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Series & Trilogias Literarias
Ývela cobriu o rosto. O vento forte soprando pelas dunas sacudiu o lenço envolto em sua cabeça, fazendo com que ela parasse o seu caminhar para arrumá-lo.
Ela estava terminando a escalada de uma das dunas, mas o fazia exaustivamente. Aquela cena se repetira tantas vezes naquele dia, levando-a a lugar algum, que Ývela estava prestes a desistir para tentar somente no dia seguinte. Não adiantava nada ficar arruinando suas energias daquela maneira; a ondina precisava alcançar a civilização, qualquer civilização, ou acabaria enterrada sob camadas de areia quente.
Furiosa pela própria fraqueza, Ývela amarrou o lenço com força atrás da cabeça, deixando apenas seus olhos descobertos. Eles ardiam pelos sopros quentes e pelos grãos de areia, tal como sua pele ardia pelos raios de Sol furiosos que a queimavam.
O Oeste era uma terra selvagem, de natureza instável, e um péssimo Reino para uma elemental das águas visitar.
Não que Ývela estivesse ali por vontade própria. Em visita às suas primas sereias lá no Reino das Brumas, a ondina fora surpreendida por tropas sulistas, e vira-se forçada a fugir. O Reino das Águas ficava muito próximo dali, e o Rei Maltrus com certeza tinha conhecimento da traição da princesa. Se Ývela fosse capturada e retornada à sua casa, o caos e o desequilíbrio seriam apenas o começo das consequências que aquilo traria à Warthia. Como guardiã, ela tinha um dever sagrado para com aquele continente. Os Deuses a haviam escolhido, e seu sangue fora jurado em honra a essa escolha.
Por isso, deixando de lado o momento de lazer, Ývela fugira da toca das sereias em direção ao refúgio mais improvável – o lar das dunas infinitas.
Agora, condenada à solidão do Grande Deserto, ela repousou sobre o topo da duna e bufou em frustração por encontrar nada além de quilômetros de mares de areia. Ývela tinha água estocada, mas, sendo uma ondina, precisaria de mais do que aquilo para se manter forte e saudável para os perigos que Mídria oferecia. Nem em mil anos consideraria usar sua magia. Aquilo a esgotaria e a deixaria desacordada por horas. Acordaria soterrada, ou nem acordaria. O Deserto não era exatamente o lugar mais propício a se tirar longas horas de sono profundo, não quando se estava sozinha.
Ývela afiou a espada que tinha consigo, examinando os olhos no reflexo da lâmina polida. As íris azuis estavam circundadas por linhas vermelhas consternadas, assombradas, frágeis como o humor dela no momento.
A irritação nos olhos era o menor de seus problemas, no entanto.
Primeiro, ela ouviu um rugido.
Instintivamente, Ývela escorregou pela beirada da duna. Gritos seguiram o som animalesco, e eram humanos. De humanas. Ývela estreitou os olhos, buscando, em meio à vastidão pálida do deserto, algum sinal dos sons que o vento trazia. Não havia nada; ninguém.
E então, ao longe, com sua visão aprimorada, Ývela avistou um vulto alcançando o topo de uma das dunas. A pessoa agitou as mãos no ar, como se buscasse ajuda, e Ývela se escondeu um pouco mais, temendo ter sido vista. Podia ser uma armadilha ou um pedido de socorro verdadeiro, a ondina não tinha como saber com certeza, e não estava em condições de se arriscar.
Ela se assustou quando uma criatura saltou sobre a pessoa na duna; parecia um lobo, mas menor e de corpo mais alongado. Ývela viu a criatura abocanhar o quadril da pessoa e os dois rolaram pela areia, desaparecendo de sua vista.
O silêncio não durou muito.
Ývela se arrepiou quando seus sentidos notaram alguma coisa se aproximando pelas suas costas. A ondina teve tempo de se virar e agarrar-se a espada antes que um felino semelhante ao que avistara ao longe saltasse em sua direção. Ela escorregou pela duna, fechando os olhos quando o impacto da fera contra a areia causou uma explosão de grãos, e correu assim que chegou ao ponto mais baixo.
Burra, burra, burra, pensou furiosa. Tinha baixado a guarda de tal modo que não notara estar próxima demais da área de caçada. Aquele bicho era um felino das sombras. Não havia presa que ele não soubesse rastrear, e, se era tão bem treinado quanto parecia, não deixaria Ývela escapar facilmente.
As presas retráteis dele possibilitavam que a fera não machucasse os objetos de sua caçada. Ývela notou uma coleira ao redor do pescoço dele, o que significava que os caçadores não estavam longe. O monstro não era muito grande, mas, em contraponto, era ágil e veloz. Ainda que aquele terreno não fosse propenso às suas corridas, era tampouco favorável à ondina. Ývela sabia que não podia fugir daquele monstro, então lutar seria sua única opção. Ela só esperava que a fera tivesse sido treinada para não atacar aqueles que caçava.
Ývela escalou metade da duna e, quando o felino das sombras virou-se para atacá-la, saltou sobre ele. Sua espada esbarrou nos espinhos que cobriam as costas da criatura, e a dureza deles repeliu a prata de sua espada. Felino das sombras, sua fraqueza era o fogo. E Ývela era uma elemental da água. Ela teria ficado furiosa pela ironia se tivesse tempo.
Mas não, ela não ia cair tão fácil. Fogo não era o único ponto fraco da criatura que a caçava; Ývela deixou-se cair quando o felino avançou, e quando ele postou-se acima dela para prendê-la, Ývela curvou a espada e acertou o ponto entre o queixo e o pescoço do monstro. Ele urrou e recuou com um salto.
Ela não mataria a criatura com aquele golpe, mas a atrasaria. O sangue negro pingando sobre a areia pálida foi prova de que a ondina tinha acertado em cheio.
Ela rolou para o lado quando um segundo felino lá de cima saltou em sua direção, e escapou com a mesma destreza de antes. Deuses, aquilo iria esgotá-la depois, pensou amargurada, mas sem poder parar para recuperar o fôlego. A descarga de adrenalina a impulsionou duna acima, escapando quando o felino estendeu as garras em sua direção. Eles não tinham sido treinados para poupar a vítima em casos extremos, Ývela arregalou os olhos. Aquilo seria um problema.
Escorregando, Ývela continuou fazendo o que vinha fazendo antes, num sobe e desce incessante, certa de que os felinos mantinham um ritmo lento, mas incansável. Ela, no entanto, já respirava com dificuldade e suava as bicas. Suas pernas gritavam por uma pausa e seu coração retumbava em suas orelhas como os tambores de uma tribo.
Ývela parou no topo de uma duna sem saber para qual caminho seguir; todos pareciam errados.
Foi quando um vulto saltou à sua frente e um terceiro felino das sombras a alcançou.
A ondina só teve tempo de fechar os olhos quando o corpo dele impactou contra o seu, lançando-a areia abaixo.
A dor em sua cabeça era comparável com a que estalava por todo o seu corpo. Ývela gemeu, sentindo-se mover sem estar exatamente em movimento. Ela tentou alongar os braços, mas as amarras prendendo-os atrás de si a imobilizaram. Estava deitada de lado em alguma superfície dura e, quando abriu os olhos, viu dez meninas numa situação semelhante.
A carroça que as levava não tinha grades e andava numa lentidão arrasadora. As rodas passeavam suaves pelas ondulações do deserto, presas aos corpos de dois felinos das sombras. Outros dois ladeavam a carroça, e rosnaram quando viram Ývela se mover. Pouco se importando com eles, a ondina lutou para se sentar, resmungando pela dor em seus músculos. Tinha a sensação de ter lutado uma batalha, com os nervos em chamas e os membros dormentes. Os pés também estavam amarrados, presos a correntes grossas enroscadas no canto da carroça. Seu rosto estava descoberto e o Sol queimava sua pele impiedosamente.
– Você está bem? – Ývela piscou, surpresa pela pergunta. A menina deitada ao seu lado tinha se virado e a encarava com curiosidade; ela tinha quinze, talvez dezesseis anos. O cabelo curto era de uma tonalidade negra, tal como a pele. Suas íris eram castanhas e bondosas, e o sorriso que ela presenteou a Ývela deixou a ondina mais sossegada.
– Não muito, mas obrigada. – Ývela sorriu de volta o máximo que pode. – Onde estamos?
– Em algum lugar próximo à Cidade Miragem. Os caçadores deixaram três meninas lá pela manhã. – a desconhecida estremeceu. – Sou Eloa.
– Ývela. – A ondina estremeceu. De repente, os cantos de sua visão ficaram escuros e sua cabeça pendeu para trás. Ela sentiu o desmaio chegando, mas Eloa a apoiou para que não caísse.
– Ei! Precisamos de água! – A morena gritou. Ývela ouviu alguns resmungos e então um homem enorme apareceu em seu campo de visão. Um lenço escuro cobria sua boca e nariz, mas os olhos, completamente negros, encararam a ondina como se ela o estivesse estorvando. Ele estendeu um cantil na direção dela e derrubou uma mísera quantidade de água sobre o rosto da loira, sem avisá-la. Ývela bebeu o máximo que conseguiu, e ficou grata pela sensação refrescante em sua pele, mas mirou no bárbaro o seu olhar mais mortífero. Ah, cortaria a garganta daquele monstro quando tivesse a chance!
– Melhorou? – Eloa indagou simpática. Ývela anuiu. – Eles não costumam nos dar muito de beber, devem ter medo que fujamos. Uma menina tentou outro dia. No mesmo dia em que acharam você. – Que sorte a minha estar na rota dos comerciantes de escravas. Ývela pensou.
Talvez conseguisse fugir. Podiam ter confiscado a sua espada e seus suprimentos, mas ela ainda era uma ondina. Ainda era a herdeira das águas. Não seria subjugada por um bando de homens nojentos.
– Nem pense nisso. – Eloa replicou. Ývela a encarou com confusão. – Você está com aquela cara... De quem está orquestrando um plano de salvação mirabolante. Não tente. É muito mais fácil escapar depois da venda. Acredite, eu fiz isso. – Ela sorriu orgulhosa, e Ývela se sentiu mal pelas coisas que a menina devia ter enfrentado. – Você é bonita e jovem, talvez consiga que algum fazendeiro bem velho e fraco te compre e então...
– Isso é ridículo! – Ývela esbravejou. – Não pode pensar que eu vou aceitar ficar quieta enquanto me vendem como uma mercadoria. É desumano.
– Bom, é que eu aprendi a lidar com as circunstâncias... – Eloa pareceu ressentida e Ývela se sentiu mal pelo tom usado.
– Desculpe, eu não queria... Soar assim. É só que... Como o governo permite? O Oeste é uma terra livre, como o Rei deixa essas coisas acontecerem?
– Ah, ninguém sabe. Esse comércio é ilegal. – Eloa suspirou. – Imagino que eles fariam algo a respeito se soubessem, mas... É difícil controlar ou sequer encontrar os vendedores numa terra selvagem como esta. As cidades são muito solitárias e, quando o regente as visita, tudo parece estar na mais perfeita harmonia. O tráfico é escondido deles.
Ývela enfureceu-se ainda mais.
– Mas, como eu disse, há meios de escapar. Eu consegui ficar longe dos vendedores por bons meses antes que me encontrassem. Infelizmente, o Oeste é muito perigoso. Não só por causa dos monstros que vivem nele.
Capítulo 2
Havia muitas pessoas presenciando o acontecimento. Ývela estava na parte baixa da cidade, na periferia, escondida dos olhos dos nobres – ou nem tão escondida. Havia vários deles sentados próximos ao palco de madeira improvisado, assistindo, entusiasmados, conforme o vendedor de escravos trazia suas últimas "aquisições". Eloa estava logo ao lado de Ývela, acompanhada de outras meninas, jovens e inocentes, absolutamente assustadas pelo que estava para acontecer. Ývela tencionava as mãos desde que a carroça havia parado na entrada da cidade – a ondina ouvira o vendedor negociar com um soldado e, tendo coberto e amordaçado todas elas, fez a carroça passar como qualquer outra. Ývela grunhiu e tentou gritar, tentou se mover, fez tanto alarde que as meninas acabaram por imitá-la, e isso causou um atraso. Os vendedores precisaram levar a carroça para um beco, apertaram as mordaças ainda mais e ameaçaram as meninas de tal modo que as mantiveram quietas até alcançarem o pátio na praça na periferia; Ývela, no entanto, não parou de fazer barulho até ser arrastada para fora da carroça.
A luz feriu seus olhos, mas foi confortante depois de ter ficado debaixo da lona pesada e abafada que os homens usaram para cobri-las. A praça era um lugar pobre, mas estava cheia de curiosos. Quando arrastaram a primeira das capturadas até o palco improvisado, onde antes houvera um leilão de bovinos, Ývela quis chutar o rosto de todos ali.
Aos gritos e empurrões e chutes, a ondina foi colocada ao lado das outras garotas, e um olhar de Eloa, tão calma em meio à calamidade daquela cena, acalmou a ondina. Ela conseguiria escapar, talvez Eloa também fugisse, mas e as outras?
Um dos bárbaros veio até Ývela e tirou a mordaça de sua boca. Puxou-a pelo braço para frente do palco, e a visão de tantos compradores a enojou. Ela ouviu gritos animados e foi ovacionada. A beleza das ondinas era tão famosa quanto à de suas primas sereias; sobrenatural aos olhos humanos, e exótica aos pouco acostumados. Sua pele, mesmo maltratada, era suave, e não havia idade nela. Seus cabelos, ainda que embaraçados e mal presos na longa trança, eram dourados com os raios de Sol. E seus olhos... Seus olhos eram fascinantes. Podia-se escrever um poema sobre o brilho deles, e mais dez sobre como eram ferozes.
Quando o primeiro lance foi dado, Ývela grunhiu e tentou se soltar. Quando o segundo homem se pôs de pé para gritar o valor oferecido, uma flecha atravessou a mão erguida dele.
Ývela e os outros congelaram pelo instante de surpresa, e foi o bastante para a ondina se livrar do bárbaro que a mantinha presa. Ela deu-lhe uma cabeçada no queixo e esquivou-se quando o bárbaro cambaleou; uma segunda flecha cortou o ar e acertou bem no meio do peito do criminoso. A força do disparo foi suficiente para derrubar o grandalhão, deixando o caminho de Ývela livre.
As pessoas na praça começaram a correr desenfreadamente, no que os bárbaros tiravam suas espadas para a luta. A ondina respirou fundo, buscando ordem em meio ao repentino caos, e priorizou o que deveria fazer antes que a luta começasse. Pegou as chaves do cinto do morto ao seu lado e soltou as correntes de seus pés e de suas mãos. Avistou Eloa tentando acalmar as garotas e correu até ela. Havia pânico nos olhos das mais jovens, mas também havia algo mais. Um sentimento furioso crescendo em suas feições conforme as correntes caiam; um grito de vingança e liberdade cobrindo seus olhares.
Ývela pediu que Eloa e as meninas se escondessem debaixo do palco, que ficassem seguras até que voltasse buscá-las, mas elas não obedeceram. Uma vez livre, Eloa ergueu um sorriso animado para Ývela, arrancou a espada do cinto do bárbaro caído e avançou até outro que, pego desprevenido, foi ao chão. Outras meninas juntaram-se a ela e começaram a esfaqueá-lo repetidas vezes. O homem podia ser gigantesco, mas não era páreo para a fúria daquelas garotas.
A ondina sorriu, agraciada pela coragem das meninas. Repentinamente sozinha, enquanto gritos espalhavam-se ao seu redor, Ývela migrou os olhos para uma luta que acontecia lá embaixo. Ela não pensou muito antes de responder à injustiça da disputa.
Com leveza, a loira saltou do palco sobre o corpo de um dos bárbaros. Suas mãos prenderam-se ao queixo dele, e um solavanco para o lado estalou o pescoço do homem, lançando-o nas garras da morte. Graciosa como uma brisa, Ývela esquivou-se do morto, roubando a espada de sua mão antes que ele caísse, e de repente estava frente a frente com dois inimigos.
Mas não estava sozinha.
O responsável por disparar a primeira flecha, aquela que incitara toda a rebelião das escravas, encontrava-se à sua frente. Ývela não teve tempo de reparar em sua aparência, mas os olhos do rapaz foram gravados por sua memória com surpreendente rapidez. Eram negros como uma noite sem estrela; as pupilas se perdiam em meio à escuridão, mas eram doces. Doces como um sorriso e um abraço e as suas lembranças mais felizes.
No instante seguinte, a ondina se esquivou de uma massa que tentou acertá-la. O rapaz armou uma flecha, enquanto a ondina colocava-se em posição de ataque, com o corpo inclinado e as pernas tencionadas. Ela entendeu onde o desconhecido mirava a flecha e sorriu em resposta; o bárbaro esperou pelo tiro no tronco, mas a destreza do arqueiro desviou o disparo até seu joelho, lançando o vendedor de escravas no chão aos berros. Ývela girou a lâmina da espada curva que havia roubado, e o fio separou a cabeça do bárbaro do resto de seu corpo. O arqueiro já estava cuidando do outro inimigo, disparando uma sequência de flechas que, pasmem, estavam em chamas. Labaredas arroxeadas cobriam as pontas prateadas, e o brilho delas hipnotizou a ondina.
Ývela não entendeu de onde aquele fogo havia surgido, mas ficou grata ao vê-lo derreter o colete do bárbaro. O susto pelas chamas deixou o gigante desnorteado, e o arqueiro cravou um último tiro contra o pescoço dele, derrubando-o de vez.
Foi então que tudo disparou sob o olhar de Ývela; a multidão se calou quando uma tropa de arqueiros surgiu com seus corcéis, e todos tinham suas flechas apontadas para a ondina. Ela encarou o desconhecido ao seu lado e o viu erguer as mãos; o comando fez com que os soldados baixassem as armas.
– Majestade... – por um instante, Ývela arregalou os olhos, imaginando tratar-se dela. Como haviam descoberto? Pensou exasperada, já cogitando prosseguir a luta para fugir. Conseguiria derrubar aqueles homens facilmente, ou só os despistaria. Aquela cidade era um labirinto para ela, mas para eles também. Não seria difícil.
Quando um dos arqueiros desmontou e se dirigiu ao estranho parado ao seu lado, no entanto, a loira respirou aliviada. E bastante curiosa.
– Seu irmão vai nos degolar quando souber de sua fuga.
O rapaz com as flechas baixou o rosto, rindo suavemente. Algo no riso dele fez Ývela relaxar. Algo na maneira confiante com que ele prendeu o arco em seu ombro e pediu aos soldados que apaziguassem o tumulto na praça suavizou as feições até então sérias da ondina. Quando ela se viu alvo dos marcantes e memoráveis olhos de ébano do desconhecido, de repente, não soube como reagir.
– Desculpe por isso. – o rapaz murmurou. Sua voz tinha um sotaque pesado, elegante e educado. Algumas palavras mais fortemente pronunciadas do que as outras, algumas vogais mais agudas e outras mais graves. Era lindo, Ývela notou.
Ao perceber a confusão dela, o desconhecido continuou: – Pelo susto. – Então se dirigiu aos soldados, que agora desmontavam de seus corcéis e começavam a guiar a multidão para longe da praça.
A ondina sorriu suavemente, desviando o olhar para as pessoas. A maioria delas já havia fugido, mas uns muitos curiosos dispersos entre os becos e as ruas laterais da praça assistiam à chegada dos soldados reais. Ela notou-se alvo de vários olhares e não fez contato com nenhum deles; não queria que a reconhecessem. Ali, exposta em meio à multidão, de repente teve conhecimento de que estava no Oeste para fugir das autoridades sulistas. De repente percebeu que era um risco continuar exposta daquela maneira.
Ývela respirou fundo. Toda a adrenalina de momentos antes desaparecera de seu corpo, e a loira sentiu o peso da espada que carregava. Sentiu o peso da luta em seus ombros e braços e os músculos, já cansados da viagem exaustiva, protestaram por ela ainda estar de pé. Sentiu a dor em seus pulsos e tornozelos pelo tempo que estivera presa, e mínimos cortes em algumas áreas descobertas da sua pele. Sentiu o calor infernal que havia sido apaziguado durante a luta, as ondas térmicas que sopravam por seu rosto, ainda que não tão fortes quanto no centro do Grande Deserto. Havia tanto a sentir e, Deuses, Ývela ainda não sabia entender tudo aquilo.
Desnorteada, a ondina buscou pelas meninas salvas, e ficou aliviada quando encontrou o rosto conhecido de Eloa. Ela estava lívida pela batalha travada, mas bem. Todas estavam bem, e encontravam-se sentadas próximas ao palco. Alívio era uma coisa que Ývela entendia bem, depois de todos aqueles anos vivendo em terra, e foi o que inundou sua consciência ao caminhar até as meninas.
Foi então que ela se lembrou de que não estava só.
– Eu preciso... – Ývela encarou o desconhecido e gesticulou na direção das garotas, e o rapaz arregalou os olhos, parecendo se lembrar do cenário em que estavam.
– Ah, é claro! – Ele seguiu a ondina em direção às resgatadas, e fez-lhes uma mesura educada quando parou a sua frente.
– Majestade! – uma delas guinchou assustada. Ela baixou o rosto respeitosamente, tentando fazer uma reverência, mas o rapaz tocou seu ombro e pediu que não prosseguisse. – Eu... Nós... Muito obrigada.
Ývela apertou os lábios ao notar que não havia agradecido pelo salvamento. Sequer havia se apresentado ao estranho!
– Desculpem ter demorado tanto. – Ele soou verdadeiramente arrependido.
– Eu disse que ia dar tudo certo. – Eloa cutucou a lateral de Ývela, fazendo a ondina desviar o olhar. O Rei que as havia salvado agora lhes oferecia abrigo e proteção pelo tempo que demorasse a encontrarem suas famílias, e havia em seus gestos verdadeira preocupação. – Onde aprendeu a lutar daquele jeito? – A pergunta de Eloa acompanhou o fim do discurso do Rei, o que deixou todos a observarem Ývela curiosamente.
A ondina ficou um pouco confusa a princípio, principalmente pela intensa observação daqueles ao seu redor, mas então relaxou. Não havia porque mentir; só precisava omitir.
– Eu passei um tempo no Norte e alguns amigos me ensinaram. – Ela sorriu docemente. Havia muito sobre seu passado que não podia contar àquelas pessoas, mas esperava estar soando convincente com o pouco que falou.
– Foi bem útil para você hoje. – Eloa comentou.
– E em muitas outras datas. – Ývela brincou, cutucando o lado dela como ela tinha feito antes.
As meninas assistindo ao diálogo sorriram, e começaram a agradecer Ývela pela ajuda. Ela notou-se intensamente observada pelo rapaz e evitou cruzar o olhar com o dele; ainda havia o receio em relação ao seu rosto e ao fato de estar sendo caçada lá no Sul. Se aquele fosse mesmo o Rei do Oeste...
– Vocês são bem-vindas na capital. – ele comunicou. – Serão convidadas de minha corte e estarão sob minha proteção. Até que estejam prontas para encontrar suas famílias, a Fortaleza do Dragão as receberá.
Capítulo 3
O corredor que atravessavam era imenso, com pilares de alabastro sustentando o teto no lado que tinha visão para um grande pátio. Ývela já vira muitas construções magníficas desde que havia abandonado o próprio Reino, mas não escondeu a surpresa pela minuciosidade nos detalhes daquele castelo em questão.
A Fortaleza, como já dizia o nome, era imensurável, com seus detalhes intrincados na montanha onde havia sido construída. O salão do trono, último lugar visitado pelas recém-chegadas, fora o que mais conquistara a atenção da ondina. O trono, principalmente, construído em rocha bruta, com a estátua de dragão cravada no topo dele. Diferente do Palácio de Cristal, no Reino das Águas, o castelo do Oeste era muito selvagem e intrínseco, tal como o terreno que habitava.
Ývela era uma observadora curiosa, sempre buscando novidades aos olhos inexperientes. Aquela era a primeira vez que viajava pelo Deserto, e a primeira vez que tinha tempo para conhecer suas riquezas. Não só as estátuas e tapeçarias e cômodos gigantescos da Fortaleza, mas seus moradores também lhe foram de intensa memorização. Ývela adorava os humanos. Adorava como eram tão diferentes e tão parecidos ao mesmo tempo. Adorava sua juventude, adorava conhecer suas experiências e, muitas vezes, vivenciá-las.
A arquitetura podia ter ganhado sua atenção e seu fascínio, mas as expressões nos rostos das meninas ao entrar no grande salão foram muito mais interessantes; um dos membros do Conselho de Mídria, um lorde barrigudo com uma brilhante barba espessa, ficou responsável por guiar e acomodar as garotas resgatadas – Ývela não gostou dos olhares e piedade que os moradores haviam direcionado a elas quando chegaram à Fortaleza. Não havia porque ficarem com pena delas; que tivessem pena dos monstros responsáveis por sequestrá-las, pena pelo destino que eles teriam lá no Abismo. Nos quartos dados a elas, no entanto, as servas trataram-nas bem, quase como se fossem da realeza, e Ývela sentiu-se imersa em lembranças. A sensação de casa que a Fortaleza passava, no entanto, era semelhante à de Líriel; não fazia com que a ondina tivesse pensamentos sombrios. Não a memorava do seu passado.
Ela estava perdida em pensamentos como aqueles; sobre o castelo e as pessoas e como tudo podia ser tão parecido com o seu Reino, mas ao mesmo tempo tão diferente? Portanto, não reparou que havia diminuído os passos e ficara para trás. Acompanhada por alguém.
– Você não me disse o seu nome. -– Ývela sobressaltou-se.
– Perdão? – Ela voltou-se para Jon.
Rei Jon, o herdeiro mais jovem dos quatro reinos. Ývela se lembrava de estar presente quando Demetrius escolhera dividir Warthia entre ele e seus irmãos. Lembrava-se de ter visto o herdeiro Tytos mais jovem, acuado atrás da saia de sua mãe, a rainha mestiça. Lembrava-se de tê-lo achado adorável em sua inocência, de ter assistido com fascínio como a coroa representativa mal cabia em sua cabeça. Ele era um jovem rapaz agora, mas ainda havia ingenuidade em seu olhar. Uma responsabilidade tão grande jogada sobre os ombros de um menino. Ývela via aquilo como grande injustiça; ela já vivenciara o peso de um governo, e o quanto a marca de uma coroa podia ser assustadora.
Jon, no entanto, tinha uma aura calma. Ele andava como se o governo não o perturbasse, como se ter sido imposto ao Reino mais traiçoeiro de Warthia não fosse grande problema. Ele cumprimentava seus súditos com sorrisos sinceros, e parecia se fazer presente sempre que necessário. Jon havia abandonado o jantar na noite passada quando um dos lordes o convocara para uma reunião urgente; com o regente em viagem, toda a responsabilidade do Reino Árido caía sobre o jovem Mago – Ývela ouvira falar sobre o regente. Theodore, o glorioso centauro, comandava o Oeste ao lado de Jon até que o Mago assumisse a maioridade. Aparentemente, aquele tipo de viagem era uma rotina do centauro em todos os seus anos de vivência ali no Oeste.
– Seu nome, milady. – Jon repetiu com um sorriso. O tom dele era polido e suave, bastante elegante e um pouco tímido. Ele tinha cruzado as mãos atrás das costas e vestia trajes confortáveis; a camisa de mangas compridas, por causa do frio que a noite no Deserto trazia, e calças maleáveis. O casaco escuro tinha alguns bordados dourados na barra, e aquele era o único detalhe nobre e rico que Jon ostentava. Nenhuma joia, nenhuma coroa; Ývela poderia confundi-lo com um plebeu em outra situação. – Não tive a oportunidade de fazer as apresentações.
– Ah. – a ondina sorriu. – Ývela, majestade. Meu nome é Ývela. – Ela parou no corredor e fez uma mesura, mais por brincadeira do que por educação. Percebeu que Jon ficou sem graça por aquilo e ergueu ainda mais o sorriso.
– E de onde você veio, milady Ývela?
Ela estacou, e Jon percebeu a mudança em sua expressão. De simpatia para desconfiança e crescente seriedade.
– Isso é... Pessoal, majestade. – Jon arregalou os olhos, e Ývela pensou ter visto rubor subir às bochechas dele antes que ele se pronunciasse:
– Mil perdões! Não era minha intenção... Eu só... Desculpe.
– Não foi nada. – ela deu de ombros, mas o olhar continuou sério. – Mas prefiro não falar sobre isso. – A ondina trilhou uma das espirais sobre seu pulso em resposta às memórias.
– Está gostando da estadia? – Jon tratou de perguntar em seguida, parecendo ansioso para deixar o deslize de lado. Ývela sorriu pela consideração.
O vestido que as servas haviam lhe dado era diferente de tudo que já havia usado, e expunha as marcas em seus braços mais do que ela gostaria. A peça de tecido leve caía por seu corpo pequeno com delicadeza, e o toque dela em sua pele era quase uma benção depois de tanto tempo presa a tiras quentes para proteger-se dos raios de sol. O corte do vestido deixava as laterais de seu corpo expostas, e ele prendia-se por um cinto largo em sua cintura. As sandálias eram macias e os sais de banho – dentre os cinco banhos que Ývela tomara no período de um dia, por saudade do carinho das águas – deixaram-na confortável como não ficava há semanas.
Ela tinha prendido os cabelos em uma trança durante o dia, mas os soltara naquela noite, de modo que os cachos dourados ladeavam seu rosto, brilhantes e macios. Trançara algumas mechas com penas e bijuterias que encontrou num pequeno vaso dentro de seu quarto, e apreciava o barulho suave que as peças faziam ao se esbarrar.
– Estou adorando, majestade.
– Jon, por favor. – ele mais implorou do que pediu. – Esse termo me enlouquece.
– Por que não gosta de majestade, majestade? – Ývela brincou, arrancando risos dele.
– É... Demais. - Jon ergueu os ombros. – Não gosto de toda essa pompa e circunstância. Jon é o bastante.
– Jon então. – o sorriso de Ývela ficou mais largo e sincero. – Obrigada.
– Pelo que?
– Não tive chance de agradecê-lo devidamente. – ela gesticulou para as meninas lá na frente. – Você foi de grande ajuda.
– Não fiz mais do que meu dever. – ela viu quando o rapaz apertou a mandíbula, o cenho franzido em frustração. – Gostaria de ter ajudado antes. Quantas garotas não passaram por isso...
– Ei. – instintivamente, Ývela estendeu a mão até a dele, tocando seus dedos. Jon pareceu chocado num primeiro momento, e num segundo também. Ele não reagiu ao gesto dela mais do que com aquela expressão assustada, mas Ývela o sustentou mesmo assim. A pele dele era macia e os dedos eram longos, como os de um músico. – Está tudo bem agora. Não se culpe pelo passado; você ajudou aquelas meninas a escaparem, é isso que importa. – A ondina meneou a cabeça para garantir que estava certa do que dizia, e Jon tremeu um sorriso em resposta. Ele pareceu nervoso pela proximidade, ainda que aquilo não representasse grande coisa para Ývela. O monarca era simpático e carinhoso, e ela confiava nele o bastante para manter seus olhares presos por tanto tempo.
– Obrigado. – Jon sussurrou.
Ývela respondeu com um sorriso, e só então percebeu que ainda não havia soltado sua mão. Como se o toque dele fosse familiar, como se calmaria fosse transmitida através daquele gesto.
O grupo guiado pelo lorde virou o corredor, e Ývela percebeu que realmente tinha ficado para trás.
– Então... – ela olhou em volta, afastando-se um pouco. Jon baixou o rosto, rindo sem graça. – Gostaria de me contar a história deste lugar?
– Nunca ouviu falar sobre a construção deste castelo? – Ele exaltou embasbacado.
– Espero que você possa mudar isso. – A ondina piscou sorridente.
– Bem... Tudo começou quando um dragão quis presentear o meu antepassado.
– Um dragão?!
Capítulo 4
Era fim de tarde na Fortaleza do Dragão, e Eloa, a última das meninas resgatadas, estava voltando para casa agora. Ela seria escoltada até Cidade Miragem, onde sua família a esperava. Havia tanta gratidão em seus olhos quando se aproximara para a despedida que Ývela sentiu-se emocionar junto a ela. Jon prometeu a Eloa que ela estaria a salvo na companhia de seus soldados, e que eles garantiriam a proteção dela e da família pelo tempo que ficassem na Cidade Miragem. Prometeu-lhe também que aquela tragédia nunca voltaria a acontecer com ela ou com qualquer outra garota enquanto ele reinasse sobre o Oeste.
Ývela estava ao lado dele quando Jon se pronunciara, e sorrira orgulhosa pela postura decidida. Jon era tão jovem, mas tão sábio e honrado. Dos quatro irmãos, não havia duvidas de que maior justiça cairia sobre o governo de Jon.
Depois do Rei, Eloa adiantou-se até Ývela, e abraçou a ondina antes que ela mesma o fizesse. Em meio a risos e lágrimas, a loira aceitou o carinho daquele gesto e fechou os olhos, confortando-se com a sensação que as emoções humanas causavam-lhe no momento. Deleitando-se com o retumbar frenético em seu coração e com a doçura que a amizade de Eloa lhe estendia.
– Obrigada. – Eloa sussurrou.
– Vá em paz. – Ývela sorriu, assistindo enquanto a menina se afastava. Quando os portões se fecharam, a ondina ainda tinha os olhos presos àquela passagem, sua mente mergulhada na despedida e na sensação de vazio que sentiu de repente.
Todas tinham ido embora; todas as meninas tinham alguém para quem retornar. E ela? Voltaria para Lonel e para a quietude dos elfos? Voltaria para horas de solidão em Líriel, onde sua mente seria entorpecida por tantos pensamentos incoerentes? Voltaria a viajar sozinha por aquele mundo, aguardando, tão pacientemente, o nascimento da criança escolhida?
Quem era Ývela naquele mundo tão humano?
Jon tocou a cicatriz em seu pulso. Ývela não a havia notado até o momento.
As semanas de convivência com o Rei haviam edificado uma forte amizade entre os dois. Jon era todo toques sutis e sorrisos carinhosos, sempre atencioso e dedicado quando Ývela precisava dele. Mesmo tão ocupado com a viagem de Theodore, Jon encontrava tempo para a ondina. Encontrava tempo para contar histórias e ouvir histórias, para mostrar-lhe o que sabia da magia da Luz e o que seu irmão mais velho o havia ensinado; para contar coisas sobre a monarquia de Warthia e sobre seus antepassados, sobre guerras há muito travadas, e perigos que ainda espreitavam.
– Foram as cordas. – Ývela explicou, encarando a cicatriz. – Dos bárbaros.
Jon tinha as sobrancelhas cingidas, numa expressão que Ývela estava aprendendo a identificar como perturbação, e acenou em entendimento.
– Ei, eu preciso de algumas cicatrizes de batalha. – a ondina empurrou o braço dele, erguendo um sorrisinho ao vê-lo desfazer a careta preocupada. – Estou bem agora.
Capítulo 5
Ývela passeava pelos corredores largos e arejados da gigantesca fortaleza. Seus olhos vagavam por cada e qualquer detalhe ainda não notados e até mesmo pelos mais conhecidos, como as dezenas de estátuas draconianas, ou os espirais intrincados nos pilares que se distribuíam pelas passagens. Havia abandonado o seu quarto, atormentada pela insônia e por sonhos desconexos. Gostava de andar por ali, por toda a extensão do castelo tão fascinante ao olhar.
Fora convidada a permanecer no Oeste até que desejasse partir. Depois da partida de Eloa e das outras, ela se decidira por ficar só mais alguns dias, para se reestabelecer, contatar Lonel e anunciar o seu retorno, mas não fora capaz. Tudo por causa de Jon. Ele era o motivo pelo qual continuava ali.
O rapaz de amáveis feições, dono do sorriso caloroso e tão receptivo, que encontrara em Ývela uma estimada amiga. A ondina via adoração em seus olhos escuros. Via familiaridade e um toque de doçura que não conseguia entender tão bem quanto imaginava.
Jon parecia ligeiramente mais velho para a idade, conforme as semanas se passavam e Ývela se acostumava mais a ele. O Rei havia lhe explicado que o sangue mágico em suas veias confundia aqueles que não entendiam a descendência de sua raça. Quanto mais tempo se passava, mais demoravam a envelhecer, mas vez ou outra ocorria uma mudança súbita de aparência, um amadurecimento rápido em suas feições. Por ser filho de uma meia-elfa, ele também tinha em suas veias parte da juventude dos milenares seres que habitavam a cidade mística de Líriel, de modo que a inocência em suas feições se devia ao pouco de imortalidade com a qual ele convivia.
Jon tinha um rosto nobre, feições sérias que contrastavam com seu sorriso largo sempre tão presente. O cabelo castanho era comprido e caía sobre seus ombros em um corte arrumado, os fios lisos sempre bem penteados. O jovem Mago, durante a conversa, mostrou-se encabulado pela intensa observação da ondina e fingiu distrair-se com qualquer coisa, afastando o rosto do alcance dos olhos dela. Ývela sorriu mais ainda, maravilhada pela timidez tão exposta nos trejeitos do rapaz.
Timidez. Uma das tantas emoções humanas que ela continuava incapaz de entender. Havia centenas delas, todas tão perigosas; sentimentos capazes que trazer-lhe tormenta. Ývela temia senti-los, mas era impossível não fazê-lo, estando tão sujeita ao mundo terrestre quanto estava.
Ao lado de Jon, para seu alívio, não havia qualquer emoção ruim.
O nobre era todo carinho e cuidado, amigável desde o primeiro olhar até o último sorriso. Durante as horas livre, especialmente depois do pôr-do-sol, ele punha-se a conversar com a ondina.
Sanava dúvidas, indagava curiosidades, ansiava pelos relatos do passado dela. Foi numa dessas noites, num desses seus encontros casuais, que Ývela lhe contou sobre sua casa. Com a luz da lua caindo pálida sobre o rosto apreensivo e curioso do Rei, ela lhe relatou sobre sua fuga, centenas de anos atrás, omitindo a parte sobre a profecia, porque não sabia o quanto daquela insanidade fora relatada ao rapaz. Contou sobre seu anseio para desbravar aquelas terras. Sobre o medo que tinha de sua mãe, a Rainha das Águas, e de como Ývela se sentiu em casa quando finalmente chegou a terra. Contou a Jon sobre seus temores em relação a todo o desconhecido que era Warthia, e sobre como as coisas ainda a surpreendiam, mesmo depois de todo aquele tempo; explicou a ele sobre alguns de seus poderes, sobre sua imortalidade e... Hesitou sobre a praga que sua mãe havia rogado, sobre contar a Jon a respeito do horror que pairava em seu coração, mas os olhos dele... Ývela poderia confiar toda a sua alma e mais algumas reencarnações aos olhos do querido Mago, então explicou sobre a maldição.
Jon pareceu confuso, de início, então assustado e melancólico. Sinto muito, Ývi. Ele havia dito, usando o apelido que já se tornara tão familiar à ondina. Não sinta. Eu não sei sentir. Ela havia respondido, sem a intenção de ser rude, mas percebendo ter soado fria demais, imortal e ondina demais. Distraiu Jon com outra história logo depois, mas a sombra daquela confissão ainda pairava nos olhos doces dele.
Jon a admirava e exibia isso plenamente. Ele era bastante cauteloso com as emoções em outros momentos, sempre rígido as regras da corte, aos protocolos a serem seguidos enquanto se sentava no trono da Fortaleza do Dragão. Mas, com Ývela, podia ser... Só Jon.
A ondina sorriu com as lembranças, certa de que prosseguiria com aquela estadia pelo tempo que considerasse adequado. Estimava não só Jon, mas todas as bondosas almas com quem vinha cultivando laços de amizade.
Ouviu um barulho e avançou em direção a ele, certa de que conhecia a sua origem. Apoiando-se numa pilastra, Ývela permaneceu em silêncio, assistindo enquanto o jovem Mago praticava arquearia com excelência.
Jon vestia um colete firme, amarrado ao seu tronco por nós apertados, que deixava os braços nus. Havia luvas de proteção em suas mãos, com os dedos recortados para garantir maior mobilidade. Ele usava braçadeiras para proteger sua pele de arranhões, e a capa havia sido deixada de lado.
O rapaz havia colocado um encantamento no pátio, semelhante àquele com que enfeitiçava os salões de treinamento. Havia ilusões cintilando ao redor de Jon, simulando inimigos, e o rapaz os enfrentava com destreza e agilidade impressionantes. Ao fim do treino, Jon saltou para escapar de uma estocada, vinda de uma figura que Ývela imaginou ser um Amaldiçoado, rolou no chão e apoiou-se em um dos joelhos, disparando com exímia rapidez. A flecha atravessou o crânio da figura ilusória e tudo ao seu redor resumiu-se à escuridão do recinto.
Os olhos de Jon recaíram na pequena figura curiosa que o observava com encantamento, e Ývela notou quando suas bochechas ganharam alguma cor.
– Ývi! – ele exclamou desconcertado. – Por que não avisou que estava aí? Eu poderia ter parado...
– Deixe disso, Jon. Foi um treino excelente. – Elogiou com orgulho, aproximando-se dele.
Na área totalmente descoberta, a brisa fria da noite soprou contra o corpo da ondina. O fino vestido que usava esvoaçou para o lado e um calafrio acompanhou o movimento. Ývela cruzou os braços com força, sacudindo os ombros em um reflexo.
Jon assistiu o seu estremecimento e imediatamente buscou a capa, estendendo-a sobre as costas da garota, cobrindo seus ombros com o tecido quente. Ývela agradeceu com um sorriso, que foi respondido com o iluminar dos olhos do Mago.
– Está aqui há quanto tempo? – Ela indagou.
– Algumas horas. – ele cingiu as sobrancelhas em resposta. – O conselho se reuniu mais cedo e todas aquelas burocracias políticas me deixaram com insônia. – Jon sorriu discretamente.
– Política. – Ývela crispou os lábios. – Sempre atormentadora.
– De fato. – O rapaz respondeu com um piscar.
Ývela tirou alguns segundos para examinar o rosto dele, detalhista e curiosa, e o gesto foi recebido com desconforto por Jon. Ele se esquivou dela e pediu licença, dirigindo-se até o arco e a aljava que havia deixado para trás. Recolheu algumas flechas caídas ao chão e estava para guardá-las quando Ývela perguntou:
– Onde aprendeu a atirar tão bem? – Tanto tempo naquele castelo, tantas conversas divididas com ele, e em nenhum momento ela parou para pensar naquela questão. Havia tanto sobre Jon que ainda não conhecia... Como podia querer entender tudo?
– Ah, isso... Não é grande coisa. – ele riu suavemente. – Você precisa ver meu irmão, Demetrius. Ele sim é o que se pode chamar de exímio arqueiro.
– Jon... – ela brincou. – Modesto como sempre.
– Não é modéstia, é só... – ele viu a sobrancelha pálida dela arqueada numa expressão de indignação e acabou rindo. – Tudo bem, não sei receber elogios.
– Se me visse atirando, mudaria de ideia sobre si mesmo. – Ývela zombou com bom humor. Jon sorriu de volta, desafiador. – O que? Ah não! Nem pensar. – a ondina se afastou. – Foi um comentário solto ao vento, pelos Deuses, Jon. – O jovem Mago segurou a mão dela antes que se afastasse demais, e havia tão extrema delicadeza em seu toque que acabou por surpreender a pequena ondina.
– Vamos lá: um tiro. Sem ilusões. É só acertar o alvo.
– Sabe que eu vou errar. – Ela balançou a cabeça.
– Só vou saber se a vir tentar. – Jon replicou astutamente, estendendo-lhe o arco.
Ývela apertou os lábios com rabugice, mas estava claro que continha o sorriso. Puxou a flecha da aljava do rapaz e encaixou-a perfeitamente no arco; sua mira, no entanto, foi absurdamente péssima. A ondina resmungou baixinho ao ver a flecha zunindo em direção ao vazio atrás da varanda, passando longe do alvo de madeira. Jon, ao seu lado, segurou o riso.
– Não se atreva a rir! Você me obrigou.
– Havia sinceridade em cada palavra sua, Ývi. – O rapaz comentou.
– Eu avisei. – Ývela retrucou. – Não tínhamos arquearia debaixo do mar, sabe? – usou de sarcasmo, fazendo-o rir. – Me deixe tentar de novo. – estendeu a mão, esperando por uma flecha. – O vento pode ter sido prejudicial.
– O vento, é? – O sorriso de Jon, Ývela pensou, era tão genuíno e caloroso que foi incapaz de desviar o olhar. Pequenas rugas se formavam nos cantos de seus olhos, assim como as covinhas exibidas em suas bochechas. Ela viu-se sorrindo de volta, sem sequer entender o porquê daquele gesto. – Quer ajuda? – Desviou seu olhar para o alvo, que, mesmo sob seu olhar apurado, parecia tão inalcançável. Cingiu as sobrancelhas numa careta, mas assentiu.
– Sua postura está boa, mas imperfeita. – Ele elogiou, rodeando-a enquanto a examinava com seu olhar mais profissional. Ývela arqueou as sobrancelhas claras, impressionada com a calmaria que ele desprendia. Parecia um professor cheio de paciência, ainda que seus olhos negros gritassem em uma ansiedade contida. – Precisa manter os braços firmes e as pernas relaxadas. Isso mesmo. – Jon sorriu. – Não pode ser uma estátua, tampouco uma ameba.
– Acabou de me chamar de ameba? – A ondina demonstrou indignação. Jon arregalou os olhos com a exclamação dela e rubor subiu por seu rosto.
– Foi só... Algo que meu irmão costumava me falar. – Ele coçou a nuca, encabulado.
Ývela caiu na gargalhada, empurrando o ombro dele com leveza.
– Deixe disso, Jon, estava brincando. – voltou à postura que ele lhe instruíra, ainda sorrindo pelo choque do rapaz. – Firmeza e leveza, entendi o seu ponto. O que mais? – Encarou-o com interesse. Jon respondeu com um misto de surpresa e encantamento, que rapidamente dissipou em uma máscara de concentração.
– Sobre o arco... – ele pigarreou para si mesmo. – Você o empunha bem, mas falta um pouco de controle sobre a flecha. – Jon parou atrás dela, mantendo as mãos afastadas de seus braços. Ývela o encarou com confusão, notando a nítida vergonha exposta nas bochechas coradas dele. – Você... Hã... Pode... Quero dizer... Importa-se se eu...?
– Vá em frente. – A ondina piscou os olhos com doçura, virando o rosto para que Jon escapasse de seu olhar. As mãos dele cobriram as suas, e foi notável a ligeira tremedeira que acometia os dedos longos e esguios do rapaz. Ývela viu-se rodeada pelo corpo alto de Jon, abraçada por seu calor, e sorriu involuntariamente. O Mago tinha cheiro de chuva e da frieza da noite e trazia a ondina uma sensação familiar e aconchegante, algo em que podia se distrair. A mente dela não registrou as dicas dele, mas Ývela viu-se disparando com precisão quando Jon se afastou.
– Perfeito! – O rapaz elogiou. Ela agradeceu com uma mesura.
– Tive um ótimo professor. – Pareceu que ele a retrucaria, provavelmente com sua modéstia exacerbada, mas então Jon balançou a cabeça e limitou-se a responder a reverência.
– Fico feliz em ajudar.
– O que você mais tem feito é me ajudar. – Ývela replicou. – Seria ruim se eu... Treinasse com você? – Mordeu o lábio inferior, abismada com a própria ousadia. Jon era o Rei! Não podia tomar seu tempo para tolos treinos; quando retornasse ao território élfico, pediria a Lonel que a ajudasse.
– Você ainda pergunta? – Jon riu suavemente. – Sem problema algum, Ývi.
– É besteira minha. Posso treinar quando retornar a Líriel e...
– Vou tomar como uma ofensa se voltar atrás. – O tom dele foi duro e surpreendeu a garota, cujos olhos se arregalaram. Jon notou a maneira como havia colocado as palavras e suavizou a expressão imediatamente. – Eu quero ajudá-la! Deuses, eu não sou bom com as palavras... – Jon massageou as têmporas, e sua frustração trouxe riso à ondina. – Desculpe, é só que... Parece a mim que você não quer ficar por mais tempo.
– O que? Ah não, Jon, não é por isso! Eu sei o que é carregar o peso de uma coroa, e você está sempre tão atarefado, não quero tomar seu tempo livre.
– Ultimamente, é você quem tem feito esse tempo valer a pena. – Jon sorriu como antes, com tamanha sinceridade que arrancou as palavras da loira. Ela ficou tão confusa que só pôde balançar a cabeça em resposta.
– Sinto como se não parasse de roubar a sua atenção. – Ývela confessou. – Primeiro, durante o ataque, onde arriscou a sua vida pela minha e daquelas garotas. Nos últimos meses, as suas noites e seu tempo livre. Em vez de descansar, deixo que nossa conversa se estenda até a madrugada. E agora, esses treinos. Jon, você vai acabar esgotado por minha causa.
– Ývela, somos amigos. Gosto de ter sua companhia, de ouvir suas histórias e, agora, de poder ajudá-la. – o Mago sorriu com sutileza. – Até parece dividir minhas consternações.
– Ora, por quê?
– Sempre acho que estou esgotando suas paciências. – Ele caiu na gargalhada ao ver a expressão abismada dela.
– Você, definitivamente, não faz isso.
– Viu só? Pensamos igual. – Ele tocou a têmpora dela com delicadeza e então se afastou, alcançando a mureta de proteção. – Desde que chegou, segundo Theodore, eu não lhe dou um minuto de paz. Pelo menos não nos momentos em que estou livre dos meus deveres.
– Esse é o problema de quem está ligado ao trono de alguma terra. – Ývela sentou-se ao seu lado, encarando-o com serenidade. – Estamos sempre preocupados com o tormento dos outros. Quão à vontade estão conosco, quão dispostos a nos manter aos seus lados estão... Pois saiba, meu querido Jon Tytos, que minha estima por você vai além de qualquer falta de paciência que eu venha a ter. – Ývela riu ao fim. – Você salvou a minha vida e, em um bônus louvável, me presenteou com sua amizade. Não somos tormento um ao outro. Somos só Ývela e Jon, que tal?
Sua pergunta foi respondida com um aceno. Jon não sorriu para ela, mas seus olhos cintilaram em surpreendente alegria. Ývela segurou a mão dele, ligeiramente calejada, mas de pele macia, sobre as suas, tão pequenas e delicadas. Quando o fez, choque correu por seus braços, fazendo-a arregalar os olhos. Notou que Jon compartilhou da mesma expressão.
– Sentiu isso? – Ela exaltou maravilhada.
– O que aconteceu?
– Lembra-se quanto contei a história das poderosas ligações que meu povo é capaz de criar? – Ývela encarou suas mãos e abriu seu sorriso mais largo. – Comumente, têm seu estopim como esse choque.
– Ligações de afeto? Como elas funcionam? – Os dedos de Jon rodearam os seus num aperto confortável e carinhoso. Ývela retribuiu.
– São linhas de confiança construídas por nossa mente. Não entendo o quanto de emoção há nelas, pois, como sabe, meu povo baniu certos sentimentos. Compartilhamos um amor universal e amigável, é tudo o que sei. – Ývela assistiu, com ligeira decepção, o sorriso desvanecer do rosto de Jon. – Não... Gostou de saber que estamos ligados? – O aperto em sua mão ficou forte de novo.
– Longe disso, Ývi. – O rapaz voltou seu olhar para ela, e havia, naquelas íris negras, profundas emoções que a ondina não foi capaz de entender. – Eu entendo perfeitamente sobre sentenças há muito decididas, sobre magias que não têm fim.
– Como as Leis?
Ele suspirou e assentiu. Ývela não tinha conhecimento do que vinha acontecendo na corte real nas últimas semanas, mas Jon parecia mais e mais estressado com as reuniões.
– O que o Primeiro Mago construiu, nenhum homem pode derrubar. – ele sussurrou a citação, baixando o rosto para fugir do questionamento dela. A melancolia em seu rosto machucou a consciência da ondina, que não se importava verdadeiramente com o que estava acontecendo na Fortaleza do Dragão. O Rei dela, no entanto, estar sofrendo... Ela não queria estar ali e não poder fazer nada por ele.
– Deixe-me mostrar-lhe outra coisa. – Tentada a fazê-lo sorrir novamente, Ývela fechou os olhos e estendeu sua consciência até a dele, alcançando-a com uma facilidade assombrosa. Jon arregalou os olhos em resposta.
– Eu a ouvi! Em minha cabeça. – Exaltou chocado. Ývela respondeu com um risinho cúmplice.
– Isso foi só uma demonstração. Quanto mais próximas e fortes as mentes, mais poderosas as visões compartilhadas. – colocou a mão livre sobre as dele. – Se quiser, em troca das aulas de arquearia, posso te ensinar a usar essa telepatia. Pode ser bastante útil no futuro. – Piscou um olho.
– Ficaria honrado. – Ývela voltou-se para o horizonte ao vislumbrar riscos claros erguendo-se ao longe. Cingiu as sobrancelhas em confusão.
– Está amanhecendo. – Exclamou.
– Nós falamos demais. – Jon brincou.
– E você tem a reunião do conselho pela manhã, pelos Deuses, homem! – ela o puxou pelo braço, fazendo-o ficar de pé, e empurrou-lhe gentilmente na direção do corredor. – Deixe que eu recolha as armas, vá descansar.
– Mas, Ývi...
– Não. – ela ergueu a mão. – Durma bem. Nos encontraremos aqui ao fim da tarde. – Sorriu gentilmente.
Ele tirou um instante para observá-la. Ývela estava contra a luz ascendente do sol, de modo que os raios pálidos da aurora misturavam-se aos fios dourados de seus cabelos longos. Jon usou de uma expressão serena e então assentiu, fazendo a ela uma ligeira mesura. Aproximou-se com hesitação e segurou a mão dela.
– Nos vemos mais tarde.
Ela respondeu com um aceno e, subitamente, Jon puxou-a para um abraço. Ývela estacou contra o corpo dele, sem reação num primeiro instante. Rodeou a sua cintura em seguida, aconchegando-se ao seu toque carinhoso e abrasador.
– Obrigado. – Ele sussurrou.
– Pelo que exatamente?
– Por ser “só Ývela” nos momentos em que preciso ser “só Jon”. – Havia um sorriso na voz dele, ela notou, mas não queria se afastar para contemplá-lo. Estava tão confortável ali, nos braços do Rei, tão serena e relaxada...
– Nos vemos mais tarde? – Ele se afastou, segurando seus ombros com delicadeza.
– Nos vemos mais tarde. – Ela garantiu com uma piscadela. Jon partiu, enfim, deixando para trás uma Ývela atordoada, cujos pensamentos embaralhados pareceram-lhe estranhamente turbulentos e incompreensíveis para aquele início de manhã.
Seremos só Ývela e Jon, está bem? Recordou-se de sua fala e sorriu sozinha. Em meio a tantos tumultos, enquanto a guerra e a tormenta não vinham procurá-la, ela poderia se acostumar com aquilo.
Denise Flaibam
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