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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOVA TRAIÇÃO DE JUDAS - P.2 / James Rollins
A NOVA TRAIÇÃO DE JUDAS - P.2 / James Rollins

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O choque retardou o ritmo da cena a um intervalo de tempo parado, silencioso.

De uma janela do segundo andar de Hagia Sophia, Gray observou a parte posterior da cabeça de Balthazar Pinosso explodir num jorro de sangue e ossos. Seu corpo dobrara-se na cintura em decorrência do impacto. Seus braços estenderam-se completamente para o lado. O telefone celular, ao ouvido um momento antes, voou de seus dedos, atingiu o pavimento e deslizou para longe.

O corpo do homenzarrão caiu no chão em seguida

Vigor ofegou ao lado de Gray, interrompendo a cena.

—        Oh, meu Deus... não...

 

 

 

 

Sons chegaram ruidosamente até eles: o eco do disparo, gritos vindos da praça. Gray recuou, respirando fundo para dar-se conta da implicação. Se Balthazar foi fuzilado...

—        Nasser sabia sobre ele — disse Vigor, terminando seu próprio pensamento lento. Estupefato, o monsenhor se conteve no peitoril da janela. — Nasser sabia que Balthazar estava aqui. Os atiradores de tocaia do monstro o mataram.

Gray não se sentia melhor, atordoado pela incompreensão e pela culpa. Ele enviara o homem para fora, ao encontro de um pelotão de fuzilamento.

Os gritos lá fora foram piorando, propagando-se para o interior da igreja. Pessoas correram, a maioria fugindo para o abrigo mais próximo, o santuário de Hagia Sophia.

Minutos atrás, Gray e Vigor tinham subido para o segundo andar da igreja, onde havia menos movimento de turistas, mantendo-se ocultos. Antes de sair, Balthazar informara o curador do museu de que Gray e Vigor já haviam partido, negando a necessidade de uma ambulância. Eles tinham ido até ali em cima para se certificarem de que tudo correra bem.

—        Isto aqui vai ficar apinhado de policiais — disse Gray. — Temos que nos esconder.

Vigor segurou na manga de Gray.

—        Sua mãe e seu pai...

Ele sacudiu a cabeça, pois não tinha tempo para pensar naquilo. Nasser advertira contra qualquer estratagema. Porém, uma vez expresso em voz alta, Gray não conseguiu escapar ao terror. Sua respiração tornou-se mais pesada, e ele ficou tonto. Os pais de Gray também sofreriam por causa daquele erro.

Como Nasser soubera a respeito de Balthazar?

Vigor continuou a olhar pela janela. Os dedos do monsenhor apertaram os braços de Gray.

—        Deus do céu... o que ela está fazendo agora?

Gray voltou toda a sua atenção para a praça aberta abaixo da fachada ocidental. Enquanto as pessoas fugiam da praça ou se agachavam de medo, apenas uma figura corria em linha reta em meio a toda a confusão. Ela mancava ligeiramente, poupando o lado esquerdo do corpo.

Seichan.

Por que ela estava vindo até ali?

Próximo da igreja, uma vibração de fagulhas cintilou junto aos calcanhares dela. Alguém estava atirando contra ela. Os homens de Nasser. Porém, a súbita aparição dela pegara de surpresa os atiradores de tocaia. Com ordens para impedir que Gray e seus companheiros saíssem da igreja, eles não haviam esperado alguém correndo em direção a ela.

Seichan avançou mais depressa, apostando corrida com a morte.

 

Sem conseguir ver de onde partia o ataque, Seichan praguejou. Então Nasser mandara um ou dois atiradores de tocaia se posicionarem lá fora. Ela não conseguira distingui-los mais cedo. Por outro lado, os atiradores tiveram muito tempo para se esconder bem. Seichan não previra que havia um traidor no grupo. Balthazar passara toda a manhã em Hagia Sophia, preparando uma pequena cilada.

Ela arremeteu através das Portas Imperiais e abaixou-se de encontro à parede interna. Será que havia pistoleiros ali também?

Seichan esquadrinhou a imensa extensão da nave. Assustadas pelos tiros, as pessoas encolhiam-se de medo nos cantos ou moviam-se em ondas enlouquecidas de confusão e pânico. Ela precisava encontrar Gray e Vigor.

Sirenes soaram a distância.

Uma mão agarrou a blusa dela. Num reflexo, ela empurrou uma pistola entre as costelas de seu alvo. Ele, porém, não recuou.

—        Seichan, o que aconteceu?

Era Gray, com o rosto tenso e pálido.

—        Gray... temos que sair daqui agora. Onde está o monsenhor?

Ele apontou para o poço de uma escada próxima. Vigor mantinha-se meio oculto à entrada e observava a multidão. Seichan foi com Gray até ele.

O monsenhor olhava para trás, para a entrada em arcada, com os olhos carregados de dor.

—        Nasser o matou com um tiro. Matou Balthazar.

—        Não — disse Seichan, acabando com qualquer mal-entendido. — Eu é que o matei.

Vigor recuou um passo. Gray deu uma guinada.

—        Ele estava trabalhando para Nasser — explicou Seichan.

A voz de Vigor ficou zangada.

—        Como é possível...?

—        Eu tenho fotos de dois anos atrás, de Nasser e Balthazar, nas quais o dinheiro mudava de mãos. — Ela olhou fixamente para Vigor. — Trabalhou com Nasser o tempo todo.

Seichan percebeu a descrença e endureceu a voz.

—        Monsenhor, quem chamou a sua atenção para a inscrição na Torre dos Ventos?

Vigor olhou na direção das portas, na direção do homem morto, agora fora de vista.

—        Antes de envolvermos vocês dois — insistiu Seichan —, Nasser e eu estávamos brincando de gato e rato através da Itália, procurando os primeiros fragmentos do enigma angélico. Ninguém deveria descobrir a minha marca invisível no Vaticano até eu telefonar para o senhor, alertá-lo para examinar o armário da torre com luz ultravioleta. O senhor acha que o seu amigo a encontrou por acaso?

—        Ele disse... um dos seus alunos...

—        Ele estava mentindo. Foi Nasser quem disse a ele. O sacana seguiu a mesma pista que eu. Ele usou Balthazar a fim de arregimentar o senhor para solucionar o enigma.

Vigor sentou-se na escada, cobrindo o rosto.

Seichan virou-se para Gray. Ele estava em pé a um passo de distância, com os olhos vidrados, reconfigurando todos os acontecimentos da manhã à luz daquela revelação. Ele devia ter percebido a atenção de Seichan.

—        Então Nasser sabe que estávamos tentando traí-lo — afirmou Gray. — Ele sabia que tínhamos a primeira chave. Ele sabe de tudo.

—        Não necessariamente. — Seichan puxou Vigor para cima pelo ombro e empurrou Gray na direção da igreja. — Foi por isso que tive que matá-lo. Eu não acho que Balthazar teve tempo de telefonar para Nasser depois que deixou vocês. Eu o matei antes que ele tivesse a oportunidade de se comunicar com Nasser e tornar as coisas piores.

—        Piores? — Gray parou, recusando-se a se mexer, com os olhos furiosos. — Você poderia tê-lo capturado. Nós poderíamos tê-lo usado contra Nasser. Havia mil opções!

—        Todas arriscadas demais! — Seichan aproximou-se, entrando no fogo. — Veja se isto entra nessa sua cabeça dura, Gray. O plano de Nasser, os nossos planos... todos eles estão interligados. É hora de esquecermos os rancores do passado. E temos que agir agora.

O rosto dele foi obscurecendo à medida que a raiva aumentava. Até mesmo seus olhos ficaram tempestuosos.

—        Quando o miserável descobrir o que você fez... o que nós fizemos... você simplesmente vai fazer com que meus pais sejam mortos!

Ela interrompeu-o com um ressonante tapa no rosto, fazendo-o recuar um passo. Atônito, ele investiu contra ela. Seichan não resistiu. Ele segurou-a pela gola, com a outra mão fechada em punho.

Ela manteve a voz calma diante da fúria dele.

—        Com aquele miserável morto, temos um curto período de confusão aqui. Nós devemos tirar proveito dele.

—        Mas meus pais...

Ela manteve a voz calma.

—        Gray, eles já estão mortos.

O punho fechado na blusa dela tremeu. O rosto dele contraiu-se intensamente, ficando vermelho e angustiado. Os olhos dele perscrutaram-na, pois ele precisava de alguém para culpar.

—        E se eles não estiverem mortos — prosseguiu ela —, se Nasser estiver mantendo-os vivos como uma segurança extra, então só temos uma esperança nesse caso.

A mão de Gray soltou-se do pescoço dela, mas permaneceu fechada.

—        Nós precisaremos de um grande trunfo — continuou ela. — Com o mesmo peso da vida dos seus pais.

Ela pôde ver a ira começando a diminuir nos olhos dele, a resistência extinguindo-se, as palavras sendo finalmente absorvidas.

—        E a segunda chave apenas não bastaria.

Ela sacudiu a cabeça.

—        Nós temos que ficar quietos. Mandar Vigor tirar a bateria do telefone celular para que ele não seja rastreado.

—        Mas como Nasser vai nos encontrar?

—        É hora de nós tirarmos o controle dele.

—        Mas quando ele tentar ligar para nós...?

—        Nasser ficará furioso. Talvez ele faça mal a um dos seus pais, ou a ambos, ou até mate um deles. Mas, até nos encontrar, ele manterá um deles vivo. Ele não é tolo. E essa é a nossa única esperança.

O telefone de Vigor começou a tocar. Todos ficaram paralisados por um instante. Então Vigor tirou-o do bolso. Ele olhou para o identificador de chamadas, engoliu em seco e passou o aparelho para Gray, que o pegou.

—        Nasser — confirmou ele.

—        Fala-se do diabo e ele aparece — sussurrou Seichan. — Um dos atiradores de tocaia deve ter ligado para ele, a fim de receber mais instruções. Provavelmente, esse é o único motivo por que eles ainda não tomaram o lugar de assalto. A morte de Balthazar pegou-os desprevenidos. Essa é a única oportunidade que nós temos.

Gray baixou os olhos para o telefone.

Seichan esperou.

Até que ponto esse homem era forte?

 

Os dedos de Gray recusavam-se a se mexer, apertados em torno do telefone.

O aparelho vibrou e voltou a tocar.

Ele quase pôde sentir a fúria emanando dele, uma raiva pronta para ser desencadeada contra sua mãe e seu pai. Ele queria desesperadamente atender: gritar, implorar, praguejar, negociar.

Porém, não tinha nenhum trunfo.

Não ainda.

—        Nasser ainda deve estar em pleno vôo — Gray finalmente murmurou olhando para o telefone.

—        O avião deve aterrissar daqui a cinco horas — concordou Seichan.

Gray deixou uma frieza percorrê-lo, mas seus dedos apertaram o telefone com mais força.

—        A bordo do avião, ele hesitará em tomar quaisquer decisões importantes. Ele vai esperar até o avião pousar antes de fazer uma avaliação definitiva.

—        E se até então ele não tiver recebido notícias suas...

Gray não conseguiu dizer as palavras. Ele apenas concordou com um aceno de cabeça. Nasser mataria seus pais. Ele não esperaria mais tempo. Puniria os pais de Gray e recorreria a uma nova estratégia.

Cinco horas.

—        Nós precisaremos de mais do que a segunda chave que encontramos aqui — disse ele. — Mais, até, do que da terceira chave.

Seichan concordou com a cabeça.

Gray ergueu o olhar para Seichan.

—        Precisaremos ter solucionado o enigma do obelisco. Precisaremos do mapa de Marco.

Seichan simplesmente o fitava, esperando.

Gray sabia o que tinha de fazer. Ele virou o telefone. Com dedos dormentes que não cooperavam, mexeu na bateria na parte de trás.

Vigor aproximou-se e cobriu os dedos de Gray com a palma de sua mão.

—        Você tem certeza, Gray?

Ele ergueu os olhos.

—        Não... não tenho certeza. Não tenho certeza de nada. — Ele soltou as mãos da do monsenhor e tirou a bateria do telefone, interrompendo o último toque no meio. — Mas isso não significa que eu não vou agir.

Gray virou-se para Seichan.

—        E agora?

—        Você acabou de lançar o desafio. Nasser vai telefonar para os seus capangas. Nós temos, talvez, um minuto ou dois. — Ela apontou para as profundezas da igreja. — Por aqui. Kowalski arrumou um carro. Ele vai nos encontrar na saída leste.

Ela os conduziu nave abaixo. Pessoas corriam de um lado para outro, inseguras, e vozes ecoavam. Sirenes aproximaram-se da localização deles. Seichan tirou alguma coisa do bolso.

—        Nasser também deve ter atiradores de tocaia nessa saída — disse Gray, andando a passos largos até ela.

Seichan estendeu a palma da mão.

—        Granada de choque. Uma bomba luminosa. Vamos detoná-la no centro. Quando todo mundo estiver se precipitando pelas saídas... nós também sairemos.

Gray franziu o cenho.

Vigor expressou sua preocupação quando eles contornaram uma multidão de estudantes, todos com os olhos arregalados e com medo, reunidos num grupo.

—        Se os atiradores de tocaia virem um de nós, eles abrirão fogo contra a multidão.

—        Não tem outro jeito. — Seichan apertou o passo. — Temos que correr o risco. Os homens de Nasser talvez já estejam vindo...

Um tiro soou alto na igreja.

Gray sentiu alguma coisa passar zumbindo por sua orelha. Um fragmento do mosaico na parede explodiu numa chuva dourada.

A multidão entrou em pânico, fugindo em todas as direções.

Vigor levou um empurrão, e caiu apoiado num dos joelhos. Gray puxou-o para cima quando um segundo tiro produziu fagulhas numa coluna de mármore. A detonação ecoou.

Permanecendo abaixado, o trio fugiu para o lado e seguiu ao longo da extensão da nave. Quando chegaram ao centro, Seichan preparou-se para puxar o pino da granada.

Gray segurou a mão dela, contendo-a.

—        É a única maneira — disse ela. — Pode haver mais atiradores à nossa frente. Precisaremos passar por eles para chegarmos à saída.

E se formos vistos no meio da multidão, pensou ele, quantas pessoas inocentes serão mortas?

Ele apontou.

—        Existe outra maneira.

Ainda com a mão segurando a dela, ele os conduziu para o lado sul, na direção da parede com andaime que havia escalado antes.

—        Vamos, subam! — disse ele.

Contudo, restava um obstáculo.

O guarda junto ao andaime não havia fugido de seu posto. Permanecia agachado atrás de uma barreira de madeira, com o rifle apontado, pronto para atirar.

Gray pegou a granada dos dedos de Seichan, puxou o pino e lançou-a atrás da barreira.

—        Feche os olhos! — ele gritou para Vigor, puxando o monsenhor para baixo. — Tape os ouvidos.

Seichan agachou-se, os braços em torno da cabeça.

A explosão deu a sensação de um chute no estômago. Um estrondo sônico aprisionado em pedra. Um clarão ardeu através das pálpebras de Gray, mesmo com a cabeça virada.

Então acabou.

Gray puxou Vigor para cima. Gritos ecoaram, soando abafados através do som residual em seus ouvidos. Ele correu em direção ao enorme andaime. As multidões se dividiram, fugindo rumo às saídas leste e oeste.

Mas eles não as acompanhariam.

O guarda estava caído de costas junto ao andaime, aturdido, gemendo.

Ele teria uma terrível dor de cabeça, mas viveria.

Gray pegou o rifle do guarda e fez sinal para que Seichan e Vigor subissem a escada do andaime. Eles tinham de ser rápidos. A fuga dos turistas retardaria os atiradores, mas não por muito tempo.

Ele subiu depois de Seichan e de Vigor.

—        Aonde estamos indo? — perguntou Seichan. — Seremos alvos fáceis aqui em cima!

—        Continuem! — instou Gray. — Fujam lá para cima!

Eles subiram, dando uma porção de voltas, pulando os degraus.

Estavam já a meio caminho quando uma rajada de tiros de um rifle automático soou das escoras, disparados a esmo, mas eficazes o bastante para expulsá-los da escada externa para o coração do andaime. Eles correram ao longo da plataforma de tábuas daquele nível.

Gray seguia adiante dos outros.

—        Por aqui!

Meio agachado, ele correu rumo à parede mais próxima.

Eles estavam no nível em que a cúpula assentava sobre a igreja. Uma fileira de janelas em arco — as mesmas janelas que haviam deixado tanto Gray quanto Marco maravilhados — circundava a base da cúpula.

Gray ergueu seu rifle e disparou contra a janela que ficava no fim daquele nível. O vidro estilhaçou-se. Ele não diminuiu o ritmo. Chegou à janela e usou a coronha do rifle para remover mais da moldura da janela.

—        Vamos, saiam! — gritou para Seichan e Vigor.

Passaram apressadamente por ele enquanto mais tiros eram disparados atrás deles, ecoando das barras de aço e danificando a madeira.

Gray os seguiu, empoleirado num peitoril em forma de círculo. O sol da tarde brilhava intensamente.

Istambul estendia-se abaixo deles em toda a sua confusa beleza, com sua mistura caótica do antigo com o moderno. O mar de Mármara resplandecia com um azul-safira. Mais longe, a extensão suspensa da Ponte do Bósforo era visível, transpondo o estreito que conduzia ao mar Negro.

Não foi aquela obra de engenharia, porém, que prendeu a atenção de Gray.

Ele apontou para a fachada sul da igreja, para onde o andaime externo se unia àquele lado de Hagia Sophia que estava em reforma.

—        Vamos para lá!

Obedecendo, Vigor seguiu na frente contornando a cúpula, andando de lado ao longo do peitoril estreito. Assim que ficou no nível do andaime, Gray pulou do peitoril para o teto mais baixo inclinado. Escorregou de costas até o andaime, segurando seu rifle no alto.

Ele se chocou com as escoras, dando meia-volta. Seichan já se aproximava, mantendo-se em pé, meio correndo, meio esquiando, indiferente ao perigo. Vigor foi mais cauteloso: desceu de costas, movendo-se depressa, aos trancos e barrancos.

Seichan parou em um ponto estável, com os braços estendidos para segurar um suporte.

O telefone celular dela estava à vista, e ela gritava nele.

Gray segurou Vigor e ajudou o monsenhor a passar sob o balaústre para a escada do andaime. Eles fugiram escada abaixo. Por sorte, não havia nenhum guarda naquele lado. A agitação devia tê-lo afastado dali.

Chegando ao chão, Seichan seguiu na frente por uma pequena área verde para uma rua lateral. Um táxi amarelo derrapou na suspensão dianteira na esquina afastada, fazendo os pneus cantarem, e avançou a toda a velocidade na direção deles. Seichan recuou, com os olhos escancarados de confusão.

O táxi surrado bateu de raspão no meio-fio no último instante e freou, parando com um guincho.

O motorista inclinou-se para as janelas abertas dos bancos de passageiros.

—        Que diabo vocês estão esperando? Vamos, entrem! Kowalski.

Gray embarcou na frente; Seichan e Vigor, atrás. As portas se fecharam com um estrondo.

Kowalski arrancou, levantando fumaça dos pneus e saindo a grande velocidade.

Seichan lutou contra a aceleração o suficiente para inclinar-se para a frente.

—        Este não é o carro que eu deixei com você!

—        Aquela merda japonesa?! Este é um Peugeot 405 Mi 16, do início da década de 1990, maravilhoso para dirigir em alta velocidade.

Para provar isso, Kowalski mudou as rotações por minuto do motor, reduziu a marcha para fazer a curva seguinte, deu uma guinada no volante, jogando-os todos para a esquerda, depois pisou fundo no acelerador e disparou pela curva como um foguete.

Seichan voltou a aprumar-se, com o rosto vermelho.

—        Onde...?

Sirenes irromperam atrás deles, dobrando a mesma esquina.

—        Você o roubou — disse Gray.

Inclinando-se para a frente, com o nariz quase encostando no volante, Kowalski deu de ombros.

—        Você diz roubo de carro. Eu digo empréstimo.

Gray virou-se. O carro resplandecente da polícia desaparecia na distância, superado pelo motor deles.

Kowalski dobrou a esquina seguinte em grande velocidade, jogando-os todos na outra direção, enumerando as características do carro.

—        Ele tem uma relação perfeita entre peso e potência, a direção hidráulica aumenta a velocidades mais altas... Ah, sim! E tem teto solar. — Ele ergueu a mão da alavanca de câmbio para apontar para cima. — Legal, né?

Gray recostou-se.

Kowalski escapou da polícia em mais duas curvas. Um minuto mais tarde, eles estavam perdendo tempo no trânsito intenso que saía do bairro antigo de Istambul, perdidos num mar de táxis.

Gray afinal se acalmou o bastante para se virar para Seichan.

—        Cinco horas — disse ele. — Precisamos chegar a Ormuz.

—        A ilha de Ormuz — detalhou Vigor. — Na boca do golfo Pérsico.

Seichan mantinha uma das mãos contra o lado do corpo. O esforço devia estar exigindo um alto tributo dela. Ela estava pálida, mas concordou com a cabeça.

—        Eu conheço o lugar. Muitos contrabandistas em geral e contrabandistas de armas em particular usam a ilha, atravessando de Omã para o Irã. Não deve ser um problema.

—        Quanto tempo?

—        Três horas, de jato particular e hidroavião. Eu conheço um homem.

Gray consultou o relógio. Isso só lhes deixava duas horas para encontrar a última chave e usá-la junto com as outras para decifrar o enigma do obelisco. Seu coração começou a bater com mais força de novo. A excitação dera origem ao receio pela vida de seus pais. Mas agora...

Ele estendeu uma das mãos para Seichan.

—        Eu preciso do seu celular.

—        Para telefonar para o Comando da Sigma?

—        Eu tenho que colocá-los a par do que aconteceu.

Gray interpretou a expressão dela. Ela sabia que ele estava omitindo o verdadeiro motivo. Ainda assim, entregou-lhe o telefone.

Ele reclinou-se. Em poucos instantes, o Diretor Crowe estava na linha. Ele colocou Painter a par de todos os acontecimentos recentes, desde a descoberta da segunda chave até a fuga deles.

—        Então era o Vaticano que havia sido infiltrado por um espião da Guilda — disse Painter, suas palavras aumentando e diminuindo um pouco de intensidade. — Mas, Gray, não acho que possa fazer muito por vocês na ilha, pois é território iraniano. Especialmente num período de tempo tão curto. Não sem alertar agências de inteligência em todo o Oriente Médio.

—        Eu não quero que o senhor intervenha — disse Gray. — Apenas... por favor... meus pais...

—        Eu sei, Gray... Eu entendi. Nós os encontraremos.

Apesar da promessa, Gray percebeu a hesitação na voz do diretor, as palavras não-ditas.

Se os seus pais ainda estiverem vivos.

 

Eles iam mudar de esconderijo outra vez.

Harriet equilibrava um copo de água contra os lábios do marido. Usando calças e blusão de moletom, ele estava amarrado a uma cadeira.

—        Jack, você precisa beber. Engula.

Ele resistiu.

—        Enfie esse comprimido nele goela abaixo — gritou a mulher —, ou vou empurrá-lo pelo rabo dele!

As mãos de Harriet tremeram.

—        Por favor, Jack, beba.

Annishen estava perdendo a paciência. A mulher, vestida de couro preto, havia recebido um telefonema cinco minutos atrás e chamado os outros guardas, até mesmo os que estavam na rua. Harriet havia sido arrastada da antiga câmara frigorífica, na qual ficara trancada a noite toda. O lugar era assustador. Uma única lâmpada nua brilhava sobre uma fileira dupla de ganchos de carne, pendurados ao longo de trilhos no teto. Manchas de sangue fresco haviam deixado vestígios no chão, depois de terem sido lavadas de forma negligente na direção do ralo no centro da câmara frigorífica. Então veio o telefonema.

Harriet havia sido arrastada para fora para cuidar do marido. Jack fora mantido separado dela. Eles não a deixaram ficar com ele. Passara a noite inteira temendo pela vida dele. Ele mal estivera consciente depois de ter sido atingido pela Taser no quarto de hotel. Ela ficou horrorizada ao encontrá-lo amarrado na cadeira e amordaçado, mas afora isso ele parecia ileso.

Ele se debateu contra as cordas que o prendiam quando voltou a vê-la. Mas ele na verdade não a reconheceu, não inteiramente. Ele permanecia num estado de dissociação, causado por todo o estresse, pela quase eletrocussão e por ter despertado amarrado e amordaçado.

—        Esqueça — disse Annishen finalmente, segurando o ombro de Harriet. — Os comprimidos que a senhora deu a ele antes não surtiram efeito algum.

—        Ele já estava agitado — disse ela, implorando. — Leva tempo... e regularidade da dosagem. Ele precisa desse comprimido.

Annishen acenou para ela.

—        Mais uma tentativa.

Harriet inclinou-se em direção ao rosto do marido, segurando a cabeça dele com uma das mãos e o copo na outra. Ele deu um solavanco para trás, mas ela segurou-o com força.

—        Jack, eu te amo. Por favor, beba. Por mim.

Ela gotejou água sobre a boca dele, e seus lábios finalmente se afastaram, um reflexo animal. Ele devia estar com sede, e por fim bebeu, engolindo com sofreguidão a água oferecida, que pareceu acalmá-lo. Ele arqueou nas cordas que o amarravam.

Harriet suspirou de alívio.

—        Ele tomou? — indagou Annishen.

—        O remédio deverá acalmá-lo em cerca de uma hora.

—        Nós não temos uma hora.

—        Eu compreendo... mas...

Harriet sabia que alguém devia estar procurando por eles. Quanto mais tempo ficassem num lugar, maior a probabilidade de que pudessem ser rastreados. Quanto mais eles se movessem, mais a trilha esfriaria.

—        Levantem-no! — disse Annishen.

A mulher segurou Harriet pela parte de trás da gola da blusa e a pôs em pé. Ela era forte, e empurrou Harriet para a saída dos fundos. Os capangas dela desamarraram Jack. O marido de Harriet foi erguido entre os dois homens armênios, grandes como gorilas, com sobrancelhas espessas. Um deles tinha uma pistola num bolso da jaqueta, pressionada nas costas do prisioneiro.

Annishen segurou o cotovelo de Harriet.

Jack gritou, debatendo-se, quando eles começaram a fazê-lo andar.

—        Nããão!

—        Talvez a gente tenha que dar mais um choque nele — disse o guarda com um forte sotaque.

—        Por favor, não façam isso — implorou Harriet. — Eu posso mantê-lo calmo.

O guarda ignorou-a.

Annishen parecia estar pesando essa opção.

—        É dia claro — disse Harriet. — Se vocês o carregarem inconsciente para fora...

—        Há tavernas na rua — disse um dos guardas. — Eu derramo vodca na camisa dele, e ninguém vai pensar duas vezes.

Annishen irritou-se com a idéia. Harriet imaginou que fosse principalmente pelo fato de a idéia não ser dela própria. Ela empurrou Harriet na direção de Jack.

—        Mantenha-o calmo, ou vou usar a Taser nele até ele virar um nenezinho babão.

Harriet correu para o lado do marido. Ela tomou o lugar de um dos guardas, passando um dos braços em torno da cintura de Jack. Com a outra mão, esfregou o peito dele.

—        Está tudo bem, Jack. Está tudo bem. Nós temos que ir.

Ele olhou com desconfiança para ela, mas o aspecto zangado em seus olhos e lábios suavizou-se.

—        Eu quero... ir para casa.

—        É para lá que estamos indo... Agora vamos, não crie confusão.

Jack permitiu que eles o levassem até a saída dos fundos, para um beco estreito, cuja largura mal era suficiente para a lata de lixo transbordante. A luz do sol feriu os olhos dela.

Dali eles foram conduzidos para a rua.

Tinham estado num açougue lacrado com tábuas, um de uma série de estabelecimentos comerciais fechados naquele quarteirão. Harriet olhou ao redor à procura de pontos de referência. Eles estavam em algum lugar em Arlington. Harriet sabia que eles haviam cruzado o Potomac depois de terem sido seqüestrados.

Mas onde?

Um furgão preto Dodge estava estacionado a meio quarteirão de distância.

O trânsito da manhã já estava se intensificando. Alguns homens e mulheres sem-teto estavam reunidos num nicho de uma lavanderia automática. Um carrinho de supermercado estava parado perto deles, repleto de sacolas de plástico cheias.

Annishen ignorou os sem-teto e conduziu o grupo para o furgão. Ela destrancou-o com o controle remoto, e a porta da parte traseira abriu-se sozinha.

Jack caminhava num atordoamento apático, mal notando o ambiente ao seu redor.

Harriet esperou até que eles estivessem próximos dos homens reunidos em volta do carrinho de supermercado. Sua mão direita ainda estava pousada na barriga de Jack.

Sinto muito.

Ela apertou a pele dele por cima da camisa e torceu-a.

Jack empertigou-se com um safanão, saindo de sua passividade.

—        Nããão!

Ele resistiu ao guarda.

—        Eu não conheço vocês! — gritou ele. — Afastem-se de mim!

Harriet deu-lhe um puxão.

—        Jack... Jack... Jack. Acalme-se.

Ele a golpeou, atingindo-a com força no ombro.

—        Ei! — gritou um dos sem-teto, um homem esquelético, com uma barba áspera. Ele segurava uma garrafa, protegida num saco de papel. — O que é que vocês estão fazendo com esse cara?

Alguns rostos dentro da lavanderia ergueram-se a fim de olhar pelas janelas cheias de listras formadas pelo vapor.

Annishen voltou na direção de Harriet. Ela exibia um sorriso discreto e olhava diretamente para Harriet. Trazia uma das mãos no bolso de seu suéter leve com capuz, numa óbvia ameaça.

Harriet esfregou a barriga de Jack e olhou para o estranho de barba.

—        Ele é meu marido. Ele sofre do mal de Alzheimer. Nós estamos... nós estamos levando-o ao hospital.

Suas palavras amenizaram o semblante desconfiado do homem. Ele acenou com a cabeça.

—        Sinto muito em saber disso, minha senhora.

—        Obrigada.

Harriet conduziu Jack para dentro do furgão. Logo eles estavam acomodados, e as portas foram fechadas. Annishen estava sentada no banco de passageiros dianteiro. Quando eles se afastaram, ela virou-se para Harriet.

—        É melhor que esses comprimidos surtam efeito — disse ela. — Ou da próxima vez vamos deixá-lo pendurado num daqueles ganchos de açougue.

Harriet concordou com a cabeça.

Annishen virou-se para a frente.

Um dos homens estendeu a mão do assento traseiro e puxou um capuz preto sobre a cabeça dela. Harriet ouviu um gemido de protesto de Jack quando fizeram o mesmo com ele. Ela estendeu uma das mãos e apertou a mão do marido. Os dedos dele apertaram os dela, ainda que apenas num reflexo de amor.

Sinto muito, Jack...

A outra mão de Harriet deslizou para dentro do bolso de seu suéter. As pontas de seus dedos tocaram a pilha de comprimidos — os comprimidos que ela apenas fingira dar ao marido. Antes e agora. Ela precisava manter Jack agitado, confuso o bastante para exprimir suas emoções sem estar consciente disso.

Para ser visto... para ser lembrado.

Ela fechou os olhos, desesperando-se.

Perdoe-me, Senhor.

 

O hidroavião russo, um Beriev 103, seguiu pela costa depois de decolar do Aeroporto Internacional da Ilha de Qeshm e sobrevoou as águas verde-azuladas do estreito de Ormuz.

Gray ficou impressionado com o curto tempo gasto com os trâmites burocráticos no aeroporto. O avião que eles haviam tomado em Istambul aterrissara apenas dez minutos atrás. O avião anfíbio os esperava: abastecido, com o motor aquecido, as hélices duplas girando lentamente. Com três conjuntos de assentos emparelhados, dispostos um atrás do outro, a aeronave acomodava apenas seis pessoas, incluindo o piloto.

Mas era rápida.

A travessia marítima até a ilha de Ormuz não levaria mais de vinte minutos. Eles tinham viajado depressa. No entanto, teriam apenas duas horas para encontrar a última chave e usá-la junto com as outras a fim de decifrar a escrita angélica no obelisco.

Gray usara o tempo a bordo do jato particular, providenciado por meio das relações de Seichan no mercado negro, para estudar o complicado código do obelisco. Mesmo num vôo curto como aquele, cada minuto contava. Sentado so¬zinho na fileira de trás, ele pegou seu bloco de anotações de novo, rabiscado com apontamentos e possibilidades. Ele já havia tentado converter todos os símbolos do obelisco em letras, como Vigor fizera com a escrita angélica no Vaticano, que revelou a palavra HAGIA. Porém, não fizera nenhum progresso efetivo.

Mesmo com a ajuda de Vigor.

No jato, os dois haviam se debruçado sobre o criptograma. Vigor era melhor em línguas antigas. Mas o esforço foi inútil. A decodificação se tornava particularmente difícil porque eles não sabiam qual das quatro superfícies do obelisco era o ponto de partida, e em que direção a inscrição deveria ser lida, se no sentido horário ou anti-horário.

Isso criava oito possibilidades.

Vigor por fim esfregara os olhos, admitindo a derrota. — Sem a terceira chave, jamais solucionaremos isso.

Gray recusava-se a acreditar. Os dois haviam até se envolvido numa breve discussão. Eles decidiram mutuamente fazer uma pausa, a fim de parar de quebrar a cabeça com o enigma. Gray sabia que grande parte da rudeza de seu temperamento estava relacionada com o nó em seu estômago.

Mesmo agora ele sentia vontade de vomitar. Cada vez que fechava os olhos, imaginava o rosto de sua mãe, via a culpa nos olhos de seu pai.

Por isso Gray parou de fechar os olhos e continuou a trabalhar.

Era tudo o que podia fazer.

Ele voltou a olhar atentamente para uma das páginas de substituição de letras.

Mais sete possibilidades cobriam as páginas seguintes.

Qual delas estava certa? Por onde começar?

Adiante, um ronco alto chamou sua atenção. Kowalski já caíra no sono. Provavelmente, antes mesmo de as rodas se erguerem da pista de decolagem.

Vigor ocupava o assento ao lado, examinando com atenção o diário de seda outra vez. Sem dúvida, era um beco sem saída. O monsenhor olhou de cara feia na direção do ronco de Kowalski e desafivelou seu cinto de segurança. Ele se moveu suavemente para juntar-se a Gray e desabou no assento ao lado, com o manuscrito nas mãos.

Houve um momento de silêncio embaraçoso.

Gray fechou seu bloco de anotações.

— Estou de volta... ao ponto anterior...

—        Eu sei. — Vigor estendeu a mão e bateu de leve na de Gray. — Todos nós estamos preocupados. Mas eu queria lhe mostrar uma coisa. Saber sua opinião.

Gray empertigou-se.

—        Claro.

—        Eu sei que você quer solucionar o código do obelisco. Mas, como estamos prestes a pousar, talvez agora seja um bom momento de imaginarmos onde na ilha de Ormuz a terceira chave poderia estar.

—        Pensei que já soubéssemos onde procurar — disse Gray.

Incapaz de resistir, ele tornou a abrir o bloco de anotações e bateu de leve no símbolo angélico encontrado no verso do terceiro paitzu de ouro.

Eles o haviam comparado com um mapa da ilha e descoberto que o círculo negro marcava o local das ruínas de um antigo castelo português, construído cerca de um século antes de as chaves serem ocultas. Em seu apogeu, ele fora uma importante fortaleza. Construído num istmo e separado por um fosso, dava vista para a cidade de Ormuz e para os melhores portos de ancoragem. Para os místicos do Vaticano à procura de uma chave oculta pelos séculos afora, o castelo teria parecido um bom lugar.

Eles estavam seguindo agora para as ruínas dele.

Vigor concordou com a cabeça.

—        Sim, o castelo português. Mas o que eu quis dizer foi por que vamos procurar lá. Se soubéssemos isso, poderíamos imaginar o que procurar dentro das ruínas do castelo.

—        Tudo bem, então por onde começamos?

Vigor apontou através da janela de Gray. A ilha podia ser vista adiante.

—        Ormuz era um importante porto comercial, cujas principais atividades eram o comércio de jóias, de especiarias e de escravos. Era tão importante que os portugueses o invadiram no século XVI e construíram seu castelo. Mas, na época de Marco, ele também era importante o suficiente para que Kublai Khan mandasse uma moça de sua família para cá a fim de se casar.

—        Kokejin, a Princesa Azul.

—        Foi um arranjo puramente comercial. Na verdade, o rei persa de quem ela estava noiva morreu enquanto Marco e Kokejin estavam a caminho. Ela acabou desposando o filho do homem. Mas também foi um casamento de conveniência. Ela veio a falecer apenas três anos depois. Alguns dizem que por suas próprias mãos, outros dizem que foi porque ela estava se consumindo por outro amor.

Gray virou-se.

—        O senhor não está querendo dizer...

—        O próprio Marco só se casou depois da morte de Kokejin. E, quando Marco morreu, ele tinha dois tesouros em seu quarto. O paitzu de ouro que Kublai Khan lhe dera e um adorno de cabeça de ouro, incrustado de pedras preciosas. — Vigor olhou incisivamente para ele. — Um adorno de cabeça de uma princesa.

Gray empertigou-se, imaginando a longa viagem de Marco, de dois anos, durante a qual ele explorara terras exóticas. Marco ainda era relativamente jovem quando deixou o palácio de Kublai Khan, tinha uns 35 ou 36 anos. Kokejin tinha 17 anos quando partiu da China, 19 quando chegou à Pérsia. Não era impossível imaginá-los se apaixonando, um amor que não poderia durar além de Ormuz.

Gray esfregou o local em que lutava contra uma dor de cabeça. Ele se lembrou do tijolo em Hagia Sophia, do interior envernizado de azul-escuro, um segredo oculto em pedra. Mas será que o tijolo também poderia representar o coração de Marco, um símbolo de seu amor secreto por Kokejin?

—        Além disso, esquecemos outra pista que nos foi deixada — continuou Vigor, erguendo o manuscrito. — A história estava bordada em seda. Por que em seda?

Gray deu de ombros.

—        É um material do Extremo Oriente, por onde Marco tinha viajado.

—        Sim, mas poderia significar algo mais?

Gray lembrou-se de Vigor debruçado sobre o texto, até mesmo examinando-o com uma lupa.

—        O que o senhor descobriu? — indagou ele.

O monsenhor ergueu o manuscrito.

—        Esta seda não era nova quando foi bordada com o texto. Ela estava fina de tão gasta e irregular. Eu descobri óleos e manchas antigas.

—        Quer dizer então que era um pedaço de seda usado.

—        Mas para quê ele foi usado? — perguntou Vigor. — Um dos usos mais comuns da seda — em razão de seu custo e raridade — era como mortalhas da realeza.

Vigor esperou, fitando Gray. Ele entendeu lentamente, imaginando um tijolo azul vazado. O assombro infiltrou-se em sua voz.

—        O senhor acha que poderia ser a mortalha de Kokejin?

—        Possivelmente. Mas, se eu estiver certo, sei o que temos que procurar naquele antigo castelo.

Gray também sabia.

—        O túmulo de Kokejin.

 

Acomodada no assento do co-piloto, Seichan teve uma ampla visão da ilha quando o hidroavião mergulhou na direção de uma enseada abrigada. Não era uma ilha grande, com no máximo 6,5 quilômetros de um lado ao outro. Seu centro era rochoso e montanhoso, com esparsas áreas verdes. A maior parte do litoral era formada por penhascos e por baías recortadas isoladas, onde havia muitos esconderijos de contrabandistas. Porém, ao norte, as encostas mais altas caíam mais suavemente em direção ao mar. Ali a terra se tornava mais verde, com tamareiras e campos cultivados, abrigando uma aldeiazinha de cabanas com o teto de palha.

Do ar, podiam-se divisar indícios de uma cidade mais antiga e maior: alicerces maciços, as pedras extraídas das colinas de sal-gema da ilha; algumas casas caindo aos pedaços, parecendo-se mais com pilhas de entulho; e um único minarete alto, outrora usado como farol pelos portugueses.

Mas não era aquele o destino deles.

O hidroavião inclinou uma asa e sobrevoou o istmo que se estendia ao norte da cidade velha. Na restinga, erguiam-se as ruínas do antigo castelo. Ele fora outrora separado da cidade velha por um amplo fosso, mas agora estava cheio de lodo, marcado apenas por uma linha afundada traçada de leste a oeste.

Quando o avião sobrevoou as ruínas, Seichan observou o alvo deles. O enorme forte era rodeado por diques altos, mas havia muito que o lado Oeste perdera a batalha com o mar, minado e derrubado aos poucos pelas ondas que o fustigavam. O lado Leste, abrigado por uma baía de águas tranqüilas, se saíra melhor.

O avião descreveu um ângulo para pousar nessa baía, mergulhando baixo, e em seguida deslizou pela água. Seichan teve um vislumbre de canhões de ferro enferrujados no teto do forte, e de mais seis na praia da baía, agora usados para amarrar os barcos ancorados. Na verdade, um pequeno barco de estanho estava amarrado a um deles. Uma pequena figura morena, usando apenas bermudas, acenou com um dos braços quando eles se aproximaram.

Seichan esperou que o rapaz fosse o guia que ela mandara vir da aldeia. Com apenas duas horas de sobra, eles precisavam de alguém que conhecesse o terreno do castelo.

O hidroavião costeou a água, deixando uma intensa esteira atrás de si quando pousou nas águas abrigadas. Seichan foi lançada para a frente em seu cinto de segurança, e sentiu uma pontada de dor no lado ferido. Ela dera uma olhada no ferimento mais cedo, no banheiro do aeroporto. As ataduras estavam úmidas por causa de algum vazamento, porém mais róseas do que vermelhas.

Ela sobreviveria.

O piloto deu meia-volta quando o barco de estanho saiu a toda a velocidade na direção deles, quicando na esteira do avião. O guia deles estava sentado na traseira, com uma das mãos no leme.

Alguns instantes mais tarde, as portas foram abertas, e o grupo desceu do avião para o pequeno barco. O guia deles era um garoto de 12 ou 13 anos, com as costelas proeminentes e todo sorrisos. E, sem dúvida, ele queria praticar seu inglês, por mais fraco que fosse.

—        Meus bons amigos, minha bela dama, bem-vindos a Ormuz! Meu nome é Fee'az!

Gray ajudou Seichan a entrar no barco, erguendo uma das sobrancelhas.

—        Este é o seu guia experiente?

—        A menos que você esteja disposto a derreter um daqueles passaportes de ouro, isso é o melhor que o dinheiro pode comprar aqui.

E ela já havia gastado uma grana preta para que eles chegassem ali tão depressa.

Ela observou Gray acomodar-se num assento. Os olhos dele já estavam examinando o castelo. Ela notou a preocupação na curvatura dos seus ombros. De perfil, suas feições eram duras, angulosas, do queixo aos malares. Mas ele estava mortalmente dilacerado, quebrantado e enfraquecido.

Por causa de sua mãe e de seu pai.

Com uma sacudidela indiferente da cabeça, Seichan desviou o olhar. Ela não conseguia sequer se lembrar de seus próprios pais. Havia apenas uma lembrança: de uma mulher sendo arrastada aos prantos por uma porta, estendendo os braços para ela e indo embora depois. Ela nem ao menos tinha certeza de que era sua mãe.

Fee'az deu partida no pequeno motor de popa e disparou na direção da praia orlada de palmeiras e das imponentes ruínas do castelo. Kowalski arrastava uma das mãos na água, bocejando. Vigor olhava para a aldeia. Estava havendo uma comemoração, e a música chegava até eles como que trazida pelo vento.

Gray virou-se e olhou de relance para Seichan. Ele exibia uma expressão familiar, com ambas as sobrancelhas erguidas, como que perguntando: Você está pronta?

Ela fez que sim com um movimento da cabeça.

Gray virou as costas, e tirou a jaqueta leve. A luz do sol resplandecia. Ele usava apenas uma camiseta caqui. Ela notou um clarão da luz do sol na gola dele. A mão direita dele tocou distraidamente o pequeno objeto de prata brilhante sob a camiseta.

Um amuleto com um dragão.

Ela o dera a ele mais como uma brincadeira zombeteira em razão de uma cooperação no passado. Mas Gray o conservara e ainda o usava. Por quê? Isso a fez sentir-se tomada por um calor inexplicável — menos por afeição do que por um misto de confusão e embaraço. Será que Gray pensava que ela lhe dera o amuleto como uma espécie de lembrança, de algum sinal de atração? Ela deveria sentir-se satisfeita, mas por algum motivo aquilo simplesmente a irritou.

A proa do barco rangeu em contato com a areia, dando-lhe um solavanco nas costas.

Eles haviam chegado à praia, e começaram a descarregar.

Seichan jogou para Kowalski uma sacola que continha equipamento adicional, incluindo um laptop, várias outras granadas luminosas e seis caixas de munição para as quatro pistolas.

Gray estendeu uma das mãos para ajudá-la a sair do barco. Ela ignorou a ajuda dele e pulou para fora.

Fee'az amarrou o barco num dos canhões enferrujados e acenou para que eles se dirigissem a uma abertura quadrada numa das paredes do forte. Mais acima, batentes estreitos trespassavam os baluartes, onde um dia atiradores portugueses haviam defendido o bastião.

O grupo passou sob a parede e entrou num pátio de pedra abandonado. Ervas daninhas espinhentas cresciam das rachaduras, a alguns passos de distância uma grande cisterna aberta expunha as pessoas ao risco de uma queda horrível, e algumas tamareiras desordenadas cresciam de um antigo canteiro de jardim. Em toda parte, areia solta sussurrava através da rocha com a voz sibilante de fantasmas.

Fee'az ergueu um dos braços na direção da parte principal do castelo. Ele erguia-se em seis andares até baluartes dentados, de onde as pontas enferrujadas de canhões ainda se projetavam.

—        Eu vou mostrar tudo a vocês! — declarou Fee'az. — Tem muita coisa para ver.

O garoto começou a se afastar, mas Vigor tocou-lhe o ombro.

—        O castelo tem uma capela? — perguntou ele.

O garoto franziu o cenho por um instante, depois se alegrou de novo, com seu sorriso constante.

—        Meu amigo! O senhor está com sede.

Vigor sorriu.

—        Não, uma igreja.

A testa do garoto enrugou-se, mas seu sorriso recusou-se a esmaecer.

—        Ah, o senhor é cristão. Tudo bem. Tudo gente boa. Os muçulmanos gostam da Bíblia. Ela também é um livro sagrado. Nós também temos santos. Santos muçulmanos. Mas o Profeta Maomé é melhor — disse ele, dando de ombros de um jeito acanhado.

Vigor apertou o ombro dele, reconhecendo que o garoto estava lutando entre ser um bom guia turístico e ser um bom muçulmano.

—        A igreja? — perguntou ele novamente.

O garoto fez um vigoroso aceno de cabeça.

—        A sala das cruzes.

Ele os conduziu na direção da abertura escura, ainda tagarelando num fluxo frenético.

Kowalski sacudiu a cabeça diante das brincadeiras do garoto e partiu atrás deles.

—        Ele precisa eliminar a cafeína da vida dele.

Gray sorriu, uma raridade, como a luz do sol através de nuvens tempestuosas.

—        Vamos — ele sussurrou para Seichan ao passar, quase roçando nela. Sua mão tocou a dela de leve.

Ela,quase a segurou, num gesto automático. Em vez disso, zangada consigo mesma, fechou os dedos. Mas sua reação não era só de fúria ou frustração.

Também havia culpa.

Ela detestava mentir para aquele homem.

 

—        Puxa, isto vai ser um pé no saco — disse Kowalski.

Gray não disse nada.

A capela ficava nos fundos do primeiro andar do castelo. Depois de passarem pelo hall de entrada, eles precisaram de lanternas para transpor as baixas passagens de trás. O silêncio aumentava à medida que avançavam. O ar ficou parado. O único movimento provinha de alguns ratos aninhados, que corriam dos feixes de luz das suas lanternas.

O corredor terminava numa porta baixa, que exigia não apenas que se abaixasse a cabeça, mas também que se flexionasse a cintura. Vigor foi o primeiro a entrar na sala com o guia. Ele deu um pequeno suspiro quando se empertigou lá dentro. Gray entrou em seguida.

Ele estava em pé agora, movendo o feixe de luz de sua lanterna ao redor da capela escura.

Cortada alto na parede oposta, uma janela em forma de cruz deixava entrar um pouco da luz do sol. A janela não passava de algumas fendas cruzadas, certamente estreitas demais para se forçar passagem através delas, mas talvez fosse outro lugar de onde era possível defender o castelo.

A janela projetava a luz do sol em forma de cruz sobre uma laje de pedra cuja altura chegava à cintura deles.

O altar da capela.

Quanto ao mais, a sala estava vazia.

Mas não sem adornos.

Ao longo de cada superfície — paredes, assoalho, teto, até mesmo o altar —, cruzes haviam sido entalhadas na pedra. Centenas, se não milhares delas. Elas variavam de cruzes com o tamanho máximo de uma impressão digital a cruzes gigantes ornadas, em tamanho natural.

—        Não é de admirar que eles a chamem de sala das cruzes — disse Vigor.

—        É mesmo, de muito bom gosto para um assassino em série — comentou Kowalski com mau humor. — Deve ser tudo o que a ilha produz.

Gray examinou as superfícies repletas de cruzes, lembrando-se da cruz quase imperceptível inscrita na laje de mármore em Hagia Sophia. Ele tirou a cruz de prata, o crucifixo de frei Agreer.

—        Agora tudo o que temos a fazer é encontrar a cruz que seja o par perfeito desta.

Vigor foi até Fee'az e pediu-lhe que os deixasse sozinhos ali.

Ele pareceu confuso até o monsenhor apontar para a cruz nos dedos de Gray.

—        Nós temos que rezar — explicou o monsenhor. — Sairemos quando terminarmos.

O garoto afastou-se depressa, concordando com a cabeça. Ele não poderia sair correndo mais rápido, obviamente receoso de ser flagrado durante a realização de uma cerimônia cristã. Por sua rapidez, ele devia suspeitar de que eles sacrificariam bebês.

Assim que ficaram sozinhos, Gray coçou a cabeça, momentaneamente desanimado, consciente demais da urgência do tempo.

—        Uma destas cruzes deve ser um equivalente exato do crucifixo de frei Agreer. Temos que descobrir qual.

Ele dividiu o grupo.

Eles eram quatro, e havia quatro paredes.

Além do assoalho e do teto.

Gray pôs a cruz em cima do altar, prontamente disponível para cada pessoa pegar e comparar. Ele também arrancou quatro folhas de seu bloco de anotações e desenhou nelas a forma da cruz, como referência para cada um.

Enquanto todos procuravam, Gray notou o movimento da luz do sol sobre o altar, avançando de forma constante enquanto o sol se punha, enquanto o tempo lhe escapava. Ele terminou o exame em sua parede. Nada. O suor escorria; suas roupas grudavam-se à pele. Ele começou a examinar o assoalho. Os outros, um de cada vez, juntaram-se a ele. Seichan trabalhava no altar.

A cruz mais importante — a que era formada pela luz do sol — continuava a avançar lenta e inexoravelmente pela sala.

—        Também não está no assoalho — afirmou Vigor, com o rosto vermelho, erguendo-se da posição de joelhos. Ele ficou em pé, com uma das mãos apoiando a região lombar.

Atrás do altar, Seichan sacudiu a cabeça.

Ela também não tivera sorte.

Gray olhou para cima.

O teto era baixo, mas não o suficiente para ser tocado. Seria necessário erguer alguém por muito tempo para testar cada cruz lá em cima que pudesse ter o tamanho exato.

—        Talvez eu estivesse errado — disse Vigor. — Talvez o túmulo de Kokejin esteja em alguma outra parte do castelo. Todas estas cruzes podem ser uma pista falsa.

Gray sacudiu a cabeça. Não. Eles já haviam perdido uma hora inteira. Não tinham tempo para vasculhar cada canto e fenda do castelo à mão. Eles haviam se comprometido a procurar na capela. Não havia como voltar atrás, nem como adivinhar.

—        O túmulo de Kokejin deve estar aqui — insistiu Gray. Vigor suspirou.

—        Então nos resta apenas o teto.

Gray mandou Kowalski ajudar a erguer o monsenhor e foi para o lado de Seichan.

—        Cara, eu sempre acabo me ferrando nesse negócio — queixou-se Kowalski.

Ignorando-o, Vigor apontou para as paredes.

—        Vamos começar pelos cantos. Vocês dois exploram o meio. Seichan subiu no altar.

—        Posso alcançar as cruzes aqui em cima sem ajuda.

Enquanto ela estava de pé, uma cruz formada pela luz do sol iluminou suas costas. Ela havia tirado o colete e usava apenas uma camiseta preta. Gray notou suas curvas quando ela ergueu uma das mãos, o algodão esticado sobre os seios. Apesar de todas as suas preocupações, uma parte dele ainda era máscula o suficiente para apreciar isso... no entanto, ele era homem o suficiente para se sentir culpado por isso.

Agora não era hora...

—        Acho que vejo uma possibilidade... — murmurou Seichan, ficando na ponta dos pés, estendendo as mãos mais alto.

Então ela estremeceu e voltou a apoiar-se nos tornozelos. Sua mão fechou-se em concha no lado esquerdo do corpo. Ela havia forçado seu ferimento.

Gray subiu, ficando ao lado dela.

—        Deixe-me ajudá-la.

Ele ofereceu uma das pernas para ela subir, entrelaçando as mãos numa espécie de estribo.

Ela pegou o crucifixo de prata e em seguida pisou nas mãos dele.

Quando ele se empertigou e a ergueu, ela equilibrou uma das mãos sobre a cabeça dele e estendeu o crucifixo para o teto. A nádega esquerda dela estava pressionada contra a face esquerda dele.

Oh, sem dúvida, ele ia para o inferno.

—        Eu acho... eu acho... — sussurrou Seichan. — Ele se encaixa! Esta marca está entalhada profundamente, e o crucifixo se ajusta exatamente dentro dela. Um par perfeito!

Gray esticou o pescoço, mas tudo o que pôde ver foi a parte inferior dos seios dela.

—        Você pode dizer para o que Cristo está olhando? — perguntou ele, lembrando-se de Hagia Sophia.

—        Para o altar — respondeu ela, mas parecia distraída. — O crucifixo está encaixado num bloco de pedra circular. Quando empurrei o crucifixo lá dentro, senti alguma coisa estalar. E a pedra parece estar quase solta. Com o crucifixo no lugar, acho que posso girá-la, talvez soltá-la.

—        Eu não acho que você deveria...

Ele ouviu um rangido de pedra. Um tinido alto soou, mas não veio de cima. Gray olhou para baixo, entre seus pés.

O altar soltou-se de sob os seus pés, caindo diretamente através do assoalho, levando Gray consigo.

Seichan caiu nos braços dele, agarrando-se com força ao seu pescoço.

A laje de pedra atingiu o chão com um impacto trepidante, fazendo Gray cair apoiado num dos joelho.s A poeira ergueu-se numa nuvem. Uma das lajes do assoalho quebrou-se, esmagada pelo altar, e quicou para a escuridão adiante.

Gray olhou para cima. Embora tivesse ficado sem fôlego de tanto medo, eles haviam caído de uma altura de apenas l,20m. Vigor e Kowalski baixaram o olhar para eles.

—        Acho que você encontrou alguma coisa, Indiana Jones — disse Kowalski com um sorriso forçado, passando-lhe uma lanterna.

Gray revirou os olhos, mas aceitou a lanterna. Seichan saltou de cima dele, batendo a poeira do corpo. Agachando-se, Gray apontou a lanterna para a câmara revelada sob a capela. Uma passagem escura em arcada acenava para eles.

Ele deslizou a pedra do altar até o assoalho, com Seichan junto ao seu ombro.

Vigor e Kowalski desceram e seguiram-nos.

Dois arcos cruzados formavam o teto de uma pequena câmara, com a metade do tamanho da capela acima. Iluminado pela lanterna, um nicho baixo fora entalhado na parede dos fundos, emoldurado por outra arcada.

—        Um loculus — disse Vigor. — Um túmulo.

Dentro do nicho, um corpo jazia estendido na pedra nua, coberto com dobras de tecido branco.

—        O túmulo de Kokejin — disse Vigor. — Nós o encontramos.

Apesar da excitação, eles se aproximaram solenemente. Gray e Vigor seguiram na frente. Eles precisavam ter certeza. Vigor abençoou aquela violação com o sinal-da-cruz e uma prece murmurada.

O monsenhor estendeu uma das mãos para a mortalha.

—        Eu vou logo avisando — sussurrou Kowalski, extremamente sério. — Se alguma coisa se mover, eu me mando daqui.

Vigor ignorou-o e ergueu com reverência uma dobra de tecido de uma extremidade.

—        Seda — sussurrou ele.

Poeira elevou-se no ar quando ele o puxou para trás.

A abóbada de um crânio foi revelada. No alto dela brilhava um adorno de cabeça de ouro, e rubis e safiras refletiam a luz. Diamantes cintilavam.

—        O adorno de cabeça da princesa — disse Vigor num sussurro.

Gray lembrou-se da história de Vigor, de que Marco estava com o adorno de cabeça em seu leito de morte.

A mão de Vigor tremia.

—        Marco deve ter desejado que ele fosse devolvido. Talvez até providenciado para que o corpo dela fosse removido em segredo para um lugar seguro, antes que ela finalmente encontrasse o descanso eterno aqui.

Gray estendeu uma das mãos e cobriu a de Vigor.

—        O terceiro paitzu... a terceira chave.

Eles dispunham de pouco tempo.

Gray puxou a mortalha de seda do resto dos ossos.

Vigor ficou boquiaberto e deu um passo para trás.

Até mesmo Gray ficou paralisado, estupefato.

Não havia apenas um corpo embaixo de todo o ornamento de seda.

Dois esqueletos jaziam no túmulo, enlaçados um nos braços do outro.

Gray lembrou-se da história de Vigor da igreja de San Lorenzo, de que Marco Polo fora enterrado lá em 1324, mas uma reforma posterior revelara que o corpo havia desaparecido.

—        Não encontramos apenas o túmulo de Kokejin — disse Vigor.

Gray concordou com a cabeça.

—        Nós também encontramos o túmulo de Marco Polo.

Ele baixou o olhar para o casal enlaçado.

O que os dois não puderam ter em vida, eles finalmente alcançaram na morte.

Estar juntos.

Para sempre.

Gray se perguntou se um dia encontraria um amor grande como aquele. Lembrou-se então de seus pais, que continuavam juntos mediante tantas adversidades, lutando contra as provações de debilitação e agora demência... e, no entanto, jamais haviam desistido um do outro.

Alguém tinha de salvá-los.

 

Painter gostaria de estar no local, mas isso só retardaria a equipe de resposta. Do centro de comunicações da Sigma, ele assistia às transmissões de vídeo ao vivo, feitas por uma câmera no capacete de um dos membros da tropa de choque.

Dez minutos atrás, eles haviam tido sua primeira oportunidade real.

A manhã inteira Painter se esforçara ao máximo para rastrear as chamadas internacionais feitas dos Estados Unidos para o telefone celular de monsenhor Vigor Verona. Gray mencionara que Amen Nasser ligara para o telefone de Vigor. Para rastrear aquele telefonema, Painter teve de atazanar autoridades desde a Cúria do Vaticano até o diretor de operações do Departamento de Segurança Interna. Pelo menos com Seichan a reboque, ele soubera explorar bem a situação da terrorista. Isso abrira portas normalmente fechadas.

Levou, no entanto, mais tempo do que ele gostaria, mas Painter finalmente soube de onde a chamada se originara. Uma tropa de choque aguardava uma ordem sua para começar o ataque.

Ele inclinou-se ao microfone e gritou:

— Agora!

As portas do furgão abriram-se. A alimentação da câmera tremulou e saiu de quadro. A tropa aproximou-se vindo de múltiplas direções, pela frente e pela retaguarda, correndo abaixada, com rifles de assalto na mão.

A tropa de choque assaltou o edifício como uma tempestade.

Uma espécie de aríete chocou-se com a porta da frente, abrindo-a de um único golpe.

A alimentação escureceu quando o câmera seguiu os outros para dentro do edifício. A tropa dispersou-se.

Painter aguardou.

Incapaz de ficar sentado por mais tempo, ele se levantou, apoiando os punhos no painel de comunicação. Técnicos amontoavam-se de cada lado, olhando para outros monitores enquanto a alimentação por satélite chegava da Indonésia numa torrente. Uma tempestade violenta, com ventos com a força de um furacão, cobria a maior parte daquela região, dificultando a busca do seqüestrado Mistress of the Seas. A tempestade também retinha no solo um bom número de aviões de busca da Austrália e da Indonésia.

A falta de progresso aumentara a frustração de Painter. Seu receio pelo bem-estar de Lisa, de Monk, quase o havia paralisado.

Então veio a descoberta da localização do telefone.

Ele precisava de uma vitória.

Pelo menos ali.

No seu fone de ouvido, escutou as conversas dos membros da tropa de assalto, relatos e gritos entrecruzados. Finalmente, uma voz nítida soou, vinda do câmera. Ele havia parado no interior do que parecia uma câmara frigorífica, com ganchos pendentes do teto.

—        Diretor Crowe, terminamos a busca no açougue. Não tivemos êxito. O lugar está deserto.

O vídeo tremulou quando o câmera se curvou e em seguida empertigou-se, exibindo os dedos.

Eles estavam úmidos.

—        Senhor, nós encontramos sangue.

Oh, não...

Um dos técnicos olhou de relance na direção de Painter, viu alguma coisa de que não gostou na expressão dele, e rapidamente se virou.

Uma voz vinda da porta interrompeu seu desespero.

—        Diretor Crowe...

Uma mulher estava à entrada, trajando roupas azul-marinho. Seus cabelos castanhos estavam presos, expondo todo o seu rosto, que brilhava de medo e preocupação. Ele entendeu a expressão assustada nos olhos dela.

—        Kat... — disse ele, empertigando-se.

Era a esposa de Monk.

—        Minha tia está tomando conta de Penélope. Eu não conseguia mais ficar sentada em casa.

Ele compreendeu e ergueu um dos braços.

—        Nós poderíamos usar sua ajuda.

Ela suspirou e concordou com um movimento de cabeça.

Era tudo o que eles podiam fazer.

Continuar em ação, continuar lutando.

De qualquer forma que pudessem.

 

Vigor baixou o olhar para os corpos enlaçados.

Marco e Kokejin.

A descoberta ainda o mantinha paralisado em frente à laje. Outros não estavam tão emocionados. Seichan aproximou-se, ficando entre Gray e Vigor.

Ela apontou um dos braços.

— O terceiro passaporte de ouro.

Gray puxou a mortalha completamente para o lado. Abrigado entre os corpos, coberto pelas mãos dos dois esqueletos, o brilho de ouro cintilou além dos ossos.

Era o terceiro paitzu.

E ao lado dele estava um tubo de bronze familiar.

O terceiro e último manuscrito.

Com uma delicadeza reverente, Gray recolheu os objetos. Ele também tirou o adorno do crânio de Kokejin.

— Ele talvez contenha uma pista — justificou.

Vigor não disse nada. Com a câmara funerária aberta, ele não tardaria a ser roubado se fosse deixado sem vigilância.

Todos eles subiram de volta para a capela.

Uma vez ali, reuniram-se num canto da sala.

Gray virou o passaporte de ouro para revelar um terceiro símbolo angélico.

Agora temos todos os símbolos — disse Seichan.

—        Mas não toda a história — afirmou Gray. Ele pegou seu bloco de anotações e fez um aceno de cabeça para Vigor. — Vamos ouvi-la.

Vigor não precisou de nenhum outro estímulo. Ele abriu o tubo de bronze com o canivete e retirou o manuscrito.

—        Seda novamente — comentou, e começou a desenrolá-la com cuidado.

A última parte da história era mais longa, e estendia-se por um quarto da largura do assoalho da capela. Vigor traduziu o dialeto italiano de Marco. A história assustadora continuava com a aparição das figuras angélicas brilhantes, vindo na direção do grupo de Marco, encurralado na sala de uma torre.

Vigor leu a história em voz alta:

 

Essas estranhas aparições estenderam para a frente o cálice grosseiro; e de uma forma clara e vigorosa insistiram para que bebêssemos. Dessa maneira, seríamos preservados contra a terrível pestilência que havia transformado a Cidade dos Mortos numa visão do Inferno, porque o homem consumia a carne de seu irmão.

Com tal promessa, cada um de nós tomou a bebida, a qual, vista mais de perto e de acordo com o sabor, se percebeu que era sangue. Elas também insistiram conosco para que comêssemos um pedaço de carne crua sobre uma folha de palmeira, a qual, vista mais de perto e de acordo com o sabor, era alguma forma de timo de vitela. Só depois de termos consumido o sangue e a carne, ocorreu-me inquirir sobre a origem de tais ofertas. O homem do Khan respondeu; e assim nós também nos tornamos canibais; pois se tratava de sangue e timo drenado e cortado de um homem.

Assim, fomos tratados dessa forma iníqua, a qual mais tarde se revelaria virtuosa, porque de fato nos protegeu de uma grande pestilência. Mas tivemos de pagar um preço por essa cura. Frei Agreer não teve permissão de consumir o sangue e o timo. Houve muitos murmúrios e dedos apontando para sua cruz e para o homem que a ostentava. No fim, só nos deixaram partir se deixássemos frei Agreer para trás.

Em sua grande Graça e Abençoada aprovação, frei Agreer insistiu em que fugíssemos. Chorei muito, mas obedeci ao confessor. Ao me dirigir suas últimas palavras, ele deixou seu crucifixo comigo, para que o devolvesse à Santa Sé. A última visão que tive do nobre homem foi quando o conduziram na direção oposta; e supus para onde eles se dirigiam. Iluminada pela lua cheia, uma grande montanha elevava-se acima da floresta, esculpida com mil rostos de demônios.

 

— Deus do céu — murmurou Vigor.

Ele leu o restante da história lentamente.

Depois de fugir da cidade, Marco Polo relatou como a praga assolara sua frota, fazendo os navios e a tripulação darem numa ilha remota. Apenas aqueles que consumiram o remédio oferecido por aqueles homens brilhantes não foram afetados. Marco deixou a Cidade dos Mortos com remédio suficiente para tratar seu pai e seu tio, bem como Kokejin e duas de suas criadas. Eles por fim queimaram os navios e os corpos dos enfermos, muitos deles ainda vivos.

Vigor leu o último parágrafo.

Que o Senhor perdoe a minha alma por quebrar uma promessa feita ao meu pai, agora morto. Devo fazer uma última confissão. Naquele lugar pavoroso, descobri um mapa da cidade, o qual destruí por vontade de meu pai; porém, gravei-o na memória para não esquecer. Eu o registrei aqui de novo, a fim de evitar que esse conhecimento se perca para sempre. Que aquele que ler isto fique bem avisado: o portão do Inferno foi aberto naquela cidade; e não sei se foi fechado.

 

Enquanto ouvia a história e seu final enigmático, Gray trabalhava no enigma em seu bloco de anotações. Isso o ajudava a se concentrar em ouvir Vigor enquanto contemplava o mistério que eles tentavam solucionar. Isso o distraía do terror que apertava seu próprio coração.

E, à medida que a história se desdobrava, ele começou a compreender.

Fora um tolo.

Examinou seu bloco de anotações, desfocando os olhos, vendo a resposta oculta no código. E, com as três chaves, talvez uma forma de decifrá-lo.

Ele folheou as páginas, procurando a página certa. Quando a encontrou, inclinou-se para mais perto, fazendo um desenho com um dos dedos. Será que aquilo estava certo? Ele precisava investigar mais.

Ele consultou o relógio.

Restando menos de meia hora, será que tenho tempo suficiente?

Antes que ele pudesse descobrir, disparos de armas automáticas ecoaram até eles, soando como bombinhas. Pou, pou, pou, pou...

Gray ficou em pé de um salto.

Deus, não... será que Nasser os encontrara?

Ele foi até a abertura da capela e olhou para os corredores escuros.

—        Juntem tudo — exortou ele sem se virar. — Agora!

Gray discerniu a forma de uma figura magra correndo na direção dele, iluminada por trás pela luz do sol que se filtrava. Pés descalços golpeavam as pedras, e então uma voz gritou, equilibrada entre a urgência e a discrição.

—        Apressem-se!

Era Feeaz.

O garoto não diminuiu o ritmo e correu direto ao encontro deles.

Mais ao longe, vindos da direção do pátio do castelo, ecoavam gritos irados em farsi.

Gray segurou o ombro do garoto magro quando ele voou até eles, sem fôlego.

—        Apressem-se. Contrabandistas.

Fee'az não esperou e voltou para o corredor externo, seguindo na direção oposta, paralela aos fundos do castelo.

Gray virou-se para os outros.

—        Peguem o que vocês têm... e deixem o restante!

Eles partiram atrás de Fee'az.

O garoto esperou a meio caminho corredor abaixo e então fugiu para adiante.

Fee'az continuou a fazer um comentário apressado. Pelo visto, mesmo a ameaça de contrabandistas não o fazia calar a boca.

—        Vocês demoraram muito com as suas orações. Eu dormi embaixo das palmeiras. — Ele apontou para trás, na direção geral do pátio. — Eles não me viram. Quase pisaram em mim. Eu acordei e corri. Eles atiraram: bangue, bangue. Mas as minhas pernas são rápidas.

Para provar isso, ele voava pelas salas e corredores dos fundos. Atrás deles, o timbre dos gritos mudou, indicando que o grupo que estava atacando de surpresa havia entrado no castelo.

Fee’az levou-os até uma escada grosseira que conduzia para baixo.

—        Por aqui.

Eles chegaram a um túnel estreito e baixo, pouco mais alto do que uma galeria de mina em que se tem de andar de gatinhas e que se estendia para o sul. Fee'az seguia às pressas na frente.

Após cinqüenta passos, ele terminava num velho portão enferrujado. As barras tinham sido serradas havia muito, deixando apenas tocos. Eles passaram pelo portão e foram dar no fosso cheio de lodo do castelo. Paredes de pedra esfarelada marcavam o limite.

Gray olhou para trás. A galeria devia ter sido o antigo sistema de esgotos do castelo.

Acenando-lhes para que permanecessem abaixados, Fee'az conduziu-os ao longo do fosso, rumo à baía oriental. Gritos ainda ecoavam do castelo. Os contrabandistas ainda não haviam percebido que os camundongos tinham fugido.

Ao chegar à água, Gray viu que o avião ainda os aguardava, incólume.

Fee'az explicou:

—        Contrabandistas sujos. Nunca roubam um avião. Eles roubam pouco. — Ele demonstrou mantendo os dedos separados, quase se tocando, depois deu de ombros.

—        De vez em quando matam e jogam os corpos para os tubarões. Mas nunca levam alguma coisa tão grande. O governo vai mandar aviões maiores, armas maiores.

Então o risco não valia a pena.

Todavia, pecando por excesso de cautela, eles usaram remos para mover silenciosamente o barco do garoto até o hidroavião. Fee'az fez sinal para que eles embarcassem.

—        Venham outra vez! Venham outra vez! — disse ele, apertando formalmente a mão de cada um.

Gray sentiu-se obrigado a dar-lhe alguma gratificação por ter evitado que eles entrassem numa enrascada. Ele enfiou a mão na mochila, procurou alguma coisa lá dentro e entregou-lhe o adorno de cabeça de ouro da princesa.

Os olhos do garoto arregalaram-se, ele segurou o tesouro com ambas as mãos e em seguida empurrou-o de volta para Gray.

—        Não posso aceitar.

Gray envolveu o adorno de cabeça com os dedos.

—        Ele vai te custar apenas uma promessa.

Fee'az ergueu os olhos para ele.

—        No castelo existem dois corpos, dois esqueletos, embaixo da sala das cruzes.

—        Ele apontou para o castelo e depois para as colinas distantes. — Tire-os de lá, cave um buraco fundo e enterre-os. Juntos.

Ele sorriu, sem saber se Gray estava brincando.

—        Você promete?

Ele fez que sim com um aceno de cabeça.

—        Eu vou levar meus irmãos e tios para ajudar.

Gray empurrou o adorno de cabeça de ouro para ele.

—        Ele é seu.

—        Obrigado, senhor.

Ele apertou a mão de Gray e disse com toda a solenidade de uma bênção:

—        Venha outra vez.

Gray entrou no avião.

Minutos mais tarde eles estavam no ar, depois de terem decolado da baía, e voando rumo ao aeroporto internacional.

Gray voltou para o assento traseiro, juntando-se a Vigor.

—        Você deu o adorno de cabeça da princesa ao garoto? — disse o monsenhor, olhando para baixo, para o pequeno barco do garoto que se afastava.

—        Para enterrar Marco e Kokejin.

Vigor virou-se para fitá-lo.

—        Mas uma descoberta dessas. A história...

—        Marco fez o bastante pela história. Seu último desejo era ser enterrado em paz com a mulher que ele amava. Acho que nós lhe devemos isso. Além do mais, não precisamos do adorno de cabeça.

Vigor fitou Gray com um dos olhos estreitado, sem dúvida avaliando-o, julgando sua generosidade.

—        Mas você pensou que talvez houvesse uma pista no adorno de cabeça. Foi por isso que o pegou. — Os olhos do monsenhor arregalaram-se e sua voz ergueu-se. — Deus do céu, Gray, você na verdade decifrou o código angélico.

Gray puxou seu bloco de anotações.

—        Não totalmente. Quase.

—        Como?

Seichan ouviu por acaso a conversa e foi juntar-se a eles, ficando em pé entre os assentos. Kowalski virou-se, espreitando por sobre o encosto do assento.

Gray respondeu ao monsenhor.

—        Eu o solucionei descartando todas as nossas velhas suposições. Nós continuávamos procurando um código de substituição de letras.

—        Como a inscrição no Vaticano que formava a palavra HAGIA.

—        Eu acho que aquilo foi feito com o propósito de induzir ao erro. O grande mistério no obelisco não é um quebra-cabeça de substituição de letras.

—        Mostre-nos — disse Seichan.

—        Num instante. — Gray consultou o relógio. Restavam oito minutos. — Eu ainda tenho que solucionar parte do enigma. As três chaves. Chaves dispostas em determinada ordem.

Ele abriu seu bloco de anotações e bateu de leve nos três símbolos angélicos.

Gray prosseguiu:

—        Com o código do obelisco sempre à plena vista, as chaves tinham apenas um objetivo: revelar a maneira correta de ler o código. O obelisco tem quatro lados. Mas em que lado vocês começam? Em que direção vocês o lêem?

Ele abriu o bloco de apontamentos e encontrou a página original da escrita fornecida por Seichan.

—        Para que os símbolos inscritos em ouro sejam tão importantes, eles têm que estar escritos em alguma parte do obelisco. E na verdade estão.

Gray traçou um círculo em torno deles.

— Essa seqüência só aparece uma vez. É única. Observem como ela passa de uma das superfícies do obelisco para a outra. Ela está indicando onde se deve começar a ler e em qual direção.

Ele acrescentou uma seta.

— Por isso vocês precisam reordenar a seqüência para ela corresponder às chaves. — Ele folheou as páginas do bloco de anotações, examinando as oito variações que ele e Vigor haviam organizado antes. Encontrou a variação certa e circulou os símbolos-chave. — Esta é a maneira adequada de dispor o mapa para que ele seja lido corretamente.

Seichan inclinou-se mais para perto.

—        Sobre qual mapa vocês estão falando?

—        Eu notei isto lá na capela — disse ele. — Observem.

Ele pegou um lápis e começou a fazer buracos na página e a marcar a página seguinte em branco.

—        O que você está fazendo? — perguntou Vigor.

Gray explicou.

—        Observem como algumas das marcas diacríticas — esses pequenos círculos na escrita angélica — são escurecidas e outras não. Com base na segunda chave, sabemos como essa marca diacrítica preta do símbolo acabou se revelando um marcador do castelo português. Portanto, os círculos enegrecidos no código do obelisco também devem ser marcadores. Mas marcadores de quê? Se vocês fizerem furos em cada círculo escuro a fim de deixarem as marcas numa nova página, removendo tudo mais, vocês obtêm isto.

—        Ora, isso com certeza ajudou — disse Kowalski com sarcasmo.

Gray esfregou uma das mãos sobre a barba por fazer em seu queixo, concentrando-se.

—        Tem alguma coisa aqui. Eu posso senti-la.

—        Talvez você deva ligar os pontos — disse Kowalski com não menos sarcasmo. — Talvez isso forme uma grande seta cintilante com o significado caiam fora daqui.

Seichan franziu o cenho.

—        E talvez seja hora de você calar essa maldita boca.

Gray não precisava da briga deles. Não agora. Kowalski era excelente como motorista para fuga, bom num combate com armas de fogo, porém Gray precisava de conselhos sábios, não de sugestões infantis, como ligar os pontos.

Então ele percebeu.

—        Oh, meu Deus! — Gray recostou-se, remexeu o lápis e segurou-o com mais firmeza. — Kowalski tem razão!

—        Eu?

—        Ele...? — respondeu Seichan.

Gray virou-se para Vigor, agarrando seu antebraço.

—        A primeira pista! Na Torre dos Ventos.

Vigor franziu o cenho, e então seus olhos arregalaram-se.

—        Que abriga o observatório astronômico do Vaticano... onde Galileu provou que a Terra se movia em torno do Sol! — Vigor bateu de leve na folha. — Isto são estrelas!

Gray pegou o lápis. Ele estivera olhando fixamente para a página e reconhecera um padrão familiar.

Vigor também a reconheceu.

— Essa é a constelação de Draco, o dragão.

—        Isto é uma constelação — afirmou ele, desenhando-a.

Seichan inclinou a cabeça enquanto olhava para baixo.

—        Vocês estão dizendo que isso é um mapa de navegação estelar?

—        É o que parece. — Gray coçou a cabeça com a borracha do lápis. — Mas como uma constelação nos diz aonde devemos ir?

Ninguém respondeu.

—        Ela não pode nos dizer isso — ele admitiu afinal.

Gray sentiu o coração bater na garganta. O tempo deles estava se esgotando. Será que ele os havia conduzido ao caminho errado?

Vigor recostou-se.

—        Esperem — murmurou ele. — Lembrem-se da história de Marco. Do último parágrafo. Marco disse que havia desenhado um mapa da cidade, e não para a cidade.

—        E daí? — perguntou Gray.

Vigor pegou o papel e o girou.

—        Isto não podem ser estrelas. Tem que ser o esquema da Cidade dos Mortos. É isso que está escrito no texto de Marco. Talvez o Vaticano tenha cometido o mesmo erro que nós acabamos de cometer. Eles interpretaram mal o mapa de Marco da mesma forma. Eles também pensaram que se tratava de um mapa de navegação estelar.

Gray sacudiu a cabeça.

—        É uma coincidência muito estranha que uma cidade seja esquematizada no padrão exato da constelação de Draco. Se não me engano, mesmo as estrelas fora da linha do dragão marcam a localização de estrelas de verdade.

Vigor confirmou com um movimento da cabeça.

—        Mas, lembrem-se, com base no meu estudo de civilizações antigas... dos egípcios até a Mesoamérica, muitas civilizações construíam seus monumentos e cidades num padrão de acordo com as estrelas, a fim de imitá-las.

Gray lembrou-se de uma aula parecida.

—        Como as três pirâmides do Egito supostamente representam o cinturão de Orion.

—        Exatamente! Em algum lugar do Sudeste Asiático existe uma cidade cujo padrão é o da constelação de Draco.

Seichan de repente deu meia-volta.

—        Maldição! — praguejou ela entre os dentes. — Eu me lembro de alguma coisa... de alguma coisa que ouvi... sobre algumas ruínas no Camboja. Minha família tem raízes na região, no Vietnã e no Camboja.

Seichan correu até sua mochila, remexeu nela e tirou seu laptop.

—        Tem uma enciclopédia digital aqui.

Ela agachou-se entre os joelhos de Vigor e Gray, acessou o programa e digitou rapidamente. Clicou duas vezes num ícone, e um mapa digital encheu a tela.

—        Este é o complexo do templo de Angkor, construído pelo povo khmer do Camboja no século IX.

— Observem a disposição dos templos — disse Seichan —, a localização de cada um. Ouvi histórias de que essas ruínas teriam sido dispostas num padrão estelar.

Com o dedo, Gray traçou uma linha ligando os templos num padrão e bateu de leve nos templos restantes. Ele ergueu o primeiro mapa estelar e colocou-o ao lado do laptop aberto.

—        São exatamente iguais — disse Vigor, espantado. — A Cidade dos Mortos de Marco é a antiga cidade de Angkor Wat.

Gray inclinou-se e abraçou Seichan. Ela ficou tensa, mas não se retraiu. Gray tinha uma dívida de gratidão para com todos, mesmo para com Kowalski, cuja visão geral simplista abrira o caminho para a solução do enigma.

Gray consultou o relógio.

Nem um minuto de sobra.

Ele estendeu uma das mãos para Vigor.

—        Seu telefone. Está na hora de fazermos um acordo.

Vigor passou-lhe o telefone celular e a bateria.

Gray pôs a bateria no lugar, rezando por um pouco de boa sorte. Digitou o número de Nasser, fornecido por Seichan. Vigor estendeu uma das mãos e apertou a de Gray, oferecendo-lhe apoio.

O telefone tocou uma vez, e Nasser atendeu.

—        Comandante Pierce — respondeu uma voz fria e furiosa.

Gray respirou fundo a fim de se controlar, lutando para não ser duro com ele. Precisava ser ponderado e firme.

—        Meu avião está quase aterrissando — continuou Nasser, sem nem ao menos esperar pela resposta. — Pela sua traição, eu deixarei você decidir qual dos seus pais morrerá primeiro: sua mãe ou seu pai. Farei você ouvir os seus gritos. E esse, eu prometo, será o mais afortunado dos dois.

Apesar da ameaça, Gray sentiu certo consolo. Se Nasser não estivesse mentindo, seus pais ainda estavam vivos.

Sentindo alívio por isso, Gray manteve a voz calma, com os músculos da mandíbula doendo por causa do controle.

—        Eu vou lhe oferecer uma permuta pela vida deles.

—        Não tem nada que você possa oferecer — retrucou Nasser, gritando.

—        Mesmo que eu lhe diga que decifrei o código angélico do obelisco?

A resposta foi o silêncio.

Gray prosseguiu:

—        Nasser, eu sei onde fica a Cidade dos Mortos de Marco. — Receando que mesmo isso talvez não bastasse para mobilizar o filho-da-puta, Gray falou as palavras seguintes lentamente, para que não houvesse nenhum mal-entendido. — E eu sei como curar a Estirpe de Judas.

Vigor virou-se para ele, assustado.

O silêncio continuou ao telefone.

Gray esperou. Ele olhou para o mapa digital de Angkor Wat no laptop. Sentiu que os dois braços da operação da Guilda — um seguindo a trilha científica, o outro seguindo a trilha histórica — estavam prestes a se chocar.

Mas quem seria esmagado entre eles?

Nasser afinal respondeu, com a voz trêmula de raiva.

— O que você quer?

Os tambores soavam mais alto do que os estrondos dos trovões acima. Raios riscavam o céu, fazendo a selva cintilar com verdes e pretos nítidos, delineados em prata pelo reflexo das folhas molhadas.

Com o peito nu, Monk puxou Susan pela mão numa curva íngreme da trilha na selva. Eles haviam passado as duas últimas horas seguindo a trilha no escuro, às vezes esperando que um raio lhes mostrasse onde pisar a seguir. A chuva continuava a cair torrencialmente através do dossel da selva. A trilha em ziguezague se trans¬formara num curso d'água. Porém, o restante da selva era um denso emaranhado de trepadeiras entrelaçadas, folhas grandes, arbustos espinhentos, troncos com as raízes asfixiadas e lama encharcada.

Por isso eles continuaram na trilha, subindo, sempre subindo.

Ryder vinha atrás deles e portava a única pistola do grupo, uma Sig Sauer 9mm P228 com acabamento de Teflon. Lamentavelmente, ele não tinha pentes sobressalentes, apenas as 13 balas que já estavam na arma.

Nada bom.

Monk sabia que, assim que a tempestade parasse, a selva seria esquadrinhada pelos homens de Rakao. Aquela ilha era a base de operações deles, o que lhes dava a vantagem do terreno familiar. Monk não se iludiu pensando que poderia escapar de ser rastreado e capturado.

Olhou para trás através de uma brecha na mata. Eles já haviam avançado cerca de 100 metros. O navio de cruzeiro gigante estava no centro da lagoa, a 400 metros de distância. Em algum lugar a bordo estava sua colega, resgatada com vida das águas negras, fora das garras de lulas asquerosas.

Mas será que ela ainda estava viva?

Até ter certeza, Monk não perderia a esperança.

Nem por Lisa, nem por si mesmo.

Para esse fim, ele precisava de aliados.

O batuque perpétuo dos tambores continuava, mais alto e mais urgente, como se fizessem um esforço para afastar o tufão. Eles haviam subido alto o suficiente para que cada pancada nos tambores de couro agora reverberasse contra sua caixa torácica, chegando-lhe até os ossos.

Monk passou por um emaranhado de galhos, encharcados e curvados, e avistou um brilho tremeluzente adiante.

Luz de fogo.

Deu mais dois passos e parou.

Só então se deu conta de que eles não estavam sozinhos. Em cada lado do caminho, havia sentinelas, meio ocultas pela folhagem densa, mas evidentemente às claras, querendo ser notadas. Os homens, com o peito nu, usavam largos chapéus de palha presos à cabeça. Seus rostos haviam sido pintados com óleo e cinzas, deixando-lhes a fisionomia escura como breu. Presas polidas de javalis-brancos e ossos de costela amarelados trespassavam seus narizes. Penas brilhantes e conchas de caramujos se enfileiravam em torno de seus braços.

Com um grito, Ryder avançou com a pistola erguida.

As sentinelas não se impressionaram.

Monk empurrou o braço de Ryder para baixo e deu um passo à frente, erguendo as mãos com as palmas estendidas.

—        Não assuste os nativos —sussurrou para Ryder.

Um membro da tribo moveu-se para a trilha. Usava um peitoral de osso preso por tiras de couro. Ao redor de sua cintura havia um saiote de longas penas. Suas pernas e pés estavam nus, também pintados com gordura e cinzas. Ele carregava uma omoplata afiada de algum animal.

Pelo menos, Monk esperava que fosse de um animal.

Monk ouviu um farfalhar de folhas atrás de si, sabendo que a trilha que haviam deixado já estava sendo fechada. Tambores soavam adiante. Por um momento, a luz da fogueira brilhou com mais intensidade.

O homem no caminho virou-se e saiu na frente, em direção ao brilho.

—        Parece que fomos convidados para a festa — disse Monk, enlaçando Susan com um dos braços.

Ryder seguiu-os com a pistola na mão.

Se as coisas dessem errado, talvez eles precisassem das 13 balas restantes do bilionário a fim de abrir caminho para a liberdade. Mas, por ora, Monk sabia que a melhor coisa a fazer era cooperar.

A trilha terminava numa face íngreme da rocha vulcânica. Um anfiteatro abobadado natural havia sido escavado na rocha preto-avermelhada e coberto com um grosso telhado de palha de palmeira. O aguaceiro escoava num lençol de chuva da extremidade frontal do telhado, criando uma cortina aquosa.

Além da torrente, iluminadas por uma imensa fogueira, Monk avistou fileiras de tocadores de tambor ao longo de ambas as paredes, esforçando-se ao máxi¬mo, batendo com força no couro. Dois tambores enormes, tão largos quanto sua envergadura, pendiam das paredes da rocha e eram golpeados com baquetas de osso. Cada pancada estremecia a tênue cascata que caía do telhado de palha no chão da rocha.

Eles foram conduzidos para a frente.

Um único javali fuçava através do espaço aberto em frente e berrou à aproximação dos estranhos. Mais porcos estavam encolhidos sob uma saliência, pressionados uns contra os outros, anca com anca.

Monk conduziu Susan através do lençol de água para debaixo da grande saliência. Ele tremia enquanto a chuva caía sobre o seu peito nu. O calor do fogo ali dentro era bem-vindo, mas a fumaça asfixiava e ardia, esforçando-se ao máximo para que uma estreita coluna saísse através da palha.

Uma multidão, formada por alguns nativos em pé e outros agachados, havia se reunido em volta da fogueira adiante. Monk calculou mais de cem: homens, mulheres com os seios à mostra. Mas aberturas escavadas estendiam-se pelas paredes, e mais rostos olhavam através delas. Algumas crianças nuas, em pé, fitavam-nos com os olhos arregalados. Uma trazia nos braços um porquinho malhado de preto e branco.

A algum sinal, os tambores de repente pararam com uma nota ressonante. O silêncio era intimidador.

Naquele silêncio repentino, uma voz gritou.

— Monk!

Atônito, ele se virou. Uma figura magra estava em pé, imprensada contra as barras de bambu de uma cela construída num canto nos fundos, usando uma camisa rasgada e cuecas brancas enlameadas.

—        Jessie?

O jovem enfermeiro ainda estava vivo!

Antes que eles pudessem prosseguir com seu reencontro lacrimoso e sincero, porém, uma figura alta avançou, embora para a tribo alto fosse cerca de 1,50 metro, no máximo. O velho dava a impressão de que alguém lhe vendera uma vestimenta de carne com o dobro do tamanho. Também estava untado de gordura e borrado de cinzas, e usava algum tipo de cabaça entrelaçada sobre os órgãos genitais e um emaranhado de penas roxas nos cabelos que se projetavam para cima, como que assustadas. E mais nada.

Monk reconheceu que aquele era o líder da tribo.

Era hora de representar um pouco, de dançar para a ceia dele — ou melhor, de dançar para não virar ceia.

Monk ergueu um dos braços na direção do ancião.

—        Boogla-boogla rah! — entoou ele solenemente, depois retesou o antebraço e estendeu a outra mão a fim de puxar o pino em seu punho.

Libertada de seus contatos eletromagnéticos, sua mão artificial caiu na rocha vulcânica enlameada. A multidão ofegou.

O líder deu um passo para trás, quase entrando na fogueira.

Monk baixou o braço e olhou para sua mão separada do corpo.

Além de se parecer com carne de verdade, a prótese era uma maravilha da engenharia da DARPA, e incorporava o controle direto dos nervos periféricos através de pontos de contato de titânio no punho. Também era dotada de elementos da bioengenharia, como mecânica avançada e estimuladores, que permitiam a retroalimentação sensorial e movimentos com a precisão dos de um cirurgião.

Mas isso era apenas metade da história.

O coto do punho de Monk estava envolto numa bainha polissintética, presa cirurgicamente à extremidade de seu punho e conectada por cabos a feixes nervosos e tendões musculares. Na realidade, era a outra metade de sua prótese. A mão podia ser os músculos, mas a bainha no punho era sem dúvida o cérebro.

Com a outra mão, ele manipulou os contatos de titânio na bainha. Essa era a melhor característica de sua mão artificial. Monk realizava esse truque em festas o tempo todo. Então, por que aquela seria diferente?

Não havia fios ligando a bainha e a mão, e sim uma interface digital de rádio.

Quando Monk bateu de leve no pulso, reproduzindo uma seqüência ensaiada, sua mão decepada ergueu-se nas pontas dos dedos e começou a dançar na rocha como uma aranha de cinco patas.

Dessa vez o líder dos canibais entrou na fogueira, queimando o traseiro o suficiente para gritar e pular para fora.

Monk fez sua mão correr atrás dele.

Àquela altura, um amplo círculo se abrira ao redor do grupo. Ryder havia arrastado Susan para as sombras da face do penhasco, deixando o palco para Monk.

—        Agora que eu tenho a atenção de vocês! — gritou Monk. Ele andou a passos largos na direção do fogo.

Supondo que ninguém ali falasse inglês, ele teve de persuadi-los com uma bravata de gestos e um forte golpe no peito nu. Ainda assim não bastava apenas assustar o povo supersticioso. Ele precisava conquistá-lo. Era hora de um estratagema da ilha Canibal liderado por um americano.

Dando meia-volta, Monk apontou para Susan.

Ao sinal dele, ela tirou da cabeça a camisa que Monk lhe emprestara. Ryder estendeu uma das mãos e tirou o avental hospitalar dos ombros dela, deixando-o cair. Susan ergueu os braços, com os seios à mostra como as mulheres dali.

Só que ela brilhava nas sombras.

Um assombro reprimido espalhou-se pelos membros da tribo.

O próprio Monk olhou embasbacado para Susan. Ela brilhava com uma intensidade ainda maior do que quando ele a vira pela primeira vez. Significativamente maior. A pele dela brilhava como se houvesse um luar interior que a deixava quase translúcida.

Do canto, Ryder acenou para Monk, exortando-o a prosseguir.

Perturbado, Monk se recompôs. Foi até Susan, ajoelhou-se e gritou a única palavra que conhecia na língua dos canibais, uma palavra que lhe fora ensinada por um pirata desdentado.

Um nome.

—        RANGDA! — gritou ele, referindo-se à rainha da ilha dos canibais, senhora dos demônios brilhantes da lagoa.

Brilhantes como Susan. Ele curvou-se.

—        Todos saúdem a rainha-feiticeira das ilhas!

 

Devesh entrou no quarto de Lisa, batendo com sua bengala no chão.

Esparramada na cama, presa a uma linha intravenosa, Lisa sabia que não podia mais protelar. Mais cedo, quando era arrastada da doca de escaleres para dentro do navio, ela desmaiou nos braços do guarda, pegando-o de surpresa e caindo no deque com um baque que abalou seus ossos.

Ela rachara o lábio ao fazer isso, mas precisara fazer a encenação parecer convincente. Não fora difícil!. Com a panturrilha cortada por uma espada, o corpo rasgado e lacerado em centenas de lugares pelo aperto das garras das lulas predatórias e os pulmões ainda ásperos em decorrência do quase-afogamento, apenas a adrenalina a mantivera em pé.

Por isso ela havia sofrido um colapso e até ficado inconsciente por alguns instantes.

A encenação fez com que ela fosse levada para a suíte científica, onde foi tratada pelo médico do navio e por um dos membros da equipe médica da OMS. Sua perna fora limpa e suturada, junto com as lacerações mais graves. Um cateter intravenoso foi colocado, e através dele fluíam líquidos, antibióticos e analgésicos. Ela agora estava deitada em seu antigo quarto, uma cabine interna sem sacada nem janelas, sob guarda. Embaixo do lençol fino, seu corpo era uma colcha de retalhos de ataduras e curativos de gaze.

Esse tratamento não foi ministrado por misericórdia ou compaixão, e sim por causa de um único objetivo: assegurar que ela cumprisse a promessa feita a Devesh na doca de escaleres.

A Estirpe de Judas. Eu sei o que o vírus está fazendo.

Por uma revelação dessas, Devesh não estava disposto a perdê-la, em especial com Susan Tunis desaparecida em alguma parte da ilha varrida pela tempestade. Devesh precisava de Lisa. Por isso ela ampliou sua vantagem, protelando. Ela incumbira Devesh de algum trabalho inútil atribuindo várias tarefas ao chefe de seus laboratórios de análises clínicas.

A justificativa dela: testar e confirmar sua hipótese.

Mas aquilo só poderia ser prorrogado por pouco tempo.

— Então? — disse Devesh. — Os resultados estão sendo compilados neste exato momento. É hora de termos nossa conversinha adiada. Se eu não gostar do que ouvir, começaremos a reverter lentamente todo o seu tratamento médico. Imagino que reabrir seu ferimento com um alicate vai persuadi-la a cooperar.

Ele deu meia-volta e fez sinal para um enfermeiro que aguardava.

O cateter intravenoso de Lisa foi puxado rapidamente e coberto com fita adesiva.

Lisa sentou-se. O quarto flutuou um pouco, depois se estabilizou.

Sempre cavalheiro, Devesh estendeu-lhe um grosso roupão de algodão com o logotipo do navio. Lisa levantou-se, envolta num avental hospitalar fino, mas nua por baixo. Ela tolerou a polidez dele a fim de vestir o roupão e se cobrir, e apertou a faixa com força na cintura.

— Por aqui, dra. Cummings — disse Devesh, encaminhando-se para a porta.

Descalça, Lisa foi conduzida para fora da cabine. Devesh seguiu para a suíte de doenças infecciosas.

A porta estava aberta, e podiam-se ouvir vozes.

Seguindo Devesh para dentro da suíte, Lisa imediatamente reconheceu dois rostos familiares: o bacteriologista, Benjamin Miller, e seu confidente desde que ela chegara, o toxicologista holandês Henri Barnhardt. Os dois médicos estavam sentados a um lado de uma mesa estreita.

Lisa olhou ao redor. Haviam removido toda a mobília da parte de trás da suíte e a substituído por equipamento de laboratório, grande parte dele roubada do equipamento de Monk: microscópios de fluorescência, espectrômetros de cintilação e Auto-Gamma, incubadoras de dióxido de carbono, centrífugas refrigeradas, leitores de microtitulação e de ELISA, e, ao longo de uma parede, um pequeno coletor de fração.

Algumas universidades não eram tão bem equipadas.

A dra. Eloise Chénier, a virologista e administradora-chefe do laboratório de doenças infecciosas da Guilda, estava em pé no outro lado da mesa, usando um jaleco de laboratório que lhe batia nos tornozelos. Com cerca de 60 anos, cabelos grisalhos e um par de óculos de leitura pendurado num cordão em volta do pescoço, ela parecia uma professora esquisita.

Um dos braços da virologista estava erguido na direção de duas estações de computadores atrás dela. Dados fluíam em um monitor; o outro exibia uma confusão de arquivos superpostos. Com um forte sotaque francês, ela estava acabando de explicar alguma coisa a Henri e Miller.

—        Nós obtivemos uma excelente carga viral lavando uma amostra do líquido cefalorraquidiano em uma série de tampões de fosfato, e depois a fixamos com glutaraldeído e a granulamos por centrifugação.

Chénier notou a chegada deles e fez sinal para que se sentassem à mesa.

Devesh juntou-se à sua colega, enquanto Lisa encontrou uma cadeira vazia ao lado de Henri. Seu amigo pôs uma tranquilizadora mão sobre um dos joelhos dela. Ele olhou de relance para ela, com a expressão que perguntava: Você está bem?

Ela fez um movimento afirmativo com a cabeça, contente por estar sentada.

Devesh virou-se para Lisa.

—        Nós concluímos todos os exames auxiliares que a senhora requisitou, dra. Cummings. Será que agora a senhora pode explicar por quê?

Seu olhar acusador a oprimia.

Lisa respirou fundo. Ela havia adiado o máximo possível. Sua única esperança de continuar viva era dizer a verdade e rezar para que o valor de sua tática fosse grande o suficiente para superar sua traição anterior.

Ela se lembrou da primeira lição de Devesh: Ser útil.

Lisa começou devagar, relatando sua descoberta do estranho brilho na retina dos olhos de Susan. Porém, à medida que falava, ela viu a descrença já irradiando da expressão de Devesh.

Lisa virou-se para Henri, em busca de comprovação.

—        Você conseguiu realizar o ensaio fluorescente na amostra do líquido espinal?

—        Ja. A amostra de líquido de fato exibe uma baixa fluorescência.

Chénier concordou.

—        Eu centrifuguei. O granulado bacteriano de fato brilhou. E foi confirmado que eram cianobactérias.

Miller, o bacteriologista, concordou com a cabeça em concordância.

O ceticismo de Devesh mudou para interesse. Seus olhos voltaram a se concentrar em Lisa.

—        E com base nisso a senhora determinou que as bactérias haviam migrado do cérebro para o nervo óptico e colonizado os fluidos dos olhos. Por isso a senhora solicitou a segunda punção lombar.

Ela fez que sim com a cabeça.

—        O dr. Pollum não está aqui. Ele conseguiu concluir a análise da proteína no envoltório do vírus?

Lisa também requisitara esse exame. Na verdade, ele não era necessário, mas havia prometido algumas horas de trabalho extra.

—        Um momento — disse Chénier. — Tenho os resultados aqui. — Ela virou-se para um dos monitores e começou a fechar as telas enquanto narrava. — Talvez lhes interesse saber que, a partir das análises genéticas, conseguimos classificar o vírus como pertencente à família Bunyavirus.

Henri percebeu os olhos de Lisa se contraírem e explicou.

—        Era o que estávamos discutindo antes de você chegar. Normalmente, os buniavírus infectam aves e mamíferos, causando febres hemorrágicas, mas em geral os vetores da transmissão são artrópodes: pernilongos, carrapatos, mosquitos.

Ele empurrou um bloco de notas na direção dela.

Lisa olhou de relance para as páginas abertas. Henri fizera um diagrama da via de infecção.

 

Ser humano ►   Inseto (artrópode)         ► Ser humano

(infectado)        (transmissor, não enfermo)           (infectado)

 

Henri bateu de leve no centro do diagrama.

—        Os insetos são necessários para disseminar a doença. Os buniavírus raramente são transmissíveis diretamente de ser humano para ser humano.

Lisa esfregou as têmporas.

—        O contrário da Estirpe de Judas. — Ela pegou um lápis e modificou o diagrama. — Em vez de um inseto para disseminar a doença, é uma célula bacteriana que transmite o vírus de uma pessoa para outra.

 

Ser humano ►   Bactéria ► Ser humano

(infectado)                                (infectado)

 

Henri franziu o cenho.

—        Sim, mas por quê...?

Rajadas de tiros interromperam suas palavras. Todos eles deram um pulo de onde estavam.

Até mesmo Devesh deixou sua bengala cair. Sussurrando uma praga, ele pegou-a e encaminhou-se para a porta.

—        Vocês todos fiquem aqui.

Mais rajadas seguiram-se, junto com gritos guturais.

Lisa levantou-se. O que estava acontecendo?

 

Devesh chamou dois guardas posicionados na ala científica e saiu às pressas para o posto de segurança no centro do navio, junto aos elevadores. Disparos de armas automáticas irrompiam em explosões esporádicas, tão altas quanto detonações no espaço reduzido.

Gritos soavam entre as rajadas.

Mantendo os guardas à sua frente, Devesh seguiu com mais cautela quando o posto surgiu à vista. Seis homens guarneciam a unidade de segurança. O líder, um soldado somali alto, notou Devesh e recuou para sua posição.

Ele falou laconicamente em malaio.

—        Senhor, uma dúzia dos enfermos fugiu de uma das enfermarias de trás. Eles correram para a nossa linha e atacaram.

O líder fez sinal com a cabeça para um dos guardas, sentado ao lado, que segurava com cuidado um braço ensangüentado. Ele havia arregaçado a manga da camisa, revelando um profundo ferimento causado por uma mordida.

Devesh deu um passo à frente e apontou distraidamente para o homem ferido.

—        Isole-o.

Além do posto de segurança, um corredor estendia-se na direção da popa. Algumas portas estavam abertas; outras, fechadas. Ao longo do corredor havia alguns corpos estatelados, cheios de perfurações de balas, e o sangue encharcava o carpete. Os dois mais próximos — uma mulher obesa nua e um adolescente sem camisa — estavam embolados. Devesh notou as erupções cutâneas e os furúnculos enegrecidos nos cadáveres.

Ele lutou para controlar seu mau humor, respirando pesadamente pelas narinas. A seção da popa daquele nível abrigava os pacientes mais debilitados, tornando-os prontamente disponíveis para a equipe de pesquisa. Devesh havia elaborado um rígido protocolo ao se lidar com os pacientes daquele nível. Tais lapsos não seriam tolerados. Não quando ele estava tão próximo do êxito.

—        Eu pedi reforços — disse o líder das sentinelas. — Quando começamos a atirar, alguns dos enfermos fugiram para quartos abertos. Teremos que fazê-los sair.

Ouviu-se um gemido mais adiante no corredor.

Um homem ergueu-se apoiado num dos cotovelos. Seu outro ombro era uma ruína ensangüentada. Ele usava um jaleco médico. Era um dos médicos, surpreendido em meio ao tiroteio.

—        Me ajudem! — implorou ele.

De uma porta aberta junto ao seu ombro, uma mão estendeu-se e agarrou seu jaleco. Outra se emaranhou em seus cabelos. Ele gritou quando foi puxado parcialmente pela porta. Com as pernas ainda projetadas no corredor, seus calcanhares agitavam-se e batiam no chão.

O líder das sentinelas olhou de relance para Devesh, pedindo permissão para avançar.

Devesh sacudiu a cabeça.

Os gritos do médico pararam de repente, mas seus calcanhares continuaram a bater num ritmo de agonia.

Devesh não sentiu a menor solidariedade. Alguém havia sido descuidado com uma algema ou com a fechadura de uma porta. Ele ouviu o barulho das botas dos reforços ecoando pelo poço da escada acima.

Devesh virou-se, mas apontou um braço para o corredor.

—        Extermine-os.

—        Senhor?

—        O convés inteiro. Faça uma limpeza total. Cabine por cabine.

 

Ainda no laboratório de virologia, Lisa ouviu os disparos dos rifles.

Os gritos também chegaram até ela.

Ninguém falou.

Devesh finalmente voltou. Ele parecia inabalável, apenas com o rosto um pouco vermelho, e apontou a bengala para Lisa.

—        Venha comigo. Tem uma coisa que eu gostaria que a senhora visse.

Ele deu meia-volta e afastou-se rapidamente.

Lisa levantou-se e seguiu-o, apressando-se para manter o passo.

Devesh a conduziu além do posto de segurança e ao longo do próximo corredor.

Parecia um matadouro. O sangue espirrara nas paredes. Corpos jaziam achatados contra as paredes, macerados pelos disparos de armas automáticas.

Lisa engoliu em seco, asfixiando-se com o mau cheiro no corredor confinado.

Enquanto eles seguiam pelo corredor, as portas de todas as cabines estavam abertas. Ela olhou de relance para dentro e avistou mais corpos sem vida, retorcidos, ensangüentados. Algumas pessoas haviam sido fuziladas ainda algemadas aos seus leitos.

Mais tiros soaram — não esporádicos, mas intencionais.

Mais abaixo, dois guardas saíram de uma cabine com os rifles fumegantes e em seguida foram para o próximo quarto.

—        O senhor... o senhor está chacinando os pacientes — disse Lisa.

—        Nós estamos aliviando a carga de pacientes, só isso. — Devesh ergueu um braço e moveu-o vagamente para a frente. — Esta é a segunda fuga. Uma hora atrás, dois pacientes escaparam das algemas, arrancando com os dentes os próprios dedos para se libertarem. Eles atacaram o médico, matando-o antes que pudessem ser detidos. Num estado demente desses, esses pacientes são fortes, excitados pela adrenalina, indiferentes à dor.

Lisa lembrou-se do vídeo do marido de Susan Tunis, enfurecido e atacando. Aquilo agora estava começando ali também.

Devesh olhou para ela.

—        Com base nos exames dos eletroencefalogramas, parece que a senhora tinha razão. A patologia parece ser alguma forma de excitação catatônica, acompanhada por profundos surtos psicóticos.

Mais tiros ecoaram, fazendo-a sobressaltar-se.

Respondendo à reação dela, ele suspirou.

—        Isto é para a segurança de todos. Estamos observando um rápido declínio no estado dos pacientes em todo o navio. Com os estoques de medicamentos já começando a acabar, temos que ser eficientes. Assim que um paciente regride a esse nível de debilitação, passa a representar uma grave ameaça física a todos ao seu redor e não serve a nenhum objetivo prático.

Lisa compreendeu o sentimento por trás das palavras dele. Devesh e a Guilda estavam usando os pacientes do navio como o equivalente de meios de cultura vivos para a Estirpe de Judas, colhendo os patógenos letais e armazenando-os como armas biológicas potenciais. E, a exemplo de qualquer campo após a colheita, Devesh estava preparando-o para a semeadura.

—        Por que o senhor me trouxe aqui? — perguntou ela, horrorizada.

—        Para mostrar-lhe isto.

Devesh foi até a única porta de cabine que ainda estava fechada. Ele passou o cartão pela fechadura e manteve a porta aberta para ela.

Um mau cheiro mais forte atingiu-a.

Lisa transpôs o limiar escuro, sem saber o que esperar. As luzes do corredor revelaram uma cabine interna, parecida com sua própria cabine: um pequeno banheiro, um sofá, um televisor e uma pequena cama na parte de trás.

Atrás dela, Devesh estendeu a mão para dentro e acendeu as luzes. As lâmpadas tremeluziram e depois se estabilizaram num zumbido baixo de fluorescentes.

Lisa recuou, com uma das mãos na garganta.

Um corpo jazia inclinado na cama, e encharcara as roupas de cama e os travesseiros. Suas pernas nuas estavam amarradas aos pés da cama, e os braços, à cabeceira. Mas parecia que uma bomba havia explodido na barriga dele, deixando um buraco em seu abdome. Sangue coagulado havia salpicado o teto e as paredes.

Cobrindo a boca com uma das mãos, Lisa se acalmou, voltando por reflexo a ser objetiva, seu único porto seguro.

Onde estavam seus órgãos internos?

—        Pacientes cujas mentes haviam se deteriorado além do controle foram encontrados devorando-o — explicou Devesh.

Lisa estremeceu de maneira súbita e violenta. De repente ficou cônscia demais de seus pés descalços, de seu corpo quase nu embaixo do roupão.

—        Nós já vimos isto antes — continuou Devesh. — Nesse estado de excitação catatônica, o vírus parece estimular um apetite voraz. Insaciável, na verdade. Nós observamos uma dessas vítimas, um paciente, se empanturrar até seu estômago explodir. E ainda assim ele continuou a comer.

Oh, meu Deus...

Passado o choque, Lisa precisou de mais um instante para que o significado daquelas palavras a atingisse.

—        Vocês viram... onde...?

—        Dra. Cummings, a senhora não acha que estávamos estudando apenas Susan Tunis. Para sermos meticulosos, precisamos entender também cada faceta da doença. Até mesmo esse canibalismo. Essa fome insaciável tem uma notável semelhança com a síndrome de Prader-Willi. A senhora a conhece bem?

Entorpecida, Lisa sacudiu a cabeça.

—        Trata-se de uma disfunção do hipotálamo que desencadeia um apetite insaciável que não pode jamais ser mitigado. Uma sensação interminável de fome. Um defeito genético raro. Muitas das pessoas acometidas morrem jovens em conseqüência de rupturas no estômago causadas pelo empanzinamento.

A avaliação fria e objetiva de Devesh ajudou-a a acalmar-se um pouco, mas sua respiração continuou pesada.

—        A autópsia de um dos cérebros dos psicóticos revelou dano tóxico ao hipotálamo, semelhante à patologia nos pacientes que sofrem da síndrome de Prader-Willi, complementado pela excitação catatônica e pela estimulação supra-renal. Bem...

—        Devesh acenou na direção da cama.

O estômago de Lisa embrulhou. Quando se virou, ela finalmente notou o rosto da vítima: os lábios angustiados, os olhos fixos e vazios, a coroa de cabelos grisalhos.

Ela cobriu a boca com uma das mãos quando reconheceu o homem. Era o paciente John Doe, o que sofria da doença devoradora de carne. Pela história clínica de Susan, Lisa até sabia o nome do paciente agora.

Applegate.

Para dar um nome ao canibalismo ali, para personalizá-lo... Lisa saiu às pressas do quarto.

Os olhos de Devesh cintilavam com uma diversão sombria. Lisa se deu conta de que o filho-da-puta a trouxera de propósito até ali, seminua, debilitada, sabendo que ela o identificaria. Tudo não passava de um terrível sadismo.

—        Então, agora a senhora sabe o que nós verdadeiramente enfrentamos aqui —   disse ele. — Imagine esses acontecimentos ampliados no mundo inteiro. Essa é a ameaça que estou tentando evitar.           

Lisa reprimiu uma resposta ríspida. Tentando evitar uma ova.

—        Estamos enfrentando uma pandemia — prosseguiu Devesh enquanto seguia pelo corredor de volta à ala científica. — Antes de a OMS responder à situação na ilha Christmas, os primeiros pacientes já tinham sido transportados de avião para Perth, na Austrália. Antes disso, turistas que haviam visitado a ilha Christmas já haviam se espalhado pelos quatro cantos do mundo: Londres, São Francisco, Berlim, Kuala Lumpur. Não sabemos quantos foram infectados — se é que algum foi — pela exposição inicial, como a dra. Susan Tunis, mas não devem ter sido muitos. Sem a desinfecção adequada, como a que empregamos aqui, o vírus já pode estar se disseminando.

Devesh conduziu-a corredor abaixo de volta ao laboratório de virologia.

—        Então, talvez agora a senhora seja um pouco mais afável e franca. Quando eles reentraram no laboratório, olhares interrogadores se voltaram para eles.

Lisa simplesmente sacudiu a cabeça e afundou em sua cadeira. Assim que se acomodaram, a dra. Eloise Chénier levantou-se de sua cadeira em frente ao computador.

—        Enquanto vocês estavam ausentes, levantei os arquivos do dr. Pollum — disse ela. — Aqui está o diagrama de uma proteína que a senhora pediu. Do vírus na sopa tóxica.

A médica afastou-se da tela a fim de que todos pudessem ver a imagem em rotação, girando como um pião no monitor.

Ela descrevia o envoltório em forma de icosaedro do vírus: vinte seções triangulares, formando uma esfera, como uma bola de futebol. Com a exceção de que alguns dos triângulos sobressaíam com proteínas alfa, ao passo que outros estavam afundados em proteínas beta. Lisa quis que tudo fosse mapeado cuidadosamente para melhor testar sua hipótese.

Lisa apontou para a tela.

—        A senhora pode interromper a rotação?

Chénier pressionou um botão do mouse e a rotação cessou, congelando a imagem na tela.

Lisa levantou-se.

—        Agora, no outro monitor, a senhora pode exibir o mapa proteico do vírus obtido do líquido cefalorraquidiano de Susan Tunis?

Um instante depois, apareceu uma segunda bola de futebol, girando. Lisa aproximou-se, examinando-a. Dessa vez ela mesma manuseou o botão do mouse, congelando a imagem no ponto em que queria.

Ela virou-se para os outros.

Devesh deu de ombros, usando toda a parte superior do corpo.

—        Então? Ela parece ser igual à outra.

Ela recuou.

—        Imaginem as duas lado a lado.

Henri levantou-se, com os olhos arregalados.

—        Elas não são iguais!

Ela concordou com a cabeça.

—        Elas são imagens especulares uma da outra. Superficialmente, elas podem parecer iguais, mas na verdade são opostos exatos. Isomerismo geométrico. Duas formas da mesma figura geométrica, apenas refletidas uma sobre a outra.

—        Cis e trans — disse Chénier, usando os termos técnicos para os dois lados da mesma moeda.

Lisa bateu de leve na primeira tela.

—        Esta é a forma trans, ou a forma ruim do vírus. Ela infecta bactérias e as transforma em monstros. — Ela acenou na direção da outra tela, que representava o vírus encontrado no crânio de Susan. — E aquela é a forma cis, ou o vírus bom, que cura.

—        Cis e trans — murmurou Miller. — Bom e mau.

Lisa entrou em detalhes sobre sua teoria.

—        Como já sabemos, o vírus trans intoxicou bactérias a fim de enfraquecer a barreira hematoencefálica, permitindo assim que ele penetrasse naquele território virgem do interior do crânio. E até levou uma companhia consigo.

—        As cianobactérias — disse Miller. — As bactérias brilhantes.

—        E, sob condições normais, as toxinas produzidas pelas bactérias degeneraram o cérebro de tal maneira que ele desencadeou excitação catatônica com psicose. Mas no caso de Susan aconteceu outra coisa. Ao chegar ao fluido cerebral, de algum modo o vírus se alterou. Mudou de sua forma trans maligna para sua forma eis benigna. E, uma vez alterado, o novo vírus fez uma limpeza geral e começou a reverter todos os danos causados pelo seu gêmeo maligno, curando a paciente e deixando-a num profundo estupor de recuperação, oposto à fase de excitação maníaca dos outros pacientes.

—        Mesmo que você esteja certa — disse Henri —, e acredito que esteja, o que havia de tão especial na bioquímica de Susan para desencadear essa mudança?

Lisa deu de ombros.

—        Aposto que nos próximos dias ou semanas nós veremos um punhado de outros pacientes passarem pela mesma transformação. Susan foi infectada há cinco semanas, por isso talvez seja cedo demais para avaliar. Mas creio que ainda é um acontecimento muito raro. Uma peculiaridade aleatória na genética de Susan. Por exemplo, você conhece o fenômeno de Eyam durante a Peste Negra?

Chénier levantou uma das mãos como se estivesse numa sala de aula.

—        Conheço.

Lisa acenou com a cabeça. Era óbvio que uma especialista em doenças infecciosas conheceria a história.

Chénier explicou:

—        Eyam era uma pequena aldeia na Inglaterra. No século XVI, a Peste Negra assolou a aldeia. Mas, depois de um ano, a maior parte dos moradores de Eyam ainda vivia. Estudos genéticos modernos revelaram por quê: uma mutação rara estava presente nos aldeães, num gene chamado Delta 32. Tratava-se de um defeito benigno que era transmitido de um membro da família para outro, e num povoado tão isolado, com moradores endogâmicos, uma boa parte deles havia adquirido a mutação. Então a praga atacou. E essa mutaçãozinha estranha, que simplesmente não parecia ter importância alguma, os salvou, tornou-os imunes.

Devesh falou.

—        Vocês estão insinuando que nossa paciente é portadora de um equivalente do Delta 32 que combate a Estirpe de Judas? Alguma proteína aleatória que dentro dela transformou enzimaticamente o vírus de trans em cis?

—        Ou talvez ela não seja tão aleatória assim — murmurou Lisa. Ela vinha se debatendo com essa questão desde sua descoberta do vírus alterado. — Só uma pequeníssima porcentagem de nosso DNA é de fato funcional. Na verdade, apenas 3%. Os outros 97% são considerados lixo genético. Eles não codificam nada. Mas parte desse DNA inútil tem uma notável semelhança com o código viral. A crença atual é a de que essa codificação poderia desempenhar um papel protetor, a fim de nos ajudar a sobreviver a futuras doenças.

Enquanto continuava, Lisa imaginou o corpo do companheiro de Susan, atacado e devorado.

—        Como o canibalismo, por exemplo.

Sua estranha declaração fez com que todos desviassem os olhos dos monitores.

Lisa explicou em detalhes.

—        Marcadores genéticos encontrados no mundo inteiro revelam que a maioria dos seres humanos é portadora de um conjunto específico de genes contra doenças que só podem ser adquiridas consumindo-se carne humana. Esses achados indicam que nossos antigos ancestrais talvez fossem todos canibais. Pode ser que Susan possua um marcador genético semelhante para proteger seu cérebro contra o ataque do vírus da Estirpe de Judas. Alguma coisa que restou de nossa história genética há muito perdida. Alguma coisa enterrada em nosso passado coletivo.

—        Interessante como sempre, dra. Cummings. — Devesh oscilava para a frente e para trás, apoiado nos dedos dos pés, claramente excitado. — Mas se a transformação foi fruto do acaso ou foi desencadeada por algum marcador genético virai de nosso passado... isso na verdade não importa. Agora que sabemos sobre esse novo vírus, podemos usar esse conhecimento para produzir uma cura!

Chénier parecia menos segura.

—        Possivelmente — frisou ela. — Será necessário pesquisar mais. Felizmente temos um navio repleto de pacientes enfermos nos quais podemos testar potenciais regimes de tratamento. Mas primeiro precisaremos de mais desse vírus trans.

Ela olhou significativamente para Devesh.

—        Não se preocupe — disse ele. — Com Rakao e seus homens já fazendo uma busca na ilha, logo teremos Susan Tunis e os outros de volta. Mas com essa questão resolvida...

Devesh virou-se para Lisa.

— Agora é hora de discutirmos sua punição.

Como que à espera de um sinal, uma figura avançou, trazendo nas mãos uma maleta de médico.

Seus longos cabelos negros haviam sido presos de novo numa trança.

Surina.

 

Monk subia o íngreme caminho em ziguezague, atrás das nádegas nuas de um dos canibais. Outra dúzia de membros da tribo escalava a trilha repleta de curvas na rocha adiante dele. Atrás de Monk vinham mais outros quarenta homens.

Seu exército de canibais.

A chuva caía torrencialmente do céu escuro. Mas pelo menos os ventos quase haviam se extinguido, golpeando apenas com rajadas ocasionais através dos picos irregulares. Monk havia propositalmente marcado aquela escalada, esperando o olho da tempestade passar por cima da ilha. Fora um adiamento angustiante, mas sua paciência abrira uma pequena janela de oportunidade.

Ele continuava a avançar. Embora o caminho que eles escalavam fosse abrigado, profundamente talhado na rocha, o aguaceiro tornava as rochas escorregadias, traiçoeiras, exigindo, às vezes, que eles engatinhassem.

Monk olhou para trás.

Ryder e Jessie estavam às suas costas. Atrás deles seguia uma fila de membros da tribo, usando penas, conchas, cortiça, garras de pássaros e ossos.

Muitos ossos.

A tropa de choque improvisada carregava lanças, arcos feitos de galhos de árvores e clavas afiadas. Mas metade deles também carregava rifles e uma pequena quantidade de velhas armas de assalto — fuzis AK-47 russos, fuzis M16 americanos — junto com bandoleiras atadas por correias com pentes e cartuchos extras. Parecia que os canibais vinham negociando mais do que apenas carne humana com os piratas que partilhavam sua enseada.

Daquela altura, Monk tinha uma vista ampla da lagoa escura. O navio de cru¬zeiro brilhava no meio da lagoa como um bolo de casamento encharcado. Ele era a meta da tropa de choque formada pelos canibais.

Parecia que os canibais fascinados assegurariam que Rangda, a rainha-feiticeira, obtivesse o que quer que desejasse.

E Rangda desejava aquele navio de cruzeiro.

Os desejos e as ordens dela eram traduzidos pelo jovem Jessie. Ele falava malaio, e, como essa era a língua comercial oficial dos piratas, a maioria dos canibais também a entendia. Eles estavam muito espantados de que o jovem enfermeiro entendesse a língua de sua rainha e fosse capaz de transmitir os desejos de Rangda. Ela até deu um beijo no rosto de seu intérprete, abençoando o jovem enfermeiro.

Ninguém ousava desobedecer-lhe.

Embora Jessie tivesse sido essencial na organização do ataque, todo o plano era de Monk.

Ele virou as costas para o navio de cruzeiro. Com as águas certamente vigiadas, jamais conseguiriam fazer um ataque de barco. E, sem dúvida, nadar não era uma opção. Mesmo daquela altura, Monk notava os brilhos ocasionais que deixavam listras na lagoa lá embaixo. A tempestade deixara seus habitantes agitados e caçando nas águas rasas.

Por isso restara apenas uma opção.

Monk subiu mais alto, até o teto do mundo. Eles finalmente haviam chegado aos postes de aço gigantes e ao enorme conjunto de cabos que sustentava aquela parte da rede que cobria a ilha.

Monk desviou o olhar pelo lado de baixo da rede.

A chuva caía torrencialmente dali, encharcando por completo toda a vegetação de camuflagem entrelaçada no lado de cima da rede. Alguém devia estar mantendo aquela ilusão. E Monk supôs que não fossem apenas os piratas.

Provando isso, um dos canibais correu até o cabo mais próximo, com os pés descalços impulsionando sua forma ágil até a cobertura. Ele desapareceu através da rede. Uma escada de corda foi jogada para baixo.

Outros começaram a escalar.

Monk virou-se para Jessie.

—        Você ainda pode ir lá para baixo e juntar-se a Susan na praia. Nós podemos pegar vocês dois lá.

Jessie afastou dos olhos os cabelos encharcados pela chuva.

—        Eu vou. Senão, quem vai traduzir para você?

Antes que Monk pudesse argumentar, o enfermeiro segurou a escada e subiu apressadamente.

Ryder foi o próximo, dando um tapinha no ombro de Monk ao passar. Assim que o bilionário passou através da rede, Monk segurou o degrau inferior, olhando para trás, para a extensão de seu exército escuro. Cobertos de penas, armados até os dentes, prontos para cumprir a ordem de sua rainha.

Monk sentiu uma momentânea preocupação por abusar das superstições deles nesse aspecto. Muitos deles morreriam. Porém, se Lisa estivesse certa, o mundo inteiro estava ameaçado. Ele não tinha opção a não ser usar os recursos à mão.

Eles tinham de chegar ao navio de Ryder, tirar Susan dali e, com um pouco de sorte, resgatar Lisa. Monk recusava-se a acreditar que sua colega não estivesse viva.

Ele subiu a escada.

Passou pelo emaranhado de camuflagem que se agitava. Mesmo no olho da tempestade, as rajadas de vento tentavam arrancá-lo do lugar. Ele se posicionou sobre uma estreita faixa de tábuas, aparafusadas em cima da rede. Era uma ponte utilitária grosseira. A estrutura oferecia um meio de ir e vir na rede, de fazer sua manutenção, de renovar sua camuflagem quando necessário.

A vanguarda de seu exército, rastejando, já cruzava a ponte, segurando em suas tábuas.

Com a chuva caindo em pancadas que doíam, Monk precipitou-se atrás deles. Ventos ocasionais zuniam através da rede, estremecendo-a e chacoalhando-a embaixo dele. Era como voar no tapete de Aladim.

Ele ergueu a cabeça e olhou ao redor. Acima, a coberta de nuvens havia se rarefeito o bastante para revelar algumas estrelas, mas em toda parte nuvens escuras agitavam-se num movimento rápido e contínuo. O olho da tempestade era menor do que Monk havia esperado. Em todos os lados, raios cintilavam e trovões ribombavam.

Monk seguia em frente. Ele e seu exército tinham de estar fora da rede quando o olho da tempestade se afastasse da ilha. Ele se lembrou de quedas de raios anteriores, das cascatas de eletricidade movendo-se com violência pelo esqueleto de metal.

Seria a morte estar ali em cima então.

Eles avançaram lentamente na direção de sua meta.

Enquanto seguia os outros, Monk olhou para baixo, por entre as tábuas. Pelo menos, Susan estava fora de perigo.

 

Com o rosto engordurado e coberto com cinzas para ocultar seu brilho, Susan estava sentada numa rocha oculta na selva, não muito distante da lagoa. Passara a última hora descendo para a praia, a fim de esperar Monk lá.

Porém, não estava sozinha.

Uma dúzia de membros da tribo, sua escolta real, mantinha guarda na selva, escondida na floresta. Apenas uma mulher, cujo nome era Tikal, fazia-lhe companhia imediata, ajoelhada ao lado da rocha, com a cabeça pressionada na lama. Ela não se movera desde que eles haviam parado.

Susan havia tentado envolvê-la, mas a mulher apenas tremia.

Por isso Susan aguardava, sentada na rocha. Ela usava um manto de pele de porco seca, ornado com penas, conchas e contas de pedra polida. Sua cabeça estava coroada por um aro de ossos de costela, preso à sua testa por fibras de cortiça. Todos os ossos estendiam-se para fora, como uma espécie de flor macabra. Haviam lhe dado um cajado polido, encimado por um crânio humano empalado.

Tudo isso fazia parte da indumentária digna da rainha-feiticeira de Pusat.

E, apesar da ornamentação mórbida, o manto era quente, e o cajado revelou-se útil na descida da região montanhosa até a praia. Sua escolta também havia preparado um abrigo temporário, coberto com palha de palmas, que mantinha sua senhora seca.

Susan olhou para cima, para a enorme rede. Ela sabia que estava fraca demais para tentar cruzá-la com os outros. Por isso não argumentou quando Monk a mandou descer para a praia, ficar escondida e esperar o resultado do ataque dos canibais ao navio de cruzeiro.

Mas ela sabia que seria uma longa vigília.

Longa demais.

Desamparada, começou a absorver todo o impacto do que acontecera depois que ela despertara a bordo do navio. Embora estivesse viva, as pessoas que lhe eram mais caras não tinham sobrevivido.

Gregg...

Seu marido voltou-lhe à lembrança: seu sorriso torto, sua gargalhada rápida, seus olhos escuros, o cheiro almiscarado de sua pele, o gosto de seus lábios... e assim sucessivamente.

Ele a completava.

Como era possível que tudo aquilo tivesse acabado?

Susan sabia que ainda estava longe de compreender por completo sua perda. Porém, ela sabia o bastante. Parecia que seu corpo estava fisicamente machucado até o âmago dela. Sua garganta fechou-se, e ela começou a tremer. Lágrimas brilhantes brotaram em seus olhos e escorreram por seu rosto enegrecido pelas cinzas.

Gregg...

Ela balançou-se no lugar por um longo tempo, simplesmente deixando sua dor torturá-la. Era impossível detê-la. A onda de tristeza era uma força de maré, tão inescapável quanto a influência da Lua.

Depois de algum tempo, porém, mesmo uma maré tem de refluir. Em sua esteira dolorosa, restou outra sensação primária, carregada por águas ainda mais profundas, algo que ela evitara reconhecer até agora. Mas estava lá, tão inescapável quanto sua dor.

Susan estendeu um dos braços de sob seu manto, olhando fixamente para a extensão de sua pele, brilhando por causa das cianobactérias em sua transpiração, em seus poros. Ela virou a mão, expondo a palma para cima. O brilho não aquecia a pele, mas havia um calor estranho, que evocava mais uma febre do que a luz do sol.

O que estava acontecendo com ela?

Como bióloga marinha, Susan sabia tudo sobre o organismo. As cianobactérias, normalmente chamadas de algas verde-azuladas, eram tão onipresentes quanto o próprio mar. Elas se agrupavam num sem-número de formações: filamentos finos, folhas lisas, bolas ocas. Foram instrumentais para a evolução, tendo sido os predecessores das plantas atuais. Nos primórdios da história da Terra, as cianobactérias também geraram a primeira atmosfera com oxigênio do planeta, tornando o mundo habitável. E desde então elas haviam se adaptado a milhões de nichos ecológicos.

Portanto, o que significava a colonização de seu corpo? Como ela se relacionava com sua exposição ao vírus da Estirpe de Judas? Não fazia o menor sentido.

Apesar de todas as suas perguntas, Susan sabia de uma verdade.

Alguma coisa ainda estava por vir.

Ela sentia isso no fundo do seu ser, uma sensação que brotava e que desafiava qualquer descrição.

Tão impossível de deter quanto qualquer maré ascendente.

Ela olhou para a floresta, para a lagoa, para além da ilha. Com a mesma certeza com que podia sentir o sol nascendo além da curva do planeta, Susan sabia que sua transformação não terminara.

 

A cerca de 100 metros de distância, Rakao espiava sua presa. Oculto numa capa de chuva, ele mantinha os óculos infravermelhos na testa. Contou os pontos vermelhos brilhantes, assinaturas do calor de corpos humanos, espalhados na beira da praia. Seus caçadores eram mais numerosos que os membros da tribo, o dobro deles.

Com um dos punhos erguido, Rakao fez um sinal para que seu grupo se espalhasse para cada lado, a fim de manter distância deles. Seus homens sabiam que só deviam se mover a cada ribombar de um trovão. Os membros da tribo tinham os sentidos aguçados. Ele não queria assustar sua presa.

Rakao observou Susan Tunis, sentada sobre uma rocha. Ele seguira o grupo de canibais da região montanhosa até a lagoa. Onde estavam os companheiros dela? Não podiam estar longe.

Embora pudesse capturá-la a qualquer momento, ele era um caçador paciente. Ouando seus homens se espalharam para armar uma cilada, Rakao soube a melhor maneira de usar a mulher.

Como isca.

 

Depois de seis horas de viagem, Gray foi parar noutro século e numa miscelânea de culturas. Ele desceu do táxi no coração do antigo distrito francês de Siem Reap, um pequeno vilarejo à margem do rio, no centro do Camboja, situado entre arrozais e a grande extensão de um lago interno. Faltando ainda uma hora para o nascer do sol, o lugar ainda dormia, com o ar pesado e úmido, o zumbido de mosquitos e o assobio da luz trêmula dos lampiões a gás. Do rio próximo, o preguiçoso coaxar dos sapos aumentava a suave sonolência da madrugada.

Alguns esquifes baixos eram impelidos com varas pelas águas rasas do rio, com lâmpadas a óleo penduradas em longas hastes, enquanto pescadores com grandes chapéus de bambu verificavam as armadilhas para caranguejos e lagostins ou esfaqueavam as rãs descuidadas, a fim de levar o produto da pesca, ainda fresco, para os muitos restaurantes e cafés do vilarejo.

O restante do grupo de Gray desembarcou do táxi demonstrando a exaustão com atitudes. Vigor, encurvado e com os olhos turvos, dava a impressão de que alguém o havia lavado e colocado molhado no ar úmido, ao passo que Seichan se alongou como um gato recém-desperto, protegendo com uma das mãos seu lado ferido. Os olhos dela moveram-se além dele a fim de inspecionar suas acomodações. Kowalski coçou a axila e fez o mesmo, assobiando entre os dentes, o que fez um cachorro latir a um quarteirão dali.

Nasser providenciara suas acomodações espetaculares.

Era onde eles deviam aguardar sua chegada.

Dali a duas horas.

No outro lado de uma estrada de acesso curva, o hotel colonial de três andares estendia-se desde o rio em alas amarelas de gesso e madeira, com o teto de lajes de pedras vermelhas, em meio a jardins franceses muito bem cuidados. Sua história representava toda a região. O hotel de 75 anos costumava ser chamado de Grand Hotel des Ruines e atendia a turistas franceses e britânicos que desejavam visitar o complexo das ruínas de Angkor, ali próximo, a apenas 8 quilômetros. Tanto o hotel quanto o povoado acabaram quase se transformando em ruínas durante os anos sangrentos e brutais do Khmer Vermelho, quando milhões de pessoas foram assassinadas num dos mais atrozes atos de genocídio, aniquilando um quarto da população do Camboja. Tais atrocidades desencorajaram o turismo. Porém, com a queda do Khmer vermelho, as pessoas tinham voltado. O hotel ressurgiu das cinzas, meticulosamente reformado em todo o seu charme colonial e rebatizado com o nome de Grand Hotel d'Angkor.

Siem Reap fora igualmente revitalizada — embora com um pouco menos de cuidado. Hotéis e albergues haviam se multiplicado num movimento gradual e contínuo desde as margens leste e oeste do rio, junto com restaurantes, bares, cibercafés, agências de viagens, barracas de frutas e especiarias e um sem-número de feiras nas quais se vendiam antigüidades cambojanas entalhadas, prata filigranada, cartões-postais, camisetas e bugigangas.

Porém, de madrugada — sem turistas e com o sol ainda por nascer —, um pouco do charme e do mistério do lugar ainda permanecia em sua mistura arquitetônica influenciada pelas culturas asiática e francesa. Um carro de boi carregado de duriões com sua casca espinhosa seguia devagar rua abaixo rumo ao Mercado Velho, enquanto um criado, usando um jaleco branco bem passado, varria lentamente a varanda do hotel.

Quando Gray subiu os degraus à frente de seu grupo, o varredor sorriu timidamente, interrompeu seu trabalho e abriu a porta para eles.

O saguão brilhava com mármore e madeiras envernizadas, e era perfumado por rosas, orquídeas, jasmins e lótus em grandes vasos. Um elevador antigo, ornado com ferro forjado intricadamente entrelaçado, ficava ao lado de uma convidativa escada em curva.

—        O Elephant Bar é logo ali na esquina — explicou Seichan, apontando um dos braços.

Era onde eles deveriam se encontrar com Nasser.

Gray deu uma olhadela no relógio pela centésima vez.

—        Vou fazer nosso registro — disse Vigor.

Enquanto o monsenhor se dirigia à recepção, Gray esquadrinhou o saguão. Será que já havia agentes da Guilda ali? Era a pergunta que ele vinha se fazendo desde que aterrissaram em Bangcoc e fizeram a conexão para o curto vôo até ali. Seichan confirmou que a Guilda tinha agentes em toda a região, com vínculos profundos na China e na Coréia do Norte. Era praticamente território da Guilda.

Gray não duvidava de que Nasser tivesse mandado colocar espiões ao longo de toda a trajetória deles desde a ilha de Ormuz até o Camboja. Para poupar a vida de seus pais, Gray fora obrigado a revelar onde terminava a trilha histórica de Marco: nas ruínas de Angkor. Isso convenceu Nasser a adiar quaisquer planos imediatos de assassinar seus pais. Porém, como Gray receava, isso não assegurou a liberdade deles.

Com a espada ainda pendendo sobre a cabeça de seus pais, Gray se recusara a entrar em detalhes sobre sua segunda notícia surpreendente: a cura da Estirpe de Judas. Não até que Nasser estivesse cara a cara com ele e fornecesse evidências concretas de que seus pais estavam livres e seguros.

Por isso eles haviam concordado em se encontrar ali.

Uma troca.

Informações em troca da liberdade de seus pais.

Mas Gray não era idiota. Ele sabia que Nasser jamais libertaria seus pais. Tudo aquilo era uma armadilha dele — e pura tática de protelação da parte de Gray. Ambos sabiam disso. No entanto, eles não tinham escolha a não ser prosseguir com aquela dança de trapaças. Tudo o que Gray podia fazer era continuar logrando Nasser, con¬tinuar persuadindo-o com promessas de recompensa, a fim de que o diretor Crowe ganhasse o máximo de tempo possível para encontrar sua mãe e seu pai.

Gray se arriscara a dar um curto telefonema para os Estados Unidos, depois de falar com Nasser, usando o telefone descartável de Seichan. Com receio de que Nasser pudesse grampear rapidamente as torres de telefonia celular na remota região, Gray teve de ser breve enquanto colocava Painter a par da situação. Em troca, o diretor tinha apenas notícias desalentadoras. A Sigma não tinha novas pistas de seus pais, e ele continuava sem notícias do paradeiro de Monk e Lisa. Gray percebera a frustração e a fúria na voz do homem.

Com o acréscimo de terror bruto à mistura, ela coincidia com o estado de espírito de Gray.

Painter voltara a oferecer o envio de pessoal para dar apoio a Gray ali, porém, enquanto seus pais não estivessem sãos e salvos, ele não ousava aceitar ajuda. Conforme Seichan advertira, aquele era território da Guilda. Qualquer mobilização só revelaria que Gray ainda estava secretamente em comunicação com Washington. Era uma pequena vantagem, mas uma pequena vantagem que Gray não queria correr o risco de perder. Porém, ainda mais importante, se Nasser percebesse que havia uma linha de comunicação aberta entre Gray e o Comando da Sigma, ele mataria seus pais de imediato. Gray precisava que Nasser se sentisse inteiramente confiapte de que sua equipe estava isolada.

Gray, no entanto, correra apenas um pequeno risco e pedira uma ínfima concessão a Painter. Mais tarde, com a questão resolvida, tudo o que Gray tinha a fazer era continuar estendendo aquele intervalo de tempo.

Ele ainda tinha mais duas horas.

A porta do elevador abriu-se atrás dele. Gray ouviu a velha porta de ferro forjado fechar-se aos trancos.

—        Vejo que todos vocês chegaram bem — disse uma voz calmamente atrás dele.

Gray virou-se.

Nasser saiu do elevador para o saguão, usando um terno escuro sem gravata.

—        Parece que nossa reunião pode começar mais cedo.

Homens de uniforme caqui e boinas pretas surgiram dos corredores de cada lado. Atrás de si, Gray ouviu o som de botas na varanda lá fora. Muitos outros soldados desceram a escada em curva adiante. Embora não se visse nenhuma arma, Gray não teve dúvida de que todos eles estavam armados.

Kowalski também devia ter sentido isso, pois já erguera as mãos para o alto.

Seichan simplesmente sacudiu a cabeça.

—        Meu banho quente já era.

Vigor voltou para o lado de Gray.

Nasser juntou-se a eles.

—        Então, está na hora de conversarmos sobre essa cura.

 

—        Pelo que você acabou de me contar — disse o dr. Malcolm Jennings —, Gray não tem nada a oferecer à Guilda. Nada de real valor.

Painter ouvia calmamente, deixando o homem expor seus pensamentos. Ele havia chamado Jennings, o chefe do Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento da Sigma, a seu gabinete a fim de ouvir sua opinião. Por sorte, Jennings já estava mesmo a caminho dali.

—        Com base nos detalhes da história de Marco — disse Jennings, andando de um lado para outro em frente à escrivaninha de Gray —, ele e um punhado de outros homens foram protegidos contra a Estirpe de Judas pelo consumo de sangue e timo. E, de acordo com a história, o sangue e a glândula haviam sido extraídos de outro homem.

—        Basicamente, canibalismo.

—        Ou, como Gray leu no texto — e creio que ele esteja correto —, isso poderia representar uma forma grosseira de vacinação. O timo é uma importante fonte de leucócitos, as células do organismo que o defendem contra doenças. E o sangue é uma importante via de distribuição de anticorpos contra infecções. Ao consumir esses tecidos, teoricamente você poderia oferecer o equivalente de uma imunização.

Painter concordou.

—        Gray acredita que foi isso que protegeu os companheiros de Polo.

—        Mas uma revelação dessas não faz sentido — comentou Jennings. — Ela não oferece nenhuma cura de verdade. De onde vieram o sangue e a glândula? Não de um dos doentes, senão Marco e seus companheiros teriam sido infectados. Falta uma peça nesse quebra-cabeça. Para que uma cura dessas surta efeito, é necessário coletar células e anticorpos de alguém curado, de alguém que tenha sobrevivido à Estirpe de Judas. Trata-se de uma lógica indireta: é necessária uma cura para descobrir uma cura.

Painter suspirou.

—        E você não consegue pensar em nada nessa história que possa oferecer alguma elaboração.

O médico sacudiu lentamente a cabeça.

Como Painter temia, Gray estava blefando perigosamente. Amen Nasser não era tolo. O miserável também reconheceria a falta de uma resposta concreta. O blefe de Gray só poderia mesmo tentar ganhar tempo. E, como a pista esfriara depois do ataque de surpresa ao açougue, parecia um desperdício de esforço, um risco desnecessário. Painter esperava que Jennings talvez tivesse alguma nova intuição.

Mas não tivera tal sorte.

Painter resignou-se.

—        Parece então que a história de Marco leva a um beco sem saída.

—        Não necessariamente. — Jennings esperou um instante. — Diretor, tem mais uma coisa que eu quero discutir. Foi por isso que vim aqui em cima. Ela pode até estar relacionada com esse assunto. Na verdade, se o senhor tiver um tempinho de sobra, talvez seja melhor ver isso com seus próprios olhos.

Na verdade, Painter não tinha aquele tempinho de sobra. Ele olhou para a pilha de papéis à sua frente, uma quantidade enorme de relatórios. No fim do corredor, Kat, a esposa de Monk, havia assumido a tarefa de observar o reconhecimento por satélite das ilhas indonésias. Com sua experiência nos serviços de inteligência, ela se revelara hábil em recrutar ajuda estrangeira e em organizar plataformas de pesquisa de dados cruzados de satélites. Porém, estorvados pela tempestade local, eles não haviam conseguido localizar o navio de cruzeiro.

Ansioso e com o pavio curto, Painter queria voltar lá para baixo. Mas confiava em que Jennings não o faria perder tempo com trivialidades.

—        O que você quer que eu veja?

Jennings fez sinal para um dos monitores de plasma numa das paredes do gabinete.

—        Eu gostaria de uma videoconferência com Richard Graff na Austrália. Ele está esperando meu telefonema, se o senhor permitir.

—        Graff? — perguntou Painter. — O pesquisador que estava trabalhando com Monk na ilha Christmas?

—        Exatamente.

O dr. Graff entrara em contato por rádio com um navio-tanque que passava pela ilha Christmas e alertara o mundo sobre o seqüestro do navio de cruzeiro. No momento, o oceanógrafo estava isolado e em quarentena em Perth.

—        O senhor leu o relato que ele fez às autoridades australianas? — indagou Jennings.

Painter fez que sim com um movimento da cabeça.

—        Mas tem uma coisa estranha que o pesquisador descobriu desde então.

Painter acenou na direção do monitor.

—        Está bem. Me mostre.

Jennings contornou a escrivaninha de Painter e rapidamente estabeleceu uma videoconferência ao vivo.

—        Lá vamos nós.

O monitor escureceu, piscou e em seguida apareceu uma imagem trêmula do cientista. O dr. Graff usava roupas de proteção azuis, e um de seus braços estava numa tipóia. Ele piscou para Painter e Jennings por trás dos óculos.

As apresentações foram feitas, embora Jennings os fizesse passar por pesquisadores associados à Smithsonian Institution.

—        O senhor pode demonstrar o que descobriu? — perguntou Jennings. — O que o senhor me mostrou antes? Eu acho que meu colega deveria ver isso.

—        O espécime está esperando bem aqui.

Graff sumiu da tela. O ângulo da câmera ampliou-se e deslocou-se, revelando uma mesa branca de reunião.

Graff reapareceu, carregando um grande objeto vermelho numa das mãos.

—        Isso é um caranguejo? — indagou Painter, sentando-se mais ereto.

—        Geocarcoidea natalis — explicou Jennings —, o caranguejo-vermelho terrestre da ilha Christmas.

Na tela, Graff concordou com a cabeça e pôs o caranguejo em cima da mesa. Suas grandes tenazes estavam presas com elástico.

—        Este meu chapinha aqui — ou melhor, uma horda deles — ajudou a salvar minha vida lá na ilha.

Curioso, Painter levantou-se e aproximou-se da tela.

Graff soltou o caranguejo e ele imediatamente arrastou-se pela superfície da mesa, seguindo numa linha reta determinada. Graff deu a volta e foi às pressas até o outro lado da mesa para pegá-lo.

Painter sacudiu a cabeça.

—        Eu não estou entendendo. O que o senhor está tentando me mostrar?

Graff explicou.

—        O dr. Kokkalis e eu achamos estranho que esses caranguejos não tivessem sido mortos pela exposição tóxica, mas sem dúvida o comportamento deles foi afetado. Eles estavam atacando e estraçalhando uns aos outros. Por isso acalentei a esperança de estudar o comportamento deles para ver se ele oferecia alguma compreensão da toxicidade.

Enquanto narrava, Graff havia colocado o caranguejo mais duas vezes em cima da mesa; porém, independentemente de onde ele colocasse a criatura e da forma que a posicionasse, o decidido crustáceo virava-se e ia direto para o mesmo canto da mesa antes de quase cair.

Ele demonstrou isso mais algumas vezes.

Estranho.

Graff explicou sua suposição.

—        O caranguejo terrestre da ilha Christmas tem um sistema nervoso sintonizado com precisão e que orienta seu padrão de migração anual. A maioria dos crustáceos possui isso. Mas a exposição tóxica parece ter reprogramado o sistema nervoso do caranguejo, transformando-o no equivalente de uma bússola fixa. O caranguejo move-se sempre na mesma direção, no mesmo rumo da bússola.

Graff pegou seu caranguejo e depositou-o num tanque.

—        Assim que as coisas se acalmarem lá na ilha — concluiu ele —, eu gostaria de testar outros caranguejos para ver se eles também estão reprogramados da mesma maneira. É um estudo fascinante. Eu ficaria contente em elogiar por escrito aquela proposta de uma bolsa que o senhor mencionou antes, dr. Jennings.

—        Sem dúvida, é uma anomalia intrigante, dr. Graff — disse Jennings. — Meu colega e eu conversaremos sobre isso e entraremos em contato de novo com o senhor. Obrigado pelo seu tempo.

A videoconferência chegou ao fim, e a tela ficou vazia. Mas Jennings continuou a digitar na estação de computadores de Painter. Uma nova imagem apareceu na tela de plasma, fornecida pelo computador: um globo terrestre.

—        Quando eu soube dessa anomalia — disse Jennings —, fui em frente, organizei os dados do dr. Graff e acompanhei a trajetória do caranguejo. — Uma linha pontilhada apareceu em torno do globo. — Não acho que meus resultados provam coisa alguma enquanto o senhor não colocar o comandante Pierce a par deles.

O globo girou e sua imagem ampliou-se na tela.

Painter inclinou-se para perto. A imagem do Sudeste Asiático cresceu na tela. A linha pontilhada cruzava a Indonésia, transpunha o golfo da Tailândia e seguia diretamente pelo Camboja.

Jennings bateu de leve na tela, chamando atenção para um ponto que a trajetória do caranguejo cruzara.

—        Angkor Wat.

Painter empertigou-se.

—        Você está insinuando...?

—        Uma coincidência bastante estranha. E me pergunto se esse caranguejo foi reprogramado para coincidir exatamente com esse lugar.

Painter olhava fixamente para a tela, pensando em Gray Pierce, lembrando-se do blefe mortal que estava sendo encenado lá.

—        Se você estiver certo, então a trilha de Marco talvez não seja um beco sem saída, afinal de contas. Alguma coisa deve estar lá.

Jennings acenou afirmativamente com a cabeça, as mãos nos quadris.

—        Mas o quê?

 

Vigor lembrou a si mesmo de jamais jogar pôquer com Gray.

O comandante estava sentado numa poltrona de ratã no bar do hotel. O bar estava fechado àquela hora, mas Nasser havia alugado o espaço para ter privacidade. O Elephant Bar recebera esse nome por causa das duas grandes presas curvas perto da entrada. Dando continuidade ao tema, o salão era decorado com móveis de bambu estofados com tecidos estampados nos padrões zebra e tigre.

Gray estava sentado no outro lado de uma mesinha de vidro, em frente a Nasser, jogando um jogo cauteloso.

Seichan se esparramara num sofá com os tornozelos cruzados. Kowalski estava sentado junto ao longo bar, fitando o monte de garrafas que para ele eram como pedras preciosas. Porém, Vigor também notou que o homenzarrão continuava a espiar Gray e Nasser no espelho do bar.

Se bem que não havia muita coisa que qualquer um deles pudesse fazer.

Os homens de Nasser haviam se posicionado em todas as saídas e se enfileirado em ambas as paredes.

Com um ruído de metal sobre vidro, Nasser tornou a colocar um dos paitzus de ouro na superfície da mesa. Antes mesmo de cogitar qualquer discussão sobre curas, Nasser queria verificar se as ruínas de Angkor eram de fato o lugar onde Marco Polo se deparara com a Estirpe de Judas pela primeira vez. Gray havia esquematizado tudo, decifrando toda a história enquanto estava a bordo do hidroavião.

Vigor estava em pé junto à mesa, estudando a escrita angélica, o mapa estelar, o mapa das ruínas. Ele ouvira a leitura completa outra vez.

Afinal, Nasser aceitou a verdade. Ele recostou-se.

—        E essa cura?

Vigor se esforçou para não demonstrar medo. No vôo até ali, Gray explicara sua opinião sobre a última história de Marco Polo: sua teoria de vacinação por intermédio do canibalismo. Era interessante, mas, no fim das contas, não oferecia uma cura de verdade.

Em virtude do risco de seu blefe, Gray tentara transferir Vigor para outro vôo quando eles fizeram a conexão em Bangcoc.

—        É perigoso demais — advertira-o Gray. — Volte para a Itália.

Mas Vigor recusara. Além de Nasser ter ordenado que todos eles fossem ao Camboja, Vigor tinha seus próprios motivos para continuar. Em algum lugar no meio daquelas ruínas, frei Agreer havia desaparecido, um membro do clero que se sacrificara para salvar Marco e os outros. Vigor não podia virar as costas para uma coragem altruísta como aquela. Porém, ele tinha ainda um argumento mais importante para oferecer a Gray.

—        Os nativos que ofereceram a cura reconheceram alguma coisa em frei Agreer, alguma coisa em comum — explicara Vigor. — Por que eles o escolheram? Se existe alguma resposta além do ponto em que Marco encerrou, talvez seja necessário outro membro do clero para encontrá-la.

Gray concordara com relutância.

Mas Vigor tinha um último motivo para continuar, um motivo não-expressado. Algo que ele notara nos olhos do rapaz. Desespero. Enquanto aquelas últimas cartas estavam sendo jogadas, Gray estava ficando imprudente. Como aquele blefe arriscado, entrando numa armadilha sem nenhuma estratégia secundária. Todas as esperanças de Gray estavam depositadas no diretor Crowe, confiando em que seu chefe encontraria algum modo de proteger seus pais a tempo, deixando Gray livre para agir.

Mas será que Gray estava preparado para o jogo que estava sendo jogado ali, em particular quando estava atormentado pela preocupação com seus pais? Sem dúvida, parte da agudeza de sua mente se embotara.

Vigor baixou o olhar para os mapas e escritas angélicas espalhados.

Por exemplo, como Gray não percebera aquilo antes?

—        A cura — insistiu Nasser, chamando a atenção de Vigor. — Diga-me o que você sabe.

No outro lado da mesa, Gray permaneceu indiferente e calmo, sem uma gota sequer de suor na testa.

—        Vou lhe dar o número de um guarda-volumes no aeroporto de Bangcoc. Vou dizer onde encontrar a chave para confirmar o que estou prestes a dizer. Nós escondemos o terceiro e último manuscrito naquele guarda-volumes. Nesse último documento, Marco descreve a cura em duas partes. Vou lhe contar a primeira parte de graça.

Nasser mexeu-se, com um olho estreitando-se.

—        Assim que eu terminar, como sinal de boa-fé, você libertará um dos meus pais. E eu vou esperar uma confirmação satisfatória. Com isso, direi o número do guarda-volumes e a localização da chave. Você poderá verificar minha afirmação. Está bem assim?

—        Depende do que vou ouvir.

Gray simplesmente fitou-o, sem piscar.

Vigor sabia que aquilo tudo era uma tática protelatória, estendendo a revelação pelo máximo de tempo possível. De fato, o manuscrito estava protegido num guarda-volumes no aeroporto de Bangcoc, mas era uma tentativa inútil. Não havia nenhuma segunda parte da cura.

Gray suspirou, como que cedendo.

—        Eis então a história encontrada no terceiro manuscrito. De acordo com Marco...

Enquanto Gray relatava o que o manuscrito bordado revelava, Vigor estudava os documentos em cima da mesa, ouvindo apenas parcialmente. O comandante ateve-se à verdade, pois sabia que ganharia mais tempo com fatos do que com mentiras. Quando Gray terminasse, Nasser daria os telefonemas necessários e providenciaria para que o manuscrito fosse retirado do guarda-volumes e traduzido. Tudo isso levaria tempo. O manuscrito descoberto confirmaria a história de Gray e tornaria mais provável que Nasser engolisse qualquer invencionice a seguir. E, mesmo que as mentiras de Gray não fossem convincentes, pelo menos um de seus pais teria sido salvo àquela altura.

Esse era o plano.

Gray finalmente terminou sua narração, expondo a ciência.

—        Portanto, sem dúvida o canibalismo serviu de algum meio de vacinação contra a doença. Mas a maneira exata de como isso foi alcançado vai esperar até eu saber que um dos meus pais está seguro.

Gray entrelaçou as mãos no colo.

Nasser ficou sentado em silêncio por um momento e em seguida falou lentamente:

—        Então nós na verdade só precisamos de alguém que tenha se curado da Estirpe de Judas, de alguém que sobreviveu. Depois podemos produzir a vacina a partir dos leucócitos e dos anticorpos dessa pessoa.

Gray permaneceu calado, e apenas deu ligeiramente de ombros, afirmando silenciosamente que quaisquer outras respostas esperariam até que um de seus pais estivesse livre.

Nasser suspirou, estendeu a mão para um bolso, abriu o telefone e apertou uma tecla.

—        Annishen — disse ele. — Pegue um dos reféns. Você pode escolher.

Nasser ouvia.

—        Sim, está ótimo... vá em frente e mate-os.

 

Gray investiu por sobre a mesa.

Ele não tinha nenhum plano, reagira por puro instinto.

Mas Nasser devia ter feito um sinal para um dos homens. A cabeça de Gray explodiu de dor, atingida por trás por um porrete, sua visão dissipou-se num brilho intenso e em seguida caiu numa escuridão momentânea. Seu corpo atingiu a mesa de coquetel e rolou com um baque para o chão, e o impacto lhe trouxe a visão de volta.

Cinco armas apontavam agora para ele.

Outras apontavam para Seichan e Kowalski.

Vigor ficou em pé com os braços cruzados.

Nasser não havia se mexido, seu telefone ainda estava junto ao ouvido.

—        Espere, Annishen. Por enquanto. — Ele baixou o telefone, cobrindo parcialmente o aparelho com uma das mãos. — Parece que este é o fim, comandante Pierce. De muitas trilhas. O último manuscrito de Polo apenas confirma o que eu soube do contingente da Guilda na Indonésia. A equipe científica chegou à mesma conclusão. Uma cura potencial de fato reside no corpo de uma sobrevivente. De uma sobrevivente que na realidade brilha, conforme revelado na história de Polo.

Gray sacudiu a cabeça. Não em negativa; ele apenas tinha dificuldade de compreender o que Nasser estava dizendo. O sangue latejava em seus ouvidos, ensurdecendo-o. Seu plano fracassara.

Nasser ergueu o telefone outra vez.

—        Por isso, parece que nossa trilha histórica descreveu um círculo até se encontrar com a trilha científica. Esse é o fim da estrada proverbial. Para você. Para sua mãe e para seu pai.

Gray sentiu o mundo fechando-se sobre ele de todos os lados. Até mesmo sua visão estreitou-se, as vozes soaram mais abafadas. Até Vigor se aproximar.

—        Chega — disse bruscamente o monsenhor, com a autoridade de um professor num auditório.

Todos os olhos se voltaram para ele. Até Nasser parou.

Vigor olhou fixamente para o captor deles.

—        Você faz muitas suposições, meu rapaz. Suposições que não serão úteis nem a você nem aos seus cúmplices.

—        Como assim, monsenhor? — perguntou Nasser, mantendo seu tom de voz cortês.

—        Essa cura. Os cientistas de vocês já a testaram? — Vigor encarou Nasser e em seguida deu um sorrisinho de desdém. — Aposto que não. Tudo o que você disse são conjecturas teóricas, talvez apoiadas pela história de Marco. Mas isso está muito longe da certeza. E lamento rejeitar sua afirmação de que a trilha histórica terminou. Na verdade, ela pode ter deparado com a trilha científica, mas creio que, em vez de terminar, a descrição mais exata é a de que as duas trilhas se fundiram aqui. Não ignore isso tão depressa. Pelo menos não ainda, meu rapaz. A trilha histórica continua.

A mente de Gray procurava entender o que o monsenhor dizia. Será que ele estava mentindo, blefando ou dizendo a verdade?

Nasser suspirou, pelo visto pesando as mesmas possibilidades.

—        Eu agradeço sua atenção, monsenhor, mas não vejo nada aqui que justifique mais investigação. A partir daqui os cientistas podem cuidar disso.

Dessa vez foi Seichan quem deu um risinho de deboche.

—        É por isso que você jamais subirá mais alto na hierarquia da Guilda, Amen. Transferindo sua responsabilidade para outras pessoas. Sugiro que você ouça o monsenhor.

Nasser olhou furioso para ela, mas voltou a fitar Vigor.

—        O mapa de Marco aponta para as ruínas aqui. Ele termina aqui.

Vigor inclinou-se e ergueu o mapa do extenso complexo de ruínas de Angkor.

—        Essas ruínas abrangem uma área de 260 quilômetros quadrados. É um território muito grande. Você acha que isso é o fim?

Os olhos de Nasser estreitaram-se.

—        O senhor está propondo que vasculhemos todos os 260 quilômetros quadrados? Com que objetivo? Nós temos a cura.

Vigor sacudiu a cabeça.

—        Não há necessidade de vasculhar todo o complexo. Marco indicou com precisão o lugar mais importante para nós.

Nasser virou-se para Gray, pronto para ameaçá-lo, com os olhos escuros grudados nele.

Vigor postou-se entre eles.

—        O comandante Pierce não omitiu nada. Ele não tem essa resposta. Eu juro pela minha alma.

Nasser franziu o cenho.

—        Mas o senhor tem.

Vigor curvou a cabeça.

—        Sim, eu tenho. E a contarei a você. Mas apenas se você jurar que vai deixar os pais do comandante Pierce viverem.

As feições de Nasser endureceram de desconfiança.

Vigor levantou uma das mãos.

—        Não estou lhe pedindo que os liberte. Apenas que me ouça, e acho que você entenderá a necessidade de seguir a trilha até o fim.

Gray notou a indecisão no semblante de Nasser.

Oh, por favor, meu Deus, permita que Vigor o convença.

Vigor prosseguiu.

—        Assim que você seguir a trilha até o fim, então tome sua decisão. Sobre eles, sobre nós. Seria tolice matar reféns ou destruir recursos até você descobrir o que está no verdadeiro fim dessa trilha.

Nasser afundou em seu assento.

—        Então me mostre onde ela termina. Convença-me, monsenhor.

—        E se eu o convencer, como um homem com honra, você manterá os pais de Gray vivos?

Nasser acenou uma das mãos.

—        Está bem. Por enquanto. Mas se o senhor estiver mentindo, monsenhor...

—        Não, não estou.

Vigor abaixou-se, apoiando-se num dos joelhos diante da mesa.

Gray juntou-se a ele.

Vigor empurrou para a frente três folhas de papel: o mapa de Angkor, o código angélico do obelisco e a linha com três símbolos das chaves. O monsenhor ergueu a folha com o código angélico.

—        Conforme o comandante Pierce já relatou, todas as marcas diacríticas enegrecidas — os círculos que acentuam a escrita — na verdade representam locais com templos que formam Angkor.

Nasser concordou com um aceno de cabeça.

—        E aqui estão de novo os três símbolos das chaves.

—        Agora compare estes três símbolos com os símbolos equivalentes circulados no obelisco. O que você vê de diferente?

Nasser inclinou-se para a frente, como Gray.

—        Existem três círculos enegrecidos nos símbolos no obelisco — respondeu Nasser.

—        Representando três templos — disse Vigor. — Ora, quantos círculos enegrecidos existem entre os três símbolos-chave?

—        Apenas um — respondeu Gray. Agora ele entendia. Ele estivera tão certo de ter solucionado o enigma antes que deixara de olhar um pouquinho mais à frente. — Um templo. Esse círculo enegrecido não representa apenas o castelo português; ele também representa um dos templos!

Gray virou o mapa para si e pegou uma caneta para circular o templo correspondente e conectá-los.

Nasser inclinou-se mais para perto, a fim de ler o nome do templo marcado no mapa de Angkor.

—        Bayon. — Ele recostou-se. — Mas como o senhor pode ter certeza de que ele é importante?

—        O Bayon foi o último templo construído em Angkor — disse Vigor. — Foi construído mais ou menos na época em que Marco passou por essa região. O que há de estranho em relação ao templo é que, depois de ele ter sido construído, todas as construções na região pararam.

—        Mas o que tem lá? — indagou Nasser.

Vigor deu de ombros.

—        Não tenho a menor idéia. Talvez a origem da Estirpe de Judas, talvez alguma outra resposta. Tudo o que sei é que Marco julgava isso importante o suficiente para preservar. E, ainda que eu esteja errado, depois de seguir esta trilha por meio mundo, por que parar quando se está a apenas alguns passos do fim?

Nasser correu os olhos pela sala.

Seichan mexeu-se.

—        Nós podemos estar lá em meia hora, Amen. Vale a pena pelo menos ir lá.

Gray receou concordar com eles, para não provocar a ira de Nasser.

Vigor não estava tão acanhado.

—        Marco enfrentou muitos problemas para preservar a localização desse templo. Os místicos do Vaticano enfrentaram tantos problemas quanto Marco para protegê-la num código. Até mesmo a gente do lugar afirma que o templo ainda contém muitos tesouros secretos. Isso se presta a investigação.

Kowalski ergueu uma das mãos.

—        E eu vou ter que dar uma mijada. A coisa tá feia.

Nasser franziu o cenho, mas ficou em pé.

—        Nós vamos até lá, até Bayon. Mas, se até o meio-dia nada for descoberto, está acabado.

Nasser ergueu o fone até o ouvido.

—        Annishen, suspenda aquela ordem de execução.

Gray estendeu a mão e apertou um dos joelhos de Vigor por baixo da mesa.

Obrigado.

Vigor olhou de relance para ele com uma expressão que significava: Ainda não estamos fora de perigo.

Nasser provou isso.

—        Annishen, um dos pais que você escolheu. Nós pouparemos a vida desse por causa da minha palavra empenhada ao monsenhor. Mas ainda precisamos de um pouco de incentivo para encorajar a cooperação contínua e sincera do comandante.

Os olhos de Nasser fixaram-se em Gray.

—        Para cada hora em que não tivermos resultados satisfatórios, decepe um dedo. E, como nós nos detivemos aqui por muito mais de uma hora em razão das fúteis tentativas do comandante Pierce de fazer uma permuta, você pode decepar o primeiro dedo agora.

Nasser fechou bruscamente o telefone.

Gray sabia que o silêncio seria melhor para ele, mas as palavras saíram de seus lábios antes que ele pudesse reprimi-las.

- Seu filho-da-puta maldito. Eu vou matar você.

Impassível. Nasser virou-se.

- A propósito, comandante Pierce, Annishen escolheu… sua mãe.

 

Quando o capuz foi arrancado de sua cabeça, Harriet soube que alguma coisa estava errada, terrivelmente errada.

Ela fora arrastada de um armário, no qual fora trancada, e obrigada a se sentar numa cadeira de aço. Com o capuz removido, ela viu que eles estavam num depósito abandonado. O espaço era enorme, com pisos e paredes de concreto. Vigas e canos de aço expostos corriam ao longo do teto, e correntes pendiam de polias enferrujadas. O lugar cheirava a óleo de motor e borracha queimada.

Harriet olhou ao redor.

Nenhuma janela. A única luz vinha de algumas lâmpadas nuas que projetavam poças de luz na escuridão. Uma escada de aço erguia-se num dos lados. Ao lado dela, um velho elevador de carga estava aberto.

Com exceção de seus captores, tudo parecia deserto.

A um passo de distância, à esquerda, Annishen estava inclinada sobre uma mesa, com um telefone celular ao ouvido, ouvindo em silêncio. Parecia ouvir alguma conversa. Uma pistola estava em cima da mesa, próxima a um alicate e a um pequeno maçarico. Três outros homens patrulhavam a escuridão do porão.

Bem em frente a Harriet, seu marido estava sentado curvado numa cadeira idêntica. Como Harriet, tinha os pulsos algemados. Um dos três homens vigiava-o com uma das mãos sobre uma pistola no coldre. Porém, Jack não era nenhuma ameaça. Sua cabeça pendia, deixando um rastro de baba. Eles haviam tirado suas calças, pois ele tinha se urinado, encharcando a frente da cueca samba-canção. Do joelho para baixo, sua perna esquerda estava presa na prótese. O antigo acidente industrial tirara a maior parte do orgulho de Jack. A natureza levara o restante.

E não apenas a natureza.

Harriet sentiu o peso dos comprimidos não usados no bolso de seu suéter.

Lágrimas brotaram em seus olhos e lhe escorreram pelo rosto.

Annishen falou, encerrando a conversa com um estalo de seu telefone celular. Ela encarou Harriet e acenou para outro dos guardas.

—        Tire as algemas dela.

Harriet não se opôs. Ergueu os braços para permitir que as algemas fossem abertas. O peso delas desapareceu gradualmente, e ela esfregou os pulsos.

O que estava acontecendo?

Obedecendo a um sinal de Annishen, um dos homens arrastou-a em sua cadeira até a mesa. O rangido alto de aço no cimento fez seu marido erguer o rosto cansado.

—        Harriet... — murmurou ele. — Que horas são?

—        Está tudo bem, Jack — murmurou ela com ternura. — Volte a dormir.

Annishen foi até ele.

—        Eu acho que não. Ele já dormiu bastante. Esses comprimidinhos que a senhora deu a ele finalmente surtiram efeito, realmente o deixaram fora do ar. Mas agora é hora de acordar. — Ela segurou o queixo dele com a mão em forma de concha e puxou o rosto dele para cima. — Segure-o assim — ela instruiu o guarda. — Ele deve assistir ao espetáculo.

Jack não resistiu quando o homem imobilizou sua cabeça.

Annishen voltou para a mesa, removendo a baba de Jack de uma perna de suas calças, e acenou para o guarda ao lado da cadeira de Harriet. Ele estendeu uma das mãos, segurou o braço esquerdo de Harriet e puxou-o com força sobre a superfície da mesa, segurando o pulso dela contra a madeira.

Instintivamente, ela recuou, mas o homem simplesmente puxou o braço dela ainda mais, esticando o membro até a axila dela ficar pressionada contra a borda da mesa. Ela sentiu a boca fria de uma pistola contra seu rosto, empunhada pelo terceiro guarda.

Annishen andava devagar ao redor.

—        Parece que temos que ensinar uma pequena lição ao seu filho, sra. Pierce. Ela pegou o maçarico e puxou o gatilho do acendedor automático. Uma chama azul projetou-se da boca do maçarico com um sibilo agudo. Ela o pôs na mesa, perto da mão de Harriet.

—        Para cauterizar o coto.

—        O que... o que você está fazendo?

Ignorando-a, a mulher pegou o alicate, puxando bem os cabos.

—        Agora, qual dedo devemos decepar primeiro?

 

Gray viajava no banco traseiro de um furgão branco. Seichan estava imprensada contra o flanco dele, ambos imobilizados entre dois guardas armados. Nasser olhava para eles do banco na frente, ladeado por mais guardas.

Kowalski e Vigor viajavam no veículo atrás do deles. Outros dois furgões os seguiam, um na frente e o outro atrás, cheios de mais pistoleiros de uniforme caqui.

Nasser não queria correr riscos.

Através do pára-brisa, Gray embotadamente observou as torres de Angkor Wat erguerem-se das brumas adiante, cinco torres enormes em forma de espigas de milho, iluminadas pelos primeiros raios do sol nascente. Angkor Wat era o primeiro de muitos templos espalhados por 260 quilômetros quadrados de ruínas. Também era o maior e o mais bem-conservado, considerado um ícone cambojano, com seu imenso emaranhado de câmaras, muralhas, torres recortadas, esculturas e estátuas. Só esse templo abrangia uma área de 500 acres, cercada por um amplo fosso.

Mas não era a meta deles.

Eles seguiram para Angkor Thom, mais 1,5 quilômetro ao norte. E, apesar de não ser tão grande quanto Angkor Wat, as ruínas muradas de Thom abrigavam o grande templo Bayon, considerado o coração de todo o complexo de Angkor.

Um solavanco reverberante sacudiu o furgão.

Gray viu seu próprio reflexo no espelho retrovisor. Suas faces estavam fundas, obscuras; seus lábios, rachados; os pêlos curtos da barba por fazer sobre sua mandíbula e queixo pareciam uma escoriação preta. Apenas seus olhos ainda brilhavam pétreos e duros, incitados por sua ira e desejo de vingança. Porém, bem no fundo de seu peito, restavam apenas dor e culpa.

Talvez percebendo que ele estava afundando num desespero entorpecedor, Seichan apertou-lhe a mão. Não era um gesto de ternura. Ela apertou-a com força, as unhas cravando-se, recusando-se a deixá-lo escapulir, puxando-o da beira daquele poço.

Nasser notou o gesto dela. Uma sombra de um sorriso de escárnio surgiu e desapareceu em seguida.

—        E eu que pensava que você fosse mais esperto, comandante — sussurrou ele. — Ela já está transando com você?

Gray olhou para ele.

—        Cale essa maldita boca!

Nasser riu uma vez, um riso agudo, divertido.

—        Não? Uma pena. Se você está sendo comida, deveria pelo menos ganhar alguma coisa.

Seichan retirou sua mão da de Gray.

—        Foda-se, Amen.

—        Não mais, Seichan. Não depois de eu ter expulsado você da cama. — Os olhos de Nasser se voltaram para Gray. — Você sabia que nós já fomos amantes?

Gray olhou bruscamente para Seichan. Decerto Nasser estava mentindo. Como ela pôde... com o filho-da-puta que acabara de ordenar a tortura de sua mãe? O mero fato de pensar em sua mãe lançou mais ácido em seu estômago.

Mas Seichan recusou-se a encarar Gray, olhando furiosamente para Nasser. Os dedos dela se fecharam num punho sobre um dos joelhos.

—        Mas tudo isso acabou — disse Nasser. — Essa cadela ambiciosa. Nós dois estávamos perto de ascender ao próximo posto na hierarquia da Guilda. O último degrau para chegarmos ao topo. Mas acabamos divergindo sobre como conseguir você.

Gray engoliu em seco.

—        De que diabo você está falando?

—        Seichan queria usar os embustes dela para induzir você a cooperar por livre e espontânea vontade, a ajudar a Guilda a seguir a trilha de Marco. Por outro lado, eu acreditava numa abordagem mais direta. Sangue e coerção. O jeito de um homem. Mas, quando a Guilda se decidiu contra o plano dela, Seichan procurou assumir o controle das coisas. Ela assassinou o curador veneziano, roubou o obelisco e fugiu para os Estados Unidos.

Seichan cruzou os braços, olhando furiosamente para ele, com repugnância.

—        E você ainda está puto da vida por eu ter passado a perna em você. Mais uma vez.

Gray observou Seichan atentamente.

Toda essa conversa dela de salvar o mundo... será que tudo não passava de uma mentira?

—        Então eu a segui até os Estados Unidos — prosseguiu Nasser. — Eu sabia aonde ela estava indo. Foi bastante fácil preparar uma armadilha.

—        Mas você não conseguiu me matar — escarneceu ela —, provando mais uma vez sua incompetência.

Ele apertou os dedos uns contra os outros com força.

—        Por muito pouco. — Ele baixou o braço. — Mas você manteve sua estratégia original, não manteve, Seichan? Você ainda foi procurar o comandante Pierce. Apenas, talvez, mais como um aliado agora. Você sabia que ele viria em seu socorro. Você e Gray contra o mundo! — Ele deu uma gargalhada rouca. — Ou você ainda está se aproveitando dele, Seichan?

Ela simplesmente torceu o nariz com desdém.

Nasser voltou-se para Gray.

—        Ela não passa de uma mulher ambiciosa. Brutal. Ela passaria por cima de sua próxima avó moribunda para subir na hierarquia.

Seichan inclinou-se para a frente, com os olhos brilhando de fúria.

—        Mas pelo menos eu não me ajoelhei calada enquanto minha mãe era assassinada diante dos meus olhos.

O rosto de Nasser endureceu.

—        Covarde — murmurou Seichan, recostando-se no assento com um risinho de satisfação. — Até assassinou seu pai quando ele estava de costas para você. Porque ainda não conseguia encará-lo.

Nasser investiu contra ela, com uma das mãos estendendo-se direto para a garganta.

Instintivamente, Gray desviou o braço de Nasser.

Talvez não devesse ter feito aquilo.

Nasser, porém, recuou por si mesmo, com os olhos afiados pelo ódio.

—        É melhor você saber com quem está na cama — disse ele para Gray num tom selvagem. — Você deveria tomar cuidado com o que diz a essa cadela.

Os guardas estavam acomodados em silêncio em seus cantos. Gray olhou para Seichan, dando-se conta de que, apesar de toda a sua petulância, ela não negara as afirmações de Nasser. Gray recapitulou os eventos dos últimos dias, mas era difícil concentrar-se com a cabeça latejando e o medo corroendo suas entranhas.

Havia, no entanto, algumas realidades difíceis de descartar. Seichan assassinara o curador veneziano para obter o obelisco. A sangue-frio. E, quando eles se encontraram pela primeira vez, anos atrás, ela até mesmo tentara matá-lo.

As palavras de Nasser ecoavam em sua cabeça.

É melhor você saber com quem está na cama...

Gray não sabia.

Ultimamente, ele não sabia em quem acreditar, em quem confiar.

Tinha apenas certeza de uma coisa. Não poderia haver passos em falso a partir dali. Qualquer fracasso ameaçava mais vidas além da sua.

 

Harriet debateu-se, soluçando de terror.

—        Por favor, não...

O pulso dela foi seguro com força pelo guarda, imobilizado sobre a mesa, e sua mão foi aplanada sob o punho do mesmo guarda. O maçarico sibilava a alguns centímetros de distância.

Annishen segurava o alicate aberto sobre os dedos estendidos de Harriet.

—        Seu mindinho, seu-vizinho, pai-de-todos, fura-...

Ela baixou a mandíbula da ferramenta na direção do dedo anular de Harriet. O diamante do seu anel de casamento cintilou sob a lâmpada nua.

—        Não...

Um estalo alto ecoou, assustando-os a todos.

Harriet virou a cabeça enquanto Annishen se empertigava. A cerca de dois metros, o guarda que estava segurando o queixo de Jack, obrigando o marido dela a assistir à mutilação iminente, gritou e tropeçou para trás. O sangue escorria do nariz do guarda.

Jack arremeteu da cadeira, afastando-se do local em que acabara de dar uma cabeçada no guarda. Quando se virou, ele tirou a pistola do guarda do coldre e apontou-a com as mãos algemadas.

—        Abaixe-se, Harriet! — exclamou ele, enquanto atirava.

O guarda que estava segurando a pistola contra o rosto dela foi atingido no tórax e voou para trás. Sua arma deslizou para a escuridão.

O segundo guarda soltou o braço de Harriet e tentou sacar sua arma.

...BANGUE...

Pelo canto do olho, Harriet viu o rosto e a orelha do homem desaparecerem em meio a muito sangue. Mas toda a atenção dela estava concentrada em Annishen. A mulher já havia deixado o alicate cair com um ruído e apanhara sua pistola de cima da mesa. Ela era extremamente rápida e estava se voltando com raiva na direção de Jack.

Harriet, com o braço ainda sobre a mesa, arremeteu e agarrou o maçarico. Ela direcionou a chama para a mão e o pulso de Annishen, fazendo-a gritar de dor. A arma dela disparou. Um tiro sem pontaria acertou o piso de cimento e ricocheteou. A manga da mulher pegou fogo quando ela recuou, soltando a pistola.

Jack tornou a disparar, mas a dor simplesmente deixou Annishen mais rápida.

A mulher afastou-se para o lado, empurrou a mesa para o chão e desapareceu com um rastro de chama por uma porta nos fundos.

Jack deu mais dois tiros, afugentando a mulher, e em seguida estava ao lado de Harriet. Ele ergueu-a, abraçou-a com força e depois correu com ela para a escada.

—        Temos que sair daqui. Os tiros...

Gritos já soavam acima de suas cabeças. Os disparos tinham sido ouvidos.

—        O elevador de carga — disse Jack.

Eles correram juntos para a cabine aberta, com Jack pulando um pouco com sua prótese. Uma vez dentro da cabine, Jack fechou a porta e apertou o botão do sexto andar, o segundo de cima para baixo.

—        Eles vão mandar vigiar o andar principal. Nós vamos para cima, procurar uma saída de emergência... um telefone... ou simplesmente encontrar um lugar para nos escondermos.

Ele puxou Harriet para o canto de trás do elevador quando a cabine passou pelo andar principal. Gritos chegaram até eles. O brilho de lanternas movia-se para cima e para baixo através da escuridão. Pelo menos vinte homens. Jack tinha razão. Eles teriam de encontrar outra saída ou alguma forma de pedir ajuda. Se aquilo não desse certo, eles teriam que se esconder.

O elevador continuou a subir.

Jack segurou-a.

Ela agarrou-se a ele.

—        Jack... como... você foi tão...?

—        Letárgico? — Jack sacudiu a cabeça. — Por Deus, Harriet, você acha mesmo que eu já estou tão inútil? Sei que tive uma crise no hotel. Sinto muito por ter batido em você.

A voz dele ficou um pouco embargada quando pronunciou a última frase.

Harriet agarrou-se a ele com força, aceitando seu pedido de desculpas.

—        Quando eles lhe deram o choque com a Taser, pensei que neurologicamente alguma coisa tivesse piorado. — Ela apertou-o de novo. — Graças a Deus.

—        Doeu pra cacete. Mas mais tarde, quando percebi que você estava apenas fingindo me dar aqueles malditos comprimidos, imaginei que você estivesse tentando me dizer para representar, para fingir estar pior do que eu estava, de modo que eles baixassem a guarda.

Ela ergueu o olhar.

—        Quer dizer então que você estava fingindo o tempo todo?

—        Bem, eu realmente me mijei todo — disse ele com raiva. — Mas eles não me levariam até a maldita privada.

O elevador parou.

Jack abriu a porta, fez sinal para que Harriet saísse e tornou a fechá-la. Ele estendeu a mão por entre as tábuas da porta de madeira e apertou o botão do porão, fazendo o elevador descer.

—        Não quero que eles saibam em que andar nós saímos do elevador — explicou.

Juntos, eles saíram para a escuridão do depósito, repleto de equipamento velho.

—        Pelo que parece, é uma antiga fábrica de enlatados — disse Jack. — Deve haver muitos lugares para alguém se esconder por aí.

De alguma parte lá embaixo, um novo som subiu até eles. Latindo... agitado, excitado.

—        Eles têm cães — sussurrou Harriet.

 

Tinha tomado tempo demais cruzar a rede da ilha.

Enquanto Monk e seu exército se arrastavam pelo teto do mundo, o olho da tempestade passou pela ilha e já voltara para o mar. A leste, o tufão se erguia como uma onda gigantesca, prestes a se abater novamente sobre a ilha.

Os ventos já estavam se tornando mais fortes.

Monk se agarrou às tábuas da ponte enquanto a rede balançava. Trovões ecoavam como tiros de canhão e raios estilhaçavam o céu negro. As nuvens se abriram, e a chuva caiu em gotas dolorosas.

Agarrado com toda força, Monk olhou para baixo.

O Mistress of the Seas flutuava na lagoa, brilhante e convidativo.

Cordas deslizavam da parte de baixo da rede até o heliponto no alto do solário. Monk gostaria que os helicópteros ainda estivessem ali, mas os pássaros tinham partido de repente antes de o navio entrar na lagoa da ilha.

Assim, restava apenas o barco de Ryder.

Mais cordas caíram, chegando a 12, balançando ao vento.

Acima, Jessie gritava ordens em malaio. O jovem enfermeiro estava a menos de 30 metros de distância, mas os ventos arrastavam a maioria de suas palavras. Jessie sentou-se na rede, as pernas bem apertadas. Ele se moveu e acenou para baixo.

Os membros da tribo mais próximos se lançaram de cabeça através da rede, se afastando, como pelicanos mergulhando no mar. Monk espiou sob a rede. O trio reapareceu, agarrado a cordas. Eles deslizaram com habilidade treinada, enquanto mais cordas eram colocadas.

Lentamente o exército voltou a rastejar, seguindo na direção das cordas e além delas. Monk seguiu pela ponte. Ele alcançou Jessie no momento em que Ryder agarrava uma corda e saltava através da rede. O bilionário não hesitou.

Monk compreendeu a pressa.

Um raio caiu na extremidade mais distante da rede. O trovão ecoou, ensurdecedor. Uma energia azul se espalhou ao longo da estrutura da cúpula, mas desapareceu antes de chegar a eles. O cheiro de ozônio pairava no ar.

—        Não se aproxime de nada metálico! — gritou Monk.

Jessie anuiu, repetindo o alerta em malaio.

Um minuto depois, Monk tinha se juntado a Jessie.

—        Vá para baixo! — ordenou ele, apontando.

Jessie consentiu. Enquanto ele deslizava para fora da ponte, a tempestade se abateu sobre a ilha com um vendaval repentino e cortante, rugindo como um trem de carga. Jessie, apanhado a meio caminho, solto, teve o corpo arremessado para fora da ponte de tábuas. Ele rolou para um ponto mais frágil da camuflagem da rede. Seu peso o despedaçou.

Monk se moveu rapidamente e pegou o tornozelo dele. Sua mão protética agarrou com força enquanto Jessie escorregava. O ombro de Monk ardia com o peso de Jessie. O jovem enfermeiro estava pendurado de ponta-cabeça abaixo dele, gritando uma seqüência de maldições hindus... Ou talvez fossem orações.

—        A corda! — gritou Monk para ele.

Uma delas estava a três metros de distância.

Monk começou a balançar o homem. Jessie compreendeu e estendeu um dos braços, tentando pegar a corda com as mãos. Ainda estava longe. Mas apenas uns 30 centímetros.

—        Vou jogar você!

—        O quê? Não!

Ele não tinha escolha.

O ombro de Monk ardia enquanto ele balançava Jessie pela última vez.

—        Lá vamos nós!

Monk lançou o enfermeiro na direção da corda.

Jessie se chocou contra a corda, lutando para agarrar o cabo molhado. Seu corpo começou a cair, escorregando, quicando. Então ele enganchou uma perna e conseguiu apoio. Ele freou e impediu a queda. Agarrou-se à corda, a bochecha apoiada nela. Seus lábios se moveram em uma oração de agradecimento silenciosa — ou talvez uma maldição dirigida a Monk.

Com o rapaz salvo, Monk rolou de volta para o alto da ponte e se arrastou com cautela. Os ventos o açoitavam, mas ele conseguiu chegar ao monte de cordas.

Outro raio caiu atrás dele.

Monk se agachou enquanto o trovão ribombava. Ele olhou para trás, enquanto a rede sacudia como um trampolim. O fim da ponte sacudiu para cima com o choque, as pranchas de madeira em chamas. Um dos homens da tribo foi lançado alto no ar, com os braços girando como um cata-vento, enquanto uma corrente elétrica azul estalava pela rede para todos os lados — mas o acrobata pousou em segurança entre os seus.

Homem de sorte, mas já não havia como retornar.

Só havia uma direção.

Monk agarrou a corda mais próxima e a lançou através da rede. Ele escorregou para baixo na direção do heliponto molhado de chuva e pousou em segurança.

O restante do exército o seguiu.

Agachado, Monk foi rapidamente na direção de onde os outros tinham se reunido, perto da escada que descia do heliponto. Jessie já estava orientando os homens da tribo, apontando para Monk e Ryder. Eles se separariam ali. Monk iria em busca de Lisa, Ryder e Jessie desceriam, abrindo caminho e preparando o barco.

Atrás de Monk, pés nus ecoaram no deque com o último dos integrantes do exército descendo da rede encharcada.

Monk se voltou para Ryder e Jessie.

—        Prontos? — perguntou.

—        Como sempre — respondeu Ryder.

Monk olhou para o grupo de ataque, armado com machados de osso e AK-47. Um relâmpago caiu, fazendo o exército brilhar. Olhos cintilaram em rostos pintados de cinzas.

Naquele breve instante Monk sentiu uma pontada de apreensão, um instante de desconforto. Mas resistiu. Era apenas a tempestade alimentando seus temores.

—        Vamos encontrar minha parceira e dar o fora daqui.

 

Lisa estava amarrada a uma mesa cirúrgica metálica, colocada em um ângulo de 45 graus. Ela estava pendurada pelos braços, com os pulsos presos por tiras de plástico acima da cabeça. Suas pernas estavam soltas e não tocavam o chão. Ela vestia apenas o avental de hospital. Um suor frio fazia o algodão fino grudar em sua pele, enquanto o aço da mesa provocava-lhe arrepios nas costas.

Ela estava amarrada ali havia mais de uma hora.

Sozinha.

Com sorte, esquecida.

De um dos lados havia uma bandeja de aço inoxidável com uma série de instrumentos usados em autópsias: serras de cartilagens, ganchos de dissecação, tesouras de corte, agulhas post-mortem, formões para medula espinal.

O dr. Devesh Patanjali retirara os instrumentos de uma bolsa de couro preto que Surina segurava aberta. Ele tinha alinhado perfeitamente cada instrumento sobre uma faixa de tecido cirúrgico. Um balde de aço estava pendurado nos pés da mesa inclinada, pronto para receber o fluxo de sangue.

Enquanto ele ajeitava seus instrumentos, Lisa tentara de tudo para dissuadi-lo da tortura que estava por vir. Ela tentou apelar à sua razão, explicando que ainda poderia ser útil. Que, assim que Susan fosse recapturada, Lisa daria a ele todo o apoio para conseguir uma cura a partir do sangue e da linfa da mulher. Lisa já não tinha provado sua engenhosidade?

Apesar de seus argumentos, Devesh a tinha ignorado. Ele simplesmente colocou cada instrumento na bandeja, um após o outro.

Finalmente, seus argumentos se transformaram em lágrimas.

— Por favor... — implorara ela.

Com Devesh de costas, a atenção de Lisa se voltou para Surina. Mas não havia esperança ali, apenas completo desinteresse, o rosto dela esculpido em mármore frio. O único toque de cor era o rubi hindi em sua testa, lembrando a Lisa uma gota de sangue.

Então Devesh recebeu um telefonema. Ele atendeu e ficou absolutamente excitado, satisfeito com o que estava escutando. Falou rapidamente em árabe. A única coisa que Lisa compreendeu foi a palavra Angkor. Devesh saiu da sala em passos largos, seguido por Surina. Devesh nem sequer olhara para trás.

Então Lisa ficou pendurada ali, sem saber o que estava acontecendo.

Mas ela conhecia seu destino.

Os polidos instrumentos cirúrgicos faiscavam. Se ela se mexia, o balde de sangue fazia barulho ao pé da mesa. Ela oscilava entre a exaustão e o limite do terror. Ela quase agradeceria o retorno de Devesh. A espera e a expectativa ameaçavam fazê-la em pedaços.

Mas, quando a porta finalmente se abriu, Lisa se encolheu de medo, engasgando um pouco. Ela não podia ver quem tinha entrado, mas ouviu o barulho de rodas.

Uma maca apareceu, empurrada por trás.

Uma figura pequena estava sobre ela, amarrada, braços e pernas estendidos. Devesh falou, movimentando a maca de modo que ela ficasse exatamente em frente a Lisa:

—        Lamento o atraso, dra. Cummings. Meu telefonema demorou mais do que eu imaginara. E precisei de algum tempo para localizar nosso sujeito aqui.

—        Dr. Patanjali — implorou Lisa, olhando fixamente para a maca —, por favor, não...

Devesh se encaminhou para seus instrumentos. Colocou um avental branco sobre as roupas depois de ter tirado o paletó.

—        Bem, onde estávamos?

Surina apareceu ao lado, as mãos fechadas, grave. Mas seus olhos tinham um fogo raro. Raiva.

Devesh continuou a falar.

—        Dra. Cummings, você estava bastante certa mais cedo. Seu conhecimento pode se revelar valioso para concluirmos nosso estudo. Mas ainda assim alguma punição parece necessária. Alguém terá que pagar a dívida de sangue que eu não posso retirar de você.

Lisa baixou os olhos para a maca, para o personagem amordaçado e de olhos arregalados.

Era a garota, a mesma garota que Devesh ameaçara mais cedo — e depois a deixara partir, assassinando em seu lugar o dr. Lindholm. Mas não haveria bode expiatório dessa vez. Devesh pretendia sacrificar aquela pequena ovelha, obrigando Lisa a assistir.

Devesh colocou um par de luvas cirúrgicas e pegou a faca para cartilagem.

—        O primeiro corte é sempre o pior.

Quando Devesh se virou, houve barulho de tiros, soando distantes, mas ainda assim altos.

Ele parou.

Houve outra rajada, vinda do andar de baixo.

—        Outra vez? — suspirou ele, irritado. — Eles não conseguem conter esses pacientes?

Mais disparos.

Devesh jogou a faca na bandeja com força, fazendo os outros instrumentos chacoalharem. Ele se cortou e levou aos lábios um dedo ensangüentado. Franzindo o cenho, novamente se encaminhou para a porta.

—        Surina, cuide de nossos convidados. Voltarei logo.

E a porta foi batida.

Como impulsionada pelo vento provocado pelo movimento da porta, Surina se lançou para a mesa. Ela pegou a faca de cartilagem e retornou até a criança amarrada.

—        Não a machuque — avisou Lisa, com um tom de ameaça, por mais impotente que estivesse.

Os olhos de Surina brilharam de desinteresse para Lisa. Ela voltou a atenção para a criança, ergueu a faca e desferiu golpes com o metal faiscante. As correias que prendiam a menina caíram. A estranha mulher pegou a criança nos braços, apoiada num dos ombros, e encaminhou-se para a porta.

Lisa ouviu os cliques baixos da porta se abrindo e fechando, deixando-a novamente só.

Franziu o cenho. Ela se lembrava de Surina oferecendo um doce àquela mesma criança mais cedo, uma compaixão rara. Lisa lembrou-se dos olhos de Surina quando tinha entrado, feroz e selvagem, como uma leoa. Aparentemente, essa leoa mantinha alguma compaixão pelos mais inocentes. Talvez o resgate fosse uma espécie de graça em compensação por suas outras crueldades.

Como quer que fosse, ela tinha partido.

Lisa imaginou a fúria de Devesh quando retornasse, já inflamado por outra interrupção. Só teria restado uma pessoa sobre a qual descarregar sua frustração. Lisa mais uma vez lutou para soltar os pulsos. O balde se agitava e batia.

Os tiros continuavam, com alguns disparos mais altos que outros, vindo de diferentes direções. Lisa percebeu que havia mais de um tiroteio. Ela olhou ao redor. O que estava acontecendo?

Disparos de armas automáticas explodiram, acompanhados de vidro se quebrando, aparentemente a poucos metros. Houve depois mais disparos, acompanhados de gritos e de um estranho brado de guerra ululante. A luta durou um longo minuto.

Atrás dela, a porta se abriu com violência.

Lisa ficou paralisada.

Uma figura seminua surgiu em seu campo de visão, com listras pretas no corpo, uma presa afiada cravada no nariz e na cabeça um arranjo de penas esmeralda. Erguia uma lâmina afiada, com sangue até o cotovelo.

Lisa apertou o corpo contra a maca, paralisada de medo.

—        Aqui! — gritou uma voz conhecida.

Era Henri.

Ela ouviu barulho de botas atrás de si. Uma lâmina fria deslizou entre seus pulsos. As algemas plásticas estalaram e saltaram. Lisa escorregou da mesa inclinada, lutando para não cair. Uma figura a apanhou.

Ele falou no seu ouvido:

—        Então, se você já acabou de passear por aí, que tal darmos um beijo de despedida neste barco do amor?

Ela afundou nos braços do homem, tremendo e fraca de alívio:

—        Monk...

 

Devesh viu que havia algo de errado quando uma rajada de tiros foi disparada acima de sua cabeça, dois andares acima. Vinha da direção da ala de ciência.

Devesh ficou parado a meio caminho na passagem do convés inferior, cercado por sete guardas e seu chefe somali. O tapete ali estava encharcado de sangue, mas eles não tinham achado corpos.

E então o tiroteio acima.

Devesh esticou o pescoço. Antes que pudesse reagir, soaram sirenes por todo o navio, dando o alerta geral. O que estava acontecendo?

Houve mais tiroteio acima. Mais uma vez, vindo da ala de ciências.

—        Lá atrás! — gritou Devesh, apontando a bengala para a escada. Virando-se ao mesmo tempo, os guardas recuaram — mas no fim do corridor uma pessoa baixa se moveu rapidamente por uma passagem: pernas nuas, usando penas e ossos que chacoalhavam, o corpo lambuzado de preto.

Um dos canibais da ilha.

Ele tinha um fuzil nas mãos.

O chefe dos guardas praguejou.

Armas foram disparadas atrás deles. Balas se cravaram no tapete e nas paredes. Um dos guardas caiu para trás como se tivesse sido golpeado. Sangue escorria de seu nariz e da boca enquanto ele despencava no chão. Os outros guardas se colaram às paredes, respondendo ao fogo. O somali arrastou Devesh por trás, agachado e disparando com uma pistola na outra mão.

Mas não havia ninguém ali.

Uma porta de um dos lados se abriu. Um machado de osso desceu, cravando-se profundamente no crânio de outro guarda. Então a porta se fechou novamente. O guarda engatinhou, com o cabo do machado se projetando da parte de trás da cabeça, e então desabou no chão.

Outro homem atirou na porta. Rajadas a perfuraram.

Mas Devesh leu o aviso nela: APENAS FUNCIONÁRIOS. Ela levava às passagens internas do iate. O assassino certamente tinha fugido.

Outro canibal.

O navio estava sendo atacado, e a defesa fora rompida.

Rajadas de tiros surgiram em outro ponto do navio, chegando até eles em ecos abafados. Estavam perdendo controle do navio. O líder somali se colocou ao lado de Devesh. Os guardas restantes ficaram a postos, metade voltados para a frente, metade para trás, atentos a todas as portas.

—        Senhor, precisamos levá-lo para local mais seguro — rosnou o somali.

—        Onde? — perguntou Devesh, quase em um gemido.

—        Fora do barco. Podemos pegar uma lancha para a cidade da ilha e colocá-lo em segurança. Reunirei outros cem homens, armamento melhor, e voltarei para limpar o barco.

Devesh anuiu. Até que tudo fosse resolvido, ele queria sair daquele barco.

O somali os conduziu rapidamente de volta à escada. Sirenes de alarme e rajadas de tiros os acompanharam. Eles desceram correndo. Passaram por quatro corpos, de colegas piratas.

Ao chegarem ao nível da lancha de apoio, Devesh parou.

—        Senhor?

—        Ainda não. — Devesh ficou com mais raiva a cada nível que desciam. Ele não iria deixar o barco sem alguma retaliação. E sabia o que fazer. Continuou a descer as escadas.

Para o porão do navio.

Para onde mantinha trancado um conjunto especial de enfermarias.

Antes de partir ele iria tornar as coisas mais difíceis para aqueles que queriam tomar o navio. Combater fogo com fogo. A ilha não era a única fonte de canibais.

 

Susan parou no limite da floresta, olhando para o Mistress of the Seas. Sirenes de alarme soavam através da água, juntamente com tiros abafados.

O ataque estava em curso.

Ela tinha as mãos apertadas na barriga, assustada, rezando.

Ouviu pequenos ruídos na floresta ao seu redor: uma folha molhada deslizando, lama escorrendo. Seus acompanhantes a cercaram, dispostos a proteger sua rainha, mas também curiosos, indo ver os fogos de artifício.

Logo à frente, uma canoa esperava na areia da praia, pronta para levá-la rapidamente ao barco de Ryder.

Se um dia ele chegasse.

Os nós dos dedos de Susan doíam enquanto ela apertava as mãos.

Por favor, deixe-os vir...

 

Enfiado no poncho, Rakao esperava em seu esconderijo. Olhava por óculos infravermelhos, vendo sua equipe preparar a armadilha.

Ele já não precisava imaginar para onde teriam ido os outros prisioneiros fugidos. Minutos antes, outro de seus guardas vira movimentos suspeitos no alto do navio. Rakao tinha desviado sua atenção do alvo tempo suficiente para escapar e vasculhar o navio. Embora não tivesse conseguido ver nenhum movimento no alto do navio, ele descobrira o que pareciam ser cabos da rede derrubados pela chuva e pendurados sobre o heliponto.

Cordas.

Com uma maldição silenciosa, Rakao soube o que tinha acontecido.

Um ataque vindo da ponte acima das árvores.

Rakao vivia há uma década na ilha, ascendendo, por intermédio de golpes sangrentos, até a liderança do clã de piratas, cuja história remontava um século atrás. Mas ele tinha maiores ambições. Além até mesmo dos despojos de um na¬vio de cruzeiro e de escravos para o mercado negro. Havia um mundo maior a pilhar, e o médico lhe oferecera acesso a ele por intermédio de uma organização com muito mais de um século, na qual ambição e crueldade eram reconhecidas e recompensadas.

Assim, quando descobriu que tinha levado uma rasteira, Rakao ficou furioso, mas não iria incorrer no erro de reagir violentamente. Tinha as línguas secas de seus antecessores pregadas no batente acima da porta de sua casa na aldeia. Ele não chegara à sua posição atual com atos irresponsáveis.

Mantendo a concentração, Rakao fez seu operador de rádio recuar 30 metros para não ser ouvido, depois entrou em contato com o barco a fim de alertá-los para o ataque iminente. Mas enquanto esperava, Rakao ouviu tiros — seguidos por sirenes de alerta. Seu alerta chegara ao navio tarde demais.

Que seja...

Rakao manteve sua posição.

Se o ataque furtivo ao navio fracassasse, seu operador de rádio o avisaria. Caso contrário, Rakao sabia onde os vencedores iriam terminar.

O verdadeiro prêmio estava ali.

Rakao observou seu alvo, de pé no limite da floresta.

Não iria demorar.

 

Monk desceu correndo o último lance de escadas. Lisa o seguiu com dois cientistas da OMS: um toxicologista holandês e um bacteriologista americano. No fim da escada dois piratas estavam enroscados em uma poça de sangue. Um canibal estava um passo atrás, ajudando-os a sair da escada.

Era outro dos batedores de Ryder, abrindo um caminho seguro pelo navio sitiado. Era um roteiro complexo, que descia lances de escadas, por um corredor de passageiros, ao longo do deque externo, e até mesmo cruzava uma cozinha. Continuava a haver tiroteios em eventuais confrontos de guerrilha.

Pelo menos os alarmes finalmente tinham sido desligados.

Mas isso era uma notícia boa ou ruim?

Monk foi na frente, passando pela poça de sangue, para o corredor principal de estibordo. Eles chegaram ao convés inferior, à altura da linha d'água. A lancha particular de Ryder ficava nesse nível. Monk tomou fôlego para se orientar. No convés também ficava o cais de lanchas do navio, bem como um teatro, centro médico, salão de videogames e a discoteca Midnight Blue. A lancha de Ryder ficava perto da proa do navio.

—        Por aqui! — Ele se encaminhou para a direita, parou, se virou novamente e disse: — Não, por aqui!

Eles partiram novamente, seguindo os homens da tribo.

Ele percebeu um movimento furtivo acima, na escadaria de um convés intermediário, não distante da abertura para o cais das lanchas. Ele reconheceu os uniformes gastos.

Piratas.

Os dois grupos se viram ao mesmo tempo.

Monk empurrou Lisa para o salão de videogames:

—        Abaixe-se!

Seu grupo se espalhou por outras passagens ou atrás de colunas. Um dos canibais foi atingido na cabeça e arremessado para trás. Mas o grupo de Monk era maior do que o dos piratas. Eles responderam ao fogo sem parar, esburacando o corredor. Três piratas caíram. O mais alto arremessou um homem pequeno nas escadas e fugiu.

Monk liderou um grupo de canibais. Um deles pegou uma arma nova das mãos de um dos piratas mortos e a colocou junto a seu rifle fumegante. Outro beliscou as bochechas de um dos corpos. Não por afeto. Apenas verificando a maciez.

—        Aquele era Devesh tentando escapar — disse Lisa, se juntando a Monk e apontando para a escada ao passarem por ela. — O líder da Guilda, aqui.

Monk olhou para o cais de lanchas.

—        Eles devem estar planejando zarpar para a Cidade Pirata para reunir reforços. A idéia o impeliu mais rápido pelo saguão na direção da proa. Monk pensava em se os reforços chamados por rádio não estariam chegando.

O corredor fazia uma curva à frente, acompanhando a forma da proa do navio. Ao fazerem a curva, Monk viu a passagem aberta para a lancha particular de Ryder.

Eles tinham conseguido.

Antes que pudesse continuar, ouviu gritos agudos vindo do salão atrás dele.

Monk voltou.

Vindos da escadaria do convés intermediário, 12 tipos se lançaram no corredor, acotovelando-se, lutando, agitados, seminus em camisolas de hospital puídas e encardidas. Os membros estavam inchados e porejavam. Lábios ensangüentados se abriam em risos selvagens. Mesmo a 50 metros de distância Monk reconhecia a loucura que brilhava em olhos purulentos.

—        Pacientes — sussurrou Lisa, agarrando o braço de Monk e arrastando-o para trás. — Em psicose catatônica. Eles atacam qualquer um. Devesh deve tê-los libertado.

—        Filho-da-puta — disse Monk, orientando o último de seu grupo a fazer a curva e sair de vista. Ele correu na direção da porta aberta para a lancha de Ryder. Outros gritos vieram da frente, depois da porta, onde o corredor fazia a curva para bombordo.

Dali vinham sons de pés correndo na direção deles.

Monk ergueu sua arma — mas surgiu uma pessoa conhecida, com uma das mãos na parede externa para se manter de pé. Jessie viu seu grupo, e o rosto brilhou de alívio. Ele era seguido por um grupo de sete canibais. Os dois últimos carregavam um terceiro, um homem que sangrava profusamente de um ferimento no pescoço. Pelo traje cirúrgico verde, era um dos médicos da OMS.

Os dois grupos se reuniram junto à porta que levava ao cais da lancha.

—        Você conseguiu — disse o jovem enfermeiro, engasgado.

Ryder, atraído pela confusão, apareceu na passagem com seu próprio grupo de canibais. Ele cheirava a gasolina e limpava o óleo das mãos em um pedaço de pano.

—        O que está acontecendo?

—        Seu barco está abastecido? — perguntou Monk.

Um gesto de cabeça, confirmando.

—        Pronto para partir.

Ao lado, Jessie permitiu que Lisa o abraçasse rapidamente, ao mesmo tempo acenando para os outros dois médicos da OMS.

—        Dr. Barnhardt. Dr. Miller — disse ele, apontando para o homem de jaleco verde. — Preciso de ajuda com ele.

Os canibais acomodaram o homem ferido no chão. Sangue escuro e grosso jorrava do ferimento no pescoço.

Lisa ajoelhou-se de um lado do homem, os dois outros médicos, do outro. Jessie já tinha tirado sua camiseta, passando-a para Lisa. Ela a dobrou e pressionou sobre o ferimento.

O homem teve uma convulsão, tossindo sangue. Depois ficou rígido, imóvel, com os olhos abertos. Apenas seu peito se movia, arquejando com a morte.

Ainda segurando a camisa dobrada no ferimento, Lisa procurou o pulso do outro lado do pescoço do homem. Ela balançou a cabeça. Não havia nada que pudessem fazer por ele.

Enquanto ela trabalhava, Jessie contara sua história, enxugando a testa e sujando-a de sangue.

—        Nós o resgatamos. Ele estava sendo atacado por uma das pacientes. Tivemos que atirar nela. Mas há outros vindo de baixo. Eles já estão ocupando os conveses inferiores e subindo. Centenas deles.

Marcando suas palavras, gritos selvagens ecoaram em meio a mais tiros.

—        Hora de abandonar o barco — disse Ryder.

Monk se voltou para Ryder.

—        Quantos cabem em seu barco?

—        Seis lugares... Mas podemos colocar mais um ou dois — respondeu Ryder, olhando o número de pessoas reunidas.

Jessie balançou a cabeça e deu um passo para trás.

—        Eu não vou.

Lisa segurou seu cotovelo.

—        Jessie.

—        Alguém tem que defender as pessoas, as crianças que ainda estão a bordo. Dos piratas, da loucura. Os homens da tribo são a única esperança. E eles me conhecem. Eles me escutarão.

O dr. Barnhardt se colocou ao lado do jovem enfermeiro.

—        Eu o ajudarei. Vamos tentar montar uma barricada segura. Reunir o maior número de pessoas possível. Para esperar que todos vocês saiam.

O dr. Miller olhou com relutância para a passagem aberta, depois para o médico morto. Ele concordou com a cabeça.

—        Essa... Essa é nossa gente. Nossos amigos e colegas. Não podemos deixá-los.

Lisa, por sua vez, abraçou cada um deles.

—        Henri... — murmurou ela, como que em um pedido ao último.

O homem mais velho a abraçou e empurrou na direção da passagem aberta.

—        Vá pegar Susan. Mais que nossas vidas, a cura deve ficar fora do alcance da Guilda.

Lisa concordou e permitiu que Monk a conduzisse.

Eles entraram no cais da lancha atrás de Ryder.

Os pés de Monk falharam quando ele atravessou a passagem e viu o barco de Ryder.

—        Minha Nossa Senhora!

 

Devesh desceu na direção do palco escuro do teatro do navio. A cortina carmim brilhante estava fechada. Ele seguiu as costas largas do guarda somali na descida da escada do teatro. Depois de ter sido emboscado e afastado do cais de lanchas, Devesh e o guarda tinham fugido para cima.

Descer não era uma opção.

Não mais.

Os gritos e choros os tinham perseguido escada acima. No porão do navio, Devesh abrira todas as cinco celas, libertando os horrores que elas continham. Eles tinham se alimentado uns dos outros, com os mais fortes caçando os mais fracos.

Mais de duzentos.

Mantidos para experiências.

Devesh planejara usar a loucura desencadeada para combater a esperteza dos atacantes do navio, contê-los o tempo suficiente para organizar uma volta para o barco com granadas e metralhadores. Ele então iria massacrar todos eles.

Iria recuperar o navio.

Mas naquele momento ele fora pego em sua própria armadilha.

Tinha sido de seu guarda-costas somali aquele plano de fuga. Para chegar aos cais de lanchas, em vez de descer qualquer uma das escadas principais, o somali conduzira Devesh até a entrada do balcão superior do teatro de três andares do navio. Eles usaram as escadas do teatro para descer os três níveis de volta ao convés em que ficava o cais de lanchas.

As portas inferiores do teatro davam diretamente para o corredor do outro lado do cais. Uma corrida rápida, e eles estariam se afastando a toda a velocidade daquela batalha infernal.

Devesh usou a bengala para pular os últimos degraus.

O guarda somali ergueu a mão e se encaminhou para a porta.

—        Fique mais atrás. Deixe-me garantir que está tudo limpo — disse ele, segurando uma grande pistola no outro punho.

Ele abriu a porta e conferiu o saguão, fazendo um arco com a pistola. Esperou um pouco, então abriu um pouco mais. Virando-se, anunciou com alívio:

—        Saguão limpo.

Devesh deu um passo em sua direção. Mas o movimento acima do ombro do homem o deteve. Um dos homens da tribo coberto de penas saiu de seu esconderijo, na passagem que levava ao cais de lanchas.

O canibal tinha nas mãos um arco retesado.

O somali deve ter visto algo na expressão de Devesh. Antes mesmo de ter acabado de se virar, o homem começou a disparar às cegas.

O canibal levou três tiros no peito e caiu para trás com um grito agudo. Mas o homem já tinha soltado a corda do arco.

A flecha acertou a garganta do guarda, saindo como uma língua de sangue pela nuca. O homem cambaleou e caiu de lado. Ainda assim, manteve a pistola apontada para a porta.

Mas o canibal não se ergueu novamente, e o saguão permaneceu em silêncio.

Devesh sabia que teria de aproveitar a oportunidade. Ele correu na direção do guarda.

—        Me ajude — rosnou o homem, os olhos apertados de dor, escorregando para se apoiar em um dos braços. O outro braço tremia para manter a pistola erguida.

Devesh chutou o braço de apoio do homem. O somali caiu de costas, surpreso. A ponta da flecha se rompeu contra o piso de madeira encerada. Devesh ajoelhou-se no ombro do homem e jogou a bengala para o lado. Ele precisava de uma arma melhor. Tentou arrancar a pistola da mão do homem.

Mas o homem se recusou a permitir, os dedos apertados de fúria e dor.

—        Solte! — disse Devesh, mudando o joelho de posição para pressionar a flecha cravada.

Um barulho alto de madeira quebrando interrompeu a luta.

As portas do lado oposto do teatro tinham sido abertas com violência. Devesh conseguiu a pistola e se virou. Uma figura entrou rapidamente em seu campo de visão, ágil em seus pés pequenos, um redemoinho de seda com manchas de sangue.

—        Surina!

Mas ela não estava só.

Um mar de formas a perseguia, alimentado por adrenalina e fome. Elas entraram depois dela. Algumas escorregaram no chão encerado, caindo e voltando a se erguer, em uma caçada bestial. Mas as quedas as retardaram o suficiente para que Surina percorresse metade do teatro.

Devesh se ergueu, ao mesmo tempo aliviado e horrorizado com sua chegada.

Não queria ficar sozinho.

Surina correu para o lado dele, um dos braços estendido para baixo. Seus dedos recolheram a bengala abandonada e, de um fôlego, metal saiu da madeira. Ela brandiu a espada.

Devesh se encaminhou para a porta aberta.

—        Por aqui!

Segurando a pistola com as duas mãos, ele saltou sobre o somali, que resmungou, semiconsciente, o sangue se espalhando pela madeira escura. Pelo menos o corpo do homem poderia distrair os canibais.

Quando Devesh pousou, sentiu duas fisgadas na parte de trás dos joelhos.

Ele deu um passo cuidadoso, mas de repente suas pernas não conseguiam mais sustentá-lo em pé. Ele caiu ajoelhado na passagem, depois mais dolorosamente sobre o cotovelo, deixando a pistola deslizar para longe. A dor subiu-lhe pelo braço até o crânio. Com o canto do olho, ele viu Surina se erguer atrás dele, a espada de lado, com sangue na ponta.

Devesh tentou se erguer. Mas não conseguiu controlar as pernas. Viu sangue escorrer pelas calças à altura do joelho. Quando Surina passou, ele se deu conta do que acontecera. A piranha cortara os tendões atrás dos seus joelhos, inutilizando-o.

Ela deslizou pelo saguão e desapareceu na escuridão do cais.

—        Surina!

Devesh tentou rastejar, arrastando as pernas.

Até sua pistola.

Mas outras mãos caíram sobre ele, atraídas pelo sangue, cravando-se em sua carne. Ele ouviu o grito de agonia do guarda nas profundezas do teatro escuro. Devesh foi arrastado para se juntar a ele, com as palmas das mãos chapinhando em seu próprio sangue, os dedos cravados tentando conseguir algo, uma última misericórdia.

Não teve nenhuma.

 

Com o eco de gritos e tiros chegando até eles, Lisa se juntou a Monk no fundo da escada do cais da lancha. Ela tremia com a brisa úmida.

O cais particular de Ryder era pequeno, um arco de aço, cheirando a gasolina e óleo. No centro havia o que pareciam trilhos de alumínio de uma montanha-russa, um par deles acolchoados, presos em ângulo e voltados para uma abertura na lateral do barco. Além da abertura estava a lagoa, varrida pela chuva.

Mas era o que estava sobre os trilhos que continuava a prender toda a atenção de seu parceiro.

—        Isso não é um maldito barco — disse Monk precipitadamente.

Ryder os conduziu à frente, com pressa.

—        É um hidroavião, companheiro. Metade hidroplano, metade barco a jato.

Monk engasgou com a visão.

Lisa não estava menos impressionada.

Assentado nos trilhos de lançamento, o aparelho parecia um falcão no momento do mergulho, com as asas voltadas para trás. A cabine fechada terminava em um ponto aerodinâmico na proa. A popa tinha dois motores a hélice elevados. E, no alto, havia duas asas dobradas sobre a cabine, as pontas se tocando exatamente em frente à cauda vertical e aos motores.

—        Foi construído pela Hamilton Jet na Nova Zelândia — disse Ryder, passando a mão pelo casco e conduzindo-os à escotilha lateral. — Eu o chamo de Sea Dart. Na água, seus motores duplos V-12 a gasolina bombeiam água da frente e a impelem por dois esguichos duplos na popa. Assim que ele ganha velocidade, você precisa apenas disparar o sistema hidráulico que abre as asas dobráveis, e ele ganha os céus... E as hélices da traseira o mantêm voando. Ele também é rápido. Céu ou água. A velocidade no ar chega a 480 quilômetros por hora — disse Ryder, dando tapinhas na lateral.

Ryder estendeu a mão para Lisa. Ele a ajudou a subir os degraus ao lado da plataforma de lançamento. Ela se instalou na cabine. Não era muito diferente de um Cessna: dois assentos para piloto e co-piloto na frente, e quatro outros atrás.

Ryder subiu atrás dela e seguiu para a frente até o banco do piloto. Monk entrou por último, fechando a escotilha.

—        Apertem os cintos! — ordenou Ryder.

Monk pegou o assento mais perto da escotilha lateral, pronto para colocar Susan para dentro quando chegassem à praia. Lisa foi para a frente e ocupou o lugar junto a Ryder.

—        Segure-se — disse ele.

Ryder acionou um disparador eletrônico; o Sea Dart deslizou suavemente pelos trilhos inclinados e mergulhou na lagoa com um leve impacto.

A água molhou o pára-brisa à medida que a proa do barco mergulhava mais.

Lisa imediatamente ouviu o roncar de motores atrás dela, um som grave e rouco de cavalos-motor. Ela também sentiu isso no fundo das calças.

O Dart começou a deslizar para a frente sobre a água com um borbulhar suave dos esguichos. A chuva caía em pancadas e como ondas no teto da cabine.

—        Lá vamos nós — murmurou Ryder, aumentando a velocidade.

O barco justificou seu nome e disparou como uma flecha sobre as águas agitadas pela tempestade, empurrando Lisa contra o encosto.

Ela podia ouvir, vindo de trás, o assovio elogioso de Monk.

Ryder virou o barco, deslizando sobre a água como se fosse sobre gelo. Ele contornou a proa do navio, como um mosquito em frente a uma baleia.

Lisa olhou para o navio enorme. Longe dos tiros e gritos, o Mistress of the Seas parecia pacífico, brilhando gentilmente na penumbra da tempestade.

Mas ela sabia que o navio era tudo, menos pacífico.

Enquanto se ajeitava no assento, ela não conseguia evitar uma leve sensação de culpa. Por Jessie, por Henri e pelo dr. Miller. E por todos os outros. Ela ainda sentia como se estivesse fugindo de uma batalha, abandonando os outros para salvar a própria pele.

Mas ela não tinha escolha.

Ryder virou o barco na direção da ilha, onde eles iriam se encontrar com Susan. O barco acelerou na direção da massa de floresta negra marcada por uma praia estreita.

Ela repetiu em silêncio as últimas palavras ditas por Henri. A cura deve ficar fora do alcance da Guilda. Lisa viu a floresta crescer à sua frente, a faixa de praia se alargar. Eles não podiam fracassar.

 

Rakao viu o estranho aparelho contornar o navio e acelerar diretamente para onde ele estava. Pelas lentes de seu binóculo infravermelho, o barco era uma mancha carmim quente atravessando a água mais fria.

Ele fez um sinal para que a equipe se preparasse. Eles esperariam seu primeiro disparo antes de lançar o ataque.

Rakao baixou o binóculo e levou aos olhos a mira telescópica do rifle. Ele mais uma vez se fixou em seu alvo, a mulher que fugira. Ela saíra da floresta, e era vista facilmente então, esperando na praia.

Rakao ouviu o rugido do barco se aproximando.

Ela levantou um dos braços. O membro parecia captar a luz da lua enquanto era erguido. Mas não havia lua.

Rakao sentiu um arrepio àquela visão. Mas não permitiu que isso o distraísse. Ele tinha uma missão. As respostas ficariam para depois.

Na praia, um dos homens da tribo tirou a solitária canoa de tronco da praia e a colocou nos baixios. Ele chamou a mulher. Ela seguiu para a água, subiu a bordo e se sentou desajeitadamente no fundo.

De pé atrás da popa, ele se curvou, pronto para transferir a mulher para o barco que chegava. Eles não teriam de esperar muito.

O aparelho chegou rápido, virando suavemente para expor o lado de estibordo, deslizando a cerca de 7 metros.

A escotilha lateral já estava aberta.

Rakao olhou o homem no interior, apoiado na abertura.

Perfeito.

Rakao ajeitou o rifle, apontou e disparou.

 

Monk deu um salto ao disparo de um rifle.

De sua posição na abertura da escotilha ele viu o homem da tribo atrás de Susan cair na água. O corpo em queda empurrou a canoa, fazendo com que ela deslizasse na sua direção.

Depois uma seqüência de tiros, pequenos flashes de luz na floresta escura.

Outro homem da tribo caiu, sangrando no peito e no ombro. Ele estendeu um dos braços na direção de Susan na água, esperando que a rainha-feiticeira conseguisse salvá-lo. Mas houve outro disparo de rifle, sua cabeça foi arremessada para trás e a metade inferior de seu rosto explodiu.

Ele caiu na areia.

Não passava de uma armadilha... com Susan de isca.

Uma rajada perfurou o flanco do Sea Dart, fazendo Monk voltar para dentro. Monk foi na direção do fuzil de assalto no banco de trás, apanhando-o desajeitadamente. Mas um grito gutural interrompeu a fuzilaria contra o barco. No silêncio, Monk recuou cautelosamente.

Um homem com um conhecido rosto tatuado estava de pé com água até os joelhos. Rakao tinha uma lança em uma das mãos e uma pistola Sig Sauer na outra. Com o braço esticado, apontava o cano da pistola para a parte de trás da cabeça de Susan, que flutuava na canoa, agachada na popa.

Os olhos de Susan, brilhando no escuro, fitavam Monk, aterrorizados.

Rakao gritou do outro lado da água, em inglês.

—        Desliguem os motores! Joguem fora todas as armas. Depois, um de cada vez, saltem e nadem na minha direção.

Monk se virou:

—        Lisa, preciso de você aqui. Ryder, não desligue esses motores. Quando eu gritar vai, você dispara daqui.

Lisa lutou com o cinto, mas finalmente se soltou.

Monk mudou o fuzil de posição para pegá-lo pela coronha e segurou-o do lado de fora da abertura da escotilha. Uma única rajada chegou perto da lateral do Sea Dart. Rakao gritou com raiva para o atirador afastado. Nada de danos à mercadoria. Rakao tinha de reconhecer um prêmio que merecia ser preservado.

Monk apareceu, expondo-se totalmente na escotilha. Segurou o fuzil do lado do corpo; a outra mão aberta e erguida.

Lisa sussurrou para ele:

—        O que você está fazendo?

—        Esteja pronta — murmurou ele.

—        Para o quê?

Iria demorar demais explicar.

Rakao percebeu que ele tinha aparecido e entrou ainda mais na água, o cano da pistola a apenas 30 centímetros da cabeça de Susan. A proa da canoa estava apontada na direção do Sea Dart, ligeiramente elevada pelo peso de Susan na popa.

Monk disse:

—        Estamos saindo!

Para demonstrar sua sinceridade, ele jogou o fuzil para a esquerda, em um arremesso dramático. A arma rodopiou no ar. Como ele esperara, os olhos de Rakao o acompanharam, reflexo de um caçador ao movimento.

Monk saltou uma fração de segundo depois disso. Saltou alto, como se fosse mergulhar encolhido na lagoa. Em vez disso, ele pousou na proa erguida da canoa. Seu peso e o impulso afundaram muito a proa. A popa da canoa foi catapultada como uma gangorra.

Susan voou por cima da cabeça de Monk — arremessada diretamente para o Sea Dart.

Rakao disparou um tiro, mas a popa da canoa tinha batido na mão do maori, arremessando a pistola.

Monk ouviu um barulho de água atrás de si quando Susan caiu.

Então a canoa voltou para a água, deixando Monk escarrapachado no fundo dela. Ele se ergueu sobre o cotovelo. Viu as pernas de Susan, enquanto Lisa a arrastava pela escotilha lateral.

Boa menina.

Monk gritou com todas as forças:

—        Ryder! Vai!

Mas o Sea Dart ficou apenas flutuando.

Monk se preparava para gritar novamente quando a canoa balançou.

Rakao tinha subido na canoa e estava de pé. A canoa sacudia, mas ele conseguia manter o equilíbrio. Ele apontou a lança na direção de Monk com as duas mãos.

Monk reagiu instintivamente. Ele tentou bloquear o golpe mortal agarrando a haste. Dedos protéticos a agarraram.

Um erro.

Uma violenta descarga elétrica passou por seu corpo. Ele se lembrou do resgate anterior de Lisa por Rakao, que atacava com sua lança elétrica.

O corpo de Monk se contorceu de dor. Os músculos tiveram espasmos com uma intensidade de quebrar os ossos. E ele ainda conseguia ouvir as rajadas de tiros disparadas do Sea Dart.

Por que Ryder ainda estava ali?

Monk lutou contra a eletrocussão. Ele deveria ter morrido imediatamente, com os volts correndo por ele. Sobrevivera apenas por causa do isolamento protetor de sua mão protética. Mas começou a sentir o cheiro de plástico derretendo.

Ryder... desaparece daqui...

 

—        Espere! — gritou Lisa acima do estrépito das balas na lateral do Sea Dart. Lisa estava deitada no chão ao lado de Susan. Podia ver Rakao jogando seu peso na lança, tentando enfiar sua ponta de aço eletrificada no peito de Monk. Monk lutava. Uma fumaça preta saía de sua mão protética.

A canoa sacudia, perto... Ou, pelo menos, suficientemente perto.

—        Agora! — gritou ela.

Houve um som alto de explosão acima de sua cabeça, detonando o sistema hidráulico no alto. O Sea Dart abriu suas asas, que desceram como um par de lâminas de machado. Uma das asas bateu no ombro de Rakao, jogando-o da canoa e arremessando-o na água do lago.

A saraivada de balas foi interrompida momentaneamente; a manobra impressionara os atiradores.

Lisa gritou no silêncio:

—        Monk! Acima da sua cabeça!

Grogue, Monk ouviu o comando de Lisa.

Ele precisou de um instante para entender o que ela queria dizer. Havia algo acima de sua cabeça. Uma das asas do Sea Dart. Tremendo descontroladamente, ele juntou as pernas abaixo de si — e saltou.

Ela não confiava na força de sua mão de verdade. Dedos de plástico fumegantes agarraram um dos suportes da asa. Ele segurou firme, dando um sinal de travado.

Vai...

 

—        Vai! — berrou Lisa, ainda no chão, comprimindo-se contra os assentos.

Sob a barriga, ela sentiu os motores duplos girando. O Sea Dart partiu, voltando a popa para a praia, enquanto os atiradores novamente abriam fogo, livres afinal de sua paralisia momentânea.

Lisa viu uma rajada atingir a perna pendurada de Monk.

O sangue escorreu de sua panturrilha. Ela viu o espasmo de dor no rosto dele. A parte inferior da perna ficou pendurada, torcida, enquanto Monk se ajeitava. A bala deve ter atingido a tíbia, fraturando-a.

Graças a Deus, ele ainda está se segurando.

Ryder traçou o rumo para longe da praia, voando pela água, fora de alcance.

Lisa queria chorar.

Eles iriam conseguir.

 

Rakao engasgou e tirou o rosto da água. Seus dedos, e depois o calcanhar, encontraram pedra e areia no fundo. Ele ficou com água até o peito na lagoa. O ronco de um motor chamou sua atenção.

O barco inimigo disparava através da lagoa, com uma figura balançando na ponta de uma das asas. Furioso, ele caminhou até a praia. Seu braço esquerdo ardia na água do mar. Ele tocou com os dedos a parte de cima do braço, sentiu uma ponta de osso atravessando a pele, quebrado pelo golpe que o lançara no ar.

Ele segurou a lança com a outra mão.

Felizmente não perdera a arma, pois se agarrara a ela.

Poderia precisar dela.

Rakao tinha percebido os brilhos sob a água, procurando por ele, atraídos pelo sangue. Ele deu as costas à praia e recuou passo a passo. Manteve a arma apontada, pronta para ser usada. O choque poderia machucá-lo, mas manteria as lulas afastadas.

Com água pelo peito, Rakao se permitiu um suspiro de alívio.

Quando saísse, ele caçaria os outros.

Não importava em que lugar no mundo pousassem, ele iria encontrá-los.

Era uma promessa.

Um relâmpago no céu iluminou por um instante as águas escuras, brilhante o suficiente para iluminar as profundezas. Um emaranhado de tentáculos se espalhava ao redor de suas pernas. Os tentáculos mais compridos cintilavam com um brilho amarelo. O corpo do monstro estava deitado quieto na areia, a um passo de distância. Então o relâmpago cessou, transformando o lago em um espelho escuro, refletindo o pânico em seu rosto.

Rakao cravou a lança, dando carga máxima.

Um brilho azul atravessou a água. Ele engasgou com a dor, como uma armadilha de aço se fechando no meio de seu corpo. Mas durou apenas uma fração de segundo — e a lança morreu em sua mão. Com uma última descarga de eletricidade e um cheiro acre de fumaça, a arma se apagou, com a sobrecarga de sua batalha contra o americano.

Rakao tropeçou para trás, espalhando água, o braço quebrado doendo terrivelmente.

Teria a carga sido suficiente?

A resposta veio na forma de uma dor lancinante em uma das coxas. Ganchos quitinosos se cravaram na carne de sua pele. Ele lutou contra a criatura que o arrastava para águas mais profundas. Seu corpo subiu à superfície, revirando os olhos.

Rakao golpeou-o. A arma podia não estar carregada — mas tinha uma ponta afiada. Ele sentiu a lâmina penetrar fundo. O aperto em sua perna afrouxou, depois soltou.

Com uma sinistra satisfação, ele recuou novamente.

Mas de repente as águas ao redor dele se agitaram com lampejos: azuis e esmeralda, mas principalmente um tom de carmim. Outros do bando estavam deitados à espera. Rakao identificou a fúria nos movimentos. Eles giravam ao redor dele como em um redemoinho.

Algo bateu em sua perna. Dentes se cravaram em seu tornozelo. Rakao soube que era o fim. Eles eram muitos.

Seus homens nunca chegariam a tempo.

Rakao olhou para as águas na direção do barco em fuga. Soltou a lança e agarrou seu coldre de ombro. Ele o usava o tempo todo. Não tinha arma. Era apenas uma garantia. Ele torceu o cabo em forma de T que se projetava do coldre de couro e puxou o pino.

Um tentáculo coberto de dentes se enrolou em sua cintura.

Se ele não podia escapar, ninguém mais escaparia.

Rakao empurrou o pino enquanto um emaranhado de tentáculos saía das águas como chicotes. Eles se lançaram sobre ele vindos de todas as direções, rasgando roupa e carne, puxando suas pernas. Ele sentiu a orelha direita ser arrancada ao ser levado para baixo da água.

Ainda assim ele ouviu as explosões, um trovão vindo de cima, ribombando na água, chegando enquanto os monstros o arrastavam mais para o fundo.

Bum, bum, bum...

 

Lisa viu as terríveis explosões no alto da ilha. Inicialmente pensou que eram relâmpagos — mas as explosões foram em seqüência, fazendo um anel no alto da ilha.

—        Que merda é essa? — gritou Ryder do banco do piloto. Trechos da cobertura da ilha começaram a cair em ruínas. Ela gritou:

—        Alguém está explodindo a rede! Ela está desmoronando! Ryder soltou um palavrão.

As explosões continuaram. O fogo iluminou o céu, espalhando-se pelo alto da ilha. A não ser que eles escapassem mais depressa, atingissem a saída da lagoa, seriam esmagados pela rede quando tudo caísse.

—        Eu preciso decolar! —gritou Ryder de volta.

Isso seria um problema.

 

Explosões acenderam o cume da ilha.

Monk compreendeu.

A rede...

O Sea Dart acelerou de repente, tentando escapar das explosões. O barco se ergueu da água alguns centímetros ao superar a velocidade de decolagem.

Mas o peso balançante de Monk desequilibrava o aparelho, inclinando-o. Seus dedos dos pés roçaram a água. Ryder corrigiu, desacelerando. Eles tocaram a água, balançaram e voltaram a se equilibrar.

Uma dor aguda tomou conta da perna quebrada de Monk. Mas ele continuou agarrado ao suporte.

Mesmo que quisesse, não conseguiria se soltar. Sua luta contra a lança de Rakao queimara a eletrônica de sua prótese. Ela tinha se travado depois de se agarrar ao suporte. Ele estava enganchado como um bife na vitrine de um açougue.

Monk se virou, vendo as explosões continuarem ao redor da ilha. Toda a metade de trás da rede despencou, produzindo uma chuva de fogo em meio à tempestade.

E uma parte maior do céu caía a cada explosão.

Monk olhou para trás, para a saída da lagoa, a abertura estreita no caldeirão vulcânico.

O Sea Dart tinha de chegar a ela antes que as explosões fechassem o círculo na borda do vulcão e derrubassem a rede sobre o lago. Monk calculou suas chances. Não eram boas. E eles nunca conseguiriam — não enquanto carregassem um bife na ponta de uma asa.

 

—        Você pode recolher as asas? — perguntou Lisa a Ryder.

Talvez eles pudessem trazer Monk mais perto, levá-lo para dentro e depois esticar as asas novamente. Tudo isso sem desacelerar.

Ryder apagou esse fio de esperança.

—        Depois de estendidas, as asas ficam travadas! É um princípio de segurança!

Lisa compreendeu. Não seria bom que as asas se recolhessem em pleno vôo.

Lisa viu o esforço de Monk. Ele estava mexendo em seu punho protético com a outra mão. O que estaria fazendo?

Então, começou a compreender.

Monk devia ter percebido a ameaça que representava.

—        Não! — disse a ele. — Monk! Não!

Ela não sabia se podia ser ouvida em meio às explosões e ao vento. Mas ele virou o rosto e olhou para ela. Apontou para a praia distante da lagoa. Gritou algo, mas uma das explosões abafou suas palavras.

Ele retomou seus esforços.

Monk... por favor, não...

 

Maldição... Por que eu não consigo?

Seus dedos vasculhavam o pulso de plástico. O pino que soltava manualmente a mão do encaixe do pulso tinha derretido. Suas unhas se cravaram no material sintético deformado.

Finalmente o pino se abriu.

Graças a Deus...

Ele enfiou um dos dedos.

—        Monk! — gritou Lisa.

Parando, ele mais uma vez apontou para a praia. Iria para a margem. Eles teriam de partir sem ele.

Lisa se ajoelhou na abertura, o vento agitando seus cabelos. Ele também percebeu nela a derrota. Não havia alternativa.

Monk enfiou o dedo na abertura e apertou o botão de liberação.

O punho se soltou da mão.

Ele caiu, rolando na água, deslizando como uma pedra arremessada. Depois afundou nas profundezas. Bateu a perna boa para chegar à superfície; a outra perna parecia ter sido atravessada por um ferro em brasa na panturrilha.

Movimentando a perna para flutuar, ele viu o Sea Dart acelerar pela lagoa na direção da abertura no caldeirão que levava ao mar aberto.

Ryder não tinha hesitado. Ele compreendera o sacrifício.

Monk olhou as últimas explosões na orla da ilha. A cobertura despencou na sua direção. Ele olhou para trás. Do outro lado da lagoa, a cobertura caiu como uma mortalha sobre o Mistress of the Seas, começando na popa e seguindo para a proa.

Em segundos o navio estava sufocado por ela, apanhado como um golfinho em uma rede de atuns. E a queda prosseguiu, na direção de Monk. Ele não tinha esperança de chegar a praia nenhuma. A mais próxima estava a 800 metros de distância.

Na outra direção, ele viu o Sea Dart se erguer, decolar do lago e disparar na direção da abertura na parede do caldeirão.

Eles iriam conseguir.

Essa idéia ajudou a acalmar seu coração enquanto a rede caía sobre ele, pesada de cabos e cordas encharcadas. Ela o arrastou para baixo, fundo, fundo...

Monk lutou, procurando uma forma de escapar, de voltar à superfície. Mas sua perna quebrada o atrapalhava. E a rede estava embolada. Ele não conseguia achar uma saída.

Ele olhou para as luzes no navio.

Lamentava apenas uma coisa... uma promessa quebrada...

Ele jurara a Kat que retornaria dessa missão, e beijara Penélope com a mesma promessa silenciosa.

Lamento...

Ele ergueu um dos braços, rezando por resgate.

Sua mão encontrou uma abertura na rede embolada. Usou o coto do outro braço para aumentá-la. Bateu as duas pernas, ignorando a dor na panturrilha direita. Ele lutou para passar através da abertura.

Então, algo agarrou sua perna quebrada, prendendo-se ao tornozelo e puxando com força. Osso raspou em osso. Uma dor lancinante subiu da perna para a coluna. Monk respirou fundo e olhou para trás.

Luzes na água brilharam em sua direção.

Tentáculos subiram por seu corpo, enrolaram-se em sua cintura, sobre seu peito. Um membro borrachento se lançou sobre seu rosto, sobre os mesmos lábios que tinham feito uma promessa, beijado uma criança.

Luzes brilharam ao redor enquanto Monk era arrastado para baixo, fundo, fundo...

Ele ainda tentou subir uma última vez.

Enquanto o brilho do navio se apagava e a escuridão o engolia, ele voltou seu coração para as duas mulheres que tinham dado algum sentido à sua vida.

Kat.

Penélope.

Eu amo vocês, amo vocês, amo vocês...

 

Lisa se sentou no banco de trás do Sea Dart, abraçando os joelhos, soluçando.

Susan se sentou junto a ela, com uma das mãos em suas costas. Ninguém falou.

Ryder lutava contra os ventos, pilotando o Sea Dart sobre mar aberto. A ilha de Pusat desapareceu atrás deles.

A tempestade os sacudia como uma folha em uma ventania. Não havia sentido em lutar contra ela. Eles simplesmente voaram seguindo o vento, rumo ao Norte.

Não tinham rádio. Uma rajada de balas atravessara o equipamento.

—        O sol está nascendo — murmurou Susan, olhando através da janela e ignorando o mapa de navegação que estava em seu colo.

Suas palavras romperam alguma barreira.

Ryder falou, do assento do piloto:

—        Talvez ele tenha conseguido chegar à margem.

Lisa se ajeitou. Sabia que Monk não tinha conseguido. Mas enxugou as lágrimas. Monk se sacrificara para que eles pudessem escapar. Para que aqueles a bordo do Mistress of the Seas tivessem uma chance de ser resgatados, para que o mundo tivesse uma esperança de cura.

Ainda assim, Lisa se sentia entorpecida e morta.

—        O sol... — disse Susan.

Ryder virou para Leste, identificando outro pico de ilha. Perto do horizonte havia um sinal do fim da tempestade noturna. As nuvens negras se abriam o suficiente para permitir a passagem da luz do sol. Um pedaço de sol se erguia no horizonte.

Através da janela, a luz inundou a cabine de brilho.

Lisa olhou para ele, buscando absolvição, expondo-se a seu brilho, para que ele penetrasse nela, afastasse a escuridão que também havia ali.

E pareceu dar certo — até Susan dar um grito aterrorizado.

Lisa deu um pulo e se virou. Susan estava sentada empertigada em seu assento, olhando para o sol de olhos arregalados. Mas algo em seus olhos brilhava ainda mais forte.

Pânico.

—        Susan?

A mulher continuava a olhar. A boca se moveu, sem ar. Lisa teve de ler seus lábios.

—        Eles não devem ir para lá.

—        Quem? Onde?

Susan não respondeu. Sem olhar para baixo, ela colocou um dos dedos no mapa de navegação que tinha no colo.

Lisa leu o nome sob o dedo.

—        Angkor.

 

Gray marchou com os outros até os majestosos portões do complexo de templos amuralhado de Angkor Thom. O sol da manhã, ainda baixo no horizonte, lançava longas sombras sobre a estrada sul. Cigarras zumbiam, juntamente com o coro matinal de sapos.

A não ser por um punhado de turistas e dois monges de hábitos laranja, eles tinham a ponte só para si àquela hora. A estrada tinha o comprimento de um campo de futebol, e era delimitada lateralmente por fileiras de estátuas: 54 deuses de um lado e 54 demônios do outro. Eles ficavam acima de um fosso, agora praticamente seco, onde antes crocodilos nadavam, protegendo a grande cidade e o palácio real em seu interior. O fosso profundo, delimitado por molhes de terra, agora apresentava áreas esmeralda de poças cobertas de algas e tufos de grama e mato.

Enquanto marchavam, Vigor se aproximou de uma das estátuas de demônios da ponte e colocou a palma da mão na cabeça de uma delas, dizendo:

—        Concreto. As cabeças originais foram em sua maioria roubadas, embora haja algumas em museus cambojanos.

—        Vamos esperar que aquela pela qual estamos esperando não tenha sido roubada — disse Seichan, taciturna, ainda claramente aborrecida depois da conversa com Nasser na van.

Gray se manteve afastado dela. Não tinha certeza de qual dos dois agentes da Guilda era mais perigoso.

A equipe de quarenta homens de Nasser se espalhava à frente e atrás deles, uma escolta caqui com boinas pretas. Nasser se mantinha um metro atrás deles, sempre olhando ao redor, cauteloso. Alguns dos turistas demonstravam interesse pelo grande grupo, mas eles em geral eram ignorados. As ruínas à frente atraíam toda a atenção.

No fim da estrada, muros de blocos de laterita com 9 metros de altura cercavam os 10 quilômetros quadrados da antiga cidade. O objetivo deles — o Bayon — ficava no interior da área fechada. Uma floresta densa ainda tomava as ruínas da cidade. Palmeiras gigantescas obscureciam os muros, apequenando o enorme portão de 24 metros de altura. Quatro rostos gigantescos tinham sido esculpidos na torre de pedra, voltados para os pontos cardeais.

Gray estudou os rostos, cobertos de musgo, repletos de rachaduras. Apesar dos danos provocados pelo tempo, continuava a haver certa serenidade em suas expressões: testas largas se erguiam acima de olhos fechados, enquanto lábios grossos se curvavam levemente, tão enigmáticos quanto uma Mona Lisa.

—        O Sorriso de Angkor — disse Vigor, percebendo seu interesse. — O rosto é de Lokesvara, o bodhisattva da compaixão.

Gray olhou um pouco mais, rezando para que a compaixão tocasse Nasser. Gray verificou o relógio. Vinte e cinco minutos até a próxima hora, quando Nasser ordenaria que outro dos dedos de sua mãe fosse cortado.

Para impedir isso, eles precisavam fazer algum progresso para aplacar o desgraçado, contê-lo um pouco mais. Mas o quê?

A respiração de Gray se tornou mais difícil a essa idéia. Seus objetivos estavam em extremos opostos: um desejo de correr e descobrir aquelas pistas que deteriam a mão de Nasser e uma necessidade igualmente forte de atrasar Nasser o máximo possível, a fim de dar ao diretor Crowe mais tempo para encontrar seus pais.

Entre os dois, Gray lutava para se concentrar, encontrar o centro.

—        Vejam... Elefantes! — disse Kowalski, apontando um pouco excitadamente demais para a enorme passagem. Ele deu alguns passos para a frente, seu comprido jaleco drapejando atrás de suas pernas.

Além da entrada, Gray viu dois elefantes indianos cinzentos, as trombas apoiadas frouxamente nas pedras, os olhos cobertos de moscas. Um dos turistas, atrapalhado com uma câmera enorme no pescoço, estava sendo ajudado a montar nas costas enormes do animal, onde fora colocada uma sela colorida e instável, chamada howdah. Um cartaz feito à mão em um poste cimentado em um pneu anunciava em vários idiomas: PASSEIOS DE ELEFANTE ATÉ O BAYON.

—        Apenas 10 dólares — leu Kowalski.

—        Acho que iremos andando — respondeu Gray, desapontando o homem.

—        Isso, diretamente pela bosta de elefante. Depois de algum tempo você irá preferir ter pagado as dez pratas.

Gray olhou para o alto e fez sinal para que Kowalski seguisse os homens de Nasser através do portão, entrando em Angkor Thom.

Além da muralha, um caminho calçado seguia em linha reta, sombreado por altas paineiras cujas raízes se esgueiravam sobre e sob blocos de pedra. Vagens das árvores cobriam o caminho, e eram esmagadas com os pés.

A floresta era mais fechada à frente, dificultando a visão.

—        Qual a distância? — perguntou Nasser, juntando-se a eles, mas permanecendo um metro afastado, uma das mãos no bolso do paletó.

Vigor apontou para a frente.

—        O templo Bayon fica um quilômetro e meio dentro da floresta.

Nasser consultou o relógio, e então olhou significativamente para Gray, a ameaça bem clara.

Passou por eles um dos onipresentes tuk-tuks, o principal meio de transporte, basicamente um jinriquixá adaptado em uma motocicleta de duas marchas. Dois turistas tiraram fotografias de sua legião de boinas negras, conversando em alemão. Então desapareceram adiante.

Gray seguiu a trilha de fumaça, acelerando o ritmo.

Kowalski olhou para a densa floresta de palmeiras e bambus. Seu rosto demonstrava desconfiança.

Vigor falou enquanto caminhavam:

—        Um dia, mais de cem mil pessoas viveram aqui em Angkor Thom.

—        Viveram onde? — perguntou Kowalski. — Em casas nas árvores? Vigor apontou um dos braços na direção da floresta.

—        A maioria das casas, mesmo o palácio real, era feita de bambu e madeira, de modo que elas apodreceram. A floresta as consumiu. Apenas os templos eram feitos de pedra. Mas era uma metrópole agitada, com mercados vendendo peixe e arroz, frutas e especiarias, casas abarrotadas de porcos e galinhas. Os urbanistas tinham projetado um grande sistema de irrigação e canais para sustentar a população. Havia até mesmo um zoológico real, com elaboradas apresentações circenses. Angkor Thom era uma cidade vibrante, animada e ruidosa. Fogos de artifício tomavam os céus nas festividades. A quantidade de músicos era superior à de guerreiros, fazendo soar címbalos, sinos de mão e tambores, tocando harpas e alaúdes, soprando trombetas feitas de chifres ou conchas.

—        Uma orquestra fixa — resmungou Kowalski, nada impressionado. Gray tentou imaginar a cidade enquanto estudava a floresta densa.

—        E o que aconteceu com todas essas pessoas? — perguntou Kowalski.

Vigor coçou o queixo.

—        Apesar do que sabemos sobre a vida cotidiana, grande parte da história de Angkor continua a ser um mistério, ou pelos menos hipotética. Seus textos estavam em livros sagrados de folha de palmeira chamados sastras, que, como as casas aqui, não sobreviveram. Assim, a história de Angkor foi reescrita de forma fragmentária, a partir do estudo dos baixos-relevos esculpidos nos templos. Conseqüentemente, grande parte de sua história continua a ser um mistério. Por exemplo, o que aconteceu com a população. Seu verdadeiro destino ainda é nebuloso.

Gray acompanhava o monsenhor:

—        Achei que eles tinham sido invadidos pelos tai, que arrasaram a antiga civilização khmer, não?

—        Sim, mas muitos historiadores e arqueólogos acreditam que a invasão tai foi secundária, que os khmer já estavam de algum modo fragilizados. Uma das teorias é que os khmer se tornaram menos militarizados em função da conversão religiosa a uma forma mais pacífica de budismo. E outra teoria sustenta que a irrigação em massa e o sistema de distribuição de água que sustentava o império careceram de manutenção e ficaram assoreados, debilitando a cidade e tornando-a suscetível à invasão. Mas há indícios históricos de surtos repetidos e sistemáticos de pestes.

Gray imaginou a Cidade dos Mortos de Marco. Eles estavam caminhando por aqueles mesmos campos da morte, agora tomados pela floresta. A natureza tinha voltado, apagando a mão do homem.

—        Sabemos que Angkor continuou a existir depois de Marco — continuou Vigor. — Há um brilhante relato da região feito por um explorador chinês, Zhou Daguan, um século depois de Marco ter passado por aqui. Assim, a cura oferecida a Marco pode, no fim, ter permitido que o império sobrevivesse, mas a fonte virai deve ter resistido e produzido sucessivas epidemias de peste, enfraquecendo-o. Mesmo os invasores tai não ocuparam Angkor. Eles deixaram a enorme infra-estrutura abandonada e intocada, permitindo que fosse tomada pela floresta. Isso faz você se perguntar por quê. Teriam eles ouvido as histórias? Teriam eles intencionalmente evitado a região, acreditando ser de algum modo amaldiçoada? Seichan tinha se aproximado durante o relato de Vigor.

—        Você então sugere que a fonte pode ainda estar aqui? Vigor deu de ombros:

—        As respostas esperam por nós no Bayon — disse, apontando para uma abertura na floresta.

A frente, emoldurada pela floresta, surgiu uma montanha de arenito, erguendo-se alto, que o sol da manhã fazia brilhar em projeções de rochas cobertas de orvalho e recessos de sombras profundas. Picos menores a cercavam, estritamente agrupados, reunidos em um único maciço. O templo lembrava a Gray algo orgânico, como um cupinzeiro, um monte mal definido, como se séculos de chuva tivessem dissolvido a rocha e a transformado naquela massa frouxa e marcada.

Então, uma nuvem passou no céu e as sombras se tornaram mais profundas, se modificaram. Surgiram na massa enormes rostos de pedra, projetando-se com seus sorrisos de esfinge, cobrindo toda a superfície, olhando para todas as direções. A massa inicial de picos pôde ser identificada como um conjunto de torres, erguendo-se em diferentes níveis, agrupados próximos, e todos decorados com enormes rostos de Lokesvara.

Vigor murmurou:

—        Iluminada pela lua cheia, uma grande montanha se ergue na floresta, esculpida com mil faces de demônios.

Gray sentiu um arrepio. Reconheceu as palavras do texto de Marco. Era onde o confessor de Polo, frei Agreer, fora visto pela última vez, indo na direção de uma montanha esculpida com rostos. Gray de repente teve consciência de que seus próprios pés estavam se movendo mais devagar, por pânico. Ele se obrigou a acelerar o ritmo.

Eles tinham seguido a trilha de Marco até ali... Era então a hora de seguir os últimos passos do confessor de Polo. Mas para onde tinha ido frei Agreer?

 

Com o templo crescendo diante deles, um silêncio pesado se abateu sobre o grupo. A maioria dos olhos estava erguida para as ruínas à frente, mas Vigor aproveitou o momento para estudar seus companheiros. Desde que tinham chegado a Angkor Thom, ele sentira uma tensão não-explicitada entre Gray e Seichan. Embora eles nunca tivessem sido grandes companheiros, sempre houvera uma grande intimidade entre ambos. E, embora as discussões continuassem acaloradas, a distância física entre a dupla tinha diminuído no dia anterior, uma redução de espaço pessoal.

Vigor tinha dúvidas de se eles tinham consciência disso.

Mas, desde que eles tinham saltado da van ali, era como se alguma polaridade interna tivesse se invertido neles, afastando-os. Eles não apenas estavam bem distantes, como ele percebeu uma seriedade em Gray enquanto estudava Seichan quando ela estava de costas, e Seichan tinha endurecido novamente, os olhos mais frios, os lábios mais apertados.

Seichan se manteve mais perto de Vigor, como se precisasse ser tranqüilizada por ele, mas fosse incapaz de pedir. Seu olhar continuava fixo nas ruínas. Eles estavam perto o bastante para captar as verdadeiras dimensões do Bayon.

Cinqüenta e quatro torres estavam dispostas em três níveis crescentes.

Mas a característica mais impressionante era o número de rostos esculpidos.

Bem mais de duzentos.

A luz da manhã mudara com as nuvens, criando a ilusão de que os rostos estavam vivos, movendo-se, observando aqueles que se aproximavam.

—        Por que tantas? — finalmente murmurou Seichan ao seu lado. Vigor sabia que ela estava falando sobre as faces de pedra, e respondeu:

—        Ninguém sabe. Alguns dizem que elas representam vigilância, rostos olhan¬do de um coração secreto, guardando mistérios interiores. Também se diz que as fundações do Bayon foram erguidas sobre uma estrutura anterior. Os arqueólogos descobriram aposentos murados com mais rostos escondidos, trancados para sempre na escuridão.

Vigor gesticulou para a frente.

—        O Bayon também foi o último templo erguido em Angkor, marcando o fim de um período construtivo quase contínuo de vários séculos.

—        E por que eles pararam de construir? — perguntou Gray, se aproximando.

Vigor olhou para ele.

—        Talvez eles tenham descoberto algo que tenha desestimulado mais escavações. Quando os engenheiros do khmer ergueram o Bayon, eles cavaram. Bem fundo. Um quarto do Bayon está enterrado.

—        Enterrado?

Vigor concordou com a cabeça.

—        A maioria dos templos de Angkor é baseada no desenho das mandalas. Uma série de retângulos empilhados, que representam o universo físico, cerca uma torre circular no centro. A torre central representa a montanha mágica da mitologia hindu, o monte Meru, moradia dos deuses. Com o templo parcialmente enterrado, a torre central incorpora o monte Meru, com essa montanha mágica penetrando da terra até os céus. Ainda há histórias de tesouros e horrores escondidos nesses níveis inferiores do Bayon.

Eles tinham chegado agora ao fim do caminho. Ele desembocava em uma praça de pedra aberta. O templo se erguia diante deles. Dezenas de rostos olhavam para baixo. Era possível ver turistas escalando os diferentes níveis do templo.

Continuaram em frente, passando por uma fila de tuk-tuks estacionados. À frente, um pequeno conjunto de barracas na rua oferecia uma enorme variedade de frutas: mangas, jaca, tamarindo, tâmaras chinesas, até mesmo pequenas melan-cias. Crianças de membros finos corriam entre as barracas, revivendo um pouco da antiga animação da cidade com seus risos e gritos. Do outro lado, um grupo mais solene de seis monges de hábitos laranja estava sentado em tapetes tecidos, as cabeças curvadas, orando em meio a uma nuvem de incenso.

Vigor acrescentou seu próprio apelo silencioso ao passar, orando por força, sabedoria e proteção.

Acima, Kowalski tinha parado em uma das barracas. Uma velha enrugada com um rosto perfeitamente redondo estava curvada sobre um braseiro de ferro, preparando café-da-manhã em espetos. Galinha e carne tostavam ao lado de tartaruga e lagarto. O homem cheirou um espeto apetitoso.

—        É caranguejo? — perguntou ele, curvando-se para cheirar mais uma vez. O palito atravessava algo suculento e com pernas, escurecido e deformado pelo fogo.

A mulher anuiu com vigor, dando um sorriso largo diante do interesse dele. Ela falou rapidamente em khmer.

Seichan parou ao lado de Kowalski e colocou uma das mãos em seu ombro.

—        É tarântula frita. Muito apreciada no café-da-manhã no Camboja.

Kowalski tremeu e se afastou:

—        Obrigado. Prefiro um sanduíche de ovo.

Um ladrão menos exigente — um macaco — saiu das ruínas, apanhou uma espiga de milho atrás da mulher e passou correndo exatamente na frente de Kowalski. Ele recuou, esbarrando em Gray, tentando sair do caminho.

A mão de Kowalski se moveu para trás, sob o paletó.

Gray o interrompeu, apertando forte seu cotovelo. Muito forte. Os olhos de Gray se voltaram para Nasser e depois retornaram.

—        Era apenas um macaco.

Kowalski se livrou da mão de Gray.

—        Tá, é que eu não gosto de macacos — o grandalhão olhou duro e seguiu em frente. — Já tive uma experiência ruim com eles. Não quero falar sobre isso.

Vigor balançou a cabeça e deu a volta com eles até a entrada leste do Bayon. Ali a rua calçada estava em ruínas, com blocos desmoronados, repleta de enormes tamareiras e mais paineiras com seu emaranhado coleante de raízes. Eles fizeram um trajeto em curva da entrada até o primeiro nível, passando sob o olhar atento de mais rostos de bodhisattva.

Entraram em um pátio interno delimitado por galerias. As paredes tinham intrincados baixos-relevos gravados, cobertas de cima a baixo com faixas de histórias. Vigor olhou a mais próxima. Elas retratavam cenas cotidianas: um pescador lançando redes, um fazendeiro colhendo arroz, dois galos lutando em meio a uma multidão, uma mulher preparando espetos em um braseiro. A última lembrou a Vigor a velha com as tarântulas fritas, mostrando como passado e presente estavam unidos.

—        Por onde começamos? — perguntou Gray, assustado com os 4 hectares de templo a vasculhar.

Vigor compreendeu seu desânimo. Mesmo ali estava claro que o templo era um verdadeiro labirinto tridimensional de passagens fechadas, arcos quadrados, galerias escuras, degraus altos, pátios ensolarados e aposentos cavernosos. E por todos os lados, torres, ou gopuras, se erguiam em lanças e cones gigantescos, decorados com os rostos onipresentes.

Era fácil se perder ali.

Mesmo Nasser parecia sentir isso. Ele fez sinal para que alguns de seus homens fechassem o cerco ao grupo de Gray. Mandou que outros seguissem para assumir posições importantes no pátio, cobrindo todas as saídas, estabelecendo outra linha de defesa.

Vigor sentiu o aperto no pescoço, mas só havia um rumo a tomar. Ele apontou para a frente.

—        Segundo o mapa que eu estudei, o nível seguinte a partir daqui é outro pátio quadrado como este. Mas acho que devemos ir diretamente para o terceiro nível. Para onde fica o santuário central. Podemos chegar lá indo por aqui.

Mas, enquanto eles davam a volta no primeiro nível, Vigor parou em um espetacular baixo-relevo na parede norte, maior do que todos os outros, cobrindo sozinho toda uma seção. Ele diminuiu o ritmo ao passar por ele.

Retratava duas forças — deuses e demônios, assim como as estátuas ao longo da estrada. Estavam em um cabo-de-guerra, usando uma grande cobra como corda. Entre eles, a serpente estava enrolada em uma montanha apoiada nas costas de uma tartaruga.

—        O que é isso? — perguntou Gray.

—        Um dos principais mitos hindus da criação. A Batida do Oceano de Leite — disse Vigor, dando os detalhes. — Deste lado estão os devas, ou deuses... Do ou¬tro, os asuras demoníacos. Eles estão usando o deus cobra Vasuki como corda para girar a grande montanha mágica. Para a frente e para trás, para a frente e para trás. Batendo o oceano cósmico em uma espuma leitosa. É a partir dessa espuma que é batido o elixir da imortalidade chamado amrita. A tartaruga abaixo da montanha é uma encarnação do deus Vishnu, que ajuda deuses e demônios sustentando a montanha para que ela não afunde.

Vigor apontou para a torre central do Bayon.

—        E supostamente ali está essa montanha. Ou pelo menos sua representante na Terra.

Gray olhou para a torre de 15 andares, depois novamente para o baixo-relevo.

Passou um dedo ao longo da montanha talhada, o cenho franzido.          

—        E o que aconteceu? O elixir foi feito?

Vigor balançou a cabeça.

—        Segundo a história, houve algumas complicações. A serpente Vasuki ficou enjoada com os puxões e vomitou um grande veneno. Ele fez com que tanto os deuses quanto os demônios adoecessem, ameaçando matá-los. Vishnu os salvou bebendo ele mesmo o veneno, mas, no processo de desintoxicação, ficou azul, por isso sempre é retratado com a garganta azul. E com sua ajuda a batida teve prosseguimento, que produziu não apenas o elixir da imortalidade, mas também os espíritos celestiais dançarinos chamados apsaras. Então, tudo terminou bem.

Vigor tentou apressá-los, mas Gray continuou onde estava, olhando para o baixo-relevo, com uma expressão estranha no rosto.

Nasser foi até ele.

—        O tempo acabou — disse ele, dando batidinhas no relógio de pulso com seu telefone celular. Sua voz estava cheia de desprezo. — Você teve alguma revelação inesperada?

Vigor sentiu no homem frieza em meio a um prazer sombrio. Ele estava gostando de torturar Gray. Vigor começou a se colocar entre ambos, temendo que Gray reagisse mal e atacasse Nasser novamente.

Mas, em vez disso, Gray anuiu:

—        Sim.

Nasser arregalou os olhos, surpreso.

Gray colocou a palma da mão no baixo-relevo.

—        Esta história aqui. Não é um mito da criação. É a história da Estirpe de Judas.

—        Do que você está falando? — perguntou Nasser. Vigor tinha a mesma pergunta.

Gray explicou:

—        De tudo o que você nos falou sobre a exposição na Indonésia, a doença toda começou com os mares da região brilhando com bactérias. Mares descritos como espumantes e leitosos. Como leite batido.

Vigor se empertigou, dando a volta ao redor de Gray para ver o baixo-relevo com novos olhos. Ele ficou parado, com uma das mãos na cintura.

Seichan se juntou a ele. De lado, Kowalski permaneceu onde estava, estudando uma linha de mulheres de seios nus, com o nariz junto à pedra.

Gray continuou, apontando para a serpente.

—        Então, saiu um grande veneno que ameaçou toda a vida, boa e ruim.

Seichan concordou:

—        Como a bactéria tóxica, cuspindo veneno e deixando um rastro de morte.

Nasser não parecia convencido.

Gray insistiu:

—        E, de acordo com esse mito, alguém sobreviveu à exposição e salvou o mundo: Vishnu. Ele bebeu o veneno, o desintoxicou e ficou azul...

—        Como se estivesse brilhando — murmurou Vigor.

—        Como os sobreviventes descritos no livro de Marco — acrescentou Gray. — E como a paciente que você descreveu, Nasser. Todos brilhando em azul.

Vigor concordou lentamente com a cabeça.

—        É perfeito demais para ser coincidência. E muitos mitos antigos nasceram de histórias reais.

Gray se voltou para Nasser.

—        Se eu estiver certo, eis a primeira pista de que estamos no caminho certo. Que talvez haja ainda mais a aprender.

Os olhos de Nasser se apertaram, momentaneamente com raiva, mas ele lentamente anuiu.

—        Acredito que você possa estar certo, comandante Pierce. Muito bom. Você reajustou o relógio para mais uma hora.

Gray tentou esconder seu alívio, soltando a respiração com um ruído leve.

—        Então vamos continuar — disse Nasser.

Vigor os conduziu a um lance de escadas íngreme e obscuro. Atrás dele, Gray ficou mais um momento, estudando o relevo. Ele se esticou e passou um dos dedos ao longo da gravação na montanha — depois novamente na torre central.

Os olhos de Gray se encontraram com os de Vigor. Vigor percebeu o leve balançar de cabeça do comandante quando se virou.

Será que Gray sabia algo mais?

Vigor comprimiu o corpo na escada estreita. Antes que Gray se virasse, Vigor percebera algo mais, algo no rosto do comandante.

Medo.

 

—        Eles não devem ir lá — gemeu Susan novamente.

A mulher estava estendida nos bancos de trás do Sea Dart, em estados alternados de consciência e inconsciência, perto de retornar a um estupor catatônico. Susan se esforçava para empurrar o cobertor que Lisa estendera sobre ela.

—        Fique quieta — insistiu Lisa. — Tente descansar. Ryder logo estará de volta.

O Sea Dart sacudia e batia contra o fim do cais de abastecimento. Eles tinham pousado na baía abrigada de uma pequena ilha, em algum ponto na costa de Bornéu. A chuva continuava a cair de nuvens baixas, mas a fúria escura do tufão tinha passado. Havia trovões, mas eles soavam distantes e diminuíam.

Ainda sofrendo por Monk, Lisa olhava através do pára-brisa do Sea Dart. Enquanto esperava, seus pensamentos facilmente se transformavam em recriminações. Ela poderia ter feito mais. Ter se mexido mais rapidamente. Pensado em algo inteligente na última hora. A prótese de Monk ainda estava pendurada no suporte da asa. Ryder não tinha conseguido soltá-la.

Lisa olhou para a escotilha, desejando que Ryder voltasse logo. Ele tinha enchido o tanque de combustível do barco e fora à procura de um telefone com um punhado de dinheiro para emergência que tinha guardado ali.

Mas ele parecia ter poucas chances. A aldeia próxima estava às escuras na praia, danificada pela tempestade, com tetos arrancados, palmeiras derrubadas e a areia coberta de barcos virados e entulho. Não havia energia nas bombas do cais de abastecimento. Ryder tivera de bombear o combustível manualmente, dando um punhado de dinheiro a um homem encharcado que vestira chinelos e bermudas. O homem partira com Ryder em uma motocicleta, garantindo que poderia encontrar um telefone perto do pequeno aeroporto no interior da ilha.

A ilha tropical de Natuna Besar participava da indústria turística com muitos mergulhos livres em recifes e uma excelente pesca esportiva. Mas fora evacuada ante a ameaça do tufão. O lugar parecia deserto.

A maioria das ilhas que eles tinham sobrevoado estava igualmente em ruínas.

Do alto, Ryder identificou o aeroporto de Natuna Besar.

— Certamente alguém ali tem um telefone por satélite que possamos pegar emprestado — dissera ele. — Ou um modo de consertar nosso rádio.

Como de qualquer modo eles precisavam abastecer, pousaram na baía abrigada. Lisa estava então esperando com Susan.

Preocupada, Lisa colocou a mão na testa molhada da mulher. Na penumbra da cabine, o rosto de Susan reluzia com um brilho profundo, que parecia vir mais de seus ossos do que da pele. Lisa sentiu a palma da mão queimar na testa de Susan.

Mas não era febre.

Lisa ergueu a mão. Ela continuou a queimar.

O que era aquilo?

Lisa enxaguou a palma da mão freneticamente com a água de um cantil e a secou no cobertor antifogo. A queimação passou.

Lisa ficou olhando para o brilho na pele de Susan, esfregando a ardência nas pontas dos dedos. Isso era novidade. A cianobactéria devia estar produzindo uma substância química cáustica. E, embora tivesse queimado a pele de Lisa, Susan continuava resistente ou protegida.

O que estava acontecendo?

Como se lesse seus pensamentos, Susan tirou um dos braços de sob o cobertor. Sua mão se esticou na direção do quadrado de fraca luz do sol que atravessava a escotilha. O brilho em sua pele desapareceu na luz.

O contato pareceu acalmar Susan. Ela deu um longo suspiro.

Luz do sol.

Seria possível?

Curiosa, Lisa se esticou na direção da mão de Susan e esfregou a ponta de um dos dedos na pele banhada pelo sol. Lisa recolheu o braço, sacudindo os dedos. Era como tocar ferro quente. Ela mais uma vez lavou a pele com água, a ponta do dedo já formando bolhas.

—        É a luz do sol — disse Lisa em voz alta.

Ela recordou do surto anterior de Susan, quando voltara os olhos para o sol nascente. Lisa também se lembrou de uma das características singulares das cianobactérias. Elas eram as precursoras das plantas modernas. A bactéria tinha cloroplastos rudimentares, motores microscópicos para transformar luz do sol em energia. Com o nascer do sol, a cianobactéria estava crescendo, ganhando energia de alguma forma estranha.

Mas para fazer o quê?

Lisa olhou o mapa de navegação no chão. Lembrou-se do surto anterior de

Susan, apontando para um local do mapa.      

—        Angkor — murmurou Lisa.

Lisa tentara se convencer de que era apenas uma coincidência. Mas agora não tinha tanta certeza. Lembrou-se de escutar uma conversa enquanto estava amarrada a uma mesa cirúrgica. Devesh estava ao telefone, falando em árabe. Ela só tinha conseguido entender uma palavra.

Um nome.

Angkor.

E se isso não fosse coincidência?

E se não fosse, o que mais Susan sabia?

Lisa suspeitava de que havia uma forma de descobrir. Ela se virou e pegou os ombros de Susan em seus braços, mantendo o cobertor entre elas. Lisa ergueu Susan até o facho de luz do sol que passava pelo pára-brisa.

Susan tremeu assim que seu rosto foi iluminado. Seus olhos piscaram e se abriram, pupilas negras se voltaram na direção da luz fraca. Mas, em vez de se contraírem na claridade, as pupilas de Susan se dilataram, absorvendo mais luz.

Lisa recordou-se da invasão bacteriana das retinas da mulher, centrada ao redor do nervo óptico, ligação direta com o cérebro.

Susan enrijeceu abaixo dela. Sua cabeça girou, então se firmou.

—        Lisa — disse ela, com a voz pesada e pastosa.

—        Estou aqui.

—        Eu preciso... Precisa me levar lá... Antes que seja tarde demais.

—        Aonde?

Mas Lisa sabia onde.

Angkor.

—        Não há mais tempo — murmurou Susan, virando o rosto para Lisa. Seus olhos piscaram com a claridade, fugindo dela. Assustados. E não apenas por causa do perigo à frente. Lisa viu nos seus olhos. Susan sentia medo do que estava acontecendo ao seu corpo. Ela conhecia a verdade, mas era incapaz de impedi-la.

Lisa deitou Susan fora da luz do sol.

A voz de Susan firmou-se momentaneamente. Uma das mãos agarrou o pulso de Lisa. Sem incidência direta de luz, o toque ardia, mas não queimava a ponto de deixar bolhas.

—        Eu... Eu não sou a cura — disse Susan. — Eu sei o que vocês todos estão pensando. Mas eu não sou... ainda não.

Lisa franziu o cenho.

—        O que você quer dizer?

—        Eu preciso ir para lá. Consigo sentir. Uma atração em meus ossos. Uma certeza. Como a lembrança de algo enterrado além de minha capacidade de recordar. Eu sei que estou certa. Só não consigo explicar por quê.

Lisa recordou sua discussão a bordo do navio. Sobre DNA lixo, sobre antigas seqüências virais em nossos genes, história genética coletiva em nosso código. As bactérias estariam despertando algo em Susan?

Lisa viu a mulher retirar a outra mão do retângulo de luz do sol e puxar uma ponta do cobertor sobre o rosto. Ela também sabia disso?

À medida que Susan se enfiava sob o cobertor para fugir da luz do sol, a voz se tornava mais fraca.

—        Não estou pronta...

Uma das mãos continuava agarrada ao pulso de Lisa.

—        Me leve para lá... De algum jeito — disse Susan, novamente começando a perder a consciência. — Ou o mundo estará perdido.

Uma batida forte assustou Lisa.

O rosto cansado de Ryder surgiu na janela da escotilha. Lisa se inclinou para a frente e soltou a tranca. Ryder entrou, ensopado, mas com um enorme sorriso.

—        Consegui um telefone por satélite. Só tem 1/4 de carga, e a porcaria me custou o equivalente a uma pequena casa de praia em Sydney Harbor.

Lisa pegou o grande aparelho.

Ryder retornou ao assento do piloto, e Lisa se juntou a ele na frente. Mesmo encharcado até os ossos, ele parecia que tinha acabado de voltar de uma farra, os olhos brilhando de excitação. Mas Lisa também percebeu seriedade no homem, uma dureza nos cantos dos lábios. Ryder podia gostar de aventuras, mas ninguém chega ao seu grau de sucesso sem um sólido núcleo prático.

—        O sinal de satélite será mais forte longe das montanhas — disse ele, ligando as bombas a jato. Com os motores borbulhando, ele os afastou dos maciços rochosos.

Enquanto isso, Lisa lhe contou o que Susan dissera.

Eu não sou a cura... Ainda não.

Os dois chegaram a um consenso.

Ryder pegou o mapa de navegação e colocou-o aberto no volante da embarcação.

—        Angkor está a 720 quilômetros para o Norte. Eu posso pilotar esta mosquinha até lá em uma hora e meia, mais ou menos.

Lisa pegou o telefone por satélite e recebeu um sinal forte.

Ela só tinha de convencer mais uma pessoa.

 

—        Lisa? — gritou Painter no seu telefone. O sinal era fraco, mas a maior parte de seu escândalo não tinha nada a ver com conexão ruim. Era pura satisfação e completo alívio. Ele ficou de pé atrás da mesa, as costas eretas. — Você está bem?

—        Sim... Por enquanto. Eu não tenho muito tempo, Painter. Não há muita carga no telefone.

Ele percebeu ansiedade na voz dela. Manteve a voz firme, contendo sua satisfação.

—        Continue.

Lisa contou rapidamente tudo o que tinha acontecido, falando secamente, como se estivesse dando um diagnóstico fatal a um paciente, limitando-se aos fatos. Mas Painter percebeu um tremor em sua voz. Ele queria atravessar a linha e segurá-la, afastar seus medos, prendê-la a ele.

Mas, enquanto ela fazia seu relato de doença, loucura e canibalismo, Painter afundou na cadeira. Suas costas se curvaram. Ele fez perguntas, preencheu algumas lacunas. Ela deu coordenadas de uma ilha: Pusat. Ele passou as anotações a um ajudante para que fossem transmitidas por fax a seu superior, Sean McKnight. Uma equipe de comandos australianos da equipe de Contraterrorismo e Resgate Especial já estava em Darwin esperando um alvo, pronta para coordenar uma operação de resgate. Antes que Painter terminasse sua conversa, os jatos teriam decolado.

Mas o perigo era maior que apenas um navio seqüestrado.

—        A Estirpe de Judas? — perguntou Lisa. — A doença se espalhou?

Sobre isso Painter só tinha más notícias. Já havia notícias de casos em Perth, Londres, Bombaim. Certamente, logo haveria outros.

—        Precisamos daquela mulher — concluiu Painter. — Jennings, da pesquisa, acredita que um desses sobreviventes é a chave para a cura.

Lisa concordou.

—        Ela é a chave, mas não é a cura... Ainda não.

—        O que você quer dizer?

Painter a ouviu suspirar do outro lado do mundo.

—        Estamos deixando passar alguma coisa. Algo ligado a uma região do Camboja.

Painter se empertigou novamente.

—        Você está falando de Angkor?

Seguiu-se uma longa pausa.

—        Sim — respondeu ela, e ele percebeu surpresa em sua voz. — Como você...?

Painter contou sobre a busca da Guilda seguindo a trilha histórica e onde ela tinha terminado.

—        E Gray já está lá? — perguntou Lisa, parecendo agitada. Ele a ouviu murmurar, como se estivesse citando alguém. "Eles não devem ir para lá." Sua voz ficou mais firme. — Painter, há alguma forma de tirar Gray de lá?

—        Por quê?

—        Não sei. — Sua voz tinha começado a falhar. O telefone estava ficando sem bateria. — A bactéria está fazendo algo com o cérebro de Susan. Energizando-o de alguma maneira, utilizando a luz do sol. Ela está com uma necessidade urgente de ir a Angkor.

Painter reconheceu o que ela estava querendo dizer.

—        Como os caranguejos.

—        O quê?

Painter contou o que sabia sobre os caranguejos das ilhas Christmas.

Lisa compreendeu imediatamente.

—        Susan deve ter sido ligada da mesma forma. Um impulso migratório quimicamente induzido.

—        Nesse caso, talvez ela esteja enganada sobre a necessidade de ir para lá. Pode ser apenas um impulso cego. Não há razão para vocês se arriscarem indo até lá. Pelo menos até que as coisas se ajeitem. Deixe Gray fazer essa jogada.

Lisa não se convenceu.

—        Acho que você está certo sobre um impulso biológico subjacente. E, em uma forma de vida inferior, como um caranguejo, pode ser apenas um instinto cego. Caranguejos, como todos os artrópodes, só têm um rudimentar...

Ela parou de falar. Painter temeu ter perdido a ligação. Mas algumas vezes Lisa agia assim quando fazia uma descoberta repentina. Ela simplesmente desligava, utilizando todas as suas faculdades para seguir uma linha de raciocínio.

—        Lisa?

Ela levou mais um momento antes de responder.

—        Susan pode estar certa — murmurou ela, e depois mais alto, mais firme. — Preciso levá-la até lá.

Painter falou rapidamente, sabendo que eles estavam prestes a perder contato. Ele percebeu a decisão na voz de Lisa e temeu não ter tempo de dissuadi-la. Se ela iria para Angkor, ele queria que de alguma maneira ela não se machucasse.

—        Então, pouse no lago grande perto das ruínas — disse ele. — O lago Tonle Sap. Há uma aldeia flutuante lá. Encontre um telefone, entre em contato comigo novamente, mas permaneça escondida. Estou organizando uma campanha na região.

Ele mal conseguiu entender as palavras seguintes, algo sobre fazer o melhor possível.

Painter tentou uma última vez:

—        Lisa, o que você descobriu?

As palavras dela estavam entrecortadas.

—        Não estou certa... Fascíola hepática... Vírus precisa...

Então a ligação caiu. Painter ligou mais algumas vezes, mas não conseguiu nada.

Uma batida na porta fez com que levantasse os olhos.

Kat entrou correndo, os olhos faiscando, as bochechas brilhando.

—        Eu ouvi! Sobre a dra. Cummings! É verdade?

Painter ficou olhando para Kat. Ele tinha lido a pergunta na expressão de Kat, em todo o seu corpo, o desejo de saber. Lisa contara a ele. A primeira coisa. Ela tinha falado de um fôlego só, precisando tirar o peso dos ombros. Depois, Painter colocara isso de lado.

Mas, confrontado por Kat, por sua esperança, seu amor, a verdade doeu-lhe fundo.

Ele se levantou e deu a volta na mesa.

Kat viu no seu rosto.

Ela se afastou dele, como se pudesse fugir do que estava por vir.

—        Ah, não... — Ela agarrou o braço de uma cadeira, mas isso não foi suficiente para segurá-la. Ela caiu com um joelho, depois desabou em ambos, cobrindo o rosto com as mãos. — Não...

Painter se juntou a ela no chão.

Ele não tinha palavras para oferecer a ela, apenas seus braços.

Não era suficiente.

Ele a puxou na sua direção, pensando em quantos mais iriam morrer antes que aquilo tudo terminasse.

 

Eles estavam ficando sem ter para onde recuar.

Harriet esperou por seu marido ao pé das escadas que levavam ao andar superior. Ele ficou na passagem da escadaria. Jack saíra para deixar mais pistas falsas para os cães de caça. Ela já tinha rasgado a camisa do marido, ajudando-o a esconder os pedaços nos dois andares de baixo: jogados em escrivaninhas, enfiados em pilhas de lixo, pendurados em um armário de metal em um labirinto de cubículos de secretaria. Eles fizeram de tudo para confundir os perseguidores.

Jack tinha caçado a vida toda. Pato, faisão, codorna, cervo. Ele tivera seus re-trievers antes que o acidente no poço de petróleo levasse à amputação da perna abaixo do joelho. Ele conhecia cães. E ainda tinha três balas na pistola que roubara do guarda. Harriet tentava manter as esperanças, mas ouvira os cães latindo abaixo. Annishen estava vasculhando sistematicamente cada andar. Ela sabia que eles estavam ali em cima, chamando-os periodicamente, provocando-os.

Todas as saídas estavam bem guardadas. Mesmo as de incêndio. Nenhum dos prédios vizinhos estava perto o bastante para ser alcançado. E todo o distrito parecia abandonado havia muito tempo. Não tinha qualquer luz acesa, a não ser a distância. Não havia ninguém para ouvir um pedido de socorro. Eles tinham tentado alguns telefones públicos empoeirados, mas todos estavam mudos.

Como pessoas desesperadas fugindo de um incêndio em andar alto, eles não tinham para onde ir, a não ser para cima. E só restava mais um andar. Aquele, e depois o teto.

Harriet ouviu um tumulto, e seu marido saiu da escuridão, vestindo apenas cuecas largas; trazia a pistola consigo. Ele mancou na direção dela.

—        O que você ainda está fazendo aqui? — sussurrou ele com dureza. Seu rosto brilhava de suor. Ela reconheceu que o tom raivoso apenas disfarçava o medo que sentia por ela. — Eu mandei você subir.

—        Não sem você.

Ele suspirou e passou o braço ao redor dela.

—        Então vamos.

Eles seguiram para o andar de cima, usando uma das escadas estreitas dos fundos. Abaixo deles, na escadaria, um grande contêiner de lixo fora jogado nos degraus muito antes, bloqueando a passagem dos andares inferiores.

Devia ser seguro.

Um rosnado baixo afastou essa idéia. Houve um tumulto no andar inferior, além do contêiner.

Eles ficaram paralisados.

—        Sentiu o que aí, menina? — rosnou uma voz. Passos entraram na escadaria abaixo. O facho de uma lanterna subiu até eles.

Harriet e Jack colaram-se à parede. O rosnado se tornou mais intenso.

—        Suba até lá. Vai. Vasculhe lá.

Jack empurrou Harriet pelas escadas. Eles se moveram em silêncio. Abaixo, o rosnado se suavizara, transformando-se em fungadas pesadas, juntamente com raspar de unhas no piso.

—        Vai lá — disse a voz. — Espante-os. Eu vou dar a volta. — A voz saiu da escadaria baixa, obviamente procurando outro caminho para cima. O chiado do rádio o acompanhou, juntamente com algumas palavras enquanto ele dava informações.

Eles estavam mandando os cães para o próximo andar.

Enquanto Harriet e Jack corriam para a porta do piso seguinte, um latido cortante chegou a eles, em parte vitorioso, em parte selvagem. Algo grande subiu as escadas.

—        Corra, Harriet! — mandou Jack.

Ela correu em frente e chegou ao patamar seguinte. A porta do andar de cima estava a um metro, fechada. Atrás dela, Jack tropeçou no escuro e caiu. Ele foi parar dois degraus abaixo. A pistola deslizou pelo patamar até os dedos dos pés de Harriet. Ela a pegou rapidamente. Enquanto ela voltava a se levantar, luzes através da pequena janela no poço das escadas chamaram sua atenção.

Luzes de lanternas varriam o escuro andar de cima.

Annishen chamou:

—        Vamos vasculhar aqui e descer. Vamos botá-los para fora.

Harriet se virou. Jack se arrastou até ela. Além dele, uma forma escura contornava as escadas de baixo e seguia na direção de seu marido. Houve um rosnado grosso.

Harriet ergueu a pistola. Se ela disparasse, Annishen ouviria o tiro. Seus captores saberiam onde eles estavam escondidos e chegariam lá em segundos.

Ela hesitou demais.

Rosnando selvagemente, o cão enorme saltou sobre seu marido.

 

Seichan ficou a um passo de distância enquanto Gray contornava o altar central.

Eles tinham passado quase vinte minutos retrocedendo e procurando descobrir o caminho para o santuário central do terceiro nível de Bayon. O complexo de quatro hectares era um verdadeiro labirinto de galerias escuras, inesperados pátios banhados pelo sol, passagens bloqueadas e quedas abruptas. Os telhados baixos raspavam nas paredes, alguns corredores tinham de ser percorridos em fila indiana, vasculhando passagens laterais, e muitos corredores não possuíam saída.

Quando chegaram ao pequeno santuário interno, estavam cobertos de poeira e suor. A manhã tinha ficado quente rapidamente, e o ar estava pesado de umidade. Mas eles chegaram ao seu destino.

— Não há nada aqui! — disse Nasser em tom irritado.

Seichan identificou sua atitude, percebeu sua postura rígida. Ela duvidava de que sua paciência durasse até o meio-dia. A não ser que houvesse algum progresso logo, ela acreditava que ele acabaria com tudo na próxima hora. Iria ordenar que os pais de Gray fossem mortos. Executaria todos ali. E seguiria em frente.

Sempre prático.

Nenhuma imaginação.

Isso fazia dele um amante aborrecido.

A frente, Gray contornou o altar pela terceira vez. Ele estava magro, coberto de poeira e com o cabelo preto sujo grudado na testa, em cachos pegajosos. Tinha sangue seco no colarinho, onde recebera um golpe de pistola atrás da orelha de um dos homens de Nasser, ainda no hotel.

Ele ainda se recusava a olhar para ela.

Isso a deixava com raiva, principalmente porque doía, e ela odiava aquilo ainda mais. Seichan buscava aquele espaço de frieza onde antes tinha vivido, uma frieza que lhe permitia dormir com Nasser para conseguir o que precisava, como fora ensinada a fazer.

Seichan voltou a atenção para os guardas, novamente prática, concebendo uma forma de sair dali. Os guardas eram em sua maioria locais, incluindo muitos ex-soldados do Khmer Vermelho havia muito recrutados pela Guilda, reunidos após a queda do ditador genocida Pol Pot. Seriam combatentes ferozes. Eles guarneciam as quatro saídas da câmara, voltadas para os pontos cardeais. Outros homens tinham assumido posições por todas as ruínas, desencorajando turistas a perturbarem-nos.

—        Segundo o que li sobre este lugar, havia aqui uma gigantesca estátua de Buda — anunciou o monsenhor, acompanhando Gray ao redor do altar. Vigor apontou com um dos braços para dois blocos retangulares, colocados um sobre o outro, como degraus. — Mas quando a religião passou a ser o hinduísmo, o Buda foi derrubado e jogado naquele grande poço pelo qual passamos na subida.

Os únicos outros elementos decorativos na sala de pedra eram quatro rostos escurecidos do bodhisattva Lokesvara. Só que aqueles estavam olhando para dentro, na direção do altar e do Buda ausente. Kowalski se apoiou em um dos rostos, olhando para cima.

A grande torre central do Bayon se erguia acima do altar, elevando-se 40 metros. Vazada no centro como uma chaminé, tinha uma longa passagem quadrada que levava direto ao céu acima. Era a única fonte de luz.

—        Este tem que ser o lugar — disse Gray, finalmente parando. — Tem que haver um caminho para baixo a partir daqui.

—        Para baixo onde? — perguntou Nasser.

Gray ergueu a mão na direção do monsenhor.

—        Vigor mencionou como as fundações desta torre foram enterradas. Fundo. Precisamos encontrar um acesso a esses aposentos inferiores. E aposto que um bom lugar para procurar seria sob o altar.

Vigor se colocou ao lado dele.

—        Por que você acha que isso é importante?

Gray tirou o cabelo da testa, claramente avaliando quanto dizer. Nasser também identificou a hesitação do homem.

—        Estamos passando outra hora — disse ele, batendo com um dedo no relógio de pulso. — Tique-taque, comandante.

Gray suspirou.

—        O baixo-relevo que vimos antes. O da Batida do Leite. Todas as peças da história eram importantes. A serpente, o mar espumante, o veneno, a ameaça para o mundo, a sobrevivente brilhante. Mas havia uma peça estranha e inexplicável. Ela não se encaixava nas outras.

—        Qual é? — perguntou Nasser.

Seichan viu como era doloroso para Gray falar. Todas as palavras saíam com enorme relutância.

—        A tartaruga — admitiu Gray, finalmente.

Vigor coçou o queixo.

—        Na história, a tartaruga representa o deus Vishnu, uma encarnação de si mesmo. Em sua forma de tartaruga, ele sustentava o monte Meru enquanto era puxado para a frente e para trás, para impedir que afundasse.

Gray concordou com a cabeça.

—        No baixo-relevo, a tartaruga estava gravada abaixo da montanha. Por que uma tartaruga?

Ele se curvou e desenhou na poeira do altar. Fez um esboço simples de uma montanha com uma casca curva embaixo.

Ele bateu na casca.

—        O que isso parece para vocês?

Vigor se curvou.

—        Uma caverna. Enterrada abaixo da base da montanha.

Gray olhou para cima, para a passagem de luz.

—        E esta torre aqui representa aquela montanha.

Seichan se aproximou mais.

—        Você acha que há uma caverna embaixo desta torre. Abaixo de suas fundações enterradas.

Ele respondeu, seus olhos se voltando para ela rapidamente e depois se afastando.

—        A única maneira de descobrir é descer até as fundações e procurar algum acesso a essa caverna.

Nasser franziu o cenho.

—        Mas o que pode haver de tão importante nessa caverna?

—        Poderia ser a fonte da Estirpe de Judas — disse Vigor. — Talvez quando eles estivessem cavando o templo tenham chegado a essa caverna e libertado algo que estava enterrado lá.

Gray suspirou, cansado.

—        Muitos vetores de doenças surgiram no mundo à medida que a humanidade penetrou em regiões normalmente desabitadas. Febre amarela, malária, doença do sono. Mesmo a aids surgiu quando uma estrada estava sendo construída cortando uma região remota da África, expondo o mundo a um vírus encontrado apenas em alguns macacos. Então, talvez, quando o Khmer cultivou e ocupou esta região, algo tenha sido libertado.

Gray esfregou o pescoço. Seus olhos se voltaram diretamente para Nasser.

Diretamente demais.

Seichan sentiu que Gray ainda estava escondendo algo. Ela estudou novamente o desenho estilizado que ele fizera. A montanha e a casca representavam a torre e a caverna. O que mais havia ali? Então ela percebeu.

A própria tartaruga.

Claro...

Seus olhos se ergueram na direção dos olhos de Gray.

Ele deve ter percebido seu olhar. Voltou-se para ela naturalmente, mas seu olhar era pesado. Gray sabia que ela se dera conta do que não tinha dito. Ele queria que ficasse quieta.

Ela deu um passo atrás e cruzou os braços.

Ele olhou mais um pouco e depois desviou o olhar.

Seichan sentiu algum grau de satisfação. Mais do que esperava.

Nasser respirou profundamente pelo nariz, e concordou.

—        Precisamos encontrar uma passagem para baixo.

Gray franziu o cenho.

—        Eu esperava que houvesse alguma pista de uma passagem secreta.

—        Não importa — respondeu Nasser. — Vamos explodir a entrada.

—        Não sei se isso seria sábio — disse Vigor, aterrorizado. — Se essa é a fonte da Estirpe de Judas, pode ser terrivelmente tóxico lá embaixo.

Nasser permaneceu inabalável.

—        Por isso iremos mandar todos vocês primeiro.

Como canários em uma mina de carvão.

Seichan mais uma vez trocou olhares com Gray. Ele não fez objeções. Como Seichan, ele sabia que lá embaixo havia algo maior do que apenas a fonte da Estirpe de Judas.

O casco da tartaruga podia representar a caverna — mas a tartaruga em si representava o deus Vishnu —, sugerindo que havia mais que apenas uma caverna abaixo do templo de Bayon. Possivelmente, mais alguma coisa também esperava por eles lá embaixo.

Gray caminhou na direção de Nasser.

—        Isso demonstra cooperação suficiente para poupar minha mãe por essa hora? — perguntou, com a voz firme.

Nasser deu de ombros, concordando. Ele se encaminhou para a entrada de luz, buscando um sinal melhor para seu telefone celular.

—        Eu então devo me apressar — disse Nasser, abrindo seu telefone. — Já passou da hora. Annishen tem pouca paciência. Não sei dizer o que ela poderia fazer.

 

Harriet permaneceu paralisada no patamar.

O cão vinha veloz e saltou sobre o corpo escarrapachado de Jack na escada. Na escadaria escura era impossível dizer qual era a raça, apenas que era grande e forte. Pitbull, rottweiler. Jack saltou de lado e chutou, mas o cão era mais rápido, treinado para o ataque. Com um rosnado, ele mordeu fundo o calcanhar.

Jack agarrou o joelho e chutou com a outra perna, bem no peito do animal.

O cão foi arremessado escada abaixo, batendo com força, ainda agarrado à perna protética de seu marido. Jack tinha soltado o membro, se libertando.

Harriet ajudou Jack a subir ao patamar.

Abaixo, o cão bateu na parede e ficou de pé novamente. Ele se recusava a largar a prótese, que tinha o cheiro de sua presa. Furioso e confuso, sacudiu a cabeça para a frente e para trás, espalhando saliva, sacudindo o membro conquistado.

Harriet arrastou Jack pelo lance de escadas seguinte, passando pela porta fechada do patamar. Ela olhou através da pequena janela. Focos de luz continuavam a vasculhar o andar de cima. Assim, só restava um lugar para Harriet e Jack.

O telhado.

Do lado de baixo da escada, o cachorro continuava a atacar o membro capturado, triunfante com seu prêmio.

Jack se apoiou no ombro dela. Ele pulou e se arrastou até a porta do telhado. Eles já haviam procurado a saída e descobriram que estava presa com uma corrente, mas frouxa. Em algum momento alguém usara um pé-de-cabra para forçar o canto inferior da porta de aço. Havia espaço bastante para se arrastar sob a corrente frouxa e atravessar o amassado na porta.

Do lado de fora, Jack usou um pedaço de cano para manter a porta fechada. Não duraria muito. Mas isso não tinha grande importância. Havia meia dúzia de outros pontos de acesso ao telhado. Eles não tinham como bloquear todos.

—        Por aqui — disse Jack, apontando. Ele tinha examinado o telhado e descobrira uma antiga unidade de aquecimento e refrigeração atulhada até a metade com equipamentos. Dentro havia espaço suficiente para duas pessoas se esconderem.

Mas nenhuma delas tinha muita esperança.

Os cães iriam farejá-los em breve.

Eles atravessaram o telhado até a unidade e a contornaram para que ficasse entre eles e a porta. Os dois se jogaram no telhado alcatroado e por um momento ficaram fora da unidade de refrigeração. As estrelas brilhavam acima deles, juntamente com um pedaço de lua. Um avião passou no alto, as luzes piscando.

Jack passou um dos braços ao redor de Harriet e a puxou para si.

—        Eu te amo — disse.

Era uma confissão rara, poucas vezes dita em voz alta. Não que Harriet tivesse um dia duvidado disso. Mesmo então, ele dizia as palavras de forma seca. Como se dizendo que a Terra era redonda. Uma verdade simples.

Ela se apoiou nele.

—        Eu também te amo, Jack.

Harriet se agarrou a ele. Ela não sabia quanto tempo ainda tinham. Em algum momento a busca lá embaixo iria terminar. Annishen voltaria suas atenções para o telhado.

Eles esperaram juntos, em silêncio, tendo passado toda uma vida juntos, partilhando alegrias e dores, tragédias e vitórias. Embora nenhuma palavra tivesse sido dita, ambos sabiam o que estavam fazendo, os dedos trançados. Diziam adeus um ao outro.

 

Gray se apoiou na parede de tijolos da cela que parecia uma caverna.

Além da abertura estreita, meia dúzia de homens montava guarda. O que estava mais perto tinha as armas bem à vista. Nasser ordenara-lhes que ficassem ali enquanto buscava munição para explodir a pedra do altar. Gray conferiu o mostrador iluminado de seu relógio de mergulho.

Eles estavam lá havia quase uma hora.

Ele rezou para que Nasser estivesse ocupado o bastante com seus planos para perder sua ameaça de hora em hora contra seus pais. Depois de mandá-los para lá, ele saíra rapidamente, com o telefone ao ouvido. Certamente dizia respeito ao braço científico da operação da Guilda. Painter contara a história do navio seqüestrado e o paradeiro desconhecido de Monk e Lisa.

Algo dera muito errado.

Mas eram boas ou más notícias quanto ao destino de seus amigos?

Gray se afastou da parede e caminhou pela cela. Seichan sentou-se em um banco de pedra perto de Vigor.

Kowalski apoiou-se perto da abertura. Um dos guardas tinha um fuzil apontado para seu estômago, mas ele o ignorou. Ele falou quando Gray se aproximou.

—        Acabei de ver um cara passar com uma britadeira.

—        Eles devem estar quase prontos — disse Vigor, e se levantou.

—        O que está demorando tanto? — perguntou Gray.

Seichan respondeu, ainda sentada:

—        Subornos levam tempo.

Gray olhou para trás, na direção dela.

Ela explicou:

—        Ouvi alguns gritos em khmer. Os homens de Nasser estão afastando os turistas das ruínas, expulsando-os. Aparentemente, a Guilda alugou o Bayon para o resto dessa festa particular. É uma região pobre. Não seria necessário muito para fazer os funcionários olharem para o outro lado.

Gray já tinha se perguntado quanto. Os guardas já não faziam nenhum esforço para esconder as armas.

Vigor apoiou a palma da mão em uma coluna perto da porta.

—        Nasser deve ter convencido a Guilda da importância de seguir a pista histórica um pouco mais.

Gray suspeitava de que era um pouco mais do que isso. Ele se lembrava da agitação em relação ao navio de cruzeiro. Se algo acontecera à trilha científica, o valor da trilha histórica seria muito mais importante.

Ele obteve a confirmação pouco depois.

Nasser passou pelos guardas. Seus modos agitados furiosos tinham outra vez dado lugar à frieza habitual.

—        Estamos prontos para continuar. Mas, antes, parece que já passamos outra hora.

Os músculos do estômago de Gray enrijeceram.

Vigor foi em sua defesa.

—        Você nos trancou esse tempo todo. Você certamente não pode esperar que tenhamos feito qualquer outra descoberta.

Nasser ergueu uma sobrancelha.

—        Isso não me interessa. E Annishen está ficando impaciente. Ela certamente precisa de algo para se divertir.

—        Por favor — disse Gray. As palavras escorregaram por seus lábios antes que ele pudesse impedir.

Os olhos de Nasser brilharam de divertimento, fazendo Gray ferver.

—        Deixe de ser idiota, Amen — disse Seichan atrás dele. — Se você vai fazer algo, faça logo.

O punho de Gray se fechou. Ele tinha de lutar para não a acertar, para fazê-la se calar. Ele não precisava enfrentar a oposição de Nasser. Não naquele momento.

As linhas guias na testa de Nasser tinham se arqueado de raiva. Ele ergueu os dedos e os esfregou, recusando-se a reagir à provocação. Ele se virou e passou de volta pelos guardas. Não disse uma palavra.

—        Nasser! — chamou Gray, sua voz falseando.

—        Se pularmos essa hora — respondeu Nasser sem se virar —, eu irei esperar resultados ainda maiores assim que penetrarmos no altar. Qualquer coisa menos que isso, e eu tirarei de sua mãe mais que um dedo. É hora de aumentar o fogo debaixo de você, comandante Pierce.

Nasser ergueu um braço e os guardas os tiraram da cela. Seichan passou por Gray, esbarrando em um de seus ombros. Suas palavras foram baixas, quase inaudíveis:

—        Eu o estava testando.

Ela continuou a andar.

Gray, apanhado de surpresa, a seguiu e aproximou-se dela.

Ela falou rápido, sem olhar para ele.

—        Ele estava blefando... Eu tinha certeza.

Gray conteve uma resposta raivosa. Ela estava arriscando a vida de seus pais.

Ela olhou de lado para ele, talvez sentindo sua raiva. Suas palavras foram do mesmo tipo, ainda mais duras.

—        O que você precisa se perguntar, Gray, é por quê? Por que ele está blefando?

Gray relaxou a mandíbula. Era uma boa pergunta. As costas da mão dela roçaram na dele. Ele tocou seu pulso com o dedo, para reconhecer o mérito, mas Seichan já estava fora de alcance.

Nasser os levou de volta ao santuário central. A equipe de demolição tinha trabalhado duro. Tinham sido feitos furos na dupla placa sólida de arenito. Cabos esticados juntavam-se em um único feixe. Nas quatro saídas havia homens de pé com extintores de incêndio presos às costas.

Gray franziu o cenho. O que eles esperavam queimar? Tudo ali era pedra.

Nasser falou com um homem baixinho que trazia um cinto cheio de ferramentas e um rolo de fios num dos ombros, obviamente o especialista em demolição. O homem fez que sim com a cabeça para Nasser.

—        Estamos prontos — anunciou Nasser.

Eles foram levados pela saída oeste, e viraram a esquina.

Vigor resistiu um pouco.

—        Uma explosão pode derrubar tudo em cima de nós.

—        Sabemos disso, monsenhor — respondeu Nasser, e levou um rádio aos lábios. Ele deu a ordem de seguir em frente.

Um instante depois uma grande explosão, tão alta quanto um trovão, repercutiu em peitos e ouvidos. Uma vez. Juntamente com um grande clarão. Então um forte cheiro ácido chegou a eles, queimando nariz e garganta.

Vigor tossiu. Gray colocou uma das mãos em frente ao rosto.

—        O que foi isso? — perguntou Kowalski, cuspindo no canto para tirar o gosto ruim.

Nasser ignorou-o e levou-os em frente.

Ele seguiu um dos homens com extintores de incêndio. O homem tirou a máscara do rosto e apertou a mangueira. Um jato enevoado foi disparado sobre piso, paredes e teto. A passagem estreita foi tomada por uma nuvem de pó fino, que cobriu todas as superfícies.

Nasser os levou de volta ao santuário.

Através da névoa Gray percebeu outros homens com extintores indo para a câmara à frente. Com seu jato combinado, a visão dentro se tornou momentaneamente impossível. Gray mal podia discernir os quatro homens lançando os jatos.

Nasser os deteve.

Após mais meio minuto, os jatos foram interrompidos e a poeira literalmente assentou. O aposento, ainda enevoado, reapareceu. A luz do sol penetrou pela chaminé da torre.

Nasser os levou para a frente.

—        Base neutralizante — explicou ele, abanando a poeira residual do rosto.

—        Para neutralizar o quê? — perguntou Gray.

—        Ácido. A demolição tem uma carga incendiária somada a um ácido corrosivo. Concebida pelos chineses durante a construção da represa das Três Gargantas. Concussão mínima, dano máximo.

Gray entrou na câmara atrás de Nasser, e seu queixo caiu diante daquela visão.

As paredes estavam cobertas de pó branco, mas a mudança era dramática. Parecia que alguém dissolvera os traços dos quatro rostos de bodhisattva. O que antes tinham sido faces beatíficas era então ruínas de escória. O piso estava igualmente danificado, como se alguém tivesse lançado jatos de areia ali.

O altar central, iluminado do alto, estava em ruínas. Um dos cantos despencara para uma câmara inferior.

Definitivamente havia um espaço abaixo dali. A maior parte da laje resistia.

Outro membro da equipe de demolição entrou na câmara levando uma marreta. Nasser fez sinal para que ele entrasse. Outro homem o seguiu, arrastando uma britadeira.

Apenas para o caso de ser necessário.

O primeiro homem sacudiu sua marreta, golpeando bem no centro. Fragmentos voaram do ponto atingido, e a grande massa de rocha cedeu. O altar despencou no vazio.

 

Susan gritou, erguendo-se do assento.

Lisa, presa no assento do co-piloto, se virou. Ela estivera olhando para baixo, para o grande lago, enquanto o Sea Dart dava voltas, preparando-se para pousar. Abaixo, uma aldeia flutuante se afastava da margem, uma concentração emaranhada de juncos vietnamitas e casas-barco.

Era onde Painter dissera a ela para se esconder. A aldeia de pescadores ficava a 30 quilômetros de Angkor. Longe do perigo.

Lisa lutou contra o cinto de segurança enquanto Susan gritava. Ao conseguir se libertar, foi tropeçando para o fundo do avião.

Susan se livrou do cobertor antifogo, engasgando.

—        Tarde demais! Estamos atrasados demais!

Lisa pegou o cobertor e obrigou-a a se deitar. Ela dormira tranqüila a viagem toda. O que tinha acontecido?

Susan estendeu uma das mãos e agarrou o antebraço de Lisa. Isso machucou sua pele, queimando os pêlos.

Lisa puxou o braço.

—        Susan, o que há de errado?

Susan se ajeitou no assento. Seu olhar selvagem se acalmou ligeiramente, mas ela continuou a tremer. Falava com dificuldade.

—        Precisamos chegar lá — murmurou seu mantra habitual.

—        Estamos pousando agora — disse Lisa, tentando acalmá-la. Ela chegou mesmo a sentir o Sea Dart descendo.

—        Não! — disse Lisa, mais uma vez tentando pegá-la, mas depois recolhendo a mão ao ver Lisa se afastando. Seus dedos se fecharam e então retornaram para debaixo do cobertor antifogo. Ela respirou, tremendo. Seus olhos se ergueram e encontraram os de Lisa.

—        Estamos longe demais, Lisa, eu sei. Mas temos poucos minutos. Dez ou 15, no máximo.

—        No máximo para o quê?

Lisa lembrou-se de sua conversa com Painter, sobre os caranguejos das ilhas Christmas, sobre mudanças neurológicas quimicamente induzidas desencadeando urgências migratórias maníacas. Mas, na sofisticada mente humana, o que as mesmas substâncias produziam? Que outras mudanças ocorriam? Seria possível confiar na urgência de Susan?

—        Se não chegarmos lá... — disse Susan, sacudindo a cabeça como se tentasse encontrar uma lembrança perdida. — Eles abriram algo. Eu posso sentir a luz do sol. Como olhos ferozes queimando dentro de mim. Só o que eu sei... E eu sei nos meus ossos... É que, se eu não chegar a tempo, não haverá cura.

Lisa hesitou, olhando para trás, para Ryder.

O lago subia à medida que o Sea Dart mergulhava para baixo.

Susan lamentou.

—        Eu não pedi isso.

Lisa ouviu o pesar contido em suas palavras, sentindo que a dor abrangia mais do que o ônus biológico. Susan perdera o marido, seu mundo. Ela se voltou na direção da mulher.

O rosto de Susan brilhava com um misto de emoções: medo, dor, desespero e uma profunda solidão.

Susan juntou as mãos.

—        Eu não sou um caranguejo. Você não consegue ver isso? Sim, Lisa conseguia.

Ela se virou e disse para Ryder:

—        Suba!

—        O quê? — perguntou Ryder, olhando para trás.

Lisa apontou o polegar para o céu.

—        Não pouse. Temos de chegar mais perto das ruínas — Ela se ergueu com dificuldade e usou os bancos de trás para chegar ao assento do co-piloto. — Há um rio que cruza a cidade de Siem Reap.

Ela afundou na poltrona. Estudara os mapas de navegação da área. A cidade ainda estava a cerca de 10 quilômetros de distância. Lembrou-se do aviso de Susan.

Dez ou 15 minutos no máximo.

Seria perto o bastante? Seu próprio sangue fervia com a urgência. Ela precisou respirar para entender por quê. As últimas palavras de Susan.

Eu não sou um caranguejo.

Susan não sabia nada sobre os caranguejos terrestres da ilha Christmas. Lisa não falara em voz alta sobre a conversa com Painter, nem mesmo com Ryder. Talvez em meio ao estupor Susan tivesse ouvido o fim da conversa. Mas Lisa não se lembrava se usara a palavra caranguejo.

De qualquer maneira, ela abriu a carta de navegação e procurou.

Eles precisavam de algum ponto mais perto da terra.

Outro lago ou rio...

—        Ou aqui — disse ela em voz alta, aproximando o mapa.

—        O que é isso, amor? — perguntou Ryder. Ele tinha levantado o nariz do Sea Bart e os fizera voar por cima do lago.

Lisa virou o mapa para ele, e apontou.

—        Você pode pousar aqui?

Ryder arregalou os olhos.

—        Você está maluca?

Ela não respondeu. Basicamente porque não sabia a resposta. O rosto de Ryder se abriu em um grande sorriso.

—        Ora, que droga! Vamos tentar! — Sempre interessado em emoções, ele alcançou sua coxa e deu tapinhas nela. — Gosto do jeito como você pensa. Como é seu relacionamento em casa?

Lisa recostou na poltrona. Quando Painter souber disso...

Ela sacudiu a cabeça.

—        Veremos.

 

—        Senhor, aquele sinal de GPS que o senhor me mandou acompanhar está saindo da rota.

Painter se virou. Ele estava fazendo a coordenação com a Equipe de Contra-terrorismo e Resgate Especial australiana. Eles tinham chegado ao local na ilha de Pusat 15 minutos antes, e seguiam para as coordenadas fornecidas por Lisa. As primeiras informações da ilha eram confusas. O Mistress of the Seas fora encontrado em chamas, envolvido em uma trama de rede e cabos de aço. Ele tinha uma inclinação de quase 45 graus. Havia um grande tiroteio a bordo do navio.

Kat estava em frente a ele, com fones de ouvido, segurando-os com as duas mãos. Ela se recusara a ir para casa. Não antes de ter certeza. Seus olhos estavam vermelhos e inchados, mas ela continuava concentrada, sobrevivendo de uma tênue esperança. Talvez, de alguma maneira, Monk ainda estivesse vivo.

—        Senhor — disse o técnico, apontando para outra tela. Ela mostrava um mapa do planalto central cambojano. Havia um grande lago no centro. Um pequeno ponto aparecia em saltos pixelados que atravessavam a tela, rastreando o Sea Dart.

Se o hidroavião dera voltas em círculo perto das margens um minuto antes, ele agora se afastava do lago.

—        Para onde eles estão indo? — perguntou Painter. Ele acompanhou mais alguns segundos, para identificar a trajetória. Prolongou-a com o dedo. Seu caminho aéreo os levava em linha reta para Angkor.

O que eles estão fazendo?

Um movimento à porta chamou a atenção de Painter. Seu ajudante, Brant, entrou em disparada na sala, freando sua cadeira de rodas com um guincho de borracha no linóleo.

—        Diretor Crowe, tentei localizá-lo — falou num arranco. — Não consegui. Imaginei que ainda estivesse em conferência com a Austrália.

Painter concordou com a cabeça. Estava.

Brant agarrou um fax amarfanhado e entregou-o.

Painter pegou-o e olhou rapidamente, depois uma segunda vez com maior cuidado. Deus do céu...

Ele se encaminhou para a porta, esbarrando em Brant. Então parou e se virou.

—        Kat?

—        Vai. Eu cuido de tudo.

Ele olhou novamente para o mapa do Camboja na tela, para o pequeno ponto que rumava para as ruínas de Angkor.

Lisa, espero que você saiba o que está fazendo. Ele saiu da sala e correu para o escritório. Por ora, ela estava por sua própria conta.

 

—        Segure-se! — avisou Ryder, embora soasse mais como um grito de guerra.

Lisa agarrou com força os braços da poltrona.

À frente, as gigantescas torres negras em forma de colméia de Angkor Wat se erguiam no céu. Mas o templo espetacular, que se espalhava por mais de 2 quilômetros quadrados, não era seu destino.

Ryder fez o Sea Dart mergulhar na direção da faixa artificial de água verde de um dos lados. O fosso de Angkor Wat. Diferentemente de Angkor Thom, ele ainda tinha água. Sua extensão total ao redor do templo chegava a 6 quilômetros, deixando pouco mais de um quilômetro e meio de água limpa de cada lado. O único problema...

—        Ponte! — gritou Lisa.

—        É disso que você a chama? — comentou Ryder sarcasticamente. Com um charuto entre os dentes, ele soltou uma nuvem de fumaça pelo canto dos lábios.

Era seu único charuto, guardado para emergências como aquela. Como Ryder dissera antes de acendê-lo, "mesmo um condenado tem direito a uma última tragada".

O bilionário rugiu sobre o fosso, mudando a altura do avião para cima e para baixo apenas um pouco, o suficiente para evitar a ponte.

Lisa prendeu a respiração quando eles passaram. Turistas correram para os dois lados.

Quando tinham passado, Ryder baixou o Sea Dart rapidamente, deslizando pelo fosso e levantando uma cortina de água. Eles então assentaram, ainda com velocidade, enquanto o avião se transformava em barco. O impulso os impeliu para o canto mais distante, rápido demais para fazer a curva.

O molhe de terra do fim corria na direção deles.

Ryder puxou uma alavanca no piso.

—        Isso é chamado de curva de Hamilton! Segure-se bem!

Com uma baforada de fumaça, ele puxou e torceu o volante.

O Sea Dart girou como se estivesse deslizando no gelo, fazendo sua traseira dar uma volta. Os motores duplos gritaram com o freio dos jatos traseiros. O aparelho reduziu a velocidade.

Lisa se encolheu, ainda esperando se chocar contra o molhe.

Em vez disso, Ryder virou o volante e adernou o barco. O Sea Dart pegou uma onda diretamente até o limite do molhe inclinado e parou suavemente.

Ryder soltou uma nuvem de fumaça e desligou os motores.

—        Senhor, isso foi muito engraçado.

Lisa se soltou imediatamente e foi na direção de Susan.

—        Rápido — disse Susan, lutando para se soltar.

Lisa ajudou-a a soltar o cinto. Ryder a seguiu e abriu a escotilha.

—        Você sabe o que tem de fazer? — perguntou Lisa a ele, enquanto pulavam nas águas rasas e davam alguns passos até o molhe.

Surgiram gritos de todos os lados.

—        Você já me disse umas dez vezes — disse Ryder. — Ache um telefone, ligue para seu diretor, conte o que você está fazendo, para onde está indo.

Eles escalaram o molhe até chegarem a uma estrada que seguia ao lado do fosso. Susan continuava embrulhada no cobertor, mantendo-o bem fechado; usava óculos escuros e tentava ao máximo manter a energia do sol longe de si.

As pessoas apontavam e chamavam.

Ryder acenou para um veículo que passava. Era apenas uma motocicleta com um pequeno carrinho coberto. Ryder exibiu um punhado de notas, a linguagem universal para pare. O motorista do veículo era fluente nesse idioma. Ele deu uma volta com a motocicleta e foi diretamente na direção deles.

Assim que ele parou, Ryder ajudou Lisa e Susan a entrar na parte de trás e fechou a pequena porta.

—        O tuk-tuk as levará diretamente para o templo. Tome cuidado.

—        Apenas fale com Painter — disse Lisa.

Ele acenou para eles, como se estivesse dando a largada em uma corrida.

Obedecendo, a motocicleta acelerou, arrastando-as consigo. Lisa olhou para trás. Policiais uniformizados já iam na direção de Ryder, acelerando em suas próprias motocicletas. Ryder acenou com o charuto, fazendo cena.

Ninguém prestou atenção no pequeno tuk-tuk delas.

Lisa se ajeitou novamente.

Ao lado dela, Susan continuava embrulhada em seu cobertor. Dali saiu uma única palavra:

—        Depressa.

 

De joelhos, Gray olhou por cima da borda, para dentro da abertura na pedra. Quatorze metros abaixo, um rosto olhava para ele. Outro dos bodhisattvas de pedra. Ele se erguia da superfície do piso esculpido em um único e gigantesco bloco de rocha. O brilho do sol que vinha da chaminé da torre lançava dentro do buraco um facho de luz quadrado, cintilando com partículas de poeira, e banhava o rosto de pedra escuro com uma luz quente.

O sorriso enigmático dava as boas-vindas.

Do lado, uma escada de pendurar, feita de cabos de aço e degraus de alumínio, fora jogada do bloco do altar destruído. Ela se desenrolou com um chacoalhar pelas profundezas e bateu no piso das fundações. A extremidade superior foi presa com mosquetões ao teto de pedra do santuário.

Nasser caminhou na direção de Gray.

—        Você vai na frente. Seguido por um dos meus homens. Vamos manter seus amigos aqui em cima por ora.

Gray limpou o pó das mãos e se ergueu. Ele se encaminhou para subir a escada. Vigor se colocou contra a parede, o rosto sombrio.

Gray imaginou que a disposição sóbria do monsenhor não se devia apenas à situação deles. Como arqueólogo, devia considerar aquela violação profissionalmente inaceitável.

Do lado oposto a Vigor, Kowalski e Seichan simplesmente esperavam seu destino.

Gray fez com a cabeça um sinal para os três e iniciou a longa descida. Em vez de poeirento, o poço cheirava a umidade. Os primeiros 9 metros passavam por um estreito túnel de pedra com uns dois metros de largura delimitado por blocos, como um grande poço. Mas nos últimos três metros as paredes se afastavam, criando um vão em forma de barril com 12 metros de diâmetro e perfeitamente circular.

—        Fique onde eu possa vê-lo! — gritou Nasser.

Gray olhou para cima, para a fila de fuzis apontados para ele. Um dos soldados já estava descendo pela escada. Gray pulou para o chão, parando perto do rosto de pedra do bodhisattva.

Ele olhou ao redor. Quatro grandes pilares sustentavam o vão, a intervalos iguais. Provavelmente colunas da torre acima. Como apoio, o piso não era de blocos de pedra. Era de calcário sólido. Eles tinham chegado ao fundo. Ali era definitivamente a fundação estrutural do Bayon.

O barulho da escada chamou sua atenção para a aproximação do soldado. Gray pensou em saltar sobre ele e pegar seu fuzil. Mas e aí? Seus amigos ainda estavam em cima; seus pais ainda estavam sob o tacão de Nasser. Assim, em vez disso, ele se encaminhou para o rosto esculpido. Deu a volta em torno dele. Era de arenito esculpido, como todos os outros. Estava apoiado de costas, olhando para cima, esculpido de um único bloco com altura correspondente a uma cintura.

O rosto não parecia diferente dos outros: os mesmos cantos da boca voltados para cima, o mesmo nariz largo, a mesma testa, e aqueles olhos ensombreados, meditativos.

O guarda saltou para o piso, batendo firme com as botas. Gray se empertigou, então o viu com o canto do olho.

Ele se virou novamente, percebendo algo estranho no rosto, naqueles olhos meditativos. Havia círculos escuros no centro de cada um, como pupilas. Mesmo a luz do sol não conseguia eliminá-los.

Gray tinha de se curvar sobre a bochecha de pedra para investigar. Esticou uma das mãos e verificou a pupila negra com o dedo.

—        O que você está fazendo? — perguntou Nasser.

—        Há orifícios! Abertos nos olhos, no lugar das pupilas. Acho que podem atravessar o rosto.

Gray olhou para cima. A luz do sul penetrava pela chaminé da torre, e, sem o altar, o facho atingia o rosto escondido ali.

Mas será que a luz penetrava ainda mais fundo?

Ele subiu ainda mais no rosto, esticando-se sobre ele. Colocou seu próprio olho sobre a pupila do deus de pedra para investigar. Fechando o outro olho, ele colocou a mão em concha no globo ocular de arenito. Demorou um instante para que sua visão se acostumasse.

Bem abaixo, iluminado pela luz do sol que atravessava a outra pupila, ele podia ver um brilho de água. Um lago no fundo de uma caverna. Gray quase podia imaginar o espaço aberto, abobadado como o casco de uma tartaruga.

—        O que você está vendo? — perguntou Nasser.

Gray rolou de lado e parou de costas, olhando para cima dali do fundo do poço.

—        Está aqui! A caverna! Sob o rosto de pedra!

Assim como o altar de pedra acima, o bodhisattva protegia uma passagem oculta.

Gray lembrou-se da explicação de Vigor para as centenas de rostos de pedra. Alguns dizem que eles representam vigilância, rostos olhando para fora de um coração secreto, protegendo mistérios interiores. Mas enquanto estava lá Gray também se lembrou das palavras de outro homem, muito mais antigas e mais ameaçadoras, do texto de Marco, exatamente a última linha de sua história.

As palavras provocaram-lhe arrepios.

A passagem para o Inferno foi aberta nesta cidade; mas não sei se ela foi fechada.

Gray olhou para cima, para o altar destruído. E então soube a verdade.

Ela tinha sido fechada.

Mas agora eles a estavam abrindo novamente.

 

O tuk-tuk parou no fim da estrada pavimentada.

Lisa desceu.

O caminho à frente era uma praça de pedra arruinada, com o calçamento parcialmente arrancado pelas raízes das árvores. Além da praça erguia-se o Bayon, emoldurado pela floresta, uma mistura confusa de torres de arenito cobertas com rostos em ruínas, manchadas de musgo, marcadas por rachaduras.

Havia alguns turistas na praça, tirando fotografias. Uma dupla de japoneses se aproximou do tuk-tuk, obviamente querendo ocupar o veículo assim que Lisa e Susan desembarcassem. Um dos homens fez uma reverência com a cabeça na direção de Lisa. Ele apontou um dos braços para o templo, e falou em japonês.

Lisa sacudiu a cabeça, sem entender.

Ele sorriu timidamente, curvou a cabeça outra vez e conseguiu dizer uma palavra:

—        Fechado.

Fechado?

Lisa ajudou Susan a descer do tuk-tuk, ainda embrulhada dos pés à cabeça no cobertor. Só apareciam os óculos escuros. Lisa sentiu o tremor através do cobertor enquanto sustentava Susan pelo cotovelo.

O turista apontou para o tuk-tuk, silenciosamente perguntando se poderia pegá-lo. Lisa anuiu, e saiu mancando com Susan pela praça de blocos de pedra irregulares. À frente, Lisa percebeu homens dentro do templo: apoiados em torres, de pé acima de passagens, patrulhando o alto dos muros. Todos vestiam caqui e usavam boinas negras.

Seria aquele o exército cambojano?

Susan a arrastou para a frente, dirigindo-se intencionalmente para o portão leste. Dois homens de boina montavam guarda. Levavam fuzis nos ombros. Lisa não viu insígnias. O homem da esquerda, claramente cambojano, tinha um conjunto de cicatrizes paralelas em um dos lados do rosto. O outro, vestido da mesma forma, era caucasiano, bronzeado, com uma barba deselegante. Os olhos de ambos eram frios como diamante.

Eles não faziam parte do exército cambojano.

Mercenários.

—        A Guilda — sussurrou Lisa, lembrando-se das informações que Painter lhe dera sobre a captura de Gray. Eles já estão aqui.

Lisa fez Susan parar, mas a mulher lutou para continuar, seguir em frente.

—        Susan, não podemos devolver você à Guilda — disse Lisa. Principalmente depois de Monk ter dado a vida para libertá-la. A voz de Susan estava abafada pelo cobertor, mas soava firme.

—        Não há escolha... Eu preciso... Sem a cura, todos estaremos perdidos... — disse Susan, sacudindo a cabeça. — Uma chance... A cura precisa ser encontrada.

Lisa compreendeu. Ela lembrava-se do aviso de Devesh e da confirmação de Painter. A pandemia já estava se espalhando. O mundo precisava da cura antes que fosse tarde demais. Mesmo que ela caísse nas mãos da Guilda, era preciso ser desenvolvida. Eles lidariam com as conseqüências depois.

Ainda assim...

—        Tem certeza de que não há outro modo? — perguntou Lisa. As palavras de Susan vacilavam de medo e dor.

—        Por Deus, gostaria que sim. Já pode ser tarde demais.

Ela gentilmente tirou a mão de Lisa de sua manga e avançou vacilante, claramente pretendendo ir sozinha.

Lisa seguiu-a. Ela também não tinha opção.

Elas se aproximaram da passagem com guardas. Lisa não sabia como conseguiriam atravessar o bloqueio.

Mas aparentemente Susan tinha um plano.

Ela tirou o cobertor, deixando-o cair a seus pés. À luz do sol, ela não parecia diferente de ninguém, talvez apenas um pouco mais pálida, a pele fina e sem brilho. Ela arrancou os óculos escuros e se virou para olhar diretamente para o sol.

Lisa viu o corpo de Susan tremer, e imaginou o golpe ofuscante atravessando as pupilas da mulher, chegando ao nervo óptico, ao cérebro.

Mas, aparentemente, ainda não era suficiente.

Susan tirou a blusa, expondo mais pele à luz do sol. Ela desabotoou as calças e, magra depois das semanas de catatonia, elas caíram. Vestindo apenas calcinha e sutiã, Susan aproximou-se do portão.

Os guardas não sabiam o que fazer com a mulher seminua. Mas deram um passo à frente para bloquear-lhe a passagem. O soldado cambojano as mandou embora com palavras agudas e penetrantes.

—        D'tay! Bpel kraowee!

Susan o ignorou e seguiu em frente, pretendendo passar entre eles.

O outro guarda agarrou o ombro da mulher, virando-a um pouco. Sua expressão dura desapareceu. Ele recolheu a mão. Sua palma tinha uma queimadura vermelha; as pontas dos dedos vertiam sangue enquanto ele caía e desmaiava contra a parede.

O cambojano levantou o fuzil, apontando para a parte de trás da cabeça de Susan enquanto ela passava.

—        Não! — gritou Lisa.

O homem virou-se para ela.

—        Leve-nos! — disse ela, esforçando-se para lembrar-se do nome que Painter usara ao contar a história de Gray. Então lembrou. — Leve-nos a Amen Nasser!

 

—        Venham ver isso! — chamou Vigor, incapaz de disfarçar o espanto na voz. Ele olhou para trás, à procura dos outros.

Gray estava a alguns metros, estudando um dos pilares das fundações. As colunas eram pilhas de discos de arenito sem argamassa, com 30 centímetros de espessura e quase 1 metro de diâmetro. Gray passou um dos dedos em várias rachaduras profundas, fraturas de estresse em uma coluna vertebral envelhecida.

No centro do aposento, Seichan e Kowalski estavam de pé junto ao rosto de pedra, observando a equipe de demolição de Nasser preparar o bloco esculpido.

Mais uma vez ouviu-se o zumbido agudo de uma broca com ponta de diamante, ecoando alto no vão em forma de barril. Mais um furo com 2,5 centímetros de diâmetro foi aberto no rosto, com profundidade de trinta centímetros. Cargas já estavam sendo colocadas nos outros furos e ligadas, o dobro do que fora utilizado para o altar. Havia cordas penduradas para transportar equipamentos e explosivos para cima e para baixo do poço.

Um feixe de luz do sol iluminava o trabalho.

Ao contrário de Seichan e Kowalski, Vigor não conseguia assistir àquela mutilação. Mesmo agora ele se afastava, e voltou sua atenção para a parede que estava estudando. Distante do canal central, o vão ali estava nas sombras. Vigor recebera uma lanterna para que pudesse procurar outra entrada para a caverna subterrânea. E, embora detestasse ajudar Nasser, se conseguisse descobrir outra forma de descer, talvez pudesse reduzir o grau de dano àquelas ruínas antigas.

Mas Vigor não tinha muito tempo.

Dez minutos.

Com os preparativos em curso, Nasser tinha saído do vão. Vigor percebera que ele estava verificando seu celular, buscando sinal. Aparentemente sem ter conseguido, ele subira, ordenando que estivessem prontos quando voltasse.

Gray juntou-se a Vigor.

—        O que é isso? Você encontrou a passagem que estava procurando?

—        Não — admitiu Vigor. Ele percorrera toda a circunferência do vão. Não havia outra porta. Aparentemente, o único caminho para baixo era através do rosto de pedra do bodhisattva Lokesvara. — Mas encontrei isto.

Vigor esperou que um dos guardas que patrulhavam passasse, então virou a lanterna diretamente para a parede, lançando o facho sobre a superfície. Com luz e sombra, surgiu um trecho de gravações na parede, lembrando os baixos-relevos acima. Mas eles não mostravam figuras, apenas uma trama em cascata.

—       O que é isto? — perguntou Gray, esticando os dedos para examinar aquilo que a luz tinha revelado.

Naquele momento, Seichan e Kowalski já se haviam juntado a eles.

Vigor mudou a luz de posição, ampliando o facho para mostrar.

—        Inicialmente pensei que era apenas uma trama decorativa. Ela cobre todas as paredes — disse ele, apontando com o braço para abranger todo o vão. — A superfície inteira.

—        Então, que diabo é isso? — resmungou Kowalski.

—        Não diabo, sr. Kowalski — disse Vigor. — Isto é angelical.

Vigor pegou a lanterna e lançou a luz sobre um pequeno trecho da tapeçaria gravada.

—        Olhe mais de perto.

Gray se curvou para a parede, acompanhando com os dedos. A compreensão iluminou o rosto do comandante.

—        São símbolos angélicos, todos agrupados.

Seichan se juntou a Gray, seguindo seus dedos, nariz com nariz.

—        Isso é impossível. Você não disse que a escrita angélica foi concebida por alguém no século XVI?

Vigor anuiu.

—        Johannes Trithemius.

—        Como ela pode estar aqui? — perguntou Gray.

—        Não sei — disse Vigor. — Talvez em algum momento o Vaticano tenha enviado alguém ao Camboja para seguir a trilha de Marco, como fizemos. Talvez eles tenham retornado com esboços dessa escrita, e Trithemius de algum modo teve acesso a ela. Concebeu sua escrita a partir dela. E, se ele conhecia a história de Marco sobre seres angelicais brilhantes, talvez por isso tenha dito que a escrita era angélica.

Gray se voltou para Vigor.

—        Mas você não acredita nisso, não é?

Vigor viu Gray recuar, afastar-se mais alguns passos, os olhos fixos na parede. Ele também está vendo.

Vigor respirou fundo, tentando esconder aquilo de que suspeitava.

—        Trithemius disse ter tido conhecimento da escrita após semanas de jejum e profunda meditação. Acho que foi exatamente o que aconteceu.

Seichan debochou.

—        Ele simplesmente sonhou tudo isso, algo que se ajusta a esta escrita antiga.

Vigor concordou com a cabeça.

—        É exatamente o que estou dizendo. Lembrem-se do que disse antes a vocês, que a escrita angélica tem uma grande semelhança com o hebraico. Trithemius chegou mesmo a alegar que sua escrita era a mais pura destilação do alfabeto hebraico.

Seichan deu de ombros.

—        O que você sabe sobre a cabala judaica? — perguntou Vigor.

—        Apenas que é uma espécie de estudo místico judaico.

—        Exatamente. Os praticantes da cabala buscam a descoberta mística na natureza divina do universo estudando a Bíblia hebraica. Eles acreditam que a sabedoria divina está enterrada nas próprias formas e curvas do alfabeto hebraico. E que, meditando sobre isso, é possível ter uma grande revelação do universo, daquilo que somos no nível mais básico.

Seichan sacudiu a cabeça.

—        Você está dizendo que esse Trithemius meditou e chegou a essa forma mais pura de hebraico? Tropeçou em uma língua, esta língua — disse, batendo na parede. — Uma língua que se liga a uma maior sabedoria interior?

Gray pigarreou.

—        Acho que interior é a palavra-chave aqui — disse ele, fazendo sinal para que Seiehan recuasse e se juntasse a ele. — O que você vê? Veja o padrão como um todo. Ele parece familiar?

Seichan olhou brevemente, então disse:

—        Não sei. O que eu estou procurando?

Gray suspirou e se aproximou da parede. Ele passou um dedo por uma das cascatas.

—        Veja como ela se torce para baixo em espirais de hélices partidas. Veja esta seção isoladamente.

Seichan apertou os olhos. — Parece quase biológico.

Gray concordou com a cabeça.

— Siga a trama. Ela não parece a dupla hélice do DNA? Um mapa genético?

Seichan continuou cética.

—        Em escrita angélica?

Gray se afastou, os olhos ainda na parede.

—        Talvez. Na verdade, havia um estudo científico comparando padrões de DNA com padrões encontrados nas línguas humanas. Segundo a lei de Zipf, uma ferramenta matemática, todas as línguas humanas apresentam um padrão específico de uso repetitivo de palavras. Todas têm palavras freqüentes e palavras de uso raro. Quando você produz um gráfico comparando a popularidade de palavras com a freqüência de uso, obtém uma linha reta. O mesmo acontece seja no inglês, no russo ou no chinês. Todas as línguas humanas produzem o mesmo padrão linear.

—        E o código do DNA? — perguntou Vigor, intrigado.

—        Ele produz exatamente o mesmo padrão. Mesmo nosso DNA-lixo, que a maioria dos cientistas considera inutilidade genética. O estudo foi reproduzido e verificado. Por alguma razão, há uma língua enterrada em nosso código genético. Não sabemos o que ela diz. Mas — disse Gray apontando para a parede — esta pode ser a forma escrita dessa língua.

Vigor passou a mão pelas gravações, impressionado e sem fôlego.

—        Isso nos leva a pensar. Poderia Trithemius ter descoberto essa língua enquanto meditava? — indagou, empertigando-a a uma nova idéia. — E pensem no hebraico antigo, em como os caracteres são semelhantes à escrita angelical. Será que as primeiras línguas escritas de algum modo derivaram desta aqui, surgindo de alguma maneira de uma memória genética inerente? De fato, isso faz pensar se essa língua não é a Palavra de Deus, apresentando algo maior em todos nós.

Vigor mudou a luz de posição, girando-a para iluminar toda a extensão da ampla câmara.

—        Mas, seja como for, tudo isto. Toda esta escrita angelical. O que ela está nos dizendo?

—        Acho que é um código genético — respondeu Gray.

—        Mas um código para o quê? — perguntou Seichan.

—        Provavelmente uma tartaruga — resmungou Kowalski.

Vigor bufou com a piada do homem, mas Seichan e Gray reagiram com surpresa, olhando para ele com igual expressão de incredulidade.

—        O quê? — perguntou Vigor, sentindo algo importante ali. Gray se aproximou, baixando a voz:

—        Acho que ele pode estar certo.

—        Estou? — perguntou Kowalski.

Gray desenvolveu sua teoria sobre a caverna abaixo.

—        O casco da tartaruga representa a caverna. Mas e quanto à tartaruga propriamente dita? Segundo a história, ela representa a encarnação de Vishnu, um ser angelical — disse Gray, apontando para a parede. — E aqui há evidências de um estranho processo biológico, algum conhecimento secreto. Mais que uma mera doença viral. Acho que o código nas paredes é uma espécie de diário desse processo. Possivelmente ainda incompleto.

Vigor estudou a parede, o código.

Antes que eles pudessem analisar mais profundamente, ouviu-se um tumulto acima.

Eles voltaram todos para o centro. Parecia que a equipe de demolição estava prestes a terminar. O líder tinha recolhido todos os cabos de detonação e os ligara a um detonador eletrônico, para que pudessem fazer a explosão de cima.

No alto, Vigor viu uma mulher descendo a escada. Era difícil identificar seus traços através dos raios de sol.

Ainda assim, Gray a reconheceu, e deu um passo à frente.

—        Lisa...?

Mais acima, junto à borda do dueto, surgiu Nasser, acompanhado de uma mulher agitada e seminua. Ela lutou para ir à frente, como se quisesse se jogar no poço, mas foi contida pelos canos de quatro fuzis, apontados para ela.

Vigor engasgou ao vê-la.

Deus do céu...

Ela brilhava.

Sua pele brilhava nas sombras.

Impossível.

—        Cubram os olhos! — gritou ela do alto, o braço apontando para dentro do poço. — Cubram os olhos!

Vigor não conseguiu entender do que ela estava falando.

Mas Gray entendeu. O comandante saiu do lado de Vigor, arrastou um impermeável usado pela equipe de demolição e jogou-o sobre os olhos da escultura, como uma máscara, bloqueando a entrada da luz do sol na caverna abaixo.

Em cima, a mulher desmaiou, como se as cordas que a mantinham suspensa tivessem sido cortadas. Ela despencou em uma das placas do altar quebrado.

Nasser fechou a cara para ela.

Lisa desceu da escada e se juntou a eles. Ela continuava a olhar para cima, mas suas palavras eram dirigidas a todos.

— Lamento.

 

Dez minutos depois, Gray viu o último dos homens de Nasser subir a escada. Acima, um círculo de fuzis estava apontado para o grupo embaixo. A última sacola de equipamento de demolição desapareceu na borda, erguida em uma das duas cordas. A outra corda continuava a balançar, provocadora.

—        Por que eles estão nos deixando aqui? — perguntou Lisa. Gray olhou para o rosto de calcário coberto.

—        Acho que nos tornamos dispensáveis — resmungou ele.

Lisa permaneceu em silêncio, depois murmurou um pedido de desculpas.

—        Eu não tive escolha.

Ela já havia explicado sua aparição súbita e inesperada. Um gesto desesperado, fruto da necessidade de uma cura. A tentativa tinha de ser feita... Mesmo que isso significasse colocar a cura nas mãos da Guilda.

—        E Monk — disse Lisa com um soluço. — Ele deu sua vida... por isso.

—        Não — disse Gray, passando um braço pelos ombros de Lisa. Ele não podia sequer reconhecer aquela realidade. Não ainda. — Não, Monk trouxe todos vocês aqui. E, enquanto estivermos vivos, haverá esperança.

Nasser retornou à borda do poço.

—        Estamos quase terminando aqui — anunciou ele, nem tanto com satisfação, mas simplesmente dando uma informação. Com todas as cartas nas mãos, ele mantinha um tom frio e civilizado. — Monsenhor, o senhor mencionou antes como a trilha científica e a trilha histórica se fundiam nestas ruínas. Aparentemente vocês foram mais espertos. Temos aqui as duas metades da Sigma unidas — disse ele, apontando para baixo; depois, voltou-se para Susan, que continuava sentada em estado catatônico, a cabeça pendendo sobre o peito. — E parece que os esforços da Guilda também se uniram. A sobrevivente da trilha científica aqui... E a fonte da Estirpe de Judas embaixo.

Gray deslizou o braço dos ombros de Lisa e se adiantou.

—        Você ainda pode precisar de nossa ajuda! — gritou ele, sabendo que era perda de tempo.

—        Tenho certeza de que vamos conseguir. A Guilda tem recursos abundantes para juntar as últimas peças. Conseguimos chegar a este ponto, tendo começado apenas com algumas poucas palavras em um texto antigo. Um texto que, pelo que entendo, chegou às nossas mãos em função de seus atos, comandante.

O punho de Gray se fechou. Ele deveria ter queimado a biblioteca da Corte do Dragão quando teve a oportunidade.

—        Claro que foram os esforços posteriores da Guilda, por intermédio de arqueólogos marinhos e imagens de satélite, que revelaram um dos navios afundados de Marco na costa de Sumatra.

Gray demorou um instante até se dar conta do que Nasser dizia.

—        Vocês descobriram um dos navios de Marco?

—        E tivemos sorte. Uma das vigas de quilha, preservada em uma argila isolante, ainda tinha atividade biológica. Mas não conseguiríamos perceber toda a sua capacidade sem uma experiência in vitro, um cenário real.

Gray sentiu o sangue gelar. Se Nasser estava dizendo a verdade, o surto na ilha Christmas não fora uma exposição fortuita.

—        Vocês... Vocês contaminaram a ilha Christmas intencionalmente.

Ele olhou para Seichan em busca de confirmação.

Ela evitou seus olhos.

Nasser continuou.

—        Com o estudo das correntes marinhas e dos padrões das marés, só foi necessário plantar a viga junto à costa e ver o que acontecia. De fato, estávamos monitorando e coletando amostras quando nossa paciente aqui entrou em cena. Ela e seu grupo. Os primeiros espécimes humanos. Claro que as correntes acabaram levando a maré para a ilha. Como planejado. Um cenário perfeitamente localizado e limitado.

Lisa resmungou.

—        Então, com o navio de cruzeiro, a Guilda viu a oportunidade de colher o que tinha plantado.

Gray sentiu-se esmorecer.

Seichan murmurou atrás dele.

— Agora você sabe por que eu tinha de detê-los.

Gray olhou para ela.

Mas ela havia fracassado... todos eles tinham fracassado.

 

Susan estava em meio a uma névoa, como em um sonho acordado.

Fogo queimava seu cérebro.

Quando se desnudara à luz do sol, ela transpusera um limite. Ela sentia isso dentro do crânio. Já não era inteiramente ela mesma — ou talvez mais ela mesma do que nunca.

Ficara à deriva enquanto memórias de toda uma vida eram revividas dentro dela. Seu passado brotou dos recessos havia muito considerados perdidos ou inacessíveis. Eles se trançaram, um dia após o outro, uma hora após a outra, fundindo-se em um todo inconsútil. Seu passado se tornou vivo novamente, não apenas fragmentos e pedaços, mas a amplitude e o conjunto de seu todo.

E ela podia se lembrar dele como um único momento: do rompimento de seu crânio quando ela foi expulsa do ventre de sua mãe... até a batida do seu coração agora. Ela sentia o ar passar sobre sua pele nua, cada corrente, gravada na memória, indelével, acrescentando-se ao todo.

Tudo estava contido em uma bolha tremeluzente, suspensa.

E além daquela superfície fina... Mais.

Mas ela não estava pronta para se aventurar ali.

Ela sabia que ainda havia uma seqüência a empreender.

Abaixo.

Com os olhos flamejantes fechados, o pânico dentro dela se transformou em um brilho amortecido.

Flutuando entre o passado e o presente, acrescentando momentos a cada inspiração, novas palavras lentamente mergulharam no lago que era sua vida, entreouvidas a um passo de distância.

(...) só foi necessário plantar a viga junto à costa e ver o que acontecia. (...) quando nossa paciente aqui entrou em cena. Ela e seu grupo. Os primeiros espécimes humanos (...)

NÃO.

A única nota ressoou dentro dela.

Com sua vida suspensa naquele momento interminável entre uma respiração e a outra, ela novamente estava debaixo d'água, sem peso. Viu a ponta de madeira enegrecida pelo tempo se projetando da areia. Seus pensamentos daquele momento retornaram, como se ela ainda estivesse naquelas águas. Na época, ela imaginara que tremores de terra tinham libertado a viga de quilha, ou talvez o tsunami recente tivesse arrastado areia, expondo-a.

Agora sabia a verdade.

A viga fora colocada ali.

De propósito.

Para matar.

Ela recordou-se de como ficara animada para contar ao marido, que adorava mergulhar em naufrágios. Apenas a lembrança dele tomou conta de seus sentidos.

Gregg.

Agora ela sabia a verdade.

Por que ele tinha morrido.

E a verdade era fogo.

 

Lisa se apoiou em Gray, o braço dele em seus ombros. Ela levantou os olhos para os fuzis. Nasser estava dizendo algo, mas ela não ouvia, mergulhada em sua própria culpa.

Gray de repente se retesou.

Embora não tivesse se movido, ela retornou ao presente.

A cabeça de Susan se ergueu lentamente na borda do poço, seu cabelo louro saindo de um rosto tomado de fúria. As atenções dos guardas continuavam voltadas para Nasser. Atrás do ombro dele, Lisa viu o brilho suave da pele de Susan se tornar mais intenso.

Seus olhos queimavam com um fogo interior.

Nasser deve ter sentido algo, e começou a se virar.

Lisa não viu Susan se mover.

Em um momento a mulher estava sentada no pedaço destruído do altar e no seguinte estava agarrada a Nasser, firmemente abraçada a ele, rosto colado, em um abraço íntimo.

Ele gritou — um uivo arrancado da garganta.

Fumaça começou a subir entre ambos.

Um dos guardas reagiu, dando uma coronhada em Susan por trás.

Ela desabou, a cabeça balançando.

Ainda gritando, Nasser a empurrou.

Por cima da borda do poço.

—        Susan! — gritou Lisa.

Ela despencou enrolada em uma das cordas de carga usadas pela equipe de demolição. Uma das mãos se esticou; ela se agarrava instintivamente. Mas já não tinha forças. Ela deslizou pela corda, rápido demais. O ácido cáustico de sua pele exposta à luz direta do sol que entrava pela abertura provocou alguma reação química na corda de material sintético. A corda soltou fumaça e derreteu à medida que deslizava por ela. Susan girou enquanto despencava, quase em queda livre.

Ninguém ousava pegá-la.

Gray virou-se de lado e arrancou a lona que cobria o rosto de pedra. Ele estendeu uma das pontas para Kowalski. Seu companheiro entendeu.

Acima, a corda arrebentou, queimada no ponto onde Susan a agarrara.

Ela caiu, frouxa.

Inconsciente.

Gray e o companheiro a apararam, mas o peso dela arrancou a lona de suas mãos, e ela bateu no piso com força. Usando a lona, Gray tirou-a do ângulo de visão, e apenas suas pernas podiam ser vistas do alto. Ele se jogou ao lado dela.

Nasser gritou para eles. Caído de quatro. A bochecha ainda soltava fumaça, a carne enegrecida. Os braços nus pareciam bifes grelhados, inchados e sangrando.

—        Eu quero essa vagabunda!

Gray voltou para onde podia ser visto.

—        Pescoço quebrado! Está morta!

Uma onda de emoções varreu o rosto de Nasser. Ele assumiu uma fúria quase insana.

—        Então todos vocês vão queimar! — Ele rolou para trás. — Explodam tudo!

Gray fez sinal para todos.

—        Para trás... Saiam de vista.

Lisa obedeceu, tropeçando da luz para as sombras.

Algumas balas ricochetearam, buscando-os.

Lisa olhou para os explosivos instalados. O detonador eletrônico estava fora do seu alcance, fora dali. Eles seriam fuzilados se ousassem se aproximar.

Gray arrastou a lona, puxando o corpo inerte de Susan.

—        Atrás das colunas de sustentação! Elas podem oferecer alguma proteção. Rastejem e achem algo com o que cobrir a cabeça e o rosto!

Eles se espalharam.

Quatro pilares, seis deles.

Gray levou Susan consigo.

Lisa se viu espremida com o monsenhor atrás de um dos pilares de calcário. Ele fez com que ela se abaixasse, protegendo-a com seu corpo.

Lisa colocou a mão no pilar. Ele tinha 1 metro de diâmetro. Ela não tinha idéia da força da explosão que viria. Ela se virou para Vigor.

—        Padre, isso irá nos proteger?

Vigor baixou os olhos para o seu rosto e não respondeu.

Pela primeira vez Lisa quis que um padre mentisse para ela.

 

Gray colocou Susan no colo, ainda mantendo-a embrulhada na lona.

Ela gemeu e se mexeu. Recebera um grande golpe na cabeça ao bater no chão, mas Gray mentira a Nasser sobre o pescoço quebrado. O desgraçado, em sua agonia, não duvidara, talvez até esperasse por isso.

Gray planejara usar o corpo da mulher como instrumento de barganha.

Mas não estava funcionando.

No alto, Nasser gritava, enlouquecido de dor. Pelo aspecto de sua pele enegrecida, ele tivera queimaduras de terceiro grau em grandes áreas do corpo. E queria que eles sofressem do mesmo jeito. Olho por olho. Mas aparentemente a equipe de demolição não estava preparada para uma ordem tão repentina. Eles estavam se apressando, dando ao grupo de Gray um minuto ou mais de trégua.

Tirando vantagem disso, Gray mudou Susan de posição, buscando protegê-la melhor atrás da coluna. Se ela era a cura potencial, tinha de ser preservada. Cobriu sua cabeça melhor com a lona. Ela se abriu brevemente, revelando, abaixo, o brilho suave de sua pele nua. Fora da luz direta do sol, o brilho de sua pele começara a diminuir. Ele parou um instante, impressionado com aquele fenômeno estranho. Ao fechar novamente a lona, percebeu a parede à sua frente.

O pergaminho de escrita angelical reluzia com um brilho excepcional, fluorescendo sob o cintilar fraco. A luz que emanava das cianobactérias em sua pele devia ter emitido ondas ultravioleta, inflamando um composto fluorescente entranhado nas gravações.

Isso fez Gray lembrar-se do obelisco egípcio, cintilando com a escrita angelical, uma versão rudimentar e em miniatura daquele espetáculo. Teria Johannes Ttithemius tido revelações mais profundas durante suas meditações? Uma visão de tudo aquilo?

Gray abriu mais a lona, deixando sair um facho maior de brilho. Outras inscrições se inflamaram, projetando-se pela escuridão em todas as direções, como se ele tivesse colocado fogo em óleo.

Gray se sentou mais empertigado. Ele percebeu um ponto escuro na extremidade esquerda, que mal podia ser visto, no limite do alcance do brilho, uma rocha escura no fluxo brilhante de escrita cintilante. Os ângulos chamaram sua atenção.

Seria possível...

Ele virou Susan em seus braços, deixando que a lona se abrisse mais, mantendo o suficiente entre a pele da mulher e a sua. O brilho ainda não era forte o bastante para alcançar aquele ponto. Tinha de levar Susan para mais perto. Ele se esforçou com o peso dela, agarrando a lona, sentindo a passagem dos segundos.

Ele precisava de ajuda.

—        Kowalski, onde você está?

Uma voz respondeu de trás do pilar à sua direita.

—        Estou me escondendo! Como você disse!

Gray se ergueu.

—        Preciso de você aqui!

—        E a bomba?

—        Esqueça a bomba. Venha logo para cá!

Kowalski praguejou e depois seguiu, resmungando.

—        Por que é sempre uma maldita bomba...

O homem grandalhão correu até ele, praticamente deslizando atrás do pilar, como se estivesse em um jogo de beisebol.

Gray apontou com o queixo para a esquerda.

—        Me ajude a levar Susan naquela direção.

Kowalski suspirou fundo. Usando a lona como maca, seguraram-na entre eles e correram junto à parede. Enquanto corriam, a curva de escrita se inflamava junto com eles, tornando-se mais brilhante quando se aproximavam, desaparecendo novamente depois que passavam.

Seichan estava escondida atrás do pilar seguinte. Ela correu na direção deles, atraída pelo brilho e pela agitação.

—        O que vocês estão... meu Deus!

Gray pousou Susan no chão, mantendo-a descoberta, lançando seu brilho contra a parede, incendiando a escrita. Tudo a não ser um óbvio pedaço escuro.

—        Vigor! — chamou Gray.

—        Estou indo! — respondeu ele. O monsenhor obviamente vira tudo do outro lado da câmara. Gray ouviu os passos de duas pessoas; Lisa seguia Vigor.

Todos ficaram de pé em frente à parede, boquiabertos ante a visão. Não pelo que estava brilhando, mas pelo que não estava.

—        Frei Agreer — disse Vigor. — Ele deve ter deixado esta marca lavando a parede. Limpou esse pedaço como um sinal.

—        Sinal de quê? — perguntou Seichan.

—        Uma pista para uma passagem oculta — respondeu Gray. — Deve haver outro caminho para a caverna.

—        Mas o que significa a pista? — perguntou Vigor.

Gray sacudiu a cabeça, sabendo que eles estavam ficando sem tempo. Se não achassem a porta e levassem Susan para um lugar seguro e longe da Guilda, não seriam apenas suas vidas que estariam em jogo. Segundo Lisa, uma pandemia já estava se espalhando.

Nasser gritou para eles:

—        Façam suas últimas orações!

- Jesus Cristo! — gritou Kowalski, embora não fosse propriamente uma oração. Ele afastou Gray e Vigor de lado, correu para a parede e se lançou com força no centro da cruz.

A porta de pedra girou sobre um eixo central, revelando uma passagem.

Kowalski se virou.

—        Nem sempre é alta ciência, caras. Às vezes uma porta é apenas uma porta.

Eles cruzaram rapidamente a passagem. Gray e Kowalski mais uma vez carregavam Susan entre eles. Depois de terem passado, Seichan e Lisa empurraram a porta de volta ao seu lugar com os ombros.

À frente, uma escadaria levava para baixo, recortada no leito de calcário.

Ninguém tinha dúvidas de para onde levava.

Quando começaram a descer, o barulho abafado de uma explosão chegou até eles, um único ribombar de trovão. Gray fez uma silenciosa prece de agradecimento ao frei Agreer.

Ele salvara Marco no passado.

E agora salvara a vida de todos eles.

Embora aliviado, Gray ainda não conseguia evitar um medo terrível. Embora ele pudesse estar livre, seus pais não estavam. Quando Nasser descobrisse que seus prisioneiros tinham fugido, Gray sabia quem ele faria sofrer por isso.

 

Sentada no teto do armazém, Harriet adormeceu nos braços do marido. Era uma noite quente. Acima deles, a lua se movia imperceptivelmente através do céu noturno. Apesar do terror, a exaustão estava cobrando seu preço. Durante a primeira hora ela prestara atenção aos gritos e latidos. Depois parou de se importar. O tempo passou, o suficiente para que Harriet ficasse chocada de se ver dormindo quando o primeiro grito surgiu do outro lado do teto.

—        Eles estão aqui — disse Jack, em um tom quase aliviado.

Ele se moveu para que Harriet pudesse entrar no espaço na unidade de ventilação atrás deles. Mal havia espaço para dois. Assim que Harriet entrou, estendeu a mão para o marido.

Em vez disso, ele pegou do chão a grade da porta.

—        Jack? — sussurrou ela para ele.

Ele ergueu a grade entre ambos, colocando-a no lugar.

—        Não... — gemeu ela.

Seus lábios estavam junto às barras da grade enquanto ele a fechava sobre ela.

—        Por favor, Harriet, deixe-me fazer isso. Eu posso afastá-los. Ganhar mais tempo para você. Me dê pelo menos isso.

Seus olhos se encontraram através da grade.

Ela compreendeu. Durante tempo demais Jack se vira apenas como meio homem. Ele não queria morrer daquela forma. Mas, para Harriet, Jack nunca fora meio homem.

Ainda assim, ela não podia tirar isso dele.

Era seu último presente para ele.

Eles tocaram os dedos através das grades, as lágrimas correndo. Os dedos dele tocaram os dela, agradecendo, amando-a.

Os gritos se aproximaram.

Eles não tinham mais tempo.

Jack virou-se e engatinhou para a parede elevada do teto, a pistola apertada no punho. Ao chegar à parede, usou o apoio para mancar para a esquerda.

Harriet tentou ver para onde ele ia, mas ele logo saiu de vista. Ela cobriu o rosto.

Um grito agudo de descoberta veio daquela direção. Ela ouviu o eco de um disparo de pistola vindo da esquerda.

Jack.

Harriet contou os disparos, sabendo que ele só tinha mais três balas na arma. Os disparos de volta atingiram a posição de seu marido, arrancando metal. Jack devia ter encontrado alguma proteção. Outro tiro foi disparado do seu ponto.

Só mais uma bala.

Na confusão do breve tiroteio, Jack gritou:

—        Vocês nunca encontrarão minha mulher. Eu a escondi fora do seu maldito alcance.

Uma voz gritou de volta, poucos passos atrás do esconderijo de Harriet, assustando-a.

Annishen.

—        Se os cães não a encontrarem — respondeu a mulher —, eu farei com que seus gritos a obriguem a sair!

As pernas de Annishen surgiram atrás da grade. A mulher sussurrou em um rádio, ordenando que seus homens se espalhassem e pegassem Jack.

Então a mulher ficou rígida, virando-se ligeiramente.

Surgiu um outro barulho.

Parecia o som de uma ventania.

Do outro lado do telhado, surgiu um helicóptero preto vindo de baixo, em ângulo, com a forma de uma vespa. Obviamente militar. O matraquear de uma arma automática varreu o telhado. Homens gritaram. Pés correram. Um homem passou e teve as pernas cortadas, caindo de rosto no chão.

Surgiram sirenes nas ruas escuras que levavam ao armazém.

O som alto de um megafone no helicóptero ordenou que as armas fossem jogadas no chão.

Annishen se agachou ao lado da grade da casa de ventilação, preparando-se para a pequena corrida até a próxima saída do telhado. Harriet instintivamente se afastou dela; seu ombro se chocou contra a lateral da unidade com um baque surdo.

Annishen se encolheu, e depois abaixou a cabeça, olhando para dentro.

—        Ah, sra. Pierce — disse ela, mudando de posição, enfiando a pistola através das grades e apontando para ela. — Hora de dizer a...

O barulho do tiro sacudiu Harriet.

O corpo de Annishen se chocou contra a grade, depois caiu no alcatroado.

Harriet percebeu uma órbita explodida.

Quando a mulher caiu, Jack apareceu. Ele jogou de lado a pistola fumegante.

Seu último tiro.

Harriet abriu a grade. Ela passou por cima das pernas de Annishen, através do telhado, para os braços de Jack, soluçando. Os dois desabaram juntos no chão, gratos.

—        Nunca mais me abandone, Jack.

Ele a abraçou com força.

—        Nunca — prometeu.

Homens com uniformes militares pularam do helicóptero para o telhado em fila, rastejando como cobras. Harriet e Jack foram protegidos até que todo o telhado tivesse sido inspecionado. Sirenes soaram abaixo. Mais tiros e gritos subiram do armazém.

Uma figura apareceu na frente deles, usando equipamento de rapel. Ele se ajoelhou.

Harriet olhou para cima, surpresa de ver um rosto conhecido.

—        Diretor Crowe?

—        Quando a senhora começará a me chamar de Painter, sra. Pierce?

—        Como você nos...?

—        Aparentemente alguém fez um enorme escândalo do lado de fora do açougue — explicou ele com um sorriso cansado. — Grande o bastante para ser lembrado.

Harriet apertou a mão do marido, agradecendo-lhe pelo que fizera antes.

Painter continuou.

—        Estamos vigiando a rua desde hoje de manhã, até que há 45 minutos um dos oficiais de patrulha descobriu um cavalheiro com um carrinho de compras. Ele reconheceu sua foto e foi desconfiado o bastante — ou talvez paranóico o bastante — para anotar o número da placa, juntamente com marca e modelo. Não demorou muito para rastrear o GPS da van. Lamento por não termos conseguido chegar aqui antes.

Jack enxugou um dos olhos, mantendo o rosto virado para que ninguém pudesse ver suas lágrimas.

—        Seu senso de oportunidade não poderia ser melhor. Devo a você uma garrafa grande daquele bom puro malte de que você gosta.

Harriet abraçou o marido. Jack podia ter dificuldade de lembrar os nomes das pessoas, mas nunca se esqueceu do que elas gostavam de beber.

Painter se levantou.

—        Eu cobrarei em alguma hora, mas neste exato instante tenho de dar um telefonema importante.

Ele se virou e murmurou baixo, mas Harriet o escutou.

—        Isto é, se não for tarde demais.

 

Lisa tropeçou na escada escura, seguindo o monsenhor. Ela tinha de permanecer agachada, deslizando a mão pela parede úmida. O ar cheirava a palha, como folhas apodrecendo em uma floresta úmida. Não era desagradável, a não ser por uma leve ardência nas narinas.

À frente, uma luz fraca os levava à frente, vindo de baixo.

Seu objetivo.

A escada finalmente terminou, deixando-os em uma ampla caverna. Seus passos ecoavam. Acima, o domo da caverna correspondia a cinco andares, com grossas e curtas estalactites. O espaço tinha uma forma oval, com comprimento máximo de cerca de 70 metros. No ponto em que eles tinham chegado, o teto se espalhava em um arco natural formado por depósitos de calcário. Um arco correspondente podia ser identificado do outro lado da caverna.

—        Realmente parece o casco de uma tartaruga — grunhiu Vigor, sua voz ecoando cavernosa. — Até o modo como ele se curva aqui e do outro lado, tal qual a frente e a parte de trás do casco de uma tartaruga.

Kowalski resmungou, levando Susan para dentro com a ajuda de Gray.

—        E então? Estamos descendo pela garganta da tartaruga ou por seu traseiro? Mas, quando se empertigou, o grandalhão deu um leve assovio.

Lisa entendeu a reação dele.

A frente, o lago circular de águas negras estava imóvel como um espelho, delimitado por uma borda de pedra. Do teto acima, dois fachos diretos de luz do sol desciam e tocavam o centro da água, atravessando os olhos do ídolo de pedra acima.

Mas, no ponto em que a luz do sol tocava a água escura, uma mancha leitosa se espalhava, cintilando, como se o sol tivesse derretido e pingado de cima. O brilho leitoso tremeluzia e se movia, subindo e descendo. Parecendo vivo. O que de fato estava.

—        A luz do sol está energizando as cianobactérias na água — disse Lisa.

Algumas gotas caíam dos olhos do ídolo no lago, com um chiado leve. No ponto em que caíam, o brilho leitoso escurecia.

—        Ácido — disse Gray, lembrando a todos do perigo acima. — Da bomba. Está pingando pelos olhos. Não sei quanto tempo será necessário para neutralizar o vão, mas pelo menos o bloco de pedra está resistindo. Ainda assim, eles logo descerão com marretas e britadeiras para conseguir chegar aqui.

—        Então, o que fazemos? — perguntou Seichan.

Kowalski debochou:

—        Vamos dar o fora daqui.

Gray se voltou para Lisa.

—        Você pode ir em frente, conferir o outro arco? Veja se há uma outra saída. Como Vigor disse, um casco de tartaruga tem uma abertura para a cabeça e outra para o rabo. É nossa única esperança.

Lisa reagiu.

—        Gray, eu acho que deveria ficar com Susan. Meu conhecimento médico...

Um som surdo subiu da lona. Um braço se ergueu fracamente.

Lisa foi para o lado de Susan, tomando o cuidado de não encostar nela.

—        Ela ainda é a única esperança de cura.

—        Eu posso ir — ofereceu-se Seichan.

Lisa olhou, percebendo uma ponta de desconfiança no rosto de Gray, como se ele não confiasse na mulher. Ainda assim, ele concordou.

—        Ache uma saída.

Ela partiu sem uma palavra.

O grupo seguiu ao longo da margem de pedra.

Gray estudou o espaço.

—        Isto parece um velho poço natural. Como na Flórida, ou os cenotes do México. O bloco de calcário deve estar fechando a abertura natural de antes.

Lisa curvou-se perto da parede e pegou um pouco de matéria ressecada. Esfarelou-a entre os dedos.

—        Fezes petrificadas de morcego — disse ela, confirmando a avaliação de Gray. — Esta caverna deve ter tido uma abertura para fora um dia.

Lisa esfregou os dedos e olhou para Susan, começando a entender o que ela já suspeitava.

Vigor mostrou o lago com o braço.

—        Os antigos khmer devem ter descoberto o poço, visto como ele brilhava, imaginado que era o lar de algum deus e tentado incorporá-lo ao templo aqui.

—        Mas não sabiam o que estavam fazendo — acrescentou Lisa. — Eles ultrapassaram o que não deviam. Interferiram com um ecossistema frágil e liberaram o vírus. Quando a humanidade empurra, a natureza algumas vezes empurra de volta.

Eles continuaram ao longo do lago.

À frente, uma pequena protuberância de pedra se projetava na água, mal discernível na escuridão. Apenas a maré de água leitosa revelava a pequena península.

Juntamente com algo mais.

—        Isso são ossos? — perguntou Kowalski, olhando para dentro d'água enquanto caminhavam.

O grupo parou.

Lisa foi até a margem do lago. A luz suave penetrava fundo na água cristalina. O banco de pedra descia em um ângulo suave dentro da água e desaparecia em ponta 9 metros à frente.

Por toda a parte rasa do lago havia ossos acumulados em grupos e pilhas: frágeis crânios de pássaros, pequenas caixas torácicas de macacos, algo como um par de chifres recurvados e, não longe da margem, o enorme crânio de um elefante, repousando como um monolito branco no fundo, uma das presas de marfim quebradas. Mas havia mais: fêmures quebrados, tíbias mais longas, caixas torácicas maiores, e, como bolotas de carvalho espalhadas, crânio após crânio.

Todos humanos.

O lago era um enorme ossuário.

Mudos de espanto, eles seguiram em frente.

Enquanto caminhavam pela margem de pedra, o brilho no lago aumentava lentamente. A ardência nas narinas que Lisa percebera antes se tornara mais intensa. Ela lembrou-se da ilha Christmas, das piscinas de maré mortas a barlavento.

Biotoxinas.

Kowalski franziu todo o rosto.

Como sais aromáticos, aquele odor também despertou Susan. Seus olhos se abriram, cintilando no escuro, iguais ao brilho no lago. Ela continuava confusa, mas reconheceu Lisa.

Susan tentou se sentar.

Gray e Kowalski a pousaram no chão, já que também precisavam descansar, alongando os ombros e relaxando as mãos.

Lisa se abaixou ao lado de Susan, púdicamente ajeitando a lona sobre seus ombros enquanto a ajudava a se sentar.

Susan se encolheu quando Kowalski chegou perto.

—        Está tudo bem. São todos amigos — tranqüilizou Lisa.

Lisa apresentou os outros para ajudar a acalmar Susan. Lentamente o olhar de pânico desapareceu. Ela pareceu se recompor... até olhar sobre os ombros de Lisa e ver o lago cintilante.

Susan deu um salto para trás, batendo com as costas na parede e se encolhendo, trêmula.

—        Vocês não devem estar aqui — lamentou ela, a voz se elevando.

—        Não brinca — retrucou Kowalski.

Susan o ignorou, os olhos ainda no lago. Ela baixou a voz.

—        Será como a ilha Christmas. Só que cem vezes pior... Presos na caverna. E todos vocês serão expostos.

Lisa não duvidava. Sua pele já estava coçando.

—        Vocês precisam ir embora. — Susan reuniu força suficiente para ficar de pé, apoiando uma das mãos na parede. — Só eu posso ficar aqui. Eu preciso estar aqui.

Lisa viu o medo brilhando em seus olhos, mas também a certeza do horror.

—        Pela cura? — perguntou Lisa.

Susan concordou.

—        Eu preciso ser exposta mais uma vez, por esta fonte daqui. Eu não sei dizer como sei, mas sei. — Ela colocou a palma de uma das mãos no lado da cabeça. — É... É como se eu estivesse vivendo com um pé no passado e um pé aqui. É difícil ficar aqui. Tudo está tomando conta de mim, todos os pensamentos, sensações. Eu não consigo desligar. E eu... Eu sinto que está se expandindo.

Mais uma vez, o medo brilhou em seus olhos.

A descrição de Susan fez Lisa se lembrar de autismo, uma incapacidade neurológica de desligar o fluxo de estímulos sensoriais. Mas alguns poucos pacientes autistas também eram sábios idiotas, gênios em certas áreas, com seu brilhantismo fruto de suas conexões. Lisa tentou imaginar a fisiopatologia que deveria estar ocorrendo no cérebro de Susan, mergulhado em estranhas biotoxinas, energizado pelas bactérias que produziram as toxinas. Os humanos utilizavam apenas uma pequena parcela da capacidade neural do cérebro. Lisa quase podia imaginar o eletroencefalograma do cérebro de Lisa, em fogo, energizado.

Susan cambaleou até a beira da água.

—        Nós só temos esta única chance.

—        Por quê? — perguntou Gray, aproximando-se dela.

—        Depois que o lago atingir massa crítica e entrar em erupção com toda a sua carga tóxica, ele irá se exaurir. Serão necessários três anos para que o lago esteja pronto novamente.

—        Como você sabe disso? — perguntou Gray.

Susan olhou para Lisa em busca de ajuda.

—        Ela simplesmente sabe — respondeu Lisa. — Ela está de alguma maneira ligada a este lugar. Susan, era por isso que você tinha tanta urgência em chegar aqui?

Susan fez que sim com a cabeça.

—        Uma vez exposto à luz do sol, o lago se prepara para explodir. Se eu perdesse...

—        ...o mundo estaria indefeso por três anos. Sem cura. A pandemia se espalharia por todo o planeta — disse Lisa, imaginando o microcosmo a bordo do navio expandido para todo o mundo.

O terror foi interrompido pela volta de Seichan, que chegara até eles sem fôlego, o rosto brilhando de suor.

—        Eu encontrei uma porta.

—        Então vão. Agora — instou Susan.

Seichan sacudiu a cabeça.

—        Não consegui abrir.

Kowalski fez mímica.

—        Você não tentou dar um grande empurrão?

Seichan olhou para o alto, mas concordou com a cabeça.

—        Sim, eu tentei empurrar.

Kowalski lançou as mãos para o alto, rendendo-se.

—        Bem, é só o que eu tenho a oferecer.

—        Mas havia uma cruz gravada acima do arco de pedra — continuou Seichan. — E uma inscrição, mas está escuro demais para ler. As palavras talvez dêem uma pista.

Gray virou-se para o monsenhor.

—        Eu ainda tenho minha lanterna — disse Vigor, acrescentando: — Vou com ela.

—        Rápido — apressou Gray.

O ar já estava se tornando rarefeito. O brilho no lago se espalhara, deslizando ao longo da pedra na direção da margem. Susan apontou para ele.

—        Eu preciso ir para o lago.

Eles se encaminharam para a península de pedra.

Gray acompanhou Lisa.

—        Você mencionou antes um ecossistema rompido. Você se importaria de me dizer o que afinal acha que está acontecendo aqui? — perguntou ele, apontando para o lago.

—        Eu não sei tudo, mas tenho certeza de que sei quem são os atores principais.

Gray anuiu,estimulando-a a continuar.

Lisa apontou para o brilho.

—        Tudo começou aqui, o mais antigo organismo da História. Cianobactérias. Precursoras das plantas modernas. Elas penetraram em todos os nichos ambientais: pedra, areia, água, e mesmo outros organismos. Mas isso é se antecipar na história. Vamos começar aqui.

—        Esta caverna.

Ela concordou com a cabeça.

—        As cianobactérias invadiram este poço, mas lembre-se de que elas precisam de luz, e a caverna é basicamente escura. O orifício de cima provavelmente era originalmente ainda menor. Para florescer aqui elas precisavam de outra fonte de energia, uma fonte de alimentos. E as cianobactérias são criativamente adaptáveis. Elas tinham uma fonte de alimentos acima, na floresta... Só precisavam de um modo de chegar a ela. E a natureza é bastante engenhosa na construção de estranhos inter-relacionamentos.

Lisa contou a história que contara ao dr. Devesh Patanjali, sobre fascíola hepática, como seu ciclo vital se valia de três hospedeiros: gado, caramujos e formigas.

—        Em dado momento, a fascíola chega mesmo a se apoderar de seu hospedeiro formiga. Ela compele a formiga a escalar um talo de capim, travar a mandíbula e esperar para ser comida por uma vaca no pasto. A natureza é estranha assim. E o que aconteceu aqui não é menos estranho.

Enquanto Lisa continuava, gostou de ser capaz de falar usando suas teorias. Ela abriu um parêntese para explicar a avaliação que Henri Barnhardt fizera da Estirpe de Judas, como ele classificara o vírus como membro da família Bunyavirus. Ela lembrou-se do diagrama de Henri, descrevendo um relacionamento linear de humano para artrópode para humano.

 

Ser humano  ►   Inseto (artrópode)         ► Ser humano

 

—        Mas estávamos errados — disse Lisa. — O vírus usou uma das páginas do manual da fascíola. Há três hospedeiros em ação aqui.

—        Se as cianobactérias são as primeiras hospedeiras, qual é o segundo hospedeiro nesse ciclo vital? — perguntou Gray.

Lisa olhou para a abertura bloqueada no teto e chutou um pouco de fezes secas de morcego.

—        A cianobactéria precisava de um modo de fugir da prisão. E, como elas já estavam dividindo esta caverna com alguns morcegos, se valeram daquelas asas.

—        Espere. Como você sabe que elas usaram morcegos?

—        O Bunyavirus. Ele adora artrópodes, o que inclui insetos e crustáceos. Mas cepas de Bunyavirus também podem ser encontradas em ratos e morcegos.

—        Então você acha que a Estirpe de Judas é um vírus de morcego que sofreu uma mutação?

—        Sim. Uma mutação provocada pelas neurotoxinas das cianobactérias.

—        Mas por quê?

—        Para enlouquecer os morcegos, espalhá-los pelo mundo, carregando um vírus que invade a biosfera local por intermédio de sua bactéria. Basicamente transformando cada morcego em uma pequena bomba biológica. Deixando lixo onde quer que pouse. Se Susan estiver certa, o lago envia essas biobombas a cada três anos, permitindo que o meio ambiente se recupere nos intervalos.

—        Mas como isso serve às cianobactérias se a doença mata pássaros e animais do lado de fora da caverna?

—        Ah, porque ela utiliza um terceiro hospedeiro, outro cúmplice. Artrópodes. Lembre-se, os artrópodes são o hospedeiro predileto dos Bunyavirus. Insetos e crustáceos. Por acaso, eles são também os melhores carniceiros da natureza. Limpam os mortos. Que é o que o vírus os compele a fazer. Para começar, tornando-os famintos e vorazes...

As palavras de Lisa se atropelaram enquanto se lembrava do canibalismo a bordo do navio. Ela lutou para manter a postura clínica, para ser compreendida.

—        Depois de estimular essa fome, garantindo uma limpeza completa, o vírus estimula o hospedeiro a retornar para cá, para esta caverna, arrastar sua presa e trazê-la ao poço, para alimentar o poço bacteriano. Ele não tem escolha. Assim como a fascíola e a formiga. Uma compulsão neurológica. Uma premência migratória.

— Como Susan — disse Gray.

Lisa sentiu-se desconfortável com a comparação. Ela imaginou o ciclo de vida que acabara de descrever. Triangular, em vez de linear: cianobactérias, morcegos e artrópodes. Todos reunidos pela Estirpe de Judas.

 

Artrópode (insetos)               Morcego (mamíferos)

 

Cianobactérias

—        Susan é diferente — disse Lisa. — O homem não deveria fazer parte desse ciclo vital. Mas, por sermos mamíferos como os morcegos, estamos suscetíveis às toxinas, ao vírus. Assim, quando os khmer descobriram esta caverna, nós inadvertidamente nos tornamos parte desse ciclo vital, tomando o lugar dos morcegos. Espalhando-o com nossas duas pernas no lugar de asas. Fazendo a população adoecer a cada três anos, provocando epidemias de gravidade variável.

Gray olhou para Susan.

—        Mas, e quanto a ela? Por que ela sobrevive?

—        Como falei, não tenho todas as respostas — disse ela recordando suas discussões anteriores sobre sobreviventes da Peste Negra, sobre código viral no DNA humano. — Nosso sistema neurológico é mil vezes mais complexo que o de qualquer morcego ou caranguejo. E, como as cianobactérias, os humanos também têm uma grande capacidade de adaptação. Lance essas toxinas em nosso sistema neurológico mais evoluído, e quem sabe que milagre pode ser produzido?

Lisa suspirou quando eles chegaram à ponta de terra.

Ao se virar, ela percebeu algo estranho no alto. Rolos de fumaça saíam das órbitas do ídolo, brilhando à luz do sol.

—        O pó neutralizante — disse Gray, vendo o mesmo e apressando-as. — Nasser deve estar concluindo a descontaminação do vão superior. Não temos mais tempo.

 

No alto da escada, Vigor se ajoelhou ao lado da porta de pedra baixa. Seichan segurou a lanterna atrás dele. Um arco de calcário emoldurava um bloco de arenito esculpido, em parte natural, em parte feito pelo homem.

Acima da porta, colocado no lintel de calcário em arco havia um medalhão de bronze e, impresso nele, um perfeito crucifixo. Vigor o examinara, sentindo nele a mão de frei Agreer.

E isso foi confirmado abaixo.

Vigor passou os dedos sobre a porta de pedra. O bloco sólido fora gravado com um texto. Não angélico; italiano. Era o último testamento de frei Agreer.

 

No ano da encarnação do Filho de Deus de 1296, eu gravei na pedra esta prece final. A maldição foi lançada sobre mim quando cheguei e me causou grande sofrimento, mas eu me ergui como Lázaro de um sono mortal. Não compreendo qual tormento me foi impingido, mas fui preservado, marcado de uma forma estranha, um febril brilho na pele. Tal alívio eu ministrei àqueles poucos que sobreviveram à grande pestilência. Mas agora uma estranha compunção se abateu sobre mim. As águas abaixo já começam a ferver com o fogo do Inferno. Sei que é para a minha morte que sou impelido. Com grande esforço eu persuadi e supervisionei a construção deste lacre. E sigo com uma só prece em meus lábios. Mais que a salvação de minha própria alma, eu rezo para que esta porta esteja para sempre lacrada com a Cruz do Senhor. Que apenas alguém com a força do espírito do Senhor ouse abri-la.

 

Vigor tocou a assinatura gravada no fim.

Frei Antonio Agreer.

Seichan falou atrás dele.

—        Então, depois de Marco partir, eles expuseram o frade à doença, mas, em vez de morrer, ele sobreviveu, como a mulher lá embaixo.

—        Talvez os outros pagãos reluzentes que ofereceram a cura ao grupo de Marco soubessem que frei Agreer iria sobreviver. Por isso o escolheram. Mas a data, 1296. Ele viveu aqui três anos. O mesmo período de tempo que Susan disse haver entre as erupções — disse Vigor, olhando para trás. — Ela estava certa.

Seichan apontou para a porta.

—        Há algo mais abaixo da assinatura.

Vigor concordou com a cabeça.

—        Uma citação da Bíblia, Evangelho de Mateus, capítulo 28, referente à ressurreição de Jesus de sua tumba — disse Vigor, lendo a citação em voz alta. — "E eis que houve um grande terremoto: pois o Anjo do Senhor, descendo do céu e aproximando-se, removeu a pedra e sentou-se sobre ela."

—        Essa é uma grande ajuda.

Era.

Vigor olhou para o crucifixo gravado em um medalhão de bronze acima da porta. Ele fez uma prece silenciosa, e o sinal-da-cruz.

Antes que pudesse terminar, sentiu o chão tremer sob seus joelhos. Um enorme barulho de pedras soou atrás dele, como se a caverna tivesse desmoronado.

Seichan se afastou, indo para a luz para investigar.

—        Fique aqui!

A escuridão caiu, causando-lhe arrepios. Embora ele já não pudesse ler as palavras, elas permaneciam em sua mente. E eis que houve um grande terremoto...

 

Gray ajoelhou-se sobre Lisa enquanto a onda de choque ressoava pela caverna. Kowalski protegeu-o do outro lado. Uma das estalactites despencou do teto e afundou nas profundezas do lago. Do ponto onde ela se rompeu, uma rede de rachaduras profundas se espalhou pelo teto de calcário.

Susan se agachou a meio caminho da projeção de rocha quando ela se lançou no lago cintilante. Ao redor, as águas se agitavam, sacudindo para a frente e para trás. A agitação produziu mais espuma ácida, empesteando o ar.

Saturado da Estirpe de Judas.

Concussões menores soaram no alto, como balas de canhão contra o teto da caverna.

—        O que está acontecendo? — gritou Lisa.

—        A bomba de Nasser — ele falou ofegante, os ouvidos zumbindo.

Mais cedo, Gray tinha examinado os pilares de sustentação do Bayon. Ele descobrira que as colunas tinham muitas fissuras e rachaduras, fraturas de estresse produzidas pela idade e por acomodações geológicas periódicas. Gray imaginava que a concussão da bomba de força dupla aumentara ainda mais as fissuras. E, então, o banho de ácido — espalhando-se e penetrando naquelas rachaduras — tinha dissolvido o cerne dos pilares.

—        Um dos pilares de sustentação deve ter desmoronado — disse ele —, derrubando consigo uma seção do templo.

Gray olhou para cima.

Os blocos de pedra tinham parado de rolar. Mas por quanto tempo? Ele se virou para Susan. Ela se erguera, lentamente, cautelosamente. Olhou para trás, claramente querendo retornar à margem. Mas, em vez disso, se virou e continuou em frente.

Além dos seus ombros, os fachos gêmeos de luz cintilavam ainda mais com a aproximação do meio-dia, o sol se colocando com pleno vigor acima das ruínas.

—        Isso vai resistir o suficiente? — perguntou Lisa, olhando para Susan.

—        Terá que resistir.

Gray não tinha dúvida de que, se outro pilar de sustentação desabasse, o peso do templo iria achatar aquela bolha de calcário como uma panqueca. Ele fez Lisa se erguer. Eles não podiam ficar ali. Mesmo que os pilares resistissem, o lago estava prestes a entrar em erupção.

Todo o lago cintilava agora, de uma margem à outra. No ponto em que os feixes gêmeos de luz do sol batiam, a água já começara a borbulhar, lançando ainda mais toxinas no ar, mais organismos da Estirpe de Judas.

Eles tinham de sair.

Susan chegou à extremidade da projeção de pedra e se sentou, abraçando um dos joelhos. Continuava de costas para eles, talvez temendo que se os visse poderia perder a coragem e voltar correndo. Ela parecia solitária e assustada.

Gray teve um doloroso acesso de tosse. Seus pulmões queimavam. Ele sentia na língua o gosto da toxina cáustica. Não podiam esperar mais.

Lisa também sabia disso. Seus olhos estavam vermelhos, lacrimejando profusamente tanto por causa do ar contaminado quanto pelo medo que sentia pela amiga.

Susan não tinha escolha. Eles também não.

Eles se encaminharam para o arco distante. Uma luz bruxuleante a meio caminho revelou Seichan correndo de volta. Sozinha. Onde estava Vigor?

Outro barulho de rocha se quebrando acima.

Gray se encolheu, esperando outra avalanche.

A realidade era pior.

A tampa de pedra se rompeu no teto, fazendo com que chovessem pedaços do bloco. A luz do sol penetrou. Uma grande placa, com um canto de lábio voltado para cima, despencou pesadamente na água, encharcando Susan. Outros pedaços afundaram pesos de profundidade.

Gritos triunfantes soaram no alto.

Gray ouviu a voz de Nasser:

—        Eles têm de estar lá embaixo!

Mas Nasser não era o maior perigo no momento.

O sol brilhou por inteiro, sem bloqueios, sobre o lago, incendiando as águas. Já carregado, perto da massa crítica, o líquido borbulhante se transformou instantaneamente em fervura, irrompendo em grandes jatos, cuspindo grandes bolhas de gás e água.

O lago estava explodindo.

Eles nunca conseguiriam chegar às escadas.

Gray recuou rapidamente, arrastando Lisa e Kowalski consigo alguns passos. Gritou para Seichan:

—        No chão! Agora!

Ele seguiu seu próprio conselho, puxando Lisa e Kowalski para baixo. Gray agarrou a lona abandonada que eles tinham usado para transportar Susan. Ele puxou-a sobre os três, tentando prender o máximo de ar possível.

—        Prendam as pontas na pedra! — ordenou aos outros.

Fora da lona, ele ouviu o barulho de água fervendo, furiosa, sibilando com fúria — e então um barulho profundo, como se todo o lago tivesse dado um salto e depois caído. A água bateu no seu tornozelo e depois escorreu.

O ar sob a lona se transformou em fogo líquido.

Os três se encolheram, engasgando, tossindo, sem fôlego.

—        Susan — grunhiu finalmente Lisa.

 

Susan gritou.

Não gritou apenas com os pulmões ou com a vibração das cordas vocais. Ela uivou do cerne de seu ser.

Não conseguia evitar a agonia. Sua mente, ainda alimentada pela luz do sol, continuou a fazer o registro detalhado de todas as sensações. Tendo negado o direito ao esquecimento, seu ser anotou todos os detalhes: a secura em seus pulmões, a ardência nos olhos, a pele sendo esfolada. Ela queimava de dentro para fora, lançando seu grito aos céus.

Mas haveria alguém para ouvir?

Ao lançar todo o seu ser para cima, finalmente conseguiu sua libertação.

Ela desabou na pedra.

Seu coração contraiu-se uma última vez, espremendo o que restava dela.

Depois, nada.

 

—        E Susan? — perguntou Lisa, a voz entrecortada.

Gray se arriscou a dar uma olhada por uma ponta da lona, esticando-se para trás na direção da península de pedra. O lago ainda fervia, queimando sob o sol forte. O ar acima do lago cintilava com um miasma oleoso.

Mas o pior fluxo de gases subia em espiral, através da abertura, exalando pela cúspide central do Bayon, transformando torre em chaminé.

Gray sabia que só por isso eles tinham vivido.

Se a caverna ainda estivesse lacrada...

Na península de pedra, outro membro do seu grupo não se saíra tão bem. Susan estava jogada de costas, imóvel como uma estátua. Gray não tinha como dizer se ela estava respirando. Na verdade, era difícil ver suas formas contra o brilho do sol.

E foi quando ele se deu conta.

A península de pedra não penetrava completamente no facho de luz do sol.

Susan ainda estava na sombra, mas já não brilhava. Seu brilho se apagara como uma vela.

O que significava aquilo?

Gritos vinham do templo acima, agora lavado pela emanação tóxica do lago. Gray também ouviu mais pedras atingindo o teto da caverna. O gás cáustico abalara ainda mais o precário equilíbrio de pedra acima de suas cabeças.

—        Temos que sair desta caverna — disse Gray.

—        E quanto a Susan? — perguntou Lisa.

—        Temos de acreditar que ela se expôs o suficiente. O que quer que ela queria que acontecesse, com sorte aconteceu — disse Gray, pondo-se de joelhos e tossindo forte. Agora, todos eles precisavam da cura. Ele olhou para Kowalski. — Leve Lisa para as escadas.

Kowalski se ergueu.

—        Não precisa falar duas vezes.

Lisa agarrou o pulso de Gray quando ele se levantou, mantendo a lona sobre suas cabeças.

—        O que você vai fazer?

—        Tenho que pegar Susan.

Lisa olhou ao redor, e então levou a mão à boca. O lago ainda se agitava violentamente, borbulhando com gás.

—        Gray, você nunca irá conseguir.

—        Eu preciso.

—        Mas eu não a vejo se mexer. Acho que a explosão repentina foi demais. Gray se lembrou da história de Marco, de seu canibalismo forçado, bebendo o sangue e comendo a carne de outro homem para sobreviver.

—        Não acho que importe se ela está viva ou morta. Nós só precisamos do seu corpo.

Lisa se encolheu diante da frieza de suas palavras, mas não fez objeção.

—        Vou precisar da lona — disse Gray.

Kowalski concordou, agarrando Lisa pelo braço.

—        Por mim, tudo bem. Vou levar a garota.

Gray se afastou rapidamente deles, embrulhando-se na lona. Ele cobriu a cabeça, deixando apenas uma brecha para poder ver. Ouviu Kowalski e Lisa correndo pela margem.

Outro bloco despencou do templo acima sobre o teto da caverna.

Tão bom quanto um tiro de largada.

Mantendo a cabeça abaixada, Gray disparou pela pista.

Menos de 30 metros.

Apenas isso.

Ida e volta.

A alguns passos da margem, Gray se enfiou no miasma ascendente de toxina. Ele prendeu a respiração. Ainda assim, era como se lançar contra uma parede de fogo. Seus olhos arderam imediatamente, limitando sua visão a um pontinho, enquanto as lágrimas transformavam o restante de seu campo visual em um borrão aguado. Quase incapaz de ver, ele cerrou os olhos, fechou a lona e correu às cegas, contando os passos.

Ao chegar a trinta, arriscou uma espiada. Foi recepcionado por um inferno.

Mas, em meio à dor, percebeu um braço caído. A um passo. Ele deu esse passo, curvou-se e agarrou o braço. Felizmente, ela já não brilhava, já não queimava. Ainda assim, ele não podia levantá-la. Gray recuou, arrastando-a. A lona prendia seus pés, retardando-o. Ele finalmente jogou-a de lado, tomando fôlego antes de fazê-lo.

Isso fez com que caísse de joelhos.

Seu peito se contraiu, a garganta se fechou em protesto.

Engolindo chamas.

Ele se ergueu, arrastando-se às cegas, tropeçando, se apressando. Sua pele queimava, como se tivesse sido açoitada com um chicote de ponta de aço.

Não vai conseguir.

Fogo.

Chama.

Queimação.

Ele tropeçou, caiu de joelhos.

Não.

E de repente estava se erguendo novamente. Mas não sozinho. Seichan.

Ela estava com um dos braços sob ele, arrastando-o. Seus dedos dos pés rasparam nas pedras enquanto ele lutava para se erguer. Gray grunhiu para ela, tossindo. Ela entendeu.

—        Kowalski pegou-a.

—        Bem aqui, chefe — disse o homem atrás dele. — Foi uma bela corrida. Ficou a três passos da linha de gol. Não foi um touchdown, mas é por isso que você tem um grande time.

A medida que eles fugiam ao redor do lago, afastando-se da tempestade central, a visão de Gray clareava. Ele finalmente conseguiu firmar os pés.

Seichan ainda sustentava metade do seu peso.

—        Obrigado — sussurrou ele asperamente em seu ouvido.

A bochecha dela estava com bolhas feias, um dos olhos inchado e fechado.

—        Vamos sair deste maldito lugar — disse Seichan, parecendo mais irritada que aliviada.

—        Amém, irmã — disse Kowalski.

Gray olhou novamente para o lago. Ele viu algo cair pelo buraco no teto, balançando em uma linha como uma isca no anzol, um pouco para a frente e para trás. Um embrulho grande e pesado.

—        Bomba — murmurou Gray.

—        O quê? — perguntou Kowalski, incrédulo.

—        Bomba — disse ele, mais alto.

Nasser ainda não tinha acabado com eles.

—        Ah, maldição, não... — Kowalski se aproximou apressadamente, com Susan sobre um dos ombros, claramente tentando passar por eles. — Por que as pessoas insistem em tentar me explodir?

 

Gritos vieram de baixo, subindo a escada vindo da caverna. Lisa quis retornar. Ela detestara abandonar os outros, mas Vigor também precisava de sua ajuda.

—        Continue virando! — disse Vigor, o suor escorrendo-lhe pelas laterais do rosto. Ele olhou para as escadas, e depois de volta para Lisa. — Pelos gritos deles, acho que é melhor nos apressarmos.

Eles estavam desaparafusando um grande fecho de bronze. Sua cabeça do tamanho de um prato tinha um crucifixo, que naquele momento girava enquanto eles giravam o parafuso. Àquela altura, a haste engraxada se projetava 60 centímetros do alto da porta em forma de arco.

Quanto mais ainda faltaria?

Eles giraram mais rápido.

Vigor citou a inscrição na base da porta, bufando enquanto trabalhava.

—        "O Anjo do Senhor, descendo do céu e aproximando-se, removeu a pedra da porta." Inicialmente tentei rolar a própria porta, mas desisti rapidamente. Então me lembrei da última linha: "Que apenas alguém com a força do espírito do Senhor ouse abri-la." Obviamente remetendo ao crucifixo. Eu deveria ter percebido logo.

Ruídos de pés abaixo na escadaria, subindo.

Kowalski gritou para eles.

—        Bomba... porta... rápido!

—        Um homem de poucas palavras, nosso Kowalski.

Com um último giro, o parafuso de bronze soltou do encaixe. O peso os surpreendeu, e o parafuso caiu nos degraus com um barulho agudo.

Kowalski subiu correndo, carregando Susan. Ela estava imóvel. O rosto de Kowalski murchou quando viu a porta ainda fechada.

—        O que vocês ficaram fazendo?

—        Esperando por você — disse Vigor, e empurrou a tranca.

Livre do parafuso, a porta caiu para fora, batendo na pedra. A luz do sol penetrou, refletindo na pedra em todas as direções. Lisa mal conseguia ver quando se lançou para fora com Vigor, abrindo caminho para Kowalski e Susan.

Kowalski resmungou enquanto passava agachado.

—        Achei que Seichan disse que tentara empurrar. Malditos bracinhos magros.

Empertigando-se, Lisa piscou para se acostumar à claridade, dando-se conta de que estavam no fundo de um poço de pedra profundo, com 3 metros de largura. As paredes nuas tinham a altura de dois andares. Não havia como subir.

Kowalski deitou Susan ao lado da porta.

—        Doutora, acho que ela não está respirando.

Lembrada de suas obrigações, Lisa correu para o lado dele. Ela já tivera sua dose de mortes por um dia. Ela abaixou-se ao lado de Susan e verificou o pulso. Não encontrou. Ainda assim, Lisa se recusou a desistir.

—        Alguém me ajude — pediu.

Gray e Seichan passaram pela porta a seguir, os dois mancando. Gray viu o exame que ela fazia.

—        Lisa... ela está morta.

—        Não. Não sem antes lutar.

—        Eu a ajudo — murmurou Seichan.

Quando ela se curvou, Lisa percebeu que sangue vivo escorria pela blusa da mulher, pelas calças já empapadas.

Seichan percebeu.

—        Estou bem.

Gray avisou-os para ficarem o mais quietos que pudessem, para o caso de haver homens de Nasser por perto. Ele também fez sinal para que todos se afastassem da passagem. Seu rosto e seus braços estavam cobertos de bolhas e em carne viva. O branco dos olhos se transformara em vermelho de sangue.

Do outro lado da passagem, Lisa deu início a uma massagem cardíaca, enquanto Seichan fazia respiração boca a boca. Vigor ficou perto, fazendo o sinal-da-cruz e abençoando Susan.

—        Melhor que não sejam os últimos sacramentos — sussurrou Lisa, mantendo os cotovelos juntos enquanto comprimia.

Vigor balançou a cabeça.

—        Apenas uma oração de...

A bomba explodiu com o som de um trovão, sacudindo o piso. Uma lufada de ar viciado soprou vindo de baixo, uma exalação venenosa ainda repleta de fumaça cáustica e uma onda de calor.

Lisa curvou-se sobre Susan.

A maior parte subiu pelo dueto e se espalhou.

—        Não foi tão ruim — disse Kowalski.

Gray continuou a olhar para cima.

—        Segurem-se firme.

Lisa olhou para cima enquanto bombeava com os braços o peito de Susan. A esquerda, podia-se ver a metade superior da torre central do Bayon. Rostos de pedra olhavam para eles embaixo. Todos eles estavam balançando.

—        Está desmoronando! — disse Gray.

 

Nasser fugiu com seis de seus homens, correndo pelo pátio do segundo nível. Cada passo era um sofrimento. Todo o seu corpo continuava a queimar, como se a maldita mulher ainda estivesse grudada nele. Mas ele tinha uma preocupação mais imediata.

Ele olhou para trás enquanto se agachava atrás do muro de uma galeria.

A torre do Bayon tremeu; então, de uma forma estranhamente lenta, desmoronou sobre si mesma, implodindo e derrubando um quarto de sua altura em uma confusão de pedra. O chacoalhar de morte de cem bodhisattvas. Pó de pedra subiu em torno da pilha de destroços, arremessado para o alto. Mais pedras continuaram a balançar e a cair, rolando pela encosta da montanha.

Seu especialista em demolição prevenira contra o tamanho dá carga, alertando para o que poderia acontecer. Mas Nasser não poderia se arriscar a que o comandante Pierce escapasse com o prêmio.

Ao se virar, percebeu uma segunda coluna de poeira e fumaça elevando-se do lado. Ela se torcia como um sinal de fumaça cinza.

Nasser apertou os olhos.

Será que aquilo indicava uma outra saída da caverna?

 

Gray engasgou na poeira, mal conseguindo ver alguém no espaço apertado do poço. A torre ruíra, desabando em suas fundações e esmagando a caverna abaixo. Uma onda ácida de fumaça e poeira foi lançada para fora, subindo em espirais para a boca do poço.

Gray limpou os olhos e se virou. Ele olhou para trás através da passagem. Pedras bloqueavam a escada, e o teto desmoronara.

Apoiou o ombro na parede e olhou para cima. A parede norte do poço se inclinava de forma precária para fora. Por sorte ela não desmoronara, esmagando a todos. Alguns dos blocos se projetavam como dentes desalinhados.

Mais tosse ecoava no poço.

A poeira baixou o suficiente para revelar um dos que sofriam. Lisa ajudou Susan a se sentar. A mulher cobrira a boca com um dos punhos e continuava perturbada.

Bem-vinda de volta ao mundo.

Talvez a sorte deles estivesse mudando.

Uma voz vinda de cima eliminou essa possibilidade.

—        Quem nós temos aqui? — gritou Nasser. — Para usar uma antiquada gíria americana, eu diria que encontramos um bando de peixes em um barril.

Fuzis cercavam o poço de todos os lados, apontados para eles. Gray deslizou pela parede, esbarrando em Kowalski.

—        E agora, chefe? — perguntou ele.

Antes que Gray pudesse responder, um telefone celular tocou no alto. Vinha de cima, mas o som da campainha era familiar. Nasser enfiou a mão no bolso e tirou o telefone de Vigor. Ele o confiscara do monsenhor depois de eles terem sido capturados no hotel. Tinham sido cuidadosamente revistados antes de entrarem no Elephant Bar.

Nasser verificou o identificador de chamadas.

—        Rachel Verona. — Ele segurou o telefone acima do poço, curvando-se. — Sua sobrinha, monsenhor. Estaria interessado em dizer adeus?

O telefone tocou uma terceira vez, e então ficou mudo.

—        Acho que não. Que vergonha — disse Nasser.

Gray fechou os olhos e prendeu a respiração.

Nasser continuou.

—        Ou talvez, comandante Pierce, você gostaria de telefonar para minha parceira, Annishen. Eu prometi que você ouviria os gritos de seus pais antes de morrer.

Gray ignorou-o. Sua mão deslizou por trás das costas de Kowalski, sob o jaleco comprido do homem. A ligação interrompida da sobrinha de Vigor era o sinal combinado com Painter para que Gray soubesse quando sua mãe e seu pai estivessem em segurança.

Ou mortos.

De qualquer jeito... fora do controle de Nasser.

Os dedos de Gray agarraram a coronha da pistola alojada na base das costas de Kowalski. O grandalhão quase a sacara mais cedo, provocado por um macaco. Felizmente Gray o impedira.

Gray retirou a pistola e baixou-a ao seu lado.

Nasser continuou:

—        Ou talvez eu deva deixar que o destino de seus pais seja um mistério... Deixá-lo pensando para sempre, algo para levar para o túmulo.

—        Por que você não vai antes? — disse Gray dando um passo à frente, erguendo a arma e disparando duas vezes.

Acertou o homem no ombro e no peito. Os impactos fizeram Nasser girar. Ele caiu no poço, os braços sacudindo, espalhando sangue nas paredes de pedra.

Gray virou-se de costas, disparando ao redor da borda do poço. Ele acertou três outros homens, enquanto os outros recuavam. Atrás dele, Nasser despencou no chão, com um barulho de ossos quebrando e um grito.

Gray olhou para cima, a arma preparada. A pistola 9mm Metal Storm era um projeto australiano, o melhor em poder de fogo, permitindo uma série de disparos em frações de segundo. Acionada por carga propulsora, sem partes móveis, inteiramente eletrônica.

—        Lisa, reviste Nasser e pegue o telefone de Vigor! Coloque Painter na linha!

Ela se arrastou atrás dele.

Enquanto ele se virava lentamente, vigiando o poço, Gray percebeu Nasser com o canto do olho. Ele estava de costas, um dos braços torcido embaixo do corpo, quebrado no ombro. Sangue lhe escorria dos lábios. Costelas estraçalhadas. Mas ainda estava vivo. Os olhos acompanhavam Gray, tomados de desânimo e confusão.

Morra pensando, desgraçado.

Nasser finalmente obedeceu, dando o último suspiro, os olhos se apagando.

Seichan formulou a pergunta de Nasser.

—        Onde você conseguiu a arma?

—        Eu a peguei com Painter. Ainda em Ormuz. Não queria que ele mobilizasse uma equipe local aqui. Mas pedi uma pequena concessão. Uma única arma, colocada no Elephant Bar antes que chegássemos lá, escondida atrás de um toalete. Eu sabia que Nasser poderia continuar suspeitando de mim, até mesmo me revistar várias vezes. Mas Kowalski...

Gray deu de ombros.

—        No bar. Eu me lembro — disse Seichan. — Antes de sairmos. Kowalski disse que precisava "tirar uma água".

—        Eu sabia que seríamos revistados antes do encontro no bar. Era a forma mais fácil de conseguirmos uma arma depois. Mantê-la à mão até que meus pais estivessem em segurança.

Kowalski grunhiu.

—        Os idiotas deveriam ter visto O poderoso chefão mais algumas vezes. Lisa falou atrás dele.

—        Painter está na linha.

Os dedos de Gray apertaram sua pistola.

—        Meus pais? Eles estão...?

—        Já perguntei. Eles estão em segurança. E não estão feridos. Gray deu um grande suspiro de alívio.

Graças a Deus.

Ele pigarreou.

—        Melhor dizer a Painter para estabelecer um perímetro de quarentena com raio de pelo menos 16 quilômetros em torno das ruínas.

Gray imaginou a nuvem de gases tóxicos, certamente rica em organismos da Estirpe de Judas. A passagem ficara aberta por apenas 12 minutos, depois fora fechada e limpa pela bomba de Nasser. Uma pequena bênção. Mas quanto dos organismos da Estirpe de Judas fora liberado?

Gray olhou para Susan. Ela estava agachada na passagem. Kowalski a protegia. Ela tinha sido bem-sucedida? Gray tinha consciência de todos que dividiam o poço com ele. Todos tinham contribuído para levá-los até lá. Mas teria sido tudo em vão?

Lisa falou.

—        Quarentena estabelecida.

Gray vasculhou o alto do poço, a arma erguida. Ainda havia um exército da Guilda lá fora.

—        Então diga a Painter que poderíamos ter alguma ajuda aqui também. Ela transmitiu a mensagem e depois baixou o telefone.

—        Ele diz que já está a caminho. Disse olhe para cima.

Gray olhou para o céu. O azul profundo da tarde estava cheio de falcões de aparência rígida, asas estendidas. Bandos deles, vindos de todas as direções. Mas aqueles falcões levavam fuzis de assalto.

Esticando uma das mãos para trás, Gray pediu o aparelho.

Lisa colocou-o na palma de sua mão.

Gray levou o aparelho ao ouvido.

—        Achei que tínhamos concordado em não mobilizar uma resposta local.

—        Comandante, eu não classificaria 12 mil metros de altura de local. Além disso, eu sou seu chefe. Não o contrário.

Gray continuou a observar o céu.

A equipe de ataque mergulhou na direção das ruínas, espalhando-se em uma formação de ataque. Cada soldado tinha uma asa-delta presa às costas, como asas de caça a jato em miniatura, permitindo posicionamento em grande altitude.

Eles planaram para baixo.

Em espirais.

Então, a um sinal, os homens puxaram cordas, soltando as asas ao mesmo tempo. Pára-quedas se abriram para o último trecho da descida. Como em uma coreografia, vinham de todas as direções.

Os outros perceberam a aproximação dramática. Gray ouviu sons de botas na pedra, a maioria se afastando. Gray imaginou que boinas pretas estavam sendo jogadas em latas de lixo enquanto os mercenários da Guilda fugiam dali correndo.

Mas nem todos eram tão covardes.

Alguns tiros de fuzil foram ouvidos. Inicialmente devagar, depois furiosamente. Um tiroteio durou todo um minuto tenso. Um pára-quedas passou acima, o piloto disparando ainda em vôo. Depois outro, as pernas erguidas, enquanto se preparava para pousar nas ruínas. Corpos tocavam o solo, pousando ao redor do poço, provavelmente orientados pelo telefone na mão de Gray.

Um homem de repente se debruçou sobre a murada baixa do posto, um pouco rápido demais.

Gray esteve perto de disparar contra ele antes de reconhecer o uniforme de salto.

Força Aérea dos Estados Unidos.

—        Vocês estão bem, caras? — gritou ele com sotaque australiano, soltando seu pára-quedas.

Lisa passou correndo por Vigor, a voz demonstrando espanto.

—        Ryder?

O homem sorriu para ela.

—        O homem de vocês... Painter... Cara impressionante! Me deixou fazer o passeio. Não é a mesma coisa que escalar redes eletrificadas com canibais... Mas fazer o quê?

Alguém chamou.

Ryder ergueu um dos braços, em reconhecimento, então olhou para baixo novamente.

—        Segurem-se! Escadas a caminho! — Ele se virou e desapareceu.

Gray continuou de guarda com eles, a arma preparada.

Era só o que ele podia fazer.

Isso, e uma última coisa.

Ele levou o telefone ao ouvido novamente.

—        Diretor?

—        Sim?

—        Obrigado por não me dar atenção, senhor.

—        É para isso que eu estou aqui.

 

Uma semana mais tarde, Lisa estava de pé junto à janela de seu quarto em um hospital particular na periferia de Bangcoc. Muros altos cercavam o pequeno prédio de dois andares e seus grandiosos jardins com mamoeiros, flores de lótus e fontes de água, juntamente com algumas estátuas serenas de Buda envolvidas em hábitos cor de açafrão envoltos nas finas colunas de fumaça dos incensos das orações matinais.

Ela tinha feito suas próprias orações ao alvorecer.

Só.

Por Monk.

A janela estava aberta, as cortinas levantadas pela primeira vez em uma semana. A quarentena tinha terminado. Ela respirou fundo, inalando o perfume de jasmim e flor de laranjeira. Além do muro ela ouviu o movimento lento da vida de uma aldeia: o mugir do gado, a conversa de duas senhoras passando junto ao portão, os passos pesados de um elefante arrastando um tronco e o melhor de tudo, fora de vista, mas vibrante como a luz do sol, o riso de crianças.

Vida.

Como eles tinham chegado perto de perder tudo.

Uma voz falou atrás dela.

— Você sabia que de pé em frente à janela o brilho do sol atravessa diretamente o avental do hospital? Deixa muito pouco para a imaginação. Não que eu esteja me queixando.

Ela se virou, cheia de alegria.

Painter estava apoiado no umbral da porta, segurando um buquê de rosas amarelas, suas preferidas. Ele vestia terno sem gravata, estava barbeado e limpo. Estava levemente bronzeado após uma semana nos trópicos, fora da cova subterrânea da Sigma, criando um contraste com seus olhos azuis e seu cabelo escuro.

—        Achei que você só voltaria tarde da noite — disse ela, indo até ele.

Ele entrou no quarto. Diferentemente da impessoalidade da maioria dos hospitais, aquela instalação particular tinha quartos luxuosamente decorados em teca. Também era adornada com vasos de flores e até mesmo dois aquários, com pequenos peixinhos laranja e carmim.

—        A reunião com o primeiro-ministro cambojano foi adiada para a semana que vem. E provavelmente é desnecessária. Mesmo a quarentena lá será suspensa nos próximos dias.

Lisa concordou com a cabeça. Aviões fumigadores tinham espalhado uma solução diluída de desinfetante sobre as áreas vizinhas. As ruínas de Angkor Thom tinham sido encharcadas. Os campos de quarentena para refugiados tinham revelado alguns casos, mas eles estavam reagindo bem ao tratamento.

A cura tinha funcionado.

Susan estava em outra ala do hospital, sob vigilância máxima, mas mesmo isso estava se mostrando uma precaução desnecessária. Ela de fato conseguira a cura, atravessando o fogo para isso. Depois, não havia nela mais nenhum traço do vírus — cis ou trans. Tudo tinha desaparecido.

A não ser a cura.

Descobriu-se que não era um anticorpo, uma enzima, nem mesmo um leucócito. Era a bactéria. A mesma cianobactéria que a fizera brilhar.

A segunda exposição tinha alterado mais uma vez a bactéria, modificando inteiramente o ciclo vital. Como lactobacilos saudáveis no iogurte, a bactéria, quando ingerida ou inoculada, produzia compostos benéficos que destruíam qualquer bactéria tóxica gerada pela Estirpe de Judas e eliminava todos os traços do próprio vírus, digerindo-o.

A cura produzia sintomas equivalentes aos de uma gripe comum, então a pessoa se tornava imune a uma reinfecção. A bactéria também parecia funcionar como uma vacina em sujeitos saudáveis, oferecendo imunidade à exposição, como a vacina Salk contra a pólio. Mas, o melhor de tudo, também se mostrou uma cultura sim¬pies. Amostras tinham sido enviadas para laboratórios de lodo o mundo. Enormes quantidades da vacina já estavam sendo produzidas, um estoque global para deter a pandemia inicial e proteger o mundo de qualquer recorrência futura. Organizações de saúde continuavam a manter vigilância contra isso.

—        E quanto à ilha Christmas, onde tudo começou? — perguntou Lisa, sentando-se na beirada da cama.

Painter substituiu algumas flores murchas pelas rosas.

—        Parece bem. Por falar nisso, eu li alguns dos papéis que seu amigo Jessie roubou do navio antes de ele afundar. Aparentemente, quando a Guilda deixou a ilha Christmas, esvaziou uma carga de alvejante ao longo da costa. Não por nenhum altruísmo, claro. Apenas tentava apagar o acontecimento principal, confundir os concorrentes da descoberta.

—        Você acha que isso irá impedir o reaparecimento?

Painter deu de ombros, encaminhou-se para a cama e sentou. Ele pegou a mão dela, não com algum objetivo, apenas por reflexo, exatamente o motivo pelo qual ela o amava tanto.

—        Difícil dizer — respondeu ele, acrescentando: — O tufão varreu a ilha. Equipes internacionais de cientistas marinhos estão monitorando as águas, lideradas pelo dr. Richard Graff. Depois da ajuda dele com o problema dos caranguejos, achei que ele merecia a missão.

Lisa apertou a mão de Painter. A menção a Graff a fez lembrar de Monk. Ela suspirou, observando a movimentação do peixinho no aquário ao lado da cama.

Painter soltou a mão, colocou o braço em seus ombros e puxou-a para si. A outra mão encontrou novamente a dela. Ele sabia onde o coração dela estava naquele momento. Sua voz ganhou um tom grave, afastando um pouco de sua jovialidade.

—        Você soube que estávamos entrevistando todos os sobreviventes do Mistress of the Seas?

Ela não respondeu, apenas deslizou o braço pela cintura dele. Ela sabia que não seriam boas notícias.

A ilha ainda estava sob quarentena, uma parceria entre a Austrália e os Estados Unidos. Comandos australianos tinham conseguido organizar uma evacuação completa do navio enquanto ele queimava e afundava. A maior parte do trabalho da Guilda estava a mais de 300 metros de profundidade, um acréscimo ao lar profundo das lulas predadoras. Isso tornava mergulhos no naufrágio extremamente perigosos. As lulas tinham sido classificadas como uma nova espécie de Taningia, e receberam o nome de Taningia tunis em homenagem ao marido de Susan.

Na véspera Lisa falara com Henri e Jessie no campo de refugiados de Pusat. Eles tinham sobrevivido, conseguindo proteger a maioria dos pacientes e da equipe da OMS, ajudados pelos canibais durante a confusão. Todos estavam sendo submetidos a tratamento, e até o momento estavam bem. As únicas exceções eram aqueles poucos que tinham mergulhado em um estado de completa loucura. O dano cerebral parecia permanente. A maioria dos afetados morrera quando o navio afundou. Nenhum membro da equipe da Guilda conseguira sair do navio com vida.

Com exceção, talvez, de um.

Jessie contara a Lisa a história da evacuação. Ele tinha chegado a uma cela trancada. Ouviu crianças gritando do lado de dentro. Entrara a tempo de resgatar as crianças, que contaram a história de um estranho anjo que tinha aparecido e as reunido, mantendo-as afastadas do perigo. Esse anjo tinha então atraído um grupo de pacientes enlouquecidos para fora da prisão, fazendo-se de isca.

As crianças tinham descrito seu anjo.

Cabelo preto comprido, vestido de seda, silencioso como um túmulo.

Surina.

Ela tinha desaparecido.

Painter continuou:

—        Nós entrevistamos todos no campo.

—        Sobre Monk — sussurrou ela.

—        Um dos médicos da OMS se escondeu no convés do navio. Ele tinha binóculos. Viu a fuga de vocês no Sea Dart. Pelo binóculo ele viu Monk cair, testemunhou a rede se abater sobre ele, arrastando-o para baixo — disse Painter, dando um suspiro cansado. — Ele não voltou mais à superfície.

Lisa fechou os olhos. Sentiu algo explodir dentro de si, espalhando um ácido causticante por suas veias, enfraquecendo-a. Uma parte dela ainda tinha esperanças... uma mínima chance... Por isso tinha se ajoelhado do lado de fora em frente a um dos Budas.

Rezara para que ele ainda estivesse vivo.

—        Ele partiu — murmurou, finalmente admitindo para si mesma.

Oh, Monk...

Lisa abraçou Painter com força. Suas lágrimas molharam a camisa dele. Dedos se agarraram a ele enquanto ele a tranqüilizava com sua presença.

—        Você já contou a Kat? — grunhiu, apoiando a face no peito dele.

Painter permaneceu calado.

Lisa o sentiu tremer.

Ele já havia contado.

Tirou a mão dele de seu ombro e beijou-lhe a palma.

Ele falou em um sussurro, seco e profundo.

—        Nunca me abandone.

Lisa lembrou por que fora naquela missão. Para avaliar sua vida longe da sombra de Painter. Para poder ter uma perspectiva enquanto suas vidas se fundiam, profissional e pessoalmente.

Ela encontrara a resposta.

De ataques canibais às torturas de loucos.

Sabia que era forte o bastante para ficar sozinha.

Mas...

Ela se ergueu, beijando os lábios dele e sussurrando:

—        Este é o meu lugar.

 

Gray atravessou o caminho do jardim do hospital. Vestia jeans, botas e uma camisa com estampa tropical para fora da calça. Era bom usar roupas normais outra vez, livre do avental do hospital. Também era bom estar ao ar livre, sob o sol, embora seus pulmões ainda parecessem pesados e a luz brilhante incomodasse seus olhos sensíveis. Ele ainda estava se curando, mas sua energia inesgotável após uma semana trancado se transformara em irritação.

Seu ritmo acelerou, os passos se tornaram mais largos. Ele dera a volta no jardim todo, ao redor do prédio. Não queria surpresas.

Estava planejando isso havia três dias, e aquela era a hora. O portão do hospital surgiu à frente.

Eles eram autorizados a sair, mas apenas até a aldeia vizinha. Dando a volta em uma cerca viva alta, Gray chegou a uma pequena alcova, um altar particular com um Buda gordo vestido de seda vermelha. Algumas varetas fumegantes de incenso estavam no chão, mas naquele momento a fumaça vinha de outra fonte.

Kowalski estava apoiado no Buda, a palma de uma das mãos no alto da cabeça de pedra. Ele tirou o charuto da boca, soltando uma grossa nuvem de fumaça.

—        Ah, sim... — resmungou ele com um contentamento relutante.

—        Onde você conseguiu um... Ah, deixe para lá — disse Gray estendendo a mão. — Conseguiu encontrar o que eu pedi?

Kowalski apagou seu charuto no ombro do Buda.

Até Gray se encolheu um pouco diante do descuidado sacrilégio.

—        É, mas o que você quer com tudo isso? — perguntou ele, tirando um embrulho de papel das costas. — Subornei meu enfermeiro enquanto tomava um banho de esponja. Claro que era um cara. Ele se divertiu muito com tudo. Mas conseguiu comprar o que você queria.

Gray pegou o embrulho e se virou para olhar para trás. Kowalski cruzou os braços, as sobrancelhas franzidas de desapontamento, e chegou até a dar um suspiro irritado.

Gray recuou.

—        Qual o problema?

Kowalski abriu a boca... e fechou-a.

—        O quê? — insistiu Gray.

Kowalski agitou as mãos no ar.

—        Para começar... Bem, esse tempo todo eu não tive a oportunidade de disparar uma só maldita arma. Nem um fuzil, nem uma pistola, nem um revólver de espoleta! Quer dizer, eu poderia muito bem ter ficado em serviço de guarda em casa. E tudo o que ganhei por meus problemas foi um punhado de agulhas fincadas na bunda.

Gray parou um momento, olhando. Era o discurso mais longo que Kowalski já fizera. Ele estava claramente interessado no tema.

—        Só estou dizendo... — soltou Kowalski, de repente levemente constrangido.

Gray suspirou.

—        Venha comigo.

Ele saiu do esconderijo e se encaminhou para o portão. Devia isso ao cara.

Kowalski seguiu-o.

—        Para onde vamos?

Gray conduziu-o ao portão. Os guardas de plantão acenaram com a cabeça para eles. Colocou o embrulho debaixo do braço e tirou a carteira. Pegou uma nota e deu-a a Kowalski assim que eles atravessaram o portão.

—        O que eu devo fazer com dez dólares? — perguntou ele.

Gray seguiu um pouco mais adiante apontou para a estrada onde uma equipe trabalhava. Ao estilo tailandês. Quatro homens e seus dois animais de carga.

—        Veja... elefantes — disse Gray.

Kowalski olhou para a estrada suja, para a nota em suas mãos, depois novamente para os elefantes. Um enorme sorriso surgiu em seu rosto. Ele partiu, voltou, esforçou-se para demonstrar seu agradecimento, não conseguiu, então desceu a rua novamente.

—        Ah, sim, vou dar um passeio de elefante... — Ele ergueu um dos braços. — Ei, você! Gunga Din!

Gray virou-se e entrou novamente.

Pobre elefante.

 

Vigor descansava em sua cama. Seus óculos de leitura estavam na ponta do nariz. Ele tinha livros empilhados na mesinha-de-cabeceira, atravancando seu aquário de peixinho dourado. Do outro lado da cama do hospital, amontoava-se uma pilha de artigos impressos: sobre escrita angélica, sobre Marco Polo, sobre a história dos khmer, sobre as ruínas de Angkor.

Agora ele relia pela quarta vez o relatório científico que Gray localizara, um artigo da revista Science de 1994, ligando o estudo da linguagem humana ao DNA.

Fascinante...

Um movimento junto à porta aberta desviou sua atenção do artigo. Ele viu Gray.

—        Comandante Pierce! — chamou.

Gray parou junto à porta, olhou o relógio, então se inclinou para dentro.

—        Sim, monsenhor.

Vigor ficou surpreso com a formalidade. Algo deixara Gray tenso. Ele fez sinal para o homem.

—        Entre um instante.

—        Eu só tenho exatamente isto... Um instante — disse ele, entrando. — Como está se sentindo?

—        Bem — disse Vigor, dispensando essas questões. — Eu li este artigo. Não sabia que apenas 3% de nosso genoma é ativo. Que 17% é lixo, e códigos para nada. Mas, quando esse lixo é passado pelo programa de teste de criptografia para linguagem, mesmo esse refugo aleatório também revela uma linguagem. Impressionante — disse Vigor, tirando os óculos e acrescentando: — Gray, e se pudéssemos compreender essa linguagem?

—        Algumas coisas podem estar além de nós para sempre. Vigor discordou serenamente.

—        Eu certamente não acredito nisso. Deus não nos deu esses grandes cérebros para que não os utilizássemos. Nascemos para questionar, para buscar, lutar por uma compreensão completa do universo, tanto exterior quanto interior.

Gray olhou para o relógio novamente, com discrição, baixando os olhos rapidamente para o pulso, sem querer parecer rude.

Vigor decidiu parar de torturar o jovem. Ele obviamente estava ocupado.

—        Irei direto ao ponto. Lembre-se do vão em forma de barril abaixo do Bayon, quando eu mencionei como a escrita angélica — a possível forma escrita dessa linguagem genética desconhecida — poderia ser a Palavra de Deus identificando algo maior em nós, talvez algo enterrado nesses 97% de nosso código genético que são considerados lixo. E se não for lixo? Talvez nós tenhamos conseguido um vislumbre dessa parte maior de nós.

—        O que você quer dizer?

—        A mulher, Susan. Sua transformação não poderia ter sido uma amostra da verdadeira tradução da escrita angélica?

Vigor viu a descrença no rosto do comandante e estendeu a mão.

—        Eu falei com Lisa mais cedo hoje de manhã. Ela mencionou como acreditava que o cérebro de Susan estava completamente excitado pela energia das bactérias quando expostas à luz do sol, despertando partes do cérebro humano que de outro modo estão adormecidas. Eu acho interessante que apenas uma mínima parcela de nosso código genético seja ativa e que ao mesmo tempo utilizemos apenas uma pequena parte de nosso cérebro. Você não acha isso estranho?

Gray deu de ombros, evasivo.

—        Talvez.

Vigor continuou:

—        E se toda aquela escrita angélica mapear nosso pleno potencial, aquele que permanece oculto dentro de todos nós, esperando para ser despertado? Segundo o Gênesis, Deus nos fez à sua imagem. E se essa imagem ainda carece de concretização, enterrada nos setores adormecidos de nosso cérebro, escondida dentro da escrita angélica de nosso DNA-lixo? Talvez tudo aquilo escrito nas paredes sob o Bayon, brilhando no escuro, talvez o autor do passado também estivesse tentando compreender esse potencial. Você mesmo mencionou como ele era incompleto, com seções faltando.

—        É verdade — admitiu Gray. — E você fez algumas conjecturas interessantes que merecem ser estudadas, mas não sei se um dia conheceremos a verdade. Susan voltou ao normal, e eu soube por Painter que uma equipe de escavação conseguiu chegar ao vão sob o Bayon. Algumas das paredes foram encontradas intactas, mas a bomba ácida de Nasser limpou as superfícies. Não restou nada da escrita.

Vigor ficou penalizado.

—        Uma vergonha. Ainda assim, fico pensando em algo que não encontramos na caverna.

—        O quê?

—        Sua tartaruga. Você achava que o vão poderia conter um mistério mais profundo, algo que represente a encarnação de Vishnu.

—        Talvez fosse apenas a Estirpe de Judas. O lago brilhante. Até você mencionou como os antigos khmer provavelmente descobriram por acaso a caverna brilhante e a consideraram o lar de algum deus. Talvez de Vishnu.

Vigor olhou para o comandante.

—        Ou talvez Susan fosse um vislumbre daquele mistério maior, do potencial divino ou angelical oculto dentro de todos nós.

Gray finalmente deu de ombros, claramente prestes a descartar aquilo. Mas, como Vigor esperara, ele percebeu um leve levantar de sobrancelhas no homem. Curiosidade. Ele queria que Gray mantivesse a mente aberta.

Mas Vigor também viu que havia algo mais urgente na mente do homem, exigindo atenção. Ele despediu-se de Gray.

Vigor chamou-o quando ele atravessou a porta.

—        Mande minhas lembranças a Seichan.

Gray tropeçou, franziu um pouco o cenho e foi embora.

Vigor recolocou os óculos de leitura.

Ah, a juventude...

 

Gray deu a xícara de café ao guarda do lado de fora da porta de Seichan.

—        Ela está acordada?

Ele deu de ombros, um jovem guarda-marinha louro de Peoria.

—        Não sei.

Gray passou pela porta. Era uma missão tediosa para o guarda. A paciente estava quase sempre sedada depois de ter sido submetida a uma segunda operação no ferimento à bala. Os pontos no ferimento tinham se rompido, e Seichan tivera hemorragia interna.

Tudo porque salvara a vida de Gray.

Ele lembrava-se dos braços de Seichan carregando-o, a dor em seu rosto coberto de bolhas, o olho inchado. Mas ele não entendera que, ao voltar para pegá-lo, ela quase tinha morrido.

Gray entrou no quarto.

Ela estava algemada à cama, os braços estendidos dos dois lados.

Vestia um avental de hospital, e estava coberta com um lençol limpo.

O quarto, destinado a pacientes mentais, era frio e impessoal. Os únicos móveis eram a cama e uma mesa com rodinhas colocada junto à parede. Uma janela alta e estreita tinha uma persiana metálica.

Seichan ficou rígida quando ele entrou. Ela virou a cabeça. Seu rosto endureceu, e ela baixou os olhos ligeiramente, envergonhada com sua imobilização. Depois veio a raiva, que apagou todo o resto. Ela deu um puxão em um dos pulsos algemados.

Gray se aproximou e sentou na cama.

—        Embora meus pais estejam vivos — disse ele, indo diretamente ao ponto —, isso não significa que eu a perdoe. Que um dia a perdoarei. Mas tenho uma dívida com você. Não a deixarei morrer. Não desta forma.

Gray tirou do bolso as chaves das algemas. Ele esticou o corpo e levantou seu pulso. Sentiu com a ponta dos dedos a pulsação dela acelerar.

—        Eles irão mandá-la para a baía de Guantánamo pela manhã — disse ele.

—        Eu sei.

E, como Gray, ela também sabia que isso era uma sentença de morte. Se ela não fosse executada imediatamente, a Guilda a assassinaria para silenciá-la, ou uma das outras agências de inteligência o faria. O Mossad israelense ainda tinha uma sentença de morte contra ela.

Ele enfiou a chave e girou a fechadura. A trava se abriu.

Seichan sentou-se, ainda demonstrando desconfiança.

Ela estendeu a palma da mão, pedindo a chave, testando-o.

Gray deu-a a ela. Enquanto ela soltava a segunda trava, ele colocou na cama o embrulho que Kowalski conseguira.

—        Tenho três mudas de roupa: um uniforme de enfermeira, trajes locais e outro camuflado. Também há dinheiro local. Não tive como conseguir uma identidade, não com tão pouco tempo.

A outra trava de Seichan se abriu. Ela se virou, esfregando os pulsos. O som macio de um corpo caindo ao chão atravessou a porta.

—        Ah, e eu droguei o guarda.

Ela olhou para a porta, e depois novamente para ele. Seus olhos brilharam. Antes que pudesse se mexer, ela agarrou seu colarinho e puxou-o para si. Ela o beijou com força, sua boca se abrindo, com um gosto doce de remédio.

Gray recuou instintivamente. Ele não tinha ido lá para...

Ah, dane-se...

Ele pegou sua cintura e apertou-a contra si. Sem se soltar, ela foi para ele, sobre ele, em cima dele. Seus pés baixaram para o chão. Ele girou, caindo para trás. Ele ouviu travas se fechando. Ela se afastou dele.

Seu pulso direito fora algemado à cama.

Ele olhou a tempo de ver o cotovelo dela indo na direção do seu rosto. Sua cabeça foi jogada para trás. Ele sentiu gosto de sangue nos lábios. Ela saltou sobre ele, prendendo-o à cama, sentada em seu peito. Ergueu o punho. Ele levantou o braço livre para bloquear. Ela esticou a cabeça.

—        Isso precisa parecer convincente, ou você é que será mandado para Guantánamo por traição.

Ela estava certa.

Gray baixou o braço.

Ela o acertou com força, cortando seu lábio. Sua cabeça girou com o golpe. Ela sacudiu as mãos e ergueu o punho novamente.

—        E isto é por não confiar em mim — disse, desferindo outro golpe. Sangue escorreu do nariz dele. Ele se sentiu apagar, depois acordou. Ela se abaixou, junto a seu ouvido.

—        Você se lembra da pequena promessa que fiz a você no começo?

—        Qual? — perguntou ele, virando-se de lado e cuspindo.

—        De revelar o agente duplo quando tudo tivesse acabado.

—        Mas não havia agente duplo.

—        Tem certeza disso?

Os olhos dela se fixaram nos seus. De repente, ele não tinha tanta certeza. Ela se sentou novamente, girou o cotovelo e disparou um golpe no olho dele.

—        Deus do céu!

—        Isso vai inchar bem — avisou, esfregando os lábios, estudando-o, como um artista observando uma pintura a óleo inacabada. Então disse:

—        Eu sou o agente duplo, Gray.

—        Como?

—        Um agente duplo plantado na Guilda.

Ela arremessou o punho no outro olho dele. Ele viu tudo escuro por um instante.

—        Eu estou entre os mocinhos, Gray. Você ainda não se deu conta disso?

Gray ficou lá, atônito, com suas palavras, com seus golpes.

—        Um agente duplo? — tossiu, incrédulo. — Há dois anos você atirou em mim! Direto no peito.

Ela preparou outro golpe.

—        Sabia que você estava com uma armadura líquida. Você nunca pensou por que eu estava usando o mesmo? Pense, Gray.

O punho dela desceu. Dessa vez ela acertou a base do nariz, obviamente pensando se deveria quebrá-la.

—        E a bomba de antraz, em Fort Detrick? — perguntou ele.

—        Estava esterilizada. Uma fraude. Eu planejava colocar a culpa no projetista da bomba.

—        Mas... e o curador em Veneza? — cuspiu ele. — Você o matou a sangue-frio.

Ela correu as unhas pela bochecha esquerda dele, fazendo arranhões fundos.

—        Se eu não o tivesse feito toda a família dele teria sido chacinada. Incluindo mulher e filha.

Gray olhou para cima com uma expressão de dor. Ela tinha uma resposta para tudo.

Seichan se curvou para trás, levando a base da palma à altura da orelha, mirando o nariz dele.

—        E eu não vou parar... Não após cinco anos, não quando estou muito perto de descobrir quem chefia a Guilda.

Ela baixou a mão, mas dessa vez ele segurou-lhe o pulso. Ela jogou seu peso, pressionando-o.

—        Seichan...

Ela olhou para ele, os músculos tensos, os olhos ferozes, como se sentisse dor. Seus olhos se encontraram. Ela examinou o rosto dele, procurando algo. Não pareceu encontrar. Por um instante, ele viu desapontamento em seus olhos. Também desgosto... talvez solidão. Então, desapareceu.

Seichan o acertou com o outro cotovelo, um golpe na orelha que o fez ver estrelas. Gray a soltou. Ela caiu para trás, afastando-se dele.

—        Já é o bastante — murmurou, virando-se.

Ela foi até as roupas, tirou o avental do hospital e colocou rapidamente o uniforme de enfermeira, incluindo um lenço de seda discreto para esconder o rosto machucado. Ela ficou de costas para ele.

—        Seichan?

Já vestida, ela não disse uma palavra, limitando-se a ir na direção da porta. Não se voltou, apenas pediu uma coisa a ele, falando suavemente, uma corda jogada em sua direção.

—        Confie em mim, Gray. Pelo menos um pouco. Eu mereci isso.

Antes que ele pudesse responder, ela saiu. A porta se fechou atrás dela.

Confie em mim...

Que Deus o ajude, ele tinha confiado.

Ele se ajeitou na cama, o rosto latejando, seu olho inchando.

Quinze minutos se passaram. Tempo suficiente para permitir que ela escapasse.

Finalmente, Painter apareceu à porta, entrando.

—        Você ouviu tudo? — perguntou Gray.

—        A escuta pegou tudo.

—        Será que ela está dizendo a verdade?

Painter franziu o cenho, olhando para trás, para a porta.

—        Ela é urna mentirosa contumaz.

—        Talvez tenha que ser. Para sobreviver dentro da Guilda. Painter abriu as algemas.

—        Seja como for, o rastreador que colocamos na barriga dela durante a operação permitirá que localizemos seu paradeiro.

—        E se a Guilda o descobrir?

—        É um polímero plástico, invisível ao raio X. Eles nunca o detectarão.

A não ser que a abram.

Gray se levantou.

—        Isso é errado. Você sabe.

—        Só assim o governo permitiria que a libertássemos.

Gray lembrou-se dos olhos de Seichan, olhando para ele.

Ele sabia duas verdades.

Ela não tinha mentido.

E mesmo agora, ela certamente não estava livre.

 

—        Os trabalhos de restauração parecem ótimos — disse Gray.

Seu pai deslizou um pano com cera de automóvel no capo do Thunderbird. Eles tinham resgatado o conversível, rebocando-o. Painter conseguira que o carro fosse consertado na melhor oficina de restauração de clássicos da região de Washington. Seu pai o tinha pegado na semana anterior, mas era a primeira vez que Gray o via.

Seu pai deu um passo atrás, as mãos na cintura. Ele vestia uma camiseta suja de graxa e uma bermuda, exibindo sua nova perna, outra cortesia da Sigma, um projeto DARPA extraordinariamente realista. Mas não era com a perna que seu pai estava preocupado no momento.

—        Gray, o que você acha dessas novas rodas? Não são tão boas quanto minhas antigas rodas de raios.

Gray foi para perto do pai. Para ele pareciam iguais.

—        Você está certo — disse ele mesmo assim. — São um lixo.

—        Hum — disse o pai, evasivo. — Mas foram de graça. Aquele camarada Painter foi muito generoso.

Gray tinha a noção de aonde aquilo iria chegar.

—        Pai...

—        Sua mãe e eu conversamos sobre isso — disse ele, ainda olhando para as rodas. — Achamos que você deve continuar na Sigma.

Gray coçou a cabeça. Ele já estava com a carta de demissão no bolso. Quando retornou do Camboja, encontrou o pai no hospital, o peito queimado com os choques da Taser. O braço da mãe estava na tipóia por causa de uma pequena fratura no pulso. O pior era seu olho preto.

Tudo por causa dele.

Ele quase perdera o controle no hospital.

Que segurança poderia oferecer aos pais caso continuasse? A Guilda certamente sabia quem ele era, onde encontrar seu pessoal. A única forma de mantê-los em segurança era se demitir. Painter tentou garantir que a Guilda iria recuar. Que vingança e retaliação não eram seus métodos. Painter garantira a Gray que em futuras missões seus pais seriam colocados em segurança antes que ele partisse.

Mas algumas missões o atropelavam de motocicleta.

Não havia como se organizar para isso.

—        Gray — pressionou o pai —, o que você faz é importante. Você não pode deixar que a preocupação conosco o detenha.

—        Pai...

Ele ergueu a mão.

—        Eu disse o que tinha de dizer. Você toma a sua decisão. Eu preciso descobrir se gosto destas rodas ou não.

Gray começou a se virar.

Seu pai foi até ele, agarrou seu ombro e puxou-o para um abraço. Ele deu um aperto e depois o afastou um pouco.

—        Vá ver o que sua mãe está fazendo para o café.

Gray se encaminhou para a porta dos fundos e encontrou a mãe saindo.

—        Ah, Gray, eu estava no telefone com Kat. Ela disse que você viria para cá esta manhã.

—        Antes de ir para o escritório. Estou com algumas coisas do Monk na varanda da frente. Papai vai me emprestar o carro para que eu possa fazer algumas coisas para Kat esta tarde também.

—        Eu sei que o funeral é só daqui a dois dias, mas tenho algumas tortas. Você poderia levá-las também?

—        Tortas? — perguntou Gray, em dúvida.

—        Não se preocupe. Eu as comprei na confeitaria aqui perto. Ah, e tenho alguns brinquedos para Penélope. Encontrei um lindo suéter com elefantes e...

Ele se limitou a concordar, sabendo que em algum momento sua mãe iria parar.

—        Como Kat está lidando com tudo isso? — perguntou ela, por fim.

Gray balançou a cabeça.

—        Dias bons e dias ruins.

Principalmente ruins.

Sua mãe suspirou.

— Vou pegar as tortas. Na última vez em que a vi, Kat estava magra como um palito, pobrezinha.

Gray logo recebeu uma sacola de armazém cheia de caixas de tortas. Ele atravessou a casa na direção da varanda da frente. Saiu e foi até a pilha de caixas. Elas continham tudo o que estava no armário de Monk e algumas coisas que estavam no apartamento de Gray.

Gray também tinha uma caixa para levar para a funerária. Ryder Blunt, o bilionário, tinha devolvido a prótese de Monk; fora obrigado a cortar o suporte da asa do hidroavião para soltá-la. Kat se recusara a sequer olhar para ela. E Gray não a culpava. Mas ela pedira que a mão fosse colocada no caixão vazio que seria baixado no Cemitério Nacional de Arlington. Todos também deveriam levar lembranças para colocar no caixão.

Gray encontrara uma cópia do filme preferido de Monk. Ele o deixara no apartamento de Gray depois de uma noite de pizza e pipocas. A noviça rebelde. Monk conhecia todos os diálogos, e cantava junto enquanto balançava Penélope no joelho. Monk era o homem com o maior coração que ele conhecera.

Ele teria sido um grande pai.

Gray foi até o balanço da varanda. Tirou do bolso sua carta de demissão dobrada em três, um pouco amassada. Alisou as dobras entre o polegar e o indicador. Ele gostaria de poder conversar com Monk sobre aquilo.

Ao sentar, ouviu algo arranhando entre as caixas.

Os esquilos da vizinhança eram ousados.

Droga, as tortas...

Gray levantou-se e foi até a pilha. Mas o barulho não vinha da sacola de tortas. Ele franziu o cenho. Ele revirou tudo até encontrar a caixa certa. Que diabo é isso?

Gray tirou a tampa.

Painter não tinha apenas pedido o conserto da perna do seu pai e do Thunderbird danificado. Ele não queria mandar a mão de Monk para baixo da terra carbonizada como ficara. Então mandou que a prótese fosse cuidadosamente restaurada. Ela estava em um molde de espuma.

Só que agora um dos dedos estava cavando a espuma.

Gray levantou a mão. O indicador se mexeu no ar. Gray sentiu um arrepio. E se Kat tivesse visto aquilo?

Devia ser um curto-circuito.

Ele colocou a mão na cadeira da varanda. O dedo continuou a se mexer, batendo no assento de madeira. Gray virou-se, incomodado. Pegou seu telefone celular, pronto para amaldiçoar quem quer que tivesse feito besteira na Sigma.

Mas, enquanto discava, seu ouvido permanecia morbidamente atento às batidas. Enquanto ouvia, Gray se deu conta de que elas seguiam um padrão.

Em código Morse.

Um conhecido aviso de problemas.

S.O.S.

Gray virou-se, olhando para baixo, para a mão. Não era possível.

— Monk...?

 

Susan Tunis subiu a ravina íngreme da montanha cercada de floresta acompanhando a brilhante queda-d'água. Uma bela névoa pairava no ar, cintilando à luz do sol. Um gibão-de-crista gritou em protesto contra sua passagem, pendurado por um braço em uma trepadeira, o rosto negro emoldurado por pelagem cinza.

Ela continuou em frente, movendo-se pela floresta tropical com um propósito. As montanhas Cardamom eram a fronteira entre o Camboja e a Tailândia, uma terra inóspita de florestas densas e montanhas inacessíveis. No seu quarto dia nas montanhas, dormindo em uma rede sob um mosquiteiro, ela vira um perigoso tigre da Indochina, com seu corpo sólido e listras estreitas. Ele deslizou pela floresta, dando um rugido baixo.

Fora isso, não vira nada maior do que o gibão barulhento.

Certamente não pessoas.

Em função do isolamento e do terreno difícil, as montanhas tinham sido o último refúgio dos guerrilheiros do Khmer Vermelho, que se refugiaram lá por causa da topografia. Minas terrestres ainda eram um grande perigo.

Mas Susan suspeitava de que estava bem além do ponto em que mesmo os guerrilheiros tinham ousado ir. Ela chegou ao alto de uma montanha e seguiu a corrente por um platô arborizado. À frente, pequenas formas deslizaram para a água, saindo de abrigos em troncos.

Batagur baska.

Tartarugas de rio asiáticas. Uma das espécies mais ameaçadas do planeta. Também conhecida como Tartaruga Real, reverenciada como guardiã dos deuses.

Ali era o lar delas.

Logo depois de seus ninhos de lama e túneis de hibernação, Susan se deparou com um conjunto de jarros junto ao rio, potes de cerâmica cilíndricos com 90 centímetros de altura cobertos de musgo, gravados com intrincados desenhos. Antigos vasos funerários. Eles continham os ossos de reis e rainhas. Havia vários sítios assim espalhados pelas montanhas, considerados muito sagrados.

Mas ninguém visitara aquele sítio específico, o mais antigo de todos.

Susan se afastou do rio e atravessou o cemitério. Os vasos funerários diminuíam à medida que a floresta terminava em um penhasco irregular.

Ela sabia para onde tinha que ir, sabia desde o momento em que fora ressuscitada pela dra. Cummings. Ela conseguira mais do que apenas a cura para o mundo. Mas não contara a ninguém.

Não era a hora.

Susan chegou ao penhasco e se dirigiu a uma fenda em forma de relâmpago, com 60 centímetros de largura na base. Ela empurrou sua mochila e virou de lado para passar pela abertura. Deu passos pequenos, deslizando cada vez mais para o fundo. Atrás dela, a luz do sul diminuía, tornando-se cada vez mais fina.

Logo ela estava na escuridão completa.

Susan estendeu uma das mãos, esticando o braço para a frente. Um fogo ardente, vindo de dentro, queimou-lhe a ponta dos dedos e se espalhou pelo ombro. Ela ergueu o braço como uma lamparina.

Era outro segredo que ela guardara.

Mas não era o maior deles.

Iluminando seu próprio caminho, ela foi ainda mais fundo. Não sabia há quanto tempo viajava, tendo perdido a clara noção das horas. Mas certamente era tarde da noite.

Finalmente surgiu um brilho, chegando até ela.

Dando-lhe as boas-vindas.

Igual ao seu.

Ela continuou no mesmo ritmo, não sentindo necessidade de se apressar.

Por fim, ela chegou a um grande vão. A fonte da luz era clara. Espalhando-se a distância, pequenos fogos brilhavam como estrelas espalhadas pelo piso abaulado. Centenas e centenas. Ela caminhou para dentro da caverna, passando pelos fogos.

Cada um deles era uma figura, estendida no chão, queimando com um fogo interno, transformando carne em uma translucidez cristalina. Ela olhou para uma delas. Só o que podia ser visto era o sistema nervoso: cérebro, medula espinal e o vasto emaranhado de nervos periféricos. Os braços estendidos, cobertos de fibras filamentosas, pareciam asas abertas, adornadas com tufos de feixes nervosos.

Anjos no escuro.

Adormecidos, esperando.

Susan seguiu em frente. Ela chegou a uma figura que não estava tão consumida, que ainda apresentava a batida de um coração e o fluxo do sangue, os ossos ainda surgindo em forma e função.

Susan encontrou um espaço vazio ao seu lado e se deitou. Ela esticou os braços. As pontas de seus dedos tocaram seu vizinho.

As palavras chegaram a ela em um antigo dialeto italiano, mas ela compreendeu.

Foi feito?

Ela suspirou. Sim. Eu sou a última. A fonte foi destruída.

Então descanse, criança.

Por quanto tempo? Quando o mundo estará pronto?

Ele respondeu a ela. Seria um sono muito longo.

O que eu devo fazer?

Vá para casa, criança... por ora, vá para casa.

Susan fechou os olhos e deixou que aquilo que precisava dormir saísse. Ela deslizou para dentro da bolha que compunha a inteireza de sua vida e a atravessou para o que havia além.

A luz cegou-a como se ela olhasse diretamente para o sol. Ela baixou os olhos, piscando. O mundo ressurgiu ao redor dela. O balanço gentil do barco sob seus pés nus. O grito de uma gaivota solitária, as ondas batendo contra o casco e o vento varrendo sua pele.

Era um sono, uma lembrança... ou algo mais?

Ela respirou o ar salgado. Um belo dia.

Foi até a amurada do barco e olhou para a imensidão azul. Ilhas verdes surgiam a distância. Algumas nuvens passavam. Ela ouviu o barulho de passos na escada que subia da cabine.

Enquanto se virava ele apareceu, erguendo-se com os braços, usando short e uma camiseta Ocean Pacific. Ele a viu, com uma expressão surpresa.

Então sorriu.

—        Ah, você está aí.

Susan correu para Gregg, passando os braços ao redor do marido. Embaixo, Oscar latiu. Uma voz ranzinza gritou com o velho cão. Susan mais uma vez se aninhou no marido, ouvindo as batidas do seu coração.

Ele a abraçou também.

—        O que há, Susan?

Ela ergueu os olhos para o rosto de Gregg, levou os dedos à barba de três dias em seu queixo. Então ficou na ponta dos pés para alcançar seus lábios.

Ele se curvou para chegar a ela.

E ela soube que estava em casa.

 

 

                                                                                                    James Rollins

 

 

 

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