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Series & Trilogias Literarias
Há um mistério nisto. No ano de 1271, um veneziano de 17 anos chamado Marco Polo partiu com o pai e o tio para uma viagem aos palácios de Kublai Khan, na China. A viagem duraria 24 anos e daria origem a histórias de terras exóticas situadas a leste do mundo então conhecido: relatos assombrosos de desertos intermináveis e rios repletos de jade, de cidades fervilhantes e enormes esquadras de navios a vela, de pedras negras que queimavam e dinheiro feito de papel, de eras inacreditáveis e plantas bizarras, de canibais e xamãs místicos.
Depois de servir por 17 anos nas cortes de Kublai Khan, Marco regressou a Veneza em 1295, onde sua história foi registrada por um romancista italiano chamado Rustichello de Pisa, num livro intitulado em francês antigo Le Divisament dou Monde (ou A descrição do mundo). A obra arrebatou a Europa. Até mesmo Cristóvão Colombo levou consigo um exemplar do livro de Marco em sua viagem ao Novo Mundo.
Mas existe uma história dessa viagem que Marco se recusou a contar, referindo-se a ela apenas de maneira indireta em seu texto. Quando Marco Polo partiu da China, Kublai Khan havia concedido ao veneziano 14 navios imensos e 600 homens. Mas, quando Marco finalmente chegou ao porto, após dois anos no mar, restavam apenas dois navios e 18 homens.
O destino dos outros navios e homens continua um mistério até hoje. Terão sido naufrágio, tempestades, pirataria? Ele jamais contou. Na verdade, em seu leito de morte, quando lhe pediram que acrescentasse detalhes à sua história ou se retratasse, Marco respondeu de maneira enigmática: "Eu não contei metade do que vi.”
A peste chegou primeiro à cidade de Kaffa, no mar Negro, onde os poderosos tártaros-mongóis sitiavam os genoveses, mercadores e comerciantes italianos. A praga atacou os exércitos mongóis com furúnculos que ardiam e perda de sangue. Tomados de grande malícia, os senhores mongóis usaram suas catapultas de cerco para lançar os mortos vitimados pela doença sobre as muralhas genovesas e disseminar a praga, numa confusão de corpos e destruição. No ano da encarnação do Filho de Deus de 1347, os genoveses fugiram a todo o pano em 12 galeras de volta para a Itália, para O porto de Messina, trazendo a peste negra às nossas praias.
- DUQUE M. GIOVANNI (1356), trad. por Reinhold Sebastien em Il Apocalypse (Milão: A. Mondadori, 1924), p. 34-35
Permanece uma incógnita o motivo pelo qual a peste bubônica começou de repente no deserto de Gobi, na China, durante a Idade Média, e dizimou um terço da população mundial. Na verdade, ninguém sabe por que tantas pragas e gripes do século passado — a síndrome respiratória aguda grave, a gripe aviária — surgiram na Ásia. Mas o que se sabe com relativa certeza é que a próxima grande pandemia surgirá de novo no Oriente.
- Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, Compêndio de doenças infecciosas, maio de 2006
LIVRO UM
1293
Meia-noite
Ilha de Sumatra, Sudeste Asiático
Os gritos finalmente haviam cessado.
Doze fogueiras ardiam na enseada à meia-noite.
— Il dio, li perdona... — seu pai sussurrou ao seu lado, mas Marco sabia que o Senhor não lhes perdoaria aquele pecado.
Um punhado de homens esperava ao lado de dois escaleres puxados para a praia, as únicas testemunhas das piras funerárias sobre a lagoa escura. Quando a lua nasceu, todos os 12 navios, imensas galeras de madeira, foram incendiados com os tripulantes ainda a bordo, tanto os mortos quanto os poucos desgraçados que ainda viviam. Os mastros das embarcações apontavam dedos de acusação flamejantes na direção do céu. Flocos de cinza incandescente caíam como a chuva sobre a praia e aquelas poucas testemunhas. A noite recendia a carne esturricada.
— Doze navios — murmurou seu tio Masseo, apertando o crucifixo de prata num punho —, o mesmo número dos apóstolos do Senhor.
Pelo menos os gritos dos torturados haviam terminado. Agora, apenas o crepitar e o rugido baixo das chamas chegavam à margem arenosa. Marco queria desviar o rosto da visão. Outros não eram tão corajosos e ajoelharam-se na areia, com as costas voltadas para a água e o rosto pálido como osso.
Todos estavam nus. Cada um deles havia revistado quem estava ao seu lado à procura de qualquer sinal da mancha. Até mesmo a princesa do Grande Khan, que por recato estava em pé atrás de um pedaço de pano de vela, usava apenas seu adorno de cabeça enfeitado com jóias. Marco notou a forma graciosa dela através do pano, iluminado por trás pelas fogueiras. As criadas da princesa, também nuas, haviam-na revistado. Seu nome era Kokejin, ou princesa Azul, uma virgem de 17 anos, a mesma idade de Marco quando ele partiu de Veneza. Os Polo haviam sido incumbidos pelo Grande Khan de entregá-la em segurança ao seu noivo, o Khan da Pérsia, neto do irmão de Kublai Khan.
Isso fora em outra vida.
Haviam se passado apenas quatro meses desde que a tripulação da primeira galera adoecera, exibindo vergões nas virilhas e nas axilas? A doença propagou-se como óleo se queimando, desprovendo as galeras de homens capazes e fazendo-os dar àquela ilha de canibais e feras estranhas.
Mesmo agora tambores soavam na selva escura. Mas os selvagens tinham bom senso suficiente para não se aproximar do acampamento, como o lobo que se afasta de ovelhas doentes, sentindo o cheiro de putrefação e decomposição. Os únicos sinais de sua intromissão eram os crânios, entrançados através das órbitas oculares com trepadeiras e pendurados dos galhos das árvores, protegendo contra uma invasão ou incursão mais profunda.
A doença mantivera os selvagens à distância.
Mas não por mais tempo.
Com a fogueira cruel, a doença fora afinal vencida, deixando apenas aquele punhado de sobreviventes.
Aqueles que não exibiam os vergões vermelhos.
Sete noites atrás, os enfermos restantes haviam sido conduzidos acorrentados aos navios ancorados, abastecidos com água e comida. Os outros haviam ficado na praia, atentos a qualquer sinal de novos casos da doença entre eles. O tempo todo, os que haviam sido banidos para os navios gritaram através das águas, implorando, chorando, rezando, amaldiçoando e dando berros estridentes. Porém, o pior era a gargalhada ocasional, incitada pela loucura.
Teria sido melhor ter cortado a garganta deles com um punhal misericordioso e rápido, mas todos receavam tocar o sangue dos enfermos. Por isso eles haviam sido enviados para os navios e aprisionados com os que já estavam mortos ali.
Então, quando o sol se pôs naquela noite, um brilho estranho apareceu na água, acumulado em torno das quilhas de dois barcos, espalhando-se sobre as águas negras e paradas como leite derramado. Eles já tinham visto o brilho antes, nos tanques e canais sob as torres de pedra da cidade amaldiçoada da qual haviam fugido.
A doença procurava escapar de sua prisão de madeira.
Ela não lhes deixara escolha.
Os navios — todas as galeras, exceto a que fora reservada para a partida deles — foram incendiados.
Masseo, o tio de Marco, andou por entre os homens que sobreviveram. Acenou para que eles voltassem a cobrir sua nudez, mas um simples pano e lã tecida não podiam encobrir sua vergonha mais profunda.
— O que nós fizemos... — disse Marco.
— Nós não devemos falar sobre isso — retrucou seu pai, e estendeu uma túnica em sua direção. — Diga uma palavra que seja sobre peste, e todos os países nos evitarão. Nenhum porto nos deixará entrar em suas águas. Mas agora queimamos completamente o que restava da doença com um fogo que purificou nossa frota e as águas. Temos apenas de voltar para casa.
Enquanto Marco vestia a túnica, seu pai notou o que o filho havia desenhado antes na areia com uma vara. Contraindo os lábios, o pai rapidamente desfez o desenho com um dos calcanhares e encarou o filho. Um olhar suplicante fixou-se em seu rosto.
— Nunca, Marco... nunca...
Mas a lembrança não podia ser desfeita tão facilmente. Ele havia servido ao Grande Khan como erudito, emissário e até cartógrafo, mapeando os muitos reinos que este conquistara.
Seu pai voltou a falar:
— Ninguém jamais deve saber o que nós descobrimos... é uma coisa amaldiçoada.
Marco fez um aceno positivo de cabeça e não comentou sobre o que desenhara. Apenas sussurrou:
— Città dei Morti.
A fisionomia de seu pai, já pálida, empalideceu ainda mais. Porém, Marco sabia que não era só a praga que amedrontava seu pai.
— Jure para mim, Marco — insistiu ele.
Marco ergueu o olhar para o rosto enrugado do pai. Naqueles quatro últimos meses, ele havia envelhecido tanto quanto durante as décadas passadas com o Khan em Xanadu.
— Jure para mim, pelo abençoado espírito de sua mãe, que você jamais voltará a falar sobre o que nós descobrimos e fizemos.
Marco hesitou.
Uma mão segurou seu ombro, apertando até o osso.
— Jure para mim, meu filho, para o seu próprio bem.
Ele reconheceu o terror refletido nos olhos do pai, iluminados pelo fogo... e a súplica. Marco não pôde recusar.
— Eu guardarei segredo — prometeu afinal. — Até o meu leito de morte e além. É o que eu juro, meu pai.
O tio de Marco finalmente se juntou a eles, ouvindo por acaso o juramento do rapaz.
— Nós jamais deveríamos ter entrado ali, Niccolò — ele censurou o irmão, mas suas palavras acusatórias eram, na verdade, dirigidas a Marco.
Fez-se silêncio entre os três, carregado de segredos comuns. O tio dele tinha razão.
Marco imaginou o delta do rio quatro meses antes. O ribeirão negro desaguava no mar, ladeado por densa folhagem e trepadeiras. Eles procuravam apenas renovar seus suprimentos de água doce enquanto dois navios eram consertados. Jamais deveriam ter se arriscado a ir mais longe, porém Marco ouvira histórias de uma grande cidade além das montanhas baixas. E, como o conserto dos navios deveria demorar dez dias, ele se arriscara, com quarenta homens do Khan, a subir as montanhas e ver o que havia além. Do topo de uma delas, Marco avistara uma torre de pedra nas profundezas da floresta, estendendo-se alta, brilhante à luz da aurora. Como sempre fora curioso, ela o atraiu como um farol.
O silêncio enquanto eles caminhavam pela floresta na direção da torre, no entanto, deveria tê-lo advertido. Não houvera nenhum som de tambores, como agora. Nenhum pio de aves, nenhum guincho de macacos. A cidade dos mortos simplesmente estivera à espera deles.
Foi um terrível erro penetrar na floresta.
E isso lhes custou mais do que apenas sangue.
Os três olharam fixamente enquanto as galeras ardiam lentamente na linha-d'água. Um dos mastros tombou como uma árvore cortada. Duas décadas atrás, pai, filho e tio haviam partido da Itália, sob a chancela do papa Gregório X, para se aventurar pelas terras dos mongóis, até os palácios e os jardins do Khan em Xanadu, onde haviam permanecido por tempo demais, como perdizes engaioladas. Como favoritos da corte, os três Polo se viram presos — não por correntes, mas pela imensa e sufocante amizade do Khan, incapazes de partir sem insultar seu benfeitor. Assim, finalmente se julgaram afortunados por estarem regressando a Veneza, liberados do serviço ao grande Kublai Khan para escoltarem a dama Kokejin até seu noivo persa.
Quem dera que a frota deles jamais tivesse partido de Xanadu...
O sol vai nascer logo — disse o pai de Marco. — Vamos embora. É hora de ir para casa.
E se chegarmos àquelas praias abençoadas, o que diremos a Teobaldo? — perguntou Masseo, usando o nome original do homem, outrora amigo e defensor da família Polo, agora chamado de papa Gregório X.
Não sabemos se ele ainda está vivo — respondeu o pai. — Nós nos ausentamos por muito tempo.
Mas, e se ele ainda estiver vivo, Niccolò? — insistiu o tio.
Nós lhe contaremos tudo o que sabemos sobre os mongóis, seus costumes e suas forças, conforme fomos instruídos há tantos anos, de acordo com o edito dele. Mas sobre a praga aqui... não resta nada sobre o que falar. Acabou.
Masseo suspirou, mas havia pouco alívio em sua exalação. Marco interpretou as palavras por trás de sua profunda carranca.
A praga não havia ceifado a vida de todos aqueles que foram perdidos.
O pai repetiu com mais firmeza, como se falar fizesse com que as coisas simplesmente fossem assim.
— Acabou.
Marco ergueu o olhar para os dois homens mais velhos, seu pai e seu tio, emoldurados por cinza incandescente e fumaça contra o céu noturno. Aquilo jamais terminaria, não enquanto eles se lembrassem.
Marco olhou para os pés. Embora a marca tivesse sido removida da areia, ela ainda ardia intensamente por trás de seus olhos. Ele havia roubado um mapa pintado em cortiça laminada. Pintado com sangue. Templos e torres espalhados pela selva.
Todos vazios.
A não ser pelos mortos.
O chão estava coberto de pássaros, caídos nas praças de pedra como se tivessem sido atingidos no céu em pleno vôo. Nada fora poupado. Homens, mulheres e crianças. Bois e animais do campo. Até mesmo grandes serpentes pendiam frouxas dos galhos das árvores, com a carne cheia de furúnculos embaixo das escamas.
Os únicos habitantes vivos eram as formigas.
De todos os tamanhos e cores.
Fervilhando em pedras e corpos, elas lentamente devoravam os mortos. Mas ele estava errado... alguma coisa ainda aguardava o pôr-do-sol.
Marco repeliu aquelas lembranças.
Ao descobrir o que Marco roubara de um dos templos, seu pai queimou o mapa e espalhou as cinzas no mar. Ele fez isso antes mesmo de o primeiro homem a bordo dos navios adoecer.
— Esqueçamos isso — advertiu então seu pai. — Isso não tem nada a ver conosco. Deixemos que seja tragado pela História.
Marco honraria sua palavra, seu juramento. Jamais falaria sobre aquela história. Todavia, ele tocou uma das marcas na areia. Aquele que havia narrado tanto... era certo destruir aquele conhecimento?
Se houvesse outra forma de preservá-lo...
Como que lendo os pensamentos de Marco, seu tio Masseo expressou em voz alta os temores de todos eles.
- E se o horror ressurgir, Niccolò, será que algum dia chegará às nossas praias?
- Se isso acontecer, será o fim da tirania humana neste mundo — respondeu o pai com amargura. Ele bateu de leve no crucifixo sobre o peito nu de Masseo. — O frei estava mais bem informado do que todos nós. Seu sacrifício...
A cruz pertencera outrora ao frei Agreer. Na cidade amaldiçoada, o dominicano dera sua vida para salvar a deles. Eles haviam feito um pacto sinistro. Haviam-no deixado lá, haviam-no abandonado, cumprindo uma ordem dele.
O sobrinho do papa Gregório X.
Marco sussurrou enquanto as últimas chamas se extinguiam nas águas escuras.
— Que Deus nos salvará da próxima vez?
22 de maio, 18:32h
Oceano Índico
10°44'07.87"S / 105°11'56.52"E
— Quem está a fim de outra garrafa de Fosters? Aproveitem enquanto estou aqui embaixo! — gritou Gregg Tunis do convés inferior.
A dra. Susan Tunis sorriu ao ouvir a voz do marido enquanto passava da escada de mergulho para o convés aberto na popa. Ela tirou seu colete equilibrador e arrastou o equipamento de mergulho até a prateleira atrás da cabine do piloto do iate de pesquisa. Seus tanques tilintaram quando ela os colocou na prateleira ao lado dos outros.
Livre do peso, ela pegou a toalha do ombro e secou os cabelos louros, quase brancos de tão descorados pelo sol e pelo sal. Assim que terminou, abriu o zíper de seu traje úmido com um único e longo puxão.
— Iabadabadu... iabadabadu... — os gritos ecoaram de uma espreguiçadeira atrás dela.
Ela nem sequer olhou para trás. Era óbvio que alguém passara tempo demais nos clubes de strip-tease de Sydney.
— Professor Applegate, o senhor precisa sempre fazer isso quando estou tirando meu equipamento de mergulho?
O geólogo de cabelos grisalhos, com um livro sobre história marítima aberto no colo, equilibrou os óculos de leitura no nariz.
— Não seria nem um pouco cavalheiresco ignorar a presença de uma jovem saudável se livrando de tanta roupa.
Ela sacudiu com os ombros o traje de mergulho e baixou-o até a cintura, exibindo o maio. Aprendera da maneira mais difícil que o sutiã do biquíni tinha a tendência de soltar-se com um traje úmido. E, embora não se importasse que o professor aposentado, trinta anos mais velho do que ela, a devorasse com os olhos, ela não lhe proporcionaria aquele show gratuito.
Seu marido subiu com três garrafas de cerveja suando, presas entre os dedos de uma das mãos, e abriu um enorme sorriso ao vê-la.
— Eu pensei ter ouvido você se chocando contra alguma coisa aqui em cima.
Ele subiu para o convés, alongando o corpo alto. Usava apenas um calção de banho branco Quicksilver e uma camisa folgada e desabotoada. Empregado como mecânico de barcos em Darwin Harbor, ele e Susan haviam se conhecido oito anos antes, durante um dos consertos em dique seco em outro barco da Universidade de Sydney. Apenas três dias atrás, eles haviam comemorado o quinto aniversário de casamento a bordo do iate, ancorado a 100 milhas náuticas do atol de Kiritimati, mais conhecido como ilha Christmas.
Ele passou uma garrafa para ela.
— Você teve sorte com as sondagens?
Ela tomou um longo gole da cerveja, apreciando a umidade. A sucção num bocal salgado a tarde inteira deixara sua boca pastosa.
— Até agora não. Ainda não consegui encontrar uma origem dos encalhes.
Dez dias atrás, oitenta golfinhos Tursiops aduncus, uma espécie do oceano Índico, haviam encalhado ao longo da costa de Java. A pesquisa dela se concentrava nos efeitos de longo prazo da interferência dos sonares em espécies de cetáceos, a origem de muitos encalhes suicidas no passado. Em geral, sempre havia uma equipe de assistentes de pesquisa com ela, um misto de estudantes de graduação e pós-graduação, mas ela viajara em férias até ali com seu velho mentor. Fora pura coincidência o fato de aquele encalhe maciço ter ocorrido na região — daí a prorrogação da estada no local.
- Poderia ser alguma outra coisa que não o sonar fabricado pelo homem? — ponderou Applegate, desenhando círculos com a ponta do dedo na condensação de sua garrafa de cerveja. — Microterremotos estão constantemente sacudindo a região. Talvez um terremoto de subdução em alto-mar tenha atingido a nota tonal certa para fazê-los entrar em pânico suicida.
- Houve aquele horrível terremoto alguns meses atrás — disse o marido dela. Ele se acomodou numa espreguiçadeira ao lado do professor e bateu de leve no assento para que ela se sentasse com ele. — Não seriam, talvez, alguns terremotos secundários?
Susan não pôde argumentar contra as opiniões deles. Entre a série de intensos terremotos nos últimos dois anos e o grande tsunami na área, o fundo do mar fora muito agitado. Isso era o suficiente para assustar qualquer um. Porém, ela não estava convencida. Alguma outra coisa estava acontecendo. O recife abaixo estava estranhamente deserto. Parecia que as pequenas formas de vida que estavam lá embaixo haviam se retirado para nichos nas rochas, conchas e buracos na areia. Era quase como se a vida marinha ali estivesse em expectativa.
Talvez as criaturas sensíveis estivessem reagindo a microterremotos.
Ela franziu o cenho e juntou-se ao marido. Enviaria uma mensagem pelo rádio para a ilha Christmas a fim de verificar se eles haviam detectado qualquer atividade sísmica incomum. Até então, a dra. Tunis tinha notícias que seguramente fariam seu marido entrar na água de manhã.
— Eu descobri o que parecem ser os restos de um antigo naufrágio.
— Não pode ser. — Ele sentou-se empertigado. Em Darwin Harbor, Gregg oferecia excursões aos navios de guerra naufragados durante a Segunda Guerra Mundial que se espalhavam pelos mares próximos à costa norte da Austrália. Ele tinha um ávido interesse nessas descobertas. — Onde?
Ela apontou distraidamente para trás, para além do outro lado do iate.
— A cerca de 100 metros a estibordo de onde estamos. Algumas vigas, negras e que se projetam diretamente da areia. Provavelmente ficaram livres durante o último grande terremoto, ou, talvez, foram expostas quando o lodo que as cobria foi removido durante a passagem do tsunami. Não tive muito tempo para explorar. Acho melhor deixar isso para um perito.
Ela deu um beliscão nas costelas dele e voltou a reclinar-se em seu peito.
Em grupo, eles observaram o sol desaparecer no mar com um último brilho tímido. Era o ritual deles. Exceto em caso de tempestade, eles jamais perdiam um pôr-do-sol quando estavam no mar. O barco oscilava suavemente. A grande distância, algumas luzes de um navio-tanque que passava brilhavam intermitentemente. Mas, por outro lado, estavam sozinhos.
Um latido agudo assustou Susan, fazendo-a estremecer. Ela não sabia que ainda estava um pouco tensa. Aparentemente, o comportamento estranho e cauteloso da vida no recife abaixo a havia contagiado.
— Ei! Oscar! — gritou o professor.
Só então Susan deu falta do quarto tripulante do iate. O cão tornou a latir. O atarracado cão pastor de Queensland pertencia ao professor. Já velho e um pouco artrítico, ele costumava ser encontrado esparramado em qualquer nesga de luz do sol que pudesse encontrar.
— Eu vou me encarregar dele — disse Applegate. — Vou deixar os dois pombinhos aconchegados. Além disso, eu poderia fazer algo que estimule a mente. Deixar um pouco mais de espaço para outra Fosters antes de ir dormir.
O professor gemeu enquanto se levantava e seguiu para a proa, com a intenção de dar a volta para o outro lado, mas parou e olhou fixamente para o leste, para o céu mais escuro.
Oscar voltou a latir.
Applegate não o repreendeu dessa vez. Em vez disso, chamou Susan e Gregg com a voz baixa e séria.
— Venham ver isso.
Susan levantou-se rapidamente, seguida por Gregg, e os dois juntaram-se ao professor.
— Puta que pariu... — murmurou seu marido.
— Acho que você descobriu o que expulsou aqueles golfinhos do mar — disse Applegate.
Ao leste, uma ampla faixa do oceano brilhava com uma luminescência fantasmagórica, erguendo-se e baixando com as ondas. O brilho prateado revolvia-se e turbilhonava. O velho cão ficou em pé junto à amurada de estibordo e latiu, mas seu latido foi se transformando num rosnado baixo diante da visão.
— Que diabo é aquilo? — perguntou Gregg.
Susan respondeu enquanto se aproximava.
Já ouvi falar dessas manifestações. Elas são chamadas de mar luminoso. Navios relatam brilhos como esse no oceano Índico desde a época de Júlio Verne. Em 1995, um satélite chegou a registrar uma das florações, que cobria centenas de milhas quadradas. Essa é uma pequena.
- Pequena uma ova! — resmungou seu marido. — Mas o que é isso exatamente? Algum tipo de maré vermelha?
Ela sacudiu a cabeça.
— Não exatamente. Marés vermelhas são florações de algas. Esses brilhos são causados por bactérias bioluminescentes, que provavelmente se alimentam de algas ou de algum outro substrato. Não há perigo. Mas eu gostaria de...
Eles ouviram uma súbita pancada embaixo do barco, como se alguma coisa grande o tivesse atingido vindo de baixo. Os latidos de Oscar intensificaram-se. O cão dançava para a frente e para trás ao longo da amurada, tentando enfiar a cabeça através das grades.
Todos os três juntaram-se ao cão e olharam para baixo.
A extremidade brilhante do mar luminoso envolveu a quilha do iate. Vinda das profundezas, uma grande forma tornou-se visível, de barriga para cima, mas ainda se contorcendo, os dentes rangendo. Era um enorme tubarão-tigre, com mais de seis metros de comprimento. As águas brilhantes espumavam sobre a sua forma, borbulhando e transformando a água leitosa em vinho tinto.
Susan deu-se conta de que não era a água que borbulhava sobre a barriga do tubarão, mas sua própria carne, desfazendo-se em grandes pedaços. A visão horrível afundou. Mas, através do mar luminoso, outras formas vieram à superfície, debatendo-se ou já mortas: toninhas, tartarugas, centenas de peixes.
Applegate afastou-se da amurada.
— Parece que essas bactérias encontraram mais do que apenas algas para se alimentar.
Gregg virou-se para a esposa.
— Susan...
Ela não conseguia desviar os olhos daquela cena terrível. Apesar do horror, ela não podia negar uma pontada de curiosidade científica.
— Susan...
Ela afinal se voltou para ele, ligeiramente irritada.
— Você mergulhou — ele explicou e apontou — nessa água o dia todo.
— E daí? Todos nós estivemos na água pelo menos por algum tempo. Até Oscar nadou um pouco.
O marido não a olhou nos olhos. Ele continuou concentrado no ponto em que ela estava coçando o antebraço. O traje úmido às vezes lhe esfolava os membros. Mas a preocupação no rosto tenso dele atraiu a atenção dela para seu antebraço. Sua pele estava áspera, com uma grave erupção, que havia piorado com o ato de coçar.
Enquanto ela olhava fixamente, vergões vermelhos como equimoses brotaram-lhe na pele.
— Susan...
Ela ficou boquiaberta de descrença.
— Deus do céu...
Ela, porém, também soube da horrível verdade.
— Isso... isso está em mim.
CAPÍTULO 1
A Madona Negra
1º. De julho, 10:34h
Veneza, Itália
Ele estava sendo perseguido.
Stefano Gallo apertou o passo na praça aberta. O sol da manhã já calcinava as pedras da praça, e a multidão usual de turistas procurava lugares protegidos do sol ou abarrotava a sorveteria que ficava à sombra da basílica de São Marcos. Porém, o mais grandioso de todos os pontos de referência de Veneza, com sua altíssima fachada bizantina, cavalos de bronze maciço e cúpulas abobadadas, não era o seu destino.
Nem mesmo um santuário abençoado como aquele poderia oferecer-lhe proteção.
Só havia uma esperança.
Seus passos ficaram mais rápidos depois que ele passou pela basílica. Os pombos da praça se dispersavam à medida que ele tropeçava no meio deles, indiferente ao seu vôo agitado. Ele não podia mais se esconder. Já fora descoberto. Avistara o jovem egípcio de olhos negros e barba aparada quando este entrou no outro lado da praça. Seus olhares haviam se fixado um no outro. O homem agora usava um terno escuro cujo paletó ondulava como petróleo de seus ombros largos e acentuados. Ao abordar Stefano pela primeira vez, ele afirmou que era um estudante de arqueologia de Budapeste, que representava um velho amigo e colega de Stefano da Universidade de Atenas.
O egípcio viera ao Museo Archeologico à procura de uma peça de antigüidade específica. Um tesouro insignificante. Um obelisco de seu país. Financiado pelo seu governo, o egípcio queria que ele fosse devolvido à sua pátria. Ele viera com um pagamento considerável, a ser depositado numa conta especial até que o negócio fosse concluído. Stefano, um dos curadores do museu, não estava em condições morais de recusar aquele suborno; as despesas médicas crescentes de sua esposa ameaçavam expulsá-los de seu pequeno apartamento. Receber aquele pagamento secreto não era impróprio; nas duas últimas décadas, o governo egípcio havia readquirido tesouros nacionais de coleções privadas e pressionado museus para devolver o que de direito pertencia ao país.
Assim, Stefano concordara, prometendo a princípio entregá-lo ao egípcio. O que era um pequeno e desinteressante obelisco de pedra? O objeto permanecera encaixotado por quase um século, de acordo com o manifesto de carga. E sua descrição concisa provavelmente explicava por quê: Obelisco de mármore não-identificado, escavado em Tânis, datado do fim do período dinástico (26- Dinastia, 615 a.C.). Não havia nada de incomum ou de particularmente interessante, a não ser que se prestasse mais atenção, seguindo o rastro de sua proveniência. Ele viera de uma coleção que adornava um dos Musei Vaticani, em Roma: o Museu Gregoriano Egípcio.
Não se sabia como fora parar no depósito subterrâneo ali em Veneza.
Na manhã do dia anterior, Stefano recebera um recorte de jornal, enviado por um courier privado num envelope com um único símbolo estampado num lacre de cera.
?
A letra grega sigma.
Apesar de não entender o significado do lacre, ele entendeu a importância do recorte incluso. Um único artigo, datado de três dias atrás, trazia a notícia do cadáver de um homem encontrado numa praia do mar Egeu com a garganta cortada, o corpo inchado e repleto de enguias que se banqueteavam. Uma tempestade particularmente violenta havia removido o corpo de sua sepultura aquática. A ficha dentária identificava o corpo como o de seu colega de universidade, aquele que supostamente enviara o egípcio.
Fazia semanas que o homem estava morto.
O choque fizera Stefano agir de maneira precipitada. Ele segurou o pesado objeto contra o peito, embrulhado em saco de aniagem e ainda comichando com a palha usada na embalagem.
Stefano havia furtado o obelisco do depósito, sabendo que o ato o exporia ao perigo e que também exporia sua esposa, toda a sua família.
Não tivera escolha. Junto com o artigo lúgubre, o envelope lacrado continha uma única mensagem, não-assinada, mas claramente escrita às pressas, com uma letra feminina, uma advertência. O que a mensagem afirmava parecia impossível, incrível, mas ele mesmo analisara a alegação, e ela se revelara verídica.
Lágrimas ameaçavam escorrer de seus olhos enquanto ele corria com um soluço preso na garganta.
Não tivera escolha.
O obelisco não deveria cair nas mãos do egípcio. Ainda assim, era um peso que ele se recusava a carregar nos ombros por mais tempo que o necessário. Sua esposa, sua filha... ele imaginou o corpo inchado de seu colega. Será que aconteceria o mesmo com a sua família?
Oh, Maria, o que foi que eu fiz?
Havia apenas uma pessoa que poderia tirar-lhe aquele peso. A pessoa que enviara o envelope, uma advertência lacrada com uma letra grega. No fim da mensagem, havia um endereço e uma hora.
Ele já estava atrasado.
De algum modo, o egípcio descobrira o furto, devia ter sentido que Stefano o trairia. Por isso, viera buscar o objeto ao amanhecer. Stefano mal conseguira escapar de seu escritório. Ele fugira a pé.
Mas não rápido o suficiente.
Ele olhou para trás. O egípcio desaparecera na multidão de turistas que circulavam por ali.
Dando a volta, Stefano andou aos tropeções pela sombra do sino da torre da praça, a Campanile di San Marco. No passado, a torre de alvenaria servira de torre de vigia da cidade, que dava vista para as docas próximas e guardava o porto. Tomara que ela o protegesse agora.
Seu destino ficava no outro lado de uma pracinha. À frente erguia-se o Palácio dos Doges, construído no século XIV, onde viveram os antigos doges de Veneza. Seus dois níveis de arcos góticos acenavam, oferecendo salvação em pedra da Ístria e mármore rosa de Verona.
Segurando com força sua presa, ele atravessou a rua aos tropeções.
Será que ela ainda estava ali? Será que ela aceitaria aquele peso?
Correu na direção das sombras protetoras, escapando da intensa luz do sol e do clarão do mar ali próximo. Ele precisava perder-se no labirinto do palácio. Além de abrigar a residência pessoal do doge, o palácio também abrigara repartições do governo, um tribunal, a câmara do conselho e até mesmo uma antiga prisão. Uma prisão mais nova se erguia no outro lado do canal, atrás do palácio, ligada por uma ponte em arco, a famosa e infame Ponte dos Suspiros, pela qual Casanova — o único prisioneiro que conseguira fugir das celas do palácio — um dia escapara.
Quando entrou embaixo do trecho suspenso da loggia, Stefano rezou para que o espírito de Casanova protegesse sua própria fuga. Ele até se permitiu um pequeno suspiro de alívio quando mergulhou nas sombras. Conhecia bem o palácio. Era fácil perder-se em seu labirinto de corredores, um lugar oportuno para um encontro clandestino.
Ou era nisso que ele confiava.
Entrou no palácio pela arcada ocidental, acompanhando o fluxo de alguns turistas. Adiante se abria o pátio do palácio, com suas duas fontes antigas e a magnífica escadaria de mármore, a Scala dei Giganti, a Escada dos Gigantes. Stefano contornou o pátio, evitando o sol agora que conseguira fugir dele. Transpôs uma porta pequena e privada e passou por uma série de salas administrativas. Elas terminavam no gabinete do antigo inquisidor, onde muitas pobres almas haviam sido interrogadas da forma mais dolorosa e brutal. Sem se deter, Stefano continuou até a câmara de tortura de pedra ali perto.
Uma porta bateu em algum lugar atrás dele, fazendo-o sobressaltar-se.
Ele segurou sua presa com mais força ainda.
As instruções tinham sido específicas.
Tomando uma escada estreita nos fundos, ele se dirigiu às masmorras mais profundas do palácio, os Pozzi, ou Poços. Era ali que os prisioneiros mais notórios eram mantidos.
Também era o local do encontro.
Stefano imaginou o lacre grego.
?
O que ele significava?
Entrou no corredor úmido, interrompido por celas de pedra negra, baixas demais para que um prisioneiro ficasse em pé ereto. Ali os prisioneiros congelavam no inverno ou morriam de sede durante os longos verões venezianos, muitos deles esquecidos por todos, exceto pelos ratos.
Stefano acendeu uma pequena lanterna de bolso.
Aquele nível mais baixo dos Pozzi parecia deserto. À medida que Stefano con-linuava a avançar, seus passos ecoavam das paredes de pedra, dando a impressão de que alguém o seguia. Seu peito apertou-se de medo. Ele diminuiu o passo. Será que estava atrasado demais? Prendeu a respiração, ansiando subitamente pela luz do sol, da qual fugira.
Ele parou, com um tremor sacudindo seu corpo.
Como que sentindo sua hesitação, uma luz cintilou, vinda da última cela.
— Quem está aí? — perguntou ele. — Chi è là?
Ouviu-se o rangido de saltos de sapatos na pedra, seguido por uma voz suave, em italiano, com um leve sotaque.
— Fui eu quem lhe mandou o bilhete, Signor Gallo.
Uma figura graciosa saiu para o corredor, com uma pequena lanterna na mão. O brilho tornou difícil discernir suas feições, mesmo quando ela baixou a lanterna. Estava toda vestida de couro preto, que apertava seus quadris e seios. Um lenço de cabeça, enrolado à moda beduína, obscurecia completamente suas feições, exceto os olhos, que refletiam o brilho de sua lanterna. Ela se movia com uma graça sem pressa que ajudou a acalmar os fortes batimentos do coração dele.
Ela saiu das sombras como se fosse uma Madona negra.
— O senhor está com o objeto? — indagou ela.
— Sim, eu... eu estou — gaguejou ele, e deu um passo na direção dela. Ele segurou o obelisco com os braços estendidos, deixando o saco de aniagem cair no chão. — Não quero ter mais nada a ver com ele. Você disse que podia levá-lo para algum lugar seguro.
— Sim, posso — respondeu ela, fazendo um sinal para que o colocasse no chão. Stefano se agachou e pôs o obelisco egípcio de pedra no chão, contente por livrar-se dele. Esculpido em mármore negro, erguia-se de uma base quadrangular com 10 centímetros de lado e terminava numa ponta piramidal a 40 centímetros da base.
A mulher agachou-se em frente a ele, equilibrando-se na ponta de suas botas pretas. Ela correu a luz de sua lanterna sobre a superfície opaca do obelisco. O mármore estava com muitas lascas, muito malconservado. Uma longa rachadura o atravessava. Era evidente por que ele fora esquecido.
No entanto, sangue já havia sido derramado por causa dele.
E ele sabia por quê.
Ela estendeu a mão para Stefano e empurrou a lanterna dele para baixo. Com um leve movimento do polegar, ela acendeu sua própria lanterna. A luz branca obscureceu, transformando-se num roxo profundo. Cada grão de poeira nas calças dele iluminou-se. As listras brancas de sua camisa resplandeceram.
Luz ultravioleta.
O brilho banhou o obelisco.
Stefano fizera o mesmo antes, verificando a afirmação da mulher e testemunhando ele mesmo o milagre. Inclinou-se para mais perto dela e examinou os quatro lados do obelisco.
As superfícies já não estavam brancas. Linhas de escrita brilhavam em pequenos símbolos azuis e brancos ao longo dos quatro lados.
Não eram hieróglifos, e sim uma língua anterior aos antigos egípcios. Stefano não conseguiu evitar o espanto na voz. — Será que é mesmo a escrita dos...
Atrás dele, palavras sussurradas ecoaram no piso acima. Uma lasca de rocha solta rolou pela escada dos fundos.
Ele se virou, cheio de medo, o sangue gelando.
Reconheceu a cadência calma e curta do sussurro na escuridão.
O egípcio.
Eles haviam sido descobertos.
Talvez sentindo o mesmo, a mulher apagou a lanterna, cessando a luz ultravioleta, e a escuridão os envolveu.
Stefano ergueu sua lanterna de bolso, procurando alguma esperança no rosto de sua Madona negra. Em vez disso, ele descobriu uma pistola preta, alongada com um silenciador, apontada para seu rosto, segura na outra mão da mulher. Ele entendeu e se desesperou. Enganado mais uma vez.
— Grazie, Stefano.
Entre a tosse repentina e o clarão na boca da arma, apenas um pensamento forçou passagem pelo hiato fatal.
Maria, me perdoe.
3 de julho, 13:16h
Cidade do Vaticano
Monsenhor Vigor Verona subiu a escada com grande relutância, assombrado por lembranças de chamas e fumaça. Seu coração estava pesado demais para uma subida tão longa. Sentia-se uma década mais velho do que os seus 60 anos. Ao parar num patamar, esticou o pescoço para cima, com uma das mãos apoiando as costas.
Acima, o poço circular da escada era um labirinto atulhado de andaimes entrecruzados com plataformas. Sabendo que aquilo trazia azar, Vigor passou por baixo de uma escada de pintor e continuou a subir a escada escura que conduzia à Torre dei Venti, ou Torre dos Ventos.
O odor de tinta fresca ameaçou arrancar lágrimas de seus olhos. Porém, outros odores também o importunaram, fantasmas de um passado que ele preferia esquecer.
Carne esturricada, fumaça acre, cinzas incandescentes.
Dois anos antes, uma explosão seguida de um incêndio transformara a torre numa tocha resplandecente no coração do Vaticano. Porém, depois de muitas obras, a torre vinha recuperando seu antigo esplendor. Vigor ansiava pelo mês seguinte, quando a torre seria reaberta e a fita seria cortada por Sua Eminência em pessoa.
Mas, sobretudo, ele ansiava por finalmente enterrar o passado.
Até mesmo a famosa Sala Meridiana, no alto da torre, onde Galileu havia tentado provar que a Terra girava em torno do Sol, estava quase completamente restaurada. Fora necessário um ano e meio, sob os cuidados e a perícia de uma multidão de artesãos e historiadores, para, com esforço, recuperar da fuligem e das cinzas os afrescos da sala.
Quem dera que tudo aquilo pudesse ser recuperado assim, com pincéis e tinta.
Como o novo prefeito do Archivio Segretto Vaticano, Vigor sabia quanto dos Arquivos Secretos do Vaticano havia sido perdido para sempre para as chamas, a fumaça e a água. Milhares de livros antigos, textos ilustrados com iluminuras e regestra dos arquivos — maços de pergaminhos e documentos encadernados em couro. No último século, as salas da torre haviam servido para armazenar o excesso de documentos do carbonile, o principal depósito dos arquivos, situado muito abaixo.
Para sua tristeza, a biblioteca agora tinha muito mais espaço.
— Preffeto Verona!
Com um sobressalto, Vigor voltou ao presente, quase estremecendo, ao ouvir o eco de outra voz. Porém, era apenas seu assistente, um jovem seminarista chamado Cláudio, gritando do alto da escada. Ele esperava Vigor na Sala Meridiana, na qual chegara bem antes de seu superior, mais idoso. O rapaz segurava uma cortina de lona de plástico transparente que separava a escada da sala superior.
Uma hora atrás, Vigor fora chamado à torre pelo chefe da equipe de restauração. A mensagem do homem fora ao mesmo tempo urgente e enigmática. Venha imediatamente. Fizemos uma descoberta das mais terríveis e maravilhosas.
Por isso, Vigor saíra de seu gabinete para a longa escalada até o alto da torre recém-pintada. Ele nem sequer havia tirado a batina preta, que usara mais cedo para uma reunião com o secretário de Estado do Vaticano. Arrependeu-se dos trajes que havia escolhido, pesados e quentes demais para a árdua subida. Mas, afinal, alcançou seu assistente e limpou a testa úmida com um lenço.
- Por aqui, prefetto — disse Cláudio, afastando a cortina para o lado.
- Grazie, Cláudio.
Além da lona, a câmara superior parecia um forno, como se as pedras da torre ainda retivessem o calor do incêndio ocorrido dois anos antes. Mas era apenas o sol a pino calcinando a torre mais alta do Vaticano. Roma passava por uma onda de calor particularmente abrasador. Vigor rezava para que soprasse uma brisa, para que a Torre dei Venti fizesse jus ao seu nome com uma rajada de vento.
Mas Vigor também sabia que a maior parte do suor em sua testa nada tinha a ver com o calor ou com a longa escalada usando uma batina. Desde o incêndio, ele evitara subir até ali, dando instruções de longe. Mesmo agora, estava de costas para uma das câmaras, situada ao lado.
Ele tivera outro assistente antes de Claudio.
Jakob.
Não foram apenas livros que as chamas haviam destruído ali.
— Aí está você! — ressoou uma voz.
O dr. Balthazar Pinosso, supervisor do projeto de restauração da Sala Meridiana, cruzou a passos largos a câmara circular. Com cerca de dois metros de altura, o homem era um gigante vestido de branco, quase como um cirurgião, calçando pantufas descartáveis. Ele empurrara um respirador para o alto da cabeça. Vigor o conhecia bem. Balthazar era decano do departamento de história da arte da Universidade Gregoriana, onde Vigor trabalhara como chefe do Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã.
— Prefeito Verona, obrigado por ter vindo tão prontamente — disse o homenzarrão, dando uma olhadela no relógio e revirando os olhos, num comentário silencioso e divertido sobre a sua lenta subida.
Vigor gostou da troça gentil. Depois que assumira o alto cargo nos arquivos, poucas pessoas ousavam dirigir-se a ele num tom pouco reverente.
- Se as minhas pernas fossem tão compridas como as suas, Balthazar, eu teria subido dois degraus de uma vez e chegado aqui bem na frente do pobre Claudio.
- Então é melhor terminarmos logo, para que você possa voltar e tirar a sua soneca de costume à tarde. Eu detestaria perturbar esses esforços tão diligentes.
Apesar da jovialidade do homem, Vigor reconheceu um pouco de tensão em seus olhos. Ele também notou que Balthazar havia dispensado todos os homens e mulheres que trabalhavam com ele na restauração. Ao constatar isso, Vigor acenou para que Claudio se afastasse na direção da escada.
- Você nos daria alguns momentos de privacidade, Claudio?
- Claro que sim, prefeito.
Assim que seu assistente recuou para a escada e desapareceu atrás da cortina de lona de plástico, Vigor voltou a atenção para o ex-colega.
- Balthazar, qual a razão dessa urgência?
- Venha, eu lhe mostrarei.
Enquanto o homem se encaminhava para o outro lado da câmara, Vigor viu que a restauração estava quase concluída. Ao longo das paredes e dos tetos circulares, os famosos afrescos de Nicolò Circignani representavam cenas bíblicas, com querubins e nuvens acima. Algumas cenas ainda estavam entrecruzadas com telas de seda, à espera de mais trabalho. Mas a maior parte da restauração já estava pronta. Até o zodíaco entalhado no piso fora limpo e polido até expor apenas o mármore. Ao lado, um único feixe de luz penetrava através de um buraco de 14 centímetros por 20 centímetros na parede, atingindo o piso de lajes da sala e iluminando a linha meridiana'de mármore branco que se estendia ao longo do piso escuro, transformando a câmara num observatório solar do século XVI.
No outro lado, Balthazar abriu uma cortina, revelando um quartinho lateral. Parecia até que a obstinada porta original estava intacta, o que se evidenciava pelo chamuscado parcial de sua grossa superfície de madeira.
O esguio historiador bateu de leve num dos ferrolhos de bronze que prendiam a porta.
— Nós descobrimos que a porta tem um núcleo de bronze, o que foi uma sorte, pois preservou o que estava nesta sala.
Apesar da agitação de Vigor por estar ali, aquilo despertara sua curiosidade.
— O que havia aí dentro?
Balthazar abriu a porta, revelando um espaço exíguo, sem janelas, com paredes de pedra, e que mal dava para duas pessoas ficarem em pé ombro a ombro. Duas estantes que iam do chão ao teto erguiam-se em cada lado, repletas de livros encadernados em couro. Apesar do cheiro de tinta fresca, o odor de mofo da câmara flutuou para fora, provando o poder da antigüidade sobre o esforço humano.
— O conteúdo foi inventariado quando começamos a trabalhar aqui e desocupamos o quartinho — explicou Balthazar. — Mas não encontramos nada de muito importante. Eram em sua maioria textos históricos, caindo aos pedaços, sobre astronomia e náutica. — Ele deu um suspiro alto e um pouco apologético quando entrou no quartinho. — Eu acho que deveria ter sido mais cauteloso, por causa de todos os operários. Mas eu estava concentrado na Sala Meridiana. Nós mantivemos um dos membros da Guarda Suíça a postos aqui à noite. Eu achava que tudo estivesse seguro.
Vigor entrou no quarto seguindo o homenzarrão.
— Nós também usamos o espaço para guardar algumas das nossas ferramentas — Balthazar acenou para a prateleira inferior de uma estante —, a fim de impedir que elas nos atrapalhem.
Vigor sacudiu a cabeça, ficando cada vez mais cansado em conseqüência do calor e do peso no coração.
— Eu não estou entendendo por que fui chamado.
Algo semelhante a um grunhido ecoou do peito do homem.
— Há uma semana — afirmou ele — um dos guardas expulsou alguém que estava bisbilhotando. — Balthazar fez um aceno de mão abrangendo todo o quartinho. — Aqui dentro.
— Por que não fui informado? — indagou Vigor. — Alguma coisa foi roubada?
— Não, o problema é esse. Você estava em Milão, e o guarda expulsou o estranho. Eu simplesmente supus que se tratava de um ladrão comum que tirava vantagem da confusão aqui, com as idas e vindas das turmas de operários. Depois disso, coloquei um segundo guarda aqui, por precaução.
Vigor fez sinal para que ele prosseguisse.
— Mas hoje de manhã um dos restauradores de arte estava colocando uma lanterna de volta no quartinho. Ela ainda estava acesa quando ele entrou.
Balthazar estendeu a mão além de Vigor e fechou a porta, impedindo a entrada da luz que vinha do outro aposento, e em seguida acendeu uma pequena lanterna. Ela banhou o aposento com uma luz purpúrea, iluminando seu macacão branco.
— Nós usamos luz ultravioleta em projetos de restauração de arte. Ela pode ajudar a revelar detalhes que podem passar despercebidos a olho nu.
Balthazar apontou para o piso de mármore.
Vigor, porém, já havia observado o que aparecera sob o brilho da lanterna. Uma forma, pintada grosseiramente, resplandecia no centro do assoalho.
Um dragão enroscado, quase voltado contra a própria cauda.
Vigor ficou com um nó na garganta. Chegou a cambalear para trás, preso entre o horror e a descrença. Seus ouvidos zumbiram à lembrança de sangue e gritos estridentes.
Balthazar pôs uma das mãos no ombro dele, apoiando-o.
- Você está bem? Talvez eu devesse tê-lo preparado melhor. Vigor libertou-se do aperto da mão do homem.
- Eu... eu estou bem.
Para provar isso, ele se ajoelhou a fim de inspecionar mais de perto a marca resplandecente, uma marca que conhecia muito bem. O símbolo da Ordinis Draconis, a Real e Imperial Ordem do Dragão.
Os olhos de Balthazar encontraram os dele, as escleras brilhando sob a luz ultravioleta. A Corte do Dragão incendiara aquela torre dois anos antes, com a ajuda do traidor ex-prefeito dos Arquivos Secretos, o Prefeito Alberto, agora morto. Era uma história que Vigor acreditara terminada havia muito tempo, finalmente sepultada, em particular agora, com a torre que renascia da fumaça e das cinzas como a fênix.
O que a marca estava fazendo ali?
Vigor ajoelhou-se com uma contratura do joelho esquerdo. A marca parecia ter sido desenhada às pressas, não passava de uma aproximação grosseira. Balthazar permaneceu em pé junto ao ombro dele.
— Eu a examinei com uma lente de aumento e encontrei um pingo de massa de restauração embaixo da tinta fluorescente, indicando que ela foi desenhada recentemente. Nesta semana, suponho.
— O ladrão... — murmurou Vigor, lembrando-se do começo da história.
— Talvez não fosse simplesmente um ladrão comum, afinal de contas. Vigor massageou o joelho. A marca só podia ter um significado horrendo. Uma ameaça ou advertência, talvez uma mensagem para outro espião da Corte do Dragão no Vaticano. Ele recordou a mensagem de Balthazar: Fizemos uma descoberta das mais terríveis e maravilhosas. Fitando o dragão, Vigor agora compreendia o caráter terrível daquela mensagem. Ele olhou para trás e disse:
— No seu bilhete, você também mencionou a descoberta de algo maravilhoso. Balthazar confirmou com um aceno de cabeça. Ele estendeu a mão para trás e abriu a porta do quartinho, deixando entrar uma torrente de luz proveniente do aposento externo. Com o brilho, o dragão fosforescente desapareceu do chão, como se evitasse a luz.
Ao vê-lo desvanecer-se, Vigor deu um longo suspiro.
— Dê uma olhada nisto. — Balthazar ajoelhou-se ao lado de Vigor. — Isto nos teria passado despercebido se não fosse pelo dragão pintado no piso.
Ele inclinou-se para a frente, apoiado na palma de uma das mãos, e estendeu a outra mão. Seus dedos roçaram a pedra nua.
— Foi necessário usar a lupa para revelar isto. Eu avistei isto quando examinava a tinta fluorescente. Enquanto esperava por você, removi da inscrição um pouco da sujeira acumulada durante os séculos.
Vigor examinou o piso de pedra.
- Que inscrição?
- Incline-se mais para perto. Apalpe aqui.
Concentrando-se, Vigor obedeceu. Com as pontas dos dedos, como um cego lendo braile, ele sentiu mais do que viu. Havia uma tênue inscrição na pedra.
Vigor nem ao menos precisou da avaliação de Balthazar para saber que a gravura era antiga. Os símbolos eram tão concisos quanto anotações científicas, mas não eram os garranchos de nenhum físico. Como ex-chefe do Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã, Vigor reconheceu o significado.
Balthazar deve ter interpretado a reação dele, pois sua voz baixou até se transformar num sussurro conspiratório.
— Isto é mesmo o que eu acho que é?
Vigor recostou-se e tirou o pó das pontas dos dedos.
— Uma escrita mais antiga do que o hebraico — sussurrou. — A primeira língua, caso você acredite nas narrativas.
— Por que ela foi desenhada aqui? O que significa?
Vigor sacudiu a cabeça e examinou o piso, enquanto outra pergunta surgia. A marca do dragão reapareceu, mas apenas na sua memória, iluminada pela sua preocupação, e não pelo brilho da luz ultravioleta. Sobre a pedra, o dragão enroscara-se em torno da inscrição, como se a protegesse.
Ele voltou a pensar nas palavras de seu amigo. Isto nos teria passado despercebido, se não fosse pelo dragão pintado no piso. Talvez o dragão se destinasse menos a proteger a antiga inscrição do que a iluminá-la, a atrair a atenção para ela.
Mas para os olhos de quem ela se destinava?
Quando Vigor imaginou o dragão contorcido, voltou a sentir o peso do corpo de Jakob em seus braços, fumegante e carbonizado.
Naquele momento, ele soube a verdade. A mensagem não se destinava a outro agente da Corte do Dragão, a outro traidor como o prefeito Alberto. Ela visava atrair alguém intimamente ligado à história da Corte do Dragão, alguém que conhecia sua importância.
A mensagem fora deixada para ele.
Mas por quê? Qual era seu significado?
Vigor levantou-se devagar. Ele conhecia alguém que poderia ajudar, alguém a quem ele havia evitado pedir ajuda no último ano. Até agora, não houvera necessidade de manter contato, sobretudo depois de o homem ter rompido com sua sobrinha. Mas Vigor sabia que parte de sua reticência não era motivada apenas por corações partidos. O homem, tanto quanto aquela torre, o lembrava do passado sangrento ali, um passado que ele queria esquecer.
Mas agora não tinha escolha.
A marca do dragão brilhava na sua memória, cheia de uma advertência terrível.
Ele precisava de ajuda.
4 de julho, 23:44h
Takoma Park, Maryland
- Gray, você pode esvaziar a lata de lixo da cozinha?
- Já vou, mamãe.
Na sala de estar, o comandante Gray Pierce pegou outra garrafa vazia de Sam Adams, outro soldado morto da comemoração de seus pais do Quatro de Julho, e a enfiou no engradado de plástico sob o braço. Pelo menos, a festa estava terminando.
Ele consultou o relógio: quase meia-noite.
Gray recolheu outras duas garrafas de cerveja vazias da mesa da entrada da frente e parou diante da porta aberta, desfrutando um pouco da brisa através da porta de tela. A noite recendia a jasmim, junto a um cheiro remanescente de fumaça da queima de fogos de artifício na festa do quarteirão. Longe dali, alguns assobios e estalos continuavam a realçar a noite. Um cão uivou no quintal, atrás de sua mãe, irritado por causa do barulho.
Apenas alguns convidados permaneciam na varanda da frente do bangalô em estilo Craftsman de seus pais, descansando no balanço da varanda ou inclinados no balaústre, apreciando a noite fresca depois do costumeiro calor sufocante de um verão em Maryland. Horas antes, eles haviam assistido aos fogos de artifício dali. Depois, os participantes da festa foram diminuindo aos poucos, desaparecendo na noite. Apenas os mais obstinados ficaram.
Como o chefe de Gray.
O diretor Painter Crowe estava encostado num esteio, curvado ao lado do professor-assistente que trabalhava para a mãe de Gray. Ele era um melancólico rapaz do Congo que freqüentava a Universidade George Washington com uma bolsa de estudos. Painter Crowe estivera perguntando sobre o estado das hostilidades na pátria do rapaz. Parecia que mesmo numa festa o diretor da Força Sigma mantinha um dedo sobre o pulso do mundo.
E era isso que fazia dele um grande diretor.
A Força Sigma funcionava como o ramo secreto de operações de campo da DARPA, a divisão de pesquisa e desenvolvimento do Departamento de Defesa. Seus membros eram enviados para salvaguardar ou neutralizar tecnologias cruciais para a segurança dos Estados Unidos. A equipe era formada por ex-soldados das Forças Especiais, escolhidos a dedo em segredo e submetidos a rigorosos programas de doutorado, formando uma equipe militarizada de agentes com treinamento técnico. Ou como Monk, amigo de Gray e membro da equipe, gostava de brincar: cientistas assassinos.
Com tamanha responsabilidade, a única forma de relaxamento do diretor Crowe naquela noite parecia ser o uísque escocês puro malte que estava sobre o balaústre da varanda. Ele bebera devagar a noite inteira. Como que sentindo o olhar perscrutador, Painter acenou com a cabeça para Gray através da porta.
Na luz fraca de alguns lampiões iluminados a velas, o diretor tinha a aparência de uma figura inflexível, de calças escuras e camisa de linho estampada. Sua herança meio indígena se revelava nos planos rígidos de seu rosto.
Gray estudou aqueles planos, à procura de quaisquer sinais de fraqueza no comportamento do homem, sabendo a pressão sob a qual ele devia estar. A estrutura organizacional da Sigma estava sendo submetida a uma abrangente auditoria interna pela NSA e pela DARPA, e agora uma crise médica estava começando no Sudeste Asiático. Por isso era bom ver o homem fora dos escritórios subterrâneos da Sigma.
Mesmo que fosse apenas por aquela noite.
O dever, no entanto, jamais se afastava da mente do diretor.
Provando isso, Painter alongou-se, fez uma flexão apoiado no balaústre e encaminhou-se para a porta.
— Acho que é melhor eu ir embora! — ele gritou para Gray, e consultou o relógio. — Estou pensando em dar um pulo ao escritório e verificar se Lisa e Monk chegaram bem.
Os dois cientistas, a dra. Lisa Cummings e o dr. Monk Kokkalis, haviam sido enviados para investigar uma crise médica que se difundia nas ilhas indonésias. Os dois, que viajavam como adjuntos à Organização Mundial de Saúde (OMS), haviam partido naquela manhã.
Gray passou pela porta de tela de vaivém e apertou a mão de seu chefe. Sabia que o interesse de Painter no itinerário da dupla ia além de seu papel como diretor de operações de campo. Ele via a preocupação de um homem apaixonado.
— Eu tenho certeza de que Lisa está bem — tranqüilizou-o Gray, sabendo que Lisa e Painter mal haviam ficado separados ultimamente. — Isto é, desde que ela tenha colocado os tampões de ouvido na bagagem, pois o ronco de Monk poderia chacoalhar a turbina da asa de um jato. E, por falar na banda de corneteiros de um homem só, se o senhor ouvir qualquer notícia, informe a Kat...
Painter ergueu uma das mãos.
Ela já telefonou para o meu BlackBerry duas vezes esta noite, para saber se recebi alguma notícia. — Deu um gole no uísque. — Eu telefonarei imediatamente para ela assim que souber de alguma coisa.
Eu suspeito de que Monk vai dar esse telefonema antes do senhor, por causa das duas mulheres pelas quais ele agora é responsável.
Painter sorriu, como se estivesse um pouco cansado.
Três meses atrás, Kat e Monk haviam tido uma menina, com 2,8kg, batizada de Penélope Anne. Depois de ter sido designado para a atual operação de campo, Monk brincara a respeito de escapar das fraldas e mamadeiras à meia-noite, porém Gray viu como o fato de deixar para trás a esposa e a filhinha abrira um pequeno buraco no coração de seu amigo.
- Obrigado por ter vindo, diretor. Eu o verei de manhã.
- Por favor, transmita meus agradecimentos à sua família.
Ao ser lembrado, Gray deu uma olhadela para a torrente de luz ao longo do lado esquerdo da casa, vinda da garagem separada nos fundos. Seu pai se isolara ali algum tempo atrás. Nem todas as explosões de fogos de artifício naquela noite tinham sido lá fora nas ruas. Ultimamente, seu pai achava as situações sociais cada vez mais difíceis, à medida que o mal de Alzheimer progredia, fazendo-o esquecer nomes e repetir perguntas já respondidas. Sua frustração levou a uma explosão de fúria particular entre pai e filho. Depois disso, seu pai saíra pisando duro em direção à garagem e à sua oficina.
Cada vez mais, seu pai podia ser encontrado refugiado ali nos fundos. Gray suspeitava de que ele estivesse menos se escondendo do mundo do que evitando comunicar-se com pessoas estranhas, procurando um lugar solitário para proteger o que ainda restava de suas faculdades, encontrando conforto na espiral de carvalho produzida pela sua plaina de madeira ou na volta de um parafuso bem apertado. Ainda assim, apesar daquela forma de meditação, Gray reconhecia o medo crescente por trás dos olhos do pai.
— Eu lhes direi — murmurou Gray.
Quando Painter partiu, os últimos retardatários da festa seguiram seu exemplo. Alguns pararam no interior da casa a fim de cumprimentar a mãe de Gray, enquanto ele se despedia dos outros. Pouco depois, a varanda era inteiramente sua.
— Gray! — a mãe gritou lá de dentro. — O lixo!
Com um suspiro, ele se curvou e pegou a lata de lixo com garrafas vazias, latas e copos de plástico. Ajudaria sua mãe a limpar tudo e em seguida percorreria de bicicleta o curto caminho pela cidade até seu apartamento. Quando deixou a porta de tela bater atrás de si, apagou a luz da varanda e rumou para a cozinha pelo assoalho de madeira. Ouviu a máquina de lavar louça zumbindo e o barulho de panelas na pia.
— Mamãe, eu vou terminar isso — disse ele ao entrar na cozinha. — Vá descansar.
Sua mãe afastou-se da pia. Ela usava calças compridas de algodão azul-marinho, blusa de seda branca e um avental xadrez úmido. Num momento como aquele, assoberbada como estava por causa de uma noite de diversão, a idade avançada de sua mãe de repente o impressionou. Quem era aquela mulher idosa de cabelos grisalhos na cozinha?
Ela então sacudiu um pano de prato úmido na direção dele e interrompeu o delírio.
- Só recolha o lixo. Estou quase terminando aqui. E diga a seu pai que é para entrar. Os Edelmman não gostam do trabalho de marcenaria noturno dele. Ah, sim, embrulhei o frango assado que sobrou. Você poderia guardá-lo na geladeira da garagem?
- Vou ter que fazer uma segunda viagem. — Ele arrastou os dois sacos plásticos de lixo com uma das mãos e segurou um engradado de garrafas vazias embaixo do braço, — Volto já.
Ele usou o quadril para empurrar a porta dos fundos e sair para o quintal mergulhado nas sombras. Descendo com cuidado os dois degraus dos fundos, seguiu na direção da garagem e da fila de latas de lixo ao longo de sua parede lateral. Percebeu que estava se movendo com passos suaves, procurando evitar que as garrafas tilintassem. Um irrigador de jardim Rainbird o traiu.
Gray tropeçou, e o engradado de garrafas chacoalhou quando ele recuperou o equilíbrio. O Scottish terrier do vizinho dos fundos queixou-se latindo.
— Merda...
Seu pai xingou repentinamente da garagem.
— Gray? Se for você... me dê uma ajuda aqui!
Gray hesitou. Depois de quase ter respondido à altura aos gritos do pai naquela noite, ele não queria bis à meia-noite. Nos últimos anos, os dois vinham se dando bastante bem, descobrindo interesses comuns depois de toda uma vida de estranheza. Porém, no último mês, quando alguns dos testes cognitivos de seu pai começaram a declinar de novo, uma irritabilidade muito familiar e indesejada havia retornado ao homem taciturno.
- Gray!
- Espere!
Gray jogou o lixo numa das latas abertas e pôs o engradado ao lado dela. Dando a volta, ele se dirigiu à luz que vinha da garagem aberta.
O cheiro de pó de serra e de graxa o impressionou, fazendo-o recordar-se de dias piores. Pegue a maldita correia, seu fedelho imprestável... Eu farei você pensar duas vezes antes de usar uma das minhas ferramentas... caia fora daqui antes que eu te dê uma surra...
Seu pai estava ajoelhado no chão ao lado de uma lata de café com pregos de 5 centímetros de comprimento, e os limpava. Gray notou o vestígio de sangue no chão, proveniente da mão esquerda do pai.
Seu pai ergueu a cabeça quando Gray entrou. Sob as lâmpadas fluorescentes, não havia como negar seus laços familiares. Os olhos azuis de seu pai tinham a mesma tonalidade acinzentada dos de Gray. O rosto de ambos era esculpido em ângulos e fendas acentuados, marcando a herança galesa. Não havia como escapar a isso. Kle estava se transformando no pai. E, apesar de os cabelos de Gray ainda serem pretos como carvão, ele tinha alguns fios grisalhos para provar isso.
Ao ver a mão ensangüentada, Gray se aproximou e fez um sinal para que o pai fosse até a pia nos fundos.
- Vá lavar isso.
- Não me diga o que devo fazer.
Gray abriu a boca para discutir, pensou melhor e abaixou-se para ajudar o pai.
— O que aconteceu?
— Eu estava procurando parafusos para madeira — respondeu o pai, acenando com a mão cortada na direção da bancada.
— Mas isto aqui são pregos.
Os olhos de seu pai pousaram sobre ele.
— Não me sacaneie, Sherlock.
Havia uma fonte de raiva mal refreada em seu olhar, mas Gray sabia que ela não era direcionada a ele dessa vez.
Ao reconhecer isso, permaneceu calado e simplesmente juntou os pregos e os pôs de novo na lata de café. Seu pai olhava para as mãos, uma ensangüentada, a outra não.
— Papai?
O homenzarrão sacudiu a cabeça e afinal disse suavemente:
— Maldição...
Gray não disse nada.
Quando Gray era jovem, seu pai trabalhara nos campos de petróleo do Texas até ficar incapacitado em conseqüência de um acidente industrial que o fizera perder uma perna na altura do joelho, transformando um engenheiro petrolífero em dona de casa. Gray é que suportara o impacto da frustração dele, sempre considerado estúpido, jamais capaz de ser o homem que o pai queria que ele fosse.
Gray observou o pai fitar as mãos e reconheceu uma dura verdade. Talvez o tempo todo a raiva daquele homem idoso tivesse sido direcionada para dentro. Como agora. Menos a frustração com um filho do que a raiva de um pai por não ter conseguido ser o homem que ele próprio queria ser. E agora, mais uma vez, a incapacidade estava lentamente eliminando aquilo.
Gray procurou algumas palavras.
Enquanto pensava nelas, o rugido de uma motocicleta interrompeu qualquer contemplação ulterior. No fim da rua, pneus cantaram, deixando marcas de borracha no asfalto.
Gray empertigou-se e colocou a lata de café em cima da bancada. Seu pai xingou o piloto rude, provavelmente um farrista bêbado. No entanto, Gray estendeu um dos braços e apagou as luzes da garagem.
- O que você está...?
- Continue abaixado — ordenou Gray.
Alguma coisa estava errada...
A moto apareceu, uma Yamaha V-Max preta e robusta. Ela veio rugindo, derrapando de lado. O farol estava apagado. Fora isso que deixara os nervos de Gray tensos. Nenhum feixe de luz havia brilhado rua acima, projetando-se à frente do rugido do motor. A moto estava completamente apagada.
Sem reduzir a velocidade, ela derrapava de lado. O pneu traseiro levantou fumaça quando ela tentou fazer a curva brusca de acesso à entrada de veículos deles. Ela hesitou, equilibrou-se e depois avançou com ímpeto.
— Que diabo! — vociferou seu pai.
O motociclista supercompensou para fazer a curva. A moto deu uma sacudidela, e em seguida a colisão com o meio-fio fez o veículo inclinar-se para o lado. O motociclista lutou para manter o controle, mas o pára-lama traseiro prendeu-se na quina do degrau da varanda.
A motocicleta caiu e começou a derrapar, produzindo uma chuva de faíscas vermelhas e transformando-se em outro espetáculo do Quatro de Julho. Cuspido do veículo, o piloto rolou longitudinalmente, caindo estatelado perto da garagem aberta.
Mais adiante, na entrada de veículos, o motor da motocicleta afogou e morreu.
As fagulhas se extinguiram.
A escuridão desceu.
— Deus do Céu! — exclamou o pai.
Gray estendeu uma das mãos para trás, a fim de que seu pai permanecesse na garagem. Com a outra mão, sacou uma Glock 9mm de um coldre no tornozelo. Foi até a figura meio de bruços, toda vestida de preto: couro, echarpe, capacete.
Um leve gemido revelou duas coisas: o piloto ainda estava vivo, e era uma mulher. Ela estava enroscada de lado, a roupa de couro rasgada.
A mãe de Gray apareceu à porta dos fundos da casa e ficou em pé à luz da varanda, atraída pelo barulho.
- Gray...?
- Fique aí! — ele gritou para ela.
Quando se aproximou da motociclista caída, Gray notou algo a poucos passos do veículo, sua forma negra bem definida contra o cimento branco da entrada de veículos. Parecia alguma pilastra atarracada de pedra negra, rachada pelo impacto. De seu interior escuro, o brilho de um núcleo metálico refletia a luz da lua.
Mas foi o brilho de outro objeto de prata que atraiu seu olhar enquanto ele andava até o lado da motociclista.
Um pequeno pingente em torno do pescoço da mulher.
Com a forma de um dragão.
Gray o reconheceu de imediato. Ele usava um idêntico no próprio pescoço, um presente de uma velha inimiga, uma advertência e uma promessa quando seus caminhos voltassem a se cruzar.
Ele segurou a pistola com mais força.
Com outro pequeno gemido, a mulher girou o ombro e ficou de costas. O sangue escorria pelo cimento branco, um rio negro que avançava aos poucos na direção da grama aparada nos fundos da casa. Gray reconheceu de saída uma ferida em carne viva.
Ela fora atingida pelas costas por um tiro.
Uma das mãos estendeu-se para cima e puxou o capacete para trás. Um rosto familiar, contraído de intensa dor, fitava-o, emoldurado por cabelos pretos. A pele bronzeada e os olhos amendoados revelavam sua ascendência eurasiana e sua identidade.
— Seichan... — disse ele.
Ela estendeu uma das mãos para ele, debatendo-se.
— Comandante Pierce... me ajude...
Ele sentiu a dor nas palavras dela, mas também algo que pensara que jamais sentiria naquela inimiga fria.
Terror.
CAPÍTULO 2
Christmas sangrenta
5 de julho, 11:02h
Ilha Christmas
Apenas outro dia de ócio na praia...
Monk Kokkalis acompanhava seu guia ao longo da estreita faixa de areia. Ambos os homens usavam idênticos trajes anticontaminação Bio-3. Não era a melhor escolha de vestuário para passear em uma praia tropical. Embaixo de seu traje, Monk usava apenas um sungão. No entanto, sentia-se como se estivesse usando roupas demais, à medida que assava lentamente dentro do plástico lacrado. Protegendo os olhos contra a luz ofuscante do sol a pino, ele olhou para o horror ali próximo.
A baía ocidental da ilha Christmas espumava e se encrespava com os animais mortos, como se o próprio inferno tivesse causado uma destruição desde as profundezas. Montes de carcaças de peixes assinalavam o local até onde a maré alta da noite anterior chegara. Montes maiores de tubarões, golfinhos, tartarugas, e até uma baleia-franca-pigméia, espalhavam-se a praia — embora continuasse difícil dizer onde uma começava e a outra terminava, carne e escamas fundindo-se numa massa malcheirosa de ossos e tecidos em decomposição. Também havia uma grande quantidade de aves marinhas, contorcidas e mortas, na areia e na água, talvez atraídas pela mortandade apenas para sucumbirem ao mesmo veneno.
Uma cavidade próxima na rocha expeliu um jorro da imunda água do mar com um berro retumbante, como se o próprio oceano estivesse exalando o último suspiro.
Abaixando-se sob o borrifo da água do mar, os dois homens seguiram para o norte ao longo da praia, percorrendo uma trilha estreita de areia clara entre a imundície da zona da maré e íngremes penhascos cobertos de matas.
— Me lembre de evitar o bufê de frutos do mar quando estivermos de volta ao navio — murmurou Monk através do som áspero de seu respirador.
Ele estava contente pelo ar engarrafado de seu traje e podia apenas imaginar o mau cheiro que devia acompanhar aquele cemitério formado pela maré.
Também estava aliviado por sua colega, a dra. Lisa Cummings, ter permanecido à bordo do navio de cruzeiro no outro lado da ilha. O Mistress of the Seas flutuava em Flying Fish Cove, mantido em segurança contra o vento, longe da nuvem repugnante que flutuava sobre a ilha vinda da sopa tóxica em seu lado ocidental.
Mas outros não haviam tido tanta sorte.
Ao chegar ao raiar do dia, Monk testemunhara as centenas de homens, mulheres e crianças sendo evacuados da ilha, todos em vários estados de contaminação: alguns cegos, outros apenas cobertos de furúnculos, os mais graves com a pele morrendo aos poucos em fragmentos cheios de pústulas. E, embora os níveis de toxicidade estivessem em rápido declínio, a ilha inteira estava sendo evacuada como medida de segurança.
O Mistress of the Seas, um gigantesco e luxuoso navio de cruzeiro em sua viagem inaugural entre as ilhas indonésias, fora evacuado e desviado de sua rota e transformado num navio para atendimento de emergências médicas. Ele também servia de centro de operações da equipe da OMS, cuja ajuda fora solicitada a fim de descobrir a causa e a origem do súbito envenenamento dos mares próximos.
Era por isso que Monk estava ali naquela manhã, procurando algumas respostas nas conseqüências da tragédia. A bordo do navio, a habilidade de Lisa como médica estava sendo exercida de maneira fatigante, ao passo que o treinamento de Monk o fizera andar por aquele lugar fétido. Por seus conhecimentos de perícia forense — médica e biológica —, ele fora escolhido à dedo para aquela missão específica da Sigma. A operação fora classificada como de baixo risco — apenas investigação —, a fim de facilitar sua volta depois de ter tirado três meses de licença-paternidade.
Ele afastou esse último pensamento, pois não queria pensar em sua filhinha enquanto caminhava pesadamente através da imundície ali. No entanto, era impossível não pensar. Ele se lembrou dos olhos azuis de Penélope, das bochechas rechonchudas e da incrível coroa de cabelos louros, tão diferente da cabeça raspada e das feições rudes do pai. Como uma coisinha tão linda podia partilhar seus genes? Mas, por outro lado, sua esposa talvez o tivesse deixado em posição desvantajosa nesse departamento. Mesmo agora, ele não conseguia descartar a dor no peito, um anseio físico por elas, como se uma corda o atasse tão certo como um cordão umbilical, um compartilhamento de sangue entre eles três. Parecia impossível que ele pudesse ser assim tão feliz.
Um pouco mais à frente, seu guia, o dr. Richard Graff, um pesquisador oceânico da Universidade de Queensland curtido pelo sal, havia se abaixado e se apoiava num dos joelhos. Ele nada sabia acerca da verdadeira identidade de Monk, apenas que ele fora recrutado pela OMS por seus conhecimentos especializados. Graff pôs sua caixa de plástico para coleta de amostras sobre uma prateleira plana de rocha. Através da viseira, as feições barbudas do homem estavam tensas de preocupação e concentração.
Era hora de começar a trabalhar.
Os dois haviam sido deixados ali por um Zodiac, um barco inflável de borracha. O piloto, um marinheiro da Marinha Real australiana, permaneceu no barco, fundeado além da zona da mortandade. Um pequeno navio da Guarda Costeira australiana havia chegado para supervisionar a evacuação da ilha.
A ilha remota, situada 2.500 quilômetros a noroeste de Perth, ainda era território australiano. Descoberta no dia de Natal de 1643, a ilha inabitada foi afinal colonizada pelos britânicos, a fim de explorarem seus depósitos de fosfato, iniciando a exploração de uma importante mina ali, que empregava trabalhadores contratados de todas as ilhas indonésias. E, apesar de as minas ainda estarem em operação, o turismo se transformara na principal indústria da ilha tropical. Três quartos da região montanhosa da ilha, repleta de florestas tropicais, haviam sido declarados parques nacionais.
Nem tão cedo, porém, os turistas afluiriam para ali.
Monk juntou-se ao dr. Richard Graff.
O pesquisador marinho percebeu sua chegada e acenou com uma das mãos enluvadas, num gesto que abrangia a mortandade em massa ali.
— Isso começou pouco mais de quatro semanas atrás, de acordo com os relatos de alguns pescadores do lugar — explicou Graff. — Armadilhas para lagostas foram encontradas repletas de conchas de crustáceos vazias, com a carne completamente dissolvida no interior. Redes de pesca de arrasto produziam bolhas quando eram puxadas do mar. E a situação só foi piorando.
- O que o senhor acha que aconteceu aqui? Algum tipo de vazamento tóxico?
- Sem dúvida, foi um ataque tóxico, mas não foi nenhum vazamento.
O cientista desdobrou uma sacola preta para coleta de amostras, estampada com uma advertência de substâncias químicas perigosas, e apontou para a arrebentação próxima. As águas espumavam com uma mancha amarelada, uma sopa venenosa repleta de carne e ossos.
Ele acenou com um dos braços.
- Tudo isso é obra da Mãe Natureza.
- O que o senhor quer dizer?
Você está olhando para lodo de fungos, colega. Composto de cianobactérias, um antigo predecessor das bactérias e algas modernas. Há três bilhões de anos, esse lodo se desenvolveu pelos oceanos do mundo. E agora está se desenvolvendo de novo. Foi por isso que me chamaram aqui. Esses organismos são a minha principal área de especialidade. Eu estudo essas florações nas proximidades da Grande liarreira de Corais, especificamente um chamado fireweed, uma mistura de algas e cianobactérias que pode cobrir um campo de futebol em menos tempo do que você levaria para almoçar. A maldita criatura libera dez biotoxinas diferentes, potentes o bastante para criar bolhas na pele. E, quando seca, ela pode aerossolizar com a mesma capacidade que um spray de pimenta tem de queimar.
Monk imaginou a devastação em The Settlement, o maior povoado da ilha, não muito distante daquela baía, no caminho dos ventos alísios.
- O senhor está dizendo que foi isso o que aconteceu aqui?
- Ou algo desse tipo. Fireweed e cianobactérias estão florescendo em toda a parte nos nossos oceanos, dos fiordes da Noruega à Grande Barreira de Corais. Peixes, corais e mamíferos marinhos estão se extinguindo, enquanto esses lodos antigos, junto com águas-vivas venenosas, estão florescendo. É como se a evolução estivesse funcionando ao contrário, com os oceanos involuindo para mares primordiais. E a culpa é toda nossa. O escoamento de fertilizantes, de rejeitos químicos industriais e de água de esgoto tem contaminado deltas e estuários. A pesca predatória dos últimos cinqüenta anos fez a população de peixes grandes se reduzir em 90%. E as mudanças climáticas estão acidificando e aquecendo as águas, diminuindo a sua capacidade de reter oxigênio, sufocando a vida marinha. Estamos matando rapidamente os mares, acima da capacidade de eles se recuperarem.
Sacudindo a cabeça, ele olhou para os corpos mortos na praia.
- Em conseqüência disso, estamos vendo o retorno de mares de cem milhões de anos atrás, repletos de bactérias, algas tóxicas e águas-vivas venenosas. Essas zonas de mortandade são encontradas no mundo inteiro.
- Mas o que causou esta aqui?
Aquela era a pergunta que os trouxera todos até ali.
Graff sacudiu a cabeça.
— Um novo lodo de fungos não-identificado. Alguma coisa que ainda não vimos. E é isso que me assusta. Biotoxinas e neurotoxinas marinhas já são os venenos mais potentes do mundo. Elas são tão graves que estão até mesmo além da capacidade do homem de duplicá-las. Você sabia que a saxitoxina, produzida por bactérias existentes em certos crustáceos, foi classificada pelas Nações Unidas como uma arma de destruição em massa?
Monk fez uma careta na direção do mar através da viseira.
— A Mãe Natureza pode ser uma cadela malcriada.
— O maior terrorista de todos. É melhor não encher o saco dela.
Monk não contestou.
Com o fim da lição de biologia, Monk abaixou-se e ajudou a organizar os kits de coleta. Fez um grande esforço para usar as luvas de plástico de seu traje. Estava ainda mais comprometido pela mão esquerda dormente. Mutilado após uma missão anterior, ele agora usava uma mão artificial avançadíssima, dotada com o que havia de mais moderno na coleção de engenhocas da DARPA, mas material sintético e bioeletrônica não eram carne. Ele praguejou um pouco quando tentou introduzir uma seringa na areia.
— Cuidado com isso — advertiu Graff. — Eu não acho que você queira furar o seu traje. Não aqui. Embora os níveis tóxicos estejam regredindo, é melhor tomarmos cuidado.
Monk suspirou. Ele ficaria contente em se livrar de seu traje de macaco, de voltar para o navio, para sua suíte. A caminho da ilha, Monk dera um jeito de mandarem por avião para o navio de cruzeiro um conjunto completo de equipamentos para exames forenses. Era lá que ele preferia estar.
Mas primeiro eles precisavam de amostras laboratoriais. E de muitas delas. Sangue, tecidos e ossos. De peixes, tubarões, lulas, golfinhos.
— Isso é estranho — murmurou Graff, que se levantou e olhou para a praia de um extremo ao outro.
Monk juntou-se a ele.
- O quê?
- Um dos animais mais onipresentes da ilha é o Geocarcoidea natalis.
- E isso é...?
— Estou me referindo ao caranguejo-vermelho terrestre da ilha Christmas.
Monk examinou o litoral imundo. Ele lera exaustivamente sobre a flora e I làuna da ilha. O caranguejo-vermelho terrestre era a estrela da ilha e atingia o tamanho de um prato raso. Sua migração anual era uma das maravilhas do mundo animal. Todo mês de novembro, de acordo com os ciclos lunares, cem milhões de caranguejos iam precipitadamente da selva para o mar, esquivando-se das aves marinhas e tentando provar seu direito de se acasalar sobrevivendo Aquela provação.
Graff prosseguiu:
— Os caranguejos são notórios comedores de carniça. Seria de supor que todas as carcaças aqui os atraíssem, como atraíram as aves marinhas. Mas não vejo um único sequer aqui, vivo ou morto.
— Talvez eles tenham sentido a toxina e ficado em suas selvas.
— Se eles fizeram isso, esse fator poderia conter alguma pista sobre a origem da toxina ou das bactérias que a produziram. Talvez eles tenham se deparado antes com essa floração letal. Talvez eles sejam resistentes. De qualquer modo, quanto mais rápido pudermos isolar a fonte, melhor.
— Para ajudarmos os ilhéus...
Graff deu de ombros.
— Claro que sim. Porém, ainda mais importante, para impedirmos que o organismo se propague. — Ele observou atentamente a água amarelada, e o tom de sua voz baixou de preocupação. — Receio que isso possa ser um precursor daquilo que todos os cientistas oceânicos temem.
Monk olhou de relance para ele, esperando que entrasse em detalhes.
— Uma bactéria que seja um fator decisivo, um agente potente o bastante para esterilizar toda a vida no mar.
— E isso pode acontecer?
Graff ajoelhou-se para dar início ao trabalho.
— Talvez já esteja acontecendo.
Com aquela declaração sombria, Monk passou a hora seguinte coletando amostras em frascos, sacolas e copinhos de plástico. O tempo todo, o sol erguia-se muito acima dos penhascos, refletindo-se nas águas, cozinhando-o em seu biotraje. Começou a sonhar de olhos abertos com uma ducha fria e um drinque gelado com um guarda-sol de enfeite.
Os dois foram descendo lentamente a praia. Próximo à face do penhasco, Monk notou um amontoado de varetas de incenso queimadas enfiadas na areia. Elas formavam uma paliçada em frente a um pequeno altar budista, no qual havia apenas uma figura sem rosto sentada, há muito desgastada pelo mar e pela areia. Estava embaixo de um telheiro improvisado salpicado de fezes de pássaros. Ele imaginou as varetas de incenso sendo acesas para proteger contra a nuvem tóxica, em busca de alguma intervenção celestial.
Ele passou pelo altar e sentiu um calafrio súbito; perguntou-se se os esforços deles ali se revelariam mais úteis.
O rugido sufocado de um barco que se aproximava atraiu seu olhar de volta para o mar. Ele olhou de relance para a praia. Enquanto coletavam amostras, ele e Graff haviam transposto uma ponta de terra. O Zodiac estava fundeado além da ponta rochosa, fora de vista.
Monk protegeu os olhos contra a luz. Será que o piloto australiano estava trazendo o bote para mais perto deles?
Graff juntou-se a ele.
— É cedo demais para voltarmos.
Disparos de rifles ecoaram sobre a água quando uma lancha com o casco azul repleto de remendos contornou a ponta. Monk avistou sete homens na traseira, com a cabeça envolta em lenços. O sol cintilava dos rifles de assalto.
Graff ofegou, recuando até ele.
— Piratas...
Monk sacudiu a cabeça. Essa é boa...
A lancha voltou-se na direção deles e deslizou através das ondas encrespadas.
Monk segurou Graff pelo colarinho e puxou-o da praia iluminada pelo sol.
A pirataria estava crescendo no mundo inteiro, mas as águas indonésias sempre foram cheias desses criminosos. As muitas ilhas e pequenos atóis, os milhares de enseadas secretas, as florestas densas, tudo isso criava o local perfeito para que os piratas se multiplicassem. E, depois do recente tsunami na região, o número de piratas locais havia aumentado subitamente, aproveitando o caos e os parcos recursos para o policiamento da região.
Parecia que aquela tragédia em curso não era diferente.
Tempos de desespero geravam homens em desespero.
Porém, quem estava desesperado o suficiente para se arriscar naquelas águas? Monk notou que os pistoleiros estavam envoltos da cabeça aos pés em seus biotrajes improvisados. Será que eles tinham ouvido que os níveis tóxicos estavam baixando ali e decidiram arriscar um ataque?
Enquanto se afastava da beira d'água, Monk olhou de relance na direção do bote deles fundeado ali perto. Entre as ilhas, o Zodiac renderia um bom dinheiro no mercado negro, sem mencionar todo o caro equipamento de pesquisa deles. Monk também notou que o piloto do bote não reagira aos disparos. Pego de surpresa, o marinheiro australiano devia ter sido morto no primeiro ataque. Ele também tinha o único rádio deles. Isolados, eles estavam à própria sorte.
Monk imaginou Lisa a bordo do navio de cruzeiro. O pequeno navio da Guarda Costeira australiana patrulhava as águas ao redor do minúsculo porto. Ela pelo menos deveria estar segura.
Ao contrário deles.
Os penhascos impediam qualquer retirada. Praias desertas estendiam-se de cada lado.
Monk puxou Graff para trás de uma grande rocha destacada de seu leito original, o único abrigo.
Os tripulantes da lancha fizeram pontaria na direção deles. Os disparos matraquearam, abrindo buracos na areia como uma flecha na direção do esconderijo deles.
Monk e Graff abaixaram-se ainda mais.
Era o fim daquele dia de ócio na praia.
11:42h
A dra. Lisa Cummings espalhou a pomada anestésica nas costas da menina que gritava. A mãe dela segurava sua mão. A mulher era malaia e falava em sussurros suaves, com os olhos amendoados contraídos de preocupação. A associação de lidocaína com prilocaína aliviou rapidamente a queimadura nas costas da criança, dissolvendo seus gritos de dor em soluços e lágrimas.
— Ela ficará bem — disse Lisa, sabendo que a mãe trabalhava como garçonete num dos hotéis da cidade e falava inglês. — Não deixe de dar a ela os antibióticos três vezes ao dia.
A mulher curvou a cabeça e disse:
— Terima kasih. Obrigada.
Lisa indicou-lhe com um aceno de cabeça um grupo de homens e mulheres de uniforme azul e branco, a tripulação do Mistress of the Seas.
— Um dos tripulantes encontrará uma cabine para você e sua filha.
A mulher voltou a curvar a cabeça, mas Lisa já estava se afastando, tirando as luvas com um estalido. A sala de jantar no Convés Lido do Mistress of the Seas se transformara no principal ponto de triagem de todo o navio. Cada pessoa evacuada da ilha era examinada e dividida em casos críticos e não-críticos. Com pouquíssima experiência em medicina de crise, Lisa fora designada para prestar os primeiros socorros. Para assisti-la, haviam mandado um estudante de enfermagem de Sydney, um rapaz magricela de ascendência indiana chamado Jesspal, um voluntário da equipe médica da OMS.
Eles formavam uma dupla estranha: uma, loura e pálida; o outro, de cabelos pretos e pele cor de café. Mas trabalhavam como uma equipe experiente.
Jessie, como está o nosso estoque de cefalexina?
Deve durar, dra. Lisa.
Ele agitou o grande frasco de antibióticos com uma das mãos enquanto preenchia a papelada com a outra. O rapaz sabia como executar várias tarefas ao mesmo tempo.
Puxando mais alto nos quadris as calças verdes estéreis descartáveis, Lisa olhou ao redor. Ninguém aguardava cuidados imediatos. O restante da sala de jantar continuava num estado de caos controlado, entrecortado por choros e gritos ocasionais, mas no momento a enfermaria deles era uma ilha de calmaria.
— Acho que a maior parte dos ilhéus foi evacuada — disse Jessie. — Ouvi dizer que as duas últimas chalupas vindas do cais chegaram apenas parcialmente cheias. Acho que estamos vendo os pequenos grupos das aldeias menores mais remotas.
— Graças a Deus por isso.
Lisa havia tratado mais de 150 pacientes ao longo da interminável manhã, casos de queimaduras, bolhas, tosses sufocantes, disenteria, náuseas, um mau jeito num pulso causado por uma queda no cais. No entanto, atendera apenas a uma parte de todos os casos. O navio de cruzeiro aportara na ilha na noite anterior, e a evacuação já estava bem adiantada quando ela chegou de helicóptero ao raiar do dia. Foi necessário que ela tocasse o chão com a aeronave em movimento. A minúscula e remota ilha possuíra pouco mais de dois mil habitantes. Embora os alojamentos fossem escassos, daria para o navio acomodar a população inteira, sobretudo porque o número de mortos havia tragicamente ultrapassado a marca ile quatrocentos... e continuava a aumentar.
Ela se levantou por um instante, abraçando-se a si mesma, desejando que fossem os braços fortes de Painter que a estivessem abraçando por trás e que o rosto áspero dele, com a barba por fazer, estivesse roçando seu pescoço. Fechou os olhos, cansada. Muito embora ele não estivesse ali, Lisa tomou emprestado um pouco da obstinação dele.
Enquanto ela estava trabalhando, cuidando de um caso após outro, fora fácil tornar-se objetiva, desligar-se, simplesmente tratar os pacientes e seguir em frente.
Mas agora, naquele momento de calma, a enormidade do desastre deixou-a impressionada. Durante as duas últimas semanas, as enfermidades ali haviam começado com casos triviais, algumas queimaduras resultantes da exposição imediata. Depois, em apenas dois dias, o mar havia produzido uma nuvem tóxica, que afinal entrou em erupção como um vulcão, expelindo um gás vesicante que matou um quinto da população e feriu o restante.
E, embora a nuvem tóxica houvesse se extinguido por si só, doenças e infecções secundárias tinham começado a afligir os doentes: gripes, febres abrasadoras, meningite, cegueira. A rapidez era perturbadora. O terceiro convés fora declarado área de quarentena.
O que ela estava fazendo ali?
Quando aquela crise médica teve início, Lisa pedira a Painter para participar daquela missão, expondo seus motivos. Além de ser formada em medicina, ela era Ph.D. em fisiologia humana, porém, ainda mais importante, tinha uma extensa experiência de campo, em particular em ciências marinhas. Havia trabalhado cinco anos a bordo de um navio de salvamento, o Deep Fathom, fazendo pesquisas fisiológicas.
Ela, portanto, tinha um sólido argumento para ter sido incluída naquela equipe.
Mas não era o único.
No último ano, Lisa ficara baseada em Washington e se vira lentamente consumida pela vida de Painter. E, embora uma parte dela apreciasse a intimidade, os dois se tornando um, ela também sabia que precisava daquela oportunidade de ficar longe, tanto por si mesma quanto pelo relacionamento, precisava de um pouco de distanciamento para avaliar sua vida fora da sombra de Painter.
Mas talvez aquele distanciamento fosse longo demais...
Um grito agudo chamou sua atenção para as portas duplas que davam acesso à sala de jantar. Dois marinheiros transportavam para dentro um homem numa maca. Ele se contorcia e gritava, com a pele exsudativa e vermelha como a carapaça de uma lagosta. Parecia que seu corpo inteiro havia sido escaldado. Seus carregadores correram com ele na direção da enfermaria de cuidados críticos.
Num reflexo, o tratamento passou pela sua cabeça, e ela voltou a ficar objetiva. Diazepam e uma infusão de morfina. No entanto, bem no fundo, ela sabia a verdade. Todos eles sabiam. O tratamento do homem que sofria seria apenas paliativo, para deixá-lo mais confortável. O homem na maca já estava morto.
— Lá vem problema — murmurou Jessie atrás dela.
Lisa virou-se e avistou o dr. Gene Lindholm vindo a passos largos em sua direção, um homem parecido com uma avestruz, as pernas e o pescoço compridos, e um topete branco arrepiado. O chefe da equipe da OMS acenou com a cabeça para ela, indicando que era com ela mesma que queria falar.
Qual era o problema agora?
Ela não gostava particularmente do clínico formado pela Universidade de Harvard. Ele viera com um ego a ser confrontado. Depois de chegar ali, em vez de ajudar, ele se isolara com o proprietário da linha de cruzeiros marítimos, o bilionário australiano independente Ryder Blunt. O bilionário, notório por sua abordagem prática dos negócios, estava a bordo do navio em sua viagem inaugural. E, embora pudesse ter ido embora quando o navio foi requisitado, ele permanecera no local, transformando o resgate dos ilhéus numa oportunidade de marketing.
E Lindholm cooperava.
Essa cooperação, todavia, não se estendia a Monk e Lisa. O chefe da equipe da OMS se ressentia dos pauzinhos que foram mexidos para incluir os dois na equipe. Porém, ele não tivera escolha a não ser concordar, o que não significava que tivesse de se sentir satisfeito com isso.
— Dra. Cummings, estou contente por encontrá-la aqui sem nada para fazer.
Lisa reprimiu uma resposta.
Jessie bufou.
Lindholhm olhou de relance para o estudante de enfermagem como se não tivesse percebido a presença do rapaz; em seguida, com a mesma rapidez, ignorou-o e voltou a atenção para Lisa.
— Recebi instruções para incluir a senhora e seu colega em quaisquer descobertas relacionadas com a epidemiologia deste desastre. E, como o dr. Kokkalis está fazendo trabalho de campo, eu pensei que deveria trazer isto à sua consideração.
Ele estendeu-lhe um grosso prontuário médico. Ela reconheceu o logotipo do pequeno hospital que atendia a ilha Christmas. Com o quadro de pessoal composto apenas de médicos generalistas que atendiam todos os pacientes e de duas enfermeiras de tempo integral, o hospital ficara rapidamente sobrecarregado, exigindo que os casos mais graves fossem levados de avião para Perth. Mas, aquilo se tornara impraticável depois que o colapso biológico atingiu a ilha com plena força. Assim que o navio de cruzeiro chegou, o hospital foi o primeiro a ser evacuado.
Lisa abriu o prontuário e viu que o nome do paciente era John Doe. Correu os olhos rapidamente pela história clínica, bastante sumária. O paciente, um homem de quase 70 anos, fora encontrado cinco semanas atrás vagando nu pela floresta tropical, com sinais inequívocos de demência e exposição. Ele não conseguia falar e estava gravemente desidratado. Em seguida, resvalou para um estado infantil, incapaz de cuidar de si mesmo, comendo apenas se fosse alimentado por outra pessoa. Eles tentaram identificá-lo por meio das impressões digitais e de buscas nos registros de pessoas desaparecidas, mas nada fora encontrado. Ele continuava sendo um John Doe.
Lisa ergueu o olhar.
— Eu não estou entendendo... o que isso tem a ver com o que aconteceu aqui? Suspirando, Lindholm aproximou-se dela e bateu de leve na tabela.
- Embaixo da lista dos sintomas que o paciente exibe e dos achados físicos. No fim da página.
- "Sinais de exposição de moderados a graves" — murmurou ela, lendo a lista até o fim. Na última linha estava escrito: Profundas queimaduras de sol de segundo grau na derme até as panturrilhas, resultando em edema e grave formação de bolhas.
Lisa tornou a erguer o olhar. Ela havia tratado de sintomas semelhantes a manhã inteira.
- Isso não foi apenas uma queimadura de sol.
- Os médicos da ilha tiraram essa conclusão precipitada — disse Lindholm com evidente indignação.
Lisa não podia culpar nem os médicos nem as enfermeiras da ilha. Naquela ocasião, ninguém sabia do desastre ambiental que estava se iniciando. Ela checou a data de novo.
Cinco semanas atrás.
— Eu creio que encontramos o Paciente Zero — disse Lindholm de maneira pomposa. — Ou pelo menos um dos primeiros casos.
Lisa fechou o prontuário.
— Eu posso vê-lo?
Ele concordou com um aceno de cabeça.
— Esse foi o segundo motivo por que vim até aqui. — Houve um tremor sombrio em sua voz ao fim que incomodou Lisa. Ela esperou que ele explicasse, mas Lindholm simplesmente lhe deu as costas e encaminhou-se para fora. — Venha comigo.
O chefe da equipe da OMS cruzou a sala de jantar até um dos elevadores do navio e apertou o botão do Convés Promenade, no terceiro pavimento.
— A ala de isolamento? — perguntou ela.
Ele deu de ombros.
Poucos instantes depois, as portas se abriram para o interior de uma enfermaria asséptica improvisada. Lindholm fez sinal para que ela vestisse um dos biotrajes, semelhante ao que Monk vestira para colher amostras.
Lisa vestiu o traje, notando o ligeiro cheiro de suor quando puxou o capuz sobre a cabeça e lacrou os atilhos. Assim que ambos estavam prontos, ela foi conduzida por um corredor a uma das cabines. A porta estava aberta, e outros médicos aglomeravam-se à entrada.
Lindholm berrou para que os outros abrissem caminho. Bem treinados pelo chefe, eles se dispersaram. Lindholm conduziu Lisa para dentro do pequeno aposento, uma cabine interna sem janelas. A única cama estava encostada na parede dos fundos.
Um homem jazia deitado sob um cobertor fino. Parecia mais cadavérico do que vivo, mas, ela notou o sobe-e-desce superficial do cobertor, uma respiração débil e arquejante. Linhas intravenosas estendiam-se até um braço exposto. A pele do membro estava tão descorada e consumida que ficara translúcida.
Ela olhou instintivamente para o rosto dele. Alguém o havia barbeado, mas às pressas. Alguns cortes ainda exsudavam. Seus cabelos eram grisalhos e finos, como os de um paciente submetido a quimioterapia, porém seus olhos estavam abertos e encontraram os dela.
Por um momento, ela pensou ter notado um lampejo de reconhecimento, uma mera surpresa. Até mesmo uma das mãos ergueu-se fracamente na direção dela.
Mas Lindholm se interpôs entre eles. Ignorando o paciente, ele puxou para cima a parte inferior do cobertor e expôs as pernas do homem. Lisa esperava ver pele com crostas, curando-se de uma queimadura de segundo grau, como as que tratara a manhã inteira; porém, em vez disso, viu que uma estranha lesão arroxeada se estendia das virilhas aos pés do homem, formando uma superfície áspera e irregular coberta de bolhas pretas.
— Se a senhora tivesse lido mais o relatório — disse Lindholm —, teria descoberto que esses novos sintomas surgiram há quatro dias. O pessoal do hospital suspeitou de gangrena tropical, secundária à profunda infecção das queimaduras. Mas na verdade é...
- Faciite necrotizante — concluiu ela.
Lindholm fungou fortemente e baixou o cobertor.
- Exatamente. Foi o que pensamos.
A faciite necrotizante, mais conhecida como doença devoradora de carne, era causada por bactérias, em geral estreptococos beta-hemolíticos.
- Qual é a avaliação? — indagou ela. — Uma infecção secundária causada pelas feridas anteriores?
- Mandei buscar o nosso bacteriologista. Uma rápida reação de Gram na noite passada revelou uma maciça proliferação de Propionibacterium.
Ela franziu o cenho.
- Isso não faz sentido. Essa é apenas uma bactéria epidérmica comum, não-patogênica. O senhor tem certeza de que não foi apenas um contaminante?
- Não nos números encontrados nas bolhas. As reações foram repetidas em outras amostras de tecido, com os mesmos resultados. Foi durante essas novas análises que uma necrose estranha foi observada no tecido circundante. Um padrão de decomposição às vezes visto localmente. Ele pode assemelhar-se muito à faciite necrotizante.
- Causada por quê?
- Pela ferroada de um peixe muito tóxico, o peixe-pedra. Ele se parece com uma pedra, mas, possui espinhas dorsais rígidas envenenadas por glândulas peçonhentas. Um dos venenos mais perigosos do mundo. Eu trouxe o dr. Barnhardt para examinar o tecido.
— O toxicologista?
Ele respondeu com um aceno afirmativo de cabeça.
O dr. Barnhardt, especialista em venenos e toxinas ambientais, viera de Amsterdã. Sob os auspícios da Sigma, Painter solicitara pessoalmente o acréscimo do homem à equipe da OMS.
Os resultados chegaram há uma hora. Ele encontrou veneno ativo nos tecidos do paciente.
- Eu não estou entendendo. Então o homem foi envenenado por um peixe-pedra enquanto perambulava em delírio?
Uma voz soou atrás dela, respondendo à pergunta.
— Não.
Ela virou-se. Uma figura alta e volumosa ocupava o espaço da entrada, um homem apertado num traje anticontaminação pequeno demais para a sua circunferência. Seu rosto cinzento e barbudo combinava com o seu tamanho, mas não com a delicadeza de sua mente. O dr. Henrick Barnhardt entrou na sala.
- Eu não creio que o homem tenha sido ferroado por um peixe-pedra. Mas ele está sofrendo por causa do veneno.
- Como isso é possível?
Barnhardt ignorou a pergunta dela no momento e dirigiu-se ao chefe da equipe da OMS.
— É o que eu suspeitava, dr. Lindholm. Peguei emprestadas as culturas de Propionibacterium do dr. Miller e mandei analisá-las. Não há nenhuma dúvida agora.
Lindholm empalideceu visivelmente.
— O quê? — perguntou Lisa.
O toxicologista estendeu uma das mãos e gentilmente ajeitou o cobertor sobre o paciente, um gesto terno para um homem tão grande.
— A bactéria — respondeu ele —, Propionibacterium... está produzindo o equivalente do veneno do peixe-pedra, bombeando-o em quantidades suficientes para dissolver os tecidos deste homem.
- Isso é impossível.
Lindholm bufou.
- Foi o que eu disse.
Lisa ignorou-o.
- Mas Propionibacterium não produz nenhuma toxina. É uma bactéria benigna.
- Não sei explicar como nem por quê — disse Barnhardt. — Até mesmo para iniciar qualquer avaliação adicional, eu precisaria de pelo menos um microscópio ile varredura. Mas lhe asseguro, dra. Cummings, que de algum modo essa bactéria benigna se transformou num dos micróbios mais perigosos do planeta.
- O que o senhor quer dizer com se transformou?
- Não acho que o paciente contraiu esse micróbio. Acho que ele fazia parte de sua flora bacteriana normal. Seja o que for a que o homem tenha sido exposto lá fora, mudou a bioquímica da bactéria, alterou sua estrutura genética básica e deixou-a virulenta. Transformou-a numa devoradora de carne.
Lisa ainda se recusava a acreditar. Pelo menos sem mais provas.
— Meu colega, o dr. Kokkalis, montou um laboratório forense portátil na nossa suíte. Se o senhor pudesse...
Lisa sentiu alguma coisa roçar o dorso de sua mão enluvada. Ela quase pulou de susto. Mas era apenas o velho na cama, estendendo novamente a mão para ela. Seus olhos encontraram os dela, desesperados. Seus lábios, rachados, tremiam com uma respiração seca.
— Sue... Susan...
Ela virou-se e segurou os dedos do homem. Sem dúvida, ele ainda estava delirando, confundindo-a com outra pessoa. Apertou-os de um jeito tranqüilizador.
— Susan... onde está Oscar? Eu posso ouvi-lo latir na floresta... — Seus olhos reviraram-se nas órbitas. — ...latir... ajude-o... mas não... não entre na água...
Ela sentiu os dedos dele afrouxarem-se no aperto de sua mão. As pálpebras dele fecharam-se, levando de roldão o breve momento de confusa lucidez.
Uma enfermeira aproximou-se e verificou os sinais vitais do homem. Ele estava inconsciente de novo.
Lisa enfiou a mão dele sob o cobertor.
Lindholm avançou, aproximando-se, invadindo o espaço dela.
Precisamos ter acesso a esse laboratório forense do dr. Kokkalis o mais rápido possível, a fim de confirmar ou refutar essa conjectura precipitada do dr. Barnhardt.
Eu prefiro esperar a volta de Monk — disse Lisa, recuando. — Parte do equipamento tem design especial. Nós precisaremos de seus conhecimentos para operá-lo sem danificá-lo.
Lindholm fechou a cara — não tanto para ela quanto para a vida em geral.
— Está bem. — Ele virou-se. — O seu colega deve estar de volta na próxima hora. Dr. Barnhardt, enquanto isso colete as amostras de que o senhor vai precisar.
Um aceno de cabeça do toxicologista holandês revelou reconhecimento da ordem, embora Lisa tenha notado o ligeiro revirar de olhos de Barnhardt quando o chefe da equipe da OMS partiu. Lisa saiu do aposento com Lindholm.
Barnhardt gritou para ela:
- A senhora vai me mandar um bipe quando o dr. Kokkalis chegar, ja?
- É claro.
Como as demais pessoas, ela estava ansiosa para descobrir a verdade. Mas também receava que eles ainda mal tivessem tocado a superfície. Algo terrível estava tendo início ali.
Mas o quê?
Ela esperava que Monk voltasse logo.
Quando saiu, ela também se lembrou das últimas palavras do paciente.
Não... não entre na água...
11:53h
- Nós vamos ter de nadar para escapar — disse Monk.
- Você... você está maluco? — respondeu Graff quando eles se agachavam atrás da pedra.
Momentos antes a lancha dos piratas fora de encontro a um coral submerso, um dos muitos que deram origem ao nome daquela parte da ilha: Smithsohs Blight. Na água, o tiroteio terminara, substituído pelo rugido do motor à medida que a lancha tentava libertar-se.
Monk havia erguido a cabeça para avaliar a situação e quase perdeu uma das orelhas devido a uma bala de um atirador de tocaia. Eles ainda estavam encurralados, acuados, sem ter para onde correr, exceto à vista do inimigo.
Monk inclinou-se e abriu o zíper de um dos lacres de seu traje perto da canela. Estendeu a mão pela abertura e tirou a Glock 9mm do coldre preso ao tornozelo.
Os olhos de Graff arregalaram-se quando Monk tirou a pistola.
— Você acha que pode matar esses caras todos? Atingir o tanque de gasolina ou algo desse tipo?
Monk sacudiu a cabeça e tornou a puxar o zíper para cima.
— O senhor tem assistido a filmes demais de Bruckheimer. Esta zarabatana só servirá para fazer com que eles abaixem a cabeça. Talvez por tempo suficiente para que cheguemos à arrebentação no outro lado.
Ele apontou para uma linha de rochas que se estendia água adentro. Se conseguissem chegar ao outro lado, manter as rochas entre eles e a lancha, talvez pudessem dar a volta até o ponto seguinte.
Depois, se fossem capazes de alcançar a praia no outro lado antes de os piratas desvencilharem a lancha... e se houvesse algum caminho que conduzisse ao interior da ilha...
Maldição, são muitos ses...
Havia, porém, uma certeza ali.
Eles morreriam se continuassem a tremer como varas verdes.
— Nós teremos que permanecer o máximo possível embaixo d’água — advertiu Monk. — Talvez até possamos respirar uma ou duas vezes se conseguirmos manter o ar preso nos nossos capuzes anticontaminação.
O rosto de Graff parecia pouco aliviado à idéia. Embora o pior do evento tóxico tivesse passado, a baía continuava sendo uma cloaca venenosa. Mesmo os pistoleiros tinham bom senso suficiente para não deixar a segurança de sua lancha. Os homens mascarados estavam usando remos para conseguir tirar a embarcação das rochas, em vez de pularem na água e aliviar a carga.
Se até mesmo piratas se recusavam a entrar na água...
De repente, Monk começou a questionar a sensatez de seu próprio plano. Além do mais, ele odiava mergulhar. Era um ex-Boina Verde, não um SEAL de merda da Marinha.
— O que foi? — perguntou Graff, interpretando alguma coisa na expressão de Monk. — Você não acha que o seu plano vai dar certo, não é mesmo?
— Deixe um homem pensar agora!
Abaixando-se, Monk dirigiu o olhar para a estátua gasta de Buda sob o telheiro, protegida por sua fileira de varetas de oração queimadas. Ele não era budista, mas era capaz de rezar para qualquer deus que o tirasse daquela enrascada.
Seus olhos voltaram a pousar sobre as varetas de oração queimadas. Sem se virar, ele perguntou a Graff:
— Como esses devotos chegaram aqui? Não existe nenhuma aldeia numa extensão de quilômetros ao longo do litoral, a praia é protegida por recifes, e os penhascos parecem íngremes demais para escalar.
Graff sacudiu a cabeça.
- Que diferença isso faz?
- Alguém acendeu essas varetas de oração, provavelmente ontem. — Monk mudou de posição. — Olhe para a praia. Não existem pegadas além das nossas. O senhor pode ver onde alguém se ajoelhou para acender suas varetas viscosas, mas nenhum passo seguia rumo à água ou ao longo da praia. Isso significa que eles tiveram de vir de cima. Deve haver uma trilha.
— Ou talvez alguém simplesmente tenha erguido e baixado uma corda. Monk suspirou, desejando uma companhia mais estúpida, alguém menos capaz de apontar falhas no seu raciocínio.
— Água ou Buda? — indagou Monk.
Graff visivelmente engoliu em seco quando o motor da lancha acelerou. Os piratas estavam quase livres.
Ele virou-se para Monk.
— Esfregar a barriga de um Buda não... não traz boa sorte? Monk acenou com a cabeça em concordância.
— Eu acho que li isso num biscoito da sorte em algum lugar. Espero que esse Buda tenha lido o mesmo biscoito.
Monk moveu-se ao redor, erguendo a pistola.
— Quando eu terminar de contar, o senhor cai fora. Eu vou estar logo atrás do senhor, disparando contra a lancha. Concentre-se apenas em chegar àquele Buda e descobrir essa trilha.
— E eu vou rezar para que os devotos não tenham usado uma corda para...
- Não diga isso, ou o senhor vai nos trazer azar!
Graff calou a boca.
- Lá vamos nós.
Monk preparou-se, dando uns pulinhos para ativar a circulação sanguínea nas pernas, e contou:
— Três... dois... um...!
Graff saiu correndo, saltando como uma lebre. Uma bala ricocheteou na rocha, perto dos calcanhares do homem.
Monk praguejou e correu.
— O senhor devia esperar pelo e já! — murmurou ele, apertando o gatilho e disparando na direção da lancha encalhada. — Civis...
Ele crivou a lancha de balas, obrigando os atiradores a se deitar de bruços. Observou um homem erguer as mãos e cair no mar. Um tiro disparado por Monk que, por sorte, acertara um alvo. A resposta aos tiros consistiu apenas em alguns disparos a esmo, feitos num pânico irado.
Adiante, Graff alcançara o Buda e deslizava na areia, passando pelas varetas de oração. Girando o corpo, ele recobrou o equilíbrio e moveu-se rapidamente para trás do telheiro.
Monk seguiu uma rota mais direta, avançando através de um espinheiro arenoso, e foi parar ao lado de Graff.
- Conseguimos! — disse Graff ofegante, a voz revelando muita surpresa.
- E os deixamos bastante furiosos.
Monk imaginou o homem caindo na sopa tóxica.
Talvez em retribuição, disparos de rifles abriram buracos no telheiro e explodiram as trepadeiras e folhagens que cobriam a parede do penhasco. Monk e Graff abrigaram-se juntos, protegidos pela enorme barriga de pedra do Buda. Sem dúvida, havia simbolismo naquele último ato.
Aquilo, porém, era tudo o que o Buda tinha a oferecer.
Monk examinou atentamente os penhascos atrás da barraca de madeira.
Íngremes e impossíveis de escalar.
Não havia nenhum caminho.
— Talvez um de nós devesse ter esfregado aquela barriga quando corremos para cá — disse Monk num tom mal-humorado.
— E a sua arma? — perguntou Graff.
Monk ergueu-a.
— Mais um disparo. Depois disso, eu poderia jogar a pistola na direção deles. Isso sempre dá certo.
Atrás deles, a lancha finalmente se desvencilhou dos corais com um rugido do motor. Pior ainda: a lancha estava agora no lado do penhasco voltado para a ilha, movendo-se rumo à praia, passando por entre os corpos dos animais mortos.
Em breve haveria mais dois corpos para acrescentar à sopa.
Uma saraivada de balas atingiu o Buda e estilhaçou o telheiro. Mais trepadeiras foram transformadas em frangalhos. Uma bala ricocheteou e passou voando pelo nariz de Monk, mas ele não se moveu. Observou um dos mantos de trepadeiras destruídos pelos disparos cair, revelando a boca de uma caverna atrás dele.
Monk avançou arrastando-se, mantendo a estátua entre ele e os piratas que se aproximavam. Abriu as trepadeiras com o cotovelo, e a luz do sol revelou um degrau, depois outro...
— Um túnel! Sua teoria da escada de corda já era, Graff!
Monk virou-se e viu o médico cair de lado, com uma das mãos pressionando o ombro. O sangue escorria por entre seus dedos. Droga...
Monk voltou correndo até ele.
Vamos. Não temos tempo de cuidar disso. O senhor pode andar?
Graff falou por entre os dentes cerrados.
- Desde que eles não acertem a minha perna.
Com um pouco de ajuda de Monk, os dois rastejaram através do manto de trepadeiras e entraram no túnel. A temperatura caíra em dez graus. Monk segurava no cotovelo de Graff. O homem tremia, mas seguiu a liderança de Monk e subiu apressadamente os degraus em meio à escuridão.
Atrás deles, ele ouviu o rangido de casco na areia e os gritos de vitória dos piratas, confiantes em que sua presa estava acuada. Monk continuou subindo em círculos, avançando hesitante na escuridão.
Os piratas não demorariam a encontrar o túnel. Mas eles os perseguiriam ou simplesmente iriam embora? A resposta veio logo.
Luzes brilharam abaixo... junto com ordens dadas de maneira mais furtiva.
Monk apressou-se.
Sentiu a raiva nas vozes dos homens.
Ele os havia mesmo deixado danados.
Lentamente, a escuridão acima foi, se tornando cinza, e era possível discernir as paredes. Eles aumentaram o passo. Graff sussurrava entre os dentes, mas Monk não conseguiu entender as palavras do homem. Uma prece, uma maldição... ele aceitaria uma ou outra, desde que desse certo.
Por fim, o alto da escada apareceu. Os dois saíram do túnel e chegaram à orla da floresta tropical que cobria o penhasco. Monk seguiu em frente, grato pela densa cobertura da selva. Quando entrou na floresta, viu que a zona tóxica de mortandade não estava restrita à praia lá embaixo. Pássaros mortos espalhavam-se pelo chão da floresta. Próximo aos seus pés, jazia o corpo peludo de um morcego, enrugado como um avião de caça acidentado.
Mas nem todos os habitantes da floresta estavam mortos.
Monk olhou para a frente. O chão da floresta se agitava e turbilhonava numa maré vermelha própria. Porém, não se tratava de uma floração de bactérias: milhões de caranguejos cobriam cada centímetro quadrado do chão da floresta. Alguns estavam agarrados a troncos de árvores e trepadeiras.
Ali estavam os desaparecidos caranguejos-vermelhos da ilha Christmas.
Monk lembrou-se do seu estudo. O ano inteiro, os caranguejos permaneciam dóceis até serem provocados. Sabia-se que, durante sua migração anual, eles cortavam com as pinças afiadas os pneus dos carros que passavam.
Monk deu um passo para trás.
Provocados era uma palavra que descrevia bem os caranguejos no momento. Eles subiam uns sobre os outros, agitados, movendo-se rapidamente, num frenesi para se alimentarem.
Monk agora entendia por que as criaturas não eram encontradas na praia lá embaixo. Por que haveriam de descer se havia alimento em abundância ali em cima?
Os caranguejos não só se banqueteavam com os pássaros e os morcegos mortos, mas também com os de sua própria espécie, numa luta canibalesca. A aparição dos homens, pinças enormes ergueram-se em advertência, estalando como varetas quebradas.
Bem-vindos à festa!
Atrás deles, vozes excitadas ecoaram vindo da abertura do túnel.
Graff deu um passo à frente, apertando o ombro. Um grande caranguejo, oculto sob a folha de uma samambaia, bateu de lado no seu pé e cortou o plástico.
O médico recuou, murmurando entre os dentes outra vez. Era o mesmo mantra da escada, só que agora Monk o entendeu... e não podia senão concordar.
— Nós realmente deveríamos ter esfregado a barriga daquele Buda.
CAPÍTULO 3
Emboscada
5 de julho, 00:25h
Takoma Park, Maryland
- Que diabo está acontecendo?
— Eu não sei, pai. — Gray e seu pai apressaram-se a fim de fechar os portões pivotantes da garagem. — Mas pretendo descobrir.
Os dois haviam arrastado a motocicleta da assassina para a garagem. Gray não queria deixar a moto ao ar livre. Na verdade, ele não queria deixar nenhum vestígio de Seichan ali. Até então, não tinha havido nenhum sinal de quem havia disparado contra ela, mas isso não significava que ele ou eles não estivessem se aproximando.
Ele voltou correndo para onde sua mãe estava. Professora de biologia na Universidade George Washington, ela dera aulas para uma grande quantidade de estudantes de medicina e sabia o bastante para enfaixar o ferimento de Seichan a fim de estancar qualquer hemorragia mais extensa.
A assassina oscilava entre a consciência e a inconsciência.
— Tive a impressão de que a bala passou direto — disse sua mãe. — Mas ela perdeu muito sangue. A ambulância está a caminho?
Poucos momentos antes, Gray fizera uma chamada de emergência do seu telefone celular, mas não para o número 911. Seichan não poderia ser levada para nenhum hospital da cidade. Um ferimento à bala exigia que se respondesse a muitas perguntas. No entanto, ele tinha de tirá-la dali, de conseguir assistência médica para ela o mais rápido possível.
No fim da rua, uma porta bateu. Apreensivo a quaisquer ruídos, Gray prestou atenção, com os sentidos aguçados como se fossem uma corda de piano retesada. Alguém gritou, rindo.
— Gray, a ambulância está a caminho? — insistiu a mãe, num tom de voz mais duro.
Ele apenas fez que sim com a cabeça, recusando-se a mentir em voz alta. Pelo menos, não para a mãe. Ele voltou-se para o pai, que se juntara a eles e limpava as palmas das mãos no seu jeans de trabalho. Seus pais pensavam que ele fosse técnico de laboratório em uma companhia de pesquisas do Distrito de Colômbia, um cargo modesto depois de ter sido expulso dos Rangers do Exército numa corte marcial por agressão a um oficial superior.
Mas aquilo também não fora verdade.
Apenas um disfarce.
Seus pais nada sabiam sobre sua verdadeira profissão na Sigma, e Gray pretendia manter as coisas assim. O que significava que ele precisava dar o fora dali o mais rápido possível. Ele tinha de se mexer.
— Pai, você pode me emprestar o Thunderbird? Com toda essa agitação do Quatro de Julho, os serviços de emergência estão sobrecarregados. A mulher pode chegar mais rápido ao hospital se eu mesmo a levar.
Os olhos de seu pai estreitaram-se de suspeita, mas ele apontou na direção da porta dos fundos da cozinha.
— As chaves estão no gancho.
Gray correu e pulou os degraus da varanda dos fundos. Abrindo a porta de tela, estendeu a mão para dentro e tirou do gancho o chaveiro com seu tilintar desagradável. Seu pai havia restaurado um Thunderbird conversível ano 1960, preto, com o interior de couro vermelho, equipado com um novo carburador Holley, lança-chamas e afogador elétrico. Ele havia sido encostado ao meio-fio para a festa.
— Correu ao local em que o carro estava estacionado com a capota arriada, pulou por cima da porta do motorista e sentou-se ao volante. Um momento depois, estava rugindo em marcha a ré rumo à entrada de veículos, e quicou um pouco no assento quando atingiu o meio-fio. Seu pai ainda estava solucionando os problemas da suspensão reconstruída.
Gray parou o carro em ponto morto, com o motor ainda funcionando, e correu para onde a mãe e o pai estavam ajoelhados ao lado de Seichan. Seu pai já estava tomando-a nos braços.
- Deixe comigo — disse Gray.
- Talvez não devêssemos movê-la — opinou sua mãe. — Ela está muito ferida.
O pai de Gray ignorou ambos. Ele ergueu Seichan, aninhando-a em seus braços. Seu pai podia ter perdido parte de uma perna e não estar batendo muito bem da bola, mas ainda era forte como um cavalo de tração.
— Abra a porta — ordenou. — Vamos colocá-la no banco traseiro.
Em vez de argumentar, Gray obedeceu e ajudou a colocar Seichan no carro. Ele abriu a porta e dobrou o banco da frente. Seu pai entrou na traseira e baixou-a com extrema delicadeza, depois se acomodou no banco de trás, apoiando a cabeça dela.
— Pai...
A mãe dele acomodou-se no banco do carona.
- Eu tranquei a casa. Vamos.
- Eu... eu posso levá-la sozinho — disse Gray, fazendo sinal para que ambos saíssem.
Ele não ia a hospital nenhum. Seu telefonema fora para a central de despacho de emergência, onde ele fora posto imediatamente em contato com o diretor Crowe. Graças a Deus que ele ainda estava lá.
Gray recebera ordens para ir a um abrigo secreto, onde uma equipe médica para evacuação de emergência se reuniria para avaliar e tratar Seichan. Painter não queria correr nenhum risco. Caso aquilo tudo fosse uma armadilha, ela não devia ser levada para a sede da Sigma. Assassina e terrorista conhecida, Seichan estava nas listas dos mais procurados da Interpol e de dezenas de agências de inteligência no mundo inteiro. Segundo um boato, o Mossad, o serviço secreto do governo de Israel, tinha uma ordem para que se abrisse fogo imediatamente contra ela.
Seus pais não deveriam estar ali.
Gray fitou o aço nos olhos do pai. Os braços de sua mãe já estavam cruzados sobre o tórax. Eles não iam arredar pé facilmente.
- Vocês não podem vir — disse ele. — Não é... não é seguro.
- Como se aqui fosse mais seguro — respondeu o pai, acenando com um dos braços para trás, na direção da garagem. — Quem pode dizer se membros de uma violenta gangue de rua ou traficantes de drogas que atiraram contra ela já não estão a caminho daqui?
Gray não tinha tempo para explicar. O diretor já havia despachado um pequeno grupo de seguranças para proteger e vigiar os pais dele. Eles chegariam em poucos minutos.
— Meu carro... minhas regras — concluiu o pai num tom retumbante e inabalável. — Agora vá, antes que o sangue dela comece a vazar das ataduras que sua mãe aplicou e suje completamente meus novos assentos de couro.
Seichan gemeu, mexendo-se por causa da dor, num estado de confusa agitação. Um dos braços ergueu-se até a atadura, a fim de arrancá-la. O pai de Gray segurou os dedos da mulher e baixou a mão dela. Ele continuou segurando-a, tranqüilizando e ao mesmo tempo contendo.
— Vamos — disse o pai.
Mais do que qualquer outra coisa, a rara ternura venceu sua reserva.
Gray tomou o assento do motorista.
— Coloquem o cinto de segurança — disse ele, sabendo que quanto mais cedo chegasse com Seichan ao abrigo secreto, tanto melhor para todos eles. Ele lidaria com as conseqüências mais tarde.
Quando deu partida no motor, flagrou a mãe olhando fixamente para ele.
— Nós não somos idiotas, você sabe, Gray — disse ela de maneira enigmática, e se virou.
Ele franziu as sobrancelhas, mais por irritação do que por compreensão. Engrenou a marcha, disparou pela entrada de veículos e fez uma curva brusca ao entrar na rua.
— Cuidado! — gritou o pai. — São pneus Kelsey novos com aros de arame! Se você os arranhar...
Gray acelerou rua abaixo. Fez várias curvas rápidas, tomando cuidado com os pneus. Era uma sensação boa estar em movimento. O motor 390 V8 rosnava como uma fera. Um resquício de respeito relutante pela obra de seu pai dissipou sua exasperação.
Sua mãe olhou rua abaixo quando ele dobrou na direção oposta à do hospital mais próximo, mas permaneceu calada e afundou ainda mais em seu assento. Ele encontraria alguma forma de lidar com sua família no abrigo secreto.
Enquanto dirigia em alta velocidade atravessando a cidade à meia-noite, Gray ainda ouvia o espocar ocasional de fogos de artifício. O feriado estava terminando, mas Gray temia os verdadeiros fogos de artifício que ainda estavam por começar.
0:55h
Washington, D.C.
Era o fim da folga do feriado...
O diretor Painter Crowe desceu o corredor na direção de seu gabinete. O minguado pessoal do turno da noite no Comando Central estava aumentando rapidamente. Um alerta geral fora emitido. Ele já havia recebido e retornado dois telefonemas do Departamento de Segurança Interna. Não era todo dia que uma terrorista internacional caía do céu. E não apenas uma terrorista qualquer, mas um membro da rede obscura conhecida como a Guilda.
Competindo com freqüência com a Sigma, a Guilda caçava e roubava tecnologias emergentes: militares, biológicas, químicas, nucleares. Na ordem mundial atual, o conhecimento era o verdadeiro poder — mais do que o petróleo, mais do que qualquer arma. Só que, no caso da Guilda, as descobertas eram vendidas a quem oferecia o lance mais alto, incluindo a Al-Qaeda e o Hezbollah, no Oriente Médio, Aum Shinrikyo, no Japão, e o Sendero Luminoso, no Peru. A Guilda operava por meio de uma série de células isoladas ao redor do mundo, com espiões nos governos mundiais, nas agências de inteligência, nos principais institutos de pesquisa interdisciplinar, até mesmo em instalações de pesquisa internacionais.
E, uma vez, até mesmo na DARPA.
Painter ainda sentia a pontada daquela traição.
Mas agora uma agente-chave da Guilda estava sob a custódia deles.
Quando Painter entrou na ante-sala de seu gabinete, seu secretário e ajudante, Brant Millford, afastou-se de sua escrivaninha. O homem usava uma cadeira de rodas, pois sua coluna havia sido dilacerada por um estilhaço após a explosão de um carro-bomba num posto de segurança na Bósnia.
— Senhor, estou recebendo um telefonema por satélite da dra. Cummings.
Painter parou, surpreso. Não estava previsto que Lisa prestasse informações tão cedo. Uma ponta de preocupação penetrou o emaranhado de responsabilidades naquela noite.
— Vou atender a ligação no meu gabinete. Obrigado, Brant.
Painter transpôs a porta. Três monitores de plasma estavam pendurados nas paredes em torno de sua escrivaninha. Por enquanto, as telas estavam escuras, porém, à medida que a noite fosse passando, elas logo ficariam repletas de dados, lodos afluindo para o Comando Central. Por ora, isso podia esperar. Ele estendeu a mão para o telefone por sobre a escrivaninha e apertou o botão que piscava.
A previsão era de que Lisa prestasse informações quase ao raiar do dia, quando estivesse anoitecendo nas ilhas indonésias. Painter havia solicitado o relato do dia inteiro àquela hora, pouco antes de ela se recolher. Esse horário também lhe oferecia a oportunidade perfeita de desejar boa-noite a ela.
— Lisa?
A ligação estava irregular, com quedas ocasionais.
- Meu Deus, Painter, é ótimo ouvir... voz. Eu sei que você está ocupado. Brant mencionou uma crise... pouco mais.
- Não se preocupe. É menos uma crise do que uma oportunidade. — Ele apoiou o quadril na beira da escrivaninha. — Por que você está ligando cedo?
- Alguma coisa está acontecendo aqui. Eu transmiti uma grande quantidade de dados técnicos para pesquisa. Eu queria que alguém aí fizesse a contraprova dos resultados do toxicologista daqui, o dr. Barnhardt.
- Vou me certificar de que isso seja feito. Mas qual é a urgência? — perguntou ele, sentindo a tensão na voz dela.
— A situação aqui talvez seja mais calamitosa do que se julgou a princípio.
- Eu sei. Fui informado sobre as conseqüências da nuvem tóxica que soprou sobre a ilha.
- Não... sim, claro que isso foi horrível... mas as coisas podem estar piorando. Nós isolamos algumas anomalias genéticas estranhas que apareceram em infecções secundárias. Os achados são perturbadores. Achei melhor coordenar com os pesquisadores e os laboratórios da Sigma o mais rápido possível, para manter o ritmo enquanto o dr. Barnhardt conclui seus exames preliminares.
— Monk está ajudando o toxicologista?
Ele ainda está no campo, coletando amostras. Nós precisaremos de tudo o que ele puder nos trazer.
- Vou alertar Jennings aqui na Pesquisa e Desenvolvimento, fazer com que tire a equipe dele da cama. Vou mandar chamá-lo e coordenar tudo aqui do nosso lado.
— Perfeito. Obrigada.
Apesar da decisão, Painter não conseguia fugir à sua própria preocupação. Desde que designara Lisa para aquela missão, estava fazendo todo o possível para equilibrar suas responsabilidades de diretor, para manter o distanciamento profissional necessário, mas não conseguia alcançá-lo, não com Lisa. Ele pigarreou.
— Como você está passando?
Ela deu uma breve e divertida risada, cansada mas familiar.
- Eu estou bem. Mas, depois disso, talvez eu jamais faça outro cruzeiro na vida.
- Eu tentei advertir você. Nunca vale a pena trabalhar como voluntário. Eu queria dar minha contribuição. Fazer diferença — disse ele, imitando-a com a sombra de um sorriso. — Veja o que você arrumou: um passaporte para o Barco do Amor do Inferno.
Ela deu uma gargalhada desanimada, mas sua voz rapidamente baixou para um tom mais sério, hesitante e inseguro.
- Painter, talvez tenha sido um erro... a minha vinda para cá. Eu sei que não sou membro oficial da Sigma. Talvez esteja além da minha capacidade.
- Se eu achasse um erro, eu não a teria designado. Na verdade, eu teria arrumado qualquer desculpa para evitar que você fosse. Mas, como diretor, eu tinha o dever de enviar as pessoas mais qualificadas para supervisionar uma crise médica no interesse da Sigma. Com sua formação médica, seu doutorado em fisiologia, sua experiência em pesquisa de campo... eu enviei a pessoa certa.
Seguiu-se um longo silêncio. Por um momento, Painter pensou que a ligação tivesse caído.
— Obrigada — ela sussurrou afinal.
- Então não me decepcione. Tenho de manter a minha reputação.
Ela voltou a sorrir, e seu divertimento soou mais verdadeiro.
- Você realmente tem de se empenhar para encerrar suas palavras de incentivo.
- Então, o que você me diz disto? Fique segura, tome cuidado e volte para cá o mais rápido possível.
- Não tem nada melhor?
- Então simplesmente terei de me esforçar para conseguir o ouro. — Ele falou com firmeza. — Estou com saudades de você. Eu te amo. Quero você nos meus braços.
Ele de fato estava com saudades dela, e isso provocava uma dor física em seu peito.
— Escute — disse ela. — Com um pouco de prática, você na verdade pode se tornar um excelente orador motivacional.
— Eu sei — respondeu ele. — A mesma conversa funcionou com Monk antes.
Seguiu-se uma risada de verdade, que ajudou a dissipar a preocupação dele no momento. Ela estaria bem. Ele confiava nela. E, além do mais, em lugar de Painter, Monk a manteria em segurança. Isto é, se Monk quisesse dar as caras de novo...
Antes que Painter pudesse falar mais alguma coisa, seu ajudante apareceu à porta e bateu de leve. Painter fez-lhe sinal para que falasse.
— Sinto muito por incomodá-lo, diretor. Mas tenho outro telefonema aguardando na linha. Na sua linha privada. De Roma. Monsenhor Verona. Ele parece bastante ansioso.
A testa de Painter enrugou-se. Ele falou ao telefone.
— Lisa...
— Eu ouvi. Você está ocupado. Assim que eu falar com Monk, nós nos comunicaremos com Jennings sobre a situação aqui. Volte ao trabalho.
— Fique em segurança.
— Eu ficarei — disse ela. — E eu também te amo.
A linha emudeceu.
Painter respirou fundo para se recompor e, em seguida, virou-se para apertar o botão de sua linha privada. Por que monsenhor Verona estava telefonando? Painter sabia que o comandante Pierce estivera envolvido num romance com a sobrinha do monsenhor, mas o relacionamento terminara havia quase um ano.
— Monsenhor Verona, aqui é Painter Crowe.
- Diretor Crowe, obrigado por atender ao meu telefonema. Tentei falar com Gray nas últimas duas horas, mas não tive resposta.
- Sinto muito em saber disso. O senhor tem alguma mensagem que gostaria que eu transmitisse a ele?
Painter não se deu o trabalho de explicar a situação atual. Embora monsenhor Verona tivesse ajudado a Sigma no passado, a questão ali, já codificada como clandestina, estava numa base em que só as pessoas estreitamente envolvidas tinham acesso às informações.
— Houve um incidente aqui no Vaticano... mais precisamente, nos Arquivos Secretos. Não tenho certeza absoluta do seu significado, mas me parece tratar-se de uma mensagem ou advertência. Uma mensagem ou advertência deixada para mim e, talvez, para o comandante Pierce.
Painter levantou-se e contornou a escrivaninha até sua cadeira.
- Que tipo de mensagem?
- Alguém invadiu uma câmara aqui na semana passada e pintou no chão o símbolo da Real Corte do Dragão.
Painter afundou na cadeira, perturbado pela coincidência. Dois anos atrás, Gray e monsenhor Verona haviam se associado para erradicar uma seita brutal da Corte do Dragão. Eles haviam tido êxito — mas não sem ajuda, o que exigiu uma aliança com uma inimiga, uma agente da Guilda.
Seichan.
E agora a assassina estava ali.
Painter não era homem de acreditar facilmente em coincidências. Nem no passado e, sem dúvida, tampouco agora. No mínimo, seus deveres como diretor da Sigma haviam deixado sua paranóia afiada como a lâmina de uma navalha.
- Alguém viu esse invasor? — indagou ele.
- Brevemente. Quem quer que tenha sido, veio sozinho e passou sem ser notado por toda a segurança do Vaticano. Capturamos apenas uma imagem vaga numa câmera de segurança. Não era um ladrão comum. Eu só conheço uma pessoa que poderia ter entrado e saído dessa câmara, deixando não mais do que uma sombra capturada. A mesma pessoa relacionada com o nosso envolvimento conjunto com a Corte do Dragão no passado.
Então parecia que o monsenhor não tinha menos suspeitas do que Painter.
- E o dragão pintado no chão — prosseguiu Vigor — era sem dúvida uma mensagem, talvez até mesmo a lembrança de uma dívida.
- O senhor acredita que foi a agente da Guilda, Seichan — perguntou ele —, aquela que ajudou vocês a derrotar a Corte do Dragão?
- Exatamente. Se pudéssemos encontrá-la, interrogá-la...
Painter sabia que quaisquer outros segredos apenas dificultariam a descoberta da verdadeira ameaça. Aparentemente, o estado da situação em que só as pessoas estreitamente envolvidas deviam ter acesso às informações acabara de se estender a Roma.
- Seichan está aqui — disse ele, interrompendo o monsenhor. — Ela está sob a nossa custódia.
- O quê?
Ele relatou rapidamente a volta da assassina à noite, surgindo de lugar nenhum, ensangüentada e em fuga.
Vigor ficou aturdido por um momento e, em seguida, falou apressadamente.
- Ela tem que ser interrogada. Ainda que seja apenas para se perguntar a ela por que pintou a mensagem no chão.
- Nós faremos isso. Assim que ela for medicada, nós a submeteremos a um interrogatório minucioso. Atrás de grades muito sólidas.
- O senhor não está entendendo. Tem alguma coisa maior acontecendo. Talvez maior do que a própria Guilda.
- O que o senhor quer dizer?
- O símbolo do dragão foi pintado em volta de uma inscrição antiga gravada no piso da câmara do arquivo. Gravada possivelmente na época em que o Vaticano estava começando a ser construído, na época de Galileu. Os símbolos são os caracteres do que, de acordo com as conjecturas de alguns, poderia ser a mais antiga de todas as línguas escritas. Mais antiga do que o proto-hebraico. Uma escrita que pode ser até anterior à humanidade.
Painter percebeu a ansiedade na voz do outro.
— O que o senhor quer dizer com ser anterior à humanidade? Como isso seria possível?
Vigor lhe respondeu.
Painter não demonstrou o choque em sua reação, junto com sua descrença. Ele encerrou o telefonema franzindo profundamente o cenho. A asserção do monsenhor era obviamente impossível, mas, verdadeira ou não, ele entendeu de imediato a angústia daquele telefonema. Eles precisavam interrogar Seichan o mais rápido possível, antes que qualquer outra coisa acontecesse a ela.
Painter confirmou apressadamente o tempo estimado de chegada da equipe médica e, em seguida, seu ajudante o pôs em contato com a guarda postada junto ao abrigo secreto.
Quem estava de guarda ali?
Ele pediu a Brant que entrasse em contato com o pessoal da segurança e lhes mandasse transmitir imagens de vídeo do abrigo secreto para as telas de plasma de seu gabinete.
Enquanto Painter aguardava, as últimas palavras de Vigor ecoaram em seu cérebro.
Aqueles símbolos... gravados na pedra...
Painter sacudiu a cabeça.
Impossível.
...eles são a língua dos anjos.
l:04h
Gray desceu a Greenwich Parkway a toda a velocidade e entrou no exclusivo trecho de Foxhall Village. Chegou ao fim, dobrou à esquerda numa rua arborizada e reduziu a velocidade, deixando o motor em ponto morto do Thunderbird impulsioná-lo para a frente. O abrigo secreto apareceu adiante, uma casa de tijolos vermelhos no estilo Tudor de dois andares, com venezianas verde-escuras, que se harmonizavam com os bosques do Glover-Archibold Park, para o qual ela dava fundos.
Com a capota arriada, ele podia sentir o cheiro da floresta úmida.
Ao se aproximar da casa, notou que a luz da varanda da frente estava acesa, bem como uma lâmpada na janela do canto superior. Era o sinal para seguir em frente.
Ele fez a curva e chocou-se com a entrada de veículos, fazendo sua passageira ferida gemer.
— Onde estamos? — perguntou sua mãe.
Gray freou embaixo de um abrigo para veículos que se projetava do lado esquerdo da casa. Uma porta lateral ficava a alguns passos de distância. Ele tentara repetidamente fazer com que seus pais descessem do carro, porém, a cada hospital ou centro médico por que passavam, eles só ficavam mais obstinados. Ou pelo menos sua mãe. O pai continuava no mesmo nível de inflexibilidade.
— Isto é um abrigo secreto — respondeu ele, vendo pouco motivo para dissimular agora. — Ajuda médica já deve estar a caminho. Por enquanto, permaneçam onde estão.
Gray desligou o motor e saltou.
No outro lado do carro, a porta lateral da casa se abriu. Um homem alto e de feições desconhecidas surgiu na entrada, com uma das mãos pousadas numa arma num coldre preso ao quadril.
— Você é Pierce? — perguntou o homem, de maneira ríspida e breve, olhando os outros passageiros com suspeita.
— Sim.
O homem saiu da entrada, ficando sob a luz. Ele parecia um macaco, com membros grossos e cabelos castanhos cortados bem curtos. Trajava farda de serviço. Não era exatamente discreto.
— Meu nome é Kowalski. Crowe está ao telefone, querendo falar com você. Ergueu a outra mão e estendeu um telefone celular.
Gray se dirigiu à traseira do carro. Ele não ansiava por aquela conversa com o diretor, por explicar seu disfarce malogrado. Não era exatamente um disfarce ter seus pais acompanhando você.
Até mesmo o guarda de serviço ali parecia desconcertado com a presença do casal idoso no conversível aberto. Ele observou atentamente os recém-chegados com as sobrancelhas unidas num nó sobre a testa e coçou o queixo.
— Trezentos e cinqüenta e dois? — perguntou ele quando Gray deu a volta.
Gray não conseguiu entender o que ele queria dizer.
Seu pai respondeu do banco traseiro.
- Não, é um bloco trezentos e noventa, reconstruído com um motor V8 de um Ford Galaxie.
- Um belo carro.
Sem dúvida, o guarda não estivera observando seus pais, apenas o carro.
Seichan agitou-se no banco traseiro, talvez notando de alguma maneira a falta de vento e movimento. Ela se esforçou fracamente para sentar-se.
— Você pode ajudar a levá-la para dentro? — indagou Gray ao guarda.
Ao pegar o fone, ele notou a metade inferior de uma âncora da Marinha americana no bíceps direito do homem. Ex-militar. O que não era de surpreender. Se houvesse uma ilustração embaixo do verbete marinheiro no dicionário, seria a do rosto daquele homem.
Sua mãe abriu a porta do carona.
— Onde está a ajuda médica?
Ela pareceu não confiar muito no guarda corpulento, e até segurou a bolsa com um pouco mais de força ao lado do corpo.
Gray ergueu a palma de uma das mãos, pedindo paciência.
— Minha senhora — disse Kowalski, e apontou para a cozinha. — Há um kit médico em cima da mesa da cozinha. Injeções de morfina e sais aromáticos. Também providenciei um pacote de sutura.
Sua mãe olhou para o homem com uma avaliação mais estudada.
— Obrigada, meu rapaz.
Com uma olhadela mais fulminante na direção de Gray, sua mãe dirigiu-se ao interior da casa.
Saindo do caminho, Gray falou ao telefone.
- Diretor Crowe, aqui é o comandante Pierce.
- Foi a sua mãe que acabou de sair do carro?
Como diabo...?
Gray esquadrinhou o lugar e avistou a câmera oculta sob o abrigo para veículos. Ela devia estar transmitindo ao vivo para o Comando Central. Ele pôde sentir o calor aumentar na altura do colarinho.
— Senhor...
— Não importa. Explique mais tarde. Gray, recebemos informações secretas de Roma, relacionadas com a nossa recém-chegada. Como a prisioneira está passando?
Gray olhou para a traseira do conversível. O guarda e seu pai estavam discutindo a melhor maneira de mover a forma mole de Seichan. Ele notou a mancha de sangue fresco no centro da atadura no abdome dela.
- Ela vai precisar de cuidados imediatos.
- A ajuda deverá estar aí a qualquer instante.
Ouviu-se o ruído dos pneus de um veículo pesado. Gray virou-se. Um grande furgão preto fez uma curva e desceu a rua.
— Acho que eles já estão aqui — disse ele com um suspiro de alívio.
O furgão chegou à casa, moveu-se até o meio-fio e freou junto à entrada de veículos. Gray sentiu uma ponta de mal-estar, detestando ter a passagem bloqueada, mas reconheceu o furgão. Era a equipe de atendimento a emergências médicas da Sigma. A ambulância camuflada era baseada no mesmo design do veículo que acompanhava o presidente, capaz de realizar cirurgias de emergência se necessário.
— Ponha-me a par da situação assim que eles terminarem a avaliação — disse Painter, que também devia ter avistado o furgão.
As portas laterais do furgão se abriram. Três homens e uma mulher, todos usando trajes cirúrgicos e blusões pretos largos combinando, saíram do veículo com habilidade coordenada. Dois homens puxaram uma maca, cujas pernas foram desdobradas embaixo dela. Eles seguiram o terceiro homem e a mulher, que avançaram a passos largos para encontrar-se com Gray. O homem estendeu a mão.
— Dr. Amen Nasser — disse ele.
Gray apertou-lhe a mão, apreciando seu aperto, frio e seco. Calmo e controlado.O médico devia ter no máximo 30 anos e, no entanto, comportava-se com firme autoridade. Sua pele tinha a cor de mogno envernizado, ao contrário da mulher, cuja cor da pele estava mais para o mel morno.
Gray observou-a atentamente.
Embora de ascendência asiática, a mulher claramente procurava minimizar isso. Ela havia cortado os cabelos à escovinha e descolorado os cabelos remanescentes de modo que ficassem louro-claros. Tatuagens entrelaçadas também circundavam-lhe os pulsos num padrão céltico. Embora aquela austeridade jamais tivesse agradado a Gray antes, a mulher possuía algo de estranhamente sedutor. Talvez fossem seus olhos cor de esmeralda, um traço que não precisava de nenhum outro tipo de embelezamento. Por outro lado, talvez fosse a forma com que ela se movia, leonina, musculosa, com equilíbrio. Como grande parte do pessoal da Sigma, ela devia ter tido algum treinamento militar.
A mulher fez um aceno de cabeça para Gray, mas eles não foram apresentados.
— Fui informado da situação — continuou o chefe da equipe, com palavras precisas, sem dúvida nascido no estrangeiro, com um vestígio de sotaque. — Eu gostaria de pedir a todos vocês que se afastassem e nos deixassem trabalhar. Nós vamos transferir a paciente para o compartimento cirúrgico do furgão. Vou enviar Anni com um relatório da situação em breve — disse ele, finalmente se referindo à mulher.
Os outros dois homens passaram correndo com a maca, seguidos pelo médico, ao passo que Anni permaneceu onde estava, apoiada num dos quadris.
O telefone celular na mão de Gray começou a vibrar quando ele se afastou. O chefe da equipe falou rapidamente. Gray afinal reconheceu o seu sotaque.
Dr. Amen Nasser.
Ele era egípcio.
1:08h
Painter estava em pé em frente ao monitor na parede diretamente atrás de sua escrivaninha. As telas de plasma nas outras duas paredes exibiam imagens de vídeo ao vivo do primeiro e segundo andares do abrigo secreto. A imagem do monitor atrás de sua mesa ficou indistinta e distorcida com a alimentação digital da câmera externa.
— Atenda o telefone, Gray! — ele gritou para a tela.
Os controles das câmeras estavam um andar abaixo, na central de segurança principal. Painter não tinha como girar a câmera. Ele vira o furgão médico estacionar no canto da tela, mas só um segundo atrás avistara o homem e a mulher que haviam aparecido diante de Gray.
Nenhum deles trabalhava para a Sigma.
Painter conhecia todo o pessoal.
O furgão poderia ser da Sigma, mas a equipe que o ocupava não era.
Uma armadilha.
Na tela, Gray abriu o telefone celular e ergueu-o até o ouvido.
— Diretor Crowe...?
Antes que Painter pudesse responder, um pé fino deu um chute e esmagou o telefone contra a cabeça de Gray. Com um estalo do celular, Gray caiu no chão, pego desprevenido.
— Gray...
A imagem na tela subitamente oscilou e depois enegreceu.
1:09h
O primeiro tiro destruiu a câmera.
Com a cabeça zumbindo, Gray ouviu a tosse abafada e o som de estilhaços, e girou o corpo.
— Que diabo? — berrou seu pai quando os fragmentos da câmera choveram sobre ele. Ele ainda estava acomodado no banco traseiro com Seichan.
O guarda, Kowalski, estava no outro lado do carro. Ele ficou paralisado como um cervo à luz de faróis, um cervo cinzento de 90 quilos. Porém, a pistola na sua nuca era um forte meio de intimidação contra qualquer movimento.
Os enfermeiros haviam empurrado a maca para o pátio lateral. Um apontava uma arma para Kowalski, o outro acenava para que o pai de Gray saísse do carro.
— Fique onde está — uma voz áspera advertiu atrás dele.
Gray olhou para trás. A mulher, Anni, segurava uma Sig Sauer preta na altura de seu rosto, em pé, fora do alcance de uma pernada, mas perto o suficiente para não errar um tiro na cabeça.
Reconhecendo isso, Gray olhou para o Thunderbird.
O dr. Nasser empunhava uma pistola idêntica.
De algum modo, Gray sabia que era a arma que havia acertado Seichan.
Nasser deu a volta para o lado em que o pai de Gray estava. Ele esquadrinhou o lugar onde Seichan estava esparramada, sacudiu a cabeça pesarosamente e em seguida apontou para o pistoleiro naquele lado.
— Tire o velho do carro. Veja se essa cadela tem o obelisco e depois a leve para o furgão.
Obelisco?
Gray observou seu pai sendo tirado à força do banco traseiro. Rezou para que o pai não agravasse a situação. Mas suas orações revelaram-se desnecessárias. Claramente atônito, seu pai não ofereceu resistência.
— Não está com ela — disse afinal o homem no banco traseiro, aprumando-se.
Nasser foi até o carro e revistou o interior, mas não encontrou o que procurava. O único sinal de consternação pela não-descoberta foi uma única ruga entre os olhos.
Ele afastou-se do carro e encarou Gray.
— Onde ele está?
Gray olhou fixamente para o homem.
— Onde está o quê?
Ele suspirou.
— Sem dúvida, ela lhe contou, ou você não estaria fazendo tamanho esforço por causa de uma inimiga.
Sem se virar, ele fez um sinal para o homem que havia revistado Seichan, o qual pressionou a pistola contra a testa de seu pai.
— Eu não faço perguntas uma segunda vez. Você provavelmente não sabe disso. Portanto, vou lhe dar este momento de tolerância.
Gray engoliu em seco, notando o medo aflitivo nos olhos do pai.
— O obelisco que você mencionou — disse Gray — estava com ela, mas se quebrou quando a moto dela se chocou contra a casa. Ela ficou inconsciente antes que pudesse dizer qualquer coisa a respeito dele. Pelo que sei, ele ainda está lá.
E bem poderia ser.
Ele se esquecera disso na pressa de cuidar de Seichan.
Onde ele tinha ido parar?
O homem mantinha os olhos fixos em Gray. Ele observou-o atentamente com um olhar astuto e firme.
— Acho que você está realmente me dizendo a verdade, comandante Pierce.
Mesmo assim, o egípcio fez um sinal para seu pistoleiro.
O disparo foi ensurdecedor.
1:10h
Um minuto atrás, Painter notara movimento no lado esquerdo da tela de plasma. As câmeras de vídeo no interior do abrigo secreto ainda estavam funcionando. Ele avistou a sra. Harriet Pierce agachada atrás da mesa da cozinha.
Os agressores pareciam não saber que ela estava escondida lá dentro.
Ninguém, a não ser Gray, sabia que ele estava vindo ao abrigo secreto com dois passageiros extras. O furgão chegara depois que a mãe de Gray havia entrado. Imobilizado o único guarda estacionado na casa, eles presumiram que a questão estivesse encerrada.
Painter sabia que aquela era sua única vantagem.
Ele exigiu que fosse dado um alarme silencioso na casa e que uma linha fosse aberta. Observou a luz âmbar ao lado do telefone da casa piscar repetidas vezes.
Veja a lâmpada piscando, disse-lhe ele com a força do pensamento.
Quer pela luz de alarme, quer pelo simples instinto de pedir ajuda, Harriet engatinhou até o telefone da cozinha, estendeu a mão para cima e puxou o fone até o ouvido.
— Não fale — disse ele rapidamente. — Aqui é Painter Crowe. Não os deixe saber que a senhora está na casa. Eu posso vê-la. Acene com a cabeça se a senhora entender.
Ela acenou com a cabeça.
— Muito bem. Mandei ajuda para aí, mas não sei se chegará a tempo. Os agressores também devem saber disso. Eles serão cruéis e rápidos. Preciso que a senhora seja mais cruel. A senhora pode fazer isso?
Ela respondeu com um aceno afirmativo de cabeça.
— Ótimo. Deve haver uma pistola na gaveta abaixo do telephone.
1:11h
O disparo foi ensurdecedor.
Ensurdecedor.
Não com um silenciador como antes.
Gray soube da verdade numa fração de segundo antes de o pistoleiro que apontava a arma para a cabeça de seu pai tombar para o lado, com a metade do crânio espalhando-se contra o pára-lama dianteiro do Thunderbird.
Ele conhecia a atiradora.
Sua mãe.
Ela era natural do Texas, criada por um engenheiro petrolífero que trabalhava nas mesmas jazidas que o pai de Gray. Embora sua mãe fosse favorável ao controle de armas de fogo, não ficava nervosa diante delas.
Gray havia não só receado, mas também esperado alguma distração causada por ela. Ele se mantivera pronto para isso, com as pernas firmes. Antes mesmo de o corpo do pistoleiro atingir o chão, Gray deu um pulo para trás. Ele estivera observando a forma da mulher asiática no cromo polido do pára-choque traseiro.
O disparo alto e o repentino salto para trás pegaram-na de surpresa. Gray ergueu o braço direito e agarrou-lhe o braço que segurava a Sig Sauer. Quando a atingiu, ele esmagou o pé dela com a bota e projetou a cabeça para trás.
Ele ouviu alguma coisa ranger embaixo e atrás.
À frente, Kowalski já dera uma cotovelada no homem que o mantinha sob a mira da pistola; ele agarrou-o pela nuca e bateu com força o rosto dele na extremidade da porta do conversível.
— Coma aço, seu bundão.
O homem caiu como um saco de carvão.
Sem se deter, Gray segurou o punho de Anni e girou o braço dela na direção do dr. Nasser. Ele pressionou o dedo da mulher contra o gatilho, mas ela lutou. Comprometida, a mira de Gray não foi certeira. Seu tiro atingiu a parede de tijolos com uma centelha ressoante.
Ele, no entanto, teve êxito suficiente. O dr. Nasser desviou-se para a direita, mergulhando nos arbustos em frente à casa, e desapareceu.
Gray arrancou a pistola da mão de Anni e chutou a mulher para trás, para longe dele. Ela tropeçou, mas manteve o equilíbrio. Com o nariz sangrando, girou e fugiu na direção do furgão, saltando como uma gazela, ignorando o pé esmagado.
Estava indo buscar mais armas.
Gray não queria um bis de Anni Get Your Gun.
Ele ergueu a pistola na direção dela, porém, antes que pudesse abrir fogo, uma bala passou chiando pela ponta de seu nariz, vinda dos arbustos.
Nasser.
Sobressaltado, Gray tropeçou para trás, indo refugiar-se embaixo do abrigo para veículos. Ele disparou às cegas contra os arbustos, sem saber onde o filho-da-puta estava escondido. Ele moveu-se rapidamente para trás, até suas panturrilhas se chocarem contra o pára-choque traseiro do Thunderbird, e abriu fogo mais duas vezes na direção do furgão médico.
Mas a asiática Anni havia desaparecido no interior do veículo.
Seus tiros ricochetearam no furgão. Como o furgão médico do presidente, aquele também era blindado.
Gray gritou:
— Todos para dentro do carro! Agora!
Sua mãe apareceu à porta da cozinha, segurando uma pistola fumegante. Tinha a bolsa sobre o outro braço, como se estivesse indo fazer compras.
— Vamos, Harriet — disse o pai de Gray, estendendo a mão e puxando-a na direção da porta do carona.
Kowalski pulou de ponta-cabeça no banco traseiro. Gray receou que o corpanzil dele pudesse dar cabo de Seichan mais rápido do que qualquer coisa que Nasser planejara.
Gray saltou para o assento dianteiro e caiu com força. Girou a chave, ainda na ignição, e o motor quente rugiu.
A porta do carona fechou-se com um estrondo, e seus pais comprimiram-se no assento.
Gray deu uma olhadela no espelho retrovisor.
Anni estava em pé apoiada na porta do furgão e equilibrava um lança-foguetes no ombro.
Gray engrenou a marcha e pisou fundo no acelerador. Trezentos cavalos-vapor queimaram os pneus traseiros, fazendo a borracha fumegar e guinchar.
Seu pai gemeu no assento ao lado, e Gray suspeitou de que fosse mais pelo desgaste dos pneus novos e lustrosos do que pela sua própria segurança.
Os pneus finalmente aderiram ao solo, e o Thunderbird arremessou-se para a frente, espatifando o portão de madeira do quintal. Assim que transpôs o portão, Gray deu uma brusca guinada no volante para evitar chocar-se contra um enorme carvalho centenário. Os pneus cavaram uma vala em semicírculo no gramado dos fundos e em seguida transportaram-nos a toda a velocidade quintal adentro.
Atrás deles, um assobio sonoro foi seguido por uma explosão flamejante.
O foguete atingiu o grande carvalho, transformando-o numa ruína de galhos e cascas em chamas. Resíduos chamejantes voaram para o alto, acompanhados por rolos de fumaça.
Sem olhar para trás, Gray pisou fundo no acelerador.
O Thunderbird destruiu a cerca de trás e entrou em grande velocidade nos bosques do Glover-Archibold Park.
Mas Gray tinha uma certeza.
A perseguição estava apenas começando.
CAPÍTULO 4
Pirataria em alto-mar
5 de julho, 12:11h
Ilha Christmas
Sungão e botas.
Isso era tudo o que se interpunha entre Monk e um mar de caranguejos canibais. O frenesi por comida continuava através da selva, lutando, estalando, retalhando. Parecia o crepitar de um incêndio florestal.
Seminu, com seu biotraje na mão, Monk voltou para junto do dr. Richard Graff. O pesquisador marinho estava agachado na beira da selva. Ele também despira o biotraje, conforme Monk o instruíra, e estremeceu quando puxou o tecido de plástico do ombro ferido. Pelo menos, o pesquisador marinho estava mais bem-vestido: ele usava short e uma camisa havaiana.
O nariz de Monk enrugou-se quando se aproximou dele. De sob o dossel mais denso da selva, o ar queimava, e o mau cheiro dos animais mortos abaixo era como um golpe no rosto com um salmão em putrefação.
— É hora de cairmos fora — disse Monk com uma careta.
Um grito ecoou do túnel que conduzia à praia tóxica. Os piratas estavam se aproximando com mais cuidado, com prudência. Parado ali, Graff jogava fragmentos de calcário túnel abaixo. Além do mais, seus perseguidores não sabiam que a pistola de Monk só tinha uma bala. Mas o medo e as pedras jogadas só rechaçariam os piratas por pouco tempo.
Pela centésima vez Monk se admirou da estranha persistência de seus agressores. A fome e o desespero certamente levavam as pessoas a fazer coisas estúpidas. Porém, se os piratas queriam fazer um ataque de surpresa e roubar o Zodiac, apoderar-se dos suprimentos e do equipamento deles para vendê-los no mercado negro indonésio, agora nada os detinha. A maioria dos piratas da região, por mais brutais e desumanos que fossem, agia tomando a presa de assalto e roubando-a.
Então, qual o motivo daquela persistência? Apenas silenciá-los, a fim de encobrir as suas pistas? Ou se tratava de algo mais pessoal? Monk imaginou o homem mascarado caindo na água, atingido por um de seus tiros disparados a esmo. Ou seria vingança?
Qualquer que fosse o motivo, o grupo de agressores não estava interessado apenas no espólio: eles queriam sangue.
Graff sufocou no ar abrasador quando se aprumou.
- Aonde estamos indo?
- Voltando para visitar os nossos amigos.
Monk conduziu Graff até a beira da selva. À alguns passos de distância, o mar vermelho de caranguejos matraqueava e trepidava. Mais precisamente, o número deles havia aumentado nos últimos minutos, talvez atraídos pelas vozes dos dois homens ou pelo sangue fresco que escorria do ombro de Graff.
O pesquisador marinho empacou à margem da clareira.
— Não dá para passarmos no meio desses caranguejos. Essas pinças gigantes podem rasgar couro. Eu já as vi arrancar dedos.
E eles eram rápidos.
Monk recuou quando dois caranguejos, entrelaçados num combate mortal, passaram precipitadamente por eles, as patas afiadas indistintas, tão rápidas quanto qualquer lebre.
— Não me parece que temos muita escolha — disse Monk.
— E tem algo de errado com esses caranguejos — prosseguiu o pesquisador. - Eu testemunhei algumas das agressões deles durante as migrações, mas nada desse tipo.
— O senhor pode psicanalisá-los mais tarde. — Monk apontou para uma árvore alta nas proximidades, uma castanheira-taitiana. A sempre-viva estava coberta com muitos galhos baixos. — O senhor pode subir naquela árvore?
Graff apertou o braço ferido contra a barriga, tentando não o mexer muito.
— Vou precisar de ajuda. Mas por quê? Ela não vai nos ocultar dos piratas. Seremos um alvo fácil.
— Simplesmente suba.
Monk levou-o até a árvore e o ajudou a escalar os primeiros galhos, que eram grossos e fáceis de agarrar. Mesmo por sua conta, Graff arranjou-se bem, subindo mais alto.
Monk pulou, caindo perto de um caranguejo, que ergueu ambas as pinças em ameaça. "Sem essa de sair mais cedo da festa, meu chapa." Monk chutou-o de volta para as hordas de seus confrades e em seguida gritou para Graff:
— O senhor está vendo a abertura do túnel?
— Eu acho... sim, eu a estou vendo. — Graff mudou de posição na árvore. — Você não vai me abandonar aqui em cima, vai?
- Assobie quando vir os piratas.
- O que você está...?
Apenas faça isso, pelo amor de Deus!
Monk se arrependeu da rispidez de seu tom de voz. Ele tinha de lembrar a si mesmo de que o homem não era militar. Mas a mente de Monk estava repleta de preocupações. Ele imaginou a esposa e a filhinha. Estava firmemente decidido a não perder a vida para um punhado de bandidos ou para uma floresta cheia de aperitivos de restaurantes de frutos do mar.
Foi até a clareira da floresta e se aproximou da beira da horda que se agitava e estalava. Ergueu a pistola numa das mãos e equilibrou-a com a mão artificial. Inclinou a cabeça e respirou pelo nariz.
"Vamos, vejamos o que vocês vão ganhar..."
Ele ouviu um barulho vindo da nogueira atrás dele. Parecia o som de ar vazando de um balão quase esvaziado.
— Eles estão chegando! — ouviu o homem sussurrar, a tensão claramente sugando o vento de seu assobio.
Monk mirou através da clareira. Ele tinha uma bala, um tiro.
No outro lado da clareira na floresta, dois tanques de ar estavam encostados ao pé de uma rocha. Antes, quando eles estavam tirando seus trajes, Monk mandou Graff passar-lhe o tanque de ar de seu biotraje. Os cilindros portáteis de ar eram leves, feitos de uma liga de alumínio. Usando o coldre de tornozelo de sua pistola, Monk havia amarrado rapidamente o tanque do doutor ao seu próprio tanque e, num arremesso furtivo, jogou o pacote no outro lado da clareira na selva. Os tanques haviam caído com um estrondo no meio dos caranguejos, esmagando dois e fazendo seus vizinhos saírem correndo.
Monk então apontou para os tanques, firmando sua mira com carne e prótese.
— Eles estão aqui! — Graff disse baixinho.
Monk apertou o gatilho.
A explosão congelou a imagem em sua mente por uma fração de segundo; depois um dos tanques pressurizados emitiu o brilho súbito e breve de uma chama. Os tanques amarrados rodopiaram e retiniram, assobiando e pulando. Em seguida, o bocal do segundo tanque quebrou-se, e a dança ficou mais frenética, Com os tanques chocando-se contra os caranguejos, movendo-se rapidamente e quicando.
Era o suficiente.
No passado, Monk havia caminhado por praias cobertas de caranguejos que, assim que uma ave marinha ou um estranho aparecia, sumiam num piscar de olhos, mergulhando de novo em suas tocas de areia. E o mesmo aconteceu ali. Os caranguejos mais próximos da confusão bateram em retirada, passando por cima de seus vizinhos, o que os levou ao pânico. Logo um pequeno fluxo se transformou numa debandada. Os caranguejos, já irritados, fugiram por instinto.
A maré de caranguejos virou-se na direção de Monk, transformando-se literalmente numa onda de pinças que se avolumava e se agitava, passando uns por cima dos outros para escaparem.
Ele correu de volta para a nogueira, com pinças fechando-se com um estalo próximo aos seus calcanhares.
Deu um pulo e subiu às pressas nos galhos. Um caranguejo agarrou-se à sua bota. Ele bateu a carapaça contra o tronco da nogueira, e o caranguejo caiu. A pinça ainda estava presa com força em sua bota. Ele sentiu a ponta afiada cortando seu tornozelo.
Maldição.
Abaixo, a maré de caranguejos passou rapidamente, obedecendo a algum instinto, talvez relacionado com os seus padrões de migração anual. Eles fugiram em direção ao mar.
Monk subiu até juntar-se a Graff. Um dos braços do pesquisador estava enganchado em volta do tronco da árvore. Ele olhou para Monk e então se voltou na direção do fragmento de rocha exposta próximo à boca do túnel marinho.
Os piratas, seis deles, estavam fora do túnel, um pouco dispersos, mas haviam se abaixado por causa do tiro de pistola. Só agora estavam se levantando, inseguros.
Então, o turbulento mar de caranguejos irrompeu da selva.
Monk atingiu o homem mais próximo à orla da selva. Antes que ele pudesse reagir, compreender o que estava vendo, os caranguejos subiram pelas suas pernas até a altura das coxas. Ele de repente gritou, tropeçando para trás. Em seguida, uma perna cedeu embaixo dele.
Durante um combate, o tendão de Aquiles de um colega de Monk dos Boinas Verdes havia sido cortado por uma bala. Ele caíra da mesma forma arqueada que o pirata.
O homem caiu sobre um dos braços, gritando.
Foi coberto pelos caranguejos, que se arrastavam sobre seu corpo a se contorcer. Mas seus gritos continuaram, enterrados sob a massa. Por um momento, ele voltou a agitar-se. Sua máscara havia sido arrancada, junto com o nariz, lábios e orelhas. Seus olhos eram ruínas ensangüentadas. Ele gritou pela última vez e caiu para trás sob a maré.
Os outros piratas fugiram de volta para o túnel, num pânico horrorizado, sumindo de vista. Um homem foi interceptado a caminho do túnel, encurralado num espigão de rocha que se projetava do penhasco marinho. Os caranguejos avançaram como uma onda na direção dele.
Com um último grito, ele se virou e saltou do penhasco.
Mais gritos ecoaram do túnel.
Como água escoando por um bueiro, o mar de caranguejos turbilhonava na boca do túnel, descendo em espiral numa maré vermelha de pinças afiadas.
Monk deu com Graff ofegando pesadamente ao lado dele, sem piscar os olhos.
Ele estendeu a mão e tocou o homem, que se retraiu.
— Nós temos de ir. Antes que os caranguejos resolvam voltar para a floresta. Graff deixou-se conduzir até o chão da floresta. Ainda havia centenas de caranguejos ali; eles moveram-se com cautela no meio deles.
Monk quebrou um galho frondoso da nogueira, e afastava qualquer caranguejo que chegasse muito perto.
Lentamente, Graff pareceu voltar a si, a se reacomodar em sua própria pele.
- Eu... eu quero um desses caranguejos.
- Teremos caranguejo para o almoço quando voltarmos para o navio.
- Não, para estudo. De algum modo eles sobreviveram à nuvem tóxica. Isso poderia ser importante — disse o pesquisador com a voz firme, em seu elemento.
- Está bem — disse Monk. — Levando em consideração o fato de que deixamos todas as nossas amostras para trás, não deveríamos regressar ao navio de mãos abanando.
Ele estendeu o braço para baixo e com a mão artificial pegou um dos caranguejos menores, segurando-o pela parte posterior da carcaça. O crustáceo, irritado, moveu abruptamente as pinças para trás, na direção dele, esforçando-se para atingi-lo.
— Ei, nada de estragar a mercadoria, meu chapa. Dedos novos saem do meu salário.
Monk foi até uma árvore a fim de esmagá-lo contra o tronco, mas Graff acenou com o braço bom.
— Não! Precisamos dele vivo. Como eu disse antes, tem algo de estranho no comportamento deles. Isso também deve ser examinado.
A mandíbula de Monk contraiu-se de irritação.
— Ótimo, mas se este projeto de sushi arrancar um pedaço de mim, o senhor vai pagar por isso.
Eles continuaram pelo platô da floresta, caminhando pela ilha.
Depois de quarenta minutos de caminhada, a floresta foi ficando rala, e uma vista panorâmica se descortinou do alto do penhasco. O principal povoado da ilha — The Settlement — estendia-se ao longo da praia e do porto. No mar circundante, além de Flying Fish Cove, flutuava o castelo branco que era o Mistress of the Seas, uma nuvem num céu azul-escuro.
Lar, doce lar.
Um movimento atraiu os olhos de Monk para um grupo de barcos menores, uma dúzia, contornando Rocky Point, cada um deixando atrás de si uma esteira branca. O grupo viajava num amplo V, como numa formação de ataque de aviões de caça.
Um grupo idêntico apareceu no outro lado do porto do povoado.
Mesmo dali, Monk reconheceu a forma e a cor das embarcações.
Lanchas azuis, com carena longa e calado raso.
— Mais piratas... — lamentou-se Graff.
Monk olhou para os dois grupos convergentes, duas tenazes, ainda mais mortais do que as de qualquer caranguejo-vermelho. Ficou boquiaberto diante do que estava encurralado entre eles.
O Mistress of the Seas.
13:05h
Lisa olhou atentamente para a radiografia.
A caixa de luz portátil havia sido montada numa mesa na cabine. Atrás dela, um paciente estava deitado esparramado na cama, com um lençol cobrindo todo o seu corpo.
Morto.
— Parece tuberculose — disse ela. As radiografias dos pulmões do homem estavam repletas de áreas espumosas com grandes massas brancas ou tubérculos. — Ou talvez câncer de pulmão.
O dr. Henrick Barnhardt, o toxicologista holandês, estava em pé ao lado dela, com um dos punhos apoiado na mesa. Ele a chamara ali.
— Ja, mas a esposa do paciente disse que ele não tinha nenhum sinal de insuficiência respiratória até 18 horas atrás. Nem tosse, nem expectoração, e não fumava. E tinha apenas 24 anos de idade.
Lisa empertigou-se. Eles estavam sozinhos na cabine.
- E o senhor fez uma cultura dos pulmões?
- Eu usei uma agulha para aspirar um pouco do líquido de uma das massas pulmonares. O conteúdo era claramente purulento. Caseoso e com bactérias. Era, sem dúvida, um abscesso pulmonar, e não câncer.
Ela examinou o rosto barbado de Barnhardt. Ele estava em pé um pouco encurvado, como se o seu tamanho descomunal de algum modo o deixasse constrangido; mas isso também lhe dava uma postura conspiratória. Ele não convidara o dr. Lindholm para participar daquelas discussões.
— Esses achados são compatíveis com tuberculose — afirmou ela.
A tuberculose era causada por uma bactéria, Mycobacterium tuberculosis, um germe altamente contagioso. E, embora a história clínica daquele caso fosse sem dúvida incomum, a tuberculose poderia ter permanecido latente por anos, desenvolvendo-se lentamente. O homem poderia ter sido exposto há anos, ter-se transformado numa bomba-relógio; depois, sua exposição ao gás tóxico poderia ter estressado seus pulmões o suficiente para fazer com que a doença se disseminasse. No fim, o paciente se tornara inequivocamente contagioso.
E nem ela nem o dr. Barnhardt estavam usando trajes anticontaminação.
Por que ele não a avisara?
- Não era tuberculose — respondeu ele. — O dr. Miller, o especialista em doenças infectocontagiosas da nossa equipe, identificou o organismo como Serratia marcescens, uma cepa de bactérias não-patogênicas.
Lisa lembrou-se de sua discussão mais cedo, relacionada com o paciente com bactérias normais da pele que estavam produzindo em massa venenos que devoravam a carne.
O toxicologista confirmou a comparação.
- Mais uma vez, temos uma bactéria benigna não-oportunista tornando-se virulenta.
- Mas, dr. Barnhardt, o que o senhor está insinuando...
- Me chame de Henri. E não estou apenas insinuando. Passei as últimas horas procurando casos semelhantes, e encontrei mais dois. Uma mulher com uma di-knteria devastadora, que fez com que o seu revestimento intestinal literalmente se desprendesse, causada por Lactobacillus acidophilus, uma bactéria do iogurte que normalmente é um organismo da flora intestinal saudável. E uma menina com convulsões violentas, cuja punção lombar está fervilhando com Acetobacter aceti, um organismo benigno encontrado no vinagre. Ele está literalmente fazendo uma geléia do cérebro dela.
Enquanto ouvia, Lisa percebeu que sua visão estava se estreitando, concentrando-se na implicação daquilo.
— E esses não podem ser os únicos casos — disse Henri.
Ela sacudiu a cabeça, não discordando, apenas com a certeza crescente e aterradora das palavras dele.
- Então não resta dúvida de que alguma coisa está voltando essas bactérias benignas contra nós.
- Transformando amigo em inimigo. E, se isso se transformar numa guerra total, estaremos numa imensa desvantagem numérica.
Ela ergueu o olhar para ele.
- O corpo humano é composto de cem trilhões de células, mas apenas dez trilhões são nossos. Os 90% restantes são bactérias e alguns outros organismos oportunistas. Nós vivemos cooperativamente com esse ambiente estranho. Mas, e se esse equilíbrio se rompesse, se ele se voltasse contra nós...?
- Precisamos deter isso.
— Foi por isso que eu a chamei aqui. Para convencê-la. Se quisermos progredir, o dr. Miller e eu precisaremos ter acesso ao laboratório forense do seu colega. Temos que começar a responder a perguntas críticas. O que ocorreu nessas bactérias foi uma alteração tóxica ou química? Caso tenha sido uma alteração tóxica ou química, como vamos tratá-la? E se for algo contagioso? Como podemos isolá-lo ou colocá-lo de quarentena para nos protegermos dele? — Ele fez uma careta através da barba. — Precisamos de respostas. E agora.
Lisa consultou o relógio. Monk já estava uma hora atrasado. Ou ele estava absorto em seu trabalho ou estava apreciando a beleza e as praias da ilha. Mas agora não era hora para excursões por lá.
Ela fez um aceno de cabeça para Henri.
— Vou solicitar a alguém para mandar uma mensagem pelo rádio para o dr. Kokkalis pedindo-lhe que volte o mais rápido possível. Mas, enquanto isso, você tem razão. Vamos começar.
Ela saiu da cabine na frente. O laboratório forense de Monk ficava perto do topo do navio, cinco conveses acima. A Sigma solicitara uma das maiores cabines para acomodar o equipamento dele. Alguns tripulantes haviam até desmontado camas e móveis a fim de abrir espaço para o laboratório improvisado. A suíte também tinha uma ampla sacada debruçada sobre o lado de estibordo. Lisa desejava estar lá agora, pois precisava da luz do sol, de uma brisa fresca em seu rosto, de alguma coisa que afugentasse o medo crescente.
Enquanto se encaminhava para o elevador do navio, ela sabia que teria de telefonar de novo para Painter. Não poderia assumir aquela responsabilidade sozinha. Precisava de todo o apoio da equipe do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Sigma.
Além disso, queria ouvir a voz dele outra vez.
Apertou o botão para chamar o elevador.
Como se o botão estivesse ligado a um detonador, uma explosão alta ecoou do outro lado do navio, vinda da área de atracação das chalupas que transportavam pessoas entre a praia e o navio.
Teria sido um acidente?
— O que foi isso? — indagou Henri.
Uma segunda explosão, mais alta, sacudiu ruidosamente a parte do navio em que eles estavam, em algum lugar próximo à proa. Gritos distantes ecoaram. Então Lisa ouviu um som familiar, o zunido cerrado e violento de tiros disparados por armas automáticas.
— Nós estamos sendo atacados — respondeu ela.
13:45h
Monk fez o Land Rover enferrujado quicar pela ladeira íngreme abaixo. Fizera uma ligação direta no velho caminhão num estacionamento próximo à mina de fosfato da ilha, abandonada durante a evacuação. Eles seguiam a grande velocidade ao longo de uma trilha de terra que ia dos fundos da mina até o povoado litorâneo.
O dr. Richard Graff estava afivelado no assento ao lado dele, com um dos braços erguido até o teto para ajudá-lo a manter-se no lugar.
— Vá mais devagar.
Monk ignorou-o. Eles precisavam chegar à costa.
Os dois haviam arrombado uma das oficinas da mina e tentado telefonar, mas o aparelho estava mudo. A ilha estava quase vazia àquela altura. Pelo menos, eles conseguiram encontrar um estojo de primeiros socorros no barracão. Graff espalhou pomada antibiótica no ombro e enfaixou-o com gaze.
O pesquisador havia cuidado de si mesmo enquanto Monk fazia a ligação direta no caminhão. Graff ainda apertava o estojo de primeiros socorros contra a barriga com o braço ferido. Esvaziado, ele daria uma excelente caixa para guardar o espécime de caranguejo.
Uma curva da estrada na selva obrigou Monk a reduzir a marcha. Mesmo assim, ele fez a curva em alta velocidade, com o caminhão equilibrado em duas rodas alguns centímetros acima do solo. Voltaram a tocar o solo com um baque e foram empurrados para a frente em seus cintos de segurança.
Graff falou ofegante:
— Você não vai fazer bem a ninguém se enterrar a dianteira do caminhão na selva.
Monk reduziu a velocidade, não por causa das palavras de cautela de Graff, mas porque a estrada terminava num cruzamento pavimentado. Eles haviam chegado a uma parte remota da rodovia litorânea da ilha, uma estreita estrada de duas pistas. A trilha de terra terminava bem ao sul de Flying Fish Cove. Ao norte, erguia-se a parte principal do povoado, uma mistura de hotéis à beira-mar, restaurantes chineses, bares decadentes e armadilhas para turistas.
Mas a atenção de Monk continuava concentrada nas águas, além de Flying Fish Cove. O Mistress of the Seas estava cercado por barcos em chamas, por iates destruídos pelas explosões e pelos destroços do pequeno navio da Guarda Costeira australiana. Fumaça se erguia alto no céu do início da tarde. Como tubarões nadando em círculos, uma grande quantidade de lanchas azuis deslizava em alta velocidade e rugia nas águas.
Um único helicóptero amarelo e vermelho, um Eurocopter Astar, voava ao redor da enseada, um zangão irritado agitando a fumaça. Pelos clarões dos tiros cuspidos pela boca das armas de fogo do lado de fora de sua porta aberta, não era nenhum amigo.
Monk tinha tido vislumbres do ataque marítimo enquanto descia velozmente as estradas em ziguezague nas montanhas: explosões, clarões dos disparos, erupções devastadoras de resíduos flamejantes. As explosões haviam ecoado até o caminhão em que estavam como o som de fogos de artifício distantes.
Bum... bum... bum...
Mais ao norte, uma explosão retumbante vomitou uma massa de fumaça e chamas, vinda do povoado. Uma explosão próxima o bastante para chacoalhar as janelas do Land Rover.
— Subestação da Tesltra — disse Graff. — Eles estão cortando todos os meios de comunicação.
Outras áreas de The Settlement já ardiam em chamas.
Aqueles não eram piratas comuns. Era um ataque total.
Quem diabo eram eles?
Monk voltou a engrenar a marcha do caminhão e afastou-se do povoado, seguindo pela estrada litorânea.
— Aonde você está...? — Graff começou a perguntar.
Monk fez uma curva. Um pequeno hotel à beira-mar, isolado dentro de alguns acres cultivados de floresta tropical, apareceu adiante. Ele fez uma curva brusca na altura de uma placa com a inscrição THE MANGO LODGE AND GRILLE e desceu a toda a velocidade pela estrada de acesso. O hotel surgiu à vista, um edifício de dois andares que se dissolvia em alguns bangalôs independentes na selva. Uma piscina cintilou.
O lugar parecia deserto.
— O senhor estará seguro aqui — disse Monk quando freou, parando ao lado do hotel sob a folhagem protetora da árvore que dava nome à hospedaria, uma mangueira.
Monk saltou do carro.
— Espere!
Graff lutou com sua porta, até finalmente abri-la, quase caindo do Land Rover, e foi atrás de Monk.
Monk não diminuiu o passo. Ele quase correu na direção da praia. Como todos os hotéis do litoral, o Mango Lodge and Grille oferecia todas as atividades que um vagabundo de praia poderia querer: mergulho com snorkel, aluguel de caiaques, iatismo. Nos fundos do estabelecimento, Monk avistou o centro de atividades do hotel, um pequeno anexo de blocos de concreto de cinzas com teto de sapê. Estava vedado com tábuas por causa da evacuação.
Sem se deter, Monk pegou um tubo usado para limpar a piscina. Num instante, ele estava soltando as tábuas com o tubo e quebrando a porta de vidro.
Graff não ficou para trás.
Monk estendeu uma das mãos e puxou o pesquisador para dentro, tirando-o da exposição ao sol. O helicóptero passou rugindo acima, em baixa altitude, e o distúrbio no ar causado pelo rotor agitou a copa das palmeiras. Em seguida, ele se afastou rapidamente, continuando sua patrulha do litoral.
— Fique fora de vista! — advertiu Monk.
Graff concordou com um vigoroso aceno de cabeça.
Monk foi até a frente do centro de atividades, abarrotada de toalhas de praia, óculos escuros, bronzeadores e uma grande quantidade de suvenires. O lugar cheirava a coco e pés úmidos. Monk circundou o balcão e passou pelo vão de uma porta com uma cortina de contas que produziam um ruído semelhante ao de guizos.
Encontrou o que estava procurando.
O equipamento de mergulho estava pendurado na parede dos fundos.
Monk tirou as botas.
No lado do recinto que dava para a praia, havia uma variedade de embarcações para lazer ao sol, enfileiradas diante de uma porta de enrolar. Monk passou pelos pedalinhos, por dois caiaques, e parou em frente ao único jet ski. Ele estava apoiado num reboque com rodas, pronto para ser arrastado facilmente para dentro e para fora da água.
Pelo menos o mar naquele lado da ilha estava livre da sopa tóxica.
Monk virou-se para Graff.
— Vou precisar da sua ajuda.
Dezoito minutos mais tarde, Monk esfregou o cotovelo no postigo manchado de graxa na porta de enrolar. Seu traje úmido guinchou contra o vidro. Esticando o pescoço, ele esperou o helicóptero completar a volta acima e regressar para o norte, rumo a Flying Fish Cove. A enseada estava fora da visão direta, oculta pelo Smith Point. Tudo o que Monk conseguia distinguir da zona de guerra era a cortina de fumaça escura que se erguia acima da crista das montanhas.
Por fim, o helicóptero virou-se e voltou na direção do navio de cruzeiro.
— Tudo bem, lá vamos nós!
Monk curvou-se e puxou a porta para cima, encaixando-a com um estalo no lugar. Atrás dele, Graff ergueu o engate do reboque, e Monk deu a volta até a frente. Ele segurou a traseira do jet ski, e juntos arrastaram o reboque até a água. Os grandes pneus de borracha para areia facilitaram o trabalho deles.
Graff soltou a embarcação do reboque enquanto Monk corria de volta para buscar seu colete equilibrador e seus tanques de ar. Assim que se equipou, vestiu um blusão esportivo, um dos suvenires do Mango Lodge, por cima de todo o seu equipamento.
Sobrecarregado de peso, Monk voltou com dificuldade para a água e ajudou a soltar o jet ski do reboque.
— Fique escondido — ele instruiu Graff. — Mas se o senhor conseguir encontrar algum meio de comunicação, um rádio ou qualquer coisa, tente alertar as autoridades.
Graff fez um aceno positivo de cabeça.
— Tenha cuidado.
Em um minuto, Monk estava acelerando o motor até ele zumbir alto e disparando rumo a Smith Point. Atrás dele, Graff voltou correndo com o reboque vazio para a garagem.
Monk curvou-se ainda mais no assento e pôs a embarcação para funcionar a toda a velocidade. Voando mais rápido, o blusão estalava ao vento. Água do mar e sal espalhavam-se em borrifos. Smith Point foi crescendo à sua frente. Afinal, ele chegou ao esporão rochoso e, sem reduzir a velocidade, o contornou.
No outro lado da enseada, o Mistress ofthe Seas erguia-se como um castelo branco sitiado. Mais perto ainda, as águas ardiam com óleo derramado flamejante e cascos lumegantes de navios. Até mesmo o cais se transformara em ruínas por causa das explosões. E por toda a zona de guerra se ouvia o rugido das lanchas dos piratas.
À caça.
Lá vamos nós.
Como um torpedo deslizante, Monk entrou na luta.
14:08h
- Deve haver algo que possamos fazer — disse Lisa.
- Por ora, vamos aguardar os acontecimentos — advertiu Henri Barnhardt.
Eles estavam refugiados numa das cabines externas vazias. Lisa estava em pé, perto de uma das duas vigias do aposento. Henri ficou a postos junto à porta.
Uma hora atrás, eles haviam fugido pelo navio e descoberto que nele reinava o mais absoluto caos. Tripulantes uniformizados e passageiros de olhos arregalados, tanto os enfermos quanto os sãos, abarrotavam os corredores. Explosões e tiroteios eram quase abafados pelo som enervante da campainha de alarme do navio. Quer usando equipamento automatizado, quer de propósito, alguém desengatara as portas corta-fogo do navio, baixando-as, isolando seções.
Enquanto isso, pistoleiros mascarados desobstruíam os corredores, um após o outro, atirando contra qualquer pessoa que resistisse ou se movesse devagar demais. Lisa e Henri tinham ouvido os gritos, os tiroteios, o ruído de pés no convés acima. Eles mesmos quase foram alvejados. O que salvara fora uma carreira desabalada pela sala de espetáculos dourada do navio e por outro corredor.
Eles não sabiam por quanto tempo mais poderiam resistir.
A rapidez da captura do Mistress of the Seas indicava que alguns membros da tripulação deviam estar envolvidos.
Lisa olhou para fora através da vigia. O mar estava em chamas. Dessa mesma vigia, ela observara um punhado de passageiros desesperados pular das sacadas superiores na água, na esperança de chegar à praia.
As lanchas, porém, percorriam a enseada, disparando contra a água.
Corpos flutuavam em meio a destroços flamejantes.
Não havia como escapar.
Por que aquilo estava acontecendo? O que estava acontecendo?
Finalmente, o som da campainha de alarme silenciou, interrompendo-se com um gemido final. O silêncio então caiu como um peso sobre eles, um peso físico. Até o ar parecia mais denso.
Em algum lugar acima alguém soluçou e se lamentou.
Henri olhou nos olhos de Lisa.
Do alto-falante do aposento, uma voz dura começou a falar em malaio, língua que Lisa não entendia. Ainda fitando Henri, ela observou o toxicologista sacudir a cabeça. Ele estava igualmente perdido. Mas o que quer que tenha sido dito acabou sendo repetido em mandarim. O malaio e o mandarim eram as duas línguas mais comuns faladas na ilha.
Por fim, o locutor mudou para o inglês, com um forte sotaque.
— O navio agora é nosso. Cada convés está patrulhado por guardas. Qualquer pessoa flagrada nos corredores será alvejada imediatamente. Não faremos mal a ninguém, contanto que nos obedeçam. Isso é tudo.
O discurso terminou com um ruído de estática.
Henri forçou a porta da cabine, a fim de se certificar de que ela estava trancada, e depois caminhou na direção de Lisa.
— O navio foi seqüestrado. Alguém deve ter planejado isso há algum tempo.
Lisa lembrou-se do Achille Lauro, um navio de cruzeiro italiano seqüestrado por terroristas palestinos em 1985. E mais recentemente, em 2005, piratas somalis haviam atacado outro navio de cruzeiro na costa oriental da África.
Ela virou-se para a vigia, olhando para fora, e observou atentamente as lanchas que patrulhavam as águas abaixo, operadas por equipes de pistoleiros mascarados. Pareciam ser piratas, mas ela suspeitava de outra coisa.
Talvez um pouco da paranóia de Painter houvesse passado para ela.
Aquilo era coordenado demais para um ato de pirataria fortuito.
— Com certeza — disse Henri — eles vão revistar o navio e roubar tudo o que não esteja trancado à chave, e em seguida vão fugir por entre as ilhas. Se conseguirmos nos manter vivos, evitar qualquer confronto...
O alto-falante voltou a guinchar, e uma nova voz falou através do sistema geral de comunicação do navio. Em inglês, sem repetir a mensagem em malaio ou em chinês.
— Os seguintes passageiros queiram se dirigir à ponte de comando do navio. Eles serão esperados aqui nos próximos cinco minutos. Deverão vir com as mãos na cabeça e os dedos entrelaçados. Se não aparecerem, cada minuto de atraso resultará na morte de dois passageiros. Mataremos primeiro as crianças.
Os nomes foram enunciados.
Dr. Gene Lindholm.
Dr. Benjamin Miller.
Dr. Henrick Barnhardt.
E por fim: Dra. Lisa Cummings.
- Vocês têm cinco minutos.
O rádio silenciou de novo.
Lisa ainda olhava pela vigia.
- Isso não é um seqüestro.
E esses não são piratas comuns.
Antes de se afastar da janela, ela avistou um jet ski correndo em alta velocidade através da água na direção do navio de cruzeiro. Um jato de água projetava-se alto atrás dele, tornando fácil avistá-lo. Ziguezagueava por entre os detritos com habilidade. Ela não conseguiu distinguir quem estava a bordo da embarcação. O piloto estava bem inclinado para a frente.
E com bons motivos.
Duas lanchas perseguiam-no de perto, movendo-se ruidosamente através das chamas e das pranchas fumegantes. Clarões produzidos pelos canos das armas de fogo faiscavam das lanchas.
Ela sacudiu a cabeça por causa da insensatez do piloto do jet ski.
De cima do topo do navio, um helicóptero apareceu, mergulhando na direção do jet ski. Ela não queria assistir, mas sentia certa obrigação, certo reconhecimento pelo ataque suicida do piloto do jet ski.
O helicóptero inclinou-se num arco abrupto, com a porta lateral aberta.
Um jato de fumaça foi expelido de seu interior.
Lança-granadas.
Estremecendo, Lisa olhou para baixo a tempo de ver o jet ski explodir numa bola flamejante de fumaça e metal calcinado.
Ela virou-se, entorpecida e com o corpo todo tremendo, e encarou Henri. Eles não tinham opção.
— Vamos.
14:12h
Monk desceu para as profundezas do mar, puxado pelo cinto de lastro e pelos tanques de ar. Ele não lutou contra isso e prendeu a respiração. Acima, o azul da água ardia em chamas. Destroços do jet ski explodido crepitavam através da água. A dois metros de distância, a embarcação desceu para as profundezas com o nariz para baixo.
Enquanto descia, Monk tirou com dificuldade o blusão do Mango Lodge. fá não havia motivo para manter seus tanques ocultos. Ele puxou a máscara de mergulho para cima e estendeu um dos braços para pegar a mangueira de ar. Usou o regulador para limpar a máscara e colocou-a no rosto.
O fundo do mar ficou claro como cristal.
Ajustou o regulador e inspirou pela primeira vez.
Foi mais um suspiro de alívio.
Será que aquele pequeno subterfúgio havia funcionado?
Um momento atrás, quando o helicóptero mergulhou na sua direção, atraído como um falcão por um camundongo, Monk olhou para o pistoleiro na porta do helicóptero. Quando o lança-granadas foi apontado para ele, Monk virou o jet ski de cabeça para baixo no último segundo, mergulhando embaixo dele e nas profundezas. A explosão o atingira como a pancada de uma bigorna na cabeça, e seus ouvidos estalavam.
Ele desceu em direção ao fundo do mar. Flying Fish Cove tinha ancoradouros de águas profundas, de até trinta metros. Mas ele não precisava descer tanto.
Monk ajustou os compensadores de flutuação, enchendo o colete com ar de seus tanques. Sua descida foi ficando mais lenta até ele flutuar. Ele olhou para cima e observou o fundo das lanchas que patrulhavam o local, as hélices agitando a água branca. Elas navegavam em círculos, à procura de quaisquer sinais do piloto do jet ski, prontas para abrir fogo se ele viesse à tona.
Monk, porém, não estava planejando emergir, e, se o seu estratagema tivesse dado certo, ninguém sabia que ele tinha equipamento de mergulho. Deu meia-volta, consultou sua bússola de pulso com mostrador fosforescente e seguiu na direção que já havia calculado.
Rumo ao Mistress of the Seas.
Ele sempre tivera vontade de fazer um cruzeiro marítimo.
CAPÍTULO 5
Perdido e Achado
5 de julho, 1:55h
Washington, D.C.
- Este é o lugar mais distante até onde pude ousar — disse Gray.
Ele passara os últimos sete minutos movendo lentamente o Thunderbird pelo Glover-Archibold Park, avançando pouco a pouco por uma antiga estrada vicinal repleta de ervas daninhas, com arbustos roçando as laterais do conversível. O pneu dianteiro esquerdo era uma ruína cheia de furos, retardando-os, tornando quase impossível dirigir.
Embora a maioria das pessoas considerasse Washington, D.C., um lugar de edifícios históricos, com amplos calçadões com lojas diversas e museus, a cidade também possuía um dos conjuntos mais longos e interligados de parques, que ziguezagueavam pelo coração da cidade, cobrindo bem mais de mil acres. O Glover-Archibold Park marcava uma extremidade, terminando no rio Potomac.
Gray havia se afastado do rio, pois este era muito distante e muito exposto. Seguindo por uma alameda nos fundos, paralela às casas do parque, ele rumara para o norte com os faróis apagados e acabara descobrindo uma antiga estrada de terra cujo fim era impedir a propagação de incêndios e que conduzia ainda mais fundo na floresta densa. Ele tomou essa estrada, pois precisava continuar perdido, e, além disso, o Thunderbird estava quase parando de funcionar.
Reconhecendo que não podia ir além, ele reduziu a marcha.
Eles estavam no fundo de uma ravina. Colinas íngremes e arborizadas erguiam-se em cada lado. Adiante, uma antiga ponte férrea de cavaletes abandonada cruzava o estreito vale. Gray conduziu o Thunderbird para debaixo da ponte de ferro vermelho enferrujado e ripas de madeira. Freou próximo a um dos muros de concreto que sustentavam a ponte. O muro estava todo pichado.
— Saiam todos. Iremos a pé a partir daqui.
No outro lado da ponte, iluminado pelas estrelas e por uma réstia da luz da lua, um marcador de madeira indicava uma trilha para caminhadas. O caminho mais parecia um túnel, cavado na floresta densamente fechada.
Melhor ainda para escondê-los.
A distância, na outra direção, as sirenes dos veículos de emergência uivavam. Gray avistou um brilho laranja tremeluzente no céu noturno. A explosão flamejante do foguete devia ter iniciado um incêndio numa casa.
Mais perto, no entanto, o bosque estava escuro, pintado com gradações de preto.
Gray sabia que Nasser e sua turma de assassinos podiam estar em qualquer lugar.
Atrás deles, adiante deles, já bem próximos.
O coração de Gray martelava. Seus temores o oprimiam — não por si mesmo, mas por seus pais. Tinha de levá-los a algum lugar seguro para que houvesse uma distância entre eles e os perigos que o rodeavam. A única forma de fazer isso era conseguir tratamento médico para Seichan.
E ele tinha de fazer aquilo longe de todos os olhares.
Mesmo que ainda tivesse seu telefone celular aos frangalhos, ele não ousaria entrar em contato com a Sigma ou com o diretor Crowe. As linhas de comunicação estavam comprometidas, conforme evidenciado pela emboscada no abrigo secreto. De acordo com o protocolo, ele deveria sumir sem deixar rastros. Houvera um vazamento em alguma parte, e, até que seus pais estivessem abrigados em algum lugar seguro, ele não ergueria a cabeça acima das ervas daninhas.
Isso significava, portanto, que eles tinham de procurar outro meio de cuidar de Seichan. Sua mãe havia sugerido uma opção e já executara seu plano, fazendo duas chamadas de seu telefone celular. Logo em seguida, Gray mandou-a tirar a bateria do aparelho, para que ninguém o usasse para rastreá-los.
— A morfina parece tê-la relaxado — informou sua mãe do banco traseiro. Durante uma breve parada, a mãe de Gray havia passado para o banco traseiro junto com Kowalski, e Seichan estava curvada entre eles. A mãe dele injetara em Seichan uma syrette de morfina pré-dosada, tirada de algum suprimento médico no abrigo secreto.
- Se quisermos conseguir nosso intento — disse Gray —, teremos que carregá-la a partir daqui.
- Eu vou carregá-la — disse Kowalski, acenando para que todos o deixassem passar.
O pai de Gray ajudou sua mãe a sair do conversível. Lá fora, seu pai viu o estado do carro e sacudiu a cabeça, praguejando entre os dentes.
Kowalski levantou-se, erguendo Seichan nos braços. Mesmo na escuridão embaixo da ponte, Gray notou a mancha negra na atadura que circundava seu abdome. O movimento fez Seichan acordar. Ela se debateu por um momento nos braços de Kowalski enquanto ele saía do carro com dificuldade, surpreso, atordoado. Ela gritou e golpeou o rosto dele com a base da mão.
— Ei...! — exclamou o homenzarrão, evitando outro golpe.
Seichan começou a berrar, num fluxo irado, numa mistura ininteligível de inglês com um dialeto asiático.
— Acalme-a — disse seu pai, olhando para a floresta escura.
Kowalski tentou tapar a boca de Seichan, mas um de seus dedos quase foi arrancado por uma mordida.
— Filha-da-puta!
A agitação dela ficou mais intensa.
A mãe de Gray aproximou-se, vasculhando sua grande sacola.
- Eu tenho outra dose de morfina.
Gray sacudiu a cabeça.
- Espere.
Com a perda de sangue de Seichan, ele receava a depressão respiratória que acompanhava o uso de morfina. Uma segunda dose poderia matá-la, e ele ainda precisava de respostas.
Ele estendeu a palma de uma das mãos para a mãe.
— Sais aromáticos — disse ele, lembrando-se de que Kowalski mencionara que eles faziam parte do conteúdo do kit médico de emergência.
Sua mãe concordou com um aceno de cabeça. Ela estendeu a mão para sua bolsa, remexeu-a por um longo segundo e então lhe entregou algumas cápsulas. Gray pegou uma delas e caminhou até o lado de Kowalski.
O guarda agora exibia um arranhão longo e sangrento numa das faces.
— Pelo amor de Deus, faça alguma coisa para acalmá-la!
Gray segurou um punhado dos cabelos de Seichan, arqueou-lhe o pescoço e quebrou a cápsula sob o seu nariz. A cabeça dela deu um violento safanão, lutando, mas ele manteve a cápsula junto ao lábio superior dela. Os gritos delirantes cessaram e foram substituídos pelo silêncio.
Uma das mãos da mulher ergueu-se para empurrá-lo.
Ele segurou-a com força.
— Chega...
Seichan tossiu e agarrou o pulso de Gray.
Ele ficou surpreso com a força nos dedos dela, e baixou o braço.
— Me deixe respirar. Me coloque no chão.
Gray fez um aceno de cabeça para Kowalski. Ele não precisou que ela dissesse duas vezes: pôs Seichan em pé, mas manteve um dos braços embaixo dos ombros dela. Ela havia superestimado suas próprias forças: suas pernas fraquejaram, e ela agarrou-se nos braços do homenzarrão.
Estremecendo, Seichan correu os olhos ao redor. Gray viu a confusão naqueles olhos, atrás da guerra travada entre a dor e a morfina. Ela rapidamente voltou a se concentrar nele.
— Eu... o obelisco... — disse ela com uma preocupação tensa. Gray estava cansado de ouvir a respeito do maldito obelisco.
— Nós teremos de pegá-lo mais tarde. Ele se quebrou após o seu acidente. Eu o deixei nos fundos da casa.
Suas palavras pareceram causar mais dor a ela do que o ferimento à bala. Mas talvez esse seu lapso tivesse sido um pouco de sorte. Nasser poderia ter ido procurar o obelisco em vez de persegui-los.
A mãe dele, ouvindo por acaso a conversa de ambos, deu um passo à frente.
— Vocês estão conversando sobre aquela coluna preta quebrada. — Ela bateu de leve em sua grande bolsa. — Eu a peguei quando entrei em casa para buscar as ataduras. Ela parecia antiga e talvez valiosa.
Fechando os olhos de alívio, Seichan fez um aceno positivo de cabeça ao ouvir ambas as avaliações. Sua cabeça pendeu de exaustão.
- Graças a Deus.
- Por que ele é tão importante? — perguntou Gray.
- Ele poderia... ele poderia salvar o mundo. Se já não estivermos atrasados demais.
Gray olhou de relance para a bolsa de sua mãe e de volta para Seichan.
— Que diabo você quer dizer?
Ela acenou débilmente com um dos braços, quase desmaiando de novo.
— É complicado demais. Eu preciso da sua ajuda... não posso... não sozinha... nós temos... temos que fugir.
O queixo dela caiu de encontro ao tórax enquanto ficava inconsciente outra vez. Kowalski aparou o peso dela com o quadril.
Gray sentiu-se tentado a usar outra cápsula de sais aromáticos, porém receava exauri-la ainda mais. Sangue fresco escorria de suas ataduras.
Sua mãe pareceu fazer a mesma avaliação. Ela acenou com a cabeça na direção da trilha.
— Não podemos estar longe do hospital agora.
Gray virou-se para o caminho escuro no outro lado da ponte. Esse era outro motivo por que ele havia conduzido o Thunderbird para o norte através do bosque, seguindo uma sugestão de sua mãe. No outro lado do Glover-Archibold Park, estendia-se o campus da Universidade Georgetown. O hospital-escola ficava próximo à margem da floresta. Ex-alunos de sua mãe trabalhavam ali.
Se eles conseguissem alcançá-lo em segredo...
Mas será que aquele destino era óbvio demais?
Havia mil saídas do sistema de parques, mas Nasser sabia que o homem que ele caçava carregava uma mulher gravemente ferida e que ela precisava de assistência médica imediata.
O risco era enorme, porém Gray não via meio de evitá-lo.
Ele se lembrou dos olhos de Nasser quando o filho-da-puta perguntou sobre o obelisco. Famintos, implacáveis. O egípcio acreditara na afirmação de Gray de que o obelisco ficara para trás, principalmente porque o próprio Gray acreditava nela. Mas o que era mais importante para o homem: conseguir o obelisco ou tentar se vingar?
Ele correu os olhos pelo pequeno grupo.
A vida de todos eles dependia daquela resposta.
2:21h
Meia hora mais tarde, Painter percorreu a extensão de seu gabinete com um headset preso ao ouvido, que lhe deixava as mãos livres.
— Todos eles estão mortos?
Atrás dele, a tela de plasma exibia a transmissão ao vivo do incêndio de três casas, junto com uma parte do parque próximo. A estiagem do verão transformara a floresta num local de fácil combustão. Carros do corpo de bombeiros e equipes de emergência aglomeravam-se na área isolada. Furgões de emissoras de televisão já erguiam suas antenas parabólicas. Um helicóptero da polícia voava em círculos acima, os holofotes varando a escuridão, procurando.
Porém, era pouco demais, tarde demais.
Nem o conversível que Gray havia dirigido até o abrigo secreto nem o furgão médico seqüestrado estavam entre os destroços. O incêndio que se alastrava impedia mais investigações.
A única notícia concreta era ruim: os membros da equipe original do furgão médico haviam sido encontrados num terreno baldio, cada um com um tiro na cabeça. Havia quatro pastas sobre a sua escrivaninha. Ele afundou na cadeira. Acima de qualquer outra coisa, tinha de dar quatro difíceis telefonemas antes do amanhecer. Para as famílias.
O ajudante de Painter, Brant, empurrou sua cadeira de rodas até a entrada do gabinete.
— Lamento, senhor.
Painter fez um aceno de cabeça para ele.
— O dr. McKnight está aguardando na linha três. Ele está disponível para teleconferência ou videoconferência.
Painter apontou um dos polegares para a tela com as imagens do incêndio.
— Eu já vi o bastante no momento. Transfira a ligação de Sean.
Painter tirou o headset do ouvido. Ele jurou que mandaria implantar um cirurgicamente, e se virou a fim de olhar para a tela enquanto a cena de emergência se dissolvia, substituída pelo rosto de seu chefe.
Sean McKnight fundara a Sigma, mas fora promovido a diretor da DARPA. Assim que Seichan deu uma trombada na vida de Gray, Painter lhe telefonara em busca tanto dos conselhos quanto dos conhecimentos de seu chefe. Mas também por um motivo mais urgente.
— Então a Guilda está de volta à nossa porta — disse Sean, passando os dedos pelos cabelos ruivos que já ficavam grisalhos. Estavam desgrenhados, e ele parecia ter sido tirado da cama. Porém, sua camisa branca estava com vincos e passada. Um paletó risca-de-giz azul-marinho estava pendurado num braço de sua cadeira. Ele estava pronto para um longo dia.
— A Guilda pode estar além da nossa porta — respondeu Painter. — As informações secretas atuais indicam que eles já podem ter transposto a porta. — Painter bateu de leve numa pasta atrás dele. — O senhor já leu o relatório sobre a situação da operação.
A resposta foi um aceno afirmativo de cabeça.
- Sem dúvida, a Guilda sabia a respeito do abrigo secreto. Sabia que Gray es¬tava indo para lá com a agente deles que se ausentou sem licença. Nós temos um vazamento em alguma parte.
- Eu acho que temos de admitir isso.
Ele sacudiu a cabeça. Se fosse verdade, era um desastre. A Guilda já havia infiltrado a Sigma uma vez, mas Painter jurava que sua organização estava limpa agora. Depois que o último espião fora desmascarado, Painter havia reduzido a Sigma a escombros e a reconstruído inteiramente, com centenas de salvaguardas e contramedidas.
Tudo em vão.
Se ainda havia um vazamento, o próprio fundamento da Sigma poderia ser suspeito. Esse vazamento poderia significar a dissolução da organização. Já estava sendo realizada uma auditoria interna, uma análise custo-benefício da estrutura básica de comando da Sigma, sob o pretexto de unificar os serviços de coleta de informações secretas dos Estados Unidos dentro do Departamento de Segurança Interna.
Mas o pior de tudo é que havia um custo mais profundo.
As quatro pastas aguardavam sobre a escrivaninha de Painter para lembrá-lo.
Sean prosseguiu:
— Não é apenas a nossa divisão que está infestada por uma rede de terroristas de aluguel. Dois meses atrás, o MI6 se livrou de uma célula que havia se infiltrado num projeto de operação secreta da British Aerospace nas imediações de Glasgow. Eles perderam cinco agentes durante esse expurgo. A Guilda está em toda a parte e não está em parte alguma. Aqui nos Estados Unidos, a NSA e a CIA ainda estão tentando imaginar quem é o Osama da Guilda. Não sabemos quase nada sobre o líder ou os principais membros da organização. Nem ao menos sabemos se eles se chamam Guilda. Esse nome derivou de um apelido inventado por um oficial da SAS, agora morto. No entanto, aparentemente as várias células adotaram o nome como se fosse delas, a princípio zombeteiramente, depois, talvez, de uma forma mais autêntica. Sabemos muito pouco sobre a rede.
Ele deixou a última frase suspensa.
Painter compreendeu.
— E agora temos uma desertora.
Sean suspirou.
Há anos que vimos tentando conseguir uma base de operações na organização. Eu pensei em várias hipóteses, mas nada tão eficaz quanto ter uma agente da Guilda, um membro de sua elite, caindo do céu. Temos de protegê-la.
- E a Guilda vai tentar impedir que isso aconteça com a mesma tenacidade. Eles deixaram isso claro. A fim de eliminá-la, eles optaram por expor sua própria infiltração na Sigma. Uma escolha custosa. E, para levar isso a cabo, eles mandaram seu melhor e mais ardiloso agente. Outro membro da elite deles.
- Eu vi o vídeo do homem no abrigo secreto. Li o dossiê sobre ele — disse Sean com uma careta.
Painter também lera o dossiê. O Açougueiro de Calcutá. Sua verdadeira origem e causa eram desconhecidas. De ascendência mista, ele já se fizera passar por indiano, paquistanês, iraquiano, egípcio e líbio. Se Seichan tinha um equivalente do sexo masculino, ele era esse homem.
— Temos uma pista — disse Painter. — Conseguimos distinguir o nome dele na transmissão do vídeo. Nasser. Mas foi o máximo que conseguimos.
Sean fez um gesto de desdém com uma das mãos.
— Seus supostos nomes são tão numerosos quanto os assassinatos que ele tem cometido. Ele vem deixando um rastro de sangue no mundo inteiro, a maior parte concentrada no Norte da África e ao longo do Oriente Médio e do Oriente Próximo. No entanto, recentemente penetrou um pouco mais no Mediterrâneo, estrangulando um arqueólogo na Grécia e assassinando o curador de um museu na Itália.
A atenção de Painter voltou a se fixar na tela.
- Na Itália? Onde?
— Em Veneza. Um curador foi encontrado morto com um tiro nas masmorras do Palácio dos Doges. Nasser, ou seja lá qual for o seu verdadeiro nome, foi visto rondando a praça lá fora.
Painter esfregou o queixo, com força suficiente para queimar a barba por fazer.
— Recebi um telefonema mais cedo de monsenhor Verona, do Vaticano. Os detalhes devem estar no relatório sobre a situação da operação. Há uma boa probabilidade de que Seichan também estivesse tentando alguma ação na Itália nessa ocasião.
Os olhos de Sean estreitaram-se lentamente.
— Interessante. É uma coincidência que requer mais investigações. Ambos os assassinos na Itália. Agora eles estão aqui. Um caçando o outro. Dois assassinos mestres, os melhores da Guilda. E, pelo menos, Nasser empurrou Seichan para os nossos braços.
Ou melhor, para os braços de Gray, acrescentou Painter em silêncio.
— Precisamos dessa mulher sob a nossa custódia. Imediatamente. É inaceitável perder essa oportunidade.
Painter entendia a gravidade da situação, mas também conhecia Gray, como a mente dele funcionava. Se alguém tinha um nível de paranóia igual ao seu, esse alguém era Gray. A custódia poderia revelar-se um problema.
- Senhor, o comandante Pierce está em fuga. Emboscado no abrigo secreto, deve suspeitar de um vazamento, como nós. Ele vai se esconder com ela. Vai ficar na moita até sentir que é seguro dar as caras de novo.
- Não podemos ficar aguardando por muito tempo. Não com o Açougueiro de Calcutá caçando os dois agora.
- O que o senhor quer que eu faça?
- O comandante Pierce tem que ser encontrado, trazido de volta com ela. Não tenho escolha a não ser expandir a busca, entrar em contato com autoridades locais e com o FBI. Já ordenei uma busca em todos os hospitais e clínicas. Não podemos deixá-lo desaparecer.
- Senhor, eu preferia dar ao comandante Pierce um pouco de liberdade de movimento para avaliar a situação. Quanto mais os holofotes se voltarem para ele, maior a probabilidade de que eles chamem a atenção de Nasser.
- Se isso acontecer, então tentaremos prender dois agentes da Guilda.
Painter não conseguiu dissimular o choque em sua voz.
- Usando Gray como isca.
Sean o encarava do monitor. Painter percebeu a rigidez da postura dele. Voltou a notar o paletó e a camisa passados a ferro e de repente se deu conta de que não fora o primeiro naquela noite a ter a atenção de Sean.
— Esta decisão foi tomada pela Segurança Interna e assinada pelo presidente. Não será possível revogá-la. — Sean firmou a voz. — Gray e essa agente da Guilda devem ser encontrados e trazidos para cá, ainda que seja necessário empregar a força.
Painter não encontrou palavras para argumentar. Não podia haver nenhuma. Era um novo mundo. Fez um lento aceno de cabeça. Ele cooperaria. No fundo, porém, conhecia Gray.
Em fuga, caçado por ambos os lados, o homem se revelaria formidável.
Ele sairia de circulação.
3:04h
— Eu vi uma Starbucks no saguão lá embaixo — murmurou Kowalski. — Talvez esteja aberta agora. Alguém quer uma xícara de café?
Vamos ficar onde estamos — disse Gray.
Kowalski sacudiu a cabeça.
- Não esquente a cabeça, garoto. Foi só uma piada.
Ignorando-o, Gray continuou a examinar o obelisco quebrado de Seichan. Eles estavam reunidos na pequena recepção de um consultório dentário. Junto a um de seus cotovelos, uma luminária de mesa iluminava o espaço exíguo, decorado no típico estilo homogêneo: revistas publicadas meses atrás, aquarelas genéricas, um fícus anêmico num vaso e uma televisão escura num suporte de parede.
Quarenta minutos atrás, o grupo havia seguido a trilha no bosque até a extremidade do Glover-Archibold Park. Ela terminava numa rua que separava o parque da Universidade Georgetown. Àquela hora, não havia carros, nenhum tráfego. Eles atravessaram a rua às pressas, moveram-se furtivamente por entre dois edifícios de pesquisa às escuras e chegaram ao Anexo Dentário da universidade. O hospital propriamente dito ficava além, fortemente iluminado. Eles não ousaram ir até lá, correr o risco de se expor tanto.
Por isso tomaram outras providências.
No outro lado da recepção do consultório dentário, Kowalski praguejou em voz baixa e cruzou os braços, obviamente entediado, mas ainda tenso. Todos eles aguardavam ordens.
— Por que está demorando tanto? — resmungou Kowalski.
Gray ficara sabendo que o homem era ex-marinheiro da Marinha dos Estados Unuidos e que fora recrutado pela Sigma após sua participação numa operação da Sigma no Brasil, não como agente, mas por causa de sua força bruta. Ele tentara mostrar a Gray suas cicatrizes daquela missão enquanto eles esperavam, mas Gray recusara. O homem não conseguia calar a boca. Não era de admirar que tivesse sido designado para ficar de guarda. Sozinho.
Mas os comentários constantes de Kowalski não passaram despercebidos.
No outro lado da recepção, o pai de Gray estava deitado esparramado em três cadeiras, com os olhos fechados, mas não dormia. Era necessário esforço para manter aquela profunda carranca.
— Quer dizer então que você é algum tipo de espião científico — dissera seu pai mais cedo. — Números...
Gray ainda não sabia o que seu pai quis dizer com aquilo, mas agora não era a hora de encarar o problema. Quanto mais rápido ele conseguisse cuidar de Seichan e se afastar de seus pais... tanto melhor para todos eles.
Gray continuou seu exame. Girou o obelisco, estudando cada superfície. A pedra negra era antiga, esburacada e repleta de entalhes, mas, em outros aspectos, era comum. Parecia egípcia, porém aquela não era sua especialidade. Até mesmo sua avaliação da origem pode ter sido obscurecida pelo sotaque egípcio do assassino fracassado.
Porém, uma característica do obelisco, sem dúvida, não era intrínseca à pedra.
Ele virou para baixo a parte de cima quebrada. Uma haste de prata quase da grossura de seu dedo mínimo projetava-se do fundo. Ele tocou-a, sabendo que ela era a ponta do iceberg proverbial. Alguma coisa fora oculta no coração do obelisco. Olhando com mais atenção para a parte quebrada, ele pôde discernir uma antiga rachadura cimentada na pedra, invisível de fora. Na verdade, o obelisco era formado por dois pedaços de mármore colados com habilidade, ocultando algo no interior. Como escavar as páginas de um livro para se esconder uma arma ou objetos de valor.
Ele se lembrou das palavras de Seichan.
Ele pode salvar o mundo... se já não estivermos atrasados demais.
Fosse lá o que ela queria dizer, era importante o suficiente para que tivesse vindo procurá-lo, para trair a Guilda.
Ele precisava de respostas.
O rangido da porta chamou sua atenção. A mãe de Gray entrou na recepção do consultório dentário e puxou uma máscara cirúrgica do rosto.
Gray levantou-se.
— Ela teve uma sorte danada — disse ela. — Nós cauterizamos o sangramento e estamos fazendo a infusão de uma segunda bolsa de sangue. Mickie acha que ela vai ficar bem. Ele está terminando de fazer o curativo.
Mickie era o dr. Michael Corrin, um ex-professor-assistente de sua mãe que entrara para a faculdade de medicina, em grande parte com base na recomendação dela. A profundidade do relacionamento e da confiança deles estendia-se àquele telefonema no meio da noite para a casa dele, para um encontro secreto no consultório dentário próximo ao hospital. Uma rápida ultra-sonografia revelou a primeira boa notícia da noite. A bala não havia perfurado a cavidade abdominal de Seichan. O projétil passara apenas lateralmente ao osso pélvico.
- Quando ela poderá ir embora? — indagou Gray.
- Mickie prefere que ela passe pelo menos algumas horas aqui.
- Nós não temos tanto tempo assim.
- Eu expliquei isso a ele.
- Ela está acordada?
A resposta foi um aceno positivo de cabeça.
- Depois da primeira bolsa de sangue, ela reagiu melhor. Mickie aplicou-lhe antibióticos e analgésicos. Ela já está se sentando.
- Então é hora de darmos o fora.
Gray passou pela mãe. Ele havia observado a ultra-sonografia, mas fora expulso do recinto quando o médico começou a cuidar da ferida. Por mais que ele argumentasse, o médico não cedeu.
Gray não gostou de deixar Seichan fora do alcance de sua visão, por isso saíra com o obelisco quebrado. Seichan não iria a lugar nenhum sem ele.
Com as duas partes do obelisco na mão, ele empurrou a porta, seguido pela mãe. Foi até o primeiro consultório dentário e quase se chocou com o dr. Corrin quando este saía. O jovem médico era da mesma altura de Gray, mas tinha cabelos ruivos e era macérrimo. Uma barba bem cuidada contornava seu rosto. Exibindo uma carranca, o dr. Corrin acenou com a cabeça na direção do recinto.
— Ela arrancou o cateter e me pediu que buscasse você. E uma lâmpada ultra-violeta. — Fez sinal com uma das mãos para os fundos do consultório dentário.
Meu irmão usa uma para avaliar a polimerização de resinas compostas. Logo estarei de volta.
Com o caminho livre, Gray entrou no consultório.
Com as costas voltadas para ele, Seichan estava sentada numa cadeira de dentista, nua da cintura para cima, lutando para vestir uma camiseta Redskins emprestada. Uma atadura estéril estava caída aos seus pés. Mesmo com as costas nuas voltadas para ele, Gray percebeu o extremo esforço físico. Ela teve de segurar no braço da cadeira.
A mãe dele deu um passo para o lado para não se chocar com Gray.
— Deixe-me ajudá-la. Você não deveria fazer isso sozinha. Seichan resistiu.
— Eu vou conseguir — disse ela, erguendo um dos braços para repelir qualquer ajuda, porém se retraiu com um arquejo.
— Basta, minha jovem.
A mãe de Gray foi até o lado dela e ajudou-a a puxar a camiseta sobre os seios nus e o diafragma enfaixado. Ao se virar, Seichan deparou com Gray de pé ali. O rosto dela se anuviou, desconcertado. Mas Gray suspeitou de que o embaraço dela não era por quase ter sido flagrada nua, e sim por demonstrar fraqueza.
Ela levantou-se devagar, com o rosto resistindo à dor. Apoiando o traseiro na cadeira reclinada, tornou a abotoar as calças, ainda apertadas nos quadris.
— Eu preciso falar com o seu filho — disse ela à mãe de Gray, com a voz rouca, dispensando-a.
A mãe de Gray olhou de relance para ele, que lhe acenou com a cabeça.
— Vou ver como seu pai está — disse a mãe com frieza, e saiu.
No fim do corredor, o som abafado de uma televisão começou. Parecia que Kowalski havia encontrado o controle remoto.
Sozinhos agora, Gray e Seichan olharam fixamente um para o outro. Nenhum deles falou, ambos levando um instante para avaliar o outro.
O dr. Corrin foi até a porta com uma luminária portátil.
— Isto é tudo o que temos.
— Isso basta — disse Seichan, tentando erguer uma das mãos para pedi-la, mas seu braço tremeu.
Gray pegou a luminária, segurando as partes do obelisco numa das mãos.
- Vamos precisar de um minuto.
- Claro.
O dr. Corrin foi atrás da mãe de Gray, percebendo a tensão no recinto.
Os olhos de Seichan não desgrudavam do rosto de Gray.
— Comandante Pierce, sinto muito por ter colocado a sua família em perigo. Eu subestimei Nasser. — Ela tocou com cautela o ferimento enfaixado. Sua voz ficou ácida. — Não cometerei esse erro de novo. Pensei que o tivesse perdido na Europa.
— Mas não o perdeu — retrucou Gray bruscamente.
Os olhos dela se estreitaram.
— Eu não o perdi porque o comando da Sigma está envolvido. A Guilda usou os próprios recursos de vocês para me rastrear e me expor. A culpa não é só minha.
Gray não tinha nenhum argumento contra essa afirmação.
Ela tocou a testa como se houvesse esquecido alguma coisa, mas Gray suspeitou de que ela o estivesse enrolando, ponderando o que dizer e o que omitir.
- Você deve ter mil perguntas — murmurou ela.
- Apenas uma: que diabo está acontecendo?
A sobrancelha esquerda dela ergueu-se. Um gesto estranhamente familiar, uma lembrança do passado comum de ambos.
— Para responder à sua pergunta, temos de começar por aí. — Ela acenou com a cabeça na direção do obelisco. — Se você o colocar em cima da mesa de instrumentos...
Precisando de respostas, Gray obedeceu, equilibrando o pedaço quebrado sobre a base.
— A luminária... — disse ela.
Um momento depois, com as lâmpadas do teto apagadas, Gray curvou-se e examinou as seqüências de símbolos iluminados que brilhavam sobre a pedra negra, ao longo das quatro superfícies.
Ele não reconheceu a escrita nem como hieróglifos nem como runas que já tivesse visto alguma vez. Olhou para ela. As escleras dos olhos de Seichan brilhavam no reflexo ultravioleta.
— O que você está vendo é uma escrita angélica — disse ela. — A linguagem dos arcanjos.
Gray franziu a testa em descrença.
- Eu sei que parece insano — afirmou ela. — A origem da escrita remonta tanto ao cristianismo primitivo quanto ao misticismo hebraico antigo. Se quiser saber mais...
- Pule essa parte. Prefiro descobrir o que você quis dizer quando falou que o obelisco poderia salvar o mundo.
Ela recostou-se, desviando o olhar, e em seguida seus olhos voltaram-se rapidamente na direção dele.
- Gray, eu preciso da sua ajuda. Eu tenho de detê-los, mas não posso fazer isso sozinha.
- Fazer o que sozinha?
— Lutar contra a Guilda, contra o que eles estão tentando... Mais uma vez ela revelou aquele lampejo de medo.
Gray franziu o cenho. Quando se encontrou com Seichan pela primeira vez, ela tentava explodir antraz a ser usado como arma química sobre o Forte Detrick. Levando em consideração essa insensibilidade, o que a assustaria agora?
— Eu o ajudei no passado — disse ela, tentando o trunfo da culpa.
- Para derrotar um inimigo mútuo — contrapôs ele. — E salvar sua própria pele.
- E isso é tudo o que estou procurando aqui novamente: cooperação para derrotar um inimigo mútuo. E não é só a minha vida que está em risco desta vez. Centenas de milhões de pessoas estão ameaçadas. E o perigo já começou: as sementes estão plantadas.
Ela acenou com a cabeça na direção da escrita resplandecente do obelisco.
- Tudo o que pode deter a Guilda está encerrado neste enigma. Se conseguíssemos decifrá-lo primeiro, haveria alguma esperança. Mas eu fui até onde pude ir sozinha. Preciso de outros olhos, de alguém com mais conhecimentos.
- E você espera que nós dois consigamos solucionar uma coisa que está frustrando a Guilda com os seus vastos recursos. Se puséssemos a Sigma a par da situação...
- Você estaria dando a vitória de bandeja à Guilda. Tem um espião na Sigma. O que quer que a Sigma fique sabendo, a Guilda também saberá.
Ela tinha razão. Era preocupante, para dizer o mínimo.
- Então você sugere que lutemos sozinhos. Só nós dois.
- E mais alguém... se ele cooperar.
- Quem?
- Quando se trata de lidar com anjos e arqueologia, existe apenas outra pessoa que eu respeito.
Gray soube imediatamente a quem ela estava se referindo.
— Vigor.
Ela fez um aceno afirmativo de cabeça.
- Deixei um cartão de visita para monsenhor Verona, um mistério para ele começar a solucionar sozinho. Se você cooperar, nós seguiremos em frente. — Ela tocou o obelisco, balançando a metade quebrada. — Até o próximo passo no caminho dos anjos.
- E onde é isso?
Seichan voltou a sacudir a cabeça. Decerto ela não facilitaria as coisas.
— Eu lhe direi quando estivermos longe. De qualquer modo, temos de nos mover. Quanto mais tempo ficarmos num lugar, maior o risco de nos expormos.
Ela estendeu a mão para o obelisco.
Gray a rechaçou. Ele agarrou a parte maior do obelisco quebrado e ergueu-a acima da cabeça. Já estava farto.
— Destrua-o se quiser — advertiu Seichan. — Mesmo assim eu não lhe direi mais nada. Pelo menos até que estejamos longe e em segurança, e você concorde em ajudar.
Gray a ignorou.
- Suponho que você já tenha feito cópias desta escrita, provavelmente até fotos.
- Várias, na verdade — disse ela.
- Ótimo.
Ele baixou o braço e despedaçou o obelisco contra o assoalho. Ele se fragmentou em vários pedaços, que se espalharam pelo linóleo. Seichan soltou um pequeno grito de surpresa, dando a entender que não tinha nenhuma pista do que estava oculto no interior do obelisco.
— O que... o que você fez?
Gray abaixou-se e separou os fragmentos a fim de recuperar a haste de prata dos resíduos. Ficou novamente de pé, e entre os dedos segurava o que estava oculto dentro da pedra. Por um momento, ficou atordoado e em silêncio.
Ele ergueu o grande crucifixo de prata.
Os olhos de Seichan arregalaram-se ao reconhecer o objeto. Ela chegou mais perto, alheia a qualquer dor.
- Não pode ser. Você o encontrou.
- Encontrei o quê?
- A cruz de frei Agreer. — Sua voz baixou, ao mesmo tempo irritada e mortificada. — E ela estava comigo o tempo todo.
- Quem é frei Agreer?
— Frei Antonio Agreer. O confessor de Marco Polo.
Marco Polo?
Cansado de enigmas e de informações incompletas, Gray falou num tom áspero.
— Seichan, que diabo está acontecendo?
Ela acenou para uma cadeira lateral, sobre a qual sua jaqueta de couro rasgada fora jogada.
— Temos que sair daqui.
Ele recusou-se a se mexer, bloqueando a passagem quando ela se encaminhou para a cadeira.
Ela baixou o queixo, e seus olhos endureceram.
— Gray, mude sua maldita opinião. Eu não tenho tempo — disse ela, tentando passar por ele.
Ele segurou-lhe o braço.
— E o que pode me impedir de entregar você à Sigma?
Ela girou, libertando-se. Todo o sangue recém-transfundido estava agora no rosto dela, lívido e furioso.
— O fato de você ter juízo, Gray! Se a Guilda me pegar, eu estou morta. Se o seu governo me capturar, serei trancafiada para sempre num lugar distante, sem a menor condição de impedir o que está prestes a acontecer. Foi por isso que vim procurá-lo. Mas tudo bem. Vou tornar o acordo mais atraente, fazer um negócio com você. O que você acha? Me ajude, convença Vigor do mesmo, e depois eu lhe darei o nome do espião na Sigma. Se salvar vidas não é bom o bastante... os lobos já estão à porta da Sigma. Você talvez não saiba disso, mas as autoridades estão procurando castrar todos vocês, colocar todos vocês para pastar, e, agora que outro espião — um segundo espião — está escondido no meio de vocês, eles os queimarão completamente e jogarão sal na terra. Será o fim da Sigma. Para sempre.
Gray percebeu que estava hesitando. Ele de fato ouvira tais boatos, gerados pela auditoria interna feita pela NSA e pela DARPA. Mas também se lembrou de uma Seichan diferente, curvada sobre ele, com a arma em seu rosto. Ela tentara matá-lo quando se encontraram pela primeira vez. Até que ponto poderia confiar nela?
Antes que o impasse fosse resolvido, ouviu-se um grito vindo da recepção.
— Comandante Pierce! Venha ver isto!
Gray praguejou entre os dentes ao ouvir o grito do homem. O que Kowalski não entendia sobre secreto?
Gray olhou nos olhos de Seichan. Ela ainda ardia de pura raiva, mas essa raiva não conseguiu destruir o que ele havia percebido na voz dela enquanto ela sangrava na entrada de veículos da casa dos pais dele. Terror.
Ele foi até a cadeira lateral, pegou a jaqueta e entregou-a a ela.
— Nós faremos as coisas do seu jeito por enquanto. Mas isso é tudo o que eu prometo.
Ela concordou com um aceno de cabeça.
— Comandante!
Com um aceno de cabeça, Gray saiu do gabinete. Ele ouviu o volume da televisão aumentar e avançou às pressas. Ainda segurando o crucifixo em sua palma, guardou-o no bolso antes de entrar na recepção.
Ele encontrou todos com os olhos fixos na tevê e notou o logotipo familiar da CNN Headline News. Na tela, três casas ardiam à beira de um incêndio na floresta.
— ...possivelmente incêndio criminoso — continuou a reportagem. — Repetindo: a polícia está à procura deste homem: Grayson Pierce, aqui de Washington.
Uma foto de Gray uniformizado era exibida no canto da tela, com os cabelos pretos completamente raspados, os olhos zangados, a boca rígida. Era sua fotografia de identificação da época em que ele fora encarcerado em Leavenworth. Não era uma foto lisonjeira: ele parecia um criminoso feroz.
Seu pai murmurou ao lado dele.
— Parece que o seu passado acabou de meter você numa encrenca e tanto.
Gray concentrou-se na reportagem.
— No momento, a polícia está chamando esse ex-ranger do Exército de uma pessoa de interesse. Isso é tudo. Ele é procurado apenas para interrogatório. A polícia solicita a qualquer pessoa que saiba do seu paradeiro que entre em contato com as autoridades imediatamente.
Kowalski ergueu o controle remoto e desligou o som.
O dr. Corrin afastou-se de todos eles.
— Tendo em vista tudo isso, eu não posso mais ficar calado... Kowalski apontou o controle remoto na direção do médico.
— Quem começa tem que ir até o fim, doutor. Quem ajuda vira cúmplice. Cale o bico, ou o senhor poderá dar um beijo de despedida no seu diploma de medicina.
O dr. Corrin empalideceu, e recuou mais um passo.
A mãe de Gray estendeu uma das mãos e tocou o braço do médico de uma forma tranquilizadora.
- Isso é um absurdo. — Ela fechou a cara para Kowalski. — Pare de assustá-lo.
Kowalski deu de ombros.
- Alguém está tentando nos tirar da toca — disse Gray.
— Mas isso não faz sentido — argumentou sua mãe. — Eu falei com o diretor Crowe ao telefone no abrigo secreto. Ele sabe que caímos numa emboscada. Por que ele está deixando essas mentiras se espalharem?
A resposta veio de trás deles.
— Porque na verdade é a mim que eles procuram. — Seichan entrou na recepção usando sua jaqueta. — Eles não querem correr o risco de me deixar escapar por entre os dedos.
Gray fitou os outros.
— Ela tem razão. Eles estão fechando o cerco. Temos que partir agora.
Kowalski confirmou essa asserção. Depois de ter sido repreendido pela mãe de Gray, ele havia ido até a única janela e perscrutado através das persianas.
— Pessoal, temos companhia.
Gray juntou-se a ele. A janela dava para o hospital principal. A curva do estacionamento das ambulâncias era visível. Quatro viaturas da polícia surgiram à vista, silenciosas, com as luzes girando. As autoridades locais haviam começado a vasculhar os hospitais.
Virando-se, ele fitou o ex-professor-assistente de sua mãe.
— Dr. Corrin, nós exigimos muito do senhor, mas acho que vou exigir mais. O senhor pode levar meus pais para algum lugar seguro?
— Gray — disse sua mãe.
— Mamãe, não vamos discutir — disse ele, sem tirar os olhos do médico.
Corrin fez lentamente um aceno afirmativo de cabeça.
— Eu possuo alguns apartamentos de aluguel. Um perto do Dupont Circle está mobiliado, mas desocupado atualmente. Ninguém pensaria em procurar seus pais lá.
Era uma boa opção.
— Pai, mãe... não se comuniquem com o mundo exterior nem usem cartões de crédito. — Ele virou-se para Kowalski. — Você pode tomar conta deles?
Kowalski fraquejou, claramente desapontado.
— Não, sem essa de me colocar de guarda de novo.
Gray começou a dar ordens, mas sua mãe o interrompeu.
- Podemos tomar conta de nós mesmos, Gray. Seichan ainda está em más condições de saúde. Você talvez precise de duas mãos extras mais do que nós precisaremos.
- E o prédio tem segurança 24 horas por dia — acrescentou o dr. Corrin, um pouco rápido demais. — Vigias, câmeras, alarmes de emergência.
Gray suspeitou de que o apoio do médico visasse menos à segurança de seus p.iis do que manter Kowalski longe de sua propriedade. Mesmo agora, o dr. Corrin tomava o cuidado de permanecer alguns passos longe do homem.
E sua mãe tinha razão. Com Seichan ferida, eles poderiam precisar da força do homenzarrão. Ele era o homem-músculos da Sigma, afinal de contas. Ele poderia muito bem pô-los em ação.
Kowalski deve ter notado alguma coisa na expressão de Gray.
- Está na hora. — Ele esfregou as mãos. — Então vamos começar esta festa. Primeiro, precisaremos de armas.
- Não, primeiro precisamos de um carro — disse Gray, e tornou a virar-se para o dr. Corrin.
O médico não hesitou: entregou-lhe as chaves do carro.
— Estacionamento dos médicos. Vaga 104. Um Porsche Cayenne branco.
Ele estava mais do que contente por separar-se deles.
Mas outra pessoa não.
Sua mãe deu-lhe um forte abraço e sussurrou em seu ouvido:
— Tenha cuidado, Gray. — A voz dela reduziu-se a um sopro. — E não confie nela... não plenamente.
- Não se preocupe... — disse ele, concordando com o apelo e a advertência.
- Uma mãe sempre se preocupa.
Ainda nos braços dela, ele sussurrou uma última instrução, destinada apenas aos ouvidos de sua mãe. Ela aquiesceu com um aceno de cabeça e, com um aperto final, soltou-o.
Ao se virar, Gray deparou com a mão do pai estendida e apertou-a. Era o jeito deles. Nada de abraços. Ele era do Texas. Seu pai virou-se para Kowalski e disse:
— Não o deixe fazer nenhuma estupidez.
— Farei o possível. — Kowalski acenou com a cabeça na direção da porta. — Estamos prontos?
Quando Gray começou a se afastar, seu pai pôs uma das mãos em seu ombro, apertou-o com força e em seguida deu-lhe um tapinha de despedida. Era a forma de expressão mais próxima de "Eu te amo" que ele poderia receber do homem. E isso alegrou Gray mais do que ele queria admitir.
Sem mais palavras, conduziu os outros para fora.
3:49h
— Ainda não recebemos nenhuma notícia do paradeiro do comandante Pierce — informou Brant pelo seu interfone.
Painter estava sentado à sua escrivaninha. A falta de notícias o desalentava e aliviava ao mesmo tempo. Antes que ele pudesse analisar sua própria reação interna, Brant prosseguiu.
- E o dr. Jennings acabou de chegar.
- Mande-o entrar.
O dr. Malcom Jennings, chefe do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento, telefonara meia hora atrás, ansioso por uma reunião, mas Painter teve de fazê-lo esperar por causa da crise no abrigo secreto. Mesmo agora, Painter só poderia conceder-lhe cinco minutos.
A porta se abriu e Jennings entrou a passos largos no gabinete, com uma das mãos já erguida.
— Eu sei... eu sei que você está ocupado... mas isto não podia esperar.
Painter indicou com um gesto a cadeira em frente à sua escrivaninha.
O ex-patologista forense, um homem magricela, sentou-se na cadeira, porém permaneceu equilibrado na beira do assento, claramente ansioso, segurando um fichário numa das mãos. Jennings, de quase 60 anos, estava na Sigma desde antes de Painter assumir o cargo de diretor. Ele ajustou os óculos, cujas lentes em meia-lua possuíam uma ligeira tonalidade azul, para melhor prevenir o cansaço visual durante o uso do computador. Eles também complementavam sua pele cor de azeitona escura e seus cabelos, que iam ficando grisalhos, o que lhe conferia um ar professoral moderno. Mas, naquele momento, o patologista simplesmente parecia exausto por causa da longa noite, embora em seus olhos permanecesse um resquício de excitação maníaca.
— Presumo que esta reunião seja sobre os arquivos que Lisa transmitiu da ilha Christmas — começou Painter.
Jennings confirmou com um aceno de cabeça e abriu o fichário. Deslizou na direção de Painter duas fotografias horríveis das pernas de um homem, cobertas com o que parecia ser gangrena.
— Examinei meticulosamente as anotações do toxicologista e do bacteriologista. Eis aqui um paciente cujas bactérias da pele subitamente se tornaram virulentas, consumindo-lhe os tecidos moles das próprias pernas. Nunca vi uma coisa dessas.
Painter examinou as fotos, mas, antes que pudesse fazer ao menos uma pergunta, o médico estava outra vez em pé, andando de um lado para outro.
— Eu sei que inicialmente nós classificamos o desastre indonésio como prioridade de baixo nível, apenas como uma operação para reunir fatos. Mas, depois desses achados, precisamos elevar o nível imediatamente. Vim aqui pessoalmente para pedir que a situação passe a ser classificada como Estado Crítico Nível Dois.
Painter sentou-se mais empertigado. Aquela classificação significaria o desvio de recursos maciços.
— Precisamos de mais de duas pessoas investigando lá — prosseguiu Jennings. Quero uma equipe forense completa no local o mais rápido possível, mesmo que tenhamos de subcontratar os serviços de pessoal militar em geral.
— E você não acha que isso é agir prematuramente? Monk e Lisa devem entrar em contato com a base em — Painter consultou o relógio —, em pouco mais de três horas. Então poderemos elaborar estratégias, quando tivermos mais dados.
Jennings tirou os óculos e esfregou um dos olhos com o nó de um dedo.
- Acho que você não está entendendo. Se as hipóteses preliminares do toxicologista se revelarem verdadeiras, podemos estar diante de um desastre ecológico com potencial de alterar toda a biosfera da Terra.
- Malcolm, você não acha que está exagerando os seus argumentos? Esses resultados são preliminares. A maioria não passa de conjecturas. — Painter acenou para as fotografias. — Tudo isto poderia ser apenas um evento tóxico passageiro.
- Mesmo que fosse esse o caso, eu recomendaria lançar bombas incendiárias naquela ilha e isolar os mares ao redor por vários anos. — Ele encarou Painter. - E, se de alguma forma essa ameaça se revelar transmissível, estamos falando sobre o potencial de uma catástrofe ambiental global.
Painter ficou boquiaberto com as declarações do patologista. Jennings não era homem de dar alarme falso.
O médico continuou.
— Eu compilei todos os dados necessários e redigi um resumo. Leia-o e me devolva. Quanto antes, melhor.
Jennings deixou seu fichário sobre a mesa de trabalho de Painter.
Painter pôs uma das mãos sobre a pasta e puxou-a na sua direção.
— Vou fazer isso agora e devolvê-lo na próxima meia hora.
Jennings fez um aceno de cabeça, agradecido e aliviado. Virou-se para sair, mas não antes de acrescentar uma última advertência.
— Lembre-se... ainda não temos certeza do que matou os dinossauros.
Com aquele pensamento preocupante, o patologista saiu do gabinete. Painter fixou os olhos nas horríveis fotografias ainda sobre a escrivaninha. Ele rezou para que Jennings estivesse errado. Em virtude de toda a agitação das últimas horas, quase se esquecera da situação nas ilhas indonésias.
Quase.
A noite inteira, Lisa jamais estivera longe de seus pensamentos.
Mas agora surgiam novas preocupações, despertadas pela insistência do patologista. Ele tentou não as deixar dominá-lo. Durante a manhã, Lisa não voltara a dar notícias. Aparentemente, nada se agravara por lá o bastante para justificar outro telefonema de emergência.
No entanto...
Painter apertou o botão do interfone.
Brant, você pode ligar para o telefone via satélite de Lisa?
- Imediatamente.
Painter abriu o fichário. Quando começou a ler o relatório, sentiu um arrepio de medo subir pela sua coluna.
Brant voltou a falar pelo interfone.
— Diretor, só entra a gravação do correio de voz. O senhor quer que eu deixe uma mensagem?
Painter virou o pulso e checou o relógio. Ele estava ligando horas antes do combinado. Lisa poderia estar às voltas com um sem-número de tarefas. No entanto, teve de reprimir um pânico crescente.
- Simplesmente peça à dra. Cummings que telefone o mais rápido possível.
- Sim, senhor.
- Brant, entre em contato com a mesa telefônica do navio de cruzeiro.
Ele sabia que estava sendo paranóico. Tentou voltar a ler o relatório, mas achou difícil se concentrar.
— Senhor... — A voz de Brant voltou a soar um instante depois. — Consegui entrar em contato com o operador do sistema de radionavegação marítima. Eles estão relatando problemas de comunicação em todo o navio, quedas na alimentação do satélite. Eles ainda estão resolvendo algumas das falhas de programação do novo navio.
Painter fez um aceno de cabeça. O Mistress of the Seas estava em sua viagem inaugural, também conhecida como cruzeiro-teste, quando foi requisitado para aquela emergência médica.
— Eles não relatam nenhum outro problema significativo — concluiu Brant.
Painter suspirou. Então ele estava mesmo sendo paranóico demais. Estava deixando seus sentimentos por Lisa embotarem seu discernimento. Se fosse qualquer outro agente, será que ele teria ao menos telefonado?
Retomou a leitura.
Lisa estava bem.
Além disso, Monk estava com ela. Ele a manteria sã e salva.
CAPÍTULO 6
Pestilência
5 de julho, 15:02h
A bordo do navio Mistress of the Seas
Que diabo estava acontecendo?
Lisa estava em pé com os outros três cientistas. Todos estavam reunidos na suíte presidencial do navio. Um mordomo uniformizado despejou uísque puro malte numa fileira de copos em forma de tulipa, alinhados sobre uma bandeja de prata. Por causa do gosto de Painter por uísque puro malte, Lisa reconheceu o rótulo da garrafa: um raro Macallan sessenta anos. As mãos do mordomo tremiam, errando o alvo, derramando o uísque caro.
A culpa pelo mau desempenho do mordomo podia ser atribuída aos dois pistoleiros mascarados, armados com rifles de assalto. Eles montavam guarda junto às portas duplas que conduziam ao interior da suíte. No outro lado do aposento, portas duplas envidraçadas até o chão se abriam para uma sacada grande o suficiente para se estacionar um ônibus municipal, vigiada por outro pistoleiro.
Dentro, armários e estantes de teca e móveis de couro equipavam a magnífica suíte. Vasos de rosas em miniatura nativas da ilha decoravam o aposento, enquanto alto-falantes ocultos sussurravam suavemente uma sonata de Mozart. Os cientistas estavam reunidos no centro da suíte. Poderia ter sido o começo de um coquetel universitário.
A não ser pelo medo bruto estampado no rosto de todos.
Mais cedo, Lisa e Henri Barnhardt haviam obedecido à ordem para subir até a ponte de comando do navio. O que mais poderiam fazer? Ao chegar lá, encontraram o chefe da equipe da OMS, o dr. Lindholm, limpando o sangue do nariz, depois de ter sido claramente espancado no rosto. Benjamin Miller, o especialista em doenças infectocontagiosas, chegou pouco depois.
Haviam sido recebidos por um sujeito alto, o líder dos piratas. Ele tinha o tamanho de um jogador da defesa de futebol americano, músculos fortes e mãos grossas e cruéis. Usava um uniforme caqui, com calças camufladas enfiadas nas botas pretas. Não se preocupara em cobrir o rosto com uma máscara. Seus cabelos eram da cor de barro úmido, cortados curtos, e sua pele era como bronze polido, exceto por uma tatuagem verde e preta no lado esquerdo do rosto. O desenho da tatuagem tinha um padrão maori conhecido como moko, composto de espirais e linhas confusas.
Ordenara que eles fossem conduzidos àquela suíte, a fim de esperar num local isolado.
Lisa ficara contente em sair da ponte de comando. Uma intensa batalha devia ter sido travada no topo do navio, evidenciada por janelas e equipamentos furados à bala. Ela também notara a ampla mancha de sangue no assoalho da ponte de comando, onde um corpo havia sido arrastado.
Ao ser conduzida com os outros para a suíte presidencial, Lisa ficou surpresa em descobrir um último prisioneiro pego na rede.
O dono da linha de cruzeiros, Ryder Blunt, estava em pé ao lado de seu mordomo e reunia um punhado de copos de cristal. Usando jeans e uma camisa de rugby, ele parecia um jovem Sean Connery dourado pelo sol.
Ele se aproximou e distribuiu os copos de uísque.
— Acho que todos nós podemos usar um pouco do calor deste Macallan — disse, soprando a fumaça espessa da ponta de um charuto. — Mesmo que seja apenas para acalmar nossos nervos. E, se não conseguirmos acalmá-los, pelo menos beberemos todo o meu melhor estoque antes que os filhos-da-puta sanguinários o descubram.
Como a maioria das pessoas, Lisa conhecia a história de Ryder. O australiano tinha apenas 48 anos e fizera fortuna durante o boom do silício, desenvolvendo software de criptografia para o download de material protegido por direitos autorais. Depois investira seus lucros numa série de empreendimentos imobiliários e comerciais extremamente bem-sucedidos, incluindo a linha de cruzeiros. Solteirão a vida inteira, ele também era conhecido por seus hábitos pouco ortodoxos: nadar com grandes tubarões-brancos, praticar esqui de helicóptero em lugares remotes do mundo, saltar de pára-quedas de edifícios em Kuala Lumpur e Hong Kong. No entanto, também era conhecido pela generosidade e participava de uma grande quantidade de atividades filantrópicas.
Por isso não era de admirar que houvesse emprestado seu navio para ajudar durante aquela crise médica. Agora, talvez lamentasse essa sua generosidade.
Ryder ofereceu um copo de uísque a Lisa, que sacudiu a cabeça.
— Minha jovem, não se ofenda — ele murmurou para ela, ainda estendendo o copo de cristal. — Quem sabe quando teremos outra oportunidade?
Ela aceitou o copo, mais com a intenção de que ele se afastasse. A fumaça do charuto dele ardeu em seus olhos. Lisa bebericou o líquido âmbar. Uma suavidade quente desceu até seu estômago, aquecendo-a. Ela exalou um pouco do calor, o que ajudou a acalmá-la.
Assim que os copos foram distribuídos, o bilionário afundou numa poltrona próxima. Ele apoiou os cotovelos nos joelhos, olhando na direção dos guardas armados, soltando baforadas de seu charuto.
Ao lado dela, Henri finalmente fez a pergunta que atormentava a todos.
— O que esses piratas querem de nós?
Lindholm fungou, com os olhos vermelhos, já ficando roxos por causa do golpe no rosto.
- Reféns — disse ele, olhando de esguelha para o bilionário sentado.
- Talvez no caso de sir Ryder — concordou Henri, baixando a voz, usando o título de cavaleiro do homem. — Mas, nesse caso, por que se preocuparem conosco? Nossas economias juntas nem sequer chegariam ao dinheiro que o homem tem no bolso.
Lisa soprou de seu rosto a fumaça do charuto.
- Eles claramente queriam todos os principais cientistas aqui. Mas como sabiam quem deveriam convocar?
- Podem ter obtido da tripulação do navio uma lista de passageiros — disse Lindholm de mau humor, e voltou a olhar de esguelha na direção de Ryder. — Não resta dúvida de que alguns tripulantes estavam mancomunados com os agressores.
Ryder ouviu e murmurou para si mesmo:
- E se algum dia eu descobrir quem são eles, mandarei enforcá-los nos lais das vergas.
- Mas, esperem... se eles queriam todos os principais cientistas aqui, por que o dr. Graff não foi convocado conosco? — perguntou Benjamin Miller, citando o pesquisador marinho que saíra para coletar amostras com Monk. Ele virou-se para Lisa. — Ou seu colega, o dr. Kokkalis? Por que nos convocaram, mas não aos outros?
Miller bebericou de seu copo, franzindo o nariz à força do puro malte. Com uma vasta cabeleira castanha e olhos verdes, o bacteriologista formado em Oxford não era um homem feio. Tinha pouco mais de 1,50 metro de altura, porém parecia menor, em razão dos ombros baixos e da postura encurvada, possivelmente adquirida durante décadas debruçado sobre um microscópio.
- O dr. Miller tem razão — disse Henri. — Por que eles não foram convocados?
- Talvez os filhos-da-puta soubessem que eles não estavam a bordo — respondeu Lindholm.
- Ou talvez eles já tivessem sido capturados. — Miller olhou de forma apologética na direção de Lisa. — Ou foram mortos.
O peito de Lisa ficou oco de preocupação. Ela esperava que Monk houvesse escapado à armadilha, que agora estivesse pedindo ajuda, mas confiava pouco nesse sonho. Antes do ataque, Monk já estava atrasado para o regresso ao navio.
Henri sacudiu a cabeça, tomou seu drinque num só gole e baixou o copo.
— Não adianta especularmos sobre o destino deles. Mas, se nossos captores sabiam que nossos colegas estavam lá fora no campo, isso indica que, seja lá o que estiver acontecendo aqui, é mais do que uma situação com reféns.
— Mas o que mais eles poderiam querer? — perguntou Miller.
O ruído de um helicóptero se aproximando atraiu os olhares de todos eles para as portas abertas da sacada. Ele era gutural demais para ser o do Eurocopter, de menor tamanho, que dera apoio aéreo à batalha marítima. Eles se dirigiram em grupo à porta. Ryder levantou-se soltando uma forte baforada de fumaça e juntou-se a eles.
Uma brisa fresca soprava do mar, cheirando a sal e a um leve resíduo de substância química acre, conseqüência da emanação tóxica, ou talvez fosse apenas o cheiro do óleo queimando na água. Ali próximo, o pequeno navio da Guarda Costeira australiana, destruído pela explosão de um foguete, ainda fumegava e ia a pique de lado, já meio submerso.
Acima do topo do navio, um helicóptero cinza com dois rotores, um na frente e o outro atrás, com design militar, surgiu à vista. Sobrevoou a água e mudou de direção, agitando a fumaça. Passou pelo povoado à beira-mar, em chamas em vários pontos agora, e então deu a volta, satisfeito com o que quer que houvesse inspecionado. Seguiu a toda a velocidade na direção do navio e sumiu de vista. Pelo ritmo de seu rugido, pousou no heliporto no topo do navio.
O ruído das hélices diminuiu e parou.
Na ausência dele, Lisa reconheceu um novo barulho. Uma ligeira vibração fez as solas de seus pés comicharem.
— Estamos em movimento — disse Henri.
Ryder praguejou em torno do charuto apertado na boca. Lisa viu que era verdade. Muito lentamente, como os ponteiros de um relógio, a vista do povoado em chamas estava se mexendo.
— Eles estão saindo com o navio — disse Miller. Lindholm fechou um dos punhos de encontro ao tórax.
Lisa sentiu um medo parecido. O fato de saber que a terra estava tão próxima dava certo nível de segurança. Mas mesmo isso lhes estava sendo tirado. Sua respiração ficou mais pesada, e, no entanto, ela inspirava menos ar. Decerto alguém logo perceberia o que havia acontecido e viria investigar. Na verdade, ela deveria telefonar para Painter em apenas três horas. Se ela não telefonasse...
O ritmo do movimento acelerou-se quando o navio de cruzeiro gigante lutou contra sua própria inércia e começou a se afastar da ilha.
Ela consultou o relógio e em seguida virou-se para Ryder.
— Senhor Blunt, a que velocidade o seu navio pode viajar?
Ele apagou o charuto num cinzeiro.
— O padrão do Troféu Hales para a velocidade da travessia transatlântica de um navio de cruzeiro é de quarenta nós. Rápido pra burro.
— E o Mistress? — perguntou ela.
Ryder bateu de leve numa das anteparas.
— É o orgulho da frota, com motores de design alemão e construção de um único casco. Ele é capaz de atingir 47 nós.
Lisa calculou mentalmente. Se não telefonasse em três horas, quando Painter começaria a se preocupar? Em quatro ou cinco horas? Ela sacudiu a cabeça. Painter não esperaria um minuto sequer além do combinado.
- Três horas — ela murmurou para si mesma.
Seria, porém, tarde demais? Ela virou-se para Ryder.
- Tem um mapa aqui?
Ryder apontou e seguiu na frente.
— Tem um globo no nicho que abriga a biblioteca.
Ele a levou até um nicho revestido com estantes de teca, afastado do aposento principal. No centro, havia um globo de madeira fixo. Lisa inclinou-se sobre ele e o girou a fim de exibir as ilhas indonésias. Calculou mentalmente e mediu com os dedos.
— Em três horas, estaremos perdidos no meio da cadeia de ilhas indonésias.
A região, dominada pelas ilhas maiores de Java e Sumatra, era literalmente um labirinto de atóis menores e ilhotas. Mais de 18 mil deles, espalhados por uma área equivalente ao território continental dos Estados Unidos. Longe das principais cidades de Jacarta e Cingapura, a região continuava num nível de tecnologia da Idade da Pedra. Se alguém quisesse esconder um navio de cruzeiro, aquele seria um bom lugar para fazê-lo.
- Eles não podem esperar roubar um navio inteiro — exclamou Lindholm, atraído para a biblioteca atrás dos outros. — E os satélites de vigilância? Não se pode esconder uma coisa tão grande quanto um navio de cruzeiro.
- Não subestime nossos captores — disse Henri. — Primeiro alguém precisa saber para nos procurar.
Lisa sabia que ele tinha razão. Dada a rapidez do ataque, junto com a conivência de membros-chave da tripulação do navio, eles deviam ter levado semanas a planejar o seqüestro. Alguém sabia o que estava acontecendo na ilha Christmas muito antes do restante do mundo. Lisa lembrou-se do paciente na ala de isolamento, o John Doe com as bactérias devoradoras de carne. Ele fora encontrado vagando pela ilha cinco semanas atrás.
Será que os seus captores sabiam disso?
Uma agitação na porta dupla da suíte os fez virar-se. Dois homens entraram. À frente, Lisa reconheceu o líder dos piratas, o homem com o rosto tatuado.
Passando pelo guerreiro maori, um estranho alto avançou. Tirou um chapéu panamá de abas largas e passou-o para uma mulher que surgiu de trás do ombro do homem tatuado. Avançando a passos largos, o recém-chegado aparentemente estava vestido para uma festa ao ar livre: trajava um elegante terno folgado de linho branco, completado por uma bengala combinando e pelos cabelos grisalhos cortados jovialmente até a altura dos ombros. Suas feições lustrosas e seus olhos muito próximos davam a impressão de que ele era indiano ou talvez paquistanês.
Ele se dirigiu até o grupo, batendo a bengala no chão, porém era óbvio que não precisava do apoio, que servia apenas para ele se exibir. Seus olhos brilhavam com um júbilo inapropriado.
— Namaste. — Ele os cumprimentou em hindi com uma ligeira inclinação da cabeça. — Obrigado a todos vocês por se juntarem a mim aqui.
Quando parou, o estranho fez um aceno de cabeça para o dono do Mistress of the Seas.
— Sir Ryder, eu lhe sou grato pela hospitalidade e pelo uso de seu maravilhoso navio. Nós nos esforçaremos ao máximo para devolver-lhe seu navio incólume.
Ryder simplesmente olhou com raiva, avaliando o homem. Virando-se, o estranho dirigiu-se aos cientistas:
— Ao iniciarmos este grande empreendimento, é um privilégio ter estes importantes especialistas da OMS reunidos num único aposento.
Lisa notou as sobrancelhas de Henri se contraírem em razão da cautela e da confusão.
Os olhos do estranho pousaram afinal em Lisa.
— E, é claro, não devemos nos esquecer da nossa colega das operações secretas dos Estados Unidos. Força Sigma, eu creio, não é mesmo?
Calando-se de surpresa, Lisa só conseguiu fitá-lo. Como ele pudera...?
O homem curvou-se levemente na direção dela, de uma maneira educada, sem zombar.
— Sinto muito que o seu colega não tenha podido juntar-se a nós. Parece que ele teve um infortúnio enquanto tentávamos buscá-lo. Alguma coisa a ver com caranguejos nativos. Os detalhes ainda são vagos. Perdemos vários dos nossos próprios homens na tentativa. Apenas um deles conseguiu voltar com vida.
A visão de Lisa estreitou-se, e seus olhos fecharam-se de horror.
Monk...
Alguém tocou-lhe o ombro, consolando-a. Era Ryder Blunt. Ele encarou o estranho.
- Quem diabo é você?
- Ah, sim, claro. Desculpem-me. — O homem ergueu a palma de uma das mãos e apresentou-se formalmente. — Dr. Devesh Patanjali, especializado em biotecnologia, a serviço da Guilda.
Apesar da angústia, Lisa sentiu um frio na boca do estômago. Painter lhe contara tudo sobre a Guilda... e o rastro de sangue que a organização terrorista deixava atrás de si.
O homem bateu de leve a bengala no chão de uma forma incisiva.
- E acho que não devemos perder mais tempo com apresentações. Temos muito trabalho por fazer antes de chegarmos ao porto de manhã.
- Que trabalho? — Lisa conseguiu perguntar constrangida, sentindo grande pesar.
Ele ergueu uma das sobrancelhas na direção dela.
— Minha querida, juntos nós temos que salvar o mundo.
15:45h
Monk apertou a palma da mão sobre a boca do homem. Os dedos artificiais de sua outra mão se fecharam com força na garganta dele, pouco abaixo da mandíbula, comprimindo a carótida, impedindo o fluxo sanguíneo para o cérebro. O homem se debateu, mas os dedos de Monk eram fortes o bastante para quebrar nozes entre eles. Esperou as pernas do homem pararem de dar pontapés e ficarem frouxas e depois o baixou até o chão.
Ele arrastou o homem para dentro de um pequeno armário com equipamento.
Monk notou a vibração sob seus pés e o som agudo dos motores. Empertigou-se. O navio estava em movimento. Ele havia embarcado como clandestino bem a tempo.
Após a explosão de seu jet ski, Monk subira a bordo por uma das correntes estabilizadoras da âncora no outro lado do navio, livrando-se de seus tanques de ar e deixando-os descer até o fundo da enseada. Seu ponto de entrada estava escassamente guardado, pois a maior parte da atenção se voltava para a praia. Da corrente, ele conseguiu pular para um dos botes salva-vidas pendurados e, depois, subir com dificuldade e chegar ao Convés Promenade.
Ele se escondeu rapidamente.
No armário de suprimentos, ele aguardara 15 minutos até um guarda solitário passar — um dos piratas — portando um rifle de assalto Heckler & Koch. Agora o guarda estava estatelado no mesmo armário. Monk abriu o zíper de seu traje úmido e tirou as calças e a camisa folgadas do homem. Trocou de roupa rapidamente, porém não conseguiu enfiar os pés à força nas botas roubadas.
Pequenas demais.
Sem escolha, saiu descalço, mas não desarmado.
O peso do rifle ajudou-o a deixá-lo mais calmo e confiante.
Entrando no saguão, puxou o lenço de cabeça sobre o rosto, disfarçando-se como os outros piratas. Monk conhecia o navio, havia memorizado os diagramas esquemáticos durante a viagem dos Estados Unidos até as ilhas. Seguiu apressadamente por um convés e ao longo do corredor de estibordo. Encontrou outros dois piratas no poço da escada, mas simplesmente os empurrou com os ombros, parecendo ocupado e incomodado.
Um dos guardas gritou para ele, por causa do encontrão durante sua passagem. Monk não entendia a língua, mas sabia quando estava sendo xingado. Ergueu o rifle, admitindo sua culpa, mas sem se deter.
Desceu o corredor às pressas.
Lisa e Monk partilhavam cabines adjacentes ali. Era o primeiro lugar para procurar sua colega desaparecida. No caminho, Monk havia passado por dois corpos estatelados, alvejados nas costas e abandonados onde haviam caído. Ele tinha de encontrá-la.
Contou as cabines. Ouviu alguém gritando atrás de uma porta, mas se apressou até chegar às cabines que lhes haviam sido destinadas.
Puxou a porta de sua cabine. Trancada. Ele havia deixado o cartão-chave eletrônico de seus aposentos em suas sacolas no Zodiac. Passou para a porta seguinte, a da cabine de Lisa. A maçaneta recusou-se a ceder, mas ele ouviu alguém mover-se atrás da porta.
Tinha de ser Lisa.
Graças a Deus...
Ele bateu de leve com o nó de um dedo de plástico na porta e aproximou os lábios.
— Lisa... sou eu.
O olho-mágico na porta escureceu quando alguém se moveu para perscrutar. Monk deu um passo para trás e baixou o lenço de cabeça, revelando-se. Após um instante, a corrente rangeu no outro lado, e o trinco soltou-se com um estalido.
Monk puxou a máscara e percorreu o corredor de um extremo ao outro, a fim de verificar se estava tudo em ordem.
- Vamos, se apresse — sussurrou ele.
A porta se abriu, puxada para dentro.
Voltando para a porta, ele deu um passo à frente.
- Lisa, temos que...
Monk imediatamente reconheceu seu erro e apontou a arma. Não era Lisa.
Com a silhueta demarcada contra a intensa luz do sol na cabine, um rapaz estava agachado, meio oculto pela porta.
— Não... por favor, não atire.
Monk segurou seu rifle bem firme enquanto esquadrinhava a cabine. Alguém havia saqueado o aposento: gavetas haviam sido abertas e reviradas, e os armários, esvaziados. Porém, sua atenção se fixou rapidamente no outro ocupante do aposento: um cadáver, de bruços na cama. Era um dos piratas. Pela poça de sangue que encharcara a roupa de cama, sua garganta havia sido cortada.
Arregalando os olhos, Monk voltou sua atenção para o invasor.
— Quem é você?
O rapaz acenou com um dos braços, num gesto que abrangia todo o aposento.
— Eu vim aqui para encontrar a dra. Cummings. Não sabia onde mais procurar.
Monk finalmente reconheceu o jovem enfermeiro que vinha ajudando Lisa. Não conseguiu lembrar-se do nome do rapaz.
- Jesspal, senhor... Jessie — murmurou o rapaz, percebendo a confusão dele.
Baixando a arma, Monk fez um aceno de cabeça e entrou.
- Onde está Lisa?
— Não sei. Eu estava lá em cima na triagem — explicou ele, tremendo da cabeça aos pés, quase tendo um choque. — Depois as explosões... quatro membros da tripulação abriram fogo na enfermaria. Eu corri. A dra. Cummings tinha ido falar com o toxicologista. Rezei a Vishnu para que ela tivesse fugido de volta para a sua cabine.
O rapaz olhou de relance para a cama imunda e em seguida desviou o olhar com a mesma rapidez.
— A dra. Cummings havia deixado a bolsa lá na triagem. Eu a peguei e encontrei a chave da cabine. Mas esse homem já estava esperando aqui dentro. Ele ficou zangado quando viu que eu não era ela e me fez ajoelhar no chão. Tinha um rádio.
Jessie apontou para o rádio portátil no chão.
- E o que aconteceu com a garganta dele? — indagou Monk.
- Eu não podia deixá-lo informar a esse respeito. E a dra. Cummings havia deixado mais do que o cartão-chave na bolsa. — Jessie tirou um bisturi do cós. — Eu... eu tinha que...
Monk apertou o braço dele.
— Você agiu bem, Jessie.
O rapaz desabou em cima da outra cama.
- Eu os ouvi pelo rádio de bordo. Eles chamaram alguns médicos, incluindo a dra. Cummings.
- Para onde queriam que eles fossem?
- Para a ponte de comando do navio.
- Eles repetiram a ordem?
Jessie fitou-o por um momento e sacudiu lentamente a cabeça, num gesto afirmativo.
Então Lisa deve ter obedecido...
Agora Monk tinha um destino.
Foi até a porta que ligava os aposentos de ambos. Ela fora deixada entreaberta. Uma rápida espiada revelou que os aposentos dele não estavam em melhores condições. Alguém havia levado todo o seu equipamento pessoal, incluindo seu telefone via satélite. Procurou um pouco mais para ter certeza, mas não teve sorte.
Monk também examinou o cadáver e fez uma descoberta que o surpreendeu. A tonalidade escura da pele do pirata estendia-se apenas às mãos e ao rosto. O restante da pele do homem era branquíssimo, salpicado de algumas sardas. Aquele não era nenhum ilhéu da região, e sim algum mercenário disfarçado.
O que estava acontecendo ali?
Monk voltou à sua cabine a fim de pegar um par de tênis de basquete.
Enquanto os calçava, falou com Jessie.
— Não podemos ficar aqui. Alguém virá procurar a sua bela adormecida ali. Vamos encontrar outro lugar para você se esconder.
- E você?
- Eu vou procurar Lisa.
- Então eu vou com você — disse Jessie, levantando-se meio trôpego.
O rapaz puxou a camisa sobre a cabeça, com a clara intenção de também ir disfarçado de pirata. Ele era esquelético, mas Monk supôs que também tivesse alguns músculos rijos. Jessie havia atacado de surpresa aquele homem ali, matado alguém com o dobro do seu tamanho.
No entanto...
— Eu me viro melhor sozinho — disse Monk com firmeza.
Jessie finalmente conseguiu cobrir a cabeça com a camisa e murmurou alguma coisa.
— O quê?
O enfermeiro virou-se para ele, exasperado.
- Pratiquei jiu-jítsu e caratê e sou faixa-preta de quinto grau em cada uma dessas lutas marciais.
- Estou me lixando se você é a versão indiana de Jackie Chan. Mesmo assim você não vem comigo.
Uma batida à porta assustou ambos. Alguém gritou para eles em malaio, sem dúvida uma pergunta. Monk não entendeu uma palavra sequer e ergueu o rifle. Ele tinha outros meios de comunicação.
Jessie esgueirou-se de mansinho por ele, empurrando para baixo o cano do rifle ao passar. O enfermeiro gritou através da porta, parecendo irritado, retrucando asperamente em malaio. Seguiu-se um diálogo, e quem quer que estivesse à porta foi embora, obviamente satisfeito.
Jessie virou-se para ele, erguendo uma das sobrancelhas.
— Está bem, talvez você possa ser útil — admitiu Monk.
16:20h
Lisa estava em pé com os outros cientistas e Ryder Blunt. O grupo de prisioneiros fora conduzido sob a mira de armas até a coberta de proa do navio. O grande helicóptero estava apoiado era seus patins, travados agora. Suas portas estavam abertas, e havia uma intensa atividade em volta dele. Homens descarregavam pesados caixotes de seus compartimentos de carga.
Ela notou alguns dos nomes e logotipos de corporações estampados: SYNBIOTIC, WELCH SCIENTIFIC, GENECORP. Numa caixa estavam estampadas uma bandeira americana e as letras USAMRIID: US Army Medical Research Institute of Infectious Diseases."
Tudo aquilo era equipamento médico.
Os caixotes desapareceram no poço de um elevador.
Ela olhou para Henri Barnhardt. O toxicologista também havia notado os caixotes marcados. Uma de suas mãos coçou distraidamente o queixo barbudo. Rugas profundas marcavam seus lábios. Um pouco mais afastados, Miller e Lindholm simplesmente estavam em pé com os olhos como que embaciados, enquanto Ryder Blunt tentava acender outro charuto ao vento que zunia no topo do navio de cruzeiro.
Em pé embaixo dos rotores do helicóptero, o dr. Devesh Patanjali continuava a supervisionar pessoalmente o fim do descarregamento. Ele ainda não explicara sua enigmática declaração a respeito de salvar o mundo. Em vez disso, ordenara a todos eles que fossem até ali.
O líder maori dos pistoleiros estava em pé a um lado, sem nenhuma arma na mão, mas com uma das palmas apoiada numa grande pistola no coldre, uma enorme arma portátil. Ele inspecionava a atividade na coberta de proa com os olhos apertados, como um franco-atirador a vasculhar um campo de tiro. Lisa sabia que nada escapava à observação dele, inclusive a moça que acompanhava o dr. Devesh Patanjali.
Ela permanecia um mistério, não pronunciara uma única palavra sequer, e seu rosto era uma máscara imutável. Estava em pé na coberta de proa com as lustrosas botas pretas juntas, as mãos na cintura, uma postura formal de espera e servidão. E, embora seu rosto pudesse ser ilegível, suas formas curvilíneas haviam prendido completamente a atenção do pistoleiro maori.
Lisa ouvira por acaso o nome dela quando o dr. Patanjali saiu da suíte presidencial abaixo. Surina. Ao sair, o especialista em biotecnologia deu um beijo casto no rosto dela, aceito sem uma centelha de emoção. A mulher parecia ser uma Indiana miscigenada, e vestia um longo sari de seda em suaves tons laranja e cor-de-rosa, drapejado sobre uma longa trança negra como ébano. Se fossem soltos, os cabelos deveriam arrastar-se no chão atrás de seus calcanhares. Ao marcar sua herança, ela exibia na testa um ponto vermelho, o tradicional bindi. Mas sua cútis, semelhante à teca envernizada, era muito mais clara do que a de Devesh Patanjali, o que indicava uma ascendência européia em alguma parte de seu passado.
Lisa não conseguiu discernir se ela era irmã ou a esposa de Devesh, ou uma mera companhia. Mas também havia algo de ameaçador no silêncio dela, talvez intensificado pela frieza em seus olhos. Além do mais, seu braço esquerdo estava oculto por uma luva preta, tão grudada à pele que era difícil dizer se era de couro ou de borracha. Mas parecia que o membro havia sido mergulhado em tinta nanquim preta.
Cruzando os braços, Lisa virou-se e examinou o perfil da ilha Christmas se afastando. No curto período em que eles estavam em movimento, a ilha se reduzira a uma silhueta verde enevoada, deixando um rastro de fumaça escura em direção ao céu. Porém, quem estava lá para ver a fumaça como um sinal? Painter certamente ficaria desconfiado se nem ela nem Monk telefonassem para fazer um relatório. E no momento ela depositava todas as suas esperanças na paranóia dele.
Felizmente, aquela era a coisa mais provável.
Uma rajada de vento soprou súbita e violentamente quando os ventos alísios começaram. Gaivotas flutuaram no vento acima, atraindo o olhar dela. Quem dera se ela pudesse escapar tão facilmente...
Um grito voltou a chamar sua atenção para o helicóptero.
Dois homens com trajes cirúrgicos puxaram uma maca da porta traseira do helicóptero. As rodas desceram e travaram. Devesh pairou sobre eles, checando o paciente amarrado à maca. Equipamento portátil de monitoramento estava preso aqui e ali em volta do paciente para transporte. A figura estava presa a uma tenda de oxigênio. Pelos movimentos ascendentes e descendentes do tórax, o paciente parecia ser uma mulher. As feições estavam obscurecidas por um respirador e um emara¬nhado de tubos e fios. Devesh apontou a bengala, e os dois enfermeiros guiaram a maca na direção dos elevadores, seguindo a série de equipamentos médicos.
Ele afinal voltou para onde estavam os prisioneiros.
— Todos os laboratórios e o equipamento médico serão montados na próxima hora. Por sorte, a dra. Cummings e seu colega foram muito gentis por terem trazido aparelhos que estavam além até do meu alcance. Quem poderia saber que a divisão de pesquisa e desenvolvimento do Departamento de Defesa de vocês aperfeiçoou um microscópio eletrônico de varredura portátil junto com equipamento de eletroforese e de seqüenciador de proteínas? É muita sorte que esses instrumentos tenham caído do céu.
Ele bateu de leve com a bengala no chão e saiu.
— Venham. Deixem-me mostrar a vocês a verdadeira face do que estamos enfrentando.
Lisa seguiu-o junto com os outros. Naquele caso, ela não precisava dos rifles em suas costas para fazê-la obedecer. Havia mistérios demais ali, e ela queria respostas, alguma pista do motivo daquele ataque e das palavras de Devesh.
Minha querida, juntos temos que salvar o mundo.
Eles foram conduzidos por três conveses abaixo. Ao longo do caminho, Lisa notara equipes de homens em trajes de proteção química, trabalhando ao longo dos corredores mais baixos, movendo-se para dentro de nuvens malcheirosas de desinfetante borrifado.
Devesh continuou até a parte na proa do navio. O corredor terminava num amplo espaço circular, perto do qual se estendiam as cabines mais caras. Monk havia solicitado uma das grandes suítes ali para seu próprio laboratório. Parecia que Devesh solicitara todo o restante.
Enfiando-se embaixo de uma cortina de isolamento, Devesh acenou para que eles entrassem na movimentada área central de trabalho.
— Aqui estamos — disse.
Vários homens abriam caixotes, puxando a palha e o isopor de proteção e tiravam dali equipamento médico e de laboratório embalado em plástico. Um homem esvaziou uma caixa cheia de placas de Petri, usadas na cultura de bactérias. A porta do laboratório de Monk estava aberta. Lisa notou um homem lá dentro com uma prancheta, fazendo um inventário do equipamento da Sigma.
Devesh levou-os a uma cabine próxima. Passou um cartão-chave pessoal pela ranhura da porta, abrindo-a.
Virando-se, falou com o líder tatuado da força de mercenários.
— Rakao, por favor, mande alguém levar o dr. Miller à suíte de bacteriologia. — Ele virou-se para o cientista. — Dr. Miller, tomamos a liberdade de aprimorar e expandir sua unidade de bacteriologia com novos fornos de incubação, meios de crescimento anaeróbio e lâminas para cultura de sangue. Eu gostaria que o senhor conversasse com a dra. Eloise Chénier, a virologista da minha equipe, no fim do corredor, para concluir o laboratório de doenças infecciosas.
O líder maori acenou para que um de seus homens escoltasse o dr. Miller até o fim do corredor. O bacteriologista olhou de relance para os outros, obviamente sem querer deixar a companhia deles, mas o rifle em suas costas desencorajou qualquer argumento.
Quando Miller partiu, Devesh acenou com a cabeça para o grupo deles. Rakao, você poderia acompanhar pessoalmente sir Ryder e o dr. Lindholm até a sala de rádio lá em cima? Nós nos juntaremos a vocês a qualquer momento.
— Senhor.
O homem tatuado não gostou daquela decisão, e sua única palavra soou carregada de advertência, enquanto ele olhava para Lisa e Henri com desconfiança.
— Nós estaremos bem. — Devesh manteve a porta da cabine aberta e curvou a cabeça para que a jovem indiana entrasse. — Creio que a dra. Cummings e o dr. Barnhardt gostariam de ouvir o que tenho a dizer. E Surina estará comigo.
Lisa e Henri foram conduzidos à cabine.
Devesh entrou atrás deles e começou a fechar a porta; então parou e se virou para o líder maori.
— Ah, sim, Rakao, me faça a gentileza de reunir as crianças. As que eu escolhi. Eis aí um bom homem.
Devesh fechou a porta, porém não antes de Lisa notar o rosto do líder maori escurecer de raiva. Suas tatuagens, um mapa indecifrável, sobressaíram com mais clareza.
Quando a fechadura estalou, Devesh foi até a escrivaninha da cabine. Na verdade, eram duas escrivaninhas uma ao lado da outra, uma das quais havia sido desparafusada e tirada de outra cabine. Sobre as duas escrivaninhas havia três monitores com tela de cristal líquido ligados a duas torres de computador HP. Eram os únicos acréscimos à suíte. O restante da cabine consistia em uma confortável área de estar com móveis de teca voltados para portas que se abriam para uma sacada abrigada do sol.
Surina foi até um dos sofás e abaixou-se, flexionando apenas os joelhos, a fim de se empoleirar num dos seus braços. E, embora o movimento tivesse certo grau de recatada modéstia, Lisa sentiu poder e ameaça: os olhos focados, o controle silencioso de uma gueixa, mas, sobretudo, os dois punhais embainhados em cada tornozelo que apareceram quando ela se sentou.
Lisa desviou o olhar. Um quarto de dormir estava aberto atrás da escrivaninha. Dois grandes baús de viagem estavam ao pé da cama. Aqueles deviam ser os aposentos pessoais de Devesh Patanjali. Mas por que ele os trouxera ali?
Devesh ligou os computadores pressionando alguns botões, atraindo a atenção dela de novo. Todos os três monitores brilharam intensamente no aposento escuro.
— Dr. Barnhardt... ou Henri, se o senhor me permite...? — disse Devesh, olhando para trás.
O toxicologista apenas deu de ombros. Devesh prosseguiu:
— Henri, devo elogiá-lo pela sua avaliação da verdadeira ameaça oculta na nuvem tóxica. Nossos cientistas levaram semanas para descobrir o que você conseguiu discernir em menos de 24 horas.
Lisa sentiu um arrepio na pele. Semanas. Então os captores deles estavam cientes da ameaça na ilha muito antes de a crise irromper plenamente. Mas o que é que isso tinha a ver com a Guilda?
— É claro que não gostamos do alarme geral que você deu e que chegou a Washington. Isso exigiu que acelerássemos nosso cronograma... e improvisássemos um pouco, como utilizar o talento científico aqui e combiná-lo com meu próprio talento. Mas tudo bem. Temos que agir depressa para que haja alguma esperança.
— Esperança de quê? — Lisa finalmente perguntou.
— Deixe-me mostrar a você, minha querida — respondeu Devesh, batendo de leve numa das duas cadeiras, convidando-a a se sentar.
Ela continuou em pé, mas, ocupado com o teclado do computador, ele pareceu não se ofender. No monitor do centro, um vídeo começou a ser exibido. Representava um denso campo microscópico de cadeias contorcidas de bactérias em forma de bastonetes.
— Até onde vão os seus conhecimentos sobre o antraz? — indagou Devesh, olhando para trás.
Lisa sentiu a pele arrepiar-se ao ouvir a pergunta.
Henri respondeu:
Bacillus anthracis. Ele infecta, sobretudo, os ruminantes: vacas, cabras, carneiros. Mas os esporos também podem infectar os seres humanos, e quase sempre a infecção é fatal.
Foi uma avaliação objetiva, desprovida de emoção. Porém, Lisa observou a contenção tensa dos ombros do toxicologista. Devesh concordou com um aceno de cabeça.
— Espécies do Bacillus são encontradas no solo no mundo inteiro, e em geral sito inofensivas. Por exemplo, aqui está um desses organismos benignos, o Bacillus cereus.
A imagem na tela mudou para um close microscópico de uma única bactéria. Em forma de bastonetes com uma fina parede membranosa, os filamentos de DNA da célula estavam corados para se destacarem no centro.
— Como outros membros da espécie, essa bacteriazinha pode ser encontrada cin jardins ao redor do mundo, alimentando-se satisfeita de microrganismos e nutrientes encontrados no solo. Ela não causa mal a nada maior do que uma ameba. Mas seu irmão, o Bacillus anthracis...
Devesh deu um clique na tecla a fim de exibir outra imagem — lado a lado com a primeira, uma segunda bactéria que parecia idêntica.
— Eis o organismo que produz o antraz — continuou ele —, uma das bactérias mais mortais do planeta. Ela possui o mesmo código genético de seu irmão pacífico que habita os jardins. — Devesh bateu de leve nas hélices coradas do DNA das duas células. — Gene após gene, quase idênticas. Então, por que uma delas mata e a outra permanece inofensiva?
Devesh olhou para trás, fitando Lisa e Henri.
Lisa sacudiu a cabeça. Henri permaneceu em silêncio.
Devesh acenou com a cabeça, como se estivesse satisfeito com a reticência deles. Virando-se, pressionou uma tecla, e a bactéria do antraz aumentou de tamanho na tela. A massa de DNA avolumou-se no monitor. No citoplasma da célula interior, separado do emaranhado principal de DNA, flutuavam dois anéis perfeitos de material genético, como um minúsculo par de olhos fitando-os.
— Plasmídios — disse Henri, mencionando o nome dos anéis.
A testa de Lisa se contraiu quando foi obrigada a recorrer aos seus estudos preparatórios para ingresso na faculdade de medicina. Até onde podia lembrar-se, os plasmídios eram filamentos circulares de DNA separados do DNA cromossomial principal. Os fragmentos de código genético à deriva eram exclusivos das bactérias. Seu papel ainda era mal compreendido.
Devesh prosseguiu:
— Esses dois plasmídios — pXol e pXo2 — é que transformam espécies comuns do Bacillus em superassassinos. Se esses dois anéis forem removidos, o antraz volta a se transformar num organismo inocente que vive satisfeito em qualquer jardim. Mas, se esses mesmos plasmídios forem introduzidos em qualquer Bacillus amigável, ele se torna um assassino.
Devesh finalmente se virou para encará-los.
— Por isso eu pergunto a vocês: de onde vêm esses fragmentos estranhos e mortais?
Lisa respondeu, involuntariamente curiosa.
— Os plasmídios não podem ser partilhados diretamente de uma bactéria para outra?
— É claro que sim. Mas o que eu quis dizer foi: como essas bactérias adquiriram pela primeira vez esses fragmentos estranhos de material genético? Qual é a fonte original deles?
Henri mexeu-se, aproximando-se para examinar as telas.
— A origem evolucionária dos plasmídios permanece um mistério, mas a teoria atual é a de que eles foram adquiridos de vírus. Ou, mais especificamente, de bacteriófagos, uma categoria de vírus que só infecta bactérias.
— Exatamente! — Devesh virou-se para a tela. — Foi elaborada a teoria de que, em algum ponto do passado remoto, um bacteriófago viral injetou seus dois plasmídios mortais num Bacillus pacífico, criando um novo monstro na biosfera e transformando uma amigável bacteriazinha de jardim numa assassina.
Devesh pressionou as teclas mais depressa, limpando a tela.
— E o antraz não é a única bactéria infectada dessa maneira. A bactéria que causa a peste negra, Yersinia pestis... sua virulência também é intensificada por um plasmídio.
Lisa sentiu um calafrio aguilhoá-la quando começou a compreender. Toda aquela conversa de bactérias que se transformavam lembrou-a dos pacientes no navio. A menina com convulsões causadas pelas bactérias do vinagre, a mulher com disenteria do cólera causada pelas bactérias do iogurte, John Doe, o homem cujas bactérias da pele estavam devorando suas pernas...
— O senhor está insinuando que isso está acontecendo novamente aqui? — murmurou ela. — Essa mesma corrupção de bactérias?
Devesh fez um aceno afirmativo de cabeça.
— Sem dúvida. Alguma coisa ressuscitou das profundezas do mar, alguma coisa com a capacidade de tornar mortais todas as bactérias.
Lisa recordou-se do exemplo de Henri de como as bactérias eram prevalentes no mundo, de que 90% das células no nosso próprio corpo eram compostas de bactérias não-humanas. Se aquela maré se voltasse contra nós...
Devesh continuou:
— Com base no estudo da genética do antraz e de outras bactérias tóxicas, os microbiologistas predisseram a existência de uma antiga estirpe de vírus. Uma estirpe, ou cepa, que criou os primeiros ancestrais do antraz e de outras bactérias pestilentas. Os cientistas até cunharam um nome para essa antiga estirpe de vírus que transforma amigo em inimigo: a Estirpe de Judas.
Henri devia ter interpretado alguma coisa no rosto de Devesh, um brilho em seus olhos, uma excitação, e se empertigou.
— Alguma coisa me diz que o senhor isolou o agente causador da epidemia aqui, não é mesmo? Essa Estirpe de Judas. Ou o senhor não estaria aqui.
— É o que nós pensamos.
Devesh pressionou mais duas teclas. A bactéria desapareceu, substituída por uma figura giratória na tela, uma imagem de uma eletromicrografia, toda em tons de prata. Isso fazia o organismo representado parecer mais mecânico do que biológico. Ele se parecia com um módulo de aterrissagem lunar. O revestimento principal era geométrico, um icosaedro, formado de vinte fragmentos triangulares planos. De cada canto estendiam-se filamentos finos, de extremidades pontiagudas, feitas para segurar e perfurar.
Lisa vira muitas imagens como aquela na faculdade de medicina.
Um vírus.
— Nós o descobrimos numa amostra de cianobactérias da maré tóxica. Ele transformou as inocentes bactérias marinhas fosforescentes em assassinas que causam furúnculos na carne e expelem veneno. E do interior daquelas nuvens fumegantes de toxina sopradas pelo vento o vírus se disseminou para a terra firme, dando início à lenta transformação das bactérias da ilha em monstros.
— E agora estamos vendo isso acontecer entre os pacientes — disse Henri. — Voltando nosso próprio corpo contra nós.
Devesh bateu de leve na tela.
— O supremo traidor da vida. Esse organismo tem a capacidade de viajar pela biosfera do planeta, transformando todas as bactérias em organismos letais, que destroem a vida. É uma bomba de nêutrons da natureza, uma explosão virai com o potencial de exterminar todas as formas superiores de vida, deixando para trás apenas uma sopa tóxica de lodo bacteriano letal. Se ele não for controlado, já vimos, no lado a barlavento da ilha Christmas, aquilo em que o mundo pode se transformar.
— E, se isso se disseminasse... — o rosto de Henri empalideceu —, não teríamos nenhuma maneira de detê-lo.
Devesh finalmente se levantou e pegou sua bengala.
— Talvez. Mas nós mal começamos a analisar o organismo. A boa notícia é que, até agora, o vírus parece ter um ciclo de vida curto e não infectar células humanas, apenas bactérias. Por isso representa pouco risco direto para nós. Ele seqüestra uma célula bacteriana, usa-a para produzir cópias de si mesmo em massa, depois deixa para trás os plasmídios tóxicos. Fora da célula, o novo vírus é frágil. Ele pode ser facilmente morto com desinfetantes simples e controlado com boa higiene.
Lisa imaginou as equipes de trabalho que percorriam o navio numa nuvem de desinfetante. Eles estavam esterilizando o navio.
— Mas, infelizmente, o vírus deixa um assassino em seu rastro: bactérias mortais que se dividem e se multiplicam, cada uma delas um novo monstro acrescentado ao mundo microbiano, contaminando a biosfera para sempre com formas de vida jamais vistas antes.
Preocupado, Henri pôs a palma de uma das mãos na testa.
— Se a exposição virai se libertar na biosfera geral... estamos falando de mil novas doenças diferentes atingindo o mundo simultaneamente. Uma praga com a capacidade de mudar de aspecto mais depressa do que podemos reagir. O mundo nunca viu nada assim antes.
— Isso não é necessariamente verdadeiro — contrapôs Devesh de forma enigmática.
Henri voltou a se concentrar no captor deles.
— Meus empregadores e eu acreditamos que este não é o primeiro surto dessa Estirpe de Judas. Existem relatos históricos aqui da região de um surto semelhante, ocorrido há quase mil anos. — Sua voz reduziu-se a um sussurro contemplativo. - As histórias foram acompanhadas por algumas afirmações estranhas e perturbadoras.
— Sobre quais relatos históricos o senhor está falando? — indagou Lisa.
Devesh descartou a pergunta dela.
— Isso não importa. Temos outras pessoas investigando essa questão, seguindo essa pista histórica. Temos que continuar concentrados em nosso objetivo. Nossa missão a bordo do navio não está no passado, e sim no presente. Os meus empregadores orquestraram a evacuação da ilha, providenciaram para que o navio de cruzeiro do sr. Blunt se desviasse para cá. Precisávamos isolar as pessoas atualmente infectadas num único lugar. Aqui temos a rara oportunidade de investigar como essa doença se desdobra: sua epidemiologia, sua patologia, seus efeitos fisiológicos. E o navio está cheio de cobaias.
Lisa deu um passo para trás, incapaz de disfarçar o horror. Devesh apoiou-se em sua bengala.
— Eu percebo sua aversão, dra. Cummings. Agora a senhora entende por que a Guilda teve que agir. Quando enfrentamos um organismo de tamanha virulência, não pode haver sentimento de culpa, nenhuma reação politicamente correta a esse ataque. A ação deve ser rápida, e decisões difíceis têm que ser tomadas. Em Tuskegee, o seu próprio governo não permitiu que pessoas infectadas com sífilis morressem da doença enquanto os cientistas registravam com imparcialidade o sofrimento, os sintomas progressivos e os óbitos? Para sobrevivermos a isso, temos que ser igualmente brutais e frios. Porque, creia-me, esta é uma guerra pela sobrevivência da espécie humana.
Lisa procurou alguma forma de se opor às palavras dele, chocada demais.
Henri intercedeu, porém não da maneira que Lisa esperava.
— Ele tem razão.
Lisa virou-se para o toxicologista.
Os olhos de Henri permaneceram grudados na tela que exibia a imagem microscópica da Estirpe de Judas.
— Isso é um assassino do planeta. E já está à solta. Lembre-se da rapidez com que a gripe aviária deu a volta no mundo. Nós temos uma semana, talvez dias. Se não encontrarmos uma maneira de deter isso, toda a vida — pelo menos as formas superiores de vida — será eliminada da Terra.
— Estou contente por termos chegado a um consenso — disse Devesh inclinando a cabeça na direção de Henri. Seus olhos encontraram os de Lisa. — E é possível que, quando eu mostrar à dra. Cummings seu papel em nosso empreendimento, ela talvez encontre o mesmo tipo de reconhecimento.
Lisa franziu o cenho ao ouvir essa enigmática declaração.
Devesh virou-se na direção da porta.
— Mas primeiro temos que nos juntar aos amigos de vocês lá em cima na sala do rádio. Temos que apagar alguns incêndios.
7:02h
Washington, D.C.
Painter olhava fixamente para as reportagens nas suas três telas de plasma: Fox, CNN e NBC. Todas informavam sobre a explosão próximo à Universidade Georgetown.
— Então está tudo bem — disse Painter, em pé atrás de sua escrivaninha. Segurou o microfone de ouvido com mais firmeza no lugar. A voz de Lisa era débil, propagando-se pela metade do mundo. — Você assustou Jennings na Pesquisa e Desenvolvimento. Ele já estava quase pronto para mandar atacar a ilha com bombas incendiárias.
— Sinto muito pelo alarme falso — disse Lisa. — Tudo não passou de contaminação do laboratório. Está tudo bem aqui... ou pelo menos tão bem quanto um navio cheio de pacientes queimados poderia estar. A conjectura inicial é de uma floração de alguma coisa chamada fireweed. Ela infesta estas águas há anos, expele uma nuvem corrosiva, que transpõe as praias. Isso foi apenas um evento desastroso causado por esse organismo. O problema deverá ser resolvido até amanhã, e então Monk e eu voltaremos.
— Essa foi a primeira boa notícia que ouvi hoje — respondeu Painter.
Os olhos dele continuavam movendo-se rapidamente de uma tela de plasma para a outra nas paredes de seu gabinete. Elas exibiam os incêndios sendo finalmente debelados no bosque atrás do abrigo secreto. Carros de combate a incêndio lançavam jatos de água tirada de bombas de incêndio enfileiradas ao longo da estrada de terra usada para combate a incêndios na floresta.
Lisa sussurrou no ouvido dele.
— Eu sei que você está ocupado. Voltarei a me comunicar daqui a 12 horas, conforme planejado.
— Ótimo. Veja se dorme um pouco. Imagino que o pôr-do-sol aí deve ser lindo.
— Sim, é lindo. Eu... eu gostaria que você estivesse aqui para apreciá-lo comigo.
— Eu também. Mas em pouco tempo você estará de volta. E no momento tenho meu próprio incêndio para apagar.
Na tela, um helicóptero da imprensa fez uma curva para revelar os restos carbonizados do abrigo secreto para o noticiário da manhã. Painter já ouvira dos investigadores o relato do incêndio criminoso. Marcas de pneus no quintal haviam levado à descoberta de um Thunderbird abandonado, o mesmo conversível no qual Gray chegou ao local algumas horas atrás. Aparentemente, ele não havia fugido para as ruas, mas para o bosque. Mas aonde ele tinha ido depois? Ainda não houvera nenhum sinal de Gray, de seus pais ou da agente da Guilda ferida.
Onde eles haviam se escondido?
— Eu também tenho trabalho aqui — disse Lisa.
— Você precisa de alguma coisa?
— Não...
Ele percebeu uma hesitação na voz dela.
— Lisa? O que é?
— Nada. — Ela falou um pouco bruscamente. — Acho que é só cansaço. Você sabe como eu fico nesta época do mês.
Brant, o ajudante de Painter, entrou em sua cadeira de rodas no gabinete do chefe com uma pilha de papéis de fax na mão. Notou o timbre no alto da página: Washington PD. Era outro dos relatórios do andamento da investigação deles dos hospitais da cidade. Ele falou enquanto pegava os papéis da mão de Brant.
— Então não deixe de descansar um pouco — disse ele, já lendo a primeira linha do relatório. — Evite correr riscos e não se esqueça do protetor solar. Não vou suportar você me fazendo parecer um fantasma ao lado do seu bronzeado adquirido na ilha.
— Farei isso.
A voz de Lisa havia diminuído de intensidade, transformando-se num mero sussurro. A conexão via satélite do navio era irregular. No entanto, percebeu a decepção na voz dela. Ele também sentia saudades dela.
— Até breve — encerrou ele. — Voltarei a falar com você daqui a 12 horas. Agora vá dormir um pouco.
A linha emudeceu sem mais palavras. Ele tirou o microfone de ouvido e colocou-o em cima de sua escrivaninha. Estabelecendo prioridades, mexeu na pilha de relatórios à sua frente. Ele os escanearia e depois comunicaria o fim do alerta a Jennings.
Pelo menos, uma catástrofe havia sido evitada.
18:13h
No mar
Lisa baixou o fone. Seu coração batia com força no peito. A ligação havia sido interrompida a um sinal dos investigadores de Devesh Patanjali. Ele estava em pé à entrada do moderníssimo compartimento de comunicação do navio, apoiando ambas as palmas na bengala.
Ele sacudiu a cabeça, demonstrando seu desapontamento.
Lisa sentiu o estômago embrulhar. Será que ele sabia o que ela havia tentado? Ela se levantou do assento ao lado do operador de rádio. Um dos guardas segurou-lhe o cotovelo.
— Tudo o que a senhora tinha que fazer era se ater ao roteiro, dra. Cummings — disse Devesh, com a voz gutural de tanta irritação. — Foi uma simples solicitação, e as conseqüências foram devidamente explicadas à senhora.
O pânico fez o sangue de Lisa gelar.
— Eu... eu segui o seu roteiro. Não disse nada inoportuno. Painter pensa que está tudo bem. Exatamente como o senhor ordenou.
— Sim. Ainda bem. Mas não pense que a sua tentativa de uma comunicação sutil, de um contexto oculto, me escapou.
Oh, Deus... Ela havia aproveitado uma oportunidade durante a conversa ao telefone. Decerto ele não poderia saber.
— Eu não estou entendendo...
— "Você sabe como eu fico nesta época do mês" — Devesh citou-a, interrompendo-a. Ele virou-se e saiu para o corredor. — Na verdade, o seu ciclo terminou há dez dias, dra. Cummings.
Uma dormência gélida difundiu-se pelo corpo dela.
— Temos um dossiê completo sobre a senhora, dra. Cummings. Um dossiê que eu li. E a minha memória é fotográfica. Acho melhor a senhora não subestimar a minha inteligência outra vez.
O guarda empurrou-a com força para fora da sala, e ela saiu aos tropeções. Fora tola em tentar comunicar-se secretamente com Painter, não importava quão sutilmente.
O que foi que eu fiz?
Lá fora, outros prisioneiros-chave estavam em pé, enfileirados no corredor: o dr. Lindholm, Ryder Blunt e um capitão australiano num uniforme caqui ensangüentado. Todos eles haviam telefonado para as suas respectivas firmas e organizações, informando que tudo estava bem e sob controle na ilha remota, disfarçando a situação, dando tempo aos seqüestradores para aumentar a distância entre o navio e a ilha antes que alguém ficasse mais esperto.
Mas também havia outras pessoas ali: quatro crianças encolhidas de medo, reunidas no fim do corredor. Meninos e meninas de 6 a 10 anos de idade. Uma criança para cada um dos que haviam sido enviados à sala do rádio. A vida de cada uma daquelas crianças dependia da cooperação deles. Para Lisa haviam selecionado uma garotinha de 8 anos, com grandes olhos amendoados, aterrorizada, encolhida no chão, abraçando os joelhos de encontro ao tórax. Seu irmão, alguns anos mais velho, mantinha um dos braços em volta dela.
Com a pistola na mão, o líder maori foi até a criança.
Devesh juntou-se a ele e virou-se para o grupo, com um dos punhos apoiado no quadril.
— Todos vocês foram advertidos de que haveria conseqüências caso se desviassem do roteiro em algum aspecto significativo, caso tentassem qualquer subterfúgio. Mas como este é o primeiro erro da dra. Cummings, serei indulgente com ela.
— Por favor — implorou Lisa.
Ela não conseguiria suportar ver suas mãos manchadas com o sangue da criança. Na sala do rádio, agira de maneira instintiva. Fora um estratagema estúpido.
O olhar de Devesh pousou sobre ela.
— Em vez da garotinha, dra. Cummings, vou deixar a senhora escolher outra criança para morrer no lugar dela.
A respiração de Lisa ficou presa no peito.
— Não sou um homem cruel, apenas prático. Esta é uma lição que todos vocês devem levar a sério. — Ele acenou para Lisa. — Escolha uma criança.
Lisa sacudiu a cabeça.
— Eu não posso...
— Escolha, ou terei que matar todas. Que isto sirva de lição para todos. Temos muito a realizar para tolerar insubordinação, não importa quão insignificante ela seja.
O guarda arrastou-a para a frente a um sinal de seu líder tatuado.
— Escolha uma criança, dra. Cummings.
Lisa reprimiu um soluço e fitou o rosto das quatro crianças. Nenhuma delas falava inglês, mas elas deviam ter interpretado alguma coisa no rosto dela, compreendido sua angústia, e isso as assustou. Novas lágrimas escorreram. Todas as crianças se encolheram ainda mais.
Lisa olhou Devesh nos olhos, implorando-lhe.
— Por favor, dr. Patanjali. O erro foi meu. Castigue a mim.
— Eu creio que é exatamente o que estou fazendo. — Ele encarou-a, impassível. — Agora escolha.
Lisa fitou os quatro rostos. Como a garotinha fora poupada, ela não teve coragem de escolher o irmão dela. Restavam-lhe duas opções. Ela ergueu um braço trêmulo e apontou um dedo para outro menino, o mais velho do grupo, com 10 anos de idade.
Que Deus me perdoe.
— Muito bem. Rakao, você conhece o seu dever.
O pistoleiro maori foi até o menino, cujo rosto assustado se ergueu cheio de esperança.
Lisa soltou um gemido. Ela deu um passo para a frente, tentando revogar sua decisão. O guarda segurou-lhe o cotovelo com mais força. Contida, sentiu as pernas tremerem, e pouco depois estava de joelhos, cheia de terror e pesar.
O pistoleiro ergueu a pistola e apontou-a para a cabeça do menino.
— Não... — disse Lisa, com a voz entrecortada.
Ele puxou o gatilho, mas a arma não disparou. O cão da arma deu um estalido brusco no espaço exíguo, chocando-se com força contra um tambor vazio.
Rakao baixou a arma.
No silêncio, um grito gorgolejante irrompeu do outro lado do corredor. Lisa virou-se a tempo de ver o dr. Lindholm cair de joelhos, na mesma posição de Lisa. Ele encarou-a, com os olhos arregalados de choque e pânico. As mãos dele apertaram a garganta, e sangue escorreu por entre seus dedos.
Atrás do ombro dele, a acompanhante de Devesh, Surina, deu um passo para trás, com a cabeça curvada, como se tivesse acabado de servir chá e agora estivesse saindo. As mãos dela estavam vazias, mas Lisa não tinha a menor dúvida de que a mulher havia cortado a garganta do médico; seu punhal desaparecera com a mesma rapidez com que golpeara.
Lindholm foi se curvando até cair de bruços no chão acarpetado. O sangue penetrou na trama felpuda e foi se acumulando numa poça crescente. Uma de suas mãos crispou-se no carpete e depois parou.
— Seu filho-da-puta... — rosnou Ryder, com o rosto duro, desviando o olhar.
Devesh voltou para onde Lisa estava.
— Por... por quê? — ela conseguiu perguntar com grande esforço, deprimida e fria.
— Como eu disse, nada escapa à nossa observação, dra. Cummings, incluindo a habilidade do dr. Lindholm. Ou melhor, a falta de habilidade quando se trata de pesquisa e trabalho de campo. Ele serviu ao objetivo de manter a OMS longe de nós com o seu telefonema, mas, além disso, ele era mais um peso morto do que um trunfo. Sua morte pelo menos serviu a uma última função: como demonstração. E não só para demonstrar o preço da insubordinação. — Devesh encarou-a com um olhar duro. — Será que posso presumir que a senhora entendeu esse preço, dra. Cummings?
Ela fez que sim com um lento aceno de cabeça, olhando fixamente para a poça de sangue.
— Muito bem. — Ele virou-se para os outros. — A morte também demonstra uma lição para cada um. Uma lição da seriedade da nossa iniciativa aqui. Suas vidas dependem da utilidade de vocês. É simples assim: é fazer ou morrer. Eu aconselho vocês a transmitir essa lição aos seus outros colegas antes que sejam necessárias mais demonstrações.
Devesh juntou as mãos, entrelaçando os dedos.
— Agora que essa situação um pouquinho desagradável passou, podemos começar nosso trabalho. — Ele acenou para o líder maori. — Rakao, por favor, conduza cada um ao seu respectivo posto. Eu acompanharei pessoalmente a dra. Cummings até a paciente dela.
Pondo a pistola no coldre, Rakao dispersou os homens. Devesh conduziu Lisa corredor abaixo, para longe de todos os demais. Ela passou pela fila de crianças. Profundamente traumatizadas, elas estavam sendo reunidas para voltarem para a creche do navio.
Surina, que ia logo atrás de Lisa e Devesh, parou junto aos dois irmãozinhos. Ela curvou-se para a garota, ainda encolhida de medo sob o braço do irmão. Surina estendeu uma palma vazia; em seguida, com um leve movimento dos dedos, uma bala embrulhada apareceu na mão dela, como que do ar. Ofereceu-a à garota aterrorizada, mas a criança se comprimiu ainda mais contra o irmão mais velho. O irmão dela, mais prático, estendeu a mão e pegou a bala da palma de Surina, como se a estivesse pegando de uma ratoeira com isca.
Surina empertigou-se num movimento suave de seda bordada, roçando os dedos de leve na face da menina ao se erguer. As pontas de seus dedos ficaram úmidas com as lágrimas da criança. Lisa se perguntou se aquela mão era a mesma que havia cortado a garganta de Lindholm. O rosto da mulher permaneceu perfeitamente impassível.
Lisa desviou o olhar, seguindo Devesh.
Ele a levou até a última cabine naquele nível e abriu a porta com seu cartão-chave. Outra suíte. Uma enorme quantidade de aparelhos estava sendo monta¬da na sala externa. Ignorando tudo aquilo, Devesh foi até o quarto de dormir adjacente.
Lisa manteve-se perto dele.
Quando Devesh entrou no aposento, Lisa avistou uma figura familiar esparramada sobre a cama do quarto, transformada numa tenda de isolamento: uma mulher em meio a um emaranhado de aparelhos de monitoramento, com os cabelos louros como os da própria Lisa, porém cortados curtíssimos. Lisa tinha avistado a maca usada para transportar a paciente até o aposento principal. Era a mulher tirada do helicóptero. Suas feições ainda estavam obscurecidas atrás de uma máscara de oxigênio que lhe cobria todo o rosto.
Dois homens, os mesmos enfermeiros que haviam transportado a paciente até ali, estavam ocupados pendurando e prendendo os últimos tubos e sondas que se estendiam da mulher até um conjunto próximo de aparelhos de monitoramento. Lisa captou tudo aquilo com uma olhadela: eletroencefalógrafo, eletrocardiógrafo, monitor de pressão arterial com Doppler. Uma sonda central já havia sido fixada no tórax da paciente,ligada a um dispositivo de gotejamento intravenoso. Um dos homens desfazia as dobras de um cateter vesical.
Devesh ergueu uma das mãos na direção da mulher acamada.
— Deixe-me apresentá-la à dra. Susan Tunis, uma bióloga marinha de Queensland e uma das primeiras pessoas a se deparar com a floração tóxica de cianobactérias. Eu creio que a senhora já conheceu outro colega dela: o John Doe lá embaixo, na ala de isolamento.
Lisa permaneceu perto da porta, sem saber por que fora trazida ali e ainda entorpecida em virtude do assassinato gratuito do dr. Lindholm. Mesmo que aquela fosse uma das primeiras vítimas, o que aquilo tinha a ver com ela? Ela não era virologista nem bacteriologista.
— Não estou entendendo — disse ela, expressando sua confusão. — Existem médicos mais qualificados a bordo do navio.
Devesh descartou a afirmação dela.
— Nós temos técnicos para atender às necessidades médicas dela. Lisa franziu o cenho.
— Então por que...?
— Dra. Cummings, a senhora é uma exímia fisiologista, com uma significativa experiência em pesquisa de campo. Porém, mais importante ainda, a senhora se revelou bastante talentosa nos seus serviços à Sigma no passado. Nós precisaremos dessa inovação e experiência aqui para me assistir pessoalmente neste caso.
— Por que ela? Por que este caso?
— Porque esta paciente possui a chave de tudo. — Devesh olhou para a mulher, e os olhos dele estreitaram-se de preocupação pela primeira vez. — Ela guarda um enigma que vai muito longe no passado histórico, um enigma que remonta a Marco Polo e suas viagens por estas águas... e para dentro de um mistério maior.
— Marco Polo? O explorador?
Devesh fez sinal com uma das mãos.
— Como eu disse antes, essa é uma pista que estamos deixando para outro braço da Guilda. — Ele acenou com a cabeça na direção da mulher. — Todos os nossos esforços aqui, toda a pesquisa a bordo do navio, todos os sacrifícios que ainda estão por vir, tudo isso se concentra nesta mulher.
— Eu ainda não compreendo. Por que ela é tão importante?
A voz de Devesh baixou.
— Esta mulher... ela está se transformando. Como as bactérias. A Estirpe de Judas está crescendo dentro dela.
— Mas pensei que o senhor tivesse dito que o vírus não infectava células humanas.
— Ele não as infecta. Ele está fazendo outra coisa dentro dela.
— O quê?
Devesh encarou Lisa.
— Ele está incubando.
CAPÍTULO 7
De uma viagem jamais contada
6 de julho, 6:41h
Istambul
Em menos de um dia, Gray havia percorrido em fuga metade do globo, e acabou em outro mundo. Dos minaretes das incontáveis mesquitas de Istambul, os muezins chamavam os fiéis muçulmanos para a oração matinal. O sol nascente projetava longas sombras e iluminava as cúpulas e torres da cidade.
Gray tinha uma vista panorâmica do restaurante no terraço, onde aguardava com Seichan e Kowalski. Nenhum deles parecia feliz. Estavam cansados por causa da mudança de fuso horário e tensos. Porém, a dor surda atrás dos olhos de Gray tinha mais a ver com suas próprias preocupações. Perseguido por assassinos, caçado pelo seu próprio governo, ele começara a duvidar da sensatez da atual parceria.
E agora aquela estranha convocação a Istambul. Por quê? Não fazia o menor sentido. Mas pelo menos dessa vez Seichan parecia igualmente desnorteada. Ela gotejou mel numa pequena xícara de chá turco com a borda dourada. O garçom que servia o chá, usando um colete bordado tradicional azul e dourado, ofereceu mais a Gray.
Ele sacudiu a cabeça, já excitado por causa da cafeína.
O garçom não se preocupou com Kowalski. O homenzarrão — que usava calças jeans, camiseta preta e um casaco cinza leve e comprido — havia ignorado o chá e fora direto para a sobremesa. Ele bebericava de um copo resfriado de aguardente de uva, chamada raki.
— Tem gosto de alcaçuz e asfalto — comentou ele, torcendo o lábio, mas isso não o impediu de consumir dois copos. Ele também descobriu a mesa do bufê, passou manteiga numa pilha de pães e serviu-se de uma grande quantidade de azeitonas, pepinos, queijo e meia dúzia de ovos cozidos.
Gray estava sem apetite. Tinha preocupações demais, perguntas demais.
Ele se levantou e foi até a meia-parede que circundava o terraço panorâmico, tomando cuidado de permanecer à sombra do guarda-sol de uma mesa. Istambul, uma área de ação de terroristas, estava sob constante vigilância por satélite. Gray se perguntou se suas feições já estavam sendo examinadas por um programa de reconhecimento facial em alguma agência de inteligência.
Naquele momento, era a Sigma ou a Guilda que estava fechando o cerco?
Seichan juntou-se a ele, pondo sua xícara de chá sobre o peitoril azulejado. Ela dormira durante todo o vôo até ali, reclinada na primeira classe. Com o repouso, sua cor havia melhorado muito, embora ela ainda mancasse, evitando forçar o lado ferido. A bordo do avião, havia trocado as roupas apertadas por um traje mais folgado, composto de calças caqui e de uma blusa azul-escura drapejada, mas conservara as botas Versace pretas de motociclista.
— Por que você acha que monsenhor Verona nos chamou até aqui? — indagou ela. — A Istambul.
Virando-se, Gray apoiou um dos quadris na parede.
— O quê? Quer dizer que agora estamos conversando?
Ela revirou levemente os olhos, exasperada. Desde que eles haviam deixado o consultório dentário na Universidade Georgetown, Seichan se recusara a fornecer quaisquer outras explicações. Não que eles houvessem tido muito tempo. Na fuga, ela havia parado apenas o tempo suficiente para dar um telefonema. Para o Vaticano. Gray tinha ouvido a conversa. Parecia que Vigor estava à espera da ligação dela, e não ficara surpreso por Gray estar com ela.
— A notícia se espalhou — explicou o monsenhor. — A Interpol, a Europol, todo mundo está procurando vocês. Suponho que foi você, Seichan, que me deixou aquela breve mensagem na Torre dos Ventos.
— O senhor encontrou a inscrição.
— Sim, eu a encontrei.
— E o senhor reconheceu a escrita.
— Claro.
Seichan pareceu aliviada.
— Então não temos muito tempo. Muitas vidas estão em perigo. Se o senhor pudesse reunir os seus recursos, imaginar o que...
— Eu sei o que a inscrição significa, Seichan — Vigor a censurara, interrompendo-a. — E sei o que ela implica. Se vocês dois quiserem saber mais, me encontrem no hotel Ararat, em Istambul. Estarei lá às sete da manhã, no restaurante no terraço panorâmico do hotel.
Após o telefonema, Seichan conseguira rapidamente documentos falsos e providenciara o transporte deles. Ela assegurou a Gray que a Guilda nada sabia dos contatos dela.
— Apenas favores devidos — explicou ela.
Com uma expressão de dor, ela virou-se para fitá-lo, trazendo-o de volta ao presente. Ela esbarrou o cotovelo na xícara de chá, mas Gray segurou-a antes que despencasse na rua lá embaixo. Seichan olhou fixamente para a xícara em que esbarrara com uma ligeira pontada de preocupação no canto dos olhos. Gray suspeitou de que aquele descuido fosse raro naquela mulher, que estava sempre no controle.
Com a mesma rapidez, a expressão dela voltou a endurecer.
— Eu sei que o deixei às cegas — disse ela. — Assim que monsenhor Verona chegar, explicarei tudo. — Ela fez um aceno de cabeça na direção dele. — Mas e quanto a você? Fez algum progresso com a escrita do obelisco?
Gray simplesmente deu de ombros, deixando-a pensar que ele sabia de alguma coisa.
Ela encarou-o e então suspirou.
— Ótimo.
Ela voltou para a mesa deles.
Seichan havia fornecido a Gray fotografias e uma cópia impressa da escrita angélica. A caminho dali, ele tentara decifrar o código encerrado na escrita, porém havia variáveis demais. Ele precisava de mais informações. Além disso, suspeitava de que já soubesse a mensagem do código: quebre o obelisco e descubra o tesouro dentro dele.
Eles já tinham feito isso.
Gray usava o crucifixo de prata num cordão pendurado ao pescoço. Já o havia examinado: sem dúvida, era antigo e bastante gasto. Mesmo sob uma lente de aumento, ele não conseguira discernir nenhuma escrita, nenhuma pista importante que confirmasse a afirmação absurda de Seichan de que a cruz um dia pertencera ao confessor de Marco Polo, o navegador e explorador.
Sozinho junto ao balaústre, Gray examinou a cidade, já movimentada de manhã cedo. Abaixo, ônibus competiam com carros e pedestres. O berro de buzinas tentava abafar os gritos mais agudos de vendedores ambulantes e o murmúrio contínuo de turistas madrugadores.
Ele perscrutou a vizinhança imediata, à procura de qualquer sinal de ameaça ou de aproximação suspeita. Será que eles haviam se livrado de Nasser? Tendo colocado metade do mundo entre eles, Seichan parecia confiante. Mas Gray se recusava a diminuir a guarda. Abaixo, no pátio do hotel, dois homens ergueram-se de cobertores adornados com contas, depois de terminarem suas orações matinais, e desapareceram de volta no hotel. Sozinha agora, uma criança molhava-se distraidamente no chafariz do pátio.
Satisfeito, Gray deixou seu olhar mover-se mais alto por um instante. O hotel Ararat ficava no coração do bairro mais antigo de Istambul, o Sultanahmet. Em toda a extensão até o mar, construções antigas erguiam-se como ilhas da confusão das ruas mais baixas. Bem no outro lado do hotel, as cúpulas imponentes da Mesquita Azul elevavam-se em direção ao céu. Mais abaixo da rua, uma imensa igreja bizantina erguia-se meio rodeada por um andaime preto, como se a armação de ferro tentasse arrastar o edifício para o seio da terra. E, além do andaime, o palácio Topkapi espraiava-se em meio a pátios e jardins.
Gray sentiu o peso das eras naquelas magníficas obras-primas da arquitetura, monumentos de pedra da História. Seus dedos tocaram distraidamente a cruz em volta de seu pescoço. Ali estava outro objeto antigo, com sua origem repleta de significado histórico. Porém, o que ele tinha a ver com a ameaça global mencionada por Seichan? Uma cruz que um dia pertencera ao padre confessor de Marco Polo?
— Ei, Ali Babá! — Kowalski gritou atrás dele. — Mais um desses drinques de alcaçuz.
Gray reprimiu um suspiro.
— Ele é chamado de raki — uma nova voz corrigiu, cheia de autoridade professoral.
Gray virou-se. Uma figura familiar e bem-vinda saiu da escada encoberta pelas sombras e entrava no terraço panorâmico. Monsenhor Vigor Verona falou em turco com o garçom que servia o chá, educado, num tom de desculpa.
— Bir sise raki lüften.
O garçom sorriu com um aceno de cabeça e afastou-se.
Vigor aproximou-se da mesa deles. Gray notou a falta do colarinho romano em torno do pescoço do homem. Sem dúvida, o monsenhor estava viajando incógnito. Livre do colarinho, Vigor parecia dez anos mais jovem do que os seus 60 anos. Ou talvez fossem suas roupas informais: calças jeans azul-escuras, botas de caminhada e camisa preta com as mangas arregaçadas. Também carregava uma mochila surrada a tiracolo. Parecia pronto para escalar o monte que dera nome ao hotel Ararat, em busca da Arca de Noé.
E talvez há muito tempo o monsenhor tivesse feito mesmo aquela longa caminhada.
Antes de ser promovido a prefeito dos arquivos do Vaticano, Vigor trabalhara como arqueólogo bíblico para a Santa Sé. Esse cargo também lhe permitira servir ao Vaticano de outra forma: como espião. O disfarce de Vigor como arqueólogo lhe permitira viajar ampla e intensamente, uma situação perfeita para abastecer a Santa Sé com informações secretas e de outros tipos.
Ele também ajudara a Sigma no passado.
E parecia que seus conhecimentos eram necessários de novo.
Vigor acomodou-se na cadeira com um longo suspiro. O garçom que servia o chá voltou e pôs uma xícara de chá fumegante em frente ao recém-chegado.
— Tesekkürler — disse Vigor, agradecendo ao homem.
Kowalski endireitou-se na cadeira quando o garçom saiu, olhando fixamente para o seu copo vazio e para as costas do colete bordado do homem. Curvou-se, praguejando baixinho por entre os dentes por causa da má qualidade do serviço.
— Comandante Pierce. Seichan — começou Vigor. — Obrigado por terem aceitado minha solicitação. E, marinheiro Joe Kowalski, é maravilhoso conhecê-lo.
Algumas outras amenidades foram trocadas. Vigor mencionou com hesitação sua sobrinha Rachel. Era um assunto embaraçoso. O rompimento entre Gray e Rachel havia sido um acordo mútuo, mas Vigor ainda protegia muito a sobrinha. Não que ela precisasse disso. Parecia que Rachel estava indo muito bem como tenente dos carabinieri, e até fora promovida.
Gray, porém, ficou contente quando Seichan o interrompeu.
— Monsenhor Verona, por que o senhor nos convocou a Istambul?
Vigor silenciou-a com a palma de uma das mãos erguida, bebericou seu chá e depois baixou sua xícara precisamente sobre a superfície da mesa.
— Sim, nós chegaremos lá. Mas, antes disso, quero que duas coisas sejam esclarecidas logo de começo. Primeiro, aonde quer que isso conduza, eu irei com vocês. — Ele encarou Gray com um olhar fixo, determinado, e em seguida mudou seu olhar para Seichan. — Segundo, mas não menos importante, quero saber o que tudo isso tem a ver com o nosso ilustre explorador veneziano Marco Polo.
Seichan começou.
— Como o senhor...? Eu não mencionei nada a respeito de Marco Polo.
Antes que Vigor pudesse responder, o garçom voltou. Kowalski ergueu o olhar, com os olhos cheios de esperança. Aqueles mesmos olhos arregalaram-se ainda mais quando o garçom exibiu uma garrafa cheia de raki e a segurou em frente ao ex-marinheiro.
— Eu pedi meio litro para você — explicou Vigor.
Kowalski estendeu a mão e apertou o braço de Vigor.
— Padre, o senhor caiu nas minhas boas graças.
Gray voltou a atenção para Seichan.
— Então, o que tudo isso tem a ver com Marco Polo?
Meia-noite
Washington, D.C.
O sedã BMW preto dobrou a esquina próxima ao Dupont Circle e deslizou pelas ruas escuras. Seus faróis de xenônio formavam um caminho azulado ao longo da avenida ladeada de elmos. Fileiras de edifícios de apartamentos emolduravam a rua, criando um cânion urbano.
Ele em nada se parecia com os cânions do país de Nasser, onde apenas cabras andavam a esmo, e cavernas e túneis serviam de habitação para as tribos nômades afegãs. Todavia, mesmo aquele país não era sua verdadeira pátria. Quando Nasser tinha 8 anos de idade, seu pai partira do Cairo para o Afeganistão, após a libertação do país das forças russas, a fim de juntar-se àqueles que procuravam um Islã puro. O irmão e a irmã mais novos de Nasser também haviam sido levados para lá. Não lhes restara escolha. Na véspera da partida, seu pai havia estrangulado sua mãe, usando o cachecol de escola do próprio Nasser. Sua mãe não queria partir do Egito e desaparecer para sempre embaixo de uma burca. Ela havia conversado, se queixado aos ouvidos errados.
As crianças tinham sido obrigadas a assistir, ajoelhando-se em submissão, quando os olhos de sua mãe ficaram protuberantes e a língua inchou, punida pelas mãos de seu pai.
Foi uma lição que Nasser aprendeu bem.
Ser frio. De todas as formas.
As lâmpadas de xenônio varreram uma esquina. Do banco do carona, Nasser apontou para o meio do quarteirão.
— Pare ali.
O motorista, com o nariz fraturado protegido por um curativo, após o seqüestro fracassado, fez o sedã deslizar até o meio-fio. Nasser virou-se a fim de olhar para o banco traseiro, no qual duas figuras se aconchegavam.
Annishen, toda vestida de preto, quase desaparecia nos acessórios de couro. Ela também usava um capuz na cabeça raspada, o que lhe dava a aparência de um monge. Seus olhos brilhavam intensamente na escuridão. Um de seus braços envolvia seu companheiro, e ela inclinava-se de encontro a ele, num gesto de intimidade.
Ele ainda choramingava através da mordaça. Sangue escurecia um lado de seu rosto e sua garganta. Em suas mãos atadas, presas entre os joelhos, ele ainda segurava a própria orelha direita. Nasser descobrira o nome do homem num fichário giratório de mesa.
Um médico.
— É este o lugar? — perguntou Nasser.
O homem fez um vigoroso aceno de cabeça, fechando os olhos com força depois de verificar o endereço.
Nasser observou o saguão do edifício. Um vigia noturno estava sentado atrás de uma escrivaninha lá dentro. Uma câmera de segurança projetava-se acima das portas de vidro à prova de balas. Segurança total. Nasser esfregou o polegar ao longo da extremidade do cartão-chave em sua mão, um presente de cortesia do passageiro deles.
Após um dia cheio, Nasser estava finalmente de volta ao rastro do americano e da traidora da Guilda. Na noite anterior, ele vasculhara a pequena casa no bairro de Takoma Park. Descobrira na garagem a motocicleta danificada de Seichan, mas pouco mais do que isso. Não encontrara nenhum sinal do obelisco, com a exceção de um fragmento de mármore egípcio na entrada de veículos.
No interior da casa, porém, Alá lhe sorrira.
Nasser descobrira um fichário giratório de mesa.
Com os nomes de vários médicos.
Levara o restante do dia para descobrir o nome certo.
Ele voltou a se virar.
— Obrigado, dr. Corrin. O senhor me deu o apoio de que eu precisava.
Nasser não precisou acenar com a cabeça para Annishen. O punhal dela penetrou entre as costelas do homem e abriu-lhe o coração. Era uma técnica do Mossad que Nasser ensinara a Annishen. Ele mesmo só a havia empregado uma vez antes.
Enquanto seu pai orava ajoelhado.
Não fora a vingança de uma criança. Apenas justiça.
Nasser abriu a porta do sedã. Ele devia isso a seu pai — ainda que apenas pela lição ensinada a um menino de 8 anos, ajoelhado diante da mãe estrangulada.
Aquela lição lhe seria útil outra vez naquela noite.
Ser frio. De todas as formas.
Saindo do carro, Nasser foi até a porta traseira e abriu-a. Annishen saiu do banco traseiro, erguendo-se com um ruído de couro preto, resplandecente numa jaqueta de couro de bezerro de design italiano e numa roupa de suede escuro, que harmonizavam com o terno Armani dele. Não havia nela uma gota de sangue sequer, provando mais uma vez a habilidade de sua arte. Ele passou um dos braços em torno dela e fechou a porta.
Ela inclinou-se de encontro a ele.
— A noite ainda é uma criança — sussurrou ela com um suspiro de contentamento.
Ele puxou-a para mais perto de si. Apenas dois amantes voltando de um jantar de fim de noite.
A noite de verão ainda estava úmida e quente, mas o saguão do edifício tinha ar-condicionado. As portas se abriram num suspiro para saudá-los com um movimento do cartão-chave do dr. Corrin. O vigia ergueu o olhar de sua escrivaninha.
Nasser fez um aceno de cabeça para ele e dirigiu-se a passos largos para o hall de elevadores próximo. Annishen ofereceu-lhe um sorriso amarelo, ronronando contra o flanco de Nasser, claramente ansiosa para chegarem ao apartamento deles. A mão dela moveu-se para a Glock no coldre preso à cintura dele.
Por via das dúvidas...
O guarda, porém, simplesmente respondeu ao aceno de cabeça, murmurou um boa-noite e voltou a atenção para a revista que estava lendo.
Nasser sacudiu a cabeça quando chegou ao hall de elevadores. Típico. O que se passava por segurança ali nos Estados Unidos era mais exibição do que essência.
Ele chamou o elevador apertando um botão.
Pouco depois, Nasser e Annishen estavam em frente ao apartamento 512. Ele passou o mesmo cartão-chave pela fechadura da porta. A luz indicadora mudou de vermelha para verde.
Ele olhou de relance para Annishen e interpretou a dança nos olhos dela, incitada pelo derramamento de sangue anterior.
— Precisamos de pelo menos um deles vivo — advertiu ele. Ela fingiu que fazia beicinho e sacou a arma.
Com um dedo, Nasser empurrou a maçaneta da porta para baixo. Ele abriu com cautela a porta fixada a dobradiças bem untadas. Nem um rangido sequer. Ele entrou primeiro, deslizando para o vestíbulo de mármore. Uma luz emanava de um quarto nos fundos.
Nasser parou bem à entrada.
Um de seus olhos estreitou-se.
O ar estava parado demais. Quieto demais. Ele não precisava ir além. Prendeu a respiração. Sabia que o apartamento estava vazio.
Acenou, no entanto, para que Annishen fosse para um lado e seguiu para o outro. Em instantes, eles vasculharam as dependências do apartamento, checando até os armários.
Não havia ninguém ali.
Annishen estava em pé no quarto principal. A cama estava arrumada e parecia intocada.
— O doutor mentiu para nós — disse ela com clara irritação e um moderado tom de respeito. — Eles não estão aqui.
Nasser estava abaixado no banheiro principal, apoiado num dos joelhos. Ele avistara no chão algo que rolara para debaixo da beira do toucador de cerejeira do banheiro.
Ele pegou-o.
Um frasco vermelho de medicamentos controlados. Vazio. Ele leu o rótulo. O paciente era Jackson Pierce.
— Eles estiveram aqui — sussurrou ele com a voz dura, e levantou-se.
O dr. Corrin não mentira. Ele lhes dissera a verdade — ou, pelo menos, o que julgava fosse a verdade.
— Eles foram embora — disse Nasser, e voltou a passos largos para o quarto.
Ele apertou o frasco de comprimidos vazio no punho, reprimindo a fúria. O comandante Pierce lhe pregara outra peça. Primeiro com o obelisco, depois com o subterfúgio de seus pais.
— E agora? — indagou Annishen. Ele ergueu o frasco de comprimidos.
Uma última oportunidade.
7:30h
Istambul
— Para começar, o que você sabe a respeito de Marco Polo? — perguntou Seichan.
Ela havia posto um par de óculos com lentes azuis. O sol erguera-se o suficiente para que o restaurante no terraço panorâmico se transformasse num misto de sombras e brilho intenso. Eles haviam passado para uma mesa de canto isolada, abrigada sob um guarda-sol.
Gray percebeu a clara hesitação na voz dela — e talvez um vestígio de alívio. A vontade dela oscilava entre um desejo cauteloso de controlar o fluxo de conhecimentos e uma compulsão de se libertar da carga de seu peso.
— Polo foi um explorador do século XIII — respondeu Gray. Ele lera um pouco sobre o homem na viagem até ali. — Junto com seu pai e seu tio, Marco passou vinte anos na China como hóspede de honra do imperador mongol Kublai Khan. E, depois de regressar à Itália em 1295, ele narrou suas viagens a um escritor pisano chamado Rustichello, que as registrou.
O livro de Marco, A descrição do mundo, transformou-se num sucesso instantâneo na Europa, arrebatando o continente com suas histórias fantásticas: de vastos e solitários desertos na Pérsia, fervilhantes cidades na China, terras muito distantes habitadas por idólatras e feiticeiros nus, ilhas repletas de canibais e animais estranhos. O livro incitou a imaginação da Europa. Até mesmo Cristóvão Colombo levou consigo um exemplar em sua viagem ao Novo Mundo.
— Mas o que é que isso tem a ver com o que está acontecendo hoje? — concluiu Gray.
— Tudo — respondeu Seichan, olhando ao redor da mesa.
Vigor bebericava seu chá. Kowalski estava com a orelha encostada num dos punhos apoiado por um cotovelo. Apesar de o homem parecer entediado, Gray notou como seus olhos se moviam ao redor, observando-os a todos, acompanhando a interação. Gray suspeitou de que houvesse profundezas até então inexploradas no homem. Kowalski alimentava distraidamente pardais saltitantes com farelos de biscoitos.
Seichan prosseguiu:
— As histórias de Marco Polo não eram tão bem definidas quanto a maioria das pessoas acredita. Não existem textos originais do livro de Marco Polo, apenas cópias de cópias. E em cada uma dessas traduções e reedições surgiram diferenças notáveis.
— Sim, eu li sobre isso — disse Gray, tentando fazer com que ela se apressasse.
— São tantas as disparidades que algumas pessoas hoje em dia se perguntam se Marco Polo de fato existiu, ou se foi apenas uma invenção do escritor pisano.
— Ele existiu — insistiu Seichan. Vigor acenou a cabeça em concordância.
— Eu soube dos argumentos contra Marco Polo, das significativas lacunas nas suas descrições da China. — O monsenhor ergueu a xícara. — Como a paixão do Extremo Oriente por beber chá, uma infusão desconhecida dos europeus na época. Ou a prática do enfaixe dos pés ou o uso de pauzinhos para comer. Marco deixa até mesmo de mencionar a Grande Muralha. Sem dúvida, são omissões gritantes e suspeitas. Mas Marco também mencionou muitas coisas corretamente: a peculiar manufatura da porcelana, a queima do carvão, até mesmo o primeiro uso do papel-moeda.
Gray percebeu a convicção na voz do monsenhor. Talvez fosse apenas o orgulho italiano de Vigor, mas Gray sentiu uma confiança mais profunda.
— De qualquer modo — Gray afinal admitiu —, o que isso tem a ver conosco?
— O fato de que existe outra grave omissão em todas as edições do livro de Polo
— disse Seichan. — Ela diz respeito à viagem de Marco de volta à Itália. Kublai Khan recrutou os Polo para escoltarem uma princesa mongol chamada Kokejin até o seu noivo na Pérsia. Para essa grande empreitada, o Khan forneceu ao grupo 14 galeras imensas e mais de seiscentos homens. No entanto, quando eles chegaram ao porto na Pérsia, apenas dois navios e 18 homens haviam sobrevivido à viagem.
— O que aconteceu ao restante? — murmurou Kowalski.
— Marco Polo jamais contou. O escritor pisano Rustichello alude a alguma coisa no prefácio do famoso livro, uma tragédia ocorrida em meio às ilhas do Sudeste Asiático. Mas isso jamais foi escrito. Mesmo em seu leito de morte, Marco Polo se recusou a dizer o que aconteceu.
— E isso é verdade? — indagou Gray.
— É um mistério que jamais foi solucionado — respondeu Vigor. — A maioria dos historiadores supôs que doença ou piratas tivessem atacado a frota. Tudo o que de fato se sabe é que os navios de Marco ficaram por cinco meses à deriva entre as ilhas indonésias, escapando apenas com uma parte da frota do Khan intacta.
— Então — perguntou Seichan, insistindo na importância —, por que uma parte tão dramática da viagem de Marco seria deixada de fora de seu livro? Por que ele a levou consigo para o túmulo?
Gray não tinha resposta. Mas o mistério despertou uma incômoda preocupação. Ele sentou-se um pouco mais ereto. Em sua cabeça, começou a ter uma vaga noção de aonde aquilo poderia estar conduzindo.
A fisionomia de Vigor ficou ainda mais sombria.
— Você sabe o que aconteceu entre aquelas ilhas, não sabe? Ela inclinou a cabeça em afirmação.
— A primeira edição do livro de Marco Polo foi escrita em francês. Mas houve um movimento durante a vida de Marco para que fossem reproduzidos livros no dialeto italiano. Esse movimento foi impulsionado por um famoso contemporâneo de Marco Polo.
— Dante Alighieri — disse Vigor.
Gray olhou de relance para o monsenhor.
Vigor explicou:
— A divina comédia, de Dante, incluindo o famoso Inferno, foi o primeiro livro escrito em italiano. Até mesmo os franceses passaram a chamar a língua italiana de la langue de Dante.
Seichan acenou afirmativamente com a cabeça.
— E essa revolução não foi ignorada por Marco. De acordo com os registros históricos, ele traduziu um exemplar em francês do seu livro para a sua língua nativa, a fim de que seus compatriotas o compreendessem. Mas, enquanto o traduzia, fez uma cópia secreta para si mesmo. Nesse livro, ele finalmente relatou o que aconteceu com a frota do Khan, escreveu essa história derradeira.
— Impossível — murmurou Vigor. — Como esse livro teria permanecido oculto por tanto tempo? Onde ele estava?
— A princípio, na propriedade da família Polo. Mas, com o tempo, ele foi parar num lugar mais seguro — respondeu Seichan, olhando fixamente para Vigor.
— Você não está querendo dizer...
— Os Polo foram enviados ao estrangeiro por ordem do papa Gregório. Há quem afirme que o pai e o tio de Marco foram os primeiros espiões do Vaticano, enviados como agentes duplos à China para verificar o poderio das forças mongóis. Os verdadeiros fundadores da agência para a qual o senhor um dia trabalhou, monsenhor Verona.
Vigor afundou em sua cadeira, refugiando-se em seus próprios pensamentos.
— O diário secreto estava oculto nos arquivos — murmurou ele.
— Esquecido, sem registro. Apenas outra edição do livro de Marco, a um olhar superficial. Seria necessária uma leitura meticulosa para perceber que havia um capítulo extra entremeado quase no fim do livro.
— E a Guilda conseguiu essa edição? — perguntou Gray. — Ficou sabendo de alguma coisa importante?
Seichan fez que sim com a cabeça. Gray franziu o cenho.
— Mas, para início de conversa, como foi que a Guilda botou as mãos nesse texto secreto?
Tirando os óculos escuros, Seichan olhou para o rosto dele, acusadora, zangada.
— Você o deu a eles, Gray
7:18h
Vigor viu o choque estampado no rosto do comandante.
— De que diabo você está falando? — indagou Gray.
Vigor também notou o brilho duro de satisfação nos olhos cor de esmeralda da assassina da Guilda. Ela parecia sentir certo prazer em provocá-los. No entanto, ele também percebeu a tenuidade do rosto dela, um pouco de palidez em suas faces. Ela estava amedrontada.
— Todos nós somos culpados — disse Seichan, acenando com a cabeça também para Vigor.
Vigor reagiu com tranqüilidade, sem fazer o jogo dela. Estava velho demais para que o seu sangue esquentasse tão facilmente. Além disso, já havia entendido.
— O símbolo da Corte do Dragão — disse Vigor.—Você o pintou no chão. Eu pensei que fosse um aviso para mim, um pedido para investigar a inscrição angélica.
Seichan confirmou com um aceno de cabeça e recostou-se. Ela percebeu a compreensão nos olhos dele.
— Mas era mais do que isso — prosseguiu ele.
Vigor lembrou-se do homem que antes ocupara seu lugar nos Arquivos do Vaticano, o dr. Alberto Menardi, um traidor que trabalhava secretamente para a Real Corte do Dragão. O homem furtara dos arquivos muitos textos importantíssimos durante o exercício do cargo e os transferira para uma biblioteca particular num castelo na Suíça. Gray, Seichan e Vigor tinham sido providenciais no desmascaramento do homem, destruindo a seita da Corte do Dragão. O castelo acabou passando por herança para a família Verona, uma propriedade amaldiçoada, com uma história longa e sangrenta.
— A biblioteca de Alberto no castelo — disse Vigor. — Depois de todo o derramamento de sangue e horror, assim que a polícia nos permitiu ir ao local, descobrimos que a biblioteca inteira não estava mais lá. Havia desaparecido.
— Por que não fui informado disso? — perguntou Gray, surpreso.
Vigor suspirou.
— Supusemos que tivessem sido ladrões do lugar... ou, talvez, corrupção entre policiais italianos. A biblioteca do traidor tinha muitas antigüidades preciosas. E, por causa do interesse de Alberto, havia muitos livros sobre conhecimentos arcanos.
Por mais que Vigor desprezasse o ex-prefeito, ele também reconhecia o brilho de Alberto Menardi, um gênio por mérito próprio. E, como prefeito dos arquivos por mais de trinta anos, Alberto conhecia todos os seus segredos. Ele teria valorizado e ficado fascinado por uma descoberta como aquela, uma edição de A descrição do mundo, de Marco Polo, com um capítulo extra oculto.
Mas o que o antigo prefeito havia lido? O que o fizera furtar o livro? O que despertara o interesse e a atenção da Guilda?
Vigor fitou Seichan.
— Mas não foram ladrões comuns que limparam a biblioteca, não é mesmo? Você contou à Guilda sobre os tesouros que se encontravam lá.
Seichan nem ao menos teve a audácia de se esquivar da acusação.
— Não tive escolha. Há dois anos, a biblioteca me trouxe novo alento, depois que ajudei vocês dois. Eu não tinha a menor idéia do horror que ela ocultava.
Gray havia permanecido em silêncio durante o diálogo deles, observando com os olhos estreitados. Vigor quase podia sentir as engrenagens girando, rodas parasitas caindo em novas fendas. Como Alberto, Gray tinha uma mente única, uma forma de rearranjar fragmentos díspares e descobrir uma nova configuração. Não era de admirar que Seichan o tivesse procurado.
Gray acenou com a cabeça para ela.
— Você leu esse texto, Seichan. O verdadeiro relato da viagem de regresso de Marco Polo.
Como resposta, ela empurrou sua cadeira para trás, inclinou-se e abriu o zíper da bota esquerda. Tirou dali três folhas soltas, dobradas e enfiadas num bolso interno. Empertigando-se, alisou as folhas, abrindo-as, e deslizou-as sobre a mesa.
— Assim que comecei a suspeitar do que a Guilda pretendia — disse ela —, tirei uma cópia do capítulo traduzido.
Vigor e Gray se aproximaram, ficando ombro a ombro, a fim de examinar as folhas juntos. O marinheiro grandalhão também se inclinou, com o hálito recendendo ao anis do raki.
Vigor correu os olhos pelo título e pelas primeiras linhas.
CAPÍTULO LXII
De uma viagem jamais contada; e de um mapa proibido
Agora sucedeu, depois de decorrido um mês inteiro além do último porto, que nós procuramos nos reabastecer de água doce de um rio e consertar dois navios. Fomos conduzidos em pequenos barcos, e nessa ocasião a abundância dos pássaros e a densidade da flora nos impressionavam. Carne salgada e frutas também se haviam esgotado. Viemos com 42 dos homens do Grande Khan, armados com lanças e flechas; e, como as ilhas próximas eram habitadas por idólatras nus que comiam a carne de outros homens, essa proteção do corpo era considerada sábia.
Vigor continuou a ler, reconhecendo a cadência e a prosa rigidamente arcaica de A descrição do mundo. Será que aquelas palavras eram mesmo de Marco Polo? Se eram, ali estava um capítulo em que apenas algumas pessoas haviam botado os olhos. Vigor desejava ler o original, sem confiar inteiramente na tradução; porém, ainda mais importante, queria ler com atenção o dialeto original, a fim de estar ainda mais próximo do famoso viajante medieval. Ele continuou a leitura:
De uma curva no rio, um dos homens do Khan gritou e apontou para uma elevação escarpada de outro pico a certa distância da parte plana do vale. Ele se situava vinte milhas terra adentro, nas profundezas da floresta densa; mas não era uma montanha. Era a torre de um grande edifício; e outras torres eram agora avistadas, meio ocultas nas brumas. Com dez dias sem nada para fazer por causa dos reparos, e como os homens do Khan desejavam caçar os muitos pássaros e animais a fim de obter carne fresca, partimos para procurar esses construtores de montanhas, um povo desconhecido e não-mapeado.
Após a primeira página, Vigor sentiu uma ameaça palpável crescendo por trás da narrativa despretensiosa de Marco. Em palavras simples, ele relatava como "os pássaros e os animais da floresta foram ficando quietos". Marco e os caçadores continuaram, seguindo urna trilha até as profundezas da selva, "percorrida por esses construtores de montanhas".
Afinal, quando o crepúsculo estava próximo, o grupo de Marco chegou a uma cidade de pedra.
A floresta abriu-se para uma grande cidade de muitas torres, cada qual coberta com rostos esculpidos de ídolos. Eu jamais descobriria qual era a feitiçaria diabólica empregada por esse povo; mas Deus, em Sua vingança misericordiosa, castigara essa cidade e a própria floresta com uma grande praga e pestilência. O primeiro corpo foi o de uma criança nua. Seu corpo estava com furúnculos até os ossos e coberto com grandes formigas pretas. Para qualquer lado que se virasse, os olhos pousavam sobre outro corpo e mais outro. Uma contagem de várias centenas não corresponderia à mortandade ali; e a morte não estava restrita ao pecado do homem. Pássaros haviam caído do céu. Animais da floresta jaziam em pilhas retorcidas. Grandes serpentes pendiam mortas dos galhos das árvores.
Era uma Cidade dos Mortos. Temendo a pestilência, procuramos partir a toda pressa. Porém, nossa passagem foi observada. Da parte mais profunda da floresta, eles vieram: sua carne nua não era mais saudável do que a daqueles que estavam espalhados ao longo dos degraus e praças de pedra, ou flutuando nos fossos verdes. Os membros estavam apodrecidos a ponto de exporem a carne embaixo. Outros exibiam vergões e furúnculos empolados que lhes cobriam a maior parte da pele; e outros, ainda, ostentavam barrigas pejadas de inchaço. Por toda parte, feridas exsudavam e exalavam gases. Alguns estavam cegos; outros, cobertos de feridas. Era como se mil pragas houvessem devastado aquela terra; uma legião de pestilência. Saindo do abrigo coberto de folhas, eles moviam-se em grupos com os dentes à mostra, como animais selvagens. Outros exibiam braços e pernas decepados. Que Deus me proteja mesmo agora, pois muitos daqueles membros estavam roídos.
Vigor sentiu um calafrio, apesar do crescente calor da manhã. Lia com um horror entorpecedor enquanto Marco descrevia como seu grupo fugira mais para o interior da cidade, à procura de refúgio contra o exército voraz. O veneziano descreveu minuciosamente o massacre e o canibalismo. Quando o crepúsculo caiu, o grupo de Marco retirou-se para um dos edifícios altos, esculpidos com cobras que se contorciam e com reis mortos havia muito. Os homens organizaram uma resistência final, certos de que seu pequeno grupo seria esmagado à medida que cada vez mais canibais doentes entrassem na cidade.
Gray murmurou entre os dentes, sem que suas palavras fossem ouvidas, mas sua descrença era óbvia.
Agora que o sol baixou, aconteceu o mesmo com as nossas esperanças. Cada um ao seu modo pronunciava orações aos céus. Os homens do Khan queimaram pedaços de madeira e esfregaram as cinzas no rosto. Ku tinha apenas meu confessor. Frei Agreer ajoelhou-se comigo e ofereceu nossas almas a Deus com preces sussurradas. Agarrou seu crucifixo e pintou minha testa com a cruz do sofrimento de Cristo. Ele usou as mesmas cinzas que os homens do Khan haviam usado. Olhei para os rostos marcados dos outros homens e me perguntei: numa provação como aquela, éramos todos iguais'' Pagãos e cristãos? E, no fim das contas, a prece de quem foi atendida? A prece de quem trouxe a Virtude contra essa pestilência para o nosso meio; uma Virtude sombria que nos salvou a todos.
A história parava aí.
Gray virou o papel, procurando mais.
Kowalski recostou-se e deu sua única contribuição para a discussão histórica.
— Falta sexo nessa história — murmurou, e tentou em vão conter um arroto com um dos punhos.
Franzindo o cenho, Gray bateu de leve num nome na última página.
— Aqui... esta menção a frei Agreer.
Vigor acenou com a cabeça, pois tinha detectado o mesmo erro gritante. Sem dúvida, aquele texto era falso.
— Nenhum sacerdote acompanhou os Polo ao Oriente — ele afirmou em voz alta. — De acordo com os textos do Vaticano, dois frades dominicanos partiram com os Polo, a fim de representar a Santa Sé, mas os dois voltaram depois de alguns dias.
Seichan pegou a primeira página e tornou a dobrá-la.
— Como no caso deste capítulo secreto, Marco omitiu o frade de suas crônicas. Na verdade, três dominicanos partiram com os Polo, um para cada viajante, conforme o costume da época.
Vigor se deu conta de que ela estava certa. De fato, era esse o costume da época.
— Apenas dois frades voltaram — afirmou Seichan. — A presença do terceiro foi mantida em segredo... até agora.
Gray moveu-se para trás e deu um puxão no pescoço. Ele tirou um crucifixo de prata e colocou-o em cima da mesa.
— E você afirma que esta é mesmo a cruz de frei Agreer? Aquela mencionada na história?
O olhar firme de Seichan respondeu à pergunta.
Em silêncio, por causa do choque da súbita revelação, Vigor examinou o crucifixo. Ele não tinha adornos, mal exibia a representação de uma figura crucificada. Vigor podia dizer que era antigo. Será que era autêntico? Ele pegou-o delicadamente da mesa e examinou-o. Se fosse autêntico, sua própria importância atribuía conteúdo às palavras angustiantes de Marco.
Afinal, Vigor conseguiu falar.
— Mas não estou entendendo. Por que frei Agreer foi eliminado da história?
Seichan estendeu a mão e recolheu as folhas de papel espalhadas.
— Não sabemos — ela respondeu simplesmente. — As páginas restantes do livro foram arrancadas e substituídas por uma página falsa, costurada na encadernação, mas a qualidade e a idade da nova página datavam de séculos posteriores à encadernação original.
Vigor franziu o cenho por achar aquilo estranho.
— O que constava da nova página?
— Eu jamais consegui vê-la, mas me disseram o que estava escrito. Ela continha um desvario desconexo, repleto de referências a anjos e citações bíblicas. Sem dúvida, o redator temia a história de Marco. E, ainda mais importante, a página mencionava detalhadamente um mapa incluído no livro e desenhado pelo próprio Marco. Um mapa que eles julgavam maligno.
— E o que foi que aconteceu com ele?
— Apesar de eles o temerem, quem quer que tenha editado o livro também ficou preocupado com a destruição total do mapa. Por isso o redator, junto com algumas outras pessoas, reescreveu o mapa num código que o protegeria e abençoaria.
Gray fez um aceno de cabeça, demonstrando sua compreensão.
— Então eles o ocultaram em escrita angélica.
— Mas quem inseriu a página? — indagou Vigor.
Seichan deu de ombros.
— Ela não estava assinada, mas havia na página referências suficientes para indicar que os descendentes dos Polo haviam entregado o livro secreto de Marco ao papado depois da devastação da Peste Negra no século XIV. Talvez a família receasse que fosse a mesma pestilência que assolara a Cidade dos Mortos e que afinal chegara para destruir o restante do mundo. Foi então que o livro foi acrescentado aos arquivos.
— Interessante — disse Vigor. — Se você estiver certa, isso poderia explicar por que todos os vestígios da família Polo desapareceram mais ou menos nessa época. Até o corpo de Marco Polo desapareceu da igreja de San Lorenzo, onde ele havia sido enterrado. Era como se houvesse um esforço sistemático de eliminar a família Polo. Alguém datou essa nova página desconexa?
Seichan fez que sim com a cabeça.
— Ela foi dalada do início do século XVII.
Vigor apertou os olhos.
— Hum... outro grande surto de peste bubônica varreu a Itália mais ou menos nessa época.
— Exatamente — disse Seichan. — E foi também nessa época que um alemão chamado Johannes Trithemius desenvolveu a escrita angélica, apesar de sua alegação de se tratar de uma escrita anterior à existência do homem na Terra.
Vigor concordou com a cabeça. Ele fizera seu próprio estudo histórico da escrita angélica. Seu criador acreditava que, ao usar seu alfabeto angélico — supostamente oriundo de um profundo estudo meditativo —, alguém poderia comunicar-se com um coro celestial de anjos. Trithemius também se interessava por criptografia e códigos secretos. Seu famoso tratado, Stenographia, foi considerado de natureza oculta, mas na verdade era uma mistura complexa de angelologia e decifração de códigos.
— Então, se você quisesse ocultar um mapa naquela época — concluiu Gray —, um mapa que considerasse maligno, encerrá-lo em escrita angélica seria uma boa maneira de se proteger contra os seus perigos.
— Foi exatamente nisso que a Guilda acabou acreditando. Naquela página secreta havia pistas sobre a localização desse mapa codificado, um mapa agora entalhado num obelisco egípcio e oculto no museu Gregoriano do Vaticano. Mas o obelisco havia desaparecido, perdido no tempo, transferido de lugar. Nasser e eu brincamos de gato e rato à procura dele. Mas eu ganhei. Eu o roubei nas barbas de Nasser.
Vigor percebeu o orgulho amargo na voz dela, porém franziu o cenho e perscrutou os outros rostos.
— De qual obelisco vocês estão falando?
7:42h
De uma maneira bem superficial, Gray explicou sobre o obelisco egípcio usado para ocultar a cruz do frade e descreveu o código pintado com tinta a óleo fosforescente.
— Eis o verdadeiro texto — disse Gray, passando sua cópia para Vigor.
O monsenhor examinou o complexo emaranhado de código angélico e sacudiu a cabeça.
— Não faz o menor sentido para mim.
— Exatamente — disse Seichan. — A carta desconexa no texto de Marco também faz referências a uma chave do mapa, uma forma de revelar o seu segredo. Uma chave oculta em três partes. A primeira chave foi vinculada à inscrição na sala na qual o texto secreto foi originalmente oculto.
— Na Torre dos Ventos — disse Vigor. — Um bom esconderijo. A torre estava em construção naquele século. Foi construída para abrigar o Observatório do Vaticano.
— E, conforme a página falsa no livro de Marco — prosseguiu Seichan —, cada chave levaria à próxima. Por isso, para começarmos, precisamos solucionar o primeiro enigma: a inscrição angélica no Vaticano. — Ela se virou inteiramente para Vigor. — O senhor afirmou que teve êxito. Isso é verdade?
Vigor abriu a boca para explicar, mas Gray pôs uma das mãos sobre o braço dele. Ele não tinha a menor intenção de dar a Seichan todas as suas cartas. Tinha de ter pelo menos um trunfo de reserva.
— Antes disso — afirmou Gray —, você tem que nos dizer por que a Guilda está envolvida em tudo isso. Qual a vantagem de seguir essa pista histórica desde Marco Polo até o presente?
Seichan hesitou. Ela respirou fundo, pois não sabia se devia mentir ou preparar-se para dizer a verdade. Quando ela falou, confirmou os temores crescentes do próprio Gray.
— Porque acreditamos que a doença descrita por Marco está à solta de novo — respondeu ela. — Libertada de algumas madeiras antigas das galeras originais de Marco encontradas entre as ilhas indonésias. A Guilda já está no local, pronta para seguir a pista científica. Nasser e eu fomos incumbidos de seguir a pista histórica. Como era o costume da Guilda, o braço direito não deveria saber o que o esquerdo estava fazendo.
Gray entendia a compartimentação da Guilda em células, um padrão estritamente seguido por muitas organizações terroristas.
— Mas eu roubei algumas informações — disse ela. — Fiquei sabendo da natureza da doença e da sua capacidade de alterar a biosfera para sempre.
Seichan continuou a falar sobre a descoberta de um vírus pela Guilda — alguma coisa denominada Estirpe de Judas — e sua capacidade de transformar todas as bactérias em assassinas.
Ela citou o texto de Marco.
— "Uma legião de pestilência." Foi isso que assolou a Indonésia. Mas eu conheço a Guilda. Sei o que eles planejam fazer. Ao cultivarem e utilizarem esse patógeno, esperam criar uma grande quantidade de novas armas biológicas bacterianas, uma fonte inesgotável originada desse vírus.
Enquanto Seichan relatava os detalhes da doença, Gray havia segurado a borda da mesa. Os nós de seus dedos doíam. Um terror maior se apossara dele. Antes que ele pudesse falar, Vigor pigarreou.
— Mas, se o braço científico da Guilda está perseguindo o vírus, qual a importância dessa caçada histórica ao longo das pegadas de Marco Polo? Que diferença isso faz?
Gray respondeu, citando uma linha do texto de Marco.
— "Uma Virtude sombria que nos salvou a todos." Para mim, isso parece uma cura.
Seichan concordou com um aceno de cabeça.
— Marco sobreviveu para contar a história. Até mesmo a Guilda não ousaria pôr um vírus desses em ação sem algum meio de controlá-lo.
— Ou pelo menos de descobrir sua origem — acrescentou Gray.
Vigor olhou na direção da cidade, com o rosto delineado contra o sol nascente.
— E existem outras perguntas não-respondidas. O que aconteceu com frei Agreer? O que amedrontou o papado?
Gray, porém, tinha uma pergunta mais importante.
— Exatamente onde na Indonésia aconteceu esse novo surto?
— Numa ilha remota, felizmente longe de qualquer área muito povoada.
— Na ilha Christmas — completou Gray.
Os olhos de Seichan arregalaram-se de surpresa. Uma confirmação suficiente.
Gray teve um sobressalto. Todos o encararam. Monk e Lisa tinham ido à ilha Christmas investigar a mesma doença. Eles não tinham a menor idéia do que estavam prestes a confrontar — ou do interesse da Guilda. A respiração de Gray ficou mais pesada. Ele tinha de informar Painter. Porém, com a Sigma comprometida, será que seu alarme exporia seus amigos a mais perigo, será que os transformaria num alvo fácil?
Ele precisava de mais informações.
— Até que ponto essa operação da Guilda na Indonésia progrediu?
— Não sei. Foi difícil ficar sabendo o que eu soube.
— Seichan — Gray rosnou para ela.
Os olhos dela estreitaram-se de preocupação. Agitado como estava, ele quase acreditou que a preocupação dela fosse sincera.
— Eu... eu na verdade não sei, Gray. Por quê? Qual o problema?
Exalando o ar com força, Gray foi até o balaústre, pois precisava de mais um segundo para pensar, para que tudo o que ficara sabendo se aclarasse dentro dele.
No momento, só tinha uma certeza.
Precisava informar Washington.
l:04h
Washington, D.C.
Harriet Pierce esforçou-se para acalmar o marido. Foi particularmente difícil, porque ele se trancara no banheiro do hotel. Ela pressionou um pano úmido frio no lábio rachado.
— Jack! Abra a porta!
Ele havia despertado duas horas atrás, confuso e desorientado. Ela já vira aquilo antes: síndrome do pôr-do-sol, comum nos pacientes com Alzheimer. Tratava-se de uma condição de agitação intensificada após o pôr-do-sol, quando o ambiente familiar se tornava confuso no escuro.
E ali era pior, porque eles estavam longe de casa.
O fato de o Phoenix Park Hotel ser a segunda acomodação deles em menos de 24 horas não ajudava em nada. Primeiro, o apartamento do dr. Corrin, e agora ali. Porém, Gray fora firme quando sussurrou seu adeus e acrescentou uma instrução específica para ela. Ele lhe dissera que, assim que o dr. Corrin os deixasse no apartamento, ela deveria partir, cruzar a cidade e registrar-se num hotel, pagando em dinheiro e usando um nome falso.
Uma precaução extra.
Mas toda aquela movimentação só havia piorado o estado de Jack. Ele passara um dia inteiro sem o Tegretol, seu estabilizador do humor, e tomara o último comprimido de propranolol, um medicamento para a pressão arterial que reduzia a ansiedade.
Não era de surpreender, portanto, que Jack tivesse acordado antes em pânico, desorientado, na pior crise que ela tinha visto em meses.
Seus gritos e passos pesados e desajeitados haviam-na despertado. Ela adormecera inadvertidamente, sentada numa cadeira em frente ao pequeno televisor na saleta do quarto de hotel. Sintonizara o canal da Fox News e deixara o volume baixo, alto apenas o suficiente para ouvir caso o nome de Gray fosse mencionado de novo.
Harriet despertara sobressaltada pelos gritos do marido e correra para o quarto. Um erro tolo. Não se surpreendia um paciente no estado dele. Jack a esbofeteara, acertando-a na boca. Agitado, ele levou meio minuto para reconhecê-la.
Quando finalmente a reconheceu, refugiou-se no banheiro. Ela escutara os soluços dele. Fora por isso que ele trancara a porta.
Os homens da família Pierce não choravam.
— Jack, abra a porta. Está tudo bem. Eu telefonei para a farmácia no fim da rua e pedi os remédios. Está tudo em ordem.
Harriet sabia que era um risco telefonar para pedir os medicamentos. Porém, não podia levar Jack a um hospital, e, se não fosse tratada, sua demência pioraria. Os gritos dele ameaçavam atrair a ira da gerência do hotel. E se talefonassem para a polícia?
Sem escolha, com os dentes doendo em conseqüência do golpe, ela tomara uma decisão. Usando o catálogo telefônico, ligara para uma farmácia aberta dia e noite com serviço de entregas em domicílio e solicitara uma renovação da receita. Assim que os medicamentos chegassem e seu marido fosse tratado, ela fecharia a conta, iria para outro hotel e desapareceria de novo.
A campainha soou atrás dela.
Oh, graças a Deus.
— Jack, é a farmácia. Eu volto já.
Ela saiu correndo do quarto e foi até a porta da frente. Estendeu a mão para o ferrolho, mas parou. Em vez disso, inclinou-se para a frente e olhou através do olho mágico, que proporcionava uma vista olho-de-peixe do corredor. Uma mulher desacompanhada, com os cabelos negros cortados bem curtos, estava em pé em frente à porta. Ela usava um jaleco branco com o logotipo da farmácia na lapela e carregava uma sacola de papel branco com uma receita grampeada.
A mulher sumiu de vista. A campainha tocou de novo. A mulher consultou o relógio e começou a se afastar. Harriet gritou através da porta:
— Espere um instante!
— Farmácia Cisne! — a mulher gritou em resposta.
Usando ainda de mais cautela, Harriet foi até um telefone sobre uma mesa à entrada. Ela se olhou ao espelho de parede acima dele: parecia abatida, pálida como cera. Apertou o botão do telefone e entrou em contato com o balcão de recepção no saguão.
Atenderam imediatamente.
— Phoenix Park. Recepção.
— Aqui é do quarto 334. Eu gostaria de confirmar a entrega feita por uma farmácia.
— Sim, minha senhora. Verifiquei as credenciais dela três minutos atrás. Algum problema?
— Não. Nenhum problema. Eu só queria...
Um estrondo soou do quarto atrás dela, seguido por uma série de imprecações. Jack finalmente abrira a porta do banheiro.
A recepcionista perguntou a ela:
— Tem mais alguma coisa que eu possa fazer pela senhora?
— Não, obrigada — respondeu ela, e desligou.
— Harriet! — gritou o marido dela, com um tom de angústia por trás da raiva.
— Estou aqui, Jack.
A campainha tocou outra vez.
Esgotada, Harriet puxou o ferrolho da porta, esperando que Jack não fosse ficar irritado por tomar seus comprimidos, e abriu-a.
A entregadora ergueu o rosto, sorrindo, mas não havia calor nele, apenas um divertimento selvagem. Um choque de reconhecimento paralisou Harriet: era a mulher que os havia atacado no abrigo secreto. Antes que Harriet pudesse mexer-se, a mulher terminou de abrir a porta com um chute.
Assustada, Harriet foi atingida no ombro pela extremidade da porta e caiu tropeçando no piso duro. Tentou amortecer o impacto com um braço estendido, mas seu punho explodiu embaixo dela com um estalo brusco. Uma dor queimante subiu por seu braço.
Ofegando, meio apoiada num dos quadris, ela girou o corpo. Jack saiu do quarto usando apenas uma cueca samba-canção.
— Harriet...?
Ainda confuso, Jack levou muito tempo para registrar a situação. A mulher transpôs o limiar, ergueu uma pistola de grosso calibre e apontou-a para Jack.
— Aqui estão os seus remédios.
— Não! — gemeu Harriet.
A mulher puxou o gatilho. Uma descarga repentina de eletricidade explodiu do tambor. Alguma coisa passou zunindo junto à orelha de Harriet, arrastando um fio. Ela acertou Jack no peito nu, com uma cintilação e uma crepitação azul à luz fraca.
Taser.
Ele engasgou, com os braços agitando-se, e caiu para trás. Não se moveu.
No silêncio atordoante, um locutor da Fox News sussurrou do televisor com o volume baixo:
— A Polícia Metropolitana ainda continua a perseguir Grayson Pierce, procurado por ligação com o incêndio criminoso e o bombardeio de uma casa aqui no Distrito de Colúmbia.
8:32h
Istambul
Sozinho junto ao balaústre do terraço panorâmico, Gray fez um esforço para pensar em algum canal seguro para se comunicar com Washington sobre os perigos na ilha Christmas. Ele teria de ser prudente, de recorrer a alguma comunicação privada que não se propagasse além de Painter. Mas como? Quem poderia dizer que a Guilda não estava monitorando todas as formas de comunicação?
Seichan falou atrás dele, sentada à mesa. Suas palavras não eram dirigidas a Gray.
— Monsenhor, o senhor ainda não explicou por que nos chamou a Istambul. O senhor afirmou ter entendido a inscrição angélica.
A curiosidade atraiu Gray de volta à mesa, mas ele não conseguiu sentar-se. Ficou em pé entre Seichan e Vigor.
O monsenhor suspendeu sua mochila e a pôs no colo. Ele a remexeu e tirou um bloco de anotações, abrindo-o sobre a mesa. De um lado ao outro da página havia uma linha de letras angélicas desenhadas a carvão.
— Esta é a inscrição existente no piso da Torre dos Ventos — disse Vigor. — Cada letra deste alfabeto corresponde a uma palavra tonal específica. E, segundo o pai da escrita angélica, Trithemius, combinados na seqüência certa, esses agrupamentos poderiam abrir uma linha direta com um anjo específico.
— Como uma chamada interurbana — murmurou Kowalski do outro lado da mesa.
Com um aceno de cabeça, Vigor virou a página.
— Eu fui em frente e marquei o nome de cada letra.
Gray sacudiu a cabeça, sem notar nenhum padrão.
Vigor pegou rapidamente uma caneta e traçou uma linha sob a primeira letra de cada nome, recitando enquanto o fazia.
— A. I.G. A.H.
— Esse é o nome de algum anjo? — indagou Kowalski.
— Não, não de um anjo, mas é um nome — respondeu Vigor. — O que vocês precisam entender é que Trithemius baseou seu alfabeto no hebraico, alegando o poder das letras judaicas. Mesmo hoje, os praticantes da cabala acreditam que existe alguma forma de sabedoria divina oculta nas formas e curvas do alfabeto hebraico. Trithemius apenas afirmou que sua escrita angélica era o mais puro refinamento do hebraico.
Gray inclinou se mais para perto; começava a entender a direção da pista de Vigor.
— E o hebraico é lido ao contrário do inglês: da direita para a esquerda. Seichan correu um dos dedos ao longo do papel e leu de trás para a frente:
— H.A.G.I.A.
— Hagia — Vigor pronunciou cuidadosamente. — A palavra significa "divino" em grego.
Os olhos de Gray estreitaram-se e depois se arregalaram diante da súbita compreensão.
Claro.
— O que foi? — perguntou Seichan.
Kowalski coçou a cabeça de cabelos curtos e eriçados, também sem ter a mínima idéia.
Vigor levantou-se, e todos o irritaram. Levou-os para contemplar a cidade.
— Na sua viagem para casa, Marco Polo passou por Istambul, na época chamada Constantinopla. Foi aqui que ele saiu da Ásia e finalmente reentrou na Europa, uma importante encruzilhada de toda espécie.
O monsenhor apontou para a cidade, na direção de um dos antigos monumen¬tos. Gray o notara antes. Uma imensa igreja de cúpula plana, meio encoberta por andaimes pretos dos trabalhos de restauração.
— Hagia Sophia — disse Gray, citando o nome da construção. Vigor concordou com a cabeça.
— Ela foi um dia a maior igreja cristã no mundo inteiro. O próprio Marco comentou as maravilhas de seus graciosos espaços. Algumas pessoas se enganam, achando que Hagia Sophia significa "Santa Sofia", mas, na verdade, o nome da construção é igreja da Divina Sabedoria, que também pode ser interpretado como igreja da Angélica Sabedoria.
— Então é lá que temos que ir! — exclamou Seichan. — A primeira chave deve estar oculta lá.
Ela se virou.
— Não tão depressa, minha jovem — repreendeu-a Vigor.
O monsenhor voltou para onde estava sua mochila, enfiou a mão nela e tirou um objeto embrulhado em pedaços de pano. Colocando-o delicadamente sobre a mesa, removeu as camadas de pano, revelando uma barra plana de ouro fosco. Ela parecia muito antiga; tinha um furo numa extremidade e a superfície coberta por uma escrita cursiva.
— Não é angélica — disse Vigor, notando a atenção de Gray na escrita. — É mongol, e quer dizer: "Pelo poder do eterno céu, sagrado seja o nome do Khan. Que aquele que não o reverencia seja morto."
— Eu não estou entendendo — disse Gray, franzindo o cenho. — Isso pertenceu a Marco Polo? O que é isso?
— Em chinês, é chamado de paitzu; em mongol, gerege.
Três rostos confusos fitaram Vigor.
Ele fez um aceno de cabeça na direção do objeto.
— No linguajar moderno, é um passaporte VIP. Um viajante que portasse este superpassaporte podia exigir cavalos, suprimentos, homens, barcos, qualquer coisa das terras governadas por Kublai Khan. A recusa a essa ajuda era passível de punição com a morte. O Khan concedia esses passaportes aos embaixadores que viajavam a seu serviço.
— Legal — sussurrou Kowalski, mas, pelo brilho em seus olhos, Gray suspeitou de que o espanto dele se devesse mais ao ouro do que à história.
— E os Polo receberam um desses passaportes? — perguntou Seichan.
— Três, na verdade. Um para cada Polo: Marco, seu pai e seu tio. Existe até um episódio relacionado com esses passaportes. Um episódio famoso. Quando os Polo chegaram a Veneza, disseram que ninguém os reconheceu. Os três chegaram abatidos, cansados, num único navio, parecendo pouco mais que mendigos. Ninguém acreditou que eles fossem os Polo há tanto tempo desaparecidos. Ao pisarem na praia, os três abriram as costuras de suas roupas, e uma enorme quantidade de esmeraldas, rubis, safiras e prata caiu no chão. Incluídos nesse tesouro estavam os três paitzus de ouro, descritos minuciosamente. Mas, depois dessa história, os passaportes de ouro desapareceram. Todos os três.
— O mesmo número das chaves do mapa — comentou Gray.
— Onde o senhor encontrou este? — indagou Seichan. — Num dos museus do Vaticano?
— Não. — Vigor bateu de leve no bloco de anotações aberto com a escrita angélica. — Com a ajuda de um amigo, eu o descobri embaixo da laje de mármore sobre a qual a inscrição foi feita. Num buraco secreto sob o mármore.
Como a cruz do frade, Gray se deu conta. Oculto numa pedra.
Seichan praguejou levemente. Mais uma vez o prêmio estivera bem debaixo do seu nariz o tempo todo.
Vigor prosseguiu:
— Eu acredito que este é um dos próprios paitzus concedidos aos Polo. — Ele fitou-os todos. — E creio que esta é a primeira chave.
— Então a pista que conduz a Hagia Sophia... — começou Gray.
— Ela está apontando para a segunda chave — concluiu Vigor. — Mais dois passaportes que faltam, mais duas chaves que faltam.
— Mas como o senhor pode ter tanta certeza? — indagou Seichan.
Vigor virou a barra de ouro. Inscrita detalhadamente, uma única letra adornava o lado de trás. Uma letra angélica.
Vigor bateu de leve na letra.
— Aqui está a primeira chave.
Gray sabia que ele estava certo. Ergueu o olhar na direção da imensa igreja. Hagia Sophia. A segunda chave tinha de estar oculta lá, mas a construção era enorme. Seria como procurar uma agulha de ouro num palheiro. Poderia levar dias.
Vigor deve ter percebido a preocupação dele.
— Eu já mandei alguém na frente a fim de explorar a igreja. Um historiador da arte do Vaticano que me ajudou na Torre dos Ventos com o enigma angélico.
Gray acenou com a cabeça. Enquanto examinava a única letra, não conseguia livrar-se de uma preocupação mais profunda: seus dois amigos, Monk e Lisa, já em perigo. Se não conseguisse entrar em contato com Washington de uma forma segura, talvez houvesse outra maneira de ajudá-los: levar a melhor sobre a Guilda em relação ao que quer que estivesse no fim daquele mistério.
Encontrar a Cidade dos Mortos, descobrir a cura.
Antes da Guilda.
Enquanto olhava para o sol nascente, Gray lembrou-se das palavras de Vigor a respeito de Istambul ter sido a encruzilhada da viagem de Marco. De fato, desde a sua fundação, a antiga cidade tinha sido a encruzilhada do mundo geográfico. Ao norte ficava o mar Negro; ao sul, o Mediterrâneo. O estreito de Bósforo, importante rota comercial e canal marítimo, corria entre eles. Porém, ainda mais importante para a História, Istambul estendia-se por dois continentes: um de seus pés estava na Europa e o outro, na Ásia.
Podia-se dizer o mesmo sobre o lugar da cidade no golfo do tempo.
Um pé no presente, outro no passado.
Para sempre numa encruzilhada.
Igual a ele mesmo.
Enquanto refletia sobre isso, um telefone celular tocou ao lado. Vigor virou-se e tirou seu telefone do bolso da frente da mochila. Franzindo o cenho, observou a identificação da chamada.
— É um código de área do Distrito de Colômbia — disse Vigor.
— Deve ser o diretor Crowe — avisou Gray. — Não diga nada. Demore o menos possível, a fim de evitar qualquer rastreamento. Na verdade, nós deveríamos tirar a bateria do aparelho depois, para que ele não seja rastreado de forma passiva.
Vigor revirou os olhos por causa dessa paranóia e abriu o telefone.
— Pronto — disse ele.
Vigor ouviu por alguns instantes, franzindo cada vez mais a testa.
— Chi parla? — perguntou ele com uma leve veemência.
O que quer que tenha ouvido deixou-o abalado. Ele virou-se e estendeu o telefone para Gray.
— É o diretor Crowe? — indagou ele, em voz baixa.
Vigor sacudiu a cabeça.
— É melhor você atender.
Gray pegou o telefone e ergueu-o até o ouvido.
— Alô?
A voz que ele ouviu foi instantaneamente reconhecível, o sotaque egípcio era claro. As palavras de Nasser drenaram todo o calor do ar.
— Sua mãe e seu pai estão comigo.
CAPÍTULO 8
Paciente Zero
6 de julho, 12:42h
A bordo do Mistress of the Seas
Seus esforços de resgate já eram...
Em pé no elevador na parte central do navio, Monk equilibrava uma bandeja com o almoço numa palma erguida. Sobre o outro ombro carregava seu rifle de assalto. Uma canção do ABBA, uma versão acústica, saía de pequenos alto-falantes. O percurso desde as cozinhas apertadas do navio até o deque superior levou tanto tempo que, ao chegar lá, ele já estava cantarolando a música.
Oh, meu Deus...
As portas afinal se abriram, permitindo que Monk saísse. Ele desceu o corredor na direção dos guardas que flanqueavam as portas duplas no fim. Sussurrou entre os dentes, praticando seu malaio. Jessie roubara um pouco de corante para tingir o rosto e as mãos de Monk, a fim de deixá-lo parecido com os outros piratas, semelhante ao disfarce do homem morto na cabine de Lisa, cujo corpo Monk discretamente jogara no mar.
Longe dos olhos, longe do coração.
Para completar o disfarce, Monk manteve o lenço de cabeça na parte inferior do rosto, desempenhando ao máximo o papel. Uma vez em Roma...
Durante o dia e a noite passados, Jessie havia ensinado a Monk algumas das frases mais comuns em malaio, a língua oficial dos piratas ali. Infelizmente, Monk não aprendera o bastante para transpor o cordão de segurança criado em volta de Lisa. Ele e Jessie tinham vasculhado o navio e descobriram que todos os cientistas e seu pessoal de apoio imediato haviam sido reunidos em um único andar, enquanto a equipe médica continuava cuidando dos doentes em todo o navio.
Infelizmente, os conhecimentos de fisiologia de Lisa deviam ter sido percebidos. Ela foi isolada na ala científica, bloqueada e sob forte segurança. Parecia que apenas a elite dos piratas, sob a supervisão imediata de seu líder, o maori tatuado chamado Rakao, guarnecia esses postos. A sala do rádio estava igualmente guardada. Jessie soubera de tudo aquilo por se misturar na multidão de piratas graças à sua fluência na língua deles.
Naquele ínterim, Monk se transformara em pouco mais do que guarda-costas de Jessie. Não havia muito mais que pudesse fazer. Mesmo que Monk tentasse um assalto à moda John Wayne na ala científica, como ele escaparia com Lisa? E aonde iriam? Embora ainda estivessem navegando à velocidade máxima, eles teriam de pular no mar. E aquele não era o plano mais sensato.
Mais cedo naquela manhã, Monk havia observado as águas de um convés aberto. O Mistress of the Seas navegava em águas profundas por entre as ilhas indonésias. Eles estavam perdidos num labirinto de atóis menores, mil saliências cobertas de florestas apontando para o céu. Se fugissem e nadassem até uma daquelas ilhas, seriam facilmente perseguidos e capturados.
Isto é, se conseguissem passar pelos tubarões-tigre.
Por isso Monk tinha de esperar o momento adequado.
Mas aquilo não significava que ele não podia realizar alguma coisa.
Como agora.
Servindo o almoço.
Era um bom plano. Ele tinha de abrir um meio de comunicação com Lisa. Informá-la de que ela não estava sozinha, porém, ainda mais importante, de que eles poderiam combinar quando Monk estivesse pronto para agir. E, como não podia entrar em contato diretamente com Lisa, ele precisava de um intermediário.
Monk chegou à porta dupla. Ergueu a bandeja na direção dos dois guardas e abriu caminho murmurando em malaio o equivalente de "o sino do almoço já tocou".
Um deles virou-se e bateu a coronha de seu rifle contra a porta. Um instante depois, um guarda, que estava postado lá dentro, abriu a porta. Ele avistou Monk e acenou para que ele entrasse na suíte presidencial do navio.
Um mordomo de fraque e cheio de pompa encontrou-se com Monk à entrada. Ele tentou tirar a travessa de Monk, porém, portando-se de maneira rude como os piratas, Monk tentou um feroz equivalente malaio de aaargh e empurrou o homem bruscamente para o lado com um dos ombros. O mordomo tropeçou para trás, com os braços oscilando, fazendo o guarda à porta emitir um misto de grunhido com uma risadinha.
Monk entrou no salão principal da suíte. Uma pequena nuvem de fumaça vinda de uma espreguiçadeira na sacada lá fora o alertou de seu alvo.
Ryder Blunt estava reclinado, usando um roupão do navio e calção de banho florido, com os calcanhares cruzados, os cabelos louros desgrenhados. Fumava um charuto grosso, observando as ilhas escarpadas passarem lentamente. A fuga estava tão próxima e, no entanto, tão distante. Para combinar com o estado de ânimo sinistro, uma espessa formação de nuvens escuras erguia-se no horizonte.
Quando Monk se aproximou, o bilionário nem sequer se deu o trabalho de dar uma olhadela em sua direção. Era o hábito dos ricos, sempre fingir não notar os empregados que os serviam. Ou talvez fosse apenas desdém pelo pirata que servia seu almoço. O mordomo de Ryder já havia arrumado uma mesa lateral.
Prataria, cristais e guardanapos passados a ferro.
Devia ser bom ser rei.
Monk baixou a bandeja sobre a mesa e sussurrou no ouvido do homem ao se curvar.
— Não reaja — disse em inglês. — Eu sou Monk Kokkalis, da delegação americana.
A única reação do bilionário foi uma exalação mais intensa de fumaça.
— O colega da dra. Cummings — sussurrou ele. — Pensamos que você estivesse morto. Os piratas enviados atrás de você...
Monk não tinha tempo para explicar.
— Sim, quanto a eles... se ferraram com os caranguejos.
O mordomo chegou à porta da sacada.
Ryder o despediu com um aceno, falando em voz alta.
— Isso é tudo, Peter. Obrigado.
Monk tirou os pratos da bandeja. Ele ergueu uma das tampas de prata sobre a chapa elétrica, revelando dois pequenos rádios embaixo dela.
— Uma porção extra para o senhor e Lisa. — Ele voltou a cobrir a bandeja e revelou o que estava sob a tampa da segunda chapa. — E, naturalmente, uma sobremesa.
Duas pistolas de pequeno calibre.
Uma para Ryder e a outra para Lisa.
Os olhos do bilionário arregalaram-se, e Monk percebeu a compreensão.
— Quando...? — perguntou Ryder.
— Combinaremos tudo pelos rádios. Canal oito. Os piratas não o estão usando. — Monk e Jessie usaram aquela freqüência o dia inteiro, e ninguém descobriu. — O senhor consegue passar um rádio e uma arma para Lisa?
— Eu farei tudo o que estiver ao meu alcance — respondeu ele, acompanhando sua resposta com um aceno de cabeça decidido.
Monk empertigou-se. Ele não ousava demorar mais, senão os guardas ficariam desconfiados.
— Ah, e tem pudim de arroz embaixo da tampa da última travessa.
Monk dirigiu-se ao salão principal. Ele ouviu o comentário sussurrado de Ryder:
— Que coisa mais repugnante... quem é que teve a idéia de pôr arroz no pudim?
Monk suspirou. Os ricos só se sentiam felizes quando tinham algo de que se queixar. Ele chegou às portas duplas e saiu. Um dos guardas perguntou-lhe alguma coisa em malaio.
Como resposta, Monk enfiou um dedo no nariz, parecendo muito ocupado e determinado, resmungou alguma coisa sem sentido e continuou em direção ao elevador.
Felizmente, a cabine ainda estava lá, e as portas se abriram imediatamente. Ele se enfiou lá dentro bem a tempo de ouvir a próxima canção do ABBA começar.
Ele grunhiu.
O rádio num lado de seu corpo crepitou. Monk tirou-o e encostou-o nos lábios.
— O que é? — perguntou.
— Me encontre nos nossos aposentos — disse Jessie. — Estou indo para lá agora.
Os dois haviam encontrado uma cabine vazia para partilhar e a transformaram em sua base de operações.
— Qual o problema?
— Eu acabei de ouvir. O capitão do navio espera alcançar algum porto hoje. Eles estão acelerando os motores para chegar antes do anoitecer. As informações sobre a meteorologia são de que uma pequena tempestade, movendo-se através das ilhas indonésias, está se transformando gradativamente num tufão. Por isso eles têm de aportar.
— Encontro você em nossos aposentos — disse Monk, desligando.
Prendendo o rádio no cinto, ele fechou os olhos. Talvez aquele fosse o primeiro golpe de sorte deles. Calculou mentalmente, enquanto balbuciava automaticamente as palavras de "Take a Chance on Me", do ABBA.
Era uma canção excelente.
13:02h
Lisa olhou para sua paciente. A mulher usava um avental hospitalar azul e estava conectada por fios e tubos a todo tipo de aparelhos de monitoramento. Dois enfermeiros aguardavam na outra sala.
Lisa pedira um instante de privacidade.
Ela estava em pé ao lado da cama, lutando contra um leve sentimento de culpa.
Lisa conhecia de cor os dados da paciente: mulher caucasiana, 1,62 metro, 50 quilos, cabelos louros, olhos azuis, uma cicatriz de apendicectomia. As radiografias tinham revelado uma fratura antiga e consolidada no antebraço esquerdo. A verificação dos dados biográficos feita pela Guilda revelava até a causa da fratura: um acidente na juventude entre um skate e um meio-fio quebrado.
Lisa memorizara os resultados do hemograma da mulher: enzimas hepáticas, uréia, creatinina, ácidos biliares, contagens das células sanguíneas. Ela conhecia os resultados do último exame de urina e da cultura de fezes.
Num lado estava uma bandeja de instrumental esmeradamente disposto com instrumentos de exame: otoscópio, oftalmoscópio, estetoscópio, endoscópio. Ela os usara a manhã toda. Numa mesa-de-cabeceira próxima, as cópias impressas do eletrocardiograma e do eletroencefalograma estavam dobradas em forma de sanfona. Ela havia examinado cada centímetro da fita. No decorrer do dia anterior, lera todo o histórico clínico da paciente e grande parte dos achados dos yirologistas e bacteriologistas da Guilda.
A paciente não estava em coma. Em termos mais precisos, seu estado era de estupor catatônico. Ela exibia uma acentuada cereaflexibilitis, ou flexibilidade cérea. Se um membro fosse movido, ele ficava naquela posição, como um manequim. Mesmo em posições dolorosas... conforme a própria Lisa havia testado.
Àquela altura, ela sabia tudo sobre o corpo da mulher.
Exausta, dedicou alguns instantes para examinar melhor a paciente.
Não com instrumentos, não com exames, mas com empatia.
A fim de ver a mulher atrás dos resultados dos exames.
A dra. Susan Tunis fora uma pesquisadora conceituada, a caminho de uma carreira de sucesso. Ela até encontrara o homem dos seus sonhos. E, exceto por ter sido casada durante cinco anos, a vida da mulher era semelhante à de Lisa. Agora, o destino dela era uma lembrança da fragilidade das nossas vidas, expectativas, esperanças e dos nossos sonhos.
Lisa estendeu os dedos enluvados e apertou a mão da mulher, pousada sobre o lençol fino.
Nenhuma reação.
Lá fora, na outra sala, os enfermeiros agitaram-se quando a porta da suíte se abriu. Lisa ouviu a voz do dr. Devesh Patanjali. O chefe da equipe de cientistas da Guilda entrou na sala.
Lisa soltou a mão de Susan.
Ela virou-se quando Devesh entrou na sala. Sua sombra permanente, Surina, moveu-se de mansinho até uma cadeira na sala externa e sentou-se, com as mãos cuidadosamente dobradas no colo. A companhia perfeita... perfeitamente letal.
Devesh apoiou sua bengala ao lado da porta e juntou-se a ela.
— Vejo que a senhora está ficando cada vez mais familiarizada com a nossa Paciente Zero esta manhã.
Lisa simplesmente cruzou os braços. Foi a primeira vez que Devesh falou com ela de uma forma significativa, depois de tê-la deixado em paz com seu trabalho científico. Ele passava a maior parte do tempo com Henri, no laboratório de toxicologia, e com Miller, no laboratório de doenças infecciosas. Lisa até fazia as refeições sozinha em seus aposentos ou ali na suíte.
— Agora que obteve um quadro completo da minha prezada paciente, o que a senhora pode me dizer a respeito dela?
Embora o homem sorrisse, Lisa percebeu a ameaça por trás de suas palavras. Ela se lembrou do assassinato frio de Lindholm, só para ensinar uma lição: ser útil. Devesh esperava resultados dela, insights que haviam escapado a todos os outros pesquisadores. Ela também percebeu que o tempo que passava a sós com a paciente tinha o objetivo de isolá-la de qualquer tendência preconcebida.
Devesh queria a opinião exclusiva dela sobre a situação.
Ela, no entanto, se recordou de suas palavras anteriores sobre o vírus, sobre o que ele estava fazendo dentro da mulher. Ele está incubando.
Lisa aproximou-se da paciente e expôs-lhe o antebraço. De acordo com os boletins médicos, furúnculos e erupções sanguinolentas já haviam coberto seus membros. Mas, atualmente, a pele não exibia nenhuma cicatriz. Parecia que o vírus estava fazendo mais do que incubar dentro dela.
— A Estirpe de Judas está curando-a — disse Lisa, sabendo que aquilo era um teste. — Ou, mais precisamente, o vírus de repente decidiu reverter o que havia começado a fazer com as bactérias dela. Por algum motivo desconhecido, ele começou a fazer as bactérias letais no corpo dela voltarem a seu estado benigno original.
Ele concordou com a cabeça.
— Ele está forçando a saída dos próprios plasmídios que havia introduzido antes nas bactérias. Mas por quê?
Lisa sacudiu a cabeça. Não sabia. Pelo menos com certeza.
Devesh sorriu, com uma expressão estranhamente calorosa e amigável.
— Ele também nos deixou perplexos.
— Mas eu tenho uma hipótese — disse Lisa.
— É mesmo? — perguntou ele, a voz com um tom de surpresa.
Lisa fitou-o.
— O corpo dela está se curando, mas isso faz me perguntar por que ela permanece num estado catatônico. Esse estupor só ocorre por traumatismo craniano, doença cerebrovascular, doença metabólica, reações a medicamentos ou encefalite.
Ela enfatizou a última causa.
Encefalite.
Inflamação do cérebro.
— Observei a ausência evidente de um exame em todos os boletins — disse ela. — Uma punção lombar junto com um exame do líquido cerebrespinhal. Faltava esse exame. Suponho que ele tenha sido realizado, para analisar os líquidos ao redor do cérebro dela.
Davesh concordou com a cabeça.
— Bahut sahi. Muito bem. O exame foi realizado.
— E o senhor encontrou a Estirpe de Judas no líquido.
Outro aceno de cabeça.
— O senhor disse que o vírus infecta apenas bactérias, transformando cada uma delas num novo microrganismo maligno, e que o vírus não pode invadir células humanas diretamente. Mas isso não significa que o vírus não possa flutuar no líquido cerebral. Foi isso o que o senhor quis dizer com incubação. O vírus está dentro da cabeça dela.
Ele concordou com um suspiro.
— Parece que é aí que ele quer chegar.
— Então não se trata apenas desta paciente.
— Não; em última análise, trata-se de todas as vítimas... pelo menos das que sobrevivem ao ataque bacteriano inicial.
Ele fez-lhe um sinal para que fosse para um canto da sala, onde havia sido montada uma estação de computadores, e começou a ligar vários monitores.
Lisa prosseguiu enquanto ele trabalhava, andando de um lado para o outro ao pé da cama.
— Nenhum organismo é maligno simplesmente por ser maligno. Nem mesmo um vírus. Tem que haver um objetivo para a sua toxificação de bactérias. Considerando o amplo espectro de bactérias que ele converte, não pode ser fruto do acaso. Por isso eu me perguntei: o que ele ganha ao fazer isso?
Devesh acenou com a cabeça, exortando-a a prosseguir. Mas, sem dúvida, as conclusões dela não eram nada de novo. Ele continuava a testá-la.
Lisa olhou para a paciente.
— O que ele ganha? Ele ganha acesso a território proibido: o cérebro humano. O dr. Barnhardt mencionou que 90% das células que formam nosso corpo são não-humanas, A maioria delas é de células bacterianas. Um dos poucos lugares que permanecem inacessíveis a infecções virais ou bacterianas é nosso crânio. Nosso cérebro é protegido contra infecção, mantido estéril. Nosso organismo desenvolveu uma barreira hematoencefálica quase impenetrável, um filtro que deixa o oxigênio e os nutrientes do sangue chegarem ao cérebro, porém pouco mais do que isso.
— Então, se alguma coisa quisesse penetrar no nosso crânio...? — instigou Devesh.
— Seria necessário um grande ataque para transpor a barreira hematoencefálica. Como voltar nossas próprias bactérias contra nós, enfraquecer o corpo o bastante para que o vírus passasse através da barreira e penetrasse no líquido do cérebro. Essa é a vantagem biológica que o vírus tem quando converte bactérias comuns em bactérias tóxicas.
— Você é surpreendente — disse Devesh. — Eu sabia que havia uma razão para manter você viva.
Apesar do elogio oculto nessas palavras, Lisa obteve pouco consolo da ameaça implícita.
— Portanto, a questão final é por quê — continuou Devesh. — Por que o vírus quer entrar em nossa cabeça?
— Fascíola hepática — respondeu Lisa.
O non sequitur era estranho o suficiente para atrair de novo toda a atenção de Devesh.
— Como disse?
— As fascíolas hepáticas são um exemplo da determinação da natureza. A maioria delas tem um ciclo de vida que envolve três hospedeiros. A fascíola hepática humana produz ovos que são eliminados do corpo nas fezes, que são então drenadas para esgotos ou cursos de água e ingeridas por caramujos. Os ovos então transformavam-se em larvas nadantes, que saem do caramujo e procuram o próximo hospedeiro: a pele de algum peixe que esteja passando. O peixe é então fisgado e consumido por seres humanos, nos quais o verme se desloca até o fígado e se transforma numa fascíola adulta, e então vive feliz para sempre.
— E qual é a sua opinião?
— A Estirpe de Judas pode estar fazendo alguma coisa desse tipo. Especialmente se o senhor considerar a fascíola hepática lanceolada, o Dicrocoelium dendriticum. Ela também usa três hospedeiros: o gado, o caramujo e a formiga. Mas o que ela faz no estágio de formiga é que eu acho mais interessante.
— E o que é que ela faz?
— Dentro da formiga, a fascíola controla os centros nervosos do inseto, muda o seu comportamento. Normalmente, quando o sol se põe, a fascíola compele a formiga a subir numa folha de grama, cerrar sua mandíbula e esperar até ser devorada por uma vaca que esteja pastando. Se não for devorada, a formiga volta para o seu ninho ao nascer do sol, apenas para repetir a mesma coisa na noite seguinte. A fascíola literalmente guia a formiga como se ela fosse seu próprio carro.
— E a senhora acha que o vírus está fazendo isso? — perguntou Devesh.
— Talvez de alguma maneira. Mas principalmente estou trazendo esse assunto à baila para lembrar o senhor como a natureza pode ser insidiosa quando se trata de encontrar território para explorar. E o cérebro, estéril e inacessível, é certamente território virgem. A natureza tentará explorá-lo, como a fascíola faz com a formiga.
— Brilhante. Sem dúvida, um ponto de vista a ser investigado. Mas talvez haja um problema nesse caso específico. — Devesh voltou para o computador. Ele estivera carregando um vídeo QuickTime. — Eu mencionei que o vírus está penetrando no líquido cerebrespinhal de todos os pacientes que sobreviveram ao ataque bacteriano inicial. Eis o que acontece quando ele penetra.
Ele apertou a tecla play.
Um vídeo mudo começou a rodar. Dois homens de jaleco branco lutavam para prender com correias um homem nu que se contorcia, com a cabeça raspada e fios que se estendiam de eletrodos presos ao crânio e ao tórax. Ele lutava, rosnava e espumava. Embora estivesse claramente debilitado, com feridas e furúnculos enegrecidos, um dos braços libertou-se das amarras. Uma das mãos em forma de garra, atacou um dos homens que tentavam contê-lo. O paciente então se ergueu e deu uma profunda mordida no antebraço do homem.
O vídeo terminou.
Devesh desligou o monitor.
— Já estamos recebendo relatos de reações maníacas semelhantes de alguns dos pacientes, aqueles que foram expostos primeiro.
— Poderia ser outra forma de catatonia. Estupor catatônico é só uma forma. — Lisa fez um sinal com a cabeça na direção da paciente acamada. — Mas também existe uma reação oposta, sua imagem especular: a excitação catatônica, caracterizada por extrema hiperatividade, caretas intensas, gritos animalescos e violência psicótica.
Devesh levantou-se e voltou para o leito hospitalar.
— Dois lados da mesma moeda — murmurou ele, e observou a mulher acamada.
— O homem no vídeo? — perguntou Lisa. Ela havia notado o ambiente de fundo. O filme não havia sido rodado a bordo do navio de cruzeiro. — Quem era ele?
Devesh acenou tristemente com a cabeça na direção do leito.
— O marido dela.
Lisa ficou tensa ao ouvir a revelação. Ela olhou para a mulher esparramada no leito. O marido dela...
— O casal foi exposto ao mesmo tempo — disse Devesh — e encontrado num iate encalhado num recife perto da ilha Christmas. O seu John Doe lá embaixo, com a doença devoradora de carne, deve ter nadado até a praia. Nós resgatamos esses dois, ainda a bordo do iate. Fracos demais, quase morrendo.
Então foi assim que a Guilda ficou sabendo de tudo aquilo. Devesh fez um aceno de cabeça na direção da mulher.
— Isso naturalmente suscita a pergunta: por que o marido dela teve um colapso esquizóide total, ao passo que nossa paciente aqui está se curando de suas feridas externas e permanece despreocupadamente complacente e catatônica? Acreditamos que uma possível cura para todos reside nessa resposta.
Lisa não argumentou, pois não era tola. Apesar das afirmações de Devesh, ela sabia que a operação da Guilda ali não era motivada por altruísmo. A busca deles de uma cura não era para salvar o mundo. Eles tinham planos para o vírus, porém, antes que pudessem utilizá-lo, tinham de entendê-lo completamente, desenvolver um antídoto ou uma cura. E nesse aspecto Lisa não estava em desacordo com a Guilda. Era preciso descobrir uma cura. A única questão era: como descobri-la sem o conhecimento da Guilda?
Devesh deu meia-volta e dirigiu-se à porta.
— A senhora fez um excelente progresso, dra. Cummings. Meus parabéns. Mas amanhã é outro dia. E nós precisaremos de mais progresso. — Ele olhou de relance para ela, com uma das sobrancelhas erguida. — A senhora entendeu?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Muito bem. — Ele fez outra pausa. — Ah, e o nosso estimado proprietário do navio de cruzeiro, sir Ryder Blunt, convidou a todos para um coquetel vespertino em sua suíte. Uma pequena comemoração.
— Comemoração de quê?
— De boas-vindas quando entrarmos no porto — explicou Devesh, pegando sua bengala. — Estamos quase em casa.
Lisa não estava disposta a brindar àquele evento.
— Eu tenho muito trabalho aqui.
— Bobagem. A senhora virá. Não vai demorar muito, e ajudará a recarregar suas baterias. Sim, a questão está resolvida. Vou mandar Rakao acompanhá-la. Por favor, use algo apropriado.
E saiu, com Surina em seu rastro.
Lisa sacudiu a cabeça quando eles partiram.
Ela voltou a olhar para o leito.
Para a dra. Susan Tunis.
— Sinto muito — murmurou.
Pelo marido da mulher e pelo que estava por vir.
Lisa lembrou-se de suas comparações anteriores com a paciente, de como suas vidas tinham seguido caminhos parecidos. Ela imaginou o marido de Susan, com os olhos selvagens e ferozes. Lembrada do seu próprio amor, ela abraçou a si mesma e desejou pela milésima vez estar de volta em casa com Painter.
Falara novamente com ele naquela manhã, num de seus relatórios marcados. Teve o bom senso de não tentar nenhum subterfúgio daquela vez, informando que estava tudo bem. No entanto, estava em lágrimas quando foi tirada da sala do rádio.
Desejava os braços dele em torno dela.
Só havia, porém, uma forma de fazer isso acontecer.
Ser útil.
Ela foi até a bandeja com os instrumentos de exame e pegou o oftalmoscópio. Antes de ir para o coquetel, queria investigar atentamente uma aberração, algo que omitira de Devesh.
Algo que era certamente impossível.
2:02h
Washington, D.C.
Um passo atrás.
Painter desceu dois degraus de cada vez na direção do saguão do Phoenix Park Hotel, impaciente demais sequer para esperar o elevador. Uma equipe forense da Sigma ainda estava no andar de cima, vasculhando o quarto 334. Ele deixara dois agentes de campo do FBI discutindo com autoridades locais.
Um bate-boca por causa de jurisdição.
Aquilo era uma insanidade.
De qualquer modo, Painter duvidava de que qualquer indício confiável fosse encontrado.
Uma hora atrás, ele fora despertado de uma soneca no dormitório do Comando da Sigma. Um dos seus investigadores finalmente tivera êxito: um pedido de entrega de medicamentos controlados para Jackson Pierce. O número do Seguro Social era mesmo o dele. Foi o primeiro acerto desde que Gray e companhia tinham fugido do abrigo secreto atacado com bombas incendiárias. Painter pesquisara todos os pseudônimos de Gray, junto com os nomes de seus pais, e coordenara tudo por meio da rede de rastreamento da NSA.
Painter tinha enviado uma equipe de resposta de emergência à farmácia enquanto se juntava a outra equipe que seguiu para o endereço de entrega no pedido: o Phoenix Park Hotel. A farmácia confirmara o pedido, mas o entregador não havia voltado. As tentativas de entrar em contato com ele pelo celular haviam fracassado até então. A farmácia até mesmo tentara telefonar para o hotel, mas ninguém atendeu à extensão no quarto.
Ao chegar ali, Painter ficou sabendo por quê: o quarto estava vazio. Quem quer que tivesse estado ali já havia ido embora. No registro constavam os nomes de Fred e Ginger Rogers, um casal idoso segundo a recepcionista. Eles haviam se registrado sozinhos e pago em dinheiro. Era óbvio que Gray não estava com eles. Além disso, ele não cometeria um erro gritante como aquele, encomendando uma nova receita, desencadeando um alerta.
Assim, o que levara seus pais a dar um passo tão arriscado? Harriet era uma mulher inteligente. A necessidade devia ter sido medonha. Senão, por que eles não esperaram? O que os fizera fugir? O objetivo era apenas enganá-los? Fazê-los seguir uma pista falsa?
Painter tinha bom senso. Gray não usaria os pais daquela maneira. Arrumaria um lugar para eles se refugiarem anonimamente e permanecerem escondidos. Mais nada. Havia algo de errado ali. Ninguém vira o casal idoso sair.
E também havia o problema do entregador desaparecido.
Painter empurrou a porta do poço da escada e entrou no saguão.
O gerente da noite fez um aceno de cabeça para ele, entrelaçando as mãos.
— Eu mandei deixarem o vídeo de segurança do saguão preparado, aguardando.
Painter foi conduzido ao escritório do gerente, nos fundos do saguão. Um televisor com um videocassete embutido estava em cima de um arquivo.
— Ajuste-o para uma hora atrás — disse Painter, consultando o relógio.
O gerente começou a rodar a fita e avançou-a rapidamente para a hora indicada. O saguão estava deserto, a não ser por uma mulher sentada atrás da escrivaninha, trabalhando com a papelada.
— Louise — disse o gerente, batendo de leve na tela. — Ela está muito abalada por tudo isso.
Painter ignorou o comentário, e inclinou-se para mais perto da tela.
A porta do saguão se abriu, e uma figura num jaleco branco caminhou a passos largos até a recepção, apresentou uma carteira de identidade e seguiu para o hall dos elevadores.
— A sua recepcionista da noite viu o entregador sair?
— Posso perguntar...
Painter pausou a fita quando a figura ajustou o jaleco.
Uma mulher.
Não o homem da farmácia.
O vídeo de segurança estava granulado, mas as feições asiáticas da mulher eram evidentes. Painter reconheceu-a. Ele a vira na vigilância por vídeo no abrigo secreto.
Alguém da equipe de Nasser.
Painter apertou o botão eject e pegou a fita. Ele se virou tão rápido que o gerente, sobressaltado, deu um passo para trás. Painter ergueu a fita de segurança.
— Ninguém sabe disso — disse com firmeza, encarando o gerente com um olhar fixo, esforçando-se ao máximo para parecer ameaçador, o que, levando-se em consideração seu estado de ânimo, não foi difícil. — Nem a polícia. Nem o FBI.
O homem concordou vigorosamente com a cabeça.
Painter saiu porta afora, fechando um punho, querendo esmurrar alguma coisa.
Com força.
Ele compreendeu o que acontecera ali.
Nasser havia seqüestrado os pais de Gray.
Bem debaixo do nariz deles.
O filho-da-puta havia superado a Sigma apenas em alguns minutos. E Painter não podia culpar nenhum espião por ter perdido aquela corrida específica. Ele sabia o motivo: burocracia. Os antecedentes de Seichan como terrorista tinham deixado todos em alerta total, o que significava que cada um estava pisando nos calos do outro. Havia cozinheiros demais na cozinha... e todos estavam de olhos vendados.
Ao contrário de Nasser.
O dia todo Painter havia topado com barreiras, principalmente em virtude da questão burocrática de definição de território. Com a Sigma sob estrita vigilância do governo, outras agências perceberam que ela estava quase derrotada. Quem quer que conseguisse agarrar a traidora da Guilda, o peixe graúdo em meio a todas as iscas, poderia quase garantir certa proteção. Assim, havia pouca cooperação de verdade, e mais um aceno de cabeça em sua direção geral.
Se Painter tinha alguma esperança de frustrar Nasser, ele precisava romper a burocracia que lhe atava os pulsos. E só havia uma forma de fazer isso. Pegou seu telefone celular. Para o diabo com a diplomacia.
Pressionou a tecla de discagem rápida para o Comando Central.
O ajudante de Painter atendeu à ligação.
— Brant, eu preciso que você me ponha em contato com o diretor McKnight na DARPA. Por uma linha segura.
— Claro, senhor. Mas eu estava prestes a lhe telefonar no campo. O serviço de comunicações acabou de me transmitir algumas notícias estranhas sobre a ilha Christmas.
Painter levou um instante para mudar de atitude.
— O que aconteceu? — perguntou ele, depois de respirar fundo para se acalmar, e parou em frente à porta giratória do hotel.
— Os detalhes são superficiais, mas parece que o navio de cruzeiro usado para evacuar a ilha foi seqüestrado.
— O quê? — ele engasgou.
— Um dos cientistas da OMS conseguiu escapar e usou um rádio de ondas curtas para entrar em contato com um navio-tanque que passava.
— Lisa e Monk...?
— Nenhuma notícia, mas os detalhes estão chegando em grande quantidade agora.
— Eu logo estarei aí.
Com o coração batendo forte, ele desligou, enfiou o telefone no bolso e saiu pela porta giratória. O ar fresco pouco contribuiu para eliminar o calor de seu sangue.
Lisa...
Painter recapitulou mentalmente a última conversa. Ela parecia cansada, talvez um pouco tensa, irritada pela falta de sono. Será que fora obrigada a dar aqueles telefonemas?
Não fazia o menor sentido.
Quem teria a audácia de seqüestrar todo um navio de cruzeiro? Decerto eles deviam saber que a notícia se espalharia. Especialmente na era da vigilância por satélite.
Não havia nenhum lugar para esconder um navio daquele tamanho.
15:48h
A bordo do Mistress of the Seas
Monk ficou embasbacado diante da visão.
Santo Deus...
Ele estava no convés de estibordo, sozinho, esperando por Jessie. Uma ilha envolta em brumas ergueu-se bem à frente. Penhascos íngremes projetavam-se do oceano, sem oferecer uma praia ou enseada segura, encimados por picos irregulares. O lugar inteiro parecia uma antiga coroa de pedra, encoberta por trepadeiras e pela selva.
Ela parecia particularmente sombria iluminada pelo céu negro atrás. O navio de cruzeiro enfrentava uma tempestade. A distância, pancadas de chuva escura caíam das nuvens baixas e varriam o oceano com suas cristas espumosas. Os ventos haviam se tornado mais intensos, quebrando bandeiras e soprando com força contra o corpo.
Monk manteve uma das mãos presa na amurada enquanto o imenso navio entrava nas ondas tempestuosas que se erguiam, exigindo demais de seus estabilizadores. Que diabo o capitão estava pensando?
A velocidade havia diminuído, mas o curso continuava em linha reta. Bem na direção da ilha inóspita. Ela não parecia mais acolhedora do que as centenas pelas quais já haviam passado. O que tornava aquela ali tão especial?
Sempre desembaraçado e fluente, Jessie havia obtido alguns detalhes sobre a ilha de um dos cozinheiros do navio, um nativo da região que reconheceu o lugar. A ilha era denominada Pusat, ou Umbigo. Segundo o cozinheiro, os barcos evitavam o lugar. Supostamente, a rainha-feiticeira balinesa Rangda nascera daquele umbigo, e os seus demônios ainda protegiam seu local de nascimento, feras que emergiam das profundezas para arrastar os incautos para o submundo aquático da feiticeira.
Jessie também oferecera outra explicação: Mas era mais provável que fossem apenas recifes invisíveis e correntes traiçoeiras.
Ou será que se tratava de outra coisa?
Aparentemente da rocha escarpada da ilha, três lanchas surgiram à vista. Azuis, de carena longa e baixas. Mais piratas.
Não é de admirar que ninguém ouse vir aqui, pensou Monk. Homens mortos não contam histórias.
Monk olhou ao seu redor quando alguns homens passaram apressadamente, gritando em malaio. Ele se esforçou para compreender as palavras e consultou o relógio. Onde estava Jessie? Uma traduçãozinha naquele instante seria útil.
Monk examinou a ilha adiante.
De acordo com relatos internacionais, as ilhas indonésias eram repletas de enseadas secretas. Mais de 18 mil ilhas formavam a cadeia indonésia: sabia-se que apenas seis mil eram habitadas, o que deixava 12 mil lugares para esconderijo.
Monk observou as três lanchas avançarem a toda a velocidade na direção deles e depois se separarem, virando-se bruscamente com um borrifo de água do mar. Elas posicionaram-se em cada lado da proa do navio de cruzeiro, e uma diretamente em frente, e voltaram na direção da ilha, movendo-se lentamente através das ondas.
Escoltas.
Os barcos menores estavam guiando seu grande irmão até o porto.
A medida que a ilha se aproximava, Monk conseguiu avistar uma fenda estreita na face do penhasco, angulada de tal forma que era fácil passar despercebida. A abertura parecia pequena demais para o navio de cruzeiro, era como fazer um camelo passar pelo buraco de uma agulha. Porém, alguém havia tirado as medidas de profundidade e largura e as comparado às dimensões e ao calado do navio.
O navio de cruzeiro empurrou a proa por entre duas paredes íngremes de rocha negra. O restante da embarcação não teve opção a não ser ir atrás. O bombordo raspou na pedra com um guincho e tremeu. Monk moveu-se para trás quando um espato de penhasco do seu lado triturou dois botes salva-vidas, esmagando-os e fazendo os fragmentos caírem como chuva.
O navio inteiro guinchou.
Monk prendeu a respiração. Mas eles não tiveram de ir muito longe. A passagem voltou a se abrir. O Mistress of the Seas deslizou da fenda para uma lagoa ampla, a céu aberto, do tamanho de um pequeno lago.
Monk aproximou-se de novo da amurada e ficou boquiaberto. Macacos me mordam! Não é de admirar que eles chamem este lugar de umbigo.
A ilha era, na verdade, um antigo cone vulcânico com uma grande lagoa no centro. Paredes irregulares circundavam toda a ilha e formavam sua coroa. No seu interior, os penhascos eram menos íngremes, com florestas luxuriantes, permeadas de cascatas prateadas, e orlados por praias arenosas. O outro lado da ampla lagoa estava repleto de edifícios cobertos com sapé e casas de tábuas. Uma grande quantidade de cais de madeira e quebra-mares de pedra projetava-se da cidadezinha. Vários barcos haviam sido puxados para a praia para serem consertados; outros haviam enferrujado até restar apenas o cavername.
Para os piratas, lar doce lar.
Mais lanchas partiram a toda a velocidade ao encontro do navio de cruzeiro que chegava.
Monk esperava que eles não estivessem vindo vender bugigangas.
Ele olhou para cima, notando como a luz havia se tornado sombria depois que entraram na lagoa. Era como se nuvens de tempestade tivessem se formado repentinamente.
Mas não eram nuvens que escureciam a lagoa.
Alguém esteve trabalhando, pensou Monk quando esticou o pescoço para cima.
Em ziguezague sobre o cone aberto do vulcão, uma enorme rede havia sido amarrada. Ela parecia um pouco uma colcha de retalhos, construída aos poucos, e com certeza sua construção havia levado décadas, talvez séculos. Embora as seções principais fossem sustentadas por cabo de aço e treliça, estendidos de um pico ao outro, outras áreas eram formadas por corda e redes de corais, e seções ainda mais antigas pareciam ser simplesmente feitas de palha trançada e sapê. A construção inteira estendia-se sobre a lagoa como um teto em malha, uma maravilha da engenharia, habilidosamente camuflada com folhas, trepadeiras e ramos de árvores. Do alto, a lagoa seria invisível. Do ar, a ilha daria a impressão de ser apenas uma selva contínua.
E agora a vasta rede havia capturado o Mistress of the Seas, ocultando-o para sempre de olhos curiosos. Nada bom.
Os motores pararam, e o navio perdeu velocidade até ficar à deriva. Monk ouviu o som e a vibração suave quando as âncoras da embarcação foram lançadas. Uma agitação na direção da proa chamou sua atenção.
Monk foi até lá investigar. Outros piratas eram menos furtivos e passaram correndo por ele, com os rifles de assalto erguidos no ar, dando vivas. — Isso não pode ser coisa boa — murmurou.
Mantendo-se afastado, Mark descobriu uma grande multidão de piratas reunida no convés de proa, concentrada em torno da piscina e da banheira de água quente. Música baamiana soava em alto volume, uma cortesia de Bob Marley e seus refrões rastafáris. Muitos tinham nas mãos garrafas de cerveja, uísque e vodca, o que refletia a mistura de mercenários e de piratas do lugar. Parecia que estavam dando uma festa de boas-vindas a casa.
Junto com jogos.
A atenção dos piratas concentrava-se na direção de estibordo do navio. Rifles de assalto eram sacudidos em punhos erguidos; gritos de encorajamento se faziam ouvir. Alguém havia desparafusado a prancha de mergulho e a colocara projetando-se para fora da amurada, sobre a água. Um homem foi empurrado para a frente, com os braços atados às costas. Ele havia sido espancado: seu nariz sangrava e o lábio estava rachado.
Empurrado para o lado, Monk teve um vislumbre do rosto dele acima da multidão.
Oh, não...
Jessie balbuciava desesperadamente em malaio, mas não deram atenção às suas palavras. Sob a ameaça de armas de fogo, ele foi obrigado a subir a amurada e a pisar na prancha de mergulho. Parecia que aqueles piratas eram fundamentalistas, apegados à tradição.
Jessie cambaleava na prancha, empurrado e cutucado até o fim.
Monk deu um passo na direção dele.
Uma massa de piratas, porém, se interpunha entre ele e o jovem enfermeiro. E o que ele poderia fazer? Era claro que Monk não podia abrir caminho a tiros por entre a multidão de piratas ali. Isso só faria com que ambos fossem mortos.
Ainda assim, a mão de Monk moveu-se para o rifle.
Ele não deveria ter envolvido o rapaz. Passara a depender demais dele, fizera-o ir longe demais. Jessie saíra uma hora atrás, à procura de quaisquer mapas da região. Alguém devia ter um mapa ou poderia desenhar um. Os piratas tinham de obter seus suprimentos de algum lugar nas proximidades. Monk insistira em que ele tivesse cuidado, mas Jessie saíra precipitadamente com os olhos brilhantes.
E vejam só no que deu.
Com um último lamento, Jessie caiu da extremidade da prancha e bateu com força na água. Monk correu para a amurada, junto com a maioria dos piratas, ficando ombro a ombro com eles enquanto vaiavam, davam vivas e xingavam. Foram feitas apostas.
Monk respirou de alívio quando Jessie voltou à superfície, agitando os pés com força, de costas, arfando. Dois piratas perto da proa apontaram os rifles para a vítima que se debatia.
Oh, Deus...
Os tiros soaram claros e particularmente alto sob a coberta da rede.
Uma série de respingos marcou o impacto.
Junto aos calcanhares de Jessie.
Mais gargalhadas.
O rapaz agitou os pés com mais força e se contorceu, nadando para longe do navio.
Ele jamais conseguiria chegar à praia.
Uma das lanchas azuis partiu em linha reta na direção de sua forma que se debatia, a fim de atropelá-lo. Porém, no último instante, ela se desviou, encharcando Jessie com a sua esteira.
Ele cuspiu, parecendo mais zangado do que assustado.
De costas, deu umas pernadas e usou os braços atados como uma espécie de leme. O cara era forte e rijo.
Mas a lancha era mais rápida.
Ela tornou a dar a volta, movendo-se velozmente para outra investida.
Um pistoleiro às gargalhadas na traseira da lancha preparou-se e apontou seu rifle de assalto. Ele metralhou a água quando a lancha passou entre o navio de cruzeiro e o rapaz.
Monk encolheu-se de medo, sabendo que Jessie não poderia ter sobrevivido dessa vez.
A lancha passou zunindo.
E lá estava Jessie, tossindo e cuspindo. Ele impelia o corpo agitando os pés. Um pequeno grito de aplauso ergueu-se dos piratas.
As mãos de Monk fecharam-se na amurada, com força suficiente para atravessá-la. Os malditos filhos-da-puta estavam brincando com Jessie, prolongando a tortura.
Embora fosse incapaz de agir, ele se recusou a se afastar, e seus dedos fecharam-se num nó. Seu rosto, vermelho como o fogo, devia estar brilhando intensamente através da maquiagem castanho-escura.
Tudo minha culpa...
Jessie esforçou-se para ir na direção da praia, de lado agora, calculando a distância que teria de nadar para chegar lá. A lancha fez outro círculo. Gargalhadas ecoaram por sobre a água.
Jessie agitou os pés mais rapidamente. De repente emergiu, encontrando areia sob seus pés. Correu, caiu, tomou impulso e mergulhou na direção da praia. Pouco depois, suas pernas estavam se erguendo acima do normal através da água que marulhava. Ele avançou pela praia rumo à selva densa.
Vá, Jessie...
A lancha passou em alta velocidade. Tiros foram disparados. Areia explodiu, folhas rasgaram-se. Então Jessie avançou correndo pelo último trecho e desapareceu na floresta, com os braços ainda atados às costas.
Mais vivas e alguns grunhidos de frustração.
O dinheiro mudou de mãos.
Mas a maioria ainda estava rindo, como de uma piada particular.
Monk cutucou o homem ao seu lado.
— Apa? — perguntou.
Como aquele bando de piratas era um misto de homens do lugar e mercenários estrangeiros, Monk ficara sabendo que o uso do malaio pidgin era permitido. Nem todos eram fluentes como os piratas nativos.
O cavalheiro ao seu lado perdera vários dentes, porém estava contente em mostrar com um amplo sorriso quantos ainda haviam restado. Ele apontou para a praia, mas ergueu a mão mais para cima. Alguns filetes de fumaça podiam ser vistos próximo à crista das montanhas. Havia algum acampamento lá em cima.
— Pemakan daging manusia — explicou o pirata.
O mesmo para você, meu chapa.
O pirata devia ter percebido a confusão dele e apenas sorriu mais largo, exibindo seu dente do siso apodrecido. Ele tentou de novo.
— Kanibals.
Os olhos de Monk arregalaram-se. Aquela era uma palavra malaia que ele podia traduzir sem ajuda. Voltou a olhar para a praia vazia e depois para cima, para os rastros de fumaça. Parecia que os piratas partilhavam a ilha com uma tribo local de canibais. E, como quaisquer bons hóspedes voltando para casa, os piratas haviam jogado um osso para seus zeladores.
Literalmente.
O pirata ao seu lado continuou com sua fala ininteligível e apontou para a água. Monk só entendeu algumas expressões, uma palavra aqui e outra ali.
— ...afortunado... à noite... ruim... — O homem fez uma imitação com a mão, uma garra erguendo-se, segurando alguma coisa e arrastando-a para baixo. — Iblis.
A última palavra era uma maldição em malaio.
Monk a ouvira bastantes vezes, mas tinha quase certeza de que o homem estava usando a tradução direta.
Demônio.
— Raksasa iblis — repetiu ele, e tagarelou um pouco mais, terminando com um nome sussurrado, fazendo seu sorriso largo murchar, transformando-se mais numa expressão de dor. — Rangda.
Monk franziu o cenho e aprumou-se, inclinando-se um pouco sobre a amurada para fitar a água. Ele se lembrou da história de Jessie sobre as velhas esposas. Rangda era o nome da rainha-feiticeira balinesa cujos demônios supostamente assombravam aquelas águas.
— À noite... — murmurou o homem em malaio, e apontou para a água. — Amat, amat buruk. Muito, muito ruim.
Monk suspirou. Simplesmente fantástico. Ele olhou preocupado para a floresta, na direção em que Jessie desaparecera.
Demônios e canibais.
O que viria em seguida? O Club Med?
CAPÍTULO 9
Hagia Sophia
6 de julho, 9:32h
Istambul
Com o sol brilhando no restaurante do terraço panorâmico, Gray ouviu a ameaça. Ela exauriu todo o calor da manhã.
— Se você não seguir as minhas instruções ao pé da letra, vou matar seus pais. Gray apertou com força o telefone celular de Vigor.
— Se alguma acontecer a eles...
— Alguma coisa acontecerá, isso eu lhe prometo. Eu lhe mandarei pedaços deles pelo correio durante meses.
Gray percebeu a certeza absoluta nas palavras do homem. Ele virou as costas para os outros, precisando concentrar-se, pensar.
— Se você tentar entrar em contato com a Sigma — prosseguiu Nasser, com a voz controlada —, eu saberei, e você será punido com o sangue da sua mãe.
Gray sentiu um nó apertar-lhe a garganta.
— Seu filho-da-puta... eu quero saber se eles estão vivos... ilesos.
Nasser nem sequer respondeu. Gray ouviu uma confusão ao telefone, vozes abafadas, e então sua mãe falou.
— Gray — ela ofegou. — Sinto muito. Seu pai. Eu precisava dos comprimidos dele.
As palavras dela terminaram num soluço.
O corpo inteiro de Gray tremia, oscilando entre a fúria e a dor.
— Não importa. Você está bem? Papai está bem?
— Nós estamos... sim... Gray...
O telefone foi arrebatado dela, e Nasser voltou a falar.
— Vou deixá-los aos cuidados da minha colega Annishen. Acho que você a conheceu no abrigo secreto no Distrito de Colúmbia.
Gray visualizou a eurasiana com o cabelo à escovinha tingido e as tatuagens.
A asiática Anni.
Nasser continuou:
— Vou me encontrar com você na Turquia, às 19 horas. Não saia de onde está.
Gray consultou o relógio. Passava pouco das nove da manhã.
— Eu tenho homens vigiando a sua posição no Sultanahmet enquanto nós falamos. Não tente bancar o espertinho. Estamos rastreando o telefone de monsenhor Verona desde que ele partiu da Itália.
A súbita partida de Vigor do Vaticano devia ter desencadeado um sinal de perigo. Gray queria ficar zangado com o monsenhor por ser tão descuidado, mas sabia que Vigor não operava no mesmo nível de paranóia dele. Poucas pessoas o faziam. E naquele momento Gray não tinha lugar para recriminações, pois estava consumido demais pela própria culpa.
Ele deixara seus pais sozinhos.
— Eu gostaria de falar com Seichan agora — disse Nasser.
Gray fez sinal para que Seichan se aproximasse. Ela ia pegar o fone, mas Gray o reteve e gesticulou para que ela chegasse perto a fim de que ele pudesse ouvir a conversa.
— Amen — disse ela, usando o prenome de Nasser —, o que você quer?
— Sua cadela... por esta traição, eu vou fazer você sofrer de maneiras...
— Sim. E eu quero que você se dane. Eu consegui, queridinho. — Seichan suspirou, e seu hálito fez cócegas no pescoço de Gray. — Mas acho que vamos ter que nos despedir por aqui. Já terei partido há muito tempo quando você chegar.
Gray ficou tenso e virou-se ligeiramente para fitá-la. Ela ergueu a palma de uma das mãos, indicando-lhe que ficasse em silêncio, e sacudiu a cabeça. Ela não iria a lugar nenhum.
— Meus homens já fecharam o cerco em torno de você — advertiu Nasser. — Se você tentar partir, eles meterão uma bala entre os seus olhos frios.
— Como quiser. Assim que esta nossa conversinha terminar, vou sair desta maldita igreja.
Seichan deu uma olhadela significativa para Gray e apontou por cima da parede do terraço panorâmico na direção de Hagia Sophia. Ela continuou falando ao telefone:
— De qualquer modo, não estávamos fazendo nenhum progresso aqui em Hagia Sophia. Existem murais demais. E eles são todos seus, meu bem. Você jamais vai voltar a me ver.
Gray franziu o cenho. Ela estava claramente mentindo. Mas por quê?
Nasser fez uma pausa e depois falou, com a fúria derretendo seu jeito gélido.
— Você não vai conseguir dar dez passos! Eu mandei vigiar todas as saídas de Hagia Sophia.
Seichan virou os olhos para Gray, indicando o seu estratagema.
— Tenho certeza de que você fará isso, Amen — encerrou Seichan. — Ciao, meu bem. Beijinhos.
Seichan afastou-se do telefone e ergueu um dos dedos na direção de Gray, advertindo-o de que tivesse cuidado.
Gray entrou no jogo.
— O que você acabou de dizer a ela? — perguntou bruscamente ao telefone. — Seichan simplesmente pegou sua arma e saiu da igreja. Que diabo você e essa cadela estão tramando?
Seichan fez um aceno de cabeça com um sorriso tenso.
Ouvindo Nasser xingar com tanta veemência, Gray avaliou mentalmente, lutando para entender o subterfúgio de Seichan, reprimindo sua culpa e raiva. Isso não ajudaria nem a ele nem aos seus pais.
Os olhos dele se encontraram com os de Seichan. A Guilda podia ter rastreado o telefonema de Vigor, mas a triangulação deles não era perfeita. E Seichan havia testado isso ao afirmar que estava em Hagia Sophia. A Guilda sabia que eles estavam em algum lugar no bairro antigo de Istambul, mas não exatamente onde.
Pelo menos não ainda.
Gray olhou através de um parque próximo na direção do imenso volume de Hagia Sophia, com sua cúpula plana gigante, cercada por quatro minaretes pontiagudos.
— O que vocês estão fazendo em Hagia Sophia? — quis saber Nasser.
Gray avaliou quanto poderia dizer. Ele tinha de ser convincente, e a melhor maneira de fazer isso era com um pouco de verdade.
— Estamos procurando a chave de Marco Polo. Monsenhor Verona decodificou a escrita no Vaticano, e ela conduziu até aqui.
— Quer dizer então que Seichan contou o que estamos procurando. — Outro xingamento. — Por tê-la deixado escapar, eu vou ter que lhe ensinar como somos sérios.
Gray percebeu a intenção de fazer mal aos seus pais.
— Seichan não é mais importante — Gray interrompeu-o bruscamente, protegendo seus pais da única maneira que podia. — Eu tenho o que você está procurando: o código angélico do obelisco egípcio. Ainda tenho uma cópia.
Nasser permaneceu em silêncio. Gray imaginou-o fechando os olhos de alívio. Mais do que punir Seichan, Nasser precisava da escrita angélica.
— Muito bem, comandante Pierce. — A tensão de um instante atrás desaparecera da voz dele. — Continue cooperando dessa maneira, e sua mãe e seu pai viverão em paz e graça pelo resto de sua vida.
Gray sabia que aquela promessa era tênue como o ar que ele respirava.
— Eu o encontrarei no interior de Hagia Sophia às 19 horas — disse Nasser. — Vasculhe a igreja à procura da chave de Polo, se quiser. Mas eu tenho atiradores de tocaia em todas as saídas.
Gray forçou um sorriso de escárnio.
— Comandante Pierce, se você pensar em armar qualquer cilada, saiba que estarei me comunicando com Annishen de hora em hora. Se me atrasar um minuto, ela começará pelos dedos dos pés de sua mãe.
A linha ficou muda.
Gray fechou o telefone de Vigor.
— Temos que ir a Hagia Sophia. Antes que os homens da Guilda calculem nossa verdadeira localização.
Eles começaram a juntar rapidamente seu material. Ele virou-se para Seichan.
— Isso foi arriscado.
Ela deu de ombros.
— Gray, se você tiver alguma esperança de sobreviver a isso, certamente não subestime a Guilda. Eles são poderosos, com muitos aliados. Mas, ao mesmo tempo, não os superestime. A Guilda se aproveitará do seu medo da onipotência dela para enfraquecer o seu moral. Então, simplesmente permaneça concentrado. Seja cauteloso, mas use a cabeça.
— E se você estivesse errada? — perguntou Gray com uma pontada de raiva.
Seichan inclinou a cabeça.
— Eu não estava.
Gray respirou pesadamente pelo nariz, tentando dar vazão à sua raiva. Sua mãe e seu pai sofreriam se Seichan estivesse errada.
— Além do mais — disse Seichan —, eu precisava de uma desculpa plausível para não estar aqui quando Nasser chegar. Ele vai manter você e monsenhor Verona vivos, pois ambos são úteis. E, com sua mãe e seu pai como garantia, Nasser acreditará que pode montar em você como num cavalo alquebrado. Mas ele me mataria imediatamente. Isto é, se eu tivesse sorte. Por isso eu precisava de uma saída estratégica para salvar a minha vida, mas que me permitisse a liberdade de agir por minha própria conta. Se eu quiser ter alguma oportunidade de ajudar você.
Gray finalmente conteve sua raiva. Não eram os pais de Seichan que estavam em perigo. Era mais fácil para ela ser desdenhosa e correr riscos. Ela tomara uma decisão fria, agira rapidamente, e os resultados seriam bons para todos eles.
No entanto...
Seichan virou-se e apontou.
— E eu vou precisar desse cara.
— De quem? De mim? — perguntou Kowalski.
— Como eu disse, Nasser vai me matar imediatamente. Provavelmente, vai matar Kowalski também.
— Por que eu? — O rosto do homenzarrão murchou. — Que diabo eu tenho a ver com ele?
— Você é inútil.
— Ei!
Seichan ignorou a explosão dele.
— Nasser não precisa de mais nenhum refém, não com o sr. e a sra. Pierce nas mãos. Ele não verá nenhuma utilidade em manter você vivo.
Gray ergueu uma das mãos.
— Mas e se Nasser já souber que Kowalski está aqui conosco? Seichan simplesmente o encarou, exasperada.
Ele lentamente entendeu.
Não superestime a Guilda.
Franzindo o cenho, Gray esforçou-se para se livrar da idéia de que a Guilda era onipotente. Isso ameaçava incapacitá-lo de agir. Acalmando-se, e considerando lodos os pontos de vista, ele se deu conta de que ela estava certa.
Virou-se para Kowalski.
— Você irá com Seichan.
— E eu vou fazer bom uso dele — disse Seichan, dando um tapa no traseiro do ex-marujo.
— Pelo menos alguém acha que eu sou útil — resmungou Kowalski, esfregando o traseiro.
Tendo reunido todo o seu equipamento, eles dirigiram-se para baixo. Seichan e Gray foram por último. Ele segurou o braço dela quando ela tentou passar.
— O que você vai fazer para nos ajudar? — perguntou ele assim que ambos ficaram sozinhos no terraço panorâmico.
— Eu não sei. Pelo menos ainda.
Ela sustentou o olhar dele por um instante longo demais e, em seguida, tentou afastar-se. Sem dúvida, ela queria dizer-lhe mais alguma coisa, porém ainda não tivera coragem. Isso era evidente na tensão da respiração, na ligeira hesitação do olhar dela.
— O que é? — indagou ele suavemente, preocupado.
A ternura dele só pareceu fazê-la querer afastar-se ainda mais. Mas ela suspirou.
— Gray... sinto muito... — começou ela, desviando o olhar de novo. — Seus pais...
Havia mais do que preocupação nos olhos e no jeito dela. Também havia certo grau de culpa. Por quê? Culpa implicava responsabilidade. Mas o envolvimento de Seichan com os pais de Gray fora acidental. Gray passara a aceitar isso. Então, de onde provinha essa culpa repentina?
Sua mente examinou rapidamente várias possibilidades, revendo as conversas recentes. Com Nasser, com Seichan. O que a estava incomodando...
...então de repente ele soube.
Seichan praticamente dissera a ele um momento atrás.
Não superestime a Guilda.
Ele apertou ainda mais o braço dela e empurrou-a contra a parede ao lado da porta. Ele inclinou-se para perto, e seus lábios quase se tocaram.
— Oh, meu Deus... não existe nenhum maldito espião na Sigma. Nunca existiu.
Seichan gaguejou para explicar.
Gray não deixou.
— Nasser me advertiu contra telefonar para a Sigma, até me ameaçou. Por quê? Ele sabia que eu estava ciente de que havia um espião da Guilda na Sigma. Então, por que se incomodou em me ameaçar? — Ele a sacudiu. — A menos que não haja espião algum.
Seichan se encolheu, lutou por um momento para livrar-se do braço dele, mas ele apertou com mais força, pressionando até o osso.
— Quando você ia me contar? — indagou ele bruscamente.
Ela afinal conseguiu falar, e sua voz estava zangada, não-apologética, defensiva.
— Eu ia contar a você depois que tudo isso tivesse terminado. — Ela suspirou de irritação. — Mas, com os seus pais capturados, eu não poderia mais manter isso em segredo... se houver qualquer esperança de libertá-los. Eu não sou insensível, Gray.
Seichan tentou se afastar, mas Gray mudou de posição para manter seus olhos fixos nela.
— Então, se não havia nenhum espião — indagou ele —, como Nasser soube do abrigo secreto? A emboscada que ele preparou?
— Um erro de cálculo da minha parte. — Os olhos dela ficaram duros como pedra. — E isso é tudo o que direi. Você terá que acreditar que eu agi de boa-fé.
— Acreditar em você — zombou ele.
A reação dele pareceu magoá-la, pois ela baixou levemente o queixo. Gray não deu trégua.
— Se eu tivesse o apoio da Sigma desde o começo...
O rosto dela endureceu.
— Você teria fracassado, Gray, e eu teria sido trancafiada em alguma prisão. E isso teria sido inútil. Eu precisava de nós dois livres e longe da forma mais hábil e rápida possível. Por isso deixei-o acreditar no que você pensou.
Gray procurou alguma expressão ínfima, um vislumbre fugaz de uma emoção oposta indicativa de mentira. Mas não encontrou nada. Seichan mantinha o olhar fixo, penetrante, desafiador. Ela nem sequer se deu o trabalho de ocultar que havia mais coisas que não haviam sido ditas.
Gray olhou para ela com uma expressão de raiva, amaldiçoando-se por não ter sido mais cauteloso com ela.
— Eu deveria deixar Nasser fuzilar você.
— Nesse caso, quem vai lhe dar cobertura, Gray? Quem você tem lá fora? Kowalski? Você está mais seguro sozinho. Você me tem. Essa é a verdade. Então, vamos superar isso. Nós podemos continuar discutindo, perder o pouco tempo que lhe sobra para você telefonar para a Sigma, ou podemos resolver isso depois.
Ela acenou com a cabeça na direção da porta.
— Tem um telefone no saguão do hotel. Esse é outro dos motivos por que eu queria que Nasser pensasse que estávamos noutro lugar. A essa altura, ele provavelmente está rastreando todos os telefones públicos em Hagia Sophia. O telefone no saguão deve ser seguro. Ou, pelo menos, seguro o suficiente. E você terá de ser breve, pois o nosso tempo já está se esgotando.
Gray soltou-a, empurrando-a.
Mais uma vez, uma expressão magoada cintilou no rosto dela. Que ela seja magoada.
Se soubesse que não havia nenhum espião, ele poderia ter entrado em contato com Painter desde o começo. Pelo menos, providenciado para que sua mãe e seu pai ficassem em segurança.
Ela devia ter percebido a origem da raiva dele. Limpou o rosto, e sua voz suavizou-se, soando extremamente cansada.
— Eu também pensei que eles estariam seguros, Gray. Sinceramente pensei.
Gray quis retrucar bruscamente, mas não conseguiu pronunciar uma palavra sequer. Não apenas porque estava com raiva, como também, e ainda mais importante, porque não podia descarregar toda a sua culpa em Seichan.
Não havia como negar a pura verdade.
Ele havia deixado os pais sozinhos.
E não outras pessoas quaisquer.
3:04h
Washington, D.C.
— Diretor Crowe, tenho uma chamada segura procedente de Istambul.
Painter ergueu os olhos do banco de informações de satélite e olhou na direção do chefe de comunicações. Quem estaria telefonando de Istambul?
Painter passara a última hora argumentando com as autoridades do Escritório Nacional de Reconhecimento e com a NSA, tentando obter pleno acesso ao Echelon, o sistema de vigilância por satélite deles, a fim de priorizar uma busca ao redor da ilha Christmas. Mas aquele território remoto, com uma população escassa, era designado como de baixo risco e não estava sob vigilância constante. Rompendo a prática convencional, Painter finalmente convencera a Base Australiana de Defesa Conjunta em Pine Gap a destinar um de seus satélites à área. Mas isso levaria mais 14 minutos.
— É do comandante Pierce, senhor — disse o chefe de comunicações, e estendeu-lhe o fone.
Painter girou em sua cadeira. Que diabo? Ele pegou o fone.
— Gray? Aqui é o diretor Crowe. Onde você está?
A voz chegou fraca.
— Senhor, não disponho de muito tempo, e tenho muitas informações secretas para transmitir.
— Estou ouvindo.
— Em primeiro lugar, meus pais foram seqüestrados por um agente da Guilda.
— Amen Nasser. Nós sabemos. Já estamos fazendo uma ampla busca.
Surpreso, Gray silenciou, e então prosseguiu.
— O senhor também precisa entrar em contato com Monk e Lisa. Eles estão em perigo na Indonésia.
— Nós estamos cientes. Estou tentando uma varredura de satélite enquanto conversamos. Se você já terminou de me contar o que eu já sei, por que não começa pelo início?
Gray respirou fundo e relatou rapidamente o que acontecera desde que Seichan havia se intrometido de novo na sua vida. Painter fez algumas perguntas, e as peças começaram a se encaixar como num quebra-cabeça disperso. Ele já havia compreendido muita coisa enquanto esperava a resposta da NSA. Já havia suspeitado de que a Guilda talvez estivesse envolvida no incidente na ilha Christmas. Quem mais dispunha dos recursos para roubar a população inteira de uma ilha e desaparecer? Gray apenas confirmou essa hipótese e respondeu por que aquilo tudo estava acontecendo, dando-lhe, até, um nome.
A Estirpe de Judas.
Uma hora atrás, Painter havia convocado de novo o dr. Malcolm Jennings aos escritórios do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Sigma, tirando-o da cama. Enquanto voltava de carro do local do seqüestro para a Sigma, Painter revisara as últimas conversas de Lisa. Por ela estar claramente coagida, suas declarações eram suspeitas. Como a afirmação de que a doença que tanto a desconcertara antes era agora apenas um alarme falso. Ele se lembrara do pânico anterior de Jennings em relação à ameaça de uma catástrofe ambiental. E da última declaração arrepiante do homem: Ainda não sabemos o que matou os dinossauros.
Sem dúvida, ali estava algo que poderia interessar à Guilda.
Painter havia até suposto que o súbito aparecimento de Seichan e o desaparecimento de Gray pudessem estar relacionados com a Indonésia. Duas importantes ações da Guilda ocorrendo ao mesmo tempo. Painter não gostava de coincidências. Tinha de haver uma ligação. Mas ele jamais teria imaginado quem ligava tudo isso.
— Marco Polo? — perguntou Painter.
Gray terminou sua história.
— A Guilda está operando em duas frentes. Um braço científico está investigando o ataque atual, procurando uma cura e a origem da doença. Ao mesmo tempo...
Painter interrompeu-o.
— Um braço histórico está seguindo a trilha de Marco com o mesmo fim: uma cura e a origem da doença.
Aquilo agora fazia um sentido terrível.
— E Nasser está indo para Istambul — disse Painter.
— É provável que ele já esteja voando.
— Eu posso mobilizar recursos aí, ter pessoas úteis em campo nas próximas horas.
— Não, a Guilda saberá. De acordo com Seichan, Istambul é um dos principais centros de atividades deles. Eles estão em todas as agências aqui. Se perceberem que o senhor mobilizou forças, saberão que nós nos falamos. Meus pais... o senhor não pode. Eu vou ter que lidar com Nasser sozinho.
— Mas você correu um risco enorme nessas circunstâncias, Gray. A Sigma está comprometida. Eu farei todo o possível para evitar que isso vaze ainda mais, porém o espião aqui poderia...
— Diretor, não tem nenhum espião na Sigma.
Painter teve um sobressalto. Ele levou um instante para reorganizar o pensamento, para considerar essa possibilidade.
— Você tem certeza? — perguntou finalmente.
— Certeza suficiente para arriscar a vida dos meus pais.
Painter sentou-se por um momento. Ele acreditava em Gray. A frustração irritante de lidar com toda a disputa entre as agências passou. Se não havia nenhum espião...
A voz de Gray ficou mais débil.
— Não posso correr o risco de permanecer na linha por mais tempo. Tenho que ir. Eu farei todo o possível para seguir essa pista, para ver aonde ela conduz.
A linha emudeceu por um instante. Painter pensou que Gray tivesse desligado, mas ele voltou a falar.
— Por favor, diretor, encontre meus pais.
— Eu os encontrarei, Gray. Pode ter certeza disso. E, quando eu os encontrar, diga a Vigor para esperar um telefonema da sobrinha dele. O telefone tocará algumas vezes e depois será desligado. Esse será o sinal de que os seus pais estão em segurança.
— Obrigado, senhor.
O telefone ficou mudo.
Painter recostou-se.
— Senhor — interrompeu o oficial de comunicações —, dentro de mais dois minutos deveremos ter informação do satélite.
10:15h Istambul
Apesar da necessidade de se apressar, Gray não conseguiu deixar de diminuir o passo quando se aproximou da fachada ocidental de Hagia Sophia, assombrado com seu tamanho.
Vigor notou seu pescoço esticado.
— Impressionante, não é?
Não havia como negar isso.
A monumental construção bizantina era considerada por muitos a Oitava Maravilha do Mundo. Localizada no alto de uma colina onde outrora houvera um templo de Apolo, ela dava vista para a magnífica extensão azul do mar de Mármara e para grande parte de Istambul. Sua característica mais marcante, a imensa cúpula bizantina, brilhava como cobre polido ao sol da manhã, elevando-se no ar por uma altura equivalente à de vinte andares. Outras meias-cúpulas mais baixas apoiavam-na a leste e a oeste, enquanto outras cúpulas espalhavam-se de cada lado como criadas de uma rainha, expandindo a largura da imensa estrutura.
Vigor prosseguiu com uma aula de História sobre o lugar e apontou para as arcadas gigantes à frente que conduziam ao interior de Hagia Sophia.
— As Portas Imperiais. Foi por essas portas que, em 537, o imperador Justiniano se consagrou à Igreja e declarou: "Ah, Salomão, eu vos suplantei." E foi por essas mesmas portas que, no século XV, o sultão Mehmed, o conquistador turco otomano que saqueou Constantinopla, despejou terra sobre a cabeça num ato de humildade antes de entrar na igreja. Ele ficou tão impressionado que, em vez de destruir Hagia Sophia, a converteu numa mesquita.
— E agora ela é um museu — disse Gray.
— Desde 1935. — Vigor confirmou e apontou para o andaime no lado sul da construção. — O trabalho de restauração tem sido quase contínuo desde essa data. E não só no lado de fora. Quando converteu a igreja numa mesquita, o sultão Mehmed mandou cobrir de gesso todos os mosaicos cristãos, pois é contra a lei islâmica representar figuras humanas. Mas, nas décadas passadas, houve uma tentativa lenta e meticulosa de restaurar aqueles inestimáveis murais bizantinos em forma de mosaico. Ao mesmo tempo, houve um desejo idêntico de preservar a arte islâmica antiga dos séculos XV e XVI, trechos impressionantes de caligrafia e púlpitos decorados. Para dar equilíbrio a um projeto desses, o trabalho de restauração em Hagia Sophia exigiu a vinda de especialistas de todos os campos da arquitetura e da arte. Foram feitas até consultas ao Vaticano.
Vigor liderou o caminho através da pequena praça aberta na direção da entrada em arcada, seguindo o fluxo de turistas.
— Assim, eu pensei que talvez pudesse trazer alguém familiarizado com a restauração, alguém que foi consultado pelos curadores de Hagia Sophia no passado.
Gray lembrou-se de Vigor ter mencionado que enviara alguém na frente para começar a procurar a agulha de ouro num imenso palheiro bizantino.
Quando chegaram às portas, Gray notou um homenzarrão barbudo à entrada, bloqueando o fluxo de turistas. Ele estava em pé com os punhos nos quadris, fitando todas as pessoas. Porém, quando avistou Vigor, ergueu um dos braços, saudando-o.
Vigor retribuiu o aceno, indicando-lhe que entrasse na igreja.
Gray foi atrás, ansioso para sair das ruas, sem saber se algum dos rastreadores da Guilda havia determinado a localização deles. Até seus pais estarem seguros, ele não queria irritar Nasser de maneira alguma, fazer o homem questionar o subterfúgio de Seichan.
Transpondo a porta, Gray virou-se para olhar para a praça aberta. Não viu nenhum sinal de Seichan ou de Kowalski. Os dois grupos haviam se separado assim que eles deixaram o hotel. Seichan havia comprado um telefone celular pré-pago descartável. Gray memorizara o número do telefone. Era a única maneira de ele entrar em contato com ela.
— Comandante Gray Pierce — apresentou Vigor —, este é o meu querido amigo Balthazar Pinosso, decano do departamento de história da arte da Universidade Gregoriana.
A mão de Gray foi encoberta pelo aperto de Balthazar, que tinha pouco menos de 2,15m de altura. Vigor continuou:
— Balthazar foi o primeiro a descobrir a mensagem de Seichan na Torre dos Ventos e me ajudou nas traduções da linguagem angélica. Ele e o curador do museu aqui também são bons amigos.
— Um bocado de virtudes que deverá bastar — resmungou Balthazar numa voz grave de barítono, e seguiu na frente para o interior da igreja principal. Ele acenou com um braço para a frente. — Temos uma extensa área para explorar.
O homem deu um passo para o lado e a vista se abriu.
Gray ficou boquiaberto diante da visão. Vigor notou sua reação e deu-lhe um tapinha no ombro.
Uma longa abóbada cilíndrica estendia-se por uma vasta distância à frente, e não era diferente de entrar numa estação ferroviária. Acima, uma série de arcos e cúpulas erguia-se rumo à cúpula principal no centro. Uma colunara no segundo andar emoldurava ambos os lados. Porém, a vista mais impressionante não era nada feita de pedra: era simplesmente o jogo de luz no espaço. Janelas trespassavam paredes e enfileiravam-se na base das cúpulas, permitindo que a luz do sol se refletisse do mármore esmeralda e branco, de mosaicos incrustados de ouro. O mero volume do espaço vazio, não-sustentado por colunas interiores, parecia inacreditável.
Em respeitoso silêncio, Gray seguiu os dois homens pela longa nave.
Chegando ao coração da igreja, ele olhou para cima, para a abóbada em sulcos da cúpula principal, vinte andares acima de sua cabeça. Sua superfície cheia de nervuras era decorada com caligrafia ondulada dourada e purpúrea. Em volta da circunferência da base, quarenta janelas em arco permitiam a entrada da luz do sol, dando a impressão de que a cúpula flutuava acima da cabeça das pessoas.
— É como se ela estivesse flutuando lá em cima — murmurou Gray. Balthazar juntou-se a ele.
— Uma ilusão de óptica arquitetônica — explicou o historiador da arte, e apontou para cima. — Você está vendo aquelas nervuras ao longo da parte de baixo do teto, como se fossem as varetas de um guarda-chuva? Elas distribuem o peso ao redor das janelas até os pendentes alargados dispostos sobre colunas maciças dos alicerces. Além disso, o teto em si é mais leve do que parece, construído de tijolos vazados cozidos em Rodes, feitos de argila porosa da cidade. Trata-se de uma obra-prima de ilusão. Pedra, luz e ar.
Vigor concordou com a cabeça.
— Para citar o grande homem, até mesmo Marco Polo ficou impressionado pela "aparente falta de peso da cúpula e pela desconcertante abundância de efeitos luminosos diretos e indiretos".
Gray compreendeu. Além disso, era estranho saber que Marco Polo também estivera em pé onde ele estava agora, os dois homens ligados através das eras pelo assombro mútuo e respeito pelos construtores antigos.
A única imperfeição do efeito era a parede de andaime preto, que ia do piso de mármore ao topo da cúpula, ao longo de um dos lados.
Ela ajudou Gray a avaliar sua situação. Ele consultou o relógio. Nasser chegaria antes do anoitecer. Tinham menos de um dia para solucionar aquele enigma.
Se o seu plano desse certo...
Mas por onde começar?
Vigor estava perguntando a mesma coisa a seu amigo.
— Balthazar, você conseguiu interrogar o pessoal do museu? Alguém viu alguma coisa parecida com escrita angélica aqui?
O homem cofiou a barba e suspirou.
— Entrevistei o curador e conversei com os funcionários. O curador conhece Hagia Sophia desde suas criptas subterrâneas até o topo da cúpula mais alta. Ele insiste em que nada parecido com escrita angélica pode ser encontrado em parte alguma. No entanto, ele expressou um pensamento... algo que você não vai gostar de ouvir.
— O quê? — indagou Vigor.
— Lembre-se de quanto de Hagia Sophia foi coberto por gesso quando a igreja foi convertida numa mesquita. O que talvez estejamos procurando pode estar oculto sob centímetros de gesso antigo. Ou pode ter sido inscrito em gesso removido há muito tempo. — Balthazar deu de ombros. — Portanto, existe uma possibilidade muito concreta de que o que procuramos possa ter se perdido.
Gray recusou-se a acreditar nisso. Enquanto Vigor e Balthazar discutiam esses assuntos em detalhes, ele se afastou, porque precisava pensar. Consultou o relógio, num gesto automático. Estava nervoso e preocupado, e nem sequer viu as horas. Baixou o braço e foi até o andaime. Jamais deveria ter deixado seus pais sozinhos. As poucas palavras de sua mãe ao telefone o obcecavam.
Sinto muito. Seu pai. Eu precisava dos comprimidos dele.
Alguma coisa devia ter acontecido. Gray se recusara a levar em consideração a doença de seu pai, sua necessidade de remédios. Será que sua negligência foi uma cegueira proposital, uma recusa a aceitar a verdadeira condição do pai? De uma maneira ou de outra sua negligência agora ameaçava a vida de seus pais.
Gray sentou-se com as pernas cruzadas e olhou para a cúpula. Ele lutava para desanuviar a mente. Suas preocupações, seus temores e dúvidas de nada lhe serviriam. Nem seus pais. Respirando fundo para se acalmar, ele exalou lentamente e deixou o zumbido dos turistas desvanecer-se no ambiente.
Ele imaginou a igreja como ela devia ter sido no século XVII. Em sua mente, repintou as paredes, ocultando os mosaicos dourados com gesso. Ele o fez com uma ponderação concentrada, como um exercício de meditação. Ainda que somente em sua cabeça, a velha mesquita pareceu readquirir vida. Ele ouviu os muezins cha¬mando dos minaretes acima da cidade antiga. Imaginou os suplicantes ajoelhados em tapetes, erguendo-se e baixando-se, em oração sincera.
Num lugar como aquele, onde estaria oculta a próxima chave? Onde naquele vasto espaço, com suas incontáveis ante-salas, galerias e capelas laterais?
Enquanto estava sentado, Gray girou sua vista da igreja atrás dos olhos, como um modelo tridimensional de computador, examinando-a de todos os ângulos. Enquanto fazia isso, seu dedo deslizava distraidamente pelo pó de gesso no chão. Afinal se deu conta do que estava desenhando: o símbolo da escrita angélica inscrito no verso do passaporte de ouro de Marco.
Ele olhou para a única letra enquanto a estrutura arquitetônica de Hagia Sophia ainda girava em sua cabeça.
— Ela já foi uma mesquita — murmurou.
Ele bateu de leve nos quatro círculos, que Vigor chamava de marcas diacríticas.
Quatro círculos, quatro minaretes.
E se o símbolo fosse mais do que a primeira chave para solucionar o enigma do mapa codificado? E se ele também se destinasse a ser uma pista que levasse à segunda chave? Seichan não havia dito alguma coisa a esse respeito? Como uma chave levaria à próxima?
Em sua imaginação, ele superpôs um diagrama esquemático de Hagia Sophia sobre o símbolo, posicionando os minaretes de modo que eles cobrissem as marcas diacríticas. Quatro círculos, quatro minaretes. E se o símbolo também se destinasse a representar Hagia Sophia? E se fosse um mapa grosseiro com os minaretes como âncoras?
Nesse caso, por onde começar a procurar?
Na poeira, Gray acrescentou uma linha pontilhada suplementar.
— X marca o lugar — murmurou.
11:02h
Vigor observou Gray andando de gatinhas próximo ao centro da nave, limpando o piso de mármore com as mãos.
Balthazar notou as ações do homem com uma das sobrancelhas erguida. Os dois homens foram para o lado em que Gray estava.
— O que você está fazendo? — indagou Balthazar. — Se está planejando checar o assoalho inteiro com as mãos, ficará semanas aqui.
Gray recostou-se, olhou para a cúpula, como que calculando sua posição, e então continuou a vasculhar o assoalho, trabalhando ao longo da beira dos andaimes.
— Tem que estar em algum lugar aqui.
— O quê? — perguntou Vigor.
Gray apontou para o lugar onde estivera sentado antes. Vigor foi até lá, olhou para o desenho borrado na poeira, e sua testa franziu-se.
Gray falou:
— É um mapa rudimentar de Hagia Sophia, indicando onde deveríamos procurar a próxima pista.
Vigor percebeu a verdade da avaliação de Gray, novamente surpreso pela capacidade singular do homem de cogitar e analisar. Isso o deixou um pouco assustado.
Gray continuou a engatinhar, explorando lentamente uma seção específica do piso, e alvo de alguns olhares estranhos de turistas que passavam.
Balthazar seguia-o de perto.
— Você acha que alguém entalhou alguma escrita angélica no mármore? Gray parou de repente, com o ombro roçando o andaime preto. Seus dedos vol¬taram a um ponto que ele acabara de vasculhar. Ele inclinou-se e soprou a laje.
— Não escrita angélica — disse Gray, e estendeu uma das mãos para a gola de sua camisa.
Vigor juntou-se a ele. Tanto ele quanto Balthazar se ajoelharam em volta da laje que despertara a curiosidade de Gray. Estendendo uma das mãos, Vigor apalpou o mármore com a ponta dos dedos.
Tenuemente inscrito na laje, gasta pelos séculos e pela erosão dos pés que a haviam pisado, estava o contorno simples de uma cruz.
Gray tirou o crucifixo de prata do pescoço, a cruz de frei Agreer. Ele testou suas dimensões e sua forma comparando com a inscrição na laje. Um encaixe perfeito.
— Você a encontrou — disse Vigor.
Balthazar já tinha um pequeno malho de borracha na mão, tirado de seu cinto. Ele bateu na laje. A testa de Gray se contraiu diante do trabalho cauteloso do homem.
Vigor explicou:
— Foi assim que encontramos a cavidade embaixo da laje na Torre dos Ventos: pela percussão, prestando atenção a qualquer cavidade oculta.
Balthazar examinou a laje, meticuloso, mas as rugas em sua testa se aprofundaram.
— Nada — murmurou ele afinal.
— Você tem certeza? — perguntou Vigor. — Ela tem que estar aqui.
— Não — disse Gray. Ele se deitou esparramado de costas, olhando para cima. — Para o que Jesus está olhando?
Vigor olhou de relance para a vaga figura do Cristo de prata no crucifixo e depois para cima.
— Ele está olhando para a cúpula — respondeu Gray. — Para a mesma cúpula que deixou Marco Polo paralisado. Uma cúpula cujo peso ficou mais leve em virtude do uso de tijolos vazados. Se vocês quisessem esconder alguma coisa que durasse séculos a fio...
Vigor esticou o pescoço, boquiaberto.
— É claro. Mas qual tijolo?
Balthazar ficou em pé.
— Eu tenho uma idéia — disse ele, e correu na direção dos fundos do edifício, abrindo caminho aos empurrões por entre um grupo de turistas alemães.
Vigor estendeu uma das mãos e ajudou Gray a levantar-se. Gray pegou a cruz e pendurou-a de novo ao pescoço.
— Brilhante, Gray.
— Nós ainda não encontramos o segundo paitzu de ouro.
Vigor sabia que Gray puxara Seichan para o lado para uma breve conversa privada antes de eles se separarem.
— Qual é a urgência, Gray? Com a chegada de Nasser daqui a algumas horas, por que se preocupar em encontrar a segunda chave?
— Porque eu quero deixar Nasser feliz — respondeu Gray. Vigor percebeu a preocupação com os pais nos olhos do rapaz. — E provar nossa utilidade para ele. Precisamos dele para nos mantermos vivos.
Vigor sentiu que Gray estava omitindo alguma parte do plano. Antes que pudesse lhe fazer mais perguntas, Balthazar reapareceu correndo de volta na direção deles. Sem fôlego, estendeu um pequeno instrumento.
— Com toda a construção em andamento, imaginei que alguém teria um ponteiro ou um prumo a laser. São ferramentas úteis quando se trabalha em espaços tão vastos.
O colega de Vigor ajoelhou-se, posicionou o dispositivo a laser em cima da cruz inscrita e ligou-o. Nada pareceu acontecer.
Balthazar pegou uma pitada de pó de gesso e jogou-a sobre o aparelho. Uma cintilação cor de rubi iluminou o pó.
— Está funcionando. — Ele esticou o pescoço para cima. — Alguém terá de subir no aindame para descobrir qual tijolo é iluminado pelo ponteiro.
Gray fez um aceno de cabeça.
— Eu farei isso.
Balthazar lançou um olhar de culpa ao redor e, em seguida, entregou-lhe um formão e um martelo.
— Eu também consegui estas ferramentas. — Ele fez a Gray um sinal para que as escondesse. — Você terá que ser discreto. Ninguém tem permissão para subir lá sem um passe especial de artesão emitido pelo governo turco. Eu obtive permissão do curador para deixar um de nós subir brevemente até lá para tirar algumas fotografias. Mas os seguranças — ele acenou com a cabeça na direção da sentinela armada junto à escada do andaime —, nestes dias de ataques terroristas, foram treinados para atirar e só fazer perguntas depois. Se virem você levar um formão para o teto...
Ele baixou a voz.
— Além de termos cuidado para não sermos mortos a tiros — advertiu Vigor —, não podemos ser descobertos de jeito nenhum. Se formos expulsos... se a polícia for chamada...
Vigor percebeu a compreensão nos olhos de Gray.
Nasser saberia.
— E não é apenas a nossa vida que está em risco — admitiu Vigor.
Os pais de Gray também sofreriam.
Com um profundo suspiro, Gray baixou a voz:
— Então precisaremos usar uma distração.
11:48h
Tendo atingido a metade do andaime, Gray mantinha a cabeça inclinada por causa das escoras baixas enquanto subia. Alcançando uma plataforma de tábuas, ele olhou para baixo e avistou Balthazar. As feições do homenzarrão mal eram discerníveis ali, em pé com o curador do museu. Gray inclinou-se para fora a fim de avistar o segurança postado junto ao andaime. O homem uniformizado se afastara de seu posto para ter uma clara visão do progresso de Gray.
Sob o olhar vigilante de todos, Gray continuou a subir. Ele chegou ao círculo de janelas na extremidade inferior da cúpula. A luz do sol brilhava pelo vidro em arco. Gray teve um vislumbre do mar de Mármara através de uma delas. Pouco depois, ele estava acima das janelas. O caminho ficou mais sombrio. Após escalar mais dois minutos, ele finalmente chegou ao topo do andaime e pôde tocar o teto abobadado. Na verdade, teve de se agachar para evitar bater a cabeça.
Por todos os lados, vastos textos em caligrafia islâmica desciam em cascata pelas paredes festonadas. Imediatamente acima, o vértice central da cúpula continha uma espiral de caracteres árabes ornados com ouro, pintados contra um fundo roxo-escuro.
Gray examinou a extremidade do vértice. Pequenos grãos de poeira agitaram-se para a esquerda com o brilho, iluminadas de baixo pelo ponteiro a laser. Ele avistou seu alvo: um ponto brilhante cor de rubi distinguido numa seção roxo-escura do gesso. Ótimo. A cor era escura o bastante para que qualquer buraco no gesso fosse difícil de discernir.
Pelo menos, era o que ele esperava.
Para chegar ao tijolo visado, era preciso continuar de gatinhas à medida que o teto abobadado arqueava para baixo.
Uma vez lá, Gray agachou-se e apalpou o gesso. Não havia nenhuma inscrição. Nenhuma escrita. Nenhuma outra marca.
Ele franziu o cenho. E se estivesse errado?
Infelizmente, só havia uma forma de descobrir. Gray acenou com a mão através do rastro do laser, iluminando-a.
Era o sinal.
Abaixo, Balthazar curvou-se, recolheu despreocupadamente o ponteiro e direcionou-o para baixo, ao longo da imensa nave.
Como se a luz tivesse atingido algum gongo, um assobio alto da polícia soou daquela extremidade da igreja, penetrando o silêncio solene, ecoando por todo o interior. Gritos confusos seguiram-se.
Gray olhou naquela direção e avistou a irrupção de uma chama: um coquetel molotov improvisado, derivado do álcool de polimento usado para limpar os mosaicos. Vigor provocara o pequeno incêndio numa lata de lixo.
Mais gritos.
Gray girou a fim de manter a maior parte de seu corpo entre o segurança abaixo e sua profanação acima. Tirou as ferramentas do cinto, posicionou a ponta do formão onde antes a marca do ponteiro estivera. Esperou um instante tenso, e então um segundo assobio soou.
Nesse momento, Gray golpeou com força.
O gesso quebrou-se, junto com o estalido surdo de argila seca.
Um pedaço do tijolo espatifado soltou-se, acertou o peito de Gray e quicou. Ele estendeu uma das mãos e pegou o fragmento com a mão na qual segurava o formão antes que ele caísse no piso de mármore abaixo. Encolhendo-se de medo por dentro, Gray enfiou o fragmento na camisa.
Usando o formão, ele rapidamente o usou como uma alavanca no coração do tijolo vazado, tomando cuidado com os pedaços soltos. Estendendo a mão para cima, examinou a cavidade com os dedos. Em vez de argila áspera, ele sentiu que o interior era vítreo, liso como água, e procurou ao redor.
Havia alguma coisa ali em cima.
Gray tocou-a com os dedos. Estava esperando o paitzu de ouro, mas, em vez dele, puxou um tubo de cobre ou de bronze com 20cm de comprimento, rematado em ambas as extremidades, parecido com uma cigarreira. O objeto foi parar dentro de sua camisa.
Olhando pelo canto do olho, Gray notou que o pequeno incêndio na lata de lixo já fora apagado com um extintor.
Apressando-se, ele procurou de novo e sentiu alguma coisa pesada, empurrada delicadamente com o seu dedo indicador. Foram necessários mais alguns segundos para tirar o segundo prêmio da câmara secreta: outro paitzu de ouro.
O pesado passaporte libertou-se, soltou-se de seus dedos frenéticos e caiu com um barulho nos degraus do andaime aos seus pés. O metal soou como um sino badalado, amplificado pela concavidade da cúpula. Infelizmente, ele caiu no exato momento em que houve calma na agitação abaixo.
Merda...
Quando o barulho se extinguiu, Gray pegou o passaporte de ouro e enfiou-o na camisa. Com gritos vindos de baixo, ele fez a única coisa que pôde: atirou o martelo do andaime e caiu depois dele, com os braços agitando-se em pleno ar e um grito nos lábios.
11:58h
Da colunata do segundo andar, Vigor observou Gray despencar do alto do andaime.
Oh, não...
Momentos antes, Vigor havia soprado o apito na extremidade oposta da igreja e jogado o coquetel molotov que segurava, oculto dentro de uma lata de lixo não-vigiada. Ele mal conseguira tirar o braço a tempo, afastando-se às pressas. Soprara o apito outra vez e depois o jogara numa planta num vaso. Já tendo posto o colarinho romano de sua profissão, só tinha de parecer confuso e um pouco assustado. Os guardas o ignoraram quando ele correu ao longo da extensão do piso superior de volta à nave central.
Ele chegou ao centro da igreja a tempo de ouvir Gray gritar e cair de cabeça para baixo do imenso andaime. Pessoas vieram correndo, outras se desviaram do caminho abaixo. Um martelo acertou o piso de mármore com um estalo ressoante.
Acima, Gray girou e agarrou um esteio do andaime com uma das mãos estendidas. Ele se chocou contra as escoras. Seus pés agitaram-se e lutaram para encontrar um ponto de apoio. Ele encontrou-o, arrastou-se com dificuldade para o coração do andaime e deitou-se de costas, sem dúvida recobrando o controle após a queda. O segurança postado junto ao andaime gritou para ele e acenou para outro segurança subir a escada e dar uma olhada nele.
Gray rolava de um lado para o outro, segurando o braço esquerdo, gemendo.
Vigor deu a volta em direção à escada a fim de descer para o piso da nave. Ele juntou-se a Balthazar e ao curador do museu. O segurança ajudou Gray a se levantar; ele apoiou-o parcialmente, e os dois desceram com cuidado.
Enquanto Gray mancava, seu rosto ficou roxo de raiva. Ele apontou para o martelo, para o próprio martelo que Balthazar lhe dera.
— Seus operários não arrumam as ferramentas quando encerram o trabalho? — esbravejou com uma indignação aterrorizada. — Com toda aquela agitação aqui embaixo, eu acidentalmente pisei na maldita ferramenta. Eu poderia ter morrido!
O curador, um homem esguio com uma barriguinha discreta, recolheu o martelo.
— Ah, meu caro senhor, minhas desculpas por essa negligência. Eu lhe asseguro, vamos verificar isso. Seu braço...
Gray segurava-o de encontro ao tórax.
— Torcido, talvez deslocado — disse ele, fitando furiosamente o curador.
— A polícia já está a caminho... por causa do incêndio — disse o curador.
Gray e Vigor trocaram um olhar preocupado.
Se Nasser souber que a polícia veio aqui...
Vigor pigarreou.
— O incêndio. Certamente foi apenas um cigarro jogado por um turista descuidado. Ou talvez uma brincadeira inofensiva.
O curador pareceu não ouvir. Ele já havia se virado para um dos guardas e falou rapidamente em turco.
Vigor entendeu.
Aquilo era ainda pior.
— Não, não — insistiu Vigor, olhando duramente para Gray. — Tenho certeza de que o nosso estudante não precisa ser levado ao hospital. Não é necessário chamar nenhuma ambulância.
Os olhos de Gray arregalaram-se. Eles não podiam sair da igreja. A distração que haviam arquitetado só conseguira fazer com que ficassem ainda mais enrascados.
— O monsenhor tem razão. — Gray flexionou e girou o braço. Vigor notou um estremecimento. Gray havia de fato machucado o braço. — Só torceu um pouco. Vou ficar bem.
— Não, eu insisto. É a política do museu. Se alguém se machucar aqui, é obrigatória uma visita ao hospital.
Vigor percebeu que não havia meio de dissuadir o curador. Balthazar deu um passo à frente, pigarreando.
— Isso parece prudente. Mas, enquanto isso, talvez haja um lugar onde possamos descansar. O seu escritório é no porão, não é?
— Claro. Ninguém incomodará vocês. Vou receber a polícia e chamar vocês quando a ambulância chegar. Dr. Pinosso, por favor, aceite minhas sinceras desculpas. O senhor foi tão generoso, no passado, dedicando-nos o seu tempo e os seus conhecimentos, e veja como eu o recompenso.
Balthazar bateu de leve no braço dele.
— Hasan, não se preocupe. Está tudo bem. Nossos nervos estão apenas agitados. É bem feito para o meu aluno, por não prestar atenção onde pisa quando está numa posição precária.
Sirenes soaram a distância.
— Por aqui — disse o curador.
Pouco tempo depois, os três estavam sozinhos no escritório de Hasan no porão, com sua escassa mobília. Os diagramas esquemáticos da igreja estavam pregados com tachas na parede dos fundos, atrás de uma escrivaninha em desordem. Uma única fotografia emoldurada do curador, Hasan Ahmet, apertando a mão do presidente turco adornava a parede acima de uma fileira de armários de aço. Na parede oposta estava um antigo mapa do Oriente Médio ilustrado com iluminuras.
Balthazar fechou o trinco da porta do escritório e andou de um lado para o outro da sala.
— Existe um labirinto de salas aqui no porão. Vocês dois poderiam se esconder até esse tal de Nasser chegar. Eu posso ir lá em cima e dizer a Hasan que vocês dois foram embora.
— Isso tem de resolver o problema. — Vigor afundou num sofá ao lado de Gray, que massageava o ombro. — Não temos muito tempo. Você encontrou alguma coisa lá em cima?
Em resposta, Gray desabotoou a parte de baixo da camisa e tirou uma barra de ouro e um tubo de bronze gasto. Ele sacudiu a camisa um pouco mais, e um fragmento de cerâmica avermelhada caiu no chão. Ele se abaixou, pegou-o e colocou-o sobre a mesa.
Vigor começou a se virar, mas um pedaço de cor da cerâmica atraiu seu olhar. Pegou o pedaço de argila avermelhada do tampo da mesa.
— É um pedaço do tijolo vazado — Gray explicou de mau humor. — Eu não quis deixá-lo lá em cima. As coisas já deram errado o suficiente.
Vigor examinou-o brevemente. Num lado, um pouco de gesso roxo ainda estava preso a ele, mas no outro lado uma espessa camada de esmalte azul-celeste cobria a argila. Por que alguém haveria de esmaltar o interior de um tijolo vazado?
— Você viu alguma escrita angélica lá em cima? — perguntou Vigor, e colocou o fragmento de volta sobre a mesa.
— Não, nenhuma escrita, nada de incomum.
Balthazar curvou-se e virou o paitzu de ouro.
— Mas tem escrita angélica aqui.
Vigor inclinou-se mais para perto. Conforme esperado, uma única letra da escrita angélica decorava o lado de trás. Um círculo grosseiro a envolvia.
— A segunda chave — disse Vigor.
— Mas o que é isto? — perguntou Balthazar, e cutucou o tubo.
Vigor pegou-o. Ele tinha a grossura de seu polegar e nenhum adorno, a não ser as antigas marcas de martelo de quem o forjara.
— Pode ser um tubo para pergaminhos.
Ele examinou uma extremidade. Uma fina moeda de bronze fora prensada sobre a extremidade, lacrando-a.
— Nós teremos de abri-lo — disse Gray.
Vigor sentiu certo mal-estar com essa sugestão. Como arqueólogo, ele temia manusear mal um objeto tão antigo. Ele precisava ser fotografado, medido, catalogado.
Gray enfiou uma das mãos num bolso e tirou um canivete. Abriu a pequena lâmina e segurou-a na direção de Vigor.
— Nosso tempo está se esgotando.
Respirando fundo, Vigor aceitou o canivete. Com uma pontada de mal-estar profissional, ele usou a ponta para forçar a tampa da extremidade. Ela se soltou completamente, como se tivesse sido produzida na véspera.
Vigor abriu um espaço na mesa de centro, inclinou o tubo e deixou seu conteúdo deslizar. Um rolo de material branco caiu na mesa de mogno.
— Um manuscrito — disse Gray.
Sem tocá-lo, Vigor fez uma avaliação baseada em seus anos de estudo e experiência de toda uma vida.
— Não é pergaminho, nem velino, nem sequer papiro.
— O que é isso? — indagou Balthazar.
Vigor gostaria de ter luvas de exame para manusear o velho manuscrito. Receoso da oleosidade em suas mãos, ele pegou um lápis da escrivaninha do curador e usou a borracha para desenrolar a extremidade livre do material.
Ele caiu facilmente, delicado e diáfano como gaze.
— Parece tecido — disse Gray.
— Seda. — Vigor foi desenrolando mais e mais, esticando-a na superfície da mesa. — Ela é bordada — disse, notando a fina costura de fio negro através da seda branca.
O trabalho de agulha, porém, não formava uma imagem ou um padrão intrincado. Em vez disso, linhas de texto cursivo, costuradas no material, espalhavam-se ao longo da peça de seda desenrolada.
Gray girou a cabeça para ler, mas franziu ainda mais o cenho, não compreendendo.
— É língua lombarda — declarou Balthazar com espanto.
Vigor não conseguia tirar os olhos da escrita.
— É o dialeto italiano da região de Marco Polo. — Ele estendeu a mão trêmula e acompanhou o texto com a borracha do lápis, traduzindo a primeira linha em voz alta.
— "Nossas orações foram atendidas da maneira mais estranha."
Ele olhou de relance para Gray e viu a compreensão nos olhos do americano.
— É o restante da história de Marco — disse Gray —, continuando de onde terminava a cópia de seu livro que está em poder da Guilda.
— As páginas desaparecidas — concordou Vigor —, bordadas na seda.
Gray deu uma olhadela para a porta, claramente nervoso, e acenou para o diário de seda.
— Leia o restante.
Vigor começou do início, continuando a história do grupo de Marco. A primeira seção deixara encurralados na Cidade dos Mortos, cercados por uma horda de canibais. Vigor traduziu cuidadosamente a próxima parte da história, com a voz trêmula por causa da força original das palavras de Marco.
Nossas preces foram atendidas da maneira mais estranha. E foi assim que aconteceu:
A noite caiu sobre a Cidade dos Mortos. Da posição privilegiada de nosso santuário, os fossos e tanques da cidade abaixo de nós brilhavam com uma luz de natureza sepulcral; a cor e a luminosidade eram as de fungos e cogumelos. Elas faziam a cena abaixo parecer algum festim pavoroso expelido das entranhas do Diabo, à medida que os mortos se alimentavam dos mortos. Não víamos esperança de salvação. Que anjo ousaria pisar aquelas terras profanas?
Mas então sucedeu que três figuras emergiram da floresta escura. Foi assim que elas apareceram: sua pele emitia um brilho que harmonizava com o dos tanques e fossos, e os terríveis canibais afastavam-se diante dos pés delas enquanto o vento soprava através de uma plantação de cereais. Os três cruzaram a cidade sem pressa, mas com uma direção definida. Assim que chegaram à base da torre, constatou-se que essas aparições estra¬nhas faziam parte do mesmo grupo de pessoas que se banqueteavam com carne. No entanto, a pele delas brilhava com alguma luz abençoada. Tomados de grande terror, os homens do Khan baixaram todas as armas e esconderam o rosto contra a pedra. Os três entraram em nosso abrigo e se aproximaram de nós sem nos incomodar. Seus rostos estavam abatidos e exauridos pela febre; mas a carne deles parecia saudável, ao contrário da de seus irmãos abaixo. Porém, não era carne como a dos homens. A luz de suas peles parecia penetrar mais profundamente seus corpos; e assim revelava a agitação do intestino e o batimento indistinto de seus corações. Também sucedeu que um dos três roçou num dos homens do Khan. Ele gritou e afastou-se; e, onde ele foi tocado, sua pele empolou e enegreceu.
Frei Agreer ergueu sua cruz contra eles: mas o primeiro dos três avançou quase sem medo e tocou a cruz do dominicano. Ele falou em palavras que ninguém compreendeu; mas com muitos gestos o desejo deles foi comunicado: o de que bebêssemos da metade da casca de uma noz das índias. Um dos homens do Khan deve ter entendido o bastante da estranha língua para comunicar-se. Uma grande virtude de cura nos foi oferecida; e, com o seu consumo, nós seríamos protegidos da pestilência que grassava ali. Porém, que o Céu nos perdoe a todos pelo que isso custaria, pelo que faria de nós no fim.
A história parava aí.
Vigor recostou-se, frustrado.
— Deve ter mais.
— Oculto com a terceira e última chave — sugeriu Gray.
Vigor acenou com a cabeça e bateu de leve no diário de seda esticado.
— Mas, mesmo com base neste trecho da história, é óbvio por que ela jamais foi contada.
— Por quê? — indagou Gray.
— Por causa da descrição das estranhas aparições — ressaltou Vigor. — Resplandecendo com uma luz abençoada, oferecendo salvação.
— Dá a impressão de que eram anjos — disse Balthazar.
— Mas anjos pagãos — enfatizou Vigor. — Uma noção dessas não teria tido receptividade no Vaticano durante a Idade Média. E lembrem-se: quem quer que tenha dividido a história de Marco o fez no século XVII, durante outro ataque da peste na Itália. Apesar do conteúdo perturbador, o Vaticano não ousou destruir a mensagem. Alguns místicos no seio da Igreja devem ter dividido o texto para preservá-lo e ocultá-lo. Mas a questão maior permanece: o que ainda não foi contado?
— Se quisermos descobrir isso — disse Gray —, teremos de encontrar a terceira chave. Mas onde devemos começar a procurar? Não tem escrita angélica em parte alguma.
— Talvez nenhuma escrita angélica que pudéssemos ver a olho nu — acrescentou Vigor de maneira incisiva.
Gray concordou com um aceno de cabeça. Ele girou a fim de pegar sua mochila e começou a vasculhá-la.
— Eu trouxe uma lâmpada ultravioleta, para a eventualidade de nos depararmos com mais obeliscos resplandecentes.
Balthazar diminuiu a intensidade das luzes. Gray passou a luz ultravioleta sobre cada objeto, até mesmo sobre o fragmento de tijolo de argila.
— Nada — declarou afinal. Um beco sem saída.
12:43h
A frustração de Gray chegara ao limite da tensão de uma corda de piano. Ele perdeu a esperança em seu plano original, embora tivesse sido uma possibilidade remota.
— Não podemos esperar mais — admitiu finalmente, consultando o relógio. — Temos que nos esconder. Vamos juntar tudo isso e encontrar um lugar para nos refugiar.
Eles haviam passado os últimos cinco minutos quebrando a cabeça, procurando alguma pista sobre onde procurar a terceira chave. Vigor tentou decifrar um significado oculto no texto, relendo-o. Balthazar havia examinado todas as superfícies do paitzu de ouro. Todos concordaram que a linha grosseira que circundava a única letra angélica devia ser importante, mas ninguém conseguiu imaginar o que poderia ser.
Vigor suspirou e começou a enrolar o manuscrito.
— A resposta deve estar aqui. Seichan disse que a cópia da Guilda mencionava que cada chave conduzia à próxima. Mais tarde, simplesmente teremos de imaginar o que não estamos conseguindo perceber.
Gray reuniu o último objeto restante: o fragmento do tijolo. Ele bateu de leve no gesso na parte externa do fragmento.
— Poderia haver algum significado no fato de o tijolo ter sido revestido de gesso roxo? Eu suponho que o tijolo falso poderia ter tido qualquer quantidade de cores. Eles tinham toda a paleta de cores da cúpula para escolher.
Vigor mal pareceu ouvi-lo quando enfiou o manuscrito de volta no tubo de bronze. Ainda assim, ele disse em voz alta:
— O roxo é a cor da realeza ou da divindade.
Gray concordou com a cabeça. Segurando sua mochila, empurrou o fragmento para dentro dela. Seu polegar percorreu o espesso verniz azul no lado oposto. Ele lembrou-se de que o interior do tijolo dera a sensação de ser vítreo.
— Azul — disse ele em voz alta. — Azul e realeza. E foi então que lhe ocorreu.
É claro.
Vigor percebeu isso ao mesmo tempo e se empertigou.
— A Princesa Azul!
Balthazar deslizou o paitzu de ouro na direção de Gray, para que ele o guardasse.
— Você está falando sobre Kokejin, a jovem mongol que viajava com Marco.
Vigor fez que sim com um movimento da cabeça.
— Ela ganhou esse apelido porque a tradução do seu nome é azul-celeste.
— Mas qual a importância da referência a ela nesse caso? — perguntou Gray.
— Vamos recuar — disse Vigor, contando nos dedos. — A primeira chave estava no Vaticano, na Itália, onde Marco terminou sua viagem. Um marco importante. Seguindo a rota de Polo para trás, nós chegamos ao próximo marco aqui, em Istambul, onde, vindo da Ásia, ele pisou pela primeira vez de novo na Europa.
— E se retrocedermos ainda mais na rota de Marco... — disse Gray.
— O próximo marco importante estaria no lugar onde ele completou a tarefa que lhe fora atribuída por Kublai Khan e que constituiu todo o motivo da viagem: levar Kokejin para a Pérsia.
— Mas onde exatamente na Pérsia? — perguntou Gray.
— Em Ormuz — respondeu Balthazar —, no sul do Irã. A ilha de Ormuz fica na boca do golfo Pérsico.
Gray olhou para a mesa. Uma ilha. Ele pegou o paitzu de ouro e observou a linha que circundava o símbolo angélico.
— Isto poderia ser um mapa grosseiro dessa ilha?
— Vamos verificar — respondeu Vigor, que se levantou e foi até a parede onde estava o velho mapa do curador ilustrado com iluminuras.
Gray juntou-se a ele.
Vigor apontou para uma pequena ilha próxima ao fundo do golfo Pérsico, perto do território continental do Irã. Ela exibia a mesma forma arredondada com uma ponta nítida no formato de lágrima. Era quase um equivalente exato do desenho em torno do símbolo gravado no ouro.
— Nós a encontramos — disse Gray, com a respiração acelerando-se de expectativa. — Nós sabemos aonde temos de ir em seguida.
E isso significava que seu plano ainda poderia dar certo.
— Mas, e quanto a Nasser? — indagou Vigor.
— Eu não me esqueci dele — Gray fitou o monsenhor e apertou-lhe o ombro. — A primeira chave. Eu quero que o senhor a entregue a Balthazar.
Vigor franziu o cenho.
— Por quê?
— Caso alguma coisa dê errado aqui, eu não posso deixá-la cair nas mãos de Nasser. Nós apresentaremos a segunda chave que encontramos como se fosse a primeira. Nasser não pode saber que o senhor encontrou uma chave no Vaticano. — Gray olhou para um e para o outro. — Presumo que vocês dois manterão isso entre si.
Os dois homens concordaram com um aceno da cabeça. Ótimo.
A carranca de Vigor, no entanto, não se havia atenuado.
— Com certeza, quando Nasser chegar aqui, ele revistará Balthazar e encontrará a outra chave de ouro.
— Não se Balthazar já tiver ido embora — disse Gray. — Como no caso de Kowalski, eu duvido de que Nasser saiba que seu colega viajou com o senhor. Por que ele haveria de suspeitar de que o senhor veio para cá com o decano do departamento de história da arte? Pelo rastreamento do seu telefone celular, tudo o que Nasser sabe é que o senhor partiu para nos encontrar. Usaremos isso a nosso favor. Mandaremos Balthazar, com tudo o que ele precisa saber, ao encontro de Seichan. Junto com Kowalski, os três podem se adiantar e partir para a ilha de Ormuz. Caberá a eles encontrar a última chave. Assim que Nasser chegar aqui, teremos de reter o desgraçado pelo tempo que for possível. Mas, pelo bem dos meus pais, talvez tenhamos de indicar-lhe o caminho certo.
— Onde, esperemos, Seichan já terá encontrado a última chave — disse Vigor.
— Então teremos alguma coisa para podermos fazer um acordo — disse Gray. Gray sabia, porém, que todos esses planos dependiam de uma última esperança. De que Painter encontrasse uma forma de libertar seus pais.
E, naturalmente, de que Gray não tivesse cometido nenhum erro grosseiro de cálculo.
13:06h
Seichan esperava no quarto de hotel em frente à entrada oeste de Hagia Sophia. listava sentada junto à janela do quinto andar. Sua face estava encostada na coronha de seu fuzil de precisão Heckler & Koch PSG-1. Ela olhava para baixo através da mira telescópica, focalizada na praça em frente à igreja.
Observara a polícia chegar e ir embora, parando apenas por uns breves instantes.
O que acontecera?
Atrás dela, Kowalski estava estirado na cama, comendo azeitonas e limpando cinco pistolas portáteis e um rifle de assalto A-91 de 5,56mm da Otan.
Eles tinham ido fazer compras, abastecer-se do imprescindível.
Kowalski cuspiu um caroço de azeitona enquanto trabalhava. Aquilo a estava irritando enquanto ela se mantinha em seu posto. Mas, pelo menos, ele conhecia as armas.
Para sua vantagem, Seichan tinha uma visão desimpedida da rua, do parque e da praça. Ela observava qualquer pessoa que demonstrasse um interesse excessivo na igreja, mais do que o turista típico que tira algumas fotos e vai embora. Ela também prestava atenção a qualquer sinal revelador de alguém portando armas pesadas.
Até agora, tudo bem. Ou estava tudo bem, ou ela estava perdendo a agudeza mental.
Através da mira telecóspica, Seichan observava todas as pessoas que saíam ou entravam pelas Portas Imperiais ocidentais de Hagia Sophia. Ajustou a distância focal para ter uma visão clara dos rostos, e fazia uma avaliação das pessoas que circulavam pelo lugar para ver se algum dos mesmos rostos ia e vinha, indicando alguém que estivesse vasculhando o lugar.
Ela queria saber onde o maior número possível dos inimigos estava posicionado.
Para a eventualidade de um ataque revelar-se necessário.
Até agora, nada. Não fazia sentido.
Onde estavam os homens de Nasser? Eles deveriam estar ali àquela altura, assumindo posições. A Guilda tinha muitos recursos e agentes em Istambul. O suprimento de armas atrás dela era prova suficiente disso. Ou será que Nasser estava operando com economia de recursos? Mantendo seu potencial humano a um mínimo? Era mais fácil misturar um ou dois homens no local do que meia dúzia.
Seichan, no entanto, não estava engolindo aquilo.
— Alguma coisa está errada — murmurou ela, atrapalhando sua mira.
Qual era o jogo dele?
Ela voltou a se concentrar em seu dever. Um homem alto saiu da igreja, andando a passos largos, sem tentar esconder-se. Seichan focou nele, detendo-se em seu rosto barbudo.
Assim é melhor.
Ela não sabia o nome dele, mas vira o homem antes, encontrando-se com Nasser, há dois anos. Um envelope grosso fora trocado entre eles. Nasser não ficara sabendo que Seichan o seguira e espionara seu encontro com o homem. Ela possuía uma série de fotografias do agente desconhecido em alguma parte de seu cofre-forte num banco suíço. Algo que ela reservara para tempos difíceis.
Ou para um dia radiante como hoje.
— Não é de admirar que Nasser esteja operando com o mínimo de recursos — murmurou ela.
O filho-da-puta tinha alguém posicionado dentro de Hagia Sophia. Aquilo não estava cheirando bem. Se aquele homem estava indo embora, significava que alguma outra pessoa já o havia dispensado. Ela observou-o parar na praça e pegar um telefone celular.
Provavelmente, ele estava telefonando para Nasser, informando-o de que sua caça estava sã e salva dentro da igreja.
O telefone celular dela tocou.
Estranho.
Ela estendeu a mão às cegas para o telefone, pressionou a tecla falar e levou o aparelho até o ouvido.
— Ciao — disse ela.
— Alô — respondeu o autor da chamada, com a voz clara. — Estou tentando falar com uma mulher chamada Seichan. Me disseram para ligar para este número e combinar de nos encontrarmos. Um certo monsenhor e um americano gostariam que nos encontrássemos.
A pele de Seichan ficou arrepiada enquanto ela ouvia, focada no homenzarrão, observando seus lábios se moverem em sincronia com a voz em seu ouvido.
— Aqui é Balthazar Pinosso, da divisão de história da arte do Vaticano.
Pelo menos Seichan finalmente tinha um nome para o homem das fotografias com Nasser: Balthazar Pinosso, um agente da Guilda. Ela respirou pelo nariz. Nasser não tinha apenas alguém posicionado dentro da igreja; ele também tinha alguém dentro do próprio círculo interno da Igreja.
Seichan recriminou-se mentalmente. Não era a Sigma que tinha um espião da Guilda, e sim o Vaticano.
— Alô — repetiu o homem, com um quê de preocupação.
Seichan inclinou o rosto com mais força contra a coronha, fazendo uma pontaria certeira.
Era hora de deter o vazamento.
— Kowalski... — sussurrou ela.
— Sim.
— A merda está prestes a ser jogada no ventilador.
— Até que enfim!
Seichan puxou o gatilho.
CAPÍTULO 10
Saindo da lama para cair no atoleiro
6 de julho, 19:12h
A bordo do Mistress of the Seas
Graças a Deus, o coquetel havia terminado.
Lisa desabotoou apressadamente o casaco de seda com contas bordadas à mão que cobria seu vestido de noite preto, de cetim de seda plissado. O traje, com design de Vera Wang, estava bem acima do seu orçamento, mas ela o encontrara estendido em sua cama, quando voltou à cabine a fim de se aprontar para a soirée de Ryder Blunt, de boas-vindas ao navio de cruzeiro ao porto de origem dos piratas.
O próprio dr. Devesh Patanjali devia ter escolhido a dedo o vestido numa das lojas de luxo do Convés Lido. Só aquilo já era motivo para tirá-lo do corpo. Lisa não queria ir à festa, mas Devesh não lhe deixara escolha. Por isso ela se juntara ao outro grupo de cientistas mais experientes na suíte de Ryder.
Champanhe e vinho resfriado jorravam em abundância. Canapés eram servidos em bandejas de prata, carregadas no alto por garçons uniformizados, enquanto travessas geladas de caviar cercado por torradinhas em forma de triângulo decoravam a mesa do bufê. Pelo visto, ainda tinham permanecido vivos membros da orquestra do navio suficientes para formar um quarteto de cordas. O grupo tocava calmamente lá fora na sacada enquanto o sol se punha, mas eles foram obrigados a se dispersar quando os ventos sopraram com mais força e começou a chover torrencialmente.
Agora, trovões ribombavam no alto, enquanto a tempestade aumentava de intensidade. Pelo menos, o navio permaneceu estável, abrigado na cratera de um vulcão submerso. Todavia, a notícia de um tufão e um sem-número de responsabilidades logo puseram fim à festa improvisada de Ryder.
Ela durara apenas algumas horas.
Lisa tirou o sutiã e a calcinha, contente de se livrar daquilo. Voltou a vestir seu jeans e deslizou uma blusa folgada pela cabeça, ajeitando-a no lugar. Descalça, foi até a bolsa de noite em cima da cama, outro presente do dr. Patanjali, uma bolsa Gucci presa a uma moldura de metal leve com adereços de prata. A bolsa ainda tinha a etiqueta com o preço.
Mais de seis mil dólares.
O que ela continha, no entanto, era muito mais valioso. Durante as festividades, Ryder lhe passara discretamente duas lembrancinhas da festa, que ela enfiara depressa na bolsa.
Um rádio pequeno e uma pistola.
E a notícia que acompanhava os presentes era ainda mais agradável.
Monk estava vivo!
E a bordo do navio!
Lisa escondeu rapidamente a arma no cós da calça e cobriu-a com a barra da blusa folgada. Com o rádio na mão, foi até a porta e escutou com o ouvido pressionado contra ela.
Não havia nenhum guarda regular postado à sua porta. Aquela ala inteira havia sido isolada perto do poço da escada e dos halls dos elevadores. Devesh destinara uma cabine interna para ela, a apenas duas portas de distância de onde sua paciente ainda repousava num estupor catatônico.
Contente por estar sozinha, Lisa sintonizou o rádio no canal oito, pôs às pressas no lugar o fone de ouvido e o microfone e pressionou o transmissor.
— Monk, você está aí? Câmbio.
Ela aguardou.
O aparelho chiou com um pouco de estática, e em seguida uma voz familiar falou.
— Lisa? Graças a Deus! Quer dizer então que Ryder lhe entregou o rádio. Você recebeu a arma? Câmbio.
— Sim. — Ela queria ouvir desesperadamente toda a história dele, saber como havia sobrevivido, mas agora não era a hora, pois tinha preocupações mais importantes. — Ryder disse que você tinha um plano.
— Um plano talvez seja um termo muito generoso. É mais uma fuga improvisada para salvar nossas vidas.
— Me parece ótimo. Quando?
— Eu vou combinar tudo com Ryder daqui a alguns minutos. Estaremos prontos às nove da noite. Esteja pronta também. Mantenha a pistola com você — disse ele, fazendo então um resumo de seu plano para libertá-la.
Ela acrescentou alguns detalhes necessários para ajudá-lo e consultou o relógio. Menos de duas horas.
— Devo contar a mais alguém? — perguntou Lisa.
Houve uma longa pausa.
— Não, sinto muito. Se quisermos ter alguma esperança de escapar, teremos de fugir com o mínimo de pessoas possível, usando a cobertura da tempestade. Ryder tem uma lancha particular numa rampa de lançamento no lado de estibordo. Consegui um mapa do seu amigo Jessie. Tem uma cidadezinha a cerca de trinta milhas náuticas de distância. Nossa maior esperança é alcançá-la e dar o alarme.
— Jessie vem conosco?
Seguiu-se uma pausa ainda mais longa.
Lisa pressionou o transmissor de novo.
— Monk?
Um suspiro encheu o ouvido dela.
— Eles pegaram Jessie e o jogaram ao mar.
— O quê? — Lisa imaginou o rosto sorridente dele e sua tendência a fazer trocadilhos bobos. — Ele... ele está morto?
— Não sei. Explicarei mais quando nos encontrarmos.
Ela sentiu uma onda de pesar por um rapaz que conhecera apenas algumas horas atrás. Perdida naquela onda de pesar, nem conseguiu falar.
— Às nove da noite — repetiu Monk. — Mantenha o rádio com você, mas fora de vista. Entrarei em contato com você de novo. Câmbio e desligo.
Lisa tirou o fone de ouvido e segurou o rádio com ambas as mãos. A concretude do plástico rígido ajudou a acalmá-la. Eles voltariam a conversar dali a duas horas.
Um trovão ribombou.
Ela prendeu o rádio dentro do bolso, dobrando e enfiando também o fone de ouvido, cujo volume manteve oculto pelo drapejado de sua blusa.
Ela olhou fixamente para a porta da cabine. Se eles iam fugir, Lisa não queria partir de mãos vazias. Sabia que havia uma grande quantidade de dados e arquivos no quarto em que sua paciente estava.
Além disso, havia um computador... com um gravador de DVD.
Ela conversara com Henri e com o dr. Miller durante o coquetel. Em palavras sussurradas, eles haviam relatado que Devesh e sua equipe estavam colhendo amostras de várias bactérias tóxicas produzidas pela Estirpe de Judas, as piores da coleção, armazenando-as em câmaras de incubação num laboratório inacessível, chefiado pelo virologista de Devesh.
— Acho que eles também estão fazendo experimentos com o vírus em patógenos conhecidos — informou o dr. Miller. — Vi pilhas de lâminas lacradas com etiquetas de Bacillus anthracis e Yersinia pestis desaparecerem no laboratório com acesso restrito.
Antraz e a bactéria da Peste Negra.
Henri supôs que Devesh devia estar tentando produzir uma supercepa desses patógenos letais. Durante a conversa deles, uma palavra deixou de ser dita — o motivo de tudo aquilo.
Bioterrorismo.
Lisa consultou o relógio e foi até a porta. Se o mundo quisesse ter alguma chance de deter a grande quantidade de pragas que a Guilda estava coletando e produzindo, eles precisavam da maior quantidade possível de dados da paciente dela. O corpo da mulher estava se curando, livrando seus tecidos das bactérias tóxicas, purificando-os.
Como e por quê?
Lisa sabia que Devesh tinha razão acerca de Susan Tunis.
Esta paciente possui a chave de tudo.
Lisa não podia partir antes de reunir a maior quantidade possível de dados.
Ela tinha de correr o risco.
Apertando com força a maçaneta da porta, Lisa abriu-a. Percorreu os cinco passos até o quarto de Susan Tunis. Adiante, a ala circular de suítes científicas ainda estava movimentada, com técnicos indo e vindo. Um rádio tocava música de cabaré, mas o cantor cantava em chinês. O ar recendia a desinfetante e a um odor subjacente de terra.
Lisa olhou brevemente para o guarda armado que patrulhava o espaço central, contornando a pilha de caixotes descartados e de equipamento ocioso. Atrás dela, no fim do corredor, ouviu mais guardas conversando.
Ela seguiu de mansinho para o quarto de Susan Tunis, passou pela fechadura o cartão que Devesh lhe dera e entrou. Como sempre, dois enfermeiros estavam de plantão no quarto. Devesh jamais deixava sua estimada paciente desacompanhada.
Um homem estava reclinado numa cadeira no salão principal, com os pés em cima da cama, assistindo à televisão com o volume baixo. Era algum filme de Hollywood exibido ao mesmo tempo em todo o navio. O outro enfermeiro estava no bem iluminado quarto de dormir com a paciente, com uma prancheta na mão, registrando os sinais vitais de 15 em 15 minutos.
— Eu gostaria de ficar um instante a sós com a paciente — disse Lisa.
O homenzarrão, com a cabeça raspada e usando roupas protetoras, poderia ser gêmeo idêntico do outro. Ela jamais aprendeu os nomes deles e internamente se referia a eles como Tweedledee e Tweedledum.
Mas pelo menos eles falavam inglês.
O enfermeiro deu de ombros, entregou a prancheta a ela e foi juntar-se ao colega.
Raios brilhavam intensamente através das portas da sacada, e trovões ribombavam. O mundo além — a lagoa e a ilha coberta de florestas ao redor — apareceu em nítido contraste, e então voltou a desaparecer na escuridão com um estrondo violento.
A chuva caía com mais intensidade.
Lisa protegeu o rosto com uma máscara, calçou um par de luvas cirúrgicas e foi até a paciente. Ela voltou a pegar o oftalmoscópio da bandeja de instrumentos de exame. Vinha monitorando uma estranha anomalia nos olhos da paciente, algo que escondera de Devesh. Antes de partir, queria checar mais uma vez.
Ela puxou para trás a aba da tenda de isolamento, inclinou-se e usou a ponta de um dos dedos para puxar suavemente para cima a pálpebra do olho esquerdo da mulher. Lisa acendeu a lâmpada do oftalmoscópio e ajustou o foco. Inclinando-se, com o nariz quase roçando o da paciente, começou a fazer um exame fundoscópico das estruturas internas do olho dela.
Todas as superfícies da retina pareciam normais e saudáveis: mácula, disco óptico, vasos sanguíneos. A anomalia passava facilmente despercebida, porque não era estrutural. Mantendo-se na posição em que estava, Lisa desligou a lâmpada do oftalmoscópio, porém continuou a olhar através da lente do instrumento.
A parte posterior do olho da paciente e toda a superfície da retina começaram a brilhar, suavemente resplandecentes com sua própria luz opaca. Alguma fosfo¬rescência estranha havia se introduzido nos tecidos da retina. Começara em torno do disco óptico, onde o principal feixe nervoso procedente do cérebro se ligava ao olho. Mas nas últimas horas o brilho havia se difundido para fora, e agora abrangia toda a superfície da retina.
Ela havia lido os relatos históricos das primeiras manifestações da doença, sobre uma floração de algas na ilha e sobre como o mar havia brilhado com cianobactérias fosforescentes.
E agora os olhos da paciente brilhavam.
Devia haver alguma pista ali. Mas qual?
Com base naqueles achados anteriores, Lisa havia realizado discretamente uma segunda punção do líquido cefalorraquidiano da paciente. Queria saber se alguma coisa havia mudado no líquido ao redor do cérebro. Àquela altura, os resultados já deviam estar prontos e armazenados no computador no canto do quarto.
Lisa terminou o exame, tirou a máscara e as luvas e foi até a estação de computadores, que ficava fora da vista direta do outro aposento.
Entrou no menu dos exames laboratoriais. Os resultados da punção do líquido cefalorraquidiano de fato já haviam ficado prontos. Lisa correu os olhos rapidamente pela análise química. Os níveis proteicos estavam aumentando, porém pouco mais havia se alterado. Ela passou para o exame microscópico. Bactérias haviam sido detectadas e identificadas.
Cianobactérias.
Como ela suspeitara.
Com o enfraquecimento da barreira hematoencefálica, a Estirpe de Judas pôde entrar no cérebro, e levou consigo uma companhia.
Uma companhia que estava crescendo e se multiplicando.
Prevendo esses mesmos resultados, Lisa fizera algumas pesquisas antes. As cianobactérias eram uma das mais antigas cepas de bactérias. Na verdade, elas possuíam a característica de estar entre os mais antigos fósseis conhecidos do mundo: quase quatro bilhões de anos, uma das primeiras formas de vida da Terra. Também eram únicas por serem fotossintéticas, como as plantas, capazes de produzir seu próprio alimento a partir da luz do sol. Na verdade, a maioria dos cientistas considerava as cianobactérias os ancestrais das plantas atuais. Porém, essas bactérias antigas também se revelaram muito adaptáveis, disseminando-se em qualquer nicho ambiental: água salgada, água doce, solo, até rocha bruta.
E, com a ajuda da Estirpe de Judas, ao que tudo indicava, o cérebro humano.
O brilho nos olhos da paciente levava a crer que as cianobactérias no cérebro deviam ter-se deslocado ao longo da bainha do nervo óptico até o olho, onde estavam agora se alojando.
Por quê?
Pela amostra, Lisa viu que um técnico havia realizado uma nova varredura microscópica da Estirpe de Judas. Curiosa, ela exibiu a nova imagem na tela. Mais uma vez, estava diante do verdadeiro monstro: o envoltório icosaédrico com os filamentos que brotavam como ramos de cada canto.
Ela se lembrou de suas palavras anteriores. Nenhum organismo é maligno simplesmente por ser maligno. Ele apenas procurava sobreviver, propagar-se, desenvolver-se.
O arquivo também possuía um índice de referências cruzadas com as fotos originais do vírus. Ela também as exibiu.
O velho e o novo. Lado a lado. Iguaizinhos.
Ela estendeu a mão para fechar o arquivo, mas seu dedo flutuou sobre o botão.
Não...
Sua mão começou a tremer.
É claro...
Um raio crepitou com um brilho intenso através das portas da sacada, acompanhado pelo estrondo imediato de um trovão que a fez ter um sobressalto. O navio inteiro estremeceu. As portas da sacada chacoalharam.
O raio caíra bem acima do navio, e talvez o tivesse atingido.
As luzes da cabine tremeluziram. Lisa olhou para cima no momento exato em que elas se apagaram. A escuridão tomou conta da cabine.
Os enfermeiros gritaram, queixando-se.
Lisa levantou-se.
Oh, meu Deus!
Então as luzes voltaram subitamente, com uma sobrecarga de tensão. O computador reprimiu uma queixa e deu um estalo alto, acompanhado de fumaça. O som da televisão no outro aposento ficou distorcido, e em seguida os diálogos do filme voltaram ao normal.
Lisa permaneceu onde estava, paralisada de choque.
Ela continuou a olhar para a paciente no leito. No momento da breve escuridão, Lisa fizera outra descoberta sobre ela. Ninguém jamais havia apagado as luzes ali? Ou aquele fenômeno era novo?
Não eram apenas os olhos da mulher que brilhavam.
Na escuridão, os membros e o rosto da mulher, que vestia apenas um avental fino, haviam brilhado com uma cor rósea suave, um brilho fosforescente que não era visível à luz intensa.
As cianobactérias não haviam se disseminado apenas para os olhos dela, e sim por toda a parte.
Lisa ficou tão estupefata que, por um longo momento, deixou de notar outro detalhe: os olhos da paciente estavam abertos, fixos nela.
Os lábios rachados moveram-se.
Lisa leu aqueles lábios, praticamente sem ouvir as palavras.
— Que... quem é você?
20:12h
Monk escutava o fone de ouvido do rádio enquanto subia as escadas, vindo dos conveses inferiores. Fora lá embaixo verificar o acesso à doca privada de Ryder Blunt, onde ele mantinha sua lancha. Ela estava desprotegida. Poucas pessoas sabiam da plataforma de lançamento privada.
— Eu tenho a chave eletrônica da porta da doca — disse Ryder. — Assim que estiver livre, irei para lá, encherei o tanque da lancha e a deixarei pronta para ser lançada ao mar. Mas você consegue libertar a dra. Cummings sozinho?
— Sim — disse Monk no bocal. — Quanto menos agitação, melhor.
— E você já preparou tudo?
— Sim, mamãe — suspirou Monk. — Estarei pronto em meia hora. Quando eu der o sinal, você sabe o que fazer.
— Recebido e entendido. Câmbio e desligo.
Monk subiu até o patamar seguinte da escada, foi até um armário com material de limpeza e pegou o cobertor, o travesseiro e as roupas que havia escondido ali dentro mais cedo.
Seu fone de ouvido zumbiu de novo.
— Monk?
— Lisa? — Ele consultou o relógio. Era cedo. Seu coração bateu com mais força. — O que há de errado?
— Nada. Pelo menos, não exatamente. Precisamos de uma mudança nos planos. Precisamos de espaço para mais uma pessoa.
— Para quem?
— Para a minha paciente. Ela despertou.
— Lisa...
— Nós não podemos deixá-la aqui — ela insistiu no ouvido dele. — Seja lá o que for que esteja acontecendo com ela, é fundamental para tudo o que está acontecendo. Não podemos correr o risco de a Guilda escapar com ela antes que possamos voltar.
Monk respirou com força pelo nariz, recalculando.
— Até que ponto ela é capaz de se mover?
— Ela está fraca, mas acho que é bastante capaz de se mover. Não posso avaliar mais com os enfermeiros no quarto ao lado. Estou no meu quarto, onde posso falar. Eu a deixei lá, fingindo que ainda está catatônica.
— E você tem certeza de que ela é importante?
— Sim, tenho.
Monk fez mais algumas perguntas, esclareceu mais alguns detalhes, revendo o plano de fuga. Lisa desligou para se aprontar.
— Ryder? — disse Monk.
— Eu ouvi — respondeu o bilionário australiano. — Meu rádio também estava ligado.
— Nós teremos de mudar o cronograma.
— Não brinque. Quando você estará aqui?
Monk tirou o dispositivo de segurança de sua arma.
— Já estou indo para aí.
20:16h
Lisa voltou para a enfermaria depois de vestir um suéter. Antes, ela se queixara aos enfermeiros de que estava com frio, uma simples desculpa para regressar brevemente aos seus aposentos e entrar em contato com Monk pelo rádio.
Quando ela entrou, Tweedledee e Tweedledum ainda estavam concentrados em seu filme. Estava havendo um tiroteio na televisão. A vida estava prestes a imitar a arte.
Se tudo corresse bem.
Lisa virou-se e dirigiu-se para o quarto, e em seguida deu um passo para trás, surpresa.
O dr. Devesh Patanjali estava junto ao leito, com as mãos atrás das costas. Adiante, Susan estava esparramada na cama, sob a tenda de isolamento, com os olhos fechados, respirando serenamente.
Não era para Devesh estar ali.
— Ah — disse ele sem se virar —, dra. Cummings, como está indo a nossa paciente?
20:17h
As portas do elevador se abriram com o som de uma campainha no nível da suíte presidencial. Monk, cansado e irritável, saiu a passos largos para o corredor, carregando o cobertor embrulhado e um travesseiro.
Ele seguiu na direção dos dois guardas postados junto às portas duplas.
Um deles estava sentado numa cadeira, e, empertigando-se, o outro se afastou de onde estivera encostado à parede.
— Vamos! — disse Monk energicamente ao microfone de seu rádio.
Era o sinal.
Um tiro abafado soou de trás da porta da suíte quando Ryder matou o homem de guarda lá dentro.
Sobressaltado, o guarda que estivera em pé junto à parede virou-se para a porta.
Monk partiu imediatamente para cima dele, movendo ambos os braços, com uma pistola em cada mão, uma enfiada na fronha e a outra embrulhada no cobertor. Ele empurrou o travesseiro contra as costas do homem e puxou o gatilho, acertando a coluna vertebral. Enquanto o guarda caía, ele disparou um segundo tiro na cabeça dele.
Antes mesmo de o corpo atingir o chão, Monk virou-se para o homem sentado, erguendo a pistola embrulhada no cobertor. Ele puxou o gatilho... duas vezes.
20:19h
Lisa entrou no quarto.
— Dr. Patanjali, estou contente por o senhor estar aqui — disse ela, reprimindo o rancor que veio com a mentira.
Ela precisava que Devesh saísse dali, pois dissera a Monk que apenas dois enfermeiros estariam no local.
Devesh virou-se para ela.
Lisa passou um pouco de cabelos soltos sobre a orelha, fingindo estar exausta, enquanto seu coração batia com força.
— Eu tinha vindo a fim de obter alguns resultados de um exame do líquido cefalorraquidiano de uma punção que fiz mais cedo, mas... — ela apontou para o computador — a sobrecarga de tensão danificou a CPU. Eu esperava rever os resultados antes de ir dormir.
— Por que a senhora não pediu a um dos homens para buscá-los no laboratório do dr. Pollum?
— Não tem ninguém lá. Eu esperava que o senhor pudesse agilizar as coisas.
Devesh suspirou.
— Sim, claro. Eu estava indo para o meu quarto me recolher. Vou telefonar e pedir a Pollum que lhe envie uma cópia impressa.
— Obrigada.
Devesh afastou-se, mas parou no limiar e voltou-se para ela. Lisa ficou tensa.
— A senhora estava muito bonita no coquetel. Verdadeiramente radiante.
Lisa manteve o rosto impassível por mera força de vontade.
— Ob... obrigada.
E então ele se foi.
Tremendo um pouco, ela correu até Susan e, inclinando-se, sussurrou no ouvido dela.
— Vou começar a desconectá-la de tudo isto. Vamos cair fora daqui.
Susan concordou com um aceno de cabeça. Seus lábios moveram-se, exalando um suave "obrigada".
Quando começou a remover o cateter intravenoso, Lisa notou as lágrimas rolando do canto externo dos olhos de Susan para o travesseiro. Mais cedo, Lisa calmamente explicara o destino do marido da mulher. Lisa lera o relatório da autópsia, uma cortesia de Devesh.
Lisa apertou um dos ombros da mulher.
Felizmente, Devesh não havia notado as suas lágrimas cintilantes.
20:25h
Monk apressou-se pelo lado de fora do convés de estibordo, curvado para se proteger da chuva fustigada pelo vento. Apenas algumas poças de luz derramavam-se para o convés às escuras. Nuvens negras moviam-se rapidamente e agitavam-se acima da rede gigante trançada de um lado ao outro do alto da ilha. Raios brilhavam como uma zona de guerra distante. O ribombar dos trovões era quase constante.
Depois de sua primeira conversa com Lisa, Monk havia examinado a parte adequada do convés e preparado tudo aquilo de que precisava. Porém, não tivera tempo de aprontar uma segunda eslinga. Ele simplesmente teria de puxar as mulheres para cima, uma de cada vez.
Para fazer aquilo rapidamente, ele precisava de mais músculos.
Ryder seguia atrás dele, usando andrajos do lugar como Monk.
O abastecimento do tanque da lancha do bilionário teria de esperar.
— Por aqui! — gritou Monk acima do banho de chuva e das rajadas de vento.
Uma espreguiçadeira passou deslizando por ele. Os ventos estavam aumentando de intensidade. Eles precisavam estar fora dali na próxima hora, para escapar do impacto mais forte do tufão que se aproximava.
Acima, o teto trançado da ilha sacudia e chacoalhava.
Monk chegou à seção do convés onde fizera uma improvisação com uma corda e uma eslinga de bombeiro, tiradas do equipamento de resgate de emergência do navio.
Monk apontou.
— Puxe isso para a amurada! — gritou enquanto se inclinava sobre a borda. Ele olhou para baixo, investigando. A curva do casco do navio tornava difícil ter certeza, mas dois níveis abaixo dele devia estar a sacada da cabine na qual Lisa vinha cuidando de sua paciente. Era o ponto de saída daquela operação.
Bem mais abaixo, a lagoa escura refletia as poucas luzes do navio, ondulando suavemente, abrigada da fúria do vento pelas altas paredes vulcânicas. Quando se virou para Ryder, Monk notou alguns brilhos passageiros na água. Não eram reflexos, e sim algo mais profundo. Azuis brilhantes e vermelhos profundos como os do fogo.
Que diabo?
Um raio crepitou acima, atingindo o teto em forma de rede, iluminando a lagoa. Monk abaixou-se para se proteger do estrondo. Onde o raio caiu, energias azuis cintilantes difundiram-se como estilhaços ao longo das escoras de aço da rede, produzindo momentâneas danças de fogo-de-santelmo. A estrutura inteira devia estar aterrada, funcionando como um imenso pára-raios.
Ryder juntou-se a ele na amurada. Ele estava com o rolo de corda num dos ombros e jogou a eslinga por sobre a amurada, baixando-a com a experiência de um estivador especializado. A eslinga atingiu o nível da sacada, oscilando ao vento que zunia.
— Eu vou descer — gritou Monk no ouvido dele. — Trancar a cabine e então voltar aqui para cima. Nós dois teremos de puxar as mulheres.
Ryder concordou com um movimento da cabeça. Ele já tinha ouvido o plano. Monk o repetira só para dar ao homem uma última oportunidade de se oferecer para descer no lugar dele.
Ryder não se ofereceu.
Homem esperto. Não era de admirar que fosse bilionário.
Monk segurou a corda, passou sobre a amurada, enganchou a perna e balançou na corda molhada. Controlando a descida com a mão artificial, escorregou rapidamente pela corda até seus pés tocarem a eslinga.
Ele olhou para a sacada aberta, oscilando ao vento. As cortinas estavam meio fechadas, mas a luz forte no interior revelava Lisa. Um homenzarrão a imprensava contra as portas da sacada, erguendo-a do chão, e apertava o pescoço dela com uma das mãos.
Oh, aquilo já estava indo bem.
20:32h
Lisa estava pendurada no braço de Tweedledee, cuja mão lhe apertava o pescoço. O nariz dele estava encostado no rosto dela, e saliva jorrava enquanto ele gritava.
— Que porra você estava fazendo com as linhas intravenosas, sua cadela?
A última palavra foi emitida em inglês com forte sotaque.
Lisa tirava todos os cateteres de Susan — vesical, intravenoso, a linha central —, preparando-a para partir o mais rápido possível. Infelizmente, o filme a que os enfermeiros assistiam terminara, e Dee tinha ido ao banheiro, passando próximo o bastante para perceber que havia algo errado.
Atrás do irmão, Dum checou a paciente. Ele virou-se e falou rapidamente em russo. Lisa não entendeu, mas era óbvio que alguma coisa estava extremamente errada.
Nada bom.
Ainda pressionada contra a porta da sacada, Lisa sentiu alguém bater de leve no vidro às suas costas.
Por favor, meu Deus, tomara que seja Monk.
Ela estendeu a mão para trás e conseguiu esticar o dedo indicador até o trinco da fechadura, erguendo-o.
A porta abriu-se atrás dela, levando-a consigo.
Surpreso e perdendo o equilíbrio por causa do movimento, Dee tropeçou para a frente e soltou-a. Ela tentou manter o equilíbrio, mas acabou caindo sentada com força.
Um braço irrompeu pela porta aberta da sacada, agarrou Dee pela gola de sua roupa protetora e puxou-o para fora. Ouviu-se um tiro abafado, seguido por um grito que se foi esvaindo.
Dee estava indo nadar.
Por outro lado, Dum estava recuando para junto do leito, tentando alcançar o coldre em seu ombro, ainda assustado e atônito demais para gritar. Lisa procurou sua arma, mas estava sentada nela.
Monk apareceu à entrada, iluminado por trás por um relâmpago, completamente encharcado. Sua pistola estava erguida. O tiro seria ouvido, mas não havia como evitar isso.
Então uma figura ergueu-se atrás de Dum, ajoelhando-se no leito, vacilante.
Susan.
A mulher golpeou com um bisturi, perfurando o pescoço do homem de um lado ao outro por trás. Esquecendo sua arma, o guarda segurou a garganta com ambas as mãos.
Monk precipitou-se para a frente, segurou o cinto do homem e puxou-o para fora.
— É hora de você averiguar o que seu irmão está fazendo. Dessa vez não houve sequer um grito.
Monk voltou, limpando as mãos.
— Então, quem está pronto para dar o fora?
Os momentos seguintes foram um grande tumulto.
Lisa correu até a porta da cabine e fechou o trinco de segurança, enquanto Monk ajudava a remover os últimos cateteres e fios de Susan — do eletrocardiógrafo, do eletroencefalógrafo e do Doppler pulsado —, libertando-a do equipamento médico.
Lisa tirou o suéter e ajudou Susan a vesti-lo, junto com um par extra de calças protetoras. Embora ela ficasse instável em pé, seus membros revelaram-se mais fortes do que Lisa esperava depois de cinco semanas de catatonia.
Talvez fosse a adrenalina, talvez alguma outra coisa.
De qualquer modo, logo eles estavam na sacada, expostos à chuva. Uma eslinga quicou na extremidade de uma corda. Monk pegou-a e olhou de relance para Susan, e a surpresa o fez parar por um instante.
— Lembre-se de me dizer por que a sua amiga está brilhando na escuridão. Afastando-se assustada, Susan tentou puxar um pouco mais o suéter sobre o braço. Lisa já havia demonstrado o efeito a Susan, desligando brevemente as luzes do quarto.
Lisa indicou a corda a Monk com um aceno.
— Conversaremos sobre isso mais tarde.
Monk franziu o cenho, mas subiu na corda, provando a força da parte superior de seu corpo e a preensão de sua mão artificial.
Lisa ajudou Susan a se acomodar na eslinga.
— Você consegue segurar-se bem? — perguntou à mulher.
— Terei que fazer isso — respondeu Susan, tremendo violentamente.
Depois de algumas manobras, Monk e Ryder começaram a puxá-la para cima, usando um poste do navio como suporte.
Lisa esperou, andando um pouco de um lado para outro.
O som alto de uma batida à porta chegou até ela, paralisando-a.
Viera da cabine.
Ela foi até o limiar, onde foi recebida por um grito irado.
Era o dr. Devesh Patanjali.
Ele devia ter tentando usar seu cartão-chave e descoberto que a porta estava trancada por dentro. Mais pancadas.
Lisa recuou, inclinou-se para fora por cima da amurada, e olhou para cima.
Os pés de Susan chutavam o ar. Ela estava sendo ajudada a subir na amurada.
Lisa sacou a pistola do cinto e gritou.
— Rápido! Alguém está vindo!
O vento e um trovão abafaram as palavras dela.
Um estalo acompanhado do som de estilhaços irrompeu da cabine. Eles estavam arrombando-a. Seguiu-se um tiro de rifle, alto como a explosão de um canhão, assustando-a.
Um grito ecoou até ela, vindo de cima.
Monk pelo menos ouvira o disparo.
A eslinga caiu no ombro dela, jogada, e não baixada, chocando-se com força contra ela. Lisa ignorou isso, correu para a frente, até a porta aberta da sacada, agarrou a cortina interna e fechou-a completamente. Ela também fechou a porta.
Deixe-os descobrir que o quarto está vazio.
O estratagema talvez não durasse muito tempo, mas poderia dar-lhe alguns segundos extras. Ela correu, segurou a eslinga e se contorceu para entrar nela. Uma súbita rajada de vento fez com que ela atingisse sua mão, arrancando-lhe a pistola.
A arma voou na escuridão.
Droga...
Desesperada, ela ajustou a eslinga, subiu na amurada da sacada e soltou o corpo.
Lisa sentiu a eslinga dar um solavanco sob seus braços enquanto os homens a içavam para cima.
Girou na direção da sacada no momento exato em que a cortina foi aberta. Um raio brilhou acima. Lisa viu o rosto de Devesh mudar diante da surpresa, sem compreender ao vê-la girar na direção dele.
Ele recuou.
Em seu lugar, Surina apareceu usando um roupão, com os longos cabelos negros soltos. Ela abriu a porta enquanto seu outro braço contorceu-se para trás e pegou a bengala de Devesh.
Lisa atingiu o fim do arco de seu giro. Ela chutou na direção da mulher, mas Monk e Ryder haviam-na puxado para cima, encurtando bastante a corda, de modo que a ponta de sua bota moveu-se no vazio.
A eslinga voltou a girar.
Surina saiu para a sacada, e seus cabelos agitaram-se num torvelinho furioso por causa do vento. Ela segurou a bengala de Devesh com ambas as mãos, girou-a e fez um movimento amplo como o de uma chicotada. Uma bainha de madeira branca envernizada voou para dentro da cabine, revelando toda a extensão da lâmina de aço oculta na bengala.
Surina correu até a amurada da sacada.
Raios iluminavam o céu, transformando a espada em fogo azul. Desarmada, Lisa girou de novo na direção da mulher, que aguardava com a espada.
20:46h
Monk não havia esperado. Ao ouvir a primeira descarga de rifle, soube que Lisa precisava de ajuda mais direta, por isso deixou o grandalhão australiano puxá-la sozinho.
Monk desceu numa corda. A outra ponta estava amarrada a uma bóia salva-vidas presa entre duas grades da amurada do navio. Sua mão artificial apertou a corda com a força de uma pinça de aço. Sua outra mão apontou a pistola.
Ele saltou longe o bastante para ver Lisa girar de novo na direção da mulher com a espada. Apontou a pistola e disparou.
Uma rajada de vento o fez perder a mira.
A bala arrancou um pedaço grosso da amurada de madeira da sacada.
Mas foi suficiente para repelir a espadachim, que recuou com uma suave guinada do corpo.
Ryder gritava enquanto puxava com força a corda de Lisa.
Ao mesmo tempo, com a força nascida da adrenalina e do terror, Lisa impulsionou o corpo para cima com o auxílio dos braços. Ela agora estava em pé, e não pendurada na eslinga, acima do espaço da sacada. Atingiu com força o casco e quicou.
Ryder içou-a a cerca de mais um metro.
Monk esvaziou o restante de seu pente de balas, mais três projéteis, desencorajando a aproximação de qualquer pessoa. Aquilo deveria manter qualquer um a distância.
Mas ele estava errado.
A espadachim reapareceu e saltou para cima da amurada, como uma ginasta numa barra, e em seguida deu um pulo para cima, com a espada apontada para o alto.
Lisa gritou.
20:47h
A lâmina passou deslizando pelo calcanhar de sua bota, cortou seu jeans e penetrou profundamente em sua panturrilha esquerda.
Em seguida, a espada caiu, sucumbindo à gravidade.
Lisa olhou por entre os pés. Surina caiu em pé nas tábuas da sacada e afastou-se habilmente. Ela nem sequer voltou a olhar para o alto.
Ryder içou Lisa ainda mais.
Para fora do alcance da mulher.
Ao ser puxada além da curva do casco, Lisa perdeu a visão da sacada. Abraçando a corda, ela tremia violentamente. Sangue escorria pela sua perna abaixo até a bota.
Ela avistou Monk num lado, subindo de novo na amurada.
Instantes depois, alguém segurou os ombros dela e puxou-a sobre a amurada. Ela caiu no convés, ainda tremendo. Ryder apareceu, desdobrando um lenço de cabeça que caíra em volta de seu pescoço.
— Isso vai doer — disse ele, mas sua voz soou muito distante.
Ele pegou o lenço, enrolou-o ao redor da panturrilha dela, que ardia de dor, e num movimento rápido puxou-o com força. A dor aumentou de intensidade e difundiu-se dentro dela, fazendo-a dar um suspiro abafado. Porém, o sofrimento pôs fim à ameaça de choque.
O som retornou do poço vazio no fundo do qual havia caído.
Ryder ajudou-a a ficar em pé.
— Nós temos que ir. Eles chegarão aqui em cima a qualquer momento. Ela concordou com a cabeça.
— Ótimo... ir... sim.
Não era Shakespeare, mas Ryder entendeu. Ele a apoiou com um dos ombros enquanto Monk ajudava Susan. Todos eles estavam encharcados. Eles seguiram na direção da popa do navio.
— Onde...? — indagou ela, mancando o mais rápido possível.
— Jamais chegaremos à minha lancha — respondeu Ryder. — Eles devem estar vigiando as escadas e os elevadores.
Para confirmar o que ele acabara de dizer, um alarme disparou, soando fundo no navio e depois explodindo para os conveses.
Monk apontou por cima da amurada e para baixo.
— Uma doca pública para escaleres — disse ele. — Há uma hora, quando verifiquei se havia guardas próximos à sua lancha particular, avistei uma das lanchas azuis dos piratas amarrada lá embaixo, não-tripulada e abandonada.
— A doca de escaleres fica muitos conveses abaixo.
Monk conduziu o grupo vacilante para a amurada no centro do navio. Ele se inclinou para fora.
— Não se seguirmos um caminho mais direto. Ele apontou para baixo.
Lisa esticou o pescoço por cima da amurada. Conseguiu distinguir apenas a extremidade saliente da doca para escaleres. Uma lancha com um motor fora da borda estava ancorada lá. Devia ter sido usada para transportar piratas entre sua aldeiazinha e o navio.
E parecia desprotegida.
— Nós vamos pular? — perguntou Susan, apavorada.
Monk concordou com a cabeça.
— Você sabe nadar?
Susan fez que sim com a cabeça.
— Eu sou bióloga marinha.
Lisa hesitou.
Eles estavam a uns 15 metros acima da água. Gritos ecoaram na direção da popa. Monk olhou de relance para a perna de Lisa e depois para o rosto dela.
Lisa concordou com a cabeça. Não havia escolha.
— Teremos que pular todos juntos — disse Monk. — Um grande barulho produzido pela nossa queda na água atrairá menos atenção do que quatro.
Eles subiram na amurada e equilibraram-se em cima dela. Monk inclinou-se o máximo para fora.
— Prontos?
Em resposta, todos acenaram afirmativamente com a cabeça.
O estômago de Lisa embrulhou, sua perna latejou. A dor a fez ver estrelas na água escura, brilhos fugazes de listras elétricas.
Monk fez a contagem regressiva, e todos eles pularam.
Agitando os braços em busca de equilíbrio, Lisa mergulhou em pé. Ela havia mergulhado do alto de penhascos no passado. No entanto, quando atingiu a água, foi como cair em terra compactada. O golpe causou um impacto em todo o seu corpo. Seus joelhos curvaram-se e em seguida o mar abriu caminho. Ela desceu rápida e profundamente na água morna. Após o frio da chuva e do vento, o lago dava a sensação de um agradável banho de banheira.
O impulso dela diminuiu, desacelerando ainda mais com os braços abertos.
Então ela começou a subir. Agitou os pés e os braços de volta à superfície, irrompendo com um ofego. Em toda parte, a chuva fustigava a água. Os ventos sopravam em rajadas contrárias.
Mantendo a cabeça acima da água sem se mover, Lisa avistou os outros três. Monk já havia se dirigido à lancha.
Ryder ajudava Susan. Ele olhou de relance para Lisa.
Ela fez sinal para que ele fosse para a lancha.
Suas botas e suas roupas encharcadas dificultavam as coisas, mas ela manteve o ritmo.
Monk chegou primeiro à lancha e impulsionou o corpo para dentro como uma foca que vai dar à praia. Ele permaneceu abaixado e esquadrinhou a doca de escaleres.
Não se ouviu nenhum grito.
Os alarmes ainda soavam no navio. Provavelmente, todo mundo ainda estava indo para o convés superior, onde os fugitivos tinham sido vistos pela última vez.
Ryder foi o próximo a chegar à lancha com Susan.
Enquanto Monk os ajudava a subir a bordo, Lisa aproximou-se. Ela estava quase chegando à lancha quando...
...alguma coisa atingiu sua perna, batendo com força contra ela.
Assustada, ela se debateu um pouco e em seguida esquadrinhou as águas escuras. Alguma coisa roçou em seu quadril, deixando um rendilhado cintilante de fogo verde na água, e depois desapareceu.
Mãos agarraram seus ombros.
Ela quase gritou, pois não sabia que havia chegado à lancha. Ryder puxou-a para cima e sobre a borda.
Lisa esparramou-se no chão. Ferramentas abandonadas pressionaram suas costas. Ela sentiu cheiro de óleo nos cabelos, mas não se mexeu. Respirava profundamente, a fim de reduzir os batimentos cardíacos.
O motor atrás dela de repente fez um zumbido aquoso. Ryder puxou os cabos de amarração. Monk afastou-se cautelosamente da doca com a lancha. A princípio, ele foi devagar, mantendo o ruído a um mínimo.
Lisa sentou-se e olhou para a doca.
Uma forma saiu do navio e pisou nas tábuas da doca de escaleres. Mesmo com o rosto do homem encoberto pelas sombras, Lisa imaginou suas tatuagens. Rakao. O líder maori não se deixara enganar. Ele sabia que havia apenas determinado número de saídas do navio.
— Vá! — gritou Lisa. — A pleno vapor, Monk!
O motor sacudiu, expeliu um pouco de água e depois rugiu. Enquanto Lisa olhava, Rakao ergueu o braço. Ela se lembrou de sua enorme pistola.
— Abaixem-se! — gritou ela. — Abaixem-se todos!
Tiros faiscaram. O lado de metal da lancha retiniu em conseqüência de um tiro que a atingira obliquamente. A velocidade da lancha aumentou, produzindo uma espessa esteira.
Rakao voltou a atirar, mas devia ter percebido que fora um desperdício. Ele já estava com um rádio junto aos lábios.
Monk afastou-se a toda a velocidade do navio de cruzeiro.
Lisa observou outra lancha aparecer ao redor da popa do navio, ainda a certa distância. Ela devia estar regressando da aldeia na praia e de repente aumentou a velocidade, seguindo rumo à doca de escaleres.
Rakao devia tê-la chamado, preparando-se para a perseguição.
Mas eles tinham uma boa dianteira.
Isto é, até o motor afogar com um ruído alto e um jorro oleoso de fumaça. A lancha estremeceu e sua velocidade foi diminuindo. Lisa sentou-se em algo mais alto, girando o corpo. Ela olhou para as ferramentas sobre as quais havia se esparramado. A parte de trás da toalha oleosa estava toda enrugada.
A lancha não estava esperando para transportar passageiros entre o navio e a aldeia: ela estava sendo consertada.
A fumaça expelida pelo motor piorou. O rugido dele transformou-se num ruído quase inaudível.
Ryder praguejou, passou por ela e abriu a portinhola do motor.
Mais fumaça foi expelida.
Ryder fechou a cara.
— Esta coisinha de lata teve uma pane.
No navio de cruzeiro, Rakao pulou da doca para a lancha, que partiu atrás deles.
— Não temos escolha — disse Monk, girando o volante enquanto eles avançavam com dificuldade, de maneira instável. O motor crepitou, perdendo um pouco mais de velocidade.
— Teremos que ir para a praia e torcer para que tudo dê certo. Lisa olhou para a praia e depois para a lancha de Rakao.
Ainda assim, seria por um triz.
Monk conseguiu obter o máximo de cavalos-vapor possível. A floresta escura surgiu diante deles. Pelo menos, ela parecia densa o bastante para ocultá-los. Meio minuto depois, o motor finalmente morreu por completo.
— Vamos ter que nadar até lá! — exclamou Ryder.
A praia não estava longe. Menos de cinqüenta metros.
— Abandonar o navio — concordou Monk. — E cair fora.
Mais uma vez, todos eles pularam no lago. Lisa chutou as botas fora e os seguiu. A lancha de Rakao rugia na direção deles.
Só depois de ter atingido a água, ela se lembrou de que alguma coisa se chocara contra ela antes de seu pânico momentâneo. Mas agora Rakao a assustava mais. Tendo mergulhado a vida inteira, Lisa já topara com a sua cota justa de tubarões curiosos.
Rakao era, sem dúvida, mais amedrontador.
Ela nadou rumo à praia.
Olhando para trás, notou clarões estranhos na água.
Esmeralda, rubi, safira.
Cintilações, como fogo debaixo dágua.
Elas se moviam através da água na direção do grupo deles.
Lisa subitamente soube o que havia se chocado contra ela, o que avançava para eles, um grupo de caçadores, comunicando-se com jatos de luz, um código Morse predatório.
— Vamos, nadem! — gritou ela.
Suas braçadas ficaram mais rápidas.
Eles não conseguiriam chegar à praia.
Ele segue o cheiro do rastro de sangue na água. Nadadeiras laterais ondulam e deslizam. Músculos bombeiam água através de seu manto e para fora de sua rígida estrutura traseira, semelhante a um funil, impulsionando seu volume de cerca de dois metros através da água. Ele aperta seus oito braços num ponto firme, uma luzidia seta musculosa. Seus dois tentáculos mais longos cintilam com um intenso brilho nas extremidades. Raios de luz tremeluzem em listras ao longo de seus flancos. Guiando o grupo.
Grandes olhos globulares interpretam as mensagens de seus irmãos.
Alguns se espalham por uma ampla área, outros descem para a profundeza.
O cheiro de sangue torna-se mais forte.
Lisa agitava os pés e dava braçadas com movimentos ordenados.
O pânico só a retardaria.
A praia estendia-se adiante, uma faixa de areia prateada entre a água negra e a selva escura. Era uma linha de chegada que ela pretendia cruzar.
A lancha de Rakao rugia atrás dela.
Não era com o pirata maori, porém, que ela apostava corrida. Raios de fogo aquático dispararam na direção dela.
Atraídos pelo corte em sua panturrilha.
Sangue.
Cerca de quatro metros adiante, Monk e Ryder saíram pesadamente da água, puxando Susan entre eles. Lisa agitou os pés com mais força.
— Monk!
Com um aperto final dos músculos, ele segue rumo à agitação na água. Estende seus braços num amplo movimento. Dois tentáculos mais longos se projetam, serpenteando através da água, formando bolhas com luzes amarelas, revestidos por ventosas farpadas com ganchos quitinosos.
21:05h
Monk ouviu Lisa gritar seu nome.
Ela nadava rumo à praia, parecendo desesperada.
Apenas cerca de três metros de distância.
Atrás dela, a lancha do pirata deslizava a todo vapor bem na direção do grupo deles. A chuva caía do céu aberto, criando pequenas ondulações no lago. Sob a superfície, clarões cintilantes de fogo, como balas traçantes na noite, dispararam na direção de Lisa.
Monk lembrou-se das histórias daquela lagoa.
Contadas por um nativo desdentado.
Demônios das profundezas.
Ele voltou a pular na água. A praia inclinava-se abruptamente. Após dois passos, a água batia em sua cintura.
— Lisa!
Ela olhou de relance para ele, os olhos se encontrando. Em seguida, ela parou com um safanão, agarrada.
Os olhos dela arregalaram-se.
— Vá...
Monk moveu-se na direção dela, com os braços estendidos.
— Me dê a mão!
Tarde demais.
Uma confusão de tentáculos explodiu da água, envolvendo-a. Com uma velocidade espantosa, Lisa foi girada e arrastada subitamente para baixo, submergindo por completo. O monstro surgiu brevemente à vista, reluzente e orlado com pequenas asas laterais, ondulando com estreitas faixas de lampejos elétricos. Um olho preto enorme virou-se para trás e então desapareceu.
Um braço com uma manga rompeu a superfície, já a cerca de dois metros de distância. Em seguida, com uma velocidade incrível, ele oscilou através da água, um peixe preso a uma linha que se movia com rapidez. O membro moveu-se bruscamente para a profundeza.
Lisa...
Monk deu outro passo, preparando-se para mergulhar.
Mas disparos de armas de fogo puseram fim ao seu choque. Balas atingiram a água, forçando-o a recuar para a areia.
— Aqui! — gritou Ryder.
Mais tiros levantaram montículos de areia. O fogo de rifles crepitou.
Ele não tinha opção.
Monk tropeçou para trás, foi agarrado por Ryder e arrastado para dentro da floresta escura.
Lisa...
Lisa lutou para prender a respiração, entrelaçada em braços que a apertavam. Ganchos gigantes penetravam em sua pele, tornados indolores pelo pânico.
Ela chutava e se contorcia.
Com os olhos abertos.
Jatos de luz deixavam um rastro atrás de si e projetavam-se na escuridão.
Era assim que ela morreria.
21:06h
Monk deixou-se ser arrastado mais para o interior da selva. Ele não tinha escolha. Não havia nada que pudesse fazer.
Por uma brecha na folhagem, ele olhou para trás, para a água negra.
A lancha dos piratas havia reduzido a velocidade perto da praia. Rifles apontavam na direção da praia, procurando. Mas Rakao estava em pé, apoiado na proa, uma silhueta escura com um longo arpão na mão.
Erguendo o braço, o perseguidor maori arremessou a longa extensão de aço dentro da lagoa.
Arcos de raios azuis crepitaram para fora no local em que o arpão acertara, brilhantes na escuridão, iluminando a noite e as profundezas da lagoa. As águas sibilaram com uma bolha de vapor em volta da haste do arpão.
O que ele estava fazendo?
Quase inconsciente, Lisa soltou o restante do ar preso. Um choque doloroso propagou-se pelo seu corpo. A lula estreitou ainda mais seu abraço, sentindo a mesma agonia, talvez até com mais intensidade.
Em seguida, seus braços soltaram-na com uma última contorção selvagem.
A água do mar ardia em seu nariz.
Com os olhos abertos, ela viu a criatura descer como um raio para as profundezas escuras, uma seta de fogo cor de esmeralda. Outras a seguiram.
A força ascensional a fez flutuar para cima.
Em seguida, mãos seguraram-na e puxaram-na pelos cabelos. Elas eram lentas demais.
Lisa asfixiou-se na água, com a boca abrindo e fechando como a de um peixe, enquanto a escuridão a tragava.
21:07h
Ao abrigo de uma rocha e de uma selva densa, Monk viu quando Lisa foi puxada da água pelos cabelos, débil, frouxa. A cabeça dela estendeu-se para trás num ângulo impossível.
Rakao jogou seu arpão para o lado.
— Algum tipo de aguilhão elétrico para gado — disse Ryder. — O choque removeu completamente a tinta daquelas coisas detestáveis.
Rakao inclinou Lisa sobre a amurada e empurrou-lhe as costas. Um jato de água do mar espirrou da boca e do nariz dela.
Um braço ergueu-se e golpeou-o.
Viva.
O pirata arrastou-a e colocou-a no chão. Ele olhou na direção da selva e depois mais alto, para os penhascos. Raios crepitaram num espetáculo devastador pelo teto da ilha. Ventos sopravam em rajadas junto com o açoite da chuva, que caía torrencialmente sobre a lagoa.
Rakao ergueu um braço e fez um movimento circular.
A lancha deu a volta, produzindo uma esteira, depois saiu a toda a velocidade, deixando atrás de si um alto arco de água. Eles estavam voltando para o navio.
E levavam Lisa consigo.
Mas pelo menos ela estava viva.
— Por que eles estão indo embora? — perguntou Susan num sussurro.
Monk olhou para ela. Na escuridão da floresta, o rosto e as mãos da mulher brilhavam com uma radiação discreta, quase imperceptível, mas presente. Era como o luar através de nuvens espessas.
— Parece que não existe exatamente algum lugar aonde possamos ir — disse Ryder mal-humorado. — Amanhã de manhã eles estarão nos perseguindo.
Monk apontou mais para o interior da floresta.
— Então é melhor irmos andando.
Com Susan ao seu lado, Monk dirigiu-se para a parte mais alta da floresta. Ele deu uma última olhada para a lagoa.
— O que eram aquelas coisas?
— Lulas predatórias — murmurou Susan com certa autoridade. — Algumas lulas bioluminescentes caçam em grupos. No Pacífico, lulas de Humboldt atacaram e mataram pessoas, deslocando-se em grandes grupos desde as profundezas. Mas também existem espécimes maiores, como a Taningia danae. Essa lagoa isolada deve ser o lar dessa subespécie, cujos grupos sobem à superfície a fim de se alimentar. A noite, quando sua comunicação e coordenação luminescentes funcionam melhor.
Monk lembrou-se de uma história de um dos piratas sobre a ilha, de feiticeiras e demônios na água. Ali devia estar a origem da história. Ele também se lembrou de outra história sobre a ilha.
Ele esticou o pescoço na direção dos penhascos irregulares, emoldurados contra o céu escuro. Além do ribombar dos trovões, tambores soavam.
Canibais.
— E agora? — perguntou Ryder.
Monk seguiu na frente.
— Está na hora de conhecermos os nossos vizinhos... ver o que estão cozinhando.
21:12h
Apoiada na doca de escaleres, Lisa pendia dos braços de um dos piratas. Estava fraca demais para lutar, cansada demais para se importar. Completamente encharcada, sangrando de uma grande quantidade de ferimentos, aguardava seu destino.
Rakao estava em meio a uma discussão com Devesh.
Em malaio.
E ela não entendia nada.
Lisa, porém, suspeitou de que o motivo da discussão era o fato de o pirata tatuado não ter perseguido Susan Tunis na selva. Lisa entendeu apenas uma palavra.
Kanibals.
Atrás dos homens, Surina, ainda usando o roupão, estava em pé à entrada do navio, abrigada da chuva, com os braços cruzados, as costas eretas, paciente. Seus olhos estavam fixos em Lisa, mas não eram frios, porque isso implicava alguma emoção. Os olhos dela eram um vazio total.
Finalmente, Devesh virou-se e apontou um dos braços para Lisa. Ele falou em inglês, como uma cortesia à sua prisioneira.
— Fuzile-a. Agora.
Lisa aprumou-se nos braços do pirata. Ela tossiu, e sua voz saiu num sussurro rouco.
Ela ofereceu ao cientista da Guilda a única coisa que podia oferecer.
Para salvar sua vida.
— Devesh — disse ela com firmeza. — A Estirpe de Judas. Eu sei o que o vírus está fazendo.
CAPÍTULO 11
Vidro estilhaçado
6 de julho, 13:55h
Istambul
O choque retardou o ritmo da cena a um intervalo de tempo parado, silencioso.
De uma janela do segundo andar de Hagia Sophia, Gray observou a parte posterior da cabeça de Balthazar Pinosso explodir num jorro de sangue e ossos. Seu corpo dobrara-se na cintura em decorrência do impacto. Seus braços estenderam-se completamente para o lado. O telefone celular, ao ouvido um momento antes, voou de seus dedos, atingiu o pavimento e deslizou para longe.
O corpo do homenzarrão caiu no chão em seguida
Vigor ofegou ao lado de Gray, interrompendo a cena.
— Oh, meu Deus... não...
Sons chegaram ruidosamente até eles: o eco do disparo, gritos vindos da praça. Gray recuou, respirando fundo para dar-se conta da implicação. Se Balthazar foi fuzilado...
— Nasser sabia sobre ele — disse Vigor, terminando seu próprio pensamento lento. Estupefato, o monsenhor se conteve no peitoril da janela. — Nasser sabia que Balthazar estava aqui. Os atiradores de tocaia do monstro o mataram.
Gray não se sentia melhor, atordoado pela incompreensão e pela culpa. Ele enviara o homem para fora, ao encontro de um pelotão de fuzilamento.
Os gritos lá fora foram piorando, propagando-se para o interior da igreja. Pessoas correram, a maioria fugindo para o abrigo mais próximo, o santuário de Hagia Sophia.
Minutos atrás, Gray e Vigor tinham subido para o segundo andar da igreja, onde havia menos movimento de turistas, mantendo-se ocultos. Antes de sair, Balthazar informara o curador do museu de que Gray e Vigor já haviam partido, negando a necessidade de uma ambulância. Eles tinham ido até ali em cima para se certificarem de que tudo correra bem.
— Isto aqui vai ficar apinhado de policiais — disse Gray. — Temos que nos esconder.
Vigor segurou na manga de Gray.
— Sua mãe e seu pai...
Ele sacudiu a cabeça, pois não tinha tempo para pensar naquilo. Nasser advertira contra qualquer estratagema. Porém, uma vez expresso em voz alta, Gray não conseguiu escapar ao terror. Sua respiração tornou-se mais pesada, e ele ficou tonto. Os pais de Gray também sofreriam por causa daquele erro.
Como Nasser soubera a respeito de Balthazar?
Vigor continuou a olhar pela janela. Os dedos do monsenhor apertaram os braços de Gray.
— Deus do céu... o que ela está fazendo agora?
Gray voltou toda a sua atenção para a praça aberta abaixo da fachada ocidental. Enquanto as pessoas fugiam da praça ou se agachavam de medo, apenas uma figura corria em linha reta em meio a toda a confusão. Ela mancava ligeiramente, poupando o lado esquerdo do corpo.
Seichan.
Por que ela estava vindo até ali?
Próximo da igreja, uma vibração de fagulhas cintilou junto aos calcanhares dela. Alguém estava atirando contra ela. Os homens de Nasser. Porém, a súbita aparição dela pegara de surpresa os atiradores de tocaia. Com ordens para impedir que Gray e seus companheiros saíssem da igreja, eles não haviam esperado alguém correndo em direção a ela.
Seichan avançou mais depressa, apostando corrida com a morte.
13:58h
Sem conseguir ver de onde partia o ataque, Seichan praguejou. Então Nasser mandara um ou dois atiradores de tocaia se posicionarem lá fora. Ela não conseguira distingui-los mais cedo. Por outro lado, os atiradores tiveram muito tempo para se esconder bem. Seichan não previra que havia um traidor no grupo. Balthazar passara toda a manhã em Hagia Sophia, preparando uma pequena cilada.
Ela arremeteu através das Portas Imperiais e abaixou-se de encontro à parede interna. Será que havia pistoleiros ali também?
Seichan esquadrinhou a imensa extensão da nave. Assustadas pelos tiros, as pessoas encolhiam-se de medo nos cantos ou moviam-se em ondas enlouquecidas de confusão e pânico. Ela precisava encontrar Gray e Vigor.
Sirenes soaram a distância.
Uma mão agarrou a blusa dela. Num reflexo, ela empurrou uma pistola entre as costelas de seu alvo. Ele, porém, não recuou.
— Seichan, o que aconteceu?
Era Gray, com o rosto tenso e pálido.
— Gray... temos que sair daqui agora. Onde está o monsenhor?
Ele apontou para o poço de uma escada próxima. Vigor mantinha-se meio oculto à entrada e observava a multidão. Seichan foi com Gray até ele.
O monsenhor olhava para trás, para a entrada em arcada, com os olhos carregados de dor.
— Nasser o matou com um tiro. Matou Balthazar.
— Não — disse Seichan, acabando com qualquer mal-entendido. — Eu é que o matei.
Vigor recuou um passo. Gray deu uma guinada.
— Ele estava trabalhando para Nasser — explicou Seichan.
A voz de Vigor ficou zangada.
— Como é possível...?
— Eu tenho fotos de dois anos atrás, de Nasser e Balthazar, nas quais o dinheiro mudava de mãos. — Ela olhou fixamente para Vigor. — Trabalhou com Nasser o tempo todo.
Seichan percebeu a descrença e endureceu a voz.
— Monsenhor, quem chamou a sua atenção para a inscrição na Torre dos Ventos?
Vigor olhou na direção das portas, na direção do homem morto, agora fora de vista.
— Antes de envolvermos vocês dois — insistiu Seichan —, Nasser e eu estávamos brincando de gato e rato através da Itália, procurando os primeiros fragmentos do enigma angélico. Ninguém deveria descobrir a minha marca invisível no Vaticano até eu telefonar para o senhor, alertá-lo para examinar o armário da torre com luz ultravioleta. O senhor acha que o seu amigo a encontrou por acaso?
— Ele disse... um dos seus alunos...
— Ele estava mentindo. Foi Nasser quem disse a ele. O sacana seguiu a mesma pista que eu. Ele usou Balthazar a fim de arregimentar o senhor para solucionar o enigma.
Vigor sentou-se na escada, cobrindo o rosto.
Seichan virou-se para Gray. Ele estava em pé a um passo de distância, com os olhos vidrados, reconfigurando todos os acontecimentos da manhã à luz daquela revelação. Ele devia ter percebido a atenção de Seichan.
— Então Nasser sabe que estávamos tentando traí-lo — afirmou Gray. — Ele sabia que tínhamos a primeira chave. Ele sabe de tudo.
— Não necessariamente. — Seichan puxou Vigor para cima pelo ombro e empurrou Gray na direção da igreja. — Foi por isso que tive que matá-lo. Eu não acho que Balthazar teve tempo de telefonar para Nasser depois que deixou vocês. Eu o matei antes que ele tivesse a oportunidade de se comunicar com Nasser e tornar as coisas piores.
— Piores? — Gray parou, recusando-se a se mexer, com os olhos furiosos. — Você poderia tê-lo capturado. Nós poderíamos tê-lo usado contra Nasser. Havia mil opções!
— Todas arriscadas demais! — Seichan aproximou-se, entrando no fogo. — Veja se isto entra nessa sua cabeça dura, Gray. O plano de Nasser, os nossos planos... todos eles estão interligados. É hora de esquecermos os rancores do passado. E temos que agir agora.
O rosto dele foi obscurecendo à medida que a raiva aumentava. Até mesmo seus olhos ficaram tempestuosos.
— Quando o miserável descobrir o que você fez... o que nós fizemos... você simplesmente vai fazer com que meus pais sejam mortos!
Ela interrompeu-o com um ressonante tapa no rosto, fazendo-o recuar um passo. Atônito, ele investiu contra ela. Seichan não resistiu. Ele segurou-a pela gola, com a outra mão fechada em punho.
Ela manteve a voz calma diante da fúria dele.
— Com aquele miserável morto, temos um curto período de confusão aqui. Nós devemos tirar proveito dele.
— Mas meus pais...
Ela manteve a voz calma.
— Gray, eles já estão mortos.
O punho fechado na blusa dela tremeu. O rosto dele contraiu-se intensamente, ficando vermelho e angustiado. Os olhos dele perscrutaram-na, pois ele precisava de alguém para culpar.
— E se eles não estiverem mortos — prosseguiu ela —, se Nasser estiver mantendo-os vivos como uma segurança extra, então só temos uma esperança nesse caso.
A mão de Gray soltou-se do pescoço dela, mas permaneceu fechada.
— Nós precisaremos de um grande trunfo — continuou ela. — Com o mesmo peso da vida dos seus pais.
Ela pôde ver a ira começando a diminuir nos olhos dele, a resistência extinguindo-se, as palavras sendo finalmente absorvidas.
— E a segunda chave apenas não bastaria.
Ela sacudiu a cabeça.
— Nós temos que ficar quietos. Mandar Vigor tirar a bateria do telefone celular para que ele não seja rastreado.
— Mas como Nasser vai nos encontrar?
— É hora de nós tirarmos o controle dele.
— Mas quando ele tentar ligar para nós...?
— Nasser ficará furioso. Talvez ele faça mal a um dos seus pais, ou a ambos, ou até mate um deles. Mas, até nos encontrar, ele manterá um deles vivo. Ele não é tolo. E essa é a nossa única esperança.
O telefone de Vigor começou a tocar. Todos ficaram paralisados por um instante. Então Vigor tirou-o do bolso. Ele olhou para o identificador de chamadas, engoliu em seco e passou o aparelho para Gray, que o pegou.
— Nasser — confirmou ele.
— Fala-se do diabo e ele aparece — sussurrou Seichan. — Um dos atiradores de tocaia deve ter ligado para ele, a fim de receber mais instruções. Provavelmente, esse é o único motivo por que eles ainda não tomaram o lugar de assalto. A morte de Balthazar pegou-os desprevenidos. Essa é a única oportunidade que nós temos.
Gray baixou os olhos para o telefone.
Seichan esperou.
Até que ponto esse homem era forte?
14:04h
Os dedos de Gray recusavam-se a se mexer, apertados em torno do telefone.
O aparelho vibrou e voltou a tocar.
Ele quase pôde sentir a fúria emanando dele, uma raiva pronta para ser desencadeada contra sua mãe e seu pai. Ele queria desesperadamente atender: gritar, implorar, praguejar, negociar.
Porém, não tinha nenhum trunfo.
Não ainda.
— Nasser ainda deve estar em pleno vôo — Gray finalmente murmurou olhando para o telefone.
— O avião deve aterrissar daqui a cinco horas — concordou Seichan.
Gray deixou uma frieza percorrê-lo, mas seus dedos apertaram o telefone com mais força.
— A bordo do avião, ele hesitará em tomar quaisquer decisões importantes. Ele vai esperar até o avião pousar antes de fazer uma avaliação definitiva.
— E se até então ele não tiver recebido notícias suas...
Gray não conseguiu dizer as palavras. Ele apenas concordou com um aceno de cabeça. Nasser mataria seus pais. Ele não esperaria mais tempo. Puniria os pais de Gray e recorreria a uma nova estratégia.
Cinco horas.
— Nós precisaremos de mais do que a segunda chave que encontramos aqui — disse ele. — Mais, até, do que da terceira chave.
Seichan concordou com a cabeça.
Gray ergueu o olhar para Seichan.
— Precisaremos ter solucionado o enigma do obelisco. Precisaremos do mapa de Marco.
Seichan simplesmente o fitava, esperando.
Gray sabia o que tinha de fazer. Ele virou o telefone. Com dedos dormentes que não cooperavam, mexeu na bateria na parte de trás.
Vigor aproximou-se e cobriu os dedos de Gray com a palma de sua mão.
— Você tem certeza, Gray?
Ele ergueu os olhos.
— Não... não tenho certeza. Não tenho certeza de nada. — Ele soltou as mãos da do monsenhor e tirou a bateria do telefone, interrompendo o último toque no meio. — Mas isso não significa que eu não vou agir.
Gray virou-se para Seichan.
— E agora?
— Você acabou de lançar o desafio. Nasser vai telefonar para os seus capangas. Nós temos, talvez, um minuto ou dois. — Ela apontou para as profundezas da igreja. — Por aqui. Kowalski arrumou um carro. Ele vai nos encontrar na saída leste.
Ela os conduziu nave abaixo. Pessoas corriam de um lado para outro, inseguras, e vozes ecoavam. Sirenes aproximaram-se da localização deles. Seichan tirou alguma coisa do bolso.
— Nasser também deve ter atiradores de tocaia nessa saída — disse Gray, andando a passos largos até ela.
Seichan estendeu a palma da mão.
— Granada de choque. Uma bomba luminosa. Vamos detoná-la no centro. Quando todo mundo estiver se precipitando pelas saídas... nós também sairemos.
Gray franziu o cenho.
Vigor expressou sua preocupação quando eles contornaram uma multidão de estudantes, todos com os olhos arregalados e com medo, reunidos num grupo.
— Se os atiradores de tocaia virem um de nós, eles abrirão fogo contra a multidão.
— Não tem outro jeito. — Seichan apertou o passo. — Temos que correr o risco. Os homens de Nasser talvez já estejam vindo...
Um tiro soou alto na igreja.
Gray sentiu alguma coisa passar zumbindo por sua orelha. Um fragmento do mosaico na parede explodiu numa chuva dourada.
A multidão entrou em pânico, fugindo em todas as direções.
Vigor levou um empurrão, e caiu apoiado num dos joelhos. Gray puxou-o para cima quando um segundo tiro produziu fagulhas numa coluna de mármore. A detonação ecoou.
Permanecendo abaixado, o trio fugiu para o lado e seguiu ao longo da extensão da nave. Quando chegaram ao centro, Seichan preparou-se para puxar o pino da granada.
Gray segurou a mão dela, contendo-a.
— É a única maneira — disse ela. — Pode haver mais atiradores à nossa frente. Precisaremos passar por eles para chegarmos à saída.
E se formos vistos no meio da multidão, pensou ele, quantas pessoas inocentes serão mortas?
Ele apontou.
— Existe outra maneira.
Ainda com a mão segurando a dela, ele os conduziu para o lado sul, na direção da parede com andaime que havia escalado antes.
— Vamos, subam! — disse ele.
Contudo, restava um obstáculo.
O guarda junto ao andaime não havia fugido de seu posto. Permanecia agachado atrás de uma barreira de madeira, com o rifle apontado, pronto para atirar.
Gray pegou a granada dos dedos de Seichan, puxou o pino e lançou-a atrás da barreira.
— Feche os olhos! — ele gritou para Vigor, puxando o monsenhor para baixo. — Tape os ouvidos.
Seichan agachou-se, os braços em torno da cabeça.
A explosão deu a sensação de um chute no estômago. Um estrondo sônico aprisionado em pedra. Um clarão ardeu através das pálpebras de Gray, mesmo com a cabeça virada.
Então acabou.
Gray puxou Vigor para cima. Gritos ecoaram, soando abafados através do som residual em seus ouvidos. Ele correu em direção ao enorme andaime. As multidões se dividiram, fugindo rumo às saídas leste e oeste.
Mas eles não as acompanhariam.
O guarda estava caído de costas junto ao andaime, aturdido, gemendo.
Ele teria uma terrível dor de cabeça, mas viveria.
Gray pegou o rifle do guarda e fez sinal para que Seichan e Vigor subissem a escada do andaime. Eles tinham de ser rápidos. A fuga dos turistas retardaria os atiradores, mas não por muito tempo.
Ele subiu depois de Seichan e de Vigor.
— Aonde estamos indo? — perguntou Seichan. — Seremos alvos fáceis aqui em cima!
— Continuem! — instou Gray. — Fujam lá para cima!
Eles subiram, dando uma porção de voltas, pulando os degraus.
Estavam já a meio caminho quando uma rajada de tiros de um rifle automático soou das escoras, disparados a esmo, mas eficazes o bastante para expulsá-los da escada externa para o coração do andaime. Eles correram ao longo da plataforma de tábuas daquele nível.
Gray seguia adiante dos outros.
— Por aqui!
Meio agachado, ele correu rumo à parede mais próxima.
Eles estavam no nível em que a cúpula assentava sobre a igreja. Uma fileira de janelas em arco — as mesmas janelas que haviam deixado tanto Gray quanto Marco maravilhados — circundava a base da cúpula.
Gray ergueu seu rifle e disparou contra a janela que ficava no fim daquele nível. O vidro estilhaçou-se. Ele não diminuiu o ritmo. Chegou à janela e usou a coronha do rifle para remover mais da moldura da janela.
— Vamos, saiam! — gritou para Seichan e Vigor.
Passaram apressadamente por ele enquanto mais tiros eram disparados atrás deles, ecoando das barras de aço e danificando a madeira.
Gray os seguiu, empoleirado num peitoril em forma de círculo. O sol da tarde brilhava intensamente.
Istambul estendia-se abaixo deles em toda a sua confusa beleza, com sua mistura caótica do antigo com o moderno. O mar de Mármara resplandecia com um azul-safira. Mais longe, a extensão suspensa da Ponte do Bósforo era visível, transpondo o estreito que conduzia ao mar Negro.
Não foi aquela obra de engenharia, porém, que prendeu a atenção de Gray.
Ele apontou para a fachada sul da igreja, para onde o andaime externo se unia àquele lado de Hagia Sophia que estava em reforma.
— Vamos para lá!
Obedecendo, Vigor seguiu na frente contornando a cúpula, andando de lado ao longo do peitoril estreito. Assim que ficou no nível do andaime, Gray pulou do peitoril para o teto mais baixo inclinado. Escorregou de costas até o andaime, segurando seu rifle no alto.
Ele se chocou com as escoras, dando meia-volta. Seichan já se aproximava, mantendo-se em pé, meio correndo, meio esquiando, indiferente ao perigo. Vigor foi mais cauteloso: desceu de costas, movendo-se depressa, aos trancos e barrancos.
Seichan parou em um ponto estável, com os braços estendidos para segurar um suporte.
O telefone celular dela estava à vista, e ela gritava nele.
Gray segurou Vigor e ajudou o monsenhor a passar sob o balaústre para a escada do andaime. Eles fugiram escada abaixo. Por sorte, não havia nenhum guarda naquele lado. A agitação devia tê-lo afastado dali.
Chegando ao chão, Seichan seguiu na frente por uma pequena área verde para uma rua lateral. Um táxi amarelo derrapou na suspensão dianteira na esquina afastada, fazendo os pneus cantarem, e avançou a toda a velocidade na direção deles. Seichan recuou, com os olhos escancarados de confusão.
O táxi surrado bateu de raspão no meio-fio no último instante e freou, parando com um guincho.
O motorista inclinou-se para as janelas abertas dos bancos de passageiros.
— Que diabo vocês estão esperando? Vamos, entrem! Kowalski.
Gray embarcou na frente; Seichan e Vigor, atrás. As portas se fecharam com um estrondo.
Kowalski arrancou, levantando fumaça dos pneus e saindo a grande velocidade.
Seichan lutou contra a aceleração o suficiente para inclinar-se para a frente.
— Este não é o carro que eu deixei com você!
— Aquela merda japonesa?! Este é um Peugeot 405 Mi 16, do início da década de 1990, maravilhoso para dirigir em alta velocidade.
Para provar isso, Kowalski mudou as rotações por minuto do motor, reduziu a marcha para fazer a curva seguinte, deu uma guinada no volante, jogando-os todos para a esquerda, depois pisou fundo no acelerador e disparou pela curva como um foguete.
Seichan voltou a aprumar-se, com o rosto vermelho.
— Onde...?
Sirenes irromperam atrás deles, dobrando a mesma esquina.
— Você o roubou — disse Gray.
Inclinando-se para a frente, com o nariz quase encostando no volante, Kowalski deu de ombros.
— Você diz roubo de carro. Eu digo empréstimo.
Gray virou-se. O carro resplandecente da polícia desaparecia na distância, superado pelo motor deles.
Kowalski dobrou a esquina seguinte em grande velocidade, jogando-os todos na outra direção, enumerando as características do carro.
— Ele tem uma relação perfeita entre peso e potência, a direção hidráulica aumenta a velocidades mais altas... Ah, sim! E tem teto solar. — Ele ergueu a mão da alavanca de câmbio para apontar para cima. — Legal, né?
Gray recostou-se.
Kowalski escapou da polícia em mais duas curvas. Um minuto mais tarde, eles estavam perdendo tempo no trânsito intenso que saía do bairro antigo de Istambul, perdidos num mar de táxis.
Gray afinal se acalmou o bastante para se virar para Seichan.
— Cinco horas — disse ele. — Precisamos chegar a Ormuz.
— A ilha de Ormuz — detalhou Vigor. — Na boca do golfo Pérsico.
Seichan mantinha uma das mãos contra o lado do corpo. O esforço devia estar exigindo um alto tributo dela. Ela estava pálida, mas concordou com a cabeça.
— Eu conheço o lugar. Muitos contrabandistas em geral e contrabandistas de armas em particular usam a ilha, atravessando de Omã para o Irã. Não deve ser um problema.
— Quanto tempo?
— Três horas, de jato particular e hidroavião. Eu conheço um homem.
Gray consultou o relógio. Isso só lhes deixava duas horas para encontrar a última chave e usá-la junto com as outras para decifrar o enigma do obelisco. Seu coração começou a bater com mais força de novo. A excitação dera origem ao receio pela vida de seus pais. Mas agora...
Ele estendeu uma das mãos para Seichan.
— Eu preciso do seu celular.
— Para telefonar para o Comando da Sigma?
— Eu tenho que colocá-los a par do que aconteceu.
Gray interpretou a expressão dela. Ela sabia que ele estava omitindo o verdadeiro motivo. Ainda assim, entregou-lhe o telefone.
Ele reclinou-se. Em poucos instantes, o Diretor Crowe estava na linha. Ele colocou Painter a par de todos os acontecimentos recentes, desde a descoberta da segunda chave até a fuga deles.
— Então era o Vaticano que havia sido infiltrado por um espião da Guilda — disse Painter, suas palavras aumentando e diminuindo um pouco de intensidade. — Mas, Gray, não acho que possa fazer muito por vocês na ilha, pois é território iraniano. Especialmente num período de tempo tão curto. Não sem alertar agências de inteligência em todo o Oriente Médio.
— Eu não quero que o senhor intervenha — disse Gray. — Apenas... por favor... meus pais...
— Eu sei, Gray... Eu entendi. Nós os encontraremos.
Apesar da promessa, Gray percebeu a hesitação na voz do diretor, as palavras não-ditas.
Se os seus pais ainda estiverem vivos.
8:02h
Arlington, Virgínia
Eles iam mudar de esconderijo outra vez.
Harriet equilibrava um copo de água contra os lábios do marido. Usando calças e blusão de moletom, ele estava amarrado a uma cadeira.
— Jack, você precisa beber. Engula.
Ele resistiu.
— Enfie esse comprimido nele goela abaixo — gritou a mulher —, ou vou empurrá-lo pelo rabo dele!
As mãos de Harriet tremeram.
— Por favor, Jack, beba.
Annishen estava perdendo a paciência. A mulher, vestida de couro preto, havia recebido um telefonema cinco minutos atrás e chamado os outros guardas, até mesmo os que estavam na rua. Harriet havia sido arrastada da antiga câmara frigorífica, na qual ficara trancada a noite toda. O lugar era assustador. Uma única lâmpada nua brilhava sobre uma fileira dupla de ganchos de carne, pendurados ao longo de trilhos no teto. Manchas de sangue fresco haviam deixado vestígios no chão, depois de terem sido lavadas de forma negligente na direção do ralo no centro da câmara frigorífica. Então veio o telefonema.
Harriet havia sido arrastada para fora para cuidar do marido. Jack fora mantido separado dela. Eles não a deixaram ficar com ele. Passara a noite inteira temendo pela vida dele. Ele mal estivera consciente depois de ter sido atingido pela Taser no quarto de hotel. Ela ficou horrorizada ao encontrá-lo amarrado na cadeira e amordaçado, mas afora isso ele parecia ileso.
Ele se debateu contra as cordas que o prendiam quando voltou a vê-la. Mas ele na verdade não a reconheceu, não inteiramente. Ele permanecia num estado de dissociação, causado por todo o estresse, pela quase eletrocussão e por ter despertado amarrado e amordaçado.
— Esqueça — disse Annishen finalmente, segurando o ombro de Harriet. — Os comprimidos que a senhora deu a ele antes não surtiram efeito algum.
— Ele já estava agitado — disse ela, implorando. — Leva tempo... e regularidade da dosagem. Ele precisa desse comprimido.
Annishen acenou para ela.
— Mais uma tentativa.
Harriet inclinou-se em direção ao rosto do marido, segurando a cabeça dele com uma das mãos e o copo na outra. Ele deu um solavanco para trás, mas ela segurou-o com força.
— Jack, eu te amo. Por favor, beba. Por mim.
Ela gotejou água sobre a boca dele, e seus lábios finalmente se afastaram, um reflexo animal. Ele devia estar com sede, e por fim bebeu, engolindo com sofreguidão a água oferecida, que pareceu acalmá-lo. Ele arqueou nas cordas que o amarravam.
Harriet suspirou de alívio.
— Ele tomou? — indagou Annishen.
— O remédio deverá acalmá-lo em cerca de uma hora.
— Nós não temos uma hora.
— Eu compreendo... mas...
Harriet sabia que alguém devia estar procurando por eles. Quanto mais tempo ficassem num lugar, maior a probabilidade de que pudessem ser rastreados. Quanto mais eles se movessem, mais a trilha esfriaria.
— Levantem-no! — disse Annishen.
A mulher segurou Harriet pela parte de trás da gola da blusa e a pôs em pé. Ela era forte, e empurrou Harriet para a saída dos fundos. Os capangas dela desamarraram Jack. O marido de Harriet foi erguido entre os dois homens armênios, grandes como gorilas, com sobrancelhas espessas. Um deles tinha uma pistola num bolso da jaqueta, pressionada nas costas do prisioneiro.
Annishen segurou o cotovelo de Harriet.
Jack gritou, debatendo-se, quando eles começaram a fazê-lo andar.
— Nããão!
— Talvez a gente tenha que dar mais um choque nele — disse o guarda com um forte sotaque.
— Por favor, não façam isso — implorou Harriet. — Eu posso mantê-lo calmo.
O guarda ignorou-a.
Annishen parecia estar pesando essa opção.
— É dia claro — disse Harriet. — Se vocês o carregarem inconsciente para fora...
— Há tavernas na rua — disse um dos guardas. — Eu derramo vodca na camisa dele, e ninguém vai pensar duas vezes.
Annishen irritou-se com a idéia. Harriet imaginou que fosse principalmente pelo fato de a idéia não ser dela própria. Ela empurrou Harriet na direção de Jack.
— Mantenha-o calmo, ou vou usar a Taser nele até ele virar um nenezinho babão.
Harriet correu para o lado do marido. Ela tomou o lugar de um dos guardas, passando um dos braços em torno da cintura de Jack. Com a outra mão, esfregou o peito dele.
— Está tudo bem, Jack. Está tudo bem. Nós temos que ir.
Ele olhou com desconfiança para ela, mas o aspecto zangado em seus olhos e lábios suavizou-se.
— Eu quero... ir para casa.
— É para lá que estamos indo... Agora vamos, não crie confusão.
Jack permitiu que eles o levassem até a saída dos fundos, para um beco estreito, cuja largura mal era suficiente para a lata de lixo transbordante. A luz do sol feriu os olhos dela.
Dali eles foram conduzidos para a rua.
Tinham estado num açougue lacrado com tábuas, um de uma série de estabelecimentos comerciais fechados naquele quarteirão. Harriet olhou ao redor à procura de pontos de referência. Eles estavam em algum lugar em Arlington. Harriet sabia que eles haviam cruzado o Potomac depois de terem sido seqüestrados.
Mas onde?
Um furgão preto Dodge estava estacionado a meio quarteirão de distância.
O trânsito da manhã já estava se intensificando. Alguns homens e mulheres sem-teto estavam reunidos num nicho de uma lavanderia automática. Um carrinho de supermercado estava parado perto deles, repleto de sacolas de plástico cheias.
Annishen ignorou os sem-teto e conduziu o grupo para o furgão. Ela destrancou-o com o controle remoto, e a porta da parte traseira abriu-se sozinha.
Jack caminhava num atordoamento apático, mal notando o ambiente ao seu redor.
Harriet esperou até que eles estivessem próximos dos homens reunidos em volta do carrinho de supermercado. Sua mão direita ainda estava pousada na barriga de Jack.
Sinto muito.
Ela apertou a pele dele por cima da camisa e torceu-a.
Jack empertigou-se com um safanão, saindo de sua passividade.
— Nããão!
Ele resistiu ao guarda.
— Eu não conheço vocês! — gritou ele. — Afastem-se de mim!
Harriet deu-lhe um puxão.
— Jack... Jack... Jack. Acalme-se.
Ele a golpeou, atingindo-a com força no ombro.
— Ei! — gritou um dos sem-teto, um homem esquelético, com uma barba áspera. Ele segurava uma garrafa, protegida num saco de papel. — O que é que vocês estão fazendo com esse cara?
Alguns rostos dentro da lavanderia ergueram-se a fim de olhar pelas janelas cheias de listras formadas pelo vapor.
Annishen voltou na direção de Harriet. Ela exibia um sorriso discreto e olhava diretamente para Harriet. Trazia uma das mãos no bolso de seu suéter leve com capuz, numa óbvia ameaça.
Harriet esfregou a barriga de Jack e olhou para o estranho de barba.
— Ele é meu marido. Ele sofre do mal de Alzheimer. Nós estamos... nós estamos levando-o ao hospital.
Suas palavras amenizaram o semblante desconfiado do homem. Ele acenou com a cabeça.
— Sinto muito em saber disso, minha senhora.
— Obrigada.
Harriet conduziu Jack para dentro do furgão. Logo eles estavam acomodados, e as portas foram fechadas. Annishen estava sentada no banco de passageiros dianteiro. Quando eles se afastaram, ela virou-se para Harriet.
— É melhor que esses comprimidos surtam efeito — disse ela. — Ou da próxima vez vamos deixá-lo pendurado num daqueles ganchos de açougue.
Harriet concordou com a cabeça.
Annishen virou-se para a frente.
Um dos homens estendeu a mão do assento traseiro e puxou um capuz preto sobre a cabeça dela. Harriet ouviu um gemido de protesto de Jack quando fizeram o mesmo com ele. Ela estendeu uma das mãos e apertou a mão do marido. Os dedos dele apertaram os dela, ainda que apenas num reflexo de amor.
Sinto muito, Jack...
A outra mão de Harriet deslizou para dentro do bolso de seu suéter. As pontas de seus dedos tocaram a pilha de comprimidos — os comprimidos que ela apenas fingira dar ao marido. Antes e agora. Ela precisava manter Jack agitado, confuso o bastante para exprimir suas emoções sem estar consciente disso.
Para ser visto... para ser lembrado.
Ela fechou os olhos, desesperando-se.
Perdoe-me, Senhor.
CAPÍTULO 12
De um mapa proibido
6 de julho, 16:44h
Estreito de Ormuz
O hidroavião russo, um Beriev 103, seguiu pela costa depois de decolar do Aeroporto Internacional da Ilha de Qeshm e sobrevoou as águas verde-azuladas do estreito de Ormuz.
Gray ficou impressionado com o curto tempo gasto com os trâmites burocráticos no aeroporto. O avião que eles haviam tomado em Istambul aterrissara apenas dez minutos atrás. O avião anfíbio os esperava: abastecido, com o motor aquecido, as hélices duplas girando lentamente. Com três conjuntos de assentos emparelhados, dispostos um atrás do outro, a aeronave acomodava apenas seis pessoas, incluindo o piloto.
Mas era rápida.
A travessia marítima até a ilha de Ormuz não levaria mais de vinte minutos. Eles tinham viajado depressa. No entanto, teriam apenas duas horas para encontrar a última chave e usá-la junto com as outras a fim de decifrar a escrita angélica no obelisco.
Gray usara o tempo a bordo do jato particular, providenciado por meio das relações de Seichan no mercado negro, para estudar o complicado código do obelisco. Mesmo num vôo curto como aquele, cada minuto contava. Sentado so¬zinho na fileira de trás, ele pegou seu bloco de anotações de novo, rabiscado com apontamentos e possibilidades. Ele já havia tentado converter todos os símbolos do obelisco em letras, como Vigor fizera com a escrita angélica no Vaticano, que revelou a palavra HAGIA. Porém, não fizera nenhum progresso efetivo.
Mesmo com a ajuda de Vigor.
No jato, os dois haviam se debruçado sobre o criptograma. Vigor era melhor em línguas antigas. Mas o esforço foi inútil. A decodificação se tornava particularmente difícil porque eles não sabiam qual das quatro superfícies do obelisco era o ponto de partida, e em que direção a inscrição deveria ser lida, se no sentido horário ou anti-horário.
Isso criava oito possibilidades.
Vigor por fim esfregara os olhos, admitindo a derrota. — Sem a terceira chave, jamais solucionaremos isso.
Gray recusava-se a acreditar. Os dois haviam até se envolvido numa breve discussão. Eles decidiram mutuamente fazer uma pausa, a fim de parar de quebrar a cabeça com o enigma. Gray sabia que grande parte da rudeza de seu temperamento estava relacionada com o nó em seu estômago.
Mesmo agora ele sentia vontade de vomitar. Cada vez que fechava os olhos, imaginava o rosto de sua mãe, via a culpa nos olhos de seu pai.
Por isso Gray parou de fechar os olhos e continuou a trabalhar.
Era tudo o que podia fazer.
Ele voltou a olhar atentamente para uma das páginas de substituição de letras.
Mais sete possibilidades cobriam as páginas seguintes.
Qual delas estava certa? Por onde começar?
Adiante, um ronco alto chamou sua atenção. Kowalski já caíra no sono. Provavelmente, antes mesmo de as rodas se erguerem da pista de decolagem.
Vigor ocupava o assento ao lado, examinando com atenção o diário de seda outra vez. Sem dúvida, era um beco sem saída. O monsenhor olhou de cara feia na direção do ronco de Kowalski e desafivelou seu cinto de segurança. Ele se moveu suavemente para juntar-se a Gray e desabou no assento ao lado, com o manuscrito nas mãos.
Houve um momento de silêncio embaraçoso.
Gray fechou seu bloco de anotações.
— Estou de volta... ao ponto anterior...
— Eu sei. — Vigor estendeu a mão e bateu de leve na de Gray. — Todos nós estamos preocupados. Mas eu queria lhe mostrar uma coisa. Saber sua opinião.
Gray empertigou-se.
— Claro.
— Eu sei que você quer solucionar o código do obelisco. Mas, como estamos prestes a pousar, talvez agora seja um bom momento de imaginarmos onde na ilha de Ormuz a terceira chave poderia estar.
— Pensei que já soubéssemos onde procurar — disse Gray.
Incapaz de resistir, ele tornou a abrir o bloco de anotações e bateu de leve no símbolo angélico encontrado no verso do terceiro paitzu de ouro.
Eles o haviam comparado com um mapa da ilha e descoberto que o círculo negro marcava o local das ruínas de um antigo castelo português, construído cerca de um século antes de as chaves serem ocultas. Em seu apogeu, ele fora uma importante fortaleza. Construído num istmo e separado por um fosso, dava vista para a cidade de Ormuz e para os melhores portos de ancoragem. Para os místicos do Vaticano à procura de uma chave oculta pelos séculos afora, o castelo teria parecido um bom lugar.
Eles estavam seguindo agora para as ruínas dele.
Vigor concordou com a cabeça.
— Sim, o castelo português. Mas o que eu quis dizer foi por que vamos procurar lá. Se soubéssemos isso, poderíamos imaginar o que procurar dentro das ruínas do castelo.
— Tudo bem, então por onde começamos?
Vigor apontou através da janela de Gray. A ilha podia ser vista adiante.
— Ormuz era um importante porto comercial, cujas principais atividades eram o comércio de jóias, de especiarias e de escravos. Era tão importante que os portugueses o invadiram no século XVI e construíram seu castelo. Mas, na época de Marco, ele também era importante o suficiente para que Kublai Khan mandasse uma moça de sua família para cá a fim de se casar.
— Kokejin, a Princesa Azul.
— Foi um arranjo puramente comercial. Na verdade, o rei persa de quem ela estava noiva morreu enquanto Marco e Kokejin estavam a caminho. Ela acabou desposando o filho do homem. Mas também foi um casamento de conveniência. Ela veio a falecer apenas três anos depois. Alguns dizem que por suas próprias mãos, outros dizem que foi porque ela estava se consumindo por outro amor.
Gray virou-se.
— O senhor não está querendo dizer...
— O próprio Marco só se casou depois da morte de Kokejin. E, quando Marco morreu, ele tinha dois tesouros em seu quarto. O paitzu de ouro que Kublai Khan lhe dera e um adorno de cabeça de ouro, incrustado de pedras preciosas. — Vigor olhou incisivamente para ele. — Um adorno de cabeça de uma princesa.
Gray empertigou-se, imaginando a longa viagem de Marco, de dois anos, durante a qual ele explorara terras exóticas. Marco ainda era relativamente jovem quando deixou o palácio de Kublai Khan, tinha uns 35 ou 36 anos. Kokejin tinha 17 anos quando partiu da China, 19 quando chegou à Pérsia. Não era impossível imaginá-los se apaixonando, um amor que não poderia durar além de Ormuz.
Gray esfregou o local em que lutava contra uma dor de cabeça. Ele se lembrou do tijolo em Hagia Sophia, do interior envernizado de azul-escuro, um segredo oculto em pedra. Mas será que o tijolo também poderia representar o coração de Marco, um símbolo de seu amor secreto por Kokejin?
— Além disso, esquecemos outra pista que nos foi deixada — continuou Vigor, erguendo o manuscrito. — A história estava bordada em seda. Por que em seda?
Gray deu de ombros.
— É um material do Extremo Oriente, por onde Marco tinha viajado.
— Sim, mas poderia significar algo mais?
Gray lembrou-se de Vigor debruçado sobre o texto, até mesmo examinando-o com uma lupa.
— O que o senhor descobriu? — indagou ele.
O monsenhor ergueu o manuscrito.
— Esta seda não era nova quando foi bordada com o texto. Ela estava fina de tão gasta e irregular. Eu descobri óleos e manchas antigas.
— Quer dizer então que era um pedaço de seda usado.
— Mas para quê ele foi usado? — perguntou Vigor. — Um dos usos mais comuns da seda — em razão de seu custo e raridade — era como mortalhas da realeza.
Vigor esperou, fitando Gray. Ele entendeu lentamente, imaginando um tijolo azul vazado. O assombro infiltrou-se em sua voz.
— O senhor acha que poderia ser a mortalha de Kokejin?
— Possivelmente. Mas, se eu estiver certo, sei o que temos que procurar naquele antigo castelo.
Gray também sabia.
— O túmulo de Kokejin.
16:56h
Acomodada no assento do co-piloto, Seichan teve uma ampla visão da ilha quando o hidroavião mergulhou na direção de uma enseada abrigada. Não era uma ilha grande, com no máximo 6,5 quilômetros de um lado ao outro. Seu centro era rochoso e montanhoso, com esparsas áreas verdes. A maior parte do litoral era formada por penhascos e por baías recortadas isoladas, onde havia muitos esconderijos de contrabandistas. Porém, ao norte, as encostas mais altas caíam mais suavemente em direção ao mar. Ali a terra se tornava mais verde, com tamareiras e campos cultivados, abrigando uma aldeiazinha de cabanas com o teto de palha.
Do ar, podiam-se divisar indícios de uma cidade mais antiga e maior: alicerces maciços, as pedras extraídas das colinas de sal-gema da ilha; algumas casas caindo aos pedaços, parecendo-se mais com pilhas de entulho; e um único minarete alto, outrora usado como farol pelos portugueses.
Mas não era aquele o destino deles.
O hidroavião inclinou uma asa e sobrevoou o istmo que se estendia ao norte da cidade velha. Na restinga, erguiam-se as ruínas do antigo castelo. Ele fora outrora separado da cidade velha por um amplo fosso, mas agora estava cheio de lodo, marcado apenas por uma linha afundada traçada de leste a oeste.
Quando o avião sobrevoou as ruínas, Seichan observou o alvo deles. O enorme forte era rodeado por diques altos, mas havia muito que o lado Oeste perdera a batalha com o mar, minado e derrubado aos poucos pelas ondas que o fustigavam. O lado Leste, abrigado por uma baía de águas tranqüilas, se saíra melhor.
O avião descreveu um ângulo para pousar nessa baía, mergulhando baixo, e em seguida deslizou pela água. Seichan teve um vislumbre de canhões de ferro enferrujados no teto do forte, e de mais seis na praia da baía, agora usados para amarrar os barcos ancorados. Na verdade, um pequeno barco de estanho estava amarrado a um deles. Uma pequena figura morena, usando apenas bermudas, acenou com um dos braços quando eles se aproximaram.
Seichan esperou que o rapaz fosse o guia que ela mandara vir da aldeia. Com apenas duas horas de sobra, eles precisavam de alguém que conhecesse o terreno do castelo.
O hidroavião costeou a água, deixando uma intensa esteira atrás de si quando pousou nas águas abrigadas. Seichan foi lançada para a frente em seu cinto de segurança, e sentiu uma pontada de dor no lado ferido. Ela dera uma olhada no ferimento mais cedo, no banheiro do aeroporto. As ataduras estavam úmidas por causa de algum vazamento, porém mais róseas do que vermelhas.
Ela sobreviveria.
O piloto deu meia-volta quando o barco de estanho saiu a toda a velocidade na direção deles, quicando na esteira do avião. O guia deles estava sentado na traseira, com uma das mãos no leme.
Alguns instantes mais tarde, as portas foram abertas, e o grupo desceu do avião para o pequeno barco. O guia deles era um garoto de 12 ou 13 anos, com as costelas proeminentes e todo sorrisos. E, sem dúvida, ele queria praticar seu inglês, por mais fraco que fosse.
— Meus bons amigos, minha bela dama, bem-vindos a Ormuz! Meu nome é Fee'az!
Gray ajudou Seichan a entrar no barco, erguendo uma das sobrancelhas.
— Este é o seu guia experiente?
— A menos que você esteja disposto a derreter um daqueles passaportes de ouro, isso é o melhor que o dinheiro pode comprar aqui.
E ela já havia gastado uma grana preta para que eles chegassem ali tão depressa.
Ela observou Gray acomodar-se num assento. Os olhos dele já estavam examinando o castelo. Ela notou a preocupação na curvatura dos seus ombros. De perfil, suas feições eram duras, angulosas, do queixo aos malares. Mas ele estava mortalmente dilacerado, quebrantado e enfraquecido.
Por causa de sua mãe e de seu pai.
Com uma sacudidela indiferente da cabeça, Seichan desviou o olhar. Ela não conseguia sequer se lembrar de seus próprios pais. Havia apenas uma lembrança: de uma mulher sendo arrastada aos prantos por uma porta, estendendo os braços para ela e indo embora depois. Ela nem ao menos tinha certeza de que era sua mãe.
Fee'az deu partida no pequeno motor de popa e disparou na direção da praia orlada de palmeiras e das imponentes ruínas do castelo. Kowalski arrastava uma das mãos na água, bocejando. Vigor olhava para a aldeia. Estava havendo uma comemoração, e a música chegava até eles como que trazida pelo vento.
Gray virou-se e olhou de relance para Seichan. Ele exibia uma expressão familiar, com ambas as sobrancelhas erguidas, como que perguntando: Você está pronta?
Ela fez que sim com um movimento da cabeça.
Gray virou as costas, e tirou a jaqueta leve. A luz do sol resplandecia. Ele usava apenas uma camiseta caqui. Ela notou um clarão da luz do sol na gola dele. A mão direita dele tocou distraidamente o pequeno objeto de prata brilhante sob a camiseta.
Um amuleto com um dragão.
Ela o dera a ele mais como uma brincadeira zombeteira em razão de uma cooperação no passado. Mas Gray o conservara e ainda o usava. Por quê? Isso a fez sentir-se tomada por um calor inexplicável — menos por afeição do que por um misto de confusão e embaraço. Será que Gray pensava que ela lhe dera o amuleto como uma espécie de lembrança, de algum sinal de atração? Ela deveria sentir-se satisfeita, mas por algum motivo aquilo simplesmente a irritou.
A proa do barco rangeu em contato com a areia, dando-lhe um solavanco nas costas.
Eles haviam chegado à praia, e começaram a descarregar.
Seichan jogou para Kowalski uma sacola que continha equipamento adicional, incluindo um laptop, várias outras granadas luminosas e seis caixas de munição para as quatro pistolas.
Gray estendeu uma das mãos para ajudá-la a sair do barco. Ela ignorou a ajuda dele e pulou para fora.
Fee'az amarrou o barco num dos canhões enferrujados e acenou para que eles se dirigissem a uma abertura quadrada numa das paredes do forte. Mais acima, batentes estreitos trespassavam os baluartes, onde um dia atiradores portugueses haviam defendido o bastião.
O grupo passou sob a parede e entrou num pátio de pedra abandonado. Ervas daninhas espinhentas cresciam das rachaduras, a alguns passos de distância uma grande cisterna aberta expunha as pessoas ao risco de uma queda horrível, e algumas tamareiras desordenadas cresciam de um antigo canteiro de jardim. Em toda parte, areia solta sussurrava através da rocha com a voz sibilante de fantasmas.
Fee'az ergueu um dos braços na direção da parte principal do castelo. Ele erguia-se em seis andares até baluartes dentados, de onde as pontas enferrujadas de canhões ainda se projetavam.
— Eu vou mostrar tudo a vocês! — declarou Fee'az. — Tem muita coisa para ver.
O garoto começou a se afastar, mas Vigor tocou-lhe o ombro.
— O castelo tem uma capela? — perguntou ele.
O garoto franziu o cenho por um instante, depois se alegrou de novo, com seu sorriso constante.
— Meu amigo! O senhor está com sede.
Vigor sorriu.
— Não, uma igreja.
A testa do garoto enrugou-se, mas seu sorriso recusou-se a esmaecer.
— Ah, o senhor é cristão. Tudo bem. Tudo gente boa. Os muçulmanos gostam da Bíblia. Ela também é um livro sagrado. Nós também temos santos. Santos muçulmanos. Mas o Profeta Maomé é melhor — disse ele, dando de ombros de um jeito acanhado.
Vigor apertou o ombro dele, reconhecendo que o garoto estava lutando entre ser um bom guia turístico e ser um bom muçulmano.
— A igreja? — perguntou ele novamente.
O garoto fez um vigoroso aceno de cabeça.
— A sala das cruzes.
Ele os conduziu na direção da abertura escura, ainda tagarelando num fluxo frenético.
Kowalski sacudiu a cabeça diante das brincadeiras do garoto e partiu atrás deles.
— Ele precisa eliminar a cafeína da vida dele.
Gray sorriu, uma raridade, como a luz do sol através de nuvens tempestuosas.
— Vamos — ele sussurrou para Seichan ao passar, quase roçando nela. Sua mão tocou a dela de leve.
Ela,quase a segurou, num gesto automático. Em vez disso, zangada consigo mesma, fechou os dedos. Mas sua reação não era só de fúria ou frustração.
Também havia culpa.
Ela detestava mentir para aquele homem.
17:18h
— Puxa, isto vai ser um pé no saco — disse Kowalski.
Gray não disse nada.
A capela ficava nos fundos do primeiro andar do castelo. Depois de passarem pelo hall de entrada, eles precisaram de lanternas para transpor as baixas passagens de trás. O silêncio aumentava à medida que avançavam. O ar ficou parado. O único movimento provinha de alguns ratos aninhados, que corriam dos feixes de luz das suas lanternas.
O corredor terminava numa porta baixa, que exigia não apenas que se abaixasse a cabeça, mas também que se flexionasse a cintura. Vigor foi o primeiro a entrar na sala com o guia. Ele deu um pequeno suspiro quando se empertigou lá dentro. Gray entrou em seguida.
Ele estava em pé agora, movendo o feixe de luz de sua lanterna ao redor da capela escura.
Cortada alto na parede oposta, uma janela em forma de cruz deixava entrar um pouco da luz do sol. A janela não passava de algumas fendas cruzadas, certamente estreitas demais para se forçar passagem através delas, mas talvez fosse outro lugar de onde era possível defender o castelo.
A janela projetava a luz do sol em forma de cruz sobre uma laje de pedra cuja altura chegava à cintura deles.
O altar da capela.
Quanto ao mais, a sala estava vazia.
Mas não sem adornos.
Ao longo de cada superfície — paredes, assoalho, teto, até mesmo o altar —, cruzes haviam sido entalhadas na pedra. Centenas, se não milhares delas. Elas variavam de cruzes com o tamanho máximo de uma impressão digital a cruzes gigantes ornadas, em tamanho natural.
— Não é de admirar que eles a chamem de sala das cruzes — disse Vigor.
— É mesmo, de muito bom gosto para um assassino em série — comentou Kowalski com mau humor. — Deve ser tudo o que a ilha produz.
Gray examinou as superfícies repletas de cruzes, lembrando-se da cruz quase imperceptível inscrita na laje de mármore em Hagia Sophia. Ele tirou a cruz de prata, o crucifixo de frei Agreer.
— Agora tudo o que temos a fazer é encontrar a cruz que seja o par perfeito desta.
Vigor foi até Fee'az e pediu-lhe que os deixasse sozinhos ali.
Ele pareceu confuso até o monsenhor apontar para a cruz nos dedos de Gray.
— Nós temos que rezar — explicou o monsenhor. — Sairemos quando terminarmos.
O garoto afastou-se depressa, concordando com a cabeça. Ele não poderia sair correndo mais rápido, obviamente receoso de ser flagrado durante a realização de uma cerimônia cristã. Por sua rapidez, ele devia suspeitar de que eles sacrificariam bebês.
Assim que ficaram sozinhos, Gray coçou a cabeça, momentaneamente desanimado, consciente demais da urgência do tempo.
— Uma destas cruzes deve ser um equivalente exato do crucifixo de frei Agreer. Temos que descobrir qual.
Ele dividiu o grupo.
Eles eram quatro, e havia quatro paredes.
Além do assoalho e do teto.
Gray pôs a cruz em cima do altar, prontamente disponível para cada pessoa pegar e comparar. Ele também arrancou quatro folhas de seu bloco de anotações e desenhou nelas a forma da cruz, como referência para cada um.
Enquanto todos procuravam, Gray notou o movimento da luz do sol sobre o altar, avançando de forma constante enquanto o sol se punha, enquanto o tempo lhe escapava. Ele terminou o exame em sua parede. Nada. O suor escorria; suas roupas grudavam-se à pele. Ele começou a examinar o assoalho. Os outros, um de cada vez, juntaram-se a ele. Seichan trabalhava no altar.
A cruz mais importante — a que era formada pela luz do sol — continuava a avançar lenta e inexoravelmente pela sala.
— Também não está no assoalho — afirmou Vigor, com o rosto vermelho, erguendo-se da posição de joelhos. Ele ficou em pé, com uma das mãos apoiando a região lombar.
Atrás do altar, Seichan sacudiu a cabeça.
Ela também não tivera sorte.
Gray olhou para cima.
O teto era baixo, mas não o suficiente para ser tocado. Seria necessário erguer alguém por muito tempo para testar cada cruz lá em cima que pudesse ter o tamanho exato.
— Talvez eu estivesse errado — disse Vigor. — Talvez o túmulo de Kokejin esteja em alguma outra parte do castelo. Todas estas cruzes podem ser uma pista falsa.
Gray sacudiu a cabeça. Não. Eles já haviam perdido uma hora inteira. Não tinham tempo para vasculhar cada canto e fenda do castelo à mão. Eles haviam se comprometido a procurar na capela. Não havia como voltar atrás, nem como adivinhar.
— O túmulo de Kokejin deve estar aqui — insistiu Gray. Vigor suspirou.
— Então nos resta apenas o teto.
Gray mandou Kowalski ajudar a erguer o monsenhor e foi para o lado de Seichan.
— Cara, eu sempre acabo me ferrando nesse negócio — queixou-se Kowalski.
Ignorando-o, Vigor apontou para as paredes.
— Vamos começar pelos cantos. Vocês dois exploram o meio. Seichan subiu no altar.
— Posso alcançar as cruzes aqui em cima sem ajuda.
Enquanto ela estava de pé, uma cruz formada pela luz do sol iluminou suas costas. Ela havia tirado o colete e usava apenas uma camiseta preta. Gray notou suas curvas quando ela ergueu uma das mãos, o algodão esticado sobre os seios. Apesar de todas as suas preocupações, uma parte dele ainda era máscula o suficiente para apreciar isso... no entanto, ele era homem o suficiente para se sentir culpado por isso.
Agora não era hora...
— Acho que vejo uma possibilidade... — murmurou Seichan, ficando na ponta dos pés, estendendo as mãos mais alto.
Então ela estremeceu e voltou a apoiar-se nos tornozelos. Sua mão fechou-se em concha no lado esquerdo do corpo. Ela havia forçado seu ferimento.
Gray subiu, ficando ao lado dela.
— Deixe-me ajudá-la.
Ele ofereceu uma das pernas para ela subir, entrelaçando as mãos numa espécie de estribo.
Ela pegou o crucifixo de prata e em seguida pisou nas mãos dele.
Quando ele se empertigou e a ergueu, ela equilibrou uma das mãos sobre a cabeça dele e estendeu o crucifixo para o teto. A nádega esquerda dela estava pressionada contra a face esquerda dele.
Oh, sem dúvida, ele ia para o inferno.
— Eu acho... eu acho... — sussurrou Seichan. — Ele se encaixa! Esta marca está entalhada profundamente, e o crucifixo se ajusta exatamente dentro dela. Um par perfeito!
Gray esticou o pescoço, mas tudo o que pôde ver foi a parte inferior dos seios dela.
— Você pode dizer para o que Cristo está olhando? — perguntou ele, lembrando-se de Hagia Sophia.
— Para o altar — respondeu ela, mas parecia distraída. — O crucifixo está encaixado num bloco de pedra circular. Quando empurrei o crucifixo lá dentro, senti alguma coisa estalar. E a pedra parece estar quase solta. Com o crucifixo no lugar, acho que posso girá-la, talvez soltá-la.
— Eu não acho que você deveria...
Ele ouviu um rangido de pedra. Um tinido alto soou, mas não veio de cima. Gray olhou para baixo, entre seus pés.
O altar soltou-se de sob os seus pés, caindo diretamente através do assoalho, levando Gray consigo.
Seichan caiu nos braços dele, agarrando-se com força ao seu pescoço.
A laje de pedra atingiu o chão com um impacto trepidante, fazendo Gray cair apoiado num dos joelho.s A poeira ergueu-se numa nuvem. Uma das lajes do assoalho quebrou-se, esmagada pelo altar, e quicou para a escuridão adiante.
Gray olhou para cima. Embora tivesse ficado sem fôlego de tanto medo, eles haviam caído de uma altura de apenas l,20m. Vigor e Kowalski baixaram o olhar para eles.
— Acho que você encontrou alguma coisa, Indiana Jones — disse Kowalski com um sorriso forçado, passando-lhe uma lanterna.
Gray revirou os olhos, mas aceitou a lanterna. Seichan saltou de cima dele, batendo a poeira do corpo. Agachando-se, Gray apontou a lanterna para a câmara revelada sob a capela. Uma passagem escura em arcada acenava para eles.
Ele deslizou a pedra do altar até o assoalho, com Seichan junto ao seu ombro.
Vigor e Kowalski desceram e seguiram-nos.
Dois arcos cruzados formavam o teto de uma pequena câmara, com a metade do tamanho da capela acima. Iluminado pela lanterna, um nicho baixo fora entalhado na parede dos fundos, emoldurado por outra arcada.
— Um loculus — disse Vigor. — Um túmulo.
Dentro do nicho, um corpo jazia estendido na pedra nua, coberto com dobras de tecido branco.
— O túmulo de Kokejin — disse Vigor. — Nós o encontramos.
Apesar da excitação, eles se aproximaram solenemente. Gray e Vigor seguiram na frente. Eles precisavam ter certeza. Vigor abençoou aquela violação com o sinal-da-cruz e uma prece murmurada.
O monsenhor estendeu uma das mãos para a mortalha.
— Eu vou logo avisando — sussurrou Kowalski, extremamente sério. — Se alguma coisa se mover, eu me mando daqui.
Vigor ignorou-o e ergueu com reverência uma dobra de tecido de uma extremidade.
— Seda — sussurrou ele.
Poeira elevou-se no ar quando ele o puxou para trás.
A abóbada de um crânio foi revelada. No alto dela brilhava um adorno de cabeça de ouro, e rubis e safiras refletiam a luz. Diamantes cintilavam.
— O adorno de cabeça da princesa — disse Vigor num sussurro.
Gray lembrou-se da história de Vigor, de que Marco estava com o adorno de cabeça em seu leito de morte.
A mão de Vigor tremia.
— Marco deve ter desejado que ele fosse devolvido. Talvez até providenciado para que o corpo dela fosse removido em segredo para um lugar seguro, antes que ela finalmente encontrasse o descanso eterno aqui.
Gray estendeu uma das mãos e cobriu a de Vigor.
— O terceiro paitzu... a terceira chave.
Eles dispunham de pouco tempo.
Gray puxou a mortalha de seda do resto dos ossos.
Vigor ficou boquiaberto e deu um passo para trás.
Até mesmo Gray ficou paralisado, estupefato.
Não havia apenas um corpo embaixo de todo o ornamento de seda.
Dois esqueletos jaziam no túmulo, enlaçados um nos braços do outro.
Gray lembrou-se da história de Vigor da igreja de San Lorenzo, de que Marco Polo fora enterrado lá em 1324, mas uma reforma posterior revelara que o corpo havia desaparecido.
— Não encontramos apenas o túmulo de Kokejin — disse Vigor.
Gray concordou com a cabeça.
— Nós também encontramos o túmulo de Marco Polo.
Ele baixou o olhar para o casal enlaçado.
O que os dois não puderam ter em vida, eles finalmente alcançaram na morte.
Estar juntos.
Para sempre.
Gray se perguntou se um dia encontraria um amor grande como aquele. Lembrou-se então de seus pais, que continuavam juntos mediante tantas adversidades, lutando contra as provações de debilitação e agora demência... e, no entanto, jamais haviam desistido um do outro.
Alguém tinha de salvá-los.
11:01h
Washington, D.C.
Painter gostaria de estar no local, mas isso só retardaria a equipe de resposta. Do centro de comunicações da Sigma, ele assistia às transmissões de vídeo ao vivo, feitas por uma câmera no capacete de um dos membros da tropa de choque.
Dez minutos atrás, eles haviam tido sua primeira oportunidade real.
A manhã inteira Painter se esforçara ao máximo para rastrear as chamadas internacionais feitas dos Estados Unidos para o telefone celular de monsenhor Vigor Verona. Gray mencionara que Amen Nasser ligara para o telefone de Vigor. Para rastrear aquele telefonema, Painter teve de atazanar autoridades desde a Cúria do Vaticano até o diretor de operações do Departamento de Segurança Interna. Pelo menos com Seichan a reboque, ele soubera explorar bem a situação da terrorista. Isso abrira portas normalmente fechadas.
Levou, no entanto, mais tempo do que ele gostaria, mas Painter finalmente soube de onde a chamada se originara. Uma tropa de choque aguardava uma ordem sua para começar o ataque.
Ele inclinou-se ao microfone e gritou:
— Agora!
As portas do furgão abriram-se. A alimentação da câmera tremulou e saiu de quadro. A tropa aproximou-se vindo de múltiplas direções, pela frente e pela retaguarda, correndo abaixada, com rifles de assalto na mão.
A tropa de choque assaltou o edifício como uma tempestade.
Uma espécie de aríete chocou-se com a porta da frente, abrindo-a de um único golpe.
A alimentação escureceu quando o câmera seguiu os outros para dentro do edifício. A tropa dispersou-se.
Painter aguardou.
Incapaz de ficar sentado por mais tempo, ele se levantou, apoiando os punhos no painel de comunicação. Técnicos amontoavam-se de cada lado, olhando para outros monitores enquanto a alimentação por satélite chegava da Indonésia numa torrente. Uma tempestade violenta, com ventos com a força de um furacão, cobria a maior parte daquela região, dificultando a busca do seqüestrado Mistress of the Seas. A tempestade também retinha no solo um bom número de aviões de busca da Austrália e da Indonésia.
A falta de progresso aumentara a frustração de Painter. Seu receio pelo bem-estar de Lisa, de Monk, quase o havia paralisado.
Então veio a descoberta da localização do telefone.
Ele precisava de uma vitória.
Pelo menos ali.
No seu fone de ouvido, escutou as conversas dos membros da tropa de assalto, relatos e gritos entrecruzados. Finalmente, uma voz nítida soou, vinda do câmera. Ele havia parado no interior do que parecia uma câmara frigorífica, com ganchos pendentes do teto.
— Diretor Crowe, terminamos a busca no açougue. Não tivemos êxito. O lugar está deserto.
O vídeo tremulou quando o câmera se curvou e em seguida empertigou-se, exibindo os dedos.
Eles estavam úmidos.
— Senhor, nós encontramos sangue.
Oh, não...
Um dos técnicos olhou de relance na direção de Painter, viu alguma coisa de que não gostou na expressão dele, e rapidamente se virou.
Uma voz vinda da porta interrompeu seu desespero.
— Diretor Crowe...
Uma mulher estava à entrada, trajando roupas azul-marinho. Seus cabelos castanhos estavam presos, expondo todo o seu rosto, que brilhava de medo e preocupação. Ele entendeu a expressão assustada nos olhos dela.
— Kat... — disse ele, empertigando-se.
Era a esposa de Monk.
— Minha tia está tomando conta de Penélope. Eu não conseguia mais ficar sentada em casa.
Ele compreendeu e ergueu um dos braços.
— Nós poderíamos usar sua ajuda.
Ela suspirou e concordou com um movimento de cabeça.
Era tudo o que eles podiam fazer.
Continuar em ação, continuar lutando.
De qualquer forma que pudessem.
18:04h
Vigor baixou o olhar para os corpos enlaçados.
Marco e Kokejin.
A descoberta ainda o mantinha paralisado em frente à laje. Outros não estavam tão emocionados. Seichan aproximou-se, ficando entre Gray e Vigor.
Ela apontou um dos braços.
— O terceiro passaporte de ouro.
Gray puxou a mortalha completamente para o lado. Abrigado entre os corpos, coberto pelas mãos dos dois esqueletos, o brilho de ouro cintilou além dos ossos.
Era o terceiro paitzu.
E ao lado dele estava um tubo de bronze familiar.
O terceiro e último manuscrito.
Com uma delicadeza reverente, Gray recolheu os objetos. Ele também tirou o adorno do crânio de Kokejin.
— Ele talvez contenha uma pista — justificou.
Vigor não disse nada. Com a câmara funerária aberta, ele não tardaria a ser roubado se fosse deixado sem vigilância.
Todos eles subiram de volta para a capela.
Uma vez ali, reuniram-se num canto da sala.
Gray virou o passaporte de ouro para revelar um terceiro símbolo angélico.
Agora temos todos os símbolos — disse Seichan.
— Mas não toda a história — afirmou Gray. Ele pegou seu bloco de anotações e fez um aceno de cabeça para Vigor. — Vamos ouvi-la.
Vigor não precisou de nenhum outro estímulo. Ele abriu o tubo de bronze com o canivete e retirou o manuscrito.
— Seda novamente — comentou, e começou a desenrolá-la com cuidado.
A última parte da história era mais longa, e estendia-se por um quarto da largura do assoalho da capela. Vigor traduziu o dialeto italiano de Marco. A história assustadora continuava com a aparição das figuras angélicas brilhantes, vindo na direção do grupo de Marco, encurralado na sala de uma torre.
Vigor leu a história em voz alta:
Essas estranhas aparições estenderam para a frente o cálice grosseiro; e de uma forma clara e vigorosa insistiram para que bebêssemos. Dessa maneira, seríamos preservados contra a terrível pestilência que havia transformado a Cidade dos Mortos numa visão do Inferno, porque o homem consumia a carne de seu irmão.
Com tal promessa, cada um de nós tomou a bebida, a qual, vista mais de perto e de acordo com o sabor, se percebeu que era sangue. Elas também insistiram conosco para que comêssemos um pedaço de carne crua sobre uma folha de palmeira, a qual, vista mais de perto e de acordo com o sabor, era alguma forma de timo de vitela. Só depois de termos consumido o sangue e a carne, ocorreu-me inquirir sobre a origem de tais ofertas. O homem do Khan respondeu; e assim nós também nos tornamos canibais; pois se tratava de sangue e timo drenado e cortado de um homem.
Assim, fomos tratados dessa forma iníqua, a qual mais tarde se revelaria virtuosa, porque de fato nos protegeu de uma grande pestilência. Mas tivemos de pagar um preço por essa cura. Frei Agreer não teve permissão de consumir o sangue e o timo. Houve muitos murmúrios e dedos apontando para sua cruz e para o homem que a ostentava. No fim, só nos deixaram partir se deixássemos frei Agreer para trás.
Em sua grande Graça e Abençoada aprovação, frei Agreer insistiu em que fugíssemos. Chorei muito, mas obedeci ao confessor. Ao me dirigir suas últimas palavras, ele deixou seu crucifixo comigo, para que o devolvesse à Santa Sé. A última visão que tive do nobre homem foi quando o conduziram na direção oposta; e supus para onde eles se dirigiam. Iluminada pela lua cheia, uma grande montanha elevava-se acima da floresta, esculpida com mil rostos de demônios.
— Deus do céu — murmurou Vigor.
Ele leu o restante da história lentamente.
Depois de fugir da cidade, Marco Polo relatou como a praga assolara sua frota, fazendo os navios e a tripulação darem numa ilha remota. Apenas aqueles que consumiram o remédio oferecido por aqueles homens brilhantes não foram afetados. Marco deixou a Cidade dos Mortos com remédio suficiente para tratar seu pai e seu tio, bem como Kokejin e duas de suas criadas. Eles por fim queimaram os navios e os corpos dos enfermos, muitos deles ainda vivos.
Vigor leu o último parágrafo.
Que o Senhor perdoe a minha alma por quebrar uma promessa feita ao meu pai, agora morto. Devo fazer uma última confissão. Naquele lugar pavoroso, descobri um mapa da cidade, o qual destruí por vontade de meu pai; porém, gravei-o na memória para não esquecer. Eu o registrei aqui de novo, a fim de evitar que esse conhecimento se perca para sempre. Que aquele que ler isto fique bem avisado: o portão do Inferno foi aberto naquela cidade; e não sei se foi fechado.
18:22h
Enquanto ouvia a história e seu final enigmático, Gray trabalhava no enigma em seu bloco de anotações. Isso o ajudava a se concentrar em ouvir Vigor enquanto contemplava o mistério que eles tentavam solucionar. Isso o distraía do terror que apertava seu próprio coração.
E, à medida que a história se desdobrava, ele começou a compreender.
Fora um tolo.
Examinou seu bloco de anotações, desfocando os olhos, vendo a resposta oculta no código. E, com as três chaves, talvez uma forma de decifrá-lo.
Ele folheou as páginas, procurando a página certa. Quando a encontrou, inclinou-se para mais perto, fazendo um desenho com um dos dedos. Será que aquilo estava certo? Ele precisava investigar mais.
Ele consultou o relógio.
Restando menos de meia hora, será que tenho tempo suficiente?
Antes que ele pudesse descobrir, disparos de armas automáticas ecoaram até eles, soando como bombinhas. Pou, pou, pou, pou...
Gray ficou em pé de um salto.
Deus, não... será que Nasser os encontrara?
Ele foi até a abertura da capela e olhou para os corredores escuros.
— Juntem tudo — exortou ele sem se virar. — Agora!
Gray discerniu a forma de uma figura magra correndo na direção dele, iluminada por trás pela luz do sol que se filtrava. Pés descalços golpeavam as pedras, e então uma voz gritou, equilibrada entre a urgência e a discrição.
— Apressem-se!
Era Feeaz.
O garoto não diminuiu o ritmo e correu direto ao encontro deles.
Mais ao longe, vindos da direção do pátio do castelo, ecoavam gritos irados em farsi.
Gray segurou o ombro do garoto magro quando ele voou até eles, sem fôlego.
— Apressem-se. Contrabandistas.
Fee'az não esperou e voltou para o corredor externo, seguindo na direção oposta, paralela aos fundos do castelo.
Gray virou-se para os outros.
— Peguem o que vocês têm... e deixem o restante!
Eles partiram atrás de Fee'az.
O garoto esperou a meio caminho corredor abaixo e então fugiu para adiante.
Fee'az continuou a fazer um comentário apressado. Pelo visto, mesmo a ameaça de contrabandistas não o fazia calar a boca.
— Vocês demoraram muito com as suas orações. Eu dormi embaixo das palmeiras. — Ele apontou para trás, na direção geral do pátio. — Eles não me viram. Quase pisaram em mim. Eu acordei e corri. Eles atiraram: bangue, bangue. Mas as minhas pernas são rápidas.
Para provar isso, ele voava pelas salas e corredores dos fundos. Atrás deles, o timbre dos gritos mudou, indicando que o grupo que estava atacando de surpresa havia entrado no castelo.
Fee’az levou-os até uma escada grosseira que conduzia para baixo.
— Por aqui.
Eles chegaram a um túnel estreito e baixo, pouco mais alto do que uma galeria de mina em que se tem de andar de gatinhas e que se estendia para o sul. Fee'az seguia às pressas na frente.
Após cinqüenta passos, ele terminava num velho portão enferrujado. As barras tinham sido serradas havia muito, deixando apenas tocos. Eles passaram pelo portão e foram dar no fosso cheio de lodo do castelo. Paredes de pedra esfarelada marcavam o limite.
Gray olhou para trás. A galeria devia ter sido o antigo sistema de esgotos do castelo.
Acenando-lhes para que permanecessem abaixados, Fee'az conduziu-os ao longo do fosso, rumo à baía oriental. Gritos ainda ecoavam do castelo. Os contrabandistas ainda não haviam percebido que os camundongos tinham fugido.
Ao chegar à água, Gray viu que o avião ainda os aguardava, incólume.
Fee'az explicou:
— Contrabandistas sujos. Nunca roubam um avião. Eles roubam pouco. — Ele demonstrou mantendo os dedos separados, quase se tocando, depois deu de ombros.
— De vez em quando matam e jogam os corpos para os tubarões. Mas nunca levam alguma coisa tão grande. O governo vai mandar aviões maiores, armas maiores.
Então o risco não valia a pena.
Todavia, pecando por excesso de cautela, eles usaram remos para mover silenciosamente o barco do garoto até o hidroavião. Fee'az fez sinal para que eles embarcassem.
— Venham outra vez! Venham outra vez! — disse ele, apertando formalmente a mão de cada um.
Gray sentiu-se obrigado a dar-lhe alguma gratificação por ter evitado que eles entrassem numa enrascada. Ele enfiou a mão na mochila, procurou alguma coisa lá dentro e entregou-lhe o adorno de cabeça de ouro da princesa.
Os olhos do garoto arregalaram-se, ele segurou o tesouro com ambas as mãos e em seguida empurrou-o de volta para Gray.
— Não posso aceitar.
Gray envolveu o adorno de cabeça com os dedos.
— Ele vai te custar apenas uma promessa.
Fee'az ergueu os olhos para ele.
— No castelo existem dois corpos, dois esqueletos, embaixo da sala das cruzes.
— Ele apontou para o castelo e depois para as colinas distantes. — Tire-os de lá, cave um buraco fundo e enterre-os. Juntos.
Ele sorriu, sem saber se Gray estava brincando.
— Você promete?
Ele fez que sim com um aceno de cabeça.
— Eu vou levar meus irmãos e tios para ajudar.
Gray empurrou o adorno de cabeça de ouro para ele.
— Ele é seu.
— Obrigado, senhor.
Ele apertou a mão de Gray e disse com toda a solenidade de uma bênção:
— Venha outra vez.
Gray entrou no avião.
Minutos mais tarde eles estavam no ar, depois de terem decolado da baía, e voando rumo ao aeroporto internacional.
Gray voltou para o assento traseiro, juntando-se a Vigor.
— Você deu o adorno de cabeça da princesa ao garoto? — disse o monsenhor, olhando para baixo, para o pequeno barco do garoto que se afastava.
— Para enterrar Marco e Kokejin.
Vigor virou-se para fitá-lo.
— Mas uma descoberta dessas. A história...
— Marco fez o bastante pela história. Seu último desejo era ser enterrado em paz com a mulher que ele amava. Acho que nós lhe devemos isso. Além do mais, não precisamos do adorno de cabeça.
Vigor fitou Gray com um dos olhos estreitado, sem dúvida avaliando-o, julgando sua generosidade.
— Mas você pensou que talvez houvesse uma pista no adorno de cabeça. Foi por isso que o pegou. — Os olhos do monsenhor arregalaram-se e sua voz ergueu-se. — Deus do céu, Gray, você na verdade decifrou o código angélico.
Gray puxou seu bloco de anotações.
— Não totalmente. Quase.
— Como?
Seichan ouviu por acaso a conversa e foi juntar-se a eles, ficando em pé entre os assentos. Kowalski virou-se, espreitando por sobre o encosto do assento.
Gray respondeu ao monsenhor.
— Eu o solucionei descartando todas as nossas velhas suposições. Nós continuávamos procurando um código de substituição de letras.
— Como a inscrição no Vaticano que formava a palavra HAGIA.
— Eu acho que aquilo foi feito com o propósito de induzir ao erro. O grande mistério no obelisco não é um quebra-cabeça de substituição de letras.
— Mostre-nos — disse Seichan.
— Num instante. — Gray consultou o relógio. Restavam oito minutos. — Eu ainda tenho que solucionar parte do enigma. As três chaves. Chaves dispostas em determinada ordem.
Ele abriu seu bloco de anotações e bateu de leve nos três símbolos angélicos.
Gray prosseguiu:
— Com o código do obelisco sempre à plena vista, as chaves tinham apenas um objetivo: revelar a maneira correta de ler o código. O obelisco tem quatro lados. Mas em que lado vocês começam? Em que direção vocês o lêem?
Ele abriu o bloco de apontamentos e encontrou a página original da escrita fornecida por Seichan.
— Para que os símbolos inscritos em ouro sejam tão importantes, eles têm que estar escritos em alguma parte do obelisco. E na verdade estão.
Gray traçou um círculo em torno deles.
— Essa seqüência só aparece uma vez. É única. Observem como ela passa de uma das superfícies do obelisco para a outra. Ela está indicando onde se deve começar a ler e em qual direção.
Ele acrescentou uma seta.
— Por isso vocês precisam reordenar a seqüência para ela corresponder às chaves. — Ele folheou as páginas do bloco de anotações, examinando as oito variações que ele e Vigor haviam organizado antes. Encontrou a variação certa e circulou os símbolos-chave. — Esta é a maneira adequada de dispor o mapa para que ele seja lido corretamente.
Seichan inclinou-se mais para perto.
— Sobre qual mapa vocês estão falando?
— Eu notei isto lá na capela — disse ele. — Observem.
Ele pegou um lápis e começou a fazer buracos na página e a marcar a página seguinte em branco.
— O que você está fazendo? — perguntou Vigor.
Gray explicou.
— Observem como algumas das marcas diacríticas — esses pequenos círculos na escrita angélica — são escurecidas e outras não. Com base na segunda chave, sabemos como essa marca diacrítica preta do símbolo acabou se revelando um marcador do castelo português. Portanto, os círculos enegrecidos no código do obelisco também devem ser marcadores. Mas marcadores de quê? Se vocês fizerem furos em cada círculo escuro a fim de deixarem as marcas numa nova página, removendo tudo mais, vocês obtêm isto.
— Ora, isso com certeza ajudou — disse Kowalski com sarcasmo.
Gray esfregou uma das mãos sobre a barba por fazer em seu queixo, concentrando-se.
— Tem alguma coisa aqui. Eu posso senti-la.
— Talvez você deva ligar os pontos — disse Kowalski com não menos sarcasmo. — Talvez isso forme uma grande seta cintilante com o significado caiam fora daqui.
Seichan franziu o cenho.
— E talvez seja hora de você calar essa maldita boca.
Gray não precisava da briga deles. Não agora. Kowalski era excelente como motorista para fuga, bom num combate com armas de fogo, porém Gray precisava de conselhos sábios, não de sugestões infantis, como ligar os pontos.
Então ele percebeu.
— Oh, meu Deus! — Gray recostou-se, remexeu o lápis e segurou-o com mais firmeza. — Kowalski tem razão!
— Eu?
— Ele...? — respondeu Seichan.
Gray virou-se para Vigor, agarrando seu antebraço.
— A primeira pista! Na Torre dos Ventos.
Vigor franziu o cenho, e então seus olhos arregalaram-se.
— Que abriga o observatório astronômico do Vaticano... onde Galileu provou que a Terra se movia em torno do Sol! — Vigor bateu de leve na folha. — Isto são estrelas!
Gray pegou o lápis. Ele estivera olhando fixamente para a página e reconhecera um padrão familiar.
Vigor também a reconheceu.
— Essa é a constelação de Draco, o dragão.
— Isto é uma constelação — afirmou ele, desenhando-a.
Seichan inclinou a cabeça enquanto olhava para baixo.
— Vocês estão dizendo que isso é um mapa de navegação estelar?
— É o que parece. — Gray coçou a cabeça com a borracha do lápis. — Mas como uma constelação nos diz aonde devemos ir?
Ninguém respondeu.
— Ela não pode nos dizer isso — ele admitiu afinal.
Gray sentiu o coração bater na garganta. O tempo deles estava se esgotando. Será que ele os havia conduzido ao caminho errado?
Vigor recostou-se.
— Esperem — murmurou ele. — Lembrem-se da história de Marco. Do último parágrafo. Marco disse que havia desenhado um mapa da cidade, e não para a cidade.
— E daí? — perguntou Gray.
Vigor pegou o papel e o girou.
— Isto não podem ser estrelas. Tem que ser o esquema da Cidade dos Mortos. É isso que está escrito no texto de Marco. Talvez o Vaticano tenha cometido o mesmo erro que nós acabamos de cometer. Eles interpretaram mal o mapa de Marco da mesma forma. Eles também pensaram que se tratava de um mapa de navegação estelar.
Gray sacudiu a cabeça.
— É uma coincidência muito estranha que uma cidade seja esquematizada no padrão exato da constelação de Draco. Se não me engano, mesmo as estrelas fora da linha do dragão marcam a localização de estrelas de verdade.
Vigor confirmou com um movimento da cabeça.
— Mas, lembrem-se, com base no meu estudo de civilizações antigas... dos egípcios até a Mesoamérica, muitas civilizações construíam seus monumentos e cidades num padrão de acordo com as estrelas, a fim de imitá-las.
Gray lembrou-se de uma aula parecida.
— Como as três pirâmides do Egito supostamente representam o cinturão de Orion.
— Exatamente! Em algum lugar do Sudeste Asiático existe uma cidade cujo padrão é o da constelação de Draco.
Seichan de repente deu meia-volta.
— Maldição! — praguejou ela entre os dentes. — Eu me lembro de alguma coisa... de alguma coisa que ouvi... sobre algumas ruínas no Camboja. Minha família tem raízes na região, no Vietnã e no Camboja.
Seichan correu até sua mochila, remexeu nela e tirou seu laptop.
— Tem uma enciclopédia digital aqui.
Ela agachou-se entre os joelhos de Vigor e Gray, acessou o programa e digitou rapidamente. Clicou duas vezes num ícone, e um mapa digital encheu a tela.
— Este é o complexo do templo de Angkor, construído pelo povo khmer do Camboja no século IX.
— Observem a disposição dos templos — disse Seichan —, a localização de cada um. Ouvi histórias de que essas ruínas teriam sido dispostas num padrão estelar.
Com o dedo, Gray traçou uma linha ligando os templos num padrão e bateu de leve nos templos restantes. Ele ergueu o primeiro mapa estelar e colocou-o ao lado do laptop aberto.
— São exatamente iguais — disse Vigor, espantado. — A Cidade dos Mortos de Marco é a antiga cidade de Angkor Wat.
Gray inclinou-se e abraçou Seichan. Ela ficou tensa, mas não se retraiu. Gray tinha uma dívida de gratidão para com todos, mesmo para com Kowalski, cuja visão geral simplista abrira o caminho para a solução do enigma.
Gray consultou o relógio.
Nem um minuto de sobra.
Ele estendeu uma das mãos para Vigor.
— Seu telefone. Está na hora de fazermos um acordo.
Vigor passou-lhe o telefone celular e a bateria.
Gray pôs a bateria no lugar, rezando por um pouco de boa sorte. Digitou o número de Nasser, fornecido por Seichan. Vigor estendeu uma das mãos e apertou a de Gray, oferecendo-lhe apoio.
O telefone tocou uma vez, e Nasser atendeu.
— Comandante Pierce — respondeu uma voz fria e furiosa.
Gray respirou fundo a fim de se controlar, lutando para não ser duro com ele. Precisava ser ponderado e firme.
— Meu avião está quase aterrissando — continuou Nasser, sem nem ao menos esperar pela resposta. — Pela sua traição, eu deixarei você decidir qual dos seus pais morrerá primeiro: sua mãe ou seu pai. Farei você ouvir os seus gritos. E esse, eu prometo, será o mais afortunado dos dois.
Apesar da ameaça, Gray sentiu certo consolo. Se Nasser não estivesse mentindo, seus pais ainda estavam vivos.
Sentindo alívio por isso, Gray manteve a voz calma, com os músculos da mandíbula doendo por causa do controle.
— Eu vou lhe oferecer uma permuta pela vida deles.
— Não tem nada que você possa oferecer — retrucou Nasser, gritando.
— Mesmo que eu lhe diga que decifrei o código angélico do obelisco?
A resposta foi o silêncio.
Gray prosseguiu:
— Nasser, eu sei onde fica a Cidade dos Mortos de Marco. — Receando que mesmo isso talvez não bastasse para mobilizar o filho-da-puta, Gray falou as palavras seguintes lentamente, para que não houvesse nenhum mal-entendido. — E eu sei como curar a Estirpe de Judas.
Vigor virou-se para ele, assustado.
O silêncio continuou ao telefone.
Gray esperou. Ele olhou para o mapa digital de Angkor Wat no laptop. Sentiu que os dois braços da operação da Guilda — um seguindo a trilha científica, o outro seguindo a trilha histórica — estavam prestes a se chocar.
Mas quem seria esmagado entre eles?
Nasser afinal respondeu, com a voz trêmula de raiva.
— O que você quer?
CAPÍTULO 13
Rainha-feiticeira
7 de julho, meia-noite
Ilha de Pusat
Os tambores soavam mais alto do que os estrondos dos trovões acima. Raios riscavam o céu, fazendo a selva cintilar com verdes e pretos nítidos, delineados em prata pelo reflexo das folhas molhadas.
Com o peito nu, Monk puxou Susan pela mão numa curva íngreme da trilha na selva. Eles haviam passado as duas últimas horas seguindo a trilha no escuro, às vezes esperando que um raio lhes mostrasse onde pisar a seguir. A chuva continuava a cair torrencialmente através do dossel da selva. A trilha em ziguezague se trans¬formara num curso d'água. Porém, o restante da selva era um denso emaranhado de trepadeiras entrelaçadas, folhas grandes, arbustos espinhentos, troncos com as raízes asfixiadas e lama encharcada.
Por isso eles continuaram na trilha, subindo, sempre subindo.
Ryder vinha atrás deles e portava a única pistola do grupo, uma Sig Sauer 9mm P228 com acabamento de Teflon. Lamentavelmente, ele não tinha pentes sobressalentes, apenas as 13 balas que já estavam na arma.
Nada bom.
Monk sabia que, assim que a tempestade parasse, a selva seria esquadrinhada pelos homens de Rakao. Aquela ilha era a base de operações deles, o que lhes dava a vantagem do terreno familiar. Monk não se iludiu pensando que poderia escapar de ser rastreado e capturado.
Olhou para trás através de uma brecha na mata. Eles já haviam avançado cerca de 100 metros. O navio de cruzeiro gigante estava no centro da lagoa, a 400 metros de distância. Em algum lugar a bordo estava sua colega, resgatada com vida das águas negras, fora das garras de lulas asquerosas.
Mas será que ela ainda estava viva?
Até ter certeza, Monk não perderia a esperança.
Nem por Lisa, nem por si mesmo.
Para esse fim, ele precisava de aliados.
O batuque perpétuo dos tambores continuava, mais alto e mais urgente, como se fizessem um esforço para afastar o tufão. Eles haviam subido alto o suficiente para que cada pancada nos tambores de couro agora reverberasse contra sua caixa torácica, chegando-lhe até os ossos.
Monk passou por um emaranhado de galhos, encharcados e curvados, e avistou um brilho tremeluzente adiante.
Luz de fogo.
Deu mais dois passos e parou.
Só então se deu conta de que eles não estavam sozinhos. Em cada lado do caminho, havia sentinelas, meio ocultas pela folhagem densa, mas evidentemente às claras, querendo ser notadas. Os homens, com o peito nu, usavam largos chapéus de palha presos à cabeça. Seus rostos haviam sido pintados com óleo e cinzas, deixando-lhes a fisionomia escura como breu. Presas polidas de javalis-brancos e ossos de costela amarelados trespassavam seus narizes. Penas brilhantes e conchas de caramujos se enfileiravam em torno de seus braços.
Com um grito, Ryder avançou com a pistola erguida.
As sentinelas não se impressionaram.
Monk empurrou o braço de Ryder para baixo e deu um passo à frente, erguendo as mãos com as palmas estendidas.
— Não assuste os nativos —sussurrou para Ryder.
Um membro da tribo moveu-se para a trilha. Usava um peitoral de osso preso por tiras de couro. Ao redor de sua cintura havia um saiote de longas penas. Suas pernas e pés estavam nus, também pintados com gordura e cinzas. Ele carregava uma omoplata afiada de algum animal.
Pelo menos, Monk esperava que fosse de um animal.
Monk ouviu um farfalhar de folhas atrás de si, sabendo que a trilha que haviam deixado já estava sendo fechada. Tambores soavam adiante. Por um momento, a luz da fogueira brilhou com mais intensidade.
O homem no caminho virou-se e saiu na frente, em direção ao brilho.
— Parece que fomos convidados para a festa — disse Monk, enlaçando Susan com um dos braços.
Ryder seguiu-os com a pistola na mão.
Se as coisas dessem errado, talvez eles precisassem das 13 balas restantes do bilionário a fim de abrir caminho para a liberdade. Mas, por ora, Monk sabia que a melhor coisa a fazer era cooperar.
A trilha terminava numa face íngreme da rocha vulcânica. Um anfiteatro abobadado natural havia sido escavado na rocha preto-avermelhada e coberto com um grosso telhado de palha de palmeira. O aguaceiro escoava num lençol de chuva da extremidade frontal do telhado, criando uma cortina aquosa.
Além da torrente, iluminadas por uma imensa fogueira, Monk avistou fileiras de tocadores de tambor ao longo de ambas as paredes, esforçando-se ao máxi¬mo, batendo com força no couro. Dois tambores enormes, tão largos quanto sua envergadura, pendiam das paredes da rocha e eram golpeados com baquetas de osso. Cada pancada estremecia a tênue cascata que caía do telhado de palha no chão da rocha.
Eles foram conduzidos para a frente.
Um único javali fuçava através do espaço aberto em frente e berrou à aproximação dos estranhos. Mais porcos estavam encolhidos sob uma saliência, pressionados uns contra os outros, anca com anca.
Monk conduziu Susan através do lençol de água para debaixo da grande saliência. Ele tremia enquanto a chuva caía sobre o seu peito nu. O calor do fogo ali dentro era bem-vindo, mas a fumaça asfixiava e ardia, esforçando-se ao máximo para que uma estreita coluna saísse através da palha.
Uma multidão, formada por alguns nativos em pé e outros agachados, havia se reunido em volta da fogueira adiante. Monk calculou mais de cem: homens, mulheres com os seios à mostra. Mas aberturas escavadas estendiam-se pelas paredes, e mais rostos olhavam através delas. Algumas crianças nuas, em pé, fitavam-nos com os olhos arregalados. Uma trazia nos braços um porquinho malhado de preto e branco.
A algum sinal, os tambores de repente pararam com uma nota ressonante. O silêncio era intimidador.
Naquele silêncio repentino, uma voz gritou.
— Monk!
Atônito, ele se virou. Uma figura magra estava em pé, imprensada contra as barras de bambu de uma cela construída num canto nos fundos, usando uma camisa rasgada e cuecas brancas enlameadas.
— Jessie?
O jovem enfermeiro ainda estava vivo!
Antes que eles pudessem prosseguir com seu reencontro lacrimoso e sincero, porém, uma figura alta avançou, embora para a tribo alto fosse cerca de 1,50 metro, no máximo. O velho dava a impressão de que alguém lhe vendera uma vestimenta de carne com o dobro do tamanho. Também estava untado de gordura e borrado de cinzas, e usava algum tipo de cabaça entrelaçada sobre os órgãos genitais e um emaranhado de penas roxas nos cabelos que se projetavam para cima, como que assustadas. E mais nada.
Monk reconheceu que aquele era o líder da tribo.
Era hora de representar um pouco, de dançar para a ceia dele — ou melhor, de dançar para não virar ceia.
Monk ergueu um dos braços na direção do ancião.
— Boogla-boogla rah! — entoou ele solenemente, depois retesou o antebraço e estendeu a outra mão a fim de puxar o pino em seu punho.
Libertada de seus contatos eletromagnéticos, sua mão artificial caiu na rocha vulcânica enlameada. A multidão ofegou.
O líder deu um passo para trás, quase entrando na fogueira.
Monk baixou o braço e olhou para sua mão separada do corpo.
Além de se parecer com carne de verdade, a prótese era uma maravilha da engenharia da DARPA, e incorporava o controle direto dos nervos periféricos através de pontos de contato de titânio no punho. Também era dotada de elementos da bioengenharia, como mecânica avançada e estimuladores, que permitiam a retroalimentação sensorial e movimentos com a precisão dos de um cirurgião.
Mas isso era apenas metade da história.
O coto do punho de Monk estava envolto numa bainha polissintética, presa cirurgicamente à extremidade de seu punho e conectada por cabos a feixes nervosos e tendões musculares. Na realidade, era a outra metade de sua prótese. A mão podia ser os músculos, mas a bainha no punho era sem dúvida o cérebro.
Com a outra mão, ele manipulou os contatos de titânio na bainha. Essa era a melhor característica de sua mão artificial. Monk realizava esse truque em festas o tempo todo. Então, por que aquela seria diferente?
Não havia fios ligando a bainha e a mão, e sim uma interface digital de rádio.
Quando Monk bateu de leve no pulso, reproduzindo uma seqüência ensaiada, sua mão decepada ergueu-se nas pontas dos dedos e começou a dançar na rocha como uma aranha de cinco patas.
Dessa vez o líder dos canibais entrou na fogueira, queimando o traseiro o suficiente para gritar e pular para fora.
Monk fez sua mão correr atrás dele.
Àquela altura, um amplo círculo se abrira ao redor do grupo. Ryder havia arrastado Susan para as sombras da face do penhasco, deixando o palco para Monk.
— Agora que eu tenho a atenção de vocês! — gritou Monk. Ele andou a passos largos na direção do fogo.
Supondo que ninguém ali falasse inglês, ele teve de persuadi-los com uma bravata de gestos e um forte golpe no peito nu. Ainda assim não bastava apenas assustar o povo supersticioso. Ele precisava conquistá-lo. Era hora de um estratagema da ilha Canibal liderado por um americano.
Dando meia-volta, Monk apontou para Susan.
Ao sinal dele, ela tirou da cabeça a camisa que Monk lhe emprestara. Ryder estendeu uma das mãos e tirou o avental hospitalar dos ombros dela, deixando-o cair. Susan ergueu os braços, com os seios à mostra como as mulheres dali.
Só que ela brilhava nas sombras.
Um assombro reprimido espalhou-se pelos membros da tribo.
O próprio Monk olhou embasbacado para Susan. Ela brilhava com uma intensidade ainda maior do que quando ele a vira pela primeira vez. Significativamente maior. A pele dela brilhava como se houvesse um luar interior que a deixava quase translúcida.
Do canto, Ryder acenou para Monk, exortando-o a prosseguir.
Perturbado, Monk se recompôs. Foi até Susan, ajoelhou-se e gritou a única palavra que conhecia na língua dos canibais, uma palavra que lhe fora ensinada por um pirata desdentado.
Um nome.
— RANGDA! — gritou ele, referindo-se à rainha da ilha dos canibais, senhora dos demônios brilhantes da lagoa.
Brilhantes como Susan. Ele curvou-se.
— Todos saúdem a rainha-feiticeira das ilhas!
l:04h
Devesh entrou no quarto de Lisa, batendo com sua bengala no chão.
Esparramada na cama, presa a uma linha intravenosa, Lisa sabia que não podia mais protelar. Mais cedo, quando era arrastada da doca de escaleres para dentro do navio, ela desmaiou nos braços do guarda, pegando-o de surpresa e caindo no deque com um baque que abalou seus ossos.
Ela rachara o lábio ao fazer isso, mas precisara fazer a encenação parecer convincente. Não fora difícil!. Com a panturrilha cortada por uma espada, o corpo rasgado e lacerado em centenas de lugares pelo aperto das garras das lulas predatórias e os pulmões ainda ásperos em decorrência do quase-afogamento, apenas a adrenalina a mantivera em pé.
Por isso ela havia sofrido um colapso e até ficado inconsciente por alguns instantes.
A encenação fez com que ela fosse levada para a suíte científica, onde foi tratada pelo médico do navio e por um dos membros da equipe médica da OMS. Sua perna fora limpa e suturada, junto com as lacerações mais graves. Um cateter intravenoso foi colocado, e através dele fluíam líquidos, antibióticos e analgésicos. Ela agora estava deitada em seu antigo quarto, uma cabine interna sem sacada nem janelas, sob guarda. Embaixo do lençol fino, seu corpo era uma colcha de retalhos de ataduras e curativos de gaze.
Esse tratamento não foi ministrado por misericórdia ou compaixão, e sim por causa de um único objetivo: assegurar que ela cumprisse a promessa feita a Devesh na doca de escaleres.
A Estirpe de Judas. Eu sei o que o vírus está fazendo.
Por uma revelação dessas, Devesh não estava disposto a perdê-la, em especial com Susan Tunis desaparecida em alguma parte da ilha varrida pela tempestade. Devesh precisava de Lisa. Por isso ela ampliou sua vantagem, protelando. Ela incumbira Devesh de algum trabalho inútil atribuindo várias tarefas ao chefe de seus laboratórios de análises clínicas.
A justificativa dela: testar e confirmar sua hipótese.
Mas aquilo só poderia ser prorrogado por pouco tempo.
— Então? — disse Devesh. — Os resultados estão sendo compilados neste exato momento. É hora de termos nossa conversinha adiada. Se eu não gostar do que ouvir, começaremos a reverter lentamente todo o seu tratamento médico. Imagino que reabrir seu ferimento com um alicate vai persuadi-la a cooperar.
Ele deu meia-volta e fez sinal para um enfermeiro que aguardava.
O cateter intravenoso de Lisa foi puxado rapidamente e coberto com fita adesiva.
Lisa sentou-se. O quarto flutuou um pouco, depois se estabilizou.
Sempre cavalheiro, Devesh estendeu-lhe um grosso roupão de algodão com o logotipo do navio. Lisa levantou-se, envolta num avental hospitalar fino, mas nua por baixo. Ela tolerou a polidez dele a fim de vestir o roupão e se cobrir, e apertou a faixa com força na cintura.
— Por aqui, dra. Cummings — disse Devesh, encaminhando-se para a porta.
Descalça, Lisa foi conduzida para fora da cabine. Devesh seguiu para a suíte de doenças infecciosas.
A porta estava aberta, e podiam-se ouvir vozes.
Seguindo Devesh para dentro da suíte, Lisa imediatamente reconheceu dois rostos familiares: o bacteriologista, Benjamin Miller, e seu confidente desde que ela chegara, o toxicologista holandês Henri Barnhardt. Os dois médicos estavam sentados a um lado de uma mesa estreita.
Lisa olhou ao redor. Haviam removido toda a mobília da parte de trás da suíte e a substituído por equipamento de laboratório, grande parte dele roubada do equipamento de Monk: microscópios de fluorescência, espectrômetros de cintilação e Auto-Gamma, incubadoras de dióxido de carbono, centrífugas refrigeradas, leitores de microtitulação e de ELISA, e, ao longo de uma parede, um pequeno coletor de fração.
Algumas universidades não eram tão bem equipadas.
A dra. Eloise Chénier, a virologista e administradora-chefe do laboratório de doenças infecciosas da Guilda, estava em pé no outro lado da mesa, usando um jaleco de laboratório que lhe batia nos tornozelos. Com cerca de 60 anos, cabelos grisalhos e um par de óculos de leitura pendurado num cordão em volta do pescoço, ela parecia uma professora esquisita.
Um dos braços da virologista estava erguido na direção de duas estações de computadores atrás dela. Dados fluíam em um monitor; o outro exibia uma confusão de arquivos superpostos. Com um forte sotaque francês, ela estava acabando de explicar alguma coisa a Henri e Miller.
— Nós obtivemos uma excelente carga viral lavando uma amostra do líquido cefalorraquidiano em uma série de tampões de fosfato, e depois a fixamos com glutaraldeído e a granulamos por centrifugação.
Chénier notou a chegada deles e fez sinal para que se sentassem à mesa.
Devesh juntou-se à sua colega, enquanto Lisa encontrou uma cadeira vazia ao lado de Henri. Seu amigo pôs uma tranquilizadora mão sobre um dos joelhos dela. Ele olhou de relance para ela, com a expressão que perguntava: Você está bem?
Ela fez um movimento afirmativo com a cabeça, contente por estar sentada.
Devesh virou-se para Lisa.
— Nós concluímos todos os exames auxiliares que a senhora requisitou, dra. Cummings. Será que agora a senhora pode explicar por quê?
Seu olhar acusador a oprimia.
Lisa respirou fundo. Ela havia adiado o máximo possível. Sua única esperança de continuar viva era dizer a verdade e rezar para que o valor de sua tática fosse grande o suficiente para superar sua traição anterior.
Ela se lembrou da primeira lição de Devesh: Ser útil.
Lisa começou devagar, relatando sua descoberta do estranho brilho na retina dos olhos de Susan. Porém, à medida que falava, ela viu a descrença já irradiando da expressão de Devesh.
Lisa virou-se para Henri, em busca de comprovação.
— Você conseguiu realizar o ensaio fluorescente na amostra do líquido espinal?
— Ja. A amostra de líquido de fato exibe uma baixa fluorescência.
Chénier concordou.
— Eu centrifuguei. O granulado bacteriano de fato brilhou. E foi confirmado que eram cianobactérias.
Miller, o bacteriologista, concordou com a cabeça em concordância.
O ceticismo de Devesh mudou para interesse. Seus olhos voltaram a se concentrar em Lisa.
— E com base nisso a senhora determinou que as bactérias haviam migrado do cérebro para o nervo óptico e colonizado os fluidos dos olhos. Por isso a senhora solicitou a segunda punção lombar.
Ela fez que sim com a cabeça.
— O dr. Pollum não está aqui. Ele conseguiu concluir a análise da proteína no envoltório do vírus?
Lisa também requisitara esse exame. Na verdade, ele não era necessário, mas havia prometido algumas horas de trabalho extra.
— Um momento — disse Chénier. — Tenho os resultados aqui. — Ela virou-se para um dos monitores e começou a fechar as telas enquanto narrava. — Talvez lhes interesse saber que, a partir das análises genéticas, conseguimos classificar o vírus como pertencente à família Bunyavirus.
Henri percebeu os olhos de Lisa se contraírem e explicou.
— Era o que estávamos discutindo antes de você chegar. Normalmente, os buniavírus infectam aves e mamíferos, causando febres hemorrágicas, mas em geral os vetores da transmissão são artrópodes: pernilongos, carrapatos, mosquitos.
Ele empurrou um bloco de notas na direção dela.
Lisa olhou de relance para as páginas abertas. Henri fizera um diagrama da via de infecção.
Ser humano ? Inseto (artrópode) ? Ser humano
(infectado) (transmissor, não enfermo) (infectado)
Henri bateu de leve no centro do diagrama.
— Os insetos são necessários para disseminar a doença. Os buniavírus raramente são transmissíveis diretamente de ser humano para ser humano.
Lisa esfregou as têmporas.
— O contrário da Estirpe de Judas. — Ela pegou um lápis e modificou o diagrama. — Em vez de um inseto para disseminar a doença, é uma célula bacteriana que transmite o vírus de uma pessoa para outra.
Ser humano ? Bactéria ? Ser humano
(infectado) (infectado)
Henri franziu o cenho.
— Sim, mas por quê...?
Rajadas de tiros interromperam suas palavras. Todos eles deram um pulo de onde estavam.
Até mesmo Devesh deixou sua bengala cair. Sussurrando uma praga, ele pegou-a e encaminhou-se para a porta.
— Vocês todos fiquem aqui.
Mais rajadas seguiram-se, junto com gritos guturais.
Lisa levantou-se. O que estava acontecendo?
1:24h
Devesh chamou dois guardas posicionados na ala científica e saiu às pressas para o posto de segurança no centro do navio, junto aos elevadores. Disparos de armas automáticas irrompiam em explosões esporádicas, tão altas quanto detonações no espaço reduzido.
Gritos soavam entre as rajadas.
Mantendo os guardas à sua frente, Devesh seguiu com mais cautela quando o posto surgiu à vista. Seis homens guarneciam a unidade de segurança. O líder, um soldado somali alto, notou Devesh e recuou para sua posição.
Ele falou laconicamente em malaio.
— Senhor, uma dúzia dos enfermos fugiu de uma das enfermarias de trás. Eles correram para a nossa linha e atacaram.
O líder fez sinal com a cabeça para um dos guardas, sentado ao lado, que segurava com cuidado um braço ensangüentado. Ele havia arregaçado a manga da camisa, revelando um profundo ferimento causado por uma mordida.
Devesh deu um passo à frente e apontou distraidamente para o homem ferido.
— Isole-o.
Além do posto de segurança, um corredor estendia-se na direção da popa. Algumas portas estavam abertas; outras, fechadas. Ao longo do corredor havia alguns corpos estatelados, cheios de perfurações de balas, e o sangue encharcava o carpete. Os dois mais próximos — uma mulher obesa nua e um adolescente sem camisa — estavam embolados. Devesh notou as erupções cutâneas e os furúnculos enegrecidos nos cadáveres.
Ele lutou para controlar seu mau humor, respirando pesadamente pelas narinas. A seção da popa daquele nível abrigava os pacientes mais debilitados, tornando-os prontamente disponíveis para a equipe de pesquisa. Devesh havia elaborado um rígido protocolo ao se lidar com os pacientes daquele nível. Tais lapsos não seriam tolerados. Não quando ele estava tão próximo do êxito.
— Eu pedi reforços — disse o líder das sentinelas. — Quando começamos a atirar, alguns dos enfermos fugiram para quartos abertos. Teremos que fazê-los sair.
Ouviu-se um gemido mais adiante no corredor.
Um homem ergueu-se apoiado num dos cotovelos. Seu outro ombro era uma ruína ensangüentada. Ele usava um jaleco médico. Era um dos médicos, surpreendido em meio ao tiroteio.
— Me ajudem! — implorou ele.
De uma porta aberta junto ao seu ombro, uma mão estendeu-se e agarrou seu jaleco. Outra se emaranhou em seus cabelos. Ele gritou quando foi puxado parcialmente pela porta. Com as pernas ainda projetadas no corredor, seus calcanhares agitavam-se e batiam no chão.
O líder das sentinelas olhou de relance para Devesh, pedindo permissão para avançar.
Devesh sacudiu a cabeça.
Os gritos do médico pararam de repente, mas seus calcanhares continuaram a bater num ritmo de agonia.
Devesh não sentiu a menor solidariedade. Alguém havia sido descuidado com uma algema ou com a fechadura de uma porta. Ele ouviu o barulho das botas dos reforços ecoando pelo poço da escada acima.
Devesh virou-se, mas apontou um braço para o corredor.
— Extermine-os.
— Senhor?
— O convés inteiro. Faça uma limpeza total. Cabine por cabine.
1:54h
Ainda no laboratório de virologia, Lisa ouviu os disparos dos rifles.
Os gritos também chegaram até ela.
Ninguém falou.
Devesh finalmente voltou. Ele parecia inabalável, apenas com o rosto um pouco vermelho, e apontou a bengala para Lisa.
— Venha comigo. Tem uma coisa que eu gostaria que a senhora visse.
Ele deu meia-volta e afastou-se rapidamente.
Lisa levantou-se e seguiu-o, apressando-se para manter o passo.
Devesh a conduziu além do posto de segurança e ao longo do próximo corredor.
Parecia um matadouro. O sangue espirrara nas paredes. Corpos jaziam achatados contra as paredes, macerados pelos disparos de armas automáticas.
Lisa engoliu em seco, asfixiando-se com o mau cheiro no corredor confinado.
Enquanto eles seguiam pelo corredor, as portas de todas as cabines estavam abertas. Ela olhou de relance para dentro e avistou mais corpos sem vida, retorcidos, ensangüentados. Algumas pessoas haviam sido fuziladas ainda algemadas aos seus leitos.
Mais tiros soaram — não esporádicos, mas intencionais.
Mais abaixo, dois guardas saíram de uma cabine com os rifles fumegantes e em seguida foram para o próximo quarto.
— O senhor... o senhor está chacinando os pacientes — disse Lisa.
— Nós estamos aliviando a carga de pacientes, só isso. — Devesh ergueu um braço e moveu-o vagamente para a frente. — Esta é a segunda fuga. Uma hora atrás, dois pacientes escaparam das algemas, arrancando com os dentes os próprios dedos para se libertarem. Eles atacaram o médico, matando-o antes que pudessem ser detidos. Num estado demente desses, esses pacientes são fortes, excitados pela adrenalina, indiferentes à dor.
Lisa lembrou-se do vídeo do marido de Susan Tunis, enfurecido e atacando. Aquilo agora estava começando ali também.
Devesh olhou para ela.
— Com base nos exames dos eletroencefalogramas, parece que a senhora tinha razão. A patologia parece ser alguma forma de excitação catatônica, acompanhada por profundos surtos psicóticos.
Mais tiros ecoaram, fazendo-a sobressaltar-se.
Respondendo à reação dela, ele suspirou.
— Isto é para a segurança de todos. Estamos observando um rápido declínio no estado dos pacientes em todo o navio. Com os estoques de medicamentos já começando a acabar, temos que ser eficientes. Assim que um paciente regride a esse nível de debilitação, passa a representar uma grave ameaça física a todos ao seu redor e não serve a nenhum objetivo prático.
Lisa compreendeu o sentimento por trás das palavras dele. Devesh e a Guilda estavam usando os pacientes do navio como o equivalente de meios de cultura vivos para a Estirpe de Judas, colhendo os patógenos letais e armazenando-os como armas biológicas potenciais. E, a exemplo de qualquer campo após a colheita, Devesh estava preparando-o para a semeadura.
— Por que o senhor me trouxe aqui? — perguntou ela, horrorizada.
— Para mostrar-lhe isto.
Devesh foi até a única porta de cabine que ainda estava fechada. Ele passou o cartão pela fechadura e manteve a porta aberta para ela.
Um mau cheiro mais forte atingiu-a.
Lisa transpôs o limiar escuro, sem saber o que esperar. As luzes do corredor revelaram uma cabine interna, parecida com sua própria cabine: um pequeno banheiro, um sofá, um televisor e uma pequena cama na parte de trás.
Atrás dela, Devesh estendeu a mão para dentro e acendeu as luzes. As lâmpadas tremeluziram e depois se estabilizaram num zumbido baixo de fluorescentes.
Lisa recuou, com uma das mãos na garganta.
Um corpo jazia inclinado na cama, e encharcara as roupas de cama e os travesseiros. Suas pernas nuas estavam amarradas aos pés da cama, e os braços, à cabeceira. Mas parecia que uma bomba havia explodido na barriga dele, deixando um buraco em seu abdome. Sangue coagulado havia salpicado o teto e as paredes.
Cobrindo a boca com uma das mãos, Lisa se acalmou, voltando por reflexo a ser objetiva, seu único porto seguro.
Onde estavam seus órgãos internos?
— Pacientes cujas mentes haviam se deteriorado além do controle foram encontrados devorando-o — explicou Devesh.
Lisa estremeceu de maneira súbita e violenta. De repente ficou cônscia demais de seus pés descalços, de seu corpo quase nu embaixo do roupão.
— Nós já vimos isto antes — continuou Devesh. — Nesse estado de excitação catatônica, o vírus parece estimular um apetite voraz. Insaciável, na verdade. Nós observamos uma dessas vítimas, um paciente, se empanturrar até seu estômago explodir. E ainda assim ele continuou a comer.
Oh, meu Deus...
Passado o choque, Lisa precisou de mais um instante para que o significado daquelas palavras a atingisse.
— Vocês viram... onde...?
— Dra. Cummings, a senhora não acha que estávamos estudando apenas Susan Tunis. Para sermos meticulosos, precisamos entender também cada faceta da doença. Até mesmo esse canibalismo. Essa fome insaciável tem uma notável semelhança com a síndrome de Prader-Willi. A senhora a conhece bem?
Entorpecida, Lisa sacudiu a cabeça.
— Trata-se de uma disfunção do hipotálamo que desencadeia um apetite insaciável que não pode jamais ser mitigado. Uma sensação interminável de fome. Um defeito genético raro. Muitas das pessoas acometidas morrem jovens em conseqüência de rupturas no estômago causadas pelo empanzinamento.
A avaliação fria e objetiva de Devesh ajudou-a a acalmar-se um pouco, mas sua respiração continuou pesada.
— A autópsia de um dos cérebros dos psicóticos revelou dano tóxico ao hipotálamo, semelhante à patologia nos pacientes que sofrem da síndrome de Prader-Willi, complementado pela excitação catatônica e pela estimulação supra-renal. Bem...
— Devesh acenou na direção da cama.
O estômago de Lisa embrulhou. Quando se virou, ela finalmente notou o rosto da vítima: os lábios angustiados, os olhos fixos e vazios, a coroa de cabelos grisalhos.
Ela cobriu a boca com uma das mãos quando reconheceu o homem. Era o paciente John Doe, o que sofria da doença devoradora de carne. Pela história clínica de Susan, Lisa até sabia o nome do paciente agora.
Applegate.
Para dar um nome ao canibalismo ali, para personalizá-lo... Lisa saiu às pressas do quarto.
Os olhos de Devesh cintilavam com uma diversão sombria. Lisa se deu conta de que o filho-da-puta a trouxera de propósito até ali, seminua, debilitada, sabendo que ela o identificaria. Tudo não passava de um terrível sadismo.
— Então, agora a senhora sabe o que nós verdadeiramente enfrentamos aqui — disse ele. — Imagine esses acontecimentos ampliados no mundo inteiro. Essa é a ameaça que estou tentando evitar.
Lisa reprimiu uma resposta ríspida. Tentando evitar uma ova.
— Estamos enfrentando uma pandemia — prosseguiu Devesh enquanto seguia pelo corredor de volta à ala científica. — Antes de a OMS responder à situação na ilha Christmas, os primeiros pacientes já tinham sido transportados de avião para Perth, na Austrália. Antes disso, turistas que haviam visitado a ilha Christmas já haviam se espalhado pelos quatro cantos do mundo: Londres, São Francisco, Berlim, Kuala Lumpur. Não sabemos quantos foram infectados — se é que algum foi — pela exposição inicial, como a dra. Susan Tunis, mas não devem ter sido muitos. Sem a desinfecção adequada, como a que empregamos aqui, o vírus já pode estar se disseminando.
Devesh conduziu-a corredor abaixo de volta ao laboratório de virologia.
— Então, talvez agora a senhora seja um pouco mais afável e franca. Quando eles reentraram no laboratório, olhares interrogadores se voltaram para eles.
Lisa simplesmente sacudiu a cabeça e afundou em sua cadeira. Assim que se acomodaram, a dra. Eloise Chénier levantou-se de sua cadeira em frente ao computador.
— Enquanto vocês estavam ausentes, levantei os arquivos do dr. Pollum — disse ela. — Aqui está o diagrama de uma proteína que a senhora pediu. Do vírus na sopa tóxica.
A médica afastou-se da tela a fim de que todos pudessem ver a imagem em rotação, girando como um pião no monitor.
Ela descrevia o envoltório em forma de icosaedro do vírus: vinte seções triangulares, formando uma esfera, como uma bola de futebol. Com a exceção de que alguns dos triângulos sobressaíam com proteínas alfa, ao passo que outros estavam afundados em proteínas beta. Lisa quis que tudo fosse mapeado cuidadosamente para melhor testar sua hipótese.
Lisa apontou para a tela.
— A senhora pode interromper a rotação?
Chénier pressionou um botão do mouse e a rotação cessou, congelando a imagem na tela.
Lisa levantou-se.
— Agora, no outro monitor, a senhora pode exibir o mapa proteico do vírus obtido do líquido cefalorraquidiano de Susan Tunis?
Um instante depois, apareceu uma segunda bola de futebol, girando. Lisa aproximou-se, examinando-a. Dessa vez ela mesma manuseou o botão do mouse, congelando a imagem no ponto em que queria.
Ela virou-se para os outros.
Devesh deu de ombros, usando toda a parte superior do corpo.
— Então? Ela parece ser igual à outra.
Ela recuou.
— Imaginem as duas lado a lado.
Henri levantou-se, com os olhos arregalados.
— Elas não são iguais!
Ela concordou com a cabeça.
— Elas são imagens especulares uma da outra. Superficialmente, elas podem parecer iguais, mas na verdade são opostos exatos. Isomerismo geométrico. Duas formas da mesma figura geométrica, apenas refletidas uma sobre a outra.
— Cis e trans — disse Chénier, usando os termos técnicos para os dois lados da mesma moeda.
Lisa bateu de leve na primeira tela.
— Esta é a forma trans, ou a forma ruim do vírus. Ela infecta bactérias e as transforma em monstros. — Ela acenou na direção da outra tela, que representava o vírus encontrado no crânio de Susan. — E aquela é a forma cis, ou o vírus bom, que cura.
— Cis e trans — murmurou Miller. — Bom e mau.
Lisa entrou em detalhes sobre sua teoria.
— Como já sabemos, o vírus trans intoxicou bactérias a fim de enfraquecer a barreira hematoencefálica, permitindo assim que ele penetrasse naquele território virgem do interior do crânio. E até levou uma companhia consigo.
— As cianobactérias — disse Miller. — As bactérias brilhantes.
— E, sob condições normais, as toxinas produzidas pelas bactérias degeneraram o cérebro de tal maneira que ele desencadeou excitação catatônica com psicose. Mas no caso de Susan aconteceu outra coisa. Ao chegar ao fluido cerebral, de algum modo o vírus se alterou. Mudou de sua forma trans maligna para sua forma eis benigna. E, uma vez alterado, o novo vírus fez uma limpeza geral e começou a reverter todos os danos causados pelo seu gêmeo maligno, curando a paciente e deixando-a num profundo estupor de recuperação, oposto à fase de excitação maníaca dos outros pacientes.
— Mesmo que você esteja certa — disse Henri —, e acredito que esteja, o que havia de tão especial na bioquímica de Susan para desencadear essa mudança?
Lisa deu de ombros.
— Aposto que nos próximos dias ou semanas nós veremos um punhado de outros pacientes passarem pela mesma transformação. Susan foi infectada há cinco semanas, por isso talvez seja cedo demais para avaliar. Mas creio que ainda é um acontecimento muito raro. Uma peculiaridade aleatória na genética de Susan. Por exemplo, você conhece o fenômeno de Eyam durante a Peste Negra?
Chénier levantou uma das mãos como se estivesse numa sala de aula.
— Conheço.
Lisa acenou com a cabeça. Era óbvio que uma especialista em doenças infecciosas conheceria a história.
Chénier explicou:
— Eyam era uma pequena aldeia na Inglaterra. No século XVI, a Peste Negra assolou a aldeia. Mas, depois de um ano, a maior parte dos moradores de Eyam ainda vivia. Estudos genéticos modernos revelaram por quê: uma mutação rara estava presente nos aldeães, num gene chamado Delta 32. Tratava-se de um defeito benigno que era transmitido de um membro da família para outro, e num povoado tão isolado, com moradores endogâmicos, uma boa parte deles havia adquirido a mutação. Então a praga atacou. E essa mutaçãozinha estranha, que simplesmente não parecia ter importância alguma, os salvou, tornou-os imunes.
Devesh falou.
— Vocês estão insinuando que nossa paciente é portadora de um equivalente do Delta 32 que combate a Estirpe de Judas? Alguma proteína aleatória que dentro dela transformou enzimaticamente o vírus de trans em cis?
— Ou talvez ela não seja tão aleatória assim — murmurou Lisa. Ela vinha se debatendo com essa questão desde sua descoberta do vírus alterado. — Só uma pequeníssima porcentagem de nosso DNA é de fato funcional. Na verdade, apenas 3%. Os outros 97% são considerados lixo genético. Eles não codificam nada. Mas parte desse DNA inútil tem uma notável semelhança com o código viral. A crença atual é a de que essa codificação poderia desempenhar um papel protetor, a fim de nos ajudar a sobreviver a futuras doenças.
Enquanto continuava, Lisa imaginou o corpo do companheiro de Susan, atacado e devorado.
— Como o canibalismo, por exemplo.
Sua estranha declaração fez com que todos desviassem os olhos dos monitores.
Lisa explicou em detalhes.
— Marcadores genéticos encontrados no mundo inteiro revelam que a maioria dos seres humanos é portadora de um conjunto específico de genes contra doenças que só podem ser adquiridas consumindo-se carne humana. Esses achados indicam que nossos antigos ancestrais talvez fossem todos canibais. Pode ser que Susan possua um marcador genético semelhante para proteger seu cérebro contra o ataque do vírus da Estirpe de Judas. Alguma coisa que restou de nossa história genética há muito perdida. Alguma coisa enterrada em nosso passado coletivo.
— Interessante como sempre, dra. Cummings. — Devesh oscilava para a frente e para trás, apoiado nos dedos dos pés, claramente excitado. — Mas se a transformação foi fruto do acaso ou foi desencadeada por algum marcador genético virai de nosso passado... isso na verdade não importa. Agora que sabemos sobre esse novo vírus, podemos usar esse conhecimento para produzir uma cura!
Chénier parecia menos segura.
— Possivelmente — frisou ela. — Será necessário pesquisar mais. Felizmente temos um navio repleto de pacientes enfermos nos quais podemos testar potenciais regimes de tratamento. Mas primeiro precisaremos de mais desse vírus trans.
Ela olhou significativamente para Devesh.
— Não se preocupe — disse ele. — Com Rakao e seus homens já fazendo uma busca na ilha, logo teremos Susan Tunis e os outros de volta. Mas com essa questão resolvida...
Devesh virou-se para Lisa.
— Agora é hora de discutirmos sua punição.
Como que à espera de um sinal, uma figura avançou, trazendo nas mãos uma maleta de médico.
Seus longos cabelos negros haviam sido presos de novo numa trança.
Surina.
3:14h
Monk subia o íngreme caminho em ziguezague, atrás das nádegas nuas de um dos canibais. Outra dúzia de membros da tribo escalava a trilha repleta de curvas na rocha adiante dele. Atrás de Monk vinham mais outros quarenta homens.
Seu exército de canibais.
A chuva caía torrencialmente do céu escuro. Mas pelo menos os ventos quase haviam se extinguido, golpeando apenas com rajadas ocasionais através dos picos irregulares. Monk havia propositalmente marcado aquela escalada, esperando o olho da tempestade passar por cima da ilha. Fora um adiamento angustiante, mas sua paciência abrira uma pequena janela de oportunidade.
Ele continuava a avançar. Embora o caminho que eles escalavam fosse abrigado, profundamente talhado na rocha, o aguaceiro tornava as rochas escorregadias, traiçoeiras, exigindo, às vezes, que eles engatinhassem.
Monk olhou para trás.
Ryder e Jessie estavam às suas costas. Atrás deles seguia uma fila de membros da tribo, usando penas, conchas, cortiça, garras de pássaros e ossos.
Muitos ossos.
A tropa de choque improvisada carregava lanças, arcos feitos de galhos de árvores e clavas afiadas. Mas metade deles também carregava rifles e uma pequena quantidade de velhas armas de assalto — fuzis AK-47 russos, fuzis M16 americanos — junto com bandoleiras atadas por correias com pentes e cartuchos extras. Parecia que os canibais vinham negociando mais do que apenas carne humana com os piratas que partilhavam sua enseada.
Daquela altura, Monk tinha uma vista ampla da lagoa escura. O navio de cru¬zeiro brilhava no meio da lagoa como um bolo de casamento encharcado. Ele era a meta da tropa de choque formada pelos canibais.
Parecia que os canibais fascinados assegurariam que Rangda, a rainha-feiticeira, obtivesse o que quer que desejasse.
E Rangda desejava aquele navio de cruzeiro.
Os desejos e as ordens dela eram traduzidos pelo jovem Jessie. Ele falava malaio, e, como essa era a língua comercial oficial dos piratas, a maioria dos canibais também a entendia. Eles estavam muito espantados de que o jovem enfermeiro entendesse a língua de sua rainha e fosse capaz de transmitir os desejos de Rangda. Ela até deu um beijo no rosto de seu intérprete, abençoando o jovem enfermeiro.
Ninguém ousava desobedecer-lhe.
Embora Jessie tivesse sido essencial na organização do ataque, todo o plano era de Monk.
Ele virou as costas para o navio de cruzeiro. Com as águas certamente vigiadas, jamais conseguiriam fazer um ataque de barco. E, sem dúvida, nadar não era uma opção. Mesmo daquela altura, Monk notava os brilhos ocasionais que deixavam listras na lagoa lá embaixo. A tempestade deixara seus habitantes agitados e caçando nas águas rasas.
Por isso restara apenas uma opção.
Monk subiu mais alto, até o teto do mundo. Eles finalmente haviam chegado aos postes de aço gigantes e ao enorme conjunto de cabos que sustentava aquela parte da rede que cobria a ilha.
Monk desviou o olhar pelo lado de baixo da rede.
A chuva caía torrencialmente dali, encharcando por completo toda a vegetação de camuflagem entrelaçada no lado de cima da rede. Alguém devia estar mantendo aquela ilusão. E Monk supôs que não fossem apenas os piratas.
Provando isso, um dos canibais correu até o cabo mais próximo, com os pés descalços impulsionando sua forma ágil até a cobertura. Ele desapareceu através da rede. Uma escada de corda foi jogada para baixo.
Outros começaram a escalar.
Monk virou-se para Jessie.
— Você ainda pode ir lá para baixo e juntar-se a Susan na praia. Nós podemos pegar vocês dois lá.
Jessie afastou dos olhos os cabelos encharcados pela chuva.
— Eu vou. Senão, quem vai traduzir para você?
Antes que Monk pudesse argumentar, o enfermeiro segurou a escada e subiu apressadamente.
Ryder foi o próximo, dando um tapinha no ombro de Monk ao passar. Assim que o bilionário passou através da rede, Monk segurou o degrau inferior, olhando para trás, para a extensão de seu exército escuro. Cobertos de penas, armados até os dentes, prontos para cumprir a ordem de sua rainha.
Monk sentiu uma momentânea preocupação por abusar das superstições deles nesse aspecto. Muitos deles morreriam. Porém, se Lisa estivesse certa, o mundo inteiro estava ameaçado. Ele não tinha opção a não ser usar os recursos à mão.
Eles tinham de chegar ao navio de Ryder, tirar Susan dali e, com um pouco de sorte, resgatar Lisa. Monk recusava-se a acreditar que sua colega não estivesse viva.
Ele subiu a escada.
Passou pelo emaranhado de camuflagem que se agitava. Mesmo no olho da tempestade, as rajadas de vento tentavam arrancá-lo do lugar. Ele se posicionou sobre uma estreita faixa de tábuas, aparafusadas em cima da rede. Era uma ponte utilitária grosseira. A estrutura oferecia um meio de ir e vir na rede, de fazer sua manutenção, de renovar sua camuflagem quando necessário.
A vanguarda de seu exército, rastejando, já cruzava a ponte, segurando em suas tábuas.
Com a chuva caindo em pancadas que doíam, Monk precipitou-se atrás deles. Ventos ocasionais zuniam através da rede, estremecendo-a e chacoalhando-a embaixo dele. Era como voar no tapete de Aladim.
Ele ergueu a cabeça e olhou ao redor. Acima, a coberta de nuvens havia se rarefeito o bastante para revelar algumas estrelas, mas em toda parte nuvens escuras agitavam-se num movimento rápido e contínuo. O olho da tempestade era menor do que Monk havia esperado. Em todos os lados, raios cintilavam e trovões ribombavam.
Monk seguia em frente. Ele e seu exército tinham de estar fora da rede quando o olho da tempestade se afastasse da ilha. Ele se lembrou de quedas de raios anteriores, das cascatas de eletricidade movendo-se com violência pelo esqueleto de metal.
Seria a morte estar ali em cima então.
Eles avançaram lentamente na direção de sua meta.
Enquanto seguia os outros, Monk olhou para baixo, por entre as tábuas. Pelo menos, Susan estava fora de perigo.
4:02h
Com o rosto engordurado e coberto com cinzas para ocultar seu brilho, Susan estava sentada numa rocha oculta na selva, não muito distante da lagoa. Passara a última hora descendo para a praia, a fim de esperar Monk lá.
Porém, não estava sozinha.
Uma dúzia de membros da tribo, sua escolta real, mantinha guarda na selva, escondida na floresta. Apenas uma mulher, cujo nome era Tikal, fazia-lhe companhia imediata, ajoelhada ao lado da rocha, com a cabeça pressionada na lama. Ela não se movera desde que eles haviam parado.
Susan havia tentado envolvê-la, mas a mulher apenas tremia.
Por isso Susan aguardava, sentada na rocha. Ela usava um manto de pele de porco seca, ornado com penas, conchas e contas de pedra polida. Sua cabeça estava coroada por um aro de ossos de costela, preso à sua testa por fibras de cortiça. Todos os ossos estendiam-se para fora, como uma espécie de flor macabra. Haviam lhe dado um cajado polido, encimado por um crânio humano empalado.
Tudo isso fazia parte da indumentária digna da rainha-feiticeira de Pusat.
E, apesar da ornamentação mórbida, o manto era quente, e o cajado revelou-se útil na descida da região montanhosa até a praia. Sua escolta também havia preparado um abrigo temporário, coberto com palha de palmas, que mantinha sua senhora seca.
Susan olhou para cima, para a enorme rede. Ela sabia que estava fraca demais para tentar cruzá-la com os outros. Por isso não argumentou quando Monk a mandou descer para a praia, ficar escondida e esperar o resultado do ataque dos canibais ao navio de cruzeiro.
Mas ela sabia que seria uma longa vigília.
Longa demais.
Desamparada, começou a absorver todo o impacto do que acontecera depois que ela despertara a bordo do navio. Embora estivesse viva, as pessoas que lhe eram mais caras não tinham sobrevivido.
Gregg...
Seu marido voltou-lhe à lembrança: seu sorriso torto, sua gargalhada rápida, seus olhos escuros, o cheiro almiscarado de sua pele, o gosto de seus lábios... e assim sucessivamente.
Ele a completava.
Como era possível que tudo aquilo tivesse acabado?
Susan sabia que ainda estava longe de compreender por completo sua perda. Porém, ela sabia o bastante. Parecia que seu corpo estava fisicamente machucado até o âmago dela. Sua garganta fechou-se, e ela começou a tremer. Lágrimas brilhantes brotaram em seus olhos e escorreram por seu rosto enegrecido pelas cinzas.
Gregg...
Ela balançou-se no lugar por um longo tempo, simplesmente deixando sua dor torturá-la. Era impossível detê-la. A onda de tristeza era uma força de maré, tão inescapável quanto a influência da Lua.
Depois de algum tempo, porém, mesmo uma maré tem de refluir. Em sua esteira dolorosa, restou outra sensação primária, carregada por águas ainda mais profundas, algo que ela evitara reconhecer até agora. Mas estava lá, tão inescapável quanto sua dor.
Susan estendeu um dos braços de sob seu manto, olhando fixamente para a extensão de sua pele, brilhando por causa das cianobactérias em sua transpiração, em seus poros. Ela virou a mão, expondo a palma para cima. O brilho não aquecia a pele, mas havia um calor estranho, que evocava mais uma febre do que a luz do sol.
O que estava acontecendo com ela?
Como bióloga marinha, Susan sabia tudo sobre o organismo. As cianobactérias, normalmente chamadas de algas verde-azuladas, eram tão onipresentes quanto o próprio mar. Elas se agrupavam num sem-número de formações: filamentos finos, folhas lisas, bolas ocas. Foram instrumentais para a evolução, tendo sido os predecessores das plantas atuais. Nos primórdios da história da Terra, as cianobactérias também geraram a primeira atmosfera com oxigênio do planeta, tornando o mundo habitável. E desde então elas haviam se adaptado a milhões de nichos ecológicos.
Portanto, o que significava a colonização de seu corpo? Como ela se relacionava com sua exposição ao vírus da Estirpe de Judas? Não fazia o menor sentido.
Apesar de todas as suas perguntas, Susan sabia de uma verdade.
Alguma coisa ainda estava por vir.
Ela sentia isso no fundo do seu ser, uma sensação que brotava e que desafiava qualquer descrição.
Tão impossível de deter quanto qualquer maré ascendente.
Ela olhou para a floresta, para a lagoa, para além da ilha. Com a mesma certeza com que podia sentir o sol nascendo além da curva do planeta, Susan sabia que sua transformação não terminara.
4:18h
A cerca de 100 metros de distância, Rakao espiava sua presa. Oculto numa capa de chuva, ele mantinha os óculos infravermelhos na testa. Contou os pontos vermelhos brilhantes, assinaturas do calor de corpos humanos, espalhados na beira da praia. Seus caçadores eram mais numerosos que os membros da tribo, o dobro deles.
Com um dos punhos erguido, Rakao fez um sinal para que seu grupo se espalhasse para cada lado, a fim de manter distância deles. Seus homens sabiam que só deviam se mover a cada ribombar de um trovão. Os membros da tribo tinham os sentidos aguçados. Ele não queria assustar sua presa.
Rakao observou Susan Tunis, sentada sobre uma rocha. Ele seguira o grupo de canibais da região montanhosa até a lagoa. Onde estavam os companheiros dela? Não podiam estar longe.
Embora pudesse capturá-la a qualquer momento, ele era um caçador paciente. Ouando seus homens se espalharam para armar uma cilada, Rakao soube a melhor maneira de usar a mulher.
Como isca.
CAPÍTULO 14
Ruínas de Angkor
7 de julho, 5:02h
Siem Reap, Camboja
Depois de seis horas de viagem, Gray foi parar noutro século e numa miscelânea de culturas. Ele desceu do táxi no coração do antigo distrito francês de Siem Reap, um pequeno vilarejo à margem do rio, no centro do Camboja, situado entre arrozais e a grande extensão de um lago interno. Faltando ainda uma hora para o nascer do sol, o lugar ainda dormia, com o ar pesado e úmido, o zumbido de mosquitos e o assobio da luz trêmula dos lampiões a gás. Do rio próximo, o preguiçoso coaxar dos sapos aumentava a suave sonolência da madrugada.
Alguns esquifes baixos eram impelidos com varas pelas águas rasas do rio, com lâmpadas a óleo penduradas em longas hastes, enquanto pescadores com grandes chapéus de bambu verificavam as armadilhas para caranguejos e lagostins ou esfaqueavam as rãs descuidadas, a fim de levar o produto da pesca, ainda fresco, para os muitos restaurantes e cafés do vilarejo.
O restante do grupo de Gray desembarcou do táxi demonstrando a exaustão com atitudes. Vigor, encurvado e com os olhos turvos, dava a impressão de que alguém o havia lavado e colocado molhado no ar úmido, ao passo que Seichan se alongou como um gato recém-desperto, protegendo com uma das mãos seu lado ferido. Os olhos dela moveram-se além dele a fim de inspecionar suas acomodações. Kowalski coçou a axila e fez o mesmo, assobiando entre os dentes, o que fez um cachorro latir a um quarteirão dali.
Nasser providenciara suas acomodações espetaculares.
Era onde eles deviam aguardar sua chegada.
Dali a duas horas.
No outro lado de uma estrada de acesso curva, o hotel colonial de três andares estendia-se desde o rio em alas amarelas de gesso e madeira, com o teto de lajes de pedras vermelhas, em meio a jardins franceses muito bem cuidados. Sua história representava toda a região. O hotel de 75 anos costumava ser chamado de Grand Hotel des Ruines e atendia a turistas franceses e britânicos que desejavam visitar o complexo das ruínas de Angkor, ali próximo, a apenas 8 quilômetros. Tanto o hotel quanto o povoado acabaram quase se transformando em ruínas durante os anos sangrentos e brutais do Khmer Vermelho, quando milhões de pessoas foram assassinadas num dos mais atrozes atos de genocídio, aniquilando um quarto da população do Camboja. Tais atrocidades desencorajaram o turismo. Porém, com a queda do Khmer vermelho, as pessoas tinham voltado. O hotel ressurgiu das cinzas, meticulosamente reformado em todo o seu charme colonial e rebatizado com o nome de Grand Hotel d'Angkor.
Siem Reap fora igualmente revitalizada — embora com um pouco menos de cuidado. Hotéis e albergues haviam se multiplicado num movimento gradual e contínuo desde as margens leste e oeste do rio, junto com restaurantes, bares, cibercafés, agências de viagens, barracas de frutas e especiarias e um sem-número de feiras nas quais se vendiam antigüidades cambojanas entalhadas, prata filigranada, cartões-postais, camisetas e bugigangas.
Porém, de madrugada — sem turistas e com o sol ainda por nascer —, um pouco do charme e do mistério do lugar ainda permanecia em sua mistura arquitetônica influenciada pelas culturas asiática e francesa. Um carro de boi carregado de duriões com sua casca espinhosa seguia devagar rua abaixo rumo ao Mercado Velho, enquanto um criado, usando um jaleco branco bem passado, varria lentamente a varanda do hotel.
Quando Gray subiu os degraus à frente de seu grupo, o varredor sorriu timidamente, interrompeu seu trabalho e abriu a porta para eles.
O saguão brilhava com mármore e madeiras envernizadas, e era perfumado por rosas, orquídeas, jasmins e lótus em grandes vasos. Um elevador antigo, ornado com ferro forjado intricadamente entrelaçado, ficava ao lado de uma convidativa escada em curva.
— O Elephant Bar é logo ali na esquina — explicou Seichan, apontando um dos braços.
Era onde eles deveriam se encontrar com Nasser.
Gray deu uma olhadela no relógio pela centésima vez.
— Vou fazer nosso registro — disse Vigor.
Enquanto o monsenhor se dirigia à recepção, Gray esquadrinhou o saguão. Será que já havia agentes da Guilda ali? Era a pergunta que ele vinha se fazendo desde que aterrissaram em Bangcoc e fizeram a conexão para o curto vôo até ali. Seichan confirmou que a Guilda tinha agentes em toda a região, com vínculos profundos na China e na Coréia do Norte. Era praticamente território da Guilda.
Gray não duvidava de que Nasser tivesse mandado colocar espiões ao longo de toda a trajetória deles desde a ilha de Ormuz até o Camboja. Para poupar a vida de seus pais, Gray fora obrigado a revelar onde terminava a trilha histórica de Marco: nas ruínas de Angkor. Isso convenceu Nasser a adiar quaisquer planos imediatos de assassinar seus pais. Porém, como Gray receava, isso não assegurou a liberdade deles.
Com a espada ainda pendendo sobre a cabeça de seus pais, Gray se recusara a entrar em detalhes sobre sua segunda notícia surpreendente: a cura da Estirpe de Judas. Não até que Nasser estivesse cara a cara com ele e fornecesse evidências concretas de que seus pais estavam livres e seguros.
Por isso eles haviam concordado em se encontrar ali.
Uma troca.
Informações em troca da liberdade de seus pais.
Mas Gray não era idiota. Ele sabia que Nasser jamais libertaria seus pais. Tudo aquilo era uma armadilha dele — e pura tática de protelação da parte de Gray. Ambos sabiam disso. No entanto, eles não tinham escolha a não ser prosseguir com aquela dança de trapaças. Tudo o que Gray podia fazer era continuar logrando Nasser, con¬tinuar persuadindo-o com promessas de recompensa, a fim de que o diretor Crowe ganhasse o máximo de tempo possível para encontrar sua mãe e seu pai.
Gray se arriscara a dar um curto telefonema para os Estados Unidos, depois de falar com Nasser, usando o telefone descartável de Seichan. Com receio de que Nasser pudesse grampear rapidamente as torres de telefonia celular na remota região, Gray teve de ser breve enquanto colocava Painter a par da situação. Em troca, o diretor tinha apenas notícias desalentadoras. A Sigma não tinha novas pistas de seus pais, e ele continuava sem notícias do paradeiro de Monk e Lisa. Gray percebera a frustração e a fúria na voz do homem.
Com o acréscimo de terror bruto à mistura, ela coincidia com o estado de espírito de Gray.
Painter voltara a oferecer o envio de pessoal para dar apoio a Gray ali, porém, enquanto seus pais não estivessem sãos e salvos, ele não ousava aceitar ajuda. Conforme Seichan advertira, aquele era território da Guilda. Qualquer mobilização só revelaria que Gray ainda estava secretamente em comunicação com Washington. Era uma pequena vantagem, mas uma pequena vantagem que Gray não queria correr o risco de perder. Porém, ainda mais importante, se Nasser percebesse que havia uma linha de comunicação aberta entre Gray e o Comando da Sigma, ele mataria seus pais de imediato. Gray precisava que Nasser se sentisse inteiramente confiapte de que sua equipe estava isolada.
Gray, no entanto, correra apenas um pequeno risco e pedira uma ínfima concessão a Painter. Mais tarde, com a questão resolvida, tudo o que Gray tinha a fazer era continuar estendendo aquele intervalo de tempo.
Ele ainda tinha mais duas horas.
A porta do elevador abriu-se atrás dele. Gray ouviu a velha porta de ferro forjado fechar-se aos trancos.
— Vejo que todos vocês chegaram bem — disse uma voz calmamente atrás dele.
Gray virou-se.
Nasser saiu do elevador para o saguão, usando um terno escuro sem gravata.
— Parece que nossa reunião pode começar mais cedo.
Homens de uniforme caqui e boinas pretas surgiram dos corredores de cada lado. Atrás de si, Gray ouviu o som de botas na varanda lá fora. Muitos outros soldados desceram a escada em curva adiante. Embora não se visse nenhuma arma, Gray não teve dúvida de que todos eles estavam armados.
Kowalski também devia ter sentido isso, pois já erguera as mãos para o alto.
Seichan simplesmente sacudiu a cabeça.
— Meu banho quente já era.
Vigor voltou para o lado de Gray.
Nasser juntou-se a eles.
— Então, está na hora de conversarmos sobre essa cura.
18:18h
Washington, D.C.
— Pelo que você acabou de me contar — disse o dr. Malcolm Jennings —, Gray não tem nada a oferecer à Guilda. Nada de real valor.
Painter ouvia calmamente, deixando o homem expor seus pensamentos. Ele havia chamado Jennings, o chefe do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Sigma, a seu gabinete a fim de ouvir sua opinião. Por sorte, Jennings já estava mesmo a caminho dali.
— Com base nos detalhes da história de Marco — disse Jennings, andando de um lado para outro em frente à escrivaninha de Gray —, ele e um punhado de outros homens foram protegidos contra a Estirpe de Judas pelo consumo de sangue e timo. E, de acordo com a história, o sangue e a glândula haviam sido extraídos de outro homem.
— Basicamente, canibalismo.
— Ou, como Gray leu no texto — e creio que ele esteja correto —, isso poderia representar uma forma grosseira de vacinação. O timo é uma importante fonte de leucócitos, as células do organismo que o defendem contra doenças. E o sangue é uma importante via de distribuição de anticorpos contra infecções. Ao consumir esses tecidos, teoricamente você poderia oferecer o equivalente de uma imunização.
Painter concordou.
— Gray acredita que foi isso que protegeu os companheiros de Polo.
— Mas uma revelação dessas não faz sentido — comentou Jennings. — Ela não oferece nenhuma cura de verdade. De onde vieram o sangue e a glândula? Não de um dos doentes, senão Marco e seus companheiros teriam sido infectados. Falta uma peça nesse quebra-cabeça. Para que uma cura dessas surta efeito, é necessário coletar células e anticorpos de alguém curado, de alguém que tenha sobrevivido à Estirpe de Judas. Trata-se de uma lógica indireta: é necessária uma cura para descobrir uma cura.
Painter suspirou.
— E você não consegue pensar em nada nessa história que possa oferecer alguma elaboração.
O médico sacudiu lentamente a cabeça.
Como Painter temia, Gray estava blefando perigosamente. Amen Nasser não era tolo. O miserável também reconheceria a falta de uma resposta concreta. O blefe de Gray só poderia mesmo tentar ganhar tempo. E, como a pista esfriara depois do ataque de surpresa ao açougue, parecia um desperdício de esforço, um risco desnecessário. Painter esperava que Jennings talvez tivesse alguma nova intuição.
Mas não tivera tal sorte.
Painter resignou-se.
— Parece então que a história de Marco leva a um beco sem saída.
— Não necessariamente. — Jennings esperou um instante. — Diretor, tem mais uma coisa que eu quero discutir. Foi por isso que vim aqui em cima. Ela pode até estar relacionada com esse assunto. Na verdade, se o senhor tiver um tempinho de sobra, talvez seja melhor ver isso com seus próprios olhos.
Na verdade, Painter não tinha aquele tempinho de sobra. Ele olhou para a pilha de papéis à sua frente, uma quantidade enorme de relatórios. No fim do corredor, Kat, a esposa de Monk, havia assumido a tarefa de observar o reconhecimento por satélite das ilhas indonésias. Com sua experiência nos serviços de inteligência, ela se revelara hábil em recrutar ajuda estrangeira e em organizar plataformas de pesquisa de dados cruzados de satélites. Porém, estorvados pela tempestade local, eles não haviam conseguido localizar o navio de cruzeiro.
Ansioso e com o pavio curto, Painter queria voltar lá para baixo. Mas confiava em que Jennings não o faria perder tempo com trivialidades.
— O que você quer que eu veja?
Jennings fez sinal para um dos monitores de plasma numa das paredes do gabinete.
— Eu gostaria de uma videoconferência com Richard Graff na Austrália. Ele está esperando meu telefonema, se o senhor permitir.
— Graff? — perguntou Painter. — O pesquisador que estava trabalhando com Monk na ilha Christmas?
— Exatamente.
O dr. Graff entrara em contato por rádio com um navio-tanque que passava pela ilha Christmas e alertara o mundo sobre o seqüestro do navio de cruzeiro. No momento, o oceanógrafo estava isolado e em quarentena em Perth.
— O senhor leu o relato que ele fez às autoridades australianas? — indagou Jennings.
Painter fez que sim com um movimento da cabeça.
— Mas tem uma coisa estranha que o pesquisador descobriu desde então.
Painter acenou na direção do monitor.
— Está bem. Me mostre.
Jennings contornou a escrivaninha de Painter e rapidamente estabeleceu uma videoconferência ao vivo.
— Lá vamos nós.
O monitor escureceu, piscou e em seguida apareceu uma imagem trêmula do cientista. O dr. Graff usava roupas de proteção azuis, e um de seus braços estava numa tipóia. Ele piscou para Painter e Jennings por trás dos óculos.
As apresentações foram feitas, embora Jennings os fizesse passar por pesquisadores associados à Smithsonian Institution.
— O senhor pode demonstrar o que descobriu? — perguntou Jennings. — O que o senhor me mostrou antes? Eu acho que meu colega deveria ver isso.
— O espécime está esperando bem aqui.
Graff sumiu da tela. O ângulo da câmera ampliou-se e deslocou-se, revelando uma mesa branca de reunião.
Graff reapareceu, carregando um grande objeto vermelho numa das mãos.
— Isso é um caranguejo? — indagou Painter, sentando-se mais ereto.
— Geocarcoidea natalis — explicou Jennings —, o caranguejo-vermelho terrestre da ilha Christmas.
Na tela, Graff concordou com a cabeça e pôs o caranguejo em cima da mesa. Suas grandes tenazes estavam presas com elástico.
— Este meu chapinha aqui — ou melhor, uma horda deles — ajudou a salvar minha vida lá na ilha.
Curioso, Painter levantou-se e aproximou-se da tela.
Graff soltou o caranguejo e ele imediatamente arrastou-se pela superfície da mesa, seguindo numa linha reta determinada. Graff deu a volta e foi às pressas até o outro lado da mesa para pegá-lo.
Painter sacudiu a cabeça.
— Eu não estou entendendo. O que o senhor está tentando me mostrar?
Graff explicou.
— O dr. Kokkalis e eu achamos estranho que esses caranguejos não tivessem sido mortos pela exposição tóxica, mas sem dúvida o comportamento deles foi afetado. Eles estavam atacando e estraçalhando uns aos outros. Por isso acalentei a esperança de estudar o comportamento deles para ver se ele oferecia alguma compreensão da toxicidade.
Enquanto narrava, Graff havia colocado o caranguejo mais duas vezes em cima da mesa; porém, independentemente de onde ele colocasse a criatura e da forma que a posicionasse, o decidido crustáceo virava-se e ia direto para o mesmo canto da mesa antes de quase cair.
Ele demonstrou isso mais algumas vezes.
Estranho.
Graff explicou sua suposição.
— O caranguejo terrestre da ilha Christmas tem um sistema nervoso sintonizado com precisão e que orienta seu padrão de migração anual. A maioria dos crustáceos possui isso. Mas a exposição tóxica parece ter reprogramado o sistema nervoso do caranguejo, transformando-o no equivalente de uma bússola fixa. O caranguejo move-se sempre na mesma direção, no mesmo rumo da bússola.
Graff pegou seu caranguejo e depositou-o num tanque.
— Assim que as coisas se acalmarem lá na ilha — concluiu ele —, eu gostaria de testar outros caranguejos para ver se eles também estão reprogramados da mesma maneira. É um estudo fascinante. Eu ficaria contente em elogiar por escrito aquela proposta de uma bolsa que o senhor mencionou antes, dr. Jennings.
— Sem dúvida, é uma anomalia intrigante, dr. Graff — disse Jennings. — Meu colega e eu conversaremos sobre isso e entraremos em contato de novo com o senhor. Obrigado pelo seu tempo.
A videoconferência chegou ao fim, e a tela ficou vazia. Mas Jennings continuou a digitar na estação de computadores de Painter. Uma nova imagem apareceu na tela de plasma, fornecida pelo computador: um globo terrestre.
— Quando eu soube dessa anomalia — disse Jennings —, fui em frente, organizei os dados do dr. Graff e acompanhei a trajetória do caranguejo. — Uma linha pontilhada apareceu em torno do globo. — Não acho que meus resultados provam coisa alguma enquanto o senhor não colocar o comandante Pierce a par deles.
O globo girou e sua imagem ampliou-se na tela.
Painter inclinou-se para perto. A imagem do Sudeste Asiático cresceu na tela. A linha pontilhada cruzava a Indonésia, transpunha o golfo da Tailândia e seguia diretamente pelo Camboja.
Jennings bateu de leve na tela, chamando atenção para um ponto que a trajetória do caranguejo cruzara.
— Angkor Wat.
Painter empertigou-se.
— Você está insinuando...?
— Uma coincidência bastante estranha. E me pergunto se esse caranguejo foi reprogramado para coincidir exatamente com esse lugar.
Painter olhava fixamente para a tela, pensando em Gray Pierce, lembrando-se do blefe mortal que estava sendo encenado lá.
— Se você estiver certo, então a trilha de Marco talvez não seja um beco sem saída, afinal de contas. Alguma coisa deve estar lá.
Jennings acenou afirmativamente com a cabeça, as mãos nos quadris.
— Mas o quê?
5:32h
Siem Reap
Vigor lembrou a si mesmo de jamais jogar pôquer com Gray.
O comandante estava sentado numa poltrona de ratã no bar do hotel. O bar estava fechado àquela hora, mas Nasser havia alugado o espaço para ter privacidade. O Elephant Bar recebera esse nome por causa das duas grandes presas curvas perto da entrada. Dando continuidade ao tema, o salão era decorado com móveis de bambu estofados com tecidos estampados nos padrões zebra e tigre.
Gray estava sentado no outro lado de uma mesinha de vidro, em frente a Nasser, jogando um jogo cauteloso.
Seichan se esparramara num sofá com os tornozelos cruzados. Kowalski estava sentado junto ao longo bar, fitando o monte de garrafas que para ele eram como pedras preciosas. Porém, Vigor também notou que o homenzarrão continuava a espiar Gray e Nasser no espelho do bar.
Se bem que não havia muita coisa que qualquer um deles pudesse fazer.
Os homens de Nasser haviam se posicionado em todas as saídas e se enfileirado em ambas as paredes.
Com um ruído de metal sobre vidro, Nasser tornou a colocar um dos paitzus de ouro na superfície da mesa. Antes mesmo de cogitar qualquer discussão sobre curas, Nasser queria verificar se as ruínas de Angkor eram de fato o lugar onde Marco Polo se deparara com a Estirpe de Judas pela primeira vez. Gray havia esquematizado tudo, decifrando toda a história enquanto estava a bordo do hidroavião.
Vigor estava em pé junto à mesa, estudando a escrita angélica, o mapa estelar, o mapa das ruínas. Ele ouvira a leitura completa outra vez.
Afinal, Nasser aceitou a verdade. Ele recostou-se.
— E essa cura?
Vigor se esforçou para não demonstrar medo. No vôo até ali, Gray explicara sua opinião sobre a última história de Marco Polo: sua teoria de vacinação por intermédio do canibalismo. Era interessante, mas, no fim das contas, não oferecia uma cura de verdade.
Em virtude do risco de seu blefe, Gray tentara transferir Vigor para outro vôo quando eles fizeram a conexão em Bangcoc.
— É perigoso demais — advertira-o Gray. — Volte para a Itália.
Mas Vigor recusara. Além de Nasser ter ordenado que todos eles fossem ao Camboja, Vigor tinha seus próprios motivos para continuar. Em algum lugar no meio daquelas ruínas, frei Agreer havia desaparecido, um membro do clero que se sacrificara para salvar Marco e os outros. Vigor não podia virar as costas para uma coragem altruísta como aquela. Porém, ele tinha ainda um argumento mais importante para oferecer a Gray.
— Os nativos que ofereceram a cura reconheceram alguma coisa em frei Agreer, alguma coisa em comum — explicara Vigor. — Por que eles o escolheram? Se existe alguma resposta além do ponto em que Marco encerrou, talvez seja necessário outro membro do clero para encontrá-la.
Gray concordara com relutância.
Mas Vigor tinha um último motivo para continuar, um motivo não-expressado. Algo que ele notara nos olhos do rapaz. Desespero. Enquanto aquelas últimas cartas estavam sendo jogadas, Gray estava ficando imprudente. Como aquele blefe arriscado, entrando numa armadilha sem nenhuma estratégia secundária. Todas as esperanças de Gray estavam depositadas no diretor Crowe, confiando em que seu chefe encontraria algum modo de proteger seus pais a tempo, deixando Gray livre para agir.
Mas será que Gray estava preparado para o jogo que estava sendo jogado ali, em particular quando estava atormentado pela preocupação com seus pais? Sem dúvida, parte da agudeza de sua mente se embotara.
Vigor baixou o olhar para os mapas e escritas angélicas espalhados.
Por exemplo, como Gray não percebera aquilo antes?
— A cura — insistiu Nasser, chamando a atenção de Vigor. — Diga-me o que você sabe.
No outro lado da mesa, Gray permaneceu indiferente e calmo, sem uma gota sequer de suor na testa.
— Vou lhe dar o número de um guarda-volumes no aeroporto de Bangcoc. Vou dizer onde encontrar a chave para confirmar o que estou prestes a dizer. Nós escondemos o terceiro e último manuscrito naquele guarda-volumes. Nesse último documento, Marco descreve a cura em duas partes. Vou lhe contar a primeira parte de graça.
Nasser mexeu-se, com um olho estreitando-se.
— Assim que eu terminar, como sinal de boa-fé, você libertará um dos meus pais. E eu vou esperar uma confirmação satisfatória. Com isso, direi o número do guarda-volumes e a localização da chave. Você poderá verificar minha afirmação. Está bem assim?
— Depende do que vou ouvir.
Gray simplesmente fitou-o, sem piscar.
Vigor sabia que aquilo tudo era uma tática protelatória, estendendo a revelação pelo máximo de tempo possível. De fato, o manuscrito estava protegido num guarda-volumes no aeroporto de Bangcoc, mas era uma tentativa inútil. Não havia nenhuma segunda parte da cura.
Gray suspirou, como que cedendo.
— Eis então a história encontrada no terceiro manuscrito. De acordo com Marco...
Enquanto Gray relatava o que o manuscrito bordado revelava, Vigor estudava os documentos em cima da mesa, ouvindo apenas parcialmente. O comandante ateve-se à verdade, pois sabia que ganharia mais tempo com fatos do que com mentiras. Quando Gray terminasse, Nasser daria os telefonemas necessários e providenciaria para que o manuscrito fosse retirado do guarda-volumes e traduzido. Tudo isso levaria tempo. O manuscrito descoberto confirmaria a história de Gray e tornaria mais provável que Nasser engolisse qualquer invencionice a seguir. E, mesmo que as mentiras de Gray não fossem convincentes, pelo menos um de seus pais teria sido salvo àquela altura.
Esse era o plano.
Gray finalmente terminou sua narração, expondo a ciência.
— Portanto, sem dúvida o canibalismo serviu de algum meio de vacinação contra a doença. Mas a maneira exata de como isso foi alcançado vai esperar até eu saber que um dos meus pais está seguro.
Gray entrelaçou as mãos no colo.
Nasser ficou sentado em silêncio por um momento e em seguida falou lentamente:
— Então nós na verdade só precisamos de alguém que tenha se curado da Estirpe de Judas, de alguém que sobreviveu. Depois podemos produzir a vacina a partir dos leucócitos e dos anticorpos dessa pessoa.
Gray permaneceu calado, e apenas deu ligeiramente de ombros, afirmando silenciosamente que quaisquer outras respostas esperariam até que um de seus pais estivesse livre.
Nasser suspirou, estendeu a mão para um bolso, abriu o telefone e apertou uma tecla.
— Annishen — disse ele. — Pegue um dos reféns. Você pode escolher.
Nasser ouvia.
— Sim, está ótimo... vá em frente e mate-os.
5:45h
Gray investiu por sobre a mesa.
Ele não tinha nenhum plano, reagira por puro instinto.
Mas Nasser devia ter feito um sinal para um dos homens. A cabeça de Gray explodiu de dor, atingida por trás por um porrete, sua visão dissipou-se num brilho intenso e em seguida caiu numa escuridão momentânea. Seu corpo atingiu a mesa de coquetel e rolou com um baque para o chão, e o impacto lhe trouxe a visão de volta.
Cinco armas apontavam agora para ele.
Outras apontavam para Seichan e Kowalski.
Vigor ficou em pé com os braços cruzados.
Nasser não havia se mexido, seu telefone ainda estava junto ao ouvido.
— Espere, Annishen. Por enquanto. — Ele baixou o telefone, cobrindo parcialmente o aparelho com uma das mãos. — Parece que este é o fim, comandante Pierce. De muitas trilhas. O último manuscrito de Polo apenas confirma o que eu soube do contingente da Guilda na Indonésia. A equipe científica chegou à mesma conclusão. Uma cura potencial de fato reside no corpo de uma sobrevivente. De uma sobrevivente que na realidade brilha, conforme revelado na história de Polo.
Gray sacudiu a cabeça. Não em negativa; ele apenas tinha dificuldade de compreender o que Nasser estava dizendo. O sangue latejava em seus ouvidos, ensurdecendo-o. Seu plano fracassara.
Nasser ergueu o telefone outra vez.
— Por isso, parece que nossa trilha histórica descreveu um círculo até se encontrar com a trilha científica. Esse é o fim da estrada proverbial. Para você. Para sua mãe e para seu pai.
Gray sentiu o mundo fechando-se sobre ele de todos os lados. Até mesmo sua visão estreitou-se, as vozes soaram mais abafadas. Até Vigor se aproximar.
— Chega — disse bruscamente o monsenhor, com a autoridade de um professor num auditório.
Todos os olhos se voltaram para ele. Até Nasser parou.
Vigor olhou fixamente para o captor deles.
— Você faz muitas suposições, meu rapaz. Suposições que não serão úteis nem a você nem aos seus cúmplices.
— Como assim, monsenhor? — perguntou Nasser, mantendo seu tom de voz cortês.
— Essa cura. Os cientistas de vocês já a testaram? — Vigor encarou Nasser e em seguida deu um sorrisinho de desdém. — Aposto que não. Tudo o que você disse são conjecturas teóricas, talvez apoiadas pela história de Marco. Mas isso está muito longe da certeza. E lamento rejeitar sua afirmação de que a trilha histórica terminou. Na verdade, ela pode ter deparado com a trilha científica, mas creio que, em vez de terminar, a descrição mais exata é a de que as duas trilhas se fundiram aqui. Não ignore isso tão depressa. Pelo menos não ainda, meu rapaz. A trilha histórica continua.
A mente de Gray procurava entender o que o monsenhor dizia. Será que ele estava mentindo, blefando ou dizendo a verdade?
Nasser suspirou, pelo visto pesando as mesmas possibilidades.
— Eu agradeço sua atenção, monsenhor, mas não vejo nada aqui que justifique mais investigação. A partir daqui os cientistas podem cuidar disso.
Dessa vez foi Seichan quem deu um risinho de deboche.
— É por isso que você jamais subirá mais alto na hierarquia da Guilda, Amen. Transferindo sua responsabilidade para outras pessoas. Sugiro que você ouça o monsenhor.
Nasser olhou furioso para ela, mas voltou a fitar Vigor.
— O mapa de Marco aponta para as ruínas aqui. Ele termina aqui.
Vigor inclinou-se e ergueu o mapa do extenso complexo de ruínas de Angkor.
— Essas ruínas abrangem uma área de 260 quilômetros quadrados. É um território muito grande. Você acha que isso é o fim?
Os olhos de Nasser estreitaram-se.
— O senhor está propondo que vasculhemos todos os 260 quilômetros quadrados? Com que objetivo? Nós temos a cura.
Vigor sacudiu a cabeça.
— Não há necessidade de vasculhar todo o complexo. Marco indicou com precisão o lugar mais importante para nós.
Nasser virou-se para Gray, pronto para ameaçá-lo, com os olhos escuros grudados nele.
Vigor postou-se entre eles.
— O comandante Pierce não omitiu nada. Ele não tem essa resposta. Eu juro pela minha alma.
Nasser franziu o cenho.
— Mas o senhor tem.
Vigor curvou a cabeça.
— Sim, eu tenho. E a contarei a você. Mas apenas se você jurar que vai deixar os pais do comandante Pierce viverem.
As feições de Nasser endureceram de desconfiança.
Vigor levantou uma das mãos.
— Não estou lhe pedindo que os liberte. Apenas que me ouça, e acho que você entenderá a necessidade de seguir a trilha até o fim.
Gray notou a indecisão no semblante de Nasser.
Oh, por favor, meu Deus, permita que Vigor o convença.
Vigor prosseguiu.
— Assim que você seguir a trilha até o fim, então tome sua decisão. Sobre eles, sobre nós. Seria tolice matar reféns ou destruir recursos até você descobrir o que está no verdadeiro fim dessa trilha.
Nasser afundou em seu assento.
— Então me mostre onde ela termina. Convença-me, monsenhor.
— E se eu o convencer, como um homem com honra, você manterá os pais de Gray vivos?
Nasser acenou uma das mãos.
— Está bem. Por enquanto. Mas se o senhor estiver mentindo, monsenhor...
— Não, não estou.
Vigor abaixou-se, apoiando-se num dos joelhos diante da mesa.
Gray juntou-se a ele.
Vigor empurrou para a frente três folhas de papel: o mapa de Angkor, o código angélico do obelisco e a linha com três símbolos das chaves. O monsenhor ergueu a folha com o código angélico.
— Conforme o comandante Pierce já relatou, todas as marcas diacríticas enegrecidas — os círculos que acentuam a escrita — na verdade representam locais com templos que formam Angkor.
Nasser concordou com um aceno de cabeça.
— E aqui estão de novo os três símbolos das chaves.
— Agora compare estes três símbolos com os símbolos equivalentes circulados no obelisco. O que você vê de diferente?
Nasser inclinou-se para a frente, como Gray.
— Existem três círculos enegrecidos nos símbolos no obelisco — respondeu Nasser.
— Representando três templos — disse Vigor. — Ora, quantos círculos enegrecidos existem entre os três símbolos-chave?
— Apenas um — respondeu Gray. Agora ele entendia. Ele estivera tão certo de ter solucionado o enigma antes que deixara de olhar um pouquinho mais à frente. — Um templo. Esse círculo enegrecido não representa apenas o castelo português; ele também representa um dos templos!
Gray virou o mapa para si e pegou uma caneta para circular o templo correspondente e conectá-los.
Nasser inclinou-se mais para perto, a fim de ler o nome do templo marcado no mapa de Angkor.
— Bayon. — Ele recostou-se. — Mas como o senhor pode ter certeza de que ele é importante?
— O Bayon foi o último templo construído em Angkor — disse Vigor. — Foi construído mais ou menos na época em que Marco passou por essa região. O que há de estranho em relação ao templo é que, depois de ele ter sido construído, todas as construções na região pararam.
— Mas o que tem lá? — indagou Nasser.
Vigor deu de ombros.
— Não tenho a menor idéia. Talvez a origem da Estirpe de Judas, talvez alguma outra resposta. Tudo o que sei é que Marco julgava isso importante o suficiente para preservar. E, ainda que eu esteja errado, depois de seguir esta trilha por meio mundo, por que parar quando se está a apenas alguns passos do fim?
Nasser correu os olhos pela sala.
Seichan mexeu-se.
— Nós podemos estar lá em meia hora, Amen. Vale a pena pelo menos ir lá.
Gray receou concordar com eles, para não provocar a ira de Nasser.
Vigor não estava tão acanhado.
— Marco enfrentou muitos problemas para preservar a localização desse templo. Os místicos do Vaticano enfrentaram tantos problemas quanto Marco para protegê-la num código. Até mesmo a gente do lugar afirma que o templo ainda contém muitos tesouros secretos. Isso se presta a investigação.
Kowalski ergueu uma das mãos.
— E eu vou ter que dar uma mijada. A coisa tá feia.
Nasser franziu o cenho, mas ficou em pé.
— Nós vamos até lá, até Bayon. Mas, se até o meio-dia nada for descoberto, está acabado.
Nasser ergueu o fone até o ouvido.
— Annishen, suspenda aquela ordem de execução.
Gray estendeu a mão e apertou um dos joelhos de Vigor por baixo da mesa.
Obrigado.
Vigor olhou de relance para ele com uma expressão que significava: Ainda não estamos fora de perigo.
Nasser provou isso.
— Annishen, um dos pais que você escolheu. Nós pouparemos a vida desse por causa da minha palavra empenhada ao monsenhor. Mas ainda precisamos de um pouco de incentivo para encorajar a cooperação contínua e sincera do comandante.
Os olhos de Nasser fixaram-se em Gray.
— Para cada hora em que não tivermos resultados satisfatórios, decepe um dedo. E, como nós nos detivemos aqui por muito mais de uma hora em razão das fúteis tentativas do comandante Pierce de fazer uma permuta, você pode decepar o primeiro dedo agora.
Nasser fechou bruscamente o telefone.
Gray sabia que o silêncio seria melhor para ele, mas as palavras saíram de seus lábios antes que ele pudesse reprimi-las.
- Seu filho-da-puta maldito. Eu vou matar você.
Impassível. Nasser virou-se.
- A propósito, comandante Pierce, Annishen escolheu... sua mãe.
18:55h
Quando o capuz foi arrancado de sua cabeça, Harriet soube que alguma coisa estava errada, terrivelmente errada.
Ela fora arrastada de um armário, no qual fora trancada, e obrigada a se sentar numa cadeira de aço. Com o capuz removido, ela viu que eles estavam num depósito abandonado. O espaço era enorme, com pisos e paredes de concreto. Vigas e canos de aço expostos corriam ao longo do teto, e correntes pendiam de polias enferrujadas. O lugar cheirava a óleo de motor e borracha queimada.
Harriet olhou ao redor.
Nenhuma janela. A única luz vinha de algumas lâmpadas nuas que projetavam poças de luz na escuridão. Uma escada de aço erguia-se num dos lados. Ao lado dela, um velho elevador de carga estava aberto.
Com exceção de seus captores, tudo parecia deserto.
A um passo de distância, à esquerda, Annishen estava inclinada sobre uma mesa, com um telefone celular ao ouvido, ouvindo em silêncio. Parecia ouvir alguma conversa. Uma pistola estava em cima da mesa, próxima a um alicate e a um pequeno maçarico. Três outros homens patrulhavam a escuridão do porão.
Bem em frente a Harriet, seu marido estava sentado curvado numa cadeira idêntica. Como Harriet, tinha os pulsos algemados. Um dos três homens vigiava-o com uma das mãos sobre uma pistola no coldre. Porém, Jack não era nenhuma ameaça. Sua cabeça pendia, deixando um rastro de baba. Eles haviam tirado suas calças, pois ele tinha se urinado, encharcando a frente da cueca samba-canção. Do joelho para baixo, sua perna esquerda estava presa na prótese. O antigo acidente industrial tirara a maior parte do orgulho de Jack. A natureza levara o restante.
E não apenas a natureza.
Harriet sentiu o peso dos comprimidos não usados no bolso de seu suéter.
Lágrimas brotaram em seus olhos e lhe escorreram pelo rosto.
Annishen falou, encerrando a conversa com um estalo de seu telefone celular. Ela encarou Harriet e acenou para outro dos guardas.
— Tire as algemas dela.
Harriet não se opôs. Ergueu os braços para permitir que as algemas fossem abertas. O peso delas desapareceu gradualmente, e ela esfregou os pulsos.
O que estava acontecendo?
Obedecendo a um sinal de Annishen, um dos homens arrastou-a em sua cadeira até a mesa. O rangido alto de aço no cimento fez seu marido erguer o rosto cansado.
— Harriet... — murmurou ele. — Que horas são?
— Está tudo bem, Jack — murmurou ela com ternura. — Volte a dormir.
Annishen foi até ele.
— Eu acho que não. Ele já dormiu bastante. Esses comprimidinhos que a senhora deu a ele finalmente surtiram efeito, realmente o deixaram fora do ar. Mas agora é hora de acordar. — Ela segurou o queixo dele com a mão em forma de concha e puxou o rosto dele para cima. — Segure-o assim — ela instruiu o guarda. — Ele deve assistir ao espetáculo.
Jack não resistiu quando o homem imobilizou sua cabeça.
Annishen voltou para a mesa, removendo a baba de Jack de uma perna de suas calças, e acenou para o guarda ao lado da cadeira de Harriet. Ele estendeu uma das mãos, segurou o braço esquerdo de Harriet e puxou-o com força sobre a superfície da mesa, segurando o pulso dela contra a madeira.
Instintivamente, ela recuou, mas o homem simplesmente puxou o braço dela ainda mais, esticando o membro até a axila dela ficar pressionada contra a borda da mesa. Ela sentiu a boca fria de uma pistola contra seu rosto, empunhada pelo terceiro guarda.
Annishen andava devagar ao redor.
— Parece que temos que ensinar uma pequena lição ao seu filho, sra. Pierce. Ela pegou o maçarico e puxou o gatilho do acendedor automático. Uma chama azul projetou-se da boca do maçarico com um sibilo agudo. Ela o pôs na mesa, perto da mão de Harriet.
— Para cauterizar o coto.
— O que... o que você está fazendo?
Ignorando-a, a mulher pegou o alicate, puxando bem os cabos.
— Agora, qual dedo devemos decepar primeiro?
6:01h
Gray viajava no banco traseiro de um furgão branco. Seichan estava imprensada contra o flanco dele, ambos imobilizados entre dois guardas armados. Nasser olhava para eles do banco na frente, ladeado por mais guardas.
Kowalski e Vigor viajavam no veículo atrás do deles. Outros dois furgões os seguiam, um na frente e o outro atrás, cheios de mais pistoleiros de uniforme caqui.
Nasser não queria correr riscos.
Através do pára-brisa, Gray embotadamente observou as torres de Angkor Wat erguerem-se das brumas adiante, cinco torres enormes em forma de espigas de milho, iluminadas pelos primeiros raios do sol nascente. Angkor Wat era o primeiro de muitos templos espalhados por 260 quilômetros quadrados de ruínas. Também era o maior e o mais bem-conservado, considerado um ícone cambojano, com seu imenso emaranhado de câmaras, muralhas, torres recortadas, esculturas e estátuas. Só esse templo abrangia uma área de 500 acres, cercada por um amplo fosso.
Mas não era a meta deles.
Eles seguiram para Angkor Thom, mais 1,5 quilômetro ao norte. E, apesar de não ser tão grande quanto Angkor Wat, as ruínas muradas de Thom abrigavam o grande templo Bayon, considerado o coração de todo o complexo de Angkor.
Um solavanco reverberante sacudiu o furgão.
Gray viu seu próprio reflexo no espelho retrovisor. Suas faces estavam fundas, obscuras; seus lábios, rachados; os pêlos curtos da barba por fazer sobre sua mandíbula e queixo pareciam uma escoriação preta. Apenas seus olhos ainda brilhavam pétreos e duros, incitados por sua ira e desejo de vingança. Porém, bem no fundo de seu peito, restavam apenas dor e culpa.
Talvez percebendo que ele estava afundando num desespero entorpecedor, Seichan apertou-lhe a mão. Não era um gesto de ternura. Ela apertou-a com força, as unhas cravando-se, recusando-se a deixá-lo escapulir, puxando-o da beira daquele poço.
Nasser notou o gesto dela. Uma sombra de um sorriso de escárnio surgiu e desapareceu em seguida.
— E eu que pensava que você fosse mais esperto, comandante — sussurrou ele. — Ela já está transando com você?
Gray olhou para ele.
— Cale essa maldita boca!
Nasser riu uma vez, um riso agudo, divertido.
— Não? Uma pena. Se você está sendo comida, deveria pelo menos ganhar alguma coisa.
Seichan retirou sua mão da de Gray.
— Foda-se, Amen.
— Não mais, Seichan. Não depois de eu ter expulsado você da cama. — Os olhos de Nasser se voltaram para Gray. — Você sabia que nós já fomos amantes?
Gray olhou bruscamente para Seichan. Decerto Nasser estava mentindo. Como ela pôde... com o filho-da-puta que acabara de ordenar a tortura de sua mãe? O mero fato de pensar em sua mãe lançou mais ácido em seu estômago.
Mas Seichan recusou-se a encarar Gray, olhando furiosamente para Nasser. Os dedos dela se fecharam num punho sobre um dos joelhos.
— Mas tudo isso acabou — disse Nasser. — Essa cadela ambiciosa. Nós dois estávamos perto de ascender ao próximo posto na hierarquia da Guilda. O último degrau para chegarmos ao topo. Mas acabamos divergindo sobre como conseguir você.
Gray engoliu em seco.
— De que diabo você está falando?
— Seichan queria usar os embustes dela para induzir você a cooperar por livre e espontânea vontade, a ajudar a Guilda a seguir a trilha de Marco. Por outro lado, eu acreditava numa abordagem mais direta. Sangue e coerção. O jeito de um homem. Mas, quando a Guilda se decidiu contra o plano dela, Seichan procurou assumir o controle das coisas. Ela assassinou o curador veneziano, roubou o obelisco e fugiu para os Estados Unidos.
Seichan cruzou os braços, olhando furiosamente para ele, com repugnância.
— E você ainda está puto da vida por eu ter passado a perna em você. Mais uma vez.
Gray observou Seichan atentamente.
Toda essa conversa dela de salvar o mundo... será que tudo não passava de uma mentira?
— Então eu a segui até os Estados Unidos — prosseguiu Nasser. — Eu sabia aonde ela estava indo. Foi bastante fácil preparar uma armadilha.
— Mas você não conseguiu me matar — escarneceu ela —, provando mais uma vez sua incompetência.
Ele apertou os dedos uns contra os outros com força.
— Por muito pouco. — Ele baixou o braço. — Mas você manteve sua estratégia original, não manteve, Seichan? Você ainda foi procurar o comandante Pierce. Apenas, talvez, mais como um aliado agora. Você sabia que ele viria em seu socorro. Você e Gray contra o mundo! — Ele deu uma gargalhada rouca. — Ou você ainda está se aproveitando dele, Seichan?
Ela simplesmente torceu o nariz com desdém.
Nasser voltou-se para Gray.
— Ela não passa de uma mulher ambiciosa. Brutal. Ela passaria por cima de sua próxima avó moribunda para subir na hierarquia.
Seichan inclinou-se para a frente, com os olhos brilhando de fúria.
— Mas pelo menos eu não me ajoelhei calada enquanto minha mãe era assassinada diante dos meus olhos.
O rosto de Nasser endureceu.
— Covarde — murmurou Seichan, recostando-se no assento com um risinho de satisfação. — Até assassinou seu pai quando ele estava de costas para você. Porque ainda não conseguia encará-lo.
Nasser investiu contra ela, com uma das mãos estendendo-se direto para a garganta.
Instintivamente, Gray desviou o braço de Nasser.
Talvez não devesse ter feito aquilo.
Nasser, porém, recuou por si mesmo, com os olhos afiados pelo ódio.
— É melhor você saber com quem está na cama — disse ele para Gray num tom selvagem. — Você deveria tomar cuidado com o que diz a essa cadela.
Os guardas estavam acomodados em silêncio em seus cantos. Gray olhou para Seichan, dando-se conta de que, apesar de toda a sua petulância, ela não negara as afirmações de Nasser. Gray recapitulou os eventos dos últimos dias, mas era difícil concentrar-se com a cabeça latejando e o medo corroendo suas entranhas.
Havia, no entanto, algumas realidades difíceis de descartar. Seichan assassinara o curador veneziano para obter o obelisco. A sangue-frio. E, quando eles se encontraram pela primeira vez, anos atrás, ela até mesmo tentara matá-lo.
As palavras de Nasser ecoavam em sua cabeça.
É melhor você saber com quem está na cama...
Gray não sabia.
Ultimamente, ele não sabia em quem acreditar, em quem confiar.
Tinha apenas certeza de uma coisa. Não poderia haver passos em falso a partir dali. Qualquer fracasso ameaçava mais vidas além da sua.
19:05h
Harriet debateu-se, soluçando de terror.
— Por favor, não...
O pulso dela foi seguro com força pelo guarda, imobilizado sobre a mesa, e sua mão foi aplanada sob o punho do mesmo guarda. O maçarico sibilava a alguns centímetros de distância.
Annishen segurava o alicate aberto sobre os dedos estendidos de Harriet.
— Seu mindinho, seu-vizinho, pai-de-todos, fura-...
Ela baixou a mandíbula da ferramenta na direção do dedo anular de Harriet. O diamante do seu anel de casamento cintilou sob a lâmpada nua.
— Não...
Um estalo alto ecoou, assustando-os a todos.
Harriet virou a cabeça enquanto Annishen se empertigava. A cerca de dois metros, o guarda que estava segurando o queixo de Jack, obrigando o marido dela a assistir à mutilação iminente, gritou e tropeçou para trás. O sangue escorria do nariz do guarda.
Jack arremeteu da cadeira, afastando-se do local em que acabara de dar uma cabeçada no guarda. Quando se virou, ele tirou a pistola do guarda do coldre e apontou-a com as mãos algemadas.
— Abaixe-se, Harriet! — exclamou ele, enquanto atirava.
O guarda que estava segurando a pistola contra o rosto dela foi atingido no tórax e voou para trás. Sua arma deslizou para a escuridão.
O segundo guarda soltou o braço de Harriet e tentou sacar sua arma.
...BANGUE...
Pelo canto do olho, Harriet viu o rosto e a orelha do homem desaparecerem em meio a muito sangue. Mas toda a atenção dela estava concentrada em Annishen. A mulher já havia deixado o alicate cair com um ruído e apanhara sua pistola de cima da mesa. Ela era extremamente rápida e estava se voltando com raiva na direção de Jack.
Harriet, com o braço ainda sobre a mesa, arremeteu e agarrou o maçarico. Ela direcionou a chama para a mão e o pulso de Annishen, fazendo-a gritar de dor. A arma dela disparou. Um tiro sem pontaria acertou o piso de cimento e ricocheteou. A manga da mulher pegou fogo quando ela recuou, soltando a pistola.
Jack tornou a disparar, mas a dor simplesmente deixou Annishen mais rápida.
A mulher afastou-se para o lado, empurrou a mesa para o chão e desapareceu com um rastro de chama por uma porta nos fundos.
Jack deu mais dois tiros, afugentando a mulher, e em seguida estava ao lado de Harriet. Ele ergueu-a, abraçou-a com força e depois correu com ela para a escada.
— Temos que sair daqui. Os tiros...
Gritos já soavam acima de suas cabeças. Os disparos tinham sido ouvidos.
— O elevador de carga — disse Jack.
Eles correram juntos para a cabine aberta, com Jack pulando um pouco com sua prótese. Uma vez dentro da cabine, Jack fechou a porta e apertou o botão do sexto andar, o segundo de cima para baixo.
— Eles vão mandar vigiar o andar principal. Nós vamos para cima, procurar uma saída de emergência... um telefone... ou simplesmente encontrar um lugar para nos escondermos.
Ele puxou Harriet para o canto de trás do elevador quando a cabine passou pelo andar principal. Gritos chegaram até eles. O brilho de lanternas movia-se para cima e para baixo através da escuridão. Pelo menos vinte homens. Jack tinha razão. Eles teriam de encontrar outra saída ou alguma forma de pedir ajuda. Se aquilo não desse certo, eles teriam que se esconder.
O elevador continuou a subir.
Jack segurou-a.
Ela agarrou-se a ele.
— Jack... como... você foi tão...?
— Letárgico? — Jack sacudiu a cabeça. — Por Deus, Harriet, você acha mesmo que eu já estou tão inútil? Sei que tive uma crise no hotel. Sinto muito por ter batido em você.
A voz dele ficou um pouco embargada quando pronunciou a última frase.
Harriet agarrou-se a ele com força, aceitando seu pedido de desculpas.
— Quando eles lhe deram o choque com a Taser, pensei que neurologicamente alguma coisa tivesse piorado. — Ela apertou-o de novo. — Graças a Deus.
— Doeu pra cacete. Mas mais tarde, quando percebi que você estava apenas fingindo me dar aqueles malditos comprimidos, imaginei que você estivesse tentando me dizer para representar, para fingir estar pior do que eu estava, de modo que eles baixassem a guarda.
Ela ergueu o olhar.
— Quer dizer então que você estava fingindo o tempo todo?
— Bem, eu realmente me mijei todo — disse ele com raiva. — Mas eles não me levariam até a maldita privada.
O elevador parou.
Jack abriu a porta, fez sinal para que Harriet saísse e tornou a fechá-la. Ele estendeu a mão por entre as tábuas da porta de madeira e apertou o botão do porão, fazendo o elevador descer.
— Não quero que eles saibam em que andar nós saímos do elevador — explicou.
Juntos, eles saíram para a escuridão do depósito, repleto de equipamento velho.
— Pelo que parece, é uma antiga fábrica de enlatados — disse Jack. — Deve haver muitos lugares para alguém se esconder por aí.
De alguma parte lá embaixo, um novo som subiu até eles. Latindo... agitado, excitado.
— Eles têm cães — sussurrou Harriet.
CAPÍTULO 15
Demônios nas profundezas
7 de julho, 4:45h
Ilha de Pusat
Tinha tomado tempo demais cruzar a rede da ilha.
Enquanto Monk e seu exército se arrastavam pelo teto do mundo, o olho da tempestade passou pela ilha e já voltara para o mar. A leste, o tufão se erguia como uma onda gigantesca, prestes a se abater novamente sobre a ilha.
Os ventos já estavam se tornando mais fortes.
Monk se agarrou às tábuas da ponte enquanto a rede balançava. Trovões ecoavam como tiros de canhão e raios estilhaçavam o céu negro. As nuvens se abriram, e a chuva caiu em gotas dolorosas.
Agarrado com toda força, Monk olhou para baixo.
O Mistress of the Seas flutuava na lagoa, brilhante e convidativo.
Cordas deslizavam da parte de baixo da rede até o heliponto no alto do solário. Monk gostaria que os helicópteros ainda estivessem ali, mas os pássaros tinham partido de repente antes de o navio entrar na lagoa da ilha.
Assim, restava apenas o barco de Ryder.
Mais cordas caíram, chegando a 12, balançando ao vento.
Acima, Jessie gritava ordens em malaio. O jovem enfermeiro estava a menos de 30 metros de distância, mas os ventos arrastavam a maioria de suas palavras. Jessie sentou-se na rede, as pernas bem apertadas. Ele se moveu e acenou para baixo.
Os membros da tribo mais próximos se lançaram de cabeça através da rede, se afastando, como pelicanos mergulhando no mar. Monk espiou sob a rede. O trio reapareceu, agarrado a cordas. Eles deslizaram com habilidade treinada, enquanto mais cordas eram colocadas.
Lentamente o exército voltou a rastejar, seguindo na direção das cordas e além delas. Monk seguiu pela ponte. Ele alcançou Jessie no momento em que Ryder agarrava uma corda e saltava através da rede. O bilionário não hesitou.
Monk compreendeu a pressa.
Um raio caiu na extremidade mais distante da rede. O trovão ecoou, ensurdecedor. Uma energia azul se espalhou ao longo da estrutura da cúpula, mas desapareceu antes de chegar a eles. O cheiro de ozônio pairava no ar.
— Não se aproxime de nada metálico! — gritou Monk.
Jessie anuiu, repetindo o alerta em malaio.
Um minuto depois, Monk tinha se juntado a Jessie.
— Vá para baixo! — ordenou ele, apontando.
Jessie consentiu. Enquanto ele deslizava para fora da ponte, a tempestade se abateu sobre a ilha com um vendaval repentino e cortante, rugindo como um trem de carga. Jessie, apanhado a meio caminho, solto, teve o corpo arremessado para fora da ponte de tábuas. Ele rolou para um ponto mais frágil da camuflagem da rede. Seu peso o despedaçou.
Monk se moveu rapidamente e pegou o tornozelo dele. Sua mão protética agarrou com força enquanto Jessie escorregava. O ombro de Monk ardia com o peso de Jessie. O jovem enfermeiro estava pendurado de ponta-cabeça abaixo dele, gritando uma seqüência de maldições hindus... Ou talvez fossem orações.
— A corda! — gritou Monk para ele.
Uma delas estava a três metros de distância.
Monk começou a balançar o homem. Jessie compreendeu e estendeu um dos braços, tentando pegar a corda com as mãos. Ainda estava longe. Mas apenas uns 30 centímetros.
— Vou jogar você!
— O quê? Não!
Ele não tinha escolha.
O ombro de Monk ardia enquanto ele balançava Jessie pela última vez.
— Lá vamos nós!
Monk lançou o enfermeiro na direção da corda.
Jessie se chocou contra a corda, lutando para agarrar o cabo molhado. Seu corpo começou a cair, escorregando, quicando. Então ele enganchou uma perna e conseguiu apoio. Ele freou e impediu a queda. Agarrou-se à corda, a bochecha apoiada nela. Seus lábios se moveram em uma oração de agradecimento silenciosa — ou talvez uma maldição dirigida a Monk.
Com o rapaz salvo, Monk rolou de volta para o alto da ponte e se arrastou com cautela. Os ventos o açoitavam, mas ele conseguiu chegar ao monte de cordas.
Outro raio caiu atrás dele.
Monk se agachou enquanto o trovão ribombava. Ele olhou para trás, enquanto a rede sacudia como um trampolim. O fim da ponte sacudiu para cima com o choque, as pranchas de madeira em chamas. Um dos homens da tribo foi lançado alto no ar, com os braços girando como um cata-vento, enquanto uma corrente elétrica azul estalava pela rede para todos os lados — mas o acrobata pousou em segurança entre os seus.
Homem de sorte, mas já não havia como retornar.
Só havia uma direção.
Monk agarrou a corda mais próxima e a lançou através da rede. Ele escorregou para baixo na direção do heliponto molhado de chuva e pousou em segurança.
O restante do exército o seguiu.
Agachado, Monk foi rapidamente na direção de onde os outros tinham se reunido, perto da escada que descia do heliponto. Jessie já estava orientando os homens da tribo, apontando para Monk e Ryder. Eles se separariam ali. Monk iria em busca de Lisa, Ryder e Jessie desceriam, abrindo caminho e preparando o barco.
Atrás de Monk, pés nus ecoaram no deque com o último dos integrantes do exército descendo da rede encharcada.
Monk se voltou para Ryder e Jessie.
— Prontos? — perguntou.
— Como sempre — respondeu Ryder.
Monk olhou para o grupo de ataque, armado com machados de osso e AK-47. Um relâmpago caiu, fazendo o exército brilhar. Olhos cintilaram em rostos pintados de cinzas.
Naquele breve instante Monk sentiu uma pontada de apreensão, um instante de desconforto. Mas resistiu. Era apenas a tempestade alimentando seus temores.
— Vamos encontrar minha parceira e dar o fora daqui.
5:02h
Lisa estava amarrada a uma mesa cirúrgica metálica, colocada em um ângulo de 45 graus. Ela estava pendurada pelos braços, com os pulsos presos por tiras de plástico acima da cabeça. Suas pernas estavam soltas e não tocavam o chão. Ela vestia apenas o avental de hospital. Um suor frio fazia o algodão fino grudar em sua pele, enquanto o aço da mesa provocava-lhe arrepios nas costas.
Ela estava amarrada ali havia mais de uma hora.
Sozinha.
Com sorte, esquecida.
De um dos lados havia uma bandeja de aço inoxidável com uma série de instrumentos usados em autópsias: serras de cartilagens, ganchos de dissecação, tesouras de corte, agulhas post-mortem, formões para medula espinal.
O dr. Devesh Patanjali retirara os instrumentos de uma bolsa de couro preto que Surina segurava aberta. Ele tinha alinhado perfeitamente cada instrumento sobre uma faixa de tecido cirúrgico. Um balde de aço estava pendurado nos pés da mesa inclinada, pronto para receber o fluxo de sangue.
Enquanto ele ajeitava seus instrumentos, Lisa tentara de tudo para dissuadi-lo da tortura que estava por vir. Ela tentou apelar à sua razão, explicando que ainda poderia ser útil. Que, assim que Susan fosse recapturada, Lisa daria a ele todo o apoio para conseguir uma cura a partir do sangue e da linfa da mulher. Lisa já não tinha provado sua engenhosidade?
Apesar de seus argumentos, Devesh a tinha ignorado. Ele simplesmente colocou cada instrumento na bandeja, um após o outro.
Finalmente, seus argumentos se transformaram em lágrimas.
— Por favor... — implorara ela.
Com Devesh de costas, a atenção de Lisa se voltou para Surina. Mas não havia esperança ali, apenas completo desinteresse, o rosto dela esculpido em mármore frio. O único toque de cor era o rubi hindi em sua testa, lembrando a Lisa uma gota de sangue.
Então Devesh recebeu um telefonema. Ele atendeu e ficou absolutamente excitado, satisfeito com o que estava escutando. Falou rapidamente em árabe. A única coisa que Lisa compreendeu foi a palavra Angkor. Devesh saiu da sala em passos largos, seguido por Surina. Devesh nem sequer olhara para trás.
Então Lisa ficou pendurada ali, sem saber o que estava acontecendo.
Mas ela conhecia seu destino.
Os polidos instrumentos cirúrgicos faiscavam. Se ela se mexia, o balde de sangue fazia barulho ao pé da mesa. Ela oscilava entre a exaustão e o limite do terror. Ela quase agradeceria o retorno de Devesh. A espera e a expectativa ameaçavam fazê-la em pedaços.
Mas, quando a porta finalmente se abriu, Lisa se encolheu de medo, engasgando um pouco. Ela não podia ver quem tinha entrado, mas ouviu o barulho de rodas.
Uma maca apareceu, empurrada por trás.
Uma figura pequena estava sobre ela, amarrada, braços e pernas estendidos. Devesh falou, movimentando a maca de modo que ela ficasse exatamente em frente a Lisa:
— Lamento o atraso, dra. Cummings. Meu telefonema demorou mais do que eu imaginara. E precisei de algum tempo para localizar nosso sujeito aqui.
— Dr. Patanjali — implorou Lisa, olhando fixamente para a maca —, por favor, não...
Devesh se encaminhou para seus instrumentos. Colocou um avental branco sobre as roupas depois de ter tirado o paletó.
— Bem, onde estávamos?
Surina apareceu ao lado, as mãos fechadas, grave. Mas seus olhos tinham um fogo raro. Raiva.
Devesh continuou a falar.
— Dra. Cummings, você estava bastante certa mais cedo. Seu conhecimento pode se revelar valioso para concluirmos nosso estudo. Mas ainda assim alguma punição parece necessária. Alguém terá que pagar a dívida de sangue que eu não posso retirar de você.
Lisa baixou os olhos para a maca, para o personagem amordaçado e de olhos arregalados.
Era a garota, a mesma garota que Devesh ameaçara mais cedo — e depois a deixara partir, assassinando em seu lugar o dr. Lindholm. Mas não haveria bode expiatório dessa vez. Devesh pretendia sacrificar aquela pequena ovelha, obrigando Lisa a assistir.
Devesh colocou um par de luvas cirúrgicas e pegou a faca para cartilagem.
— O primeiro corte é sempre o pior.
Quando Devesh se virou, houve barulho de tiros, soando distantes, mas ainda assim altos.
Ele parou.
Houve outra rajada, vinda do andar de baixo.
— Outra vez? — suspirou ele, irritado. — Eles não conseguem conter esses pacientes?
Mais disparos.
Devesh jogou a faca na bandeja com força, fazendo os outros instrumentos chacoalharem. Ele se cortou e levou aos lábios um dedo ensangüentado. Franzindo o cenho, novamente se encaminhou para a porta.
— Surina, cuide de nossos convidados. Voltarei logo.
E a porta foi batida.
Como impulsionada pelo vento provocado pelo movimento da porta, Surina se lançou para a mesa. Ela pegou a faca de cartilagem e retornou até a criança amarrada.
— Não a machuque — avisou Lisa, com um tom de ameaça, por mais impotente que estivesse.
Os olhos de Surina brilharam de desinteresse para Lisa. Ela voltou a atenção para a criança, ergueu a faca e desferiu golpes com o metal faiscante. As correias que prendiam a menina caíram. A estranha mulher pegou a criança nos braços, apoiada num dos ombros, e encaminhou-se para a porta.
Lisa ouviu os cliques baixos da porta se abrindo e fechando, deixando-a novamente só.
Franziu o cenho. Ela se lembrava de Surina oferecendo um doce àquela mesma criança mais cedo, uma compaixão rara. Lisa lembrou-se dos olhos de Surina quando tinha entrado, feroz e selvagem, como uma leoa. Aparentemente, essa leoa mantinha alguma compaixão pelos mais inocentes. Talvez o resgate fosse uma espécie de graça em compensação por suas outras crueldades.
Como quer que fosse, ela tinha partido.
Lisa imaginou a fúria de Devesh quando retornasse, já inflamado por outra interrupção. Só teria restado uma pessoa sobre a qual descarregar sua frustração. Lisa mais uma vez lutou para soltar os pulsos. O balde se agitava e batia.
Os tiros continuavam, com alguns disparos mais altos que outros, vindo de diferentes direções. Lisa percebeu que havia mais de um tiroteio. Ela olhou ao redor. O que estava acontecendo?
Disparos de armas automáticas explodiram, acompanhados de vidro se quebrando, aparentemente a poucos metros. Houve depois mais disparos, acompanhados de gritos e de um estranho brado de guerra ululante. A luta durou um longo minuto.
Atrás dela, a porta se abriu com violência.
Lisa ficou paralisada.
Uma figura seminua surgiu em seu campo de visão, com listras pretas no corpo, uma presa afiada cravada no nariz e na cabeça um arranjo de penas esmeralda. Erguia uma lâmina afiada, com sangue até o cotovelo.
Lisa apertou o corpo contra a maca, paralisada de medo.
— Aqui! — gritou uma voz conhecida.
Era Henri.
Ela ouviu barulho de botas atrás de si. Uma lâmina fria deslizou entre seus pulsos. As algemas plásticas estalaram e saltaram. Lisa escorregou da mesa inclinada, lutando para não cair. Uma figura a apanhou.
Ele falou no seu ouvido:
— Então, se você já acabou de passear por aí, que tal darmos um beijo de despedida neste barco do amor?
Ela afundou nos braços do homem, tremendo e fraca de alívio:
— Monk...
5:19h
Devesh viu que havia algo de errado quando uma rajada de tiros foi disparada acima de sua cabeça, dois andares acima. Vinha da direção da ala de ciência.
Devesh ficou parado a meio caminho na passagem do convés inferior, cercado por sete guardas e seu chefe somali. O tapete ali estava encharcado de sangue, mas eles não tinham achado corpos.
E então o tiroteio acima.
Devesh esticou o pescoço. Antes que pudesse reagir, soaram sirenes por todo o navio, dando o alerta geral. O que estava acontecendo?
Houve mais tiroteio acima. Mais uma vez, vindo da ala de ciências.
— Lá atrás! — gritou Devesh, apontando a bengala para a escada. Virando-se ao mesmo tempo, os guardas recuaram — mas no fim do corridor uma pessoa baixa se moveu rapidamente por uma passagem: pernas nuas, usando penas e ossos que chacoalhavam, o corpo lambuzado de preto.
Um dos canibais da ilha.
Ele tinha um fuzil nas mãos.
O chefe dos guardas praguejou.
Armas foram disparadas atrás deles. Balas se cravaram no tapete e nas paredes. Um dos guardas caiu para trás como se tivesse sido golpeado. Sangue escorria de seu nariz e da boca enquanto ele despencava no chão. Os outros guardas se colaram às paredes, respondendo ao fogo. O somali arrastou Devesh por trás, agachado e disparando com uma pistola na outra mão.
Mas não havia ninguém ali.
Uma porta de um dos lados se abriu. Um machado de osso desceu, cravando-se profundamente no crânio de outro guarda. Então a porta se fechou novamente. O guarda engatinhou, com o cabo do machado se projetando da parte de trás da cabeça, e então desabou no chão.
Outro homem atirou na porta. Rajadas a perfuraram.
Mas Devesh leu o aviso nela: APENAS FUNCIONÁRIOS. Ela levava às passagens internas do iate. O assassino certamente tinha fugido.
Outro canibal.
O navio estava sendo atacado, e a defesa fora rompida.
Rajadas de tiros surgiram em outro ponto do navio, chegando até eles em ecos abafados. Estavam perdendo controle do navio. O líder somali se colocou ao lado de Devesh. Os guardas restantes ficaram a postos, metade voltados para a frente, metade para trás, atentos a todas as portas.
— Senhor, precisamos levá-lo para local mais seguro — rosnou o somali.
— Onde? — perguntou Devesh, quase em um gemido.
— Fora do barco. Podemos pegar uma lancha para a cidade da ilha e colocá-lo em segurança. Reunirei outros cem homens, armamento melhor, e voltarei para limpar o barco.
Devesh anuiu. Até que tudo fosse resolvido, ele queria sair daquele barco.
O somali os conduziu rapidamente de volta à escada. Sirenes de alarme e rajadas de tiros os acompanharam. Eles desceram correndo. Passaram por quatro corpos, de colegas piratas.
Ao chegarem ao nível da lancha de apoio, Devesh parou.
— Senhor?
— Ainda não. — Devesh ficou com mais raiva a cada nível que desciam. Ele não iria deixar o barco sem alguma retaliação. E sabia o que fazer. Continuou a descer as escadas.
Para o porão do navio.
Para onde mantinha trancado um conjunto especial de enfermarias.
Antes de partir ele iria tornar as coisas mais difíceis para aqueles que queriam tomar o navio. Combater fogo com fogo. A ilha não era a única fonte de canibais.
5:22h
Susan parou no limite da floresta, olhando para o Mistress of the Seas. Sirenes de alarme soavam através da água, juntamente com tiros abafados.
O ataque estava em curso.
Ela tinha as mãos apertadas na barriga, assustada, rezando.
Ouviu pequenos ruídos na floresta ao seu redor: uma folha molhada deslizando, lama escorrendo. Seus acompanhantes a cercaram, dispostos a proteger sua rainha, mas também curiosos, indo ver os fogos de artifício.
Logo à frente, uma canoa esperava na areia da praia, pronta para levá-la rapidamente ao barco de Ryder.
Se um dia ele chegasse.
Os nós dos dedos de Susan doíam enquanto ela apertava as mãos.
Por favor, deixe-os vir...
5:23h
Enfiado no poncho, Rakao esperava em seu esconderijo. Olhava por óculos infravermelhos, vendo sua equipe preparar a armadilha.
Ele já não precisava imaginar para onde teriam ido os outros prisioneiros fugidos. Minutos antes, outro de seus guardas vira movimentos suspeitos no alto do navio. Rakao tinha desviado sua atenção do alvo tempo suficiente para escapar e vasculhar o navio. Embora não tivesse conseguido ver nenhum movimento no alto do navio, ele descobrira o que pareciam ser cabos da rede derrubados pela chuva e pendurados sobre o heliponto.
Cordas.
Com uma maldição silenciosa, Rakao soube o que tinha acontecido.
Um ataque vindo da ponte acima das árvores.
Rakao vivia há uma década na ilha, ascendendo, por intermédio de golpes sangrentos, até a liderança do clã de piratas, cuja história remontava um século atrás. Mas ele tinha maiores ambições. Além até mesmo dos despojos de um na¬vio de cruzeiro e de escravos para o mercado negro. Havia um mundo maior a pilhar, e o médico lhe oferecera acesso a ele por intermédio de uma organização com muito mais de um século, na qual ambição e crueldade eram reconhecidas e recompensadas.
Assim, quando descobriu que tinha levado uma rasteira, Rakao ficou furioso, mas não iria incorrer no erro de reagir violentamente. Tinha as línguas secas de seus antecessores pregadas no batente acima da porta de sua casa na aldeia. Ele não chegara à sua posição atual com atos irresponsáveis.
Mantendo a concentração, Rakao fez seu operador de rádio recuar 30 metros para não ser ouvido, depois entrou em contato com o barco a fim de alertá-los para o ataque iminente. Mas enquanto esperava, Rakao ouviu tiros — seguidos por sirenes de alerta. Seu alerta chegara ao navio tarde demais.
Que seja...
Rakao manteve sua posição.
Se o ataque furtivo ao navio fracassasse, seu operador de rádio o avisaria. Caso contrário, Rakao sabia onde os vencedores iriam terminar.
O verdadeiro prêmio estava ali.
Rakao observou seu alvo, de pé no limite da floresta.
Não iria demorar.
5:33h
Monk desceu correndo o último lance de escadas. Lisa o seguiu com dois cientistas da OMS: um toxicologista holandês e um bacteriologista americano. No fim da escada dois piratas estavam enroscados em uma poça de sangue. Um canibal estava um passo atrás, ajudando-os a sair da escada.
Era outro dos batedores de Ryder, abrindo um caminho seguro pelo navio sitiado. Era um roteiro complexo, que descia lances de escadas, por um corredor de passageiros, ao longo do deque externo, e até mesmo cruzava uma cozinha. Continuava a haver tiroteios em eventuais confrontos de guerrilha.
Pelo menos os alarmes finalmente tinham sido desligados.
Mas isso era uma notícia boa ou ruim?
Monk foi na frente, passando pela poça de sangue, para o corredor principal de estibordo. Eles chegaram ao convés inferior, à altura da linha d'água. A lancha particular de Ryder ficava nesse nível. Monk tomou fôlego para se orientar. No convés também ficava o cais de lanchas do navio, bem como um teatro, centro médico, salão de videogames e a discoteca Midnight Blue. A lancha de Ryder ficava perto da proa do navio.
— Por aqui! — Ele se encaminhou para a direita, parou, se virou novamente e disse: — Não, por aqui!
Eles partiram novamente, seguindo os homens da tribo.
Ele percebeu um movimento furtivo acima, na escadaria de um convés intermediário, não distante da abertura para o cais das lanchas. Ele reconheceu os uniformes gastos.
Piratas.
Os dois grupos se viram ao mesmo tempo.
Monk empurrou Lisa para o salão de videogames:
— Abaixe-se!
Seu grupo se espalhou por outras passagens ou atrás de colunas. Um dos canibais foi atingido na cabeça e arremessado para trás. Mas o grupo de Monk era maior do que o dos piratas. Eles responderam ao fogo sem parar, esburacando o corredor. Três piratas caíram. O mais alto arremessou um homem pequeno nas escadas e fugiu.
Monk liderou um grupo de canibais. Um deles pegou uma arma nova das mãos de um dos piratas mortos e a colocou junto a seu rifle fumegante. Outro beliscou as bochechas de um dos corpos. Não por afeto. Apenas verificando a maciez.
— Aquele era Devesh tentando escapar — disse Lisa, se juntando a Monk e apontando para a escada ao passarem por ela. — O líder da Guilda, aqui.
Monk olhou para o cais de lanchas.
— Eles devem estar planejando zarpar para a Cidade Pirata para reunir reforços. A idéia o impeliu mais rápido pelo saguão na direção da proa. Monk pensava em se os reforços chamados por rádio não estariam chegando.
O corredor fazia uma curva à frente, acompanhando a forma da proa do navio. Ao fazerem a curva, Monk viu a passagem aberta para a lancha particular de Ryder.
Eles tinham conseguido.
Antes que pudesse continuar, ouviu gritos agudos vindo do salão atrás dele.
Monk voltou.
Vindos da escadaria do convés intermediário, 12 tipos se lançaram no corredor, acotovelando-se, lutando, agitados, seminus em camisolas de hospital puídas e encardidas. Os membros estavam inchados e porejavam. Lábios ensangüentados se abriam em risos selvagens. Mesmo a 50 metros de distância Monk reconhecia a loucura que brilhava em olhos purulentos.
— Pacientes — sussurrou Lisa, agarrando o braço de Monk e arrastando-o para trás. — Em psicose catatônica. Eles atacam qualquer um. Devesh deve tê-los libertado.
— Filho-da-puta — disse Monk, orientando o último de seu grupo a fazer a curva e sair de vista. Ele correu na direção da porta aberta para a lancha de Ryder. Outros gritos vieram da frente, depois da porta, onde o corredor fazia a curva para bombordo.
Dali vinham sons de pés correndo na direção deles.
Monk ergueu sua arma — mas surgiu uma pessoa conhecida, com uma das mãos na parede externa para se manter de pé. Jessie viu seu grupo, e o rosto brilhou de alívio. Ele era seguido por um grupo de sete canibais. Os dois últimos carregavam um terceiro, um homem que sangrava profusamente de um ferimento no pescoço. Pelo traje cirúrgico verde, era um dos médicos da OMS.
Os dois grupos se reuniram junto à porta que levava ao cais da lancha.
— Você conseguiu — disse o jovem enfermeiro, engasgado.
Ryder, atraído pela confusão, apareceu na passagem com seu próprio grupo de canibais. Ele cheirava a gasolina e limpava o óleo das mãos em um pedaço de pano.
— O que está acontecendo?
— Seu barco está abastecido? — perguntou Monk.
Um gesto de cabeça, confirmando.
— Pronto para partir.
Ao lado, Jessie permitiu que Lisa o abraçasse rapidamente, ao mesmo tempo acenando para os outros dois médicos da OMS.
— Dr. Barnhardt. Dr. Miller — disse ele, apontando para o homem de jaleco verde. — Preciso de ajuda com ele.
Os canibais acomodaram o homem ferido no chão. Sangue escuro e grosso jorrava do ferimento no pescoço.
Lisa ajoelhou-se de um lado do homem, os dois outros médicos, do outro. Jessie já tinha tirado sua camiseta, passando-a para Lisa. Ela a dobrou e pressionou sobre o ferimento.
O homem teve uma convulsão, tossindo sangue. Depois ficou rígido, imóvel, com os olhos abertos. Apenas seu peito se movia, arquejando com a morte.
Ainda segurando a camisa dobrada no ferimento, Lisa procurou o pulso do outro lado do pescoço do homem. Ela balançou a cabeça. Não havia nada que pudessem fazer por ele.
Enquanto ela trabalhava, Jessie contara sua história, enxugando a testa e sujando-a de sangue.
— Nós o resgatamos. Ele estava sendo atacado por uma das pacientes. Tivemos que atirar nela. Mas há outros vindo de baixo. Eles já estão ocupando os conveses inferiores e subindo. Centenas deles.
Marcando suas palavras, gritos selvagens ecoaram em meio a mais tiros.
— Hora de abandonar o barco — disse Ryder.
Monk se voltou para Ryder.
— Quantos cabem em seu barco?
— Seis lugares... Mas podemos colocar mais um ou dois — respondeu Ryder, olhando o número de pessoas reunidas.
Jessie balançou a cabeça e deu um passo para trás.
— Eu não vou.
Lisa segurou seu cotovelo.
— Jessie.
— Alguém tem que defender as pessoas, as crianças que ainda estão a bordo. Dos piratas, da loucura. Os homens da tribo são a única esperança. E eles me conhecem. Eles me escutarão.
O dr. Barnhardt se colocou ao lado do jovem enfermeiro.
— Eu o ajudarei. Vamos tentar montar uma barricada segura. Reunir o maior número de pessoas possível. Para esperar que todos vocês saiam.
O dr. Miller olhou com relutância para a passagem aberta, depois para o médico morto. Ele concordou com a cabeça.
— Essa... Essa é nossa gente. Nossos amigos e colegas. Não podemos deixá-los.
Lisa, por sua vez, abraçou cada um deles.
— Henri... — murmurou ela, como que em um pedido ao último.
O homem mais velho a abraçou e empurrou na direção da passagem aberta.
— Vá pegar Susan. Mais que nossas vidas, a cura deve ficar fora do alcance da Guilda.
Lisa concordou e permitiu que Monk a conduzisse.
Eles entraram no cais da lancha atrás de Ryder.
Os pés de Monk falharam quando ele atravessou a passagem e viu o barco de Ryder.
— Minha Nossa Senhora!
5:43h
Devesh desceu na direção do palco escuro do teatro do navio. A cortina carmim brilhante estava fechada. Ele seguiu as costas largas do guarda somali na descida da escada do teatro. Depois de ter sido emboscado e afastado do cais de lanchas, Devesh e o guarda tinham fugido para cima.
Descer não era uma opção.
Não mais.
Os gritos e choros os tinham perseguido escada acima. No porão do navio, Devesh abrira todas as cinco celas, libertando os horrores que elas continham. Eles tinham se alimentado uns dos outros, com os mais fortes caçando os mais fracos.
Mais de duzentos.
Mantidos para experiências.
Devesh planejara usar a loucura desencadeada para combater a esperteza dos atacantes do navio, contê-los o tempo suficiente para organizar uma volta para o barco com granadas e metralhadores. Ele então iria massacrar todos eles.
Iria recuperar o navio.
Mas naquele momento ele fora pego em sua própria armadilha.
Tinha sido de seu guarda-costas somali aquele plano de fuga. Para chegar aos cais de lanchas, em vez de descer qualquer uma das escadas principais, o somali conduzira Devesh até a entrada do balcão superior do teatro de três andares do navio. Eles usaram as escadas do teatro para descer os três níveis de volta ao convés em que ficava o cais de lanchas.
As portas inferiores do teatro davam diretamente para o corredor do outro lado do cais. Uma corrida rápida, e eles estariam se afastando a toda a velocidade daquela batalha infernal.
Devesh usou a bengala para pular os últimos degraus.
O guarda somali ergueu a mão e se encaminhou para a porta.
— Fique mais atrás. Deixe-me garantir que está tudo limpo — disse ele, segurando uma grande pistola no outro punho.
Ele abriu a porta e conferiu o saguão, fazendo um arco com a pistola. Esperou um pouco, então abriu um pouco mais. Virando-se, anunciou com alívio:
— Saguão limpo.
Devesh deu um passo em sua direção. Mas o movimento acima do ombro do homem o deteve. Um dos homens da tribo coberto de penas saiu de seu esconderijo, na passagem que levava ao cais de lanchas.
O canibal tinha nas mãos um arco retesado.
O somali deve ter visto algo na expressão de Devesh. Antes mesmo de ter acabado de se virar, o homem começou a disparar às cegas.
O canibal levou três tiros no peito e caiu para trás com um grito agudo. Mas o homem já tinha soltado a corda do arco.
A flecha acertou a garganta do guarda, saindo como uma língua de sangue pela nuca. O homem cambaleou e caiu de lado. Ainda assim, manteve a pistola apontada para a porta.
Mas o canibal não se ergueu novamente, e o saguão permaneceu em silêncio.
Devesh sabia que teria de aproveitar a oportunidade. Ele correu na direção do guarda.
— Me ajude — rosnou o homem, os olhos apertados de dor, escorregando para se apoiar em um dos braços. O outro braço tremia para manter a pistola erguida.
Devesh chutou o braço de apoio do homem. O somali caiu de costas, surpreso. A ponta da flecha se rompeu contra o piso de madeira encerada. Devesh ajoelhou-se no ombro do homem e jogou a bengala para o lado. Ele precisava de uma arma melhor. Tentou arrancar a pistola da mão do homem.
Mas o homem se recusou a permitir, os dedos apertados de fúria e dor.
— Solte! — disse Devesh, mudando o joelho de posição para pressionar a flecha cravada.
Um barulho alto de madeira quebrando interrompeu a luta.
As portas do lado oposto do teatro tinham sido abertas com violência. Devesh conseguiu a pistola e se virou. Uma figura entrou rapidamente em seu campo de visão, ágil em seus pés pequenos, um redemoinho de seda com manchas de sangue.
— Surina!
Mas ela não estava só.
Um mar de formas a perseguia, alimentado por adrenalina e fome. Elas entraram depois dela. Algumas escorregaram no chão encerado, caindo e voltando a se erguer, em uma caçada bestial. Mas as quedas as retardaram o suficiente para que Surina percorresse metade do teatro.
Devesh se ergueu, ao mesmo tempo aliviado e horrorizado com sua chegada.
Não queria ficar sozinho.
Surina correu para o lado dele, um dos braços estendido para baixo. Seus dedos recolheram a bengala abandonada e, de um fôlego, metal saiu da madeira. Ela brandiu a espada.
Devesh se encaminhou para a porta aberta.
— Por aqui!
Segurando a pistola com as duas mãos, ele saltou sobre o somali, que resmungou, semiconsciente, o sangue se espalhando pela madeira escura. Pelo menos o corpo do homem poderia distrair os canibais.
Quando Devesh pousou, sentiu duas fisgadas na parte de trás dos joelhos.
Ele deu um passo cuidadoso, mas de repente suas pernas não conseguiam mais sustentá-lo em pé. Ele caiu ajoelhado na passagem, depois mais dolorosamente sobre o cotovelo, deixando a pistola deslizar para longe. A dor subiu-lhe pelo braço até o crânio. Com o canto do olho, ele viu Surina se erguer atrás dele, a espada de lado, com sangue na ponta.
Devesh tentou se erguer. Mas não conseguiu controlar as pernas. Viu sangue escorrer pelas calças à altura do joelho. Quando Surina passou, ele se deu conta do que acontecera. A piranha cortara os tendões atrás dos seus joelhos, inutilizando-o.
Ela deslizou pelo saguão e desapareceu na escuridão do cais.
— Surina!
Devesh tentou rastejar, arrastando as pernas.
Até sua pistola.
Mas outras mãos caíram sobre ele, atraídas pelo sangue, cravando-se em sua carne. Ele ouviu o grito de agonia do guarda nas profundezas do teatro escuro. Devesh foi arrastado para se juntar a ele, com as palmas das mãos chapinhando em seu próprio sangue, os dedos cravados tentando conseguir algo, uma última misericórdia.
Não teve nenhuma.
5:45h
Com o eco de gritos e tiros chegando até eles, Lisa se juntou a Monk no fundo da escada do cais da lancha. Ela tremia com a brisa úmida.
O cais particular de Ryder era pequeno, um arco de aço, cheirando a gasolina e óleo. No centro havia o que pareciam trilhos de alumínio de uma montanha-russa, um par deles acolchoados, presos em ângulo e voltados para uma abertura na lateral do barco. Além da abertura estava a lagoa, varrida pela chuva.
Mas era o que estava sobre os trilhos que continuava a prender toda a atenção de seu parceiro.
— Isso não é um maldito barco — disse Monk precipitadamente.
Ryder os conduziu à frente, com pressa.
— É um hidroavião, companheiro. Metade hidroplano, metade barco a jato.
Monk engasgou com a visão.
Lisa não estava menos impressionada.
Assentado nos trilhos de lançamento, o aparelho parecia um falcão no momento do mergulho, com as asas voltadas para trás. A cabine fechada terminava em um ponto aerodinâmico na proa. A popa tinha dois motores a hélice elevados. E, no alto, havia duas asas dobradas sobre a cabine, as pontas se tocando exatamente em frente à cauda vertical e aos motores.
— Foi construído pela Hamilton Jet na Nova Zelândia — disse Ryder, passando a mão pelo casco e conduzindo-os à escotilha lateral. — Eu o chamo de Sea Dart. Na água, seus motores duplos V-12 a gasolina bombeiam água da frente e a impelem por dois esguichos duplos na popa. Assim que ele ganha velocidade, você precisa apenas disparar o sistema hidráulico que abre as asas dobráveis, e ele ganha os céus... E as hélices da traseira o mantêm voando. Ele também é rápido. Céu ou água. A velocidade no ar chega a 480 quilômetros por hora — disse Ryder, dando tapinhas na lateral.
Ryder estendeu a mão para Lisa. Ele a ajudou a subir os degraus ao lado da plataforma de lançamento. Ela se instalou na cabine. Não era muito diferente de um Cessna: dois assentos para piloto e co-piloto na frente, e quatro outros atrás.
Ryder subiu atrás dela e seguiu para a frente até o banco do piloto. Monk entrou por último, fechando a escotilha.
— Apertem os cintos! — ordenou Ryder.
Monk pegou o assento mais perto da escotilha lateral, pronto para colocar Susan para dentro quando chegassem à praia. Lisa foi para a frente e ocupou o lugar junto a Ryder.
— Segure-se — disse ele.
Ryder acionou um disparador eletrônico; o Sea Dart deslizou suavemente pelos trilhos inclinados e mergulhou na lagoa com um leve impacto.
A água molhou o pára-brisa à medida que a proa do barco mergulhava mais.
Lisa imediatamente ouviu o roncar de motores atrás dela, um som grave e rouco de cavalos-motor. Ela também sentiu isso no fundo das calças.
O Dart começou a deslizar para a frente sobre a água com um borbulhar suave dos esguichos. A chuva caía em pancadas e como ondas no teto da cabine.
— Lá vamos nós — murmurou Ryder, aumentando a velocidade.
O barco justificou seu nome e disparou como uma flecha sobre as águas agitadas pela tempestade, empurrando Lisa contra o encosto.
Ela podia ouvir, vindo de trás, o assovio elogioso de Monk.
Ryder virou o barco, deslizando sobre a água como se fosse sobre gelo. Ele contornou a proa do navio, como um mosquito em frente a uma baleia.
Lisa olhou para o navio enorme. Longe dos tiros e gritos, o Mistress of the Seas parecia pacífico, brilhando gentilmente na penumbra da tempestade.
Mas ela sabia que o navio era tudo, menos pacífico.
Enquanto se ajeitava no assento, ela não conseguia evitar uma leve sensação de culpa. Por Jessie, por Henri e pelo dr. Miller. E por todos os outros. Ela ainda sentia como se estivesse fugindo de uma batalha, abandonando os outros para salvar a própria pele.
Mas ela não tinha escolha.
Ryder virou o barco na direção da ilha, onde eles iriam se encontrar com Susan. O barco acelerou na direção da massa de floresta negra marcada por uma praia estreita.
Ela repetiu em silêncio as últimas palavras ditas por Henri. A cura deve ficar fora do alcance da Guilda. Lisa viu a floresta crescer à sua frente, a faixa de praia se alargar. Eles não podiam fracassar.
5:50h
Rakao viu o estranho aparelho contornar o navio e acelerar diretamente para onde ele estava. Pelas lentes de seu binóculo infravermelho, o barco era uma mancha carmim quente atravessando a água mais fria.
Ele fez um sinal para que a equipe se preparasse. Eles esperariam seu primeiro disparo antes de lançar o ataque.
Rakao baixou o binóculo e levou aos olhos a mira telescópica do rifle. Ele mais uma vez se fixou em seu alvo, a mulher que fugira. Ela saíra da floresta, e era vista facilmente então, esperando na praia.
Rakao ouviu o rugido do barco se aproximando.
Ela levantou um dos braços. O membro parecia captar a luz da lua enquanto era erguido. Mas não havia lua.
Rakao sentiu um arrepio àquela visão. Mas não permitiu que isso o distraísse. Ele tinha uma missão. As respostas ficariam para depois.
Na praia, um dos homens da tribo tirou a solitária canoa de tronco da praia e a colocou nos baixios. Ele chamou a mulher. Ela seguiu para a água, subiu a bordo e se sentou desajeitadamente no fundo.
De pé atrás da popa, ele se curvou, pronto para transferir a mulher para o barco que chegava. Eles não teriam de esperar muito.
O aparelho chegou rápido, virando suavemente para expor o lado de estibordo, deslizando a cerca de 7 metros.
A escotilha lateral já estava aberta.
Rakao olhou o homem no interior, apoiado na abertura.
Perfeito.
Rakao ajeitou o rifle, apontou e disparou.
5:51h
Monk deu um salto ao disparo de um rifle.
De sua posição na abertura da escotilha ele viu o homem da tribo atrás de Susan cair na água. O corpo em queda empurrou a canoa, fazendo com que ela deslizasse na sua direção.
Depois uma seqüência de tiros, pequenos flashes de luz na floresta escura.
Outro homem da tribo caiu, sangrando no peito e no ombro. Ele estendeu um dos braços na direção de Susan na água, esperando que a rainha-feiticeira conseguisse salvá-lo. Mas houve outro disparo de rifle, sua cabeça foi arremessada para trás e a metade inferior de seu rosto explodiu.
Ele caiu na areia.
Não passava de uma armadilha... com Susan de isca.
Uma rajada perfurou o flanco do Sea Dart, fazendo Monk voltar para dentro. Monk foi na direção do fuzil de assalto no banco de trás, apanhando-o desajeitadamente. Mas um grito gutural interrompeu a fuzilaria contra o barco. No silêncio, Monk recuou cautelosamente.
Um homem com um conhecido rosto tatuado estava de pé com água até os joelhos. Rakao tinha uma lança em uma das mãos e uma pistola Sig Sauer na outra. Com o braço esticado, apontava o cano da pistola para a parte de trás da cabeça de Susan, que flutuava na canoa, agachada na popa.
Os olhos de Susan, brilhando no escuro, fitavam Monk, aterrorizados.
Rakao gritou do outro lado da água, em inglês.
— Desliguem os motores! Joguem fora todas as armas. Depois, um de cada vez, saltem e nadem na minha direção.
Monk se virou:
— Lisa, preciso de você aqui. Ryder, não desligue esses motores. Quando eu gritar vai, você dispara daqui.
Lisa lutou com o cinto, mas finalmente se soltou.
Monk mudou o fuzil de posição para pegá-lo pela coronha e segurou-o do lado de fora da abertura da escotilha. Uma única rajada chegou perto da lateral do Sea Dart. Rakao gritou com raiva para o atirador afastado. Nada de danos à mercadoria. Rakao tinha de reconhecer um prêmio que merecia ser preservado.
Monk apareceu, expondo-se totalmente na escotilha. Segurou o fuzil do lado do corpo; a outra mão aberta e erguida.
Lisa sussurrou para ele:
— O que você está fazendo?
— Esteja pronta — murmurou ele.
— Para o quê?
Iria demorar demais explicar.
Rakao percebeu que ele tinha aparecido e entrou ainda mais na água, o cano da pistola a apenas 30 centímetros da cabeça de Susan. A proa da canoa estava apontada na direção do Sea Dart, ligeiramente elevada pelo peso de Susan na popa.
Monk disse:
— Estamos saindo!
Para demonstrar sua sinceridade, ele jogou o fuzil para a esquerda, em um arremesso dramático. A arma rodopiou no ar. Como ele esperara, os olhos de Rakao o acompanharam, reflexo de um caçador ao movimento.
Monk saltou uma fração de segundo depois disso. Saltou alto, como se fosse mergulhar encolhido na lagoa. Em vez disso, ele pousou na proa erguida da canoa. Seu peso e o impulso afundaram muito a proa. A popa da canoa foi catapultada como uma gangorra.
Susan voou por cima da cabeça de Monk — arremessada diretamente para o Sea Dart.
Rakao disparou um tiro, mas a popa da canoa tinha batido na mão do maori, arremessando a pistola.
Monk ouviu um barulho de água atrás de si quando Susan caiu.
Então a canoa voltou para a água, deixando Monk escarrapachado no fundo dela. Ele se ergueu sobre o cotovelo. Viu as pernas de Susan, enquanto Lisa a arrastava pela escotilha lateral.
Boa menina.
Monk gritou com todas as forças:
— Ryder! Vai!
Mas o Sea Dart ficou apenas flutuando.
Monk se preparava para gritar novamente quando a canoa balançou.
Rakao tinha subido na canoa e estava de pé. A canoa sacudia, mas ele conseguia manter o equilíbrio. Ele apontou a lança na direção de Monk com as duas mãos.
Monk reagiu instintivamente. Ele tentou bloquear o golpe mortal agarrando a haste. Dedos protéticos a agarraram.
Um erro.
Uma violenta descarga elétrica passou por seu corpo. Ele se lembrou do resgate anterior de Lisa por Rakao, que atacava com sua lança elétrica.
O corpo de Monk se contorceu de dor. Os músculos tiveram espasmos com uma intensidade de quebrar os ossos. E ele ainda conseguia ouvir as rajadas de tiros disparadas do Sea Dart.
Por que Ryder ainda estava ali?
Monk lutou contra a eletrocussão. Ele deveria ter morrido imediatamente, com os volts correndo por ele. Sobrevivera apenas por causa do isolamento protetor de sua mão protética. Mas começou a sentir o cheiro de plástico derretendo.
Ryder... desaparece daqui...
5:54h
— Espere! — gritou Lisa acima do estrépito das balas na lateral do Sea Dart. Lisa estava deitada no chão ao lado de Susan. Podia ver Rakao jogando seu peso na lança, tentando enfiar sua ponta de aço eletrificada no peito de Monk. Monk lutava. Uma fumaça preta saía de sua mão protética.
A canoa sacudia, perto... Ou, pelo menos, suficientemente perto.
— Agora! — gritou ela.
Houve um som alto de explosão acima de sua cabeça, detonando o sistema hidráulico no alto. O Sea Dart abriu suas asas, que desceram como um par de lâminas de machado. Uma das asas bateu no ombro de Rakao, jogando-o da canoa e arremessando-o na água do lago.
A saraivada de balas foi interrompida momentaneamente; a manobra impressionara os atiradores.
Lisa gritou no silêncio:
— Monk! Acima da sua cabeça!
Grogue, Monk ouviu o comando de Lisa.
Ele precisou de um instante para entender o que ela queria dizer. Havia algo acima de sua cabeça. Uma das asas do Sea Dart. Tremendo descontroladamente, ele juntou as pernas abaixo de si — e saltou.
Ela não confiava na força de sua mão de verdade. Dedos de plástico fumegantes agarraram um dos suportes da asa. Ele segurou firme, dando um sinal de travado.
Vai...
— Vai! — berrou Lisa, ainda no chão, comprimindo-se contra os assentos.
Sob a barriga, ela sentiu os motores duplos girando. O Sea Dart partiu, voltando a popa para a praia, enquanto os atiradores novamente abriam fogo, livres afinal de sua paralisia momentânea.
Lisa viu uma rajada atingir a perna pendurada de Monk.
O sangue escorreu de sua panturrilha. Ela viu o espasmo de dor no rosto dele. A parte inferior da perna ficou pendurada, torcida, enquanto Monk se ajeitava. A bala deve ter atingido a tíbia, fraturando-a.
Graças a Deus, ele ainda está se segurando.
Ryder traçou o rumo para longe da praia, voando pela água, fora de alcance.
Lisa queria chorar.
Eles iriam conseguir.
5:55h
Rakao engasgou e tirou o rosto da água. Seus dedos, e depois o calcanhar, encontraram pedra e areia no fundo. Ele ficou com água até o peito na lagoa. O ronco de um motor chamou sua atenção.
O barco inimigo disparava através da lagoa, com uma figura balançando na ponta de uma das asas. Furioso, ele caminhou até a praia. Seu braço esquerdo ardia na água do mar. Ele tocou com os dedos a parte de cima do braço, sentiu uma ponta de osso atravessando a pele, quebrado pelo golpe que o lançara no ar.
Ele segurou a lança com a outra mão.
Felizmente não perdera a arma, pois se agarrara a ela.
Poderia precisar dela.
Rakao tinha percebido os brilhos sob a água, procurando por ele, atraídos pelo sangue. Ele deu as costas à praia e recuou passo a passo. Manteve a arma apontada, pronta para ser usada. O choque poderia machucá-lo, mas manteria as lulas afastadas.
Com água pelo peito, Rakao se permitiu um suspiro de alívio.
Quando saísse, ele caçaria os outros.
Não importava em que lugar no mundo pousassem, ele iria encontrá-los.
Era uma promessa.
Um relâmpago no céu iluminou por um instante as águas escuras, brilhante o suficiente para iluminar as profundezas. Um emaranhado de tentáculos se espalhava ao redor de suas pernas. Os tentáculos mais compridos cintilavam com um brilho amarelo. O corpo do monstro estava deitado quieto na areia, a um passo de distância. Então o relâmpago cessou, transformando o lago em um espelho escuro, refletindo o pânico em seu rosto.
Rakao cravou a lança, dando carga máxima.
Um brilho azul atravessou a água. Ele engasgou com a dor, como uma armadilha de aço se fechando no meio de seu corpo. Mas durou apenas uma fração de segundo — e a lança morreu em sua mão. Com uma última descarga de eletricidade e um cheiro acre de fumaça, a arma se apagou, com a sobrecarga de sua batalha contra o americano.
Rakao tropeçou para trás, espalhando água, o braço quebrado doendo terrivelmente.
Teria a carga sido suficiente?
A resposta veio na forma de uma dor lancinante em uma das coxas. Ganchos quitinosos se cravaram na carne de sua pele. Ele lutou contra a criatura que o arrastava para águas mais profundas. Seu corpo subiu à superfície, revirando os olhos.
Rakao golpeou-o. A arma podia não estar carregada — mas tinha uma ponta afiada. Ele sentiu a lâmina penetrar fundo. O aperto em sua perna afrouxou, depois soltou.
Com uma sinistra satisfação, ele recuou novamente.
Mas de repente as águas ao redor dele se agitaram com lampejos: azuis e esmeralda, mas principalmente um tom de carmim. Outros do bando estavam deitados à espera. Rakao identificou a fúria nos movimentos. Eles giravam ao redor dele como em um redemoinho.
Algo bateu em sua perna. Dentes se cravaram em seu tornozelo. Rakao soube que era o fim. Eles eram muitos.
Seus homens nunca chegariam a tempo.
Rakao olhou para as águas na direção do barco em fuga. Soltou a lança e agarrou seu coldre de ombro. Ele o usava o tempo todo. Não tinha arma. Era apenas uma garantia. Ele torceu o cabo em forma de T que se projetava do coldre de couro e puxou o pino.
Um tentáculo coberto de dentes se enrolou em sua cintura.
Se ele não podia escapar, ninguém mais escaparia.
Rakao empurrou o pino enquanto um emaranhado de tentáculos saía das águas como chicotes. Eles se lançaram sobre ele vindos de todas as direções, rasgando roupa e carne, puxando suas pernas. Ele sentiu a orelha direita ser arrancada ao ser levado para baixo da água.
Ainda assim ele ouviu as explosões, um trovão vindo de cima, ribombando na água, chegando enquanto os monstros o arrastavam mais para o fundo.
Bum, bum, bum...
5:57h
Lisa viu as terríveis explosões no alto da ilha. Inicialmente pensou que eram relâmpagos — mas as explosões foram em seqüência, fazendo um anel no alto da ilha.
— Que merda é essa? — gritou Ryder do banco do piloto. Trechos da cobertura da ilha começaram a cair em ruínas. Ela gritou:
— Alguém está explodindo a rede! Ela está desmoronando! Ryder soltou um palavrão.
As explosões continuaram. O fogo iluminou o céu, espalhando-se pelo alto da ilha. A não ser que eles escapassem mais depressa, atingissem a saída da lagoa, seriam esmagados pela rede quando tudo caísse.
— Eu preciso decolar! —gritou Ryder de volta.
Isso seria um problema.
5:57h
Explosões acenderam o cume da ilha.
Monk compreendeu.
A rede...
O Sea Dart acelerou de repente, tentando escapar das explosões. O barco se ergueu da água alguns centímetros ao superar a velocidade de decolagem.
Mas o peso balançante de Monk desequilibrava o aparelho, inclinando-o. Seus dedos dos pés roçaram a água. Ryder corrigiu, desacelerando. Eles tocaram a água, balançaram e voltaram a se equilibrar.
Uma dor aguda tomou conta da perna quebrada de Monk. Mas ele continuou agarrado ao suporte.
Mesmo que quisesse, não conseguiria se soltar. Sua luta contra a lança de Rakao queimara a eletrônica de sua prótese. Ela tinha se travado depois de se agarrar ao suporte. Ele estava enganchado como um bife na vitrine de um açougue.
Monk se virou, vendo as explosões continuarem ao redor da ilha. Toda a metade de trás da rede despencou, produzindo uma chuva de fogo em meio à tempestade.
E uma parte maior do céu caía a cada explosão.
Monk olhou para trás, para a saída da lagoa, a abertura estreita no caldeirão vulcânico.
O Sea Dart tinha de chegar a ela antes que as explosões fechassem o círculo na borda do vulcão e derrubassem a rede sobre o lago. Monk calculou suas chances. Não eram boas. E eles nunca conseguiriam — não enquanto carregassem um bife na ponta de uma asa.
— Você pode recolher as asas? — perguntou Lisa a Ryder.
Talvez eles pudessem trazer Monk mais perto, levá-lo para dentro e depois esticar as asas novamente. Tudo isso sem desacelerar.
Ryder apagou esse fio de esperança.
— Depois de estendidas, as asas ficam travadas! É um princípio de segurança!
Lisa compreendeu. Não seria bom que as asas se recolhessem em pleno vôo.
Lisa viu o esforço de Monk. Ele estava mexendo em seu punho protético com a outra mão. O que estaria fazendo?
Então, começou a compreender.
Monk devia ter percebido a ameaça que representava.
— Não! — disse a ele. — Monk! Não!
Ela não sabia se podia ser ouvida em meio às explosões e ao vento. Mas ele virou o rosto e olhou para ela. Apontou para a praia distante da lagoa. Gritou algo, mas uma das explosões abafou suas palavras.
Ele retomou seus esforços.
Monk... por favor, não...
Maldição... Por que eu não consigo?
Seus dedos vasculhavam o pulso de plástico. O pino que soltava manualmente a mão do encaixe do pulso tinha derretido. Suas unhas se cravaram no material sintético deformado.
Finalmente o pino se abriu.
Graças a Deus...
Ele enfiou um dos dedos.
— Monk! — gritou Lisa.
Parando, ele mais uma vez apontou para a praia. Iria para a margem. Eles teriam de partir sem ele.
Lisa se ajoelhou na abertura, o vento agitando seus cabelos. Ele também percebeu nela a derrota. Não havia alternativa.
Monk enfiou o dedo na abertura e apertou o botão de liberação.
O punho se soltou da mão.
Ele caiu, rolando na água, deslizando como uma pedra arremessada. Depois afundou nas profundezas. Bateu a perna boa para chegar à superfície; a outra perna parecia ter sido atravessada por um ferro em brasa na panturrilha.
Movimentando a perna para flutuar, ele viu o Sea Dart acelerar pela lagoa na direção da abertura no caldeirão que levava ao mar aberto.
Ryder não tinha hesitado. Ele compreendera o sacrifício.
Monk olhou as últimas explosões na orla da ilha. A cobertura despencou na sua direção. Ele olhou para trás. Do outro lado da lagoa, a cobertura caiu como uma mortalha sobre o Mistress of the Seas, começando na popa e seguindo para a proa.
Em segundos o navio estava sufocado por ela, apanhado como um golfinho em uma rede de atuns. E a queda prosseguiu, na direção de Monk. Ele não tinha esperança de chegar a praia nenhuma. A mais próxima estava a 800 metros de distância.
Na outra direção, ele viu o Sea Dart se erguer, decolar do lago e disparar na direção da abertura na parede do caldeirão.
Eles iriam conseguir.
Essa idéia ajudou a acalmar seu coração enquanto a rede caía sobre ele, pesada de cabos e cordas encharcadas. Ela o arrastou para baixo, fundo, fundo...
Monk lutou, procurando uma forma de escapar, de voltar à superfície. Mas sua perna quebrada o atrapalhava. E a rede estava embolada. Ele não conseguia achar uma saída.
Ele olhou para as luzes no navio.
Lamentava apenas uma coisa... uma promessa quebrada...
Ele jurara a Kat que retornaria dessa missão, e beijara Penélope com a mesma promessa silenciosa.
Lamento...
Ele ergueu um dos braços, rezando por resgate.
Sua mão encontrou uma abertura na rede embolada. Usou o coto do outro braço para aumentá-la. Bateu as duas pernas, ignorando a dor na panturrilha direita. Ele lutou para passar através da abertura.
Então, algo agarrou sua perna quebrada, prendendo-se ao tornozelo e puxando com força. Osso raspou em osso. Uma dor lancinante subiu da perna para a coluna. Monk respirou fundo e olhou para trás.
Luzes na água brilharam em sua direção.
Tentáculos subiram por seu corpo, enrolaram-se em sua cintura, sobre seu peito. Um membro borrachento se lançou sobre seu rosto, sobre os mesmos lábios que tinham feito uma promessa, beijado uma criança.
Luzes brilharam ao redor enquanto Monk era arrastado para baixo, fundo, fundo...
Ele ainda tentou subir uma última vez.
Enquanto o brilho do navio se apagava e a escuridão o engolia, ele voltou seu coração para as duas mulheres que tinham dado algum sentido à sua vida.
Kat.
Penélope.
Eu amo vocês, amo vocês, amo vocês...
6:05h
Lisa se sentou no banco de trás do Sea Dart, abraçando os joelhos, soluçando.
Susan se sentou junto a ela, com uma das mãos em suas costas. Ninguém falou.
Ryder lutava contra os ventos, pilotando o Sea Dart sobre mar aberto. A ilha de Pusat desapareceu atrás deles.
A tempestade os sacudia como uma folha em uma ventania. Não havia sentido em lutar contra ela. Eles simplesmente voaram seguindo o vento, rumo ao Norte.
Não tinham rádio. Uma rajada de balas atravessara o equipamento.
— O sol está nascendo — murmurou Susan, olhando através da janela e ignorando o mapa de navegação que estava em seu colo.
Suas palavras romperam alguma barreira.
Ryder falou, do assento do piloto:
— Talvez ele tenha conseguido chegar à margem.
Lisa se ajeitou. Sabia que Monk não tinha conseguido. Mas enxugou as lágrimas. Monk se sacrificara para que eles pudessem escapar. Para que aqueles a bordo do Mistress of the Seas tivessem uma chance de ser resgatados, para que o mundo tivesse uma esperança de cura.
Ainda assim, Lisa se sentia entorpecida e morta.
— O sol... — disse Susan.
Ryder virou para Leste, identificando outro pico de ilha. Perto do horizonte havia um sinal do fim da tempestade noturna. As nuvens negras se abriam o suficiente para permitir a passagem da luz do sol. Um pedaço de sol se erguia no horizonte.
Através da janela, a luz inundou a cabine de brilho.
Lisa olhou para ele, buscando absolvição, expondo-se a seu brilho, para que ele penetrasse nela, afastasse a escuridão que também havia ali.
E pareceu dar certo — até Susan dar um grito aterrorizado.
Lisa deu um pulo e se virou. Susan estava sentada empertigada em seu assento, olhando para o sol de olhos arregalados. Mas algo em seus olhos brilhava ainda mais forte.
Pânico.
— Susan?
A mulher continuava a olhar. A boca se moveu, sem ar. Lisa teve de ler seus lábios.
— Eles não devem ir para lá.
— Quem? Onde?
Susan não respondeu. Sem olhar para baixo, ela colocou um dos dedos no mapa de navegação que tinha no colo.
Lisa leu o nome sob o dedo.
— Angkor.
CAPÍTULO l6
Bayon
7 de julho, 6:35h
Angkor Thom, Camboja
Gray marchou com os outros até os majestosos portões do complexo de templos amuralhado de Angkor Thom. O sol da manhã, ainda baixo no horizonte, lançava longas sombras sobre a estrada sul. Cigarras zumbiam, juntamente com o coro matinal de sapos.
A não ser por um punhado de turistas e dois monges de hábitos laranja, eles tinham a ponte só para si àquela hora. A estrada tinha o comprimento de um campo de futebol, e era delimitada lateralmente por fileiras de estátuas: 54 deuses de um lado e 54 demônios do outro. Eles ficavam acima de um fosso, agora praticamente seco, onde antes crocodilos nadavam, protegendo a grande cidade e o palácio real em seu interior. O fosso profundo, delimitado por molhes de terra, agora apresentava áreas esmeralda de poças cobertas de algas e tufos de grama e mato.
Enquanto marchavam, Vigor se aproximou de uma das estátuas de demônios da ponte e colocou a palma da mão na cabeça de uma delas, dizendo:
— Concreto. As cabeças originais foram em sua maioria roubadas, embora haja algumas em museus cambojanos.
— Vamos esperar que aquela pela qual estamos esperando não tenha sido roubada — disse Seichan, taciturna, ainda claramente aborrecida depois da conversa com Nasser na van.
Gray se manteve afastado dela. Não tinha certeza de qual dos dois agentes da Guilda era mais perigoso.
A equipe de quarenta homens de Nasser se espalhava à frente e atrás deles, uma escolta caqui com boinas pretas. Nasser se mantinha um metro atrás deles, sempre olhando ao redor, cauteloso. Alguns dos turistas demonstravam interesse pelo grande grupo, mas eles em geral eram ignorados. As ruínas à frente atraíam toda a atenção.
No fim da estrada, muros de blocos de laterita com 9 metros de altura cercavam os 10 quilômetros quadrados da antiga cidade. O objetivo deles — o Bayon — ficava no interior da área fechada. Uma floresta densa ainda tomava as ruínas da cidade. Palmeiras gigantescas obscureciam os muros, apequenando o enorme portão de 24 metros de altura. Quatro rostos gigantescos tinham sido esculpidos na torre de pedra, voltados para os pontos cardeais.
Gray estudou os rostos, cobertos de musgo, repletos de rachaduras. Apesar dos danos provocados pelo tempo, continuava a haver certa serenidade em suas expressões: testas largas se erguiam acima de olhos fechados, enquanto lábios grossos se curvavam levemente, tão enigmáticos quanto uma Mona Lisa.
— O Sorriso de Angkor — disse Vigor, percebendo seu interesse. — O rosto é de Lokesvara, o bodhisattva da compaixão.
Gray olhou um pouco mais, rezando para que a compaixão tocasse Nasser. Gray verificou o relógio. Vinte e cinco minutos até a próxima hora, quando Nasser ordenaria que outro dos dedos de sua mãe fosse cortado.
Para impedir isso, eles precisavam fazer algum progresso para aplacar o desgraçado, contê-lo um pouco mais. Mas o quê?
A respiração de Gray se tornou mais difícil a essa idéia. Seus objetivos estavam em extremos opostos: um desejo de correr e descobrir aquelas pistas que deteriam a mão de Nasser e uma necessidade igualmente forte de atrasar Nasser o máximo possível, a fim de dar ao diretor Crowe mais tempo para encontrar seus pais.
Entre os dois, Gray lutava para se concentrar, encontrar o centro.
— Vejam... Elefantes! — disse Kowalski, apontando um pouco excitadamente demais para a enorme passagem. Ele deu alguns passos para a frente, seu comprido jaleco drapejando atrás de suas pernas.
Além da entrada, Gray viu dois elefantes indianos cinzentos, as trombas apoiadas frouxamente nas pedras, os olhos cobertos de moscas. Um dos turistas, atrapalhado com uma câmera enorme no pescoço, estava sendo ajudado a montar nas costas enormes do animal, onde fora colocada uma sela colorida e instável, chamada howdah. Um cartaz feito à mão em um poste cimentado em um pneu anunciava em vários idiomas: PASSEIOS DE ELEFANTE ATÉ O BAYON.
— Apenas 10 dólares — leu Kowalski.
— Acho que iremos andando — respondeu Gray, desapontando o homem.
— Isso, diretamente pela bosta de elefante. Depois de algum tempo você irá preferir ter pagado as dez pratas.
Gray olhou para o alto e fez sinal para que Kowalski seguisse os homens de Nasser através do portão, entrando em Angkor Thom.
Além da muralha, um caminho calçado seguia em linha reta, sombreado por altas paineiras cujas raízes se esgueiravam sobre e sob blocos de pedra. Vagens das árvores cobriam o caminho, e eram esmagadas com os pés.
A floresta era mais fechada à frente, dificultando a visão.
— Qual a distância? — perguntou Nasser, juntando-se a eles, mas permanecendo um metro afastado, uma das mãos no bolso do paletó.
Vigor apontou para a frente.
— O templo Bayon fica um quilômetro e meio dentro da floresta.
Nasser consultou o relógio, e então olhou significativamente para Gray, a ameaça bem clara.
Passou por eles um dos onipresentes tuk-tuks, o principal meio de transporte, basicamente um jinriquixá adaptado em uma motocicleta de duas marchas. Dois turistas tiraram fotografias de sua legião de boinas negras, conversando em alemão. Então desapareceram adiante.
Gray seguiu a trilha de fumaça, acelerando o ritmo.
Kowalski olhou para a densa floresta de palmeiras e bambus. Seu rosto demonstrava desconfiança.
Vigor falou enquanto caminhavam:
— Um dia, mais de cem mil pessoas viveram aqui em Angkor Thom.
— Viveram onde? — perguntou Kowalski. — Em casas nas árvores? Vigor apontou um dos braços na direção da floresta.
— A maioria das casas, mesmo o palácio real, era feita de bambu e madeira, de modo que elas apodreceram. A floresta as consumiu. Apenas os templos eram feitos de pedra. Mas era uma metrópole agitada, com mercados vendendo peixe e arroz, frutas e especiarias, casas abarrotadas de porcos e galinhas. Os urbanistas tinham projetado um grande sistema de irrigação e canais para sustentar a população. Havia até mesmo um zoológico real, com elaboradas apresentações circenses. Angkor Thom era uma cidade vibrante, animada e ruidosa. Fogos de artifício tomavam os céus nas festividades. A quantidade de músicos era superior à de guerreiros, fazendo soar címbalos, sinos de mão e tambores, tocando harpas e alaúdes, soprando trombetas feitas de chifres ou conchas.
— Uma orquestra fixa — resmungou Kowalski, nada impressionado. Gray tentou imaginar a cidade enquanto estudava a floresta densa.
— E o que aconteceu com todas essas pessoas? — perguntou Kowalski.
Vigor coçou o queixo.
— Apesar do que sabemos sobre a vida cotidiana, grande parte da história de Angkor continua a ser um mistério, ou pelos menos hipotética. Seus textos estavam em livros sagrados de folha de palmeira chamados sastras, que, como as casas aqui, não sobreviveram. Assim, a história de Angkor foi reescrita de forma fragmentária, a partir do estudo dos baixos-relevos esculpidos nos templos. Conseqüentemente, grande parte de sua história continua a ser um mistério. Por exemplo, o que aconteceu com a população. Seu verdadeiro destino ainda é nebuloso.
Gray acompanhava o monsenhor:
— Achei que eles tinham sido invadidos pelos tai, que arrasaram a antiga civilização khmer, não?
— Sim, mas muitos historiadores e arqueólogos acreditam que a invasão tai foi secundária, que os khmer já estavam de algum modo fragilizados. Uma das teorias é que os khmer se tornaram menos militarizados em função da conversão religiosa a uma forma mais pacífica de budismo. E outra teoria sustenta que a irrigação em massa e o sistema de distribuição de água que sustentava o império careceram de manutenção e ficaram assoreados, debilitando a cidade e tornando-a suscetível à invasão. Mas há indícios históricos de surtos repetidos e sistemáticos de pestes.
Gray imaginou a Cidade dos Mortos de Marco. Eles estavam caminhando por aqueles mesmos campos da morte, agora tomados pela floresta. A natureza tinha voltado, apagando a mão do homem.
— Sabemos que Angkor continuou a existir depois de Marco — continuou Vigor. — Há um brilhante relato da região feito por um explorador chinês, Zhou Daguan, um século depois de Marco ter passado por aqui. Assim, a cura oferecida a Marco pode, no fim, ter permitido que o império sobrevivesse, mas a fonte virai deve ter resistido e produzido sucessivas epidemias de peste, enfraquecendo-o. Mesmo os invasores tai não ocuparam Angkor. Eles deixaram a enorme infra-estrutura abandonada e intocada, permitindo que fosse tomada pela floresta. Isso faz você se perguntar por quê. Teriam eles ouvido as histórias? Teriam eles intencionalmente evitado a região, acreditando ser de algum modo amaldiçoada? Seichan tinha se aproximado durante o relato de Vigor.
— Você então sugere que a fonte pode ainda estar aqui? Vigor deu de ombros:
— As respostas esperam por nós no Bayon — disse, apontando para uma abertura na floresta.
A frente, emoldurada pela floresta, surgiu uma montanha de arenito, erguendo-se alto, que o sol da manhã fazia brilhar em projeções de rochas cobertas de orvalho e recessos de sombras profundas. Picos menores a cercavam, estritamente agrupados, reunidos em um único maciço. O templo lembrava a Gray algo orgânico, como um cupinzeiro, um monte mal definido, como se séculos de chuva tivessem dissolvido a rocha e a transformado naquela massa frouxa e marcada.
Então, uma nuvem passou no céu e as sombras se tornaram mais profundas, se modificaram. Surgiram na massa enormes rostos de pedra, projetando-se com seus sorrisos de esfinge, cobrindo toda a superfície, olhando para todas as direções. A massa inicial de picos pôde ser identificada como um conjunto de torres, erguendo-se em diferentes níveis, agrupados próximos, e todos decorados com enormes rostos de Lokesvara.
Vigor murmurou:
— Iluminada pela lua cheia, uma grande montanha se ergue na floresta, esculpida com mil faces de demônios.
Gray sentiu um arrepio. Reconheceu as palavras do texto de Marco. Era onde o confessor de Polo, frei Agreer, fora visto pela última vez, indo na direção de uma montanha esculpida com rostos. Gray de repente teve consciência de que seus próprios pés estavam se movendo mais devagar, por pânico. Ele se obrigou a acelerar o ritmo.
Eles tinham seguido a trilha de Marco até ali... Era então a hora de seguir os últimos passos do confessor de Polo. Mas para onde tinha ido frei Agreer?
6:53h
Com o templo crescendo diante deles, um silêncio pesado se abateu sobre o grupo. A maioria dos olhos estava erguida para as ruínas à frente, mas Vigor aproveitou o momento para estudar seus companheiros. Desde que tinham chegado a Angkor Thom, ele sentira uma tensão não-explicitada entre Gray e Seichan. Embora eles nunca tivessem sido grandes companheiros, sempre houvera uma grande intimidade entre ambos. E, embora as discussões continuassem acaloradas, a distância física entre a dupla tinha diminuído no dia anterior, uma redução de espaço pessoal.
Vigor tinha dúvidas de se eles tinham consciência disso.
Mas, desde que eles tinham saltado da van ali, era como se alguma polaridade interna tivesse se invertido neles, afastando-os. Eles não apenas estavam bem distantes, como ele percebeu uma seriedade em Gray enquanto estudava Seichan quando ela estava de costas, e Seichan tinha endurecido novamente, os olhos mais frios, os lábios mais apertados.
Seichan se manteve mais perto de Vigor, como se precisasse ser tranqüilizada por ele, mas fosse incapaz de pedir. Seu olhar continuava fixo nas ruínas. Eles estavam perto o bastante para captar as verdadeiras dimensões do Bayon.
Cinqüenta e quatro torres estavam dispostas em três níveis crescentes.
Mas a característica mais impressionante era o número de rostos esculpidos.
Bem mais de duzentos.
A luz da manhã mudara com as nuvens, criando a ilusão de que os rostos estavam vivos, movendo-se, observando aqueles que se aproximavam.
— Por que tantas? — finalmente murmurou Seichan ao seu lado. Vigor sabia que ela estava falando sobre as faces de pedra, e respondeu:
— Ninguém sabe. Alguns dizem que elas representam vigilância, rostos olhan¬do de um coração secreto, guardando mistérios interiores. Também se diz que as fundações do Bayon foram erguidas sobre uma estrutura anterior. Os arqueólogos descobriram aposentos murados com mais rostos escondidos, trancados para sempre na escuridão.
Vigor gesticulou para a frente.
— O Bayon também foi o último templo erguido em Angkor, marcando o fim de um período construtivo quase contínuo de vários séculos.
— E por que eles pararam de construir? — perguntou Gray, se aproximando.
Vigor olhou para ele.
— Talvez eles tenham descoberto algo que tenha desestimulado mais escavações. Quando os engenheiros do khmer ergueram o Bayon, eles cavaram. Bem fundo. Um quarto do Bayon está enterrado.
— Enterrado?
Vigor concordou com a cabeça.
— A maioria dos templos de Angkor é baseada no desenho das mandalas. Uma série de retângulos empilhados, que representam o universo físico, cerca uma torre circular no centro. A torre central representa a montanha mágica da mitologia hindu, o monte Meru, moradia dos deuses. Com o templo parcialmente enterrado, a torre central incorpora o monte Meru, com essa montanha mágica penetrando da terra até os céus. Ainda há histórias de tesouros e horrores escondidos nesses níveis inferiores do Bayon.
Eles tinham chegado agora ao fim do caminho. Ele desembocava em uma praça de pedra aberta. O templo se erguia diante deles. Dezenas de rostos olhavam para baixo. Era possível ver turistas escalando os diferentes níveis do templo.
Continuaram em frente, passando por uma fila de tuk-tuks estacionados. À frente, um pequeno conjunto de barracas na rua oferecia uma enorme variedade de frutas: mangas, jaca, tamarindo, tâmaras chinesas, até mesmo pequenas melan-cias. Crianças de membros finos corriam entre as barracas, revivendo um pouco da antiga animação da cidade com seus risos e gritos. Do outro lado, um grupo mais solene de seis monges de hábitos laranja estava sentado em tapetes tecidos, as cabeças curvadas, orando em meio a uma nuvem de incenso.
Vigor acrescentou seu próprio apelo silencioso ao passar, orando por força, sabedoria e proteção.
Acima, Kowalski tinha parado em uma das barracas. Uma velha enrugada com um rosto perfeitamente redondo estava curvada sobre um braseiro de ferro, preparando café-da-manhã em espetos. Galinha e carne tostavam ao lado de tartaruga e lagarto. O homem cheirou um espeto apetitoso.
— É caranguejo? — perguntou ele, curvando-se para cheirar mais uma vez. O palito atravessava algo suculento e com pernas, escurecido e deformado pelo fogo.
A mulher anuiu com vigor, dando um sorriso largo diante do interesse dele. Ela falou rapidamente em khmer.
Seichan parou ao lado de Kowalski e colocou uma das mãos em seu ombro.
— É tarântula frita. Muito apreciada no café-da-manhã no Camboja.
Kowalski tremeu e se afastou:
— Obrigado. Prefiro um sanduíche de ovo.
Um ladrão menos exigente — um macaco — saiu das ruínas, apanhou uma espiga de milho atrás da mulher e passou correndo exatamente na frente de Kowalski. Ele recuou, esbarrando em Gray, tentando sair do caminho.
A mão de Kowalski se moveu para trás, sob o paletó.
Gray o interrompeu, apertando forte seu cotovelo. Muito forte. Os olhos de Gray se voltaram para Nasser e depois retornaram.
— Era apenas um macaco.
Kowalski se livrou da mão de Gray.
— Tá, é que eu não gosto de macacos — o grandalhão olhou duro e seguiu em frente. — Já tive uma experiência ruim com eles. Não quero falar sobre isso.
Vigor balançou a cabeça e deu a volta com eles até a entrada leste do Bayon. Ali a rua calçada estava em ruínas, com blocos desmoronados, repleta de enormes tamareiras e mais paineiras com seu emaranhado coleante de raízes. Eles fizeram um trajeto em curva da entrada até o primeiro nível, passando sob o olhar atento de mais rostos de bodhisattva.
Entraram em um pátio interno delimitado por galerias. As paredes tinham intrincados baixos-relevos gravados, cobertas de cima a baixo com faixas de histórias. Vigor olhou a mais próxima. Elas retratavam cenas cotidianas: um pescador lançando redes, um fazendeiro colhendo arroz, dois galos lutando em meio a uma multidão, uma mulher preparando espetos em um braseiro. A última lembrou a Vigor a velha com as tarântulas fritas, mostrando como passado e presente estavam unidos.
— Por onde começamos? — perguntou Gray, assustado com os 4 hectares de templo a vasculhar.
Vigor compreendeu seu desânimo. Mesmo ali estava claro que o templo era um verdadeiro labirinto tridimensional de passagens fechadas, arcos quadrados, galerias escuras, degraus altos, pátios ensolarados e aposentos cavernosos. E por todos os lados, torres, ou gopuras, se erguiam em lanças e cones gigantescos, decorados com os rostos onipresentes.
Era fácil se perder ali.
Mesmo Nasser parecia sentir isso. Ele fez sinal para que alguns de seus homens fechassem o cerco ao grupo de Gray. Mandou que outros seguissem para assumir posições importantes no pátio, cobrindo todas as saídas, estabelecendo outra linha de defesa.
Vigor sentiu o aperto no pescoço, mas só havia um rumo a tomar. Ele apontou para a frente.
— Segundo o mapa que eu estudei, o nível seguinte a partir daqui é outro pátio quadrado como este. Mas acho que devemos ir diretamente para o terceiro nível. Para onde fica o santuário central. Podemos chegar lá indo por aqui.
Mas, enquanto eles davam a volta no primeiro nível, Vigor parou em um espetacular baixo-relevo na parede norte, maior do que todos os outros, cobrindo sozinho toda uma seção. Ele diminuiu o ritmo ao passar por ele.
Retratava duas forças — deuses e demônios, assim como as estátuas ao longo da estrada. Estavam em um cabo-de-guerra, usando uma grande cobra como corda. Entre eles, a serpente estava enrolada em uma montanha apoiada nas costas de uma tartaruga.
— O que é isso? — perguntou Gray.
— Um dos principais mitos hindus da criação. A Batida do Oceano de Leite — disse Vigor, dando os detalhes. — Deste lado estão os devas, ou deuses... Do ou¬tro, os asuras demoníacos. Eles estão usando o deus cobra Vasuki como corda para girar a grande montanha mágica. Para a frente e para trás, para a frente e para trás. Batendo o oceano cósmico em uma espuma leitosa. É a partir dessa espuma que é batido o elixir da imortalidade chamado amrita. A tartaruga abaixo da montanha é uma encarnação do deus Vishnu, que ajuda deuses e demônios sustentando a montanha para que ela não afunde.
Vigor apontou para a torre central do Bayon.
— E supostamente ali está essa montanha. Ou pelo menos sua representante na Terra.
Gray olhou para a torre de 15 andares, depois novamente para o baixo-relevo.
Passou um dedo ao longo da montanha talhada, o cenho franzido.
— E o que aconteceu? O elixir foi feito?
Vigor balançou a cabeça.
— Segundo a história, houve algumas complicações. A serpente Vasuki ficou enjoada com os puxões e vomitou um grande veneno. Ele fez com que tanto os deuses quanto os demônios adoecessem, ameaçando matá-los. Vishnu os salvou bebendo ele mesmo o veneno, mas, no processo de desintoxicação, ficou azul, por isso sempre é retratado com a garganta azul. E com sua ajuda a batida teve prosseguimento, que produziu não apenas o elixir da imortalidade, mas também os espíritos celestiais dançarinos chamados apsaras. Então, tudo terminou bem.
Vigor tentou apressá-los, mas Gray continuou onde estava, olhando para o baixo-relevo, com uma expressão estranha no rosto.
Nasser foi até ele.
— O tempo acabou — disse ele, dando batidinhas no relógio de pulso com seu telefone celular. Sua voz estava cheia de desprezo. — Você teve alguma revelação inesperada?
Vigor sentiu no homem frieza em meio a um prazer sombrio. Ele estava gostando de torturar Gray. Vigor começou a se colocar entre ambos, temendo que Gray reagisse mal e atacasse Nasser novamente.
Mas, em vez disso, Gray anuiu:
— Sim.
Nasser arregalou os olhos, surpreso.
Gray colocou a palma da mão no baixo-relevo.
— Esta história aqui. Não é um mito da criação. É a história da Estirpe de Judas.
— Do que você está falando? — perguntou Nasser. Vigor tinha a mesma pergunta.
Gray explicou:
— De tudo o que você nos falou sobre a exposição na Indonésia, a doença toda começou com os mares da região brilhando com bactérias. Mares descritos como espumantes e leitosos. Como leite batido.
Vigor se empertigou, dando a volta ao redor de Gray para ver o baixo-relevo com novos olhos. Ele ficou parado, com uma das mãos na cintura.
Seichan se juntou a ele. De lado, Kowalski permaneceu onde estava, estudando uma linha de mulheres de seios nus, com o nariz junto à pedra.
Gray continuou, apontando para a serpente.
— Então, saiu um grande veneno que ameaçou toda a vida, boa e ruim.
Seichan concordou:
— Como a bactéria tóxica, cuspindo veneno e deixando um rastro de morte.
Nasser não parecia convencido.
Gray insistiu:
— E, de acordo com esse mito, alguém sobreviveu à exposição e salvou o mundo: Vishnu. Ele bebeu o veneno, o desintoxicou e ficou azul...
— Como se estivesse brilhando — murmurou Vigor.
— Como os sobreviventes descritos no livro de Marco — acrescentou Gray. — E como a paciente que você descreveu, Nasser. Todos brilhando em azul.
Vigor concordou lentamente com a cabeça.
— É perfeito demais para ser coincidência. E muitos mitos antigos nasceram de histórias reais.
Gray se voltou para Nasser.
— Se eu estiver certo, eis a primeira pista de que estamos no caminho certo. Que talvez haja ainda mais a aprender.
Os olhos de Nasser se apertaram, momentaneamente com raiva, mas ele lentamente anuiu.
— Acredito que você possa estar certo, comandante Pierce. Muito bom. Você reajustou o relógio para mais uma hora.
Gray tentou esconder seu alívio, soltando a respiração com um ruído leve.
— Então vamos continuar — disse Nasser.
Vigor os conduziu a um lance de escadas íngreme e obscuro. Atrás dele, Gray ficou mais um momento, estudando o relevo. Ele se esticou e passou um dos dedos ao longo da gravação na montanha — depois novamente na torre central.
Os olhos de Gray se encontraram com os de Vigor. Vigor percebeu o leve balançar de cabeça do comandante quando se virou.
Será que Gray sabia algo mais?
Vigor comprimiu o corpo na escada estreita. Antes que Gray se virasse, Vigor percebera algo mais, algo no rosto do comandante.
Medo.
7:32h
Ilha de Natuna Besar
— Eles não devem ir lá — gemeu Susan novamente.
A mulher estava estendida nos bancos de trás do Sea Dart, em estados alternados de consciência e inconsciência, perto de retornar a um estupor catatônico. Susan se esforçava para empurrar o cobertor que Lisa estendera sobre ela.
— Fique quieta — insistiu Lisa. — Tente descansar. Ryder logo estará de volta.
O Sea Dart sacudia e batia contra o fim do cais de abastecimento. Eles tinham pousado na baía abrigada de uma pequena ilha, em algum ponto na costa de Bornéu. A chuva continuava a cair de nuvens baixas, mas a fúria escura do tufão tinha passado. Havia trovões, mas eles soavam distantes e diminuíam.
Ainda sofrendo por Monk, Lisa olhava através do pára-brisa do Sea Dart. Enquanto esperava, seus pensamentos facilmente se transformavam em recriminações. Ela poderia ter feito mais. Ter se mexido mais rapidamente. Pensado em algo inteligente na última hora. A prótese de Monk ainda estava pendurada no suporte da asa. Ryder não tinha conseguido soltá-la.
Lisa olhou para a escotilha, desejando que Ryder voltasse logo. Ele tinha enchido o tanque de combustível do barco e fora à procura de um telefone com um punhado de dinheiro para emergência que tinha guardado ali.
Mas ele parecia ter poucas chances. A aldeia próxima estava às escuras na praia, danificada pela tempestade, com tetos arrancados, palmeiras derrubadas e a areia coberta de barcos virados e entulho. Não havia energia nas bombas do cais de abastecimento. Ryder tivera de bombear o combustível manualmente, dando um punhado de dinheiro a um homem encharcado que vestira chinelos e bermudas. O homem partira com Ryder em uma motocicleta, garantindo que poderia encontrar um telefone perto do pequeno aeroporto no interior da ilha.
A ilha tropical de Natuna Besar participava da indústria turística com muitos mergulhos livres em recifes e uma excelente pesca esportiva. Mas fora evacuada ante a ameaça do tufão. O lugar parecia deserto.
A maioria das ilhas que eles tinham sobrevoado estava igualmente em ruínas.
Do alto, Ryder identificou o aeroporto de Natuna Besar.
— Certamente alguém ali tem um telefone por satélite que possamos pegar emprestado — dissera ele. — Ou um modo de consertar nosso rádio.
Como de qualquer modo eles precisavam abastecer, pousaram na baía abrigada. Lisa estava então esperando com Susan.
Preocupada, Lisa colocou a mão na testa molhada da mulher. Na penumbra da cabine, o rosto de Susan reluzia com um brilho profundo, que parecia vir mais de seus ossos do que da pele. Lisa sentiu a palma da mão queimar na testa de Susan.
Mas não era febre.
Lisa ergueu a mão. Ela continuou a queimar.
O que era aquilo?
Lisa enxaguou a palma da mão freneticamente com a água de um cantil e a secou no cobertor antifogo. A queimação passou.
Lisa ficou olhando para o brilho na pele de Susan, esfregando a ardência nas pontas dos dedos. Isso era novidade. A cianobactéria devia estar produzindo uma substância química cáustica. E, embora tivesse queimado a pele de Lisa, Susan continuava resistente ou protegida.
O que estava acontecendo?
Como se lesse seus pensamentos, Susan tirou um dos braços de sob o cobertor. Sua mão se esticou na direção do quadrado de fraca luz do sol que atravessava a escotilha. O brilho em sua pele desapareceu na luz.
O contato pareceu acalmar Susan. Ela deu um longo suspiro.
Luz do sol.
Seria possível?
Curiosa, Lisa se esticou na direção da mão de Susan e esfregou a ponta de um dos dedos na pele banhada pelo sol. Lisa recolheu o braço, sacudindo os dedos. Era como tocar ferro quente. Ela mais uma vez lavou a pele com água, a ponta do dedo já formando bolhas.
— É a luz do sol — disse Lisa em voz alta.
Ela recordou do surto anterior de Susan, quando voltara os olhos para o sol nascente. Lisa também se lembrou de uma das características singulares das cianobactérias. Elas eram as precursoras das plantas modernas. A bactéria tinha cloroplastos rudimentares, motores microscópicos para transformar luz do sol em energia. Com o nascer do sol, a cianobactéria estava crescendo, ganhando energia de alguma forma estranha.
Mas para fazer o quê?
Lisa olhou o mapa de navegação no chão. Lembrou-se do surto anterior de
Susan, apontando para um local do mapa.
— Angkor — murmurou Lisa.
Lisa tentara se convencer de que era apenas uma coincidência. Mas agora não tinha tanta certeza. Lembrou-se de escutar uma conversa enquanto estava amarrada a uma mesa cirúrgica. Devesh estava ao telefone, falando em árabe. Ela só tinha conseguido entender uma palavra.
Um nome.
Angkor.
E se isso não fosse coincidência?
E se não fosse, o que mais Susan sabia?
Lisa suspeitava de que havia uma forma de descobrir. Ela se virou e pegou os ombros de Susan em seus braços, mantendo o cobertor entre elas. Lisa ergueu Susan até o facho de luz do sol que passava pelo pára-brisa.
Susan tremeu assim que seu rosto foi iluminado. Seus olhos piscaram e se abriram, pupilas negras se voltaram na direção da luz fraca. Mas, em vez de se contraírem na claridade, as pupilas de Susan se dilataram, absorvendo mais luz.
Lisa recordou-se da invasão bacteriana das retinas da mulher, centrada ao redor do nervo óptico, ligação direta com o cérebro.
Susan enrijeceu abaixo dela. Sua cabeça girou, então se firmou.
— Lisa — disse ela, com a voz pesada e pastosa.
— Estou aqui.
— Eu preciso... Precisa me levar lá... Antes que seja tarde demais.
— Aonde?
Mas Lisa sabia onde.
Angkor.
— Não há mais tempo — murmurou Susan, virando o rosto para Lisa. Seus olhos piscaram com a claridade, fugindo dela. Assustados. E não apenas por causa do perigo à frente. Lisa viu nos seus olhos. Susan sentia medo do que estava acontecendo ao seu corpo. Ela conhecia a verdade, mas era incapaz de impedi-la.
Lisa deitou Susan fora da luz do sol.
A voz de Susan firmou-se momentaneamente. Uma das mãos agarrou o pulso de Lisa. Sem incidência direta de luz, o toque ardia, mas não queimava a ponto de deixar bolhas.
— Eu... Eu não sou a cura — disse Susan. — Eu sei o que vocês todos estão pensando. Mas eu não sou... ainda não.
Lisa franziu o cenho.
— O que você quer dizer?
— Eu preciso ir para lá. Consigo sentir. Uma atração em meus ossos. Uma certeza. Como a lembrança de algo enterrado além de minha capacidade de recordar. Eu sei que estou certa. Só não consigo explicar por quê.
Lisa recordou sua discussão a bordo do navio. Sobre DNA lixo, sobre antigas seqüências virais em nossos genes, história genética coletiva em nosso código. As bactérias estariam despertando algo em Susan?
Lisa viu a mulher retirar a outra mão do retângulo de luz do sol e puxar uma ponta do cobertor sobre o rosto. Ela também sabia disso?
À medida que Susan se enfiava sob o cobertor para fugir da luz do sol, a voz se tornava mais fraca.
— Não estou pronta...
Uma das mãos continuava agarrada ao pulso de Lisa.
— Me leve para lá... De algum jeito — disse Susan, novamente começando a perder a consciência. — Ou o mundo estará perdido.
Uma batida forte assustou Lisa.
O rosto cansado de Ryder surgiu na janela da escotilha. Lisa se inclinou para a frente e soltou a tranca. Ryder entrou, ensopado, mas com um enorme sorriso.
— Consegui um telefone por satélite. Só tem 1/4 de carga, e a porcaria me custou o equivalente a uma pequena casa de praia em Sydney Harbor.
Lisa pegou o grande aparelho.
Ryder retornou ao assento do piloto, e Lisa se juntou a ele na frente. Mesmo encharcado até os ossos, ele parecia que tinha acabado de voltar de uma farra, os olhos brilhando de excitação. Mas Lisa também percebeu seriedade no homem, uma dureza nos cantos dos lábios. Ryder podia gostar de aventuras, mas ninguém chega ao seu grau de sucesso sem um sólido núcleo prático.
— O sinal de satélite será mais forte longe das montanhas — disse ele, ligando as bombas a jato. Com os motores borbulhando, ele os afastou dos maciços rochosos.
Enquanto isso, Lisa lhe contou o que Susan dissera.
Eu não sou a cura... Ainda não.
Os dois chegaram a um consenso.
Ryder pegou o mapa de navegação e colocou-o aberto no volante da embarcação.
— Angkor está a 720 quilômetros para o Norte. Eu posso pilotar esta mosquinha até lá em uma hora e meia, mais ou menos.
Lisa pegou o telefone por satélite e recebeu um sinal forte.
Ela só tinha de convencer mais uma pessoa.
20:44h
Washington, D.C.
— Lisa? — gritou Painter no seu telefone. O sinal era fraco, mas a maior parte de seu escândalo não tinha nada a ver com conexão ruim. Era pura satisfação e completo alívio. Ele ficou de pé atrás da mesa, as costas eretas. — Você está bem?
— Sim... Por enquanto. Eu não tenho muito tempo, Painter. Não há muita carga no telefone.
Ele percebeu ansiedade na voz dela. Manteve a voz firme, contendo sua satisfação.
— Continue.
Lisa contou rapidamente tudo o que tinha acontecido, falando secamente, como se estivesse dando um diagnóstico fatal a um paciente, limitando-se aos fatos. Mas Painter percebeu um tremor em sua voz. Ele queria atravessar a linha e segurá-la, afastar seus medos, prendê-la a ele.
Mas, enquanto ela fazia seu relato de doença, loucura e canibalismo, Painter afundou na cadeira. Suas costas se curvaram. Ele fez perguntas, preencheu algumas lacunas. Ela deu coordenadas de uma ilha: Pusat. Ele passou as anotações a um ajudante para que fossem transmitidas por fax a seu superior, Sean McKnight. Uma equipe de comandos australianos da equipe de Contraterrorismo e Resgate Especial já estava em Darwin esperando um alvo, pronta para coordenar uma operação de resgate. Antes que Painter terminasse sua conversa, os jatos teriam decolado.
Mas o perigo era maior que apenas um navio seqüestrado.
— A Estirpe de Judas? — perguntou Lisa. — A doença se espalhou?
Sobre isso Painter só tinha más notícias. Já havia notícias de casos em Perth, Londres, Bombaim. Certamente, logo haveria outros.
— Precisamos daquela mulher — concluiu Painter. — Jennings, da pesquisa, acredita que um desses sobreviventes é a chave para a cura.
Lisa concordou.
— Ela é a chave, mas não é a cura... Ainda não.
— O que você quer dizer?
Painter a ouviu suspirar do outro lado do mundo.
— Estamos deixando passar alguma coisa. Algo ligado a uma região do Camboja.
Painter se empertigou novamente.
— Você está falando de Angkor?
Seguiu-se uma longa pausa.
— Sim — respondeu ela, e ele percebeu surpresa em sua voz. — Como você...?
Painter contou sobre a busca da Guilda seguindo a trilha histórica e onde ela tinha terminado.
— E Gray já está lá? — perguntou Lisa, parecendo agitada. Ele a ouviu murmurar, como se estivesse citando alguém. "Eles não devem ir para lá." Sua voz ficou mais firme. — Painter, há alguma forma de tirar Gray de lá?
— Por quê?
— Não sei. — Sua voz tinha começado a falhar. O telefone estava ficando sem bateria. — A bactéria está fazendo algo com o cérebro de Susan. Energizando-o de alguma maneira, utilizando a luz do sol. Ela está com uma necessidade urgente de ir a Angkor.
Painter reconheceu o que ela estava querendo dizer.
— Como os caranguejos.
— O quê?
Painter contou o que sabia sobre os caranguejos das ilhas Christmas.
Lisa compreendeu imediatamente.
— Susan deve ter sido ligada da mesma forma. Um impulso migratório quimicamente induzido.
— Nesse caso, talvez ela esteja enganada sobre a necessidade de ir para lá. Pode ser apenas um impulso cego. Não há razão para vocês se arriscarem indo até lá. Pelo menos até que as coisas se ajeitem. Deixe Gray fazer essa jogada.
Lisa não se convenceu.
— Acho que você está certo sobre um impulso biológico subjacente. E, em uma forma de vida inferior, como um caranguejo, pode ser apenas um instinto cego. Caranguejos, como todos os artrópodes, só têm um rudimentar...
Ela parou de falar. Painter temeu ter perdido a ligação. Mas algumas vezes Lisa agia assim quando fazia uma descoberta repentina. Ela simplesmente desligava, utilizando todas as suas faculdades para seguir uma linha de raciocínio.
— Lisa?
Ela levou mais um momento antes de responder.
— Susan pode estar certa — murmurou ela, e depois mais alto, mais firme. — Preciso levá-la até lá.
Painter falou rapidamente, sabendo que eles estavam prestes a perder contato. Ele percebeu a decisão na voz de Lisa e temeu não ter tempo de dissuadi-la. Se ela iria para Angkor, ele queria que de alguma maneira ela não se machucasse.
— Então, pouse no lago grande perto das ruínas — disse ele. — O lago Tonle Sap. Há uma aldeia flutuante lá. Encontre um telefone, entre em contato comigo novamente, mas permaneça escondida. Estou organizando uma campanha na região.
Ele mal conseguiu entender as palavras seguintes, algo sobre fazer o melhor possível.
Painter tentou uma última vez:
— Lisa, o que você descobriu?
As palavras dela estavam entrecortadas.
— Não estou certa... Fascíola hepática... Vírus precisa...
Então a ligação caiu. Painter ligou mais algumas vezes, mas não conseguiu nada.
Uma batida na porta fez com que levantasse os olhos.
Kat entrou correndo, os olhos faiscando, as bochechas brilhando.
— Eu ouvi! Sobre a dra. Cummings! É verdade?
Painter ficou olhando para Kat. Ele tinha lido a pergunta na expressão de Kat, em todo o seu corpo, o desejo de saber. Lisa contara a ele. A primeira coisa. Ela tinha falado de um fôlego só, precisando tirar o peso dos ombros. Depois, Painter colocara isso de lado.
Mas, confrontado por Kat, por sua esperança, seu amor, a verdade doeu-lhe fundo.
Ele se levantou e deu a volta na mesa.
Kat viu no seu rosto.
Ela se afastou dele, como se pudesse fugir do que estava por vir.
— Ah, não... — Ela agarrou o braço de uma cadeira, mas isso não foi suficiente para segurá-la. Ela caiu com um joelho, depois desabou em ambos, cobrindo o rosto com as mãos. — Não...
Painter se juntou a ela no chão.
Ele não tinha palavras para oferecer a ela, apenas seus braços.
Não era suficiente.
Ele a puxou na sua direção, pensando em quantos mais iriam morrer antes que aquilo tudo terminasse.
20:55h
Eles estavam ficando sem ter para onde recuar.
Harriet esperou por seu marido ao pé das escadas que levavam ao andar superior. Ele ficou na passagem da escadaria. Jack saíra para deixar mais pistas falsas para os cães de caça. Ela já tinha rasgado a camisa do marido, ajudando-o a esconder os pedaços nos dois andares de baixo: jogados em escrivaninhas, enfiados em pilhas de lixo, pendurados em um armário de metal em um labirinto de cubículos de secretaria. Eles fizeram de tudo para confundir os perseguidores.
Jack tinha caçado a vida toda. Pato, faisão, codorna, cervo. Ele tivera seus re-trievers antes que o acidente no poço de petróleo levasse à amputação da perna abaixo do joelho. Ele conhecia cães. E ainda tinha três balas na pistola que roubara do guarda. Harriet tentava manter as esperanças, mas ouvira os cães latindo abaixo. Annishen estava vasculhando sistematicamente cada andar. Ela sabia que eles estavam ali em cima, chamando-os periodicamente, provocando-os.
Todas as saídas estavam bem guardadas. Mesmo as de incêndio. Nenhum dos prédios vizinhos estava perto o bastante para ser alcançado. E todo o distrito parecia abandonado havia muito tempo. Não tinha qualquer luz acesa, a não ser a distância. Não havia ninguém para ouvir um pedido de socorro. Eles tinham tentado alguns telefones públicos empoeirados, mas todos estavam mudos.
Como pessoas desesperadas fugindo de um incêndio em andar alto, eles não tinham para onde ir, a não ser para cima. E só restava mais um andar. Aquele, e depois o teto.
Harriet ouviu um tumulto, e seu marido saiu da escuridão, vestindo apenas cuecas largas; trazia a pistola consigo. Ele mancou na direção dela.
— O que você ainda está fazendo aqui? — sussurrou ele com dureza. Seu rosto brilhava de suor. Ela reconheceu que o tom raivoso apenas disfarçava o medo que sentia por ela. — Eu mandei você subir.
— Não sem você.
Ele suspirou e passou o braço ao redor dela.
— Então vamos.
Eles seguiram para o andar de cima, usando uma das escadas estreitas dos fundos. Abaixo deles, na escadaria, um grande contêiner de lixo fora jogado nos degraus muito antes, bloqueando a passagem dos andares inferiores.
Devia ser seguro.
Um rosnado baixo afastou essa idéia. Houve um tumulto no andar inferior, além do contêiner.
Eles ficaram paralisados.
— Sentiu o que aí, menina? — rosnou uma voz. Passos entraram na escadaria abaixo. O facho de uma lanterna subiu até eles.
Harriet e Jack colaram-se à parede. O rosnado se tornou mais intenso.
— Suba até lá. Vai. Vasculhe lá.
Jack empurrou Harriet pelas escadas. Eles se moveram em silêncio. Abaixo, o rosnado se suavizara, transformando-se em fungadas pesadas, juntamente com raspar de unhas no piso.
— Vai lá — disse a voz. — Espante-os. Eu vou dar a volta. — A voz saiu da escadaria baixa, obviamente procurando outro caminho para cima. O chiado do rádio o acompanhou, juntamente com algumas palavras enquanto ele dava informações.
Eles estavam mandando os cães para o próximo andar.
Enquanto Harriet e Jack corriam para a porta do piso seguinte, um latido cortante chegou a eles, em parte vitorioso, em parte selvagem. Algo grande subiu as escadas.
— Corra, Harriet! — mandou Jack.
Ela correu em frente e chegou ao patamar seguinte. A porta do andar de cima estava a um metro, fechada. Atrás dela, Jack tropeçou no escuro e caiu. Ele foi parar dois degraus abaixo. A pistola deslizou pelo patamar até os dedos dos pés de Harriet. Ela a pegou rapidamente. Enquanto ela voltava a se levantar, luzes através da pequena janela no poço das escadas chamaram sua atenção.
Luzes de lanternas varriam o escuro andar de cima.
Annishen chamou:
— Vamos vasculhar aqui e descer. Vamos botá-los para fora.
Harriet se virou. Jack se arrastou até ela. Além dele, uma forma escura contornava as escadas de baixo e seguia na direção de seu marido. Houve um rosnado grosso.
Harriet ergueu a pistola. Se ela disparasse, Annishen ouviria o tiro. Seus captores saberiam onde eles estavam escondidos e chegariam lá em segundos.
Ela hesitou demais.
Rosnando selvagemente, o cão enorme saltou sobre seu marido.
7:58h
Angkor Thom
Seichan ficou a um passo de distância enquanto Gray contornava o altar central.
Eles tinham passado quase vinte minutos retrocedendo e procurando descobrir o caminho para o santuário central do terceiro nível de Bayon. O complexo de quatro hectares era um verdadeiro labirinto de galerias escuras, inesperados pátios banhados pelo sol, passagens bloqueadas e quedas abruptas. Os telhados baixos raspavam nas paredes, alguns corredores tinham de ser percorridos em fila indiana, vasculhando passagens laterais, e muitos corredores não possuíam saída.
Quando chegaram ao pequeno santuário interno, estavam cobertos de poeira e suor. A manhã tinha ficado quente rapidamente, e o ar estava pesado de umidade. Mas eles chegaram ao seu destino.
— Não há nada aqui! — disse Nasser em tom irritado.
Seichan identificou sua atitude, percebeu sua postura rígida. Ela duvidava de que sua paciência durasse até o meio-dia. A não ser que houvesse algum progresso logo, ela acreditava que ele acabaria com tudo na próxima hora. Iria ordenar que os pais de Gray fossem mortos. Executaria todos ali. E seguiria em frente.
Sempre prático.
Nenhuma imaginação.
Isso fazia dele um amante aborrecido.
A frente, Gray contornou o altar pela terceira vez. Ele estava magro, coberto de poeira e com o cabelo preto sujo grudado na testa, em cachos pegajosos. Tinha sangue seco no colarinho, onde recebera um golpe de pistola atrás da orelha de um dos homens de Nasser, ainda no hotel.
Ele ainda se recusava a olhar para ela.
Isso a deixava com raiva, principalmente porque doía, e ela odiava aquilo ainda mais. Seichan buscava aquele espaço de frieza onde antes tinha vivido, uma frieza que lhe permitia dormir com Nasser para conseguir o que precisava, como fora ensinada a fazer.
Seichan voltou a atenção para os guardas, novamente prática, concebendo uma forma de sair dali. Os guardas eram em sua maioria locais, incluindo muitos ex-soldados do Khmer Vermelho havia muito recrutados pela Guilda, reunidos após a queda do ditador genocida Pol Pot. Seriam combatentes ferozes. Eles guarneciam as quatro saídas da câmara, voltadas para os pontos cardeais. Outros homens tinham assumido posições por todas as ruínas, desencorajando turistas a perturbarem-nos.
— Segundo o que li sobre este lugar, havia aqui uma gigantesca estátua de Buda — anunciou o monsenhor, acompanhando Gray ao redor do altar. Vigor apontou com um dos braços para dois blocos retangulares, colocados um sobre o outro, como degraus. — Mas quando a religião passou a ser o hinduísmo, o Buda foi derrubado e jogado naquele grande poço pelo qual passamos na subida.
Os únicos outros elementos decorativos na sala de pedra eram quatro rostos escurecidos do bodhisattva Lokesvara. Só que aqueles estavam olhando para dentro, na direção do altar e do Buda ausente. Kowalski se apoiou em um dos rostos, olhando para cima.
A grande torre central do Bayon se erguia acima do altar, elevando-se 40 metros. Vazada no centro como uma chaminé, tinha uma longa passagem quadrada que levava direto ao céu acima. Era a única fonte de luz.
— Este tem que ser o lugar — disse Gray, finalmente parando. — Tem que haver um caminho para baixo a partir daqui.
— Para baixo onde? — perguntou Nasser.
Gray ergueu a mão na direção do monsenhor.
— Vigor mencionou como as fundações desta torre foram enterradas. Fundo. Precisamos encontrar um acesso a esses aposentos inferiores. E aposto que um bom lugar para procurar seria sob o altar.
Vigor se colocou ao lado dele.
— Por que você acha que isso é importante?
Gray tirou o cabelo da testa, claramente avaliando quanto dizer. Nasser também identificou a hesitação do homem.
— Estamos passando outra hora — disse ele, batendo com um dedo no relógio de pulso. — Tique-taque, comandante.
Gray suspirou.
— O baixo-relevo que vimos antes. O da Batida do Leite. Todas as peças da história eram importantes. A serpente, o mar espumante, o veneno, a ameaça para o mundo, a sobrevivente brilhante. Mas havia uma peça estranha e inexplicável. Ela não se encaixava nas outras.
— Qual é? — perguntou Nasser.
Seichan viu como era doloroso para Gray falar. Todas as palavras saíam com enorme relutância.
— A tartaruga — admitiu Gray, finalmente.
Vigor coçou o queixo.
— Na história, a tartaruga representa o deus Vishnu, uma encarnação de si mesmo. Em sua forma de tartaruga, ele sustentava o monte Meru enquanto era puxado para a frente e para trás, para impedir que afundasse.
Gray concordou com a cabeça.
— No baixo-relevo, a tartaruga estava gravada abaixo da montanha. Por que uma tartaruga?
Ele se curvou e desenhou na poeira do altar. Fez um esboço simples de uma montanha com uma casca curva embaixo.
Ele bateu na casca.
— O que isso parece para vocês?
Vigor se curvou.
— Uma caverna. Enterrada abaixo da base da montanha.
Gray olhou para cima, para a passagem de luz.
— E esta torre aqui representa aquela montanha.
Seichan se aproximou mais.
— Você acha que há uma caverna embaixo desta torre. Abaixo de suas fundações enterradas.
Ele respondeu, seus olhos se voltando para ela rapidamente e depois se afastando.
— A única maneira de descobrir é descer até as fundações e procurar algum acesso a essa caverna.
Nasser franziu o cenho.
— Mas o que pode haver de tão importante nessa caverna?
— Poderia ser a fonte da Estirpe de Judas — disse Vigor. — Talvez quando eles estivessem cavando o templo tenham chegado a essa caverna e libertado algo que estava enterrado lá.
Gray suspirou, cansado.
— Muitos vetores de doenças surgiram no mundo à medida que a humanidade penetrou em regiões normalmente desabitadas. Febre amarela, malária, doença do sono. Mesmo a aids surgiu quando uma estrada estava sendo construída cortando uma região remota da África, expondo o mundo a um vírus encontrado apenas em alguns macacos. Então, talvez, quando o Khmer cultivou e ocupou esta região, algo tenha sido libertado.
Gray esfregou o pescoço. Seus olhos se voltaram diretamente para Nasser.
Diretamente demais.
Seichan sentiu que Gray ainda estava escondendo algo. Ela estudou novamente o desenho estilizado que ele fizera. A montanha e a casca representavam a torre e a caverna. O que mais havia ali? Então ela percebeu.
A própria tartaruga.
Claro...
Seus olhos se ergueram na direção dos olhos de Gray.
Ele deve ter percebido seu olhar. Voltou-se para ela naturalmente, mas seu olhar era pesado. Gray sabia que ela se dera conta do que não tinha dito. Ele queria que ficasse quieta.
Ela deu um passo atrás e cruzou os braços.
Ele olhou mais um pouco e depois desviou o olhar.
Seichan sentiu algum grau de satisfação. Mais do que esperava.
Nasser respirou profundamente pelo nariz, e concordou.
— Precisamos encontrar uma passagem para baixo.
Gray franziu o cenho.
— Eu esperava que houvesse alguma pista de uma passagem secreta.
— Não importa — respondeu Nasser. — Vamos explodir a entrada.
— Não sei se isso seria sábio — disse Vigor, aterrorizado. — Se essa é a fonte da Estirpe de Judas, pode ser terrivelmente tóxico lá embaixo.
Nasser permaneceu inabalável.
— Por isso iremos mandar todos vocês primeiro.
Como canários em uma mina de carvão.
Seichan mais uma vez trocou olhares com Gray. Ele não fez objeções. Como Seichan, ele sabia que lá embaixo havia algo maior do que apenas a fonte da Estirpe de Judas.
O casco da tartaruga podia representar a caverna — mas a tartaruga em si representava o deus Vishnu —, sugerindo que havia mais que apenas uma caverna abaixo do templo de Bayon. Possivelmente, mais alguma coisa também esperava por eles lá embaixo.
Gray caminhou na direção de Nasser.
— Isso demonstra cooperação suficiente para poupar minha mãe por essa hora? — perguntou, com a voz firme.
Nasser deu de ombros, concordando. Ele se encaminhou para a entrada de luz, buscando um sinal melhor para seu telefone celular.
— Eu então devo me apressar — disse Nasser, abrindo seu telefone. — Já passou da hora. Annishen tem pouca paciência. Não sei dizer o que ela poderia fazer.
21:20h
Washington, D.C.
Harriet permaneceu paralisada no patamar.
O cão vinha veloz e saltou sobre o corpo escarrapachado de Jack na escada. Na escadaria escura era impossível dizer qual era a raça, apenas que era grande e forte. Pitbull, rottweiler. Jack saltou de lado e chutou, mas o cão era mais rápido, treinado para o ataque. Com um rosnado, ele mordeu fundo o calcanhar.
Jack agarrou o joelho e chutou com a outra perna, bem no peito do animal.
O cão foi arremessado escada abaixo, batendo com força, ainda agarrado à perna protética de seu marido. Jack tinha soltado o membro, se libertando.
Harriet ajudou Jack a subir ao patamar.
Abaixo, o cão bateu na parede e ficou de pé novamente. Ele se recusava a largar a prótese, que tinha o cheiro de sua presa. Furioso e confuso, sacudiu a cabeça para a frente e para trás, espalhando saliva, sacudindo o membro conquistado.
Harriet arrastou Jack pelo lance de escadas seguinte, passando pela porta fechada do patamar. Ela olhou através da pequena janela. Focos de luz continuavam a vasculhar o andar de cima. Assim, só restava um lugar para Harriet e Jack.
O telhado.
Do lado de baixo da escada, o cachorro continuava a atacar o membro capturado, triunfante com seu prêmio.
Jack se apoiou no ombro dela. Ele pulou e se arrastou até a porta do telhado. Eles já haviam procurado a saída e descobriram que estava presa com uma corrente, mas frouxa. Em algum momento alguém usara um pé-de-cabra para forçar o canto inferior da porta de aço. Havia espaço bastante para se arrastar sob a corrente frouxa e atravessar o amassado na porta.
Do lado de fora, Jack usou um pedaço de cano para manter a porta fechada. Não duraria muito. Mas isso não tinha grande importância. Havia meia dúzia de outros pontos de acesso ao telhado. Eles não tinham como bloquear todos.
— Por aqui — disse Jack, apontando. Ele tinha examinado o telhado e descobrira uma antiga unidade de aquecimento e refrigeração atulhada até a metade com equipamentos. Dentro havia espaço suficiente para duas pessoas se esconderem.
Mas nenhuma delas tinha muita esperança.
Os cães iriam farejá-los em breve.
Eles atravessaram o telhado até a unidade e a contornaram para que ficasse entre eles e a porta. Os dois se jogaram no telhado alcatroado e por um momento ficaram fora da unidade de refrigeração. As estrelas brilhavam acima deles, juntamente com um pedaço de lua. Um avião passou no alto, as luzes piscando.
Jack passou um dos braços ao redor de Harriet e a puxou para si.
— Eu te amo — disse.
Era uma confissão rara, poucas vezes dita em voz alta. Não que Harriet tivesse um dia duvidado disso. Mesmo então, ele dizia as palavras de forma seca. Como se dizendo que a Terra era redonda. Uma verdade simples.
Ela se apoiou nele.
— Eu também te amo, Jack.
Harriet se agarrou a ele. Ela não sabia quanto tempo ainda tinham. Em algum momento a busca lá embaixo iria terminar. Annishen voltaria suas atenções para o telhado.
Eles esperaram juntos, em silêncio, tendo passado toda uma vida juntos, partilhando alegrias e dores, tragédias e vitórias. Embora nenhuma palavra tivesse sido dita, ambos sabiam o que estavam fazendo, os dedos trançados. Diziam adeus um ao outro.
CAPÍTULO 17
Aonde os anjos temem ir
7 de julho, 9:55h
Angkor Thom, Camboja
Gray se apoiou na parede de tijolos da cela que parecia uma caverna.
Além da abertura estreita, meia dúzia de homens montava guarda. O que estava mais perto tinha as armas bem à vista. Nasser ordenara-lhes que ficassem ali enquanto buscava munição para explodir a pedra do altar. Gray conferiu o mostrador iluminado de seu relógio de mergulho.
Eles estavam lá havia quase uma hora.
Ele rezou para que Nasser estivesse ocupado o bastante com seus planos para perder sua ameaça de hora em hora contra seus pais. Depois de mandá-los para lá, ele saíra rapidamente, com o telefone ao ouvido. Certamente dizia respeito ao braço científico da operação da Guilda. Painter contara a história do navio seqüestrado e o paradeiro desconhecido de Monk e Lisa.
Algo dera muito errado.
Mas eram boas ou más notícias quanto ao destino de seus amigos?
Gray se afastou da parede e caminhou pela cela. Seichan sentou-se em um banco de pedra perto de Vigor.
Kowalski apoiou-se perto da abertura. Um dos guardas tinha um fuzil apontado para seu estômago, mas ele o ignorou. Ele falou quando Gray se aproximou.
— Acabei de ver um cara passar com uma britadeira.
— Eles devem estar quase prontos — disse Vigor, e se levantou.
— O que está demorando tanto? — perguntou Gray.
Seichan respondeu, ainda sentada:
— Subornos levam tempo.
Gray olhou para trás, na direção dela.
Ela explicou:
— Ouvi alguns gritos em khmer. Os homens de Nasser estão afastando os turistas das ruínas, expulsando-os. Aparentemente, a Guilda alugou o Bayon para o resto dessa festa particular. É uma região pobre. Não seria necessário muito para fazer os funcionários olharem para o outro lado.
Gray já tinha se perguntado quanto. Os guardas já não faziam nenhum esforço para esconder as armas.
Vigor apoiou a palma da mão em uma coluna perto da porta.
— Nasser deve ter convencido a Guilda da importância de seguir a pista histórica um pouco mais.
Gray suspeitava de que era um pouco mais do que isso. Ele se lembrava da agitação em relação ao navio de cruzeiro. Se algo acontecera à trilha científica, o valor da trilha histórica seria muito mais importante.
Ele obteve a confirmação pouco depois.
Nasser passou pelos guardas. Seus modos agitados furiosos tinham outra vez dado lugar à frieza habitual.
— Estamos prontos para continuar. Mas, antes, parece que já passamos outra hora.
Os músculos do estômago de Gray enrijeceram.
Vigor foi em sua defesa.
— Você nos trancou esse tempo todo. Você certamente não pode esperar que tenhamos feito qualquer outra descoberta.
Nasser ergueu uma sobrancelha.
— Isso não me interessa. E Annishen está ficando impaciente. Ela certamente precisa de algo para se divertir.
— Por favor — disse Gray. As palavras escorregaram por seus lábios antes que ele pudesse impedir.
Os olhos de Nasser brilharam de divertimento, fazendo Gray ferver.
— Deixe de ser idiota, Amen — disse Seichan atrás dele. — Se você vai fazer algo, faça logo.
O punho de Gray se fechou. Ele tinha de lutar para não a acertar, para fazê-la se calar. Ele não precisava enfrentar a oposição de Nasser. Não naquele momento.
As linhas guias na testa de Nasser tinham se arqueado de raiva. Ele ergueu os dedos e os esfregou, recusando-se a reagir à provocação. Ele se virou e passou de volta pelos guardas. Não disse uma palavra.
— Nasser! — chamou Gray, sua voz falseando.
— Se pularmos essa hora — respondeu Nasser sem se virar —, eu irei esperar resultados ainda maiores assim que penetrarmos no altar. Qualquer coisa menos que isso, e eu tirarei de sua mãe mais que um dedo. É hora de aumentar o fogo debaixo de você, comandante Pierce.
Nasser ergueu um braço e os guardas os tiraram da cela. Seichan passou por Gray, esbarrando em um de seus ombros. Suas palavras foram baixas, quase inaudíveis:
— Eu o estava testando.
Ela continuou a andar.
Gray, apanhado de surpresa, a seguiu e aproximou-se dela.
Ela falou rápido, sem olhar para ele.
— Ele estava blefando... Eu tinha certeza.
Gray conteve uma resposta raivosa. Ela estava arriscando a vida de seus pais.
Ela olhou de lado para ele, talvez sentindo sua raiva. Suas palavras foram do mesmo tipo, ainda mais duras.
— O que você precisa se perguntar, Gray, é por quê? Por que ele está blefando?
Gray relaxou a mandíbula. Era uma boa pergunta. As costas da mão dela roçaram na dele. Ele tocou seu pulso com o dedo, para reconhecer o mérito, mas Seichan já estava fora de alcance.
Nasser os levou de volta ao santuário central. A equipe de demolição tinha trabalhado duro. Tinham sido feitos furos na dupla placa sólida de arenito. Cabos esticados juntavam-se em um único feixe. Nas quatro saídas havia homens de pé com extintores de incêndio presos às costas.
Gray franziu o cenho. O que eles esperavam queimar? Tudo ali era pedra.
Nasser falou com um homem baixinho que trazia um cinto cheio de ferramentas e um rolo de fios num dos ombros, obviamente o especialista em demolição. O homem fez que sim com a cabeça para Nasser.
— Estamos prontos — anunciou Nasser.
Eles foram levados pela saída oeste, e viraram a esquina.
Vigor resistiu um pouco.
— Uma explosão pode derrubar tudo em cima de nós.
— Sabemos disso, monsenhor — respondeu Nasser, e levou um rádio aos lábios. Ele deu a ordem de seguir em frente.
Um instante depois uma grande explosão, tão alta quanto um trovão, repercutiu em peitos e ouvidos. Uma vez. Juntamente com um grande clarão. Então um forte cheiro ácido chegou a eles, queimando nariz e garganta.
Vigor tossiu. Gray colocou uma das mãos em frente ao rosto.
— O que foi isso? — perguntou Kowalski, cuspindo no canto para tirar o gosto ruim.
Nasser ignorou-o e levou-os em frente.
Ele seguiu um dos homens com extintores de incêndio. O homem tirou a máscara do rosto e apertou a mangueira. Um jato enevoado foi disparado sobre piso, paredes e teto. A passagem estreita foi tomada por uma nuvem de pó fino, que cobriu todas as superfícies.
Nasser os levou de volta ao santuário.
Através da névoa Gray percebeu outros homens com extintores indo para a câmara à frente. Com seu jato combinado, a visão dentro se tornou momentaneamente impossível. Gray mal podia discernir os quatro homens lançando os jatos.
Nasser os deteve.
Após mais meio minuto, os jatos foram interrompidos e a poeira literalmente assentou. O aposento, ainda enevoado, reapareceu. A luz do sol penetrou pela chaminé da torre.
Nasser os levou para a frente.
— Base neutralizante — explicou ele, abanando a poeira residual do rosto.
— Para neutralizar o quê? — perguntou Gray.
— Ácido. A demolição tem uma carga incendiária somada a um ácido corrosivo. Concebida pelos chineses durante a construção da represa das Três Gargantas. Concussão mínima, dano máximo.
Gray entrou na câmara atrás de Nasser, e seu queixo caiu diante daquela visão.
As paredes estavam cobertas de pó branco, mas a mudança era dramática. Parecia que alguém dissolvera os traços dos quatro rostos de bodhisattva. O que antes tinham sido faces beatíficas era então ruínas de escória. O piso estava igualmente danificado, como se alguém tivesse lançado jatos de areia ali.
O altar central, iluminado do alto, estava em ruínas. Um dos cantos despencara para uma câmara inferior.
Definitivamente havia um espaço abaixo dali. A maior parte da laje resistia.
Outro membro da equipe de demolição entrou na câmara levando uma marreta. Nasser fez sinal para que ele entrasse. Outro homem o seguiu, arrastando uma britadeira.
Apenas para o caso de ser necessário.
O primeiro homem sacudiu sua marreta, golpeando bem no centro. Fragmentos voaram do ponto atingido, e a grande massa de rocha cedeu. O altar despencou no vazio.
10:20h
Susan gritou, erguendo-se do assento.
Lisa, presa no assento do co-piloto, se virou. Ela estivera olhando para baixo, para o grande lago, enquanto o Sea Dart dava voltas, preparando-se para pousar. Abaixo, uma aldeia flutuante se afastava da margem, uma concentração emaranhada de juncos vietnamitas e casas-barco.
Era onde Painter dissera a ela para se esconder. A aldeia de pescadores ficava a 30 quilômetros de Angkor. Longe do perigo.
Lisa lutou contra o cinto de segurança enquanto Susan gritava. Ao conseguir se libertar, foi tropeçando para o fundo do avião.
Susan se livrou do cobertor antifogo, engasgando.
— Tarde demais! Estamos atrasados demais!
Lisa pegou o cobertor e obrigou-a a se deitar. Ela dormira tranqüila a viagem toda. O que tinha acontecido?
Susan estendeu uma das mãos e agarrou o antebraço de Lisa. Isso machucou sua pele, queimando os pêlos.
Lisa puxou o braço.
— Susan, o que há de errado?
Susan se ajeitou no assento. Seu olhar selvagem se acalmou ligeiramente, mas ela continuou a tremer. Falava com dificuldade.
— Precisamos chegar lá — murmurou seu mantra habitual.
— Estamos pousando agora — disse Lisa, tentando acalmá-la. Ela chegou mesmo a sentir o Sea Dart descendo.
— Não! — disse Lisa, mais uma vez tentando pegá-la, mas depois recolhendo a mão ao ver Lisa se afastando. Seus dedos se fecharam e então retornaram para debaixo do cobertor antifogo. Ela respirou, tremendo. Seus olhos se ergueram e encontraram os de Lisa.
— Estamos longe demais, Lisa, eu sei. Mas temos poucos minutos. Dez ou 15, no máximo.
— No máximo para o quê?
Lisa lembrou-se de sua conversa com Painter, sobre os caranguejos das ilhas Christmas, sobre mudanças neurológicas quimicamente induzidas desencadeando urgências migratórias maníacas. Mas, na sofisticada mente humana, o que as mesmas substâncias produziam? Que outras mudanças ocorriam? Seria possível confiar na urgência de Susan?
— Se não chegarmos lá... — disse Susan, sacudindo a cabeça como se tentasse encontrar uma lembrança perdida. — Eles abriram algo. Eu posso sentir a luz do sol. Como olhos ferozes queimando dentro de mim. Só o que eu sei... E eu sei nos meus ossos... É que, se eu não chegar a tempo, não haverá cura.
Lisa hesitou, olhando para trás, para Ryder.
O lago subia à medida que o Sea Dart mergulhava para baixo.
Susan lamentou.
— Eu não pedi isso.
Lisa ouviu o pesar contido em suas palavras, sentindo que a dor abrangia mais do que o ônus biológico. Susan perdera o marido, seu mundo. Ela se voltou na direção da mulher.
O rosto de Susan brilhava com um misto de emoções: medo, dor, desespero e uma profunda solidão.
Susan juntou as mãos.
— Eu não sou um caranguejo. Você não consegue ver isso? Sim, Lisa conseguia.
Ela se virou e disse para Ryder:
— Suba!
— O quê? — perguntou Ryder, olhando para trás.
Lisa apontou o polegar para o céu.
— Não pouse. Temos de chegar mais perto das ruínas — Ela se ergueu com dificuldade e usou os bancos de trás para chegar ao assento do co-piloto. — Há um rio que cruza a cidade de Siem Reap.
Ela afundou na poltrona. Estudara os mapas de navegação da área. A cidade ainda estava a cerca de 10 quilômetros de distância. Lembrou-se do aviso de Susan.
Dez ou 15 minutos no máximo.
Seria perto o bastante? Seu próprio sangue fervia com a urgência. Ela precisou respirar para entender por quê. As últimas palavras de Susan.
Eu não sou um caranguejo.
Susan não sabia nada sobre os caranguejos terrestres da ilha Christmas. Lisa não falara em voz alta sobre a conversa com Painter, nem mesmo com Ryder. Talvez em meio ao estupor Susan tivesse ouvido o fim da conversa. Mas Lisa não se lembrava se usara a palavra caranguejo.
De qualquer maneira, ela abriu a carta de navegação e procurou.
Eles precisavam de algum ponto mais perto da terra.
Outro lago ou rio...
— Ou aqui — disse ela em voz alta, aproximando o mapa.
— O que é isso, amor? — perguntou Ryder. Ele tinha levantado o nariz do Sea Bart e os fizera voar por cima do lago.
Lisa virou o mapa para ele, e apontou.
— Você pode pousar aqui?
Ryder arregalou os olhos.
— Você está maluca?
Ela não respondeu. Basicamente porque não sabia a resposta. O rosto de Ryder se abriu em um grande sorriso.
— Ora, que droga! Vamos tentar! — Sempre interessado em emoções, ele alcançou sua coxa e deu tapinhas nela. — Gosto do jeito como você pensa. Como é seu relacionamento em casa?
Lisa recostou na poltrona. Quando Painter souber disso...
Ela sacudiu a cabeça.
— Veremos.
23:22h
Washington, D.C.
— Senhor, aquele sinal de GPS que o senhor me mandou acompanhar está saindo da rota.
Painter se virou. Ele estava fazendo a coordenação com a Equipe de Contra-terrorismo e Resgate Especial australiana. Eles tinham chegado ao local na ilha de Pusat 15 minutos antes, e seguiam para as coordenadas fornecidas por Lisa. As primeiras informações da ilha eram confusas. O Mistress of the Seas fora encontrado em chamas, envolvido em uma trama de rede e cabos de aço. Ele tinha uma inclinação de quase 45 graus. Havia um grande tiroteio a bordo do navio.
Kat estava em frente a ele, com fones de ouvido, segurando-os com as duas mãos. Ela se recusara a ir para casa. Não antes de ter certeza. Seus olhos estavam vermelhos e inchados, mas ela continuava concentrada, sobrevivendo de uma tênue esperança. Talvez, de alguma maneira, Monk ainda estivesse vivo.
— Senhor — disse o técnico, apontando para outra tela. Ela mostrava um mapa do planalto central cambojano. Havia um grande lago no centro. Um pequeno ponto aparecia em saltos pixelados que atravessavam a tela, rastreando o Sea Dart.
Se o hidroavião dera voltas em círculo perto das margens um minuto antes, ele agora se afastava do lago.
— Para onde eles estão indo? — perguntou Painter. Ele acompanhou mais alguns segundos, para identificar a trajetória. Prolongou-a com o dedo. Seu caminho aéreo os levava em linha reta para Angkor.
O que eles estão fazendo?
Um movimento à porta chamou a atenção de Painter. Seu ajudante, Brant, entrou em disparada na sala, freando sua cadeira de rodas com um guincho de borracha no linóleo.
— Diretor Crowe, tentei localizá-lo — falou num arranco. — Não consegui. Imaginei que ainda estivesse em conferência com a Austrália.
Painter concordou com a cabeça. Estava.
Brant agarrou um fax amarfanhado e entregou-o.
Painter pegou-o e olhou rapidamente, depois uma segunda vez com maior cuidado. Deus do céu...
Ele se encaminhou para a porta, esbarrando em Brant. Então parou e se virou.
— Kat?
— Vai. Eu cuido de tudo.
Ele olhou novamente para o mapa do Camboja na tela, para o pequeno ponto que rumava para as ruínas de Angkor.
Lisa, espero que você saiba o que está fazendo. Ele saiu da sala e correu para o escritório. Por ora, ela estava por sua própria conta.
10:25 h Angkor
— Segure-se! — avisou Ryder, embora soasse mais como um grito de guerra.
Lisa agarrou com força os braços da poltrona.
À frente, as gigantescas torres negras em forma de colméia de Angkor Wat se erguiam no céu. Mas o templo espetacular, que se espalhava por mais de 2 quilômetros quadrados, não era seu destino.
Ryder fez o Sea Dart mergulhar na direção da faixa artificial de água verde de um dos lados. O fosso de Angkor Wat. Diferentemente de Angkor Thom, ele ainda tinha água. Sua extensão total ao redor do templo chegava a 6 quilômetros, deixando pouco mais de um quilômetro e meio de água limpa de cada lado. O único problema...
— Ponte! — gritou Lisa.
— É disso que você a chama? — comentou Ryder sarcasticamente. Com um charuto entre os dentes, ele soltou uma nuvem de fumaça pelo canto dos lábios.
Era seu único charuto, guardado para emergências como aquela. Como Ryder dissera antes de acendê-lo, "mesmo um condenado tem direito a uma última tragada".
O bilionário rugiu sobre o fosso, mudando a altura do avião para cima e para baixo apenas um pouco, o suficiente para evitar a ponte.
Lisa prendeu a respiração quando eles passaram. Turistas correram para os dois lados.
Quando tinham passado, Ryder baixou o Sea Dart rapidamente, deslizando pelo fosso e levantando uma cortina de água. Eles então assentaram, ainda com velocidade, enquanto o avião se transformava em barco. O impulso os impeliu para o canto mais distante, rápido demais para fazer a curva.
O molhe de terra do fim corria na direção deles.
Ryder puxou uma alavanca no piso.
— Isso é chamado de curva de Hamilton! Segure-se bem!
Com uma baforada de fumaça, ele puxou e torceu o volante.
O Sea Dart girou como se estivesse deslizando no gelo, fazendo sua traseira dar uma volta. Os motores duplos gritaram com o freio dos jatos traseiros. O aparelho reduziu a velocidade.
Lisa se encolheu, ainda esperando se chocar contra o molhe.
Em vez disso, Ryder virou o volante e adernou o barco. O Sea Dart pegou uma onda diretamente até o limite do molhe inclinado e parou suavemente.
Ryder soltou uma nuvem de fumaça e desligou os motores.
— Senhor, isso foi muito engraçado.
Lisa se soltou imediatamente e foi na direção de Susan.
— Rápido — disse Susan, lutando para se soltar.
Lisa ajudou-a a soltar o cinto. Ryder a seguiu e abriu a escotilha.
— Você sabe o que tem de fazer? — perguntou Lisa a ele, enquanto pulavam nas águas rasas e davam alguns passos até o molhe.
Surgiram gritos de todos os lados.
— Você já me disse umas dez vezes — disse Ryder. — Ache um telefone, ligue para seu diretor, conte o que você está fazendo, para onde está indo.
Eles escalaram o molhe até chegarem a uma estrada que seguia ao lado do fosso. Susan continuava embrulhada no cobertor, mantendo-o bem fechado; usava óculos escuros e tentava ao máximo manter a energia do sol longe de si.
As pessoas apontavam e chamavam.
Ryder acenou para um veículo que passava. Era apenas uma motocicleta com um pequeno carrinho coberto. Ryder exibiu um punhado de notas, a linguagem universal para pare. O motorista do veículo era fluente nesse idioma. Ele deu uma volta com a motocicleta e foi diretamente na direção deles.
Assim que ele parou, Ryder ajudou Lisa e Susan a entrar na parte de trás e fechou a pequena porta.
— O tuk-tuk as levará diretamente para o templo. Tome cuidado.
— Apenas fale com Painter — disse Lisa.
Ele acenou para eles, como se estivesse dando a largada em uma corrida.
Obedecendo, a motocicleta acelerou, arrastando-as consigo. Lisa olhou para trás. Policiais uniformizados já iam na direção de Ryder, acelerando em suas próprias motocicletas. Ryder acenou com o charuto, fazendo cena.
Ninguém prestou atenção no pequeno tuk-tuk delas.
Lisa se ajeitou novamente.
Ao lado dela, Susan continuava embrulhada em seu cobertor. Dali saiu uma única palavra:
— Depressa.
10:35h
De joelhos, Gray olhou por cima da borda, para dentro da abertura na pedra. Quatorze metros abaixo, um rosto olhava para ele. Outro dos bodhisattvas de pedra. Ele se erguia da superfície do piso esculpido em um único e gigantesco bloco de rocha. O brilho do sol que vinha da chaminé da torre lançava dentro do buraco um facho de luz quadrado, cintilando com partículas de poeira, e banhava o rosto de pedra escuro com uma luz quente.
O sorriso enigmático dava as boas-vindas.
Do lado, uma escada de pendurar, feita de cabos de aço e degraus de alumínio, fora jogada do bloco do altar destruído. Ela se desenrolou com um chacoalhar pelas profundezas e bateu no piso das fundações. A extremidade superior foi presa com mosquetões ao teto de pedra do santuário.
Nasser caminhou na direção de Gray.
— Você vai na frente. Seguido por um dos meus homens. Vamos manter seus amigos aqui em cima por ora.
Gray limpou o pó das mãos e se ergueu. Ele se encaminhou para subir a escada. Vigor se colocou contra a parede, o rosto sombrio.
Gray imaginou que a disposição sóbria do monsenhor não se devia apenas à situação deles. Como arqueólogo, devia considerar aquela violação profissionalmente inaceitável.
Do lado oposto a Vigor, Kowalski e Seichan simplesmente esperavam seu destino.
Gray fez com a cabeça um sinal para os três e iniciou a longa descida. Em vez de poeirento, o poço cheirava a umidade. Os primeiros 9 metros passavam por um estreito túnel de pedra com uns dois metros de largura delimitado por blocos, como um grande poço. Mas nos últimos três metros as paredes se afastavam, criando um vão em forma de barril com 12 metros de diâmetro e perfeitamente circular.
— Fique onde eu possa vê-lo! — gritou Nasser.
Gray olhou para cima, para a fila de fuzis apontados para ele. Um dos soldados já estava descendo pela escada. Gray pulou para o chão, parando perto do rosto de pedra do bodhisattva.
Ele olhou ao redor. Quatro grandes pilares sustentavam o vão, a intervalos iguais. Provavelmente colunas da torre acima. Como apoio, o piso não era de blocos de pedra. Era de calcário sólido. Eles tinham chegado ao fundo. Ali era definitivamente a fundação estrutural do Bayon.
O barulho da escada chamou sua atenção para a aproximação do soldado. Gray pensou em saltar sobre ele e pegar seu fuzil. Mas e aí? Seus amigos ainda estavam em cima; seus pais ainda estavam sob o tacão de Nasser. Assim, em vez disso, ele se encaminhou para o rosto esculpido. Deu a volta em torno dele. Era de arenito esculpido, como todos os outros. Estava apoiado de costas, olhando para cima, esculpido de um único bloco com altura correspondente a uma cintura.
O rosto não parecia diferente dos outros: os mesmos cantos da boca voltados para cima, o mesmo nariz largo, a mesma testa, e aqueles olhos ensombreados, meditativos.
O guarda saltou para o piso, batendo firme com as botas. Gray se empertigou, então o viu com o canto do olho.
Ele se virou novamente, percebendo algo estranho no rosto, naqueles olhos meditativos. Havia círculos escuros no centro de cada um, como pupilas. Mesmo a luz do sol não conseguia eliminá-los.
Gray tinha de se curvar sobre a bochecha de pedra para investigar. Esticou uma das mãos e verificou a pupila negra com o dedo.
— O que você está fazendo? — perguntou Nasser.
— Há orifícios! Abertos nos olhos, no lugar das pupilas. Acho que podem atravessar o rosto.
Gray olhou para cima. A luz do sul penetrava pela chaminé da torre, e, sem o altar, o facho atingia o rosto escondido ali.
Mas será que a luz penetrava ainda mais fundo?
Ele subiu ainda mais no rosto, esticando-se sobre ele. Colocou seu próprio olho sobre a pupila do deus de pedra para investigar. Fechando o outro olho, ele colocou a mão em concha no globo ocular de arenito. Demorou um instante para que sua visão se acostumasse.
Bem abaixo, iluminado pela luz do sol que atravessava a outra pupila, ele podia ver um brilho de água. Um lago no fundo de uma caverna. Gray quase podia imaginar o espaço aberto, abobadado como o casco de uma tartaruga.
— O que você está vendo? — perguntou Nasser.
Gray rolou de lado e parou de costas, olhando para cima dali do fundo do poço.
— Está aqui! A caverna! Sob o rosto de pedra!
Assim como o altar de pedra acima, o bodhisattva protegia uma passagem oculta.
Gray lembrou-se da explicação de Vigor para as centenas de rostos de pedra. Alguns dizem que eles representam vigilância, rostos olhando para fora de um coração secreto, protegendo mistérios interiores. Mas enquanto estava lá Gray também se lembrou das palavras de outro homem, muito mais antigas e mais ameaçadoras, do texto de Marco, exatamente a última linha de sua história.
As palavras provocaram-lhe arrepios.
A passagem para o Inferno foi aberta nesta cidade; mas não sei se ela foi fechada.
Gray olhou para cima, para o altar destruído. E então soube a verdade.
Ela tinha sido fechada.
Mas agora eles a estavam abrindo novamente.
10:36h
O tuk-tuk parou no fim da estrada pavimentada.
Lisa desceu.
O caminho à frente era uma praça de pedra arruinada, com o calçamento parcialmente arrancado pelas raízes das árvores. Além da praça erguia-se o Bayon, emoldurado pela floresta, uma mistura confusa de torres de arenito cobertas com rostos em ruínas, manchadas de musgo, marcadas por rachaduras.
Havia alguns turistas na praça, tirando fotografias. Uma dupla de japoneses se aproximou do tuk-tuk, obviamente querendo ocupar o veículo assim que Lisa e Susan desembarcassem. Um dos homens fez uma reverência com a cabeça na direção de Lisa. Ele apontou um dos braços para o templo, e falou em japonês.
Lisa sacudiu a cabeça, sem entender.
Ele sorriu timidamente, curvou a cabeça outra vez e conseguiu dizer uma palavra:
— Fechado.
Fechado?
Lisa ajudou Susan a descer do tuk-tuk, ainda embrulhada dos pés à cabeça no cobertor. Só apareciam os óculos escuros. Lisa sentiu o tremor através do cobertor enquanto sustentava Susan pelo cotovelo.
O turista apontou para o tuk-tuk, silenciosamente perguntando se poderia pegá-lo. Lisa anuiu, e saiu mancando com Susan pela praça de blocos de pedra irregulares. À frente, Lisa percebeu homens dentro do templo: apoiados em torres, de pé acima de passagens, patrulhando o alto dos muros. Todos vestiam caqui e usavam boinas negras.
Seria aquele o exército cambojano?
Susan a arrastou para a frente, dirigindo-se intencionalmente para o portão leste. Dois homens de boina montavam guarda. Levavam fuzis nos ombros. Lisa não viu insígnias. O homem da esquerda, claramente cambojano, tinha um conjunto de cicatrizes paralelas em um dos lados do rosto. O outro, vestido da mesma forma, era caucasiano, bronzeado, com uma barba deselegante. Os olhos de ambos eram frios como diamante.
Eles não faziam parte do exército cambojano.
Mercenários.
— A Guilda — sussurrou Lisa, lembrando-se das informações que Painter lhe dera sobre a captura de Gray. Eles já estão aqui.
Lisa fez Susan parar, mas a mulher lutou para continuar, seguir em frente.
— Susan, não podemos devolver você à Guilda — disse Lisa. Principalmente depois de Monk ter dado a vida para libertá-la. A voz de Susan estava abafada pelo cobertor, mas soava firme.
— Não há escolha... Eu preciso... Sem a cura, todos estaremos perdidos... — disse Susan, sacudindo a cabeça. — Uma chance... A cura precisa ser encontrada.
Lisa compreendeu. Ela lembrava-se do aviso de Devesh e da confirmação de Painter. A pandemia já estava se espalhando. O mundo precisava da cura antes que fosse tarde demais. Mesmo que ela caísse nas mãos da Guilda, era preciso ser desenvolvida. Eles lidariam com as conseqüências depois.
Ainda assim...
— Tem certeza de que não há outro modo? — perguntou Lisa. As palavras de Susan vacilavam de medo e dor.
— Por Deus, gostaria que sim. Já pode ser tarde demais.
Ela gentilmente tirou a mão de Lisa de sua manga e avançou vacilante, claramente pretendendo ir sozinha.
Lisa seguiu-a. Ela também não tinha opção.
Elas se aproximaram da passagem com guardas. Lisa não sabia como conseguiriam atravessar o bloqueio.
Mas aparentemente Susan tinha um plano.
Ela tirou o cobertor, deixando-o cair a seus pés. À luz do sol, ela não parecia diferente de ninguém, talvez apenas um pouco mais pálida, a pele fina e sem brilho. Ela arrancou os óculos escuros e se virou para olhar diretamente para o sol.
Lisa viu o corpo de Susan tremer, e imaginou o golpe ofuscante atravessando as pupilas da mulher, chegando ao nervo óptico, ao cérebro.
Mas, aparentemente, ainda não era suficiente.
Susan tirou a blusa, expondo mais pele à luz do sol. Ela desabotoou as calças e, magra depois das semanas de catatonia, elas caíram. Vestindo apenas calcinha e sutiã, Susan aproximou-se do portão.
Os guardas não sabiam o que fazer com a mulher seminua. Mas deram um passo à frente para bloquear-lhe a passagem. O soldado cambojano as mandou embora com palavras agudas e penetrantes.
— D'tay! Bpel kraowee!
Susan o ignorou e seguiu em frente, pretendendo passar entre eles.
O outro guarda agarrou o ombro da mulher, virando-a um pouco. Sua expressão dura desapareceu. Ele recolheu a mão. Sua palma tinha uma queimadura vermelha; as pontas dos dedos vertiam sangue enquanto ele caía e desmaiava contra a parede.
O cambojano levantou o fuzil, apontando para a parte de trás da cabeça de Susan enquanto ela passava.
— Não! — gritou Lisa.
O homem virou-se para ela.
— Leve-nos! — disse ela, esforçando-se para lembrar-se do nome que Painter usara ao contar a história de Gray. Então lembrou. — Leve-nos a Amen Nasser!
10:48h
— Venham ver isso! — chamou Vigor, incapaz de disfarçar o espanto na voz. Ele olhou para trás, à procura dos outros.
Gray estava a alguns metros, estudando um dos pilares das fundações. As colunas eram pilhas de discos de arenito sem argamassa, com 30 centímetros de espessura e quase 1 metro de diâmetro. Gray passou um dos dedos em várias rachaduras profundas, fraturas de estresse em uma coluna vertebral envelhecida.
No centro do aposento, Seichan e Kowalski estavam de pé junto ao rosto de pedra, observando a equipe de demolição de Nasser preparar o bloco esculpido.
Mais uma vez ouviu-se o zumbido agudo de uma broca com ponta de diamante, ecoando alto no vão em forma de barril. Mais um furo com 2,5 centímetros de diâmetro foi aberto no rosto, com profundidade de trinta centímetros. Cargas já estavam sendo colocadas nos outros furos e ligadas, o dobro do que fora utilizado para o altar. Havia cordas penduradas para transportar equipamentos e explosivos para cima e para baixo do poço.
Um feixe de luz do sol iluminava o trabalho.
Ao contrário de Seichan e Kowalski, Vigor não conseguia assistir àquela mutilação. Mesmo agora ele se afastava, e voltou sua atenção para a parede que estava estudando. Distante do canal central, o vão ali estava nas sombras. Vigor recebera uma lanterna para que pudesse procurar outra entrada para a caverna subterrânea. E, embora detestasse ajudar Nasser, se conseguisse descobrir outra forma de descer, talvez pudesse reduzir o grau de dano àquelas ruínas antigas.
Mas Vigor não tinha muito tempo.
Dez minutos.
Com os preparativos em curso, Nasser tinha saído do vão. Vigor percebera que ele estava verificando seu celular, buscando sinal. Aparentemente sem ter conseguido, ele subira, ordenando que estivessem prontos quando voltasse.
Gray juntou-se a Vigor.
— O que é isso? Você encontrou a passagem que estava procurando?
— Não — admitiu Vigor. Ele percorrera toda a circunferência do vão. Não havia outra porta. Aparentemente, o único caminho para baixo era através do rosto de pedra do bodhisattva Lokesvara. — Mas encontrei isto.
Vigor esperou que um dos guardas que patrulhavam passasse, então virou a lanterna diretamente para a parede, lançando o facho sobre a superfície. Com luz e sombra, surgiu um trecho de gravações na parede, lembrando os baixos-relevos acima. Mas eles não mostravam figuras, apenas uma trama em cascata.
— O que é isto? — perguntou Gray, esticando os dedos para examinar aquilo que a luz tinha revelado.
Naquele momento, Seichan e Kowalski já se haviam juntado a eles.
Vigor mudou a luz de posição, ampliando o facho para mostrar.
— Inicialmente pensei que era apenas uma trama decorativa. Ela cobre todas as paredes — disse ele, apontando com o braço para abranger todo o vão. — A superfície inteira.
— Então, que diabo é isso? — resmungou Kowalski.
— Não diabo, sr. Kowalski — disse Vigor. — Isto é angelical.
Vigor pegou a lanterna e lançou a luz sobre um pequeno trecho da tapeçaria gravada.
— Olhe mais de perto.
Gray se curvou para a parede, acompanhando com os dedos. A compreensão iluminou o rosto do comandante.
— São símbolos angélicos, todos agrupados.
Seichan se juntou a Gray, seguindo seus dedos, nariz com nariz.
— Isso é impossível. Você não disse que a escrita angélica foi concebida por alguém no século XVI?
Vigor anuiu.
— Johannes Trithemius.
— Como ela pode estar aqui? — perguntou Gray.
— Não sei — disse Vigor. — Talvez em algum momento o Vaticano tenha enviado alguém ao Camboja para seguir a trilha de Marco, como fizemos. Talvez eles tenham retornado com esboços dessa escrita, e Trithemius de algum modo teve acesso a ela. Concebeu sua escrita a partir dela. E, se ele conhecia a história de Marco sobre seres angelicais brilhantes, talvez por isso tenha dito que a escrita era angélica.
Gray se voltou para Vigor.
— Mas você não acredita nisso, não é?
Vigor viu Gray recuar, afastar-se mais alguns passos, os olhos fixos na parede. Ele também está vendo.
Vigor respirou fundo, tentando esconder aquilo de que suspeitava.
— Trithemius disse ter tido conhecimento da escrita após semanas de jejum e profunda meditação. Acho que foi exatamente o que aconteceu.
Seichan debochou.
— Ele simplesmente sonhou tudo isso, algo que se ajusta a esta escrita antiga.
Vigor concordou com a cabeça.
— É exatamente o que estou dizendo. Lembrem-se do que disse antes a vocês, que a escrita angélica tem uma grande semelhança com o hebraico. Trithemius chegou mesmo a alegar que sua escrita era a mais pura destilação do alfabeto hebraico.
Seichan deu de ombros.
— O que você sabe sobre a cabala judaica? — perguntou Vigor.
— Apenas que é uma espécie de estudo místico judaico.
— Exatamente. Os praticantes da cabala buscam a descoberta mística na natureza divina do universo estudando a Bíblia hebraica. Eles acreditam que a sabedoria divina está enterrada nas próprias formas e curvas do alfabeto hebraico. E que, meditando sobre isso, é possível ter uma grande revelação do universo, daquilo que somos no nível mais básico.
Seichan sacudiu a cabeça.
— Você está dizendo que esse Trithemius meditou e chegou a essa forma mais pura de hebraico? Tropeçou em uma língua, esta língua — disse, batendo na parede. — Uma língua que se liga a uma maior sabedoria interior?
Gray pigarreou.
— Acho que interior é a palavra-chave aqui — disse ele, fazendo sinal para que Seiehan recuasse e se juntasse a ele. — O que você vê? Veja o padrão como um todo. Ele parece familiar?
Seichan olhou brevemente, então disse:
— Não sei. O que eu estou procurando?
Gray suspirou e se aproximou da parede. Ele passou um dedo por uma das cascatas.
— Veja como ela se torce para baixo em espirais de hélices partidas. Veja esta seção isoladamente.
Seichan apertou os olhos. — Parece quase biológico.
Gray concordou com a cabeça.
— Siga a trama. Ela não parece a dupla hélice do DNA? Um mapa genético?
Seichan continuou cética.
— Em escrita angélica?
Gray se afastou, os olhos ainda na parede.
— Talvez. Na verdade, havia um estudo científico comparando padrões de DNA com padrões encontrados nas línguas humanas. Segundo a lei de Zipf, uma ferramenta matemática, todas as línguas humanas apresentam um padrão específico de uso repetitivo de palavras. Todas têm palavras freqüentes e palavras de uso raro. Quando você produz um gráfico comparando a popularidade de palavras com a freqüência de uso, obtém uma linha reta. O mesmo acontece seja no inglês, no russo ou no chinês. Todas as línguas humanas produzem o mesmo padrão linear.
— E o código do DNA? — perguntou Vigor, intrigado.
— Ele produz exatamente o mesmo padrão. Mesmo nosso DNA-lixo, que a maioria dos cientistas considera inutilidade genética. O estudo foi reproduzido e verificado. Por alguma razão, há uma língua enterrada em nosso código genético. Não sabemos o que ela diz. Mas — disse Gray apontando para a parede — esta pode ser a forma escrita dessa língua.
Vigor passou a mão pelas gravações, impressionado e sem fôlego.
— Isso nos leva a pensar. Poderia Trithemius ter descoberto essa língua enquanto meditava? — indagou, empertigando-a a uma nova idéia. — E pensem no hebraico antigo, em como os caracteres são semelhantes à escrita angelical. Será que as primeiras línguas escritas de algum modo derivaram desta aqui, surgindo de alguma maneira de uma memória genética inerente? De fato, isso faz pensar se essa língua não é a Palavra de Deus, apresentando algo maior em todos nós.
Vigor mudou a luz de posição, girando-a para iluminar toda a extensão da ampla câmara.
— Mas, seja como for, tudo isto. Toda esta escrita angelical. O que ela está nos dizendo?
— Acho que é um código genético — respondeu Gray.
— Mas um código para o quê? — perguntou Seichan.
— Provavelmente uma tartaruga — resmungou Kowalski.
Vigor bufou com a piada do homem, mas Seichan e Gray reagiram com surpresa, olhando para ele com igual expressão de incredulidade.
— O quê? — perguntou Vigor, sentindo algo importante ali. Gray se aproximou, baixando a voz:
— Acho que ele pode estar certo.
— Estou? — perguntou Kowalski.
Gray desenvolveu sua teoria sobre a caverna abaixo.
— O casco da tartaruga representa a caverna. Mas e quanto à tartaruga propriamente dita? Segundo a história, ela representa a encarnação de Vishnu, um ser angelical — disse Gray, apontando para a parede. — E aqui há evidências de um estranho processo biológico, algum conhecimento secreto. Mais que uma mera doença viral. Acho que o código nas paredes é uma espécie de diário desse processo. Possivelmente ainda incompleto.
Vigor estudou a parede, o código.
Antes que eles pudessem analisar mais profundamente, ouviu-se um tumulto acima.
Eles voltaram todos para o centro. Parecia que a equipe de demolição estava prestes a terminar. O líder tinha recolhido todos os cabos de detonação e os ligara a um detonador eletrônico, para que pudessem fazer a explosão de cima.
No alto, Vigor viu uma mulher descendo a escada. Era difícil identificar seus traços através dos raios de sol.
Ainda assim, Gray a reconheceu, e deu um passo à frente.
— Lisa...?
Mais acima, junto à borda do dueto, surgiu Nasser, acompanhado de uma mulher agitada e seminua. Ela lutou para ir à frente, como se quisesse se jogar no poço, mas foi contida pelos canos de quatro fuzis, apontados para ela.
Vigor engasgou ao vê-la.
Deus do céu...
Ela brilhava.
Sua pele brilhava nas sombras.
Impossível.
— Cubram os olhos! — gritou ela do alto, o braço apontando para dentro do poço. — Cubram os olhos!
Vigor não conseguiu entender do que ela estava falando.
Mas Gray entendeu. O comandante saiu do lado de Vigor, arrastou um impermeável usado pela equipe de demolição e jogou-o sobre os olhos da escultura, como uma máscara, bloqueando a entrada da luz do sol na caverna abaixo.
Em cima, a mulher desmaiou, como se as cordas que a mantinham suspensa tivessem sido cortadas. Ela despencou em uma das placas do altar quebrado.
Nasser fechou a cara para ela.
Lisa desceu da escada e se juntou a eles. Ela continuava a olhar para cima, mas suas palavras eram dirigidas a todos.
— Lamento.
11:05h
Dez minutos depois, Gray viu o último dos homens de Nasser subir a escada. Acima, um círculo de fuzis estava apontado para o grupo embaixo. A última sacola de equipamento de demolição desapareceu na borda, erguida em uma das duas cordas. A outra corda continuava a balançar, provocadora.
— Por que eles estão nos deixando aqui? — perguntou Lisa. Gray olhou para o rosto de calcário coberto.
— Acho que nos tornamos dispensáveis — resmungou ele.
Lisa permaneceu em silêncio, depois murmurou um pedido de desculpas.
— Eu não tive escolha.
Ela já havia explicado sua aparição súbita e inesperada. Um gesto desesperado, fruto da necessidade de uma cura. A tentativa tinha de ser feita... Mesmo que isso significasse colocar a cura nas mãos da Guilda.
— E Monk — disse Lisa com um soluço. — Ele deu sua vida... por isso.
— Não — disse Gray, passando um braço pelos ombros de Lisa. Ele não podia sequer reconhecer aquela realidade. Não ainda. — Não, Monk trouxe todos vocês aqui. E, enquanto estivermos vivos, haverá esperança.
Nasser retornou à borda do poço.
— Estamos quase terminando aqui — anunciou ele, nem tanto com satisfação, mas simplesmente dando uma informação. Com todas as cartas nas mãos, ele mantinha um tom frio e civilizado. — Monsenhor, o senhor mencionou antes como a trilha científica e a trilha histórica se fundiam nestas ruínas. Aparentemente vocês foram mais espertos. Temos aqui as duas metades da Sigma unidas — disse ele, apontando para baixo; depois, voltou-se para Susan, que continuava sentada em estado catatônico, a cabeça pendendo sobre o peito. — E parece que os esforços da Guilda também se uniram. A sobrevivente da trilha científica aqui... E a fonte da Estirpe de Judas embaixo.
Gray deslizou o braço dos ombros de Lisa e se adiantou.
— Você ainda pode precisar de nossa ajuda! — gritou ele, sabendo que era perda de tempo.
— Tenho certeza de que vamos conseguir. A Guilda tem recursos abundantes para juntar as últimas peças. Conseguimos chegar a este ponto, tendo começado apenas com algumas poucas palavras em um texto antigo. Um texto que, pelo que entendo, chegou às nossas mãos em função de seus atos, comandante.
O punho de Gray se fechou. Ele deveria ter queimado a biblioteca da Corte do Dragão quando teve a oportunidade.
— Claro que foram os esforços posteriores da Guilda, por intermédio de arqueólogos marinhos e imagens de satélite, que revelaram um dos navios afundados de Marco na costa de Sumatra.
Gray demorou um instante até se dar conta do que Nasser dizia.
— Vocês descobriram um dos navios de Marco?
— E tivemos sorte. Uma das vigas de quilha, preservada em uma argila isolante, ainda tinha atividade biológica. Mas não conseguiríamos perceber toda a sua capacidade sem uma experiência in vitro, um cenário real.
Gray sentiu o sangue gelar. Se Nasser estava dizendo a verdade, o surto na ilha Christmas não fora uma exposição fortuita.
— Vocês... Vocês contaminaram a ilha Christmas intencionalmente.
Ele olhou para Seichan em busca de confirmação.
Ela evitou seus olhos.
Nasser continuou.
— Com o estudo das correntes marinhas e dos padrões das marés, só foi necessário plantar a viga junto à costa e ver o que acontecia. De fato, estávamos monitorando e coletando amostras quando nossa paciente aqui entrou em cena. Ela e seu grupo. Os primeiros espécimes humanos. Claro que as correntes acabaram levando a maré para a ilha. Como planejado. Um cenário perfeitamente localizado e limitado.
Lisa resmungou.
— Então, com o navio de cruzeiro, a Guilda viu a oportunidade de colher o que tinha plantado.
Gray sentiu-se esmorecer.
Seichan murmurou atrás dele.
— Agora você sabe por que eu tinha de detê-los.
Gray olhou para ela.
Mas ela havia fracassado... todos eles tinham fracassado.
11:11h
Susan estava em meio a uma névoa, como em um sonho acordado.
Fogo queimava seu cérebro.
Quando se desnudara à luz do sol, ela transpusera um limite. Ela sentia isso dentro do crânio. Já não era inteiramente ela mesma — ou talvez mais ela mesma do que nunca.
Ficara à deriva enquanto memórias de toda uma vida eram revividas dentro dela. Seu passado brotou dos recessos havia muito considerados perdidos ou inacessíveis. Eles se trançaram, um dia após o outro, uma hora após a outra, fundindo-se em um todo inconsútil. Seu passado se tornou vivo novamente, não apenas fragmentos e pedaços, mas a amplitude e o conjunto de seu todo.
E ela podia se lembrar dele como um único momento: do rompimento de seu crânio quando ela foi expulsa do ventre de sua mãe... até a batida do seu coração agora. Ela sentia o ar passar sobre sua pele nua, cada corrente, gravada na memória, indelével, acrescentando-se ao todo.
Tudo estava contido em uma bolha tremeluzente, suspensa.
E além daquela superfície fina... Mais.
Mas ela não estava pronta para se aventurar ali.
Ela sabia que ainda havia uma seqüência a empreender.
Abaixo.
Com os olhos flamejantes fechados, o pânico dentro dela se transformou em um brilho amortecido.
Flutuando entre o passado e o presente, acrescentando momentos a cada inspiração, novas palavras lentamente mergulharam no lago que era sua vida, entreouvidas a um passo de distância.
(...) só foi necessário plantar a viga junto à costa e ver o que acontecia. (...) quando nossa paciente aqui entrou em cena. Ela e seu grupo. Os primeiros espécimes humanos (...)
NÃO.
A única nota ressoou dentro dela.
Com sua vida suspensa naquele momento interminável entre uma respiração e a outra, ela novamente estava debaixo d'água, sem peso. Viu a ponta de madeira enegrecida pelo tempo se projetando da areia. Seus pensamentos daquele momento retornaram, como se ela ainda estivesse naquelas águas. Na época, ela imaginara que tremores de terra tinham libertado a viga de quilha, ou talvez o tsunami recente tivesse arrastado areia, expondo-a.
Agora sabia a verdade.
A viga fora colocada ali.
De propósito.
Para matar.
Ela recordou-se de como ficara animada para contar ao marido, que adorava mergulhar em naufrágios. Apenas a lembrança dele tomou conta de seus sentidos.
Gregg.
Agora ela sabia a verdade.
Por que ele tinha morrido.
E a verdade era fogo.
11:12h
Lisa se apoiou em Gray, o braço dele em seus ombros. Ela levantou os olhos para os fuzis. Nasser estava dizendo algo, mas ela não ouvia, mergulhada em sua própria culpa.
Gray de repente se retesou.
Embora não tivesse se movido, ela retornou ao presente.
A cabeça de Susan se ergueu lentamente na borda do poço, seu cabelo louro saindo de um rosto tomado de fúria. As atenções dos guardas continuavam voltadas para Nasser. Atrás do ombro dele, Lisa viu o brilho suave da pele de Susan se tornar mais intenso.
Seus olhos queimavam com um fogo interior.
Nasser deve ter sentido algo, e começou a se virar.
Lisa não viu Susan se mover.
Em um momento a mulher estava sentada no pedaço destruído do altar e no seguinte estava agarrada a Nasser, firmemente abraçada a ele, rosto colado, em um abraço íntimo.
Ele gritou — um uivo arrancado da garganta.
Fumaça começou a subir entre ambos.
Um dos guardas reagiu, dando uma coronhada em Susan por trás.
Ela desabou, a cabeça balançando.
Ainda gritando, Nasser a empurrou.
Por cima da borda do poço.
— Susan! — gritou Lisa.
Ela despencou enrolada em uma das cordas de carga usadas pela equipe de demolição. Uma das mãos se esticou; ela se agarrava instintivamente. Mas já não tinha forças. Ela deslizou pela corda, rápido demais. O ácido cáustico de sua pele exposta à luz direta do sol que entrava pela abertura provocou alguma reação química na corda de material sintético. A corda soltou fumaça e derreteu à medida que deslizava por ela. Susan girou enquanto despencava, quase em queda livre.
Ninguém ousava pegá-la.
Gray virou-se de lado e arrancou a lona que cobria o rosto de pedra. Ele estendeu uma das pontas para Kowalski. Seu companheiro entendeu.
Acima, a corda arrebentou, queimada no ponto onde Susan a agarrara.
Ela caiu, frouxa.
Inconsciente.
Gray e o companheiro a apararam, mas o peso dela arrancou a lona de suas mãos, e ela bateu no piso com força. Usando a lona, Gray tirou-a do ângulo de visão, e apenas suas pernas podiam ser vistas do alto. Ele se jogou ao lado dela.
Nasser gritou para eles. Caído de quatro. A bochecha ainda soltava fumaça, a carne enegrecida. Os braços nus pareciam bifes grelhados, inchados e sangrando.
— Eu quero essa vagabunda!
Gray voltou para onde podia ser visto.
— Pescoço quebrado! Está morta!
Uma onda de emoções varreu o rosto de Nasser. Ele assumiu uma fúria quase insana.
— Então todos vocês vão queimar! — Ele rolou para trás. — Explodam tudo!
Gray fez sinal para todos.
— Para trás... Saiam de vista.
Lisa obedeceu, tropeçando da luz para as sombras.
Algumas balas ricochetearam, buscando-os.
Lisa olhou para os explosivos instalados. O detonador eletrônico estava fora do seu alcance, fora dali. Eles seriam fuzilados se ousassem se aproximar.
Gray arrastou a lona, puxando o corpo inerte de Susan.
— Atrás das colunas de sustentação! Elas podem oferecer alguma proteção. Rastejem e achem algo com o que cobrir a cabeça e o rosto!
Eles se espalharam.
Quatro pilares, seis deles.
Gray levou Susan consigo.
Lisa se viu espremida com o monsenhor atrás de um dos pilares de calcário. Ele fez com que ela se abaixasse, protegendo-a com seu corpo.
Lisa colocou a mão no pilar. Ele tinha 1 metro de diâmetro. Ela não tinha idéia da força da explosão que viria. Ela se virou para Vigor.
— Padre, isso irá nos proteger?
Vigor baixou os olhos para o seu rosto e não respondeu.
Pela primeira vez Lisa quis que um padre mentisse para ela.
CAPÍTULO 18
O portal para o inferno
7 de julho, 11:17h
Angkor Thom, Camboja
Gray colocou Susan no colo, ainda mantendo-a embrulhada na lona.
Ela gemeu e se mexeu. Recebera um grande golpe na cabeça ao bater no chão, mas Gray mentira a Nasser sobre o pescoço quebrado. O desgraçado, em sua agonia, não duvidara, talvez até esperasse por isso.
Gray planejara usar o corpo da mulher como instrumento de barganha.
Mas não estava funcionando.
No alto, Nasser gritava, enlouquecido de dor. Pelo aspecto de sua pele enegrecida, ele tivera queimaduras de terceiro grau em grandes áreas do corpo. E queria que eles sofressem do mesmo jeito. Olho por olho. Mas aparentemente a equipe de demolição não estava preparada para uma ordem tão repentina. Eles estavam se apressando, dando ao grupo de Gray um minuto ou mais de trégua.
Tirando vantagem disso, Gray mudou Susan de posição, buscando protegê-la melhor atrás da coluna. Se ela era a cura potencial, tinha de ser preservada. Cobriu sua cabeça melhor com a lona. Ela se abriu brevemente, revelando, abaixo, o brilho suave de sua pele nua. Fora da luz direta do sol, o brilho de sua pele começara a diminuir. Ele parou um instante, impressionado com aquele fenômeno estranho. Ao fechar novamente a lona, percebeu a parede à sua frente.
O pergaminho de escrita angelical reluzia com um brilho excepcional, fluorescendo sob o cintilar fraco. A luz que emanava das cianobactérias em sua pele devia ter emitido ondas ultravioleta, inflamando um composto fluorescente entranhado nas gravações.
Isso fez Gray lembrar-se do obelisco egípcio, cintilando com a escrita angelical, uma versão rudimentar e em miniatura daquele espetáculo. Teria Johannes Ttithemius tido revelações mais profundas durante suas meditações? Uma visão de tudo aquilo?
Gray abriu mais a lona, deixando sair um facho maior de brilho. Outras inscrições se inflamaram, projetando-se pela escuridão em todas as direções, como se ele tivesse colocado fogo em óleo.
Gray se sentou mais empertigado. Ele percebeu um ponto escuro na extremidade esquerda, que mal podia ser visto, no limite do alcance do brilho, uma rocha escura no fluxo brilhante de escrita cintilante. Os ângulos chamaram sua atenção.
Seria possível...
Ele virou Susan em seus braços, deixando que a lona se abrisse mais, mantendo o suficiente entre a pele da mulher e a sua. O brilho ainda não era forte o bastante para alcançar aquele ponto. Tinha de levar Susan para mais perto. Ele se esforçou com o peso dela, agarrando a lona, sentindo a passagem dos segundos.
Ele precisava de ajuda.
— Kowalski, onde você está?
Uma voz respondeu de trás do pilar à sua direita.
— Estou me escondendo! Como você disse!
Gray se ergueu.
— Preciso de você aqui!
— E a bomba?
— Esqueça a bomba. Venha logo para cá!
Kowalski praguejou e depois seguiu, resmungando.
— Por que é sempre uma maldita bomba...
O homem grandalhão correu até ele, praticamente deslizando atrás do pilar, como se estivesse em um jogo de beisebol.
Gray apontou com o queixo para a esquerda.
— Me ajude a levar Susan naquela direção.
Kowalski suspirou fundo. Usando a lona como maca, seguraram-na entre eles e correram junto à parede. Enquanto corriam, a curva de escrita se inflamava junto com eles, tornando-se mais brilhante quando se aproximavam, desaparecendo novamente depois que passavam.
Seichan estava escondida atrás do pilar seguinte. Ela correu na direção deles, atraída pelo brilho e pela agitação.
— O que vocês estão... meu Deus!
Gray pousou Susan no chão, mantendo-a descoberta, lançando seu brilho contra a parede, incendiando a escrita. Tudo a não ser um óbvio pedaço escuro.
— Vigor! — chamou Gray.
— Estou indo! — respondeu ele. O monsenhor obviamente vira tudo do outro lado da câmara. Gray ouviu os passos de duas pessoas; Lisa seguia Vigor.
Todos ficaram de pé em frente à parede, boquiabertos ante a visão. Não pelo que estava brilhando, mas pelo que não estava.
— Frei Agreer — disse Vigor. — Ele deve ter deixado esta marca lavando a parede. Limpou esse pedaço como um sinal.
— Sinal de quê? — perguntou Seichan.
— Uma pista para uma passagem oculta — respondeu Gray. — Deve haver outro caminho para a caverna.
— Mas o que significa a pista? — perguntou Vigor.
Gray sacudiu a cabeça, sabendo que eles estavam ficando sem tempo. Se não achassem a porta e levassem Susan para um lugar seguro e longe da Guilda, não seriam apenas suas vidas que estariam em jogo. Segundo Lisa, uma pandemia já estava se espalhando.
Nasser gritou para eles:
— Façam suas últimas orações!
- Jesus Cristo! — gritou Kowalski, embora não fosse propriamente uma oração. Ele afastou Gray e Vigor de lado, correu para a parede e se lançou com força no centro da cruz.
A porta de pedra girou sobre um eixo central, revelando uma passagem.
Kowalski se virou.
— Nem sempre é alta ciência, caras. Às vezes uma porta é apenas uma porta.
Eles cruzaram rapidamente a passagem. Gray e Kowalski mais uma vez carregavam Susan entre eles. Depois de terem passado, Seichan e Lisa empurraram a porta de volta ao seu lugar com os ombros.
À frente, uma escadaria levava para baixo, recortada no leito de calcário.
Ninguém tinha dúvidas de para onde levava.
Quando começaram a descer, o barulho abafado de uma explosão chegou até eles, um único ribombar de trovão. Gray fez uma silenciosa prece de agradecimento ao frei Agreer.
Ele salvara Marco no passado.
E agora salvara a vida de todos eles.
Embora aliviado, Gray ainda não conseguia evitar um medo terrível. Embora ele pudesse estar livre, seus pais não estavam. Quando Nasser descobrisse que seus prisioneiros tinham fugido, Gray sabia quem ele faria sofrer por isso.
12:18h
Sentada no teto do armazém, Harriet adormeceu nos braços do marido. Era uma noite quente. Acima deles, a lua se movia imperceptivelmente através do céu noturno. Apesar do terror, a exaustão estava cobrando seu preço. Durante a primeira hora ela prestara atenção aos gritos e latidos. Depois parou de se importar. O tempo passou, o suficiente para que Harriet ficasse chocada de se ver dormindo quando o primeiro grito surgiu do outro lado do teto.
— Eles estão aqui — disse Jack, em um tom quase aliviado.
Ele se moveu para que Harriet pudesse entrar no espaço na unidade de ventilação atrás deles. Mal havia espaço para dois. Assim que Harriet entrou, estendeu a mão para o marido.
Em vez disso, ele pegou do chão a grade da porta.
— Jack? — sussurrou ela para ele.
Ele ergueu a grade entre ambos, colocando-a no lugar.
— Não... — gemeu ela.
Seus lábios estavam junto às barras da grade enquanto ele a fechava sobre ela.
— Por favor, Harriet, deixe-me fazer isso. Eu posso afastá-los. Ganhar mais tempo para você. Me dê pelo menos isso.
Seus olhos se encontraram através da grade.
Ela compreendeu. Durante tempo demais Jack se vira apenas como meio homem. Ele não queria morrer daquela forma. Mas, para Harriet, Jack nunca fora meio homem.
Ainda assim, ela não podia tirar isso dele.
Era seu último presente para ele.
Eles tocaram os dedos através das grades, as lágrimas correndo. Os dedos dele tocaram os dela, agradecendo, amando-a.
Os gritos se aproximaram.
Eles não tinham mais tempo.
Jack virou-se e engatinhou para a parede elevada do teto, a pistola apertada no punho. Ao chegar à parede, usou o apoio para mancar para a esquerda.
Harriet tentou ver para onde ele ia, mas ele logo saiu de vista. Ela cobriu o rosto.
Um grito agudo de descoberta veio daquela direção. Ela ouviu o eco de um disparo de pistola vindo da esquerda.
Jack.
Harriet contou os disparos, sabendo que ele só tinha mais três balas na arma. Os disparos de volta atingiram a posição de seu marido, arrancando metal. Jack devia ter encontrado alguma proteção. Outro tiro foi disparado do seu ponto.
Só mais uma bala.
Na confusão do breve tiroteio, Jack gritou:
— Vocês nunca encontrarão minha mulher. Eu a escondi fora do seu maldito alcance.
Uma voz gritou de volta, poucos passos atrás do esconderijo de Harriet, assustando-a.
Annishen.
— Se os cães não a encontrarem — respondeu a mulher —, eu farei com que seus gritos a obriguem a sair!
As pernas de Annishen surgiram atrás da grade. A mulher sussurrou em um rádio, ordenando que seus homens se espalhassem e pegassem Jack.
Então a mulher ficou rígida, virando-se ligeiramente.
Surgiu um outro barulho.
Parecia o som de uma ventania.
Do outro lado do telhado, surgiu um helicóptero preto vindo de baixo, em ângulo, com a forma de uma vespa. Obviamente militar. O matraquear de uma arma automática varreu o telhado. Homens gritaram. Pés correram. Um homem passou e teve as pernas cortadas, caindo de rosto no chão.
Surgiram sirenes nas ruas escuras que levavam ao armazém.
O som alto de um megafone no helicóptero ordenou que as armas fossem jogadas no chão.
Annishen se agachou ao lado da grade da casa de ventilação, preparando-se para a pequena corrida até a próxima saída do telhado. Harriet instintivamente se afastou dela; seu ombro se chocou contra a lateral da unidade com um baque surdo.
Annishen se encolheu, e depois abaixou a cabeça, olhando para dentro.
— Ah, sra. Pierce — disse ela, mudando de posição, enfiando a pistola através das grades e apontando para ela. — Hora de dizer a...
O barulho do tiro sacudiu Harriet.
O corpo de Annishen se chocou contra a grade, depois caiu no alcatroado.
Harriet percebeu uma órbita explodida.
Quando a mulher caiu, Jack apareceu. Ele jogou de lado a pistola fumegante.
Seu último tiro.
Harriet abriu a grade. Ela passou por cima das pernas de Annishen, através do telhado, para os braços de Jack, soluçando. Os dois desabaram juntos no chão, gratos.
— Nunca mais me abandone, Jack.
Ele a abraçou com força.
— Nunca — prometeu.
Homens com uniformes militares pularam do helicóptero para o telhado em fila, rastejando como cobras. Harriet e Jack foram protegidos até que todo o telhado tivesse sido inspecionado. Sirenes soaram abaixo. Mais tiros e gritos subiram do armazém.
Uma figura apareceu na frente deles, usando equipamento de rapel. Ele se ajoelhou.
Harriet olhou para cima, surpresa de ver um rosto conhecido.
— Diretor Crowe?
— Quando a senhora começará a me chamar de Painter, sra. Pierce?
— Como você nos...?
— Aparentemente alguém fez um enorme escândalo do lado de fora do açougue — explicou ele com um sorriso cansado. — Grande o bastante para ser lembrado.
Harriet apertou a mão do marido, agradecendo-lhe pelo que fizera antes.
Painter continuou.
— Estamos vigiando a rua desde hoje de manhã, até que há 45 minutos um dos oficiais de patrulha descobriu um cavalheiro com um carrinho de compras. Ele reconheceu sua foto e foi desconfiado o bastante — ou talvez paranóico o bastante — para anotar o número da placa, juntamente com marca e modelo. Não demorou muito para rastrear o GPS da van. Lamento por não termos conseguido chegar aqui antes.
Jack enxugou um dos olhos, mantendo o rosto virado para que ninguém pudesse ver suas lágrimas.
— Seu senso de oportunidade não poderia ser melhor. Devo a você uma garrafa grande daquele bom puro malte de que você gosta.
Harriet abraçou o marido. Jack podia ter dificuldade de lembrar os nomes das pessoas, mas nunca se esqueceu do que elas gostavam de beber.
Painter se levantou.
— Eu cobrarei em alguma hora, mas neste exato instante tenho de dar um telefonema importante.
Ele se virou e murmurou baixo, mas Harriet o escutou.
— Isto é, se não for tarde demais.
11:22h
Lisa tropeçou na escada escura, seguindo o monsenhor. Ela tinha de permanecer agachada, deslizando a mão pela parede úmida. O ar cheirava a palha, como folhas apodrecendo em uma floresta úmida. Não era desagradável, a não ser por uma leve ardência nas narinas.
À frente, uma luz fraca os levava à frente, vindo de baixo.
Seu objetivo.
A escada finalmente terminou, deixando-os em uma ampla caverna. Seus passos ecoavam. Acima, o domo da caverna correspondia a cinco andares, com grossas e curtas estalactites. O espaço tinha uma forma oval, com comprimento máximo de cerca de 70 metros. No ponto em que eles tinham chegado, o teto se espalhava em um arco natural formado por depósitos de calcário. Um arco correspondente podia ser identificado do outro lado da caverna.
— Realmente parece o casco de uma tartaruga — grunhiu Vigor, sua voz ecoando cavernosa. — Até o modo como ele se curva aqui e do outro lado, tal qual a frente e a parte de trás do casco de uma tartaruga.
Kowalski resmungou, levando Susan para dentro com a ajuda de Gray.
— E então? Estamos descendo pela garganta da tartaruga ou por seu traseiro? Mas, quando se empertigou, o grandalhão deu um leve assovio.
Lisa entendeu a reação dele.
A frente, o lago circular de águas negras estava imóvel como um espelho, delimitado por uma borda de pedra. Do teto acima, dois fachos diretos de luz do sol desciam e tocavam o centro da água, atravessando os olhos do ídolo de pedra acima.
Mas, no ponto em que a luz do sol tocava a água escura, uma mancha leitosa se espalhava, cintilando, como se o sol tivesse derretido e pingado de cima. O brilho leitoso tremeluzia e se movia, subindo e descendo. Parecendo vivo. O que de fato estava.
— A luz do sol está energizando as cianobactérias na água — disse Lisa.
Algumas gotas caíam dos olhos do ídolo no lago, com um chiado leve. No ponto em que caíam, o brilho leitoso escurecia.
— Ácido — disse Gray, lembrando a todos do perigo acima. — Da bomba. Está pingando pelos olhos. Não sei quanto tempo será necessário para neutralizar o vão, mas pelo menos o bloco de pedra está resistindo. Ainda assim, eles logo descerão com marretas e britadeiras para conseguir chegar aqui.
— Então, o que fazemos? — perguntou Seichan.
Kowalski debochou:
— Vamos dar o fora daqui.
Gray se voltou para Lisa.
— Você pode ir em frente, conferir o outro arco? Veja se há uma outra saída. Como Vigor disse, um casco de tartaruga tem uma abertura para a cabeça e outra para o rabo. É nossa única esperança.
Lisa reagiu.
— Gray, eu acho que deveria ficar com Susan. Meu conhecimento médico...
Um som surdo subiu da lona. Um braço se ergueu fracamente.
Lisa foi para o lado de Susan, tomando o cuidado de não encostar nela.
— Ela ainda é a única esperança de cura.
— Eu posso ir — ofereceu-se Seichan.
Lisa olhou, percebendo uma ponta de desconfiança no rosto de Gray, como se ele não confiasse na mulher. Ainda assim, ele concordou.
— Ache uma saída.
Ela partiu sem uma palavra.
O grupo seguiu ao longo da margem de pedra.
Gray estudou o espaço.
— Isto parece um velho poço natural. Como na Flórida, ou os cenotes do México. O bloco de calcário deve estar fechando a abertura natural de antes.
Lisa curvou-se perto da parede e pegou um pouco de matéria ressecada. Esfarelou-a entre os dedos.
— Fezes petrificadas de morcego — disse ela, confirmando a avaliação de Gray. — Esta caverna deve ter tido uma abertura para fora um dia.
Lisa esfregou os dedos e olhou para Susan, começando a entender o que ela já suspeitava.
Vigor mostrou o lago com o braço.
— Os antigos khmer devem ter descoberto o poço, visto como ele brilhava, imaginado que era o lar de algum deus e tentado incorporá-lo ao templo aqui.
— Mas não sabiam o que estavam fazendo — acrescentou Lisa. — Eles ultrapassaram o que não deviam. Interferiram com um ecossistema frágil e liberaram o vírus. Quando a humanidade empurra, a natureza algumas vezes empurra de volta.
Eles continuaram ao longo do lago.
À frente, uma pequena protuberância de pedra se projetava na água, mal discernível na escuridão. Apenas a maré de água leitosa revelava a pequena península.
Juntamente com algo mais.
— Isso são ossos? — perguntou Kowalski, olhando para dentro d'água enquanto caminhavam.
O grupo parou.
Lisa foi até a margem do lago. A luz suave penetrava fundo na água cristalina. O banco de pedra descia em um ângulo suave dentro da água e desaparecia em ponta 9 metros à frente.
Por toda a parte rasa do lago havia ossos acumulados em grupos e pilhas: frágeis crânios de pássaros, pequenas caixas torácicas de macacos, algo como um par de chifres recurvados e, não longe da margem, o enorme crânio de um elefante, repousando como um monolito branco no fundo, uma das presas de marfim quebradas. Mas havia mais: fêmures quebrados, tíbias mais longas, caixas torácicas maiores, e, como bolotas de carvalho espalhadas, crânio após crânio.
Todos humanos.
O lago era um enorme ossuário.
Mudos de espanto, eles seguiram em frente.
Enquanto caminhavam pela margem de pedra, o brilho no lago aumentava lentamente. A ardência nas narinas que Lisa percebera antes se tornara mais intensa. Ela lembrou-se da ilha Christmas, das piscinas de maré mortas a barlavento.
Biotoxinas.
Kowalski franziu todo o rosto.
Como sais aromáticos, aquele odor também despertou Susan. Seus olhos se abriram, cintilando no escuro, iguais ao brilho no lago. Ela continuava confusa, mas reconheceu Lisa.
Susan tentou se sentar.
Gray e Kowalski a pousaram no chão, já que também precisavam descansar, alongando os ombros e relaxando as mãos.
Lisa se abaixou ao lado de Susan, púdicamente ajeitando a lona sobre seus ombros enquanto a ajudava a se sentar.
Susan se encolheu quando Kowalski chegou perto.
— Está tudo bem. São todos amigos — tranqüilizou Lisa.
Lisa apresentou os outros para ajudar a acalmar Susan. Lentamente o olhar de pânico desapareceu. Ela pareceu se recompor... até olhar sobre os ombros de Lisa e ver o lago cintilante.
Susan deu um salto para trás, batendo com as costas na parede e se encolhendo, trêmula.
— Vocês não devem estar aqui — lamentou ela, a voz se elevando.
— Não brinca — retrucou Kowalski.
Susan o ignorou, os olhos ainda no lago. Ela baixou a voz.
— Será como a ilha Christmas. Só que cem vezes pior... Presos na caverna. E todos vocês serão expostos.
Lisa não duvidava. Sua pele já estava coçando.
— Vocês precisam ir embora. — Susan reuniu força suficiente para ficar de pé, apoiando uma das mãos na parede. — Só eu posso ficar aqui. Eu preciso estar aqui.
Lisa viu o medo brilhando em seus olhos, mas também a certeza do horror.
— Pela cura? — perguntou Lisa.
Susan concordou.
— Eu preciso ser exposta mais uma vez, por esta fonte daqui. Eu não sei dizer como sei, mas sei. — Ela colocou a palma de uma das mãos no lado da cabeça. — É... É como se eu estivesse vivendo com um pé no passado e um pé aqui. É difícil ficar aqui. Tudo está tomando conta de mim, todos os pensamentos, sensações. Eu não consigo desligar. E eu... Eu sinto que está se expandindo.
Mais uma vez, o medo brilhou em seus olhos.
A descrição de Susan fez Lisa se lembrar de autismo, uma incapacidade neurológica de desligar o fluxo de estímulos sensoriais. Mas alguns poucos pacientes autistas também eram sábios idiotas, gênios em certas áreas, com seu brilhantismo fruto de suas conexões. Lisa tentou imaginar a fisiopatologia que deveria estar ocorrendo no cérebro de Susan, mergulhado em estranhas biotoxinas, energizado pelas bactérias que produziram as toxinas. Os humanos utilizavam apenas uma pequena parcela da capacidade neural do cérebro. Lisa quase podia imaginar o eletroencefalograma do cérebro de Lisa, em fogo, energizado.
Susan cambaleou até a beira da água.
— Nós só temos esta única chance.
— Por quê? — perguntou Gray, aproximando-se dela.
— Depois que o lago atingir massa crítica e entrar em erupção com toda a sua carga tóxica, ele irá se exaurir. Serão necessários três anos para que o lago esteja pronto novamente.
— Como você sabe disso? — perguntou Gray.
Susan olhou para Lisa em busca de ajuda.
— Ela simplesmente sabe — respondeu Lisa. — Ela está de alguma maneira ligada a este lugar. Susan, era por isso que você tinha tanta urgência em chegar aqui?
Susan fez que sim com a cabeça.
— Uma vez exposto à luz do sol, o lago se prepara para explodir. Se eu perdesse...
— ...o mundo estaria indefeso por três anos. Sem cura. A pandemia se espalharia por todo o planeta — disse Lisa, imaginando o microcosmo a bordo do navio expandido para todo o mundo.
O terror foi interrompido pela volta de Seichan, que chegara até eles sem fôlego, o rosto brilhando de suor.
— Eu encontrei uma porta.
— Então vão. Agora — instou Susan.
Seichan sacudiu a cabeça.
— Não consegui abrir.
Kowalski fez mímica.
— Você não tentou dar um grande empurrão?
Seichan olhou para o alto, mas concordou com a cabeça.
— Sim, eu tentei empurrar.
Kowalski lançou as mãos para o alto, rendendo-se.
— Bem, é só o que eu tenho a oferecer.
— Mas havia uma cruz gravada acima do arco de pedra — continuou Seichan. — E uma inscrição, mas está escuro demais para ler. As palavras talvez dêem uma pista.
Gray virou-se para o monsenhor.
— Eu ainda tenho minha lanterna — disse Vigor, acrescentando: — Vou com ela.
— Rápido — apressou Gray.
O ar já estava se tornando rarefeito. O brilho no lago se espalhara, deslizando ao longo da pedra na direção da margem. Susan apontou para ele.
— Eu preciso ir para o lago.
Eles se encaminharam para a península de pedra.
Gray acompanhou Lisa.
— Você mencionou antes um ecossistema rompido. Você se importaria de me dizer o que afinal acha que está acontecendo aqui? — perguntou ele, apontando para o lago.
— Eu não sei tudo, mas tenho certeza de que sei quem são os atores principais.
Gray anuiu,estimulando-a a continuar.
Lisa apontou para o brilho.
— Tudo começou aqui, o mais antigo organismo da História. Cianobactérias. Precursoras das plantas modernas. Elas penetraram em todos os nichos ambientais: pedra, areia, água, e mesmo outros organismos. Mas isso é se antecipar na história. Vamos começar aqui.
— Esta caverna.
Ela concordou com a cabeça.
— As cianobactérias invadiram este poço, mas lembre-se de que elas precisam de luz, e a caverna é basicamente escura. O orifício de cima provavelmente era originalmente ainda menor. Para florescer aqui elas precisavam de outra fonte de energia, uma fonte de alimentos. E as cianobactérias são criativamente adaptáveis. Elas tinham uma fonte de alimentos acima, na floresta... Só precisavam de um modo de chegar a ela. E a natureza é bastante engenhosa na construção de estranhos inter-relacionamentos.
Lisa contou a história que contara ao dr. Devesh Patanjali, sobre fascíola hepática, como seu ciclo vital se valia de três hospedeiros: gado, caramujos e formigas.
— Em dado momento, a fascíola chega mesmo a se apoderar de seu hospedeiro formiga. Ela compele a formiga a escalar um talo de capim, travar a mandíbula e esperar para ser comida por uma vaca no pasto. A natureza é estranha assim. E o que aconteceu aqui não é menos estranho.
Enquanto Lisa continuava, gostou de ser capaz de falar usando suas teorias. Ela abriu um parêntese para explicar a avaliação que Henri Barnhardt fizera da Estirpe de Judas, como ele classificara o vírus como membro da família Bunyavirus. Ela lembrou-se do diagrama de Henri, descrevendo um relacionamento linear de humano para artrópode para humano.
Ser humano ? Inseto (artrópode) ? Ser humano
— Mas estávamos errados — disse Lisa. — O vírus usou uma das páginas do manual da fascíola. Há três hospedeiros em ação aqui.
— Se as cianobactérias são as primeiras hospedeiras, qual é o segundo hospedeiro nesse ciclo vital? — perguntou Gray.
Lisa olhou para a abertura bloqueada no teto e chutou um pouco de fezes secas de morcego.
— A cianobactéria precisava de um modo de fugir da prisão. E, como elas já estavam dividindo esta caverna com alguns morcegos, se valeram daquelas asas.
— Espere. Como você sabe que elas usaram morcegos?
— O Bunyavirus. Ele adora artrópodes, o que inclui insetos e crustáceos. Mas cepas de Bunyavirus também podem ser encontradas em ratos e morcegos.
— Então você acha que a Estirpe de Judas é um vírus de morcego que sofreu uma mutação?
— Sim. Uma mutação provocada pelas neurotoxinas das cianobactérias.
— Mas por quê?
— Para enlouquecer os morcegos, espalhá-los pelo mundo, carregando um vírus que invade a biosfera local por intermédio de sua bactéria. Basicamente transformando cada morcego em uma pequena bomba biológica. Deixando lixo onde quer que pouse. Se Susan estiver certa, o lago envia essas biobombas a cada três anos, permitindo que o meio ambiente se recupere nos intervalos.
— Mas como isso serve às cianobactérias se a doença mata pássaros e animais do lado de fora da caverna?
— Ah, porque ela utiliza um terceiro hospedeiro, outro cúmplice. Artrópodes. Lembre-se, os artrópodes são o hospedeiro predileto dos Bunyavirus. Insetos e crustáceos. Por acaso, eles são também os melhores carniceiros da natureza. Limpam os mortos. Que é o que o vírus os compele a fazer. Para começar, tornando-os famintos e vorazes...
As palavras de Lisa se atropelaram enquanto se lembrava do canibalismo a bordo do navio. Ela lutou para manter a postura clínica, para ser compreendida.
— Depois de estimular essa fome, garantindo uma limpeza completa, o vírus estimula o hospedeiro a retornar para cá, para esta caverna, arrastar sua presa e trazê-la ao poço, para alimentar o poço bacteriano. Ele não tem escolha. Assim como a fascíola e a formiga. Uma compulsão neurológica. Uma premência migratória.
— Como Susan — disse Gray.
Lisa sentiu-se desconfortável com a comparação. Ela imaginou o ciclo de vida que acabara de descrever. Triangular, em vez de linear: cianobactérias, morcegos e artrópodes. Todos reunidos pela Estirpe de Judas.
Artrópode (insetos) Morcego (mamíferos)
Cianobactérias
— Susan é diferente — disse Lisa. — O homem não deveria fazer parte desse ciclo vital. Mas, por sermos mamíferos como os morcegos, estamos suscetíveis às toxinas, ao vírus. Assim, quando os khmer descobriram esta caverna, nós inadvertidamente nos tornamos parte desse ciclo vital, tomando o lugar dos morcegos. Espalhando-o com nossas duas pernas no lugar de asas. Fazendo a população adoecer a cada três anos, provocando epidemias de gravidade variável.
Gray olhou para Susan.
— Mas, e quanto a ela? Por que ela sobrevive?
— Como falei, não tenho todas as respostas — disse ela recordando suas discussões anteriores sobre sobreviventes da Peste Negra, sobre código viral no DNA humano. — Nosso sistema neurológico é mil vezes mais complexo que o de qualquer morcego ou caranguejo. E, como as cianobactérias, os humanos também têm uma grande capacidade de adaptação. Lance essas toxinas em nosso sistema neurológico mais evoluído, e quem sabe que milagre pode ser produzido?
Lisa suspirou quando eles chegaram à ponta de terra.
Ao se virar, ela percebeu algo estranho no alto. Rolos de fumaça saíam das órbitas do ídolo, brilhando à luz do sol.
— O pó neutralizante — disse Gray, vendo o mesmo e apressando-as. — Nasser deve estar concluindo a descontaminação do vão superior. Não temos mais tempo.
11:39h
No alto da escada, Vigor se ajoelhou ao lado da porta de pedra baixa. Seichan segurou a lanterna atrás dele. Um arco de calcário emoldurava um bloco de arenito esculpido, em parte natural, em parte feito pelo homem.
Acima da porta, colocado no lintel de calcário em arco havia um medalhão de bronze e, impresso nele, um perfeito crucifixo. Vigor o examinara, sentindo nele a mão de frei Agreer.
E isso foi confirmado abaixo.
Vigor passou os dedos sobre a porta de pedra. O bloco sólido fora gravado com um texto. Não angélico; italiano. Era o último testamento de frei Agreer.
No ano da encarnação do Filho de Deus de 1296, eu gravei na pedra esta prece final. A maldição foi lançada sobre mim quando cheguei e me causou grande sofrimento, mas eu me ergui como Lázaro de um sono mortal. Não compreendo qual tormento me foi impingido, mas fui preservado, marcado de uma forma estranha, um febril brilho na pele. Tal alívio eu ministrei àqueles poucos que sobreviveram à grande pestilência. Mas agora uma estranha compunção se abateu sobre mim. As águas abaixo já começam a ferver com o fogo do Inferno. Sei que é para a minha morte que sou impelido. Com grande esforço eu persuadi e supervisionei a construção deste lacre. E sigo com uma só prece em meus lábios. Mais que a salvação de minha própria alma, eu rezo para que esta porta esteja para sempre lacrada com a Cruz do Senhor. Que apenas alguém com a força do espírito do Senhor ouse abri-la.
Vigor tocou a assinatura gravada no fim.
Frei Antonio Agreer.
Seichan falou atrás dele.
— Então, depois de Marco partir, eles expuseram o frade à doença, mas, em vez de morrer, ele sobreviveu, como a mulher lá embaixo.
— Talvez os outros pagãos reluzentes que ofereceram a cura ao grupo de Marco soubessem que frei Agreer iria sobreviver. Por isso o escolheram. Mas a data, 1296. Ele viveu aqui três anos. O mesmo período de tempo que Susan disse haver entre as erupções — disse Vigor, olhando para trás. — Ela estava certa.
Seichan apontou para a porta.
— Há algo mais abaixo da assinatura.
Vigor concordou com a cabeça.
— Uma citação da Bíblia, Evangelho de Mateus, capítulo 28, referente à ressurreição de Jesus de sua tumba — disse Vigor, lendo a citação em voz alta. — "E eis que houve um grande terremoto: pois o Anjo do Senhor, descendo do céu e aproximando-se, removeu a pedra e sentou-se sobre ela."
— Essa é uma grande ajuda.
Era.
Vigor olhou para o crucifixo gravado em um medalhão de bronze acima da porta. Ele fez uma prece silenciosa, e o sinal-da-cruz.
Antes que pudesse terminar, sentiu o chão tremer sob seus joelhos. Um enorme barulho de pedras soou atrás dele, como se a caverna tivesse desmoronado.
Seichan se afastou, indo para a luz para investigar.
— Fique aqui!
A escuridão caiu, causando-lhe arrepios. Embora ele já não pudesse ler as palavras, elas permaneciam em sua mente. E eis que houve um grande terremoto...
11:52h
Gray ajoelhou-se sobre Lisa enquanto a onda de choque ressoava pela caverna. Kowalski protegeu-o do outro lado. Uma das estalactites despencou do teto e afundou nas profundezas do lago. Do ponto onde ela se rompeu, uma rede de rachaduras profundas se espalhou pelo teto de calcário.
Susan se agachou a meio caminho da projeção de rocha quando ela se lançou no lago cintilante. Ao redor, as águas se agitavam, sacudindo para a frente e para trás. A agitação produziu mais espuma ácida, empesteando o ar.
Saturado da Estirpe de Judas.
Concussões menores soaram no alto, como balas de canhão contra o teto da caverna.
— O que está acontecendo? — gritou Lisa.
— A bomba de Nasser — ele falou ofegante, os ouvidos zumbindo.
Mais cedo, Gray tinha examinado os pilares de sustentação do Bayon. Ele descobrira que as colunas tinham muitas fissuras e rachaduras, fraturas de estresse produzidas pela idade e por acomodações geológicas periódicas. Gray imaginava que a concussão da bomba de força dupla aumentara ainda mais as fissuras. E, então, o banho de ácido — espalhando-se e penetrando naquelas rachaduras — tinha dissolvido o cerne dos pilares.
— Um dos pilares de sustentação deve ter desmoronado — disse ele —, derrubando consigo uma seção do templo.
Gray olhou para cima.
Os blocos de pedra tinham parado de rolar. Mas por quanto tempo? Ele se virou para Susan. Ela se erguera, lentamente, cautelosamente. Olhou para trás, claramente querendo retornar à margem. Mas, em vez disso, se virou e continuou em frente.
Além dos seus ombros, os fachos gêmeos de luz cintilavam ainda mais com a aproximação do meio-dia, o sol se colocando com pleno vigor acima das ruínas.
— Isso vai resistir o suficiente? — perguntou Lisa, olhando para Susan.
— Terá que resistir.
Gray não tinha dúvida de que, se outro pilar de sustentação desabasse, o peso do templo iria achatar aquela bolha de calcário como uma panqueca. Ele fez Lisa se erguer. Eles não podiam ficar ali. Mesmo que os pilares resistissem, o lago estava prestes a entrar em erupção.
Todo o lago cintilava agora, de uma margem à outra. No ponto em que os feixes gêmeos de luz do sol batiam, a água já começara a borbulhar, lançando ainda mais toxinas no ar, mais organismos da Estirpe de Judas.
Eles tinham de sair.
Susan chegou à extremidade da projeção de pedra e se sentou, abraçando um dos joelhos. Continuava de costas para eles, talvez temendo que se os visse poderia perder a coragem e voltar correndo. Ela parecia solitária e assustada.
Gray teve um doloroso acesso de tosse. Seus pulmões queimavam. Ele sentia na língua o gosto da toxina cáustica. Não podiam esperar mais.
Lisa também sabia disso. Seus olhos estavam vermelhos, lacrimejando profusamente tanto por causa do ar contaminado quanto pelo medo que sentia pela amiga.
Susan não tinha escolha. Eles também não.
Eles se encaminharam para o arco distante. Uma luz bruxuleante a meio caminho revelou Seichan correndo de volta. Sozinha. Onde estava Vigor?
Outro barulho de rocha se quebrando acima.
Gray se encolheu, esperando outra avalanche.
A realidade era pior.
A tampa de pedra se rompeu no teto, fazendo com que chovessem pedaços do bloco. A luz do sol penetrou. Uma grande placa, com um canto de lábio voltado para cima, despencou pesadamente na água, encharcando Susan. Outros pedaços afundaram pesos de profundidade.
Gritos triunfantes soaram no alto.
Gray ouviu a voz de Nasser:
— Eles têm de estar lá embaixo!
Mas Nasser não era o maior perigo no momento.
O sol brilhou por inteiro, sem bloqueios, sobre o lago, incendiando as águas. Já carregado, perto da massa crítica, o líquido borbulhante se transformou instantaneamente em fervura, irrompendo em grandes jatos, cuspindo grandes bolhas de gás e água.
O lago estava explodindo.
Eles nunca conseguiriam chegar às escadas.
Gray recuou rapidamente, arrastando Lisa e Kowalski consigo alguns passos. Gritou para Seichan:
— No chão! Agora!
Ele seguiu seu próprio conselho, puxando Lisa e Kowalski para baixo. Gray agarrou a lona abandonada que eles tinham usado para transportar Susan. Ele puxou-a sobre os três, tentando prender o máximo de ar possível.
— Prendam as pontas na pedra! — ordenou aos outros.
Fora da lona, ele ouviu o barulho de água fervendo, furiosa, sibilando com fúria — e então um barulho profundo, como se todo o lago tivesse dado um salto e depois caído. A água bateu no seu tornozelo e depois escorreu.
O ar sob a lona se transformou em fogo líquido.
Os três se encolheram, engasgando, tossindo, sem fôlego.
— Susan — grunhiu finalmente Lisa.
Meio-dia
Susan gritou.
Não gritou apenas com os pulmões ou com a vibração das cordas vocais. Ela uivou do cerne de seu ser.
Não conseguia evitar a agonia. Sua mente, ainda alimentada pela luz do sol, continuou a fazer o registro detalhado de todas as sensações. Tendo negado o direito ao esquecimento, seu ser anotou todos os detalhes: a secura em seus pulmões, a ardência nos olhos, a pele sendo esfolada. Ela queimava de dentro para fora, lançando seu grito aos céus.
Mas haveria alguém para ouvir?
Ao lançar todo o seu ser para cima, finalmente conseguiu sua libertação.
Ela desabou na pedra.
Seu coração contraiu-se uma última vez, espremendo o que restava dela.
Depois, nada.
12:01h
— E Susan? — perguntou Lisa, a voz entrecortada.
Gray se arriscou a dar uma olhada por uma ponta da lona, esticando-se para trás na direção da península de pedra. O lago ainda fervia, queimando sob o sol forte. O ar acima do lago cintilava com um miasma oleoso.
Mas o pior fluxo de gases subia em espiral, através da abertura, exalando pela cúspide central do Bayon, transformando torre em chaminé.
Gray sabia que só por isso eles tinham vivido.
Se a caverna ainda estivesse lacrada...
Na península de pedra, outro membro do seu grupo não se saíra tão bem. Susan estava jogada de costas, imóvel como uma estátua. Gray não tinha como dizer se ela estava respirando. Na verdade, era difícil ver suas formas contra o brilho do sol.
E foi quando ele se deu conta.
A península de pedra não penetrava completamente no facho de luz do sol.
Susan ainda estava na sombra, mas já não brilhava. Seu brilho se apagara como uma vela.
O que significava aquilo?
Gritos vinham do templo acima, agora lavado pela emanação tóxica do lago. Gray também ouviu mais pedras atingindo o teto da caverna. O gás cáustico abalara ainda mais o precário equilíbrio de pedra acima de suas cabeças.
— Temos que sair desta caverna — disse Gray.
— E quanto a Susan? — perguntou Lisa.
— Temos de acreditar que ela se expôs o suficiente. O que quer que ela queria que acontecesse, com sorte aconteceu — disse Gray, pondo-se de joelhos e tossindo forte. Agora, todos eles precisavam da cura. Ele olhou para Kowalski. — Leve Lisa para as escadas.
Kowalski se ergueu.
— Não precisa falar duas vezes.
Lisa agarrou o pulso de Gray quando ele se levantou, mantendo a lona sobre suas cabeças.
— O que você vai fazer?
— Tenho que pegar Susan.
Lisa olhou ao redor, e então levou a mão à boca. O lago ainda se agitava violentamente, borbulhando com gás.
— Gray, você nunca irá conseguir.
— Eu preciso.
— Mas eu não a vejo se mexer. Acho que a explosão repentina foi demais. Gray se lembrou da história de Marco, de seu canibalismo forçado, bebendo o sangue e comendo a carne de outro homem para sobreviver.
— Não acho que importe se ela está viva ou morta. Nós só precisamos do seu corpo.
Lisa se encolheu diante da frieza de suas palavras, mas não fez objeção.
— Vou precisar da lona — disse Gray.
Kowalski concordou, agarrando Lisa pelo braço.
— Por mim, tudo bem. Vou levar a garota.
Gray se afastou rapidamente deles, embrulhando-se na lona. Ele cobriu a cabeça, deixando apenas uma brecha para poder ver. Ouviu Kowalski e Lisa correndo pela margem.
Outro bloco despencou do templo acima sobre o teto da caverna.
Tão bom quanto um tiro de largada.
Mantendo a cabeça abaixada, Gray disparou pela pista.
Menos de 30 metros.
Apenas isso.
Ida e volta.
A alguns passos da margem, Gray se enfiou no miasma ascendente de toxina. Ele prendeu a respiração. Ainda assim, era como se lançar contra uma parede de fogo. Seus olhos arderam imediatamente, limitando sua visão a um pontinho, enquanto as lágrimas transformavam o restante de seu campo visual em um borrão aguado. Quase incapaz de ver, ele cerrou os olhos, fechou a lona e correu às cegas, contando os passos.
Ao chegar a trinta, arriscou uma espiada. Foi recepcionado por um inferno.
Mas, em meio à dor, percebeu um braço caído. A um passo. Ele deu esse passo, curvou-se e agarrou o braço. Felizmente, ela já não brilhava, já não queimava. Ainda assim, ele não podia levantá-la. Gray recuou, arrastando-a. A lona prendia seus pés, retardando-o. Ele finalmente jogou-a de lado, tomando fôlego antes de fazê-lo.
Isso fez com que caísse de joelhos.
Seu peito se contraiu, a garganta se fechou em protesto.
Engolindo chamas.
Ele se ergueu, arrastando-se às cegas, tropeçando, se apressando. Sua pele queimava, como se tivesse sido açoitada com um chicote de ponta de aço.
Não vai conseguir.
Fogo.
Chama.
Queimação.
Ele tropeçou, caiu de joelhos.
Não.
E de repente estava se erguendo novamente. Mas não sozinho. Seichan.
Ela estava com um dos braços sob ele, arrastando-o. Seus dedos dos pés rasparam nas pedras enquanto ele lutava para se erguer. Gray grunhiu para ela, tossindo. Ela entendeu.
— Kowalski pegou-a.
— Bem aqui, chefe — disse o homem atrás dele. — Foi uma bela corrida. Ficou a três passos da linha de gol. Não foi um touchdown, mas é por isso que você tem um grande time.
A medida que eles fugiam ao redor do lago, afastando-se da tempestade central, a visão de Gray clareava. Ele finalmente conseguiu firmar os pés.
Seichan ainda sustentava metade do seu peso.
— Obrigado — sussurrou ele asperamente em seu ouvido.
A bochecha dela estava com bolhas feias, um dos olhos inchado e fechado.
— Vamos sair deste maldito lugar — disse Seichan, parecendo mais irritada que aliviada.
— Amém, irmã — disse Kowalski.
Gray olhou novamente para o lago. Ele viu algo cair pelo buraco no teto, balançando em uma linha como uma isca no anzol, um pouco para a frente e para trás. Um embrulho grande e pesado.
— Bomba — murmurou Gray.
— O quê? — perguntou Kowalski, incrédulo.
— Bomba — disse ele, mais alto.
Nasser ainda não tinha acabado com eles.
— Ah, maldição, não... — Kowalski se aproximou apressadamente, com Susan sobre um dos ombros, claramente tentando passar por eles. — Por que as pessoas insistem em tentar me explodir?
12:10h
Gritos vieram de baixo, subindo a escada vindo da caverna. Lisa quis retornar. Ela detestara abandonar os outros, mas Vigor também precisava de sua ajuda.
— Continue virando! — disse Vigor, o suor escorrendo-lhe pelas laterais do rosto. Ele olhou para as escadas, e depois de volta para Lisa. — Pelos gritos deles, acho que é melhor nos apressarmos.
Eles estavam desaparafusando um grande fecho de bronze. Sua cabeça do tamanho de um prato tinha um crucifixo, que naquele momento girava enquanto eles giravam o parafuso. Àquela altura, a haste engraxada se projetava 60 centímetros do alto da porta em forma de arco.
Quanto mais ainda faltaria?
Eles giraram mais rápido.
Vigor citou a inscrição na base da porta, bufando enquanto trabalhava.
— "O Anjo do Senhor, descendo do céu e aproximando-se, removeu a pedra da porta." Inicialmente tentei rolar a própria porta, mas desisti rapidamente. Então me lembrei da última linha: "Que apenas alguém com a força do espírito do Senhor ouse abri-la." Obviamente remetendo ao crucifixo. Eu deveria ter percebido logo.
Ruídos de pés abaixo na escadaria, subindo.
Kowalski gritou para eles.
— Bomba... porta... rápido!
— Um homem de poucas palavras, nosso Kowalski.
Com um último giro, o parafuso de bronze soltou do encaixe. O peso os surpreendeu, e o parafuso caiu nos degraus com um barulho agudo.
Kowalski subiu correndo, carregando Susan. Ela estava imóvel. O rosto de Kowalski murchou quando viu a porta ainda fechada.
— O que vocês ficaram fazendo?
— Esperando por você — disse Vigor, e empurrou a tranca.
Livre do parafuso, a porta caiu para fora, batendo na pedra. A luz do sol penetrou, refletindo na pedra em todas as direções. Lisa mal conseguia ver quando se lançou para fora com Vigor, abrindo caminho para Kowalski e Susan.
Kowalski resmungou enquanto passava agachado.
— Achei que Seichan disse que tentara empurrar. Malditos bracinhos magros.
Empertigando-se, Lisa piscou para se acostumar à claridade, dando-se conta de que estavam no fundo de um poço de pedra profundo, com 3 metros de largura. As paredes nuas tinham a altura de dois andares. Não havia como subir.
Kowalski deitou Susan ao lado da porta.
— Doutora, acho que ela não está respirando.
Lembrada de suas obrigações, Lisa correu para o lado dele. Ela já tivera sua dose de mortes por um dia. Ela abaixou-se ao lado de Susan e verificou o pulso. Não encontrou. Ainda assim, Lisa se recusou a desistir.
— Alguém me ajude — pediu.
Gray e Seichan passaram pela porta a seguir, os dois mancando. Gray viu o exame que ela fazia.
— Lisa... ela está morta.
— Não. Não sem antes lutar.
— Eu a ajudo — murmurou Seichan.
Quando ela se curvou, Lisa percebeu que sangue vivo escorria pela blusa da mulher, pelas calças já empapadas.
Seichan percebeu.
— Estou bem.
Gray avisou-os para ficarem o mais quietos que pudessem, para o caso de haver homens de Nasser por perto. Ele também fez sinal para que todos se afastassem da passagem. Seu rosto e seus braços estavam cobertos de bolhas e em carne viva. O branco dos olhos se transformara em vermelho de sangue.
Do outro lado da passagem, Lisa deu início a uma massagem cardíaca, enquanto Seichan fazia respiração boca a boca. Vigor ficou perto, fazendo o sinal-da-cruz e abençoando Susan.
— Melhor que não sejam os últimos sacramentos — sussurrou Lisa, mantendo os cotovelos juntos enquanto comprimia.
Vigor balançou a cabeça.
— Apenas uma oração de...
A bomba explodiu com o som de um trovão, sacudindo o piso. Uma lufada de ar viciado soprou vindo de baixo, uma exalação venenosa ainda repleta de fumaça cáustica e uma onda de calor.
Lisa curvou-se sobre Susan.
A maior parte subiu pelo dueto e se espalhou.
— Não foi tão ruim — disse Kowalski.
Gray continuou a olhar para cima.
— Segurem-se firme.
Lisa olhou para cima enquanto bombeava com os braços o peito de Susan. A esquerda, podia-se ver a metade superior da torre central do Bayon. Rostos de pedra olhavam para eles embaixo. Todos eles estavam balançando.
— Está desmoronando! — disse Gray.
12:16h
Nasser fugiu com seis de seus homens, correndo pelo pátio do segundo nível. Cada passo era um sofrimento. Todo o seu corpo continuava a queimar, como se a maldita mulher ainda estivesse grudada nele. Mas ele tinha uma preocupação mais imediata.
Ele olhou para trás enquanto se agachava atrás do muro de uma galeria.
A torre do Bayon tremeu; então, de uma forma estranhamente lenta, desmoronou sobre si mesma, implodindo e derrubando um quarto de sua altura em uma confusão de pedra. O chacoalhar de morte de cem bodhisattvas. Pó de pedra subiu em torno da pilha de destroços, arremessado para o alto. Mais pedras continuaram a balançar e a cair, rolando pela encosta da montanha.
Seu especialista em demolição prevenira contra o tamanho dá carga, alertando para o que poderia acontecer. Mas Nasser não poderia se arriscar a que o comandante Pierce escapasse com o prêmio.
Ao se virar, percebeu uma segunda coluna de poeira e fumaça elevando-se do lado. Ela se torcia como um sinal de fumaça cinza.
Nasser apertou os olhos.
Será que aquilo indicava uma outra saída da caverna?
12:17h
Gray engasgou na poeira, mal conseguindo ver alguém no espaço apertado do poço. A torre ruíra, desabando em suas fundações e esmagando a caverna abaixo. Uma onda ácida de fumaça e poeira foi lançada para fora, subindo em espirais para a boca do poço.
Gray limpou os olhos e se virou. Ele olhou para trás através da passagem. Pedras bloqueavam a escada, e o teto desmoronara.
Apoiou o ombro na parede e olhou para cima. A parede norte do poço se inclinava de forma precária para fora. Por sorte ela não desmoronara, esmagando a todos. Alguns dos blocos se projetavam como dentes desalinhados.
Mais tosse ecoava no poço.
A poeira baixou o suficiente para revelar um dos que sofriam. Lisa ajudou Susan a se sentar. A mulher cobrira a boca com um dos punhos e continuava perturbada.
Bem-vinda de volta ao mundo.
Talvez a sorte deles estivesse mudando.
Uma voz vinda de cima eliminou essa possibilidade.
— Quem nós temos aqui? — gritou Nasser. — Para usar uma antiquada gíria americana, eu diria que encontramos um bando de peixes em um barril.
Fuzis cercavam o poço de todos os lados, apontados para eles. Gray deslizou pela parede, esbarrando em Kowalski.
— E agora, chefe? — perguntou ele.
Antes que Gray pudesse responder, um telefone celular tocou no alto. Vinha de cima, mas o som da campainha era familiar. Nasser enfiou a mão no bolso e tirou o telefone de Vigor. Ele o confiscara do monsenhor depois de eles terem sido capturados no hotel. Tinham sido cuidadosamente revistados antes de entrarem no Elephant Bar.
Nasser verificou o identificador de chamadas.
— Rachel Verona. — Ele segurou o telefone acima do poço, curvando-se. — Sua sobrinha, monsenhor. Estaria interessado em dizer adeus?
O telefone tocou uma terceira vez, e então ficou mudo.
— Acho que não. Que vergonha — disse Nasser.
Gray fechou os olhos e prendeu a respiração.
Nasser continuou.
— Ou talvez, comandante Pierce, você gostaria de telefonar para minha parceira, Annishen. Eu prometi que você ouviria os gritos de seus pais antes de morrer.
Gray ignorou-o. Sua mão deslizou por trás das costas de Kowalski, sob o jaleco comprido do homem. A ligação interrompida da sobrinha de Vigor era o sinal combinado com Painter para que Gray soubesse quando sua mãe e seu pai estivessem em segurança.
Ou mortos.
De qualquer jeito... fora do controle de Nasser.
Os dedos de Gray agarraram a coronha da pistola alojada na base das costas de Kowalski. O grandalhão quase a sacara mais cedo, provocado por um macaco. Felizmente Gray o impedira.
Gray retirou a pistola e baixou-a ao seu lado.
Nasser continuou:
— Ou talvez eu deva deixar que o destino de seus pais seja um mistério... Deixá-lo pensando para sempre, algo para levar para o túmulo.
— Por que você não vai antes? — disse Gray dando um passo à frente, erguendo a arma e disparando duas vezes.
Acertou o homem no ombro e no peito. Os impactos fizeram Nasser girar. Ele caiu no poço, os braços sacudindo, espalhando sangue nas paredes de pedra.
Gray virou-se de costas, disparando ao redor da borda do poço. Ele acertou três outros homens, enquanto os outros recuavam. Atrás dele, Nasser despencou no chão, com um barulho de ossos quebrando e um grito.
Gray olhou para cima, a arma preparada. A pistola 9mm Metal Storm era um projeto australiano, o melhor em poder de fogo, permitindo uma série de disparos em frações de segundo. Acionada por carga propulsora, sem partes móveis, inteiramente eletrônica.
— Lisa, reviste Nasser e pegue o telefone de Vigor! Coloque Painter na linha!
Ela se arrastou atrás dele.
Enquanto ele se virava lentamente, vigiando o poço, Gray percebeu Nasser com o canto do olho. Ele estava de costas, um dos braços torcido embaixo do corpo, quebrado no ombro. Sangue lhe escorria dos lábios. Costelas estraçalhadas. Mas ainda estava vivo. Os olhos acompanhavam Gray, tomados de desânimo e confusão.
Morra pensando, desgraçado.
Nasser finalmente obedeceu, dando o último suspiro, os olhos se apagando.
Seichan formulou a pergunta de Nasser.
— Onde você conseguiu a arma?
— Eu a peguei com Painter. Ainda em Ormuz. Não queria que ele mobilizasse uma equipe local aqui. Mas pedi uma pequena concessão. Uma única arma, colocada no Elephant Bar antes que chegássemos lá, escondida atrás de um toalete. Eu sabia que Nasser poderia continuar suspeitando de mim, até mesmo me revistar várias vezes. Mas Kowalski...
Gray deu de ombros.
— No bar. Eu me lembro — disse Seichan. — Antes de sairmos. Kowalski disse que precisava "tirar uma água".
— Eu sabia que seríamos revistados antes do encontro no bar. Era a forma mais fácil de conseguirmos uma arma depois. Mantê-la à mão até que meus pais estivessem em segurança.
Kowalski grunhiu.
— Os idiotas deveriam ter visto O poderoso chefão mais algumas vezes. Lisa falou atrás dele.
— Painter está na linha.
Os dedos de Gray apertaram sua pistola.
— Meus pais? Eles estão...?
— Já perguntei. Eles estão em segurança. E não estão feridos. Gray deu um grande suspiro de alívio.
Graças a Deus.
Ele pigarreou.
— Melhor dizer a Painter para estabelecer um perímetro de quarentena com raio de pelo menos 16 quilômetros em torno das ruínas.
Gray imaginou a nuvem de gases tóxicos, certamente rica em organismos da Estirpe de Judas. A passagem ficara aberta por apenas 12 minutos, depois fora fechada e limpa pela bomba de Nasser. Uma pequena bênção. Mas quanto dos organismos da Estirpe de Judas fora liberado?
Gray olhou para Susan. Ela estava agachada na passagem. Kowalski a protegia. Ela tinha sido bem-sucedida? Gray tinha consciência de todos que dividiam o poço com ele. Todos tinham contribuído para levá-los até lá. Mas teria sido tudo em vão?
Lisa falou.
— Quarentena estabelecida.
Gray vasculhou o alto do poço, a arma erguida. Ainda havia um exército da Guilda lá fora.
— Então diga a Painter que poderíamos ter alguma ajuda aqui também. Ela transmitiu a mensagem e depois baixou o telefone.
— Ele diz que já está a caminho. Disse olhe para cima.
Gray olhou para o céu. O azul profundo da tarde estava cheio de falcões de aparência rígida, asas estendidas. Bandos deles, vindos de todas as direções. Mas aqueles falcões levavam fuzis de assalto.
Esticando uma das mãos para trás, Gray pediu o aparelho.
Lisa colocou-o na palma de sua mão.
Gray levou o aparelho ao ouvido.
— Achei que tínhamos concordado em não mobilizar uma resposta local.
— Comandante, eu não classificaria 12 mil metros de altura de local. Além disso, eu sou seu chefe. Não o contrário.
Gray continuou a observar o céu.
A equipe de ataque mergulhou na direção das ruínas, espalhando-se em uma formação de ataque. Cada soldado tinha uma asa-delta presa às costas, como asas de caça a jato em miniatura, permitindo posicionamento em grande altitude.
Eles planaram para baixo.
Em espirais.
Então, a um sinal, os homens puxaram cordas, soltando as asas ao mesmo tempo. Pára-quedas se abriram para o último trecho da descida. Como em uma coreografia, vinham de todas as direções.
Os outros perceberam a aproximação dramática. Gray ouviu sons de botas na pedra, a maioria se afastando. Gray imaginou que boinas pretas estavam sendo jogadas em latas de lixo enquanto os mercenários da Guilda fugiam dali correndo.
Mas nem todos eram tão covardes.
Alguns tiros de fuzil foram ouvidos. Inicialmente devagar, depois furiosamente. Um tiroteio durou todo um minuto tenso. Um pára-quedas passou acima, o piloto disparando ainda em vôo. Depois outro, as pernas erguidas, enquanto se preparava para pousar nas ruínas. Corpos tocavam o solo, pousando ao redor do poço, provavelmente orientados pelo telefone na mão de Gray.
Um homem de repente se debruçou sobre a murada baixa do posto, um pouco rápido demais.
Gray esteve perto de disparar contra ele antes de reconhecer o uniforme de salto.
Força Aérea dos Estados Unidos.
— Vocês estão bem, caras? — gritou ele com sotaque australiano, soltando seu pára-quedas.
Lisa passou correndo por Vigor, a voz demonstrando espanto.
— Ryder?
O homem sorriu para ela.
— O homem de vocês... Painter... Cara impressionante! Me deixou fazer o passeio. Não é a mesma coisa que escalar redes eletrificadas com canibais... Mas fazer o quê?
Alguém chamou.
Ryder ergueu um dos braços, em reconhecimento, então olhou para baixo novamente.
— Segurem-se! Escadas a caminho! — Ele se virou e desapareceu.
Gray continuou de guarda com eles, a arma preparada.
Era só o que ele podia fazer.
Isso, e uma última coisa.
Ele levou o telefone ao ouvido novamente.
— Diretor?
— Sim?
— Obrigado por não me dar atenção, senhor.
— É para isso que eu estou aqui.
CAPÍTULO 19
Traidor
14 de julho, 10:34h
Bangcoc, Tailândia
Uma semana mais tarde, Lisa estava de pé junto à janela de seu quarto em um hospital particular na periferia de Bangcoc. Muros altos cercavam o pequeno prédio de dois andares e seus grandiosos jardins com mamoeiros, flores de lótus e fontes de água, juntamente com algumas estátuas serenas de Buda envolvidas em hábitos cor de açafrão envoltos nas finas colunas de fumaça dos incensos das orações matinais.
Ela tinha feito suas próprias orações ao alvorecer.
Só.
Por Monk.
A janela estava aberta, as cortinas levantadas pela primeira vez em uma semana. A quarentena tinha terminado. Ela respirou fundo, inalando o perfume de jasmim e flor de laranjeira. Além do muro ela ouviu o movimento lento da vida de uma aldeia: o mugir do gado, a conversa de duas senhoras passando junto ao portão, os passos pesados de um elefante arrastando um tronco e o melhor de tudo, fora de vista, mas vibrante como a luz do sol, o riso de crianças.
Vida.
Como eles tinham chegado perto de perder tudo.
Uma voz falou atrás dela.
— Você sabia que de pé em frente à janela o brilho do sol atravessa diretamente o avental do hospital? Deixa muito pouco para a imaginação. Não que eu esteja me queixando.
Ela se virou, cheia de alegria.
Painter estava apoiado no umbral da porta, segurando um buquê de rosas amarelas, suas preferidas. Ele vestia terno sem gravata, estava barbeado e limpo. Estava levemente bronzeado após uma semana nos trópicos, fora da cova subterrânea da Sigma, criando um contraste com seus olhos azuis e seu cabelo escuro.
— Achei que você só voltaria tarde da noite — disse ela, indo até ele.
Ele entrou no quarto. Diferentemente da impessoalidade da maioria dos hospitais, aquela instalação particular tinha quartos luxuosamente decorados em teca. Também era adornada com vasos de flores e até mesmo dois aquários, com pequenos peixinhos laranja e carmim.
— A reunião com o primeiro-ministro cambojano foi adiada para a semana que vem. E provavelmente é desnecessária. Mesmo a quarentena lá será suspensa nos próximos dias.
Lisa concordou com a cabeça. Aviões fumigadores tinham espalhado uma solução diluída de desinfetante sobre as áreas vizinhas. As ruínas de Angkor Thom tinham sido encharcadas. Os campos de quarentena para refugiados tinham revelado alguns casos, mas eles estavam reagindo bem ao tratamento.
A cura tinha funcionado.
Susan estava em outra ala do hospital, sob vigilância máxima, mas mesmo isso estava se mostrando uma precaução desnecessária. Ela de fato conseguira a cura, atravessando o fogo para isso. Depois, não havia nela mais nenhum traço do vírus — cis ou trans. Tudo tinha desaparecido.
A não ser a cura.
Descobriu-se que não era um anticorpo, uma enzima, nem mesmo um leucócito. Era a bactéria. A mesma cianobactéria que a fizera brilhar.
A segunda exposição tinha alterado mais uma vez a bactéria, modificando inteiramente o ciclo vital. Como lactobacilos saudáveis no iogurte, a bactéria, quando ingerida ou inoculada, produzia compostos benéficos que destruíam qualquer bactéria tóxica gerada pela Estirpe de Judas e eliminava todos os traços do próprio vírus, digerindo-o.
A cura produzia sintomas equivalentes aos de uma gripe comum, então a pessoa se tornava imune a uma reinfecção. A bactéria também parecia funcionar como uma vacina em sujeitos saudáveis, oferecendo imunidade à exposição, como a vacina Salk contra a pólio. Mas, o melhor de tudo, também se mostrou uma cultura sim¬pies. Amostras tinham sido enviadas para laboratórios de lodo o mundo. Enormes quantidades da vacina já estavam sendo produzidas, um estoque global para deter a pandemia inicial e proteger o mundo de qualquer recorrência futura. Organizações de saúde continuavam a manter vigilância contra isso.
— E quanto à ilha Christmas, onde tudo começou? — perguntou Lisa, sentando-se na beirada da cama.
Painter substituiu algumas flores murchas pelas rosas.
— Parece bem. Por falar nisso, eu li alguns dos papéis que seu amigo Jessie roubou do navio antes de ele afundar. Aparentemente, quando a Guilda deixou a ilha Christmas, esvaziou uma carga de alvejante ao longo da costa. Não por nenhum altruísmo, claro. Apenas tentava apagar o acontecimento principal, confundir os concorrentes da descoberta.
— Você acha que isso irá impedir o reaparecimento?
Painter deu de ombros, encaminhou-se para a cama e sentou. Ele pegou a mão dela, não com algum objetivo, apenas por reflexo, exatamente o motivo pelo qual ela o amava tanto.
— Difícil dizer — respondeu ele, acrescentando: — O tufão varreu a ilha. Equipes internacionais de cientistas marinhos estão monitorando as águas, lideradas pelo dr. Richard Graff. Depois da ajuda dele com o problema dos caranguejos, achei que ele merecia a missão.
Lisa apertou a mão de Painter. A menção a Graff a fez lembrar de Monk. Ela suspirou, observando a movimentação do peixinho no aquário ao lado da cama.
Painter soltou a mão, colocou o braço em seus ombros e puxou-a para si. A outra mão encontrou novamente a dela. Ele sabia onde o coração dela estava naquele momento. Sua voz ganhou um tom grave, afastando um pouco de sua jovialidade.
— Você soube que estávamos entrevistando todos os sobreviventes do Mistress of the Seas?
Ela não respondeu, apenas deslizou o braço pela cintura dele. Ela sabia que não seriam boas notícias.
A ilha ainda estava sob quarentena, uma parceria entre a Austrália e os Estados Unidos. Comandos australianos tinham conseguido organizar uma evacuação completa do navio enquanto ele queimava e afundava. A maior parte do trabalho da Guilda estava a mais de 300 metros de profundidade, um acréscimo ao lar profundo das lulas predadoras. Isso tornava mergulhos no naufrágio extremamente perigosos. As lulas tinham sido classificadas como uma nova espécie de Taningia, e receberam o nome de Taningia tunis em homenagem ao marido de Susan.
Na véspera Lisa falara com Henri e Jessie no campo de refugiados de Pusat. Eles tinham sobrevivido, conseguindo proteger a maioria dos pacientes e da equipe da OMS, ajudados pelos canibais durante a confusão. Todos estavam sendo submetidos a tratamento, e até o momento estavam bem. As únicas exceções eram aqueles poucos que tinham mergulhado em um estado de completa loucura. O dano cerebral parecia permanente. A maioria dos afetados morrera quando o navio afundou. Nenhum membro da equipe da Guilda conseguira sair do navio com vida.
Com exceção, talvez, de um.
Jessie contara a Lisa a história da evacuação. Ele tinha chegado a uma cela trancada. Ouviu crianças gritando do lado de dentro. Entrara a tempo de resgatar as crianças, que contaram a história de um estranho anjo que tinha aparecido e as reunido, mantendo-as afastadas do perigo. Esse anjo tinha então atraído um grupo de pacientes enlouquecidos para fora da prisão, fazendo-se de isca.
As crianças tinham descrito seu anjo.
Cabelo preto comprido, vestido de seda, silencioso como um túmulo.
Surina.
Ela tinha desaparecido.
Painter continuou:
— Nós entrevistamos todos no campo.
— Sobre Monk — sussurrou ela.
— Um dos médicos da OMS se escondeu no convés do navio. Ele tinha binóculos. Viu a fuga de vocês no Sea Dart. Pelo binóculo ele viu Monk cair, testemunhou a rede se abater sobre ele, arrastando-o para baixo — disse Painter, dando um suspiro cansado. — Ele não voltou mais à superfície.
Lisa fechou os olhos. Sentiu algo explodir dentro de si, espalhando um ácido causticante por suas veias, enfraquecendo-a. Uma parte dela ainda tinha esperanças... uma mínima chance... Por isso tinha se ajoelhado do lado de fora em frente a um dos Budas.
Rezara para que ele ainda estivesse vivo.
— Ele partiu — murmurou, finalmente admitindo para si mesma.
Oh, Monk...
Lisa abraçou Painter com força. Suas lágrimas molharam a camisa dele. Dedos se agarraram a ele enquanto ele a tranqüilizava com sua presença.
— Você já contou a Kat? — grunhiu, apoiando a face no peito dele.
Painter permaneceu calado.
Lisa o sentiu tremer.
Ele já havia contado.
Tirou a mão dele de seu ombro e beijou-lhe a palma.
Ele falou em um sussurro, seco e profundo.
— Nunca me abandone.
Lisa lembrou por que fora naquela missão. Para avaliar sua vida longe da sombra de Painter. Para poder ter uma perspectiva enquanto suas vidas se fundiam, profissional e pessoalmente.
Ela encontrara a resposta.
De ataques canibais às torturas de loucos.
Sabia que era forte o bastante para ficar sozinha.
Mas...
Ela se ergueu, beijando os lábios dele e sussurrando:
— Este é o meu lugar.
12:02h
Gray atravessou o caminho do jardim do hospital. Vestia jeans, botas e uma camisa com estampa tropical para fora da calça. Era bom usar roupas normais outra vez, livre do avental do hospital. Também era bom estar ao ar livre, sob o sol, embora seus pulmões ainda parecessem pesados e a luz brilhante incomodasse seus olhos sensíveis. Ele ainda estava se curando, mas sua energia inesgotável após uma semana trancado se transformara em irritação.
Seu ritmo acelerou, os passos se tornaram mais largos. Ele dera a volta no jardim todo, ao redor do prédio. Não queria surpresas.
Estava planejando isso havia três dias, e aquela era a hora. O portão do hospital surgiu à frente.
Eles eram autorizados a sair, mas apenas até a aldeia vizinha. Dando a volta em uma cerca viva alta, Gray chegou a uma pequena alcova, um altar particular com um Buda gordo vestido de seda vermelha. Algumas varetas fumegantes de incenso estavam no chão, mas naquele momento a fumaça vinha de outra fonte.
Kowalski estava apoiado no Buda, a palma de uma das mãos no alto da cabeça de pedra. Ele tirou o charuto da boca, soltando uma grossa nuvem de fumaça.
— Ah, sim... — resmungou ele com um contentamento relutante.
— Onde você conseguiu um... Ah, deixe para lá — disse Gray estendendo a mão. — Conseguiu encontrar o que eu pedi?
Kowalski apagou seu charuto no ombro do Buda.
Até Gray se encolheu um pouco diante do descuidado sacrilégio.
— É, mas o que você quer com tudo isso? — perguntou ele, tirando um embrulho de papel das costas. — Subornei meu enfermeiro enquanto tomava um banho de esponja. Claro que era um cara. Ele se divertiu muito com tudo. Mas conseguiu comprar o que você queria.
Gray pegou o embrulho e se virou para olhar para trás. Kowalski cruzou os braços, as sobrancelhas franzidas de desapontamento, e chegou até a dar um suspiro irritado.
Gray recuou.
— Qual o problema?
Kowalski abriu a boca... e fechou-a.
— O quê? — insistiu Gray.
Kowalski agitou as mãos no ar.
— Para começar... Bem, esse tempo todo eu não tive a oportunidade de disparar uma só maldita arma. Nem um fuzil, nem uma pistola, nem um revólver de espoleta! Quer dizer, eu poderia muito bem ter ficado em serviço de guarda em casa. E tudo o que ganhei por meus problemas foi um punhado de agulhas fincadas na bunda.
Gray parou um momento, olhando. Era o discurso mais longo que Kowalski já fizera. Ele estava claramente interessado no tema.
— Só estou dizendo... — soltou Kowalski, de repente levemente constrangido.
Gray suspirou.
— Venha comigo.
Ele saiu do esconderijo e se encaminhou para o portão. Devia isso ao cara.
Kowalski seguiu-o.
— Para onde vamos?
Gray conduziu-o ao portão. Os guardas de plantão acenaram com a cabeça para eles. Colocou o embrulho debaixo do braço e tirou a carteira. Pegou uma nota e deu-a a Kowalski assim que eles atravessaram o portão.
— O que eu devo fazer com dez dólares? — perguntou ele.
Gray seguiu um pouco mais adiante apontou para a estrada onde uma equipe trabalhava. Ao estilo tailandês. Quatro homens e seus dois animais de carga.
— Veja... elefantes — disse Gray.
Kowalski olhou para a estrada suja, para a nota em suas mãos, depois novamente para os elefantes. Um enorme sorriso surgiu em seu rosto. Ele partiu, voltou, esforçou-se para demonstrar seu agradecimento, não conseguiu, então desceu a rua novamente.
— Ah, sim, vou dar um passeio de elefante... — Ele ergueu um dos braços. — Ei, você! Gunga Din!
Gray virou-se e entrou novamente.
Pobre elefante.
12:15h
Vigor descansava em sua cama. Seus óculos de leitura estavam na ponta do nariz. Ele tinha livros empilhados na mesinha-de-cabeceira, atravancando seu aquário de peixinho dourado. Do outro lado da cama do hospital, amontoava-se uma pilha de artigos impressos: sobre escrita angélica, sobre Marco Polo, sobre a história dos khmer, sobre as ruínas de Angkor.
Agora ele relia pela quarta vez o relatório científico que Gray localizara, um artigo da revista Science de 1994, ligando o estudo da linguagem humana ao DNA.
Fascinante...
Um movimento junto à porta aberta desviou sua atenção do artigo. Ele viu Gray.
— Comandante Pierce! — chamou.
Gray parou junto à porta, olhou o relógio, então se inclinou para dentro.
— Sim, monsenhor.
Vigor ficou surpreso com a formalidade. Algo deixara Gray tenso. Ele fez sinal para o homem.
— Entre um instante.
— Eu só tenho exatamente isto... Um instante — disse ele, entrando. — Como está se sentindo?
— Bem — disse Vigor, dispensando essas questões. — Eu li este artigo. Não sabia que apenas 3% de nosso genoma é ativo. Que 17% é lixo, e códigos para nada. Mas, quando esse lixo é passado pelo programa de teste de criptografia para linguagem, mesmo esse refugo aleatório também revela uma linguagem. Impressionante — disse Vigor, tirando os óculos e acrescentando: — Gray, e se pudéssemos compreender essa linguagem?
— Algumas coisas podem estar além de nós para sempre. Vigor discordou serenamente.
— Eu certamente não acredito nisso. Deus não nos deu esses grandes cérebros para que não os utilizássemos. Nascemos para questionar, para buscar, lutar por uma compreensão completa do universo, tanto exterior quanto interior.
Gray olhou para o relógio novamente, com discrição, baixando os olhos rapidamente para o pulso, sem querer parecer rude.
Vigor decidiu parar de torturar o jovem. Ele obviamente estava ocupado.
— Irei direto ao ponto. Lembre-se do vão em forma de barril abaixo do Bayon, quando eu mencionei como a escrita angélica — a possível forma escrita dessa linguagem genética desconhecida — poderia ser a Palavra de Deus identificando algo maior em nós, talvez algo enterrado nesses 97% de nosso código genético que são considerados lixo. E se não for lixo? Talvez nós tenhamos conseguido um vislumbre dessa parte maior de nós.
— O que você quer dizer?
— A mulher, Susan. Sua transformação não poderia ter sido uma amostra da verdadeira tradução da escrita angélica?
Vigor viu a descrença no rosto do comandante e estendeu a mão.
— Eu falei com Lisa mais cedo hoje de manhã. Ela mencionou como acreditava que o cérebro de Susan estava completamente excitado pela energia das bactérias quando expostas à luz do sol, despertando partes do cérebro humano que de outro modo estão adormecidas. Eu acho interessante que apenas uma mínima parcela de nosso código genético seja ativa e que ao mesmo tempo utilizemos apenas uma pequena parte de nosso cérebro. Você não acha isso estranho?
Gray deu de ombros, evasivo.
— Talvez.
Vigor continuou:
— E se toda aquela escrita angélica mapear nosso pleno potencial, aquele que permanece oculto dentro de todos nós, esperando para ser despertado? Segundo o Gênesis, Deus nos fez à sua imagem. E se essa imagem ainda carece de concretização, enterrada nos setores adormecidos de nosso cérebro, escondida dentro da escrita angélica de nosso DNA-lixo? Talvez tudo aquilo escrito nas paredes sob o Bayon, brilhando no escuro, talvez o autor do passado também estivesse tentando compreender esse potencial. Você mesmo mencionou como ele era incompleto, com seções faltando.
— É verdade — admitiu Gray. — E você fez algumas conjecturas interessantes que merecem ser estudadas, mas não sei se um dia conheceremos a verdade. Susan voltou ao normal, e eu soube por Painter que uma equipe de escavação conseguiu chegar ao vão sob o Bayon. Algumas das paredes foram encontradas intactas, mas a bomba ácida de Nasser limpou as superfícies. Não restou nada da escrita.
Vigor ficou penalizado.
— Uma vergonha. Ainda assim, fico pensando em algo que não encontramos na caverna.
— O quê?
— Sua tartaruga. Você achava que o vão poderia conter um mistério mais profundo, algo que represente a encarnação de Vishnu.
— Talvez fosse apenas a Estirpe de Judas. O lago brilhante. Até você mencionou como os antigos khmer provavelmente descobriram por acaso a caverna brilhante e a consideraram o lar de algum deus. Talvez de Vishnu.
Vigor olhou para o comandante.
— Ou talvez Susan fosse um vislumbre daquele mistério maior, do potencial divino ou angelical oculto dentro de todos nós.
Gray finalmente deu de ombros, claramente prestes a descartar aquilo. Mas, como Vigor esperara, ele percebeu um leve levantar de sobrancelhas no homem. Curiosidade. Ele queria que Gray mantivesse a mente aberta.
Mas Vigor também viu que havia algo mais urgente na mente do homem, exigindo atenção. Ele despediu-se de Gray.
Vigor chamou-o quando ele atravessou a porta.
— Mande minhas lembranças a Seichan.
Gray tropeçou, franziu um pouco o cenho e foi embora.
Vigor recolocou os óculos de leitura.
Ah, a juventude...
12:20h
Gray deu a xícara de café ao guarda do lado de fora da porta de Seichan.
— Ela está acordada?
Ele deu de ombros, um jovem guarda-marinha louro de Peoria.
— Não sei.
Gray passou pela porta. Era uma missão tediosa para o guarda. A paciente estava quase sempre sedada depois de ter sido submetida a uma segunda operação no ferimento à bala. Os pontos no ferimento tinham se rompido, e Seichan tivera hemorragia interna.
Tudo porque salvara a vida de Gray.
Ele lembrava-se dos braços de Seichan carregando-o, a dor em seu rosto coberto de bolhas, o olho inchado. Mas ele não entendera que, ao voltar para pegá-lo, ela quase tinha morrido.
Gray entrou no quarto.
Ela estava algemada à cama, os braços estendidos dos dois lados.
Vestia um avental de hospital, e estava coberta com um lençol limpo.
O quarto, destinado a pacientes mentais, era frio e impessoal. Os únicos móveis eram a cama e uma mesa com rodinhas colocada junto à parede. Uma janela alta e estreita tinha uma persiana metálica.
Seichan ficou rígida quando ele entrou. Ela virou a cabeça. Seu rosto endureceu, e ela baixou os olhos ligeiramente, envergonhada com sua imobilização. Depois veio a raiva, que apagou todo o resto. Ela deu um puxão em um dos pulsos algemados.
Gray se aproximou e sentou na cama.
— Embora meus pais estejam vivos — disse ele, indo diretamente ao ponto —, isso não significa que eu a perdoe. Que um dia a perdoarei. Mas tenho uma dívida com você. Não a deixarei morrer. Não desta forma.
Gray tirou do bolso as chaves das algemas. Ele esticou o corpo e levantou seu pulso. Sentiu com a ponta dos dedos a pulsação dela acelerar.
— Eles irão mandá-la para a baía de Guantánamo pela manhã — disse ele.
— Eu sei.
E, como Gray, ela também sabia que isso era uma sentença de morte. Se ela não fosse executada imediatamente, a Guilda a assassinaria para silenciá-la, ou uma das outras agências de inteligência o faria. O Mossad israelense ainda tinha uma sentença de morte contra ela.
Ele enfiou a chave e girou a fechadura. A trava se abriu.
Seichan sentou-se, ainda demonstrando desconfiança.
Ela estendeu a palma da mão, pedindo a chave, testando-o.
Gray deu-a a ela. Enquanto ela soltava a segunda trava, ele colocou na cama o embrulho que Kowalski conseguira.
— Tenho três mudas de roupa: um uniforme de enfermeira, trajes locais e outro camuflado. Também há dinheiro local. Não tive como conseguir uma identidade, não com tão pouco tempo.
A outra trava de Seichan se abriu. Ela se virou, esfregando os pulsos. O som macio de um corpo caindo ao chão atravessou a porta.
— Ah, e eu droguei o guarda.
Ela olhou para a porta, e depois novamente para ele. Seus olhos brilharam. Antes que pudesse se mexer, ela agarrou seu colarinho e puxou-o para si. Ela o beijou com força, sua boca se abrindo, com um gosto doce de remédio.
Gray recuou instintivamente. Ele não tinha ido lá para...
Ah, dane-se...
Ele pegou sua cintura e apertou-a contra si. Sem se soltar, ela foi para ele, sobre ele, em cima dele. Seus pés baixaram para o chão. Ele girou, caindo para trás. Ele ouviu travas se fechando. Ela se afastou dele.
Seu pulso direito fora algemado à cama.
Ele olhou a tempo de ver o cotovelo dela indo na direção do seu rosto. Sua cabeça foi jogada para trás. Ele sentiu gosto de sangue nos lábios. Ela saltou sobre ele, prendendo-o à cama, sentada em seu peito. Ergueu o punho. Ele levantou o braço livre para bloquear. Ela esticou a cabeça.
— Isso precisa parecer convincente, ou você é que será mandado para Guantánamo por traição.
Ela estava certa.
Gray baixou o braço.
Ela o acertou com força, cortando seu lábio. Sua cabeça girou com o golpe. Ela sacudiu as mãos e ergueu o punho novamente.
— E isto é por não confiar em mim — disse, desferindo outro golpe. Sangue escorreu do nariz dele. Ele se sentiu apagar, depois acordou. Ela se abaixou, junto a seu ouvido.
— Você se lembra da pequena promessa que fiz a você no começo?
— Qual? — perguntou ele, virando-se de lado e cuspindo.
— De revelar o agente duplo quando tudo tivesse acabado.
— Mas não havia agente duplo.
— Tem certeza disso?
Os olhos dela se fixaram nos seus. De repente, ele não tinha tanta certeza. Ela se sentou novamente, girou o cotovelo e disparou um golpe no olho dele.
— Deus do céu!
— Isso vai inchar bem — avisou, esfregando os lábios, estudando-o, como um artista observando uma pintura a óleo inacabada. Então disse:
— Eu sou o agente duplo, Gray.
— Como?
— Um agente duplo plantado na Guilda.
Ela arremessou o punho no outro olho dele. Ele viu tudo escuro por um instante.
— Eu estou entre os mocinhos, Gray. Você ainda não se deu conta disso?
Gray ficou lá, atônito, com suas palavras, com seus golpes.
— Um agente duplo? — tossiu, incrédulo. — Há dois anos você atirou em mim! Direto no peito.
Ela preparou outro golpe.
— Sabia que você estava com uma armadura líquida. Você nunca pensou por que eu estava usando o mesmo? Pense, Gray.
O punho dela desceu. Dessa vez ela acertou a base do nariz, obviamente pensando se deveria quebrá-la.
— E a bomba de antraz, em Fort Detrick? — perguntou ele.
— Estava esterilizada. Uma fraude. Eu planejava colocar a culpa no projetista da bomba.
— Mas... e o curador em Veneza? — cuspiu ele. — Você o matou a sangue-frio.
Ela correu as unhas pela bochecha esquerda dele, fazendo arranhões fundos.
— Se eu não o tivesse feito toda a família dele teria sido chacinada. Incluindo mulher e filha.
Gray olhou para cima com uma expressão de dor. Ela tinha uma resposta para tudo.
Seichan se curvou para trás, levando a base da palma à altura da orelha, mirando o nariz dele.
— E eu não vou parar... Não após cinco anos, não quando estou muito perto de descobrir quem chefia a Guilda.
Ela baixou a mão, mas dessa vez ele segurou-lhe o pulso. Ela jogou seu peso, pressionando-o.
— Seichan...
Ela olhou para ele, os músculos tensos, os olhos ferozes, como se sentisse dor. Seus olhos se encontraram. Ela examinou o rosto dele, procurando algo. Não pareceu encontrar. Por um instante, ele viu desapontamento em seus olhos. Também desgosto... talvez solidão. Então, desapareceu.
Seichan o acertou com o outro cotovelo, um golpe na orelha que o fez ver estrelas. Gray a soltou. Ela caiu para trás, afastando-se dele.
— Já é o bastante — murmurou, virando-se.
Ela foi até as roupas, tirou o avental do hospital e colocou rapidamente o uniforme de enfermeira, incluindo um lenço de seda discreto para esconder o rosto machucado. Ela ficou de costas para ele.
— Seichan?
Já vestida, ela não disse uma palavra, limitando-se a ir na direção da porta. Não se voltou, apenas pediu uma coisa a ele, falando suavemente, uma corda jogada em sua direção.
— Confie em mim, Gray. Pelo menos um pouco. Eu mereci isso.
Antes que ele pudesse responder, ela saiu. A porta se fechou atrás dela.
Confie em mim...
Que Deus o ajude, ele tinha confiado.
Ele se ajeitou na cama, o rosto latejando, seu olho inchando.
Quinze minutos se passaram. Tempo suficiente para permitir que ela escapasse.
Finalmente, Painter apareceu à porta, entrando.
— Você ouviu tudo? — perguntou Gray.
— A escuta pegou tudo.
— Será que ela está dizendo a verdade?
Painter franziu o cenho, olhando para trás, para a porta.
— Ela é urna mentirosa contumaz.
— Talvez tenha que ser. Para sobreviver dentro da Guilda. Painter abriu as algemas.
— Seja como for, o rastreador que colocamos na barriga dela durante a operação permitirá que localizemos seu paradeiro.
— E se a Guilda o descobrir?
— É um polímero plástico, invisível ao raio X. Eles nunca o detectarão.
A não ser que a abram.
Gray se levantou.
— Isso é errado. Você sabe.
— Só assim o governo permitiria que a libertássemos.
Gray lembrou-se dos olhos de Seichan, olhando para ele.
Ele sabia duas verdades.
Ela não tinha mentido.
E mesmo agora, ela certamente não estava livre.
Epílogo
11 de agosto, 8:32h
Takoma Park, Maryland
— Os trabalhos de restauração parecem ótimos — disse Gray.
Seu pai deslizou um pano com cera de automóvel no capo do Thunderbird. Eles tinham resgatado o conversível, rebocando-o. Painter conseguira que o carro fosse consertado na melhor oficina de restauração de clássicos da região de Washington. Seu pai o tinha pegado na semana anterior, mas era a primeira vez que Gray o via.
Seu pai deu um passo atrás, as mãos na cintura. Ele vestia uma camiseta suja de graxa e uma bermuda, exibindo sua nova perna, outra cortesia da Sigma, um projeto DARPA extraordinariamente realista. Mas não era com a perna que seu pai estava preocupado no momento.
— Gray, o que você acha dessas novas rodas? Não são tão boas quanto minhas antigas rodas de raios.
Gray foi para perto do pai. Para ele pareciam iguais.
— Você está certo — disse ele mesmo assim. — São um lixo.
— Hum — disse o pai, evasivo. — Mas foram de graça. Aquele camarada Painter foi muito generoso.
Gray tinha a noção de aonde aquilo iria chegar.
— Pai...
— Sua mãe e eu conversamos sobre isso — disse ele, ainda olhando para as rodas. — Achamos que você deve continuar na Sigma.
Gray coçou a cabeça. Ele já estava com a carta de demissão no bolso. Quando retornou do Camboja, encontrou o pai no hospital, o peito queimado com os choques da Taser. O braço da mãe estava na tipóia por causa de uma pequena fratura no pulso. O pior era seu olho preto.
Tudo por causa dele.
Ele quase perdera o controle no hospital.
Que segurança poderia oferecer aos pais caso continuasse? A Guilda certamente sabia quem ele era, onde encontrar seu pessoal. A única forma de mantê-los em segurança era se demitir. Painter tentou garantir que a Guilda iria recuar. Que vingança e retaliação não eram seus métodos. Painter garantira a Gray que em futuras missões seus pais seriam colocados em segurança antes que ele partisse.
Mas algumas missões o atropelavam de motocicleta.
Não havia como se organizar para isso.
— Gray — pressionou o pai —, o que você faz é importante. Você não pode deixar que a preocupação conosco o detenha.
— Pai...
Ele ergueu a mão.
— Eu disse o que tinha de dizer. Você toma a sua decisão. Eu preciso descobrir se gosto destas rodas ou não.
Gray começou a se virar.
Seu pai foi até ele, agarrou seu ombro e puxou-o para um abraço. Ele deu um aperto e depois o afastou um pouco.
— Vá ver o que sua mãe está fazendo para o café.
Gray se encaminhou para a porta dos fundos e encontrou a mãe saindo.
— Ah, Gray, eu estava no telefone com Kat. Ela disse que você viria para cá esta manhã.
— Antes de ir para o escritório. Estou com algumas coisas do Monk na varanda da frente. Papai vai me emprestar o carro para que eu possa fazer algumas coisas para Kat esta tarde também.
— Eu sei que o funeral é só daqui a dois dias, mas tenho algumas tortas. Você poderia levá-las também?
— Tortas? — perguntou Gray, em dúvida.
— Não se preocupe. Eu as comprei na confeitaria aqui perto. Ah, e tenho alguns brinquedos para Penélope. Encontrei um lindo suéter com elefantes e...
Ele se limitou a concordar, sabendo que em algum momento sua mãe iria parar.
— Como Kat está lidando com tudo isso? — perguntou ela, por fim.
Gray balançou a cabeça.
— Dias bons e dias ruins.
Principalmente ruins.
Sua mãe suspirou.
— Vou pegar as tortas. Na última vez em que a vi, Kat estava magra como um palito, pobrezinha.
Gray logo recebeu uma sacola de armazém cheia de caixas de tortas. Ele atravessou a casa na direção da varanda da frente. Saiu e foi até a pilha de caixas. Elas continham tudo o que estava no armário de Monk e algumas coisas que estavam no apartamento de Gray.
Gray também tinha uma caixa para levar para a funerária. Ryder Blunt, o bilionário, tinha devolvido a prótese de Monk; fora obrigado a cortar o suporte da asa do hidroavião para soltá-la. Kat se recusara a sequer olhar para ela. E Gray não a culpava. Mas ela pedira que a mão fosse colocada no caixão vazio que seria baixado no Cemitério Nacional de Arlington. Todos também deveriam levar lembranças para colocar no caixão.
Gray encontrara uma cópia do filme preferido de Monk. Ele o deixara no apartamento de Gray depois de uma noite de pizza e pipocas. A noviça rebelde. Monk conhecia todos os diálogos, e cantava junto enquanto balançava Penélope no joelho. Monk era o homem com o maior coração que ele conhecera.
Ele teria sido um grande pai.
Gray foi até o balanço da varanda. Tirou do bolso sua carta de demissão dobrada em três, um pouco amassada. Alisou as dobras entre o polegar e o indicador. Ele gostaria de poder conversar com Monk sobre aquilo.
Ao sentar, ouviu algo arranhando entre as caixas.
Os esquilos da vizinhança eram ousados.
Droga, as tortas...
Gray levantou-se e foi até a pilha. Mas o barulho não vinha da sacola de tortas. Ele franziu o cenho. Ele revirou tudo até encontrar a caixa certa. Que diabo é isso?
Gray tirou a tampa.
Painter não tinha apenas pedido o conserto da perna do seu pai e do Thunderbird danificado. Ele não queria mandar a mão de Monk para baixo da terra carbonizada como ficara. Então mandou que a prótese fosse cuidadosamente restaurada. Ela estava em um molde de espuma.
Só que agora um dos dedos estava cavando a espuma.
Gray levantou a mão. O indicador se mexeu no ar. Gray sentiu um arrepio. E se Kat tivesse visto aquilo?
Devia ser um curto-circuito.
Ele colocou a mão na cadeira da varanda. O dedo continuou a se mexer, batendo no assento de madeira. Gray virou-se, incomodado. Pegou seu telefone celular, pronto para amaldiçoar quem quer que tivesse feito besteira na Sigma.
Mas, enquanto discava, seu ouvido permanecia morbidamente atento às batidas. Enquanto ouvia, Gray se deu conta de que elas seguiam um padrão.
Em código Morse.
Um conhecido aviso de problemas.
S.O.S.
Gray virou-se, olhando para baixo, para a mão. Não era possível.
— Monk...?
14:45h
Montanhas Cardamom, Camboja
Susan Tunis subiu a ravina íngreme da montanha cercada de floresta acompanhando a brilhante queda-d'água. Uma bela névoa pairava no ar, cintilando à luz do sol. Um gibão-de-crista gritou em protesto contra sua passagem, pendurado por um braço em uma trepadeira, o rosto negro emoldurado por pelagem cinza.
Ela continuou em frente, movendo-se pela floresta tropical com um propósito. As montanhas Cardamom eram a fronteira entre o Camboja e a Tailândia, uma terra inóspita de florestas densas e montanhas inacessíveis. No seu quarto dia nas montanhas, dormindo em uma rede sob um mosquiteiro, ela vira um perigoso tigre da Indochina, com seu corpo sólido e listras estreitas. Ele deslizou pela floresta, dando um rugido baixo.
Fora isso, não vira nada maior do que o gibão barulhento.
Certamente não pessoas.
Em função do isolamento e do terreno difícil, as montanhas tinham sido o último refúgio dos guerrilheiros do Khmer Vermelho, que se refugiaram lá por causa da topografia. Minas terrestres ainda eram um grande perigo.
Mas Susan suspeitava de que estava bem além do ponto em que mesmo os guerrilheiros tinham ousado ir. Ela chegou ao alto de uma montanha e seguiu a corrente por um platô arborizado. À frente, pequenas formas deslizaram para a água, saindo de abrigos em troncos.
Batagur baska.
Tartarugas de rio asiáticas. Uma das espécies mais ameaçadas do planeta. Também conhecida como Tartaruga Real, reverenciada como guardiã dos deuses.
Ali era o lar delas.
Logo depois de seus ninhos de lama e túneis de hibernação, Susan se deparou com um conjunto de jarros junto ao rio, potes de cerâmica cilíndricos com 90 centímetros de altura cobertos de musgo, gravados com intrincados desenhos. Antigos vasos funerários. Eles continham os ossos de reis e rainhas. Havia vários sítios assim espalhados pelas montanhas, considerados muito sagrados.
Mas ninguém visitara aquele sítio específico, o mais antigo de todos.
Susan se afastou do rio e atravessou o cemitério. Os vasos funerários diminuíam à medida que a floresta terminava em um penhasco irregular.
Ela sabia para onde tinha que ir, sabia desde o momento em que fora ressuscitada pela dra. Cummings. Ela conseguira mais do que apenas a cura para o mundo. Mas não contara a ninguém.
Não era a hora.
Susan chegou ao penhasco e se dirigiu a uma fenda em forma de relâmpago, com 60 centímetros de largura na base. Ela empurrou sua mochila e virou de lado para passar pela abertura. Deu passos pequenos, deslizando cada vez mais para o fundo. Atrás dela, a luz do sul diminuía, tornando-se cada vez mais fina.
Logo ela estava na escuridão completa.
Susan estendeu uma das mãos, esticando o braço para a frente. Um fogo ardente, vindo de dentro, queimou-lhe a ponta dos dedos e se espalhou pelo ombro. Ela ergueu o braço como uma lamparina.
Era outro segredo que ela guardara.
Mas não era o maior deles.
Iluminando seu próprio caminho, ela foi ainda mais fundo. Não sabia há quanto tempo viajava, tendo perdido a clara noção das horas. Mas certamente era tarde da noite.
Finalmente surgiu um brilho, chegando até ela.
Dando-lhe as boas-vindas.
Igual ao seu.
Ela continuou no mesmo ritmo, não sentindo necessidade de se apressar.
Por fim, ela chegou a um grande vão. A fonte da luz era clara. Espalhando-se a distância, pequenos fogos brilhavam como estrelas espalhadas pelo piso abaulado. Centenas e centenas. Ela caminhou para dentro da caverna, passando pelos fogos.
Cada um deles era uma figura, estendida no chão, queimando com um fogo interno, transformando carne em uma translucidez cristalina. Ela olhou para uma delas. Só o que podia ser visto era o sistema nervoso: cérebro, medula espinal e o vasto emaranhado de nervos periféricos. Os braços estendidos, cobertos de fibras filamentosas, pareciam asas abertas, adornadas com tufos de feixes nervosos.
Anjos no escuro.
Adormecidos, esperando.
Susan seguiu em frente. Ela chegou a uma figura que não estava tão consumida, que ainda apresentava a batida de um coração e o fluxo do sangue, os ossos ainda surgindo em forma e função.
Susan encontrou um espaço vazio ao seu lado e se deitou. Ela esticou os braços. As pontas de seus dedos tocaram seu vizinho.
As palavras chegaram a ela em um antigo dialeto italiano, mas ela compreendeu.
Foi feito?
Ela suspirou. Sim. Eu sou a última. A fonte foi destruída.
Então descanse, criança.
Por quanto tempo? Quando o mundo estará pronto?
Ele respondeu a ela. Seria um sono muito longo.
O que eu devo fazer?
Vá para casa, criança... por ora, vá para casa.
Susan fechou os olhos e deixou que aquilo que precisava dormir saísse. Ela deslizou para dentro da bolha que compunha a inteireza de sua vida e a atravessou para o que havia além.
A luz cegou-a como se ela olhasse diretamente para o sol. Ela baixou os olhos, piscando. O mundo ressurgiu ao redor dela. O balanço gentil do barco sob seus pés nus. O grito de uma gaivota solitária, as ondas batendo contra o casco e o vento varrendo sua pele.
Era um sono, uma lembrança... ou algo mais?
Ela respirou o ar salgado. Um belo dia.
Foi até a amurada do barco e olhou para a imensidão azul. Ilhas verdes surgiam a distância. Algumas nuvens passavam. Ela ouviu o barulho de passos na escada que subia da cabine.
Enquanto se virava ele apareceu, erguendo-se com os braços, usando short e uma camiseta Ocean Pacific. Ele a viu, com uma expressão surpresa.
Então sorriu.
— Ah, você está aí.
Susan correu para Gregg, passando os braços ao redor do marido. Embaixo, Oscar latiu. Uma voz ranzinza gritou com o velho cão. Susan mais uma vez se aninhou no marido, ouvindo as batidas do seu coração.
Ele a abraçou também.
— O que há, Susan?
Ela ergueu os olhos para o rosto de Gregg, levou os dedos à barba de três dias em seu queixo. Então ficou na ponta dos pés para alcançar seus lábios.
Ele se curvou para chegar a ela.
E ela soube que estava em casa.
NOTA DO AUTOR
Verdade ou ficção
Mais uma vez, obrigado por me acompanhar nesta viagem! Como de hábito, acho que posso usar estas últimas páginas para fazer uma inspeção do romance, separar fatos de ficção. Dividi a inspeção em tópicos gerais:
MARCO POLO: O início do romance aborda o principal mistério relativo ao destino da frota de Polo em sua viagem de volta a Veneza. Ainda é um mistério o que aconteceu aos navios e homens. Continua a haver boatos do possível caso amoroso de Marco com a princesa Kokejin, principalmente porque ele morreu tendo a coroa da princesa sob sua posse. Quanto ao corpo de Marco após sua morte, ele de fato desapareceu da igreja de San Lorenzo, e seu paradeiro é desconhecido.
ESCRITA ANGÉLICA E OUTRAS QUESTÕES DE LINGUAGEM: A escrita angélica foi desenvolvida por Johannes Trithemius e Heinrich Agrippa, que alegaram que, estudando aqueles símbolos, era possível comunicar-se com anjos. A escrita era derivada de caracteres hebraicos antigos. Da mesma forma, adeptos da cabala judaica acreditam que é possível abrir passagens secretas para a sabedoria interior estudando as formas e curvas de seus caracteres. Finalmente, chegando aos tempos modernos, fazemos a pergunta: há uma linguagem oculta sepultada em nosso código genético? De acordo com um artigo na revista Science (1994), a resposta é um sonoro sim. Embora ainda não se saiba o que pode estar escrito ali.
PESTES: Eyam, uma aldeia na Inglaterra, de fato teve uma taxa incomum de sobrevivência durante a Peste Negra, como resultado de uma anormalidade genética de metade de sua população. Estranho, mas verdade. Quanto ao antraz, a única diferença entre a forma mortal dessa bactéria e sua pacífica prima de jardim são dois anéis de código genético chamados plasmídeos. O que leva à pergunta: de onde vêm esses plasmídeos?
FAUNA: Os caranguejos-vermelhos terrestres da ilha Christmas de fato fazem uma migração espetacular todos os anos, na qual milhões de grandes caranguejos viajam para o mar. Também se sabe que suas tenazes furam pneus. Quanto às fascíolas hepáticas, a descrição de seu estranho e perturbador ciclo vital é precisa. Quanto às lulas predadoras, eu me baseei na espécie Taningia danae, que chega a quase 2 metros de comprimento, vive em bandos, tem luzes brilhantes e apresenta garras nas ventosas.
CANIBAIS E PIRATAS: A pirataria indonésia ainda é uma indústria próspera. Peguem os formulários de inscrição no fundo da sala. Quanto a canibais, ainda podem ser encontradas tribos nas ilhas da Indonésia, mas você terá de levar seus próprios temperos. Quanto à condição genética conhecida como Prader-Willi (que provoca um apetite insaciável), é um quadro real e horrível, mas não está de modo algum ligado ao canibalismo. Teremos um dia sido todos canibais? As atuais pesquisas genéticas revelam que os humanos têm um conjunto específico de genes contra doenças que só podem ser contraídas pelo consumo de carne humana.
ANGKOR: Todos os detalhes das ruínas — desde a mitologia da Batida do Leite aos duzentos rostos de pedra de bodhisattvas — são precisos, incluindo o modo como os templos foram construídos para imitar padrões de estrelas, especificamente a constelação do Dragão. Para maiores detalhes, leia Heavens Mirrow, de Graham Hancock e Santha Faiia.
BACTÉRIAS: De fato há mares leitosos de algas brilhantes que surgem periodicamente. E, de acordo com uma série de artigos perturbadores do Los Angeles Times, nossos mares são cada vez mais ameaçados pelo ressurgimento de antigos limos, águas-vivas venenosas e nuvens tóxicas produzidos por mares de algas. Quanto à alegação mais estranha do romance: apenas 10% das células de nosso corpo são humanas (o restante são bactérias e parasitas). É verdade! Há um livro maravilhoso sobre esse tema que é tão horrendo quanto divertido: Human Wildlife, do dr. Robert Buckman. Mas não o leia antes de comer.
James Rollins
O melhor da literatura para todos os gostos e idades