Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A OUTRA FACE DE DEUS - P.2 / F. T. Farah
A OUTRA FACE DE DEUS - P.2 / F. T. Farah

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

David não guardava boas recordações da propriedade familiar em Upper Slaughter. No bosque daquele castelo, fora ameaçado por um animal selvagem. Mesmo morto pelo pai, aquele "monstro" nunca o abandonou, e montava guarda na porta de seu quarto. Todas as noites. "O medo transforma animais afáveis em bestas sanguinárias", recordou-se daquelas palavras enquanto rumava em direção aos pesadelos de infância, vestindo o clássico riscas brancas sobre fundo azul. No banco do passa­geiro, sobretudo crombie coat azul-escuro, da Tibbett. Sentiu um aperto no peito. Nó na garganta. Não queria pensar naquilo. Olhos marejados. "Qual será a justificativa do meu pai? Será que ele...", pensava.

Droga, por que eu não morri com você? — berrou. Fazia quinze anos que capotara com seu Aston Martin esportivo prata na direção con­trária daquela curva.

 

 

 

 

Por que seu pai não gosta de mim, David? — perguntara-lhe a namorada, enquanto voltavam a Londres após um fim de semana em Upper Slaughter.

Ele não gosta de quase ninguém, Susan. Mas não se preocupe, ninguém neste mundo vai mudar o que eu sinto por você.

Jura?

Juro.

Nem mesmo Deus? — insistira Susan.

Nem Ele — respondera, hesitante.

Estou tão feliz, querido. Nas próximas férias, poderíamos viajar para algum lugar, só nos dois. O que você acha?

Uma ótima idéia. Para onde você quer ir?

Bora Bora?

Exótico. O que podemos fazer lá?

— O que acha de um casamento taitiano? — sugerira Susan, com um largo sorriso.

Meus pais querem que eu me case na Saint Paul.

Eles não querem que você se case comigo, David. Você perce­beu que está em uma encruzilhada e precisa tomar uma decisão? - pro­vocara Susan.

Minha decisão é Bora Bora. Quero dizer, é você.

Eu te amo, David.

Eu também... - dizia, até ser surpreendido por uma pontada dolorida na têmpora direita. Fechara os olhos. Ao abri-los, poucos segundos depois, flagrara um estranho homem parado na pista, a menos de cinqüenta metros. Assustado, girara o volante com força. Evitara o atropelamento, mas o acidente foi inevitável. O Aston Martin capotou sete vezes. Três dias depois, acordou em um quarto de hospital.

Onde ela está? - perguntara para a mãe.

Sinto muito, filho.

O que aconteceu, mãe?

Ela não resistiu.

 

Aquela foi a pior notícia que recebeu em sua vida. Desejava ter termi­nado a frase:"Eu também...Te amo, Susan". Encostou o carro no acostamen­to. Janela aberta. Ligou o pisca alerta. Abaixou a cabeça no volante. Chorou.

Nunca vou encontrar você de novo, minha querida - desabafou entre soluços.

Nem Deus podia separar vocês, David? - aquela voz abafada vinha de fora.

Ele levantou a cabeça. Havia alguém diante do carro. Rosto coberto por uma máscara negra: maçãs faciais salientes, nariz pontiagudo, olhos repuxados para cima, dois chifres retorcidos. Capa negra esvoaçante.

Era você... — concluiu, abrindo a porta do carro.

Deus é ciumento e vingativo, David. Já leu o Antigo Testamento?

Você matou Susan, filho da puta! — exasperou-se o jornalista, sacando a espada da bengala. Sentiu uma pontada dolorida na têmpora direita. Mais intensa do que no dia do acidente. Tentou manter os olhos abertos. Em vão.

Seu pai tinha razão. Aquela vadia era uma pedra em seu caminho — disse o mascarado.

Eu vou acabar com você — retrucou David.

De repente, a dor desapareceu. O estranho também. Ele vasculhou em torno do carro. Nenhum vestígio. Esmurrou o capô.

Talvez o padre não seja tão tolo... - murmurou, entrando no Jaguar. Deu a partida e pisou fundo no acelerador.

 

O despertador tocou às oito e meia. Pietro saltou da cama. Cabeça pesada, corpo dolorido. Tosse. "Não posso ficar doente agora", pensou, vestindo roupão e pantufas macias. Ajoelhou-se na beirada da cama e uniu as mãos em prece. Fechou os olhos e inclinou a cabeça.

"Pai-nosso que estais no céu..."

Ficou em silêncio. Foi assaltado pela lembrança do rosto de Fernanda Albuquerque na capa do The Star. Abriu os olhos.

Meu Pai, que eu possa esquecer as palavras e rezar com o coração. Me ensine a perdoar meus inimigos... A amar meus inimigos, como Seu Filho ensinou. Que eu não julgue para não ser julgado. E busque a hu­mildade em minhas palavras, ações e... Pensamentos. Amém.

Levantou-se e ligou o notebook. Talvez houvesse uma mensagem de Michael. Ou uma resposta do cardeal Gabriele Fioravante. Precisava ligar para ele antes do café da manhã e esclarecer o motivo do seu e-mail. O computador acusou duas novas mensagens. Uma delas, sinalizada como urgente, com o título: "Considerações de Sua Santidade".

 

Pietro, ontem a noite, o núncio apostólico da Santa Sé em Londres fez uma teleconferência com Sua Santidade. Logo depois, ela me convocou para uma reunião de emergência. Tentei ligar em seu celular, mas caía direto na caixa postal. A situação é minto grave. Assim que ler essa mensagem, me ligue. Não importa o horário. In Christo et Maria, Gabriele.

O que aconteceu? — questionou-se. "Não posso ligar do celular que o Michael me emprestou. Nem do quarto. O business center é a melhor solução", decidiu.

O remetente do outro e-mail era seu assistente Gennaro. "Devem ser mais pesquisas", concluiu, desligando o computador e vestindo terno cinza-escuro, camisa branca e gravata cinza com diminutos quadrados azuis. Trancou o quarto e desceu pelo elevador. "O cardeal e o papa ainda não receberam meu relatório sobre essa missão. Se o núncio apostólico tinha informações privilegiadas, por que não me procurou?", indagava-se ao entrar no business center.

Não havia mais ninguém ali. O padre foi direto ao telefone e teclou o número do celular de Gabriele. Em menos de dois toques, o cardeal atendeu. Voz sonolenta.

Pietro?

Sim, sou eu. O que houve?

Esperava que você me dissesse — retrucou o cardeal, ríspido.

Descobri a resposta ao segundo enigma. Acionei o número secre­to e falei a palavra-chave...

—Você leu minha mensagem? — interrompeu Gabriele.

Sim.

E não se perguntou por que o núncio apostólico procurou Sua Santidade?

Ainda não tive tempo para elucubrações.

Pois bem, ele fez acusações graves contra você, Pietro.

O quê? Quais? — gaguejou o padre.

Você se hospedou em um hotel de luxo com uma identidade falsa e é um dos suspeitos do assassinato de um membro da Câmara dos Lordes — respondeu o cardeal.

Posso explicar...

O papa me convocou e eu falei para ele sobre o seu crime, Pietro.

Coração aos saltos. Respiração curta. Garganta seca. Olhos marejados.

O senhor... O senhor violou o segredo de confissão... — balbuciou.

O papa é o representante de Jesus Cristo na Terra, Pietro. Não podemos esconder nada de Sua Santidade — justificou-se Gabriele.

O que ele disse?

Que você coloca em risco a segurança da Igreja. A partir desta nossa conversa, você está temporariamente afastado de suas funções ecle­siásticas e do posto de professor no Ateneu Pontifício Regina Apostolorum. Outro padre assumirá seu lugar em Santa Maria in Aracoeli. E você será transferido para um mosteiro na Grécia, onde terá tempo para reflexões e pagará penitência pelos seus pecados.

Preciso terminar minha missão... - dizia o padre, com a voz embargada.

—Você me escreveu ontem dizendo que ela já havia terminado, Pietro.

Meu computador está sendo monitorado. Precisei fazer isso para desviar a atenção do inimigo...

Pegue o primeiro vôo para Roma! — ordenou Gabriele.

Por favor, em nome de nossa amizade eu imploro: me deixe ter­minar a missão. Eu preciso só de mais dois dias. Depois, vou para onde me mandar — suplicou o padre, com lágrimas nos olhos.

Seus métodos são condenáveis, Pietro.

Eu não matei sir Cotton, cardeal. Eu juro.

Levei um esporro do papa, estou puto da vida com você, Pietro! Se estivesse aqui, eu lhe daria uma surra.Você traiu minha confiança. Eu lhe entreguei uma missão importante e você se esqueceu de que é padre. Padres não usam identidade falsa, padres não se hospedam em hotel de luxo, padres não se envolvem em assassinatos, padres não caem na esbórnia e transam com a massagista! Você é tudo o que um padre não deve ser! — disparou Gabriele, aos berros.

Pietro enrubesceu. As mãos suavam e tremiam. O telefone escor­regou de sua mão. Abaixou-se para pegá-lo. As pernas mal se agüen­tavam em pé.

Padres são seres humanos. Nosso primeiro papa negou Jesus Cristo três vezes... Eu sei que não deveria, mas me dê um voto de confiança — suplicou, com a voz quase apagada. As lágrimas escorriam em seu rosto.

Apenas dois dias. Nada além disso.

Obrigado!

Não se meta em mais confusão e lembre que você não pode exercer nenhuma atividade sacerdotal. Está suspenso.

Tudo bem...

Quando você chegar a Roma, me procure imediatamente. E não converse com ninguém sobre o que aconteceu em Londres.

Como quiser.

Mais uma coisa, Pietro.Você estava certo. Há um traidor na Con­fraria dos Quatro Anjos. Espero que, no fim desta missão, você descubra quem é o safado.

Farei o possível.

Adeus - despediu-se o cardeal, desligando o telefone.

Pietro respirou fundo. Pegou o lenço no bolso do paletó e limpou o suor da testa e as lágrimas do rosto. Percebeu que havia algo bordado: Eclo 27,26. "Uma referência bíblica. Este lenço estava na bagagem que Michael deixou para mim no quarto do hotel. Também havia uma referência bíblica na língua que o motorista colocou na minha bagagem quando cheguei. Eclesiástico capítulo 27, versículo 26", observou o padre.

Deve ser mais uma ameaça do Inimigo. David estava certo, Michael faz parte do mesmo bando da confraria negra. E eu caí na arma­dilha... Ele entregou tudo ao traidor. E o filho da puta se escondeu atrás do núncio apostólico! - deduziu, voltando imediatamente ao quarto.

 

Faltava meia hora para chegar a Upper Slaughter. Aquela máscara demoníaca não saía de sua cabeça. Lembrara-se de tê-la visto no dia em que capotara com o Aston Martin. Mas algo em seu íntimo lhe dizia que já se deparara com aquele sorriso perverso antes mesmo de conhecer Susan. Enquanto se esforçava para resgatar o passado em sua memória, trocou o concerto de Brandenburgo N° 1, de Bach, pela voz do locutor de uma rádio de notícias: "A esposa do conde de Bedford está em es­tado de choque. Segundo um investigador da Scotland Yard, o político cometeu suicídio no escritório de sua casa. Antes de dar um tiro na pró­pria boca, teria queimado vários documentos, como evidenciam as cinzas encontradas no lixo. Especula-se que ele estava envolvido em fraudes fiscais e envio ilegal de divisas para o exterior".

Conde de Bedford! Estava na minha lista e na do padre, como sir Alexander Cotton. Pode ter sido assassinado pelos satanistas ameri­canos. Preciso falar com Mister Jones. Discou seu número e desligou no quarto toque. Quase cinco minutos depois, seu contato na Scotland Yard ligou para ele:

Em que posso ajudá-lo dessa vez?

Adivinhe, Mister Jones?

O segundo homem de sua lista se suicidou poucas horas depois do assassinato do primeiro. É isso?

Parece queima de arquivo, não? — arriscou o jornalista.

Ele se suicidou, David.

Ou foi suicidado?

Ele se suicidou depois de receber uma ligação do conde de Leicester, que também está na lista maldita — respondeu o investigador.

Algo mais que eu deva saber?

Apenas se não deixar vazar. Se isso acontecer, serei pego — adver­tiu Mister Jones.

Em off — garantiu o jornalista.

Alguns papéis não queimaram completamente.

São relatórios contábeis?

Quer anotar?

Sim — respondeu David, estacionando o carro no acostamento e pegando seu bloco de notas no porta-luvas. - Prossiga, por favor.

Fragmento número um: O bastardo (X) realizou o último ato (quinta parte). Fragmento número dois: s.R. está em nosso encalço. Providência sugerida: eliminar a ameaça. Fragmento número três: X recepcionou p.A. /presente surpresa. Fragmento número quatro: s.R./p.A.— Brompton Oratory: X relata... O resto está queimado. Tudo isso lhe diz alguma coisa, David? — indagou Mister Jones.

Estou em uma viagem. Preciso analisar com calma. Algum palpite? - rebateu o jornalista.

Talvez o fragmento número um prove sua teoria sobre os assas­sinatos em série. O bastardo X pode ser o psicopata que cometeu os ho­micídios. "Ultimo ato" deve ser uma referência à quinta e última vítima.

Essa anotação do conde de Bedford poderia ser a evidência de que, real­mente, havia uma seita satânica comandando os crimes. E ele fazia parte dela. O fragmento número dois confirma essa hipótese, não? — insinuou o investigador.

—Você deve ter deduzido que s.R. é uma abreviação de sir Rowling. Correto?

E que p.A. significa padre Amorth, que esteve hospedado no Brompton Oratory e se mudou para o Mandarin Oriental com um pas­saporte falsificado. Ou seja, seu parceiro — Mister Jones enfatizou as duas últimas palavras.

O bastardo X pode ser o caminho para desmascararmos o bando. O que acha de nos encontrarmos na segunda-feira de manhã? - sugeriu David.

No mesmo lugar de sempre. Às oito e meia. Até logo.

David releu a transcrição. Não tinha dúvidas. Ele e o padre eram as pessoas escondidas atrás daquelas iniciais. E o bastardo X era o homem que buscara Pietro no aeroporto e plantara uma língua em sua bagagem, ou, para utilizar o mesmo eufemismo do conde de Bedford: presente surpre­sa. Ele os seguira até o Orangery e os vigiara de outra mesa. "Me pareceu tão familiar...", pensou David. O mesmo personagem também estivera no Brompton Oratoty durante sua segunda reunião com o italiano. Fora inti­midado por ele e se vingara pouco depois. "Que coincidência interessante. Também existe um bastardo em A Tempestade, Calibã. Ele se alia a inimigos para trair Próspero. Será que o bastardo X traiu a facção inglesa da seita sa­tânica e passou para o outro lado? Ele é uma peça-chave nessa trama toda. Estou tão perto...", pensava, dando a partida no carro e prosseguindo viagem.

— Esse X deve ter algum significado... Provavelmente religioso. Preciso falar com o padre - deduziu, acessando seu número.

 

Ele se mexeu para um lado, depois para o outro. Acordou com a nuca latejando e o celular marcando uma chamada perdida, núme­ro desconhecido. Acessou a caixa de mensagens: "Caro senhor Abbot, o empresário italiano acaba de fazer uma ligação para Roma do business center. Ele deixou a sala visivelmente transtornado e voltou para a suíte". Era a voz de seu espião no Mandarin Oriental.

Talvez eu tenha mais informações por e-mail.

Deteve-se por alguns segundos diante do machado fincado no chão. "Você está trabalhando para homens que já nasceram condenados. Mas ainda pode ser resgatado. É sua última chance", lembrou-se do que lhe dissera o rei santo durante o desmaio.

Cabeça idiota! — exclamou, abrindo a porta do escritório.

—Você tem duas novas mensagens — acusou a voz sensual do notebook.

Sou realmente importante. Desculpe, senador Bundy, mas a prio­ridade é dos mais velhos — disse Michael, exibindo um sorriso sarcástico e abrindo primeiro a outra mensagem:

 

Prezado senhor Thompson, recebemos o dossiê encaminhado ao nosso diplomata, em Londres. Agradecemos sua disposição em nos ajudar. Transferimos 20% do valor combinado para a conta bancária que nos passou. Assim que a encomenda for entregue no local indicado, deposi­taremos os 80% restantes, fá providenciamos para que sua família seja transportada para um país seguro quando sua missão terminar. Não se preocupe com isso. Conforme combinado, o senhor também receberá in­dulgência plenária no momento oportuno. A respeito do padre Amorth, devolva-lhe os documentos. Ele deve voltar a Roma em dois dias. E não se esqueça de usar o medalhão no confronto final. Ele é a garantia de que você não fracassará. In Christo et Maria, Servo de Deus.

 

Um milhão de euros, a liberdade e o céu por um livro prateado. Esse cara apareceu na hora certa — gabou-se Michael, abrindo o e-mail do senador:

 

A organização sofreu a segunda baixa em poucas horas. Um nobre deu um tiro na própria boca. Os investigadores encontraram, no lixo do escritório de sua casa, fragmentos legíveis de documentos queimados pouco antes. Isso seria absolutamente irrelevante se não vazasse para o jornalista. Temo que isso já tenha acontecido, e quero que me confirme essa informação.

Depois da Operação Luxúria, é provável que o jornalista encontre seu informante. O traidor atende pelo pseudônimo de Mister Jones. Quero que descubra sua identidade e, talvez, cale sua boca. Boa sorte, K.B.

 

Merda. Essa é uma missão muito arriscada.Vão colocar meu pes­coço a prêmio. Por que esse jornalista não fica quieto? — exasperou-se, acionando o rastreador de seu carro. Confirmou que David estava na estrada para Upper Slaughter. Durante o trajeto, fizera e recebera uma ligação. Estavam gravadas. Michael ouviu a conversa entre ele e o inves­tigador da Scotland Yard. "O senador está certo. Esse Mister Jones é uma ameaça. Se eles chegarem ao Feiticeiro, conseguem detonar a organização. Mas isso pode ser interessante para mim... Agora sou um agente duplo, e o Servo de Deus é um chefe mais interessante do que o senador", pensava Michael até ser interrompido por um sinal sonoro. Era David fazendo uma chamada para Pietro.

Hora de conspirar - disse para si, colocando o fone de ouvido.

 

A Bíblia continuava aberta no Eclesiástico, capítulo 27, versículo 29, cuja referência encontrara bordada no lenço: "Quem abre uma cova, cai dentro dela; quem põe uma pedra no caminho do outro, nela tropeça; quem prepara uma armadilha para outrem, nela será apanhado".

— Quem é o maldito traidor da Confraria dos Quatro Anjos? - exasperou-se Pietro. "Sua Santidade sabe do meu crime. Que vergonha. Não posso deixar isso me abater, não agora. Preciso terminar mi­nha missão..." Pegou o bloco de notas com as folhas onduladas e es­creveu o nome dos membros da confraria de exorcistas, as ordens a que pertenciam e a seqüência dos enigmas revelados na capela Sistina:

 

Cardeal Gabriele Fioravante (Ordem Franciscana) — chefe

Monge Jose Gonzáles (cisterciense) — 1o enigma

Abade Thomaz Baker (dominicano) — 2o enigma

Padre Pietro Amorth (jesuíta) — 3a enigma

Monge Benito de Segni (beneditino) — 4° enigma

 

Quem é o maldito traidor? O padre Thomaz é inglês... Deve ser próximo do núncio apostólico em Londres...

O celular tocou. Reconheceu o número de David.

Já se encontrou com seu pai? - adiantou-se Pietro.

Ainda não. Liguei para dizer que você esqueceu seu chapéu em casa. A bateria do meu celular está fraca.Você pode me ligar daí, agora?

Em cinco minutos.

Eles querem me despistar. Sabem que o telefone do padre está grampeado, mas o jornalista nem suspeita que também estou rastreando todos os seus movimentos — gabou-se Michael.

Pietro voltou ao business center e ligou para o celular de David.

—Você não ligou por causa do chapéu, não é mesmo?

Um membro inglês da seita se suicidou. Estava na minha lista e na sua.

Meu Deus!

Ele queimou alguns documentos, mas minha fonte na Scotland Yard acaba de me transcrever quatro fragmentos. Há prováveis referên­cias a nós dois. E ao seu agressor. Acho que estamos perto de montar o quebra-cabeça e desmascarar essa organização - revelou o jornalista.

Só tenho mais dois dias em Londres, David.

Como assim?

Alguém passou informações comprometedoras sobre mim para o núncio apostólico em Londres. Fui afastado de minhas funções eclesi­ásticas. A única concessão que tive foram mais dois dias aqui.Você estava quase certo quando disse que a Igreja está interessada no livro maldito... — sugeriu Pietro.

Por que quase certo?

Não é a Igreja. E um traidor escondido atrás de uma batina — esclareceu o padre.

Alguma suspeita?

Não posso levantar falso testemunho. Mas acredito que seja um membro da minha confraria de exorcistas.

—Vamos conversar melhor sobre isso mais tarde, padre.

Em que posso ajudá-lo agora?

Fui surpreendido por um homem usando uma máscara de demônio, mas ele desapareceu em um piscar de olhos. Como isso é pos­sível? — questionou David, em um tom de voz reticente.

É possível se você inverter seu raciocínio. Você acredita que os responsáveis pelas obras demoníacas são pessoas que acreditam no diabo, que vestem sua máscara.Talvez você tenha visto o contrário: o diabo ves­tido de homem. Ele é capaz de prodígios sobre-humanos, como aparecer e desaparecer em um piscar de olhos — argumentou Pietro.

Aquela explicação lhe pareceu a mais improvável. Não pretendia entrar em mais uma polêmica com o italiano e, para se esquivar, foi direto ao motivo da ligação:

Qual é o significado religioso da letra X?

X e P são as iniciais gregas de Cristo.

O monograma de Deus...

Em outra linguagem, sim.

E se a letra X estiver sozinha? — sugeriu David.

Santo André foi crucificado em uma cruz em forma de X. Por que quer saber isso?

Para entender um dos fragmentos... Preciso prosseguir viagem. Ligo quando estiver de volta. Até logo - despediu-se. "Santo André. Em inglês, Andrew. Talvez esse seja o nome do bastardo. Andrew, esse nome me diz algo... And...", pensava David, sentindo o coração disparar.

Não pode ser. Ele desapareceu quando eu tinha sete anos - murmurou.

Não era apenas o ataque da besta sanguinária que transformava o castelo de Upper Slaughter em um lugar terrível. Havia mistérios que ele fizera questão de esquecer.

 

O cheiro de café se espalhou pela cozinha. Mary encheu a caneca térmica e foi à porta principal da casa. Apanhou a edição do The Star sobre o tapete de entrada, colocou-a embaixo do braço e saiu para uma caminhada despretensiosa na Cheyne Walk. Vestia-se casualmente: calça jeans, botas pretas e malha preta, com a gola cobrindo o pescoço, e trench coat da Burberry. Fazia frio. Céu cinzento. Estava a poucos metros do Ropers Garden. Porém, escolheu sentar-se em um banco de madeira quase na esquina com a Old Church Street, ao lado de uma estátua que contem­plava calmamente o Tâmisa e tinha a Chelsea Old Church às costas.

Estou sozinha. Espero que não se importe de me fazer compa­nhia, sir... — observou, esticando o pescoço para ver o nome do home­nageado. — ...Thomas More. Seu nome não me é estranho. Aceita um cigarro? — perguntou, apoiando a caneca com café no encosto do banco.

Após o trago inicial, desdobrou a primeira página do jornal. Man­chete principal: "Sir Alexander Cotton misteriosamente assassinado". Matéria assinada por David Rowling. Com o cigarro na boca, leu e releu o texto de seu chefe.

Genial! Como você conseguiu apurar tudo isso ontem à noite e publicar na edição de hoje? - indagou Mary, tragando o cigarro.

Observou um casal se aproximar com duas crianças. A menina, de mãos dadas com os pais, aparentava seis anos. O menino, uns três anos mais velho, seguia logo atrás, segurando um boneco. A menina sorriu. Seu irmão parou, encarando-a com uma expressão séria.

Tudo bem? Como você se chama? — perguntou Mary.

O menino apontou para a estátua ao lado.

—Venha, Thomas — ordenou a mãe, ao perceber que o filho ficara para trás.

Tchau, Thomas — despediu-se Mary.

Antes de correr atrás da família, ele levantou o dedo indicador para o céu. Mary olhou para cima. Um feixe de luz atravessava a fenda estreita entre nuvens cinzentas, iluminando o rosto contemplativo de sir More. A jornalista sorriu. "Deve ser um sinal de Lugh, o Deus Sol", deduziu, pegando o iPhone no bolso da calça e acessando a Wikipédia. Pesquisou "sir Thomas More": "Ocupou vários cargos públicos durante o reinado de Henrique VIII, incluindo o de Chanceler do Reino, mas se afastou quando o rei insistiu na anulação de seu casamento com Catarina de Aragão. O autor de Utopia...".

— Sabia que o conhecia de algum lugar - constatou, retomando a leitura:"... foi condenado à morte por se recusar a fazer um juramento sobre o Ato da Sucessão, reconhecendo a legitimidade de qualquer criança nascida do casamento de Henrique VIII com sua segunda esposa, Ana Bolena, e sobre o Ato de Supremacia, que transformava o rei no chefe supremo da Igreja na Inglaterra. Thomas More foi canonizado pela Igreja Católica em 9 de maio de 1935".

—Você acreditava nessa bobagem de sexo só depois do casamento e sempre com a mesma pessoa? Esse é um dogma preconceituoso dessa igreja idiota, sir Thomas. Já sei, você era contra os filhos das uniões ilegíti­mas, não é isso? Está brincando comigo? — questionou Mary, ficando em pé diante do interlocutor estático.

Uma nuvem escura passou sobre a igreja, e a luz do sol deixou de iluminar o rosto da estátua. Outro casal passou por ela, levando um car­rinho de bebê. Lembrou-se do filme O Bebê de Rosemary, ao qual não conseguiu assistir na noite anterior. Deu o último trago no cigarro e arremessou a bituca no rosto da estátua. Colocou o The Star debaixo do braço e seguiu para o Ropers Garden, tomando os últimos goles do café.

 

David estava apreensivo quando parou diante do imponente portão de ferro do castelo em Upper Slaughter, formado por lanças com pon­tas douradas apontadas para o céu. Dois grifos ameaçadores, no alto de colunas laterais, pareciam proteger o lugar. Duas câmeras de vídeo, com as lentes projetadas para fora, insinuavam que os proprietários confiavam mais na tecnologia do que em guardiões de pedra. Os portões se abri­ram poucos segundos após sua chegada. Ele sentiu um arrepio quando o Jaguar atravessou o limiar do mundo exterior. Poucos metros depois, conseguiu avistar a entrada do castelo. O mordomo James, que servia seus pais há vinte anos, esperava-o na porta principal. Coração apertado. Boca seca. Estacionou perto da entrada dos criados e, antes de deixar seu reduto móvel, apanhou a bengala e vestiu o crombie coat azul-escuro.

Bom-dia, David — saudou-lhe o mordomo alto e magro, com um sorriso quase imperceptível no rosto alongado.

Bom-dia, James - respondeu o jornalista, estendendo-lhe a mão e notando um fio rebelde no estreito bigode, sempre bem aparado. - Meu pai tomará café da manhã conosco?

A mesa está pronta para duas pessoas: a senhora Rowling e você. O senhor Rowling saiu para a cavalgada matinal — informou James.

"Ótimo. Assim posso conversar à vontade com a minha mãe", pen­sou David, entrando na sala de visitas. Ela estava sentada no sofá próximo à lareira. Ao ver o filho, o rosto de lady Charlotte se iluminou. Trajando um vestido azul-escuro, mangas longas, com uma echarpe preta em torno do pescoço, ela se levantou e foi ao seu encontro. David sorriu. Ao se abraçarem, ela encostou o rosto em seu ombro, e ele sentiu a suave fragrância floral da Penhaligons que a acompanhava todas as manhãs.

— Você está elegante - David quebrou o silêncio.

Obrigada por ter vindo, filho — respondeu lady Charlotte, encarando-o.

—Vim apenas porque você me pediu, mãe.

Seu pai foi cavalgar. Vamos tomar chá e conversar um pouco — sugeriu-lhe, segurando em seu braço esquerdo e rumando com ele para a sala de chá.

Atravessaram a ampla sala de estar, passaram pela sala de armas, com espadas, escudos e cabeças de animais de caça exibidos nas paredes late­rais, e chegaram à sala de jogos, também utilizada para o serviço de chá. Tapeçarias nas paredes alternavam cenas de peças shakespearianas. Nos cantos da sala, mesas de quatro lugares serviam para jogar xadrez e bridge. No centro, uma mesa de madeira com as ninfas de Sonho de uma Noite de Verão esculpidas nas pernas. Coberta por uma toalha de linho branco, estava arrumada para duas pessoas. A anfitriã sentou-se na cabeceira, de frente para o bar de destilados e os charutos, instalados no lado oposto à entrada. David ficou ao seu lado, diante de duas tapeçarias. A da esquer­da retratava Romeu segurando o frasco de veneno aberto, desesperado diante do corpo de Julieta. O jornalista desviou os olhos da mesa repleta de quitutes para os personagens da outra tapeçaria. Reconheceu-os imediatamente. No canto direito, o monstro encostado no rochedo, visivel­mente acuado, era Calibã, o escravo traidor. "O bastardo X", deduziu. A sua frente, um homem mais velho empunhava uma espada com a mão direita. A outra apontava para a esquerda. "Próspero, John Dee, Duque Negro", associou David. Encostada em Próspero, tentando se proteger e com uma expressão inocente, sua filha. "Miranda, a Mulher Escarlate, Fernanda Albuquerque", pensou.

E a favorita de seu pai — comentou lady Charlotte, ao perceber o filho absorto na tapeçaria.

Prefiro as outras — respondeu-lhe, observando a mulher de estatura mediana e rosto redondo se aproximar da mesa com a bandeja de chá.

Com pouco leite para os dois — lady Charlotte orientou a go­vernanta.

David olhou para sua mãe. O cabelo, loiro e liso, descia dois centí­metros abaixo das orelhas. Os olhos verde-claros, ligeiramente puxados para baixo, cobriam de sutil tristeza o rosto de traços finos. Fazia quase um ano que eles não se encontravam.

Sinto sua falta, filho.

Deveria culpar seu marido por isso — retrucou David, ressentido com o pai.

Espero que saiba compreendê-lo.

Não há explicação razoável para renegar publicamente o próprio filho. Você faria isso, mãe? - rebateu o jornalista, no instante em que a governanta virava, calculadamente, a leiteira em sua xícara com english breakfast.

É fácil julgar alguém quando não carregamos seu fardo nas costas, filho — comentou lady Charlotte, com um olhar de súplica. Queria que David fosse compassivo. Desejava que a família se reunisse novamente e superasse aquele trauma.

Tudo o que disser poderá, e será, usado contra você, mãe — disse o jornalista, parafraseando os policiais durante as ordens de prisão. - Se o seu marido não tivesse ficado contra mim, eu não teria carregado um fardo tão pesado nos últimos dois anos.

Sinto muito.

Ele foi o maior responsável pela minha desgraça, mãe. E graças a ele, aqueles criminosos saíram livres. Porque eu estava certo. E vou provar isso. O fardo dele deve ser pesado porque a consciência está suja — dispa­rou o jornalista, com os olhos mais umedecidos que o normal.

Por mim, ouça o que ele tem a lhe dizer, David — insistiu lady Charlotte.

Por você, mãe - consentiu, levando a xícara de chá à boca.

 

A top model causou um alvoroço no aeroporto pouco antes de embarcar. Ao contrário do habitual, recusou-se a dar autógrafos e não sorriu para as câmeras dos paparazzi. Só tirou os óculos escuros quando se acomodou na poltrona da primeira classe. Fechou os olhos.

Não importa que tenha dormido mal, Fernanda. Você precisa sorrir sempre. Sempre — era a voz de Jacob.

Essa poltrona está ocupada — retrucou a modelo, com os olhos fechados.

Eu sou seu empresário. Jamais esqueceria essa exigência tola de viajar sem ninguém ao lado. Estou na poltrona de trás. Só passei aqui para te lembrar que você deve sorrir para a imprensa. Sempre.

Foda-se. Me deixe em paz! — esbravejou Fernanda, virando-se para o outro lado e caindo no sono. Nem percebeu o avião decolar.

Posso me sentar aqui? — alguém a importunou. E, dessa vez, não era a voz de Jacob.

Não! — respondeu rispidamente, sem olhar para o lado.

Mas a poltrona está vazia — insistiu o estranho.

Eu comprei os dois lugares para viajar sozinha, e evitar pessoas inconvenientes como você — retrucou.

Se tivesse me evitado, querida, não seria ninguém.

Ela conhecia aquela voz. Abriu os olhos, assustada. A poltrona ao lado continuava vazia. Abriu a bolsa e pegou a carta entregue pelos vizi­nhos: Parabéns, você se tornou a maior top model do mundo. É claro que, sem meu empurrãozinho, você não seria ninguém. Chegou a hora de saldar nossa dívida. Apertou o botão que chamava a aeromoça. Apesar da turbulência, ela chegou em poucos segundos.

Uma dose dupla de uísque, por favor.

Você está com algum problema? — preocupou-se Jacob, atento ao pedido.

Sim. Quero conversar sobre ele? Não.

Desde que não prejudique seu trabalho... — dizia o empresário.

—Você não tem nada a ver com isso — adiantou-se Fernanda.

"Você nem poderia me ajudar", completou em pensamento, pe­gando um livro na bolsa. Abriu-o na primeira página. Querida Fernanda, sempre que tiver algum problema, feche os olhos e abra em qualquer página. Deus falará com você. Um beijo do padre que fala engraçado. Ela fora presenteada com aquela Bíblia uma semana antes de começar o catecismo para a Primeira Comunhão.

Por que você me abandonou quando eu mais precisava? - mur­murou, ressentida. — Se você não tivesse fugido, eu não teria caído nessa armadilha, padre filho da puta! — desabafou.

A aeromoça chegou com o copo de uísque. Fernanda agradeceu e tomou um gole antes de seguir o conselho do padre e abrir a Bíblia aleatoriamente. "Talvez seja melhor mais para o começo", deduziu, folheando as páginas. Parou em Deuteronômio 28. Seus olhos escolheram o ver­sículo 20: "E o SENHOR te enviará a maldição, o pânico e a ameaça em todos os teus empreendimentos, até seres destruído e pereceres bem depressa pela perversidade de tuas ações, pelas quais me abandonaste".

A primeira vez nunca vale — disse para si, fechando a Bíblia e tomando mais um gole do destilado. - Agora terei mais sorte.

Abriu em Salmos. Escolheu o 109. Iniciou a leitura no versículo 18: "Revestiu-se de maldade como de um manto; que ela entre nele como água, e nos seus ossos como óleo. Que ela lhe seja como veste que o co­bre, e como um cinto que o aperte sempre".

Não pode ser... Não pode ser... — balbuciou, balançando nega­tivamente a cabeça. Levou o copo novamente à boca. "Talvez mais para o fim", decidiu, abrindo em Apocalipse. Sentiu um calafrio. Fechou os olhos. Com o dedo indicador, passeou pela página. "Meu Deus, me diga alguma coisa boa", sussurrou. Abriu os olhos. Estava apontan­do para o quarto versículo do capítulo 17: "A mulher estava vestida de púrpura e escarlate, e toda enfeitada de ouro, pedras preciosas e pérolas. Tinha na mão um cálice de ouro cheio de abominações, as imundícies da sua prostituição. Na fronte da mulher estava escrito um nome enigmático: 'Babilônia, a grande, a mãe das prostitutas e das abominações da terra'".

Com as mãos trêmulas, levou o copo de bebida à boca. Sentiu um gosto horrível.

Merda de uísque! — berrou, atirando o copo ao chão.

O que aconteceu? — perguntou a aeromoça intrigada, aproximando-se da top model.

Este uísque está uma droga!

Desculpe-me, senhora. Quer que eu lhe traga um novo copo?

Não, obrigado - adiantou-se Jacob, levantando de sua poltrona.

Se precisarem de algo, me chamem — insistiu a aeromoça, abaixando-se para recolher o copo e enxugar o chão.

Obrigado novamente — respondeu Jacob, sentando-se ao lado de Fernanda.

Eu já disse que a poltrona está ocupada — reclamou a brasileira.

—Você está lendo a Bíblia, Fernanda? — surpreendeu-se o empresário, ao espiar o livro que ela tinha em mãos.

Infelizmente... — retrucou, desanimada.

Quer salvar sua alma? - perguntou-lhe Jacob.

A brasileira virou-se para ele, assustada. Até aquele momento, ela não se dera conta de que a perdera. E Deus parecia lhe dizer que não havia mais volta.

 

Enquanto tomava chá, David olhou novamente para a tapeçaria inspirada em A Tempestade. "Falta apenas um elo... Talvez a Fernanda Albuquerque seja a resposta", raciocinava.

—Tenho lido seus artigos no The Star — disse lady Charlotte, pegan­do um mini croissant.

Aposto que faz isso escondida dele — insinuou David.

Não lhe diga que revelei isso, mas seu pai sempre comenta que suas matérias são as únicas que prestam no jornal.

Ele também deve lamentar que eu não segui a carreira diplomá­tica — queixou-se.

Ele reconhece seu talento, David.

Por isso repetiu algumas vezes que eu joguei meu futuro no lixo? — rebateu o jornalista.

Fiquei chocada com a morte de sir Alexander Cotton - lady Charlotte mudou o rumo da conversa.

Ele foi assassinado, mãe.

Eu li seu artigo.

O que achou?

Assustador.

O que ele achou?

Fez um comentário antes de sair para a cavalgada: "Ele teve o que merecia".

Se ele deseja isso aos amigos...

Ele não era amigo de seu pai, David — interrompeu lady Charlotte.

Seu marido me jogou na fogueira por causa de algumas pessoas. Sir Alexander Cotton estava entre elas. E nada do que ele diga poderá mudar isso - retrucou o jornalista, cruzando os braços.

Seu pai fez isso para defendê-lo - afirmou sua mãe, encarando-o.

"Ela não mentiria olhando em meus olhos", pensou o jornalista, emendando uma pergunta:

Tem notícias de Georgina?

Sua irmã está ótima. No próximo mês, talvez passe alguns dias em Londres.

Fico feliz em saber.Vou ser promovido no jornal, mãe.

É uma ótima notícia, filho. Merece uma comemoração.

Lady Charlotte, eu a convido para um jantar no Pierre Gagnaire.

Não recuso esse convite por nada — respondeu sua mãe, pegando a xícara de chá.

Por um breve instante, David sentiu-se leve, sem os fardos da última semana. Dos últimos anos. Conhecera Paris em uma viagem com os pais, aos doze anos. Desde então, freqüentava a Cidade Luz com lady Charlotte. A intimidade de sua mãe com a França vinha do berço. Ela nascera naquela cidade e se mudara para Londres antes de completar três anos. Para o jornalista, as lembranças de Paris eram sempre acolhedoras. E se tornaram um excelen­te refúgio naquele momento. Podia sentir o aroma adocicado das boulangeries. Naquela cidade aprendera a amar a gastronomia e os vinhos."Será que algum dia Mary e eu...", pensava, com um sorriso no rosto e o olhar distante.

—Alguém mais participará da comemoração? — indagou lady Charlotte.

Não convidarei mais ninguém.

—Você está sozinho?

Ainda não sei.

Ela também é jornalista?

É uma repórter americana.

Trabalha no The Star?

É a minha assistente, mãe — revelou David, tomando mais um gole de chá.

Sua mãe sorriu. Sabia o quanto o filho sofrerá com a morte de Susan e desejava, mais do que ninguém, que ele encontrasse uma pessoa capaz de curar seu coração.

Desculpem-me - anunciou-se James, à porta do salão de jogos.

O que houve? - questionou lady Charlotte.

Sir Rowling está à espera de sir David na sala de estar - respon­deu o mordomo.

Aquelas palavras arrancaram o jornalista de seu refúgio.

Com licença — disse para sua mãe, levantando-se da mesa.

Seja compreensivo com ele, meu filho — insistiu, mais uma vez, lady Charlotte.

 

O Ropers Garden era pequeno, mas agradável. No centro, ostentava a escultura de uma mulher nua com o rosto voltado para cima e parcial­mente coberto pelo braço esquerdo. O direito também se estendia em direção ao céu. A jornalista se aproximou.

Linda... Transaria com você só para escandalizar sir Thomas More, que fica sentado logo ali, de costas para a igreja. Se aceitar minha proposta, é só chamar. Estou sentada aqui — disse, sorrindo e apontando para o banco em frente, encostado no muro.

Sentou-se e acendeu outro cigarro.

— Aqui a companhia é bem melhor. Essa escultura... Ela parece uma sacerdotisa — observou, dando um trago.

Abriu o The Star e leu sua segunda matéria, encomendada por Carolyn. A amizade com a brasileira alavancara o início de sua carreira jornalística em Londres. Era apenas uma assistente e já emplacara duas chamadas de capa. Em Nova York, sempre circulara nos melhores lugares, com as roupas e as jóias mais cobiçadas. Era inevitável que conhecesse a nata da high society internacional. Sua agenda tinha desde príncipes ára­bes e milionários russos até ganhadores de Oscars e Emmys. O caminho até Fernanda Albuquerque fora diferente. Ela se aproximara da modelo poucas semanas após sua mudança para Nova York. Na época, a brasileira não passava de um rosto desconhecido na multidão. Mary deixou o jornal de lado, tragou o cigarro e fechou os olhos.

 

Preciso de um favor, Mary — dissera Jacob na reunião social pro­movida na mansão de sua família.

Se estiver ao meu alcance... — respondera, com um sorriso no rosto.

Quero que se torne amiga de uma modelo brasileira. Ela acaba de chegar à cidade.

Como ela se chama?

Fernanda Albuquerque.

Nunca ouvi falar, Jacob. O que eu ganharia com isso?

Em primeiro lugar, Mary, você conheceria uma pessoa interessante. Em segundo, teria a chance de experimentar uma amizade verdadeira. Algo raro no mundo em que você vive. Em terceiro... — explicava até observar a aproximação do pai de Mary.

Faria um favor a você mesma, querida. Quando essa brasileira se tornar uma celebridade internacional, vai querer pagar tudo o que fez por ela. As pessoas que vêm de baixo costumam ser generosas na retribui­ção de gentilezas. Aprenda isso - o homem aconselhara a filha antes de se retirar para conversar com dois senadores.

Ele sempre chega nos momentos certos — comentara Jacob.

Que interesse ele tem nisso? — indagara ao empresário.

Seu pai é um empreendedor, Mary. Ele sempre enxerga os me­lhores investimentos.

Ele é um...

Não complete a frase — interrompera Jacob. - Não quero ser acusado de conspirar contra ele — terminara com um sorriso.

Quando seremos apresentadas?

Amanhã, na minha casa.

Se meu pai está envolvido nisso, Jacob, não posso recusar o con­vite. Agora, se me permite, pegarei mais champanhe.

 

Mary abriu os olhos. Não estava mais em Nova "York. Tragou o cigarro, contemplando a escultura no centro do Ropers Garden. As promessas de Jacob se cumpriram. Ela realmente conhecera uma pessoa interessante. Aprendera a falar português e passara a admirar o Brasil. A top model tam­bém se tornara uma amiga de verdade, diferente da maioria, "falsa como as grifes de Chinatown", como ela mesma gostava de dizer. Com Fernanda Albuquerque, trocava confidências, ria, chorava... Sentiu um aperto no coração. Não era apenas a ela que a top model devia retribuir gentilezas. Conhecia as pessoas que estavam por trás de sua ascensão. Sabia que a dívida da brasileira era enorme. E podia estar prestes a ser cobrada.

 

Como um autômato, David saiu da sala de jogos, atravessou o salão de armas e chegou à ampla sala de estar. Flagrou o pai de costas, observan­do uma foto da família sobre o parador da lareira. O tradicional hacking jacket, com corte cintado, racha nas costas e bolsos com palas na diagonal, caía sobre as calças riding breeches. Nos pés, botas jodpur completavam o uniforme de cavalgada de sir Henry Rowling. O jornalista pigarreou para chamar sua atenção. O banqueiro e presidente da Chatham House virou-se na direção do filho. Desde as mais remotas lembranças de David, seu pai sempre usava aquela barba cerrada e aparada com precisão. Após dois anos sem vê-lo, achou-o parecido com um de seus escritores favoritos: o norte-americano Ernest Hemingway. Assim que viu o filho, a expressão circunspecta foi substituída por um sorriso amigável.

Estava vendo a foto — disse seu pai, apontando para o aparador. — Eu era feliz naquela época.

Eu também — comentou David. — Naquela época, eu tinha um pai.

—Vamos conversar durante a caminhada, filho.

Tenho pouco tempo. Preciso trabalhar — informou David, acom­panhando seu pai até a saída do castelo.

Essa é aquela bengala que eu usava quando você era pequeno? — perguntou sir Rowling, assim que passaram a construção e entraram em um caminho de terra batida, ladeado por carvalhos.

Sim.

Então, filho, é a mesma que eu usei para protegê-lo do "monstro".

—Você me chamou aqui para conversarmos sobre reminiscências?

Chamei você aqui para mostrar que, mesmo distante, eu estava perto de você, te protegendo.

—Você me traiu, Henry - atacou David, com a voz embargada.

Respeitarei essa sua opinião se continuar com ela depois de me ouvir, filho.

Então, fale.

—Você estava certo, havia uma organização satânica por trás daqueles assassinatos. E sir Alexander Cotton era o líder.

E por que você encobriu esses criminosos e ficou contra mim? Também faz parte disso? - disparou David.

Não diretamente.

Como assim? — indagou o jornalista, assustado. Ele parara de caminhar e encarava seu pai pela primeira vez desde que o reencontrara.

Vamos continuar nossa caminhada, estamos chegando ao meu pequeno paraíso — sugeriu sir Rowling, referindo-se aos jardins.

Eu lhe fiz uma pergunta.

Na época em que eu era membro da Câmara dos Lordes, David, sir Cotton se aproximou de mim com uma proposta tentadora. Ele me presentearia com um banco de investimentos, desde que eu aceitasse certas condições.

— Vocês eram sócios?

Não. O banco sempre foi meu. Mas ele o utilizava como fachada para operações financeiras duvidosas — revelou sir Rowling, sem alterar a voz.

Como o financiamento de psicopatas? Por que você aceitou fazer parte disso?

Eu desconhecia o lado sombrio de sir Cotton até ler seus artigos, David.

E por que não aproveitou a oportunidade para se livrar dele?

Na primeira vez que tentei fazer isso, ele ameaçou me arruinar financeiramente. Na segunda, disse que tinha provas contra mim. Eu seria processado por fraude fiscal e passaria o resto da vida atrás das grades. Mesmo assim, estava decidido a correr o risco para manter a consciência limpa. Foi quando ele ameaçou matá-lo, David. Para protegê-lo, cedi à chantagem — terminou a explicação com um suspiro prolongado.

Por que... Por que você não me contou isso? Poderíamos ter resolvido juntos.

Uma das coisas que me fazem ter orgulho de você, David, é sua integridade. Se eu contasse tudo, você enfrentaria sir Cotton. E ele não mediria esforços para assassiná-lo. Não, David. Eu jamais permitiria isso. Por outro lado, se eu o renegasse publicamente, você estaria protegido desse bando. Foi minha escolha. A escolha de um pai desesperado.

Eles já haviam chegado ao jardim. Sir Rowling parou diante de uma fonte. A água escorria sob uma reprodução de mármore da Diana de Versalhes. A mão esquerda da deusa estava estendida sobre a corça, companheira de caçada. A outra sacava uma flecha da aljava. David evitou os olhos de seu pai. Estava confuso. Sentia-se envergonhado por tê-lo odiado tanto.

— Vamos continuar a caminhada? - sugeriu o jornalista. — O adian­tamento da minha herança fazia parte do acordo?

— Foi uma exigência minha. E sir Cotton acatou - respondeu sir Henry, acompanhando seu filho.

 

Pietro sentou-se em uma das mesas reservadas para o café da manhã. Colocou o bloco de notas e o celular na cadeira ao lado e pediu um espresso duplo. Um acesso de tosse deixou-o sem fôlego. Sentiu uma pontada do­lorida no supercílio esquerdo e fechou os olhos. Amava a Igreja Católica, mas estava profundamente magoado. Lembrou-se da sentença do cardeal Gabriele: "Você está temporariamente afastado de suas funções eclesi­ásticas. Outro padre assumirá seu lugar. E você será transferido para um mosteiro na Grécia, onde terá tempo para reflexões e pagará penitência pelos seus pecados". Uma lágrima escorreu em seu rosto. Talvez aquela punição fosse apenas a maneira que Deus encontrara de salvar sua alma do inferno. A xícara de café chegou à mesa. Ele agradeceu e tomou um gole, sem açúcar nem adoçante.

—Apenas mais dois dias para sair desse turbilhão — desabafou consigo mesmo, sentindo um misto de alívio e tristeza. — Meu Deus, iluminai meu caminho para que eu seja um instrumento em Suas mãos.

Pegou o bloco de notas. Uma folha solta caiu no chão. Estava dobrada duas vezes. David entregara-lhe aquilo no Brompton Oratory. Segundo ele, alguém parecido com John Dee dissera-lhe aquelas palavras em um sonho. Mas, atropelado pelas circunstâncias, o padre ainda não se dedicara àquilo. Passou os olhos pela mensagem: Othil lasdi babage od dorpha Goholl

Talvez se eu conseguisse decifrar isso... Pode ser uma chave — pensou em voz alta, terminando a xícara de café. Colocou o celular e o bloco no bolso do casaco e seguiu até o business center. Conferiu suas anotações sobre os escritos de John Dee.

Uma chave! — exclamou, baixando novamente o manuscrito di­gitalizado de 48 Claves Angelicae. Na ferramenta de busca, digitou aquelas palavras incompreensíveis.

Sua suspeita se confirmava. Eram palavras escritas na linguagem enoquiana, em caracteres latinos. No livro, elas introduziam a Quarta Chave.

David, o diabo realmente procurou você.Vamos ver o que ele te disse - concluiu Pietro, voltando-se à versão inglesa da mensagem, também escrita pelo punho de John Dee:

 

Coloquei meus pés no sul e olhei à minha volta dizendo: "Não são os Trovões do Crescimento de número 33 que reinam no segundo ângulo? Sob eles coloquei 9639 que nunca foram numerados, exceto um. Nele o segundo principio das coisas está e cresce forte. Sucessivamente, também são os números do tempo. Seus poderes são como os do primeiro 456. Levantem-se, Filhos do Prazer, e visitem a Terra. Eu sou o Senhor vosso Deus que É e vive para sempre. Em nome do Criador, movam-se e revelem-se como agradáveis entregadores para que possam louvá-Lo entre os filhos dos homens".

Filhos do Prazer talvez sejam os anjos caídos. E o deus dessa mensagem não é o verdadeiro, mas aquele que quis se igualar a Ele, o líder da rebelião, Lúcifer, Samyaza, o mestre de John Dee. Mas o texto continua cifrado. O que significam esses números? A localização do livro maldito... Ninguém melhor do que David para me ajudar a solucionar este enigma — deduziu Pietro em voz alta, transcrevendo a Quarta Chave.

 

Os dois já haviam atravessado a maior parte do jardim, e estavam a menos de cem metros da entrada do labirinto. Ao fundo, era possível avistar o bosque onde sir Henry Rowling praticava caça esportiva. As pernas de David começaram a reclamar. Pareciam se recusar a prosseguir naquele caminho. O formigamento acentuava-se a cada passo. Para me­lhorar o equilíbrio, ele colocou mais força na bengala. Coração acelerado. Respiração arrastada. O suor escorria em seu rosto e molhava as costas. De repente, ele parou. Olhos arregalados.

Tudo bem, filho? — perguntou sir Rowling.

Tudo.

Se preferir, podemos voltar — sugeriu seu pai.

Por que você nunca me deixou entrar no labirinto? — indagou o jornalista, voltando-se para ele.

Porque ele é traiçoeiro, David. É fácil se perder e muito difícil encontrar a saída. Além disso, ele é perto do bosque. Animais selvagens costumam usá-lo como esconderijo. Você se lembra do "monstro"?

Ele surgiu perto do labirinto... - recordava-se.

Tínhamos acabado de passá-lo e caminhávamos no bosque. Imagine se você se perdesse no labirinto e fosse atacado por uma matilha de lobos.

Provavelmente não estaria aqui hoje — observou David, fitando a entrada da armadilha.

E eu me culparia por isso pelo resto da vida.

Eu tenho uma lembrança vaga...Acho que já estive lá... Cheguei ao centro...

Você teve um pesadelo com isso e acordou chorando. Deve ter confundido sonho com realidade.

Pode ser... O que existe no centro?

Uma pequena cabana. Quer ir até lá?

David olhou para o relógio de pulso e respondeu, girando sobre o calcanhar:

Talvez em outra ocasião.Tenho muito trabalho à minha espera. E melhor voltarmos.

A promessa de alívio imediato revelou-se falsa. Seus primeiros passos foram acompanhados pela sensação angustiante de que monstros estavam à espreita na entrada do bosque e poderiam atacá-lo pelas costas.

O que pretende fazer agora que sir Alexander Cotton está mor­to? — indagou o jornalista.

Primeiro quero me redimir com você, depois com a sociedade.

Como pretende realizar a segunda parte?

Desde que sir Cotton começou a me chantagear, segui o conselho de um velho amigo: "Às vezes, para vencer o mal, é necessário barganhar com o próprio diabo". Reuni centenas de documentos que incriminam a ele e a sua organização terrorista. Pretendo lhe entregar o dossiê.

—Vamos derrotá-los! — vibrou David.

Fico feliz de fazer parte de sua equipe - completou seu pai, sorrindo.

Quero esclarecer outra coisa — adiantou-se o jornalista. Estavam a poucos passos da deusa da caça.

Se estiver ao meu alcance...

Quando eu tinha sete anos, costumava brincar nesse lugar com outro garoto. Se não me engano, ele se chamava Andrew. Quem era ele? O que aconteceu com ele?

Eu havia me esquecido disso. Andrew era filho ilegítimo de sir Cotton. Ele pediu a mim e sua mãe que cuidássemos dele por um tempo. Pretendia enviá-lo à França. Certa madrugada, ele nos acordou, dizendo que era o momento de levá-lo embora. Chegou com uma comitiva de homens fantasiados. Nunca mais vi esse garoto - explicou sir Rowling.

O bastardo X!?

O que você disse, David?

Talvez ele seja o serial killer — disparou o jornalista.

Lamento fazê-lo passar por isso — disse sir Rowling, parando no­vamente diante da fonte de água.

Não foi culpa sua... — retrucou David, relutante.

Preciso do seu perdão, filho.

Aquela frase trouxe à sua memória as palavras do padre durante o último jantar: "De um lado, há o caminho da reconciliação, do amor, do perdão. Do outro, o atalho do ressentimento, da vingança, do ódio. Se você seguir pelo segundo, garanto que vai cair em um abismo". Fitou os olhos de seu pai. Uma lágrima resistia em cair.

 

Após o farto café da manhã, Pietro contemplava a vista do Hyde Park do sofá de sua suíte. Estava ansioso. Queria ligar para David e com­partilhar sua descoberta. Mas sabia que o jornalista encontraria o pai pela manhã. Seria melhor esperar sua ligação.

Em poucos dias, serei exilado na Grécia. Quem é esse maldito traidor? O que ele quer com esse livro diabólico? — questionou-se, fe­chando as mãos em punho.

Lembrou que não lera a última mensagem enviada por Gennaro. "Não deve ser nada muito importante...", concluiu, abrindo a caixa de mensagens no notebook. Ficou surpreso com um e-mail de Michael. Mas resolveu começar pelo do assistente:

 

Caro professor Amorth, peço-lhe desculpas se, de alguma maneira, considerar este e-mail ofensivo à Santa Madre Igreja. Não o enviei antes por julgá-lo inadequado, mas mudei de idéia ao me lembrar do seu conselho: "Às vezes, é melhor deixar a batina no guarda-roupa e agir como um pesquisador".

 

Vamos ver se isso se encaixa nesse caso, Gennaro - advertiu Pietro, voltando à mensagem:

 

Os protestantes interpretam algumas profecias de maneira desfa­vorável, apontando a Santa Sé como o lugar escolhido pelo Anticristo para seduzir as multidões. Segundo eles, a Grande Prostituta do Apo­calipse é a Igreja Católica, que se afastou dos ensinamentos de Jesus Cristo e, portanto, o traiu. De qualquer maneira, concatenei os textos protestantes sobre o surgimento do Anticristo. Se quiser, posso enviá-los ao senhor. In Christo et Maria, Gennaro.

 

Gennaro, isso é bobagem! Os sectários não aceitam a autorida­de do papa. É natural que o identifiquem com o inimigo e o ataquem. Mas quando fazem isso, estão renegando o próprio Jesus Cristo. A Igreja Católica é... — explicava em tom professoral. "O traidor pode ser um servo do diabo querendo minar a resistência da Igreja. Ou um satanista pretendendo se apropriar dessas interpretações equivocadas das profecias para usurpar o poder e a glória de Deus", raciocinava.

Isso talvez explique por que esse miserável se uniu aos inimigos e tramou para me afastar dessa missão. Eu não servirei para nada em um mosteiro isolado. Meu Deus, esse livro precisa ser encontrado e destruído. O traidor deve ser desmascarado e... — interrompeu a frase antes de dizer a última palavra. Mas ela ecoou em pensamento: "Morto". "Deus é o juiz. Você quer se igualar a ele?", aquela lembrança atingiu seu espírito com um "cruzado de direita". "Você é tudo o que um padre não deve ser, Pie­tro", a acusação do cardeal Gabriele também o golpeou com força. Ainda atordoado, abriu o e-mail de Michael:

 

Caro Giovanni de Santis, soube que o senhor terminou seu negócio em Lon­dres. Gostaria de encontrá-lo para um espresso duplo daqui a dois dias, antes de embarcar para a Itália. Preciso lhe entregar alguns documentos e lhe desejar uma boa viagem. Seu anjo protetor.

 

Preciso encontrar uma maneira de fazê-lo revelar o nome do traidor — disse para si, acessando o Google Images e colocando o nome da top model brasileira. Abriu uma galeria de retratos e acessou Arquivo de Família. Em uma das fotos, Fernanda Albuquerque não passava de uma criança desconhecida no interior do Brasil. Embora hesitante, ampliou aquela imagem. Pietro conhecia aquele sorriso. Fechou os olhos.

 

O jornalista estendeu a mão. Era sinal de que escolhera o caminho defendido pelo padre, o do perdão. Sir Rowling sorriu e apertou a mão de seu filho antes de puxá-lo contra o próprio corpo. Desejava uma recon­ciliação menos formal. David sentiu o coração de seu pai. Estava aliviado e feliz. Sentia-se forte. Seria capaz de entrar no labirinto e enfrentar os ''monstros" escondidos em seus corredores traiçoeiros.

Eu te perdoo, pai — sussurrou David.

Obrigado, meu filho. Eu realmente precisava disso — respondeu sir Rowling, afastando o corpo para ver seu rosto. Enquanto fitava olhos represando lágrimas, as suas desciam livremente pelas faces. Limpou-as com as costas da mão direita. Era a primeira vez que o jornalista flagrava o choro de seu pai. E percebia quão frágil aquele homem podia ser.

Estou feliz por ter minha família de volta — comentou o jorna­lista, abrindo um largo sorriso.

Que a deusa Diana e sua corça sejam testemunhas deste momen­to — anunciou sir Rowling, apontando para a escultura sobre a fonte. — Este anel está em nossa família há centenas de anos... — prosseguiu, levantando o indicador direito na altura dos olhos de David. - ...passando pelos pri­mogênitos de geração em geração.

É o brasão de nossa família - observou o jornalista.

É mais do que isso. É a nossa ligação com o passado e com o futuro. Você deveria recebê-lo após a minha partida.

—Você esqueceu que eu já recebi minha parte na herança? — brin­cou David.

—Você pode perder os bens materiais, mas sua história pessoal não pode ser roubada de você, nem corroída pelo tempo. Ela é a sua verda­deira herança, filho.

O que quer dizer com isso, pai?

Que eu vou quebrar a tradição — respondeu-lhe, retirando o anel do dedo.

Não posso, pai... — murmurou, hesitante.

Me dê sua mão direita — ordenou sir Rowling. O jornalista es­tendeu-a em sua direção.

David, aceite este anel como prova de lealdade. Que ele seja uma ponte entre seus antepassados e seus descendentes. Ele deve permanecer em seu dedo até que seu primogênito se despeça de sua alma e enterre seu corpo — enunciou aquelas palavras solenemente, enquanto deslizava o anel no dedo indicador do filho.

Ele é pesado.

É o peso da árvore genealógica... Do seu sangue. Você aprenderá a conviver com isso.

Espero que sim.

Vamos voltar? Não quero que se atrase para seus compromissos profissionais.

Adeus, Diana — David acenou para a estátua.

Até breve — participou seu pai. - Quando quer receber o dossiê contra sir Cotton e seus lacaios?

Nos próximos dias, estou com a agenda bem apertada.

O que acha de passarmos o próximo fim de semana juntos? Podemos unir o útil ao agradável. Eu lhe apresento o dossiê e, nas horas vagas, caçamos, cavalgamos, jogamos bridgt e... tentamos chegar ao centro do labirinto.

É uma proposta tentadora. Mas poderei responder apenas no decorrer da semana. Tudo bem?

Sem problemas — respondeu sir Rowling, fazendo uma breve pausa antes de emendar. — E sinta-se à vontade se quiser trazer alguém.

David sentiu um aperto no coração. Há quinze anos, seu pai fizera aquele mesmo convite. Ele sofrerá o trágico acidente na volta para Londres. E perdera Susan. Se pudesse retroceder no tempo, sua resposta seria outra.

Se não tiver compromissos que me impeçam de estar aqui no próximo fim de semana, pai, virei sozinho - retrucou David, resoluto.

Como quiser, filho.

Os dois chegavam à porta principal do castelo.

 

"Não posso me esquecer do escudo. Os meus dois chefes me acon­selharam a usá-lo", pensou Michael. Abriu a pasta ao lado do computador e apanhou, na última divisão, um pequeno saco de couro, amarrado com uma tira. "Vou deixar isso no bolso. Por garantia. "Verificou, pelo compu­tador, a localização de David. Continuava em Upper Slaughter. "Preciso me livrar dessa organização... E a melhor maneira é detoná-la. Não vejo melhor aliado para isso do que o jornalista. Mas tudo tem que ser calcu­lado com precisão... O senador não pode desconfiar de nada", deduzia Michael, abrindo o editor de textos.

—Vamos fazer o check-list, senador, e estudar o melhor organogra­ma - disse para si, com os dedos prontos para materializar seu raciocínio:

 

Operação: Cabeça Falante

Interceptar carta para a deusa

Local: Mandarin Oriental (Sala de convenções);

Horário: A partir das 20h;

Estratégia: Vigiar movimentação na coletiva de imprensa. Capturar pombo-correio.

Caçar e decapitar bastardo

Local: Hyde Park (?);

Horário: A partir das 21h (Término da coletiva, monitorar escuta); Estratégia: Montar guarda na saída. Perseguir e eliminar o alvo.

Voltar ao Quartel General

Origem: Indeterminado

Horário: Indeterminado

Estratégia: Escolher e seguir a melhor rota de fuga, carregando a mal­dita cabeça e o machado.

 

— Preciso reconhecer o terreno - concluiu em voz alta, fazendo o download e imprimindo um mapa do Hyde Park e da vizinhança. — Depois da Operação Luxúria, o Feiticeiro provavelmente seguirá para o parque. É a melhor maneira de fugir sem ser notado, ainda mais se estiver com marcas estranhas pelo corpo. Ele também se sentirá mais seguro tendo lugares em que possa se esconder.

Poucos metros separavam a parte de trás do hotel de um dos maiores parques londrinos. Com uma caneta vermelha sobre o mapa, Michael partiu do Mandarin Oriental, cruzou a South Carriage Drive e chegou ao Hyde Park.

— Neste ponto começa a fuga de Andrew, e a minha perseguição. Tenho que visitar o local o mais rápido possível. E é melhor fazer isso com o equipamento às costas — disse para si, desligando o computador.

Pegou uma mochila no quarto e acomodou dentro dela o machado e um saco estanque impermeável e com boa vedação. Pretendia usá-lo para guardar a cabeça sem deixar um rastro de miolos e sangue pelo caminho. Para a missão de reconhecimento, escolheu um figurino casual: botas, calça jeans, camiseta preta, casaco verde-oliva e boné. Dobrou o mapa e guardou-o no bolso interno do casaco. Vestiu óculos escuros e colocou a mochila às costas.

—Você fez regime nas últimas horas? Parece mais leve — conversou com o machado, usando as fitas ajustáveis da mochila para distribuir me­lhor seu peso pelas costas.

Conferiu o relógio de pulso: onze e trinta e três. Caminhou apres­sadamente até a estação Hampstead, da linha Northern.

 

Lady Charlotte estava de pé diante da lareira. Esperava, apreensiva, a volta do marido e do filho. A porta se abriu. Primeiro, ela conferiu o semblante de sir Rowling. "Ele deve ter tirado o peso das costas", deduziu, virando-se para David. O filho parecia feliz. Lady Charlotte deixou esca­par um prolongado suspiro de alívio.

— A caminhada foi muito boa — comentou seu marido.

Pena ter sido tão rápida - emendou David, olhando o relógio de pulso.

—Vai almoçar conosco? — perguntou sua mãe.

Infelizmente não tenho tempo. O trabalho me obriga a voltar.

Talvez ele passe o próximo fim de semana aqui, não é mesmo, David? — insistiu seu pai.

Talvez — respondeu David, aproximando-se da mãe para um abraço de despedida.

Muito obrigada, filho — ela sussurrou em seu ouvido.

Não me agradeça por isso — respondeu-lhe. Trocando a bengala de mão, voltou-se para o pai com um sorriso no rosto e a mão direita estendida, ligeiramente virada para cima.

Um belo anel, filho — observou sir Rowling, apertando sua mão.

"Ele entregou o anel a David! Por que não me disse que faria isso?", pensou lady Charlotte, lançando um olhar preocupado na direção dos dois homens.

E se eu não tiver filhos, pai, para quem deixarei isso? — brincou David.

Isso é problema seu. Já fiz minha parte — rebateu sir Rowling, sorrindo.

O mordomo James abriu a porta, com um sorriso no rosto.

Adeus, David.

Adeus, James.

O jornalista entrou no Jaguar e deu a partida. Antes de passar pelos grifos que guardavam a propriedade, ativou o viva-voz. Tinha duas li­gações urgentes para fazer. Resolveu começar por sua assistente. Mary atendeu no segundo toque.

Olá, Mary, tudo bem?

Mais ou menos.

Algo errado com a chegada de Fernanda Albuquerque? — adian­tou-se David.

Não. Descobri hoje, pelo jornal, que perdi a maior aula de jorna­lismo da minha vida. Parabéns pela matéria sobre sir Cotton.

Obrigado, Mary. Mas isso é apenas a ponta do iceberg. E você pode me ajudar a trazer o resto à tona.

— Estou às suas ordens.

Devo chegar a Londres em aproximadamente uma hora e meia.

Precisamos fazer uma reunião antes do seu chá da tarde com a Fernanda.

Quer me adiantar algo?

Prefiro conversar pessoalmente.

Onde quer me encontrar?

Perto da sua casa... Diante da escultura de David Wynne, próxima à Albert Bridge.

Estou ficando íntima das esculturas de Chelsea - brincou Mary.

Ligo quando estiver próximo. Até logo — despediu-se David, acionando o número de Pietro. Tocou até cair na caixa postal. Ele resol­veu tentar novamente.

 

Aquela criança era encantadora. Na primeira vez que a viu, ela tra­java um vestido rosa-claro com um laço branco amarrado na cintura. O cabelo loiro e liso, na altura dos ombros, estava preso nas laterais por presilhas coloridas. Os olhos azuis encaravam-no com curiosidade.

Como esse anjinho se chama? — questionou-lhe, agachando-se para diminuir a distância que os separava.

—Você fala engraçado — ela surpreendera-se com o sotaque. Era a primeira vez que ouvia um estrangeiro conversar em português.

Sou italiano.

Ele é o novo padre, filha — justificou sua mãe.

O Jorge falava como a gente, mãe. Esse padre fala engraçado — retrucou a menina.

Eu me chamo Pietro. E você?

Eu me chamo Fernanda. Tenho sete anos.

Está na idade para a Primeira Comunhão, não é mamãe? - inda­gou Pietro, virando o rosto para a mulher.

— A Fernanda começa o catecismo na semana que vem, não é filha?

A menina respondeu com um sorriso que Pietro jamais esqueceu.

Era como se o próprio Deus olhasse para ele por aqueles pequenos olhos azuis.

Depois da missa, quero que passem na sacristia. Tenho um pre­sente para você, Fernanda — prometeu-lhe sorrindo e deixando-a impa­ciente nos sessenta minutos seguintes. Às vezes, ele olhava na direção das duas e flagrava a pequena cochichando com a mãe. Estava visivelmente ansiosa. Ao terminar a bênção final, a menina saiu em disparada até a en­trada da sacristia. Chegou antes do padre.

Cadê meu presente? — ela cobrou Pietro ao avistá-lo.

Pensei que você tivesse se esquecido — brincou o padre, empur­rando a porta e entrando na sala.

Ela nem me deixou assistir à missa direito, padre. Só falava nisso — revelou a mãe.

—Você já sabe ler? — perguntou Pietro, abrindo um armário e pe­gando uma Bíblia.

Estou aprendendo!

Então, mostre para mim — disse, abrindo o livro e escrevendo algo na primeira página. — O que acabei de escrever? — indagou, entregando-lhe.

Que-ri-da Fer... Fernanda, sem-pre que ti... tiver al-gum pro... pro-ble-ma,fe-che os o-lhos e a-bra em qual-quer pá-gi-na. Deus fa-la-rá com vo-cê. Um bei... beijo do pa-dre que fa... fala en... en-gra-ça... çado — obedecera-lhe Fernanda.

Fernanda, este é o seu presente.

Ela ficou quieta, olhando a dedicatória.

Agradeça ao padre, Fernanda — orientou sua mãe.

Obrigada, padre.

 

O celular tocou pela segunda vez. Pietro abriu os olhos no sofá de sua suíte no Mandarin Oriental e apanhou o aparelho. Era David.

Pode falar, padre?

Desculpe. Não atendi antes porque estava perdido em divagações.

Estou voltando para Londres. Tenho uma reunião com a minha assistente e preciso encontrá-lo depois.

Estarei no hotel à sua espera. Como foi o encontro com seu pai?

Segui seu conselho. Mas prefiro conversar sobre isso quando esti­vermos juntos.

Ótima notícia, David. Só quero adiantar uma coisa agora.

O quê?

Lembra que você me entregou uma mensagem estranha que recebeu em sonho?

Perfeitamente.

Está cifrada na linguagem enoquiana, criada por John Dee, os "olhos onipresentes" — revelou o padre.

—Você descobriu o que significa?

Sim, mas também prefiro conversar sobre isso pessoalmente.

É mais prudente. Ligo quando estiver próximo. Até logo.

Após a ligação, Pietro fechou os olhos novamente. "Por que você es­colheu o caminho errado, Fernanda?", lamentou em pensamento. Talvez descobrisse a resposta ainda naquele dia, e o exílio em um mosteiro grego deixasse de ser um castigo para se tornar sua maior bênção.

 

No fim da ligação com o padre, David ligou o rádio. Estava feliz pela reconciliação com o pai. Fitou a mão direita sobre o volante e admirou o anel de sua família, como um troféu. Há dois anos, quando foi renegado por sir Henry Rowling, arrematara na Sothebys um Château Mouton Rothschild 1945. O rótulo, desenhado por Philippe Jullian, ostentava o V de vitória e estampava a frase: "1945 Année de La Victoire". Pretendia desarrolhar a garrafa assim que provasse a seu pai que sempre estivera certo. Partiu do castelo com uma vitória mais gloriosa do que imaginara. Não precisava mais provar nada a ele. E ainda teria sua ajuda para desban­car a seita satânica, além de recuperar o prestígio profissional e a confian­ça da opinião pública. Merecia festejar com aquele Premier Grand Cru Classé, mas não teria tempo para isso nas próximas horas... Talvez nem nos próximos dias. Era hora de deixar os sentimentos de lado e organi­zar suas idéias. E nada melhor do que fazê-lo ao ritmo dos Concertos de Brandenburgo. "O bastardo X, Andrew, bastardo de sir Cotton...", pensava.

Meu amigo de infância... — disse em voz alta. O olhar distante remexendo lembranças vagas.

"Se a teoria de Mister Jones estiver correta, Andrew é o serial killer. Se conseguíssemos capturá-lo, chegaríamos às provas dos crimes. Ora, se X é filho ilegítimo de sir Cotton, e sir Cotton é o Duque Negro, ele se torna o principal elo entre a seita satânica e os assassinatos ritualísticos", deduzia David.

A questão é: como colocar as mãos nesse psicopata?

"Se a Scotland Yard está acobertando tudo desde o início, jamais investigaria Andrew. A menos que as evidências fossem irrefutáveis...Tal­vez nesse ponto as profecias do padre indiquem o caminho. A seita satâ­nica... a confraria negra pretende realizar a versão demoníaca do Apoca­lipse... Um ataque devastador? Um ritual para a concepção do Anticristo? Talvez as duas hipóteses...Talvez os cinco assassinatos anteriores prenun­ciem o que acontecerá com a sexta mulher, a Babalon..."

Fernanda Albuquerque. Será que eles pretendem...

"Assassinar uma top model é uma forma eficaz de iniciar um cataclismo internacional. Não duvido que façam isso, e aposto que Andrew foi escalado para o trabalho, tem know-how. E o melhor momento para apanhá-lo é durante a ação.Tenho que armar o flagrante... Preciso abrir o jogo com Mary. E exigir sigilo. A operação é delicada. Se a brasileira fizer parte da seita e desconfiar de algo, o plano vai por água abaixo."

Mister Jones, vamos virar o jogo.

David aproximava-se do lugar em que sofrerá o acidente.

Por que você não aparece agora, miserável? — desafiou o homem com capa preta e máscara. Recordou as palavras de Pietro: "Talvez você tenha visto o contrário: o diabo vestido de homem. Ele é capaz de prodí­gios sobre-humanos, como aparecer e desaparecer em um piscar de olhos".

Pisou fundo no acelerador. Passou pelo mesmo ponto em que ca­potara, há quinze anos, com o velocímetro marcando cento e oitenta quilômetros por hora. Diminuiu a velocidade, olhando pelo retrovisor.

Uma sombra escura pairava sobre a pista. "Talvez Pietro tenha razão. É mais do que uma batalha entre homens. Se aquela mensagem que re­cebi em sonho está em linguagem enoquiana, ela não deve ter vindo do meu inconsciente... Deve ter chegado de fora. Nunca estudei a criptogra­fia de John Dee", concluiu, com um misto de hesitação e estranhamento.

Se Andrew estiver com o Livro das Folhas Prateadas, é possível que o utilize com Fernanda...

"Naturalmente, esses satanistas acreditam na existência real dos de­mônios. Pietro também. E eu... Isso não importa agora. Esse livro deve ter o ritual-chave para a realização do Apocalipse Negro. Não duvido das boas intenções de Pietro, mas ele mesmo disse que há um traidor em sua confraria católica. É possível que esteja sendo manipulado por alguém."

Preciso ter cautela com ele — disse para si. "Embora, em nosso jantar no Heston Blumenthal, Pietro tenha prometido destruir o livro... Talvez esse não seja o melhor tratamento para uma parte da história in­glesa", ponderava David, ao som de seu compositor favorito.

 

A poucos metros do escritório de sua casa, o senador Karl Bundy sentiu o celular vibrando no bolso da calça. Havia uma mensagem de Freeman: Me ligue em quinze minutos. Conferiu o horário em que a rece­bera e mirou o relógio de pulso. O prazo se esgotaria em três minutos. "A Operação Luxúria é hoje. Será que ele quer suspendê-la?", pensou, torcendo para que a resposta fosse positiva. Sentou-se na poltrona con­fortável de couro marrom e pegou o telefone. Teclou o número sigiloso do banqueiro. Ele atendeu no primeiro toque.

Olá, senador, tudo bem?

Tudo bem. As peças para a exposição no Victoria and Albert Museum chegaram hoje - informou Bundy.

- Você supervisionou o embarque do acervo?

Em seus mínimos detalhes.

E a escultura do Francês?

Segui todas as instruções. Ficou impecável.

Então, o tesouro está bem guardado. E o nosso curador?

A Operação Luxúria... — dizia Bundy até ser interrompido por Freeman.

...Termina hoje à noite com a entrega da cabeça. Amanhã o anjo da guarda deve abrir a exposição.

Exatamente.

— Você está ciente de que é o responsável pelo resultado dessa missão?

Aqueles palavras soaram-lhe terrivelmente ameaçadoras. Bundy escolhera o melhor profissional e fazia o possível para acompanhar seu trabalho, apesar da distância de milhares de quilômetros. Porém, a missão era delicada e as chances de fracasso aumentavam etapa a etapa, dia após dia.

Se isso dependesse apenas da minha vontade, senhor... — o sena­dor esclarecia, até ser novamente interrompido. Dessa vez, por um berro ensurdecedor. Sentiu um calafrio.

— Você é o comandante! Se o navio afundar, você também morre afogado!

Estou tentando navegar da melhor maneira, senhor.

—Talvez não tenha escolhido o equipamento adequado. E será cul­pado por isso — ameaçou Freeman.

O senhor pode ser mais explícito, por favor? - balbuciou Bundy.

—Você confia no anjo da guarda?

Colocaria minha mão no fogo por ele — respondeu, fingindo certeza na voz.

Se estivéssemos no salão dourado, senador, eu emprestaria o maçarico que o chef usa para fazer creme brülèe e derreteria sua mão.

Por que o senhor está dizendo isso? — questionou Bundy, com o coração na boca.

Porque esse seu marinheiro de merda foi procurado pelo Servo de Deus. Ele vendeu sua lealdade por um milhão de euros — disparou o banqueiro.

"Não pode ser!", pensou Bundy, emendando a pergunta:

— O senhor tem certeza disso?

—Você acha que está falando com um amador? — berrou Freeman.

Me desculpe, senhor.

Você acha que sua vida vale tão pouco, senador? Eu queimaria um milhão de euros com o maçarico de fazer creme brúlèe. Não me faria nenhuma falta.

Era outra ameaça. Bundy sabia que aquela fortuna não era nada para um banqueiro bilionário como Max Freeman. Mas era capaz de fazer um homem como Michael arriscar tudo. "Filho da puta. Vai me pagar por isso", xingou-o em pensamento.

O que o senhor sugere que eu faça? — indagou, na esperança de partilhar a responsabilidade com Freeman.

Tire alguns dias de folga em sua fazenda.

Como assim?

Esse é o melhor conselho que eu posso dar, senador. Mas não vá sozinho. Adeus.

Obrigado, senhor — respondeu Bundy, olhando para a foto de sua família sobre a mesa. Naquele momento, entendeu o recado do banqueiro.

 

O jornalista parou a alguns metros da obra de David Wynne. Mary estava em pé no lugar combinado. Fumava um cigarro para driblar a ansiedade, indiferente à escultura do menino e do golfinho. Estava visi­velmente ansiosa, balançando o corpo e olhando para os lados em busca de seu chefe. Em menos de dois minutos, consultou o relógio várias vezes, como se o gesto obrigasse o tempo a passar mais rapidamente. "Se eu não estivesse com tanta pressa, iria torturá-la por mais alguns minutos", pensou David, com um sorriso no rosto. Ela sorriu aliviada ao vê-lo se aproximar, marcando os passos com a bengala.

Sua noite foi bem agitada — disse Mary, cumprimentando-o com um beijo no rosto.

Espero que a sua não tenha sido - retrucou David.

Por que marcou nosso encontro aqui? Não teria sido melhor na redação do jornal, ou em algum restaurante? — questionou Mary, tragan­do o cigarro.

O que acha de um passeio?

Pensei que fosse uma conversa séria...

Seguiremos o exemplo dos peripatéticos.

Quem? — indagou sua assistente, erguendo a sobrancelha esquer­da e franzindo o cenho.

Em grego, "os que passeiam". Eram discípulos de Aristóteles que filosofavam durante caminhadas ao ar livre.

Para que lado quer ir?

—Vamos atravessar a Albert Bridge e entrar no Battersea Park. Es­tamos próximos do Old English Garden, um lugar inspirador — explicou David, dando o primeiro passo. Mary o seguiu.

—Você me disse por telefone que precisa da minha ajuda para trazer o iceberg à tona. Acho que chegou a hora de abrir o jogo — cobrou a americana, olhando para ele enquanto caminhavam.

Em off, Mary - advertiu David, retribuindo o olhar.

Claro.

Você já conhecia parte da história e testemunhou um episódio importante ontem à noite.

O assassinato do lorde arrogante.

Exatamente.

Segundo as pesquisas do padre, ele era o chefe da seita satânica. Nessa madrugada, Mary, outro homem ligado a ela foi encontrado morto no escritório de sua casa — revelou o jornalista.

Também assassinado?

As evidências apontam para suicídio. Mas isso não importa. Os investigadores encontraram cinzas no lixo, e alguns fragmentos estavam intactos. Eles fazem possíveis referências ao serial killer, ao padre e a mim.

Uau, David!

E isso não é tudo. Essa manhã, tive uma longa conversa com meu pai.

—Vocês...Vocês fizeram as pazes? — adiantou-se.

Isso foi uma das conseqüências do nosso encontro.

A mais importante, presumo.

A que menos nos interessa agora — rebateu o jornalista.

E o que há de mais importante, David? Você esperava por isso há tanto tempo...

Ele estava sendo ameaçado por sir Alexander Cotton. Agora que o Duque Negro partiu desta para... a pior, meu pai me entregará um dossiê incriminatório contra ele e sua seita.

Não acha que seu pai errou o timing, David? Sir Alexander Cotton não pode mais ser julgado. E já recebeu a punição merecida.

Concordo que o líder está fora de combate. Mas e os demais membros da seita? Todos são corresponsáveis pelas mortes e devem res­ponder por isso. Além do mais, o psicopata que executou os crimes con­tinua solto.

—Você tem razão.

Mesmo se o caso fosse outro e não envolvesse nenhum crime, eu iria até o fim, Mary. O maior compromisso do jornalista é com os leito­res. E a verdade deve prevalecer sempre.

Não sabia que você era um idealista, David.

—Vamos ao que interessa no momento. O timing para desmantelar a seita é perfeito. As evidências mostram que há uma disputa de poder entre duas facções internas: a inglesa e a americana. O assassinato de sir Alexander Cotton e o suicídio do conde de Bedford indicam que seus compatriotas estão em vantagem — explicava David, entrando no Battersea Park.

Deixe-me adivinhar: você pretende apanhá-los nos Estados Unidos e quer minha ajuda? — arriscou Mary.

Errado. A guerra está acontecendo aqui. E é aqui que eles preten­dem iniciar o que o padre chama de... Apocalipse Negro. Não se esqueça de que o deus chifrudo dessas pessoas não é bonzinho. Ele aprecia o sa­crifício de mulheres... jovens e belas.

Uma aberração criada pelos cristãos — comentou Mary

Que seja. É nisso que os membros da seita acreditam. E, para mim, já planejaram o próximo ato. Eles terão a ajuda de uma mulher vul­garmente chamada pelas profecias cristãs de... Grande Prostituta.

Mary parou diante do portão de metal à entrada do Old English Garden. Encarou David com olhos de espanto.

Quem?

Em off, Mary.

—Você já me disse isso.

Fernanda Albuquerque.

Não pode ser! Ela... Isso é besteira...Você tem certeza do que está dizendo, David? — indagou a assistente, colocando um cigarro na boca. Ela o acenderia durante a resposta de seu chefe.

É uma hipótese muito boa - ele confirmou, retomando a cami­nhada. - Ela tem alguma ligação com o satanismo?

Candomblé não é satanismo, David. E Fernanda é espírita.

Então, se a Fernanda não tem ligação com a seita satânica, não será uma participante ativa do... ritual. Ela será uma vítima passiva - deduziu o inglês

Se ela corre perigo, é melhor alertá-la.

Não. Tenho outro plano. Suspeito de quem seja o verdadeiro Estripador de Londres. Acho que ele irá procurar a Fernanda depois do lançamento da campanha publicitária, ou seja, amanhã à noite. É o mo­mento ideal para flagrá-lo - revelou David.

Quer usar minha amiga como isca? É isso?

É isso. Se trabalharmos em equipe, sigilosamente, ninguém fará mal a ela. E ainda por cima capturamos o psicopata. Ele é o elo entre sir Alexander Cotton e os assassinatos em série.

Como assim?

Ele é o filho bastardo do Duque Negro.

Qual é seu plano? — perguntou a americana, tragando o cigarro. David parou diante do espelho d'água com uma fonte central. Sem dizer nada, encarou Mary por alguns segundos. Sentiu que podia confiar nela e prosseguiu:

Minha exclusiva será na suíte, certo?

Certo.

Durante a entrevista, você espalhará escutas pelo lugar.

E quem garante que o psicopata irá atacá-la no Mandarin Oriental?

Suponho que a suíte seja o único lugar em que a Fernanda estará sozinha. Desprotegida.

E quem vai defendê-la, David? Você?

Não. Tenho um informante na ScotlandYard tão interessado na resolução desse caso quanto eu. Irei encontrá-lo amanhã pela manhã.

Posso contar com você, Mary? — insistiu o jornalista, fitando os olhos de sua assistente.

Se acontecer algo de errado, você será o único culpado.

Posso contar com você? — repetiu-lhe a pergunta.

Sim.

— Perfeito. Agora precisamos voltar. Tenho um encontro com o padre.

Aposto que com ele você marcou um almoço — insinuou Mary.

Não sinta ciúmes, querida. Os padres são celibatários.

Minha amiga Abby não concordaria com isso.

Algumas tentações são irresistíveis — brincou David, arrancando risos de sua assistente.

 

O padre consultou o relógio. Fazia mais de duas horas e meia que David ligara. Apanhou o celular e o bloco de notas e deixou a suíte. Assim que chegou ao restaurante, seguiu uma hostess morena de olhos verdes até uma mesa vaga. Em poucos segundos, recebeu o menu.

— Estou esperando uma pessoa que talvez chegue depois do al­moço. Vou começar com um suco de laranja. Estou gripado e preciso de vitamina C.

Com licença, senhor — disse o garçom, deixando-o contemplar a vista. Já estava habituado ao céu cinzento de Londres e à atmosfera melancólica e sombria que a cidade exalava. Recordou-se do primeiro enigma revelado na Confraria dos Quatro Anjos: "Com uma capa azul e um chapéu de abas largas, levantarei de minha fortificação no lago e serei vitorioso". O celular tocou.

Padre, estou a poucos minutos do hotel. Onde posso encontrá-lo?

Já estou no restaurante.

 

Ele perambulava pelo Hyde Park havia quase duas horas. Nesse tempo, já avaliara as prováveis rotas de fuga do Feiticeiro e pesquisara os lugares mais discretos para o ritual de decapitação. Era hora de voltar para casa. "Essa noite, a mochila estará mais pesada. Quanto será que uma cabeça pesa?". O celular interrompeu suas divagações. Era uma ligação dos Estados Unidos, mas não reconheceu o número. Atendeu e ficou em silêncio, aguardando o interlocutor dizer algo que pudesse identificá-lo.

Papai, você está aí?

Filho, onde você está?

Quando você volta para casa?

Onde você está?

Estou com a mamãe em um lugar muito legal. Nunca vi tanto brinquedo. E posso comer os doces que quiser.

Quem levou vocês até aí?

A gente veio de avião. Papai, vim sentado na cabine do piloto.

Quem está com vocês?

Como você se chama, mesmo? — Michael ouviu a voz do filho, mais distante.

Olá, Michael, tudo bem? — Era o senador Bundy.

Se você encostar o dedo no meu filho ou na minha mulher...! — explodiu Michael.

Calma. Eu apenas trouxe sua família para passar alguns dias em minha casa de campo. Chegaram em um jatinho particular. Seu filho adorou. Deveria me agradecer por isso.

O que pretende?

Assegurar que tudo transcorra como o planejado.

Eu nunca fiz nada para que duvidasse da minha lealdade. Você nunca deveria ter envolvido minha família nessa merda!

Nada vai acontecer a eles... Desde que cumpra sua parte na mis­são. E... — Bundy não completou a frase.

O quê? — adiantou-se Michael, beirando o desespero.

Não caia na tentação de se converter ao catolicismo. Com um milhão de euros, Michael, você não compra outra família, mas pode asse­gurar que os dois tenham o mesmo privilégio que o filho de certo nobre inglês — ameaçou o senador.

Não faça nada contra eles!

O destino dos dois está nas suas mãos.

Levarei a missão até o fim.

Não duvido disso. Encaminhei um e-mail com instruções para amanhã. Você abrirá uma exposição no Victoria and Albert Museum. Boa sorte. Adeus — despediu-se Bundy, desligando o telefone.

Filho da puta, miserável! Vou arrancar sua cabeça, senador mal­dito! — berrou Michael.

Haviam descoberto sua ligação com o Servo de Deus. "Quem é o traidor?", pensou. Estava em xeque-mate. Sem escolha. Não podia errar. Precisava dar conta do recado. Deu as costas ao Mandarin Oriental e partiu.

 

O garçom parecia aflito. Assim que serviu o suco de laranja, deixou cair o menu. Abaixou-se para pegá-lo e se apoiou na mesa para levantar, chacoalhando o que estava sobre ela. Desculpou-se e saiu apressado.

Estou feliz. Você escolheu o melhor caminho, David — disse Pietro, abrindo um largo sorriso e levantando-se para abraçar o jornalista.

Foi mais fácil do que eu imaginava — comentou o jornalista, sen­tando-se diante do italiano. O garçom entregou-lhe o menu. Em poucos segundos, ele anunciou sua escolha: bacalhau com sidra.

Algo para beber?

Suco de tomate temperado.

Não vai beber vinho? - surpreendeu-se Pietro.

Infelizmente, tenho pouco tempo, padre. Fernanda Albuquerque chega daqui a pouco.

Pietro teve um acesso de tosse. Ficou sem ar. Apesar dos espasmos, conseguiu agarrar o copo e tomar um gole de suco. Pigarreou.

Tudo bem? - preocupou-se David.

Tudo. Acho que peguei uma gripe — respondeu Pietro.

É melhor se cuidar.

Terei muito tempo para isso durante meu exílio. Agora vamos ao que interessa. O que descobriu?

Seu agressor se chama Andrew. Ele é filho bastardo de sir Alexander Cotton e... o provável serial killer da seita satânica - explicou o jornalista.

— Vamos denunciá-lo!

Provavelmente a Scotland Yard não investigaria a denúncia. O ideal seria apanhá-lo em flagrante.

O último assassinato ritualístico ocorreu há dois anos, David. Mesmo que ele atacasse novamente, não saberíamos quando nem onde.

Mas sabemos quem é a vítima, padre.

Quem?

A Babalon — respondeu o jornalista.

—Você está enganado, David. A Grande Prostituta não é uma víti­ma. Ela escolheu o caminho errado — rebateu Pietro, elevando a voz.

Conversei com uma amiga pessoal da brasileira. Ela me garantiu que a Fernanda Albuquerque não tem nenhuma ligação com o satanismo.

E a matéria que você escreveu?

Foi deturpada pela minha ignorância sobre cultos afro-brasileiros. E pelo sensacionalismo do The Star.

A Fernanda tem ligação com o satanismo, sim - afirmou Pietro, encarando David.

Você não pode dizer isso só porque ela segue uma religião dife­rente da sua, padre.

O pai dela... O pai dela... — balbuciava Pietro.

O suco de tomate chegou à mesa. Contrariando a etiqueta habitu­al, o jornalista não agradeceu ao garçom. Permaneceu na mesma posi­ção, encarando o italiano. Era um entrevistador experiente, conhecia a linguagem corporal. Pietro estava na iminência de lhe revelar um segredo. Qualquer gesto, por mais banal que fosse, poderia desencorajá- -lo. "Confie em mim. Estou pronto para ouvi-lo", repetiu mentalmen­te. Em ocasiões anteriores, aquele ritual surtira efeito. Não custava nada tentá-lo com o padre.

Era feiticeiro - completou Pietro, hesitante.

Só por não acreditar nas mesmas coisas que você? — questio­nou David, mudando sua estratégia. Era o momento de colocá-lo na parede. — Se você realmente quer defender isso, deve apresentar provas consistentes.

Eu preciso lhe fazer uma confissão, David... — sussurrou, abaixan­do a cabeça. Estava visivelmente envergonhado.

Se não se importar que eu fique sem batina — brincou o jorna­lista, na tentativa de descontraí-lo.

Não me importo, desde que guarde segredo — respondeu Pietro, virando o rosto para ele, com uma expressão séria.

Em off — consentiu David.

Ele sacrificou uma criança — revelou o padre, mudando o idioma da conversa para italiano.

Como você sabe disso?

A história é longa... E seu tempo, curto — esquivou-se Pietro, observando o garçom servir o prato do jornalista.

Tenho tempo para ouvir — insistiu David, dando o primeiro gole no suco de tomate.

Poucos anos após a ordenação, entrei em uma crise vocacional. Pensei até em desistir do sacerdócio, David. Foi quando conheci meu atual confessor. Ele me aconselhou a deixar o conforto da minha paró­quia, em Turim, e me engajar na vida missionária. Foi assim que cheguei ao interior do Brasil. No mesmo vilarejo em que a Fernanda...

Quem escolheu o destino? — interrompeu David.

Meu confessor providenciou tudo — respondeu o padre, silenciando-se em seguida.

Desculpe minha interrupção. Prossiga sua história, por favor.

Eu sabia que Antônio praticava magia negra, embora sua mulher e sua filha, a Fernanda, freqüentassem a missa - contava Pietro, com os olhos fixos em David. — Certa tarde, quando eu caminhava pelo vilarejo, uma mulher desesperada passou correndo por mim e suplicando para que eu rezasse pela alma de sua filha. Ela havia entregado a menina ao pai da Fernanda para um ritual de sacrifício.

Uau! — exclamou o jornalista, surpreso com aquela história.

Eu sabia que ele fazia suas celebrações no quintal de casa, na periferia. E fui até lá. Eu não podia ficar de braços cruzados, David. Eu... Eu... Subi no muro... — Pietro interrompeu a narrativa. Os olhos perdidos no passado.

E?

Aquele filho da puta degolou a criança como se fosse um animal, David! — explodiu Pietro, voltando-se para o jornalista, com as mãos em punho e o rosto ruborizado.

Meu Deus! — David deixou escapar.

Eu matei aquele desgraçado com as minhas próprias mãos — prosseguiu o padre. Lágrimas escorriam em seu rosto.

—Você...Você assassinou o pai da Fernanda Albuquerque?

Esse foi o meu crime.

O jornalista respirou fundo. Não estava apenas diante de um padre as­sassino, Pietro também era um fugitivo. E sua presença em Londres, poucos dias antes da chegada da top model, não devia ser mera casualidade. "Eles arquitetaram tudo desde o começo", deduziu David.

Quem o enviou ao interior do Brasil, padre?

Meu confessor.

A mesma pessoa que o mandou para essa missão?

Pietro ficou quieto.

Entenderei seu silêncio como um sim. Sendo seu confessor, ele sabia do assassinato do pai de Fernanda Albuquerque, não é mesmo?

Sim. O que está querendo insinuar com isso, David?

Que você não precisa mais perder tempo procurando seu traidor — disparou o jornalista.

Isso não, David!

Isso sim, padre. Ele não o enviou ao Brasil por acaso. Como tam­bém não o mandou para cá para uma missão elevada. Ou seu confessor faz parte da seita satânica, ou tem algum interesse escuso nessa trama.

O que... O que...

O melhor cúmplice é aquele que não desconfia de nada, padre. Me desculpe, mas preciso ir.

Deixe-me ajudá-lo — pediu Pietro.

- Esteja presente na coletiva de imprensa, hoje, às oito horas. Se notar algo que confirme a hipótese de que a top model é a... Babalon, me avise.

Me perdoe por não ter contado essa história antes. Aqui está a mensagem que você recebeu em linguagem enoquiana — o padre pegou um papel dobrado no bolso do paletó e entregou-o ao jornalista.

Obrigado. Lerei mais tarde — respondeu David, despedindo-se com um aperto de mão.

Pietro observou-o se afastar a passos largos. Assim que ele desapa­receu de sua vista, teve outro acesso de tosse. Quase ficou sem fôlego. "Ele está errado. Gabriele é um servo de Deus. Preciso descobrir quem é o traidor", pensou. O estômago reclamou. Ele devorou a salamugundy e chamou o garçom.

Me traga um... hereford ribeye, por favor — pediu, consultando o menu. Sentiu o corte no supercílio esquerdo latejar. Apoiou o cotovelo direito na mesa e a testa na palma da mão. Olhos fechados. "Meu Deus, que David esteja errado sobre o Gabriele", rezou em pensamento.

 

A top model adormecera nas últimas duas horas de voo. Despertara com o aviso de aterrissagem. Em poucos minutos, improvisou a maquiagem. Com o cabelo amarrado, óculos escuros, bolsa a tiracolo e goma de mascar de menta, desceu do avião ao lado do empresário Jacob. Os dois seguranças, que viajaram na econômica,juntaram-se a eles na área de desembarque do Heathrow.

Disfarce o mau humor e sorria, querida. Em poucos minutos, você será bombardeada pelos paparazzi — cochichou Jacob.

Assim está bom? — perguntou a brasileira, abrindo um largo sorriso.

Assim você me deixa com vontade de tirar o chiclete da sua boca com a minha língua — provocou o empresário.

Nojento! - retrucou Fernanda, fechando a cara.

Caminharam em silêncio até a esteira de bagagens.

Odeio essa parte.

Não conheço quem goste — rebateu Jacob.

Do outro lado da esteira, duas adolescentes olhavam em sua direção e cochichavam. Ao lado delas, um homem aparentando quarenta anos, vestindo calças jeans e paletó de tweed, contemplava cada centímetro de seu corpo, sorrindo maliciosamente. Fernanda sentiu a boca secar. Tentou se concentrar na saída das bagagens. "Os últimos seis anos lhe fizeram muito bem.Você está linda...", alguém parecia lhe sussurrar as palavras da carta de Sammy. Fechou os olhos. Tontura. "Chegou a hora de pagar a dívida, querida. Meu cobrador se chama Andrew."

Merda! — berrou Fernanda, abrindo os olhos. Atraiu a atenção das pessoas à sua volta.

Está querendo arruinar sua carreira, querida? — advertiu seu empresário.

Só estou cansada — justificou a top model, voltando-se novamente para a saída das bagagens. As primeiras malas já desfilavam pela esteira. "Isso precisa terminar logo", desejou em pensamento.

"Não passará dessa noite", teve a impressão de alguém soprar aquilo em seu ouvido. Sentiu-se ameaçada.

"Preciso sair dessa", pensou, levantando a cabeça. As duas adolescentes encaravam-na, com sorrisos sarcásticos.

"O que essas vadias pensam que estão fazendo?", questionou-se, ti­rando os óculos escuros e fuzilando-as com o olhar.

A morena, que estava à sua esquerda, passou a língua entre os lábios carnudos e entreabertos.

Lésbica maldita - disse Fernanda, sem som, lendo a resposta nos lábios da ofendida.

Hoje você vai desejar minha língua entre suas coxas, sua puta.

O que você disse, vagabunda? — explodiu Fernanda, passando por cima da esteira e avançando sobre a adolescente.

Jacob cobriu os olhos com a mão direita e balançou a cabeça. Sem entender o que estava acontecendo, os seguranças foram atrás da brasileira.

Repita o que disse, lésbica maldita! — desafiou Fernanda, levan­tando o braço direito e desferindo um tapa sonoro no rosto da adoles­cente, quinze centímetros mais baixa.

Você está louca? — assustou-se a loira de cabelos tingidos que a acompanhava. Os dois seguranças conseguiram puxar Fernanda para fora da pequena aglomeração.

O que aconteceu? — perguntou um deles.

Ela deu em cima de mim e me chamou de puta! — explicou a top model, exaltada.

Desde quando isso é motivo para escândalo? — esbravejou o chefe da segurança, que ela apelidara de Anjo Negro. Fernanda enfrentava seu empresário, mas abaixava a cabeça para aquele homem. Ele parecia pres­sentir os momentos em que Fernanda corria perigo e já salvara sua vida três vezes. Além disso, também guardava muito bem seus segredos.

Desculpe, Harold. Tentarei me comportar — resignou-se Fernanda, abaixando os olhos.

 

Ao deixar o restaurante, David desdobrou o papel que Pietro lhe entregara. Leu a mensagem a caminho da entrada do hotel.

— Estranho. Não faz o menor sentido para mim. Mas prova que alguém me enviou uma mensagem cifrada em sonho — concluiu, guardando-o no bolso do casaco.

"A história do padre... é assustadora. E sensacional. Alguém está tra­mando tudo isso há muito tempo... Um grande enxadrista que conse­guiu reunir todas as peças para o grande lance.Talvez seja uma estratégia planejada pela confraria fundada por John Dee. Ou há, realmente, uma inteligência superior nos bastidores", refletia David ao deixar o hotel. Pediu o carro ao manobrista.

—- Diabo, Satanás... Samyaza — disse para si. "Estou mais envolvido nisso do que imagino. Faço parte dessa história", pensou, recordando o homem mascarado na estrada para Upper Slaughter. "A história do padre é um forte indício de que a top model está envolvida com satanismo, mesmo que indiretamente. E é evidente que Pietro não foi enviado para cá por acaso. Ele está sendo manipulado pelo seu confessor... Talvez ele seja um elo entre a Grande Prostituta e a seita satânica. Mas não posso ignorar o que Mary defendeu. É possível que Fernanda Albuquerque não saiba o que está prestes a acontecer, e seja a sexta vítima do bastardo. Nesse caso, o sacrifício de uma criança por seu pai talvez represente a entrega da própria filha ao deus chifrado", raciocinava o jornalista, en­quanto esperava o carro.

Me perdoe, Mary — comentou em voz alta.

"Que seria consumada por Andrew em um assassinato ritualístico. O início do Apocalipse Negro", prosseguiu em pensamento.

O manobrista estacionou o Jaguar diante do hotel. David agradeceu com uma generosa gorjeta, entrou no carro e zarpou em direção à reda­ção do The Star.

"A menos que as duas possibilidades estejam corretas. Ela partici­pará ativamente de um ritual satânico, mas desconhece o fim trágico que a espera nas mãos de Andrew... Essa hipótese me parece bastante plau­sível. Ela teria marcado o encontro na noite seguinte ao lançamento da campanha publicitária, para não prejudicar sua carreira. Ou seja, ama­nhã à noite. Qual seria a natureza desse ritual?", questionou-se.

Sexo entre anjos e mulheres — respondeu em voz alta. Lembrou-se da tapeçaria de A Tempestade na sala de jogos do castelo em Upper Slaughter. "Talvez eu deva confiar mais na última obra de Shakespeare. O monstro Calibã desejava Miranda, a filha de Próspero. Queria procriar com ela..."

O que dizia uma das profecias sobre o nascimento do Anticristo? - indagou-se novamente, tentando recordar o encontro em que Pietro lhe expusera as mais significativas:

"Ele será resultado do intercurso sexual de sua mãe e seu pai, como outros homens, e não de uma virgem solitária. O Anticristo será completa­mente concebido no pecado, engendrado no pecado e parido no pecado, fruto de uma mulher perdida e impura e de um bandido abominável".

Ela não será assassinada como as outras. Será estuprada pelo psicopata, o bandido abominável! Onde Michael se encaixa nessa história?

Ficou em silêncio por alguns segundos. "Está aqui para garantir que Andrew termine o serviço... E que ninguém interfira em seu trabalho sujo. Nem o jornalista impertinente, nem o padre nervosinho", deduziu, franzindo o cenho.

 

Antes de abrir a porta do carro, Jacob virou-se para Fernanda Albuquerque:

— Não faça outro escândalo, querida. A menos que queira perder o contrato com a Schiaparelli.

Não se preocupe — respondeu a modelo.

Os seguranças já estavam a postos do lado de fora do carro, diante do Mandarin Oriental. Ela bateu com um dedo no vidro. Era o sinal que o Anjo Negro aguardava para abrir a porta. Uma saraivada de flashes. Fernanda sentiu tontura. "Isso nunca aconteceu antes", pensou.Tentou manter a cal­ma. Forçou um sorriso e desceu do carro. Dezenas de paparazzi aglome­ravam-se na entrada do hotel. Ladeada pelos seguranças, Fernanda parou.

O que aconteceu? Vamos! — ordenou Jacob, seguindo atrás.

Me sinto fraca, Anjo Negro. Me ajude - sussurrou Fernanda.

Ele e o companheiro seguraram-na em seus braços e avançaram.

Os flashes continuavam. Ela tentou congelar o sorriso nos lábios. Uma repórter furou o bloqueio dos fotógrafos, colocou um gravador a poucos centímetros de seu rosto e disparou:

Fernanda, o que você tem a dizer sobre o escândalo no aeroporto?

Ela não tem nada a declarar. A coletiva de imprensa será hoje à noite — adiantou-se Jacob.

Os seguranças do hotel ajudaram-na a entrar e bloquearam a porta.

Esses jornalistas ingleses são uns abutres - comentou Jacob.

Preciso descansar — disse Fernanda, aliviada.

Fique aqui. Vou pegar sua chave — aconselhou seu empresário. Em pouco tempo, ele estava de volta com a chave da royal suite e o carre­gador que a acompanharia até lá.

Tente descansar até a coletiva — sugeriu Jacob.

Qualquer coisa, me ligue. Tenho um chá da tarde marcado com Mary aqui no hotel.

Mande um beijo. E não esqueça que a roupa que deverá usar na coletiva está em seu quarto. Se precisar ajustá-la, é só me avisar. Entro em contato com o estilista.

O Anjo Negro seguiu os dois até a entrada da suíte. Deu gorjeta ao funcionário do hotel e virou-se para Fernanda:

Vou me instalar e descansar um pouco. Quero que me chame antes do chá da tarde. Ok?

Ok — respondeu a top model, trancando a porta.

Ela vasculhou os duzentos e vinte e quatro metros quadrados da luxuosa suíte à procura do misterioso figurino. Encontrou um estojo negro sob a lareira de mármore. Desatou o laço vermelho. Um peque­no envelope preto caiu no chão. Deixou a caixa de lado. O bilhete fora escrito com pena, cor sépia. Caligrafia artística. Conferiu a assinatura antes de ler a mensagem.

Filho da puta!

Querida Fernanda, hoje à noite, você se tornará uma rainha. Aprecie essa tiara como sua coroa. As roupas estão no armário. Um beijo, Sammy.

Com as mãos trêmulas, ela destampou o estojo. Uma tiara de ouro branco resplandecia, em centenas de pequenos diamantes, uma palavra: Babalon. Fernanda correu até o armário. Um vestido longo pendia do cabide. Era escarlate. Ao seu lado, viu uma echarpe púrpura com dezenas de pérolas amarradas nas pontas. Ela abriu a bolsa e pegou a Bíblia que ganhara do "padre que falava engraçado". Abriu na página dobrada du­rante o vôo e leu o trecho: "A mulher estava vestida de púrpura e escarla­te, e toda enfeitada de ouro, pedras preciosas e pérolas.Tinha na mão um cálice de ouro cheio de abominações, as imundícies da sua prostituição. Na fronte da mulher estava escrito um nome enigmático: 'Babilônia, a grande, a mãe das prostitutas e das abominações da Terra"'.

Desejava ligar para Mary e pedir-lhe ajuda. Pegou o celular. Sentiu sua energia escoando pelo chão. Desmaiou.

 

Ele sabia que Fernanda Albuquerque já se hospedarano hotel, em uma suíte próxima à sua. "Será que ela se lembrará de mim?", questionara-se algumas vezes, torcendo para que a resposta fosse negativa. No iní­cio, pensara em evitar o confronto. Mas deduzira que fazer isso seria esquivar-se da missão. Se ela realmente fosse a Babalon, ele deveria confrontá-la. Sentado na ante-sala de sua suíte, lembrou-se da acusação de David: "Ou seu confessor faz parte da seita satânica, ou tem outro interesse escuso nessa trama".

Gabriele, não - disse para si mesmo, balançando a cabeça nega­tivamente. "Colocaria a mão no fogo por ele. David esquece que nesse jogo existem mãos e olhos invisíveis. A divina providência me levou ao Brasil e me trouxe até aqui... E eu caí nas ciladas do Inimigo", pensava, esfregando os dedos nas palmas das mãos.

O que o Senhor espera de mim? — perguntou. Silêncio. "Preciso fazer alguma coisa. Não posso ficar de braços cruzados!". Tontura. Re­pousou a cabeça no encosto do sofá e esticou as pernas. Fechou os olhos. "Presunçoso. Você é presunçoso", aquelas palavras invadiram sua mente.

Se eu não fizesse aquilo, outros inocentes seriam sacrificados — justificou-se. Sentiu uma leve dor sobre a cicatriz triangular, como se alguém pressionasse algo pontiagudo contra sua fronte. Respirou fundo. "Vai passar. Vai passar", repetiu mentalmente. Estava enganado. Nos se­gundos seguintes, a dor se tornou insuportável. O torturador imaginário parecia perfurar seu crânio.

Meu Deus, ajudai-me!

— Você é rebelde como o Inimigo — aquela acusação era terrível. E encheu seu coração de angústia.

Meu Deus, o Senhor está aqui?

De que adianta pedir Minha ajuda se você não Me segue, Pietro?

Por que essa dor persiste? Não sinto Vossa presença aqui.

— Você não ensina que Sou onipresente? Estou em todos os lugares.

Mas...

Mas algumas pessoas gostam de ficar com os olhos fechados.

Pietro tentou abri-los. As pálpebras pareciam costuradas.

Não consigo...

Não quer. Eu não posso fazer isso por você, Pietro.

Farei tudo o que me disserdes...

Fará tudo o que o seu coração desejar. Você é livre.

Quero seguir-Vos, Senhor.

Seus pés não obedecem sua boca.Você está em outro caminho, Pietro.

Não...

Não se pode servir a dois senhores.Você sabe quantas vezes disse isso?

— Vós sois meu único Senhor.

Então por que Me nega?

— Quando...

Antes do pôr do sol, fará isso três vezes.

Prometo que não Vos negarei, Senhor.

— Você foge de si mesmo. E se perde na escuridão. Lembre que sou onipresente, Pietro. Basta abrir os olhos.

O padre conseguiu abri-los. Estava na presidential suite. Sozinho. Levantou-se do sofá e conferiu o horário. Faltavam menos de quinze minutos para as cinco da tarde. Mais de uma hora e meia separava o início da pontada na testa até aquele momento. Tinha a impressão de que haviam se passado apenas al­guns minutos. O tempo necessário para aquele breve diálogo. Lembrava-se de todas as palavras que Deus lhe dissera. Estava envergonhado. "Preferia morrer a negá-Lo", pensou. Recordou-se do momento em que fora comparado ao relutante São Pedro, o primeiro papa. Sorriu por alguns segundos. Poderia afundar em um mar de incertezas, mas bastava levantar a mão que Jesus Cristo viria em seu socorro. E se mergulhasse na escuridão, era só abrir os olhos. "Ele está em todos os lugares", consolou-se. A coletiva de imprensa com Fernanda Albuquerque ocorreria às vinte horas. Ele tinha pouco mais de três horas para preparar seu coração. Tomar o tradicional chá da tarde poderia ser um ótimo começo. Faria o ritual no Bar Boulud, no Mandarin Oriental.

 

A redação do The Star estava com metade do staff. A outra trabalha­ra no dia anterior. Jornalistas revezavam-se em plantões aos fins de sema­na. "O jornal sai todos os dias. Se quiser vida fácil, procure emprego em uma revista semanal", o editor-chefe costumava dizer aos novatos que reclamavam das agruras do ofício. E foi pensando em Steven que David entrou na ampla sala, dividida em vários núcleos. "Ele quis levar vantagem, mas só me ajudou. Me entregou de bandeja uma jornalista esperta - e linda —, além do cargo de editor-chefe. Talvez eu devesse agradecê-lo por isso", pensou, estampando um sorriso mordaz no rosto. "Espero que não me cause problemas nos próximos dias", desejou em pensamento, olhando na direção da mesa do editor-chefe. Steven conversava animadamente com um dos dois repórteres escalados por David para a cobertura da chegada da top model brasileira. "Será que ele trouxe algo interessante?", questionou-se. Deixou a pasta sobre a mesa e, com a bengala, dirigiu-se até seu chefe. Ao vê-lo aproxi­mar-se, Steven levantou-se exibindo um largo sorriso e anunciou:

David, tudo bem? O George acaba de chegar com a capa da próxima edição.

O que aconteceu no aeroporto? - perguntou David, olhando para o repórter.

Enquanto esperava a bagagem, Fernanda Albuquerque perdeu o controle e partiu para cima de uma adolescente. Seus dois seguranças apartaram a briga. Descobri quem era a vítima e fiz uma entrevista... — narrava o repórter, eufórico.

O que ela disse?

Que achou a Fernanda um tesão e daria tudo para transar com ela. A brasileira não gostou de ser encarada e a xingou de lésbica maldi­ta...— reportava George.

A comunidade GLS vai cair de pau em cima da Fernanda — comentou Steven, antevendo a repercussão daquela matéria. Sorriso ma­licioso no rosto.

O que mais? — insistiu David.

— A adolescente ficou com raiva e retrucou... — respondeu o repórter, fazendo uma pausa.

O editor assistente gesticulou com a mão esquerda para que ele continuasse.

"Prefiro que seu segurança negro foda meu rabo do que chupar sua boceta, puta!" — revelou George, ruborizado.

O editor-chefe caiu na gargalhada. "Você não passa de um abutre com os dias contados, Steven", pensou David, emendando um comentário:

Percebo que você fez uma entrevista de alto nível. E depois des­sa... pequena provocação... — enfatizou as duas últimas palavras. — ...o que a Fernanda Albuquerque fez?

Passou por cima da esteira de bagagens e deu um tapa no rosto da adolescente.

—Você ouviu mais alguém?

A amiga, que viajou com ela e assistiu a tudo isso.

Essa história não é sensacional, David? — atravessou o editor-chefe.

Quer saber o que eu realmente acho, Steven? É a história de uma adolescente pervertida que levou um tapa merecido de uma celebridade. É um ótimo escândalo e o jornal vive disso. Mas amanhã, quando a Fernanda Albuquerque receber o The Star e descobrir que a transformamos em uma louca desprezível, vai cancelar a entrevista exclusiva que nos prometeu — rebateu David, encarando-o.

O sorriso desaparecera do rosto de Steven. Ele fitava David com uma fúria silenciosa. Fora censurado pelo subordinado na presença de um mero repórter. Sentia-se ridicularizado. George desviou o olhar dos dois para um livro sobre a mesa do editor-chefe: Manual de Estilo do The New York Times.

O que você sugere? - perguntou Steven, ríspido.

Manter a decisão da capa, mas dar um peso ao outro lado da história.

Ouvir Fernanda Albuquerque?

Sim.

Mas a exclusiva será amanhã.

Minha assistente, Mary, irá encontrá-la daqui a pouco para o chá da tarde. Será um compromisso pessoal, mas podemos tentar obter uma declaração. O que acha?

Uma ótima idéia.

— Tentarei isso. E você, George, me passe a matéria até as seis horas. Ok?

O repórter conferiu o relógio de pulso e arregalou os olhos, es­pantado. Tinha pouco mais de uma hora para transcrever a entrevista e escrever o texto. Pediu licença aos dois e saiu apressado.

Em uma mesa do Bar Boulud, no Mandarin Oriental, Mary con­feriu o Cartier Santos 100. Fernanda Albuquerque estava atrasada em quinze minutos. Não era motivo para se preocupar. A amiga brasileira não primava pela pontualidade. Ainda mais após uma exaustiva viagem intercontinental e a poucas horas da coletiva de imprensa. Tomou um gole de água com gás. O celular tocou. Era da redação do The Star.

Olá, Mary, podemos conversar? — Era a voz de David.

Podemos.

Desculpe interromper seu chá da tarde, mas preciso de sua ajuda para reverter uma situação.

A Fernanda está atrasada, então pode falar.

Melhor assim. Sua amiga trocou ofensas com uma adolescente no aeroporto e a agrediu com um tapa — relatou seu chefe.

Sério? — interrompeu Mary.

Sim. O problema é que o repórter conseguiu uma entrevista com a adolescente e Steven pretende destacá-la na capa. Precisamos que a Fernanda dê sua versão da história.

Tudo bem. Tentarei falar com ela sobre isso - consentiu Mary, observando um homem chegar ao restaurante e ser conduzido a uma mesa próxima.

E me ligue assim que terminar. Devo fechar a matéria o mais rápido possível.

David, o que ele está fazendo aqui?

Quem, Mary?

O padre italiano acaba de se sentar a poucos metros da minha mesa — sussurrou.

Ele está hospedado aí, Mary.Vocês se cumprimentaram?

Acho que ele não me viu. Sentou-se de costas para o salão.

— Talvez ele esteja aí para se reconciliar com o passado. Boa sorte com a Fernanda. Até mais tarde.

Mary checou o horário. A amiga já estava meia hora atrasada.

Pegou o celular e acessou a agenda. Antes de chamá-la, resolveu conferir a porta de entrada. Um homem negro, alto e forte, olhava em sua direção. Cumprimentou-a com um discreto aceno de cabeça. Mary o conheceu antes de se tornar o segurança número um da brasileira. Ele já trabalhara para seu pai. O Anjo Negro, como Fernanda o batizara, falou algo que Mary não conseguiu entender e voltou-se para o padre, esquadrinhando-o. Ela entendeu a mensagem. "O único perigo que a Fernanda corre aqui é ser exorcizada, Harold", pensou. Poucos segundos depois, a top model entrou no Bar Boulud. Vestia calça e jaqueta jeans, camiseta branca e tênis. Apesar do largo sorriso que abriu ao vê-la, Mary percebeu que a amiga estava abatida.

 

Bloco de notas aberto sobre a mesa. O padre pediu um quatre heures com café e começou a transcrever seu diálogo com... Deus.Teve a sen­sação de que alguém o observava, mas evitou desviar os olhos da página. Não queria correr o risco de esquecer nenhuma palavra. "Antes do pôr do sol, me negará três vezes." Sentiu um calafrio ao anotar aquela predição."Não farei isso", repetiu mentalmente, franzindo o cenho e fechando as mãos em punho. Percebeu uma sombra projetada sobre a mesa. Talvez fosse o garçom. Pressentiu que não era.

— O senhor... O senhor é o padre que falava engraçado?

Era uma voz feminina. Coração acelerado. Respiração entrecortada. Hesitou por alguns segundos erguer a cabeça. Somente uma pessoa o chama­ra daquela maneira. Levantou os olhos. Fernanda Albuquerque estava diante dele, com uma expressão intrigada no rosto. Não era a criança encantadora que conhecera trajando um vestido rosa-claro com um laço branco amarra­do na cintura. Transformara-se em uma mulher linda e sedutora.

— O senhor é o padre que falava engraçado? — repetiu, agora em português.

Vergonha e medo. Cabisbaixo, ele encarou a brasileira, na esperança de que, novamente, Jesus Cristo olhasse para ele por aqueles olhos azuis e dissesse: "Pietro, se reconcilie com o passado. Peça perdão a quem você feriu. E siga em paz". Mas eles sorriam com sarcasmo. O padre conhecia aquele sorriso. Era o mesmo que vítimas de possessão demoníaca exi­biam ao se calar. O próprio diabo encarava-o das profundezas do inferno. Naquele momento, podia ouvir o desafio: "Padre assassino, está na hora de beijar os pés de Babalon.Talvez você seja perdoado".

O senhor não entendeu minha pergunta? Gostaria de saber se é a pessoa que me deu isso - insistiu a brasileira, agora em inglês, tirando uma Bíblia de sua bolsa e colocando-a sobre a mesa.

Pietro estremeceu. Fora descoberto por Fernanda. Fora surpreendido pelo Inimigo.

—Você... você está enganada. Sou um empresário italiano. Me chamo Giovanni de Santis — respondeu, levantando-se da mesa.

Me desculpe.Vocês são tão parecidos...Talvez sejam primos dis­tantes — justificou a top model, pegando o livro e guardando-o em sua bolsa. Girou sobre o calcanhar para ir ao encontro de Mary e viu a amiga aproximando-se da mesa.

—Vocês se conhecem? — indagou Mary.

Pietro a reconheceu imediatamente. Fora apresentado a ela na cor­rida de galgos. Era a assistente de David.

Desculpem-me, preciso ir — adiantou-se o italiano.

—Aonde o senhor vai com tanta pressa, padre? — disparou Mary. Ele prendeu a respiração.

Quer dizer... quer dizer que o senhor... — balbuciava Fernanda. Pernas trêmulas.

—Você conhece o padre Pietro Amorth, Fer? — indagou a jornalista.

Não sou padre. Não me chamo Pietro. Meu nome é Giovanni de Santis — esquivou-se. Voz fraca.

Como vocês se conheceram? — insistiu a americana. O padre se afastava em direção à saída.

—Você me abandonou quando eu mais precisava, padre. Você me empurrou para esse beco sem saída — desabafou a top model. Pietro apertou os passos e cruzou com um segurança na porta do Bar Boulud.

O Anjo Negro segurou em seu ombro, com força. Pietro explodiu:

O que você pensa que está fazendo, imbecil?

Nunca vire as costas para uma dama. Principalmente se ela for... — advertiu-lhe o segurança, interrompendo a frase com um sor­riso mordaz.

"A Babalon", Pietro completou em pensamento. E emendou:

Me solte antes que eu quebre sua cara!

—Antes que você me apunhale pelas costas, como fez com Antônio, Pietro?

Eu me chamo Giovanni de Santis — berrou, conseguindo se li­bertar daquela mão escura.

Essa foi a terceira vez, padre — anunciou Harold, rindo.

Aquela frase o fez recordar a profecia: "Antes do pôr do sol, você me negará três vezes". A poucos passos do elevador, sentiu as pernas fraque­jarem. Conseguiu se apoiar em uma parede. Respirou fundo.

—- Meu Deus, me dê forças. Eu imploro — suplicou com a voz arrastada.

"Seus pés não obedecem sua boca. Você está em outro caminho, Pietro." Por um instante, pensou que Deus estivesse lhe sussurrando aqui­lo. Eram apenas lembranças. Cobriu o rosto com as mãos e entrou no elevador. Não havia nada do que desejasse mais além da morte.

 

Os dedos tamborilavam sobre a mesa, como se quisessem digitar pensamentos. David olhou na direção de George. O repórter estava visi­velmente aflito. Fora colocado em um fogo cruzado entre ele e o editor-chefe e corria contra o relógio para não ser alvejado. "Vamos ver como você se sai no teste. Seu futuro depende desta matéria", encorajou-o em pensamento. Em menos de uma semana, ocuparia a mesa de Ste­ven e pretendia fazer mudanças em algumas editorias. Pensou em Mary.

"Ela já passou no teste." Conferiu novamente a caixa de mensagens. Ha­via um e-mail, recém-chegado, com o título: Me ligue... A mensagem continuava: ...assim que puder. Mister Jones. "Ele nunca toma a iniciativa. O que deve ter acontecido?", preocupou-se, pegando o celular e acionando o número de seu contato na Scotland Yard. O investigador retornou a ligação poucos segundos depois.

Omiti uma informação relevante em nossa última conversa, David. Além dos quatro fragmentos, uma anotação do conde de Bedford escapou intacta da queima de arquivo.

Espero que tenha ligado para remediar isso.

Farei melhor, David. Como você deve saber, algumas peças desa­pareceram misteriosamente do British Museum...

Elas pertenciam à coleção de John Dee — interrompeu o jorna­lista, com a intenção de mostrar que já conhecia a história e Mister Jones podia pular o preâmbulo.

X perdeu o controle e está agindo por conta própria. Estou com o relatório de um de nossos agentes SY. Suspeita confirmada: o bastardo solicitou a ficha do curador do BM e, possivelmente, sequestrou seu filho. Ele colocou em risco a orga­nização e deve ser colocado fora de combate.

Uau! — exclamou David, surpreso com a mensagem.

Vamos aos fatos, meu caro. O bastardo X, suspeito do roubo no British Museum, também é o suspeito número um, pelo menos o nosso, dos assassinatos ritualísticos. Correto?

Perfeitamente.

Sendo assim, bastaria descobrir sua identidade para chegar às pro­vas do crime, provar que sua versão da história sempre foi a verdadeira e instaurar uma sindicância na SY para separar o joio do trigo.

Concordo. Alguém mais teve acesso à mensagem?

Eu a escondi antes que o perito examinasse as cinzas do lixo e descobrisse os quatro fragmentos legíveis. É uma prova incriminatória contra alguns colegas de trabalho. Não tenho dúvida de que seria destruída antes de chegar à nossa sede.

Eu também não — concordou o jornalista, balançando a cabeça.

Resolvi abrir uma investigação paralela, David. Primeiro, tive uma conversa sigilosa com o curador do museu. Ele confirmou o seqüestro de seu filho. O resgate foram as peças que, segundo a nota oficial, desaparece­ram misteriosamente do acervo.

Sensacional, Mister Jones.

Ainda não contei a melhor parte. O curador convenceu seu fi­lho a me prestar um depoimento, em off, sobre o seqüestrador. O rapaz estava bastante assustado. Ele disse que o psicopata ameaçou matar sua irmã caso abrisse a boca e me fez jurar que eu manteria a conversa em segredo absoluto.

E, obviamente, você não honrará esse juramento — brincou David.

Acabo de lhe encaminhar um e-mail com um anexo. Abra — ins­truiu Mister Jones.

O jornalista clicou duas vezes sobre o arquivo. Um retrato falado tomou conta da tela de seu computador.

É ele!

O que eu imaginava: você o conhece.

Ele ameaçou e agrediu o padre e espionou dois de nossos encontros.

Algo mais que eu deva saber, David?

Provavelmente, ele se chama Andrew.

Algo mais?

Eu sou apenas um repórter, Mister Jones.Você tem métodos mais eficazes para obter informações sobre esse homem.

Quer saber o que eu consegui, David? — indagou, emendando a resposta. - Ele não existe.

Como assim?

Ele não pode ser identificado. E um fantasma. E eu não consigo investigar fantasmas.

Sei onde ele estará amanhã à noite. Posso ajudá-lo a chegar até ele — revelou o jornalista.

Preciso aprender mais com você. Nos encontramos no horário e no endereço combinado, amanhã de manhã.

A propósito, Mister Jones, soube de fonte segura que nosso alvo é filho bastardo de sir Alexander Cotton.

Investigarei isso. Até logo.

David colocou o celular do lado esquerdo do teclado. Não precisava mais convencer o agente sobre seu plano arriscado para capturar Andrew. A investigação particular sobre o roubo das peças de John Dee transformara Mister Jones no melhor parceiro para o trabalho. Colocar as mãos naquele psicopata era sua missão mais cara. Ela prometia redenção. E vingança.

Você chamaria isso de divina providência, não é mesmo, padre? - questionou, fitando o rosto desenhado do verdadeiro Estripador de Londres. — Nunca imaginei que você...

 

Os dois amigos brincavam de pega-pega em torno do castelo, em Upper Slaughter. David corria mais rápido do que Andrew.

—Você não me alcança! — gritara, virando-se para conferir a distân­cia do amigo - Você não consegue me pegar.

A pequena distração foi o suficiente para que ele tropeçasse em uma pedra, estatelando-se no chão. Sentia os joelhos e o cotovelo di­reito arderem. Abriu os olhos. O amigo estava abaixado diante dele, preocupação no rosto.

Tudo bem, David?

Acho que me machuquei — respondeu-lhe, com os olhos repre­sando lágrimas.

—Vou chamar alguém para ajudar.

Me ajude a chegar em casa.

Andrew lhe estendera a mão e o puxara para cima. O sangue escorria pelas duas pernas.

Pode se apoiar em mim.Você vai ficar bem — encorajava Andrew, abraçando o amigo pelo lado esquerdo.

Acho que você me pegou.

Essa não valeu. Quando você estiver bom, vou mostrar que posso correr mais rápido.

Essa eu quero ver.

 

O jornalista fechou o arquivo com o retrato falado do seu me­lhor amigo de infância. Suspirou. Não brincaram de pega-pega no dia seguinte à queda. Nunca mais brincaram nos arredores do castelo. Desde o início da onda de assassinatos, eles voltaram à brincadeira de infância. Mas os papéis estavam invertidos. O jornalista corria atrás do psicopata. E não conseguia alcançá-lo. A cada crime brutal, era como se Andrew se virasse e lhe dissesse, com um sorriso irônico: "Você não consegue me pegar". David acreditava que ele estava a poucos passos de um tropeço.

 

Naquele instante, o céu cinzento não era somente uma característica da paisagem londrina. Carregava a lembrança traumática do dia em que seu pai fora assassinado. Talvez experimentasse apenas uma tristeza dis­tante, não fosse o encontro com o padre italiano havia poucos minutos. Ele desaparecera do vilarejo no dia seguinte ao crime, sem se despedir de ninguém. Quando ela e a mãe foram à sua casa, ao lado da igreja, en­contraram a porta aberta. Armário e gavetas vazios. Pietro não estava lá para ampará-las. "Ele me fez cair na armadilha de Sammy", acusou-o em pensamento, tomando o segundo copo de água.

Quer conversar sobre o padre? — Mary quebrou o silêncio.

—Você tem certeza de que era ele?

Fomos apresentados pelo meu chefe, Fer. Como vocês se conhecem?

Ele me deu isso aqui... — respondeu a brasileira, pegando a Bíblia em sua bolsa e abrindo-a na página da dedicatória. — Eu tinha sete anos quando...

A jornalista pegou o livro e leu a mensagem de Pietro. Em seguida, encarou a amiga:

Uau! E muita coincidência vocês se encontrarem aqui, em Londres, tanto tempo depois...

— Ou não, Mary.

Por que você disse que ele te abandonou?

Lembra que contei que meu pai foi assassinado? No dia seguinte, o padre não estava mais na cidade. Minha mãe e eu ficamos perdidas. Me senti abandonada por Deus. E vendi minha alma...

Quem matou seu pai? — interrompeu Mary.

A polícia arquivou o caso.

Nenhum suspeito?

Alguns meses antes, meu pai deu uma surra em um bêbado que se recusou a pagar a conta. Ele deixou o bar jurando meu pai de morte. E nunca mais foi visto na cidade.

Talvez tenha voltado para se vingar... — comentou Mary.

E o que os policiais disseram.

Talvez o padre esteja mais envolvido nisso do que nós duas ima­ginamos — disparou a americana.

—Você acha que ele seria capaz? - questionou a top model, arre­galando os olhos.

Por que motivo ele se assustaria com você e usaria uma identi­dade falsa? Ele não se chama Giovanni de Santis e não é um empresário. Tenho certeza disso.

Não, não acredito... Ele... Não... Não é um assassino — gaguejou Fernanda, balançando a cabeça nervosamente.

Ele é um dos suspeitos do assassinato de um membro da Câmara dos Lordes. A julgar pela sua história, não sei como ele ainda não fugiu - revelou a jornalista, lembrando-se do que lhe dissera David: "Talvez ele esteja aí para se reconciliar com o passado". "Ele deve saber o que aconteceu", deduziu, em pensamento.

Meu Deus! Era só o que me faltava. Estou ferrada, Mary. Me ajude, por favor — suplicou a top model, com a voz embargada.

—Vamos por partes, Fer. Em primeiro lugar, preciso que me conte sobre a confusão no aeroporto. Conseguiram uma exclusiva com uma adolescente que diz ter sido estapeada por você. Preciso apagar esse incêndio.

Aquela vagabunda deu em cima de mim e me chamou de puta! Teve o que merecia.

Concordo com você. Mas a imprensa não precisa saber disso. O que acha dessa versão? - indagou-lhe, pegando o iPhone e acessando o editor de texto.

 

A top model Fernanda Albuquerque declarou:

 

Ela olhou para mim e comentou com a amiga: "Você sabia que no Brasil só há negros, putas e travestis?". Se fosse uma ofensa pessoal, eu teria dado as costas, fingido que não ouvi nada. Mas eu amo o meu país e quis defendê-lo. Quando fui tirar satisfação, ela me chamou de escória. Não su­porto pessoas covardes que se escondem atrás de preconceitos ridículos para se sentirem superiores. Perdi o controle. Ainda bem que o tempo dos duelos ficou para trás e nós só trocamos tapas. Eu poderia nem estar aqui agora (risos).

 

A jornalista terminou de escrever e olhou para a amiga, na espera de aprovação.

—Você acha que seu editor vai comprar essa história?

Acho que ele não suportaria esse preconceito com relação ao Brasil. David acha que o inventor do avião é brasileiro. Acredita nisso?

— Ele está certo. Santos-Dumont inventou o avião — confirmou a top model.

Então, não era piada... Enfim, você aprova a história que acabei de criar?

— Tudo bem. Pode enviar isso para o seu chefe. Quero conversar com você sobre um problema bem mais grave do que esse.

Espere só um pouquinho - pediu Mary, acrescentando ao texto uma observação:

 

David, esta é a verdadeira história sobre a confusão no aeroporto. Beijos, Mary. PS.: Acabo de descobrir que seu amigo padre matou o pai da Fernanda. Você prova­velmente já sabia disso, não?

 

Mesmo estando em uma das maiores suítes do Mandarin Oriental, Pietro mal conseguia respirar. Para diminuir a sensação claustrofóbica, arrancou o paletó e a camisa. As mãos suavam. Coração apertado. Deitou-se no sofá com a barriga para cima, a cabeça apoiada em três almofadas. "Você me abandonou quando eu mais precisava, padre. Você me empurrou para esse beco sem saída." Aquela acusação, até então igno­rada, começou a atormentá-lo. Respiração curta. Dor no peito. O padre se levantou e abriu o bloco de notas, aleatoriamente. Precisava ocupar a mente com outro assunto: Ele será resultado do intercurso sexual de sua mãe e seu pai, como outros homens, e não de uma virgem solitária. Ele será comple­tamente concebido no pecado, engendrado no pecado e parido no pecado (fruto de uma mulher perdida e impura e de um bandido abominável)...

Fechou os olhos. Lembrou-se do dia em que conhecera Fernanda. Ela parecia um anjo enviado por Deus para lhe arrancar um sorriso. Ele jamais imaginaria que aquela criança se transformaria na Grande Pros­tituta, ou, como dizia a profecia, "uma mulher perdida e impura". A palavra "perdida" saltou-lhe à vista. "Você me abandonou quando eu mais pre­cisava, padre. Você me empurrou para esse beco sem saída." Um calafrio atravessou seu corpo. O olhar perdeu-se na imensidão cinzenta do céu.

Não!

"Você fez a sua própria vontade. Em breve, terá consciência do mal que causou." Compreendeu o significado terrível daquelas palavras. De­sabou de joelhos no chão. Cobriu o rosto. Os olhos ardiam, precisava chorar, mas as lágrimas evitavam sua companhia. Engoliu seco. Algo pa­recia bloquear sua garganta. Engasgou e teve um acesso de tosse. Gosto de sangue na boca. Abriu os olhos. Sangue no chão.

Não! — berrou, a voz seca. - A culpa é minha...A culpa é minha...

Fechou os olhos. Sentiu a força abandonar seu corpo. E foi surpre­endido pelo sorriso mordaz de Antônio.

—Você acha que venceu, maldito?

"De que lado você pensa que está, padre?", o pai de Fernanda retrucou-lhe em pensamento.

De Deus - sussurrou, sem muita convicção.

"Quem você queria enganar? Eu sabia que você estava de tocaia", rebateu Antônio.

Então, por que passou por lá?

"Você pensa que só Deus distribui privilégios aos mártires? Estou muito melhor agora do que quando vivia nesse mundo desprezível.

Além disso, como você sabe, o diabo tinha uma missão especial para a minha filha. Mas ela só pensava em... Bom, isso já não importa mais. Graças a você, e ao meu sacrifício, a Fernanda está pronta".

Eu não sabia...

"Obrigado, padre."

Eu não sabia...

"Agora já sabe quem valoriza seu trabalho e pretende remunerá-lo muito bem quando esticar as canelas. Eu mesmo fui encarregado de pre­parar a recepção."

Meu Deus, ajudai-me!

"Fale mais alto, Ele não está ouvindo", provocou Antônio, finalizando com uma gargalhada.

Meu Deus, ajudai-me! — berrou Pietro.

"Você é mais teimoso que uma mula, padre. Não conhece o ditado: 'É melhor ser rei no inferno do que escravo no céu'?"

Meu Deus, ajudai-me! — repetiu Pietro, provocando outro acesso de tosse. Abriu os olhos. Teve a impressão de despertar de um pesadelo. Cambaleou até a cama. Ajoelhou-se. Uniu as mãos em prece e abaixou a cabeça.

Por favor, respondei-me, Pai. Esse é o pecado contra o Espírito Santo? Esse é o pecado sem perdão?

Um relâmpago iluminou o quarto, seguido por um trovão ensurde­cedor. O padre sentiu o corpo estremecer. E caiu em prantos.

A voz de Deus... Sou um desgraçado! Sou um desgraçado!

Desespero. Levantou-se e correu ao private bar. Pegou o Talisker 18 anos. Em um só fôlego, bebeu um terço do malte. Foi flagrado por outro raio e censurado pelo trovão... Por Deus. Arremessou a garrafa contra a parede.

O Senhor me abandonou! — revoltou-se. Apanhou o furador de gelo ao lado do balde prateado revestido de couro. "E agora me conde­na", completou em pensamento, caminhando lentamente para a suíte. Sem esperança de misericórdia, não havia nada que Pietro desejasse mais do que a morte. Mirou a banheira. Ela seria o último desejo do condenado antes de se transformar em cadafalso e, finalmente, em esquife.

 

Um formigamento na têmpora direita. Aquele sinal infalível de maus pressentimentos chegara com o e-mail de Mary: Acabo de descobrir que seu amigo padre matou o pai da Fernanda. Você provavelmente já sabia disso, não?

Algo saiu errado — concluiu, pegando o celular e acessando o número de Pietro. "Não me parece uma hora apropriada para ligar para ele", pensou, voltando o aparelho para o lado do teclado. Virou-se na direção de George e o flagrou conferindo o relógio de pulso. Teclou o ramal de sua mesa e disse:

Acabo de lhe encaminhar um e-mail com a versão de Fernanda Albuquerque sobre o incidente no aeroporto. Quero a matéria no meu computador em dez minutos.

Farei o possível - murmurou o repórter, emendando em pensa­mento: "Entendi por que esse cara tem fama de arrogante".

O formigamento na têmpora direita aumentou. Com os dedos anu­lar e médio da mão direita, David começou a massagear a região na tentativa de diminuir o desconforto. Olhos fechados. "Droga, o que está acontecendo? Preciso falar com Mary", decidiu, respirando fundo.

Sua assistente conseguiu a versão da top model?

Era a voz de Steven.

Sim - respondeu David, abrindo os olhos. — Em vinte minutos espero te encaminhar a matéria editada.

Enquanto o repórter termina, vamos tomar um chá? — convidou Steven.

Preciso resolver alguns problemas...

Eu também. Quero começar com você — o editor-chefe inter­rompeu-o, enfatizando a última palavra e encarando-o.

"Era só o que me faltava. Perder tempo com ele é chutar cachorro morto", pensou David, respondendo:

Tudo bem.

Saíram em silêncio da redação, acompanhados pelo olhar aflito de George.

Desde quando eu me tornei um problema? - o editor assistente quebrou o silêncio no caminho do salão de chá. Pretendia resolver aquilo o mais rápido possível.

Graças a mim, David, você conseguiu este emprego.

—Você é um homem de sorte. Não é sempre que um British Press Awards bate na sua porta.

—Voltou a viver das glórias passadas, David? — provocou Steven.

Estou antevendo as futuras.

Não importa o que você faça, será sempre conhecido pela invenção de uma conspiração satânica para justificar os crimes de um psicopata. Uma gafe e tanto...

Ou não... — murmurou David. — O que quer comigo, afinal? Discu­tir minha carreira? - impacientou-se o jornalista, encarando seu interlocutor.

—Vamos nos sentar — sugeriu Steven, segurando no encosto de uma cadeira. — Pedir um chá e... conversar sobre o futuro.

 

Pedaços de bolo, éclairs de café, tortas de frutas, biscoitos assados, macarons e scones enchiam os olhos e adocicavam o ar. Aquele tradicional chá da tarde contrastava com os olhos sem brilho de Fernanda Albuquerque. Mary tomou um gole de café americano e quebrou o silêncio:

Não temos a tarde inteira, Fer.

Me desculpe — disse a brasileira, voltando-se para ela. — Isso é chá? — perguntou, apontando para o bule de porcelana com o emblema do Mandarin Oriental.

É o chá que você pediu! Deixe que eu sirva — respondeu a jor­nalista, enchendo uma xícara.

Algo muito ruim vai acontecer comigo, Mary.

Por que você está dizendo isso, Fer? — indagou."Se ela desconfiar, tudo estará perdido", emendou em pensamento.

—Você se lembra de como me tornei modelo?

Se não me engano, tudo começou com um olheiro na praia. Estou certa?

Um olheiro que me prometeu o sucesso...

Um profissional que soube reconhecer seu talento. E certamente lucrou alto com isso — corrigiu a americana.

Ele pediu algo em troca, Mary — revelou a top model.

Acho que você nunca me contou essa parte — comentou a jorna­lista, encarando a amiga. — Não precisa ficar constrangida, muitos olheiros se aproveitam da ingenuidade das garotas...

—Você sabe o que ele me pediu em troca?

Sexo.

Nem sexo, nem dinheiro.

O que ele ia querer além disso?

Fiquei todos esses anos sem saber - respondeu Fernanda, pegando a xícara de chá com as mãos trêmulas. Derramou um terço da bebida e preferiu deixar o resto de lado.

Por que você está tão nervosa? O que pode ser tão terrível?

—Você acredita no diabo?

Não. Nem você. Os espíritas jogaram no lixo as aberrações cris­tãs. Entre elas, a do diabo com chifres, rabo e tridente. Onde você quer chegar com isso, Fer?

Coisas estranhas estão acontecendo, Mary. Ontem à noite, meus vizinhos me entregaram uma carta. Era do olheiro.

Tantos anos depois? O que ele queria?

Está aqui — disse Fernanda, pegando um papel dobrado em sua bolsa e entregando-o à amiga.

Mary desdobrou a carta e leu a mensagem em silêncio:

 

Querida Fernanda, nunca tirei os olhos de você. Os últimos seis anos lhe fizeram muito bem. Você está linda... Mas, infelizmente, não faz meu estilo. Gosto de mais curvas. Parabéns, você se tornou a maior top model do mundo. É claro que, sem meu empurrãozinho, você não seria ninguém. Che­gou a hora de saldar nossa dívida. Espero que goste das roupas e das jóias que usará amanhã. Eu mesmo as desenhei. Permaneça com elas após o encontro com a imprensa. Às onze e meia da noite, você receberá uma visita em sua suíte. Meu "cobrador" se chama Andrew. Seja uma boa anfitriã. E faça tudo o que ele quiser. Prometo que será uma noite inesquecível. Um beijo, Sammy.

 

Uau! — exclamou Mary.

Estou com medo.O que eu faço?

Ele não pode te obrigar a nada.

—Acho que ele é o diabo... — sussurrou Fernanda, irrompendo em lágrimas.

Ele é só um aproveitador filho da puta, um psicótico! Nós sabe­mos que o diabo não existe. Você só ficou impressionada com essa carta idiota — rebateu Mary, segurando na mão direita da amiga. Um raio ilu­minou a mesa. Seguiu-se um estrondo. As duas sentiram o chão trepidar.

As roupas e as jóias que ele quer que eu use são... São horríveis. E assustadoras!

Como assim?

Acho que elas foram tiradas do Apocalipse.

Aquela parte da Bíblia que fala sobre o fim do mundo?

Isso mesmo.

Acho que esse olheiro é voyeur e tem um estranho fetiche. Aposto que a idéia dele é essa: enquanto você transa com esse tal de Andrew, ele fica espiando e se masturbando dentro do closet — brincou Mary.

O que você faria no meu lugar?

No seu último e-mail, você me disse que entrou disfarçada em uma boate para descolar uma noite de sexo.

Foi uma idéia estúpida — comentou Fernanda, exibindo um sor­riso e apanhando um macaron.

Foi uma aventura. Se esse Andrew for bonito e gostoso, o que você tem a perder? — insinuou a jornalista, malícia nos olhos.

Nada — concordou Fernanda, sorrindo. — E se ele for um psicó­tico assassino?

Harold é um ótimo segurança. Deixe-o de guarda na porta do quarto.

Adoro você, amiga.Você estará na coletiva?

Estarei trabalhando.

Eu também — riu Fernanda. — Infelizmente, preciso ir agora. Te­nho que me arrumar.

Pena você não ter aproveitado quase nada do nosso chá da tarde - lamentou Mary, levantando-se da mesa.

Foi um chá da tarde bem agitado. Começou com o padre... Meu Deus, nunca imaginei que, algum dia, fosse reencontrá-lo — comentou Fernanda, às portas do Bar Boulud. As duas passaram pelo Anjo Negro.

Olá, Harold — cumprimentou Mary. — Espero que cuide muito bem da minha amiga, principalmente essa noite — completou, piscando o olho esquerdo.

O anjo da guarda dela não faria melhor — retrucou o segurança, correspondendo à piscadela e seguindo atrás das duas.

O padre... Não posso acreditar que ele...

Assassinou seu pai? - completou Mary. — Essa raça é traiçoeira, Fer. Ontem, quando o conheci, simpatizei com ele. Poucos minutos de­pois, ele deixou a mesa e... Bem, os policiais suspeitam que ele matou um lorde durante a corrida de cachorros.

Meu Deus, isso é tenebroso. Quando terminar essa campanha, voltarei ao Brasil e pedirei a abertura do inquérito policial. Se ele é o assassino do meu pai, deverá pagar por isso na cadeia!

E no inferno, já que acredita nisso. Bem, chegou a hora de nos separarmos - despediu-se, dando um beijo na amiga e pegando o eleva­dor ao lado. Enquanto descia, murmurou:

Sammy, seu filho da puta.

 

Sentiu-se afundar na água como se fosse chumbo. Por um breve instante, teve a impressão de que a banheira fora alargada e aprofunda­da. Sua água, antes quente, gelava cada milímetro de seu corpo. "Onde estou?", indagou. Sem resposta.Tentou abriu os olhos. As pálpebras pa­reciam costuradas. De repente, a sensação de queda parou. Mas Pietro não sentiu o corpo tocar em lugar algum. Talvez estivesse suspenso. Não conseguiu mexer os membros. "Deve ser um pesadelo. Peguei no sono depois de rezar a missa em... em...".

Não consegue dizer o nome dela, Pietro?

Aquela pergunta transpassou sua cabeça como uma lança. Berrou de dor, mas não ouviu a própria voz.

"Eu estava na igreja..."

—Você estava no hotel...

"Terminei de rezar a missa."

Pegou o furador de gelo...

"E adormeci."

Cortou os pulsos.

"Não. Meu... Meu..."

Aqui, esse nome é impronunciável.

Ele começou a chorar. As lágrimas desciam pelo rosto como chamas incandescentes, derretendo a pele. Apesar da dor agonizante, não conseguiu parar.

A punição dos covardes. Isso é só o começo. Não se desespere, Pietro.Você tem a eternidade para se acostumar.

"Estou no inferno!"

Bingo. Eu não disse que prepararia sua chegada?

"Antônio?"

Preciso sair agora, mas, antes, aceite minhas boas-vindas.

Sentiu o corpo ser atravessado por dezenas de punhais incandescentes.

Berrou.

—Aqui a vingança é uma das virtudes cardeais. Aproveite esse mo­mento, Pietro. Não sei se servirá de consolo, mas você não morrerá. O inconveniente disso é que a dor não acaba. Nunca.

Ele forçou as pálpebras. Nada. Desespero.

"Preciso sair daqui." Foi surpreendido, em suas lembranças, pela imagem de um padre no púlpito de Santa Maria in Aracoeli. Era ele mesmo durante uma homilia. Esforçou-se para ouvi-lo:

— A igreja ensina que o inferno não é uma metáfora, é uma realida­de. Como o Senhor ensinou na parábola do pobre Lázaro, a morte sela o destino das almas. Não há uma ponte entre o céu e o inferno. O homem rico fez a escolha errada. A escolha que nós fazemos aqui vai definir o lugar onde passaremos a eternidade.

"Tenha misericórdia de mim", berrou. Lágrimas incandescentes derretiam seu rosto, enquanto punhais rasgavam-lhe as vísceras.

Você não mentiu. Não existe ponte — aquela voz invadia seus ouvidos com violência.

"Misericórdia."

—Você já foi condenado, padre de merda.

"Preciso me lembrar de algo."

Trouxe algumas amigas para te fazer companhia. Em breve, você não passará de um amontoado de lembranças vazias.

"O que ele me disse?", insistiu consigo mesmo.

Larvas pareciam rastejar em sua cabeça. Sentiu cócegas. A elas segui­ram-se alfinetadas doloridas. E fisgadas.

"Estão comendo minha cabeça", concluiu, gemendo. "Talvez eu não vá ao seminário. Talvez eu não queira ser padre. Aquilo foi apenas um desmaio no campo de futebol... Besteira de criança. O celibato é uma idiotice. Se fosse natural, nasceríamos eunucos. Quero foder muitas mu­lheres como aquela inglesa gostosa. Eu nunca fui à Inglaterra. Inglaterra?"

 

Ele tomou um gole de earl grey e encarou Steven. O editor-chefe estava visivelmente nervoso. Parecia querer dizer algo, mas lhe faltava cora­gem. David conferiu o relógio. O repórter já devia ter terminado a matéria. Ele precisava ligar para Mary e coordenar a cobertura da coletiva de imprensa no Mandarin Oriental. Achou que era o momento de tomar a iniciativa.

Você não me chamou aqui para discutir meus fracassos, não é? Deixe de rodeios, Steven, e vá direto ao ponto.

É uma conversa sigilosa.

Tudo bem.

Como eu disse antes, você será sempre conhecido...

Pela conspiração satânica. Aonde quer chegar com isso? — impacientou-se, sem alterar a voz.

Que sua carreira está comprometida apenas na Inglaterra. Em outro lugar, você pode começar de cima, como um jornalista premiado — argumentou Steven, pegando a xícara de chá. Embora tentasse disfarçar, David notou que ele tremia.

Não recebi nenhuma proposta — retrucou o editor assistente.

David, eu te recoloquei no mercado. Eu posso te colocar entre os melhores.

Seja mais claro, Steven.

Em off. recebi uma proposta para ser diretor em um dos maiores jornais de Nova York.

Parabéns! Você aceitou? — David fingiu surpresa.

Sim. E quero que você faça parte da minha equipe.

"Por que ele quer me levar para Nova York?", questionou-se David, emendando a pergunta:

Por que me escolheu?

Porque você é um dos melhores.

Nunca pensei em deixar Londres.

—Você nasceu para vôos mais altos.

Agradeço, mas...

—Você tem dois dias para me responder - interrompeu-o. — Pense bem, será editor de política internacional com um salário inicial de qui­nhentos mil dólares por ano, além de alguns benefícios.

Uau! E uma proposta tentadora — surpreendeu-se David. O formigamento na têmpora direita começou a incomodá-lo novamente. Massageou-a com os dedos anular e indicador.

O celular tocou. Era Mary.

Me desculpe, Steven. É minha assistente. Preciso atender.

Não se preocupe.Vou voltar à redação. Mais uma coisa: Paul não sabe disso.

E não saberá por mim. Até logo - despediu-se David, atendendo a ligação.

Foi tudo bem?

Melhor do que você possa imaginar —respondeu Mary.

Me conte.

Sabe quem é Andrew?

Como... É a pessoa que queremos pegar.

O Estripador de Londres?

Prefiro não entrar em detalhes. Pelo menos, não por telefone.

A Fer recebeu uma carta do olheiro que a descobriu anos atrás. Ele disse que chegou a hora de saldar a dívida.

Como?

Como você previu, David. Ela tem que receber, na suíte do hotel, e a sós, esse tal de Andrew. E fazer tudo o que ele quiser — revelou sua assistente.

E ela vai fazer?

Ela estava com muito medo, mas eu a convenci a receber o psicopata.

—Você entregou o jogo?

Não. Eu disse que ela não tinha nada a perder. Estou me sentindo péssima, David. Eu joguei a Fer nessa armadilha — desabafou, com a voz embargada.

Não se preocupe.Vai dar tudo certo. Onde você está?

Saindo do Mandarin Oriental.

Vá para casa descansar, Mary. Você não precisa estar na coletiva. Mandarei outro repórter.

Obrigado, David. Estou precisando disso. Até amanhã.

Ele se levantou com a xícara na mão e bebeu rapidamente o resto do chá. Tudo parecia estar saindo conforme o planejado. Mas aquele for­migamento na têmpora direita era infalível. "Eu não devia ter prometido a Mary que daria tudo certo", arrependeu-se enquanto voltava apressado para a redação.

 

Por um breve momento, sentiu alívio. Não sabia se as larvas estavam fazendo a sesta — antes de continuarem o banquete —, ou se seu algoz pre­parava outra surpresa. Tentou se mexer. Uma força invisível o empurrava para baixo. Apesar disso, conseguiu se sentar. Costas curvadas. Dor. "Acho que é melhor me deitar". Ouviu a arrebentação de ondas. Elas pareciam se aproximar. "Está muito quente", queixou-se. Foi coberto por um líquido viscoso. Berrou. Aquilo parecia penetrar-lhe a pele e corroer os ossos. "Por favor, pare com isso. Faço o que quiser", gritou em pensamento.

O que mais posso querer de você, Pietro? Já tenho sua alma — aquelas palavras chegaram em um eco.

"Posso lhe servir."

Tenho milhares de escravos. Melhores do que você, seu verme.

"Eu posso...", dizia até ser interrompido por outra onda ácida. "Não há nada que eu possa fazer", desesperou-se.

Não tenha medo. Estarei sempre com você — aquela terceira voz estava distante e fraca. Mas soava-lhe familiar.

"Quem está aí?"

Seu melhor amigo.

"Não me lembro dos meus amigos. Estou sozinho..."

Estou em todos os lugares. Basta... — Pietro escutava até ser enco­berto por outra onda.

"O quê?", indagou, entre espasmos de dor.

Abrir os olhos — a voz respondeu em um tom quase inaudível.

Tentou obedecê-la. As pálpebras continuavam costuradas.

"Não consigo...", resmungou.

Não quer. E eu não posso fazer isso por você, Pietro.

"Farei tudo o que me disser..."

Fará tudo o que o seu coração desejar.

Ele tentava abrir os olhos até ser engolfado por outra onda. "Eu quero sair daqui!", berrou em pensamento. Com o polegar e o indicador da mão direita, apertou as pálpebras. Sorriu ao sentir os olhos.

"Vocês ainda estão aí. Só preciso libertá-los", concluiu, forçando o indicador direito para debaixo da pele. Deslizou a ponta para trás do globo ocular e, imitando um pequeno gancho, agarrou o olho direito e puxou-o para fora, arrancando-o do corpo. Não sentiu dor. Ouviu a aproximação de uma nova onda. "Vou protegê-lo", disse, fechando a mão. Ao refluir do mar ácido, tirou também o olho esquerdo. Lembrou-se da imagem de uma mulher carregando os olhos em uma bandeja. Abriu a mão direita e colocou-os lado a lado. Viu-se à beira de um oceano de fogo, esten­dendo-se até o horizonte.Virou a mão para a esquerda. Algo colossal se movimentava, vagarosamente. Olhou com atenção. Pernas, braços, cabeças, mãos, pés, vísceras escapavam por todos os lados.Teve a impressão de estar diante de um monstro que devorara milhares de pessoas em seu cami­nho. E ele estava a poucos passos de se transformar na próxima refeição. "Onde você está?", sussurrou, girando os olhos para o outro lado. Um homem, vestindo túnica branca, aproximava-se com uma vela na mão direita. Pietro percebeu que ele não fazia parte daquele cenário horrível. "Me tire daqui, por favor", suplicou-lhe. O homem chegou mais perto. Tinha barba, bigode, cabelos longos, nariz adunco e pele morena. Era estranhamente familiar. "Me ajude", implorou, observando-o passar por ele, indiferente. "Se ele for embora, estarei perdido", deduziu, tentando vencer a força que o prendia ao chão.

— Pietro, muitos dizem meu nome. Poucos me seguem.

"Eu já ouvi isso antes...", disse para si, conseguindo colocar-se de pé. As pernas pareciam tão frágeis que se quebrariam ao primeiro passo. Tentou arrastar uma delas. Dor. Jogou-se ao chão e começou a rastejar na direção daquele estranho conhecido, cada vez mais distante.

"Eu sei quem você é. Tenha misericórdia de mim." O homem se deteve e, de costas para ele, disse:

—Você fez sua escolha.

"Me perdoe", o padre suplicou.

Não houve resposta. Antes de ser encoberto pela onda ácida que se aproximava, Pietro arremessou os olhos ao seu encontro. Eles naufra­garam na escuridão, levando consigo a única esperança de sair daquele lugar tenebroso.

 

Trinta e cinco repórteres ocupavam as cadeiras da carlyle suite, pre­parada para a coletiva de imprensa com Fernanda Albuquerque. Diante deles, decorada com dezenas de rosas vermelhas e brancas, a mesa à qual a top model se sentaria, ao lado do empresário e do representante inglês ia Schiaparelli. À esquerda, um batalhão de fotógrafos, com flashes a rostos, disputava espaço. Três câmeras de vídeo nas laterais e no corredor central transformariam milhões de telespectadores em testemunhas do evento. Jacob entrou na sala quinze minutos antes do horário marcado para a chegada da estrela. Foi até a mesa central e varreu o auditório com os olhos. Ao fundo, dois seguranças, em cantos opostos, prestavam atenção a ordens transmitidas pelo fone de ouvido. Ostentando uma expressão séria no rosto, o empresário ligou o microfone e, com o dedo indicador, bateu suavemente no vocal. Estava funcionando.

Senhoras e senhores, eu me chamo Jacob Foxwell e sou o empre­sário de Fernanda Albuquerque. Como vocês sabem, ela está em Londres para o lançamento de um perfume da Schiaparelli, que acontecerá amanhã. Para evitar confusão, senhas foram sorteadas. Peço que obedeçam a ordem e gostaria de lembrá-los de que é permitida apenas uma pergunta por veículo. Obrigado - instruiu o empresário, sentando-se ao lado esquerdo da poltrona reservada para Fernanda.

Dois minutos depois, Gregory Hoover, representante inglês da Schiaparelli, cumprimentava-o e se sentava à direita do "trono" da princesa.

Está quase na hora. Espero que a Fernanda não se atrase. Conver­sarei com a imprensa apenas no fim da coletiva — sussurrou o executivo.

Às vinte horas, pontualmente, uma porta, no lado oposto à entrada dos jornalistas, se abriu. Fernanda surgiu na carlyle suite acompanhada por Harold. Trajava um longo escarlate com um decote sensual desvelando vários centímetros da coxa direita bem torneada. Em volta do pescoço, uma echarpe púrpura com dezenas de pérolas amarradas nas pontas. Das orelhas, pendiam diamantes entrelaçados. Mas era a tiara de ouro branco sobre a cabeça de Fernanda que roubava as atenções. A palavra "Babalon", formada por centenas de pequenos diamantes, reluziu no pipocar dos flashes. No rosto, suavemente maquiado, ela exibia um largo e encan­tador sorriso. Desfilou até a mesa e fez várias poses aos fotógrafos, antes de cumprimentar Gregory e se sentar. O Anjo Negro postou-se às suas costas, a um metro de distância.

Acho que, pela primeira vez na vida, consegui ser pontual — dis­se a brasileira, conferindo o relógio de pulso. - Me esforcei para isso — continuou, arrancando risos da platéia. - Podem começar o interrogatório.

Freddy, Daily Telegraph - identificou-se o primeiro. - Senhora Albuquerque, recentemente a senhora foi convidada para protagonizar o filme A Puta Imperial. Será o início de sua carreira no cinema?

Boa-noite, Freddy. Seria divertido interpretar Messalina. Quando me convidaram para o papel, li algumas coisas sobre ela. Você sabia que a imperatriz desafiou a puta mais famosa de Roma? E venceu ao con­seguir transar com mais homens em vinte e quatro horas — respondeu, encarando o repórter constrangido. —Voltando à pergunta, não pretendo desmarcar os compromissos da minha agenda profissional e me mudar para Hollywood.

Modere a língua - sussurrou Jacob.

Bela resposta - murmurou Gregory, com um sorriso no rosto.

Camille, Daily Mirror. Boa-noite, Fernanda, tinha formulado uma questão, mas resolvi mudá-la assim que você chegou. Qual o significado da palavra Babalon, em sua tiara?

Não é o nome do perfume que iremos lançar? — dirigiu-se a Gregory, fingindo surpresa. — Estou brincando. Babalon é a mulher que inspirou Francesco Fiori a criar minha roupa. É Vanessa Segala, as jóias. Por coincidência, ela também é uma puta.

Fernanda procurou Mary entre os jornalistas. A amiga não estava lá. Uma mulher, trajando vestido negro até os pés, véu cobrindo os olhos, surgiu na porta de entrada e atraiu seu olhar."O que é isso?", perguntou-se, surpresa. Às suas costas, Harold disse algo. Os dois seguranças, na extremidade oposta da sala, voltaram-se para a estranha.

Winston, Financial Times. Sua fortuna é estimada em quinhentos milhões de dólares.Você planeja investir parte disso em empreendimen­tos próprios?

Fernanda observou alguém surgir atrás da mulher enigmática e agarrar seu braço.

— Você está em outro planeta? — cochichou Jacob.

Desculpe, me distraí. Você pode repetir a pergunta? - solicitou, voltando-se para o repórter.

Planeja investir sua fortuna em negócios próprios?

— Antes disso, gostaria de dizer que boa parte do que ganho vai para uma fundação que criei no Brasil. O objetivo é dar oportunidade a meni­nas carentes de entrar profissionalmente no mundo da moda. No ano que vem, abrirei minha própria agência de modelos para atender o mercado publicitário brasileiro.

E com relação ao mercado imobiliário? — prosseguiu o jornalista.

— Não tenho tempo para acompanhar tudo o que fazem com o meu dinheiro — rebateu Fernanda, olhando novamente para a porta. A mulher de negro não estava mais lá.

 

Ela se debateu, mas não conseguiu vencer a força que a puxava para fora da sala.

— O que você veio fazer aqui? — indagou o homem ruivo e sardento, agarrando seu braço esquerdo.

Entregar uma carta a Fernanda Albuquerque.

Por que está usando esse maldito véu?

Ele disse que deveria ser assim.

Ele quem?

O anjo.

Gosto de conversar olhando nos olhos das pessoas — reclamou, levantando o véu negro e reconhecendo, imediatamente, a pessoa que se escondia atrás dele.

—Você... você é a puta... a sósia da Pamela Anderson... Quem tra­mou essa porra contra mim? — disparou Michael, enfurecido.

Não sei o que está dizendo.

Quer saber de uma coisa? Não tenho tempo para perder com uma vadia. Me entregue essa porra de carta e suma da minha frente!

Aqui está — obedeceu-lhe a prostituta, colocando a mão por den­tro da camisa e retirando um envelope escondido entre os seios.

Agora suma! — ordenou Michael.

Preciso ir ao toalete.

Foda-se. Já tenho o que preciso — disse o americano, guardando o envelope no bolso do casaco. — Depois a gente acerta as contas — com­pletou, saindo de lá a passos largos. Grace respirou fundo. Se não fosse o aviso do anjo, a missão teria fracassado. Ele a advertira de que um ho­mem usurparia a carta endereçada a Babalon. Seguindo suas instruções, escrevera uma mensagem, colocara em outro envelope e o prendera no sutiã. A carta original continuava guardada na pequena bolsa a tiracolo. "Meu último cliente, quem diria?", surpreendeu-se. Quando Michael desapareceu de sua vista, Grace cobriu novamente o rosto com o véu negro e voltou à porta principal da carlyle suite. O anjo parara diante de Fernanda Albuquerque e estava com o indicador apontado para a top model. "Obrigado, Senhor", Grace rezou em pensamento, entrando na sala e sentando-se em uma cadeira à direita. Os seguranças entreolharam-se, ressabiados. "Você é como Maria Madalena, preservou seu coração. Babalon vendeu algo que ninguém pode tocar." A prostituta lembrou-se das palavras do indigente que lhe confiara aquela missão. Sentiu calafrio.

— John, Evening Standard. Boa-noite, senhora Albuquerque. Incrível, a senhora é ainda mais linda pessoalmente — elogiou o repórter, antes de formular a pergunta.

Obrigada. Não posso dizer o mesmo. E a primeira vez que o vejo — rebateu a brasileira, arrancando mais risos da platéia.

Um jornalista, bem famoso por aqui, publicou uma reportagem afirmando que seu pai praticava magia negra no interior do Brasil. Você herdou isso dele? — alfinetou John.

O coração de Grace bateu mais forte. Por alguns segundos, era pos­sível ouvir a respiração das pessoas no auditório. Gregory escreveu algo em um papel e, discretamente, deslizou-o sobre a mesa. Fernanda leu o que estava escrito e se voltou para o repórter:

Não li a matéria. Mas acabo de ser informada que esse tal de David Rowling é mais famoso pelas fraudes do que pelo bom jornalismo. Só para corrigir o equívoco: meu pai não praticava magia negra.

Por que a senhora privilegiou seu caluniador com sua única ex­clusiva em Londres? - disparou John.

Murmúrios no auditório. Gregory olhou para Jacob à espera de esclarecimento. O empresário voltou-se para a top model e sussurrou:

—Você pode me explicar o que significa isso?

Caro John, pretendo dar a ele uma aula sobre cultos afro-brasileiros. Meu pai praticava candomblé, não magia negra. Farei um serviço ao meu país. Não suporto preconceitos ridículos - esquivou-se a top model, pen­sando: "Por que Mary não me falou sobre isso, merda?".

Também gostaria de receber aulas sobre religião na sua suíte — murmurou o repórter provocador, encerrando sua participação na coletiva.

Joyce, Vogue. Fernanda, Francesco Fiori estava fora do mercado da alta costura há seis anos! Ele se aposentou dizendo que jamais dese­nharia novamente. Agora, ele volta, e em grande estilo. Quem o conven­ceu a mudar de idéia?

Quando cheguei ao hotel, o conjunto já estava no closet da suíte. E caiu perfeitamente. Não precisou de nenhum ajuste. Fico feliz que Fiori tenha voltado de suas férias prolongadas. Mas não sei responder por que ele mudou de idéia. Talvez mister Hoover possa — respondeu a brasileira, virando-se para o representante inglês da Schiaparelli.

Ele não estava de férias. Assinou um contrato sigiloso de exclusi­vidade conosco. O primeiro resultado vocês estão vendo hoje. Em breve, ele fará uma coletiva — esclareceu Gregory.

Uau! Vocês conseguiram enganar todo mundo — comentou a repórter.

George, The Star...

—Você trabalha com Mary? — adiantou-se Fernanda.

Trabalhamos na mesma redação. Ela é assistente na editoria de matérias especiais. Antes de formular minha pergunta, senhora Albuquerque, gostaria de fazer um esclarecimento sobre David Rowling.

Como ele não está aqui para se defender, fique à vontade — con­sentiu Fernanda.

Essa eu quero ver — provocou John.

David Rowling recebeu o prêmio de melhor repórter da British Press Awards. Duvido que, algum dia, o repórter do Evening Standard che­gue perto disso — disparou George. Fernanda sorriu, com discrição. John achou melhor ficar calado.

 

Sentado em sua poltrona preferida, diante da lareira, David terminou de preparar o cachimbo ao som de A Arte da Fuga - Contrapunctus X, de Bach. Desde que chegara da redação, desejava ligar para Mary. A assistente estava transtornada ao telefone, e a culpa era sua. Talvez devesse convi­dá-la para um jantar. "Não seria apropriado nesse momento. É melhor deixar para depois. Quando tudo estiver resolvido", concluiu, acendendo o cachimbo. Conferiu o relógio de pulso: oito e quarenta e cinco. "A co­letiva deve estar no fim. George me ligará em poucos minutos", pensou, dando duas baforadas.

Andrew... Andrew... — murmurou."Mary disse que ele foi convocado pelo homem que descobriu Fernanda Albuquerque... Além de psicopata, deve ser o traidor da facção inglesa dessa seita. De qualquer maneira, eu estava certo. Esses miseráveis estão arquitetando algo há muito tempo. E o desfecho, o Apocalipse Negro, tem dia e hora marcados: amanhã, às onze e meia da noite. Andrew, dessa vez, você não me escapa".

E o padre...

"Pietro foi enviado à aldeia de Fernanda Albuquerque quando ela era uma desconhecida."

Meu Deus, ele assassinou seu pai e fugiu! — exclamou, dando outra baforada em seu cachimbo. "Anos depois, chega a Londres poucos dias an­tes da top model, é hospedado no mesmo hotel e, quando a encontra, finge ser outra pessoa. Nunca pensei... Ele sempre me pareceu sincero. Talvez inocente e crédulo demais, facilmente manipulável pelo seu confessor, mas sincero. Algumas coisas poderiam ser mais bem explicadas se ele..."

Se ele fizesse parte dessa seita satânica... - pensou em voz alta. "Acho que estou fantasiando. E mais fácil supor que a Confraria dos Quatro Anjos, da qual faz parte, esteja engajada em uma guerra santa, sem restrições. Isso explicaria a morte de sir Alexander Cotton tão bem quanto a guerra das duas facções. Estou pisando em ovos."

Droga, esse formigamento não me deixa em paz — impacien­tou-se, massageando a têmpora direita com os dedos anular e médio.

"Pietro disse que estaria na coletiva.Talvez a Igreja esteja tramando um ataque contra Andrew. Isso faria meu plano ir por água abaixo", pon­derou, apanhando o celular. Acionou o telefone do padre. "Vou esperar mais um pouco", decidiu, voltando o aparelho à pequena mesa ao lado da poltrona. Olhou para o anel no indicador da mão direita. Lembrou-se das palavras de seu pai: "Você pode perder os bens materiais, mas sua história pessoal não pode ser roubada de você, nem corroída pelo tempo. Ela é sua verdadeira herança". David deu duas baforadas em seu cachimbo e colocou-o no suporte. Com um sorriso no rosto, fechou os olhos. Naquele manhã, um peso fora retirado de suas costas. Reclinou a cabeça no encosto da poltrona. "Hoje, o dia foi cheio de surpresas... Estou exausto." Suspirou. "Editor de política internacional... Quinhen­tos mil dólares por ano. Cargo cobiçado, salário bem acima da média. Não faz sentido alguém dar esse poder ao Steven. Aquele canalha estava escondendo alguma coisa... Mas o quê?", pensava, até ser interrompido pelo toque do celular. Checou o número. Era Paul Reiner:

—Você está acompanhando a coletiva?

A distância. Enviei um repórter e fotógrafos e aguardo relatório. Amanhã, tenho uma exclusiva com Fernanda Albuquerque. Por quê?

Não queria atrapalhar seu trabalho.

Em que posso ajudá-lo, Paul?

Quero saber se você já foi cooptado por Steven.

Ele me chamou para uma conversa privada, no salão de chá do jornal.

E nessa conversa... — insinuou Paul, com a intenção de que seu subordinado continuasse a frase.

Ele me ofereceu o cargo de editor de internacional, em Nova York, com um salário anual de...

Quinhentos mil dólares - interrompeu o diretor do The Star, mostrando que conhecia a transação.

Exatamente.

Um salário bem acima do mercado, não? — insinuou seu chefe.

Achei a oferta, no mínimo, estranha — comentou David.

Suspeita — corrigiu Paul. - E, naturalmente, um jornalista inteligente como você deve estar se perguntando por que ele lhe fez essa proposta.

Para ser sincero, estou tão ocupado com Fernanda Albuquerque que não tive muito tempo para pensar nisso - esquivou-se o editor assistente.

Liguei para lhe poupar tempo. Como você sabe, o canalha do Steven se vendeu para um dos sócios de um importante jornal nova-iorquino. Acabo de ser informado, por uma fonte confiável, que o preço não foi apenas a contratação de Mary no The Star. Você faz parte do pacote, David.

Como assim?

Aquele calhorda deve ter lhe dito que tem autonomia para mon­tar a própria equipe.

— Sim.

Na verdade, os americanos exigiram que ele o convencesse a se mudar para Nova York.

Por que fariam isso?

Se eu fosse você, perguntaria isso para sua assistente. Você é inte­ligente, David, já deve estar desconfiado de que Mary não é apenas uma excelente repórter com uma agenda poderosa.

Agradeço pela ligação, Paul.Vou investigar isso. Assim que desco­brir algo, entro em contato. Até logo.

Mary?! Por que me querem em Nova York? Quem me quer em Nova York? — indagou-se, levantando-se da poltrona. "Estou perto de desbancar essa maldita seita. Será que eles querem me levar para uma em­boscada? Mary?! Ela me pareceu sincera. Talvez Michael saiba a resposta. Talvez Michael tenha protegido o padre para atirá-lo em uma armadilha."

Preciso falar com ele.

Pegou o celular e acionou o número de Pietro.

 

A top model brasileira encarou George por alguns segundos. O repórter do The Star fizera uma pergunta capciosa sobre o incidente no aeroporto.

Eu parti para cima porque ela fez um comentário preconceituoso sobre o Brasil — respondeu Fernanda, confirmando a versão criada por Mary.

Então você desmente tê-la agredido porque ela deu em cima de você? — prosseguiu George.

Claro. Não tenho nada contra as lésbicas.

Não é o que a imprensa internacional costuma dizer — provocou o repórter do The Star.

Você é bem atrevido, George. Vou provar que não tenho nada contra as lésbicas. Alguma voluntária? — indagou Fernanda, varrendo o auditório com os olhos.

"É a minha oportunidade. Não posso deixar passar", pensou Grace, levantando-se e indo, a passos largos, até a mesa em que a brasileira estava sentada. Murmúrios se espalharam na carlyle suite. Todos queriam saber quem era a mulher escondida atrás do véu negro. Fernanda levantou-se atrás da mesa e chamou-a para perto de si. Jacob e Gregory se entreolharam ressabiados.

Quero ver seus olhos - sussurrou a brasileira. A prostituta le­vantou o véu. Fernanda Albuquerque passou a mão direita atrás de sua cabeça e, com delicadeza, trouxe os lábios de Grace ao encontro dos seus. Centenas de flashes pipocaram. Ao final do beijo, que durou quase um minuto, a inglesa sussurrou:

Um anjo pediu que eu lhe entregasse essa carta.

E, discretamente, colocou o envelope sobre a mesa.

Obrigada — agradeceu Fernanda, sentando-se novamente. "Anjo? Que história maluca é essa?", perguntou-se, fitando além dos repórteres embasbacados com o gesto, a mulher misteriosa afastando-se rapidamente até deixar a sala.

Adorei — comentou Jacob.

Seu pervertido — retrucou, voltando-se novamente para o audi­tório. — Quem é o próximo?

Kate, Elle. Isso foi uma encenação? Quero dizer: faz parte do lançamento do perfume, como o contrato sigiloso com Francesco Fiori?

A top model se virou para o executivo da Schiaparelli, à espera de sua intervenção. Acabava de se dar conta de que a atitude intempestiva poderia comprometer a marca e não estava disposta a perder aquele con­trato milionário. Gregory entendeu o recado.

Juro que isso não estava no script. Mas gostei de assistir. Sobre o perfume que lançaremos amanhã, posso adiantar que é um marco na história da perfumaria — explicava o executivo, enquanto Fernanda que­brava o lacre e retirava a carta do envelope. — A elaboração artesanal se­gue uma receita egípcia, perdida há milênios. Seus aromas não envolvem apenas o olfato. Eles seduzem a alma.

A mensagem fora escrita à mão e, visivelmente, às pressas. Começou a ler disfarçadamente: Filha, você está à beira do abismo...

Tyler, London Magazine — apresentou-se outro repórter, obrigando-a a desviar os olhos da carta. — No mês passado, você comprou cinco Degas. É um investimento ou... Está decorando seu apartamento?

Quando era pequena, sonhava em ser bailarina. Decorar minha sala de estar com as bailarinas de Degas é uma maneira de compensar essa frustração — respondeu Fernanda, voltando-se para a mensagem antes que outro repórter formulasse uma nova questão.

...e um homem se prepara para empurrá-la. Sua salvação é deixar a porta fechada para ele. E abrir seu coração para mim.

Fernanda levantou os olhos. Os repórteres não estavam mais lá. No lugar deles, uma multidão de demônios nus masturbavam-se, com pênis deformados apontados em sua direção. No fundo da sala, Sammy assistia a tudo com um sorriso pérfido no rosto. "Está chegando a hora", dizia-lhe em pensamento.

Maldito!

O que aconteceu, querida? - perguntou Jacob.

Nada — respondeu, ao constatar que os repórteres continuavam no mesmo lugar e que a cena presenciada há poucos segundos talvez fosse apenas imaginação. — Só estou cansada. Deve ser o jet lag. Acho melhor encerrarmos a coletiva.

Tudo bem. Acho melhor você descansar para amanhã. Não é mesmo, Gregory? - indagou Jacob, mirando o executivo.

Sem dúvida. Despeça-se dos jornalistas, Fernanda. Tomarei a pa­lavra logo depois.

Agradeço a presença de todos. Infelizmente, não poderei ficar para o café. Quero dizer, para o chá - brincou Fernanda, levantando-se.

As últimas fotos — gritou um dos fotógrafos.

Ela olhou na direção das máquinas, armando um sorriso, e saiu pela porta reservada, ignorando o protesto dos repórteres que não consegui­ram fazer suas perguntas. O Anjo Negro seguiu atrás.

 

Sentia que estava de bruços. Milhares de gritos raivosos. Eles se apro­ximavam rapidamente.

Chegou a hora da nossa vingança — uma voz grave se destacou.

O padre teve a impressão de conhecê-la.

"Quem é você?"

As larvas já devem ter mastigado seus miolos, exorcista de merda! Somos a legião que você mandou de volta para cá.

"Eu... Eu..."

Não tem para onde fugir — alguém berrou da turba. Fugir. Aquela palavra trouxe lembranças à tona: "Você foge de si mesmo. E se perde na escuridão. Lembre que sou onipresente, Pietro".

"Senhor... Pegai-me em suas...", dizia até sentir garras afiadas rasgando-lhe as costas. A dor dilacerante o fez gritar a última palavra: "mãos". Silêncio.

—Você chegou a esse lugar com suas próprias pernas, Pietro.

Ele conhecia aquela voz.

"Tende misericórdia", suplicou. Lágrimas espessas correram em seu rosto.

—Vim até aqui para lhe trazer algo que você jogou fora. Levante-se.

O padre se ajoelhou, cabisbaixo, e ergueu as duas mãos acima da própria cabeça.

"Não mereço ficar de pé diante de Vós", murmurou. Alguém segu­rou em seu braço direito, puxou-o para cima e disse, devolvendo os olhos às órbitas vazias:

Isso é seu.

O padre sorriu ao ver seu interlocutor. O homem tinha barba, bigode, cabelos longos, nariz adunco e pele morena. Aquele rosto era familiar.

"Eu me lembro...Você disse que nunca me abandonaria."

—Você se afastou de mim, Pietro. Olhe à sua volta.

A três metros, centenas de demônios encaravam-no com raiva. Em vez de mãos, garras afiadas erguiam-se ameaçadoras. Mas algo os impedia de se jogar contra ele. E retalhá-lo.

"Eles são... horríveis. Protegei-me desses monstros!"

Eles nasceram anjos, Pietro. E eram mais próximos de Mim do que você jamais foi.

"Eles Vos traíram."

Eles fizeram uma escolha.Você também.

"Tirai-me daqui, por favor."

Nesse lugar, não existe ponte para Minha casa.

"Então, que se faça Vossa vontade", respondeu, fechando os olhos. O homem de túnica branca o abraçou. Naquele abraço, Pietro sentiu as feridas cicatrizarem. E, por um breve instante, seu coração atormentado encontrou paz. "Isso é o Paraíso", pensou, desejando permanecer ali por toda a eternidade.

Kefa, kum - o homem sussurrou em seu ouvido.

Ele teve a impressão de ser arremessado para cima. Ergueu a cabeça e inspirou profundamente. Queria encher os pulmões vazios. Em seguida, levantou os braços e abriu os olhos. Sorriu, assustado. Estava na banheira do Mandarin Oriental. Gotas de sangue escorriam dos pulsos. Mirou a água, levemente avermelhada. O cortador de gelo repousava em sua perna.

Obrigado, Senhor. Obrigado - agradeceu, com lágrimas nos olhos. Ele se lembrava de tudo desde o início. Estava embriagado quando entrara na água aquecida. Forçara a lâmina contra a carne e fora atingido por uma estocada na cicatriz triangular em sua fronte. Experimentara os horrores do inferno. A salvação chegara pelo amigo que conhecera em sua infância, ao desmaiar no campo de futebol. O padre sabia o significa­do de suas palavras: Kefa, kum. Era aramaico, a língua de Jesus Cristo. Kefa era como ele batizara o discípulo Pedro. Kum significava "levanta-te", "desperta-te". Ele dissera aquilo a uma menina morta que obedecera prontamente. Pietro saiu da banheira e se enrolou em um roupão. O que mais queria era voltar a Roma e partir para o retiro espiritual no mosteiro grego, como prometera o cardeal Gabriele. Precisava se purificar. Ouviu o celular tocar no quarto e foi buscá-lo. Era David.

Padre, onde você está?

Como é bom ouvir sua voz. Estou no quarto do hotel.

Não combinamos que você iria à coletiva?

Que dia é hoje? — perguntou, desnorteado. Tinha a sensação de ter passado dezenas de anos no inferno.

Como assim, padre? Você está bem?

Não. Acho que desmaiei na banheira — respondeu. "É melhor não comentar o que aconteceu de verdade".

Almoçamos juntos hoje.

"No mundo espiritual, o tempo não existe...", pensou Pietro, emendando:

Então, hoje à tarde, a Fernanda me reconheceu. Fui fraco, David. E, mais uma vez, menti. E fugi — confessou o italiano.

—Amanhã de manhã, tenho uma reunião. Gostaria de vê-lo logo depois.

Estarei à sua espera. Será bom vê-lo.

Ligo quando estiver por perto. Até logo.

"O celular tocou assim que eu despertei. Deve ser um sinal. Deus quer que eu esteja ao lado de David nessa missão", concluiu, respirando fundo. Sentou-se na cama.

Preciso me encontrar com a Fernanda — disse para si mesmo, resoluto. — Ainda hoje.

 

O relógio marcava dez e meia da noite. Michael estava escondido próximo a algumas árvores, observando o movimento na parte de trás do Mandarin Oriental. "Aquele filho da puta do Bundy jogou sujo. Se­qüestrou minha mulher... Meu filhinho. Quando essa merda acabar, vou acertar as contas com ele", pensava o americano, com um fone no ouvi­do conectado às escutas na suíte da top model brasileira. Desde que ela encerrara a coletiva e voltara ao quarto, trocara apenas algumas palavras com o segurança e recebera uma ligação de Jacob, parabenizando-a pelo sucesso da coletiva e acertando detalhes da agenda para o dia seguinte.

Quem está aí, Harold? — Michael ouviu a voz de Fernanda.

Não acredito! — ela exclamou.

A porta se abriu.

O que quer comigo? Estou cansado das suas mentiras — disse a top model.

Essa roupa...Você é... Babalon?!

O que esse cretino está fazendo lá? — perguntou-se Michael, ao reconhecer a voz de Pietro. — Ele vai foder tudo!

O senhor me deve explicações, padre. Ou devo dizer, Giovanni?

—Você estava certa. Eu sou o "padre que fala engraçado" - res­pondeu em uma língua que Michael não soube identificar. Prova­velmente, a língua materna da brasileira. - Podemos conversar a sós? — ele prosseguiu.

Tudo bem, Harold. Bata em quinze minutos — orientou Fernanda.

Michael ouviu o som de passos.

O senhor matou meu pai? - inquiriu a brasileira, na língua que Michael não conhecia.

Eu vim até aqui, Fernanda, para pedir perdão.

—Você... você matou meu pai? — perguntou novamente, com a voz trêmula.

 

Pietro encarou seus olhos azuis. Tristeza, angústia e revolta. Percebeu uma sombra escura projetando-se sobre ela.

"Você perdeu essa batalha, padre. Dê o fora daqui", alguém sussur­rou em seu ouvido. Calafrio.

Sim. Eu matei Antônio.

Por que... Por que o senhor fez isso? — perguntou, aos prantos. — Assassino maldito! — berrou, dando um murro em seu peito.

Me perdoe. Foi o maior erro da minha vida. Só agora consigo ver todo o mal que fiz - desabafou.

Por quê?

Ele sacrificou uma criança, Fernanda. Ao demônio.

Ela fechou os olhos.

A casa estava vazia. Gritaria no quintal. Ela correu até a porta dos fundos e a escancarou. Reconheceu várias pessoas ao redor da mesa de pedra. No centro, estava seu pai, segurando um facão. O sangue escorria. Abaixo dele, havia algo...Vísceras escapavam do ventre aberto. Uma más­cara de sangue cobria o... Rosto. Não havia nenhum animal sobre o altar improvisado. Era uma criança. E tinha sua idade. Estava morta. Desviou o rosto para cima. Um homem espreitava no muro do quintal. Era o pa­dre que falava engraçado. "Me ajude, por favor", suplicava com os olhos. Um dos vizinhos correu ao seu encontro. Cobriu seus olhos com a mão direita e a levou de volta para casa.

Era um bode — explicou-lhe.

Era uma criança — ela retrucou.

—Você sonhou com isso.

Mas estou acordada - rebateu, sentindo uma forte pancada na cabeça.

 

Não era um pesadelo que a atormentava nas últimas semanas. Respi­rou fundo para tentar se recompor e foi surpreendida pelo rosto de Sammy: "A fama tem um preço. Seu pai já pagou uma parte. Antes de ele mor­rer, assinamos um contrato". Pela primeira vez, ali, na suíte do Mandarin Oriental, diante do algoz de seu pai, aquelas palavras fizeram sentido. Seu pai vendera sua alma ao diabo. Aperto no coração. Fernanda abriu os olhos.

Saia daqui, por favor...

Me perdoe. E se dê uma segunda chance — suplicou Pietro.

Tarde demais para as duas coisas.Vá embora.

Para Ele nunca é tarde — rebateu, apontando para cima.

Meu pai... Ele... Ele me vendeu — disse entre lágrimas. — Como pôde fazer isso?

Seu verdadeiro pai, Fernanda, está à sua espera.

Quem? Deus? — ela perguntou, limpando as lágrimas com as costas da mão direita e encarando Pietro.

Ele está chamando você de volta.

Não existe mais volta, padre. Nem para mim... Nem para o senhor. Você é um assassino! Saia daqui! Ou quer que eu chame o segurança?

"Padre assassino. Quando você voltar ao Inferno, terei prazer em trucidá-lo." A sombra escura sobre a top model parecia dizer-lhe aquilo. Pietro estremeceu ao lembrar-se daquele lugar tenebroso. Respirou fundo e olhou para Fernanda.

Não precisa chamar o segurança. Não farei nada contra você. Meu pecado foi terrível. Eu matei um homem. Mas fiz isso porque queria te proteger, queria proteger sua mãe, queria proteger outras crianças ino­centes. Escolhi o caminho errado. E caí em um abismo.

Abismo... — balbuciou a brasileira. Olhar perdido. Aquela pala­vra a fez recordar-se da mensagem recebida da estranha mulher de véu negro: "Filha, você está à beira do abismo e um homem se prepara para empurrá-la. Sua salvação é deixar a porta fechada para ele. E abrir seu coração para mim". Voltou-se para o padre e disparou:

—Você escreveu a carta, padre?

Que carta?

A mensagem que... E claro que você sabe do que estou falando. Isso deve ser mais um de seus truques, não é? — retrucou, com raiva. A sombra escura avançava sobre ela e Pietro teve a impressão de enxergar um rosto demoníaco.

Desculpe, não sei do que você está falando. Só queria lhe dizer que não importa quão terrível tenha sido o nosso pecado, Deus está sempre pronto para nos perdoar e nos acolher.

Isso não é verdade!

Pietro arregaçou as mangas da camisa. E estendeu os braços, com os pulsos voltados para cima. O sangue ainda escorria de dois cortes irregulares.

O que... O que você fez? — assustou-se.

Só quero provar o que estou dizendo. Essa tarde, quando você me abordou, fui covarde.Tentei fugir de mim mesmo. Eu cortei os pulsos, remanda! Eu fui para o Inferno! E Deus me trouxe de volta!

O se... O senhor... - gaguejou a top model, apontando para os pulsos cortados. Ela se aproximou do padre. E o surpreendeu com um abraço.

Eu te perdoo pelo que fez com meu pai... — sussurrou em seu ouvido.

Obrigado por isso — agradeceu Pietro, voz embargada, lágrimas nos olhos.

Mas não te perdôo pelo que fez comigo — prosseguiu a brasileira, afastando-se e fitando os olhos do padre. - Você já falou o que queria. Agora, saia daqui!

Os demônios já foram anjos, Fernanda — despediu-se, abotoando os pulsos da camisa e abrindo a porta da suíte.

 

Michael não entendera nada do diálogo entre a "deusa" e o padre italiano, e não teria tempo de enviar a gravação para ser traduzida. Quando Pietro deixou a suíte de Fernanda Albuquerque, o espião americano con­feriu o relógio: onze e quinze da noite. "Ainda bem que o bastardo não chegou." Ouviu passos na escuridão do parque. A três metros de distân­cia, um homem parou e olhou na sua direção. Pelos óculos equipados com visão noturna, Michael discerniu alguém trajando capa preta e uma estranha máscara negra: maçãs faciais salientes, nariz pontiagudo, olhos repuxados para cima e chifres retorcidos.

Estou escondido. Não é possível que esteja me vendo aqui — murmurou.

O estranho tirou a máscara e sorriu. Michael o reconheceu. Era Andrew. "Como ele sabe que estou aqui?", questionou-se. "Filho da puta. Vai tentar escapar por outro lugar. Preciso encontrar uma maneira de pegar esse desgraçado", concluiu.

Estarei de volta à meia-noite e meia para acertarmos as contas! - berrou Andrew, colocando novamente a máscara.

— Merda! Perdi o fator surpresa. Esse idiota joga sujo. Ainda bem que, dessa vez, não esqueci o escudo — confortou-se, segurando, com força, o medalhão que carregava no pescoço por recomendação do senador Karl Bundy e do Servo de Deus. Observou o Feiticeiro entrar pela porta que ficava ao lado esquerdo, na parte de trás do hotel.

 

A taça de conhaque repousava ao lado do teclado. David conferiu o horário na tela do computador: onze e vinte da noite. Acabara de ler a transcrição da coletiva com Fernanda Albuquerque, entremeada por co­mentários de George. Pegou a bebida e reclinou-se na poltrona. Tomou um gole. Releu um dos trechos grifados durante a leitura:"...acabo de ser informada de que esse tal sir David Rowling é mais famoso pelas fraudes do que pelo bom jornalismo".

Amanhã você mudará de opinião, Fernanda.

Em poucos segundos, o formigamento na têmpora direita, quase ausente nas últimas duas horas, transformou-se em dor aguda. Ele apoiou os cotovelos na mesa e pressionou a cabeça entre as mãos.

Droga! O que está acontecendo de errado? — indagou, elevando a voz. Olhos fechados. Foi surpreendido pela lembrança de Mary. "Se acontecer algo de errado com a Fernanda, você será o único culpado", ela dissera, encarando-o diante do espelho d'água no Old English Garden.

Abriu os olhos. Acessou o Google e procurou: "babilônia", "apo­calipse", "prostituta".Várias páginas continham o mesmo trecho bíblico: "A mulher estava vestida de púrpura e escarlate, e toda enfeitada de ouro, pedras preciosas e pérolas. Tinha na mão um cálice de ouro cheio de abo­minações, as imundícies da sua prostituição. Na fronte da mulher estava escrito um nome enigmático: 'Babilônia, a grande, a mãe das prostitutas e das abominações da Terra'".

Foi essa profecia que Pietro citou no jantar. Segundo o repórter, a Fernanda usava... — pensava em voz alta, voltando ao e-mail enviado por George e procurando a descrição de suas roupas. — ... Um vestido longo escarlate com um decote à esquerda, echarpe púrpura com pérolas nas pontas e tiara prateada com a palavra "Babalon" escrita em diamantes.

"Ela disse que o estilista italiano Francesco Fiori se inspirou em Babalon para criar essa roupa", recordou David, tamborilando os dedos sobre a mesa. "O estilista desaparecido que, segundo a repórter da Vogue, havia se aposentado há seis anos. Mas, na verdade, tinha assinado um con­trato secreto de exclusividade com a Schiaparelli."

Francesco Fiori — disse o jornalista, digitando o nome no Google italiano. Correu os olhos pelas primeiras páginas. Elas contavam a traje­tória profissional do estilista. "A história oficial não me interessa." Inseriu uma palavra ao lado do nome Francesco Fiori: "satanismo". A tela acusou apenas uma página. David clicou sobre o botão esquerdo do mouse e pegou a taça de conhaque.

Se eu estiver certo... — pensou em voz alta, tomando um gole da bebida e iniciando a leitura do artigo "O costureiro do diabo":

 

Há dois anos, quando Francesco Fiori anunciou sua aposentado­ria das passarelas e desapareceu das colunas sociais, recebi a denúncia de um renomado especialista em mensagens subliminares. O doutor Cario Cavalcanti afirmava que o estilista usava a alta-costura para divulgar o satanismo. Desde então, eu estava no encalço do senhor Fiori. Na semana passada, meu esforço foi recompensado. Consegui localizar um de seus assistentes, que consentiu em me prestar um depoimento, com a condição de permanecer no anonimato. O local escolhido foi a Basílica Santa Maria in Aracoeli, onde ele freqüenta sessões semanais de exorcismo ministradas pelo padre Pietro Amorth.

 

Padre Pietro Amorth! Você está envolvido nessa história até o pescoço — surpreendeu-se David, voltando ao texto:

 

Sentado diante de um ícone de Nossa Senhora, o costureiro fechou os olhos, uniu as mãos e, aparentemente, fez uma prece de alguns minutos. Em seguida, me encarou e perguntou: "Você acredita no demônio?". Para não me comprometer, simplesmente respondi que tinha formação católica. O homem olhou para os dois lados, querendo certificar-se de que não havia mais ninguém naquela sala, além de mim e do padre. Ele se aproximou e sussurrou: "Ele existe e Francesco Fiori é seu costureiro". "Uma das maiores artimanhas do Maligno é fingir que ele não existe. Assim, ele consegue pegar muita gente", interveio o padre Amorth.

 

—Você e seus sermões inoportunos — comentou David, retomando a leitura:

 

Fingi não lhe dar ouvidos. Estava mais interessado no depoimento sobre a vida secreta de um dos maiores estilistas italianos. "Estou pre­parado para ouvir sua história", disse, estendendo-lhe o gravador. Não sei como a imprensa não publicou nada sobre o assunto. Segundo o padre, existe uma conspiração satânica infiltrada em diversos segmentos da sociedade. Sem julgar a índole dos meus companheiros de profissão, nem tampouco a veracidade da história, limito-me a transcrever o depoi­mento: "Ele é um... é um homem perverso, como todas as pessoas que fazem parte daquela seita, a Colméia Dourada. Ele sempre usava, por baixo da camisa, o medalhão com o símbolo do diabo. Tinha fixação por ele. Ninguém nunca percebeu, mas o Sr. Fiori gravava, em todas as suas peças, o número 666...", ele dizia, até ser interrompido nova­mente pelo padre Amorth: "Esse número foi revelado no Apocalipse. É o número da Besta". Agradeci a ele pela explicação e pedi ao costureiro que continuasse sua história: "Essa aposentadoria foi uma farsa ridí­cula. Eu ouvi uma conversa sigilosa. Ele saiu de cena planejando um retorno triunfal em seis anos, seis dias e seis horas".

 

— É isso! - exclamou David, imprimindo o artigo e fazendo uma nova busca. Desejava saber ano, dia e hora em que o estilista italiano anunciara a aposentadoria. O celular tocou. Era Mary.

 

Assim que trancou a porta externa do Mandarin Oriental, Andrew tirou a máscara e a capa negra, e as guardou-as na pequena mala que carregava consigo. Vestia terno negro, camisa azul-clara e gravata cinza-escuro. Até chegar à suíte da brasileira, passaria por várias pessoas, e não deveria atrair a atenção de ninguém. Naquele momento, poderia facil­mente ser confundido com um dos executivos estrangeiros hospedados ali. Conferiu o horário: onze e vinte da noite. Tinha dez minutos para estar face a face com Fernanda Albuquerque. Estudara a planta do hotel e conhecia o caminho. Passos decididos. Olhos voltados para a frente.

 

Fazia dez minutos que o padre italiano deixara a royal suite. A ima­gem do homem afável de sua infância, com os pulsos cortados e confes­sando o assassinato de seu pai, fora um choque. Mas conseguia ser menos aterradora do que a revelação de que seu pai sacrificara uma criança e vendera a própria filha.

— Eu te odeio, maldito! Espero que esteja apodrecendo no inferno!

Deitada no sofá da sala, Fernanda sentiu-se terrivelmente fraca. As mãos e os pés tremiam. A respiração se arrastava. Um peso invisível esmagava seu peito. Tontura. Os objetos à sua volta pareciam dançar lentamente. Forçou a vista para colocá-los no lugar. "Não importa quão terrível tenha sido o nosso pecado, Deus está sempre pronto a nos per­doar e a nos acolher", lembrou-se das palavras de Pietro com lágrimas secas nos olhos. Conferiu o relógio de pulso. Coração disparado. Em três minutos, estaria nas mãos de um desconhecido."O cobrador... Andrew", pensou, desejando torná-lo menos estranho. "E se Mary tiver razão? E se ele quiser apenas brincar um pouco comigo?". Um sopro gelado no pescoço. Calafrio. Sentiu a presença de alguém às suas costas. Pegou a carta recebida da mulher de véu negro logo após o beijo. Fitou o reló­gio. Ainda lhe restava um minuto para decidir seu destino.

 

Além dele, havia outro homem naquele corredor, montando guarda diante de uma porta. "A alcova sagrada", deduziu Andrew, aproximando-se do segurança negro.

Boa-noite, Harold — cumprimentou-o com um sorriso no rosto.

Boa-noite, Andrew - respondeu o Anjo Negro, conferindo o horário.

Ela está pronta?

Está como o mestre exigiu.

Perfeito — retrucou o inglês. — Você fez um excelente trabalho. Será muito bem remunerado por isso. Em breve.

Assim que tiver despistado todo mundo... — completou Harold.

Assim que enterrar o punhal sagrado no coração — sussurrou Andrew, sentindo prazer ao pronunciar cada palavra daquela sentença. Retirou um envelope do bolso esquerdo da calça e o entregou ao segurança.

Uma honra para poucos — comentou o Anjo Negro, guardando aquilo no bolso direito do sobretudo preto. Em seguida, deu três batidas na porta do quarto.

 

Às pressas, David anotou em seu bloco a data e o horário em que o estilista Francesco Fiori anunciou a aposentadoria precoce. E atendeu o telefone.

David...Você está aí?

Sim, Mary. O que aconteceu? — preocupou-se com a voz embar­gada de sua assistente. A têmpora direita ardia.

David, na minha cama... - balbuciou Mary, interrompendo a frase com um gemido.

Respire fundo, querida. Tente se acalmar e me diga o que acon­teceu — aconselhou seu chefe.

"Acho melhor ir até sua casa", completou em pensamento.

Sangue... e um... um pedaço de... de alguém — revelou Mary, ofegante.

Havia algo mais? Uma mensagem, talvez?

Um bilhete. Estou assustada, David. O que eu faço?

O que está escrito no bilhete?

"Lc 17, 33-34" — respondeu a americana. — Deve ser um código. O que eu faço?

É uma passagem bíblica. Provavelmente você foi ameaçada, como o padre.

E o que eu faço? — insistiu, irrompendo em prantos.

Em poucos minutos consigo estar na porta da sua casa.Você pode ficar aqui, se quiser, até tudo estar resolvido - sugeriu David.

Não quero atrapalhar...

Você não vai me atrapalhar, Mary. Pelo contrário. Trabalharei melhor sabendo que você está fora de perigo.

Obrigado, David.Você é um anjo.Vou arrumar minhas coisas.

Saio de casa em menos de cinco minutos.Tempo de uma pequena consulta. Até logo.

Ao desligar, o jornalista acessou uma versão on-line da Bíblia e pes­quisou a referência deixada para Mary. Era São Lucas: "Quem procurar salvar a vida, vai perdê-la; e quem a perder, vai salvá-la. Eu vos digo: naquela noite, dois estarão na mesma cama; um será tomado e o outro deixado. Duas mulheres estarão juntas moendo farinha; uma será tomada e a outra será deixada".

Será que Andrew também está perseguindo Mary? O que ele quer dizer com isso? — questionou-se, vestindo o sobretudo crombie coat azul-escuro da Tibbett e guardando o bloco de notas no bolso. — Preciso me encontrar com o padre urgentemente.

Conferiu o horário: onze e meia da noite. Correu até a garagem com o celular na mão. Em seu carro, ativou o viva-voz e acionou o nú­mero de Pietro. Quando dobrou a esquina, rumo à casa de Mary, o padre atendeu o telefone.

Desculpe-me pelo horário. Não costumo ligar para ninguém após as dez horas. Espero não tê-lo acordado.

—Você não me acordou, David. Estava rezando.

Desculpe-me novamente. Mas não podia esperar...

Não faça rodeios, David. O que você quer?

—Você era o exorcista do assistente do estilista Francesco Fiori, não?

Isso não é segredo nenhum. Ele foi até entrevistado por um jor­nalista. Sou mencionado na matéria. Por quê?

Porque hoje, padre, a Fernanda Albuquerque vestia uma roupa desenhada por Francesco Fiori. E seu paciente disse que o estilista... — explicava David até ser interrompido.

Que esse servo do demônio planejava uma volta triunfal!

Sim. Exatamente seis anos, seis dias e seis horas após, provavel­mente, o anúncio da aposentadoria — prosseguiu o jornalista.

Hoje? — murmurou Pietro.

Creio que sim. Não tive tempo de fazer os cálculos. Mary en­controu um pedaço de carne e um bilhete sobre a cama.Talvez seja uma ameaça. Estou indo buscá-la.

David, eu me encontrei com a Fernanda depois da coletiva.

Onde?

Fui até a suíte dela.

E...

Ela estava vestida como a Grande Prostituta, a Babalon.

Ela não trocou de roupa... — resmungou David. — Padre, talvez eu tenha cometido o maior erro da minha vida. Assim que trouxer Mary para minha casa, gostaria de encontrá-lo no hotel.

Ok. Até mais.

O formigamento na têmpora direita de David aumentava a cada segundo. Ele pisou no acelerador.

 

Andrew recebera a chave da suíte de Fernanda Albuquerque, mas não quis usá-la. Esperou que ela abrisse a porta e o convidasse para entrar.

Precisava do seu consentimento para iniciar o ritual. Não queria desperdiçá-lo com uma entrada invasiva.

— Quem é, Harold? — ela perguntou, com a porta entreaberta.

Ele se chama Andrew.

Não marquei nada com ninguém — rebateu a brasileira, encos­tando a porta.

O segurança olhou para Andrew, esperando que ele tomasse a ini­ciativa. O inglês ficou calado. Em menos de três segundos, a top model escancarou a porta. Sorriso malicioso no rosto.

—Você... Você é bem melhor do que eu imaginava — ela disse, avaliando-o de cima a baixo.

—Vai me deixar entrar?

Depende do que quiser fazer comigo... — respondeu Fernanda, deixando a boca entreaberta.

Esse homem não me deixaria lhe fazer nenhum mal. Não é? — indagou Andrew, olhando para Harold com um quase sorriso.

De maneira alguma — o segurança retrucou, com um olhar de cumplicidade.

Então, entre — consentiu a brasileira, abrindo a passagem e sor­rindo para o Anjo Negro. — E me mostre o que sabe fazer — sussurrou ao convidado, fechando a porta.

Essa roupa... Você não poderia estar melhor - elogiou Andrew, colocando a mala sobre uma poltrona na ante-sala.

O que você tem aí? — ela quis saber.

Sou um homem de muitos fetiches — ele respondeu, abrindo a bolsa e retirando uma taça dourada e uma garrafa envolta em veludo negro.

O que é isso?

Uma mulher como você merece uma taça de ouro. É a melhor bebida do mundo - respondeu Andrew, com uma expressão solene no rosto. Tirou o lacre de cera sobre a rolha e abriu a garrafa. Serviu a taça dourada e a estendeu na direção de Fernanda.

Boa-Noite, Cinderela? - insinuou a brasileira, mirando o líquido vermelho-sangue.

Não preciso disso para seduzir ninguém.

—Você quer me seduzir?

Quem, nesse mundo, não quer?

Então, vamos deixar isso de lado e ir ao que interessa — rebateu Fernanda, colocando a taça sobre uma pequena mesa redonda.

— Não tenha pressa. Sou romântico e gosto de preliminares - expli­cou Andrew, olhando fixamente para ela e completando em pensamento: "Tome isso".

Se é assim que você deseja... — consentiu a top model, virando o líquido de uma vez. — Que gosto horrível. Que merda é essa? — reclamou, atirando a taça ao chão.

—"A mulher estava vestida de púrpura e escarlate, e toda enfeitada de ouro, pedras preciosas e pérolas. Tinha na mão um cálice de ouro cheio de abominações, as imundícies da sua prostituição. Na fronte da mulher estava escrito um nome enigmático: 'Babalon'" — recitou Andrew, subs­tituindo a palavra Babilônia do texto original. — "...a grande, a mãe das prostitutas e das abominações da terra."

Fernanda conhecia aquela passagem. Olhou para ele, aterrorizada, e berrou:

Saia daqui agora!

É assim que você trata seu convidado? — Andrew não disfarçou a ironia.

— Vou chamar... — dizia Fernanda. Pernas trêmulas. Vista turva.

Quem? Harold? Ele não está mais aqui. O padre que fala engra­çado? Não conheço ninguém mais patético. Sua amiguinha americana? Você não vai chamar ninguém.

O que você... fez comigo? — perguntou, antes de tombar no chão. Respiração arrastada.Tentou mexer as pernas e os braços. Pareciam anestesiados. Observou Andrew se aproximar, com um sorriso mordaz no rosto. Ele a carregou em seus braços até a cama. Colocou-a deitada, com um travesseiro sob a cabeça e outro abaixo da lombar.

"O que você vai fazer comigo?", ela tentou perguntar, emitindo apenas grunhidos. Andrew se aproximava com um punhal na mão esquerda.

 

O Anjo Negro fitou o relógio de pulso. Faltavam cinco minutos para a meia-noite. Uma lágrima indomável escorreu do olho direito.

Limpou-a rapidamente com as costas da mão. Nos últimos anos, acostumara-se à companhia de Fernanda. Aquele sorriso, embora muitas vezes forçado, iluminara dias sombrios. Harold aprendera a amá-la. Mas, desde que começara a protegê-la, sabia que a estava preparando para aquele momento, e estava ávido pela recompensa. "Queria tanto ter me despedido", pensou, afastando-se da porta. "Talvez nos encontremos ainda hoje." Pegou o elevador e desceu dois andares. Ao entrar na suíte de trinta e quatro metros quadrados, apanhou o envelope recebido de Andrew. Sentou-se à pequena escrivaninha de madeira, acendeu o abajur e leu a mensagem.

Meu atestado de insanidade — concluiu, transcrevendo o texto para outra folha. Assim que terminou, foi ao banheiro, sacou um isqueiro do bolso e queimou o original dentro da pia.

Meu último desejo... Acho que mereço relaxar nesta banheira.

 

Entre as árvores do Hyde Park, com os olhos voltados para o Mandarin Oriental, Michael aumentou o volume do fone de ouvido. O silêncio imperava na suíte de Fernanda Albuquerque. "Ele drogou a deusa. Operação Luxúria em andamento." Respirou fundo. Conhecia os detalhes sórdidos do ritual que Andrew estava prestes a realizar. Mãos suadas. Coração acelerado. Respiração entrecortada. "Essa orga­nização é capaz de tudo. Bundy está com a minha família. Preciso terminar essa missão." Ouviu palavras estranhas. "O Feiticeiro começou", concluiu. Conferiu o horário: meia-noite. Uma seqüência de grunhidos. "Ela está sendo..." Enjôo. Michael abaixou-se e encostou o ombro direito em uma árvore.Vomitou três vezes. Nos últimos anos, ele se acostumara ao cheiro da morte. Mas o que acontecia na suíte mais luxuosa daquele hotel lhe dava calafrios. Pensou em sua mulher. Respirou fundo. Teve a impressão de alguém se aproximando. Um vento gelado passou por ele levantando folhas do chão, e o fez voltar os olhos novamente para o Mandarin Oriental. Uma nuvem escura pairava sobre o hotel. Ouviu Andrew pronunciar algumas palavras na mesma língua estranha. "O idioma do inferno", pensou. Um grito agonizante reverberou nos fones de ouvido. Ele esmurrou a árvore com violência. Escutou o som de passos apressados. Uma porta se abriu e foi fechada com força. Silêncio.

 

Olhos vermelhos. Mary estava vestida de preto da cabeça aos pés: salto alto, meia-calça e tailleur Chanel. Forçou um sorriso ao abrir a porta de casa e encontrar David à sua espera. Cumprimentou-o com um beijo seco no rosto. Seu chefe estendeu a mão esquerda em direção à pequena mala que ela levaria consigo. Mary trancou a porta de casa e caminhou em silêncio até o carro. O inglês abriu a porta para a assis­tente e guardou a bagagem no banco de trás. Ligou o som: "Angel of the Morning", de Nina Simone.

Uma de suas canções favoritas - ele comentou, dando a partida. Tinha algumas perguntas para ela. Mas precisava quebrar o gelo.

Não nesse momento, David.

Mary, quero que você se sinta à vontade na minha casa...

— Detesto incomodar as pessoas.

Quero que fique lá até tudo se resolver.

Eu fiquei tão nervosa... Devo ter esquecido alguma coisa em casa.

Não se preocupe com isso. Deixarei uma chave com você. Sinta-se à vontade para buscar o resto quando achar mais conveniente.

— Obrigada. Você é um anjo — agradeceu, forçando um sorriso.

Mary, quer conversar sobre o que aconteceu? Quando você já estiver instalada, precisarei sair...

Sério?

Me desculpe. Tenho problemas para resolver.

Já passa da meia-noite, David.

Acho que cometi um erro, Mary

Posso ajudá-lo?

Acho que você fez o que podia... Só queria que você confirmasse uma informação que me passou hoje à tarde: você me disse que a Fernanda recebeu uma carta do olheiro que a descobriu. Certo?

Certo.

Para quando estava marcada a visita de Andrew?

A carta dizia "amanhã".

Isso significa hoje?

Se ela recebeu a carta ontem, sim. Por quê?

—Já passa da meia-noite. O padre encontrou-a na suíte do hotel, há pouco tempo. Ela estava com a mesma roupa que usou na coletiva, desenhada por Francesco Fiori, também conhecido como "costureiro do diabo". Talvez isso signifique, Mary, que Andrew não irá encontrá-la amanhã, depois do lançamento da campanha publicitária. Talvez ele esteja lá agora — explicou David, pisando fundo no acelerador do carro.

Ela está correndo perigo? — indagou Mary, quase histérica.

Sim.

Você... você... — balbuciou, apanhando o celular e acessando o número da top model.

—Vou ao hotel me encontrar com o padre. E, provavelmente, acionar meu contato na Scotland Yard.

Atenda, amiga! Atenda a porra do celular!

Fique calma, Mary

Você me convenceu a jogá-la nessa armadilha e agora quer que eu fique calma! Se tiver dado merda, David, você será culpado. E eu serei sua cúmplice! — berrou. — Ela não atende, merda!

O que você está me escondendo?

Por que acha que estou escondendo alguma coisa?

Porque... — começou David."Sua transação para trabalhar no The Star me incluiu no pacote", completou em pensamento. O momento era delicado para colocá-la contra a parede.

— Por quê? — insistiu Mary, pegando novamente o celular e tentando ligar para a amiga.

Porque a cigarra no meu ouvido é infalível.

Eu entreguei minha amiga nas mãos de um psicopata, alguém deixou um pedaço mutilado na minha cama, recebi uma ameaça... Só me faltava ser acusada pelo meu chefe de mentirosa - retrucou Mary, virando o rosto para a janela. Um gato negro atravessava a rua.

E eu não acusei de mentirosa.

Desculpe, David. Estou nervosa com tudo isso. Estou exausta — justificou-se, colocando a mão direita sobre os olhos.

Tudo bem.Você precisa descansar. Já estamos chegando.

Existem coisas sobre o meu passado que eu não contei. E ainda não me sinto preparada para falar sobre elas — desabafou a americana.

 

A porta do quarto estava destrancada. Andrew entrou e abriu a mala. Pegou algo envolto em tecido negro. Sobre a cama, havia uma carta escrita por Harold. Com a mão direita enluvada, apanhou-a. Queria con­ferir se o segurança transcrevera integralmente a mensagem:

 

Eu me chamo Harold Adams e, durante vários anos, trabalhei como segurança pessoal e chefe da segurança de Fernanda Albuquerque. Eu me dediquei ao serviço de corpo e alma. Eu arrisquei minha vida duas vezes para livrá-la da morte. Eu a amava mais do que tudo. E não exigia nada em troca. Mas, há seis meses, um demônio começou a me atormentar. Ele sussurrava no meu ouvido: "Essa vagabunda só quer te provocar. Ela sorri para você, mas transa com outros caras". Comecei a ficar furioso. Tentei mandá-lo embora. Ele sumiu por algumas semanas. Mas, há três dias, voltou. E me convenceu a fazer o que eu fiz. Talvez o mundo me julgue como um louco psicopata. Mas isso já não importa mais. Eu e minha amada estamos unidos pela eternidade.

 

Uma bela carta, não acha? — comentou Andrew, encontrando Harold deitado na banheira.

Sim - respondeu o segurança, abrindo os olhos.

Aqui está o punhal sagrado. A arma do crime - anunciou Andrew, entregando-lhe o objeto enrolado em tecido negro.

Harold desembrulhou uma lâmina ensangüentada. Gotas vermelhas tingiram a água transparente.

Que seja feita a vossa vontade — disse Harold, solene, apoiando a ponta da lâmina abaixo do osso esterno.

Assim na Terra como no inferno — completou Andrew.

Em um gesto rápido, o segurança atravessou a carne e atingiu o coração. Olhos fixos no assassino, sem transparecer dor ou medo.

O que você está vendo? — indagou o inglês.

Estou... Ele está vindo - sussurrou o Anjo Negro, debatendo-se na banheira.

Quem? — impacientou-se Andrew.

Não! - berrou Harold, silenciando-se em seguida. Em poucos segundos, os músculos do rosto, contorcidos de pavor, relaxaram. Lágri­mas escorreram dos olhos sem vida. O bastardo fitou-o com desprezo e conteve o impulso de cuspir sobre ele. Engoliu a saliva.

O inferno é assustador apenas para os fracos! — disse, dando as costas ao morto e indo até sua mala. - Pena que, dessa vez, não poderei levar o troféu — lamentou, apanhando o saco plástico lacrado com um pedaço de carne do tamanho de um punho. Voltou à banheira ensan­güentada, abriu-o e colocou-o perto de si. Com as duas mãos, escancarou a boca de Harold. E enfiou o coração de Fernanda, ainda quente, entre seus dentes. Lavou as luvas na pia, tomando cuidado para não carregar nenhum vestígio de sangue.

 

Sangue escorria dos nós de três dedos. "Não posso perder o controle. Minha tamília está em jogo", pensou Michael, após ter esmurrado a ár­vore. "Aquele filho da puta deve sair nos próximos minutos." O suor frio cortava seu rosto. Percebeu uma névoa marrom-esverdeada avançar do Hyde Park em direção ao hotel. No começo, podia ver através dela. Em menos de um minuto, tornara-se tão espessa que mal conseguia enxergar a um metro de distância.

Deve ser mais um de seus truques — desesperou-se. "Preciso chegar mais perto do hotel. Ele não pode escapar". Tirou o fone de ouvido e colocou a mochila às costas. Sacou a pistola automática.

Fodam-se essas malditas regras inglesas. Se ele passar por mim, meto bala - resolveu, caminhando na direção do Mandarin Oriental. No limiar entre o Hyde Park e a South Carriage Drive, ouviu passos. "Deve ser o desgraçado", concluiu, abaixando-se ao lado de um arbusto. A capa negra esvoaçante passou a poucos centímetros do seu rosto. Michael le­vantou-se e apontou a arma em sua direção. O homem desaparecera na "cortina de fumaça". Apressou-se em segui-lo, guiando-se pelo som de seus passos. Estava cada vez mais perto. Silêncio. "Ele deve ter percebido", deduziu, parando e se escondendo atrás de uma árvore. "Talvez esteja querendo me atrair para uma armadilha, filho da puta." Sentiu algo se mover acima de si. Ergueu a cabeça, empunhando a pistola. Um forte golpe acertou sua nuca. Tombou no chão, desmaiado.

Esses traidores são uns idiotas amadores. Como acharam que esse cara podia me apanhar? — gargalhou Andrew. — Hora de colocar o plano do papai em ação.

 

O quarto de visitas era aconchegante. Papel de parede em tons pastéis e detalhes violáceos ornamentado com quadros de pássaros. O banheiro ficava à direita da entrada.

Espero que se sinta à vontade aqui - disse David, colocando a bagagem sobre a cama.

Obrigada — agradeceu Mary, com um sorriso triste no rosto.

Vou deixar uma cópia da chave. Mas aconselho que fique por aqui mesmo. Se precisar de alguma coisa, me ligue.

— Preciso contar uma coisa, David.

—Você precisa descansar, agora.

Estou mais envolvida nisso do que você imagina - revelou Mary, encarando-o.

Em quê? - perguntou o jornalista, desconfiado, erguendo a so­brancelha direita.

Nessa... conspiração satânica — respondeu, abaixando a cabeça.

—Vamos até a sala de estar — sugeriu o anfitrião, saindo do quarto acompanhado pela hóspede. "Eu sabia que ela estava escondendo algo. Não posso perder muito tempo com isso agora. Fernanda corre perigo."

Ao chegarem, David fez um gesto com a mão para que a assistente se sentasse no sofá.

Não vai me oferecer uma bebida? — indagou sua assistente.

Talvez um vinho do porto — respondeu, impaciente. Abriu o ar­mário de madeira e apanhou, da adega embutida, a garrafa de Quinta do Noval Vintage 1955. Colocou-a sobre a pequena mesa ao lado e pegou um cálice de cristal no compartimento abaixo. Apressado, deixou uma gota de vinho manchar o tapete. Entregou a bebida a Mary e sentou-se na poltrona diante dela.

Não vai me acompanhar? - ela perguntou, com uma expressão séria no rosto.

Não — respondeu, observando-a tomar o vinho em um só gole.

Eu menti quando disse que era virgem, David — revelou, cabisbaixa.

—Você ser virgem, ou não, não faz a menor diferença para mim.

Não sei por que mentiu sobre isso - retrucou, cruzando os braços e recostando-se na poltrona.

Mas, para mim, faz! — explodiu Mary. — Fui estuprada aos oito anos por um amigo do meu pai.

Aquela revelação tirou sua cabeça do Mandarin Oriental e jogou-a diante de sua assistente. Percebeu seus olhos úmidos, o ligeiro tremor no queixo e no lábio inferior.

Não sei o que dizer. Gostaria muito de te ajudar a superar tudo isso... — consolou-a o anfitrião, descruzando os braços e inclinando-se em sua direção.

Não quero que sinta pena de mim — disse Mary, encarando-o. —E, pode acreditar, embora não pareça, esse é o melhor momento para falar sobre isso.

Quer mais vinho?

Só se você me acompanhar - insistiu a americana.

Como quiser - ele consentiu, pegando a taça vazia de Mary. "O que eu faço? O que eu digo?", questionou-se.

— Você não precisa dizer nada, agora — prosseguiu Mary, como se adivi­nhasse os pensamentos de seu chefe. — Apenas ouça. Ele se chamava Sammy e costumava freqüentar nossa casa. Era o único amigo dos meus pais que não me tratava como uma menina tola. Ele parecia se importar comigo. De ver­dade - contava Mary, vendo-o servir as duas pequenas taças. — Certo dia, ele chegou de surpresa, meus pais não estavam em casa, e me deu um buquê de rosas vermelhas. Achei estranho porque sempre ganhava doces ou brinquedos.

Canalha! — David deixou escapar, enquanto estendia o cálice a Mary.

Não sinto raiva dele... Não sentia raiva dele até hoje à tarde — cor­rigiu a jornalista, observando seu chefe sentar-se na poltrona diante dela.

Como assim? — surpreendeu-se David.

Não sentia raiva dele porque me prendia às boas lembranças. Raramente, tinha flashes do que aconteceu no meu quarto, quase como um sonho...

Um pesadelo, você quer dizer, não?

Sim, um pesadelo. Mas hoje, quando encontrei a Fer, descobri que Sammy não me enganou apenas para satisfazer uma fantasia sexual...

Me desculpe, mas você está sendo muito indulgente. Pedofilia não é fantasia sexual. E crime - interrompeu David, tentando disfarçar a raiva.

A carta que a Fer me mostrou estava assinada — revelou Mary, terminando a segunda taça de vinho.

Aquela que falava sobre Andrew?

Sim. Ela foi escrita por Sammy, o homem que me estuprou — dis­parou a assistente, encarando-o.

— Você...Você tem certeza disso?

Era a mesma caligrafia e a mesma assinatura do amigo do meu pai. David, tenho quase certeza de que Sammy é o homem por trás dessa maldita-seita.

Além da assinatura... - seu chefe ensaiava uma pergunta até ser interrompido.

Ele gostava de passar férias em praias sul-americanas.

—Você está insinuando que ele descobriu Fernanda Albuquerque? — indagou David, deixando o vinho de lado.

Sim. Ele é o dono da agência de modelos que lançou a Fernanda. Mas seu nome não aparece nos documentos da empresa. Ele usa um testa de ferro.

Como você sabe disso?

Depois que ele me...Você sabe... Nunca mais apareceu em casa. Quando vasculhei o escritório do meu pai para chantagear... Também já contei essa história... Encontrei algumas anotações sobre Sammy — explicou Mary, girando a taça.

David tamborilou os dedos da mão direita no braço da poltrona. Levantou-se e apanhou a bengala.

Obrigado por confiar em mim, Mary. Você precisa descansar agora — aconselhou, olhando para ela e forçando um sorriso.

E você precisa pegar esse cara, David — rebateu a americana, com os olhos perdidos em lembranças do passado. - Faça isso por mim.

 

Dor na nuca. Alguém gemia. Michael abriu os olhos. Estava caído ao lado de uma árvore. A pesada mochila continuava às costas e a névoa marrom-esverdeada encobria o Hyde Park. Não conseguia enxergar nada além de um metro de distância.

— Preciso pegar esse filho da puta - resmungou, passando a mão sobre a cabeça.

Sentiu algo viscoso. Era sangue. "Se eu não cumprir as ordens do senador, minha família...", pensava, até ser interrompido por um gemi­do agonizante. Levantou-se vagarosamente. Podia ser outra armadilha de Andrew. Respirou fundo. Concluiu que o ruído vinha detrás de uma árvore. Aproximou-se dela com cuidado e esticou-se para observar o que estava do outro lado. Segurou a respiração. Um homem, com as mãos e os pés aparentemente amarrados, tinha a cabeça sobre uma pedra. O rosto estava coberto pela máscara demoníaca que Andrew usava quando chegou ao Mandarin Oriental. O pescoço nu pronto para ser golpeado. "Deve ser um truque", deduziu Michel, tirando a mochila das costas e abrindo o zíper. Com cuidado, colocou-a no chão e a apoiou na árvore, com o cabo do machado ao alcance da mão direita. Mais gemidos. Aquele homem parecia estar sofrendo. "Ele finge muito bem", pensou Michael, apanhando a pistola do bolso do casaco com a mão esquerda. Apontou na direção da cabeça mascarada. "Merda. Não posso usar a arma. Esses ingleses fazem de tudo para foder minha vida." Guardou a pistola. No momento em que empunhou o machado, lembrou-se do sonho com a cabeça falante de São Carlos I. E foi surpreendido por suas palavras: "O mal que existe no mundo é uma escolha dos homens. Mas essa vida é apenas a antessala da eternidade, Michael".

—Vou salvar minha família, nem que para isso eu queime no infer­no — murmurou.

Novos gemidos. A passos curtos, aproximou-se meio metro da vítima. Ela vestia-se como Andrew, à exceção da capa negra, estendida abaixo de seu corpo. Michael permaneceu imóvel a uma distância segura. "O que ele está fazendo?", questionou-se. Silêncio. "Tem que ser agora", concluiu, saltando sobre o corpo e, em um golpe certeiro, acertando com a lâmina do machado o pescoço descoberto. A cabeça caiu na relva, e o corpo tombou após alguns espasmos.

Está feito — disse, sentindo alívio e angústia.

Deixou o machado de lado. Com o pé direito, empurrou o corpo para fora da capa negra e jogou-a sobre ele. Pegou a mochila e levou-a para perto da cabeça. Apanhou o saco estanque. "Não vai caber. Preciso tirar essa maldita máscara", observou. Segurou em um dos chifres e o puxou. Ela parecia colada. Repetiu o gesto, usando mais força. Ela se desprendeu, revelando o rosto da vítima.

Meu Deus, o que fizeram com você? — surpreendeu-se Michael. A pele derretida encobria suas feições. Sentiu ânsia.

Não posso vomitar aqui.

Levantou-se e respirou fundo. Abaixou-se novamente e rolou a cabeça para dentro do saco plástico. Lacrou-o e o guardou na mochila, juntamente com a máscara e o machado. Levou a bagagem às costas e olhou em volta. Sem testemunhas. Conferiu o horário no relógio de pulso: uma e quarenta e cinco da madrugada. Iniciou a rota de fuga.

 

A estação estava deserta. Assim que entrou no metrô, Michael encon­trou um homem estirado no banco. Garrafa de vodca barata à mão. Era a única pessoa que dividia com ele o vagão. "Estou com sorte", pensou, usando o braço direito para enxugar a mistura de suor e sangue que escorria pela testa. "Esse bêbado deve ter se mijado todo", comentou consigo mes­mo, afastando-se do homem para se livrar do fedor. Resistiu à tentação de tirar a mochila das costas e sentar-se. Ficou de pé diante da porta.

Parem esse trem! — berrou o indigente, desviando a atenção de Michael de seu próprio reflexo no vidro. Seu companheiro de viagem tentou se levantar. Mas caiu sentado no chão. A calvície avançava sobre o cabelo grisalho, ralo no alto da cabeça e abundante nas laterais. Barba e bigode espessos encobriam o rosto sujo.

Meu chapéu... Onde foi parar meu chapéu? — indagou o homem, tateando o chão. Ele estava a menos de um metro de suas botas gastas.

Esse idiota podia ficar calado — resmungou Michael, virando o rosto em direção à porta.

Meu chapéu... Não está na minha cabeça. Não está na cabeça daquele homem em pé. Ah, já sei! Está na cabeça dentro da mochila.

Michael estremeceu. Não tinha como o indigente saber o que ele carregava. A menos que estivesse vendo algo. Em um impulso, colocou-a sobre o banco. Estava fechada.Voltou-a às costas e perguntou ao estranho:

Por que você disse isso?

Está aqui! — exclamou o indigente ao encontrar o chapéu. Sorriso invadindo a boca desdentada.

Por que você disse isso? — insistiu Michael.

Essa vida é um banheiro. Ou você bota para fora o que suja a sua alma, ou vai passar a eternidade todo cagado — respondeu-lhe, dando uma gargalhada. — E você, rapaz, está afundado na merda dos outros — comple­tou, entornando a garrafa de vodca.

Michael colocou a mão sobre a pistola. "Se eu queimar esse cara, serei descoberto", concluiu.

Sou um pobre mendigo, um desgraçado que não vale um níquel. Não perca tempo comigo. E não humilhe as putas. Elas são mais puras do que você.

A carta... — Michael disse para si mesmo, apanhando, em seu bolso, o envelope tirado de Grace durante a coletiva. Abriu a mensagem: "... quem se ajunta às prostitutas,perecerá: a podridão e os vermes o terão como herança. (Eclesiástico 19,2-3)"

Ela me enganou! Filha da puta! — berrou o americano, amassando a carta e guardando-a no bolso.

Essa vida é um banheiro — repetiu o indigente, enquanto o metrô parava.

Cale a boca, idiota! - explodiu Michael, descendo na estação deserta.

 

Assim que deixou a garagem de casa, David emergiu no nevoeiro. A visão não ultrapassava cinco metros.

Smog?!. - concluiu surpreso. - Isso não acontece há décadas!

Colocou o nome do Mandarin Oriental no GPS do carro. Seguiria a rota traçada no monitor. Ligou o som: A Arte da Fuga — Contrapunctus XI.

Mary foi estuprada... — disse em voz baixa."Não posso me envol­ver emocionalmente com esse caso. Não dessa vez. Pelo menos, não agora."

Todos nós somos peças nesse jogo. O padre foi enviado ao Brasil para a mesma aldeia em que Fernanda Albuquerque vivia e assassinou seu pai. Anos depois, é trazido para cá, na mesma época em que a modelo chega para uma campanha. Sem considerar que era o exorcista do assis­tente do estilista que vestiu Babalon... Mary conhecia... — "E foi violenta­da", completou em pensamento. — ...o homem que descobriu Fernanda.

E, coincidentemente, também chegou aqui pouco antes de sua amiga desembarcar... — deduzia em voz alta. - E eu?

"Sou amigo de infância do psicopata que está por trás desses crimes. Andrew recebeu uma ordem direta do homem... De Sammy, para entrar no quarto da brasileira", refletia.

Talvez esse maldito pedófilo seja a mente doentia por trás dessa conspiração. Ele deve ter arquitetado tudo há muito, muito tempo. Ele deve estar acima das duas facções da seita, deve ter manipulado seus seguidores...

Ficou em silêncio. "Como pude ser tão confiante? Já cometi esse erro uma vez... Mister Jones deveria estar em alerta desde que Fernanda desembarcou em Londres. Seis anos, seis dias e seis horas. E se o prazo já tiver se esgotado?", indagou-se.

Não posso fazer nada antes de chegar ao Mandarin Oriental — concluiu, conferindo a rota traçada pelo GPS. — Como surgiu esse maldi­to smog? Não consigo enxergar quase nada. Será que a seita satânica tem algo a ver com isso?

"Algumas pessoas diziam que isso subia direto do inferno. Um efeito especial sobrenatural... Estou delirando."

Deve ser algum fenômeno físico bizarro. Preciso ser racional. Não entendo como Monet podia achar isso fantástico...

Foi surpreendido por algo passando na frente da rua. Teve tempo de pisar no freio e puxar o freio de mão. O carro girou três vezes até parar. Pegou a bengala e desceu.

Quem está aí? — berrou. "Deve ser alguém que se perdeu no meio dessa névoa."

Silêncio. Andou alguns passos e parou. Nada. Levou um susto quando um gato negro passou correndo por ele.Virou-se para voltar ao car­ro, e foi surpreendido por um homem parado diante da porta aberta. Rosto coberto por uma máscara negra: maçãs faciais salientes, nariz pontiagudo, olhos repuxados para cima, dois chifres retorcidos. Capa negra esvoaçante.

— Você de novo? — explodiu, sacando a espada da bengala.

— Você de novo? - o mascarado repetiu, com a voz grave abafada pela máscara.

- Você não é demônio. É um covarde que precisa de uma máscara para se esconder!

Vamos brincar de pega-pega, David? Aposto que posso correr mais rápido do que você.

Andrew?

Acho que você está começando a enxergar além das aparências, David — retrucou o mascarado.

O jornalista avançou sobre o oponente, golpeando seu braço direito com um corte de sabre. Preparava-se para outro ataque quando o homem desapareceu na névoa.

Onde você está? — perguntou o jornalista, girando o corpo.

Parabéns. Você me pegou. Está na minha vez — o adversário res­pondeu, distanciando-se. — Agora, corra. Alguém está à sua espera.

Maldito! - gritou David, voltando ao carro. Em menos de dez minutos, estacionaria diante do Mandarin Oriental, encoberto pela "fumaça do inferno".

 

Assim que chegou em casa, levou a mochila ao lavabo. Colocou-a no chão, ao lado da pia. "Preciso de uma bebida para terminar isso". Foi à sala e serviu-se uma dose dupla de Jack Daniels. Em poucos segundos, esvaziou o copo. A caixa de madeira em que recebera o machado estava aberta sobre a mesa da sala. Retirou de dentro o veludo vermelho e voltou ao lavado. Estendeu o tecido ao lado da mochila e, com cuidado, abriu o zíper. Com a mão direita, puxou vagarosamente o saco estanque para fora. Uma pasta de sangue cobria o rosto e engomava o cabelo encaracolado. Michael girou o saco plástico diante de seus olhos para conferir se não havia vazamento. Uma gota vermelha pingou no assoalho, escapando por um pequeno orifício.

Logo, essa merda não vai ser mais problema meu - desabafou, colocando a encomenda dentro do vaso sanitário.

Esse é o lugar onde você merece ficar — dirigiu-se à cabeça, dando uma gargalhada. — Pena que não posso soltar a descarga.

Em seguida, com as duas mãos, segurou no cabo de madeira, projeta­do para fora da mochila, e arrastou a arma sagrada até o veludo vermelho. "Espero que aquela cabeça idiota não me apronte mais nada", pensou, fitando a lâmina ensangüentada. Embrulhou o machado e o levou até a sala, guardando-o na caixa. Sentiu o celular vibrando no bolso do casaco.

Talvez seja o Bundy — deduziu, apanhando o aparelho. Estava certo. Era o número do senador. Atendeu e informou:

Já estou na base.

Parabéns. Duvidei que conseguisse cumprir essa missão.

Então, deveria ter escolhido outra pessoa — retrucou Michael.

—Você tem uma vantagem.

Qual?

Um homem é capaz de tudo para defender a família. Até se ar­riscar em uma operação extravagante como essa.

Fff... — Michael quase deixou escapar "filho da puta". Ficou em silêncio.

Não se preocupe. Sua mulher e seu filho são adoráveis. Está tudo bem com eles. Pelo menos, por enquanto — prosseguiu o senador.

Operação bem-sucedida. Qual é a próxima etapa? — indagou Michael, cerrando as mãos em punho.

Em cinco minutos, o mensageiro passará aí para apanhar a arma sagrada e... a encomenda. Ele lhe entregará um envelope com um convite. Quero que coloque dentro do passaporte do santuário e deixe-o na re­cepção do hotel. Depois...

Quer que eu volte ao hotel ainda hoje? — interrompeu Michael. - Em pouco tempo, aquilo vai estar coalhado de agentes da polícia.

Não se preocupe com isso. Apenas um investigador e um perito estarão lá nas próximas horas. Eles terão muito trabalho com a deusa para se preocuparem com você — explicou o senador, completando. — E, às cinco, você tem um encontro com sir Chancellor, curador do Victoria and Albert Museum.

Onde?

Na Grand Entrance, na Cromwell Road. Não esqueça que os ingleses gostam de pontualidade.

Ok. Mais alguma coisa? - perguntou Michael.

—Vá atender a porta. O mensageiro acaba de chegar — despediu-se Bundy.

Verme maldito! - berrou Michael. O desabafo foi seguido por três toques da campainha. Através do olho mágico, viu um homem negro, alto e forte, vestindo sobretudo cinza-escuro e botas de cano alto. Era o mesmo que lhe emprestara o machado. O americano abriu a porta e fez um sinal para que ele entrasse.

Boa-noite — cumprimentou-lhe o visitante. Sorriso estático no rosto e mochila emborrachada às costas.

Poderia ser melhor - retrucou Michael, trancando a porta e apontando para a mesa da sala. — Ali está o que você me trouxe.

Primeiro, quero o presente — exigiu o mensageiro, franzindo o cenho.

Me acompanhe — disse Michael, avançando em direção ao lavabo. - Não encontrei lugar mais apropriado para o seu... presente.

O visitante o seguiu sem dizer nada.

Aqui está — anunciou Michael, apontando para o vaso sanitário com um sorriso malicioso.Um filete de sangue escapava por um pequeno orifício, deixando a água levemente avermelhada. O inglês pegou a mo­chila das costas e abriu o zíper frontal. Retirou um envelope e o entregou ao americano sem dizer nada. Abaixou-se e mergulhou a mão na privada. Suspendeu o saco estanque e esperou que o excesso de água escorresse.

Ele tinha uma máscara. Você vai querer levá-la. Talvez possa usá-la no carnaval — brincou Michael, observando o homem guardar o "presente" na mochila emborrachada e fechá-la.

Não acredito que eles enviaram alguém de fora para fazer isso — o homem quebrou o silêncio, levantando-se e encarando o americano.

O que quer dizer com isso? — questionou Michael.

A resposta chegou com um soco no queixo:

Não se zomba do sangue sagrado!

Filho da puta, você está na minha casa! Posso acabar com você!

E perder sua família? Você não é tão louco assim — rebateu o visitante, dando-lhe as costas e voltando à sala. Pegou a caixa de madeira com a arma sagrada e se dirigiu à porta de saída, já aberta pelo americano. Despediu-se dele com um sorriso estático no rosto, e desapareceu na névoa marrom-esverdeada.

 

O telefone tocou no criado-mudo. A mulher resmungou algo e se virou, colocando o travesseiro sobre o ouvido direito. Seu marido reco­nhecia o toque. Era o mesmo do dia em que o conde de Bedford fora encontrado morto no escritório de sua casa, com um tiro na boca. Deu um salto da cama e atendeu o telefone.

Código negro — alguém disse do outro lado da linha. Era seu chefe.

Estou de prontidão — respondeu, com a voz sonolenta.

Mandarin Oriental. Imediatamente.

Quem? — indagou, fechando-se no banheiro do quarto e mirando seu reflexo no espelho. Os olhos protuberantes destacavam-se no rosto fino. A calvície era compensada pelo bigode espesso, bem aparado nas laterais.

Fernanda Albuquerque.

Meu Deus! — espantou-se, arregalando os olhos.

Sabe o que isso significa, não? — perguntou seu chefe.

Quem foi o informante?

O empresário da modelo.

Suspeita?

O chefe da segurança não estava de guarda na entrada da suíte. Ele não atende o celular, nem o telefone do quarto.

— Vou acionar a equipe...

Não — interrompeu seu chefe. — O caso é delicado. Quando vazar, nossa vida se transformará em um inferno. Algumas pessoas vão se intrometer nas investigações. E, pode acreditar, elas não estarão bem-intencionadas.

São as mesmas do caso do Estripador? — inquiriu o agente.

Isso não importa. Carregue seu perito de confiança com você e revire o quarto da modelo. Você tem uma hora. Depois disso, preciso enviar uma equipe ao local.

Agradeço pela confiança. Mas você está colocando uma bomba na minha mão.

Eu estou em dívida com você. E esse é o pagamento.

Mas...

Você tem cinqüenta e nove minutos. Vai querer perder mais tempo comigo? — provocou seu chefe.

Qualquer coisa, me ligue. Até logo - despediu-se o agente, que, imediatamente, acionou o cronômetro do relógio de pulso e ligou para o perito Hugh Neil.

Código negro — anunciou assim que ele atendeu.

Quando e onde?

Mandarin Oriental. O mais rápido que puder.

—Vou convocar dois assistentes...

Não fale com ninguém - interrompeu o agente. - Leve suas ferramentas. Nós dois temos menos de uma hora para investigar um as­sassinato. Sem nenhuma interferência.

Quem é a vítima?

Uma das mulheres mais belas do mundo. Se apresse. Até logo.

Em menos de cinco minutos, abria a porta do carro.Vestia cami­sa branca, gravata azul-clara e terno azul-escuro, encobrindo o coldre com uma pistola automática. No bolso direito, a identidade de agente secreto especial.

"Merda. O plano de David foi por água abaixo", lamentou, dando a partida no carro.

O que é isso? — surpreendeu-se ao sair da garagem e mergu­lhar na névoa marrom-esverdeada. Ativou o GPS e digitou o destino: Mandarin Oriental.

"Se o meu chefe disse que algumas pessoas podem se intrometer nesse caso e me enviou em sigilo para a investigação inicial, isso significa que David talvez esteja certo. As mesmas pessoas que criaram um bode expiatório para os assassinatos em série podem estar envolvidas com a morte de Fernanda Albuquerque", deduziu.

Isso é grave. Muito grave. Eles não vão conseguir se safar dessa. Isso vai atrair a atenção do mundo inteiro — disse em voz alta. "Pensava que meu chefe fizesse parte dessa conspiração... Mas, pelo visto, ele só obedece ordens, como eu acho que está querendo reparar uma injustiça."

Acessou o número de David em seu celular não rastreado. "Ele pode me ajudar nisso. Sabia que a seita estava prestes a atacar. Sabia qual seria o alvo e conhece a identidade do psicopata. Só cometeu um erro: o dia. Um erro fatal", pensou.

É melhor falar com ele depois da investigação.

Fitou o mostrador do relógio de pulso. O cronômetro corria, roubando-lhe minutos preciosos. Faltavam menos de cinqüenta para que os urubus tomassem conta da suíte de Fernanda Albuquerque e montassem mais uma farsa. Eram especialistas nisso.

Dessa vez, aqueles corruptos terão uma surpresa.

 

Ao estacionar diante do imponente hotel, David respirou aliviado. "Consegui sobreviver", pensou. Antes que seu carro, conduzido pelo manobrista, fosse devorado pela névoa, acessou o celular de Pietro. "Es­tou a sua espera. A porta estará aberta", informou-lhe o padre. À en­trada da presidential suite, o jornalista colocou a mão esquerda sobre a maçaneta. "Seria melhor avisá-lo primeiro que estou aqui", ponderou, anunciando sua presença com uma batida de bengala na porta. Silêncio. Bateu novamente.

Entre! - alguém gritou.

Sou eu, padre — obedeceu, avançando com cautela.

Claro que é você, David. Acabou de me ligar, e eu não estou espe­rando mais ninguém - retrucou Pietro, sentado em uma poltrona, com o corpo levemente inclinado para a frente. Os braços erguidos, com os pulsos na direção dos olhos.

Está tudo bem, padre? — perguntou o jornalista, aproximando-se para cumprimentá-lo.

Agora, sim. Sou um homem de sorte, David, Jesus Cristo me salvou do Inferno. E transformou as feridas do pecado em marcas sagra­das — explicou, abaixando os braços e revelando os punhos cortados. — Não é fantástico? — indagou, fitando os olhos surpresos do inglês.

—Você...Você fez isso?

Não preciso esconder nada de você, David. É o que você está pensando — respondeu o padre, encarando seu interlocutor sem cons­trangimento.

—Você precisa de ajuda, padre. Precisa de um médico.

Meu médico é Ele, David - rebateu Pietro, apontando para cima.

Você... Você... - balbuciou. "Ele tentou se matar. Está louco. Não pode me ajudar em nada", concluiu o jornalista, voltando-se para a porta.

—Voltei dos mortos para ajudá-lo, David.

Está louco!

"Faça-se louco, para tornar-se sábio; pois a sabedoria deste mun­do é loucura diante de Deus."— Pietro recitou, entregando a fonte em seguida: São Paulo aos Coríntios.

Chamarei um médico para cuidar disso. Adeus — despediu-se David, pegando o celular no bolso.

Cale a boca e me escute, seu jornalista prepotente! — exasperou-se Pietro, em italiano.

David parou e virou-se em sua direção. Em pé, com o dedo direito em riste apontado para ele, Pietro disparou:

Você finge não enxergar o que está na sua frente. É pior do que o cego, que não tem escolha! Agora, sente-se nesse sofá e mostre por que veio até aqui.

Por que eu deveria fazer isso?

Porque sou o único que pode ajudá-lo.

Em silêncio, o jornalista se aproximou de Pietro. Encarou-o e se sentou no sofá, diante da poltrona em que o encontrara minutos atrás. Apoiou a bengala, pegou o bloco de notas no bolso do casaco e disse:

Enquanto reviso minhas anotações, sugiro que faça curativos nos pulsos e coloque uma camisa comprida para escondê-los. Se outra pessoa o flagrar assim, você será denunciado por tentativa de suicídio e será internado, padre. Não adiantará citar frases bíblicas nem intimidar as pessoas com acessos de fúria.Você será sedado e acordará em um lugar estranho repleto de homens sábios... Quero dizer, loucos — provocou David, abrindo o bloco de notas.

Cristo disse: "Sede, portanto, prudentes como as serpentes e sim­ples como as pombas". Enquanto você mexe nas suas anotações, vou me fantasiar de serpente, David — consentiu Pietro, indo em direção ao quarto.

"Esse padre matou uma pessoa e tentou se matar. Eu deveria ter ido embora. Talvez seja mais louco do que ele", pensava David, folheando suas anotações à procura das informações sobre o "costureiro do diabo", pinçadas do site sensacionalista:

 

Francesco Fiori

  1. Medalhão com o símbolo do diabo (indagar padre sobre isso);
  2. Fixação pelo número 666 (número da Besta) - gravava nas peças de roupa;
  3. Retorno triunfal seis anos, seis dias e seis horas (?)
  4. Ano, dia e hora da despedida?

 

Abaixo da última linha, David transcrevera aquelas informações às pressas. No íntimo, desejava que fossem ilegíveis. Mas elas se erguiam ameaçadoras.

Chegou a hora da verdade — disse para si, pegando uma Caran D'Ache 1010, criada para homenagear os grandes relojoeiros suíços. Des­contou a diferença de fuso horário e somou seis anos, seis dias e seis horas ao momento em que o estilista italiano surgiu nas passarelas em seu último desfile, acompanhado por uma modelo croata, e anunciou a aposentadoria. A caneta caiu de sua mão.

Foi ontem, às vinte e três e trinta... — balbuciou, com o coração disparado.

Conferiu o relógio de pulso: duas e trinta e três.

Isso foi há três horas — murmurou, pegando o celular e recor­dando o encontro com Andrew a caminho do hotel. "Alguém está à sua espera", ele avisara. Naquele momento, percebeu a gravidade daquelas palavras. Talvez o assassino houvesse estado ali. Talvez já tivesse feito seu trabalho. "Acho que é tarde demais para consertar meu erro", lamentou.

 

O celular tocou. Mary estendeu a mão até o criado-mudo e trouxe o aparelho diante dos olhos.

O que ele quer comigo? - perguntou-se, atendendo a chamada.

Ela foi sacrificada.

—Você viu que horas são, Jacob? Isso é uma piada?

Uma tragédia — respondeu o empresário de Fernanda Albuquerque.

O que... O que aconteceu?

Algo terrível.

O quê? — insistiu a jornalista.

Um pesadelo, Mary. E eu nunca mais vou acordar dele.

Fale, Jacob!

A polícia me obrigou a ficar calado.

Onde está o Harold?

Cheguei tarde demais... Harold não estava de guarda na entrada da suíte. O psicopata deixou a porta encostada.

A Fernanda está morta? — perguntou Mary, sem rodeios.

Ela foi sacrificada! — berrou Jacob. — Foram eles! Aqueles malucos!

Você precisa se acalmar — ela aconselhou, com a voz trêmula. Lágrimas correram em seu rosto.

— Se você tivesse visto aquilo...

É melhor você se acalmar, Jacob.

Eu... Eu estou fodido!

—Você já fez o que deveria. Chamou a polícia. Deixe que ela cuide disso — orientou, pausando a voz a cada palavra. — Agora, tente se acalmar. Você tem calmante?

Tenho.

Respire fundo e pense: tudo vai acabar bem...

Foi ele, não foi? — interrompeu o empresário. "Foi Sammy", ela respondeu em pensamento.

Acho que foi Harold, Jacob — disse, mordendo o lábio inferior antes de prosseguir. — Acho que foi um crime passional.

—Você... Se tivesse visto o que fizeram com a sua amiga, você não se perdoaria nunca.

— Preciso desligar, Jacob. Não se esqueça do calmante. Até logo — despediu-se Mary. Correu até o banheiro e caiu de joelhos na frente do vaso sanitário. "Eu sei o que fizeram, Jacob", respondeu em pensamento, vomitando e chorando compulsivamente.

 

O empresário atirou o celular contra a parede.

Maldita! — berrou.

A cena de Fernanda Albuquerque estirada na cama não saía de sua cabeça. Atormentado, aproximou-se de uma parede e bateu a cabeça contra ela. Ao abrir os olhos, pequenos pontos luminosos pairavam ao redor.

Eu não sabia... Não sabia — balbuciou. Foi ao banheiro e pegou um pequeno frasco de calmante.

Tomou um comprimido. Foi assaltado pela imagem da top model com o rosto ensangüentado. Engoliu outro. A vista turvou-se. Perdeu a força nas pernas. Conseguiu se arrastar até o pé da cama. Teve a impres­são de ver a brasileira deitada ali, na sua frente. Um travesseiro, abaixo da lombar, elevava a região pubiana. A vagina estava retalhada. Vísceras amontoavam-se sobre o ventre.

Não são homens... São demônios — concluiu, arrastando a voz.

 

Acessava o número de Mister Jones quando o celular tocou.

Acho que falhei — adiantou-se o jornalista. — Ia ligar para você nesse instante.

Onde você está, David? — sussurrou o agente.

No Mandarin Oriental.

Em que lugar?

Na suíte do padre Pietro Amorth — respondeu, observando o italiano surgir na porta do quarto, envergando um terno azul-escuro.

Houve um pequeno erro de cálculo. Eles atacaram hoje — reve­lou o agente.

Onde você está?

Na suíte de Fernanda Albuquerque. Ela foi assassinada - revelou Mister Jones.

Meu Deus! — exclamou David, transtornado.

O que aconteceu? - quis saber o padre. Mas foi ignorado.

O mesmo ritual das outras vezes? — prosseguiu o jornalista.

Quase.

Eles vão tentar acobertar.. — murmurou David.

Não desta vez. Preciso encontrá-lo antes que cheguem aqui.

Estou na presidential suite. A porta está aberta.

—Vai me dizer o que aconteceu? - insistiu o padre.

Fernanda Albuquerque foi assassinada.

Pobre menina. Ela fez a escolha errada. Mas se ela era a Babalon... - raciocinava Pietro, em voz baixa.

Meu contato na ScotlandYard estará aqui em poucos minutos. Você poderia nos deixar a sós, por favor?

Não. Vocês vão precisar de mim - retrucou Pietro, encarando o jornalista. — Não insista - completou, sentando-se na poltrona.

Os dois ficaram em silêncio até que a porta do quarto se abriu. Um homem magro, de estatura mediana, trajando terno azul-escuro, ir­rompeu na suíte. Os olhos protuberantes destacavam-se no rosto fino. Calvície compensada pelo bigode espesso, bem aparado nas laterais. Ele carregava, na mão direita, um saco plástico negro.

Tenho pouco tempo — disse, lançando um olhar desconfiado na direção do padre.

O que aconteceu com a Fernanda? — adiantou-se Pietro. Mister Jones conferiu o cronômetro. O prazo dado por seu chefe terminaria em sete minutos.

Ele sabe quem eu sou? - questionou o agente, encarando David.

Ele conhece o nosso acordo. Fique tranqüilo.

Mister Jones sentou-se ao seu lado, no sofá. Colocou o saco plástico no chão e pegou, no bolso da calça, uma câmera digital.

— A Fernanda Albuquerque foi assassinada da mesma maneira que as outras cinco vítimas. Peito aberto e coração extirpado. O órgão não foi encontrado na cena do crime. O criminoso fez uma incisão no ventre e eviscerou os órgãos reprodutores. A vagina foi retalhada, mas, desta vez, ele inovou, fazendo uma incisão no grande lábio vaginal esquerdo — des­creveu, olhando para o padre para avaliar sua reação. Pietro o ouvia com atenção. O agente percebeu que seu lábio inferior tremia ligeiramente e as narinas pulsavam com rapidez. Eram sinais de nervosismo.

— Posso continuar? — perguntou a ele.

O padre pigarreou para limpar a garganta. Mas consentiu balançan­do a cabeça.

O perito encontrou o pedaço do grande lábio vaginal em torno do dedo anelar esquerdo, como se fosse um anel.

Uma aliança de casamento — interveio Pietro, com a voz rouca.

— O que você sabe sobre isso? — questionou o agente.

Sou um padre e realizo casamentos. Quando os noivos trocam as alianças, eles as colocam no dedo anular da mão esquerda.

Isso é elementar. Prossiga, por favor, Mister Jones — impacientou-se David.

O assassino usou um objeto pontiagudo, especificamente um furador de gelo, para gravar um sinal na fronte da vítima. Tenho uma foto - relatou, selecionando-a na câmera digital e mostrando a David. O jornalista colocou a mão direita sobre a testa.

Isso é... — balbuciou.

...Terrível — completou Mister Jones. — E você só está vendo a vítima do pescoço para cima.

Tem muito sangue. Não consigo enxergar o símbolo. O padre é especialista nisso, talvez ele possa - sugeriu David, passando a câmera a ele.

As mãos tremiam. O italiano colocou a máquina sobre a braçadeira da poltrona e inclinou-se sobre a imagem. Uma lágrima escorreu do olho esquerdo. Queria falar, mas algo parecia bloquear sua garganta. Pigarreou.

Esse símbolo... — disse, com a voz embargada. Pigarreou nova­mente. — ...é a marca da Colméia Dourada.

A mesma que o estilista Francesco Fiori usa embaixo da camisa? — indagou o jornalista.

Sim - respondeu Pietro, com o olhar distante.

Qual é a relação desse estilista com isso? - inquiriu o agente.

Hoje, na coletiva, a Fernanda usava roupas desenhadas por ele. Mas isso não é tudo... — explicava David até ser interrompido pelo toque do celular de Mister Jones, que checou o cronômetro. Faltavam três mi­nutos para seu prazo acabar.

Outra hora você me conta, David. Logo, os urubus vão chegar e mudar a cena do crime. Mas, dessa vez, não vão levar a melhor. Preciso da sua ajuda.

O que posso fazer por você?

Guarde isso — respondeu o agente, entregando-lhe o pequeno saco negro. — O assassino inseriu esse objeto dentro da vagina da vítima. Não sei o que é, mas minha intuição diz que ele pode nos levar aos ver­dadeiros criminosos. Se cair nas mãos dos urubus, provavelmente a prova será ocultada. Na pior das hipóteses, destruída.

David agarrou o pequeno saco.

Está em boas mãos, Mister Jones — consentiu, forçando um sorriso.

Adeus. Entro em contato — despediu-se, saindo do quarto a passos largos.

 

Mister Jones chegou à porta da royal suite juntamente com uma equipe de cinco investigadores e três peritos criminais. O responsável pela diligência era sr. Wensley, o mesmo que chefiara a investigação dos assassinatos em série e prendera o Estripador de Londres. Era um homem alto, com vários quilos acima do peso. O cabelo sempre engomado e partido ao meio contrastava com o bigode desgrenhado. Vestia um sobre­tudo cinza-escuro por cima do terno azul-marinho. Sorriu com ironia ao ver o companheiro da divisão de inteligência da Scotland Yard, estendeu a mão para cumprimentá-lo e emendou a pergunta:

O que está fazendo aqui, Eric Kemp?

O mesmo que você.

Com a vantagem de uma hora, não? — retrucou Wensley.

Sim. Acho que consigo dirigir melhor no smog — brincou Kemp. - Mas não se preocupe, adiantamos o serviço. Você receberá o relatório completo.

— Isolem a área — Wensley orientou o grupo que o acompanhava.— Então, comece — dirigiu-se ao colega, abrindo a porta da suíte.

— Mesmo padrão dos crimes anteriores... — relatou o agente, acom- panhando-o até a cama. O perito Hugh Neil vestia máscara, luvas e óculos. Estava ao lado do corpo, examinando os cortes na fronte. Virou o rosto na direção dos investigadores e os cumprimentou com um leve aceno de cabeça. Juntaram-se a eles três agentes e três peritos.

Espero que você não tenha mexido no corpo, Neil - disse Wensley.

A partir de agora, meus homens assumem a operação.

Estou dispensado? — indagou o perito convocado por Kemp.

—Volte para casa e descanse. E nunca é demais lembrar: bico calado - instruiu o novo comandante.

Hugh Neil levantou-se, tirou as luvas, a máscara e os óculos, lacrou- -os em um saco plástico e guardou-os em uma pequena maleta.

— Boa sorte - despediu-se de Kemp, antes de sair.

Naturalmente, esse crime foi cometido por um imitador. Alguém querendo copiar o estilo do Estripador de Londres. Não acha? — indagou Wensley, encarando Kemp.

O que o faz supor isso? — rebateu o agente.

Aquele maníaco não feria o rosto de suas vítimas. Além do mais, ele está preso. Presos não cometem assassinatos. Homens, mãos à obra — ordenou à equipe. - Em breve, a imprensa estará aqui cobrando respostas. E vocês sabem como são aqueles abutres. Suspeitos? — voltou-se a Kemp.

O empresário da modelo, Jacob, encontrou o corpo. Segundo ele, o chefe da segurança deveria estar montando guarda na porta do quarto, mas não estava. Tentou falar com ele no celular e no quarto, mas não conseguiu.

O negro? — perguntou Wensley, em tom preconceituoso.

Ele se chama Harold.

Negros não são confiáveis — comentou, franzindo o cenho.

"Você não é confiável. Deve estar arquitetando a fraude", Kemp rebateu em pensamento, emendando a frase:

Quem quer que eu interrogue, Wensley?

—Você procura o empresário. Eu vou atrás do imitador.

E se o assassino tiver escapado?

Por isso, eu sou o chefe. Uma equipe de policiais já está vas­culhando o Hyde Park, onde o criminoso poderia se refugiar, ou usar como rota de fuga, e alguns homens estão procurando pistas nas ruas adjacentes ao hotel.

Mister Jones sorriu. Aquele homem detestável podia foijar provas, alterar o cenário do crime, encontrar outro bode expiatório, negro ou branco, para encobrir os verdadeiros criminosos. Mas, dessa vez, ele estava com a vantagem. Acreditava que a chave para desvendar aquele assassinato — e chegar aos verdadeiros culpados — era o estranho objeto que o perito encontrara enterrado na vagina da "mulher mais bonita do mundo". Aqui­lo era seu trunfo secreto. "Você será desmascarado, seu verme", gabou-se, deixando Wensley e seguindo para o quarto de Jacob.

 

Assim que trancou a porta da suíte, David voltou ao sofá e caiu sentado ao lado do pequeno saco negro. Suspirou. Sentia-se culpado por não ter conseguido salvar a top model. Sentia-se culpado por ter envolvido sua assistente nessa história. E era tarde demais para voltar atrás. Olhou na direção do padre. Caneta à mão, Pietro rabiscava algo em seu bloco de notas. Ao terminar, entregou-o ao jornalista. Era o desenho de um símbolo: a cruz erguia-se de montes gêmeos. Equilibrando-se sobre ela, um círculo com um ponto central atravessado, na parte superior, por uma meia-lua.

Isso me é estranhamente familiar... — comentou David, tentando lembrar onde o vira antes.

Essa é a assinatura do diabo — explicou o padre.

Como?

É a ligação entre o assassinato de Fernanda... — explicava, silenciando-se em seguida. "Eu te perdoo pelo que fez com meu pai. Mas não te perdôo pelo que fez comigo." A lembrança daquela acusação da brasileira, juntamente com a imagem de seu rosto desfigurado, golpeou-o. Respirou fundo. "Não posso me deixar abater. Não agora. Meu Deus, eu suplico, me ajude", rezou em pensamento.

O que houve, padre? — insistiu David.

É a ligação entre o assassinato de Fernanda, a confraria negra Colmeia Dourada e os "olhos onipresentes" da rainha - prosseguiu.

O que John Dee tem a ver com isso?

Esse símbolo é o mesmo gravado no medalhão que o estilis­ta Francesco Fiori usa embaixo da camisa. E, como você deve saber, é o emblema da Colméia Dourada. John Dee escreveu um livro só para explicá-lo, Monas Hieroglyphica. Acho que ele foi revelado pelo próprio demônio, David.

O jornalista fitou o pequeno saco negro no sofá.

O que isso tem a ver com o nascimento do Anticristo, padre?

O assassinato de Fernanda foi um ritual parecido com os outros cinco. Concorda?

Sim. O que isso tem a ver com as profecias do nascimento do Anticristo? - repetiu a pergunta, elevando a voz. - A suposta Babalon está morta!

O assassino, que nós conhecemos, retirou o coração e o ofereceu ao demônio. Fez o mesmo com o aparelho reprodutor. Isso nós já vimos.

Mas, no caso da Fernanda, ele cortou um pedaço da... Da vagina e en­volveu-o no dedo anular esquerdo. Ou seja, ele celebrou um casamento negro entre a Fernanda e... Satanás - observou Pietro.

"Parabéns. Você me pegou. Está na minha vez", David lembrou-se das últimas palavras de Andrew no estranho encontro que tiveram antes de chegar ao hotel. "Que armadilha ele está preparando agora?", questionou-se.

Tudo bem, David? — perguntou o padre, percebendo seu olhar distante.

Me parece uma dedução plausível. E o Anticristo? — rebateu o jornalista, provando que estava atento à sua explanação.

O perito encontrou um objeto introduzido na vagina da Fernanda... — insinuou Pietro.

Isso aqui? - disse David, pegando o pequeno saco negro. — Quer me dizer que isso é...

Talvez o Anticristo não seja uma pessoa. Talvez seja uma revela­ção! — deduziu o padre, encarando o jornalista.—Talvez ele esteja em suas mãos — continuou, desviando o olhar para o pacote misterioso.

Então, vamos acabar com o enigma — anunciou David, colocan­do a mão direita dentro do saco plástico.

Pietro fez o sinal da cruz. "Meu Deus, livrai-nos do mal", pedia proteção divina no instante em que David trazia à luz um objeto dourado. Em silêncio, o jornalista levou-o à altura dos olhos. Era uma abelha for­jada em ouro, com partes móveis aparentes. Abaixo dela, havia cinco cor­das, com quatro caracteres circundando cada uma.Vestígios de sangue e tecido humano revelavam que o perito limpara aquilo às pressas.

O símbolo de Dã... — murmurou o padre.

O robô perdido de John Dee... Isso é fantástico!

O que você disse?.

John Dee é um dos precursores da robótica. Ele criou um esca­ravelho mecânico para a encenação da peça A Paz, de Aristófanes. Isso aqui é algo mais sofisticado...

As profecias dizem que o Anticristo será descendente da tribo de Dã, David. Um dos símbolos dessa tribo é a abelha... E a seita satânica Colméia Dourada não tem esse nome por acaso.

A abelha-rainha, padre, é o robô que John Dee criou para se comunicar secretamente com a rainha Elizabeth I. Provavelmente, aqui dentro existe uma mensagem. Para se chegar até ela, é preciso acertar a combinação — explicou o jornalista mostrando ao italiano a parte de baixo da engenhoca.

Deixe-me ver isso - pediu Pietro, estendendo a mão. Agarrou o objeto e levou-o para perto de si. Sentiu a vitalidade esvair-se de seu corpo.

A linguagem do demônio — balbuciou. Uma estocada em sua testa o fez tombar para o lado e mergulhar na escuridão.

Padre, padre! — desesperou-se David, atirando-se em sua direção.

 

Após algumas batidas e nenhuma resposta, Kemp usou a chave re­serva para abrir a suíte do empresário de Fernanda Albuquerque. Encon­trou Jacob desacordado no chão, com o frasco de calmante aberto. Sinais vitais fracos. Chamou a ambulância e ligou para Wensley. "Venha ao meu encontro na suíte do negro", ordenou-lhe o comandante da operação. Poucos minutos depois, estava diante de Harold mergulhado em uma banheira de sangue, com um coração entre os dentes. Dois peritos se preparavam para iniciar o serviço.

Eu não disse que os negros são traiçoeiros? — gabou-se Wensley, encarando Kemp. — Este aqui é o filho da puta do imitador — apontou para o segurança morto.

Ele se suicidou?

O desgraçado deixou até uma confissão de culpa. A carta está na cama.

Essa é a versão oficial? — questionou Kemp, tentando esconder a irritação.

Como assim? Não trabalho com versões, trabalho com a verdade! — rebateu Wensley, fuzilando-o com os olhos.

Os peritos nem começaram o serviço. E se isso tudo for uma cortina de fumaça para esconder o verdadeiro criminoso?

Temos a arma do crime, uma confissão de culpa assinada e um negro. O que mais você quer? - disparou Wensley, lançando-lhe um olhar desconfiado. — A menos que você tenha ocultado algo de mim — insinuou.

De modo algum.

Como eu imaginava — comentou o comandante, com um sorriso irônico no rosto.

"Ele sabe que cheguei antes. Talvez saiba que escondi uma prova. E, se não me forçou a entregá-la, é porque ela compromete a versão oficial. O filho da puta do meu chefe deve estar envolvido nessa fraude e me tornou um cúmplice. Caí na armadilha desse desgraçado", deduziu, mordiscando o lábio inferior esquerdo.

Como alguém consegue cometer suicídio e manter um coração preso na boca? — inquiriu Kemp, fitando o rosto de Harold.

A única coisa que me interessa nesse coração é saber se ele é o mesmo que está faltando no peito da modelo. O resto é irrelevante — dizia Wensley quando seu celular tocou. Ele atendeu imediatamente.

O quê? Um corpo decapitado? Não, isso não tem ligação com o crime.Vou pedir ao agente Kemp para dar uma olhada nisso. Adeus.

O que aconteceu?

Uma pessoa decapitada foi encontrada no Hyde Park, perto do hotel. E evidente que são crimes distintos. Mas, como você gosta de teorias conspiratórias, sugiro que vá até lá dar uma olhadinha — ironizou Wensley.

Como quiser - assentiu Kemp. - Mas, antes, quero dar uma olhadinha na confissão de culpa — completou, saindo do banheiro e dirigindo-se até a cama. Leu rapidamente a carta de suicídio e saiu do quarto. "Tudo isso deve ter sido forjado", pensou. "Talvez o morto no Hyde Park me conte algumas coisas. E aquele objeto que o Neil tirou da vagina de Fernanda Albuquerque talvez desmascare essa organização de adoradores do demônio", concluiu.

De qualquer maneira, preciso avisá-lo sobre o acobertamento e o risco que eles estão correndo aqui — murmurou, pegando o celular não rastreado. Acessou o número de David. Caixa postal.

 

A última lembrança era a de ter agarrado o objeto com força. "Não posso soltá-lo. Não posso." Escuridão.

Acenda a luz — alguém lhe disse.

Pietro abriu os olhos. O lugar era familiar. A imponente escadaria conduzia a um templo majestoso, erguendo-se contra o céu avermelha­do. Um estrondo. O chão tremeu sob os seus pés. E um turbilhão passou por cima de sua cabeça, rasgando as nuvens até o templo. Sobre o teto da construção rústica de pedra, sustentada por colunas, o dragão vermelho-fogo, com sete cabeças e dez chifres, agitava a cauda. "A besta do Apo­calipse. O que quer me dizer?", questionou-se. "Preciso subir as escadas. Tenho que encontrar seu filho e matá-lo".

Não se esqueça do mensageiro — alguém lhe disse.

Mensageiro? Um anjo? — indagou.

—Você me abandonou quando eu mais precisava.

Ele conhecia aquela voz. Era Fernanda Albuquerque.

Onde você está?

Onde você me deixou, padre.

Pietro olhou para baixo. Ela estava estirada no primeiro degrau. Sem roupa. A testa desfigurada pela "assinatura do diabo". Costelas quebradas escancaravam o peito e revelavam a ausência de coração. Vísceras escapa­vam de um corte no baixo ventre e esparramavam-se. Três abutres voa­vam sobre o corpo, ansiosos para devorar o banquete.

Eu disse para você escolher o caminho certo, Fernanda — retru­cou o padre, observando uma das aves de rapina pousar aos seus pés e avançar sobre as tripas da brasileira.

Você precisa de mim para pegá-lo — disse ela, gemendo de dor quando um abutre bicou-lhe o útero.

Como você pode me ajudar? — perguntou Pietro, fazendo um gesto abrupto no ar para espantar o pássaro.

Obrigada — ela agradeceu, enfiando a mão direita dentro da vagina e retirando algo. - Aqui está. Seu mensageiro — ela revelou, estendendo o objeto dourado em forma de abelha.

O que eu faço com isso?

—Vá até o altar.

Obrigado. Que Deus alivie seus sofrimentos — agradeceu, subindo rapidamente os degraus, não se virando quando Fernanda começou a gritar de dor e desespero.

Atrás das colunas, que lembravam as de Santa Maria in Aracoeli, ele viu um casal transando sobre o altar de pedra. Diante dos dois, con­templando o coito, alguém vestindo túnica negra. "Parece uma batina". Fixou seu olhar na figura misteriosa. Queria enxergar seu rosto.

Padre, quer descobrir quem eu sou? — indagou o voyeur, apro­ximando-se do casal. No instante em que seu rosto se iluminou, Pietro berrou de pavor. Estava diante de um gêmeo idêntico.

—Você tem a auto-estima muito baixa, padre. Como pode se assustar consigo mesmo? — provocou seu sósia.

A mulher sobre o altar gemia cada vez mais alto. Pietro olhou para a abelha dourada em sua mão. "O que eu faço com isso?", questionou- -se, tentando destravá-la. Acertou a combinação das cordas na parte de baixo do objeto. Ele se abriu e disparou um raio de luz sobre o casal. Algo cobriu seu rosto.

Pietro, acorde, por favor.

O padre reconhecia aquela voz. Era David. Abriu os olhos. Estava na poltrona de sua suíte no Mandarin Oriental. Água escorria pelas faces.

O que aconteceu? — perguntou ao jornalista.

—Você desmaiou. Molhei seu rosto.Você está se sentindo bem?

Tive uma visão. A Fernanda me entregou esse objeto. Disse que era um mensageiro.

Ela revelou a senha? — inquiriu David, com uma ironia sutil demais para que o italiano a percebesse.

Não entendi o que acontecerá se a gente abrir esse negócio.

Talvez isso, padre, seja a prova de que precisamos para incriminar a seita pelo assassinato de Fernanda e das outras cinco mulheres. Meu ce­lular tocou duas vezes quando eu tentava reanimá-lo. Enquanto verifico isso, tente decifrar estes símbolos — sugeriu o jornalista, entregando-lhe novamente a abelha dourada que retirara de sua mão após o desmaio.

Mister Jones me ligou e Mary enviou uma mensagem... O que ela quer?

Abriu a mensagem de sua assistente: David, estou arrasada. O empresário da Fer me ligou. Não se culpe por isso. Quando puder, me ligue.

Merda! — deixou escapar, acionando o número de Mister Jones, que, poucos segundos depois, retornou do aparelho não rastreado.

Serei breve - disse o agente - A versão oficial é a seguinte: o chefe de segurança se suicidou e deixou um bilhete confessando o crime. Estou no Hyde Park investigando uma decapitação que, teoricamente, não tem nenhuma relação com a morte da brasileira.

O que eu faço com...

Descubra como isso pode nos levar aos chefoes. Até logo — despediu-se Mister Jones.

O jornalista olhou para o padre. Com o cenho franzido, Pietro ana­lisava os caracteres estranhos gravados na parte de baixo da abelha.

E então? Algum palpite?

Lembra quando falei que John Dee escrevia em uma linguagem revelada pelos anjos?

Que você chamou de "linguagem do demônio"?

Exatamente. Em torno de cada corda, existem quatro símbolos. São caracteres da "linguagem do demônio". As cordas têm uma pequena ponteira. Precisamos acertar a combinação e...

Puxar as antenas. São botões invertidos — completou David.

Ok. Só nos resta descobrir a combinação — observou o padre, pegan­do seu bloco de notas e abrindo na página com a tabela de correspondência entre o alfabeto latino e aqueles estranhos códigos. — Começamos por onde?

Qual era o enigma sobre John Dee?

"Ave... Os olhos onipresentes da rainha revelam a chave de Armon" - respondeu Pietro.

O jornalista ficou em pé. Andou de um lado para o outro. Em silêncio. Lembrou-se de uma das tapeçarias estendidas nas paredes da sala de chá do castelo em Upper Slaughter. Ela retratava uma cena de A Tempestade. "A peça que Shakespeare escreveu para a seita. Estou diante do elo que faltava. O código deve ser um nome. Um nome com cinco letras: Próspero? Miranda? Calibã? Talvez um anagrama. Espere um pouco, o padre disse...", raciocinava David, voltando-se para ele e disparando uma pergunta:

Padre, nessa sua visão, a Fernanda lhe entregou a abelha dizendo que era o quê?

O mensageiro — respondeu Pietro, sem entender o motivo da­quela pergunta.

"O mensageiro de Próspero é Ariel. Cinco letras", concluiu, abrindo um sorriso triunfal.

É isso! Padre, tente: Ariel.

A-R-I-E-L — soletrou Pietro, escrevendo o nome em caracteres enoquianos e puxando as antenas. Nada.

Então, deve ser... — prosseguia David.

Espere um pouco, a "linguagem do demônio" é escrita da esquerda para a direita, como o hebraico e o árabe.Vamos tentar L-E-I-R-A - sole­trou Pietro, escrevendo ao contrário o nome do mensageiro de Próspero. David cruzou os dedos e se aproximou no instante em que o padre pu­xava as antenas. A abelha continuou travada.

Nada - suspirou o jornalista.

Por que você tentou esse nome? — quis saber o padre.

Demoraria muito para explicar.

Tenho tempo. Costumo dormir mais tarde — ironizou Pietro.

—Vou resumir. Shakespeare escreveu A Tempestade. O protagonista,

Próspero, é inspirado em John Dee. Acredito que essa peça possa ter sido encomendada pela... Confraria negra... — explicava David.

E quem é Ariel? — inquiriu o padre.

O mensageiro de Próspero.

Provavelmente uma referência ao anjo Uriel. John Dee dizia contatá-lo, em mais uma de suas mentiras. Vamos tentar: L-E-I-R-U — sugeriu Pietro, colocando as ponteiras das cordas sobre as letras do alfa­beto de John Dee que formariam aquele nome.

O objeto rangeu.

Parabéns! — exaltou-se David. - Coloque a abelha sobre a mesa. O padre estendeu a mão e a repousou na pequena mesa de centro.

David sentou-se no sofá. Sob o olhar excitado dos dois, o robô alado bateu as asas cinco vezes e se dividiu em dois. Um pequeno cilindro me­tálico, com diversos sulcos, ergueu-se do meio de dezenas de pequenas engrenagens reluzentes.

Uma carta direto do inferno — anunciou Pietro.

 

Ele prendeu a respiração ao estacionar diante do Mandarin Oriental. Dezenas de luzes azuis, dos carros da Scotland Yard, borra­vam a névoa. "Aquele senador maldito me jogou na fogueira. Preciso sair rápido daqui", pensava, quando um funcionário do hotel abriu a porta de seu carro.

O que aconteceu aqui? — dissimulou Michael, trajando um so­bretudo verde-oliva sobre o terno preto, camisa branca e gravata prateada.

Investigação sigilosa, senhor.

— Se eu estivesse pretendendo me hospedar aqui, daria meia volta. Mas só vim deixar um envelope na portaria — explicou o americano, saindo do carro.

Fique à vontade, senhor.

"A uma hora dessas, eles já devem ter apanhado a isca. Bem, isso não é mais problema meu. Pelo menos, não até aquele senador de merda mudar de idéia", pensou, carregando uma pasta até a recepção do hotel.

Pois não, senhor? — atendeu-lhe uma mulher ruiva, cabelo preso e sorriso cansado no rosto.

—Vim deixar um envelope ao senhor Giovanni de Santis. Ele está hospedado na presidential suite.

Devo avisá-lo agora?

São quase cinco da manhã — respondeu, conferindo o relógio. — Ele deve estar dormindo.

Ele está com uma visita, senhor.

Sir David Rowling?

Deixe-me conferir — disse a atendente, consultando o computa­dor. — Sim. Ele mesmo.

Meus dois grandes amigos estão reunidos... — comentou Michael, com um sorriso irônico.

Quer que eu avise que o senhor está aqui?

Não quero atrapalhar a festinha dos meus amigos gays.

Como quiser. Avisarei Giovanni de Santis mais tarde, senhor.

Obrigado, Lucy - agradeceu, conferindo seu nome no crachá.

Michael consultou o relógio de pulso: quatro e trinta e três da ma­drugada. "Vou chegar adiantado. Espero que sir Chancellor já esteja no museu", torceu, girando sobre o calcanhar. Programou o GPS com o endereço do Victoria and Albert Museum e zarpou dali. Ligou o rádio.

Tocava "Lucy in the Sky with Diamonds".

 

Com o indicador e o polegar formando uma pinça, David retirou o pequeno cilindro da abelha-robô e aproximou-o de seus olhos.

Uau!

O que é? — quis saber Pietro, chegando mais perto.

Aqui dentro, há um pequeno pedaço de papel com uma men­sagem. Em vez de termos quebrado a cabeça tentando solucionar esse enigma, poderíamos ter usado uma chave de fenda para abrir o robô. Mas está vendo essas ranhuras? - questionou o jornalista, aproximando o cilindro do padre.

Sim.

Esse robô deve ter um mecanismo interno para destruir a men­sagem se sua abertura for forçada. Imagino que lâminas atravessariam as ranhuras, esfarelando o papel.

—Talvez fosse melhor que isso tivesse acontecido. John Dee era um mensageiro do diabo — comentou Pietro.

— Então, está na hora de descobrir o que o diabo quer com isso — enfatizou David, usando a unha para puxar uma pequena tampa. A parte interna do cilindro deslocou-se para fora, revelando um delicado pedaço de papel.

Precisaremos de uma lupa para ler o que está escrito aqui — con­cluiu o jornalista, desenrolando-o sobre a palma da mão esquerda.

Tenho uma na minha pasta - disse o padre, levantando-se.

O que você faz com uma lupa?

A letra da minha Bíblia de viagem é bem miúda.

"Preciso ligar para Mary. Ela deve estar acordada", pensou David, enquanto Pietro ia ao quarto e voltava com o instrumento óptico.

Deixe-me ver isso — pediu o padre.

Empreste a lupa — retrucou o jornalista, estendendo a mão para apanhá-la. Colocou a lente sobre o papel. — Os mesmos caracteres da abelha. Acho que você vai precisar traduzir isso aqui — concluiu, entre­gando ao italiano a lupa e a mensagem.

—Vamos ao trabalho.

Enquanto você faz isso, ligarei para minha assistente. Ela já sabe que a amiga foi assassinada — informou David, pegando o celular no bolso da calça.

Sua assistente me entregou hoje à tarde, e não fez isso por amiza­de, David. Foi maldade. Percebi isso nos olhos dela - alertou Pietro, indo até a escrivaninha.

"Ela é uma bruxa. Não gosta de padres. Não gosta da Igreja Católica", o jornalista justificou em pensamento, acessando o número da americana.

Pietro destacou uma página em branco de seu bloco e a colocou ao lado da mensagem criptografada. Em seguida, voltou à página com a tabela de correspondência entre os alfabetos e a repousou acima da "carta do demônio". Acendeu o abajur e pôs a lupa na última palavra do texto, quarta linha.

 

Estava revirando na cama há quase uma hora quando o celular tocou sobre o criado-mudo. Era seu chefe. Levantou-se para atendê-lo.

Estou anestesiada, David. Queria muito que estivesse aqui comigo — disse Mary, com a voz arrastada.

Tomou alguma coisa?

Um comprimido para dormir. Mas não consigo pegar no sono. O que aconteceu?

Disseram que foi crime passional. O chefe de segurança cometeu o homicídio e se suicidou. Ele deixou uma carta.

Ele se chamava Harold, David. Eu o conhecia. Ele jamais, jamais taria isso com a Fer — comentou sua assistente.

Quero que descanse, Mary. Você está de licença. Não vá à redação amanhã. Ok?

Quem vai cobrir a morte da minha amiga?

O mesmo repórter que cobriu a coletiva.

Onde você está?

Está tudo bem. Estou na suíte do padre...

O padre que matou o pai da Fer?

Ele mesmo. Preciso desligar, Mary. Qualquer coisa, me ligue.

A que horas você virá para cá?

Isso é incerto. Talvez passe aí amanhã de manhã. Por quê?

Preciso ir para casa pegar algumas coisas...Volto mais tarde.

Não quer que eu vá com você?

Não quero atrapalhar você. Posso fazer isso sozinha. Obrigada.

Qualquer coisa, me ligue.

Sammy é um manipulador, David. Ele mandou matar a Fer e vai fazer todo mundo pensar que foi o Harold.

Também acho isso. Mas não podemos fazer nada por enquanto.

Você prometeu que pegaria esse cara, David — disparou Mary, caindo em prantos.

Estou tentando fazer isso. Fique calma. Tente descansar e não converse com ninguém sobre esse assunto. Ok?

Faço o que você quiser — respondeu sua assistente, aos soluços.

Quero que descanse. Até mais tarde.

Ela colocou o celular sobre o criado-mudo e respirou fundo. Foi ao banheiro e lavou o rosto na pia. Encarou seu reflexo no espelho.

Preciso fumar um cigarro — disse para si, voltando ao quarto e abrindo a bolsa. Pegou um cigarro e o Zippo prateado gravado com o desenho de Cernunnos sentado, uma serpente na mão esquerda e um círculo aberto na direita.

Na sala, sentou-se na poltrona favorita de David. Tragou duas vezes e fechou os olhos. O pensamento a carregou para o passado.

 

Ela estava sentada no chão da sala de estar. Na sua frente, Sammy segurava um copo de uísque e se movia para a frente e para trás em uma cadeira de balanço.

Que história você vai me contar hoje? — indagou a menina de oito anos.

Quer saber sobre a última vez que encontrei Deus? — ele per­guntou, sorrindo.

—Você já encontrou Deus?

Muitas vezes.

Como Ele é?

Não sei, Ele sempre usa fantasia.

Como as de carnaval?

Sim. Só que as Dele são mágicas. Não parecem fantasias — explicou o homem.

Como Ele estava fantasiado na última vez que o viu?

Era um velho sem a perna direita.

Você está brincando! Se Deus pode Se fantasiar do que quiser, por que ia querer ser um velho sem perna?

Porque Ele gosta de enganar os outros. Se Ele descesse do céu, todo mundo saberia que era Deus.

Se Ele é Deus, qual o problema de as pessoas saberem que Ele é Deus?

Ele gosta de andar por aí disfarçado, bisbilhotando a vida das pessoas. O céu deve ser um lugar muito chato - comentou Sammy, dando um gole no uísque.

E como você sabia que Ele era Deus, se estava disfarçado de ho­mem sem perna?

Porque eu conheço Deus. A mim, Ele não engana. —Você falou com Ele?

Ele falou comigo.

O que Ele disse? — quis saber a menina, ajoelhando-se. Ele se aproximou e sussurrou algo em seu ouvido.

 

Mary abriu os olhos. Estava na sala de estar de David, sentada em sua poltrona preferida. Terminou o cigarro e voltou ao quarto.

 

Assim que desligou o telefone, David sentou-se no sofá. Não queria atrapalhar o padre. "Vamos apanhar esse canalha, Mary", pensou, cerran­do os punhos. "Mister Jones falou sobre um corpo decapitado no Hyde Park. Deve ter sido Andrew... Por que ele me disse: 'Você me pegou. Está na minha vez'? O que eu tenho e ele não têm? Ele estava com o robô... Mas não conhecia a senha! Ele sabia que o padre e eu podíamos decifrá-la. Ele armou tudo isso, e vai nos seguir até que encontremos algo", deduziu, folheando seu bloco de notas. Uma delas saltou aos seus olhos.

O Livro das Folhas Prateadas — disse em voz baixa. — Talvez seja isso que estamos procurando.

"O segredo sobre o esconderijo deve ter sido enterrado com sir Alexander Cotton. E a maneira de descobri-lo deve ser ouvindo o men­sageiro, a abelha-rainha, o projeto perdido de John Dee. Os americanos também devem estar atrás disso. Michael deve estar atrás disso... Agora faz sentido ele ter escolhido uma Chouffe Bok 6666 no dia em que nos conhecemos. O número de Francesco Fiori com um dígito a mais. O número que revelou o dia e a hora do assassinato de Fernanda Albuquerque. Era uma provocação. E tudo, tudo isso deve levar a uma pessoa: Sammy", concluiu.

Os olhos ardiam e as pálpebras pesavam. Colocou a bengala sobre o colo e esticou as pernas. Repousou a cabeça no encosto do sofá e fechou os olhos. Lembrou-se do símbolo que o padre desenhara, reproduzindo os cortes na fronte da brasileira. "Eu já vi isso em algum lugar", pensou.

David seguia as velas vermelhas que serpenteavam no interior do labirinto. "Um demônio se esconde atrás dessas paredes." Era a voz de seu pai. Pernas trêmulas. Coração aos saltos. Respiração entrecortada. "Preciso salvar Andrew. Eles o pegaram", disse em voz baixa, tentando reunir forças para não voltar atrás. As vozes se misturavam. E ficavam mais altas a cada passo. "São os monstros. Preciso me defender", deduziu, levantando a raquete de tênis que trazia em sua mão direita. De repente, chegou ao centro. Dezenas de velas negras formavam um círculo em torno da cabana.

Por favor, não me matem!

A voz de seu amigo parecia ecoar das profundezas da Terra. Desejava sair correndo. Respirou fundo. Pegou uma das velas do chão e avançou degrau após degrau. "Meu Deus, me proteja", sussurrava. No fim da es­cada sinuosa de pedra, dezenas de homens com rostos deformados e capas negras esvoaçantes. Andrew estava estirado em uma mesa. Parecia morto.

Devia ter obedecido seu pai — ameaçou-lhe um dos mascarados, indo em sua direção. Antes de fechar os olhos, ergueu a vela. Um pingente prateado reluzia em seu peito.

 

Amém! — berrou Pietro.

David saltou do sofá empunhando a bengala.

Eu te assustei? — perguntou-lhe o padre ao ver seu rosto pálido.

Estava exausto. Devo ter adormecido. Não costumo fazer isso tora do meu quarto.

A mensagem está aqui - gabou-se Pietro, estendendo ao inglês o texto transcrito: "Quando o que está em cima se une ao que está em­baixo, a eternidade é contemplada. Ouça: quatro anjos sussurram. Eles conduzem ao omphalos. É lá que Deus guarda seus segredos".

O que é isso? — quis saber David.

— Um enigma.

Fernanda Albuquerque foi morta por isso?

Não. Ela foi morta pelo que isso esconde.

Alguma idéia?

O demônio é o macaco de Deus, David...

Isso não é novidade. Você já repetiu algumas vezes — impacien­tou-se o jornalista.

Ele gosta de imitá-Lo em tudo. E nisso, ele se apropria de sím­bolos sagrados...

— Seja mais pragmático, padre.

Quando um burro fala, o outro se cala! Está na sua vez de se calar. Essa mensagem usa elementos de arquitetura sagrada, construção de igrejas - prosseguiu Pietro, gesticulando durante a explanação - Omphalos é a fixação do centro. Simboliza o umbigo do mundo. Suponho que "o que está em cima" seja o céu e "o que está embaixo", a Terra. Para simplificar, o céu é representado por um círculo e a Terra por um quadrado. Por isso, muitas igrejas eram construídas na forma octogonal, representando a união entre céu e Terra.

O lugar onde o tempo perde o significado? — indagou David.

Onde o tempo começa e termina.

E os segredos de Deus?

Para os satanistas, Deus é o diabo. Acho que esses segredos são o que estamos procurando. E temos que destruí-los — disse o padre, fran­zindo o cenho e sentindo uma fisgada dolorida no supercílio esquerdo.

O Livro das Folhas Prateadas... - murmurou o jornalista.

Provavelmente. E não estamos juntos nisso por acaso, David. Com­pletamos um ao outro. Foi assim que abrimos o primeiro mensageiro. E, pela mensagem, existem mais três. Agora, está na sua vez de relacionar o que eu disse com o que você sabe sobre John Dee, Shakespeare etc. - aconselhou Pietro, encarando-o.

O jornalista sentou-se no sofá, abriu seu bloco de notas e escreveu as palavras:

John Dee — Tempo

Infinito ¥

Quadrado-círculo - octógono

Levantou-se e andou de um lado para o outro. Por alguns minu­tos, ficou centrado em si mesmo, alheio à presença do padre, que estava sonolento na poltrona. "Preciso de um espresso duplo", pensava Pietro quando foi surpreendido pela vibração de David.

É isso!

O quê? - quis saber, levantando-se.

Pegue um casaco. Vamos sair — ordenou o jornalista, guardando o robô-abelha no pequeno saco negro e entregando-o a ele. — E esconda isso em algum lugar do armário.

Para onde vamos?

Eu explico no caminho — retrucou David, guardando o bloco de notas no bolso do paletó, juntamente com a mensagem decifrada.

 

Entre algumas árvores do Hyde Park, ao lado de uma pedra, dois policiais seguravam holofotes e iluminavam um corpo decapitado, com mãos e pés amarrados por cordas. Usando luvas e máscara, o perito per­manecia agachado ao seu lado. Evitava tocá-lo. Em pé, rondando a cena do crime, Eric Kemp procurava vestígios do criminoso. Parou próximo a uma árvore e mirou o Mandarin Oriental através da névoa tênue. "Desse ponto, era possível acompanhar o movimento de entra e sai", observou. "Talvez essa vítima fosse comparsa do criminoso, estava aqui para dar co­bertura, e foi morto assim que ele deixou o hotel. Queima de arquivo", deduziu, voltando para perto do perito.

Gostaria de saber a hora exata em que ele morreu - solicitou Kemp.

Não faz muito tempo. Mas é preciso uma análise mais detalhada. Não consigo fazer isso aqui. Precisamos transportar o corpo para o laboratório.

Tenho que pedir autorização a Wensley antes de remover o corpo. Foi decapitado, não?

Sim. E a cabeça não está aqui.

"Ele deve ter levado consigo para impedir a identificação da vítima", concluiu Kemp, voltando-se para o perito:

Então, teremos que identificá-lo pelas digitais?

—Veja isso — mostrou-lhe, levantando a mão do morto.

O assassino queimou os dedos desse infeliz!

Não queria que identificássemos esse homem — retrucou o perito.

Certamente. Sem digitais, sem mandíbulas... — murmurou Kemp.

O que faremos? — perguntou um dos policiais que segurava o holofote. —Vou descobrir agora - respondeu o agente, pegando o celular no bolso e afastando-se um pouco do grupo. Acessou o número de Wensley. Pouco antes de cair na caixa postal, seu chefe atendeu:

—Você sabe que estou em uma investigação delicada, não? Por que me ligou?

Primeiro, preciso de sua autorização para remover o corpo da vítima decapitada no Hyde Park.

Autorização concedida. Só isso?

Não. Acredito que esse crime tenha conexão com o assassinato da top model e do seu segurança — revelou Kemp.

O assassinato da modelo já foi solucionado! — explodiu Wensley. - Em vez de atrapalhar meu trabalho, use seu tempo para tirar esse corpo daí antes que os urubus façam a festa.

Não quer que eu relate as evidências?

Escreva um relatório e coloque na minha mesa. Antes de ler, vou tentar adivinhar qual é axteoria conspiratória da vez — disparou, desligando em seguida.

Seu cretino corrupto! — Kemp deixou escapar, voltando para perto da equipe.

Qual é a ordem? - perguntou um dos policiais.

Remover o corpo para o laboratório. E tentar descobrir o mo­tivo de sua morte. Talvez ele tenha se suicidado, como o segurança da modelo - ironizou.

Conferiu o horário: quatro e quarenta e quatro da madrugada. "Es­pero que David e o padre consigam algo melhor do que eu. Precisamos pegar esses filhos da puta", pensou, a caminho da entrada do hotel.

 

Eram quase cinco horas quando o Mercedes cinza aproximou-se do Mandarin Oriental. Andrew diminuiu a velocidade.

— Hora de os coelhos saírem da toca — murmurou, observando, com um sorriso nos lábios, Pietro e David deixarem o hotel. O carro do jornalista os aguardava na entrada. Enquanto ele dava uma gorjeta ao manobrista, o padre abria um envelope.

—Vamos brincar de pega-pega, David? — resmungou Andrew.

 

Meu passaporte. Voltei a ser Pietro Amorth — comentou o italiano ao entrar no Jaguar, guardando o documento no bolso, sem conferi-lo.

Michael deve achar que você já terminou sua missão em Londres — sugeriu David, acessando o computador de bordo. — O smog já diminuiu, mas é melhor dirigir com o auxílio do navegador — explicou, digitando a palavra de destino: Greenwich.

Greenwich? O que o meridiano tem a ver com isso? — questio­nou Pietro.

Lembra-se do carro que nos seguiu em nosso primeiro encontro no Orangery?

Sim. Por quê?

Está aí atrás - respondeu o jornalista, olhando pelo retrovisor.

Andrew, o assassino! — explodiu Pietro.

O assassino que volta ao local do crime — comentou David, pi­sando no acelerador. O carro que o seguia aumentou a velocidade para acompanhá-lo.

O que ele quer agora?

Ele está nos usando. Quer que encontremos algo para ele.

O que quer que seja, David, deve ser achado e destruído.

Na rotatória, pegue a quarta saída para a Duke of Wellington — orientou a voz feminina do GPS.

O que vamos fazer? — questionou o padre. — Precisamos despistá-lo - respondeu a própria pergunta.

Conheço alguém que pode nos ajudar - revelou o jornalista, acessando o número de Mister Jones. Em seguida, o agente ligou de volta:

Estou em uma investigação...

Poupe suas palavras, Mister Jones. Deciframos aquele estranho objeto. Estamos sendo perseguidos pelo ladrão do British Museum — in­formou David, observando o carro de Andrew pelo retrovisor.

Para onde estão indo?

Greenwich — respondeu o jornalista. — Acho que esconderam algo lá.

Foda-se o Wensley — murmurou o agente — Estou indo dar cobertura.

David acelerou. O padre olhou o velocímetro: cento e vinte quilô­metros por hora.Virou-se para trás. O outro carro se aproximava.

 

Andrew chantageara o manobrista do Mandarin Oriental e plantara uma escuta no Jaguar. Aquele pequeno dispositivo transmitia-lhe os diálo­gos travados no carro da frente. Conhecia o destino dos dois homens e sabia que, em breve, seria perseguido por um carro da Scotland Yard.

—Você sempre foi um fraco, David - disse em voz baixa, acelerando seu carro. — Não consegue se garantir sozinho? Enquanto seu amiguinho não chega, vamos brincar um pouquinho.

Curva suave à esquerda na Vauxhall Bridge Road — anunciou a voz feminina do GPS.

Cala a boca, vadia! Assim não consigo escutar o que aqueles dois idiotas estão conversando — esbravejou Andrew.

 

O padre forçou as costas no encosto, colocou as duas mãos nas laterais do banco e segurou com força. Os cortes nos pulsos latejavam. Fitou o espelho lateral. O assassino se aproximava. Fechou os olhos. "Meu Deus, nos livre desse homem", rezou em pensamento. Ao seu lado, David pisava fundo no acelerador. O velocímetro passava dos cento e trinta e cinco quilômetros por hora.

 

Em menos de cinco minutos, Michael chegara ao Victoria and Albert Museum. Raros carros passavam na Cromwell Road. Nenhum pedestre cruzava a imponente entrada. Ele ficou embaixo dos arcos da Grand Entrance. "Detesto museus. Não entendo o que isso tem a ver com a missão", murmurava ao ser surpreendido por um homem de esta­tura baixa, trajando um sobretudo chesterfield tradicional, moda no século XIX. A gravata com listras diagonais nas cores azul-escuro, azul-claro e vermelho era entrelaçada por listras brancas e combinava com o lenço re­pleto de quadrados vermelhos vazados, decorados por pontos azuis. Um chapéu fedora cobria-lhe a cabeça, e óculos redondos de armação preta emolduravam seus olhos salientes.

O museu só abre às dez horas — informou o estranho, com um sorriso discreto.

Michael conferiu o relógio de pulso. Eram pontualmente cinco horas da manhã.

Bom-dia, senhor Chancellor. Ainda bem que não terei que esperar cinco horas para entrar aí.

Devo presumir que você é o doutor Michael — rebateu o inglês, apertando sua mão.

Apenas Michael.

Um catedrático de Harvard não deveria ser tão modesto. Por favor, doutor Michael, me siga. Entraremos pela Exhibition Road — orientou-lhe o homem, descendo os degraus de dois em dois.

Não sou um catedrático de Harvard — afirmou o americano, alcançando-o.

O homem parou e o encarou. As bochechas ruborizadas denuncia­vam sua irritação.

—Você acha que um museu inaugurado pela rainhaVictoria rece­beria como curador um homem ignorante como você? Enquanto eu for seu anfitrião, você será o doutor Michael Bates, um catedrático de Harvard! Entendeu? - repreendeu-o, voltando a caminhar com rapidez.

Como quiser, senhor Chancellor. Qual é a minha especialidade?

O senhor é especialista em arte americana do fim do século XIX e início do século XX. Seu melhor trabalho é sobre o escultor Daniel Chester French — esclareceu Chancellor, sem desviar os olhos do caminho.

E estou aqui para ser curador...

Da primeira exposição do V&A sobre Daniel Chester French. Ontem, recebemos o acervo e o organizamos em uma de nossas salas para exibições temporárias. Há algumas reproduções, em escalas varia­das, de monumentos públicos notórios, como o Abraham Lincoln do Lincoln Memorial...

Esse eu conheço — comentou Michael.

Entre as reproduções também temos "The Spirit of Life" e "Alma Mater" — prosseguiu, ignorando o americano.

Entendi. Se já está tudo organizado, o que devo fazer?

Hoje é um dia especial: o museu fechará para o público às de­zessete e quarenta e cinco. As vinte e trinta, você abrirá a exposição para alguns convidados - respondeu Chancellor.

"Entre eles, o jornalista e o padre", pensou Michael. "O senador pediu que eu colocasse um convite dentro do passaporte. O que eles querem com isso?", questionou-se.

É aqui — disse o inglês, parando, tirando o celular do bolso e fa­zendo uma ligação.

Em menos de trinta segundos, alguém abriu a porta pelo lado interno.

Bom-dia, senhores. Sejam bem-vindos aoV&A — saudou-lhes uma mulher morena de cabelos curtos, traços suaves e olhos verdes. Sorriso nos lábios. O sobretudo bege, entreaberto, insinuava um vestido preto justo.

Você... Eu te conheço — surpreendeu-se Michael, entrando no museu atrás do curador-chefe.

Creio que não, senhor.

Eu nunca me engano.Você trabalhava no Mandarin Oriental. Era massagista. Abby, não?

Chancellor segurou-o pelo braço e o fuzilou com os olhos.

—Você acha que um museu fundado pela rainhaVictoria contrataria uma massagista? Não somos como vocês, americanos, que colocam o sexo acima de tudo. Essa mulher se chama Abigail Milman e é a respon­sável pela coleção de vestidos do V&A. Entendeu?

Nossa coleção começa com modelos do século XVII - explicou a mulher, piscando o olho direito.

—Vamos, doutor Michael Bates - ordenou sir Chancellor, avançan­do e deixando os dois para trás. — Não é momento para flerte.

"Paguei essa vadia para seduzir o padre. Ela deve ter sido infiltrada pelos ingleses", pensou o americano, dando as costas para Abigail e se­guindo o curador-chefe.

 

Os dois atravessavam o Tâmisa quando sentiram o impacto. David perdeu o controle da direção, invadiu a faixa de ônibus e resvalou na grade de proteção. O carro rodopiou cinco vezes e parou na direção con­trária. Ainda atordoado, olhou pelo retrovisor. Andrew não saíra da rota. E se afastava. De repente, girou sobre o próprio eixo. Estava novamente atrás deles, acelerando na contramão. O jornalista respirou fundo e pisou no acelerador.

—Você está louco? A gente vai morrer! — berrou o padre.

Ele é que é louco! - retrucou David, desviando de um carro que trafegava na direção correta.

O celular tocou.

Onde vocês estão? - era Mister Jones, no viva-voz.

—Vauxhall Bridge — informou David. — Ele nos acertou.

Estou perto.

Vamos nos cruzar na direção contrária — explicou o jornalista. — Estou dirigindo um Jaguar esportivo preto. Ele está em um Chrysler cinza.

Estou a menos de um minuto — observou Mister Jones.

Mudança de rota - alertou David, dando um cavalo de pau no cruzamento da Vauxhall Bridge Road com a Millbank. — Millbank em direção à Abadia de Westminster.

Ele continua atrás de nós — disse Pietro, olhando pelo espelho lateral agarrado ao banco.

E eu estou atrás dos dois - era o investigador da Scotland Yard. — David, tentarei interceptá-lo na rotunda com a Lambeth Bridge. Padre, por via das dúvidas, reze para que a rua esteja deserta. Ou quase.

David atingiu cento e trinta e cinco quilômetros por hora. Andrew também pisou no acelerador, e Mister Jones seguiu atrás dos dois.

Estamos a poucos metros da rotunda. O que eu faço, Mister Jones?

Faça com que ele o persiga na rotunda. Dê algumas voltas. Irei pegá-lo em uma delas.

O jornalista reduziu a velocidade e entrou na contramão. Andrew seguiu atrás dele. Mister Jones parou a alguns metros. Esperava o momento certo para entrar em ação.

—Vai ficar aí parado, assistindo? — impacientou-se David, ao com­pletar a segunda volta.

Quando eu entrar no circuito, saia da rotunda. Pegue a ponte e siga seu caminho. A gente se fala mais tarde — respondeu Mister Jones. — Vou contar até três. Um, dois...

— Três — disse Andrew, ouvindo a conversa transmitida pela escuta no carro do jornalista.

No mesmo instante em que David fez a curva fechada e escapou pela Lambeth Bridge, Mister Jones entrou na rotunda, fechando o Chrysler cinza. Andrew bateu na lateral do carro do agente e derrapou na saída da Millbank em direção à rua Westminster. Retomou o con­trole do carro e acelerou.

—Vamos ver até quando seu carro agüenta - desafiou Andrew. No Jaguar preto, David e Pietro respiraram aliviados. O padre soltou as mãos do banco e fez o sinal da cruz.

Pelo menos por enquanto, nos livramos daquele maldito - o jor­nalista quebrou o silêncio.

Está na hora de me explicar o que estamos indo fazer em Greenwich.

—Vou dizer o que sei. Para descobrir o resto, vamos ter que acessar o Google pelo celular.

—Vamos começar pelo que você sabe - aconselhou Pietro, girando o pescoço na sua direção.

John Dee dizia que a rainha Elizabeth I era descendente do rei Arthur e que seu império deveria cobrir o planeta. Em outras palavras, ele queria transformar a Inglaterra no omphalos da Terra. Ok?

Ok. Continue...

Bem, o instrumento para realizar esse objetivo era o desenvol­vimento da Marinha. E ele dedicou parte de seus estudos a isso. Sei, por exemplo, que John Dee desenvolveu uma bússola especial. Em Gre­enwich, padre, está o Old Royal Naval College. Posso estar enganado, mas acho que ele também inventou a idéia de um meridiano de base. Em Greenwich, também fica o meridiano que divide o mundo em dois hemisférios. É o ponto zero. E é ele que orienta todos os relógios do mundo — revelou o jornalista, com um sorriso triunfal no rosto.

Boa dedução, David. Mas parece que estamos indo procurar agulha em palheiro — lamentou o padre, pegando o celular no bolso do paletó. — O que quer que eu procure na internet?

O mensageiro disse: "Quando o que está em cima se une ao que está embaixo, a eternidade é contemplada". E você falou que isso pode representar uma construção octogonal. Faça uma busca das palavras: "Greenwich" e "octogonaf.Vamos achar o palheiro, padre.

 

Uma das salas de exibições temporárias do Victoria and Albert Museum estava mergulhada na penumbra. Algumas esculturas refletiam as luzes de spots direcionados. Michael observou que dezenas delas estavam perfiladas nas laterais, dividindo o espaço com displays e fotos. No centro da sala, havia uma peça solitária encoberta por um tecido escarlate. O ame­ricano virou-se para o anfitrião e perguntou:

O espaço não poderia ser mais bem aproveitado?

Na abertura, haverá um coquetel para convidados. Eles precisam de espaço para circular e apreciar a estrela da exposição - explicou, esten­dendo a mão esquerda na direção do centro.

O que está aí embaixo? — quis saber Michael.

Depende da pessoa que observa — Chancellor deu uma res­posta evasiva.

—Você observa o quê? — insistiu o americano.

Uma autoridade em Daniel Chester French, como você, enxerga ali a sua obra-prima. Sua "Pietà".

O que você enxerga?

Uma bela escultura de 1923, gentilmente emprestada pela Corcoran Gallery of Art.

Onde fica isso?

—Washington, DC. Mas, naturalmente, você sabia disso. E quis me testar.

Naturalmente. Por que me trouxe aqui?

Para se familiarizar um pouco com o artista...

Devo ler os displays? Ou terei uma aula? — ironizou Michael.

—Vocês, americanos, precisam aprender a sutileza dos ingleses - dis­parou Chancellor, com um sorriso irônico no rosto.

E quem vai me ensinar isso? Você?

Não. O mestre.

Onde está esse cara?

Estou em quase todos os lugares — aquela voz grave repercutiu pelo ambiente. — Graças à tecnologia, Michael — o americano olhou na direção de Chancellor. O inglês segurava o chapéu na mão.

Ok.Você não está no museu. Está em Londres?

Ou em Nova York. Ou em Washington. Isso não importa.

Para mim, importa. Minha família...

Ficará em segurança - o mestre interrompeu. - A menos que você nos magoe.

O que querem que eu faça aqui?

Meus convidados são pessoas especiais, Michael. Eles fazem parte de um clube exclusivo. O que os distingue das outras pessoas? Eles en­xergam a mesma coisa no centro dessa galeria.

Todos os convidados? - indagou Michael, lembrando-se de ter colocado, a pedido do senador Bundy, um convite dentro do passaporte do padre.

Duas pessoas não fazem parte desse clube. São convidados especiais.

O jornalista e o padre?

Uma terceira pessoa, que faz parte do clube, talvez tente entrar sem convite. Você a conhece — retrucou a voz grave.

Ele... Está morto! — justificou Michael, pensando no homem que decapitara no Hyde Park.

—Você fracassou. Mas poderá corrigir o erro. Hoje à noite.

O querem que eu faça com ele? — perguntou, sentindo as pernas trêmulas.

Deixe que ele faça seu show na presença dos convidados.

O que faço depois?

—Junte-se aos convidados especiais. Eles saberão o que fazer. Agora, está na hora de deixá-lo aprender um pouco sobre o sr. French.

O curador colocou o chapéu sobre a cabeça, encarou Michael com o cenho franzido e disse:

É melhor fazer o que ele pediu.

 

Andrew olhou pelo retrovisor. O carro do agente da Scotland Yard estava cada vez mais perto. "Esse filho da puta está estragando meus planos", concluiu, pisando no acelerador na Victoria Embankment. O velocímetro marcava cento e quarenta quilômetros por hora.

Esses idiotas pensam que me despistaram. Sei o que estão tra­mando — disse, aumentando o volume dos alto-falantes.

Bingo - era a voz do padre.

O que encontrou aí? - indagou David.

O nosso palheiro. Ouça isso: "O edifício original do Observatório Real de Greenwich é a Flamsteed House, projetada por CristopherWren. A sala octogonal, situada no alto, é escondida por paredes quadradas no exterior e ostenta duas torres".

Agora falta a agulha — comentou o jornalista.

Onde você acha que ela está? Dentro da sala octogonal?

Talvez.

"O inimigo vai conduzi-lo até o tesouro. Siga suas pegadas e fique com o troféu.Todos temerão o seu poder", Andrew lembrou-se daquelas palavras de Samyaza, reveladas pelo espelho negro. Sorriu e disse:

Trabalhem por mim, idiotas. Está na hora de sair de cena.

Fez uma curva na New Bridge Street sem diminuir a velocidade. Sentiu as rodas laterais descolarem do asfalto e o impacto quando o carro voltou. O velocímetro atingiu cento e trinta quilômetros por hora na Farringdon Road. Diminuiu no cruzamento com o Holborn Viaduct e puxou o freio de mão. O carro rodopiou três vezes. Para evitar uma coli­são fatal, Mister Jones freou e conseguiu desviar-se à esquerda. O carro de Andrew parou no sentido contrário. Ele acelerou e entrou na Snow Hill. Saiu novamente para a Farringdon Road, agora no sentido contrário. Sem sinal do agente da ScotlandYard. Ouviu o celular tocar no carro de David. O jornalista atendeu no viva-voz.

Conseguiu pegá-lo?

Ele dirige como um suicida. Escapou das minhas mãos.

Ainda bem que você conseguiu despistá-lo, Mister Jones. Esta­mos a um passo de outra pista que pode ajudar nas investigações.

—Vou ao departamento supervisionar a investigação do homem de­capitado no Hyde Park e pensar em um jeito de pegar esse desgraçado. Talvez a placa do carro me dê alguma informação útil. Quando tiver novidades, me avise. Até logo.

O corpo decapitado — resmungou Andrew. — É a prova da traição do Duque Negro. Aqueles vermes vão pagar caro por isso.

Preciso de um espresso duplo — a voz do padre invadiu seu carro.

Eu me contentaria com um english breakfast. Será que sir Christopher Wren fazia parte dessa confraria negra? — ponderou David.

Talvez ele tenha apenas recebido a encomenda para projetar o prédio — sugeriu Pietro.

Como Shakespeare com A Tempestade - comentou David.

Mas isso não faz a menor diferença — rebateu o padre, emendan­do a pergunta: - Faz?

Em 1666, Londres quase inteira foi consumida por um incêndio de origem misteriosa. E sir Christopher Wren deixou sua marca na recons­trução da cidade.

Não me espantaria se a confraria negra tivesse escolhido essa data para causar um incêndio criminoso, David, 666 é o número da besta.

O número de Francesco Fiori - reforçou o jornalista.

O número dos seguidores da Colméia Dourada. O número que revelou o assassinato da Fernanda. Talvez em 1666 tenham realizado o primeiro Apocalipse Negro — deduziu Pietro.

E preparado a cidade para o segundo — completou David.

"Com uma capa azul e um chapéu de abas largas, levan­tarei de minha fortificação no lago e serei vitorioso" — o padre recordou o enigma do diabo sobre o lugar escolhido para atacar.

Seus porcos malditos. Vocês nunca verão o brilho das pérolas — disparou Andrew, terminando a frase com uma gargalhada.

 

Menos de um minuto após desabar na cama do quarto de visitas, Mary adormecera. Pouco depois, era carregada nos braços de Morfeu e deixava a casa de David para passear no jardim da casa de seus pais. A pri­mavera pintara-o com várias cores. Céu azul. "Quero chegar até a fonte", pensou. O desejo moveu suas pernas até o centro do jardim. A água es­corria sob uma mulher, esculpida em mármore. A mão esquerda repousava sobre uma corça. A direita buscava uma flecha na aljava. "A deusa Diana." Escureceu. Olhou para cima. A nuvem negra cobria o sol. Um estrondo. Um dragão vermelho-fogo surgiu de dentro da nuvem. Mary contou sete cabeças e dez chifres. Em sua cauda, dezenas de esferas de fogo se agitavam de um lado para o outro. Alguém gemeu diante dela, forçando-a a desviar os olhos do monstro alado para a fonte. Uma mulher ocupava o lugar da escultura de mármore. O rosto estava desfigurado. Sangue jorrava de sua vagina e vísceras caíam de um corte em seu baixo ventre.

Fernanda?

Minha amante — alguém respondeu.

Quem está aí?

Não me reconhece mais, querida?

Sammy? É você? - perguntou Mary, olhando para cima.

Está com saudades?

Quer transar comigo? — ela retrucou.

Transaria com você por toda a eternidade. Mas precisamos obe­decer algumas regras. Beba a água da fonte.

Isso não é água. E sangue — rebateu a americana, observando a bacia de mármore sob a amiga.

Está com nojo de mim, Mary? - questionou Fernanda.

Beba o sangue sagrado — insistiu a voz masculina.

Ela inclinou-se sobre a fonte e mergulhou as duas mãos no líqui­do avermelhado. Levou-o a boca. "É delicioso", concluiu, esticando a cabeça para baixo da vagina de Fernanda. O sangue cobriu sua cabeça e escorria pelo rosto.

Abra os olhos, querida.

Novamente, ela obedeceu. Outro estrondo no céu. Mary virou o rosto para cima. Com a cauda, o dragão segurou uma das esferas de fogo e a arremessou diante da fonte. Um homem saiu da cortina de fumaça. Era o jogador de pôquer, amigo de seu pai, Sammy, vestin­do uma capa azul-marinho. Com um sorriso malicioso no rosto, ele perguntou:

Lembra-se do segredo que lhe contei?

Seu encontro com Deus?

A festa que você deve preparar para me receber.

Por que você fez isso com a minha amiga? — perguntou Mary, apontando para a mulher da fonte.

Para que a verdade fosse revelada.

Ela não merecia...

Ela se tornou uma deusa - justificou Sammy, retirando a túnica que o cobria. Estava completamente nu. Pênis ereto. - Lembra-se da va­rinha mágica?

Eu te odeio! — berrou Mary.

E se eu mudar meu rosto e ficar assim?

Em um piscar de olhos, não era mais Sammy diante dela. Era David. Ela ficou de joelhos e colocou seu sexo entre os lábios.

Com mais força - o jornalista dizia, enquanto Mary o chupava. — Agora, fique de quatro!

Ela interrompeu o sexo oral e se colocou na posição que seu chefe pedira. O jornalista meteu a mão por baixo da saia e arrancou a roupa íntima. Penetrou-a com violência. Dor. Mary levantou a cabeça. Com o rosto desfigurado, Fernanda Albuquerque se masturbava. Um berro. Seu parceiro atingia o clímax.

Dói... Dói muito — reclamou a americana, sentindo as entranhas em convulsão.

Essa é a minha melhor mágica, Mary. E ela tem um preço.

Reconhecia a voz. Sammy estava de volta.

Deu um salto da cama. Pegou o relógio. Eram sete e trinta e três da manhã.

Tudo tem um preço — ela murmurou. "Preciso pegar umas coisas em casa. Será que Abby pode me ajudar com isso?". Acessou o número de uma das integrantes do coven. Ela não demorou para atender.

Olá, Mary. Tudo bem?

Desculpe pelo horário. Mas preciso de sua ajuda.

Não se preocupe com o horário. Estou trabalhando.

Preciso pegar umas coisas em casa... — adiantou-se a americana.

Minha namorada está livre. Ela pode te ajudar — respondeu Abby.

— Obrigado. Ligarei para a Jessica. Até logo.

 

O Jaguar estacionou diante do Observatório Real de Greenwich. Antes de abrir a porta, Pietro virou-se para David:

O que vamos fazer?

—Tentar achar o segundo mensageiro — respondeu o jornalista, per­cebendo um segurança se aproximar do carro. Abriu a janela.

—Acho que seu relógio está adiantado, senhor. O horário de visitação pública começa às dez horas. Peço que volte em duas horas — informou-lhe o homem moreno de testa larga e olheiras fundas.

Senhor Dyer - disse David, conferindo seu nome no bolso do casaco. — Não estou aqui para uma visitação pública. Tenho uma licença especial da rainha que me permite não respeitar horários.

—Tenho ordens para não deixar ninguém visitar Observatório Real fora do horário. Nem mesmo a rainha.

—Acho que ela não aprovaria essa conduta, senhor Dyer, ainda mais se ela mesma tivesse me pedido para fazer um tour com o primeiro-ministro italiano, antes da audiência privada às dez horas - dissimulou David.

Não tenho a chave do Observatório Real. O responsável chega às nove e meia. Portanto, não posso ajudá-los.

Não precisamos entrar no observatório. Acho que o primeiro-ministro se contentaria em dar uma volta no pátio, e tirar uma foto com um pé em cada hemisfério - explicou David, abrindo a porta do carro.

Tudo bem. Mas, antes, quero ver essa licença especial — solicitou o segurança.

O jornalista fingiu impaciência. Abriu a carteira e retirou um do­cumento. Entregou-o a Dyer. O segurança o conferiu rapidamente e devolveu-o, sem conseguir esconder o nervosismo.

Sir David Rowling, fique à vontade. Se quiser alguma coisa, é só me pedir.

Ele guardou o documento no bolso e fez um sinal com a cabeça para que o padre saísse do carro.

Que documento é esse? — indagou Pietro, em italiano.

Um documento falso que me abre algumas portas — respondeu-lhe, também em italiano. — Agora, vamos passear um pouco.

Não vai adiantar nada. O que procuramos deve estar dentro da sala octogonal — o padre reclamou, em sua língua materna.

O segurança seguiu na frente dos dois, abriu o portão para o pá­tio do observatório e voltou ao seu posto. David subiu uma pequena ladeira, acompanhado pelo italiano, e parou diante de um relógio de vinte e quatro horas.

—Você acha que o segundo mensageiro está aí? — perguntou Pietro.

Atrás de alguma dessas placas de metal? Pouco provável.

Passaram pelo portão de ferro e chegaram ao pátio.

Ali se inicia o meridiano de Greenwich, padre - explicou o jor­nalista, avançando até a placa que o anunciava: "Prime Meridian of the World". A linha vermelha que começava pouco acima dela atravessava um marcador digital, logo abaixo, e era interrompida por uma porta. Ressur­gia incrustada no chão e percorria o pátio de pedra.

Coloque uma perna de cada lado e sorria — instruiu David, acio­nando a câmera digital de seu celular.

Não temos tempo para brincadeira! — esbravejou Pietro, esfre­gando os dedos nas palmas das mãos.

Despertaremos menos suspeitas se imitarmos o gesto clássico dos turistas que visitam o lugar - argumentou David.

—Você acha que está aqui? Atrás desta porta? Embaixo desta linha? - inquiriu o padre, colocando uma perna de cada lado da linha e fitando a escultura moderna de metal à sua frente.

Sorria, primeiro-ministro — pediu o jornalista, disparando a foto.

Agora, deixa de tolice, David. Acha que o mensageiro está aqui?

Acho que eles o colocaram em um lugar mais protegido.

Como assim?

Em algum lugar que tenha o mesmo significado, mas esteja a salvo das inovações tecnológicas.

Há outro meridiano?

David aproximou-se dele e sussurrou:

No lado externo do Flamsteed House, há um marco rudimentar, em pedra. Acho que nunca foi modificado. E tem o mesmo significado. Me acompanhe.

Os dois saíram do pátio e contornaram o muro. David parou diante de uma placa de pedra desgastada pelo tempo. Na primeira linha, a segunda palavra da inscrição "Greenwich Meridian" era quase ilegível. Na segunda, à esquerda, lia-se "West Longitude" e, à direita, "East Longitude". Emendada a essa placa, havia outra. Era branca e apresentava uma linha fixada no centro. O padre olhou para cima. A escultura de metal reluzia no pátio do observatório.

É a continuação? — indagou.

Sim.

Acha que está aí?

Só tem um jeito de descobrir isso — respondeu David.

Como?

Preciso da caixa de ferramentas que está no carro. Espere aqui que já volto.

O padre sentiu os pulsos latejarem. Uma fisgada no supercílio es­querdo o fez fechar os olhos. Ao abri-los, teve a impressão de que alguém o observava. E não era o senhor Dyer.

 

Estava a poucos minutos do departamento central de investigações. Sentiu o celular vibrar no bolso da calça. Chamada não identificada. Atendeu no viva-voz.

O que você conseguiu antes de Wensley assumir a investigação? - era seu chefe.

"Não sei se ele é confiável", pensou, antes de responder:

Nada. Consegui depois.

O quê?

Havia um homem decapitado no Hyde Park. Acredito que tenha sido queima de arquivo — explicou.

—Você teve sua chance. Está fora do caso.

Suspeito que Wensley esteja agindo de má-fé - entregou Kemp.

Essa acusação é muito grave. Se não tem como provar, sugiro que cale a boca.

Ele resolveu o caso sem analisar todas as possibilidades.

Conversei com ele. A investigação foi impecável.

Peço permissão para ouvir o empresário de Fernanda Albuquerque - solicitou Kemp.

Consta no relatório que ele se suicidou depois de chamar a polícia.

Eu o encontrei. Ele não estava morto. Chamei a ambulância. O paramédico disse que ele tinha boas chances de sobreviver.

Ele chegou morto ao hospital.

Mais um indício de que algo está errado! — explodiu Kemp.

Isso só prova que o paramédico se enganou.

Me deixe investigar as outras hipóteses. — Você está fora!

E se eu disser que estou perto da verdade? — insinuou o agente. —Vou achar que você está querendo provar mais uma de suas teo­rias conspiratórias, e vou ser forçado a te dar uma licença médica.

E o homem decapitado?

O perito não conseguiu identificá-lo.

"Esse filho da puta está jogando comigo. Ele faz parte do acobertamento", deduziu, estacionando o carro.

O que quer que eu faça?

Acompanhe o caso do assassinato de sir Alexander Cotton.

Ele foi transferido para o SID — rebateu Kemp.

— Você também.

O investigador ficou em silêncio. E esmurrou o painel do carro.

Não vai me agradecer pela promoção? — perguntou seu chefe. Kemp percebeu a ironia e disparou:

Desde quando é promoção correr atrás de fantasmas, demônios, bruxas, criaturas bizarras?

Desde que seu salário aumente e você tenha autonomia para investigar o que quiser. Ninguém leva essa divisão muito a sério mesmo — explicou-lhe.

Autonomia?

É um preço justo, não acha? Sua nova identificação está na pri­meira gaveta da sua mesa. Adeus.

O agente desceu do carro e ativou o alarme. Havia poucos veículos no estacionamento. Em menos de um minuto, venceu a distância de sua vaga até o elevador.Apertou o botão. A porta se abriu no mesmo instante.

Bom-dia, Rachel - cumprimentou a ascensorista de quarenta e poucos anos, com o cabelo preso.

Bom-dia, senhor — ela respondeu, com um sorriso discreto no rosto. Apertou o terceiro andar.

É a última vez que você me leva ao terceiro andar.

Por quê? — ela fingiu interesse.

Fui transferido.

Que bom — comentou Rachel. — Chegamos — anunciou, aper­tando outro botão no painel. A porta do elevador se abriu diante do relu­zente hall com paredes prateadas. Kemp virou à esquerda. Tirou o cartão do bolso e passou em um leitor ao lado da porta de vidro.

Seja bem-vindo, agente Kemp - saudou a voz feminina do com­putador, dando-lhe acesso à recepção do andar.

Atrás de uma mesa branca, a morena de trinta e cinco anos, apa­rentando dez a menos, sorriu. A armação rosa dos óculos realçava o lápis nos olhos e combinava com a cor de seus lábios. Trajava uniforme: saia e casaco azul-escuro. Os primeiros dois botões da camisa branca estavam abertos, revelando o que os investigadores daquele departamento gosta­riam de apalpar, mas apenas Wensley tinha o privilégio. Era um segredo que todos conheciam. E invejavam.

Bom-dia, Samantha — cumprimentou o agente, desviando os olhos para seus seios.

Bom-dia, senhor Kemp. Parabéns pela transferência — ela respon­deu, fazendo-o deixar seus atributos de lado e encará-la.

Como você sabe disso?

Sua mudança foi feita esta manhã.

"Ele me transferiu antes de conversar comigo. E se eu tivesse recusado?", ponderou, avançando para uma porta de vidro e dizendo:

— Vou pegar meu novo cartão.

- Está na primeira gaveta da sua antiga mesa — orientou Samantha, apertando o botão que dava a acesso a um corredor estreito.

 

Não havia ninguém ali. Pelo menos, ninguém que Pietro conseguisse enxergar. Deduziu que era apenas um mau pressentimento. Rezava em silêncio quando David apareceu. Mãos vazias. Estava prestes a perguntar como chegariam ao mensageiro quando o jornalista passou a mão direita por trás do casaco e pegou algo preso às costas. Era um pequeno martelo. Olhou em todas as direções. Aparentemente, ninguém os vigiava. Aproxi­mou-se do muro. Com as costas da ferramenta, deu pequenas batidas na placa branca dividida pelo meridiano. "Ela deve estar fixada nos blocos", deduziu. Repetiu o gesto com a placa que estava acima dela. Um baque oco. "Deve estar aqui atrás", concluiu, olhando para o padre e informando:

- Acho que está aqui. Precisamos quebrar isso.

- Vá em frente — encorajou Pietro.

- Se o vigia se aproximar, grite - orientou David.

Pietro afastou-se alguns passos para aumentar seu campo de visão. E disse:

— Vá em frente.

O jornalista segurou o martelo com força e o apoiou na parte mais desgastada da placa. "Devo estar louco", pensou, levando a mão para trás. Respirou fundo e golpeou o meridiano. Notou um leve afundamento. "Preciso colocar mais força", deduziu, olhando para os lados. Repetiu o gesto. O centro da placa afundou um pouco mais. Ele conseguiu enfiar o martelo no buraco. Prendeu-o em uma das laterais e forçou-o para fora. A parede cedeu. David esticou a mão e penetrou a cavidade escura. "Uma câmara. Deve estar aqui, em algum lugar", disse para si, tateando seu interior. Sentiu uma saliência metálica. Enganchou dois dedos e a puxou para si. Detritos de pedra e pó caíram sobre sua cabeça e seu rosto. Com eles, chegou uma pequena caixa de ferro, carcomida pela ferrugem.

Ele colocou a outra mão na câmara secreta para verificar se não havia mais nada. Estava vazia. Prendeu a "arma do crime" nas costas e a escondeu sob o casaco.

Ao entrar no carro, Pietro estendeu as mãos. O jornalista tirou o martelo das costas e o colocou no chão, atrás do banco de Pietro. Em seguida, entregou-lhe a caixa de metal, com um sorriso nos lábios, e disse:

O mensageiro deve estar aí dentro. Estamos com a segunda pista.

Pietro tentou levantar duas travas metálicas nas laterais. Nada.

Esta merda está enferrujada!

Tente usar o martelo - aconselhou David, pisando no acelerador.

O padre pegou a ferramenta. Com algumas batidas, conseguiu amolecer duas linguetas de metal. Usando as duas mãos, destravou a tampa. Forçou a abertura. Ela rangeu. Forçou mais. Cedeu. Seus olhos contem­plaram, admirados, uma abelha dourada, com manchas escuras. Retirou-a da caixa e a virou para baixo. Não havia cordas. "Como se abre isso?", questionou-se. Girou o mensageiro diante de seus olhos. Encontrou duas cordas na fronte do inseto.

—Vamos tentar decifrar isso antes de voltar ao hotel, padre. Andrew pode estar à nossa espera — sugeriu o jornalista.

Não vai ser muito simples, mas vou tentar — consentiu, voltando o objeto na caixa e pegando seu bloco de notas no bolso do casaco.

Abriu na tabela de transcrição da linguagem enoquiana. A menos de um quilômetro de distância, um carro os seguia. Andrew aumentou o volume das caixas de som.

 

O SID ficava três andares abaixo do térreo. Seus investigadores quase nunca eram vistos e, com freqüência, viravam piada nos outros departa­mentos. Eram chamados de toupeiras, por trabalharem embaixo da terra. O agente Eric Kemp estranhou a nova recepcionista. Deduziu que a mulher tivesse quase cinqüenta anos. Os óculos de armação grossa eram pretos, e acentuavam os traços mal-acabados de seu rosto. O uniforme verde-escuro fora feito sob medida para acomodar tantos quilos a mais. E, mesmo assim, curvas se exibiam nas dobras da camisa. "Vou sentir saudade da Samantha", pensou, cumprimentando-a com um sorriso no rosto.

Bom-dia.

Bom-dia, senhor Kemp. Sua sala é a da quinta porta à esquerda...

Tenho uma sala? — surpreendeu-se.

Sim. Em duas horas, o agente Cecil o levará para conhecer as instalações. Os dossiês que você solicitou já estão sobre a mesa.

Quais dossiês? — indagou-lhe, intrigado. Não pedira nada a ninguém.

Não tenho acesso a essa informação, senhor Kemp.

Ele passou pela porta prateada e seguiu por um corredor largo até a quinta porta à esquerda. Afixada a ela, uma placa metálica com a ins­crição: Mister Jones, agente especial. Eric Kemp deu um grito, que ecoou pelo corredor. Colocou o indicador no leitor ao lado da porta e olhou fixamente para um ponto de luz. Ela se abriu.

"Eles sabem disso? Posso ser acusado de traição e ser expulso da corporação", desesperou-se, entrando na ampla sala de cinqüenta metros quadrados. Carpete preto. Mesa de trabalho extensa, com computador, scanner, aparelho para video-conferência. Um quadro na parede atraiu sua atenção. Aproximou-se. Um anjo caído, com a cabeça voltada para baixo, vasculhava gavetas abertas no próprio corpo. Olhou para a mesa nova­mente. Dois volumes espessos, encadernados em preto, estavam ao lado do teclado. Um bilhete repousava sobre eles:

 

Caro agente Kemp, você deve ter se assustado com o nome na porta de sua sala. Foi apenas uma brincadeira para lhe mostrar que sei tudo sobre você. Mas não se preocupe. Estamos do mesmo lado nesta batalha. Sei que não aprecia arte, mas tomei a liberdade de decorar sua sala com esse quadro do espanhol Salvador Dali: "O anjo caído". Daqui para frente, você não encontrará respostas dissecando cadáveres. Elas estão escondidas nessas gavetas. Boa sorte, P.

 

Ele se sentou na poltrona confortável e pegou o primeiro volu­me. Sua identificação, uma combinação alfanumérica, estava impressa em dourado na lateral. A primeira página revelava o caso: "Assassinato de sir Alexander Cotton". Folheou rapidamente as primeiras cem páginas. Era uma biografia detalhada do lorde. Deixou o volume de lado e arrastou o segundo dossiê para diante de seus olhos. Deduziu que tivesse mais de três mil páginas. Levantou a capa. Caso: "Esposas do diabo I". Checou o conteúdo: relatórios detalhados dos crimes do Estripador de Londres, fotos das vítimas em close, entrevistas em off com membros da seita satânica Colméia Dourada e trechos de conversas sigilosas que ele mantivera com o jornalista David Rowling.

— Esses filhos da puta me espionaram... Onde chegaram com essa investigação paralela? — questionou-se, avançando as páginas. De­parou-se com fotos do homem que roubara o British Museum, e que ele interceptara aquela manhã. Para os "toupeiras", Andrew era apon­tado como o principal suspeito dos crimes que chocaram a sociedade londrina.

 

A combinação era simples. Bastava acertar duas letras. Ou números. Enquanto o padre tentava desvendar o primeiro código, David ligou para o repórter que cobrira a coletiva de Fernanda Albuquerque. Ele atendeu com a voz sonolenta.

Olá, David.

Olá, George.Você precisa voltar ao hotel em que Fernanda Albu­querque estava hospedada.

A que horas?

Agora.

Agora?

Sim. Ela foi assassinada ontem à noite - revelou David, sem rodeios.

O quê? - indagou o repórter, com a voz assustada.

Fernanda Albuquerque foi morta. A Scotland Yard deve estar concluindo a investigação.Vá para lá. Até logo — despediu-se.

Podem ser iniciais de um nome. Ou uma data - murmurou o padre.

Não me lembro de ter sonhado com nada assim — continuou, em italiano.

Naquela mensagem que você decifrou, não havia uns números? - indagou David.

Qual mensagem?

Acho que ela está aqui comigo — respondeu o jornalista, colo­cando a mão no bolso da calça e pegando um pedaço de papel dobrado. Entregou-o ao padre. Ele o abriu. Era a transcrição que fizera da mensa­gem que David recebera em sonho:

 

Coloquei meus pés no sul e olhei à minha volta dizendo: "Não são os Trovões do Crescimento de numero 33 que reinam no segundo ângulo? Sob eles coloquei 9639 que nunca foram numerados, exceto um. Nele o segundo princípio das coisas está e cresce forte. Sucessivamente, também são os números do tempo. Seus poderes são como os do primeiro 456. Levantem-se, Filhos do Prazer, e visitem a Terra. Eu sou o Senhor Vosso Deus que E e vive para sempre. Em nome do Criador, movam-se e revelem-se como agradáveis entre­gadores para que possam louvá-Lo entre os filhos dos homens".

 

Deve ser isso — comemorou o padre, fazendo as duas cordas na fronte da abelha marcarem o número 33.

Foi o próprio John Dee quem me deu esses códigos — observou David, olhando com o canto dos olhos para as mãos do padre.

Deve ter sido o demônio que lhe entregou essa mensagem — rebateu Pietro, puxando as duas antenas, como fizera com o primeiro mensageiro. Os dois ouviram o ranger de engrenagens. As partes externas das duas asas se desprenderam do corpo. O italiano levantou primeiro a direita. Abaixo dela, quatro cordas. Cada uma rodeada por oito símbolos da linguagem enoquiana.

O que tem aí? — quis saber o jornalista.

O padre levantou a asa esquerda, encontrando mais três cordas e vinte e quatro caracteres.

O que tem aí? — insistiu David.

Não sei por que, mas o demônio te deu a chave para abrir isso aqui — comentou Pietro, consultando a tabela de transcrição e marcando o número 9639 nas cordas à direita. Em seguida, alinhou 456 à esquerda. Puxou as antenas novamente, apoiando o robô dourado na tampa da caixa de metal. David parou o carro em um semáforo e observou o se­gundo mensageiro se dividir ao meio e exibir um cilindro prateado, com ranhuras semelhantes às do primeiro. A buzinada do carro de trás fez o motorista olhar para a frente. O sinal estava aberto.

—Vamos, padre. Tire a mensagem — impacientou-se David.

Pietro retirou o canudo metálico do mensageiro e o guardou no bolso.Virou-se para o jornalista e comunicou:

Faremos isso no hotel.

Por quê?

O carro está em movimento. Posso danificar a mensagem. Além disso, a lupa ficou no meu quarto. Não tenho como decifrá-la aqui. E também preciso de um expresso duplo — justificou-se.

—Você tem razão. É melhor esperarmos — consentiu David. — Não tenho resposta para a sua pergunta...

Qual pergunta? - indagou o padre, guardando a abelha na caixa enferrujada.

Por que John Dee, ou o demônio, me deu a chave para decifrar isso?

Os dois ficaram em silêncio.

 

A menos de um quilômetro de distância, Andrew sorriu e respondeu a pergunta que ouvira por intermédio da escuta:

Ele não entregou para você.Você está trabalhando para mim.

O celular acusou uma mensagem. Era um funcionário do Mandarin Oriental: Já fiz o que me pediu. Por favor, deixe minha família em paz.

As escutas já estão no quarto. Vamos ver o que esses idiotas vão descobrir — gabou-se Andrew, acelerando o carro.

 

O sinal sonoro do relógio em seu pulso avisou que eram nove horas, pontualmente. Terminou de escrever o bilhete e o deixou sobre o travesseiro:

 

Querido, agradeço por tudo o que tem feito por mim. Queria trabalhar, mas não me sinto bem. Vou aceitar seu conselho. Pedi a uma amiga do coven para me acompanhar até minha casa. Preciso pegar algumas coisas. Não demoro. Se você passar por aqui antes de eu chegar, não se preocupe. Beijos, Mary.

 

O Mini Cooper preto estava estacionado diante da mansão do jor­nalista. Mary trancou a porta da frente com a chave reserva e foi ao carro, vestida casualmente: calça jeans, tênis preto, camiseta branca e um four pocket duffle coat da Burberry. Bolsa LouisVuitton a tiracolo. Óculos escuros Prada. Jessica diminuiu o som assim que a líder do coven se sentou. A americana identificou a voz do vocalista do Oásis.

Que tragédia, Mary — comentou a motorista, com os olhos compassivos e os lábios apertados.

Obrigada por me ajudar — agradeceu a americana, aproximando-se e beijando seu rosto.

Fazemos parte da mesma família. Já descobriram o desgraçado que fez isso?

Jacob, o empresário, me ligou depois que encontrou... — Mary interrompeu a frase. Tirou os óculos e limpou as lágrimas. Tornou a co­locá-los.

Querida, não precisa falar sobre isso agora — aconselhou Jessica, colocando a mão esquerda na perna da americana. — Você quer ir direto para sua casa ou prefere tomar um chá primeiro?

Quero café. Preciso de café. Você acha que alguém é capaz de matar por amor?

Para defender a pessoa que ama? - a inglesa tentou esclarecer melhor a pergunta.

Matar a pessoa que ama.

Isso não é amor. É loucura.

Acho que depende do que existe depois... — comentou Mary, em voz baixa.

Depois do quê?

Da morte.

Como assim?

Por exemplo, os jovens que fazem um pacto e se suicidam estão abrindo mão desta vida por algo melhor na outra — explicou a americana.

Mas aí não seria assassinato — rebateu Jessica.

E se, depois do pacto, um dos amantes mata o outro e depois se mata? Não dá na mesma?

Talvez... — balbuciou a inglesa, pensativa. — Mas por que você está falando sobre isso? — prosseguiu, estacionando o carro diante de uma Starbucks.

Porque acho que foi isso o que aconteceu com a Fernanda e o Harold.

Quem é Harold?

O chefe da segurança.

—Você o perdoaria? — perguntou Jessica, desligando o carro e en­carando a líder do coven.

Sou paga, mas acho o cristianismo fascinante. Deus sacrificou seu próprio filho por amor... E bilhões de pessoas acreditam nisso.

O que isso tem a ver com a morte de sua amiga pelo chefe da segurança?

Eu conhecia o Harold. Ele amava a Fernanda. Não duvido que tenha matado por amor. Não duvido que tenha morrido esperando encontrá-la no Paraíso - revelou a americana, abrindo a porta e saindo do carro.

 

Sentado à escrivaninha na sala da presidential suite, Pietro acendeu o abajur e colocou a lupa sobre o pergaminho retirado do segundo mensa­geiro. Abriu seu bloco de notas na tabela de transcrição e tomou um gole do espresso duplo que David acabara de deixar ao seu lado.

Isso vai me animar! — disse o padre, com um largo sorriso no rosto.

No sofá, o jornalista servia uma xícara de english breakfast. Sentia-se cansado e sonolento. Desejava que a bebida tivesse o efeito animador do café de Pietro.Tomou um gole e bocejou. Outro gole. "Preciso ligar para Paul Reiner. O assassinato de Fernanda vai explodir. Tenho que passar na redação e fechar essa capa. Mas não conseguirei fazer isso sem descansar um pouco. Será que Mary conseguiu dormir?", pensava. Pegou o celular no bolso e acessou o número do diretor do The Star.

Olá, David, quais são as novidades?

A maior delas? Fernanda Albuquerque foi assassinada.

Como? — assustou-se Paul.

— A ScotlandYard trabalha com a hipótese de crime passional. Ela foi morta pelo chefe da segurança.

Onde ele está?

Depois do crime, se suicidou.

Essa é a nossa capa! Tente algo inédito, David.

Minha assistente está em choque. Dei uma licença para ela e mandei George ao Mandarin Oriental...

Ele é um repórter inexperiente — interrompeu-o o diretor. — Não vai conseguir arrancar nada de ninguém. Não quero a mesma matéria que os outros farão.Você deve entrar nisso.

— Ele vai fazer a apuração oficial. Quando eu estiver na redação, acionarei meus contatos. Ok?

Se isso significar a melhor matéria sobre o crime, ok - consentiu o diretor do The Star.

Não estarei na reunião de pauta. Até logo — despediu-se David.

"E não farei a melhor matéria sobre o caso. Isso merece um livro, não algumas laudas", retrucou em pensamento, tomando mais um gole de chá e levantando-se do sofá. Xícara à mão. Andou de um lado para o outro, olhando, discretamente, na direção de Pietro.

A paciência é uma virtude, David — comentou o padre, pegando a xícara de café e virando-se para o jornalista. Tomou dois grandes goles. Pegou um papel e saltou da cadeira. Sorriso no rosto. - Estou ficando bom nisso. Se for expulso do sacerdócio, talvez me dedique a traduções — brincou Pietro, aproximando-se do parceiro.

O que temos aí?

Outro enigma.

Naturalmente, padre. O que diz?

Onde o bardo via maldição, o papa enxergou santidade. O castelo defendido é o mesmo que esculpe a glória daquele que há de reinar para sempre. O porão resplandece seus segredos — o padre leu a tradução.

David terminou a xícara de chá e pegou o bloco de notas. Sentou-se no sofá, caneta à mão:

Bardo — Shakespeare

"A louca que defendeu o castelo é Joana D Are", deduziu, escrevendo na segunda linha:

Joana D'Arc - Henrique VI (peça do bardo)

Joana D'Arc foi canonizada pela Igreja, não? — indagou ao padre.

Santa Joana D'Arc foi canonizada pelo papa Bento XV em 1920 - explicou Pietro. - Ela é a louca do bardo?

Shakespeare, novamente ele, retratou Joana D'Arc em uma de suas peças. Se eu estiver certo, o castelo defendido é a França - observou David, fazendo uma nova anotação abaixo do nome da santa:

France

French Castle

Como o castelo pode ter esculpido algo, padre? — questionou o jornalista, levantando-se e andando de um lado para o outro.

Alguém deve ter esculpido.

É isso! French também é sobrenome. Deve ser uma pessoa — con­cluiu David, sorrindo.

É o sobrenome de um dos biógrafos de John Dee — revelou o padre, voltando à escrivaninha e folheando suas anotações. — Está aqui: Peter French.

Outra agulha no palheiro. Acho que precisaremos ler a biografia atrás da resposta — lamentou David.

O padre sentiu uma estocada na cicatriz da testa. Tontura.

Está tudo bem? — preocupou-se o jornalista, observando-o tom­bar no chão. Correu em seu auxílio.

 

Cinco volumes empilhados em sua mesa totalizavam o inquérito do SID sobre os assassinatos em série. Resolvera solicitar o dossiê comple­to. Queria ter todas as informações ao alcance das mãos. "Se eles sabiam quem era o assassino, por que não fizeram nada? Por que não evitaram o assassinato de Fernanda Albuquerque?". Dúvidas atormentavam-no desde que encontrara a investigação detalhada sobre o principal sus­peito. O assassino sanguinário que perseguira David e o padre e ele interceptara.

Correu os olhos rapidamente pelos outros volumes. "David sem­pre esteve certo. Aqueles adoradores do diabo tramaram tudo." Naquelas páginas, Andrew aparecia como soldado de uma poderosa organização. A lista com o nome de seus membros constava no terceiro volume. Era idêntica à que David publicara há dois anos, com uma pequena diferença. O jornalista batizara de Duque Negro o homem que ocupava o topo da pirâmide. O SID o chamava de grão-mestre. Mister Jones sabia que, no fim de semana, David revisara seu organograma e descobrira que o líder dos criminosos era sir Alexander Cotton. Seus colegas do subterrâneo não promoveram o lorde. No dossiê, ele era apenas um membro graduado. Um fantasma ainda pairava no topo da pirâmide. "Ele ainda deve estar no comando. David e o padre correm perigo. Preciso fazer algo", pensou. O telefone em sua mesa tocou: origem não identificada. "Poucas pessoas devem ter esse telefone", concluiu, atendendo a ligação.

Bom-dia, senhor Kemp. Por favor, ligue o aparelho de video-con­ferência. Alguém vai falar com o senhor — solicitou a recepcionista.

Estou ocupado — respondeu o investigador, voltando ao relatório sobre Andrew. — Peça que me ligue mais tarde.

Nunca se está ocupado para Mister P. — advertiu a voz feminina.

Estou no aguardo — respondeu Kemp. "Está na hora de conhecer o chefe. E lhe fazer algumas perguntas", disse para si. Enquanto esperava, leu um novo trecho sobre o psicopata:

 

Não há registro de nascimento. Segundo o informante X-721, An­drew é filho de sir Alexander Cotton com uma prostituta francesa. A justificativa para a ausência de documentos é que o político "tinha planos escusos para o bastardo". Forjou a história de que seus pais biológicos tinham morrido em um incêndio e ele fora adotado. Porém, não encontramos registros de adoção, nem nada que comprovasse a versão do informante. Aos sete anos, Andrew participou de um ritual de iniciação na seita satâ­nica "Colméia Dourada". Em seguida, foi enviado ao castelo de Cesky Krumlov, na República Tcheca. Seu tutor foi monsieur Jacques Moureau...

 

O toque do aparelho de video-conferência o fez interromper a leitura e desviar os olhos para o pequeno monitor. "Hora de conhecer Mister P", pensou, apertando um botão. Caiu na gargalhada. Do outro lado, sentado em uma poltrona, um urso de pelúcia trajando roupa vermelha e chapéu azul diante de uma caneca de chá quente.

Isso é brincadeira? — rebateu o agente, interrompendo a garga­lhada e franzindo o cenho.

Não, Mister Jones. Sou o diretor do SID.

—Você... Isso é um urso de pelúcia — retrucou, apontando para a tela.

É um Paddington. Acostume-se a tê-lo como chefe.

— Você não tem rosto?

Se eu mostrasse meu rosto a todos que já fizeram essa pergunta, Mister Jones, não estaria mais aqui. Vamos ao que interessa...

Se vocês sabiam quem era o culpado, por que não o prenderam antes? O crime de ontem poderia ter sido evitado! — desabafou Kemp.

Isso não é problema nosso. E dos caras lá de cima.

Se eles tivessem tido acesso a esse inquérito...

Teriam iniciado uma guerra contra nós, usando as piores armas.

E quem somos nós?

Um departamento dentro da Scotland Yard criado para investigar as atividades daquele que o padre Pietro Amorth chama de Satanás. Só que usamos outras armas.

Por que fui trazido para cá?

Porque é um homem honesto. E já está envolvido com as nossas investigações — esclareceu Mister P.

Não acredito em demônios.

Em poucas semanas, mudará de idéia.

David Rowling e o padre Amorth correm perigo — revelou Kemp, encarando o urso Paddington. "O que pode ser mais patético do que conversar com um urso de pelúcia?", questionou-se.

O exorcista italiano tem suas armas.

Quais, um crucifixo? — ironizou o agente.

Sir Alexandre Cotton não foi morto com um crucifixo, Mister Jones. Se tiver alguma dúvida, o dossiê está na sua mesa.

E quanto a David?

Sir David Rowling é filho do informante X-721, um homem que transita entre os dois mundos e já usou meios escusos para protegê-lo em outras ocasiões. Não faz parte de nosso trabalho cuidar dele, como também não fazia impedir o assassinato de Fernanda Albuquerque. Esta­mos além disso.Você não deve entrar em contato com o jornalista hoje. Precisa estar concentrado para a missão.

— E qual seria minha missão? — indagou o agente, fazendo um sinal obsceno para o urso Paddington.

No lugar dos olhos do urso, existem duas pequenas câmeras de vídeo — alertou Mister P. — Hoje à noite, haverá um importante encon­tro. Seu alvo estará lá.

Devo prendê-lo?

Não prendemos ninguém, Mister Jones.

Como assim? O que devo fazer?

Enviamos as pessoas para o outro lado. Deus decide o que fazer com elas — respondeu seu novo chefe.

—Você quer... Quer que eu o mate?

Mais tarde, você será informado sobre o local. E, no momento certo, conhecerá o alvo. Até breve.

Eric Kemp fitou uma foto de Andrew no relatório.

Acho que já sei quem é o alvo, Mister P. Terei prazer em acabar com ele — sussurrou, cerrando o punho direito.

 

A imponente escadaria descia até um oceano de lava vulcânica. No alto, encostado em uma coluna, o padre estremeceu ao contemplar o movimento das ondas. Girou o rosto para o outro lado. Percebeu que alguém se movia atrás do altar de pedra. Fixou os olhos. Ele usava uma batina como a sua. "Está querendo me enganar de novo", pensou, aproxi­mando-se da figura misteriosa. Ela parou subitamente. E se virou. Teve a impressão de estar diante de um espelho. Até que o reflexo sorriu. Pietro reconheceu aquele sorriso. Era o diabo.

Estava recordando os bons momentos que passou lá embaixo? - perguntou-lhe o reflexo, apontando para o mar fervente.

Não tenho tempo para perder com suas tolices. Por que está vestido assim?

É um belo disfarce, não acha, padre?

Para quê?

—Vou celebrar um casamento. Na verdade, você vai fazer isso por mim.

—Você quer me confundir! - exasperou-se Pietro, dando-lhe as costas.

A resposta que você procura não está naquilo que se tornou. Está no que sempre foi.

Pietro! Pietro! — aquela voz conhecida o chamava. Mergulhou na escuridão. Sentiu uma pancada no rosto. Abriu os olhos. Estava no chão de sua suíte no Mandarin Oriental. David debruçado sobre ele.

O que foi? — indagou Pietro, levantando-se.

—Você desmaiou de novo. Acho que precisa de um médico - acon­selhou o jornalista.

Nas sessões de exorcismo, nós conseguimos extorquir a resposta dos demônios — revelou o padre, encarando-o. - Nós os ameaçamos e eles são obrigados a dar as respostas. Quero saber por que, nesse caso, eles falam espontaneamente.

Como assim?

Conseguimos abrir o segundo mensageiro usando uma mensa­gem que John Dee revelou para você em sonho. Certo?

Creio que sim.

Acabo de ter uma visão em que o diabo me sugeriu a resposta sobre esse enigma.

O que ele disse?

A resposta que você procura não está naquilo que se tornou. Está no que sempre foi.

O que isso significa?

Está claro para mim. Nos últimos dias deixei de ser Pietro Amorth e me tornei Giovanni de Santis. Hoje de manhã, recebi meu passaporte, minha identidade de volta — esclareceu o italiano, tirando o documento do bolso e abrindo-o na página da foto. Um convite caiu no chão.

O que é isso? — indagou David, abaixando-se para pegá-lo. Leu em voz alta:

 

O Victoria & Albert Museum e a Universidade de Harvard convidam-no para o coquetel de lançamento da exposição Daniel Chester French, o escultor dos anjos.

 

Deixe-me ver isso — pediu Pietro, arrancando o papel da mão de David. — Achamos o nosso francês.

Como você sabe...

No meu curso do Ateneu Pontifício Regina Apostolorum, uso a foto de uma escultura desse americano. Ela representa um anjo seduzindo uma mulher.

Samyaza!

Segundo essa mensagem maldita, "aquele que há de reinar para sempre" — completou o padre, conferindo novamente o convite. — O evento será hoje, às oito e meia.

Michael estava com o seu passaporte. Ele deve ter colocado o convite aí dentro. Deve ser uma armadilha - deduziu David.

— Acho que precisamos pagar para ver - retrucou o padre. - O convite é para duas pessoas.Traje social completo. A que hora pode passar aqui?

Esteja pronto às oito horas, padre. Vamos achar esse porão.

E destruir os seus segredos — reforçou Pietro, acompanhando o jornalista até a porta e despedindo-se dele com um forte abraço.

 

O bastardo chegava em casa no mesmo instante em que David dei­xava o Mandarin Oriental. Desceu até o porão. Sorriso no rosto. Apanhou a garrafa de Chivas 12 anos e serviu dois copos baixos. Arremessou um deles na direção da pequena cela em que aprisionara o filho do curador do British Museum. O copo se estilhaçou em uma das barras de ferro.

Comemore comigo!

Esvaziou o copo. Repetiu a dose.

Hoje à noite vou tomar posse do que é meu — gabou-se.

Pressentia que o tesouro estava próximo. Talvez chegasse a ele na­quela noite. Era o momento de invocar Samyaza. Aproximou-se da mesa e colocou espelho negro sobre o Sigillum Dei. Silêncio. "Vou tomar mais uísque enquanto espero", pensou, dando as costas à escrivaninha. Um estrondo. Virou-se imediatamente. Raios subiam da superfície negra.

Como ousa me virar as costas, seu insolente? - indagou-lhe a voz grave.

Me perdoe.

A misericórdia não está entre minhas virtudes. Nem entre as suas.

O que devo fazer para reparar isso?

Ajoelhe-se e cubra o rosto com as mãos — ordenou-lhe.

Andrew caiu de joelhos e abaixou o rosto até as mãos espalmadas.

Assim está melhor, filho.

O que devo fazer agora, pai?

— Você já sabe onde está o tesouro. Samyaza quer que se aposse dele.

O que faço depois?

Lembra-se de quando tinha sete anos e foi entregue a mim? — indagou-lhe a voz grave.

Minha iniciação?

—Você não foi iniciado, Andrew. Foi batizado!

Sim, me lembro.

Desde aquele dia, filho, você está sendo preparado para cumprir a profecia. Hoje à noite, quando pegar o troféu, vá para o lugar onde sua missão começou.

O templo subterrâneo? — questionou, descobrindo o rosto e olhando na direção da escrivaninha. Um rosto esfumaçado erguia-se da superfície negra. Duas esferas vermelhas reluziam em suas órbitas etéreas.

Samy... Samyaza? — gaguejou, cobrindo os olhos novamente.

Sim, filho insolente.Você deve voltar ao templo subterrâneo.

Mas... Ele... Ele... De... Deve estar lá - gaguejou.

       Você quer comandar o meu reino e não está preparado para en­contrá-lo? — berrou seu interlocutor, estremecendo o porão.

Dor nos ouvidos. Andrew sentiu um líquido viscoso saindo da ore­lha direita e escorrendo pela face.

Não tenho medo dele - fingiu coragem.

—Você é mais transparente do que essa garrafa de uísque, seu cretino. Consigo ver o que está do lado de dentro.

Então deve saber que estou disposto a tudo para cumprir minha missão. Até voltar ao templo subterrâneo e enfrentá-lo — retrucou An­drew, levantando-se e encarando os olhos diabólicos.

Eu tinha a mesma coragem quando O enfrentei — revelou Samyaza, referindo-se ao seu criador: Deus. — Você é realmente o meu filho. Siga minhas ordens e sairá vitorioso.

Pegarei o tesouro e irei para o templo.

Nos encontraremos lá.

O rosto se desvaneceu no ar, e as esferas de fogo desapareceram no espelho negro. O bastardo foi até a escrivaninha com um sorriso no rosto. Cobriu os objetos sagrados de John Dee. Sentia-se exausto. O ronco no estômago lembrou-o de que precisava comer algo. Abriu o frigobar. Restos dejish and chips. Programou o despertador para as cinco da tarde e apagou no sofá.

 

Em menos de duas horas, Michael se tornou um especialista em Daniel Chester French. Leu o livro da exposição e decorou algumas informações sublinhadas pelo curador-chefe do Victoria and Albert Museum. No resto do tempo em que passara no museu, treinou o discurso para o coquetel de lançamento. "Não posso fracassar de novo. Esses vermes estão com a mi­nha família", pensou ao deixar o museu, pouco depois das dez da manhã. Aquela preocupação o acompanhou no caminho até seu quartel-general. Queria falar com o senador. Queria garantias de que nada aconteceria com sua mulher e seu filho. Precisava estar tranqüilo para a missão ser bem-sucedida. Em casa, jogou o sobretudo verde-oliva sobre a mesa e foi ao escritório. O computador acusava gravações feitas a partir da escuta plan­tada na suíte do padre. "Será que eles morderam a isca?". Acionou a última gravação. Acompanhou o diálogo entre David e Pietro. "Eles estarão lá", concluiu, com um sorriso de alívio no rosto. Tirou o fone de ouvido. O celular tocava no bolso da calça. Apanhou o aparelho. Era uma chamada do gabinete do senador Bundy. Atendeu imediatamente e disparou a pergunta:

Como eles estão?

Bom-dia, Michael.

Como eles estão?

Se dependessem do seu último trabalho, não estariam nada bem. Sinto pena do infeliz que perdeu a cabeça... — respondeu Bundy.

O Feiticeiro me enganou — justificou Michael.

Você me enganou. Pensava que fosse um dos melhores! — exas­perou-se o senador.

E eu pensava que você não sujasse as mãos. Se algo acontecer com eles, acabo com você!

Hoje de manhã, você recebeu a ligação de alguém muito impor­tante. Se fizer o que ele pediu, nada de mal vai acontecer com nenhum dos dois — retrucou o senador. — Nem com você.

Quero garantias — insistiu Michael.

Ele deu sua palavra.

Para mim, ela não vale nada.Vocês são loucos!

A palavra daquele homem, Michael, vale mais do que a vida de seu filho — provocou Bundy. Michael cerrou a mão direita, esmurrou a mesa e perguntou, sem disfarçar a raiva na voz:

Quando devo voltar?

— Você partirá amanhã, às quatro horas, em um voo fretado.

— Vôo fretado? Quem me garante que chegarei vivo a Nova York? Você? O homem do museu? — ironizou. "Filhos da puta, acham que caio nessa armadilha? Isso é queima de arquivo", prosseguiu em pensamento.

Sua companhia nessa viagem.

Quem?

—Você saberá amanhã, no terminal de embarque. Sua última missão é escoltá-la até aqui.

Onde está a minha família?

Eu apenas levei os dois para um passeio no fim de semana. Hoje é segunda-feira. Não conheço a rotina da sua família. Imagino que seu filho irá à escola e sua mulher cuidará da casa.

Isso é sério?

Se quiser, ligue para ela. Só não passe muito tempo ao telefone. Você precisa se preparar para hoje à noite, doutor Bates. Mais tarde, passo as coordenados do voo no Gatwick.

Assim que o senador encerrou a chamada, Michael acessou o núme­ro de casa e torceu em voz baixa:

Atenda, Molly. Atenda.

 

A porta do quarto de visitas estava entreaberta. David bateu duas vezes. Sem resposta. "Será que Mary saiu?". Empurrou-a suavemente. A cama estava arrumada. Não queria invadir a privacidade de sua hóspede. Pretendia dar meia-volta até perceber um pedaço de papel sobre o tra­vesseiro. Avançou na sua direção. Sorriu ao encontrar o bilhete deixado por sua assistente. "Andrew está à solta e é perigoso. Ainda bem que ela voltou para casa acompanhada." As pálpebras pesavam. Precisava descan­sar antes de ir à redação e fechar a matéria sobre o assassinato de Fernan­da Albuquerque. "Paul quer uma história inédita. Não posso revelar o que sei. Isso alertaria os membros da seita e estragaria tudo. Talvez o assassi­nato no Hyde Park seja uma boa saída. Não entrega o que nós sabemos, mas levanta suspeitas sobre a versão do homicídio seguido de suicídio. Mister Jones investigou o crime e pode me ajudar com isso. É melhor adiantar tudo antes de dormir um pouco", decidiu, pegando o celular e acionando o número do investigador. Não recebeu a habitual ligação de retorno. Tirou o bloco de notas do bolso, sentou-se na cama e escreveu um bilhete à hospede:

 

Mary, espero que esteja tudo bem com você. Cheguei em casa às dez e quinze. Estou exausto e dormirei um pouco antes de ir à redação. Qualquer problema, fique à vontade para bater na porta do meu quarto. Um beijo, David.

 

O jornalista deixou a mensagem sobre o travesseiro, ao lado da que ela escrevera. Saiu do aposento e encostou a porta, exatamente como a encontrara. Atravessou o corredor em direção ao seu quarto. Tomara café da manhã no Mandarin Oriental, pouco após se despedir de Pietro. Queria observar o movimento dos hóspedes e do staff. Aparentemente, todos ignoravam o crime terrível que ocorrera naquele lugar poucas horas antes, exceto dois investigadores da Scotland Yard, cochichando em uma mesa afastada. Na saída, encontrara George no hall de entrada do hotel, olhando de um lado para o outro e conferindo o relógio sem parar. O repórter abrira um sorriso ao vê-lo. Parecia um garoto perdido encontrando um guia.

Há dois agentes da ScotlandYard tomando café da manhã. Tenho certeza de que não estão hospedados aqui. Preciso ir, George, nos encon­tramos na redação. Até mais tarde — orientara David.

Acha que vou conseguir? — questionara o repórter, enquanto seu chefe se afastava.

Não se preocupe demais. No jornalismo, tudo sempre se acerta antes do fechamento - respondera David.

Ao abrir a porta de seu quarto, lembrou-se das últimas palavras que dirigira a George: "Tudo se acerta antes do fechamento". "Mordemos a isca de Michael. Talvez estejamos nos atirando em uma armadilha da seita satânica...", pensou, trancando a porta e girando a maçaneta duas vezes. Sentiu-se protegido. Tirou os sapatos e calçou as pantufas Hercules da Church's. Foi ao closet e aspirou o aroma familiar e agradável de cedro. Trocou as roupas pelo pijama de seda. Em poucos passos, esta­va na suíte, diante do espelho. "Estou realmente precisando descan­sar", concluiu, escovando os dentes. Colocou o celular no silencioso e programou o despertador para as treze horas. Antes de se deitar, pôs a bengala embaixo da cama."Tudo se acerta antes do fechamento", repetiu duas vezes. Caiu no sono.

 

O telefone tocou até cair na secretária eletrônica. Michael não queria deixar mensagem. Precisava ouvir a voz de Molly. Desligou e tentou nova­mente. Desviou os olhos do aparelho para um dos monitores sobre a mesa. O GPS plantado no carro de David delatava sua posição. Ele estava em casa, do outro lado da rua. A ligação caiu novamente na secretária eletrônica.

Atenda essa merda de telefone, Molly! — berrou, ligando novamente.

Quem é? — indagou uma voz sonolenta.

Querida, você está em casa?

Também estou com saudade, Michael. Mas você se esqueceu de que são cinco horas de fuso horário?

É que... - dizia. "O senador já está no gabinete", pensou, antes de prosseguir. - Eu estava preocupado com vocês. Queria saber se está tudo bem.

—Tivemos um excelente fim de semana, Michael. O senador Bundy é muito gentil e sua esposa, Catherine, é adorável.

E o Richard? — preocupou-se Michael.

Está aqui, dormindo ao meu lado.

Por que não está no quarto dele?

Não se sentiu muito bem durante a noite — explicou Molly.

O que ele comeu durante o fim de semana? - interrogou Michael, cerrando o punho direito. "Aquele filho da puta deve ter envenenado o meu filho", pensou.

Muitos doces, Michael. Mas ele não está passando mal do estô­mago. Teve mais um daqueles pesadelos.

Ainda bem — deixou escapar, aliviado.

O quê você disse?

Ainda bem que foi só um pesadelo.

É o papai? — Michael ouviu ao fundo.

Sim, é ele, filho — respondeu Molly.

Quero falar com o papai — pediu o garoto.

Papai, onde você está?

Tudo bem, superman? Estou do outro lado do mundo — revelou Michael, abrindo um sorriso e se esticando na cadeira

Não está tudo bem, papai — retrucou Richard.

Por que não, filho? Amanhã estarei de volta.

—Você não vai chegar aqui, papai.

O que ele disse para você? — perguntou Michael, pensando que o senador Bundy tivesse revelado a ele algo trágico.

Tive um sonho, papai.Você estava em um avião pequeno...

O avião explodiu? — adiantou-se.

Não sei o que aconteceu direito, papai. Me lembro de uma cabeça e de um padre — contou Richard, ainda sonolento.

"Acho que ele teve uma premonição... Mesmo se o senador tivesse contado sobre o padre, não teria como ele saber da cabeça falante. Não contei para ninguém", deduziu Michael, sentindo o coração acelerar em seu peito. Emendou a pergunta:

O que eles fizeram, filho?

O padre disse alguma coisa, papai. Não me lembro o quê. Deve ter sido uma mágica porque um raio desceu do céu e bateu no avião. Na mesma hora, um monstro saiu do mar e engoliu vocês.. — contava o menino, sem pausa para respirar.

E a cabeça?

Estava dentro do monstro marinho, papai.Tinha cabelo comprido e bigode. Ficou rindo de você e disse alguma coisa.

O quê?

"Você jogou tudo fora."

Foi só um pesadelo, filho. Amanhã, o papai estará aí com vocês.

Promete?

Prometo. Agora, preciso falar com sua mãe. Adeus, filho.

Tchau, papai. O papai quer falar com você, mamãe.

Eu te amo, querida. Se alguma coisa der errado comigo, procure o Brandon Smith. O telefone está na minha agenda...

O que pode dar errado, querido? — preocupou-se Molly.

Ligue para ele e diga o nome completo do meu irmão. Ok?

Do seu irmão que morreu? — quis saber a esposa, sem disfarçar o nervosismo.

Sim. Brandon Smith é meu procurador, e o nome do meu irmão é a senha.

— Você está me assustando, Michael. Senha do quê?

De que aconteceu alguma merda comigo e vocês precisam ser amparados. Mas não se preocupe. É só precaução. Está tudo bem. Agora preciso desligar.

Se cuida, querido. Te amo. Até amanhã, despediu-se Molly, com um mau pressentimento.

Michael respirou fundo. Apanhou sobre a escrivaninha o discurso para a abertura da exposição e foi ao quarto. Antes de repor o sono atra­sado, pretendia treinar mais um pouco diante do espelho.

 

As duas abelhas robóticas de John Dee e suas charadas diabólicas repousavam no cofre da presidential suite. Pietro julgava que fosse o lugar mais seguro para guardá-las até o fim da missão. Os pulsos latejavam. Ele refizera os curativos e se deitara na cama. Os olhos ardiam. Precisava descansar um pouco. A noite seria longa e imprevisível. O sono chegou em poucos minutos. Batidas na porta. Um estrondo. Gritaria. Homens invadiram o quarto. Metralhadoras apontadas na sua direção.

—Vasculhem o quarto! — berrou um deles.

O que está acontecendo? — assustou-se.

Você tem o direito de calar a boca — ordenou o comandante, aproximando-se da cama. — É o principal suspeito da morte de Fernanda Albuquerque.

Eu... Eu não fiz nada - balbuciou Pietro, assustado.

—Você deixou marcas de sangue no assoalho do quarto da brasileira.

"Fui conversar com ela depois de me cortar. Deve ter escorrido san­gue dos meus pulsos", concluiu o padre, revivendo a cena em sua mente.

Eu a conheço desde pequena...

Você deve ser mais um daqueles padres pervertidos que gostam de brincar com criancinhas indefesas - disparou o investigador, aproximando-se ainda mais. Ao seu redor, homens atiravam objetos ao chão, desarrumavam suas malas e repetiam heresias.

Não fiz nada contra a Fernanda — defendeu-se Pietro.

Vou encontrar a prova de que você é o culpado. Ela está nesse quarto. Em algum lugar.

—Venha ver isso! — alguém berrou na sala.

Fiquem aqui. Vigiem esse padre assassino — instruiu o chefe da operação, afastando-se.

"Será que eles... Será que encontraram a abelha? Ela foi tirada da vagina... Ela... Meu Deus, me ajude", rezou em pensamento. O investiga­dor voltou ao quarto com um pequeno saco negro na mão direita. E um sorriso triunfal no rosto.

—Você vai passar o resto da vida na cadeia, padre.

Um celular tocou. Ninguém atendeu.

—Você vai passar a eternidade no inferno, padre — repetiu o inves­tigador. O italiano o encarou pela primeira vez. Ele conhecia aqueles olhos e o sorriso inconfundível. Era o demônio. Deu um salto da cama. Coração disparado. O celular tocava insistentemente. Conferiu o nú­mero. Era o cardeal Gabriele. Conseguiu atender a ligação pouco antes de cair na caixa postal.

Estava dormindo, Pietro? - insinuou o cardeal.

Sim. Passei a noite em claro...

Prefiro pensar que tenha passado a noite em orações.

A Fernanda Albuquerque...

O que houve com a modelo brasileira? — interrompeu o cardeal.

Foi assassinada por um servo da Besta.

— Você acha que isso tem a ver com a última profecia negra?

Claramente. Estou trabalhando nisso... - explicava Pietro até ser interrompido.

Amanhã, você deve voltar para cá. Impreterivelmente — ordenou o cardeal.

E se... — Pietro tentava argumentar.

—Você tem um número de telefone e uma senha. Se precisar, use isso novamente. Por sua conta e risco. Mas o prazo que te dei termina amanhã. Entendido?

Sim, Gabriele. Reze por mim para que eu consiga...

Rezarei para que não se meta em mais confusões, Pietro. Até breve.

"Eu vi o que aconteceu com sir Alexander Cotton. Não vou apertar o gatilho de novo, cardeal", rebateu Pietro em pensamento, recordando as palavras de Michael: "Esquadrão da morte da Igreja". Ajoelhou-se ao lado da cama. Uniu as mãos em prece e fechou os olhos.

 

Zumbidos. Zumbidos intermitentes próximos ao ouvido direi­to. David sacudiu o braço acima de sua cabeça. Desejava expulsar o inseto incômodo que atrapalhava seu sono. Não adiantou. Abriu os olhos. Não era seu quarto. Apesar da penumbra, reconheceu o lugar. Estava no cas­telo de seus pais, em Upper Slaughter. Luzes apagadas. Algo brilhava na frente de seus olhos. Era uma abelha-vagalume dourada. Ela voou em direção à porta de saída. Ele levantou-se e a seguiu. A cada passo, o zum­bido se tornava mais alto. Assim que atravessou o limiar entre a casa e o quintal, aquele som irritante transformou-se em uma voz familiar: "Por favor, me ajude". Era Andrew. Guiado pela abelha-vagalume, David ca­minhava em direção ao labirinto. Medo. Sentia-se observado por olhos mergulhados na escuridão. Pareciam monstros prestes a se lançar sobre ele. "O medo transforma animais afáveis em bestas sanguinárias". Aquele conselho emergia de suas lembranças, embora não soubesse de quem era. Passos apressados. Atravessou as curvas do labirinto sem olhar para os lados. Chegou ao centro. Dezenas de velas negras acesas flutuavam diante da porta de ferro e formavam um símbolo. Ele o conhecia. Era o emblema da Colméia Dourada. Era a assinatura do assassino de Fernanda Albuquerque."Por que me trouxeram para cá?", questionou-se. Um homem mascarado vestindo capa negra esvoaçante atravessou a cortina de velas e surgiu diante dele. Carregava algo nas mãos. "Me ajude, David". Era a voz de Andrew.

Você é um maldito assassino! - berrou o jornalista, avançando sobre ele e arrancando a máscara demoníaca. Surpreendeu-se ao desco­brir o rosto que ela escondia. Não era o do amigo de infância e assassino de Fernanda Albuquerque. Tinha os cabelos cobertos por uma touca e longas barbas brancas.

John Dee? — deixou escapar.

Ele foi um dos meus melhores discípulos — retrucou o homem de idade avançada.

E quem é você?

Não me decepcione, David. Já nos encontramos tantas vezes...

Samyaza?

Talvez esteja certo.

O que você quer comigo?

Quero lhe entregar um presente — respondeu-lhe, estendendo na sua direção algo embrulhado em tecido negro.

Não quero isso! — berrou David.

Talvez você devesse destruí-lo para livrar o mundo do... do que seu amigo chama de Apocalipse Negro — rebateu Samyasa, com um sor­riso sarcástico no rosto.

O jornalista apanhou o objeto e arrancou o tecido. Uma explosão de luz atingiu seus olhos. Não conseguia enxergar mais nada.

Isso é o mais perto que você pode chegar de Deus, David - a voz ecoou em sua cabeça. "Cegos e guias de cegos. Se um cego conduz outro, ambos cairão na mesma vala. Você é um cego, David. O padre também. A vala está próxima", aquelas palavras pareciam sussurradas em seu ouvido.

Quem está aí? Por que não enxergo nada? - perguntou, tateando o ar ao redor.

Quem você deseja perto de você, querido? - ele conhecia aquela voz. Mãos macias cobriam seus olhos e exalavam um perfume inconfundível.

Mary, é você? - indagou, virando-se para vê-la.

Estava na sala de estar, diante da americana nua exibindo um sorriso sensual. David entendeu o convite e avançou sobre ela. Durante o beijo, Mary abriu o zíper de sua calça. Abaixou-se até seu sexo. O jornalis­ta olhou para baixo. Algo brilhava sobre sua cabeça. Parecia a abelha-vagalume que o guiara até o labirinto. Esticou o braço na tentativa de tocá-la. Ela se afastou até o canto da sala. Alguém estava lá, observando tudo com um sorriso no rosto.

Quem é você? — perguntou David.

Eu tirei a virgindade dessa putinha. E estou louco para transar com ela de novo.

Sammy? — indagou David, cerrando os punhos.

Querido, deixe isso para lá — interveio Mary, ajoelhada. — Agora, eu sou sua.

Preciso acabar com esse desgraçado! — exasperou-se o jornalista, indo em direção ao intruso

Se quiser acabar comigo, comece por você mesmo — retrucou o voyeur. David aproximou-se até enxergar o rosto escondido na penumbra. Era como se estivesse diante de um espelho. Mãos suadas. Saltou da cama no instante em que o despertador anunciava treze horas.

 

A porta do quarto estava entreaberta, da mesma maneira que deixara ao sair. "Ele ainda não deve ter voltado", concluiu Mary, entrando no aposento. Acendeu a luz.E colocou outra mala ao lado esquerdo da porta. Um bilhete fazia companhia àquele que deixara a seu anfitrião.

 

Mary, espero que esteja tudo bem com você. Passei por aqui e descansei um pouco antes de ir à redação. Devo voltar às dezenove horas. Mas, infelizmente, tenho um com­promisso hoje a noite e não poderei lhe fazer companhia para o jantar. Desculpe-me. Tentarei compensar isso outro dia. Se precisar de qualquer coisa, me ligue. Beijo, David.

 

Ela aproximou a carta do nariz e sentiu o perfume Knize Ten.Voltou à sala de estar. Jessica estava sentada no sofá, à sua espera.

Ele não está, Mary?

— Já passou por aqui. Podemos tirar do carro minha pequena mudança.

Sei que você é a líder do coven, mas não acha que seria melhor transferir as reuniões para a casa de uma das meninas? Pelo menos até tudo se acertar - sugeriu a aprendiz.

Sabe que dia é hoje, Jessica? — indagou a americana.

Ela consultou a data no celular, antes de responder:

—Vinte e um de março.

É uma data importante. Faltam exatamente nove meses para o solstício de inverno. Queria fazer uma reunião extraordinária para festejar isso. Mas minha alma está doente e, durante meu luto, não vai haver nada. Cernunnos vai permanecer coberto - explicou Mary, fazendo um sinal para que a amiga a acompanhasse até o carro.

Tudo bem. Mas não seria melhor tê-lo deixado na sua casa? Seu chefe não faz parte do coven. Ele não pode vê-lo nem tocá-lo — argumen­tava Jessica.

Querida, minha casa foi invadida. Fui ameaçada. Cernunnos estará mais seguro aqui no meu quarto. David é um gentleman e saberá respeitar meu espaço.

As duas continuaram em silêncio até o Mini Cooper. Jessica desati­vou o alarme, abriu a porta e afastou o banco do passageiro. Para conse­guir transportar o deus chifrudo, Mary o separara da base maciça, onde ficava encaixado. Naquele momento, ele ocupava metade do banco, e estava coberto pela capa azul-escura. Jessica puxou parte para fora. A líder se aproximou e colocou as duas mãos embaixo da estátua de madeira. Sua auxiliar fez o mesmo.

—Vamos com cuidado — alertou Mary.

Ainda bem que ele não é esculpido em madeira maciça - comentou a inglesa, fazendo força para levantá-lo.

Ele foi feito especialmente para as mulheres — respondeu Mary, sorrindo.

Com o quadril, Jessica empurrou a porta do carro e as duas entronizaram Cernunnos na mansão de David.

Onde vamos deixá-lo? Na cama? - indagou sua discípula.

Talvez David passe por aqui mais tarde e deixe outro bilhete. O banheiro é grande e tenho certeza de que ele não entrará lá.

No banheiro, Mary? - estranhou Jessica.

Sim. Qual o problema? — rebateu a líder, avançando até o cômodo.

Nenhum.

A porta estava apenas encostada. Mary a empurrou com a perna direita e orientou:

Sobre a pia.

Acomodaram Cernunnos na bancada de mármore rosado. Jessica esticou os dois braços para cima e suspirou, aliviada.

Obrigada — agradeceu Mary, com um sorriso no rosto.

Quer jantar comigo? — perguntou a inglesa.

E Abby?

Ela tem um evento hoje à noite. Estou sem companhia.

Pode me pegar às seis da tarde? — sugeriu a líder do coven, deixando o banheiro e acompanhando-a até a saída.

 

Assim que colocou os pés na redação do The Star, o alvoroço se transformou em burburinho. David sentiu dezenas de olhares acompa­nhando seus passos marcados pela companheira inseparável, a bengala. Fixou o olhar na direção da sala do diretor Paul Reiner e seguiu adiante, evitando qualquer desvio. Carolyn se levantou diante dele. "Meu primeiro obstáculo", pensou, sem notar como ela estava deslumbrante e sensual naquele vestido caramelo, decote revelando seios empinados. Mal sentiu o inconfundível Chanel N° 5.

O que aconteceu com a Fernanda, David? — quis saber, fingindo preocupação.

O George deve estar mais informado do que eu, Carol.

Posso pedir um favor à sua assistente?

Ela não virá hoje. Está de licença — impacientou-se David.

Aconteceu alguma coisa com ela? — insistiu a editora de moda.

Não estava se sentindo bem — rebateu o jornalista, retomando o caminho da sala de Paul. George correu na sua direção. "Mais um obstá­culo", lamentou, perguntando-lhe:

Tudo bem? O que conseguiu?

O investigador-chefe da Scotland Yard fez um pronunciamento oficial...

Nosso chefe não gosta de histórias oficiais, George. O que con­seguiu além disso? — inquiriu David.

Lembra-se dos agentes no café da manhã?

Claro.

Me deram detalhes sórdidos do crime. Um deles tirou fotos com o celular — gabou-se o repórter, com um sorriso nervoso.

De quem?

Da top model e do segurança assassino.

Suponho que fez isso sem o consentimento do superior.

Sim. São fotos clandestinas. Ele se orgulhava de ter conseguido aquilo, e exibiu para mim como um troféu. Consegui transferir tudo para o meu celular enquanto os dois estavam entretidos com o chá.

"Talvez seja o suficiente para Paul Reiner. Não vou gastar o cartu­cho com Mister Jones", concluiu David, dizendo:

Belo trabalho, George. Sua matéria será o destaque da capa de amanhã. Escreva tudo e me passe o mais rápido possível. Tenho um com­promisso inadiável hoje à noite.

Estou quase terminando — respondeu o repórter, com um sorriso de alívio.

Parabéns. Se depender da minha recomendação, você será pro­movido em breve. Agora, preciso falar com Paul.

David voltou a seguir para a sala do diretor. O terceiro obstáculo atra­vessou seu caminho a menos de um metro da porta. Era o editor-chefe.

Lamento pelo que aconteceu - disse Steven, estendendo a mão para cumprimentá-lo.

—Venderemos muito jornal, não é? — ironizou David.

Depende da matéria que me trouxer - rebateu o editor-chefe, aproximando-se dele e sussurrando:

Preciso de sua resposta ainda hoje.

Fechamos a matéria hoje, Steven - desconversou o editor assistente.

É sobre o convite que fiz — insistiu o editor-chefe, referindo-se à proposta para trabalhar no jornal nova-iorquino.

Minha resposta...

David, tudo bem? Precisamos conversar — era Paul Reiner sur­gindo na porta de sua sala.

Conversamos depois sobre isso, Steven - esquivou-se David, indo ao encontro do diretor do jornal. Os dois entraram na sala e a porta foi fechada.

 

Ele acordou no carpete da suíte quase meio-dia. Corpo dolorido. Pulsos latejando. Agulhada no supercílio. Tomou um banho e refez os curativos. Almoçou no Dinner by Heston Blumenthal revisando todas as anotações sobre John Dee e magia enoquiana. Leu as "cartas do interno" reveladas pelos mensageiros robóticos e recordou-se de sua última aula no Ateneu Pontifício Regina Apostolorum, em Roma. Escolheu a escul­tura de Daniel Chester French para ilustrar uma passagem do Gênesis: "(...) os filhos de Deus viram que as filhas dos humanos eram bonitas e escolheram as que lhes agradassem como mulheres para si". Os "filhos de Deus" são os anjos caídos, os demônios. O que isso significa? Que eles ti­veram relações sexuais com as mulheres. E elas geraram filhos", explicara, fitando a platéia perplexa. Não imaginava que, no mesmo dia, receberia uma missão em Londres e ela o levaria até aquela mesma estátua: o anjo caído seduzindo uma mulher. Em vez de voltar ao quarto para a sesta, fora ao business center. Queria avaliá-la antes da exposição noVictoria and Albert Museum. Talvez encontrasse alguma pista. No Google Images, digitou o nome do escultor americano e a palavra "Gênesis". Clicou sobre a primeira foto para ampliá-la.

O início do Apocalipse Negro — disse para si mesmo. "A mulher, a Grande Prostituta, está um pouco relutante. Mas se deixará seduzir por Samyaza em pouco tempo. Talvez a cena seguinte seja a concepção do Anticristo. Aqueles servos do diabo escolheram um lugar bem apropriado para esconder o Livro das Folhas Prateadas...", ponderou Pietro, aproxi­mando a imagem. Voltou ao bloco de notas e leu a mensagem encon­trada na segunda abelha-robô: Onde o bardo via maldição, o papa enxergou santidade. O castelo defendido é o mesmo que esculpe a glória daquele que há de reinar para sempre. O porão resplandece seus segredos.

O porão deve ser a base da estátua... - deduziu, ampliando no­vamente a imagem. Não achou nenhuma inscrição no mármore. "Pena que só consigo ver por esse ângulo", lamentou. "O terceiro enigma diz: 'Ave... Os olhos onipresentes da rainha revelam a chave de Armon'. Talvez a hipótese de David seja correta. O Livro das Folhas Prateadas pode ser um ritual de magia sexual escrito por John Dee para a concepção do Anticristo, a chave de Armon que liberta Samyaza para fecundar uma mulher de carne e osso. E a confraria negra a escondeu nesta estátua", raciocinava o padre.

Isso deve ser destruído. Talvez seja essa a missão da Confraria dos Quatro Anjos — concluiu, com um sorriso no rosto. "Mas talvez o Livro das Folhas Prateadas tenha outro significado", pensou.

Como era mesmo a profecia do livro maldito? - perguntou-se, digitando no Google o conjunto de palavras: "João XXIII", "Livro Maldito", "profecia". O padre abriu uma página com o texto, revelado pelo jorna­lista italiano Pier Carpi:

 

Eis o livro maldito, escrito por quem odiava a si mesmo e a sua raça. Eis o livro da mentira, do ódio, dos esgotos. Por suas palavras muitos morrerão sem compreender nem conhecer seu verdadeiro autor. Porque ele morreu há tempos e quem o achou se esconde. Eis o livro que invoca o ódio, que divide os homens. Quanto malfará, quanta dor causará, quantas guerras. Por causa deste livro se fabricarão novas armas e muitos homens se fecharão em si mesmos. 'Eis a verdade", se gritará nos parques, nas praças. Esta é a única verdade. A Terra e seus amores virarão ao avesso. Por setenta anos, o livro triunfará em um quarto do mundo, forjará dirigentes, escravizará povos. E os homens semearão o ódio e a pobreza. O orgulho, o sonho do orgulho, o novo paraíso. Inferno sobre a Terra.

 

O livro abre as portas de Armon. Cria o inferno sobre a Terra. Meu Deus, não pode cair nas mãos daquele desgraçado! — exaltou-se, pensando em Andrew. "Ele está nos perseguindo desde o início. Ele assassi­nou a Fernanda. Ele consegue se esquivar de tudo e de todos. Acho que ele é a referência na profecia a quem encontra o livro e se oculta."

Esse maldito vai estar na exposição hoje à noite. Ele vai tentar roubar o livro — concluiu, fechando a tela e guardando o bloco em seu bolso. Voltou ao quarto. Desejava descansar um pouco. E rezar muito. Precisava se preparar para a guerra.

 

Bengala apoiada sobre a mesa de seu chefe. Porta fechada. O editor assistente reparou que Paul Reiner estava malvestido. O número menor das roupas o fazia parecer mais gordo. Quando ele se sentou, David pen­sou que os botões da camisa fossem arrebentar.

Aquele canalha deve ter exigido uma resposta, não? — indagou-lhe, erguendo as sobrancelhas por trás da armação vermelha dos óculos.

Isso mesmo. Não tive tempo de responder.

Amanhã, ele será despedido e você ocupará seu lugar. Ok?

Ok — assentiu David, com um sorriso discreto no rosto. — Não gosto de Nova York - completou.

Terrível o que aconteceu com a Fernanda Albuquerque, não?

Sim. Minha assistente ficou bastante abalada. Achei justo dar a ela alguns dias de folga.

—Você dispensou nossa melhor repórter? Justo nesse momento? — reprovou Paul.

Ela era amiga da modelo brasileira.

No jornalismo, a notícia está em primeiro lugar. Sempre.

Às vezes, as pessoas são mais importantes do que as notícias, Paul — rebateu David, encarando seu chefe. Em poucos segundos, a ex­pressão do diretor mudou completamente. Ele abriu um largo sorriso e perguntou:

O que temos sobre o crime?

Detalhes sórdidos e fotos exclusivas captadas pelo celular de um dos investigadores da Scotland Yard.

— George já me informou sobre isso. Quero saber o que você tem.

Nada a acrescentar.

A primeira lição que você deve aprender como editor-chefe é jamais mentir para o seu diretor. Principalmente se ele for Paul Reiner. Sei que você passou a noite no Mandarin Oriental. Sei que você tem informações privilegiadas sobre o crime.

Como...

Também tenho minhas fontes, David, e sei protegê-las. O que você tem a mais? — insistiu, aproximando o tronco da mesa.

Em off?

Perfeitamente.

A versão oficial da Scotland Yard é uma farsa.

E qual é a versão correta?

Estou trabalhando nisso. Sei que pode parecer loucura, mas há fortes indícios de que esse crime tenha sido cometido pelo Estripador de Londres — revelou David.

E por que não publicamos isso?

Porque ainda estou reunindo provas. Não quero cometer o mesmo erro do passado.

A história é boa?

É fantástica!

Amanhã, você vai assumir o cargo de editor-chefe, certo?

Certo.

Uma de suas atribuições, David, será escrever um livro sobre esse caso. Tenho contato com um editor que vai se interessar muito pelo que você tem a dizer.

Uau! Pensei que o cargo de editor-chefe desse trabalho — brin­cou o jornalista.

Sabe por que eu sou o diretor desse jornal?

Porque é um profissional competente.

Fui um péssimo repórter e meu texto não chega aos pés do seu, David. Estou aqui porque tenho ótimas fontes e enxergo o futuro - re­bateu Paul, levantando as mãos e mexendo os dedos. — Quer saber o que estou vendo agora? Você precisa editar a matéria do George e me passar. Não pode se atrasar para a abertura da exposição no V&A. Meu feeling me diz que isso será um importante capítulo do seu livro. Mãos à obra.

Obrigado pela oportunidade, Paul — agradeceu David, levantando-se e apanhando a bengala. Abriu a porta da sala e foi à sua mesa, acompanhado por dezenas de olhos curiosos e pelo olhar fulminante de Steven.

 

Michael vestiu um terno azul-escuro da Brooks Brothers. Camisa azul-clara e gravata vermelha. Um sobretudo preto completava o figuri­no que recebeu em casa três horas antes da abertura do evento. Chegou à sala da exposição de Daniel Chester French às vinte horas. Recebeu a mensagem de que o curador-chefe estaria lá, com os demais convidados, meia hora mais tarde. Aproximou-se da estátua central, encoberta com o tecido escarlate e ensaiou o discurso, com gestos precisos e entonação adequada. Conseguiu disfarçar o nervosismo e sentir-se mais à vontade. Às oito e meia, pontualmente, Chancellor chegou, à frente de cerca de vinte convidados. Eram homens e mulheres de meia-idade, elegantemente vestidos. Ao mesmo tempo, cinco garçons começaram a circular pela sala carregando Don Pérignon Rosé. Michael sentiu o suor nas mãos, e não desviou o olhar do curador-chefe. Era ele quem o apresentaria aos con­vidados antes do discurso inaugural. Observou-o trocar algumas palavras com dois homens e caminhar até ele.

Tudo bem, doutor Bates? - cumprimentou-o.

Estou pronto.

Senhoras e senhores, peço a atenção de todos — disse Chancellor, aumentando o volume da voz. Os convidados se aproximaram.

Quero lhes apresentar o doutor Michael Bates, catedrático de Harvard e PhD em Daniel Chester French.

Boa-noite, senhores e senhoras. Na cerimônia de posse, Abraham Lincoln vestia um sobretudo preto exatamente como este aqui. Espero fazer jus à sua memória. Sua escultura no Abraham Lincoln Memory é uma das mais célebres de Daniel Chester French e, para os não iniciados, é a mais famosa. Suponho que esse não seja o caso de vocês — brincou, per­correndo a platéia com os olhos. Todos riram. Ele prosseguiu:

Aqui embaixo, está sua obra-prima — anunciou, segurando no tecido que encobria a estátua e puxando-o para baixo. — Eu vos apresento "The Sons of God Saw the Daughters of Men That They Were Fair". Ou, simplesmente, "Immortal Love".

Uma explosão de palmas. Michael sentiu alívio. Conseguira cumprir a primeira parte da missão. Olhou em volta à procura de David e Pietro. Eles não estavam no salão.

Obrigado, doutor Bates. Aprecie o champanhe - agradeceu Chancellor. Michael aproveitou a proximidade de um garçom e seguiu seu conselho. Bebeu metade da taça em um único gole e mirou a entrada da sala. Abby, a massagista do Mandarin Oriental a quem pagara para seduzir o padre, estava do lado de fora. Trajava um vestido preto longo. Fenda na perna esquerda. Cabelo preso atrás com uma presilha. Maquiagem suave. Jóias discretas. "O padre deveria me agradecer pelo presente. Eu teria pago o dobro para foder essa vadia... Ela deve trabalhar para os ingleses", pensou Michael, terminando a taça de champanhe. Deixou-a na bandeja semivazia de outro garçom que passava por ele. Ao virar-se novamente para a entrada, flagrou David e Pietro aproximando-se da hostess especialista em vestidos.

 

O padre estava tão ansioso para encontrar a estátua de Daniel Chester French que não reconheceu Abby. Com as mãos ligeiramente trêmulas, pegou o convite no bolso do casaco e o estendeu à recepcionista, olhan­do através da porta para a sala de exposição.

Desculpe-me a indiscrição, mas o senhor não é o empresário italiano hospedado no Mandarin Oriental? — ela perguntou, desviando a atenção de Pietro para o seu rosto. Ele lembrou-se daquele olhar... Da­queles lábios... Coração acelerado. Respiração curta. Pernas bambas.

—Você... Você não é a massagista do hotel? - gaguejou.

Nas horas vagas, sim — respondeu Abby, com um sorriso mali­cioso no rosto.

O que... O que está fazendo aqui? Você faz parte disso?

O que está acontecendo? — quis saber David.

— Ela... Ela trabalha para eles - respondeu Pietro.

Para quem? - insistiu o jornalista.

Para a confraria negra.

Sou apenas uma funcionária do V&A, responsável pela coleção de vestidos — retrucou Abby, fingindo inocência.

Ela é uma prostituta! — explodiu o padre.

Boa-noite, senhores — surpreendeu-os Michael. — Espero que ela não esteja importunando meus mais notáveis convidados.

—Você... Está por trás disso tudo, seu miserável! - exasperou-se Pietro.

Por favor, padre. Não queremos chamar a atenção de ninguém. Controle-se — repreendeu-o David, em voz baixa.

— Vamos acabar logo com isso — consentiu Pietro, avançando para a sala. Seus olhos foram atraídos para o centro. A escultura "Immortal Love" erguia-se majestosa e solitária, destacando-se do resto do acervo. Com passos firmes e rápidos, ele foi na sua direção, como mosca atraída pela luz. O jornalista sentiu a têmpora direita formigar. Tontura. Parou a menos de um metro da entrada e olhou ao redor. Os outros convidados estavam voltados na sua direção e sorriam. Pareciam conhecê-lo. "Quem são vocês?", perguntou-se, fitando a lapela de um homem que aparentava cinqüenta anos e estava próximo. Um pingente prateado reluzia. Era o mesmo símbolo que Andrew talhara na fronte de Fernanda Albuquerque e os "monstros" traziam no pescoço na fatídica noite em que vira o ami­go de infância "morto", em Upper Slaughter. "Eram vocês, malditos", concluiu, segurando com força a bengala.

 

O jantar durou quase duas horas. Jessica se comportou como fiel aprendiz. Acompanhou extensas explanações da líder do coven sobre as fases lunares e os rituais de fertilidade dos celtas. E, para sinalizar que es­tava atenta, meneava a cabeça ou emitia sons guturais. Mary deixou a aula de lado para saborear a sobremesa de chocolate. O silêncio durou menos de cinco minutos. Enquanto esperava o café, ela reassumiu o posto:

Sabe por que o cristianismo é nosso pior inimigo?

Por quê?

Porque tenta jogar no esgoto o que existe de mais sagrado. É por meio do sexo, Jessica, que sentimos a energia vital que está por trás da criação e das transformações do universo.

Eles dizem que Jesus Cristo nasceu de uma virgem... — ironizou a inglesa.

Com isso, eles tentam provar que o sexo é algo imundo. Que ele nos suja. Que ele nos afasta de Deus. E sabemos que isso é mentira.

Fico com pena das pessoas que não enxergam isso — comen­tou Jessica.

Algum dia, quem sabe, isso tudo não mude — insinuou a americana.

Como assim?

Já pensei bastante sobre esse assunto. Nós sabemos que é possível prever o futuro. Acho que a Igreja Católica descobriu uma maneira mais eficaz de fazer isso e criou uma coletânea de profecias.

E o que isso tem a ver com a gente?

Tudo. Várias profecias falam sobre o nascimento de um inimigo poderoso. Ele é chamado de Anticristo. E, se é inimigo da Igreja Católica, certamente será nosso aliado - explicou Mary.

Faz sentido. Quando isso vai acontecer?

A americana tomou um gole de café e encarou a inglesa.

Ouvi dizer que ele já nasceu e está sendo preparado para a missão.

Sério?

Não posso garantir. Mas torço para que seja verdade.

Ele vai nascer de uma virgem? — brincou Jessica, com um sorriso debochado no rosto.

Sabe qual é um dos nomes da mãe do Anticristo? A Grande Pros­tituta - revelou Mary.

Essa mulher só pode ser uma das nossas.

Existe um coven na República Tcheca que tem uma líder apeli­dada de Grande Prostituta. Acho que ela deu à luz o nosso salvador — co­mentou Mary, terminando o café.

Mal posso esperar... - dizia Jessica até perceber lágrimas nos olhos da amiga. — Está tudo bem, querida? - perguntou, segurando em sua mão direita.

Estou tentando me distrair. Perdi uma grande amiga. Sinto um vazio que... Nunca vai ser preenchido por ninguém — desabafou a jorna­lista, com a voz embargada e lágrimas no rosto.

 

O padre começou a rodear a escultura, procurando alguma marca na base. Ignorava que o jornalista não o seguira até lá e estava alheio ao movimento dos outros convidados. Como suspeitava, não encontrou nenhuma inscrição na parte posterior. Apenas confirmava o que a foto capturada na internet revelara horas atrás. Com as pernas trêmulas, movi­mentou-se para o outro lado. Aproximou o rosto do mármore e começou a vasculhar cada centímetro esculpido. Os pulsos latejavam. A agulhada insistente no supercílio esquerdo o obrigava a forçar as pálpebras para manter o olho aberto. "Meu Senhor, eu Vos suplico que me ajudai a achar o que procuro", rezou em pensamento. Notou uma inscrição pequena na altura do pé direito do anjo sedutor. Três spots jogavam luz para o outro lado da escultura. A sombra se projetava sobre o padre. Colocou a mão no bolso esquerdo do casaco e pegou a pequena lupa usada na leitura das "cartas do inferno". Aproximou a lente e inclinou-se sobre ela. Enxergou a palavra ave dentro de linhas retas e curvas.

Guardou o instrumento óptico e folheou o bloco de notas. Encontrou a mesma inscrição com sua própria observação: "essa é a assinatura do demônio que se apresentou a John Dee como Ave". Lembrou-se do enigma que recebera da possuída, em Santa Maria in Aracoeli: "Ave... Os olhos onipresentes da rainha revelam a chave de Armon".

Está aqui. O livro está aqui - murmurou Pietro, apontando para a base da estátua.

Não houve resposta. Virou-se na direção da entrada. David se aproxi­mava vagarosamente. O padre fez um gesto com a mão para que se apres­sasse. Pouco atrás, Chancellor chegou perto de Michael e sussurrou algo.

O que você encontrou? — perguntou o jornalista, a poucos cen­tímetros de Pietro.

A assinatura de Ave, o demônio que deve ter escrito o Livro das Folhas Prateadas. Ele está aqui dentro, David. Precisa ser destruído.

É uma obra de arte, padre. Não podemos fazer isso...

Foi por isso que vim para Londres. Essa é a minha missão — retrucou Pietro.

Estamos cercados pelo inimigo, padre. Todas essas pessoas fazem parte da seita. Caímos em uma cilada.

O italiano olhou em volta. Os outros convidados se aproximavam do centro, formando um círculo. Teve a impressão de enxergar uma névoa negra pairando sobre eles. Com as mãos trêmulas, fez o sinal da cruz e trouxe para fora da camisa o crucifixo de prata que usava pendurado no pescoço. Mirou acima da cabeça dos outros convidados, cada vez mais próximos, e começou a recitar uma oração:

— Sancte Michael Archangele, defende nos in praelio. Contra nequitiam et insidias diaboli esto praesidium....

O que é isso, padre? Um exorcismo coletivo? Precisamos de algo mais concreto — disparou David, pegando o celular no bolso da calça e acionando o número de Mister Jones. Sem resposta. Ignorando o que o jornalista dizia, Pietro prosseguiu a oração em latim:

...Imperet illi Deus, supplices deprecamur. Tuque princeps militiae caelestis, Satanam aliosque spiritus malignos, qui ad perditionem animarum pervagantur in mundo divina virtute in infemum detrude. Amen.

Ao dizer a última palavra, um estrondo ecoou pela sala. O padre observou a névoa negra mover-se até a entrada, para onde todos os olha­res também se voltaram. Andrew trajava uma capa negra e segurava uma pistola cromada na mão direita. Ela estava encostada na cabeça de Abby.

Ele veio atrás do livro, padre — sussurrou o jornalista. — Não po­demos abrir o jogo.

Acho que ele veio nos salvar, David - disse Pietro, acompanhan­do com os olhos a névoa negra concentrar-se sobre a cabeça do bastardo e penetrar em seu peito, na altura do coração.

Todos para o chão, senão estouro os miolos dessa vagabunda! — berrou Andrew.

Próximo a ele, Michael retirou o medalhão para fora da camisa. Era o escudo que o senador Bundy o aconselhara a usar para se proteger das artimanhas do Feiticeiro. Em seguida, deitou-se de bruços no chão. Mãos sobre a cabeça. Os outros convidados também seguiram a ordem e se abaixaram. Com o braço esquerdo em torno de seu pescoço, Andrew caminhou com Abby até o centro da sala.

Padre, nunca pensei que fosse dizer isso, mas é um prazer encon­trá-lo — saudou Pietro ao encontrá-lo deitado no chão, atrás da estátua. David estava ao seu lado. O bastardo olhou para ele com raiva e berrou:

Os dois de pé!

Eles obedeceram. O padre o encarou, levantou o dedo em riste e disparou:

Não é um prazer encontrá-lo, filho do demônio!

—Vejo que você tem o dom de enxergar além das aparências, padre. Para cumprir a profecia, só me falta algo que vocês dois vão me entregar agora — afirmou, empurrando Abby para o chão e apontando a arma na direção da cabeça de David.

Não temos o que você quer - rebateu o jornalista.

Chancellor, venha até aqui — ordenou Andrew. O curador-chefe obedeceu. Sem pestanejar, deu-lhe um tiro no olho direito. O homem tombou no chão, morto.

O próximo vai ser seu amiguinho, padre. Então, me obedeça - berrou Andrew, mirando a pistola contra o rosto do jornalista.

Pietro apontou na direção da base de "Immortal Love" e disse:

O que você procura está aí dentro, assassino maldito!

Nunca pensei que fosse dizer isso, padre, mas temos algo em comum. E isso me agrada — comentou o bastardo, com um sorriso mordaz no rosto.

 

O salão do Rainbow Room estava vazio, exceto pela presença do senador Karl Bundy. Ele pegou a taça de Manhattan, mas derrubou metade antes de conseguir levá-la à boca. Estava nervoso com a reu­nião que ocorreria em breve. Evitava pensar sobre o assunto. Descon­fiava que o banqueiro Max Freeman conseguia ler seus pensamentos, e faltavam poucos minutos para ele chegar com um convidado especial. Respirou fundo e pegou a taça novamente. Bebeu o que restava do coquetel e foi surpreendido pelo rosto de Fernanda Albuquerque. Sen­tiu calafrio. "O que fizemos? Não devo pensar nisso agora. Não devo" repetiu mentalmente.

Não se censure, senador — recomendou o recém-chegado ban­queiro, vestindo terno cinza-escuro, camisa branca, gravata preta com detalhes prateados.

Bundy levantou-se para cumprimentá-lo, com o coração aos saltos.

Quero lhe apresentar nosso mestre — disse Freeman, estendendo as duas mãos para o lado esquerdo. O senador exibiu um sorriso nervoso no rosto. Não enxergou ninguém ali.

Me desculpe, senhor, onde ele está?

Ao meu lado.

"Deve ser uma piada como a da fábula...", pensava.

Está pensando em A Roupa Nova do Rei, senador? — indagou Freeman.

Como o senhor...

Deixe-me lhe explicar uma coisa. Nosso mestre só aparece a quem julga digno de sua companhia ou pretende usar de maneira, digamos, mais direta — explicou o banqueiro. Sorriso irônico no rosto. Sentou-se e fez um gesto para que ele o imitasse.

O convidado vai ficar de pé? — brincou Bundy, sob o olhar sério de Freeman.

A cadeira ao seu lado moveu-se sozinha para trás, deixando-o atônito.

Ele estava apreciando a vista, senador — informou Freeman, en­quanto o maítre chegava para servi-los.

—Traga mais um Manhattan para o senador, ele deixou cair metade da taça. E dois uísques duplos, sem gelo - solicitou o banqueiro.

Tudo está saindo conforme o planejado — adiantou-se Bundy.

Esse jogo está chegando ao fim, senador. O mestre já movimen­tou as peças. Só falta dizer xeque-mate.

Eles não podem fazer mais nada?

Claro que podem. Eles têm livre-arbítrio. Mas apostamos que não saberão usá-lo — revelou o banqueiro, dando uma gargalhada.

Ela teve escolha? - indagou Bundy, pensando em Fernanda Albuquerque.

Evidentemente. Ela escolheu o sacrifício. Nosso inimigo tentou dissuadi-la mais de uma vez. Se tivesse conseguido, nós estaríamos em xeque-mate.

O maître chegou com as bebidas em uma bandeja de prata. Entregou o Manhattan ao senador e colocou os dois copos de uísque diante de Max Freeman. Saiu sem dizer nada. O banqueiro deu uma risada seca e encarou o político.

—Você tem algo em comum com esse serviçal tolo. Ele também não enxerga o mestre — disse, empurrando um dos copos para o lado. Bundy fixou os olhos na bebida à espera de que algo estranho acontecesse.

Não seja inconveniente, senador.Você está deixando meu convi­dado pouco à vontade.

Me desculpe. Como posso lhe servir, agora?

—Você já repassou a última ordem a Michael, não?

Só faltam as coordenadas do vôo — respondeu Bundy, cabeça ligeiramente inclinada para baixo.

Faça isso no momento certo.

Fique tranqüilo, senhor, ele está em minhas mãos. Dará a vida para que esse avião chegue a Nova York — garantiu o senador.

Suspeito que esse avião não chegará a Nova York — disparou Freeman, encarando-o.

Como assim? E a...

—Talvez o mestre faça um de seus melhores truques. Os otários não enxergarão a verdade. A Roupa Nova do Rei. Lembra-se?

O que devo fazer? — insistiu Bundy.

Volte a ser um mero senador dos Estados Unidos. Até que eu o chame novamente.

Mas e o Feiticeiro? Preciso garantir que ele seja apagado.

A decapitação foi apenas um truque, senador. Nesse momento, ele está prestes a fazer uma jogada de mestre. Pelo menos, está conven­cido disso — completou o banqueiro, com um sorriso enigmático no rosto. Em seguida, pegou o copo de uísque e o tomou de uma só vez. Bundy aproveitou a distração e fitou o copo do convidado misterioso. Estava vazio.

Bom jantar, senador - desejou Freeman, levantando-se da mesa. - O mestre quer ir embora. Precisamos terminar uma partida de pôquer.

 

Uma poça de sangue encobria o rosto de Chancellor. Pietro esten­deu a mão direita na sua direção e fez o sinal da cruz.

Não perca seu tempo com isso, padre. Quero que você e esse cretino empurrem a estátua — instruiu Andrew.

Como assim, quer que a derrubemos? — indagou David.

— Você está enxergando alguma gaveta aí, idiota?

Ele quer que nós quebremos a escultura — disse o padre. — A hu­manidade não vai perder nada com isso - completou, aproximando-se da estátua e colocando as duas mãos na base. O jornalista suspirou e imitou Pietro."O que aconteceu com Mister Jones?", questionou-se, virando-se para o amigo de infância:

Há câmeras de vídeo nesse lugar, Andrew, e dezenas de testemu­nhas. Ah, me esqueci. Essas pessoas são suas cúmplices, não?

São todos uns malditos traidores! — berrou Andrew. — Derrubem logo isso, imbecis!

"Acho que estava certo. Ele foi traído pela facção inglesa da seita e deve ter passado para o lado dos americanos. Michael armou tudo isso", deduzia David, enquanto fazia força para empurrar a estátua com os olhos voltados na direção do americano. O padre também fez força e sentiu os pulsos latejarem. Segurou o grito de dor. Teve a impressão de um líquido viscoso escorrer das bandagens e molhar os punhos da camisa.

Mais força! — gritou Andrew.

No três, usamos força máxima — instruiu Pietro. - Um, dois, três — contou. Os dois sincronizaram o movimento e sentiram a escultura colossal mover-se sobre o apoio. Repetiram o gesto. Um barulho ensur­decedor repercutiu pela sala. Pedaços de mármore voaram em todas as direções. A maior parte da base caíra perto de Andrew.

Deve estar aí dentro — sugeriu Pietro.

O que estão esperando para procurar? — inquiriu o bastardo.

O padre fez um sinal com a cabeça. David se aproximou e o ajudou a erguer o pedaço de mármore. O italiano inclinou o pescoço para baixo. Havia uma abelha dourada impressa na base. "O terceiro mensageiro", concluiu.

O que fazemos agora, padre?

Vamos quebrar mais — sugeriu Pietro. — Podemos arremessá-la para lá — indicou com o queixo o canto isolado da sala — Assim, não atingimos ninguém.

Um, dois... - contou o jornalista, sincronizando o movimento dos braços com o padre. — ...Três — completou. Os dois soltaram a base ao mesmo tempo. O berro de Pietro foi encoberto pelo barulho do pedaço de mármore estatelando-se no chão. Os pulsos pareciam ter se rompido e o líquido viscoso, antes represado pelas bandagens, escorria pelos punhos da camisa até as mãos. O rosto contorcido de dor virou-se para o lugar em que a peça caíra. Ele notou um reflexo prateado escapando da pedra clara. "O livro maldito. Espero que David tenha uma boa idéia do que fazer agora".

Me tragam o que eu quero! — ordenou Andrew, mirando a pistola na cabeça de David. O jornalista avançou na frente. Pietro o seguiu. O bastardo aproximou-se lentamente, ansioso por colocar as mãos no te­souro da confraria negra e ir ao local indicado por Samyaza. Com a ponta da bengala, David afastou os fragmentos que cobriam o objeto prateado. "O livro realmente existe", concluiu, vislumbrando o símbolo na capa. Era o mesmo que Andrew desenhara na fronte de Fernanda Albuquerque. O mesmo que a maioria dos convidados daquela exposição exibia na lapela dos paletós ou dos casacos. O mesmo que...

Pegue logo e me dê! — impacientou-se Andrew.

"Ele está com a arma apontada para minha cabeça. Mas talvez eu consiga desarmá-lo. Só preciso distraí-lo com o livro... E sacar a espada da bengala", deduziu, abaixando-se e pegando, com a mão esquerda, o tesouro macabro. Tinha vinte centímetros de comprimento, dezoito de largura e, aproximadamente, cinqüenta páginas. Idêntico ao que John Dee lhe entregara em sonho.

Está aqui - afirmou David, estendendo o livro na direção do amigo de infância, a outra mão apoiada no cabo da bengala.

Os olhos de seu oponente brilhavam. Andrew estendeu a mão direita para apanhar o Livro das Folhas Prateadas. Deteve-se a poucos centímetros de alcançá-lo. Encarou David com um sorriso vitorioso e sussurrou:

Eu venci.

Aproveite o prêmio — respondeu o jornalista, soltando o livro. Em um movimento rápido, o bastardo conseguiu evitar que ele caísse no chão. Mas abaixou a mira. David aproveitou a distração e sacou a espada. Porém, estava muito perto para conseguir golpeá-lo. Deu um salto para trás na tentativa de corrigir a falha. Era tarde demais. Pela segunda vez, o tiro da pistola de Andrew ecoou pela sala de exposição. O padre levou as mãos à cabeça.Tudo parecia perdido.

 

Faltava menos de vinte minutos para chegar ao local indicado pelo urso Paddington. O locutor da rádio anunciou a canção "Me and Mister Jones" na voz de Michael Bublé.

— Que coincidência! - exclamou o agente Kemp ao volante do carro. Era a primeira vez que ouvia aquela versão da música. Como em outras vozes, lembrou-se do amigo jornalista. David ligara duas vezes, mas seu chefe fora bem claro. Até terminar aquela missão, não poderia falar com o parceiro do The Star. Sentiu um aperto no peito e um nó na garganta. Era mau pressentimento. "Ele sempre me ajudou. Talvez eu o tenha ignorado no momento em que mais precisasse de mim", pensou, aumentando o volume do som.

 

Ele se tornou agente da Scotland Yard por idealismo. Era a maneira que encontrara de lutar por uma sociedade melhor. "Existem muitos lobos disfarçados de homens. Eles precisam ser pegos e trancados em jaulas", respondera, ao ser questionado por um veterano após a admissão. Alguns anos depois, marcou um encontro com o promissor jornalista do The Guardian, em um pub decadente. Investigara a vida de David. Não tivera dificuldade para reconhecê-lo assim que ele atravessou a porta da entrada, exatamente no horário combinado: vinte horas, e aproximara-se do bal­cão de madeira com uma bengala marcando os passos.Vestido com ele­gância, David destoava dos outros freqüentadores: prostitutas maltratadas pela vida e homens mendigando companhia, de damas ou bebidas. Ele sentou-se em um banco alto e trocou palavras com o garçom.

Prazer, Mister Jones — apresentou-se Kemp, estendendo a mão para cumprimentá-lo, no mesmo instante em que o garçom colocava, diante do jornalista, um copo de uísque.

Suponho que seja um pseudônimo - retrucou David, apertando sua mão.

Conhece a canção "Me and Mrs. Jones"? — indagou, sentando-se ao seu lado.

Um clássico.

Eu me sinto o marido traído, sir David Rowling - respondeu, pedindo ao garçom um uísque duplo.

Como assim, Mister Jones?

Entrei na corporação por idealismo. Fui ingênuo de acreditar que poderia ajudar a construir uma sociedade melhor para os meus filhos. Mas aquilo, sir Rowling, é um covil de lobos.

Antes de mais nada, me chame de David. Como posso ajudá-lo? — perguntou, pegando o copo baixo e dando um gole na bebida. Franziu o cenho e voltou o uísque ao balcão.

Eu vou ajudá-lo, sir... David. Eu vou ajudá-lo a mostrar a verdade. Esse é o seu trabalho, não? Mostrar a verdade às pessoas.

A verdade nem sempre é desejável, Mister Jones. As pessoas preferem, muitas vezes, a mentira. Na minha profissão, também lido com... lobos.

O que você achou do assassinato de sexta-feira passada, David?

Você deve estar me perguntando isso porque leu o meu artigo. Estou certo?

Li o artigo. Concordo e discordo de você — comentou Kemp, pegando um papel dobrado do bolso do casaco. Era o artigo assinado por David. — O assassino é um serial killer. Encontramos mais duas vítimas nas mesmas condições.

Por que não divulgaram?

A justificativa oficial é de que a imprensa pode atrapalhar as in­vestigações e, consequentemente, a captura do criminoso.

E a não oficial?

Você deve saber que há duas versões para os crimes de Jack, O Estripador. A primeira é a simplista. Ele era um psicopata. A segunda é a de que ele cometia assassinatos ritualísticos obedecendo a ordens da maçonaria inglesa.

—Você está insinuando que...

Estou afirmando que esse serial killer está seguindo ordens de uma organização poderosa, David. A justificativa para não divulgar os últimos crimes é que alguém da cúpula da ScotlandYard está acobertando tudo — entregou Mister Jones.

Isso... Isso é terrível.As pessoas devem saber a verdade - retrucou o jornalista, tamborilando os dedos da mão direita sobre o balcão de madeira.

Isso significa que você aceita ser meu cúmplice nessa história?

Estou do seu lado. Me repasse todas as informações que tiver, em off.

Devo preveni-lo dos riscos que você corre...

Deveria ter feito isso no começo da nossa conversa. Agora já é tarde — interrompeu o jornalista.

O agente estacionou o carro diante dos imponentes portões de ferro. Holofotes iluminavam dois grifos ameaçadores nas colunas laterais e re­fletiam o dourado das lanças apontadas para o céu. Kemp notou duas câmeras de vigilância. Piscou o farol três vezes. Os portões se abriram automaticamente. Estava prestes a conhecer o informante X-721, um homem que, segundo o urso Paddington, transitava entre os dois mundos. Parou na entrada do castelo. Alguém estava à sua espera.

 

Deitado de bruços, ele ouvia os batimentos cardíacos repercutirem no chão. O segundo disparo o pegara de surpresa. "Esse filho da puta é louco. Ele vai matar todo mundo", pensou, aterrorizado. Levantou a ca­beça na direção de Andrew. O bastardo segurava o livro prateado em uma das mãos. Na outra, empunhava uma pistola. Com cuidado, passou a mão esquerda por trás do casaco. Tateou o coldre e segurou o cabo da arma. Conseguiu tirá-la e trazê-la para o lado. "Deixe que ele faça seu show na presença dos convidados", instruíra o homem misterioso. E completara: "Junte-se aos convidados especiais. Eles saberão o que fazer". "Acho que esse show já foi longe demais. Ele deve ter matado David. Se ele matar o padre, estou ferrado", deduziu Michael, respirando fundo.

Quer que eu mate mais alguém, padre? — indagou Andrew, fitan­do a expressão indignada de Pietro, com os olhos voltados para o corpo imóvel no chão.

—Você já tem o que quer, pode seguir seu caminho.

Ainda não tenho tudo — retrucou, olhando na direção de David. O jornalista deixara cair a espada e observava a segunda vítima do bastar­do, com o rosto parcialmente desfigurado pelo tiro no lado direito, pouco abaixo do olho. "Se eu não tivesse tentado reagir, esse maldito não teria matado a mulher", sentiu o peso do remorso.

O que mais você quer? — questionou o padre.

Seu amigo se acha esperto demais para admitir uma derrota. Quero que tire o anel que está no seu dedo e coloque no meu - explicou Andrew. Pietro olhou para o dedo anular da mão direita do jornalista. O anel dourado reluzia.

Isso não pertence a você — enfrentou David.

Vamos ver quantas vidas isso vale? — desafiou-lhe, apontando a pistola para outra pessoa deitada no chão.

Por favor, não faça isso — suplicou Pietro, aproximando-se do jornalista e ordenando. - Me dê sua mão!

David obedeceu. Enquanto sentia o anel roçar com força a pele, lembrou-se do que dissera seu pai ao colocá-lo: "Aceite este anel como prova de lealdade. Que ele seja uma ponte entre seus antepassados e seus descendentes. Ele deve permanecer em seu dedo até que seu primogênito se despeça de sua alma e enterre seu corpo. E o peso da árvore genealógica... Do seu sangue, filho".

Aqui está — resmungou o padre, estendendo o anel na direção do assassino. Andrew colocou o livro sob o mesmo braço que empunhava a pistola e levou a mão esquerda até ele.

Coloque no meu dedo. Este é o maior sacramento que você vai realizar na sua merda de vida.

"Você está comprando sua passagem para o inferno, maldito", Pietro retrucou em pensamento. Sentiu uma estocada na testa ao tocar na mão de Andrew. Tontura. "Meu Deus, não posso fraquejar agora. Me ajude", suplicou, inserindo o anel no dedo anular do assassino. Teve a impressão de alguém sussurrar em seu ouvido: "A verdade está sob o selo. O leão coroado reclama seu trono. Ele vem do Tronco de Jessé".

Tentou fixar a vista. Uma névoa escura se afastava.

Eu sei para onde ele vai — revelou o jornalista, abaixando-se para pegar a espada e escondendo a lâmina na bengala.

Na outra ponta da sala, Michael observou os passos apressados do Feiticeiro em direção à saída. Escondeu a arma na lateral do corpo. "Ouvi a voz das almas gêmeas. É melhor seguir a orientação do homem miste­rioso. Não posso arriscar a vida da minha família", concluiu. Assim que Andrew deixou a sala, ele se levantou e guardou a pistola. Foi ao encon­tro dos dois com o cenho franzido e os olhos apertados. Os sobreviventes se levantaram e começaram a fazer ligações dos celulares.

— Você armou tudo isso, não? — exasperou-se David.

O traidor. Encontrei o traidor — anunciou Pietro, olhando para o peito de Michael.

Que traidor? - o inglês e o americano indagaram em uníssono.

O traidor da Igreja Católica. O traidor da Confraria dos Quatro Anjos.

Não temos tempo para isso agora, padre. Precisamos ir — exigiu David, tocando no ombro do italiano.

Eles ameaçaram minha família. Estou nisso até o fim. E vou se­guir vocês para qualquer lugar — informou Michael.

Faça o que quiser.Vamos, padre - insistiu o jornalista, avançando para a saída.

Pietro estava ajoelhado diante da segunda vítima de Andrew. Mãos em prece. Olhos fechados.

Santa Maria Madalena, eu vos suplico. Intercedei por Abby junto ao Pai para que Ele perdoe seus pecados e a receba no Paraíso. Amém - murmurou, levantando-se e seguindo David. Antes de deixar a sala de exposição, ouviu uma mulher falando ao telefone:

O bastardo roubou a herança.

 

O castelo guardava muitos segredos. Havia poucas horas, Mister Jones conhecera boa parte deles. Sentado no sofá da ampla sala de estar, ao lado de uma lareira, o agente do SID aguardava a chegada do informante X-721. Aceitara um pequeno cálice de vinho do Porto oferecido pelo mordomo. Enquanto saboreava a doçura da bebida, seus olhos vasculhavam o ambiente. Estava nervoso. Partira para uma missão desconhecida. Seria guiado por um homem sem escrúpulos, que arruinara o próprio filho. E, em algum momento, receberia a ordem de um urso de pelúcia para matar alguém. As mãos suavam. Terminou o cálice. Teve a impressão de alguém se mover às suas costas.Virou-se. Continuava sozinho. Levantou-se e foi até a lareira. Sobre o parador, uma foto da família. O casal com seus dois filhos. Sorriu ao reconhecer David. "Ele parecia feliz. Não devia imaginar que seu pai...", pensava, até ser surpreendido por uma voz grave:

Boa-noite, sr. Kemp.

Coração aos saltos, virou-se rapidamente na direção do anfitrião. Sir Henry Rowling tinha a barba cerrada, aparada com precisão, e trazia um trilby castanho sobre a cabeça.

Boa-noite, sir Rowling — respondeu o agente, estendendo a mão e avaliando discretamente o figurino do pai de David. Ele vestia um covert coat tradicional, castanho-claro ligeiramente mesclado, com a gola castanho-escura em veludo. Kemp sabia que aquele estilo de sobretudo fora originalmente criado para os adeptos da caça e da equitação. Um de seus diferenciais era um bolso interno para guardar munição, na altura da coxa esquerda, e, bem ali, notou uma saliência.

— Você gosta de caçar, sr. Kemp? — indagou sir Rowling.

Depende do quê — rebateu o policial, observando as botas jodpur sujas de terra.

Costumo caçar raposas. Mas você está atrás de um lobo, não? — insistiu sir Rowling, com um sorriso no rosto.

O que quer dizer com isso? — rebateu o agente, perturbado com aquela afirmação.

Que o lobo que você procura está prestes a entrar na toca — re­velou, com uma expressão séria no rosto. — Mas, antes de pegá-lo, vamos nos preparar. Me acompanhe, por favor.

Atravessaram a sala de estar e chegaram à de armas. Das paredes la­terais pendiam espadas, escudos e cabeças de animais.

Eu tenho uma dívida com você, sr. Kemp — prosseguiu sir Rowling, enquanto avançavam para o salão de chá.

Que dívida?

—Você foi o único que ficou do lado de David.

Eu só estava fazendo o que era certo, sir Rowling. Você não me deve nada.

Seu anfitrião parou de andar e virou-se para ele, encarando-o com olhos faiscantes.

—Você acha que eu traí meu filho?

Não estou aqui para...

Sem rodeios, sr. Kemp. Responda minha pergunta!

Sim. Isso é público.Você renegou David e doou a parte que lhe cabia na herança.

— Vejo que você não fez direito seu dever de casa, sr. Kemp. Eu pro­tegi meu filho de lobos que não usam dentes nem garras, como sir Cotton, e me tornei informante do SID para desmascarar esses canalhas! Fui eu quem pediu sua transferência de departamento. E hoje, você vai receber a recompensa por ter ajudado meu filho — revelou o pai de David.

Esses canalhas, sir Rowling, se reuniam em sua casa - disparou o agente.

Estamos a poucos metros da sala de jogos.Você gosta de bridge? — esquivou-se o anfitrião.

 

O retrovisor refletia o carro de Michael. Ao seu lado, o padre mur­murava algumas palavras.Talvez uma prece, embalada por A Arte da Fuga - Contrapunctus XIII, de Bach. O formigamento na têmpora direita de David intensificara-se desde que iniciara o trajeto até Upper Slaughter. Apostava que Andrew estava indo para lá, embora evitasse pensar nos motivos que o levaram a essa conclusão.

Amém — disse Pietro, aumentando a voz e encerrando a oração.

O jornalista fingiu não perceber. Não se sentia bem para conversar com ele.

Para onde vamos, David?

Ele respirou fundo antes de responder:

Para Upper Slaughter. Não é distante de Londres.

É uma cidade?

É onde meus pais têm... uma casa de campo. E costumam passar os fins de semana.

— Vamos visitar seus pais, David? Pensei que estivéssemos atrás da­quele... Daquele maldito.

Você lembra quando me mostrou a assinatura de Ave na base da estátua e as pessoas começaram a se aproximar, pouco antes de Andrew aparecer?

Claro.

O que você disse, padre?

Senti que todos eles estavam possuídos. Como estou proibido de realizar qualquer atividade sacerdotal e, portanto, impedido de fazer exorcismos, apelei para a oração a São Miguel Arcanjo do papa Leão XIII. E deve ter funcionado, porque Andrew chegou e a névoa escura... Enfim...

Que névoa escura, padre?

Algo pairava sobre aquelas pessoas, David. Talvez fosse uma legião de demônios, ou um só, muito poderoso.

Samyaza, talvez... — insinuou o jornalista.

Provavelmente. Ele é o maior interessado naquele livro maldito e no Apocalipse Negro. Por isso, precisamos deter Andrew. Ele já era peri­goso sozinho. Imagine agora.

Quando você fazia aquela espécie de exorcismo coletivo...

Não era exorcismo coletivo — corrigiu o padre.

Não importa. Eu me lembrei de algo que estava soterrado na minha memória e, às vezes, tentava escapar em sonhos, como o último que tive.

E isso tem a ver com Upper Slaughter? — adiantou-se Pietro.

Foi lá que conheci Andrew, aos sete anos. Certo dia, ele dormiu na cama ao lado. Acordei sozinho na manhã seguinte. Meus pais me dis­seram que seu pai, que descobrimos ser sir Alexander Cotton, tinha ido buscá-lo. Desde então, nunca mais o vi.

E por que você acha que ele voltou para a casa de passeio do amigo de infância?

— Porque naquela noite tive um pesadelo com Andrew. Na verdade, meu pai me convenceu de que foi um pesadelo. Estou quase certo de que mentiu para mim... Mais uma vez — respondeu, com a voz distante.

O que aconteceu, David? — indagou Pietro, girando o corpo na sua direção.

Acordei assustado e olhei o relógio. Eram quatro da manhã e Andrew não estava lá. Acho que o ouvi pedindo socorro. Mas não tenho certeza. Peguei a raquete de tênis, saí de casa e fui até o labirinto...

Que labirinto?

Um labirinto nos jardins da propriedade. Meu pai nunca me deixou entrar lá. Dizia que era perigoso e, se eu me perdesse, podia ser atacado por lobos. Em nossa última conversa, ele confirmou isso, e disse que, no centro, existe apenas uma velha cabana. Mas não foi isso o que descobri naquela noite.

 

O homem do SID sentara-se em uma mesa do lado direito do bar de destilados e charutos. Enquanto seu anfitrião servia dois copos de uís­que, ele observava uma das tapeçarias que ornamentavam as paredes do cômodo. Um homem velho, empunhando uma espada, protegia a jovem de um monstro grotesco. "Será que os demônios que o Paddington disse que eu conheceria se parecem com esse aí?", pensou.

— Aceita um charuto, sr. Kemp? - indagou sir Rowling, mexendo no umidificador.

Não. Obrigado.

—Você gosta de Shakespeare? — prosseguiu o anfitrião, aproximan­do-se com dois copos.

Muito pouco - respondeu o agente, observando-o voltar ao bar e apanhar acessórios para o ritual do charuto.

Essa tapeçaria é uma cena da peça A Tempestade. Dizem que ela foi escrita por encomenda de sir Kobert Bruce Cotton - explicou sir Ro­wling, sentando-se e aspirando os aromas da capa de um Romeu & Julieta antes de prosseguir. — Esse é um prazer que compartilho com sir Winston Churchill. Este era seu charuto preferido. Por isso, sua fábrica, em Havana, batizou-o de Churchill — explicou, pegando uma pequena guilhotina de duas lâminas e cortando a extremidade fechada.

Conheço Churchill e conheço Shakespeare, embora nunca tenha lido nada. Mas confesso que não sei quem é Robert Bruce Cotton - re­velou o agente. — Se tivesse que deduzir algo, diria que foi um antepassado de sir Alexander Cotton.

—Você está certo. Esse antepassado de sir Cotton iniciou uma his­tória que te trouxe até aqui, hoje — comentou o pai de David, colocando o charuto na boca e acendendo-o com um longo fósforo de cedro rosa.

Ele criou essa seita satânica, da qual Andrew faz parte?

Vejo que escolhi bem.Você é muito perspicaz — respondeu sir Rowling, dando baforadas no charuto até que a extremidade oposta estivesse inteiramente em brasa. - Sir Robert Bruce Cotton seguiu instruções deixadas por John Dee e criou uma sociedade secreta poderosa.

Que comandou os assassinatos em série — afirmou Kemp, dando um gole no uísque.

Eles sempre estiveram nos bastidores do poder, derrubaram reis. fizeram guerras, exploraram povos, dominaram a economia mundial — prosseguiu sir Rowling, encarando o agente, com o cenho franzido.

Qual é o objetivo?

Esperava uma pergunta mais direta, sr. Kemp — respondeu, tra­gando o charuto. — Essas pessoas eram, e são, movidas por uma fé bastante particular. Elas adoram Lúcifer...

O diabo?

Elas dizem que o diabo é uma caricatura cristã. Elas veem Lúcifer como Deus e acreditam que ele vencerá... a batalha final — explicou sir Rowling, apoiando o charuto no cinzeiro e tomando um gole do destilado.

Isso é tão... tão estúpido — comentou Kemp, encarando-o. - Você é um deles?

Não da maneira que você está imaginando. Quando meu pai faleceu e o testamento foi aberto, este castelo causou surpresa entre os descendentes. Eu deveria recebê-lo, mas, para que isso acontecesse, preci­sava respeitar uma das cláusulas: deixar que os membros dessa sociedade secreta tivessem acesso ao jardim, mais especificamente, ao labirinto — re­velou sir Rowling.

Por quê? O que eles fazem lá?

Essa é uma pergunta que não posso responder. Mas se você tives­se lido o dossiê sobre mim, saberia que esse castelo foi comprado por sir Robert Bruce Cotton, o antepassado de sir Alexander Cotton. Depois de algumas reformas, ele o entregou ao duque Arthur Rowling.

Seu antepassado?

Ele se tornou o primeiro guardião deste lugar. Li seu diário. Ele deveria deixar que se reunissem no labirinto. Mas nunca presen­ciou nada. Essa missão teria que passar de geração em geração pelos primogênitos.

O próximo seria David?

Sim. Mas, como você já deve ter percebido, quero romper com essa herança maldita - respondeu-lhe, colocando o charuto na boca e desaparecendo atrás de uma cortina densa de fumaça.

Por que não fez isso antes?

Porque estava sendo chantageado por sir Cotton. Foi justamente por isso que me tornei informante do SID e é por isso que você está aqui agora. Apenas peço que confie em mim — pediu sir Rowling, tomando um gole de uísque. - Mais em mim do que em sua corporação.

 

A hesitação inicial e o receio em defrontar-se com seus medos mais viscerais cederam a uma torrente de recordações. O relato, inicialmente tímido, transformou-se em uma avalanche de palavras. O jornalista pare­cia querer arrancar tudo de dentro de si. Mas, em vez de alívio, a angústia se apossava de seu coração a cada quilômetro.

Eu estava com medo... Muito medo de ser atacado por algum monstro. Mas precisava salvar o meu amigo... Não sei como ele se transfor­mou nesse assassino. Consegui chegar ao centro do labirinto. Velas. Muitas velas pretas no chão, em volta de uma pequena cabana — contava David.

"O círculo representa o céu, o lugar que Deus habita. As velas pretas são sinais de presença demoníaca. Um círculo de velas pretas é a profa­nação da casa de Deus. Não tem como uma criança de sete anos criar isso. Só prova que ele não sonhou, nem fantasiou", concluiu Pietro, não querendo interromper a narração espontânea do jornalista.

Peguei uma das velas e iluminei o portão de ferro. Acho que vi o mesmo símbolo que Andrew cortou na testa de Fernanda Albuquerque e que os convidados usavam no museu... Ouvi vozes. Elas pareciam vir das profundezas da Terra...

"Do inferno", o padre completou em pensamento.

Cheguei mais perto da entrada e iluminei dentro da cabana... Uma escada de pedra descia em espiral... As vozes estavam cada vez mais al­tas... Precisava ajudar Andrew... Desci até lá... Eles usavam máscaras, como aquela que vi nessa mesma estrada no dia em que fui encontrar meu pai... Negra, com chifres retorcidos, olhos repuxados, maçãs do rosto salientes. Também usavam capas... Fiquei com medo... Pareciam demônios, padre... E carregavam no pescoço a mesma marca... No meio deles, percebi que havia uma mesa, com um pequeno caixão... Era Andrew, e estava morto.

"Um ritual de iniciação diabólico. O batismo negro. Em vez de renas­cer para Deus, ele morreu para Deus e renasceu nas trevas", pensou Pietro.

Tentei chegar mais perto...Alguém tapou os meus olhos... E me tirou de lá... Quando acordei, estava na minha cama, sozinho no quarto.

Meu pai mentiu para mim, padre. No centro do labirinto não existe uma velha cabana.

É a entrada para um templo subterrâneo — o italiano deixou escapar.

Onde a seita se reúne — completou David.

Para rituais satânicos. Agora entendo por que estamos indo para lá.

— Tive a impressão de que os monstros eram as mesmas pessoas que encontramos na exposição. Elas olhavam para mim como se me conhe­cessem. Isso significa que... — o jornalista interrompeu a fala. Os olhos perdidos no horizonte escuro da estrada.

Significa que seu pai é um deles, David! - disparou Pietro.

Talvez essa seja a verdade em que eu nunca quis acreditar, padre — desabafou, com a voz embargada.

As pessoas costumam enganar a si mesmas quando não estão preparadas para encontrar a verdade. Mas precisa encará-la agora. Não sabemos o que vamos encontrar daqui a pouco.

Há alguns anos, padre, sofri um acidente nessa estrada. Eu vol­tava de Upper Slaughter com minha namorada. Fazíamos planos para o casamento... — recordava David, com a voz distante e o olhar perdido no passado. — Meu pai não gostava de Susan... Ele reprovava nosso relaciona­mento... Talvez ele tenha provocado o acidente... — deduzia, com as mãos trêmulas agarrando-se ao volante.

Como assim?

Eu capotei o carro tentando desviar de um demônio, padre. Ele usava uma máscara com chifres retorcidos, olhos repuxados para cima, maçãs salientes e uma capa negra esvoaçante. Exatamente como as pessoas que rodeavam Andrew no porão da cabana — respondeu-lhe, estacionan­do o carro no acostamento.

Meu Deus! — exclamou Pietro. — Você precisa ser forte, David. Temos que pegar Andrew antes que seja tarde demais.

Meu pai matou Susan, padre — balbuciou o jornalista, tentando conter as lágrimas que queriam se atirar de seus olhos.

—Tudo vai terminar bem - o italiano tentou consolá-lo, colocando a mão sobre seu ombro. "Talvez isso explique por que Andrew quis o anel", concluiu Pietro, observando duas luzes se aproximarem. E pararem. Era Michael estacionando atrás deles.

 

A fumaça encobria o rosto de sir Henry Rowling como uma máscara em constante mutação. Kemp tomou o último gole do uísque e tentou encarar seus olhos. Teve a impressão de ver dois chifres etéreos desfazendo-se poucos segundos após a última baforada. Percebeu traços de pre­ocupação em seu rosto. Sentiu um aperto no peito. Estava encurralado. Precisava fazer uma escolha e não estava disposto a arriscar sua carreira.

Você quer dizer que devo ignorar as ordens do meu chefe? — insinuou Kemp.

Nesta missão, sim.

E por que eu deveria fazer isso, sir Rowling?

Pelo mesmo motivo que passou por cima de sua lealdade à Scotland Yard para colaborar com meu filho.

A história era outra - esquivou-se o agente, desviando o olhar para a tapeçaria de Romeu e Julieta.

A história é a mesma. E sua corporação também é a mesma, um ninho de serpentes venenosas. Não pense que seu ex-chefe estava bem-intencionado quando te enviou para investigar o assassinato da modelo brasileira — rebateu sir Rowling, aproximando o rosto de seu interlocutor.

O que você sabe sobre isso? — surpreendeu-se Kemp, virando-se novamente na sua direção.

Você esqueceu que transito entre dois mundos? E, se faço isso. consigo enxergar melhor do que você? - retrucou o anfitrião, dando outra baforada no charuto.

Você acha que meu atual chefe também não estava bem-intencionado quando me mandou para cá?

Posso afirmar que seu chefe e eu temos um interesse em comum: sua presença aqui. O problema é o seguinte: não sei se ele está limpo ou se foi cooptado por eles, como o agente Wensley.

Qual é a minha garantia de que você não está me manipulando?

Quer melhor garantia do que a minha palavra, sr. Kemp? Daqui a pouco tempo, provavelmente, você estará diante de uma encruzilhada.

Se eles descobriram meus planos, e não duvido que isso já tenha acon­tecido, tentarão me atingir por seu intermédio. Só peço que use o bom senso e faça a escolha certa. Neste meio, Mister Jones, não há tempo para arrependimento. Nem perdão.

Um sinal sonoro desviou a atenção de sir Rowling para o bolso da calça. Apanhou o celular. O bastardo está na propriedade, delatava a men­sagem de texto. Em silêncio, deu a última baforada em seu charuto e o repousou em uma das laterais do largo cinzeiro sobre a mesa. Olhou para o agente, levantou-se da mesa e disse:

Morrer com honra, sr. Kemp.

O quê? - indagou assustado, imitando seu gesto.

O charuto jamais deve ser apagado. O certo é deixá-lo queimar sozinho até o fim. Para ele, isso é "morrer com honra" — explicou, encos­tando a cadeira na mesa.

Para onde vamos?

Andrew acaba de chegar.

Ele está aqui?

Está indo até o templo subterrâneo, no centro do labirinto — revelou sir Rowling.

Onde fica? - adiantou-se o agente.

Há uma única vantagem em ser o guardião deste lugar, sr. Kemp: conheço os seus segredos — respondeu, avançando até o bar.

Abriu uma pequena porta de madeira e fez um gesto com a cabeça para que seu convidado o seguisse. O espaço atrás do balcão era suficiente para que duas pessoas se movimentassem sem dificuldade. O espelho na parede refletia dezenas de garrafas de destilado. Entre elas, o agente da Scotland Yard enxergou seu reflexo. Estava visivelmente apreensivo. Sir Rowling abaixou-se e retirou as garrafas de licor da prateleira mais baixa, colocando-as sob a bancada de mármore.

Me ajude aqui — solicitou a Kemp, que se agachou ao seu lado. — Há duas pequenas travas nas extremidades superiores. Devemos pressioná-las ao mesmo tempo.

Tudo bem — concordou o agente, passando a mão direita por baixo da prateleira de madeira e sentindo a saliência. — Quando quiser, diga ok.

- Ok.

Kemp ouviu um ruído e sentiu uma pequena vibração. Algo pa­recia ter se deslocado atrás da parede. Ao seu lado, sir Rowling apoiava as duas mãos na placa de metal. Moveu-a para baixo suavemente, reve­lando quatro pequenas alavancas viradas para a direita. Com facilidade, girou-as no sentido contrário.

"Ele deve usar esse caminho com freqüência", deduziu o agente.

Precisamos sair do bar agora — orientou o anfitrião, acompanhando-o até o lado de fora. Em seguida, abaixou-se e puxou o tapete que cobria o assoalho da área interna. Duas reentrâncias surgiram próxi­mas à portinhola. Sir Rowling encaixou as mãos, apoiou o joelho direito no chão e fez força para cima. A madeira rangeu. Sob o olhar perplexo do homem do SID, o chão do bar se levantou. Era uma passagem secreta.

Preciso fazer isso sempre que quero beber vinho, sr. Kemp — brincou o guardião do castelo, avançando para os degraus escuros da escada. — Por isso, prefiro os destilados. David não herdou meu gosto por bebidas.

 

Três batidas secas no vidro assustaram o motorista. Ele olhou através da janela, esperando encontrar o mesmo demônio que o surpreendera no dia do acidente de Susan e também na manhã em que se reconciliara com o pai. Era Michael.

O que aconteceu? — disparou o americano, assim que David abriu a janela.

— Você sabe para onde nós estamos indo, não? — insinuou o jorna­lista. — Está na hora de abrir o jogo, Michael.

Se eu soubesse para onde aquele psicopata foi, não estaria aqui batendo papo com você.

Se vocês sabiam onde estava o livro, por que armaram tudo isso?

Não sei do que você está falando — respondeu Michael, virando-se para Pietro. - Que tal convencê-lo a seguir adiante? Você também quer colocar as mãos nele, não?

O padre balançou a cabeça afirmativamente. David deu a partida no carro e pisou no acelerador. O americano voltou para o carro a passos largos.

Não estou preocupado com Michael. Acho que ele estava di­zendo a verdade — disse David, acelerando. — E acho que você está certo: nesse momento, preciso me ater à razão.

Fico satisfeito com sua decisão. A propósito: Michael falou a ver­dade sobre o quê?

Lembra-se da teoria sobre as duas facções brigando para assumir o comando dessa maldita seita?

Sim, a americana e a inglesa — confirmou Pietro.

Há alguns minutos, eu pensava que Andrew tinha traído seus pares. Mas estou enganado.

Ele assassinou duas pessoas no museu. Suponho que o homem também fosse inglês. Não é um forte indício de traição?

Michael era o curador da exposição. Isso significa, padre, que ela foi organizada pela facção americana, provavelmente com o objetivo de mostrar supremacia. Se Andrew não tivesse estragado a festa, talvez os in­gleses elegessem como novo mestre o dono do Livro das Folhas Prateadas.

Um americano...

Sim, um americano. O fato de Michael estar nos seguindo, atrás de Andrew, prova que a exposição não saiu conforme os planos do seu chefe.

O que acha que Andrew vai fazer?

Ele é um louco psicopata. Talvez queira usar esse livro... Não sei como. Talvez esteja querendo provar algo a alguém...

A seu pai? — indagou o padre, fitando o rosto perturbado do jornalista.

Infelizmente, acho que sim — respondeu David, com voz em­bargada. Pigarreou para fazê-la voltar ao normal. - Ele roubou o anel tradicional da minha família. Não fez isso por acaso.

O que acha que seu pai está fazendo?

O que ele sabe fazer melhor: dando um golpe — desabafou David, raiva na voz e no rosto.

Bem, se você estiver certo, estamos indo ao encontro de Andrew. Qual é o nosso plano?

—Vamos pegar o livro. E desmascarar meu pai.

Mesmo seu pai sendo um membro da confraria negra, suponho que não lhe fará nenhum mal. E quanto a Andrew? Ele é perigoso.

—Vamos deixar que Michael cuide dele - respondeu David.

Michael? Ele também deve estar atrás do livro. Não podemos deixar que o pegue - preocupou-se Pietro.

—Tentei pedir ajuda a Mister Jones, padre. Mas ele não atende minhas ligações. Acho que teremos que contar com a proteção divina - insinuou o jornalista, mirando o retrovisor. O carro de Michael se aproximava.

 

O símbolo da ordem estava chapado no portão de ferro. Andrew o iluminou com a lanterna. Sorriu. Retirou a mochila das costas. Abriu o zíper e pegou uma caixa de velas negras. Com o isqueiro prateado que carregava no bolso do casaco, acendeu uma a uma, fixando-as em marcas metálicas no chão e formando um círculo luminoso ao redor da cabana. Voltou a mochila às costas e puxou o portão. O metal rangeu. Estava aberto. "Ele deve ter preparado uma armadilha. Mas, agora, Samyaza está do meu lado. Sou mais forte", disse para si, descendo os degraus de pedra. Mergu­lhou na escuridão do templo subterrâneo. O coração disparou. Demônios emergiram de suas lembranças. Eles se aproximavam. Eram ameaçadores. Pernas bambas. Apanhou um spray do bolso do casaco e embebeu, com fluido de isqueiro, a estopa do archote pendurado à esquerda da entrada. Fez o mesmo com o archote do lado oposto e os incendiou. Respi­rou fundo. Não se lembrava do chão imitando um tabuleiro de xadrez. A primeira sala estava vazia. Ao fundo, havia duas entradas, sem portas. Empunhando um archote, foi para o lado esquerdo e chegou a uma sala. Exatamente no centro, uma mesa medindo quase um metro de altura sobre um tapete de seda vermelho, de aproximadamente dois metros quadrados. A toalha de linho branco sobre o tampo de quase um metro quadrado tocava o chão. Dois castiçais com círios erguiam-se em duas pontas. Entre eles, uma moldura dourada circular, encimada pela cruz, exibia um cristal. "A pedra sagrada", observou Andrew, com um sorriso no rosto. Três espelhos de prata polida ornamentavam a parede oposta. A sua direita, uma pequena entrada para a câmara ao lado. Ele se aproximou da mesa. Baixou a mochila e o archote ao chão. Pegou uma das pontas do linho branco e o levantou, revelando um pedaço do tampo. Letras enoquianas ornamentavam a borda. "A Mesa da Prática que desapareceu misteriosamente", concluiu, soltando o tecido. Respirou fundo. Trazia um sorriso contemplativo no rosto. Estudara a fundo aquele objeto. Era capaz de decifrar os nomes dos Reis e Príncipes do mundo espiritual, codificados na madeira de loureiro. Mas apenas um nome o interessava naquele momento: Samyaza. Acendeu os círios com o isqueiro. Tirou da mochila um objeto envolto em veludo negro. Desenrolou o Sigillum Dei e o colocou sobre a mesa. Em seguida, pegou o espelho negro e o apoiou sobre a peça de cera. Um vento gelado soprou em seu rosto. Para com­pletar, faltava apenas um objeto: o Livro das Folhas Prateadas. "Não seja um fraco, Andrew", alguém parecia soprar aquelas palavras em seu ouvido.

Não sou um fraco, pai - respondeu, apanhando o livro prateado na mochila e repousando-o diante dos outros objetos, próximo ao cristal. Sentiu o vento gelado envolver seu corpo. Fechou os olhos e inspirou profundamente. "Tinha um diabo do lado da minha cama, papai! Esta­mos fugindo dele? Precisamos salvar David", dissera aquilo aos sete anos, enquanto caminhava pelos corredores escuros em direção àquele lugar. Lembrou-se dele e cerrou os punhos.

Sou melhor do que David! — respondeu em voz alta.

"Não tenha medo dos demônios, Andrew. Estamos descendo ao in­ferno e você vai ter que enfrentá-los. Se não fizer isso, vai morrer", seu pai o ameaçara.

Eu venci todos eles.

"Papai, não me leve até lá, por favor. Quero voltar para o quarto", suplicara com lágrimas nos olhos, agarrando-se às calças do homem que o conduzia.

"Se você me envergonhar, acabo com você. Está me entendendo? Um filho covarde não vale nada!", seu pai gritara, apertando seu braço com força e fuzilando-o com os olhos.

Desgraçado! — berrou Andrew, apertando as pálpebras. Lágrimas escorreram pelo rosto.

Percorrera calado os metros que faltavam até o "inferno". Prende­ra o grito de pavor na garganta ao ver dezenas de demônios. Ao fundo, algumas velas vermelhas rodeavam um pequeno caixão elevado sobre a mesa. Uma das criaturas infernais aproximara-se dele, empunhando uma espada. A ponta da lâmina voltada na direção de seu pescoço.

"Quem é você, intruso?", perguntara-lhe, o metal frio tocando sua pele. Coração aos saltos. Precisava vencê-los. Estendeu a mão para o lado, procurando a segurança de seu pai. Vazio.

— Sou o filho de Samyaza! - bradou. Aquelas palavras ecoaram na sala vazia.

"Você é um maldito bastardo. Seu sangue é sujo", dissera-lhe aquela voz grave e abafada.

Eu tenho o sangue sagrado!

"Você é o excremento do seu pai. A vergonha da sua casa", revelara outro "demônio", que se aproximara e ficara ao lado do primeiro.

Sou o verdadeiro herdeiro — balbuciou, com os lábios trêmulos.

"Seu destino é vagar pelas sombras.Você preparará o caminho para o filho de Deus". Outro "demônio" chegara mais perto.

"Morrerá para o mundo dos homens", informara uma voz feminina.

"E renascerá como um soldado de Samyaza", completara outra mulher.

—Vocês estavam errados. Não sou um soldado. Sou o príncipe. Está na hora de cumprir o que meu pai prometeu - anunciou, abrindo os olhos e dissipando as lembranças.

Raios iluminaram a pequena sala, mergulhada na penumbra. Eram disparados do espelho negro em direção aos outros três, pendurados na parede oposta à entrada. Uma gargalhada ecoou pelo templo subterrâneo.

 

Os portões da propriedade em Upper Slaughter estavam abertos. David entrou com seu carro e estacionou diante da mansão. Michael parou logo atrás. Os três homens saíram ao mesmo tempo. Pietro e o americano encararam David, à espera de alguma iniciativa. O jornalista segurou com força sua bengala.

Eu estava certo. Ele está aqui — informou, apontando para o carro estacionado poucos metros adiante.

— Para onde vamos? - adiantou-se Michael.

Temos que chegar ao centro do labirinto. Fica a poucos metros daqui — revelou o jornalista, colocando-se a caminho. Os dois seguiram-no, margeando a imponente construção.

Escute aqui, Michael — disse Pietro. — Não sei qual é seu interesse nessa história. Só quero esclarecer que, assim que encontrarmos Andrew, o livro é nosso.

Não estou interessado nisso - retrucou o americano.

Mas seu chefe está — disparou o padre.

A luz amarelada de alguns postes iluminava o chão de terra batida ladeado por carvalhos. David seguia a menos de um metro dos dois. Coração disparado. Respiração entrecortada. Formigamento na têmpora direita. Para compensar a fraqueza nas pernas, apoiava-se com firmeza na bengala. Mão escorregadia de suor. "Socorro, David. Me ajude", a voz infantil de Andrew sobressaiu-se em suas lembranças quando chegou ao jardim. Por um momento, teve a estranha sensação de voltar no tempo. Levantou a bengala, como se fosse uma raquete de tênis prestes a desferir golpes nos monstros que encontrasse pelo caminho. Ou nos lobos que o pai criara para impedi-lo de chegar ao centro do labirinto. Passadas largas. Pisava nos mesmos lugares. Sentiu o suor escorrendo nas costas, a camisa colada ao corpo. "Preciso chegar até lá", repetiu mentalmente. O barulho da cascata d'água o tirou do transe. Diminuiu a velocidade ao passar diante da estátua-fonte. Fazia pouco tempo que estivera naquele lugar, recebendo o anel de seu pai. Parecia que ele estava ali agora, e sussurrava-lhe as mesmas palavras: "Que a deusa Diana e sua corça sejam testemunhas desse momento.Você pode perder os bens materiais, mas sua história pessoal não pode ser roubada de você, nem corroída pelo tempo. Ela é a sua verdadeira herança, David".

Voltou a bengala ao chão. Precisava dela para continuar a caminhada. Olhou por cima dos ombros. Michael o seguia. Pietro estava parado a cinco metros, com o rosto levantado em direção ao labirinto.

O que aconteceu, padre? Precisamos ir! — impacientou-se David.

O italiano continuou parado. O jornalista girou sobre o calcanhar, passou por Michael e foi até ele.

O que aconteceu?

O sinal - respondeu Pietro, atônito, apontando para o céu.

Que sinal, padre? - indagou David, olhando na direção indica­da por ele.

A luz avermelhada da lua atravessava falhas da massa densa de nuvens escuras. Reconheceu o desenho de um dragão com sete cabeças e uma longa cauda.

O dragão do Apocalipse — murmurou, surpreso.

Acho que Andrew já abriu o livro, David — lamentou Pietro, com os olhos arregalados.

Só tem um jeito de descobrir isso. Precisamos chegar até lá. Va­mos — retrucou o jornalista, retomando a caminhada. Em menos de cinco minutos, já estavam no limite do jardim. A menos de cem metros, avis­taram o labirinto, com a entrada iluminada por um pequeno poste. Um calafrio percorreu o corpo do jornalista. Teve a sensação de que vários olhos observavam-no. Parou.

O que foi, David? — cobrou Pietro.

Estou com medo, padre. Estou com muito medo — confidenciou em voz baixa, para evitar que Michael o ouvisse.

O que foi? — o americano quis saber, colocando a mão direita por baixo do paletó e trazendo à tona uma pistola.

O que é isso? — berrou Pietro.

Vamos enfrentar um psicopata, não? Precisamos nos defender. Onde ele está, David?

— Meu Deus, nos enviastes para essa missão sagrada. Que Vossos anjos nos protejam das armadilhas do demônio — rezou o padre. — Vamos David, Ele nos protegerá — garantiu, segurando no braço esquerdo do jornalista e avançando.

Com as pernas trêmulas, David o obedeceu. "O medo transforma animais selvagens em bestas sanguinárias.Volte ao bosque e mostre que não é mais um garoto medroso. Você deve merecer o prêmio." Um homem parecido com John Dee lhe dissera aquelas palavras em um sonho e parecia soprá-las em seu ouvido naquele momento. Um raio desceu das nuvens escuras e caiu no centro do labirinto. Os três homens pararam à sua entrada, estarrecidos.

 

A adega subterrânea guardava centenas de garrafas de vinho. Para alguém que não fosse um connoisseur, seria difícil garimpar um rótulo es­pecifico. O nome estava em um papel no bolso de sua calça: Pétrus 1947. "Quero que você tome o melhor vinho de sua vida", dissera-lhe David na primeira vez em que saíram para jantar. "Prefiro tomá-lo em outra ocasião", ela retrucara. "Me avise quando esse momento chegar", pedira o jornalista. Mary sorriu ao lembrar-se daquele momento no Gordon Ramsay Restaurant.

O momento chegou, David — a voz de Mary deixou um rastro na umidade lúgubre. Jessica lhe fizera companhia por duas horas e deixara a mansão de David há menos de uma. "Esqueça que é a líder do coven e me veja como sua amiga. Se você ficar pensando na morte da Fernanda, vai pirar", aconselhara a inglesa. "O que acha que devo fazer?", indagara Mary. "Algo que te traga alegria, que te faça feliz", respondera Jessica.

O que me traz alegria... Fazer uma festinha surpresa para David. Os vinhos estão separados por país, região, sub-região e safra — concluiu, ao ver bandeiras, nomes e datas dividindo prateleiras. — Tenho: França, Bordeaux, Pomerol,1947.

Encontrou uma escada encostada ao lado dos vinhos italianos e a le­vou até a região francesa. Subiu três degraus até alcançar os rótulos Pétrus. Com cuidado, puxou uma garrafa da ampla colméia. Passou a mão sobre o rótulo para remover a fina camada de pó.

Excelente escolha. Me sinto honrada por isso. Muito honrada — comentou consigo mesma, descendo.

Repousou a garrafa sobre uma mesa redonda de madeira escura e voltou a escada portátil à posição original. Apanhou a garrafa com a mão direita e subiu os degraus em espiral que conduziam à sala de estar. Al­guém tocou a campainha.

Estou na casa de David, não posso atender. A menos que Jessica tenha esquecido algo e voltado para buscar... É melhor checar — concluiu, apressando-se para atender a porta. Mirou através do olho mágico. Um homem negro, alto e forte, trajando sobretudo cinza-escuro e botas de cano alto, carregava um buquê de rosas vermelhas. "Estou tentando sur­preender o David, mas acho que ele levou vantagem", deduziu, abrindo um largo sorriso enquanto destrancava a porta.

Flores para Mary - anunciou o homem, estendendo-lhe o buquê.

Sou eu mesma — respondeu a americana, sorrindo e pegando as flores.

Guardei o cartão para não correr o risco de perdê-lo no transporte - revelou o entregador, retirando um envelope do bolso do sobretudo. — Meu chefe não me perdoaria nunca - completou, estendendo-lhe a mensagem.

Não havia nada escrito no envelope, lacrado com cera vermelha. O sorriso no rosto de Mary desapareceu assim que viu o desenho gravado com sinete. Bateu a porta com força. Correu para o quarto e se trancou. Atirou o buquê na cama e sentou-se no chão. Ficou em silêncio por alguns minutos, envelope à mão, fitando a abelha em revelo. Quebrou o lacre.

A mensagem fora escrita em papel creme, caligrafia artística, cor sépia:

 

Querida Mary, desde o dia em que lhe revela minha melhor mágica, seu coração está comigo. E eu consigo enxergar por meio dele. Sinto o quanto tem me odiado nos últimos anos. Mas eu precisava me retirar de cena por um tempo. Chegou a hora de você me conhecer como nunca ninguém me conheceu. O nosso encontro já está marcado. Não me deixe esperar mais tempo. Com amor, Sammy.

 

Esta noite, tenho um encontro — retrucou Mary, pegando o buquê e a carta e indo à suíte. Queimou a mensagem na pia e ligou a torneira para limpar as cinzas. Retirou uma rosa do buquê e jogou o resto no lixo.

Obrigada pela rosa, Sammy.Vai deixar minha noite mais român­tica — completou, voltando à sala para pegar a garrafa de vinho e as taças. Precisava preparar tudo antes que David chegasse da exposição.

 

A câmara escura era iluminada por raios disparados na sala ao lado. Um estrondo fez Kemp sacar a pistola. Sir Henry Rowling acenou negati­vamente. Não era hora de agir. O agente guardou a arma e pegou o celular. Nem sinal do urso Paddington. Com cautela, o pai de David também tirou o celular do bolso. Silenciosamente, ele acusava uma mensagem: Filho, padre e anjo da guarda estão na primeira entrada. Uma luz mais forte entrou pela por­ta. Palavras em uma língua desconhecida. "O que está acontecendo ali?", Kemp perguntou ao anfitrião, apenas movendo os lábios.

— Ele está invocando um demônio poderoso. Chegou a hora de acreditar nisso — sussurrou sir Rowling em seu ouvido esquerdo.

Na sala ao lado, os raios que partiam do espelho negro e eram refle­tidos nas três superfícies de metal polido penduradas na parede uniam-se no centro do cristal sobre a Mesa de Prática. Dele, irradiava uma luz averme­lhada. Extasiado, Andrew contemplava a pedra sagrada. Sentia a presença de seu verdadeiro pai. Desejava o poder que ele lhe prometera. E estava preparado para recebê-lo. Um novo estrondo percorreu a sala e ecoou nas duas câmaras laterais. O bastardo fechou os olhos. Reconheceu a voz grave de Samyaza proferindo palavras na linguagem enoquiana, que ele traduziu em pensamento: "Vede a face de Deus. Meus olhos são o brilho dos céus e guiam o governo da Terra". Sobreveio o silêncio.

David respirou fundo. Sacou a espada da bengala e, com a arma em riste, deu o primeiro passo em direção ao corredor escuro. Michael e Pietro seguiram atrás. Coração a mil. Respiração curta. Um calafrio atra­vessou seu corpo. Deu mais um passo. As pernas tremiam e ameaçavam desobedecê-lo. Ouviu algo se arrastando no chão. Parecia se aproximar à direita. Suas mãos suavam. Em um golpe rápido, transpassou a lâmina pela parede de folhagens. Em um reflexo, Michael apontou a arma na mesma direção e disparou. Nada.

O que aconteceu? - assustou-se Pietro.

— Alguns animais selvagens vagam por aqui à noite. Eles são traiçoeiros, padre. Precisamos ficar atentos — respondeu o jornalista, sem disfarçar o nervosismo.

Está escuro, David. Vamos precisar usar a lanterna — sugeriu Michael, sacando o objeto do bolso da calça e entregando-o a ele.

Preciso das duas mãos.Você não quer seguir ao meu lado, ilumi­nando o caminho? — rebateu, visivelmente inseguro.

Como quiser, chete — consentiu o americano, acionando a luz. — Para que lado vamos agora, esquerda ou direita?

David fechou os olhos. E ficou parado. "Socorro, me ajude", quando era criança, o pedido desesperado de Andrew o guiara até o centro do labirinto. Nas encruzilhadas, ele parava, fechava os olhos e esperava a voz do amigo indicar o caminho. Era como se os dois estivessem, de alguma maneira, conectados.

—Vai me dizer que não sabe o caminho? — irritou-se Michael.

Deixe-o se concentrar! — esbravejou o padre.

Não temos tempo para isso — retrucou o americano.

Quer fazer um favor? Cala a boca! — exasperou-se Pietro.

"Me salve. Me salve", alguém parecia ter soprado aquelas palavras em seu ouvido direito. Ele girou o corpo na mesma direção. E avançou.

Pai nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome... — o padre começou a entoar, em voz baixa, mas audível para os outros dois, a oração mais conhecida do cristianismo.

Isso não vai nos ajudar em nada - resmungou Michael.

Outra encruzilhada. David repetiu o ritual. Dessa vez, a voz sussur­rou em seu ouvido esquerdo.

Seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no céu... — continuava Pietro, seguindo atrás deles.

—Você tem certeza de que é por aqui? — insistiu Michael, olhando para ele. O jornalista parou no meio de um corredor.

O que está havendo? — quis saber o americano, percebendo a movimentação das folhagens. De repente, algo escuro saltou sobre seu braço direito e cravou os dentes no paletó Brooks Brothers. Michael ber­rou de dor, abrindo a mão e deixando a arma cair. David tentou golpear o animal com a espada, mas ele conseguiu se esquivar e saltou na frente do grupo. Tentando controlar a dor que subia até o ombro, o america­no estendeu o outro braço na direção do animal, jogando um facho de luz sobre ele. Parecia um cão negro com os pelos das costas ouriçados. Unhas espessas e afiadas projetavam-se das patas como garras, prontas para estraçalhar a vítima. Fumaça saía de suas narinas. Os olhos brilhavam e pareciam soltar faíscas avermelhadas. Em seu rosnar rouco, ele exibia presas afiadas manchadas de sangue.

O que é isso? — berrou Michael.

Livrai-nos de todo o mal. Amém — Pietro encerrou a oração, enca­rando os olhos da fera. "Esse animal está possuído, como os porcos em Gadara", concluiu.

David estava paralisado de medo. Desejava que seu pai estivesse ali para protegê-lo. Desejava agarrar-se em suas pernas, esconder o rosto e, ao descobri-lo, estar seguro novamente. Com o canto dos olhos, o padre fitou Michael. O americano estava desarmado. A lan­terna tremia em sua mão.

Sancte Michael Archangele, defende nos in praelio. Contra nequitiam et insidias diaboli esto praesidium... — começou a entoar a oração do papa Leão XIII, mas o animal rosnava cada vez mais alto. Parecia prestes a atacar.

"Prove que não é um menino medroso, David. Enfrente seus de­mônios. Ou seja destruído", aquelas palavras ecoaram na mente do jornalista. O coração doía no peito. O ar faltava nos pulmões. Teve a impressão de que um ralo no chão de terra sugava a energia de seu cor­po. As pernas formigavam. A visão enturveceu. Tentou fixar os olhos no inimigo. Enxergou algo terrivelmente ameaçador. Ele era bem maior e mais forte. E pretendia destruí-lo.

—Você...Você... — disse com a voz arrastada, desabando de joelhos no chão. — Não desista, David! - berrou o padre, interrompendo a oração. Pietro sentiu que era tarde demais. O animal demoníaco pulava so­bre seu amigo, com as presas afiadas mirando o pescoço.

 

Sir Henry Rowling permanecia com os olhos fechados. Cenho franzido. Boca apertada. Concentrava-se em algo que Mister Jones nem tentava adivi­nhar. O agente da SID estava assustado com a voz rouca que ouvira na sala ao lado. Era a primeira vez que se deparava com o mundo sobrenatural. Arriscou-se a imaginar como seria o demônio que dialogava com o serial killer.

Ele não tem rabo nem chifres, Mister Jones. E não pense que poderá atingi-lo com sua arma — Sir Rowling acabava de sair do transe e lhe sussurrava aquilo.

O que quer que eu faça?

Espere mais um pouco. Não conseguiremos enfrentá-los sozinho.

Quais são os reforços?

O chão estremeceu. A luz avermelhada se tornou mais intensa.

Não desvie a cabeça para a esquerda nem para a direita. Abra os olhos e fixe o centro do cristal - instruiu a voz grave de Samyaza.

Andrew obedeceu. Apesar da intensidade, a luz não causava des­conforto.

Está na hora de trazer à superfície os noventa e um Príncipes que servirão ao meu herdeiro. Aproxime-se e abra o livro sagrado - ordenou o demônio.

O bastardo levantou-se e, sem tirar os olhos do cristal, dirigiu-se à Mesa de Prática. Ao tocar na capa prateada, sentiu uma descarga elétrica repelir sua mão.

O que aconteceu? — assustou-se.

Não seja estúpido, Andrew. Me obedeça! — berrou Samyaza.

 

"Você é capaz de vencê-lo. Honre o sangue que corre em suas veias", era a voz de seu pai. Uma onda de calor atravessou seu corpo e lhe devolveu a energia roubada. David abriu os olhos e flagrou o animal se lançando em sua direção. Os dentes afiados prontos para retalhar sua carne. Em um reflexo mais rápido do que seus companheiros pudes­sem acompanhar, girou a espada. Um grunhido agonizante percorreu os corredores escuros do labirinto. David se levantou e puxou a lâmina enterrada no pescoço do animal. Sentia-se forte e aliviado. Derrotara o "monstro" que, durante anos a fio, montava guarda na porta de seu quar­to e atormentava-o em intermináveis pesadelos.

Acabou — murmurou, esboçando um sorriso.

Recuperado do susto, o americano focalizou a vítima e abaixou-se para avaliá-la melhor.

Era só um cachorro. Um maldito cachorro — observou, recupe­rando a pistola a poucos centímetros do animal.

O medo transforma animais em demônios, Michael — rebateu o jornalista.

O demônio também entra no corpo dos animais, David — cor­rigiu o padre.

Então, acabo de mandar um deles de volta para o inferno. Agora, está na hora de pegar outro - disse o jornalista, voltando a percorrer o corredor.

Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco... — Pietro retomou suas orações, em italiano.

Merda! Aquele filho da puta mordeu meu braço — reclamou Michael, sentindo um líquido pastoso correr sob a camisa. - E esse padre já está me irritando.

O jornalista ignorou o comentário e apertou os passos. Já não parava mais nas encruzilhadas. Seus pés conheciam o caminho até o templo subterrâneo em que os monstros enterraram Andrew. O formigamento na têmpora direita aumentava conforme ele se aproxi­mava do centro.

— Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém — reza­va o italiano no momento em que David e Michael dobraram a esquerda.

Velas negras formavam um círculo em torno da pequena cabana. O jor­nalista teve um déjà-vu e sabia exatamente sua origem.

Ele está aí dentro? — indagou o americano, iluminando o portão de ferro.

Está, sim — afirmou o padre, fitando o símbolo da Colméia Dou­rada e sentindo um pouco de tontura.

Esta é a segunda vez que venho aqui. Na primeira, queria salvá-lo — comentou David, aproximando-se das velas. Abaixou-se e pegou uma delas.

E se ele souber que estamos aqui? Deve estar de tocaia, esperando que mordamos a isca — alertou Michael.

Ok. Perseguir criminosos não faz parte das minhas competências. Qual é sua sugestão?

Como é o terreno? — quis saber o americano.

Desci apenas uma vez. Eu era criança e estava escuro. Só me lem­bro de uma grande sala... — respondia o jornalista.

Há uma luz acesa lá embaixo — observou Michael. — Pode ser uma armadilha. Acho melhor o padre ficar de guarda na entrada. Se acontecer algo, ele nos avisa com um grito. Estou armado e vou na frente.Você me acompanha, como se pisasse em ovos. Ok?

Ok - consentiu David.

Discordo. Estou junto neste barco e também vou descer - res­mungou Pietro.

Ele é tão... Irredutível. Lembre-se de ficar com a boca fechada. Se quiser rezar, faça isso em silêncio — repreendeu-o Michael, desligando a lanterna e guardando-a no bolso da calça. Empunhou a arma com as duas mãos. A região da mordida latejava. "Merda. Preciso conseguir fazer a mira", pensou, descendo o primeiro degrau.

 

"Preciso conseguir", repetiu Andrew mentalmente, aproximando novamente a mão esquerda do Livro das Folhas Prateadas. Uma nova des­carga elétrica a empurrou para trás.

O que está acontecendo, Samyaza? — indagou, com medo nos olhos.

Tente mais uma vez.

Andrew obedeceu. Na terceira vez, o choque foi mais intenso e o atirou contra o chão.

Por que o senhor está fazendo isso? — perguntou, arrastando a voz.

Essa é uma versão da lenda de Excalibur. E você não é digno de abrir o livro, idiota — respondeu Samyaza, elevando o tom. A luz no cristal se intensificou.

Mas o senhor me disse... O senhor disse que eu era seu... Eu sou seu filho - balbuciou Andrew.

E por que você não se contentou com isso?

Como assim?

—Você está usando um anel que não te pertence. Não se contentou em ser meu herdeiro. Queria ocupar o lugar dele.

Me perdoe - suplicou Andrew, com lágrimas nos olhos.

—Você está me confundindo? A misericórdia não faz parte das mi­nhas qualidades.

O que quer que eu faça? — indagou-lhe, arrastando-se até a Mesa de Prática e tentando, mais uma vez, abrir o livro.

Na sala ao lado, Mister Jones percebeu sir R owling colocar a mão no bolso interno do sobretudo e sacar uma arma.

Aqui, só eu tenho licença para fazer isso — censurou-o o agente.

Mas não tem o direito de fazer o que deve ser feito — rebateu o pai de David, empunhando um revólver com cano duplo alongado.

 

Michael chegou ao fim da escada. Um archote pendurado no lado direito iluminava a sala de chão quadriculado. No lado oposto, duas pas­sagens sem portas. Ele se virou e fez sinal para que os dois ficassem para­dos. "Se ele não souber que estamos aqui, estará na sala iluminada. Se tiver desconfiado, está de tocaia na sala apagada", raciocinou.

Eu sou seu filho. Eu mereço isso — Michael reconheceu a voz de Andrew. Vinha da sala à esquerda. Seguiram-se um estrondo e o baru­lho de vidro se estilhaçando. Ao fundo, podia-se ouvir o bastardo gritar.

A luz diminuiu e a sala mergulhou na penumbra. Empunhando a arma, o americano aproximou-se da porta e ficou encostado na parede. Respirou fundo e segurou com força o cabo. "Um, dois, três", contou mentalmen­te, girando o corpo e encontrando o Feiticeiro caído no chão. Mirou na cabeça. Ouviu duas pessoas aproximarem-se silenciosamente. Deduziu serem David e Pietro. Andrew mexeu as pernas. E se virou. O sangue es­corria em seu rosto. Abriu os olhos e flagrou Michael apontando a arma na sua direção. Encarou-o com raiva e berrou:

Maldito traidor! Você quebrou o cristal! Eu já devia ter acabado com a sua raça!

Não sei do que está falando. Mas fique parado senão eu acabo com a sua, agora.

Você acha que está protegido com esse medalhão? - indagou Andrew, observando o símbolo pendurado em seu peito.

É meu escudo — respondeu o americano, com um sorriso irônico no rosto. — Estou com a vantagem, não?

Se isso te protegesse, você não teria sido atacado pelo meu cãozinho de estimação.

Uma dor lancinante atravessou o braço de Michael e desceu até a mão que segurava a arma. Temendo perder a mira, ele disparou. O tiro atingiu um dos espelhos de metal pendurados na parede oposta e ricocheteou, atravessando a entrada lateral. Alguém gritou na sala ao lado.

É uma emboscada? - indagou Andrew, passando a mão esquerda por trás do casaco e sacando a arma presa entre a calça e as costas. Mirou a cabeça de Michael, que soltara a pistola após o tiro e contorcia o rosto de dor, e ameaçou:

Está na hora de mostrar a cara. E nada de truques, senão arreben­to a cabeça desse americano idiota.

Preciso fazer alguma coisa — o jornalista disse ao padre, surgindo na porta atrás de Michael, que se abaixara no chão e apertava, com força, o braço atingido pela mordida na tentativa de diminuir a dor.

David? — surpreendeu-se Andrew. — Você veio me sal... — inter­rompeu a palavra antes de completá-la. — Me pegar! — corrigiu o ato falho, desviando a mira da arma da cabeça de Michael para a do amigo de infância.

Andrew, é o fim da linha para você — anunciou o jornalista.

Uma pistola contra uma espada. É... Acho que estou com a van­tagem agora.

Acionei agentes da ScotlandYard. Eles devem chegar em pouco tempo.

—Acha que estou preocupado com isso? Acabo de perder minha vida. E vou levar você comigo - retrucou o bastardo, encarando-o com raiva.

 

Na sala ao lado, Mister Jones observava sir Rowling sangrar na altura do ombro. A bala ricocheteada o atingira.

—Vou entrar em ação — informou o agente.

Ainda não. Andrew sabe que alguém está aqui. Ele me ouviu gritar. Vou aparecer na sala.Você será o fator surpresa — orientou o pai de David.

O que devo fazer?

Escolher entre a ordem do seu superior e o que seu coração disser — respondeu-lhe, levantando a mão com a pistola e entrando na sala. Sem desviar a mira de David, Andrew olhou para ele. Ficou aterrorizado.

Eu o amava.Você...Você me traiu — gaguejou. A arma tremia em sua mão.

"Eu estava certo. Ele faz parte disso", concluiu David, fitando seu pai.

Abaixe essa arma — pediu sir Rowling, colocando seu revólver no chão.

Por que fez isso? — indagou Andrew, com a voz trêmula.

Do que está falando? - rebateu o pai de David, indo em direção ao filho. Tomou a espada de sua mão e dirigiu a ponta para baixo. Com a esquerda, apontou para o lado. Embora atordoado com o formigamento na têmpora direita, o jornalista foi assaltado pela imagem da tapeçaria na sala de jogos do castelo. "É a preferida de seu pai", comentara lady Charlotte no dia em que fizeram as pazes. Olhou para ele. Naquele instante, seu pai imitava os gestos de Próspero, o personagem de A Tempestade ins­pirado em John Dee. "O Duque Negro", pensou, levando a mão direita à têmpora. "Miranda, a filha legítima", disse para si mesmo, fitando Andrew acuado ao lado daquela mesa, como o bastardo Calibã ao pé do rochedo. "Não pode ser. Não me sinto bem. Devo estar fantasiando."

— Você veio para defendê-lo, não? — disparou Andrew, com lágrimas nos olhos. — Por que não conta a verdade?

Ele já sabe de tudo — respondeu sir Rowling.

Então, irmão, seja bem-vindo ao inferno — disparou o bastardo, encarando David.

Nós dois somos... irmãos? — questionou o jornalista, ao mesmo tempo incrédulo e assustado.

—Você sempre teve tudo, David. Ele me jogava as sobras.

Como assim?

Naquela noite, David, ele me trouxe para cá. Ele me entregou na mão daquelas pessoas.

Isso é verdade, Henry? — indagou o jornalista, virando-se para o pai..

Escondi algumas coisas de você, filho, para te proteger...

E me atirou no fogo! — berrou Andrew, lágrimas de raiva escor­riam em seu rosto. "Você é um maldito bastardo. Seu sangue é sujo.Você é o excremento do seu pai. A vergonha da sua casa", aquelas agressões, feitas há tantos anos, explodiam em sua cabeça.

Por que fez isso? — insistiu David.

Espero que você acredite em Mister Jones. Ele lhe contará tudo — respondeu-lhe. "Espero que não me decepcione", completou em pensamento.

Isso não importa mais.Vou morrer, mas levo minha família junto - informou Andrew. — Primeiro, você...

 

O agente Kemp estava com o celular na mão. "Vamos logo, seu urso maldito, quem é o alvo?", disse para si, fitando o visor. Poucos segundos depois, uma foto do urso Paddington chegou acompanhada por um nome: David Rowling. "Filho da puta, traidor de merda", retrucou em pensa­mento. O suor escorria entre a mão e o cabo da pistola.

— Coragem, coragem — murmurou, apoiando-se na parede e erguen­do a arma até a altura do peito. "Não posso errar. Preciso girar o corpo e atirar", concluiu. Coração a mil. Respiração ofegante. "A verdade nem sempre é desejável, Mister Jones. As pessoas preferem, muitas vezes, a men­tira. Na minha profissão, também lido com... lobos", lembrou-se daquelas palavras de David, ditas no primeiro encontro. "Sem sentimentalismo, Eric. Ordens são ordens", repetiu. Respirou fundo e girou o corpo, surgindo diante da passagem. Arma em punho. Teve menos de um segundo para localizar seu alvo. E atirar. Um grito estremeceu o templo subterrâneo. O corpo tombou no chão. Lágrimas apagadas no rosto de sir Rowling.

 

"Mas livrai-nos de todo o mal...", Pietro rezava no salão de entrada, próximo à porta que Michael e David atravessaram. Os pulsos doiam. O corte no supercílio esquerdo latejava. Uma pontada no centro da testa ameaçava derrubá-lo.

Amém — concluiu a oração em voz baixa, no mesmo instante em que o segundo tiro era disparado. Após um grito, o baque surdo do corpo caindo. Silêncio. "Alguém foi atingido. David...", pensou, precipitando-se em direção à outra sala. Michael recuperara sua arma e estava em pé. Na entrada lateral, Pietro reconheceu o agente da Scotland Yard que surgira em sua suíte e entregara o primeiro mensageiro. Entre eles, pai e filho olhavam para o corpo caído ao lado de uma mesa. Em cima dela, o livro prateado reluzia. O padre passou pelos três homens e se aproximou de Andrew. Abaixou-se e apoiou sua cabeça na perna esquerda. Ele ainda respirava. O bastardo tinha uma palavra presa entre os lábios. E a deixou escapar em um suspiro: "pai".

Chamem um médico! — berrou Pietro.

Não dará tempo. Acertei em um ponto vital — revelou Mister Jones, olhando na direção de David.

Filho, esse é o momento de se arrepender por todo o mal que causou - sussurrou-lhe o padre.

Ele... Ele... me pe... per... perdo... aria? — indagou Andrew, tossindo. O sangue borbulhava em seu peito.

Ele perdoa todos os filhos — respondeu Pietro, tocando em seu rosto.

De... Deus me aceita... taria como filho? — perguntou, com um reflexo de esperança nos olhos.

Ele sempre quis isso. E vai perdoá-lo se você se arrepender dos seus crimes. Você se arrepende? — inquiriu o padre, encarando os olhos quase sem vida.

Uma expressão de terror tomou conta do rosto de Andrew.

Não... Não deixe... Não deixe que ele me leve - balbuciou.

Quem, Andrew?

Samy... Samyaza.

Você pode vencê-lo agora. Você se arrepende dos seus crimes e aceita Deus como Pai e Senhor?

Si... Sim — deixou escapar dos lábios. E expirou. A cabeça tom­bou para a esquerda, no braço de Pietro.

Andrew, todos os seus pecados foram perdoados. Hoje, os anjos estão em festa e você será recebido na casa de Deus, como o filho pró­digo — anunciou o padre. Apoiou sua cabeça no chão, fechou seus olhos e fez um sinal da cruz na sua fronte com a mão direita, murmurando palavras que os outros não puderam ouvir. Com a mão esquerda, tirou discretamente de seu dedo o anel que ele roubara de David. Guardou o objeto no bolso.

O crime de quem te colocou nesse caminho é muito mais grave - prosseguiu Pietro, levantando-se e encarando sir Rowling.

—Você perdoou um maldito psicopata? — reprovou Michael.

Deus o perdoou — retrucou o padre, aproximando-se da mesa e pegando o Livro das Folhas Prateadas. Estava quente. — Esta você perdeu, Samyaza.

O que você vai fazer com ele? - quis saber David, saindo do torpor.

Eu não vou fazer nada. Quem deve destruí-lo é você — revelou, estendendo-lhe o livro maldito.—Tenho contas para acertar com Michael - completou, olhando para o americano.

Tudo bem, padre. Eu te dou uma carona até o hotel — consentiu, guardando a pistola.

"Mereça esse prêmio. E o mais perto que você pode chegar de Deus!", alguém parecia soprar aquelas palavras no ouvido do jornalista no momento em que recebia o livro das mãos de Pietro.

Filho, a maldição acabou - revelou seu pai, com um sorriso discreto no rosto. — sr. Kemp, por favor, o acompanhe de volta a Londres. Ele precisa de algumas explicações. Peço para o motorista levar seu carro depois.

 

O Jaguar zarpara da propriedade havia quase quinze minutos. David pediu a Mister Jones para deixá-lo quieto por algum tempo. Talvez pre­cisasse disso para conseguir se refazer dos golpes recebidos no templo subterrâneo. Talvez não estivesse disposto a escutar as mentiras de seu pai pela boca do homem que, como ele, lutava para defender a verdade. E ele acabara de se defrontar com verdades indesejáveis: O Estripador de Londres era seu irmão, e seu pai participava da seita satânica. "Duque Negro?", aquela dúvida insinuava-se sorrateira entre uma profusão de pensamentos e emoções. Desejava estar em casa, apresentando para Mary uma das maravilhas do mundo de Baco: o Pétrus 1947. "Ele é o Duque Negro?", questionava-se, embora relutante. Desejava beijar sua assistente. Era tão parecida com sua amada Susan. "Duque Negro?".

Merda! Quais mentiras ele te convenceu a me dizer? — o jorna­lista quebrou o silêncio.

Antes de mais nada, David, quero que você saiba que ele não me forçou a isso - defendeu-se Mister Jones.

O que ele fez?

Pouco depois da perseguição ao... ao serial killer, recebi um tele­fonema. Fui transferido para o SID.

Por que aceitou o convite?

Não foi um convite. Foi uma ordem. Quando cheguei para tra­balhar, todas as minhas coisas estavam na nova sala. A primeira surpresa que tive ao chegar lá foi a placa na porta: Mister Jones.

Como sabiam disso?

Eles sabem de tudo. Na minha mesa, havia alguns dossiês sobre a seita satânica, os assassinatos ritualísticos, sir Alexander Cotton. E seu pai.

Ele faz parte disso tudo, não? — David foi direto ao ponto.

— Sim e não.

—Você está brincando comigo, Mister Jones?

Um de seus antepassados foi arregimentado pelos satanistas e se tornou uma espécie de guardião daquele lugar em que estivemos hoje. Desde então, o cargo passa para o filho mais velho, e o próximo seria você.

Então, a resposta é sim, sir Henry Rowling é um deles.

Na versão de seu pai, ele nunca participou dos rituais. E era chantageado por sir Alexander Cotton para não pular fora do esquema.

E você acreditou nessa bobagem?

— Acredito nas evidências, David. Nos dossiês do SID, seu pai é identificado como o informante X-721. Ele vazava informações sobre as atividades da seita. Por que faria isso se não estivesse disposto a desmascará-los? — rebateu o agente, inclinando ligeiramente o rosto na direção do motorista.

Por que ele não me contou a verdade?

Para protegê-lo, David.

O jornalista colocou o pé no freio. O carro derrapou na pista e parou no acostamento. Visivelmente irritado, ele encarou Mister Jones e disparou:

Quanto ele te pagou para dizer isso?

—Você está louco? — berrou o agente, emendando a explicação:

Tive a prova disso lá embaixo. Meu chefe no SID não mostrou o rosto. Acho que ele está mancomunado com a seita satânica. Por que penso isso, David? Ele me mandou para Upper Slaughter dizendo que eu deveria eliminar um alvo. Mas não disse quem seria. Obviamente, imagi­nei que fosse o psicopata.Você era o alvo, David! — revelou, encarando-o. — Recebi ordens para matá-lo. Se eles conseguiram se infiltrar até no SID, seu pai tinha uma razão suficientemente forte para querer protegê-lo desses miseráveis. Não acha?

Por que... Por que você não seguiu as ordens do seu superior?

Fiz uma escolha, David. E não me arrependo disso.

Obrigado, Mister Jones — o jornalista agradeceu, com um quase sorriso. — E quanto ao que disse Andrew?

— O que, exatamente?

Que somos irmãos...

Só mesmo um padre para achar que aquele psicopata tinha salvação. Essa raça não consegue discernir verdade e mentira — afirmou Mister Jones.

O que os arquivos do SID falam sobre ele?

Não há registros. A única informação, não confirmada, é a mesma que você tinha.

Ele é filho bastardo de sir Alexander Cotton?

Segundo o informante X-721, sim.

Meu pai?

Ele mesmo.

Acha que posso confiar nele? — indagou David.

Acho que é sua melhor alternativa — sugeriu o agente, encarando-o.

 

O padre e Michael brigaram no início da viagem.

Aquele desgraçado estraçalhou várias mulheres e você disse que os anjos estavam em festa? Que religião de merda é essa? — o americano indagou assim que entraram no carro.

A salvação é um dom divino para todas as pessoas - explicou Pietro.

Se eu fosse católico e visse você fazer o que fez, preferia ser ex­comungado.

Você é egoísta, Michael. Nesse momento, aquele homem está mais próximo de Deus do que nós dois - provocou o padre.

Se eu acreditasse nessa besteira, acharia bem mais provável que ele estivesse cheirando o rabo do capeta.

—Você é um cabeça dura, Michael. Não vou mais discutir religião com você.

Vou aceitar isso como um elogio - retrucou o americano, au­mentando o som do carro. Os dois ficaram em silêncio até que o locutor anunciou a canção "The Battle of Evermore", do Led Zeppelin. A letra era uma provocação que Pietro não estava disposto a aceitar. E, com um murro, desligou o rádio.

Vejo que não curte boa música — Michael quebrou o silêncio. — Você gosta do quê? Daquelas músicas que os eunucos cantam nos corais da igreja?

Pietro caiu na gargalhada.

Você deve estar se referindo aos cantos gregorianos. Sim, gosto disso também.

Nunca ouvi nada mais sinistro.

Se você seguisse o conselho de São Bento, certamente mudaria de opinião.

E o que esse santo diz? — indagou Michael, em tom zombeteiro.

— Você deve apreciar a música com "os ouvidos do coração". Pensei que você conhecesse a vida de São Bento — insinuou o padre, virando a cabeça na direção do motorista.

Por que eu deveria?

Porque está carregando São Bento no seu pescoço — respondeu-lhe, apontando para o medalhão.

Isso aqui? — questionou o americano, segurando o objeto e o soltando. — Me disseram que me protegeria contra as armadilhas daquele psicopata. Pelo visto, não resolveu porcaria nenhuma.

Vade retro Satana, nunquam suade mihi vana; sunt mala quae libas, ipse venena bibas — Pietro recitou em latim.

Não falo essa língua.

Afasta-te, Satanás; nunca me aconselhes coisas vãs; é mau o que me ofereces, beba tu mesmo os teus venenos — traduziu o padre. — E uma oração exorcística inscrita na medalha de São Bento. Mas, sem fé, Michael, ela não vale nada. Sem fé, nem mesmo Jesus seria capaz de curar alguém.

Pensei que Jesus fosse capaz de tudo.

De alguma maneira, você foi salvo. Andrew podia ter acabado com você - comentou Pietro, voltando o rosto para a estrada. - Mas Deus tinha outros planos para vocês dois. Devo confessar que a conversão daquele homem foi o maior milagre que já presenciei. Além, é claro... - prosseguia, pensando em seu resgate do inferno — Não vem ao caso. Para quem você trabalha, Michael?

Também não vem ao caso, padre.

Não me interessa saber o nome do seu chefe. Sei que ele faz parte dessa confraria negra e isso basta. O que me intriga, Michael, e isso vem ao caso, é por que você está usando um medalhão de São Bento no pescoço.

O que te parece? — o americano rebateu a pergunta.

Não vou entrar no seu jogo. Você está tentando me ludi­briar, do mesmo jeito que fez depois do assassinato de sir Alexander Cotton.

—Você está falando do esquadrão da morte da Igreja Católica?

Sim.

Não seja ingênuo.Você mesmo está se ludibriando. A Igreja está infestada de homens tão sujos como o meu chefe. Este medalhão é uma prova disso - retrucou o americano.

"Este medalhão é a prova de que um sacerdote vendeu a alma ao diabo e está traindo a sagrada instituição", pensou o padre. Preferiu não defender a Igreja para não desviar o foco da conversa e, gentilmente, pediu-lhe:

Seja mais claro.

Alguém dos seus entregou isso ao meu chefe. Alguém da Igreja estava interessado naquele livro prateado — revelou Michael.

São acusações graves... - insinuou o padre, com a intenção de dar corda para que o americano falasse mais sobre aquilo.

Alguém está fazendo jogo duplo. A mesma pessoa, ou o mesmo grupo, que se aproximou do meu chefe, também tentou me comprar.

Quem?

O intermediário foi o embaixador da Igreja em Londres...

- O núncio apostólico — corrigiu Pietro, murmurando para não atrapalhar a revelação.

O chefão se identificava como.... — Michael fez uma pausa e inclinou ligeiramente o rosto na direção do padre, que o encarava, an­sioso — ... Servo de Deus. Apropriado, não?

Depende de qual é o deus em seu altar - comentou o padre, ressabiado.

 

David deixara Mister Jones próximo à sede da Scotland Yard e se­guiu para casa. "Seu pai tinha uma razão suficientemente forte para que­rer protegê-lo desses miseráveis. Não acha?", aquelas palavras do agente o surpreenderam no instante em que estacionava o carro.

É possível que sim — respondeu em voz alta, apanhando o livro prateado no banco de trás. "Se ele estivesse contra mim, tentaria im­pedir que eu destruísse isso aqui", deduziu, procurando a bengala. Não estava ali.

Não posso ficar sem ela — resmungou. — Posso sim — afirmou, batendo a porta do carro e caminhando em direção à escada que desem­bocava na porta da sala de estar. Percebeu que mancava mais do que o normal. Firmou os passos e prosseguiu. "Será que Mary está em casa?", indagou-se, com um sorriso no rosto. Desejava que ela estivesse. Apesar dos percalços, tinha bons motivos para desarrolhar a garrafa de um gran­de vinho e brindar com sua assistente. Mas, primeiro, pretendia destruir o livro. "A lareira é uma forma romântica de acabar com ele", ponderou, chegando ao último degrau e abrindo a porta.

Você é um herói, David? — a voz sedutora de Mary o pegou de surpresa. Ela estava sentada em sua poltrona preferida, com o cabelo solto, trench coat da Burberry fechado, botas pretas e rosa vermelha na mão direita.

Depende do ponto de vista - ele respondeu, desconcertado.

Para mim, você é um herói — insistiu sua assistente, levantando-se da poltrona e aproximando-se dele. Entregou-lhe a rosa com um sorriso malicioso no rosto.

Obrigado, Mary. Isso é muito... romântico. Quero tomar um vi­nho com você... Preciso fazer algo antes disso.

Espero que não se importe, querido. Preparei uma surpresa para você — retrucou a americana, olhando algo prateado reluzir em sua mão. - O que é tão importante que não possa esperar alguns minutinhos... Ou algumas horas? — questionou, encarando-o.

"Destruir isso aqui levaria um tempo razoável, e não seria gentil estragar a surpresa que ela me preparou", concluiu o jornalista, retribuindo o sorriso.

Tudo bem. Só preciso de uns segundos para deixar isso em um lugar... — respondia David até ser interrompido por um beijo.

Deixe isso em qualquer lugar — continuou Mary, segurando-o pela mão e conduzindo-o. Ele parou diante do quarto de visitas, mas a americana o puxou. "Ela quer ir ao meu quarto?", questionava-se, repro­vando o gesto.

Estamos quase chegando.

Mary, não acho uma boa idéia...

Querido, pela primeira vez me sinto pronta para me entregar a alguém. Acho que mereço escolher o lugar, não?

É que... — argumentaria David. Escolheu o silêncio.

Assim está melhor — observou Mary, retirando uma faixa de te­cido negro do bolso do casaco. - Faz parte da surpresa — explicou, entre­gando-a a David.

O que faço com isso?

É para vendar os olhos, querido. Se quiser, posso segurar essa caixinha para você.

"Acho que não há problema nisso", concluiu David, estendendo-lhe o Livro das Folhas Prateadas.

Não se esqueceu de me dar nada? — perguntou Mary, segurando o livro.

O quê?

Seu celular. Não quero que ninguém interrompa um momento tão especial como esse.

—Você é a chefe agora — David entrou na brincadeira, apanhando o aparelho no bolso do casaco e entregando-o a ela. Sua assistente o des­ligou e disse:

Cubra os olhos, querido.

David obedeceu. Ela empurrou a porta do quarto de seu anfitrião e o levou até a cama. Diante dos dois, chamas de velas vermelhas tremeluziam no chão e rodeavam algo encoberto. Mary deixou o livro prateado sobre o criado-mudo, ao lado das taças de vinho.

E agora, o que faço? - inquiriu o jornalista, impaciente. Era a primeira vez que alguém invadia seu porto seguro, e ele estava absoluta­mente vulnerável aos caprichos do invasor.

Em primeiro lugar, seja paciente, David. Mulheres gostam de preliminares. Você lembra quando eu disse que era uma bruxa?

Como poderia me esquecer disso?

Antes de me possuir, David, quero que conheça alguém.

Quem você trouxe para dentro da minha casa? - assustou-se, descobrindo os olhos.

Cernunnos - respondeu a americana. - Ele... Ele fazia parte da surpresa. Queria que você me aceitasse completamente.

E o que isso tem a ver com religião, Mary? — rebateu, com o cenho franzido.

Na minha religião, David, o sexo é sagrado. Me desculpe se pen­sei que você fosse me entender. Me enganei — justificou-se, com a voz trêmula. — Isso me deixa tão envergonhada... — ela cobriu os olhos e se dirigiu à saída do quarto.

Me desculpe, Mary... Não estou acostumado a isso. Acho que estraguei tudo, não?

Eu trouxe até... Peguei emprestado um vinho da sua adega - prosseguiu a americana, apontando para a garrafa de Pétrus 1947, aberta sobre o criado-mudo. As duas taças já servidas.

— Você...Você se lembrou do nome do vinho? — perguntou David, exibindo um sorriso de satisfação.

Sim.

Meu dia foi muito difícil, Mary. Mas esse vinho... Esse vinho e sua companhia consertam tudo - contornou o jornalista. — Qual é a próxima ordem, chefe?

Deixa para lá...

Não. Diga o que quer que eu faça — insistiu, encarando-a.

Tem certeza de que está preparado?

Mais do que nunca.

Então, fique de joelhos ali — ela apontou na direção do objeto encoberto.

Ele aproximou-se das velas e se agachou no chão. Mary chegou ao seu lado. Em pé, segurou o tecido que encobria Cernunnos. Encarou David por alguns segundos e inquiriu, solenemente:

Preparado para conhecer a outra face de Deus?

Ele simplesmente acenou com a cabeça. "Ajoelhe-se aos meus pés e te darei o mundo, David", alguém parecia lhe sussurrar aquelas palavras no instante em que sua assistente puxou o tecido azul-escuro. Ele se viu ajoelhado diante da estátua de um homem nu na posição de lótus, barba comprida, cabelos encaracolados, dois chifres na cabeça e uma serpente erguendo-se da região pubiana. Um calafrio atravessou seu corpo.

 

"Divirta-se, Pietro. Espero que consiga montar o quebra-cabeças", provocara Michael ao deixá-lo no Mandarin Oriental com uma pasta fma de couro preto. Ao chegar à suíte, o padre sentou-se no sofá e a abriu. Puxou um saco plástico que transparecia, em seu interior, um pequeno rolo. "O que mais tem aqui?", murmurou, encontrando um recorte do The Star. Deixou-o de lado e apanhou a diminuta página enrolada. Com ela em mãos, foi à escrivaninha improvisada. Cuidadosamente, desen­rolou o pergaminho. Arregalou os olhos ao ver a ilustração: uma árvore brotava das costas do anjo sentado sobre um trono. Suas asas se estendiam em direções opostas, com sinais na parte interna. Do lado direito, nos primeiros sete galhos, sete anjos empoleirados, identificados por nomes. Acima deles, outros sete galhos suspendiam sete homens com velas na mão. Do lado esquerdo, na mesma altura, mulheres também carregavam velas. A mulher vestindo túnica escarlate reinava sobre aquele lado da ár­vore genealógica. O padre sabia que a serpente em seu ventre e a abelha na fronte denunciavam que ela pertencia à tribo de Dã. Era a Grande Prostituta. Na mesma altura, do lado direito, estava seu consorte, iden­tificado por um brasão no peito. Com as mãos trêmulas, Pietro pegou a lupa no bolso do casaco e colocou sobre ele. Uma linha que descia do ângulo esquerdo superior até o direito inferior dividia o escudo em duas partes iguais. A esquerda do padre, um leão coroado, semelhante ao do brasão de sir Alexandre Cotton, avançava sobre uma cruz com dois braços e extremidades fendidas, no lado direito. "A cruz do Espírito Santo", lembrou Pietro.

Esse brasão... O demônio deseja usurpar o poder de Deus... Isso significa... Significa que cometi um terrível engano. Ele... Ele não era o Duque Negro — concluiu, levantando-se da cadeira. As mãos suavam. Respirou fundo.Voltou-se ao pergaminho. Na parte superior da ilustração, um homem com chifres erguia um cetro imperial em uma das mãos. Na outra, ostentava um orbe, símbolo do mundo.

O Anticristo... — murmurou, colocando a árvore genealógica de lado e encontrando uma profecia na folha seguinte:

 

Um anjo surgiu diante de mim empunhando uma espada. Ele disse: "Sou o rei desse mundo e estabelecerei para sempre o trono do meu reino. Meu rebento surgirá do Tronco de Jessé e o sangue de Dã correrá em suas veias. Sua mãe será uma prostituta e abrirá seus olhos no solstício de inver­no. Ele será educado nas artes negras e, aos 33 anos, sairá das sombras para cumprir sua verdadeira missão. Arrastará atrás de si quase todo o rebanho das igrejas e será adorado por milhões e milhões de pessoas. Todas elas carregarão uma marca em suas frontes. Todas estarão ligadas a mim até o último dia. Eu tenho muitos nomes. Mas é Samyaza que seduzirá a belíssima Babalon".

Fechou os olhos. Lembrou-se da hipótese levantada por David: "Sexo entre anjos e mulheres, assassinatos ritualísticos com violência sexual, árvore genealógica do filho de Deus. Acho que eles pretendem dar um filho ao diabo. Possivelmente por meio de um ritual de magia enoquiana escrito por John Dee".

—Você tinha razão, David. Esses pergaminhos mostram isso. Ainda bem que conseguimos pegar o livro maldito.

E você já deve tê-lo destruído... — dizia até ser assaltado por um ca­lafrio. "Você já fez isso, não?", perguntou em pensamento.

"Nós somos apenas duas peças, padre, e não conseguimos enxergar muito além de nosso movimento no tabuleiro", recordou o que o jor­nalista lhe dissera.

—Você estava sendo fatalista - tentou justificar, repetindo o mesmo argumento que usara na presença do inglês. Tontura. Respirou fundo. Lutava contra a sensação de desmaio. "O melhor cúmplice é aquele que não desconfia de nada, padre", afirmara David, insinuando que o cardeal Gabriele estava usando-o. Aquelas palavras o golpearam no estômago. Pietro sentiu falta de ar nos pulmões.

O diabo é o macaco de Deus. Tronco de Jessé é uma referência ao rei David... Como sou estúpido. Já deveria ter aprendido a desconfiar destas malditas coincidências. Por isso o diabo aparecia para você e lhe deu a chave para decifrar os mensageiros — concluiu, esmurrando a mesa com os dois punhos. Os cortes latejaram. No bolso do casaco, pegou o anel que Andrew roubara de David. Com a mão trêmula, ergueu-o até a altura dos olhos. Havia um brasão gravado:o leão coroado avançava sobre a cruz do Espírito Santo. Girou o anel para conferir a parte interna. O mesmo símbolo que cruzara seu caminho algumas vezes durante a mis­são: uma abelha.

David, você tem o sangue maldito.Você é um deles! — deduziu em voz alta."Não deve ter consciência disso... Mas talvez ela tenha. Eu vi a maldade em seus olhos quando me entregou para a Fernanda", ponderou.

E isso não é mais uma coincidência. A namorada de David tem o mesmo nome da Flor do Tronco de Jessé: Nossa Senhora, Mary — disse, folheando o bloco de notas até uma página borrada:

 

Teorias conspiratórias/satanismo

Décima terceira linhagem: sêmen do diabo (tribo de Dã?)

Algumas chaves: Freeman/Bundy/Rockfeller (bandido abominável?)

 

Pegou o recorte do The Star que estava na mesma pasta dos pergaminhos. Era uma matéria sobre a top model Fernanda Albuquerque, assinada pela assistente de David.

— Mary Freeman... Meu Deus, David, acho que ela te jogou numa cilada!

Pegou o celular. Acessou o número do jornalista. Caixa postal.

 

Satisfeita? — indagou David, levantando-se do chão.

— Agora estou preparada para tomar o melhor vinho da minha vida — respondeu Mary, sorrindo.

Foi até o criado-mudo, apanhou as duas taças e estendeu uma delas na direção de David.

Ou, melhor dizendo, agora você está pronta para reverenciar o deus Baco - brincou o inglês, girando o vinho na taça, levando-o ao nariz e franzindo o cenho.

O que foi? — indagou Mary.

Há um aroma bastante peculiar nesse vinho... Nunca o tinha sentido antes.

Está estragado?

O vinho é um ser vivo na garrafa, Mary. Ele muda a cada se­gundo de sua existência. Alguns são previsíveis. Outros, trazem surpresas. Como esse aqui. Vamos ver como ele se sai na boca — ergueu a taça e tomou um gole. — Nada mal.

Faltou o brinde, David.

A minha bruxa favorita — adiantou-se o jornalista.

Após o primeiro tilintar e seus goles, foi a vez de Mary:

Ao sucesso de sua missão... E ao sexo sagrado.

Mais dois goles.

Fico feliz de ter sido... — dizia o anfitrião.

O escolhido para esse momento especial — prosseguiu a ameri­cana.- Sabe de uma coisa, David? Não acredito em coincidência. Acho que nascemos destinados a nos encontrar.

O jornalista sentiu um aperto no peito. Tontura. Faltava ar em seus pulmões.

"Devo estar cansado", pensou, sentando-se na cama. Taça à mão. Diante dele, Mary desabotoou lentamente o casaco. Estava usando apenas roupa íntima. Apesar da penumbra, David percebeu que a cor era púrpura.

—Você está deslumbrante, Mary. Mas estou... — tentava dizer.

Relaxe, David. Tome mais um pouco deste vinho - sugeriu-lhe, tirando a bota preta do pé esquerdo. Em seguida, descalçou o outro pé, sob o olhar vacilante de seu chefe.

Estou me sentindo fraco, Mary — insistiu seu chefe, arrastando-se até o encosto da cama. Os contornos dos objetos ao seu redor dançavam como a chama bruxuleante das velas.

Acho que você vai precisar de ajuda para me foder. Ainda bem que Cernunnos está aqui - retrucou sua assistente, tirando a parte de bai­xo da roupa íntima e avançando em direção à estátua. Segurou nos chifres e agachou lentamente sobre o falo animalesco.

O que... O que você está fazendo? — indagou David, perplexo. Voz fraca.

Estou no amuse-bouche.Vou deixar para você apenas o prato prin­cipal, querido — respondeu a americana, girando o tronco para vê-lo. Começou a gemer com as sensações provocadas pelos seus movimentos.

"Por que você fez isso?", desesperou-se David. A voz não saía. Ten­tou mexer as pernas. Nada. Os braços também permaneciam imóveis. Foi quando percebeu que deixara a taça de vinho cair sobre a cama, tingindo o lençol de Pétrus 1947. Conseguiu virar a cabeça na direção do criado-mudo. O livro prateado continuava lá.

"Merda! É uma maldita armadilha. Ela deve ter colocado algo no vinho. Mary faz parte disso", desesperou-se, voltando os olhos na direção de sua assistente, que cavalgava sobre o deus chifrudo. "O padre estava certo. É o diabo", concluiu. Coração apertado. Lágrimas teimosas nos olhos. "Por que eu?", questionou-se.

Como eu, você tem o sangue sagrado, David. Deve se sentir hon­rado por isso — explicou Mary, aproximando-se da cama. Nua. — É uma pena que não aproveitará nada desse momento.

"Vadia. Estou paralisado da cabeça aos pés. Como pretende fazer isso?", indagou, com raiva nos olhos.

Mary tirou seu cinto e abaixou as calças e a roupa íntima de David até os joelhos. Riu ao encontrar seu pênis desanimado.

— Eu deveria estar ofendida por isso, querido. Você não sente tesão por mim? — cobrou a americana, passando a língua entre os lábios. — Ou brochou porque sou virgem? - terminou a frase com uma gargalhada. — Acho que vou precisar da mágica de Sammy... Aquele amigo do meu pai que me fodeu quando eu tinha oito anos. Hoje, ele me mandou flores com um bilhete, dizendo que tinha um encontro marcado comigo. Sabe que não me lembro do lugar... Ah, acho que já sei! Ele está aqui, espe­rando que eu o chame. Você se importa se eu usar o livrinho que você queria destruir? — ironizou Mary, esticando o braço até o criado-mudo. Abriu-o sobre o peito de David.

"Alguém me ajude! Por favor, alguém me ajude", ele berrou em pensamento, enquanto sua assistente pronunciava palavras em uma língua desconhecida. Latidos furiosos. O jornalista olhou para a porta do quarto. Estava aberta.

"Droga, tranque isso. Ele vai me pegar", desesperou-se, olhando um cão negro surgir na entrada. Era o mesmo animal demoníaco que ven­cera no labirinto. "Tranque essa maldita porta", repetiu em pensamento, fitando o sexo desnudo de Mary, escancarado diante de seus olhos. Sobre a vagina, a tatuagem de uma abelha.

"O quarto mensageiro", concluiu. Latidos cada vez mais próxi­mos. Observou o animal saltar sobre ele e cravar os dentes no braço direito. Uma dor lancinante o arremessou na escuridão. Sentiu-se ser arrastado. Abriu os olhos. Apesar de estar caído no chão, enxergou seu corpo sobre a cama. Mary acima dele, dizendo palavras na mesma língua estranha. Um barulho no lado direito do quarto. Um homem surgiu de trás da estátua e olhou para ele, exibindo um sorriso mordaz no rosto.

"Escolheu a puta muito bem, David", disse-lhe, em pensamento.

"Sammy..."

"Um apelido carinhoso das mulheres. Para você, Samyaza", respon­deu-lhe, aproximando-se de seu corpo imóvel sobre a cama. Como uma fumaça preenchendo o vazio, o demônio o possuiu. Já não estava mais imó­vel. Seu pênis ereto penetrava Mary e a fazia gritar de prazer e dor.

"Ele está usando meu corpo...", observou. Queria se levantar, mas o cão feroz montava guarda sobre ele.

— Por favor, me ajude! — berrou, no instante em que Mary parecia atingir o orgasmo. Uma forte luz invadiu o quarto. David se viu diante de um antigo conhecido e foi inundado por uma estranha sensação de alívio.

 

"David, caímos em uma cilada. Rezarei para que você ouça essa mensagem a tempo de evitar uma catástrofe. Evite se encontrar com sua assistente. Desconfio que ela faça parte da confraria negra. Queime o livro assim que chegar em casa. Depois disso, me ligue. Por favor! Não conseguirei dormir essa noite até saber, por você, que aquele livro mal­dito foi completamente destruído. Que Deus nos ajude, David. Abraços, Pietro", ao terminar de gravar a mensagem no celular do jornalista, o padre ajoelhou-se ao pé da cama. Uniu as mãos com força. Os cortes nos pulsos doíam. Apertou os olhos e sentiu uma fisgada no supercílio esquerdo. O rosto de David ocupava seus pensamentos.

—Você precisa concluir a missão - disse, desejando que aquelas pala­vras chegassem a ele por telepatia. - Você precisa... - foi interrompido pela lembrança da visão que tivera pouco após Mister Jones entregar a David o primeiro mensageiro: o casal transando sobre o altar de pedra, o homem de túnica negra, o grito de pavor ao descobrir que o demônio era seu reflexo. "Como pode se assustar diante de você mesmo?", indagara-lhe.

Aquele desgraçado estava certo. Como pude ser tão estúpido! Fui responsável por empurrar David para esse abismo! Eu devia ter trazido o livro comigo! — berrou, levantando-se. "O maldito traidor da Confraria dos Quatro Anjos me mandou para cá porque conhecia minhas fraque­zas", concluiu, consumido pelo remorso.

Michael provou que o demônio fez a escolha certa. Eu falhei! Me perdoe, Senhor, me perdoe! - suplicou, cobrindo o rosto com a mão e caindo de joelhos no chão.

"Meu Deus, o Senhor me livrou do Interno e salvou a alma de um psicopata. Eu vos imploro, livre David das garras do Inimigo. Que ele destrua o livro antes de ser seduzido pela Prostituta", rezava Pietro, com o coração pesado e a respiração curta e rápida.

Abaddon! - alguém pareceu gritar às suas costas.

Quem está aí? - perguntou assustado, abrindo os olhos e virando-se. Não havia mais ninguém na suíte.

"Iluminai-me, Pai, para que eu faça Vossa vontade", pediu em pen­samento.

Abaddon!

Pietro levantou em um salto. Continuava sozinho ali. Foi ao ba­nheiro e abriu a torneira de água fria. Lavou o rosto três vezes. Pegou a toalha e fitou seu reflexo no espelho. Assustou-se com o sorriso mordaz estampado no próprio rosto. Era o mesmo que o demônio exibira em sua visão.

Me deixe em paz! — gritou, atirando a saboneteira contra a ima­gem. Um estrondo. Dezenas de estilhaços espalharam-se no chão e na pia. Dor nos pulsos. Desabotoou os punhos da camisa. O sangue atravessava as faixas e escorria pelas mãos. Sentiu uma estocada na cicatriz triangu­lar em sua fronte. Ficou atordoado. O segundo golpe invisível lançou-o contra o mármore. O corpo tremia na escuridão.

Não tenha medo, meu filho — ele reconheceu aquela voz.

Jesus - disse, com um misto de excitação e alegria.

Muitos chamam meu nome. Poucos me reconhecem - respondeu-lhe, aproximando-se com uma vela na mão direita. Era o amigo que prometera nunca abandoná-lo.

—Você veio me buscar? - indagou o padre, sorrindo.

—Você ainda não está preparado para partir comigo, filho.

Farei tudo o que me pedir, Senhor.

Não, Pietro, você não fará tudo. Apenas peço que não se esqueça de mim quando se tornar um pescador.

Como assim?

Procure as respostas em seu coração, Pietro.Você fez isso hoje ao me entregar o maior presente que eu estava esperando.

No mesmo instante, uma terceira pessoa se aproximou dele, com uma túnica coberta de luz. O sorriso trazia a paz que seu coração desejava.

Andrew - murmurou o padre.

Ele acenou a cabeça.

Obrigado, Pietro — agradeceu o homem de barba, cabelos longos, nariz adunco e pele morena.

Eu estava proibido de ministrar sacramentos. Desobedeci o car­deal. Me perdoe, Senhor.

O que é mais importante, Pietro: a vontade dele ou a minha? — inquiriu seu amigo, apagando a vela.

O padre abriu os olhos. Estava caído no chão do banheiro.

 

Aquela voz inundava o quarto e invadia seus ouvidos. Sentia-se fra­co. Desejava continuar deitado.

 

If morning echo says we've sinned

Well, it was what I wanted now

And if we're the victims of the night...

 

Reconhecia os versos da canção "Angel of the Morning". A voz de Nina Simone se confundia com a de Mary. Ela cantara exatamente aque­la música em seu carro, na primeira vez que saíram juntos.

I promise you I won't be blinded by light

Just call me angel...

 

Foi surpreendido pela imagem do homem com cabelos encaracolados, dois chifres e uma serpente no lugar do sexo. "Samyaza", murmurou. Flashes do corpo de Mary movendo-se sobre o seu. Os seios macios to­cando suas mãos, e algo reluzindo entre os dois. "O livro. Preciso destruir o livro", disse, atropelando as palavras e admirando a tatuagem acima do sexo de sua assistente. "A abelha", observou. Os gemidos da mulher misturaram-se a latidos ferozes. Chamas de velas vermelhas dançavam na escuridão. Ele podia vê-la sobre seu corpo, embora estivesse preso no chão."Samyaza, seu maldito", gritou, observando o inimigo avançar sobre os dois. Uma sombra escura envolveu o casal. Um grito atravessou o quarto.

 

There'll be no strings to bind your hands

No if my love can't bind your heart

And there's no need to take a stand

For it was I who chose to start...

 

Era a voz de Nina Simone. David abriu os olhos. Estava deitado na cama, coberto até a cintura pelo edredom. Nu. A luz entrava pela porta. O som vinha de um iPod conectado a caixas portáteis. A música repetia-se indefinidamente. Virou-se na direção do criado-mudo. O Livro das Folhas Prateadas dividia espaço com a garrafa de Pétrus 1947 e duas taças de vinho. Uma delas, vazia. A outra continuava cheia. Girou a cabeça para o outro lado. Uma rosa vermelha repousava no travesseiro. Coração aos saltos. Tateou o chão em busca da arma. Nada. Levantou-se. Sangue escorria de seu pênis.

O que você fez comigo, Mary? — berrou, correndo em direção ao banheiro. No caminho, viu pedaços de velas vermelhas formando um círculo no chão. Cernunnos não estava mais lá. Entrou embaixo do chuveiro e girou a torneira com força. Alívio ao perceber que não estava ferido. O líquido vermelho e viscoso que escorria pelo ralo era o rastro de Mary em seu corpo. Esfregou-o com força. Queria apagar aquela noite de sua vida. Desejava limpar seu coração do que sentia por ela. Os olhos ardiam. Respirou fundo. "Ela não merece isso", pensou, segurando as lágrimas. Pigarreou. "Acredito em deuses. Se eles são anjos ou demônios, depende do lado em que você está", lembrou-se das palavras que ela lhe dissera.

Você estava... Está do lado errado. Conseguiu disfarçar muito bem — o desabafo quase não saía. Esmurrou a parede com a mão direita.

"Ela não foi estuprada por Sammy. Ela não fugiu do pai. Ela não foi ameaçada pela seita. Tudo foi premeditado. Ela usou a Fernanda como isca", deduzia, com a fronte encostada no mármore frio e os olhos fechados.

Ontem a noite foi o maldito desfecho. Por que eu, Mary? Por que eu? — perguntou-se. Caiu em prantos. As lágrimas eram arrastadas para o ralo.

"O ritual para a concepção do Anticristo", pensou, batendo suave­mente a cabeça contra a parede.

A Tempestade. A filha de Próspero ignorava sua origem. O me­lhor cúmplice é aquele que não desconfia de nada — balbuciou, saindo do chuveiro e vestindo, às pressas, o roupão azul-marinho. Calçou as pantufas e voltou ao quarto. Desligou o som antes de avançar sobre o Livro das Folhas Prateadas e agarrá-lo com força. Correu até a sala e o deixou sobre sua poltrona favorita enquanto preparava a lareira. O isqueiro a gás estava no aparador à sua frente. Com um disparo, acer­tou o acendedor. Em menos de quatro minutos, as chamas abraçaram as pequenas toras de madeira. Os olhos ardiam. Assim que apanhou o livro maldito, lembrou-se das palavras de John Dee, ditas em sonho: "Quero que mereça esse prêmio. Isso é o mais perto que você pode chegar de Deus!".

Foi o mais perto que cheguei do Inferno - rebateu consigo mesmo, arremessando-o na fogueira. As chamas reavivaram. Calafrio. Sentiu algo se mover às suas costas.Virou-se. Não havia ninguém. Fitou o brasão familiar pendurado em uma das paredes, acima de fotos de seus antepassados. Era o mesmo do anel que seu pai lhe dera e Andrew roubara. Nesse momento, alguém parecia sussurrar em seus ouvidos: "A verdade está sob o selo. O leão coroado reclama seu trono. Ele vem do tronco de Jessé".

Conferiu o relógio. Eram exatamente quinze horas. Uma lem­brança lhe sobreveio sem que soubesse o caminho que ela percorrera em sua mente: aquele era o mesmo horário em que Jesus Cristo mor­rera na cruz.

 

O padre levantou-se com um sorriso no rosto. Checou o horário. Embora tivesse a impressão de que aquele encontro fora rápido, ele du­rara algumas horas. "Um vislumbre da eternidade", ponderou. Precisava ligar para o jornalista. Queria conversar com ele antes de voltar à Itália. Os pulsos latejavam.

Tenho que cuidar disso — concluiu. Pensou em Mary. Lembrou-se de uma citação:"O demônio e o anjo em um só corpo".

Se ela conseguiu realizar o ritual, deve estar com o filho de Samyaza no ventre — concluiu, sentindo um calafrio atravessar a coluna de cima a baixo. "Preciso falar com David antes de fazer qualquer coisa", resolveu, pegando o celular e acessando seu número. Caixa postal.

Deixei uma mensagem bem mais cedo. Esse silêncio é... assustador. A Prostituta deve ter seduzido David — disse para si, andando de um lado para o outro. Parou no centro da sala e fechou os olhos. Lembrou-se da reunião da Confraria dos Quatro Anjos, quando o segundo enigma foi revelado. "Na segunda charada, o demônio revela seu escolhido, seu ins­trumento entre os homens. Assim que ele for descoberto, o responsável pela missão deve imediatamente acionar um número de telefone e passar uma senha. E isso não será mais problema seu", instruíra o cardeal.

O nome do escolhido é David Rowling — resmungou em voz baixa. Com as mãos trêmulas, pegou o celular. Vagarosamente, digitou os números do telefone que Gabriele lhe confiara.

 

O avião particular deixara o Gatwick havia algumas horas, em di­reção aos Estados Unidos. Após o embarque, Michael ficara aliviado. A última etapa de sua missão era cuidar para que Mary Freeman chegasse sã e salva a Nova York. Em pouco tempo, abraçaria sua mulher e carregaria o filho no colo. A saudade apertava seu peito. As pálpebras pesavam. Es­tava terrivelmente cansado. Mas não conseguia dormir. Abriu a carteira e pegou uma foto da família. A criança sorria entre o casal. Fechou os olhos. "Você está trabalhando para homens que já nasceram condenados. Perdeu a chance de ser resgatado, Michael. Foi julgado e condenado", aquelas palavras invadiam seus ouvidos ao mesmo tempo em que a ima­gem da cabeça falante de São Carlos I surgia em sua mente.

Quando vai me deixar em paz, filho da puta? - retrucou, abrindo os olhos.

Inclinou o corpo para a frente. Enxergou o cabelo de Mary duas poltronas adiante.Turbulência.

Estamos passando por uma zona de instabilidade. Por favor, se­nhores, apertem os cintos. E mantenham a calma — anunciou o piloto para os dois únicos passageiros do vôo: Mary e Michael. A comissária de bordo passou no corredor para verificar se eles tinham obedecido à instrução. "Por que empregaram uma aeromoça tão... Isso é uma ofensa à profissão", pensou, fitando o rosto da mulher de quase cinqüenta anos, maltratado pelas marcas do tempo.

Onde estamos? — indagou Michael.

Sobrevoando as Bermudas - respondeu a aeromoça, com um estranho sorriso no rosto.

Isso tem alguma coisa a ver com o famoso Triângulo das Bermudas?

Algumas pessoas dão outro nome para a região — respondeu a mulher, fazendo uma pausa dramática antes de prosseguir. — Triângulo do Diabo.

As luzes se apagaram. Michael levantou a pequena janela. Dezenas de relâmpagos cortavam a escuridão.

Que merda é essa?

Algumas pessoas chamam de A Tempestade — retrucou a mulher, dando uma gargalhada. Ele girou novamente a cabeça para o lado de fora. Teve a impressão de enxergar sombras de homens alados atravessando o espaço. Agarrou a arma, como se ela pudesse salvá-lo daqueles...

Demônios — balbuciou.

A menos de dois metros, Mary acordara com a turbulência. O rosto de David era a lembrança de seu sonho. Sorriu. "Embora você não entenda, estou levando uma parte de você comigo", disse em pensamento, acari­ciando o ventre com as duas mãos. O avião chacoalhava. "Quer dizer que o avião foi inventado por um brasileiro?", questionou-se, com um sorriso no rosto, recordando a defesa apaixonada de seu chefe. Mal-estar. Abriu a janela. Relâmpagos. Assustou-se quando um homem alado se aproximou, trazendo nas mãos uma espada flamejante. Em seus olhos, duas chamas vermelhas pareciam penetrar-lhe o coração e vasculhar sua alma. "Fostes pesada e estás em falta", pareceu soprar em seus ouvidos. Pânico.

— Sammy, não vai proteger seu filho? — berrou.

Uma luz avermelhada envolveu o avião e o arremessou para baixo. Todos perderam a consciência antes de serem engolidos pelo oceano e precipitados para as profundezas do Triângulo do Diabo.

 

Alguém atendeu a ligação e ficou em silêncio.

Abaddon...— disse Pietro.

Quem se esqueceu de passar sangue na porta de casa? - perguntou-lhe a mesma voz grave de outrora.

Mary Freeman — respondeu o padre, desligando o telefone. — En­trego o destino da Babalon em Vossas mãos, Senhor.

 

David escolhera o lugar para o último encontro com Pietro Amorth: a Catedral de Saint Paul. O padre achou a escolha inoportuna. Ela tinha a assinatura de sir Christopher Wren, um provável membro da confraria negra. Mas preferiu não questionar.Vestindo um terno Armani, entrou no imponente edifício e quase se desequilibrou ao fazer a genuflexão diante do altar principal. Hesitante, fez o sinal da cruz e seguiu até o lugar indi­cado pelo jornalista. David estava sentado diante de uma imagem de Jesus Cristo com um candeeiro na mão esquerda. Acima, a frase "The light of the world". Pietro aproximou-se e, sem dizer nada, sentou-se ao seu lado.

Quando era pequeno, padre, minha mãe costumava me trazer aqui. Dizem que toda criança tem amigos imaginários. Eu gostava de conversar com ele — confidenciou o inglês, apontando para a pintura.

Por isso escolheu esse lugar, David? — indagou o padre, entregando-lhe o anel que tirara da mão de Andrew.

As evidências estavam o tempo todo debaixo de nossos olhos, padre. Eu tenho o sangue maldito, não?

Naquele momento, Pietro entendeu que a escolha do lugar estava além da compreensão do jornalista.

Amigo, essa catedral foi construída por um homem que talvez não estivesse bem-intencionado...

Sir Christopher Wren — interrompeu David.

E não importa as marcas satânicas que ele possa ter deixado nas pedras, as pessoas se reúnem aqui para conversar com Deus. E, posso te garantir, Ele está aqui com elas.

Por favor, padre, seja mais claro.

Não importa que você seja um descendente da tribo de Dã, Ele está no seu coração.

Eu... Eu falhei, padre. Não consegui fazer o que me pediu — con­fessou David, com o queixo ligeiramente voltado para baixo.

Ela o seduziu, não foi?

O jornalista simplesmente acenou a cabeça.

Como foi?

Ela me drogou. Mas assisti a tudo... Samyaza estava lá. Ele ocupou o meu lugar — explicou o jornalista, com o olhar distante e a voz fraca. — O que vai acontecer agora?

Pietro fez o sinal da cruz. E colocou a mão sobre o seu ombro.

O futuro a Deus pertence, David — respondeu-lhe. "O anjo exterminador já deve ter visitado Mary", pensou, engolindo seco.

Qual foi o nosso maior erro, padre?

Posso falar por mim, amigo. Ele — explicou, apontando para a frente — aconselhou os apóstolos a serem simples como as pombas e espertos como as serpentes. Não fui nem uma coisa, nem outra.

No momento de maior desespero, padre, pedi socorro. Eu o reconheci — comentou David, com um sorriso forçado no rosto.

Quem?

O amigo invisível da minha infância - revelou, fazendo um gesto com a cabeça em direção à pintura.

Essa é a maior lição que aprendi nos últimos dias. Pelo visto, não estou sozinho — comentou Pietro, sorrindo.

Que lição? - questionou o jornalista, girando o tronco na dire­ção do padre e encarando-o com curiosidade.

Não importa quantas vezes tropecemos, nem o mal que cause­mos aos outros ou a nós mesmos, Ele sempre está pronto a nos receber de volta. Ou melhor: Ele está ansioso para que nos viremos. Não foi você quem escolheu este lugar, David, foi Ele. Preciso ir, meu avião partirá em breve. Vou deixá-los a sós - respondeu Pietro, levantando-se. O inglês levantou-se em seguida. Os dois se abraçaram.

—Você fez a escolha certa, amigo - disse o padre, sem esconder as lágrimas que escorriam em seu rosto. - Vou sentir saudade.

Eu também.

Pietro girou o corpo e caminhou em direção à saída. O jornalista aproximou-se da imagem. Abaixo dela, palavras saltaram aos seus olhos, como se tivessem sido rabiscadas por luz:

 

Behold, I stand at the door and knock; if any man

Hear my voice, and open the door,

I will come In to him, and will sup with him, and he with me.

 

"Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e tomaremos a refeição, eu com ele e ele comigo." (Apocalipse de São João, 3,20).

Uma estranha sensação tomou conta de David. Ele se sentou em um degrau próximo à pintura. Não sentia o peso de seu sangue, nem raiva de Mary, ou medo dos monstros do passado. Ele abria uma porta. E aquilo era o mais próximo que havia chegado de Deus.

 

O sinal sonoro anunciou que o chefe estava pronto para falar com ele. Hesitou alguns segundos antes de apertar o botão. Queria ser demi­tido da corporação, mas não se sentia preparado. Resolveu encará-lo. O urso Paddington surgiu no monitor.

Por que não me obedeceu, Mister Jones?

Desde quando David é um alvo? — rebateu o agente, sem disfar­çar a raiva.

Desde quando ele nasceu. E, se você tivesse me obedecido, teria evitado uma catástrofe — explicou seu chefe.

Ele não é uma ameaça.

Agora não mais. Eles já conseguiram o que queriam.

Eles? Quem? A seita satânica? — ironizou Kemp.

— Você foi enganado, Mister Jones. Não faço parte disso. Você fez.

Como assim?

Aquele livro prateado tinha um ritual de magia revelado a John Dee pelo demônio.

— Não acredito nisso — retrucou o agente, recostando-se na pol­trona.

Foda-se em que acredita! O demônio existe e queria um filho. Você deu a ele um pai.

Quer dizer...

...Que David tem o sangue maldito nas veias. E foi seduzido pela filha de um dos Soberanos Invisíveis — revelou o chefe de pelúcia.

Mas ele... — tentava argumentar Kemp.

Ele foi manipulado.Vocês foram manipulados!

Quero me desligar do SID — retrucou o agente, ouvindo uma gargalhada.

— Vou explicar o procedimento para isso. Pegue sua arma e dê um tiro na sua cabeça.

Quer me dizer...

Que não há saída.

Então, qual é minha próxima missão? - resignou-se Kemp.

Primeiro, você irá descobrir o esconderijo do serial killer. O filho do curador do British Museum, que foi seqüestrado por ele, poderá te ajudar. Depois disso, você vai ser o informante do jornalista e auxiliá-lo em seu livro. Quando tudo acabar, investigará o desaparecimento de um avião na América Central. Até logo.

Mister Jones girou na poltrona e fitou o quadro de Salvador Dali. O demônio abria gavetas em seu próprio corpo. Não tinha mais escolha.

Passaria o resto de sua vida vasculhando dentro delas.

 

No dia seguinte ao desembarque em Roma, Pietro recebeu a con­vocação do cardeal Gabriele Fioravante. Chegou apreensivo ao Vaticano e esperou quase uma hora para ser atendido. O coração disparou assim que a porta da sala se abriu. Um homem de traços árabes, bigodes, tez morena e cicatriz na testa, vestindo terno cinza-escuro, deixou a sala sem olhar para os lados. O cardeal surgiu na porta e fez um gesto com a mão para que ele entrasse. O padre pegou sua mão direita, beijou-lhe o anel e adiantou-se:

Peço perdão pelos meus erros.

Não o chamei aqui para uma confissão, Pietro — interrompeu-o, trancando a porta.

Me desculpe, ficarei em silêncio.

Antes de mais nada, gostaria de lembrá-lo de que você foi des­ligado de sua paróquia e está impedido de realizar atividades sacerdotais

recordou-lhe, sentando-se atrás de uma ampla mesa.

Fiz uma extrema-unção — confidenciou-lhe, sentando-se diante do cardeal com um sorriso nos lábios.

Isso é problema seu, Pietro. Amanhã, você parte para seu exílio espiritual na Grécia - prosseguiu Gabriele.

Irei para qual mosteiro?

O Mosteiro do Apocalipse.

O lugar onde São João escreveu o livro... — murmurou o padre.

Isso mesmo. Um lugar santo, sem prostitutas — cutucou o cardeal.

Rezarei para que Deus te ilumine e o traga de volta ao seu caminho.

"Ele me pegou no colo", Pietro respondeu em pensamento.

Quem é o traidor da confraria? - indagou Gabriele, inclinando o corpo na sua direção.

Um deles estava usando isso — respondeu Pietro, tirando do bolso o medalhão que Michael levava no pescoço.

A medalha de São Bento — comentou o cardeal, tomando-a nas mãos. - Esta aqui é bem antiga, suponho que faça parte do relicário do mosteiro... - observava-a, girando-a diante dos olhos. Interrompeu a frase e encarou seu interlocutor:

Quem é o monge beneditino da confraria, Pietro?

Benito.

Então, você está me dizendo que ele é o traidor... - insinuou Gabriele.

Não disse isso — corrigiu o padre, percebendo o ardil.

Foi ele quem revelou seu nome, Pietro. Ele o enviou para o ninho de serpentes. Você o está protegendo? — disparou o cardeal, franzindo o cenho e encarando-o como um digno representante do Tribunal do Santo Ofício.

Não ouvi o nome dele em nenhum momento.

Com isso aqui, você acha que precisa de um nome? — disse Ga­briele, levantando a medalha. — Deveria ter desconfiado dessa artimanha do maligno. Ele arrastou para essa missão uma pessoa ingênua e de pouca fé. Era evidente, desde o princípio, que você fracassaria, Pietro. Por isso, divido essa culpa com você

Os caminhos de Deus são misteriosos, cardeal.

E os abismos do demônio são traiçoeiros - retrucou Gabriele. - Você está dispensado.

"O que é mais importante, Pietro: a vontade dele ou a minha?". A lembrança daquelas palavras acompanharam o padre até a saída do Vaticano.

— A sua é mais importante, meu Deus - respondeu, sorrindo. — A sua.

 

TRÊS MESES DEPOIS...

No sexagésimo quinto andar do Rockfeller Center, um homem solitário ocupava a única mesa do Rainbow Room. Fumava um Romeu & Julieta Churchill e pincelava com a densa fumaça a paisagem nova-iorquina. Repousou o charuto no cinzeiro e tomou um gole de seu uísque preferido. Conferiu o relógio de pulso. Eram nove horas da noite. "Meia hora de atraso. Não se fazem mais ingleses como antigamente", pensou Max Freeman, vestindo terno azul-escuro e gravata vermelha. Em menos de cinco minutos, outro homem entrou no salão, trajando sobretudo preto.

Meus pêsames — adiantou-se Freeman, levantando-se e beijando-o no rosto.

— Aquele desgraçado se entregou no último momento — informou sir Henry Rowling.

Ele é um mártir.

Sentiria orgulho de Andrew se não tivesse morrido nos braços de um padre, implorando perdão — retrucou o inglês, sentando-se e pegando um charuto no umidificador sobre a mesa. — Uma morte patética.

Ele tinha o sangue sujo - comentou Freeman, sentando-se e segurando o charuto aceso entre os dedos.

Não poderia esperar mais de um bastardo, não é? — indagou sir Rowling, colocando o Romeu & Julieta próximo ao nariz e aspirando-lhe os aromas.

Iahweh aceita qualquer porcaria - murmurou Freeman, tragando seu charuto. —Você também não poderia esperar nada de David. Ele é um renegado — alfinetou.

Não se esqueça de que ainda sou o Duque Negro, e ele é meu único herdeiro.

Seu herdeiro tentou destruir a sociedade - rebateu Freeman, entregando-lhe o isqueiro a gás com um símbolo gravado: a águia com uma serpente no bico.

Ele quase conseguiu — comentou sir Rowling, caindo na gargalhada.

Devo admirar sua inteligência. Pena que a esteja desperdiçando.

Isso não importa mais. Conseguimos cumprir nossa missão — re­bateu o Duque Negro, acendendo o charuto. — Admiro sua filha, Freeman. Ela conseguiu enganar David.

Isso me custou muito — respondeu o americano, com o olhar distante.

Susan foi um exemplo de mártir — piscou o pai de David.

Ela foi uma vítima. Eu a entreguei para uma família adotiva quando era pequena. Eu a preparei para o sacrifício.

O inglês pegou o copo com uísque, ergueu-o na direção do outro banqueiro com um sorriso mordaz no rosto, e disse:

Se não fosse Susan, David não teria se apaixonado por Mary. Um brinde às suas duas filhas.

Que seja - concordou o banqueiro, elevando o copo e entor­nando a bebida.

—Vamos ao que interessa: onde eles estão? - questionou sir Rowling.

Esperava que você fosse me responder isso — surpreendeu-se o americano.

Desde que David rompeu comigo, o mestre me abandonou, sr. Freeman. Ele se comunicava apenas com você.

Desde o dia em que Mary realizou o ritual, ele nunca mais me respondeu. Pensei que as rédeas da sociedade tivessem voltado para as suas mãos. Pensei que você guardasse em segredo o lugar onde eles estão...

Talvez nossos inimigos tenham apertado o gatilho antes da hora — comentou o Duque Negro, sem demonstrar nervosismo.

Padre maldito! — berrou Freeman, dando um murro na mesa.

É possível que ele tenha estragado tudo e que os assassinos ala­dos tenham dado conta de sua filha mais nova — ponderou sir Rowling, sugando o charuto.

Você está insinuando que Mary e o herdeiro estão mortos? - indagou o americano, fuzilando-o com os olhos.

Talvez os dois estejam apodrecendo no fundo do mar - respondeu sir Rowling friamente, após soltar a fumaça e exibiu um meio sorriso antes de prosseguir: — Mas, talvez, nosso mestre esteja rindo nesse momento. Se ele conseguiu salvá-los, não precisa mais de nós dois. Concorda?

Faz sentido — respondeu Freeman, servindo mais uísque nos dois copos, levantando o seu e dizendo. — Um brinde ao recomeço.

No dia seguinte ao estranho ritual, David foi informado por Mister Jones de que o avião em que Mary voltava aos Estados Unidos sofrerá uma pane elétrica e desaparecera nas águas do Oceano Atlântico, sem deixar vestígios. As lembranças terríveis da manhã em que acordara ao som de "Angel of the Morning" atenuaram o impacto da notícia. "Era tudo uma farsa. Me apaixonei por alguém que não existia", repetira para si todos os dias, como um mantra para aliviar seu sofrimento. No The Star, Paul Reiner cumprira o prometido e o promovera a editor-chefe. Porém, ele ainda não tivera tempo para se dedicar ao novo cargo. Nos últimos meses, entregara-se de corpo e alma ao seu livro. Era o acordo com o diretor do jornal. Era a melhor maneira de expurgar tudo o que a seita satânica fi­zera contra ele. Aceitara as explicações de seu pai sobre o passado maldito da família e aproveitara os documentos que ele lhe dera para comprovar suas teorias. Também recebera informações sigilosas de Mister Jones, sob a supervisão do urso Paddington. Sob pseudônimo, o agente circulava pelas páginas do livro, assim como o padre, Michael e... Mary. Exatamente nove meses após a fatídica noite, David estava sentado atrás de uma mesa, na Waterstone s Piccadilly.Trajava um terno nailhead, em tom azul-escuro, que o alfaiate Charles, da Gieves & Hawkes, preparara especialmente para aquela ocasião. Ao lado direito, um cartaz com a reprodução da capa do livro: O Apocalipse Negro: nos bastidores de uma seita satânica, por sir David Rowling. Ao som de A Arte da Fuga, de seu compositor favorito, autografava livros com a Caran D'Ache 1010, enquanto mais de uma centena de convidados ilustres apreciava taças de Don Pérignon Rosé Vintage 1998. Sorriu ao ver a irmã Georgina se aproximar em um longo preto e justo. Levantou-se e abraçou-a.

Obrigado pela surpresa.

Não queria passar o Natal sozinha nos Estados Unidos - brincou sua irmã. Faltavam apenas três dias para as festas.

O jornalista sorriu e sentou-se. Pegou o livro das mãos de Georgina e abriu na página reservada às dedicatórias: Espero que você nunca sinta o peso do sangue. Com amor, David. Fechou-o e lhe entregou.

Obrigada, meu querido. Agora, se me permite, vou deixá-lo tra­balhar. E aproveitar o champanhe.

A próxima da fila era Carolyn. Ela se aproximou espalhando o aroma do Chanel N° 5. Trajava um vestido longo negro, o decote revelando seios esculpidos. Brincos, colar e pulseira exibiam diamantes. Sorriu com malícia. Dormira com ele na noite passada.

Chegou a minha vez — gabou-se, entregando-lhe seu exemplar.

O que você vai fazer depois do lançamento? — ele perguntou, abrindo o livro.

O que acha de estendermos a noite anterior? - rebateu Carolyn, com um quase sorriso nos lábios.

Um excelente desfecho para uma noite memorável - retru­cou David, devolvendo-lhe o livro com a singela dedicatória: Para uma mulher adorável.

O garçom lhe trouxe uma taça de champanhe. Ele tomou um pou­co antes de autografar o exemplar de um desconhecido. Abriu um largo sorriso ao ver sua mãe, trajando um elegante longo azul-escuro, acompa­nhada por sir Henry Rowling. Seu pai usava um terno nailhead, em tom cinza-escuro.

O primeiro livro foi para você. Não precisava ter enfrentado essa fila — disse David, levantando-se e beijando lady Charlotte.

Estou aqui para cobrar o convite que me fez — retrucou sua mãe, enquanto ele abraçava o pai.

Qual?

Esqueceu-se do jantar em Paris?

Por nada. Podemos partir depois do Natal.

Já estou com as malas prontas — comentou lady Charlotte.

Parabéns pelo livro, filho. Está ótimo. Sinto orgulho de você — elogiou sir Rowling, encarando-o.

Os dois se afastaram e Mister Jones se aproximou.

—Você veio? — indagou David, surpreso.

Você não vai se livrar de mim tão facilmente - respondeu-lhe, com um sorriso nos olhos.

—Você leu a prova. O que achou? — sussurrou o jornalista, pegando o livro de suas mãos e abrindo na página de dedicatórias: Ao homem que salvou minha vida dos lobos. Minha mais sincera gratidão.

Acho que eles não desistiram, David. Devem estar armando um contra-ataque. Precisamos ficar atentos — confidenciou-lhe, pegando o livro e se afastando.

David tomou mais um pouco de champanhe rosé e movimentou os dedos da mão direita, cansados após tantas dedicatórias. Lembrou-se do padre Pietro Amorth, "o homem que me mostrou o caminho", na dedicatória impressa do livro. Depois do encontro na Saint Paul, recebera um e-mail assinado por ele:

 

Querido amigo, hoje partirei para o Mosteiro do Apocalipse, cons­truído no lugar onde São João escreveu o Apocalipse. Os caminhos do Senhor são misteriosos. Não levarei celular, nem computador. Mas o carregarei em meu coração. Para sempre. E nunca se esqueça, não tema os que podem matar o corpo, e sim, a alma. De seu amigo, Pietro.

 

Tocava A Arte da Fuga — Contrapunctus XIV, a obra inacabada de Bach. Alguém se aproximou da mesa de autógrafos, exalando um agra­dável aroma de madeira adocicada. Era um homem alto e magro, com barba bem aparada, aparentando pouco mais de cinqüenta anos. Vestia sobretudo cinza-escuro sobre o terno preto e se apoiava em uma bengala de ébano com esfera de marfim na ponta. Embora nunca o tivesse encon­trado antes, pareceu-lhe alguém íntimo.

— Qual é o seu nome? — indagou o jornalista, encarando-o. Um calafrio atravessou sua espinha ao fitar seus olhos e revolveu seu coração como uma tempestade. Sem dizer nenhuma palavra, o homem sorriu. Era o mesmo sorriso sonhado tantas vezes no último ano. Era o mesmo sorriso roubado de seu rosto há exatos nove meses, na primeira e última noite com Mary. No mesmo instante em que sentiu um baque na têm­pora direita, e ficou levemente atordoado, as palavras de Pietro fizeram sentido. E David percebeu que estava diante de alguém que poderia des­ferir um golpe mortal contra o que ele tinha de mais precioso: a alma.

 

                                                                               F. T. Farah 

 

 

           Biblio"SEBO"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades