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A Nuvem Envenenada / Arthur Conan Doyle
A Nuvem Envenenada / Arthur Conan Doyle

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Nuvem Envenenada  

                          

As Linhas Maculadas

    Preciso fixar logo no papel estes acontecimentos fabulosos, enquanto ainda consigo lembrar claramente os detalhes e antes que o tempo possa embotar-me a memória. Mas agora mesmo, na mesma hora em que me preparo a relatar tais fatos extraordinários, ainda não consigo deixar de surpreender-me por tudo isto ter sido presenciado justamente pelo nosso pequeno grupo: o professor Challenger, o professor Summerlee, o Lord Roxton e eu.

    Há alguns anos, quando relatei no Daily Gazette a nossa famosa viagem à América do Sul, nem passou pela minha mente que logo eu teria de contar fatos ainda mais extraordinários, acontecimentos que certamente não tem comparação nos anais da humanidade, talvez fadados a nunca mais se repetirem na história.

    Os fatos em si são realmente surpreendentes, mas a circunstância que fez com que nós quatro estivéssemos ali, juntos, para presencia-los aconteceu de forma extremamente natural. Contarei esta primeira parte da nossa aventura da maneira mais clara e concisa possível, embora acredite que o leitor, diante da importância do assunto, talvez preferisse uma maior fartura de detalhes.

    Era uma sexta-feira, 27 de agosto, uma data que ficará marcada na história, e eu cheguei à redação do meu jornal e pedi três dias de licença ao Sr. Mc Ardle, o nosso diretor.

    Este último, um escocês da gema, sacudiu a cabeça, agitou os cabelos rebeldes que lhe encobriam a testa e acabou explicando que não tinha a menor vontade de contentar-me.

    “Estava pensando agorinha mesmo, Sr. Malone, que quase certamente iremos precisar dos seus serviços nos próximos dias. Há uma coisa, com efeito, que só o senhor parece estar apto a levar a cabo satisfatoriamente.”

    “Fico muito decepcionado ao ouvir isto”, respondi. “Mas é claro que, se for de fato necessário, estou disposto a desistir dos meus planos embora, eu garanto, se trate de algo extremamente importante. Se porventura fosse possível dispensar a minha presença...”

    “Nem pense nisto. A sua presença é absolutamente indispensável.”

    Fiquei profundamente chateado, mas achei melhor levar a coisa na esportiva. Afinal de contas, a culpa era minha, pois nunca deveria ter esquecido a regra pela qual um jornalista jamais pode dispor à vontade do seu tempo...

    “Vamos esquecer o assunto, então”, eu disse aparentando a maior calma. “O que deseja de mim?”

    “Quero que vá entrevistar aquele sujeito difícil que mora lá pras bandas de Rotherfield.”

    “Está falando do professor Challenger?”

    “O próprio. Na semana passada arrastou aquele repórter novato, o Simpson, por mais de uma milha ao longo da rodovia, segurando-o pelo pescoço e empurrando-o pelas costas. O senhor deve ter lido a respeito do assunto no relatório policial. Não é de se espantar, portanto, que agora os nossos jornalistas prefiram entrevistar os Jacarés do jardim zoológico antes que ter uma conversinha com o homem. No seu caso, no entanto, a coisa é diferente, pois me disseram que vocês são bons amigos.”

    “Sem problemas!”, respondi aliviado. “A coisa vai ser muito fácil. Ainda mais porque queria os três dias de licença justamente para visitar o professor Challenger em Rotherfield. Estamos perto do terceiro aniversário da nossa grande aventura no Planalto, e ele convidou o grupo para festejar o acontecimento na casa dele.”

    “Perfeito!”, gritou Mc Ardle, todo animado. “Acho que o senhor não terá a menor dificuldade em conseguir dele uma explicação detalhada. Se fosse outra pessoa, não a levaria a sério. Mas ele já demonstrou em várias ocasiões ter a cabeça no devido lugar, e nunca se sabe...”

    “O que deseja que lhe pergunte?”, indaguei. “ O que foi que ele fez, desta vez?”

    “Ainda não leu a carta que ele mandou a “Possibilidades Científicas”, no Times de hoje?”

    “Não.”

    Mc Ardle esticou-se para pegar o jornal no chão.

    “Leia em voz alta”, pediu, apontando com o dedo para uma coluna. “Gostaria de ouvir mais uma vez o que ele diz, pois ainda não creio ter entendido direito o que quer dizer...”

    E aqui está a carta que li ao meu diretor:

Possibilidades Científicas

    Senhor, li com divertido prazer, para não mencionar outra emoção menos delicada, o artigo totalmente imbecil do Sr. James Wilson Mac Phail, que apareceu recentemente no seu jornal a propósito das manchas nas Linhas de Frauenhofer, visíveis nos espectros dos planetas que orbitam em volta das estrelas fixas. Ele considera o fenômeno insignificante enquanto, para uma mente mais perspicaz, resulta claro que a coisa é tão importante que chega a ser um perigo para qualquer homem, mulher e criança do nosso planeta.

    Não pretendo absolutamente explicar o meu ponto numa linguagem científica, pois a maioria dos leitores que fundamentam a sua cultura naquilo que lêem nos jornais não iria entender. Assim sendo, procurarei nivelar-me com a mentalidade da ralé e explicar a situação recorrendo a uma analogia elementar ao alcance da inteligência dos seus leitores.

    “Este homem é uma verdadeira figura!”, exclamou Mc Ardle. Sabe muito bem como lidar com as pessoas. Mas prossiga, vamos ouvir a analogia...”

    Vamos supor - recomecei a ler - que uma série de rolhas de cortiça presas umas às outras seja jogada numa correnteza que a leve através do oceano Atlântico.

    As rolhas bóiam e avançam lentamente, cercadas pelas mesmas condições ambientais. Se as rolhas tivessem inteligência, podemos supor que considerariam as tais condições permanentes e seguras. Nós, no entanto, com os nossos conhecimentos superiores, sabemos muito bem que as rolhas poderiam ter inúmeras surpresas. Poderiam, por exemplo, bater num navio, ou numa baleia adormecida, ou então encalhar num banco de areia. De qualquer maneira, a viagem quase certamente acabaria em algum ponto da costa rochosa do Labrador.

    Mas o que poderiam as rolhas pensar disto tudo, ao navegarem despreocupadas em condições que julgam imutáveis e ilimitadas?

    Provavelmente os seus leitores conseguirão entender que o Atlântico representa o desmedido oceano de espaço no qual nos movemos, e que as rolhas nada mais são do que o pequeno e mesquinho sistema planetário ao qual pertencemos. Uma vez que somos apenas uma estrela de terceira grandeza com um séquito de insignificantes satélites, estamos boiando exatamente como os pedaços de cortiça, rumo a uma terrível catástrofe que irá nos surpreender nos confins do espaço, quando seremos tragados por algum etéreo Niagara ou jogados contra um inesperado Labrador. Não consigo entender o ingênuo otimismo do seu colaborador James Wilson Mac Phail enquanto vejo inúmeras razões para ficarmos de sobreaviso diante de qualquer transformação ambiental no universo que nos cerca, da qual poderá depender o nosso destino final.

    “Este homem poderia ter sido um político e tanto!”, exclamou Mc Ardle. “Ressoa como um órgão! Vejamos então o que o preocupa.”

    As manchas nas Linhas de Frauenhofer - continuava a carta - indicam, no meu entender, uma grande transformação cósmica de tipo bastante singular. A luz que nos chega de um planeta é uma luz refletida do sol. A luz que chega até nós de uma estrela, por sua vez, é uma luz que podemos chamar de autogerada, produzida pela própria estrela. Agora, acontece que os espectros dos planetas assim como os das estrelas revelam ter sofrido, todos eles, a mesma mudança. Haverá então uma idêntica transformação afetando tanto os planetas quanto as estrelas?

    No meu entender, uma idéia destas é simplesmente inconcebível.

    Que tipo de transformação poderia com efeito atingi-los ao mesmo tempo? Seria então alguma transformação na nossa própria atmosfera? É possível, mas extremamente improvável, pelo menos até quando não descobrirmos algum sinal disto à nossa volta.

    Poderia haver, então, uma terceira hipótese? Creio que sim, e ela seria a seguinte: a transformação estaria acontecendo naquele espaço incrivelmente tênue que vai de uma estrela para a outra e que ocupa o inteiro universo. Nós estamos boiando no meio deste oceano, levados por uma vagarosa correnteza. E o que impede que esta correnteza nos levem para os indefinidos halos que representam novos fenômenos, halos cujas propriedades são para nós novas e das quais não temos a menor idéia?

    É uma possibilidade que de forma alguma podemos descartar. E a atual perturbação cósmica do espectro é prova disto. Pode ser uma mudança para melhor, mas também pode ser uma mudança fatal ou até mesmo inócua. É justamente este o ponto que desconhecemos. Observadores superficiais e desatentos poderão não levar em conta este fato, mas a profundidade do verdadeiro filósofo logo perceberá que as possibilidades do universo são incalculáveis, e que o sábio deve manter-se preparado a aceitar os acontecimentos mais imprevisíveis.

    Para dar um exemplo bem claro, quem pode jurar que a estranha epidemia da qual hoje mesmo o seu jornal fala, e que de repente acomete um grande número de nativos em Sumatra, não esteja relacionada com alguma mudança cósmica que afetou aqueles indígenas mais rapidamente que os povos da Europa? Esta minha idéia, repito, não passa de uma hipótese sem maior fundamento, e de nada adiantaria, por enquanto, defendê-la ou negá-la. Seria, no entanto, muito tolo aquele que não quisesse admitir que tais fenômenos são perfeitamente aceitáveis dentro das possibilidades científicas.

    Despeço-me atenciosamente.

    George Edward Challenger

    Brias-Rotherfield

    “Uma carta e tanto”, disse Mc Ardle enquanto procurava um cigarro na mesa. “O que pensa disto, Sr. Malone?”

    Tive de admitir a minha total ignorância a respeito do assunto. O que vinham a ser, por exemplo, as Linhas de Frauenhofer?

    Ao contrário de mim, o Sr. Mc Ardle tinha  examinado profundamente a questão com a ajuda do nosso redator científico. Apanhou na mesa duas folhas coloridas e mostrou-me umas linhas pretas que se cruzavam sobre um fundo de cores vivazes que, do vermelho alaranjado ao roxo, passavam por todas as tonalidades do espectro solar.

    “Estes riscos escuros são as Linhas de Frauenhofer”, disse, “e as cores indicam as luzes. Mas isto não vem ao caso. O que interessa são as linhas, pois elas variam segundo aquilo que pode produzir a luz. São justamente estas linhas que, na semana passada, apareceram manchadas em vez de límpidas, e todos os astrônomos continuam até agora tentando descobrir a razão disto. Aqui está a foto das linhas maculadas para a nossa edição de amanhã. Por enquanto o público não se mostrou muito interessado no assunto, mas acredito que ficará bastante curioso depois de ler a carta de Challenger no Times.

    “E o que aconteceu em Sumatra?”

    “Está havendo uma estranha epidemia, e um cabograma que acaba de chegar de Cingapura avisa que todos os faróis do Estreito da Sonda estão apagados, o que já provocou o naufrágio, de dois navios. Seja como for, acho aconselhável que o senhor entreviste Challenger a respeito do assunto. Se conseguir alguma coisa, prepare uma matéria para a edição de segunda-feira.”

    Eu já,estava saindo da sala do diretor, pensando na tarefa que me aguardava, quando ouvi o meu nome sendo gritado por alguém que segurava um telegrama.

    A mensagem era justamente do homem a respeito do qual acabávamos de conversar, e dizia: “Malone, Hill Street 17, Streatham. Traga oxigênio. Challenger”.

    “Traga oxigênio”! Eu sabia muito bem que o professor era conhecido pelo seu humorismo bastante excêntrico, e que era capaz das atitudes mais bizarras. Seria então, aquela, mais uma das piadas que provocavam nele estrondosas risadas durante as quais a sua grande barba se agitava como navio entre vagas tempestuosas? Parei para considerar as palavras da mensagem, mas nada encontrei que pudesse justificar a hipótese de um chiste. Evidentemente, tratava-se de uma ordem: embora, sem dúvida, de uma ordem bastante estranha.

    O professor era a última pessoa no mundo à qual eu ousaria desobedecer. Talvez estivesse preparando alguma experiência química; talvez... mas não cabia a mim quebrar a cabeça só para adivinhar o que ele estava aprontando... Eu só precisava obedecer.

    Ainda teria de esperar quase uma hora antes de pegar o trem na Victoria Station. Depois de procurar o endereço na lista telefônica, peguei um táxi e fui até uma firma produtora de oxigênio, a Oxygen Tube Supply Company, na Oxford Street.

    Ao chegar na firma, dois jovens estavam saíndo dela carregando um botijão metálico que, com alguma dificuldade, colocaram dentro de um carro parado. A operação estava sendo dirigida por um idoso cavalheiro que, em certa altura, virou-se para mim. Não havia como errar, pois o cavanhaque de bode e os traços severos eram inconfundíveis. Tratava-se do meu velho companheiro de aventuras, o professor Summerlee.

    “Ora, ora!”, exclamou. “O senhor também recebeu um daqueles enigmáticos telegramas que pedem oxigênio?”

    Mostrei-lhe a mensagem.

    “Pois é! Eu também recebi e, como pode ver, tomei logo as devidas providências mesmo sem entender a razão do pedido. Como sempre, o nosso amigo é bastante exigente. Presumo que não se trate de uma coisa urgente, pois neste caso ele mesmo teria cuidado do assunto. Não entendo o motivo pelo qual ele não encomendou o oxigênio diretamente.”

    Limitei-me a comentar que devia ter lá os seus motivos.

    “De qualquer maneira, agora é desnecessário que o senhor também compre um botijão. Acho que já temos o bastante...”

    “É evidente que ele também quer que eu leve a minha parte. Acho melhor seguir à risca as suas ordens.”

    Aí, apesar dos resmungos e dos suspiros enfadados de Summerlee, pedi outro botijão de oxigênio e mandei colocá-lo junto do outro, no carro, uma vez que o meu companheiro oferecera-se para levar-me à estação.

    Afastei-me um momento para pagar o motorista do táxi, o qual demonstrou uma descabida grosseria. Voltando para Summerlee, encontrei-o todo preso numa discussão em com os homens que haviam carregado o oxigênio. Estava tão irado que a sua barbicha não parava de fremir. Lembro que um dos dois homens chamou-o de velho gorila, e este impropério ofendeu o motorista do professor a ponto de tirá-lo do carro e quase envolvê-lo numa ruidosa briga de rua que só pôde ser evitada graças aos nossos titânicos esforços.

    Poder-se-ia pensar que é inútil relatar estas bobagens sem maior importância e, com efeito, na hora que aconteceram, eu também as considerei totalmente irrelevantes. Agora, no entanto, quando volto a lembrar o passado, percebo claramente a conexão que elas tinham com a história que comecei a contar.

    Pelo que eu pude entender, o motorista, devia novato, ou então ficara muito perturbado com a briga, pois dirigiu até a estação de forma lastimável. Guiou tão mal que quase chegou a bater, em mais dois veículos, que por sua vez estavam sendo dirigidos com bastante imprudência. Lembro-me, aliás, que o próprio Summerlee chegou a comentar a dificuldade com que já se podiam encontrar motoristas competentes em Londres.

    Em certa altura quase atropelamos um grupo de pessoas que assistiam a uma briga. Os cidadãos, sobremodo indignados, começaram e gritar contra nós e um deles agarrou-se no carro agitando uma bengala sobre as nossas cabeças. Consegui jogá-lo ao chão, mas confesso que só respirei aliviado quando deixamos a turma para trás.

    Esta seqüência de pequenos fatos desagradáveis que se sucediam sem parar deixou-me um tanto nervoso; e, ao mesmo tempo, as maneiras petulantes do meu companheiro revelavam que a sua paciência não tinha de forma alguma aumentado com o passar dos anos.

    Ficamos novamente serenos, no entanto, quando vimos Lord John Roxton que esperava na plataforma da estação, com sua robusta figura fechada numa roupa de caça de cor amarelada.

    O seu rosto franco, com seus olhos inesquecíveis, revelou verdadeira alegria quando nos viu. O velho amigo caiu na gargalhada ao reparar nos dois botijões de oxigênio que trazíamos conosco.

    Vocês também estão levando? “, gritou. “O meu já está no vagão de carga. O que será que o nosso camarada está aprontando desta vez?”

    “Já viu a carta no Times?”, perguntei.

    “Qual é o assunto?”

    “Desvarios!”, resmungou Summerlee, quase com desprezo.

    “Acredito que deve haver alguma relação entre a carta e o pedido de oxigênio”, afirmei.

    “Desvarios!”, repetiu Summerlee, desta vez quase com fúria.

    Enquanto isso, tínhamos entrado num carro de primeira classe para fumantes, e ele acendera o curto cachimbo que sempre parecia querer botar fogo na ponta do seu longo nariz agressivo

    “O bom Challenger é um homem inteligente,” exclamou em seguida, com grande veemência. “Ninguém pode negar, e quem negar isto só pode ser um louco. Estão lembrando o seu grande chapéu? Dentro dele há um grande cérebro, uma máquina poderosa, funcionando ininterruptamente e sem a menor falha! Infelizmente, no entanto, é um verdadeiro charlatão, e vocês sabem que eu disse isto bem na cara dele. Um incorrigível charlatão que adora ver o seu nome nas manchetes dos jornais! Já faz algum tempo que não se fala nele, de forma que agora o amigo Challenger está mais uma vez procurando botar a boca no trombone. Não vão me dizer que realmente acreditam nele quando fala todas essas bobagens acerca de mudanças no espaço e de perigos para a raça humana...”

    E encolheu-se no assento, fazendo um grande estardalhaço com seus motejos e risadas.

    Diante disto, eu quase me deixei vencer pela indignação. Não ficava bem falar assim do nosso chefe, daquele que havia sido a causa da nossa fama e que nos deixara participar de aventuras que nenhum outro homem tinha vivido. Estava a ponto de abrir a boca para dízer-lhe umas boas, quando Lord John adiantou-se.

    “Lembro que uma vez o senhor teve uma divergência com o velho Challenger”, disse friamente, “e ele só levou dez segundos para acabar com os seus argumentos. A meu ver, meu caro professor, trata-se de um homem de nível superior ao seu, e o melhor que o senhor pode fazer é simplesmente deixá-lo em paz...”

    “Por não falar no fato de sempre ter sido um ótimo amigo de nós todos. Pode até ter algum defeito, mas não acho que tenha o hábito de falar mal dos seus companheiros por trás das costas...”

    “Isto mesmo, meu rapaz!”, disse Lord Roxton. Aí, com um sorriso gentil, deu um tapinha nos ombros do professor Summerlee, ao qual se dirigiu em tom amigável:

    “Vamos lá, Herr Professor, será que realmente vamos ter de brigar? Já passamos por muitas aventuras juntos. Mas cuidado quando quiser dar umas alfinetadas em Challenger, porque tanto eu quanto este rapaz temos um fraco pelo nosso velho companheiro...”

    Summerlee, entretanto, não estava minimamente a fim de assinar um armistício. O seu rosto logo revelou que não concordava conosco, e desabafou o seu mau humor com densas nuvens de fumaça que se avolumaram em voltado do seu cachimbo.

    “Quanto ao senhor, Lord John Roxton”, gargalhou escarnecedor, A sua opinião sobre assuntos científicos tem para mim a mesma importância que, aos seus olhos, teria o meu ponto de vista acerca de questões de caça. Eu penso com a minha cabeça, senhor, e uso o meu julgamento da forma que eu bem quiser! Será que agora, só porque uma vez a minha cabeça falhou, terei de aceitar como evangelho tudo aquilo que Challenger decidir defender? Será que de repente querem nomeá-lo papa das ciências, guia infalível, e aceitar sem discussão todas as suas lorotas? Repito, meu senhor, que penso com o meu próprio cérebro, e que se assim não fosse, sentir-me-ia completamente inútil, um escravo! Se os senhores acharem melhor acreditar nessas bobagens de éter e de Linhas de Frauenhofer, fiquem à vontade; mas por favor não exijam que alguém mais velho e sábio que vocês os acompanhe nessa loucura! Não lhes parece óbvio que, se as condições do éter fossem atualmente prejudiciais à saúde dos homens, isto já teria ficado patente?” E aí riu triunfalmente. “Pois é, meus senhores, nesta altura nós todos já estaríamos apresentando sinais de anormalidade, e em lugar de estarmos aqui tranqüilamente sentados, examinando um problema científico dentro de um vagão ferroviário, já estaríamos revelando os sintomas do veneno dentro de nós. Digam, estão por acaso vendo algum sinal deste envenenamento?”

    O velho tornava-se cada vez mais furioso. Havia algo bastante agressivo e irritante no desabafo de Summerlee.

    “Acho que se o senhor estivesse mais a par dos acontecimentos, seria menos rígido na sua maneira de pensar!”, ousei dizer.

    Summerlee tirou o cachimbo da boca e lançou-me um olhar interrogativamente cortante.

    “Gostaria de dizer-lhe que, na hora de sair do jornal, soube pelo meu diretor que havia chegado um cabograma confirmando a epidemia entre os nativos de Sumatra, assim como a falta de funcionamento dos faróis do Estreito da Sonda.”

    “Na verdade, a loucura humana deveria ter limites!”, berrou Summerlee, totalmente descontrolado. “Será possível que vocês não entendam que o éter, se quisermos aceitar por um momento a louca hipótese de Challenger, é uma substância universal, a mesma aqui do outro lado do mundo? Ou será que acreditam num éter inglês e em outro, diferente, em Sumatra? Só me resta dizer que a ignorância e a credulidade dos homens são infinitas! Como é que alguém pode, pensar que em Sumatra o éter é pernicioso a ponto de provocar uma doença geral, enquanto o dos países em que moramos não consegue ter efeito algum sobre nós? Quanto a mim, posso afirmar em sã consciência,que nunca me senti tão bem como agora.”

    “Pode ser. Eu não sou um cientista”, opinei. “Mas acho que, justamente por termos tão escassas noções acerca do éter, nada impede que este sofra, sem que nós percebamos, a influência de condições locais, em diferentes partes do mundo, e tenha nestas áreas efeitos que só mais tarde ficarão patentes entre nós.”

    “Com os seus ‘talvez’ e ‘pode ser', o senhor não está provando coisa alguma!”, exclamou Summerlee. “Os porcos podem voar, sim senhor: eu poderia afirmar que os porcos podem voar, mas na verdade eles não voam. Nem vale a pena conversar com vocês. Challenger encheu-lhes a cabeça com as suas lorotas, e nenhum dos dois já consegue raciocinar. Seria o mesmo que conversar com as almofadas deste camarote!”

    “Vejo-me forçado a dizer, professor Summerlee, que os seus modos não parecem ter melhorado desde a última vez que tive o prazer de encontrá-lo”, disse Lord John.

    “Vocês nobres não estão acostumados a ouvir a verdade!”, respondeu Summerlee com um sorriso azedo. “Quando alguém lhes demonstra que todos os seus títulos de nada adiantam para diminuir a sua ignorância, quase parece que estão recebendo uma paulada na moleira...”

    “Palavra de honra”, disse Lord John, realmente indignado, “se o senhor fosse mais jovem, não deixaria que me falasse desta forma!”

    Summerlee esticou o pescoço para a frente, a sua barbicha tremendo como nunca.

    “Fique sabendo, meu senhor, que tanto na juventude quanto na velhice, em momento algum tive medo de falar às claras com um molengão ignorante! Isto mesmo, um molengão inútil e ignorante!...”

    Por um momento os olhos de Lord John faiscaram. Aí, com a maior dificuldade, dominou a sua indignação e voltou a sentar-se de braços cruzados. Para mim, aquela cena era bastante constrangedora. A minha memória voltava ao passado, à antiga camaradagem, aos dias aventurosos e felizes, a tudo aquilo que tínhamos vivido e vencido juntos. Como era possível que aqueles dois tivessem chegado às injúrias? De repente caí em prantos... soluçando sem poder esconder aquela súbita fraqueza. Os companheiros olharam para mim, atônitos, e eu cobri o meu rosto com as mãos.

    “Não foi nada”, expliquei. “Só que... só que fiquei com muita pena...”

    “O senhor está doente, meu rapaz: não pode haver outra explicação!”, disse Lord John. “Pareceu-me muito nervoso desde o primeiro momento que o vi!”

    “Os seus hábitos não mudaram”, disse Summerlee sacudindo a cabeça. Reparei na estranheza do seu comportamento desde a hora em que nos encontramos. Não desperdice a sua simpatia, Lord John. Estas lágrimas são simplesmente alcoólicas: este homem deve estar bêbedo! Pois é, Lord John, há pouco chamei-o de 'molengão ignorante' e talvez tenha exagerado; mas era apenas uma maneira de falar, um banal resquício da minha juventude.O senhor só me conhece como cientista sério. Pois bem, acreditaria em mim se lhe dissesse que houve um tempo em que era muito conhecido - nas famílias onde houvesse crianças – como imitador de bichos? Gostaria de ouvir a minha imitação de canto do galo?”

    “Não senhor”, disse Lord John, ainda ofendido. “Posso garantir-lhe que não faço a menor questão...”

    “O meu cacarejar de galinha que acaba de pôr o ovo era particularmente apreciado. Posso tentar?”

    “Por Deus, não! Nem pense nisto.”

    Mas, apesar das reclamações, o professor Summerlee guardou o cachimbo e, pelo resto da viagem, entreteve-nos com toda uma série de imitações de pássaros e outros animais. A coisa toda era tão extravagante que, de uma hora para a outra, as minhas lágrimas transformaram-se numa sonora gargalhada.

    Em certa altura Lord John indicou-me o jornal que estava segurando, na borda do qual escrevera a lápis: “Pobre coitado! Enlouqueceu de vez!”

    Enquanto isto tudo acontecia, por sua vez Lord John insistia em contar-me uma interminável história sobre um búfalo e um marajá indiano, história que, a meu ver, não tinha pés nem cabeça. O professor Summerlee acabava de começar a cantar como um canário e Lord John parecia ter finalmente chegado à parte interessante do seu relato, quando o trem parou em Jarvis Brook, a estação mais próxima de Rotherfield.

    O próprio Challenger estava esperando por nós. Parecia radiante.

    Nenhum pavão poderia jamais chegar perto da altiva dignidade com que ele passeava na plataforma. E isto sem falar do sorriso condescendente com que olhava os vis mortais que passavam perto dele.

    Evidentemente, estes traços do seu caráter acentuaram-se desde a última vez que eu o vira. A grande cabeça, com a ampla testa limitada pela floresta de cabelos negros, parecia ainda maior. A barba negra, caindo como catarata, e os olhos de um cinza claro que faiscavam um olhar perenemente insolente e sarcástico, formavam um conjunto mais imponente do que nunca.

    Recebeu-me com benevolente aperto de mão e o sorriso encorajador com que o mestre trata um garotinho na escola e, depois de cumprimentar os outros e ajudá-los com a bagagem e os botijões de oxigênio, empurrou todos para dentro de um grande carro dirigido pelo mesmo impassível Agostinho, o homem de poucas palavras que eu conhecera como camareiro quando da minha primeira visita.

    O automóvel começou a subir pelas encostas de umas suaves colinas, no meio de uma linda região. Eu sentava na frente, ao lado do motorista, e ouvia atrás de mim os três companheiros que continuavam conversando. Pelo que pude entender, Lord John continuava insistindo em seu confuso relato sobre o búfalo e o marajá, mas também pude ouvir a voz profunda de Challenger e o tagarelar de Summerlee enquanto os dois se empenhavam numa douta conversa científica. De repente Agostinho virou o rosto crioulo para mim e, sem deixar de ficar de olho na estrada, disse:

    “Já chega para mim. Não agüento mais!”

    “Será possível?”, exclamei.

    Naquele dia só aconteciam coisas estranhas, e todos diziam coisas inesperadas e extravagantes. Parecia-me estar sonhando!

    “E a quadragésima-sétima vez!”, disse Agostinho, muito sério.

    “Quando vai nos deixar?”, perguntei com a esperança de saber alguma coisa mais precisa.

    “Não estou indo embora”,  respondeu Agostinho.

    Tudo indicava que a conversa ia ficar por isto mesmo, mas ele apressou-se a continuar.

    “Se eu for embora, quem irá cuidar dele?” E ao dizer isto piscava o olho indicando o patrão. “Quem mais iria agüentar trabalhar para ele?”

    “Alguém iria certamente aceitar o emprego”, eu disse ingenuamente.

    “Não. Ninguém ir a agüentar mais de uma semana. Se eu for embora, a casa vai parar como um relógio de mola quebrada. Estou desabafando com o senhor porque o considero amigo e já sabe de muita coisa...”

    “Por que acredita que ninguém agüentaria?”, perguntei.

    “Porque ninguém saberia suportá-lo como eu faço. É um homem inteligente, até inteligente demais às vezes. Mas também faz coisas que ninguém acreditaria. Sabe o que fez hoje de manhã, por exemplo?”

    “O que foi?”

    Agostinho aproximou-se.

    “Deu uma mordida na arrumadeira”, murmurou num tom que dava para perceber o espanto.

    “Deu uma mordida nela?”

    “Isto mesmo. Deu-lhe uma mordida na perna. Vi com os meus próprios olhos a pobre mulher que fugia assustada, queixando-se.”

    “Incrível!”

    “Pois é, incrível mesmo! E o senhor, também diria isto se tivesse visto um montão de outras coisas. Ele não tem amigos entre os vizinhos. Alguns deles dizem que quando o professor ficou entre aqueles monstros sobre os quais o senhor escreveu um livro, devia sentir-se perfeitamente à vontade, e que ninguém poderia imaginar para ele companhia mais apropriada. É o que os vizinhos dizem. Mas eu, que estou ao serviço dele há dez anos e lhe quero bem, digo que é um grande homem quando suas ordens são obedecidas ao pé da letra, e que trabalhar para ele é uma honra. Mas às vezes parece quase achar graça na sua própria crueldade. Por exemplo, veja o senhor mesmo. Certamente, não podemos considerar isto uma prova da antiga hospitalidade inglesa. Olhe, leia o senhor mesmo...”

    O carro, avançando lentamente, estava enfrentando uma curva. Depois da virada, havia uma placa de madeira fincada na margem da estrada. Como dissera Agostinho, não era difícil ler o aviso, pois se tratava de poucas palavras, capazes de tirar o ânimo de qualquer um:

    AVISO:

    Visitantes, representantes da imprensa e mendigos não são bem-vindos

    G.E. Challenger

    “Não é propriamente o que eu chamaria de boas-vindas!”, disse Agostinho, sacudindo a cabeça e mantendo os olhos fixos na desanimadora advertência. “Queira desculpar-me, senhor, ainda mais porque nunca falei assim nestes anos todos. Mas acontece que hoje quase me parece sentir mais compreensão por ele. Pode maltratar-me, mas não irei embora. Sou o empregado e ele é o meu patrão, e juro que vai continuar assim até o fim dos meus dias...”

    Tínhamos superado as colunas de um portal, e agora avançávamos por uma sinuosa avenida flanqueada por rododendros. No fim da avenida havia uma casa de tijolos, baixa, enfeitada com luminosas janelas brancas. Parecia um lugar muito aconchegante, e a senhora Challenger, uma figurinha toda cheia de sorrisos, estava na porta para nos receber.

    “Querida”, disse o professor saindo apressadamente do carro, “aqui estão os nossos hóspedes. É uma novidade e tanto, para nós, termos visitas. Com efeito, não há lá muita fartura de sentimentos amorosos entre nós e os nossos vizinhos! Acho que se pudessem botar um pouco de estricnina no nosso pão, eles o fariam com o maior prazer: os nossos vizinhos...”

    “É horrível, realmente horrível!”, exclamou a dama que não dava para saber se ria ou chorava. “George vive brigando com todo o mundo. Não temos um amigo sequer em toda a vizinhança...”

    “Esta solidão faz com que eu possa concentrar a minha atenção na minha incomparável mulher”, disse Challenger apertando com seu braço curto e gorducho a cintura dela. “Imaginem um gorila e uma gazela e poderão ter uma idéia da situação. Mas é melhor deixarmos estas agruras de lado: vamos, vamos! Estes senhores devem estar cansados  com a viagem e o almoço já deveria estar saindo. Sara já voltou?”

    A dama sacudiu a cabeça para dizer que não e o professor entregou-se a uma de suas risadas.

    “Agostinho, depois de guardar o carro na garagem, tenha a bondade de ajudar a senhora a preparar o almoço. Agora, senhores, queiram-me honrar com sua presença no meu escritório, pois há algumas coisas importantes que quero lhes contar quanto antes”.

   

A Onda da Morte

    Enquanto atravessávamos o vestíbulo, a campainha do telefone tocou e, desta forma, acabamos ouvindo involuntariamente o fim da seguinte conversa do professor Challenger. Falei em nós, mas ninguém no raio de cem metros poderia ter deixado de ouvir o trovão daquela voz assustadora que ecoava por toda a casa. As respostas dele ficaram na minha memória:

    “Sim, sim, claro que sou eu; pois é, o professor Challenger, eu mesmo... o famoso professor... Certamente, está correta em cada uma das suas palavras, pois de outra forma não teria escrito... Não ficaria nem um pouco surpreso... Tudo nos leva a pensar isto, daqui a um dia ou dois, no máximo... Mas não há coisa alguma que eu possa fazer a respeito!... Sinto muito, mas acredito que a coisa irá incomodar pessoas até mais importantes que o senhor. De nada adianta queixar-se... Não, não há nada que eu possa fazer. Terão de dar um jeito com os seus próprios recursos... Agora chega, meu senhor, tenho coisas bem mais importantes a fazer do que ficar ouvindo essa lengalenga queixosa...”

    Desligou o telefone e nos levou ao primeiro andar, para a grande e arejada sala que era o seu escritório. Na imponente escrivaninha de mogno jaziam sete ou oito telegramas ainda fechados.

    “Acho que os meus correspondentes”, disse enquanto pegava as mensagens, “poupariam um bom dinheiro se eu tivesse um endereço telegráfico. Talvez 'Noé-Rotherfield' fosse o mais apropriado...”

    Como costumava fazer toda vez que se entregava a algum obscuro jogo de palavras, apoiou-se na escrivaninha e começou a rir rumorosamente. O seu corpo estremecia todo e, de tanta agitação, as mãos nem conseguiam abrir os telegramas.

    “Noé, Noé!”, gritou, enquanto Lord John e eu sorríamos para contentá-lo, e Summerlee sacudia a cabeça em sinal de comiseração.

    Finalmente, Challenger começou a abrir os telegramas, enquanto nós três ficávamos perto da grande janela para admirar o panorama.

    E de fato valia a pena olhar. A estrada, com suas curvas sinuosas, tinha deixado para baixo o vale e subira a uma altura que, como mais tarde soubemos, era de quase trezentos metros. A casa de Challenger ficava justamente no topo da colina e, da fachada norte onde se encontrava a janela do escritório, podia-se admirar uma vista realmente magnífica.

    Os olhos alcançavam aldeias e lugares conhecidos e, para o sul, como que encravado nos bosques, podia-se ver um ramal da linha ferroviária principal entre Londres e Brighton. Logo abaixo de nós havia um pequeno pátio fechado, onde descansava o automóvel que nos trouxera da estação...

    Uma exclamação de Challenger chamou a nossa atenção. Já lera os telegramas e os empilhara metodicamente sobre a escrivaninha. O seu rosto, ou o pouco dele que se podia ver sob a enorme barba, estava quase congestionado: parecia ter sofrido o impacto de algum acontecimento excepcional.

    “Muito bem, meus senhores”, disse. “A nossa é de fato uma reunião bastante interessante, que ocorre em circunstâncias extraordinárias, aliás, em circunstâncias nunca vistas. Permitam que eu pergunte se repararam em alguma coisa fora do comum durante a sua viagem.”

    “A única coisa que notei”, disse Summerlee, “é que os modos do nosso jovem amigo aqui presente não melhoraram muito desde a última vez que estivemos juntos. Lastimo constatar que fui forçado a queixar-me seriamente do seu comportamento no trem, e estaria mentindo se não afirmasse enfaticamente que ele deixou em mim uma impressão decididamente desagradável.”

            “Ora, ora! Todos nós temos as nossas fraquezas”, disse Lord John.

    “Não é preciso censurar este jovem. Ele pertence a um dos mais famosos times de futebol e, mesmo que demore meia hora para descrever um jogo, tem mais direito de fazer isto do que muitos outros.”

    “Meia hora para descrever um jogo?”, gritei indignado. “Quem nos fez perder meia hora com a sua interminável história de búfalos e marajás foi o senhor mesmo, ora essa! O professor Summerlee é testemunha...”

    “Francamente não saberia dizer qual dos dois pareceu-me menos sério”, disse Summerlee. “E posso garantir, Challenger, que perdi qualquer vontade de ouvir falar em futebol e búfalos...”

    “Mas se nem mesmo cheguei a mencionar o futebol!”, protestei. John fez uma careta, e Summerlee meneou a cabeça.

    “Foi no começo da viagem”, disse. “Uma coisa realmente desagradável. Enquanto eu ficava em triste e pensativo silêncio...”

    “Em silêncio!?” Berrou Lord John. “Mas se não parou um momento de fazer ridículas imitações, tanto assim que parecia mais uma vitrola do que um homem?...”

    Summerlee empertigou-se para protestar amargamente.

    “O senhor se diverte bancando o engraçado, Lord John!”, disse com expressão sombria.

    “Engraçado coisíssima nenhuma! Isto é uma verdadeira loucura!”, insurgiu Lord John. “Ao que parece, cada um de nós sabe o que os outros fizeram, mas ninguém sabe o que ele mesmo fez. Vamos tentar reconstituir os fatos. Antes de mais nada entramos num vagão de primeira classe para fumantes: pelo menos quanto a isto estamos todos de acordo, não é? Aí começamos a discutir devido à carta do nosso amigo Challenger no Times.”

    “Foi isto que fizeram?”, resmungou o nosso anfitrião.

    “O senhor, Summerlee, disse que naquelas afirmações não podia haver nem sombra de verdade...”

    “Ai de mim!”, exclamou Challenger. “Nem sombra de verdade? E posso perguntar com quais argumentos o grande e famoso professor Summerlee tentou destruir o humilde indivíduo que ousou expressar uma opinião sobre um assunto de possibilidade científica? Talvez, antes de trucidar esta pobre nulidade que eu sou, ele se digne de citar algumas das razões que o induziram a pensar de outra forma...”

    As mãos de Challenger torciam-se convulsamente enquanto ele falava com o seu sarcasmo tão delicado quanto uma patada de elefante.

    “As minhas razões são muito simples”, disse Summerlee. “Eu afirmava que se o éter que cerca a terra - numa área determinada - fosse tóxico a ponto de provocar perigosos sintomas, não seria possível explicar por que nós três que estávamos no carro ferroviário não mostrávamos o menor sinal de sofrer os seus efeitos.”

    Esta explicação só conseguiu encher de alegria Challenger. Ele continuou rindo até que tudo na sala pareceu tremer e tilintar.

    “Aquilo que o senhor está dizendo, Summerlee, e não é a primeira vez que isto acontece, não corresponde à realidade dos fatos”, disse afinal. “Só para começar, meus senhores, não posso deixar de contar-lhes o que me aconteceu esta manhã. Depois de me ouvirem, poderão muito mais facilmente perdoar a si mesmos. Serão mais indulgentes com os seus próprios erros, pois saberão que eu mesmo tive momentos em que o meu próprio equilíbrio ficou abalado.”

    Já faz bastante tempo que nós temos, aqui em casa, uma criada chamada Sara cujo sobrenome nunca consigo lembrar. É uma mulher de aparência séria e comedida, totalmente impassível, uma mulher completamente incapaz de mostrar qualquer tipo de emoção.

    Enquanto eu tomava sozinho o café da manhã, pois a senhora Challenger ainda estava na cama, de repente fiquei pensando que seria bastante divertido estabelecer até que ponto a imperturbabilidade daquela mulher poderia manter-se inabalável. De forma que aprontei uma experiência fácil e eficiente. Depois de entornar na toalha um pequeno vaso de flores que estava ao lado da cafeteira, toquei a campainha e escondi-me embaixo da mesa. A mulher chegou e, vendo o aposento vazio, pensou que eu já fora para o escritório.

    Como eu esperava, aproximou-se e debruçou-se na mesa para endireitar o vaso. Nesta altura, pude entrever uma meia de algodão e uma botinha de mola. Aí, espichando a cabeça, dei uma mordida na panturrilha dela. A experiência teve um sucesso superior a qualquer expectativa. Por alguns momentos ficou parada, petrificada, de olhos fixos na minha cabeça. Aí, gritando, recobrou-se e saiu correndo da sala.

    Eu fui atrás, com o propósito de dar-lhe uma explicação, mas ela já estava correndo colina abaixo e, depois de alguns minutos, só conseguia vê-Ia usando o binóculo do exército. Estou lhes contando isto para que possam entender o sentido da história. Conseguiu iluminá-los? Despertou alguma coisa dentro de vocês? O que acha disto, Lord John?”

    O fidalgo meneou a cabeça, pensativo.

    “Se não consultar um médico quanto antes, o senhor vai acabar tendo alguma doença muito séria”, respondeu afinal.

    “Algum comentário, Summerlee?”

    “Esqueça o trabalho e vá imediatamente passar pelo menos três meses em algum sanatório”, disse o anatomista.

    “ótimo conselho!”, exclamou Challenger. “Então, Sr. Malone, será possível que logo da sua boca possa sair a sabedoria, enquanto os mais velhos só foram capazes de dizer bobagens?”

    De fato, e, por favor, entendam que digo isto com a maior modéstia possível, consegui entender a verdade. Para vocês leitores, que daqui a pouco saberão o que estava acontecendo, poderá parecer fácil, mas não foi nada fácil para mim naquele momento. A revelação da verdade abriu caminho na minha mente de forma repentina.

    “Veneno!”, exclamei.

    E logo após dizer isto, a minha memória voltou a todos os acontecimentos daquela manhã, à história do búfalo de Lord John, ao meu pranto histérico, ao comportamento inconveniente do professor Summerlee, às coisas estranhas vistas em Londres, à desastrada maneira de guiar do motorista, a briga em frente à distribuidora de oxigênio. Tudo isto acabou formando um conjunto muito claro diante dos meus olhos.

    “Claro!”, repeti. “Só pode ser veneno. Estamos todos envenenados...”

    “Exatamente”, disse Challenger esfregando as mãos. “Estamos todos envenenados. O nosso planeta entrou no halo de éter envenenado e neste momento está atravessando-o a uma velocidade de alguns milhões de milhas por minuto. O nosso jovem amigo definiu a causa de todas as nossas dores de cabeça com uma única palavra: veneno!”

    Ficamos olhando uns para os outros em silêncio. Ninguém achou oportuno fazer comentários.

    “Há uma espécie de inibição mental que pode nos ajudar a identificar estes sintomas”, disse Challenger. “Não posso exigir que tal inibição esteja desenvolvida em vocês da mesma forma que em mim, pois suponho que a força dos nossos vários processos mentais não seja igual em nós todos. Mas é evidente que, sob este aspecto, o nosso jovem amigo está muito bem servido”.

    Depois do meu curto ataque de loucura, que tanto sobressaltou a nossa criada, sentei para pensar cuidadosamente no assunto. Ficou logo bem claro que eu nunca tinha cedido ao impulso de morder alguém aqui em casa. O impulso havia, portanto, sido anormal, e só levei um momento para descobrir a verdade.

    O exame do meu pulso revelava dez batimentos acima do normal. Procurei então juntar todas as minhas faculdades mais altas e sadias, e mandei o verdadeiro G.E. Challenger sentar, sereno e alheio a qualquer influência daquela estranha situação. Avisei-o para que ficasse precavido contra as loucas brincadeiras mentais provocadas pelo veneno, e descobri que ainda estava apto a controlar a situação.

    Percebi que ainda podia botar nos eixos a minha mente perturbada. De forma que, quando a minha mulher desceu do andar de cima e eu me senti compelido a esconder-me atrás da porta para dar-lhe um susto com algum grito bestial, fui capaz de dominar este impulso e de cumprimentá-la com dignidade e graça. Mais tarde, quando fui ao pátio para pedir que.o carro ficasse pronto, e encontrei Agostinho deitado sob o veículo para algum conserto, consegui dominar a minha mão aberta impedindo que golpeasse o infeliz com um safanão que provavelmente convencê-lo-ia a seguir as pegadas da criada fugitiva. Em lugar disso, só dei um leve tapinha no seu ombro e mandei que aprontasse o carro para que chegássemos à estação na hora certa para recebê-los.

    Neste mesmo instante sinto uma vontade quase incontrolável de segurar o professor Summerlee pela sua ignóbil barbicha e de sacudir violentamente a sua cabeça. Apesar disso, como podem ver, consigo dominar-me perfeitamente, e, aliás, aconselho aos senhores procurem fazer exatamente o mesmo.”

    “Procurarei manter longe aquele búfalo!”, disse Lord John.

    “E eu esquecerei aquele jogo de futebol...”

    “Talvez tenha razão, Challenger”, disse Summerlee. “Estou disposto a admitir que a minha mente gosta mais de criticar que de concretizar, e que não é nada fácil converter-me a uma nova ordem de idéias, principalmente quando se trata de alguma teoria incomum e fantástica como a sua. Se, no entanto, eu considerar os acontecimentos de hoje e o comportamento dos meus companheiros, vejo-me forçado a admitir que algum veneno de tipo excitante seja responsável por todos estes sintomas.”

    Challenger deu um tapa nas costas do colega.

    “Estamos fazendo progressos!”, disse. “Não há a menor dúvida quanto a isto, notáveis progressos...”

    “E então, meu bom amigo”, disse Summerlee com humildade, “o que está realmente acontecendo?”

    “Com licença de vocês todos, direi algumas palavras a respeito do assunto.” E Challenger sentou-se na escrivaninha, com as perninhas a balançarem no vazio. “Estamos presenciando um fenômeno terrível. Pelo que posso entender, estamos chegando ao fim do mundo...”

    O fim do mundo!... Viramos os olhos para a janela do escritório e contemplamos a beleza estival dos campos, o verde das colinas, a serena suavidade das pastagens. O fim do mundo! Mais cedo ou mais tarde, todos nós acabamos ouvindo esta frase, mas o fato dela poder ter um significado prático e imediato, dela tornar-se realidade, não num futuro incerto e nebuloso, mas sim agorinha mesmo, naquele mesmo dia, era certamente uma idéia pavorosa e perturbadora.

    Ficamos como que petrificados, esperando silenciosamente que Challenger continuasse. A sua barbuda imponência acrescentava tanta força à solenidade das suas palavras que, por um instante, todas as extravagâncias do homem desapareciam e ele nos parecia um personagem de majestosa importância, colocado acima da humanidade comum.

    “Imaginem cachos”, disse, “infestados por microscópicas bactérias. O jardineiro mergulha-os numa substância desinfetante. Mergulha-os no veneno e as bactérias desaparecem. Neste momento, o nosso jardineiro - no meu entender - está desinfetando o sistema solar, e a bactéria humana está a ponto de desaparecer...”

    Houve mais um longo silêncio, interrompido afinal pela campainha do telefone.

    “Deve ser alguma bactéria pedindo ajuda!”, disse Challenger.

    Saiu do escritório por um minuto ou dois e nenhum de nós ousou falar durante a sua ausência. Qualquer palavra e qualquer comentário pareciam inúteis diante de uma situação tão excepcional.

    “Era o posto de saúde de Brighton”, disse Challenger ao voltar. “Por alguma razão que desconheço, os sintomas parecem desenvolver-se mais rapidamente no nível do mar. A altura desta colina dá-nos alguma vantagem. Parece que muitos já se convenceram disto, principalmente, ·depois da minha carta aos Times. A pessoa com a qual falei pelo telefone logo depois que vocês chegaram era o prefeito de uma cidadezinha do interior. Obviamente, ele atribuía a própria vida um valor exagerado, e procurava algum meio de salvar-se. Eu, no entanto, levei-o a pensar de forma mais modesta.”

    Summerlee levantara-se, aproximando-se da janela. Suas mãos finas e ossudas tremiam.

    “Challenger”, falou ansiosamente, “trata-se de uma coisa séria demais para que fiquemos brincando. Não pense que queira questioná-lo só para irritá-lo, só gostaria de saber se porventura pode haver alguma possibilidade de erro no seu raciocínio e nas suas informações. Lá fora o sol brilha no céu azul como de costume, e há searas, flores, pássaros. Há jovens que continuam se divertindo e jogando golfe como sempre fizeram, e lavradores ceifando o trigo”.

    Está nos dizendo que estamos à beira do abismo e que este dia luminoso pode ser o último para a raça humana. Pelo que nos é dado entender, o senhor só baseia esta aterradora convicção em algumas linhas anormais de um espectro, numas poucas notícias que vieram de Sumatra, e em algum estranho comportamento que cada um de nós notou nos companheiros. Sabe muito bem, Challenger, que não vale a pena esconder o jogo com a gente. Todos nós já encaramos a morte. Fale claro, portanto, conte exatamente o que está havendo e o que, a seu ver, podemos esperar.”

    Foram palavras corajosas e eficazes, palavras dignas do espírito forte e correto que o velho anatomista escondia por trás do seu rabugento azedume. Lord John levantou-se e apertou-lhe a mão.

    “Estou plenamente de acordo!”, disse. “E agora, Challenger, cabe ao senhor explicar a situação. Não somos pessoas que se deixam vencer facilmente pelo nervosismo, como o senhor bem sabe; mas parece-me justo recebermos alguma explicação enquanto estamos mergulhando de cabeça no dia do juízo final. Qual é exatamente o perigo? O que precisamos recear? E o que podemos fazer para enfrentá-lo?”

    Estava parado, a sua robusta figura de pé na grande luz da janela, com uma das mãos ossudas apoiada na mão de Summerlee. Eu estava espichado numa poltrona, com um cigarro apagado entre os lábios, naquele estado todo especial em que as impressões chegam ao nosso espírito perfeitamente claras.

    Pode ser que se tratasse de uma nova fase do envenenamento, mas os impulsos delirantes tinham desaparecido, deixando um estado mental bastante lânguido e ao mesmo tempo extremamente lúcido. Sentia-me como um espectador, e parecia-me que nada pudesse ter alguma coisa a ver diretamente comigo. Mas na minha frente havia três homens excepcionais enfrentando uma grande crise, e era sobremodo interessante observar as suas reações.

    Pelos gestos que fez, deu logo para entender que Challenger estava escolhendo cuidadosamente as palavras que iria proferir.

            “Quais eram as últimas notícias, quando partiram de Londres?”, perguntou-me.

    “Estava na redação do Gazette, lá pelas dez horas da manhã”, respondi. “Acabava de chegar uma notícia da agência Reuter, de Cingapura, informando que a epidemia alastrara-se em Sumatra e que, devido a isto, os faróis no Estreito da Sonda haviam deixado de funcionar.”

    “Ao que parece, já não dá mais para controlar os eventos!”, disse Challenger esticando a mão para a pilha de telegramas. “Eu mantenho um bom relacionamento com as autoridades e com a imprensa, de forma que recebo um farto noticiário de muitos lados. Todo o mundo está insistindo para que eu volte a Londres. Mas com que finalidade? Pelas notícias que recebi, parece que os efeitos do envenenamento começam com uma espécie de excitação mental. Dizem que hoje de manhã houve manifestações extremamente violentas em Paris, e os mineiros do Gales estão na maior agitação”.

    Segundo aquilo que até agora foi possível averiguar, a este primeiro estágio, que varia conforme as raças e os indivíduos, segue-se uma certa exaltação e lucidez mental da qual parece-me distinguir alguns sinais no nosso jovem amigo aqui presente, que depois de algum tempo transforma-se por sua vez em coma, levando à morte. Por aquilo que o meu conhecimento da toxicologia me permite entender, acredito que se trate de algum veneno vegetal que afeta o sistema nervoso.”

    “Daturon!”, sugeriu Summerlee.

    “Muito bem!”, exclamou Challenger. “Em nome da precisão científica, é aconselhável que identifiquemos logo o nosso agente tóxico. Ao senhor, meu caro Summerlee, cabe a honra (honra póstuma, infelizmente, mas a única possível) de ter dado um nome ao destruidor do universo, ao desinfetante do Grande Jardineiro”.

    Os sintomas do Daturon podem ser reconhecidos conforme já falei. Os seus efeitos atuarão sobre o mundo inteiro, e creio poder afirmar com certeza que nenhuma vida humana será poupada. Por enquanto o veneno só mostrou os seus caprichos nos lugares por ele afetados; mas é só uma questão de horas, é como uma onda que avança encobrindo um areal depois do outro, até engolir tudo. No que diz respeito à ação e à distribuição do Daturon, há leis físicas que poderiam ter sido mais interessantes se tivéssemos tido o tempo de estudá-las devidamente.

    Por aquilo que eu pude constatar”, e dizendo isto apontou para os telegramas, “as raças menos desenvolvidas foram as primeiras a sucumbir à influência do veneno. Chegam notícias assustadoras da África, e parece que também os aborígines da Austrália já foram exterminados. Até agora, as raças setentrionais mostraram-se mais resistentes do que as meridionais. Como podem ver, este telegrama foi enviado de Marselha, às quinze para as dez desta manhã. Leiam comigo:

    Na Provença houve arruaças durante a noite toda, como se as pessoas estivessem tomadas por delírio. Os vinicultores de Nimes participaram de violentas manifestações. Em Toulon os socialistas invadiram as ruas. Nesta manhã, uma repentina epidemia, seguida de coma, atacou a população. Uma verdadeira peste fulminante! Inúmeros mortos nas ruas. Paralisia dos negócios e caos generalizado.

    Uma hora mais tarde, recebi da mesma fonte a seguinte comunicação:

    Existe a ameaça de um extermínio total. A catedral e as igrejas estão cheias de pessoas apavoradas. O número dos mortos supera o dos vivos. É algo inconcebível e terrível! Parece que a epidemia não provoca dor, mas é rápida e inevitável.

    E há também outro telegrama vindo de Paris, onde o desenvolvimento do fenômeno ainda não se tomou tão agudo. Tudo indica que a índia e a Pérsia já não existem. A população eslava da Áustria foi atingida, enquanto as outras raças permanecem imunes. De um ponto de vista geral, os moradores das praias e das planícies parecem ter sido afetados pelo veneno mais rapidamente que os do interior e dos planaltos. Até mesmo um pequeno morro faz uma notável diferença, e se por acaso houver algum sobrevivente da raça humana, talvez possa ser encontrado num Ararát qualquer da vida. É muito provável que até esta pequena colina onde estamos possa representar uma ilhota de temporária salvação no meio do oceano do desastre. Mas, considerando-se a atual velocidade do avanço, só levará mais algumas horas para que tudo seja tragado pela terrível maré...”

    Nesta altura, Lord John Roxton disse:

    “O que mais me surpreende é que o senhor possa ficar aí, sentado e entregue ao riso, enquanto segura com a mão aquela pilha de terríveis telegramas. Poucas pessoas enfrentaram a morte mais vezes do que eu, mas precisamos convir que a morte universal é uma coisa aterradora...”

    “No que diz respeito ao meu riso”, disse Challenger, “‘devem lembrar-se que, assim como os senhores, eu também fiquei exposto aos efeitos estimulantes do veneno cósmico. Mas quanto ao horror que parece inspirar-lhe a morte universal, quero salientar que ele é um tanto exagerado. Se, com efeito, o senhor estivesse só e derrelito numa pequena casca de noz no meio do oceano, rumo a um destino desconhecido, pode até compreender que a coragem viesse a faltar-lhe. O isolamento e a incerteza levariam a melhor. Mas se estivesse viajando num excelente navio que levasse, com o senhor, todos os seus parentes e amigos, certamente encontraria uma certa segurança ao pensar que, quaisquer que fossem as surpresas do futuro, poderia enfrentá-las ao lado dos entes queridos”.

    Uma morte isolada pode ser terrível, mas uma morte universal que além do mais promete ser indolor - não me parece coisa capaz de justificar preocupação. Com efeito, concordo plenamente com quem disse que o, terror só pode advir da idéia de tudo aquilo que amamos, aprendemos e exaltamos se perder para sempre. Mas antes disto, acho que o verdadeiro terror decorre da idéia de ficarmos definitivamente isolados, vivos e sozinhos num mundo de mortos.”

    “Qual é a sua proposta, então?”, perguntou Summerlee, que pelo menos desta vez mostrara-se de acordo com as idéias do colega.

    “Tenciono almoçar”, disse Challenger, enquanto pela casa ecoavam os toques de um gongo. “Temos uma cozinheira cujas omeletes só podem ser superados pelas suas costeletas. E podem ter certeza de uma coisa: nenhum distúrbio cósmico obscureceu as suas qualidades. E as minhas excelentes garrafas da safra de 96 merecem ser salvas daquele que também será um pavoroso desastre para os vinhos.” Dizendo isto, desceu da escrivaninha na qual sentara para anunciar o fim do mundo. “Venham”, disse então. “Se de fato ainda nos resta muito pouco tempo, tanto faz que o aproveitemos da melhor forma possível.”

    E, com efeito, o almoço foi realmente excelente. Mas não pense, querido leitor, que estávamos despreocupados. Toda a solene seriedade dos fatos estava diante de nós e moldava os nossos pensamentos. Sem dúvida nenhuma, a morte amedronta, e amedronta ainda mais aqueles que nunca estiveram cara a cara com ela. Nós, por nossa vez, tínhamos tido grande familiaridade com ela numa hora muito importante da nossa existência. Quanto à dona da casa, ela tinha a maior confiança no grande marido, e obedecia-lhe em tudo sem maiores problemas.

    O futuro estava nas mãos do destino. O presente ainda nos pertencia, e nós procuramos vivê-lo de forma bastante amena, entre bons amigos. A nossa mente, como já salientei, estava particularmente lúcida. Quanto a Challenger, demonstrava-se realmente maravilhoso. Nunca, como naquele momento, compreendi toda a grandeza e a segurança daquele homem.

    Summerlee continuava alfinetando-o com as suas críticas, enquanto Lord John e eu nos divertíamos com a disputa e a senhora, com uma mão carinhosamente apoiada no ombro do marido, parecia fascinada pela voz dele. A vida, a morte, o destino, eram estes os magníficos assuntos daquela hora memorável. Com o almoço chegando ao fim, a solenidade do momento tornava-se ainda maior devido a repentinas exaltações mentais e formigamentos nas pernas que nos avisavam da lenta e silenciosa chegada da maré de morte.

    Tive a ocasião de ver Lord John que de repente encobria os olhos com a mão, e Summerlee recostou-se prostrado no espaldar da cadeira. Cada vez que respirávamos, o ar parecia carregado de estranhas forças, e mesmo assim a nossa mente permanecia serena e funcionando perfeitamente.

    Agostinho apareceu então com os cigarros e aprontou-se a tirar a mesa.

    “Agostinho!”, disse o patrão.

    “As ordens, senhor...”

    “Quero agradecer-lhe estes anos de fiéis serviços.”

    Um sorriso apareceu no rosto do criado.

    “Só cumpri o meu dever, senhor...”

    “Quanto a mim, creio que hoje seja o dia do fim do mundo, Agostinho...”

    “Muito bem, senhor, A que horas?”

    Não sei ao certo. Provavelmente, antes do anoitecer...”

    “Perfeitamente, senhor.”

    O taciturno Agostinho fez uma mesura e saiu da sala. Challenger acendeu um cigarro e, encostando a cadeira à da mulher, ficou de braço dado com ela.

    “Você já sabe o que está acontecendo, querida”, disse, “ e eu expliquei os fatos aos nossos amigos. Está com medo, querida?”

    “Vamos sofrer, George?”

    “Vai ser o mesmo que a anestesia do dentista. Toda vez que o dentista a faz adormecer, é como se estivesse morta.”

    “Mas é uma sensação até agradável!”

    “E vai ser a mesma coisa com a morte. O nosso corpo não nos permite guardar este tipo de sensações, mas conhecemos muito bem o prazer que experimentamos sonhando ou sendo hipnotizados. Por outro lado, Summerlee, eu não concordo com o seu materialismo, pois afinal de contas acredito ser uma coisa grande demais para acabar sendo apenas um punhado de cinzas. Parece-me evidente que existe algo capaz de vencer a morte, e que a morte não pode vencer.”

    “Que seja”, disse Lord John. “Sou um bom cristão, mas ainda concordo com os nossos antepassados que se faziam sepultar com seus arcos, suas flechas e demais objetos pessoais, Como se fossem viver no além da mesma forma de quando estavam vivos. O que acha disto, professor?”

    “Bom”, disse Summerlee, “uma vez que pede a minha opinião, acho que voltaríamos pelo menos à idade da pedra. Eu, por minha vez, sou do século vinte, e desejo morrer como homem civilizado. Não creio estar mais apavorado que vocês, diante da morte, pois já estou velho e de qualquer maneira não me sobra muito tempo; mas ficar aqui parado, esperando morrer sem fazer coisa alguma, é contrário à minha natureza; sinto-me como um carneiro à espera da faca do açougueiro. Acha realmente, Challenger, que não há mais coisa alguma que possamos fazer?”

    “Para sobrevivermos? Não, não acho!”, disse Challenger. “'Acredito, ao contrário, que possamos prolongar por várias horas as nossas vidas, para assistirmos ao desfecho desta extraordinária tragédia, antes de nós mesmos sermos chamados a desempenhar o nosso fatídico papel. Fiz uns preparativos...”

    “O oxigênio?”

    “Isto mesmo: o oxigênio.”

    “Mas de que adianta o oxigênio se o próprio éter está envenenado? Entre o oxigênio e o éter existe a mesma diferença que há entre um morcego e um gás. São coisas completamente diferentes. Não podem substituir-se mutuamente. Vamos, Challenger, não me diga que quer realmente defender uma tese dessas!”

    “Meu bom Summerlee, este veneno cósmico está certamente sofrendo a influência de agentes materiais. Podemos claramente perceber isto examinando a evolução dos fatos. Não podíamos prever tal coisa, no começo, mas agora já está claro. De forma que me parece perfeitamente viável que um gás como o oxigênio, que aumenta a vitalidade e a resistência do organismo, consiga retardar a ação daquilo que tão propriamente o senhor chamou de Daturon. Pode ser que eu esteja errado, mas por enquanto acredito estar certo.”

    “Mas se tivermos de ficar respirando como nenezinhos de chupeta na boca”, interrompeu Lord John, “eu desisto.”

    “Não vai ser preciso”, respondeu Challenger. “Já foram tomadas providências que certamente despertarão a sua gratidão pela minha esposa, pois ela trancou a sua saleta da forma mais hermética possível, vedando qualquer fresta com papel impermeável.”

    “Santo Deus, Challenger, não vai querer manter afastado o éter com papel impermeável...”

    “Na verdade, meu caro amigo, o senhor simplesmente não quer encarar a situação. Estamos querendo vedar as frestas não tanto para evitar que o éter entre, quanto para evitar que o oxigênio saia. Acredito piamente que, se conseguirmos manter a atmosfera num certo nível de hiperoxigenação, poderemos não perder os sentidos. Já tenho dois botijões de oxigênio, e vocês trouxeram mais três. Não dá para salvar o mundo, mas já é alguma coisa...”

    “Quanto tempo acha que vai durar?”

    “Não sei dizer. Só iremos abrir as válvulas quando os sintomas se tornarem extremamente evidentes. Deixaremos então sair todo o gás, pois estaremos de fato precisando muito dele. Vai fazer com que possamos viver mais algumas horas - talvez até alguns dias - e enquanto isto poderemos observar o mundo destruído. O desfecho da nossa existência será portanto adiado, e nós cinco teremos provavelmente a singular honra de sermos a última retaguarda da raça humana na sua marcha rumo ao desconhecido. Confio que terão a bondade de ajudar-me no manejo dos botijões: o ar já parece estar ficando mais abafado.”

   

Submersos

    O aposento que iria servir de palco para as nossas inesquecíveis peripécias era uma graciosa saleta tipicamente feminina, com uma área de mais ou menos sete metros quadrados. No fundo, separado apenas por uma cortina de veludo vermelho, havia um cubículo que era o quarto de vestir do professor. Dali, passava-se diretamente para um amplo quarto de dormir.

    A cortina estava no devido lugar, mas na verdade a saleta e o quartinho de vestir formavam uma coisa só, pelo menos em relação à experiência que estávamos prestes a enfrentar. Uma porta e as frestas de uma janela haviam sido vedadas com papel impermeável, como se tivessem sido lacradas. Sobre a outra porta havia um grande ventilador que podia ser acionado com um cordão se porventura isto se tornasse necessário.

    “A ventilação é um assunto delicado mas de fundamental importância, pois precisamos nos livrar do excesso de dióxido de carbono sem estragarmos rapidamente o nosso oxigênio”, disse Challenger olhando-se em volta, depois que os botijões foram colocados um ao lado do outro ao longo da parede. “Se pudesse ter tido mais tempo para os preparativos, teria concentrado toda a minha inteligência no estudo do problema mas, por como andam as coisas, teremos de nos contentar com o que temos. Dois dos recipientes de oxigênio já estão prontos para serem usados a qualquer hora, de forma que não seremos pegos de surpresa. Também acho bom ficarmos perto daqui, pois a crise pode ser repentina.”

    Havia, na saleta, uma larga janela baixa que dava para uma varanda. A vista era a mesma que já tínhamos admirado do escritório. Olhando a paisagem, não consegui descobrir sinal algum do desastre que se aproximava.

    Não muito longe, havia uma estrada que descrevia uma ampla curva na encosta da colina. Uma carruagem da estação, um daqueles veículos pré-históricos que só se encontram no interior da Inglaterra, subia lentamente pelo aclive. Um pouco mais para baixo via-se uma babá que empurrava um carrinho com um neném, e segurava outra criança pela mão.

    Os penachos de fumaça azulada que saíam das casas senhoriais davam à paisagem um ar de ordeira tranqüilidade. Não havia uma nuvem no céu, e na terra abençoada pelo sol nada podia ser visto que pudesse deixar adivinhar a catástrofe. Os ceifeiros já haviam voltado ao trabalho e os jogadores de golfe estavam mais uma vez empenhados em seus acirrados jogos. Sentia algo tão estranho na minha cabeça, e os meus nervos estavam tão agitados, que a insensibilidade daquelas pessoas parecia-me irreal.

    “Esse pessoal parece totalmente imune ao veneno”, comentei, apontando para os golfistas.

    “O senhor joga golfe?”, perguntou Lord John.

    “Não, nunca joguei.”

    “Pois é, meu bom rapaz, quando tiver a oportunidade de experimentar, vai descobrir que nem mesmo o fim do mundo pode distrair um verdadeiro golfista quando está empenhado num jogo. Ali, ouça: o telefone está tocando de novo...”

    De vez em quando, durante e após o almoço, aquele tilintar agudo e insistente tinha exigido que o professor fosse atender. E ao voltar, com lacônicas frases, ele nos transmitia as notícias que acabava de receber.

    Notícias tão terríveis, na verdade, que não havia registro delas na história do mundo. A imensa sombra subia do sul, e espalhava-se como uma grande maré de morte. O Egito já se apagara no delírio, e estava agora em estado comatoso. A Espanha e Portugal, depois de uma fase frenética em que os anarquistas e os defensores do clericalismo se tinham engalfinhado sangrentamente, estavam agora escondidos atrás de uma cortina de silêncio. Já não chegavam mais telegramas da América do Sul. Na América do Norte, depois de terríveis revoluções, os Estados sulinos haviam sucumbido ao veneno. No Maryland setentrional os efeitos ainda eram leves e no Canadá só começavam a aparecer os primeiros sintomas. A Bélgica, a Holanda e a Dinamarca já haviam sido atingidas.

    De toda parte chegavam aos grandes centros da civilização desesperados pedidos de socorro, solicitando que os mais famosos médicos e químicos expressassem a sua opinião. Uma verdadeira avalanche de pedidos também chegava aos astrônomos. E nada podia ser feito. O desastre era universal e muito além da ciência humana. Era a morte, sem sofrimento, mas inevitável. A morte para o jovem assim como para o velho, para o fraco assim como para o forte, para o pobre assim como para o rico: sem a menor esperança de salvação. Era a conclusão à qual podíamos chegar a partir das mensagens confusas e desesperadas que nos eram transmitidas pelo telefone.

    As grandes cidades já conheciam o que esperava por elas e, pelo que podíamos entender, preparavam-se a enfrentar o destino com dignidade e resignação.

    E mesmo assim ainda havia os nossos jogadores de golfe, e os lavradores ceifando suas searas, que continuavam calmos como o cordeiro sob o relampejar da faca. Parecia impossível, mas por outro lado não havia como eles pudessem ficar a par dos acontecimentos. A grande desgraça chegara inesperada como um raio num dia de sol, e até mesmo os jornais daquela manhã não tiveram tempo para espalhar as terríveis novidades.

    Mais tarde, no entanto, enquanto estávamos observando, algumas notícias pareceram chegar, pois os lavradores começaram a deixar os campos correndo, e até alguns golfistas desistiram de suas jogadas. Corriam como se estivessem querendo fugir de uma tempestade. Havia outros, entretanto, que continuavam com suas tacadas. A babá dera meia volta e estava voltando, e empurrava o carrinho na maior agitação. A carruagem parara e o cavalo, cansado e cabisbaixo, parecia recuperar o fôlego.

    Acima destes fatos miúdos havia o céu típico do verão, uma imensa abóbada de azul imaculado a não ser por umas pequenas nuvens brancas que se avistavam ao longe. Se era destino que a raça humana tivesse de perecer naquele dia, pelo menos iria morrer num esplêndido cenário! Mas a excepcional beleza da paisagem tornava ainda mais assustadora a terrível e cada vez mais próxima aniquilação. Naquele momento, o mundo revelava-se um lugar bonito demais para que dele pudéssemos nos afastar sem uma fisgada de magoada saudade!

    Mas como eu estava dizendo, o telefone tocara mais uma vez. Logo a seguir ouvi a poderosa voz de Challenger que chamava do vestíbulo.

    “Malone”, gritou, “é para o senhor...”

    Fui atender. Era Mc Ardle que me chamava de Londres.

    “É o senhor, Malone?”, gritou a voz que eu tão bem conhecia. “Pelo amor de Deus, Malone, veja quanto antes se o professor Challenger tem alguma sugestão para nós...”

    “Não pode sugerir absolutamente nada”, respondi. “Acredita que a crise seja universal e inevitável. Temos aqui uma pequena reserva de oxigênio, mas só pode servir a prolongar a nossa vida por algumas horas.”

    “Oxigênio?”, gritou a voz. “Aqui já é muito tarde para procurar. Desde que o senhor saiu, a redação virou um verdadeiro caos. A metade dos redatores desmaiou. Da janela, posso ver as pessoas caídas, sem sentidos, na Fleet Street. Pelo que dizem os mais recentes telegramas, o mundo inteiro...”

    A voz dele perdera o vigor para depois calar-se. Logo a seguir ouvi pelo telefone um baque surdo, como se a cabeça do diretor tivesse batido pesadamente na escrivaninha.

    “Sr. Mc Ardle!”, gritei. “Sr. Mc Ardle!...”

    Ninguém respondeu. Enquanto desligava o aparelho, dizia a mim mesmo que nunca mais iria ouvir a voz do meu chefe.

    Naquela mesma hora, justamente quando estava para afastar-me do telefone, o desastre começou.

    Éramos como banhistas com a água à altura dos ombros, que de repente ficam submersos com a chegada de uma inesperada onda. Uma presa invisível parecia estar apertando delicadamente a minha garganta, empurrando com a mesma delicadeza qualquer sinal de vida fora do meu corpo. Podia sentir um grande peso no peito, uma indizível pressão na cabeça, um surdo zumbido nos ouvidos, e diante dos meus olhos podia ver o faiscar de grandes fagulhas.

    Apoiei-me na balaustrada da escada que levava ao primeiro andar. Naquela mesma hora, ofegante e bufando como um touro, Challenger passou ao meu lado. Era uma visão horrível, o rosto congestionado, de cabelo eriçado na cabeça e olhos arregalados. A pequena mulher, evidentemente desmaiada, agarrava-se aos seus grandes ombros, e ele arrastava-se penosamente escada acima, trombando e cambaleando, mas mesmo assim conseguindo avançar através daquela atmosfera mefítica rumo à relativa segurança da nossa momentânea salvação.

    Animado pelo seu exemplo, eu também agarrei o corrimão, escorregando, caindo nos degraus, apoiando-me no tapete, até ficar espichado, quase sem sentidos, no patamar do andar de cima. Os dedos de aço de Lord John seguraram-me pela gola do casaco e, logo a seguir, eu estava deitado de costas, incapaz de falar e de mexer-me, no carpete da saleta. A dona da casa jazia ao meu lado, e Summerlee encolhia-se numa poltrona perto da janela, com a cabeça quase a roçar-lhe os joelhos.

    Quase que sonhando, vi Challenger que, como uma monstruosa barata, se arrastava lentamente no chão. Logo depois ouvi o sopro delicado do oxigênio que saía de um dos botijões.

    Challenger respirou fundo umas duas ou três vezes.,

    “Está fazendo efeito!”, gritou exultante. “As minhas suposições estavam certas!”

    E ficou de pé, vigoroso e em plena forma. Arrastando o botijão, precipitou-se para a mulher e aproximou o sopro vital do rosto dela. Depois de alguns instantes ela bocejou, espreguiçou-se e ficou sentada. Foi então a minha vez, e a vida voltou imediatamente a correr pelas minhas artérias.

    A razão dizia-me que se tratava apenas de uma salvação temporária e de curta duração, mas naquela hora qualquer momento de vida a mais parecia-me uma dádiva de inestimável valor. Nunca experimentei uma sensação tão deliciosa quanto aquela que acompanhou a volta do fluxo vital ao meu corpo! Os meus pulmões ficaram leves, a opressão na cabeça desapareceu e uma calma maravilhosa tomou conta de mim.

    Graças ao mesmo remédio, Summerlee também estava recobrando-se; e então foi a vez de Lord John. Este ficou de pé com um pulo, e ofereceu-me a mão para que eu fizesse o mesmo, enquanto Challenger ajudava a mulher levando-a até o sofá.

    “George querido, quase me arrependo que me tenha trazido de volta ela murmurou, segurando-lhe a mão. “Como você mesmo disse, uma vez superado o momento do medo, o Além é suave e bonito! Por que me trouxe de volta?”

    “Porque quero que embarquemos nesta grande viagem juntos. Já passamos tantos anos juntos, que agora seria muito triste termos de nos separar nesta hora tão grave...”

    Por um momento, notei na voz dele uma ternura que me fez pensar num novo Challenger, um Challenger diferente do homem irritadiço e arrogante que, conforme o caso, passara a vida inteira surpreendendo ou ofendendo toda a sua geração. Na sombra da morte aparecia um novo Challenger, um Challenger que deixava bem claro como, em certa altura da vida, podia ter conquistado o amor de mulher.

    Mas aí a. sua atitude mudou de repente, e ele voltou a ser o nos enérgico chefe.

    “Entre todos os homens, eu fui o único capaz de prever e de anunciar esta catástrofe!”, disse com uma certa exaltação e um toque triunfo científico na voz. “No que me diz respeito, Summerlee, espero que as suas últimas dúvidas tenham desaparecido, e que já não insista mais em dizer que a carta por mim enviada ao Times baseava-se apenas numa ilusão...”

    Pelo menos desta vez, o nosso combativo amigo mostrou-se surdo ao desafio. Continuou sentado, apertando os joelhos com as mãos quase quisesse ter certeza da sua permanência neste velho mundo.

    Challenger aproximou-se do botijão de oxigênio e ouvimos o som do zumbido do gás que saía, até o barulho se transformar em algo parecido com um sopro inaudível...

    “Precisamos administrar com cuidado a nossa reserva de gás”, replicou. “A atmosfera desta saleta tem agora um nível de oxigenação muito acima do normal, e confio que nenhum de nós possa apresentar sintomas alarmantes. Com a experiência que acabamos de fazer, podemos determinar a quantidade de oxigênio que precisamos acrescentar ao ar para neutralizarmos o veneno. Vejamos então como estão as coisas.”

    Ficamos sentados em silenciosa expectativa por mais ou menos cinco minutos, medindo as nossas sensações. Eu já estava achando que uma certa opressão voltara a pesar sobre a minha cabeça, martelando as têmporas, quando a senhora Challenger chamou do sofá onde ficara deitada. O marido deixou sair mais um pouco de gás.

    “Antigamente”, disse, “costumava-se manter um ratinho branco nos submarinos para que, se porventura o ar se tornasse rarefeito demais, o bichinho pudesse ser o primeiro a avisar os marinheiros. Você, minha querida, será o nosso ratinho branco. Aumentei a quantidade de oxigênio e você já está se sentindo melhor.”

    “Sem dúvida, muito melhor...”

    “É possível que tenhamos acertado quase de imediato a quantidade de oxigênio necessária. Agora precisamos averiguar a duração desta quantidade para então calcular quantas horas ainda nos restam de vida. Infelizmente, nestas nossas tentativas, já gastamos uma parte considerável do primeiro botijão.”

    “Qual é a diferença?”, exclamou Lord John, que ficara de pé ao lado da janela, com as mãos nos bolsos. “Se tivermos de partir, de que adianta adiarmos a partida? Não vai me dizer que ainda acredita haver alguma esperança para nós...”

    Challenger sorriu e sacudiu a cabeça.

    “Será então que o senhor acha mais digno ir ao encontro do desastre, em lugar de esperar por ele? Neste caso, tanto faz recitarmos logo as nossas orações, e abrirmos as janelas soltando o oxigênio...”

    “E por que não?”, a mulher disse corajosamente. “George, acho que Lord John talvez esteja certo...”

    “Vejo-me forçado a opor-me com todas as minhas forças!”, exclamou Summerlee, com voz tremula. “Quando chegar a hora de morrer, morreremos com a maior dignidade; mas francamente, antecipar a morte parece-me uma ação insana e injustificável.”

    “E o nosso jovem amigo”, perguntou Challenger, “o que pensa a respeito?”

    “Acho que devemos assistir ao espetáculo até o fim...”

    “E eu estou completamente de acordo”, ele acrescentou.

    “Se esta for a sua opinião, George, eu também penso da mesma forma”, afirmou a mulher.

    “Ora, ora”, disse Lord John, “só falei por falar. Se quiserem assistir o espetáculo  até o fim, aceitarei sua decisão. É óbvio que vai valer a pena. Já vivi muitas aventuras incríveis na minha vida, mas desta vez acredito estar diante da mais estranha de todas.”

    “Se admitirmos a continuidade da vida”, disse Challenger num tom doutoral, “nenhum de nós pode prever os tesouros que iremos encontrar. É claro que, enquanto estivermos vivos, poderemos perceber os fenômenos materiais à nossa volta. E, além disso, se quisermos levar conosco, para qualquer futura existência, uma idéia clara da mais extraordinária aventura de todos os tempos, precisamos ficar vivos durante estas poucas horas a mais que nós mesmos nos concedemos. Quanto a mim, acho que seria uma verdadeira pena desistirmos até de um único minuto do tempo que nos resta...”

    “Estou plenamente de acordo!”, exclamou Summerlee.

    “Então, todos concordamos”, disse Lord John. “Vejam só! Aquele coitado do seu motorista está caído no chão, lá no pátio, e acredito que já tenha se despedido da vida. Acham que seria possível busca-lo?”

    “Seria uma loucura!”, exclamou Summerlee.

    “Também acho”, disse Challenger. “Nunca conseguiríamos salvá-lo e espalharíamos o oxigênio pela casa inteira, mesmo admitindo que pudéssemos voltar até aqui vivos. Mas olhem, vejam só aqueles passarinhos sob as árvores...”

    Aproximamos as cadeiras da ampla janela baixa, enquanto a senhora permanecia de olhos fechados, deitada no sofá. Lembro que Idéia monstruosa e grotesca tomou conta de mim - talvez ela continuasse na minha mente devido ao ar pesado que estávamos respirando - isto é, que estávamos na primeira fila de um teatro, assistindo ao último ato da tragédia do fim do mundo...

    Lá fora, bem diante dos nossos olhos, havia o pequeno quintal com o automóvel limpo só pela metade. Agostinho, o motorista, quase certamente já devia estar morto, pois jazia no chão, imóvel, perto de uma roda do carro, com uma grande mancha escura na testa, onde esta tinha-se chocado com o solo. Ainda apertava com uma das mãos o balde com que estava lavando o veículo. Num canto do quintal havia umas pequenas árvores e, embaixo delas, podiam-se ver várias bolotas de plumas desgrenhadas: eram passarinhos, com suas patinhas viradas para cima. A foice da morte atingira todos, grandes e pequenos!

    Por cima da mureta do quintal, víamos a estrada que levava à estação. Alguns camponeses que há pouco haviam tentado fugir dos campos, estavam agora espalhados em volta, imóveis, com os corpos caídos uns em cima dos outros. Mais adiante, a babá jazia no chão, com a cabeça e os ombros apoiados no limiar de uma pastagem. Tirara do carrinho o neném, que agora não passava de um confuso e inerte amontoado de fraldas.

            Perto dali, uma pequena mancha escura ao lado do caminho indicava onde havia caído a criança mais velha. Não muito longe, podíamos ver a viatura da estação com o cavalo - morto - que, preso às estacas do carro, continuava de pé. O velho cocheiro sentava na boléia, de braços caídos.Através da janela, via-se um jovem que ainda segurava a porta entreaberta da carruagem: a sua mão apertava o fecho como que numa derradeira tentativa de fuga de última hora.

    Mais longe havia o campo de golfe, pontilhado pelas escuras figuras dos jogadores, agora imóveis no chão. Numa única clareira, podiam ser vistos oito corpos. Nenhum pássaro percorria os azuis caminhos do céu, e nem homem nem animal mexia-se no grande palco que se abria diante de nós. O sol, já perto do ocaso - ainda iluminava o cenário mas, na grande paz da hora, percebia-se a solidão e o silêncio da morte universal, uma morte que dentro em breve também iria nos alcançar.

    Ainda por algumas horas, a ciência e a previdência de um homem iriam preservar o nosso pequeno oásis de vida naquele imenso deserto de morte, livrando-nos da catástrofe geral! Aí o oxigênio iria lentamente acabar, nós tombaríamos no tapete da saleta, e o destino de toda a raça humana e de toda a vida terrestre cumprir-se-ia.

    Ficamos um bom tempo parados, observando a tragédia do mundo, num silêncio que era solene demais para que qualquer um de nós ousasse quebrá-lo.

    “Há uma casa pegando fogo!”, exclamou finalmente Challenger, indicando uma coluna de fumaça que aparecia ao longe, acima das árvores. “Acho que vai haver muitos outros incêndios, cidades inteiras em chamas, aliás, pois deve haver um grande número de pessoas que caíram ao chão quando ainda seguravam lumes ou lanternas. Vejam: lá está outro incêndio naquela colina! Deve ser a sede do clube de golfe. Dá até para ver o relógio da igreja. Seria interessante ver como um mecanismo criado pelo homem pode sobreviver à raça que o construiu.”

    “Por Júpiter!”, exclamou Lord John dando um pulo. “O que é aquela nuvem de fumaça? Ah, é um trem...”

    Ouvimos o estrondo do comboio, que passou diante dos nossos olhos a uma velocidade que me pareceu espantosa. Não dava para entender como nem de onde estivesse vindo. Só podia ter continuado a sua corrida por um verdadeiro milagre; mas nós estávamos lá justamente para assistir ao seu fim. Outro trem, um cargueiro de carvão, estava parado nos trilhos.

    Seguramos a respiração enquanto o expresso continuava a sua descontrolada corrida na mesma linha. O choque foi pavoroso. A locomotiva e os vagões tornaram-se logo um amontoado de lascas de madeira e de pedaços de ferro retorcidos. Pequenas chamas avermelhadas logo se elevaram dos escombros, transformando-se em seguida num gigantesco incêndio. Ficamos sentados nos nossos lugares por quase meia hora, fascinados e atordoados por aquele espetáculo dantesco.

    “Coitados!”, exclamou a senhora Challenger, agarrando-se com força ao braço do marido.

    “Querida, os que chamou de coitados eram pessoas menos sensíveis que o carvão contra o qual se chocaram”, disse Challenger. “Era um trem de pessoas vivas quando saiu da Victoria Station, mas já estava sendo guiado pela morte muito antes de chegar ao seu destino final.”

    “No mundo inteiro devem ter acontecido desastres como este”, eu disse, vislumbrando diante dos meus olhos uma série de horríveis calamidades. “Pensem nos navios que continuarão a navegar enquanto houver combustível para as máquinas ou até se espatifarem contra os recifes. Os veleiros também continuarão a levar pelos mares a sua carga de marinheiros mortos até descerem, um depois do outros, para o extremo descanso no fundo do mar. Pode ser que daqui a cem anos ainda haja no Atlântico alguns velhos cascos boiando.”

    “Já pensaram nos mineiros das minas de carvão?”, exclamou Summerlee. “Se algum dia ainda voltar a haver no mundo algum estudioso de geologia, já pensaram nos incríveis debates provocados pela presença de ossadas humanas nas camadas carboníferas?”

    “Não pretendo bancar o sabichão”, comentou Lord John, “mas acho que depois da catástrofe poderemos botar uma linda placa no mundo com os dizeres: ´Aluga-se: vazio'. Uma vez que a humanidade tenha sido varrida daqui, quem mais poderá substituí-la?”

    “O mundo já ficou desabitado em outra ocasião”, respondeu solenemente Challenger, “e mesmo assim voltou a povoar-se. Por que pensar então que o mesmo não volte a acontecer?”

    “Meu caro Challenger, o senhor deve estar brincando.”

    “Não costumo brincar quando o assunto é tão sério, professor Summerlee. O seu comentário é descabido.”

    Ao dizer isto, Challenger assumiu uma expressão carrancuda.

    “O senhor sempre foi um dogmático cabeçudo, e quer continuar assim até o fim!”, disse Summerlee.

    “E o senhor sempre foi um espírito de porco sem imaginação, e ao que tudo indica é assim mesmo que vai morrer!...”

    “Até os seus críticos mais condescendentes nunca poderão acusá-lo de falta de imaginação!”, respondeu Summerlee.

    “Francamente!”, exclamou Lord John. “Acham de fato que o melhor que podem fazer é ficar aí gastando as nossas últimas reservas de oxigênio insultando-se reciprocamente? Não importa que o mundo volte ou não a ser habitado: seja como for, nós já não existiremos mais...”

    “Esta sua observação, senhor, é uma prova evidente da parvice das suas faculdades intelectuais”, disse Challenger com a maior tranqüilidade. “A mente realmente científica está completamente desligada do tempo e do espaço. Ela constrói. para si mesma um observatório no limiar do presente, que separa o infinito passado do infinito futuro. Deste seguro ponto de observação, lança o seu olhar para o começo e o fim de todas as coisas. E no que diz respeito à morte, a mente científica morre sem abandonar o seu posto, trabalhando de forma metódica e normal até o fim. E não perde tempo com coisas insignificantes como a nossa própria dissolução. Não estou certo, professor Summerlee?”

    Summerlee declarou-se favorável, mas de forma bastante grosseira.

    “Concordo”, resmungou, “mas com algumas restrições...”

    “A verdadeira mente científica”, continuou Challenger, “(e uso a terceira pessoa para não deixar a impressão de estar falando de mim mesmo) deve manter a capacidade de pensar segundo um conhecimento abstrato até na hora em que o seu possuidor cai, digamos, de um balão e se espatifa no chão. Somente homens assim podem tomar-se os conquistadores da natureza e a vanguarda da verdade...”

    “Desta vez, a natureza não me deixa lá muito convencido!”, disse Lord John olhando pela janela. “Já li artigos em que se afirmava que os cientistas tinham a capacidade de segurá-la, mas é evidente que ela conseguiu escapar.”

    “Trata-se apenas de um tropeço temporário”, disse Challenger com convicção. “Pode ver claramente que o mundo vegetal sobreviveu. Dê uma olhada nas folhas daquelas árvores lá no fundo do quintal. Os pássaros morreram, mas as árvores continuam florescendo. Desta vida vegetal, atualmente em dissolução, surgirá um dia um pequeno ser microscópico que será o pioneiro do futuro grande exército da vida. Desde que uma forma qualquer de vida consiga estabelecer-se, o advento final do homem torna-se tão certo quanto o nascer da espiga. O antigo ciclo voltará a repetir-se...”

    “Mas tudo isto não acabará sendo afetado pelo veneno?”, perguntei.

    “O veneno pode ser apenas uma camada do éter, alguma coisa que como uma mefítica correnteza atravessa o oceano em que nós boiamos. Ou teremos então uma adaptação, e a vida ajustar-se-á às novas condições. O próprio fato de nós podermos lutar contra o veneno com uma hiperoxigenação relativamente pequena do nosso sangue demonstra, por si só, que não é preciso haver grandes mudanças para que a vida animal se acostume a ele sem maiores prejuízos”.

    A casa atrás das árvores, da qual subia uma coluna de fumaça, estava agora completamente em chamas. Podíamos ver as irrequietas labaredas que chispavam no ar.

    “Há nisto uma fatalidade assustadora!”, murmurou Lord John, que estava abalado como nunca o vira antes.

    “Será que no fundo precisamos realmente ficar tão abalados?”, observei. “O mundo morreu e a cremação pode ser um ritual bastante apropriado.”

    “Se o fogo chegasse até esta casa, a nossa agonia seria certamente mais curta.”

    “Previ este perigo”, disse Challenger, “e pedi que a minha mulher tomasse as devidas precauções.”

    “Pensei em tudo, querido. A minha cabeça está novamente ficando pesada. Que atmosfera insuportável!”

    “Vamos dar um jeito nisto!”, disse Challenger, e aproximou-se do botijão de oxigênio.

    “Já está quase vazio”, disse. “Durou três horas e meia, e já são quase oito. Poderemos passar a noite sem maiores dificuldades. Acredito que o fim chegará amanhã, lá pelas nove horas. Teremos o privilégio de assistir a uma alvorada que só existirá para nós cinco...”

    Abriu o segundo botijão e acionou por meio minuto o ventilador que, estava em cima da porta. O ar tornou-se um pouco mais respirável mas, uma vez que os sintomas pioravam, desligou o ventilador.

    “Não podemos esquecer que o homem não vive apenas de oxigênio”, disse. “já estamos meia hora atrasados para o jantar. Garanto, meus senhores, que quando os convidei para uma reunião que esperava ser interessante, achei que a minha cozinha devia manter-se à altura da sua fama. Seja como for, vamos fazer o possível. Acredito que todos considerariam uma verdadeira loucura gastarmos desnecessariamente o nosso ar ligando o fogão a gás. Aprontei umas modestas provisões de carne fria, fruta e pão que, juntamente com umas boas garrafas de vinho, vão servir muita bem. Devo agradecer isto tudo a você, minha querida. Continua sendo, como de costume, a rainha das donas de casa.”

    E era realmente motivo de maravilha ver a decorosa dedicação doméstica, tão típica da dona de casa inglesa, com que a senhora aprontou em poucos minutos a mesa com uma toalha branca como neve, distribuiu os guardanapos, e trouxe a carne fria perfeitamente arrumada na bandeja. Colocou então a lâmpada elétrica no meio da mesa e nós descobrimos, com ainda mais espantada surpresa, que estávamos com um formidável apetite.

    “Está na medida das nossas emoções”, disse Challenger. “Passamos por uma crise que gerou uma grande atividade molecular, e todo este gasto exige uma compensação. Às grandes dores e alegrias sempre se acompanha uma fome voraz que nada tem a ver com a inapetência de que tanto falam as histórias românticas.”

    “Deve ser por isto que os camponeses sempre dão grandes jantares depois dos enterros”, ousei observar.

    “Exatamente! O nosso jovem amigo encontrou um ótimo exemplo. Permitam que lhes ofereça mais uma fatia de língua.”

    “Acontece o mesmo com os selvagens”, disse Lord.John, servindo-se de outra fatia de carne. “Assisti ao enterro de um cacique ao longo de um rio da África e vi os nativos comerem um hipopótamo que devia pesar mais que a tribo inteira. Sem contar que alguns aborígines da Nova Guiné chegam ao ponto de devorar o morto. De todas as cerimônia fúnebres, entretanto, acho que a nossa seja a mais extraordinária...”

    “O mais estranho”, disse a senhora Challenger, “é que não consigo sentir pena daqueles que morreram. E vejam bem que tinha papai e mamãe em Bedford. Sei que morreram e mesmo assim, nesta assustadora tragédia universal, não consigo comover-me...”

    “E a minha velha mãe, na sua casinha na Irlanda?”, eu disse. “Parece que a estou vendo, com o seu xale e a touquinha, sentada na grande cadeira de balanço, de olhos fechados e com os óculos na ponta do nariz, ao lado da janela. Por que deveria chorar por ela? Morreu, mas eu também estou prestes a morrer, e talvez dentro em breve estarei ao lado dela.”

    “No que diz respeito ao corpo”, observou Challenger, “não choramos sobre os pedaços de unhas que cortamos e tampouco sobre os cabelos que o barbeiro apara: e mesmo assim são partes de nós. E o perneta tampouco chora por causa do membro que perdeu. Por via de regra, o nosso corpo físico é para nós fonte de sofrimento ou de cansaço, e o indicador constante dos limites das nossas possibilidades. Por que deveríamos chorar ao nos separarmos dele?”

    “Que seja”, rosnou Summerlee, “mas a morte universal continua sendo uma coisa aterradora...”

    “Como já disse”, continuou Challenger, “uma morte geral deveria ser muito menos terrível do que uma isolada.”

    “E o que acontece na guerra”, disse Lord John. “Se houver um só homem deitado no chão com o peito estraçalhado, ficamos comovidos. Mas se houver dez mil, como tive ocasião de ver no Sudão, ficamos completamente insensíveis a qualquer sentimento de pena. E aí, na hora de escrevermos a história, a vida individual de um homem é inteiramente irrelevante. Quando milhões de homens morrem de uma só vez, como aconteceu hoje, não temos o direito de nos preocupar com a nossa pequena existência...”

    “Gostaria que nós também já estivéssemos no além”, disse a senhora, um tanto chorosa. “Oh, George, estou tão amedrontada!”

    “Acredito, ao contrário, que será a mais corajosa entre nós, minha querida, quando chegar a hora. Tenho sido um marido rude, mas você não pode esquecer que G.E. Challenger é deste jeito mesmo e não pode mudar. Afinal de contas, gostaria de ter tido um marido diferente?”

    “De jeito nenhum, querido!”, ela disse, e jogou os braços em volta do pescoço taurino do esposo.

    Nós três chegamos perto da janela e ficamos atônitos com o espetáculo que se descortinava diante dos nossos olhos. Já era noite e o mundo morto mostrava-se indefinido, nas sombras. Para o sul, no entanto, aparecia no horizonte uma longa faixa de um vermelho escarlate que palpitava em chamas.”

    “Deve ser Lewes”, arrisquei.

    “É grande demais”, disse Challenger. “Deve ser Brighton que está sendo devorada pelo fogo.”

    Havia chamejantes pontos vermelhos em vários lugares, e o montão de escombros na linha férrea ainda estava em brasas, mas todas estas luzes pareciam apenas pontinhos em comparação com o imenso incêndio que avistávamos ao longe.

    Que reportagem fantástica poderia ter sido para o meu jornal! Será que algum outro jornalista no mundo já tivera uma oportunidade daquelas? E sem chance de aproveitá-la! A notícia de todas as notícias estava ali, ao alcance da mão, mas faltava o público para apreciá-la!

    E aí, de repente, o velho instinto jornalístico despertou dentro de mim. Se os cientistas meus amigos julgavam-se capazes de continuar o seu trabalho mental até o fim, porque então deveria eu esquecer minha profissão? Nenhum olho humano jamais leria os meus papéis, mas de qualquer forma eu precisava encontrar um jeito de passar aquela noite que mal começara, ainda mais porque percebia que não conseguiria dormir. As anotações iriam ajudar-me a passar o tempo ocupando a minha mente.

    É por isto que agora estou aqui com o meu caderninho cheio de rabiscos: anotações escritas de qualquer jeito, em cima dos joelhos e na escassa luz da nossa única lâmpada elétrica. Se porventura eu tivesse algum dom literário, agora estas notas seriam dignas da hora em que foram escritas. Assim como são, podem de qualquer forma transmitir aos outros as angustiantes emoções e ansiedades daquela noite pavorosa...

   

O Diário da Agonia

    Como soa estranho este título no começo da página ainda branca do meu caderninho! E ainda mais estranho é que este relato acabe sendo escrito justamente por mim, Edward Malone, que há apenas doze horas estava tranqüilamente em casa, sem nem de longe imaginar os fatos incríveis que iria testemunhar no decorrer do dia!

    A minha memória volta à seqüência dos acontecimentos, à conversa com Mc Ardle, ao primeiro sinal de alarme de Challenger no Times, à atribulada viagem de trem, ao simpático almoço, ao começo da catástrofe, até este momento em que estamos sozinhos num planeta vazio. O nosso fado está tão certo que estas linhas só encontram justificação naquilo que posso chamar de hábito profissional, uma vez que ninguém irá lê-las: são como as palavras de alguém que já morreu, pois falta muito pouco para que eu também me perca nas sombras junto com os meus amigos.

    Compreendo agora toda a verdade que havia nas palavras de Challenger quando dizia que a verdadeira tragédia seria o fato de sobrevivermos depois de todas as coisas nobres, boas e belas do mundo terem desaparecido. Mas não há possibilidade disto acontecer. O nosso segundo botijão de oxigênio já está quase no fim: podemos calcular a vida que nos resta com precisão quase matemática.

            Ficamos mais de quinze minutos ouvindo uma palestra de Challenger: estava tão animado e falava com tanta veemência que quase parecia estar entretendo um numeroso público em alguma grande sala londrina. Os seus ouvintes, no entanto, eram deveras estranhos: a mulher dele, sempre pronta a aclamá-lo e totalmente ignara do sentido das frases que ouvia; Summerlee, sentado na sombra, disposto a criticar e a insurgir ruidosamente, mas honestamente interessado; Lord John, quase escondido num canto e, sem dúvida, enfadado; e finalmente eu, que estava perto da janela e olhava a cena com uma atenção digamos assim distraídas, como que assistindo ao desenrolar-se de um sonho ou de alguma coisa na qual não estivesse diretamente envolvido.

    Challenger está sentado sob a lâmpada que ilumina o microscópio que foi buscar no escritório. Parece que nestes últimos tempos tem estudado profundamente as formas mais elementares de vida, e agora está muito contente porque o microscópio demonstra que uma ameba, colocada sob a lente no dia anterior, ainda está viva.

    “Os senhores mesmos podem ver”, diz na maior animação. “Summerlee, faça o favor de vir aqui, para ver com os seus próprios olhos. Malone, quer confirmar o que estou dizendo? Aqui, à direita, podem ver claramente uma ameba se mexendo vivamente através do diafragma. Controlem e verão que não estou mentindo...”

    Summerlee olha e se declara convencido. O mesmo faço eu, depois de conseguir distinguir uma minúscula criatura. Quanto a Lord John, acredita sem precisar de provas.

    “Não vou quebrar a minha cabeça só para saber se o bicho está morto ou vivo”, diz. “Por que deveria estar interessado se nem mesmo tenho o prazer de conhecê-lo de vista? Acho que ele não se preocupa nem um pouco com as nossas condições de saúde...”

    Rio com a piadinha, mas Challenger me fulmina com uma olhada gélida; e garanto que não é nada fácil agüentar aquele olhar.

    “A leviandade das pessoas instruídas só pela metade é mais prejudicial, para a ciência, que a obtusidade dos ignorantes”, sentencia. “Se Lord John Roxton tiver a bondade...”

    “Meu querido George, não seja tão mordaz!”, diz a mulher afagando com a mão a cabeça do marido, curvo no microscópio. “Que diferença pode fazer se a ameba está viva ou morta?”

    “Uma diferença enorme!”, resmunga Challenger.

    “Então explique-se!”, diz Lord John, quase em tom de pilhéria. “Este assunto é tão bom quanto qualquer outro. Se o senhor achar que fui indelicado com esse insignificante bichinho e que ofendi a sua sensibilidade, estou pronto a pedir desculpas...”

    Quanto a mim”, observa Summerlee, “não consigo entender por que dá tanta importância ao fato dessa criatura ainda estar viva. Ela se encontra na nossa mesma atmosfera e é óbvio, portanto, que não tenha sido afetada pelo veneno. Se ao contrário tivesse ficado fora desta sala, teria morrido como todo o resto da vida animal.”

    “A sua observação, meu bom Summerlee”, diz Challenger fazendo um incrível esforço para dominar-se (ah, se eu pudesse desenhar a arrogância daquele rosto prepotente, no vívido reflexo circular do espelho, do microscópio!), “mostra que não está entendendo todas as facetas desta situação. A ameba foi colocada ali ontem, e fechada hermeticamente, e, portanto o nosso oxigênio não pode alcançá-la. O éter, por sua vez, certamente alcançou-a da mesma forma que alcançou qualquer outro ponto do universo, e apesar disto o bichinho, como vocês o chamam, resistiu ao veneno. Por conseguinte, podemos dizer que qualquer ameba fora desta sala, em vez de morrer como o senhor erroneamente afirmou, sobreviveu à catástrofe.”

    “Que seja! Mas continuo sem a menor disposição de dar pulos de alegria por isto! “, diz Lord John. “Não interessa.”

    “E claro que interessa, pois quer dizer que o mundo não está morto. Se o senhor tivesse algum pendor pela ciência, poderia partir deste pequeno fato e vislumbrar num longínquo futuro - daqui. a alguns milhões de anos, que são um piscar de olhos no decorrer das eras - o mundo inteiro ressurgir, com a vida animal e humana brotando desta minúscula semente.

    Já tiveram a oportunidade de ver uma pradaria em chamas? Depois da passagem do fogo, qualquer sinal de grama e de plantas desaparece do solo, deixando apenas um deserto enegrecido. Isto poderia sugerir que o lugar iria ficar eternamente daquele jeito, mas as raízes ainda estão lá e, se vocês passarem por lá depois de alguns anos, já não saberiam reconhecer o local do incêndio. Pois bem, nesta minúscula criatura estão as raízes do futuro mundo animal; com o passar do tempo, com o seu desenvolvimento e a sua evolução, esta ameba cancelará qualquer sinal da crise excepcional da qual somos testemunhas.”

    “Muito interessante”, diz Lord John aproximando-se e dando uma espiada no microscópio. “Nunca podia pensar que este bichinho fosse digno de tanto respeito!”

    “O ponto mais escuro é o núcleo”, comenta Challenger com o ar de um mestre-escola que ensina o bê-á-bá.

    “Pensando melhor, não há motivo de ficarmos tristes”, diz sorrindo Lord John. “Deixamos alguma coisa viva na terra...”

    “Challenger, o senhor parece acreditar piamente”, observa Summerlee, “que o mundo foi criado especificamente para gerar e alimentar a vida humana...”

    “E daí? Alguma objeção?”, pergunta Challenger, irritado com esta nova contestação.

    “Às vezes chego a pensar que somente o conceito exagerado que o homem tem de si mesmo faz com que ele imagine o mundo como algo feito para ser unicamente o palco das suas ações.”

    “Não podemos ser dogmáticos na hora de falarmos numa coisa dessas mas, pelo menos, e sem aquilo que o senhor chamou de conceito exagerado, podemos afirmar com toda certeza que nós representamos a parte mais alta da natureza...”

    “A mais alta daquilo que conhecemos...”

    “É implícito, meu senhor.”

    “Pensem em todos os milhões e talvez bilhões de anos em que a terra girou vazia pelo espaço. Ou pelo menos, para não dizermos realmente vazia, sem sombra da raça humana. Pensem na terra de então, lavada pela chuva e queimada pelo sol durante uma espantosa seqüência de anos! Do ponto de vista geológico, o homem só entrou em cena ontem. E então? Por que deveríamos supor que toda esta maravilhosa preparação foi feita exclusivamente para ele?”

    “E por que teria sido feita, então, e para que?”

    Summerlee deu de ombros.

    “Não podemos saber. Certamente, por alguma razão que está acima da nossa compreensão.”

    Registrei nos meus apontamentos as palavras exatas daquela conversa, mas nesta altura ela degenerou numa verdadeira confusão recheada de termos científicos. Assistir ao debate de duas mentes superiores sobre assuntos tão elevados é de fato uma honra; mas por outro lado, uma vez que aqueles dois nunca param de discutir, homens mais simplórios como Lord John e eu têm todo o direito de se sentirem um tanto cansados.

    Os dois cientistas acabam se neutralizando reciprocamente, de forma que nós ficamos na mesma. A gritaria acabou, e agora Challenger está sentado na cadeira; continua mexendo nas lentes do microscópio e os seus resmungos lembram as surdas ameaças de um mar tempestuoso.

    Lord John se aproxima e ambos ficamos olhando na noite.

    Há uma pálida lua, a última que olhos humanos poderão ver, e as estrelas brilham no céu. Nunca vi tanta vivacidade de luz, nem mesmo nas noites da América do Sul. Provavelmente o fenômeno etéreo deve influenciar de alguma forma o brilho das estrelas. A fúnebre fogueira de Brighton, ainda não se apagou, e percebe-se no céu uma grande sombra para o ocidente, uma sombra que indica incêndios em Arundel, ou então Chester, e talvez até Portsmouth. Volto para a minha cadeira e escrevo mais estas linhas: ,

    “A beleza da noite é impressionante. Quem poderia pensar que este incomparável cenário serve de gólgota para a espécie humana?”

    Aí, quase sem dar-me conta, começo a rir...

    “O que é isso, meu rapaz?”, pergunta Lord John, surpreso. “Parece-lhe haver algum motivo de riso? O que houve?”

    “Estava pensando em todos aqueles grandes problemas que ficarão irresolutos”, respondo, “A todas as divergências que por tanto tempo dividiram os homens das várias nações. Quem poderia pensar que iriam resolver-se de forma tão extraordinária?”

    Ficamos algum tempo calados. Aposto que todos nós estamos pensando nos amigos que nos antecederam na morte. A senhora Challenger soluça baixinho, e o marido sussurra-lhe alguma coisa. A minha mente volta a uma porção de gente que imagino imóvel no chão, inerte como o pobre Agostinho que jaz no meio do pátio.

    Penso, por exemplo, em Mc Ardle. Sei muito bem onde está, com o rosto apoiado na escrivaninha e a mão que continua-segurando o telefone. Também revejo Beaumont, o dono do jornal, que imagino deitado no tapete turco vermelho e turquesa que enfeita o seu escritório. E lá estão os meus companheiros de redação: Mc Dorma, Murray e Bond. Quase na certa, morreram trabalhando febrilmente, com os caderninhos repletos de anotações e impressões sobre os estranhos acontecimentos aos quais estavam assistindo.

    Imagino que um deles tenha sido enviado a entrevistar os médicos, outro os políticos, e o terceiro as autoridades religiosas. Inúmeras matérias de primeira página, com reboantes manchetes, devem ter sido a última visão a aparecer diante dos seus olhos! Quantas maravilhosas informações fadadas a nunca chegar às máquinas impressoras!

    Parece-me quase estar vendo as manchetes de Mc Donna: “Ainda temos esperança! - Entrevista com Soley Wilson - O famoso especialista afirma: Nem tudo está perdido!”

    O nosso repórter encontrou o conceituado cientista sentado no telhado, onde se abrigara para fugir da multidão de cidadãos apavorados que lhe pediam ajuda. Com palavras que demonstravam claramente a gravidade com que encarava a situação, o médico recusou-se a admitir que já não havia esperança.

    Era assim que Mc Donna teria começado a sua matéria; com toda a probabilidade, Bond iria cuidar da catedral Saint Paul, entregando-se completamente às suas tendências literárias. Que assunto, para um homem como ele!

    Do pequeno corredor interno que dá a volta da abóbada, enquanto olhava aquela multidão de humanidade ferida que, em seus últimos estertores arrastava-se na presença de um poder superior até então quase ignorado ou esquecido, subiram até aos meus ouvidos gritos de horror e tão formidáveis pedidos de salvação que... e assim por diante.

    Um fim realmente terrível para um jornalista, ter de morrer assim, cercado de tesouros que não poderão ser contados ao seu público! Bond, aquele jovem rapaz promissor, teria feito qualquer coisa para ver as suas iniciais assinando uma matéria destas!

    Mas por que perder tempo com estas bobagens? Talvez faça isto somente para tirar da minha cabeça os pensamentos desta hora terrível. A senhora Challenger foi para o quarto e o marido diz que adormeceu. Ele, por sua vez, continua a escrever anotações e a consultar livros com toda a calma: quase parece que ainda poderá dispor de vários anos de tranqüila pesquisa.

    Summerlee abandonou-se na poltrona e só de vez em quando dá os ares da sua graça com um discreto roncar. Lord John está recostado no espaldar da cadeira, de olhos fechados e com as mãos nos bolsos. Francamente, não consigo entender como numa situação destas ainda haja pessoas capazes de dormir.

    Já são três e meia da manhã. Acabo de despertar, quase com um pulo. Eram onze horas e cinco minutos quando escrevi as últimas linhas. Lembro que olhei o relógio e tomei nota da hora. Quer dizer, portanto, que desperdicei quase cinco horas do pouco tempo que nos resta.

    Nunca poderia ter imaginado que até eu iria adormecer! Agora, entretanto, sinto-me muito mais descansado e preparado para o meu destino... Ou, pelo menos, tento convercer-me disto. Com efeito, quanto mais forte é um homem, mais se sente dolorosamente oprimido pelo peso da morte. E justamente por isto que devemos considerar mais sábia a natureza que, por via de regra, faz com que as últimas horas de um homem sejam antecedidas por uma progressiva diminuição das suas forças.

    A senhora Challenger continua no quarto e o marido adormeceu na cadeira. Um espetáculo e tanto! A sua poderosa figura está jogada para trás, com as mãos curtas e peludas agarradas no colete, enquanto a cabeça está tão caída sobre o peito que quase não dá para ver a grande barba: agita-se segundo as vibrações do seu roncar. De vez em quando Summerlee acrescenta o seu ressonar de tenor ao ronco profundo e sonoro de Challenger. Lord John também está dormindo, com o corpo dobrado sobre o braço da poltrona. O primeiro palpitar da alvorada penetra na sala e tudo é cinzento e triste.

    Viro-me para ver a aurora: a indizível aurora que vai brilhar num mundo despovoado. A raça humana desapareceu, extinta num só dia; mas os planetas continuam no seu curso, e os ventos sopram, com a natureza que prossegue no seu caminho, com as suas criaturas mais elementares, até ameba.

    Lá no pátio já posso ver Agostinho, de pernas abertas e rosto cinzento nas primeiras luzes da alvorada. Neste momento, toda a raça humana parece resumir-se nesta figura meio repulsiva e meio, patética que jaz sem vida ao lado da máquina que um dia dominou.

    Às minhas anotações terminam aqui. Em seguida foi tudo rápido e estonteante demais para que eu pudesse escrever; mas cada Coisa está tão claramente gravada na minha memória que nunca poderei esquecer um detalhe sequer.

    Uma certa ardência na garganta fez com que virasse os olhos para os botijões de oxigênio, e fiquei simplesmente abismado com o que vi.

    Os derradeiros momentos da nossa vida estavam se esvaindo inexoravelmente. Em certa altura da noite, Challenger tinha tirado o cano da saída do terceiro botijão e o ligara ao quarto. Estava claro que este também já estava no fim. O fato de saber que o oxigênio estava acabando deixou-me um tanto abalado.

    Levantei-me para ligar o último botijão que sobrava. Ao fazer isto, quase me senti culpado: pensei que, sem oxigênio, talvez os meus companheiros pudessem morrer suavemente enquanto estavam dormindo, sem nada perceberem. Mas logo tive de abandonar este pensamento ao ouvir a senhora gritar, entre as lágrimas:

    “George, George! Não consigo respirar...”

    “Calma, minha senhora! Nada de pânico!”, respondi enquanto os demais ficavam imediatamente de pé. “Acabo de ligar outro botijão.”

    Mesmo numa hora tão terrível, não pude deixar de sorrir ao ver Challenger que, esfregando os olhos com os dedos peludos, parecia um meninão grande que acabava de acordar.

    Summerlee parecia estar a ponto de chorar, quase tivesse desistido da atitude estóica própria de um cientista. Lord John, por sua vez, estava alegre e saltitante como se estivesse prestes a sair para uma matinal caçada.

    “Quinta e última!”, comentou indicando o botijão. “Por falar nisso, meu rapaz, está querendo dizer que passou estas últimas horas escrevendo no seu caderninho as suas impressões?”

    “Procurei registrar umas anotações só para passar o tempo...”

    “Só um irlandês seria capaz de tal desatino. Acho que terá de esperar um bom tempo antes de encontrar um leitor. Pois bem, professor, quais são as previsões?”

    Challenger estava observando os vastos bancos de neblina que enevoavam o horizonte. No meio da cortina esbranquiçada despontavam, como ilhas cônicas, as colinas.

    “Devem estar todos morrendo de frio”, disse a senhora Challenger ao voltar para a saleta. “Passei a noite toda sob os cobertores enquanto vocês ficaram desprotegidos em suas poltronas. Agora vamos dar um jeito nisso...”

    A boa mulher saiu apressada e, logo a seguir, ouvimo-la atarefada na cozinha. Não demorou em voltar com cinco fumegantes xícaras de chocolate numa bandeja.

    “Tomem isto”, disse. “Vão se sentir muito melhor.”

    Obedecemos. Summerlee pediu licença para acender o cachimbo, e todos nos lembramos que tínhamos cigarros. Achávamos que fumar poderia acalmar os nossos nervos, mas na verdade só conseguiu criar uma atmosfera insuportável na sala. Challenger viu-se forçado a ligar o ventilador.

    “Quanto tempo ainda nos resta, Challenger?”, perguntou Lord John.

    “Calculo mais ou menos três horas.”

    “Antes eu estava com medo”, disse a mulher, “mas quanto mais me aproximo do fim, mais me sinto tranqüila. George, não acha que talvez fosse melhor rezarmos?'

    “Reze à vontade, se assim quiser”, respondeu amavelmente o grande homem. “Cada um de nós tem uma maneira própria de rezar. A minha consiste na aceitação total daquilo que o destino manda.”

    “Não creio que a minha atitude mental seja exatamente o que poderíamos chamar de resignação, e muito menos de solícita resignação”, resmungou Summerlee entre as baforadas. “Só aceito o destino porque não posso fazer outra coisa. Confesso que teria gostado de viver mais um ano para concluir a minha classificação dos fósseis calcários...”

    “O seu trabalho inacabado é coisa sem importância”, disse Challenger, com ar de superioridade. “Totalmente irrelevante, se compararmos com a minha obra capital, A escala da vida, que ainda está nas primeiras páginas. A minha mente, a minha cultura, a minha experiência, tudo aquilo que possuo, em suma, deveria ser resumido neste volume que, sem dúvida, iria marcar época; e apesar de tudo, como podem ver, estou resignado.”

    “Cada um de nós deixará certamente alguma coisa inacabada”, disse Lord John. “O que vai ser, no seu caso, meu rapaz?”

    “Estava trabalhando num livro de poesias”, respondi.

    “Eis um perigo que o mundo conseguiu evitar”, brincou Lord John. “Pensando bem, qualquer assunto desagradável da vida, por mais ruim que seja, sempre tem um lado positivo, um aspecto compensador.”

    “E quanto ao senhor?”, perguntei.

    “Pois é; tinha prometido a um amigo meu que iria caçar leopardos com ele no Tibete, na primavera. E a senhora, madame Challenger, que acabava de construir esta deliciosa casa de campo?”

    “A minha casa está onde estiver o meu George. Ali, como gostaria de dar mais um passeio com ele no jardim, no frescor da manhã.“

    Estas palavras ecoaram nos nossos corações. O sol dissipara a neblina matinal e agora toda a natureza estava envolvida numa luz dourada. Para nós, sentados numa atmosfera escura e envenenada, aquele panorama luminoso e nítido era como que um maravilhoso sonho de beleza.

    A senhora Challenger levantou involuntariamente os braços para a vista. Aproximamos as cadeiras e formamos um semicírculo perto da janela. O ar já era quase irrespirável. Tive a impressão de que a sombra da morte já estava descendo sobre nós, como pano invisível a nos envolver por todos os lados.

    “Este botijão não parece estar funcionando direito”, disse Lord John, escancarando a boca para respirar.

    “A quantidade de oxigênio varia conforme os recipientes”, observou Challenger, “e depende da pressão e do cuidado com que foram recarregados. Como o senhor, Roxton, eu também desconfio que este último botijão seja de alguma forma defeituoso.”

    “Quer dizer que fomos logrados: tiraram de nós a nossa última hora de vida”, observou amargamente Summerlee. “Eis aqui mais uma prova da época ignóbil em que vivemos. É a sua vez, Challenger, se quiser estudar o interessante fenômeno da dissolução física...”

    “Sente-se no tapete, perto dos meus joelhos, e dê-me a mão”, disse Challenger à mulher. “Meus caros amigos, acredito que já não valha a pena ficarmos nesta sala. Você também prefere sair, não é, minha querida?”

    A dama teve alguma coisa parecida com um soluço e apoiou a cabeça na perna do marido.

    “Acho que a situação pior será a do último sobrevivente entre nós, que terá de assistir à agonia dos demais e morrer sozinho.”

    “Prefere então abrir a janela e enfrentar o éter?”

    “Melhor envenenados do que sufocados.”

    Summerlee fez sinal de concordar plenamente e esticou o braço oferecendo a mão fina a Challenger.

    “Passamos a vida inteira brigando, mas agora não se fala mais no assunto!”, disse. “Fomos ótimos amigos e, esquecendo as aparências sempre tivemos o maior respeito um pelo outro. Adeus!”

    “Adeus, meu jovem!”, disse-me Lord John. “A janela está pregada hermeticamente e não podemos abri-la...”

    Challenger levantou a mulher apertando-a contra o peito enquanto ela se agarrava ao seu pescoço.

    “Dê-me o binóculo, Malone! “, ordenou muito sério. Passei-o para ele.

    “Estamos nos entregando à Força que nos criou!”, gritou com sua voz trovejante e, ao pronunciar estas palavras, arremessou o binóculo contra os vidros da janela.

    Antes de se apagar o tilintar dos cacos caídos no chão, um forte sopro de vento passou pelo vidro quebrado, fresco e suave, e investiu em cheio os nossos rostos.

    Não sei dizer quanto tempo permanecemos calados, parados como estátuas de pedra. Aí, de repente, ouvi mais uma vez a voz de Challenger.

    “As condições ambientais voltaram ao normal!”, gritou. “O mundo livrou-se do halo envenenado; mas de toda a humanidade, só nós ainda estamos vivos...”

   

O Mundo Morto

    Lembro que nos deixamos cair nas cadeiras enquanto a brisa suave nos acariciava o rosto e agitava as cortinas da janela. Não sei dizer quanto tempo ficamos sentados pois nunca chegamos a algum tipo de concordância, mesmo em seguida, quanto a este ponto.

    Estávamos quase inconscientes, como que abobalhados. A nossa coragem nos preparara a enfrentar a morte, mas este novo destino aterrador - a sina de vivermos depois do desaparecimento de toda a raça à qual pertencíamos - abalou-nos de forma insuportável deixando-nos num estado de profunda prostração.

    É claro que pouco a pouco os nossos mecanismos vitais recomeçaram a funcionar, fazendo com que as idéias voltassem a circular na nossa mente. Percebemos com cruel lucidez a relação entre presente, passado e futuro: a vida passada e aquela que esperava por nós.

    Num silêncio terrível, ficamos olhando uns para os outros, lendo no rosto dos companheiros a mesma expressão interrogativa. Em lugar da alegria que se poderia esperar de homens tão milagrosamente salvos da morte iminente, demonstrávamos o aturdimento de quem se acha perdido nas trevas. Tudo aquilo que tínhamos amado no mundo havia sido varrido da terra e agora estávamos como que numa ilha deserta, sem amigos, sem esperança, sem aspirações! Continuaríamos andando por mais alguns anos entre os túmulos da raça humana, até nós mesmos chegarmos ao nosso fim...

    “E horrível, George, é um verdadeiro pavor!”, murmurou a senhora, entre os soluços. “Teria sido melhor morrermos com os outros. Por que nos salvou? Sinto-me como se estivéssemos mortos e todos os demais continuassem vivos...”

    O rosto de Challenger parecia concentrar-se em profundas meditações, enquanto seus dedos peludos apertavam a mão da mulher. Eu já notara que, nos momentos difíceis, ela esticava o braço para o marido como uma criança amedrontada que busca a proteção da mãe.

    “Sem ser fatalista no sentido mais estrito da palavra”, disse Challenger, “sempre achei que a verdadeira sabedoria consiste em dobrar-se sem rebeldia diante dos acontecimentos.”

    Falou lentamente, e havia uma vibração de sentimentos na sua voz profunda e sonora.

    “Mas eu não costumo dobrar-me!”, disse Summerlee, com a birrenta firmeza que lhe era peculiar.

    “Não creio que seja o caso de quebrarmos a cabeça para saber se esta aceitação passiva do destino vale ou não vale a pena”, observou Lord John. “Seja qual for a atitude que cada um queira assumir, não há como evitarmos os fatos. Para que discutir, então? Não me lembro de alguém ter-nos pedido licença, antes de a catástrofe acontecer, e acredito que agora mesmo ninguém irá perguntar a nossa opinião. Seja o que for que pensemos a respeito, portanto, não vai fazer diferença alguma.”

    “Não concordo: acho que, ao contrário, poderá ser a diferença entre felicidade e desespero”, disse Challenger com ar meio ausente, continuando a acariciar a mão da mulher. “Podemos nos deixar levar pela catástrofe com a paz na alma e no coração, ou então resistir só conseguindo sofrimento e infelicidade. Aquilo que aconteceu está muito além das nossas forças, e a única coisa que podemos fazer é aceitar a situação sem pensarmos mais no assunto...”

    “Mas o que faremos no mundo, sozinhos?”, eu disse, quase dirigindo esta desesperada pergunta ao céu azul e vazio. “O que irei eu fazer, por exemplo? Uma vez que não há mais jornais, a minha carreira acabou...”

    “E uma vez que não há mais feras nem soldados, a minha carreira de caçador e militar também chegou ao fim”, disse Lord John.

    “Isto também vale para mim, já que não há mais estudantes”, observou Summerlee.

    “Tenho o meu marido e a minha casa, e portanto, posso agradecer ao céu por estar viva”, disse a senhora.

    “E a minha carreira tampouco acabou”, acrescentou Challenger, “pois a ciência não morreu, e o próprio desastre que nos cerca proporciona um enorme campo de estudo e pesquisas.”

    Nesta altura já tinha escancarado todas as janelas e nós estávamos cabisbaixos diante de um mundo que se mostrava imóvel e silencioso.

    “Vamos fazer uns cálculos”, disse Challenger. “Eram mais ou menos as três da tarde de ontem quando o mundo entrou na nuvem e ficou inteiramente submerso. Já são nove horas. Agora, o que precisamos saber é quando ficamos fora de perigo.”

    “O ar já estava péssimo ao raiar do sol”, comentei.

    “Não, era mais tarde”, disse a senhora Challenger. “Já deviam ser quase oito horas quando senti a minha garganta fechada como acontecera no começo.”

    “Podemos então supor que o perigo passou depois das oito. O mundo ficou mergulhado na nuvem envenenada por dezessete horas. Durante este tempo, o Grande Jardineiro levou adiante a sua obra de limpeza. Não seria possível, no entanto, que outras pessoas, além de nós cinco, continuem vivas?”

    “Era nisto mesmo que eu estava pensando”, disse Lord John. “Não vejo por que deveríamos ser os únicos sobreviventes.”

    “É absurdo pensar que outras pessoas ainda estejam vivas”, disse Summerlee com convicção. “Todos nós constatamos que o veneno era tão mortal que nem mesmo um homem forte como um touro e totalmente desprovido de nervos, como o nosso Malone, poderia resistir-lhe por mais de um minuto. Como seria possível, então, que alguém resistisse por várias horas?”

    “A não ser que este alguém tenha previsto o desastre e tomado as devidas providências exatamente como o nosso velho amigo Challenger.”

    “Parece-me sobremodo improvável”, disse Challenger, puxando pensativamente a barba. “O conjunto de observação, intuição e imaginação profética que me permitiu prever o perigo é coisa tão rara que dificilmente poderia acontecer duas vezes na mesma geração”.

    “Acredita, então, que todos de fato morreram?”

    “Não vejo como duvidar disto. Não podemos esquecer, no entanto, que o veneno funcionava de baixo para cima e que provavelmente foi menos virulento nas camadas mais altas da atmosfera. É estranho que seja assim, mas este detalhe representa um excelente campo de estudo para as nossas pesquisas futuras. Seja como for, podemos imaginar que se alguém fosse porventura procurar sobreviventes, teria mais oportunidade de encontrá-los em algum perdido vilarejo do Tibete ou dos Alpes, a alguns milhares de metros acima do nível do mar.”

    “Mas como não dispomos de trens ou navios para averiguarmos pessoalmente, tanto faz imaginar que há sobreviventes na lua”, disse Lord John. “O que realmente me preocupa é saber se o perigo de fato passou, ou se estamos apenas no olho do furacão...”

    Summerlee virou a cabeça para dar uma olhada panorâmica no horizonte.

    “O tempo está ótimo”, disse. “Mas afinal, ontem também estava maravilhoso. Por mim, eu não juraria que o perigo passou.”

    Challenger meneou a cabeça em sinal de desaprovação.

    “Estão caindo no fatalismo de sempre!”, disse. “Se o mundo já passou por um desastre como este, o que não é nem um pouco impossível, isto certamente aconteceu em época muito distante, o que nos permite esperar que a repetição só dar-se-á num futuro extremamente remoto.”

    “Tudo bem”, disse Lord John, “mas quando acontece um terremoto, é muito provável que outro tremor esteja a caminho. Acho que o melhor a fazer seria darmos uma saída e respirarmos um pouco de ar puro enquanto a situação permite. Uma vez que o oxigênio acabou, tanto faz sermos pegos ao ar livre.”

    Nem dá para contar a estranha letargia que tomara conta de nós; parecia uma espécie de reação às terríveis emoções das últimas vinte e quatro horas. Era um letargo ao mesmo tempo físico e mental, e nada conseguia dominá-lo. O próprio Challenger tivera de sujeitar-se, e estava agora sentado com a cabeça entre as mãos. Em certa altura, Lord John e eu seguramos os seus braços, forçando-o a ficar de pé. Isto nos proporcionou uns resmungos que lembravam um mastim de mau humor.

    Mas quais seriam os nossos primeiros passos? Como iríamos enfrentar um mundo transformado em túmulo? Claro, as nossas necessidades físicas, as comodidades e até o luxo não representavam um problema, pois podíamos contar com todos os depósitos de mantimentos, com todos os armazéns de tecidos, e com todos os tesouros artísticos do planeta. Mas quais seriam as nossas providências imediatas? Quais seriam as primeiras tarefas com que iríamos ocupar o nosso tempo?

    Descemos para a cozinha e colocamos as duas criadas nas respectivas camas. Pareciam ter morrido sem dor, uma na cadeira perto do fogo e a outra no chão. Aí fomos buscar o coitado do Agostinho no quintal. Os seus músculos tinham ficado extremamente rígidos e a boca estava torcida no espasmo de um sorriso sardônico.

    Era uma particularidade que podia ser vista em todos os que haviam morrido por causa do veneno. Mais tarde, por onde passássemos, sempre encontrávamos as mesmas caretas que pareciam troçar da nossa pavorosa condição e escarnecer silenciosamente os infelizes sobreviventes da raça humana.

    “A propósito”, disse Lord John que ficara num canto da sala de jantar enquanto nós fazíamos um lanche, “não sei o que vocês tencionam fazer, mas eu, por mim, não tenho a menor idéia de ficar aqui sentado sem fazer coisa alguma.”

    “Talvez”, respondeu Challenger, “o senhor tenha a bondade de sugerir alguma coisa que considere mais oportuna.”

    “Precisamos sair para ver exatamente o que aconteceu.”

    “É o que eu mesmo ia propor.”

    “Mas não nesta pequena aldeia. Já podemos ver, pela janela, tudo aquilo que o lugarejo tem a mostrar.”

    “E aonde deveríamos ir, então?”

    “Para Londres.”

    “Ótima idéia!”, resmungou Summerlee. “Uma linda caminhada de quase setenta quilômetros que certamente o senhor pode agüentar; mas, com aquelas perninhas curtas, não estou lá muito certo quanto a Challenger, embora não tenha a menor dúvida no que me diz respeito.”

    Challenger não gostou nem um pouco.

    “Acho melhor o senhor se limitar a cuidar dos seus próprios negócios, pois até mesmo no que diz respeito às pernas, não me parece de fato que alguém possa invejá-lo.”

    “Não tinha intenção de ofendê-lo, meu caro Challenger”, disse o nosso incorrigível amigo. “Ninguém pode culpá-lo pelo físico que tem. Uma vez que a natureza brindou-o com um corpo tão atarracado e disforme, era fatal que as suas pernas fossem curtinhas.”

    Challenger estava indignado demais para conseguir responder. Só conseguia resmungar bufando como uma locomotiva. E Lord John apressou-se a entrar na conversa antes que a disputa se tomasse mais violenta.

    “Ouvi falar em caminhada; mas quem disse que deveríamos ir a pé?”, perguntou.

    “O senhor está propondo uma viagem de trem?”, insinuou Challenger, ironicamente.

    “Não estão esquecendo o automóvel? Por que não poderíamos usa-lo?.”

    “Não sou grande coisa, como motorista”, disse Challenger alisando a barba. “Mas o senhor está certo: a inteligência humana, nas suas manifestações mais elevadas, é suficientemente flexível para sair-se bem em qualquer empreendimento. Ótima idéia, Lord John. Eu mesmo os levarei para Londres.”

    “Acho melhor nem pensar numa coisa dessas!”, insurgiu Summerlee com tom decidido.

    “Não, George, não faça isto”, disse a mulher. “Já tentou dirigir uma vez e, como bem sabe, acabou batendo na porta da garagem.”

    “Foi uma momentânea falta de concentração”, resmungou Challenger. “Já decidi: levarei vocês todos para Londres de automóvel.”

    Quem salvou a situação foi Lord John.

    “Que carro é?”, perguntou.

    “Um vinte cavalos.”

    “Ótimo! Costumava guiar um há alguns anos”, disse. “Ora essa”, comentou em seguida, “nunca poderia imaginar que iria levar toda a humanidade num só automóvel! Se a lembrança não me falha, há justamente cinco lugares. Aprontem as suas coisas e, às dez em ponto, estarei esperando por vocês diante da casa.”

    E com efeito, na hora marcada, o veículo saiu pontualmente do pátio com Lord John na direção. Sentei-me ao lado dele, enquanto a senhora ficava entre os dois homens no assento de trás. Lord John engatou então a,marcha, passou rapidamente da primeira para a quarta, e nós começamos a corrida mais estranha que o mundo já vira desde que o primeiro homem pisara na terra.

    Nem dá para descrever o viço da natureza naquela manhã de agosto, o frescor do ar matinal, a glória do sol de verão, o céu sem sombra de nuvens, o magnífico verde dos bosques do Sussex.

    Ao admirarmos aquele estupendo panorama, qualquer pensamento acerca da imensa catástrofe teria desaparecido da nossa mente, não fosse por um sinistro detalhe que marcava soturnamente toda a aterradora realidade: o solene silêncio que reinava por toda parte. Até uma gleba solitária, por mais silenciosa que seja, sempre ressoa de sons perceptíveis por quem nela mora. O canto dos pássaros, os incansáveis ruídos dos insetos, ecos de longínquas cantigas, o lento tilintar dos sinos dos animais no pasto, latidos de cães ao longe, os chiados e os rangidos de carros e trens, mesmo confusos numa abafada distância, constituem no conjunto uma nota que não passa despercebida ao mais desatento dos ouvidos. Mas até esta nota faltava. O silêncio mortal era impressionante. Era um silêncio tão solene e tão pavoroso que o barulho do nosso carro parecia uma acintosa intromissão, uma indecente falta de respeito pela imensa mudez que envolvia as ruínas da humanidade.

    Aí começaram as imagens da tragédia. Grupos de rostos contorcidos pela morte não paravam de aparecer diante dos nossos olhos. Aquelas caretas deformadas deixavam em nós uma impressão tão marcante que até hoje fico perturbado só de lembrar a babá com as duas crianças, ou o velho pangaré duro como pedra entre as estacas da carruagem, o cocheiro imóvel no assento, e o jovem dentro da viatura com a mão ainda apoiada na porta entreaberta, na tentativa de fugir. Mais adiante havia um grupo de seis lavradores, com os corpos amontoados e os olhos, ainda virados para a beleza do céu.

    Revejo isto tudo como que numa foto. Mas então, por um providencial dom da natureza, os nossos nervos superexcitados pareceram acostumar-se à horrível situação. A enormidade da catástrofe tornou-nos frios diante dos particulares. As pessoas transformavam-se em grupos, os grupos em multidões, e as multidões fundiam-se num fenômeno universal alheio aos detalhes individuais. Só de vez em quando algum acidente particularmente brutal ou grotesco ainda conseguia chamar a nossa atenção fazendo voltar a nossa mente à realidade dos fatos.

    O que mais impressionava era o destino que coubera às crianças: parecia-nos uma injustiça intolerável. É provável que os nossos olhos tenham chorado (e certamente chorou a senhora Challenger) quando passamos perto de uma escola do interior e vimos toda uma fileira de pequenas figuras espalhadas sem vida ao longo da estrada. Os alunos deviam ter sido liberados pelos mestres apavorados, e já estavam correndo para casa quando o veneno apoderou-se improvisamente deles.

    Muitos eram os que haviam morrido enquanto se debruçavam nas janelas escancaradas das casas. Numa aldeia que atravessamos, não havia uma única janela na qual não se visse um rosto imóvel e retorcido. No último instante a falta de ar, aquela necessidade de oxigênio que nós sozinhos havíamos conseguido satisfazer, fizera com que todos corressem às janelas. As calçadas também estavam apinhadas de homens e mulheres sem chapéu, que haviam saído correndo das suas casas.

    Foi realmente uma sorte descobrirmos em Lord John um motorista competente, pois não era nada fácil abrir caminho entre aquele amontoado de cadáveres. Ao atravessarmos aldeias e lugarejos, só conseguíamos prosseguir a passo; lembro-me até que uma vez, perto de uma escola, o carro teve de parar para que tirássemos do caminho os corpos que entulhavam a rua.

    Em todo este sinistro panorama de morte que se descortinava nas estradas do Sussex e do Kent, algumas imagens permanecem particularmente vivas na minha memória. Lembro-me, entre outras coisas, de um grande automóvel parado diante do hotel de uma aldeia, que certamente havia trazido o que parecia ser uma turma de alegres veranistas.

    Dentro do carro havia três mulheres graciosamente vestidas, todas jovens e bonitas, e uma tinha no colo um cachorrinho miniatura. Com as três mulheres, havia um homem já de meia idade e um jovem de traços aristocráticos, ainda de monóculo e de cigarro apagado entre os dedos elegantemente enluvados.

    Sem dúvida a morte chegara de repente, fixando-os como que num instantâneo. Se o homem mais velho não tivesse, na última hora, rasgado o colarinho para respirar, quase poderia parecer que todos eles estavam dormindo.

    De um lado, vía-se um criado no ato de aproximar-se do estribo do carro. Do outro, dois mendigos, um homem e uma mulher. O homem ainda estava de braço esticado, como quem está a pedir esmola. Por um momento fugaz, o jovem aristocrata, o criado, as mulheres, o mendigo e o cachorrinho se haviam juntado num único quadro da vida, num idêntico princípio de dissolução!

    Lembro outra cena singular, quando já faltavam poucas milhas para chegarmos a Londres. Em certa altura há um grande convento cercado por uma ampla clareira verde. Nesta clareira podia-se ver um grande número de alunos, todos ajoelhados rezando. Na frente dos meninos havia uma fileira de freiras e, no topo do aclive, bem diante de todos, aparecia uma figura solitária que achamos ser a superiora. Ao contrário das pessoas vistas no carro, todos estes infelizes deviam de algum modo ter pressentido o perigo e haviam escolhido uma linda morte, todos juntos: professoras e alunos, como que reunidos para uma última aula.

    A minha mente continua abalada com as impressões daquela terrível viagem, e mal consigo encontrar termos apropriados para relatar eficazmente o que então senti. A dificuldade de explicar as sensações leva-me a pensar que talvez seja melhor limitar-me apenas à frieza dos fatos.

    Challenger e Summerlee também ficaram abalados com aquilo que viam, e com efeito nenhum comentário deles podia ser ouvido entre os cometidos soluços da velha senhora. Quanto a Lord John, estava ocupado demais na difícil tarefa de evitar os obstáculos para ter tempo ou vontade de conversar. Ficava repetindo o tempo todo a mesma frase, e com tamanha insistência que até hoje me lembro.

    “Um desastre e tanto! Não é?”.

    Era o que não se cansava de dizer diante de qualquer nova visão de morte ou destruição. “Um desastre e tanto! Não é?”, repetiu ao entrarmos no imenso cemitério em que Londres se transformara.

    Foi justamente quando esta exclamação ainda ecoava no ar que todos nós quase ficamos petrificados. Na janela de uma humilde casa de esquina apareceu um lenço que esvoaçava na ponta de um longo e fino braço humano. Nenhum dos muitos sinais da morte repentina tinha até então provocado em nós a mesma comoção despertada por aquele inesperado sinal de vida! Lord John parou o carro e logo a seguir, estávamos todos correndo pela porta aberta da casa até o segundo andar, de onde aparecera o estranho sinal.

    Uma mulher muito velha estava sentada numa poltrona perto da janela aberta e, ao seu lado, havia outra poltrona com um botijão de oxigênio, menor mas do mesmo tipo daqueles que salvaram a nossa vida. A mulher virou para nós o rosto chupado, encimado por um grande par de óculos, no exato momento em que entrávamos no aposento.

    “Achei que tinha ficado sozinha, aqui, para sempre”, disse, “porque sou paralítica e não posso mexer-me...”

    “Acontece, minha cara senhora”, disse Challenger, “que só passamos por aqui por acaso...”

    “Preciso fazer-lhe uma pergunta extremamente importante”, prosseguiu a mulher, “e espero, senhores, que tenham a bondade de serem sinceros comigo. Como é que isto tudo irá afetar a cotação das ações das Ferrovias do Nordeste?”

    Teríamos certamente caído na gargalhada se a velhota não demonstrasse a maior aflição, enquanto esperava ansiosamente a resposta. A senhora, que se chamava Burston, era uma viúva que tinha como seu único sustento os rendimentos de uma pequena quantidade de títulos da Ferrovia. A sua vida já se acostumara a melhorar ou piorar segundo os dividendos daquelas ações, e agora ela simplesmente não conseguia conceber uma existência de alguma forma desligada do desempenho daqueles papéis no mercado. Tentamos inutilmente explicar-lhe que já podia, se quisesse, dispor de todo o dinheiro do mundo e que, mesmo assim, isto de nada lhe adiantaria. A sua mente de anciã não sabia adaptar-se à nova situação, e começou a chorar amargamente pensando no destino das suas ações.

    “Eram toda a minha riqueza”, soluçava, “e agora que se foram, não tenho mais razão de viver!”

    Enquanto choramingava as suas lamúrias, conseguimos entender como aquela velha planta pudera sobreviver ao passo que a floresta inteira perecera. Além de paralítica, a velha também sofria de asma. O médico prescrevera-lhe oxigênio e, por isto, havia um botijão do gás no seu quarto para a hora da crise. Ela simplesmente inalara uma certa quantidade de oxigênio como sempre fazia quando tinha alguma dificuldade respiratória. Como a coisa aliviara o seu estado, continuara a aspirar lentamente o gás durante a noite inteira. No fim, adormecera, e só acordara ao ouvir o barulho do nosso carro.

    Uma vez que não podíamos levá-la conosco, fizemos o possível para que tivesse por perto tudo aquilo de que precisaria para viver e prometemos que iríamos voltar no máximo dentro de uns dois dias. Quando a deixamos, estava mais uma vez chorando devido ao destino das suas ações!

    Quanto mais nos aproximávamos do Tâmisa, mais difícil se tomava o nosso avanço entre obstáculos cada vez mais estorvantes. Só com muita paciência e entre mil dificuldades conseguimos seguir adiante rumo à Ponte de Londres.

    Nas proximidades da ponte, o número de cadáveres e de veículos de todo tipo que entulhavam o caminho e formavam pilhas insuperáveis tomou-se tão formidável que simplesmente desistimos de Prosseguir. Um navio estava em chamas num dos cais que margeiam a ponte, e toda a área ressoava no acre crepitar daquele incêndio no rio. Via-se uma espessa coluna de fumaça perto do Palácio do Parlamento, mas de onde estávamos não dava para distinguir ao certo o local do incêndio.

    “Não sei se acontece o mesmo com vocês”, disse Lord John enquanto parava o carro, “mas a cidade deixa-me muito mais impressionado do que o campo. Morta deste jeito, Londres começa a deixar-me nervoso. Aconselharia uma rápida olhada de reconhecimento, para voltarmos logo em seguida a Rotherfield.”

    “Confesso que eu também não vejo razão de ficarmos aqui”, disse o professor Summerlee.

    “Mesmo assim”, disse Challenger, e a sua voz trovejante ecoou estranhamente no silêncio irreal, “parece-me um tanto impossível que, de sete milhões de habitantes, só tenha sobrevivido à catástrofe aquela única mulher, uma velha, devido às condições especiais da sua saúde.”

    “Mas admitindo que haja mais sobreviventes, como acha que poderíamos encontrá-los?”, perguntou a senhora. “A meu ver, acho quer só poderemos voltar para casa depois de termos certeza de que estão todos mortos...”

    Saímos do carro que deixamos junto da calçada, avançamos com alguma dificuldade pela entulhada King William Street e entramos nos escritórios de uma grande firma de seguros.

    Era um prédio de esquina, e optamos por ele uma vez que dali podíamos dominar a cidade em todas as direções. Para chegarmos às escadas tivemos de atravessar uma sala em que ainda havia oito funcionários sentados em volta de uma grande mesa.

    Lá em cima, paramos diante de uma porta envidraçada que dava para um balcão. Dali podemos dar uma olhada nas apinhadas ruas da City que se afastavam em todas as direções, e na rua logo abaixo que parecia preta devido ao grande número de carros parados um ao lado do outro.

    Todos ou quase todos os mortos caídos na rua estavam virados para a periferia da cidade, e isto demonstrava que os apavorados londrinos tinham feito uma extrema tentativa para se juntarem às famílias nos subúrbios ou no campo.

    Entre os numerosos carros de praça podiam-se ver os reluzentes automóveis dos ricaços, parados e impotentes no engarrafamento. Podíamos ver um carrão destes bem embaixo de nós, com o dono, um velho balofo, que debruçava quase a metade do corpo fora da viatura. A sua mão gorducha reluzia de diamantes, e ainda estava esticada para o motorista quase ordenando-lhe um último esforço para sair dali.

    No meio daquele tumultuado engarrafamento destacavam-se dez ou doze ônibus de dois andares, parecendo ilhotas, com os passageiros caídos uns em cima dos outros como brinquedos no quarto de uma criança.

    Apoiado num lampião, ao longo da calçada, um robusto policeman tinha ficado em pé, numa postura tão natural que quase não dava para acreditar que estivesse morto. Ao seu lado, com toda a sua pilha de jornais espalhada em volta, podia-se ver um pequeno jornaleiro.

    O pequeno furgão de algum jornal ainda mostrava os cartazes amarelos com grandes letras pretas com que anunciava as últimas notícias: “Acirrada disputa na Câmara dos Lordes. A contenda permanece sem solução”. Evidentemente as escritas tinham a ver com a primeira edição, pois havia outras dizendo: “Estamos chegando ao fim?A advertência de um grande cientista” Outra manchete dizia: “Será que Challenger está certo? Avisos proféticos”.

    Challenger mostrou aqueles dizeres à mulher com ar de triunfo. Para a sua complexa personalidade, o fato de Londres ter morrido com o seu nome e as suas palavras na mente de todos era um motivo de orgulho e de satisfação. Os seus sentimentos eram tão patentes que provocaram um comentário irônico por parte do colega.

    “Até que enfim estão levando-o a sério, Challenger!”, observou Summerlee.

    “É o que parece”, respondeu complacente. “Pois é - acrescentou então, ainda observando o espetáculo das ruas silenciosas e cheias de morte - não vejo razão de ficarmos mais tempo em Londres. Proponho voltar imediatamente a Rotherfield, para escolhermos a melhor maneira de aproveitar os anos que nos restam.”

    Só quero relatar mais uma cena que ficou gravada na minha memória enquanto estávamos nos afastando da cidade morta. Foi a fugaz visão que tivemos do interior da velha igreja de Holy Mary, bem em frente de onde tínhamos deixado o carro.

    Mal conseguindo passar entre as pessoas deitadas na escadaria, empurramos o portão do templo e entramos. O espetáculo era impressionante. A igreja estava apinhada de fiéis ajoelhados, todos numa atitude de súplica. Na pavorosa hora final, tendo de encarar repentinamente as realidades da vida, aquelas terríveis realidades que nos dominam mesmo quando parecemos esquecê-las, a população entrara correndo nas igrejas da velha City, que há várias gerações já não viam, tamanha multidão. Ombro a ombro, como fugitivos, todos haviam ficado de joelhos e, no tumulto da hora, muitos até haviam-se esquecido de tirar o chapéu.

    Acima da congregação, no púlpito, havia um jovem de roupa esporte, que evidentemente discursava para aquela multidão quando todos foram surpreendidos pelo mesmo destino. E agora o jovem estava lá, de cabeça e braços caídos fora do púlpito.

    A escura igreja empoeirada, com todos aqueles rostos contraídos na morte, tomava o silencioso espetáculo um verdadeiro pesadelo.

    Demos mais alguns passos na ponta dos pés, tentando evitar qualquer barulho desnecessário.

    Aí eu tive uma idéia. Num canto da igreja, perto da entrada e atrás da antiga pia batismal, havia um escuro cubículo com as cordas dos sinos. Por que não lançar nos céus de Londres uma mensagem? As badaladas poderiam avisar da nossa presença quem porventura ainda estivesse vivo. Saí correndo e agarrei animadamente uma das cordas: fiquei surpreso ao constatar que movimentar o sino era muito mais difícil do que esperava. Lord John estava ao meu lado.

    “Por Júpiter, meu rapaz!”, disse tirando o casaco. “Ótima idéia! Vamos tentar juntos e conseguiremos tocar o sino.”

    Mas era tão pesado que nem mesmo juntos conseguimos movê-lo. Só quando Challenger e Summerlee também se penduraram na corda ouvimos a voz do monstro de bronze ressoar acima das nossas cabeças. A nossa mensagem de esperança e de afeto por qualquer sobrevivente ecoou por toda a cidade morta!

    Aquele solene chamado metálico fazia bem aos nossos corações, e continuamos a tocar o sino com cada vez mais animação. Cada vez que a corda nos puxava, levantava-nos cinqüenta ou sessenta centímetros do chão. Challenger, que era o mais baixo, dedicava-se à tarefa com toda a sua força, subindo e descendo como um gigantesco sapo.

    Teria sido ótimo se um artista tivesse estado presente naquele momento para retratar os quatro companheiros, os amigos que já tinham enfrentado tantas peripécias juntos e que agora o destino decidira reunir para mais esta extraordinária aventura.

    Labutamos por mais de meia hora, até suarmos em bicas e ficarmos com os músculos doloridos. Aí saímos sob os arcos da igreja, olhando para as ruelas silenciosas. Nada se mexia, nenhuma voz respondia ao nosso chamado.

    “Perda de tempo!”, exclamei, “não sobrou ninguém ...”

    “Nada mais podemos fazer!”, disse a senhora Challenger. “Em nome de Deus, George, vamos voltar logo a Rotherfield! Se tiver de ficar mais uma hora nesta pavorosa cidade, vou ficar louca...”

    Voltamos para o carro sem mais comentários. Lord John fez manobra e retomou o caminho do sul.

    Para nós, o assunto estava encerrado. Nem podíamos imaginar o estranho e novo capítulo que estava para começar.

   

O Grande Despertar

    Estamos chegando ao fim desta extraordinária aventura, de incomparável importância não só no âmbito restrito das nossas vidas, mas sim no da história inteira da raça humana.

    Como eu já disse ao começar o relato, quando esta história puder ser escrita de forma completa, destacar-se-á entre os demais acontecimentos como uma montanha cercada de pequenos morros. Só o futuro poderá dizer por quanto tempo permanecerão os seus efeitos, isto é até quando a humanidade saberá guardar a lembrança da humildade e sabedoria que lhe foram ensinadas pelo terrível golpe. A meu ver, acho impossível que possamos voltar completamente ao passado. Ninguém pode medir ao certo a extensão da sua própria ignorância e impotência, e até que ponto é mero joguete dominado por uma mão invisível, até esta mão aparecer para esmagá-lo e matá-lo.

    A morte passou muito perto da gente, e sabemos que poderá voltar a qualquer momento. A sua indesejável presença deixa uma nota sombria sobre a vida; mas é possível que, devido a esta sombra ameaçadora, o sentido do dever, o sentimento da medida e da responsabilidade, a consciência da gravidade dos escopos da vida, o desejo de melhorar e desenvolver-se, tenham aumentado até se tornarem presentes numa medida nunca vista antes na nossa sociedade.

    E isto é algo acima e além de qualquer crença ou dogma. É alguma coisa que lembra, digamos assim, uma mudança de perspectiva, uma melhora no nosso sentido das proporções, uma repentina constatação da nossa condição de criaturas insignificantes e evanescentes que podem ser varridas da terra por uma força desconhecida e insondável.

    E se o mundo, depois disto, tornou-se mais sério, nem por isto tornou-se menos desejável. As diversões mais sóbrias e comedidas de hoje proporcionam sem dúvida alguma mais satisfação do que as ruidosas loucuras que antigamente chamávamos de divertimentos, naquele tempo que agora parece pertencer a outra época mas que na realidade ainda está muito perto de nós.

    A vida, que costumávamos desperdiçar em vãs e fúteis visitas sociais, no contínuo desejo de cada vez maiores e nem sempre necessárias comodidades, no preparo e ingestão de comidas abundantes e monótonas, tornou-se agora mais saudável uma vez que é dedicada à leitura, à música, às simpáticas reuniões familiares segundo uma mais simples e sábia divisão do tempo. O povo, atualmente, não só é mais sadio e se diverte mais, como também é mais rico embora o preço da vida tenha-se tornado indubitavelmente mais caro.

    Não há concordância no que diz respeito à hora exata do grande despertar. Por via de regra, e sem contarmos a diferença entre os relógios, acredita-se que houve causas locais capazes de influenciar de alguma forma o efeito do veneno.

    Ao que tudo indica, a ressurreição foi praticamente simultânea em toda parte. Várias testemunhas afirmam que naquele momento os mais conhecidos relógios de Londres marcavam as seis e dez. O astrônomo real diz que em Greenwich eram as seis e doze. Outro famoso observatório, por sua vez, diz que eram as seis e vinte. Nas ilhas Hébridas, o despertar aconteceu às sete. Quanto ao nosso grupo, não há a menor dúvida, pois eu estava sentado no escritório de Challenger e tinha na minha frente o seu excelente cronômetro: eram exatamente as seis e quinze.

    Uma grande depressão pesava sobre o meu espírito. Ainda estava me ressentindo das pavorosas cenas que tínhamos visto durante a viagem a Londres. Era uma novidade, para mim, pois a minha saúde sempre me permitira manter uma perfeita lucidez mental diante de qualquer circunstância. Como bom irlandês, sempre consegui ver algum aspecto cômico até mesmo nas situações mais graves. Naquela hora, no entanto, sentia-me de fato muito abatido.

    Os companheiros estavam no andar de baixo, conversando sobre os planos de cada um para o futuro. Sentei-me ao lado da janela aberta, com o queixo apoiado na mão e a mente ocupada a avaliar a gravidade da situação. Seria possível continuar a viver? Esta pergunta parecia não querer parar de martelar na minha cabeça. Seria possível continuar existindo num mundo morto?

    Assim como na física um corpo menor é atraído por um corpo maior, não seria possível que o nosso pequeno grupo fosse atraído de forma irresistível por toda a humanidade passada para o desconhecido? Como é que o nosso fim chegaria? O veneno iria voltar? Ou então a terra tornar-se-ia inabitável devido aos miasmas pestilentos? Poderia a nossa situação única acabar afetando a nossa mente? Imaginem só um grupo de loucos à solta num mundo sem habitantes!

    O meu raciocínio estava esmiuçando esta última idéia aterradora quando um leve ruído fez com que eu observasse a estrada perto da casa. Pois bem: o velho pangaré estava mais uma vez se mexendo e subia agora lentamente pela colina!...

    Na mesma hora percebi que os pássaros haviam recomeçado a esvoaçar e que alguma coisa estava se mexendo no pátio e nos campos. Mas o que mais ficou gravado na minha memória foi o velho cavalo ossudo que mais uma vez puxava a carruagem colina acima.

    Dirigi então a minha atenção para o cocheiro na boleia e para o jovem debruçado na janela. Este parecia bastante agitado, quase estivesse tentando dar alguma explicação ao homem com as rédeas. Não havia dúvidas: estavam todos vivos, no verdadeiro sentido da palavra!

    Teria sido tudo aquilo apenas ilusão? Seria então possível que toda aquela história de nuvem mortífera não passasse de mero, embora bastante complexo, sonho?

    Por um instante o meu cérebro cansado quase chegou a acreditar nisto. Mas aí olhei para a minha própria pessoa, e reparei na longa marca lívida deixada pela corda do sino da igreja de Holy Mary. Quer dizer que os fatos haviam realmente acontecido. E por outro lado, lá estava a vida a ressurgir à minha volta, lá estava o mundo ressuscitando.

    Os meus olhos percorriam todo o amplo cenário, e cada coisa recomeçava a mexer-se e a viver! Eis ali, por exemplo, os jogadores de golfe. Possível que estivessem, novamente dando as suas tacadas, como se nada tivesse acontecido? Podia ver os movimentos deles, e a babá já estava segurando pela mão a menina, e empurrava mais uma vez o carrinho. Em resumo, cada um voltara às ações que haviam sido interrompidas pelo inesperado halo venenoso.

    Desci correndo para o térreo; mas a porta já estava escancarada e ouvi as vozes dos companheiros - vozes festivas - no pátio. Nem vou lhes contar os apertos de mão e as alegres risadas quando ficamos juntos! Levada pela emoção, a senhora Challenger beijou todo o mundo antes de deixar-se cair nos braços do marido.

    “Não posso acreditar que todas aquelas pessoas que vimos estivessem apenas dormindo”, exclamou Lord John. “Olhe para mim, Challenger: não vai querer convencer-me de que aquele pessoal todo que vimos estava somente adormecido, quando na verdade mostrava todos os sinais típicos da morte...”

    “Poderia ser o fenômeno conhecido como catalepsia”, disse Challenger. “Trata-se de um fenômeno relativamente raro e que antigamente costumava ser confundido com a morte. Quando acontece, a temperatura do corpo precipita, a respiração fica inaudível assim como o batimento cardíaco; tem de fato toda a aparência da morte, mas não se trata, no entanto, de uma morte definitiva. Nem mesmo a mente mais aberta”, e aqui suspirou fechando os olhos, “pode conceber a possibilidade de uma catalepsia que afete ao mesmo tempo toda a humanidade...”

    “Dê-lhe o nome que bem quiser”, comentou Summerlee, “mas desta forma o senhor estará simplesmente dando uma definição, e nós continuaremos sem nada saber do resultado, assim como nada sabemos do veneno que provocou isto tudo. Só podemos afirmar que o ar poluído provocou uma morte temporária...” 1

    Agostinho estava sentado no estribo do carro e parecia não conseguir parar de bocejar. Até agora tinha ficado calado, mas de repente começou a falar sozinho examinando cuidadosamente o veículo.

    “Macacos me mordam!”, exclamou resmungando. “Será possível que não me possa afastar nem um momento sem que apareça algum estrago?”

    “O que foi, Agostinho?”

    “Há uma peça que não está funcionando, senhor. Alguém mexeu no carro. Deve ter sido um garoto, e acho que já sei quem é.”

    Lord John tinha a culpa estampada no rosto.

    “Não sei o que houve comigo”, continuou Agostinho quando ficou de pé. “Para dizer a verdade, já não me sentia muito bem quando me aproximei do automóvel, mas sei com certeza que não mexi na peça que agora não funciona.”

    Relataram da forma mais concisa possível o que havia acontecido a Agostinho e ao resto da humanidade. Também encaixaram na explicação o mistério da peça enguiçada.

    Ao ouvir que um amador tinha dirigido o seu carro, o motorista mostrou-se totalmente desgostoso, mas não soube esconder o seu interesse quando lhe contaram o que haviam visto em Londres. Lembro que no fim perguntou:

    “Passaram por perto do Banco da Inglaterra?”

    “Passamos.”

    “Com todos os milhões que há lá dentro, e com todo o mundo dormindo?”

    “Isso mesmo.”

    “E eu não estava lá!”, resmungou. Aí voltou a dedicar a sua atenção ao automóvel.

    Ouviu-se então o ruidoso ranger de rodas no cascalho. O velho carro puxado pelo pangaré tinha finalmente chegado à casa de Challenger. Vi um jovem que saía apressadamente da viatura e, logo em seguida, ainda abobalhada como se estivesse acordando após um longo sono, a criada chegou com um cartão de visita sobre uma bandeja.

    Ao ler o pedacinho de papel, Challenger ficou uma verdadeira fúria: quase parecia que a sua floresta de cabelos negros quisesse eriçar-se para formar uma ameaçadora juba na sua cabeça.

    “Um repórter!”, rugiu. Mas aí, com um sorriso forçado, acrescentou: “Bom, afinal de contas é normal que venham logo correndo para saber o que penso sobre o acontecido”.

    “Não creio que seja esta a finalidade daquele jovem”, observou Summerlee, “pois já estava a caminho quando a crise começou...”

     “Dei uma olhada no cartão. Pude ler: “James Baxter, correspondente londrino do New York Monitor”.

    “Vai recebê-lo?”, perguntei.

    :'Nunca!”

    “Ora, querido! Procure ser um pouco mais gentil com os outros, pois o que aconteceu certamente deve ter-lhe ensinado alguma coisa.”, comentou a senhora.

    Ele sacudiu a cabeça.

    “O que pretendem, estes jornalistas? Nunca mostraram simpatia alguma por mim...”

    “E quando foi que o senhor mostrou simpatia por eles?”, perguntei sorrindo. “Vamos lá, meu bom amigo: temos aqui um estrangeiro que fez uma longa viagem só para entrevistá-lo, e o senhor não tem o direito de mostrar-se indelicado.”

    “Está bem”, resmungou. “Venha comigo. O senhor mesmo poderá falar. Protesto desde já contra estas inqualificáveis invasões da minha privacidade.”

    Aí, sempre resmungando e bufando, acompanhou-me.

    O jovem americano tirou o caderninho do bolso e foi logo ao assunto.

    “Vim até aqui, meu senhor”, disse, “porque na América todos gostariam de saber algo mais preciso acerca do perigo que, segundo aquilo que o senhor mesmo afirmou, estaria ameaçando o mundo.”

    “Que eu saiba”, respondeu Challenger, ainda irritado, “não há perigo algum que esteja ameaçando o mundo neste momento!”

    O olhar do repórter demonstrou uma evidente surpresa.

    “Estou me referindo, senhor, à possibilidade de o mundo ser tragado por uma enorme nuvem venenosa.”

    “Neste momento, não receio minimamente esta eventualidade!”, disse Challenger, todo empertigado.

    O repórter parecia cada vez mais perplexo.

    “Mas o senhor é o professor Challenger, não é?”, perguntou num tom hesitante.

    “Sim senhor, é assim que me chamo.”

    “Não posso entender, então, como pode dizer que tal perigo não existe. Estou falando da carta que o senhor mandou ao Times de Londres, e que foi publicada hoje de manhã.”

    Quem ficou surpreso, desta vez, foi Challenger.

    “Hoje de manhã?”, perguntou. “Nenhuma edição do Times chegou às bancas, hoje de manhã.”

    “Claro que sim!”, exclamou o americano, um tanto ofendido. “O senhor deve admitir que o Times é um jornal diário, e que portanto hoje também foi publicado.”

    Nesta altura tirou um exemplar do jornal do bolso interno do casaco: “Aqui está a carta à qual estou-me referindo.

    “Acho que estou começando a entender”, disse Challenger. “Quer dizer que o senhor leu a carta hoje de manhã?”

    “Sim senhor.”

    “E veio logo procurar-me.

    “Exatamente.”

    “Reparou em alguma coisa diferente, em algo fora do comum, durante a viagem?”

    “Para dizer a verdade, as pessoas que encontrei pareciam muito mais cordiais do que de costume. O homem que carregou a minha bagagem na estação, por exemplo, quis de qualquer forma contar-me uma alegre anedota; e confesso que é a primeira vez que uma coisa dessas me acontece neste país.”

    “Notou mais alguma coisa?”

    “Não senhor, nada de que possa lembrar-me.”

    “Vamos tentar reconstituir os fatos. A que hora o senhor partiu da Estação Vitória?”

    O americano sorriu.

    “Vim para cá a fim de entrevistá-lo, professor”, disse então, “mas agora já não sei se o senhor está querendo zombar de mim, ou se quer assumir o controle da entrevista.”

    “Trata-se de particulares de extremo interesse, pelo menos para mim. Está se lembrando da hora?”

    “Claro. Era meio-dia e meia.”

    “E a que horas chegou?”

    “.Às duas e quinze.”

    “E pegou uma carruagem de aluguel...”

    “Isto mesmo.”

    “Que distância acredita haver entre aqui e a estação?”

    “Diria mais ou menos duas milhas.”

    “E quanto tempo acha que demorou para percorrer esta distância?”

    “Cerca de meia hora, talvez um pouco mais, uma vez que o cavalo era um tanto asmático.”

    “Quer dizer, então, que agora são as três?”

    “Por aí.”

    “Controle no relógio.”

    O americano obedeceu e depois ficou olhando para nós, perplexo.

    “Que diabo!”, exclamou. “São seis e vinte! Aquele cavalo passou de qualquer limite imaginável. Quatro horas para vir até aqui da estação! Mas não é possível. Pensando bem, vejo que o sol já está um tanto baixo. Há alguma coisa que não consigo entender...”.

    “Não reparou em coisa alguma anormal, enquanto subia pela colina?”

    “Bom, para dizer a verdade sentia-me bastante sonolento. Lembro, também, que queria dizer alguma coisa ao cocheiro, sem entretanto conseguir. Devia ser o calor. Quase me parecia estar a ponto de desmaiar.”

    “Foi justamente o que aconteceu com toda a raça humana!”, disse Challenger falando comigo. “Todo o mundo, em certa altura, achou que estava a ponto de desmaiar. Ninguém, por enquanto, dá-se conta claramente daquilo que aconteceu. Cada um voltou às suas tarefas, exatamente como Agostinho voltou ao carro e os golfistas às suas tacadas. O seu diretor, meu caro Malone, continuará ocupado com a edição do jornal, e ficará bastante surpreso ao descobrir que pulou um dia. Pois é, meu bom amigo”, acrescentou em seguida, dirigindo-se ao jovem americano, “talvez lhe interesse saber que o mundo passou pela nuvem envenenada que se movia no éter. Queira, portanto ter a bondade de botar na cabeça que hoje não é sexta-feira 27 de agosto, mas sim sábado 28, e que o senhor ficou desacordado no coche por mais de vinte e oito horas!”

    Quanto a mim, poderia acabar aqui o meu relato.

    Como já devem ter percebido, esta é apenas uma versão mais completa e detalhada do artigo que apareceu no Daily Gazette, uma matéria que todos consideraram o mais espetacular “furo” de reportagem de todos os tempos, e que fez vender mais de três milhões e meio de exemplares do meu jornal.

    Emoldurada na parede do meu quarto, ainda guardo esta pequena coletânea de manchetes excepcionais que apareciam no cabeçalho do artigo:

    O mundo em estado de coma durante vinte e oito horas. Um acontecimento sem igual na história: Challenger estava ceifo! Como este enviado pôde salvar-se. Um relato impressionante. A câmara do oxigênio. Um incrível passeio de carro. Londres morta. Grandes incêndios e inúmeras mortes. Voltará a acontecer?

    Sob este mostruário de manchetes desenvolviam-se nove colunas e meia de fatos que representavam o primeiro, último e único relato da aventura que o mundo tinha vivido. Numa outra página, Challenger e Summerlee tratavam o grandioso assunto do ponto de vista científico; mas só a mim tinha sido entregue a tarefa de contar ao público o que acontecera.

    Depois de uma sorte grande como esta, bem que eu poderia da o assunto por encerrado, pois o que mais poderia acrescentar um jornalista? Mas peço vênia para não terminar com manchetes tão reboantes, e com a menção de um sucesso meramente pessoal. Permitam-me então reproduzir os trechos com que o maior entre todos os diários encerrava o seu magnífico editorial que todos poderão procurar e reler.

    Foi uma prova irrefutável - dizia o Times - da completa fraqueza da raça humana diante das forças indefinidas que nos cercam. Os profetas da antiguidade e os filósofos dos nossos dias já nos haviam falado a respeito do assunto num tom de advertência. Mas como sempre acontece com as verdades repetidas demais, esta também perdera uma parte do seu valor e da sua eficácia. Precisávamos de uma lição ao vivo para voltarmos à realidade das coisas. E é justamente a esta saudável, mas terrível aula que nós fomos forçados a assistir, ficando agora com a mente aturdida pelo golpe inesperado, e com o espírito muito mais consciente dos nossos limites e da nossa impotência. O mundo teve de pagar um preço muito alto para poder aprender!

    Por enquanto, o conhecimento que temos da extensão do desastre é apenas parcial; mas a destruição de Nova Iorque, Orleans e Brighton já representa por si só uma das maiores tragédias da história da nossa raça. Quando a estatística dos acidentes navais e ferroviários que aconteceram durante a crise ficar completa, teremos certamente motivos para ficarmos apavorados, embora possamos razoavelmente pensar que na maioria dos casos os responsáveis pela condução de navios e comboios ferroviários tenham tido o tempo de parar as máquinas antes de serem vencidos pelo veneno.

    Mas os prejuízos materiais, sejam eles vidas humanas ou propriedades arruinadas, não constituem o motivo dominante dos nossos pensamentos neste momento. Tudo isto poderá ser apagado pelo tempo: mas o que não podemos esquecer, o que continuará e deverá continuar a angustiar o nosso espírito, é a revelação das possibilidades do universo, a destruição da nossa vaidosa ignorância, esta demonstração clara da efemeridade da nossa existência material, com os abismos que a         qualquer momento podem abrir-se à nossa volta.

    Neste momento todas as nossas emoções estão imbuídas de solenidade e humildade. Queira Deus que sejam estes os alicerces sobre os quais uma raça mais inteligente e menos orgulhosa possa um dia construir um templo mais digno.

 

    O Capitão da Estrela Polar

    (Tirado do diário de J. M'Alister Ray, estudante de medicina)

    11 de setembro, Lat. 81 graus Norte; Long. 2 graus Leste. Ainda estamos cercados por uma imensa banquisa. O campo de gelo para o norte, ao qual está presa a âncora do navio, deve ter pelo menos o tamanho da própria Inglaterra. Ao olharmos para leste ou oeste, a banquisa chega inexoravelmente até o horizonte.

    Hoje de manhã o Segundo Oficial informou que já se viam camadas de gelo também do lado sul. Se estas camadas se juntarem e formarem um bloco compacto, o navio já não terá como sair daqui e nós estaremos realmente em perigo, ainda mais porque, pelo que ouvi dizer, a comida começou a escassear.

    O verão está acabando e já se percebem os primeiros sinais da noite. Hoje vi brilhar uma estrela sobre o mastro da proa, a primeira a aparecer desde o mês de maio. Os homens mostram claramente o seu descontentamento: muitos deles querem voltar para casa para aproveitarem a estação dos arenques, quando a mão de obra consegue bons salários ao longo de toda a costa escocesa. O desagrado deles, por enquanto, só se manifesta com rostos carrancudos e olhares sombrios, mas ouvi o Segundo Oficial dizer que esta tarde a tripulação tenciona mandar alguns representantes falar com o Capitão a fim de explicar os motivos do desgosto.

    Duvido que ele os receba, pois é um homem bastante difícil que se torna até melindroso quando está em pauta qualquer ameaça aos seus direitos. Depois do jantar, verei se posso dizer alguma coisa capaz de apaziguar os ânimos.

    Percebi que de alguma forma tolera, de mim, coisas que jamais aceitaria dos outros membros da tripulação. A ilha de Amsterdã, que fica a noroeste do Spitzbergen, pode ser vista dos nossos alojamentos de estibordo, e aparece como uma cadeia irregular de rochas vulcânicas cortadas pelas estrias brancas das geleiras.

    A gente fica com uma sensação estranha ao pensar que neste momento os seres humanos mais próximos são provavelmente os moradores das colônias dinamarquesas da Groenlândia que, em linha reta, ficam a mais de novecentas milhas daqui. Um Capitão assume uma grande responsabilidade quando arrisca o navio e a tripulação em condições como estas. Baleeiro algum jamais ficou nestas latitudes numa época tão adiantada do ano.

    21:00 horas. Falei com o Capitão Craigie e, apesar de não poder considerar o resultado satisfatório, devo de qualquer forma admitir que me ouviu com calma, quase com deferência. Quando acabei de falar, ele assumiu aquele ar de inabalável determinação que já reparei nele em outras ocasiões e, por alguns minutos, ficou andando de um lado para o outro do pequeno camarote.

    Num primeiro momento receei tê-lo gravemente ofendido, mas mudei logo de idéia quando apoiou a sua mão na minha com um gesto que quase parecia um carinhoso afago. Também havia uma profunda ternura nos seus olhos escuros, quase selvagens, e devo reconhecer que isto me deixou bastante surpreso.

    “Meu caro doutor”, disse, “arrependo-me sinceramente por tê-lo deixado embarcar neste navio, e neste momento pagaria sem hesitação cinqüenta libras só para vê-lo são e salvo no cais de Dundee. Desta vez, ou vai ou racha! Há baleias ao norte, bem à nossa frente. E não duvide disto, senhor, uma vez que eu mesmo avistei da gávea várias baleias que soltavam seus esguichos de água e vapor pelo respiradouro.”

    Disse isto com raiva, embora eu não tivesse demonstrado o menor sinal de dúvida.

    “Vinte e dois cetáceos em poucos minutos, eu juro, e nenhum deles com menos de quatro metros de comprimento. Doutor, acha que realmente eu posso sair daqui agora, quando nada mais que uma maldita faixa de gelo me separa da uma fortuna? Se amanhã o vento soprar do norte, poderemos encher o navio e partir antes que a banquisa se feche. Se, no entanto, o vento soprar do sul, pois bem: acho que no fundo os homens estão sendo pagos para arriscarem a vida. No que me diz respeito, pouco me importo, pois gostaria muito mais de estar no outro mundo do que neste. Mas devo confessar que estou preocupado com o senhor. Nem posso lhe contar como preferiria ter comigo o velho Angus Tait, como na última viagem; era um homem do qual ninguém poderia sentir falta. Mas, o senhor ... o senhor me disse estar noivo, não é?”

    “Sim”, respondi, apertando a mola que abria o medalhão pendurado na corrente do relógio e mostrando o pequeno retrato de Flora.  

    “Raios!”, gritou, ficando de pé com a barba fremente de paixão.

    “Para que me importar com a sua felicidade? Nada tenho a ver com isto, e pare de balouçar esse retrato diante de mim!”

    Ficara tão zangado que cheguei a pensar que pudesse bater em mim mas, praguejando, precipitou-se para a porta, abriu-a e correu para o convés deixando-me perplexo diante daquela manifestação de repentina violência. Era a primeira vez que uma coisa dessas acontecia, pois até então só demonstrara gentileza e cortesia. Enquanto escrevo estas palavras, posso ouvi-lo passear furiosamente no convés acima de mim.

    Até que eu gostaria de lhes dar uma idéia mais precisa do caráter deste homem, mas acho que seria muita pretensão minha tentar descrevê-lo, uma vez que só consegui ter dele uma opinião mui vaga e indefinida. Já pensei várias vezes ter encontrado o fio da meada que me levaria a compreendê-lo melhor mas, cada vez, não pude deixar de ficar decepcionado, pois ele se apresentou numa nova e incrível luz que subverteu completamente todas as minhas conclusões. Não creio que mais alguém chegará a ler estas linhas, e procurarei, portanto, definir alguns traços da personalidade do Capitão Nicholas Craigie, mesmo que isto não passe de um inútil ensaio de psicologia.

    Por via de regra, as características externas de um homem dão uma idéia do que se passa em sua alma. O Capitão é alto, atlético, com um belo rosto de tez morena: tem uma estranha maneira de contrair os membros do corpo que pode ser o resultado de um certo nervosismo ou, quem sabe, de algum tipo de energia reprimida. A mandíbula, assim como toda a compleição facial, é firme e viril, mas a peculiaridade dominante do seu rosto são os olhos. São da cor da avelã, brilhantes e apaixonados, e deixam entrever uma estranha expressão, como que uma mistura de atrevimento e pasmo, algo que muitas vezes comunicou-me um sentimento mais de horror do que de qualquer outra coisa.

    Geralmente, o que predomina é o ar de atrevimento mas, vez por outra, principalmente quando se mostra pensativo, pode-se perceber nos seus olhos um sinal de medo que pouco a pouco se apodera de todo o seu semblante. E é justamente nestas horas que ele mais parece ser presa fácil da ira. Sabe disto, pois já o vi fechar-se várias vezes no seu camarote para que ninguém pudesse aproximar-se antes dele conseguir recuperar a costumeira postura. Acredito que sofra de insônia, e já ouvi várias vezes os seus gritos durante a noite, pois temos camarotes contíguos, mas nunca consegui distinguir as palavras que saíam da sua boca.

    Este é o aspecto mais desagradável do seu caráter, e só fiquei sabendo disto depois de conviver com ele no dia-a-dia. Quanto ao resto, é um companheiro afável, não só culto e divertido como também mais cortês e requintado do que a maioria dos homens. Nunca poderei esquecer como manobrou o navio no começo de abril, quando ficamos cercados por grandes blocos de gelo à deriva durante uma tempestade. Nunca o vira tão alegre, quase risonho, como naquela noite, andando sem parar no convés entre os clarões dos relâmpagos e os lúgubres uivos do vento.

    Já me contou várias vezes que a idéia da morte proporciona-lhe prazer, o que não deixa de ser bastante triste quando quem fala é um homem ainda jovem. Não pode estar com mais de trinta anos, com efeito, embora os seus cabelos e bigodes já estejam grisalhos. Deve ter tido algum grande sofrimento que lhe arruinou a vida. Talvez eu mesmo me tornasse assim se perdesse a minha Flora. Ninguém sabe. Acho que, se não fosse por ela, tanto faria, para mim, que o vento soprasse do norte ou do sul, amanhã. Hora de irmos para a caminha, como diria a velha Pepys: a vela está acabando (já precisamos dela, agora, desde que a longa noite ártica se aproxima); o almoxarife de bordo já foi dormir, e não há a menor possibilidade de arranjar outra.

    12 de setembro. O dia está calmo e claro e continuamos parados no mesmo lugar. O vento sopra de sudeste, mas é muito fraco. O Capitão está de bom humor e, no café da manhã, pediu-me desculpas pela indelicadeza de ontem. Parece vagamente aéreo, no entanto, e tem nos olhos aquela expressão estranhamente esdrúxula que um escocês chamaria de “louca”; pelo menos é isto que diz o chefe das máquinas, que o grupo céltico da tripulação considera um vidente e um intérprete de presságios.

    E surpreendente como a superstição conseguiu tomar conta deste povo cabeçudo e prático, e eu mesmo nunca poderia ter imaginado até que ponto eles fossem supersticiosos se não tivesse visto com os meus próprios olhos. Tivemos uma espécie de epidemia de superstição durante a viagem, tanto assim que decidi distribuir doses de remédios para os nervos com a ração de grogue do sábado.

    Pude perceber isto logo depois que zarpamos de Shetland, quando os homens no leme começaram a queixar-se dizendo ouvir gritos na esteira do navio, como se algo estivesse a persegui-lo sem conseguir ultrapassá-lo. Esta história continuou durante toda a viagem, e nas noites escuras - quando começou a pesca das focas - tivemos que ser muito pacientes para convencermos os homens a cumprirem os seus turnos.

    Sem dúvida alguma, o que ouvíamos nada mais era do que o rangido das correntes do leme, ou então o grito de alguma ave marinha de passagem. Mandaram-me acordar várias vezes para que eu pudesse escutar o ruído mas, para dizer a verdade, nunca consegui ouvir alguma coisa que parecesse anormal. Os homens, porém, estavam tão absurdamente convencidos daquilo que estavam ouvindo, que era completamente inútil tentar conversar com eles. Cheguei até a mencionar o fato com o Capitão e, com minha grande surpresa, ele considerou o assunto com a maior seriedade e pareceu ficar realmente muito perturbado. Eu achava que, pelo menos ele, estaria isento destas crendices da gentinha comum.

    Todo este falatório acerca de superstições força-me a mencionar que o senhor Manson, o Segundo Oficial, viu um fantasma na noite de ontem, ou pelo menos diz tê-lo visto. O que é mais ou menos a mesma coisa. Até que foi uma agradável mudança de assunto depois das eternas conversas sobre ursos e baleias que vínhamos mantendo há meses.

    Manson afirma que o navio é mal assombrado e garante que não ficaria aqui nem mais um dia se tivesse algum outro lugar aonde ir. Está realmente apavorado e hoje de manhã vi-me forçado a dar-lhe cloral e brometo de potássio para acalmá-lo. Quando sugeri que talvez tivesse tomado um trago a mais na noite passada, reagiu com indignação e, para mantê-lo quieto, tive de assumir uma expressão muito séria durante todo o seu relato da assombração. Seja como for, devo admitir que contou a sua história de forma muito simples e realista.

    “Estava no passadiço”, disse, “durante o segundo turno de guarda, lá pelas quatro horas, justamente quando a noite é mais escura. Havia a lua, mas as nuvens a obscureciam de forma que quase não se enxergava coisa alguma. John M’Lead, o arpoador, deixou a sua vigia no castelo de proa e veio dizer-me que ouvira estranhos ruídos a estibordo”.

    Voltei então com ele para a ponta do navio, e ambos escutamos um som que às vezes parecia o choro de uma criança, e às vezes o de uma jovem queixando-se de alguma dor física. Já faz mais de dezessete anos que navego por estas bandas e nunca ouvi foca alguma, jovem ou velha, choramingar daquele jeito.

    Enquanto estávamos lá no castelo de proa, a lua apareceu de repente entre as nuvens e ambos podemos ver uma estranha figura branca que se movia na banquisa, justamente no lugar de onde pareciam vir os sons. Por alguns momentos ela desapareceu, mas em seguida podemos novamente vê-la a bombordo, apesar de ser tão fugidia quanto uma sombra no gelo.

    Mandei um marujo buscar espingardas na popa e, com o senhor M'Lead, descemos do navio pensando que poderia tratar-se de um urso. Quando chegamos na banquisa, perdi de vista o senhor M'Lead, mas continuei avançando na direção de onde ainda podia ouvir os gemidos. Segui adiante por mais de uma milha e aí, dando a volta de uma aresta de gelo, deparei a coisa quase ela estivesse esperando por mim.

    Não sei dizer o que era: só sei que não era um urso. Era alta, branca e rija, sem ser nem homem nem mulher. Posso apostar que se travava de algo bem pior. Dei meia volta e retornei correndo em disparada para o navio, e só fiquei mais tranqüilo quando subi mais uma vez a bordo. Assinei um contrato para cumprir o meu dever no barco, e aqui ficarei, mas ninguém irá encontrar-me passeando de novo no gelo depois do crepúsculo.”

    Foi o que ele disse, e eu reproduzi quase integralmente o seu relato usando as suas próprias palavras. Mesmo que ele negue, acredito que deve ter visto um jovem urso erguido sobre as patas posteriores, numa postura bastante comum nestes animais quando eles ficam com medo. Numa luz não muito clara podem parecer homens, principalmente para alguém de nervos abalados.

    Seja lá o que fosse, tudo isto acabou sendo um fato bastante infeliz, pois teve uma repercussão muito prejudicial sobre a tripulação. Os homens, agora, mostram-se ainda mais irritados e belicosos, e aparentam o seu desgosto sem a menor reticência. As duas razões deste comportamento, quer dizer os motivos das suas queixas, são, primeiro: ter sido impedidos de pescar arenques e, segundo: ter sido forçados a ficar num navio que consideram mal assombrado.

    Pois bem, estes dois motivos podem levar a atitudes bastante temerárias! Até mesmo os arpoadores, que costumam ser os mais calejados e disciplinados membros da tripulação, juntaram-se ao descontentamento geral.

    Deixando de lado este irracional surto de superstição, o resto não parece ser tão desalentador. A banquisa que se estava formando ao sul derreteu-se, pelo menos em parte, e a água está tão morna que me induz a pensar que estamos dentro de uma das várias ramificações da corrente do Golfo que passam entre a Groenlândia e o Spitzbergen. Há um grande número de pequenas medusas e de outros celenterados em volta do navio, assim como uma porção de camarões: é, portanto, bastante provável que também haja baleias por perto. Avistamos uma, com efeito, mais ou menos na hora do almoço, mas a sua posição não permitia que as baleeiras a perseguissem.

    13 de setembro. Fui até a ponte de comando e tive uma conversa muito interessante com o senhor Milne, o Imediato. Parece que o Capitão é um mistério não só para os marujos como também para os donos do navio, exatamente como é um enigma para mim. O senhor Milne diz que no fim da viagem, depois de todos terem sido pagos, o Capitão Craigie desaparece e ninguém o vê mais até as vésperas da temporada de pesca seguinte, quando entra calmamente nos escritórios da Companhia e pergunta se alguém precisa dele.

    Não tem amigos em Dundee, e ninguém sabe informar quanto ao seu passado. A sua posição depende unicamente da sua habilidade como marinheiro, e da reputação de coragem e sangue frio que conquistara como oficial, antes que lhe fosse entregue o comando do barco.

    Segundo a opinião geral, ele não é escocês, e até o nome deve ser falso. O senhor Milne acha que se dedicou à caça das baleias simplesmente porque não conseguiu imaginar uma maneira mais perigosa de ganhar a vida, e que procura a morte de todas as formas possíveis. Mencionou vários exemplos e um deles, se for verdade, é bastante estranho.

    Parece que em certa ocasião não compareceu nos escritórios da Companhia, e que foi, portanto necessário escolher um substituto. Aconteceu na época da mais recente guerra entre Rússia e Turquia. Quando voltou, na primavera seguinte, tinha uma ferida ainda não completamente curada do lado esquerdo do pescoço, que tentava esconder com um cachecol. Se a suspeita do oficial - dele ter lutado na guerra - tenha ou não fundamento, não posso dizer. Mas foi sem dúvida uma coincidência bastante estranha.

    O vento está mudando para o leste, mas ainda continua muito fraco. Acho que o gelo está mais perto do que ontem. Por toda parte onde o olhar possa alcançar, só vê-se uma imaculada amplidão branca, interrompida apenas por algumas escassas frestas, ou pela sombra das cristas na banquisa. Ao sul há um estreito canal de água azulada que é a nossa única saída, mas está a fechar-se cada vez mais com o passar dos dias.

    O Capitão assumiu uma grande responsabilidade. Ouvi dizer que as batatas acabaram e que também as bolachas estão no fim, mas ele continua mantendo a mesma atitude impassível, e passa a maior parte do tempo na gávea, perscrutando o horizonte com a luneta. O seu comportamento é um tanto imprevisível, e acho que está procurando manter-se longe de mim. De qualquer forma, não houve mais reações violentas comigo como a da outra noite.

    19:30 horas. Acho que o Comandante deve ser realmente louco. Nada mais pode explicar os estranhos caprichos do Capitão Craigie. Ainda bem que tive o cuidado de manter este registro da viagem, pois ele poderá ser útil se formos forçados a prendê-lo no seu camarote, coisa que só aceitarei em última instância. O mais estranho é que ele mesmo sugeriu ser a loucura, e não a excentricidade, a causa do seu estranho comportamento. Há mais ou menos uma hora estava de pé no passadiço e, como de costume, olhava para longe com a luneta, enquanto eu passeava no castelo de popa. A maioria dos marujos estava na coberta, comendo, pois há algum tempo ninguém respeita mais com regularidade os turnos de guarda.

    Cansado de caminhar, apoiei-me no parapeito para admirar a suave luminosidade do sol que se punha sobre as grandes chapas de gelo que nos cercavam. De repente fui despertado dos devaneios aos quais me entregara por uma voz rouca e, ao virar-me, vi que o Capitão se aproximara e estava agora parado ao meu lado. Estava olhando a vastidão de gelo com uma expressão ao mesmo tempo de horror e surpresa, enquanto alguma outra coisa, que parecia alegria, ia se impondo aos demais sentimentos.

    Apesar do frio, grandes gotas de suor escorriam na sua testa, e ele estava sem dúvida alguma tomado por uma excitação completamente anormal. O seu corpo torcia-se naturalmente como o de alguém que está tendo uma crise epilética, e as dobras em volta da boca estavam tão marcadas que transformavam o seu rosto numa sinistra careta.

    “Olhe”, disse ofegante. Segurou o meu pulso e continuou a fitar a lonjura gelada, movendo a cabeça horizontalmente como que acompanhando alguma coisa que se mexesse na sua frente.

    “Olhe! Ali, ali! Entre as arestas da banquisa! Está agora mesmo aparecendo de trás da mais longínqua! Está vendo? E impossível não ver! Ainda está lá. Está indo embora, para longe, meu Deus, está voando longe de mim... Desapareceu!”

    Proferiu estas últimas palavras quase num murmúrio, com uma angústia tão dolorosa na voz que nunca poderei esquecer. Agarrando-se nos enfrechates, tentou ficar de pé em cima do parapeito, quase esperasse ter uma última visão daquele objeto que desaparecia. Mas faltaram-lhe as forças e, tropeçando, voltou para a parede envidraçada do passadiço na qual se apoiou ofegante, completamente esgotado.

    O seu rosto estava tão lívido que pensei fosse desmaiar, de forma que não perdi tempo e o levei imediatamente para o meu camarote onde mandei-o deitar no sofá. Peguei então uma garrafa de conhaque e encostei um copo da aromática bebida nos seus lábios. O efeito foi maravilhoso, pois as faces exangues voltaram a ficar coradas e o corpo parou de tremer. Apoiou-se num cotovelo e, olhando-se em volta para certificar-se de que estávamos sozinhos, acenou para que eu sentasse ao seu lado.

    “Conseguiu vê-la, não é?”, perguntou num tom baixo e tétrico que nada tinha a ver com o seu feitio.

    “Não, não vi nada.”

    Recostou mais uma vez a cabeça nas almofadas.

    “Claro. Não poderia vê-la sem uma luneta”, murmurou. “Era impossível. Eu tampouco poderia vê-la sem a ajuda da luneta, mesmo que os olhos do amor... os olhos do amor! Eu lhe peço, doutor, não deixe o camareiro entrar! Iria pensar que estou louco. Tranque a porta, por favor!”

    Levantei-me e fiz o que ele mandava.

    Ficou momentaneamente calado, perdido em seus pensamentos. Aí pediu mais uma dose de conhaque.

    “O senhor não acha que sou louco, não é doutor?”, perguntou enquanto eu guardava a garrafa no armário. “Diga-me, de homem para homem: o senhor me considera louco?”

    “Acho que há alguma coisa na sua mente”, respondi, “que o perturba e lhe faz realmente muito mal.”

    “Tem toda razão, meu rapaz!”, gritou com os olhos brilhantes, certamente devido ao conhaque. “Tenho muitas coisas na cabeça, uma infinidade! Mas posso encontrar a latitude e a longitude e sei usar o sextante e calcular os logaritmos. O senhor não poderia demonstrar que sou louco num tribunal, poderia?”

    Era bastante estranho ouvir aquele homem, deitado no sofá, que avaliava friamente a questão da sua sanidade mental.

    “Talvez não.” eu disse. “Mas acredito que a melhor coisa a fazer, para o senhor, seria voltar para casa o mais rápido possível, e ficar um bom tempo por lá, levando uma vida normal e tranqüila.”

    “Voltar para casa?”, murmurou fazendo uma careta. “Mas isto pode ter um sentido totalmente diferente para cada um de nós, meu bom rapaz. Para o senhor quer dizer assentar-se com a Flora, a sua graciosa e doce Flora. Será que os pesadelos são sinal de loucura?”

    “Às vezes”, respondi.

    “E o que-mais? Quais são os primeiros sintomas?”

    “Dor de cabeça, barulho nos ouvidos, clarões repentinos nos olhos, alucinações...”

    “Ora, ora!”, interrompeu. “E o que são elas? O que é que o senhor chamaria, exatamente, de alucinação?”

    “Alucinação é ver uma coisa que não existe.”

    “Mas ela estava lá”, gemeu para si mesmo. “Ela estava lá!”

    Então levantou-se, abriu a porta e, com passo lento e incerto dirigiu-se para o seu camarote, onde permaneceu até a manhã seguinte: quanto a isto, não tenho a menor dúvida.

    Seja lá o que for que ele imagina ter visto, tudo indica que o seu organismo sofreu um terrível choque. Este homem torna-se um mistério cada vez maior, dia-a-dia, embora eu receie que a explicação proposta por ele mesmo seja a única possível: a sua mente está fora de controle. Não acredito que meros complexos de culpa possam provocar tais aberrações de comportamento.

    Esta idéia dos complexos é a preferida pela maioria dos oficiais e, provavelmente, também pelo resto da tripulação, mas nada vi que possa justificá-la. Nem de longe ele tem o ar de uma pessoa culpada: ao contrário, parece justamente alguém maltratado pela sorte, alguém que pode ser considerado mais um mártir que um criminoso.

    Esta noite o vento está começando a soprar do sul. Que Deus nos proteja se ele bloquear a estreita passagem que é a única salvação que ainda nos resta! Aqui onde estamos, no limiar da principal banquisa atlântica - a “barreira”, como os baleeiros costumam chamá-la - qualquer vento que sopre do norte consegue quebrar e fragmentar o gelo à nossa volta, permitindo portanto uma saída; o vento que sopra do sul, no entanto, conglomera todo o gelo espalhado atrás da gente e prende o navio nas garras de uma única banquisa ininterrupta. Repito: que Deus nos proteja!

    14 de setembro. Domingo. Um dia de descanso. Infelizmente, os meus receios confirmaram-se: ao sul, a estreita faixa de água azul desapareceu. Nada mais existe à nossa volta a não ser esta grande, imóvel banquisa com suas estranhas arestas e fantásticos pináculos. Ao nosso redor só há silêncio de morte e aterradora amplidão. Já não se ouve o barulho das ondas, nem o estrídulo canto das gaivotas, nem o chiado das velas sendo levantadas: somente um silêncio profundo, quase universal, no qual os murmúrios dos marujos e o ranger das suas botas nos convés brancos e brilhosos quase parecem dissonâncias fora de lugar.

    Só tivemos uma visita, uma raposa boreal, um bicho bastante raro na banquisa apesar de bastante corriqueiro na terra firme. Não se aproximou do navio, preferiu ficar olhando de longe até sair correndo, depois de algum tempo, pelo banco de gelo. Este comportamento foi estranho, pois é notório que as raposas não conhecem os hábitos dos homens e que, sendo muito curiosas, demoram a fazer amizade e podem ser portanto facilmente capturadas. Por incrível que pareça, até este acontecimento insignificante teve um péssimo efeito sobre a tripulação. “'Aquele pobre animal já não nos reconhece, e nem pode ver qualquer um de nós.” Foi este o comentário do arpoador-mor, e todo o mundo concordou com ele, anuindo com a cabeça.

    É inútil tentar convencer quem tem esse tipo de superstições pueris. Já decidiram que uma maldição pesa sobre o navio e nada poderá fazer com que mudem de idéia.

    O Capitão ficou trancado no seu camarote o dia inteiro, mas apareceu por mais ou menos meia hora de tarde, quando subiu ao convés de popa. Fiquei olhando para ele e reparei que observava fixamente o lugar onde ontem apareceu a visão: eu estava preparado a enfrentar mais uma explosão verbal, mas nada disto aconteceu. Nem parecia ver-me, embora eu estivesse bem ao seu lado.

    Como de costume, quem leu o serviço religioso foi o chefe das máquinas. Um fato bastante curioso nos navios baleeiros é que costuma-se usar normalmente o livro de orações da Igreja Anglicana, apesar de não haver um único membro da tripulação, entre oficiais e marujos, que pertença àquela congregação. Os nossos homens, ou são católicos - e a maioria pertence a esta Igreja - ou são presbiterianos. Uma vez que a cerimônia não pertence a nenhuma das duas igrejas, os homens não podem dizer que qualquer uma delas receba um tratamento preferencial. Ficam ouvindo com atenção e devoção, isto demonstra que afinal de contas o sistema é muito eficiente.

    Um pôr-do-sol maravilhoso transformou a grande banquisa num lago cor de sangue. Nunca vi uma coisa tão bonita, mas ao mesmo tempo este espetáculo excepcional inspira uma desconcertante sensação de mistério. O vento sopra agora de outra direção. Se nas próximas vinte e quatro horas ele soprar do norte, tudo vai dar certo.

    15 de setembro. Hoje é o aniversário de Flora, a minha amada noiva. Ainda bem que não, pode ver o seu garoto - como costumava chamar-me - preso bem no meio da banquisa, às ordens de um Capitão louco e com uma reserva de mantimentos que só irá durar mais algumas semanas. Sem dúvida nenhuma, Flora deve olhar todos os dias a lista dos navios no “Scotsman”, para ver se já fomos avistados em Shefland. Mas preciso dar o bom exemplo aos homens e simular a maior alegria e despreocupação. Só Deus sabe, no entanto, como na maioria das vezes me sinta angustiado.

    Hoje o termômetro marca mais de vinte graus negativos. Sopra um vento fraco mas a direção não é favorável. O Capitão está de ótimo humor. Acho que ele acredita, ter visto mais algum fantasma esta noite, ou ter tido algum tipo de presságio, uma vez que o coitado entrou no meu camarote de manhã cedo e, dobrando-se sobre o meu beliche, sussurrou: “Não era uma visão, doutor, está tudo bem.”

    Depois do café, pediu-me para controlar a quantidade de comida que ainda nos restava e eu fui logo averiguar com a ajuda do Segundo Oficial. Sobrou muito menos do que esperávamos. Na proa ainda há umas seis caixas de bolachas, três barris de carne salgada e uma reserva bastante pequena de café e açúcar. No porão da popa e nos armários ainda há comidas mais finas, como latas de salmão, sopas, carneiro com vagens etc., mas não creio que vão durar muito tempo com uma tripulação de cinqüenta homens.

    Na despensa há dois barris de farinha de trigo e uma boa quantidade de tabaco. Em resumo, com meia ração diária temos bastante comida para agüentarmos de dezoito a vinte dias, mas nem um dia mais.

    Depois de entregarmos o nosso relatório ao Capitão, ele mandou chamar e reunir com o apito todos os homens; aí falou para eles do castelo de popa. Nunca o vi em condições tão boas. Com a sua figura alta e esbelta, com o rosto moreno e cheio de vida, parecia a própria personificação da autoridade; decidiu enfrentar a situação como um verdadeiro lobo-do-mar: a sua calma ponderada mostrava que, enquanto avaliava o perigo, ao mesmo tempo considerava todas as possíveis saídas.

    “Companheiros”, disse, “vocês certamente pensam que os trouxe propositalmente para este impasse, e pode ser que alguns de vocês me responsabilizem por esta situação tão difícil. Mas não podem esquecer que durante muitos anos nenhum navio do nosso país voltou com tanto óleo - que representa dinheiro - quanto a nossa velha Estrela Polar, e que nenhum de vocês jamais passou fome. Podem deixar em casa as mulheres sabendo que elas vivem confortavelmente, enquanto outros marujos voltam e, o que encontram? As mulheres que sobrevivem às custas da paróquia. Se quiserem mostrar gratidão por uma coisa, também deverão fazê-lo pela outra, e então estamos quites”.

    Antes desta, já tivemos muitas outras expedições difíceis e sempre fomos bem sucedidos: desta vez nos arriscamos mais do que nunca e, ao que parece, fracassamos, mas de nada adianta chorarmos sobre o leite derramado. Se as coisas piorarem, sempre podemos descer no gelo e caçar focas que nos manterão vivos ate a primavera. Mas não creio que isto será necessário, pois vocês estarão de volta à Escócia dentro de três semanas. Por enquanto, cada homem deve contentar-se com meia ração: todos da mesma forma, sem exceção. Mantenham-se firmes e não esmoreçam. Sairemos desta exatamente como no passado já saímos de tantas outras situações difíceis.”

    Estas simples palavras tiveram um efeito imediato na tripulação. A sua recente falta de popularidade foi logo esquecida e o velho arpoador, cujas superstições já mencionei, gritou três hurras aos quais todos os homens responderam contentes.

    16 de setembro. O vento mudou de direção e soprou do norte durante a noite inteira; o gelo parece estar a ponto de rachar-se. Os homens estão de bom humor apesar das meias rações que recebem. Na sala das máquinas as caldeiras estão sempre ligadas justamente para não sofrermos atrasos no caso de abrir-se uma brecha e podermos sair. O Capitão está de excelente humor, apesar de ainda haver nos seus olhos aquela expressão “louca” que já mencionei. Esta mudança e a sua repentina alegria deixam-me ainda mais preocupado do que a sua passada tristeza. Francamente, não consigo entender.

    Acho que na primeira parte deste diário já disse que uma das suas mais estranhas peculiaridades consiste em não deixar ninguém entrar no seu camarote: faz questão de esticar a cama e de arrumar as demais coisas sozinho. Fiquei, portanto, muito surpreso quando hoje me deu a chave do camarote e pediu-me para controlar a hora exata no seu cronômetro enquanto ele media a altitude do sol ao meio-dia.

    O seu aposento, pequeno e despojado, contém uma pia e alguns livros. Nada de alfaias e de objetos elegantes, somente alguns quadros nas paredes. Em sua maioria, são pequenas óleografias sem valor, mas também há uma aquarela que retrata a cabeça de uma jovem mulher que chamou a minha atenção.

    Trata-se sem a menor dúvida de um retrato, mas a figura não representava aquele tipo de beleza da qual normalmente gostam os lobos-do-mar. Nenhum artista teria sido capaz de inventar da sua própria cabeça um rosto em que força e fraqueza se juntavam em tão estranha mistura. Os olhos lânguidos e sonhadores, de longas pestanas, e a testa baixa e larga isenta de qualquer pensamento perturbador, contrastavam violentamente com a mandíbula saliente e bem desenhada, e com o decidido atrevimento do lábio inferior. Em baixo, num canto, podia-se ler: “M.B. idade 19 anos”.

    Naquele momento pareceu-me quase impossível que alguém pudesse desenvolver em apenas dezenove anos toda a força de vontade que transparecia daquele retrato. Devia ter sido uma mulher extraordinária. Os seus traços deixaram-me tão impressionado que, apesar de só ter tido uma visão fugaz, se eu soubesse desenhar poderia reproduzi-los fielmente nas páginas deste diário.

    Fiquei imaginando o papel que desempenhara na vida do Capitão. Ele pendurara o retrato na extremidade do beliche, de forma que os seus olhos podiam constantemente vê-lo. Se não fosse pela sua costumeira discrição, acredito que às vezes teria falado comigo a respeito do assunto.

    Das demais coisas no camarote, nenhuma outra merecia uma menção particular. Havia uniformes, um banquinho dobrável, um pequeno espelho e vários cachimbos, inclusive um narguilé turco... que acrescentava um toque de verdade à história do senhor Milne quanto ao Capitão ter participado da guerra no oriente, apesar da relação entre as duas coisas não ser lá muito convincente.

    21:30 horas. O Capitão foi para a cama agorinha mesmo, depois de uma longa e interessante conversa sobre assuntos gerais. Quando quer, pode ser um companheiro fascinante: é muito culto e, apesar de expressar as suas opiniões com uma certa força, nunca se mostra dogmático. Não gosta de divergências intelectuais.

    Falou da natureza da alma salientando de forma magistral dos pontos de vista de Platão e Aristóteles. Deu-me a impressão de estar particularmente interessado na metempsicose e nas doutrinas de Pitágoras. Durante a conversa, também falamos do Espiritismo moderno, e eu cheguei a mencionar jocosamente as imposturas de Slade. Depois disto, e com minha grande surpresa, o Capitão alertou-me solenemente para não jogar na mesma panela inocentes e culpados, e afirmou que neste caso seria o mesmo que considerar culpado o Cristianismo somente porque Judas, apesar de cristão, era um patife. Logo a seguir desejou-me uma boa noite e voltou para o seu camarote.

    O vento está a tornar-se mais frio e continua soprando constantemente do norte. Agora as noites são tão escuras quanto na Inglaterra. Espero que amanhã já possamos nos livrar dos grilhões de gelo que seguram inexoravelmente o navio.

    17 de setembro. Mais uma vez o fantasma! Ainda bem que os meus nervos agüentam! As superstições às quais estes homens se entregam, e a extrema seriedade e convicção com que falam a respeito, deixariam exasperado e apavorado qualquer um que não estivesse a par da maneira de pensar deles.

    Há várias versões sobre o mesmo assunto, mas o cerne delas todas é que alguma coisa misteriosa apareceu no navio durante a noite: Sandie M'Donald de Peterhead e Peter Williamson de Shefland viram-na, assim como o senhor Milne, no convés. E uma vez que agora há três testemunhas, elas podem falar com mais segurança do que o Segundo Oficial.

    Depois do café da manhã falei com Milne, dizendo-lhe que deveria ser superior a tais bobagens e que, sendo um oficial, deveria dar o bom exemplo ao resto dos homens.

    Ele sacudiu soturnamente a cabeça acostumada com qualquer intempérie mas respondeu com o costumeiro cuidado.

    “Talvez sim doutor, ou talvez não”, falou. “Eu não disse que se tratava de um espírito. De fato, não posso dizer que acredito nos fantasmas do mar, embora haja um montão de gente afirmando ter visto isto ou aquilo. Eu não me assusto com facilidade, mas talvez o seu próprio sangue teria esfriado em suas veias, senhor, se em lugar de passear pelo navio durante o dia estivesse comigo na noite passada e topasse com uma forma estranha, branca e arrepiante, que se movia de um lado para o outro se queixando como um carneirinho que se desgarrou da mãe, Acho que pensaria duas vezes antes de dizer que se trata apenas de conversa de velhas comadres.”

    Percebi que de nada adiantava tentar raciocinar com ele, e limitei-me a pedir, como favor pessoal, que me chamasse da próxima vez do fantasma aparecer. Aceitou todo animado, e acredito que este calor se devia, principalmente, ao fato dele esperar que tal coisa nunca mais voltasse a acontecer.

    Como eu supunha, o deserto branco atrás de nós já se quebrou em vários pontos que deixam ver pequenos canais de água entrecortando-se em todas as direções. A nossa latitude é agora de mais ou menos 80 graus e 50’ graus N, o que demonstra que a banquisa está sendo empurrada para o sul. Se o vento continuar a soprar favoravelmente deste jeito, o gelo irá fragmentar-se com a mesma facilidade com que se solidificou. Por enquanto, nada podemos fazer: só podermos fumar, aguardar e esperar que tudo se resolva do melhor jeito possível.

    Estou rapidamente tornando-me fatalista pois, quando os homens têm de enfrentar fatores incertos tais como o vento e o gelo, não têm outra escolha. Talvez os primeiros sequazes de Maomé tenham sido induzidos a sujeitar-se ao destino pela inelutabilidade do vento e da areia do deserto árabe...

    As novas e assustadoras notícias sobre o fantasma tiveram um impacto totalmente indesejável no Capitão. Eu receava, com efeito, que elas provocassem uma sobrecarga de excitação na sua mente sensível, e procurei, portanto, ocultar dele a história absurda. Infelizmente, porém, ouviu alguns comentários dos homens e insistiu para que lhe contassem a história toda. Como eu previa, isto provocou um ataque da sua loucura latente levando-o a uma crise bastante grave.

    Mal consigo acreditar que continue sendo a mesma pessoa que conversou comigo de filosofia com perspicácia crítica e julgamento sereno. Agora passeia pelo castelo de popa como um tigre enjaulado, parando às vezes e levantando as mãos num gesto de desejo, enquanto perscruta o gelo com impaciência. Resmunga continuamente com os seus botões, e uma vez ouvi-o dizer em voz alta: “Mais um pouco, meu amor, espere só mais um pouco!”, Coitado do homem! E triste ver um ser humano corajoso, um perfeito cavalheiro, reduzido a isto. E dá realmente pena ver até que ponto a imaginação e a ilusão podem amedrontar uma mente cuja única razão de vida havia sido, até então, o perigo verdadeiro e real.

    Será que algum homem já passou por uma situação parecida com esta, forçado a conviver com um Capitão demente e um Imediato que acredita em fantasmas? Às vezes chego a pensar que sou a única pessoa sensata no navio, exceto talvez o segundo maquinista que é uma espécie de animal ruminante, só interessado em suas ferramentas, que se porventura chegasse a pensar no assunto não se apavoraria nem mesmo diante de todos os bichos-papões do Mar Vermelho.

    O gelo está-se quebrando rapidamente e existe uma possibilidade bastante concreta de partirmos amanhã de manhã. Quando chegar em casa poderei contar estes fatos estranhos, mas acho que todos vão pensar que são apenas invenções.

    21:00 horas. Levei um susto e tanto, embora agora já me sinta melhor graças a um copo de conhaque. Mas continuo perturbado, como a minha própria escrita demonstra. Acontece que tive uma experiência muito estranha, e começo a achar injustificado o meu julgamento segundo o qual todos os homens a bordo estariam loucos só porque dizem ter visto coisas que a minha razão se recusava a aceitar.

    Estou sendo muito bobo ao deixar que uma tolice dessas enfraqueça os meus nervos; mesmo assim, no entanto, depois de todo este falatório, ela assume um sentido especial pois já não posso duvidar da história do senhor Manson nem daquela do oficial das quais, até agora, eu fazia troça. Pensando na coisa com calma, nada houve que pudesse amedrontar-me: eu ouvi um ruído, só isto. Mas não posso acreditar que quem vier a ler isto (se de fato houver algum leitor), poderá entender os meus sentimentos de então, ou pelo menos dar-se conta do efeito que aquele som teve em mim.

    Depois do jantar, e antes de ir para a cama, tinha subido ao convés para fumar tranqüilamente o meu cachimbo. A noite estava muito escura: tão escura de não me deixar ver, do local onde me encontrava logo abaixo o castelo de popa, o oficial no passadiço. Acho que já mencionei o silêncio extraordinário que reina nestes mares gelados. Em qualquer outra parte do mundo, até mesmo nos lugares mais ermos e solitários, sempre há uma leve vibração no ar, quase um zunido que mal dá para perceber, produzido por longínquos centros habitados, ou pelo farfalhar das folhas nas árvores, ou pelo bater das asas dos pássaros, ou até pelo frufru da grama na pradaria. Não dá para se perceber o solo como tal, mas se ele deixasse de existir sentiríamos a sua falta.

    Só aqui nos mares do pólo ártico, no entanto, este rígido e impenetrável silêncio se impõe a tudo é a todos com a sua alucinante realidade. Às vezes ficamos aguçando espasmodicamente os ouvidos na tentativa de ouvirmos um imperceptível ruído, e paramos estáticos ao repararmos em qualquer barulho casual produzido pelo navio.

    Eu estava numa condição similar à que acabo de descrever e debruçava-me do parapeito, quando do gelo diretamente abaixo de mim ouvi um grito agudo que rasgou o silêncio da noite. Achei que o grito começou com uma nota tão aguda que nenhuma prima-dona jamais conseguiria emitir, aumentando gradativamente o volume até terminar num longo lamento de angústia qual poderia ser o último de uma alma perdida.

    Este grito aterrador ainda parece ressoar nos meus ouvidos. Era como se estivesse expressando sofrimento, alguma dor indescritível misturada com um grande desejo, e também se podia distinguir, às vezes, uma nota de selvagem exultação. O grito vinha de perto mas, por mais que eu me esforçasse, não consegui discernir coisa alguma. Esperei mais um pouco, mas o som não se repetiu; voltei então para dentro, sentindo-me abalado como nunca me senti antes na vida!

    Enquanto descia, encontrei o Sr. Milne que ia assumir o seu turno de guarda.

    “Então, doutor?”, ele me disse, “conversa mole de velhas comadres, não é? Ouviu o grito? Continua achando que não passa de superstição? O que me diz agora?”

    Senti-me na obrigação de pedir desculpas àquele homem honesto, e admiti estar tão perplexo quanto ele. Talvez amanhã tudo pareça diferente. Esta noite ouso apenas escrever o que penso. No futuro, ao reler estas palavras depois de livrar-me de todas estas associações de idéias, sentirei desprezo pela minha atual fraqueza.

    18 de setembro. Passei uma noite inquieta e agitada, ainda perturbado devido àquele estranho som. O Capitão tampouco parece ter descansado a contento, pois tem uma expressão desvairada e os olhos injetados de sangue. Não comentei com ele o que me aconteceu na noite passada, e nem tenciono fazê-lo. Já está bastante perturbado e irrequieto por si só: levanta-se, volta a sentar, parece não conseguir ficar parado um momento.

    Na manhã de hoje já podemos usar um prumo de chumbo para sondar a água e, como eu esperava, conseguimos levantar âncora afastado-nos mais ou menos doze milhas para o sudoeste. Mas aí fomos novamente detidos por uma grande banquisa, tão sólida quanto aquela que tínhamos deixado para trás. A camada compacta impede completamente o nosso avanço e nada mais restou-nos a fazer senão a jogar mais uma vez a ângora e esperar que o gelo se quebre. Se o vento continuar soprando nesta direção, tudo indica que isto venha a acontecer dentro de vinte e quatro horas.

    Vimos muitas focas de cabeça redonda descansando na banquisa e matamos uma, um bicho enorme com quase cinco metros de comprimento. São animais selvagens e belicosos, dizem até que desafiam os ursos. Ainda bem que os seus movimentos são lentos e desajeitados, de forma que não corremos perigo algum quando as atacamos no gelo.

    Percebe-se claramente que o Capitão não considera os nossos problemas coisa do passado, embora eu não consiga entender a razão deste seu negativismo quanto à nossa condição; e, com efeito, todos nós aqui a bordo já achamos que foi uma sorte termos avançado doze milhas para a salvação. Temos certeza de que, agora, poderemos voltar para o mar aberto.

    “Suponho que o senhor ache que o pior já passou, não é doutor?”, perguntou-me enquanto sentávamos a mesa para comer.

    “É o que espero”, respondi.

    “Apesar de o senhor estar provavelmente certo, é melhor não confiar cegamente nisto. Dentro em breve estaremos nos braços dos nossos entes queridos, não é meu rapaz? Mas não podemos confiar demais... não podemos confiar demais!”

    Ficou alguns momentos sentado em silêncio, balançando a perna para a frente e para trás.

    “Nunca se esqueça de que este é um lugar perigoso até mesmo quando não parece. Um lugar perigoso e traiçoeiro! Já conheci homens que ficaram presos de repente em lugares como este. Basta um descuido, às vezes, apenas um pequeno descuido para o barco afundar numa fenda. E o que sobra, para demonstrar onde estava, é apenas uma grande bolha de ar na água verde. É engraçado”, continuou rindo nervosamente, “mas nestes anos todos que passei navegando por estas bandas nunca pensei em fazer testamento - embora não possua coisa alguma particularmente valiosa - mas quando um homem está exposto ao perigo deveria estar preparado para tudo, não concorda?”

    “Sem dúvida”, respondi, sem entender muito bem onde ele quisesse chegar.

    “A gente se sente muito melhor sabendo que tudo foi feito como manda o figurino”, prosseguiu. “Se por acaso alguma coisa acontecer comigo, espero que o senhor possa tomar conta dos meus poucos pertences. Não é muito, mas gostaria que tudo aquilo que há no camarote fosse vendido, e o dinheiro que conseguir deverá ser dividido entre os membros da tripulação em partes iguais, exatamente como fazemos com o óleo. Quanto ao cronômetro, desejo que o senhor fique com ele para que se possa lembrar desta viagem. Só digo isto como precaução, é claro, mas achei melhor aproveitar a ocasião para falar no assunto. Acredito que poderei confiar no senhor se isto se tornar necessário, não é?”

     “Pode contar comigo”, respondi, “e por falar nisto, acho que eu também poderia...”

    “O senhor, o senhor!”, interrompeu. “O senhor está bem. Nem pense nisto! Não era minha intenção ficar irritado, mas não gosto nem um pouco de ouvir um jovem que mal começou a viver falando de morte. Ande, suba ao convés e vá respirar um pouco de ar puro, em lugar de ficar dizendo bobagem, e procure convencer-me a fazer o mesmo.”

    Quanto mais penso nesta conversa e menos gosto dela. Por que uma pessoa deveria pensar em deixar em ordem os seus negócios, justamente quando o perigo já parece coisa do passado?

    A sua loucura devia ter regras todas especiais. Ou estaria ele pensando em suicídio? Lembro que uma vez falara de forma profundamente reverente do crime execrável da destruição de si próprio. Preciso ficar de olho nele e, apesar de não poder penetrar na intimidade do seu camarote, farei pelo menos o possível para ficar no passadiço o tempo todo que o Capitão ali permanecer.

    O Sr. Milne, no entanto, não participa dos meus receios e diz que é só a maneira de ser do Comandante. Quanto à nossa situação, considera-a boa. No entender dele, deveremos ficar livres do gelo depois de amanhã: Dois dias depois passaremos por Jan Meyen e, dentro de menos de uma semana, chegaremos a Shetland. Só espero que não seja otimista demais. A sua opinião, no entanto, pode perfeitamente contrabalançar as sombrias advertências do Capitão, uma vez que é um marujo calejado, cheio de experiência, que avalia muito bem as palavras antes de falar.

    O desastre que nos ameaçava acabou finalmente chegando! E eu mesmo mal consigo falar a respeito: o Capitão desapareceu! Pode ser que volte entre nós vivo, mas duvido muito. Passei a noite inteira esquadrinhando com uma turma de marujos os grandes blocos de gelo que bóiam à nossa volta, esperando encontrar algum sinal dele, mas o nosso esforço foi inútil.

    Tentarei contar as circunstâncias do seu desaparecimento. Se alguém tiver a oportunidade de ler as palavras que estou escrevendo, peço que se lembre de eu não estar falando em suposições ou relatos de segunda mão: não pode esquecer que eu, pessoa ponderada e instruída, estou a ponto de descrever fielmente o que de fato aconteceu diante dos meus próprios olhos. As conclusões, obviamente, são minhas, mas garanto que os fatos aconteceram exatamente como estão sendo relatados.

    Depois da conversa que mencionei, o Capitão continuou de bom humor. Mostrava-se, no entanto, nervoso e impaciente, mexia-se o tempo todo na cadeira, levantava-se, movia braços e pernas de forma desconexa, quase estivesse dançando de um jeito todo dele que, às vezes lhe é peculiar. Em apenas quinze minutos, subiu sete vezes ao convés de onde logo desceu após dar alguns passos apressados. Fui atrás dele todas as vezes, pois tinha no rosto uma expressão que justificava completamente a minha resolução de não deixá-lo sozinho. Pareceu-me que ele notara o efeito daquela animação desconjuntada, pois procurava aparentar uma alegria exagerada, rindo rumorosamente por qualquer motivo, como se estivesse a fim de acalmar a minha apreensão.

    Depois do jantar subiu mais uma vez ao castelo de popa, e eu fui atrás. A noite estava muito escura e silenciosa, e os únicos ruídos eram os provocados pelo melancólico murmurar do vento entre a mastreação. Uma nuvem escura se aproximava de nós vindo de noroeste, e as suas franjas esfarrapadas encobriam parcialmente a lua que só de vez em quando aparecia entre os rasgos daqueles nebulosos vapores. O Capitão andava rápido de um lado para o outro e aí, vendo-me, aproximou-se dizendo que talvez fosse melhor eu retirar-me para dormir: nem é preciso dizer que estas palavras só conseguiram fortalecer a minha determinação de ficar no convés.

    Acho que depois disto esqueceu-se completamente da minha presença, pois ficou apoiado no parapeito da popa em silêncio, olhando o grande deserto de neve parcialmente na sombra e parcialmente iluminado pelo luar. Reparei que controlava continuamente o relógio, e uma vez proferiu uma frase da qual só consegui discernir uma palavra: “Pronto”.

    Confesso que uma sensação de mágico mistério tomou lentamente conta de mim enquanto olhava aquela figura alta e indefinida na noite que parecia realmente alguém disposto a não faltar a um encontro. Um encontro com quem? Uma vaga intuição começou a tomar forma na minha cabeça enquanto procurava juntar coerentemente os fatos, mas eu nunca poderia esperar por aquilo que aconteceu. Pela intensidade do seu olhar, percebi que devia estar vendo alguma coisa.

    Aproximei-me sem fazer barulho: ele perscrutava, com um olhar de fogo que parecia implorar uma resposta, uma mancha de lívida luminosidade que se formara de uma hora para a outra ao lado do navio. Tinha uma estrutura indefinida e nebulosa, desprovida de forma, com manchas mais ou menos escuras conforme a intensidade do luar. Naquele momento, a lua estava obscurecida por uma cortina de nuvens tão leves quanto o revestimento de uma anêmona.

    “Já vou, minha menina, já estou indo!”, gritou o Capitão com voz cheia de grande ternura, no tom que normalmente usamos para agradar a pessoa amada com um mimo há muito desejado e igualmente deleitável para quem o dá e para quem o recebe.

    O que se seguiu aconteceu num segundo e eu não tive a menor chance de intervir. Passou, por cima do parapeito com um pulo e com mais outro já estava de pé no gelo, bem junto daquela figura pálida e nebulosa. Levantou os braços para abraçá-la e, deste jeito, desapareceu na escuridão, de braços abertos e murmurando palavras carinhosas.

    Eu fiquei imóvel, incapaz de reagir, tentando distinguir quanto mais tempo possível o Capitão que se afastava. Achei que nunca mais iria vê-lo, mas justamente naquele momento a lua, aparecendo entre a cortina de nuvens no céu, brilhou de repente e iluminou a grande vastidão de gelo. Voltei a ver então a sua figura, escura, já bem longe, que corria em disparada na gélida banquisa. Foi a última vez que o vi, talvez a última para sempre.

    Organizamos uma equipe de busca e eu fui com os homens, mas eles não estavam muito a fim de encontrá-lo e a nossa procura foi inútil. Dentro de mais algumas horas formaremos outra equipe. Não posso acreditar que sonhei ou que, então, estou tendo um terrível pesadelo enquanto escrevo estas palavras.

    19:20 horas. Acabo de voltar, abatido e esgotado, da segunda busca infrutífera do Capitão. A banquisa é realmente enorme, pois apesar de percorrê-la por pelo menos vinte milhas, a sua superfície parecia multiplicar-se diante de nós sem dar o menor sinal de um limite. Fez tanto frio nestes últimos tempos, que a camada superior de neve gelou até tornar-se dura como uma pedra: é uma pena, pois de outra forma poderíamos ter seguido as suas pegadas.

    A tripulação está ansiosa para ir embora e deixar para trás a banquisa: ao sul o gelo derreteu durante a noite, e no horizonte já dá para ver o mar. Os homens avaliam a situação e dizem que o Capitão Craigie deve estar certamente morto, e que não vale a pena arriscar a vida de todos ficando aqui sem motivo, agora que temos a oportunidade de irmos embora. O Sr. Milne - e eu com ele - só depois de muita lábia conseguiu convencer a tripulação a esperar até amanhã de tarde, e teve de prometer que por nenhuma razão iria adiar a partida mais uma vez. Decidimos dormir algumas horas para em seguida fazer a busca final.

    20 de setembro, de tarde. Hoje de manhã explorei o gelo com uma equipe de homens para varrer a parte sul da banquisa enquanto o Sr. Milne rumava para o norte. Andamos por mais de dez ou doze milhas sem encontrar vestígios de seres vivos, a não ser por uma ave que voava bem alta no céu acima da gente e que eu vi pela sua maneira de voar, achei ser um falcão. A parte meridional da banquisa estreitava-se até formar uma minguada restinga que avançava no mar.

    Quando chegamos à base deste promontório os homens queriam parar, mas eu pedi para continuarmos até a ponta extrema, o que nos daria a satisfação de sabermos que hipótese alguma havia sido descartada.

    Mal tínhamos percorrido mais algumas milhas quando M'Donald de Peterhead gritou que estava vendo alguma coisa lá na frente e começou a correr. Nós também estávamos vendo alguma coisa, e, portanto também começamos a correr. No começo parecia uma vaga sombra escura que sobressaía na brancura do gelo mas, enquanto seguíamos correndo, a sombra assumiu a forma de um homem e, no fim, demonstrou ser justamente a forma do homem que estávamos procurando.

    Jazia de barriga para baixo numa orla gelada. Muitos cristais de gelo e flocos de neve haviam caído em cima do corpo estirado no chão, e reluziam na sua japona escura de marinheiro. Ao nos aproximarmos, uma rajada casual de vento levantou aqueles pequenos flocos como remoinho, e eles começaram a girar no ar, alguns voltando a cair, outros sendo levados pelo vento, para finalmente se afastarem turbilhonando para o mar. Eu só consegui ver o movimento da neve, mas muitos dos meus companheiros afirmaram que no começo tinha o aspecto de uma mulher que, ajoelhada ao lado do cadáver, o beijara para depois afastar-se na banquisa.

    Aprendi a nunca considerar ridículas as opiniões alheias, por mais absurdas que elas possam parecer. Ao que tudo indicava, o Capitão Nicholas Craigie não tinha morrido de forma dolorosa, pois ainda tinha um suave sorriso no rosto contraído, e as suas mãos ainda estavam abertas como se ele quisesse segurar o estranho visitante que viera chamá-lo e levá-lo ao mundo escuro que existe além do túmulo.

    Sepultamo-lo naquela mesma tarde, com a bandeira do navio a envolver-lhe o corpo e uma bala de canhão, com mais de quinze quilos, presa aos seus pés. Eu li as orações fúnebres enquanto aqueles rudes marujos choravam como crianças uma vez que muito deles tinham uma dívida de gratidão para com aquele coração gentil, e demonstravam-lhe agora o afeto que, quando vivo, o Capitão repelira.

    Caiu no mar com um baque surdo e lúgubre, e enquanto eu olhava aquela água verde, vi-o afundar cada vez mais até ser apenas um trêmulo ponto de espuma branca, o primeiro passo rumo à eterna escuridão. Quando a própria espuma desapareceu, ele se fora para sempre. E lá vai ficar com os seus segredos, as suas dores e o seu mistério ainda encerrado no peito, até o grande dia em que o mar devolverá seus mortos: Nicholas Craigie voltará então do seu mundo gelado, com um sorriso no rosto e com os entorpecidos braços abertos numa saudação. Desejo-lhe um destino mais feliz do que aquele que teve na sua vida daqui

    Vou parar de escrever. O caminho para casa já está aberto e sem problemas para nós, e muito em breve a grande banquisa será apenas uma lembrança do passado. Levarei algum tempo antes de poder superar o choque provocado pelos recentes acontecimentos.

    Quando comecei este diário, nunca podia imaginar como iria terminá-lo. Estou escrevendo estas últimas palavras na solidão do meu camarote, sentindo às vezes um arrepio na espinha, pois me parece ouvir os passos nervosos do Capitão ainda ressoando no convés. Hoje entrei no seu camarote, como era meu dever, para fazer uma lista dos seus pertences e registrá-la no diário de bordo.

    Nada tinha mudado desde a minha visita anterior, a não ser pelo retrato que mencionei e que estava pendurado numa extremidade do beliche. Pois bem, a pintura havia sido arrancada da moldura com uma faca e não estava mais lá. Com este último elo de uma ainda inexplicável cadeia de acontecimentos encerro o meu diário sobre a viagem da Estrela Polar.

 

Nota do Dr. John M’Alister Ray Sênior.

    Li os fatos estranhos que levaram à morte do Capitão do navio Estrela Polar, como o meu filho os relata. Acredito firmemente - e disto tenho a maior certeza - que os fatos aconteceram exatamente da forma com que ele os descreveu, porque conheço-o e sei que é um homem de nervos de aço, com um grande respeito pela verdade e totalmente alheio a qualquer tipo de fantasioso devaneio.

    Mesmo assim, a história continua parecendo muito vaga e improvável, e por isto mesmo fiquei muito tempo contrário à sua publicação. Recentemente, no entanto, soube de uma coisa que talvez possa iluminar com uma luz totalmente nova os fatos.

    Eu estava em Edimburgo quando, por acaso, encontrei o Dr. P..., um antigo companheiro de universidade que atualmente mora e exerce a profissão em Saltash, no Devonshire. Quando contei a experiência vívida pelo meu filho, ele disse ter conhecido muito bem o Capitão e, com minha grande surpresa, descreveu-o quase com as mesmas palavras que podemos ler no diário. Obviamente, o doutor falava de um homem mais jovem.

    Segundo as palavras do meu colega, o Capitão havia sido noivo de uma jovem muito bonita quando morava em Cornwall. Durante uma das suas viagens pelo mar, a noiva tinha morrido de forma particularmente horrível...

 

                                                                                            Arthur Conan Doyle

 

 

                      

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