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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A OPALA DA IMPERATRIZ SISSI / Juliette Benzoni
A OPALA DA IMPERATRIZ SISSI / Juliette Benzoni

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Quando o príncipe Aldo Morosini, especialista em pedras preciosas antigas, encontrou Simon Aronov, denominado o Judeu de Varsóvia, não estava à espera da missão que esta misteriosa personagem lhe confiaria: encontrar as quatro pedras que faltavam ao peitoral do Supremo Sacerdote do templo de Jerusalém, uma placa de ouro onde se encastoavam doze pedras preciosas. De acordo com uma tradição, Israel reencontraria a sua terra ancestral, quando o peitoral lá regressasse, inteiramente reconstituído...

Depois de ter descoberto as duas primeiras dessas pedras, a Estrela Azul e a Rosa de Iorque, o príncipe parte para Viena onde Simon Aronov lhe marcou um encontro na ópera para assistir a uma representação de O Cavaleiro da Rosa.

Ao levantar do pano, enquanto as luzes se apagavam, uma jovem mascarada introduz‑se no camarote em frente. O Judeu chama a atenção do seu convidado para o facto de sobre o vestido, ela trazer consigo a Opala da Imperatriz Sissi ‑ uma das pedras em falta no peitoral.

Quem é aquela jovem, misteriosa, que se diz de nascimento real?

É no seu encalço que o príncipe‑antiquário se irá lançar, percorrendo o interior de uma das mais belas regiões austríacas.

 

 

 

 

         A MÁSCARA RENDILHADA - Outono 1923

 

 

     TRÊS DIAS EM VIENA

Resguardado pelo amplo chapéu‑de‑chuva de um paquete do hotel Sacher, o príncipe‑antiquário veneziano Aldo Morosini atravessou apressadamente a Augustinerstrasse para chegar à entrada dos artistas da Ópera, evitando porém meter os escarpins engraxados nas poças de água. Deste modo, recorria a um antigo privilégio dos clientes do célebre hotel em caso de mau tempo. E Deus sabe quanto este estava horroroso! Desde que chegara a Viena, Morosini apanhara uma chuva incessante, obstinada, regular, desprovida de violência, mas cuja persistência acabava por inundar a capital austríaca. Apesar da carta um pouco misteriosa que ali o atraíra, Aldo não estava longe de lamentar ter deixado a sua querida Veneza onde, contudo, e pela primeira vez na vida, se aborrecia desde há vários meses.

Não que tivesse deixado de se apaixonar pelos objectos raros e preciosos ‑ particularmente pelas pedras perfeitas e pelas jóias históricas! ‑ mas, desde que regressara de Inglaterra, tinha enorme dificuldade em reencontrar aquela ardente curiosidade que o empolgava antes de Simon Aronov ter entrado na sua vida, certa noite do ano anterior, nas profundezas subterrâneas do gueto de Varsóvia. Difícil encontrar personagem mais enigmática e, também, mais cativante que o do Coxo! Difícil poder ainda sonhar diante de uma terrina em porcelana, mesmo feita em Sèvres para a Grande Catarina, ou diante de um par de cães de chaminé venezianos, saídos do palácio Rezzonico, e tendo conhecido o privilégio de aquecer as pantufas de Richard Wagner, depois das peripécias, emoções e perigos vividos em companhia do seu amigo Adalbert Vidal‑Pellicorne durante a demanda deste Graal de um novo género: a demanda das pedras preciosas roubadas na noite dos tempos do peitoral do Grande Sacerdote de Jerusalém!...

Morosini segurara nas suas próprias mãos esse adorno sagrado que, vindo do fundo dos tempos, adquirira um estatuto lendário na memória dos judeus e de alguns historiadores, com o seu terrífico cortejo de loucura, miséria e crimes. Fora um momento inolvidável! Na grande placa quadrada e dourada que Aronov escondia na sua capela vedada, a passagem dos séculos imprimira as suas marcas inolvidáveis desde o saque inicial do Templo pelas legiões de Tito. Ainda mais espectaculares eram os danos infligidos pelas mãos vorazes dos ladrões nas quatro fileiras de três pedras. Dos doze cabochões representando as doze tribos de Israel, apenas restavam oito: como por acaso, logo os menos preciosos! Tinham desaparecido a safira de Zebulão, o diamante de Benjamin, a opala de Dan e o rubi de Judá. Ora a tradição pretendia que Israel só encontraria uma pátria e uma soberania quando o peitoral regressasse inteiro ao país.

Guiados pelas indicações do Coxo e também ajudados pela sorte, em nove meses os dois amigos conseguiram recuperar duas das pedras desaparecidas: a safira, que durante três séculos fizera parte do tesouro dos duques de Montlaure, antepassados maternos do príncipe Morosini, e o diamante conhecido como a Rosa de Iorque, herança de Carlos, o Temerário, duque de Borgonha, e reivindicado pela coroa inglesa.

Não sem dificuldade, aliás! Como acontece a qualquer objecto sagrado profanado pela cupidez, qualquer das jóias se tinha revelado tão maléfica quanto a outra. A mãe de Aldo, a princesa Isabel, pagara com a sua própria vida a safira, a Estrela Azul. Esta fora também a sina do seu último proprietário, sir Eric Ferrais, riquíssimo comerciante em canhões, assassinado ‑ pelo menos, oficialmente! ‑ pelo antigo amante da esposa. Quanto ao diamante, já não se podia contar o número de cadáveres que semeara na sua passagem... Mas que aventuras apaixonantes viveram os dois homens lançados no seu encalço! E era precisamente disto tudo que Morosini sentia tão cruelmente saudades, desde o começo desse ano de 1923, que já ia na sua quarta estação.

Depois das festas de fim de ano passadas em casa, em Veneza, na companhia da «família», Aldo encontrara‑se praticamente sozinho por volta da Candelária.

A sua família, isto é, a sua tia‑avó, a cara marquesa de Sommières, e Marie‑Angéline du Plan‑Crépin, prima e leitora daquela, bem como Adalbert Vidal‑Pellicorne, arqueólogo de profissão, promovido a amigo fraterno, dispersara‑se. Fora uma espécie de salve‑se‑quem‑puder que o deixara em companhia do seu antigo preceptor Guy Buteau, agora seu administrador, e dos seus fiéis criados, Zaccaria e Cecina Pierlunghi, que o tinham visto nascer. E tudo isto, precisamente na altura em que renascia a esperança de mergulhar novamente em grandes aventuras!

Essa esperança surgira a 31 de Janeiro, na forma de uma carta proveniente do banco suíço que servia de elo de ligação entre o Coxo e os seus emissários. Infelizmente, se bem que contivesse uma importante letra de câmbio e um bilhete escrito por Simon, o conteúdo revelou‑se afinal uma enorme decepção, pois não só Aronov não lhe marcava nenhum novo encontro como, depois de o felicitar sucintamente pela sua «última remessa», aconselhava‑o a «descansar um pouco e a nada empreender até nova ordem, para dar tempo a que as coisas assentassem ligeiramente.»

Logo no dia seguinte os hóspedes deixavam o palácio Morosini. O primeiro a ir‑se embora foi Adalbert, no fundo muito satisfeito pela interrupção anunciada, decidindo embarcar imediatamente rumo ao Egipto: há meses que não dormia descansado devido à fantástica descoberta do túmulo e dos tesouros do jovem faraó Toutankhamon. Queria contemplar aquilo tudo com os seus próprios olhos:

‑ Isso permitir‑me‑á ‑ explicou ‑ passar alguns dias junto ao meu caro professor Loret, conservador do museu do Cairo, que já não vejo há dois anos e que deve estar a roer‑se de inveja perante as descobertas desses danados ingleses. Não me esquecerei de enviar‑te notícias!

E embarcara no primeiro navio para Alexandria, seguido de perto por Mme. de Sommières e Marie‑Angéline, para grande desespero desta! Efectivamente, durante todo o mês de Janeiro, Plan‑Crépin esforçara‑se por substituir a incomparável Mina(1) enquanto secretária de Aldo e, como se desenvencilhara muito satisfatoriamente da tarefa, acabara por adquirir o gosto pelas antiguidades e só desejava que a deixassem ficar ali.

 

*1. Ver A Rosa de Iorque.

 

Infelizmente, mesmo que a velha dama gostasse muito de Aldo, ela também se encontrava duramente abalada pelo Inverno veneziano, muito húmido e frio naquele ano. Sofria particularmente de reumatismos, o que se esforçava por esconder para não perturbar as tarefas domésticas mas, quando o notário Massaria preveniu Morosini que o jovem que lhe propusera como secretário acabara de regressar, e que se encontrava doravante à sua disposição, a marquesa mandou logo preparar as malas, a fim de viajar para um clima mais seco. Marie‑Angéline protestou:

‑ Se é em Paris que esperamos encontrar o tempo ideal, estamos a cometer um grave erro ‑ declarou, empregando a antiga forma do plural, de uso entre Majestades, de que sempre se servia para com Mme. de Sommières.

‑ Não me julgue uma doida, Plan‑Crépin! Não tenho a menor intenção de ir gelar em Paris.

‑ Vamos optar pela Cote d'Azur?

‑ Muita gente! Demasiado cosmopolita! E por que não o Egipto?

‑ O Egipto ‑ resmungou Aldo, vagamente frustrado. ‑ A senhora também?

‑ Não leves a mal, mas o caro Adalbert encheu‑nos de tal modo os ouvidos durante um mês, que acabou por me tentar. Além disso, o ar do deserto será excelente para as minhas articulações! Plan‑Crépin, para começar vá até à agência Cook reservar os lugares e também os quartos no Mena House de Guiza. Depois, logo veremos.

‑ E quando partimos?

‑ Amanhã, imediatamente... no primeiro navio! E não se ponha com esse ar! Você, que já demonstrou possuir tantos dons, agora irá poder exercitar‑se no uso da pá e da picareta! Sempre será diferente das suas façanhas de montanhista!(1)

Dois dias depois tinham desaparecido, deixando para trás uma montanha de saudades e um grande vazio, bem tangível quando Morosini e Guy Buteau se encontraram frente‑a‑frente no salão das lacas, onde se tomava frequentemente as refeições... O antigo preceptor também era sensível ao súbito despovoamento do palácio. No final desta primeira refeição tomada em silêncio, revelou o que lhe passava pela cabeça:

 

*1. Ler A Estrela Azul.

 

‑ Devia casar‑se, Aldo! Esta enorme residência não foi concebida para albergar apenas um homem solteiro e um velho rapaz...

‑ Case‑se você, meu caro, se é isso que o coração lhe diz! Eu não me sinto tentado a fazê‑lo.

Em seguida, depois de ter acendido um cigarro com uma mão descontraída, acrescentou:

‑ Não nos acha ridículos? Afinal de contas, os nossos convidados só cá estavam há um longo mês e antes disso julgo recordar‑me que vivíamos muito bem...

Os lábios do sr. Buteau alargaram‑se num amplo sorriso, sob o fino bigode grisalho:

‑ Nunca estivemos sozinhos, Aldo! Outrora tínhamos a Mina. Julgo bem que é ela que mais falta me faz...

A expressão de Morosini modificou‑se, esmagando no cinzeiro o cigarro que acabara de acender:

‑ Guy por favor, evitemos esse assunto! Sabe bem que a Mina não existia. Era um logro, uma aparência que revestia a fantasia passageira de uma menina rica que procurava distrair‑se...

‑ Não está a ser justo e bem o sabe. Mina... ou antes, Lisa, para chamá‑la pelo seu verdadeiro nome, nunca andou por cá à procura de uma distracção. Ela amava Veneza, gostava deste palácio: quis viver aqui...

‑ ... e, disfarçada de sabichona, sem qualquer benevolência, assestar um microscópio sobre o estranho animal que sou. O veredicto não me foi favorável.

‑ E qual o seu, agora que a conhece sob o seu aspecto real?

‑ Não tem qualquer importância! A quem é que isso poderia interessar?

‑ A mim, por exemplo ‑ disse Buteau com um sorriso. ‑ Estou persuadido que é a mulher que lhe convém.

‑ Isso é lá consigo, e como você é o único a ter essa opinião, o melhor é quedarmo‑nos por aqui. Vamos antes deitar‑nos! Amanhã teremos de iniciar o jovem Pisani às suas tarefas e como, além disso, temos ainda vários encontros marcados, o dia será longo... Aliás, se o rapaz servir, depressa esqueceremos Mina.

Efectivamente, logo ao primeiro olhar, Morosini ficara convencido que o mancebo lhe conviria. Este jovem veneziano, louro, cortês, bem‑educado, bem vestido e pessoa de poucas palavras, não destoaria de modo algum no meio dos mármores e do ouro de um palácio transformado em loja de antiguidades de classe internacional. Até se integrou com uma naturalidade perfeita, pois tinha uma verdadeira paixão pelos belos objectos antigos, sobretudo os que provinham do Extremo Oriente, dando provas de uma erudição que deixou estupefacto o seu novo patrão na altura em que «pescou» numa consola uma cabaça em esmalte verde‑claro do século xviii: sem sequer se dar ao trabalho de voltá‑la para procurar o nien‑hao ‑ a insígnia do reino ‑ Angelo Pisani exclamou:

‑ Admirável! Esta cabaça de triplo gargalo da época Kien‑Log, com o relevo enfeitado com os diagramas talismânicos dos «contornos verdadeiros das cinco montanhas sagradas» é uma pura maravilha! Não tem preço!

‑ Contudo tenciono atribuir‑lhe um ‑ disse Morosini ‑ mas tenho de felicitá‑lo! Mestre Massaria não me disse que você era um sinólogo desse gabarito.

‑ Corre‑me nas veias um pouco do sangue de Marco Polo pelo lado materno! ‑ explicou modestamente o novo secretário. ‑ A minha atracção vem sem dúvida daí, mas também conheço umas coisinhas sobre as antiguidades de outros países...

‑ E também conhece as pedras, as jóias antigas?

‑ De modo algum! ‑ admitiu o jovem com um sorriso cativante. ‑ À excepção, evidentemente, dos jades e das jóias chinesas, mas aprenderei certamente depressa se o sr. Buteau tiver a amabilidade de me iniciar na matéria.

Efectivamente, demonstrou estar vivamente motivado e como não havia grande coisa a ensinar‑lhe quanto ao secretariado, Morosini declarou‑se satisfeito, lastimando contudo que, fora do serviço, fosse quase impossível arrancar mais de duas ou três palavras a Angelo. No palácio, este era uma espécie de sombra silenciosa e eficaz, mas limitava‑se estritamente a isso, pelo que Aldo ainda sentiu mais amargamente a ausência de Mina: esta era de réplica viva, frequentemente pitoresca e, com ela havia ao menos algum divertimento...

Para tentar quebrar o tédio, meteu‑se numa aventura com uma cantora húngara que viera interpretar Lúcia di Lammermoor no Fé‑nice. Ela era loura, encantadora, frágil, parecendo‑se ligeiramente com Anielka, e possuía uma voz de cristal digna de um anjo, mas a voz também era tudo o que havia nela de angélico. Aldo descobriu depressa que a bela lida era tão especialista em amor quanto em fazer contas, sabendo distinguir perfeitamente um diamante de um zircão e que, de qualquer modo, ela não via qualquer inconveniente em acrescentar um título de princesa ao de prima‑donna.

Pouco desejoso de transformar este rouxinol migrador em galinha doméstica, Morosini apressou‑se a dissipar‑lhe as ilusões e o romance acabou numa noite de Junho, no cais da estação de Santa Lúcia, com a oferta de um bracelete de safiras, de um ramo de rosas e de um grande lenço destinado ao ritual das despedidas, que o amante inconstante pôde ver agitar‑se demoradamente pela janela abaixada do vagão‑cama à medida que o comboio se afastava.

Regressado a casa com uma viva sensação de alívio, Morosini achou um pouco menos amarga a solidão que partilhava com Guy Buteau, e que lhes conferia a ambos a curiosa sensação de estarem isolados do resto do mundo.

Isso era sobretudo devido à escassez de notícias enviadas pelas pessoas de quem gostavam. As areias do Egipto pareciam ter soterrado Vidal‑Pellicorne, a marquesa e Mlle. du Plan‑Crépin. O primeiro sempre podia argumentar desculpando‑se com uma ocupação demasiado absorvente, mas as duas outras teriam podido enviar mais do que uma simples carta postal em seis meses!

Também não havia novidades de Adriana Orseolo, a prima de Aldo. A bela condessa, que partira para Roma no último Outono a fim de inscrever o seu criado ‑ e amante! ‑ Spiridion Melas nas aulas de um mestre de bel‑canto, também parecia ter desaparecido da face da terra. Mesmo o anúncio do assalto a sua casa só lhe conseguiu arrancar uma carta dirigida ao comissário Salviati, em que exprimia a sua inteira confiança na polícia de Veneza, dizendo que estava muito ocupada para poder deixar Roma. De qualquer modo, o príncipe Morosini estava presente no terreno para zelar pelos seus interesses.

Um pouco sufocado por este à‑vontade ‑ nem sequer recebera uma carta pelo Ano Novo! ‑ ele tinha pegado no telefone e ligado para o palácio Torlonia onde era suposto Adriana residir. Ficou a saber que a sua prima partira sem deixar qualquer endereço, após uma estadia de uma semana. E, sob o tom cortês do seu correspondente, Morosini julgou entender que os Torlonia até estavam aliviados com o facto.

O mesmo insucesso do lado do maestro Scarpini: é certo que o grego tinha uma bela voz, mas possuía um carácter demasiado difícil para que fosse possível encarar a hipótese de passar vários meses na sua companhia. Ignorava‑se para onde fora...

O primeiro impulso de Aldo foi o de enviar alguém comprar um bilhete para a capital italiana, mas mudou de ideias: vasculhar Roma era um empreendimento aleatório, e talvez o casal tivesse ido para Nápoles ou qualquer outro sítio. Além disso, quando consultado, Guy sugeriu que, dado que a princesa optara por sumir na natureza, o melhor seria deixá‑la prosseguir a sua aventura.

‑ Mas eu sou o seu único parente e sinto afecto por ela ‑ argumentou Aldo. ‑ Tenho a obrigação de protegê‑la.

‑ Contra ela própria? Só conseguirá atrapalhar‑se. Penso que ela está ocupada com as tentações próprias da meia‑idade, o que é o seu caso, e infelizmente nada podemos fazer. É preciso deixá‑la ir até ao fim da sua loucura, mas temos de estar prontos para apanhar os cacos na altura devida.

‑ Ele vai acabar por arruiná‑la. Ela já não é tão rica quanto isso!

‑ Então, será porque o quis.

Era a voz da própria sabedoria e a partir desse dia Aldo evitou pronunciar o nome de Adriana. Já estava suficientemente assombrado por ela desde que descobrira uma certa correspondência na gaveta secreta do seu gabinete florentino, depois do assalto. Sobretudo uma carta, assinada por um certo R., e que ele guardara para poder reflectir longamente sobre o conteúdo, sem ter descoberto neste qualquer indício, a não ser o do amor, mas decidindo‑se mesmo assim a não partilhar o mistério com alguém, nem sequer com Guy, talvez para não ser obrigado a encarar as coisas de frente. No fundo, tinha muito medo de descobrir que aquela mulher ‑ o seu primeiro amor da adolescência! ‑ estava implicada, de perto ou de longe, na morte da mãe...

Na realidade Aldo não tinha muita sorte com as mulheres que amava. A sua mãe fora assassinada e a sua prima estava em vias de se tornar uma meretriz. Quanto à encantadora Anielka, da qual se apaixonara nos jardins de Wilanow, esta fora parar ao tribunal de Old Bailey, acusada de ter assassinado sir Eric Ferrais, seu marido, que desposara por ordem do pai, o conde Solmanski. Após o julgamento, também ela se volatilizara em direcção aos Estados Unidos com o dito pai, sem lhe ter enviado sequer o menor sinal de ternura ou de agradecimento por todo o trabalho a que ele se dera para lhe prestar ajuda, quando jurava que só o amava a ele...

Isto sem falar evidentemente da esfuziante Dianora, o seu grande amor de outrora, a sua antiga amante, que se tornara esposa do banqueiro Kledermann. Essa não lhe ocultara que não havia que hesitar entre uma fortuna e uma paixão. O mais engraçado é que, ao desposar Kledermann, Dianora tornara‑se sogra de Mina, aliás Lisa Kledermann, a secretária modelo, mas sujeita a transformações, cuja partida toda a casa chorava unanimemente, de todo o coração! Ela também sumira numa manhã cinzenta e brumosa, sem pensar um único momento que uma palavra amiga teria talvez dado grande prazer ao seu antigo patrão.

 

Passou‑se o Verão. Pesado, enevoado, chuvoso. Para escapar às hordas de turistas e das «viagens de núpcias», Aldo refugiava‑se de tempos a tempos numa das ilhas da laguna, na companhia do seu amigo Franco Guardini, o farmacêutico de Santa Margarita, cuja natureza silenciosa lhe agradava. Aí passavam horas tranquilas no meio das ervas selvagens, sentados num monte de areia ou ao pé de uma capela em ruínas, pescando, banhando‑se e redescobrindo sobretudo as alegrias simples da infância. Aldo esforçava‑se por se esquecer que o correio só lhe trazia cartas de negócios ou facturas. Neste mar de esquecimento, a única excepção foi uma breve epístola de Mme. de Sommières, anunciando uma estadia em Vichy, para tratar um fígado que não estava no seu melhor depois da experiência africana: «Se não souberes que fazer, vem ter connosco!» concluía a marquesa com uma desenvoltura que acabou por indispor o seu sobrinho‑neto. Eram mesmo incríveis, aquelas pessoas que só pensavam nele quando se começavam a aborrecer! Decidiu amuar.

No entanto, sentia‑se cada vez mais inquieto a respeito de Vidal‑Pellicorne. Se os perigos em que incorre um arqueólogo são reduzidos, já não se podia dizer o mesmo quando a esta tranquila profissão se juntava a de agente secreto, e Adalbert era bem capaz de ter caído numa armadilha qualquer. Deste modo, para dissipar quaisquer dúvidas, decidiu enviar um telegrama ao professor Loret, conservador do museu do Cairo, perguntando‑lhe o que era feito do amigo. E foi ao voltar do correio que encontrou a carta em cima da secretária...

Contudo, esta não fora enviada do Egipto, mas sim de Zurique, e o coração de Morosini parou um instante de bater. Simon Aronov! Só podia ser ele! Efectivamente, ao abrir o envelope deparou com uma folha de papel dobrada em quatro, na qual estava escrito à máquina:

 

«Quarta‑feira, 17 de Outubro, Ópera de Viena, venha assistir a O Cavaleiro da Rosa. Pergunte pelo camarote do barão Louis de Rothschild.»

 

Aldo sentiu‑se renascer. Os ventos inebriantes da aventura redemoinharam à sua volta e ele apressou‑se a tomar todas as disposições para se libertar. Graças a Deus, a Guy e a Angelo Pisani, a sua presença não era imprescindível na loja de antiguidades!

A sua mudança de disposição sacudiu o torpor em que se atolava o palácio. A única a franzir as sobrancelhas foi Cecina, a sua cozinheira e mais velha amiga. Quando ele anunciou que ia partir, ela deixou de cantar e resmungou:

‑ Estás contente por nos deixar? Que simpático!

‑ Não digas disparates! Estou contente porque tenho um assunto apaixonante que me espera e que me fará deixar esta modorra quotidiana.

‑ Modorra? Se me ouvisses mais vezes, não sofrerias. Não te aconselhei já várias vezes a que viajasses? O teu ar constrangido irritava‑me tanto!

‑ Então devias estar contente, pois vou viajar!

‑ Está bem, está bem, mas não para qualquer lado! Eu sugeriria talvez uma viagem até... Viena, por exemplo...

Morosini olhou para Cecina com sincero espanto.

‑ E porquê Viena? Assinalo‑te que é asfixiante no Verão. Cecina pôs‑se a brincar com as fitas que lhe enfeitavam a coifa e que esvoaçavam por cima da sua imponente figura ao ritmo dos seus entusiasmos e cóleras.

‑ No Verão asfixia‑se em todo o lado e eu disse isto como poderia ter dito Paris, Roma, ou Vichy, ou...

‑ Não te esforces mais, vou precisamente para Viena. Estás satisfeita?

Sem tecer mais comentários, Cecina regressou para a sua cozinha, esforçando‑se por esconder um sorriso que deixou Morosini perplexo, mas sabendo muito bem que ela não diria mais nada, deixou a pergunta de lado e foi tratar das suas bagagens.

Não sabendo ainda se poderia ficar em Viena depois do encontro, decidiu partir três dias antes da data marcada para poder passear à vontade por uma cidade da qual sempre apreciara a elegância e a atmosfera de graciosidade ligeira, sustida pelo eco de uma valsa soando algures.

O tempo estava desagradável; não obstante, Morosini sentia‑se alegre quando o seu comboio alcançou o vale do Danúbio e se aproximou de Viena. Esta feliz disposição era inexplicável à luz da razão! Nada tinha a ver com as recordações das festas anteriores à guerra e muito menos com as daquelas duas viagens ‑ apenas de negócios! ‑ que efectuara à capital austríaca após o fim das hostilidades, o que lhe valera ser liberto de uma velha fortaleza do Tirol. Se calhar talvez a sua alegria se devesse apenas ao facto de que, recusando a interrogar‑se, evitava confessar a si mesmo que Viena representava outra coisa para ele, para além de um ponto de partida na pista de uma jóia desaparecida. Vinda do fundo da sua memória, não lhe acontecia por vezes ouvir uma voz alegre dizendo: «Vou passar o Natal a Viena, a casa da minha avó...»?

Dado o número de avós vivendo na capital austríaca, esta informação teria sido bem escassa, mas Morosini possuía uma memória infalível. Gravava qualquer nome que ouvisse e, na entrada do hotel Ritz em Londres, Moritz Kledermann, o pai de Lisa, falara numa certa condessa von Adlerstein. Descobrir o seu endereço seria sem dúvida muito simples e Aldo estava decidido a efectuar‑lhe uma pequena visita, nem que fosse só para que ela lhe desse notícias acerca de uma preciosa colaboradora que perdera de vista um tanto bruscamente. Claro que não teria feito a viagem só para isso mas, dado que lhe era dada a ocasião, seria muito estúpido não a aproveitar, pois o caso de Lisa era quase tão interessante quanto as peripécias ocasionadas pelo peitoral.

Quando Morosini saiu do comboio na Kaiserin Elisabeth West‑bahnhof, caía chuva de um céu encoberto, o que não impedia o viajante de assobiar um allegro de Mozart quando se meteu num táxi encarregue de levá‑lo ao hotel Sacher. Um local de que muito gostava...

Verdadeiro monumento à arte de bem viver dos vienenses, e também aprazível lembrança do Império Austro‑Húngaro, o Sacher era igualmente o nome do seu fundador, antigo cozinheiro do príncipe de Metternich. A sua rica silhueta erguia‑se por detrás da Ópera, construção no mais puro estilo Biedermeier, onde, desde 1878, entrava tudo o que o império contava de ilustre no domínio das artes, da política, do exército e dos apreciadores de boa comida, a que se juntavam numerosas notoriedades estrangeiras. O seu nome estava sobre tudo ligado à recordação das requintadas ceias do arquiduque Rodolfo, o trágico herói de Mayerling, dos seus amigos e belas companheiras. Contudo, esta sombra altiva e romântica não conferia nenhuma nota triste a um estabelecimento cuja outra coroa de glória era um magnífico bolo de chocolate recheado de compota de damasco, servido com natas, e cujo prestígio já dera várias vezes a volta ao mundo. A última mulher da linhagem, Frau Anna Sacher, dirigia esta bela casa com punho de ferro, mas com uma sensibilidade aveludada, fumava charutos havanos, criava cachorros de focinho preto e achatado e pouco afáveis e, apesar da sua idade e de uma cintura desenvolvida, sabia ainda, melhor que ninguém, fazer uma reverência diante de uma alteza real ou imperial.

Foi ela que Morosini avistou à entrada dos salões quando pisou o hall decorado com plantas verdes e duas estátuas de proporções maiores que natural, representando alegorias femininas de seios robustos. Sendo só um modesto príncipe, Morosini apenas teve direito à honra de beijar uma mão rechonchuda, tal como teria feito com qualquer dama que o recebesse em sua casa. Esta presença feminina era um dos charmes do hotel: Anna Sacher sabia acolher cada um consoante o seu estatuto e, quando se tratava de clientes habituais, estes eram tratados como amigos. Foi o caso de Morosini. Sob as madeixas entrançadas da sua cabeleira prateada, o rosto sempre fresco, embora ligeiramente pesado, iluminou‑se com um alegre sorriso:

‑ Excelência, vê‑lo chegar é um prazer tão grande quanto o seria se trouxesse consigo o belo sol italiano. Estou feliz por poder mais uma vez desejar‑lhe as boas‑vindas, ao entrar nesta nossa casa.

‑ Espero que o faça ainda muitas vezes, cara Frau Sacher.

‑ Quem sabe, a não ser Deus? E eu não rejuvenesço. Fica algum tempo na nossa companhia?

‑ Não tenho a menor ideia. Dependerá do assunto que por cá me traz. Mas não é esse o único motivo: o outro é a soirée de quarta, na Ópera...

‑ Ah! O Cavaleiro da Rosa! Admirável, admirável! Vai ser uma grande soirée! Bebemos juntos a ritual chávena de café enquanto lhe levam as bagagens ao quarto?

‑ A senhora tem tradições encantadoras para com o seus amigos, Frau Sacher. Seria um pecado recusá‑las.

Dirigiram‑se ambos para o Café Rote, um elegante salão decorado de damasco vermelho e iluminado por lustres em cristal onde se apressaram em servir‑lhes o famoso café vienense, coroado com natas e seguido por um copo de água gelada, tanto ao gosto da Áustria. E de Morosini também. Na sua opinião aquele era o único café na Europa capaz de rivalizar com o dos italianos, sendo os outros meras mistelas aguadas.

Ao saboreá‑lo, falaram de tudo e de nada, elogiando Veneza mas, também, Viena, onde, apesar das dificuldades financeiras, a vida mundana voltava cada vez mais a assentar arraiais. Isso era de facto indispensável caso se quisesse continuar a atrair turistas do mundo inteiro. Viena sem música e sem valsas já não seria Viena. Ao invés da Alemanha, que perdera recentemente o Ruhr para a França e que mergulhava cada vez mais na anarquia e no extremismo, o bastião original do império dos Habsburgos esforçava‑se por reencontrar a sua alma e até procurava salvá‑la, dado que o seu chanceler era um padre, Monsenhor Seipel. Este antigo professor de teologia, que se tornara deputado e, depois, presidente do partido social‑cristão, estava em vias de estabilizar as finanças criando uma nova moeda, o schilling, e efectuando severas economias. Ao mesmo tempo, esforçava‑se por estabelecer uma moral rigorosa, o que não agradava obviamente a toda a gente, mas a Áustria portava‑se bem. Por seu lado, Frau Sacher considerava o chanceler como um homem de bem.

‑ Por momentos, dir‑se‑ia que quase regressámos aos tempos áureos do nosso caro imperador. A velha aristocracia ousa voltar a ser ela própria...

‑ A propósito de velha aristocracia, talvez me possa ajudar, Frau Sacher. Conto aproveitar a minha estadia por cá para tentar reencontrar uma amiga de minha mãe, que perdi de vista depois da guerra. Ora, a senhora não só conhece a cidade inteira como todo o Gotha...

‑ Se eu puder ser de algum auxílio, é só perguntar...

‑ Muito obrigado. É o seguinte: não me sabe dizer se a condessa von Adlerstein ainda está viva?

As sobrancelhas artisticamente arranjadas da velha dama subiram um bom centímetro enquanto ela revolvia o motivo de pérolas que formava o centro da fita de veludo preto que trazia ao pescoço, com o intuito ilusório de lhe dar mais folga.

‑ E por que não estaria viva? Nós devemos ser mais ou menos contemporâneas. Dito isto, na alta nobreza que frequenta habitualmente os soberanos, conheci mais homens que mulheres...

‑ No entanto, dado que sabe a sua idade, deve conhecer esta dama...

‑ Na realidade, conheço‑a sobretudo por dois motivos: primeiro pelo reboliço que causou há aproximadamente vinte e cinco anos quando casou a filha com um banqueiro suíço, sem a menor costela de nobreza, mas muito rico. A sua posição na Corte teria até ficado muito comprometida caso a nossa imperatriz Élisabeth não tivesse intervido, pouco antes de morrer. Ela conhecia muito bem a família Kledermann.

‑ E qual o outro motivo?

‑ Esse é muito mais comercial ‑ riu‑se Anna Sacher. ‑ Ela tem um fraquinho pela nossa Sachertorte e nunca deixa escapar a ocasião para comprá‑la quando está em Viena. O que não é o caso neste momento, dado que não recebemos nenhuma encomenda do palácio Himmelpfortgasse desde o princípio do Verão...

Morosini quase aplaudiu tal foi o seu contentamento, pois, da forma mais inocente deste mundo, a cara senhora acabava de lhe dar uma informação preciosa: a morada que teria sido delicado pedir‑lhe tratando‑se de uma amiga da mãe. Contentou‑se em suspirar com um sorriso melancólico:

‑ Pois bem, não tenho sorte! Terei de me contentar em entregar uma carta com uma palavrinha. Talvez a condessa condescenda em dar‑me algumas notícias suas...

‑ Oh, tenho a certeza de que o fará! Ela ficará tão encantada em voltar a vê‑lo quanto eu o fiquei...

Disso muito duvidava Morosini, dado que a avó de Lisa nada sabia da sua existência.

Na tarde do dia seguinte, apesar da chuva, foi passear pela Himmelpfortgasse, que ficava aproximadamente a duzentos metros do hotel. Era uma ruela igual a tantas outras do interior da cidade, na parte outrora fechada pelas muralhas que o imperador Francisco José substituíra pelo Ring, a esplêndida avenida circular, enfeitada com árvores e jardins. Tal como as que se lhe assemelhavam, estava bordejada por casas antigas e por dois ou três palácios, dos quais havia principalmente um que chamava a atenção: este compunha‑se de três pisos de janelas altas, situados por cima da divisória entre o rés‑do‑chão e o primeiro andar, por um imponente portão em cujos cantos recurvados atlantes cabeludos sustinham uma admirável varanda aberta, de pedra. Duas portas nos lados facultavam o acesso às obras vivas do palácio. Um pouco estreita ‑ só havia sete janelas alinhadas em cada piso ‑ esta residência parecia‑se muito com as da alta burguesia do século xviii, mas as insígnias ostentadas no alpendre esculpido da abertura central anunciavam a aristocracia e, dado que na sua superfície dourada estava representada uma Águia preta debruçada sobre um rochedo, Morosini não teve a menor dúvida: tratava‑se realmente da casa que procurava, pois Adlerstein significa a pedra da Águia. O passeante ficou um longo momento absorto na sua contemplação, sem que qualquer dos raros transeuntes lhe dispensasse a menor atenção: nesta cidade soberba, os visitantes paravam a toda a hora para admirar este ou aquele edifício. Não havia nenhum sinal de vida por detrás das janelas duplas, até que um homem saiu por uma das pequenas portas, de cesto no braço: sem dúvida um criado que ia fazer algumas compras; subitamente, Aldo decidiu‑se e em três rápidas passadas foi ao seu encontro:

‑ Queira desculpar‑me ‑ disse em alemão ‑ mas gostava de saber se este palácio é mesmo o da condessa von Adlerstein.

Antes de responder, o homem levou o seu tempo para medir este estrangeiro elegante, cujo porte era diferente da gente comum. O exame deve ter sido satisfatório pois disse:

‑ É aqui, efectivamente.

‑ Agradeço‑lhe ‑ disse Morosini com um sorriso capaz de cativar uma nobre viúva. ‑ Se por acaso faz parte do seu pessoal, saberá dizer‑me se tenho alguma hipótese de ser recebido pela condessa? Sou o príncipe Morosini e venho de Veneza ‑ apressou‑se a acrescentar ao detectar uma centelha de desconfiança no olhar da personagem.

Muito fugaz, aliás! A frieza glacial que envolvia o rosto, ainda ampliado por espessas suíças à moda de Francisco José derreteu‑se como sob um raio de sol.

‑ Que Sua Excelência me perdoe! Não podia adivinhar. Infelizmente, a senhora condessa ausentou‑se. Sua Excelência deseja entregar alguma mensagem?

Aldo tacteou os bolsos do seu impermeável:

‑ Fá‑lo‑ia com grande prazer, mas não tenho o necessário para escrever. No entanto, posso enviar uma palavra pelo paquete do hotel Sacher e se a sua patroa regressar posso esperar ter o prazer de encontrá‑la?

‑ Sem dúvida, caso a estadia de Sua Excelência se prolongue. A senhora condessa foi recentemente vítima de um acidente... nada de grave, felizmente, mas que a obrigou a algum repouso. Ela preferiu ficar na sua residência de Verão em Salzkammergut. Se Sua Excelência lhe escrever, farei enviar imediatamente a carta.

‑ Nesse caso, não seria mais simples dar‑me o endereço?

‑ Não ‑ respondeu o homem cuja voz untuosa secou subitamente. ‑ A senhora condessa deseja que a sua correspondência passe por Viena. Como se desloca frequentemente, isso evita perdas. De todo o coração, estou às ordens de Sua Excelência.

E o «criado» afastou‑se na direcção da Kaertnerstrasse, deixando Morosini ligeiramente desorientado, mas não pela fórmula utilizada, dado que a boa educação austríaca se revelava muitas vezes tão sentimental quanto cordata: o que achava estranho era a recusa, ténue mas óbvia, em entregar‑lhe a morada solicitada. Quanto a escrever uma carta, agora isso estava fora de questão. Sem dúvida que teria mais que fazer a partir dessa noite do que correr atrás de uma velha dama talvez lunática. Já lamentava ter vindo até este palácio. Caso Lisa viesse a sabê‑lo, poder‑se‑ia enganar redondamente sobre a afabilidade das suas intenções. Era melhor abandonar...

Animado por esta conclusão e dispondo de uma tarde livre, Morosini decidiu aproveitá‑la para refrescar os seus conhecimentos sobre o Tesouro dos Habsburgos. Quando se encontrara pela primeira vez com Simon Aronov, este não deixara supor que a opala talvez fizesse parte do tesouro? Dirigiu‑se portanto até ao Hofburgo, o antigo palácio imperial, no qual uma parte era ocupada pelos escritórios do governo e outra pelo Tesouro. Mas, se bem que tivesse visto uma soberba opala de origem húngara ao lado de uma pedra preciosa da mesma proveniência e de uma ametista espanhola, viu que não se podia tratar daquela que procurava: esta era demasiado grande!

Consolou‑se admirando a magnífica esmeralda no cimo da coroa imperial e os vestígios do tesouro do Velo de Ouro. Em compensação, ficou surpreendido por não ver nenhuma das jóias pertencentes aos últimos soberanos. Sabia que entre as demais jóias, a imperatriz Elisabeth, a cativante Sissi, possuíra um fabuloso adorno de opalas e diamantes que a arquiduquesa Sofia ‑ sua tia e futura sogra ‑ lhe oferecera para ela trazer no dia do casamento, tal como aquela fizera no dia das suas próprias núpcias. Não encontrando nenhum rasto dele, procurou informar‑se; pediu para ver o director e então esbarrou com um funcionário rezingão que se contentou em declarar:

‑Já não possuímos nenhuma das jóias privadas. Elas foram‑nos roubadas no fim da guerra, o que é perfeitamente lastimável. Tanto mais que o Florentino, o grande diamante em forma de junquilho, proveniente dos duques de Borgonha, também fazia parte desse autêntico roubo ao povo austríaco. Tal como aliás as jóias da imperatriz Maria Teresa e... outras mais!

‑ Roubadas por quem?

‑ Não penso que isso lhe diga respeito. Agora, queira desculpar‑me: tenho muito que fazer...

Assim despachado, Morosini não insistiu mas, como parou um instante diante do berço do rei de Roma e de algumas recordações de sua mãe, Maria Luísa, pensou que seria uma boa ideia ir inclinar‑se diante do túmulo daquela criança que, filho de Napoleão e rei de Roma, acabaria a sua curta vida sob um título austríaco. Dirigiu‑se portanto na direcção da cripta dos Capuchinhos.

Não que sentisse um especial afecto pelo maior dos Bonaparte, a quem Veneza devia a sua decadência. Apesar do sangue materno francês, um príncipe Morosini não podia perdoar a árvore da liberdade plantada a 4 de Junho de 1797 na praça de São Marcos, a abdicação do último Doge, Ludovico Manin e, finalmente, a fogueira em sinal de regozijo na qual as tropas da nova república francesa queimaram o Livro de Ouro de Veneza e as insígnias do secular poder ducal, mas o rapaz que ali repousava, exilado, de alma magoada e para sempre cativo da Áustria, alimentava o seu amor pelo romantismo e inspirava‑lhe uma profunda piedade. Gostava de ir saudá‑lo.

Não era a primeira vez que um monge abria o jazigo imperial fora das horas de visita. Sabia como proceder: antes de deixarem a igreja, os grupos de visitantes habituais ‑ frequentemente ingleses

‑ eram convidados a entregar ao irmão porteiro uma esmola destinada à iluminação da cripta e à sopa dos pobres que o convento distribuía diariamente pelas duas horas. Quanto a Morosini, oferecia sempre uma generosa contribuição logo à entrada. No entanto, nesse dia deparou com um pouco de resistência:

‑ Não sei se posso deixá‑lo entrar ‑ confiou‑lhe o capuchinho de serviço. ‑Já cá está uma dama... que vem por vezes aqui.

‑ A cripta é suficientemente vasta. Tratarei de não incomodá‑la. Não sabe em quem é que ela está interessada?

‑ Sei, pois ela traz consigo flores que encontramos sempre no túmulo do arquiduque Rodolfo. O senhor é ao duque de Reichstadt que vem visitar ‑ acrescentou o monge, designando o pequeno ramalhete de violetas que Morosini comprara antes de entrar.

‑ Portanto, procure que ela não o veja. Faz muito questão em ficar sozinha...

E tu ‑ pensou Morosini ‑ não queres perder o óbolo que te trouxe. Isso posso compreender...

‑ Tranquilize‑se! Serei tão silencioso como um fantasma ‑ prometeu.

O capuchinho benzeu‑se e abriu a pesada porta que facultava o acesso às sepulturas imperiais.

Silencioso como um gato, Aldo desceu na direcção da necrópole dos Habsburgos. Desdenhando a primeira rotunda onde reinava a imperatriz Maria Teresa, mãe da rainha Maria Antonieta, dirigiu‑se até à segunda, dedicada ao imperador Francisco II, que ali repousava, rodeado pelas suas quatro esposas, pela filha Maria Luísa, a esposa esquecida de Napoleão I, e pelo seu neto, o «Filho da Águia». A sepultura de bronze deste príncipe francês a quem o ódio de Metternich conferira o título de duque de Reichstadt, avistava‑se ao longe e não podia ser confundida com qualquer outra, pois estava coberta por numerosos ramalhetes de violetas, frescas ou secas, mas frequentemente envolvidas por fitas com as três cores da França.(1)

 

*1. Depois da segunda guerra mundial, a sepultura do "Filho da Águia" encontra‑se nos Inválidos... foi Hitler quem a trouxe de volta a Paris, julgando deste modo seduzir os franceses.

O visitante depôs a sua oferta junto às outras, benzeu‑se, enquanto lhe regressavam à memória os versos do poeta:

 

E agora, é preciso que a tua Alteza durma,

Alma para quem a morte é uma cura;

Que durma no fundo da sepultura, na sua dupla prisão:

A do caixão de bronze e a desse uniforme...

Dorme; nem sempre é a lenda que mente,

Às vezes um sonho engana menos que um documento.

Dorme. Independentemente do que se diga,

Tu foste o tal jovem, o tal Filho...

 

Era esta a maneira de rezar de Morosini.

O silêncio envolvia o longo jazigo banhado por uma luz cinzenta, essa «arrecadação de reis» na qual se amontoavam uns cento e trinta e oito defuntos. Preso nesta atmosfera, Morosini quase se esqueceu de que não estava sozinho, quando lhe chegou ao ouvido um ligeiro ruído proveniente da parte moderna da cripta, aquela em que dormiam Francisco José, a sua encantadora esposa Élisabeth, assassinada por um anarquista italiano, e o respectivo filho, Rodolfo. Era o eco de um soluço...(1) Então avançou, tentando passar despercebido, e foi nessa altura que avistou a mulher...

Alta e magra, encoberta por um véu de crepe que lhe caía aos pés, ela estava de pé diante da sepultura onde acabara de depositar um ramo de rosas e, de cabeça inclinada, chorava nas mãos juntas. Seria o fantasma da dor, ou o de Sissi, a qual Aldo sabia que uma noite, pouco após a morte do filho, mandara abrir o jazigo, para tentar chamar Rodolfo de volta do reino dos mortos?

Consciente de estar a ser o mais indiscreto possível ao espiar esta tristeza, Morosini voltou atrás ainda com mais precauções. Mais acima encontrou de novo o capuchinho que esperava com placidez, as mãos enfiadas no fundo das mangas, e não conseguiu deixar de perguntar‑lhe se ele conhecia aquela dama tão impressionante.

‑ Então, o senhor chegou a vê‑la?

‑ Avistei‑a, mas ela ignorou‑me.

‑ Tanto melhor. É verdade que ela é impressionante! Até para mim, que já a vi algumas vezes.

 

*1. A morte de Rodolfo sempre permaneceu envolta no mais denso mistério. O seu cadáver foi encontrado no pavilhão de caça de Mayerling junto ao da sua última amante, a húngara Maria Vetsera.

 

‑ Quem é?

Morosini preparava‑se para dar mais uma contribuição para a sopa dos pobres, mas o monge recusou:

‑ Não sei quem é, e o senhor tem de acreditar‑me. Só o nosso abade é que lhe conhece o nome. Tudo o que sabemos, é que ele lhe concedeu uma autorização que lhe permite vir aqui sempre que o deseje. E isso não acontece frequentemente. No que me diz respeito, recebia‑a duas vezes.

‑ Trata‑se sem dúvida de algum membro da antiga corte ou talvez até da própria família imperial, não?

Mas o capuchinho não queria dizer mais nada e contentou‑se em baixar a cabeça; depois, inclinando‑se ligeiramente, afastou‑se para regressar ao seu posto.

Aldo hesitou um momento. Desejava seguir aquela dama vestida de preto por pura curiosidade, para saber onde ela morava. O seu instinto dizia‑lhe que havia ali um mistério e ele adorava os mistérios. Sobretudo quando tinha tempo de sobra! Por conseguinte, optou por ajoelhar‑se diante do altar‑mor a fim de rezar uma breve oração que prolongou até que o seu ouvido captou o ruído ligeiro da porta onde o monge estava de guarda: a desconhecida acabara de reaparecer. Não se mexeu e esperou que ela estivesse prestes a sair; deixou o seu lugar com uma rápida genuflexão e, em seguida, foi atrás dela como um gnomo silencioso, de tal modo que sobressaltou o capuchinho‑guardião que se esquecera dele e que se preparava para fechar a capela:

‑ O senhor ainda aqui está?

‑ Estava a rezar. Desculpe‑me!

Uma breve saudação e estava fora da igreja, mesmo a tempo de ver a dama enlutada subir para uma caleche encapotada, que se pôs logo em andamento. Felizmente, estorvado pela circulação da tarde, o cavalo não ia depressa. As compridas pernas de Morosini não tiveram portanto grande dificuldade em segui‑lo.

Partiram pela Kaerntnerstrasse, na direcção da catedral Saint‑Étienne, mas voltaram na Singerstrasse e, depois, na Seilerstatte, para chegarem finalmente à Himmelpfortgasse, depois de um desvio não justificado ‑ a igreja dos Capuchinhos não ficava longe! ‑ que esgotara o perseguidor e começara a minar‑lhe a disposição. Mas a sua curiosidade despertou de novo ao ver o veículo transpor o portão do palácio Adlerstein, trazendo‑o de volta aonde não mais desejava regressar.

Qual o significado daquilo tudo? A velha condessa teria alguma amiga ou parente hospedada em sua casa? A hipótese de um locatário era muito improvável dada a fortuna da família. E, claro está, a condessa não podia ser o fantasma da cripta, pois a sua silhueta e, sobretudo, a sua destreza e rapidez, eram características de uma jovem. Mas, nesse caso, quem poderia ser aquela criatura cujas saias compridas pareciam pertencer a uma geração anterior? Se bem que em Viena o modernismo dos costumes e das roupas não tivesse, por assim dizer, adquirido direito de cidadania!...

Dissimulado a um canto, diante do palácio, na sombra de uma porta cocheira, Aldo teve de se esforçar vigorosamente por controlar o seu temperamento latino, a fim de não ir tocar à porta de uma residência que se tinha tornado misteriosa. Teria sido um gesto estúpido: se a personagem de há pouco lhe viesse abrir a porta ele faria figura de louco, malcriado ou passaria por um espião. Além disso, não havia nenhuma luz que brilhasse por detrás das altas janelas de uma casa tão silenciosa que ele se perguntou se não teria estado a sonhar. Nada mais tinha a fazer ali e mais valia ir‑se embora. Aliás, o relógio mostrou‑lhe que lhe sobrava apenas tempo para voltar ao hotel, vestir‑se para a soirée e comer qualquer coisa antes de ir para a Ópera. De mãos no fundo dos bolsos, lá foi caminhando sob a chuva...

Duas horas depois, envergando um fato confeccionado em Londres que combinava muito bem com a sua compleição atlética, o príncipe Morosini subia com o seu característico à‑vontade a magnífica escadaria de mármore do Staatsoper, considerado na Áustria como a obra‑prima da cultura nacional. O esplendor deste monumento, outrora encomendado por Francisco José, permanecia intacto. Os mármores italianos e o ouro dos candelabros brilhavam sob a luz opalina dos globos de vidro. Tudo parecia como outrora... As mulheres, de vestidos compridos, traziam peles caras e jóias admiráveis... mesmo que nem todas fossem peças verdadeiras. Muitas eram belas, com aquele charme tão particular das vienenses e muitas deixavam também deslizar um olhar sorridente para a silhueta daquele visitante estrangeiro que se deu ao prazer de fitar algumas.

Nessa noite reinava uma atmosfera de festa para ouvir O Cavaleiro da Rosa, obra recente mas muito admirada, da autoria de Richard Strauss que, desde a sua criação em 1911, fora inscrita no repertório da Ópera, e cujo compositor era também o director. Um célebre maestro alemão, Bruno Walter, devia dirigir dois dos maiores cantores da época: Lotte Lehmann, no papel de Marechala, e o barítono Loritz Melchior, no de barão Ochs. Uma verdadeira soirée de gala que seria presidida pelo chanceler Seipel em pessoa.

Uma arrumadora vestida de preto, cujo carrapito estava enfeitado por um ramo de fitas, abriu a Morosini a porta de um dos camarotes da primeira fila. Só lá estava um homem, que ele não reconheceu logo à primeira vista. Vestido com um fato preto irrepreensível, encontrava‑se sentado numa das cadeiras aveludadas, de rosto voltado para a sala de onde chegava o ruído habitual das conversas misturando‑se ao vago fundo musical do afinar de instrumentos da orquestra.

A princípio Aldo apenas viu uma cabeleira prateada, puxada para trás e descendo longamente nuca abaixo, um perfil impreciso, do qual só distinguiu o vidro de um monóculo alojado sob uma arcada supraciliar. O ocupante do camarote não se voltou e como a habitual bengala de pomo dourado não parecia estar presente, Morosini perguntou‑se se não se teria enganado ao esperar reencontrar o seu estranho cliente, mas essa dúvida foi dissipada num instante:

‑ Entre, meu caro príncipe! ‑ proferiu a voz inimitável de Simon Aronov. ‑ Sou mesmo eu.

 

   O CAVALEIRO DA ROSA

Morosini apertou a mão que o seu hóspede lhe estendia e sentou‑se na cadeira vizinha:

‑ Nunca o teria reconhecido sob esse disfarce ‑ disse, com um sorriso admirativo. ‑ É espantoso!

‑ Não é? Como vai, meu amigo?

‑ Se se refere à minha saúde, ela é excelente, mas o moral já é menos bom. Na verdade, aborreço‑me e é a primeira vez que isso me acontece...

‑ Os seus negócios correm menos bem?

‑ Não, desse lado vai tudo bem. Creio que é o senhor que me faz falta. E, também, Adalbert! Desde o final de Janeiro que estou sem notícias dele.

‑ Quanto a ele, era‑lhe um pouco difícil e, sobretudo, muito delicado, enviar‑lhe uma carta ou qualquer outra mensagem, pois estava preso no Cairo.

Os olhos de Morosini arregalaram‑se:

‑ Preso?... Uma história de serviços secretos?

‑ Oh, não! ‑ respondeu o Coxo. ‑ Uma história que tem a ver com Tutankhamon. O nosso amigo não teria sabido resistir ao atractivo de uma certa estatueta em ouro puro...

Aldo indignou‑se. Sabia o amigo muito hábil de dedos e capaz de muitas coisas, mas não de um roubo crápula.

‑ Tranquilize‑se! Reencontraram o objecto e soltaram Vidal‑Pellicorne, apresentando‑lhe todas as desculpas, mas ele esteve encarcerado um certo período de tempo. Penso que em breve voltará a vê‑lo. Acaba de chegar a Viena?

‑ Não, já cá estou há três dias. Queria rever certos locais e visitar também o Tesouro Imperial. Não me tinha dito que a opala devia fazer parte dele?

‑ Enganei‑me. A opala que lá se encontra nada tem a ver com aquela que procuramos.

‑ Reparei efectivamente nisso, mas também constatei que não se encontrava exposta nenhuma das jóias dos dois últimos imperadores e da respectiva família. Não pude saber para onde foram.

‑ Dispersas! Vendidas! As jóias privadas da família imperial foram levadas para a Suíça pelo conde Berchtold no dia 1 de Novembro de 1918, mesmo antes da mudança de regime. Muitas delas foram vendidas, e não ficaria espantado se um certo amigo seu, banqueiro, tivesse adquirido uma ou duas... Dir‑lhe‑ei ainda que pude examinar o adorno que Sissi trazia no dia de núpcias e que nenhuma das suas opalas era aquela que procuro.

O diálogo parou. Por cima da divisória do camarote vizinho, uma dama enfeitada com penas de ave‑do‑paraíso saudava Aronov, tratando‑o por «meu caro barão», iniciando conversa e Aldo achou por bem interessar‑se pela sala, que estava agora cheia... Esta oferecia o agradável panorama de uma assembleia onde as mulheres vestidas de cetim, tafetás e veludos de cores contrastantes exibiam diamantes, pérolas, rubis, safiras e esmeraldas nos pescoços desnudos ou nas cabeleiras. Aldo pôde constatar com prazer que a moda horrível dos cabelos curtos e das nucas rapadas ainda não encontrara aderentes na alta sociedade vienense, que não tinha certamente como livro de cabeceira a obra escandalosa de Paul Marguerite, La Garçonne, que deleitava a França desde o ano passado. Ele detestava essa moda!

Não que fosse uma pessoa retrógrada, mas adorava as belas cabeleiras, adornos naturais onde é tão delicioso afogar os dedos ou esconder o rosto! Era um autêntico crime massacrá‑los! Em compensação, nada tinha contra os vestidos curtos, por vezes encantadores e que permitiam admirar belas pernas, cuja visão fora até então exclusivo privilégio do esposo ou do amante.

Uma trovoada de aplausos saudou o maestro que teve apenas tempo para fazer levantar a sala dando início ao hino nacional pois Monsenhor Seipel acabava de chegar. Depois, todos se sentaram; as luzes apagaram‑se, deixando apenas o palco iluminado. Instalou‑se um profundo silêncio na sala.

‑ Por que me fez vir aqui esta noite? ‑ sussurrou Morosini.

‑ Para lhe mostrar alguém que ainda não chegou. Psiu!

Resignado, Aldo voltou a sua atenção para o espectáculo. A cortina erguia‑se, revelando um quadro que era constituído por um encantador quarto de mulher do tempo da imperatriz Maria Teresa, no interior do palácio da Marechala. Esta, uma lindíssima mulher, estava entretida numa divertida conversa com o seu jovem amante Octavian antes de receber, como a sua posição o exigia, as visitas e os pedidos da manhã. Entre estes solicitadores estava o barão Ochs, personagem tão importante quanto inoportuna, assaz ridícula, que viera pedir à nobre dama que lhe encontrasse um cavaleiro encarregue de levar a tradicional Rosa de Prata, símbolo de um pedido oficial de casamento, à jovem eleita pelo seu coração. Apesar da sua repugnância, este cavaleiro acabará por ser evidentemente o belo Octavian.

Aldo deixava‑se enlevar pela graça alegre e maliciosa de uma obra interpretada por duas soberbas vozes, quando a mão do seu vizinho lhe tocou na manga:

‑ Olhe! ‑ soprou‑lhe. ‑ O camarote à nossa frente...

Nele acabavam de entrar duas pessoas, ambas vestidas de preto. Primeiro, um homem de meia‑idade, mas que devia possuir uma rara robustez física. Trazia uma espécie de libré de veludo bordado com soutache de seda, à moda húngara.

Depois de dar um breve relance de olhos pela sala, deixou passar a sua companheira, que ajudou a sentar com todos os sinais de profundo respeito antes de se retirar para o fundo do camarote. Ainda mais notável era o aspecto da mulher, que captou a atenção do príncipe. O seu porte era o de uma rainha e, ao olhá‑la, Morosini recordou‑se de um certo retrato da princesa Alba, pintado por Goya. Ela estava vestida e ao mesmo tempo tapada por rendas pretas. Levava uma espécie de mantilha que lhe caía da sua alta cabeleira até um pouco mais abaixo da boca. As suas compridas luvas eram feitas do mesmo tecido ligeiro e escuro, que realçava a alvura luminosa de uma pele sem defeitos. Como jóia, apenas trazia um alfinete de peito, cujo brilho mágico cintilava no meio das rendas fofas situadas na abertura de um deslumbrante decote. No rebordo de veludo avermelhado do camarote estava pousado um leque.

Sem dizer uma só palavra, sem sequer se voltar para ele, Aronov meteu delicadamente um par de binóculos de madrepérola na mão do seu convidado, que quase o deixou cair de tal modo ficara estarrecido com aquela aparição. Não obstante, conseguiu segurar no utensílio que levou aos olhos, dirigindo‑o primeiro na direcção da cena onde a Marechala se queixava da rápida passagem do tempo, assestando‑o depois sobre o camarote. A mulher desconhecida permanecia um pouco escondida na parte de trás, de modo a não ser muito iluminada pelas luzes do palco. A mantilha rendilhada impedia que se distinguissem os traços do rosto, mas a julgar pela tez de marfim da pele, pela fineza que se adivinhava, pelo seu porte direito e pelo modo como erguia altivamente a cabeça que prolongava o seu longo pescoço, era evidente que não era velha e que lhe corria sangue nobre pelas veias.

‑ Olhe sobretudo para a jóia! ‑ soprou‑lhe o Coxo.

Valia a pena: tratava‑se de uma Águia imperial trabalhada em diamantes e cujo corpo era formado por uma magnífica opala. Auxiliado pelos binóculos, Morosini examinou‑a tão cuidadosamente quanto podia e depois voltou um olhar interrogador na direcção do companheiro:

‑ Sim ‑ confirmou este. ‑ Tudo me leva a crer que se trata da nossa.

Morosini contentou‑se em anuir com a cabeça pois era impossível falar, mas o acto terminou pouco depois no meio de grande entusiasmo. Reacenderam‑se as luzes. A desconhecida recuou ainda mais para a sombra do camarote. Voltara a pegar no leque e, tendo‑o aberto, resguardava‑se ainda mais.

‑ Quem é ela? ‑ perguntou Aldo.

‑ Palavra que não sei ‑ respondeu Aronov. ‑ Certamente uma mulher de classe alta, mas que não deve morar em Viena. Não a conhecem em nenhum hotel e aliás, só foi vista em público nesta sala e apenas quando se representa O Cavaleiro da Rosa, o que não acontece frequentemente.

‑ Que estranho! Porquê esta ópera?

‑ Olhe melhor para o leque!

Colocado atrás das cadeiras, Morosini assestou de novo os binóculos: o leque era uma esplêndida peça de tartaruga escura e de renda, sobre cuja alvura suprema estava fixada uma rosa prateada. Morosini sorriu:

‑ Uma rosa! Eis a razão da sua ligação a esta ópera. Ela deve lembrar‑lhe algo...

‑ Sem dúvida, mas isso só acresce o mistério que a rodeia. Tenho a certeza que a jóia que ela traz pertenceu anteriormente à imperatriz Élisabeth. Via‑a num retrato, mas já sabia que a pedra central era aquela que procurávamos. E devo ainda dizer‑lhe que é a primeira vez que vejo a dama. Já me tinham assinalado a sua presença e não tinha a certeza se ela viria esta noite. No entanto, arrisquei‑me a convidá‑lo.

‑ E agradeço‑lhe mais do que pode imaginar. Mas, afinal, não deve ser difícil saber quem alugou o camarote...

‑ Efectivamente, com a diferença que eles são alugados ao ano. O dela, pertence à condessa von Adlerstein.

Morosini nem procurou dissimular a sua surpresa:

‑ Mas que coincidência!... Conhece a condessa?

‑ Pessoalmente, não. Sei apenas que ela é a sogra de Moritz Kledermann, o grande coleccionador suíço...

‑ E avó da minha antiga secretária.

‑ Não me diga! Mas que interessante! Não me pode dizer algo a esse respeito?

‑ Oh, mas isso não é o mais interessante! Há ainda melhor, pois julgo ter encontrado esta desconhecida hoje mesmo, ao fim da tarde, na cripta dos Capuchinhos. Ela tinha ido colocar flores no túmulo do arquiduque Rodolfo e, segundo o monge‑guardião, não era a sua primeira visita. Ao que parece até dispõe de uma autorização especial para entrar fora das horas das visitas...

‑ Cada vez melhor! O senhor é cativante quando quer, meu caro príncipe! Conte‑me mais!

Sem se fazer rogar, Aldo evocou a estranha visão da cripta, a longa silhueta vestida de crepe que ele confundira um momento com o fantasma da mãe dorida do arquiduque. Contou como se lançou depois no encalço da viatura que a levou de volta ao palácio de Himmelpfortgasse; ‑ é uma sorte que Viena tenha permanecido fiel às carruagens a cavalo! Com um automóvel, não teria tido nenhuma...

‑ Isso significa que a sua se porta bem! É um belo trabalho, meu amigo, e já não é permitida qualquer dúvida: a dama deve morar na casa da condessa...

‑ Há pouco tentei fazer‑lhe uma visita mas actualmente ela não está em Viena. Um acidente parece tê‑la retido nas suas terras da província...

‑ Não tem qualquer importância se esta mulher reside ou não em casa dela. Talvez seja uma parente sua. De qualquer modo vamos segui‑la à saída do teatro. Tenho uma viatura lá fora à minha espera...

O intervalo acabava. Apagaram‑se as luzes. Os dois homens calaram‑se mas, se bem que tenha continuado a apreciar a música e os intérpretes, Aldo não viu grande coisa do que se passava no palco. Com ou sem binóculos, o seu olhar regressava incessantemente à silhueta altiva, ao mesmo tempo faustosa e discreta, na qual só a jóia parecia viver, como uma estrela brilhando na noite.

Quando o segundo acto acabou no meio de uma verdadeira explosão de contentamento, apoiado por um cativante ritmo de valsa, a sala ovacionou os artistas de pé, mas Aldo, especado na sua contemplação, nem sequer se mexeu:

‑ Levante‑se, vejamos! Faça como o público ‑ cochichou‑lhe Aronov que aplaudia freneticamente. ‑ Vai acabar por dar nas vistas.

Ele estremeceu e obedeceu, fazendo notar que no camarote em frente também aplaudiam, mas discretamente.

Este novo intervalo era mais curto que o primeiro. Os espectadores deslocaram‑se menos. Os dois homens reataram a conversa, mas foi a vez de Morosini ficar cismático:

‑ Porquê estes véus enlutados? Porquê esta verdadeira máscara rendilhada esta noite? Que quer esconder aquela mulher?... A menos que queira suscitar a curiosidade, intrigar? Nesse caso terá conseguido plenamente o seu objectivo.

‑ Também pensei o mesmo antes de me ter falado da cripta. Agora sinto que há outra coisa... Se bem o entendi, esta mulher estaria de luto pelo arquiduque que se suicidou em Mayerling? Faz em breve quarenta e cinco anos que morreu. Não lhe parece um tanto longo?

‑ Talvez seja a sua viúva, não?

‑ Stéphanie da Bélgica? Está a sonhar! Hoje ela é uma velha senhora que voltou a casar em 1900 com um húngaro, e desde então não sei muito bem o que é feito dela. Esta é muito mais nova. Além disso, é dotada de um porte soberbo, o que não era o caso da pobre princesa.

‑ Então, não será a filha? Julgo que tinha uma, não é verdade?

‑ A arquiduquesa Élisabeth, que se tornou princesa Windischgraetz, corresponde a essa idade, mas não se trata dela, pois acontece que a conheço...

‑ Nesse caso, alguma fanática... ou uma louca... Contudo, a sua calma contraria esta última hipótese. Em todo o caso, isso não explica porque esconde o rosto.

‑ Talvez seja feia... ou talvez tenha algum defeito. Várias beldades, mais ou menos célebres, preferiram ocultar‑se dessa maneira, condenando os espelhos, para não lerem neles as marcas da sua própria decadência.

‑ Velada ou não, será preciso encontrá‑la ‑ disse Aldo. ‑ Tem a certeza que é a opala que procuramos?

‑ Quase juraria, ainda que não entenda por que motivo a Águia de diamantes brilha no peito de uma desconhecida. A arquiduquesa Sofia ofereceu‑a outrora à sua nora, por ocasião do nascimento de Rodolfo... sem dúvida para completar o adorno dado como prenda de casamento...

‑ Parece‑me simples: disse‑me que as jóias privadas foram vendidas na Suíça. Então esta dama deve tê‑la comprado...

‑ Não, esta não constava do lote...

Durante o terceiro acto Morosini dedicou mais atenção ao espectáculo. A beleza de Lotte Lehmann, a sua voz cativante actuavam nele como um sortilégio. O seu companheiro estava igualmente absorto e quando os lustres e os candelabros se acenderam no meio de um entusiasmo que chegara ao cúmulo, aperceberam‑se que o camarote da frente se esvaziara. A desconhecida e o seu guarda tinham desaparecido antes do final do espectáculo. Morosini encarou o facto com filosofia:

‑ É muito aborrecido, sem dúvida, mas não é catastrófico, pois tenho a certeza que a mulher da cripta e a do camarote são uma única e mesma pessoa.

‑ Esperemos que não se engane...

Depois do bispo‑chanceler se ter ido embora, a sala começou a esvaziar‑se. Aronov e o companheiro foram até ao vestiário; um pegou na sua pelica quente e o outro numa ampla capa debruada em cetim que trazia sempre com o fato. Morosini pôde então constatar que a bengala de pomo dourado reaparecera.

‑ Levo‑o de volta? ‑ propôs o primeiro. ‑ Ainda temos de conversar.

‑ Estou instalado aqui ao lado, no Sacher. Tomar uma viatura seria uma autêntica vergonha. Por que não vem jantar comigo, caro... barão?

Simon Aronov desatou a rir enquanto o seu único olho de um azul intenso ‑ o que estava escondido pelo monóculo devia ser de vidro! ‑ cintilava maliciosamente:

‑ O meu título intriga‑o, hein? Saiba que é autêntico e que tenho direito a usá‑lo. Em compensação o nome que o acompanha não é o meu. Mudo de nome consoante o aspecto que escolho. A sociedade daqui recebe‑me enquanto barão Palmer... e aceito de bom grado o seu convite.

Para surpresa de Aldo, ordenou ao motorista do comprido Mercedes preto que tinha entretanto avançado, que não o esperasse e regressasse a casa.

‑ Vou jantar com um amigo ‑ indicou. ‑ Frau Sacher chamará um fiacre para mim!

Em seguida, passando o braço livre sob o do príncipe, acrescentou:

‑ Depois de um jantar em casa de Frau Anna, sempre gostei de regressar a cavalo. Isso recorda‑me o passado.

‑ Que nunca está muito longe daqui. Os austríacos permanecem fiéis a eles próprios, qualquer que seja o regime em que vivam.

Os dois homens regressaram ao hotel de braço dado. A chuva parara finalmente, mas as pedras molhadas da calçada reflectiam as luzes ternas dos globos de vidro fosco como outras tantas estrelas familiares. Frau Sacher acolheu‑os de havana na ponta dos dedos e confiou‑os a um maitre d'hôtel atencioso que os conduziu através da sala até uma mesa discreta adamascada de branco e florida com rosas, a boa distância da tradicional orquestra cigana, o que não a impediu de segui‑los:

‑ A ementa do arquiduque, como de costume? ‑ propôs, rindo‑se, pois era uma piada que utilizava habitualmente com os velhos clientes. Tratava‑se efectivamente do último jantar tomado por Rodolfo dois ou três dias antes de ele ter ido «caçar» para Mayerling. Fora ele próprio que compusera a ementa, da qual constava: ostras, sopa de tartaruga, lagosta suada, truta com molho veneziano, fricassé de codornizes, frango à francesa, salada, compota, puré de castanha, gelado, sachertrote, queijo e fruta. Tudo regado com Chablis, Mouton‑Rothschild, champanhe Roederere xerez. Enfim, uma ementa capaz de saciar um apetite à Luís XIV!

‑ Era preciso ser jovem e arquiduque para comer isto tudo. ‑ disse o Coxo. ‑ A menos que se sinta esfomeado, meu caro príncipe, eu sou bastante frugal...

Escolheram ostras, seguidas por um fricassé de codornizes, uma salada e pelo célebre bolo, acompanhados por um bom champanhe, sem qualquer outra mistura.

Enquanto o seu companheiro trocava ainda algumas palavras com a hospedeira, Morosini examinava‑o e pensava que aquele homem nunca deixaria de constituir um enigma para si. Apesar de duas graves deficiências, dado que era coxo e vesgo, ele encontrava maneira de se disfarçar de personagens sempre diferentes, mas recorrendo constantemente a meios muito simples: uma peruca como a de esta noite, um chapéu, óculos claros ou escuros, um monóculo, a barba de padre ortodoxo, papel no qual se apresentara um momento no cemitério de San Michele em Veneza. Parecia capaz de levar muito longe a arte da caracterização quase indiscernível e contudo, fosse qual fosse a encarnação escolhida, nunca abandonava a bengala de ébano com o pomo dourado que podia contudo assinalá‑lo. Seria uma espécie de superstição, ou uma lembrança particularmente querida? Uma pergunta a este respeito teria sido indiscreta, mas havia outra que atormentava Aldo: a voz de Simon Aronov, aquela magnífica voz de veludo sombrio que lhe conferia tanto charme, podia também ela ser sujeita a transformações? Por conseguinte, não hesitou mais em perguntar‑lhe, o que teve o condão de fazer rir o seu companheiro:

‑ Desse lado também poderá ter umas surpresas, meu amigo. Não só posso mudar de registo de voz, como posso falar com vários sotaques diferentes. Permitir‑me‑á, apenas, não fazer a demonstração aqui.

‑ Não lhe pedirei, mas queria colocar‑lhe uma pergunta: como faz para conseguir integrar‑se a esse ponto ao meio que frequenta? Em Londres, o senhor era um perfeito gentleman inglês. Em Veneza, jurar‑se‑ia que tinha chegado direitinho do monte Athos. Aqui, encarna o protótipo do aristocrata vienense. É conhecido. Suponho que, por vezes, reside cá. Ora, outrora disse‑me que Varsóvia era a sua residência favorita. Tem pois uma casa em cada capital?

‑ Como os marinheiros têm uma mulher em cada porto? Não. Tenho efectivamente várias casas, mas aqui resido no palácio de um amigo fiel e seguro, na Prinz Eugenstrasse.

Morosini ergueu o sobrolho. Conhecia suficientemente Viena e os seus notáveis para não temer cometer um erro. No entanto, baixou a voz até murmurar:

‑ O barão Rothschild?

‑ O sr. Palmer não tem qualquer motivo para ocultá‑lo ‑ confessou Aronov com indulgente brandura. ‑ O barão Louis, com efeito. Tal como o seu defunto pai, ele sabe praticamente tudo a meu respeito, e eu sei que, caso aconteça algum... drama, poderei sempre encontrar asilo e apoio nessa casa. Se precisar de entrar rapidamente em contacto comigo, não deve recear em dirigir‑se‑lhe. Sob os seus ares mundanos, é um homem de grande compaixão e de rara coragem.

‑ Eu sei. Já o encontrei, mas confesso que gostava de conhecê‑lo um pouco melhor. Apesar de não ter mais de quarenta anos, já tem a sua lenda...

A sua memória infalível traçava‑lhe o retrato de um homem magro, louro, elegante, de imperturbável sangue‑frio e muito talentoso. Para além de ser um sábio muito versado em botânica, anatomia e artes gráficas, o barão Louis era um grande caçador nos espaços do Eterno, cavalgava como um centauro ‑ era um dos raros cavaleiros dispondo da autorização para montar os famosos Lippizaners brancos da escola de equitação espanhola de Viena ‑ e era também um notável jogador de pólo. Solteiro empedernido, nem por isso adorava menos as mulheres junto às quais desfrutava de vivo sucesso. Quanto à sua fleuma, ela tornara‑se lendária antes da guerra, quando ainda era jovem, por ocasião da inauguração do metropolitano de Nova Iorque, durante a qual o motor e o sistema de ventilação pararam. Quando acabaram finalmente por retirar deste mau impasse os viajantes que transpiravam, meio asfixiados e despidos, o jovem barão surgira tão bem aprumado como se tivesse saído das mãos do seu criado de quarto, não tendo retirado nem casaco nem colete e, segundo os salvadores siderados, «não apresentando sequer uma gota de suor na testa».

‑ Neste momento está a caçar na Boémia mas, mais tarde, talvez eu vos possa apresentar. Creio que ele ficaria muito contente: já lhe falei a seu respeito.

‑ E... os outros membros da família? Também os conhece?

‑ Os franceses, os ingleses? Muito bem ‑ respondeu Aronov, que acrescentou com um magro sorriso: ‑ Todavia, um pouco menos que ao barão Louis. Eu fui muito chegado ao pai dele. E continuo chegado ao filho. Mas falemos um pouco a seu respeito: parece que seguiu o meu conselho a respeito da bela lady Ferrais, não?

Morosini encolheu os ombros:

‑ Não tive qualquer dificuldade. Depois do julgamento que certamente seguiu, ela foi‑se embora para os Estados Unidos acompanhada pelo pai. Quanto a mim, nunca mais tive notícias dela.

‑ O quê? Nem mesmo um agradecimento? Nem uma carta de duas linhas?

‑ Nem isso.

Aldo retesara‑se ao ouvir o seu companheiro pronunciar o nome daquela que ele tinha sempre uma certa dificuldade em esquecer. Simon Aronov apercebeu‑se:

‑ E dói muito?

‑ Sim, um pouco, mas com o tempo acabará por passar ‑ afirmou Morosini atacando as suas codornizes, e durante alguns momentos os dois homens comeram em silêncio, deixando os violinos da orquestra envolvê‑los nos seus acordes harmoniosos, até que Aronov disse:

‑ É a minha vez de fazer‑lhe uma pergunta. Como vai Veneza com Benito Mussolini reinando em Roma?

‑ Continua bela como sempre, sempre igual ao que espera o visitante ocasional ou o casal em viagem de núpcias ‑ suspirou Morosini, encolhendo os ombros. ‑ Aparentemente, tudo decorre na normalidade... mas só aparentemente. Antes avistavam‑se por vezes dois carabineiros deambulando. Presentemente, são frequentes os miúdos em camisa e bivaque negros. Caminham aos pares, como os outros, mas é melhor evitá‑los o mais possível: julgam que tudo lhes é permitido e são voluntariamente agressivos em nome da maior glória da Itália.

‑ Não teve problemas?

‑ Não. É certo que as pessoas que ocupam postos de certa importância têm de prestar juramento ao novo regime, mas eu sou apenas um honesto comerciante que não faz mal a ninguém. Enquanto me deixarem viajar à vontade e tratar dos meus negócios como bem entendo...

‑ Mantenha esse bom senso! É o mais prudente.

O tom subitamente grave do Coxo tinha algo de impressionante. Após um momento de silêncio, Morosini reatou:

‑ Lembra‑se que em Varsóvia me tinha anunciado a próxima vinda de... uma ordem negra, capaz de pôr em risco todas as liberdades?

‑ ... e por causa da qual devemos reconstituir o peitoral e ressuscitar o mais depressa possível Israel enquanto Estado ‑ completou Aronov. ‑ Agora vai perguntar‑me se o Fascio é a ordem negra em questão.

‑ Precisamente.

‑ Digamos que é o primeiro sintoma de um mal terrível, uma primeira rajada de vento antes da tempestade. Mussolini é um palhaço vaidoso que se julga um César e que poderá ser apenas um Calígula. O verdadeiro perigo vem da Alemanha, cuja economia está destruída e cujas forças vivas foram atingidas. Um homem quase iletrado, inculto, bruto, mas grandiloquente e animado por um génio sombrio voltado para a guerra, vai esforçar‑se por ressuscitar o orgulho alemão, glorificando a sua força e excitando os seus mais odiosos instintos. Ainda não ouviu falar de Adolfo Hitler?

‑ Vagamente. Não houve uma manifestação na última Primavera, muito semelhante às demonstrações do Fascio?

‑ Exacto. A aventura mussoliniana poderá muito bem dar asas a Hitler. Pelo momento, ele é apenas um pequeno chefe de um bando paramilitar, mas tenho muito medo que um dia isso se transforme num maremoto capaz de devorar a Europa...

Com ambos os cotovelos apoiados na mesa, a taça entre os dedos, Simon Aronov parecia ter‑se esquecido do companheiro. O seu olhar perdia‑se ao longe, num ponto a que Morosini não tinha acesso, mas a crispação do rosto indicava claramente que essa perspectiva não oferecia nada de sorridente. Aldo ia fazer uma pergunta na altura em que ele terminou a sua frase:

‑ Quando ele se tornar o mestre ‑ e sê‑lo‑á um dia ‑ os filhos de Israel correrão perigo de morte... Tal como, aliás, muitos outros!

‑ Nesse caso ‑ interrompeu Morosini ‑ não há tempo a perder se quisermos adiantarmo‑nos a ele. Temos de completar o peitoral do Grande Sacerdote o mais depressa possível.

Aronov sorriu de soslaio:

‑ Então acredita na nossa tradição?

‑ Por que não acreditaria? ‑ resmungou Morosini. ‑ De qualquer modo, e mesmo no caso em que Israel nunca possa voltar a existir enquanto Estado, se o facto de colocar as pedras no seu devido lugar for o único meio para impedi‑las de serem nefastas, dedicar‑me‑ei a essa tarefa de corpo e alma. A safira e o diamante deixaram ambos um rasto sangrento e suponho que sucederá o mesmo com as duas outras jóias. No que respeita à opala, se a infeliz Sissi a trouxe consigo, então estamos conversados. Quanto àquela que hoje a utiliza, os véus fúnebres atrás dos quais oculta o rosto não são de modo nenhum sinal de felicidade radiante... É preciso desembaraçá‑la dela o mais depressa possível!

‑ Concordo consigo, claro, mas vá com calma ‑ murmurou o Coxo com gravidade. ‑ É possível que ela estime essa jóia mais do que qualquer outra coisa. Talvez até mais do que à própria vida... Se for o caso ‑ e assim o receio! ‑ o dinheiro não servirá de nada.

‑ Julga que não sei? E suponho que desta vez não dispõe de nenhuma pedra de substituição como aconteceu nos dois casos precedentes, senão já me teria dito, não é verdade?

‑ Efectivamente. Não se pode imitar uma opala. É verdade que a Hungria produz opalas e que talvez seja possível encontrar uma que se assemelhe muito a esta. Digo talvez! Mas o maior problema seria colocado pela armação. Esta Águia branca é composta por diamantes a condizer e de rara qualidade. É uma jóia de preço muito elevado que, à parte o seu valor histórico, é susceptível de tentar mais de um ladrão. É bom que a dama desconhecida seja escoltada por um guarda tão imponente quanto o que tem.

‑ Está a inquietar‑me: caso ela aceite vendê‑la, conseguirá pagar o preço solicitado?

‑ Quanto a isso, esteja descansado! Disponho de todos os fundos que possa precisar. Agora vou deixá‑lo. Muito obrigado por esta agradável refeição.

‑ Voltarei a vê‑lo?

‑ Caso seja necessário, ou caso venha a saber algo de importante, poderá visitar‑me no palácio Rothschild. Conto ficar por lá mais alguns dias.

Depois de ter acompanhado Aronov até à viatura, Morosini hesitou um momento sobre o que iria fazer. Não desejava deitar‑se, pois não tinha a menor vontade de dormir.

Erguendo a cabeça viu o céu quase descoberto: duas ou três estrelas piscavam o olho. Vendo que ele se demorava nos últimos degraus, o paquete do hotel propôs‑lhe uma viatura.

‑ Por acaso, não é preciso ‑ disse‑lhe. ‑ Prefiro andar um pouco a pé fumando um charuto. Se tiver a amabilidade de ir ao vestiário do restaurante buscar‑me a capa e o chapéu...

Alguns minutos depois, Aldo deambulava na Kaerntnerstrasse com a passada tranquila de um pândego atrasado que tivesse decidido respirar o ar vivo da noite a fim de dissipar os vapores do álcool. Deserta àquela hora ‑ a torre da catedral de Saint‑Étienne badalava os dois toques ‑ a grande artéria luxuosa brilhava de mil fogos, como o interior de uma gruta mágica... Deste modo, ao dobrar a esquina da Himmelpfortgasse, muito menos iluminada, Morosini teve a impressão de penetrar numa falha entre duas falésias. Aqui e além, uma pálida lanterna permitia apenas ver o suficiente para não torcer os pés nas pedras do pavimento que deviam datar do tempo de Maria Teresa. As do palácio Adlerstein estavam apagadas.

Cobrindo‑se com a capa ao melhor estilo espanhol, o que o tornou praticamente invisível, Morosini resguardou‑se na reentrância de um portão e mergulhou na contemplação da casa muda e também cega, pois nenhum raio de luz filtrava através das persianas corridas.

Ficou ali um bom bocado, procurando o meio de penetrar no segredo daquela fachada austera que à noite se tornava sinistra com as formas imprecisas e contorcidas dos atlantes que sustinham a varanda mas, ao fim de um momento, fartou‑se, achou‑se ridículo e lastimou ter sacrificado um bom charuto. Misteriosa ou não, a dama das rendas pretas devia estar a dormir o sono dos justos àquela hora, enquanto que ele começava a ficar com frio nos pés. O único, o melhor meio de investigação era ainda encontrar‑se com a condessa von Adlerstein sem mais tardar. Se ela não estava em Viena, ele iria vê‑la na sua residência alpina e pronto!

Ia abandonar o seu retiro quando o guinchar de uma pesada porta o fez parar: tratava‑se do grande portal do palácio que estava a ser aberto, libertando o duplo feixe dos faróis de um carro, que saiu logo que a passagem ficou livre. Morosini viu uma grande limusina de cor escura. No interior havia um motorista de libré e três pessoas difíceis a distinguir, mas Morosini teria apostado a sua alma imortal em como duas delas eram a dama desconhecida e o seu guarda‑costas. Na parte detrás do carro estavam amarradas uma mala e várias bagagens. O observador não teve oportunidade para descobrir mais nada: franqueando com desenvoltura o ligeiro carreiro de montículos ao longo do riacho, a poderosa máquina voltou à esquerda, alcançou o Ring vizinho e desapareceu enquanto uma mão invisível se apressava a fechar o portão.

Era evidente que a desconhecida deixava Viena e, de imediato, Morosini não dispunha de qualquer meio de saber para onde ela se dirigia, mas o facto de ter optado por viajar de noite não era de molde a dissipar as brumas que a envolviam.

Um tanto perplexo, Aldo abandonou o seu posto de observação e tratou de regressar ao hotel, desta vez a passos largos. Ainda não dobrara a esquina e já um homem também em traje de soirée, de compleição magra, vivo, e um pouco mais baixo que ele, deixava um outro recanto, colocando‑se um momento no meio da ruela, visivelmente indeciso quanto ao que devia fazer e depois, com um fastidioso encolher de ombros, apressou‑se no encalço do príncipe‑antiquário.

Ao acabar a toilette na manhã seguinte, Aldo instalou‑se diante da pequena secretária do seu quarto e, em seguida, desdenhando o papel de carta do hotel, pegou num dos seus blocos pessoais e escreveu algumas palavras muito respeitosas a Mme. von Adlerstein, pedindo‑lhe que tivesse a amabilidade de lhe conceder um encontro «para um assunto importante». Selou o envelope, enfiou a gabardina e as luvas ‑ o tempo hesitava entre acumulações de nuvens cinzentas e rabanadas de vento que se esforçavam por escorraçá‑las! ‑ pôs um boné de tweedç. retomou a direcção da Himmelpfortgasse, com a firme intenção de que lhe abrissem finalmente tão caprichosa porta. Esta abriu‑se efectivamente, diante do homem de fato tradicional que já encontrara na véspera. Este reconheceu‑o imediatamente mas nem por isso ficou com ar mais feliz. Desta vez o gelo não derreteu e até apareceu um ligeiro franzir de sobrolho:

‑ Sua Excelência ter‑se‑á esquecido de alguma coisa?

‑ Que poderia ter esquecido? ‑ respondeu altivamente Morosini, que não gostava de criados insolentes. ‑ Não penso ter entrado nesta casa...

‑ Exprimi‑me mal e peço a Sua Excelência que me perdoe. O que queria dizer era: ter‑se‑á esquecido de me dizer alguma coisa?

‑ De modo algum. Tinha‑lhe anunciado uma mensagem: aqui está ela!

‑ Decerto, mas não era o paquete do Sacher que devia trazê‑la?

‑ Talvez, mas decidi trazê‑la eu próprio e não vejo bem a diferença que isso lhe possa fazer. Queira ter a amabilidade de velar para que a senhora condessa von Adlerstein receba esta carta o mais depressa possível...

‑ Assim que ela tiver chegado, não me esquecerei de entregar‑lha!

‑ Mas não tem ao menos uma ideia da data do regresso? Trata‑se de um assunto assaz urgente.

‑ Tenho imensa pena, mas a mensagem terá de esperar.

‑ Mas, ao menos, não podia enviar‑lha?

‑ Se Sua Excelência tem pressa, o melhor é ainda deixá‑la aqui: a senhora não deve tardar muito...

Morosini sentia que a mostarda lhe começava a subir ao nariz, pois tinha a nítida impressão que a pomposa personagem troçava dele. Em primeiro lugar nem sequer lhe permitira transpor o portão que segurava com firmeza. Além disso, esta espécie de diálogo surrealista que ele acabara de lhe impor era ridículo. Com um gesto brusco, Morosini tirou a carta da mão do homem e meteu‑a no bolso.

‑ Feitas as contas, vou guardá‑la. A sua boa vontade é tão comovente que ficaria incomodado em abusar mais dela...

Surpreendido pela rapidez do gesto e pela aspereza do tom, o severo criado recuou a uma distância que foi suficiente para que o importuno obtivesse uma rápida panorâmica do pátio interior. Avistou então um pequeno carro baixo, vermelho‑vivo, com os assentos revestidos de couro preto, que lhe recordou de tal modo o de Vidal‑Pellicorne que quis observá‑lo de mais perto, tentando empurrar o porteiro, mas este aguentou firme:

‑ Eh lá! Onde pretende ir dessa maneira?

‑ A quem pertence esse carro? Não pertence à condessa, pois não? Efectivamente não via muito bem uma nobre dama, já de certa idade, a ser conduzida por um engenho onde o conforto roçava mais a dureza do que a comodidade.

‑ E por que não? Senhor, rogo‑lhe que se vá embora, se não quiser que eu peça ajuda. Estando a senhora ausente, não tem mais nada a fazer aqui!

Apesar da viva cólera que dele se apoderava, Morosini não deixou de notar que as fórmulas respeitosas tinham acabado de desaparecer da linguagem do homem. Não insistiu. Teria sido estúpido provocar um escândalo por tão pouca coisa. Adalbert não podia deter a exclusividade dos pequenos Amílcar vermelhos de assentos pretos ‑ tinha a certeza quanto à marca ‑ e de rodas radiadas.

‑ Tem razão ‑ suspirou. ‑ Desculpe‑me, mas julguei reconhecer o carro de um amigo...

Afastou‑se, enquanto o outro lhe fechava o portão nas costas, mas sem conseguir afastar da mente a ideia de ter visto efectivamente a viatura de Adal, tanto mais que a sua memória fotográfica lhe restituiu subitamente um pormenor: os dois primeiros números da matrícula ‑ os outros estavam escondidos pelo balde de água do criado ocupado a lavar o carro ‑ eram um 4 e um 1. Ora a matrícula de Adalbert era 4173 F... Não deixava de ser perturbante!

Dividido entre o desejo de acampar noite e dia diante daquela casa para ver quem de lá sairia e o desejo de ir almoçar ‑ naquela manhã bebera apenas uma chávena de café! ‑ Aldo hesitou um momento sobre a escolha. A fome levou a melhor e o bom senso também: ficar de vigia em pleno dia e numa rua tão estreita era correr ao encontro de sérios aborrecimentos. O dedicado criado da condessa seria capaz de chamar a polícia e de mandar prendê‑lo. Poderia regressar mais tarde, sob outra aparência. Aliás acabava de ocorrer‑lhe uma ideia.

Partiu novamente na direcção da Kaertnerstrasse, atravessou‑a, tomou a Plankengasse e alcançou o Kohlmarkt tão absorvido nas suas preocupações que não reparou no jovem louro, bem vestido, que, ao vê‑lo sair, se apressou a dobrar o Wienertagblatt que lia aplicadamente junto ao palácio Adlerstein, seguindo depois no seu encalço a uma distância conveniente.

Um atrás do outro chegaram ambos ao Demel, que era uma espécie de instituição em Viena, pois tratava‑se do último café do Antigo Regime ‑ a casa fora fundada em 1786 ‑ e, ao mesmo tempo, era uma prodigiosa pastelaria‑confeitaria. Até à queda do império, o Demel fora o fornecedor oficial da Corte e era lá que se podia almoçar do modo mais aprazível deste mundo.

Situada a dois passos do Hofburgo, a entrada era discreta, quase confidencial, mas a dupla porta giratória, em vidro gravado, dava para o palácio da Dama das Torradas: uma ampla sala em forma de L, em que o fundo do primeiro segmento estava decorado por um gigantesco bufete de acaju, coberto pelos célebres bolos da casa e também por salgados ‑ foiegras, empadas, pequenas tartes de carne, geleia de carne ou peixe, e toda a espécie de fatias de pão barradas ‑ permitindo satisfazer o mais voraz apetite.

O outro segmento do L dividia‑se em duas salas mobiladas com mesas de tampos de mármore, mas só se podia fumar numa delas. O resto da decoração consistia num antigo pavimento ladrilhado, com espelhos da época e pequenos candelabros de parede.

Depois de ter feito a sua escolha diante do bufete ‑ salmão com molho esverdeado, pequenas tartes de carne e alguns bolos ‑ e de a ter encomendado a uma das empregadas em uniforme preto e branco, Morosini escolheu uma mesa a um canto da sala para fumadores e aceitou o jornal, estendido como uma grande borboleta num quadro de verga, que era oferecido aos clientes para que passassem o tempo enquanto não chegava a encomenda. No entanto não o leu, preferindo deixar‑se impregnar por uma atmosfera que sempre achara divertida. A sala enchia‑se de clientes habituais que se saudavam, marcando o ambiente com aqueles títulos intermináveis que os austríacos tanto gostavam e cuja suporte era sempre Herr Doktor, mesmo quando não se tratava de um médico, ou Herr Direktore e Herr Professor, mas alguns podiam alcançar as dimensões de uma verdadeira lengalenga.

Como o seu perseguidor se instalara numa mesa mesmo em frente, não pôde deixar de reparar nele, tanto mais que o jovem o fixava de tal modo, que se tornava insolente.

Um pouco aborrecido, mas sem vontade alguma de arranjar problemas a este desconhecido cuja cabeleira lembrava um telhado de colmo irregular, Morosini escondeu‑se atrás do jornal até que lhe trouxessem o almoço, ao qual se dedicou em seguida. Um rápido relance de olhos fê‑lo ver que o outro fazia a mesma coisa, mas tendo privilegiado os bolos de amêndoa com compota, os Strudele os Schlagober, que devorou em quantidade incrível e com a rapidez de uma corrente de ar, pelo que conseguiu acabar de comer quando Aldo mal tinha começado a provar a sua tarte de carne.

Após ter bebido a sua terceira chávena de café, o jovem glutão pareceu reflectir, período durante o qual a sua disposição não melhorou. Ficou todo vermelho, enquanto as sobrancelhas se franziam a ponto de se unirem. Finalmente, levantou‑se completamente, meteu na cabeça o seu chapéu de feltro verde enfeitado com uma pena e foi direito a Morosini.

‑ Senhor ‑ articulou ‑ não tenho grande coisa a dizer‑lhe, a não ser o seguinte: deixe‑a tranquila!

Aldo ergueu o nariz do seu Spanische Windtorte para encarar o recém‑chegado.

‑ Senhor ‑ respondeu‑lhe com um sorriso ‑ não tenho a honra de conhecê‑lo e se fala por enigmas teremos dificuldade em en‑tendermo‑nos. A quem se refere?

‑ Sabe muito bem, e se o senhor é uma pessoa de bem, compreenderá que me recuso a pronunciar um nome que não deve ser divulgado pelos cafés, mesmo quando são tão respeitáveis quanto este!

‑ Essa delicadeza muito o honra mas, nesse caso, não mo quererá dizer lá fora? Se é que me permite deixar‑me acabar a sobremesa e beber o café!

‑ Não tenciono demorar‑me; apenas lhe quero dar um bom conselho: deixe de girar à volta dela! O interesse que dedica desde há pouco tempo a um certo palácio devia dar‑lhe a entender o que quero dizer. Criado! Senhor!

E sem dar tempo a Morosini para se levantar, o Cavaleiro da Pena atravessou o Demel e desapareceu pela porta batente. A princípio aliviado por se ter desembaraçado de alguém que considerava como louco, Aldo não demorou contudo a reagir: aquele rapaz só podia estar a referir‑se à dama de preto e, consequentemente, devia saber onde ela estava. Deste modo, largando o seu bolo, Vent d'Espagne, que mal principiara, deixou o dinheiro em cima da mesa e precipitou‑se para a saída sob o olhar horrorizado da empregada: um comportamento tão agitado destoava completamente do ambiente daquela casa!

Ao chegar à rua, constatou infelizmente que mesmo que se pudessem avistar vários chapéus verde‑escuro com uma pena, nenhum deles cobria a cabeça esperada: o fogoso jovem sumira na natureza!

Depois de hesitar um momento sobre o que devia fazer, Aldo decidiu não regressar ao Demel, mas como não tivera tempo para beber o café e tinha grande vontade de o fazer, regressou ao hotel onde foi encomendar um, ao bar. A calma que ali reinava àquela hora do dia era propícia à reflexão e ele não perdeu o ensejo, pois não escondia a si mesmo que se encontrava realmente num impasse: a mulher das rendas desaparecera. Quanto ao palácio Adlerstein, já não tinha qualquer hipótese de lá entrar. O criado soturno bater‑lhe‑ia com a porta na cara se ele tivesse o mau gosto de se apresentar.

Conclusão: era preciso encontrar uma maneira de ver a dona do local fora de Viena, isto é, no seu domínio perto de Salzburgo.

Esta era uma das mais belas regiões da Áustria e Morosini não via qualquer inconveniente em ir visitá‑la. Mas para isso tinha ainda de saber qual o nome do castelo e o local onde ficava.

Uma tentativa para se informar junto a Frau Sacher não deu nenhum resultado: se a célebre Anna conhecia Viena e os seus habitantes como a sua própria casa, quanto à província ela ignorava praticamente tudo.

‑ Mas ‑ acrescentou ‑ por que não pergunta ao barão Palmer, visto que são amigos?

‑ Amigos, é dizer muito! Relacionamo‑nos, é tudo. Há muito que a senhora o conhece?

‑ Ele veio cá várias vezes antes da guerra. Nunca ficava muito tempo. Sempre foi um grande viajante. Muito ligado à família Rothschild, agora é lá que se instala quando visita a Áustria. Mas quando está em Viena nunca deixa de vir cá almoçar ou jantar. Às vezes na companhia do barão Louis, e eu não ficaria nada surpreendida se houvesse algum parentesco entre eles...

Morosini susteve um sorriso: um parentesco com os famosos banqueiros «colava» muito pouco ao que Aronov lhe contara acerca dos seus, massacrados aquando do pogrom de Nijni‑Novgorod em 1882. Porém, às vezes a História revelava exemplos bem singelos... e talvez isso explicasse parcialmente a enorme fortuna da qual o Coxo parecia dispor...

‑ Eu também não! ‑ respondeu finalmente. Em seguida, com ar distraído, acrescentou: ‑ Ele mora sempre em... oh, nunca me consigo lembrar do nome!...

‑ Como fixar um nome que tem mais consoantes que vogais? A mim acontece‑me o mesmo, príncipe ! Tudo o que me lembro é que não é muito longe de Praga! ‑ respondeu inocentemente Frau Sacher subindo os seus numerosos colares de pérolas. ‑ Tenho de procurar nas fichas antigas para encontrá‑lo.

‑ Não se dê a esse trabalho! Eu também o devo ter anotado em qualquer lado ‑ disse Aldo hipocritamente, um pouco desiludido pela sua armadilha não ter funcionado. Os arredores de Praga não lhe ensinavam nada de novo sobre o seu misterioso cliente, pois já sabia que ele dispunha de diversos domicílios. Nesse caso, por que não Praga, que sempre fora um dos locais da alta sociedade judaica?...

Um pouco depois chamava um fiacre. Como deixara de chover, apesar das suas preocupações Morosini desfrutou o passeio na direcção do elegante quarteirão do Belvedere, no qual o palacete Rothschild ocupava um proeminente lugar.

Um maitre d'hôtel muito empertigado, que mal se inclinou quando Morosini lhe declinou o nome, recebeu‑o no grande vestíbulo encabeçado por uma cúpula, que era o coração da casa, introduzindo‑o depois num salão marcado pelo inegável fausto um pouco pesado que era o de todas as residências da família. Momentos depois, o passo irregular do barão Palmer ecoava pelos brilhantes parques Versalhes.

‑ Podemos falar aqui? ‑ perguntou Morosini, após as formalidades iniciais.

‑ Absolutamente. Os criados de um Rothschild nunca ousariam escutar às portas. São sempre de grande qualidade! Que se passa?

‑ Já lhe direi, mas antes gostava de saber porque me mandou chamar se já dispõe de Vidal‑Pellicorne?

Ao erguer o sobrolho, Aronov deixou escapar o monóculo:

‑ Adalbert por cá! Palavra que não estava ao corrente! Como soube?

‑ Ao ver um criado a lavar um carro no pátio do palácio Adlerstein. Acontece que era mesmo o carro de Adal e não vejo lá muito bem como poderia estar ali sem o seu proprietário...

‑ Eu também não mas, como estava presente no local, por que não perguntou?

‑ Não estava verdadeiramente presente. Na realidade, estava a ser escorraçado pelo criado que encontrei ontem. Tenho a impressão que se passam coisas muito estranhas naquele palácio ou que, pelo menos, residem lá pessoas estranhas...

‑ Vai contar‑me tudo isso daqui a pouco...

Depois de se ter anunciado com um bater discreto, um criado de libré inglesa entrou na sala com uma bandeja para servir o café que veio colocar sobre uma mesa de pé‑de‑galo, após o que serviu a bebida:

‑ Não era preciso pedir nada para mim ‑ disse Aldo.

‑ Mas eu não pedi nada ‑ disse Aronov com um dos seus raros sorrisos que conferiam um verdadeiro charme ao seu rosto um pouco severo.

‑ Isto é apenas a hospitalidade Rothschild. Quando se é admitido em casa deles é‑se imediatamente servido. Em Londres, ter‑vos‑iam oferecido chá ou uísque. Aqui, claro, é o café, a paixão nacional.

‑ E tudo isto porque, ao fugirem depois de falharem o cerco de 1863, os turcos deixaram para trás uma tal quantidade de sacos de café que os vienenses acabaram por lhe tomar o gosto. Como acontecem as coisas!

‑ Não sou eu quem irá contradizê‑lo. Agora, fale!

Morosini contou então as três aventuras que vivera à volta daquela «ruela da Porta do Céu», que tão pouco o era para ele: a sua partida nocturna, a visita matinal e, finalmente, o incompreensível diálogo que tivera com o jovem de chapéu verde. Acabou anunciando a sua intenção de se deslocar à província a fim de encontrar a condessa o mais depressa possível.

‑ Infelizmente não tenho a menor ideia onde ela se encontra. Próximo de Salzburgo é muito vago! Frau Sacher aconselhou‑me a interrogá‑lo a esse respeito: na opinião dela o senhor seria o homem mais bem‑informado.

‑ Ela honra‑me muito, mas ainda ontem à noite o ignorava. Depois informei‑me. Ia enviar‑lhe um bilhetinho: o antigo castelo da família ‑ ou melhor, a ruína ancestral ‑ fica perto de Hallstatt mas, como não está em condições de ser habitado, os Adlerstein, que são pessoas chegadas à corte, mandaram construir uma moradia ‑ ou antes, um castelo! ‑ perto de Bad Ischl. Chama‑se Rudolfskrone e, ao que parece, é muito bonita. Julgo que não terá qualquer dificuldade em que lhe indiquem o local exacto.

Morosini anotou a informação no seu canhenho que trazia sempre nos bolsos, acabou o café e despediu‑se.

‑ Pensa partir em breve? ‑ perguntou o Coxo.

‑ Se possível, ir‑me‑ei já embora. Ao voltar ao hotel vou perguntar qual a hora a que parte o primeiro comboio para Salzburgo e irei logo nele... mas, posso pedir‑lhe um pequeno serviço?

‑ Naturalmente.

‑ Procure saber o que anda Adalbert a fazer por aí. Mesmo que não fosse obrigado a partir, não posso ficar dia e noite de guarda ao palácio Adlerstein à espera que ele saia.

‑ Isso concorda com as minhas intenções. Eu ocupar‑me‑ei do assunto. Pode partir tranquilo!

Contudo estava escrito algures que Morosini não apanharia o comboio para Salzburgo. Ao regressar ao Sacher entregaram‑lhe um telegrama que acabara mesmo de chegar.

 

«Queira desculpar‑me, mas peço‑lhe que regresse imediatamente. Estou confrontado com uma situação, relativamente à qual nada posso decidir, tanto mais que Cecina ameaça despedir‑se. Afectuosamente, Guy Buteau.»

 

Mais que contrariado, Aldo meteu o papel azulado no bolso, pegou no telefone interior com a intenção de ligar para casa mas, depois de reflectir um momento, contentou‑se em pedir que lhe reservassem uma carruagem‑cama no comboio da noite para Veneza. Se Buteau, que conhecia tão bem quanto ele as virtudes do telefone, preferira enviar um telegrama, era porque devia haver um bom motivo. Morosini não tinha a menor ideia do que se tratava, mas para que o assunto tivesse colocado Buteau numa situação embaraçosa e feito explodir Cecina, era preciso que fosse algo de muito desagradável.

Depois de ter chamado um criado para lhe preparar as bagagens, Morosini pediu para lhe ligarem para o palácio Rothschild, mas não conseguiu contactar o barão Palmer, pois este acabara de se ausentar.

‑ Queira transmitir‑lhe uma mensagem: diga‑lhe que o príncipe Morosini foi chamado de urgência a Veneza e que regressará logo que puder.

Uma hora depois, um táxi conduzia‑o à Kaiserin Elisabeth Banhof, onde o esperava o comboio para Veneza.

 

             UMA BOA SURPRESA

Quando a motoscaffo desligou o motor para deslizar pelo sulco que desenhara na água e encostar junto às escadas do palácio Morosini, Cecina irrompeu do grande vestíbulo, tal uma Erínias (NT) rechonchuda, cujo amplo avental imaculado tinha cada vez maior dificuldade em rodear‑lhe a cintura. Naquela manhã as fitas de cores que flutuavam habitualmente na coifa napolitana, que ela nunca tirava, eram de cor vermelha, como se o génio familiar dos Morosini arvorasse, à moda dos corsários e piratas de antanho, o sinal da «Inclemência», a longa e temível chama escarlate que indicava ao inimigo que não seriam feitos prisioneiros. E o seu rosto determinado estava tão fechado que Aldo, desta vez inquieto, perguntou a si mesmo que catástrofe se teria abatido sobre a sua casa.

Mas nem sequer teve tempo para articular uma palavra. Mal pós os pés na escadaria, Cecina pegou‑lhe no braço e levou‑o para dentro como se o fosse pôr a ferros. Claro que tentou libertar‑se, mas ela segurava‑o bem e, desestabilizado pela surpresa, só conseguiu proferir um vago bom dia a Zaccaria que olhava a cena com um ar constrangido, antes de atravessar o cortile com a rapidez de uma corrente de ar. Momentos depois a cavalgada vingativa de Cecina terminava na cozinha, onde a gorda mulher consentiu finalmente em largar o seu amo, com tanta precisão que este se encontrou sentado num banco. O choque devolveu‑lhe a fala:

 

*nt. Uma das Fúrias, também conhecidas entre os gregos pelos nomes propiciatórios de Eumênides (as "benevolentes") e de SemnaiTas "Sagradas"). Nasceram das gotas do sangue perdido por Urano após a sua mutilação; aparecem como mulheres aladas, às vezes cercadas de serpentes e transportando chibatas e tochas.

 

‑ Mas que recepção é esta? O que te deu para me arrastares desta maneira sem me dares sequer tempo para dizer «ufa»?

‑ Era a única maneira de ter a certeza que falarias comigo em primeiro lugar, antes de o fazeres com outra pessoa.

‑ Falar do quê, se fazes favor? Ao menos podias dar‑me tempo para chegar e beber uma chávena de café. Sabes que horas são?

Os sinos de Veneza tocaram as ave‑marias matinais, o que dispensou Cecina de responder. Ela benzeu‑se, efectuando um amplo sinal de cruz antes de ir pegar na cafeteira que conservara ao quente num canto do fogão, e de regressar para se instalar do outro lado da grande mesa de carvalho envernizado, enchendo uma chávena já colocada junto a um açucareiro.

‑ Sei ‑ respondeu ‑ e contava que desembarcasses no comboio da manhã. A esta hora estão todos a dormir e podemos conversar. Quanto ao café, é por ainda gostar de ti que o preparei, mas um grande fingidor como tu não o merece!

As sobrancelhas do príncipe ergueram‑se um bom centímetro, movidas pela surpresa e pela incompreensão:

‑ Eu, um grande fingidor? E «ainda gostas» de mim? Mas o que significa isto tudo?

Cecina colocou os dois punhos na madeira envernizada da mesa e dardejou sobre o recém‑chegado um olhar fulgurante e sombrio.

‑ E que termo empregas para designar um homem que tem segredos para aquela que dele se ocupou desde o primeiro berro? Julgava que contava um pouco mais para ti. Mas não! Agora que estou velha, já não conto nada para Sua Excelência! Sua Excelência arranjou algures uma noiva e nem sequer se digna informar‑me do sucedido! Também é verdade que não há motivos para se sentir orgulhoso! E, se fosse a ti, teria antes vergonha!

‑ Eu? Eu tenho uma noiva? ‑ conseguiu articular Morosini, caindo das nuvens. ‑ Mas onde foste buscar isso?

‑ Oh, não muito longe! No quarto das quimeras, quer dizer, na parte menos agradável da casa. Foi lá que a instalei. Não querias que a pusesse nos teus aposentos, pois não? Ou, já agora, por que não no quarto da tua mãe, dado que ela tem a audácia de querer tomar o seu lugar? Essas raparigas de hoje não têm vergonha nenhuma e ela terá de contentar‑se com o que lhe arranjei... até logo à noite! Não ficaria nada bem que uma donzela dormisse sob o mesmo tecto que o seu futuro esposo.

É verdade que as conveniências e essa criatura não parecem formar grande parelha! E como ela é certamente suficientemente rica para ir para um hotel, se ela cá ficar, noiva ou não, serei eu a ir‑me embora!

Cecina calou‑se para retomar fôlego. Aldo sabia desde há muito que quando ela estava lançada daquela maneira era impossível pará‑la, pelo que a sabedoria aconselhava‑o a ter paciência. Mas como ela já abria a boca para prosseguir a sua filípica, ele levantou‑se e, indo ao seu encontro, segurou‑a pelos ombros e obrigou‑a a sentar‑se.

‑ Se não me deixares dizer uma palavra, não há maneira de nos entendermos. E, antes de mais, diz‑me lá como se chama a minha... noiva...

‑ Não me trates como uma idiota! Sabes melhor que eu!

‑ É aí que te enganas. Estou a descobri‑lo agora e tenho pressa em ser posto ao corrente.

‑ Creio que é melhor ser eu a explicá‑lo ‑ pronunciou a voz doce de Guy Buteau que se introduzira de mansinho na cozinha acabando de apertar o cinto do seu roupão. ‑ E, antes de mais, devo‑lhe algumas desculpas, meu caro Aldo. Queria ir buscá‑lo à estação com Zian e a motoscaffo mas dormi que nem uma pedra e nem sequer ouvi o despertador ‑ acrescentou, passando uma mão pelo rosto com a barba ainda por fazer, procurando apagar as marcas do sono. ‑ Contudo, isso nunca me acontece!

‑ Não se desculpe, amigo! ‑ pediu Aldo, apertando ambas as mãos do seu antigo preceptor. ‑ Acontece a toda a gente não conseguir acordar. Uma boa chávena de café irá recompô‑lo bem depressa ‑ acrescentou, voltando‑se para Cecina com presteza suficiente para lhe surpreender um fugaz sorriso de satisfação no seu amplo rosto de marfim. ‑ Diz‑me lá, tu não lhe terás dado uma tisana ontem à noite?

Se esperava desorientar a sua cozinheira‑governanta, estava muito enganado. Ela ergueu o nariz e pôs as mãos nas ancas:

‑ Claro que lhe dei uma tisana. Uma deliciosa mistura de flor de laranjeira, tília e pilriteiro, com uma pitada de valeriana. Ele estava um autêntico feixe de nervos. Tinha de dormir... e não podia passar‑me à frente. Eu queria ser a primeira a ver‑te e a estar contigo a sós. ‑ Pois bem, conseguiste o que querias Cecina! ‑ suspirou Aldo, sentando‑se à mesa. ‑ E agora, que tal se nos servisses um verdadeiro pequeno‑almoço enquanto falamos? Pelo menos, não me acusarás de ter tentado pôr‑te de lado.

‑ Nunca disse tal coisa...

Ia de novo saltar para cima de outro cavalo de batalha quando Aldo, exasperado e dando um grande murro na mesa, desatou a gritar:

‑ Mas quando é que algum de vocês se vai finalmente decidir a dizer‑me quem está a dormir no quarto das quimeras?

‑ Lady Ferrais! ‑ anunciou Guy, açucarando generosamente o café.

‑ Repita lá isso outra vez ‑ pediu Aldo, que julgara ter ouvido mal.

‑ Julga ser necessário? É mesmo lady Ferrais que nos chegou ontem de manhã, anunciando‑se como sua futura ‑ e próxima! ‑ esposa, e quase exigindo que a hospedássemos.

‑ Qual «quase»! ‑ corrigiu Cecina. ‑ Ela exigiu mesmo, dizendo que ficarias furioso se, ao regressares, te apercebesses que a tínhamos deixado instalar‑se noutro lugar.

‑ Mas que insensatez! E de onde é que ela veio?

‑ Do Havre, onde desembarcou há pouco a bordo do paquete France. Veio para cá directamente. Acrescento que parecia inquieta, nervosa, e que ficou muito desiludida pela sua ausência. Parecia estar perfeitamente convencida que a esperava.

‑ Realmente? Já não a vejo desde... Londres, e ela acha estranho que eu não esteja aqui quando decide aparecer? É um pouco excessivo, não é?

‑ Também me parece, mas que podia eu fazer? Foi por isso que enviei um telegrama.

‑ Fez muito bem e vou pôr isto tudo em pratos limpos.

‑ Quanto a mim, o que gostaria de saber é o que há de verdadeiro nesta história. Ela é ou não a tua noiva?

‑ Não. Admito ter‑lhe feito uma proposta de casamento no ano passado, mas esse projecto não lhe pareceu digno de atenção. Por isso, Cecina, não tens quaisquer motivos para fazer as tuas malas... Prepara‑me antes algumas gambás para o almoço...

Deixando a cozinha, Morosini encaminhou‑se para a escada no intuito de ir tratar um pouco da sua toilette. Aliás foi encontrar Zaccaria no seu quarto, ocupado a preparar‑lhe um banho como era seu hábito cada vez que o amo regressava a casa:

‑ Zaccaria, gostava que fosses saudar lady Ferrais da minha parte e que lhe dissesses para ter a amabilidade de vir ter comigo à biblioteca por volta das dez. Compreendido?

‑ Parece‑me muito claro! Talvez um pouco solene, não?

O recado não encantava o velho mordomo que, ao invés da esposa, nunca discutia as ordens. Foi transmitir a mensagem e depois regressou para dizer que estava tudo tratado, sem acrescentar qualquer comentário.

Mergulhado na banheira, Aldo procurou desfrutar plenamente do seu momento preferido do dia: a altura em que se banhava na água perfumada de lavanda, enquanto fumava um cigarro ‑ era sempre aí que conseguia reflectir melhor...

Pensara frequentemente em Anielka no decurso de todos aqueles últimos meses. Aliás, com uma irritação crescente. O silêncio com que ela optara por desaparecer depois de ter sido ilibada pelo tribunal de Old Bailey começara por parecer a Morosini algo de surpreendente ‑ ele tivera imenso trabalho para merecer ao menos um agradecimento! ‑ e, depois, acabara por sentir‑se magoado e julgá‑lo francamente ofensivo. E eis que a bela polaca lhe caía em casa como um raio, sem se preocupar minimamente com os estragos que podia provocar ao ousar declarar‑se como sua noiva.

‑ E se eu estivesse a viver com alguém? ‑ indignou‑se Morosini, servindo‑se de uma segunda dose de tabaco inglês. ‑ É um golpe capaz de dar cabo de um casal... ou de um embrião de casal! A sua cólera continuava à medida que acabava de se lavar. Vestiu uma camisa de um azul‑ligeiro e um fato de flanela tão inglês quanto o seu tabaco. Escovou os espessos cabelos castanhos que os seus quarenta anos tinham acinzentado ligeiramente nas têmporas e que acrescentavam um charme suplementar ao rosto moreno, no qual a descontracção de um sorriso, que revelava belos dentes brancos, temperava a arrogância do nariz e o brilho dos olhos de um azul de aço, facilmente trocistas. Lançou apenas um olhar discreto à sua imagem e desceu por fim à biblioteca não sabendo muito bem qual o efeito que lhe iria provocar o seu encontro.

Como ainda não eram dez horas, pensou ser o primeiro a chegar. No entanto, ela já lá estava. Se ficou contrariado, isso durou apenas um momento: como não fizera qualquer ruído ao entrar, teve tempo para contemplar à vontade aquela jovem que, aos vinte anos precisos, encontrara maneira de deixar atrás de si um passado já carregado e a sombra trágica de dois homens: o marido, sir Eric Ferrais, o riquíssimo comerciante de canhões, assassinado por envenenamento, e o seu amante, Ladislas Wosinski, que se enforcara.

Tinha aberto um dos cartulários e examinava de pé uma antiga carta marítima, junto ao enorme mapa‑mundo com uma armação de bronze, colocado diante da janela principal. A sua fina silhueta recortava‑se harmoniosamente à luz do Sol e a imagem que oferecia continuava a ser sempre encantadora. No entanto, havia nela algo de diferente e Aldo não teve a certeza se a mudança lhe agradava. É certo que o vestido curto, de um tom de mel condizendo com a cor dos olhos da jovem, revelava até à altura dos joelhos as mais lindas pernas que se poderiam imaginar, mas os belos cabelos louros que sempre tinham emocionado tanto Aldo estavam agora reduzidos a um pequeno capacete luzidio, sem dúvida à última moda, mas que lhe assentavam muito menos que o antigo penteado. A América e as suas extravagâncias, Paris e a sua moda de cabelos cortados à rapaz tinham por ali passado, e isso era mesmo uma pena.

No entanto, apesar do que julgava, Anielka devia tê‑lo ouvido chegar. Sem tirar os olhos do venerável pergaminho que contemplava, ela disse numa voz tão natural como se se tivessem apenas separado umas horas antes:

‑ Meu caro Aldo, você tem aqui umas verdadeiras maravilhas!

‑ Esta biblioteca é a única divisão do palácio, conjuntamente com o quarto da minha mãe, de onde não retirei nada quando decidi montar a minha loja de antiguidades. Mas foi para admirá‑las que se deu ao trabalho de vir até cá? Existem museus muito mais interessantes por esse mundo fora!

Com um gesto desenvolto em que transparecia um certo desafio, ela deixou cair o antigo portulano, cuja queda Aldo aparou, antes de voltar a colocá‑lo no seu devido lugar.

‑ Nunca me senti atraída pelos museus: bem sabe que gosto sobretudo de jardins. Só peguei nisto para passar o tempo enquanto o esperava mas, mesmo assim, sei reconhecer o valor das coisas.

‑ Ninguém o diria!

Voltando‑se bruscamente ele encostou‑se ao móvel e perguntou friamente:

‑ Que veio cá fazer?

Uma surpresa plena de inocência arregalou ainda mais os olhos dourados da jovem:

‑ Mas que acolhimento! Confesso que esperava outra coisa. Não houve um tempo em que se declarava meu cavaleiro, em que me queria persuadir de segui‑lo até Veneza onde, uma vez sua esposa, nada mais teria a temer?

‑ É verdade mas não escolheu outro esposo pouco tempo depois? Continua sendo lady Ferrais, ou estarei enganado?

‑ Não, não se enganou, é assim que continuo a chamar‑me.

‑ E como não me recordo de ter pedido a mão dessa dama, não me agrada que tenha chegado aqui anunciando‑se como minha noiva!

‑ É por isso que está zangado? Não seja estúpido, meu caro amigo! Sabe muito bem que sempre o amei e que, mais cedo ou mais tarde, pertenceremos um ao outro...

‑ Essa sua certeza encanta‑me, mas temo não a compartilhar. Tem de admitir, cara amiga, que fez tudo para esfriar os meus sentimentos. A última vez que cruzámos os nossos olhares, estava a sair do tribunal em companhia do seu pai, desaparecendo ambos no meio da neblina inglesa antes de embarcarem rumo aos Estados Unidos. Tudo factos que soube através do superintendente Warren, pois você nunca se dignou prevenir‑me. No entanto um bilhete é algo que se rabisca depressa! Sem falar, claro, de um simples telefonema.

‑ Esquece‑se do meu pai. Logo que fui libertada ele não me largou nem mais um segundo. E não gosta nada de si, apesar de tudo o que fez para me socorrer quando fui acusada daquele crime horrível. O bom senso recomendava‑me que lhe prestasse ouvidos, que partisse e me fizesse esquecer, pelo menos durante algum tempo...

‑ Então não se queixe por tê‑lo conseguido! Posso saber quais são os seus projectos agora? Mas, primeiro, sente‑se...

‑ Não estou cansada.

‑ Como queira...

Anielka deslocou‑se lentamente pela ampla sala, aproximando‑se da janela e Aldo apenas pôde contemplar o seu perfil esbatido.

‑ Já não me ama? ‑ murmurou.

‑ É uma pergunta que não me pretendo colocar. Está mais bela que nunca ‑ ainda que deplore que tenha sacrificado os seus cabelos! ‑ e, se fizesse a pergunta de outra maneira, responder‑lhe‑ia que continua a agradar‑me...

‑ Por outras palavras, continuo a parecer‑lhe desejável?

‑ Que pergunta mais idiota!

‑ Nesse caso, se não deseja desposar‑me, faça de mim a sua amante... mas tenho de ficar aqui!

Regressara para ele a correr e pousou‑lhe as finas mãos nos ombros sólidos, erguendo na sua direcção um olhar suplicante no verdadeiro sentido do termo, pois tinha lágrimas nos olhos.

‑ Suplico‑lhe, não me mande embora! ‑ implorou‑lhe. ‑ Possua‑me, faça de mim o que quiser, mas deixe‑me ficar consigo!

Estava muito sedutora, com a boca tremendo‑lhe daquela maneira, com as pestanas cintilantes e exalando um subtil perfume, indefinível e cativante ‑ certamente uma mistura dispendiosa, concebida para a sua pessoa por algum mestre dos aromas! ‑ mas Aldo não reencontrou a vibração que o animava quando ela era uma prisioneira destinada à forca, e que a visitava na prisão de Brixton, numa altura em que o seu único adorno era um vestido austero e a sua beleza loura era quase irreal. Porém, ficou sensibilizado pela angústia que transparecia em todo o seu ser.

‑ Venha! ‑ disse‑lhe com brandura, pegando‑lhe no braço para conduzi‑la até um sofá antigo, colocado perto da chaminé. ‑ Tem de explicar‑me isso tudo de modo a que eu entenda bem em que situação se encontra. Depois, logo veremos o que fazer. Mas primeiro explique‑me, por que tem tanto medo e do quê?

Enquanto ele se acocorava para aquecer a sala atiçando o fogo, ela foi buscar o pequeno saco a condizer com o vestido que colocara em cima de um móvel. Ao regressar para se sentar, tirou alguns papéis e estendeu‑os a Aldo:

‑ É disto que tenho medo! Em Nova Iorque recebia cada vez mais ameaças de morte como esta! Pegue! Leia!

Aldo desdobrou o bilhete, mas devolveu‑lho imediatamente:

‑ Devia ter escrito a tradução: não leio nem falo o polaco...

‑ É verdade, desculpe‑me! Pois bem, em linhas gerais estas mensagens acusam‑me de ter causado a morte de Ladislas Wosinski. Segundo elas, ele não se teria suicidado, mas teria antes sido morto, depois de se ver obrigado a escrever uma falsa confissão destinada a salvar‑me...

Morosini recordou‑se então das confidências do superintendente aquando do pequeno‑almoço que tinham tomado juntos antes que ele e Adal deixassem a Inglaterra. Ele também lhe confessara as dúvidas que o atormentavam acerca desse suicídio num modesto apartamento de Whitechapel, que viera tão a propósito na altura em que o julgamento de Anielka se encaminhava a grandes passos para uma sentença de morte. Warren achava que se tratava de uma encenação, perfeitamente orquestrada pelo pai de Anielka, o conde Solmanski, não tendo ainda perdido a esperança de encontrar um dia a chave do enigma e, aparentemente, não era o único a acalentá‑la.

‑ Que diz o seu pai?

‑ Apelou à polícia, mas esta não levou as ameaças a sério. Para ela trata‑se de uma história entre polacos, personagens demasiado românticas e excessivas para que se dê crédito às suas desavenças. O meu pai contratou então os serviços de um detective privado encarregue de me vigiar, mas que não conseguiu impedir dois atentados: sem qualquer motivo aparente, a minha suite do Waldorf Astoria pegou fogo e quase fui atropelada ao sair de Central Park... Nessa altura pedi‑lhe que me levasse para fora da América. Em primeiro lugar o país não me agrada: as pessoas são excessivas, brutais, frequentemente mal‑educadas e tão satisfeitas delas próprias!

‑ Não me diga que não encontrou alguns homens do seu agrado que se ajoelhassem diante de si, oferecendo‑se para defendê‑la? ‑ zombou Morosini. ‑ O quê? Nem um único apaixonado?

‑ Havia até demais, a tal ponto que era impossível determinar quem estava a ser ou não sincero. Não se esqueça que eu sou uma jovem viúva muito rica e, ainda por cima, bela!

‑ Quem pensaria em esquecê‑lo? Foi por se ter encontrado embaraçada a esse ponto que pensou em mim?

‑ Não ‑ respondeu a jovem com certa candura, o que trouxe um sorriso irónico aos lábios de Aldo. ‑ Primeiro refugiei‑me em casa do meu irmão, que mora num magnífico domínio na costa de Long Island mas, ao fim de algum tempo, não me senti lá muito à vontade. A minha cunhada Ethel até é uma pessoa gentil, mas ela e Sigismond levam uma vida insensata: correm de festa em festa e há sempre gente em casa. Não sei como o meu irmão pode suportar uma existência tão extenuante!

‑ Deve agradar‑lhe! Mas porque ficou lá tanto tempo? O que é que a retinha, quando possui bens em Inglaterra e também em França? Sem contar, sem dúvida, com aqueles que eu ignoro...

‑ Penso que foi a sensatez. O meu pai assegurava que era melhor cortar radicalmente com o que acabara de ocorrer na Europa para deixar amainar as vagas e os turbilhões levantados por este malfadado caso. Um ano parecia‑lhe o prazo indicado. Entretanto lançou‑se um pouco nos negócios. É coisa fácil na América quando se dispõe de recursos! Deixou‑se apanhar a esse jogo e desatou também a percorrer o país de lés a lés. Dir‑se‑ia que até foi acometido pela febre do ouro...

‑ Percorria o país? Mas que raio de maneira de protegê‑la!

‑ Oh, havia sempre gente à minha volta mas eu aborrecia‑me, entediava‑me espantosamente, a ponto de por vezes chegar a apreciar o perigo, pois isso entretinha‑me. Depois, um belo dia, soube que John Sutton acabara de chegar a Nova Iorque. Wanda avistou‑o. Então entrei em pânico. Escapuli‑me, aproveitando uma ausência do meu pai.

‑ Mas que ideia! No seu lugar teria enfrentado o inimigo! Que é que ele lhe podia fazer?

‑ Mas eu enfrentei‑o! Foi uma experiência horrível! Ele continua persuadido que matei o meu marido; pretende ter até a prova...

‑ Então de que está à espera para se servir dela? ‑ perguntou desdenhosamente Aldo.

‑ Porque descobriu melhor: pretende estar apaixonado por mim e quer desposar‑me. Apanhada entre ele e os polacos, só me restava uma saída: desaparecer da circulação. Foi o que fiz com a ajuda de Wanda e do meu irmão. Sigismond conseguiu obter‑me um passaporte falso.

‑ Dir‑se‑ia que conservou alguns bons contactos com a escumalha...

‑ Com dinheiro, obtém‑se tudo o que se quiser na América. Presentemente sou miss Anny Campbell. Sigismond também tratou de me arranjar um bilhete para viajar a bordo do paquete France.

‑ E qual foi o destino que lhe indicou? Disse‑lhe que contava vir a minha casa?

Ela olhou‑o severamente:

‑ Está a gozar? Não é contudo a altura apropriada. Sigismond detesta‑o...

‑ Isso é quase um eufemismo. Diria antes que ele me abomina! Sentimento que eu partilharia em relação a ele, caso pensasse que isso valeria a pena.

‑ Não seja tão mau! Disse‑lhe que tencionava ficar em França ou na Suíça, especificando‑lhe que lhe daria notícias minhas quando tivesse encontrado um lugar seguro e aprazível.

‑ E, dadas as nossas relações de outrora, julga que os seus não se irão recordar da minha existência?

‑ Não há motivo para isso. Faz brevemente um ano que deixámos de ter contactos e eles devem pensar que tive por si um daqueles arrebatamentos de adolescente sem consequências de maior. Não, não creio que eles venham procurar‑me em Veneza.

‑ Minha cara, é muito difícil saber aquilo que até o nosso vizinho mais próximo julga ou não. Está fora de questão escondê‑la aqui!

A decepção dolorosa que leu no olhar que tanto amara fez‑lhe pena mas não o transtornou. Aliás não entendia muito bem o que se passava com ele. Um ano antes teria aberto os braços sem procurar imaginar as possíveis consequências do gesto. Só que nessa altura estava loucamente apaixonado por Anielka e pronto a correr todos os riscos por ela. Simon Aronov bem o sentira, deslocando‑se a Londres para puxar o sinal de alarme. Agora as coisas tinham mudado, talvez porque a sua confiança cega de outrora tivesse sido abalada pelas contradições de lady Ferrais que, enquanto jurava que só o amava a ele, optara entretanto por ficar na companhia de um esposo detestado e não hesitara em voltar a ser a amante do seu antigo namorado, Ladislas Wosinski. Por muito que ela jurasse que não fora bem assim que as coisas se tinham passado, Morosini tinha certa dificuldade em acreditar que se podia levar um homem até ao extremo de assassinar o seu semelhante, oferecendo‑lhe apenas a ponta dos dedos. Não, já não estava tão cativo como outrora...

‑ Então põe‑me na rua? ‑ murmurou a jovem.

‑ Não, mas não pode ficar em minha casa. Contrariamente ao que pensa, aqui não ficaria em segurança e poderia até comprometer a dos seus moradores. O que quero evitar a todo o custo: eles são a minha família e eu estimo‑a muito!

‑ Por outras palavras, não se sente com estofo para me defender ‑ disse ela desdenhosamente. ‑ Será medroso?

‑ Não diga disparates! Já lhe dei provas suficientes do oposto. Posso assumir qualquer defesa e os homens que aqui vivem não são cobardes, mas também já não são jovens. Quanto a mim, estava a tratar de negócios no estrangeiro e só voltei para me ocupar de si, mas tenho de voltar a partir. Portanto, está fora de questão deixar esta casa consigo cá dentro! Meta bem na sua linda cabecinha que se Veneza não é grande, a sua colónia internacional é importante e que, além disso, é também uma encantadora caixinha de mexericos. A presença em minha casa de uma linda mulher como você, suscitaria comentários!

‑ Então, case‑se comigo! Ninguém encontrará nada a dizer!

‑ É isso que julga? E o seu pai, o seu irmão, que tanto me adoram? Acrescentemos ainda a tudo isso que você ainda não é maior. Falta‑lhe um ano para a maioridade, ou estou enganado?

‑ No ano passado não raciocinava da mesma maneira no Jardim de Aclimatação em Paris... Queria raptar‑me, desposar‑me imediatamente...

‑ Reconheço de bom grado que tinha enlouquecido, mas estava apenas a pensar numa bênção nupcial, após a qual a teria mantido escondida até que fosse possível regularizar a situação perante a lei!

‑ Pois bem, façamos isso! Pelo menos, teremos a satisfação de nos podermos amar... se ambos assim o desejarmos. Não diga que não! Eu sei, sinto que me deseja.

Era infelizmente verdade. Levada pelo seu desejo de sedução, Anielka era mais tentadora que nunca, e o episódio da cantora húngara já terminara há vários meses. Ao vê‑la encaminhar‑se lentamente ao seu encontro, com as mãos abertas num gesto de dádiva, o corpo ondulando sob o fino tecido do vestido, os lábios brilhantes entreabertos, apercebeu‑se, num ápice, que o perigo era sério. Esquivou‑se, apartando‑se mesmo a tempo, encaminhando‑se para a chaminé onde permaneceu um pouco de costas voltadas, o tempo suficiente para acender um cigarro e para recobrar o controlo.

‑ Julgo ter‑lhe explicado que estava louco ‑ disse numa voz ligeiramente alterada. ‑ Um casamento está fora de questão. Já se esqueceu que tenho de me ir novamente embora?

‑ Maravilhoso! Leva‑me consigo! Poderíamos fazer uma linda viagem... muito agradável a todos os títulos, não?

Morosini começava a pensar que ia encontrar dificuldades para desembaraçar‑se dela e que era preciso encontrar uma solução o mais depressa possível. Adoptou um tom de voz muito seco:

‑ Nunca misturo os negócios com... o prazer! Proferida intencionalmente, a palavra magoou:

‑ Não teria podido dizer «com o amor»?

‑ Quando a dúvida se insinua isso está fora de questão. Contudo, tem razão ao pensar que não a abandonarei. Veio aqui para encontrar um refúgio, não é verdade?

‑ Para encontrá‑lo, a si!

Ele teve um gesto de impaciência:

‑ Não misturemos tudo! Vou tratar de encontrar‑lhe um abrigo. E não creio que a minha casa o seria!

‑ E porquê?

‑ Porque, se por acaso um espírito maligno conseguisse descobrir‑lhe o rasto, seria certamente nesta casa que aterraria. E como também está fora de questão instalar‑se num desses hotéis de luxo a que está habituada, terei de lhe encontrar uma residência antes de voltar a partir. A menos que prefira deixar Veneza e ir até à Suíça ou à França, como tencionava...

‑ Mas essa nunca foi a minha intenção. Sempre quis vir até aqui e dado que cá estou, ficarei, como disse já não sei que ilustre personagem.

Ela aproximava‑se novamente dele mas as suas intenções pareciam mais amenas e, desta vez, ele não se mexeu para não transformar este encontro numa corrida de perseguição. Aliás, ela contentou‑se apenas em estender‑lhe uma mão que ele não pôde recusar:

‑ Pois bem ‑ declarou Anielka com um belo sorriso ‑ vou declarar‑lhe a guerra mais doce que existe: doravante só tratarei de reconquistá‑lo dado que, ao que parece, os nossos laços afrouxaram. Instale‑me onde quiser, conquanto seja nesta cidade, mas fixe bem o que lhe digo: um dia será você mesmo a trazer‑me para este palácio e aqui viveremos felizes!

Pensando que seria mais sensato contentar‑se com uma meia vitória, Aldo apôs um beijo ligeiro nos dedos que ela lhe estendia e sorriu por sua vez mas, para quem o conhecia verdadeiramente, era um sorriso que continha uma forte dose de desafio:

‑ Logo veremos! Vou tratar de instalá‑la... miss Campbell! Entretanto está aqui como em sua casa e espero que me conceda a amabilidade de almoçar comigo e com o meu amigo Guy...

‑ Com prazer. Então posso andar pela casa à vontade? ‑ perguntou‑lhe rodopiando os calcanhares o que fez esvoaçar o vestido mostrando desse modo um pouco mais das pernas.

‑ Naturalmente! À excepção contudo dos quartos e... das cozinhas! Se quiser, Guy poderá mostrar‑lhe a loja.

‑ Oh, não tenha receio ‑ disse Anielka num tom compungido ‑ tratarei de não me enfiar nas saias dessa mulher gorda que arvora grandes ares quando não passa de uma mera cozinheira!

‑ É aí que se engana. Cecina é muito mais do que uma cozinheira. Ela já cá estava antes de eu nascer e a minha mãe gostava muito dela. E eu também ‑ disse Morosini com severidade. ‑ Ela é de certo modo o génio familiar deste palácio. Trate de se lembrar disso!

‑ Estou a ver! Se um dia eu quiser tornar‑me a princesa Morosini, primeiro terei de domar o dragão! ‑ suspirou Anielka.

‑ Mais vale preveni‑la desde já: este dragão é indomável! Até logo!

E, deixando Anielka a inspeccionar as altas prateleiras da biblioteca para escolher um livro, Aldo abandonou a sala com a intenção de procurar Cecina. Não teve de ir muito longe: ela apareceu‑lhe como por milagre logo que ele chegou ao portego, a longa galeria‑museu, tão comum em numerosos palácios venezianos. Espanador na mão, com um zelo suspeito, ela tirava o pó de uma campânula de vidro que continha uma caravela de velas desfraldadas, assente numa das consolas de pórfiro. Aldo não se deixou enganar pelo seu ar falsamente descontraído:

‑ É muito feio escutar às portas! ‑ cochichou. ‑ Devias dizê‑lo ao teu confessor!

‑ Que disparate! Como se não soubesses que estas portas são demasiado espessas para que se possa ouvir alguma coisa!

‑ Talvez... quando estão fechadas. Esta não o estava completamente! ‑ respondeu, espicaçando‑a. ‑ Além disso, desde quando manejas esse utensílio?

‑ Bom, admitamos! Que vais fazer dela?

‑ Vou instalá‑la em casa da Ana Maria. Ninguém irá lá procurá‑la e aí poderá ficar tranquila.

‑ Ela precisa de... tranquilidade? Ninguém o diria ao vê‑la!

‑ Mais do que imaginas. Se queres ficar a saber tudo, ela corre perigo, e essa é uma das razões por que não quero guardá‑la aqui. Não tenho qualquer desejo de atrair seja que perigo for sobre esta casa e os seus moradores...

Ia descer para telefonar do seu escritório, mas mudou de ideias:

‑ Ah! Já agora, enquanto penso nisso: quem sabe o nome dela cá em casa?

‑ Zaccaria, evidentemente, pois foi ele que a recebeu e também o nosso sr. Buteau, mas não o jovem Pisani pois nessa altura ele encontrava‑se na moradia de Stra a experimentar algumas pinturas...

‑ Não é experimentar que se diz, é avaliar! ‑ corrigiu automaticamente o antiquário... ‑ E as duas criadas de quarto?

‑ Oh, não, elas mal a viram. Quanto a mim, sempre fui incapaz de fixar os nomes estrangeiros. Sei apenas que ela é lady... qualquer coisa!

‑ Agora não há mais lady qualquer coisa, nem tão pouco lady nenhuma! Doravante ela é missAnny Campbell. Vou prevenir o Zaccaria e o Guy.

A primeira ideia de Aldo fora a de telefonar à sua amiga Ana Maria para reservar o alojamento de Anielka mas, depois de reflectir, preferiu deslocar‑se até ao local. Já conhecia, por experiência, as meninas dos telefones de Veneza: estas encontravam‑se continuamente devoradas por uma curiosidade insaciável e não hesitavam em espalhar certos rumores quando estes se revelam um pouco picantes. Era melhor não se fiar nelas.

Ana Maria Moretti morava à beira de um rio tranquilo, uma casa cor‑de‑rosa adorável, com um lindo jardim, cujo fundo dava para o Grande Canal. Desde a guerra em que o marido ‑ médico ‑ falecera, ela convertera‑a numa espécie de pensão de família na qual só acolhia pessoas recomendadas e que desejavam viver no meio da calma. Dado que se tratava da sua própria residência convertida em paragem passageira por razões de ordem financeira, a viúva de Giorgio Moretti não queria, de forma alguma, receber clientes barulhentos ou mal‑educados. Exigia que eles se comportassem em sua casa como se tivessem sido convidados para um dos palácios vizinhos.

Ela recebeu Aldo com o calor inalterável que reservava a um amigo de infância. Era a irmã do farmacêutico Franco Guardini, na companhia do qual Morosini passara da infância à adolescência, até atingir a maturidade, sem que nada tivesse perturbado o entendimento que existia entre eles. Mais nova que o irmão, aos trinta e cinco anos Ana Maria ‑ que possuía uma abundante cabeleira com aquele tom quente e alourado tipicamente veneziano ‑ pertencia àquela categoria de mulheres de quem se diz ao vê‑las passar: «Ora ali vai uma linda mulher!» Os traços do seu rosto e as linhas do seu corpo evocavam uma estátua grega, mas conferiam‑lhe uma certa frieza, sem dúvida aparente, mas que nunca incitara Aldo a cortejá‑la. Os sentimentos que tinha por ela permaneceram sempre fraternos e era bem melhor assim, pois Ana Maria era mulher de um só amor. O desaparecimento do marido tinha posto um termo à sua vida sentimental.

Ela acolheu Aldo com um lento sorriso que era talvez o seu maior charme.

‑ Queres ir beber um copo no jardim? Hoje está uma manhã esplêndida!

Como até então o Outono tinha sido muito ameno, o pequeno jardim sobre a água estava ainda cheio de flores e a vinha, que se apresentava virgem, de um belo vermelho‑profundo, ao trepar pelas paredes da casa e do palácio vizinho formava um escrínio sumptuoso. Contudo, recusou o convite:

‑ Bebia de bom grado um martini gelado, mas no teu pequeno escritório. Tenho de falar contigo!

‑ Como queiras!

Ana Maria sabia escutar o seu interlocutor sem interrompê‑lo, e este depressa a informou da situação mas, longe de se assustar com os perigos em que incorria a sua futura cliente, ela desatou a rir:

‑ Tenho a certeza de que há grande exagero no que ela te disse! No entanto, tu conheces bem as mulheres, não? Ora essa aí meteu‑se‑lhe na cabeça que haveria de se tornar princesa Morosini. Como tu não és nem pobre nem feio, não posso deixar de lhe dar uma certa razão. Quem sabe, talvez ela chegue até a alcançar os seus propósitos...?

‑ Nem penses! Já passou o tempo em que desejava desposá‑la e muito me surpreenderia se ele regressasse. No entanto, não minimizes os problemas que envolvem Anielka e se te contei tudo é porque, em primeiro lugar, és uma fiel amiga, mas também para que pudesses recusar com conhecimento de causa.

‑ Queres que recuse?

‑ Não, espero que aceites, mas os tempos mudaram e os estrangeiros que permanecem muito tempo em Itália são vigiados de perto pela gente de Mussolini e eu não quero arranjar‑te sarilhos.

‑ Não há qualquer motivo para isso. Em primeiro lugar a municipalidade tem‑me em grande estima; depois, o chefe do Fascio local vem comer às minhas mãos e, finalmente, a tua amiga tem um passaporte americano. Ora, os Camisas Negras gostam muito dos americanos e dos seus dólares. Se miss Campbell desempenhar bem o seu papel, não teremos qualquer problema. Vai buscá‑la!

‑ Trazê‑la‑ei esta tarde. És um amor!

Ao regressar a casa, pôs‑se à procura de Anielka para a pôr a par das disposições que acabara de tomar, mas teve certa dificuldade em encontrá‑la, não tendo imaginado sequer um momento que ela pudesse estar na loja de antiguidades. Mas era lá que ela se encontrava precisamente, na companhia de um Angelo Pisani que estava visivelmente preso ao seu charme. O jovem conduzia‑a com um cuidado devoto através das duas grandes salas, outrora depósito de mercadorias quando os navios venezianos sulcavam as escalas do Levante para trazerem de volta tudo o que produzia o fabuloso Oriente. Presentemente, em vez das especiarias raras, dos fardos de sedas, dos tapetes e outros esplendores, existia agora ‑ justo retorno das coisas deste mundo ‑ uma amostragem das maravilhas que os artistas e artesãos da velha Europa tinham fabricado através dos séculos.

Quando Aldo se juntou aos dois jovens, Anielka segurava na mão um grande vaso em cristal antigo, gravado a ouro, com o qual se divertia rodando‑o à luz do Sol, enquanto Angelo, corado de emoção, informava‑a sobre a idade e a história de tão encantador objecto. Ao ver entrar o patrão, o jovem corou ainda mais e ficou com um ar incomodado, como se Morosini o tivesse apanhado em flagrante delito.

‑ Tive... tive o prazer de ser... apre... apresentado a miss Campbell pelo sr. Buteau ‑ gaguejou ‑ e estava... estava a fazê‑la admirar... as nossas riquezas!

‑ Recomponha‑se, amigo! ‑ disse‑lhe Aldo, com um amável sorriso. ‑ Fez muito bem em distrair a nossa visita.,

‑ Meu caro príncipe, isto é uma verdadeira caverna de Ali Babá! ‑ exclamou a jovem pousando o vaso. ‑ Só faltam as jóias e as pedras, não é? Onde as esconde?

‑ Num local secreto. Quando tenho alguma para vender, claro está! O que não é o caso neste momento!

‑ Mas... não dizem que é coleccionador? O que subentende uma colecção, evidentemente! Não quer mostrar‑ma?

O tom de voz e o sorriso eram igualmente provocadores e Aldo não gostou muito daquele súbito interesse por aquilo que, tal como os seus pares, ele considerava como o seu jardim secreto. Isso lembrava‑lhe que aquela encantadora criatura, que ele estivera tão perto de adorar, era a filha do conde Solmanski, um homem de quem ele suspeitava sempre de ter encomendado o assassinato da sua mãe, a princesa Isabel, para lhe roubar a safira em forma de estrela, que pertencera outrora ao peitoral e que se tornara jóia de família com o correr dos tempos.

‑ Dizem‑se muitas coisas! ‑ suspirou com desenvoltura. ‑ Vão sendo horas de ir para a mesa e Cecina detesta que a façam esperar!

‑ Nesse caso vamos andando! Mostrar‑me‑á tudo isso esta tarde.

‑ Lastimo imenso mas não teremos tempo! Devo levá‑la à Casa Moretti, onde estão a acomodar‑lhe um pequeno aposento. Depois, tenho de retomar viagem, tal como lhe disse, Miss Campbell!

‑ O quê? Já?... Mas acaba de chegar...!

‑ Com efeito, mas hoje é quinta‑feira e o Expresso do Oriente sai de Veneza às cinco e um quarto...

‑ Ah! Vai a Paris?

‑ Apenas de passagem. O assunto que deixei pendente chama‑me a outro lado.

A decepção da jovem era visível, do que Pisani se apercebeu. Com uma boa vontade comovente, precipitou‑se em socorro da beldade desesperada:

‑ Miss Campbell, se por acaso, enquanto o príncipe estiver ausente, a senhora recear aborrecer‑se, coloco‑me à sua inteira disposição... pelo menos, durante o meu tempo livre ‑ corrigiu, lançando um olhar inquieto na direcção do patrão. ‑ Será com grande alegria que lhe mostrarei Veneza. Conheço‑a melhor que qualquer guia...

Anielka estendeu‑lhe a mão com um sorriso radiante, o que o fez corar de novo:

‑ É muito gentil! Pode ter a certeza que recorrerei aos seus serviços!

Morosini lastimou que o jovem Pisani não tivesse ficado dois ou três dias no castelo de Stra. Saltava aos olhos que aquele néscio estava a ficar apaixonado por miss Campbell e isso não era de molde a melhorar as coisas! Não havia qualquer ciúme no descontentamento de Aldo. Ele apenas achava que, ao entrar nessa via o pobre rapaz arriscava‑se muito a sofrer e isso era uma ideia que lhe desagradava, pois tinha grande simpatia por Angelo.

Enquanto lavava as mãos antes de passar à mesa, Guy Buteau, que ouvira o fim da conversa na loja, perguntou: ‑Julgava que ia regressar a Viena...

‑ Primeiro não irei a Viena, mas sim a Salzburgo e, em seguida, tenho um bom motivo para passar por Paris: gostava de saber se há algumas notícias sobre Adalbert, cujo silêncio começa a preocupar‑me. Não é um desvio por aí além, pois aí poderei tomar o Expresso que passa pela Suíça, Arlberg e Viena(1), e que me depositará na terra de Mozart com o maior dos confortos! Mas prefiro que não falemos disso à mesa.

Acabado o almoço, preparado graças aos cuidados diligentes de uma Cecina cheia de pressa de ver a excessivamente bela intrusa «abandonar os locais», Aldo conduziu Anielka até casa de Ana Maria, onde ela se declarou encantada tanto pela decoração como pelo acolhimento, e regressou para acertar dois ou três pormenores com os seus colaboradores, deixando‑se depois conduzir por Zian até à gare de Santa Lúcia, onde chegou aproximadamente um quarto de hora antes da partida do comboio, o que lhe deu tempo para comprar alguns jornais para ler pelo caminho.

Foi com profundo alívio que se instalou no compartimento para uma pessoa que o controlador dos vagões‑cama lhe conseguiu encontrar. Graças a Deus, apenas tivera de passar um dia em Veneza e conseguira resolver pelo melhor uma questão delicada. Claro que era apenas uma solução momentânea mas, professando de bom grado o velho adágio que diz que a cada dia dá Deus a dor e a alegria, estava contente por poder afastar essa preocupação do espírito para se dedicar à busca da dama que usava a máscara rendilhada de preto...

 

*1. Alguns anos mais tarde esta linha tornar‑se‑á o Expresso do Arlberg‑Oriente, outorgando deste modo um segundo ramal ao mais célebre dos comboios.

 

No entanto, ao desdobrar um dos jornais que comprara, saltou‑lhe aos olhos um título: «Roubo na Torre de Londres... As jóias da Coroa em perigo. Grande emoção em toda a Inglaterra.»

Para surpresa geral, apenas havia sido roubada uma jóia, com uma facilidade que deixava o jornalista perplexo e o incitava a colocar questões sobre a confiança que se podia depositar nos meios utilizados para proteger o Tesouro britânico. É certo que, dada a recente publicidade feita à Rosa de Iorque, os conservadores da Torre tinham julgado preferível instalá‑la numa consola separada, talvez um pouco menos bem protegida. Mas quem teria imaginado que roubariam aquele velho diamante, menos esplendoroso que os seus semelhantes, quando os maiores do mundo se encontravam nas proximidades? O redactor concluía que se tratava certamente de uma operação arquitectada por um dos numerosos coleccionadores desiludidos quando o governo de Sua Majestade recuperara o diamante histórico. Evidentemente, o superintendente Warren estava de novo encarregue de um caso que já lhe custara algumas noites em branco...

Ao ler a notícia, Morosini enviou uma silenciosa saudação amistosa ao Pterodáctilo que não precisava decerto desta sobrecarga de trabalho e, em seguida, pôs‑se a reflectir. Quem se teria arriscado daquela maneira ‑ efectivamente, os riscos eram bem reais! ‑ para se apropriar da maldita pedra ‑ ou, mais exactamente, da sua cópia fiel? Presentemente lady Mary repousava na sepultura escocesa dos Killrenan e o seu esposo passava dias tranquilos sob apertada vigilância numa clínica psiquiátrica. Sobrava talvez Solmanski, o pai de Anielka, o inimigo jurado de Simon Aronov, disposto a tudo para se apropriar do peitoral, cuja safira julgava possuir(1)... Sim, este roubo audacioso talvez fosse obra sua... Anielka não dizia que ele se ausentava frequentemente «para tratar dos seus negócios»? Ou então, claro, não poderia ser também obra de um coleccionador completamente fora do circuito, mas que possuía meios para contratar um ladrão hábil e para beneficiar de algumas cumplicidades? De qualquer modo, o verdadeiro diamante regressara à sua fonte original e o que pudesse acontecer à sua cópia já não interessava minimamente a Morosini. E como já se ouvia no corredor o tinir da campainha anunciando o primeiro serviço, ele dobrou o jornal, colocou‑o debaixo do braço e foi jantar...

 

*1. Ler A Estrela Azul.

 

         MOROSINI COMETE UM DESLIZE

Ao desembarcar do comboio na gare de Salzburgo três dias mais tarde Morosini sentia‑se aborrecido. Não gostava de perder tempo; ora, o seu desvio por Paris só lhe tinha trazido longas horas de reflexões solitárias. Na realidade continuava a ignorar o que poderia ter sucedido a Adalbert Vidal‑Pellicorne.

No apartamento da rua Jouffroy, guardado por deuses egípcios, apenas encontrara Théobald, o fiel criado do arqueólogo, mas como este fora instruído na escola de um mestre que tinha quase sempre algo a esconder, mostrara‑se tão hermético quanto um sarcófago tebano. Apesar de ter ficado satisfeitíssimo por rever o senhor príncipe, Théobald limitou‑se a responder às perguntas com um simples sim ou não, sem se comprometer mais do que isso. Sim, o senhor regressara do Egipto, onde a sua estadia se prolongara mais do que previsto. Não, o senhor não estava em Paris e, sim, o seu servidor ignorava onde ele poderia estar àquela hora.

Todavia, ao azucriná‑lo com perguntas, Morosini, que tinha um antepassado que fizera parte do temível Conselho dos Dez e que em matéria de interrogatórios possuía uma força indiscutível, acabara por ficar a saber que o seu amigo não regressara directamente do Cairo. Conseguiu ainda extorquir mais uma pequena informação: o senhor viajava com uma dama, mas quanto ao destino, Théobald, que estava à beira das lágrimas, jurou por todos os grandes deuses que não o conhecia e o interrogatório ficou por aí.

Havia também o pormenor referente ao carro mas, segundo Théobald, Vidal‑Pellicorne emprestara‑o a um amigo. Por conseguinte, Morosini teve de se contentar com informações demasiado incompletas para que o satisfizessem.

No cais da estação saudou um viajante diante do qual jantara na véspera, no vagão‑restaurante. Era um homem de uns cinquenta anos, magro e elegante, de uma extrema amabilidade e de uma simplicidade muito surpreendente para alguém tão célebre: chamava‑se Franz Lehar e, depois de ter passado por Bruxelas e Paris, ia descansar um pouco na sua moradia em Bad Ischl.

Ao saber que o seu companheiro de uma noite também se dirigia para a célebre cidade termal, o pai de A Viúva Alegre e de O Conde do Luxemburgo propôs‑lhe um lugar na viatura que o iria buscar ao comboio:

‑ São aproximadamente sessenta quilómetros e será mais agradável do que ter de apanhar uma correspondência...

‑ Aceitaria com o maior prazer, mestre, se não fosse minha intenção de parar em Salzburgo.

‑ Nesse caso, não deixe de ir visitar‑me logo que tiver chegado. Tenho uma verdadeira paixão pelos objectos antigos e o senhor fala deles como ninguém! Ah, antes que me esqueça, não procure ficar no Grande Hotel Bauer que fecha nos finais de Setembro, mas poderá instalar‑se tão bem, e até melhor, no Kurhotel Elisabeth, situado na margem do Traun, quase frente a minha casa. Trata‑se de uma residência de antiga reputação que se preocupa pouco com as estações, mas que faz questão em receber clientes de qualidade. Uma lembrança da época em que a corte frequentava Ischl! E aqui, escolha o Osterreichischer Hof! Também fica à beira do rio, o que é muito agradável!

Morosini agradeceu, evitando cuidadosamente acrescentar que, se desejava permanecer algumas horas na cidade natal de Mozart, não era no intuito de assistir a algum concerto mas para procurar alugar uma viatura, de preferência sem motorista, para se poder deslocar à vontade. Além disso, se o compositor austro‑húngaro era tão charmoso quanto a sua música, também era um grande tagarela. Portanto, era alguém a tratar com moderação!

Ao entrar no velho palácio pomposamente intitulado «A Corte Austríaca», onde nada mudara desde a fundação, durante um momento Morosini perguntou‑se se não se trataria de uma sucursal imprevista do Hofburgo, de tal modo a atmosfera era solene e silenciosa. Só por si, o hall da entrada, pesadamente mobilado ao estilo Biedermeier, era uma autêntica declaração de fé.

O pessoal encaixava no conjunto. Foi acolhido por um porteiro com ares de Primeiro‑Ministro, que o deixou nas mãos de um criado tão sério quanto um camareiro e de um bagageiro que tinha a austeridade de um camerlengo. Estes levaram o viajante até um grande quarto do primeiro andar, cujas janelas davam para o cais Elisabeth e para o caudal ligeiramente tumultuoso do Salzach. Ao longe, dominada pela antiga fortaleza dos príncipes‑bispos, ficava Hohensalzburg, que só se podia alcançar por funicular ou através das carreiras de mulas; a cidade de Mozart exibia o seu esplendor barroco, os seus zimbórios, campanários e a graciosidade das colinas que a enquadravam e que o outono enfeitava de tons dourados e acobreados.

Apoiado na balaustrada da varanda, Morosini, que nunca viera a Salzburgo, admirava sem reservas o panorama, quando o estrondo de um motor de um carro de desporto, capaz de quebrar qualquer encantamento, começou por atrair‑lhe a atenção, primeiro de modo vago e, depois, fazendo‑o sobressaltar‑se: um pequeno roadster encarnado berrante, guarnecido de cabedal preto, dobrava a esquina do cais para estacionar certamente diante do hotel. Aldo reconheceu um Amílcare ficou instantaneamente disposto a jurar que as roupas de cabedal do condutor e os seus grandes óculos escondiam o egiptólogo que procurara por todo o lado.

Não perdeu tempo em conjecturas: desceu os degraus quatro a quatro e aterrou no átrio precisamente na altura em que o boné do condutor voava, arrancado por mão enérgica, libertando os caracóis cor de palha e mais desgrenhados que nunca de Adalbert Vidal‑Pellicorne, cujos olhos azuis se arregalaram logo que Morosini entrou no seu campo visual:

‑ Tu! Mas que estás aqui a fazer?

‑ Poderia fazer‑te a mesma pergunta. Aliás, tenho uma série delas a colocar‑te.

‑ Teremos todo o tempo para isso. Estou contente por te voltar a ver!

Era um grito do coração e o abraço vigoroso que se seguiu dissipou logo a má impressão que Aldo arrastava consigo desde Paris.

‑ Sabes que desde que nos deixámos passei por trancos e barrancos...? ‑ suspirou Adalbert, enquanto estendia o seu passaporte ao recepcionista, antes de se voltar para seguir o criado‑camareiro. ‑ Nem imaginas de onde venho!

‑ Tentemos! Na minha opinião vens de Viena, mas não há muito estavas a vegetar na palha húmida de uma prisão egípcia ‑ declarou Morosini, sem conseguir reter um sorriso de satisfação ao constatar a estupefacção do seu amigo.

‑ Como sabes isso tudo?

‑ Viena é fruto das minhas deduções pessoais, mas foi Simon que me inteirou da tua aventura pelas terras faraónicas.

‑ Viste‑o?

‑ A semana passada, em Viena, precisamente. Fomos ambos admirar uma belíssima representação de O Cavaleiro da Rosa. Dito isto, não te podias ter dado ao trabalho de me escrever? Não é proibido entre amigos!

‑ Bem sei, mas... há coisas que prefiro explicar de viva voz. Além disso, detesto escrever.

‑Julgava‑te tão homem de letras quanto arqueólogo... sem mencionar o resto, claro...

‑ Redigir uma obra ou escrever comunicações destinadas a esta ou àquela academia isso é comigo, mas abomino a correspondência do género Sévigné(1)!

O criado acabara de abrir a porta de um quarto contíguo ao de Aldo. Adalbert pegou‑lhe no braço para o fazer entrar:

‑ Vais contar‑me isso tudo enquanto vou tomar um duche e mudar de roupa!

‑ Nem pensar! Também tenho de tomar um duche. Se quiseres ser posto ao corrente de tudo, acabo de sair do Expresso de Arlberg e antes de jantar ainda tenho de ir à procura de um carro. Conversaremos à mesa!

‑ Um momento! Para que te vais pôr à procura de um carro? O meu está lá em baixo!

‑ Assisti à tua chegada mas como ignoro tudo acerca dos teus projectos, tens de aceitar que trate dos meus ‑ disse Morosini, com perfeita hipocrisia.

‑ Não tenho mais nada a fazer, a não ser regressar a Paris. Se precisares de mim ou do meu veículo, estamos ao teu dispor. A propósito, por que motivo vieste a Salzburgo?... e que foste fazer à Ópera com Simon?

 

*nt. Alusão à marquesa de Sévigné que no século xvii se tornou célebre pela sua correspondência.

 

‑ acrescentou Vidal‑Pellicorne, com um brilho de suspeição acendendo‑se‑lhe subitamente no fundo do olhar. ‑ Por acaso não se tratará de um... de uma...

Hesitava ainda mais quanto à palavra a empregar porquanto, sempre fiel à sua personagem, o criado afastava‑se com uma lentidão solene pelo corredor fora. Aldo mostrou um grande sorriso:

‑ Aposta e verás que ganhas! ‑ disse alegremente. ‑ Mas, quer queiras quer não, terás de esperar pelo jantar. Preciso mesmo de um bom banho.

‑ Achas correcto mandar‑me bugiar?

‑ Essa é a melhor! Ouve lá, ó amiguinho! Já faz uma semana que me interrogo a teu respeito e a pequena conversa que tive anteontem com o teu precioso Théobald não adiantou nada! Quanto a isso, podes orgulhar‑te dele: é mais discreto que um confessionário!

‑ Foste a minha casa?

‑ Que brilhante dedução! Depois de o ter interrogado, tudo o que consegui ficar a saber foi que tinhas ido de férias com uma dama.. Portanto, vais ter de esperar até ao jantar!

Adalbert não insistiu mas, para surpresa do amigo, de repente corou intensamente e escapuliu‑se para dentro do quarto:

‑ Como queiras ‑ resmungou entredentes. ‑ Encontramo‑nos às oito.

E fechou a porta atrás dele.

 

Trajando smoking, os dois homens sentaram‑se a uma mesa do Salão Roten, assim chamado por aquele palácio salzburguês levar a sua devoção ao regime imperial ao ponto de ter dado esse nome a um dos seus dois restaurantes. Bom conhecedor da cidade e do Osterreichischer Hof, onde se instalava habitualmente, Adalbert encarregara‑se da ementa. Foi também ele quem iniciou a conversa, aproveitando o facto de ambos se encontrarem ainda isolados no canto de uma sala meio vazia.

‑ Desculpar‑me‑ás por não respeitar a ordem dos teus desejos, mas o que me aconteceu nos últimos meses não é ‑ nem de longe! ‑ tão cativante quanto as nossas relações com Simon. Rogo‑te que me contes o que foram fazer juntos à Ópera!

Sem responder, Morosini provou o copo de Gespritzer(1) que lhes tinham servido à laia de aperitivo, o que teve o condão de enervar ainda mais Adalbert.

‑ Então? ‑ insistiu este. ‑ De que falaram? Ele encontrou a pista da opala ou a do rubi?

‑ A da opala. Na realidade até me deu o privilégio de contemplá‑la... ao longe, numa dama de grande porte, se bem que misteriosa...

E, sem se fazer rogar mais, narrou a soirée que passara na Ópera mas tendo grande cuidado em parar ‑ com um sentido perverso do suspense ‑ na altura em que ele e Aronov se tinham apercebido do desaparecimento da mulher de rendas pretas.

‑ Desaparecida! ‑ gemeu Adalbert. ‑ Isso significa que a perderam.

‑ Não verdadeiramente... ou ainda não! Acontece que pela maior das casualidades eu já a tinha visto ao fim da tarde na cripta dos Capuchinhos.

‑ O que foste lá fazer?

‑ Uma visita! Cada vez que vou a Viena, dirijo‑me à «arrecadação dos reis» para depositar algumas violetas no túmulo do pequeno Napoleão. É a minha metade francesa que se manifesta nessas alturas.

Seguiu‑se a narração, ainda mais dramática, pois o tema prestava‑se a isso, do estranho encontro. Mas, desta vez, Morosini concluiu‑o pela corrida nas ruas de Viena atrás das rodas de uma caleche fechada.

‑ E onde foste parar assim? ‑ sussurrou Vidal‑Pellicorne, tão interessado que se esqueceu, a meio caminho entre o prato e a boca, do pedaço de enguia que enfiara no garfo.

‑ Até uma residência que não tive qualquer dificuldade em reconhecer, dado que já lá fora. E quando, na Ópera, Simon me disse a quem pertencia o camarote onde se encontrava a desconhecida, não tive qualquer dificuldade em juntar as coisas. Mas tu também conheces esse palácio...

‑ Diz‑me como se chama. Depois veremos...

O pedaço de enguia desapareceu, mas quase esteve para ressurgir quando Morosini desferiu um sorriso impertinente:

 

*1. Mistura de água gasosa e de vinho, muito apreciada na Áustria.

 

‑ Adlerstein! Fica na Himmelpfortgasse... Toma! Bebe um trago senão vais engasgar‑te ‑ acrescentou, oferecendo um copo de água

ao seu amigo que ficara de cor roxa ao lutar contra o pedaço recalcitrante.

‑ Então? Não pensava que te iria causar um tal efeito... Adalbert recusou a água e bebeu um trago de vinho.

‑ Não é culpa tua... é este animalzinho! Imagina que tem espinhas! Quanto ao teu palácio, como nunca lá pus os pés, não o conheço.

‑ Nesse caso como é possível que o teu carro o conheça? Vi‑o lá... ou, pelo menos, avistei‑o, enquanto um criado o lavava no pátio interior.

Se Morosini contava ouvir exclamações ou protestos indignados, ia ficar desiludido. Adalbert limitou‑se a olhá‑lo, enquanto massajava a ponta do nariz com ar perplexo, mas sem dizer nada. Aldo resolveu voltar à carga:

‑ É tudo o que encontras para me dizer? Se ele estava ali estacionado, não era decerto sem ti, pois não?

‑ Sim, eu emprestei‑o.

‑ Emprestaste‑o? Posso perguntar a quem?

‑ Dir‑te‑ei daqui a pouco... Quanto mais penso no assunto mais acho que o melhor é que te conte agora as minhas aventuras pessoais. Compreenderás melhor as coisas!

‑ Estou a ouvir‑te.

‑ Bem. Soubeste que quase fui vítima de um erro judiciário no Egipto?

‑ Uma estatueta que te acusavam de ter roubado e que acabaram felizmente por encontrar?

‑ Qual felizmente! A bem dizer foi encontrada casualmente, num canto do túmulo para onde deve ter regressado sozinha. O verdadeiro ladrão ‑ que desconfio quem seja ‑ foi lá colocá‑la quando ficou cheio de medo após a estranha morte de lorde Carnavon...

‑ Efectivamente, soube desse estranho desaparecimento. Ao que dizem, não foi devido a uma picada de insecto?

‑ Que provocou uma erisipela mortífera, mas há muita gente que vê nesta morte uma espécie de maldição que recai sobre todos aqueles que desdenharam a inscrição descoberta à entrada do túmulo: «As asas da morte abater‑se‑ão sobre aquele que incomodar o faraó.»

Houve ainda mais um ou dois desaparecimentos inexplicáveis e, repito‑te, o nosso homem ter‑se‑á borrado de medo!

‑ E tu, acreditas nessa maldição?

‑ Não. O pobre Carnavon morreu a 5 de Abril e a sala que continha o sarcófago ainda nem sequer tinha sido aberta. Mas a mim, tirou‑me da prisão. Para ser franco, eu teria ficado com a estatueta e nunca a teria devolvido... mesmo que tivesse de provocar a maldição do defunto. Merecia que nos amaldiçoássemos por ela! ‑ suspirou o egiptólogo com lágrimas a embargarem‑lhe a voz. ‑ Uma encantadora pequena escrava nua, em ouro puro, apresentando uma flor‑de‑lótus! A mais pura expressão da beleza feminina! E quando penso que aquele gordo miserável a teve em sua posse durante semanas e que...

‑ Pára! ‑ interrompeu Aldo. ‑ Se embarcares nessa história, nunca mais acabaremos. Regressemos ao ponto de partida: o carro transportado milagrosamente para Viena! Portanto, é melhor retomares a narrativa após a altura da tua libertação...

‑ Entendido! É inútil dizer‑te que recebi um pedido de desculpas da parte da expedição e das autoridades inglesas. Para se fazerem perdoar, até me pediram que escoltasse a Londres uma remessa destinada ao Museu Britânico.

‑ Curiosa honra! Terias preferido levá‑la para o museu do Louvre?

‑ Evidentemente, e até me perguntei se não seria uma nova armadilha, dado que lorde Carnavon se comprometera a entregar aos egípcios a totalidade do produto das suas escavações, mas Cárter ‑ esse sempre muito vivo! ‑ achava por bem que o seu país devia tirar um pouco de proveito das suas descobertas e como foi ele o descobridor... portanto, parti para Londres onde fui magnificamente recebido e onde tive o prazer de voltar a ver o nosso amigo Warren!

‑ O pobre! Já viste o que lhe aconteceu? A nossa Rosa de Iorque desapareceu outra vez!

‑ Isso, meu amigo, é a menor das minhas preocupações. E, se fazes favor, não mudemos de assunto! ‑ disse Adalbert. ‑ Fui pois admiravelmente tratado e até pude regressar a França juntamente com as bagagens de sir Stanley Baldwin, que se deslocava em visita oficial, o que me valeu o prazer de ser convidado para a grande recepção dada por lorde Crewe, embaixador da Grã‑Bretanha em Paris, e foi aí que encontrei uma encantadora jovem, muito bela, em dificuldades. Tinha ido fumar um charuto para os jardins, quando fui testemunha de uma cena desagradável: um fulano qualquer estava a brutalizar uma mulher, para forçá‑la a dar‑lhe um beijo.

‑ E voaste em seu socorro? ‑ perguntou Morosini suavemente.

‑ Terias feito o mesmo qualquer que fosse a dama, mas esmurrei‑o com tanto maior entusiasmo porquanto acabava de reconhecê‑la: era a Lisa Kledermann!

Bruscamente Aldo perdeu qualquer vontade de rir:

‑ Lisa? O que é que ela estava ali a fazer?

‑ Ela é muito ligada a uma das filhas do embaixador e como se encontrava em Paris para dar a sua volta habitual pelas lojas, não precisou de se fazer convidar pois estava alojada em casa da amiga.

De repente, Morosini lembrou‑se que em Londres Kledermann lhe dissera que a filha tinha muitos amigos em Inglaterra.

‑ E... o agressor? Quem era?

‑ Oh, ninguém em especial! Um qualquer adido militar persuadido que um uniforme chega para seduzir. Aliás foi‑se embora sem pedir contas a ninguém. Não era nenhum herói de guerra.

‑‑ E... Lisa?

‑ Agradeceu‑me e depois conversámos... a propósito de tudo e de nada. Foi muito agradável ‑ suspirou Adalbert cujo espírito estava a evadir‑se para as reminiscências daquela soirée num jardim nocturno.

‑ Ela está bem?

Adalbert sorriu extasiado, sem se aperceber que o tom de Aldo se tornava cada vez mais incisivo:

‑ Muito bem... é uma rapariga deliciosa! Voltámos a ver‑nos duas ou três vezes: num pequeno‑almoço, num concerto onde a levei, num desfile de moda...

‑ Em suma, vocês não mais se deixaram... E como se isso não bastasse, ainda decidiram partir juntos... de férias, não foi?

O tom francamente acerbo acabou por furar a espécie de casulo macio no qual Vidal‑Pellicorne se deleitava há alguns momentos. Estremeceu e olhou para o amigo com a expressão um pouco estremunhada de alguém que acaba de acordar: as pupilas cor de aço de Aldo estavam a mudar para o verde, o que era sempre sinal de tempestade que se aproxima.

‑ Mas o que é que estás para aí a imaginar? Nós apenas travámos sólidos laços de amizade. Claro está, falámos um pouco a teu respeito...

‑ Mas que simpáticos!

‑ Creio que ela gosta muito de ti, apesar da forma como vocês se deixaram e penso que tem saudades de Veneza.

‑ Ninguém a impede de lá voltar. Então, essa viagem?

‑ Já lá chego! Um certo serviço, sobre o qual já te dei uns lamirés, enviou‑me até à Baviera, a fim de observar as manigâncias de um certo Hitler, que se lançou recentemente em ataques verbais contra a República de Weimar e que congrega muita gente à sua volta. Mas, para não dar nas vistas, pediram‑me que viajasse como turista, servindo‑me portanto do carro. O melhor seria que levasse alguém comigo e como Lisa devia voltar à Áustria para o aniversário da avó, a ideia de efectuar a viagem no meu carro pareceu‑lhe divertida e fomo‑nos embora... como camaradas! ‑ precisou Vidal‑Pellicorne, endereçando um piscar de olhos inquieto ao rosto tempestuoso do amigo...

‑ Enviaram‑te para a Alemanha e mesmo assim foste até Viena?

‑ Não, apenas até Munique, onde o meu trabalho me reteve mais do que pensava. Deste modo, para não atrasar Lisa, emprestei‑lhe o carro para que ela chegasse a tempo a Bad Ischl. Apesar de isso lhe agradar, começou por recusar porque depois tinha de deslocar‑se até Viena, mas convenci‑a dizendo‑lhe que iria até lá buscar o carro assim que tivesse concluído os meus assuntos. O que acabo de fazer. Dir‑te‑ei ainda que não voltei mais a vê‑la: quando cheguei ela acabara de partir para um baile em Budapeste. Agora já sabes tudo!

‑ Ela sabia o que ias fazer à Alemanha?

‑ Estás a sonhar? Falei‑lhe da organização de um congresso de arqueologia, de eventuais conferências deste teu criado.

‑ E ela acreditou?

O olhar que Adalbert pousou no de Aldo foi de extrema candura:

‑ Não tinha qualquer motivo para não me acreditar. Já te disse que éramos excelentes amigos.

‑ Pois bem, tens mais sorte que eu! Agora esqueçamo‑nos disso tudo e ocupemo‑nos da sagrada opala. Tens alguma ideia para convencer a dama das rendas a vender‑no‑la?

‑ Como queres? Ainda a conheço menos que tu, pois nem sequer a vi! O melhor é partirmos já amanhã para Ischl.

Mme. von Adlerstein ainda lá deve estar, pois ainda não tinha regressado quando fui buscar o carro esta manhã.

No dia seguinte, enquanto o pequeno Amílcar vermelho rodava ao longo dos cinquenta e seis quilómetros que ligavam Salzburgo a Bad Ischl através de uma paisagem encantadora de lagos e de colinas arborizadas, Aldo deixava vagabundear o espírito pela imagem da sua antiga secretária. Se não tivesse sido confrontado com a evidência, nunca teria podido acreditar numa «Mina» deslocando‑se a um baile húngaro, fazendo‑se cortejar no jardim de uma embaixada por um buliçoso oficial, conduzindo um carro de desporto e, finalmente, percorrendo as estradas na companhia de Adalbert, a propósito do qual Aldo se interrogava ‑ sem ousar verdadeiramente formular a pergunta a si próprio ‑ se ele não estaria a ficar apaixonado por ela... E, o que compreendia ainda menos, era por que motivo tudo aquilo lhe desagradava tanto...

Subitamente, apercebeu‑se que ao pensar em Lisa enquanto mulher, estava a voltar as costas a uma evidência: ela devia encontrar‑se em Viena na altura da estadia da misteriosa dama e, portanto, devia conhecê‑la. Nesse caso, em vez de ir assediar uma velha condessa que talvez não se deixasse convencer, não seria muito mais simples correr no encalço da sua neta?

‑ Que diabo ‑ disse em voz alta, acompanhando o fio dos seus pensamentos ‑ ainda assim ela trabalhou para mim durante dois anos, e trabalhou bem! Se alguém nos pode informar é mesmo ela...

Sem deixar de vigiar a estrada, Adalbert desatou a rir:

‑ Também pensas que Lisa seria a nossa melhor fonte de informações? O problema é voltar a encontrá‑la.

‑ Isso deve ser fácil para ti, vocês não são tão bons amigos? ‑ perguntou Morosini, com uma ponta de veneno.

‑ Não mais do que para ti. A rapariga é uma verdadeira corrente de ar e nada sei quanto aos seus projectos.

‑ Emprestaste‑lhe o carro, serviste‑lhe de cavaleiro durante...

‑ Quinze dias! Nem mais um...

‑ ... e ela não te disse para onde contava ir depois de Budapeste?

‑ Pois não!... Confesso contudo que lhe perguntei, mas ela foi muito vaga. Talvez fosse dar uma volta pela Polónia onde tem alguns amigos, ou então talvez fosse a Istambul... a menos que se decidisse pela Espanha.

Fiquei com a impressão que ela não queria que me imiscuísse ainda mais na sua vida. É uma pessoa muito independente... e, além disso, talvez já me tivesse visto quanto bastasse!

Como que por magia, Aldo sentiu‑se de óptima disposição, a qual conservou durante o resto da viagem. Até se dera ao luxo de dizer um «mas não, mas não!» perfeitamente hipócrita.

A reputação de Ischl assentava nas suas fontes salinas naturais e numa fonte sulfurosa. A corte escolhera esta linda cidade no confluente do Ischl e do Traun para residência estival e a aristocracia que seguia a família imperial fizera dela uma das primeiras cidades termais da Europa e, também, uma das mais elegantes, onde não era raro ver grandes artistas actuar diante de uma plateia de cabeças coroadas.

Dizia‑se que Francisco José ‑ e, depois, os irmãos ‑ deviam a sua nascença aos banhos salinos que o doutor Wirer‑Rettenbach receitara à mãe deles, a arquiduquesa Sofia. Depois, havia sobretudo «o» romance imperial: as núpcias do jovem imperador com a sua encantadora prima Élisabeth, decididas em apenas alguns minutos, numa altura em que já fora anunciado o casamento com Helena, a irmã mais velha da jovem.

Apesar da monarquia ser presentemente apenas uma lembrança, ela deixara muitas saudades. Durante a estação balnear eram muitos aqueles e, sobretudo, aquelas, que vinham matar saudades sonhando no parque ou diante das colunas da Villa Kaiser, o castelo vagamente grego onde se desenrolara o acontecimento, mas ainda se podiam encontrar uns tantos no Outono e esses eram os mais fervorosos ‑ sombras da antiga corte em busca das horas passadas em que tinham desempenhado um papel no espectáculo oferecido pelo imperador, pela imperatriz e pelo respectivo séquito.

Aliás, em Ischl, o tempo parecia ter parado, sobretudo para as mulheres. Havia pouca ou nenhuma maquilhagem, nada de cabelos curtos e ainda menos de vestidos compridos que se misturassem aos tradicionais trajes regionais.

‑ Incrível! ‑ murmurou Morosini, quando o Amílcar estacionou diante do hotel, num lugar deixado vago por uma caleche. ‑ Se não fosse o nosso veículo, teria a impressão de ser o meu próprio pai. Lembro‑me que ele veio cá duas ou três vezes.

‑ Os habitantes locais não são loucos. Sabem muito bem que as recordações do império constituem a melhor publicidade. Este hotel chama‑se Élisabeth, os estabelecimentos balneários chamam‑se Rodolfo ou Gisèle, e o mais belo panorama chama‑se Sofia. Isto sem contar com as praças Francisco José, ou Francisco Carlos, etc. Quanto a nós, vamos instalar‑nos, almoçar e esperar pela hora indicada para nos dirigirmos ao castelo de... Rudolfskrone, que os Adlerstein mandaram construir quando o seu burgo nas montanhas se tornou inabitável devido a um aluimento...

‑ Quantas coisas sabes! ‑ exclamou Morosini, admirado. ‑ No entanto, isto não é propriamente o Egipto...

‑ Não, mas quando se faz um longo percurso com alguém, é preciso ir alimentando a conversa. Eu e Lisa fomos desfiando impressões...

‑ É verdade, já me esquecia... E não saberás por acaso onde fica o local?

‑ Na margem esquerda do Traun, no flanco do Jainzenberg ‑ respondeu Vidal‑Pellicorne, imperturbável.

Demasiado grande para ser um pavilhão de caça e parecendo‑se mais com uma moradia palatina ‑ devido às varandas, ao frontão e às múltiplas entradas ‑ anichado na verdura frente a um panorama deslumbrante, Rudolfskrone oferecia uma imagem radiosa. Era muito fácil perceber por que motivo Mme. von Adlerstein escolhia frequentemente este local para residência e por lá ficava quando o Outono já ia bem avançado. Era um sítio bem mais agradável para morar do que o palácio da Himmelpfortgasse.

Um mordomo, trajando com enorme dignidade uns calções de cabedal com laços e um casaco de ratina de um verde cor de pinho que teriam provocado uma crise de nervos nos seus confrades britânicos, acolheu os visitantes diante do alto portão dominado pelas estátuas em equilíbrio numa varanda.

Apesar das especificações contidas nos cartões de visita apresentados pelos viajantes, o criado emitiu dúvidas quanto à possibilidade de serem recebidos sem se anunciarem antecipadamente. A condessa estava adoentada. Então, Aldo, bem decidido a não mais se deixar enganar, perguntou:

‑ Mademoiselle Lisa não está?

Como por magia, a máscara severa do mordomo iluminou‑se com um sorriso:

‑ Oh! Se os senhores são seus amigos, então é outra coisa; bem me parecia ter reconhecido o pequeno carro vermelho que tivemos connosco há pouco...

‑ Eu tinha‑lho emprestado ‑ precisou Adalbert ‑ mas se Mme. von Adlerstein não se sente bem, não a incomode. Voltaremos mais tarde.

‑ Vou tentar, meus senhores, vou tentar...

Alguns momentos depois, abria diante dos dois homens as portas de um pequeno salão revestido de puro damasco com grandes cortinas de seda que estavam abertas, revelando as árvores do parque. Havia numerosas fotografias com molduras de prata que ocupavam um grande espaço.

Uma dama de cabelos brancos, apesar de um rosto ainda liso, estava estendida numa chaise longue, prancha de escrever nos joelhos. Ao ver entrar as visitas, afastou‑a com um gesto brusco. Os dois amigos pensaram que ela devia ser alta, atendendo ao seu comprido vestido preto, bordado a renda. A sua imagem pertencia a uma outra época, a das fotografias, mas os seus olhos sombrios ainda possuíam uma estranha vitalidade. Quanto ao sorriso que lhe iluminou subitamente o rosto, era a réplica exacta do de Lisa.

Foi a Adalbert que ela estendeu sem hesitar uma mão comprida, mas ornada de anéis muito belos, sobre a qual ele se inclinou para beijá‑la:

‑ Senhor Vidal‑Pellicorne ‑ disse ‑ é um prazer encontrá‑lo... ainda que lastime um tanto o modo fácil como se inclina perante os caprichos da minha neta. Quando a vi ao volante do seu carro, fiquei abismada, um pouco admirada, mas também inquieta. Não é uma imprudência?

‑ Nem por isso, condessa! Mlle. Lisa conduz bem.

Mas a velha dama já se voltava para o outro visitante e o seu sorriso ainda se tornou mais cortês:

‑ Príncipe Morosini, apesar do seu título, ainda não tenho a honra de conhecê‑lo. No entanto, parece‑me que decidiu assediar a minha casa em Viena de alguns dias a esta parte... Disseram‑me que veio procurar‑me várias vezes...

O tom seco da voz indicava a Aldo que a sua insistência desagradava:

‑ Confesso‑me culpado, condessa, e peço‑lhe que aceite as minhas infinitas desculpas por ter literalmente espiado o seu palácio.

Ela estremeceu e franziu o sobrolho:

‑ Espiado? Que palavra tão feia!... E por que motivo, por favor?

‑ Queria falar com a senhora a propósito de um assunto de extrema importância em relação ao qual o meu amigo aqui presente se interessa tanto quanto eu.

‑ Que assunto?

‑ Já lhe direi, mas antes permita‑me que lhe faça uma pergunta.

‑ Diga! E sente‑se, por favor!

Enquanto se sentava na poltrona forrada de damasco que lhe indicavam, Aldo formulou o seu pedido:

‑ Acaba de me dizer que não me conhece. Mlle. Kledermann nunca lhe falou a meu respeito?

‑ E devia? Tem de compreender ‑ acrescentou Mme. von Adlerstein para corrigir um pouco a insolência da sua observação ‑ que Lisa conhece muita gente e gente disseminada por essa Europa fora. É impossível conhecer todas as suas relações. Mas também já a conheceu? Onde?

‑ Em Veneza, onde moro.

Não achou útil revelar mais. Se Lisa achara por bem nada dizer acerca das suas actividades na residência dos Morosini, talvez por não se sentir muito orgulhosa a esse respeito, não seria ele a abordar o assunto, mesmo que se sentisse vexado e um tanto desolado por ter sido arredado daquela maneira da vida real da ex‑Mina. A condessa, aliás, observava:

‑ Isso não me espanta. Ela gosta muito dessa cidade onde reside frequentemente, creio... Mas, por favor, regressemos a esse seu desejo imperioso em falar‑me de algo!

Para melhor escolher as palavras que ia empregar, Morosini conservou‑se um momento calado e, em seguida, decidiu‑se:

‑ Aqui está: acompanhado pelo barão Palmer, no passado dia 17 de Outubro fui assistir, no camarote de Louis de Rothschild, a uma representação de O Cavaleiro da Rosa. Preciso mesmo que tinha vindo de Itália a convite do barão e com o único intuito de assistir ao espectáculo. Nessa noite, depois do levantar do pano, vi entrar no seu camarote uma dama extremamente elegante e, também, muito impressionante. É a respeito dela que lhe queria falar, condessa. Desejo conhecê‑la.

‑ E porquê, se faz favor? ‑ Desta vez o tom tornara‑se altivo, mas Morosini optou por ignorá‑lo. ‑ Talvez o gosto pelo romantismo, quem sabe? O senhor é veneziano e o mistério que essa mulher sugere talvez lhe espicace a curiosidade e a imaginação, não é verdade? ‑ reatou a condessa.

«Decididamente, não lhe agrado! O indivíduo de Viena deve tê‑la prevenido contra mim!», pensou Morosini, que decidiu enfrentar então o problema de caras e pôr cartas na mesa.

‑ Senhora, se me atribui sentimentos, conceda‑me a amabilidade de escolhê‑los menos fúteis. Trata‑se de um assunto importante e diria mesmo grave: essa dama possui uma jóia que tenho de adquirir a qualquer preço.

A estupefacção e a indignação calaram a condessa durante um momento, e depois dissiparam‑se, para ceder lugar à cólera:

‑ Sentimentos menos fúteis? Mas o que me diz é ainda pior! A simples e vulgar cobiça de um negociante! Uma questão de dinheiro! Mesmo que não tenha o prazer de conhecê‑lo, não ignoro a sua reputação de negociante, especialista em jóias antigas. Penso ‑ acrescentou ‑ que não temos mais nada a dizer, excepto que tenho a intenção de aconselhar a minha neta a escolher melhor os seus amigos!

Aldo sentiu‑se muito tentado em lançar à cara da velha dama arrogante que a sua preciosa neta, disfarçada de quaker, estivera às suas ordens durante dois anos, mas conservava muita estima pela falsa holandesa para lhe pregar essa má partida. Preferiu engolir em seco e tentar a persuasão:

‑ Minha senhora, minha senhora, rogo‑lhe que não me condene antes de me ouvir! Não se trata de modo algum daquilo que pensa e afianço‑lhe que não existe nenhuma cobiça, nem esperança em lucrar com algum negócio. Essa jóia... ou, pelo menos, a opala que constitui o seu corpo, tem uma história trágica como acontece aliás a qualquer pedra ligada a um objecto sagrado. Essa também não escapa à sina habitual se, como me afirmaram, foi de facto trazida pela infeliz imperatriz Élisabeth. Comprá‑la a essa dama, creia‑me que será prestar‑lhe um serviço...

‑ Ou despedaçar‑lhe o coração! Basta, príncipe! Está a tocar num assunto de família e não serei eu a divulgá‑lo. Por ora, não lhe posso dedicar mais tempo!

Era difícil demorar‑se mais sem se mostrar grosseiro. No entanto, Adalbert tentou vir em socorro do amigo:

‑ Permita‑me que diga só uma palavrinha, condessa! Tudo o que o príncipe Morosini acaba de dizer é pura verdade. Ambos andamos à procura de várias pedras outrora ligadas a um objecto de cuJto. Já encontrámos duas. Faltam‑nos outras duas e a opala é uma delas!

‑ Senhor, não duvido da sua palavra nem da do príncipe mas, nesse caso, para adquirir essa jóia terão de esperar que ela caia nas mãos dos herdeiros da sua proprietária pois, enquanto esta estiver viva, não poderão obtê‑la! Muito bons dias, senhores!

Um toque de campainha acabara de chamar o mordomo, pelo que se viram naturalmente obrigados a segui‑lo.

‑ Não me queres dizer porque lhe meti medo? ‑ murmurou Morosini enquanto regressavam ao carro.

‑ Não sei, mas fiquei com a mesma impressão.

‑ Talvez tenha cometido um erro ao tratá‑la com tanta brusquidão, não achas? Tenho a desagradável sensação de ter cometido um deslize.

‑ Talvez, mas não é certo. Com este género de mulher é melhor falar com clareza. Talvez devêssemos ter‑lhe perguntado simplesmente onde estava Lisa. Talvez a sua neta seja mais maleável. ‑ Não te fies nisso! Além disso, é possível que ela não saiba de nada. A condessa ignora completamente que a sua querida neta passou dois anos na minha residência!

‑ E isso não consegues digerir, pois não? Estavam a entrar para o carro quando apareceu uma caleche que parou mesmo diante do Amílcar. Dela saiu um homem com uma mala, que Morosini reconheceu imediatamente: era o seu agressor do Demel. Aliás o reconhecimento foi recíproco. Largando a mala quase em cima dos pés do mordomo, a buliçosa personagem dirigiu‑se imediatamente ao encontro de Aldo:

‑ Você outra vez? Pensava contudo que já o tinha prevenido, mas como parece ser surdo de orelha aviso‑o pela última vez: deixe de correr atrás dela ou terá de se haver comigo!

Depois de pronunciar a ameaça já dava meia volta, quando, perdendo a paciência, Morosini agarrou‑o pelo casaco cinzento orlado de verde, obrigando‑o a fazer‑lhe face:

‑ Um momento, rapaz! Você começa a aborrecer‑me para além do que é razoável suportar; portanto esclareçamos as coisas de uma vez por todas! Não ando atrás de ninguém, a não ser talvez de Mme. von Adlerstein, e gostava de saber o que tem contra isso.

‑ Não se arme em inocente! Não foi questão da tia Vivi, mas sim da minha prima Lisa! Por conseguinte, fixe bem isto: eu, Friedrich von Apfelgrune, estou decidido a desposá‑la e não quero ver mais janotas, ainda por cima estrangeiros, em volta dela! Agora largue‑me, está a estrangular‑me!

‑ Ainda não, mas não vai tardar se não se desculpar imediatamente! ‑ grunhiu Morosini sem afrouxar minimamente o seu aperto. ‑ Ainda ninguém se permitiu tratar‑me de janota.

‑ Nun... nunca! ‑ gorgolejou o jovem.

‑ Larga‑o! ‑ aconselhou Adalbert.‑ Estás a amadurecer demasiado depressa essa maçã verde.(1)

O mordomo veio em socorro:

‑ Vejamos, senhor Fritz, nunca mais tem juízo? No entanto o senhor sabe que Mlle. Lisa detesta os modos como lida com os amigos dela quando estes têm mais de dez anos... Quanto a Sua Excelência, queira ter a gentileza de libertá‑lo. A senhora condessa já ficará suficientemente zangada quando souber...

‑ Já sei, Josef! ‑ disse a velha dama que acabara de surgir no alto das escadas, apoiando‑se numa bengala e coberta por um xaile. ‑ Vem cá, Fritz, e pára de te armar em parvo! Aceite as minhas desculpas juntamente com as dele, príncipe! Este jovem louco delira quando se trata da prima.

Aldo nada mais tinha a fazer, a não ser largar a presa, inclinar‑se e retomar o seu lugar ao lado de Adalbert, o qual pôs imediatamente o carro em andamento, fazendo voar o cascalho da álea.

Ao descerem rumo à cidade, rodaram um bocado sem dizer palavra, cada um embrenhado nos seus próprios pensamentos, até que Adalbert resmungou finalmente entredentes:

‑ Estás a ver a Lisa casada com este fanfarrão?

 

*1. Apflelgrune significa maçã verde.

 

‑ Nem por sombras! E ouso esperar que ele faça parte daquelas pessoas que tomam os seus desejos por realidade. No que me diz respeito começo a achar que ela te interessa muito... é nela que pensas quando acabámos de conhecer uma derrota?

‑ É, porque ela é doravante a única pessoa que nos pode colocar na pista da dama da opala.

‑ Estraguei mesmo tudo ‑ exaltou‑se Morosini. ‑ Nunca a devia ter enfrentado! Agora, ela nunca nos revelará onde se encontra a cara Mina!

‑ Deixa de apelidá‑la dessa maneira! Já aborrece! Dito isto, talvez a avó mo diga a mim; talvez eu deva tentar voltar sozinho, não achas? Amanhã, por exemplo. Direi que te foste embora...

Morosini encolheu os ombros, desiludido:

‑ Por que não? No ponto em que estamos...

No entanto o destino teve a boa ideia de socorrê‑los enviando‑lhes um auxiliar inesperado.

Após um jantar maçador, composto por trutas e tomado numa sala de jantar meio cheia, portanto meio vazia, para recobrar ânimo ‑ começara a cair uma chuva miudinha ao fim do dia, escorraçada depois por um vento agreste ‑ decidiram ir beber um ou dois copos ao bar, que era o único local um pouco caloroso daquele palácio. Esperava‑os uma surpresa na presença do jovem Apfelgrune, debruçado sobre um banco diante do alto balcão de acaju, ocupado a desabafar junto a um barman calejado.

‑ Mandar‑me dormir para o hotel, a mim, o neto da... sua própria irmã! Atrever‑se a dizer‑me que não há lugar para mim, quando existem pelo menos... quinze quartos naquela... malfadada barraca! E eu, tenho de ir para o hotel! Consegues entender isto, Victor?

‑ Não é a primeira vez que isso lhe acontece, senhor Fritz! É sempre assim quando a moradia Rudolfskrone está cheia de convidados.

‑ Mas... precisamente... não há quaisquer convidados! Quando fui lá acima não havia nem um gato! A minha prima Lisa não está... como não está mais ninguém, mas a tia Vivi não queria saber de mim! Se ao menos eu soubesse porquê... Olha, dá‑me mais um schnapsTalvez me ajude...

Os dois homens que tinham acabado de se instalar numa mesa vizinha trocaram entre si um daqueles olhares cúmplices que não precisam de tradução, pois ambos pensavam o mesmo: talvez se revelasse frutuoso ir rodar em torno da casa... A condessa estava com medo de qualquer coisa ou de alguém e, contudo, ela expulsava o seu sobrinho‑neto que lhe poderia ser útil. Mas como uma partida súbita teria despertado pelo menos uma certa surpresa, encomendaram uma aguardente fina e instalaram‑se mais confortavelmente para saboreá‑la enquanto prestavam ouvidos aos lamentos de Fritz Apfelgrune, que se tornavam aliás cada vez mais pastosos à medida que desfiavam os pequenos copos de schnaps. Finalmente, aconteceu o inevitável: Fritz caiu sobre o balcão, a cabeça assente nos braços, e assim começou a sua noite.

‑ Senhor! ‑ gemeu o barman entredentes ‑ Vai ser preciso deitá‑lo!

‑ Enviamos‑lhe o porteiro ‑ disse Morosini, depositando algumas moedas na mesa.

‑ Os senhores não ficam mais tempo?

‑ Não, vamos passar um bocado em casa de um amigo...

‑ Nesse caso, não vou demorar a fechar: com este tempo, não haverá certamente mais clientes!

Efectivamente a chuva recomeçara. Era possível ouvi‑la batendo no alpendre envidraçado do hotel. Adalbert e Aldo subiram para os seus quartos para pegarem nos bonés e nos impermeáveis e trocar os smokings por camisolas de lã e calças de flanela e, equipados desta forma contra o mau tempo, desceram até à garagem para entrarem no carro cuja capota levantaram:

‑ O caminho é muito longo para ser feito a pé ‑ comentou Vidal‑Pellicorne. ‑ Poderemos certamente esconder o veículo no meio das árvores a uma pequena distância do castelo... Depois, iremos a pé.

‑ Pensas que é mesmo uma boa ideia empreender esta expedição? ‑ insinuou Morosini. ‑ Talvez estejamos apenas a imaginar

coisas...

‑ Não creio. Se ela correu com o Fritz, que tem ar de bom rapaz e que lhe deve ser inteiramente dedicado, é porque a presença dele a incomodava. Poria as mãos no fogo em como ela espera alguém!

 

           UM SERÃO BEM PREENCHIDO...

Ao voltar a subir a encosta do Jainzenberg, a poderosa limusina rodava a velocidade reduzida, o feixe luminoso dos faróis deslizando lentamente ao longo dos pinheiros como se procurasse o caminho.

Obedecendo a uma intuição repentina, Adalbert apagou as luzes do seu próprio carro e parou, sem saber muito bem porquê. Os momentos seguintes vieram dar‑lhe razão. Passado um bocado, apenas se via um reflexo nas árvores: o de um enorme carro que acabara de entrar na álea de Rudolfskrone.

‑ Dir‑se‑ia que tens razão ‑ disse Morosini. ‑ Aqui vêem aquele ou aqueles que ela esperava e que a levaram a pôr toda a gente na rua...

‑ Agora é a nossa vez de descobrir um canto tranquilo.

Vidal‑Pellicorne voltou a pôr o carro em andamento e reacendeu as luzes dos faróis o tempo suficiente para descobrir um carreiro florestal no qual se embrenhou, parando pouco depois.

‑ Vamos lá! ‑ disse Aldo, saindo da «banheira» revestida de couro preto.

Os dois homens percorreram a pé a curta distância entre o local onde tinham escondido o carro e a entrada, sem grades nem muros, do pequeno castelo. O céu, onde desfilavam espessas nuvens chuvosas e passageiras, fornecia claridade suficiente para que pudessem ver o caminho e os dois homens começaram a correr até avistarem a residência. Viram então o carro de há pouco parado diante da entrada, às escuras. As únicas luzes provinham das duas janelas da varanda, que correspondiam ao salão onde os dois amigos tinham sido recebidos durante a tarde.

‑ Deve ser fácil trepar até lá acima ‑ cochichou Adalbert ‑ mas é preciso abrir os olhos: quando viemos, ouvi cães a ladrar. Deve haver alguns nesta propriedade...

‑ Sim, mas se a condessa esperava visitas nocturnas, deve ter proibido que os soltassem...

Diante da residência, a álea central dividia em duas partes um relvado bordejado de teixos cortados ora em forma de cone, ora em forma circular. Aldo e Adalbert optaram por rodeá‑los para alcançarem o seu objectivo sem serem vistos.

Reservado ao serviço e a certas dependências, o piso inferior da moradia era muito menos alto que o piso nobre dominado por um frontão triangular. Era constituído por pedras de cantaria cuja escalada não devia apresentar grande dificuldade para homens habituados a exercícios físicos e ao desporto. Ajudando‑se mutuamente, Aldo e Adalbert conseguiram efectuá‑la sem fazer barulho e encontraram‑se na ampla varanda onde a luz proveniente das janelas permitia caminhar sem dificuldade no meio dos móveis e das plantas instalados para o prazer dos seus moradores.

Progredindo curvados, os dois homens aproximaram‑se das grandes janelas envidraçadas, depois de se certificarem que tinham ao alcance da mão as armas que julgaram por bem trazer, mas o espectáculo que se lhes revelou surpreendeu‑os.

Estavam à espera de uma cena dramática: a condessa enfrentando um inimigo, ou talvez até ameaçada; ora, o quadro que descobriram era tranquilo, quase familiar. Sentada perto do lume que deviam ter acendido para combater a humidade do ar, trazendo um vestido de veludo preto comprido no qual sobressaíam vários colares de pérolas, Mme. von Adlerstein olhava calmamente para um homem que já devia ter uma certa idade, a julgar pela coroa de cabelos brancos que lhe rodeava a calvície e pela sua barbicha grisalha, mas cujo rosto bronzeado e cujas mãos robustas testemunhavam uma vida passada ao ar livre e uma idade menos avançada do que se poderia julgar. Instalado a uma pequena mesa, estava ocupado a matar um apetite frugal com a ajuda de um magnífico pâté e de uma comprida garrafa de um vinho branco cujo líquido dourado embaciava o vidro de cristal trabalhado. Nenhum dos dois falava, como puderam constatar os dois observadores graças a uma das janelas, agora entreaberta.

‑ Não achas que nos devíamos pôr a andar? ‑ sussurrou Morosini, incomodado pela atmosfera de intimidade e de conivência que transpirava daquela cena. ‑ Enganámo‑nos e tenho muito receio que nos estejamos a comportar como dois malandrins.

‑ Psiu! Cá estamos, cá ficamos! Não havíamos de fazer isto tudo para nada. Além disso... nunca se sabe!

No salão, o visitante afastava a mesinha e encaminhava‑se para junto da chaminé, à beira da qual encostou o cotovelo depois de ter pedido e obtido autorização para acender um charuto.

‑ Muito obrigado por se ter recordado do meu farto apetite, minha cara Valérie! Esta pequena refeição estava deliciosa!

‑ Não quer uma chávena de café? Josef vai trazer‑lhe uma daqui a pouco...

‑ A hora é tardia. Não ousava pedi‑lo.

Com um gesto a velha dama varreu a objecção.

‑ Josef está a prepará‑la. Agora, forneça‑me algumas explicações. A sua carta alarmou‑me: porquê tanto mistério em torno da sua visita, quando era tão fácil apresentar‑se à luz do dia?

‑ Teria preferido que assim fosse a ter de efectuar este circuito de ida e volta entre Viena e Ischl em plena noite, mas o que aqui me traz exige o maior segredo e isso no seu próprio interesse, Valérie. Ninguém deve saber que me encontro aqui. Acatou as minhas instruções?

‑ Naturalmente. Despachei os criados, excepto o meu velho Josef e os cães estão guardados. Palavra que tudo isto se assemelha a um assunto de Estado.

‑ É a palavra apropriada, quando se é emissário de um chanceler. Monsenhor Seipel deseja que lhe fale da sua protegida...

‑ De Elsa?

O visitante não respondeu logo. Depois de ter batido discretamente à porta, Josef apareceu com uma bandeja transportando café, natas, água gelada e bolos. Pousou tudo em cima de uma pequena mesa que saía de um móvel onde se encaixava, colocando‑a diante da chaminé, antes de se ir embora com uma saudação respeitosa.

‑ Estás a ver que fizemos bem em esperar ‑ cochichou Adalbert. ‑ Tenho a impressão que vamos ouvir coisas muito interessantes.

Como a bandeja estava ao seu alcance, Mme. von Adlerstein serviu o seu visitante mas, ao efectuar os gestos rituais, a frágil porcelana tiniu ligeiramente, traduzindo um certo nervosismo.

‑ Que deseja o nosso chanceler? ‑ perguntou.

‑ Ele receia... que Elsa corra perigo e bem sabe até que ponto este grande cristão permanece extremamente sensível aos sucessivos dramas que sempre atingiram a Casa dos Habsburgos.

‑ Agradeço‑lhe a atenção, mas diga‑me em que medida esta mulher infeliz, e que vive escondida, pode atrair a Fatalidade?

‑ Escondida? Não inteiramente. Há as deslocações à Ópera e ao seu camarote.

‑ Até agora ninguém via nenhum inconveniente nisso. Aliás, essas aparições são raras. Só a viram três vezes...

‑ Já é demasiado! Tente compreender, Valérie! Essa mulher de grande porte e de perfeita elegância, se bem que um pouco fora de moda, essa alta e fina silhueta que dissimula tão bem o seu rosto e tão pouco as suas jóias, só pode excitar a curiosidade. Eu próprio fui à Ópera para assistir à última representação de O Cavaleiro da Rosa e pude observar a atenção com a qual certos espectadores a olhavam, nomeadamente dois homens que se encontravam no camarote do barão Rothschild. Não pararam de lhe assestar os binóculos e julgo que não eram os únicos a fazê‑lo. Isto tem de acabar ou então vamos ter aborrecimentos.

‑ Proibi‑la de lá voltar? Imagine que até já pensei nisso, mas custar‑me‑ia muito. Significa tanto para ela! No fundo, trata‑se da sua única esperança... No entanto ela toma grandes precauções, chegando sempre depois do levantar do pano, quando os espectadores habituais da Ópera, ferventes melómanos, já se encontram sob o encantamento. Ela não sai durante os intervalos, retirando‑se para o fundo do camarote e deixando apenas avistar o seu leque, no qual fixou a rosa prateada. Finalmente, ela parte logo após ter soado a última nota. Não lhe roguei que deixasse correr o rumor em como se trata de uma doente para o caso de lhe perguntarem alguma coisa?

‑ E perguntam. O seu porte, aquele ar que tanto recorda o de outra pessoa ainda presente em tantas memórias! Não, minha cara, isto tem de acabar. Ou então, que ela vá de rosto descoberto, vestida de outra maneira e que se instale noutro lugar.

‑ Impossível!

‑ Porquê? Ela... assemelhar‑se‑ia à imperatriz?

‑ Sim e muito mais do que há doze anos. A parecença até é espantosa...

A condessa pegou na sua bengala, levantou‑se e encaminhou‑se lentamente para um pequeno pedestal colocado a um canto da sala, sobre o qual se encontrava o busto de Élisabeth. Era uma obra austera porque tardia. A mulher esculpida já fora atingida pela pior das feridas, aquela de que não é possível curar‑se: a morte de um filho. Sob a coroa de tranças, o belo rosto que se elevava da gola que lhe chegava às orelhas estava marcado pela dor, mas era altivo e até orgulhoso. Era o rosto de alguém que não tendo mais nada a perder, desafiava o destino e a morte. Carinhosamente, a velha dama aflorou o ombro de mármore com a mão:

‑ Elsa dedica‑lhe um culto e julgo que até tem certo prazer em acentuar a parecença mas, se esconde o rosto, não é unicamente por prudência. Ela ignora o que isso é. Não me pergunte o motivo porque não lho revelarei.

‑ Como quiser. Sabe que dizem que ela seria filha da imperatriz e de Luís II da Baviera?

‑ Ridículo! Basta olhar para as datas. Quando ela nasceu em 1888, a nossa soberana já não tinha idade para ter filhos...

‑ Bem sei, mas mesmo assim ela faz parte da família. Porém, existe a imaginação popular, sobretudo nos húngaros, que nunca deixaram de venerar a memória daquela que foi sua rainha mas, em contrapartida, também existem pessoas que juraram que apagariam qualquer vestígio de uma dinastia detestada, aqueles que assassinaram Rodolfo em Mayerling, a própria Élizabeth em Genebra, Francisco Ferdinando em Sarajevo, já não contando com os mexicanos que fuzilaram Maximiliano. Esses lá tinham os seus motivos, mas conheço algumas pessoas que se perguntam se a doença que matou o ano passado o jovem imperador Carlos na ilha da Madeira era mesmo uma doença...

‑ Que estupidez! Não chega a miséria, uma saúde arruinada? Talvez se trate de uma maldição, mas não creio que ela seja obra de pessoas encarregues de a executar. Tanto mais que Carlos deixa oito filhos. Com a mãe, a imperatriz Zita, com as arquiduquesas Gisèle e Valérie, sem contar com a filha de Rodolfo, ainda assim há muitos príncipes e princesas vivos, Deus seja louvado!

‑ Pense o que lhe aprouver. De qualquer modo, a polícia já foi avisada: a sua protegida é procurada e se não tomar precauções...

‑ Vai fazer quinze anos que as tomo contra os únicos inimigos que lhe conheço: aqueles que querem as suas jóias, o único bem que lhe resta. Ninguém sabe onde ela mora, excepto eu e os seus guardiões. Quanto às três viagens que fez a Viena, ocorreram sempre à noite...

‑ Mas ela mora em sua casa? Os seus criados...

‑ Estão acima de qualquer suspeita e já se encontram ao meu serviço há muitos anos. É como se fizessem parte da família. Em suma, que veio pedir‑me? Convencer Elsa a não mais sair do seu retiro? Farei todo o possível nesse sentido, porque a última viagem não decorreu bem. O que não significa que o conseguirei, pois quando se assistiu ao renascer de um sonho que se julgara enterrado, é muito difícil renunciar. Sobretudo para ela: o seu espírito apenas capta o que lhe convém e não quer saber do resto. Caro Alexandre, a vida dela é apenas uma longa espera: a de rever um dia aquele que se comprometeu há doze anos ao oferecer‑lhe uma rosa prateada...

‑ E ela espera reencontrá‑lo? Doze anos depois? É incrível!

‑ Não tanto se a conhecesse. A sua história não é banal. Começou em 1911, na noite da estreia de O cavaleiro da Rosa. Foi aí que encontrou um jovem diplomata, Franz Rudiger, e foi amor à primeira vista para ambos. Logo no dia seguinte, ele dirigiu‑se‑lhe oferecendo‑lhe a famosa rosa prateada e ambos consideraram‑se como noivos. Infelizmente, ao fim de alguns dias, Rudiger teve de partir pois Francisco José enviou‑o numa missão à América do Sul. Uma missão tão longa e difícil que, não tivessem sido duas ou três cartas enviadas de Buenos Aires e de Montevideu, teríamos podido considerá‑lo morto.

‑ Uma missão na América do Sul? Curioso!... E não tem nenhuma ideia...?

‑ Quando é uma ordem do imperador não se fazem perguntas. Já devia saber isso. Seja como for, Rudiger regressou à Europa no início da guerra. Nós encontrávamo‑nos aqui e ele apenas passou por Viena sem ter a oportunidade de nos visitar. Elsa recebeu duas cartas e, depois, durante meses, deixou de receber correspondência. Soube que o capitão Rudiger fora dado como desaparecido. O desespero da noiva foi terrível. E, finalmente, aproximadamente há dezoito meses, chegou uma nova carta. Rudiger estava vivo, mas encontrava‑se em mau estado. Fora gravemente ferido e dizia estar ainda muito combalido. No entanto, desejava saber se Elsa continuava livre, se ainda o amava. Então, propôs‑lhe duas datas para um encontro: a da primeira e a da última representação da temporada da Ópera em que era exibido O Cavaleiro da Rosa. Caso ainda não estivesse suficientemente recomposto para aparecer na primeira, esforçar‑se‑ia por comparecer à última...

‑ Por que não deixou simplesmente um endereço?

‑ Vai‑se lá saber! Achei esta história um tanto esquisita, mas Elsa estava tão feliz que não tive coragem para retê‑la. Foi nessa altura que o preveni afim de evitar, tanto quanto possível, que ela deparasse com alguma dificuldade e agradeço‑lhe pela sua ajuda... Claro que Rudiger apenas se manifestou através de uma última mensagem cheia de desculpas e de palavras de amor: dizia estar ainda muito fraco, mas jurava comparecer à representação do dia 17 de Outubro. Tive de ceder novamente, se bem que o meu acidente não me tenha permitido acompanhá‑la. Desta vez será a última. Terei de chamá‑la à razão...

‑ E se chegarem outras notícias?

‑ Nem sequer lhe tocarei no assunto. São sempre endereçadas para aqui e eu serei a primeira a tomar conhecimento. Está a ver, estou persuadida que a última carta foi uma armadilha. Pode tranquilizar Monsenhor Seipel: já não haverá nenhum enigma vivo no meu camarote. Regresse pois a Viena de coração aliviado!...

‑ Um momento, ainda não acabei. Mas, diga‑me uma coisa, Valérie, com tantas relações que tem por essa Europa fora, começando logo por mim, por que é que a senhora não tentou saber algo mais acerca de Rudiger?

‑ Não é que me faltasse a vontade ‑ suspirou a condessa ‑ mas amo Elsa e quis respeitar‑lhe a vontade. Ora, ela opunha‑se a que eu tentasse desvendar o mistério que encobria aquele que a ama. Fique a saber o seguinte, Alexandre: tal como a mãe, ela é uma admiradora apaixonada de Richard Wagner e não é por acaso que se chama Elsa!

‑ Estou a ver: ela considera o seu Rudiger como Lohengrin e, ao formular a questão proibida, receia que o Cavaleiro do cisne desapareça para todo o sempre. Além disso, esse homem chama‑se Rudiger, tal como o margrave de Bechelaren, e esse nome condu‑la ao anel dos Nibelungos e ao universo fantástico de Wagner. A sua protegida sonha demais, Valérie!

‑ O sonho é tudo o que lhe resta e procurarei não lho arrancar com muita brutalidade!

‑ Ela sai aos seus! Mas eu, que não possuo uma gota do sangue romanesco dos Wittelsbach, vou procurar esclarecer toda esta história. Se esse homem era um diplomata, deve ser possível encontrar sinais dele nalgum lado. Aliás...

Ele colocara o charuto num cinzeiro e bem recostado na poltrona, com as extremidades dos dedos tocando‑se, reflectiu um tempo que pareceu interminável a Aldo e Adalbert, ameaçados por cãibras.

‑ Está a pensar nalguma coisa? ‑ perguntou a velha dama.

‑ Estou. A propósito dessa missão à América do Sul, lembro‑me que antes da guerra Francisco José, pouco satisfeito em ter como herdeiro o seu sobrinho Francisco Ferdinando, de quem não gostava, teria enviado um emissário para a Argentina e até à Patagónia, a fim de descobrir algum eventual rasto do arquiduque João Salvator, o seu antigo vizinho do castelo de Orth.

‑ E porque teria feito isso? Ele também o detestava, acusando‑o de ter arrastado o filho para o precipício fatal com as suas ideias subversivas!

‑ Talvez por curiosidade, quem sabe? Não pensava oferecer‑lhe o trono, mas ao aproximar‑se da hora da morte era muito normal que o velho homem procurasse acabar de uma vez por todas com os segredos, os enigmas e tudo o que incomoda a memória dos Habsburgos...

‑ ... mas que lhes fortalece a lenda! Pode ser que tenha razão. Nesse caso, a minha pobre Elsa esperou em vão: nunca foi permitido a um homem, encarregue de um segredo de Estado, que vivesse como toda a gente.

‑ Sobretudo com mais outro segredo! Minha cara, tenho de concluir o que lhe vim dizer. Não basta que impeça Elsa de se manifestar: tem de entregá‑la às nossas mãos, para que possamos assumir a sua protecção!

Um relâmpago perpassou pelos olhos sombrios de Mme. von Adlerstein sob o arco ainda perfeito das sobrancelhas, mas a sua voz permaneceu calma e fria quando respondeu:

‑ Não! Isso está fora de questão.

‑ E porquê?

‑ Porque seria pôr em risco a sua razão, muito frágil, tenho de admiti‑lo. Ela acostumou‑se ao seu refúgio e àqueles que a rodeiam e cuidam dela. O local agrada‑lhe e até agora o segredo foi bem preservado.

‑ Talvez demasiadamente bem e perdoe‑me que lhe diga isto, prima, mesmo que lhe pareça brutal, mas a senhora já não é jovem. Que aconteceria à sua protegida caso lhe acontecesse a si alguma infelicidade?

Ela mostrou um sorriso tão parecido com o da sua neta que, durante um momento, Aldo julgou ver Lisa quando ela tivesse cabelos brancos.

‑ Não se preocupe com isso. Já tomei as minhas disposições. Se eu morrer, Elsa não acarretará com as consequências. O seu argumento não é válido...

‑ Esse seu segredo é muito pesado. Ao menos não quer compartilhá‑lo comigo, que lhe sou tão ligado?

‑ Não me leve a mal, Alexandre, mas a resposta continua a ser negativa. Quanto menos se compartilha um segredo, mais ele se conserva! Talvez mais tarde, quando me sentir demasiado velha ‑ acrescentou, ao ver que a figura do seu visitante se ensombrava. ‑ Mas, por ora, não insista mais, é inútil!

‑ Como queira ‑ suspirou Alexandre, levantando‑se da poltrona ‑ Agora faz‑se tarde e tenho de regressar...

‑ Nós também! ‑ cochichou Adalbert.

Apesar de um pouco anquilosados, os dois homens conseguiram abandonar a varanda e percorrer o caminho de regresso. Reinstalaram‑se no carro, sem terem ainda trocado sequer uma palavra mas, contrariamente ao que Aldo esperava, Adalbert não pôs o motor a funcionar.

‑ Então? Não te apetece regressar?

‑ Já de seguida, não. Tenho a impressão que a comédia ainda não acabou. Há algo que me incomoda...

‑ O quê?

‑ Se eu soubesse... É apenas uma impressão, como acabo de te dizer, mas quando isso me acontece gosto de segui‑la até ao fim.

‑ Bom! ‑ disse Morosini, resignado. ‑ Nesse caso passa‑me um cigarro, a minha cigarreira está vazia.

‑ Tu fumas demais! ‑ disse‑lhe o arqueólogo, satisfazendo‑lhe o pedido.

Conservaram‑se calados durante um momento. Levantara‑se um vento que expulsava as nuvens, e a abóbada celeste, que surgia por entre as copas dos pinheiros, estava agora mais clara. Um ar fresco transportando os odores da floresta e da terra molhada entrava pelos vidros abaixados. A mistura que se obtinha com o cheiro do tabaco e o aroma inebriante da aventura era daquelas que mais agradavam a Áldo, que a respirava deleitadamente quando se ouviu subitamente o ruído de um carro e, pouco depois, o duplo feixe dos faróis iluminou a estrada em baixo. Imediatamente, com uma expressão encantada, Adalbert pôs o motor a funcionar, mas sem acender os seus próprios faróis:

‑ Vamos lá a ver onde ele nos leva! ‑ disse, alegremente.

‑ É o carro que estava no castelo. Por que queres segui‑lo, se sabes que vai para Viena?

‑ Tu não conheces a região, pois não?

‑ Não. Da Áustria, apenas conheço o Tirol e Viena.

‑ Nesse caso, escuta‑me bem: que me transformem em cartão para chapéu, se aquele carro vai para Viena. A estrada que conduz à capital fica em sentido contrário e era isso que me estava a perturbar. Sem me ter verdadeiramente apercebido há pouco achei esquisito quando o homem que conhecemos como Alexandre disse ter chegado de Viena. Recorda‑te! Nós seguimo‑lo: portanto ele vinha de Ischl. E agora, em vez de se encaminhar para Traunsee e Gmunden, para alcançar a margem do Danúbio, ele retomou o mesmo trajecto. Então eu, curioso como tudo, quero tentar compreender o que se passa. Imagino que te sucede o mesmo, não é?

‑ Nem é preciso perguntar!

De luzes apagadas, o pequeno carro entrou na estrada e seguiu a limusina a distância suficiente para não dar nas vistas, servindo‑se da luz dos seus faróis para se orientar. Com uma excitação cada vez maior, os ocupantes do Amílcar viram o enorme veículo dirigir‑se para sul através de Ischl, atravessar os rios e prosseguir mais alguns momentos, mas de luzes apagadas ‑ o que foi quase fatal para os seus perseguidores! ‑, até ao grande gradeamento aberto de uma propriedade, na qual desapareceu. O motorista devia conhecer bem os cantos, pois a escuridão era total: não havia nenhuma luz que assinalasse uma casa.

‑ Cada vez mais interessante! ‑ disse Adalbert, que parara um pouco mais longe. ‑ Se é o que ele chama regressar a casa, só nos resta irmo‑nos deitar...

‑ Ainda não! O gradeamento não foi fechado. Talvez a nossa presa só esteja de passagem...

‑ Que teria vindo fazer aqui a meio da noite?

‑ Isso, digamos que lhe diz respeito. A quantos quilómetros daqui fica Viena?

‑ Aproximadamente duzentos e sessenta...

Adalbert ia para dizer qualquer coisa mas calou‑se, com o ouvido à escuta. No jardim vizinho, a limusina recomeçara a rodar. Saiu da propriedade, voltou à esquerda para passar pela ponte e afastou‑se sem despertar a menor reacção naqueles que a vigiavam. Não havia qualquer dúvida em como regressava ao seu primeiro destino.

‑ Desta vez creio que podemos regressar ‑ disse Adalbert...

Pôs o carro em andamento mas prosseguiu pela estrada, um tanto estreita, a fim de encontrar um local onde pudesse dar meia volta. Foi preciso ir bastante longe para encontrar um atalho e, quando voltaram a passar diante do gradeamento, puderam constatar que desta vez ele estava fechado:

‑ Acabou a recepção ‑ comentou Aldo, em tom alegre. ‑ Amanhã teremos de procurar saber quem a deu.

‑ Não deve ser difícil. É uma dessas enormes moradias que pertencem às grandes famílias que faziam parte da corte e que vinham cumprir as suas obrigações enquanto cuidavam da saúde.

Quando os dois homens chegaram ao hotel soava a uma da manhã na igreja, mas o serão tinha sido tão fértil em acontecimentos que ficaram surpreendidos pois tinham a impressão de que era muito mais tarde!

Apesar do cansaço, Morosini, às voltas com os seus nervos, teve as maiores dificuldades em encontrar o sono. Deste modo, quando acordou, já eram nove e meia, um pouco tarde para tomar o pequeno‑almoço no quarto. Depois de uma rápida mas enérgica toilette, desceu ao rés‑do‑chão para tomar aquilo que na Áustria se chama o Gabelfruhstuck‑ o pequeno‑almoço de faca e garfo.

Ainda não decorrera cinco minutos que se sentara à mesa, quando viu aparecer Adalbert de olhos turvos e cabelos despenteados.

‑ Debati‑me toda a noite com os Habsburgos passados e presentes ‑ suspirou o arqueólogo retendo um bocejo ‑ sem chegar a qualquer solução aceitável. Quem diabo poderá ser esta Elsa? Inclino‑me muito para uma filha natural. Mas de quem? De Francisco José? Da esposa? Do filho?... Café! Muito café, se faz favor ‑ acrescentou dirigindo‑se ao criado que acabara de tomar nota do seu pedido.

‑ De qualquer modo, dos dois primeiros não pode ser. Ela parece‑se com Sissi e portanto o imperador nada tem a ver no caso. Quanto à bela imperatriz, ouviste bem: é impossível! Em compensação, as minhas preferências inclinar‑se‑iam mais para o lado do arquiduque Rodolfo, pois recordo‑te que a vi no jazigo dos Capuchinhos a depositar flores no seu túmulo...

‑ De acordo! É o mais lógico. O arquiduque teve muitas amantes mas, o que já o é menos é o segredo que envolve esta mulher, a atenção e a protecção que lhe dispensa uma tão grande dama como a condessa e, finalmente, as suas jóias...

‑ Cheguei à mesma conclusão: Rodolfo deve ser certamente o pai, mas a mãe não devia ser uma qualquer cantora cigana. Nesse caso, quem terá sido ela?

‑ Pergunta sem resposta possível no estado actual das coisas! ‑ resmungou Adalbert, esforçando‑se por trincar uma salsicha recalcitrante. ‑ E se quiseres saber a minha opinião, as coisas não se compõem. Ontem sabíamos que ninguém nos ajudaria a aproximarmo‑nos da proprietária da opala...

‑ E hoje sabemos que ao procurar encontrá‑la arriscamo‑nos a conduzir até ela pessoas de intenções mais que duvidosas. Não me agrada colocar esta mulher em perigo. Nesse caso, que fazemos?

‑ Creio que não podemos largar tudo.

‑ Temos de continuar as nossas buscas, esforçando‑nos para limitar os estragos. Quem sabe se ao descobrirmos o retiro de Elsa não teremos a oportunidade de lhe ser útil nalguma coisa? E, por que não, de defendê‑la e ajudá‑la?

‑ É uma ideia que se pode defender! Além disso, se me quiseres acreditar, o papel do nosso amigo Alexandre X... está longe de ser claro. Então, para começar, vamos informar‑nos acerca da moradia que ele visitou ontem à noite.

Vamos até lá e talvez encontremos alguém que nos possa dizer a quem pertence.

Findo o diálogo, Adalbert atacou um prato de Nockerln(1) com queijo e serviu‑se de uma boa porção. Aldo olhava‑o com franca desaprovação ao acender um cigarro: naquela manhã estava decididamente sem fome, ficara cheio com duas salsichas e um pouco de Liptauer(2). Foi nessa altura que, através do fumo azulado, viu surgir Friederich von Apfelgrune, o qual, vestido a preceito, entrava na sala de jantar.

‑ Olha! ‑ murmurou. ‑ Aí vem o nosso amigo Maçã Verde. Está com muito melhor aspecto: olhar seguro, pernas firmes!... Oh, meu Deus! Dir‑se‑ia que caminha ao nosso encontro. Farias melhor em parar de emborcar toda essa comida! Só Deus sabe o que ele nos reserva!

Mas, ao chegar a uma distância de quatro passos da mesa, o jovem austríaco bateu com os calcanhares, inclinando‑se de forma muito protocolar; depois, dirigindo‑se a Morosini, disse:

‑ Senhor, eu vir apresentar você humildes desculpas. ‑ disse, num francês arranhado, que pareceu encantar Vidal‑Pellicorne. ‑ Eu estar completamente desolado de fazer tão abominável confusão, mas eu perder cabeça quando se trata de prima Lisa.

Transbordando de boa vontade, era quase comovedor. Por isso Aldo levantou‑se para lhe estender a mão. Aquele rapaz talvez fosse o enviado do céu de que tanto necessitavam: devia conhecer perfeitamente a região e os seus habitantes, sem contar as relações da tia Vivi.

‑ Não pense mais nisso! Não foi nada de mal...

‑ Wirklich?... Você não detestar mim?

‑ De modo algum! Já esqueci tudo. Não se quer sentar à nossa mesa? Apresento‑lhe Vidal‑Pellicorne, um arqueólogo muito prestigiado!

‑ Oh, eu estar tão feliz!

Dois criados apressados procederam às modificações necessárias na disposição da mesa e Fritz instalou‑se com uma expressão radiante. Ao receber tão amavelmente as suas desculpas, Aldo devia tê‑lo aliviado de um grande peso.

 

*1. Espécie de gnocchis típicos da região de Salzburgo.

  1. Queijo branco com ervas, paprica, pasta de enchovas, cominho e alcaparras.

 

‑ Com que então ‑ disse Aldo em alemão, para incitar o outro a fazer o mesmo e para pô‑lo ainda mais à vontade ‑ você é sobrinho de Mme. von Adlerstein?

‑ Não, sou sua sobrinho‑ neta! ‑ disse o outro, que persistia em querer mostrar os seus talentos linguísticos. ‑ Eu ser neta da irmã dela.

‑ E, se bem depreendi dos nossos recentes encontros, é também noivo de sua prima?

Apfelgrune ficou da cor de uma bela cereja:

‑ Eu desejar tanto! Mas não ser a verdadeira verdade. Compreende ‑ acrescentou, desistindo agora do uso de um idioma que não lhe devia permitir traduzir a intensidade dos seus sentimentos com grande clareza ‑ eu e Lisa conhecemo‑nos desde a infância e apaixonei‑me por ela logo a partir dessa altura. Isso até divertia muito a família: ela dizia sempre que estávamos noivos. Um jogo, claro, mas eu sempre o continuei.

‑ E ela?

‑ Oh ‑ suspirou Fritz, com um ar subitamente melancólico ‑ ela é uma rapariga tão independente! É mesmo muito difícil saber quem é que ela ama ou não. Julgo que gosta de mim. Mas visto ter dito a Josef que era seu amigo, você deve conhecê‑la, não é? ‑ perguntou, com uma última réstia de rancor o jovem Apfelgrune, que talvez fosse um doidivanas, mas que possuía boa memória. Deste modo, Adalbert apressou‑se a prestar‑lhe todos os esclarecimentos necessários para o tranquilizar.

‑ Sou seu amigo, mas não íntimo. Quanto aos laços entre Mlle. Kledermann e o príncipe Morosini, aqui presente, creio que o termo relações me parece o mais indicado ‑ acrescentou com um relance de olhos inocente na direcção do seu companheiro. ‑ Penso nunca ter havido amizade entre eles, não é verdade?

‑ Efectivamente ‑ certificou Aldo, com uma franqueza igualmente hipócrita. ‑ Mal a conheço...

‑ Contudo o senhor é italiano, até mesmo veneziano e Lisa sempre delirou com a sua cidade. Julgo até que foi para lá morar à sorrelfa durante dois anos.

‑ Confesso tê‑la encontrado uma ou duas vezes... em salões...

‑ Tem mais sorte do que eu. Julgando poder encontrá‑la, desloquei‑me várias vezes à sua cidade, mas nunca consegui avistá‑la. Quanto a Zurique, onde tem a casa da família, ela nunca lá vai.

‑ E pensava encontrá‑la aqui?

‑ Esperava, visto que a procurei em vão em Viena. Sabe, desde que abandonou as suas loucuras italianas, ela está frequentemente ao pé da avó, de quem gosta muito. Mas o senhor, porque motivo estava em Rudolfskrone?

Ainda se detectava um resto de desconfiança na voz, pelo que, com um piscar de olhos, Adalbert deu a entender a Aldo que se encarregaria das explicações. Quando se tratava de contar histórias, ele era sem dúvida o mais dotado, mas convinha saber até que ponto Fritz estava informado sobre o que se passava lá em cima.

‑ Ontem à noite Mme. von Adlerstein não lhe contou nada?

‑ Ela? Absolutamente nada! Ficou tão furiosa ao ver‑me chegar que me pôs na rua pretextando que a incomodava e que detestava que alguém lhe aparecesse em casa sem a ter prevenido antecipadamente. Agora não ouso lá voltar e isso aborrece‑me porque tinha algo a pedir‑lhe...

‑ Mora em Viena?

‑ Moro, vivo em casa de meus pais ‑ precisou Fritz. ‑ Graças a Deus, resta‑lhes uma fortuna suficiente para que eu seja livre. Mas falemos antes de vocês!

Tranquilizado quanto ao terreno que pisava, Vidal‑Pellicorne escolheu um meio‑termo entre a realidade e a fantasia: contou que o seu amigo Morosini, coleccionador e especialista em pedras preciosas e apaixonado, entre outras coisas, pelos Habsburgos, procurava reunir as jóias que eles tinham vendido em Genebra durante a guerra, por intermédio do conde Berchtold. Ora, ao ser convidado por um amigo para ir à Ópera de Viena, ele julgara reconhecer uma das jóias em questão numa dama que pensava ser a condessa von Adlerstein, visto que era o seu camarote. A partir de então esforçava‑se por encontrá‑la.

‑ Não sabe como são os coleccionadores? ‑ acrescentou com branda indulgência. ‑ Endoidecem assim que farejam uma pista. Infelizmente, não obteve qualquer resultado: a dama em questão é amiga da sua tia‑avó e esta não nos escondeu a sua maneira de pensar: a proprietária da jóia consideraria qualquer proposta de venda como uma indelicadeza. Até se recusou a dar‑nos o seu nome e a sua morada.

‑ Isso não me espanta! A tia Vivi não é uma pessoa fácil! Quanto a mim, se os pudesse ajudar, fá‑lo‑ia de bom grado, mas nunca vou à Ópera. Essas pessoas que correm de um lado para o outro proclamando que vão morrer ou que se sentam dizendo que têm de fugir aborrecem‑me mortalmente... E o senhor? Se bem entendi, o senhor é arqueólogo?

‑ Sou sobretudo egiptólogo mas, desde há algum tempo desejo conhecer um pouco mais sobre a vossa antiga civilização de Hallstatt e desloquei‑me aqui para visitar o local. Acontece que encontrei Morosini em Salzburgo e viemos juntos. Mas sem dúvida que a arqueologia não o cativa mais que a ópera, não? ‑ acrescentou Adalbert, com solicitude.

‑ Na realidade não, mas acontece que conheço bem os cantos à casa! É lá que se encontram as ruínas de Hochadlerstein, o velho burgo familiar nos contrafortes do Dachstein, onde brinquei muitas vezes durante as férias... quando era miúdo.

‑ Mas não morava em nenhumas ruínas, pois não? ‑ interveio Aldo, a quem tinha ocorrido repentinamente uma ideia.

‑ Não. Alugávamos uma casa, pois a minha mãe gostava muito do local... É com prazer que lhe mostrarei Hallstatt ‑ acrescentou Fritz, dirigindo‑se a Adalbert. ‑ Vou ficar aqui durante três ou quatro dias, para ver se entretanto a disposição da tia Vivi melhora. E como o senhor vai sem dúvida ficar sozinho...

Como as suas preferências tendiam para o lado de Vidal‑Pellicorne, havia uma nota de esperança na voz. E como era um rapaz honesto e bem‑educado, apresentara a Morosini as desculpas que julgava convenientes, mas não morria de simpatia por ele. O físico do veneziano devia ter algo a ver com isso.

‑ Porque ficaria ele sozinho? ‑ perguntou Aldo num tom irónico.

‑ O senhor ir‑se‑á embora, dado que não conseguiu obter o que procurava. Eu vos substituir! ‑ concluiu, regressando alegremente ao seu francês pitoresco. ‑ Assim eu fazer muito progresso.

‑ Pois bem, também o fará comigo!

‑ Você ficar?

‑ Sim, meu Deus. Veja só que os Habsburgos me cativam a tal ponto que tenciono escrever um livro sobre a vida quotidiana em Bad Ischl no tempo de Francisco José ‑ declarou, seguindo divertido os progressos da decepção que transpareciam no rosto roliço do jovem.

‑ Deste modo, agora vou dar uma volta pela cidade. Mas não os impeço de irem passear os dois.

‑ Isso serboa ideia! ‑ exclamou Fritz, mais consolado. ‑ E eu andarem pequeno bólide vermelho! Só que eu te avisar‑ a estrada não vai até Hallstatt, depois é preciso andar a pé ou então apanhar o barco.

‑ Logo veremos! ‑ resmungou Adalbert, cujo olhar revelava amplamente o que pensava das boas ideias de Aldo. ‑ Quando é que nos voltamos a ver?

‑ À hora do jantar, suponho? Com o que acabas de comer não tencionas decerto almoçar, pois não?

‑ Não ‑ interveio Fritz. ‑ Nós encontrarás cinco na pastelaria Zauner! É aí que bater coração de Bad Ischl e se o senhor desejar escrever sobre o assunto, não deve deixar de lá ir. E senhor ver, tudo estar igual à época de Francisco José!...

‑ Muito bem, então encontramo‑nos no Zauner! ‑ concluiu Aldo. ‑ Até às cinco!

E deixando os dois outros ainda à mesa, subiu para ir buscar o boné e o impermeável.

De mãos enfiadas no fundo dos bolsos, gola do Burberry levantada, Morosini partiu em andamento de passeio ao longo do Traun. O tempo cinzento e fresco não era nada de molde a embelezar uma estação termal fora da época, em que numerosas moradias estavam de persianas corridas, mas tal era o encanto da pequena cidade, no fundo do seu vale, que gostou de vê‑la assim, desembaraçada das hordas de convalescentes.

Atravessada a ponte, encontrou sem dificuldade o gradeamento que avistara durante a noite. Este encerrava uma álea bordejada de altas moitas que conduziam a uma ampla residência ocre, sob um telhado em acento circunflexo, que continuava muito para lá da sua estrutura e que lhe conferia um vago aspecto de chalé, corrigido pelos complicados ferros forjados das varandas. Da estrada só se avistava o andar, cujas persianas, para surpresa do passeante, estavam também corridas...

Perplexo, Aldo hesitava quanto ao que fazer quando se aproximou uma mulher usando o traje das camponesas do Salzkammergut ‑ vestido de lã escura com mangas em balão, sob um xaile de cores e um chapéu de feltro enfeitado com uma pena:

‑ O senhor procura alguma coisa? ‑ perguntou, com a gentileza instintiva das pessoas da região. Ela era encantadora, com um rosto redondo e fresco, que atraía naturalmente o sorriso.

‑ Sim e não, minha senhora ‑ respondeu Morosini, tirando o boné, o que a fez corar um pouco mais. ‑ Há muito tempo que passei por cá e não me consigo situar. Esta não é a residência do barão von Biedermann? (Proferira o primeiro nome que lhe viera à cabeça).

‑ Oh não, está enganado. Esta era a casa do conde Auffenberg. Digo «era» porque ela acaba de ser vendida, mas não lhe sei dizer o nome do novo proprietário.

‑ Não tem importância, minha senhora, a partir do momento em que não era aquela que pensava. Obrigado pela sua amabilidade!

Ela deixou‑o, esboçando uma pequena reverência e prosseguiu caminho. Aldo fez o mesmo ao constatar que não havia qualquer sinal de vida na casa. Curiosa residência, na verdade, para ir passar alguns momentos em plena noite antes de retomar um longo trajecto! Para fazer uma visita a algum fantasma? Ou a alguém que não desejava que soubessem que ali estava? Decididamente, o papel de Alexandre tornava‑se cada vez mais intrigante.

Com uma certa dose de melancolia, Aldo pensou que o seu próprio caminho estava a transformar‑se num impasse e isso era uma situação que detestava, mas o que fazer para encontrar uma saída? Regressar e visitar a condessa para lhe revelar o comportamento esquisito de um homem no qual ela parecia depositar toda a confiança? Impossível, a menos que lhe confessasse que ele e Adalbert tinham espiado o seu encontro nocturno, o que o era ainda mais: imaginava muito bem com que indignação ela receberia as confidências de uma personagem que já por si não lhe agradava.

A ideia que Apfelgrune talvez soubesse alguma coisa, apenas lhe aflorou a mente. O rapaz interessava‑se era nele próprio e na sua cara Lisa. Nada mais!

Em último recurso, resolveu ir passar uns momentos numa cervejaria, após o que prolongaria o seu percurso até à Kaiser Villa. Acreditava muito nos ambientes e mergulhar no de uma residência estival da família imperial talvez lhe trouxesse alguma ideia.

A grande moradia, cuja actual proprietária era a arquiduquesa Marie Valérie, que se tornara princesa da Toscânia pelo seu casamento com o primo, o arquiduque Francisco Salvator, podia ser parcialmente visitada; contudo, Morosini não transpôs o portão desta construção cujas paredes, de um amarelo‑terno, lembravam um pouco Schonbrunn, e conferiam um vislumbre de sol por entre as árvores despojadas pelo Outono. Segundo ouvira dizer, o interior albergava quantidade de troféus de caça, massacres de veados, de javalis e, sobretudo, de cabras‑montês ‑ das quais constava que Francisco José abatera mais de dois milhares. As proezas cinegéticas nunca tinham tentado Morosini e estas menos ainda que todas as outras. Além disso, como procurar o rasto de uma mulher que adorava os animais no meio de um mausoléu consagrado à sua destruição? Por isso preferiu vaguear pelo parque, subir lentamente até ao pavilhão de mármore rosáceo que a imperatriz mandara construir em 1869, para lá escrever, sonhar, meditar e para ter a impressão de ser uma castelã como as outras, livre para deixar errar o olhar pelas plantas e pelas árvores que rodeavam o seu refúgio e atrás das quais não se dissimulava nenhum guarda.

Pertencente a um povo que a Áustria mantivera cativo durante longos anos, o príncipe Morosini não sentia qualquer tipo de afecto pela sua família imperial, mas o homem de nobre coração que era não podia recusar uma homenagem, quer devido à admiração que nutria por uma soberana cuja beleza iluminava ainda numerosos quadros, quer pela compaixão que sentia pelas numerosas feridas de que o coração dela padecera. E era a sua sombra dolorosa e altiva que ele procurava captar para lhe roubar talvez algum segredo...

De pé, perto de um pinheiro, contemplava com certa decepção o edifício heteróclito, fortemente influenciado pelo estilo trovadoresco que sempre detestara, quando soou uma voz amável:

‑ Nunca gostei muito desta construção. Ela denota demasiado o gosto dos príncipes bávaros por uma Idade Média ao estilo de Richard Wagner. Sem chegar aos delírios do infeliz rei Luís II, recorda um pouco que a nossa Élisabeth era sua prima e que muito o amava.

Coberto por uma capa de lã espessa e impermeável, um chapéu de feltro com penas e uma bengala na mão, o sr. Lehar contemplava o seu companheiro de viagem com um sorriso malicioso:

‑ Não me tinha dito ‑ acrescentou ‑ que era admirador de Sissi...

‑ Não verdadeiramente mas, quando se vem aqui, é quase impossível escapar à magia que está ligada à sua recordação. Uma nobre personagem, meu cliente, dedica‑lhe uma espécie de paixão póstuma e encarregou‑me de encontrar objectos que lhe tenham pertencido...

‑ É verdade que nesse domínio existem muitos, mas ficaria espantado que aceitassem vender‑lhe nem que fosse um único.

‑ Tal não é também a minha esperança. Se bem que nunca se possa saber. Não, o que gostava de encontrar, são antigos fiéis...

‑ Mais ou menos na necessidade? Isso é muito possível e há muitos deles que assombram o parque. Olhe, ali vem um ‑ acrescentou o músico indicando discretamente uma dama vestida de veludo preto que acabara de sair do castelo de mármore e que se conservava de pé, as mãos no fundo do seu agasalho, sob a pequena varanda onde se agarrara uma vinha virgem de um vermelho‑profundo cujas folhas começavam a cobrir o solo.

‑ Ela não tem ar de necessitada ‑ observou Morosini, que reconhecera a condessa von Adlerstein.

‑ Efectivamente, e até procura aliviar muitas misérias, mas talvez lhe seja de alguma utilidade. Venha, vou apresentar‑lha!

Já partira. Morosini foi obrigado a segui‑lo, depois de uma breve hesitação. Afinal de contas, talvez fosse interessante ver como iria ser acolhido...

Quanto ao compositor, esse foi maravilhosamente recebido. A velha dama acolheu‑o com um sorriso franco, que se apagou logo que avistou Morosini. Este achou por bem tomar a iniciativa:

‑ Caro mestre, o senhor é muito impetuoso ‑ disse, inclinando‑se diante da condessa de uma forma que teria agradado a uma rainha. ‑ Já tive a honra de ser apresentado a Mme. von Adlerstein... e não estou seguro que um novo encontro lhe agrade...

‑ E por que não príncipe, a partir do momento em que não me peça o impossível? Depois da sua partida senti alguns remorsos, mas nesse dia encontrava‑me muito nervosa. O senhor pagou as despesas. Lamento.

‑ Nunca se deve lamentar nada, senhora. Sobretudo um arrebatamento causado pela generosidade. A senhora queria proteger a sua amiga mas, palavra de honra que eu não lhe desejo nada de mal, antes pelo contrário.

‑ Nesse caso ter‑me‑ei redondamente enganado ‑ disse ela, extraindo do seu agasalho um fino lenço com que aflorou a ponta do nariz num gesto desenvolto que retirava às suas palavras qualquer tom de arrependimento. Logo a seguir, acrescentou: ‑ Pensa ficar por cá mais algum tempo? Julgava que se tivesse ido embora com o seu amigo arqueólogo...

«Decididamente, ela está desejosa de se ver desembaraçada de mim!» ‑ pensou Morosini que, no entanto, respondeu com boa‑disposição:

‑ É precisamente por ele ser arqueólogo que ainda aqui estamos: ele interessa‑se tremendamente pela antiga civilização dita de Hallsttat e, como não o via desde há muito, aproveito o ensejo para me quedar um tempo na sua companhia.

Ele teria jurado que ao ouvir a palavra Hallsttat, Mme. von Adlerstein estremecera. Talvez fosse apenas uma impressão, mas uma coisa era certa: o seu nervosismo regressava:

‑ Então por que não estão juntos?

‑ Porque ele me abandonou, condessa! ‑ respondeu Aldo, ainda com mais amabilidade. ‑ Ontem, no hotel, tivemos o prazer de conhecer melhor o seu sobrinho‑neto que insistiu para ter a honra de ser ele a mostrar o local ao meu amigo e, como o carro só dispõe de dois lugares, fiquei condenado a vagabundear por Ischl. Com certa felicidade, devo dizer.

‑ Senhor! Mas onde iremos parar se até esse estouvado se vai agora meter na arqueologia! Ele nem sequer é capaz de diferenciar um fóssil de uma pedra de cantaria! Espero ter o prazer de voltar a encontrá‑lo um destes dias, príncipe, e o senhor, caro mestre, quando a ocasião se proporcionar venha visitar‑me a Rudolfskrone!

‑ Aproveitarei em breve a sua autorização ‑ apressou‑se a dizer o músico, um pouco vexado por ter sido posto de lado com tanta ligeireza. ‑ Conto dar‑lhe boas notícias do seu parente, o conde Golozieny. Estivemos juntos em Bruxelas e...

Mas ela já empreendera a descida inclinada que conduzia à Kaiser Villa. Contudo, ainda se voltou:

‑ Alexandre? Vi‑o há pouco tempo mas, mesmo assim, venha conversar enquanto toma uma chávena de chá!

A condessa prosseguiu caminho e, desta vez, não se voltou mais para trás.

‑ Que atitude mais estranha! ‑ comentou Lehar, desconcertado. ‑ Uma mulher que costuma ser a graciosidade em pessoa!

‑ É tudo culpa minha, caro mestre! Tenho a infelicidade de lhe desagradar, é tudo! Devia ter‑me deixado no meu canto. Mas o senhor acaba de pronunciar um nome que não me é desconhecido. O conde...

‑ Golozieny? ‑ completou o compositor sem se fazer rogar. ‑ Não me espanta que já o tenha encontrado. Desempenha um cargo qualquer no actual governo, mas isso não o impede de viajar muito pelo estrangeiro. Ele gosta de Paris, de Londres, de Roma... e das mulheres bonitas!, as quais, penso, custam‑lhe uma fortuna, mas não o revele a ninguém! Sobretudo à condessa: ele é seu primo e de nacionalidade húngara, como ela...

‑ Receio muito que ela não me dê muitas oportunidades de voltar a vê‑la.

‑ Poderia dar‑lhe uma ajuda nesse sentido se tivesse tempo, mas tenho de regressar a Viena dentro de dois dias. Portanto, se desejar visitar a minha casa, tem de se apressar! Já se vai embora?

‑ Não, ainda me vou demorar um pouco... Gosto deste local.

‑ Só lhe posso dar razão, mas tenho a garganta seca e estou com um pouco de frio. Nesse caso até breve, não é assim?

Quando o pai de A Viúva Alegre desapareceu por entre as árvores, Aldo consultou o relógio, deu duas ou três voltas em redor do pavilhão da imperatriz e depois retomou tranquilamente o seu caminho para a cidade. Aliás eram quase cinco horas e não iriam tardar em fechar as grades para a noite que já se anunciava.

Quando se juntou a Adalbert e ao seu guia em volta das pequenas mesas de mármore branco do Zauner, no meio de uma atmosfera um tanto antiga e calorosa, cheirando a chocolate e a baunilha, os dois viajantes estavam ocupados a comer uma quantidade incrível de bolos sortidos, enquanto bebiam várias chávenas de chocolate:

‑ Parece estarem ambos esfomeados...

‑ Um passeio destes ao ar livre abre um apetite de todo o tamanho ‑ informou‑o Apfelgrune, emborcando uma enorme porção de Linzertorte com natas. ‑ Você fazer bom passeio?

‑ Excelente! Melhor até do que imaginava ‑ acrescentou Aldo com um sorriso sardónico destinado ao seu amigo. ‑ E como correu a vossa excursão?

‑ Maravilhosa! ‑ respondeu este, devolvendo‑lhe o sorriso. ‑ Nem imaginas até que ponto foi interessante, Melhor dizendo, foi mesmo apaixonante. Vou certamente ficar lá alguns dias. Mas, não contavas acompanhar‑me?

Era evidente que ele também fizera uma descoberta e Morosini enviou silenciosamente a todos os diabos o malfadado Fritz, que os impedia de falar em toda a liberdade. Tiveram de esperar pelo regresso ao hotel mas mal se encontraram a sós, as perguntas dispararam:

‑ Então?

‑ Que se passou?

‑ Sei quem é o Alexandre ‑ disse Aldo. ‑ Quanto à residência da noite passada, acaba de mudar de proprietário e não me souberam informar. Nessa altura encontrei Mme. von Adlerstein e ela não pareceu nada contente pela Maçã Verde te ter levado a visitar Hallsttat.

‑ O contrário espantar‑me‑ia. Hallsttat é uma aldeia extraordinária, magnífica, fora do tempo e fazem‑se estranhos encontros. Sabes quem vi chegar enquanto bebíamos uma cerveja no albergue? O velho Josef, o mordomo da nossa condessa. Seguiu um caminho esconso pelo dédalo das casas, mas não pude ir‑lhe no encalço por causa do meu companheiro.

‑ E este não te pôde dizer nada?

‑ Não, nem sequer pareceu ficar surpreendido. Segundo diz, Josef tem uns amigos na região. Ponto final e foi tudo!

‑ Não se pode dizer que ele seja algum génio! ‑ resmungou Morosini. ‑ Estou de acordo em que caminhemos até lá amanhã, mas que iremos fazer dele?

‑ Ouve, meu velho! A sorte brindou‑nos hoje por várias vezes. Ela não vai agora parar.

‑ Pensas que nos livrará dele?

‑ E por que não? Eu faço parte daqueles que acreditarão toda a vida no Pai Natal!...

 

       A CASA DO LAGO

Ao descerem para jantar, os dois amigos encontraram na recepção uma carta do novo amigo informando‑os que a tia Vivi acabara de chamá‑lo com urgência, enviando‑lhe o seu carro. Ele devia apresentar‑se a uma refeição, vestido a preceito:

«Estou tão triste ‑ concluía o jovem. ‑ Eu fazer tantos progressos convosco. Eu esperar ver vocês brevemente...»

‑ Pois bem ‑ comentou Aldo ‑ ela não perdeu tempo a recuperá‑lo.

‑ Não terá sido por lhe teres dito que ele me levara a Hallsttat?

‑ Poria as mãos no fogo! Estamos no bom caminho, Adal! Amanhã, vamos lá instalar‑nos e tratamos de abrir os olhos e apurar os ouvidos. Mas se aceitares, deixaremos aqui a tua máquina de um vermelho tão vivo e tomaremos o comboio. Ela dá demasiado nas vistas...

Como Adalbert concordou de bom grado, Morosini informou a recepção que tencionavam deixar o hotel durante alguns dias, pedindo que guardassem a viatura de Vidal‑Pellicorne; depois, num tom quase distraído, perguntou:

‑ Não me saberá dizer a quem foi vendida a moradia do conde Auffenberg situada um pouco depois da ponte? Fui até lá há bocado na esperança de o cumprimentar e fiquei a ver navios. Uma senhora ali de passagem informou‑me acerca da mudança de proprietário, sem poder todavia informar‑me acerca da identidade do novo...

O homem das chaves de ouro assumiu logo um ar apropriado às circunstâncias, desolado por ter de revelar a Sua Excelência o falecimento do conde Auffenberg, há vários meses atrás:

‑ A moradia foi vendida algumas semanas depois à senhora baronesa Hulenberg. Não tenho a certeza que já tenha tomado posse.

‑ Não tem importância, não a conheço. Mas agradeço‑lhe à mesma.

‑ Começo a lastimar que Fritz não esteja connosco! ‑ suspirou Vidal‑Pellicorne, enquanto bebiam ambos um copo no bar. ‑ Com ele, talvez tivéssemos podido obter algumas indicações acerca de Alexandre e da sua baronesa, pois é praticamente certo que eles se relacionam. Não foi seguramente o guarda ou o jardineiro que este distinto membro do governo foi visitar à meia‑noite...

‑ Talvez não conseguisses obter nada. Pergunto‑me se esse rapaz é tão parvo quanto parece...

‑ Isso só o futuro nos dirá. Talvez!...

A tarde transcorria quando o comboio das montanhas que ligava Ischl a Aussee e a Stainach‑Irdning parou na estação de Halstatt para deixar descer meia dúzia de passageiros, entre os quais Morosini e Vidal‑Pellicorne, a fim de apanharem o barco que os transportaria com armas e bagagens até ao outro lado do lago. Estes tinham trazido todo um material destinado à pesca, a excursões na montanha e até à pintura. Esta última aquisição, efectuada de manhã, fora uma iniciativa de Aldo. Tendo boa queda para o desenho, achara que as aguarelas e os lápis de carvão constituíam um excelente alibi para quem desejava permanecer num dado local a fim de observar as suas vertentes típicas.

Tinham juntado a estas compras uns grandes sapatos ferrados, roupas de lã impermeável e meias grossas, sem chegar contudo a seguir a moda local de calções de cabedal com laços e suspensórios. Pelo seu lado, Adalbert não resistira a uma ampla capa e a um chapéu verde com pena que, segundo Aldo, lhe conferiam um ar de arquiduque folião.

‑ É pena ‑ acrescentou ‑ que não tenhas tido tempo para deixar crescer o bigode: o disfarce teria sido completo.

Um empregado da pequena estação ajudou‑os a transportar as bagagens até ao vapor que os esperava, expelindo fumo. Desembaraçado desta preocupação, Aldo encostou‑se à amurada para admirar a paisagem, ao mesmo tempo grandiosa e severa. Com oito quilómetros de extensão e dois de largura, o Hallstattersee deslizava por entre altas escarpas sombrias para ir ao encontro dos íngremes contrafortes do Dachstein, o maciço mais elevado da Alta‑Áustria, cujos cumes conservavam a sua eterna neve. Naquele fim de tarde em que o Sol pouco se mostrara, o local era imponente mas sinistro, com pedaços negros das montanhas descendo a pique até à água lívida. Mais longe, do outro lado, uma aldeia estendia‑se ao longo da margem, agarrada aos declives rochosos e inospitaleiros, cuja aridez despontava sobre um manto de florestas quase negras.

À medida que o vapor se aproximava de Hallstatt, cuja imagem invertida era agora discernível no espelho do lago, a aldeia que ao longe parecia colada às encostas de rochedos e pinheiros, elevava‑se como um alto‑relevo cujos cimos eram os campanários das suas duas igrejas rivais, mas complacentes: o esguio e pontiagudo do templo protestante, situado rente à água, e a torrezinha rechonchuda, mas encabeçada por uma espécie de pequeno pagode, do velho santuário católico situado a um nível mais elevado. Em redor, apertadas como galinhas no poleiro, estavam dispostas as veneráveis e belas casas cujas largas empenas de madeira escura encabeçavam as fachadas de varandas assentes sobre envasamentos de pedra... Cúmulo do pitoresco, uma cascata, o Mulhbach, vertia as suas águas brancas no meio do burgo...

Fascinado, Aldo lembrou‑se do que Adalbert dissera na noite da véspera: «Uma aldeia extraordinária, magnífica, fora do tempo...» Era exactamente isso! Dava a sensação de se estar a mergulhar no âmago de um conto fantástico! Onde estariam escondidos os «amigos» do velho Josef?

A atenção de Morosini foi especialmente atraída por uma das casas, a mais afastada, porque as suas paredes de outra época pareciam elevar‑se da água sombria, revelando resquícios de um dispositivo defensivo. Teria gostado de examiná‑la mais de perto, mas o único par de binóculos estava momentaneamente colado aos olhos de Adalbert...

Quando finalmente desembarcaram, apercebeu‑se que, à excepção de uma pequena praça que dava um certo espaço à igreja protestante, não parecia existir nenhuma rua naquela aglomeração. As casas, erguidas umas por cimas das outras sobre pequenas plataformas naturais ou artificiais, comunicavam entre si por meio de escadas, passagens abobadadas ou arcadas. O local só podia seduzir os pintores e os amadores de romantismo, pois dispunha de nada mais nada menos que de três albergues.

Adalbert escolheu um, denominado Seeauer. Como já o tinham visto na véspera e dado que ele regressava trazendo outro cliente, teve direito a um lisonjeiro acolhimento e aos dois melhores quartos da casa, ambos dispondo de uma varanda que permitia admirar o lago em todo o seu esplendor. No entanto, Georg Brauner e a sua esposa, Maria, desculparam‑se antecipadamente junto aos recém‑chegados: no dia seguinte festejar‑se‑ia um casamento e os estrangeiros arriscar‑se‑iam a não conseguir dormir. Talvez fosse melhor que aceitassem participar no acontecimento...

‑ Boa ideia! ‑ concordou Aldo. ‑ Será certamente mais divertido que o último a que nos foi dado assistir ‑ acrescentou, pensando nos faustosos esponsais, mas totalmente insensatos, do pobre Eric Ferrais com Anielka Solmanski.

‑ Pelo menos poderemos divertir‑nos sem termos o pensamento ocupado noutras coisas! ‑ corroborou Adalbert. ‑ Entretanto, vamos começar por ir pescar no lago amanhã de manhã ‑ acrescentou, sorrindo a Maria. ‑ Não conhecem alguém que nos possa alugar um barco?

‑ Georg, evidentemente ‑ disse a hospedeira. ‑ Temos várias embarcações e ele colocará uma à vossa disposição. Podemos tratar disso amanhã de manhã?

‑ Esteja tranquila! Para esta noite necessitamos sobretudo de um bom jantar e de uma boa cama...

Desfizeram as malas e depois regressaram à grande sala já profusamente decorada com grinaldas de pinheiro e flores de papel. Sentados em bancos de um e outro lado de uma mesa que dava para seis pessoas, atacaram os pratos de almôndegas e de carnes frias que lhes serviram, regados por um ligeiro vinho branco seco como uma pederneira, dentro de um jarro rechonchudo, decorado com motivos naífs.

‑ Ouve lá ‑ perguntou Morosini, após ter acalmado a sua fome ‑ o que é que te deu para quereres ir pescar logo ao amanhecer ou quase? Não te estás a esquecer que és arqueólogo?

‑ A civilização de Hallstatt esperou‑me durante milénios; agora também pode esperar mais um bocado, não achas?

Em compensação, morro de desejos de ir ver mais de perto uma certa torre feudal, ou algo que se lhe assemelhe, que avistei há pouco, ao chegar. Deve ser coisa fácil, se formos pelo lago.

Depois de uma boa noite passada nas confortáveis camas camponesas de Maria que cheiravam agradavelmente a roupa lavada e posta a secar ao ar fresco, na manhã seguinte alugaram uma embarcação de fundo raso, que escolheram por ser o único provido de remos de todos os que lhes propuseram, e que eram propulsionados à ginga, exercício que nenhum deles praticava. Aldo pegou nos remos, enquanto Adalbert preparava as canas de pesca e afastou‑se lago adentro seguindo os conselhos de Georg, que os vira partir antes de regressar aos seus afazeres. O momento fora bem escolhido, pois a aldeia tinha muito em que se ocupar com os preparativos para a festa. Além disso, embora ainda estivesse fresco, o tempo apresentava‑se calmo e a manhã limpa. O pequeno bote deslizava sem esforço pela água de um verde‑escuro, lisa e una como um espelho.

Quando se encontrou suficientemente longe para poder contar que não o observassem, o remador virou a direito para o ponto que Vidal‑Pellicorne lhe indicava com o auxílio dos binóculos e, pouco depois, chegaram junto àquilo que devia ter sido outrora um castelo forte, mas que agora era apenas uma ruína invadida pela vegetação, por trás da qual não se via grande coisa, nem sequer uma pequena espiral de fumo revelando a presença de pessoas experimentando a necessidade de se aquecer e de se alimentar. Apenas uma estreita torre sem tecto e um pedaço de muro caindo a pique nas águas é que seriam susceptíveis de abrigar um espaço interior, mas isso parecia tão pouco verosímil!

‑ Gostava de saber como se chama esta antiga obra‑de‑arte ‑ disse Adalbert. ‑ Talvez seja o antigo feudo da nossa condessa...

‑ Hochadlerstein? Estás a sonhar! Está ao nível das águas, muito baixo para ser apelidado Hoch. Segundo vi, existem várias ruínas nas imediações, inclinadas nas alturas. Deve ser uma dessas. Entretanto, sempre podemos desembarcar, não achas?

‑ A acostagem parece‑me difícil, a menos que teimes em dar um mergulho no lago. Voltaremos por terra, só para ver se é possível fazer uma visita... a uma hora discreta. Entretanto podemos continuar por aqui à pesca. Isso permitir‑nos‑á observar se algo se mexe.

‑ Estás mesmo à espera de pescar alguma coisa? ‑ perguntou Morosini, vendo o amigo preparar uma longa cana. ‑ É melhor que fiques já a saber que como pescador sou um zero à esquerda.

‑ Segue os meus conselhos e faz de conta que pescas! Nunca se sabe!

Para sua grande surpresa, Aldo conseguiu apanhar três trutas durante aquele dia que julgava ir ser aborrecidíssimo. Foi um aprazível momento de calma e de descontracção embalado pelos alegres carrilhões da igreja que anunciavam aos habitantes das proximidades a junção de um novo casal, entrecortado também pelo copioso piquenique com que Maria abastecera os pescadores. Só a observação incessante do velho castelo é que se revelou uma decepção: se a construção não fora abandonada, pelo menos assim o parecia. Ia ser necessário efectuar buscas noutro lado.

Quando regressaram ao albergue, o ambiente era dos mais calorosos. Tinham instalado mesas compridas cobertas com louça floreada, canecas de barro em que a cerveja espumava e também copos de fundo liso de um lindo verde‑suave, para servir o vinho. Os fatos dos convidados ‑ os de dia de festa ‑ eram magníficos. Os homens vestiam calções de cabedal e coletes bordados, as mulheres traziam vários saiotes sob amplas saias, corpetes bordados a fios de ouro com as mangas em balão; todos estavam felizes por se encontrarem ali, rindo, cantando, e endereçando gracejos aos jovens esposos, aliás encantadores! Ela estava corada de confusão, ele ainda mais vermelho por ter honrado a cozinha de Maria e a cave de Georg. Já instalados num palco, dois acordeonistas acompanhavam os cantos, enquanto aguardavam o momento de fazer bailar os convidados. Aldo e Adalbert foram até à cozinha onde Maria e as suas criadas se atarefavam. Os peixes que tinham trazido da excursão pelo lago valeram‑lhes calorosos cumprimentos.

‑ Venham ‑ disse Maria. ‑ Vou apresentar‑lhes o nosso casal!

‑ Primeiro, deixe‑nos comer ‑ objectou Aldo. Iam‑se embora quando ela os chamou de volta:

‑ Já me ia esquecendo! Temos cá o Herr professor Schlumpf que deseja encontrar‑se convosco para falar de escavações. Ele vive aqui e essa foi a sua ocupação a vida inteira. Atrevi‑me a pedir‑lhe que viesse ter convosco esta noite...

‑ Fez muito bem! ‑ disse Adalbert, que pensava exactamente o contrário. ‑ Vai ser divertido falar de arqueologia tendo como pano de fundo a música de acordeão, as canções tirolesas e os berros dos bêbedos! ‑ confiou a Morosini ao subirem para os quartos.

‑ Sabes alguma coisa do assunto?

‑ Da primeira idade de ferro? Tenho algumas noções, mas bem sabes que não é a minha especialidade.

‑ Então, alegra‑te! Se proferires alguns disparates, os estribilhos da orquestra e o entusiasmo da sala cobrirão as tuas palavras!

‑ Eu nunca digo disparates! ‑ exclamou Adalbert, vexado; no entanto, acrescentou: ‑Afinal de contas, talvez tenhas razão; é possível que sirva para alguma coisa!

O professor Werner Schlumpf, da Universidade de Viena, parecia‑se ponto por ponto à imagem que o comum dos mortais tem dos seus congéneres: era um pequeno homem nervoso, com bigode, barbicha, óculos, e cujos cabelos grisalhos começavam a escassear na parte da frente, crescendo ainda na nuca. O único sinal relevante da sua figura era uma cicatriz que lhe deformava a sobrancelha esquerda, mas os seus modos e a sua gentileza eram perfeitos.

Depois de ter trocado uma saudação protocolar com o seu confrade, aceitou instalar‑se à mesa na altura em que os dois amigos tinham chegado ao café e aos charutos; aliás, o próprio Georg apressou‑se a trazer imediatamente mais um charuto, acompanhado por um schnaps que serviu com a mesma celeridade. O recém‑chegado bebeu um largo golo, de olhos postos em Morosini, que parecia interessar‑lhe sobremaneira desde que sabia que se tratava de um príncipe:

‑ Suponho que o senhor não é arqueólogo, não é verdade? Em geral a alta aristocracia não exerce qualquer profissão...

‑ Desengane‑se! Sou antiquário, especialista em jóias antigas.

‑ Ah, bom! Começo a perceber, mas receio que a sua estadia aqui acabe por desiludi‑lo: todos os objectos preciosos que foram encontrados nos milhares de sepulturas pré‑romanas descobertas desde 1846 nas proximidades das minas de sal, lá no alto da montanha, encontram‑se presentemente no Museu de História Natural de Viena. Alguns permaneceram aqui, no nosso pequeno museu local, mas não são os mais importantes.

De qualquer modo, não tem nenhuma hipótese de descobrir seja o que for que possa comprar...

‑ Não é essa a minha intenção ‑ disse Morosini, com o seu sorriso capaz de desarmar uma nobre viúva. ‑ Só me interesso pelas pedras preciosas e estou aqui apenas para fazer companhia ao meu amigo Vidal‑Pellicorne.

O professor mostrou logo um ar vexado:

‑ Comete um grande erro em menosprezar as jóias do nosso período. São feitas do ouro mais fino e algumas são muito belas... Trata‑se de uma civilização avançada. A tribo que aqui se instalou não era celta como se pensou originalmente, mas antes ilírica. Pertencia certamente ao povo comerciante de Sigeu, mencionado por Heródoto, e que se instalou no cruzamento das grandes vias por onde transitava o ferro, o sal e o âmbar. Aconselho‑o a subir até à torre de Rodolfo, para ver a necrópole cujos túmulos mais antigos atestam que originalmente se praticava o ritual da incineração...

Sem dúvida feliz por ter diante de si um neófito e negligenciando o seu confrade francês, o erudito lançou‑se numa autêntica conferência durante a qual Adalbert se revelou incapaz de colocar uma palavra, apesar dos seus meritórios esforços. Divertido, Aldo participava no jogo, escutando o velho sábio com uma atenção lisonjeira quando o seu olhar se desviou subitamente, pois acabara de entrar um homem cuja altura e corpulência denunciavam uma força terrível e que avançou na direcção de Georg Brauner, ocupado a limpar copos ao balcão.

Apesar do vestuário diferente, a memória fotográfica de Morosini devolveu‑lhe imediatamente a gravação da imagem precedente da personagem: aquela que mostrava um camarote da Ópera, onde este escoltava a misteriosa dama mascarada de rendas pretas. Nessa altura ele levava uma espécie de libré à moda húngara, com galões pretos e soutaches prateados, mas era o mesmíssimo rosto. No entanto, a voz descontente de Schlumpf trouxe‑o de volta ao momento presente:

‑ Já não me está a ouvir, príncipe?

‑ Sim, sim, desculpe‑me! O senhor dizia...

Meu Deus, como era difícil fixar o olhar naquele velho tagarela! Felizmente, ao aperceber‑se que ocorria algo de insólito, Adalbert acorreu em seu socorro:

‑ Se me permite, Herr Professor, não lhe escondo que os ritos funerários de Hallstatt sempre me deixaram um tanto perplexo. É sabido que, com o correr dos tempos, os guerreiros passaram da incineração à inumação...

‑ Certamente a influência céltica...

‑ Nesse caso, como é possível que se tenham descoberto fragmentos de esqueletos calcinados em certos túmulos?

Desta vez a atenção de Schlumpf tinha sido efectivamente desviada e Aldo pôde regressar à sua investigação. Ali perto, um pouco mais adiante, o homem bebia uma cerveja enquanto se entretinha a falar com o estalajadeiro, mas depressa deu a conversa por acabada. Um vago sorriso, uma breve saudação e o desconhecido dava meia volta para sair.

‑ Desculpem‑me só um momento! ‑ pediu Aldo aos outros dois. Nenhuma força humana o teria impedido de seguir aquele homem.

Apesar de ter sido obrigado a abrir caminho no meio de um grupo um tanto turbulento, chegou à praceta para onde dava o Seeauer, precisamente a tempo de ver a sua presa virar à direita para uma viela, na qual se embrenhou às cegas. Efectivamente a noite estava escura como breu e Aldo precisou de algum tempo para se acostumar à escuridão, procurando tirar proveito das luzes que jorravam do albergue; quando chegou ao fim da estreita passagem, esbarrou numas escadas, apurou o ouvido para tentar descobrir se o desconhecido subira ou descera, mas não conseguiu detectar nenhum ruído de passos. O homem deslocava‑se como um gato. Foi com pesar que teve de resignar‑se a abandonar a perseguição...

De regresso ao albergue, Morosini procurou Brauner, mas não o encontrou: o homem parecia ter‑se volatilizado. Interrogando então Maria, quando esta passava ao pé dele com uma bandeja carregada de cervejas espumosas, ela respondeu‑lhe que o esposo fora à cave abrir um tonel. Suspirando, foi ter de novo com os companheiros, sempre ocupados em discutir os ritos funerários de Hallstatt, o que não impediu o professor de lhe perguntar, sem grande discrição, por onde diabo andara.

‑ Subi ao meu quarto ‑ respondeu. ‑ Fui tomar um comprimido de aspirina para travar um começo de enxaqueca. Deve ser por causa de todo este barulho e talvez também da cerveja!...

‑ A nossa cerveja nunca fez mal a ninguém e teria feito melhor em apanhar ar fresco. É o remédio soberano das nossas montanhas, onde podemos aliás curar todas as doenças. É o paraíso da saúde e vocês, nas vossas cidades cheias de fumo, fariam melhor em vir desfrutá‑lo mais frequentemente! Os seus benefícios já foram demonstrados desde há séculos...

Morosini abriu a boca para protestar: tratar de cidade empestada pelo fumo a sua querida Veneza, flutuando à tona da água como uma rosa aberta, parecia‑lhe uma injustiça difamante, mas voltou a fechá‑la desencorajado, sem ter pronunciado uma só palavra. O velho palrador lançara‑se num novo discurso, confortado pelo schnaps, que foi preciso beber novamente de bom ou mau grado. Assim decorreu mais outra pequena hora antes que o professor Schlumpf, retirando do bolso do colete uma enorme «cebola» de prata, constatasse que eram horas de ir descansar um bocado. Mesmo assim ainda arranjou maneira de combinar um outro «encontro» com os seus «distintos confrades» ‑ ao ponto a que chegara com tanta aguardente já não sabia diferenciar um antiquário de um arqueólogo! ‑ a fim de guiá‑los ao local, logo no dia seguinte.

‑ Pois bem, isto promete! ‑ grunhiu Morosini enquanto regressavam aos quartos sem grande esperança de dormir, instalados como estavam logo por cima de uma festa desenfreada.

‑ Esquece isso e diz‑me o que te deu há pouco para te escapulires como um coelho perseguido ‑ solicitou Adalbert.

‑ Não reparaste naquele tipo alto que veio beber um copo na companhia do nosso hospedeiro? O que tinha um ar de chefe mongol aposentado?

‑ Reparei, e até julguei perceber que era ele que perseguias.

‑ Não sem motivo. Trata‑se do homem que vi na Ópera de Viena, não diria em companhia, mas antes às ordens da famosa Elsa. Parece evidente que está cá para velar por ela.

‑ E então? Descobriste para onde foi?

‑ Nem isso! Ele despistou‑me logo na primeira esquina. Estava escuro como num forno e esta danada aldeia está edificada segundo um plano delirante. São só escadas, passagens, impasses e quando não os conhecemos...

‑ A tua presa não se dirigia para o nosso castelo desta tarde?

‑ Não, disso tenho a certeza... Ele voltou à direita ao sair do hotel.

‑ Bom, já é alguma coisa! Só nos resta fazer algumas perguntas bem feitas ao nosso bom Georg...

‑ Se o conseguirmos encontrar! Quando voltei, a mulher disse‑me que ele fora à cave abrir um tonel. Aparentemente ainda lá está, visto que ainda não reapareceu...

‑ E Maria?

‑ Não estava aqui quando o homem entrou. Não deve tê‑lo visto e, nessas condições, é um pouco difícil interrogá‑la.

‑ Não te atormentes mais do que é preciso! Faremos isso amanhã, é tudo. Trata de dormir! Talvez consigamos encontrar o sono pondo algodão nos ouvidos e uma almofada em cima da cabeça...

Resultou, mas só pelas três da manhã, quando os convidados da boda começaram a ficar cansados. Quando Adalbert e Aldo desceram por volta das nove para tomar o pequeno‑almoço, Maria informou‑os que o seu esposo partira para Ischl no vapor da manhã. Quanto à personagem que tanto intrigava os seus clientes, ela nem sequer o avistara e não via de modo algum de quem estavam a falar. E, dito isto, desapareceu num esvoaçar de saiotes engomados, para ir buscar alguns croissants acabados de fazer.

Adalbert franziu um sobrolho com desaprovação:

‑ Não tens a impressão que estamos perante uma conspiração silenciosa?

Morosini encolheu os ombros sem responder e depois declarou que por nada deste mundo iria aborrecer‑se na companhia do professor Schlumpf:

‑ Basta que um de nós o acompanhe. Eu vou estudar os meandros complicados deste burgo até aos seus limites. Talvez a sorte me sorria, quem sabe?

Armado de um pequeno bloco de desenho e de uma caixa de lápis de carvão, abandonou o pequeno cais atravessado por plataformas e pequenos tonéis instalados à tona da água, para alcançar a única e longa rua, incrivelmente pitoresca, que sobrepujava o lago em forma de cornija, bordejada por escadarias de madeira mergulhando através de buracos sombrios sob as velhas casas de telhados engrinaldados.

Não havia nenhuma estrada que levasse até Hallstatt. A que seguia a margem ocidental do lago na sua parte norte voltava depressa a sul do Steg para subir até Gosau.

Com a passada lenta do artista que procura um local, Aldo percorreu a aldeia a que o Outono tirara as flores, se bem que alguns corajosos gerânios ainda sobrevivessem nalgumas janelas. Já não se ouviam os zunzuns das abelhas nos miosótis, mas em quase todas as casas as senhoras mexiam‑se para arejar a roupa da cama, os cortinados e os cobertores numa derradeira grande limpeza antes da chegada das primeiras neves. Apenas olhavam para o passeante de forma distraída, sem dúvida habituadas aos seus congéneres, talvez um pouco surpreendidas por este estrangeiro ter escolhido o mês mais triste do ano em vez da Primavera que faria desabrochar os miosótis, as anémonas e os ranúnculos ao longo das carreiras de mulas.

Depois de ter permanecido um bom momento na plataforma que sustinha a Pfarkirche ‑ a igreja paroquial ‑ observando os telhados que se estendiam sob o seu olhar, Aldo pensou um instante que, se o homem desaparecera tão facilmente, talvez isso se devesse ao facto de ter entrado numa casa situada próximo do hotel.

No entanto o seu instinto dizia‑lhe que isso era pouco provável. A dama das rendas vivia escondida e como se dissimular no meio de uma aldeia tão apertada? Decidiu então descer para a única rua a fim de se encaminhar para a extremidade norte de Hallstatt.

Uma vez aí chegado, descobriu um rochedo de onde podia observar as últimas casas e instalou‑se. Uma delas despertou‑lhe a atenção. Do sítio onde estava, ela parecia emergir das águas sombrias. O seu amplo telhado coroado por um coruchéu fazia com que ela se parecesse com uma grande galinha de asas abertas, ocupada a proteger os ovos. No seu pequeno jardim, uma mulher em Dirndl(1) aproveitava o tempo momentaneamente seco para estender a roupa, cujos lençóis e fronhas estavam enfeitados por compridas rendas: roupa um pouco luxuosa demais para uma camponesa, mesmo afortunada. Era a de uma «dama» e Aldo soube que encontrara o que procurava...

Por fim, receando dar nas vistas, pegou na sua tralha e voltou para trás, depois de fixar alguns pormenores que lhe permitiriam reconhecer o local, a começar pela pequena paliçada de madeira escura, perto da qual balouçava uma comprida embarcação.

 

*1. Traje camponês que se tornou nacional.

 

Ao entrar no hotel viu Georg Brauner ocupado a fazer as contas, de pé diante de uma escrivaninha à moda antiga e encaminhou‑se ao seu encontro esfregando as mãos:

‑ Um tanto fresco este vento matinal! ‑ disse, com boa‑disposição... ‑ Desenhei alguns esboços e tenho os dedos dormentes. E se bebêssemos alguma coisa antes de almoçar?

Por cima do seu bigode arruivado, Georg ergueu um olhar incomodado para o seu cliente.

‑ Seria com todo o prazer, Excelência, mas tenho de acabar a minha contabilidade o mais depressa possível. No entanto mandarei servir o que quiser encomendar, junto ao fogão de aquecimento. Acendemo‑lo há pouco.

‑ Nesse caso vou esperar pelo regresso do meu amigo: não gosto de beber sozinho. Espero que ele não se demore.

‑ Como quiser! ‑ disse o hoteleiro, regressando aos seus papéis. Decididamente, não era amigo de conversar! Facto tanto mais

surpreendente porquanto, à chegada, os Brauner até se tinham revelado loquazes. Para passar o tempo, Morosini, com o material debaixo do braço, foi até à cozinha onde Maria, ajudada por uma mulher idosa e por uma jovem, estava ocupada a enrolar a massa para os Knodels, envolta num odor de pão quente e de chocolate. Ela acolheu o inesperado visitante com um belo sorriso:

‑ O senhor príncipe deseja alguma coisa?

‑ Não quero nada, Frau Brauner, mas até na rua nos chegam estes odores tão apetitosos, pelo que não pude resistir a vir ver o que preparava de tão gostoso. Perdoa‑me?

‑ Evidentemente, pois é a minha pastelaria que o atrai. Acabo de preparar um Gugelbupfe, um creme de chocolate para a sobremesa. Fez um bom passeio?

‑ Óptimo. É uma aldeia magnífica. Tem cá um charme...

‑ Não é verdade?... É pena que o tenha descoberto nesta época tão adiantada da estação. Está frio, húmido e vamos ter de nos esquecer do Sol até à Primavera. É nessa altura que deve vir...

‑ A gente vem quando pode. Eu trabalho muito e além disso esta é uma excelente oportunidade para passar alguns dias em companhia de um velho amigo. Dito isto, o tempo não me incomoda nada se não eliminar a especificidade de um local. Gosto de desenhar casas e aqui existem algumas lindíssimas. A começar logo pela sua, da qual fiz um esboço, ‑ acrescentou, abrindo o seu bloco de desenho, ao qual a jovem deu um relance de olhos sorridente:

‑ Mas o senhor tem talento!

‑ Obrigado. Também gosto desta.

Tinha voltado a página dando a ver, claro, a casa da desconhecida. Maria olhou novamente, mas desta vez o sorriso desvaneceu‑se.

‑ Ela agrada‑me muito! ‑ continuou Morosini, cujo olhar azul de aço observava a hospedeira. ‑ Se o tempo me permitir instalar um cavalete, farei um quadro. Este local um pouco afastado é tão romântico!

Sem pronunciar uma palavra, Maria limpou as mãos cheias de farinha a um trapo, pegou no braço de Aldo e levou‑o dali para fora. Depois, desferiu:

‑ Não devia pintar essa casa! Existem outras tão belas quanto ela!

‑ Não acho. Mas por que motivo?

O rosto de Maria tornara‑se muito grave.

‑ Porque o senhor se arrisca a incomodar, a magoar talvez os seus moradores! Ver a casa deles transformar‑se num motivo para um quadro é a última coisa que desejam, visto que isso significa que o senhor irá observá‑la horas a fio, não é verdade?

Aldo desatou a rir:

‑ Diabo! Está a fazer‑me medo! Essa casa não estará porventura assombrada?

‑ Não deve rir. Mora lá... uma grande doente, uma mulher que sofreu muito. Não agrave o mal dela fazendo‑a crer que é alvo da curiosidade alheia.

Dito isto, Maria ia deixá‑lo para regressar à cozinha, mas ele chamou‑a de volta:

‑ Espere um pouco!

‑ Tenho que fazer...

‑ Só um momento!

Com um gesto vivo arrancou a página aberta do bloco de desenho e estendeu‑a à jovem:

‑ Tome! Faça o que quiser dele! Não irei pintar essa casa... O sorriso que ela lhe dispensou parecia‑se com um raio de Sol que tivesse rasgado uma nuvem sombria:

‑ Obrigada ‑ agradeceu. ‑ Compreende, aqui todos gostamos muito deles... Não queremos que lhes aconteça nada de mal.

E, desta vez, voltou para trás. Morosini fez o mesmo, mas numa passada muito mais vagarosa e com ar um tanto sonhador. Se a aldeia inteira se interpunha entre ele e aquela que procurava contactar, as coisas arriscavam‑se a ficar complicadas mas, por outro lado, era algo assaz tranquilizador quanto à segurança da dita mulher. Quanto ao gesto que acabara de ter para com Maria, estava um pouco envergonhado consigo mesmo pois ele fora fruto de uma mentira ‑ ele nunca tencionara «fazer o retrato» da casa ‑ e, além disso, continuava decidido a descobrir à mesma qual era o seu segredo. Com o estômago a dar horas, esperou pelo regresso de Adalbert e já eram quase duas horas quando foi inquirir do seu paradeiro junto aos hospedeiros:

‑ Quando o Herr Professor vai visitar o local, não há maneira de tirá‑lo de lá. Tenho a certeza que ele levou consigo cerveja e algumas sanduíches que tenciona compartilhar. Voltarão ao fim do dia... ‑ anunciou Georg.

‑ Ele teria podido informar‑me ‑ resmungou Morosini, cujo apetite não esmorecera ao sentar‑se agora à mesa diante de uns filhós de fiambre, de um goulash húngaro de veado e, depois, de um creme de chocolate, acompanhada por uma porção de Gugelhupf, tudo regado com uma garrafa de Klosterneuburger que Georg, compadecido e, talvez, agradecido ‑ Maria devia ter‑lhe contado a história do desenho ‑ fora buscar à cave; mas, ao acabar a refeição, perguntou a si mesmo o que iria fazer.

Ocorrera‑lhe a ideia de alugar novamente a embarcação de Brauner para ir pescar nas imediações da famosa casa, mas levantara‑se um pequeno vento agreste que encrespava a água do lago de modo ligeiro, o que não augurava nada de bom:

‑ Se der para a tempestade, terá dificuldade em regressar ‑ disse Georg. ‑ Este lago é muito mau quando faz das suas!

‑ Como todos os lagos de montanha. Enquanto espero pelos nossos sábios, contentar‑me‑ei com um passeio a pé.

E assim fez, mas desta vez não levou consigo o material. Com as mãos enfiadas no fundo dos bolsos do impermeável, tratou de efectuar mais uma visita à aldeia, partindo pelo lado esquerdo para não alarmar ninguém, mas a sua intenção era mesmo voltar à casa do coruchéu. Para tal, enveredou pelo caminho mais complicado que havia, contornando o templo protestante para chegar à torre e regressar pela entrada da igreja, de onde desceu para o seu objectivo, evitando cuidadosamente que o avistassem do albergue.

Já era tarde quando chegou. A luz do dia diminuía. Do lago elevava‑se um nevoeiro que já não permitia distinguir nada da outra margem. Devia ser a hora do comboio: o seu apito soava, mas de forma amortecida, como se estivesse envolto em algodão.

Regressado ao rochedo da parte da manhã, Aldo pôs‑se a observar novamente a casa. Não havia qualquer sinal de vida e, não fosse o pequeno fio de fumo cinzento que se escapava pela chaminé do telhado, poder‑se‑ia pensar que estava desabitada. Também não se ouvia qualquer ruído, a não ser o ligeiro rangido ritmado pelas vagas da corrente que ligava o bote ao seu local de ancoragem.

Aldo esperou mais um pouco. Contava que, com o cair da noite, os habitantes acendessem as lâmpadas e talvez pudesse então espreitar para o interior, mas a sua esperança foi frustrada: antes que a penumbra alastrasse demasiado, o corpo da mulher que vira estender a roupa reapareceu no vão de uma janela. Ela correu as persianas, passou à janela seguinte, depois a outra ainda, até que se tornou impossível avistar fosse o que fosse.

Suspirando, Aldo levantou‑se, esperou ainda de pé um momento, hesitando à beira daquilo que seria talvez uma ideia louca, mas sentindo cada vez mais dificuldade em rechaçar a sua insidiosa solicitação: descer, bater àquela porta e esperar pelo resultado. A mulher que procurava estava ali dentro. Consequentemente, se ele desejava obter a opala, talvez fosse agora ou nunca o momento indicado pois se Mme. von Adlerstein, instigada pela inquietude, decidisse levar a sua protegida para outro lado, talvez tudo se tornasse então uma tarefa impossível.

Apesar dos bons motivos que ia dando a si próprio, Morosini não se conseguia libertar de uma certa lassidão. O gosto pela caça que o animara desde o seu primeiro encontro com Simon Aronov nos subterrâneos de Varsóvia começava a abandoná‑lo nestas circunstâncias. O Coxo não podia exigir que ele arrancasse a uma infeliz, condenada a viver escondida, um bem que lhe era tão caro, mesmo que ele se revelasse tão maléfico quanto o tinham sido a safira visigoda e o diamante do Temerário...

Uma voz interior sussurrou‑lhe aquilo que Simon teria dito: a única e exclusiva maneira de libertar as jóias do peitoral da maldição que pesava sobre os seus sucessivos possuidores, era devolvê‑las ao seu primitivo destino. Quem saberia dizer se uma vez desembaraçada da opala, Elsa não voltaria a encontrar a felicidade?

«Parece‑me um mau pretexto ‑ pensou Aldo. ‑ Encontramos sempre um quando nos queremos apropriar daquilo que não nos pertence mas, afinal de contas, este será assim tão detestável?»

De qualquer modo sabia que não descansaria enquanto não franqueasse a entrada daquela casa e se encontrasse cara a cara com a dama das rendas pretas. Sendo assim, quanto mais cedo melhor e, sem querer debater‑se mais consigo próprio, desceu o carreiro que levava à casa, chegou debaixo do pequeno alpendre que abrigava a porta e, depois de uma ligeira hesitação, tirou o boné e ergueu o batente de cobre que ao cair fez tinir tão vivamente uma campainha que, sem saber muito bem porquê, o seu próprio coração parou um breve momento.

Estava à espera que o interrogassem sobre a sua identidade e que lhe dissessem para seguir caminho; no entanto, a porta abriu‑se, revelando uma silhueta de mulher alta e magra, vestida com o traje local e de lanterna na mão:

‑ Estava a perguntar‑me quanto tempo iria demorar antes de se decidir a vir até aqui ‑ disse a voz calma de Lisa Kledermann. ‑ Entre, mas só por um instante!

Ele olhou‑a com a estupefacção que é geralmente reservada às aparições: uma mistura em doses idênticas de admiração, alegria e temor. À luz amarela da lanterna, os olhos sombrios da jovem brilhavam como diamantes violetas sob a coroa viva dos seus cabelos dourados trançados à volta da cabeça. Pensou que ela se assemelhava a um ícone, mas ela já o chamava à ordem:

‑ Então? É tudo o que encontra para me dizer? Se lê os bons autores, devia ter exclamado: «Você? Você por aqui?» e eu ter‑lhe‑ia respondido algo de tão inteligente quanto uma frase do género: «E por que não?» ou ainda: «O mundo é pequeno». Mas prefiro perguntar‑lhe: que veio procurar?

‑ É um tanto longo... e delicado a explicar‑lhe. Não me deixa entrar um momento?

‑ Certamente que não! Se fosse qualquer outra pessoa teria enviado Matias com os cães, mas reconheço que temos coisas a contar‑nos.

‑ E então?...

‑ Aqui é impossível mas, caso concorde, venha ter comigo amanhã à Pfarkirche. Lá estaremos tranquilos para poder resolver uma questão que se torna singularmente irritante. Mas venha sozinho. Não traga esse caro Adalbert!

‑ Como sabe que ele está cá?

Um sorriso fugaz fez resplandecer os dentes que Aldo nunca conhecera tão brancos na época da inefável Mina Van Zelden:

‑ Como se ele pudesse passar despercebido! Sei muito mais coisas sobre vocês ambos, que o inverso. Por ora, vá‑se embora daqui e apresse‑se a regressar ao Seeauer! Amanhã contar‑lhe‑ei o suficiente para convencê‑lo a deixar‑nos tranquilos, a mim e aos meus!

‑ Nunca pensei incomodá‑la! ‑ protestou Morosini. ‑ Não sabia nada acerca da sua presença neste sítio e...

‑ Amanhã! ‑ interrompeu Lisa peremptoriamente. ‑ Amanhã falaremos. Desejo‑lhe uma boa‑noite, príncipe!

Ele recuou, contrariado, até se encontrar de novo sob o alpendre. Abriu a boca para dizer algo mas, perante o olhar imperioso que continuava fixo no seu, renunciou, deu meia volta e suspirou:

‑ Como queira! Então, até amanhã!

Da casa apenas avistara uma pequena sala de entrada, branqueada a cal, mobilada com simplicidade com um cofre de madeira trabalhada, duas cadeiras de encosto esculpido e um quadro naíf representando uma cena de aldeia, mas o encontro inesperado com Lisa apagava qualquer vestígio de decepção apesar de que, ao avistá‑la por trás da porta de carvalho de lanterna na mão, ela lhe tenha vagamente recordado o Anjo Exterminador colocado por Deus à porta do Paraíso a fim de proibir a entrada do pecador, arrependido ou não. E foi com uma passada alegre que retomou o caminho do albergue. Mais algumas horas e os véus iriam começar a ser rasgados. Talvez nem todos, pois conhecia o carácter determinado da sua antiga secretária mas, pelo menos com ela, tinha quase a certeza de jogar de igual para igual.

Este foi um pensamento reconfortante que lhe devolveu a boa‑disposição e, ao descobrir Adalbert sentado na sala, diante de um grande fogão de aquecimento em faiança verde, para o qual estendia mãos e pés, com uma bebida quente colocada a seu lado num canto da mesa, endereçou‑lhe um sorriso radiante:

‑ Então, meu caro? Passaste um dia agradável? Adalbert dirigiu‑lhe um olhar desencantado:

‑ Acabrunhante! Derreante! O diabo do homem tem umas pernas de aço e sobe como uma cabra. Deu cabo de mim.

‑ Realmente? Um arqueólogo não tem mais estofo que isso?

‑ Eu sou egiptólogo e, portanto, um homem de terreno liso! No Egipto, eram os próprios faraós que erguiam as suas montanhas. E pensar que ele quer recomeçar novamente amanhã! Estou cheio de vontade de lhe dizer que temos de voltar a Ischl...

‑ Diz‑lhe o que bem entenderes mas, de qualquer modo, estás livre para fazer o que te apetecer. Eu tenho de ir a um encontro numa igreja.

‑ Vais casar‑te?

Mesmo inesperada, a pergunta não deixava de possuir o seu picante:

‑ Talvez não fosse uma tão má ideia ‑ disse, sorrindo a uma imagem que só ele via. ‑ Vamos! Não faças essa cara! Pega no teu copo e vem comigo: vou contar‑te tudo!

 

       A HISTÓRIA DE ELSA

Ao subir a escadaria coberta que levava à igreja, uns bons vinte minutos antes da hora combinada, Morosini perguntava‑se que fatalidade era aquela que o condenava a ele, príncipe cristão, mas pouco praticante, a frequentar os santuários católicos logo que era questão de um encontro com uma mulher e isso desde que percorria a Europa em busca de jóias arrancadas a um tesouro judaico. Outros teriam tido direito a encontros num parque, num café, no cais de algum rio ou, até, na intimidade de algum salão, e não pôde deixar de evocar com certa nostalgia o momento que passara na companhia de Anielka na grande estufa do Jardim de Aclimatação de Paris. Era a época em que estava doido por ela e disposto a qualquer extravagância para conquistá‑la e agora, depois de se ter livrado dela como se se tratasse de um fardo incómodo, entregando‑a aos cuidados de Ana Maria Moretti, ele apressara‑se em escapar para a Áustria onde o esperavam um caso sem dúvida cativante, mas bastante mais difícil de deslindar... e um encontro com uma linda rapariga na casa de um Deus que talvez não visse a sua missão com olhar benigno!

Ao empurrar o portão, este rangeu, som que o vazio interior ampliou. O seu olhar foi imediatamente captado pela magnificência de um grande tríptico do século XV, maravilhosamente dourado e esculpido, que dominava o altar. Contemplou‑o com prazer, mas sem surpresa, pois estava acostumado ao prolífico esplendor das igrejas austríacas. Uma lâmpada vermelha acesa anunciava a «Presença» mas não lhe apetecia rezar. Sentou‑se num banco para melhor admirar o quadro. O tempo passava sempre depressa diante de uma bela obra...

O rangido do portão fê‑lo levantar‑se para ir ao encontro daquela que chegava, escondida sob um manto preto encapuçado, que deixava apenas a descoberto os tornozelos com meias brancas e os pés com sapatos de fivelas. Vestida daquela maneira, Lisa harmonizava‑se com o cenário antigo da igreja.

Ao chegar ao pé de Aldo, ela ajoelhou‑se para uma curta prece e, em seguida, fez um sinal ao seu companheiro para que viesse sentar‑se a seu lado. Tinha um ar grave mas, no entanto, Aldo não conseguiu reter um sorriso:

‑ Quem teria podido prever, na época do seu período holandês, que um dia marcaríamos encontros secretos numa igreja como se fazia outrora em São Marcos, Salute ou San Giovanni e Paolo?

‑ Por favor, não me fale de Veneza! Não quero pensar nisso neste momento. Quanto a encontros, pode ter a certeza que não haverá um segundo!

‑ É pena! Mas porquê aqui e não em sua casa ou no albergue?

‑ Porque não quero que fiquem a saber que nos conhecemos. Dito isto, não se dê ao trabalho de me revelar o que veio procurar a Hallstatt! Já o soube.

‑ Suponho que foi Mme. von Adlerstein que a informou...

‑ Evidentemente! Logo que soube da sua presença em Viena, ela preveniu‑me.

‑ Porquê? Para ela eu sou um ilustre desconhecido...

‑ Engana‑se redondamente! Ela sabe quase tanto sobre si quanto eu... Saiba, príncipe, que eu nunca ocultei nada à minha avó. Após a morte de minha mãe ‑ isto é, desde sempre! ‑ ela ocupou‑se de mim, para que eu não me tornasse uma espécie de marioneta nas mãos das governantas que me educavam. Gostamos uma da outra e conto‑lhe sempre tudo...

‑ Mesmo o episódio Mina Van Zelden?

‑ Sobretudo esse! Ela soube sempre onde me encontrar quando o meu pai julgava que eu tinha partido para a índia estudar a sabedoria budista ou para a América Central, no rasto dos vestígios da civilização maia...

Morosini exclamou horrorizado:

‑ Não me diga que também é arqueóloga? Já me chega um!

‑ Tranquilize‑se, tenho apenas umas noções vagas. A propósito ele vai bem, o nosso caro Adalbert?

‑ Bem... quanto à disposição, esta não é brilhante! Foi amuar para o lado das sepulturas da antiga necrópole de Hallstatt na companhia do professor Schlumpf!

‑ Dir‑se‑ia que isso lhe agrada. Porque lhe falou a meu respeito?

‑ Porque me dá prazer dar‑lhe cabo daqueles seus grandes ares! Desde que vocês percorreram a estrada juntos, ele exibe uns ares de proprietário que me irritam um bocado.

Desta vez Lisa não conseguiu suster o riso.

‑ Ele é encantador e gosto muito dele. A nossa pequena viagem foi muito divertida. Quanto a si, Excellenza, não é porque fui sua secretária durante dois anos que me deve considerar como fazendo parte da mobília.

Ele aceitou esta rectificação sem pestanejar. Talvez porque o rosto de Lisa, naquele enquadramento oval do capuz preto, com as suas sardas e a brilhante coroa de tranças, oferecia um espectáculo propício à indulgência.

‑ Bem! ‑ suspirou. ‑ Deixemos Adalbert de lado e regressemos à sua avó: ignoro o que lhe disse a meu respeito mas essa mulher detesta‑me.

‑ Não verdadeiramente! Ela até acha que tem um certo charme, só que desconfia de si!

‑ Bonito! Portanto ela contou‑lhe a minha visita?

‑ Naturalmente. Mas agora, tem de me explicar qual o motivo que o leva a querer pagar seja que preço for por uma jóia de alguém que tanto estimamos. Assim que a viu no camarote da avó na Ópera, decidiu subitamente que era essa opala que queria e nenhuma outra?

‑ Exacto. Essa e nenhuma outra! Até quis explicar a Mme. von Adlerstein porque motivo grave, imperioso, eu precisava dessa pedra, mas ela não me prestou ouvidos...

‑ Pois bem ‑ disse Lisa, instalando‑se mais confortavelmente no seu banco e cruzando as mãos sobre os joelhos ‑ eu estou aqui para ouvir essa história. Se bem compreendi tratar‑se‑á mais uma vez de uma pedra amaldiçoada?

‑ Sim, tal como o são todas aquelas que jurámos reencontrar, eu e Adalbert...

‑ Você e Adalbert? Então agora são sócios?

‑ Só para este assunto, que é seguramente o mais importante da minha vida de antiquário. Tem de me deixar ressuscitar a Mina durante um momento.

‑ E por que não? ‑ disse ela, com um breve sorriso. ‑ Eu gostava da minha personagem, sabe?

‑ Eu também... Lembra‑se daquele dia de Primavera, há quase dois anos, em que veio atrás de mim para me entregar um telegrama enviado de Varsóvia?

Ela animou‑se subitamente, sob o efeito da paixão que colocara no seu trabalho no palácio Morosini:

‑ Enviada pelo famoso e misterioso Simon Aronov? Se me lembro! Foi depois desse encontro que o senhor se lançou nessa incrível aventura no decurso da qual reencontrou a safira roubada da sua mãe e que me encarregou depois de levar até Veneza...

‑ Já lá não está! Algumas semanas depois, entreguei‑a a Aronov, que veio ter comigo ao cemitério de San Michele. Tal como lhe enviei também a Rosa de Iorque, recuperada em Inglaterra em dramáticas circunstâncias...

‑ A Rosa de Iorque? Mas... ela não acaba de ser roubada da Torre de Londres?...

‑ Não se trata da verdadeira e, peço‑lhe que me deixe agora explicar‑lhe por que motivo imperioso nunca lhe contei a verdade acerca do que Aronov me pediu no seu antro em Varsóvia. Não se tratava de falta de confiança. Eu tinha dado a minha palavra... Se hoje a vou quebrar é por não ter outra alternativa. Depois, julgará por si própria... e apressar‑se‑á a esquecer‑se de tudo!

Desta vez ela não disse nada.

Então ele contou a sua aventura polaca, evitando contudo insistir particularmente acerca dos seus encontros com a filha do conde Solmanski, limitando‑se apenas a revelar que a salvara do suicídio e como acabara por lhe seguir o rasto depois de a ter visto desembarcar na gare do Norte, trazendo ao pescoço a Estrela Azul que ele e Aronov procuravam.

Para sua surpresa, Lisa não reagiu enquanto ele falava, a tal ponto que se perguntou se não a adormecera, mas como entretanto se calou, ela ergueu para ele uns olhos plenos de vivacidade:

‑ Passemos à Rosa de Iorque, dado que julgo tratar‑se da segunda pedra roubada, não é verdade? ‑ perguntou.

Ele obedeceu, constatando com prazer que a sua interlocutora seguia esta nova narrativa com visível atenção:

‑ Um verdadeiro romance policial! ‑ exclamou. ‑ Até seria divertido se não se tivessem sacrificado tantas vidas! Mas, se me permite, posso fazer‑lhe uma pergunta?

‑ Faça favor.

‑ Acredita verdadeiramente na inocência de lady Ferrais?

Ele não estava à espera desta questão e para ter tempo para encontrar a resposta, optou por formular outra, tal como Anielka costumava fazer:

‑ Dir‑se‑ia que você não acredita nela, pois não?

‑ Nem um minuto. Bem pode imaginar que li todos os jornais que tratavam do caso Ferrais e do julgamento da esposa. O golpe de teatro que lhe pôs termo pareceu‑me esquisito, demasiado polido, demasiado arquitectado! Um amante cúmplice que se enforca depois de se ter confessado por escrito, e um superintendente que se apressa em ir transmitir a notícia? Não, na verdade não acredito na sua inocência!

‑ Se está a pensar nalgum conluio com a polícia, engana‑se redondamente. Conheço muito bem o superintendente Warren e posso dizer‑lhe que ele apenas agiu de acordo com uma evidência imediata mas que, desde então, ele também se coloca muitas perguntas...

‑ E você? Não respondeu à minha pergunta.

‑ Também me coloco algumas ‑ confessou Aldo, que não desejava alongar‑se mais sobre o assunto. ‑ Agora temos de falar da terceira pedra: a opala! É por causa dela que eu e Adalbert estamos aqui.

‑ E estão convencidos que a pedra encastoada na Águia de diamantes é aquela que procuram?

‑ Simon Aronov acha que sim, e até agora ele ainda não se enganou. Aliás existe um meio muito simples para que eu a convença se, tal como suponho, você tiver acesso às jóias dessa mulher misteriosa que, juntamente com a sua avó, vocês guardam tão caprichosamente.

‑ Que meio?

‑ Cada pedra do peitoral traz gravada no reverso uma minúscula estrela de Salomão. É preciso uma lupa forte para vê‑la, mas ela existe. Experimente!

‑ Não me importo de o fazer mas, honestamente, não vejo como poderá fazer para que lha cedam. Essa jóia é a preferida da nossa amiga porque a herdou de uma avó de grande prestígio.

Morosini deixou que se estabelecesse um silêncio entre ele e Lisa, retendo a pergunta que lhe ia colocar para lhe dar o tempo necessário para reflectir, pois tinha a certeza que ela já a esperava:

‑ Não acha que é altura de atribuir um nome a esse rosto velado que me apareceu num camarote da Ópera? Quanto à avó, julgo conhecê‑la, pois tenho quase a certeza que descobri quem é o pai. Não é verdade que ela é a filha do infeliz Rodolfo, o trágico herói de Mayerling? Para lhe evitar uma pergunta, dir‑lhe‑ei que a vi, com outros véus pretos, a depositar flores no seu túmulo algumas horas antes do teatro...

‑ Sabe mais coisas do que eu pensava! ‑ exclamou Lisa, sem procurar esconder a sua surpresa.

‑ ... Quanto à Águia imperial de diamantes, depois do nascimento de Rodolfo, ela foi completar o adorno de opalas oferecido pela arquiduquesa Sofia à sua futura nora, alguns dias antes do seu casamento com Francisco José. Esse adorno, a própria Sofia trazia‑o no dia do seu casamento e ela desejava que Élisabeth fizesse o mesmo. Direi ainda que o conjunto, retirado do alfinete, foi vendido há alguns anos em Genebra, conjuntamente com outras jóias privadas da família...

O espanto cedeu lugar a uma admiração divertida.

‑ Como sou estúpida! Como me pude esquecer da sua paixão pelas jóias históricas e pelas belas pedras, sem contar com a sua insaciável curiosidade... e o facto de que você é talvez o maior especialista europeu na matéria.

‑ Obrigado! Agora não acha que está na altura de confiar em mim? Já faz um momento que você se descarta, como um cavalo puro sangue procurando escapar ao inevitável freio. Quero saber o nome dela... e a sua história! Vamos lá, Mina! Lembre‑se como trabalhávamos juntos! Por que não continuar? A minha causa é nobre e merece que se combata por ela.

‑ À custa de um acréscimo de sofrimento para uma inocente?

‑ E se fosse à custa da sua libertação? Tal como as outras pedras, a opala é maldita. Talvez a possa ajudar a salvar a sua amiga... Mas, finalmente, vai ou não decidir‑se a falar?

‑ ... Ela chama‑se Elsa Hulenberg e não só é a neta da imperatriz Élisabeth, como também da sua irmã Maria, a última rainha de Nápoles... É por aí que tenho de começar. Em... 1859, Maria, a terceira filha do duque Maximiliano «na» Baviera e da sua esposa Ludovica, desposava o príncipe da Calábria, herdeiro do trono de Nápoles. Ela tinha dezoito anos, ele vinte e três, e podia supor‑se que se tratava de um casamento adequado, se bem que os dois esposos nunca se tivessem visto...

‑ Um momento, Lisa! Não me dê uma lição de História, sobretudo italiana. Não se esqueça que sou veneziano. Portanto, conheço bem a história de Nápoles: a morte do rei Ferdinando II, algumas semanas após o casamento, a ascensão ao trono do jovem casal na altura em que Garibaldi e os Camisas Vermelhas empreendiam a sua marcha rumo à independência. Dezoito meses de reinado, depois a fuga para Gaète, onde se fecharam na fortaleza local e onde a jovem Maria se portou como uma heroína tratando dos feridos sob uma saraivada de balas e de granadas. Isso valeu‑lhe a admiração da Europa inteira, mas não lhe salvou o trono. Ela e o esposo refugiaram‑se em Roma, sob a protecção do Papa, e não se ouviu mais falar do marido... mas tenho a impressão que você, uma suíça, sabe mais que toda a gente sobre o assunto, não é verdade?

‑ Com efeito, porque a minha história começa onde acaba precisamente a grande História com «h» maiúsculo. Depois dos dias repletos de perigos ‑ mas quão excitantes! ‑ que ela acabara de viver, a nossa pequena rainha destronada, que mal tinha vinte anos, apercebeu‑se do grande vazio que se tornara a sua vida... e do pouco interesse que representava o seu esposo, agora que este nada mais tinha a fazer, tanto mais que o seu feitio se ensombrara e que o seu estado de saúde seguia pelo mesmo caminho. Ora, Sua Santidade Pio IX mandara os seus guardas pontificiais proteger o palácio Farnèse, nessa altura residência dos soberanos no exílio.(1) Maria apaixonou‑se por um deles, um belo oficial belga. De tal modo que um belo dia teve de se render à evidência: era urgente colocar alguma distância entre ela e o esposo. Pretextando que o clima de Roma não convinha para os seus pulmões frágeis, ela foi «descansar» para a Baviera, no estimado Possenhofen, onde permaneceu pouco tempo,

 

*1. Hoje é a embaixada de França em Roma.

 

antes de se refugiar nas Ursulinas de Augsburgo onde, chegada a hora, deu à luz uma filha, Margarida. É ela a mãe de Elsa.

‑ Ah! ‑ exclamou Aldo, atarantado. ‑ É incrível! Eu nunca ouvi falar de uma separação entre a rainha Maria e o rei Francisco II...

‑ Reconciliaram‑se muito depressa e, instalados em Paris, até se tornaram um excelente casal...

‑ E a imperatriz Élisabeth no meio disso tudo? E Rodolfo?

‑ Já lá chego. Sissi gostava muito da sua irmã mais nova, que também era muito bonita. Além disso, devido à sua paixão pelo romantismo, admirava a heroína de Gaète quase tanto quanto o seu primo Luís II da Baviera. Ocupava‑se muito desta pequena rapariga que Maria mandara educar num domínio situado perto de Paris, sob um nome que não revelarei. E, quando Margarida, a quem chamavam Daisy, se tornou uma bela moça, convidou‑a várias vezes, sobretudo para ir à Hungria, até ao seu castelo de Godollo, onde se realizavam grandes caçadas outonais. Foi lá que o arquiduque Rodolfo a encontrou. Ele estava casado com Stéphanie da Bélgica, que enganava frequentemente e sentiu logo por Daisy uma dessas paixões ardentes de que era costumeiro. Foi sol de pouca dura...

‑ Mas suficiente para ter consequências? E como é que o arquiduque reagiu perante a situação?

‑ De acordo com o seu carácter: propôs à jovem que morresse com ele. Não era a primeira vez, mas o sangue belga desta rebelava‑se contra as soluções excessivas, atraindo‑a mais para as alegrias em família. Ela recusou‑se, e foi contar as suas desventuras à imperatriz. Esta encontrou a única saída possível: um casamento rápido. Não foi nada difícil encontrar um esposo: o barão Hulenberg já estava apaixonado por Daisy. De boa família, assaz afortunado e até de bom aspecto, ele era um pretendente conveniente que a futura mãe aceitou. E como a rainha Maria só podia oferecer jóias, foi Élisabeth que se encarregou do dote. Esta também lhe ofereceu algumas, entre as quais a Águia de diamantes, sinal tangível das ilustres origens da jovem.

»Dois anos após o nascimento de Elsa, a sua mãe faleceu devido a uma rápida doença perante a qual os médicos não se entenderam. Alguns meses mais tarde, Hulenberg decidiu voltar a casar‑se. Escolheu uma mulher apenas pela sua juventude e beleza. Do ponto de vista moral, era uma criatura ávida, desprovida de coração, mas sabendo esconder muito bem o seu jogo. A presença de Elsa inifou‑a depressa: ela lembrava‑lhe demasiado a primeira esposa!

‑ Foi uma verdadeira madrasta?

‑ Infelizmente! Então, Sissi decidiu intrometer‑se. Apesar da dor terrível que sentira pela morte do filho, ela não abandonou a criança. Decidiu enviá‑la para um convento nas imediações de Salzburgo e encarregou a minha avó de cuidar dela, tarefa que esta desempenhou a preceito durante anos a fio e ainda hoje. Foi também ela que guardou o pequeno tesouro destinado a Elsa, o que veio a revelar‑se uma boa decisão, pois o barão Hulenberg morreu alguns anos após o seu segundo casamento. A viúva, herdeira testamentária, ousou reclamar as jóias de Daisy como parte integrante dos bens do defunto. Felizmente, sem sucesso: a imperatriz fora assassinada mas Francisco José, esse estava bem vivo. Ao corrente da história de Elsa, protegeu esta, bem como a avó, promovida a tutora legal. E tudo decorreu sem histórias até que Elsa deixou o convento.

‑ Suponho que Mme. von Adlerstein a acolheu então em casa?

‑ Sim e com tanto maior agrado porquanto Elsa gostava do convento a ponto de, durante certo tempo, se ter chegado a pensar se ela não tencionava lá ficar. Saiu mais tarde do que é costume. Era uma jovem séria, um pouco grave, e inteiramente consciente da grandeza das suas origens, o que se reflectia no seu comportamento, se bem que nunca as mencionasse, a não ser à minha avó. Os jovens não a interessavam. A sua única paixão era a música. Foi em parte para poder desfrutar mais desta que regressou à vida civil. Talvez também devido à nova Madre Superiora, de quem não gostava. Instalou‑se em nossa casa, mas não se sentiu à vontade, pois a vida que aí levávamos era demasiado mundana. Encontrámos‑lhe então uma moradia um pouco afastada, nos arredores de Schonbrunn, onde ela passou a viver com um casal de criados húngaros que lhe era inteiramente dedicado: Marietta, que fazia as vezes de criada de quarto

e de dama de companhia e o seu marido Matias, um verdadeiro cão

de guarda, provido de uma força pouco comum.

»O local agradou‑lhe e só de lá saía para passear ou para ouvir algum concerto, ou para se deslocar ao camarote da avó na Ópera. Discretamente vestida, não dava nas vistas, apesar da sua semelhança com a imperatriz, um pouco corrigida pela sua beleza loura. E depois, ocorreu essa malfadada soirée de 1911 ‑ a estreia de O Cavaleiro da Rosa! ‑ onde ela apareceu toda vestida de rendas brancas, bela como um anjo e trazendo a famosa opala. Este súbito esplendor inquietou um pouco a avó, mas a sala estava sumptuosa, o imperador encontrava‑se presente e as mulheres tinham posto as suas mais lindas jóias. Só que, no intervalo, um amigo veio apresentar‑lhe um jovem diplomata. Foi amor à primeira vista...

Aldo esteve prestes a dizer que já conhecia o resto da história mas não sabendo muito bem como Lisa reagiria à narrativa das suas façanhas e às de Adalbert, tomou a decisão sensata de se calar, o que lhe permitiu deixar errar o seu pensamento enquanto olhava para a interlocutora.

Na verdade esta estava encantadora, e ele continuava sem conseguir compreender como ela conseguira a proeza de se fazer passar por feia durante dois longos anos ao pé de um homem que geralmente sabia apreender uma mulher na perfeição. Ali, no cinzento daquela igreja fria, com o seu rosto luminoso enquadrado no severo capuz negro, tinha o ar de uma figura de Boticelli, com a diferença que emanava dela uma espantosa sensação de calor e vitalidade...

No entanto Lisa era demasiado fina para não se aperceber que a atenção do seu interlocutor andava à deriva:

‑ Está ou não a ouvir o que lhe digo? Se não lhe interessa o que lhe conto, nesse caso vou‑me embora...

Já se levantava. Ele reteve‑a segurando‑lhe na capa:

‑ O que a leva a crer que não estou a escutá‑la?

‑ É por demais evidente. Estou a contar‑lhe uma história triste e você olha‑me com um sorriso beatífico...

Estava visto que o seu feitio continuava o mesmo. Aldo decidiu declarar‑se culpado:

‑ Confesso que tive um momento de desatenção ‑ disse, exibindo o seu sorriso mais devastador. ‑ Também é culpa sua: estava a contemplá‑la!

‑ Já me viu durante dois anos; isso devia bastar‑lhe!

‑ Não diga disparates! O que me foi dado ver não era você, mas... uma espécie de caricatura sua! Se quiser saber a verdade, foi um verdadeiro pecado, uma espécie...

‑ Ouça, não vamos voltar a discutir esse assunto! Tenho que regressar. Onde íamos?

‑ Não estava a falar dessas... dessas cartas que foram recebidas após a guerra, quando todos julgavam que Rudiger desaparecera? ‑ propôs Morosini, com uma ligeira hesitação.

Mas a sorte estava do seu lado ou então o seu ouvido registara a conversa sem que ele tivesse dado por isso. Acertou em cheio.

‑ Ah sim! ‑ disse Lisa. ‑ Apresento‑lhe as minhas desculpas: é melhor ouvinte do que eu pensava. Estava eu portanto a dizer que, ao receber a primeira carta, Elsa quase morreu de alegria e a avó de inquietação, pois nessa época fora necessário levá‑la para fora de Viena, onde ela já não estava em segurança.

‑ Que foi que ocorreu?

‑ Três estranhos acidentes. Atrevo‑me mesmo a dizer que se tratou de três atentados, que ocorreram depois da guerra. O primeiro teve lugar no parque Schonbrunn, onde Elsa passeava com Marietta. Um homem tentou apunhalá‑la. Felizmente havia um guarda ao pé, que desarmou o assassino, que entretanto fugiu. Noutra ocasião, escapou a uma viatura conduzida por dois cavalos desenfreados: foi um milagre não ter sido espezinhada pelos cascos dos animais. Finalmente, a sua casa incendiou‑se algum tempo depois. Matias conseguiu tirá‑la do braseiro, mas ela foi afectada. Claro que a polícia nunca descobriu nada. Depois da guerra, reinava uma grande confusão nos seus serviços e preparava‑se a revolução. Aqueles que queriam matar Elsa dispunham de todas as vantagens. A conselho do meu pai, a minha avó pôs a circular o rumor em como Elsa falecera, enquanto lhe procurava um novo refúgio, onde a instalou.

O burgomestre de Hallstatt é um dos seus velhos amigos e a casa do lago pertencia‑lhe, pelo que a colocou à sua disposição. Matias e Marietta instalaram‑se lá com Elsa, escondida sob o falso nome de Fraulein Staubing.

‑ E essa chegada, suponho que envolta no maior secretismo, não despertou a curiosidade?

‑ O burgomestre é um homem inteligente. Fez circular o boato que tinha oferecido asilo a um casal de velhos amigos cuja filha, ferida num atentado na Hungria, perdera parcialmente a razão e julgava ser alguma princesa. As pessoas daqui gostam das belas histórias e são generosas. A aldeia fechou‑se como uma ostra sobre os refugiados.

‑ Mas quando chegou a primeira carta, ela não foi endereçada para aqui, pois não?

‑ Não, foi enviada para Ischl, ao cuidado da minha avó.

‑ E ela não a impediu de cometer essa loucura de se mostrar no teatro?

‑ Disseram‑me que não houve maneira de proceder de outro modo. Desta vez Elsa estava quase louca de felicidade e a avó deixou‑se comover. Tomaram‑se enormes precauções e, na noite da ultima temporada, em que voltaram a representar O Cavaleiro da Rosa, ela surgiu no camarote vestida como viu...

‑ Mas porquê de preto? Não me disse que quando Rudiger lhe foi apresentado ela vestia de branco?

‑ Ela já tem trinta e cinco anos e, além disso, não larga o luto que traz pelo pai e pelos avós.

‑ E por que esconde o rosto? Ela não deseja ser reconhecida?

‑ Em parte; a rosa prateada é que devia servir de sinal de identificação. Só que o apaixonado não compareceu ao encontro. Pode imaginar a decepção dela. No entanto, chegou outra carta dizendo que Franz presumira demasiadamente as suas forças, que se desculpava e que estava muito infeliz. Dizia também que era melhor esperar ainda alguns meses, até á primeira representação da nova temporada...

‑ Não era um prazo um tanto longo?

‑ Não, se considerarmos que se tratava de um doente. O segundo encontro foi portanto marcado para o mês anterior, na altura em que o senhor esteve presente.

‑ Não se passou nada. Pelo menos, não dei por isso...

‑ Passou‑se, sim: tentaram raptá‑la à saída do teatro. Dois homens tinham‑se apoderado da viatura que a esperava e, depois de terem atropelado Matias, cavalgaram rédea solta através de Viena. Graças a Deus, Matias conseguiu persegui‑los e desembaraçar‑se dos agressores, após o que reconduziu Elsa, mas foi por um triz. Houve apenas tempo para mudar de roupa e fazer depressa as malas antes de voltar a toda a pressa para Hallstatt...

‑ Pobre mulher! ‑ suspirou Morosini. ‑ Como é que ela reagiu ao desmoronar do seu sonho, pois suponho que mais ninguém teve dúvidas quanto à origem das cartas? Alguém deve ter ficado ao corrente do triste romance dessa infeliz e decidiu servir‑se da história para obrigá‑la a sair do seu esconderijo. Em todo o caso, para mim é claro...

‑ Infelizmente só se aperceberam disso demasiado tarde! A avó ficou apavorada quando soube o que se passara. Foi então que me telegrafou para Budapeste, pedindo‑me que regressasse, mas eu demorei‑me pouco em Ischl, vindo logo aqui para tentar acalmar Elsa.

‑ Ela está desesperada?

‑ É impossível imaginar a sua tristeza. Já nem parece estar viva. Não fala, fica sentada horas a fio à janela do quarto a contemplar o lago e quando nos olha... não parece estar a ver‑nos. Contudo, ela gostava muito de mim e...

Lisa calou‑se, atrapalhada por um súbito assomo de lágrimas. Aldo ajoelhou‑se diante dela, pegando‑lhe nas mãos que colocou entre as suas. Até então pensara que, ao ocupar‑se da reclusa, Lisa obedecia a um dever, como ela sabia tão bem fazer, mas ao descobrir que ela gostava daquela infeliz, sentiu‑se abalado...

‑ Lisa, rogo‑lhe que disponha de mim como lhe aprouver! Diga‑me o que posso fazer para ajudá‑la! Sou seu amigo... e Adalbert também ‑ acrescentou, não sem um pequeno esforço.

Ela mergulhou o seu olhar sombrio, cintilante de lágrimas, no de Morosini, e durante um breve instante ele julgou descobrir uma nova ternura, uma emoção... que depressa se apagou:

‑ Nada, infelizmente, não pode fazer nada!... E levante‑se por favor; isso não é posição que se tenha numa igreja...

‑ E que se faz numa igreja, a não ser ajoelhar‑se para rezar? E eu estou a rogar‑lhe, Lisa, que nos deixe ajudá‑la. Se a sua amiga corre perigo, você também, e isso é‑me insuportável ‑ afirmou, obedecendo‑lhe e voltando a sentar‑se no banco.

‑ Não. O perigo ainda não é imediato! A casa do lago é a nossa melhor salvaguarda. Tudo o que pode fazer é afastar‑se e deixar‑nos em paz. Ambos... dão muito nas vistas. A vossa presença aqui só pode atrair as atenções. Peço‑lhe que partam!... Em compensação prometo‑lhe fazer o impossível para convencer Elsa a desembaraçar‑se da sua Águia!

‑ Quer livrar‑se de mim? ‑ perguntou Aldo, com uma amargura que a resposta não dissipou: foi um «quero» nítido, enérgico,

e como ele se conservava num silêncio magoado, Lisa acrescentou:

‑ Tente compreender! Caso haja algum problema, podemos contar com os habitantes locais!...

‑ E talvez também com o seu encantador primo que é igualmente seu fervoroso admirador? O que me espanta é ainda não a ter encontrado: tem todas as características do cão vadio e detecta o seu perfume a quilómetros de distância!

‑ Fritz! Oh, ele é bom rapaz, mas muito cansativo! Tranquilize‑se, a avó compôs bem as coisas ao enviá‑lo a Viena para efectuar algumas compras urgentes... e muito difíceis! Aliás ele nada sabe sobre a casa do lago!

Ela levantava‑se. Aldo fez o mesmo, com a impressão desagradável de se ter tornado subitamente tão incómodo quanto Fritz. Quando oferecia sinceramente a sua ajuda, não gostava nada que a desdenhassem mas, aparentemente, Lisa não se ralava com isso!

‑ Então? ‑ perguntou‑lhe ela. ‑ Vai‑se embora?

‑ Visto que devo obedecer! ‑ resmungou, com um encolher de ombros. ‑ Mas não antes de amanhã ou depois. Anunciámos bem alto que tínhamos vindo aqui para pescar, pintar e admirar a paisagem! Aliás Adalbert está constantemente acompanhado pelo professor Schlumpf! Não me sinto com coragem para separá‑los bruscamente...

‑ Pobre Adalbert! ‑ riu‑se Lisa. ‑ Conheço o Herr Professor! Ele é incapaz de nos ver sem nos debitar logo uma conferência! Aliás nesse capítulo o seu amigo não lhe fica atrás: numa curta viagem, disse‑me tudo o que há a saber sobre a XVIII dinastia faraónica!

Ela estendeu uma mão que Aldo se apressou a pegar e a reter:

‑ Não me quer dizer como poderei contactá‑la caso tenha algo a dizer‑lhe?

‑ Mas é muito simples! Em casa da minha avó, em Viena ou em Ischl...

‑ E por que não aqui? Ou vai abandonar Elsa de um dia para o outro?

‑ É verdade, mas o que quero é que ela me autorize a levá‑la para Zurique. Necessita de cuidados médicos. Sobretudo, os de um psiquiatra...

‑ A sua fidelidade para com a Suíça só a honra ‑ disse Morosini, com certa insolência ‑ mas recordo‑lhe que em Viena está Sigmund Freud, mestre absoluto na matéria.

‑ Por isso tenciono recorrer a ele... logo que Elsa estiver bem ao abrigo na nossa melhor clínica. O difícil é levá‑la.

Penso que se sente dividida entre o terror que lhe causou a tentativa de sequestro e a sua ligação a uma casa de que gosta e onde sonhou que iria viver com Rudiger. E eu não posso, nem quero, forçá‑la. Agora deixe‑me ir embora!

Ele largou‑a e afastou‑se:

‑ Parta, mas continuo a achar que está a cometer um erro ao recusar uma ajuda desinteressada.

‑ A quem quer fazer acreditar numa coisa dessas? ‑ perguntou ela, subitamente acerba. ‑ Explicou‑me que queria a opala a todo o custo...

Aldo sentiu que empalidecia:

‑ Acredite no que quiser! ‑ respondeu, inclinando‑se com uma fria cortesia. ‑Julgava que me conhecesse melhor.

Afastou‑se imediatamente e dirigiu‑se para a porta sem se voltar. Não viu portanto que Lisa seguia a sua alta silhueta elegante com uma expressão descontente, revelando no olhar algo que se assemelhava a um certo arrependimento. Ele sentia‑se magoado. A última frase que ela proferira irritara‑o e desiludira‑o. Depois de dois anos de apertada colaboração, à falta de afecto ele esperava ter pelo menos conquistado direito à sua estima, talvez a um pouco de amizade, mas ela acabara de pô‑lo no seu papel de comerciante, relegando‑o para o mundo dos negócios, onde só conta o dinheiro. Era uma pena! Quanto a Adalbert, este ficou furioso quando o amigo lhe contou o encontro até ao último pormenor. A sua boa‑disposição habitual, já ressentida pelo facto de Aldo ter ido sozinho ao encontro, acabou por desaparecer por completo.

‑ Ah, então é assim? ‑ rugiu, com a madeixa mais rebelde que nunca. ‑ Ela não quer saber da nossa ajuda? Nesse caso, deixemos de lado o cavalheirismo e os nobres sentimentos!

‑ Que queres dizer?

‑ É muito simples: a história dessa Elsa é horrivelmente triste. Poderíamos fazer dela um romance, mas temos mais com que nos ocupar. Temos uma missão a acabar. Não sabemos onde está a opala do Supremo Sacerdote?

‑ Sabemos, mas não vejo como poderemos obtê‑la, e não acredito nada na vaga promessa de Lisa. Se a sua protegida está a enlouquecer não vejo como ela poderá convencê‑la a vender‑nos o seu caro tesouro...

‑ Não, mas talvez consigamos que Mlle. Kledermann nos empreste a Águia de diamantes durante alguns dias.

‑ Em que estás a pensar? É praticamente impossível mandar fazer uma cópia, seria preciso encontrar diamantes do mesmo tamanho, sobretudo da mesma qualidade, uma opala idêntica... e um mestre ourives. E tudo isso nalguns dias? Estás doido!

‑ Não tanto quanto isso! Diz‑me antes uma coisa: onde se encontram as mais belas opalas nesta terra deserdada?

‑ Na Austrália e na Hungria...

‑ Deixa lá a Austrália! Mas a Hungria não fica assim tão longe. Imagina por exemplo que partes amanhã de manhã para Budapeste. Um grande especialista como tu deve conhecer lá algum joalheiro, antiquário, lapidário ou sabe Deus o quê, capaz de te procurar uma pedra semelhante à que procuramos...

‑ S... im, mas...

‑ Qual mas, nem meio mas! As pedras do peitoral não têm todas a mesma forma, a mesma grossura e tu não tens pelo menos as medidas da safira?

Aldo não respondeu. Entrevia o plano de Vidal‑Pellicorne e começava a admitir que este não era tão delirante quanto isso. Encontrar uma grande opala, desde que se pagasse o devido preço, não era tarefa impossível. De todas as pedras que faltavam, ela era a menos preciosa e podiam encontrar‑se opalas enormes, como a do Tesouro de Hofburgo.

‑ Admitamos que encontro uma opala branca do mesmo tamanho ‑ a Hungria é sobretudo célebre pelas suas opalas pretas, aliás magníficas! ‑ e que a traga comigo. És tu quem irá desencastoar a da Águia, para substituí‑la pela outra?

Adalbert mostrou um sorriso descarado, olhando para os seus longos dedos esguios que mexia com evidente prazer:

‑ Sou! ‑ respondeu. ‑ Creio já te ter dito que, se por vezes os meus pés me pregavam partidas, sempre fui muito hábil de mãos. Se me trouxeres também dois ou três utensílios que te indicarei, serei capaz de levar a operação a bom termo...

‑ Já o fizeste alguma vez? ‑ perguntou Morosini, estupefacto.

‑ Hum, hum... uma ou duas vezes! Fica a saber o seguinte, rapaz: um arqueólogo é levado a praticar diferentes misteres, da terraplanagem à restauração de móveis, de jóias, de frescos...

Aldo ia acrescentar «à abertura de cofres‑fortes e outros pequenos trabalhos de arrombador», mas o sorriso cândido de Adalbert teria desarmado um oficial de justiça ou um comissário de polícia.

‑ E que farás entretanto?

‑ Vou continuar a aborrecer‑me desmedidamente na companhia do pai Schlumpf, que lisonjeio de modo vergonhoso, mas que possui em casa uma pequena oficina muito bem equipada, na qual é tão fácil entrar como num moinho. Além disso ‑ acrescentou, já mais sério ‑ tratarei de encontrar Lisa e chamá‑la à razão. De qualquer modo seria uma coisa excelente se desembaraçássemos aquela infeliz de uma pedra a respeito da qual não se pode propriamente dizer que lhe tenha trazido felicidade.

‑ Esta talvez não seja pior que as outras. Geralmente as opalas não têm lá muito boa reputação!

‑ E é o rei dos especialistas que profere um disparate destes! ‑ suspirou Adalbert, erguendo os olhos ao céu. ‑ Tudo isto, porque num romance de Walter Scott a heroína só encontra a paz lançando uma opala ao mar! Mas, meu caro, não te esqueças que no Oriente lhe chamam «a âncora da esperança», que Plínio lhe teceu um grande elogio e que a rainha Victoria ofereceu uma a cada filha por ocasião das núpcias. Então não me venhas tu com essas cantilenas!

‑ Não. Tens razão, não acredito nelas. Pois bem, digamos que ganhaste: embarcarei de manhã e irei ver Elmer de Nagy a Budapeste. De qualquer modo não temos outra alternativa e é a única esperança que nos resta! Mas desejo‑te muita sorte com Mlle. Kledermann.‑ se ousares falar‑lhe um só momento da Águia, ela agarra‑te logo no pescoço.

Adalbert reparou que entretanto Lisa se tornara Mlle. Kledermann e disso tirou várias ilações, mas tratou de não as exprimir, tanto mais que a ideia de uma conversa, mesmo tempestuosa, com uma jovem que achava deslumbrante, não era algo que lhe desagradasse.

‑ Aceito o risco ‑ disse, com suavidade. ‑ Por ora vamos tratar um pouco da nossa toilette antes de descermos para jantar. Maria prometeu‑me que me serviria alguns Strudel de maçã e uvas secas, com natas, depois de um guisado de lebre e de uma geleia de murta!

‑ Que comilão! ‑ resmungou Morosini. ‑ Quando eu regressar ficarei encantado ao ver que terás decuplicado de volume!

Mesmo que achasse boa a ideia de Adalbert, detestava ter de afastar‑se de Hallstatt. O seu sexto sentido, aquele que o avisava do perigo iminente, dizia‑lhe que cometia um erro ao ir‑se embora, que ia acontecer algo de irremediável, talvez porque desejasse tanto que necessitassem dele! Era certamente pura vaidade!... Protegidas pelo imponente Ma tias, por Marietta e até por toda a aldeia, Lisa e Elsa não deviam ter grande coisa a temer!

Contudo, depois do jantar ‑ excelente e ao qual prestaram todas as honras ‑ enquanto Aldo se demorava a fumar na varanda ouvindo o marujar da água no lago, sentia aumentar a sua apreensão. Do local onde se encontrava, a casa das duas mulheres era completamente invisível mesmo à luz do dia e, nessa noite, levantara‑se um nevoeiro através do qual era impossível distinguir a menor luz na outra margem.

Subitamente ouviu dois disparos, longínquos, que lhe pareceram perdidos algures na montanha. Consequentemente não lhes atribuiu grande importância: não era nenhuma ocorrência especial, numa terra de caça e até de caça proibida! Mas, quase a seguir, o seu espírito recordou‑lhe que não era muito prudente caçar num tempo tão enevoado...

Pensando que afinal de contas nada tinha a ver com o caso, acendeu um último cigarro antes de ir preparar a mala para chegar a horas ao vapor da manhã, e fumou‑o com deleite. Acabara de lançá‑lo para a água, quando se ouviram gritos estridentes vindos do limite da aldeia, gritos que se aproximavam, trazendo consigo um rumor que anunciava que o pequeno burgo despertara. Então, seguro que se passava algo de anormal, Morosini saiu do quarto a correr, esbarrou com Adalbert e ambos correram escada abaixo. O barulho aumentou, acabando por explodir na sala do albergue, onde Georg estava ocupado a arrumar as suas canecas.

Os gritos de agonia provinham de uma mulher espavorida, mas que, ao chegar diante do balcão, pareceu perder todas as forças, desmaiando em seguida. Brauner ajoelhou‑se imediatamente ao pé dela, depressa seguido pela mulher. As pessoas acorriam à porta. A aldeia levantava‑se e as pessoas chegavam lideradas pelo próprio burgomestre.

Enquanto Maria administrava alguns estalos no rosto lívido da mulher sem sentidos, Georg preparava‑lhe um copo de schnaps, que tratou de despejar‑lhe pela garganta abaixo. A dupla terapia pareceu resultar: após alguns segundos, a mulher abriu os olhos, desatando a tossir convulsivamente até começar a soluçar. Pouco inclinado para a paciência, Brauner sacudiu‑a:

‑ Então, Ulrique, já chega! Conta‑nos o que é que se passa. Cais‑nos em cima como um furacão e depois desmaias e desatas a chorar sem dizer nada.

‑ A... a casa Schober!... Estava acordada e ouvi disparar. Então levantei‑me, vesti‑me e... fui ver. A luz estava acesa e a porta aberta... Entrei... e... e vi..! É horrível!... .Há... há três mortos!

E desatou outra vez a soluçar perdidamente! Sentindo um terrível pressentimento, Morosini perguntou:

‑ Qual é a casa Schober?

‑ É uma casa que me pertence e que alugo ‑ respondeu o burgomestre. ‑ Temos de ir ver!

Mas Morosini e Vidal‑Pellicorne já corriam porta fora, abrindo violentamente uma passagem através da pequena multidão que se amontoara à entrada, e despachando‑se tão depressa quanto o traçado caprichoso do caminho o permitia; mas, obviamente, não eram os únicos a querer ver o que se passara. Deste modo, quando chegaram à casa do lago, encontraram uma dúzia de pessoas que se tinham aglomerado perto da grande porta aberta. Pareciam todas aterrorizadas e o coração de Aldo, assolado por uma terrível angústia, parou uns momentos de bater.

‑ Lisa! ‑ gritou, correndo para entrar, mas um lenhador impediu‑lhe a passagem:

‑ Não entre! Está tudo cheio de sangue lá dentro! É preciso esperar pelas autoridades...

‑ Quero saber se ainda existe alguma possibilidade de salvá‑la! ‑ resmungou, disposto a bater. ‑ Deixe‑me entrar!

‑ E eu digo‑lhe que é melhor que não o faça!

Sem dizer uma palavra, Aldo e Adalbert pegaram cada um num braço do homem e puseram‑no de lado como se ele nada pesasse. Depois, entraram.

O espectáculo com que depararam era atroz. Na grande divisão contígua à pequena entrada que Aldo já conhecia, Matias jazia num mar de sangue, com o crânio rachado por uma machadada. Um pouco mais longe estava estendido o corpo da mulher, atingido por uma bala em pleno coração. Cheio de horror, Morosini lembrou‑se dos disparos que ouvira há pouco: tinham sido dois.

‑ Lisa! Onde está Lisa? A mulher falou de três mortos!

‑ Deve ter boa vista!

A divisão, que era uma espécie de grande salão, parecia efectivamente ter sido atravessada por um furacão. Os assassinos tinham virado tudo do avesso, derrubando móveis, livros, bibelôs e tapeçarias. Por fim, Aldo descobriu o corpo da jovem: atingido por uma bala, ela jazia nas escadas de madeira que subiam para o andar de cima. Com um suspiro de alívio, verificou que ela ainda vivia.

‑ Deus seja louvado! Ela ainda respira!...

Levantou‑a nos braços, procurou onde estendê‑la, descobrindo finalmente uma chaise longue meio desaparecida por debaixo das gavetas e dos destroços. Adalbert também a viu e desimpediu imediatamente o terreno:

‑ Vou ver se encontro no andar algo que possa servir de penso ‑ disse, lançando‑se escada acima. ‑ Ela sangra muito...

‑ É preciso um médico... cuidados médicos! ‑ gemeu Morosini, cujo olhar, que procurava ajuda, cruzou com o do burgomestre:

‑ O médico vem a caminho ‑ disse este. ‑ Já o mandei chamar... Mas por que não nos disse que conhecia Mlle. Kledermann? Somos todos amigos da sua avó, a senhora condessa von Adlerstein, cuja família é originária aqui da região...

‑ Ainda ontem não sabia que ela estava por cá e se esta tarde não a tivesse encontrado... casualmente, continuaria decerto a ignorá‑lo...

‑ Ela temia algum perigo?

‑ Que eu saiba, não!...

Com o seu magnífico bigode de um ruivo esbranquiçado e com a sua figura imponente, colorida mas bonacheirona, o burgomestre tinha o ar de um bom homem; contudo Aldo achou prudente não acrescentar mais nada, tomando a iniciativa de ser ele a fazer as perguntas, o que era o melhor meio de as evitar:

‑ Tem alguma ideia de quem possa ter cometido este crime? Quem poderá ter cometido um crime, um massacre destes... derramando tanto sangue?

‑ Não. Pobre Matias, pobre Marietta! Tão boas pessoas! Eram refugiados húngaros de quem a senhora condessa se tinha ocupado mas, o que me intriga, é que viviam aqui com a filha... uma pobre desequilibrada que nunca se mostrava e que se julgava uma princesa. Ora, só há três corpos...

‑ Terá desaparecido? Talvez esteja escondida. Quando os assassinos entraram, ela deve ter ficado aterrorizada, não acha?

‑ De qualquer modo não há ninguém lá em cima! ‑ anunciou Adalbert que regressava com álcool, algodão hidrófilo e pensos. ‑ Se houvesse alguém, tê‑lo‑ia visto.

Nem ele nem Aldo tiveram tempo para prestar os primeiros socorros a Lisa, pois entretanto o médico chegara. Com as suas roupas de montanha, parecia‑se muito com Guilherme Tell. Examinou o ferimento num ápice, efectuou um penso rápido mas eficaz para estancar o sangue e declarou que tinham de transportar Lisa até sua casa, para lhe extrair a bala...

‑ A sua casa? ‑ repetiu Aldo, inquieto. ‑ Tem alguma clínica? O outro olhou‑o com certa rispidez:

‑ Se estou a pedir que a transportem a minha casa, é porque possuo o necessário para operá‑la. Eu ocupo‑me de todo um distrito montanhoso e ainda dos operários das minas... os acidentes não são coisa rara... Bom! Vamos procurar reanimá‑la!

‑ Como é possível que ela ainda esteja inconsciente? ‑ perguntou Adalbert, também ele alarmado pela duração do desmaio. ‑ É uma jovem sólida, que pratica desporto...

‑ ... mas tem um galo do tamanho de um ovo na parte de trás da cabeça! Deve ter batido com ela ao cair pelas escadas abaixo!

Alguns momentos depois Lisa regressava ao mundo da consciência. Os seus olhos abriram‑se desmedidamente, enquanto gemia: ‑ Elsa!... Eles... sequestraram‑na!

 

 

                 TRÊS PASSOS FORA DO TEMPO

 

       A MENSAGEM

O que ocorrera fora de uma simplicidade estonteante: por volta das dez, quando Lisa levara Elsa para o quarto a fim de ajudá‑la a deitar‑se e Matias fora colocar as duas espingardas no respectivo painel depois de as inspeccionar meticulosamente, enquanto Marietta se preparava para apagar as luzes, esta ouviu uma voz de mulher que a chamava chorando. Julgando tratar‑se de alguma vizinha em dificuldade, não hesitou e, sem esperar sequer pelo parecer do marido, abriu a porta trancada e saiu, para logo regressar empurrada brutalmente para dentro por quatro personagens vestidas de preto, mascaradas e armadas...

Tudo se passou muito depressa: Matias, que entretanto voltara a pegar numa das espingardas, foi abatido por um machado lançado por mão conhecedora; aterrorizada, Marietta foi calada por um tiro, enquanto os bandidos começavam a revolver tudo na sala. Foi nessa altura que, atraída pelo barulho, Lisa desceu as escadas. Segurava uma pistola na mão e preparava‑se para disparar quando foi atingida por uma bala.

‑ Não devias ter disparado! ‑ criticou o homem que parecia o chefe. ‑ Precisamos das jóias e já não resta mais ninguém que possa responder às nossas perguntas...

‑ Resta a doida! Ela saberá dizer‑nos onde estão! Subamos!

Quando chegaram às escadas, Lisa, que caíra e fingia ter desmaiado, apesar das dores que sentia conseguiu reunir forças e agarrou‑se às pernas dos homens que iam a passar. Só um deles caiu: o outro desferiu uma violenta coronhada na jovem e, desta vez, ela desmaiou verdadeiramente, mesmo a tempo de avistar ainda um dos assassinos arrastando Elsa para fora do seu quarto.

‑ Não sei mais nada, mas estou cheia de medo quanto ao que lhe poderá ter acontecido ‑ murmurou Lisa, quando, extraída a bala e de ombro ligado, se encontrou duas horas depois num dos quartos de Maria Brauner, na companhia desta, de Aldo e de Adalbert. ‑ Esses homens querem as jóias e são capazes de torturá‑la para saber onde ela as esconde. Ora, ela não sabe de nada!

‑ Como é possível? ‑ perguntou Morosini. ‑ Não me disse que a Águia era o seu tesouro mais querido, juntamente com a rosa prateada? Ela não os tinha à sua disposição?

‑ A rosa, sim. Quanto à Águia, entregávamo‑la quando ela assim o desejava, mas era ela quem queria que a arrumássemos sem lhe dizer onde. Não se esqueça que ela se julga arquiduquesa! Oh, meu Deus, que irão fazer‑lhe?

‑ Não penso que ela tenha algo a temer pelo momento ‑ disse Adalbert. ‑ Essa gente não a julga louca?

‑ Foi o que disse um deles.

‑ Se tiverem um grama de inteligência, primeiro vão tentar acalmá‑la e, depois, interrogá‑la‑ão. Foi por isso que a sequestraram em vez de a matarem.

‑ E quando se aperceberem que ela não sabe nada?

‑ Lisa, Lisa, por favor! ‑ interveio Aldo, pegando‑lhe numa mão cheia de febre. ‑ Tem de pensar um pouco em si e descansar. Frau Brayner ficará a tomar conta de si...

‑ Podem ter a certeza! ‑ aprovou esta. ‑ Por ora não podemos fazer grande coisa. O nosso burgomestre telefonou para Ischl. A polícia chegará de manhã mas, para encontrar pistas, isso não será coisa fácil. Hans, o pescador que está a toda a hora no lago, avistou um barco que se afastava da margem mas, com o nevoeiro, não era fácil descobrir para onde se dirigia. Pareceu‑lhe ser na direcção de Steg... Vamos Fraulein Lisa! É preciso dormir!... E vocês, meus senhores, fora daqui!

Eles levantaram‑se, dirigindo‑se para a porta, mas subitamente Morosini ouviu:

‑ Aldo!

Voltou‑se: era a primeira vez que Lisa o chamava pelo seu primeiro nome. Era preciso que a ex‑Mina estivesse realmente abalada por baixar daquele modo a sua guarda.

‑ Sim, Lisa?

Foi ela quem lhe procurou a mão e a apertou, dirigindo‑lhe um olhar suplicante:

‑ A avó!... É preciso ir preveni‑la... e, sobretudo, velar por ela! São pessoas dispostas a tudo! Quando se aperceberem que não obterão nada da prisioneira, a avó ficará em perigo. Pensarão nela...

Comovido perante a angústia que lia no fino rosto, ele inclinou‑se para aflorar com os lábios os dedos crispados nos seus.

‑ Vou até lá!

‑ Não diga disparates! É preciso esperar pelo barco... e o comboio...

‑ Está a gozar? ‑ perguntou Adalbert que evitara sair. ‑ A quantos quilómetros fica Steg pelo caminho do lago? Oito, aproximadamente. E uma vez lá, encontraremos decerto um meio de transporte para os seis últimos. Senão, prosseguiremos a pé...

‑ Vinte quilómetros? Vão chegar todos rotos!

‑ Deixe de nos considerar como uns velhotes, minha cara! Quatro ou cinco horas de marcha não nos irão matar! Vens daí, Aldo?

‑Já vou. Só mais uma palavra, Lisa! Como me disse que se chamava a sua amiga? O seu verdadeiro nome...

‑ Elsa Hulenberg. Porquê?

‑ Explicar‑lhe‑ei mais tarde!

E regressou ao quarto chamando a si mesmo os piores nomes possíveis! Ele, que tanto se orgulhava da sua memória, como é que não se lhe acendera uma luz no espírito quando Lisa lhe contara a história de Elsa? Estaria fascinado pela sua antiga secretária a ponto de não ter conseguido estabelecer a ligação? Depois de se terem separado ficara realmente com a vaga impressão de se ter olvidado de algo, mas não soube descobrir do quê. E, no entanto, era tão simples!

Tranquilizados quanto a Lisa, deixaram o albergue pouco depois, equipados com roupas desportivas, grandes sapatos, mochilas com os estojos de toilette, e uma muda de roupa, seguindo o caminho terrestre que ia dar à estrada subindo na direcção de Bad Ischl. ‑ Temos tempo para falar ‑ disse Adalbert, quando ultrapassaram a casa do drama, guardada por alguns voluntários, enquanto se esperava a chegada da polícia. ‑ Diz‑me lá porque pediste a Lisa que ela te recordasse o nome de Elsa? Nessa altura ficaste cá com uma cara...

‑ Porque sou um imbecil, o que é sempre aflitivo de constatar. A propósito, esse nome, Hulenberg, não te recorda nada?

‑ N... ão. Devia?

‑ Lembra‑te do que nos disse o porteiro do hotel em Ischl quando lhe falámos da moradia na qual o misterioso visitante da tia Vivi achou por bem parar antes de regressar a Viena!

‑ Era isso?

‑ Tal e qual! A moradia foi comprada «há pouco» pela baronesa Hulenberg! Desta vez afianço‑te que nada me impedirá de ir até lá dar uma volta. Na próxima noite, por exemplo!

‑ E quando é que dormimos?

‑ Não me digas que ainda ficas preso a essas contingências! Quando se traz um chapéu tão bonito com uma pena e todo o equipamento de um habitante da região, uma pessoa deve sentir‑se firme como um bloco de granito. Portanto não comeces a gemer, porque vamos ambos precisar de uma danada coragem!

‑ Para defender a velha dama?

‑ Não ‑ respondeu Morosini. ‑ Para lhe contar o agradável serão que passámos atrás das suas janelas a espiar os seus segredinhos.

‑ Pensas que devemos contar‑lhe tudo?

‑ Não há outra solução.

‑ Ela não nos porá na rua?

‑ É possível, mas antes terá de nos ouvir.

Apesar da energia que tinham, os dois homens estavam esfalfados quando, por volta das oito da manhã, entraram em Ischl e chegaram ao Kurhotel Elisabeth, onde o porteiro lhes reservou uma acolhimento discreto, surpreendido pelo aspecto que tinham, mas sinceramente encantado pelo seu regresso: os clientes deviam escassear.

Começaram por se sentar à mesa diante de um sólido pequeno‑almoço, antes de tomarem um duche e mudarem de roupa: nenhum deles desejava demorar‑se num quarto que oferecia a irresistível tentação de uma cama fofa. Convinha que se apresentassem o mais depressa possível a Mme. von Adlerstein, mesmo que a perspectiva não os encantasse.

Apesar disso, ao reencontrar o seu querido e pequeno carro Adalbert sentiu‑se satisfeitíssimo, tomando a firme decisão de não mais se separar dele:

‑ Quando regressarmos a Halstatt, levamo‑lo connosco. Já fiz a viagem com o Maçã Verde. Podemos estacioná‑lo numa granja a aproximadamente dois quilómetros e até me pergunto se não tentarei chegar até um pouco mais longe...

‑ Irás até onde quiseres, desde que não seja para dentro do lago ‑ resmungou Morosini, ocupado em pensar no que iria dizer. Tudo dependeria, claro, do modo como iriam ser recebidos...

Quando o carro e o seu ruído característico pararam diante do alto portão de Rudolfskrone, puderam ter um vislumbre da recepção que os aguardava: um cordão formado por três criados postados atrás do velho Josef impedia‑lhes a passagem.

‑ Meus senhores, a senhora condessa nunca recebe ninguém de manhã! ‑ declarou o mordomo num tom severo.

Sem se perturbar, Morosini tirou da carteira um cartão que preparara antecipadamente, estendendo‑o ao criado:

‑ Queira entregar‑lhe isto. Ficaria muito surpreendido que ela não nos recebesse. Vamos aguardar!

Enquanto um dos criados se encarregava da missão, ele e Adalbert saíram do carro, ao qual se encostaram contemplando o parque onde o Outono pintava um soberbo quadro colorido que ia do castanho‑escuro ao amarelo‑pálido, realçado pelo verde‑profundo e imutável das grandes coníferas.

‑ Que foi que escreveste no teu cartão? ‑ perguntou Adalbert.

‑ Que Lisa está ferida e que temos de falar‑lhe de um assunto grave...

O resultado não se fez esperar. O criado regressou e disse uma palavra ao ouvido de Josef que se mexeu imediatamente: ‑ Se os senhores quiserem acompanhar‑me... A condessa recebeu‑os no roupão que devia ter posto ao sair da cama, mas sem perder um palmo da sua dignidade. Mesmo se o seu rosto pálido e contraído gritava angústia, mesmo se a sua mão tremia na bengala em que se apoiava, não deixava de estar de pé e de cabeça erguida, cujos cabelos ela tivera tempo para escovar, apanhando a cabeleira num carrapicho solto. Havia realeza naquela velha dama e os dois homens, talvez mais impressionados do que da primeira vez, saudaram‑na executando ao mesmo tempo uma rasgada vénia, mas ela estava muito para lá das delicadezas formais: ‑ Que aconteceu a Lisa? Quero saber!

‑ Esta noite apanhou uma bala no ombro, mas tranquilize‑se: ela foi tratada e a esta hora está a descansar no Seeauer, guardada por Maria Brauner ‑ informou Aldo. ‑ Infelizmente temos outras notícias, muito mais dramáticas, condessa: Mlle. Hulenberg foi raptada, a sua casa foi pilhada e assassinaram‑lhe os criados.

O alívio que surgira no rosto da velha dama cedeu lugar a uma verdadeira pena:

‑ Matias? Marietta?... Mortos? Mas, como?

‑ Ele recebeu uma machadada em plena testa e ela uma bala de revólver. Os assassinos entraram de surpresa. Abateram quem encontraram pelo caminho e desataram a vasculhar a casa. Lisa estava no andar superior, ajudando a sua amiga a deitar‑se. Pegou numa arma e desceu. Foi apanhada na escada... E nós apressámo‑nos para que a senhora não fosse posta ao corrente pela polícia ou pela guarda...

‑ Não teriam feito melhor ficando ao pé da minha neta? Quem lhes disse que ela não corre mais perigo?

‑ Onde está, julgo que seria preciso passar pela aldeia inteira para chegar ao pé dela. Foi ela mesma que insistiu para que a viéssemos ver. Repare, ela receia que os sequestradores a venham incomodar quando se aperceberem que o seu refém ignora o que desejam saber. Por isso, enviou‑nos aqui...

‑ E, para chegarmos mais depressa, viemos a pé ‑ precisou Adalbert, que achava que estavam a ser muito mal recebidos e que gostaria de se poder sentar. ‑ Tinha deixado o meu carro no hotel e fomos até Halstatt, primeiro de comboio e, depois, de vapor, como qualquer outra pessoa.

A sombra de um sorriso pairou um momento nos lábios descoloridos da velha dama:

‑ Peço que me desculpem. Devem estar muito cansados. Sentem‑se, por favor! ‑ disse‑lhes, sentando‑se ela própria numa chaise longue. ‑ Querem um café?

‑ Não, obrigado, condessa. A cadeira chega, se bem que não desejemos incomodá‑la por muito tempo...

‑ Não me incomodam. Aliás, penso que devemos falar mais seriamente do que da última vez.

‑ No entanto, nessa altura a senhora pareceu‑me muito séria...

‑ Sem dúvida, e julgava tê‑los feito compreender que era inútil abordar certos assuntos.

Penso que até os convidei a não ficarem por cá mais tempo... Que faziam em Halstattt esta noite?

‑ Já lá estávamos há alguns dias ‑ disse Vidal‑Pellicorne. ‑ Desejava desde há muito visitar os vestígios de uma civilização muito antiga. Esta pequena viagem permitiu‑me encontrar um eminente confrade, o professor Schlumpf, com o qual tive algumas conversas cativantes... O meu amigo Morosini resolveu acompanhar‑me...

‑ Verdade? Estou muito surpreendida, príncipe, que os seus negócios, cuja importância conheço, ainda não tenham exigido a sua presença em Veneza...

‑ Mas estou aqui em negócios e a senhora sabe‑o muito bem. Tal como não ignora que Mlle. Kledermann, sob o pseudónimo de Mina van Zelden, se encarregou do meu secretariado durante dois anos.

‑ Foi ela quem lhe disse que eu estava ao corrente?

‑ E que outra pessoa o podia ter feito?

‑ Também lhe disse que não gosto nada de si? ‑ perguntou a condessa, com uma franqueza brutal.

‑ Acredite‑me que o lamento. Será porque não fui seduzido pelo charme de «Mina»? Devia tê‑la visto na altura! Até o próprio pai, quando a viu em Londres, teve uma crise de riso.

‑ Isso teria eu gostado de ver! O meu genro, a gravidade em pessoa, acometido por uma crise de riso? Isso teria merecido a deslocação mas, por ora, vamos deixar os meus sentimentos de lado. Ponhamos as cartas na mesa! O senhor não perdeu a esperança de deitar a mão à Águia com a opala, pois não?

‑ A Águia não me interessa e ainda menos o seu valor mercantil, ainda que esteja disposto a pagar por ela um preço principesco. É a opala que desejo, pois ela representa muito para numerosas pessoas. Dito isto, é verdade que nunca abandono nada quando creio ter razão...

Seguiu‑se um silêncio que a condessa empregou para examinar com uma atenção quase incomodativa o homem que estava à sua frente e Morosini teria decerto ficado surpreendido se tivesse podido ler‑lhe os pensamentos. Ela achava‑o sedutor, com aquele rosto que escapara à perfeição melosa graças à arrogância do perfil, à ironia descontraída do desenho dos lábios e ao olhar cintilante, cujo azul de aço sabia tornar‑se de uma tonalidade mais terna ou de um verde inquietante.

Pensou que, se fosse mais nova, tê‑lo‑ia decerto amado e espantava‑se que Lisa tivesse resistido àquele charme a ponto de ter abdicado durante dois anos de toda a graciosidade da sua feminilidade. Ela agira como um entomologista que deseja observar em toda a tranquilidade algum insecto raro. Curioso comportamento!

‑ Seja! ‑ suspirou finalmente. ‑ Poderá agora contar‑me como voltou a encontrar a minha neta? Talvez o puro acaso, não? O maravilhoso acaso da arqueologia?... Não acha um pouco fácil demais?

Morosini trocou um relance de olhos com Vidal‑Pellicorne. Chegara o momento difícil.

‑ Um pouco, efectivamente ‑ disse, com grande calma. ‑ Contudo, o acaso não é totalmente alheio. No nosso hotel, travámos conhecimento com o sr. von Apfelgrune, que se entusiasmou ao saber a profissão do meu amigo. Fez questão de acompanhá‑lo a Hallstatt numa primeira visita, enquanto eu fui vaguear no parque da Villa Imperial, à procura dos seus fantasmas. Ele elogiava ‑ aliás, com toda a razão! ‑ esse local assaz excepcional, acrescentando que fora o berço dos Adlerstein...

‑ Por isso ‑ continuou Adalbert ‑ fiquei pouco surpreendido ao ver por lá o seu mordomo. A partir daí bastava um passo para pensar que uma dama, à qual a senhora concede a sua amizade e protecção, não deveria estar muito longe e nós demo‑lo.

‑ Friederich sempre falou demais! ‑ disse a velha dama, acalmando‑se um pouco. ‑ Contudo...

A frase ficou em suspenso. A porta acabara de se abrir, dando passagem a um homem vestido de caçador, que entrou com todo o à‑vontade de uma pessoa íntima:

‑ Disseram‑me que a senhora já estava levantada, cara Valérie. Deste modo quis vir cumprimentá‑la antes de correr atrás da caça... mas talvez esteja a ser indiscreto? ‑ perguntou o conde Golozieny, olhando com curiosidade para os visitantes.

‑ De modo algum, meu caro Alexandre. Ia mandá‑lo buscar. Aconteceu um drama em casa de Elsa: há dois mortos, sem contar que feriram a minha neta Lisa, e que sequestraram a nossa amiga. Mas, antes, deixe‑me apresentar‑lhe estes senhores que me trouxeram esta horrível notícia!

Golozieny parou‑a com um gesto, enquanto o seu olhar pálido perscrutava os dois homens, com visível desconfiança:

‑ Um momento! Como é que estes senhores se encontravam no local do drama? Estavam porventura ao corrente desse segredo que não me quis confiar?

A sua expressão dizia que se encontrava vexado, mas a condessa não pareceu muito preocupada com o facto:

‑ Não seja ridículo! Trata‑se de uma mera casualidade! Vidal‑Pellicorne é um arqueólogo muito interessado pela nossa época hallstattiana. Estava instalado na região em companhia do seu amigo, o príncipe Morosini, aqui presente. Acrescento que são ambos amigos de Lisa e que, desde há alguns dias que a minha neta foi ter com Elsa, que tanto ama e que... precisava de ajuda.

‑ Portanto é em Hallstatt que ela mora?...

‑ Falaremos disso mais tarde, se não se importa! Meus senhores, apresento‑lhes o meu primo, o conde Golozieny, adido do departamento dos Negócios Estrangeiros.

Trocaram‑se saudações e apertos de mão, o que não foi de molde a aumentar a simpatia mútua: o primo em questão oferecia uma mão mole, coisa que tanto Aldo como Adalbert detestavam solenemente. Contentaram‑se em apertar uns dedos inertes. Quanto ao olhar do diplomata, ele era mais agudo e frio que nunca: a descoberta, junto a sua prima, de dois estrangeiros cheios de energia e um tanto sedutores não lhe causava nenhum prazer. Como esse sentimento era inteiramente recíproco, Aldo decidiu despedir‑se:

‑ As autoridades não vão tardar a manifestar‑se ‑ disse, voltando‑se para a sua anfitriã. ‑ Penso que será melhor deixá‑los recebê‑los em família. Se precisar de nós, estamos no Kurhotel Elisabeth.

‑ Espero que não os esteja a pôr na rua ‑ disse o conde, com uma untuosidade quase episcopal.

‑ De modo algum ‑ mentiu Morosini. ‑ Temos que fazer e além disso também desejamos descansar um pouco pois, graças à sua presença, senhor conde, podemos esperar que Mme. von Adlerstein não corra mais qualquer perigo, o que não era o caso até há pouco. Vele bem por ela!

‑ Contem comigo! Assim farei.

O tom, imensamente pomposo, respondia ao que era mais uma ordem e um aviso do que um conselho.

‑ Voltem esta noite, está bem? ‑ pediu a velha dama, com um súbito impulso que traduzia talvez a sua angústia. ‑ Nessa altura teremos algumas notícias que poderemos compartilhar durante o jantar, não é verdade?

Os dois homens aceitaram o convite, despediram‑se e regressaram ao veículo sem trocar uma palavra. Só quando se tinham afastado é que Adalbert deu largas às suas impressões:

‑ Maldito hipócrita! Ponho a mão no fogo e a cabeça a cortar em como este homem está metido até ao pescoço na conspiração urdida contra a infeliz Elsa!

‑ Podes fazê‑lo sem nada recear! Não arriscarias nem a mão, nem a cabeça.

‑ Será prudente deixar a «avózinha» a sós com ele?

‑ Se ele tentasse o que quer que fosse contra ela, estaria a desmascarar‑se. Não creio que seja doido...

‑ Então, que veio cá fazer? Não é um pouco repentina esta vontade de ir à caça, que o levou até Rudolfskrone?

‑ Pelo contrário, ela vem mesmo a propósito! A sua liberdade para se movimentar na residência representa uma garantia ideal para os seus cúmplices: ele veio ver como decorriam as coisas com a condessa, controlar as suas reacções e, talvez, insinuar um ou outro conselho... judicioso.

‑ Como é que uma mulher tão inteligente pode ter confiança nele? Ele tem um ar tão franco quanto uma moeda falsa!

‑ Mas é seu primo. Nem lhe passa pela cabeça que ele a possa trair. A maçada é que a sua entrada em cena impediu a nossa confissão e não nos deu oportunidade para pô‑la de sobreaviso... entretanto, leva‑me até à estação!

‑ O que vais lá fazer? Não tencionas dormir um bocado?

‑ Dormirei no comboio. Quero ir a Salzburgo alugar um carro que dê menos nas vistas que o teu e que seja, se possível, menos barulhento. Isto não é um carro, é um painel publicitário... e nós precisamos de passar um pouco despercebidos!

‑ Nesse caso esquece os teus gostos principescos e não regresses com um Rolls! ‑ resmungou Vidal-Pellicorne ferido no seu amor pelo pequeno bólide vermelho.

Aldo regressou à tarde com um Fiat de um cinzento tão discreto quanto uma freira dos pobrezinhos. Era um carro sólido, manejável e pouco ruidoso, mas Morosini fora obrigado a comprá‑lo. Na cidade de Mozart apenas se alugavam grandes carros, geralmente acompanhados por um motorista.

Satisfeito pela sua compra, contentou‑se em estacioná‑lo sob as árvores que bordejavam o Traun, a curta distância do hotel e, em seguida, dormiu duas boas horas antes de pensar na roupa que iria vestir para o jantar em Rudolfskrone. Adalbert tinha saído.

Aldo acabara de tomar um duche quando o arqueólogo irrompeu pela casa de banho dentro, sem se dar sequer ao trabalho de bater à porta. O seu olhar brilhava, a tez estava colorida e as suas madeixas louras estavam mais despenteadas que nunca.

‑ Tenho novidades! ‑ exclamou ‑ e não são das pequenas! Em primeiro lugar há alguém na famosa moradia: as persianas estão abertas e as chaminés deitam fumo... A propósito de fumo, não tens um cigarro? O meu maço está vazio...

‑ Estão em cima da secretária ‑ disse Aldo que tivera apenas tempo para pôr uma toalha de banho à volta da cintura. ‑ É uma novidade, efectivamente, mas não tens outra debaixo da manga? Disseste «em primeiro lugar»...

‑ E essa é a melhor, acredita‑me! Enquanto vagueava pelas imediações dessa casa com o andar cansado de um velho convalescente que se aborrece, apareceu um carro que parou diante do gradeamento, que se abriu quase imediatamente, mas não suficientemente depressa para me impedir de reconhecer o seu ocupante. Nunca adivinharás quem era!

‑ Nem vou tentar ‑ riu‑se Aldo. ‑ Não quero cortar os teus efeitos de surpresa ‑ acrescentou, aproximando uma lâmina do rosto ensaboado.

‑ Pousa essa lâmina ‑ aconselhou Adalbert ‑ se não, quem se vai cortar és tu! O homem do carro era o conde Solmanski.

Siderado, Morosini contemplava ora a lâmina cortante ora a expressão gulosa do amigo:

‑ O que é que acabas de dizer?

‑ Oh, tu ouviste perfeitamente bem, mesmo que eu tenha de admitir que é coisa difícil de acreditar, mas não há qualquer dúvida possível: tratava‑se realmente do nosso caro Solmanski, o afectuoso sogro do pobre Eric Ferrais e, eventualmente, o teu futuro sogro também. Era ele chapado: o ar pateta, o perfil romano e o monóculo. A menos que tenha um sósia perfeito, era mesmo ele.

‑ Julgava que estava na América!

‑ É de crer que já lá não está. Quanto ao que veio aqui fazer...

‑ Não é difícil de adivinhar, pois não? ‑ perguntou Morosini que, recomposto da surpresa, aprestava‑se a prosseguir o seu barbear. ‑ Ele está certamente implicado no drama de ontem. Tinha quase a convicção de que essa Hulenberg estava na base do duplo crime, mas agora poria as mãos no fogo. A presença de Solmanski em casa dela tem o valor de uma assinatura. Sabemos ambos do que ele é capaz...

‑ ... sobretudo quando se trata das pedras do peitoral. Como é que ele pôde saber que a opala estava aqui?

‑ Simon Aronov também o soube. Por que não o seu inimigo íntimo? Não te esqueças que Solmanski julga possuir a safira e o diamante, pois estou convencido que ele é o autor do roubo na Torre de Londres.

‑ Eu também e, a esse propósito, ocorre‑me uma ideia... Sentado na beira da banheira, de nariz no ar e de boca aberta,

Adalbert pôs‑se a seguir com ar sonhador as espirais de fumo que lhe saíam do cigarro. Aldo aproveitou para acabar de se barbear e, em seguida, voltou‑se para o amigo:

‑ Aposto dez contra um em como conheço a tua ideia!

‑ Oh!

‑ Não estarás a pensar em aconselhar ao caro superintendente Warren uma cura tardia nas benéficas águas de Bad Ischl?

‑ Estou ‑ admitiu o arqueólogo. ‑ Infelizmente não vejo como é que nos poderia ser de qualquer utilidade. Aqui, ele não dispõe de nenhum poder...

‑ Penso que ele é muito capaz de o arranjar. Afinal de contas, procura um ladrão internacional e, a partir do momento em que estão em questão as jóias da Coroa, deve estar disposto a todas as acrobacias... desde que haja, claro, um começo de provas... Conclusão: escreve‑lhe! De qualquer modo, não se perde nada... Dito isto, deixa‑me acabar de me arranjar e vai fazer o mesmo!

Uma hora depois, protegendo os seus smokings sob um confortável agasalho de lã regional, os dois homens subiram para o Amílcar a que Mme. von Adlerstein se habituara e largaram rumo a Rudolfskrone. Esperava‑os uma surpresa: Lisa fora recambiada durante o dia. Por ordem da avó, que não suportava a ideia de saber a neta ferida e longe de si, a grande limusina preta que Aldo vira sair do palácio Adlerstein certa noite de Outubro fora esperá‑la até ao desembarcadoiro, enquanto Josefe, um dos criados mais robustos atravessavam o lago no barco a vapor e traziam a jovem de volta, devidamente agasalhada, e sob as mais calorosas recomendações de Maria Brauner. O seu estado de saúde era satisfatório e ela descansava no quarto onde os dois homens foram convidados a ir cumprimentá‑la:

‑ Ela ficará contente ao vê‑los ‑ disse a condessa. ‑ Perguntou duas ou três vezes por vocês. Josef vai conduzi‑los.

Os dois homens temiam um pouco deparar com a atmosfera típica de um quarto de doente, mas Lisa não era pessoa para lhes infligir isso. Apesar da viagem desgastante que tivera durante o dia, ela esperava‑os numa chaise longue, num encantador roupão de interior, em seda chinesa branca bordada a azul. Estava pálida e, na discreta abertura da indumentária, podia avistar‑se um canto da ligadura que lhe envolvia o ombro, mas a sua atitude, repleta de um orgulho próximo do desafio, não deixava de recordar a da sua avó no dia em que esta recebera os dois estrangeiros. Ela acolheu‑os, exclamando:

‑ Deus seja louvado, aqui estão vocês! Sabem algo de novo?

‑ Um momento! ‑ interrompeu Morosini. ‑ Não lhe cabe a si pedir novidades. Em primeiro lugar, diga‑nos como vai.

‑ O que acha? ‑ perguntou com um sorriso matreiro que ele não lhe conhecia.

‑ Ninguém diria que ontem lhe extraíram uma bala ‑ disse Adalbert. ‑ Parece‑se com uma rosa pálida!

‑ Ora bem, aqui está um homem que sabe falar às mulheres! ‑ suspirou Lisa. ‑ Não diria o mesmo de si, príncipe!

‑ É por isso que nem sequer tento. Nunca cultivámos o madrigal no tempo em que colaborávamos. Aliás, inteiramente por culpa sua.

‑ Não voltemos a esse assunto e passemos ao drama que nos ocupa. Já perguntei se têm novidades. Têm‑nas ou não?

‑ Temos, mas receio que as receba tão mal quanto o faria a sua avó se nós lhas contássemos.

‑ Esconderam‑lhe alguma coisa?

‑ Não vejo que outra coisa teríamos podido fazer. Está a ver‑nos a contar‑lhe, em tom de conversa amena, que espiámos durante quase duas horas, estendidos na varanda desta casa, o encontro secreto que ela teve com um certo Alexandre...?

‑ Golozieny? O primo? E em que é que isso os interessava?

‑ Já lá vamos chegar ‑ reatou Aldo ‑ mas antes de irmos mais

longe gostaríamos de saber o que pensa dele, quais os sentimentos que tem a seu respeito.

Certamente no intuito de melhor reflectir, Lisa ergueu os seus grandes olhos sombrios na direcção do tecto e suspirou:

‑ Nada! Ou pouca coisa! É um daqueles diplomatas que está sempre aflito de dinheiro mas muito bem vestido, que sabe beijar primorosamente os metacárpios nobres, mas que é incapaz de alcançar os cumes da sua carreira. Há sempre duas ou três pessoas do seu estilo que se arrastam pelas chancelarias e pelos corredores governamentais. O dinheiro interessa‑o muito...

‑ Óptimo! ‑ exclamou Aldo, subitamente mais bem disposto. ‑ Agora Adalbert vai sentir‑se muito mais à vontade para lhe contar a nossa pequena expedição, o que descobrimos e o que vimos em seguida. É um narrador nato!

Foi a vez de Vidal‑Pellicorne desabrochar como um girassol sob o efeito dos raios de sol. O olhar que dirigiu a Morosini estava repleto de gratidão, pois ele dava‑lhe a oportunidade de brilhar diante daquela que o cativava cada vez mais. Encorajado deste modo, foi perfeito ao evocar a cena nocturna, sem se esquecer do mais pequeno pormenor e, sobretudo, daquilo que se seguira: a estranha e breve visita de Alexandre à recente moradia Hulenberg.

Lisa escutou atentamente, mas não conseguiu evitar de observar com um meio sorriso:

‑ Escutar às janelas, isso é novidade! Não lhes conhecia essa maneira curiosa de tratar os amigos...

‑ Posso lembrar‑lhe que até hoje a condessa não nos tratava verdadeiramente como amigos? Agora, se aquilo que acabámos de lhe contar lhe parece motivo para chacota...

A mão da jovem veio pousar‑se na de Morosini:

‑ Não se zangue! O meu acesso de ironia despropositada é sobretudo devido ao facto de que sinto uma verdadeira angústia. O que descobriram parece‑me motivo para graves inquietações e é preciso avisar a avó. Quanto a mim, só estou parcialmente surpreendida, pois nunca gostei desse primo!

Levantou‑se com um movimento decidido, para se dirigir para a porta, mas Adalbert reteve‑a, segurando‑lhe na manga do roupão:

‑ Não seja tão apressada! Talvez se possa agir de melhor maneira.

‑ E qual, meu Deus? Eu quero que esse indivíduo saia já desta casa!

‑ De modo a que se nos escape por entre os dedos e que tenhamos todas as dificuldades do mundo para voltar a apanhá‑lo? ‑ escarneceu Aldo. ‑ Não raciocine como uma miúda impulsiva! Enquanto ele estiver aqui, pelo menos encontra‑se à mão de semear. Algo me diz que ele poderá levar‑nos até Elsa!

‑ Está a sonhar? Ele não tem grande inteligência, mas é manhoso como uma velha raposa...

‑ Talvez, mas as velhas raposas deixam‑se por vezes apanhar pelo sorriso de uma linda rapariga ‑ disse Aldo. ‑ Portanto, minha queridinha, trate de se mostrar charmosa para com ele, mesmo se...

Os olhos sombrios escureceram de cólera:

‑ Primeiro não sou a sua «queridinha» e, depois, não conseguirão que eu me mostre amável para com esse velho bode! Então não sabem que, com a idade que tem, ele pretende desposar‑me?

‑ Mais um?! Mas você é um verdadeiro perigo público!

‑ Não seja grosseiro! Se o meu charme pessoal não lhe parece suficiente, saiba que a fortuna de meu pai confere‑me todos os atributos da sedução. No fundo... nunca fui tão feliz como durante aqueles dois anos em que me disfarcei de Mina ‑ acrescentou, com uma amargura que sensibilizou Morosini, pois era um aspecto da questão que até agora lhe havia escapado.

Desolado por ter magoado Lisa, ia pegar‑lhe na mão quando, vindo das profundezas da casa, se ouviu o tinir do sino que anunciava o jantar:

‑ Vão lá jantar! ‑ suspirou Lisa. ‑ Ver‑nos‑emos mais tarde...

‑ Não vem connosco?

‑ Tenho uma óptima desculpa para evitar a presença de Golozieny. Aceitem que me aproveite dela!

‑ É muito compreensível ‑ disse Adalbert ‑ mas talvez não tenha razão. Com um homem da sua espécie talvez não fosse demais dispor de três pares de olhos e de ouvidos...

‑ Arranjem‑se com os vossos, mas não se esqueçam de me vir dar as boas‑noites antes de partirem!...

Se Lisa estava a contar desfrutar tranquilamente de um momento de reflexão solitária, enganava‑se redondamente. Mal acabara de falar, a sua avó entrou de rompante pelo quarto adentro.

A velha dama parecia muito emocionada. Alexandre seguia‑a como uma sombra.

‑ Olha o que Josef acaba de encontrar! ‑ exclamou, estendendo um papel a Lisa. ‑ Estava em cima da mesa de jantar, ao pé do meu prato. Na verdade, a audácia desses miseráveis não tem limites: eles chegam ao ponto de ousarem introduzir‑se em minha casa!...

A jovem estendeu a mão para pegar no bilhete, mas Morosini foi mais rápido e interceptou‑o. Um relance de olhos bastou‑lhe para decifrar a mensagem tão curta quanto brutal:

 

«Se quiser voltar a ver Mlle. Hulenberg com vida, tem de obedecer às nossas ordens e não deve prevenir a polícia sob nenhum pretexto. Prepare‑se para entregar as jóias amanhã à noite num local que lhe será indicado ulteriormente.»

 

‑ Tem alguma ideia em como isto veio aqui parar? ‑ perguntou Morosini, entregando o bilhete a Lisa.

‑ Nenhuma! Respondo tanto pelos meus criados quanto por mim mesma ‑ disse a condessa. ‑ No entanto, uma das janelas da sala de jantar estava entreaberta e Josef pensa...

‑ Que o papel entrou por aí? A menos que tenha vida própria, alguém teve de depositá‑lo. Permite‑me que vá dar uma vista de olhos? Adalbert fica em companhia destas senhoras ‑ acrescentou, lançando a Golozieny um olhar desprovido de qualquer emoção. ‑ Eu devo chegar para dar conta do recado...

Guiado pelo velho mordomo, foi até à grande sala onde estava tudo disposto para quatro pessoas, numa mesa comprida capaz de receber umas trinta, e constatou que os talheres da dona de casa eram os que estavam efectivamente mais perto da janela que permanecera aberta.

Sem dizer palavra, Morosini examinou cuidadosamente o local, debruçou‑se para o exterior para medir a altura e finalmente abandonou a sala depois de ter pedido a Josef que lhe encontrasse uma lanterna eléctrica. Deram ambos a volta à moradia, até se encontrarem precisamente por baixo da janela da sala de jantar.

Esta encontrava‑se situada ao mesmo nível que a varanda, mas sem comunicar com ela, o que tornava o acesso pelo exterior muito mais difícil. Com a ajuda da lanterna, Aldo pôde constatar que não havia qualquer sinal de escalada, ‑ com a humidade do tempo, quaisquer pés mais ou menos enlameados teriam deixado as suas marcas. Também não havia qualquer indício junto aos arbustos desguarnecidos de flores que circundavam a moradia. A convicção do investigador formara‑se logo que tivera o bilhete entre as mãos: este fora colocado por alguém da casa e, dado que não se podia desconfiar dos criados, só restava uma única pessoa cuja cumplicidade não permitia qualquer dúvida: Golozieny!

‑ Encontrou alguma coisa? ‑ perguntou a condessa, quando ele se juntou a ela no pequeno salão.

‑ Nada, minha senhora! Pelos vistos os seus inimigos devem dispor de algum génio alado... ou então, de algum cúmplice...

‑ É uma ideia que me recuso a encarar!

‑ Ninguém a pode forçar. Mas, no entanto, não acha que deve haver uma explicação?

‑ No que me diz respeito ‑ disse Golozieny, numa voz aflautada ‑ pergunto‑me se o senhor ou o seu amigo não a poderiam fornecer. Afinal de contas, os senhores não são os únicos estrangeiros aqui presentes?

‑ Para mim, não! ‑ interrompeu a voz glacial de Lisa, cuja silhueta, trajando desta vez um longo vestido de veludo verde, acabara de se enquadrar na ombreira da porta. ‑ Continue nesse tom, Alexandre, e deixarei de lhe dirigir a palavra!

‑ Não faria tal coisa, pois não, cara... muito cara Lisa? Sabe como a admiro, e...

‑ Também poderá admirá‑la à mesa! ‑ interveio a condessa. ‑ Minha querida, se bem entendi decidiste juntar‑te a nós?

‑ Sim e já pedi a Josef que pusesse os talheres para mim.

Com este prelúdio, o jantar decorreu como era de esperar: sinistro e silencioso. Como todos se embrenharam nas suas próprias cogitações, apenas se trocaram algumas palavras raras, até que Golozieny se aventurou a perguntar o que contava a prima fazer quanto à mensagem dos sequestradores.

Mme. von Adlerstein estremeceu como se ele a tivesse acordado, mas o olhar que lhe lançou estava pleno de fúria:

‑ Que pergunta estúpida! Que outra coisa posso fazer, a não ser obedecer e deve saber quanto detesto essa palavra! Por conseguinte, vou esperar por outra mensagem e depois...

As jóias foram retiradas do seu esconderijo por Josef e transportadas para aqui ao mesmo tempo que Lisa.

‑ Um momento, avó! ‑ disse Lisa. ‑ Antes de premiar essa gente pelo crime que cometeram, parece‑me que a mínima das coisas a fazer é certificar‑se que Elsa está mesmo viva. É muito fácil exigir e, depois, uma vez em posse do saque, desembaraçar‑se de uma testemunha incómoda... admitindo que não seja coisa já feita. Estamos a lidar com pessoas para as quais a vida humana não conta: para eles, um morto a mais ou a menos não tem qualquer importância.

‑ Que propões?

‑ Não tenho nenhuma ideia, mas uma coisa é certa: não devemos dizer nada à polícia. Aliás, ela parece‑me um pouco ultrapassada pela amplitude da tarefa e suponho que irá pedir auxílio a Viena. A este propósito ‑ acrescentou, voltando‑se para Golozieny ‑ e dado que o senhor vai sem dúvida regressar amanhã à capital, em vez de correr ao encontro das suas «altas relações» para que elas se mexam, espero que o senhor saiba manter‑se calado...

Ofuscado, o conde ergueu a barbicha do queixo até ela formar um ângulo recto com o seu magro pescoço.

‑ Não me julgue um imbecil, Lisa! Nada farei que possa incomodá‑la. Aliás, tenciono prolongar a minha estadia. Só a ideia de ter de vos deixar sozinhas a lidar com um problema tão grave é de molde a alterar‑me os planos. Tenciono velar por vocês... se o permitirem, claro... ‑ acrescentou, dirigindo um sorriso solícito na direcção da sua prima.

Esta respondeu‑lhe com um sorriso um pouco cansado, mas afectuoso:

‑ É muito gentil da sua parte! ‑ disse. ‑ Claro que poderá cá ficar tanto tempo quanto quiser. A sua dedicação comove‑nos a ambas...

Se a jovem parecia afectada por um sentimento qualquer, não era decerto pela gratidão e ainda menos pela alegria, mas Golozieny endereçou‑lhe um sorriso tão radioso como se ela lhe tivesse prometido a sua mão.

‑ Perfeito! Nesse caso, talvez pudéssemos pensar em abreviar este serão, não é verdade? Esta noite estamos todos cansados e, especialmente a nossa Lisa tem de descansar.

A mensagem era clara: «Está a pôr‑nos na rua ‑ pensou Morosini. ‑ Decididamente, incomodamo‑lo!...» Mas, ao levantar‑se da mesa, a condessa pareceu aprová‑lo e ainda reforçou esta impressão ao dizer:

‑ Confesso sentir‑me cansada. Se tiverem a amabilidade, meus senhores ‑ acrescentou, dirigindo‑se aos seus convidados ‑ vamos beber um café e depois separar‑nos‑emos até amanhã.

‑ Obrigado, mas para mim não, condessa! ‑ disse Adalbert. ‑ Bebo demasiado café e se tomar mais algum já não poderei dormir.

Por sua vez Aldo pediu autorização para se retirar mas enquanto Adalbert ‑ que adivinhara que ele precisava de um momento ‑ eternizava as suas despedidas efectuando um pequeno discurso a Mme. von Adlerstein e ao seu primo acerca das regras de etiqueta utilizadas no Antigo Egipto, Morosini foi ter com Lisa à galeria que dava para as salas de recepção:

‑ Tem a possibilidade de deixar aberta uma das portas da casa?

‑ Sim, acho que sim... a das cozinhas. Porquê?

‑ Quanto tempo é preciso para que estejam todos a dormir e a casa se encontre mergulhada no silêncio? Uma hora?

‑ É um pouco curto. É melhor duas, mas que conta fazer?

‑ Logo verá. Dentro de duas horas, iremos ter consigo ao seu quarto... E trate de arranjar uma corda!

‑ Ao meu quarto? Está louco?

‑ Eu disse «iremos» e não «irei»! Não tire conclusões indevidas e confie um pouco em mim! Agora, se preferir esperar na cozinha, não serei eu a impedi‑la... Adalbert! ‑ chamou em voz alta, sem qualquer transição. ‑ A nossa anfitriã precisa de descanso e não de uma conferência!

‑ É verdade! Sou imperdoável! Todas as minhas desculpas, cara condessa...

As três personagens apareceram quase de seguida na galeria e encontraram Morosini sozinho, com um cigarro na ponta dos dedos. Lisa eclipsara‑se como num sonho.

Para certificar‑se que eles se iam realmente embora, Golozieny acompanhou‑os até ao carro e, para lhe dar prazer, Adalbert pôs o motor a funcionar com o máximo ruído:

‑ Decidiste alguma coisa? ‑ perguntou conduzindo temerariamente pela escuridão do parque.

‑ Decidi. Voltamos cá daqui a duas horas. Lisa tratará de deixar a porta da cozinha aberta...

‑ E os cães? Pensaste nisso?

‑ Ela não falou deles. Talvez não os soltem quando há convidados. De qualquer modo, tomaremos as nossas precauções!

Estas consistiram num prato de carnes frias que, a pretexto de terem jantado mal, os dois compadres pediram que lhes levassem aos quartos. Para tornar a história mais verosímil mandaram acompanhá‑lo com uma garrafa de vinho, cujo líquido desapareceu em grande parte pela retrete abaixo. Uma hora depois, após terem trocado os smokings por roupas mais adequadas para uma expedição nocturna, deixavam discretamente o hotel, dirigindo‑se para a beira rio, onde Aldo estacionara o seu novo carro.

Foram dissimulá‑lo num pequeno bosque onde tinham anteriormente escondido o Amílcar, e prosseguiram a pé, cada um com um pacote de carne no bolso do sobretudo.

Não lhes serviu de nada, pois os cães não se mostraram. No entanto, não havia nenhuma luz acesa no pequeno castelo. Aliviados de um grande peso, encaminharam‑se prudente e silenciosamente para a porta das cozinhas. Menos silenciosa foi a recepção que os esperava, quando Morosini empurrou a porta de madeira, que não provocou o mínimo rangido:

‑ Espero que me felicite ‑ ouviu‑se a voz abafada de Lisa. ‑ Até me dei ao trabalho de olear as dobradiças...

Efectivamente, ela estava ali sentada num banco tal como o revelou a lanterna de furta‑fogo colocada em cima da mesa a seu lado, cujo vidro abriu. Também ela mudara de roupa: a saia de lã, a camisola de gola alta e os sapatos desportivos ressuscitaram um breve instante a defunta Mina no espírito de Aldo.

‑ Belo trabalho ‑ cochichou ‑ mas porque está aqui? Ainda não se recompôs e nós só precisávamos que nos indicasse o quarto do seu amigo Alexandre.

‑ Que lhe querem? Não vão... matá‑lo, pois não? ‑ perguntou Lisa, inquieta ao descobrir na voz habitualmente quente e um pouco velada de Morosini uma certa ressonância metálica que anunciava alguma resolução extrema. O riso abafado de Adalbert tranquilizou‑a:

‑ Quem julga que somos? Ele não merece certamente melhor, mas queremos apenas raptá‑lo.

‑ Raptá‑lo? Mas para o levar para onde?

‑ Para um canto tranquilo onde possamos interrogá‑lo longe dos ouvidos sensíveis ‑ disse Aldo. ‑ Confesso que contávamos um pouco consigo para descobrir um canto desses.

A jovem reflectiu um instante em voz alta, sem parecer minimamente afectada pelo projecto dos amigos:

‑ Existe a antiga selaria, mas fica muito chegada à nova e às cavalariças. O melhor seria a arrecadação do jardineiro. Mas mais vale preveni‑los desde já que Golozieny não está no seu quarto...

‑ Então para onde foi?

‑ Está algures no parque. Tem a mania dos passeios nocturnos. Mesmo em Viena, às vezes vai fumar um charuto sob as árvores do Ring. A avó sabe‑o e nunca se soltam os cães quando ele cá está. Foi uma sorte não terem esbarrado com ele ao chegar, pois podia gritar por socorro.

‑ Não teria nem piado e, pelo contrário, eu acho uma sorte ele estar lá fora. Já é coisa feita...

‑ O parque é grande. Esperam poder encontrá‑lo em plena noite? Adalbert, que começava a ficar ensonado, bocejou sem cerimónia, antes de suspirar:

‑ É certamente devido à convalescença, mas a sua brilhante inteligência não capta bem a situação. Não vamos correr atrás dele, vamos é esperar que ele venha ter connosco. Tem a corda?

Lisa apanhou‑a de um banco próximo e depois, sem rebater o discurso, fechou a porta da cozinha e conduziu os dois homens através da escuridão da casa até ao grande portão da entrada, na penumbra do qual foi fácil esconder‑se:

‑ Esta mania deambulatória não é curiosa num homem desta idade? ‑ observou Vidal‑Pellicorne. ‑ Sobretudo quando o tempo não está de feição a sonhar sob as estrelas!

‑ Não, é muito cómodo! ‑ disse Aldo entredentes. ‑ É um bom meio para falar com os seus cúmplices... mas, psiu! Parece‑me ouvi‑lo...

Aproximava‑se um passo tranquilo, sublinhado pelo rangido do cascalho. A ponta vermelha de um cigarro brilhou na escuridão antes de descrever uma curva graciosa quando o fumador a deitou fora. Ao mesmo tempo o passo acelerou, e pouco depois a silhueta do passeante recortou‑se na noite à entrada do portão. Era aí que Aldo o esperava: o seu punho partiu como uma catapulta. Atingido na ponta do queixo, Golozieny caiu sem dizer «ufa»...

‑ Belo golpe! ‑ apreciou Adalbert. ‑ Agora é embrulhar e levar...

‑ Não se esqueçam de amordaçá‑lo! ‑ aconselhou Lisa, apresentando um lenço feito numa bola e um lenço de pescoço...

Morosini riu calmamente enquanto agia:

‑ Minha cara Lisa, está a fazer progressos na senda do crime! Se nos quiser guiar...

Ela voltou a pegar na lanterna que evitara cuidadosamente esquecer, mas desta vez não abriu o caixilho:

‑ Por aqui! Previno‑os: é assaz longe e não lhes posso oferecer nenhuma maca...

‑ Revezar‑nos‑emos para transportá‑lo ‑ disse Aldo, colocando o corpo inerte ao ombro, na melhor tradição dos bombeiros.

Foram precisos dez bons minutos revezando‑se para chegar, no fundo do parque, a um pequeno grupo de casas baixas, protegidas por grandes árvores, e que não podiam ser avistadas do edifício principal por causa dos arbustos dispostos diante dele. Lisa abriu uma porta, libertou a luz da lanterna e entrou numa vasta arrecadação, mobilada com utensílios de jardinagem tão numerosos quanto diversos e admiravelmente arrumados. Colocou a lanterna em cima de uma bancada. Entretanto Morosini aliviava Adalbert do fardo que este carregara a meio caminho, estendendo‑o sem precauções excessivas sobre a terra batida. O conde soltou um gemido. Recobrara consciência e, por cima da mordaça, mostrava uns olhos cheios de cólera.

Aldo acocorou‑se ao pé dele e apontou‑lhe ao nariz o revólver que acabara de tirar do bolso:

‑ Como temos algumas perguntas a fazer‑lhe vamos retirar‑lhe a mordaça mas previno‑o que se gritar lamento muito, terei de mostrar‑me muito desagradável!

‑ De qualquer modo ‑ disse Lisa ‑ ninguém o ouviria, «caro» Alexandre. Portanto só lhe posso recomendar que responda a estas senhores o mais calmamente possível. É agora ou nunca a altura de mostrar os seus talentos de diplomata... Então, estamos de acordo? Nada de gritos?

O prisioneiro anuiu com a cabeça.

Logo a seguir Adalbert inclinou‑se por sua vez, desapertou o lenço de pescoço e libertou a boca do conde, enquanto Aldo contemplava, não sem certa surpresa, a nova faceta da sua antiga colaboradora: Lisa parecia entrar com facilidade na pele de uma justiceira fria, determinada e, talvez, implacável.

Também foi essa a impressão de Golozieny pois, não só não gritou, como tudo quanto conseguiu articular foi:

‑ Você, Lisa... a tratar‑me como a um inimigo?

‑ Trato‑o como serão tratados ‑ pior, espero! ‑ aqueles que raptaram Elsa Hulenberg e assassinaram os seus criados...

‑ E eu... inclui‑me nesse grupo?

‑ Se não é o caso ‑ interveio Morosini ‑ explique‑nos o que foi fazer, na noite do dia 6 para o dia 7 de Novembro, à moradia comprada por Mme. Hulenberg, e isso ao sair de um encontro, que queria secreto, neste mesmo castelo de Rudolfskrone?

O olhar que o prisioneiro ergueu para o seu acusador reflectia um medo sincero, mas pouco durou. Quase de imediato, as pesadas pálpebras enrugadas voltaram a descer:

‑ Pode colocar‑me todas as perguntas que quiser, não responderei a nenhuma...

 

     NA ARRECADAÇÃO DO JARDINEIRO

A declaração de Golozieny engendrou um minuto de silêncio que os outros protagonistas da cena empregaram apreciando‑o cada qual à sua maneira. O primeiro a reagir foi Adalbert:

‑ Uma atitude romana, meu caro! ‑ cacarejou ‑ mas espantar‑me‑ia que conseguisse conservá‑la muito tempo...

‑ Não vejo o que me poderia levar a modificá‑la.

‑ Oh, sim, e não vai demorar a aperceber‑se! Eu e o meu amigo Morosini não gostamos que as coisas se arrastem e, desde o «caldinho» que colocou tão obsequiosamente no prato de Mme. von Adlerstein estamos até inclinados para um certo nervosismo.

O protesto de Alexandre foi imediato e furioso:

‑ Não fui eu que coloquei o ultimato.

‑ Como não quer responder às nossas perguntas, não lhe perguntaremos quem foi e apenas consideraremos que o senhor é efectivamente o autor desta prenda envenenada. Da mesma maneira, consideraremos que é igualmente um dos autores do duplo crime de Halstatt e do rapto, seguido de sequestro, de uma mulher inocente. Por conseguinte, não temos nenhum motivo para não o tratar como a um culpado, o que lhe irá valer alguns dissabores.

‑ Eu não matei ninguém! Quem julgam que sou? Algum homem a soldo?

‑ O que o senhor é, acabámos de lhe dizer ‑ disse Aldo que compreendera o jogo do amigo. ‑ Portanto, responda‑me a uma simples pergunta: prefere morrer depressa ou devagar? Como não nos pode ser de qualquer utilidade e o tempo urge, eu votaria pessoalmente por um fim breve...

‑ Alto lá! Devagarinho! ‑ cochichou Vidal‑Pellicorne. ‑ Dada a gravidade do caso deste senhor, eu inclinar‑me‑ia antes para algo um pouco mais... elaborado. Sem chegar ao extremo de cortá‑lo em mil pedaços à moda chinesa, o que levava algumas horas, veria com bons olhos um suplício ao estilo de São Sebastião, adaptado aos tempos actuais. Podemos começar por uma bala no joelho, por exemplo, seguida por outra na anca... mais outra na barriga, e assim de seguida...

‑ Está doido? ‑ arquejou Golozieny. ‑ E você, Lisa, permite que este homem delire diante de si sem intervir? Mas é certamente porque tem a certeza que eles não farão nada de semelhante... Aliás, o ruído das detonações atrairia gente...

Lisa ofereceu‑lhe um sorriso cheio de malícia:

‑ Nesta região ouvem‑se disparos dia e noite. Quanto às ameaças de Adalbert, se fosse a si levava‑as a sério.

‑ Ora vamos! E de que é que lhes adiantaria matar‑me? Isso não lhes devolveria Elsa...

‑ Não, mas desembaraçaria esta terra de um homem falso, cúpido e profundamente aborrecido. Pelo meu lado só vejo vantagens ‑ concluiu a jovem.

‑ Mas se eu vos estou a dizer que não matei, nem feri, nem raptei fosse quem fosse! Você sabe quanto a estimo, Lisa. Que é preciso fazer para convencê‑la de que não sou o culpado?

‑ Dizer a verdade. Estou disposta a acreditar que não sujou as mãos com sangue mas quero saber, pormenorizadamente, qual foi o papel que desempenhou nesta história. E não procure mentir, se quiser que ainda lhe fale!

‑ Mas Lisa, juro‑lhe...

‑ Sobretudo, não jure nada! E fixe bem o seguinte: se se recusar a ajudar‑nos e no caso, muito improvável, em que o deixássemos vivo, saiba que a sua situação tornar‑se‑ia insustentável, pois o meu pai ‑ cujo poder financeiro o senhor não ignora e que além disso está de excelentes relações com o seu governo ‑ encarregar‑se‑ia disso. Compreendeu?

Golozieny inclinou a cabeça mas manteve‑se calado; era evidente que avaliava o que acabara de ouvir. A reflexão deve ter sido salutar, pois o olhar que ergueu na direcção de Lisa reflectia a submissão:

‑ Façam as vossas perguntas! ‑ exalou. ‑ Estou pronto a responder...

‑ Ora até que enfim, um pouco de sensatez! ‑ aplaudiu Morosini. ‑ Obrigado pela sua ajuda, Lisa! Agora comecemos: foi você quem depositou o bilhete?

‑ Fui. Ele foi‑me entregue esta tarde, enquanto andava à caça.

‑ Quais são precisamente as suas relações com Mrae. Hulenberg?

‑ Ouçam, se temos de discutir, gostaria que fosse sentado num desses bancos. Detesto estar deitado como um cão aos vossos pés...

Os dois homens acederam aos seus desejos e instalaram‑no onde ele queria, mas sem o libertarem da corda.

‑ Aqui está! ‑ disse Adalbert. ‑ Então, essa baronesa? Subitamente incomodado, Alexandre desviou a cara para evitar

o olhar de Lisa, de pé diante dele:

‑ Ela é minha amante... desde há três ou quatro anos. Como sabem, ela foi a segunda esposa do marido da ama‑de‑leite de Elsa e ela acha que as jóias desta deviam pertencer‑lhe enquanto herdeira do falecido Hulenberg. Jurou recuperá‑las...

‑ À custa de derramamento de sangue? ‑ perguntou Morosini com desdém. ‑ E o senhor achou natural ajudá‑la nessa obra criminosa? Que diabo lhe prometeu ela? Partilhar alguma coisa?

‑ Dar‑me um pequeno quinhão. As jóias são imensamente valiosas e, infelizmente, já perdi quase toda a minha fortuna. Além disso, só poderiam compreender se a vissem. Ela é uma... mulher muito bela, muito sedutora e confesso que me... enfeitiçou...

O riso de Lisa ecoou pela sala, desanuviando um pouco a atmosfera.

‑ O feitiço de que estava cativo não o impediu de me assediar com as suas homenagens... e de correr atrás do meu dote... É o que se chama um sentimento sincero!

‑ Claro! Todos os homens da nossa condição tiveram amantes antes de se apaixonarem por uma jovem e de procurarem desposá‑la...

‑ O senhor é um pouco velho para desposar uma jovem ‑ interveio Aldo. ‑ Regressemos à sua bela amiga: avistámos em casa dela um homem que conheço muito bem e que confesso não entender verdadeiramente o que vem aqui fazer. Trata‑se do conde Solmanski.

Uma verdadeira surpresa, misturada com algo parecido com a esperança desenhou‑se nos traços imóveis de Golozieny:

‑ Conhecem‑no?

Morosini encolheu os ombros e fez desaparecer a arma que se tornara inútil.

‑ Quem se pode gabar de conhecer um homem daqueles? Já o encontrámos vezes demais para a nossa paz interior, mas é curioso que ele apareça, como por acaso, nos locais e endereços onde há jóias fabulosas e que tente sempre apropriar‑se delas pelos meios menos ortodoxos. Dito isto, volto à minha pergunta: que faz ele em Ischl e na residência desta baronesa?

‑ Tudo! Ele faz tudo! ‑ soltou o prisioneiro, com uma raiva feita certamente de ódios acumulados. ‑ Ele é o mestre! Reina!... Desde que chegou, Maria só tem ouvidos para ele! É ele quem ordena, quem decide, quem... executa! os outros só têm direito a ficar calados e a dobrar a espinha!

‑ Curioso! ‑ observou Adalbert. ‑ Mas a que título? O de chefe de quadrilha? O de general? Ele não caiu do céu em cima da casa dessa mulher uma bela manhã sem se anunciar, proclamando a sua soberania sem mais nem menos...

‑ Não. Maria já me falara várias vezes do irmão, mas não o imaginava assim!

‑ Do irmão? ‑ perguntaram os dois homens ao mesmo tempo.

‑ Sim! Maria é polaca, mas durante muitos anos nunca mencionou a sua família... Creio que se tratava de uma disputa. E depois, subitamente, falou‑me dela. Foi no ano passado, na altura daquele processo que causou tanta celeuma em Inglaterra, a propósito da morte de Eric Ferrais. Maria ficou perturbada e foi então que me falou dessas pessoas...

‑ E antes de ter desposado Hulenberg, ela não se chamava Maria Solmanski?

‑ Penso que sim... não vejo como poderia ser de outra forma... Morosini e Vidal‑Pellicorne trocaram um rápido olhar. Eles viam

muito bem como as coisas podiam ter um aspecto diferente, dado que Solmanski era russo e nada tinha de polaco, e que o seu verdadeiro nome era Ortschakoff. Portanto, havia muito a apostar em como os laços entre ele e a baronesa ‑ admitindo que esta fosse polaca! ‑ fossem de uma natureza que não tinha grande coisa a ver com a fraternidade...

Aliás, nesse mesmo instante, Lisa dava a sua opinião pessoal:

‑ Tenho de perguntar à minha avó, mas nunca a ouvi dizer que a madrasta de Elsa fosse estrangeira...

‑ Pelo momento isso tem um interesse secundário. O que conta é a própria Elsa. Temos de encontrá‑la e depressa! Suponho ‑ acrescentou Morosini, voltando‑se para o prisioneiro ‑ que sabe qual o seu paradeiro?

Este não respondeu e até cerrou os lábios, num gesto de defesa assaz pueril dadas as circunstâncias:

‑ Oh não! ‑ exclamou Aldo, enfastiado e voltando a pegar na arma ‑ o senhor vai recomeçar? Ou se decide a falar ou juro‑lhe que não hesitarei em disparar!

‑ Um momento ‑ interrompeu Adalbert. ‑ Ainda lhe quero dizer uma palavra. Depois, farás dele tudo o que quiseres. Se bem o entendi, o meu caro conde não morre de amores por Solmanski, pois não? Diria até que tem medo dele. Verdade ou não?

O outro lançou‑lhe um olhar de homem a afogar‑se:

‑ É verdade! Odeio esse homem! Sem ele, teríamos alcançado os nossos propósitos sem derramamento de sangue, mas ele é um bárbaro...

‑ Então, mude de campo! ‑ propôs Lisa. ‑ Não é demasiado tarde. Diga‑nos onde Elsa está presa e quando entregarmos os seus cúmplices à polícia, esquecê‑lo‑emos. Terá tempo para escapar...

‑ Para ir para onde? ‑ exclamou o conde, reencontrando a sua raiva de há pouco. ‑ Terei perdido o meu quinhão da venda das jóias...

‑ Uma parte que não pode estar de forma alguma seguro de receber ‑ interrompeu Aldo. ‑ Solmanski não gosta de partilhar!

‑ ... e também perderia a minha posição, pois teria de fugir.

‑ Talvez possamos arranjar isso ‑ reatou Lisa. ‑ No pior das hipóteses o meu pai poderia dar‑lhe uma compensação. Resta saber quanta estima tem pela sua amante! Se gosta mesmo dela, a proposta também o deve angustiar, não é?

‑ Só a desejo a si! Era para si que queria refazer a minha fortuna. Contrariamente ao que julga, eu desposá‑la‑ia mesmo sem dote, se assim o desejasse.

‑ Bravo! ‑ aplaudiu Adalbert. ‑ Ora aqui está um sentimento, uma prova de amor puro! Enfim... não completamente, se levarmos em consideração os meios utilizados. Mas estamos a perder‑nos: onde está Mlle. Hulenberg?

‑ Vamos, fale! ‑ ordenou Lisa, vendo que se esboçava uma nova hesitação. ‑ Senão, juro‑lhe que dentro de uma hora estará nas mãos da polícia...

‑ E não em muito bom estado! ‑ acrescentou Morosini, aproximando do joelho de Golozieny o cano preto do seu revólver. O seu olhar implacável era prova de que não estava a brincar. O conde emitiu uma espécie de gorgolejar aterrorizado, os olhos rolaram‑se‑lhe pelas órbitas. Mas o seu instinto dizia‑lhe que não estava a tratar com assassinos e que, portanto, se se aguentasse...

A sua última esperança desvaneceu‑se quando, vinda da entrada da arrecadação, se ouviu uma voz glacial ordenando:

‑ Dispare, príncipe! Este triste senhor já o fez esperar demais... Apesar do seu roupão interior e do facto de ter uma das mãos

apoiada na bengala e a outra no braço de Friederich von Apfelgrune, coberto com uma capa de lã verde dos pés à cabeça, Mme. von Adlerstein parecia‑se muito com a estátua do Comendador. Ao reconhecê‑la, Golozieny soltou um gemido de dor. Se esperara conservar uma oportunidade desse lado, ela acabara de esfumar‑se.

‑ Como é que a avó veio aqui parar? ‑ perguntou Lisa.

‑ Não é a ti que a pergunta devia ser feita, pequena? Devias estar na cama... Quanto à nossa presença comum ‑ acrescentou com um olhar severo para o sobrinho‑neto ‑ ela deve‑se inteiramente a este caro Fritz. Como é seu costume, chegou sem nos ter prevenido e a uma hora impossível. Para não ter de dormir no exterior, acordou toda a casa e foi então que da janela do meu quarto reparei que havia um pouco de luz aqui. Ordenei‑lhe que me acompanhasse e foi deste modo que pudemos ser as testemunhas discretas de uma cena muito interessante. Ao menos por uma vez, Fritz, os teus disparates terão servido para alguma coisa.

‑ Obrigado, tia Vivi!... Corre tudo bem, Lisa?

‑ Optimamente! Como vês... mas se formos interrompidos todos os cinco minutos, nunca saberemos onde Elsa está prisioneira...

Com uma pequena saudação, Aldo ofereceu a sua arma à velha dama:

‑ Afinal de contas ele é seu primo, condessa. A honra é toda sua!

Ela já segurava no revólver com mão firme, quando Golozieny capitulou:

‑ Ela está numa casa perto de Stobl, no Wolfgangsee, mas posso assegurar‑lhes que não é tratada como uma prisioneira. Ela até foi para lá de sua própria iniciativa...

‑ E a quem quer fazer acreditar nisso? ‑ exclamou Aldo. ‑ Por sua própria iniciativa, passando sobre os cadáveres dos seus próximos? Então, está completamente louca?

‑ Não, digamos que já não tem os pés bem assentes na terra. Bastou dizer‑lhe que o seu cavaleiro a mandara chamar, que a procurava e que os seus criados estavam ali apenas para impedir que se reunissem.

‑ E não tem ninguém a guardá‑la?

‑ Claro que tem! Ao pé dela está uma mulher que a serve e os dois criados que Solmanski trouxe consigo velam dia e noite por ela.

‑ Mas, enfim... ‑ disse a condessa. ‑ Então ela não se apercebeu que o seu amigo não foi ao encontro marcado? Ou o senhor encontrou esse Rudiger e também o contratou para a sua obra criminosa?

‑ Teríamos grande dificuldade em fazê‑lo: ele já faleceu, em consequência dos ferimentos, pouco depois do fim da guerra... mas eu já conhecia o romance dele com Elsa muito antes que mo tivesse contado. Rudiger era um dos melhores agentes de Francisco José...

‑ Diga «o Imperador», quando fala dele! ‑ interrompeu Mme. von Adlerstein, que acrescentou com um máximo de desprezo: ‑ Não reconheço a um malandro da sua espécie o direito a tratá‑lo unicamente pelo primeiro nome. Agora, o resto! Qual a proveniência das cartas que transmiti a Elsa? E olhe para mim, se faz favor! Quando se enganaram as pessoas dessa maneira, tem de se ter a coragem para enfrentar os seus olhares.

Muito lentamente, como se receasse ser fulminado quando os seus olhos cruzassem o olhar fulgurante da prima, Golozieny ergueu a cabeça:

‑ Não me atormente mais, Valérie! Confesso‑lhe tudo o que quiser e, sobretudo, que fui um instrumento nas mãos de Maria Hulenberg. Era... era eu que escrevia as cartas. O que não era difícil, pois tinha encontrado na chancelaria alguns exemplares da escrita de Rudiger. Queríamos apanhar Elsa para pôr as mãos nas jóias. ‑ Mas ela só trazia a Águia com a opala.

‑ Sim, mas teríamos obtido as outras, graças ao meio que acabámos de empregar. Infelizmente, até aqui o rapto não funcionou. Apanhámo‑la à saída da Ópera... mas ela escapou‑se‑nos. Quanto ao que me diz respeito, o que eu devia obter de si era o sítio onde ela se encontrava, mas a senhora era boa guardiã e não era possível vigiá‑la durante todo o dia.

‑ E dizer que é do meu sangue e que eu tinha confiança em si!

‑ exclamou a velha dama, voltando‑se enojada.

Lisa foi ao seu encontro e abraçou‑a:

‑ Devia voltar para dentro, avó!

‑ Tu também! Mas antes, quero saber o que faremos de Alexandre. Julgo que o melhor é chamar a polícia.

‑ Sobretudo, não faça isso! ‑ disse Aldo. ‑ É preciso que os seus cúmplices não saibam que ele se encontra nas nossas mãos. O melhor é conservá‑lo prisioneiro até que tudo tenha acabado. Primeiro, temos algumas perguntas a colocar‑lhe. Nem que seja acerca da localização exacta da casa. O que ele nos contou parece‑me um pouco vago...

‑ Oh! ‑ reatou Fritz ‑ eu ser capaz de encontrar! Eu conhecer região admirável!

‑ Pelo amor de Deus, fala em alemão, Fritz! ‑ exclamou Lisa.

‑ Só por si, a situação já é difícil, para que tenhamos ainda de decifrar o teu francês macarrónico!

‑ Se assim o entendes ‑ resmungou o jovem desiludido mas a verdade é que conheço praticamente cada cantinho de relva da região. Lembra‑te! Os meus pais tinham uma casa aqui quando eu era criança. Foste lá várias vezes.

Efectivamente, ele não teve qualquer dificuldade em reconhecer a descrição do local, o que pareceu enchê‑lo de satisfação, pois isso ia permitir‑lhe brilhar aos olhos da sua bela.

‑ Sei exactamente onde fica ‑ exclamou, lançando um olhar de vencedor na direcção da prima. ‑ Podemos ir até lá imediatamente! São apenas uma dezena de quilómetros...

Dada a situação, era de esperar qualquer tipo de manifestação da parte do prisioneiro, menos a de ouvi‑lo rir. Um riso que, na verdade, era um tanto cavernoso:

‑ Se forem, arriscam‑se a provocar uma catástrofe. A casa está armadilhada...

‑ Armadilhada? ‑ perguntou Adalbert. ‑ Como assim?

‑ Da forma mais simples: se a polícia ou quaisquer visitantes demasiado curiosos decidirem aproximar‑se da casa, as pessoas que guardam a vossa Elsa mandá‑la‑ão pelos ares com uma bomba de relógio que lhes dará tempo para fugirem pelo lago...

A sensação de horror que se apoderou de todos, traduziu‑se num profundo silêncio. As duas mulheres olhavam para aquele homem que lhes era aparentado com uma espécie de repulsa.

‑ Nesse caso, como é que não nos disseram nada no pedido de resgate?

‑ Mas irão dizer‑lhes, sem precisar o local, na mensagem que receberão amanhã à noite... ou antes, esta noite...

‑ Mensagem que o senhor vai sem dúvida entregar‑nos, não é?

‑ Que eu estou efectivamente encarregue de entregar, depois de a ter recuperado em certo local. Creio que ainda vão precisar de mim.

O tom tornava‑se insolente, até trocista. O homem recuperava a sua segurança, decidido a negociar o que lhe podia restar como destino. Todos perceberam muito bem, mas quem se encarregou da resposta foi a velha dama.

‑ Cabe‑lhe a si ver de que lado terá mais a ganhar.

‑ E posso desde já certificá‑lo ‑ prosseguiu Morosini ‑ que do lado dos seus amigos não terá nada a ganhar! Se é que essa possibilidade alguma vez existiu, dado que agora tem de se haver com Solmanski.

‑ Entretanto ‑ gemeu Apfelgrune, bocejando de tal maneira que parecia querer desarticular o queixo ‑ temos de acabar a noite aqui?

‑ Não ‑ decidiu a condessa ‑ Vamos levar este homem de volta ao castelo onde será guardado à vista até ao desfecho deste drama. Cavalheiros ‑ acrescentou, voltando‑se para o italiano e para o francês ‑ gostaria, caso fosse possível, que ficassem connosco. Visto que ainda não o podemos entregar à polícia, creio que a vossa ajuda nos é indispensável.

Enquanto se inclinava, declarando‑se ao seu inteiro dispor, Aldo pensou que se houvesse necessidade de uma rainha algures na Europa ou noutro lado, aquela mulher poderia desempenhar esse papel muito melhor que qualquer outra, mesmo nascida nas escadarias de um trono.

Emanava dela aquele fluido soberano que atrai a dedicação, a tal ponto que, quanto a ele, chegava a esquecer‑se da opala para pensar apenas em agradar soberanamente àquela grande dama. Adalbert devia partilhar o mesmo sentimento pois, ao partir para o hotel buscar o necessário para uma breve estadia, avisando que se iam ausentar, murmurou ao amigo:

‑ Ora aqui está uma noite que contará na minha vida. Tenho a impressão de ter mudado de século e de me encontrar na pele de um paladino dos tempos antigos. Vejo‑me bem numa armadura de prata, cavalgando um corcel branco e empunhando uma espada esplendorosa! Temos de libertar uma princesa cativa... e perder qualquer esperança de reencontrar a opala! Mas, curiosamente, isso é‑me completamente indiferente...

 

Na manhã do dia seguinte, Morosini decidiu ir localizar a casa que Fritz pretendia poder indicar e isso apesar do tempo horrível que se instalara desde as quatro da manhã. Um verdadeiro dilúvio inundava a paisagem, misturando formas e cores, circunstância que iria permitir ao seu pequeno Fiat cinzento, de capota colocada, passar despercebido. O mesmo acontecia aos passageiros: vestidos de cabedal, de capacete e grandes óculos, era impossível reconhecê‑los, quer a ele quer a Fritz:

‑ Mantenha os olhos bem abertos! ‑ recomendou Aldo ao seu companheiro ‑ pois só atravessaremos a estrada uma única vez. Descobri um caminho talvez um pouco agreste, mas que nos permitirá regressar aqui sem grande dificuldade.

Encantado no seu foro interior com a atmosfera tensa, misteriosa, que reinava em Rudolfskrone e, mais ainda, por poder compartilhá‑la com Lisa, o jovem garantiu que daria bem conta do recado. E, efectivamente, ao passar Strobl, designou sem hesitação um edifício construído parcialmente sobre estacas, e situado no troço de estrada na ponta de Purglstein:

‑ Veja, é ali! Impossível enganar‑me. Aquela barraca já foi construída há bastante tempo por um pescador empedernido, que se teria instalado no meio do lago se tivesse ousado.

‑ Digamos que é também um homem de gosto! Escolheu um dos mais belos cantos de um lago cheio deles.

O lago de São Wolfgang é talvez o mais aprazível de todos os que emolduram o interior da região de Salzburgo e, apesar das rajadas de chuva que obrigavam Aldo a limpar regularmente o pára‑brisas com um braço, o seu charme permanecia intacto. Quanto à casa castanha e larga, de fundações na água e com as traseiras no meio das margaridas outonais e dos pequenos crisântemos amarelos, era daquelas que despertam a vontade de parar um momento para contemplá‑las.

‑ Que sítio mais curioso para manter alguém preso ‑ pensou em voz alta. ‑ Esperar‑se‑ia algo menos agradável. Estava mais inclinado a pensar que a baronesa a teria fechado na cave...

Pôde então verificar que às vezes Fritz também sabia raciocinar convenientemente:

‑ Se for também para colocar uma bomba, é melhor escolher um sítio um pouco mais longe. Além disso, isto aqui está isolado e não deve ser possível aproximar‑se da casa sem ser visto. Não há sequer um arbusto no jardim...

‑ É bem verdade e devia ter pensado nisso. Devo começar a ficar velho...

‑ Ah, quanto a isso, infelizmente não há nada a fazer! ‑ suspirou o jovem com uma convicção que lhe teria valido um olhar sombrio, se Morosini não estivesse obrigado a manter os olhos na estrada sinuosa, deslizante e plena de buracos.

‑ Regressemos! ‑ grunhiu. ‑ É preciso saber se há novidades. Havia.

O sistema de correspondência utilizado por Golozieny e pelos seus cúmplices era dos mais simples e remontava à noite dos tempos: uma reentrância numa árvore situada na extremidade do parque, onde era incrivelmente simples colocar ou retirar um bilhete. Como o diplomata viera para caçar, fora assim que descobrira o bilhete depositado e, à noite, enquanto efectuava o seu passeio nocturno, pudera anunciar aos seus cúmplices que as coisas decorriam a preceito sem imaginar sequer um instante que pesada nuvem iria proximamente rebentar‑lhe em cima.

Como, desde que fora feito prisioneiro, estava fora de questão deixá‑lo à solta pelo parque de espingarda ao ombro, Adalbert pegou no seu fato de caça, desceu até às sobrancelhas o chapéu enfeitado com uma pena e ergueu a gola, apertada por um lenço de pescoço que saía da ampla capa de lã impermeável que cobria o conjunto. Com a chuva que caía era pouco provável que alguém se desse ao trabalho de observar‑lhe os gestos e os actos, mas era sempre aconselhável tomar mais algumas precauções... Lisa, que conhecia a árvore em questão desde a infância, serviu‑lhe de guia, vestida de rapaz, desempenhando o papel de um criado encarregue de transportar as espingardas.

A expedição foi breve. Não encontraram vivalma, descobriram o que tinham vindo buscar e, como a chuva redobrava de violência, apressaram‑se em regressar ao castelo, fazendo de caçadores desgostosos por um tempo tão mau.

A mensagem, destinada a ser depositada na secretária de Mme. von Adlerstein, era um pouco mais explícita que a primeira e desta vez mencionava o esperado encontro. E continha ainda uma surpresa: cabia a Golozieny escoltar a sua prima Valérie, que devia trazer o resgate em troca do qual entregariam Elsa à sua protectora. Este último pormenor teve o condão de exceder Aldo:

‑ Incrível! E tão cómodo! Se não tivéssemos desmascarado Alexandre, tudo decorreria como ouro sobre azul para essa gente. Recuperariam o cúmplice e só lhes restaria irem‑se tranquilamente embora, para partilharem o magote. Sem contar que talvez pedissem ainda um resgate para devolver ulteriormente o inefável primo, promovido a refém!

‑ A sua imaginação italiana está a pô‑lo fora dos eixos, meu caro príncipe ‑ disse a velha dama. ‑ Para este infeliz é muito mais vantajoso continuar a desempenhar o seu papel de parente afectuoso, visto que acarinhava a esperança de poder um dia desposar Lisa.

‑ Está fora de questão ‑ interrompeu esta ‑ deixá‑la ir sozinha com ele pois, nesse caso, talvez fosse a avó a ser raptada, sabendo muito bem a fortuna que eu e o meu pai estaríamos dispostos a pagar pela sua libertação...

‑ Esteja tranquila, ela não irá sozinha ‑ reatou Morosini. ‑ Visto que o encontro é a alguns quilómetros daqui, será preciso ir de carro. A sua grande limusina parece‑me muito apropriada, pois poderei esconder‑me nela...

‑ E eu? ‑ protestou Adalbert. ‑ Que faço? Vou deitar‑me?

‑ Também não devem esquecer‑se de mim ‑ disse Fritz.

‑ Não me esqueço de ninguém. Creio que somos em número suficiente para conseguir salvar Mlle. Hulenberg e as suas jóias pondo cobro, pela mesma ocasião, às actividades de um verdadeiro bandido. Se bem entendi, o local escolhido para a troca fica perto do lago de São Wolfgang; portanto, não muito longe da casa que localizámos há pouco.

‑ É isso ‑ disse Lisa. ‑ Como eles ignoram que sabemos onde Elsa está escondida, preferem que não seja nem perto da moradia da baronesa, nem de nós. Além disso e, caso ocorresse uma surpresa desagradável, a beira do lago permitiria escapar por um ou outro lado, mesmo de barco...

‑ Não procures esmiuçar demasiado todas as más hipóteses ‑ disse Mme. von Adlerstein ‑ Visto que nos devolvem Elsa, o melhor é obedecer‑lhes.

Lia‑se uma grande lassidão nos seus traços, a ponto de Lisa se propor a desempenhar o seu papel, para lhe evitar a última prova que ela teria de enfrentar nessa noite, mas ela recusou:

‑ Não temos o mesmo perfil, minha querida. Tu és demasiado alta! Vou descansar um pouco e espero poder desempenhar condignamente a minha parte neste horrível concerto. Antes de mais, é preciso salvar Elsa... a qualquer preço! E que se dane se ela tiver de perder as jóias! É melhor do que perder a vida e talvez a deixem então tranquila! Fixe bem isto, príncipe, e não corra riscos desnecessários.

‑ Tranquila? E como julga a avó que ela ficará quando vier a saber que Franz Rudiger morreu?

‑ Ela já assim o julgou durante muito tempo e faremos tudo para lho esconder. Suponho ‑ acrescentou a velha dama com uma tristeza amarga ‑ que doravante ela poderá ouvir O Cavaleiro da Rosa sem correr mais perigo...

Morosini pensou que ainda não tinham chegado a esse ponto... Durante a tarde o chefe de polícia de Salzburgo apresentou‑se no castelo, na esperança de conseguir fazer avançar um inquérito que os seus subordinados não sabiam como pegar, devido ao silêncio absoluto que se tecera em seu redor. Primeiro, a pedido do burgomestre de Hallstatt e, depois, a pedido de Mme. von Adlerstein, a imprensa fora mantida à distância e como, na aldeia, ninguém vira nada, cada um achava mais prudente não dizer nada... admitindo que houvesse algo a dizer.

As esperanças do alto funcionário depositavam‑se portanto em Lisa, testemunha de primeiro plano. Ela recebeu‑o no pequeno salão da avó, estendida numa chaise longue, com uma expressão de convalescente e com um cobertor sobre os joelhos, mas ele não conseguiu obter grande coisa. É certo que ela se sentia melhor, mas só podia repetir o que já dissera: ao ter ido passar alguns dias a casa de uma antiga amiga de sua mãe que vivia muito retirada, tivera a horrível surpresa de ver a casa ser invadida por homens mascarados e armados, que abateram os criados de Fraulein Staubing e se escapuliram depois de terem raptado esta última e de terem considerado aquela como morta. Uma aventura deste tipo ultrapassava o seu entendimento e não conseguia chegar a perceber de onde viera um ataque tão brutal quanto inesperado.

‑ Essa gente veio para roubar, mas por que motivo raptaram aquela pobre mulher? ‑ choramingou, à laia de conclusão.

‑ Certamente na esperança de obter um resgate, dado que a dita dama era considerada como pessoa rica. Não recebeu nenhuma notícia?

‑ Não, e a minha avó poderia dizer‑lhe o mesmo. Ela está adoentada e peço‑lhe que não vá incomodá‑la agora que está a descansar. Navegamos ambas no meio do mais espesso nevoeiro. Estamos tão desoladas uma quanto a outra, Herr Director da Polícia. E muito inquietas.

‑ Não se atormente mais, pois eu estou aqui! ‑ afirmou o enorme senhor que era tão alto quanto gordo. Enchera o peito, encantado por operar no seio da alta aristocracia. Lisa receava que ele mandasse colocar homens em todos os cantos da casa, mas contentou‑se apenas em oferecer‑lhe o seu cartão‑de‑visita recomendando‑lhe que não hesitasse em chamá‑lo à menor novidade. Contudo, foi com genuíno alívio que ela o viu partir...

Já passava das onze da noite, quando o Mercedes da condessa, conduzido por um Golozieny mais morto que vivo, deixou Rudolfskrone mergulhado na escuridão. Aproveitando o facto de se ter levantado um vento violento ao fim da tarde, Mme. von Adlerstein ordenara que se apagassem as luzes todas logo que os criados tivessem regressado aos seus aposentos.

Pouco depois, ao volante do Fiat de Aldo, Adalbert saía por sua vez em companhia de Fritz. Iam ambos tomar posição num local que foi discutido durante muito tempo antes do jantar com Morosini. Só Lisa ficara na residência, muito contrariada, guardada por Josef. Espantoso bom senso que foi difícil de obter. Fora preciso Aldo gastar tesouros de eloquência para convencê‑la a manter‑se afastada mas, perante a inquietude que ele manifestava, Lisa acabara por ceder.

‑ Preciso de ter o espírito livre para pensar com clareza ‑ suplicou‑lhe, desesperando por dissipar a ruga de uma testa obstinada e as nuvens de um olhar tempestuoso. ‑ E nunca o poderei fazer se tiver de me atormentar consigo. Tenha pena de mim, Lisa, e compreenda que ainda não está em estado de correr uma aventura tão perigosa!

Ela cedeu bruscamente, mas ele não adivinhou que a sua mão firme e calorosa, que se pousara nessa mesma altura no ombro da jovem, acabara por convencê‑la muito mais do que qualquer longo discurso.

O local de encontro situava‑se à beira da floresta: uma encruzilhada de caminhos, assinalada por uma dessas capelinhas ao ar livre, como se vêem nas regiões montanhosas: uma estacaria de madeira colocada verticalmente e sustendo um pequeno alpendre albergando uma imagem santa ou um crucifixo. Neste caso era uma estátua de São José, santo padroeiro da Áustria, que reinava sobre uma vasta paisagem. Longe de qualquer habitação, era um local ermo...

O grande carro preto parou. Apagaram‑se os faróis que tinham sido acesos ao chegar à estrada.

Golozieny deixou deslizar as mãos do volante, retirou as luvas e pôs‑se a esfregar os dedos gelados, todavia sem conseguir fazer parar o seu tremor. Presentemente o silêncio e a noite cercavam‑no, sem lhe trazerem a menor tranquilidade. Como esquecer a velha dama vestida de preto que ocupava o banco traseiro, tão direita e altiva como se se dirigisse para uma recepção na corte? E, sobretudo, como esquecer que, abrigado pelo cobertor estendido sobre os seus joelhos, o príncipe Morosini, armado até aos dentes, estava agachado a seus pés pronto a abatê‑lo ao menor gesto suspeito, à menor palavra...

Era realmente a primeira vez que se sentia cansado e velho. Sabia que logo que o Sol se levantasse, nada restaria das esperanças em enriquecer que acalentara tanto tempo.

Sentiu que algo se mexia nas traseiras do seu banco. O italiano devia ter‑se soerguido para deitar uma vista de olhos às redondezas. A voz sumida de Vilérie murmurou:

‑ Não vejo nada. É mesmo o local indicado?

‑ É, efectivamente ‑ ouviu dizer a sua própria voz ‑ mas estamos um pouco adiantados...

Baixou um dos vidros para deixar entrar o ar fresco da noite e para tentar discernir um ruído de motor, mas só ouviu um cão ladrar ao longe e, depois, a voz de Morosini dizendo:

‑ Desta vez são mesmo onze e meia. Como é possível que ainda não tenham chegado?

Na altura precisa em que acabava de falar, acendeu‑se uma lanterna debaixo das árvores, aproximadamente a cinquenta metros, que logo se apagou para voltar a acender‑se.

A atenção daqueles que estavam à espera foi atraída por estes breves clarões e, deste modo, não viram duas personagens saindo da parte de trás do resguardo em que se apoiava o oratório. Quando se aperceberam da sua presença, eles já estavam diante do pequeno santuário.

Havia um homem alto e uma mulher cuja silhueta pareceu familiar a Morosini: o seu porte e as roupas compridas eram os do fantasma que ele pudera ver no jazigo dos Capuchinhos em Viena. A condessa confirmou imediatamente:

‑ Vejam! Chegaram... e ali está a Elsa! Vamos, Alexandre!

Ela abriu a porta e desceu do lado menos visível do carro, o que permitiu a Aldo deslizar para o solo aproveitando a sombra das suas saias. Sem a fechar, ela avançou até diante do radiador, enquanto Golozieny se lhe juntava, depois de ter pegado num saco de viagem colocado a seu lado:

‑ Então? ‑ gritou a velha dama. ‑ Aqui estamos! Que devemos fazer?

Respondeu‑lhe uma voz de homem com um sotaque estrangeiro que Morosini julgou reconhecer como pertencendo a Solmanski:

‑ Fique onde está, condessa! Dado que a senhora estaria disposta a pôr a sua vida em jogo se a polícia estivesse prevenida, só solicitámos a sua presença como garantia. Até pode regressar ao carro...

‑ Não sem Mlle. Hulenberg! Trouxemos o que pediram.‑ devolvam‑no‑la!

‑ Daqui a um momento. Aproxime‑se conde Golozieny! Venha até aqui!

‑ Atenção! ‑ sussurrou‑lhe Aldo. ‑ Sabe o que o espera caso pretenda juntar‑se‑lhes. E cuide‑se, porque tenho olhos de gato: não falharei...

Golozieny encolheu os ombros, pleno de lassidão e depois de lançar um olhar angustiado à sua prima, começou a andar lentamente, arrastando um pouco os pés. Morosini pensou que ele tinha o ar de alguém que vai para o cadafalso e quase lamentou ter proferido a última ameaça. Era um homem esmagado...

O emissário tinha uns trinta passos a dar para chegar junto aos outros dois. O desconhecido segurava no braço da sua companheira como se receasse que ela caísse ou que lhe escapasse. Aliás, ela não se mexia.

‑ Pobre Elsa! ‑ murmurou a condessa. ‑ Que tortura!

Golozieny aproximava‑se agora do sequestrador e, subitamente, o drama eclodiu. Largando a mulher, Solmanski tirou‑lhe o saco com as jóias e, em seguida, revelando o cano preto de uma pistola, abateu o diplomata à queima‑roupa. O infeliz caiu sem soltar qualquer grito, enquanto o seu assassino ia ter com a mulher que entretanto se escondera atrás do alto declive. Ouviu‑se então uma gargalhada de troça.

Compreendendo demasiadamente tarde que o carro dos bandidos estava muito mais perto do que antes imaginara, Morosini não perdeu nem um segundo: empunhando a arma, desatou a correr, mas ao chegar à esquina do resguardo cheio de ervas apanhou com o feixe luminoso de poderosos faróis em plena cara. Ao mesmo tempo, o carro arrancou a toda a velocidade e ele teve de se deitar para trás para não ser atropelado. Levantou‑se de um pulo, disparou, mas a viatura já não se avistava, tendo‑se afastado a toda a velocidade na direcção da estrada. Tudo o que lhe restava fazer era tentar persegui‑los com o carro da condessa. Mas quando regressou na direcção do pequeno monumento, encontrou esta ajoelhada ao pé do seu primo, procurando reanimá‑lo.

‑ É inútil, condessa, ele está morto! ‑ disse Morosini que se acocorara um momento para examinar rapidamente o corpo.

‑ Nada mais podemos fazer por ele, a não ser apanhar o seu assassino...

‑ Mesmo assim, não vamos deixá‑lo aqui, pois não?

‑ Pelo contrário, é a única coisa a fazer. A polícia deve encontrá‑lo na posição em que está. Nunca se deve mexer no cadáver de uma pessoa assassinada!

Não querendo ouvir mais nada, ele levou‑a consigo, fê‑la entrar no carro e pôs este em movimento.

‑ Eles levam muito avanço. O senhor não... não conseguirá apanhá‑los... ‑ disse a velha dama, com a respiração cortada pela emoção.

‑ E por que não? Adalbert e Friederich devem esperá‑los no cruzamento da estrada de Ischl a Salzburgo... Em todo o caso, Elsa não perdeu tempo para mudar de opinião. Curiosa a maneira como recuperou as suas jóias! Se está a imaginar que lhas deixarão...

‑ Mas aquela mulher, não era Elsa! Apercebi‑me disso ao ouvi‑la rir. Foi certamente a Hulenberg que a substituiu.

‑ Tem a certeza?

‑ Absoluta! Havia dois ou três pormenores aos quais não prestei atenção, mas que... Meu Deus! Onde é que ela poderá estar?...

‑ Onde quer que esteja? Na casa do... Bolas! Há algum atalho para chegar à beira do lago?

Uma ideia horrível acabara de ocorrer a Morosini, tão terrífica que lhe provocou um gesto brusco que quase lhe foi fatal. Lançada a toda a velocidade, a viatura guinou e foi mesmo à justa que se endireitou ao passar pela curva seguinte. No entanto, a passageira não gritou. Quando falou a sua voz tremia apenas ligeiramente:

‑ Sim... vai encontrar... à direita, há um carreiro com uma barreira partida que continua até um pouco acima de Strobl, mas está longe de se encontrar em estado praticável...

‑ Creio que a senhora saberá suportar isso! ‑ disse Aldo, com um sorriso no canto dos lábios. ‑ Quase a matei e a senhora nem se mexeu. A senhora é mesmo alguém, condessa!

O que se seguiu foi um pesadelo que prestou grandes honras à solidez do automóvel, lançado naquilo que mais parecia um carreiro de cabras. Pulando, saltitando, aos solavancos, sacudindo os seus ocupantes como ameixas em Agosto, ele efectuava uma dança que se assemelhava à de um cavalo de rodeo, aterrando finalmente na pequena estrada do lago, onde Morosini acelerou mais que nunca: já se avistava a pequena torre que sobrepujava a casa onde queria chegar.

Um minuto depois, parava o veículo a uma certa distância do jardim selvagem e corria para o exterior, gritando à sua companheira:

‑ Sobretudo, não saia daí! Ouviu‑me?

Não havia nenhuma luz nas janelas mas, com a porta grande aberta, batendo a cada rajada de vento, o edifício tinha o ar de ter sido abandonado precipitadamente e Aldo temia conhecer o motivo. Contudo, não hesitou: benzeu‑se rapidamente e precipitou‑se para o interior...

O tiquetaque da relojoaria que detectou, ampliado pelo pavor, encheu‑lhe os ouvidos.

‑ Elsa! ‑ chamou. ‑ Elsa! Está aí?

Respondeu‑lhe um fraco gemido. Orientando‑se pelo som avançou pelas trevas ‑ não havia electricidade ‑ até esbarrar em algo mole, quase lhe caindo em cima. Encontrara o que procurava. Solmanski e o seu bando não só tinham abatido Golozieny, como também tinham condenado a inocente a uma morte atroz. ‑ Não tenha medo! Vim buscá‑la...

As suas mãos apalpavam uma grande quantidade de cobertores, atados de modo a que fosse impossível à ocupante levantar‑se ou mesmo arrastar‑se até à porta. Aldo trazia uma faca consigo, mas o ruído de relojoaria continuava presente e ele temia perder um tempo precioso. Arrastou então o corpo embrulhado por entre dois móveis, até à entrada e, erguendo‑o à custa de um violento esforço ‑ Elsa era alta e tinha o seu peso! ‑ conseguiu levá‑la às costas, que se vergaram sob a carga. Finalmente chegou ao exterior, durante um momento julgou não conseguir ir mais longe: o seu coração batia descompassadamente e sentia‑se asfixiar. Porém, o tempo escoava. Agarrou um momento os ramos de uma estaca, procurou reencontrar a respiração, conseguiu‑o e, depois de uma ou duas inspirações fortes, lançou‑se para a frente, a direito, pensando apenas em afastar‑se o mais possível da casa em perigo e em alcançar o carro cuja silhueta podia avistar a uma distância que lhe parecia enorme.

Chegou a pensar que nunca lá chegaria mas, subitamente, viu um rochedo apenas a uma vintena de metros.

Era preciso alcançá-lo, resguardar‑se atrás dele e, aí, desatar a infeliz que, se calhar, estava prestes a ficar asfixiada. Descobriu novas forças e, apertando os dentes, retesou todos os músculos e correu, subindo um curto declive cuja erva molhada deslizava sob os seus pés; segurou‑se a um punhado de gramíneos, puxou, empurrou, e conseguiu cair por detrás do rochedo com a sua companheira, pois esta permanecera totalmente inerte durante a penosa travessia do jardim.

Para libertá‑la dos pedaços de lã que a apertavam, puxou da faca e começou a cortar as tiras... na altura em que estas cederam, uma violenta explosão rasgou a noite e ele deitou‑se sobre a mulher, num gesto instintivo para melhor a proteger. O céu iluminou‑se, tornando‑se vermelho como um desses ocasos que anunciam o vento. Morosini esticou o pescoço para olhar por cima do rochedo. A casa deixara de existir. No seu lugar, um enorme feixe de chamas e de faíscas parecia brotar das águas do lago.

Quase logo a seguir, ouviu uma voz angustiada que o chamava. A condessa devia julgá‑los mortos.

‑ Estamos salvos! ‑ gritou‑lhe. ‑ Não tenha medo! Trago‑a de volta...

Presentemente, a cabeça, cujos cabelos deslizavam pelas mãos de Aldo, estava liberta. A luz do incêndio permitiu ao salvador distinguir os traços finos e delicados de uma mulher de aproximadamente quarenta anos. Traços de grande beleza, cuja semelhança com a defunta imperatriz Élizabeth o perturbou mas, ao mesmo tempo, descobriu porque Elsa apenas se mostrava velada: só um dos lados do seu encantador rosto permanecera intacto. O outro tinha uma longa cicatriz que lhe ia da comissura dos lábios até à têmpora. Aldo lembrou‑se então que não era a primeira vez que ela escapava a um incêndio.

Subitamente, ela abriu os olhos. Dois lagos de penumbra que uma alegria repentina fez cintilar:

‑ Franz! ‑ murmurou. ‑ Finalmente, chegou!... Eu bem sabia que ia revê‑lo...

Ela estendeu as mãos, quis soerguer‑se, mas este esforço ultrapassou as poucas forças que lhe restavam, pois desmaiou novamente.

‑ Bom ‑ resmungou Aldo. ‑ Só nos faltava mais isto!

Felizmente, o seu breve enfraquecimento dissipava‑se. As forças haviam‑lhe regressado e como era melhor não demorar, pegou no seu fardo e tratou de subir na direcção da estrada, onde Mme. von Adlerstein avançava ao seu encontro:

‑ Conseguiu? Louvado seja Deus! Mas que risco correu, meu rapaz!

‑ Penso que é o resultado das suas preces, condessa! Por ora, se quiser ter a amabilidade de me abrir a porta do carro, isso auxiliar‑me‑á. Nunca supus que uma heroína de romance pudesse ser tão pesada!

A velha dama apressou‑se a obedecer, não deixando porém de se inquietar:

‑ Ela não sofreu demasiado? Pensa que está boa?

‑ Tão bem quanto possível, pelo que me foi dado ver ‑ suspirou Aldo, depondo a mulher inconsciente no banco traseiro. ‑ Pelo menos quanto ao capítulo físico. É o mental que mais me inquieta.

‑ Porquê?

‑ Chamou‑me Franz... Parecer‑me‑ei com esse mítico Rudiger? Surpreendida, a condessa olhou mais atentamente para o seu

companheiro:

‑ Ele era como você, alto e moreno, mas quanto ao resto, não tinha reparado em nada. Além disso, usava bigode... Não, na verdade, não se parece nada com ele. Em todo o caso ele era menos sedutor que o senhor.

‑ A senhora é muito amável mas, se não se importar, discutiremos esse assunto mais tarde. Já é mais que tempo de a levar de volta...

‑ E de prevenir a polícia. Deus sabe como esses cavalheiros vão acolher um aviso tão tardio!

Morosini ajudou‑a a sentar‑se, acomodando as pregas das suas longas roupas, e não respondeu logo. Só quando se instalou ao volante é que declarou:

‑Julgo que o cavalheiro que veio de Salzburgo já está um pouco ao corrente.

Ela indignou‑se imediatamente. ‑ O senhor ousou? Era insensato...

‑ Não. Era uma precaução que era melhor tomar e que, assim espero, terá permitido prender o bando de assassinos.

‑ Como procedeu?

‑ É muito simples! Quando o homem de Salzburgo...

‑ Ele chama‑se Schindler!

‑ Muito bem. Portanto, quando ele deixou Rudolfskrone após o seu encontro com Lisa, deparou com Adalbert... Tranquilize‑se, esse Schindler é um homem mais inteligente do que parece. Já percebera que a senhora estava a ser vítima de uma chantagem. O seu papel teve de se limitar a mandar pôr barreiras na estrada de Salzburgo, enquanto Adalbert e Fritz se encarregavam da via de regresso a Ischl. Evidentemente, Vidal‑Pellicorne não fez a menor alusão ao papel desempenhado pelo conde Golozieny. Agora ele está morto e a sua memória sairá indemne desta aventura.

‑ Pensa que se os seus cúmplices foram apanhados, eles não irão denunciá‑lo?

‑ Nesse caso como explicar que eles tenham achado útil abatê‑lo sem a menor explicação? Vão encontrar‑se numa posição delicada. Sobretudo, se acrescentarmos ainda a explosão da casa...

Aliás, por causa desta, Morosini foi obrigado a abrandar. As pessoas acorriam das quintas mais próximas e também de Strobl, de onde chegava um carro de bombeiros fazendo tinir uma campainha frenética.

À entrada de Ischl, encontraram um ajuntamento formado pelo Fiat, pelos seus ocupantes e pelo carro do director Schindler, acompanhado por mais dois ou três polícias. Ao ver chegar Morosini, Adalbert correu ao seu encontro, fulo de raiva:

‑ Ficámos de mãos a abanar, amigo! Deram‑nos a volta como a umas crianças!

‑ O quê? Não puderam interceptar esses miseráveis?

‑ Nem nós, nem a polícia... É de chorar.

‑ É sobretudo idiota. Não viram nada ou quê?

‑ Oh, sim! Vimos a senhora baronesa Hulenberg regressar de um pequeno jantar em São Wolfgang, acompanhada pelo seu motorista. Ela mostrou‑se muito graciosa: até nos autorizou a revistar‑lhe o carro. Onde, claro, não encontrámos nada, sobretudo, nenhumas jóias!

‑ No estado actual das coisas ‑ interveio Schindler ‑ nada temos contra ela e vimo‑nos obrigados a deixá‑la prosseguir caminho até casa.

‑ E o terceiro malandrím, o que aconteceu àquele que há meia‑hora abateu friamente o conde Golozieny quando este se aprestava a entregar‑lhe as jóias? O senhor devia dar uma volta lá acima, e verificar o cruzamento de São José, Herr Director da Polícia! Há um cadáver fresquinho...

O polícia afastou‑se para transmitir algumas ordens, enquanto Aldo reatava amargamente:

‑ O terceiro era Solmanski, tenho a certeza. Deve passear algures na natureza com o saco de jóias. A sua querida amiga deve tê‑lo apeado num canto tranquilo...

‑ É possível que tenha tomado a via‑férrea que corre ao longo do Wolfgangsee e que atravessa dois túneis antes de chegar a Ischl. O de Kalvarienberg mede 670 metros. De qualquer modo vou mandar revistá‑lo, mas sem grande esperança, ‑ disse Schindler que ouvira tudo. ‑ Pode ter‑se escondido aí durante um momento, para depois fugir. Se é um desportista...

‑ É um homem dos seus cinquenta anos, mas julgo que está em boa forma. Mesmo assim, não acha que devia interrogar a baronesa pois, ao que parece, ela é sua irmã? De qualquer modo ‑ acrescentou Morosini, acerbamente ‑ nenhum de nós parece preocupado com a refém dessa gente...

‑ Segundo vejo, eles devolveram‑ta? ‑ perguntou Adalbert, endereçando uma pequena saudação à condessa, sentada no banco de trás e sustendo Elsa, que parecia dormir.

‑ Foi menos simples do que julgas! A propósito, Herr Schindler, o senhor não ouviu uma explosão há pouco?

‑ Ouvi, e já enviei alguém. Era para os lados de Strobl?

‑ Era a casa em que esta infeliz mulher estava prisioneira. Graças a Deus, pudemos tirá‑la de lá a tempo! Cavalheiros, se isso não os aborrecer, vou levar Mme. von Adlerstein e a sua protegida até Rudolfskrone. Tanto uma como a outra precisam de repouso e Lisa deve estar louca de inquietude...

‑ Ande! Ver‑nos‑emos mais tarde! Mas vou precisar de uma descrição pormenorizada desse tal Solmanski.

‑ O senhor Vidal‑Pellicorne fornecer‑lhe‑á uma das mais precisas. E a baronesa, ela não terá algumas fotografias dele?

‑ Oh, isso espantar‑me‑ia ‑ disse Adalbert. ‑ Um homem que já é procurado pela Scotland Yard não deve deixar as suas efígies

pelos salões...

Sem ouvir mais, Morosini pôs o carro em andamento e alguns minutos mais tarde chegava ao castelo que desta vez estava iluminado como para uma festa. Encoberta numa grande capa verde, Lisa andava de um lado para o outro diante da casa. Parecia muito calma; contudo, quando Aldo parou e desceu, ela lançou‑se‑lhe nos braços, a chorar...

 

           UM ENCONTRO E UM ENTERRO

Adalbert afastou a chávena de café, acendeu um cigarro e pôs o cotovelo na mesa, depois de afastar a sua madeixa com um gesto maquinal.

‑ E agora, que fazemos?

‑ Pensamos ‑ respondeu Aldo.

‑ Até agora, isso não nos tem levado muito longe...

Os dois companheiros tinham regressado ao hotel às primeiras horas da manhã. A presença deles em Rudolfskrone, para onde Mme. von Adlerstein conseguira que trouxessem o corpo do seu primo de volta depois da autópsia, já não era apropriada e talvez se tivesse tornado até incomodativa. E havia também Elsa, cujo estado nervoso necessitava de cuidados intensivos, antes que pudesse responder às perguntas do comissário Schindler.

Aldo fez um sinal ao criado para que lhe servisse mais um café e, enquanto esperava, acendeu também um cigarro.

‑ Não, não tem, e é uma pena. A lógica mandar‑nos‑ia correr atrás de Solmanski, mas desde que soubéssemos onde o procurar.

Até então não havia notícias nem do conde nem das jóias, e era este último ponto que mais os atormentava: doravante a opala estava nas mãos do pior inimigo de Simon Aronov!

‑ Sempre podemos esperar um pouco ‑ suspirou Adalbert, exalando uma longa espiral de fumo. ‑ Este Schindler está‑nos agradecido por o termos prevenido. Talvez apanhemos alguma coisa do seu inquérito.

‑ Talvez.

Aldo não acreditava nisso. O seu moral estava em baixo. Apesar de ter tido a sorte de salvar Elsa, tinha uma penosa sensação de falhanço: o Coxo quase lhe pusera na mão a pedra procurada; ele tinha‑la mostrado, confiando que a apanhasse, o que ele se revelara incapaz de fazer. Pior ainda! Talvez fossem as próprias buscas dele e de Vidal‑Pellicorne em Hallstatt que tivessem mostrado aos assassinos o caminho para a casa do lago... E esta ideia era‑lhe insuportável. Mas como teria ele podido saber que Solmanski já se encontrava metido no âmago da história? E através da irmã, ainda por cima! Aquele homem tinha de ser o diabo em pessoa!

‑ Nada de exageros! ‑ disse Adalbert que parecia ter seguido pelo rosto do amigo o trajecto do seu pensamento. ‑ Não é mais que um infiel talentoso e capaz do pior, mas isso já nós sabíamos...

‑ Como sabes que pensava em Solmanski?

‑ Não é difícil de adivinhar! Quando os teus olhos se tornam esverdeados, geralmente não é quando te estás a recordar de um amigo... ou de uma amiga. Aliás não compreendo porque motivo estás com essa cara! O acolhimento de Lisa esta noite foi até... reconfortante, não foi?

‑ Por se ter lançado nos meus braços? Oh!. tinha os nervos arrasados e fui eu o primeiro a chegar. Se tu ou o Fritz me tivessem precedido, seriam vocês que teriam beneficiado desse momento de fraqueza...

‑ A primeira coisa a fazer é prevenir Simon. Talvez ele consiga desencantar Solmanski. Vou telegrafar para o seu banco de Zurique.

Estava a levantar‑se da mesa para executar o seu projecto, quando um paquete se aproximou da mesa e estendeu a Aldo uma carta numa bandeja de prata. No interior desta havia apenas quatro palavras: «Venha. Ela reclama‑o. Adlerstein.»

‑ Mais tarde irás aos correios ‑ disse, estendendo o bilhete ao amigo.

‑ É a ti que chamam. Não a mim ‑ disse este com uma nota de tristeza que não passou despercebida.

‑ No espírito da condessa trata‑se de nós dois. Quanto à... princesa ‑ desde que lhe vira o rosto, Aldo não conseguia mais chamá‑la Elsa! ‑ tu mereces tanto a sua gratidão quanto eu. Vamos!

Ao chegarem ao castelo, encontraram Lisa no alto da grande escadaria. O seu severo vestido preto surpreendeu‑os:

‑ Vai andar de luto? Por causa de um primo afastado?

‑ Não, mas até ao funeral de amanhã, é o mais correcto. Excepto nós, o pobre Alexandre não tem mais familiares. Portanto, a avó dispensou‑lhe uma campa no cemitério... Adalbert, você vai ser obrigado a fazer‑me companhia ‑ acrescentou, sorrindo para o arqueólogo. ‑ Elsa quer encontrar‑se a sós com aquele a quem chama Franz. É muito natural...

Havia nas suas palavras uma nota de tristeza que não escapou a Morosini:

‑ É sobretudo uma grande insensatez! Segundo a sua avó, eu não me pareço com esse homem. Por que não a desenganaram?

‑ Porque ela sofreu demasiado ‑ murmurou a jovem, de lágrimas nos olhos ‑ E se eu até lhe pedir para que continue o jogo, para que não lhe revele o seu erro?...

‑ Quer que eu me comporte como se fosse seu noivo? ‑ perguntou Aldo, estarrecido. ‑ Mas nunca o conseguirei!

‑ Tente! Diga‑lhe... que é obrigado a regressar a Viena, que... que tem de ser operado, ou que... tem de cumprir outra missão mas, por piedade, não lhe diga quem é. Eu e a avó tememos o momento em que saberá que ele morreu. Ela está tão fraca! Quando tiver recobrado forças, então será mais fácil. Compreende?

Ela pegara nas duas mãos de Aldo e apertava‑as nas suas, como para lhes comunicar a sua convicção, a sua esperança. Num gesto pleno de doçura, ele libertou‑se, mas foi para pegar nos dedos da jovem e levá‑los aos lábios:

‑ Que advogada não daria, minha cara Lisa! ‑ disse com o seu meio sorriso impertinente, para dissimular a emoção. ‑ Bem sabe que farei o que quiser, mas terá de rezar: eu nunca tive qualquer talento para comediante...

‑ Pense no que foi a vida dele, olhe bem para ela... e, depois, deixe falar o seu coração generoso! Tenho a certeza de que se sairá às mil maravilhas! Josef vai anunciá‑lo: ela está no pequeno salão da avó que lhe serve de escritório.

Lisa ia pegar no braço de Adalbert para levá‑lo consigo, mas Aldo reteve‑a.‑

‑ Mais uma palavra... indispensável! Rudiger estava ao corrente das suas origens mais que principescas?

‑ Estava. Ela não queria que ele ignorasse o que quer que fosse a seu respeito. Segundo sei, ele tratava‑a com uma certa deferência. É uma atitude que não poderia pedir a qualquer pessoa, mas você é o príncipe Morosini e as rainhas não lhe fazem medo.

‑ A sua confiança honra‑me. Farei o melhor possível para não a desiludir...

Momentos depois, Josef anunciava:

‑ A visita que Vossa Alteza espera!

Depois desapareceu, inclinando‑se. Aldo avançou, subitamente nervoso como se aquela porta desse para um palco de teatro e não para um pequeno salão decorado de seda bege e aquecido pelas chamas de uma lareira. Apesar do seu à‑vontade mundano, teve de forçar‑se para transpor a entrada. Nunca imaginara encontrar‑se um dia numa situação tão delicada. Por isso, logo que o seu primeiro passo fez ranger a madeira do soalho, optou por inclinar‑se diante da imagem que só entrevira :

‑ Madame!‑ murmurou, numa voz de tal modo enferrujada que o teria divertido noutras circunstâncias e noutro local.

Respondeu‑lhe um pequeno riso fresco e ligeiro:

‑ Quanta solenidade, meu amigo... Entre! Entre!... Temos tanto que falar!

Ao soerguer‑se, teve a impressão de ter uma dupla visão: o perfil da mulher que o acolhia, sentada numa poltrona ao canto da lareira, assemelhava‑se ao do busto de mármore colocado a alguns passos dela: mesmo desenho, mesma alvura. Naquela noite, a dama da máscara rendilhada de preto, o sombrio fantasma da cripta dos Capuchinhos, estava agora vestida de branco: cobria‑a um vestido de lã fina e um lenço de musselina esbranquiçada colocado na sua cabeleira com as tranças em coroa caía‑lhe de maneira a só deixar ver a metade intacta do rosto. Uma das mãos de Elsa brincava com o ligeiro lenço que levava por vezes diante da boca, enquanto estendia a outra ao visitante... Este teve de acabar por avançar. No entanto, sentia crescer o seu incómodo e mal‑estar, talvez devido ao tom íntimo que a estranha mulher utilizava. Pegou na mão que lhe era estendida, inclinando‑se sem ousar todavia beijá‑la.

‑ Perdoe a minha emoção! ‑ conseguiu finalmente murmurar. ‑ Tinha perdido a esperança de voltar a vê‑la, senhora...

‑ Você fez‑se esperar, mas como lastimá‑lo agora Franz, dado que soube ultrapassar os seus males para voar em meu socorro, livrando‑me das garras da morte...

Desconcertado por um momento, Aldo lembrou‑se que era suposto ter cruel e longamente sofrido das consequências da guerra.

‑ Graças a Deus estou melhor e acorria ao seu encontro quando uma voz secreta me conduziu para o local onde estava cativa.

‑ Não pensava estar prisioneira, pois tinham‑me prometido levar‑me para um local onde me esperava. Foi só ontem à noite que senti o medo chegar... que compreendi. Oh, meu Deus!

Perante o terror que surgira subitamente no belo olhar sombrio, ele emocionou‑se, puxou de um banco junto à poltrona e pegou novamente na mão que, desta vez, tremia:

‑ Esqueça, Elsa! Você está viva e isso é tudo o que conta! Quanto àqueles que ousaram atacá‑la e fazer‑lhe mal, pode ter a certeza que farei todo o possível para que recebam o castigo que merecem.

Os olhos regressaram à sua serenidade e acariciaram‑no.

‑ Meu eterno cavaleiro!... Você foi o cavaleiro da rosa e agora regressa‑me na armadura brilhante de Lohengrin.(1)

‑ Com a diferença que não tem de perguntar como me chamo...

‑ E que não se irá embora? Pois nós não nos separaremos mais, não é verdade?

Havia uma nota imperiosa na voz que não escapou a Aldo, mas ele já esperava por essa pergunta. Lisa também lhe soprara uma resposta:

‑ Não por muito tempo. Contudo tenho de regressar brevemente a Viena, a fim de... concluir o tratamento médico que sigo há meses. Sou um homem doente, Lisa!

‑ Não tem ar disso! Nunca o vi tão belo! E que boa ideia teve de cortar o bigode! Em compensação, eu mudei muito ‑ acrescentou, com azedume.

‑ Não creia nisso! Está mais bela que nunca...

‑ Verdade?... mesmo com isto?

 

*1. Lohengrin, filho de Perceval e cavaleiro do Santo Graal, ao acorrer em socorro de Elsa do Brabant, atacada pelos seus vassalos, acaba por desposá‑la mas obrigando‑a a jurar que nunca lhe perguntará o seu nome, Como Elsa não cumpriu o seu juramento, Lohengrin volta a partir no bote puxado pelo cisne que o havia trazido.

 

Os dedos que desde há pouco brincavam nervosamente com o véu branco, afastaram‑no bruscamente, enquanto Elsa voltava a cabeça para que ele visse melhor a ferida, espreitando o sobressalto que temia e que não ocorreu.

‑ Isso não tem nada de terrível ‑ disse, com suavidade. ‑ Além de que não ignorava o que teve de sofrer.

‑ Mas não tinha visto nada! Continua a achar que seja possível amar‑me?

Ele considerou um momento o brilho aveludado dos grandes olhos castanhos, o monte sedoso dos cabelos penteados em diadema, a fineza dos traços e a nobreza natural que punha uma espécie de auréola em volta daquele rosto ferido.

‑ Senhora, palavra de honra que não vejo nada que a isso se oponha. A sua beleza foi atingida, mas o seu charme talvez tenha aumentado. Parece mais frágil e, portanto, mais preciosa, e quem já amou outrora, só poderá amá‑la ainda mais...

‑ Então, continua a amar‑me?... Apesar disto?

‑ Não cometa a injúria de duvidar da minha palavra. Apanhado, sem se aperceber, neste jogo estranho e por aquela

mulher ainda mais estranha, mas quão poética, Aldo não tinha qualquer dificuldade em pôr na sua voz o eco de um sentimento caloroso. Naquele momento amava Elsa, confundindo sem dúvida o seu desejo em salvá‑la por todos os meios e a atracção natural de um coração generoso por um ser a um tempo belo e infeliz.

Elsa acabara de deixar cair a cabeça nas suas mãos. Aldo compreendeu que ela chorava, certamente de emoção, e preferiu manter‑se calado. Foi ela quem falou:

‑ Como fui estúpida, meu Deus, e como o conhecia mal! Tinha medo... tanto medo, cada vez que ia à Ópera! Medo de o horrorizar! Mas sentia um tal desejo, uma tal necessidade em voltar a vê‑lo... uma última vez!

‑ Uma última vez?... Porquê?

‑ Por causa deste rosto. Dizia a mim mesma que ao menos teria a felicidade de vê‑lo, de tocar na sua mão, de ouvir a sua voz... e depois, ter‑nos‑íamos separado marcando um encontro... ao qual eu nunca compareceria. E, durante todo o nosso encontro, eu teria recusado erguer a mantilha rendilhada que tão bem me protegia... e que intrigava tanta gente!

‑ O quê? Sem mesmo lhe... me permitir que contemplasse esses olhos esplendorosos? Quando os vemos, não vemos mais nada!...

‑ Que quer?... é preciso admitir que era estúpida...

Ela ergueu a cabeça, limpou os olhos com um pequenino lenço e, depois, por força de hábito, compôs novamente o lenço de musselina, mas sorriu:

‑ Lembra‑se daquele poema de Henrich Heine, que me recitava quando passeávamos na floresta vienense?

‑ A minha memória já não é o que era ‑ suspirou Morosini, que não sabia grande coisa da obra do romântico alemão, pois preferira Goethe e Schiller... ‑ Houve uma altura em que cheguei a perdê‑la completamente.

‑ Não se pode ter esquecido! Ele era o «nosso» poeta, como o era da mulher que mais venero no mundo ‑ acrescentou, voltando o seu olhar húmido para o busto da imperatriz. ‑ Vejamos! Tente comigo!

 

     Tens diamantes, tens pérolas

     E tudo o que se possa desejar...

 

‑ Então? A continuação, tão natural, não vos ocorre? Transtornado, Aldo fez um gesto de impotência, esperando que

seria uma desculpa válida.

‑ Vou prosseguir um pouco, tenho a certeza que se recordará do resto dos versos:

 

     Tens os mais belos olhos do mundo

     Que mais queres, minha amada?

 

Como ele continuava sem dizer nada, ela prosseguiu sozinha, até à última estrofe:

 

     Esses lindos olhos, os mais belos do mundo

     Fizeram‑me passar pelo martírio

     E despedaçaram‑me.

     Que mais queres, minha amada...

 

O silêncio que se seguiu, pesou sobre Aldo que não encontrava mais nada para dizer, mas que começava a maldizer Lisa.

Como é que ela pudera embarcá‑lo nesta aventura insensata sem lhe fornecer a mínima arma? Pelo menos, podia ter‑lhe indicado os gostos, os hábitos de Elsa! Devia haver naquela vasta casa uma antologia das obras de Heinrich Heine! Sentia‑se pior que incomodado: estava profundamente embaraçado e procurava desesperadamente algo de inteligente a dizer, mas como Elsa parecia perdida no seu sonho, optou por se calar e esperar que ela regressasse à realidade. Subitamente, ela voltou‑se para ele:

‑ Se continua a amar‑me, por que não me beijou ainda?

‑ Talvez por ter consciência da minha inferioridade. Depois de todo este tempo, a senhora voltou a representar para mim a princesa longínqua de quem mal ousava aproximar‑me...

‑ Não me ofereceu a rosa de prata? De certa forma, estávamos noivos...

‑ Eu sei, mas...

‑ Nada de mas! Beije‑me!

Desta vez ele não hesitou mais e lançou‑se à água. Abandonando o assento, pegou nos punhos de Elsa para fazê‑la levantar‑se e abraçou‑a. Não era a primeira vez que beijava uma mulher sem estar apaixonado. Nessas ocasiões, tratava‑se de um momento de ligeira volúpia, como quando respirava uma rosa ou deixava errar os dedos pelo grão liso de um mármore grego. Ao debruçar‑se para a boca que lhe era oferecida, pensou que seria a mesma coisa, que bastaria entregar‑se com toda a naturalidade. E, no entanto, foi diferente, porque queria a todo o custo oferecer um instante de pura felicidade àquela mulher que sentia vibrar de encontro a ele. O seu próprio prazer não tinha importância: o que contava era que ela fosse feliz, e esta necessidade de uma dádiva que sentia dentro de si transmitiu um calor inesperado ao seu beijo. Ela gemeu enquanto todo o seu corpo se abandonava.

Pelo seu lado Aldo sentiu uma embriaguez ligeira. Os lábios que estava a violar eram doces e o perfume a lírio silvestre e a tuberosa que respirava, mesmo que fosse um tanto inebriante para o seu gosto, não deixava de surtir efeito. Talvez tivesse ousado ir mais longe se uma pequena voz seca não tivesse vindo interromper o encantamento.

‑ Peço‑lhes que me desculpem ‑ disse a voz calma de Lisa, mas o seu médico chegou, Elsa, e não posso fazê‑lo esperar. Quer recebê‑lo?

‑ Eu... sim, com certeza! Oh, caro... tem de me desculpar!

‑ A sua saúde antes de tudo... Vou‑me embora.

‑ Mas voltará, não é verdade? Voltará brevemente?

De repente ela estava febril, com algo semelhante à angústia no fundo dos olhos. Aldo sorriu‑lhe, beijando‑lhe a ponta dos dedos:

‑ Quando me chamar.

‑ Amanhã, então! Oh, vou pedir a esta cara Valérie que nos ofereça um jantar de gala: íntimo, mas soberbo... temos de festejar as nossas novas núpcias...

‑ Amanhã será difícil ‑ interrompeu Lisa, impávida. ‑ Temos de assistir a um funeral. Mesmo que se trate apenas de um primo, não vamos dar uma festa na própria noite do enterro...

Divertido, Morosini pensou que a sua antiga secretária, empertigada e inflexível no seu vestido preto, no ombro do qual caíam uns caracóis rebeldes, ficava muito bem no seu papel de desmancha‑prazeres mas, aparentemente, ela não compartilhava o seu humor folgazão.

‑ Parabéns! ‑ disse, quando se encontraram os dois na galeria, depois de ela ter feito entrar o médico. ‑ Para um papel que não desejava ter, desempenhou‑o na perfeição! Que fuga! Que verdade!

‑ Se está satisfeita, isso é o principal mas, precisamente, pergunto‑me se estará tão contente quanto isso? Não parece ser o caso...

‑ Não acha que podia ter sido mais reservado? Ao menos num primeiro encontro?

‑ Quem fala de um primeiro encontro? Parece‑me que antes de Rudiger ter desaparecido, eles já se tinham encontrado por várias vezes e nenhum de nós sabia o que se passava nessas alturas.

‑ Onde quer chegar?

‑ Mas... a uma evidência. Depois de um momento de conversa, Elsa espantou‑se que eu ainda não a tivesse beijado: limitei‑me a satisfazer‑lhe o pedido...

‑ Com grande prazer, ao que me foi dado ver!

‑ Porque, ainda por cima, tinha de ser um frete? É verdade que achei o instante agradável: a sua amiga é uma mulher encantadora...

‑ Óptimo! Já que está noivo, agora pode desposá‑la.

Como esta explicação ocorria ao longo da galeria e, depois, na grande escadaria, Aldo achou que era melhor ter uma explicação frente‑a‑frente e obrigou Lisa a parar, segurando‑lhe no braço:

‑ Tem de acabar por saber o que quer realmente! Sei, por experiência, que você é teimosa como uma mula, mas recordo‑lhe que fazia questão que eu continuasse a desempenhar o papel do grande amor dessa pobre mulher. Que devia fazer na sua opinião?

‑ Não sei! Certamente que agiu o melhor que soube, mas...

‑ Mas nada, Lisa! Se se deu ao trabalho de escutar à porta...

‑ Eu? Escutar às portas? ‑ exclamou, indignada.

‑ Você, não. Contudo, parece‑me recordar que... Mina recorria a esse modo de informação simples e prático. Lembre‑se do dia em que recebemos a visita de lady Mary Saint Albans(1). Dito isto, dei a entender a Mlle. Hulenberg que tinha de voltar a Viena para prosseguir um tratamento. Portanto, vou‑me embora e dentro de pouco tempo!

‑ Está assim tão apressado? ‑ perguntou Lisa, com a soberba falta de lógica de uma filha de Eva.

‑ Pois estou! A esta hora o conde Solmanski foi não sei para onde com as jóias de Elsa e, sobretudo, com a opala, atrás da qual eu e Adalbert estamos condenados a correr.

Instalou‑se um silêncio durante o qual Lisa ficou um momento sem se mexer e de cabeça baixa. Quando a levantou foi para fixar nos olhos do seu companheiro o seu belo olhar sombrio carregado de nuvens:

‑ Desculpe‑me! ‑ suspirou. ‑ Deixei‑me arrebatar mais do que o assunto merecia. Pelo menos, permaneça por cá até esse famoso jantar que Elsa vai pedir à avó!...

‑ Ela talvez já se tenha esquecido.

‑ Nem pense! É ainda mais teimosa que eu...

‑ As mulheres são impossíveis! ‑ explodiu Morosini, quando se encontrou a sós com o amigo. ‑ Fazem‑me desempenhar um papel ridículo e depois queixam‑se pela minha actuação ter sido excessivamente boa! Vou pôr‑me a andar! Estou mais que farto desta história!

‑ No ponto em que estamos, mais três ou quatro dias não tem qualquer importância ‑ dulcificou Vidal‑Pellicorne. ‑ Compreendo que isto tudo te aborreça, mas sempre podes dizer a ti mesmo que é em nome de uma boa causa.

‑ Uma boa causa? Teria preferido cem vezes que contassem a verdade a Elsa. Onde nos irá levar esta comédia? E, entretanto, a opala galopa.

‑ Deixa a polícia fazer o seu trabalho! Talvez tenhamos notícias hoje...

Assim aconteceu, mas elas não foram nada encorajantes. O assassino do conde Golozieny e as jóias pareciam ter‑se evaporado na natureza: ele não deixara mais rastos que um gnomo! Quanto à baronesa Hulenberg, que Schindler fora visitar nessa mesma manhã, ela mostrara‑se um modelo de inocência: viera apenas passar alguns dias do Outono em Ischl, acompanhada pelo seu motorista e pela criada de quarto; adorava aquela pequena cidade que se erguia sobre os seus rios, quando a estação tingia de ruivo os seus jardins ainda com margaridas e crisântemos, mas não tardaria a partir.

Claro que recebera o irmão durante alguns dias. O infeliz estava desesperado pelo desaparecimento da filha, a famosa lady Ferrais, que fugira da América para escapar a uns terroristas polacos e refugiar‑se, em princípio, nas montanhas suíças, mas fora‑lhe impossível encontrá‑la. Depois de porfiadas buscas, sem resultado, ele viera para Bad Ischl a fim de levantar um pouco o moral junto à irmã, antes de prosseguir caminho, rumo a Viena e Budapeste. Não tivera mais notícias dele desde que apanhara o comboio em Ischl na última segunda‑feira.

‑ E que queria que eu objectasse a tudo isto? ‑ perguntou Schindler, que viera beber um copo no bar do hotel com os dois amigos. ‑ Tudo o que pude fazer foi proibi‑la de abandonar Ischl e mantê‑la sob vigilância. E, ainda assim, é graças a vocês! Se não me tivessem revelado a verdadeira identidade de Fraulein Staubing, eu teria sido obrigado a deixá‑la em paz. Agora posso discutir com ela, partindo de bases mais sólidas.

‑ Verificou a partida de Solmanski?

‑ Verifiquei. A sua irmã acompanhou‑o efectivamente no dia e à hora indicadas.

‑ Mesmo assim temos três mortos, entre os quais um diplomata austríaco! ‑ observou Morosini...

‑ E não dispomos de nenhuma prova. Eles agiram em Hallstatt, chegando e partindo pelo lago, sem que possamos saber onde desembarcaram. Quanto à noite passada, o facto de termos sido obrigados a permanecer invisíveis impediu‑me de utilizar um dispositivo mais apertado. O carro que parámos era o certo, mas não encontrámos nele nada que permitisse prendê‑la. Além disso, em São Wolf‑gang juraram‑nos que a baronesa tinha efectivamente jantado em casa de pessoas acima de qualquer suspeita.

‑ E a casa que foi pelos ares, a quem pertencia?

‑ A um cónego da catedral de Salzburgo, doido pela pesca, mas que nunca vem no Outono devido ao seu reumatismo. Quanto ao par que guardava a prisioneira, escaparam antes da explosão. Procuramo‑lo activamente e talvez ele seja a nossa oportunidade para chegar aos culpados. Como pensavam que Mlle... Staubing não sairia viva da aventura, não dissimularam os rostos e ela pôde fornecer‑nos uma boa descrição deles. Claro que os procuramos.

O polícia esvaziou a sua caneca de cerveja e levantou‑se:

‑ Espero ‑ disse ‑ que ainda fiquem por cá mais algum tempo. Precisaremos de vocês. Aliás ‑ acrescentou para Adalbert ‑ talvez o senhor não tenha ainda acabado os estudos que empreendeu em Hallstatt...

O arqueólogo fez um trejeito:

‑ O drama que lá ocorreu esfriou um pouco o meu ardor.

‑ Quanto a mim ‑ reatou Aldo ‑ não pensava prolongar muito as férias a que me outorguei para acompanhar Vidal‑Pellicorne. Os meus negócios esperam‑me e desejaria regressar a Veneza o mais depressa possível...

‑ Não iremos retê‑los muito tempo, mas devem compreender que são ambos as principais testemunhas, juntamente com as damas de Rudolfskrone. E como, ainda por cima, tiveram ocasião de encontrar esse Solmanski...

Adalbert, que parecia absorvido desde há alguns momentos na contemplação da ponta dos dedos, que examinava com solicitude, declarou subitamente, como se lhe tivesse ocorrido uma ideia repentina:

‑ Se me permite um conselho, Herr Director da Polícia, entre em contacto com um dos seus colegas ingleses que nós conhecemos muito bem, o Chefe Superintendente Gordon Warren, da Scotland Yard..

‑ Oh, já ouvi falar dele! Se bem me recordo, não foi ele que esteve encarregue do caso Ferrais?

‑ Precisamente! Se fosse a si, contar‑lhe‑ia pormenorizadamente os últimos acontecimentos, acrescentando que temos todos os motivos para crer que Solmanski fez mais uma das suas. Ele ficará contente ao saber onde ele se encontrava naquela noite e que tem uma irmã na região. Por sua vez, talvez lhe diga em que ponto estão as coisas em Inglaterra...

‑ Por que não? Trata‑se de um caso internacional e uma colaboração discreta mas inteligente poderia revelar‑se eficaz. Obrigado, senhor Vidal‑Pellicorne! O que vou também procurar saber é o local onde se encontra a filha dele visto que, segundo a baronesa Hulenberg, ele anda à procura dela.

Aldo trocou um breve olhar com Adalbert, mas contentou‑se em pegar num cigarro e em acendê‑lo. Se aceitara dar asilo a Anielka não era para entregar essa informação à polícia. A infeliz já sofrera quanto chegasse com a sua experiência diante do tribunal de Old Bailey e não era pelo facto do pai ser um monstro à escala planetária que ela tinha de pagar por ele ou, melhor ainda, de servir de isco.

Depois de Schindler ter partido, Adalbert encomendou outra aguardente fina, pegou no cachimbo, encheu‑o com um cuidado santo, acendeu‑o, inspirou uma longa baforada voluptuosa e, finalmente, suspirou:

‑ Linda coisa, o cavalheirismo! Mas pergunto‑me se tiveste razão. Imagina que Solmanski descobre onde está a filha e decide ir ter com ela?

‑ A menos que Anielka tenha tido o cuidado de ser ela própria a informá‑lo, não vejo qualquer hipótese que isso aconteça. Ela tem demasiado medo que outros lhe descubram a pista. Tranquiliza‑te! Em Veneza está apenas uma jovem americana chamada Anny Campbell. Quanto a ti, não estou a ver porque levantas essa lebre. Tu também não terias dito nada à polícia...

‑ É verdade ‑ admitiu Adalbert com um sorriso de esguelha. ‑ Tinha vontade de saber o que me irias responder...

 

No dia seguinte, Alexandre Golozieny foi a enterrar sob rajadas de chuva e de vento que faziam esvoaçar as folhas mortas, depositando‑as um pouco por todo o lado e ameaçando virar os chapéus‑de‑chuva assaz temerários para se aventurarem por aquele tempo apocalíptico, sob o qual todos se dobravam.

Digna e altiva, apoiada na sua bengala e abrigada, tanto quanto possível, debaixo da cúpula de seda preta que Josef erguia sobre a sua cabeça, Mme. von Adlerstein liderava o grupo. A seu lado, de mãos no fundo dos bolsos de um enorme impermeável preto e de cabeça encolhida entre os ombros, esforçando‑se por deixar a menor superfície do corpo exposta ao temporal, seguia o seu sobrinho‑neto. Atrás deles, alguns raros amigos chegados no comboio de Viena daquela manhã, seguiam na companhia de alguns dos criados de Rudolfskrone e de um punhado de habitantes da cidade ali presentes por pura curiosidade, apesar da intempérie, para assistir ao funeral de um homem que a maioria de entre eles desconhecia, mas cuja morte trágica o transformara numa personagem interessante.

A conselho da avó, Lisa permanecera na residência para fazer companhia a Elsa. Quanto a Morosini e a Vidal‑Pellicorne, encontravam‑se presentes, mas mantinham‑se afastados sob as frondescências das árvores, acompanhados pelo polícia de Salzburgo. Tinham vindo para ver se a baronesa Hulenberg aparecia, mas aquela que o conde Golozieny confessara ser sua amante não se mostrou. Os dois amigos ficaram a ver navios...

‑ Também está bem assim ‑ disse Aldo entredentes. ‑ Ela levou este pobre tipo à sua perdição e foi ela que ouvimos rir quando ele caiu. Querias que ainda lhe trouxesse flores?

‑ Se não tivesse a certeza que ela ainda cá está, acreditaria de bom grado que se teria volatilizado, apesar da minha vigilância ‑ disse Schindler. ‑ As persianas da sua casa estão corridas. Só as chaminés deitam fumo...

‑ Talvez fizesse melhor em deixá‑la um pouco à solta, mas conservando um ou dois anjos‑da‑guarda ‑ sugeriu Adalbert. ‑ Quem sabe se ela não o conduziria até ao seu caro irmão? Se estão verdadeiramente unidos pelos laços de sangue, espantar‑me‑ia muito que ela lhe deixasse todos os benefícios do crime. Nestas pessoas, a confiança não costuma constar do rol das virtudes familiares...

‑ Já pensei nisso mas acho‑a demasiado esperta para cometer um tal erro. Vai certamente ficar tranquila durante um tempo...

Enquanto os coveiros se ocupavam a cobrir o defunto de uma espessa camada de terra, antes de colocarem por cima algumas coroas de crisântemos, de simples folhas ou em forma de pérolas, os espectadores encaminhavam‑se para a saída depois de terem apresentado à condessa condolências tanto mais volúveis porquanto eram desprovidas de convicção. Ela própria se retirou enquanto falava com o padre que oficiara e que se lhe juntara, abrigando‑se debaixo da vasto chapéu‑de‑chuva.

‑ Pergunto a mim mesmo ‑ disse Aldo ‑ se haverá aqui alguém que chore Golozieny?

‑ Talvez tenhamos falado demasiado depressa ‑ murmurou Schindler, enquanto os três deixavam o cemitério. ‑ Olhem para o carro estacionado diante do da condessa: foi aquele que revistámos na outra noite.

No seu interior, havia duas pessoas: um motorista ao volante e uma mulher no banco traseiro. Não se mexiam, esperando certamente que as pessoas se afastassem.

‑ Gostaria de ver a cara dela ‑ disse Aldo. ‑ Regressem sem mim, depois irei ter convosco!

Esquivou‑se discretamente e aproveitou a saída do carro funerário para se reintroduzir no cemitério, deslizando pelo meio das campas, num movimento circular que lhe permitiu regressar ao abrigo de um arbusto que florescia mesmo à cabeça da sepultura. E aí ficou à espera.

Não por muito tempo. Talvez tivesse passado um quarto de hora, quando se ouviu o ruído do cascalho a ser pisado: uma mulher avançava, com um molho de perpétuas nas mãos enluvadas. Trazia um sobretudo de arminho e, nos seus cabelos louros, artisticamente penteados, colocara um chapéu de veludo castanho que protegia graças a um encantador chapéu‑de‑chuva. Aproximou‑se da campa fresca enquanto os coveiros, que tinham terminado o seu trabalho, faziam uma saudação e iam‑se embora. Sem lhes dispensar um só olhar, ela fez um sinal da cruz e pareceu absorver‑se na sua prece.

De onde estava colocado, Morosini via‑a assaz bem, para não duvidar sequer um momento, que existia efectivamente um laço familiar com Anielka e o seu pai. Sobretudo com este último! Era o mesmo perfil um tanto severo do rosto, o mesmo nariz arrogante, os mesmos olhos pálidos e frios. Ela não era desprovida de beleza, mas o observador perguntou a si mesmo como alguém poderia tornar‑se amante de uma mulher daquelas!

Durante um momento, não se passou nada: a baronesa rezava. Depois, subitamente, ela olhou para um e outro lado, sem dúvida para se certificar que ninguém a observava. Tranquilizada pela calma do local onde apenas se ouvia o ruído do vento, ela dobrou o joelho, depôs as flores e o agasalho que condizia com o sobretudo, e começou a esgaravatar debaixo das flores. Sem se mexer, Aldo esticou o pescoço, perguntando‑se o que estaria ela a fazer naquela posição, ajoelhada sobre as pedras molhadas. Ela teve um gesto enfastiado: era evidente que o chapéu‑de‑chuva a estorvava, mas renunciar ao seu abrigo teria sido fatal para a rodilha de veludo que trazia à cabeça... Pegou num objecto que trazia dentro do agasalho e deslizou‑o sob as coroas. Depois, com o agasalho numa mão e o chapéu‑de‑chuva na outra, voltou‑se, encaminhando‑se para a saída do cemitério, na direcção do seu carro.

Aldo continuava sem se mexer. Tão imóvel quanto o anjo de pedra do túmulo vizinho, deixou‑se encharcar até que o ruído de um motor que se punha em movimento lhe deu a saber que a baronesa se ia embora.

Logo a seguir saiu do seu abrigo e foi colocar‑se no lugar exacto onde estivera a visitante. Tal como ela, olhou em volta para ver se não avistava ninguém e começou a revolver a terra sob as flores. Aquela mulher não viera ali para rezar nem para prestar uma homenagem derisória ao homem que amara, mas sim para esconder algo. E era isso que Aldo queria.

Foi menos fácil do que julgava. A terra que fora lançada ainda estava mole, mas a baronesa devia ter enterrado o objecto a uma grande profundidade. Tocou nalgumas pedras com os dedos até que o seu indicador agarrou finalmente algo que parecia ser um anel. Puxando com força, tão energicamente que quase caiu para o lado, ele trouxe à luz do dia uma pistola automática. A baronesa viera esconder na campa do homem assassinado a arma que servira para o abater.

Pegando no seu lenço, encobriu a descoberta, que colocou num dos seus amplos bolsos e correu na direcção da estrada. Sentia contra o corpo o peso da prova que tão cruelmente faltava, e isso enchia‑o de alegria. As balas que a autópsia extraíra do corpo de Alexandre Golozieny só podiam ter sido disparadas por aquele utensílio de morte.

Desatou novamente a correr, pois ocorreu‑lhe a ideia que Schindler talvez já tivesse partido para Salzburgo. Graças a Deus, quando chegou diante do posto de polícia, a viatura do alto funcionário ainda lá estava. Entrou de rompante no interior do posto, avistou Schindler a conversar com um colega e disse logo:

‑ Desculpe‑me! Não há por aqui um sítio onde possamos falar à vontade?

Sem fazer qualquer pergunta, o polícia limitou‑se a abrir uma porta que dava para um pequeno escritório:

‑ Venha por aqui!

Viu Morosini desembrulhar o seu pacote um tanto enlameado em cima da pasta de secretária de mata‑borrão manchado, mas quando viu o que trazia dentro, os seus olhos semicerraram‑se.

‑ Onde encontrou isto?

‑A baronesa deixou‑mo como prenda, sem dar sequer por isso... E contou‑lhe o que acabara de se passar no cemitério.

‑ Claro está ‑ resmungou Schindler ‑ que lhe tocou em cheio com a mão, não?

‑ Não, puxei‑o pelo aro do gatilho e coloquei‑o logo dentro do lenço, mas ficaria espantado se encontrasse impressões digitais. Mme. Hulenberg trazia luvas para efectuar o seu pequeno trabalho e a terra molhada deve ter apagado o resto, admitindo que ainda não tivessem tratado disso...

‑ Logo veremos! É evidente que acaba de nos prestar um grande serviço, mas terá de comparecer ao inquérito: o senhor foi a única pessoa que a viu esconder esta arma...

‑ Quer dizer que será a palavra dela contra a minha? Não vejo qualquer inconveniente. Em compensação, há uma pergunta que me coloco...

‑ Apostemos que eu também! Onde foi escondida esta pistola depois do assassinato do conselheiro Golozieny? Quando mandámos parar o carro, revistámo‑lo a fundo e isto não é um objecto que passe despercebido numa busca minuciosa...

‑ Não revistou os ocupantes?

‑ O motorista, sim. Quanto à baronesa passou‑nos o seu agasalho e o pequeno saco que levava consigo. Até despiu o sobretudo de pele, para nos mostrar que era impossível esconder a arma debaixo do vestido muito justo que trazia.

‑ No entanto, ele devia estar escondido nalgum sítio, pois essa gente não contava encontrar a polícia. Ou então Solmanski guardou‑o consigo e isso significa que conseguiu contactar de algum modo com a irmã, mesmo debaixo do seu nariz...

O rosto cheio e redondo do austríaco pareceu subitamente amarfanhado. Não gostara do «mesmo debaixo do seu nariz» de Morosini:

‑ Ainda há uma solução ‑ grunhiu ‑ e é aquela que será utilizada pelo advogado da baronesa: e por que não teria estado a arma na sua posse? Como disse precisamente o senhor, será a sua palavra contra a dela. E você é estrangeiro!

‑ E ela também não é?

‑ Ela é polaca, e uma parte da Polónia pertenceu ao império austríaco.

Aldo sentiu que começava a ferver de cólera:

‑ E julga que em Varsóvia lhe estão muito agradecidos? Não mais que nós, venezianos, naturais de uma cidade que vocês ocuparam menosprezando todos os direitos! Até pude apreciar a vossa hospitalidade carceral durante a guerra. Por isso, deveríamos ficar empatados, tanto mais que o verdadeiro nome do seu irmão é Ortschakoff, e que ele é russo. Tenho a honra de saudá‑lo, Herr Polizei‑direktor!

E pegou no chapéu que depositara numa cadeira ao entrar, colocando‑a energicamente na cabeça, encaminhando‑se para a porta que abriu mas, antes que tivesse saído, mudou de ideias:

‑ Não perca de vista que eu estava no carro de Mme. von Adlerstein enquanto lhe matavam o primo e que ela o testemunhará! Além disso, siga um conselho: se escrever ao superintendente Warren peça‑lhe algumas dicas sobre a maneira de conduzir uma investigação! Ser‑lhe‑ia muito proveitoso!

‑ Nunca lhe devias ter dito isso! ‑ censurou‑lhe Adalbert, quando ele regressou ao hotel. ‑ Ele já não gosta lá muito de nós e se não fôssemos estimados em Rudolfskrone como o somos, talvez já tivéssemos tido alguns aborrecimentos...

‑ ... era só o que faltava! ‑ resmungou Morosini. ‑ Escuta‑me bem: farás o que bem entenderes, mas eu assim que tiver respondido às perguntas do juiz de instrução ou seja lá como for que o chamem aqui, despeço‑me destas damas e regresso a Veneza! Daí, procurarei contactar Simon!

‑ Oh, eu também não tenciono eternizar‑me! O tempo aqui é péssimo. Mas no que toca às nossas castelãs, não seremos os primeiros a despedirem‑se. Tenho aqui um convite para o jantar de amanhã à noite ‑ acrescentou, tirando do bolso um elegante cartão impresso. ‑ Como podes constatar é algo de quase oficial... e em traje de rigor! Há ainda uma palavrinha menos formal que nos informa que, instadas pela «princesa», estas damas decidiram regressar a Viena!

‑ Instadas por Elsa? Senhor! ‑ gemeu Morosini. ‑ Eu disse‑lhe que tinha de voltar à capital para continuar o tratamento! Aposto dez contra um em como me vai pedir para partir com ela!

‑ Aí, julgo que te enganas e que, muito pelo contrário, a condessa deseja arranjar‑te uma porta de saída. Senão, qual a razão deste jantar de gala?

‑ Lembro‑te que Elsa falava de jantar de núpcias e eu não quero ficar noivo! Ela tem a minha idade, ou quase, e por muito encantadora que seja, não quero desposá‑la. Quando me casar será para ter filhos!

‑ Casar‑te‑ás com um ventre, como dizia Napoleão? Que coisa mais romântica e agradável para ser ouvida pela mulher apaixonada! ‑ troçou Aldo. ‑ Mas eu julgo que não tens nada a recear. É um certo Franz Rudiger que ela deseja e tu não vais mudar de nome, pois não?... Aliás vou até lá dizer uma palavrinha a Lisa a respeito deste assunto, ver que conduta devemos ter e...

‑ Não vais a lado nenhum! Podes telefonar, não podes? É muito mais cómodo! Sobretudo, quando chove!

O sorriso de Adalbert alargou‑se ao ver a cara zangada do amigo.

‑ Por que não queres que vá até lá? Dir‑se‑ia que te aborrece...

‑ Não me aborrece nada, mas se Lisa tiver algo a dizer‑nos, saberá como fazê‑lo!

Adalbert abriu a boca para replicar mas, depois, calou‑se. Começava a conhecer as más‑disposições do amigo. Nessas alturas, contrariá‑lo era tão imprudente quanto acariciar um tigre a contrapelo. E julgando preferível sair dali, disse‑lhe:

‑ Vou tomar um chocolate no Zauner. Não queres vir comigo?

E saiu, sem esperar por uma resposta que já conhecia.

 

       O JANTAR FANTASMAGÓRICO

Ou a saída brusca de Morosini foi eficaz, ou então o director da polícia de Salzburgo estava mais determinado do que parecia: o certo é que nessa mesma noite a baronesa Hulenberg e o seu motorista foram presos. Depois do príncipe se ter ido embora, Schindler fora a casa dela com um mandato de busca: não houve qualquer dificuldade em encontrar o par de luvas molhadas e sujas de terra que ainda não tinham pensado limpar e também se aperceberam que a falsa identidade do motorista escondia um antigo cadastrado. Aldo foi convocado para um depoimento oficial que o seu assomo de cólera não lhe permitira ainda fazer. Como não gostava de magoar as pessoas, desculpou‑se e felicitou o polícia.

‑ Espero ‑ acrescentou ‑ que o senhor encontre em breve o irmão. Ele é que é o elemento mais perigoso e, sobretudo, é ele que tem as jóias...

‑ Temo muito que já esteja na Alemanha! A fronteira fica tão perto de Salzburgo! Tudo o que podemos fazer é lançar um mandato internacional, mas sem acalentar grandes esperanças, dado o estado de anarquia que reina na República de Weimar.

‑ Não é certo que ele fique por lá e, nos países ocidentais, a polícia é eficaz.

‑ Sobretudo em Inglaterra ‑ disse Schindler com um sorriso ambíguo. E com esta estocada, separaram‑se...

O dia seguinte pareceu tanto mais longo porquanto não tiveram notícias de ninguém, excepto do correio: Morosini recebeu uma carta de Veneza que o deixou perplexo e inquieto.

No entanto, o texto consistia apenas de algumas linhas escritas por Guy Buteau, que lhe perguntava se ele contava ainda demorar‑se muito na Áustria. A saúde do pessoal da casa era excelente, mas todos eles desejavam que o regresso do amo não fosse transferido para as calendas gregas. E foi precisamente este registo banal que perturbou Aldo. Conhecia muito bem o seu administrador! Guy não tinha o hábito de lhe escrever frivolidades. Sob as frases convencionais, Aldo julgava adivinhar uma espécie de pedido de socorro.

‑ Tenho a impressão que se passa alguma coisa em minha casa e que Buteau não ousa contar‑me o que é ‑ confiou a Adalbert.

‑ É possível mas, de qualquer modo, não contavas partir dentro em breve?

‑ Daqui a dois ou três dias. Não tenho mais nada a fazer aqui depois do serão de amanhã...

‑ Óptimo! Escreve para dizer que estás de volta!...

‑ Melhor ainda: vou telefonar!

Era preciso contar com uma espera de pelo menos três horas para obter a ligação com Veneza e já eram cinco da tarde. Perante o evidente nervosismo do amigo, Vidal‑Pellicorne propôs a sua panaceia pessoal: ir comer alguns bolos e beber um chocolate ao Zauner. O tempo continuava horrível, mas o hotel não ficava longe da pastelaria.

‑ Nada melhor que alguns doces para suavizar a vida ‑ argumentou o arqueólogo que era guloso como um abade. ‑ E é bem melhor que o álcool...

‑ Como se não gostasses também dele! Farias melhor em dizer‑me que estás um pouco farto da cozinha do Kaiserin Elisabeth! Já não terás apetite para o jantar.

‑ Pois bem, contentar‑nos‑emos com uns aperitivos e passaremos a soirée no bar. Se não te diz nada, podes ficar aqui. Eu vou andando! Aquele Zauner é o Mozart das natas.

Como de costume havia imensa gente na célebre pastelaria‑salão de chá, mas acabaram por encontrar no fundo da sala uma mesinha redonda e duas cadeiras. E encontraram também Fritz von Apfelgrune...

Sentado a um canto, entre um painel de vidro gravado e três senhoras rechonchudas que, sem pararem de falar, davam sumiço a uma quantidade impressionante de bolos, o jovem passava melancolicamente uma colher por um gelado de chocolate de Liège, em forma de tulipa. Com os cotovelos apoiados na mesa e a cabeça enfiada entre os ombros, oferecia uma imagem miserável e os dois recém‑chegados comoveram‑se. Enquanto Aldo guardava a mesa, Adalbert foi ao seu encontro. Ele ergueu uns olhos desanimados para o arqueólogo, nos quais este pôde ver até vestígios de lágrimas:

‑ Que se passa, Fritz? Você está cá com uma cara...

‑ Oh... estou desesperado! Sente‑se!

‑ Obrigado, mas vim buscá‑lo. Venha ter connosco. Talvez o possamos ajudar.

Sem responder, Fritz pegou no gelado e deixou‑se levar, enquanto Vidal‑Pellicorne indicava a mesa para onde o levava à criada de avental de musselina e Aldo procurava uma terceira cadeira.

‑ Devia tomar um bom café ‑ aconselhou este quando se instalaram. ‑ Dir‑se‑ia que está a precisar!

Fritz lançou‑lhe um olhar de cão escorraçado:

‑ Já bebi dois... e comi meia dúzia de bolos. Agora abordei os gelados.

‑ Que procura? Suicidar‑se por indigestão? Talvez seja possível mas deve ser um processo moroso e um tanto desagradável.

‑ Nesse caso, o que me aconselha? O revólver?

‑ Não lhe aconselho nada! Que é que lhe deu? Até agora, você era o raio de sol da casa!

‑ Acabou tudo! Compreendi que Lisa não me ama, que nunca me amará... e que talvez até me deteste!

‑ Foi ela que lhe disse? ‑ perguntou Adalbert.

‑ Não, mas deu‑mo a entender. Eu enervo‑a, irrito‑a. Assim que entro na sala onde ela está, vai‑se logo embora... E, depois, há ainda a outra!

‑ Qual outra?

‑ Essa Elsa saída não se sabe de onde e que o senhor salvou. Eu nunca tinha sequer ouvido falar dela e eis que agora é ela a nova rainha da casa. Tratam‑na como a uma princesa. Ela aceita tudo com naturalidade e a mím, detesta‑me. No entanto, sempre fui cortês para com ela.

‑ Deve estar enganado, pois ela não tem qualquer motivo para detestá‑lo. Não participou também na expedição nocturna em que a salvaram?

‑ Oh, ela nem sequer deve ter dado por isso! Revela antes uma tendência para me considerar como um móvel a mais e, ainda esta manhã, perguntou‑me se a minha única ocupação na vida era assediar Lisa com um amor ao qual ela não liga nenhuma. Também me disse que faria melhor em ir‑me embora antes que me dissessem claramente que estou a mais...

‑ Lisa e a sua tia‑avó concordam com ela?

‑ Não sei. Elas não estavam lá, mas não vejo porque não estariam de acordo: andam sempre juntas e quando eu chego tratam‑me como se eu fosse uma criancinha que fugiu da governanta. Quase me dizem para ir brincar para outro lado!

‑ Você sabe como é, quando três mulheres se juntam! Devem ter uma data de coisas a contar umas às outras ‑ disse Aldo. ‑ É normal que se sinta um pouco perdido!

‑ Não a este ponto! Ao menos elas podiam deixar‑me acompanhá‑las quando vão passear.

‑ Passear? Com um tempo destes?

‑ Oh, não é isso que impede Elsa! Ela quer sair a todo o custo, para dar longos passeios a pé. Veio‑lhe este desejo repentinamente: diz que é indispensável para a sua saúde, para permanecer magra, mas exige que Lisa a acompanhe. Ontem, depois do cemitério, elas foram até à cascata de Hohenzollern. Lisa estava cansada, mas Elsa não. Esta manhã até queria lá voltar... e esta tarde, foram não sei para onde. A pé! Penso que está um pouco louca!

Desta vez Aldo não respondeu. Pensava naquela outra mulher um pouco desequilibrada, a quem chamavam a imperatriz errante. Também ela fazia questão em realizar autênticas performances a pé, a ponto de extenuar as suas damas‑de‑honor.

‑ Elsa come muito?

‑ É curioso que me faça essa pergunta! Desde que está no castelo não come praticamente nada, o que atormenta muito a tia Vivi. Até a ouvi dizer a Lisa que, depois do rapto, essa mulher já não é a mesma... E quando não está no exterior, passa horas a fio diante do busto de Sissi, que está no escritório da tia Vivi. Aliás é verdade que são parecidas. Será essa parecença que ela pretende acentuar?

‑ Exactamente! ‑ aprovou Morosini. ‑ Esperemos que isso lhe passe quando estiver em Viena. A imperatriz não gostava de viver na capital e se Elsa persistir no seu novo comportamento, será preciso instalá‑la noutro sítio.

Ora, vocês moram em Viena, e Lisa não vai passar a vida dela a brincar às serventes fiéis. Ir‑se‑á embora...

‑ E eu também! ‑ afirmou Fritz. ‑ Ainda não sei para onde, mas vou‑me embora.

‑ Por que não vem comigo para Veneza? ‑ propôs Morosini, com gentileza. ‑ Mudar‑lhe‑á as ideias...

Foi pura magia. O rosto desolado do pobre rapaz iluminou‑se como se tivesse sido aflorado por um raio de luz.

‑ O senhor... o senhor levar‑me‑ia consigo? Para sua casa?

‑ Para minha casa. Verá: encontrará amplos motivos de distracção e tenho uma excelente cozinheira... que Lisa conhece bem. Poderá falar dela com Cecina. E, além disso, poderá falar em francês com o sr. Buteau. Outrora, ele foi o meu preceptor.

Durante um instante julgou que Fritz lhe ia saltar ao pescoço. Ele contentou‑se em agradecer‑lhe efusivamente, acabou o gelado e despediu‑se. Tinha pressa em regressar para começar os seus preparativos e dar a boa‑nova. Divertido, Adalbert viu‑o esvoaçando através da sala:

‑ Agora brincas ao bom samaritano? E com um austríaco?

‑ Por que não? Este rapaz não é responsável pelo seu nascimento e além disso, se queres saber tudo, eu até o acho divertido! Sobretudo quando fala em francês!

Depois de um jantar frugal ‑ Adalbert tinha‑se empanturrado de bolos ‑ instalaram‑se no bar para esperar pela ligação telefónica de Aldo. À excepção do próprio barman, de um casal idoso que bebia tisanas e de um velho senhor de uma elegância antiquada que fazia desaparecer por detrás do seu jornal aberto uma quantidade apreciável de pequenos copos de schnaps, não havia mais ninguém. Ao fim do seu segundo conhaque, Aldo começava a perder a paciência quando, finalmente, o chamaram. Eram nove e meia, mas tinha Veneza do outro lado do fio!

Para sua grande surpresa, Aldo ouviu no aparelho a voz resmungona de Cecina. Não era costume a cozinheira responder ao telefone ‑ detestava fazê‑lo! Aliás a abordagem correspondeu inteiramente às reacções de Cecina quando esta estava de mau‑humor:

‑ Ah, és tu? ‑ disse, sem manifestar o menor prazer. ‑ Não podias ter telefonado mais cedo?

‑ Não sou eu que trata das comunicações internacionais. Onde estão os outros?

‑ O sr. Buteau está a jantar em casa de Mestre Massaria. O meu velho Zaccaria está acamado com gripe. Quanto ao jovem Pisani, corre desenfreado na companhia de... misse Campbell! Que queres?

‑ Saber o que se passa. O sr. Buteau enviou‑me uma carta que me inquieta um pouco.

‑Já é tempo que te decidas a pedir notícias! Não se pode dizer que te tenhas ocupado muito de nós nos últimos tempos! Sua Excelência desaparece e a casa poderia arder, que isso não o preocuparia mais do que se fosse a casota do cão! Além disso...

Morosini sabia que se não a interrompesse imediatamente, teria de ouvir uma hora de diatribes e pagar uma conta astronómica:

‑ Basta, Cecina! Primeiro não temos nenhum cão e além disso não telefonei para ter de aturar a tua má disposição. Mais uma vez, diz‑me se se passa algo inabitual.

O riso de escárnio de Cecina feriu‑lhe os ouvidos:

‑ O inabitual é que, ao regressares, será para receberes a minha demissão! Sabes o que te disse: ou ela ou eu!

‑ Mas de quem estás a falar?

‑ Ora, da bela Anny! Não sei porque gastas o teu dinheiro instalando‑a na residência da Moretti; ela está sempre metida aqui! Não posso dar dois passos sem a ter debaixo das saias e intromete‑se em tudo o que não lhe diz respeito.

‑ Mas que faz ela aí?

‑ Perguntarás isso ao teu secretário. Está de cabeça virada! Dizias que não tínhamos um cão? Pois bem, agora temos um: um totó bem amestrado que come na mão da dona e que se chama Angelo!

‑ Da dona? Ele ousou...

‑ Não fiquei a segurar na vela, por isso não sei se dormiram juntos, mas isso não me espantaria a julgar pela maneira como ele se comporta. Estou a dizer‑te que ela passa a vida aqui! Isso até dificulta muito a tarefa do sr. Buteau para conseguir impor a disciplina na tua ausência...

‑ Tranquiliza‑te, estarei de volta dentro de dois ou três dias e logo porei isso tudo na ordem! Não houve visitas suspeitas?

‑ acrescentou, pensando nos receios manifestados por Anielka a respeito dos revolucionários polacos.

‑ Se estás a referir‑te a bandidos com escopetas e facas entre os dentes, não, não houve nada disso!

‑ Bom, então escuta‑me bem: eu não telefonei e tu não sabes quando volto. Percebeste?

‑ Queres pregar‑lhes uma surpresa? Será difícil.

‑ Porquê?

‑ Porque o teu secretário paga a um miúdo para ir espreitar cada comboio internacional que chega.

‑ Com que então, apaixonado, mas prudente? Tranquiliza‑te, volto de carro. Comprei um pequeno Fiat e deixá‑lo‑ei em Mestre, na garagem Olivetti... Vai ter com o teu marido, Cecina, e dorme bem!

A ideia de regressar a Veneza de carro ocorrera‑lhe repentinamente. Seria mais simples, visto que pensava levar Fritz consigo. Quanto ao resto, não lhe agradava nada a conduta de Anielka. E muito menos ainda a daquele jovem imbecil que se deixara aprisionar na sua rede.

‑ Partiremos depois de amanhã! ‑ concluiu, depois de pôr Adalbert ao corrente. ‑ Começo a achar esquisita a atitude de Anielka. Ela chega, suplicando que a escondam, que a salvem dos seus inimigos. Eu ponho‑a ao abrigo de importunos e ela não encontra mais nada a fazer senão ocupar‑me a casa!

‑ Não houve uma época em que isso te teria dado prazer? . ‑ Houve, mas esse tempo já passou. Há muitas sombras, muitos não‑ditos, demasiadas zonas de escuridão que recaem sobre esta criatura aparentemente tão luminosa! Receio que haja sobretudo demasiados amantes e nem sequer tenho a certeza de sentir ainda alguma simpatia por ela.

‑ Suponho que imagina que tu ainda estás loucamente apaixonado por ela e lembro‑te que, ao instalar‑se em tua casa, ela se apresentou como tua noiva.

‑ Tirei‑lhe depressa essa ideia da cabeça...

‑ Isso é o que julgas! Eu juraria que ela não renunciou a tornar‑se princesa Morosini.

‑ Dormindo com o meu secretário? Não é o bom meio.

‑ Isso é apenas uma suposição gratuita! Eu acreditaria antes que ela procura imprimir na tua paisagem pessoal a sua imagem... de forma indelével. Terás muita dificuldade em desembaraçar‑te dela...

‑ A menos que consiga que o pai seja preso ou, melhor ainda, que consiga abatê‑lo!

Sem dizer nada, durante um momento Vidal‑Pellicorne considerou o rosto crispado do amigo, os traços enérgicos ainda endurecidos pela cólera, a sua longa silhueta descontraída, o olhar azul que brilha tão frequentemente com humor ou ironia. Mesmo com uma diferença de vinte anos ‑ pensou ‑ não devia ser coisa fácil renunciar a um homem daqueles... E, ainda por cima, grande cavalheiro!

‑ Não te fies nisso! ‑ acabou por suspirar. ‑ Até com Ximena, isso não resultou.(nT)

 

Com todas as suas janelas iluminadas por uma floresta interior de velas ‑ a electricidade parecia banida nessa noite ‑ Rudolskrone brilhava no meio da noite de Novembro como um relicário no fundo de uma cripta. Parecia preparado para acolher uma daquelas festas nocturnas, amenas e requintadas, tão ao gosto dos séculos passados. Contudo, quando o pequeno Amílcarvermelho depôs os seus ocupantes às oito horas precisas, não se avistava mais nenhum carro.

‑ Pensas que somos os únicos convidados? ‑ perguntou Adalbert quando a paragem do motor lhes permitiu ouvir o eco dos violinos tocando uma valsa de Lanner.

‑ Bem o espero! Se esta comédia de núpcias tem de continuar, pelo menos conto que seja diante do menor número de testemunhas possível...

Um criado de libré amarantina abriu a porta do carro enquanto outro, munido de um candelabro de prata, se aprestava a preceder os convidados na grande escadaria:

‑ A senhora condessa espera os senhores no salão das musas ‑ confiou‑lhes este último.

Para aquela soirée deviam ter efectuado uma verdadeira razia em todas as flores da região. Havia‑as por todo o lado,

 

*nt. Famosa heroína da não menos célebre peça de teatro de Corneille, O Cid (1637) que, apesar de amar Rodrigo, reclama‑lhe a cabeça por ter matado o conde de Gormas, seu pai.

 

e os dois homens perceberam porque tinham experimentado tanta dificuldade em desencantar o ramo de rosas brancas que tinham enviado na parte da tarde. As flores trepavam ao assalto dos grandes candelabros de bronze carregados de velas acesas, transbordando profusamente de cestos colocados à entrada e no fundo da rampa de mármore. Graças a elas e às pequenas chamas que douravam todas as coisas, naquela noite o castelo estava mergulhado numa atmosfera irreal que Aldo não podia dizer se lhe agradava ou não. Pensava, sobretudo, que ia ter de desempenhar aquele papel aborrecido de apaixonado diante do público mais difícil que pudesse haver: os olhos de Lisa! Ou ele se mostraria muito bom e ela menosprezaria o seu talento, ou ele seria mau e ela julgá‑lo‑ia ridículo.

‑ Vê lá se mudas de cara! ‑ soprou‑lhe Adalbert. ‑ Tens o ar de alguém que vai subir para o cadafalso.

«O felizardo, que pode entregar‑se ao simples prazer de passar um momento ao pé da mulher que ama!» ‑ pensou Morosini que já não tinha dúvidas que o amigo se apaixonara por Mlle. Kledermann... ‑ É mais ou menos isso ‑ resmungou.

Soberbo no seu veludo amarantino, bordado a soutaches pretas, Josef acolheu‑os no alto das escadas para guiá‑los até ao salão das musas mas, ao chegar a meio do patamar, voltou‑se:

‑ Meu Deus, ia‑me esquecendo!... Senhor príncipe, Mlle. Lisa recomendou‑me que o preparasse para uma surpresa...

Só faltava mais essa!

‑ Uma surpresa? De que género?

‑ Não sei de nada, Excelência, mas penso que deve ser importante para que me tenham encarregue de preveni‑lo.

‑ Obrigado, Josef!

Nenhum dos dois reparou numa forma branca que escutava, apoiando‑se com uma mão à balaustrada do andar superior...

O salão das musas precedia a sala de jantar. Estava decorado com frescos ao gosto italiano, mas de feitura relativamente honesta, que não retiveram a atenção de Morosini. Ele dedicou‑a por inteiro à velha dama que estava de pé, no meio da sala, junto a uma enorme jarra verde‑mar, assente no solo, de onde brotava uma fonte luminosa de rosas brancas.

‑ Elas são soberbas! ‑ disse, sorrindo e oferecendo aos lábios de Morosini a sua bela mão carregada de anéis.

E ela também o estava. Nas suas orelhas brilhava uma verdadeira fortuna em diamantes; na renda preta do seu vestido com gola de barbas de baleia e nos seus cabelos brancos penteados para o alto, um diadema feito de finos frisos cintilantes conferia‑lhe uma auréola preciosa. Ao pé desta rainha, trajado para a ocasião e com um ar muito infeliz, Friederich passava despercebido...

O olhar de Aldo procurava Lisa. No sorriso da sua avó transpareceu uma doce ironia.

‑ Ela está ao pé de Sua Alteza, ajudando‑a a vestir‑se. Aldo franziu o sobrolho enquanto os de Adalbert se erguiam.

‑ Sua Alteza? ‑ proferiu este. ‑ É assim que a devemos chamar?

‑ Bem o receio. Meus caros amigos, tenho de preveni‑los que desde que foi salva, Elsa deixou de ser a mesma. Passou‑se algo que nos escapa e penso, príncipe, que a achará diferente daquela que viu na última vez...

‑ Quer dizer que já não terei de desempenhar o papel que me pediu? ‑ perguntou Morosini, cheio de esperança.

‑ Na verdade, não sei! ‑ murmurou a velha dama, acabrunhada. ‑ Ela não falou de si, nem tão‑pouco reclamou a sua presença uma só vez... Em compensação, exige as atenções, a deferência, as honras devidas a uma alteza e nós não nos sentimos com coragem para as recusar. Afinal de contas, ela devia ter direito a elas! Creio ‑ acrescentou, voltando‑se para o seu sobrinho‑neto ‑ que Fritz já lhe falou a esse respeito, não é verdade?

‑ Efectivamente ‑ anuiu Adalbert. ‑ Pensamos ambos que ela está a fazer aquilo que em psiquiatria se chama uma transferência, esforçando‑se por ressuscitar a sua avó imperial. Quando estiver em Viena, a senhora deverá talvez pedir uma consulta ao célebre doutor Freud.

‑ Mas, estou a pensar nisso... se chegarmos todavia a apresentar‑lha.

‑ E foi ela que lhe pediu esta soirée de grande gala? ‑ perguntou Aldo.

‑ Foi. Estranha soirée, não é verdade? onde se exibe todo o fausto de uma grande festa, quando afinal somos apenas seis pessoas, mas ela espera a chegada daquilo a que teremos de chamar sombras. E foram postos talheres para vinte pessoas.

Foi então que Fritz explodiu. Até então, depois de ter apertado a mão dos dois homens, ele contentara‑se em manter os olhos fixos no chão enquanto parecia esforçar‑se por abrir um buraco no tapete com o seu tacão:

‑ Por que não chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome? Ela está louca! E a senhora, tia Vivi, faz mal em prestar‑se às suas manias. Elas só podem avolumar‑se, tornando‑se cada vez mais sofisticadas!

‑ Um pouco de calma, está bem? Trata‑se de uma noite... apenas uma. Aliás, ela especificou: um jantar de adeuses!

‑ A quem, ao quê?

‑ Talvez a Ischl. Ela soube que partimos amanhã. Talvez seja outra coisa, mas não me senti com coragem para recusar‑lhe e Lisa concorda comigo.

‑ Oh, se Lisa está de acordo, então...

E Fritz pareceu desinteressar‑se da questão para se dedicar à taça de champanhe que um criado lhe oferecia numa bandeja. Teve de pousá‑la, pois Josef abriu as portas do salão e anunciou numa voz forte:

‑ Sua Alteza Imperial!

E Elsa apareceu, toda vestida de branco. Um branco que era quase de marfim; o seu vestido de cauda era daqueles que se usavam no começo do século: cetim e renda de Chantilly, cintura elevada, com pregas, preso por alguns pés de rosas a condizer. Na cabeleira penteada ao alto com dois caracóis deslizando‑lhe pelo comprido pescoço, o mesmo tecido arâneo sustinha um diadema de opalas e de diamantes que só podia pertencer a Mme. von Adlerstein.

Os três homens inclinaram‑se, enquanto a condessa fazia uma reverência quase perfeita apesar da sua perna doente, mas, ao soerguerem‑se, Aldo e Adalbert sentiram faltar‑lhes a respiração: no regaço do profundo decote da princesa, anichada no cetim de folhos, no mesmo local em que a trouxera na Ópera, a opala cintilava insolentemente na Águia de diamantes...

O olhar de Morosini procurou o de Lisa que vinha três passos atrás. Ela respondeu‑lhe com um encolher de sobrancelhas: aquilo era, evidentemente, a surpresa anunciada. É preciso confessar que era de todo o tamanho! Contudo, por muito estupefacto que estivesse, Aldo não deixou de reparar quanto Lisa estava encantadora num vestido à moda antiga, em tule verde‑amêndoa, que prestava inteira justiça ao seu pescoço gracioso, aos seus belos ombros e a um peito que, em jovem, Aldo teria qualificado como interessante.

Segurando na mão um leque a condizer com o seu vestido e onde fixara a rosa prateada, Elsa foi direito à condessa, ajudando‑a a soerguer‑se:

‑ A senhora não, querida! ‑ protestou gentilmente. Em seguida, voltando‑se para os três homens que esperavam alinhados, ela estendeu ambas as mãos a Morosini:

‑ Caro Franz! Esperei esta soirée com tanta impaciência! Ela deve marcar o recomeço de tudo, não é verdade?

A débil esperança que o pseudo Rudiger acalentara dissipou‑se. Mesmo na pele de outra personagem, Elsa continuava a ver nele o seu noivo perdido. Apesar de tudo inclinou‑se perante a mão enluvada, murmurando que se sentia infinitamente feliz e acrescentando mais algumas frivolidades que lhe pareciam convir ao seu papel.

Mas ela não o escutava, reservando agora toda a sua atenção a Adalbert, o que permitiu a Aldo olhar mais atentamente para ela. O perfil que lhe era revelado parecia‑se de tal modo com o do busto do pequeno salão, que ele ficou impressionado; no entanto, certos pormenores anunciavam que não se tratava do modelo: a forma desenhada pela pálpebra, um vinco da boca. Não fosse o ferimento que marcava o outro lado do rosto, aquela mulher teria podido sublevar os entusiasmos, fazer crer numa ressurreição milagrosa, talvez até causar distúrbios. As rendas com que cobria a cabeça em público não eram apenas um resguardo para a sua coquetterie atingida, eram também necessárias num país onde as imaginações só pediam para ser ateadas logo que se tratava de um membro da antiga família imperial... Restava esclarecer a história da Águia com a opala!

Aldo aproximou‑se de Lisa que acariciava com um dedo uma das rosas do enorme ramalhete e que se encontrava um pouco afastada de Elsa:

‑ Como conseguiu encontrar estas maravilhas? ‑ perguntou‑lhe com um sorriso.

‑ Estou encantado por elas lhe agradarem, mas não é isso que me interessa. Pensava que as jóias tivessem desaparecido com Solmanski. Você retirou a opala antes de as entregar?

‑ Não passaram pelas minhas mãos e não pedi para vê‑las. Na realidade foi a própria Elsa quem se apoderou delas, muito antes de ser raptada. Logo que regressou de Viena, meteu na cabeça que se guardasse a opala da imperatriz consigo, não lhe poderia acontecer mais nada de mal.

‑ E conseguiu que a deixassem na sua posse?

‑ Não, porque os seus infelizes guardiões desconfiavam um pouco da sua mente instável. Tinham fabricado um esconderijo numa viga da sala, mas Elsa observou‑os e quando se encontrou sozinha foi buscar a jóia, que escondeu consigo até esta noite. Está muito satisfeita por ter pregado uma boa partida a toda a gente...

‑ Uma boa partida? Não estou tão certo quanto a isso! Na sua opinião, que fará Solmanski quando se aperceber que não tem a opala?

‑ Contentar‑se‑á com o resto do tesouro. Há pérolas sublimes e um certo número de outras peças magníficas...

‑ Eu digo‑lhe que o que ele quer é a opala e pelos motivos que já lhe expliquei.

‑ Bem o entendo, mas dificilmente poderá voltar atrás. A polícia teria grande prazer em apanhá‑lo.

‑ Sim, mas vocês partem amanhã. Pode ter a certeza que esse sequaz do diabo sabê‑lo‑á e tudo irá recomeçar...

Com um gesto vivo, Lisa colheu uma rosa para levá‑la aos lábios. Os seus olhos semicerrados deixaram transparecer um olhar trocista:

‑ E, claro está, você tem uma solução, não é?

‑ Eu? E qual, meu Deus?

‑ Oh, é muito simples: ficar com a opala! Não foi por causa dela, e apenas por isso, que você e Adalbert vieram até aqui?

‑Julga‑me assaz vil para arrancar a uma pobre louca o que ela considera como o seu talismã? Se bem que essa fosse ainda a melhor solução... Elsa, que perdeu tudo, ficaria com o suficiente para poder viver e, sobretudo, caso recebesse uma visita desagradável, bastar‑lhe‑ia desviar o perigo para cima do comprador, isto é, de mim, mas se...

‑ Sua Alteza Imperial o jantar está servido! O anúncio, proclamado à entrada da sala de jantar pelo vigoroso órgão vocal de Josef interrompeu bruscamente a frase de Aldo, que hesitou um momento sobre o que devia fazer em seguida. Viu que Elsa se dirigia sozinha, em toda a sua majestade, na direcção das duplas portas abertas e foi oferecer o braço a Mme. von Adlerstein, que lhe agradeceu com um sorriso enquanto Adalbert apanhava mesmo a tempo a mão de Lisa sob o nariz de Fritz, que teve de resignar‑se a fechar a marcha.

E foi o jantar mais incrível, delirante e angustiante que Morosini alguma vez presenciara. A sumptuosa mesa ‑ louça de prata‑dourada, cristais de Boémia dispostos num mar de rendas em volta de uma profusão de lírios, de rosas e de altas velas nacaradas em candelabros de cristal trabalhado ‑ estava posta para uma vintena de pessoas e como não havia mais nenhuma luz a iluminar a vasta sala decorada com tapeçarias representando personagens, toda aquela disposição faustosa banhava numa estranha atmosfera. A cada extremidade da mesa estava disposta uma poltrona de costas altas: eram as do amo e da senhora da casa mas, sem hesitar, Elsa foi sentar‑se na primeira, que Josef aliás afastava para que ela se instalasse. Aldo inclinou‑se para murmurar à condessa.

‑ Onde devo colocá‑la, senhora?

‑ Na verdade não sei ‑ cochichou‑lhe ela. ‑ Foi Elsa que quis tratar de tudo para esta noite. Queria realmente agradar‑lhe, mas começo a perguntar‑me se não cometi um erro...

A incerteza não demorou nada: a velha dama foi graciosamente convidada a sentar‑se à direita da princesa. De acordo com a etiqueta social, supondo que devia instalar‑se a seu lado, Aldo aprontava‑se a fazê‑lo, quando se ouviu a voz de Elsa dizendo:

‑ Um momento, por favor! Esse lugar não lhe é destinado. Em seguida, com um tom mais ameno porque aquele que empregara fora muito seco, acrescentou: ‑ Vejamos, meu caro, parece‑me natural que se sente diante de mim. Não se trata da nossa festa? Ambos devemos presidi‑la...

Ele inclinou‑se de novo e foi até à outra ponta da mesa onde um criado já o esperava. Pensava que os quatro outros convidados iriam ser distribuídos entre os dois pólos da mesa, mas não foi o caso: Elsa colocou Lisa à sua esquerda, depois Adalbert e, do outro lado, o jovem Apfelgrune cada vez mais cabisbaixo, sentou‑se ao lado da sua tia‑avó. Morosini ficou instalado no seu soberbo isolamento, separado dos outros por uma dezena de cadeiras vazias e com a curiosa impressão de se encontrar repentinamente diante de uma espécie de tribunal. Sem as flores e as pequenas chamas tremeluzentes que sobrecarregavam a mesa, o efeito teria sido impressionante, mas ele não era homem para se deixar perturbar por um capricho de mulher e, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo, desdobrou o guardanapo que colocou em cima dos joelhos. Além, no outro extremo da mesa, ninguém ousava olhar para ele e se a condessa tentou emitir um ligeiro protesto, foi depressa instada a calar‑se.

A refeição começou no meio de um silêncio pesado. Algures, na casa, os violinos tocavam uma obra de Mozart em surdina. Apesar do seu desejo em fugir daquela assembleia fantasmagórica, Aldo forçou‑se a conservar a calma. Sentia que se ia passar qualquer coisa, mas o quê? Além, na ponta de uma interminável via florida, Elsa provava a sua sopa com uma extrema lentidão, de cabeça direita e com os olhos no vazio. De vez em quando sorria, inclinava‑se ligeiramente para a direita e a esquerda, dirigindo‑se a uma das cadeiras vazias como se estivesse a ver alguém. Em redor deles, o bailado dos criados continuava o seu ritual...

Estava a ser servido o segundo prato que era uma carpa à húngara quando, subitamente, tiniu o ruído metálico de um talher pousado no prato. A voz de Lisa elevou‑se, tensa, nervosa, quase um grito:

‑ Isto é intolerável! A que rima esta refeição sinistra? Não temos nada a dizer‑nos?

‑ Lisa, por favor! ‑ murmurou a avó. ‑ Não me parece bem que falemos quando Sua Alteza não o deseja...

Mas Fritz já a secundava:

‑ Ela tem razão, tia Vivi! Esta comédia que nos fazem desempenhar é perfeitamente ridícula! Tal como a ideia de enviar Morosini aborrecer‑se sozinho para o outro extremo da mesa, como se estivesse a ser castigado. Venha para o pé de nós, amigo, e tratemos de jantar agradavelmente.

Elsa levantou‑se de rompante, esmagando o infeliz com um desprezo real:

‑ Que o senhor seja grosseiro isso não é novidade para mim. Quanto a esse homem, que não duvido um só momento que seja seu amigo, saiba que o coloquei ali a fim de ver até onde é que ele levaria a sua afronta... até onde levaria a sua odiosa impostura!

Aldo levantou‑se logo. Nalgumas passadas percorreu a vasta sala e parou diante daquela que o atacava daquela maneira. O seu rosto permanecia impassível, mas a cólera cintilava nos seus olhos que se tinham tornado verdes:

‑ Senhora, eu não sou nem grosseiro, nem descarado, nem impostor...

‑ Ah, não? Ainda vai pretender que é Franz Rudiger?

‑ Nunca o pretendi, minha senhora...

‑ Diga Vossa Alteza Imperial!

‑ Se assim o desejais! Sabei pois, Vossa Alteza Imperial, que sois vós, e unicamente vós, quem se obstinou em ver em mim aquele de quem tantas saudades tinha! Talvez devesse ter‑vos desiludido, mas acabáveis de passar por uma prova tão cruel que tive medo de vos causar um novo choque.

‑ Fomos nós, Elsa, quem lhe rogámos para continuar a desempenhar esse papel, até que você melhorasse! Oh, minha querida pequena, você estava cá num estado... ‑ defendeu a condessa. ‑ Meteu‑nos tanto medo e, além disso, você só se agarrava a essa ideia, aliás maravilhosa, de ter sido salva por aquele que amava. Estava certa de tê‑lo reconhecido, quis vê‑lo, falar‑lhe, e mesmo nessa altura estava convencida que se tratava de Franz... Isso desconsolava‑nos, mas como lhe retirar essa ilusão sem a magoar? Até dizia que ele estava mais belo que outrora.

‑ Diga logo que estou louca!

‑ Não ‑ respondeu Lisa com suavidade ‑ mas já fazia tantos anos que não via Rudiger! E não tinha nenhum retrato dele. Penso que, sem disso se aperceber, esqueceu‑se um pouco do seu rosto.

‑ Ele era inesquecível!

‑ Diz‑se sempre isso e, no entanto, você enganou‑se. Quando deu pelo erro?

A voz calorosa da jovem parecia produzir o efeito de um bálsamo tranquilizante. Elsa olhou para ela e os seus olhos perderam a sua expressão transviada.

‑ Há pouco ‑ respondeu. ‑ Quando os nossos convidados chegaram, estava ao pé da balaustrada da escadaria... Eu... eu queria ser a primeira a avistá‑lo... E então ouvi Josef tratar este homem de «senhor príncipe» e de «Excelência». Nessa altura compreendi que estavam a jogar uma comédia, que os inimigos da minha família, aqueles que me perseguem, tinham encontrado um meio para introduzir ao pé de mim um ser nefasto, encarregue de se apoderar do meu espírito e de...

‑ Não exageremos nada! ‑ explodiu Vidal‑Pellicorne. ‑ Salvo o respeito que devo a Vossa Alteza, ele salvou‑vos arriscando a sua própria vida!

‑ Tem a certeza? Enfim, bem quero acreditá‑lo... Era mais do que Aldo podia suportar.

‑ Cara condessa ‑ disse, inclinando‑se para a sua anfitriã ‑ julgo que esta noite já ouvi quanto bastasse. Permita‑me que me despeça.

Não teve tempo para acabar a frase: Elsa acabara de bater tão violentamente com o leque em cima da mesa que este se quebrou.

‑ Está fora de questão que saia sem pedir primeiro a autorização! E tenho algumas perguntas a colocar‑lhe: em primeiro lugar: «Quem é o senhor?»

‑ Aceite que eu me encarregue da resposta ‑ interrompeu Lisa, que prosseguiu num tom solene, destinado a impressionar o espírito incerto de Elsa. ‑ Efectivamente, foi a mim que coube a honra de apresentar o príncipe Morosini a Vossa Alteza Imperial, o qual pertence a uma das doze famílias patrícias que estiveram na origem de Veneza e que eram descendentes de vários dos seus doges. Acrescento que é um homem corajoso e leal... sem dúvida o melhor amigo que se possa ter.

‑ É aquilo que penso palavra por palavra ‑ apoiou Adalbert, mas este concerto de testemunhos não parecia conseguir furar a armadura de desconfiança da princesa cujo olhar, novamente perturbado, parecia contemplar uma cena invisível nas profundezas da sala.

‑ Veneza odeia‑nos!... Ela ousou apupar, injuriar o imperador e a imperatriz, a minha cara antepassada...

‑ Nunca houve apupos nem injúrias ‑ corrigiu Aldo. ‑ Apenas o silêncio. Admito que o silêncio de um povo seja terrível. As palavras que não são ditas e os gritos que não são proferidos, soam na imaginação daqueles a quem são silenciosamente endereçados, mas a opressão nunca foi um bom meio para arranjar amigos... O meu tio‑avô foi fuzilado pelos austríacos e não tenho que apresentar nenhumas desculpas!

Curiosamente, Elsa não respondeu nada. Os seus olhos regressaram ao homem que ousava enfrentá‑la, fixando‑se nele um instante, para depois baixarem:

‑ Dê‑me o seu braço ‑ murmurou ‑ e regressemos ao salão. Temos de falar... Vocês, continuem aqui! ‑ acrescentou. ‑ Quero ficar a sós com ele... Ah!... E mandem calar esses violinos!

Saíram com grande majestade, mas como em todas as situações dramáticas irrompe frequentemente um elemento burlesco, ao deixar a sala de jantar, Aldo ouviu Fritz, sempre tão chegado às realidades terrestres, resmungar:

‑ A carpa fria não presta para nada. Tia Vivi, não podia mandar aquecê‑la?...

Aldo mordeu os lábios para não desatar a rir. Era o género de reflexão que mantinha as pessoas com os pés bem assentes na terra e, atendendo ao que se passava, era uma boa coisa numa altura em que se sentiam a deslizar para o irracional.

Regressada à sala que tinham deixado há pouco, Elsa optou por sentar‑se ao pé do grande ramalhete de rosas brancas e passou uma mão ligeira e acariciadora pelas suas corolas:

‑ Teria gostado que elas fossem para mim ‑ murmurou.

‑ O costume diz que se deve oferecer flores à dama que nos convida ‑ disse Aldo com doçura. ‑ E não sou o único expedidor. Aliás, talvez nem tivesse ousado...

Elsa atirou para cima da pequena mesa o leque partido cuja rosa prateada ainda retinha os dois pedaços do ramo principal:

‑ É verdade que não foi o senhor que me ofereceu isto. Contudo, noutro dia, não se atreveu a... beijar‑me?

‑ Perdoe‑me! Foi a senhora que o pediu...

‑ E era essencial que desempenhasse o seu papel, não é verdade? ‑ murmurou com uma amargura que comoveu Morosini:

‑ Não tive de me forçar. Lembre‑se do que lhe disse e, palavra de honra, juro que estava a ser sincero. A senhora é muito bela e, sobretudo, possui um charme que ultrapassa as mais raras belezas. É muito fácil amá‑la... Elsa.

‑ Mas não me ama, pois não?

Sem olhar para ele, estendeu‑lhe cegamente uma mão, à procura de um apoio. Uma mão perfeita e tão frágil, que ele a colocou entre as suas com infinita doçura...

‑ Que importância tem, visto que não foi a mim que a senhora ofereceu o seu coração?

‑ Decerto, decerto... mas ele tem poucas hipóteses de obter a minha mão. Nem o meu pai nem Suas Majestades aceitariam um plebeu. O senhor é príncipe, ao que me disseram...?

Aldo percebeu que os fantasmas tinham tomado novamente conta dela:

‑ Um principezinho ‑ disse, sorrindo. ‑ Indigno de uma arquiduquesa. Ainda por cima um inimigo, dado que sou veneziano.

‑ Tem razão. É um grave impedimento... Ao menos ele é um bom austríaco e um fiel servidor da Coroa. Talvez o meu antepassado consinta em dar‑lhe um título de nobreza...

‑ Por que não? Será preciso perguntar‑lhe...

O terreno tornava‑se tão deslizante que Aldo apenas ousava avançar passo a passo. Desejava pôr termo a esta cena fora do tempo mas, por outro lado, teria desejado poder ajudar aquela mulher tão cativante, fantasista e infeliz quanto talvez o tivesse sido aquela de quem se esforçava por ressuscitar a imagem.

A ideia que lhe fora sugerida deve ter‑lhe agradado, pois ela pôs‑se a sorrir para uma visão que era a única a contemplar:

‑ É isso mesmo!... Vamos pedi‑lo juntos!... Tenha a amabilidade de ir dizer a Franz que venha ter comigo!

‑ Seria com todo o prazer, Vossa Alteza, mas não sei onde ele está.

Ela voltou na sua direcção um olhar que não o via...

‑ Ele ainda não chegou?... Oh, que surpreendente! Ele é sempre tão pontual. Não se importa de ir ver se ele não estará na antecâmara?

‑ Às ordens de Vossa Alteza!

Efectivamente Aldo saiu, deu alguns passos na galeria enquanto reflectia e depois regressou ao salão. Elsa levantara‑se. Caminhava de um lado para o outro do grande tapete florido apertando as mãos de encontro ao peito. A cauda do seu vestido acompanhava‑a com um ruído sedoso.

Ao ouvir regressar Morosini, voltou‑se rapidamente:

‑ Então?

‑ Ele ainda não chegou, Vossa Alteza... talvez haja algum problema mecânico...

‑ Mecânico? ‑ exclamou ela, horrorizada. ‑ Os cavalos não têm nada de mecânico e Franz não utilizaria outra coisa! Ambos adoramos os cavalos.

‑ Devia ter‑me lembrado. Que Vossa Alteza me desculpe... Posso aconselhá‑la a sentar‑se?... Vossa Alteza está a atormentar‑se e isso faz‑lhe mal.

‑ Quem não se atormentaria quando o noivo está atrasado na noite mais importante da sua vida?... Que fazer, meu Deus, que fazer?

A sua agitação aumentava. Aldo compreendeu que não conseguiria dar conta do recado sozinho, que precisava de arranjar ajuda. Pegou no braço de Elsa com força, para obrigá‑la a sentar‑se.

‑ Acalmai‑vos, por favor! Vou pedir que enviem alguém à sua procura... Ficai aí, bem tranquila! Sobretudo, não vos mexeis!

Largou‑a com tantas precauções como as que teria se receasse vê‑la soçobrar e, em seguida, pondo‑se vivamente de pé, dirigiu‑se para a sala de jantar. Já não estava ninguém à mesa. Os criados tinham desaparecido. Apenas Mme. von Adlerstein estava sentada na alta poltrona abandonada por Elsa. Ao pé dela, Adalbert fumava como uma locomotiva. Junto a uma janela, Fritz ia petiscando alguns bolos colocados numa grande taça. Quanto a Lisa, caminhava por detrás do assento da avó, de braços cruzados, cabeça inclinada para o peito mas, ao ver entrar Aldo, correu ao seu encontro:

‑ Então?... Onde é que ela está?

‑ Na sala ao lado mas, Lisa, não sei mais que fazer... Vá ter com ela!

‑ Primeiro diga‑me o que se passou.

Ele contou com a maior exactidão possível a sua estranha conversa com Elsa.

‑ Confesso‑lhe que me sinto culpado ‑ concluiu. ‑ Nunca devia ter aceite esta comédia.

‑ Aceitou‑a cedendo a um pedido nosso ‑ disse a condessa. ‑ E nós desejámo‑la porque pensávamos que um pouco de alegria poderia ser‑lhe benéfica. Depois, o senhor ir‑se‑ia embora e isso deixar‑me‑ia o tempo necessário para levá‑la para Viena, a fim de ser examinada...

‑ Certamente, mas agora ela mistura tudo e está à espera de Rudiger. E atormenta‑se por causa dele. Acabo de prometer‑lhe que ia tentar encontrá‑lo, pois ela teme um acidente...

‑ Bom, estou farta. Vou até lá ‑ disse Lisa, mas a avó reteve‑a pelo pulso:

‑ Não, espera só mais um momento! É preciso reflectir... O senhor diz que ela teme um acidente? E nós, nós sabemos que ele está morto... Não seria melhor acabar com isto e aproveitar o ensejo para lhe dar a saber... que não voltará a vê‑lo?

‑ Talvez não seja má ideia ‑ disse Adalbert ‑ mas é preferível não nos apressarmos... temos de dar tempo ao tempo. ‑ Aldo tem de sumir do seu horizonte. Não navega ela em plena confusão, pois não consegue discernir lá muito bem se ele é Rudiger ou não?

‑ Oh, estou inteiramente de acordo! ‑ disse o interessado. ‑ Tenho muito medo de cometer um erro, qualquer que seja a minha atitude! ...Vá ter com ela, Lisa! Não devemos deixá‑la muito tempo sozinha.

‑ E nós iremos logo a seguir! ‑ disse a velha dama. ‑ Josef! O velho mordomo, que se mantivera na escuridão longínqua da

sala, reapareceu sob o halo de luz:

‑ Senhora condessa?

‑ Não creio que acabemos esta refeição! Mande todos embora, mas sirva‑nos o café nos meus aposentos. Talvez com a sobremesa, para agradar ao senhor Frítz...

Nessa altura ouviu‑se a voz de Lisa chamando:

‑ Elsa!... Elsa, onde está?

E reapareceu para anunciar que a princesa deixara a sala!

‑ Vou até ao quarto dela! ‑ acrescentou.

Mas o quarto também estava vazio, tal como o resto do piso, tal como todas as outras divisões da casa... Coisa ainda mais curiosa, ninguém vira Sua Alteza... Alguém alvitrou que, se calhar, ela estava a passear pelo parque:

‑ Isso nada teria de extraordinário ‑ disse Lisa. ‑ Se a deixássemos fazer o que lhe apetece, ela estaria lá fora dia e noite...

Nesse momento ouviu‑se o ruído de um cavalo galopando, afastando‑se rapidamente. Precipitaram‑se todos para as cavalariças com as lanternas e, efectivamente, uma das portas estava completamente escancarada. Faltavam uma égua e uma sela de amazona, tal como afirmou o chefe‑palafreneiro, que acorreu ao ouvir o ruído:

‑ Só tive tempo para avistar um raio branco, como se fosse um longo rasto de nevoeiro escapando‑se bosque adentro... ‑ disse o homem.

‑ Meu Deus! ‑ gemeu Lisa, apertando nos ombros nus a capa de lã que apanhara ao passar pelo vestiário do pessoal. ‑ Como pode ela montar num cavalo com aquele vestido de baile e numa noite fria como esta? E para onde foi?

‑ Ter com ele... ‑ disse Aldo, correndo para as estacas. ‑ Volte para dentro, Lisa, vamos tentar encontrá‑la!

‑ Não vai tentar nada! ‑ exclamou a jovem. ‑ Para onde iria, em plena noite, trajado a rigor, quando não conhece a região, nem, aliás, os nossos cavalos?... Sim, bem sei que é um excelente cavaleiro, mas peço‑lhe que fique aqui! Não serviria de nada se partisse o pescoço!... Werner, chame os seus homens e dispersem‑se na direcção em que viu fugir o raio branco. Peguem em lanternas para seguir o rasto... O senhor Friederich vai juntar‑se a vocês. Ele conhece cada pedra da região. Nós vamos voltar para dentro e prevenir a polícia. É preciso revistar o norte de Ischl...

‑ Mas para onde levam os bosques em direcção aos quais a viram partir? ‑ perguntou Adalbert...

‑ Depende! Para a montanha... até Attersee, Traunsee. São tudo caminhos repletos de obstáculos, de perigos e creio que ela não conhece a região melhor que você... minha pobre, pobre Elsa!

A voz da jovem quebrou‑se ao pronunciar as últimas palavras. Adivinhando que ela ia rebentar em soluços, Aldo estendeu as mãos na sua direcção mas, dando bruscamente meia volta, Lisa fugiu a correr para dentro de casa.

‑ Deixemo‑la! ‑ murmurou Adalbert. ‑ Ela só precisa da avó... Vamos antes pegar no carro e tentemos desempenhar a parte que nos cabe no concerto delirante desta noite!

Seguindo os conselhos de Josef, que lhes forneceu um mapa da estrada, subiram na direcção de Weissenbach e Burgau, sobre o Attersee, parando frequentemente para ouvir os ruídos da noite. Não se via a lua. Estava escuro e frio e ambos pensavam na mulher vestida de cetim e de flores que galopava às cegas através daquela escuridão. Estaria ainda viva? A sua égua podia ter‑se embalado, um ramo baixo podia tê‑la atingido. A natureza tão sedutora daquele canto da Áustria, constelada por fontes aquáticas e grandes lagos tranquilos, parecia‑lhes agora ameaçadora, pérfida, repleta de armadilhas, muitas das quais podiam revelar‑se mortais.

‑ Em que estás a pensar? ‑ perguntou de repente Morosini, depois de ter aceso o seu vigésimo cigarro.

‑ Procuro não pensar...

‑ Porquê? Estás com medo que a cavalgada de Elsa seja uma corrida para o abismo, não é?

‑ Não estou com medo, tenho a certeza... Não pode acabar de outra maneira.

‑ Por causa da opala? Também acreditas no seu poder maléfico?

‑ Fomos bem obrigados a constatar o da safira e o do diamante. Esta malfadada pedra não escapa à regra. Só que desta vez pergunto‑me se a nossa demanda não irá terminar aqui. E se Elsa desaparecer?

‑ Não lhe atribuas poderes sobrenaturais: mesmo que às vezes dê essa impressão, ela não é nenhum fantasma. Portanto, tentemos raciocinar com realismo. Primeira hipótese: ela tem um acidente e morre. Nesse caso penso que conseguiremos que a condessa nos venda uma jóia que não deseja guardar. E quanto mais depressa melhor, pois temos de contar com Solmanski. Podemos vê‑lo reaparecer dentro em pouco...

‑ Hum, hum! ‑ grunhiu Vidal‑Pellicorne. ‑ Segunda hipótese: encontramo‑la, ela está a salvo... e então? Lembro‑te que para ela esse objecto é um talismã.

‑ Eu sei. Nesse caso, será preciso voltar ao que havíamos decidido em Halstatt: mandar copiar a jóia, com tantas mais hipóteses de sucesso porquanto poderemos sem dúvida obter uma fotografia. Evidentemente, é uma solução muito dispendiosa, mas é a melhor: Elsa possuirá uma verdadeira jóia em cujo poder poderá acreditar quanto quiser, mas desta vez sem correr qualquer perigo.

‑ Pensas que Lisa estará de acordo? Ela sempre detestou a ideia de regateio que a nossa presença lhe sugeria.

‑ E isso faz‑te muita pena? ‑ perguntou Aldo, sarcástico.

‑ Confesso que um pouco e custa‑me a acreditar que a ti não te faça nada.

‑ Não há comparação possível entre os sentimentos e a missão de que estamos incumbidos. Esta é que é importante, pois trata‑se de um povo...

Adalbert não respondeu e concentrou‑se na condução. Pelo caminho, encontraram Fritz e um dos moços da estrebaria que, segurando na rédea do cavalo e de nariz posto no solo, procuravam descobrir a pista que se perdera. Claro, ainda não tinham deparado com nada. E ninguém encontrou o que quer que fosse...

Já era dia quando regressaram a Rudolfskrone, onde imperavam dois polícias no meio de uma atmosfera de catástrofe. Nem Elsa nem a égua tinham voltado a aparecer... Também não se via Lisa..

‑ Vão descansar um bocado! ‑ aconselhou‑os Mme. von Adlerstein, cujo rosto cansado e olhos apagados exprimiam suficientemente a angústia por que passava. ‑ Vocês comportaram‑se como verdadeiros amigos e nunca poderei agradecer‑lhes o que fizeram.

‑ Tem a certeza que não precisa mais de nós?

‑ Absoluta. Venham cá jantar hoje à noite. Se houver alguma novidade até lá, avisá‑los‑ei.

‑ Onde está Lisa?

‑ Ela acaba de partir mas tranquilizem‑se, eu obriguei‑a a dormir três horas e a restaurar‑se.

Foi Fritz quem, duas horas depois, lhes veio trazer a notícia: Lisa regressara com a égua... Quando chegara ao pé da cascata onde Elsa gostava de se deslocar nos últimos dias, a jovem vira o animal cuja rédea ficara talvez casualmente presa a um ramo... Da cavaleira, o único sinal que havia era a mantilha branca presa no ângulo agudo de um rochedo na parte de baixo da encosta. Ainda mais em baixo, era o fragor da corrente que rebentava em manchas esbranquiçadas... Depois, eram as profundezas retumbantes da queda de água...

‑ Ela tinha partido noutra direcção ‑ disse Fritz. ‑ Não procurámos nesse sítio. Nem sequer sabemos que caminho ela tomou para lá chegar... mas uma coisa é certa: ela caiu e para tirá‑la de lá... É horrível, não é? Estão todos abatidos.

‑ Até por menos, seria caso para isso ‑ murmurou Morosini, que se voltou para o amigo. ‑ Tínhamos ambos razão: era mesmo a corrida para o abismo.

‑ Quis ir ter com o noivo e foi a morte que encontrou. Ela estendeu‑lhe os braços...

No silêncio que se seguiu, Fritz sentiu‑se incomodado.

‑ Suponho que os verei daqui a pouco em casa da tia Vivi. Claro, a partida para Viena foi adiada. E... vocês? Que vão decidir? ‑ acrescentou, depois de uma ligeira hesitação...

‑ Vou despedir‑me ‑ suspirou Aldo. ‑ Tenho absolutamente de voltar a casa... mas o meu convite mantém‑se.

‑ É muito gentil da sua parte e agradeço‑lhe, mas é melhor que eu fique em Rudolfskrone enquanto durarem as buscas. Depois, talvez... ‑ disse, com um olhar de cocker à espera de uma guloseima. ‑ Quando Lisa se for embora... ou quando estiver farta de me ver!

‑ Será sempre bem‑vindo! ‑ disse Aldo, com sinceridade. Sentia uma espécie de ternura por aquele rapaz desajeitado, mas comovente no seu amor obstinado, que adivinhava desprovido de esperança. Apesar da sua paixão pelas mecânicas modernas, o rapaz enganara‑se de século: o tempo dos Minnesanger e dos cavaleiros suspirando toda a vida por uma bela inacessível ter‑lhe‑ia servido muito melhor! ‑ Venha a Veneza ‑ concluiu, apertando a mão do jovem. ‑ Verá: é uma cidade que opera milagres. Pergunte a Lisa!

‑ O milagre seria ir até lá com ela, mas não sonhemos!

Uma vez sós, Morosini e Vidal‑Pellicorne permaneceram um bocado embrenhados em pensamentos do mesmo teor. Foi Adalbert o primeiro a traduzir o sentimento comum:

‑ Desta vez, está tudo acabado! Não podemos salvar essa infeliz e a opala jaz no fundo da água, em sua companhia. É uma verdadeira catástrofe.

‑ Talvez se encontre o corpo, não?

‑ Não acredito. Contudo, se isso não te aborrece, vou ficar aqui ainda mais alguns dias para esperar pela continuação dos acontecimentos.

‑ Por que pensas que isso me aborrece?

O arqueólogo corou subitamente até às suas madeixas em perpétua desordem:

‑ Tu... poderias julgar que procuro pretextos para ficar o mais tempo possível ao pé de Lisa.

‑ E por que não, afinal de contas? Não possuo qualquer direito sobre ela, como também não me iludo acerca dos seus sentimentos a meu respeito. De ti, ela gosta... portanto...

‑ Como dizia Fritz, não sonhemos! Dito isto, em seguida irei certamente a Zurique para tentar obter um encontro com Simon. Ele tem de ser absolutamente posto ao corrente...

‑ Se fosse a ti, primeiro iria ao palácio Rothschild, em Viena. Talvez o barão Louis te saiba dizer onde reside o seu velho amigo, o barão Palmer... E assim poderás ainda passar mais alguns dias ao pé de Lisa.

Demasiado emocionado para responder, Adalbert pegou nos ombros do amigo e abraçou‑o

Na manhã seguinte, Morosini deixava Bad Ischl ao volante do seu pequeno Fiat. Sozinho...

 

                     A PESTE DE VENEZA

 

     UMA ARMADILHA MUITO BEM MONTADA

Era a primeira vez que Morosini regressava a casa de carro. Os barcos costumavam bastar àquele filho da Sereníssima República, apaixonado do mar. E para as longas viagens ao exterior, as suas preferências iam para os grandes expressos europeus, confortáveis como palácios ambulantes.

Mesmo assim, não deixava de estar encantado com a viagem efectuada: o seu pequeno carro funcionava optimamente e ia permitir‑lhe chegar de surpresa, graças à qual esperava descobrir o que se passava realmente em sua casa. Não gostava de voltar com pezinhos de lã. A alegria que sentia ao regressar à sua querida casa ressentia‑se com o facto, mas que podia fazer?

Ao chegar a Mestre, confiou o carro à única garagem da cidade onde contava deixá‑lo até que voltasse a precisar dele. Depois, hesitou: podia embarcar num veleiro, mas eles eram muito lentos e já passava das quatro. Consequentemente optou por um dos comboios regionais que ligavam Mestre a Veneza, várias vezes ao dia. Efectivamente, a bela do Adriático só estava ligada à terra pelo duplo fio de aço dos carris que percorriam os três mil e seiscentos metros da ponte sobre a Laguna.(1)

Chegado à gare de Veneza alguns minutos depois, Morosini tinha a certeza que ninguém o esperaria, pois não era a hora da chegada de nenhum comboio internacional. No entanto, não pôde evitar a surpresa um tanto chocada do bagageiro, quando pegou nas suas malas:

 

*1. A estrada da ponte será construída em 1933. Com um grande obrigado a Leonello Brandolini por esta preciosa informação!

 

‑ Nunca teria acreditado nisto! Vós, Excelência, no comboio regional?!

‑ Vim de carro até Mestre e ainda haverá mais vezes em que terei de apanhar outros pequenos comboios. Os tempos mudam...

‑ Lá isso, bem o pode dizer! ‑ murmurou o homem, designando com o queixo dois jovens, em camisa e bivaque pretos, que deambulavam lentamente de mãos atrás das costas. ‑ Agora vê‑se por todo o lado estes tipos vindos não se sabe de onde e que têm ar de ameaçar toda a gente... Aliás, têm mão expedita!

‑ E a polícia? Não intervém?

‑ A sua opinião não é pedida para nada! Para a polícia, o melhor é não se mexer... Ora bem! Ei‑los que vêm para aqui!

Efectivamente, os milicianos interessavam‑se por este viajante elegante desembarcando em condições que lhes pareciam anormais:

‑ De onde vem o senhor? ‑ perguntou um deles, com o sotaque áspero da Romanha e, claro está, sem a mínima saudação.

‑ Venho de Mestre, onde deixei o meu carro. É proibido? Um dos homens, que palitava os dentes, grunhiu:

‑ Não, mas não é normal. Ao menos, o senhor é estrangeiro?

‑ Sou mais veneziano que você e regresso a minha casa... Bem decidido a não se deixar importunar mais por aqueles dois

grosseiros, ia prosseguir caminho, mas eles não tinham ainda acabado.

‑ Se é daqui, diga lá como se chama!

‑ Só tem de perguntar a qualquer empregado da gare: todos me conhecem!

‑ É o príncipe Morosini! ‑ apressou‑se a responder o bagageiro ‑ E, em Veneza todos gostamos dele, porque é uma pessoa generosa...

‑ Mais um desses aristocratas que nunca fizeram nada com as mãos?

‑ Engana‑se, meu amigo, eu trabalho! Sou antiquário... e tenho a honra de saudá‑lo! Vem, Beppo!

E, desta vez, virou‑lhes as costas, maldizendo‑se por ter tido a ideia de chegar de comboio... A viagem por mar ter‑lhe‑ia evitado este encontro desagradável mas, de imediato, expulsou isso vivamente do espírito enquanto embarcava na lancha do hotel Danieli, cujo condutor, que viera buscar bagagens, se propusera transportá-lo. Para ele, o trajecto através do Grande Canal representava sempre um momento de graça e desejava desfrutar a sua beleza sob um pôr do Sol como se viam poucos no início do Inverno. Um dia como aquele que acabara de viver ‑ céu azul e ar ameno, carregado de odores marinhos! ‑ era coisa excepcional no mês de Novembro. Mas, quando a lancha desviou à direita para entrar no rio Foscari, Morosini teve um choque desagradável: à entrada do seu palácio, um miúdo de camisa negra, que parecia o irmão mais novo dos da estação, estava de guarda com uma arma em bandoleira.

‑ Pois bem ‑ disse o homem do Danieli ‑ dir‑se‑ia que tem visitas, don Aldo. Essa gente começa a ser demasiado invasora!

‑ Efectivamente, já é demais! ‑ disse este, entredentes.

E sem esperar que o visitante indesejável lhe fizesse a menor pergunta, antecipou‑se‑lhe logo perguntando‑lhe o que fazia ele ali. O jovem miliciano começou por corar sob o olhar tempestuoso do príncipe, mas nem por isso abandonou o tom insolente que parecia ser usual:

‑ Isso não lhe diz respeito. E o senhor, o que quer?

‑ Regressar a minha casa! Sou o seu proprietário.

O outro afastou‑se contrariado, não se prestando a dar qualquer ajuda para desembarcar as bagagens. Morosini agradeceu ao seu condutor e, abandonando as malas no meio do vestíbulo, dirigiu‑se para o seu escritório depois de ter chamado Zaccaria. Sensível aos ambientes, não gostou nada daquele que ali reinava e até começou a sentir despontar uma ligeira inquietação.

Quem apareceu foi Guy Buteau, mas tão pálido, tão perturbado, que Aldo julgou que ele ia desmaiar. Precipitou‑se para ampará‑lo:

‑ Guy! O que é que se passa? Está doente?

‑ De angústia, sim, mas, Deus seja louvado, o senhor chegou! Recebeu o meu telegrama?...

‑ Não recebi nada. Quando o enviou?

‑ Anteontem. Logo após... o drama!

‑ Eu devia estar a caminho. Mas de que drama está a falar?

‑ Cecina e Zaccaria... foram presos pelos agentes do Fascio. E, tudo isto, porque quiseram pôr na rua esse homem, quando ele pretendeu instalar‑se aqui... Oh, Aldo, tenho a sensação de estar a viver um pesadelo!

‑ Mas que homem? Desembuche, meu Deus!

Incapaz de suster o olhar fulgurante de Morosini, Buteau desviou o seu:

‑ O... o conde Solmanski. Ele... ele chegou há dois dias. Foi a sua filha quem o trouxe...

‑ O quê?

Desta vez Aldo acreditou mesmo que um dos dois estava a enlouquecer e se não era Guy, tinha de ser ele. Solmanski! Aquele assassino, aquele miserável, em sua própria casa! E conduzido por Anielka? Dispensou a si mesmo alguns segundos para encaixar o golpe, mas continuava a não entender nada... a menos que a mais manhosa das mulheres lhe tivesse pregado uma partida infernal quando afirmara que se escondia da família para melhor despistar os seus pretensos perseguidores... O que, afinal de contas, não o surpreendia verdadeiramente. Anielka gozara‑o desde o primeiro encontro.

‑ Não me diga que ousaram instalar‑se aqui!

‑ Sim. Vieram escoltados por milicianos. Sabia certamente ‑ pois, ao que me confiou Cecina, o senhor telefonou na outra noite ‑ que ela... que essa mulher, que pretendia ser sua noiva, passava a maior parte do tempo aqui?

‑... graças a esse jovem imbecil do Pisani, a quem ela pôs a cabeça à roda e ao qual já irei esfregar as orelhas! A propósito, onde é que ele está? Continua a arrulhar aos pés da sua bela?

‑ Não. Desapareceu depois de ela lhe ter rido na cara, tratando‑o de simplório. Deve estar escondido nalgum lado, doente de vergonha.

‑ Faz muito bem: isso evitar‑me‑á despedi‑lo. Mas fala‑me de Cecina e do esposo. Que ocorreu precisamente?

Foi tudo simples e rápido. Ao ver desembarcar os dois Solmanski, de armas e bagagens, acompanhados por um chefe dos Camisas Negras e pretendendo assentar arraiais no palácio Morosini, Cecina incorrera na mais memorável das suas cóleras, das quais toda a cidade reconhecia, com uma certa admiração, a excepcional virulência. Palavra puxa palavra e, perante o que considerava como uma violação do seu território e uma insuportável infracção à justiça, a explosiva napolitana dera a entender o que pensava dos novos mestres da Itália. O efeito fora imediato: apoderaram‑se imediatamente dela e, como Zaccaria também se lançara na disputa para defender a sua mulher, tinham sido ambos presos por ofensa ao Duce sagrado!

‑ Juro‑lhe, Aldo, que fiz tudo o que pude para que os libertassem, mas esse Fabiani que os acompanhava, ameaçou‑me que me sucederia o mesmo. Disse que Solmanski era um amigo pessoal de Mussolini e que o facto de o enviar para se instalar em sua casa era sinal de um favor extraordinário que convinha apreciar de outra forma, sem ser através de injúrias. Expliquei que na sua ausência era mais que delicado fazer entrar quaisquer estranhos sob o seu tecto. Responderam‑me que a sua futura esposa e o pai não podiam ser considerados como estranhos...

‑ Outra vez essa história insensata? Porém, no que toca a esse assunto não escondi a minha maneira de pensar a... lady Ferrais!

‑ Talvez ela tenha julgado que a quisesse pôr à prova, ou algo do género, quem sabe? O caso é que tive de ceder se não quisesse deixar‑lhe a casa sem vigilância.

‑ Quem pensaria em criticar‑lhe fosse o que fosse, meu amigo? ‑ disse Aldo, perturbado por tanto pesar. ‑ Eles estão aqui, neste momento?

‑ No salão das lacas, onde Livia lhes deve ter servido o chá.

‑Julgam‑se verdadeiramente em casa! ‑ exclamou Morosini raivosamente. ‑ Mas, agora penso, como é que se alimentam? Quem substitui Cecina nos fogões?

O antigo preceptor inclinou a cabeça e ficou todo corado:

‑ Oh... no que diz respeito ao chá, ao café, as pequenas, Livia ou Fulvia, desenvencilham‑se bem. Quanto ao resto... sou eu!

‑ É você quem cozinha? ‑ perguntou Morosini estarrecido. ‑ Eles ousaram pedir‑lhe isso?

‑ Não, fui eu que assim decidi. Sabe bem o amor que a nossa Cecina dedica ao seu domínio, aos seus tachos, e pensei que a ausência lhe custaria menos se... um amigo se encarregasse disso. Ela já se deve sentir bem infeliz, para ter ainda de se atormentar com uma violação do seu domínio privado.

Comovido, Aldo abraçou o velho homem e apertou‑o um momento de encontro ao seu peito. Esta prova de amizade, prestada àquela que ele apelidava a sua ama‑de‑leite, ia‑lhe direito ao coração, mas já sabia desde há muito que, através das inúmeras discussões e controvérsias culinárias, os laços entretecidos entre a napolitana e o borgonhês tinham‑se tornado fraternos.

‑ Espero que dentro em breve ela lhe possa vir dizer o que pensa a esse respeito ‑ murmurou. ‑ Agora, vou ocupar‑me dos meus invasores! E se couber apenas a mim...

‑ Vá com calma, Aldo! ‑ rogou o sr. Buteau. ‑ Não se esqueça que estamos guardados e que bastará um apito ao miúdo sinistro que obstrói a nossa porta para chamar um esquadrão dos seus colegas! O senhor tem de permanecer connosco a todo o custo, senão essa gente é capaz de lhe tirar tudo!

‑ Ainda não chegámos lá!

Contudo, disposto a trepar os degraus quatro a quatro, ele abrandou o andamento, para arranjar o tempo necessário para esfriar a sua cólera. Se tivesse apenas prestado ouvidos à sua indignação, uma vez passada a entrada do salão das lacas, teria certamente pegado nesse velho demónio do Solmanski, enviando‑o directamente para o Grande Canal através de uma janela.

Ao chegar ao portego, a longa galeria onde, sob o olhar altaneiro do doge Francesco Morosini, o Peloponésio, se tinham reunido as grandes recordações dos combates e das glórias navais da família, pousou em cima de uma das arcas da marinha o sobretudo, as luvas e o chapéu, com os olhos postos na porta atrás da qual permanecia escondido o inimigo. Tinha a sensação que um verme imundo estava a apodrecer o fruto magnífico que era a sua casa, amadurecida por séculos de grandeza! Mas tinha mais que fazer do que filosofar! Inspirando profundamente, como fazia sempre antes de mergulhar, abriu a porta com um gesto decidido e entrou...

Estavam ambos ali, pai e filha, sentados dos dois lados de uma mesinha antiga com uma larga superfície prateada, ele vestido de preto como de costume, com o monóculo que erguia com arrogância a sua espessa sobrancelha grisalha; ela, trazendo um vestido de lã fina, muito fresco, que lhe dava aquele ar de fada das neves, ao qual Aldo fora tão sensível mas que desta vez o deixou completamente frio.

Anielka foi a primeira a vê‑lo. Pousando a chávena, foi ao seu encontro, de mãos estendidas:

‑ Aldo! Finalmente, chegou! Estou tão feliz... Preparava‑se para o abraço. Ele parou‑a com um gesto seco e

sem sequer a olhar, disse:

‑ Não julgo que o seja por muito tempo.

Depois, encaminhando‑se directamente para o conde que o olhava com um semi‑sorriso, mas sem se mexer um milímetro, desferiu:

‑ Ponha‑se a andar daqui para fora! Não tem nada a fazer em minha casa!

Bruscamente levantada, a sobrancelha largou o seu círculo de vidro enquanto que, pousando a chávena, Solmanski parecia encolher‑se sobre si mesmo. A sua boca rasa desenhou um esgar de desagrado:

‑ Pois bem, que acolhimento! Esperava melhor de um homem a quem acabo de satisfazer as aspirações mais profundas, assegurando‑lhe a felicidade.

‑ A minha felicidade? Verdadeiramente? Mandando para a prisão aquela que foi a minha segunda mãe e o meu mais fiel servidor? E julgava que eu ia engolir isso?

Solmanski teve um gesto evasivo, levantou‑se e deu alguns passos sobre o tapete da antiga saboaria:

‑ Talvez tenha essa mulher em grande estima, mas ela deu provas de desconhecer os seus interesses mais elementares ao recusar‑me a hospitalidade, que foi contudo solicitada muito cortesmente pelo grande homem que chamou a si o destino deste país e que...

‑ Que pensa estar a fazer neste momento? Uma reunião eleitoral? Não conheço Benito Mussolini, ele não me conhece e apenas desejo que as nossas relações fiquem por aí! Isto dito, a residência dos Morosini nunca serviu de asilo a um assassino e isso é o que o senhor é. Por isso, ponha‑se a andar! Vá para Roma, para onde quiser, mas deixe este palácio! E leve a sua filha consigo!

‑ Fica ofendido ao vê‑la? Seria bem o primeiro e, até agora, não pensava de outra maneira?

‑ Já há algum tempo que mudei de opinião a seu respeito: ela é demasiadamente boa comediante para o meu gosto. Espera‑a um grande triunfo no teatro!

O protesto indignado de Anielka foi secamente interrompido pelo seu pai que a convidou num tom amável, mas firme, a retirar‑se para o seu quarto:

‑ Vamos certamente dizer‑nos coisas muito desagradáveis. Prefiro que não as ouças: arriscar‑te‑ias a lembrares‑te delas mais tarde.

Para surpresa de Morosini, Anielka não protestou. Esboçou um gesto para a estátua rígida que se erguia diante dela e, depois, deixou cair a mão e saiu sem que os seus passos arrancassem o mínimo rangido do soalho. Quando a porta se fechou atrás dela, Aldo foi colocar‑se diante do grande retrato a corpo inteiro de sua mãe, pintado por Sargent, que fazia frente ao da heroína da família, Felícia, princesa Orsini e condessa Morosini, cuja imperiosa beleza Winterhalter fixara numa tela. Aldo permaneceu parado diante do quadro e, com as mãos entrelaçadas atrás das costas, enfrentou o homem que tinha a certeza de ser o comanditário do crime. O sorriso que lhe dirigiu foi então um poema de desdenhosa insolência:

‑ Na altura em que estava apaixonado por ela, perguntei‑me muitas vezes se... lady Ferrais ‑ não podia forçar‑se naquele momento a tratá‑la pelo seu primeiro nome ‑ era sua filha. Agora tenho a certeza: ela parece‑se demais consigo... e é por isso que não gosto dela!

‑ Oh, os vossos sentimentos não têm grande importância! Não serão o primeiro casal a deixar os assuntos do coração de lado, se bem que eu a creia muito capaz de reconquistá‑lo. A sua beleza é daquelas que não deixam nenhum homem indiferente. A manha é uma diabrura bem feminina, mas que se perdoa facilmente quando a mulher possui um rosto angélico e um corpo capaz de danar o próprio diabo!

Morosini desatou a rir.

‑ Com ele seria um verdadeiro incesto! Mas, diga‑me, Solmanski, o senhor estará por acaso a pensar em tornar‑se meu sogro?

‑ Bravo! O senhor compreende depressa! ‑ desferiu o outro, retorquindo‑lhe com a mesma ironia sarcástica. ‑ Decidi efectivamente oferecer‑lhe a mão de Anielka. Bem sei que houve uma época em que a teria recebido de joelhos mas, nessa altura, uma tal união teria estorvado os meus projectos. Hoje não se passa o mesmo e só cá vim para concluir este casamento.

‑ Não lhe falta desplante! Ao pé de si, Tartufo era um aprendiz. Porque não acrescenta ainda que a minha residência lhe pareceu um excelente refúgio contra todas as polícias que o procuram? E não é por pecadilhos: vários assassinatos, sequestro... roubo também, pois o senhor tem de certeza algo a ver com o roubo da Torre de Londres, não é verdade?

O conde desabrochou subitamente como uma flor acariciada pelos primeiros raios de sol:

‑ Ah, então adivinhou? É mais inteligente do que eu pensava e confesso que... não estou nada descontente com esse golpe! Mas, visto que aborda a questão do peitoral, e que eu tenho em minha posse a safira e o diamante, penso que não veria grande inconveniente em entregar‑me a opala, visto que o senhor e Simon Aronov já perderam pelo menos três quartos da sua totalidade...

‑ O senhor também perdeu ‑ retorquiu Morosini, subitamente calmo, sabendo muito bem que as jóias na posse de Solmanski eram falsas. ‑ Se desejar esta pedra, terá de ir buscá‑la às entranhas da terra, no fundo da cascata situada nas imediações de Ischl, para onde se lançou a infeliz, condenada por si a morrer devorada pelas chamas de uma explosão. Ela escolheu a água.

‑ Está a mentir! ‑ rabujou o homem cujas narinas se contraíam curiosamente.

‑ Palavra de honra que não, se bem que o senhor deva desconhecer o sentido desta palavra. O jornal austríaco que comprei ontem e que se encontra nas minhas bagagens refere‑se ao acidente. Quanto a Mlle. Hulenberg, sem que os seus criados dessem por isso, ela conseguira retirar a Águia de diamantes do resto das jóias. Por uma estranha aberração, via nela o seu mais querido talismã e trazia‑a constantemente escondida nas suas roupas. Pois é, Solmanski! Durante vários dias o senhor teve a opala ao alcance da mão. Infelizmente ela pô‑la na sua última refeição e levou‑a consigo na morte... juntamente com um bem bonito diadema que Mme. von Adlerstein lhe emprestara para a ocasião. O senhor terá de contentar‑se com as jóias que roubou, ainda assim com uma consolação: já não será mais obrigado a partilhá‑las com a sua irmã. Onde ela está, não há muitas hipóteses que as possa usar durante muito tempo!

‑ Foi por sua causa que ela foi presa ‑ guinchou o conde. ‑ Gabar‑se disso diante de mim é um grave descuido!

Sob o impulso do rancor, a arrogância do pretenso polaco esboroava‑se. Aldo teve o prazer de acender um cigarro e de soprar o fumo à cara do seu inimigo antes de declarar:

‑ Foi uma verdadeira alegria para mim e não julgo que isso lhe faça grande pena: o senhor não é homem de grandes sentimentos...

‑ Talvez, mas também sou um homem que gosta de acertar as contas e a sua parece‑me que aumenta singularmente. Quanto à opala, não desespero deitar‑lhe um dia a mão: um corpo é coisa que se encontra, mesmo numa cascata.

‑ Na condição de, pelo menos, poder regressar a Ischl, onde o Director da Polícia, o senhor Schindler, ficaria felicíssimo em recebê‑lo!

‑ Cada coisa a seu tempo. Por ora é de si e do seu próximo casamento que estamos a falar: dentro de cinco dias, o senhor fará da minha filha uma deliciosa princesa Morosini!

‑ Não conte com isso! ‑ articulou Aldo.

‑ Quer apostar?

‑ Em quê?

Os olhos do conde, frios como os de um réptil e os do príncipe, cintilantes, tinham‑se cruzado e não mais se largavam. Um sorriso cruel retorceu os finos lábios de Solmanski:

‑ Na vida dessa mulher gorda a quem chama a sua segunda mãe e na do seu companheiro. Eu e os meus amigos, tratámos que os aprisionassem num local suficientemente secreto para que a polícia oficial não tenha qualquer hipótese de encontrá‑los, e de onde eles poderão desaparecer sem a menor dificuldade... E é o que lhes acontecerá se recusar.

Um desagradável fiozinho de suor frio deslizou pela espinha retesada do príncipe‑antiquário. Sabia aquele pirata capaz de mandar executar a sua ameaça sem a menor hesitação, e até com grande prazer. A ideia da morte, talvez horrível, que ele reservava ao velho casal que Aldo amava desde a infância foi‑lhe intolerável, mas recusava‑se a dar‑se por vencido tão depressa e tentou ainda lutar:

‑ Terá Veneza caído tão baixo para que um monstro da sua espécie possa perpetrar as suas patifarias à vontade sem que aqueles que a governam o possam impedir? Tenho muitos amigos...

‑ ... dos quais nem um levantará um dedinho! Não é Veneza que está a cair em decrepitude, é a Itália inteira. Já era mais que tempo que se erguesse um líder e muitos o reconhecem. Presentemente a lei são os seus servos que a fazem. E tenho a honra de ser seu amigo. Você também o será, a partir da altura em que lhe obedecer! Ele será muito maior que qualquer dos vossos doges...

‑ Isso ainda está para ver. Nós aqui detestamos a palavra obediência e, quanto a mim, não partilharei consigo nem a amizade por um santo!

‑ Isso quer dizer que recusa? Tenha cuidado: se dentro de cinco dias a minha filha não se tiver tornado sua esposa, os seus criados não serão mortos de imediato mas, cada dia após o prazo, trazer‑lhe‑ão uma prenda da parte deles: uma orelha... um dedo!...

Era mais do que Aldo podia suportar. Tomado por uma fúria cega, por uma irresistível necessidade de calar para sempre aquele rosto impudente, de emudecer definitivamente aquela voz feroz, lançou‑se com todas as suas forças sobre o conde, que não teve tempo de se defender, derrubou‑o sobre o tapete, arrastando atrás deles a bandeja que caiu com um estrondo apocalíptico e, apertando os seus longos dedos nervosos à volta do pescoço mal protegido pelo colarinho de cantos curtos, começou a estrangulá‑lo, gozando logo que ouviu o primeiro estertor. Ah, a divina sensação de senti‑lo debater‑se sob o seu punho impiedoso! No entanto, surgiu alguém que o puxou para trás:

‑ Largue‑o, Aldo, suplico‑lhe! ‑ rogou a voz aterrorizada de Guy Buteau. ‑ Se o senhor o mata ninguém escapa!

As palavras conseguiram penetrar como um pedaço de gelo na cabeça fervente do príncipe. As suas mãos afrouxaram o aperto e levantou‑se lentamente, sacudindo automaticamente a poeira da dobra das calças, antes de limpar com o lenço o suor frio que lhe perlava a testa: ‑ Desculpe‑me, Guy! ‑ proferiu, numa voz rouca. ‑ Creio que me tinha esquecido de tudo o que não fosse o meu desejo em acabar de uma vez por todas com este pesadelo vivo! Por nada deste mundo, quereria que vos acontecesse algo de mal, a si ou a qualquer outra pessoa que este tecto sempre albergou.

Sem olhar para a sua vítima, que o antigo preceptor ajudava caridosamente a levantar‑se, saiu do salão e o bater da porta ecoou por todo o portego.

Anielka esperava‑o, de pé e de mãos juntas, junto à arca onde ele deixara as roupas. Ergueu para ele um olhar cheio de lágrimas e suplicante:

‑ Não podemos falar um momento a sós? ‑ perguntou.

‑ O seu pai já falou por ambos! Contudo, deixe‑me felicitá‑la: a sua armadilha foi muito bem urdida, com mão de mestre, mas é verdade que frequentou a boa escola! E eu fui apenas um imbecil ao deixar‑me apanhar mais uma vez pela sua personagem de criatura frágil perseguida por todas as forças maléficas... Nunca pude saber quem era você na realidade, lady Ferrais, mas presentemente não tenho o menor desejo de o saber! Queira deixar‑me passar!

Ela inclinou a cabeça e afastou‑se.

Após uma curta hesitação, Aldo decidiu sair e vestiu‑se. Na escada encontrou Livia que começava a transportar as suas bagagens. Viu que ela tinha os olhos vermelhos:

‑ Deixe a mala grande, eu ocupo‑me dela daqui a pouco. E... não tenha medo, Livia! Estamos a viver um pesadelo mas prometo‑lhe que ele acabará.

‑ E a nossa Cecina? E Zaccaria?

‑ Sobretudo eles! Eles, antes de tudo!... mas se está com medo, vá passar algum tempo a casa de sua mãe.

‑ Para deixar Vossa Excelência fazer o seu café sozinho? Quando se pertence a uma casa, don Aldo, partilham‑se os bons e os maus dias. E Fulvia pensa como eu!

Comovido, Morosini pôs uma mão no ombro da jovem criada de quarto, pressionando‑o ligeiramente:

‑ Que fiz eu para merecer servos como vocês?

‑ Têm‑se aqueles que se merece! E Livia prosseguiu caminho.

A noite caíra desde há pouco e à porta do palácio as grandes lanternas de bronze mostraram a Morosini que o miliciano de guarda já não era o mesmo. Devia ter sido revezado, mas o príncipe não teve tempo para reflectir na questão: com o ar de ter emergido da água sombria faiscando reflexos luminosos, Zian acabara de saltar para os degraus esverdeados:

‑ Don Aldo! Madona mia! O senhor já voltou? Por que não mo disseram?

‑ Porque preferi não prevenir ninguém. Vem! Vamos de gôndola: conduz‑me à Ca Moretti!... Como é possível encontrar‑te a esta hora? ‑ perguntou, enquanto o gondoleiro descolava a elegante barca das estacas ornadas de tiras. ‑Já não guardas o palácio Orseolo?

‑ Desde há dois dias, Excelência! Donna Adriana regressou na terça à noite, na altura em que eu estava a chegar ao serviço e ela como que me despediu...

‑ Curiosa forma de te agradecer! O que lhe deu?

‑ Não sei. Ela parecia estranha, com cara de quem chorou muito... Nem tenho a certeza que me tenha reconhecido.

‑ Estava sozinha?

‑ Completamente, e pareceu‑me que não trazia de volta todas as bagagens que levara consigo. Teve certamente aborrecimentos...

Morosini bem que acreditava. Adivinhava sem dificuldade o que se devia ter passado entre Adriana e o criado grego que ela sonhara vir a transformar num grande cantor, pela excelente razão que sempre imaginara: ou bem Spiridion se tornava célebre e não teria então qualquer dificuldade em encontrar uma companheira mais jovem e, sobretudo, mais rica, ou bem ele não dava em nada mas, como tinha um belo físico, encontraria uma amante mais jovem, e, sobretudo, mais afortunada! Em ambos os casos, a infeliz Adriana, perto da ruína, ver‑se‑ia recambiada sem demasiadas precauções oratórias. Daí os olhos vermelhos e a cara esquisita.

‑ Irei vê‑la amanhã ‑ concluiu Aldo.

Encontrou Ana Maria na pequena sala íntima, meio salão, meio escritório, de onde ela dirigia, com graça e firmeza, a sua elegante pensão familiar. Mas não estava sozinha: sentado numa poltrona baixa, os cotovelos apoiados nos joelhos e um copo nas mãos, Angelo Pisani, o rosto vincado pela preocupação, tentava levantar o moral. A súbita entrada de Morosini pô‑lo logo de pé.

‑ Desolado por te invadir desta maneira, Ana Maria, mas queria falar contigo um momento... Que está você aí a fazer?

‑ Não o descomponhas demasiado, Aldo! ‑ pediu a jovem mulher, cujo sorriso revelava o prazer que lhe causava aquela inesperada visita. ‑ Foi completamente levado pela pseudo miss Campbell e agora sente‑se imensamente infeliz.

‑ Não é um motivo para abandonar o trabalho. Confiei‑lhe os meus negócios sob a tutela de Guy Buteau e quando não se transforma em cachorro de agasalho, vem chorar debaixo das tuas saias, em vez de ficar no seu posto e explicar‑se comigo de homem para homem...

O tom fustigante fez empalidecer o jovem mas, ao mesmo tempo, despertou‑lhe o orgulho:

‑ Sei muito bem que confiou em mim, príncipe, e é precisamente isso que me põe doente. Como ousar agora encará‑lo e, sobretudo, como imaginar que uma mulher com um olhar angélico, tão maravilhosa, tão...

‑ Quer que lhe forneça mais alguns adjectivos? Nunca encontrará tantos quanto eu. Já tinha percebido que você ia apaixonar‑se e devia ter‑lhe proibido qualquer contacto com ela, mas você não me teria obedecido, não é verdade?

Angelo Pisani contentou‑se em inclinar a cabeça, o que era resposta suficiente. Ana Maria intrometeu‑se na conversa:

‑ Podem continuar as vossas explicações sentados! Angelo pegue novamente no seu copo; Aldo, já te sirvo! Como vão as coisas contigo?

‑ Dir‑te‑ei depois ‑ disse Morosini, aceitando o copo de martini que ela lhe oferecia. ‑ Deixa‑me concluir o que tenho a dizer a Pisani! Descontraia‑se, homem! ‑ acrescentou, dirigindo‑se ao jovem. ‑ Sente‑se, beba e responda‑me.

‑ Que deseja saber?

‑ Falei com Cecina ao telefone... antes da catástrofe, imagino, e ela disse‑me que lady Ferrais ‑ para chamá‑la pelo seu verdadeiro nome! ‑ estava constantemente em minha casa. Que fazia ela por lá?

‑ Nada de especial! Não parava de admirar o recheio da loja, pedia informações, histórias...

‑ E... o conteúdo das arcas? Pediu para vê‑lo?

‑ Sim, por várias vezes, se bem que eu lhe tenha repetido que não tinha as chaves pois é o sr. Buteau que as guarda mas, mesmo admitindo que as possuísse, dou‑lhe a minha palavra que nunca as teria aberto para ela. Seria trair a sua confiança!...

‑ Muito bem. Agora é a tua vez, Ana Maria! Como é que ela se foi embora?

‑ Da maneira mais simples: há dois dias, um homem entre os cinquenta e os sessenta, trazendo um monóculo, com o porte um pouco parecido com o de um oficial prússico em civil, mas muito distinto, veio ver «miss Campbell», pedindo que tivéssemos a amabilidade de lhe entregar um bilhetinho seu. Ela acorreu imediatamente, caíram nos braços um do outro e, em seguida, ela subiu para fazer as malas, enquanto ele pagava a conta e anunciava que voltaria a buscá‑la. Foi exactamente o que se passou e depois ela endereçou‑me um «adeus» caloroso, agradecendo‑me por todas as minhas atenções; ele beijou‑me a mão e partiram a bordo de uma motoscaffo. Dado aquilo que me tinhas confiado, confesso não ter percebido muito bem o que se passava.

‑ Oh, é muito simples! Esse homem, que se pretende amigo pessoal de Mussolini e a quem todo o Fascio de Veneza parece devotado, foi instalar‑se em minha casa, fez raptar Cecina e Zaccaria pelos Camisas Negras e, assim que cheguei, anunciou‑me que se eu quisesse voltar a ver os meus caros velhos criados com vida teria de desposar a filha dentro de cinco dias. Dir‑te‑ei ainda que esse Solmanski é um criminoso já procurado pela polícia austríaca e, muito provavelmente, pela Scotland Yard. Ao que sei, ele tem, pelo menos, quatro mortes recentes na consciência, sem contar com outras mais antigas. Suponho que também deve estar implicado no assassinato de Eric Ferrais...

‑ E ele quer que te cases com a filha? Mas porquê?

‑ Para me ter na mão. Estamos ambos comprometidos num caso gravíssimo e pensa certamente que doravante ficará em vantagem em relação a mim.

‑ Se me permite, príncipe ‑ interrompeu Angelo ‑ a sua colecção de jóias antigas também o interessa. Anny... quer dizer, lady Ferrais, falou‑me tantas vezes dela, que não pode deixar de ser assim.

‑ Não duvido um só momento, meu amigo. Esse homem gosta tanto de pedras quanto eu, mas não da mesma maneira.

A signora Moretti serviu novamente os seus hóspedes e voltou à carga:

‑ Mas, isso é horrível! Não vais aceitar que essa gente faça parte de uma das primeiras famílias de Veneza, pois não?

‑ Queres dizer, se me vou casar? A menos que um maremoto nos leve a todos, não vejo infelizmente outro meio para salvar Cecina e Zaccaria. Excepto, talvez, se me puderes ajudar; não me disseste que o chefe do Fascio local vinha comer à tua mão?

‑ Fabiani? Sim, é verdade que o disse, mas agora já não é tanto assim.

‑ Porquê?

‑ Já não lhe chegava a mão...

‑ Oh, nesse caso esquece‑te de tudo o que acabei de te dizer! Tens de pensar na tua própria protecção e tratarei de te ajudar... Vem comigo, Pisani?

‑ Não, obrigado. Quero caminhar um pouco. Alguns passos por esta cidade trazem‑nos frequentemente um pouco de paz. Veneza é tão linda!

‑ Não querem ver que o rapaz também é lírico! Em todo o caso, apresente‑se ao trabalho amanhã de manhã. Já é mais que tempo de voltar a pôr mãos à obra!

‑ Precisamente ‑ disse Angelo, subitamente conversador ‑ temos um cliente importante às dez: o príncipe Massimo, que deve chegar esta noite de Roma. É uma verdadeira sorte que o senhor tenha regressado! O sr. Buteau não gosta muito dele...

‑ Ele não gosta de ninguém! O único que suporta sou eu... e ainda assim porque foi ele que me instruiu!

‑ Há também o senorCarabanchel, de Barcelona, que deve...

A alegria que sentia o jovem ao regressar a um lugar que julgara perdido era comovente. No entanto, Morosini acabou depressa com as suas manifestações, dizendo‑lhe que era inútil cansar a signora Moretti com histórias de loja, despedindo‑se logo de seguida.

Enquanto Zian o conduzia de regresso a casa, Aldo aproveitou esse momento de paz para tentar encontrar um meio de escapar à armadilha urdida por Solmanski e pela filha. Como acreditar que Anielka fugira para longe dos seus, quando o pai se dirigira directamente à residência de Ana Maria logo que chegara a Veneza? Estavam ambos de conluio e agora deslizavam em veludo: instituições oficiais açaimadas por um poder que não tinha mais nada de oculto, uma polícia impotente para defender as pessoas honestas... e o rei? Mas Victor‑Emanuel III nada faria contra um amigo do temível Mussolini. E menos ainda a rainha Helena, mesmo tendo havido um tempo em que a bela montenegrina travara relações amistosas com a princesa Isabel Morosini. Além disso, estavam ambos em Roma, que parecia ficar no fim do mundo e por uma excelente razão: vigiado como estava, Aldo certamente nem conseguiria sair de Veneza... Então, a quem dirigir‑se? A Deus?

‑ Leva‑me até à Saluta! ‑ ordenou subitamente Morosini. ‑ Preciso de rezar!

‑ Há igrejas mais próximas e já se faz tarde!

‑ É essa que quero. A peste entrou em minha casa, Zian, e a Saluta foi construída para agradecer à Madona por ter erradicado a peste de Veneza. Talvez ela faça qualquer coisa por mim!

A sua breve escala em Santa Maria, ao pé da admirável Descida da Cruz de Ticiano acalmou‑o um pouco. Já era tarde, mas estava na hora das últimas preces do dia e a grande igreja redonda, quase às escuras, não fosse a luz de algumas velas e da lâmpada do coro, apresentava‑se calma e tranquilizante...

Pouco devoto até então, o príncipe Morosini pôs‑se a pensar que fazia certamente mal ao negligenciar os mais simples deveres cristãos. Uma prece nunca faz mal a ninguém e até acontece que seja ouvida! Foi portanto num estado de espírito mais sereno que regressou ao seu palácio, decidido a discutir taco a taco com o invasor. Talvez se visse obrigado a desposar Anielka, mas não queria que, de modo algum, Solmanski se viesse instalar em sua casa.

Tal como quando partira, encontrou Livia na escada e, desta vez, a jovem descia com uma pilha de pequenas toalhas destinadas à loja.

‑ Donna Adriana acaba de chegar ‑ confiou ao seu amo. ‑ Está na biblioteca com o conde... não sei quê. Não consigo decorar o nome dele.

‑ Não tem importância! Que estão a fazer?

‑ Não sei, mas ao chegar foi por ele que ela perguntou...

Esta era a melhor! De onde diabo podia ela conhecer aquele pelintra do Solmanski?... Mas como seria muito mais interessante ouvir‑lhes a conversa do que colocar‑se questões estéreis, Aldo subiu as escadas quatro a quatro, depois atravessou o portego silencioso como um gato, esforçando‑se sobretudo por refrear o princípio da cólera que o assolava à ideia de que o «outro» ousava instalar‑se na «sua» biblioteca, considerada como uma espécie de santuário.

Chegado ao seu destino, encostou‑se à porta que sabia abrir sem provocar sequer o menor rangido. Ouviu imediatamente a voz da sua prima. Tensa, suplicante, o que ela dizia era mais que estranho:

‑ Como é que não percebes que a tua presença aqui representa para mim uma ocasião inesperada? Estou arruinada, Roman, completamente arruinada... depenada! Só me resta a casa e o pequeno recheio que sobrou! Por conseguinte, quando vim cá anteontem e os vi a ti e à tua filha, nem queria acreditar nos meus olhos. Compreendi logo que tudo iria mudar para mim...

‑ Não vejo porque motivo! E a tua visita é uma loucura.

‑ Aldo não está cá. Não tem importância!

‑ Isso é o que julgas! Voltou há pouco e poderás encontrá‑lo.

‑ Não vejo qual o mal! Ele é meu primo, quase que o eduquei e gosta muito de mim! Nada mais normal que o venha visitar!

‑ Não sei para onde foi, mas pode voltar de um momento para o outro.

‑ E então? Tu estás em casa dele, eu acabei de chegar, encontrámo‑nos casualmente e começámos a conversar: nada mais natural!... Roman, suplico‑te, tens de fazer algo por mim! Lembra‑te! Ter‑te‑ás esquecido de Locarno?

‑ Quem se esqueceu foste tu! Quando te enviei Spiridion para te ajudar no teu trabalho, não imaginava, nem por sombras, que te irias tornar sua amante.

‑ Eu sei, fui uma louca... mas fui tão castigada! É preciso compreender‑me! Ele possui uma voz maravilhosa e tinha a certeza que faria dele um dos nossos melhores cantores. Se ao menos ele tivesse aceite ser um pouco sensato... trabalhar! Mas é incapaz de suportar a menor disciplina, a menor obrigação! Beber... beber, correr atrás das raparigas e, sobretudo, não fazer nada! É esse o género de vida que lhe agrada. É um monstro!

Ouviu‑se o riso seco de Solmanski:

‑ Porquê? Por te ter dito que te amava e tu teres sido parva ao ponto de acreditá‑lo?

‑ E por que não teria acreditado? ‑ indignou‑se Adriana. ‑ Ele sabia tão bem prová‑lo!

‑ Numa cama, não duvido! E... onde é que ele está agora?

‑ Não sei... Ele... abandonou‑me em Bruxelas, onde tive de vender as minhas pérolas para poder pagar o hotel e arranjar algum dinheiro para regressar! Ajuda‑me, Roman, suplico‑te! Bem me deves isso!

‑ Pelo que fizeste aqui? Parece‑me que já foste paga, e bem paga... .

O diálogo prosseguia, suplicante de um lado, cada vez mais seco do outro, mas Morosini tivera de procurar apoio numa das consolas de tal forma o choque fora brutal e cruel. Com que então, Solmanski era o R. que assinara a carta que ele encontrara em casa de Adriana e que não conseguira voltar a pôr no seu lugar! Tudo concordava: o local do encontro, a relação amorosa que fizera da sensata condessa Orseolo um instrumento disposto a tudo para saciar a paixão que aquele homem lhe inspirara e para saciar a sua perpétua necessidade de dinheiro. E esse «tudo» era agora muito fácil de adivinhar: para oferecer ao seu amante a safira dos Morosini, Adriana, que a princesa Isabel amava contudo como a uma irmã mais nova, não hesitara em assassiná‑la!

O que Aldo sentia não era propriamente a surpresa. Ao ler e reler o misterioso bilhete, cujas palavras conhecia de cor ‑ «... Deves fazer o que a causa espera de ti, mais ainda do que daquele para quem tu representas toda a vida. Spiridion ajudar‑te‑á...» ‑ não cessara de temer que estivesse a ser demasiado clarividente. Aquilo parecera‑lhe monstruoso! Mas agora que a última dúvida se dissipara, uma vaga nauseante de desgosto e de tristeza reavivada submergia o filho de Isabel, dividido entre a vontade de fugir e a de irromper biblioteca adentro para estrangular a assassina com as suas próprias mãos. Ao ter renunciado a chamar da polícia, não tinha jurado a si mesmo que faria justiça pelas suas próprias mãos, tal como teria procedido qualquer dos seus antepassados?

Estava ali, ouvindo o seu coração bater pesadamente no peito, procurando o ar que lhe faltava, quando ouviu a voz de Solmanski, mais desdenhosa que nunca:

‑ Basta! Não farei nada por ti e até te aconselho a evitares‑me futuramente, porque te arriscas a estorvar‑me os planos. Se precisas de ajuda, dirige‑te ao teu belo primo: ele é suficientemente rico para isso!

Adriana não teve tempo de responder: a figura de Morosini acabara de aparecer no patamar da porta e devia haver nela algo de assustador, pois o grito que a sua visitante soltou ao vê‑la foi um grito de terror, correndo para junto do seu cúmplice na intenção pueril de procurar protecção.

Contudo, Aldo não avançou. Permanecia no mesmo lugar, de pé, enquadrado pela ombreira dourada da porta, as mãos no fundo dos bolsos do sobretudo de gola levantada, tão altivo e frio quanto os retratos da galeria, com toda a emoção interior refugiada nos seus olhos brilhantes que tinham virado para um verde inquietante. Olhava para os outros dois, apesar de tudo contente ao constatar que o arrogante Solmanski parecia subitamente muito incomodado. Desdenhou‑o provisoriamente, para desferir o seu olhar implacável para a mulher aterrorizada que tremia à sua frente.

‑ Vai‑te embora! ‑ disse apenas, mas a sua voz era cortante como o machado do carrasco.

Os olhos de Adriana esbugalharam‑se. Juntou as mãos, esboçando um gesto de oração, mas ele não lhe permitiu dizer uma só palavra.

‑ Vai‑te embora! ‑ repetiu. ‑ Não voltes nunca mais e dá‑te por feliz por te poupar a vida!

Ela compreendeu que ele ouvira tudo e adivinhara mais ainda. No entanto havia algo dentro dela que se recusava a render‑se sem travar batalha:

‑ Aldo! Tu rejeitas‑me?

‑ A minha mãe é que te devia ter rejeitado. Sai desta casa sem me obrigares a empregar a força!

Ele desviou‑se para deixá‑la passar, mas voltou a cara para o outro lado. Nessa altura, com as costas curvadas pelo peso de uma condenação que ela adivinhava sem apelo, a condessa Orseolo abandonou a velha residência que outrora a acolhera com tanta alegria, sem qualquer esperança de lá poder voltar...

Quando se deixou de ouvir o eco dos seus passos, Morosini avançou na direcção do polaco, batendo estrondosamente com a pesada porta de carvalho, ornada de bronzes dourados:

‑ Pode segui‑la ‑ articulou ‑ e até o aconselho a fazê‑lo! Por ela o amar, fez dela uma criminosa. Deve‑lhe bem esta compensação!

‑ Não lhe devo nada. Quanto a si, o seu procedimento não deixa decerto de ter uma certa grandeza, mas julga mesmo que será prudente da sua parte? A cara condessa talvez esteja depenada, mas prestou alguns serviços ao Fascio e talvez possa encontrar apoios em Roma...

‑ Sobretudo com a sua ajuda, pois o senhor está tão bem visto nesse meio! Dito isto, exijo que saia de minha casa. Eu expulsei‑a a ela, mas o instigador do crime foi você. Portanto, rua! Você e sua filha!

‑ Palavra, você enlouqueceu ou quê? Ou então decidiu desinteressar‑se quanto ao destino reservado aos seus criados. Eles podem ter de vir a sofrer muito com a sua falta de colaboração!

Morosini sacou de um dos bolsos uma mão armada com um revólver que apontou a Solmanski:

‑ Se eu os tivesse esquecido, você já estaria morto! O que desejo neste momento é que tudo fique bem esclarecido entre nós.

Desposarei lady Ferrais dentro de cinco dias, mas sob certas condições.

‑ Não está em posição de poder colocá‑las.

‑ Eu julgo que sim! Por causa deste objecto ‑ disse Aldo, agitando ligeiramente a sua arma. ‑ Ou bem as aceita ou leva com uma bala na cabeça!

‑ Estaria a assinar a sua própria sentença, bem como a dos seus criados.

‑ Não é certo! Uma vez você desaparecido, talvez pudesse chegar a um acordo com os seus protectores... A partir do momento em que se paga substancialmente...

‑ Vejamos quais são as suas condições!

‑ São três. Primeiro, Cecina e Zaccaria Pierlunghi virão ao casamento em liberdade. Em segundo lugar, a cerimónia terá lugar aqui mesmo. Em terceiro lugar, o senhor irá morar noutro sítio, fora deste palácio, onde só regressará uma única vez, para assistir ao casamento. O assassino não deve conspurcar com a sua presença a casa da sua vítima. A sua filha acompanhá‑lo‑á até à hora prevista. Não é conveniente que os futuros esposos morem sob o mesmo telhado.

Solmanski acolheu esta última exigência com um franzir de sobrolho que provocou a queda do monóculo, mas enquanto o recolocou sob a órbita, o seu rosto já se tinha tornado de novo impassível.

‑ Não quero ir viver para o hotel. Podem ocorrer encontros desagradáveis...

‑ Sobretudo quando já se é procurado por, pelo menos, duas polícias estrangeiras! Mas pode ficar na residência da signora Moretti, onde instalei a sua filha. Ela é a discrição em pessoa e basta‑me telefonar‑lhe... Aceita?

‑ E se eu não aceitar?

‑ Mato‑o imediatamente! E deixe de ameaçar‑me com os seus pedidos de socorro! O seu guarda não fará grande figura entre as mãos de Zian, o meu gondoleiro, que está lá em baixo.

‑ Você está a fazer bluff!‑ disse o outro, encolhendo os ombros.

‑ Experimente e logo verá! E ponha bem isto na cabeça: aqui em Veneza, nós dificilmente suportamos ser submetidos. Às vezes preferimos dar cabo de tudo. Por conseguinte, acredite‑me: contente‑se em ter conseguido a sua pequena chantagem e aceite as minhas condições!

Era sem dúvida algo com que o conde já contava, pois nem sequer se deu ao trabalho de levar tempo a reflectir.

‑ Dentro de cinco dias, a minha filha será princesa Morosini?

‑ Tem a minha palavra...

‑ Telefone à sua amiga e mande alguém buscar‑me. Vamos preparar‑nos!

De pé junto a uma das janelas da biblioteca, Aldo olhava pai e filha a instalarem‑se a bordo do motoscaffo auxiliados por Zian. Antes de embarcar, a jovem erguera‑se na sua direcção como se sentisse que ele estava ali. Com um encolher de ombros descontente, este voltou‑se e desceu para a cozinha onde o sr. Buteau, vestido com um dos amplos aventais de Cecina, cortava as ervas em pedacinhos na companhia de Fulvia, que punha uma marmita de água a ferver para a massa.

‑ Largue isso! ‑ disse‑lhe. ‑ Estamos livres deles por cinco dias e vocês já fizeram quanto bastasse. Levo‑os a San Trovaso para comermos uma sopa de verduras e gambás no Montin. Até sábado comeremos as nossas refeições no restaurante. Nesse dia, espero que Cecina nos será devolvida...

‑ Então, o senhor vai aceitar o casamento?

Havia tristeza e cólera no rosto do antigo preceptor. Comovido, Aldo pegou‑lhe nos ombros, abraçou‑o e sorriu:

‑ Não tenho outro meio de salvá‑los.

‑ Cecina detesta essa jovem. Ela não aceitará...

‑ Contudo, terá de fazê‑lo. A menos que não goste tanto de mim quanto eu dela...

Fulvia, que se contentara em escutar sem dizer nada, veio pegar na mão do amo e beijou‑a. Também ela tinha lágrimas nos olhos...

‑ Faremos o melhor que pudermos para ajudá‑lo, don Aldo! E prometo‑lhe que Cecina compreenderá! Aliás essa senhora é muito bonita e tem ar de o amar.

Essa era a ironia do acaso! Houvera um tempo, não muito longínquo, em que Aldo teria dado a sua fortuna para fazer da encantadora Anielka a sua princesa. Deus! como ele sonhara com os dias e, sobretudo, com as noites que passaria junto dela! E eis que na altura em que Anielka lhe era oferecida, ele recusava a proposta com horror...

Aliás, oferecida, não! Antes vendida... e à custa de uma chantagem ignóbil! Uma chantagem que ele aceitava, que talvez tivesse sido ela a sugerir. Doravante, entre eles existiam demasiadas sombras, demasiadas dúvidas! Nada poderia voltar a ser como dantes.

‑ E se o senhor fizesse a si próprio a única pergunta pertinente? ‑ sugeriu Guy, enquanto jantavam na aprazível sala do Montin, onde a boémia veneziana se reunia em redor das toalhas de mesa em quadradinhos e das garrafas de vinho envoltas em palha, transformadas em castiçais.

‑ Qual?

‑ Outrora o senhor amava‑a. O que resta desse amor? A resposta veio logo, rápida, implacável:

‑ Nada. Tudo o que ela me inspira é desconfiança. E fixe bem isto, meu amigo: no dia combinado eu dar‑lhe‑ei o meu nome mas nunca, ouviu, nunca será minha mulher!

‑ Nunca se deve dizer desta água não beberei! A vida é longa, Aldo, e essa Anielka é uma das mais belas mulheres que já encontrei...

‑ ... e eu sou apenas um homem, é isso? Leve o seu pensamento até ao fim!

‑ Já acabo: se ela está realmente apaixonada por si, meu amigo, a parada será forte. Uma tentação permanente.

‑ É possível, mas sei como enfrentá‑la: se aceito constrangido e forçado que a filha desse bandido que matou a minha mãe se torne minha esposa aos olhos de todos, nunca correrei o risco de ter filhos desse sangue!

 

     AQUELE QUE NÃO SE ESPERAVA

Às nove horas da noite de sábado, dia 8 de Dezembro, Morosini desposava a ex‑lady Ferrais na pequena capela que a piedade temerosa de uma antepassada aterrorizada pela peste de 1630 mandara instalar num dos edifícios do palácio. Um santuário severo no seu cenário de pedra nua e, ao mesmo tempo, faustoso, devido à magia de uma Virgem de VeroneseT, que sorria sobre o altar, vestida de rainha. O que não significava que a cerimónia iria ser mais festiva.

Só a noiva, muito bela num conjunto de veludo branco enfeitado de arminho tinha o ar de estar viva à luz vetusta de quatro círios que iluminavam uma assembleia toda vestida de preto como o próprio noivo, que não levava nenhuma flor na lapela da jaqueta.

As testemunhas de Aldo eram o seu amigo Franco Guardini, o farmacêutico de Santa Margarita, e Guy Buteau. A futura princesa era assistida por Ana Maria Moretti ‑ que aceitara comparecer por amizade a Aldo ‑ e pelo comendador Ettore Fabiani, mas o casaco de Breitscbwan(1) de uma não era mais alegre que o uniforme do outro. Um pouco atrás, Solmanski seguia a cerimónia e, a um canto, de pé, muito direito, Zaccaria arvorava no rosto uma dureza que não se lhe conhecia. A seus pés, de joelhos, trajando um luto ostensivo, Cecina rezava...

Ambos tinham sido conduzidos ao palácio nessa mesma manhã e em bom estado: não se cometera a desfeita de os maltratar, mas logo que se encontraram frente‑a‑frente, uma cena comovente confrontou Cecina e Morosini:

 

*1. Paolo Caliari Veronese (Verona, 1528‑Veneza, 1588) um dos mestres da escola veneziana.

 

‑ Não tens o direito de aceitar isto! ‑ exclamara ela. ‑ Mesmo por nós!... É tudo culpa minha! Se me tivesse sabido calar, não nos teriam levado!... mas nunca me soube calar.

‑ É também por isso que gosto de ti! Não te recrimines nada: se não tivesses falado, Solmanski teria arranjado outro pretexto para me obrigar a desposar a filha! Ou então ter‑te‑iam levado à mesma com Zaccaria e talvez até com o sr. Buteau... O que é um casamento, quando vocês são parte integrante de mim mesmo?

Ela caíra‑lhe nos braços soluçando e ele embalou durante um momento aquele grande bebé desesperado enquanto Zaccaria, mais calmo, mas de lágrimas nos olhos, se esforçava por manter a impassibilidade. Ela apartou‑se finalmente quando Aldo lhe anunciou que ia instalá‑los a ambos numa casa que comprara no ano precedente, não longe de Rialto, visto que não lhes queria impor, sobretudo a ela, um serviço que lhes seria desagradável. As lágrimas de Cecina secaram repentinamente, sob as chamas de uma nova onda de cólera:

‑ Deixarmos‑te aqui sozinho com essa envenenadora? Estás a brincar, não estás?

‑ Não propriamente ‑ disse Morosini a quem a nota de ironia da situação escapava ‑ e, mais uma vez, estás a exagerar! Que eu saiba, ela nunca matou ninguém!

‑ E o seu marido? Esse mylord inglês cuja morte a levou para a cadeia, tens a certeza que ela não teve nada a ver no caso?

‑ Ela foi absolvida, mas antes de recusares a minha proposta, peço‑te que vejas bem qual será a situação: a nova princesa vai viver aqui. Se ficares, terás de servi‑la...

‑ Viver aqui? Onde? No quarto de donna Isabel? Aldo pegou‑lhe na mão e levou‑a até às escadas:

‑ Vem comigo! Tu também, Zaccaria...

Levou‑os até à dupla porta que dava acesso ao quarto que fora o de sua mãe e onde mais ninguém entraria: de cada lado da porta, cruzando‑se como alabardas de guardas invisíveis, tinham sido pregados dois compridos remos de gondoleiro com as cores dos Morosini, que interditavam agora qualquer acesso.

‑ Aqui está! Fulvia e Livia limparam o interior, correram as persianas e, seguindo as minhas ordens, Zian fez o resto. Quanto a... donna Anielka, mandei que lhe preparassem o quarto com os louros, até agora reservado aos convidados distintos...

Silenciada um momento pela emoção, Cecina recobrou a voz para perguntar:

‑ Também te vais lá instalar?

‑ Não tenho qualquer motivo para deixar o meu quarto habitual.

‑ No outro extremo da casa?

‑ Claro! Partilharemos o mesmo tecto, mas não o mesmo quarto.

‑ E... o pai?

‑ Excepto para a cerimónia de hoje à noite, não volta mais a pôr cá os pés. Assim o exigi e ele aceitou. Julgas poder viver nestas condições... mesmo quando me ausentar?

‑ Está tranquilo, consegui‑lo‑ei! E agora, vou voltar à cozinha. Para o meu terreno! Enquanto eu lá estiver, poderás comer tranquilo.

Presentemente estava ali na capela, no seu vestido de tafetá preto, com uma mantilha na cabeça, rezando com uma aplicação apaixonada que lhe cavava uma ruga entre as sobrancelhas.

A troca dos consentimentos foi uma dura prova para Morosini. Prometia amar a sua companheira e, pela primeira vez na vida, estava a prometer algo que não cumpriria. Era uma sensação penosa que se esforçava por erradicar, pensando que aquele casamento era apenas uma farsa e o juramento uma simples formalidade. Aquela que se ia tornar sua esposa não dissera o mesmo quando desposara Eric Ferrais? Com o resultado que se sabe. Durante um momento, perguntou a si mesmo o que estaria a sentir naquela altura a mulher de rosto angélico, com um corpo de ninfa, para quem ele nem sequer olhara, mesmo quando as suas mãos se tinham unido para a bênção nupcial, dada por um padre de São Marcos, primo de Ana Maria e velho amigo de Aldo!

Quando ele lhe deu o braço para deixar a capela e subir para o salão das lacas onde se ofereciam as colações ‑ a tradição hospitaleira assim o exigia! ‑ sentiu que a mão dela tremia:

‑ Está com frio? ‑ perguntou.

‑ Não... mas não me sorrirá uma só vez na noite das nossas núpcias?

‑ Desculpe‑me, mas as circunstâncias são tais que não creio poder consegui‑lo.

‑ E outrora pretendia que me amava? ‑ suspirou. ‑ Estava disposto a cometer qualquer loucura por mim...

‑ Outrora? Parece‑me que foi antigamente... há muito, muito tempo! Quando se quer conservar o amor de um homem, há meios que mais vale não empregar.

‑ O meu pai é o responsável e...

‑ Por favor, não me julgue um imbecil. Estava tudo combinado entre vocês e ele não estaria aqui se não o tivesse chamado.

‑ Não quer perceber que o amo e que queria tornar‑me sua esposa? Quando se é uma verdadeira mulher todos os meios são bons para alcançar o seu objectivo...

‑ Não os que utilizou! Mas, se não se importa, vamos ocupar‑nos dos convidados! Depois, teremos tempo para falar do modus vivendi que decidi que teríamos.

Tinham chegado à sala onde se instalara um bufete sob a vigilância de Zaccaria, que já estava a distribuir taças de champanhe que trazia numa bandeja. Aldo ofereceu uma à sua esposa, esperou que todos tivessem sido servidos, pegou na sua e declarou:

‑ Meus amigos, queiram perdoar‑me o lado sumário desta cerimónia, mas não dispusemos de muito tempo para prepará‑la. Aliás, não a teria desejado diferente. Faço contudo questão em agradecer‑lhes. Não pela vossa amizade, porque esta nunca esmoreceu e que a comprovaram mais uma vez ao estarem aqui presentes esta noite. Doravante está aqui presente uma jovem que espero que também a saiba conquistar. Proponho um brinde à nova princesa Morosini!

‑ Isso mesmo! ‑ exclamou Fabiani. ‑ Brindemos à princesa e à felicidade do seu marido! Que homem não desejaria estar no seu lugar? No que me diz respeito, estou feliz por transmitir aqui os votos do Duce e o seu vivo desejo de acolher proximamente em Roma um casal que lhe é tanto mais querido porquanto foi reunido pelos cuidados atenciosos e gentis do seu velho amigo, o conde Roman Solmanski, que se quer associar a este brinde em honra dos seus filhos!

Se Aldo contava que o interessado se abstivesse de comparecer à pequena recepção, enganara‑se redondamente. Durante a cerimónia nupcial, ele tornara‑se sem dúvida discreto mas agora, com um sorriso de triunfo nos lábios, avançava ao encontro do seu cúmplice, que lhe deu uma pancada amigável nas costas. Depois, afastando‑se, declarou:

‑ Obrigado, meu caro amigo, obrigado do fundo do coração! E obrigado também ao grande homem que se dignou dispensar um momento do seu tempo precioso para enviar uma mensagem tão calorosa aos meus caros filhos! Pode ter a certeza que responderemos brevemente e com alegria ao seu convite e que...

«Aos seus caros filhos»? Confundido por tanto despudor e persuadido que Solmanski mentira mais uma vez e contava incrustar‑se na sua vida, Morosini ia dar largas à sua cólera lançando‑se numa furiosa réplica quando uma voz glacial, com um forte sotaque britânico, veio interromper o discurso daquele sogro tão afectuoso:

‑ Se fosse a si, Solmanski, revia os seus projectos de viagem. Você vai ter de trocar o castelo do Anjo Santo pela Torre de Londres!

Mais pterodáctilo que nunca na sua capa sebenta e com o boné de dupla pala ao estilo Sherlock Holmes, o superintendente Gordon Warren estava postado à entrada da sala, acompanhado pelo comissário Salviati da polícia de Veneza. Vendo que estavam presentes algumas damas, retirou o boné, mas nem por isso deixou de avançar ao encontro do seu objectivo. Pálido, este procurou abordá‑lo com altivez:

‑ Que significa isto e que vem o senhor aqui fazer?

‑ Prendê‑lo em virtude do mandato internacional que tenho em minha posse e em nome do rei Jorge V, bem como em nome do presidente da República Federal da Áustria, que me delegou esse poder. É acusado...

‑ Um momento, um momento! ‑ interrompeu Fabiani. ‑ Isto é alguma história de loucos? Aqui estamos em Itália e nenhum mandato inglês, austríaco ou até internacional poderá ser aceite. Graças a Deus, dispomos de um grande poder que não se deixa intimidar pelo primeiro recém‑chegado! E quanto a si, Salviati, a sua presença aqui vai valer‑lhe sérios aborrecimentos...

O comissário limitou‑se a encolher os ombros e a mostrar uma expressão que traduzia bem que a ameaça não o inquietava minimamente. Aliás, Warren pôs logo termo a estes protestos, dirigindo‑se desta vez à pomposa personagem que colocara no ombro de Solmanski uma mão protectora.

‑ O senhor é o comendador Fabiani?

‑ Claro.

‑ Tenho uma carta para si. Está assinada pelo próprio Duce com quem me avistei esta manhã, depois de ter sido recebido por Sua Majestade o rei Victor‑Emanuel III, a quem entreguei uma carta escrita pelo meu soberano.

Posto ao corrente das façanhas do seu protegido, o senhor Mussolini não achou por bem renovar uma amizade tão prejudicial a um chefe de Estado...

Fabiani leu a mensagem, corou intensamente, mas corrigiu a postura, bateu com os tacões e inclinou‑se:

‑ Nesse caso, seria errado da minha parte opor‑me à justiça do meu Duce! Salviati, o senhor vai levar este homem até à prisão de onde ele apenas sairá para acompanhar o superintendente Warren até Inglaterra. Dispensar‑lhe‑á toda a assistência necessária, de modo a que a transferência se efectue de modo satisfatório... Príncipe Morosini, estou infinitamente lisonjeado por ter assistido a esta festa de família... mas lamento‑o profundamente!

E sem lançar um único olhar para aquele que tão afectuosamente tratara há poucos momentos atrás, o comendador deu meia volta, dirigindo‑se o mais rapidamente possível para a saída, deixando os espectadores estupefactos com esta reviravolta completa.

Entretanto Solmanski espumava de raiva:

‑ Pois bem, vão para o diabo, você e o seu Duce! É assim que agradecem os serviços que lhes prestei? E, para começar, gostava de saber de que sou acusado...

‑ Já não se lembra? ‑ ironizou Warren que, entretanto, arranjara tempo para ir cumprimentar Morosini. ‑ É o que se chama ter uma memória acomodatícia! O senhor é acusado de ter assassinado em Whitechapel, no dia 27 de Novembro de 1922, o homem conhecido por Ladislas Wosinski...

‑ Ridículo! Ele enforcou‑se depois de ter escrito uma confissão culpando‑se da morte de sir Eric Ferrais, o meu genro!

‑ Não, foi o senhor quem o enforcou! Infelizmente para si houve uma testemunha, um ferro‑velho judeu, que morava na mesma casa e que já o vira durante um pogrom na Ucrânia, onde o senhor operou maravilhas na época em que se chamava Ortschakoff. O infeliz teve tanto medo que primeiro achou mais prudente manter‑se calado mas, depois, deitou tudo cá para fora quando lhe mostrei uma fotografia sua obtida durante o julgamento de sua filha. Além disso, o senhor é também acusado de, no passado mês de Outubro, ter encomendado o roubo do diamante conhecido pelo nome de Rosa de Iorque, na Torre de Londres. Pagou generosamente aos seus dois cúmplices mas infelizmente estes não conseguiram pôr‑se de acordo quanto à partilha da sua largueza. Houve uma disputa; eles foram presos e, em seguida, confessaram tudo. A continuação das suas patifarias diz sobretudo respeito à polícia austríaca, mas...

‑ Aldo! ‑ exclamou Franco Guardiani, precipitando‑se para Anielka ‑ a tua esposa sente‑se mal!

Efectivamente esta, soltando um grito débil, acabara de desmaiar, caindo no tapete. Morosini juntou‑se ao seu amigo, ergueu o magro corpo e transportou‑o consigo, enquanto chamava Livia para que ela prestasse a assistência necessária.

‑ Se quiseres, eu encarrego‑me disso ‑ propôs Guardiani, que seguia atrás dele.

‑ Com todo o prazer, amigo! Agradeço‑te pois tenho de voltar lá abaixo!

‑ Mas que história! Essa pobre pequena não esquecerá este casamento tão cedo!

‑ Pois imagina que eu também não! ‑ desferiu Aldo, que já não sabia muito bem se era maior o alívio ou a tristeza. Alívio ao ver finalmente o seu sogro incorrer em merecido castigo, mas tristeza ao pensar que se o superintendente e o seu mandato de prisão tivessem chegado uma hora mais cedo... Teriam bastado sessenta minutos e ele teria escapado àquele casamento que tanto o exasperava! Agora ia ter de passar a vida ao pé de uma mulher que já não amava e que, ainda por cima, ia ter de consolar! Sem contar ainda com a agradável perspectiva de ter como sogro um criminoso sob os pés dos quais se abriria certa manhã o alçapão do patíbulo de Pentonville!

Ao regressar ao salão, encontrou Ana Maria à entrada, com um ar perplexo:

‑ Queres que me vá ocupar dela?

‑ Depende. Vocês estabeleceram algum laço de amizade quando ela estava hospedada em tua casa?

‑ Não, para ela eu era apenas uma hospedeira.

‑ Nesse caso, é inútil fazeres mais alguma coisa! Obrigado por teres vindo ‑ acrescentou, inclinando‑se para lhe dar um beijo. ‑ Irei visitar‑te brevemente. Zaccaria vai acompanhar‑te até à gôndola.

Quando entrou novamente no salão, as mãos de Solmanski tinham sido algemadas e dois carabineiros aprontavam‑se para levá‑lo sob o comando do comissário Salviati. Na altura em que passou ao pé de Morosini, o prisioneiro exibiu um sorriso feroz:

‑ Não julgue que acabou comigo... caro genro! Ainda não fui enforcado e deixo junto a si alguém que saberá perpetuar a minha memória!

‑ Não seja demasiado optimista, Solmanski! ‑ aconselhou Warren. ‑ Eu sou como os buldogues do meu país: quando apanho um osso, não o largo mais...

‑ Veremos... não me despeço, Morosini!

O superintendente preparava‑se para seguir o cortejo, quando Aldo o reteve:

‑ Imagino que não vai partir imediatamente para Londres, meu caro Warren, e espero que me conceda o prazer de lhe oferecer a minha hospitalidade!

A sombra de um sorriso perpassou pelo rosto cansado do polícia.

‑ Aceitaria de bom grado, mas receio ser inoportuno numa noite como esta...

‑ Inoportuno, o senhor? Apenas lastimo que não tenha chegado mais cedo. A esta hora não estaria casado à força e meio desonrado. Fique, superintendente! Vamos jantar juntos e conversar. Creio que temos muitas coisas para contar!

‑ All right! Vou com o Salviati até ao comissariado onde deixei a minha mala, e volto já!

Enquanto saía, Aldo deu ordens para que se preparasse um quarto e para que substituíssem o bufete por uma mesa para três pessoas e, depois, foi ter com a mulher com que se casara, a fim de saber como ela estava, mas encontrou Cecina na galeria que dava para os quartos.

‑ O Senhor e a Madona ouviram as minhas preces ‑ disse esta, logo que avistou Aldo ao longe. ‑ O maldito vai receber o castigo que merece e tu, meu pequeno bebé, estás livre!

‑ Livre? De que estás a falar, Cecina? Estou casado... e perante Deus, infelizmente!

‑ O teu casamento já não é válido! Eu ouvi o que disse o inglês: o demónio não se chama Solmanski, mas sim Or... já não me lembro. Em todo o caso vais poder pô‑la na rua! ‑ acrescentou, estendendo um braço vingador na direcção do quarto de Anielka.

‑ Também pensei nisso, mas não nos devemos pôr a sonhar. Este homem não é daqueles que deixam as coisas ao acaso: ele adquiriu efectivamente, para si e para os seus, o nome e a nacionalidade polacas. Só o Papa poderá anular este casamento.

No rosto expressivo e cambiante de Cecina, a decepção foi logo substituída por uma determinação feroz:

‑ Por São Gennaro, ele terá mesmo de o anular! Eu própria irei pedir‑lhe! E tu virás comigo!

Morosini não respondeu. Lançara o nome do Santo Padre no calor da conversa e quase como um gracejo mas, afinal de contas, por que não seria possível requerer junto ao temível Santo Ofício a anulação de um casamento realizado naquelas condições e ainda não consumado?

‑ Talvez não seja uma má ideia Cecina, mas é melhor que fiques já a saber: casar‑se leva cinco minutos, mas obter a anulação do casamento isso é muito mais longo! Pode levar anos! Portanto arma‑te de paciência e, entretanto, será preciso ajudar a princesa ‑ sublinhou o título ‑ e de acordo com o seu estatuto, servi‑la e tratá‑la bem. Mais uma vez proponho‑te...

‑ Não e não! Faremos o necessário! Mas tenho o direito de pensar o que quiser! A princesa! Eu logo te direi o que penso de princesas desta laia!

E sem se ocupar mais do seu amo, resmungando e vociferando, Cecina encaminhou‑se para as escadas tão depressa quanto lhe permitiam as suas curtas pernas. Aldo entrou no quarto sem fazer barulho.

Franco ainda estava presente. Sentado à cabeceira da jovem que chorava com a cabeça nos seus braços, voltando‑lhe as costas, ele esforçava‑se por consolá‑la de modo comovedor. Ele próprio se sentia tão desolado que estava quase em lágrimas. A entrada de Aldo arrancou‑lhe um suspiro de alívio:

‑ Ia à tua procura ‑ cochichou ‑ porque só tu é que podes fazer qualquer coisa. Já viste o estado dela?

‑ Vou tratar disso, tranquiliza‑te... mas agradeço‑te a tua atenção. Acompanhou o amigo até à porta e voltou para junto da cama

onde os soluços de Anielka se tinham acalmado desde que ouvira a voz de Aldo. Após um momento, ela ergueu a sua cabeça loura com os cabelos curtos engalfinhados, pondo a descoberto um rosto corado e inchado, mas uns olhos dardejantes:

‑ Que vai fazer de mim agora? Expulsar‑me?

‑ Devia? Esquece‑se que acabámos de nos casar? Devo‑lhe ajuda, protecção e o meu tecto deverá ser também o seu. Foi o que prometi...

Que o seu pai tenha sido preso, isso não altera em nada a lei que nos une. Está aqui em sua casa.

O seu olhar deu a volta pela ampla sala que, tal como o grande leito de dossel, estava decorada por um tecido de brocado cor de marfim, com desenhos de louros verdes e dourados, e na qual reinava a desordem que acompanha geralmente uma linda mulher em viagem. Das três malas metidas a um canto, apenas uma fora completamente aberta, mas as duas outras, dispostas sobre o antigo tapete oriental, deixavam entrever uma encantadora confusão de cambraia, rendas e seda. Não se via nenhuma caixa para transportar chapéus. Em compensação, a cómoda revestida, tal como os cortinados, de um cetim cor de marfim, transbordava de frascos, caixinhas, pequenos boiões e tantos outros desses múltiplos e encantadores utensílios necessários ao tratamento da beleza.

‑ Vou chamar a Livia. Ela ajudá‑la‑á a deitar‑se e depois porá ordem nesta desarrumação... Entretanto, trazer‑lhe‑ão uma bandeja com qualquer coisa. Precisa de recompor‑se. Que deseja? Um caldo, um chá...

Ela saltou da cama como se tivesse sido impelida por uma mola, exclamando:

‑ Não quero nada disso! Apenas uma taça de champanhe, se a beber comigo. Creio que será uma boa maneira de começar a noite de núpcias, não? Quanto à criada de quarto, também não preciso dela! Não é costume ser o noivo a despir a noiva?

Com um joelho pousado na poltrona em que acabara de se apoiar, ela desafiava‑o com todo o seu desejo de sedução. O vestido de veludo branco que trazia sob uma cascata de pérolas ‑ aquelas que o seu primeiro esposo lhe oferecera! ‑ moldava as lindas curvas do seu corpo, libertando‑lhe os braços e o pescoço frágil, enquanto o profundo decote em ponta descia por entre os seus seios até à altura da cintura. Ela sorria, aparentemente esquecida da profunda tristeza que se abatera sobre ela. Não perdia tempo, pensava Morosini, para empregar os meios que considerara há pouco como as armas naturais de uma mulher apaixonada. Só que o seu novo esposo não acreditava mais nesse amor. E, na verdade, até se desinteressara da questão...

Optando por um recuo estratégico, ele encostou‑se à chaminé e acendeu um cigarro:

‑ Estou feliz por ver que está melhor ‑ constatou. ‑ Isso simplifica‑me as coisas. Mais vale esclarecer desde já o que será a nossa existência comum: viveremos numa boa harmonia aparente. De mim, terá direito a respeito e a cortesia e nada mais!

‑ Nada mais? Que significa isso? Infantil, a pergunta arrancou‑lhe um sorriso:

‑ Penso que os termos são muito explícitos: apenas será minha esposa de nome e não de facto.

‑ Não vai dormir comigo esta noite? ‑ perguntou Anielka com a sua maneira característica de exprimir cruamente as realidades da vida.

‑ Nem esta noite, nem nunca! E não recomece a chorar! Foi você que me obrigou a este casamento...

‑ Não fui eu.

‑ Ora vamos! Podia muito bem adivinhar que esses métodos me magoariam profundamente e, caso me amasse tal como o pretendia, nunca teria aceite infligir‑me... esta humilhação! E ainda menos esta ignóbil chantagem!

‑ Devolveram‑lhe os criados!

‑ E ainda bem! Senão você não estaria aqui e o seu pai já não faria parte deste mundo!

‑ Tê‑lo‑ia morto? Por causa dessas pessoas?

‑ Sem qualquer hesitação! Aliás, isso esteve prestes a acontecer... Lembre‑se: essas pessoas, como lhes chama, são seres que muito estimo.

‑ E foi por causa deles que se casou comigo?

‑ Não se arme em inocente! Você sabia‑o perfeitamente, mas queria instalar‑se aqui a todo o custo. Já cá está: agora trate de se dar por satisfeita! Dito isto, pode andar por onde quiser, até viajar se lhe der na gana, mas sob duas condições: não me incomode e não conspurque o nome que fui obrigado a ceder‑lhe! Desejo‑lhe boa‑noite!

Com um sorriso trocista nos lábios, Morosini inclinou‑se e saiu do quarto sem prestar ouvidos ao grito de raiva que a espessura das paredes mal abafava. Ela ia sem dúvida exteriorizar a sua fúria sobre alguns objectos mas, se fosse esse o preço a pagar para obter a tranquilidade, ele estava disposto a fornecer‑lhe outros, conquanto não fossem os mais preciosos...

Uma hora depois, acompanhado por Warren e Guy Buteau, Aldo acabava o jantar frio que lhes tinham servido na biblioteca, oferecendo café, charutos havana e bebidas francesas aos seus convidados. O superintendente acabava a narração da longa perseguição que fora coroada naquela noite pela prisão de Solmanski: a vigilância discreta dos paquetes transatlânticos, a investigação minuciosa e silenciosa do suspeito logo que ele descera em solo britânico, grandemente facilitada por John Sutton(1), cujo ódio não esmorecia.

‑ E também pelo seu amigo Bertram Cootes(2) ‑ disse Warren.‑ Esse escrevinhador é um investigador nato. Depois do roubo na Torre, foi ele quem descobriu a disputa que rebentou entre os seus dois autores, o que os levou à prisão. Como já não possuíam a pedra, denunciaram o comanditário, mas este escapara aos seus anjos‑da‑guarda e embarcara tranquilamente para França. Foi precisamente nessa altura que adquiri a certeza que fora ele o assassino de Wosinski. Desta vez, para prendê‑lo precisava de um mandato internacional e o Foreign Office leva sempre um bom puxão de orelhas devido a uma data de considerações estéreis. Felizmente a Sureté francesa prestou‑me o serviço de segui‑lo até à fronteira suíça mas, a partir daí, foi a escuridão completa.

«Contudo, não desesperei: eu queria apanhar este homem e, enquanto esperava saber mais acerca dele, fiz tudo o que pude para obter as armas de que precisava e dirigi‑me até ao próprio Primeiro‑Ministro. Foi nessa altura que recebi uma mensagem de um certo Schindler, director da polícia de Salzburgo, que me revelava coisas muito interessantes. Ao mesmo tempo, Paris informava‑me que havia correspondência proveniente de Veneza que chegava regularmente ao hotel Meurice de onde era depois expedida para um hotel em Munique. Por sorte uma das cartas foi parar a Paris e nós pudemos lê‑la. Fora escrita por lady Ferrais, e era obviamente a continuação de outras cartas mas, nos termos desta, a jovem espantava‑se de que o pai se atrasasse tanto para ir ter com ela e insistia para que ele se apressasse, pois você poderia regressar a qualquer momento. Havia que despachar‑se.

 

*1. Ler A Rosa de Iorque.

  1. Idem.

 

Foi isso que fiz e já sabe o resto...

Pensando que, após tão longo discurso, merecia bem o seu conhaque, Gordon Warren provou um golo que saboreou com a língua, de olhos semicerrados, antes de o engolir e de perguntar:

‑ Que conta fazer agora, príncipe?

Este pareceu despertar da reflexão em que o mergulhara o fim da história.

‑ A que propósito? ‑ perguntou com uma voz cansada.

‑ A propósito do casamento, é claro! É verdade que o senhor caiu numa armadilha, tal como aconteceu outrora ao pobre Eric Ferrais e os seus amigos ‑ dos quais faço parte, acredite‑me! ‑ gostaria que não lhe acontecesse o mesmo. Estou convencido que foi ela que o envenenou. É algo que sei, que sinto... e, infelizmente, nada posso fazer.

‑ Porquê? ‑ perguntou Guy. ‑ Não dispõe de provas?

‑ Mesmo que as tivesse de nada me serviriam. As leis do Reino Unido não permitem que uma pessoa possa ser julgada duas vezes pelo mesmo motivo. Lady Ferrais foi absolvida. Mesmo com um montão de provas, não será possível fazê‑la passar novamente perante o tribunal de Old Bailey...

‑ É noutro tribunal que estou a pensar: o do Santo Ofício, ao qual conto ir pedir a anulação do meu casamento vi coactus.(1)

‑ É o único meio para se libertar ‑ suspirou o superintendente ‑ mas tenha cuidado quando efectuar as suas diligências e procure que elas sejam o mais discretas possíveis porque, a partir dessa altura, correrá perigo. Ela meteu‑se em grandes apuros para conseguir desposá‑lo e não vai largá‑lo com facilidade. Entretanto, penso que recorrerá a outras armas, pois é uma das mais belas mulheres que já conheci. Uma verdadeira sereia!

‑ Também sentia isso ainda não há muito tempo, mas o charme já não funciona. Não lhe saberei dizer porquê. Talvez porque me horroriza tudo o que é turvo, duvidoso e equívoco.

‑ Fico feliz por ouvi‑lo dizer isso. Seja como for, siga o meu conselho. Tenha cuidado!

Sabendo muito bem que não conseguiria dormir, Morosini não se foi deitar nessa noite. A alvorada encontrou‑o à janela,

 

*1. Por coacção.

 

perscrutando o cinzento onde se misturavam o céu e o Grande Canal, à espera de um pouco de cor‑de‑rosa, quando o Sol atravessasse o casulo enevoado e húmido que cobria Veneza... Pela primeira vez na sua vida sentia‑se prisioneiro naquela cidade, tanto quanto o criminoso que esperava a sua transferência sob um daqueles telhados que a claridade crua e pálida tornara igual a tantos outros.

É certo que o miliciano já não estava de guarda à porta, mas, insinuante como uma mancha de óleo, a peste fascista começara a espalhar‑se pela Itália. Veneza fora atingida até às suas próprias fundações, pois a própria família fora contaminada. Adriana, que tanto amara, fora convertida tanto pelo amor por um homem como pelo dinheiro, a ponto de ter aceite assassinar uma mulher da qual sempre recebera provas benfazejas e ternas! Talvez fosse isso o pior!

E que iria fazer dela? Matá‑la, tal como jurara outrora que faria ao assassino de sua mãe? Se esse fosse o preço a pagar pela paz da sua alma, por que não? Por ela, só sentia agora desgosto e repugnância, tal como pela criatura que descansava não longe dele. Deixá‑la mergulhar a pouco e pouco na miséria que a espreitava, contribuindo até para isso caso fosse necessário, não seria uma vingança mais subtil? Restava saber se existiam laços entre ela e Anielka. Nesse caso, talvez esta encontrasse um meio para socorrer a antiga amante do pai... Que sucederia então a ele próprio e àqueles com quem vivia, apanhados entre dois fogos, entre dois ódios? Era preciso fazer alguma coisa!

 

Por volta das dez da manhã, Morosini foi a casa de Mestre Massaria, o seu notário, para ditar um testamento segundo o qual distribuía os seus bens entre Guy Buteau, Adalbert Vidal‑Pellicorne e o casal Cecina‑Zaccaria. Em seguida, regressou aos seus negócios atrasados, com a alma mais descansada. Se morresse, Anielka e Adriana não receberiam o menor tostão da sua fortuna...

 

O banqueiro luxemburguês fechou o escrínio com o brasão em ouro e rubis, meteu‑o no bolso, apertou efusivamente a mão de Morosini e voltou a calçar as luvas.

‑ Nunca poderei agradecer‑lhe suficientemente, meu caro príncipe! A minha mãe vai ficar muito feliz ao receber pelo Natal esta jóia de família desaparecida há uma centena de anos. Uma verdadeira surpresa e, na verdade, o senhor opera milagres!

‑ O senhor ajudou‑me: é paciente e eu sou obstinado; a sorte encarregou‑se do resto.

Ficou a ver o seu cliente embarcar na Giudecca em que Zian o ia transportar até à estação. Era efectivamente a antevéspera do Natal e o luxemburguês não tinha tempo a perder, mas ao menos regressava feliz...

Morosini não podia dizer o mesmo. A alegria do seu cliente e, também, a aproximação da Natividade aumentavam a sua lassidão. Sobretudo quando se recordava da mesma época, no ano passado! Por essa altura, ele e Adalbert tinham conseguido que o diamante do Temerário fosse parar às mãos de Simon Aronov. Além disso, o palácio Morosini deplorava então apenas a ausência de Mina em redor de uma mesa de réveillon, na qual um trio alegre preenchia solidamente a lacuna: a cara tia Amélia, flanqueada por Marie‑Angéline du Plan‑Crépin e por Vidal‑Pellicorne, todos contentes por se encontrarem ali partilhando com Aldo a mais linda festa do ano.

Desta vez era o falhanço em todos os capítulos: a opala fora perdida para sempre e a família mais chegada a Aldo compunha‑se de uma mulher duvidosa e de um criminoso à espera de ser julgado. Os outros, os verdadeiros, não estariam presentes: Mme. de Sommières estava acamada com gripe no seu palacete do parque Monceau e Plan‑Crépin tomava conta dela. Quanto a Adalbert, imaginava‑o a passar os festejos em Viena, na companhia de Lisa e da avó, e tanto melhor. Porque motivo iria ele privar‑se de uma tal alegria?

Subitamente o príncipe‑antiquário sentiu um arrepio pela espinha abaixo e começou a espirrar. Era idiota estar ali especado, a apanhar a brisa penetrante que soprava sobre Veneza, enquanto remoía as suas desgraças! Podia fazer o mesmo no interior mas, quando ia voltar para dentro, houve algo que lhe atraiu a atenção, retendo‑o: ao longe, a lancha do hotel Danieli esboçava uma viragem, dirigindo‑se para a entrada do rio Cã Foscari e o seu condutor agitava um braço na sua direcção: trazia‑lhe certamente algum novo cliente.

Aliás, era uma cliente: ao pé dele estava uma silhueta, feminina elegante, sob um capuz de raposa azul, com a mesma pele bordada na capa. Ela também fez um gesto e o coração de Aldo parou um momento. Mas o barco já cortava o motor para abordar as escadas e Aldo mal teve tempo para se refazer da surpresa: Lisa chegava ao pé dele, com o seu pequeno nariz avermelhado pelo frio, mas com os olhos violetas radiantes de alegria:

‑ Bom‑dia! ‑ exclamou. ‑ Não estava à minha espera, pois não?

A jovem emanava uma tal luz, um tal calor, que Aldo se esqueceu dos seus arrepios. Teve de conter‑se para não a abraçar, contentando‑se em estender‑lhe as mãos:

‑ Oh não, não estava à sua espera! E até nem conseguia parar de remoer pensamentos lúgubres, mas você apareceu e tudo se iluminou! Que incrível felicidade encontrá‑la hoje aqui!

‑ Daqui a pouco saberá porquê. Não podemos entrar? A humidade é de gelo...

‑ Com certeza! Venha! Venha depressa!

Levava‑a para o seu escritório mas Zaccaria, que chegava com a bandeja do chá, acabara de reconhecer a recém‑chegada e, pousando a sua carga em cima de uma arca, correu ao seu encontro:

‑ Mademoiselle Lisa!... Quem acreditaria? Oh! Cecina vai ficar tão contente!

Antes que o pudessem reter, desaparecia rumo às cozinhas, esquecendo todo o seu porte pomposo, pensando apenas na alegria que ia dar à mulher. Entretanto Aldo levava a sua visitante para a grande sala revestida de tecido de um amarelo‑solar, onde tinham trabalhado tantas vezes juntos, e foi com toda a naturalidade que ela se sentou na poltrona onde se instalava outrora para estenografar as cartas que Aldo lhe ditava. Mas não tiveram tempo para trocar duas palavras: a porta já se abria sob o entusiasmo de Cecina que, rindo e chorando ao mesmo tempo, lançou‑se sobre Lisa, quase esmagando‑a com o choque:

‑ Por todos os santos do paraíso, é ela, é bem ela! A nossa pequena!... Oh, doce Jesus, que bela prenda ele nos enviou para o nosso Natale!

‑ Penso que se acalentasse a menor dúvida sobre o afecto que lhe dispensamos aqui, agora saberá decerto com que contar ‑ disse Aldo, quando Lisa conseguiu livrar‑se do furacão de tiras, de tecido engomado, seda preta e carne luxuriante que representava uma Cecina chorando copiosamente. ‑ Espero que venha passar algum tempo connosco!?

‑ Bem sabe que é impossível. Tal como o ano passado, regresso a Viena para ir ter com a minha avó, que me encarregou de lhe transmitir os seus mais calorosos sentimentos! Ela gosta muito de si.

‑ Eu também. É uma mulher admirável! Como é que ela vai?

‑ O melhor possível! Ela também está à espera do meu pai e da minha madrasta, pelo que só se sente meio encantada, mas a hospitalidade assim o exige e não quero deixá‑la enfrentar essa prova sozinha...

‑ Mas, então... esta sua deslocação a Veneza? Foi mesmo para nos ver?

Não ousava dizer «para me ver», mas contava tanto com isso! Nesse momento, tomou realmente consciência do que sentia por Lisa. Soube porque motivo não gostava mais de Anielka, por que nunca poderia amá‑la, admitindo que a atracção que sentira por ela tivesse sido amor. E o sorriso de Lisa aqueceu‑lhe o coração:

‑ Claro que foi para vos ver! Adoro Veneza... mas que seria dela sem... todos vós? E, depois, sejamos honestos, há ainda outra coisa...

Foi interrompida pelo eco de uns passos rápidos enquanto que, para Aldo, o céu escurecia e Cecina recuava para junto da sombra de uma biblioteca como perante uma ameaça. Anielka acabara de entrar no escritório invadido por um súbito silêncio:

‑ Desculpe‑me se incomodo ‑ lançou num tom de voz claro ‑ mas preciso de uma resposta, Aldo. Que faremos quanto ao jantar de hoje à noite em casa dos Calergi? Conta ir ou não?

‑ Falaremos disso mais tarde! ‑ disse Morosini, cujo rosto empalidecia de dor e de cólera ao mesmo tempo. ‑ Este não é o momento nem o local apropriado para discutir disso. Queira deixar‑nos, por favor!

‑ Como quiser!

Com um encolher de ombros desdenhoso, a jovem deu meia volta sobre os saltos altos, fazendo esvoaçar o seu vestido de crepe Georgette pura em redor dos seus joelhos perfeitos, desaparecendo tal como chegara, mas Lisa já se levantara automaticamente. Ela também empalidecera. Reconhecera a intrusa e o olhar que dirigiu a Aldo estava repleto de surpresa e de incompreensão.

‑ Não me engano? É mesmo... lady Ferrais?

Deus, como foi difícil responder! No entanto, era preciso...

‑ Efectivamente... mas agora tem outro nome...

‑ Não me diga que se chama... Morosini? A filha de... Oh, que abominação!

Quis correr por sua vez na direcção do vestíbulo mas Aldo apanhou‑a, retendo‑a pela força:

‑ Um momento, por favor! Só um momento!... Ao menos, deixe‑me explicar‑lhe...

‑ Largue‑me! Não há nada a explicar! Tenho de me ir embora... Não permanecerei aqui nem mais um segundo!

A sua voz irregular, nervosa, traduzia a perturbação que a agitava. Cecina quis correr em auxílio de Aldo:

‑ Conceda‑lhe só um momento Lisa! Não é culpa dele...

‑ Deixe de ser materna para comigo, Cecina! Este grande imbecil tem idade para saber o que faz... e, além disso, sempre soube que amava aquela mulher.

‑ Não, a senhora não pode compreender...

‑ Basta, Cecina! Gosto muito de si, mas não me peça demais! Adeus.

Inclinou‑se para beijar a sua velha amiga e, em seguida, voltando‑se para Aldo que, demasiado consciente do inevitável, já nem tentava reagir, disse:

‑ Ia esquecer‑me do verdadeiro motivo da minha visita! Tome! ‑ acrescentou, lançando para cima da secretária um escrínio de cabedal preto. Trouxe‑lhe isto! Encontrámos o corpo de Elsa...

Ao cair por entre os papéis, o escrínio abriu‑se, revelando a Águia que não se esperava mais encontrar. A forte lâmpada acesa sobre a mesa que servia para a lapidação fez reluzir os diamantes, enquanto todas as outras matizes do espectro solar pareciam brotar das profundezas misteriosas da opala.

O tempo de Aldo voltar a cabeça e Mlle. Kledermann desaparecera. Nem tentou ir atrás dela. De que serviria e para lhe explicar o quê? Especado perante a pedra que não ousava tocar, ouviu aumentar e, depois, diminuir, o zumbido da lancha que levava Lisa para longe, para bem longe dele! Para tão longe que doravante ser‑lhe‑ia sem dúvida impossível encontrá‑la.

 

                                                                                Juliette Benzoni

 

 

                      

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