalmente estes versos:

 

Voice in the night crying, down in the all sleeping

Spanish city darkened under her white stairs!

What says the voice its clear, lingering anguish? Jusit the watchman, teling his dateless tale of safety? Just a roald-man, flinging to the moon his song?

No! 'Tis one deprived, whose lover's heart is weeping Just his cry: «How long?» (1)

 

A palavra «deprived», parecia-lhe fria e pouco significativa, mas «bereaved» era por de mais definitivo, e não lhe ocorria nenhuma outra, com a mesma silabação, que se adaptasse ao verso «cujo coração está em pranto». Já passava das duas horas quando acabou o poema, e passava das três quando conseguiu dormir, depois de afirmar a si mesmo mais de vinte e quatro vezes que não pensaria mais naquilo.

 

*1. Voz que grita na noite, colina que dorme o seu velho sono. Escura cidade espanhola, sob as estrelas brancas!

Que dirá a voz na sua clara, arrastada angústia? Será apenas O vigia contando a sua imemorial história de protecção? Ou apenas um noctâmbulo atirando a sua canção à Lua?

Não! É alguém roubado ao seu amor, cujo coração está em pranto E o seu grito diz: «Até quando?»

 

No dia seguinte passou o poema a limpo e meteu-o numa das suas cartas a Fleur - cartas que sempre escrevia antes de sair do quarto, de modo a poder ficar com o espírito livre e capaz de ser uma boa companhia.

A meio desse mesmo dia, no terraço de azulejo do hotel, sentiu uma dor súbita na nuca, uma' estranha sensação nos olhos, um mal-estar geral. Atacara-o uma insolação. Os próximos três dias passou-os em semiobscuridade, numa espessa e dolorosa indiferença perante tudo, excepto para a sensação de gelo na cabeça e o sorriso da mãe. Ela não saiu um instante do quarto, nunca relaxou a sua silenciosa vigilância, que a Jon parecia angélica. Mas havia momentos em que ele se sentia extremamente magoado por si mesmo e desejava intensamente que Fleur pudesse vê-lo. Várias vezes se despediu imaginariamente dela e deste mundo, com os olhos cheios de lágrimas. Preparara uma carta que lhe enviaria por intermédio da mãe - a mãe que lamentaria amargamente o dia em que decidira separar os dois namorados, a sua pobre mãe! E não lhe custou descobrir, ao mesmo tempo, que agora já tinha um bom pretexto para voltar para casa.

Pelas seis e meia, ouviu-se uma gasgacha de sinos - uma cascata de sons argentinos de carrilhões, que subiam da cidade, lá em baixo, e vinham morrendo de carrilhão em carrilhão. Depois de os ouvir no quarto dia, disse de repente:

- Tenho vontade de voltar para Inglaterra, mamã. O sol aqui é muito quente.

- Pois bem, querido. Iremos assim que estiver em condições de viajar.

E imediatamente ele se sentiu melhor - e muito vil.

Tinham passado fora cinco semanas quando iniciaram a volta para casa. A cabeça de Jon recuperara a antiga lucidez, mas era obrigado a usar um chapéu cuja aba a mãe forrara com seda verde e andava de preferência na sombra. E quando a longa luta de discrição travada entre os dois chegou a esse desenlace, o rapaz cismava cada vez mais se Irene perceberia a urgência que ele sentia em voltar àquela de quem ela o separara. Condenado pela Providência espanhola a passar dois dias em Madrid, entre dois comboios, nada seria mais natural que uma visita ao Prado. Jon fingiu a mais cuidadosa naturalidade, daquela vez, diante da sua rapariga de Goya. Agora, que voltava para junto da amada, podia mostrar mais segurança. Foi a mãe que se deteve diante do fresco e disse: - O rosto e o corpo dessa rapariga são um encanto. Jon ouviu-a, pouco à vontade. Seria que ela compreendia? Mas sentia mais uma vez que não tinha forças para lutar com a mãe no terreno do autodomínio e da subtileza. Por um processo supersensível, cujo segredo nunca apanhara, a mãe podia sempre tomar o pulso dos seus pensamentos, conhecendo por instinto tudo o que ele esperava:, temia e desejava. E aquilo fazia-o sentir-se terrivelmente desconsolado e culpado, pois tinha uma consciência, ao contrário de muitos rapazes. Desejaria que ela fosse franca, quase aspirava por uma luta aberta. Mas nada disso sucedeu, e rapidamente, silenciosamente, viajaram em direcção ao norte. E isso foi a primeira lição que Jon recebeu acerca da capacidade que têm as mulheres - muito superior à dos homens - para suportarem a provação de uma espera. Em Paris, tiveram de se demorar um dia ainda. Jon ficou magoado porque aquele dia foi ampliado para dois, por questões referentes a costuras e costureiras... como se sua mãe, que ficava linda com qualquer coisa, tivesse alguma necessidade de vestidos! O momento mais feliz da viagem foi quando embarcaram no barco de Folkestone. Encostada à amurada, com o braço no do filho, ela disse:

- Receio que não se tenha divertido muito, Jon. Mas foi um anjo para mim.

Jon apertou-lhe o braço.

- Oh, não. diverti-me muitíssimo. Excepto, naturalmente, com a insolação.

E realmente, agora que o fim chegara, descobria uma espécie de encanto naquelas semanas passadas em Espanha - uma espécie de prazer doloroso, idêntico ao que tentara descrever no seu poema acerca do clamor nocturno do sereno, um sentimento idêntico ao que sentia quando ouvia Chopin, em menino, e tinha vontade de chorar. E Jon perguntava a si mesmo que era que o impedia de dizer à mãe o mesmo que ela tão singelamente lhe dissera: «Você foi um anjo para mim.»

Engraçado - não se pode às vezes ser gentil e natural ao mesmo tempo! E substituiu a frase desejada por esta outra:

- Creio que vamos enjoar.

Enjoaram, chegando a Londres de certo modo aplacados, tendo estado fora seis semanas e dois dias, sem jamais terem feito a menor alusão ao assunto que nem um instante deixara de lhes ocupar o espírito.

 

PAIS E FILHAS

Despojado da mulher e do filho pela aventura à Espanha, Jolyon achou intolerável a solidão de Robin Hill. Um filósofo que dispõe de tudo o que deseja é muito diferente de um filósofo que não possui nada do que quer. Acostumado, entretanto, se não à realidade, pelo menos à ideia da resignação, teria atravessado a sua provação se não fosse a interferência de June. Ele era agora um «desvalido», na consciência dela. E, depois de liquidar temporariamente as operações de socorro a um gravador em dificuldades, June apareceu em Robin Hill quinze dias após a partida de Irene e Jon. Ela vivia agora numa minúscula casinha com um grande estúdio em Chiswick. Como Forsyte do melhor período - tanto quanto o comportava a sua carência de responsabilidade -, June resolvera a dificuldade criada por um rendimento reduzido de modo a satisfazer a si própria e ao pai. Como o aluguer da galeria de Cork Street que ele lhe comprara e o seu imposto sobre a renda, grandemente aumentado, mais ou menos se equivaliam, ela resolveu o problema deixando de pagar ao pai o aluguel. Depois de dezoito anos de usufruto deficitário, a galeria acabaria por compensar as despesas feitas - pensava ela, embora tivesse a certeza de que o pai pensava de modo muito diverso. Graças a esse plano, ainda dispunha de mil e duzentas libras por ano, reduziu as despesas de mesa, e, em vez de dois belgas caídos na miséria, passou a empregar uma austríaca mais pobre ainda, e ficou a dispor praticamente dos mesmos rendimentos, para correr em auxílio dos seus «génios».

Depois de uma estada de três dias em Robin Hill, trouxe o pai para Londres. Nesses três dias, descobrira o segredo que ele escondia já há dois anos, e instantaneamente decidira-se a curá-lo. Conhecia, na verdade, o homem indicado para isso. Ele fizera maravilhas com Paul Post, um pintor um pouco adiantado ao futurismO e impacientou-se com o pai porque ele ergueu as sobrancelhas ao ouvi-la dizer isso e sem querer dar-lhe ouvidos.

Naturalmente, se ele não tinha «fé», nunca haveria de melhorar! Era absurdo não ter fé no homem que tinha curado Paul Post, embora ele houvesse agora recaído, por excesso de trabalho, ou por excesso de vida, mas por culpa própria. A grande descoberta desse curador era que ele agia de acordo com a Natureza. Fizera um estudo especial acerca dos sintomas da Natureza - quando o doente carecia de algum sintoma natural ele supria o veneno que o provocara -, e era tudo. Ela tinha imensas esperanças. O pai, evidentemente, não estava a viver uma vida natural em Robin Hill, e ela tencionava fornecer-lhe os sintomas. Via bem que ele não tinha qualquer contacto com o tempo - o que não era natural. O seu coração carecia de um estímulo. Na sua casinha de Chiswick, ela e a austríaca - uma alma agradecida, devotadíssima a June por a ter recolhido quando ela estava prestes a adoecer de excesso de trabalho - estimulavam Jolyon de todas as maneiras, preparando-o para a cura. Mas não conseguiam fazê-lo baixar as sobrancelhas. Como, por exemplo, quando a austríaca vinha despertá-lo às oito horas, exactamente quando ele começava a dormir, ou quando June lhe tirava o Times das mãos, porque era antinatural ler "idiotices", quando o que ele deveria fazer era tomar interesse pela «vida». E ele nunca deixava, realmente, de ficar atónito com os recursos dela, especialmente à noite. Para benefício do pai, declarava ela - embora ele suspeitasse de que a filha também se aproveitasse daquilo -, reunia em torno de si a Nova Geração, representada por aqueles dos seus membros que punham nela a marca do génio. E, com certa solenidade, a Nova Geração evoluía acima e abaixo no estúdio, diante dele, nos passos do fox-trot ou naquela outra forma de dança ainda mais intelectual - o one-step -., e tão em desacordo com a música que as sobrancelhas de Jolyon quase se perdiam nos cabelos, ao pensar na rijeza de força de vontade que ela exigia dos dançarinos. Ciente de que era, embora ocupasse um lugar de grande importâmcia na sociedade dos aguarelistas, um desconhecido no meio daqueles que se dizem artistas, sentava-se no canto mais obscuro que achava e meditava a respeito de ritmo, do qual tinha uma concepção mais antiquada.

E quando June lhe trazia um rapaz ou uma pequena, ele tentava humildemente, tanto quanto lhe era possível, guindar-se ao nível deles e pensava: «Valha-me Deus! Isto é muito tolo para eles!» Como herdara do pai a sua perene simpatia pela juventude, costumava ficar muito cansado do esforço que fazia para lhes compreender os pontos de vista, mas tudo aquilo era estimulante, e ele nunca deixou de admirar o indomável espírito da filha. Cada um dos génios esperava, de nariz de lado, a oportunidade daquela apresentação, e June nunca deixava de os trazer um a um ao pai. Ela sentia que aquilo era excepcionalmente bom para ele - pois June reconhecia, apesar de adorar o pai, que o génio era um sintoma natural que ele nunca demonstrara.

Tão certo quanto um homem pode estar de que ela era sua filha, ele espantava-se sempre de a ter gerado, com aqueles cabelos de um louro avermelhado, que estavam agora grisalhos, num tom inteiramente especial, o rostinho directo e vivo, tão diferente da sua expressão subtil e irónica, a minúscula estatura, quando ele e todos os Forsyte eram altos. E, discutindo a origem das espécies, ele discutia consigo mesmo se ela seria dinamarquesa ou celta. Celta, decerto, pela sua alminha belicosa, pelo seu amor por redes orientais e djibbahs. Não era dizer muito afirmar que ele a preferia a toda a Nova Geração que a cercava, embora esta última fosse tão jovem, como na maior parte o era.

June tomava um desmedido interesse pelos dentes dele, porque ele ainda possuía muitos desses sintomas naturais. O dentista dela descobrira neles staphylococcus aureus - o que naturalmente produz abcessos - e pretendia arrancar-lhos todos e provê-lo com duas fileiras completas de sintomas antinaturais.

A tenacidade visceral de Jolyon insurgiu-se, e naquela noite, no estúdio, apresentou as suas objecções. Nunca tivera abcessos e os seus dentes dariam para o resto da vida.

- É claro - admitiu June - que em breve lhe trarão o fim da vida, se não forem arrancados!

Mas, se arrancasse os dentes, melhoraria do coração e a sua vida seria mais longa. A recalcitrância do pai, dizia ela, era um sintoma de toda a sua atitude: ele queria ficar na inação, quando, pelo contrário, deveria lutar. Porque não queria ver o homem que curara Paul Post? Jolyon sentia muito, mas a verdade é que não iria ver esse tal indivíduo.

June irritou-se. Pondridge, o naturista - disse ela - era um homem de primeira ordem e lutava com as maiores dificuldades para atravessar a vida e fazer que dessem atenção à sua teoria. E era justamente aquela indiferença, aqueles preconceitos, manifestados pelo pai, que o atrasavam. Seria tão maravilhoso para ambos essa cura!

- Compreendo - disse Jolyon. - Você está a querer matar dois coelhos com uma cajadada.

- Matar não, curar! - exclamou June.

- Minha querida, é a mesma coisa.

June protestou. Não era correcto dizer aquilo antes de fazer uma tentativa.

Jolyon receava não ter probabilidades de dizer aquilo, se o tentasse.

- Papá! - exclamou June. - O senhor é um caso perdido!

- É um facto - concordou Jolyon -, mas, embora seja um caso perdido, quero continuar a viver o mais tempo que puder.

«Não acorde os cães que dormem.» Eles agora estão calmos.

- Isso é recusar uma oportunidade à ciência - continuou June. - O senhor não tem a menor ideia de como Pondridge é dedicado. Ele põe a ciência à frente de tudo.

- Exactamente - disse Jolyon, aspirando a cigarrilha de fumo fraquíssimo a que estava reduzido -, exactamente como Mr. Paul Post põe a sua arte acima de tudo, hem? Arte pela arte... ciência pela ciência! Eu conheço bem todo esse clã entusiástico e egomaníaco.

Vivissecam uma pessoa num piscar de olhos. Tenho bastante de Forsyte em mim para os mandar passear, June.

- Papá - disse June -, se soubesse como é antiquado isso que está a dizer! Ninguém pode ser indiferente a nada, hoje em dia!

- Receio - disse ele - que seja esse o único sintoma natural que Mr. Pondridge não possa descobrir em mim. A gente nasce para ser excessivo ou moderado, minha cara. E, se me perdoa que eu lhe diga isto, metade da gente de agora, embora pense que é muito entusiástica, é na verdade muito moderada. Vou-me aguentando mais ou menos, e quero continuar assim.

June ficou silenciosa, porque já tinha experiência do carácter inexorável, da amigável obstinação do pai. todas as vezes que se tratava da própria liberdade de acção.

Como foi que ele a deixou perceber o motivo da ida de Irene com Jon para Espanha, era um problema que atormentava Jolyon. porque ele tinha pouca confiança na discrição da filha E houve acerca disso uma intensa discussão entre ambos, no decorrer da qual Jolyon 'percebeu bem a oposição fundamental que havia entre o activo temperamento da filha e a natureza passiva de sua esposa. E chegou mesmo a descobrir que ainda havia um resto de mágoa remanescente da velha luta que se travara entre as duas por sobre o corpo de Philip Bosinney, - luta na qual o elemento passivo triunfara completamente sobre o activo.

Segundo June, era loucura, e até mesmo covardia, esconder o passado a Jon. Vergonhoso oportunismo, era o que ela lhe chamava.

- Oportunismo que é o princípio por excelência de toda a vida real, minha filha.

- Oh - exclamou June -. o senhor não pode defendê-la por não ter contado nada a Jon, papá! No seu lugar, já o teria feito.

- Talvez, mas apenas porque sei que ele acabará por descobrir tudo, e é melhor que o saiba por nosso intermédio.

- Então porque não lhe fala? É ainda aquela história de «não acordar os cães que dormem»!

- Minha filha - explicou Jolyon -. por nada do mundo eu agiria contra os instintos de Irene. Jon é filho dela.

- Também é seu filho - gritou June.

- Que é o instinto de um homem comparado com o instinto maternal?

- Bem. eu acho que isso é uma fraqueza da sua parte.

- Talvez - disse Jolyon -, talvez.

E foi tudo o que ela pôde arrancar do pai, mas o assunto ficou a trabalhar na cabeça de June. Ela não podia suportar a tal história de não acordar os cães que dormem, e aquilo despertou nela um impulso tortuoso de forçar uma decisão para o assunto. Jon tinha de saber tudo, pois só assim os seus sentimentos nascentes poderiam ser desfeitos ainda em botão ou, se florescessem a despeito do 'passado, conseguiriam frutificar. E resolveu procurar Fleur e julgar as coisas por si. Quando June resolvia qualquer coisa, o tacto transformava-se numa consideração insignificante. Afinal, era prima de Soames, e ambos se interessavam por pintura. Ela procurá-lo-ia e dir-lhe-ia que ele devia comprar um Paul Post, ou talvez uma escultura de Bons Strummolowski, e naturalmente nada diria a seu pai sobre esse projecto. E pô-lo em prática no primeiro domingo, com uma aparência tão determinada que teve dificuldades em encontrar um táxi na estação de Reading.

A margem do rio estava encantadora naquele dia de Junho, e June sentia-se magoada com tanta beleza. Ela, que passara toda a vida sem saber o que era a união de duas criaturas, tinha um amor quase doentio pelas belezas naturais. E quando chegou às proximidades da casa de Soames, despediu o carro, porque, terminado o assunto, pretendia passear junto à água luminosa e através do bosque. Apareceu à porta do primo como simples pedestre e mandou-lhe o seu cartão. June tinha a convicção de que, quando os seus nervos se agitavam, estava a fazer algo que valia a pena. Quando os nervos ficavam calmos, tomava a linha de menos resistência, pois compreendia que não eram os motivos nobres que a impulsionavam. Foi levada a uma sala de estar, que, apesar de não ser no seu estilo, apresentava todas as marcas de uma luxuosa elegância. E, dizendo a si mesma «Gosto excessivo... muita ninharia inútil», viu num espelho, emoldurado em laca antiga, o vulto de uma moça que chegava através da varanda. Vestida de branco e trazendo na mão um braçado de rosas também brancas, a pequena lembrava uma aparição, como se um lindo fantasma houvesse irrompido do jardim.

- Como vai? - disse June, voltando-se. - Sou prima de seu pai.

- Oh, sim. Vi-a naquela confeitaria.

- Estava com meu irmão mais novo. Seu pai está?

- Deve estar quase a chegar. Saiu para um passeio rápido. June apertou um pouco os seus olhos azuis e ergueu o queixo

resoluto.

- O seu nome é Fleur, não é? Holly falou-me de si. Que é que pensa de Jon?

A moça levantou um pouco as rosas na mão, olhou-as e respondeu calmamente:

- É um óptimo rapaz.

- Não se parece em nada com Holly ou comigo, pois não?

- Realmente.

«Ela é fria», pensou June. E subitamente a moça disse:

- Gostaria que me contasse por que razão as nossas famílias não se dão.

E defrontando a pergunta que ela aconselhara ao pai responder, June guardou silêncio. Talvez porque a pequena estava a tentar arrancar-lhe uma confidência ou simplesmente porque aquilo que a gente aconselha teoricamente não é precisamente a mesma coisa que se quer fazer na altura exacta.

- Como sabe - continuou Fleur -, o meio mais seguro de fazer que uma pessoa descubra as piores coisas é deixarem-nos ignorantes. Meu pai disse-me que houve uma briga a respeito de propriedade. Mas não acredito nisso. Ambas as famílias têm montões de propriedades. E, afinal, eles não seriam tão bourgeois assim.

June ficou rubra. Aquela palavra, aplicada ao seu avô e ao seu pai, ofendeu-a.

- Meu avô era um homem extraordinariamente generoso e meu pai é igual a ele. Nenhum dos dois tinha ou tem nada de bourgeois.

- Pois então que sucedeu? - repetiu a moça. Consciente de que aquela jovem Forsyte estava decidida a

conseguir o que queria, June imediatamente resolveu contrariá-la e tomou por sua vez a ofensiva.

- Para que quer saber?

A pequena cheirou as rosas.

- Quero saber porque ninguém quer contar-me.

- Bem, tratou-se de propriedade, mas de mais de uma espécie de propriedade.

- Ainda pior. Agora, na verdade, eu preciso de saber.

O pequeno rosto resoluto de June tremeu. Tinha posto um chapeuzinho redondo, e os seus cabelos estavam escondidos sob ele. Parecia realmente jovem, naquele instante, rejuvenescida pelo encontro.

- Escute - disse ela. - Vi-a deixar cair o seu lenço no chão. Existe alguma coisa entre você e Jon? Porque, se houver, o melhor é você deixar cair isso também.

A pequena empalideceu, mas sorriu.

- Se houvesse, não seria esta a maneira de nos afastar.

Ante a coragem daquela resposta, June segurou-lhe a mão.

- Gosto de si, mas não gosto de seu pai, nunca gostei. É melhor usar de franqueza.

- A senhora veio aqui para lhe dizer isso? june riu.

- Não. Vim aqui para a ver.

- Quanta amabilidade.

Aquela pequena sabia dissimular.

- Tenho duas vezes e meia a sua idade - disse june -. mas realmente, compreendo o seu sofrimento. É horrível uma pessoa não poder agir à sua vontade.

A pequena sorriu novamente.

- Na verdade, creio que a senhora tem a obrigação de me contar.

Como aquela garota martelava no que queria.

- O segredo não é meu. Mas vou ver o que posso fazer, pois acho que tanto você como Jon devem tomar conhecimento de tudo.

E agora, despeço-me.

- Não quer esperar pelo papá? June abanou a cabeça.

- Como é que posso atravessar para o outro lado do rio?

- Levo-a no meu barco.

- Escute! - disse impulsivamente June. - A primeira vez que for a Londres, vá ver-me. É aqui que moro. à noite geralmente tenho muita gente moça em casa. Mas não comunicarei ao seu pai as suas visitas.

A pequena acenou concordando.

Vendo-a remar no barquito, June pensava: «É realmente muitíssimo bonita e bem feita de corpo. Nunca pensei que Soames pudesse ter uma filha tão linda. Ela e Jon dão um par muito bonito.»

O instinto da união amorosa, frustrado para ela própria, trabalhava sempre dentro de June. E ficou a olhar a pequena a remar de volta. Fleur tirou uma das mãos do remo e fez um gesto de adeus, e June pôs-se a passear languidamente pelos campos da margem, com uma forte dor no coração. Juventude com juventude, tal como as libélulas que se perseguiam e se amavam ao calor do sol. A juventude! Desde quando... quando Phil e ela - e desde então? Ninguém - ninguém corporificara jamais o que ela desejava. E, assim, fora frustrada de tudo. Porém, que complicação com aqueles dois garotos, se eles realmente estavam apaixonados, como Holly o estivera - tal como o receavam seu pai, Irene e o próprio Soames! Que complicação - e que empecilhos! E o desejo veemente pelo futuro, o desprezo pelo passado - que representam o princípio activo da vida e se agitavam no coração daquela mulher que sempre acreditara que aquilo que alguém quer é muitíssimo mais importante do que o que os outros não querem. Enquanto isso, espiava da margem os lírios-d'água. os salgueiros, os saltos dos peixes, aspirava o cheiro da relva, cismando como poderia forçar alguém a ser feliz. Jon e Fleur. Dois pequenos "desvalidos" - lindos, encantadores desvalidos! Que pena! Na certa algo deveria ser feito! Ninguém pode permitir que uma coisa dessas prossiga indefinidamente. Continuou a caminhar e chegou a uma estação, afogueada e cheia de calor.

Naquela noite, fiel ao seu impulso pela acção directa - o que fazia que muitas pessoas a evitassem -, June disse ao pai:

- Papá, fui visitar essa menina Fleur. Achei-a muito atraente. Não acha que não adianta escondermos a cabeça debaixo da asa, pois não?

Jolyon, estremecendo, pousou o caldo de cevada e pôs-se a esmigalhar o pão.

- Era isso exactamente o que você deveria fazer - disse ele, - já pensou em quem é o pai dessa menina?

- Não pode o passado morto ser enterrado? Jolyon ergueu-se.

- Há coisas que não podem ser enterradas.

- Não concordo - insistiu June. - É isso que entrava o caminho de toda a felicidade e de todo o progresso. O senhor não compreende esta época, papá. Hoje, certas coisas antigas já não têm razão de ser. Porque imagina consequências tão terríveis do que Jon possa saber a respeito da mãe? Quem se importa com essas coisas hoje em dia? As leis do casamento ainda são as mesmas que impediram Soames e Irene de obterem um divórcio, tornando necessária a sua interferência, mas, se elas não mudaram, nós mudámos. De forma que já ninguém se preocupa com tais leis. O casamento, sem uma perspectiva decente de libertação, fica sendo apenas uma espécie de propriedade de escravo. E ninguém tem o direito de ser proprietário de outra criatura. Toda a gente compreende isso hoje. Se Irene quebrou, pois, essas leis,

qUe importância isso pode ter?

- Não cabe a mim discordar do que você está a dizer - objectou Jolyon -. mas a questão transcende muito isso. É um problema de sentimentos humanos.

- Naturalmente é - exclamou June. - Os sentimentos humanos daqueles dois garotos.

- Minha filha - disse jolyon com suave exasperação -, está a dizer tolices.

- Não estou. Se eles realmente estão apaixonados um pelo outro, porque seriam infelizes por causa do passado?

- Você não viveu esse passado. Eu vivi-o... através dos sentimentos de minha mulher, através dos meus nervos e da minha imaginação. como é sempre possível a quem ama profundamente.

June ergueu-se também e pôs-se a caminhar agitadamente

- Se Fleur fosse filha de Philip Bosinney - disse ela - eu poderia compreendê-lo melhor. Irene amou-o, nunca amou Soames.

Jolyon soltou uma exclamação surda. O seu coração começara a bater furiosamente, mas não lhe prestava atenção, arrastado pelos seus sentimentos.

- Isso mostra quão pouco você compreende. Nem eu, nem Jon, se o conhecesse, se importaria com um passado amoroso. O terrível é a brutalidade da união sem amor. Essa moça é a filha do homem que foi proprietário da mãe de Jon. tal como o é o senhor de uma negra cativa. E esse fantasma ninguém pode destruir. Não o tente, June! É querer que nos consintamos que Jon se una à carne e ao sangue do homem que possuiu a mãe de Jon contra a vontade dela. Não adianta medir as palavras. Quero esclarecer isto uma vez por todas. E agora não falemos mais nisto, ou terei de ficar sentado ali a noite inteira.

E, pondo a mão sobre o coração, Jolyon voltou as costas à filha e pôs-se a olhar o Tamisa.

June, que era da raça de São Tomé e só via uma coisa quando lhe punha o dedo em cima, estava seriamente alarmada. Aproximou-se e pôs o braço na cintura do pai. Ainda não estava convencida de que ele tinha razão, e de que ela não a tinha, pois isso não era possível da sua parte, mas estava profundamente impressionada ante o abalo que tal discussão provocara em Jolyon. Encostou o queixo ao ombro dele e não disse mais nada.

Depois de desembarcar a prima na outra margem, Fleur não abicou logo a terra, ficando a vaguear por entre os juncos, ao sol. A plácida beleza da tarde seduzia-a, embora não sentisse muita inclinação para as coisas vagas e poéticas. No campo defronte do qual o seu barquinho vogava, ela via uma segadora, puxada por um cavalo baio. E olhava fascinada para a relva que cascateava entre as rodas: parecia tão fresca e tão verde! O rumor da máquina casava-se com o farfalhar dos salgueiros e dos álamos e o arrulhar de um pombo bravo, formando uma verdadeira canção do rio. Através da correnteza profunda e verde, ervas aquáticas, como serpentes amarelas, lutavam contra a força do rio. e na sombra, lá longe, alguns animais deitavam-se preguiçosamente, agitando de vez em quando as caudas. Era uma tarde propícia ao sonho. Ela tirou do bolso as cartas de Jon, sem efusões floreadas, descrevendo simplesmente as coisas vistas e feitas e traduzindo uma grande saudade, muito agradável a Fleur. E terminavam assim: «Sempre seu, J.» Fleur não era sentimental, os seus desejos eram sempre concentrados e concretos, mas, se a filha de Soames e Annette era capaz de alguma poesia, isso teria de desabrochar naquelas semanas de espera, em que ela ia reunindo as lembranças de jon em torno de si. Todas elas se ligavam a ervas e prados, flores e água corrente. E ela revia-o nos aromas que aspirava ali. as estrelas poderiam persuadi-la de que estava ao lado dele, no centro do mapa da Espanha. E, pelas madrugadas, uma teia de aranha matinal, a enevoada promessa do dia caindo sobre o jardim, personificavam Jon aos olhos da rapariga.

Dois cisnes brancos aproximaram-se majestosamente, enquanto ela relia as suas cartas, seguidos por uma linha de seis filhos, que guardavam regularmente uma distância mínima entre a cauda de um ao bico do outro - uma flotilha de barcos cinzentos. Fleur guardou as cartas, agarrou os remos e rumou para o desembarcadouro. Atravessando o relvado, perguntava a si mesma se falaria ao pai na visita de June, porque, se ele tivesse conhecimento disso pelo mordomo, estranharia a filha não lhe ter dito nada. Aquilo talvez lhe proporcionasse novo pretexto para arrancar dele a verdade sobre a briga de família, e, resolvida, dirigiu-se à estrada, ao encontro do pai.

Soames fora visitar um terreno que as autoridades locais destinavam a um sanatório para doentes dos pulmões. Fiel ao seu individualismo de nascença, não tomava parte nos negócios locais. contentando-se em pagar a sua parte nas quotas organizadas entre os proprietários.

Não podia, no entanto, manter-se indiferente a esse novo e perigoso projecto. O local era a cerca de meia milha de sua casa. Concordava inteiramente na necessidade de abrigar e tratar os tuberculosos, mas não ali. Que o fizessem mais longe. : tomou, em consequência, a atitude característica de todo o Forsyte legítimo: nada tinha que ver com os prejuízos dos outros e o Estado que cumprisse as suas obrigações sem prejudicar em nada as vantagens naturais que ele adquirira ou herdara. Fraude, o espírito mais liberto da sua geração de Forsyte - excepto talvez o de Jolyon filho -, perguntara-lhe uma vez, no seu jeito malicioso: «Você já viu alguma vez, o nome de um Forsyte numa petição pública qualquer, Soames?», Era verdade, - devia ser assim mesmo, mas aquele sanatório depreciaria os arredores, e ele estava portanto pronto a assinar qualquer protesto que se fizesse contra aquilo. Regressando, com a sua decisão recém-tomada. avistou Fleur que lhe vinha ao encontro.

Ultimamente a pequena demonstrava-lhe mais afeição que nunca, e os calmos dias que ele passava com ela, ali na casa de campo, faziam-no sentir-se realmente jovem. Annette andava sempre de viagem para Londres, a qualquer pretexto, de forma que ele tinha Fleur só para si, muito mais do que o ousaria esperar. É verdade que o jovem Mont adquirira o hábito de aparecer na sua motocicleta quase todos os dias. Graças a Deus, o rapaz rapara aquele bigode em forma de escova e já não parecia um saltimbanco! Com uma amiguinha de Fleur que estava hospedada em sua casa e um ou outro rapaz da vizinhança, eles compunham dois pares jovens, depois do jantar, e dançavam no hall, ao som da pianola eléctrica que tocava sem pianista os seus fox-trots, com um brilho esquisito na superfície polida.

Até mesmo Annette uma vez ou outra passava graciosamente pelo braço de um dos rapazes. E, Soames, chegando à porta da sala de estar, ficava a olhá-los, procurando apanhar um sorriso de Fleur, depois voltava à sua cadeira, no meio da sala de estar, percorrendo com os olhos o Times ou um catálogo de preços de quadros para coleccionadores. E aos seus olhos sempre inquietos Fleur não dava sinal nenhum de recordar o passado capricho.

Quando ela o alcançou, na estrada empoeirada, ele agarrou-a pelo braço.

- Adivinhe, papá, quem veio fazer-lhe uma visita? Não pôde esperar. Adivinhe!

- Nunca adivinho - disse Soames, pouco à vontade. - Quem?

- Sua prima June Forsyte.

Inconscientemente, Soames apertou com força o braço da filha.

- Que queria ela?

- Não sei. Mas essa visita representa realmente uma quebra na intriga, não?

- Intriga? Que intriga?

- A intriga que existe na sua imaginação, querido. Soames soltou-lhe o braço. Estaria ela a troçar ou quereria

arrastá-lo a qualquer parte?

- Decerto queria que eu comprasse algum quadro - disse ele.

- Não creio. Talvez fosse pura afeição de família..

- Ela é apenas minha prima - resmungou Soames.

- E filha do seu inimigo.

- Que é que você quer dizer com isso?

- Peço-lhe perdão, querido. Pensei que ele era seu inimigo.

- Inimigo! - repetiu Soames. - isso é uma história antiga. Não sei onde consegue as suas informações.

- De June Forsyte.

Viera-lhe uma inspiração: se ele pensasse que ela sabia, ou que estava prestes a saber, talvez falasse.

Soames estava estupefacto, mas Fleur subestimara o seu cuidado e a sua tenacidade.

- Se você sabe - disse ele friamente -. para que está a atormentar-me?

Fleur viu que ele lhe atava as mãos.

- Não estou a atormentá-lo, querido. Como você diz, para que quero eu saber mais? E porque quero eu saber tudo a respeito desse "pequeno mistério"? Je men fiche, como diria Profond.

- Aquele sujeito! - exclamou surdamente Soames.

O sujeito, com efeito, representava um papel considerável,

embora invisível, naquela temporada de Verão - porque ele não

voltara lá. Desde o domingo em que Fleur ficara a espiá-lo no seu passeio pelo relvado.

Soames pensara muito nele, e sempre em conexão com Annette - por nenhuma razão especial, apenas porque ela estava cada vez mais bonita, bonita como não a via há muito tempo. O seu instinto de proprietário, subtil, menos formal, mais elástico desde depois da guerra, apanhava qualquer equívoco Oculto. Tal como alguém que, na margem de um rio americano, fita o cenário plácido e agradável, sabendo que talvez haja um jacaré escondido na lama, com a dentuça pronta, confundindo-se com qualquer velho tronco atirado à beira da água. assim Soames olhava a margem da sua própria existência, com a certeza subconsciente da presença de Monsieur Profond, mas recusando-se a ver mais que a suspeita da sua dentuça. Naquela época da vida, ele possuía praticamente tudo com que sonhara - e sentia-se tão feliz quanto a sua natureza o poderia permitir. Os seus sentidos estavam em repouso, as suas afeições recebiam todo o alimento de que careciam no carinho da filha, a sua colecção era famosa, o seu dinheiro estava muito bem colocado, a sua saúde era excelente, salvo uma dorzinha no fígado, uma vez ou outra, e ele não começara ainda a pensar seriamente no que poderia sobrevir depois da morte, inclinado a crer que nada sobreviria. Assemelhava-se a um dos seus próprios valores de fundos públicos, garantidíssimos, e perturbar aquela segurança procurando descobrir algo que poderia evitar parecia-lhe instintivamente perverso e retrógrado. Aquelas duas ameaças ocultas - o capricho de Fleur e a dentuça de Monsieur Profond - acabariam por desaparecer se ele soubesse afundá-los habilmente.

Mas naquela noite o Destino, que visita a vida até mesmo dos mais garantidos Forsytes, pôs uma arma nas mãos de Fleur. O pai desceu para o jantar sem trazer um lenço e sentiu necessidade de assoar o nariz.

- Vou buscar-lhe um. paizinho - disse ela, correndo pela escada. No sachet onde ela foi tirar o lenço havia dois compartimentos: um destinado aos lenços, enquanto o outro estava abotoado, contendo algo de grosso e rijo. Levada por um impulso meio infantil, Fleur desabotoou-o. Havia aLi uma, moldura, e nela um retrato seu quando pequenina. Fixou-o fascinada, movida por um obscuro pressentimento. O retrato deslizou um pouco sob o seu polegar. e ela viu que por baixo havia outra fotografia.

Empurrou melhor o retrato de cima e percebeu um rosto, que supunha conhecer: uma mulher jovem, muito linda, com um vestido de noite à moda antiga. Repondo o seu retrato no lugar, ela agarrou um lenço e desceu. E só quando estava na escada identificou aquele rosto: sem dúvida nenhuma, era a mãe de Jon! A convicção foi como um choque súbito. Então parou, num turbilhão de pensamentos. Sim, naturalmente! O pai de Jon casara com a mulher com quem seu próprio pai quisera casar, enganara-o, ludibriara-o na disputa, talvez. E então, receosa de dar alguma demonstração de que descobrira o segredo, recusou-se a pensar mais naquilo, e, agitando o lenço de seda, entrou na sala de jantar.

- Escolhi o mais macio, papá.

- Hum! - disse Soames. - Eu sempre uso esses depois de um defluxo. Mas não importa!

Aquela noite, Fleur passou-a toda a reconstituir as peças do quebra-cabeças, rememorando a fisionomia do pai na confeitaria - um olhar estranho e profundo, esquisitíssimo. Ele deveria ter amado de mais aquela mulher, para lhe guardar ainda o retrato durante todo esse tempo - mesmo depois de a ter perdido. Positiva, sem preconceitos, o seu espírito deteve-se então nas relações do pai com a mãe. Seria que ele algum dia a amara? Achava que não. Jon era o filho da mulher que ele realmente amara. Com certeza, então, não se importaria que sua filha o amasse. Precisava apenas de se habituar àquela ideia. E um suspiro de alívio foi abafado pelos folhos da camisa que ela ia enfiando pela cabeça.

 

ENCONTROS

A juventude só repara na idade por acessos irregulares, jon, por exemplo, nunca se apercebera da idade do pai até que regressou da Espanha. O rosto do quarto Jolyon, abatido pela espera, chocou-o profundamente - parecia tão pálido e tão velho! E a máscara do pai estava tão decomposta pela emoção do encontro que o rapaz pôde facilmente perceber quanto ele deveria ter sentido a separação. Para se aliviar, disse a si mesmo, «Eu bem não queria ir!» Era uma coisa antiquada ver-se a juventude ceder diante da idade, mas jon não era o que se poderia dizer tipicamente moderno. O pai sempre fora tão «correcto» com ele. e era desagradável saber que recomeçaria imediatamente a conduta para cuja cura o pai sofrera aquele tormento de solidão.

E ante a pergunta «E então, meu velho, que tal achou a grande Goya», a sua consciência picou-o profundamente. O grande Goya só existia porque criara um rosto semelhante ao de Fleur.

Na noite do regresso, Jon foi para a cama cheio de compunção, mas acordou cheio de desejos. Estava-se apenas a cinco de Julho, e não tinha nenhum encontro marcado com Fleur até ao dia nove. Tinha de passar três dias em casa antes de voltar ao campo. Deveria haver uma maneira de se encontrar com ela!

Existe na vida dos homens um ritmo inexorável provocado pela necessidade de calças e coletes que nem mesmo os pais mais amantes podem negar. No segundo dia, portanto, Jon veio à cidade, e, depois de satisfazer a sua consciência encomendando em Conduit Street tudo de que carecia, tomou a direcção de Piccadily, Stratton Street, onde ficava o clube de Fleur, bem vizinha à Devonshire House. Seria uma sorte única se ela estivesse lá.

E Jon atravessou Bond Street com o coração aos pulos, apercebendo-se da superioridade que todos os outros rapazes mostravam sobre ele próprio. Vestiam-se com tal displicência elegante, tinham uma tal segurança - eram adultos. E foi subitamente sufocado pela convicção de que Fleur deveria tê-lo esquecido. Absorvido pelo seu próprio sentimento por ela durante todas aquelas semanas desprezara essa possibilidade. Os cantos da boca descaíram-lhe, as mãos ficaram viscosas. Fleur, com todo o picante da mocidade e a graça do sorriso - Fleur incomparável! Foi um mau momento. Jon, entretanto, tinha um credo: cada um deve ser capaz de fazer face ao pior. E atacou-se a si próprio com essa severa reflexão em frente de uma loja de antiquário. Ante aquela exposição do que representara outrora a season londrina, não havia na rua nenhum sinal de que nova season estava novamente a correr além de uma ou outra cartola cinzenta e o sol. Jon pôs-se a andar, e, virando a esquina de Piccadilly, deu de cara com Val Dartie, que se dirigia para o Iseeum Club, onde acabava de ingressar.

- Olá! Que anda a fazer? Jon corou.

- Fui ao meu alfaiate.

Val olhou-o de cima a baixo.

- Muito bem! Eu ia encomendar uns cigarros. Venha comigo e vamos almoçar.

Jon agradeceu. Quem sabe se conseguiria notícias dela por intermédio de Val!

As condições da Inglaterra, esse pesadelo da imprensa e dos homens públicos, eram encaradas em perspectiva muito diferente pelo vendedor que os atendeu.

- Muito bem, sir. São exactamente os mesmos cigarros que eu costumava fornecer ao senhor seu pai. Jesus! Mr. Montague Dartie foi meu freguês desde., deixe-me ver,., desde o ano em que Melton venceu o Derby. Foi um dos meus melhores fregueses. - E um leve sorriso iluminava o rosto do vendedor. - Muita gorjeta me deu ele! Se bem me lembro, comprava dois pacotes de cem cigarros por semana, ano após ano, e nunca mudava de marca. Um senhor muito delicado... trouxe-me uma boa porção de fregueses. Senti muito que ele houvesse sofrido aquele acidente. A gente sente a falta de um freguês assim.

Val sorriu. A morte do pai fechara uma conta que vinha a arrastar-se há muito tempo-provavelmente há mais tempo que qualquer uma outra. E num anel de fumo aspirado daquele cigarro de marca venerável pareceu-lhe rever o rosto do pai, moreno, bonito, com grandes bigodes, um pouco balofo, revestido da única auréola à qual ele dava valor. De qualquer modo, seu pai deixara fama naquela zona - um homem que fumava duzentos cigarros por semana, que podia dar gorjetas e arrastar indefinidamente as suas contas! Para aquele vendedor, fora um herói! E, afinal, aquilo era uma certa distinção que lhe vinha de herança!

- Pago à vista - disse ele. - Quanto é?

- Para o filho dele, sir, e pagando à vista, dez shillings e seis pence. Nunca esquecerei Mr. Montague Dartie. Parava aqui e ficava a conversar comigo mais de meia hora. Já não vemos disso hoje, sir. Toda a gente tem pressa de mais. A guerra prejudicou muito as boas maneiras, sir, prejudicou muito as boas maneiras. O senhor esteve lá, pelo que vejo.

- Não - disse Val, batendo no joelho. - Apanhei isto na guerra anterior. Suponho, aliás, que foi o que me salvou a vida. Quer cigarros, Jon?

- Você sabe que eu não fumo - murmurou Jon envergonhado, vendo o vendedor torcer a boca, como se estivesse incerto em dizer: «Bom Deus!» ou «É sorte sua, sir»

- Faz bem - disse Val. - Evite o fumo enquanto puder. Mas terá necessidade dele quando levar o primeiro choque. Então este é na verdade o mesmo tabaco?

- Idêntico, sir, apenas um pouco mais caro. É maravilhoso o nosso poder de conservação... do Império Britânico. Eu sempre disse isso.

- Então envie-me cem cigarros todas as semanas para este endereço e mande a conta no fim do mês. Vamos, Jon.

Jon entrou no Iseeum com curiosidade. Excepto um almoço uma vez ou outra, no Hotch Potch, em companhia do pai, nunca entrara num clube londrino. O Iseeum, confortável e despretensioso, não se modificara, nem o poderia fazer enquanto George Forsyte permanecesse no conselho de direcção, onde a sua ciência culinária era quase a força controladora. O clube levantara uma barreira contra os novos-ricos e fora necessário todo o prestígio de George Forsyte e a sua garantia de que se tratava de um grande sportsman para ser concedida a entrada a Prosper Profond.

George e Profond estavam a almoçar juntos quando os dois cunhados entraram na sala. E, chamados por um sinal que George fez com o indicador no ar, sentaram-se à sua mesa. Val, com os seus olhos agudos e o sorriso agradável, Jon fascinado pela atmosfera hipnótica. O criado, correctíssimo, servia-os com uma espécie de deferência misteriosa. Parecia estar suspenso dos lábios de George Forsyte, espiar-lhe o clarão aprovativo do olhar com uma espécie de simpatia, seguir apaixonadamente todos os movimentos da pesada prataria marcada com as armas do clube. O seu braço vestido na manga da libré e a voz confidencial alarmaram Jon quando misteriosamente os sentiu sobre o ombro.

Apenas uma vez George lhe dirigiu a palavra.

- Seu avô ensinou-me alguns dos segredos dele. Era um conhecedor único de charutos!

Afora isso, nem ele nem o outro ocupante da mesa pareceram tomar conhecimento da sua presença, e o rapaz foi-lhes grato por isso. A conversa girava em torno de criação, cotações e preços de cavalos, e ele escutava-a vagamente a princípio, espantado de como era possível reter tantos conhecimentos numa só cabeça. Não conseguia tirar os olhos de Monsieur Profond - tudo o que ele dizia era tão definitivo e tão desanimador, em palavras pesadas, estranhas, zombeteiras! Jon estava a pensar em borboletas, quando ouviu Profond dizer:

- Eu gostaria de ver Mr. Soames Forsyde tomar algum interesse por cavalos.

- O velho Soames!

Ouvindo isto, Jon tentou não ficar vermelho, enquanto o belga prosseguia:

- A filha dele é uma moça muito interessante. Mr. Soames Forsyde é um pouco antiquado. Gostaria de vê-lo um dia ter prazer em qualquer coisa.

George Forsyte fez uma careta.

- Não se preocupe. Ele não é tão desgostoso quanto parece. Nunca mostra que está a gostar de alguma coisa... tem medo de que lha tirem. Velho Soames! Gato escaldado de água fria tem medo!

- Bem, Jon - disse Val apressadamente -, se já acabou, vamos lá para fora, tomar um café.

- Quem são aqueles? - perguntou Jon, na escada. - Não pude, com efeito...

- O velho George Forsyte é primo de seu pai e do meu tio Soames. Está sempre aqui. O outro sujeito, Profond, é uma ave estranha. E, se não me engano, anda a rondar em torno da mulher de Soames!

Jon olhou, estupefacto.

- Isso seria uma vergonha... quero dizer, para Fleur.

- Não creio que Fleur se preocupe muito com isso. Ela é muito moderna.

- Mas é a mãe dela!

- Você é muito ingénuo. Jon. Jon ficou rubro.

- Quando se trata da nossa própria mãe - disse ele, colérico-, tudo é muito diferente.

- Você tem razão - disse Val de súbito -, mas as coisas já não são o que eram quando eu tinha a sua idade. Hoje toda a gente vive sob este pensamento: «Amanhã, posso estar morto.» E era isso que o velho George estava a dizer acerca do meu tio Soames: aquele não pensa que pode estar morto amanhã.

- Que é que houve entre ele e meu pai? - perguntou vivamente Jon.

- É segredo, Jon. Tome o meu conselho, esqueça isso. Você não ganha nada em saber. Quer um licor?

Jon abanou a cabeça.

- Detesto esse costume das pessoas mais velhas: escondem as coisas de nós, e depois troçam porque somos ingénuos.

- Bem, você pode perguntar a Holly. E, se ela não quiser dizer-lhe, creio que há-de ficar certo de que não lhe convém saber.

Jon levantou-se.

- Tenho de ir. Muito obrigado pelo almoço.

Val sorriu-lhe, meio penalizado, um pouco divertido. O rapaz parecia tão agitado.

- Muito bem. Até sexta.

- Não sei - murmurou Jon.

Aquela conspiração de silêncio deixava-o desesperado. Era humilhante ser tratado como um garotinho! E refez a sua triste caminhada, através da Strattón Street. Pois ia ao clube dela, e liquidava logo o pior! À sua pergunta, responderam-lhe que Miss Forsyte não estava no clube. Talvez chegasse um pouco mais tarde. Raramente ela aparecia às segundas-Feiras - eles não poderiam garantir. Jon disse que voltaria mais tarde, e, atravessando o Green Park, sentou-se num banco sob uma árvore. O sol estava ardente e uma brisa leve agitava as folhas do jovem limoeiro sob o qual ele se abrigava, mas o coração doía-lhe. Uma espécie de escuridão parecia ter envolvido toda a sua felicidade. Ouviu o Big-Ben bater três pancadas, soando sobre o rumor do tráfego. O som agitou-lhe qualquer coisa dentro, e, agarrando um pedaço de papel, começou a rabiscar com o lápis. Lançou uma estância, e estava a procurar o tema de um novo verso quando uma Coisa lhe tocou o ombro - uma sombrinha verde. E de pé, por trás do banco, estava Fleur!

- Disseram-me que você tinha estado lá, e que voltaria. Pensei então que estaria a passar o tempo aqui. E cá está! É uma maravilha!

- Oh, Fleur! Eu pensava que você já me tinha esquecido.

- Eu não lhe disse que não o esqueceria? Jon agarrou-lhe o braço.

- É sorte de mais! Vamos para este lado. - E quase a arrastou através daquele parque ordenadíssimo, à procura de um abrigo onde pudessem sentar-se e segurar na mão um do outro.

- Apareceu alguém no meu caminho? - perguntou ele, olhando fixamente os cílios suspensos sobre a face da garota.

- Apareceu um idiotazinho, mas não conseguiu nada.

Jon sentiu um choque de compaixão - pelo jovem idiota.

- Sabe que tive uma insolação? Não lhe mandei dizer.

- Na verdade! E é interessante?

- Não. A mamã foi um anjo. E nada aconteceu a você?

- Nada. Excepto que eu creio ter descoberto o que há entre as nossas famílias, Jon. - O coração dele começou a bater com grande rapidez. - Creio que meu pai quis casar com sua mãe, mas foi seu pai que o conseguiu.

- Oh!

- Descobri um retrato dela. Estava numa moldura, debaixo de um retrato meu. Naturalmente ele estava muito apaixonado, e deve ter ficado quase louco, não acha?

Jon pensou durante um minuto.

- Não, se ela amasse mais ao meu pai.

- Mas suponha que eles estivessem noivos?

- Se nós estivéssemos noivos, e eu descobrisse que você amava um outro mais que a mim, eu poderia rebentar, mas não me agarraria a si.

- Pois eu agarrar-me-ia. Nunca me faça isso, Jon.

- Meu Deus! Não há esse perigo!

- Creio que ele nunca fez muito caso de minha mãe - disse Fleur.

Jon guardou silêncio. As palavras de Val - os dois sujeitos do clube!

- Escute, nós não podemos saber... - continuou Fleur. - Mas deve ter sido um choque terrível. Ela deve ter procedido mal com ele. Isso acontece.

- Minha mãe não faria isso. Fleur ergueu os ombros.

- Eu acho que nós sabemos muito pouco acerca dos nossos pais. Só os vemos à luz do procedimento deles em relação a nós. Mas eles conviveram com outros, antes que fôssemos nascidos... com muita gente. Veja seu pai, com três famílias separadas!

- Não existirá um lugar - exclamou Jon - nesta estúpida Londres onde a gente possa conversar a sós?

- Só num táxi.

- Então vamos apanhar um.

Quando estavam no táxi, Fleur perguntou subitamente:

- Você vai voltar para Robin Hill? Gostaria de ver onde vive, Jon. Tenho de passar a noite em casa de minha tia, mas posso voltar a tempo para o jantar. É evidente que não entraremos na casa.

Jon olhou-a, maravilhado.

- Esplêndido! Posso, do bosque, mostrar-lhe a casa, sem que encontremos ninguém. Há um comboio às quatro horas.

O deus da propriedade e os seus Forsytes grandes e pequenos - ricaços, funcionários, comerciantes ou profissionais, tal como as classes operárias - ainda trabalhavam sete horas por dia. de forma que aqueles dois Forsyte da quarta geração viajaram para Robin Hill num compartimento de primeira classe vazio, limpo e aquecido de sol, num comboio pouco procurado. Viajaram num abençoado silêncio, agarrados à mão um do outro.

Na estação não viram ninguém além de carregadores e um ou outro agricultor, desconhecido de Jon, e caminharam através dos campos que cheiravam a poeira e a favos de mel.

Para Jon - certo agora dela e sem nenhuma separação a ameaçá-los-, aquele era um miraculoso passeio, mais maravilhoso que todos os outros feitos através dos Downs ou ao longo do Tamisa. Sentia uma plenitude de amor, lia uma daquelas páginas iluminadas da vida onde cada palavra, cada sorriso, cada toque de luz eram como douradas, vermelhas e azuis borboletas e pássaros mágicos que se escapavam do texto, uma venturosa comunhão, sem nenhum pensamento oculto - e que durou trinta e sete minutos. Chegaram ao bosque na hora da ordenha das vacas. Jon não quis levá-la até à granja. Apenas até onde ela pudesse avistar o relvado que subia para os jardins e a casa ao fundo. Deram uma volta por trás de uns arbustos, e subitamente, numa curva do caminho, deparou-se-lhes Irene, sentada sobre um velho tronco.

Há várias espécies de choque: o vertebral, o dos nervos, o da sensibilidade moral. E, mais potente e mais permanente, o da dignidade pessoal.

E foi esse último o choque sentido por Jon quando encontrou a mãe. Teve a consciência súbita de que estava a praticar um acto indelicado. Se houvesse trazido Fleur abertamente - muito bem! Mas vir escondido assim! Roído de vergonha, a sua fronte atingiu a coloração máxima do rubor.

Fleur sorria, com um leve ar de desafio, e a expressão de espanto da mãe mudava-se rapidamente noutra expressão mais impessoal e gentil.

Foi ela que disse as primeiras palavras.

- Nós não íamos até casa - gaguejou Jon. - Quis apenas trazer Fleur para lhe mostrar onde moro.

- Vamos até casa, tomar um pouco de chá? - perguntou calmamente a mãe.

Sentindo que apenas agravara a sua falta de tacto, ouviu Fleur responder:

- Muito obrigada, mas tenho de voltar para o jantar. Encontrei Jon por acaso e pensámos que seria divertido dar uma olhadela à casa.

Como Fleur tinha presença de espírito!

- Naturalmente. Mas você deve tomar chá connosco. Mandaremos levá-la à estação. Meu marido gostará de a ver.

Os olhos da mãe, demorando nele um momento, puseram Jon mais raso que o chão - fizeram-no sentir-se um verme. Ela então começou a andar e Fleur acompanhou-a. E ele sentia-se como um menino caminhando atrás delas, que conversavam amavelmente sobre a Espanha e Wansdon, sobre a casa que ficava atrás das árvores e os relvados. E ele espiava o olhar das duas que reciprocamente se examinavam - os dois entes que ele mais amava no mundo.

Avistou o pai sentado sob o carvalho. E sofreu antecipadamente o desconcerto em que iria cair aos olhos daquele homem tranquilo, de pernas cruzadas, magro, velho, elegante. Até já podia ver a ironia transparente sob a sua voz e o seu sorriso.

- Esta é Fleur Forsyte, Jolyon. Jon trouxe-a para ver a casa. Vamos já tomar chá, porque ela tem de apanhar o comboio. Jon, peça o chá, querido, e telefone para o Dragão a pedir um carro.

Era estranho deixá-la em companhia deles, mas, como devia estar a pensar sua mãe, se ficassem todos ainda seria pior. E correu para a casa. Agora já não podia ficar a sós com Fleur, nem por um minuto, e não tinham combinado nenhum outro encontro! Quando voltou, cercado de criadas e utensílios de chá, não havia nenhum sinal de desastre sob a árvore: tudo se passava interiormente, mas nem por isso a complicação era menor. Estavam a falar sobre a galeria de Cork Street.

- Nós, os velhos, estamos ansiosos por descobrir porque é que não fomos capazes de apreciar a exposição. Você e Jon é que nos devem explicar.

- Ela pretendia ser satírica? - perguntou Fleur. Jon viu o sorriso do pai.

- Satírica? Oh! Penso que é mais que isso. Que é que você diz, Jon?

- Não entendo nada daquilo - gaguejou Jon, vendo no rosto do pai uma súbita contracção.

- Os jovens estão cansados de nós, dos nossos deuses e dos nossos ideais. Fora com eles, dizem. Quebremos-lhes os ídolos! E façamos que suba o nada. E, por Júpiter, fizeram exactamente isso. Jon é um poeta. Pois ele também irá calcar aos pés o que nós deixarmos. Propriedade, beleza, sentimentos.,, tudo se reduzirá a fumo. Não devemos possuir nada, actualmente, nem mesmo os nossos sentimentos. O que eles procuram é o nada.

Jon escutava, confuso, quase ultrajado pelas palavras do pai, por trás das quais sentia uma ameaça que não conseguia atingir. Ele não pretendia calcar nada aos pés!

- O nada é o deus hoje em dia - prosseguia Jolyon. - Voltamos aos russos de sessenta anos atrás, quando descobriram o niilismo.

- Não, papá - exclamou subitamente Jon. - O que nós queremos é viver, e não sabemos como, por causa do passado. E isso é tudo!

- Por São Jorge! - disse Jolyon. - Isso é profundo, Jon. É ideia sua? O passado! Velhas posses, velhas paixões, e as suas consequências. Passe-me os cigarros.

Consciente de que a mãe levara a mão aos lábios, como para abafar qualquer coisa, Jon ofereceu os cigarros. Acendeu o do pai, o de Fleur, depois um outro para si. Sofrera ele o choque em que Vall falara? O fumo era azul antes que ele o aspirasse e cinzento quando o soltava. Gostou da sensação no nariz e veio-lhe um sentimento de igualdade. Ficou satisfeito porque ninguém lhe disse: «Então começou a fumar!» Sentia-se menos jovem.

Fleur olhou o relógio e ergueu-se. A mãe entrou com ela em casa. Jon ficou junto ao pai, aspirando o seu cigarro.

- Leve-a ao carro, meu velho - disse Jolyon. - E quando ela se for embora, diga a sua mãe que venha cá.

Jon saiu. Esperou no hall, e viu Fleur entrar no carro. Não houve oportunidade para uma única palavra e mal apertaram as mãos. Esperou durante todo o serão que lhe dissessem alguma coisa. Não disseram nada. Nada aconteceria. Ele foi para a cama e mirou-se no espelho do toucador. Não falou, nem a imagem falou tão pouco. Mas ambos tinham o aspecto intensamente preocupado.

 

EM GREEN STREET

É impossível dizer se a impressão reinante de que Prosper Profond era perigoso decorrera do facto de ele ter querido oferecer a Val a potra Mayfly ou de uma observação de Fleur: «Ele lembra as Hostes de Miriian: vive a rondar, a rondar» (1). Ou ainda da sua absurda pergunta a Jack Cardigan: «Para que quer o senhor viver em boa forma?» Ou simplesmente do facto de ser um estrangeiro, um alienígena, como se diz hoje. Era verdade que Annette andava agora particularmente bonita e que Soames lhe vendera um Gauguin, e depois lhe devolvera o cheque, pois o próprio Monsieur Profond declarara: «Não pude trazer aquele pequeno quadro que comprei a Mr. Forsyde.» Mas, apesar de estar debaixo de suspeição, continuava a frequentar a casinha sempre verde de Winifred em Green Street - com uma afável obstusidade que ninguém poderia confundir com ingenuidade, palavra dificilmente aplicável a Monsieur Prosper Profond. Winifred ainda o considerava «interessante» e gostava de lhe escrever bilhetinhos neste estilo: «Venha gozar um pouco connosco», pois, para ela, escrever as palavras em moda era o mesmo que aspirar o verdadeiro sopro da vida.

O mistério de que todos o viam cercado derivava, na verdade,

 

*1. Palavras de um hino religioso evangélico. (N. da T.)

 

do facto de já haver ele feito, visto, ouvido e sabido - e não ter descoberto nada nisso tudo, o que era extraordinário. O tipo inglês do desiludido era bastante familiar a Winifred, que sempre frequentara as rodas elegantes. E tal tipo dá um certo cachet, de forma que muitos o exibem, mas não ver nada em coisa alguma, não por atitude, mas porque realmente não há «nada em nada», isso não era inglês. E o que não é inglês não se pode evitar de secretamente se supor perigoso, se não propriamente malcriado. Por exemplo, conservar os maus modos trazidos da guerra e sentar-se na nossa poltrona Império, escuro, pesado, sorridente, indiferente, escutando o que dizem, e nesse mesmo jeito responder à conversa através dos grossos lábios vermelhos, por sobre uma barbicha faunesta ou diabólica. Conforme o exprimira Jack Cardigan, aquilo era «um pouco excessivo para o carácter britânico, pois, se nada há merecedor de um interesse mais vivo, restam os desportos, apesar de tudo, e é mister praticá-los».

Winifred, que de coração continuava Forsyte, sentia que não havia nada a tirar desse sentimento permanente de desilusão e que, portanto, ele não tinha realmente razão de ser. Monsieur Profond, com efeito, exibia muito abertamente os seus sentimentos num país em que se velam decentemente tais realismos.

Quando Fleur, depois da sua apressada volta de Robin HilL chegou para o jantar naquela noite, Profond estava de pé junto à janela da pequena sala de Winifred, olhando para Green Street com um ar de quem não estava a fazer nada ali. E Fleur olhou imediatamente para a lareira, com o ar de ver um fogo que não havia lá.

Monsieur Profond saiu de junto da janela. Estava vestido a rigor, com colete branco e uma gardénia na lapela.

- Então, Miss Forsyde - disse ele. - Estou encantado em vê-la. Mr. Forsyde passa bem? Eu dizia ontem que gostaria de o ver sentir prazer por qualquer coisa. Ele vive preocupado.

- O senhor acha? - perguntou laconicamente Fleur.

- Vive preocupado - repetiu Monsieur Profond, acentuando o sotaque.

Fleur deu meia volta.

- Quer que eu lhe diga o que poderia dar prazer ao papá,

- Mas as palavras «seria ver o senhor desaparecer» morreram ante a expressão da face dele. Todos os seus bonitos alvos dentes estavam à mostra.

- Contaram-me alguma coisa ontem, no clube, a respeito dessa velha briga de família...

Fleur abriu os olhos.

- A que se refere o senhor?

- Antes que você fosse nascida, Miss Fleur... aquela «pequena» questão.

Certa embora de que Profond apenas quisera desviar-lhe a atenção da parte que ele tinha nas preocupações de Soames, Fleur não pôde evitar um estremecimento de curiosidade nervosa.

- Conte-me o que foi que lhe disseram.

- Porquê? - murmurou Monsieur Profond. - Tudo isso já é do seu conhecimento.

- Espero que sim. Mas gostaria de saber se o senhor não ouviu alguma versão falsificada.

- A primeira mulher dele... - murmurou Monsieur Profond. Engolindo as palavras «ele nunca foi casado antes», Fleur

disse:

- E então que é que há acerca dela?

- Mr. George Forsyte estava a dizer-me o que houve... quando a primeira mulher de seu pai casou com o seu primo Jolyon. Deve ter sido bem desagradável, creio eu. Vi o filho deles .... belo rapaz!

Fleur encarou-o. Monsieur Profond flutuava diante dela, pesado e diabólico. Era aquela - a razão! Com o mais heróico esforço que já exigira de si na sua vida inteira, procurou deter aquele vulto flutuante. Não poderia dizer se ele percebera. E foi exactamente nessa altura que Winifred entrou.

- Oh, já estão ambos aqui. Eu e Imogen tivemos uma tarde divertidíssima no bazar dos bebés.

- Que bebés? - perguntou mecanicamente Fleur.

- A «reserva dos bebés». E fiz uma aquisição, minha cara! Uma peça de velha cerâmica arménia de antes do Dilúvio. Quero a sua opinião acerca dela, Prosper.

- Tia - sussurrou subitamente Fleur.

Ante o tom da voz da pequena, a tia aproximou-se. - Que sucedeu? Não está a sentir-se bem? Monsieur Profond voltara para junto da janela, onde estava praticamente fora do alcance da voz delas.

- Tia... ele disse-me que o papá já foi casado antes, é verdade que ele se divorciou e que ela casou novamente com o pai de Jon Forsyte?

Nunca na sua vida de mãe de quatro pequenos Dartie, Winifred se sentira mais seriamente embaraçada. O rosto da sobrinha estava tão pálido, os olhos tão sombrios, a voz tão surda e estrangulada!

- Seu pai não queria que você soubesse - disse ela com todo o aplomb que pôde arranjar. - Essas coisas acontecem. Eu sempre disse a ele que você deveria ser informada de tudo.

- Oh! - disse Fleur.

E aquilo foi tudo, mas essa exclamação fez que Winifred lhe acariciasse o ombro - um ombro firme, branco e lindo. Ela nunca deixava de olhar e tocar com prazer na sobrinha, que precisava casar - mas não com o tal Jon.

- Já nos esquecemos disso, durante estes anos todos - disse, tentando uma consolação. - Vamos jantar.

- Não, tia. Não me sinto bem. Posso ir lá para cima?

- Minha querida - murmurou Winifred, consternada -, você vai tomar isso tão a peito? O quê! Ainda não se desfez dessa tolice? Esse rapaz é um garoto!

- Que rapaz? Estou apenas com dores de cabeça. Mas não posso suportar aquele homem esta noite.

- Bem, bem - disse Winifred. - Vá e deite-se. Vou mandar-lhe um pouco de brometo e vou falar com Prosper Profond. Que é que ele tinha de mexericar sobre essas coisas? Embora eu sempre tenha achado que seria muito melhor que você soubesse.

Fleur sorriu.

- Sim - disse ela, deslizando para o quarto.

Chegou lá a cima com a cabeça a girar, uma secura na garganta, um tumulto assustador no peito. Nunca na sua vida sofrera um tão súbito pavor de não chegar a possuir aquilo que desejava. As sensações da tarde haviam sido fortes e pungentes,

e a sua inaudita descoberta, acontecendo logo após aquilo tudo, fazia-lhe realmente a cabeça estalar. Não era de admirar que o pai houvesse guardado aquela fotografia, tão escondida por trás do seu próprio retrato- decerto se envergonhava de a haver conservado! Mas poderia ele odiar a mãe de Jon e conservar-lhe o retrato? E ela apertava a fronte entre as mãos, procurando ver as coisas claramente. Teriam eles contado tudo a Jon, teria a sua visita a Robin Hill obrigado os pais a falar? Tudo agora girava em torno disso. Ela sabia, todos sabiam - excepto, talvez, Jon!

E a pequena passeava para trás e para diante no quarto, mordendo os lábios, desesperadamente preocupada. Jon adorava a mãe, Se eles lhe haviam falado, que teria ele feito? Ela não o poderia saber. Mas se eles nada haviam dito, seria que ela não poderia, não conseguiria atraí-lo e fazê-lo casar-se antes de saber a história? E Fleur rebuscava as lembranças que lhe haviam ficado de Robin Hill. O rosto tão passivo da mãe de Jon, com os seus olhos escuros, os cabelos que pareciam empoados, a sua reserva, o seu sorriso - e enganá-lo. E o pai, bondoso, abatido, irónico. Instintivamente, a moça sentia que eles estremeciam ante a ideia de falar a Jon - mesmo agora, estremeciam ante a ideia de o magoar, porque, decerto, ele iria sofrer pavorosamente quando soubesse!

Podia convencer a tia a não dizer nada ao pai acerca do que lhe dissera Profond. E enquanto ela e Jon passassem por não saberem nada, ainda havia uma probabilidade - haveria liberdade para esconder as pegadas percorridas e apoderar-se daquilo que o seu coração pedia! Mas Fleur sentia-se quase sufocada pelo seu isolamento. Todos estavam contra ela - todos! Era exactamente tal como Jon dissera: eles queriam apenas viver, mas o passado barrava-lhes o caminho, um passado que eles não tinham partilhado e que não compreendiam! Oh, que vergonha! E subitamente ela lembrou-se de June. Seria que ela a ajudaria? Algo fizera a pequena supor que June era simpática ao amor deles e que se irritava com os obstáculos. E então, instintivamente, Fleur pensou: «Não vou descobrir nada, nem mesmo a ela. Não ouso. O que quero é obter Jon - contra eles todos.»

Levaram-lhe uma sopa ao quarto e um dos comprimidos predilectos de Winifred, para dores de cabeça. Ela engoliu ambos. Depois a própria Winifred apareceu. Fleur abriu a sua campanha com estas palavras:

- Escute, tia, não quero que pensem que estou apaixonada por esse rapaz. Se mal o vi!

Winifred, embora experiente, não era fine. E aceitou a observação de Fleur com grande alívio. Claro que seria agradável para a pequena ouvir a história do escândalo da família, e ela tratou de lhe tirar toda a importância, tarefa para que estava eminentemente qualificada, graças às lições prudentes da mãe, graças à convivência com o pai, cujos nervos deviam sempre ser poupados, graças a ter sido, durante tantos anos, a esposa de Montague Dartie. A sua descrição foi uma obra-prima de exposição: a primeira mulher do pai de Fleur era muito leviana. Houve um caso com um rapaz que morreu de acidente, e ela abandonou Soames. Então, anos depois, quando tudo ainda se poderia arranjar,, ela fugira com o primo deles, Jolyon. E, naturalmente, o pai dela fora obrigado a requerer o divórcio. Ninguém recordava mais aquilo, excepto a família. E, afinal, tudo resultara no melhor: Soames tinha agora Fleur, Jolyom e Irene eram realmente felizes, segundo se dizia, e o filho era um belo rapaz.

-E Val, tendo casado com Holly, foi como um reboco escondendo tudo isso, não?

E, ao dizer essas palavras de alívio, Winifred fez festinhas no ombro da moça, pensando: «Ela é realmente linda!» E voltou para junto de Prosper Profond, que, a despeito de ter sido indiscreto, estava muito «interessante» naquela noite.

Durante alguns minutos, depois da partida da tia, Fleur ficou sob a influência do calmante material e espiritual. Mas depois a realidade apareceu. A tia tinha desprezado todos os elementos de importância - os sentimentos, o ódio, o amor, os apaixonados corações que nunca consentiriam em perdoar. Ela, que conhecia tão pouco da vida, que apenas tocava a margem do amor, compreendia instintivamente que as palavras têm tão pouca relação com os factos e sentimentos quanto a tem a moeda com o pão que ela compra. «Pobre papá!», suspirou ela. «Pobre de mim! Pobre Jon! Mas não me importo, o que quero é ele!» Da janela

do seu quarto, mergulhado na escuridão, ela avistava «aquele homem», que saíra pela porta principal e vagueava pela rua fora. Se ele e sua mãe... Em que afectaria isso as suas probabilidades? Decerto aquilo faria que o pai se agarrasse mais à filha - de maneira que acabaria por consentir em tudo o que ela quisesse ou reconciliar-se-ia rapidamente com o que ela fizesse sem o seu conhecimento.

Apanhou um pouco de terra do vaso na varanda e atirou-o ao vulto que desaparecia. Não o alcançou, mas a acção fez-lhe bem.

E uma leve aragem chegou até ela, vinda de Green Street, amarga,, cheirando a gasolina.

 

NEGÓCIOS EXCLUSIVOS DOS FORSYTE

Soames, vindo à cidade com a intenção de passar no fim do dia por Green Street e apanhar Fleur de volta para casa, meditava. Sócio comanditário que era agora, raramente vinha à City, mas ainda mantinha para si uma sala no escritório de Cuthcott, Kingson &. Forsyte, com um empregado seu - arranjo destinado ao trato exclusivo dos negócios dos Forsyte. E esses negócios estavam por assim dizer em maré crescente - pois o momento parecia auspicioso para a venda de propriedades imobiliárias. Soames tinha de se desfazer das propriedades deixadas por seu pai e pelo tio Roger, e, até certo ponto, das que haviam sido deixadas pelo tio Nicholas. A sua natural e indiscutível probidade em questões económicas tornara-o uma espécie de autocracia em relação a tais assuntos. Se Soames pensava isto ou pensava aquilo a determinado respeito, o interessado, se queria defender os seus interesses, o melhor que faria seria pensar o mesmo. E ele representava por isso mesmo a garantia de irresponsabilidade de muitos Forsytes da terceira e da quarta geração. Os seus clientes, tal como os primos Roger ou Nicholas, os primos afins Tweetman e Spender, o marido de Cecily, todos confiavam nele, ele assinava primeiro, e onde ele assinava primeiro os outros assinavam depois, e ninguém perdia um penny com isso. Até então, tinham, pelo contrário, ganho muitíssimo mais pennies(*1) graças a tal confiança.

 

*1. Este termo estará incorrecto. O plural de penny é pence (N. da D.)

 

E agora mesmo, por exemplo, Soames andava a estudar várias alterações de emprego de capitais, como precaução contra a instabilidade dos tempos.

Depois de atravessar as zonas mais febris da City, entrava nas represas mais serenas de Londres, e reflectia. O dinheiro andava extraordinariamente apertado e a moralidade extraordinariamente frouxa! Fora a guerra a causa disso. Os bancos não mereciam confiança, os indivíduos quebravam os contratos quase imediatamente depois de os terem assinado. Havia um sentimento no ar, e nos rostos um aspecto que não lhe agradava. O país parecia prestes a lançar-se num abismo de aventuras e falências. E sentia-se satisfeito por nem ele nem nenhum dos seus primos e clientes terem empregos de capital que apenas poderiam ser afectados por uma longa medida revolucionária sobre capitais. E se Soames tinha fé em alguma coisa, seria no que ele achava «o bom senso britânico», o poder de possuir coisas, de um modo ou de outro. Podia Soames - tal como o dissera o pai, antes dele - dizer que não saberia para onde iam as coisas, mas no seu coração nunca acreditaria que elas caminhavam para a ruína. Por culpa sua elas não ruiriam - e, afinal, ele não era mais que um inglês igual aos outros, silenciosamente agarrado àquilo que possuía, ciente de que nunca se separaria do que era seu sem receber algo mais ou menos equivalente em troca. O seu espírito era essencialmente equilibrado em assuntos materiais e o seu modo de encarar a situação nacional era difícil de refutar num mundo composto de seres humanos. Vissem o seu próprio caso, por exemplo! Ele era abastado. E isso prejudicava alguém? Não comia dez refeições por dia, talvez não comesse nem mesmo o que comeria qualquer pobretão. Não gastava dinheiro com vícios, não respirava mais ar, nem gastava mais água do que um mecânico ou um carregador. Na verdade, tinha algumas coisas bonitas junto de si, mas para as obter dera trabalho à mão-de-obra, e alguém tem de fazer a mão-de-obra andar. Comprava quadros, mas a Arte precisa de ser estimulada. Ele representava, na verdade, um canal acidental por onde o dinheiro corria, empregando o trabalho. Que havia a objectar nessa sua função? Na sua mão, o dinheiro movimentava-se mais rápida e utilmente do que nas mãos do Governo ou nas de um bando de sanguessugas oficiais. Quanto ao que economizava todos os anos-'isso movimentava-se tanto como o que ele não economizava, pois ia engrossar o capital de empresas tais como o Waiter Board ou o Council Staks-ou algo identicamente útil e sonoro. O Estado não lhe pagava nenhum salário por gerir o seu dinheiro e o dos outros - ele fazia tudo aquilo grátis. Nisso jazia o seu argumento mais importante contra a nacionalização: os proprietários particulares trabalhavam de graça, e era deles que partia o principal incentivo para a rápida valorização de tudo. Sob um regime de nacionalização, seria exactamente o oposto! E, num país afligido pelo oficialismo, ele sentia-se uma força.

O que particularmente o aborrecia, ao entrar naquele reduto de paz perfeita, era pensar que um bando de inescrupulosos, trusts e monopólios estavam a açambarcar o mercado de toda a espécie de géneros e levando os preços a uma altura artificial. Esses elementos abusivos do sistema individualista eram verdadeiros rufiões - provocadores de todas as perturbações - e seria um verdadeiro prazer vê-los ir por água abaixo, se não fosse o perigo de todo o edifício económico ser arrastado na queda.

Os escritórios de Cuthcott, Kingson & Forsyte ocupavam o rés-do-chão e o primeiro andar de uma casa do lado direito. E, subindo para a sua sala, Soames meditava: «É tempo de dar uma pintura nisto.»

O seu velho empregado Gradman estava sentado onde sempre se sentava, numa alta escrivaninha com incontáveis escaninhos. O escrevente estirou meio corpo na direcção dele e estendeu-lhe um contrato do corretor relativo aos preliminares da venda da casa de Bryanston Square, do espólio de Roger Forsyte. Soames agarrou a nota e disse:

- Vancouver City Stock. Hum. Está baixo, hoje.

Com uma espécie de insinuação meio irritante, o velho Gradman respondeu:

- Sim. Mas tudo está a baixar, Mr. Soames.

E o meio corpo do escrevente recolheu-se. Soames prendeu o documento junto a uma porção de outros papéis e pendurou o chapéu.

- Quero dar uma olhadela ao meu testamento e ao meu contrato de casamento, Gradman.

O velho Gradman, movendo-se até ao limite da sua cadeira giratória, tirou duas pastas do fundo de uma gaveta à esquerda. Recuperando o seu corpo, ergueu o rosto, de cabelos grisalhos, que ficara rubro com o esforço.

- Estão aqui as cópias, sir.

Soames agarrou-as, e ocorreu-lhe de repente quanto Gradman se parecia com o grande cão ruidoso que eles mantinham preso à corrente, no pátio do Shelter. Um dia em que Fleur insistiu para que o soltassem, o cão imediatamente mordeu o cozinheiro e tiveram de o matar. Se soltassem Gradman da corrente, seria que ele também morderia o cozinheiro?

Desprezando esses frívolos pensamentos, Soames mergulhou no seu contrato de casamento. Já não tocava nele havia dezoito anos, desde que refizera o seu testamento, por ocasião da morte de seu pai e do nascimento de Fleur. Queria ver se as palavras «enquanto durar o estado matrimonial» estavam escritas nele. Estavam, sim-curiosa expressão quando se atentava nela, derivada decerto da linguagem dos criadores de cavalo! Juros de quinze mil libras - que ele pagava à mulher sem deduzir a taxa de imposto sobre a renda - enquanto ela fosse sua mulher, e depois, na viuvez dum casta, expressão arcaica e posta ali para garantir a conduta futura da mãe de Fleur. No seu testamento, ele destinava-lhe um rendimento de mil libras por ano, sob as mesmas condições. Muito bem! Devolveu as cópias a' Gradman, que as agarrou sem um olhar, rodou ha cadeira, repôs os papéis na gaveta e girou depois para cima.

- Gradman! Não gosto das condições em que está o país. Há uma porção de gente completamente despida de juízo e bom senso. Queria descobrir um meio de salvaguardar Miss Fleur contra tudo o que possa acontecer.

Gradman escreveu o algarismo «2» no seu bloco de papel,

- Sim - disse ele. - As condições são péssimas.

- As garantias comuns contra adiantamentos não servem para ò caso.

- Não - disse Gradman.

- Imagine se esses trabalhistas assumem o Poder... que horror! Essa gente cheia de ideias fixas é a mais perigosa. Olhe para a Irlanda!

- Ah! - disse Gradman.

- Imagine se eu depositar tudo em nome dela, reservando o usufruto para mim, eles não poderiam tirar-me nada além dos juros... a menos, é claro, que alterem a lei.

Gradman moveu a cabeça e sorriu.

- Ah! - disse ele. - Eles não farão isso!

- Não sei - murmurou Soames. - Não confio neles.

- Mas leva dois anos, sir, para qualquer coisa ter validade contra disposições testamentárias.

Soames fungou. Dois anos! Ele tinha apenas sessenta e cinco anos!

- Isso não é o ponto. Prepare uma minuta de transferência de todas as minhas propriedades para os filhos de Miss Fleur, em partes iguais, com usufruto primeiro para mim e depois para ela, sem lhe conferir nenhum direito de fazer adiantamentos, e uma cláusula segundo a qual, se acontecer qualquer coisa que a prive dos rendimentos do usufruto, novos rendimentos lhe sejam assegurados pelos testamenteiros, à absoluta discrição deles.

Gradman coçou-se.

- Acho muito extremado, para a sua idade, sir. O senhor perde todo o controle.

- Isso é comigo - disse Soames rispidamente.

Gradman escreveu num pedaço de papel «Usufruto, adiantamentos, privação rendimentos, absoluta discrição» e disse:

- Quem são os testamenteiros? Há o jovem Mr. Kingson. é um rapaz de confiança.

- Sim. pode servir para um deles, tenho de arranjar três. Não há nenhum Forsyte, actualmente, que me mereça confiança.

- Nem Mr. Nicholas filho? Ele é advogado. Temos-lhe dado alguns casos

- Esse não é capaz de nenhuma ousadia.

Um sorriso exsudou pelo rosto de Gradman, engordado por incontáveis costeletas de carneiro - o sorriso de um homem que passa o dia sentado.

- O senhor não pode esperar isso, na idade dele, Mr. Soames.

- Porquê? Que idade tem ele? Quarenta?

- Sim, ainda é muito novo.

- Bem, então pode também tomar nota do nome de Nicholas filho. Mas quero que o terceiro testamenteiro seja alguém que tome um interesse pessoal pelo caso. E não vejo ninguém nessas condições.

- E Mr. Valerius, já que ele voltou a residir na Inglaterra?

- Val Dartie? Com aquele pai?

- Bem - disse Gradman. - O pai já morreu há sete anos... e, depois, as disposições do testamento serão tão estritas que ele não poderá...

- Não - disse Soames -, não gosto da aproximação. Ergueu-se, e Gradman disse de súbito:

- Se eles impuserem um embargo nos capitais, agirão à revelia dos testamenteiros, sir. E o senhor fica na mesma. Eu tornaria a pensar nisso, se fosse o senhor.

- Isso é verdade - disse Soames. - É o que vou fazer. Que é que você fez a respeito daquela comunicação de ruína em Vere Street?

- Ainda não fiz nada. A litigante é muito velha. Não há-de querer mudar-se na idade em que está.

- Não sei. O espírito de inquietação ataca toda a gente.

- De qualquer forma, sir, só tenho encarado as coisas de um modo geral. Ela tem oitenta e um anos.

- O melhor é mandar a intimação - disse Soames - e ver o que ela diz. Oh! E Mr. Timothy? Está tudo em ordem, em caso de...

- O inventário já está todo pronto, sir. Os móveis e quadros já foram avaliados, sentirei muito quando ele se finar! Valha-me Deus! Já faz bastante tempo que eu vi Mr. Timothy pela primeira vez!

- Não se pode viver sempre - disse Soames, agarrando o chapéu.

- Não - concordou Gradman -, mas, mesmo assim, será uma pena... o último da irmandade! Devo prosseguir naquele caso de prejuízos em Old Compton Street?

- Prossiga. Tenho de acompanhar Miss Fleur e quero apanhar o comboio das quatro horas. Até logo, Gradman.

- Até logo, Mr. Soames. Espero que Miss Fleur.

- Vai muito bem, mas passeia de mais!

- Sim - disse Gradman -, ela é jovem.

Soames saiu cogitando: «Velho Gradman! Se ele fosse mais novo, punha-o como testamenteiro. Não há ninguém de quem eu possa esperar que tome um real interesse.»

E, saindo da biliosa e matemática exactidão, da absurda paz daquela represa, pensou de repente: «Enquanto durar o estado matrimonial.» E depois: «Porque não excluem antes sujeitos da marca de Profond, em vez de uma porção de alemães laboriosos?» E sentiu-se surpreso com a intensidade do mal-estar que um sentimento tão antipatriótico lhe provocava. Mas assim era! Ninguém pode conseguir um instante de paz verdadeira. Há sempre qualquer coisa às costas de uma pessoa! E encaminhou-se para Green Street.

Duas horas mais tarde, segundo o seu relógio, Thomas Gradman, desenrolando a cadeira giratória, fechou a última gaveta da sua mesa, e, pondo um molho de chaves no bolso do colete - tão grande que lhe fazia uma protuberância do lado do fígado-, escovou com a manga do casaco a sua velha cartola, agarrou o guarda-chuva e desceu. Baixo, grosso, inteiramente abotoado no seu casaco antiquado, caminhou em direcção ao mercado de Covent Garden. Nunca perdia aquele passeio diário, a caminho do metropolitano para Highgate. E às vezes realizava de passagem algumas transacções com legumes e frutas. Gerações podiam nascer, os chapéus podiam mudar, guerras podiam ser feridas, Forsytes desvaneciam-se, mas Thomas Gradman, fiel e grisalho, tinha de dar o seu passeio diário e comprar as suas hortaliças quotidianas. Os tempos já não eram o que já haviam sido, seu filho perdera uma perna, já não davam aquelas cestinhas trançadas, tão bonitas, para levar dentro as compras. Aqueles comboios subterrâneos eram uma boa coisa - não podia queixar-se, a sua saúde era boa, levando em conta a idade que tinha, há cinquenta e quatro anos que trabaLhava na Lei e agora recebia umas oitocentas libras por ano. Mas sentia-se apreensivo ultimamente, porque o seu ganho vinha quase todo de comissões sobre alugueres, e, com todas essas vendas de propriedades dos Forsyte, as suas comissões haveriam de minguar muito. Além disso, o custo da vida estava cada vez mais alto, mas não adiantava preocupar-se, «o bom Deus fez-nos a todos», como tinha o hábito de dizer. E, por falar em propriedades de imóveis em Londres - ele não sabia o que diriam Mr. Roger ou Mr. James se vissem as suas casas vendidas deste jeito. Parecia uma demonstração de falta de fé, mas Mr. Soames era medroso. Esperar uma vida, e esperar depois pela maioridade de entes ainda por nascer - já é muito. Aliás, a saúde dele era maravilhosa, Miss Fleur era uma criaturinha linda - breve casaria -, mas muita gente não tem filhos, hoje em dia. Ele tivera o seu primeiro filho aos vinte e dois anos, e Mr. Jolyon, que casara quando ele estava em Cambridge, vira nascer o seu filho no mesmo ano. Que lindo era Peter! Aquilo fora cerca de 1869, muitos anos antes de o velho Mr. Jolyon - grande entendido em propriedades imobiliárias - ter retirado o seu testamento das mãos de Mr. James. Naqueles tempos eles andavam a comprar casas para um lado e para outro e não havia nada desses espantalhos modernos para assustar os capitalistas. Os pepinos custavam dois pence, e um melão - os melões de outro tempo, que enchiam a boca de água! Fazia cinquenta anos que ele entrara no escritório de Mr. James, e Mr. James dissera-lhe: «Agora, Gradman, você é apenas um pequeno empregado, mas cuide em si e quando menos esperar já está a ganhar quinhentas libras por ano.»

E ele cuidara em si, e temera a Deus, e servira os Forsyte, e comera a sua dieta vegetariana na refeição da noite. E, tendo comprado um exemplar do John Buli - não que ele aprovasse aquele jornal extravagante -, entrou no metropolitano com o seu singelo embrulho de papel pardo e penetrou nas entranhas da cidade.

 

A VIDA PRIVADA DE SOAMES

No seu caminho para Green Street, Soames lembrou-se de que deveria ir à loja de Dumetrius, para indagar acerca das possibilidades do velho Crome dos Bolderby. Quase valera a pena arrostar-se a guerra para ter o Crome dos Bolderby à venda. O velho Bolderby morrera, o filho e o neto haviam sido mortos em combate, e o primo, que recebera a herança, tratava de vendê-la, devido às condições da Inglaterra, diziam uns, devido à asma de que sofria, diziam outros.

Se Dumetrius já lançara mão do quadro, o seu preço deveria estar proibitivo, e Soames precisava justamente de descobrir se Dumetrius já o conseguira, antes de tentar obtê-lo para si. Evidentemente que procurou o judeu sob o pretexto de discutir as possibilidades dos Monticelli, agora que era moda uma pintura que não fosse nada mais que pintura, e o futuro dos John, aproveitando para dar uma olhadela aos Buxton Knight. E só ao sair disse:

- Afinal, vendem ou não vendem o velho Crome dos Bolderby?

Com um profundo orgulho de superioridade racial, tal como Soames o calculara, Dumetrius respondeu:

- Oh! Eu o apanharei, Mr. Forsyte!

O seu bater de pálpebras fortificou Soames na resolução de escrever directamente ao herdeiro Bolderby, sugerindo-lhe que a única maneira digna de negociar um Crome antigo era evitar negociantes.

Disse portanto «Bem, até logo» e deixou o avisado Dumetrius.

Em Green Street, informaram-no de que Fleur saíra e não voltaria antes da hora de dormir. Pretendia ficar toda a noite em Londres. Subiu decepcionado para um táxi e apanhou o comboio.

Chegou a casa pelas seis horas. O ar estava pesado, ameaçando trovoada. Apanhando a sua correspondência, subiu ao quarto de vestir, para se limpar da poeira de Londres.

Correspondência sem interesse. Um recibo, uma conta de compras feitas por Fleur, uma circular acerca de uma exposição de águas fortes.

E uma carta que começava assim:

 

   Sir,

Sinto-me no dever...

Devia ser um pedido, ou qualquer coisa igualmente desagradável. E olhou a assinatura. Não havia lá nenhuma. Incredulamente, virou a página e examinou cada um dos cantos da carta. Como não era homem público, Soames nunca recebera uma carta anónima. e o seu primeiro impulso foi rasgá-la como uma coisa perigosa. O seu segundo impulso foi ler o papel - coisa ainda mais perigosa.

   Sir,

Sinto-me no dever de o informar de que, apesar de não ser de minha conta, a sua senhora anda aí com um estrangeiro...

 

Ao atingir esta palavra, Soames parou mecanicamente e examinou o carimbo. Tanto quanto lhe foi possível descobrir através do impenetrável carimbo com que o correio inutilizara o selo, havia qualquer coisa como «sea» no fim e um «t» pelo meio. Chelsea" Não! Battersea? Talvez! E continuou a ler:

 

Esses estrangeiros são sempre os mesmos. Saqueiam tudo. O tal encontra-se com sua senhora duas vezes por semana. Sei isso por ciência própria - e corta o coração ver um inglês como o senhor num tal papel. Treste atenção ao caso. e verifique se não estou a dizer a verdade. 'Não me envolveria nisto se não estivesse imiscuído nele um estrangeiro imundo. Seu criado...

 

A sensação que invadia Soames ao deixar cair a carta era a mesma que o possuiria se, entrando no seu quarto de dormir, encontrasse a cama cheia de escaravelhos pretos. O anonimato da denúncia dava ao momento uma fremente obscenidade. E o pior do caso era que a sua ameaça sempre lhe estivera presente no espírito desde a noite de domingo em que Fleur, apontando para Prosper Profond, que caminhava furtivamente pelo relvado, dissera: «Gatarrão vagabundo!» Não fora em conexão com essa suspeita que, hoje mesmo, ele verificara o seu testamento e o seu contrato matrimonial? E agora aquele rufião anónimo, sem aparentemente tirar qualquer lucro daquilo - salvo dar saída ao seu despeito contra estrangeiros -, arrancara a suspeita da obscuridade em que ele desejara e quisera que ela permanecesse. Obrigá-lo a uma convicção dessas, na sua idade, acerca da mãe de Fleur! Apanhou o papel do tapete, rasgou-o ao meio, e, vendo que a carta ainda se mantinha unida pela folha das costas, parou de rasgar e releu. Tomava naquele momento uma das resoluções definitivas da sua vida. Não se deixaria forçar a um outro escândalo! Não! Fosse qual fosse o modo por que decidisse regular aquele assunto - e ele requeria as mais detidas e cuidadosas considerações -, não faria nada que pudesse prejudicar Fleur. Tomada essa resolução, o seu espírito recobrou a calma e ele iniciou as suas abluções. As mãos tremiam-lhe enquanto as enxugava. Um escândalo não poderia ser dado, mas algo deveria ser feito para pôr um fim a tais coisas! E ele dirigiu-se para o quarto da mulher e parou, olhando em torno de si. Não lhe ocorrera sequer a ideia de procurar qualquer prova que a incriminasse e com a qual a pudesse ameaçar. Não devia haver nada - ela era muito prática e expedita. A ideia de a mandar vigiar foi repelida antes de aparecer - lembrava-se muito bem da sua prévia experiência disso! Não! Não tinha nada além daquela suja carta de um rufião anónimo, cuja impudente intrusão na sua vida privada tão profundamente o ofendia. Era repugnante fazer uso daquilo, mas tinha de ser. Que sorte Fleur não estar em casa naquela noite! E uma pancada na porta livrou-o das suas penosas cogitações.

- Mr. Michael Mont, sir, está na sala. O senhor pode recebê-lo?

- Não - disse Soames. - Sim. Vou descer.

Qualquer coisa servia, contanto que lhe afastasse o espírito daqueles pensamentos durante alguns minutos!

Michael Mont, metido num fato de flanela, estava na varanda, fumando um cigarro. Atirou-o fora quando Soamos apareceu e passou a mão pelos cabelos.

O sentimento de Soames em relação àquele moço era singular. Era sem dúvida um rapaz maluco, um irresponsável, de acordo com o padrão antigo, mas tinha qualquer coisa de agradável no extraordinário entusiasmo com que emitia as suas opiniões.

- Entre - disse ele. - Já tomou chá? Mont entrou.

- Pensei que Fleur já havia voltado, sir. Mas estou contente por não a encontrar em casa. O facto é que estou terrivelmente apaixonado por ela, tão terrivelmente apaixonado que achei melhor que o senhor soubesse disso. Tal comunicação está fora da moda, é claro, mas pensei que o senhor me perdoaria o anacronismo. Falei com o meu pai, e ele disse que, se eu me estabelecer, se me instalar, ele me transferirá tudo. Na verdade, aprovou inteiramente a ideia. Falei-lhe no seu Goya, sir.

- Oh - disse Soames, expressivamente seco. - Então ele aprovou?

- Sim, sir. E o senhor aprova? - Soames sorriu debilmente. - O senhor compreende - prosseguiu o rapaz, torcendo o chapéu de palha, enquanto os cabelos, as orelhas e as sobrancelhas pareciam ficar de pé, de excitação -, quando a gente vem da guerra, não pode evitar ter pressa.

- Pressa em... casar... e em dissolver o casamento depois - disse Soames lentamente.

- Não com Fleur, sir. Imagine-o, se o senhor fosse eu!

Soames pigarreou Ligeiramente. Aquela maneira de apresentar as coisas era bastante expedita.

- Fleur é muito moça - disse ele.

- Oh, não, sir Nós hoje em dia somos espantosamente velhos. O meu pai parece um bebé perfeito, o seu aparelho de pensamento não mudou num cabelo. Mas é um baronight, é claro, e isso atrasa-o.

- Baronight - repetiu Soames. - Que é isso?

- Baronete... serei baronete algum dia, mas compensarei isso, sir.

- Pois vá, e compense - disse Soames. O jovem Mont implorou:

- Oh, não, sir. Tenho de ficar a rondar em torno dela, senão não terei a menor probabilidade. Creio que o senhor deixa que Fleur faça sempre o que quer.

- Com efeito! - disse Soames, gelado.

- O senhor, na verdade, não está a complicar a situação, pois não?

E o rapaz parecia tão infeliz que Soames sorriu.

- Vocês podem pensar que são muito velhos - disse Soames -, mas parecem-me extremamente jovens. Vociferar a respeito de tudo não é prova de maturidade.

- Muito bem, sir. Devolvo ao senhor a sua idade. Mas, para lhe mostrar que estou a levar a coisa a sério, comunico-lhe que arranjei um emprego.

- Estimo saber isso.

- Trabalho com um editor. O meu pai dá as garantias. Soames tapou a boca com a mão. Estivera prestes a dizer:

«Deus proteja o editor!» E os seus olhos cinzentos perscrutavam o agitado moço.

- O senhor não me desagrada, Mr. Mont, mas Fleur é tudo para mim. Tudo... compreende?

- Compreendo, sir. Mas ela também é tudo para mim.

- Isso pode ser. Estimo que me tenha falado, de qualquer modo. E agora, creio que nada mais há a dizer.

- Compreendo que o resto depende dela, sir.

- E espero que dependa ainda por muito tempo.

- O senhor não é animador, sir - disse Mont de repente.

- Não - retorquiu Soames. - A minha experiência da vida não me ensinou a casar as criaturas à pressa. Boa noite, Mr. Mont. Não falarei a Fleur em nada do que me disse.

- Oh - murmurou Mont, muito pálido. - Sou capaz de fazer saltar os miolos por causa dela. E ela sabe disso muito bem.

- Creio que sim.

E Soames estendeu a mão. Um olhar perdido, um suspiro forte, e logo depois o som da motocicleta do rapaz evocou-lhe visões de nuvens de poeira e ossos quebrados.

«A nova geração!», exclamou ele sozinho, saindo para o relvado. Os jardineiros tinham andado por lá e sentia-se um cheiro de relva recentemente cortada - o ar pesado mantinha os cheiros todos mais próximo da terra. O céu estava de um tom purpurino, os álamos negros. Dois ou três barcos passavam no rio, com os remadores apressando-se para chegarem a um abrigo antes da tempestade. «Três dias de bom tempo», pensou Soames, «e depois um temporal!» Onde estaria Annette? Com aquele sujeito, pelo que ele sabia. Afinal, ela era uma mulher nova! Impressionado com a profunda caridade desse pensamento, entrou na estufa de Verão e sentou-se. A verdade era que Fleur tanto valia para ele que a mulher valia-lhe muito pouco - pouquíssimo. Francesa, nunca passara de uma amante, e ele cada dia ficava mais indiferente a essa espécie de coisas! Era engraçado como, com todo o seu cuidado visceral por empregos seguros de capital, Soames sempre depunha todos os seus ovos emocionais na mesma cesta! Primeiro Irene - agora Fleur. E sentia-se obscuramente consciente daquilo, consciente desse curioso perigo. Aquilo arrastara-o outrora a um escândalo, mas agora - agora vinha justamente salvá-lo de um novo escândalo. Ele preocupava-se de mais com Fleur para admitir que sobreviesse novo escândalo. Se pudesse agarrar o correspondente anónimo, ensiná-lo-ia a não trazer o lodo para a superfície da água que ele fazia questão de manter estagnada! Um relâmpago longínquo, um ruído surdo, e grandes gotas de chuva esmagaram-se contra o tecto que o cobria. E ele mantinha-se indiferente, desenhando com a ponta do dedo na superfície empoeirada de uma mesa rústica. O futuro de Fleur! «O que quero é preparar um futuro risonho para ela», pensava o pai. «Nada mais tem importância, na minha idade.»

Que negócio solitário é a vida! Por mais que uma pessoa faça, nunca é senhor de si mesmo! Se se desfaz de uma, logo vem outra tomar o lugar vazio! Nunca se está seguro! Ergueu-se e afastou uma rosa vermelha que se desviara do grande ramo que bloqueava a janela. As flores nasciam e desfolhavam-se - a Natureza era bem estranha! O trovão rugia e estalava, caminhando por sobre o rio, e os pálidos relâmpagos deslumbravam-lhe os olhos. Os cimos dos álamos pareciam agudos e densos contra o céu, e uma pesada cortina de água envolvia e velava a casinhola onde ele estava, indiferente e pensativo.

Quando o temporal acabou, Soames deixou o seu retiro e caminhou pelo caminho ensopado até à margem do rio.

Viam-se dois cisnes, que se tinham abrigado sob os juncos. Ele conhecia bem aquelas aves, e ficou a olhar a dignidade dos seus pescoços curvos, a cabeça tão semelhante à de uma cobra, «Não tem dignidade o que eu preciso de fazer!» E tinha de tratar disso já, antes que o pior acontecesse. Annette já deveria estar de volta - donde quer que tivesse andado-. porque já estava perto da hora do jantar. E, vendo aproximar-se o momento em que se defrontaria com ela, aumentavam as dificuldades de escolher o que diria e como o diria. Um novo e pungente pensamento lhe ocorreu. Imagine-se se ela quisesse a sua liberdade para casar com o tal sujeito! Bem, se ela a quisesse, ele não lha daria. Não casara com ela para isso. E a imagem de Prosper Profond apareceu diante dele, animando-o. Não era homem capaz de casar! Não, não! E a cólera substituiu esse pavor momentâneo. «O melhor que ele faz é sair do meu caminho», pensou. Aquele homem representava... mas que representava Prosper Profond? Nada que tivesse realmente uma significação. E ao mesmo tempo, representava bastante, neste mundo - a imoralidade desencadeada, a desilusão do vagabundo. -Annette apanhara dele a expressão «Je m'en fiche!» Um fatalista! Um continental, um cosmopolita, um produto da época! Se havia condenação mais completa, Soames não a conhecia.

Os cisnes tinham voltado a cabeça e estavam a olhá-lo, à distância. Um deles soltou um pequeno silvo, agitou a cauda. virou-se como se respondesse a um desafio, depois continuou a

nadar. O outro seguiu-o. Os corpos brancos, os pescoços estendidos, saíram-lhe da vista, e ele voltou para casa.

Annette estava na' sala de estar, já preparada para o jantar, e ele pensou enquanto subia a escada: «Correcto é quem correctamente procede.» Correcto! Excepto para trocar comentários acerca das cortinas da sala e da tempestade, não houve praticamente nenhuma conversa durante a refeição, em que se distinguia exactidão da quantidade e perfeição da qualidade. Soames não bebeu. Seguiu depois a mulher à sala de estar, e encontrou-a a fumar um cigarro sentada no sofá que ficava entre as duas venezianas. Ela estava reclinada, com um vestido preto decotado, as pernas cruzadas, os olhos azuis meio fechados. Um fumo azulado escapava-lhe por entre os lábios vermelhos e cheios, uma rede cingia-lhe os cabelos castanhos. Calçava finíssimas meias de seda e sapatos de salto muito alto, que lhe dificultavam o andar. Um lindo ornato para qualquer sala! Soames, que apertava a carta meio rasgada, com a mão profundamente enfiada no bolso de lado do dinner-jacket, disse:

- Vou fechar a janela. Está a entrar humidade.

Fechou-a e ficou um momento a fitar um David Cox que enfeitava a parede próxima, pintada de creme.

Em que estaria ela a pensar? Ele nunca compreendera mulher nenhuma em toda a sua vida - excepto Fleur... e Fleur, nem sempre! O coração batia-lhe apressado. Mas, se ele queria fazer o que tencionava, o momento era aquele. Voltando as costas ao David Cox, mostrou a carta amarrotada:

- Recebi isto.

Os olhos dela abriram-se, fitaram-no e endureceram. Soames estendeu-lhe a carta.

- Está rasgada, mas pode ler.

E voltou a olhar o David Cox. uma marinha de tons muito bons, mas sem movimento bastante. «Queria saber que é que aquele sujeito está a fazer neste momento», pensava ele. «Creio que se espantaria se me visse agora.» Com o canto do olho espiava Annette, que segurava rigidamente a carta. Os olhos dela moviam-se de lado para lado sob os cílios escurecidos e os olhos escurecidos também.

Deixou cair a carta, .soltou um ligeiro assobio, sorriu e disse:

- Imundo!

- Concordo consigo - disse Soames. - É degradante. É verdade?

Ela mordeu o lábio vermelho.

- E se fosse? Era descarada!

- É tudo o que tem a dizer?

- Não.

- Então fale!

- Qual é a vantagem de falar sobre isso?

- Então você admite a verdade disso? - perguntou Soames gelidamente.

- Não admito nada. Você é um louco em perguntar. Um homem como você não faz perguntas. É perigoso.

Soames deu uma volta pela sala, dominando a sua cólera crescente.

- Você lembra-se - perguntou, erguendo-se em frente dela - do que era quando casei consigo? A caixa de um restaurante.

- E você lembra-se de que eu não tinha metade da sua idade?

Soames evitou o duro cruzar dos olhos dela e voltou aa David Cox.

- Não quero trocar palavras. Exijo que você liquide essa... amizade. Sou de opinião que isso prejudicará imensamente Fleur.

- Ah... bem!

- Sim - disse Soames obstinadamente. - Fleur. Ela é tanto sua filha como minha.

- Que bondade a sua em admitir isso!

- Você vai fazer o que eu disse?

- Recuso-me a discutir o caso.

- Então terei de obrigá-la. Annette sorriu.

- Não, Soames - disse ela. - Você é impotente contra isso. Não diga coisas que pode depois lamentar. - A cólera entumeceu as veias na testa de Soames. Ele abriu a boca para dar saída a essa emoção, e não pôde. Annette continuou: - Não haverá mais dessas cartas, prometo-lhe. E isso é bastante.

Soames debatia-se contra o sentimento de que aquela mulher estava a tratá-lo como a uma criança - aquela mulher que merecia nem ele sabia o quê.

- Quando duas pessoas são casadas e vivem como nós vivemos, Soames, o melhor que elas fazem é guardar um silêncio recíproco. Há coisas que a gente não deve expor à zombaria dos outros. Você deve ficar calado, pois. Não por mim... mas por você próprio. Está a ficar velho... e eu ainda não comecei a envelhecer. E você tornou-me muito prática...

Soames, que chegara ao limite do choque, repetiu estupidamente:

- Exijo que você acabe com essa amizade.

- E se eu não acabar?

- Então... então excluí-la-ei do meu testamento.

Algo lhe disse que aquilo não era a expressão adequada para o momento.

- Você ainda viverá por muito tempo, Soames - retorquiu Annette, rindo.

- Você... você é uma mulher ruim - disse Soames de repente.

Annette encolheu os ombros.

- Não penso assim. A vida na sua companhia matou muitas coisas em mim, é verdade, mas não sou uma mulher ruim. Sou sensível... e nada mais. E assim o julgará você, quando mais tarde pensar nisto tudo.

- Vou procurar esse homem e entender-me com ele.

- Mon cher, você é engraçadíssimo. Você não quer saber de mim, sempre teve de mim tudo o que quis, e quer que todo o resto da minha pessoa fique morto. Não admito nada, mas não vou ficar morta, Soames, na minha idade. De forma que o que você faz de melhor é calar-se, como lhe digo. Por mim, nunca darei escândalo. Nunca. E agora, não direi mais nada, faça você o que fizer.

Ergueu-se, apanhou uma novela francesa numa mesinha e abriu-a. Soames olhava-a, silenciado pelo tumulto dos seus sentimentos. E veio-lhe o pensamento de que aquele homem estava quase a obrigá-lo a desejá-la.

Aquilo era uma revelação nas relações de ambos, desvendada a alguém muito pouco dado a filosofia introspectiva. Sem dizer mais nenhuma palavra, encaminhou-se para a galeria dos quadros. «Isto acontece a quem se arrisca a casar com uma francesa! E, apesar disso, sem ela eu não teria Fleur!» Servira aos seus propósitos. «Ela tem razão», continuou a pensar. «Não posso fazer nada. E eu nem mesmo sei se há alguma coisa de verdade nisto tudo.» O instinto de autodefesa ordenava-lhe que fechasse o cerco em torno de si, para matar o fogo por falta de ar. Enquanto não se acredita que exista qualquer coisa, ela não existe.

Naquela noite, entrou no quarto da mulher. Ela recebeu-o do modo mais natural, como se não se houvesse passado nenhuma cena entre ambos. E ele voltou para o seu próprio quarto com um curioso sentimento de paz. Se alguém não procurar ver, não vê. E ele não queria ver - no futuro não veria nada. Não ganharia nada com aquilo - nada! Abrindo uma gaveta, apanhou o sachet de lenços e uma fotografia emoldurada de Fleur. Depois de a contemplar um instante, desviou o retrato da filha, e lá estava outro retrato - aquela velha fotografia de Irene. Um mocho piou enquanto ele ficou à janela olhando o retrato. O mocho piava, as rosas vermelhas pareciam ficar com uma cor mais profunda e subia até ele um aroma de flores de limeira. Deus do Céu! Como aquilo fora diferente!

Paixão! Lembranças! Poeira!

 

JUNE AUXILIA

Um escultor eslavo, que residira durante algum tempo em New York, egoísta, paupérrimo, estava uma certa tarde no estúdio de June Foreyte, que ficava na margem do Tamisa, em Chiswick. Na tarde, pois, de 6 de Julho, Boris Strumo-lowski - de quem vários trabalhos vinham sendo expostos ali, pois eram avançados de mais para serem expostos em qualquer outro lugar - começara bem, com aquele ar longínquo e silencioso que se casava maravilhosamente com o seu rosto jovem, redondo, de maçãs salientes, emoldurado em cabelos louros, cortados como os de uma rapariga. June já o conhecia há três semanas e ele ainda lhe parecia a principal encarnação do génio e a esperança do futuro: uma espécie de Estrela do Oriente que se extraviara por um Ocidente incapaz de o apreciar. Até àquela noite, ele reduzira as suas demonstrações de conversa a recordações dos Estados Unidos, cuja poeira ele acabava de sacudir dos pés - país, na sua opinião, tão completamente bárbaro que não lhe comprara praticamente nada, e até o mantivera sob imediata vigilância da polícia, um país, dizia ele, sem raça própria, sem liberdade, igualdade ou fraternidade, sem princípios, sem tradições, sem gosto - numa palavra - sem alma. Deixara-o de motu próprio, e dirigira-se para o outro único país onde poderia viver bem. June, por azar, descobrira-o num dos seus poucos momentos de folga e detivera-se diante das suas criações - assustadoras, mas poderosas e simbólicas depois de compreendidas. E ele, aureolado pelos cabelos cor de ouro, que o tornavam semelhante a uma figura de um dos primitivos italianos, absorvido no seu génio com exclusão de tudo o mais - o único sinal, é claro, pelo qual se pode distinguir o génio autêntico-, nem por isso deixava de ser um «desvalido», agitando o coração cálido de June, com exclusão quase de Paul Post. E ela começou a tomar providências para desocupar a sua galeria, com o desígnio de ocupá-la com as obras-primas de Stru-molowski. Imediatamente encontrara obstáculos: Paul Post escoiceara e Vospovitch atormentara-a. Com toda a ênfase do génio - qualidade que ela não lhes negara ainda-, pediram-lhe mais uma demora de seis semanas de exposição na galeria.

A corrente americana, fluindo ainda internamente, não demoraria a fluir para fora. E a corrente americana era o único direito deles, a sua única esperança, a sua salvação - desde que, neste «estúpido» país, ninguém se preocupa com a Arte. June recuara diante da demonstração. Afinal, Boris não se importaria que eles beneficiassem do afluxo da corrente americana, que ele tão violentamente desprezava.

Naquela noite ela expusera isso mesmo a Boris, sem ninguém presente, excepto Hannah e Hobdey. a medievalista, e Jimmy Portugal, director do Neo-Artist. June fazia-lhe a sua exposição com aquela ingénua confiança que a convivência constante com o mundo neo-artístico não conseguira estancar na sua natureza ardente e generosa. E não havia mais de dois minutos que ele quebrara o seu silêncio messiânico, quando June começou a agitar os olhos azuis de um lado para outro, como um gato que agita a cauda. Ele dizia: «Isto é bem característico da Inglaterra, o país mais egoísta do mundo, o país que suga o sangue das outras nações, que destrói o cérebro e o coração dos Irlandeses, dos Hindus, dos Egípcios, dos Boers, dos Birmanos, de todas as melhores raças do mundo. Taurina, hipócrita Inglaterra!» Era exactamente isso que ele esperara, vindo para tal país, onde o clima se definia pelo fog e os habitantes eram todos comerciantes, inteiramente cegos à Arte, afundados no lucro e no mais grosseiro materialismo.

Consciente de que Hannah Hobdey murmurava «Veja só!

Veja só!» e que Jimmy Portugal sufocava o riso, June ficou rubra e subitamente explodiu:

- Então porque foi que você veio para cá? Não o chamámos. A pergunta representava uma tão estranha variante daquilo

que ele esperava dela que Strumolowski estendeu a mão e agarrou um cigarro.

- A Inglaterra nunca chama um idealista - disse ele.

Mas algo primitivamente inglês fora abalado em June e o remoto sentimento de justiça do velho Jolyon erguera-se dentro dela.

- Você vem para cá viver à nossa custa, e ainda por cima nos diz desaforos. Se acha que isso está certo, eu não acho.

E ela descobria agora o que muitos outros já haviam descoberto antes: a espessura do couro sob o qual a sensibilidade do génio fica em geral resguardada. A face ingénua e jovem de Strumolowski transformou-se na encarnação do escárnio.

- Ninguém vive à custa de ninguém. Tomamos apenas o que nos pertence, um décimo do que nos pertence. A senhora vai arrepender-se do que disse, Miss Forsyte.

- Oh, não - gritou June. - Não me arrependerei.

- Ah, nós os artistas conhecemos isso muito bem... a senhora procura tirar de nós tudo o que pode. Eu por mim não quero nada de si. - E atirou para o ar o fumo dos cigarros de June.

A decisão, num sopro gelado, ergueu-se no turbilhão de vergonha que a possuía.

- Muito bem. então pode levar as suas coisas daqui.

E, quase no mesmo instante, ela pensou: «Pobre rapaz! Mal tem uma água-furtada para morar e não dispõe sequer do dinheiro para um táxi. E na frente dessa gente. É positivamente uma miséria!»

O jovem Strumolowski abanou violentamente a cabeça, mas os seus cabelos espessos, lisos, unidos como uma bandeja de ouro, não se desmancharam.

- Posso viver do nada-disse ele asperamente. - Já o tenho feito, por amor da minha arte. São vocês, burgueses, que nos obrigam a gastar dinheiro.

A palavra feriu June como uma pedrada nas costas. Depois de tudo o que ela fizera pela arte, depois de toda a sua identificação com a arte e os seus filhos desprotegidos!

E ela lutava por encontrar as palavras adequadas, quando a porta se abriu e a sua austríaca murmurou:

- Uma moça, gnadiges Fráukin.

- Onde?

- Na salinha de refeições.

Com um olhar para Boris Strumolowski, para Hannah Hobdey e Jimmy Portugal, June não disse nada e saiu, procurando não se exaltar. Entrando na «salinha de refeições», viu que a moça era Fleur - muito bonita, apesar de pálida. Naquele momento de desencanto, uma «desvalida)) da sua própria raça era bem-vinda a June, tão homeopática por instinto.

A pequena deveria ter vindo, naturalmente, por causa de Jon, ou, senão, pelo menos para lhe arrancar qualquer coisa. E June compreendeu mais uma vez que a única coisa suportável deste mundo era auxiliar alguém.

- Então você lembrou-se de vir - disse ela.

- Sim. Que casinha bonitinha a sua! Por favor, não se prenda comigo, se tem outros convidados.

- Absolutamente - disse June. - Quero mesmo deixá-los algum tempo a cozer no seu próprio caldo. Veio para falar acerca de Jon?

- Disse que nós deveríamos ser informados de tudo. Pois bem, eu já descobri o que houve.

- Oh - disse June, empalidecendo. - Não é uma história bonita, pois não?

Tinham-se postado de um lado e do outro da mesinha onde june tomava as suas refeições. Um vaso, sobre ela, estava cheio de papoulas da Islândia. A pequena levantou a mão e tocou-as com o dedo enluvado. E June agradou-se de repente do vestido de Fleur, folhado nos quadris, estreito nos joelhos, de uma cor encantadora, azul de linho.

«Ela constitui um quadro», pensou June. A sua salinha, com as paredes caiadas, o chão e a lareira de tijolos rosa antigo, as rótulas através das quais o sol ainda luzia, tinha-se tornado encantadora, animada por aquele lindo vulto, de rosto branco, embora levemente preocupado!

E June recordou com repentina intensidade como ela própria havia sido bonita nos velhos tempos em que o seu coração fora dado a Philip Bosinney, aquele amante morto, que rompera com a noiva para destruir o casamento de Irene com o pai daquela rapariga. Seria que Fleur também conhecia esse facto?

- Bem - disse ela -, que é que você vai fazer? Só alguns segundos depois Fleur respondeu:

-- Não quero que Jon sofra. Desejo vê-lo apenas uma vez para acabar com tudo.

- Quer realmente acabar com tudo?

- Que hei-de eu fazer?

De repente, a moça pareceu a June intoleràvelmente destituída de espírito.

- Talvez tenha razão - murmurou. - Sei que meu pai .também pensa assim, mas eu nunca o faria. Não posso deitar fora certas coisas.

- Podem pensar que estou apaixonada - retorquiu Fleur.

- E não o está?

Fleur encolheu os ombros. «Eu devia ter previsto isto» pensou June. «Ela é filha de Soames. E, apesar disso, ele...»

- Para que é então que precisa de mim? - perguntou ela com uma espécie de repulsa.

- Será que eu poderei avistar-me amanhã com Jon, aqui, quando ele for para a casa de Holly? Se lhe mandar um bilhete, ele passará por aqui. E talvez mais tarde, se anunciar calmamente em Robin Hill que está tudo acabado, eles não precisarão de contar a Jon a história da mãe dele.

- Muito bem! - disse abruptamente June. - Vou escrever, e você pode pôr a carta no correio. Amanhã, às duas e meia. Eu não estarei em casa.

E sentou-se na pequena escrivaninha que ocupava um dos cantos. Quando ela levantou os olhos depois do bilhete escrito, Fleur ainda tocava as papoulas com o seu dedo enluvado.

June colou o selo na carta.

- Bem, cá está. Se não está apaixonada, é evidente que nada mais há a dizer. Jon tem sorte.

Fleur recebeu o envelope.

- Muitíssimo obrigada!

«Criatura gelada!», pensou June. Jon, filho de seu pai, amar e não ser amado pela filha de Soames! Era humilhante!

- É tudo?

Fleur fez um gesto de assentimento e os folhos da sua saia agitaram-se enquanto ela deslizava em direcção à porta.

- Adeus!

- Adeus! - «Manequinzinho de modas!», resmungou June, fechando a porta. Que família!» E voltou para o estúdio.

Boris Strumolowski reassumira o seu silêncio messiânico e Jimmy Portugal vociferava contra toda a gente, excepto o grupo de que dependia o Neo-Artist. Entre os condenados estava Eric Cobbley e vários outros do clã dos «desvalidos» que noutros tempos haviam merecido o primeiro lugar no repertório de auxílio e adoração de June. E ela experimentou um sentimento de futilidade e repugnância e foi para a janela para que o vento do rio varresse aquelas ásperas palavras.

Quando afinal Jimmy Portugal acabou, ela voltou a sentar-se, e durante meia hora amansou o jovem Strumolowski, prometendo-lhe pelo menos um mês da corrente americana, de forma que ele saiu com a sua auréola em perfeita ordem.

«A despeito de tudo», pensou June. «Boris é maravilhoso.»

 

FREIO NOS DENTES

O sentimento de se ter colocado mal na opinião de alguém é, para certas naturezas, um sentimento de alívio. Fleur não sentia remorsos quando deixou a casa de June. Lendo nos olhos azuis da prima um ressentimento e uma condenação, sentia-se satisfeita por a ter enganado, desprezando June porque aquela idealista já idosa não fora capaz de lhe descobrir os desígnios.

Ora acabar com tudo! Breve mostraria a todos eles que estava apenas a começar! E sorria para si mesma, do alto do ónibus que a levava de volta para Mayfair. Mas o sorriso morreu, vencido por uma súbita angústia e ansiedade. Seria que ela teria forças para dominar Jon? Ela tomara o freio nos dentes, mas poderia obrigá-lo a fazer o mesmo? Conhecia a verdade, e o perigo real que existia numa demora... e ele não sabia de nada. Havia naquilo uma tremenda diferença.

«Imagine-se que eu lhe conto tudo», pensava ela. «Será realmente o modo mais seguro de agir?» Aquele desgraçado azar não tinha o direito de lhes estragar o futuro - e ele devia compreender isso! Eles não podiam consentir naquilo. Toda a gente se curva sempre perante um facto consumado. E daquele retalho de filosofia, excessivamente profundo para a idade dela, passou para outra consideração não menos filosófica. Se persuadisse Jon a realizar um casamento rápido e secreto, e ele descobrisse depois que ela já conhecia a verdade desde antes? Que sucederia então?

Jon odiava todos os subterfúgios, de maneira que não seria melhor contar-lhe logo tudo? Mas a lembrança do rosto da mãe dele interceptou aquele impulso. Fleur tinha medo. A mãe tinha poder sobre ele, mais poder, talvez, que ela própria. Era um risco grande de mais. Mergulhada profundamente nesses cálculos instintivos, passou por Green Street e foi até ao Hotel Ritz. Desceu do ónibus e voltou a pé para os lados de Green Park. A tempestade levara todas as árvores, que ainda gotejavam, e caíam sobre ela pesadas gotas, provocando-lhe arrepios, e, para as evitar, saiu do parque, ficando sob as vistas do Iseeum Club. Arriscando-se a olhar para cima, viu Monsieur Profond, em companhia de um homem alto e gordo, numa das sacadas. E, virando para Green Street, Fleur ouviu o seu nome chamado por alguém, vendo então aquele «vagabundo» acompanhando-a. Ele tirou o chapéu, um feltro lustroso, coisa que ela particularmente detestava.

- Boa tarde, Miss Forsyde. Não há nenhuma "pequena coisa" que eu possa fazer por si?

- Sim, vá para o outro lado.

- Imagine! Porque é que não gosta de mim?

- Não gosto?

- Parece que sim.

- Bem, talvez porque o senhor me faça sentir que a vida não vale a pena ser vivida.

Monsieur Profond sorriu.

- Escute, Miss Forsyde, não se amofine. Tudo acabará bem. Nada é duradouro.

- Pelo menos comigo - exclamou Fleur -, tudo é duradouro. Especialmente isto de simpatias e antipatias.

- Pois isso faz-me um pouco infeliz.

- Nunca imaginei que nada no mundo fosse capaz de o fazer feliz ou infeliz.

- Não gosto de aborrecer os outros. Vou embarcar no meu iate.

Fleur olhou-o, estupefacta.

- Para onde?

- Uma pequena viagem aos Mares do Sul, ou algures. Fleur sentiu ao mesmo tempo um sentimento de alívio e um sentimento de que a insultavam.

Era evidente que ele estava a pretender insinuar que aquilo era um rompimento com a mãe dela. Como ousava ele ter qualquer coisa a romper e como ousava romper aquilo?

- Boa noite, Miss Forsyde. Dê cumprimentos meus a Mrs. Dartie. Não sou, na verdade, tão mau como pensa. Boa noite!

Fleur deixou-o de pé, com o chapéu na mão. Olhando depois para trás, viu-o deslizar - imaculado e volumoso - de volta para o clube.

«Ele não é capaz nem de amar com convicção. Que irá fazer a mamã?».

Os sonhos dela, naquela noite, eram infindáveis e aflitivos. Levantou-se mais fatigada ainda, e foi logo para a biblioteca, à procura do Whitake's Almanack. Todos os Forsyte têm a noção instintiva de que os factos é que são os elementos cruciais de qualquer situação. Ela precisava de vencer os preconceitos de Jon, mas, sem os instrumentos adequados para completar a sua resolução desesperada, nada poderia acontecer. Graças ao inestimável livro, informou-se de que ambos precisavam de ter vinte e um anos, de contrário, seria preciso o consentimento de alguém, o que, logicamente, era impossível de obter. E perdeu-se então em parágrafos referentes a licenças, certificados, avisos, distritos, chegando finalmente à palavra «perjúrio». Mas aquilo eram disparates! Quem se importaria realmente se eles dessem uma idade falsa, se estavam a casar-se por amor! Quase não comeu ao pequeno-almoço e voltou ao Whitaker. E quanto mais o estudava, menos segura se sentia, até que, voltando rapidamente as páginas, chegou à Escócia. Lá, as pessoas podiam casar-se sem nenhuma daquelas tolices. Precisava apenas de ir para lá e demorar-se vinte e um dias. Jon chegaria então, e na frente de duas testemunhas eles declarar-se-iam casados. Era o que eles fariam! Não poderia haver melhor solução. E imediatamente ela começou a fazer um inventário das suas colegas. Havia Mary Lambe, que morava em Edinburgh e era uma pequena alinhada. E ela tinha um irmão. Fleur poderia ir para a casa de Mary Lambe-e Mary e o irmão .serviriam de testemunhas. Compreendia muito bem que muitas pequenas considerariam tudo aquilo desnecessário e tudo o que ela e Jon precisavam de fazer era fugirem juntos durante um fim-de-semana e depois declarar aos pais: «Estamos casados perante a Natureza. Convém agora que nos casem perante a lei.» Mas Fleur era Forsyte bastante para considerar duvidoso esse procedimento e para recear a cara do pai quando ouvisse tal declaração. Além disso, não acreditava que Jon fosse capaz de tal façanha. Ele tinha uma tão elevada opinião sobre ela que lhe era forçoso não cair no seu conceito. Não! Mary Lambe era preferível, e aquela era justamente a época do ano propícia às temporadas na Escócia. Mais à vontade, Fleur arrumou as suas coisas, evitou a tia e apanhou o ónibus para Chiswick.

Era muito cedo, e a moça dirigiu-se ao Kew Gardens. Não se acalmou passeando por entre os canteiros, as árvores rotuladas e os grandes espaços relvados, e, depois de almoçar uma sanduíche de anchovas e café, voltou a Chiswick e tocou a campainha da casa de June. A austríaca levou-a à «salinha das refeições».

Agora, que ela conhecia o motivo que a afastava de Jon, a sua saudade por ele era ainda mais forte, como se ele fosse um brinquedo de pontas aguçadas ou pintado com tintas venenosas, como muitos que lhe haviam tirado na infância. Se não pudesse realizar o seu desejo e apoderar-se de Jon para sempre, sentia que era capaz de morrer de desgosto. De qualquer modo, tinha de o obter. Um espelho redondo, escuro e antigo, pendia sobre a chaminé de tijolos. E a pequena parou a mirar-se, reflectida nele, pálida, com grandes olheiras. Pequenos arrepios percorriam-lhe os nervos. Foi então que ouviu tocar a campainha e, chegando furtivamente à janela, viu Jon, de pé, à entrada, alisando os cabelos e mordendo os lábios, como se também procurasse dominar os nervos agitados.

Estava sentada numa das duas cadeiras de vime, de costas para a porta, quando ele entrou, e disse imediatamente:

- Sente-se, Jon, quero falar seriamente consigo. - Jon sentou-se à mesa, ao lado dela, e, sem olhar para ele, a pequena continuou: - Se não quer perder-me, temos de nos casar.

- Porquê? Houve alguma coisa de novo? - perguntou Jon.

- Não, mas eu senti isso em Robin Hill e junto da minha família.

- Mas - gaguejou Jon -, em Robin Hill tudo correu muito bem... e eles não me disseram nada.

- Mas querem separar-nos. O rosto de sua mãe dizia isso claramente. E o de meu pai também.

- Você já o viu depois daquele dia?

Fleur fez sinal que sim. Que importância tinham umas pequenas mentiras acessórias?

- Mas - acrescentou calorosamente Jon - não posso compreender como é que eles procedem assim, depois de passados tantos anos.

Fleur levantou os olhos para ele.

- Talvez você não me ame bastante.

- Não a ame bastante! Porquê... eu...

- Então garanta o seu direito sobre mim.

- Sem dizer nada a eles?

- Só depois de tudo.

Jon ficou calado. Como parecia muito mais velho que há uns escassos dois meses, quando o vira pela primeira vez! Com efeito, estava uns dois anos mais velho!

- Isso magoaria horrivelmente minha mãe.

Fleur estendeu a mão.

- Você tem o direito de escolher.

Jon deslizou da mesa e caiu de joelhos.

- Mas porque não dizer nada a eles? Eles não podem impedir-nos, Fleur!

- Podem. Estou a dizer-lhe que podem.

- Como?

- Nós dependemos inteiramente deles... e eles podem fazer pressão económica e muitas outras maneiras de pressão. E eu não sou paciente, Jon.

- Mas isso é iludi-los. Fleur ergueu-se.

- Você não pode gostar de mim. De contrário, não hesitaria. Quem ama não hesita.

Erguendo as mãos até à cintura dela, Jon obrigou-a a sentar-se novamente. E ela apressou-se a dizer:

- Eu já tinha planeado tudo. Basta que vamos à Escócia. Quando estivermos casados, eles terão de concordar. Toda a gente concorda com factos consumados. Você não compreende, Jon?

- Mas isso iria magoá-los horrorosamente! Então ele preferia antes magoá-la que aos seus!

- Muito bem, então. Deixe-me ir! Jon levantou-se e encostou-se à porta.

- Creio que tem razão - disse ele lentamente. - Mas quero pensar melhor nisso.

Ela compreendeu que ele estava a borbulhar de pensamentos que queria exprimir, mas não tencionava ajudá-lo. Odiava-se a si própria naquele momento, e quase o odiava também. Porque cabia a ela todo o trabalho de garantir o amor de ambos? Não era justo. E foi então que viu os olhos dele adorando-a, desesperados.

- Não me olhe dessa maneira! O que eu quero apenas é não o perder, Jon!

- Você não pode perder-me enquanto me quiser.

- Oh, sim, posso.

Jon pôs-lhe as mãos nos ombros.

:-Fleur, você terá sabido de alguma coisa que não quer contar-me?

Era aquele o ponto nevrálgico, a pergunta que ela temera, mas olhou-o firmemente e respondeu:

- Não.

Queimara todos os seus navios, mas que importava isso, se o obtivesse? Ele perdoar-lhe-ia. E, rodeando-lhe o pescoço com os braços, beijou-o nos lábios. Estava a vencer! Sentia-o pelas pancadas do coração dele contra o seu, pelos olhos que ele fechara

- Quero ficar segura! Quero uma certeza - sussurrou ela. - Prometa!

Jon não respondeu. Havia no seu rosto o tremor da extrema confusão. E por fim disse:

- Isso irá atormentá-los. Preciso de pensar um pouco, Fleur. Na verdade, preciso muito de pensar um pouco.

Fleur desenlaçou-se dos braços dele.

- Oh! Muito bem!

E subitamente rompeu em lágrimas de desapontamento, de vergonha e esgotamento.

Seguiram-se cinco minutos de infelicidade aguda. O remorso e a ternura de Jon não conheciam limites, mas não prometeu nada. Apesar da sua vontade de gritar «Muito bem, já que você não me ama o bastante, adeus!», ela não ousava fazê-lo. Acostumada desde que nascera a fazer o que queria, essa recusa partida de uma criatura tão jovem, tão terna, tão amorosa, assustava-a e surpreendia-a. Queria expulsá-lo de si, ver o que fariam a cólera e a frieza, mas não o ousava. A compreensão de que estava â pretender atirá-lo cegamente no irreparável enfraquecia tudo - enfraquecia a sinceridade do pundonor, a sinceridade da paixão. Nem mesmo os seus beijos tinham o impulso sincero que ela queria dar-lhes. E aquele pequeno encontro tempestuoso terminou sem um desenlace.

- Quer um pouco de chá, gnàdiges Fràulein? - perguntou a austríaca, que entretanto entrara na salinha das refeições.

Afastando Jon de si, ela exclamou:

-Não, não! Muito obrigada. Vou sair já.

E, antes que ele o pudesse evitar, ela partira.

Chegou a casa da tia furtivamente, enxugando as faces vermelhas e abatidas, assustada, colérica, profundamente infeliz. Levara Jon a extremos tão perigosos e nada de definitivo fora prometido ou combinado! Porém, quanto mais incerto e inseguro o futuro, mais a vontade de vencer lhe enterrava os tentáculos na carne do coração.

Não estava ninguém em Green Street. Winifred saíra com Imogen para assistir a uma peça que uns diziam ser alegórica e outros «muito excitante».

E fora por causa do que uns e outros diziam que Winifred e Imogen haviam ido vê-la. Fleur dirigiu-se para Paddington. Entrava pela janela do comboio o ar das olarias de West Drayton e o cheiro dos últimos campos de feno, banhando-lhe as faces ainda abatidas.

As flores só nascem para serem colhidas, mas agora, no entanto, apresentavam-se cobertas de espinhos. Mas nem por isso parecia menos desejável, ao seu espírito tenaz, aquela flor dourada defendida pela corola de farpas agudas.

 

ÓLEO SOBRE O FOGO

Ao chegar a casa, Fleur encontrou ali uma atmosfera tão estranha que penetrava até a aura perplexa da sua vida particular. A mãe entrincheirara-se inacessivelmente no seu boudoir e o pai contemplava o destino no vinhedo. Nenhum dos dois lhe deu uma palavra. «Será por minha causa? Ou por causa de Profond?»

- Que sucedeu ao papá? - perguntou à mãe, que respondeu com um encolher de ombros. E ao pai: - Que sucedeu à mamã? - E o pai respondeu:

- Que sucedeu? Que é que pode ter sucedido? - E lançou-lhe um olhar acerado.

«Pelo que vejo», murmurou para si Fleur, «Monsieur Profond já está a fazer a pequena viagem pelos Mares do Sul, no seu iate.»

Soames examinou um ramo onde não crescia nenhuma uva.

- Este vinhedo é um fracasso - disse ele. - Ontem esteve aqui aquele rapaz Mont. E perguntou-me uma coisa referente a si.

- Oh! Que acha dele, papá?

- Ele... é um produto da época... como todos esses outros moços.

- Como era o papá na idade dele, querido?

Soames sorriu amargamente.

- Nós trabalhávamos, não pensávamos unicamente em divertimentos... remando, guiando, namorando.

- O papá nunca namorou?

Ela evitou olhar para ele enquanto dizia isto, mas via-o muito bem. O seu rosto pálido corara e as sobrancelhas escuras, que já estavam riscadas de branco, uniram-se numa linha única.

- Não tinha tempo nem inclinação para peralvilho.

- Talvez tenha tido alguma grande paixão. Soames olhou-a intensamente.

- Sim... já que o quer saber... e muito ganhei com isso! E pôs-se a caminhar ao longo dos canos de água quente. Fleur

andava nas pontas dos pés, silenciosamente, atrás dele.

- Conte-me esse caso, papá! Soames imobilizou-se.

- Que é que quer saber acerca dessas coisas, na sua idade?

- Ela é viva?

Ele fez sinal que sim.

- Casada?

- Sim.

- É a mãe de Jon Forsyte, não é? E foi a sua primeira mulher.

Aquilo foi dito num relâmpago de intuição. Decerto a oposição do pai partia do desejo de ocultar a Fleur aquela velha ferida do seu orgulho, mas a moça sentiu-se estupefacta ao ver aquele homem tão velho e tão calmo abater-se assim de súbito e ao ouvir a nota de dor que lhe marcava a voz.

- Quem lhe contou isso? Se foi sua tia... não posso suportar que se comente esse caso.

- Mas, querido - disse meigamente Fleur-, isso já se passou há tantos anos!

- Há muitos anos ou não, eu... -Fleur agarrou-lhe o braço. - Procurei esquecer - disse ele subitamente. - E não gosto que me relembrem. - E então, como se desse saída a uma longa e secreta irritação, acrescentou: - Nos tempos de agora, ninguém compreende. Grande paixão, com efeito! Não, ninguém sabe o que isso é.

- Eu sei - disse Fleur quase num suspiro.

Soames, que lhe voltara as costas,, virou-se rapidamente.

- De que é que você está a falar... uma criança como é!

- Talvez eu tenha recebido isso de herança, papá.

- O quê?

- Pelo filho dela.

Ele estava pálido como linho, e ela compreendeu que o magoara. Os dois contemplavam-se dentro do ar pesado de vapor cheio de odor de musgo que vinha da terra, dos gerânios nos vasos e das vinhas.

- Isso é uma loucura - disse finalmente Soames por entre os lábios secos.

E, mal movendo os lábios, ela murmurou:

- Não se zangue, papá. Não posso lutar contra isso.

Mas ela via muito bem que ele não estava zangado, apenas aflito, profundamente aflito.

- Acho que tudo isso é loucura - murmurou ele - e que tudo será esquecido.

- Oh, não! Aumentou dez vezes, em vez de diminuir.

Soames deu um pontapé no caldeirão de água. E aquele movimento incongruente comoveu-a... a ela, que não tinha medo do pai.

- Papàzinho!-disse ela. - O que tem de ser feito... o que tem de ser... o senhor sabe o que é.

- Tem de ser feito! - repetiu Soames. - Você não sabe o que está a dizer. Esse rapaz já sabe de tudo?

O sangue subiu às faces da rapariga.

- Ainda não.

Ele voltara-se de novo para a filha, com um dos ombros descaído, ainda a Olhar fixamente para os canos de água quente.

- É a coisa mais desagradável que poderia suceder-me - disse ele de repente. - Não pode haver nada mais desagradável. Filho daquele sujeito! Isso é... é... perverso!

Ela atentara, quase inconscientemente, em que ele não dissera «filho daquela mulher», e novamente a sua intuição pôs-se em campo.

Seria que o fantasma daquela grande paixão ainda jazia em algum recanto do seu coração?

E a moça deslizou a mão sobre o braço do pai.

- O pai de Jon está muito velho e doente. Vi-o anteontem.

- Você?

- Sim, fui lá com Jon, vi-os a ambos.

- Bem, e que lhe disseram eles?

- Nada. Foram muito delicados.

- Tinham de ser. - Ele Voltou à sua contemplação dos canos, e disse subitamente: - Tenho de pensar nisto mais tarde. À noite falarei consigo.

Ela sabia que aquele era o momento final, e fugiu, deixando-o ainda a olhar para os canos de água quente. Vagueou pelo pomar, por entre as moitas de framboesas e groselhas, sem entretanto apanhar nem morder fruta nenhuma. Dois meses atrás vivia tão descuidada! Mesmo dois dias antes desfrutava a mesma paz, até Prosper lhe ter falado. Agora sentia-se presa numa rede - uma rede de paixões, de direitos de posse, de laços de amor e ódio. E naquele sombrio momento de desânimo tudo parecia - mesmo a uma natureza tenaz como a sua - não ter qualquer saída. Como deslindar aquilo, como dobrar as coisas à sua vontade e satisfazer o desejo do seu coração? E subitamente, ao virar o canto da alta sebe, avistou a mãe, que caminhava rapidamente, com uma carta aberta na mão. O seio dela arfava, os olhos estavam dilatados, as faces vermelhas. Instantaneamente, Fleur 'pensou: «É o iate! Pobre mamã!»

Annette lançou-lhe um olhar vago e assustado e disse:

- Vai la migraire.

- Sinto muito, mamã.

- Oh, sim! Você e seu pai... sentem muito!

- Pobre mamã... eu sinto realmente. Sei o que isso é.

Os olhos assustados de Annette abriram-se mais, escancararam-se. E ela disse:

- Pobre inocente!

Sua mãe, com tanto domínio de si, tão ajuizada - a falar assim! Era assustador! O pai, a mãe, ela própria! E apenas dois meses atrás eles pareciam ter tudo o que se poderia desejar neste mundo.

Annette amarrotou na mão a carta e Fleur compreendeu que deveria fingir não ter ouvido o seu suspiro.

- Quer que lhe arranje alguma coisa para a sua dor de cabeça, mamã?

Annette sacudiu a cabeça e pôs-se a andar, agitando os quadris.

«Isto é cruel», pensava Fleur. «E eu que tinha ficado contente! Aquele homem! Porque andam os homens a rondar as criaturas, perturbando tudo? Naturalmente está cansado dela. Que direito tem ele de estar cansado de minha mãe? Que direito?» E a esse pensamento, tão natural e tão disparatado, soltou uma pequena risada amarga.

Claro que deveria estar contente, mas, afinal, que havia ali para a alegrar? O pai não dava importância! Entrou no pomar e sentou-se sob a cerejeira. Uma brisa soprava nos ramos mais altos. O céu, visto através de todo aquele verde, parecia muito azul, com as nuvens muito brancas - aquelas pesadas nuvens brancas sempre presentes na paisagem da beira do rio. As abelhas, abrigadas do vento, sorviam docemente o mel das flores e sobre a relva espessa saía a sombra das fruteiras, plantadas pelo pai vinte e cinco anos antes. Os pássaros estavam quase em silêncio, os cucos já não cantavam, mas os pombos bravos arrulhavam. O zumbir dos zangões, os arrulhos dos pombos, aquela força de Verão, não serviram por muito tempo para sedativo aos nervos excitados da moça. E, sentada sobre as pernas, começou a traçar planos. O pai deveria vir em auxílio dela. Com que se importaria ele mais, uma vez que ela fosse feliz? Ela não vivera já dezanove anos para compreender que o seu futuro era a única coisa que o preocupava? E o que lhe restava, pois, era convencê-lo de que o seu futuro nunca seria feliz se lhe tirassem Jon. Ele supunha aquilo apenas um capricho. Como eram loucos os velhos ao pensarem que podiam falar acerca do que sentem os jovens! Ele próprio não confessara que - quando jovem - tivera a sua grande paixão? Deveria compreender agora! «Ele junta o dinheiro para mim», cismava ela, «mas para que me servirá, se não posso ser feliz?» O dinheiro, e tudo o que ele compra, não podem trazer felicidade. Só o amor a traz. As margaridas do pomar, que lhe dão às vezes um aspecto enluarado, crescem selvagens e felizes e têm a sua hora. «Eles não deveriam ter-me posto o nome de Fleur», continuava a cismar a rapariga, «se não tencionavam conceder-me a minha hora, para ser feliz enquanto ela durar.» Nenhum obstáculo real se interpunha à sua felicidade - tal como pobreza ou doença -, mas apenas o sentimento, o fantasma de um passado infeliz! Jon tinha razão. Os velhos não querem deixar que os moços vivam! Erram, cometem crimes, e querem que os seus filhos paguem por isso! A brisa que agitava os ramos das cerejeiras morreu, e ela ergueu-se, apanhou um cacho de madressilva e foi-se embora.

A noite estava quente. Ela e a mãe trajavam ambas vestidos leves, claros e decotados. As flores da mesa também eram claras, e Fleur impressionou-se com o aspecto pálido de tudo: as pálidas faces do pai, os ombros da mãe, as pálidas paredes apaineladas, o tapete de um verde pálido, a luz da lâmpada, até a sopa era pálida. Não havia uma nota de cor em toda a sala, nem mesmo o vinho nos pálidos copos, porque ninguém o bebia. O que não era pálido era negro - as roupas do pai, as roupas do mordomo, o cão estirado exausto na soleira, as cortinas escuras com bordados creme. Uma mariposa aproximou-se, e também era descorada. E aquele jantar meio fúnebre decorria em silêncio, no meio do calor.

O pai chamou-a no momento em que ela acompanhava a mãe para fora da sala. Sentou-se à mesa, ao lado dele, e, tirando do alfinete o ramo de madressilvas, levou-o ao nariz.

- Estive a pensar - disse ele. -Sim, querido?

- É extremamente penoso para mim falar acerca deste assunto, mas não posso evitá-lo. Não sei se compreende bem tudo o que representa para mim... nunca falei sobre isso, nunca o imaginei necessário... mas... mas... você é tudo para mim. Sua mãe... - Soames calou-se e ficou a contemplar o seu cálice de cristal de Veneza.

- Sim?

- Só a tenho a si. Nunca tive... nunca desejei outra coisa desde que você nasceu.

- Eu sei - murmurou Fleur. Soames mordeu os lábios.

- Você pode pensar que aquele assunto é uma coisa que eu posso deixar de lado e arranjar tudo a seu contento. Mas engana-se. Eu nada posso fazer. - Fleur não respondeu. - Sem levar absolutamente em conta os meus próprios sentimentos - prosseguiu Soames com mais resolução -, aqueles dois nunca serão levados à menor concessão. Eles... eles odeiam-me, como sempre nos odeiam aqueles que nos fizeram mal.

- Mas ele... Jon...

- É da mesma carne e do mesmo sangue... é o filho único deles. Provavelmente significa para ela o que você significa para mim. É um beco sem saída.

- Não - exclamou Fleur. - Não, papá!

Soames encostou-se ao espaldar da cadeira, a imagem da pálida paciência, como se estivesse resolvido a não trair nenhuma emoção.

- Escute! - disse ele. - Você está a pôr os sentimentos de dois meses... dois meses!... contra os sentimentos de trinta e cinco anos! Que vantagem pensa ter? Dois meses... o seu primeiro caso sentimental... questão de meia dúzia de encontros, algumas conversas e passeios, alguns beijos... contra... contra o que você nem pode imaginar, que ninguém pode imaginar, a menos que não o tenha atravessado! Por favor, seja razoável, Fleur! É uma loucura!

Fleur despedaçou a madressilva em pedacinhos.

- A loucura é deixar o passado estragar tudo o que existe agora. Porque se preocupam com o passado? Trata-se das nossas vidas, não das vossas!

Soames ergueu a mão até à fronte, onde de repente o suor começara a brilhar.

- De quem é você filha? De quem é ele filho? O presente é estreitamente 'ligado ao passado, e o futuro com ambos, ao presente e ao passado. Ninguém pode fugir de nenhum.

Jamais ela ouvira antes a filosofia passar através daqueles lábios.

Impressionada, apesar da sua agitação, Fleur pôs os cotovelos sobre a mesa e o queixo entre as mãos.

- Mas, papá, considere isso praticamente. Nós gostamos um do outro. Por mais dinheiro que se possua, nada tem importância senão o sentimento. Deixe que o passado fique enterrado, papá.

- A resposta dele foi um suspiro. - Além disso - disse Fleur meigamente -, não pode evitar o que nós fizermos.

- Não creio - disse Soames - que, se isso fosse deixado a mim, eu tratasse de os separar. Seria obrigado a pôr de lado muitas coisas, por amor da afeição de vocês. Mas não sou eu que controlo o caso. É isso que eu quero que você compreenda, antes que seja tarde de mais. Se continuar a pensar que acabará por vencer e deixar crescer esse seu sentimento, o golpe será muito maior depois, quando descobrir que tudo é impossível.

- Oh - exclamou Fleur -, ajude-me, papá! Sabe que pode ajudar-me!

Soames fez um movimento espantado de negativa.

- Eu? - disse ele amargamente. - Ajudá-la? Sou eu o impedimento... exactamente a causa do impedimento.,. não é assim que se diz? Você tem o meu sangue nas veias. - E ergueu-se.- Bem, o óleo já está lançado sobre o fogo. Se persiste na sua obstinação, só poderá queixar-se de si mesma. Por favor! Não seja louca, minha filha! Minha única filha!

Fleur encostou a testa ao ombro do pai.

Tudo dentro dela estava em turbilhão, mas não adiantava mostrá-lo, não adiantava nada! Afastou-se dele, caminhou para a obscuridade de fora, perturbada, mas não convencida. Tudo estava indeterminado e vago dentro dela, tal como os contornos e as sombras no jardim, excepto a sua vontade de vencer. Um álamo alongava-se através do céu azul-escuro e chegava até uma estrela branca. O orvalho ensopava-lhe os sapatos e arrepiava-lhe os ombros nus. Ela caminhou para o rio e ficou a olhar o rasto do luar na água escura. Subitamente sentiu um cheiro de cigarro e -uma figura branca emergiu, como se fora criada pelo luar. Era o jovem Mont no seu fato de flanela branca, de pé no barco. E ela ouviu o débil chiar do cigarro ao extinguir-se na água.

- Fleur - disse o rapaz-, não seja dura para com um pobre diabo! Estou aqui à espera há horas.

- Para quê?

- Venha para o meu barco!

- Eu... não.

- Porque não?

- Não sou uma ninfa do rio.

- Não há nenhuma dose de romantismo em si? Não seja tão moderna, Fleur!

E ele apareceu no caminho, a um metro dela.

- Vá-se embora!

- Fleur, não sabe que a amo? Fleur! Fleur soltou uma risadinha breve.

- Pode vir, então. Enquanto eu não realizo o meu desejo.

- Qual é o seu desejo?

- Pergunte outra coisa.

- Fleur - disse Mont, com uma voz que soava estranhamente-, não troce de mim! Mesmo os cães vivissecados têm um tratamento melhor, antes de os matarem de todo!

Fleur abanou a cabeça, mas os seus lábios tremiam.

- Você não pretenderá fazer-me concordar com isso. Dê-me um cigarro.

Mont deu-lhe um cigarro, acendeu-o, depois acendeu outro para ele.

- Não quero dizer tolices. Mas, por favor, imagine todas as tolices que os namorados já disseram até hoje, e as minhas estarão entre elas!

- Obrigada, estou a imaginar.

Ficaram um momento encarando-se à sombra de uma acácia, cujas flores o luar banhava, e o fumo dos seus cigarros misturava-se no ar entre eles.

Fleur virou-se abruptamente em direcção à casa. No relvado parou e olhou para trás. Michael Mont agitava os braços por sobre a cabeça, viu-os mesmo tocar os ramos enluarados da acácia. A voz dele chegou até ela: «Lindeza, lindeza!» Fleur teve pena. Como poderia consolá-lo? Já tinha complicações de mais, sozinha. Na varanda, parou de repente. A mãe estava à sua mesa de escrever, na sala de estar, inteiramente só. Não havia nada de notável na expressão do seu rosto, excepto a imobilidade. Mas parecia desolada! Fleur subiu a escada. À porta do quarto, parou. Ouvia as passadas do pai, para trás e para diante, na galeria de quadros.

«Sim», pensou ela. «Lindeza! Oh, Jon.»

 

DECISÃO

Quando Fleur o deixou, Jon ficou a encarar a austríaca. Era uma mulherzinha magra, de cara morena, com a expressão inquieta de quem estava à espreita de todas as pequenas alegrias que a vida antes lhe furtara.

- Não quer chá? - perguntou ela.

Sensível ao desapontamento que havia na voz dela, Jon murmurou:

- Não, realmente. Muito obrigado.

- Uma chávena só. Já está pronto. Uma chávena e um cigarro.

Fleur fora-se embora! E jaziam diante dele horas de remorso e indecisão! E, com um pesado sentimento de desproporção, sorriu e disse:

- Bem! Obrigado!

Ela trouxe numa bandeja um bule de chá, duas pequenas chávenas e uma caixa de prata com cigarros.

- Açúcar? Miss Forsyte tem muito açúcar... ela compra o meu açúcar e o açúcar dos meus amigos. Miss Forsyte é uma senhora muito boa. Sinto-me feliz por servi-la. O senhor é irmão dela?

- Sim - disse Jon, pondo-se a fumar o segundo cigarro da sua vida.

- Um irmão muitíssimo mais novo - disse a austríaca com um pequeno sorriso, que lhe fez lembrar o agitar da cauda de um cão.

- Quer também tomar chá? - disse ele. - Sente-se, por favor. A austríaca abanou a cabeça.

- Seu pai é um cavalheiro muito bondoso... o mais bondoso que jamais conheci. Miss Forsyte falou-me nele. Vai melhor?

As palavras dela ecoaram em Jon como uma censura. -Oh, sim, creio que vai muito bem.

- Gostaria de vê-lo outra vez - disse a austríaca, pondo uma das mãos sobre o peito. - Ele tem um coração bondosíssimo.

-Sim- disse Jon. E mais uma vez as palavras dela lhe pareceram uma censura.

- Nunca deu trabalho a ninguém e sorria tão gentilmente.

- Ah, sim?

- E às vezes olhava para Miss Forsyte com uma expressão tão engraçada. Contei-lhe toda a minha história e ele teve muita pena. E sua mãe... ela vai bem?

- Sim, muito bem.

- Vi o retrato dela no quarto dele. Muito linda.

Jon engoliu o chá. Aquela mulher, com a sua cara inquieta e as suas palavras evocativas, era como um primeiro e um segundo assassino.

- Obrigado - disse ele. - Tenho de ir-me embora. Posso... posso deixar-lhe isto? - E, com a mão indecisa, pôs uma nota de dez shillings na bandeja, abriu a porta e saiu. Ouviu a austríaca suspirar e apressou-se a fugir. Tinha o tempo exacto para apanhar o comboio, e no caminho para a Victoria Station via na cara de toda a gente amantes obstinados que esperavam contra toda a esperança. Ao chegar a Wonthing, pôs a bagagem no comboio local e dirigiu-se para Wansdon através dos Downs, procurando abafar a sua dolorosa irresolução com a caminhada. E enquanto andou, realmente, pôde apreciar a beleza das encostas verdes, parando aqui e ali para se estirar na relva, para admirar a perfeição de uma rosa silvestre ou escutar o canto de um melro. Mas a guerra de motivos dentro dele apenas fora adiada - a saudade de Fleur, a raiva da decepção.

Chegou à velha pedreira do Wansdon com o espírito tão abatido como antes. Porque a qualidade de ver ao mesmo tempo os dois lados de uma questão constituía a fraqueza e a força de Jon. E ele mergulhou nisso, até que o primeiro gongo para o jantar soou. Tomou um banho apressado e desceu, encontrando Holly sozinha. Val fora à cidade e só voltaria no último comboio.

Desde que Val lhe dera o conselho de perguntar a Holly o que houvera entre as duas famílias, acontecera tanta coisa - a revelação de Fleur, no Green Park, a visita dela a Robin Hill, o encontro daquele mesmo dia - que lhe parecia não haver mais nada a perguntar. E ele falou da Espanha, da sua insolação, dos cavalos de Val, da saúde do pai deles ambos. Holly sobressaltou-o ao dizer que não lhe parecia que o pai estivesse bem de saúde. Estivera duas vezes em Robin Hill, durante a última semana, e ele parecera-lhe assustadoramente lânguido, sofrendo dores às vezes, embora se recusasse sempre a falar de si próprio.

- Ele é extraordinariamente bom e esquecido de si mesmo, não acha, Jon?

Sentindo-se muito longe de ser bom e esquecido de si, Jon

respondeu:

- Se acho!

- Tanto quanto posso recordar, não creio que alguma vez tenha existido um pai tão bom.

- Sim - disse Jon humildemente.

- Nunca interferiu em nada e sempre mostrou compreender tudo. Nunca esquecerei como me permitiu que fosse para a África do Sul, na guerra dos Boers, quando eu namorava Val.

- Isso foi antes de ele casar com a mamã, não foi? - perguntou Jon de repente.

- Sim. Porquê?

- Oh, por nada. Mas ela não foi antes noiva do pai de Fleur? Holly depôs a colher e ergueu os olhos. A sua expressão era

grave. Que saberia o rapaz? Saberia o bastante para melhor lhe contar tudo? Ela não poderia dizê-lo. Jon parecia estranho e atormentado, como que envelhecido, mas aquilo poderia ser efeito da insolação.

- Houve algo, realmente - disse ela. - Evidentemente que, como estávamos no estrangeiro, de nada soubemos. - Ela não ousava arriscar-se. O segredo não era seu. Além disso, nada sabia acerca dos sentimentos dele actualmente. Antes da viagem à Espanha, poderia garantir que ele estava apaixonado, mas rapazes são rapazes. Já se haviam passado sete semanas e a Espanha inteira viera depois daquilo. Mas viu que ele compreendera muito bem que ela lhe estava a sonegar a verdade e acrescentou: - Fleur contou-lhe alguma coisa?

- Contou.

O rosto de Jon disse-lhe naquele instante muito mais que as mais demoradas explicações. Então ele não esquecera! E ela disse calmamente:

- Fleur é muitíssimo atraente, Jon, mas... nem eu nem Val gostamos muito dela.

- Porquê?

- Na nossa opinião, ela tem uma natureza avassaladora de mais.

- Avassaladora? Não compreendo o que quer dizer. Ela... ela... - E ele empurrou o prato da sobremesa, ergueu-se e caminhou até à janela.

Holly ergueu-se também e pôs o braço na cintura do irmão.

-Não se zangue, Jon. Não podemos ver as pessoas com os mesmos olhos, pois não? Creio que somente uma ou duas pessoas podem ver o que há de melhor em nós e fazer valer isso. Quanto a si, acho que essa pessoa é sua mãe. Vi-a uma vez a ler uma carta sua... e era maravilhoso ver-lhe o rosto. Penso que ela é a mulher mais linda que já vi... o tempo parece que não a afecta.

O rosto de Jon abrandou-se, mas depois voltou à tensão anterior. Toda a gente! Toda a gente estava contra ele e Fleur! E aquilo reforçava o apelo que ela lhe fizera: «Então garanta o seu direito sobre mim. Case comigo, Jon!»

Ali, onde passara aquela maravilhosa semana em companhia dela, sob a acção do seu encanto, a dor no seu coração aumentava de minuto a minuto, vendo que a magia da presença da moça não estava ali para transformar a sala, o jardim, o próprio ar. Seria capaz de continuar a viver sem a ver? E fugiu depressa dali. recolhendo-se cedo à cama. A fuga não o melhoraria, não o faria sentir-se mais aliviado ou mais feliz, mas ao menos aproximá-lo-ia da lembrança de Fleur no seu trajo de fantasia. Ouviu a chegada de Val, os estampidos do Ford. Depois a calma da noite de Verão novamente caiu sobre tudo - cortada apenas pelo balir distante de um cordeiro ou o grito de um pássaro nocturno. Saiu da cama. Lua fria, ar quente, e os Downs parecendo feitos de prata! Pequenas asas batendo, um riacho sussurrando, as rosas vadias! Deus do Céu! Como tudo parecia vazio sem ela! Na Bíblia está escrito: «Deixarás teu pai e tua mãe e acompanharás - Fleur!»

Precisava de ter coragem e dizer tudo a eles! Não poderiam impedi-lo de casar com ela - não haveriam de querer isso, quando soubessem o que ele sentia. Sim, ele o faria - franca e abertamente! Fleur não tinha razão!

O pássaro nocturno calou-se, o cordeiro calou-se também. O único som que se ouvia na escuridão era o murmúrio do regato. E Jon deitou-se e dormiu, liberto do pior mal da vida - a indecisão.

 

TIMOTHY PROFETIZA

No dia em que deveria realizar-se o cancelado encontro entre Fleur e Jon na National Gallery, celebrava-se o segundo aniversário da ressurreição do orgulho e da glória da Inglaterra, ou, mais sucintamente, a ressurreição da cartola. O Lord's (1), festivall que a guerra suspendera, desfraldava pela segunda vez as suas vistosas bandeiras azuis, exibindo quase o mesmo aspecto do passado glorioso. E, no recinto festivo, no intervalo destinado ao almoço, viam-se todas as espécies de chapéus femininos e uma única espécie de chapéu masculino, protegendo os múltiplos tipos de rosto associados com as «classes». Um Forsyte observador poderia discernir, espalhados pelas cadeiras, um certo número de chapéus de coco, mas esses dificilmente se arriscavam pelo relvado. A velha escola, ou antes, as escolas, podiam alegrar-se ainda, porque o proletariado não se opunha ainda a pagar a indispensável meia coroa. Via-se ainda ali uma carruagem fechada, a única para tanta gente - pois os jornais calculavam a assistência numas dez mil pessoas. E todos os dez mil, animados por uma única esperança, perguntavam uns aos outros: «Onde vai almoçar?» E havia algo maravilhosamente tranquilizador

 

*1. Assim é designado o match anual de cricket entre as equipas de Eton e Harrow.

 

e elevado na cara dos que faziam essa indagação. Realmente, que poder de reservas tinha o Império Britânico - suficientes pombos, lagostas, carneiros, maionese de salmão, morangos e garrafas de champanhe para alimentar todo aquele bando! Nenhum milagre em perspectiva, nenhum caso de alguns pães e alguns peixes - a fé apoiava-se em bases mais sólidas. Seis mil cartolas e quatro mil sombrinhas seriam tirados ou enrolados, e aquelas dez mil bocas, que falavam todas o mesmo inglês, ficariam cheias. A vida recuperara o seu antigo ritmo! Tradição! E, mais uma vez, tradição! Como era forte e como era elástica! As guerras poderiam assolar, os impostos pesar, as Trade Union armar barreiras, a Europa perecer à míngua, mas dentro dos seus muros redondos, estirados na relva verde, usando as suas cartolas- eles continuavam a reunir-se. O coração batia, o pulso mantinha-se regular. Eton! Eton! Har-r-o-oo-o-w!

Entre os inúmeros Forsytes presentes por direito pessoal ou por procuração, estava Soames com a mulher e a filha. Ele nunca frequentara nem Eton, nem Harrow, não tinha qualquer interesse pelo cricket, mas queria que Fleur mostrasse os seus trajos e queria usar a sua cartola - exibindo-se novamente com ela em plena paz, por entre os seus pares. E caminhava sedativamente, levando Fleur entre ele e Annette. Mulher nenhuma as sobrepujava, pelo menos tanto quanto o podia ver. Ambas podiam andar ou ficar de pé: havia substância na sua beleza. As mulheres modernas não têm formas, nem busto, nem nada! E recordou de repente com que intoxicação de orgulho ele comparecia àquela festa em companhia de Irene, nos primeiros anos do seu primeiro casamento. Costumavam almoçar na carruagem que sua mãe exigira que o marido possuísse, porque era «tão chique»! Só se usavam carruagens então, e não esses malcheirosos e horrendos automóveis! Como Montague Dartie bebia então! Soames supunha que o povo de agora também bebia de mais, mas isso já não tinha o sentido que tinha outrora. Lembrava-se de George Forsyte - cujos irmãos Roger e Eustace haviam estado em Eton e Harrow - trepado no alto da carruagem e agitando uma bandeirinha azul-clara numa das mãos, uma bandeira azul-escura na outra e berrando «ETOn - HARROw» quando toda a gente estava calada - palhaço que ele sempre fora!

E Eustace, pelo contrário, fazia questão de não exibir nenhuma cor, nem tomar nenhum interesse. E Irene com um vestido de seda cinzento-chumbo, enfeitado de verde-pálido! E ele olhava de esguelha para o rosto de Fleur. Inteiramente desanimada, sem alegria, sem cor! Aquele namoro estava a tomar conta dela - mau negócio! E olhou para o rosto da mulher, um pouco mais expressiva que de costume, um pouco desdenhosa - embora não tivesse nada a desdenhar, pelo menos tanto quanto ele sabia. Ela estava a receber o abandono de Profond com uma calma curiosa - ou seria a «pequena viagem» dele apenas uma simulação? Se o fosse, ele recusava-se a tomar conhecimento disso! Depois de passearem pela estacada e defronte do pavilhão, viram a mesa de Winifred, na tenda do Bedouin Qub. Aquele clube, uma novidade, «galo e galinha» como lhe chamavam, fora fundado, para estimular viagens, por um gentleman de velho nome escocês, cujo pai, estranhamente, se chamava Levi. Winifred ingressara nele, não porque viajasse, mas porque o instinto lhe dizia que aquele clube, com tal nome e tal fundador, deveria ir longe, e, se uma pessoa não entra logo, perde para sempre a oportunidade de entrar. A tenda do clube, com um texto do Corão pintado sobre campo cor de laranja e um pequeno camelo verde bordado na entrada, era a mais vistosa do recinto. Dentro dela encontraram Jack Cardigan com uma gravata azul-escura - ele jogara outrora por Harrow - batendo com a sua bengala de malaca, para mostrar como deveria ter batido na bola um certo jogador. E ele guiou-os através da tenda. Reunidos no canto de Winifred estavam Imogen, Benedict, com sua jovem esposa, Val Dartie, sem Holly, Maud e o marido. Depois de Soames e os seus se sentarem, ficou ainda um lugar vazio.

- Estou à espera de Prosper - disse Winifred. - Mas ele anda tão ocupado com o seu iate.

Soames olhou de lado: nenhum movimento no rosto da mulher! Evidentemente ela sabia muito bem se o tal sujeito deveria ou não aparecer ali. E não lhe escapou que Fleur também olhara para a mãe. Se Annette não respeitava os sentimentos dele, devia ao menos pensar nos de Fleur! A conversa, muito inconstante, era sincopada por Jack Cardigan, citando o nome de vários mid-off.

Citava todos os grandes mid-off que houvera desde o começo dos tempos, como se eles fossem uma entidade racial definida entre a composição do povo inglês. Soames acabara a sua lagosta, e estava a começar um pombo quando ouviu estas palavras: «Estou um pequeno atrasado, Mrs. Dartie.» E viu que já não havia nenhum lugar vago. «Aquele sujeito» estava sentado entre Annette e Imogen. Soames comia rapidamente, com uma palavra ocasional a Maud ou a Winifred. A conversa zumbia em torno dele. E ouviu a voz de Profond dizer:

- Creio que a senhora está enganada, Mrs. Forsyde. Eu... eu apostaria que Miss Forsyde concorda comigo.

- Em quê? - perguntou a clara voz de Fleur, através da mesa.

- Eu estava a dizer que as moças de hoje são muito semelhantes às moças de sempre... a diferença é muito pequena.

- O senhor sabe muito acerca delas?

Aquela resposta aguda caiu nos ouvidos de todos, e Soames agitou-se pouco à vontade na sua estreita cadeira verde.

- Bem, não sei. Penso que elas querem fazer a sua «pequena» vontade, e creio que sempre o fazem.

- Com efeito!

- Oh, mas Prosper - interveio pacificamente Winifred -, as pequenas da rua, as pequenas que trabalharam nas fábricas de munições, as pequenas klappers das lojas... as maneiras delas, na verdade, entram como punhos pelos olhos da gente.

Ante a palavra «punhos», Jack Cardigan parou na sua enumeração, e Monsieur Profond disse, no silêncio que se fez:

- O que havia outrora estava escondido, hoje está à mostra. É essa a diferença.

- Mas a moral delas! - exclamou Imogen.

- É a mesma que tiveram sempre, Mrs. Cardigan, mas agora têm mais oportunidades.

E aquele dito, tão tipicamente cínico, foi acolhido por uma risadinha de Imogen, um ligeiro abrir de boca de Jack Cardigan e um estalo da cadeira de Soames.

- Isso é muito feio, Prosper - disse Winifred.

- Que é que a senhora diz, Mrs. Forsyde? Não acha que a natureza humana é sempre a mesma?.

Soames dominou um súbito desejo de erguer-se e esmurrar o sujeito. Ouviu sua mulher responder:

- A natureza humana na Inglaterra não é a mesma que nos outros países.

- Bem, não conheço muito acerca deste «pequeno» país. «Não, graças a Deus!», .pensou Soames.

- Mas ouso dizer que a água ferve sempre ao fogo, em qualquer parte. Nós todos queremos o prazer, e sempre o conseguimos.

Maldito sujeito! O seu cinismo era... era ultrajante!

Quando o almoço acabou, ergueram-se todos os pares para um passeio digesttivo. Muito orgulhoso para mostrar que o notara, Soames sabia perfeitamente que Annette e aquele sujeito tinham saído juntos e Fleur estava com Val. Escolhera-o, decerto, porque ele conhecia aquele rapaz. Ele tinha Winifred por companheira. E passearam por entre a vistosa e circulante correnteza de gente, um pouco corados e estafados, durante alguns minutos até que Winifred suspirou:

- Queria que estivéssemos uns quarenta anos atrás, menino. Diante dos olhos do espírito dela, uma interminável procissão dos seus próprios elegantíssimos vestidos ia passando, pagos pelo dinheiro do pai, para cobrir alguma crise.

- Era bem divertido, afinal. Muitas vezes eu chego a desejar que Monty ainda estivesse vivo. Que é que você pensa da gente de hoje, Soames?

- Um estilozinho precioso. As coisas começaram a estragar-se com as bicicletas e os automóveis. E a guerra acabou o serviço.

- Pergunto a mim mesma o que está para chegar - disse Winifred numa voz sonhadora. - Não me admiro se voltarmos às crinolinas e às saias travadas. Olhe para aquele vestido!

Soames abanou a cabeça.

- Há dinheiro, mas não há fé nas coisas. Ninguém se preocupa com o futuro. Estes jovens só cuidam em que a vida é curta e tratam de a fazer alegre.

- Olhe aquele chapéu! - disse Winifred. - Não sei... mas quando a gente pensa em tanta gente morta e o mais que aconteceu na guerra, acha tudo maravilhoso. E em mais nenhum outro país é assim. Prosper disse-me que estão todos falidos, excepto a América. E é claro que os homens de lá sempre copiaram os seus figurinos masculinos dos nossos.

- Aquele sujeito - perguntou Soames - vai realmente partir para os Mares do Sul?

- Oh! A gente nunca sabe o que Prosper vai realmente fazer!

- E isso, nele, é um sinal dos tempos - resmungou Soames. - E, se lhe agrada...

A mão de Winifred agarrou-lhe o braço.

- Não volte a cabeça - disse ela em voz baixa -. mas olhe à direita, a fila em frente do stand.

Soames olhou o melhor que pôde sob aquela limitação. Um homem de cartola cinzenta, barba grisalha, com as faces magras e batidas, uma certa elegância de atitude, sentava-se ao lado de uma mulher de vestido verde-claro, cujos olhos escuros estavam fixos no companheiro. Soames desceu rapidamente os olhos para os pés. Como se movem engraçadamente os pés. um depois do outro! A voz de Winifred disse-lhe ao ouvido:

- Jolyon parece estar muito doente, mas sempre teve estilo. Ela é que não muda... excepto nos cabelos.

- Porque falou você a Fleur acerca desse caso?

- Não falei. Ela soube por aí. Eu sempre disse que ela descobriria por si.

- Bem, foi uma complicação. Ela não se esquece daquele rapaz.

- Pequena astuta - murmurou Winifred. - Tentou despistar-me a esse respeito. Que é que você vai fazer, Soames?

- Vou deixar-me guiar pelos acontecimentos. Continuaram a caminhar, em silêncio, por entre a multidão

compacta.

- Na verdade - disse de repente Winifred -, isso parece coisa do destino. Apenas está tão fora da época, tudo isto! Olhe, lá estão George e Eustace!

O vulto taurino de George Forsyte parara em frente deles.

- Olá, Soames! Acabo de encontrar Prosper Profond e sua mulher.

Você não os alcançará se continuar nesse passo. Foi ver afinal o velho Timothy?

Soames fez sinal que sim, e as ondas da multidão afastaram-nos.

- Eu sempre gostei do velho George - disse Winifred. - É tão engraçado.

- E eu nunca gostei dele. Onde são os seus lugares? Tenho de procurar os meus. Fleur pode já ter voltado.

Depois de ter sentado Winifred, voltou ao seu lugar, percebendo indistintamente pequenas figuras brancas que corriam, batiam a bola, os vivas e os assobios. Nem Fleur, nem Annette! Hoje em dia não se pode esperar nada de mulheres! Elas têm direito de voto. Estão «emancipadas», e muito bem isso está a fazer-lhes! Se Winifred pudesse voltar a trás, quereria ela recomeçar tudo com Dartie? Se fosse possível recuperar o passado - se lhe fosse possível sentar-se de novo onde se sentara em 83 e 84, antes de saber que o seu casamento com Irene fora um fracasso, antes de o antagonismo dela começar a mostrar-se tão claramente, que até a maior boa vontade do mundo não o poderia ignorar! Vendo-a em companhia do marido, todas as velhas lembranças lhe tinham acorrido em tropel. Até mesmo hoje, não podia compreender porque fora ela tão implacável. Ela pudera amar outro homem, e a ele próprio, a única pessoa a quem devera amar, recusara sempre o seu coração. E parecia-lhe, fantasticamente, quando olhava para trás, que todo esse relaxamento moderno do casamento - embora as suas fórmulas e leis fossem as mesmas do tempo em que ela casara com ele-, parecia-lhe que toda essa desmoralização actual se originara na revolta de Irene. Parecia-lhe, absurdamente, que fora ela quem desencadeara tudo aquilo - até que toda a posse decente desaparecesse ou estivesse a ponto de desaparecer. Tudo provinha dela! E agora - um lindo estado de coisas! Lares! Como era que se podia ter um lar sem a recíproca posse dos cônjuges? Era verdade que ele nunca possuíra um verdadeiro lar. Mas fora culpa sua? Fizera tudo ao seu alcance. E a sua recompensa eram aqueles dois que estavam sentados no stand e aquele caso de Fleur.

Apavorado pela solidão, Soames pensou: «Não posso esperar mais!

Elas que descubram sozinhas o caminho de volta para o hotel... se pretendem voltar para lá!» E, chamando um táxi, fora do campo, disse:

- Leve-me a Bayswater Road.

As suas velhas tias nunca o haviam abandonado. Para elas, sempre representara um visitante bem-vindo, e, embora também já houvessem partido, ainda lá estava Timothy.

Smither estava de pé junto da porta aberta.

- Mr. Soames! Eu estava a tomar um pouco de ar! A cozinheira vai ficar tão alegre!

- Como vai Mr. Timothy?

- Nestes últimos dias já não é o que sempre foi, sir; está a falar muito. Ainda hoje de manhã esteve a dizer: «Meu irmão James está a ficar velho.» Está a ficar caduco, Mr. Soames, e quer falar nos irmãos. E fica assustado com as acções. No outro dia disse assim: «Meu irmão Jolyon não quer saber dos consolidados...» Parece que se preocupa muito com isso. Entre, Mr. Soames, entre. É uma novidade tão agradável tê-lo aqui!

- Sim - disse Soames -. mas só por alguns minutos. Ele tem estado bem?

- Não - respondeu Smither do hall, onde o ar tinha a frescura singular do ambiente de fora -, não estamos satisfeitos com ele, nesta última semana. Sempre deixava a sobremesa para o fim. mas desde segunda-Feira é o que come primeiro. Se o senhor reparar num cão que está a jantar, Mr. Soames, notará que ele come primeiro a carne. Nós sempre pensámos que era um bom sinal. na idade em que está Mr. Timothy, ele deixar o doce para o fim, mas agora parece que já perdeu todo o domínio de si, e isso fará que vá perdendo tudo o mais. O doutor não dá importância a isso, mas - Smither abanou a cabeça - parece que ele quer comer o doce primeiro para o caso de não poder comê-lo depois! Isso e as conversas dele têm-nos inquietado muito.

- Ele disse alguma coisa de importante?

- Não gosto de o dizer, Mr. Soames, mas voltou-se contra o testamento. Fica rabugento por causa dele, o que parece engraçado, pois durante anos e anos exigia vê-lo todas as manhãs. Disse no outro dia: «Eles querem o meu dinheiro», e isso aflige-me muito, porque, como eu disse a ele mesmo, ninguém lhe quer o dinheiro, tenho a certeza. E é uma dor de coração que ande a pensar em dinheiro, na idade em que está. Agarrei na minha coragem com as duas mãos e disse: «Escute, Mr. Timothy. A minha finada patroa - foi Miss Ann Forsyte, Mr. Soames, que me educou - nunca se preocupou com dinheiro, tudo nela era carácter.» Ele olhou para mim, nem lhe posso dizer com que jeito esquisito, e disse muito seco: «Ninguém quer saber do meu carácter.» Imagine, ele dizer-me uma coisa destas! Mas de vez em quando Mr. Timothy diz dessas coisas, mais ferinas e sentidas do que tudo.

Soames, que estava de pé diante de uma velha gravura pensando «Isto valorizou-se!», murmurou:

- Vou subir para o ver, Smither.

- A cozinheira está com ele - respondeu Smither de sobre os seus espartilhos. - Ela ficará contente em vê-lo.

Soames subiu lentamente, pensando: «Não vale a pena viver até esta idade.»

No segundo andar, parou e bateu. A porta abriu-se e ele viu a cara redonda e ingénua de uma mulher de sessenta anos.

- Mr. Soames! - disse ela. - Oh! Mr. Soames! Soames fez um sinal afirmativo com a cabeça.

- Muito bem, muito bem! - disse ele, entrando. Timothy estava reclinado na cama, as mãos juntas sobre o

peito, os olhos fixos no tecto, onde voejava uma mosca. Soames ficou de pé aos pés da cama, encarando-o.

- Tio Timothy - disse ele, elevando a voz. - Tio Timothy! - O olhar de Timothy deixou a mosca e baixou até ao visitante. Soames pôde ver-lhe a língua pálida passando sobre os lábios escurecidos. - Tio Timothy - repetiu ele -, não posso fazer nada pelo senhor? Não há nada que o senhor queira dizer-me?

- Ah! - exclamou Timothy.

- Vim aqui para o ver e verificar se está tudo em ordem. Timothy fez com a cabeça um gesto de assentimento. Parecia

que estava a querer acostumar-se à aparição que lhe surgira à frente.

- O senhor tem tudo o que quer?

- Não - disse Timothy.

- Posso trazer-lhe alguma coisa?

- Não - disse Timothy.

- Sou Soames, não vê? O seu sobrinho Soames Forsyte. O filho de seu irmão James. - Timothy fez novo sinal de assentimento.- Gostaria muito de fazer qualquer coisa pelo senhor.

Timothy fez-lhe um aceno. Soames aproximou-se.

- Você - disse Timothy, numa voz que parecia ter perdido todo o tom - diga a eles todos, da minha parte. . diga a eles todos - e o seu dedo batia no braço de Soames - que se agarrem aos seus. Agarrem-se! Os consolidados vão subir! - E três vezes ele baixou a cabeça.

- Está bem! - disse Soames. - Direi.

- Sim - disse Timothy. E, fixando novamente os olhos no tecto, acrescentou: - Esta mosca!

Estranhamente comovido, Soames olhou para a agradável e gorducha cara da cozinheira, um pouco tostada pela proximidade constante do fogão.

- Isto vai dar-lhe uma alegria enorme, sir.

Veio um resmungo de Timothy, mas ele estava evidentemente a falar para si próprio, e Soames saiu em companhia da cozinheira.

- Gostaria de fazer um creme rosado para o senhor, Mr. Soames. O senhor gostava tanto, antigamente! Adeus, sir. Foi realmente um prazer.

- Tome cuidado com ele. Está tão velho!

E, apertando-lhe a mão grossa, desceu a escada. Smither ainda estava a tomar ar à porta de entrada.

- Que tal o achou, Mr. Soames?

- Bum! - murmurou Soames.

- Eu estava com medo que, vindo de fora, o senhor não o estranhasse.

- Smither - disse Soames -, todos nós lhe estamos agradecidos.

- Oh, não, Mr. Soames, não diga isso. É uma alegria... ele é um homem tão extraordinário!

- Bem, adeus! - disse Soames, subindo para o táxi. «Os consolidados vão subir», pensava ele. «Vão subir!»

Ao chegar ao hotel, em Knightsbridge, foi para a sala de estar do seu apartamento e tocou a pedir chá. Nenhuma delas chegara ainda. E novamente o possuiu o mesmo sentimento de solidão. Aqueles hotéis! Que lugares monstruosamente grandes eram agora! Soames recordava o tempo em que não havia nada maior que o Long, ou o Brown, ou o Morley, ou o Tavistock - e a gente que abanava a cabeça ante o Langham e o Grand. Hotéis e clubes - clubes e hotéis - não havia fim para eles agora E Soames, que estivera exactamente a assistir no Lord's a um milagre de tradição e continuidade, caiu em cisma, recordando aquela Londres na qual ele nascera sessenta e cinco anos atrás. Quer os consolidados estivessem a subir ou não, Londres tornara-se uma propriedade terrível. Não havia nenhuma propriedade que se lhe assemelhasse no mundo, a não ser New York. Havia uma espécie de histeria nos jornais de agora, mas todos os que, como ele pudessem recordar Londres de cinquenta anos atrás, e vê-la agora, compreenderiam a fecundidade e a elasticidade da fortuna. Tinham apenas de manter a cabeça segura e deixar-se levar firmemente. Ele lembrava-se do calçamento de pedras redondas na rua e da palha malcheirosa no soalho das cabs. E o velho Timothy - que não poderia ele contar-lhes se houvesse conservado a memória! As coisas estavam abaladas, as criaturas tomadas de desânimo ou de pressa, mas cá estava Londres, cá estava o Tamisa e lá além estava o Império Britânico e os confins do mundo.

«Os consolidados vão subir!» Isso não o surpreenderia. O que importava era a raça. E tudo aquilo parecia imobilizar-se como um buldogue nos olhos cinzentos de Soames, até que eles se distraíram com a reprodução de uma pintura vitoriana numa das paredes, O hotel comprara três dúzias delas. As velhas gravuras de caça dos antigos hotéis eram agora altamente cotadas - mas aquilo.,. A verdade era que o vitorianismo morrera. «Diga-lhes que se agarrem!», recomendara o velho Timothy, Mas que iriam eles agarrar, naquele moderno redemoinho dos "princípios democráticos"? Se até mesmo a vida privada estava ameaçada! E ante o pensamento de que até isso se arriscava a perecer, Soames depôs a chávena e foi até à janela. A imaginação do homem não possuía mais da Natureza que aquilo que a multidão, lá fora, possuía das flores, árvores e lagos do Hyde Park! Não, não! A propriedade particular apenas valorizava melhor aquilo que possuía. O mundo perdera um pouco do seu juízo, tal como cães que ficam meio loucos nas noites de lua cheia e desandam a correr pelos caminhos. Mas o mundo, tal como o cão, sabe que o seu pão tem manteiga e que o seu leite é quente, e volta necessariamente ao único lar seguro que possui - a propriedade privada. O mundo actualmente estava a atravessar um período de segunda infância - tal como o velho Timothy a comer primeiro o doce!

Ouviu um som atrás de si e viu a mulher e a filha, que entravam.

- Então voltaram! - disse ele.

Fleur não respondeu, ficando um instante a olhar para o pai e para a mãe, e depois entrou no seu quarto. Annette encheu uma chávena para ela.

- Vou a Paris visitar minha mãe, Soames.

- Oh! A sua mãe?

- Sim.

- Por quanto tempo?

- Não sei.

- E quando pretende ir.

- Segunda-feira.

Iria ela realmente visitar a mãe? Era engraçado como ele se sentia indiferente perante essa pergunta. E era engraçado como ela percebia a indiferença dele - conquanto que não houvesse escândalo! E subitamente entre ele e a mulher Soames viu distintamente aquele rosto que avistara horas antes: Irene.

- Quer dinheiro?

- Obrigada. Tenho bastante.

- Muito bem. Avise quando estiver de volta.

Annette depôs o bolo que mordiscava e, olhando através dos seus cílios escuros, perguntou:

- Quer algum recado para a mamã?

- Lembranças minhas.

Ela apertou as mãos contra o peito e disse em francês:

- Que sorte você nunca me ter amado, Soames!

Depois, erguendo-se, deixou também a sala.

Soames estimara que ela houvesse falado em francês -pois aquilo, dito assim, parecia não exigir réplica. E de novo via aquele outro rosto, pálido, de olhos escuros, ainda lindo! E dentro dele despertou o fantasma de um ardor, como brasas dormindo sob um montão de cinzas. E Fleur apaixonada pelo filho dela! Sorte estranha! Sim! Existiria isso - sorte? Um homem vem pela rua. cai-lhe um tijolo na cabeça. Ah, isso é sorte, não há dúvida. Mas aquilo! «Herança», dissera a pequena. Ela - ela o que estava era a "agarrar-se"!

 

AS RECORDAÇÕES DE JOLYON

Um duplo impulso fizera Jolyon dizer à esposa, durante o pequeno-almoço: «Vamos ao Lord's!» Queria algo que diminuísse a ansiedade em que os dois tinham ficado durante as sessenta horas subsequentes à visita de Fleur. Queria também algo que suavizasse os tormentos das recordações em alguém que sabia que deveria perdê-las qualquer dia!

Havia cinquenta e oito anos, Jolyon tornara-se aluno de Eton, pois fora desejo do velho Jolyon que ele se graduasse com o máximo possível de despesas. Ano após ano, comparecera ao Lord's, saindo de Stanhope Gate em companhia do pai, cuja juventude, decorrida no decénio de 1820, não fora aperfeiçoada pelo jogo do cricket. O velho Jolyon falava abertamente de swipes, fulitosses, haif-ball e three-quarter-ball, e Jolyon filho, com o ingénuo snobismo da juventude, tremia, com receio de que por acaso alguém escutasse o que o pai dizia. Mas era apenas nessa matéria de cricket que ele se sentia nervoso, porque seu pai - que usava então suíças, segundo a moda trazida pela guerra da Crimeia - sempre o impressionara como o beau ideal, pois, embora sem nenhum diploma universitário, o bom gosto, o refinamento natural e o equilíbrio do velho Jolyon sempre o haviam posto a salvo da vulgaridade. Que delícia, depois de ter berrado horas seguidas, sob a cartola, num calor sufocante, ir para casa em companhia do pai, de carruagem, tomar banho, vestir-se e ir jantar ao Clube Desunião - espargos, costeletas, torta -. e, findo o jantar, os dois janotas, pai e filho, com luvas de cabrito cor de alfazema, irem à Ópera ou ao teatro dramático. E na segunda-feira, quando o torneio acabava, com a sua cartola devidamente amarrotada, dirigir-se em companhia do pai num carro especial até ao Crown and Sceptre, com o seu terraço sobre o rio. Dourada década de 60, quando o mundo era simples, os dandies sedutores, a democracia não nascera ainda e os livros de Whyte Melville apareciam, grossos e substanciosos.

Uma geração depois, quando seu filho Jolly usava as centáureas de Harrow na botoeira - por desejo do velho Jolyon, o neto fora educado num instituto menos rico-, novamente Jolyon experimentara o calor e as inconveniências do dia de festa e voltara depois para a frescura e para os canteiros de morangos de Robin Hill, para o seu bilhar ao serão - onde o seu rapaz dava tacadas de cortar o coração e fazia todos os esforços possíveis para se mostrar lânguido e crescido. Durante aqueles dois dias, todos os anos, ele e o filho ficavam a sós um com o outro, entre o mundo inteiro - e a democracia mal acabava de nascer!

E hoje, pois, desempoeirara uma cartola cinzenta, pedira a Irene um pedaço de fita azul-clara e escrupulosamente, constipando-se no carro, no comboio e no táxi, chegara a Lord's Ground. Lá, ao lado dela, trajada num vestido verde-claro com pequenos enfeites pretos, assistira ao jogo e sentira a velha emoção vibrar dentro de si.

A passagem de Soames estragou o dia: o rosto de Irene deformara-se pela compressão dos lábios, e não valia a pena continuar sentado, sob o perigo do aparecimento de Soames, ou mesmo da filha. E ele disse:

- Bem, querida, se já viu bastante, vamo-nos!

à noite, Jolyon sentiu-se exausto. E, não querendo que a mulher o visse assim, esperou que ela começasse a tocar e fugiu para o pequeno escritório. Abriu a janela para deixar entrar ar e a porta para poder ouvir a música. E instalou-se na velha cadeira de braços do pai. de olhos fechados, a cabeça encostada ao couro queimado do estofo. Igual àquela passagem da sonata de Cesar Frank, assim fora a sua vida com ela - um divino terceiro movimento. E agora aquele caso de jon - aquele mau caso!

Resvalando para a margem da inconsciência, Jolyon dificilmente poderia dizer se era em sonhos que sentia aquele cheiro de charuto e que tinha a impressão de ver o pai, na escuridão, diante dos seus olhos fechados. A sombra formava-se, desvanecia-se, novamente se formava, e, na própria cadeira em que ele estava sentado, via o pai, vestido de negro, de pernas cruzadas, um copo oscilando entre o polegar e o indicador, via-lhe os bigodes brancos, os olhos profundos sob a ampla testa - olhos que pareciam procurá-lo, que pareciam falar. «Está a hesitar, Jo? Cabe a você decidir. Ela é mulher!» Ah, como ele reconhecia o pai naquela frase, como todo o vitorianismo estava incluído nela! E a sua própria resposta: «Não, acovardei-me. Acovardei-me de magoá-la, a Jon e a mim mesmo. Tenho o coração fraco. Acovardei-me.» Mas os velhos olhos, tão mais velhos e tão mais novos que os seus, insistiam: «Trata-se da sua mulher e do seu filho: do seu passado. Tenha coragem, meu rapaz!» Seria a mensagem de um espírito errante, ou apenas os instintos do velho que reviviam nele? E novamente apareceu aquele cheiro de fumo de charuto, do velho couro saturado dele. Bem, ele iria criar coragem, escrever a Jon e pôr tudo no preto e no branco! E de repente começou a respirar com dificuldade, com uma sensação de sufocamento, como se o seu coração quisesse parar. Ergueu-se e foi até ao ar livre. As estrelas luziam. Atravessou o terraço, dobrou a esquina da casa, até que, através da janela da sala de música, pôde ver Irene ao piano, com a luz da lâmpada banhando-lhe os cabelos empoados. Parecia absorta, os olhos escuros fixados diante de si, as mãos indolentes. Jolyon viu-a erguer as mãos e apertá-las ao peito. «É em Jon que ela pensa», murmurou ele. «Tudo para Jon! Eu estou a morrer longe dela - é natural!»

E, procurando cuidadosamente não ser pressentido, afastou-se dali.

No dia seguinte, depois de uma noite má, sentou-se para realizar a sua tarefa, e escreveu dificilmente, com inúmeras rasuras:

 

       Meu filho muito querido,

Você já tem bastante idade para compreender como é difícil para os velhos abrirem-se com os mais novos. Especialmente quando - como é o meu caso e o de sua mãe, embora eu sempre tenha pensado nela como uma moça - os nossos corações pertencem àquele a quem nos devemos confessar. Não posso dizer que tenhamos consciência de haver propriamente pecado - na vida real os homens raramente pecam, creio eu -, mas muita gente dirá que nós pecámos, e, através de todos os acontecimentos, a nossa conduta, errada ou não, pode servir-lhes de argumento, A verdade é que, meu querido, nós ambos temos o nosso passado - passado que me cabe agora revelar-lhe, já que ele tão profundamente e tão dolorosamente afecta o seu futuro. Há muitos, muitos anos atrás - em 1883, com efeito, quando tinha apenas vinte anos -, sua mãe teve a desventura de fazer um casamento infeliz... não comigo, Jon. Sem dinheiro, entregue a uma madrasta - parente próxima de Jezabel -, era muito infeliz em casa, em solteira. Foi com o pai de Fleur - meu primo Soames Forsyte - que ela casou. Ele perseguiu-a tenazmente e - é preciso dizer para lhe fazer justiça - amou-a profundamente. Com uma semana de casada, já ela compreendera o tremendo engano em que caíra. Não era culpa dele; fora um erro de julgamento dela - a sua má sorte.

 

Até então, Jolyon assumira um certo tom de ironia, mas agora o assunto arrastava-o.

 

Jon, eu quero explicar-lhe, se o puder - e isso é dificílimo -, como é que um casamento infeliz, igual a esse, pode ser tão facilmente realizado. Você dirá, naturalmente: «Se ela não o amava, como pôde casar com ele?» Você teria razão, se não fossem uma ou duas terríveis considerações. Desse engano inicial dela todos os desastres subsequentes, dores e tragédias decorreram, de forma que tenho de o esclarecer. Você sabe, Jon, que, naquele tempo, e mesmo hoje em dia - com efeito, apesar de tudo o que se diz sobre esclarecimento, não sei como poderia ser diferente -, muitas raparigas casam-se ignorantes do lado sexual da vida. E, mesmo quando sabem o que ele significa, nunca o experimentaram. E isso é crucial. E é a falta de experiência, apesar de todo o conhecimento verbal que tenham, que constitui toda a diferença e todo o perigo. um grande número de casamentos - e o de sua mãe foi um deles - as moças não sabem, nem podem saber, se amam ou não o homem com quem casam. E não o saberão até que se consume o acto de união que constitui a realidade do casamento. Em muitos casos, talvez nos mais duvidosos, esse acto cimenta e fortalece a inclinação recíproca, mas noutros casos - e o de sua mãe foi um desses - ele é a revelação de um engano, a destruição de toda a atracção que pudesse existir antes. Não há nada mais trágico na vida de uma mulher que tal revelação, tornando-se cada dia, cada noite, mais clara. Gente sem sentimentos e sem miolos está sempre pronta a rir desses enganos e a dizer: «Tanto barulho por nada!» Gente de mentalidade estreita e severa, capaz apenas de julgar a vida dos outros pela sua própria, está pronta para condenar aqueles que cometem esse trágico erro - condená-los perpetuamente à prisão que eles arranjaram para si próprios. Você conhece a expressão: «Quem faz a cama, deita-se nela!» É uma expressão indecorosa, indigna na verdade de um gentleman ou de uma senhora, na verdadeira acepção dessas palavras., e não posso fazer-lhes mais dura condenação. Eu não fui o que se chama um homem "moral", mas não quero dizer-lhe qualquer palavra que o induza a pensar levianamente acerca de compromissos ou contratos a que você se obrigue. Deus não o permita! Porém, com a experiência da vida por trás de mim, ouso dizer que aqueles que condenam as vítimas desses trágicos enganos, que as condenam sem lhes estenderem a mão em socorro, são desumanos, ou sê-lo-iam se possuíssem compreensão para entender o que estão a fazer. Mas não têm essa compreensão! Deixá-los! São para mim tão excomungados como eu o sou para eles. Fui obrigado a dizer isto tudo porque o vou colocar numa situação em que você será obrigado a julgar sua mãe, e você é muito jovem e sem nenhuma experiência do que é a vida. Mas continuemos a história. Depois de três anos de esforços para dominar a sua resistência - eu ia a dizer a sua repulsa, e a palavra não era forte de mais, porque a resistência depressa se transforma em repulsa, sob certas circunstâncias -, três anos que, para uma natureza sensível e apaixonada da beleza como a de sua mãe, constituíram um tormento, ela encontrou um rapaz que por ela se apaixonou. Foi ele o arquitecto desta casa em que moramos, que a construiu para que ela e o pai de Fleur aqui morassem - nova prisão para Irene, em lugar da outra em que habitava, em Londres. Talvez esse facto tenha desempenhado um certo papel no que aconteceu depois, mas, de qualquer modo, ela também se apaixonou por ele. Sei que não preciso de lhe explicar que ninguém escolhe precisamente aquele por quem se apaixona. Isso acontece. Muito bem! Pois aconteceu. Posso imaginar - embora ela nunca me tenha dito muito a esse respeito - a luta que então a possuiu, porque, Jon, ela fora educada severamente e não tinha ideias ousadas - absolutamente. De qualquer modo, tudo isso foi vencido e eles amaram-se de facto tanto quanto se amavam em espírito. Então aconteceu uma espantosa tragédia. Tenho de lhe falar disso, porque, se o não fizer, você nunca poderá compreender a situação que vai encarar. O homem com quem ela casara - Soames Forsyte, o pai de Fleur-, certa noite, no auge da paixão dela por aquele rapaz, exerceu à força os direitos que tinha sobre a mulher. No dia seguinte ela encontrou o amante e contou-lhe o que houvera. Se ele se suicidou, ou se foi morto acidentalmente, no desespero em que estava, nós nunca o soubemos. Mas morreu! Pense em como estaria sua mãe na noite em que soube dessa morte. Aconteceu-me vê-la. Seu avô tinha-me mandado oferecer-lhe algum auxílio, se fosse possível. Mal a vi, antes que a porta me fosse batida na cara pelo marido. Mas nunca lhe esqueci o rosto, e agora mesmo o vejo. Eu ainda não a amava então. Só doze anos depois a amei, mas nunca o esqueci. Meu filho querido, não é fácil escrever isto. No entanto, você vê que é minha obrigação. Sua mãe absorveu-se completamente em você, inteiramente, apaixonadamente. Não quero falar com rudeza acerca de Soames Forsyte. Não penso mal dele. Durante muito tempo lamentei-o; talvez o lamente mesmo agora. Segundo o julgamento do mundo, ela é que errava, ele é que estava no seu direito. Ele amava-a - ao seu modo. Ela era propriedade dele. É essa a compreensão que ele tem da vida, dos sentimentos e dos corações humanos: propriedade. Não era culpa dele - trouxera isso ao nascer. A mim tal ponto de vista sempre me causou horror - e sinto isso também desde que nasci. E, conhecendo a si como conheço, creio que o abominará tal como eu. Deixe-me continuar a história. Sua mãe fugiu de casa do marido nessa noite, e durante doze anos viveu silenciosamente, só, sem companhia de qualquer espécie, até que em 1899 o marido dela - você vê que ele ainda era marido dela, pois não quisera divorciar-se, e ela, evidentemente, não podia requerer o divórcio -, o marido dela, pois, começou a sentir a falta de descendência, e iniciou uma longa tentativa para induzi-la a voltar para casa e dar-lhe um filho. Eu era então procurador de Irene, em cumprimento do testamento do seu avô, e assisti a isso tudo. E, enquanto assistia, afeiçoei-me a ela, afeiçoei-me apaixonadamente. A pressão do marido aumentou, até que um dia ela me procurou e entregou-se praticamente à minha protecção. O marido, que vivia informado de todos os movimentos dela, tentou separar-nos, ameaçando-nos com um processo de divórcio. Não sei se realmente tencionava fazê-lo, mas, de qualquer modo, os nossos nomes estavam publicamente reunidos. Isso decidiu-nos e unimo-nos realmente. Veio o divórcio, ela casou comigo, você nasceu. Temos vivido em perfeita felicidade - eu pelo menos tenho, e creio que sua mãe também tem sido feliz. Soames, pouco depois do divórcio, casou com a mãe de Fleur, e ela nasceu. É esta a história, Jon. Contei-lha porque, dada a afeição que, segundo vimos, você concebeu pela filha daquele homem, está a caminhar cegamente para o que mais radicalmente destruirá a felicidade de sua mãe, se não a sua própria. Não falo em mim, porque na minha idade não adianta pensar que ocuparei lugar ainda muito tempo - e, aliás, o que eu sofrer, principalmente, será por causa dela e por sua causa. Porém, o que eu quero que você compreenda bem é esse sentimento de horror e de aversão que não é dos que podem ser enterrados ou esquecidos. Ainda hoje estão muito vivos dentro de sua mãe. Ainda ontem, no Lord's, avistámos por acaso Soames Forsyte. E o rosto dela, se você o tivesse visto, convencê-lo-ia. A ideia de o ver casado com a filha daquele homem é um pesadelo para sua mãe, Jon. Nada tenho a dizer contra Fleur, senão que ela é filha dele. Mas seus filhos, se casar com ela, serão os netos de Soames, do homem que possuiu um dia sua mãe como se possui uma escrava. Pense no que isto significa. Por esse casamento, ingressará no campo dos que mantiveram sua mãe prisioneira, dos que lhe devoraram o coração. Você está apenas no limiar da vida, só conhece essa moça há dois meses, e, por mais profundamente que imagine amá-la, suplico-lhe que rompa tudo - imediatamente.

Não proporcione a sua mãe essa mágoa tremenda, essa humilhação para todo o tempo que lhe restar de vida. Embora ela sempre me tenha parecido jovem, já tem cinquenta e sete anos. Excepto nós dois. ela não tem ninguém no mundo. Breve apenas terá a si. Tome coragem, jon, e rompa. Não ponha essa nuvem, essa barreira, entre vocês dois. Não despedace o coração de sua mãe! Deus o abençoe, meu querido filho, e perdoe-me a mágoa que lhe causará esta carta. Nós tentámos poupá-lo a isso, mas, ao que parece, a Espanha de nada serviu.

             Seu pai afectuoso, Jolyon Forsyte

 

Depois de terminar a sua confissão, Jolyon, com a magra face encostada à mão, releu-a toda. Havia ali coisas que o magoavam muito quando evocava Jon a lê-las - e isso quase o fez rasgar a carta. Falar de tais coisas a um rapaz - seu próprio filho -, falar delas em relação à sua própria mulher, à própria mãe do rapaz, parecia pavoroso à alma pouco expansiva de um Forsyte. Mas, sem falar delas, como faria Jon compreender a realidade, a profunda ferida, a inapagável cicatriz? Sem isso, como justificar essa interferência no amor do filho? Seria então melhor não escrever nada!

Dobrou a confissão e guardou-a no bolso. Era sábado, graças a Deus! Tinha até domingo à tarde para reflectir naquilo, porque, mesmo que a pusesse no correio hoje, apenas chegaria às mãos de Jon na segunda-feira. E ele sentiu um curioso alívio ante esse adiamento e ante o facto de, posta ou não no correio, a carta já estar escrita.

No roseiral, que tomara o lugar da velha fernery, viu Irene com a tesoura de poda na mão e uma cestinha no braço. Nunca estava inactiva, e ele, que já não se ocupava em nada, invejava-a. Caminhou até ela. Irene arrancou a luva encardida e sorriu. Uma écharpe de renda, atada sob o queixo, escondia-lhe os cabelos e o seu rosto oval parecia ainda muito jovem.

- As pragas estão terríveis este ano, e ainda faz frio. Você está com o ar abatido, Jolyon.

Jolyon tirou do bolso a confissão.

- Estive a escrever isto. Creio que deve ler.

- Para Jon? - O rosto de Irene mudou inteiramente no mesmo instante, ficando quase desvairado.

- Sim. Descubro o crime todo.

Entregou o escrito à mulher e pôs-se a passear por entre as roseiras. Depois, vendo que acabara a leitura e continuava imóvel com as folhas da carta encostadas à blusa, voltou para junto dela.

- E então?

- Está maravilhosamente dito. Não sei como poderia ser contado de melhor maneira. Obrigada, querido.

- Há aí alguma coisa que você quereria que fosse omitido? Ela abanou a cabeça.

- NãO. ele tem de saber tudo, se quisermos que compreenda.

- Foi o que pensei... mas... odeio isso!

Ele tinha o sentimento de que odiava aquilo mais que ela. Para ele, o sexo era muito mais fácil de mencionar entre homem e mulher do que entre homem e homem, e ela sempre fora mais natural e franca, nunca tão profundamente fechada como a sua própria alma de Forsyte.

- Não sei ainda se Jon comprenderá. mesmo agora, Jolyon. Ele é tão novo; choca-se sempre ante o lado físico das coisas.

- Herdou isso do meu pai, que era pudico como uma donzela a esse respeito. Seria melhor reescrever tudo e contar-lhe apenas que você odeia Soames?

Irene abanou a cabeça.

- Ódio é apenas uma palavra. Não serve absolutamente. Não. é melhor como está.

- Muito bem. Mandarei amanhã.

Ela estendeu o rosto para Jolyon e, ante as inúmeras janelas cobertas de trepadeiras da grande casa, ele beijou-a.

 

CONFISSÃO

No fim daquela mesma tarde, Jolyon adormeceu na velha cadeira de braços. Tinha nos joelhos La Rotisserie de La Reine Pédauque e pouco antes de dormir pensara: «Será que um povo como o nosso nunca poderá gostar sinceramente dos Franceses? E eles poderão alguma vez gostar de nós?» Quanto a si, sempre apreciara os Franceses, dando-se perfeitamente com o espírito, com o gosto e com a cozinha francesa. Irene e ele haviam feito muitas visitas à França antes da guerra, quando Jon estava no colégio interno. O seu romance com ela começara em Paris - o seu último e mais duradouro romance. Mas os Franceses - nenhum inglês pode gostar deles se não souber vê-los de certo modo sob os olhos desprendidos da estética! E, ante essa melancólica conclusão, acabou por adormecer.

Quando acordou, viu Jon, de pé, entre a caldeira e a janela. O rapaz evidentemente entrara pelo jardim e estava à espera de que ele acordasse. Jolyon sorriu, ainda meio adormecido. Como era agradável olhá-lo - sensível, afectuoso, correcto! E então o seu coração deu um salto louco e um tremor possuiu-o. Jon! Aquela confissão! Controlou-se com esforço.

- Então, Jon, donde veio?

Jon inclinou-se e beijou-lhe a testa, sendo só então que ele percebeu a expressão do rosto do rapaz.

- Voltei para lhe falar numa coisa, papá.

Com toda a sua vontade, Jolyon tentava dominar a sensação de sobressalto, de borbotão, dentro do seu peito.

- Bem, sente-se, meu velho. Já viu sua mãe?

- Não.

O rubor do rapaz deu lugar à palidez. Sentou-se no braço da velha cadeira, como outrora Jolyon costumava sentar-se ao lado do pai, instalado no seu regaço. Até que chegasse o dia da ruptura de relações entre ambos, ele costumava instalar-se ali - e chegara agora idêntico momento, com o seu próprio filho! Durante a vida inteira odiara cenas, evitara disputas, seguira calmamente o seu caminho e deixara cada um seguir o seu. Mas agora- parecia que exactamente no fim de tudo - tinha diante de si uma cena muito mais penosa que todas as que evitara. Mascarou a sua emoção e esperou que o filho falasse.

- Papá - disse Jon suavemente -, Fleur e eu estamos noivos.

- Realmente! - exclamou Jolyon, respirando com dificuldade.

- Sei que o papá e a mamã não aprovam. Fleur disse-me que a mamã foi noiva do pai dela antes de casar consigo. É claro que não sei o que aconteceu, mas isso já se deu há séculos. Gosto imenso dela, papá, e ela diz que também gosta de mim do mesmo modo.

Jolyon abafou um murmúrio, meio riso, meio gemido.

- Você tem dezanove anos, Jon, e eu tenho setenta e dois. Como poderemos entender-nos num assunto como este?

- O papá ama a mamã, e deve compreender o que sentimos e que não será fácil para nós consentirmos que velhas coisas estraguem a nossa felicidade.

Posto diante da necessidade da sua confissão, Jolyon resolveu-se a executá-la de qualquer modo. E levou a mão ao braço do filho.

- Ouça, Jon! Eu poderia responder dizendo que vocês ambos são muito moços e ainda não sabem o que querem, e tudo o mais. Mas vocês não me escutariam. Aliás, tem de ser assim, pois, infelizmente, a juventude deve aprender por si. Você fala levianamente a respeito dessas «velhas coisas», não sabendo nada, como o confessa, nada do que aconteceu. E agora escute: já lhe dei alguma razão de dúvida do meu amor por si ou da minha palavra?

Num momento menos angustioso, ele ter-se-ia divertido com o conflito que as suas palavras despertavam - o abraço enérgico do filho como resposta às suas perguntas e o receio que se lia no rosto do rapaz, receio do que aquela resposta poderia trazer de volta -, mas apenas pôde sentir-se grato pelo amplexo.

- Pois então pode acreditar no que lhe digo. Se você não liquidar esse namoro, tornará sua mãe desgraçada enquanto ela viver. Acredite-me, meu filho, o passado não pode ser enterrado, seja ele qual for... não o pode, com efeito.

Jon saiu do braço da cadeira.

«É a pequena que está diante dele», pensava Jolyon, «como uma verdadeira imagem da vida: ardente, linda, apaixonada!»

- Não posso, papá. Como poderia eu... só porque o papá diz isso? É claro que não posso!

- Jon, se conhecesse a história, acabaria com isso tudo sem hesitação. E deve fazê-lo! Não me acredita?

- Como pode dizer o que pensarei? Papá, eu amo essa moça mais que a tudo no mundo.

O rosto de Jolyon crispou-se, e ele disse com dolorosa lentidão:

- Mais que à sua mãe, Jon?

Pelo rosto do rapaz, pelos seus punhos cerrados, Jolyon pôde perceber a luta em que ele se debatia.

- Não sei - exclamou Jon -, não sei! Mas abandonar Fleur por nada, por algo que eu não posso compreender, por uma coisa que eu não acredito possa significar tanto assim, isso faria... faria...

- Faria você considerar-nos injustos ao pormos uma barreira... sim. Mas é melhor que continuar com isso.

- Não posso. Fleur ama-me, eu amo-a. Querem que eu confie em vocês. Porque não confia em mim, papá? Nós não quereríamos saber de nada., não deixaríamos que isso trouxesse a menor diferença. Apenas aconteceria que amaríamos o papá e a mamã com redobrado amor.

Jolyon levou a mão ao bolso do peito, mas retirou-a de lá ainda vazia, e disse, sentindo a língua meio entravada:

- Pense no que sua mãe tem sido para si, Jon! Ela não tem ninguém além de si. Eu não durarei muito mais tempo!

- Porque não? Não deve apelar para... Porque não?

- Porque - disse friamente Jolyon - os médicos me disseram que não viverei. Só por isso.

- Oh, papá! - exclamou Jon, rompendo em lágrimas. Aquele pranto do filho, que ele não via chorar desde que

passara os dez anos de idade, comoveu terrivelmente Jolyon. Reconhecia amplamente como era afectuoso o coração do rapaz, quanto estava ele fadado a sofrer naquele caso e na vida em geral. E estendeu desamparadamente a mão - não desejando e, na verdade, não ousando levantar-se.

- Meu velho - disse ele -, não faça isso, você vai fazer-me mal!

Jon dominou o seu paroxismo e ficou imóvel, com o rosto desviado do pai.

«E agora?», pensava Jolyon. «Que poderei dizer para o persuadir?

- Aliás, peço-lhe que não fale nisso à sua mãe. Basta este seu caso para a afligir. Compreendo como é que você se sente. Mas, Jon, você conhece-nos muito bem para compreender que não seríamos capazes de pretender roubar-lhe a sua felicidade levianamente. Porque, meu filho, nós apenas nos preocupamos com a sua felicidade. Isto é... eu só cuido de você e de sua mãe, e ela só de si. E é todo o futuro de vocês ambos que está em risco.

Jon voltou-se. Tinha o rosto mortalmente pálido. Os olhos, enterrados nas órbitas, pareciam arder.

- Que é? Mas que é? Não me tratem dessa maneira! Jolyon, que compreendeu que estava batido, meteu a mão

no bolso do peito e ficou um momento imóvel, respirando com dificuldade, os olhos fechados. Um pensamento atravessou-lhe o espírito: «Já tive muitos momentos amargos - mas este é o pior!» Depois retirou a mão, trazendo a carta, e disse, com uma espécie de fadiga:

- Bem, Jon, se você não houvesse chegado hoje, eu ter-lhe-ia mandado isto. Eu quis poupá-lo, quis poupar sua mãe e a mim, mas vejo que não posso. Leia e medite, enquanto vou ao jardim.

- E tentou levantar-se.

Jon, que recebera a carta, disse rapidamente:

- Não, vou eu. - E saiu.

Jolyon reclinou-se na cadeira. Uma mosca escolheu aquele momento para vir zumbir em torno dele com uma espécie de fúria. O som era rude, mas era melhor que nada. Para onde teria ido o rapaz ler a carta? A desgraçada carta - a desgraçada história! Um caso cruel - cruel para Irene, cruel para Soames, para aqueles dois meninos, para ele próprio! O coração batia-lhe desordenadamente, doía-lhe. A vida: amor, trabalho, beleza, dor - e fim! Um bom tempo, um lindo tempo, a despeito de tudo, até... que uma pessoa lamente mesmo ter nascido. A vida despedaça-nos, mas, mesmo assim, não nos traz vontade de morrer - e esse é o pior mal! Que erro ter um coração! Novamente a mosca recomeçou a zumbir, trazendo consigo todo o calor e o aroma do Verão

- sim, até mesmo o aroma de frutos maduros, ervas ressequidas, arbustos cheios de seiva, o hálito de baunilha das vacas. E lá fora, no meio dessas fragrâncias, Jon deveria estar a ler a carta, virando e amarrotando as páginas na sua perturbação - desvario e perturbação-, despedaçando o coração com aquilo! E esse sentimento fez que Jolyon se sentisse agudamente infeliz. Jon tinha o coração tão afectuoso e tão terno, era ao mesmo tempo tão consciencioso-e aquilo era tão injusto, tão injusto! Lembrava-se de que Irene lhe dissera certa vez: «Nunca nasceu ninguém mais amante e mais amável que Jon!» Pobre Jon! O seu mundo derruído inteiramente, a meio daquela tarde de Verão! A juventude sofre tanto com tudo! E, magoado, atormentado por aquela visão da juventude a sofrer, Jolyon ergueu-se da cadeira e caminhou para a janela. Mas não viu o filho. E Jolyon saiu para o jardim. Se alguém pudesse ajudá-lo!

Passou pelo bosquete, olhou para o jardim murado - nem sinal de Jon! Nem no pomar, onde as pêras e os damascos começavam a tomar cheiro e cor. Passou pelas árvores exóticas do pequeno prado, escuras e espiraladas. Para onde teria ido o rapaz? Teria ido até ao bosque - o seu velho campo de caça? Jolyoa passou junto às medas de feno - tinham de fazer secar melhor o feno e guardá-lo antes que a chuva o estragasse. Quantas vezes pai e filho haviam atravessado aquilo juntos, de mãos dadas, quando Jon era ainda um garoto! Ai dele! A idade de ouro acaba quando se completa dez anos! Chegou ao tanque, onde brincavam moscas e libélulas sobre a superfície lustrosa, semeada de juncos. Depois entrou no bosque. Estava frio, com um cheiro de relva. E nada de Jon! Chamou. Não recebeu resposta. Sentou-se no velho tronco derrubado, inquieto, esquecendo as suas próprias dores físicas. Fizera mal em deixar o rapaz sair com aquela carta. Devia tê-lo guardado sob a sua vista enquanto lia! E, perturbadíssimo, pôs-se a desandar o seu caminho. Nos estábulos chamou ainda e olhou para dentro da escura vacaria. Lá, no frio, no cheiro de baunilha e amónia, livres das moscas, as três vacas Alderney ruminavam silenciosamente. Acabavam de ser ordenhadas e espe-ravam que as levassem de novo para o campo de baixo. Uma delas virou a cabeça indolente, o olho lustroso, e Jolyon pôde ver-lhe a baba a escorrer do beiço escuro. Via tudo com uma apaixonada nitidez, na agitação dos seus nervos, tudo aquilo que, no seu tempo, ele adorara e tentara pintar - maravilha de luz, de forma e de cor. Não era de admirar que a lenda houvesse posto Cristo numa manjedoura - que coisa mais devota há que os olhos e os chifres lunares de uma vaca que rumina à sombra tépida! Chamou de novo. Nenhuma resposta! E saiu quase a correr do estábulo., passou o tanque, subiu a encosta. Era curiosamente irónico como pensara logo que Jon Iria devorar a carta reveladora naquele mesmo bosque onde sua mãe e Bosinney haviam outrora descoberto que se amavam! Onde ele próprio, sentado no velho tronco, numa manhã de domingo., ao voltar de Paris, descobrira que Irene valia para ele o mundo inteiro! E ali seria o lugar que a ironia escolhera para tirar o véu de diante dos olhos do filho de Irene! Mas Jon não estava lá! Para onde teria ido? Era preciso encontrar o pobre rapaz!

Um fulgor de sol banhava tudo. ampliando a beleza da tarde, das altas árvores com as suas sombras compridas, das nuvens azuis e brancas, do cheiro do feno, do arrulho dos pombos. E as folhas estiravam-se nos caules rijos. Jolyon entrou no roseiral, e a beleza das rosas naquele sol inesperado parecia quase extraterrena. «Rosas, sóis, espanholas!»

Palavras maravilhosas! Fora ali que ela parara, junto àquela moita de rosas vermelho-escuras, para ler a carta e decidir que Jon deveria tomar conhecimento de tudo! E agora ele sabia de tudo! Seria que ela decidira mal? Inclinou-se e cheirou uma rosa, e as pétalas da flor roçaram-lhe o nariz e os lábios trémulos. Nada há mais suave no mundo que a pétala aveludada de uma rosa - salvo o colo dela, de Irene! E Jolyon caminhou através do relvado, em direcção ao carvalho. O cimo da árvore ainda brilhava, pois o Sol escondia-se por trás da casa. A sombra debaixo dele era espessa, abençoadamente fria - e ele estava esfalfado. Parou um momento, com a mão na corda do balouço. Joly, Holly, Jon! O velho balouço! E de súbito sentiu-se horrivelmente, mortalmente doente. «Fatiguei-me de mais», pensava ele. «Por Júpiter! Fatiguei-me de mais!» Atravessou o terraço, arrastou-se nos degraus e caiu contra a parede da casa, com o rosto encostado à madressilva, com a qual ela e ele tinham gasto tantos cuidados. E o cheiro das flores misturava-se à dor que sentia. «Meu amor», pensou ele, «e o meu filho!» E, com um grande esforço, arrastou-se ainda através da varanda e caiu na cadeira do velho Jolyon. O livro estava lá, um lápis dentro dele. Agarrou-o, escreveu uma palavra na página aberta... A sua mão caiu... Era então assim... era assim?

Veio-lhe um grande arquejo - depois, a escuridão.

 

IRENE

Quando Jon correu para fora, com a carta na mão, atravessou o terraço e dobrou a esquina da casa, presa do medo e da confusão. E, encostado à parede, segurou a carta. Era longa, longa! Aquilo aumentou-lhe o medo, e ele começou a ler. Quando chegou às palavras «Foi com o pai de Fleur que ela casou», tudo se pôs a girar em frente dele. Estava junto a uma porta, e, atravessando a sala de música e o hall, subiu ao seu quarto. Depois de molhar o rosto com água fria, sentou-se na cama e continuou a leitura, depondo cada página já lida no colchão, ao seu lado. A caligrafia do pai era fácil de ler - conhecia-a tão bem, embora nunca houvesse recebido uma carta dele que tivesse nem um quarto do tamanho daquela. Leu-a com o espírito meio obnubilado, a imaginação a trabalhar apenas pela metade. O que mais o impressionara na primeira leitura fora a dor que deveria ter custado ao pai escrever tal carta. Deixou cair a última página e, numa espécie de desamparo moral e mental, voltou à primeira folha. E tudo lhe parecia repulsivo - morto e repulsivo. Então, de repente, uma onda ardente de horrorizada emoção ressoou dentro dele. Escondeu o rosto nas mãos. Sua mãe! E o pai de Fleur! Agarrou de novo a carta e continuou a ler, mecanicamente. E novamente lhe veio o sentimento de que tudo aquilo era repulsivo e morto. O seu amor era tão diferente!

Aquela carta dizia que sua mãe... e o pai dela! Uma carta pavorosa: Propriedade! Haveria realmente homens que olhassem para as mulheres como para propriedades suas? Caras vistas na rua e no campo apinhavam-se diante do rapaz, caras vermelhas, caras magras, ásperas, estúpidas, caras afectadas, secas, violentas - centenas, milhares delas! Como podia ele saber o que pensariam, o que fariam os homens donos daquelas caras?

Segurou a cabeça entre as mãos e pôs-se a gemer. A sua mãe! Agarrou a carta e releu: «Horror e aversão - vivos nela ainda hoje.,, seus filhos... netos... de um homem que possuiu um dia sua mãe como se possui uma escrava.» Levantou-se da cama. Aquele passado cruel e sombrio, emboscando-se assim para matar o seu amor e o de Fleur, tinha de ser verdadeiro, ou nunca o seu pai o teria escrito. «Porque não me contaram eles tudo?», pensava Jon. «no dia em que vi Fleur pela primeira vez? Eles sabiam que eu a tinha visto. Tiveram medo, e agora - eu já teria vencido isso!» Dominado por um sentimento de infelicidade grande de mais para permitir um pensamento ou um raciocínio, deixou-se cair num canto escuro do quarto e ficou sentado no soalho. Ficou ali como um animalzinho infeliz. Havia uma certa consolação na escuridão e no soalho - como se houvesse voltado ao tempo em que travava as batalhas dos seus soldados naquele mesmo chão. Deixou-se estar sentado ali, desordenadamente, os cabelos arrepiados, as mãos enroladas em torno dos joelhos, nem soube por quanto tempo. E foi acordado da sua desgraça pelo som da porta que dava para o quarto da mãe e que se abria.

O quarto, fechado na ausência dele, tinha ainda as cortinas corridas e donde ele estava apenas podia ouvir um roçagar de saias, os passos dela. Depois viu-a parar defronte à mesa de toilette. Trazia qualquer coisa na mão. Ele mal respirava, esperando que ela não o visse e se fosse embora. Viu-a tocar os objectos da mesa, como se eles guardassem em si alguma virtude especial e depois viu-a olhar para a janela - cinzenta da cabeça aos pés, como um fantasma. Se desse uma pequena volta à cabeça, poderia vê-lo! E os lábios de Irene moveram-se: «Oh, Jon!» Falava consigo própria e o tom da sua voz perturbou o coração do filho. Viu na mão dela uma pequena fotografia. E Irene aproximou-a da luz, olhando-a - tão pequena, Jon conhecia-a - era um retrato seu quando menino, que ela sempre trazia na bolsa. O coração batia-lhe mais depressa. E subitamente, como se o ouvisse, Irene volveu os olhos e viu Jon. Ante o arquejo que ela soltou e o movimento das mãos apertando o retrato contra o peito, ele disse:

- Sim, sou eu.

Ela caminhou para a cama e sentou-se ali, junto dele, as mãos ainda apertadas ao peito, os pés entre as folhas da carta que haviam escorregado para o chão. Jon olhou-a: agora as suas mãos agarravam-se ao espaldar da cama. Sentava-se muito erecta, os olhos escuros fixos nele.

- Bem, Jon, vejo que já sabe - disse finalmente.

- Sim.

- Esteve com seu pai?

- Sim.

Houve um longo silêncio, até que ela disse:

- Oh, meu querido!

- Está tudo bem.

As emoções, dentro dele, eram tão violentas e tão confusas que não ousava comover-se, apenas sentindo ressentimento, desespero, e ao mesmo tempo o estranho alívio provocado pela mão da mãe na sua fronte.

- Que é que vai fazer?

- Não sei.

Houve um novo silêncio, e então ela levantou-se. Ficou um momento parada, imóvel, fez um pequeno movimento com a mão e disse:

- Meu filhinho querido, meu filho adorado, não pense em mim... pense só em si.

E, deslizando junto à cama, entrou no seu quarto.

Jon voltou-se, enrolado numa espécie de bola, como um ouriço, no canto da parede.

Devia ter passado uns vinte minutos assim, quando um grito chegou até ele. Vinha do terraço, lá em baixo. Ergueu-se, assustado. E novamente ouviu o grito:

- Jon!

Era sua mãe que o chamava! Atirou-se pela escada, atravessou a sala de jantar vazia e entrou no escritório. Irene ajoelhara-se defronte da velha cadeira de braços, e seu pai estava reclinado, muito branco, a cabeça no peito, uma das mãos caída sobre um livro aberto, com um lápis preso entre os dedos - a coisa mais estranha que ele jamais vira. Irene olhou em torno, perdidamente, e disse:

- Oh, Jon, ele está morto... morto!

Jon lançou-se de joelhos, e, agarrando-se ao braço da cadeira onde se sentara há pouco, beijou a testa do pai. Fria de gelo, Como era possível - como seria possível que o pai estivesse morto, quando apenas uma hora antes... Os braços da mãe rodeavam os joelhos do morto e ela apertava o peito contra eles. «Porque não estava eu junto dele?», ouviu-a murmurar. Então Jon viu a palavra, "Irene" trèmulamente riscada na página aberta. - e aquilo acabou de o derrubar.

Era a primeira vez que via um homem morto, e aquela inalterável imobilidade bloqueava nele qualquer outra emoção. Tudo o mais, então, nada era senão o preparativo daquilo! Todo o amor, toda a vida, a alegria, a inquietação, a tristeza, todo o movimento, luz e beleza, não eram mais que o começo daquela terrível imobilidade! E aquilo traçou uma assustadora marca dentro dele. De repente, tudo lhe parecia pequeno, fútil, mesquinho. Conseguiu por fim dominar-se e ergueu a mãe.

- Mamã! Não chore, mamã!

Algumas horas depois, quando tudo o que se devia fazer fora feito e sua mãe estava deitada, ele ficou sozinho com o pai agora deitado na cama, coberto por um lençol branco. Longamente esteve olhando aquele rosto que nunca se mostrara colérico - sempre espiritual e bondoso. «Ser bom, e não desanimar até ao fim - nada mais há além disso», ouvira o pai dizer certa vez. E como Jolyon realizara maravilhosamente essa filosofia! Compreendia agora que o pai há muito tempo sabia que o fim chegaria subitamente - sabia-o, e não dissera uma palavra. E o filho fitava-o com uma assustada e apaixonada reverência. A solidão daquela ameaça - para poupar a mãe dele, Jon. E os seus desgostos pareciam-lhe pequenos enquanto olhava aquele rosto. A palavra escrita na página do livro! A palavra de adeus!

Agora sua mãe não tinha ninguém além do filho. jon aproximou-se da face morta, sem nenhuma mudança, na verdade, e no entanto absolutamente mudada. Ouvira uma vez o pai dizer que não acreditava em sobrevivência depois da morte, ou, se isso acontecia, deveria ser uma sobreviência que só ia até que o natural limite de idade do corpo fosse atingido - o termo natural da vitalidade inerente. Assim, se o corpo era esmagado por um acidente, por um excesso, por uma doença repentina, a consciência deveria persistir até que a Natureza, no seu curso, interferisse com ela e naturalmente a apagasse. Aquilo impressionara-o, porque nunca ouvira nenhuma outra pessoa dizer uma coisa semelhante. E quando o coração falhava, como falhara em Jolyon - decerto a morte não era absolutamente natural! Talvez essa sobrevivência do espírito do pai ainda estivesse no quarto, junto dele. Sobre a cama, pendia um retrato do pai de seu pai, e talvez aquele também ainda sobrevivesse ali. E o seu irmão, o seu meio-irmão, que morrera no Transval? Estariam todos eles reunidos em torno daquela cama? Jon beijou a testa do pai e fugiu para o seu quarto. A porta que o separava do quarto da mãe estava entreaberta. Ela evidentemente estivera ali - tudo estava pronto a esperá-lo, até mesmo alguns biscoitos e leite morno, e a carta já não jazia no chão. Jon comeu os biscoitos e bebeu o leite, vendo a última luz apagar-se. Não procurava olhar para o futuro - fitava apenas os ramos escuros do carvalho que ficavam ao nível da sua janela e sentia-se como se a vida houvesse parado de súbito.

Uma vez, durante a noite, revolvendo-se no seu sono pesado, teve a noção de que algo branco e imóvel estava diante da sua cama e levantou-se.

- Sou eu, Jon, meu querido - disse a voz da mãe.

A mão dela empurrou-lhe docemente a cabeça sobre o travesseiro e o vulto branco desapareceu.

Só! E novamente caiu pesadamente no sono, vendo em sonhos o nome da mãe gravado na madeira da sua cama.

 

SOAMES MEDITA

A notícia, publicada no Times, relativa à morte do seu primo Jolyon, afectou precariamente Soames. Então morrera! Em tempo algum, na vida de ambos, houvera estima entre um e outro. Esse sentimento ardente, o ódio, percorrera o seu caminho no coração de Soames, e ele, que se recusara a permitir alguma recrudescência, não podia entretanto deixar de considerar aquela morte prematura como uma prova de justiça poética. Durante vinte anos, aquele indivíduo gozara a reversão da sua mulher e da sua casa - e agora estava morto! O necrológio, que apareceu um pouco depois, consagrava a Jolyon, no seu julgamento, uma atenção excessiva. Falava daquele «diligente e agradável pintor, cujos trabalhos deviam ser encarados como exemplos típicos do que havia de melhor em aguarelas no último período vitoriano». .Soames, que quase mecanicamente preferia Mole, Morpin e Cawell Baye, e sempre fungara audivelmente quando encontrava um quadro do primo nalguma exposição, virou o Times com um estalar de folhas.

Tinha de ir à cidade naquela manhã para tratar de negócios dos Forsyte, e percebeu muito bem os olhares de viés que Gradman lhe atirou através dos óculos. O velho escrevente tinha em torno de si uma aura de condolências. Parecia cheirar a tempo antigo e podia-se quase ouvi-lo pensar: «Mr. Jolyon, sim... tinha exactamente a minha idade, e já se foi! Valha-me Deus! Ouso dizer que ela deve estar sentida.

Era uma mulher lindíssima! Não somos nada! E deram uma boa notícia sobre ele nos jornais. Imagine!» E o ambiente ali fez que Soames alinhavasse alguns empréstimos e conversões com excepcional rapidez.

- E quanto ao capital posto em nome de Miss Fleur, Mr. Soames?

- Pensei melhor acerca disso - respondeu Soames.

- Ah! Isso alegra-me. Sempre pensei que o senhor se tinha precipitado um pouco. Os tempos mudaram.

De que maneira Fleur seria afectada por aquela morte? Essa interrogação começava a perturbar Soames. Ele não tinha a certeza de que ela já soubesse a notícia. Mal lia os jornais, e, quando os lia, nunca olhava as notícias de nascimentos, casamentos e mortes.

Liquidou rapidamente o que tinha a fazer e dirigiu-se a Green Street, para o almoço. Winifred estava quase de luto e Jack Cardigan rebentara um guarda-lamas em condições péssimas e não estaria «em forma» durante algum tempo. Ela não conseguia habituar-se àquela ideia.

- Profond foi-se embora? - perguntou subitamente Soames.

- Foi-se embora - respondeu Winifred. - Mas para onde, não sei.

- Sim, com ele é impossível saber qualquer coisa! - Não que ele desejasse saber. As cartas de Annette vinham de Dieppe, onde ela e a mãe passavam uma temporada. - Viu a notícia da morte daquele indivíduo?

- Sim - disse Winifred-, e lamentei por... por causa dos filhos. Ele era muito afectuoso.

Soames abafou uma exclamação profunda. Sempre suspeitara de que os homens, neste mundo, são julgados antes pelo que são do que pelo que fazem, e esse sentimento veio de novo atormentá-lo.

- Sei que existia uma superstição acerca disso - resmungou.

- Temos de lhe fazer justiça, agora que ele está morto.

- Eu gostaria de lhe ter feito justiça antes - disse Soames. - Mas nunca tive essa oportunidade. Você tem aí um barone-tage?(1)

 

*1 Espécie de almanaque da nobreza. (N. da T.)

 

- Sim. naquela prateleira do fundo.

Soames agarrou um grosso livro vermelho e percorreu-lhe as páginas: Mont - Sir Lawrence - Nono baronete, nascido em 1620. filho de Sir Geoffrey, oitavo baronete, e de Lavinia, filha de Sir Charles Muskham, baronete de Muskham Hall. Casou em 1890 com Emily, filha de Conway Charwell, squire de Condaford Grange, Um filho e herdeiro, Michael Conway, nascido em 1895, duas filhas. Residência: Lippinghall Manar, Folwell, Bucks. Clubes: Snooks. Café: Aeroplane. Ver Bidlicott.»

- Hum!- resmungou Soames. - Você já conheceu algum editor?

- O tio Timothy.

- Vivo, quero dizer.

- Monty conheceu um no clube. Trouxe-o uma vez para jantar em casa. Mont)- pensou sempre em escrever um livro sobre o método de ganhar dinheiro no turf. E tentou interessar esse homem.

- E então?

- Deu-lhe o palpite de um cavalo, para o prémio de duas mil libras. Nunca mais o vimos. Era um homem fino, se bem me lembro.

-E ganhou?

- Não. Mas deve lembrar-se de que Monty era realmente muito entendido nessas coisas.

- Sim? Você consegue descobrir alguma conexão entre um baronete ainda de mama e uma casa editora?

- Hoje em dia, toda a gente faz qualquer espécie de coisa - respondeu Winifred. - A grande preocupação é não parecer indolente... tão diversa do nosso tempo. A regra, então, era não fazer nada. Mas creio que ela ainda voltará.

- Esse jovem Mont de quem estou a falar gosta muitíssimo de Fleur. Se fosse possível acabar com aquele outro assunto, eu animaria este.

- É um rapaz interessante?

- Não é um homem bonito, mas é agradável, um pouco cabeça de vento. Tem uma boa porção de terras, creio eu. E parece sinceramente afeiçoado à pequena. Mas não sei.

- Não - murmurou Winifred. - É muito difícil. Eu sempre

achei que não se deve fazer nada. Foi um aborrecimento, essa história de Jack. Apenas poderemos sair depois do feriado bancário. Afinal, essa gente vive a divertir-se. Irei ao Park olhá-los.

- Se fosse a si - disse Soames -, teria um cottage no campo, e viveria livre de cuidados com acidentes e feriados.

- O campo aborrece-me - respondeu Winifred - e acho os acidentes de estrada muito excitantes.

Ela sempre fora conhecida pelo seu sangue-frio.

Soames despediu-se. Durante todo o caminho de volta para Reading, debateu consigo se deveria ou não contar a Fleur a morte do pai do rapaz. Aquilo não alterava a situação - excepto que o tornaria independente e agora ele só teria de enfrentar a oposição da mãe. Iria entrar na posse de bastante dinheiro, talvez da casa - a casa construída para ele próprio e para Irene, a casa cujo arquitecto fora o causador da sua ruína doméstica. Sua filha - dona daquela casa! Isso seria uma justiça poética! E Soames abafou um pequeno riso irónico. Ele planeara aquela casa para restabelecer a sua união vacilante, destinara-a a ser a mansão dos seus descendentes - se pudesse induzir Irene a dar-lhe um descendente. O filho dela e Fleur! E os filhos deles seriam, de certo modo, a resultante da união entre Soames e Irene!

O teatralismo daquele pensamento era repulsivo à sua sobriedade. E, no entanto, era aquela a maneira mais fácil e mais segura de resolver o impasse, agora que Jolyon morrera. A reunião das fortunas de dois Forsyte tinha um traço de conservantismo encantador. E ela, Irene, mais uma vez estaria ligada a ele. Extravagância! Absurdo! Mas expulsou do pensamento aquelas cismas.

Ao chegar a casa, ouviu o bater das bolas de bilhar e, através da janela, viu o jovem Mont estirado sobre a mesa verde. Fleur, com o seu taco apoiado no quadril, olhava-o a sorrir. Como estava linda! Não era de admirar que o rapazinho estivesse doido por ela. Um título - e terras. Não que terras hoje em dia valessem muito, e talvez menos ainda um título. Os velhos Forsyte mostraram sempre uma certa espécie de desprezo por títulos - coisas remotas e artificiais que não valiam o dinheiro que custavam e dependiam da corte. Todos eles tinham esse sentimento em diferentes proporções... Soames lembrava-se bem. Swithin, com efeito, nos seus tempos mais expansivos, esperara uma «apresentação» na corte. Mas desistira, dizendo que não ia perder tempo com «aquelas ninharias». Desconfiou-se de que ele ficaria desproporcional de mais - gigantesco que era - em calções curtos e meias de seda-. Soames lembrava-se de quanto a mãe desejara ser apresentada, apetecendo as elegâncias da corte, e como o pai se opusera sempre a isso com invencível decisão. Que queria ela com aquele pavoneamento - só gastar tempo e dinheiro!

O instinto que deu e manteve a posse aos Comuns do principal poder do Estado - um sentimento de que o seu próprio mundo é bastante bom, e talvez um pouco melhor que qualquer outro, já que é o «seu mundo» - mantivera sempre os velhos Forsyte singularmente libertos dessas ninharias, como Nicholas costumava chamar a tais aspirações.

A geração de Soames, mais confiante em si e mais irónica, salvara-se graças à cómica evocação de Swithin em calções curtos. Quanto à terceira e à quarta geração, essa, segundo lhe parecia, ria de tudo.

Entretanto, não havia mal nenhum em que o rapaz fosse herdeiro de um título e de uma propriedade - coisa que ninguém pode evitar. E entrou silenciosamente na sala de jogo, exactamente quando Mont perdia a jogada.

Notou os olhos do rapaz, intensamente presos a Fleur, que se inclinava com o taco em riste - e a adoração que leu naqueles olhos quase o comoveu.

Ela parou, com o taco preso à mão, e sacudiu os caracóis do cabelo curto, castanho-escuro.

- Não consigo.

- Não perde nada em arriscar.

- Muito bem. - O taco avançou e a bola correu. - Lá está!

- Má sorte! Não se importe! Viram-no então, e Soames disse:

- Vou fazer as marcações.

Sentou-se na cadeira baixa junto ao quadro de marcações, correcto e cansado, estudando furtivamente aquelas duas caras jovens. Quando o jogo terminou, Mont dirigiu-lhe a palavra.

- Já comecei a trabalhar, sir. Jogo divertido os negócios, hem?

Creio que o senhor, como advogado, adquiriu uma boa experiência da natureza humana, não?

- É verdade.

- Vou dizer-lhe o que tenho notado: essa gente está inteiramente errada quando oferece menos do que pode dar. Deviam oferecer mais, e depois ir diminuindo a oferta.

Soames ergueu as sobrancelhas.

- E imagine que o máximo é aceite?

- Não tem grande importância. É muito mais fácil abater um preço do que aumentá-lo. Por exemplo: nós oferecemos uma boa proposta a um autor e, naturalmente, ele aceita. Nós então verificamos que não podemos fazer a publicação com um rendimento razoável e explicamos isso ao nosso homem. Ele, que depositou confiança em nós, porque nos mostrámos generosos, concorda como um cordeiro e aceita o nosso golpe. Porém, se, de início, lhe fazemos uma oferta mesquinha, ele não aceita, e fica imediatamente a considerar-nos uns ladrões.

- Experimente comprar quadros por esse sistema - disse Soames. - Uma oferta aceite é um contrato. Já aprendeu isso?

O jovem Mont voltou a cabeça para o lado onde estava Fleur, de pé junto à janela.

- Não - disse ele. - Gostaria de ter aprendido. Mas há ainda outra coisa: dispense sempre o freguês de um negócio, se ele deseja ser dispensado.

- É uma advertência? - perguntou secamente Soames.

- Claro que é, mas só a disse em princípio.

- A sua firma trabalha de acordo com essa linha de conduta?

- Ainda não - disse Mont -, mas trabalhará.

- E irá por água abaixo.

- Não, sir. Ando a fazer inúmeras observações, e todas elas confirmam a minha teoria. A natureza humana é fortemente subestimada nos negócios, e isso faz que toda a gente se prive de uma considerável soma de prazer e lucros. É claro que o senhor pode mostrar-se perfeitamente sincero e franco, mas, se o senhor sente isso, mais fácil lhe será mostrá-lo. Quanto mais humanos e generosos nós formos, mais probabilidades teremos de vencer nos negócios.

Soames ergueu-se e perguntou:

- Você já é sócio?

- Só daqui a seis meses, sir.

- O resto da firma o melhor que tem a fazer é apressar-se a retirar.

Mont riu.

- O senhor vai ver - disse ele. - Será uma grande mudança. O princípio possessivo vai ficar de boca fechada.

- O quê? - perguntou Soames.

- A casa está para alugar! Adeus, sir.

Soames viu a filha estender-lhe a mão, viu-a encolher-se ao apertão que recebeu e escutou distintamente o suspiro do rapaz, ao sair. Fleur afastou-se então da janela e pôs-se a fazer arabescos com o dedo no mogno da mesa de bilhar. E, olhando-a, Soames compreendeu que ela ia perguntar-lhe qualquer coisa.

O dedo da moça parou num ângulo e ela ergueu os olhos.

- Tomou qualquer providência para impedir que Jon me escreva, papá?

Soames abanou a cabeça.

- Então não o tem visto? O pai dele morreu faz hoje exactamente uma semana.

- Oh!

E no rosto perturbado e sombrio de Fleur ele viu o esforço para apreender a significação futura daquilo.

- Pobre Jon! Porque não mo disse, papá?

- Nunca sei de nada que se passa consigo - disse Soames suavemente. - Você não confia em mim.

- Confiaria se me ajudasse, querido.

- Talvez eu a ajude. Fleur crispou as mãos.

- Oh, querido, quando uma pessoa quer terrivelmente uma coisa não pensa nos outros. Não se zangue comigo.

Soames estendeu a mão como se lhe lançasse a bênção.

- Ando a pensar - disse ele. - O jovem Mont ainda continua a insistir?

Fleur sorriu.

- Oh. Michael! Anda sempre a insistir, mas não é mau rapaz. Não me incomodo com ele.

- Bem - disse Soames -, estou cansado. Vou dormitar um pouco antes do jantar.

E, subindo para a sua galeria de pintura, estirou-se num divã e fechou os olhos. Que responsabilidade terrível aquela sua filha, cuja mãe era... Ah! Que seria ela? Uma responsabilidade terrível! Ajudá-la - como poderia ajudá-la? Não podia alterar o facto de ser seu pai. Ou o facto de Irene... Que fora que o jovem Mont dissera... um disparate acerca do instinto de propriedade... de boca fechada... e para alugar? Maluquices!

O ar opressivo, carregado de um cheiro doce de erva, do rio e das rosas, atordoava-lhe os sentidos, embriagava-o.

 

IDEIA FIXA

A ideia fixa, que é responsável por muito mais loucuras que qualquer outra espécie de desvario humano, nunca apresenta mais velocidade e vigor do que quando assume a ávida máscara do amor.

A nada a ideia fixa do amor presta atenção, nem a sebes, nem a valados, nem a portas, nem a entes humanos sem ideias fixas, nem mesmo a outros padecentes da mesma doença. Corre com os olhos presos na sua própria luz, esquecida de todas as outras estrelas. E todos os outros que também têm a sua ideia fixa - os que pensam realizar a felicidade humana com a própria arte, com a vivissecção de cães, com o ódio aos estrangeiros, com o pagamento de novos impostos, continuando ministros, fazendo que as rodas girem, evitando que os seus vizinhos se divorciem, opondo objecções de consciência, dedicando-se a raízes gregas, aos dogmas da Igreja, a paradoxos, ao sentimento da sua superioridade sobre os mais humanos -, todas as outras formas de egomania são instáveis, comparadas à daquele ou daquela cuja ideia fixa é possuir uma ela ou um ele.

E embora Fleur, naqueles frios dias de Verão, prosseguisse na vida dispersa de uma pequena Forsyte cujos vestidos são pagos por outrem e cuja obrigação é o prazer, ela mantinha-se, como diria Winifred, usando a locução então em moda, «sem trair o espírito indiferente a tudo aquilo». Quando estava na cidade esperava horas seguidas pela Lua que vagueava pelo céu frio sobre Green Park. Trazia sempre no seio as cartas de Jon, enroladas em seda cor-de-rosa, e nestes tempos em que os decotes são tão grandes, o sentimento é tão desprezado e os bustos estão fora de moda, talvez ela não pudesse dar melhor prova de ideia fixa.

Quando soube da morte de Jolyon, escreveu ao namorado, e recebeu a resposta dele três dias depois, ao voltar de um piquenique na margem do rio. Era a primeira carta de Jon depois do encontro em casa de June. Abriu-a com receio e leu-a desolada:

 

Depois de tê-la visto, já soube de tudo acerca do passado. Nada lhe contarei - pois creio que você não o ignorava quando nos encontrámos em casa de June. Ela diz que você já o sabia. Se isso era verdade, Fleur, você deveria ter-mo dito. Creio que conhece apenas a versão de seu pai. Eu ouvi a de minha mãe, É terrível. E agora, que ela está tão triste, não ouso fazer nada que a magoe ainda mais. É evidente que morro de saudades de si o dia inteiro, mas não acredito que alguma vez possamos viver juntos, pois há algo de muito forte a separar-nos.

Então... A decepção que lhe trouxera a entrevista fizera-a esquecer a sua mentira. Mas Jon - ela sentia-o - perdoara aquilo. Era o que ele dizia acerca da mãe que lhe trazia o rubor ao rosto e aquele tremor às pernas.

O seu primeiro impulso foi responder... o segundo, não responder. E esses impulsos reproduziram-se constantemente nos dias seguintes, enquanto o desespero crescia dentro dela. Não era à toa que era filha de seu pai. A tenacidade, que ao mesmo tempo fizera e destruíra Soames, constituía também a espinha dorsal da moça, enfeitada e embelezada pela graça e pela vivacidade francesa. Instintivamente, ela conjugava o verbo «ter» sempre com o pronome «eu», mas escondia todos os sinais de desespero crescente e prosseguia nos seus prazeres campestres, tanto quanto o permitiam as chuvas e o vento daquele desagradável mês de Julho, como se não tivesse outros cuidados neste mundo. E nunca um filho de baronete negligenciou tanto os seus deveres de editor como o seu fiel e suspirante Michael Mont.

 

Para Soames, ela era um enigma. Sentia-se quase decepcionado com a descuidada alegria da filha. Quase - porque não deixou de notar os olhos dela frequentemente fixos no vazio ou a réstia de luz que lhe saía da janela já com a noite bastante avançada. Que estaria ela a planear, em que cuidaria, nas horas em que deveria estar a dormir? Mas ele não ousava interrogá-la, e desde a pequena conversa na sala de bilhar ela não dissera mais nada.

Nessa taciturna fase do assunto, sucedeu que Winifred os convidou para um almoço e para irem depois a «uma peçazinha muito interessante», a Ópera dos Pobres. Queriam levar outro cavalheiro, para fazer dois pares? Soames, cuja atitude em relação a teatros era nunca lá ir, aceitou, porque a atitude de Fleur era ir a tudo. Foram, pois, de automóvel, levando Michael Mont, que, sentindo-se no sétimo céu, foi considerado «muito interessante» por Wiinifred. A Ópera dos Pobres intrigou Soames. As personagens eram muito desagradáveis e toda a peça muito cínica. Winifred também se sentia «intrigada»... mas pelos vestidos. A parte musical também não lhe desagradou. Na noite anterior, chegara cedo de mais à Ópera, para o Ballet Russe, e encantara o palco invadido por cantores, que durante uma hora inteira ensaiaram, pálidos ou apoplécticos pelo receio de saírem do tom. E essa experiência de bastidores fazia-a agora atentar na música. Michael Mont estava deslumbrado com a peça. E todos três perguntavam a si mesmos o que estaria a pensar Fleur daquilo. Mas Fleur, simplesmente, não pensava naquilo. A sua ideia fixa assentara-se no palco, cantara com Polly Peachum, gesticulara com Philoh, Jenny Diver, imobilizara-se com Lucy Lockit, beijara, rodopiara, abraçara com Maoheat. Os seus lábios podiam sorrir, as suas mãos aplaudir, mas a velha obra-prima cómica não fez mais impressão sobre ela do que o faria uma obra patética, tal como uma revista moderna. Quando subiram para o carro, de volta, ela sofreu porque Jon não estava sentado a seu lado, em lugar de Michael Mont. Quando, por ocasião de um choque, o braço do rapaz tocou o seu como por acaso, ela pensou apenas: «Se fosse o braço de Jon!» Quando a voz calorosa dele, comovida pela proximidade da amada, murmurou abafada pelo ruído do carro, ela sorriu e respondeu pensando: «Se fosse a voz de Jon!» E quando uma vez ele disse: «Fleur, você parece um anjo com esse vestido», ela respondeu: «Oh, gosta dele?», pensando: «Se Jon pudesse vê-lo!»

E durante o percurso de automóvel tomou uma resolução. Iria a Robin Hill vê-lo - iria só. Iria no carro, sem uma palavra antes a preveni-lo e sem prevenir também o pai. Já haviam passado nove dias depois da carta dele, e ela já não podia esperar mais. Iria na segunda-feira! E a decisão tornou-a bem disposta em relação ao jovem Mont. Com alguma perspectiva à sua frente, ela podia tolerá-lo e conversar, e ele podia ficar para o jantar, declarar-se-lhe como sempre, dançar com ela, apertar-lhe a mão, suspirar - fazer o que quisesse. Só a incomodava quando interferia com a sua ideia fixa. Tinha até pena dele, tanto quanto lhe era possível naquele momento ter pena de alguém, além dela própria. Ao jantar, Mont falou com mais vivacidade que habitualmente sobre o que ele chamava «a morte da carruagem fechada». Fleur dedicou-lhe pouca atenção, mas o pai prestou-lhe muita, tendo no rosto o seu sorriso que significava oposição, se não cólera.

- A geração mais nova não pensa como o senhor pensa, Sir. Não é, Fleur?

Fleur encolheu os ombros - a nova geração era apenas Jon, e ela não sabia o que ele pensava.

- Os jovens pensarão como eu quando tiverem a minha idade, Mr. Mont. A natureza humana não se modifica.

- Admito isso, sir, mas as formas de pensamento mudam com os tempos, A corrida atrás do interesse próprio está a desaparecer.

- Com efeito! Mas preocupar-se com os seus próprios interesses não é um pensamento, é um instinto, Mr. Mont.

«Sim, quando o interesse é Jon!»

- Mas que é o interesse de cada um, sir? Esse é que é o ponto. Os interesses de todos estão a transformar-se no interesse de cada um. Não é, Fleur? - Fleur sorriu apenas. - E, se essa transformação não se der - acrescentou o jovem Mont -, haverá sangue.

- Desde tempos imemoriais que se fala nisso.

- Mas há-de admitir, sir, que o instinto de propriedade está a morrer.

- Direi antes que está a crescer entre aqueles que nada possuem.

-Bem, veja-me a mim! Sou herdeiro de uma propriedade vinculada. E já não quero isso. Amanhã cortarei esse vínculo.

- O senhor ainda não é casado e não sabe ainda do que está a falar.

Fleur viu os olhos do moço voltarem-se lastimosamente para ela.

- O senhor acha realmente que o casamento... - começou ele.

- A sociedade está construída sobre o casamento - disse Soames por entre os lábios semicerrados - e sobre as suas consequências. E o senhor quer acabar com isso?

O jovem Mont fez um gesto distraído. O silêncio desceu sobre a mesa de jantar, coberta com talheres de prata que tinham gravado o faisão dos Forsyte, sob a luz eléctrica que caía de um globo de alabastro. Lá fora a tarde escurecia à beira do rio, carregada de pesada humidade e doces perfumes.

«Segunda-feira», pensava Fleur. «Segunda-feira!»

 

DESESPERO

As semanas que se seguiram à morte do pai foram vazias e muito tristes para o único Jolyon Forsyte restante. As cerimónias e formalidades necessárias, a leitura do testamento, avaliação do inventário, distribuição dos legados, eram realizadas à sua revelia, pois ele ainda não atingira a idade necessária para as presidir. Jolyon foi cremado. Por desejo expresso seu, ninguém assistiu à cerimónia, nem se pôs luto por ele. A sucessão da sua propriedade, de certo modo controlada ainda pelo testamento do velho Jolyon, deixava a viúva na posse de Robin Hill, com uma renda vitalícia anual de duas mil e quinhentas libras. Além disso, os dois testamentos reuniam-se para garantir, de um modo mais ou menos complicado, a posse de cada um dos três filhos de Jolyon, em partes iguais, da herança do avô e do pai, no futuro e no presente. Reservava-se a Jon, em consideração ao seu sexo, o controle do seu capital, quando ele chegasse à maioridade, enquanto June e Holly receberiam apenas o rendimento, de modo que os seus filhos recebessem o capital por morte delas. No caso de não terem filhos, o dinheiro voltaria para Jon, se ele lhes sobrevivesse. E, como June já tinha cinquenta anos e Holly quase quarenta, em Lincoln's Inn Field's diziam que, se não fosse a crueldade do imposto sobre a renda, Jon chegaria a ser um homem tão abastado como o era seu avô quando morrera. Isso pouco significava para Jon, e muito menos para sua mãe. E foi June que fez tudo o que era necessário para o arranjo dos negócios que o pai já deixara perfeitamente em ordem. E quando ela se foi embora e os dois novamente se viram sós na grande casa, sós com a morte a reuni-los e o amor a separá-los, Jon passou dias muito penosos, secretamente desapontado consigo. A mãe olhava para ele com uma paciente tristeza, que tinha entretanto em si uma certa dose de orgulho instintivo, como se ela estivesse a reservar-se para a sua defesa. Se ela lhe sorria, ele ficava irritado por o seu sorriso, em resposta ao dela, ser tão triste e pouco natural. Não a julgava nem a condenava. Tudo aquilo era tão remoto, e, com efeito, a ideia de a julgar nunca lhe ocorrera. E, se se mostrava triste e pouco natural, era porque, por causa dela, não podia ter aquilo que o seu coração pedia.

Eram pois um alívio as inúmeras tarefas que tinham de realizar relativamente à carreira artística do pai, o que não poderia ser confiado a June, embora ela se houvesse oferecido para isso. Tanto Jon como a mãe haviam sentido que, se ela tivesse levado consigo as pastas de desenhos do pai, os trabalhos não exibidos e inacabados, aquelas relíquias ficariam expostas às frias rajadas de desprezo de Paul Post e outros frequentadores do estúdio de Chiswick, rajadas que depressa enregelariam até mesmo o ardente coração de June. Na sua maneira antiquada e no seu género, a pintura de Jolyon era boa, e eles não podiam suportar a ideia de alguém o levar a ridículo. Uma exposição especial dos seus trabalhos era a única homenagem que eles poderiam prestar àquele a quem tinham amado, e gastaram muitas horas juntos na preparação dela. Jon sentia o seu respeito pelo pai curiosamente engrandecido. A silenciosa tenacidade com que Jolyon convertera um talento medíocre em algo realmente individual era uma das descobertas que fazia nas suas pesquisas. Havia ali uma grande quantidade de trabalho, com uma continuidade singular no progresso em profundidade e em agudeza de observação. Nada, é verdade, seria muito profundo, nem atingia muito alto, mas, tal como era, o trabalho apresentava-se consciencioso e completo.

E, recordando a absoluta ausência de pretensão na personalidade do pai, a humildade e a ironia com que ele aludia sempre aos seus próprios esforços, chamando-se sempre a si mesmo «um amador», Jon não podia deixar de sentir que nunca o conhecera realmente. O princípio invariável da vida de Jolyon fora levar-se a si mesmo a sério, sem nunca entretanto dar aos outros a impressão de que o fazia. E havia nisso algo que atraía singularmente o rapaz, fazendo aceitar do coração o comentário da mãe: «Ele tinha um refinamento autêntico, não podia impedir-se de pensar nos outros, fizesse o que fizesse. E, quando tomava uma resolução que ia contra todos, fazia-o com um mínimo de desafio. «Muito diferente da época, não lhe parece? Duas vezes na vida teve de romper com tudo e isso nunca o tornou mais amargo.» Jon viu que as lágrimas lhe rolavam pelo rosto, e ela afastou-se imediatamente. Guardava tal silêncio acerca da perda que sofrera que, às vezes, o filho cogitava intimamente se realmente ela a sentira muito. Agora, olhando-a, sentia quão pouco compreendera o poder de reserva e dignidade que havia em seu pai e em sua mãe. E, correndo para ela, rodeou-lhe a cintura com os braços. Ela beijou-o rapidamente, mas com uma espécie de paixão, e saiu da sala. O estúdio onde eles trabalhavam, escolhendo os desenhos e catalogando-os, fora outrora a sala de aulas de Holly, dedicada aos seus bichos-de-seda, ramos de alfazema seca, música e outras formas de instrução. Agora, no fim de Julho, apesar das janelas que a sala abria para nordeste e leste, um ar quente e sonolento passava através das desbotadas cortinas de linho lilás. Para dar de novo um pouco do esplendor perdido àquele compartimento cujo dono o abandonara, Irene pusera sobre a mesa manchada de tinta um vaso de rosas vermelhas. As rosas e o gato favorito de Jolyon, que ainda vagueava pelo seu habitat deserto, eram as únicas notas agradáveis no desarrumado e triste estúdio. Jon, debruçado à janela do norte, aspirando o ar misteriosamente perfumado de morangos, ouviu um carro que subia a encosta. De novo os advogados, para alguma tolice! Porque o fazia sofrer aquele aroma? E donde vinha ele? Não havia canteiros de morangos naquele lado da casa. Instintivamente, tirou do bolso um pedaço de papel e escreveu algumas palavras.

Um calor espalhou-se-lhe pelo peito e esfregou uma na outra as palmas das mãos. Já conseguira rabiscar isto:

 

         If I could make a little song

         A little song to scothe my heart!

         I'd make it all of little things

         The plash of water, nul of wings,

         The puffing of dandie's arown,

         The hiss of raindrop spilling down,

         The purr of a cat, the trill of a bird!

         And every whispering I've heard,

         From wiHy wind I leaves and grass,

         And all the distant drones that ipass,

         A song as tender and as ilight

         As flower or butterfly in flight,

         And whem'saw it opening,

         I'd let it fly and sing! (1)

 

E estava ainda à janela, murmurando a sua cantiga para si mesmo, quando ouviu alguém chamá-lo pelo nome, e, voltando-se, viu Fleur. Ante aquela espantosa aparição, ele, a princípio, não fez nenhum movimento, não emitiu nenhum som,

 

*1. Se eu pudesse fazer uma cantiga

Uma cantiga que me acalmasse o coração!

Haveria de fazê-la de coisas pequeninas

Um pingo de água, um roçar de asa,

O desabrochar de uma corola,

O suave cair de uma gota de chuva,

Um ronronar de gato, o trinado de um pássaro!

E cada murmúrio que eu ouvisse

Do vento, agitando as folhas e a relva,

E os zangões que passam ao longe, zumbindo.

Uma cantiga tão terna e tão leve

Como uma flor ou uma borboleta em voo.

E quando a visse desdobrada,

Deixá-la-ia partir, voando e cantando!

 

enquanto o claro e vivo olhar dela lhe arrebatava o coração. Até que finalmente caminhou até à mesa, dizendo:

- Como foi gentil em vir!

E viu-a dobrar-se, como se ele lhe houvesse atirado alguma coisa.

- Perguntei por si - disse ela -, e mandaram-me para aqui. Mas posso ir-me embora já.

Jon agarrou-se à mesa manchada de tintas. O rosto da moça, o vulto envolvido no vestido leve, gravara-se com tal intensidade nos olhos dele que, mesmo se mergulhasse subitamente no soalho, ainda a veria.

- Sei que lhe disse uma mentira, jon. Mas disse-a por amor.

- Oh, sim, sim! Isso não tem importância!

- Não respondi à sua carta. Que adiantava... não havia nada a responder. Preferi, em lugar disso, vê-lo em pessoa.

E ela estendeu-lhe ambas as mãos, que ele agarrou por sobre a mesa. Procurou dizer alguma coisa, mas toda a sua atenção estava concentrada no cuidado de não magoar as mãos da pequena. As suas eram tão duras, as dela tão macias.

E Fleur disse, quase num desafio:

- Essa velha história... é assim tão terrível?

- Sim. - E na voz dele havia também uma nota de desafio. Ela retirou as mãos.

- Eu não sabia que nos tempos de hoje os rapazes ainda viviam agarrados às saias das mães. - O queixo de Jon ergueu-se, como se lhe houvessem batido. - Oh, não quis dizer isso, Jon, Que coisa horrível de se dizer! - E vivamente aproximou-se dele. - Jon, querido, eu não quis dizer o que você pensa.

- Está bem.

Ela pusera as mãos nos ombros dele e encostara à testa do rapaz a sua. Os cabelos de Fleur tocavam o pescoço do rapaz, e isso fazia-o estremecer. Mas, numa espécie de paralisia, ele não lhe deu qualquer resposta. Ela soltou-lhe os ombros e afastou-se.

- Bem, vou-me embora, já que não quer saber de mim. Mas nunca pensei que você me deixasse.

- Não a deixei! - exclamou Jon, voltando subitamente á vida. - Não posso! Vou tentar ainda.

Os olhos da moça luziram, e ela inclinou-se de novo sobre ele.

- Jon... eu gosto de si. Não me abandone! Se me deixar... não sei... estou tão desesperada! Que significa todo esse passado, comparado com isto?

E agarrava-se a ele. Ele beijou-lhe os olhos, as faces, os lábios, mas enquanto a beijava revia as folhas da carta caídas no chão, no seu quarto de dormir, a face morta do pai, a mãe ajoelhada diante dele.

- Convença-a! Prometa-me! Oh, Jon, experimente! - murmurou Fleur.

E aquilo pareceu-lhe infantil. Sentia-se curiosamente velha.

- Prometo! - murmurou ele. - Apenas... você não compreende.

- Ela quer estragar as nossas vidas só porque!

- Sim? Porquê?

Outra vez aquela ameaça na voz dele, e ela não respondeu. Os braços de Fleur novamente o apertaram, e Jon retribuía-lhe os beijos, mas, mesmo quando se rendia, o veneno trabalhava dentro dele, o veneno da carta. Fleur não sabia, não compreendia - ela julgava mal sua mãe, ela vinha do campo inimigo! Tão adorável! Amava-a tanto, mas, ao receber-lhe o abraço, não podia fugir à lembrança das palavras de Holly: «Acho que ela tem uma natureza avassaladora de mais»-e às de sua mãe: «Meu filho querido, não pense em mim, pense em si!»

Quando ela desapareceu, como um sonho apaixonado, deixando a sua imagem nos olhos dele, nos lábios os seus beijos e uma dor tão funda no coração, Jon debruçou-se na janela, escutando o ruído do carro que a levava. E de novo sentia o cheiro quente dos morangos, de novo os murmúrios do Verão com os quais queria fazer a sua canção, de novo todas as promessas de juventude e felicidade naquele brilhante e mutável alvoroçado mês de Julho - e o seu coração despedaçava-se, os desejos aumentavam dentro dele, a esperança crescia, embora com os olhos baixos, como envergonhada. Que desgraçada tarefa via diante de si! Se Fleur estava desesperada, também ele o estava - olhando para o movimento das folhas do álamo, as nuvens brancas que passavam, a luz do sol sobre o mato rasteiro,

Esperou durante toda a tarde, até depois do jantar, passado quase em silêncio - até que sua mãe tocasse para ele -, e depois ainda esperou, sentindo que ela sabia do que ele estava à espera para dizer. A mãe beijou-o e subiu para o quarto, e ele demorou-se a olhar a Lua, as mariposas e a irrealidade do colorido de que se vestem as noites de Verão. Daria muito para poder voltar ao passado - apenas três meses atrás -, ou então para avançar de súbito muitos anos pelo futuro dentro. O presente, com a sombria e cruel exigência de uma decisão - para um lado ou para outro -, parecia-lhe impossível. E agora ele compreendia muito mais claramente o que a mãe sentia do que o compreendera a princípio: era como se a história contada na carta possuísse um venenoso germe que gerava uma espécie de febre de partidarismo de forma que ele realmente sentia que existiam dois campos - o de sua mãe e o seu, o de Fleur e o do pai. Talvez aquela velha intriga fosse uma velha história, mas as velhas histórias guardam o seu veneno até que o tempo as liquide. E até o seu amor, sentia-o manchado, menos rico de ilusões, mais terrestre, infiltrando-se nele a traiçoeira dúvida de que Fleur, igual ao pai, também o quisesse possuir. Dúvida não articulada, que se insinuava, horrivelmente perversa, pelo ardor das suas recordações, e tocava com o seu hálito maléfico a limpidez e a graça daquele rosto, daquele corpo - uma dúvida que não era bastante real para o convencer da sua presença, mas que era real bastante para desflorar a sua fé perfeita. E para Jon, que ainda não fizera vinte anos, uma fé perfeita era essencial. Ele ainda dispunha do ardor da mocidade, que tem duas mãos para oferecer e nada tem para tomar, que dá tudo. amorosamente, a outrem, a alguém que partilhe da sua mesma generosidade impulsiva.

Decerto ela a partilhava! Ergueu-se do banco da janela e pôs-se a vaguear pela grande sala fantasmal, cujas paredes eram revestidas de um forro prateado. Aquela casa - como o dissera seu pai na carta escrita à beira da morte - fora feita para que nela vivesse sua mãe... com o pai de Fleur! E ele estendeu a mão na semiobscuridade, como para segurar a sombria mão do morto.

E cerrou-a, procurando sentir os magros e evanescentes dedos do morto. Queria apertá-los, garantir-lhe que ele estava do lado de seu pai. As lágrimas, prisioneiras dentro dele, tornavam-lhe os olhos secos e quentes. Voltou à janela. Estava mais quente, menos feérico, mais consolador, lá fora, com uma grande Lua no alto, uma Lua que dentro de três dias seria cheia. E a liberdade da noite era consoladora. Se ele e Fleur se houvessem encontrado numa ilha deserta, sem passado, com a Natureza a servir-lhes de lar! Jon ainda tinha esse anelo por ilhas desertas, onde cresce a árvore do pão, onde as árvores são azuis sobre os recifes de coral. A noite era profunda, livre, tentadora. Trazia em si uma sedução, uma promessa, um refúgio contra os obstáculos - e amor! Menino maricas, agarrado às saias da mãe! As faces dele ardiam. Fechou a janela, cerrou as cortinas, apagou a luz e subiu a escada. A porta do seu quarto mantinha-se aberta, a luz baixa. A mãe, ainda com o vestido de jantar, estava em pé à janela. Voltou-se e disse:

- Sente-se, Jon, vamos conversar. - Sentou-se no banco junto à janela, Jon na cama. Estava virada de perfil para o filho, e a beleza e a graça da sua figura, a linha delicada da testa, do nariz, do pescoço, aquele estranho e como que remoto refinamento dela, comoviam-no. Sua mãe nunca pertencia ao que a rodeava. Chegava, vinda sempre de outra parte, de outro lugar... pelo menos dava sempre essa impressão! Que iria dizer-lhe, a ele que trazia no coração tantas coisas para dizer a ela? - Sei que Fleur esteve aqui hoje. Não me surpreendi. - Era como se ela houvesse acrescentado: «É filha do pai!» E o coração de Jon magoou-se. Irene continuou serenamente: - Guardei a carta de seu pai. Apanhei-a aqui, naquela noite, e tenho-a comigo. Quer que a devolva, querido? - Jon abanou a cabeça. - Evidentemente que a li, antes que ele a entregasse a si. E ele não faz justiça ao meu criminoso procedimento.

- Mamã! - rompeu dos lábios de Jon.

- Ele apresentou tudo muito suavemente, mas eu sei que, casando sem amor com o pai de Fleur, cometi um mal terrível. Um casamento infeliz pode estragar a vida de muitas outras pessoas, além da nossa. Você ainda é assustadoramente jovem, meu querido, e assustadoramente afectivo. Acha que pode ser feliz com essa moça?

Fitando os olhos escuros dela, mais escuros ainda com a mágoa que os afogava, Jon respondeu:

- Oh, sim... se a mamã também pudesse ser feliz. Irene sorriu.

- Admiração pela beleza e desejo de posse não são amor. Se vocês forem um caso igual ao meu... as coisas mais profundas sufocadas, os corpos unidos, mas os espíritos em luta!

- Porque seria assim, mamã? Pensa que ela é igual ao pai, mas não o é. Já o verifiquei.

Novamente o sorriso voltou aos lábios de Irene e qualquer coisa se afundou dentro de Jon tal era a ironia e a experiência daquele sorriso.

- Você é dos que dão tudo, Jon, ela é dos que tomam tudo. Aquela mesquinha dúvida, aquela terrífica incerteza de novo!

E ele disse com veemência:

- Ela não é assim... não é assim. E apenas porque eu não posso suportar vê-la infeliz, mamã, agora que o papá... -E encostou os punhos à testa.

Irene ergueu-se.

- Eu já lhe disse, meu filho, não se preocupe comigo. Faço questão disso. Pense em si e na sua própria felicidade. Eu poderei suportar... já abafei tudo dentro de mim.

E novamente a exclamação «Mamã!» rompeu por entre os lábios de Jon.

Ela aproximou-se do filho, pôs as mãos sobre ele.

- Dói-lhe a cabeça, querido? - Jon fez sinal que sim. O que sentia era no peito... uma espécie de dilaceramento dividindo-o entre aqueles dois afectos. - Sempre hei-de gostar de si da mesma maneira. Jon, faça você o que fizer. Você não perderá nada.

Acariciou-lhe gentilmente os cabelos e saiu do quarto.

Ele ouviu a porta fechar-se e, rolando para a cama, ficou estirado sobre ela, sufocando a respiração, com um terrível sentimento de paralisia dentro de si.

 

EMBAIXADA

Perguntando pela filha, à hora do chá, Soames soube que ela saíra no carro às duas. Três horas de ausência! Onde teria ido? Para Londres, sem lhe dizer uma palavra? Ele nunca se habituara inteiramente a automóveis. Aceitara-os em princípio - como empírico de nascença, Forsyte que era -, aceitando todos os sintomas do progresso, à medida que apareciam, com este comentário: «Bem, agora já não poderíamos passar sem eles.» Porém, na verdade, considerava-os uma coisa perigosa, grande, malcheirosa. Obrigado por Annette a comprar um - um Rolhará, com almofadas cinzento-pérola, luz eléctrica, pequenos espelhos, cinzeiros, vaso de flores -, olhava-o de modo muito semelhante ao que olhava para o cunhado, o falecido Montague Dartie. Aquilo sintetizava tudo que havia de rápido, inseguro e subcutaneamente oleado na vida moderna. E quanto mais a vida moderna se ia tornando apressada, descuidada, jovem, mais Soames ia ficando velho, lento, magro, acentuando a sua semelhança - em linguagem e sentimentos - com o velho James. Velocidade e progresso cada dia lhe agradavam menos, e, além disso, no uso de um carro de luxo havia uma ostentação que ele considerava provocadora dos sentimentos prevalecentes dos trabalhistas. Numa certa ocasião, um seu colega, Sims, atropelara a propriedade única de um trabalhador: um cão.

Soames numca esquecera o procedimento do dono do animal enquanto algumas pessoas não interferiram para liquidar o caso. Ele sentira pena do cão. e estava pronto a tomar partido contra o motorista se a atitude daquele rufião não fosse tão insolente.

Quatro horas depressa se transformaram em cinco, e ainda nada de Fleur! E todos os seus velhos receios sobre automóveis, que ele experimentara em pessoa e acerca dos seus, voltaram a possuí-lo, enquanto uma sensação de vertigem lhe saía da boca do estômago. Às sete horas fez um telefonema interurbano para Winifred. Não! Fleur não estivera em Green Street. Então onde estaria ela? E começaram a assombrá-lo visões de sua linda filha atirada ao chão, com os seus vestidinhos leves, toda manchada de sangue e poeira nalguma horrenda catástrofe. Foi até ao quarto dela, procurou entre os seus objectos. Ela não levara nada - nem malas, nem jóias. E aquilo, se o aliviava num certo sentido, aumentava o seu medo de um acidente. Era terrível sentir-se impotente quando a única coisa que amava estava talvez perdida, especialmente tratando-se de quem, como ele, não podia suportar nenhum desses espectáculos de publicidade! Que faria se ela não estivesse ainda de volta ao cair da noite?

Quando faltava um quarto para as oito, ouviu um carro. Um grande peso saiu-lhe do coração e correu para baixo. Ela descia, pálida e cansada, mas sem nada de anormal. Encontrou-a no hall.

- Você assustou-me. Onde esteve?

- Fui a Robin Hill. Sinto muito, querido. Tinha de ir. Depois falo-lhe sobre isso. - E, atirando-lhe um beijo, subiu para o quarto.

Soames esperou-a na sala de estar. A Robin Hill! Que agouraria aquilo?

Não era um assunto que eles pudessem discutir ao jantar - consagrado às susceptibilidades do mordomo. A aflição por que os nervos de Soames haviam passado, o alívio que sentira ao vê-la a salvo, diminuíam a sua capacidade de condenar o que ela fizera ou de resistir ao que ela pretendia fazer. E, num torpor covarde, esperava pela revelação. A vida é um negócio estranho. Ali estava ele. aos sessenta e cinco anos de idade, inteiramente à mercê de certas coisas, como se não houvesse gasto quarenta anos de vida a construir a sua segurança!

É impossível um homem garantir-se definitivamente!

Trazia no bolso uma carta de Anmette. Ela deveria voltar dentro de quinze dias, e ele nada sabia acerca do que a mulher estaria a fazer por lá. E sentia-se satisfeito por o ignorar. A ausência dela fora um alívio. Fora da vista, estava também fora das suas preocupações. E agora ia voltar. Novos aborrecimentos. Além disso, perdera o Crome de Bolderby - Dumetrius apanhara-o - só porque aquela carta anónima o desviara dos seus cuidados normais. Notava furtivamente o ar tenso do rosto da filha, como se ela também estivesse a olhar para um quadro que não podia adquirir. Quase chegava a desejar que a guerra recomeçasse. As preocupações, então, não tinham a mesma importância de agora. Pela carícia que sentia na voz de Fleur, pela expressão do seu rosto, ficou certo de que ela queria pedir-lhe alguma coisa, incerto entretanto se poderia dar-lhe o que ela desejava. Empurrou, sem lhe tocar, a sobremesa, e acompanhou mesmo a filha num cigarro.

Depois do jantar, Fleur ligou a pianola eléctrica, e ele augurou o pior quando ela se sentou aos seus pés numa almofada e lhe pôs as mãos nos joelhos.

- Papá, seja bonzinho comigo. Eu tinha de ir ver Jon. . ele escrevera-me. Vai tentar tudo o que puder junto da mãe. Mas eu estive a pensar. Na verdade, está tudo nas suas mãos, papá. Se a persuadisse de que não se trata de modo algum de reatar o passado! Que eu continuarei a ser sua e Jon continuará a ser dela. que o papá nunca procurará ver nem a ele, nem a ela, nem ela nunca precisará de o ver a si ou a mim! Só você pode persuadi-la, querido, porque só você pode prometer. Ninguém pode prometer pelos outros. E espero que, agora que o pai de Jon está morto, não será tão penoso para si voltar a vê-la unicamente por esta vez!

- Penoso? - repetiu Soames. - Mas tudo isso é absurdo.

- Sabe muito bem - continuou Fleur sem levantar os olhos - que não o incomodará muito vê-la.

Soames guardou silêncio. As palavras da filha haviam exprimido uma verdade por de mais profunda para que ele a admitisse.

E ela enfiou por entre os dedos dele os seus dedos, tépidos, macios, vivos, apertando-os. Aquela sua filha era capaz de abrir caminho através mesmo de uma muralha!

- Que será de mim se recusar, papá? - disse ela meigamente.

- Eu sou capaz de fazer qualquer coisa pela sua felicidade - disse Soames. - Mas isso não será para sua felicidade.

- Oh, é, é!

- Eu iria apenas tornar as coisas mais tensas - disse ele amargamente.

- Mas elas já estão tensas de mais. E o que é preciso é acalmá-los. Fazê-la compreender que se trata das nossas vidas, o que não tem nada que ver com a sua ou a dela. Pode fazer isso, papá! Sei que pode.

- Você então sabe muito - foi a resposta irritada de Soames.

- Se quiser, Jon e eu esperaremos um ano... dois anos, até.

- Segundo me parece - murmurou Soames -, você não se preocupa nada com o que eu sinto.

Fleur apertou a mão dele contra a face.

- Preocupo-me, querido. Mas você não gostará de me ver horrivelmente infeliz.

Como ela sabia manobrar para atingir os seus fins! E, por mais esforços que fizesse para acreditar que ela realmente se preocupava com ele, não podia ter a certeza - não tinha a certeza.

Ela só se preocupava com o rapaz! E porque a ajudaria ele a obter o tal rapaz que estava a matar a afeição que ela lhe tinha? Porque o faria? Segundo a lei dos Forsyte, aquilo era Uma loucura! Nada se conseguiria com aquilo - nada! Entregá-la àquele rapaz! Passá-la para o campo inimigo, pô-la sob a influência da mulher que tão profundamente o ferira! Lentamente, inevitavelmente, ele acabaria por perder a flor da sua vida! E subitamente percebeu que a sua mão estava molhada. O coração deu-lhe um salto penoso. Não podia suportar vê-la chorar. Pôs vivamente a sua outra mão sobre a dela. e uma lágrima também caiu sobre essa mão. Não podia continuar assim!

- Bem, bem - disse ele. - Vou pensar nisso e fazer o que puder. Vamos, vamos!

.Se ela precisava daquilo para a sua felicidade, estava bem, ele não podia recusar-se a ajudá-la. E, receoso de que ela começasse a agradecer-lhe, levantou-se da cadeira e foi para junto da pianola - que fazia um barulho ensurdecedor! Mas o barulho diminuiu quando ele se aproximou. A caixa de música dos seus tempos de menino, tocando O Ferreiro Harmonioso ou O Glorioso Torto, sempre o deixava infeliz quando a mãe a punha a tocar nas tardes de sábado. Cá estava ela de novo, a mesma coisa, apenas maior e mais cara, e tocando agora Ó loucas Mulheres - e hoje ele, Soames, já não vestia um fatinho de veludo preto com a gola branca. «Profond tem razão», pensou. «Não há nada nisso tudo. Todos nós caminhamos para o túmulo!» E com esse surpreendente comentário mental saiu da sala.

Não voltou a ver Fleur naquela noite, mas ao pequeno-almoço do dia seguinte os olhos dela seguiram-no com um apelo a que ele não podia fugir - e que nem sequer lhe ocorreu tentar. Não! Ele já preparara o espírito para aquele enervante assunto. Iria a Robin Hill - àquela casa de lembranças. Agradável lembrança - a última! Fora lá para separar Irene e o pai daquele rapaz servindo-se de uma ameaça de divórcio. E desde então muitas vezes pensara que fora aquilo que firmara a união deles. E agora ia lá para assegurar a união do filho deles com a sua filha. «Não sei o que fiz», pensava ele. «para ter tais coisas sobre os ombros!» Fez os dois percursos de comboio, e, ao sair da estação, caminhou pelo longo campo marginal, ainda muito semelhante ao que era trinta anos atrás. Engraçado - tão perto de Londres! Alguém, evidentemente, estava a pretender fazer o loteamento das terras. E aquela especulação aliviou-o enquanto caminhava lentamente por entre as altas sebes, para não se cansar, apesar de o dia estar bastante frio. Depois de tudo que fora dito e feito, havia algo de real na terra, algo imutável. Terra e bons quadros! Os valores podiam flutuar um pouco, mas, em conjunto, estavam sempre a subir - aquisição segura num mundo em que tudo era um montão de irrealidade, construções baratas, modas mutáveis, tudo dentro de um espírito que se traduzia por «hoje aqui, amanhã além».

Os Franceses tinham razão, talvez, com o seu amor à propriedade camponesa, embora ele não tivesse boa opinião dos Franceses. Um pedaço de terra! Havia algo sólido nisso! Ouvira descrever os proprietários de terras como um bando de cabeçudos, ouvira o jovem Mont chamar ao pai «leitor cabeçudo do Morning Post» - jovem demónio irreverente que ele era. Bem, havia coisas piores do que ser cabeçudo e ler o Morning Post. Havia Profond e a sua tribo, e todos esses trabalhistas, os políticos berradores e as «loucas, loucas mulheres». Uma porção de coisas piores! E subitamente Soames teve a consciência de que estava fraco, com calor e abatido. Péssimos nervos para a entrevista que tinha defronte de si! Como diria a tia Ann, repetindo as palavras do «Superior Dosset», «tinha os nervos esticados como cordas». Já podia ver a casa entre as árvores, a casa a cuja construção ele assistira, preparando-a para si e para aquela mulher, que, graças a um destino estranho, fora afinal viver para lá com outro! E pôs-se a pensar em Dumetrius, em empréstimos locais e noutras formas de emprego de capital. Não podia tolerar a ideia de a encontrar com os seus nervos em tal estado - ele que, na Terra, representava para ela o Juízo Final, tal como devia existir no Céu, ele, a personificação do proprietário legítimo, encontrando a encarnação da beleza sem lei. A sua dignidade exigia impassibilidade durante aquela embaixada destinada a vincular os filhos de ambos, os quais, se ela não houvesse prevaricado, seriam irmão e irmã. Aquele lamentoso estribilho «Ó loucas, loucas mulheres» zumbia-lhe permanentemente na cabeça, naquela cabeça onde por regra nunca zumbia um estribilho. Passando pelos álamos em frente da casa, pensou: «Como cresceram! Fui eu que os plantei!»

Uma criada atendeu ao toque da campainha.

- Diga que é... Mr. Forsyte... para tratar de um assunto muito importante.

Se ela desconfiasse de que era ele, provavelmente não o receberia.

«Coa breca», pensou ele, «é um caso completamente de pernas para o ar!»

Entretanto a criada voltara perguntando se o cavalheiro poderia explicar qual o assunto que desejava tratar.

- Diga que é a respeito de Mr. Jon - disse Soames.

E mais uma vez estava só naquele hall, com o seu tanque de mármore branco, desenhado pelo primeiro amante dela. Ah! Ela fora bem má - amara dois homens, e não a ele. Lembrar-se-ia disso, mais uma vez, quando estivesse a encará-la. E subitamente viu-a na fenda que se abria através das longas e pesadas cortinas de púrpura, deslizando, como hesitante - a mesma perfeita pose de antigamente, a mesma linha, o antigo olhar escuro e grave, a mesma voz calma e defensiva de outrora.

- Quer entrar, por favor?

Ele passou pela cortina que ela sustinha. Como na galeria de pintura e na confeitaria., ela ainda lhe parecia bela. E aquela era a primeira vez, a primeira, na verdade, desde que a desposara, há trinta e sete anos, em que ele lhe falava sem o direito legal de lha chamar sua. Não estava vestida de preto - decerto uma das ideias revolucionárias do marido.

- Tenho de pedir desculpa por ter vindo aqui - disse ele severamente -, mas este assunto tinha de ser resolvido de uma maneira ou de outra.

- Quer sentar-se?

- Não, obrigado.

A cólera pela sua posição falsa e a impaciência pela cerimónia que havia entre ambos dominavam-no. e a voz de Soames ergueu-se, surda:

- Foi uma infelicidade infernal. Fiz tudo o que pude para impedir isto. Considero minha filha louca, mas adquiri o hábito de condescender sempre com ela. Eis porque estou aqui. Suponho que você gosta muito do seu filho.

- Imensamente.

- E então?

- Isso é com ele.

Soames teve a impressão de estar a ser burlado. Sempre, sempre ela troçara dele, mesmo nos longínquos primeiros dias do seu casamento.

- É uma noção errónea - disse ele.

- Se você tivesse apenas... Bem. . eles podiam ter sido...

- E Soames não acabou a frase: «irmão e irmã, e tudo estaria salvo». Mas viu-a encolher os ombros como se ele houvesse articulado o seu pensamento. E, aguilhoado por isso, encaminhou-se até à janela. Ali, as árvores não haviam crescido... não podiam, eram velhas de mais! - Tanto quanto depender de mim - disse ele-, você pode ficar despreocupada. Não desejo vê-la a si, nem ao seu filho, se esse casamento se realizar. Os jovens, nos dias de hoje, são... são inexplicáveis. Mas não posso suportar a ideia de ver a minha filha infeliz. Que devo dizer a Fleur, quando voltar?

- Diga-lhe, por favor, isso que eu lhe disse: a decisão cabe a Jon.

- Você então não se opõe?

- Com todo o meu coração, mas não com os meus lábios. Soames ficou de pé, mordendo a unha.

- Lembro-me de uma tarde - disse ele subitamente. E ficou silencioso depois. Que é que havia... que é que havia naquela mulher que não cabia nos quatro cantos do seu ódio ou da sua condenação? E prosseguiu: - Onde está ele... o seu filho?

- Creio que está lá em cima, no estúdio do pai.

- Talvez pudesse mandá-lo chamar.

Viu-a tocar a campainha, viu a criada chegar.

- Diga a Mr. Jon que estou a chamá-lo.

- Se a decisão cabe a ele - disse apressadamente Soames, quando a criada saiu -, quero crer que posso considerar certo que esse casamento antinatural se realizará. E, nesse caso, tudo o mais serão formalidades. Com quem devo tratar... com Herring?

Irene fez sinal que sim.

- Você não pretende viver com eles? Irene abanou a cabeça.

- E esta casa?

- Será o que Jon decidir.

- Esta casa - disse Soames de repente. - Eu tinha esperanças quando a comecei. Se eles viverem aqui... os filhos deles. Dizem que há uma entidade chamada Némesis. Acredita nela?

- Sim.

- Oh! Acredita!

Ele deixara a janela e estava junto de Irene, que, encostada à curva do seu piano de cauda, parecia como que entrincheirada.

- Provavelmente nunca mais a verei - disse ele lentamente. - Quer apertar-me a mão - os lábios dele tremiam, as palavras saíam aos repelões - e deixar que o passado fique morto? - E estendeu a mão.

O rosto pálido de Irene ficou mais pálido, os olhos, tão escuros, demoraram-se imóveis nos dele, e as mãos continuaram crispadas na saia. Ele ouviu um som e voltou-se. O rapaz estava de pé na abertura das cortinas. Parecia muito esquisito, difícil de reconhecer como o mesmo rapaz que ele vira na galeria de Cork Street - muito esquisito: muito mais velho, sem nenhuma mocidade no rosto, desvairado, rígido, os cabelos revoltos, os olhos profundamente enterrados nas órbitas. Soames fez um esforço e disse com um retorcer de lábios que não era nem um sorriso nem uma careta:

- Bem! Vim aqui por causa de minha filha. Parece que a decisão cabe a si. Sua mãe entrega tudo nas suas mãos. - O rapaz continuava a olhar para o rosto da mãe. e não respondeu. - Por amor de minha filha, consenti em vir aqui - continuou Soames. - Que devo dizer-lhe quando voltar?

Olhando ainda para a mãe, o rapaz disse calmamente:

- Diga a Fleur que é impossível. Tenho de obedecer à vontade expressa por meu pai antes de morrer.

- Jon!

- Está tudo bem, mamã.

Presa de uma espécie de estupefacção, Soames olhava de um para outro. Então, agarrando o chapéu e o guarda-chuva que depusera numa cadeira, caminhou para as cortinas. O rapaz ergueu-as para lhe dar passagem. Soames atravessou-as e ouviu o ranger das argolas quando as cortinas novamente se fecharam. O som libertou qualquer coisa no seu peito.

«Então é assim!», pensou ele, atravessando a porta de entrada da casa.

 

A CANTIGA SOMBRIA

Enquanto Soames caminhava, de volta da casa de Robin Hill, o sol atravessara, numa irradiação enevoada, a cinzenta frieza da tarde. Tanto o absorviam as paisagens em pintura que raramente olhava a sério para os efeitos da Natureza fora de casa, mas impressionou-o aquela sinistra refulgência, que era como uma celebração sombria, de acordo com os seus próprios sentimentos.

Vitória na derrota. A sua embaixada fora negativa, mas desembaraçara-se daquela gente e recuperara a filha, embora à custa da felicidade dela. Que iria dizer-lhe Fleur? Acreditaria que ele fizera tudo o que pudera? E, sob o sol que brilhava sobre os ulmeiros, as aveleiras, os azevinhos e os campos incultos, Soames sentia receio. Ela ficaria terrivelmente abalada! Tinha de apelar para o seu orgulho. O rapaz abandonara-a. Declarara-se abertamente ao lado daquela mulher que, tantos anos atrás, igualmente abandonara o pai - o pai dela, Fleur. Soames crispou as mãos. Abandonara-o, porquê? Que havia de errado nele? E mais uma vez sentiu a impressão característica daqueles que se contemplam a si mesmos através dos olhos de outrem, tal como um cão que olha o seu reflexo no espelho e se sente intrigado e inquieto ante aquela coisa inacessível.

Sem pressa de chegar a casa, jantou na cidade, no Connoisseurs.

Enquanto comia uma pêra, ocorreu-lhe subitamente que, se não houvesse ido a Robin Hill, talvez o rapaz não tivesse tomado aquela decisão. Lembrava-se da expressão do rosto de Jon quando viu a mãe recusar-se a apertar a mão que Soames lhe estendia. Que estranho, que perturbador pensamento! Teria Fleur estragado os seus projectos por excessivo cuidado em garantir-lhes a segurança?

Chegou a casa às nove e meia. Quando o carro passava por um dos portões, ouviu o ruído de uma motocicleta passando pelo outro.

Era decerto o jovem Mont. De forma que Fleur não ficara sozinha. No entanto entrou em casa com o coração assustado. Na sala de estar, pintada de creme, ela estava sentada, com os cotovelos nos joelhos, o queixo entre as mãos crispadas, defronte de um pé de camélias brancas que ocupava o lugar do fogo, na lareira. E aquele olhar à filha, antes que ela o visse, aumentou-lhe o receio. Que estava ela a ver por entre aquelas camélias brancas?

- E então, papá?

Soames abanou a cabeça e as palavras faltaram-lhe. Era uma tarefa assassina! Viu os olhos dela dilatarem-se, os lábios tremerem,.

- Que foi? Que foi? Depressa, papá!

- Minha querida - disse Soames -, fiz o que pude. - E novamente abanou a cabeça.

Fleur correu para ele e pôs uma das mãos em cada um dos seus ombros.

- Ela?

- Não - murmurou Soames. - Ele. Eu tinha-lhe dito que não adiantava. Ele tem de cumprir a vontade expressa pelo pai antes de morrer. - E segurou os pulsos da filha. - Venha, queridinha, não consinta que essa gente a faça sofrer. Não valem o seu dedo-mínimo.

Fleur libertou-se das mãos dele.

- Você não fez... você não deve ter tentado... Você... você traiu-me, papá! - Amargamente ferido, Soames olhou para a apaixonada figura que se contorcia na sua frente. - Você não tentou... fui uma louca... não acredito que ele tenha podido... ele nunca poderia! Ainda ontem ele... Oh! Para que lhe pedi eu isso?

- Sim - disse calmamente Soames -, para que me pediu? Calquei os meus sentimentos, fiz o que pude por si, contra o meu próprio juízo... e aí está a minha recompensa. Boa noite!

E, com cada nervo do corpo tenso a ponto de rebentar, caminhou para a porta.

Fleur correu atrás dele.

- Ele desprezou-me? Quis dizer isso? Papá!

Soames voltou-se e obrigou-se a si mesmo a responder:

- Sim.

- Oh! - gritou Fleur. - Que terá você... que terá você feito nesse passado?

O sufocante sentimento de uma injustiça realmente monstruosa cortou a palavra na garganta de Soames. Que tinha ele feito! Que lhe haviam eles feito! E, com uma dignidade inconsciente, pôs a mão no peito e olhou para a filha.

- É uma vergonha! - exclamou apaixonadamente Fleur. Soames saiu, subindo à sua galeria de pintura, lento e gelado,

para se acalmar entre os seus tesouros.

Era atroz, atroz! Ela fora amimada de mais! E quem a estragara assim? Soames parou diante da cópia de Goya. Habituada a fazer a sua vontade em tudo. A flor da sua vida! E agora, que não podia obter o que queria... Dirigiu-se à janela, para respirar um pouco de ar fresco. A luz do dia ia desaparecendo, a Lua subia, dourada, por entre os choupos. Que som era aquele? A pianola! Uma música sombria, surda e palpitante. Ela pusera-a a tocar - que consolação poderia receber daquilo? Os seus olhos viram um movimento lá em baixo no campo, sob os ramos das rosas trepadeiras e das jovens acácias, onde o luar caía. Fleur estava ali, caminhando para trás e para diante. O coração deu-lhe um pequeno salto doloroso. Que faria ela, sob aquele golpe? Que poderia ele dizer-lhe? Que sabia ele dela? Apenas a amara desde o dia em que nascera, considerara-a a menina dos seus olhos! Não sabia nada... não descobria nada. Lá estava ela, e aquela música sombria e a margem do rio brilhando sob o luar!

«Devo ir lá para fora», pensou ele.

Atravessou apressadamente a sala de estar, iluminada tal como a deixara antes, com a pianola a moer a valsa, ou fox-trot, ou o que quer que lhe chamavam, e passou para a varanda.

Onde poderia vigiá-la sem que ela o visse? E passou furtivamente através do pomar até à casa dos barcos. Estava agora entre ela e a margem do rio, e o seu coração sentiu-se mais aliviado. Fleur era filha dele e de Annette... não iria cometer nenhuma loucura, mas diante daquilo - ele não sabia! Da janela da casa dos barcos podia ver a última acácia e a saia dela, quando ela dava a volta na sua caminhada incessante. A música acabara por fim - graças a Deus! Soames atravessou a sala em que estava e foi olhar, através da janela que dava para o rio, para a água que fluía lentamente por entre os lírios aquáticos. Borbulhava um pouco em torno deles, brilhante quando um raio do luar a banhava. Soames lembrou-se subitamente daquela madrugada que passara na casa dos barcos, na noite em que seu pai morrera, exactamente após o nascimento de Fleur - dezanove anos atrás! E até mesmo agora ele recordava o estranho mundo em que despertara, o estranho sentimento que o possuíra então. Naquele dia começara a segunda paixão da sua vida - por aquela filha que passeava febrilmente sob as acácias. Que consolação ela representara paira o pai! E toda a mágoa e sentimento de ultraje o abandonaram. Se ainda pudesse fazê-la feliz, não se importava com coisa alguma! Um mocho passou por ele, perseguindo um morcego, enquanto a luz do luar iluminava e ampliava a água. Quanto tempo levaria ainda ela a andar daquela maneira? Então voltou à janela, e de repente viu-a a caminhar em direcção ao rio, ficando em pé no desembarcadouro. E Soames vigiava-a, crispando as mãos. Deveria falar-lhe? A sua excitação era intensa. A imobilidade do vulto da rapariga, a sua juventude, a sua absorção no desespero, na saudade. Sempre recordaria aquilo - aquele luar, o doce rumor da água do rio, o tremular das folhas dos salgueiros. Tudo que podia dar-lhe, ela possuíao - excepto uma única coisa,que ela não podia possuir exactamente por causa dele! A perversidade daquilo magoouo naquele momento, como o magoaria uma espinha na garganta.

Então, com infinito alívio, viu-a regressar para casa. Que poderia oferecer-lhe como compensação? Pérolas, viagens, cavalos, outro rapaz... tudo que ela quisesse, tudo que o fizesse esquecer o vulto da moça sozinha junto do rio! Lá se pusera ela de novo a tocar aquela música! Porquê? Era uma obsessão! Sombria, surda, desfalecente, invadindo a casa toda. Era como se ela dissesse: «Se não tiver algo que me desvie o pensamento, morro disso!» E Soames compreendia-o obscuramente. Bem, se aquilo a ajudava, que tocasse durante a noite inteira! E, insinuando-se sob as árvores do pomar, chegou à varanda. Embora já estivesse resolvido a procurá-la e a falar com ela, ainda hesitava, sem saber o que dizer, procurando a custo lembrar-se do que se sente ante um amor traído. Ele devia saber, devia lembrar-se - e não podia. Estavam desaparecidas todas as recordações reais, lembrava-se apenas de que aquilo o fizera sofrer horrivelmente. E ficou de pé, na escuridão, passando o lenço pelas mãos e pelos lábios muito secos.

Estendendo a cabeça, podia ver Fleur, de pé, com as costas apoiadas à pianola, que ainda remoía a sua música, os braços cruzados sobre o peito, um cigarro aceso entre os lábios, com o fumo a velar-lhe o rosto. E a expressão daquele rosto era estranha a Soames. os olhos brilhantes e parados, cada feição animada de uma espécie de desdém magoado e de cólera. Uma ou duas vezes ele vira Annette com uma expressão assim, e o rosto estava vivo de mais, nu de mais, naquele momento não era o rosto da sua filha. Não ousou aparecer, compreendendo a futilidade de qualquer tentativa de consolação. E sentou-se na sombra do caramanchão.

Monstruosa partida que o destino lhe pregara! Némesis! Aquele velho casamento infeliz. E, em nome de Deus, porquê? Como iria ele saber, quando desejara tão violentamente Irene e ela consentira em ser sua, que ela nunca o amaria? A música morreu e foi renovada, depois tornou a morrer, e Soames continuava ainda sentado na sombra, esperando não sabia o quê. A ponta do cigarro de Fleur passou através da janela, caiu na relva, e ele viu-a consumir-se, queimar-se a si própria. A Lua abrigara-se por trás dos choupos e filtrava a sua irrealidade pelo jardim. Luz desconsoladora, misteriosa, escondida - igual à beleza daquela mulher que nunca o amara, cobrindo a vingança e as suas flechas com vestes que não eram deste mundo. Piores!

E a sua flor tão infeliz! Ah! Porque não pode uma pessoa colocar a felicidade em apólices, porque não se pode garanti-la contra a fuga?

A luz deixara agora de sair pela janela da sala de estar. Tudo lá estava silencioso e escuro. Teria ela subido? Ergueu-se e entrou em casa, na ponta dos pés. Parecia que sim! Entrou. A varanda afastava a luz do luar e a princípio Soames apenas pôde ver as silhuetas dos móveis, mais negros que a escuridão. E encaminhou-se para a janela, para a fechar. O pé bateu numa cadeira, ouviu um arfar. Lá estava ela, enroscada no canto do sofá! As mãos tactearam. Aceitaria Fleur a sua consolação? E ficou de pé, olhando para aquela bola de vestido, cabelos e graciosa juventude, tentando abrir caminho através da tristeza. Por fim tocou-lhe os cabelos e disse:

- Venha, minha querida, o melhor é ir para a cama. Hei-de curá-la disso, de qualquer forma!

Que fatuidade! Mas que poderia ele dizer?

 

SOB O VELHO CARVALHO

Quando Soames desapareceu, Jon e a mãe ficaram imóveis, sem falar, até que ele disse subitamente: - Eu devia tê-lo acompanhado à saída.

Mas Soames já estava na estrada, e Jon subiu para o estúdio do pai, pouco confiante em si.

A expressão da mãe ao enfrentar o homem com quem fora casada, selara a resolução que crescia nele desde que ela o deixara na noite anterior. Aquilo dera a tudo o último toque de realidade. Casar com Fleur seria como bater na face da mãe, seria trair seu pai morto! Não podia ser! Jon tinha a natureza menos capaz de ressentimentos deste mundo e não sentiu qualquer rancor contra os pais nas suas horas de amargura. Para uma criatura tão jovem, era um poder extraordinário aquele seu de ver as coisas com tais proporções. Era pior para Fleur, pior até mesmo para sua mãe, do que para ele. Pior que abandonar era ser abandonado ou ser a causa forçada do abandono para alguém que se ama! E ele não podia, não queria mostrar rancor! E, enquanto olhava da janela a luz tardia do começo da noite, novamente teve aquela repentina visão do mundo que o impressionara na noite anterior. Mares e mares, países e países, milhões e milhões de pessoas, todas com as suas vidas, as suas energias, as suas alegrias, sofrimentos e mágoas - todas com coisas que eram forçadas a abandonar, todas com as suas lutas separadas pela existência. E, mesmo que ele se propusesse abandonar tudo por amor da única coisa que não conseguia obter, seria um louco se pensasse que os seus sentimentos importavam muito num mundo tão vasto e procedesse como um garoto chorão ou um rústico ignorante. Cismava nas pessoas que nada possuíam - os milhões que haviam perdido a vida na guerra, os milhões a quem a guerra deixara apenas a vida e pouco mais, as crianças famintas, os homens mutilados, os prisioneiros, todas as espécies de desventurados. E eles não o ajudavam muito. Se alguém vai perder uma refeição, que consolação acha em saber que muitos outros vão sofrer a mesma perda? Via mais distracção no pensamento de se atirar por esse mundo fora, do qual conhecia tão pouco. Não poderia continuar ali, emparedado e abrigado, com tudo tão suave e confortável, sem nada para fazer além de meditar e pensar no que não pudera ser. Não queria voltar para Wansdon, para junto das lembranças de Fleur. Se a visse de novo, não poderia confiar em si mesmo, e, se ficasse em Robin Hill, ou se voltasse para Wansdon, seguramente a encontraria. Enquanto estivessem um ao alcance do outro, isso fatalmente aconteceria. A única coisa a fazer era ir para longe, e depressa. Mas, por mais que amasse a mãe, não queria ir em companhia dela. No entanto, supondo-se brutal por esse pensamento, resolveu desesperadamente propor irem juntos para a Itália. Durante duas horas, no estúdio melancólico, procurou dominar-se, e depois vestiu-se solenemente para o jantar.

A mãe fizera o mesmo. Comeram pouco, lentamente, e falaram do catálogo do pai. A exposição estava marcada para Outubro, e, além de alguns pormenores materiais, nada mais havia a fazer.

Depois do jantar, ela pôs um abrigo, e foram para o jardim. Passearam um pouco, conversaram um pouco, depois pararam em silêncio sob o velho carvalho. Dominado pelo pensamento «Se eu mostrar qualquer coisa, mostro tudo», Jon enlaçou o seu braço no dela e disse despreocupadamente:

- Mamã, vamos para a Itália.

Irene apertou-lhe o braço e disse também com naturalidade:

- Seria muito bom, mas estive a pensar que é melhor você ir sozinho.

Verá mais coisas e fará mais coisas do que lhe seria possível na minha companhia.

- Mas assim fica sozinha.

- Já vivi só durante mais de doze anos. Além disso, gostarei de estar aqui para assistir à abertura da exposição de seu pai.

A mão de Jon agarrou-se mais ao braço dela. Não se deixava enganar.

- Não pode ficar sozinha aqui. Tudo é grande de mais.

- Aqui, talvez não. Vou para Londres, e poderei ir para Paris depois da abertura da exposição. Deve passar um ano a viajar, Jon, e ver o mundo inteiro.

- Sim, gostaria de ver o mundo e lutar com ele. Mas não quero deixá-la só.

- Meu filho, eu vivo por si. Se é para o seu bem, será também para o meu. Porque não marca a partida para amanhã? Já tem o seu passaporte.

- Sim. Se tenho de ir, o melhor é ir já. Apenas, mamã, se eu resolver morar em qualquer parte... na América ou noutro lugar... importa-se de ir também para lá?

- Irei para onde e quando me chamar. Mas não me chame antes de realmente precisar de mim.

Jon soltou um fundo suspiro.

- Acho a Inglaterra sufocante.

Demoraram-se mais alguns minutos sob o carvalho, olhando para a frente, para o Grand Stand de Epson, velado pela noite. Os ramos encobriam o luar, que brilhava sobre o resto das coisas, sobre os campos distantes, nas janelas fechadas da casa, que em breve estaria para alugar.

 

O CASAMENTO DE FLEUR

Os jornais mundanos de Outubro, ao anunciarem o casamento de Fleur Forsyte com Michael Mont, pouco se aperceberam da simbólica significação desse acontecimento. Na união da bisneta do «Superior Dosset» com o herdeiro de um nono baronete estava o inegável e visível sinal da fusão de classes que serve de base à estabilidade política de um país. Chegara a altura em que os Forsyte eram obrigados a renunciar ao seu natural ressentimento contra as frioleiras que não lhes pertenciam por nascimento e aceitá-las como mais naturalmente devidas ao seu instinto de propriedade. Além disso, tinham de subir para dar lugar a todos os outros de fortuna muito mais recente. Naquela cerimónia discreta, mas de bom gosto, realizada em Hanover Square, terminada depois entre os móveis de Green Street, seria impossível, entre os que não os conhecessem, distinguir o contingente Forsyte do contingente Mont - tão longe estava já o «Superior Dosset». Seria que havia no corte das calças, na expressão do bigode, no sotaque, no brilho da cartola, num alfinete sequer, alguma diferença entre Soames e o baronete? Não seria Fleur tão senhora de si, tão viva, tão bonita e tão difícil como as Muskham, Mont ou Charwell ali presentes? Esse nada que caracteriza a alta classe, os Forsyte possuíam-no nos seus trajos, no seu aspecto, nas suas maneiras. Porque eles haviam-se tornado também «alta classe», e agora o nome dos Forsyte apareceria no Stud Book, com a cifra da sua fortuna junto à descrição das suas terras. Se isso era um pouco tardio e se aquelas recompensas do instinto de propriedade - terras e dinheiro eram destinados ao cadinho de fusão-, essa questão, apesar de tão debatida, ainda não se debatera suficientemente. Afinal, Timothy dissera que os consolidados estavam a subir. Timothy, o último, o elo perdido, Timothy, in extremis em Bayswater Road, segundo contara Francie. Murmurava-se que o jovem Mont era uma espécie de socialista muito vago, e, afinal, servia como elemento de segurança futura, levando-se em conta os tempos de hoje. E não havia nenhuma inquietação a recear nesse socialismo do moço. As classes latifundiárias produzem de vez em quando essas suaves loucuras, dedicadas a empregos seguros e confinadas à teoria. Como George comentou com sua irmã Francie:

- Breve terão filhos... e isso assentar-lhe-á a cabeça.

A igreja, ornada de brancos ramos de flores e com qualquer coisa azul na janela de leste, parecia extremamente casta, como tentando empreender um contra-ataque à rudeza do serviço religioso, calculado a levar o pensamento de todos para a questão da prole. Os Forsyte, os Hayman e os Tweetyman postaram-se na ala esquerda, os Mont, os Charwell e os Muskhan, à direita, enquanto as colegas de escola de Fleur e os colegas de guerra de Michael se espalhavam indiscriminadamente de um lado e de outro. E três comadres abrigavam-se no fundo, em companhia de dois criados dos Mont e da velha ama de Fleur. Dada a situação alterada do país, era uma igreja mais cheia do que se poderia esperar.

Mrs. Val Dartie, que estava sentada com o marido na terceira fila, apertou-lhe a mão mais de uma vez durante a cerimónia. Para ela, que conhecia o enredo daquela tragicomédia, esse seu dramático momento era-lhe quase penoso. «Queria saber se Jon adivinha», pensava ela, «Jon, lá longe na Colômbia Britânica.» Recebera naquela mesma manhã uma carta dele. que a fizera sorrir e dizer:

- Jon está na Colômbia Britânica. Val, porque queria estar na Califórnia. Gosta muito de lá.

- Oh - disse Val -. então já está de novo capaz de dizer um gracejo.

- Comprou umas terras e mandou chamar a mãe.

- Que irá ela fazer longe daqui?

- Ela só se preocupa com Jon. Você crê que essa mudança será feliz?

Val apertou os olhos até mostrar apenas dois pontos cinzentos entre os cílios escuros.

- Fleur não teria consentido em acompanhá-lo. Não teve boa educação.

- Pobre Fleur! - suspirou Holly.

Ah! Era bastante estranho aquele casamento! O rapaz, Mont, apanhara-a no refluxo, naquele desamparo de quem naufragou. E tal mergulho não poderia ser... como Val bem disse...

Havia pouco a dizer sobre o espectáculo das costas cobertas com o véu que a prima lhe mostrava, e Holly revia os aspectos gerais daquelas bodas. Ela, que fizera um casamento por amor, tinha horror a matrimónios infelizes. Aquele poderia não dar nisso, no fim, mas era claramente como uma moeda atirada ao ar, que podia dar cara ou coroa. E consagrar daquele modo uma aposta de cara ou coroa com uma unção fictícia diante de uma multidão de elegantes livre-pensadores parecia a Holly uma coisa tão parecida com pecado quanto seria permitido evocar tal palavra numa era que a aboliu. Os olhos dela vagueavam no prelado, nas suas vestes de festa - um Charwell, pois os Forsyte ainda não haviam dado nenhum prelado-, para Val, ao seu lado, a pensar - ela tinha a certeza - na potra de Mayfly que estava cotada a quinze para um para o Cambridgshire. Depois os olhos de Holly apanharam o perfil do nono baronete, contrafeito ante o esforço de ajoelhar-se. Via bem o vinco que ele dera às calças, repuxando-as acima dos joelhos, para não as amarrotar, e pensou: «Val não puxou as dele!» Os seus olhos passaram para o banco à frente, onde o vulto substancial de Winifred estava trajado com apaixonada elegância, e pousou depois em Soames e Annette, ajoelhados lado a lado. Um leve sorriso chegou-lhe aos lábios - Prosper Profond, de volta dos Mares do Sul via canal da Mancha, deveria estar igualmente ajoelhado, uns seis bancos atrás. Sim!

Era realmente um engraçado «pequeno» negócio, desse no que desse, realizava-se na igreja adequada e seria noticiado adequadamente pelos jornais na manhã seguinte.

Começara-se um hino, e ela via o nono baronete a cantar as Hostes de Midian. O seu dedo mínimo tocou o polegar de Val - seguravam o mesmo livro de hinos -, e um leve estremecimento atravessou-a, sempre o mesmo, depois de vinte anos. E ele sussurrou:

- Você lembra-se do rato?

Era o rato que aparecera no casamento deles, na colónia do Cabo, e limpara os bigodes defronte da mesa do registo. E entre o terceiro dedo e o mínimo ela apertou fortemente o polegar

de Val.

O hino acabara, o prelado começou a fazer a sua alocução. Falou dos perigosos tempos em que vivemos e da vergonhosa conduta da Câmara dos Lordes em relação ao divórcio. «Todos somos soldados», disse ele, «nas trincheiras dos que sofrem os venenosos ataques do Príncipe das Trevas, e temos de ser valentes. A finalidade do casamento são os filhos, e não uma mera e pecadora felicidade.»

Um diabinho dançou nos olhos de Holly - os cílios de Val tinham-se encontrado. Acontecesse o que acontecesse, ele não deveria ressonar. O seu polegar e o indicador beliscaram-no tão fortemente que ele se agitou, incomodado.

O discurso acabara, passara o perigo. Estavam agora a assinar na sacristia.

Atrás dela, uma voz disse:

- Será que ela aguenta a corrida?

- Quem é? - sussurrou Holly.

- O velho George Forsyte.

Holly deteve-se, examinando aquela cara, de quem já ouvira falar muito. Recém-vinda da África do Sul, e desconhecendo a parentela e os amigos, nunca via nenhum deles sem uma curiosidade quase infantil. George era muito grande e muito tratado, e os olhos dele deram-lhe a curiosa sensação de estar pouco vestida.

- Estão a sair - ouviu-o dizer.

E eles vieram, caminhando ao som do coro.

Holly olhou em primeiro lugar para o rosto do jovem Mont. Os lábios e as orelhas dele contraíam-se, os olhos corriam inquietos desde os próprios pés até à mão de mulher pousada no seu braço, e paravam subitamente defronte de si, como para encarar um pelotão de fuzilamento. Deu a Holly a impressão de que estava delirantemente apaixonado. Mas Fleur! Ah! Era diferente. A moça mostrava-se perfeitamente serena, mais bonita que nunca no seu vestido branco e sob o longo véu que lhe cobria os cabelos castanhos mantendo as pálpebras descidas sobre os olhos cor de avelã. Exteriormente, parecia toda ali, mas, interiormente, onde estaria ela? Quando passaram, Fleur levantou as pálpebras - e a inquieta luz daquelas pupilas ficou gravada na memória de Holly como o débil bater de asas de um pássaro prisioneiro.

Em Green Street, Winifred recebia os convidados um pouco menos serena que habitualmente. O pedido de Soames para lhe utilizar a casa chegara num momento profundamente psicológico, Sob a influência de um comentário de Prosper Profond. ela começara a trocar os seus móveis Império por outros, expressionistas. Havia à venda no Mealard os mais interessantes conjuntos, em violeta e verde, com ornatos laranja. Dentro de um mês, a mudança estaria completa. Até agora, porém, os recrutas por de mais «curiosos» que ela alistara não marchavam muito bem com a velha guarda. Era como se o regimento dela estivesse metade de caqui e metade de lã escarlate e barretes de pele de urso. Mas o seu carácter forte e decidido fez o melhor arranjo que pôde na sala de estar, que caracterizava, muito mais do que talvez a dona o imaginasse, o semibolchevizado imperialismo do seu país. Afinal, aquele era um dia de fusão, e ninguém poderia queixar-se do excesso de uma coisa tão salutar! E os olhos da dona da casa percorriam satisfeitos os seus hóspedes. Soames encostara-se ao espaldar de uma cadeira embutida e o jovem Mont estava defronte daquele «interessantíssimo» biombo cujo desenho ninguém ainda fora capaz de lhe explicar. O nono baronete estava atrás de uma mesa redonda, escarlate, coberta com um vidro forrado por asas azuis de borboletas australianas, encostando-se ao seu armário Luís XV, Francie Forsyte apoiava-se à nova prateleira da chaminé, finamente esculpida com bonequinhos grotescos, sobre fundo de ébano, George, encostado ao velho piano, segurava um livrinho azul-celeste, como se estudasse apostas. Prosper Profond brincava com o trinco da porta aberta, preta, com painéis azul-pavão, e, perto dele, Annette punha as mãos na própria cintura. Dois dos Muskhan, na varanda, inclinavam-se sobre as plantas, como se as cheirassem, Lady Mont, magra e intrépida, segurava a sua luneta de longo cabo e fixava o grande candeeiro central, marfim e alaranjado, listrado de magenta-escuro, como se os céus se abrissem ali. Toda a gente, na verdade, parecia interessada em qualquer coisa. Apenas Fleur, ainda vestida de noiva, se desligava de qualquer apoio, atirando palavras e olhares à direita e à esquerda. A sala estava cheia do borbulhar dissonante das conversas. Ninguém podia ouvir nada do que alguém dizia, e isso parecia de pouca importância, pois ninguém esperava por uma coisa tão certa como uma resposta. A conversa moderna parecia a Winifred tão diferente dos tempos da sua mocidade, quando a grande moda era falar arrastado, balbuciando quase! Mas assim mesmo era «interessante» - o que, afinal, era só o que tinha importância. Mesmo os Forsyte falavam com extrema rapidez - Fleur e Christopher, Imogen, o filho mais novo de Nicholas filho, Patrick. Soames, evidentemente, mantinha-se em silêncio, mas George, por sobre o piano, trocava ruidosos comentários com Francie, ainda apoiada à consola da chaminé. Winifred aproximou-se do nono baronete. Ele parecia prometer um certo descanso, com o seu nariz fino e um pouco caído, tal como os bigodes grisalhos, e ela disse, destacando as palavras através do sorriso:

- Esteve tudo esplêndido, não lhe parece?

A resposta explodiu como uma bolinha de pão através do sorriso que ele devolvia:

- A senhora recorda-se, em Frazer, da tribo que enterrava a noiva até à cintura?

Falava tão depressa como os outros! Tinha uns olhinhos escuros e vivos agarrando tudo em redor, como os de um padre católico.

Winifred sentiu imediatamente que ele diria cousas que eu haveria de lamentar.

- São sempre tão interessantes os casamentos!

Então ela caminhou para junto de Soames. O irmão estava curiosamente imóvel e Winifred viu imediatamente o que ditava a sua atitude. À direita, tinha George Forsyte e à esquerda Annette e Prosper Profond. Não podia mover-se sem ver aqueles dois juntos ou o reflexo deles nos olhos chocarreiros de George Forsyte E ele tinha toda a razão em não tomar conhecimento do caso.

- Dizem que Timothy está nas últimas - disse ele lugubremente.

- E onde irá pô-lo, Soames?

- Em Highgate. - E contou pelos dedos. - Com ele serão doze os que lá estão, incluindo as noras. Que tal acha Fleur?

- Notavelmente bonita.

Soames concordou. Nunca a vira tão linda, e no entanto não podia afastar-se do pensamento de que aquele casamento era anti-natural, recordando-se ainda do vulto enrodilhado no canto do sofá. Desde aquela noite até ao dia de hoje não recebera dela qualquer confidência. Soube pelo motorista que ela fizera mais uma tentativa em Robin Hill, mas fracassara ao dar com a casa vazia, sem ninguém lá. Sabia que recebera uma carta, mas ignorava o que vinha escrito nela, excepto que a obrigara a esconder-se e chorar. E notava às vezes que Fleur o olhava, quando pensava que o pai não o percebia, como se cismasse ainda no que teria ele feito outrora para que aquela gente o odiasse tanto. Bem, fora isso mesmo! Annette voltara, e as coisas prosseguiram a sua marcha, tristemente, até que subitamente Fleur lhe comunicou que ia casar com o jovem Mont. E mostrara-lhe um pouco mais de afeição quando lhe dissera isso. Ele curvara-se - que adiantava opor-se? Deus sabia que ele nunca pretendera opor-se-lhe em nada! E o rapaz parecia completamente louco por Fleur. Não havia dúvida de que ela estava num estado de espírito absurdo, e era jovem, absurdamente jovem. Mas, se se opusesse à vontade da filha, não sabia absolutamente o que ela poderia fazer. Tudo o que lhe poderia sugerir era que enveredasse por uma profissão - médica ou advogada - ou qualquer outra extravagância, ela não tinha aptidão nem para a pintura, nem para escrever, nem para a música, na sua opinião as únicas ocupações legítimas para mulheres celibatárias, se elas acham que nos dias de hoje, são obrigadas a fazer qualquer coisa. Afinal, estava mais segura casada, porque ele via muito bem como ela andava febril e inquieta dentro de casa. Annette também fora favorável ao casamento. Annette, por trás do véu da recusa dele em tomar conhecimento do que ela estava disposta a fazer, caso estivesse disposta a fazer quallquer coisa, Annette dissera: «Deixe-a casar com esse rapaz. É muito bom rapaz, muito menos louco do que parece.» Donde tirara ela essa opinião ele não o sabia, mas a posição dela abrandara-lhe as dúvidas. A esposa fosse qual fosse a sua conduta, tinha olhos perspicazes e uma quantidade quase deprimente de bom senso. Ele depositara cinquemta mil libras em nome de Fleur, tomando cuidado em não haver desvio de dinheiro no caso de o casamento não dar certo. Poderia não dar certo? Ela não esquecera ainda o outro rapaz, Soames sabia-o bem. Iam passar a lua-de-mel em Espanha. E ele sentir-se-ia ainda mais só depois de ela partir. No entanto, mais tarde, ela esqueceria e voltaria para ele!

A voz de Winifred interrompeu-lhe a cisma.

- Quê! Não pode ser! June!

E um pouco além, vestida num djibbah - que coisas ela vestia -, os cabelos presos numa rede, Soames viu a prima e Fleur encaminhando-se para a cumprimentar. As duas desapareceram para os lados da escada.

- Realmente - disse Winifred -, ela faz as coisas mais absurdas! Imagine, vir aqui!

- Porque a convidou? - resmungou Soames.

- Porque pensei que ela não aceitava, é evidente.

Winifred esquecera que a norma de conduta das criaturas se rege sempre pelo lado principal do carácter ou. por outras palavras, esquecera que Fleur era agora uma "desvalida".

Ao receber o convite, june pensara a princípio: «Por nada no mundo me meteria com eles!» Mas depois, certa manhã, despertara de um sonho em que Fleur lhe aparecia a navegar em sua direcção, dentro de um barco, fazendo-lhe gestos de desespero. E isso alterou-lhe a decisão.

Quando Fleur se aproximou e lhe disse «Vamos lá acima, enquanto mudo o vestido», ela seguira-a pela escada. A moça guiou-a para o antigo quarto de dormir de Imogen e sentou-se junto do toucador.

June sentou-se na cama, magra e erecta, tal como um pequeno espírito. Fleur fechou a porta e ficou de pé, diante de June, tirando o vestido de noiva. Como era linda!

- Creio que me considera uma louca - disse ela por entre os lábios trémulos - quando isto deveria ter sido com Jon. Mas que importa? Michael gostava de mim, e eu não me importo. E ele tira-me de casa. - Mergulhando a mão no peito, tirou uma carta. - Jon escreveU-me isto.

 

Lago Okanagen - Colômbia Britânica. Ndo voltarei a Inglaterra.

Deus a abençoe.

       Jon

 

- Veja, como ela se garantiu - comentou Fleur. June devolveu a carta.

- Isso não é justo para Irene. Ela sempre disse que Jòn poderia resolver como quisesse.

Fleur sorriu amargamente.

- Escute, ela não estragou também a sua vida? June olhou-a.

- Ninguém pode estragar uma vida, minha querida. Isso é um disparate. As coisas acontecem, mas nós somos superiores a elas.

Com uma espécie de terror, viu a pequena cair de joelhos e esconder o rosto no djibbah. E um soluço estrangulado chegou aos ouvidos de June.

- Está bem, está bem - murmurou ela. - Não chore! Então, então...

Mas o queixo da rapariga comprimia-se mais fortemente contra ela e o som dos soluços era cada vez mais assustador.

Bem, bem! Aquilo tinha de acontecer. Depois ela sentir-se-ia melhor, June acariciou os cabelos curtos da cabecinha bem feita, e todo o seu disperso sentimento maternal se concentrou dentro dela, passando, através das pontas dos seus dedos, para a cabeça da moça.

- Não se escravize a isso, minha querida-disse ela finalmente. - Uma pessoa não pode controlar a vida, mas pode lutar com ela. Procure ver o lado melhor das coisas. Foi assim que fiz. Sofri, como você. E chorei, como você está a chorar. E olhe agora para mim!

Fleur levantou a cabeça e um soluço afogou-se-lhe num leve riso. Na verdade, o que ela estava a ver era um delgado, selvagem, quase devastado espírito, mas com uns olhos corajosos.

- Muito bem!--disse ela.-Sinto muito. Creio que hei-de esquecê-lo, se for para bastante longe e depressa.

E, erguendo-se, caminhou para o lavatório.

June via-a remover com água fria as marcas da emoção. Salvo um ligeiro rubor, já não se percebia nada quando ela se pôs diante do espelho. June ergueu-se da cama, agarrando uma almofadinha de alfinetes, e a única coisa que soube fazer para mostrar a sua piedade foi cravar dois alfinetes em lugares errados.

- Dê-me um beijo - disse ela quando Fleur ficou pronta, comprimindo o queixo contra a tépida face da rapariga.

- Quero fumar um cigarro - disse Fleur. - Não espere. June deixou-a sentada na cama, com o cigarro entre os lábios,

os olhos semicerrados, e desceu a escada. Na porta de entrada da sala de estar estava Soames, como que inquieto com a demora da filha. June dirigiu-se para a entrada.. A sua prima Francie estava lá.

- Olhe! - disse June, apontando com o queixo para Soames. - Aquele homem fatal!

- Que quer você dizer? - perguntou Francie. - Fatal? June não respondeu.

- Não esperarei pela saída - disse ela finalmente. - Adeus!

- Adeus! - disse Francie. E os seus olhos de um azul de celta arregalaram-se.

Aquela velha intriga! Com efeito, era absolutamente romântica!

Soames, saindo de junto à escada, viu June ir-se embora e soltou um suspiro de satisfação. Porque não aparecia Fleur? Acabavam por perder o comboio. Aquele comboio ia roubar-lha, mas ele não podia deixar de se inquietar ao pensar que os noivos se arriscavam a perdê-lo. Então ela apareceu descendo a escada, envergando um vestido de tom queimado, com um chapeuzinho de veludo preto, e passou por ele em direcção à sala. Viu-a beijar a mãe, a tia, a mulher de Val, Imogen, e depois voltar-se na sua direcção, rápida e linda como sempre. Como iria tratá-la naquele derradeiro momento da sua vida, de rapariga? Ele não podia esperar muito!

Os lábios dela comprimiram-lhe a face.

- Paizinho! - disse ela afastando-se.

Paizinho! Já não lhe chamava assim há anos. Ele soltou um longo suspiro e acompanhou lentamente o grupo. E ainda era preciso atravessar toda a loucura dos confetti e o mais, mas ele queria ver se ainda lhe apanhava um sorriso, se ela se voltasse para trás, embora aqueles loucos fossem capazes de lhe acertar com um sapato se não tomassem cuidado.

A voz de Michael disse-lhe fervorosamente ao ouvido:

- Adeus, sir, e obrigado! Estou horrivelmente aturdido!

- Adeus - respondeu Soames. - Não perca o comboio. Ficou de pé no terceiro degrau, a fim de poder ver por sobre

as cabeças - os ridículos chapéus e as cabeças. Os noivos já estavam no carro. Houve aquela algazarra, e então atiraram o sapato. Uma onda de algo indefinível avassalou Soames, e ele não sabia... não podia ver!

 

O ÚLTIMO DOS VELHOS FORSYTE

Quando chegaram para preparar a toilette fúnebre daquela criatura terrivelmente simbólica - Timothy Forsyte, o único individualista ainda vivo, o único homem que não tomara conhecimento da grande guerra -, acharam-no maravilhoso. Nem mesmo a morte liquidara a sua saúde.

Para Smither e a cozinheira, aquela preparação representava a prova do que elas nunca haviam suposto possível - o fim terrestre da velha geração dos Forsyte. Pobre Mr. Forsyte. Agora devia segurar a sua harpa e cantar em companhia de Miss Forsyte, de Mrs. Juley, de Miss Hester, com Mr. Jolyon, Mr. Swithin, Mr. James, Mr. Roger e Mr. Nicholas também na festa. Se Mrs. Hayman estaria lá, não se poderia garantir, pois fora cremada. Secretamente, a cozinheira supunha que Mr. Timothy ficaria alterado, pois ele sempre se irritara com realejos. Quantas vezes ele dissera: «Maldita coisa! Lá vem de novo! Smither, o melhor que você faz é ir ver o que pode fazer.» Por ela, teria apreciado muito a música, se não soubesse que Mr. Timothy tocaria imediatamente a campainha dizendo: «Tome meio penny e mande tocar mais longe.» Muitas vezes eram obrigadas a acrescentar três pence do seu próprio bolso, antes que o homem resolvesse ir-se embora, pois Timothy sempre subestimara o valor da emoção. Felizmente, nos últimos anos, ele tomara os realejos por zumbidos de moscas, o que era uma consolação, e assim elas podiam ouvir a música a gosto. Mas uma harpa! A cozinheira cismava. Era uma grande mudança! E Mr. Timothy nunca gostara de mudanças. No entanto, não falou acerca disso com Smither, que tinha os seus próprios conceitos em relação ao Céu, e esses conceitos eram capazes de irritar qualquer pessoa.

Chorou enquanto Timothy estava a ser preparado e todos beberam o sherry da garrafa de Natal, que a partir de agora já não seria necessária. Ah, Senhor! Ela estava ali há quarenta e cinco anos e Smither há quarenta e três! E agora tinham de ir para uma casinha de Tooting, vivendo das suas economias e do que Miss Hester tão bondosamente lhes deixara. Porque não se empregariam novamente, depois do glorioso passado! Não! Mas gostariam de voltar a ver Mr. Soames ainda uma vez, e Mrs. Dartie, e Miss Francie, e Miss Euphemia. E, mesmo que tivessem de pagar o próprio táxi, ambas achavam que deveriam comparecer ao funeral. Durante seis anos, Mr. Timothy fora o bebé delas, tornando-se cada dia mais criança, até que finalmente ficara criança de mais para viver.

Passaram as horas regulares de espera polindo e espanando tudo, apanhando o único rato que caíra na ratoeira e asfixiando o último escaravelho, a fim de deixarem tudo limpo - discutindo uma com a outra o que comprariam no leilão. A caixa de trabalho de Miss Ann, o álbum de algas de Miss Juley, o guarda-fogo favorito de Miss Hester e os cabelos de Mr. Timothy - pequenos rolinhos louros guardados numa moldura preta. Oh! Tinham de comprar aquilo, mas também era verdade que o preço das coisas subira tanto!

Coube a Soames distribuir convites para o funeral. Mandou-os preparar por Gradman, no escritório. Só aos parentes próximos e nada de flores. Encomendaram-se seis carros. E o testamento seria lido depois em casa.

Chegou às onze horas para ver se estava tudo pronto. Um quarto de hora depois o velho Gradman chegou, de luvas pretas, com um crepe no chapéu. Ele e Soames ficaram à espera na sala de estar. Às onze horas chegaram os carros, numa longa fila. Mas ninguém mais apareceu.

- Isto surpreende-me, Mr. Soames - disse Gradman. - Eu mesmo pus os convites no correio.

- Não sei - disse Soames. - Ele tinha perdido todo o contacto com a família.

Soames reparara, nos velhos tempos, que a sua família se aproximava muito mais na morte que na vida, mas, agora, a maneira como ela se reunira toda para o casamento de Fleur e faltava para o funeral de Timothy parecia-lhe uma amostra de mudança vital. Naturalmente havia outra razão, pois Soames sabia que, se ele não conhecesse o conteúdo do testamento de Timothy, talvez também se afastasse, por delicadeza. Timothy deixara uma boa fortuna, sem ninguém de especial a quem a legar, e eles pareceriam estar à espera de alguma coisa.

Às doze horas o cortejo deixou a porta. Timothy ia sozinho, na primeira carruagem. Depois, Soames só, depois, Gradman só, depois, a cozinheira e Smither juntas. Começaram o percurso a passo, mas em breve puseram-se a trotar sob o sol brilhante. À entrada do cemitério de Highgate, pararam para o serviço fúnebre na capela. Soames preferia ter ficado do lado de fora. Não acreditava numa palavra daquilo, mas, por outro lado, era uma forma de garantia que não podia ser negligenciada, no caso de, afinal, haver alguma coisa.

Caminharam de dois em dois - ele e Gradman, Smither e a cozinheira - até ao mausoléu da família. Não era muito distinto, para o funeral do último dos velhos Forsyte.

Trouxe Gradman no seu carro, na viagem de volta para Bayswater Road, com um certo calor no coração. Tinha uma surpresa para o velho que servira os Forsyte durante cinquenta e quatro anos - uma surpresa que preparara sozinho. Lembrava-se bem de ter dito a Timothy, no dia seguinte ao funeral da tia Hester: «Bem. tio Timothy, e ainda temos Gradman. Tem tido os maiores trabalhos com a família. Que é que o senhor diz de lhe deixar cinco mil libras?» E enorme fora a sua surpresa quando Timothy concordara, conhecendo como conhecia a dificuldade de obter que o tio deixasse qualquer coisa para alguém. E agora o velhote ficaria imensamente alegre, pois Soames sabia que Mrs. Gradman sofria do coração e o filho deles perdera uma perna na guerra.

Era extraordinariamente agradável para Soames o facto de ter reservado para ele cinco mil libras do dinheiro de Timothy. Sentaram-se ambos na pequena sala de estar, cujas paredes, como uma visão celeste, eram azul-celeste e dourado, com cada moldura de quadro espantosamente brilhante, cada móvel livre do menor grão de poeira, para lerem aquela pequena obra-prima - o testamento de Timothy. Com as costas para a luz, sentado na cadeira da tia Hester, Soames encarava Gradman, que voltava o rosto para a luz, no sofá da tia Ann. E, cruzando as pernas, começou:

 

Este é o testamento onde estão contidas as últimas vontades do abaixo assinado, Timothy Forsyte, do Bower, Bayswater Road. Nomeio o meu sobrinho Soames Forsyte, do Shelter, Mapledurham, e Thomas Gradman, de Folly Road, Highgate, como meus testamenteiros e executores do dito testamento. Para o dito Soames Forsyte deixo a soma de mil libras, livres de imposto de transmissão, e ao dito Thomas Gradman deixo a soma de cinco mil libras, igualmente livres do imposto de transmissão.

 

Soames parou. O velho Gradman estava inclinado para a frente, convulsivamente agarrado a um dos joelhos com cada uma das mãos magras. A boca abrira-se, de forma que lhe apareciam as obturações de ouro nos dentes, os olhos piscavam, e duas lágrimas rolaram lentamente deles. Soames continuou a ler rapidamente:

 

Deduzidos esses legados e as somas necessárias ao pagamento das minhas despesas funerárias e mais gastos em conexão com este testamento, lego a soma total restante ao descendente varão de meu pai, Jolyon Forsyte, por seu casamento com Ann Tierce, o qual descendente, após a morte de todos os descendentes masculinos ou femininos de meu citado pai, havidos do citado casamento, e que já estavam em vida por ocasião da minha morte, seja o último a atingir a idade de vinte e um anos. É minha vontade expressa que todas as minhas propriedades sejam conservadas, até ao extremo-limite permitido pelas leis da Inglaterra, em benefício desse descendente de linha masculina acima descrito.

 

Soames leu a enumeração dos títulos e outras cláusulas secundárias, e, tendo terminado, olhou para Gradman. O velhote enxugava a testa com um grande lenço de cor, que dava uma inesperada nota festiva à cerimónia.

- Pa-lavra de honra, Mr. Soames! - disse ele. E era claro que o advogado matara nele o homem. - Palavra de honra! Porque temos agora dois bebés e alguns meninos maiores, se algum deles viver até aos oitenta anos - não é uma idade avançada de mais -, e some-se a isso vinte e um anos... faz um século. E os haveres de Mr. Timothy montam a cento e cinquenta mil libras, limpas de todos os ónus. A um juro de cinco por cento, estarão duplicadas em catorze anos. Em catorze anos, trezentas mil libras, seiscentas mil em vinte e oito anos, um milhão e duzentas mil em quarenta e dois, dois milhões e quatrocentas mil em cinquenta e seis anos, quatro milhões e oitocentas mil em setenta anos, nove milhões e seiscentas libras em oitenta e quatro anos. Que, em cem anos, serão vinte milhões! E não estaremos vivos para ver isso! Que testamento!

- Nada disso acontecerá - disse secamente Soames. - O Estado tomará posse da herança. São capazes de tudo, nos tempos de hoje.

«E eu contei cinco por cento», disse Gradman para si mesmo. «Esqueci-me de que os valores de Mr. Timothy são todos em consolidados, pelo que teremos de despender mais de dois por cento, com essa taxa de imposto sobre a renda,. Para ficar certo, digamos oito milhões. Ainda assim, é um bom dinheirinho.»

Soames ergueu-se e estendeu-lhe o testamento.

- Você vai para a cidade. Tome conta disso e faça o que for necessário. Avise, mas não há credores. Quando será o leilão?

- De terça-feira a uma semana-disse Gradman. - A vida dos que estão vivos e mais vinte e um anos é bastante tempo. Mas fico contente que tenha sido legado à família...

O leilão, que não foi feito por Jobson, dada a natureza vitoriana dos objectos à venda, foi muito mais concorrido que o funeral, embora não comparecessem a ele nem Smither nem a cozinheira, pois Soames encarregara-se de lhes garantir os objectos que o seu coração desejava. Winifred estava presente, Euphemia e Francie, e Eustace veio no seu carro. As miniaturas, os Barbizons e os desenhos assinados «j. R.». foram comprados por Soames e as relíquias sem valor monetário foram postas de lado para serem dadas às pessoas da família que apreciavam lembranças. Foram estas as únicas restrições à venda, caracterizada por um quase trágico langor. Nenhum dos móveis, nenhum dos quadros ou bibelots interessava o gosto moderno. Os pássaros empalhados haviam caído como folhas de Outono quando foram tirados donde estavam há sessenta anos. Era triste para Soames ver as cadeiras onde as tias se tinham sentado, o grande piano onde nunca haviam praticamente tocado, os livros cujas capas elas haviam olhado, os bibelots que haviam arrumado, as cortinas que elas corriam, o tapete em frente da lareira onde aqueciam os pés, e acima de tudo os leitos onde haviam dormido e morrido, vendidos a pequenos revendedores e a donas de casa de Fulham. Mas que se podia fazer? Comprar tudo e guardar os trastes num sótão? Não. Era melhor que seguissem o destino de toda a carne e de todos os móveis e se acabassem pelo uso. No entanto, quando apregoaram o sofá da tia Ann e iam bater o martelo por trinta shillings, Soames exclamou de repente:

- Cinco libras!

A sensação foi considerável e o sofá passou a ser seu.

Quando se acabou a venda na pequena sala bolorenta do leiloeiro e todas aquelas cinzas vitorianas foram varridas, ele pôs-se a caminho, por entre a enevoada luz do sol de Outubro, com a impressão de que toda a tranquilidade acabava de morrer no mundo e se erguera sobre tudo este letreiro: «Aluga-se». Revoluções no horizonte, Fleur em Espanha, nenhuma consolação em Annette, já não existia Timothy em Bayswater Road. Na irritável desolação em que ficara a sua alma, dirigiu-se para a Goupenor Gallery. As aguarelas de Jolyon estavam expostas lá. E ele dispôs-se a examiná-las, esperando tirar disso alguma precária satisfação. Por intermédio de june, que transmitira a notícia à mulher de Val, e de Val, que a contara à mãe, e esta a Soames, ele soubera que a casa - a fatal casa de Robin Hill - estava à venda e Irene partira para morar com o filho na Colômbia Britânica, ou coisa parecida. E, num momento rápido de delírio, este pensamento ocorreu a Soames: «Porque não a comprarei, por minha vez? Destinei-a aos meus...»

Mas tão depressa veio esse sentimento como partiu. Seria um triunfo lúgubre de mais, com muitas lembranças excessivamente humilhantes tanto para ele, como para Fleur. Ela nunca quereria viver ali depois do que acontecera. Não, era melhor que a casa fosse parar às mãos de algum lorde ou de algum especulador. Ela fora, desde o princípio, a espinha dorsal da contenda, a própria casca da intriga e agora, com a partida daquela mulher, era uma casa vazia. «Á venda» ou «Aluga-se». E com os olhos do espírito Soames avistava esse letreiro aposto na parede coberta de hera que ele fizera erguer.

Passou pela primeira das duas salas da galeria. Realmente, era uma porção regular de trabalho! E agora, que aquele indivíduo estava morto, não parecia tão trivial. Os desenhos eram bastante agradáveis, com um senso real de atmosfera e algo individual no trabalho de pincéis. «O pai dele e o meu pai, ele e eu, o filho dele e a minha filha», pensava Soames. E assim tudo aquilo acabara E tudo por causa daquela mulher! Abrandado pelos acontecimentos da semana que passara, afectado pela melancólica beleza daquele dia de Outono, Soames aproximou-se mais do que nunca lhe fora antes possível da compreensão desta verdade que ultrapassa o entendimento de um Forsyte puro: o corpo da Beleza tem uma essência espiritual, apenas capturável graças a um devotamento que não pense em si mesmo. Afinal, ele já andava muito próximo dessa verdade no seu devotamento pela filha,- e talvez aquilo o fizesse compreender um pouco a razão por que ele perdera o prémio. E ali, por entre os desenhos do seu adversário, que conseguira atingir aquilo que procurava, Soames pensou nele e nela com uma tolerância que o surpreendeu. Mas não comprou nenhum desenho

Exactamente quando passava pelas cadeiras dos visitantes de volta para o exterior, teve de enfrentar uma contingência que não estivera inteiramente ausente do seu espírito quando se encaminhara para a galeria:, Irene, em pessoa, aproximava-se. Então não partira ainda e fazia as suas visitas de adeus às relíquias daquele indivíduo! Dominou o pequeno salto involuntário do seu subconsciente, a reacção mecânica dos seus sentidos contra o encanto daquela mulher possuída outrora. e passou por ela desviando os olhos. Mas quando se distanciou, não poderia, nem pelo preço da própria vida, deixar de olhar para trás. Aquilo então era o fim: o calor e o significado da sua vida, a tristeza e a saudade por uma certa coisa, a única derrota que sofrera, tudo estaria terminado quando ela lhe desaparecesse da vista daquela vez. E mesmo tais lembranças têm o seu próprio e doloroso valor. Ela também olhara para trás. E de repente ergueu a mão enluvada, os seus lábios sorriram debilmente. os seus olhos escuros pareceram falar. Chegara a vez de Soames não responder àquele sorriso e àquele ligeiro gesto de adeus, e saiu para a rua tremendo dos pés à cabeça. Comprendia o que ela quisera dizer: «Agora, que saio para sempre do alcance de si e dos seus, perdoe-me. Desejo-lhe bem.» Era esse o sentido, era o último sinal daquela terrível realidade que afrontara a moral, o dever, o bom senso - a aversão dela contra ele, que possuíra o seu corpo, mas nunca conseguira atingir o seu espírito ou o seu coração. E aquilo magoava-o, sim, magoava-o muito mais profundamente do que se ela houvesse mantido uma máscara imóvel e a mão caída.

Três dias depois, naquele fim amarelo de Outubro, Soames apanhou um táxi para o cemitério de Highgate e caminhou por entre a branca floresta de mármores até ao mausoléu dos Forsyte. Junto ao pé de cedro, sobre as catacumbas, o túmulo erguia-se como um monumento ao sistema da livre competição. Soames recordava uma discussão de família durante a qual Swithin advogara a adição do faisão heráldico na face de mármore do mausoléu. A proposta fora rejeitada em favor de uma coroa de pedra sobre estas palavras esculpidas: «Mausoléu da família de Jolyon Forsyte: 1850». Estava em boa ordem. Todos os sinais do recente enterramento já haviam sido removidos e o seu cinzento sóbrio era repousante, à luz do sol. Toda a família jazia agora ali. excepto a mulher do velho Jolyon, que fora enterrada, por exigência da gente dela, no mausoléu familiar de Suffolk, o próprio velho Jolyon, que repousava em Robin Hill, e Susan Hayman, cremada, de modo que ninguém sabia onde poderia estar. Soames contemplava o túmulo com satisfação - maciço, exigindo poucos cuidados. E isso era importante, pois sabia muito bem que ninguém se preocuparia com o mausoléu depois que ele, Soames, houvesse desaparecido, e ele próprio, mais cedo ou mais tarde, teria de cuidar do seu alojamento ali. Ainda podia ter vinte anos diante de si, mas ninguém pode prever nada. Vinte anos sem uma tia nem um tio, com uma mulher de quem era melhor não saber nada, com a filha fora de casa. O seu espírito inclinava-se à melancolia e à retrospecção.

Aquele cemitério estava cheio, diziam, de nomes extraordinários, enterrados com extraordinário gosto. E, além disso, tinha dali uma bela vista sobre Londres. Certa vez, Annette, dera-lhe para ler uma história escrita por um francês, Maupassant, de enredo muito lúgubre, contando que todos os esqueletos emergem do túmulo numa certa noite e todas as piedosas inscrições das lápides são substituídas pelas descrições dos seus pecados. Não era absolutamente uma história verídica. Ele pouco conhecia acerca dos Franceses, mas não havia na verdade muito mal nos Ingleses - excepto nos seus dentes e no seu gosto, que era inegavelmente deplorável.

MAUSOLÉU DA FAMÍLIA DE JOLYON FORSYTE: 1850. Uma porção de gente ali fora enterrada desde então - uma porção de vida de ingleses transformada em poeira e em húmus! O ruído de um avião, passando entre as nuvens douradas, fê-lo erguer os olhos. Aquele amaldiçoado progresso ascendia sempre! Mas tudo viria acabar no cemitério - um nome e uma data sobre uma sepultura. E ele pensou, com curioso orgulho, que a sua família havia feito muito pouco ou nada em favor dessa expansão febril. Bons e sólidos homens medianos tinham abandonado o trabalho pela dignidade de dirigir e possuir. O «Superior Dosset» construíra, com efeito, num período calamitoso, e Jolyon pintara num período dúbio, mas, tão longe quanto ele podia recordar, nunca nenhum deles maculara as mãos com a criação de qualquer coisa - a menos que se contasse Val Dartie, com os seus cavalos. Coleccionadores, advogados, procuradores, comerciantes, editores, agentes territoriais, até mesmo soldados - tudo haviam sido! O país expandira-se, mas expandira-se a despeito deles. Tinham emitido cheques, controlado, defendido e aproveitado o processo de expansão. E quando se pensava que o «Superior Dosset» começou a sua vida praticamente do nada e os seus descendentes viriam a possuir o que o velho Gradman estimara em milhões e milhões - não era assim tão mau! E, no entanto, muitas vezes ele pensava que o impulso da família se relaxara e que o seu instinto de possuir estava a morrer. Pareciam incapazes de ganhar dinheiro - esses da quarta geração. Procuravam a arte, a literatura, a agricultura ou o exército, ou limitavam-se a viver do que herdavam - não tinham nem vigor nem tenacidade. E morreriam disso, se não tomassem cuidado.

Soames voltou as costas ao túmulo e ofereceu o rosto ao vento. O ar dali seria delicioso se ele pudesse libertar o espírito do pensamento de toda aquela mortalidade em torno de si. Fixava irresistivelmente as cruzes e as urnas, os anjos, as perpétuas, as flores vivazes ou murchas. E de repente percebeu um local que parecia tão diferente de tudo o mais ali em torno que se sentiu obrigado a caminhar os poucos metros necessários para o apreciar.

Uma pedra sóbria com uma cruz maciça, bizarramente cortada em granito cinzento e áspero, guardada por quatro escuros teixos. O espaço era livre da pressão dos outros túmulos, com um pequeno jardim quadrado, rodeado de grades e tendo em frente uma vidoeira dourada, Aquele oásis no deserto de túmulos convencionais falava ao senso estético de Soames. e ele sentou-se um pouco, gozando o sol. Por sob as trémulas folhas douradas da vidoeira, olhava para Londres e recuava nas vagas da memória. Pensou em Irene, em Montpellier Square, quando os seus cabelos eram um tosão dourado e os seus alvos ombros eram seus - Irene, presa da sua paixão amorosa, resistindo à sua posse. Viu o corpo de Bosinney jazendo no necrotério e Irene, sentada no sofá, olhando para o vácuo, como um pássaro moribundo. Lembrou-se ainda dela, junto à pequena Níobe verde do Bois de Boulogne, repelindo-o mais uma vez. A memória levou-o depois ao seu passeio pela margem do rio. naquela tarde de Novembro em que Fleur deveria nascer, as folhas, derrubadas pelo vento e represadas pelo desembarcadouro, que flutuavam na água esverdeada como coisas mortas. Levou-o à janela aberta para a noite gelada que cobria Hyde Park. quando o pai morrera. Levou-o depois à Cidade do Futuro, junto da qual Fleur e aquele rapaz se tinham encontrado pela primeira vez, ao rasto azulado do charuto de Prosper Profond e a Fleur a apontar para o caminho por onde aquele indivíduo vagueava. A visão de Irene e o

marido, agora morto, sentados lado a lado no stand do Lord's. Ela e o filho em Robin Hill. O sofá em cujo canto Fleur se enrodilhava e os lábios dela comprimidos contra o seu rosto, a sua palavra de adeus: «Paizinho.» E subitamente voltou a ver a mão enluvada de Irene acenando-lhe o seu último gesto de libertação.

Continuou sentado ali muito tempo, revivendo a sua carreira, fiel aos desígnios do seu instinto de propriedade, aquecendo-se até mesmo com os seus fracassos.

O letreiro «Alugasse» estava pregado à era. dos Forsyte e ao seu modo de viver, à época em que um homem possuía a sua alma, os seus capitais, a sua mulher, sem contestação nem disputa. E agora o Estado possuía ou queria possuir os seus capitais, a sua mulher era dona de si mesma e só Deus sabia quem lhe possuía a alma. «Aluga-se» esse credo são e simples!

As águas renovadoras já vinham correndo, trazendo a promessa de novas formas mal a onda distribuidora passasse. E ele sentava-se ali. com o sentimento subconsciente dessa aproximação, mas com os pensamentos resolutamente entregues ao passado, tal como um homem que teimasse em cavalgar numa noite escura com o rosto voltado para a cauda da sua montada galopante. Por fora dos diques vitorianos, as águas arrastavam a propriedade, as maneiras, a moral, juntamente com as velhas formas de arte - águas que deixavam na sua boca um gosto salgado de sangue, lambendo os pés daquela colina de Highgate onde o vitorianismo estava enterrado. E sentado ali, elevado no seu ponto mais individualista, Soames, tal como a figura do Capital, recusava-se a ouvir os rugidos incansáveis daquela maré. Instintivamente recusava-se a lutar com ela - havia nele muito da sabedoria primeva do homem, o animal possessivo. Ela acalmar-se-ia depois de haver satisfeito a sua febre de desapropriar e destruir, e, quando as criações e as propriedades dos outros estivessem suficientemente quebradas e atiradas fora, viria a baixamar, e novas formas se ergueriam, baseadas no instinto mais velho que a febre da mudança - o instinto do Lar.

«Je m'en fiche», dizia Prosper Profond. Soames não dizia «je m'en fiche» - a frase era francesa e aquele indivíduo era uma espinha na sua garganta -, mas sabia obscuramente que a mudança

significava apenas um intervalo de monte entre duas formas de vida. destruição necessária para dar lugar à nova propriedade

Porque pensar que tudo acabara, que acabara o conforto? Alguém viria depois e recomeçá-lo-ia.

Apenas uma coisa realmente o perturbava, sentado ali - uma melancolia que lhe tomava o coração-, porque o sol era como um encantamento no seu rosto, nas nuvens, nas folhas da vidoeira, e o soprar do vento era tão macio, os teixos eram tão escuros. o semicírculo da Lua empalidecia no céu.

Ele podia desejar, desejar, porque nunca mais o empolgariam a beleza e o amor!

 

                                                                                John Galsworthy 

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"VT" Séries