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A PAIXÃO DO CONDE DE FROIS / Mário de Carvalho
A PAIXÃO DO CONDE DE FROIS / Mário de Carvalho

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Este jovem conde de Fróis era homem de serralhos, de cavalos e de touros, e prezava mais tropelias, estúrdias e solturas que os cuidados do regimento onde fora colocado e que deixava alegremente entregue a sargentões plebeús, devassos e piteireiros. Fazia o conde como outros oficiais o que pouco importava a alguém: o esquadrão não tinha efectivos, os cavalos não tinham arreios, os soldados não tinham armas, as armas não tinham munições, as munições não tinham calibre, os oficiais não tinham nem garbo nem soldo nem tino. Ia-se governando o regimento em Abrantes, do que Deus dava, governava-se o conde na arruinada e não menos garbosa Lisboa, do que lhe dava o pai. E este do que lhe propinava el-Rei, poupados lá longe os grossos cabedais.

 

 

 

 

Uma noite, envolveu-se o conde em rija guerreira, numa dessas quelhas de Lisboa, entre barracões de madeira e muros esboroados. A cena exibia uma carruagem, um pequeno exército de criados de rua e forte partida de cavaleiros mascarados. Houve tiros, cutiladas, sábios botes de espadachim, corpos trespassados, cabeças fendidas e gilvazes sangrentos. Nada de muito cuidado, não fora a circunstância de dois dos feridos serem filhos do marquês de Pernes e de os quadrilheiros do rei terem decidido que a festa ficava incompleta sem eles.

O Ministro do Reino mandou recado ao conde pai com pouca retórica e prazo escasso: serviço na Índia ou na Marinha? O velho Fróis, num susto, moveu empenhos de validos e cardeais, peitou corregedores e sargentos-mores, correu Seca, Meca e Olivais de Santarém, e lá conseguiu del-Rei a comutação da pena: que o filho assessorasse o coronel da praça de S.

Gens, perdida na raia de Trás-os-Montes e que por aí ficasse até que Sua Majestade e Oeiras esquecessem a ribaldeira.

Aquele pai, sobre ser prudente e cauteloso, muito afeito a contumélias de corte e enredos palacianos, tinha prosápias de grandeza, arrimadas a uma árvore genealógica de que as raízes se perdiam entre cavaleiros godos façanhudos, lustrosos e remotos. A sabedoria e as cãs não lhe davam para impugnar as decisões do rei e do seu ministro. Mas a jactância nobiliárquica impunha-lhe, emjeito de desagravo, alguma ostentação de riqueza e fausto, não podendo sê-lo de poderio. Não havia ânimo nem apoios para ripostar com uma bofetada física? Conformassem-se as coisas para uma bofetada sem mão.

E ei-lo a chamar o administrador, a decidir a venda de terras e gados, com o fito de fretar um navio que levasse o filho ao Porto, e de equipar um esquadrão de cavalaria que o escoltasse e lhe desse luzimento e mérito à calegoria.

Iam os negócios e preparos já adiantados quando amigos zelosos vieram advertir o fidalgo. Oeiras não se conformaria com uma entrada triunfal do jovem conde de Fróis no Porto ou em qualquer outra cidade, tirante as em que havia de receber ordens. E soavam os indícios de que já ia tomando como afronta as despesas com que Fróis preparava a partida do filho. O caso poderia apresentar-se tremido, de novo, se o conde insistisse em transcender a discrição que a situação aconselhava.

E recomendaram-lhe, com insistência que, ao menos desistisse do navio que pareceria repto desavisado ao poder real, tendo, para mais, pelo estado da frota, de ser angariado no estrangeiro. Fosse o moço pelas charnecas, que era escorreito de corpo e passaria bem os incómodos dos caminhos sem estrada. Se não chegava hoje, chegaria outro dia. Nesta conformidade, havendo circunspecção, o esquadrão de cava leiros não causaria engulhos por aí além, tanto mais que Oeiras queria reorganizar a tropa e tudo quanto viesse à rede era peixe.

Não foi precisa grande insistência, nem apurado reforço de argumentos para que Fróis reconhecesse a razão onde ela estava. Deu logo ordens ao procurador para suspender as diligências no porto de Plimouth. E, desassossegado com o feitio turbulento do filho, deliberou que partisse ele assistido do capelão de família, como factor de morigeração e gravidade, não reincidisse o jovem na estroinice.

O moço conde lá abalou um dia, de sege, acompanhado do capelão, que também tinha cargo de padre-mestre, incumbido pelo pai de lhe dar amparo à alma faceira; do esquadrão de dragões armados e equipados à custa da sua casa, a mostrar que ali seguiam pergaminhos de pendão e caldeira; e de uma chusma de criadagem, alguma dela escrava, para o servir no que tivesse por conveniente.

Logo à saída de Lisboa, velejavam ainda à vista de Xabregas, o conde num repelão, desarmava a loquacidade do padre que procurava, com sábias palavras e mansas, de efeito assegurado, consolá-lo do desterro tristonho:

- Vossa Paternidade com os escolhos da sua vida e dos outros, como lhe cabe por ofício e bondade natural; eu com os meus. E saiba que não hei mister consolos ou apaziguamentos, porque esta punição a tomarei como princípio de vida, como se a tivera ordenado eu. O que nela houver de opróbrio, desfarei por meu querer próprio. Desterra-me Sebastião José para S. Gens? Em S. Gens me terá, onde saberei cumprir com o serviço del-Rei, conforme ao valimento de minha família e ao brio da minha condição.

"Falas bem mas não me aquentas", disse o padre com os seus botões. "deixa vir mais caminho que logo te escorre a filáucia". E foi murmurando, em feição de desculpa, que longe da sua ideia estava importunar Sua Excelência.

Mas daí por diante, talvez exaurido por aquele esforço retórico, o conde fechou a cara e poucas mais palavras proferiu, salvo as de circunstância, apropriadas a não ser inteiramente descortês.

Lenta discorreu a viagem, por carreteiras lamosas, entre penedias nas alturas dos desfiladeiros, com águas saltando em baixo. Volta e meia, era o castigo da passagem de côrregos e barrancos, com a sege alçada a braço de homem e as intermináveis esperas pelo desembaraço das carroças do trem que raramente se queriam mostrar afeiçoadas àqueles caminhos. Bem tinha o padre sugerido, de conde pai para conde filho, que se fosse de liteira, que era transporte mais veleiro e cómodo em trilhos esquivos e hostis. Mas ambos responderam que o meio era pertinente a marchantes ou morgados de província e mais valeria marchar a pé, de bordão e cabaça, que sarabandeado na pifieza de uma liteira. De sege foram, pois, multiplicando os percalços da carreira que, de si, já não eram poucos.

Sem pressas, se iam restaurando os gentis-homens e a tropa nas raras estalagens do percurso, gordurosas e fandangas. Muito bocejou o conde e avonde de terços rezou o padre, sacudidos pelo bamboleio da sege, polvilhados pela poeira de sebes e taludes, assediados de mosquedo pegajoso e vário.

Estavam as horsas do trem a ferrar em Carrazeda, enfadava- se o conde, sempre ensimesmado e poupador de palavras, meditava o padre à mesa redonda da estalagem, quando um sargento, com duas praças, Lhes veio trazer a notícia infausta: na antevéspera, o marquês de Lobais, coronel e governador de S. Gens, havia entregue ao Senhor a alma, muito cansada de oitenta e quatro anos de corpo. Houvera Te Deum, vieram diáconos até de Espanha. Fora mandado correio a el-Rei, com duas mudas e dispusesse agora Sua Excelência o que cumpria, que outro comandante não era representado.

Muito pálido retorquiu o conde que ali aceitava e ficava a ponderar a novidade, e despachou o sargento com uma dobra de prata e os homens com uma rodada de briol. Mas, depois, deixou-se cismar, largo espaço, ao calor da lareira.

Já o padre se recolhia, com o moço da estalagem a alumiar, de lampião, ainda o conde se perdia, acordado nos sonhos, espevitando vagamente o lume com um ferro comprido. E, à salvação do padre, anotou sombriamente, muito lá das nuvens:

- Apoquenta-me menos o peso do meu cargo que a porqueira e desatavio destes soldados.

O padre agitou-se em espertina, até desoras, incomodado das sevandijas nocturnas, formadas em legião, ávidas de sangue eclesiástico. E ia parafusando, entre as ferroadas, naqueles cismas, naquele empenho do conde, já obcessivo a seu ver, e no aonde ele levaria. Que recato e reserva eram aqueles, como se ele, padre, fosse um estranho, recém-vindo à família? Que tino e diligência, em matéria de serviço, maiores do que lhe cumpria? Que feitio novo seria o que queria firmar o jovem?

Mas, não nascera o sol, estava o conde a pé, importunando toda a gente, que queria partir logo. Não acolheu as recomendações prudentes e ensonadas do padre, nem as escusas logísticas do capitão. O seu destino aguardava-o, a sua praça, as suas responsabilidades: se não estavam ferrados os cavalos, depois se ferravam; se vinha perro o varão do carro maior, encomendasse-se a S. Cristóvão; se faleciam novos mandados de el-Rei, um dia chegariam...

Voltou longamente~ o cortejo às agruras dos caminhos de cabras, por penedias e fraguedos. Não poucas vezes se benzeu o padre, às esconsas, assustado do talhe dos desfiladeiros, desesperando, em íntimos rogos ao Senhor, que o livrasse daquelas aflições.

Chegou, enfim, a última jornada do itinerário, mais alongada do que o previsto, porque o conde escolheu caminhos desviados de Miranda, onde não quis entrar, nem tomar ordens. Arregalou o padre os olhos, calou-o o fidalgo com o semblante carregado e torvo. E remeteu-se o sacerdote ao breviário, deixando as questões para amanhã.

Longo caminho andado, o padre pousou o livrito negro numa dobra da batina e renunciou ao sono. Gastara-se há muito o efeito suporífero do balancear da sege, da tropeada dos cavalos, da calma abrasadora que impregnava serranias e cabeços, e restava ao padre arrostar o aborrecimento do fim da viagem, que ainda prometia muito caminho torto.

A seu lado, queixo apoiado no cotovelo, tricórnio ligeiramente à desbanda, quitó dourado entre as pernas estendidas, o conde dormitava, a cadência lenta da respiração ondeando os bofes de renda dos punhos.

O padre remexeu-se, firmou-se melhor no assento e sacudiu com um gesto descaído, filosófico, a camada de poeira branca, finíssima, que lhe enfarinhava a batina, e que cabriolou no ar em saltos e volutas álacres, numa sarabanda faceta, de envolto com a que já vogava em suspensão. E tirou do peito um som desalentado, meio suspiro, meio queixume, com o seu tanto de bocejo à mistura.

Pelos óculos vidrados dos couros da cobertura vislumbrava o padre a passagem de taludes terrosos de que emergiam, aqui e além, arbustos amarelentos e crestados ou pungentes raízes de oliveira, salientes e nodosas. Mas logo a garupa suada de um dos cavalos da escolta, ou um xairel esvoaçante, bordado a prata, lhe vinha cortar o olhar, entre névoas de poeira.

Pela janela ao seu lado direito, quando um cavalo não passava, adivinhava-se, toldado pelo vidro encardido, um céu que talvez fosse cintilante, mas sinal de precipício ao perto, que aquela era a banda do desfiladeiro. Enquanto o peito ou o pêlo do cavalo, ou a bota do cavaleiro se interpunham entre o vidro e o céu, ia o padre descansado, que havia espaço avonde em que cabiam todos. Mas quando o cavaleiro tardava, sobrevinha a inquietação, porque era rebate de que o rodado da sege roçava o abismo, sem dar mais campo, daquela parte. Dispensava o padre a entrevista beleza do astro pela segurança que lhe davam as areias empinadas patentes pela outra janela.

Às tantas, muitas horas andadas, os ossos torcidos da andadura, e os sentidos moídos do susto, debateu-se com as cortinas de couro e chamou pelo boleeiro. Antes que o homem voltasse a cara, acorreu o capitão, com uma continência solícita:

- Veja-me lá Vossa Mercê se ainda falta muito, e diga-me a essa gente que se apresse que isto não é o Senhor dos Passos.

Que faltava pouco, coisa de algumas léguas e, quanto à pressa, refreavam-na os caminhos, sempre a descair para precipício, naquele troço.

Satisfez-se o padre com a resposta que aquela lampeirice era mais um modo de dizer porque ninguém tinha mais respeito a alcantis e acidentes de montanha que o servo do Senhor que ali viajava a contrapelo. E já de novo se enfastiava no fundo do assento quando a voz roufenha do conde resmoneou lá do seu canto:

- Aprenda Vossa Paternidade que os meus oficiais capitães têm tratamento de senhoria, não de mercê, e que quem lhes dá ordens sou eu e mais ninguém...

Corou o padre, desviou o olhar, engoliu em seco e mergulhou no breviário, ferido com a admoestação rude. E, amuado um, dormitando o outro, feito muito caminho, lá chegaram à vista de S. Gens, com o sol a querer deslizar já para fora da terra.

Longe ainda das muralhas, o conde emergiu da modorra, deu alto à tropa e apeou-se. Pelas janelas da sege, o padre via-o andar e desandar, ora mais aqui, ora mais acolá, com fito na praça que parecia mirar e remirar de todas as vistas dali possíveis. A profunda atenção, a contemplação minuciosa e enlevada, a face endurecida, os olhos crispados sobre um meio sorriso, inquietaram o sacerdote. Aquela compenetração quieta, aquele medir de pormenores, aplicado e moroso, aquela maneira de suspender a cabeça, com os olhos correndo em volta, aquele subir a esta fraga, escolhendo após uma lomba mais além, manifestavam um interesse obstinado que, decerto a praça não mereceria.

Em boa verdade, que tinha a praça, assim àquela distância? Nada. A cercadura parda das muralhas, toques de branco e vermelho dos casarios, résteas de sol acobreado, à solta, a massa da torre de menagem impondo-se à paisagem, escura, disforme e senhorial. Uma praça como as outras, decerto, em que o padre já ouvira falar. Porventura mais pequena e desviada. Para quê a basbaquice, quando os estômagos pediam sopas quentes e febra de vinha-de-alhos?

Mas o conde reclamou um cavalo e, acompanhado do capitão, largava à desfilada pelos brejos afora. Um sargento veio dizer ao padre, atónito, que Sua Excelência mandara aguardar ali uma hora de relógio para retomarem depois a marcha sem ele.

- Ora o mafarrico do moço, ora para o que lhe havia de dar... - remoía o padre por dentro, escarmentado da fome, da poeira, e das molas impiedosas da sege. E, de si para si, ia advertindo o descompasso daquelas toleimas do conde, assim não fosse dianho entrado nele, que cada vez mais lhe estranhava os propósitos e os termos.

A chouto rápido, os dois cavaleiros prosseguiam agora pela charneca, já muito apartados da carreteira, desandando para as bandas da raia. Contornaram um pinheiral em redondo, hesitaram à vista do plaino nu que a pequena elevação da praça dominava e lançaram-se num galope acelerado, a descoberto, obliquando contra a Espanha. Em pouco se sumiam, ocultados por detrás das muralhas, deixando como sinal do percurso uma mó de poeira que se ia tornando mais e mais ténue deste lado de cá.

Só então o conde determinou ir-se chegando à praça, refreando o trote, detendo-se de quando em quando. O capitão seguia-o, gravemente, muito compenetrado de oficial às ordens, sem ousar dirigir-lhe a palavra porque lhe distinguia o sobrolho derribado e lhe pressentia as contas com a ira, nos gestos bruscos, nos repelões súbitos dados ao bastão, na alternância picada de freio e espora.

À sombra dos bastiões, nem voz de alerta nem perfil de sentinela lhes detiveram o passo. E em que lázaro, misérrimo estado se desconchavavam aqueles muros... nem uma das ameias inteira, nem um dos adarves sem agravo, nem uma das torres aprumada... Daquela guarita despontavam palhas pretas de ninho de cegonha, este pano de muralha mostrava-se quadrejado de golpes e fissuras, aquele, abatido pelo meio, as alvenarias tombadas branquejando ainda no entulho que cobria o antigo fosso.

Com raiva, o conde apontava, uma a uma, as malformações, como se quisesse tomar contas ao capitão do estado das muralhas e do desmazelo da guarnição. O outro tinha trejeitos confirmativos de lisonja concordante, mas ia assinalando, no íntimo, o despropósito das arguições. Uma praça subalterna era uma praça subalterna, não lhe pedisse Sua Nobreza a fortaleza de Elvas ou o luzimento de Cascais...

Acabaram por entrar na vila, de cavalos pela rédea, galgando um declive formado por destroços de muralha derrubada. Uma mulher passou, com um feixe de vime à cabeça, salvou, e ficou-se a olhar, muito descarada, sem manifestar especial estranheza com a presença dos intrusos, nota de que aquela entrada era caminho vezeiro.

Foram dar com o primeiro soldado encostado ao portal da igreja. O homem, desgrenhado e farroupilha, olhou para ambos, azamboado, sem tinar com o que fazer. Depois, silenciosamente, com um sorriso equívoco, de beiço esbordinado, estendeu por instinto uma mão de esmola, primeiro gesto que lhe ocorreu antes que o capitão o expulsasse do adro a poder de biqueirada.

Não tardou e a notícia alvoroçava a vila. O conde e o capitão parados a meio do adro, viram-se rodeados por uma chusma silenciosa de basbaques entre os quais sobressaía, aqui e além, o vermelho sujo de uma farda.

A escolta, entretanto, reboava pela porta de armas, com carros e bagagens, sem que alguém lhe pedisse senha, e vinha formar na parada, com ordem e lustro, suscitando o maior espavento da multidão apinhada pelas ruas.

Só então, numa carreira esbaforida, de talabartes ainda soltos, os oficiais da praça vieram prestar preito ao comandante, que se ficou por virar-lhes as costas.

 

Estava destinado ao fidalgo um casarão de granitos velhos, sobradado, que deitava para a muralha, lá numa extrema da vila. Havia sido a residência do seu antecessor e o procurador do conde, chegado na véspera, tinha-o tomado aos herdeiros do outro, com os velhos trastes carunchosos e o brasão de armas sobre a porta, ainda com tarjas de luto. As tábuas do sobrado estavam tão cansadas que rangiam perigosamente e apresentavam frinchas medonhas que deixavam entrever o que se passava no piso térreo.

Da casa fazia parte uma anciã alta, seca, de queixo pontudo, gestos bruscos, faces impenetráveis e resmungona nos ditos. Era a Brízeda, espécie de governanta da mansão, desde tempos ancestrais, de que as maneiras e a figura condiziam com o velho enodoado dos granitos e a decrepitude de tudo.

Na primeira noite, após a refeição, ainda o conde dormiu na casa, com a criadagem. Recebeu os oficiais a quem admoestou pela desprevenção em acolhê-lo e pela incúria da praça, recebeu o pároco da freguesia, um septuagenário devaneador que lhe fez um discurso precioso, de boas-vindas, inteiramente incompreensível, e, finalmente, recebeu uma delegação de três artesãos que o saudaram, tímidos, de chapéu na mão, em nome da população de S. Gens.

Despedidas as visitas, ainda quis andar pela terra, de lampião, vasculhando os recônditos e dando-se, desde logo, conta do estado de degradação da praça, ainda mais agravado, mesmo visto àquela luz difusa, que o que tinha lobrigado ao entrar.

O padre e os oficiais acompanharam-no, estes avisados à pressa de que Sua Excelência andava de novo por aí. Até altas horas demorou a deambulação, ficando o resto para ver no dia seguinte. Durante a noite, o padre, estranhando a aspereza dos lençóis e os rangeres e estalidos da casa velha, dormiu com dificuldade. E teve sinal do conde, no quarto ao lado, a passear, de canto para canto, durante largo espaço.

Logo pela manhãzinha, o conde abalou, muito cedo. Quando, mais tarde, chegou ao adro, o padre apercebeu-se de que os carros, com mobílias e guarda-roupa, descarregavam para a torre de menagem a bagagem do fidalgo.

O conde havia passado revista à torre e ficado maravilhado com a construção robusta, solene, antiga, e com a vista que abrangia vastíssimas extensões daquelas janelas toscas e alcandoradas. De um salão abobadado, no terceiro piso, decidira fazer gabinete de trabalho e quarto, e foi para aí, que, a muito custo, os homens transportaram as peças da cama de baldaquinos e a escrivaninha. Já a mesa de pinho, houve que alçá-la por um guincho, desmontada, para a tornar a montar lá em cima.

Ao padre que o procurou, intrigado com aquelas disposições, respondeu que passaria a residir na torre, deixando o solar a Sua Paternidade que poderia dispor dele como muito bem entendesse. Ofereceu-lhe ainda serventia de criados, mas o padre, ressentido com a quebra de privança, declinou a oferta: Brízeda bastava e sobrava para serviço de um homem só, para mais de poucos faustos, como ele era. Então que passasse Sua Paternidade muito bem e que se não esquecesse de lhe bater à porta em caso de precisão.

E o padre tomou-se de uma pesada tristeza, sentindo-se a mais, para um canto, ao desamparo. E sobremaneira se lhe toldou o ânimo quando o conde lhe mandou recado de que doravante, e sem desprimor para Sua Paternidade, escolhera para confessor o prior da freguesia, por fazer vezes de capelão militar naquele destacamento. Sendo o confessor da tropa, cumpriria, no seu entender, sê-lo também do comandante.

Foi uma forte desfeita que feriu o padre a fundo. Esteve vai não vai para tomar atitudes, para cortar relações, para pedir ao conde que lhe dispensasse a presença e fornecesse escolta para Lisboa. Mas, aos poucos, a sensatez impôs-se-lhe: afrontar o conde, insignificante como era face à potestade do governador, só lhe acrescentaria os dissabores e amargos de boca; pedir autorização para o regresso, implicava o risco de o conde aceder, de boa mente e, se furtava o escárnio do conde filho, teria em Lisboa de sofrer a cólera do conde pai, com agruras ainda mais penosas.

Foi-se deixando estar, evocando as palavras bíblicas que dão a primazia aos mansos.

Ora desde a chegada do conde operou-se naquela praça uma reviravolta de alto lá com ela.

De dia para dia mais assombrado, forçado a engolir reparos e espantos que o conde lhes não dava vez, o padre assistia de longe, maravilhado, à continua metamorfose do nobre. Como a S. Paulo, no caminho de Damasco, alguma intervenção exterior tinha feito das trevas dia, ou do dia trevas, questão a ponderar, num sobressalto súbito e avassalador. O jovem, antes taful e indolente, fútil e brigão, volvera-se homem rijo e madrugador, ríspido nos gestos, acertado nos ditos, lúcido nas intenções, decidido na execução. O sol dava com ele já a cirandar, em mangas de camisa, cabeleira às três pancadas, dando ordens, dando berros, dando pressa.

Nem o descanso dos domingos era um verdadeiro descanso. Após a missa, muito cedo, montava a cavalo, à desfileira, por vezes sozinho e, de longe contemplava a praça. E tomava apontamentos, e reflectia, e desenhava. Amiúde tinha-se, por horas, abandonado, debaixo duma árvore esquissando o pormenor dum baluarte, um relance de paisagem, em vastas folhas de papel que iam enformando grosso volume sobre a sua mesa de trabalho, na torre. Numa das poucas vezes em que, pelo acaso dum encontro o padre o acompanhou, sorumbático e tem-te-não-caias numa mula ronceira, o padre ouviu-o dizer, em surdina, referindo-se a uma atalaia caiada, ou a um redente reconstruído: "- que maravilha, que perfeição". .

É que, não transcorrera ainda um mês desde que o conde se instalara em S. Gens e já a povoação era um corropio de trolhas, alveneres, carpinteiros, ferreiros, afeiçoando as muralhas, talhando os reparos dos canhões, malhando rijo nos metais. Mais parecia S. Gens uma feira, um estaleiro, tanta e tão variada a gente e o bulício, que uma tranquila praça perdida dos tempos das guerras da Restauração.

Todos os dias o conde dava despacho a procuradores. Almocreves largavam e chegavam. O gabinete do governador semelhava uma tenda de campanha, com mapas, planos, livros, armas, e um torvelinho de pessoal a prestar contas, a receber ordens, a requerer, a sugerir, a levar encargos.

O padre soube, por breves inconfidências de um feitor, que o conde vendera terras e um solar no Douro, de sua legítima, para ocorrer ao restauro da praça, e que escrevia insistentemente ao pai, pedindo dinheiro sobre dinheiro.

Foram contrabandeados cavalos de remonta em Espanha, que no reino eram escassos; forrageados e reparados quatro canhões da praça de Bragança, por meio de negociações eficazes, embora pouco curiais; transformada velha sucata lixosa em munição bem pesada e calibrada; adquiridos por vias escusas arreios, cartuchos, petrechos e armas. Abriu-se um novo poço, vedou-se a vetusta cisterna moura, cozeu-se e recozeu-se biscoito de marinha para eterna armazenagem, expropriaram-se e atulharam-se algumas casas, mal encostadas às muralhas, não sem protestos dos proprietários.

Um dia chegou um engenheiro, da Real Academia, vindo de Lisboa e riscou, de imediato, baluartes e casamatas que uma pequena multidão de pedreiros logo começou de erigir, com serventia da tropa.

E crescia e crescia a azáfama. O conde não parava quieto, nem sofria retardos ou desmazelos. Tinha os dias por perdidos se não visse tudo a alvoroçar-se em redor.

Acabaram-se os soldados ociosos na praça de S. Gens. Muita gritaria e uma sábia política de distribuição de bastonadas afinaram o brio e o atavio da tropa. Eram exercícios e mais exercícios, alertas e mais alertas, revistas e mais revistas. Ai de quem mostrasse nódoas na véstia, sujidade nas fecharias, destempero nos gestos, sorna nos exercícios. Vinham os trabalhos dobrados, o regime de pão e água, e, em certos casos, tratos severos de pelourinho.

O novo comandante houvera por bem restaurar a velha prática disciplinar romana da dizimação, embora em forma mais consentânea com o século das luzes: em caso de falta colectiva grave, atraso nos trabalhos destinados ou peculiar lazeira nas manobras, em cada dez homens tirava-se um à sorte, para uma dose reforçada de bastonadas, ou duas noites de ergástulo.

Baixas? Decerto, que aquela disciplina inusitada não quadrava a todos os feitios. Vieram recobrados alguns desertores, esganados em gargalheiras e tratados com o rigor devido. Os remissos foram substituídos por camponeses das vizinhanças, recrutados à mão baixa, nem sempre com observância das regras tutelares das viúvas ou familiares desprotegidos, nem dos forais dos concelhos.

Ao padre apoquentavam-no estas revoluções. Não lhe dava cuidado a alma do seu discípulo, temperada agora com fortaleza e diligência embora lhe fosse diminuto o zelo de procissões e novenas e deixasse sempre para as calendas gregas o restauro da igreja ancestral. Mas arrepiava-o a grande soltura de dinheiros que por ali campeava, que até a soldada da tropa andava em dia, coisa nunca vista; e sobretudo molestava-o o desvelo obsessivo do conde pelos baluartes, pelos canhões, pelas cisternas, pelos paióis, pelas manobras, pela tropa.

Via-o o padre apaixonado em idade a que melhor quadrariam outras paixões, pressentia alguma perversão no fundo dos entusiasmos, e considerava para si que "neque semper arcum tendit Apollo", ou, dito por outro modo: "arco tão retezado daria em arco quebrado".

Também lhe não tolerava o alheamento, a rispidez do trato: "Vossa Paternidade" desta banda, "Vossa Paternidade" daquela, e sem mais chus nem bus, que a conversação que o fidalgo acolhia era a dos capitães e sargentos, acerca de ordens de serviço, ou ferrabrasias e feitos de armas.

E pedia que lhe descontassem lá em cima, no livro dos pecados, os longos momentos de espera, para despacho de negócios miúdos, no salão de armas da torre, que mais lembrava a antecâmara real, com o corropio de impetrantes, a averiguação pequenina dos afazeres castrenses e a companhia dos oficiais da praça que riam grosso, de cimitarra entre as pernas, e limpavam os dedos à peruca mal empoada, ou, como o de cavalaria, se compraziam na imitação canhestra dos ademanes da corte.

Às noites, escrevia ao conde pai longas cartas, com dilatados tropos retóricos, exagerando a inquietação com o excesso de zelo do comandante mais a correspectiva delapidação dos dinheiros de família, cartas que se foram tornando mais e mais raras, por não alcançarem resposta, ou por a terem, quando tinham, sobremaneira cortês, formal, vaga e desinteressada.

O jovem conde, sem que o padre soubesse, também se espraiava compridamente em ofícios, repartidos em "itens" listados de alíneas, com gramática arrevessa e torta ortografia, prestando contas a Sebastião José, a quem o que menos importava neste mundo era a medíocre praça de S. Gens da Raia, mais aquelas mexerufadas militares. Rematava o conde reclamando um comando efectivo para a praça, que muito lhe pesava a interinidade. Era uma fórmula de modéstia e donaire, mais destinada a valorizar a prosa que a fazer efeito junto do destinatário, que o conde, aliás, apenas aceitava como representante do soberano, e nunca sendo apenas quem era.

Ao ministro, tanto se lhe dava. Encolhia os ombros, rosnava um "amanhã se verá" distraído, e abstinha-se de pensar mais na matéria. De Lisboa, o silêncio. E este descaso mais sobredeterminava o conde na afeição à fortaleza.

E, num esbanjamento de dinheiros e energias, prosseguia a roda-viva de mesteirais na praça. Fora os operários que o conde mandou trazer, lá de longe, ofereciam-se outros das terras em redor, atraídos pelo ganho, porque constava que o governador era um mãos-rotas nas jornas e, com a reforma da praça, abundava trabalho e jeito de as ganhar.

Breve se implantava um acampamento de tendas rafadas e choças convulsas, para abrigo de tanto pessoal. Todos os dias o engenheiro de Lisboa convocava homens para os trabalhos, de planos na mão e teodolito prestes.

Com tantas almas disponíveis, empenhou-se o padre numa aturada lavra pastoral, benzendo, confessando, ensinando, dirimindo, encaminhando os espíritos. Arredado do conde, sentia menos o afastamento, fazendo valer a vocação.

Mas, fora das palavras sábias e dos quês do ofício, mostrava-se distante e pouco dado. Acostumado à casa senhorial, entendia-se mediocremente com o modo de ser da gente meã. Por este andar, muitas almas se Lhe furtaram e foram dar freguesia ao prior, que tinha uma conversa mais chegada ao coração.

 

Vieram uns frios e uns ventos, apertaram-se os dias, o arvoredo fez-se esquálido e lânguido, toldaram-se os céus, desabou o Inverno... Com o cair da folha, foram-se peritos e operários, o engenheiro e os alveneres, os trolhas e serralheiros, antes que enrijasse mais o clima. Se ao padre algo incomodava o torvelinho de gente de ganhar, abelhando pela povoação, em azáfamas bruscas e ruidosas, mais apoquentou a partida espaçada de todos, grupo após grupo, carro após carro, deixando a praça triste e sorumbática, sozinha e recolhida, como antes era. Na primavera voltariam, talvez, para trabalhos que não sofressem a invernia. Aqueles homens eram a presença das cidades lá de fora, das vilas grandes, o sinal de Bragança, o sinal de Braga, o sinal de Chaves, do Porto, até de Lisboa. Quando esvaziaram a praça, deixando as ruas meio desertas, e nos ares o só rumor compassado das botas das sentinelas, viu-se o padre de alma esvaziada também. Sentiu-se ilhado, ao desamparo, longe do mundo...

E foi à cama, pretextando dores no corpo, calando as da alma, num eufemismo atendível pela governanta que se desvelava à sua volta. Mas aquilo era neura, era tristeza, era o desconsolo dos ermos, a falta de Lisboa. A largueza destes horizontes emparedava-o, o ramerrão sempre igual da praça infernava-o. Mas fosse lá contar isso a outro... Quem o poderia perceber, além do leitor e de mim?

Do quente dos lençóis, mandava sempre dizer que não recebia ninguém, que estava a repousar. De maneira que se ficavam pela porta, mesureiras e cumprimentadoras, as personagens que iam saber do seu estado, desejar melhoras:

- Vem lá fulano! - assomava Brízeda à ombreira...

- Diz-lhe que tomei a tisana, que estou a descansar, para fazer efeito. E que mando a bênção... que mando a bênção...

E enrolava-se bem nos lençóis, ouvindo o vento a zunir pelas frinchas, sentindo-o a bulir com os tições da braseira. Ainda ao menos se o vento levasse aquela amaldiçoada praça...

Todos os dias o conde mandava indagar por um pronto como ia Sua Reverência e desejar-lhe um restabelecimento rápido e rijo. Regressava sempre o militar com o recado de que não havia cuidado de maior, eram fluxos, era o tempo...

Uma tarde, compareceu o conde em pessoa. Brízeda, muito reverenciadora, acompanhou o fidalgo ao quarto e ficou-se a um canto, atenta e disponível, a esfregar as mãos uma na outra:

- Vá-se lá Vossa Mercê! - ordenou o conde, tomando um banco e preparando-se para fazer um pouco de sala, rigidamente, como calha a quem visita enfermo.

O padre, em voz lamentosa, queixou-se muito de reumáticos e dores lombares. O conde lamentou, expediu considerações médicas, porque de sabença de médico todos temos um pouco, e rejeitou de mão espalmada no ar, os protestos do doente que também se doía de ver Sua Excelência ali, parado, a desperdiçar o seu precioso tempo, com personagem de tão pouca monta. Mas não perdeu a oportunidade de insinuar ao conde a conveniência de um desvio àquela exclusividade que a praça militar lhe marcava. Aproveitou as regalias e privilégios da maleita, que os costumes bem estabeleceram que não há ralhar com doentes, nem o conde era tão destemperado que não tivesse em conta a sua debilidade. E foi inculcando a necessidade de não ver, como convinha, a mocidade de Sua Excelência e o seu merecimento social a medrarem naquela praça. Desgastava-se a juventude, perdia-se o vigor. Havia mais mundo. Porque não dava uma saltada a Bragança, passando a invernia, e ia visitar os seus parentes, gente de estado e de condição? Já deviam estar bem crescidas as primas, e bem graciosas que elas eram em tempos. Pois não se lembrava Sua Excelência? Dona Cristina, tão lourinha, a saltar no balouço, os canudos de anéis louros a dar e dar? E a outra, como se chamava ela?...

- Mas, senhor capelão, lembre Vossa Paternidade que eu estou castigado, e esta praça é o meu degredo. Os castigos são para se cumprirem. Se aceitei e me dispus a ele, não é para me furtar de ocasião...

- Ora, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Não queira Vossa Excelência ajuntar à punição de fora também uma mortificação da alma que lhe não serve nem serve a Deus.

Do que serve a Deus saberá Vossa Paternidade que lhe obra discernimento na matéria; do que me serve a mim, reservo-me eu o direito de decidir...

Ora que o conde se encrespava e mastigava as palavras de beiços rígidos. Era altura de mudar de conversa. O padre fez um trejeito, ajeitou-se na cama e lançou um "ai", breve, como se interrompido e disfarçado. O nobre levantou- se:

- Bem vejo que Vossa Paternidade sofre dores. Cá lhe mandarei o cirurgião para a sangradura, ainda logo, se for encontrado...

Seguiu-se uma breve conversação de circunstância com o padre a agradecer muito o cuidado de Sua Excelência, a soerguer-se do leito e o conde a não consentir, grave, e a insistir naquele propósito de mandar o mestre cirurgião-barbeiro, que também o era da tropa.

Quando o conde se retirou, o padre - que não podia ver sangue sem desmaiar - vestiu o varino e foi-se prantar na cozinha junto à lareira, arrostando com os protestos da criada.

- Ora cala-te lá, mulherzinha, eu sei o que faço.

E recebeu o baeta com duas pedras na mão, descoroçoando o homem que vinha muito prestável, carregado de lancetas e bacia de cobre, Lisonjeado por lhe ter calhado golpear as veias de personagem tão distinta:

- Qual sangria nem meia sangria... Era um flato, já passou, não há cá sangrias... Vá-se vossemecê com Deus... Ó Brízeda, chega-lhe um copo de vinho quente...

Ao outro dia, de manhã, deu-se a passear pela praça:

- Que não era nada de cuidado, que já estava bom, embora um bocado débil. - respondia a todos.

- Caldos de galinha, caldos de galinha... - recomendavam os passantes. E foi caldo de galinha que a Brízeda lhe deu, abrindo-lhe apetite para a bôla de carne, o salpicão com ovos e o belo canjirão de tinto que, passada a doença, o corpo demandava guarnição.

Fez questão de se mostrar abundantemente durante todo esse dia, para que não houvesse dúvidas sobre a sua convalescença e não viesse o conde impor-lhe de novo o cirurgião com o seu petrechamento medonho de instrumentos cortantes. E flauteou pela praça, muito de espaço, parou aqui, encostou-se acolá, um pouco dobrado ao forte frio que soprava pelo planalto.

- Faz bem o frio, é saudável - justificou-se à porta do tendeiro.

- Mas não abusar, não abusar... - aconselharam algumas boas almas, com ponderação.

Contemplava o padre os horizontes fora da praça, porque para dentro nada havia que ver, numa daquelas alcândoras do carreiro da muralha, quando sentiu um toque frio no pescoço, mais suave que gota de água, mais pesado que bafejo de vento. Vai a ver e tinha a saragoça espessa do varino pontilhada de babugens brancas, pequenas e grumosas.

Ergueu o olhar, e o que antes lhe aparecia como uma névoa sombria e compacta, estava agora traçado por flocos minúsculos, tombando cadenciadamente, silenciosamente num tracejado solene e lento. De quando em quando, um leve repelão da brisa alvorotava as partículas que se enovelavam em turbilhão para logo retomarem o sentido do seu cair, brando, regular, eterno... Era a neve. A neve em que o padre tanto tinha ouvido falar mas nunca havia visto. A neve! Então a neve existia deveras, oferecia-se-lhe ali, não era mero ingrediente de contos, nem fantasia de viajeiros exagerados?

O padre sorriu, levado por uma alegria intensa, menineira. Sacou as mãos dos bolsos e estendeu-as em concha, recebendo aquela doce frialdade num arrepio faceiro. Depois, com o cutelo da mão, arredou a película que já se ia for mando sobre o muro, ajuntou-a em caneluras paralelas, que logo desfez com o dedo, encaracolando os resíduos em volutas soltas, caprichosas. Já dava para formar uma pequena bola. Às mãos ambas, ajuntou mais neve, amassou-a, espremendo-lhe o húmido, sentindo-lhe a leveza. Olhou com curiosidade os vincos dos dedos no pequeno pelouro branco, penetrou-o com o fura-bolos. Após, escolheu um alvo. Passava um cão, apressado, o pêlo ralo já ponteado de irisdecências brancas. O padre olhou em volta. Ninguém. A bola de neve deu em cheio pelos flancos do bicho que saltou, enfiou mais o rabo entre as pernas, e ala, numa grande corrida. O padre riu, riu... até atentar em que aquele riso, ali sozinho, não se compadecia com a gravidade do estado eclesiástico.

Já a paisagem ia branqueada duma mancha diáfana, neste e naquele ponto brilhante, aqui e além compacta, em laivos dispersos, mas deixando muito transparecer ainda os verdes e os castanhos do arrabalde. Alguns lameiros ao longe, mostravam-se listrados, certas fragas já coifadas de uma camada branca, uniforme, mas o mais dos campos apresentava apenas uma penúgem fina, alvacenta, com grandes extensões ainda intocadas da neve. Deu-se o padre a desejar que o nevão cobrisse tudo e fizesse tudo branco, impacientou-se com os espaços a descoberto, esteve quase a rezar, para que a natureza lhe satisfizesse a sofreguidão de brancura.

E receou que a maravilha se suspendesse, que tudo aquilo fosse um arremedo, destinado a finar-se em águas chilras derretidas, sem grandeza, sem espectáculo.

Mas a natureza tem os seus tempos, é muito metida consigo, e raramente acede a fazer a vontade de padres lisboetas, por mais impetrantes. Aguardasse Sua Paternidade, que não era mais que os outros mortais, que aquele despejo de neve havia de fazer-se de acordo com as regras, e dando tempo a seu tempo.

E nesta porfia entre o homem e a natureza - que nevasse, que nevasse, vou nevando, vou nevando - levou a segunda a sua avante e foi-se retirando o padre, ainda não inteiramente convencido de que aquele nevão estivesse para durar.

Pouco lhe faltou para bater uma contradança pelo caminho, tão solerte e desafrontado de alma se sentia. E fez questão de deixar as pegadas bem vincadas, procurando com os sapatos os pequenos acrescentos de neve que se iam acumulando aqui e além, desfazendo alguns a pontapé, o que lhe tornaria a marcha, para quem na visse, sobremaneira singular, com ziguezagues, paragens e um descompasso de gestos pouco curial em homem sisudo.

Não sabia o padre que, naqueles instantes, se encontrava em forte comunhão de alma com o conde que lá na sua torre, a trinta braças de distância, de janela aberta para as bandas de Espanha, também se entregava a um grande espanto.

Nesses dias de inverno, em que o clima não dava vez a imaginações e rebates castrenses, o conde metia-se à entretenga de construir com barro, madeira e papel, um modelo da praça de S. Gens. Passava parte do dia fechado no seu gabinete, a lenha a rechinar em altos lumes, debruçado sobre uma mesa em que tinha já modelado muralhas, algumas casas, a torre.

Baseava-se num plano toscamente lavrado, à pressa, pelo engenheiro militar, um tanto indeciso de medidas e escalas, e também nas observações que ia tomando lá de cima. Não era muito perito de mãos, o conde, de modo que aquele arremedo da praça lhe custava muito labor, muito desfaz e refaz, muito tira e põe, muito arma e desarma, muito compõe e estraga. Também os materiais não seriam os mais próprios: de pedaços de tijolo fez casas, de ripas de lenha fez passadiços, de fuzis de cobre fez canhões, de troços de palito fez homens. Cuidaram os criados do conde que o amo se ocupava de um presépio: pouco se ralou o conde com o que os criados cuidassem...

Mas agora, bem podia esperar a maqueta, que o criador daquele mundo não se arredava da janela, enlevado com o que ia pelo outro. A perder de vista, o céu escuro desfazia-se em pequeníssimos flocos brancos, pontilhando suavemente os ares. Já com grande largueza, para os lados da raia se firmavam espessos talhões alvadios. já os arvoredos reluzindo, enlarinhados daquela poalha clara, já os telhados se mostravam mosqueados de neve e o conde absorto, a contemplar...

Também estendeu as mãos e lhe quis sentir a frialdade e o peso e a consistência. Também a moldou e desfez entre dedos como havia feito o padre. Também a arrepanhou e traçou. Também a cindiu com o cutelo da mão.

Vinha música dos céus, das planuras, dos montes, dos arvoredos, e vibrante e solene que era. Como se a natureza a entoasse, num coro total.

Eis o conde a recuar e a dobrar-se numa profunda vénia, pé esquerdo bem à frente, o braço direito a descair lentamente, como varrendo o chão ao de leve. Depois empertigou-se, deu um pequeno passo, braço esquerdo a figurar apoio no punho do quitó, braço direito bem levantado, e volteou sobre si mesmo, cabeça ligeiramente tombada. E foi dançando, levado dos movimentos do corpo, nos três tempos de um minuete imaginário...

Por seu lado, o padre, ao chegar a casa, viu o folguedo confrontado com os ralhos da Brízeda: se já se tinha visto, homem daquela condição e idade, ainda ontem levantado da cama, a expôr-se ao gelo com sapatinho de fivelão...

O padre, resmungando, acedeu às botifarras de montanha, pesadíssimos trambolhos que a governanta lhe impôs. Mas, não tardava, e saía, de novo, a certificar se a neve já cumprira a função que lhe assinalara, que era a de cobrir todo o chão sem deixar réstea destapada. E, insatisfeito, repetiu o itinerário, uma e mais vezes.

Razão tinha a Brízeda nas prevenções lá dela. O caldear entre frio e quente gerou no padre um resfriado sério que de novo o amarrou à cama, as razões do corpo atormentado sobrepondo-se desta vez às fraquezas do espírito. E nem o nevão constante que, pelos dias não parou, monotonamente, consolou o padre das investidas de lanceta a que não o poupava o cirurgião da tropa.

Quando se levantou e foi a passeio, curado da febre, não demorou também a curar-se daquele deslumbramento da neve. E apercebeu-se de quanto ela podia ser incómoda, quando atravancava os caminhos, sórdida, quando se misturava às palhas, lamas, e escorrimentos dos animais, perigosa quando se cristalizava em geleiras resvaladiças, debaixo dos passos. E de benvinda e louvada, passou a neve a execrada e maldita, que assim vai a inconstância dos homens.

Mais abominaram todos a neve quando S. Gens ficou isolada, no meio do planalto e quando trouxeram o corpo gelado de um labroste que se arriscara à caça, na voragem da invernia. E era já o padre, nas suas orações, a rogar a Deus que breve os livrasse daquela praga e reconduzisse a natureza mais de feição.

Foi por um desses dias, nos começos de Dezembro, que o padre, já bem rebuçado e gasalhado, seguia pelos adarves a desenfastiar-se, como era sua regra, e deu com uma sentinela, muito esbugalhada ao que ia lá fora, a mitene de lã em pala sobre os olhos. Acercou-se, mais curioso da curiosidade do homem que do objecto dela e quis inteirar-se:

- Mire Vossa Reverência, lá além...

Presos os olhos na extensão, o padre de início nada enxergou. Mas conduzido pelos acenos do outro, acabou por distinguir as manchas escuras que se moviam para diante de um sulco regular que já vinha arrastado muito lá de trás, vincando a neve de negro. Não havia dúvida, eram três lobos, descidos dos montes, que se atravessavam lampeiramente, em frente da praça, descuidados, ou indiferentes à proximidade dos homens.

O maior, à frente, abria caminho, compassado, sem pressas, as neves pelos peitos; os outros seguiam a regueira, corpo ondeando, focinhos em baixo.

O padre sentiu desacatados os seus brios de senhor da natureza pelo atrevimento dos bichos. Que os lobos à noite descessem a povoados sem resguardo era como o outro, fazia parte da tradição, mas que em pleno dia flanassem repoltreadamente sob as muralhas duma praça de armas, era ousio digno de desafronta.

- Ora a desfaçatez... - indignou-se.

Alheios à estranheza dos homens lá em cima, os animais seguiam em seu rumo, muito senhores de si, sem sequer se dignarem a um olhar para a praça.

- Escuta -, disse o padre ao soldado - tens a arma prestes?

- Como não havera... - respondeu o outro.

- Então, vá: chega-lhes fogo!

- Mas, senhor capelão, eu não sei se possa...

- Fogo neles, que digo eu... - comandou o padre. O homem endireitou a espingarda, chegou-lhe a escorva à caçoleta, armou o cão e apontou, de joelhos dobrados, o fuste apoiado no adarve. O padre levou as mãos aos ouvidos. O tiro estourou, num ribombo vibrante que se espalhou, trovejando, em ecos arrastados pelos ares afora. O lobo da frente estacou, fitou as orelhas e olhou para a praça, uma pata meio levantada no ar. Também os outros se prestaram a erguer os focinhos e farejar ao alto, sem mostrarem um susto por aí além.

Depois, à cautela, cortaram caminho, deram meia volta e trotaram para um souto ao longe, voltando costas à praça, dobrando em ângulo recto aquele sulco direito que arrastavam atrás.

- Outro! Larga-lhe outro antes que se sumam... Excitava-se o padre.

O soldado bem tentou recarregar a arma a tempo, o cartucho deslizou, a vareta zuniu no cano, mas já os lobos se enfronhavam no bosque, muito à distância, fora da alçada de tiro.

E quando o soldado os procurou, de olho fechado, fazendo mira da ponta do polegar, deles só havia o rasto a atestar o passeio.

- Morcão! - resmungou o padre. - Sempre me saíste um aselha...

E nestas entretengas de caçador acoitado, não deu por que uma das janelas da torre se tinha aberto e fechado, aliás com algum estrondo.

Só ao continuar caminho é que o padre se apercebeu dos lapuzes lá no largo, ainda com os olhos postos nos restos de exalação de pólvora, e das mulheres às janelas, a perscrutar

os ares, sinal de que o tiro tinha causado alarme. E começou a ficar inquieto e arrependido, quando um furriel, acompanhado de uma praça, passou por ele, em passo batido, tão rápido que quase o não saudava.

Desceu as escadas da muralha, com cara de caso. Deu uns passos, e espreitou cá de baixo. O furriel, de mão na ilharga, interpelava agora a sentinela. De costas para o padre; depois, fez um gesto brusco, e empurrou-a. Foi a sentinela, pelo caminho de ronda, à frente do furriel, e colocou o outro militar em seu lugar, a bater os pés do frio. O padre apressou-se. Os dois homens seguiram a direiteza da muralha, de passo acertado, e cortaram depois pela escada que pegava com o largo. Eles a chegarem cá a baixo e o padre a perguntar ao furriel:

- Mas que é, levas o homem preso?

Que sim, que eram ordens do senhor Governador, por ter gasto pólvora e munição sem porquê...

O soldado nada disse: limitou-se a olhar conpungidamente para o padre, numa súplica silenciosa.

- Mas eram lobos... - atarantou-se u capelão.

- Pois, ordens do senhor governador, insistiu o outro, pulidamente.

E lá seguiram os dois, direito, esquerdo, direito, esquerdo, a caminho da enxuvia que ficava nus fundos de uma torre de ângulo, deixando o padre enfiado, ali especado, a engolir em seco.

Ainda fez menção de marehar na esteira dos militares mas hesitou e arrepelou caminho para casa. Ia levado dum sentimento de forte incomodidade, aturdido, de modo a não dar salvação a alguém, tal a ebulição que lhe fervia por dentro.

- Coisas da tropa, tolices... - dizia mais tarde para consigo, afeiçoando os grossos cavacos da lareira. Mas um não sei quê, impertinente e doloroso, atenazava-o e desviava-lhe o sentido para o pobre soldado, deitado sobre palhas sórdidas, na algidez de ergástulo, por uma falta que ele próprio tinha induzido. Com a tenaz de ferro, foi dispondo tições na braseira, um a um, pesadamente. Preparava-se para lavrar os seus escritos, à escrivaninha, a um canto do quarto, e dispunha o conchego conveniente. Mas como iria lograr uma linha que fosse com aquela culpa, aquele remorso, aquela mortificação que não conseguia arredar da alma?

- Brízeda! - Gritou. - Brízeda! Vais ao calabouço da tropa e levas esta braseira a um soldado que lá está. O nome? Sei lá o nome... Há-de ser o único que me não consta haja mais presos...

Enxailou-se Brízeda, resmoneando baixinho, encheu mais a braseira, cobriu-a com um quadrado de folha de Flandres e lá foi de tamancos a dar e dar, batendo com a porta.

Nem assim se sentiu o padre desobrigado. E, não tardava, saía-lhe no encalço, para cortar depois em direcção à torre de menagem. Expôs ao furriel que requeria uma audiência com o senhor conde, e pouco esperou que o homem regressasse e o mandasse escada acima, bem acompanhado por uma ordenança.

O conde recebeu-o, sentado, olhando-o com ares distraídos, face apoiada nos punhos. O padre foi logo direito ao assunto:

- Era por causa da sentinela. Saiba Vossa Excelência que fui eu quem o mandou atirar. O homem não teve culpa.

- Não teve culpa? Gastou um cartucho e uma bala sem estar autorizado, e diz Vossa Paternidade que não teve culpa.

- Foram uns lobos. E eu disse: - ora atira nos lobos. Chega-lhes fogo! Fui eu que disse... E o homem, por respeito...

- Querendo -, respondeu o conde - prestará Vossa Paternidade as contas que bem entender à sua consciência ou à Divina Misericórdia. Sobre Vossa Paternidade não tenho nem quereria ter jurisdição. Quanto ao soldado, cometeu uma falta e vai castigado por ela.

- Mas eram lobos... Vinham lá três lobos, ao encontro da praça...

- Bem vi - atalhou o conde - mas não é de lobos que eu espero a invasão de Portugal, nem o dever das sentinelas é espantar sevandijas à custa do reino.

- Não posso, pois, demover Vossa Excelência?

- Não, senhor capelão. Apenas lhe rogo que para a próxima vez não desinquiete os militares dos seus deveres...

- Peço-lhe ao menos benevolência para o homem, com ponderação de todas as atenuantes do caso...

- Que já foram consideradas... Terá três dias de cárcere, não mais. Talvez assim aprenda a obedecer a quem deve e a desobedecer a quem não deve...

Despediu-se o padre, de mau vezo, após as contumélias da praxe. Mais uma humilhação a que o conde o prestava sem necessidade. Decerto que a disciplina e afinação da tropa lhe davam cuidado e que, habitualmente, não deixava por mãos alheias regimentos e correições. Mas o padre suspeitava de que, no fundo, por interposição do soldado, era ele o visado com o castigo do conde, que não perdia ocasião de lhe fazer sentir a insignificância do seu múnus em relação à coisa militar.

Vinha para cá, e vinha cismando. Se assim era, competia-lhe de volta o desagravo simbólico: iria instalar-se no ergástulo, ao lado do outro e por lá se deixaria jazer, de rojo nas palhas, a comer as sopas da tropa. Tomaria para si a punição, como autor moral do feito.

Fazendo o caminho da prisão, esta ideia parecia servir-lhe como desafronta heróica, a impô-lo à consideração de todos. Não era muito dado com os habitantes da praça, mas ao correr a notícia, não deixariam, com certeza de vir visitá-lo às grades, trazer-lhe ofertas, testemunhar-lhe solidariedade. E não deixariam de verberar a dureza de coração do conde, a rigidez desalmada... Era uma atitude de santo antigo, sem dúvida. O próprio conde talvez o reconhecesse e viesse em pessoa, à enxovia, estender-lhe as mãos...

Mas à medida que os passos o iam aproximando da prisão esta visão gloriosa foi, a pouco e pouco, esmorecendo. Suspeitou de que a guarda o não deixaria entrar no cárcere e que teria de permanecer sentado na sala de armas, o que reduzia em muito a eficácia da imagem. Vamos que ateimasse em ficar por ali, a um canto, ouvindo os ditos dos militares e o tinir de fecharias das rondas... quem o tomaria a sério? Não se tornaria antes desprestigiante? E o seu apego à sorte do soldado não seria mal interpretado?

Estava já a ver a ironia do conde quando lhe fossem comunicar que Sua Reverência não largava da prisão: "Muito bem", talvez dissesse, "assegurem-se de que não falta nada a Sua Paternidade... ". E viria acrescentar a um vexame outro vexame.

Por outro lado, a população da praça passaria por cima do facto, com a coima de embirração entre o padre e o governador, coisa mais de riso e de chufa que de cuidado. E a repercussão do caso seria burlesca, anedótica, digna dos epigramas e da verrina dos poetas, em sendo sabida fora ali... Talvez acabasse por ser chamado ao bispo, para um raspanete em regra...

Quando chegou à prisão, deu dois dedos de conversa ao cabo da guarda, certificou-se de que o homem tinha a braseira ao pé, e limitou-se a perguntar-lhe, pelas grades:

- Olha lá, tu tens rapé? Queres rapé?

Muito agradecido a Sua Reverência mas que não tomava...

Desandou o padre para casa, de monco caído, furioso consigo próprio. Ao deitar, pesaram-lhe umas lágrimas grossas pelas faces abaixo e por muito tempo não o quiseram deixar dormir.

Durante os três dias de castigo do outro mandou sempre a governanta renovar-lhe as brasas. Também lhe enviou uma manta de felpa.

Entrou a furtar-se ao conde e a arrepiar caminho quando o avistava ao longe: "Só pica a abelha a quem trata com ela". Evitou, bem assim, o soldado, já reposto nos serviços e rotinas da tropa. Ferido, queria-se o padre consigo, longe de preitos e faladuras. Mas chegava o Natal, triste Natal perdido daquelas berças do fim do mundo, longe das famílias, longe dos amigos, que o Natal das tebaidas não seria mais labroste que aquele. Ao padre, ninguém lhe mandou cuidados, de longe. O conde recebeu umas palavras já antigas dos pais trazidas por um pastor herói que pediu alvíssaras pelos gelos sofridos e muito se gabou dos perigos afrontados pelos caminhos: incapazes para a jornada, de velhuras e achaques, encomendavam-no muito a Deus e ficavam a rezar por ele.

O padre apreciou o tosco presépio que o pároco havia montado na sacristia, em que, no meio de musgos e ramas revoltas, um S. Jorge de barro escarafunchava com furor num basilisco retorcido, não longe do ponto em que, montados em camelos anafados, os três reis magos vinham prestar preito ao Menino. Falta de bonecos, falta de oleiro, falta de tudo o que não fosse armas naquela terra malfadada... Valesse antes a boa vontade e a imaginação, que S. Jorge não se sentiria muito agravado com a tosquidão da companhia e ainda menos o dragão.

Na véspera de Natal, chegado a casa, tinha recado de convite para a ceia. O Conde reunia Os oficiais e não o quis desamparar na consoada.

Falou-se pouco, na torre. Os Criados iam e vinham funebremente com os frangos corados e os salpicões, ou com os gomis de vinho. Os oficiais da terra talhavam a comida à faca, e pareciam nunca ter visto um garfo. As paredes ressumavam de humidade, apesar da fúria de um fogo revolto no lar que expelia fumo de deitar lágrimas, como se a tristeza não bastasse para as produzir avonde. Ninguém se atrevia a altear a voz. Os oficiais haviam deixado as mulheres em casa, para não desmerecerem da consoada do senhor conde. O padre ansiou por que chegasse a hora da missa do galo, sabendo embora que teria de sofrer a lengalenga da homilia que o pároco preparava há semanas, e que devia ser coisa para uma hora de discurso, bem contada. Assim foi...

Depois, uma eternidade de tempos turvos, com aquele enleio de nuvens escuras e friezas pelos ares. Até que o sol foi querendo mostrar-se, as neves abateram e, um dia, pousaram na muralha os primeiros pássaros.

 

FaIa-se nisto, arribavam os pássaros, traziam o sol atrás com garridices e chilreados e bem poderiam aquentar os corações não foram chegando a S. Gens as notícias, mais e mais toldadas, da iminência de guerra com Espanha e França. As informações eram confusas e contraditórias, entremeavam-se nelas a imaginação e a ignorância dos que as transmitiam, ou os arrobos de optimismo e pessimismo, conformes aos feitios, mas, de dia para dia, a guerra ia parecendo mais inevitável.

Em S. Gens não se soube da resposta altiva que el-Rei

  1. José remeteu aos embaixadores francês e espanhol quando estes o cominaram a fechar os portos portugueses aos navios de Inglaterra. É pena, porque a resposta foi briosa, poética e edificante, com menção da última gota de sangue dos súbditos e da última telha de suas casas. Certo que os meios militares ao dispôr, com o geral descalabro do exército e da frota, abonavam escassamente a tirada do rei, mas também é verdade que a tesura do soberano firmou a decisão de resistir, ficando para depois a questão de saber se havia com quê.

A invasão foi menos expedita que as ameaças. Passou muito tempo, antes que os inimigos destravassem os seus exércitos e passassem a fronteira, contrabandeando a que, em termo cosmopolitas foi chamada "Guerra dos Sete Anos", e que mereceu também a designação nacional de "Guerra Fantástica", por parte de historiadores militares que preferiram qualificá-la pelos desatinos.

À medida que as notícias vinham, de longe em longe, o padre ia-se sobressaltando. Havia um desencontro entre as suas expectativas e os enredos tecidos pela Providência. Não tinha contado com guerras e uma praça raiana era justamente o sítio mais incómodo para aguardar que as hostilidades passassem. E ele não se sentia merecedor de desgraças. Já lhe ia bastando aquele ermamento, no fim do mundo. Tudo o que mais viesse, sobejaria.

Desde o episódio dos lobos e salvo ocasiões protocolares, vinha mantendo uma reserva distante em relação ao conde. Cumprimentos ao de longe, palavras de ocasião e carão sisudo de poucas confianças. Mas tinha-se ido o

Inverno, derreteram-se as neves; com o acaloramento daqueles sinais de guerra vinha a calhar derreter também os gelos na alma. O que estava dito estava dito, o que estava feito     estava feito. Sua Excelência já havia mostrado no governo da praça zelo e competência. A situação de ameaça que se vivia fiava mais fino e exigia respeito.

Fez-se encontrado com o fidalgo, puxou-lhe conversa, muito com pés de lã, como quem não quer a coisa, e foi inculcando que seria talvez a altura de Sua Excelência obter a comutação do castigo que já ia hem comprido. Melhor seria desamparar a praça, cedendo-a a um daqueles mercenários estrangeiros, recrutados a trouxe-mouxe por toda a Europa. Assim alijaria o jovem conde as responsabilidades e preveniria os agravos e maus passadios, que lhe não estavam apropriados.

Mas, às suas preocupações, bruscamente, o conde respondia com as dele, como se não tivesse ouvido uma única palavra da palestra:

- Não tenho canhões de bronze!

E à insistência do padre:

- Faltam-me canhões de bronze!. .

Ao capelão o que menos se lhe dava era serem os canhões de ferro, de bronze, ou mesmo de madeira, que de canhões queria saber tanto como de lagares de azeite. E vá de repetir, sentindo-se conformadamente na pele daquelas personagens bíblicas, pacientes e solenes, que apostrofam sempre três vezes: que a nação era um corpo com sua cabeça e membros e a cabeça desta estava em Lisboa. Avisado andaria, pois, o conde, se despachasse mensageiros a saber o que melhor cumpriria a el-Rei, pois a guerra era negócio muito sério que não sofria o ensimesmamento das forças, antes reclamava o concerto e bom aparelho das mesmas...

Arredado do seu cisma dos canhões, o conde ainda bradou uma ordem para longe, antes de responder:

- As estradas do reino estão francas. Sebastião José, querendo, não lhe faltarão portadores nem caminho para estas bandas.

E já que Sua Paternidade se mostrava tão opulenta de conselhos não pedidos, rogava-lhe que os guardasse bem guardados para a altura em que ele os solicitasse.

E foi dali comandar no terreno uns exercícios de peça, no meio dum estrondeio ensurdecedor, deixando o padre com o aranzel cortado, que ainda prometia muito, em estilo faustoso e garrafal.

É que o conde já estava todo entregue ao alvoroço da guerra. Foram retomadas, em S. Gens as reparações, as benfeitorias, as manobras. E se o padre, agora, lhe queria cirandar mais ao perto e ensejava as ocasiões de trato, o fidalgo, pelo contrário, mostrava-se mais esquivo, e trocava-lhe as voltas.

O padre ia remoendo todas as razões de melindre que já eram sobejas. Mortais, se se tomar em linha de conta a eleição, para confessor do conde daquele prior da freguesia, aéreo e visionário, vezeiro em silabadas no latim, descrente dos antípodas, e produtor de silogismos arrebicados, tão encaracolados como indiscerníveis.

Mas a ameaça de guerra surgia-lhe como uma contravolta imperativa, capaz de obnubilar, ainda que transitoriamente, os agravos e os rancores. Vinha lá o monstro, desinquieto e sanguinário. Os homens, animais de raciocínio, iluminados pelo espírito, haviam de calar as diferenças quando a aventesma se anunciava. Por seu lado, dispunha-se a engolir as ofensas. Em suma: queria era ver-se dali para fora e quanto mais depressa melhor. E se o diabo estivesse disponível, pediria auxílio ao diabo. Os escrúpulos ficariam para depois e estavam previstas práticas de absolvição, no plano religioso - com o competente arrependimento -, ou de justificação, no plano humano - com as adequadas explicações.

Mas não vinham mandados de Lisboa nem as estradas estavam tão desimpedidas como o governador e o padre julgavam. Por todo o reino, Oeiras organizava recrutamentos à má-fila e dois criados do velho conde de Fróis, portadores de notícias, foram catrafilados numa levada em Santarém quando, em roda de basbaques, presenciavam um espectáculo de saltimbancos, com saguis e um urso. De nada lhes valeu declararem-se criados do conde de Fróis, porque ao sargento recrutador o que interessou é que deitavam bom corpo e lombos possantes para mochila e espingarda.

Também o almocreve que o padre, muito à sorrelfa havia mandado com recados e requestas não chegou ao destino. Já próximo de Lisboa temeu-se das rusgas e batidas com que o novel exército de Sebastião José assolava os caminhos. E mais quis ser almocreve remisso, de que daria contas ao Senhor, vinda a altura, do que militar à força, com o corpo

moído e mal seguro. Deu meia volta e adeus encomendas do padre...

Destarte, ia este esperando, esperando em vão, enquanto o conde se fazia mais prestes nos preparativos da guerra. As ruas foram desempedradas, para abafar o impacte de pelouros e granadas, e reforçados os muros que ainda o não estavam, a poder de entulho e blocos de granito de umas tantas casas que pareceu assisado demolir por demasiado próximas Í do caminho de ronda.

E nesta entediante expectativa de notícias restava ao padre reler o "Pão Partido em Pequeninos" que o breviário já o sabia de trás para diante e admoestar a Providência, à semelhança do Rei David: - Ab surge domine! -, por tão mal tratar os que mais lhe deviam ser queridos.

Uma madrugada o padre ouviu rumores na torre e logo a seguir forte tropeada de cavalos a galope. Era o conde que saía, escoltado por um ror de dragões, à luz dos archotes.

- Vai a Miranda tomar ordens - regozijou-se o padre. - Vai pôr-se à disposição...

E esperou todo o dia afora, no alto da torre de menagem, que se anunciasse o pó dos cavaleiros em regresso. O destacamento voltou à noitinha, campinando quatrocentas vacas que o conde havia capturado numa aldeia espanhola. Não tinha ido colher regimento a nenhuma parte, o conde. Tinha antes começado a guerra por sua conta, saqueando um povoado raiano e abrindo as hostilidades.

O padre levava as mãos à cabeça, o que não lhe servia de nada: Só lhe faltava mais aquela, atrevimento tamanho... E tresnoitava, deitando contas à vida. Ao fim e ao cabo, o trato que havia feito com o velho conde era o de acompanhar o moço e de representar a autoridade de pai e bom conselheiro, trazendo-o sempre ao resguardo dos mandamentos de Deus e dos ditames do bom-senso. Mas saíra desairosa a combinação. O jovem conde tomara alforria logo à saída de Lisboa e não perdia ensejo de demonstrar que arrenegava de conselhos e falas mansas. Coração só o tinha para a praça e entendimento para os negócios de Marte. Quanto ao castigo do conde de Oeiras, arrebatara-o, apossara-se dele, e a porfia era ver quem sairia dali mais castigado, se ele se Sebastião José. Coisas de moços, pensava o padre, que já não eram da sua jurisdição. Nem tinha forças para lhe arrimar arrochadas, nem o merecimento condal o permitia, sequer palavra mais áspera. De maneira que considerou perfeito o contrato, desobrigada a sua pessoa, e determinou sair à capucha, pela calada da noite, aliciando para companhia dois escravos pretos do conde. Mais tarde falaria ao arcebispo, comporia as coisas com a casa de Fróis, persuadiria o velho conde a vir, de mão própria, a São Gens, que o caso mais merecia o ascendente do pai que o razoar do eclesiástico. E a paternidade não se exerce por procuração...

Firmava-se nesta resolução, tinha já alguma roupa aconchegada no fundo do baú, quando um estralejar de tiros estourou nas proximidades do forte. Um grupo de milicianos espanhóis, bulhento e maltrapido, veio tirar desforço da presúria do outro dia e meteu-se a flagelar os muros, de longe. Tocaram os sinos, bradaram-se vozes, a tropa acorreu aos adarves e duas arcabuzadas, relampejando pela noite, espantaram a súcia e resolveram o caso.

Mas o padre arrepelou-se todo, considerou os maus encontros, e desistiu de se fazer ao caminho. Melancolicamente, devolveu a roupa branca às gavetas da cómoda...

Por esses dias, resignando-se à espera, tomava tisanas de erva de S. Roberto, para afeiçoar os humores e dedicava-se, de barrete de pano e pantufas de tapete, à elaboração beneditina de um "Diálogo entre tioménedes e Polícrates sobre "as intempéries na alma", ou "A Soberba como espelho multiplicado dos sinais do pecado", que já vinha lavrando desde o Inverno.

Bem podia esperar o padre, que não era tão-só a sanha recrutadora da tropa a tornar incertos os caminhos e o medo dos mensageiros a fazê-los esquivos. A verdade é que no afã reformador do conde de Oeiras não havia lugar para S. Gens, nem a praça contava para qualquer das suas disposições militares. Há mesmo quem defenda que Lippe-Schaunberg veio a Portugal, cumpriu e retirou-se, bem galardoado, sem ter sequer ideia de que aquela fortificação existia. O General curou de Lisboa, Setúbal e, sobretudo, de Elvas e Almeida. Todo o resto ficaria para amanhã, quanto mais S. Gens... A praça não vinha nos mapas, não era citada nas ordens do dia, não tolhia o sono aos estrategos: a bem dizer, S. Gens nunca existiu.

Quando certa manhã chegou um anspeçada, do regimento de Miranda, a trote de mula, alvorotou-se o padre e quis saber se era mensagem, se vinham novas ordens. Mas nada conseguiu apurar de capitães e alferes que sondou insistentemente, à falsa-fé, até concluir que aquela púcara não tinha nabos para dar e que o anspeçada já havia desandado para donde viera com um farnel e uma onça de tabaco: o conde tinha-o recebido sozinho e não dera conta a ninguém da carta que o soldado trazia.

Mas já que o padre não soube, saibamo-lo nós que, autor e leitores, temos esse privilégio:

O anspeçada apresentou-se ao conde e, depois das continências da praxe, bem medidas, que tinha ouvido dizer que aquele comandante não era para graças, estendeu-lhe uma carta lacrada que o nobre abriu e leu em continente.

Era uma mensagem do governador estrangeiro de Miranda que, após alguns reparos tortuosos sobre a abstenção do conde de se apresentar na sede do regimento, que mais não fora para troca de saudações ou tratos de cortesia, lhe ordenava desamparasse a praça, encravasse os canhões que não pudesse transportar, e viesse reforçar a guarnição de Miranda com seus homens e armamento.

- Está bem, fica entregue. - disse o conde ao anspeçada.

- Saiba Vossa Excelência que me foi ordenado que aguardasse resposta.

- Diz que não tem resposta! Antes de regressares passa pela cozinha e não te demores. Vai!

E despediu o militar com um gesto breve.

A sós, acendeu uma vela com a pederneira e queimou a carta. Depois, recolheu as cinzas no cavo da mão e lareira com elas...

À noite, o padre fez-lhe uma espera subtil, e como encontrasse o conde a uma esquina, com rodeios muito cautelosos e palavras falsamente desprevenidas, procurou indagar que provisões eram aquelas vindas de Miranda.

- Ora, não tem dúvida - respondeu o conde numa pressa - coisas de serviço...

Lá se ficou o padre, num desconsolo, de braços caídos, sem outro tino que rumar caminho de casa, maldizendo uma vez mais a hora em que aceitara acompanhar o conde a S. Gens. Diga-se que aquilo era mais uma retórica íntima, um desabafo consigo próprio, maneira de dar despejo à indignação e conforto à soledade, porque, bem vistas as coisas, não tivera nenhuma possibilidade de se furtar à incumbência.

Lembrava-se de quando, um dia, o conde de Fróis o chamara à livraria, coberta de pesadas estantes de pau preto,  onde o jovem já se encontrava, de pé, no vão duma janela.

      - Senhor Padre, - dissera o velho - mais uma vez me vejo obrigado a recorrer à caridade de Vossa Reverência. Há muitos anos que é capelão desta família, viu crescer o meu filho e soube ganhar jus à confiança da autoridade paterna.

Ora basta que este senhor meu filho, em consequência de certos acontecimentos que, desafortunadamente, foram publicados em toda a Lisboa, me vai agora de castigo para S. Gens, devendo à benevolência del-Rei e à bondade divina não estar antes neste momento, a caminho da Índia ou de Mazagão.

Os acontecimentos demonstram que o senhor conde de Fróis ainda não cobrou tino para se reger por si próprio, quanto mais para assessorar o governo duma praça de armas... Mas foi vontade da Providência dar-nos o menor dos males e a ele devemos resignar-nos, tomando no entanto as disposições adequadas a temperá-lo e evitar que dê em pior. Assim, requeiro a Vossa Paternidade que acompanhe o meu filho neste transe e lhe preste os cuidados do seu amparo e conselho, de que se mostra bem necessitado.

O padre engoliu em seco. S. Gens? Ora, S. Gens... em que casa do diabo, em que frialdades ou torridezas ficaria isso? Ali não lhe ocorreu senão responder, com uma grave curvatura de cabeça:

- Vossa Excelência não me faz pedidos. A mim, Vossa Excelência dá ordens...

Mas o jovem conde, muito pálido, dizia sombriamente, lá do seu vão de janela:

- Conformo-me com o serviço del-Rei, meu pai. Não com as punições de Sebastião José. Quanto ao senhor padre...

O conde de Fróis interrompeu o filho com uma forte pancada de bastão na mesa:

- Proíbo-o de designar dessa forma o Ministro do Reino! Atente em que foi poupado à Costa de África ou às privações dum navio. Mas se essa sua ousadia fosse conhecida ninguém lhe evitaria o ergástulo. Quer matar os seus pais de desgosto? Quer?

Agastado, o velho conde de Fróis aduziu razões sobre razões perante o silêncio do filho que o ouviu sem mais interrupção.

O padre suspirava, resignado. Como poderia ele negar o que fosse ao conde de Fróis, seu protector e benemérito? Pois não lhe comia as sopas? Não lhe recebia os emolumentos? Não lhe devia o emprego, no paço, de dois sobrinhos e um afilhado?

Pediu licença para se retirar e foi confortar a condessa, debulhada em lágrimas, de rojo, junto ao oratório, sem saber ao certo se havia de lamentar-se a Deus ou agradecer-lhe.

E assim, da guisa como as coisas foram armadas, para ali estava ele no casarão desconforme, a dormir em lençóis de linho áspero, sobre colchão de folhelho duro, assistido pelos modos secos da Brízeda, desconsiderado pelo jovem governador, a dobat a sua incomodidade, farto de tristezas e desconfortos, farto de frios e torreiras, farto do cheiro da pólvora e da gritaria castrense. E, demais a mais, a guerra, que não estava prevista nos seus planos, já de si atribulados, e a insistência do conde em firmar-se naquela lonjura... Remoía- o a dúvida sobre as ordens que trouxera o anspeçada de Miranda. Mouro na costa? Andaria já a guerra próxima?

Em desespero de causa, decidiu, para a tarde seguinte, uma aproximação discreta ao pároco, com um qualquer pretexto: a organização de uma novena, por exemplo. "In tempore belli", justificava-se a preceito. Até então tinha tratado o padre sempre por cima da burra, com altaneria: pároco de aldeia, prior do campo, de espírito emaranhado e maneiras maninhas, passasse de largo. Contudo, pensando melhor, sempre era o confessor do conde...

Longe dele, abrenúncio, pensar sequer em desaferrolhar os segredos da confissão. Mas, pelo contacto com o governador, talvez o pároco possuísse alguma informação, extrínseca ao foro eclesiástico, que lhe desse indicações sobre o que iria ser de todos. E lá se dispôs ao sacrifício de procurar o colega e gabar-lhe o passal e a capoeira, no que considerou uma hábil manobra táctica.

 

O pároco não coube em si de contente com o interesse manifestado pelo colega, que sempre era um citadino, com privança de fidalgos e purpurados e acesso a finuras de maneiras e subtilezas do poder. Saltitava por entre os canteiros. extasiado. mostra aqui, aponta acolá, gaba essas ervilhas, aquelas abóboras, num grande frenesi, que espantava o padre-mestre com aquela flexibilidade de gestos e vigor nas articulações já impróprios para tanta idade. E sobre isso, incómodos para o efeito que o arrastava ali, que o homem não parava quieto e não deixava assentar a ponderada conversação que trazia ensejada.

Só depois de gabar três coelhos gigantes, de orelhame caído, em que o pároco fazia muito garbo, e de espreitar atentamente a última ninhada de marrecos, é que o pároco lhe rogou se sentasse num toro de madeira e simulou escutar.

Mas logo entrava numa elaborada explicação sobre a vedação dos canteiros naquela expedita filigrana de tabuinhas cruzadas que ali estava à vista. É que o cão - chamava-se Tejo - arremetia sempre a ladrar contra quem passava no caminho e, animal irracional -, benzesse-o Deus que os animais também eram Suas criaturas - não tomava tento nos legumes, revolvendo terra e verduras, a ponto de deixar em fanicos o resultado do aturado labor e carinhos do pároco. De maneira que ele, com infinita paciência, fora edificando aquelas sebezinhas, com tabuazinhas aplainadas, deixando carreiros entre elas para que o animal pudesse dar despejo aos seus instintos de bom guardador sem lesar a obra do dono. Visse agora Sua Reverência se não tinha sido boa ideia porque...

O capelão já todo se torcia, enfastiado daquelas ponderações. Mentalmente remeteu o outro para o diabo, mai-la sua horta, mai-lo seu cão, mai-lo seu palanfrório, mas logo se arrependeu e fez um sinal da cruz, também mental, revogatório do dislate. E aproveitou uma ligeira pausa, enquanto o pároco, entre duas frases, limpava os beiços, para indagar das suas ovelhas, do povo dali, dos seus confessados.

O velho sacudiu a cabeça, estremunhado pelo novo universo de considerações que lhe era proposto, levantou uma mão ao alto, fixou o capelão com profunda tristeza, chegou-se-lhe mais ao perto e ciciou, com indignação:

- Uma desgraça, uma devassidão...

Meio curioso, meio condescendente, o padre apreendeu o alinhamento de pecados mortais do outro, que extravasava torrencialmente a clássica enumeração das faltas canónicas e inquinava vastas zonas de actividade humana que a olhos menos precavidos e desconfiados se poderiam figurar inocentes.

Do ponto de vista do pároco, S. Gens era uma Cápua, uma Babilónia, uma Síbaris, uma Gomorra. E aí vinha a guerra, mandada pelo Senhor, a purificar a ribalderia...

Sorrindo-se por dentro, o padre considerou a pacata população de S. Gens, de camponeses boçais, obnóxios, respeitadores e humildes, ou de magalas agora derreiados pelos serviços, ao fim do dia quase sem forças para jogar o dominó, e deu-lhe para pensar o que não diria o pároco se alguma vez tomasse conhecimento com Odivelas, Lisboa, Caxias ou Belém...

- Difícil é ser-se pastor das almas... - comentou solenemente, aparentando uma fácies severa e profunda – e grave responsabilidade Deus concedeu ao senhor pároco, dando-lhe o cargo de trazer esta ao redil. De mais, é sabido, em tempo de guerra extremam-se as paixões... E ao que consta, há agora grandes novidades...

O padre resolvera meter por um atalho. A paciência grande é a dos beneditinos ou a dos santos. Ele não era nem uma coisa nem outra, e o certo é que as deambulações verbais do prior, mais ou menos arbitrárias, não lhe mereciam o jogo subtilíssimo de pedrinha branca, pedrinha preta, duma conversa de salão. Deu, pois, uma guinada súbita, e aproximou-se rapidamente do ponto, que o interlocutor não merecia grande desperdício de engenho.

- Novidades? - sobressaltou-se o pároco, olhando de soslaio, com desconfiança, não fosse o colega furtar-lhe primazias na vila.

- Aquele anspeçada que veio de Miranda. Diz que trazia ordens...

- Ah! eu conheci-lhe os pais e os avós... gente de fé. Mas sabe Vossa Reverência qual vai ser a grande novidade nesta terra?

Que não, que não sabia, sobressaltou-se o padre, apurando o ouvido.

- Pois vai ser o dia da ira, dies irae, dies illa, a desabar sobre S. Gens em punição de tanta protérvia e aleivosia.

Imaginasse-se que na semana passada...

E o pároco desfiava argueirices, pequeníssimos incidentes, intrigalhices de beatas, desrespeito por jejuns e penitências, e reclamava para ali o Santo Ofício, o bordão inquisitório, como ele dizia. Bordão porque dava amparo às almas, bordão porque fueirava nos demónios, bordão porque...

- E o conde, que tal o conde? - interrompeu o padre, a despropósito, desvendando o desespero de causa.

O conde, como?, que podia Sua Execelncia fazer, se nem era familiar da Inquisição, nem lhe competia a defesa das almas, antes a solidez da praça, a qual, na circunstância, se poderia bem comparar a...

Já anoitecia quando o padre largou o outro, sem ter sequer tratado da novena que pretensamente o levara ao passal. Vinha irritado, fora de si, capaz de comer os fígados a qualquer alarve que se atrevesse a aparecer-lhe na frente. Batia forte com a bengala no chão, ávido de desforço em lombos mais macios, e desferiu mesmo uma pancada contra um rafeiro lanzudo que viera farejar-lhe as botas. Não tinha apurado nada. Latim perdido. Arrenegou da sua falta de senso diplomático e apostrofou o pároco entre dentes:

Refinadíssima cavalgadura! Velhaco a armar em santo, parvo a armar em velhaco. Que o levasse Pero Botelho para o caldeirão mais fundo e lhe calasse as galimatias com chumbo derretido...

Ao serão, o "Diálogo entre Dioménides e Polícrates à luz da vela de cebo, eriçou-se de atiçamentos e asperezas, descuidando as personagens aquela compostura e amenidade que eram seu ordinário e atributo de toda a prática filosófica entre cavalheiros de bom nascimento. Depois de ter lançado um rancoroso "... deixe-se lá vossa mercê de lérias" é que o padre atentou em que o diálogo já extravasava do tom irónico e roçava uma má-criação muito ajustada ao seu agastamento, mas inesperada e pouco curial na pessoa dos dialogantes.

E vá de passar um grande risco cruzado sobre essa folha, amarrotando-a logo depois, e privando-nos assim da oportunidade de a conhecermos.

Sentou-se na cama e começou a descalçar-se. Mais uma noite mal dormida iria ser. E então, contas deitadas à vida e à sua situação dos últimos meses, retornou a evidência desconsoladora e pungente:

Estava só e abandonado. Era um homem sozinho... Só então se lembrou de Deus e arrastou-se para o genuflexório.

Fique-se, pois, o padre, apoquentado a rezar, fiquem-se também as sentinelas, de cem em cem passos nos caminhos de ronda, fiquem-se as muralhas e os campos adormecidos, fiquem-se as cigarras e pássaros nocturnos em ritmadas manifestações e vamos ver o que fazia o conde, ainda de luz acesa, lá na torre de menagem, que lhe demos atenção de somenos, até esta parte.

Sentado à larga mesa de pinho, alumiado por uma serpentina de prata, cabeleira e sobreveste atiradas para um banco, o conde pensava, de mão pousada sob o queixo. Na mesa, muito encardido, um exemplar do panfleto que o duque de Sarriá havia feito distribuir, anunciando aos portugueses que vinha libertá-los do jugo dos hereges. O papel tinha chegado essa manhã, e viera das lonjuras de Montalegre, de mão de camponês para mão de camponês. Aos poucos intermediários capazes de o soletrar causara ora apreensão, ora estupefacção, ora gáudio.

Recebendo-o, o conde não tinha resistido a uma forte gargalhada, que ainda mais ampliou e fez homérica, para destruir a sisudez do capitão que lhe entregou a mensagem.

- Boa guerra, senhor capitão - havia dito, entre frouxos de riso, - que el-rei de Espanha, desta vez, manda-nos cómicos...

Há pouco, na paz do serão, relera o panfleto, procurar deslindar entrelinhas e sentidos ocultos. Em vão. O relambório era irremediavelmente tolo e definitivamente ineficaz. Se Sarriá fosse como militar o que prometia como panfletário, bem iria a guerra para o partido de Portugal.

Arrumado este problema, atentou o conde em outros três:

O primeiro era o da provável retaliação do comandante de Miranda.

Podia ele enviar novos recados ou mandá-lo deter por um oficial de mais alta patente, ou, até comparecer em pessoa para restaurar a vassalagem. Nesta questão, foi o conde rápido a decidir: quem quer que viesse de Miranda com ordens seria preso à porta de armas e levado para uma cela fosse qual fosse o grau militar ou a condição. Tinha o cargo de governar aquela praça e só aceitaria mando de el-rei, ou de Sebastião José, dispondo em nome do soberano.

Já a segunda dúvida se lhe afigurava de mais arrevezada ponderação: Devia manter ou não praticável a velha porta da traição, com o seu arco ogival encastoado na muralha vetusta de D. Diniz? Por um lado, a porta parecia-lhe melindrosa, vulnerável à artilharia, capaz de ir abaixo em estilhas a um bom enfiamento de tiro; por outro lado, precisava daquela porta para serventia de surtidas e respiradouro do cerco. Deliberou enfim disfarçá-la levantando-lhe em frente um espaldão de terra, a alguma distância. E como o disfarce não fosse resguardo suficiente, que naquela região da raia os linguareiros haviam de ser mais que muitos, determinou reforço de paredes, escoras de pau e um contraforte de alvenaria, entremeio dos dois batentes.

A terceira preocupação tinha a haver com leituras recentes do conde. Na livraria bolorenta do seu antecessor, mais frequentada de bichezas regaladas que de dedos humanos; entre muito tomo esboroado, massudo e edificante, dedicado a exercícios espirituais ou a luminosas hagiografias, havia o conde topado com o De bello Galico, que lhe passou a fazer companhia ao deitar. Se o português do conde não resplandecia, o latim, então, era-lhe vesgo e misérrimo. Mas esforçou-se, beneditinamente, frase após frase, construção após construção, que, ao menos a camaradagem de armas justificava aquela estafa em direcção a César, servindo-lhe de bordões um dilatado dicionário e o Método do P.e António de Figueiredo.

Repetidos golpes de dicionário, a evocação do latim-latão da infância em que surgia como pontificante o padre-mestre, e um empenho porfiado, deram a conhecer ao jovem conde os trabalhos do cerco de Alésia, no seguimento do lugar que rezava: "Ipsum erat oppidum Alesia in colle summo admodum edito loco ut nisi obsidione expugnari non posse videretur".

Mas as defesas edificadas por César dispunham algumas obras, perversas e eficazes, que faziam emergir interrogações a um fidalgo bem formado. César havia rodeado as paliçadas do sítio de covas-de-lobo, com espinhos de pau e estrepes de ferro barbelado, escondidos sob a terra. Logo ao conde ocorreu farpear as imediações de S. Gens com subtis engenhos perfurantes. Desgastadas pelo sobe-e-desce, pula-e-tem, cai-não-cai do Barroso, rapadas dos caminhos, as botas francesas e espanholas vinham prontas a um trespasse fulminante. Bem podia o ferreiro aplicar-se no fabrico de puas, pelos próximos dias... questão de martelar... Mas se é certo que o método se mostrava eficiente, historicamente comprovado, apresentar-se-ia ele lícito, à face do direito natural e da justiça divina? E seria leal, próprio de cavalheiros?

A verdade é que César o havia utilizado contra gente bárbara, tosca e incivil... e o conde havia de se confrontar com nações civilizadas e, sobretudo, cristãs... Seria justo e curial?

E esta hesitação, acrescida de umas complicações com a versão de frases latinas mais arrebicadas, induziram o conde na quarta ordem dos seus problemas: - o padre.

Numa larga folha pautada em que, minuciosamente dispunha as tarefas quotidianas, o conde anotou, com bonomia, fazendo ranger a pena de pato, o vigésimo ou vigésimo primeiro item da sua lista: Item, procurar o senhor capelão; Alésia; significado de nudiustertius, etc.

O conde, com efeito não andava tão distraído do padre como se poderia pensar, julgando por aquela aparente frieza e indiferença. Das janelas da torre, de onde se sentia sobranceiro, como um deus dominando de cima as minudências dos homens, bastas vezes o conde lhe acompanhava a figura negra, a espairecer pelas ruas, a entrar ou a sair daqui e dali ou, lá ao longe, pousada quietamente à janela.

Ora a guerra aproximava-se. Todas as quezilias e cizânias estariam a mais. Cumpriria antes firmar apoios e solidariedades que espalhar ódios e má-vontade. Era verdade que sempre tinha convidado o padre para as ocasiões protocolares azadas, nunca lhe tinha faltado com os emolumentos, bem arredondados, havia-se informado da sua saúde, e manifestava-lhe, encontrando-o, o respeito devido, quantunisatis. Mas aquela reserva, aquela proscrição do homem, poderiam porventura já ser dispensadas, assim tivesse ele aprendido as lições que, de tão repetidas, entrariam decerto no mais desatento.

O padre viera de lá muito investido de dignidade e de arrogância, conferidas pela sua condição de eclesiástico, pelo ascendente de preceptor e pela confiança do conde pai. Nos primeiros tempos, não perdera ensejo de se mostrar metediço e abelhudo, insistindo e abusando, ainda quando não encontrava receptividade. Queria fiscalizar, queria informar, queria dispôr, queria mandar... Dando-lhe o conde vez -- e ele era de feitio que, estendendo- lhe a mão, tratava logo de tomar o pé! - tê-lo-ia a cantar de alto, a dar ordens a torto e a direito, a armar-se em juiz de todas as pendências, a prevalecer-se da sua convivência, largamente extravasando do foro eclesiástico para o familiar, o que seria o menos, ou mesmo para o militar, o que seria o mais.

Antes do episódio dos lobos, não perdia ocasião de vir muito de mansinho com alvitres, com sugestões, sempre a dar rumo do que o conde deveria ou não fazer.

Sem prescindir de opinar quando a oportunidade lhe era propícia, sobre a matéria castrense, talvez no convencimento ingénuo de que o ofício religioso lhe comunicava algo da omnisciência de Deus, a feição das suas conversas entendia-se mais com protocolos, visitas, namoros e destinos adocicados do que com o rijo quotidiano duma praça de armas.

Eram umas vagas primas de Bragança, que evocava mimosamente, como se descrevesse uma daquelas pinturas domésticas, afagadas pelos rosas e azuis claros; era a grade do convento de Santa Eulália, perdido lá para umas alturas, onde, enquanto se não desfaziam tramoias e tramoias familiares, professava uma outra parente que lembrava com mistério e langor; era a nobre família dos Melos de Miranda cristãos-velhos, de sangue puríssimo e avultadas rendas, cujas meninas suspirariam, decerto, atrás das grades das janelas... E eram outras sugestões, um tanto inculcadeiras, que o conde já nem recordava.

O padre não queria perceber que, nesta volta da vida, o conde já se tinha bem compensado de envolvimentos femininos, que lhe haviam sobejado em Lisboa. Mais tarde lá voltaria. De momento, era-lhe enfadonho e despiciendo ouvir falar nas suas parentas de Bragança, quando o que lhe interessava era o manejo de peças em S. Gens.

De maneira que os tentames do padre, afrontando-lhe, não raro, a paciência, resultavam sempre frustres, maljeitosos e inábeis. O conde pendia para que não convinham ao padre os negócios militares: faziam-no bocejar as manobras, os exercícios, os treinos; sentia-se incapacitado de dar alvitres úteis, de influir nos tratos. Então visava arredar a atenção do fidalgo para as matérias em que julgava bom oficial, que eram as das casamentarias e namoros. Autoridade e bom conselho que lhe minguavam nas armas, queria o padre recuperá-las, supervisando os galanteios.

Era destarte, sem tirar nem pôr, que o conde interpretava aquela tineta do padre de o arredar da praça, e distrair dos seus deveres e compromissos. Interpretava bem, interpretava mal? O leitor o dirá. Mas convém ir-se lembrando de que aquele padre, ao invés de muito sacerdote caceteiro e brigão do seu tempo, o que mais prezava era o sossego e a pacificação. Guerreias, nem cheirá-las. Tinha em verdade muito medo, sentimento tão arredado do espírito do conde, que nem o tomava em linha de conta, nas suas cogitações.

Ponha-se também o medo e a revelia aos sobressaltos na lista, e ainda assim, talvez o ânimo do padre não esteja definitivamente recortado, o que só demonstra que ele era afinal um homem como os outros, que, na sua atávica aproximação aos deuses começaram por se apoderar da imponderabilidade dos propósitos. Qualquer apreciação sobre um homem, desde que se não seja deus - é o caso do autor que suspeita de que, neste particular também tem a cumplicidade do leitor – vem sempre frouxa, contingente e incompleta. Serve para se ir vivendo. No caso dos autores, para se ir escrevendo. Mas isto de meter um homem dentro de um conceito, tem que se lhe diga. É querer vazar o mar à colherada, como queria o catraio da lenda agostiniana...

Fosse como fosse, o conde assentou em que já era tempo de o padre se encontrar domado. O método, no seu parecer, havia sido radical e eficaz, e não diferia dos preceitos adoptados pelos gentios para a domesticação das bestas-feras. Prisão no escuro, fome aturada, boas cargas de fueirada até chegar o momento da tintura de arnica e dos mimos, com o bicho rendido a vir comer à mão, grato e amorável. Adaptada às relações humanas a prática de amaciamento das onças - no pressuposto de que os homens, para mais sendo padres e de estudos, são bons entendedores, e dispensam a fome da carne e as fueiradas no lombo, bastando-lhes a simbólica que as representa, - assentou o conde em que seria a altura de dar conchego ao paciente. Viesse ele ao sorrir do domador, embora com o cacete bem à vista...

Consultá-lo-ia, pois, sobre aquela dúvida ética da utiliza ção de puas de ferro e pedir-lhe-ia ajuda nos manquejos do latinório, dando-lhe a necessária confiança para um restabelecimento de relações.

E carregado com um volume de César e os dois dicionários, o conde pegando na serpentina, encaminhou-se ao leito, bradando pelo criado...

Foi-se o conde armado de livros para o seu tálamo de baldaquinos, e ficamos nós com esta dúvida, que talvez ande por aí a adejar já há algum tempo: como era, afinal, este conde? Não falo dos propósitos e das motivações mais fundas, porque aí, há que ser agnóstico, na mesma ordem de ideias que já apreciaram o padre nesse capítulo. Falo do resto: do carácter moral, do ente físico. Há alguém que queira informar-se? Pois dou também o meu palpite, como o vejo eu:

O conde possuía a qualidade raríssima de saber compassar e seriar os assuntos de modo a ocupar-se de cada um por sua vez e pela ordem devida. Já se contou como escrevia laboriosamente ao Ministro do Reino dando conta, ordenadamente, de miuçalhas militares; como planeava com facilidade, sistematicamente, os reparos e acertos a promover nas fortificações; como enristava lanças contra o deus-dará e a moleza da tropa; como sabia lidar com contabilidades, facturas e guias; como anotava criteriosamente, ao fim do dia, as matérias pendentes e as sopesava uma a uma, sem interferências das que estivessem a mais; e como na análise de cada um dos itens, pesava os prós e os contras para emergir numa decisão rigorosa e sintética. E, sobretudo, como sabia dar tempo ao tempo, deixando para colher mais tarde o que só tarde compareceria.

Já houve ocasião de lhe apreciar a picardia que não lhe furtava o corpo a zaragatas sangrentas nas ruas de Lisboa, e, bem assim, a perseverança, a teimosia, a toleima e a arrogância, que puseram toda aquela praça num virote.

Como era ele, então, de figura? Não era grande coisa e, em boa verdade, sobrava muito de carácter ao que tinha de corpo.

Sobre o baixo, escanzelado, com o ombro esquerdo ligeiramente descaído, em consequência duma justa de touros infeliz que Lhe amassou costelas e retorceu a clavícula, parecia ligeiramente disforme, com os braços de comprimento desmesurado e pernas muito esguias, tortas e nodosas. O olhar era mortiço, cínzeo, parado, sonolento. A face magra comprimia-se abaixo das fontes, para recuperar espaço na zona da testa, larga e protuberante, a contrastar com o afunilamento apertado do queixo. Não havia peruca que lhe servisse, antes se dispunham tortas e indiscretas logo ao primeiro uso, deixando entrever, por debaixo, os cabelos cortados cerce, finos e arruivados.

A boca traçava-lhe a cara, quase de extremo a extremo, semelhando para os menos prevenidos um sorriso que as mais das vezes não era de rir, apenas a conformação erradia dos beiços finos.

Com a chegada a S. Gens abandonara tafularias e brincos de algibebe. Desprezou sinais e cosméticos no rosto, deixou o "lorgnon" em qualquer lado, substituiu o quitó de corte por um sabre de cavalaria, redondo e pesado. Vestia invariavelmente de cinzento, sem rendas nem distintivos: tecidos do reino, comuns e austeros, abolidas as sedas e os veludilhos. Os alamares, galonas, bofes, e enfeites garridos deixava-os para os oficiais que, quanto mais gebos, pesados e brutamontes, tanto mais disputavam os assomos coloridos de faceirice. Assim se distinguia iniludivelmente e sobressaía de entre os seus subalternos, avultando pela sobriedade do trajo.

A voz saía-lhe roufenha, pesada, arrastada, quando não hesitante. Mas a sua era sempre, em definitivo, a última palavra. Quem se iludisse com a modéstia da farpela, a insignificância do porte ou o abafado da voz, cedo se desiludia e não sem preço...

Dormia pouco. Ao serão, trabalhava até tarde no seu gabinete, e depois ainda lia, noite dentro. Muito cedo, já assomava à janela de mainel da torre e logo descia ao adro para a formatura da alvorada a que nunca faltava.

Quanto ao padre, umas vezes assistia à alvorada, outras não. À medida que se distanciava do conde, ia-se deixando dormir até mais tarde, e enfiava a cabeça entre os lençóis quando o giro militar irrompia, ao toque dos clarins. Eram nenhumas as distracções em S. Gens, mas, vendo-se desobrigado da prática social, mais queria uma entretenga com Morfeu que aquele espectáculo sempre igual de tropa formada, gritos, vozes, patadas no solo, toques de caixa, leitura de ordens.

Já o Sol ia avançado quando o padre, naquela manhã de Maio, deu uns passos pela esplanada, sombreada por um caramanchão, e rodeada ainda por muros velhos da antiga cidadela, que dominavam um troço de muralha nova.

Tinha lavrado em apoquentações amargas na primeira espertina da noite: se não se precatasse seria cada vez mais um homem isolado, sem préstimo, arredado para o lado. O conde dava-lhe tanta atenção como a qualquer azêmola da coudelaria, o pároco mostrava-se lunático e tatebitate, a uma légua dos negócios importantes do mundo, o engenheiro de Lisboa, regressara a Penates, e os outros tinha-os desprezado o padre por considerá-los fora do alcance do seu verbo, indignos de conversação, paus-mandados e verbos de encher, incapazes de influir onde fosse nas decisões que importavam. Mudar de processos, considerara o padre. Mudar de processos. Se não vivo, sobrevivo, se não tenho cão, caço com gato. Arrumado é que não fico. Não me dão qualquer importância? Ganhá-la-ei com passes de argúcia. Estou para um canto? Voltar-me-ei para o adro...

Eu agora simplifiquei. Os projectos do padre não eram assim tão bem pensados. Poupei o leitor a muitas considerações laterais e despiciendas, a muito beco sem saída, a muita congeminação nebulosa e encaracolada, a muitos atalhos trabalhosos e ínvios. E a alguma confusão, sobretudo. Apurei de um molho de sentimentos uma decantação de razões basto funcional para o desenrolar da história e para o entendimento da personagem. Poupei espaço, poupei tempo, talvez tivesse poupado também a verdade. Para correeção, basta que o leitor fique sabendo que as coisas, sendo também assim, não seriam exactamente assim, e se o diabo não é tão mau como o pintam, também este capelão não era precisamente o Maquiavel de sacristia que o parágrafo antecedente deixa crer. Ponha-se-lhe pois um grannum salis, vá de grãozinho de sal, e o padre melhor apercebido na sua taralhouquice de homem...

Vem, pois, ele, de bengala debaixo do braço, pelo caramanchão afora até topar a primeira sentinela. Se fora ontem, o padre nem atentara no lapuz carregado de cartucheiras, arma ao ombro, que ali fazia pacientemente os seus cem passos: deambularia de largo, rosnaria um "... com Deus" quase inaudível e seguiria o seu caminho.

Mas fez questão de parar um pouco, enredar conversa. O outro desbarretou-se, muito humilde, de olhos no chão:

- Então, António Manuel, e a família?

- António Miguel, saiba Vossa Reverendíssima que é António Miguel, um servo de Vossa Reverendíssima...

- A família vai bem?

- Saiba Vossa Reverendíssima que sim, ou seja, menos mal, com licença de Vossa Reverendíssima...

- Prezo muito, prezo muito - atalhou o padre. - Então e esses espanhóis, há ânimo para os receber?

- Nas cartucheiras há ração para mais de vinte e enfiados na baioneta cabem mais três, fora os que forem derrubados a murro que o punho também é arma - riu-se o jagodes.

- Valentes assim é que se querem - observou o capelão - espertos e valentes...

E, deixando o homem a casquinar, afastou-se mais para a beira do muro. Vinha dos campos uma brisa leve, olorosa, mais tépida que fria. O padre, homem de cidade, ainda se comovia com os vezos da natureza: ou para a verberar quando os nevões e os frios abafavam a terra e a vila, ou para louvar a Deus quando como agora, numa paz profunda, levemente traçada pelos riscos dos besouros e embalada pelo chocalhar de alguma rez ao longe, estendia até aos horizontes penedosos um presépio vivo, colorido, gracioso e tranquilo. Por entre a verdura dos lameiros, perto dos animais, distinguia-se uma que outra tonalidade vermelha de uma farda: eram os soldados que escoltavam a pastorícia, não fosse arremeter a milícia de Espanha. E lembravam a premência da guerra na paisagem que irradiava a paz do Senhor...

- Então, meu padre, admirando os verdes campos? Aguardo agora um elegante soneto que esta paisagem e esse êxtase não merecem menos...

Muito direito, de mãos atrás das costas, o conde sorria, a seu lado. O padre, num sobressalto, esboçou uma curta vénia i e procurou encontrar resposta à altura.

- Os tempos, meu senhor, são mais de alexandrinos i épicos que de sonetos bucólicos. Infelizmente, nem para uns nem para outros, eu...

Mas o conde, conversando com afabilidade tomava-o pelo braço e passeava agora com ele, ombro com ombro, ao longo do parapeito:

- Andava justamente à procura de Vossa Paternidade. Assaltam-me umas dúvidas que quero deixar ao seu alto critério e aguda sensatez...

O padre não caía em si de espanto. Após meses de desprezo e ostracismo, o outro dava-lhe conversa de sala, com termos escolhidos, como se retomasse uma prática ordinária deixada ontem a meio... Havia este senhor conde de se mostrar sempre imprevisível?

E durante meia hora, antes de o conde entrar nas dúvidas sobre o latim de César, apontadas num papelucho que trazia no bolso, os dois homens esmiuçaram a questão da licitude dos estrepes escondidos contra calçado cristão.

Acabaram por concluir que sim, que seria lícito, tomando em linha de conta que ali se defendia terra nossa, e que a primeira deslealdade que havia de legitimar todas as outras era a entrada furtiva pelas raias portuguesas das hordas inimigas sem contar com a violação do Pacto de Família. Aliás o caso vinha abonado por ilustres exemplos da História. Pois não havia NunÁlvares, em Aljubarrota, mandado escavar covas-de-lobo e construir armadilhas, ocultas, para engano e desgraça dos ginetes de Castela? De resto, nem as Escrituras nem os Doutores Sagrados desautorizavam o uso de tal processo, que o padre visse, de momento, que o caso requeria mais demorada consulta. É certo que o Concílio de Latrão havia proíbido em tempos o uso de bestas entre Cristãos, por demasiado mortíferas. Mas a verdade é que os próprios exércitos papais as usavam e, para mais, embebidas de heléboro e outras peçonhas letais. De maneira que...

Diga-se que o padre não estava seguro de que o Vaticano alguma vez tivesse utilizado os meios evocados. Trouxe o exemplo para preencher a conversação e para lisongear a ideia do conde, cobrindo-a com o beneplácito eclesiástico. Já que o outro lhe estendia as boas graças, não considerava oportuno nem avisado estar agora a contrariá-lo. Por feitio, impunha-se-lhe, sobremaneira, a preservação do bom ambiente e o reganho da confiança do fidalgo. E com a bênção das puas de ferro, abençoou também o padre a boa disposição do nobre naquela manhã.

Com infinita paciência, sentado numa laje alta, desfez as dúvidas linguísticas apontadas pelo conde, algumas denotadoras de grande ingenuidade ou lacunas gramaticais de palmatória.

Importa agora dizer como era este padre? Penso que não, que vai ele muito aviado com o feitio que lhe foi conferido e não carece de mais acrescentos. Padres é o que não falta na literatura portuguesa. São mesmo de longe muito mais abundantes que os condes, de modo que posso considerar a imaginação do leitor suficientemente habilitada a compor este sacerdote, no físico e demais atributos aparentes. Basta que era cinquentão, baixo e largo.

E, retomando o fio, - que a interrupção aproveitou um instante em que o étimo e a declinação de nudiu. stertlu. s foram ali esmiuçados, - ouve-se o padre perguntar:

- Então, senhor conde, e como vai isto de guerra? Não pensa Vossa Excelência que se firmará a paz, que os nossos augustos soberanos se entenderão?

O conde riu da ansiedade e deu pormenores das poucas informações que tinha. O exército de Sarriá havia já entrado em Portugal e andava agora aos baldões, pelas terras do Barroso, ou talvez mais perto. Tinha sofrido dois revezes em escaramuças, para as bandas de Montalegre, mas vinha aí, de roldão, pelo país afora...

Quanto à paz, dependia ela de mais reis que o nosso e o de Espanha juntos. Fizesse-se primeiro a guerra, depois logo se veria...

O padre remexeu com a bengala numas ervas secas, remirou a paisagem, pigarreou e adiantou, enfim, timidamente:

- Lástima é estar Vossa Excelência remetido para esta lonjura que não dá brilho nem glória, terra de primitivos e canhestros, quando merecia antes um posto de honra conforme à sua condição e nascimento.

- Estou castigado, senhor padre, e os castigos são para se cumprirem...

O padre trazia outra pergunta preordenada, à espera da receptividade do conde. Pareceu-lhe ser então a altura de a colocar, muito distraidamente, como quem não quer a coisa:

- Vale então dizer que de Lisboa não vem nada, não há ordens? Nem de Miranda?

- Não - devolveu o conde secamente. E levantou-se. O padre acompanhou-o, respeitosamente até à porta da torre de menagem. No caminho, houve frases curtas, descosidas, sobre banalidades. À volta, pelo terreiro, considerou que tinha ido demasiado longe e importunado o nobre com perguntas que lhe não convinham. Agastado com a sua irreparável falta de tacto e esperteza, que logo tinha feito recolher o conde à reserva habitual, quando ele se mostrava aberto e disposto à conversa, o padre seguiu caminho, pronto a empenhar-se na sua angariação de boas vontades. Aquele assomo do conde teria sido, porventura, sol de pouca dura, logo em má hora escondido. Estulto seria se, como um cachorro reconhecido, de rabito a dar e dar, esquecesse os agravos e mandasse às malvas a sua safra de popularidade.

E parou junto de mais soldados, inquiriu de assuntos familiares, teve ditos sobre a guerra e sobre a paz, fez sala no tugúrio fumarento de um velho tísico, e foi, de novo, visitar o pároco que dessa vez não encontrou por andar à caça, segundo lhe disseram.

 

Uns dias depois, seguia o padre, bem dormida a sesta pela rua grande da vila e notou sinais de alarme em volta. Havia grupos, agitação, gesticulações. À porta da igreja, uma mó de gente falava alto, em grande alvoroto. O passo das sentinelas, lá nos caminhos de ronda, mostrava-se tenso, enervado. Que seria, que não seria, aproximava-se o padre já com a suspeita de caso. E havia caso: Uns pastores tinham vindo dizer que tropas estrangeiras se desenrodilhavam por todo o lado, enxames e enxames delas com canhões e muitos armões e carros. E se uns garantiam que ainda marchavam da banda de Espanha, outros afiançavam que já dispunham posições em volta de Miranda. Os mensageiros tinham sido guardados na torre, pelo conde, que não queria faladuras mas a notícia espalhava-se como fogo em palha: atiravam-se números de tropas, relatavam-se tropelias e desacatos, descreviam- se armamento e fardas, enumeravam-se fogaréus e devastações. O padre viu-se rodeado de campónios assustados, que lhe pegavam na batina, pedindo a bênção, e deu-se conta de que o pároco se paramentava para uma missa extraordinária.

- Já cá faltava. Temo-la armada! - arrepelava-se o padre. - Temos espanholada...

Um soldado, correndo por entre o populacho, cotovelada para aqui, arreda para além, veio postar-se diante do padre, em sentido:

- O senhor governador convoca Vossa Reverência para um conselho. - E, baixo: - Diz que os espanhóis estão a cercar Miranda...

O padre apressou-se atrás do homem. À uma, sentia-se apreensivo, com o estômago apertado, por aquela contingência tão rude; à outra, via-se lisongeado pela decisão do conde de o fazer comparte das grandes decisões. E o coração tropeava-lhe forte no peito...

No salão da torre, em volta da mesa, os três oficiais saudaram-no respeitosamente, e mantiveram-se por momentos em silêncio. Um deles era o capitão de dragões, antigo fâmulo da casa do conde que o escoltara para S. Gens: muito alto, pálido, face glabra, gestos miúdos e compostura de mordomo. De vez em quando, por afectação, tossicava uma tossesinha seca, pretexto para levar à boca o lenço de cambraia. Os outros dois, veteranos da praça, eram o capitão de infantaria, homenzarrão de vasto arcaboiço, florescente bigodeira grisalha, casaca coberta de enfeites, cabeleira fora de moda, mal empoada, e o tenente, avelhentado, largo e sonolento, com uma pronúncia tão cerrada que o padre mal o conseguia entender. Era o Estado-maior de S. Gens, ali presente, cheio de dignidade, para ajudar a graves decisões...

Passados os primeiros instantes de reserva motivada pela presença do padre, homem de respeito, a conversação saltou a propósito do cachimbo de louça esguio e comprido que o capitão lisboeta exibia, depois de ter recusado, com um gestozinho encolhido, a caixa de rapé que circulava pela mesa.

- O tabaco cá para mim, - aventou o capitão da praça, com um grande vozeirão - há de tomar-se picadinho, ao natural. Queimado não serve, não alcanço, percebe Vossa Senhoria, não alcanço...

- Pois é, - continuava o tenente - com o devido respeito, meu capitão, a mim também me parece que a erva assim queimada perde toda a virtude, não tem aquele efeito, por assim dizer... que é como quem diz...

- Pois olhem que lá em Lisboa as pessoas de condição já vão trocando o rapé pelo cachimbo. As inalações depuram a essência da folha e ao circularem pela caixa craniana... enfim... Sua Reverendíssima saberá melhor que eu...

E o capitão, com um ligeiro aceno de cabeça, cedeu a palavra ao padre que era amador de rapé e que tinha pelos cachimbos e por tudo quanto ardesse, morrões de canhão incluídos, a mesma aversão dirigida a todos os fogos infernais.

- Pois a mim - arriscou o padre procurando uma ideia na réstea tardia de sol que entrava por uma seteira - a mim quer-me parecer que o tabaco, seja em fumo, seja em trança, perturba os humores do sangue. E então os espanhóis que o fumam em papel, em forma de cigarro...

Foi como falar de corda em casa de enforcado. O capitão de dragões espevitou o cachimbo, compenetradamente, o capitão da praça sacudiu um mosquito com perseverança e o outro afeiçoou a cabeleira. Durante uns instantes fez-se o silêncio à mesa, cada qual distraído com as suas pequenas ocupações.

Depois, todos à uma, romperam a falar de espanhóis:

- Gente ruim, gente energúmena! - concordaram em uníssono, muito agitados.

- Quisessem lá saber - avançou o capitão de dragões. - Em Lisboa, depois do grande terramoto, uma família espanhola dançava e cantava sobre as ruínas, entre os despojos da praça de S. Domingos... E davam "Ulés", e tocavam castinholas... Se não fora a tropa de Peniche a levá-los em armas tinham sido trucidados pela multidão.

- E com justiça! - disse o tenente com uma palmada na mesa.

- E com razão! - concordou o padre com menos entusiasmo.

São malinos,, são! - pontificava agora o capitão da praça, enchendo as narinas de rapé. - houve aí umas crianças desaparecidas, aqui há tempos, e eu disse logo: foram os espanhóis, foram os espanhóis que as levaram para funâmbulos... É que não há nada que saber, foram os malditos dos espanhóis...

- Sem dúvida, - acrescentou o tenente - têm maus fígados, mau íntimo... Cá na minha opinião é daquilo que eles comem. Comem muita castanha, alambuzam-se com castanha, com comidas pesadas, e o resultado é aquele...

- E bolota! E muita bolota - volveu o capitão. - Ainda outro dia, vieram aí uns vender umas rezes, provavelmente roubadas, e quiseram falar comigo, para eu avalisar o negócio. Eu cá disse logo: espanhóis, chóóóó, arreda para lá!

- Lá em Lisboa também ninguém faz caso de espanhóis... - Asseverou o capitão de dragões, erguendo os olhos, e voltando à pederneira, a tratos com o cachimbo apagado...

Fez-se um silêncio severo, denso. O padre lembrava de si para si que, "mudado o tempo, mudado o conselho". Ali estavam aqueles dois homens raianos, de pronúncia arraçada, com a vida passada em comércios com o lado de lá da fronteira, se calhar com parentes e amigos para além da raia, tomados de um momento para o outro de frenesi patriótico. E tudo isto por causa daquela guerra enredada por desígnios tão obscuros. O padre, ainda assim, lisboeta de lá longe, era o que menos animadversão mostrava em relação a espanhóis: umas vagas reminiscências históricas, Aljubarrota, os Filipes... mas, pessoalmente, não tinha razão especial de queixa, nem acreditava naquela história dos espanhóis a tocar pandeiretas sobre as ruínas do terramoto, de que nunca ouvira falar em Lisboa. Mas, para não deslizar da toada lá foi dizendo:

- Cuidado com eles, é preciso é cuidado com eles... São o diabo...

- Ah, pois são, - voltava o tenente à carga - ainda outro dia deixaram aí varado um pobre carvoeiro com um tiro do lado de lá do Douro...

Mas o capitão debruçava-se sobre ele, como se lhe confidenciasse alguma coisa. E rosnava de modo a que todos ouvissem:

- Olhe a mim é que não me varavam, a mim não há bala que me toque...

A assembleia, surpresa, cravou olhos no capitão e apurou os ouvidos:

Não havia bala que entrasse? Como assim? Lentamente, antegozando a surpresa de circunstantes, o capitão desabotoou dois botões da camisa, mergulhou o braço nas profundezas hirsutas do peito e sacou de lá um rosário, de que as contas de pau estralejaram no tampo da mesa.

- Benzido, este! - triunfava o capitão, passando o rosário em volta - abençoado por Santa Teresinha da Fraga! Foi usado por um mestre-de-campo durante a guerra da sucessão de Espanha, debaixo da loriga. Nada lhe aconteceu, nem um pêlo chamuscado e os pelouros até pareciam saraiva em volta...

Um a um, cada qual admirou a relíquia, sopesando as contas, fazendo-as rolar entre os dedos, até que o capitão as recuperou e devolveu aos peitos amplos.

- Nunca é demais ter ao perto um objecto abençoado, ou uma santa relíquia, - confirmou o padre com circunspecção.

- E por isso é que eu me fio muito da defesa de Miranda. Sempre têm lá o Santo Antoninho da Cartola - vozeou o capitão de dragões, às voltas com o cachimbo.

- O Santo Antoninho, sem dúvida! - assentiram todos sisudamente. E de novo os homens se calaram, a remoer o suco daquelas verdades. Mas um dos criados pretos do conde assomava agora à porta da escada, interrompendo a sábia meditação:

- Sua Excelência vem lá, meus senhores!

Todos se levantaram, hirtos, num arrastar de cadeiras sonoro e áspero. O conde entrou, tomou a cabeceira da mesa e mandou sentar, solenemente.

O padre, se por um lado se sentia honrado com o convite do conde para aquele conselho, governo e cabeça da praça militar, não deixava de estranhar, por outro, a inserção entre soldados, simples e rudes como os capitães de armas, ou vãos e enfatuados como o dos dragões, na abordagem de matérias e assunção de responsabilidades que preferia longe do seu foro.

Na sua frente, o capitão da praça alisava os longos bigodes grisalhos que mal lhe iam com a cabeleira fora de moda, com defeitos de frisa a despontarem em toda a volta, e olhava, abstractamente, para os ares, denotando severa concentração, vontade de aprender. O tenente, sentado na berma da cadeira, muito direito e respeitoso, afectava um ar composto, acompanhando as palavras do conde, com ligeiros trejeitos de aprovação, embora a altura das aprovações não estivesse ainda destinada. O capitão de dragões, a seu lado esquerdo tossicava para dentro do lenço, olhos muito abertos, sobrancelhas ao alto, numa atenção melíflua.

A questão que o conde, em voz muito baixa, passara a expor, era a seguinte: A praça de Miranda começara a ser assediada e, informações recentes confirmavam que os invasores haviam iniciado as obras de sítio, com a abertura das primeiras trincheiras. Caberia à guarnição de S. Gens uma de três cições:

Ou tentar romper o cerco e abrigar-se nas muralhas de Miranda, ou flagelar o inimigo pela retaguarda, perturbando o sítio e aliviando a pressão sobre a cidade, ou aguardar tranquilamente o desenrolar dos acontecimentos em S. Gens...

Lerdamente, prolixamente, ou rebuscadamente, os três oficiais pronunciaram-se e seguiram todos a opinião de que o melhor seria conservar S. Gens, quer porque a guarnição era pouca e nada acrescentava à defesa de Miranda, para mais sem possibilidade de remover os canhões, quer porque uma fustigação das tropas de sítio por tão pouca gente cedo seria varrida pela cavalaria, quer porque a deslocação de efectivos corresponderia a deixar a praça ao abandono, com o equipamento que continha.

Chegou a vez do padre opinar, em último, por ser o de mais respeito. Escapar do relâmpago e dar no trovão era o que lhe pareciam as soluções alvitradas. Se não se ia ter com os espanhóis era ficar à espera que os espanhóis viessem ter cá. Antes assim, embora, que se ganhava tempo e entre duas idas do pau lucravam as costas...

Quis dar peso e ênfase à sua intervenção. Citou lugares da Bíblia, um tanto inadequados, do livro de Josué, que esclareciam precisamente a situação contrária: "Ora Jericó cerrou-se e estava cerrada por causa dos filhos de Israel: nenhum saía nem entrava..." e acompanhou o arbítrio dos presentes de ficar guardando a praça. Mas acrescentou que os negócios da guerra estavam postos na mão de Deus, único e derradeiro mandante da sorte dos homens, a quem não havia que ofender nem agravar. E se as balas e os pelouros muito fendiam as fortalezas dos homens mais as fendiam os pecados e ofensas que abriam frestas largas ao inimigo, metamorfoseando-o em agente do Senhor e gládio do castigo. Urgia acabar-se com blasfémias, ditos soezes, e outras afrontas ao Senhor dentro da praça, pelo que devia ser posto em edital...

Mas o conde já tamborilava com os dedos em cima da mesa. Quando o padre, incendiado, se preparava para extrair ilações da luta entre David e seu filho Absalão, o conde interrompeu com suavidade:

- Tem Vossa Paternidade muito bem dito. Melhor e mais largamente o dirá quando tiver ocasião de fazer a homilia. Agradeço muito a Vossa Paternidade...

O padre deixou murchar o dedo que antes agitava os ares, pronto a fulminar Absalão, e recolheu-se, ressentido, para que o conde tomasse a palavra:

- Pois cá os esperaremos, meus senhores. Interpreto o vosso aviso como um juramento. Terei eu razão?

Houve em volta um acenar de cabeça, firme e marcial. Sem transição seguiu-se uma interminável conferência de ordens, disposições e negócios de manutenção que puseram o padre sonolento, a cabeça a pender, com grande esforço para se manter acordado.

De pena na mão e tinteiro ao lado, o conde ia interpelando os militares e anotando sinais num grande caderno:

- Pólvora nova, quantas arrobas? - perguntava o conde.

- Quatrocentas - respondia o capitão. E o conde anotava no caderno.

- Sacos de terra?

- Mil e duzentos.

- Cisterna?

- Cheia!

- Poço?

- Limpo!

E por aí fora, quase até ao dealbar da noite, quando o conde se deu por satisfeito, e fechou o caderno coberto de sinalefas. Vieram depois as instruções últimas, já em pé, com os oficiais em sentido.

Deserto por se ver dali para fora, o padre respirou fundo quando passou a grande porta gótica e pôs pé na areia do adro... Noite negra estava, e a fome lembrava-lhe os rojões da tia Brízeda. Estugou a passada, dobrou uma esquina, arrastando o bengalão, e enfiou pelo caminho de ronda, a cortar espaço

Sobressaltou-se e estacou ao dar por quatro vultos parados, ao rés das ameias. Foi-se, depois, aproximando, devagar, o cajado bem firme na mão, conquanto as surpresas nocturnas não fossem ordinário das praças militares.

- Santas noites... - saudaram-no várias vozes, num cicio.

- Boa noite - respondeu o padre, muito galaroz, desfeita a prevenção. - Então, toma-se o fresco?

Estavam ali os mestres e poucos faltavam: o padre reconheceu o alveitar, o tendeiro, o ferreiro, e o barbeiro-cirurgião. Ao que pôde aperceber no escuro, todos de cara fechada, aborrecida, de caso...

- Lá está, - disse um deles - escute Vossa Reverência...

O padre apurou o ouvido, e não deu por nada, ao princípio. Mas logo depois, foi-se afirmando, das bandas do sul, muito ao longe, muito sumido, quase inaudível, um trapejar arrastado e brando. Era um subtilíssimo ruído que ia e vinha e às vezes desaparecia de todo, talvez por mor do vento e que lembrava vagamente o som de papéis duros amarrotados.

- Cá para mim é um trovão, é a trovoada a firmar-se nos montes... - observou o ferreiro numa voz baixa, de respeito.

Mas todos os outros discordaram: um estralejar assim, daquelas partes, não podia ser outra coisa senão o som do canhão. Era, pois. Eram os ecos do cerco de Miranda, repercutidos pelos montes...

O padre fixou melhor a atenção. Aquele rumor, ora surdo, ora estralejado, ora brusco, ora espalhado, tão sumido, não lhe parecia de trovoada, tanto mais que a noite era de estrelas e não havia sinal de relâmpagos. Num dizer por dizer, duvidou:

- Miranda? Mas são tantas léguas...

- Pois que importa? É de lá que sopra a brisa... Tiveram-se a escutar, por uns momentos. O padre fez-lhes companhia, intrigado, esquecido da fome, a decifrar os ecos:

Um ribombo mais nítido desenrolou-se na lonjura prorrogando-se por revoadas roucas. Depois o silêncio. Nada mais, para além das cigarras.

- Começam por Miranda... Não tarda nada estão eles cá - disse o tendeiro com voz cava, levando os polegares ao alçado do colete.

- Ora - cortou o ferreiro que, nesse serão, talvez por efeito da acumulação de aguardentes, fazia vezes de contrário: - Porquê, S. Gens? Quem é que quer S. Gens para o que seja? Vão ver, passam de largo e não nos tocam...

- Não foi em vão que o nosso comandante andou a petrechar a praça... - arriscou o padre, deliciado secretamente com o ponto de vista do mestre ferreiro.

- Quer Vossa Reverência saber? Um piolho é sempre um piolho. Pode-se pintar de amarelo, pode-se empavesar com fitas, pode-se calçá-lo de botinhas de lã... Quem é que quer um piolho, para que serve?

E o homem abria os braços, muito demonstrativo:

- Assim é S. Gens, uma praçazita minorca, à toa, sem préstimo nenhum. Nem os espanhóis lhe pegam, vai ver Vossa Reverência.

- Melhor seria que nem tivesse muros. Ficaríamos todos mais descansados... - assentiu o tendeiro, monopolizador do exíguo comércio de S. Gens, em todos os ramos, desde a botica aos panos da terra.

- Não será tanto assim, não será tanto assim - discordou o padre, "ex officio, " abrindo caminho e deixando os homens a altercar. No percurso para casa, por várias vezes afinou o ouvido, parado junto aos adarves. Chegou a interpelar uma sentinela:

- Olha lá, tu, não ouves nada?

Surpreendido, o homem soergueu a arma e olhou atarantado em volta.

- Deixa lá, deixa lá - impacientou-se o padre, e entrou no casarão para aturar as rabujas da velha, que se requentavam os rojões e se arrefecia o caldo. À noite, não conseguiu concentrar-se nem nas suas escrituras, nem nas sagradas. Desviava-se- lhe sempre u olhar para a janela. E chegou mesmo a levantar-se, a abrir os vidros, a farejar os ares, à cata daquele estralejar sinistro.

Ao outro dia, logo muito cedo, um rumor correu a vila e agrupou o povo em magotes no adro, pelas ruas, pelas portas. O paiol de Miranda rebentara, mil e quinhentas arrobas de pólvora, a vila com elas. Falava-se num mar de chamas, em mais de quinhentos mortos, contava-se sequências infernais de desolação e horror, sugeria-se, em voz recolhida, que teria havido traição. Muitos correram às ameias a ver se descortinavam sinais de fumo, resíduos da catástrofe. Nada. Os ares mostravam-se desimpedidos, límpidos.

É de estranhar como a nova chegou a S. Gens antes da arribada dos primeiros refugiados, ainda alucinados do que haviam presenciado. Os acontecimentos saltaram de pastor em pastor, de vilão em vilão, numa transmissão muito mais célere que a do passo de homem ou de mula. Na verdade, quando homens e mulheres chegaram, lá pelo meio da tarde, arrasados dos caminhos, já a notícia era conhecida há muito. Mas foram os últimos trânsfugas, ao cair da noite que trouxeram a informação militar relevante: Miranda, após o cataclismo, entregara-se ao exército espanhol.

O padre soube dos acontecimentos logo de manhãzinha, quando Brízeda, numa lamúria, lhe entrou pelo quarto, assoando-se à ponta do avental.

- Está tranquila, mulher, está tranquila e deixa-me vestir! - bradava para a criada que ali ficava encostada à cómoda, a soluçar, feita parva...

À toa, pelos caminhos, o capelão fez perguntas, indagou: a resposta era sempre a mesma. O paiol de Miranda estourara e metade da vila tinha ido pelos ares. E os pormenores que completavam a história mostravam-se, as mais das vezes, fantasiosos e abusivos.

O padre ainda deu uns passos em direcção à torre, para se informar junto do conde. Mas pensou duas vezes, e logo arrepelou caminho. Arreceou-se dos maus humores ou do desprezo do governador, hoje decerto pouco azado a dar-lhe atenção. Foi deambulando até à praça, parando aqui e além, ouvindo mais que falando, impondo sossego e respeito só pela sua presença.

À porta da igreja, o velho pároco arengava de braços alçados. Rodeava-o uma pequena multidão agitada, homens a gesticular, mulheres em lágrimas. Ao aperceber o colega, suspendeu o aranzel, enxotou os paroquianos e veio ter com ele, a grandes pernadas, com movimentos soltos, descompassados:

- Eu não lhe dizia, senhor capelão? Aí está ele, e fulminante, o castigo de Nosso Senhor. Veio um raio do Céu, foi o que foi, o gládio de Deus... "Gladius Donini".

Ao padre desagradaram aqueles grandes esbracejos, a face alucinada, os gestos bruscos. Travou o outro pelo cotovelo e rosnou:

- Olhe a populaça, tento na populaça! Manter a serenidade, manter a serenidade, senhor...

Diz o roto ao nu: porque não te vestes tu? Disse o padre assustado ao pároco frenético: tenha lá calma... Cabe aqui evocar para edificação de todos a antiga fábula das lebres fracas e das rãs fraquíssimas, e ficará uma vez mais confirmado que, por mais desinfeliz que alguém esteja e miserável, encontrará sempre outro alguém ainda pior...

E o padre capelão, ciente do seu sangue-frio relativo, fazia- se forte, continuava a ralhar com o outro:

- A gravidade eclesiástica, homem veja-me lá...

Mas o pároco queria uma procissão! Tinha parafusado muito naquilo e a necessidade de procissão parecia-lhe evidente.

- Apela-se pouco a Deus, nesta terra. Bem insisto eu, são visitas, são homilias, mas a confraria nada faz, um desmazelo, uma lassidão... Ajude-me Vossa Reverência a marcar a procissão que estas almas bem estão precisadas da lembrança divina...

Todo ao dispor estava o capelão. Mas não haveria mister da licença do Ordinário? A autoridade eclesiástica sediava em Miranda, e agora, com Miranda caída...

Mas não, as circunstâncias ditavam a premência duma procissão. Era estado de necessidade, era extrema urgência, pouco faltava para articulum mortis...

O padre não se convenceu com aquela do articulo mortis, própria de moribundos em derradeiro estado de cama e inteiramente inadequada aos ensejos das procissões. Mas já tinha percebido que o outro andava alucinado, pronto a misturar noções, nada virado ao rigor. Muita moleza, e algum bom senso, ditavam ao padre a conveniência de pouco contrariar gente em tal estado de graça.

Mas sempre foi obtemperando:

- Pois sim, mas também há o comando da praça... E se Sua Excelência via inconvenientes?

Aí, contava o pároco com a boa vontade do capelão e rogava-lhe que exercesse a sua influência sobre o conde para obter a autorização necessária, e as facilidades da guarnição.

- Homem, eu, para lhe ser franco, junto do senhor conde...

- Vamos lá os dois e é já - respondeu o pároco, muito decidido, tomando-o pelo braço...

O conde acolheu-os de pé, em mangas de camisa, gibão desabotoado, mãos apoiadas sobre a mesa, como quem tem mais que fazer e exige brevidade.

Falou o pároco, com grandes tropos, confusos e enovelados. Atalhou o padre:

- Vínhamos rogar a V. Ex. a autorização para uma procissão que conclame a protecção do Senhor para este transe que se adivinha...

O conde fixou-os por um momento, com um ar abstracto, de quem andava muito longe daquelas eventualidades. Mas logo depois, anuía:

- Pois bem, façam Vossas Reverências o vosso mester... Os padres curvaram-se, entreolharam-se e sorriram. O pároco esboçou um vago gesto de bênção, e ambos se desfizeram em agradecimentos. Mas a voz do conde, surda e roufenha, impunha agora condições:

Que ninguém saísse das muralhas, que lhe dessem conhecimento do percurso, que se afastassem dos caminhos de ronda e que não desinquietassem os militares em serviço. Nada de fogos de artifício nem de disparos em seco. E ele próprio iria no pálio, vara da direita como lhe competia... Posto o que, estimava muito a comparência de Suas Reverências... E acompanhava-os à porta, com uma cortesia firme...

Os padres empenharam-se muito a sério na procissão, a ver quem se afadigava mais. Visitaram casebres, procuraram boieiros longe, puseram homens, mulheres e gaiatos a trabalhar, seduziram, admoestaram, ralharam.

No dia aprazado, a vila era uma estendedoiro de panos berrantes, de colchas e de luminárias, com papéis coloridos, custosamente forrageados aos militares que os regateavam para cartuchos.

O próprio conde, contra seu hábito, largara a velha casaca cinzenta de abotoadura, conforme à pragmática e vestira uma vermelha, de alamares. E vinha de espadim dourado, o pesado sabre de cavalaria abandonado lá na torre, em cima da mesa. Mas não havia nem abrandamentos nem concessões no que respeitava ao giro militar: A guarda estava no seu sítio, as sentinelas nas guaritas, os condestáveis de turno a postos, o oficial de dia a despachar. Sobrava um pelotão de tropa disponível que cedo se agrupou, muito empavesado, de peruca empoada e armas rebrilhantes, junto do portal da igreja.

Um pífaro e dois tambores, de excelência compatível com a obscuridade da praça, faziam acompanhamento, sobrando-lhes em boa vontade o que faltava em afinação.

Com atraso, a procissão lá saiu, a cruz adiante, alçada pelo sacristão, enfezado e torto. Logo atrás, o pároco, embevecido, de face extática.

O pálio de quatro varas, muito puído nos veludos e encardido nas franjas era levado pelo conde - segurando a vara do lado direito -, pelo capitão da praça, pelo ferreiro e pelo tendeiro. Atrás, a confraria de S. Gens, de opas cor de cereja, marchava pausadamente, muito sisuda, compenetrada da sua importância.

Mais além vinham os soldados, com o passo próprio, marcado pelo toque de caixa. Seguia-se a arraia miúda, as mulheres veladas, os homens a descoberto. Lá para trás, no couce das filas, um rei David endiabrado, com um saltério de pau, coroado de cartão lambuzado a purpurina velha, desfazia-se em pinotes e momices.

O conde, de surpresa, tinha organizado as coisas de forma que, ao passar junto de uma das quadrelas, chamada de S. Lourenço, ninguém sabe porquê, estrondeasse uma salva, a saudar a procissão. Foi o único gasto de pólvora autorizado para a ocasião; e a cargo de militares que era a quem competiam os ribombos. Uma bombarda e cinco mosquetes, impróprios para a guerra mas sonorosos nas festas, estalaram das muralhas, num estampido uníssono.

O pároco, lá na sua, tomou a salva como sinal de desembestamento e largou a improvisar, avesso à liturgia:

- Bendita seja a causa del-Rei de Portugal - bradava ele.

E vinha o responso, multivoz: - Bendita! Tomando calor, o prior ia pedindo bênçãos para tudo: para os lameiros, para os gados, para os arvoredos, para as colmeias, suscitando, lá de trás, ecos cada vez mais entusiásticos e atroadores:

- Bendito! Bendito seja!

Enlevado pela consonância das respostas, os apelos do pároco iam crescendo de tom, cada vez mais coloridos e metafóricos. O capelão que, muito compostamente, seguia no seu lugar, já franzia o sobrolho.

- Oh, senhor, salva Portugal, salva S. Gens, derrama a Tua Misericórdia sobre a aleivosa nação que a não merece...

E quanto mais bradava, mais o pároco se exaltava, e quanto mais se exaltava, mais a imaginação lhe acudia com apóstrofes, recriminações, apelos, desagravos e imprecações. Acumulando-se as figuras de retórica, o sacristão enervava-se, a cruz circulava, pendulava, alçava-se e encolhia-se ao sabor dos rompantes do portador.

E assim o prior, em virtuosa escalada conceptual, se alcandorou a uma retórica de visionário: via coisas...

- Vejo - bramia -- esta nação de Portugal assolada pela ira do Senhor, com rios de sangue a escorrer nos vales ao reflexo das chamas das cidades queimadas...

E via mais desgraças, e via mais horrores e mais jeremiava e mais ameaçava...

Ora, com aquela agitação do pároco, o séquito foi-se descompassando. Rompeu o mulherio, lá atrás, em choros agudos, a confraria trocou o passo e entreolhou-se de susto. Hesitou o pífaro em fífias estridentes, derramou-se, incerto, o baque dos tambores, e o pelotão de infantaria, a pouco e pouco - objurgatória a objurgatória - foi trocando a compostura marcial, de rígida ordem unida, por um despejo de gesticulações, prantos e gritos, que soaram mal a alguns ouvidos. Olhava já para trás o tenente, levantava o padre as mãos em gesto de apaziguamento, que a tropa vinha em alto estridor, de olhar alucinado e movimentos dirigidos ao céu, quando o conde fez um sinal ríspido, chamando um dos da confraria, e Lhe impôs a posse da sua vara do pálio.

Uma mão atrás das costas, outra pousada no punho do quitó, o conde afastou-se uns poucos de passos para a berma e fixou os homens, com uma cara de pedra. O tumulto de vozearias e o esganiçar dos responsos ainda atroaram os ares durante uns momentos. Depois foram-se fazendo mais abafados, mais subtis, até se espaçarem e rarearem, em ressaltos de fé isolados, aqui e além. Os homens fecharam as caras, recolocaram as armas ao ombro, deixaram pender os braços, e acertaram a passada pelo toque da caixa.

E quando passaram ao lado do conde tudo eram olhares de digna e sisuda compenetração e gestos lentos, e rígidos e solenes. Mas olhares fitos bem em frente que ninguém ousou, sequer de soslaio, relancear o comandante, e gestos bem medidos pelo rufo das baquetas e distraídos de outros estímulos, que não fosse o rataplã pausado.

Sem o contributo da vozearia militar, a algazarra lá para trás foi-se desmanchando, o tom de muitas vozes baixou, os homens puseram olhos no chão, as mulheres moderaram a pranteadura, salvo uma ou outra de ânimo mais esganiçado e alma mais alevantada.

Sentiu lá da frente o pároco a sua obsecração pouco sustentada, e voltou-se para ver que era dos fiéis que assim o deixavam no deserto como a S. João. E quase se engasgou, a meio duma grande sentença, quando deu com o conde, arredado do seu posto, todo direito, naquele preparo fiscalizador. Lá oscilou outra vez a Cruz que muito ar revolvera naquele préstito. Mais uma e outra vez se voltou o prior, de olhar faiscante, para ver o conde regressar, em boa passada, ao seu lugar, junto ao Santíssimo Sacramento. Rematou o pároco uma imprecação tensa, deu mais um baldão a Cruz. Antes que as objurgatórias tomassem alcance fora de propósito e a cisânia despontasse, o padre, num acesso de bom senso, contra a norma ritual, rapou do livro processional e largou num cântico, em voz cheia. Responderam os sequazes, com enlevo, engrossou o coro, aquietou-se a cruz lá na cabeça do séquito, e conformaram-se as coisas sem escândalo.

Nas demais voltas que deu, foi aquela procissão muito cantada e bem responsada, o que sobremodo conveio a todos, menos ao pároco que se sentiu desfeiteado e cerceado na palavra. Aquele governador figurava-se-lhe pouco enlevado em matéria de fé!

Ao desparamentarem-se na igreja, ainda rosnou umas alusões ao capelão que, muito inocentemente, fez que não era nada com ele...

- Bom préstito, bom préstito observou, arrepelando os botões. - muito lustro...

- Hum... - ia o colega a responder.

- E outros se farão, sendo preciso, não desmerecendo decerto da elevação deste... - atirou o padre capelão, muito rapidamente, despedindo-se, caminho de casa, não fosse o outro vir-lhe com recriminações e espantos.

O anexim põe Deus a escrever direito por linhas tortas. A que vem isso das sentenças dos homens ditarem o que Deus há-de fazer? A verdade é que, querendo, também escreve torto por linhas tortas, direito por linhas direitas, e torto por linhas direitas, nem admite que lhe vedem a soberania de fazer como lhe apraz, nem cede prerrogativas ao humanal entendimento.

E assim, se os homens vêem o tempo sempre a fugir para trás, também a Deus lhe pode dar para vê-lo a desandar para diante. E, considerando os homens que a procissão encontrara a má-vontade do Senhor, sempre os desígnios dEle podiam pôr com à-vontade os seus efeitos em retroactivo, dando-se quite pela sua projecção no passado, que não no futuro.

Vem isto a que os dias que antecederam a procissão - e salvo uma breve escaramuça encontradiça entre milicianos de cá e soldados de lá, que deu em muito fumo, muita pólvora gasta e debandada para ambos os lados de corpos escorreitos - os dias que antecederam a procissão, dizia-se, transcorreram como se guerra não existisse. De espanhóis, só vagas notícias de Miranda, de costas voltadas para cá. Flauteasse-se, e flauteou-se... Já no dia imediato à procissão correram alarmes de catervas de tropa estrangeira, dentro da raia de Portugal, a aproximarem-se a marchas forçadas. Eram mais que as mães, cobriam o terreno, avançando em má ordem: espanhóis, demais bilhostres, cavalarias e carros, um nunca mais acabar de uniformes e armas. Isto o que apurava o bom senso, porque os contos, esses, pouco lhes faltava para trazerem de cambulhada setecentas e setenta e sete das legiões de Belzebu.

Expediram-se esculcas, centraram-se as informações na torre e reforçaram-se as guardas. E vinha nota, cada hora mais carregada e nítida, da progressão dos invasores de encontro a S. Gens. O conde mandou pelos cerrados recolher o gado aos cercados da praça e ordenou pregão de se retirarem para longe o mulherio e a canalha. Poucos abalaram, decerto por não terem para onde ir. Fez-se prestes a verificação de armas, instrumentos e provisões. Tudo em ordem, só faltava, por enquanto, o inimigo.

Noite fechada, ao firmamento lustroso dos céus, veio-se juntar um outro, desdobrado na terra, lá nas lonjuras sombrias, num pontilhado tremeluzente de cintilações. Minúsculos luzeiros iam despontando, picavam o ar e, já um era obscurecido, para logo outro se afirmar ao perto.

Da torre, acompanhado pelos oficiais, o conde devassava com o óculo de marinha, mas pouco mais conseguia ver que os habitantes de S. Gens, que se apinhavam pelas muralhas e alturas, farejando os longes. Durou e durou muito a pasmaceira, em inquieto silêncio, até que o conde resolveu recolher e deu ordens para expulsar o povoléu dos circuitos militares.

O exército inimigo estava acampado, a três ou quatro mil braças. Deixasse-se estar que não havia mais nada a apreciar. Ao romper do dia, seguramente, teriam todos muito mais para ver... E agora desempeçassem o caminho de ronda que não havia ali circo nem corrida que merecessem ajuntamento.

A Igreja esteve de portas abertas à noite, e o pároco andou numa fona com confessados e confessadas: quis encorajar, organizou rezas, acendeu círios, distribuiu a Cruz, para quem a quizesse beijar. Até que um soldado foi avisar que o senhor oficial de dia não consentia luzes que se vissem de fora, e tiveram de se encostar os portais.

Às tantas, levantou-se um burburinho junto à porta de armas. Em alta grita, um homem, acompanhado de um rapazito, berrava lá de fora que queria entrar.

Era o entravas! Impunha-se, do alto da muralha o sargento de plantão. As portas, se estavam fechadas, era para estarem fechadas. Ingressos proibidos. Que voltasse no dia seguinte. Era só o que faltava, dar manejo ao cabrestante, levantar grades, afrouxar trancas, com suor, por causa de um trânsfuga retardatário.

Mas o homem insistia e gritava que nem um desalmado:

- Alvíssaras, alvíssaras!

Tanto brado deu a cena que o conde acabou por intervir e deu voz que se abrisse a porta ao homem com as devidas cautelas.

E ele lá entrou, com o miúdo pela mão, garantindo que tinha estado em poder do inimigo e queria contar tudo. O conde mandou desfazer o ajuntamento de povo, recebeu o homem na torre e escutou-o.

Veio uma descrição dramática da sua prisão pelos espanhóis que, por pouco, o não enforcaram e cortaram aos bocados. Tinham-no interrogado sobre as defesas da praça, sobre as peças de artilharia, sobre as muralhas e ele, como bom português, nada havia dito.

- Antes morto e esquartejado como bom patriota que vivo e curvado como um traidor - respondera altivamente aos espanhóis.

O conde foi-o interrogando, cepticamente, sem apurar informação que lhe valesse. Tudo aquilo eram impressões, ora vagas, ora muito circunstanciadas, em pontos que nada importavam às operações militares.

Finalmente, o homem requereu, respeitosamente, que lhe fosse pago o preço de um burro, seu ganha-pão, confiscado pelos estrangeiros, e que o deixassem partir nessa noite para a sua terra, Covimonde, porque tinha família à espera e, não sendo natural de S. Gens, não lhe competia sofrer o cerco. O conde pagou-lhe o burro, bem pago, e permitiu que se fosse.

Aquela alvorotada noite foi de rija fadiga para os habitantes de S. Gens. Não houve família, por mais pobre, que não formigasse no tugúrio, levantando pedras, esgaravatando o chão, à cata de sítio seguro para resguardo dos haveres. Tanto traste foi enterrado debaixo da lareira, ou entalado nos interiores de granito, que ainda hoje os amadores de antiqualhas e bricabraques lucrariam com a pesquisa, nanja os de panelas de ouro, que não as havia.

O padre, como toda a gente, tardou em deitar-se. Cirandou pelas ruas, da igreja para casa e de casa para a igreja, bichana aqui, espreita acolá, tropeça neste, benze aquele, numa ansiedade pegada. Numa volta, topou com o capitão de dragões que regressava a penates, livre já do serviço da noite:

- Então, senhor capitão - disse o padre, muito chegado - é do parecer que vamos ter luta?

O outro não respondeu logo. Com o escuro, o padre não lhe enxergava bem as feições, e por instantes, tomou fagueiramente como hesitação o que era afinal um grande espanto:

- Luta? Mas certamente, senhor capelão...

- Hum, hum - engrolou, embaraçado - Benza-nos Deus, benza-nos Deus...

E lá continuou o seu giro, deixando o outro especado em continência, até que se cansou dos sempre mesmos caminhos, assegurou-se, com uma espreitadela das ameias, de que os espanhóis ainda permaneciam, lá longe, nos seus bivaques, por ora sossegados, e ala para casa, para vale de lençóis. Levava um aperto no coração e tardou no sono mais que o habitual, os sentidos despertos para qualquer alvoroço ou sinal de crise.

Quando acordou, manhã alta, ao som repenicado das sinetas nas muralhas, já o conde, do alto da torre de menagem, acompanhado dos seus oficiais, observava a progressão do inimigo, nessa hora muito próxima.

Pelos campos, fervilhavam os homens em extensas colunas, compactas, mais e mais indiscerníveis com a distância.

Uns quantos cavaleiros já volteavam, irrequietos e provocatórios quase ao alcance de um tiro, num reconhecimento álacre e turbulento, com uniformes garridos e compósitos. A cerca de dois tiros de peça, por detrás duma lomba fragosa, atropa bifurcava-se em duas colunas. Uma, marchando em direcção ao interior ia-se seccionando em batalhões que formavam em linha, de frente para as muralhas. A outra afastava-se, formava um grande arco, e ia envolvendo a praça, de longe, do lado de Espanha.

O conde, com o óculo, já ia distinguindo pormenores. As linhas que tomavam posição a Oeste, de uniformes branco-pérola eram de franceses. Os outros, numa alegre confusão de fardamento e atavio, eram espanhóis. Todos, por maior garbo que os seus comandantes Lhes destinassem, nesta primeira apresentação, mostravam-se escanzelados, lerdos no andar, e esfiapados de roupa.

Ainda assim, era um espectáculo digno de se ver, todo aquele molhe de gente, tão variegada, a desdobrar-se pelos ressaltos do planalto, ao rufo profundo, soturno, dos tambores, em manobras dignas de parada.

- Ainda faltam muitos - observou o tenente. - Devem ser para cima de vinte mil...

- Ná, nem a dez mil chegam... - cortou o conde,    passando-lhe o óculo.

Ainda o inimigo não tinha acabado de se dispor no terreno, fora do alcance dos canhões de S. Gens, e já apareciam no horizonte os primeiros carros do trem de sítio. A custo, a poder de berros e coronhadas, a guarnição afastara os moradores de S. Gens das muralhas. Ocultados atrás das ameias, os fogos dos murrões revolviam a limpidez do ar.

Muito quieta, muito tesa, a tropa tinha os olhos fitos no inimigo. Quando, à distância, um torvelinho de cavaleiros, correndo de um lado para u outro, parou e dispôs em filas a cavalaria solta, o conde disse, baixo, para os lados:

- Meus senhores: aos seus postos...

 

Quem lá vinha, fazendo de fraquezas e canseiras aparato de atavio e luzimento, era o terço do marquês de Alagon, já muito desfalcado de efectivos. O marquês ia já nos oitenta anos, o que o não desmerecia para o comando, pois era nobre de Espanha e, sobre isso, Cavaleiro de Santiago. Nunca havia entrado em campanha. A guerra da Sucessão de Espanha surpreendera-o no leito, muitos anos antes, com uma figadeira dolorosa e pertinaz, apesar de moço. Depois participara num dos bombardeamentos cíclicos de Argel, nos tempos remotos de El-Rei Filipe V, comandando nominalmente uma fragata e angariando fama de cabo de mar competente e feroz. Já lá iriam trinta e cinco ou quarenta anos, mas não se perdeu á experiência que, em terra ou no mar, o alto nascimento lhe garantia discernimento, saber e coragem.

A um nobre de Espanha por mais despachado e intimorato em face do inimigo, há algo que sempre muito perturba e desinquieta: é a proximidade e mando de outro nobre de Espanha. De maneira que, desde o início da campanha os desentendimentos entre Sarriá e Alagon foram constantes. Quando um ordenava - avance-se! - o outro fazia retardo. Onde aquele marchava para Leste, determinava este marchar para Oeste. E as trocas de notas, entre os dois, polidas e buriladas, quando não pura e simplesmente confusas, deixavam entrever, nas entrelinhas, uma cortante ironia, nem sempre fina. Assim era, nem a natureza das coisas admitia outra disposição.

Alagon entrou em Portugal pela fronteira do Barroso, embora tivesse ordens para atravessar o Douro perto de Rio de Onor. Durante dias e dias, andou desencontrado por alcantis e desfiladeiros, perdeu tempo a tornar vaus de torrentes praticáveis a poder de sirgas e paus de engenharia, tomou aldeias miseráveis, cobertas de esterco, enfrentando o ar intrigado e vagamente desdenhoso de velhas e catraios ranhosos, que os homens haviam ganhado a montanha por tornas, inacessíveis a estrangeiros.

A falta de ânimo na guerra, mais a escassez de alimentos, se não contarmos a saudade do lar, levaram desertadas centenas de espanhóis. Foram ficando os franceses por não terem sítio para onde ir.

Em nos apanhando nas brenhas isaladas à cata de gado perdido ou caça tresnoitada, os transmontanos arremetem à carga, as alfaias serviam de armas, e os estrangeiros ficavam a apodrecer aos sóis, ao cuidado dos corvos e dos lobos.

Para Alagon, a entrada num território desdobrava-se com a mesma facilidade com que um dedo corria no mapa, e mal compreendia que viessem os acidentes do terreno desmentir a direitura do oleado.

- Seguir adiante, seguir adiante! - comandava o marquês...

- Há uma torrente e uma barreira - respondiam-lhe.

- Pois passe-se o caudal que homens não faltam!

E eram dias perdidos a lançar cabos, a cravar estacas, a desencalhar carros. Transposta a corrente, o comandante ufanava-se: - "Então, viram? Passámos!"

Mas as estradas que encontravam a seguir eram as velhas geiras romanas de conduzir sempre a Roma, nunca ao objectivo táctico, e cada aldeia mais miserável e pobre que a precedente. E as deserções continuavam e continuavam as patrulhas tresmalhadas a não responder às chamadas...

Tiroteio houve um, para as bandas de Corvelães, quando a coluna foi enfiada, no fundo dum vale pelo estrondeio duma guerrilha. Mais que balas, choveram as pedras, atiradas à mão pelos camponeses, que minguada mossa causaram. Com o espólio de poucas vacas, alguns cerdos e carneiros, contra a perda avultosa de muares e homens, regressaram os espanhóis à Galiza não muito certos de terem atravessado a fronteira para efeito que se visse.

Vieram ordens ao bivaque: marchasse Sua Excelência para Miranda, a reforçar o cerco que ia ser montado à cidade e que se esperava prolongado e duro. Estremeceram os oficiais com o itinerário de cambulhada que lhes era oferecido. E foi com um respeito desconsolado que, na tenda pretorial, assistiram ao deambular do dedo nodoso do general por sobre o mapa:

- Por aqui e... por aqui! - dispôs Alagon curvado sobre a grande mesa de campanha, de luneta na ponta do nariz. Os oficiais debruçaram-se, abismados. O marquês já traçava, com um esquadro de madeira, dois segmentos de recta que se cruzavam em Santa Comba de Roças e iam dar direitos a Miranda.

Sabiam que de nada valia contrariar o marquês de Alagon, que porfiava em proceder quase sempre ao contrário do que lhe era indicado pelos seus conselhos. De maneira que optaram por um assentimento taciturno, arrepelados já dos trabalhos que os esperavam.

O comandante, com efeito, escondia debaixo dum trato afável, vagamento desdenhoso e distraído, uma rigidez altiva, mais de homem de corte, afeito a dares e tomares de palácio, que de cabo de guerra, acostumado a contar com as bizarrias dos elementos e dos homens. Em embicando para um lado, eram escusadas mais palavras. E em dizendo preto do branco, ficava mesmo preto, doesse a quem doesse, mesmo à verdade, que saiu muito dorida desta guerra.

-Logo que tomou conta do regimento, acompanhado de uma teoria de frades, lacaios e burocratas vestidos de negro, especificou uma pragmática complicada que dispunha sobre vénias entre os vários escalões da hierarquia, sem querer saber dos costumes castrenses da continência firme e brado breve... E mandou que se expulsassem as vivandeiras do couce do exército, por contrárias à moral e gravosas a Deus, com as consequências de penúria que já se relataram. A uma malta meio cigana que seguia a tropa, fê-la tresmalhar à baioneta, e mandou mesmo chicotear dois tendeiros mais obstinados.

Rezava muito. Não montava a cavalo pretextando umas almorreimas incomodativas que mal o deixavam sentar. Ia de liteira, macho atrás, macho à frente, num bamboleio sonolento, o que bem demonstra que a cotação das liteiras divergia a cada lado da fronteira. Mas isto do marquês coronel, sempre empoleirado na liteira, rodeado de coxins, com jeito de incomodado e rictos de dor nos balanços mais picados das azémolas, tinha mais que se Lhe dissesse. A dor de almorreimas estava em moda na corte daquele ano. Trazia-se, usava-se; como os cosméticos de rosear a pele ou as sinalefas de tafetá a mosqueá-la, ou a fitinha verde no rabicho da peruca. Supùnha todo um teatro, muito tem-te-não-caias, muito comichoso e enfadado, de arreganhos de face e suspiros doridos, tão vivido, tão continuado, tão persistente, que traduzia um sofrimento quase tão grande como o do mal verdadeiro. E todos haviam de se interessar muito pela maleita de Sua Excelência, cumpungir-se com ela ou recomendar as mezinhas convenientes, tanto mais que a aspereza dos caminhos e a navegação sacudida da liteira davam para acicatar, se não o mal, que não existia, pelo menos os cuidados com ele.

Atrás do marquês e seus oficiais às ordens, tropeçava uma caterva de áulicos, de batina preta e chapeirões largos que faziam de escrivão, de tesoureiro, de almoxarife, de ouvidor, de guarda-livros, com os respectivos ajudantes, cuja principal função era a de, pela austeridade da presença, e pela evidência do número, alçarem a dignidade do amo, que também aqui fazia compita com Sarriá. Em volta, enxameavam os lacaios de libré, impantes de sobranceria, mofando da tropa que olhavam de soslaio, querendo-se quase equiparados a oficiais pela honra de quem serviam.

O exército progredia de roldão, com aglomerados dispersos e filas avulsas, a pouco e pouco minguando, dissolvendo-se como um torrão de sal a água, por mor das deserções, não raro em grupo. Os que marchavam já traziam muito gastas as solas e farroupilha o atavio, coisa que nada incomodava os oficiais que não viam parada em perspectiva.

Quem assistia o marquês e fazia de recadista nos negócios do Altíssimo era um cónego adunco, de língua desatada e fértil nos sermonários e que entendia caber-lhe parte no governo da tropa. Não sorria nunca, para não desmerecer a gravidade, nem se afastava das cercanias do marquês a quem, de vez em quando, dirigia a palavra, em voz curvada e respeitosa. Preocupava-o sobremaneira a tropa francesa em cujas fileiras, na sua opinião, grassava por força a brotoeja herética.

Trazia um caderno de capa preta em que anotava o que lhe pareciam ser os despautérios dos oficiais franceses, de Qucom circunspecção e boca torcida, dava conta ao marquês, que o acolhia com um gesto gracioso, para logo esquecer as objurgatórias.

Perante as contrariedades do percurso, que não eram poucas, ainda mais gravosas pela intervenção bruta da guerrilha fandanga, traiçoeira e brutal, o padre explicava que naquele transe não se avinha Sua Excelência apenas com as malfeitorias dos homens, que o demónio também forcejava da banda dos heréticos para lhe travar o caminho. Aquilo não era, para o padre, uma guerra trapalhona e manobreira das do século: era uma cruzada decisiva, no eterno combate entre o Bem e o Mal.

Viera uma bombarda rolando lá de cima, pelas brenhas, revolvendo muares e homens até dar fundo no leito de um ribeiro? O demónio a empurrara. Surdira a guerrilha em caminhos distantes, com fundas e gadanhas a flagelar a tropa? - O demónio lhes dera força aos impulsos e acertara as pontarias. Cevavam as desinterias e febres nas fileiras?

Tinha o demónio turbado os humores dos homens, no seu ofício contumaz de contrariar obra santa.

Ao marquês não lhe desagradava escutar estes comentários que lhe alevantavam a alma, tanto como dignificavam a sua missão invasora. Mostrava-se já mais reticente quando ao padre lhe dava para impôr liturgias aos franceses ou para coartar a soltura de palavras entre os da tropa.

Mais a idade que experiência militar tinham dado ao marquês a noção de que tropa é tropa, por natureza desbocada e praguejadora, cabendo-lhe grande desconto nas imprecações e falares, desde que o mundo é mundo. Punir as "palavras desonestas", como alvitrava o padre seria talhar os desabafos, castrar a alegria dos homens, acalcar-lhe ainda mais para dentro o descontentamento com risco de Lhe dar saída pelo rompante mais inconveniente.

De maneira que ouvia o padre, sorria-lhe, punha o pensamento noutro lado, e remetia o despacho para S. Nunca à tarde.

Mas fiquemos por aqui com este padre e deixemo-lo às voltas com as suas categorias e as suas apoquentações, não vá o leitor pensar que ele apareceu para servir de contraparte ao outro que é o coadjutor mal amado do conde português. Viria mesmo a calhar: um gordo e baixote, o outro fino e nodoso, um extrovertido e gesticulador, o outro ensimesmado e sombrio: a cada campo seu comandante (um novo, outro velho, etc.) a cada comandante seu religioso... Nada disso. O autor não quer inculcar a magreza tediosa dos padres espanhóis contra a obesidade risonha dos lusitanos. Não, não era pelo porte dos eclesiásticos que a Península estava dividida. E se fôssemos a contas, chegaríamos a concluir que de um e do outro lado da fronteira, descontando os mendicantes e menoritas, esticas-laricas de profissão, a nediez sobrelevava, em proporções idênticas, as carnaduras magras.

Já disse o padre espanhol o que tinha a dizer? Pois já, e arrede- se para trás que não mais será mencionado nesta história.

Ora vinha então o marquês de liteira, com doce sorriso sofredor, debatendo-se com o pó e com o mosquedo, rodeado daquela preitezia de lacaiagem parasita, quando um lanceiro, a mata-cavalos, interceptou a coluna e requereu que o admitissem a dar mensagem. Era uma nota de Sarriá: Miranda tinha-se rendido. Aguardasse S. Excelência em bivaque o momento de endireitar para B. (ou seja, Bragança).

O marquês não fez caso e continuou a forcejar para o Sul durante todo esse dia. E tanto andou, tanto andou que, pelo lusco-fusco, se encontrava a uma dia de marcha de S. Gens, já à vista dos fogos da vila.

Que era aquilo lá ao fundo?, perguntava o marquês assestando a luneta de um vidro só.

Os oficiais consultaram o mapa, adquirido na casa inglesa de Thomas Jeffrey como os de todos os exércitos em campanha, cravejaram-no de dedadas, estreitaram os olhos para enxergar melhor, mas não encontraram a referência. S. Gens não vinha no mapa. Mas uma consulta, menos rigorosa e mais de outiva aos populares espanhóis que, apesar da proibição do marquês, iam cirandando em volta da tropa, fornecendo géneros, atavios e vitualhas, revelou que assistia ali uma praça militar. Tentaram os oficiais abater a curiosidade do comandante: ora, um postozito de nada, uma praçazita insignificante subsidiária de Miranda, em que não valia sequer a pena atentar.

Mas o marquês não se convenceu. Teimou. Quis saber. Tinha um posto militar pela vante e não havia informações dele? E quanto maior era a despiciência da oficialagem, tanto mais ele insistia, com a caturrice e toleima próprias dos velhos.

Acabou por enviar patrulhas, pelos campos, em cata de nativos airados que pudessem andar pelas redondezas. Deitaram a mão a um pobre carvoeiro que seguia com o filho e um jerico, de regresso ao tugúrio. Veio o homem de bolandas, a lamentar-se em altos gritos, desbarretado, e debaixo de armas. Mandou o marquês que lho apresentassem no pretório e fez que dispusessem em volta braseiros e se dependurasse uma corda no ramo alto dum roble, para assinistrar o ambiente.

- Ora bonda então que andavas por esses brejos a espiar... - acusou o marquês, com ar desdenhoso, apontando-lhe o bastão. - Sabes o castigo que Sua Majestade, El-Rei Carlos III, reserva aos espiões?

Espavorido, o labrego, quis fazer-se pouco entendido na língua. Amarfanhou o barrete entre os dedos enclavinhados; armou um ar de grande espanto, rodou a barba de cinco dias de um lado para outro, e fez gestos descaídos de desesperada impotência. Que não compreendia, que aquilo para ele era chinês.

- Vê lá se um par de chibatadas te abrem o entendimento - rosnou o marquês.

O rapazito que tinha estado a olhar, de olhos muito arregalados, rompeu num frouxo de choro, de boca escancarada e lágrimas abundantes, o que deu ao pai ainda maior ensejo para dramatizar a situação. De mãos postas, jurou e trejurou que não andava a espiar, mas antes na sua labuta de carvoeiro como se podia atestar pelo carrego do jerico de lenhas velhas. Também aproveitara o giro para derrubar dois coelhos, como Sua Excelência bem comprovaria consultando os alforges do mesmo burro.

Então e de que terra era ele? Que era de Covimonde, duas léguas além, e queria regressar agora a casa. Se ia a S. Gens? Que não.

Estavam esgotados os prolegómenos e o Marquês abordou o fundo que o interessava:

Ali na praça de S: Gens, quem mandava, quantos homens defendiam as muralhas, quantos canhões?

O carvoeiro percebeu que a acusação de espionagem era um expediente. O que os bilhostres queriam era informações sobre S. Gens. Logo resolveu mentir; na convicção de que o exagero nas contas sobre a praça imporia respeito aos espanhóis e os faria dar uma volta por fora. E vá de declarar mais de vinte canhões e quatro batalhões, fora os homens da milícia, sob o comando do conde de Fróis, experimentado oficial das guerras de Mazagão e da Índia.

- E as muralhas, rijas?

Reparadinhas de fresco, até tinha vindo um engenheiro de Lisboa...

O marquês passou em torno um olhar triunfante sobre as faces perplexas e inquietadas do seu Estado-Maior. Vinte canhões, hem? E queriam os senhores oficiais passar de largo.

Alguém lhe segredou ao ouvido que o carvoeiro era um rústico, sabia lá ele de canhões e de tropas. Provavelmente exagerava.

Mas Alagon já se via a chegar ao cerco de Bragança com a artilharia e tomadias de S. Gens, pondo em evidência a inépcia dos que, antes dele, haviam subestimado a praça.

Pressentindo algum descrédito entre os oficiais, o carvoeiro dera-se a exagerar ainda mais, a afeiçoar pormenores, com uma grande largueza de gestos e um espírito inventivo que a necessidade mais desdobrava. O marquês já tinha ouvido o que queria e considerava sobejas as enfadonhas descrições do homem. Mandou-o soltar, mais ao miúdo. Ficava o burro que era presa de guerra, e os coelhos também.

- Mas, senhor, ele vai daqui, vai contar tudo ao inimigo...

- É o que se pretende, é justamente o que se pretende

- retorquiu o marquês, sagazmente, sorrindo com finura. Meu dito, meu feito. O carvoeiro embrenhou-se no mato, como quem seguia para Covimonde, assegurou-se de que estava fora do alcance dos estrangeiros, e ala a arrepiar caminho, com fogo no rabo, para endireitar a S. Gens e ir contar tudo ao conde. Talvez lhe desse ao menos o dinheiro do burro...

Foi a entrada afogueada deste carvoeiro que causou grande corropio em S. Gens, como atrás se relatou.

Entretanto, o marquês de Alagon apressava-se a reunir os seus oficiais na tenda de comando. Alguns opinavam que as informações do carvoeiro destoavam do ponto feito pelos raianos do lado de lá que tão bem conheceriam a praça como ele, e por palavras de viés, sem quererem afrontar o comandante, lamentavam que o homem tivesse sido assim solto sem ganhar o castigo merecido por informações falsas.

Mas Alagon fechou a discussão, relembrando o velho preceito de guerra de que nunca se deve deixar uma praça para trás, a ensejar cercos e flagelações, a cortar caminhos, a embaraçar manobras, a arregimentar populações. Por minúscula que fosse S. Gens, havia que rendê-la - o que, aliás, não traria dificuldades por aí além. Para aceitar a rendição, com todas as condições honrosas, ali ficavam designados o conde de Barabodin e o visconde dArponce, em representação das duas nações em presença. E que passassem todos muito boas noites.

 

Tupa que tupa, passo medido e aprumo impante se formou ali ao fundo um grupo que veio vindo para a praça, a chouto de párãda, com os dois oficiais designados à frente seguidos pelos porta-bandeiras, com o lírio francês e o leão espanhol e mais uns cavaleiros bem empenachados e ataviados.

Do alto da torre de S. Gens, o conde de Fróis acompanhava-lhes a progressão com o grande óculo de marinha, desde a formatura junto ao molhe de cavaleiros distante, até ao espaço de terreno em que caracoleavam agora, obra de duas espingardadas dos muros.

Irritou-o o desplante da embaixada. Nada de sinais de paz: antes uma arrogância muito ufana de quem entra em redondel de touros e faz bom corpo para a damaria e basbaques. O conde espanhol, de peito descoberto trazia a mão na anca e manobrava a montada negligentemente, pelo bridão. O francês, de casaca azul, recamada de medalhas, falava-lhe sorrindo, uma das mãos solta, em gestos preciosos. Vinham vindo, e nem para a praça olhavam.

- Eu já lhes dou o ripanso! - murmurou o conde para consigo. E chamou o capitão da guarda.

- Está Vossa Senhoria a ver aquela chusma de cavaleiros que ali vem? Pois quero-os parados que já andaram demasiado em chão português. Dê lá ordem que lhes façam zunir uma descarga aos ouvidos, para lhes travar o desengonço. Pontarias altas! Só Lhes quero o susto!

E o conde assistiu, lá do terreiro, à formatura dos homens e aos silenciosos preparativos da descarga, até que se encostaram aos parapeitos, de armas apontadas.

Entretanto, em volta de S. Gens, e a perder de vista, ora lembrando enormes centopeias de mil patas marchando a compasso, ora sevandijas de movimentos coleantes, ora formigueiros desmanchados e corredios, o exército manobrava. Além, um esquadrão parava em descanso; mais para trás, num rolo de pó, divisavam-se os carros e armões do trem, lentos, complicados e penosos de evolução; uma fila de milicianos desaparecia por detrás dum socalco de terreno para reaparecer mais acolá; uma companhia de granadeiros exibia-se em ordem unida, à voz dum oficial de sabre desembainhado. Por todo o lado, numa turbamulta caótica, longe do tiro de S. Gens, aquele exército, em movimentos dispersos e desencontrados, maquinava para formar o cerco.

Como se nada se passasse, o cortejo ali vinha, mão na anca e gesto gracioso, em modo de passeata vagarosa e despreziva.

Lá em baixo, nos adarves, a meia dúzia de soldados debruçava-se agora sobre as espingardas, dissimulada por detrás dos merlões. O tenente aguardou mais uns instantes que a cavalaria estivesse ao alcance de fogo. Depois bradou uma ordem seca. A descarga ressoou pelo planalto e revolveu no ar uma nuvem de fumo cinzento, lerda e compacta. Lá ao longe, um dos cavaleiros tombou desamparado.

Apesar das instruções dadas pelo oficial de visar um côvado sobre as cabeças, uma das espingardas fez torto, não por falta de apuro do atirador, mas porque os caprichos daquelas armas de alma lisa, se lhes davam para falhar onde era mister acertar, também não se furtavam a acertar onde se tratava de errar a mira.

Lá desabou o cavaleiro de pantanas, desarticulado no pó, de braços em cruz. Digo bem: tudo ocorreu num credo. Ainda os ecos do ribombo se entretinham pelas lombas do terreno já o homem estava em baixo, cavalo perdido, à solta.

Habitualmente, os leitores estarão afeiçoados a um certo dramatismo nestas mortes. Considera-se sempre que o passamento de alguém é um acto tão importante que há-de rodear-se e empavezár-se de trejeitos e ademanes rituais e anunciadóres. Nos filmes de agora, por exemplo, como é que é? Os cavaleiros acusam o golpe; estorcem-se; levam a mão à ferida, balanceiam de frente para trás e de trás para a frente, dobram-se sobre a montaria, descaem a cabeça à altura do arção, e lá acabam por cair em grande espectacularidáde. Na vida real, como esta que se conta é, não ocorrem assim as coisas. Truz! um tiro e já está o cavaleiro no chão; tão simultâneo que nem temos tempo de lhe ver o volteio das botas pelo ar. Destarte se ficou aquele espanhol, ali esbarrondado, de braços e pernas à matroca.

Desfez-se logo a direiteza da coorte, deslizáram de lado algumas montadas, empinou-se uma outra, descompuseram-se os gestos dos cavaleiros. Numa pressa, com olhares de esguelha para o forte, lá alçaram o cadáver para a montada, que deu algum trabalho a recuperar, e ala para trás,!, que se fazia tarde, com mais atenção agora para as muralhas, por cima dos ombros, que a que lhe dedicaram de frente, no caminho de ida.

Tolamente, os de uma companhia, ao longe, enristaram as armas e dispararam uma salva contra a praça, num furtivo e descompassado ziguezágue de luminárias. Veio o estrondo pouco depois das luzes. Não se sentiram as balas que pelo caminho se dispersaram, fora de alcance. Um emplastro de fumaça cobriu os soldados, muito além, denunciando os autores da hostilidade.

E assim começou, mal começada, a luta pela posse de S. Gens. Um ponto negro e indefinido, o chapéu do soldado morto, sinalizava a queda da primeira vítima.

- Ai querem luta? - irritou-se o marquês de Alagon. Pois luta teriam. E rendição sem condições... Mas o conselho de oficiais admitiu que pudesse ter havido equívoco, ou mal- entendido. E conseguiram convencer Alagon a outra embaixada, desta vez mais protocolar, com bandeira branca bem à vista, que o comandante daquela praça não havia de ser tamanho ostrogodo que fuzilasse parlamentários.

Acedeu o marquês, rosnando:

- Pois digam-lhes que os quero formados em frente da praça dentro de duas horas. E o comandante que venha cá em pessoa entregar-me as chaves e a espada.

Pelo caminho, sob a protecção da bandeira branca, já o nobre parlamentário se havia esquecido do recado. Fiava-se mais na sua astúcia e finura de trato que nas basófias do marquês. Não é com vinagre que se apanham moscas. Não havia de ser com arrogâncias que se angariava a praça é se poupava um trabalho de cerco penoso e inútil.

Da torre, o conde, embora contrariado com o desfecho da salva intimidatória, nada disse. Acidentes de guerra, livrasse-se deles quem não andasse metido em alhadas. Distinguia agora a embaixada a caminhar para cá, num trote mais respeitoso, com as insígnias dos regimentos substituídas por uma larga bandeira branca. Desta vez vinham a preceito. Conversasse-se, pois... E aprestou-se para os receber.

Como quer que chegassem os emissários à porta de armas, indagou o tenente lá de cima quem eram e ao que vinham. Mais se sabia... mas a praxe é a praxe e a qualidade de invasor obrigava mais a dar respostas que a formular perguntas.

Que eram o Conde de Barabodin, major do exército de Sua Majestade El-Rei D. Carlos de Espanha, e o senhor dArponce do exército de França, e que vinham parlamentar sobre certos pontos do interesse de ambas as partes. De chapéu na mão, o tenente convidou Suas Excelências a aguardarem, pediu licença e desapareceu-lhes da vista.

Bem tiveram de esperar. O conde de Fróis determinou recebê-los na torre, na presença dos oficiais e do padre. Fardaram cinco sargentos à pressa, cobrindo-os de dragonas e alamares, para acrescentarem número ao comando da praça, com a recomendação de manterem o tricórnio arrumado ao peito e não abrirem a boca. Quando a encenação Lhe pareceu bastante convincente, o conde mandou que o tenente fosse abrir a porta aos estrangeiros.

Correu a grade de ferro, gemeram cabrestantes e correntes, a pesada porta de madeira chapeada rangeu, e deixou entrever o tenente acompanhado por uma porção de cabos e soldados. Vénia para aqui, saudação para acolá e foram chegados à fala. O tenente trazia ordem para que só entrassem os dois oficiais, sem mais companhias, e exibia nas mãos uns trapos pretos para vendar Suas Excelências. Mandado do senhor conde de Fróis, governador da praça.

Os outros fingiram não querer as vendas. Esboçaram gestos de escusa, caretearam trejeitos de enfado. Mas o tenente insistiu, firme, dando cumprimento às suas ordens e explicando que se tratava disso mesmo. Os cavalheiros, enfim, lá se conformaram, relutantemente. O tenente travou cada um pelo braço, um sargento deu voz à escolta, de baio netas relampejantes ao alto, e lá seguiram pelas ruelas de S. Gens, hop, dois, hop, dois, num percurso coleante e arrevezado que era o triplo do necessário.

Distanciados à frente, dois soldados iam impondo respeito e circunspecção ao mulherame e rapazio que se apinhava por soleiras e lancis e a quem o espírito pedia chufas aos estrangeiros.

Entrados na torre, após voltas e mais voltas, foi-lhes retirada a venda. Uma guarda de honra apresentou armas, e armas foram apresentadas, luzidamente, pelas sentinelas expressamente dispostas nos patamares da escada de caracol.

Com solene aparato, junto da grande mesa, os oficiais verdadeiros ao lado, o padre próximo, os subalternos promovidos para o acto enfileirados rés a uma parede, o governador, distinguindo-se como sempre pela modéstia e baço do trajo, recebeu os emissários à porta e conduziu-os às duas enormes poltronas, forradas de damasco vermelho, que o padre tinha emprestado para a ocasião. Sentou-se do outro lado e ficou a ouvir, com o queixo apoiado no cavo da mão, como era seu hábito. Muito hirto, em pé, o tenente fazia vezes de intérprete.

O espanhol encetou as conversações com os protestos: protesto pela imposição da venda, confrontando, na sua opinião, as cortesias habituais em tais situações, e protesto pelo abate do soldado da escolta, infringindo o respeito que se deve aos parlamentários observado mesmo pelos turcos. Possuía o espanhol a certeza de que tais cometimentos não tinham sido ordenados pelo conde, cuja fidalguia era espelho da nobreza do Reino de Portugal e cujo merecimento era sobejamente conhecido, mesmo para além da raia, mas antes se deviam a abusos e sobrancerias de subalternos que cumpriria castigar.

Ouvida a tradução, replicou o conde que lhe cabia desempenhar o serviço do seu rei consoante mais conveniente o achasse para a manutenção daquela praça de armas, como Sua Excelência decerto procederia em matéria de serviço do seu. E nem via que, recebendo-os dentro de portas a obrigação de venda fosse gravosa ou amesquinhadora, antes o cumprimento dum dever que tinha, como contrapartida, o da parte contrária de tudo fixar e anotar. Aliás, o costume impunha que se falasse ao parlamentário das muralhas ou, quando muito, do limiar da porta de armas, e ele transcendera muito essa obrigação, admitindo-os no seu quartel-general, pela merecida deferência que se lhe impunha, tratando-se de figuras tão ilustres e distintas, ornamentos de dois reinos a vários títulos gloriosos.

O padre ouvia, ouvia, e pasmava daquelas galimatias, daquele parlapié. Noutras ocasiões, havia arrenegado da instrução que conde pai mandara administrar ao filho, não o deixando pelos minuetes, pela esgrima e pela alta escola, mas escarafunchando nos latinórios e no João de Barros, à custa da paciência, pertinácia e múltiplos credos na boca dele próprio. Quando o via com jactâncias e opiniões e toleimas considerava amiúde que mais valera permanecer o conde fidalgamente iletrádo, como os demais, que havia sempre quem lhe assinasse a rogo os mandados. Sabedoria nos fidalgos era uma excrecência sobeja que só inçava de fumos o entendimento e de enredos as atitudes.

Mas neste momento fugaz - fugaz porque já logo cederá à primeira forma - admirava as palavras veladas, orgulhava-se do discípulo, e acompanhava com um melífluo riso o expender de bons modos entre aqueles cavalheiros. bem-educados.

Formulados e respondidos os protestos, entrou o gentil-homem no fundo da questão com o francês ao lado, muito direito, que sem perceber patavina do que se dizia, optara por uma sisuda compenetração de pau.

O espanhol nem atentou nas instruções ameaçadoras que trazia do seu comandante: em jeito composto e floreádo, representou ao conde que a desproporção das tropas em presença e a queda recente de Miranda impunham, por simples actuação das leis da guerra, a rendição da praça, e ele ali estava, plenipotenciário, disposto a negociá-la com todas as benesses e honrarias que Sua Excelência desejasse, incluindo a conservação das armas pelos oficiais.

O conde mostrou-se atónito e retorquiu que essas leis da guerra não as conhecia ele, nem sabia quem as tinha decretado. Sabia, sim, que tinha encargo do seu rei de defender a praça e não de entregá-la. Essa a lei que para ele contava.

Neste ponto, a voz do emissário subiu de tom e endureceu. Lembrou ao conde que assim assumia a responsabilidade pelo sofrimento da população, cuja segurança também lhe cabia acautelar, tanto mais que não haveria que esperar misericórdia ou complacência, depois duma resistência que, pela sua manifesta inutilidade, bem poderia ser tida por afrontosa.

O conde de Fróis puxou pelos pergaminhos: evocou os seus ancestrais, pelejadores dos cercos de Dio e das Praças de África que nunca quiseram esperar mercê de quem quer que fosse, montasse a tal ou tal o número dos inimigos.

E o espanhol: que não se tratava agora de combater chusmas de pretos em horda, mas de exércitos europeus, civilizados e bem armados.

E o Conde: Menos se queria haver com os tais pretos, como o emissário pitorescamente referia, que com a tropa rota, cansada e maltrapida que lhe manquejava em volta das muralhas.

Petrificou-se, pesado, o silêncio. Ambos os interlocutores, ao mesmo tempo, compreenderam que se tinham excedido, e já tombado dos limites da cortesia. O tradutor improvisado, de mãos atrás das costas, olhava para o tecto abobadado, com embaraço. O francês, na mesma, mudo e quedo, sem entender nada daqueles arrazoados. A coorte de oficiais, de tricórnios ao peito mantinha-se muito digna e rígida, ciente de lhe não competir avaliar as consequências do diálogo. E o padre? O padre já o vimos solene e circunspecto, de queixo alevantado, a boca crispada e o sobrolho oblíquo, já o vimos enlevado, de mão cruzada no peito e cabeça levemente inclinada, as comissuras dos lábios ligeiramente alçadas num princípio de sorrir, já o vimos a embaciar-se, à medida que o diálogo se ensombrava... e vêmo-lo agora a passar a mão pelo rosto, de olhos esbugalhados e lábios formados em redondo, numa apreensão muda. Contava ainda que o Conde caísse em si e as próximas palavras fossem de apaziguamento, ou, pelo menos, de contenção.

Mas o conde de Fróis, levantando as palmas das mãos num gesto gracioso, dizia agora, rompendo aquela quietação:

- Aliás, se de rendição se trata, comunicai lá a quem vos manda que rendição aceito eu dessas tropas que ousaram entrar em terra portuguesa sem convite del-Rei.

Calou-se o intérprete, impôs-se novo silêncio, ainda mais espesso e embaraçoso, suspirou e levantou-se o oficial espanhol:

- Pois, assim sendo, nada mais tenho a fazer aqui. Ponhamos este negócio nas mãos de Deus que bem queira guardar Vossa Excelência.

- O mesmo digo eu - respondeu o conde -. Que Deus o acompanhe.

Seguiram-se cumprimentos afectados e ríspidos. O espanhol mal conseguia disfarçar o azedume. Não tinha sido bem sucedido na sua missão. Em vez de uma praça rendida, para glória do marquês de Alagon, trazia a perspectiva de um cerco demorado e implicativo. Ainda que não tivesse dúvidas sobre o desfecho do combate, o certo é que o saque havia de oferecer pouco mais de panelas de ferro e louça de barro, sem recompensar o esforço militar. E tudo por causa daquele garoto inesperado, arrogante, impante de basófia, que nada sabia das normas que devem reger as guerras. Desceu as escadas de caracol quase a correr, teve um trejeito de impaciência quando, de novo, lhe vendaram os olhos, e lá seguiu, sob escolta, tentando explicar ao francês o que se passara:

- Não entrega a praça. Quer guerra. Está a armar ao pingarelho...

No salão da torre, desarmou-se a solenidade, com cada um a voltar aos seus serviços. O padre postou-se em frente do conde, que se preparava para abalar também.

- Vossa Excelência não reúne conselho!

- Não, senhor padre, não faço tenção. Alguma novidade?

O padre engoliu em seco e titubeou uma dúvida qualquer.

Mas já o Conde o interrompia:

- E que me diz Vossa Paternidade àquele pedantismo do espanhol?

O padre hesitou, passando os dedos pela face, e depois esboçou um gesto vago no ar, de mão em círculo, como quem balanceia uma esfera:

- Creio que andou Vossa Excelência muito bem, como era, aliás, de esperar... Mas temo-me de que ele tenha entendido mal as palavras de Vossa Excelência, que se destinavam, por certo, a obter as condições mais vantajosas para um... enfim, um concerto sobre a praça.

- Não haverá qualquer concerto sobre a praça, senhor capelão. Se o espanhol compreendeu assim, então ficámos bem entendidos.

- Mas, senhor, há que ponderar... a desproporção de forças. . a queda de Miranda... Não sei se o melhor serviço del-Rei...

- Senhor padre - cortou o conde com as palavras bem marcadas, um dedo espetado à altura do nariz do capelão - compenetre-se Vossa Paternidade disto: Se o mesmo Deus de Israel viesse em guerra contra S. Gens, eu não o deixaria passar daquela porta.

O padre abismou-se, num grande espanto, e ainda não tinha sobrevindo a indignação, já os passos do conde ressoavam longe pelas escadas, em menos do credo que veio à boca do sacerdote que, se fosse menos versado em Eutrópio que em literatura portuguesa, lembraria, com Gil Vicente que ... he errar mandar o soberbo a negociar cousas que ham de ser fetas per manha...

 

Os trabalhos de sítio em volta de S. Gens foram-se desenrolando, já durante a tarde, sem grande convicção. Cortaram-se árvores, armaram-se tendas, foram-se improvisando manteletes, começava-se a escavar aqui uma trincheira para logo a abandonar e retomar mais além, terraplanavam-se caminhos para as peças, a poder de fojos secos e emplastros de cana; determinavam-se posições, manobrava-se o trem, transportavam-se, incertamente, caixões de munições, rolavam-se barricas de pólvora para cavas do terreno para logo as mandar retirar e dispor noutro paiol e a seguir determinar outro mais avezado, arredado das investidas ou manhas dos defensores da praça. Os regimentos iam e vinham, descansavam, sentados, tornavam a marchar, formavam, derivavam para a frente, obliquavam para trás, ocupavam esta lomba para a seguir a desocuparem e se irem dispor noutro terreno, dispersavam-se aqui, reagrupavam-se acolá, este seguia em boa ordem de parada, aquele flauteava, desmanchado, um pouco à toa.

Lá das muralhas, o conde sentiu que já era altura de participar naquela azáfama. E a artilharia de S. Gens retumbou pela primeira vez, com algum êxito, apropriando-se da iniciativa do fogo. Os plainos em volta estavam minuciosamente tabelados e aconteceu que uma bateria castelhana foi desprevenidamente ocupar um outeiro que as peças de S. Gens enfiavam. O conde deixou-os instalar o canhão, a poder de músculo de azêmola, dispor o trem, as munições e os manteletes, e ordenou o tiro. Durante quase meia hora, duas peças de S. Gens relampejaram, numa espessa fumarada, e varejaram o outeiro em que os espanhóis se haviam colocado, revolvendo, até aos céus, cachões de terra e pedras.

Os danos não foram mortíferos. Mas o susto desencabrestou à solta naquele sector, e os inimigos tiveram de retirar a peça, numa tremenda confusão de berros, quedas e contusões, dispersões de gestos e de manobras, num solo incerto que tremia e balanceava ao som dos pelouros da praça.

Atarantado, durante os preparos, o padre não sabia que fazer. Afigurou-se-lhe que os baixos da torre ofereceriam maior segurança, pela espessura das paredes e pela proximidade do comando e ali se foi deixando ficar, entre a soldadesca que corria de um sítio para outro. Mas, de repente, o tiroteio rebentou, e as paredes estremeceram com o tonitroar dos estampidos. Era um canhão ao perto, apontado por detrás da torre, que disparava. O padre acomodou-se a um canto, incomodado dos estrondos, o coração a bater solto, mas já um grupo de soldados, transportando uma padiola de munições o empurrava sem cerimónia, numa corrida. Deu uns passos tímidos e quase foi atropelado por dois marmanjos que vinham desabalados pelas escadas abaixo, com qualquer destino marcado. E os estampidos sucediam-se, atroadores, o fim do mundo. Um sargento tropeçou no padre, descaiu-se instintivamente com uma obscenidade qualquer, mas logo:

- Vossa Paternidade aqui está mal. Os soldados estorvam-no. Talvez ir para casa, ou para a igreja, que tem bons muros...

Os soldados estorvavam-no... Queria o bom sargento dizer na sua que ele é que estava a estorvar a tropa. E lá saiu, muito amedrontado, quase sem dar pelo clamor de vivas e regozijos que se levantou das muralhas quando os espanhóis foram, enfim, desalojados das suas posições.

Ia indo e olhando para os céus com desconfiança, não viesse lá pelouro desencabrestado ou cornija derrubada a dar-lhe em cima. Procurou caminhos do interior do povoado, sem se atrever a aproximar-se da cintura de ronda. A população agrupava-se pelas portas, atenta aos estampidos, com apreensão. Acorriam à sua passagem e pediam-lhe a bênção. Um velho, de vasto chapeirão sebento, descaído sobre o ombro, saudou-o com um grande sorriso desdentado, mostrando o punho:

- Então, senhor padre, estamos a dar-lhes com força, hem?

- Assim Deus nos ajude, assim Deus nos ajude - resmorrinhou o padre, sem coração para entusiasmos. E, livrando- se dos grupos, endireitou o passo a caminho de casa, hesitando, farejando nas esquinas que lhe pareciam encontradiças aos tiros de fora.

Brízeda andava às voltas com os ladrilhos do vestíbulo, esfregando e esfregando. O padre deixou-se cair sobre um escabelo de pau, cansado e ofegante. A velha tinha saudado entre dentes e agora aplicava-se numa ensaboadela frenética, sem lhe prestar qualquer atenção. Mas ao padre apetecia-lhe conversa, desabafos:

- Se pensas que isto é altura de esbanjar sabão...

Brízeda não respondeu logo. Encharcava a escova no balde, passava-lhe a massa de sabão e castigava o pavimento, com movimentos giratórios, desembaraçados e firmes, estendendo à sua frente um círculo irregular, erisado de brancuras borbulhantes.

- Sabão e água... - insistiu o padre com um estalo de língua aborrecido. - Ainda os havemos de pedir por boca.

- Ora - respondeu a criada, após uma grande pausa preenchida com o criche-criche da escova - Ora, diz que não falta nada na praça. Pelo menos até ao Inverno que é quando os espanhóis se irão embora...

- Vão-se embora? - admirou-se o padre.

- Vão, pois! - respondeu Brízeda, com convicção. - Quem é que tem alma para o Inverno lá fora? Verá o senhor padre. O Inverno a chegar e eles a desandarem...

- Mas, ó mulher, para o Inverno ainda faltam seis meses!

- E que tem? O senhor conde aguenta-se, o senhor conde sabe defender-se: Ainda há bocado lhes deu uma tunda que foram todos a correr de rabos encolhidos.

O padre estava enfurecido com a obstinação da mulher. A praça cercada, canhoneios, tiros, perigos, e a velha, feita parva, ali, a lavar o chão, com optimismos arrogantes. Repontou:

- Isso julgas tu agora. Mas quando começares a ver as paredes a desabarem, as casas a arder, quando vier a fome e a sede...

- O senhor conde sabe o que está a fazer. É travar-lhes o passo. Bem posto! A que vêm esses estrangeiros? Isto não é a terra deles...

E zape-zape, rape-rape, trapa-trapa, Brízeda sem despegar do labor.

- Ora, mulherzinha, não querem lá ver! Sabes lá tu o que dizes. A falar aí com desfaçatez, como um livro aberto e nem distingues uma letra gorda.

O padre mostrava-se implicativo, provocatório, já com a mostarda ao rés do nariz. Vinha ele apreensivo, preocupado, ponderando situações, eventualidades, e aqueles labrostes, rudes e broncos, pareciam todos feitos da massa teimosa do conde: pois que se resistisse, que estrangeiros eram e fora de lei... Ora!

Destemperou contra Brízeda:

- E quem é que a manda estar para aí com sentenças? Tem o curso da academia? Também anda na tropa? Gosta de tiros, de salsifré, gosta? E o Pacto de Família, também está informada sobre o Pacto de Família?

A mulher, muito brusca, e sem despegar da azáfama foi dizendo que aquilo era um sentir, que era do coração, que também vale! E que nada teria dito se o senhor capelão não tivesse puxado a conversa.

- Sabe que lhe diga, sabe? O senhor conde de Fróis...

- O padre calou-se e hesitou, coçando o queixo. Contaria à Brízeda, não contaria? Por uma banda, era bom que se fosse sabendo; por outra, era prudente não aparecer ele próprio como divulgador, que o seguro morreu de velho. E, mudando de tom:

- Ainda há pouco me contaram, sabes o quê? - Brízeda, amuada, levantava-se agora, de nariz muito arrebitado, com o balde numa mão e a escova na outra. Teve um vago encolher de ombros e ia seguir caminho. Mas já o padre dizia, com um suspiro:

- Pois contaram-me que há gente nesta praça - e gente de alta posição - que diz que nem admite Deus cá dentro quanto mais espanhóis!

- Jesus! - sobressaltou-se a mulher pousando o balde.

- Pois benze-te, benze-te, que o caso é de respeito...

E o padre, a trautear, deixou a mulher ali especada, fechou-se no quarto, aparou a pena de pato, deu-lhe tinta, e lançou no papel uma arguta resposta de Polícrates: "Desde que são sete os atributos da temperança, convém a saber... "

Logo ao segundo dia do cerco o marquês de Alagon cometeu um pecado que está proibido a militares e a jogadores de xadrez: subestimou o adversário. Ainda sem as posições consolidadas, ainda sem rotina de sítio, ainda sem tenteios exploratórios, ainda sem estruturas de apoio, ainda sem logísticas operacionais, deliberou um assalto em massa, a meio do dia. Contava com a atabalhoação psicológica do inimigo, a surpresa e a confusão, para lhe esmorecer o ânimo.

Concentrou tropas ostensivas para diversão pelo lado norte da praça, abriu um fogo de artilharia disperso e aleatório, enquanto ensejava, meio ocultado por espaldões levantados durante a noite, o ataque contra a porta de armas. O sentido da manobra ficava muito àquem da argúcia do conde, que compreendeu, com duas observações, o despropósito da diversão, e entendeu reforçar a guarda da porta, tendo-lhe deslocado para os adarves, penosa e lentamente, mais uma peça, dispensável noutro local.

Um pelotão, na muralha de trás, entreteve a milícia contrária, solta e pouco convicta, com descargas de salva, mais barulhentas que danosas. Os assaltantes nem escadas traziam, os muros eram altos, não se figurava qualquer risco de penetrarem na praça por aquela banda. De maneira que o conde se quedou, com o mais da tropa escondida atrás das ameias e a artilharia aparelhada, à espera que surgisse a acção principal, sem fazer grande caso do canhoneio inimigo, que não obtinha contrapartidas da trovoada que fornecia.

Saídos das trincheiras ainda de terras frouxas, os soldados formaram, enfim, ao longe, de estandarte e charanga, e vieram-se marchando para a praça, em ordem unida, de baionetas enristadas. Em breve, num ratatchim mais e mais audível, os plainos em frente estavam cobertos de homens a marchar lentamente, sincopadamente, mais e mais perto. Lá que a progressão era vistosa e impressionante, era. Mas o conde apenas os queria ao alcance do tiro útil.

Quando foi a altura, mandou dar ordem de fogo, ecoaram, desencontradas, as vozes, relampejaram e troaram os canhões, de entremeio com as espingardas em salva rotativa.

As fileiras ondularam, ziguezaguearam, quebraram contactos, descompassou-se a marcha, por entre o pandemónio levantado pelas bombardas, mas o avanço prosseguiu. A cem braças, a fila da frente ajoelhou, mas não chegou a apontar as armas. Um daqueles inexplicáveis e imprevisíveis rompantes de pânico deu nas hostes assaltantes. As filas redemoinharam, dispersaram, tresmalharam-se, desfizeram-se de todo. E o que antes era um listrado de manchas coloridas, avançando a compasso, tornou-se num formigueiro confuso de homens a derramarem-se pelos campos com grande clamor, sem destino, em novelos frenéticos, milhentos calcanhares a darem em milhentos traseiros.

E enquanto isto, no lado Norte, continuava uma troca de tiros medida, disciplinada e ineficaz, até que os estrangeiros foram mandados retirar em boa ordem. Foram poucas as baixas, mais tarde recolhidas por populares timoratos sob bandeiras brancas. Da praça, ninguém sequer ferido. Nessa noite o Conde festejou a vitória na torre, com vinho velho. Não convidou o padre.

Alagon enraivou-se com a derrota que logo atribuiu a um dos seus ajudantes de campo. E em vez de entradas de leão para saídas de sendeiro, optou definitivamente por entrar de sendeiro, para sair de leão.

Montar sítio a uma praça é um jogo lento, de paciência e tentame, que requer uma sábia aliança com o tempo. O fruto há-de cair de maduro: os sitiantes abanarão a árvore de vez em quando, e é quanto lhes basta. Fique para trás o tempo dos arruídos e espalhafatos. Trata-se de cercar, querem cerco? Cerquemos, pois, comandava Alagon, como se fora recém-chegado e não lhe coubera parte nos alardes da véspera.

De maneira que a tropa se aplicou mais no escarafuncho das trincheiras, nos reparos e defesas e na perfeita colocação das baterias. Do forte, procuravam estorvar o melhor que podiam. Munições não faltavam. E em lhes parecendo que espanhóis e franceses forcejavam de uma banda, vá de metralha para essa banda, a ponto de haver canhão que disparou durante todo um dia, descontando as pausas necessárias para o arrefecimento, que estava quase em brasa e em vias de estalar. Essa euforia de fogachos não tornou a repetir-se. Deu lugar à prudência, ao compasso calculado.

A pouco e pouco, a população, já afeita aos anteriores exercícios do conde, que nunca deixara a artilharia calada por muito tempo, ia-se afeiçoando ao ruído. E o mesmo aconteceu com o padre a quem caiu mal aquela primeira debandada do inimigo, que animava ainda mais o governador a segurar-se à praça. Uma vitória de Pirro, pensava ele quando os populares de olhos luzidos, lhe contavam o feito daquela tarde. - Um brilharete a pagar por todos!

Pensava mas não dizia. Nem sempre era habilidoso no trato das gentes - do que muito se arrepiava - mas guardava aquele resguardo mínimo que lhe vinha já do seminário, dos percalços da vida e da idade cinquentona. Era ocasião de euforias? O padre fazia que contemporizava.

Como todos, por mais timorato, ia-se afazendo àquele ramerrão de arcabuzadas e bombardeios, apenas com um sobressalto ou outro, quando caía em si. Até então, com efeito, para além do barulho, poucos rebates se haviam sentido na praça. Um palheiro destelhado, uma ou outra cratera nas ruas; tudo devido às parábolas caprichosas do tiro, que o inimigo queria rasant, mas que, não raro, traçava arcos imprevisíveis, impossíveis de obter, se fosse a mira calculada para isso.

O padre circulava, pois, mais afoito e pouco se temia do sopro das balas. Aprenderá que iam altas e fora de causar dano. Mais uns dias volvidos, e nem por elas daria.

Alagon, entretanto tinha disposto as suas peças em linha, sofrivelmente abrigadas do fogo da praça e aplicara-se a bater um pano de muro que, à vista, lhe parecia mais vulnerável. Procurava obter uma derrocada, uma brecha, que lhe permitisse o assalto final. Mais uma vez, mal avisado andou: Aquele muro longo, alto e coleante, que mais parecia um tem-te-não-caias de pedras sobrepostas, estava bem escorado por dentro com um extenso e profundo lastro de casas entulhadas. Bem podia a artilharia varejá-lo, entortar-lhe o aprumo, ou arrepanhar-lhe algumas pedras. Aluir, talvez só lá para as calendas gregas...

Durante alguns dias, aquele lado da praça estremeceu e ribombou ao som dos canhoneios, num levantamento de caliças e poeiras. De dentro, respondiam, a espaços, visando a bataria espanhola, sem na embaraçarem grandemente. Farto do faz-que-anda-mas-não-anda, Alagon tomou conselho, ao sol-pôr, e entrou a dispersar a artilharia, com custosas manobras nocturnas.

O traçado das trincheiras com a ajuda forçada da população espanhola da raia, recrutada a trouxe-mouxe, ia cada vez mais cavado e ramificado. Uma vala profunda, ladeada de lombas de terra, com derivações inextricáveis, chegava- se mais e mais perto, parecendo que ás bombardadas dos defensores, mais ajudavam a escarvar que estorvavam. As peças foram arrastadas por azémolas derreádas para trás de espaldões altos e abrigadas dos pelouros de ferro entre os caixões e a cestaria de vime. O tiro deixou as muralhas em paz e passou a alvejar a vila. E se, de início as balas corriam altas, às vezes sobrevoando a praça para caírem do lado de lá, ou desabavam soltas, já sem força, pouco a pouco, os artilheiros inimigos foram corrigindo a pontaria e o relativo sossego dos habitantes de S. Gens tornou-se num martírio.

Nunca se sabia, onde havia de cair o próximo projéctil. Atingida por duas vezes, quase ao mesmo tempo, desmentindo a velha asserção de que um tiro nunca reincide no mesmo lugar, uma casa derrocou, com fragor. Morreu gente. Houve pânico na vizinhança. As mulheres e os velhos começaram a tomar precauções, a procurar as caves e os andares térreos, ou os edifícios que, bem ou mal, tinham reputação de solidez.

Na altura em que a saraivada bateu mais forte, estava o padre na igreja, participando numa ladaínha pontificada pelo pároco, no meio do mulherio devoto. O canhoneio só muito de espaço deixava ouvir o cicio das invocações! Os ribombos mais violentos causavam suspiros, sobressaltos, exuberâncias de religiosidade. O fragor de um impacte próximo sacudiu por instantes os alicerces do templo. Oscilaram os lampadários, deslocaram-se os santos, estremeceu o sacrário. Houve empurrões, correrias, curiosidades de saber onde tinha sido o embate. Entre aquela gente, mísera e aterrorizada, o padre sentiu-se ainda mais íntimo, mais mesquinho. Mas onde a tranquilidade possível, onde a segurança, no meio duma praça assolada? E a cólera sobrelevava sempre os seus íntimos apelos à resignação...

Mas o pároco avistava-o, despachava o responsório com um sinal da cruz precipitado e lançava-se agora ao seu encontro, em grandes passadas.

Vinha indignado, sempre com gestos atirados para o ar:

- Ainda bem que encontro Vossa Paternidade! Isto é de bradar aos céus! Querem que eu reduza os participantes nos funerais aos familiares, e que abrevie as cerimónias. Que não pode haver ajuntamentos... E mandaram-me dizer a missa numa cave. Imagine Vossa Reverência, a Santa Missa numa adega... Eu recuso-me.

- Sinais dos tempos... - respondeu o capelão, vagamente, sem querer comprometer-se muito.

Mas o outro prosseguia, naquela sarabanda de gesticulações ásperas que lhe era comum:

- Uma desgraça! Uma família inteira ceifada! Eles não se convencem, não se compenetram de que as razões das coisas são mais sobrenaturais que humanas. Deus intervém, Deus castiga, quando o ofendem...

- E basto tem sido Ele ofendido nos tempos que correm... - suspirou o padre.

O pároco travou-o por um braço e baixou o tom do vozeirão, deixando, no entanto, à solta, aquele sarilhar de gestos que era mais forte que ele:

- Há blasfémia!

E olhou em volta, desconfiado. Deu um passo atrás e, perante a mudez do interlocutor voltou a investir:

- Blasfémia e das grandes! Sabe Vossa Reverência o que corre? Que alguém terá dito que não se dava entrada aos espanhóis nem que viessem comandos pelo próprio Jesus Cristo, Nosso Senhor. Que esperam hem? Assim, que podem esperar?

O capelão mostrou-se horrorizado. Mas como? Quem seria o alarve?

- Iria jurar que foi o capitão dos dragões, aquele de Lisboa. Muito bem falante, a fingir de devoto... mas cá para mim, não tem boa pinta...

- Ah... - exclamou o padre, pensativo e um tudo-nada desiludido com o alcance dedutivo do outro. Insensivelmente tinham saído da igreja e conversavam agora no adro, muito juntos. O canhoneio havia cessado, o pároco falava e esbracejava, o capelão olhava de quando em quando para cima, já enfadado com a perlenga e as queixas do colega.

De súbito, uma detonação ao longe, e um sopro fendeu o ar, logo seguido dum estrondo. Ambos os eclesiásticos se dobraram, instintivamente, de mãos na cabeça.

- Caiu perto! - disse o padre, procurando com os olhos o local do impacte. Uma nuvem de pó surgia duma esquina revoluteando. Depois, o som arrastado duma derrocada. O padre correu, sem atender ao outro que o não largava, com queixas e recriminações, e vãs evocações do Altíssimo. Já uma pequena multidão se concentrava frente a uma casa, atingida pelo pelouro que perfurara o telhado para ir derrubar uma parede interior. Uma mulher ainda moça apareceu à ombreira com uma criança nos braços. Olhava, aterrorizada para os circunstantes, a tremer, coberta de caliça e poeira. A criança chorava. Ampararam-na. Sem novidade. Estavam ambos ilesos.

- Milagre! - sustentou o pároco de olhos brilhantes.

- Agradece ao senhor o ter-te poupado, rapariga. Mas nova derrocada, no interior da casa soprou poeiras e fiapos por todas as frinchas, suscitando um rápido movimento de recuo dos presentes.

- É um inferno, isto é um inferno, senhores padres! - queixou-se um homem, dirigindo-se aos sacerdotes, de cabeça a abanar.

Mas já dois soldados, de baioneta armada, vinham ordenar que se dispersasse o concurso. Houve trocas de palavras agastadas. Prudentemente, os padres regressaram à igreja deitando a correr quando os ares de novo se carregaram de ribombos.

Desta vez era S. Gens que respondia, com todos os canhões à uma. A tenaz do inimigo ia-se apertando, de dia para dia. O conde não podia deixá-los tomar terreno. Em mangas de camisa, tisnado de pólvora e sebo, como qualquer soldado, andava pelas ameias, animando os mestres-artilheiros, dando ordens directas, em muitos casos. Chegaram a vê-lo lançar mão duma alavanca para colocar uma peça em posição, dando serventia aos serventes.

Se a população de S. Gens já se arrepelava com a chuva de balas de ferro fundido, muito pior seria a situação quando o inimigo segurasse posições que lhe permitissem varar as ameias de metralha ou lançar sobre as casas rolos de estopa incendiada. A verdade é que progredia mais célere do que o previsto e a artilharia de S. Gens, a mais de ferro enrolado, obrigada a grandes paragens de arrefecimento, não se mostrava eficaz bastante para deter o trabalho formigueiro dos entrincheiramentos de cerco.

Do alto da torre, o conde seguia, apreensivo o emaranhar das fortificações de sítio. O espaço em volta, numa grande extensão, ia-se cobrindo de tendas, paliçadas, espaldões, valas e trincheiras, numa rede intrincada, de que algumas malhas, ainda a distância respeitável, se iam lançando já, inexoravelmente, em direcção aos muros, da parte da velha porta de armas.

A tropa formada de há dias, dera lugar a uma multidão abelheira, que numa azáfama pertinaz, corria, transportava, edificava, escavava, sulcando no terreno, aplicadamente, os traços de um plano previamente gizado. E, de longe, dispostas em torno, em elevações ouriçadas de manteletes e estacarias, as baterias, numa soltura de fumaça e estrondo fustigavam a praça, enquanto se lhe iam preparando poisos para uma aproximação progressiva.

O conde temia-se, em particular, daquelas duas valas, muito direitas, que vincavam fundo a terra e que se vinham aproximando das muralhas. O inimigo trabalhava em profundidade e pouco dano recebia dos pelouros rasantes das peças de S. Gens, menos ainda das descargas de espingardaria.

Entretanto, o governador procurava tirar todo o rendimento útil das poucas peças de que dispunha e zelava para que se regulasse o melhor possível a cadência de tiro. À noite, com grande esforço de homens e animais, deslocava os pesados reparos para onde as observações do dia indicassem maior conveniência de fogo. Tinha agora três peças de ferro fundido, as únicas de que dispunha, apontadas por cima da porta, a baterem sistematicamente, com o inêxito que se relatou, os terrenos em frente.

O capitão de dragões apresentava de quando em quando o ponto da situação na praça, procurando acertar no número de pelouros caídos e nas destruições e baixas provocadas. Seis casas atingidas, uma derrubada, um muro abatido, uma família soterrada, feridos ligeiros. Sem novidade.

- E os ânimos, como vão? - indagava o conde.

- Ora, vão bem, senhor conde. Um cerco é um cerco... O capitão não era bem psicólogo, nem essa agudeza lhe competia. O conde melhor andaria se perguntasse do moral da população a outro. Mas existia, a despeito da completa disparidade de feitios e de condição social, uma grande afinidade entre o governador e o seu capitão privativo: ambos gostavam da guerra e se empenhavam nela com uma obstinação juvenil, com a fixidez com que o jogador se senta em frente da roleta, em completo desprezo pelas circunstâncias do mundo. Procurou o conde conselho no capitão? Mal avisado andou.

Com efeito, o castigo daquele dia de bombardeamento rijo, havia dissipado as euforias de antes, quando espanhóis e franceses se viram forçados a debandar e abandonar posições, ou quando flagelaram os muros com estrondo e sem resultado. O combate transferira-se para dentro do povoado. Todos estavam em risco, sujeitos à álea das bombardas. E se os ribombos após alguns sobressaltos, eram adoptados pela habituação dos homens, já não havia meio de se acostumarem à chuva de ferro que inopinadamente caía dos céus. E todos pressentiam que o pior estava ainda para chegar...

Ao cair da noite, suspenso o bombardeamento, o padre afoitou- se até casa. Apoiado das muralhas, um guincho de madeira, descia um canhão para um carro, tirado a quatro mulas. Mais uma vez o Conde se preparava para mudar a disposição das peças, trabalho para toda uma noite, de canseiras e esforços. Valeria a pena? Grupos de soldados, por aqui e por além, procuravam balas de canhão que pudessem ser devolvidas ao inimigo. E ia pela praça uma grande paz, uma grande serenidade, fora de toda a aparência de guerra, de agitação, de luta.

O padre foi dar com a Brízeda muito murcha, sentada num mocho de pau, junto ao lar. Levantou-se e ficou, de mãos pendidas, cabeça baixa. Depois serviu-lhe a refeição numa mudez soturna, abatida.

Brízeda nunca fora muito faladora. O padre sempre a conhecera de feitio brusco e repontão. Mas aquele silêncio passava das normas.

- Estará amuada? - pensou, enquanto raspava a casca do queijo. - Deve ter levado a mal aquilo de outro dia... Mas ele bem a desarmara, contando a blasfémia do conde. E o certo é que ela não se tinha calado, tinha badalado sabe-se lá a quem. Importante é que o pároco já sabia. Boa da Brízeda! E o padre, saboreando o queijo cabreiro, sentiu uma ponta de ternura pela criada.

- Então, Brízeda? Embezerraste? Anima-te, que esta vida são dois dias...

A mulher encolheu vagamente os ombros, ajeitou uns trastes no aparador, e disse de lá, muito sumidamente.

- Caíram duas balas no quintal. Uma abriu um grande buraco e a outra lascou a amendoeira.

O padre continuou a comer, em silêncio e este resto do queijo já lhe não soube tão bem. Podia haver um canhão a enfiar aquele sítio. Mas à apreensão veio misturar-se algum regozijo pelo desconsolo da mulher.

- Amanhã pedes uns sacos de areia à tropa. Já comunicaste as balas?

Que já. E, num rompante:

- Oh, senhor padre, estou cá a magicar se não seria melhor dar-se a praça. Vai tanto sofrimento, por aí...

- Hum, e vai ser muito pior, muito pior - respondeu o padre, levantando-se. Calculava que a meio da noite, como ia sendo costume, rompesse novo tiroteio, e tinha toda a vantagem em estar já bem dormido na altura.

 

Alagon, entretanto, impacientava-se. Se aos de dentro, aquelas trincheiras pareciam correr a mata-cavalos, como se sulcadas por um arado descomunal, ao comandante espanhol parecia-lhe que se marcava passo, que a tropa lazeirava, que o cerco se preparava para a eternidade. Às imprecações, respondiam-lhe que se ia fazendo o possível, que havia pouca gente para montar um sítio em forma, poucos canhões.

- Então que se vá por essas aldeias da raia e que se tragam homens - exaltava-se o marquês.

Que já se havia feito, que já trabalhavam muitos milicianos nas obras, mas que se poderia recrutar ainda muitos mais, querendo Vossa Excelência. E ninguém se atreveu a relatar que metade dos milicianos assim recrutados desertavam ao coberto da noite.

O parlamentário espanhol tinha feito das conversações com o conde de Fróis um relato muito ao seu jeito. Descrevera-o como um jovem maníaco, sanguinário, com os seus quês de Calígula e fieliogábalo. Deu a entender - desaforando miseravelmente a verdade - que por um triz não tinha sido fuzilado, a um canto das muralhas. E contava, como se as tivesse dito na ocasião, grandes tiradas, veementes, dignas de Cícero ou Plutarco.

Alagon, que não tinha nascido ontem, dava algum desconto àquelas pinturas cheias de dramatismo e apontava o dedo nodoso, resmoneando:

- Pois não lhe receberei a espada. Mando um tenente. Há-de render-se a um tenente...

Os oficiais sorriam, aduladores.

- Ou mesmo a um sargento! - lisongeou um major, avançando a face num sorriso obsequioso.

- Não, a um sargento não - agastou-se Alagon muito sério - sempre é um nobre. Um fidalgo de Portugal. Há-de ser a um tenente...

E os oficiais não souberam se haviam de rir ou não. Mas a rendição estava, por completo, fora dos projectos do jovem conde de Fróis, que também se encontrava nesse momento reunido com os seus oficiais, após uma refeição à pressa. Preocupavam-no sobremaneira aquela moenga das trincheiras, a caminho da porta de armas, e as posições de tiro, cada vez mais próximas. Tivera ele bons canhões de bronze, de cadência rápida e prolongada e arrasaria a vala... mas os mestres-artilheiros vinham queixar-se, de vez em quando, de que se abusava da frequência dos tiros, e dizer que não respondiam pela saúde das peças. Havia que espaçar os canhonaços, deixar que o metal arrefecesse, não fosse estourar e os homens com ele.

Por enquanto, havia apenas baixas civis, a guarnição estava ilesa, mas avizinhavam-se tempos muito duros. Mais ainda: se o inimigo recebesse reforços de Miranda, como esperava, iria ser uma longa e atribulada resistência até ao Inverno...

Os três oficiais ouviam-no, gravemente. Discutiram pormenores de táctica e logística. Depois o conde perguntou ao de dragões:

- Os cavalos, bem mantidos? Os arreios?

- Saiba Vossa Excelência que tudo em ordem! O conde deu instruções para que as peças da porta abrissem fogo, alternadamente, a partir da uma da madrugada. Malhar na trincheira, de tempos a tempos! E despediu-os, dizendo:

- Aguardam-nos dias muito rijos, meus senhores. Tinha razão o conde. O dia seguinte foi o dia da ira, como diria o pároco, o inferno desabado sobre a terra. Durante a noite, os sitiantes não se dignaram responder ao fogo de S. Gens. Aplicaram-se antes nos entrincheiramentos sob o terreno. Avançaram algumas baterias. Conseguiram proteger linhas de atiradores já nas imediações da praça.

Pelo meio da manhã o bombardeamento de S. Gens recomeçou. Desta vez ao sopro dos pelouros de artilharia, vieram acrescentar-se o silvo e a detonação das balas explosivas de um morteiro, apontado da trincheira mais avançada. Tornou- se sobremaneira arriscado andar nas ruas durante o bombardeio. Os habitantes de S. Gens recolhiam-se às caves, a sentir os estremeções de terras revolutas e o estrondo dos obuses. Mais casas abateram. Deflagrou um incêndio no palheiro em que tinham armazenado o feno, as chamas irromperam altas, correram horas antes que os soldados dominassem o fogo. O sustento do gado estava comprometido. Ninguém se atreveu a ir à igreja. Assim se pouparam algumas mortes, porque o campanário, atingido, aluiu com fragor.

O padre tinha-se refugiado numa adega que o comando havia destinado a hospital. Competia-lhe, em princípio, aquele lugar, como consolador dos feridos e expedidor dos mortos. O pároco já lá estava, paramentado, com o sacristão que, por ser velho e engelhado, não tinha sido chamado às muralhas.

A pouco e pouco, no meio de gritos e praguejos vinham sendo transportados os feridos e alinhados ao longo da parede. O cirurgião, de avental manchado de sangue, saltava de um lado para o outro, confirmava as mortes, dava ordens às mulheres que se azafamavam com tiras de linho e vasilhames de água. O chão foi-se empapando de sangue, a atmosfera tornando acre, espessa, fedorenta. Os gritos e gemidos dos feridos, a agitação dos práticos, a deflagração dos ribombos, tornaram-se insuportáveis para o padre. Preferiu arriscar. Saiu pela porta e ficou-se sentado, na escuridão das escadas.

Logo o desalojaram. Quatro soldados tropeçavam pelos degraus abaixo, carregando um corpo. O padre teve de seguir à frente deles e entrar de novo na enfermaria improvisada.

- É o nosso tenente! Acudam ao senhor tenente! Era o tenente! O tiroteio, então, já nem os oficiais poupava... e a adega ia-se enchendo cada vez mais de corpos convulsos. Lá vinham mais homens. Lá depunham mais dois corpos. Lá se aproximava o pároco. Lá ecoavam os gritos. Que cafarnaum, que inferno... O padre levou as mãos à cabeça. Pouco lhe faltou para chorar.

O barbeiro passava de novo, limpando as mãos. O padre travou- o.

- O tenente, que tal está o tenente?

- Nada de cuidados, senhor padre. Tem um estilhaço num ombro, caiu da muralha, torceu uma perna. Há-de recuperar. Oxalá estivessem todos assim...

E o homem desprendeu-se do padre e correu para um canto onde duas mulheres, debruçadas sobre um corpo, o reclamavam em altos gritos.

O padre, devagar, foi-se aproximando do local em que jazia deitado o tenente, debaixo de uma fresta que dava para o exterior. Por deferência tinham-lhe colocado uma mochila debaixo da cabeça. Semi-nu da cintura para cima, de calção rasgado, apresentando grandes emplastros de pano, mal enjorcados, no ombro e na perna, o cabelo em rodilha, salpicado de grumos de sangue, o tenente gemia baixinho, muito pálido. O padre agachou-se ao perto, subtil. Hesitou um tanto, antes de dizer, recolhidamente:

- Então senhor tenente, o pior já passou... O oficial rodou para ele os olhos esgazeados e gemeu:

- Ah, senhor padre, isto é demais, é um excesso...

- Pois, é demais, Descanse vossa mercê... Eu cá estarei para o que for preciso!

O bombardeamento havia sido suspenso, minutos atrás. Mas os feridos iam chegando e chegando. A adega era ampla, com arcarias e esconsos múltiplos. Mas já quase não havia espaço para mais ninguém. Quantos estariam ali? Quase uma centena, decerto, contando com os feridos ligeiros que se acocoravam ao longo da parede, em silêncio, à espera que alguém tivesse tempo para lhes dar atenção.

O padre deixou que o prior tratasse das almas, o cirurgião das mazelas, e atreveu-se, de vez, a afrontar o ar livre. Ia por todo o lado um cheiro a pólvora e a atmosfera rolava, escurecida de fumaças e poeiras com laivos avermelhados, muito ao alto. Indivíduos corriam, sem tino aparente. O chão estava coberto de entulhos, destroços, cacos. Algures, um cão uivava.

De vez em quando estalava um tiro nas muralhas. O padre apesar dos constantes ribombos do canhoneio, ainda se deixava sobressaltar com o estouro isolado de um tiro. Seguiu adiante, cautelosamente, caminho de casa, que não sabia se ainda existia.

Um grupo atalhou-lhe a marcha em silêncio. O padre levantou os olhos, ainda meio absorto pelo espectáculo de desolação que corria em volta:

- Que temos? - disse, enfim, admirado com aquele preparo. Logo os reconheceu: eram o tendeiro, o alveitar e o ferreiro, todos eles em pé de guerra, de polvarinho ao pescoço e trabuco na mão, encardidos da pólvora, olhos piscos e cansados.

- Ainda bem que topamos com Vossa Reverência que já o vínhamos procurando há algum tempo. - começou o ferreiro.

- E até chegámos a recear pelo pior... - acrescentou outro, a gaguejar.

- Pronto, cá estou. Mas qual é o ponto?

O alveitar, num largo gesto de mão estendida adiantou-se com eloquência obviamente estudada:

- Senhor capelão, os filhos de S. Gens já deram mostras sobejas do seu valor militar...

Mas os outros atropelaram-lhe o discurso, falando todos ao mesmo tempo:

A praça já havia resistido avonde. Continuar a defesa seria rematada loucura, a não ser que se quisesse ver a vila destruída e todos os habitantes chacinados. Para mais, que benevolência poderiam esperar do inimigo, depois dum encarniçamento daqueles? E havia mulheres na praça, havia crianças. O senhor conde já tinha cumprido o seu dever, e mesmo ido além dele, que não eram poucos os mortos e feridos de gente inocente, sem contar os soldados.

O padre não deixou transparecer o agrado que aquelas palavras lhe propiciavam. Música celestial. Fechou a cara, encolheu os ombros com aparente indiferença, e respondeu:

- Então porque vieram ter comigo? Sobre essa matéria não tenho eu jurisdição...

E, apartando o grupo com o braço, fez que seguia caminho. Os homens perseguiram-no em largas passadas, saltando sobre os destroços derramados.

- Além do mais, senhor padre, além do mais há blasfémia. Os oficiais andam por aí a espalhar que nesta praça não entra nem o Filho de Deus em pessoa. A defesa da praça está comprometida pela blasfémia...

O padre voltou-se, as mãos no peito, o sobrolho derribado:

- Mas isso é grave! Quem foi o judeu que se saiu com uma dessas?

- Não sabemos. É o que o povo conta... Desconfia-se daquele capitão de Lisboa...

- Ou mesmo mais alto, ou mesmo mais alto... - resmungou o tendeiro.

Calaram-se por uns instantes, conscientes da gravidade do que haviam dito. Mas o padre não reagia. Deixou passar.

Eles então pediram-lhe, na qualidade de gente de respeito daquele lugar que, posta a proximidade que tinha com o senhor conde, intercedesse por S. Gens e lhe rogasse que rendesse a praça a bem de todos, para evitar mais sofrimento e desolação.

- Meus amigos - respondeu o padre, em tom sereno compassivo, e medindo bem as palavras: - se há alguém nesta praça a quem de certeza o conde não atenderá, serei eu por razões que me dispensarei de referir. Mas acreditem que comungo das vossas inquietações e que se me parte o coração ao ver a desgraça que caiu sobre esta terra. Digo-o como sacerdote, e como homem. Porque não ides vós? É aproveitar agora, que o momento é de lamber feridas...

- Sozinhos, assim, sem uma pessoa de qualidade... . O senhor conde escorraça-nos.

- Se representais, como penso, o sentir do povo desta terra, porque não levais o povo convosco? E levai também o senhor prior! Olha, o senhor prior! Porque não?

- Aí está - disse o tendeiro, num rompante exaltado

- E se o conde não entrega a praça entregamo-la nós!

- Prudência - respondeu o padre com uma meia voz inquietada - Prudência, meus amigos...

E seguiu para casa, de espírito levantado. Estava intacto o casarão. Brízeda no seu posto, solene e brusca, como sempre.

 

Neste meio tempo, passada uma breve revista da situação com os dois capitães, muito pouca auspiciosa para a defesa da praça, o conde preparava-se para uma cerimónia. O tiroteio tornara-se esparso e irregular, quase de marcação de presença. Do lado dos espanhóis e franceses preparavam-se parapeitos e recolhiam-se mortos e feridos. O mesmo se fazia em S. Gens. Era pelo fim da tarde, os contendores iam-se habituando a respeitar uma trégua tácita nessa ocasião. Tempo de lamber as feridas como acertou dizer o padre... Acompanhado dos oficiais, o conde, de casaca e peruca empoada, entrou enfim no salão da torre, onde uma guarda, de trajo de gala, lhe apresentou armas. Conduzido pelo braço, por um cabo, do fundo do salão onde esperava, veio um homem já velho, meio curvado, vestido de niza de briche e grandes botas altas. Com os oficiais em sentido, muito solene, o conde passou-lhe para a mão um relógio de ouro. O homem agradeceu, de olhos inquietos, fez uma vénia desajeitada e foi conduzido até à porta. Era um mestre-artilheiro que tinha na antevéspera permanecido vinte quatro horas de serventia a duas peças. Com o estridor dos ribombos, tinham-se-lhe rebentado os tímpanos. Foram dar com ele dobrado, exausto, o sangue a escorrer dos ouvidos. O conde houve por bem recompensar a dedicação do combatente. O acto foi breve, sem uma palavra, que aliás seria inútil dadas as circunstâncias.

Mas, quando o sargento da guarda, de espada ao alto, pedia licença para se retirar, um rumorejar, lá de fora, atraiu a atenção de todos.

O adro estava cheio de gente, e mais e mais vinha chegando, das ruas afluentes, em contravenção ostensiva das ordens que proibiam ajuntamentos na praça.

- Espera! - ordenou o conde ao sargento. E, meio encoberto por uma portada, observou o que se passava lá em baixo. Formavam-se magotes agitados. Havia dedos erguidos. Discutia-se. O fulcro das atenções parecia ser um grupo de poucos homens que, com gestos tranquilizantes, de mãos espalmadas, davam ares de quem apaziguava os outros. Mais grupos vinham chegando, atravancavam as ruas. Quase toda a população de S. Gens devia estar a confluir para o largo.

De súbito, a agitação aumentou e, houve redemoínhos, gritaria; depois, cessou e fez-se um grande silêncio. Quatro homens avançavam para a torre, o povo abria-lhes alas.

- Temos delegação - disse o conde para o lado. - E vem lá o prior.

O capitão de dragões largou um riso breve, displicente, mas o outro ficou-se, muito enfiado, muito sombrio, sem nada dizer. Subiu um cabo de escantilhão pela escada acima e anunciou que estava em baixo o senhor pároco, com uns homens do povo e que pediam a mercê de uma palavra de Sua Excelência.

O conde olhou de novo para o adro, com resguardo. Muito quieta, a multidão agora fitava olhos nas janelas da torre, em suspenso. O fidalgo ficou imóvel por uns instantes, a reflectir. Depois, disse baixo ao sargento:

- Deixas dois homens aqui, e formas vinte lá em baixo, de baioneta calada. Já!

E, voltando-se para o cabo:

- Demora-os um instante e depois manda-os ao meu gabinete, lá acima. Com guarda!

A delegação foi dar com o conde sentado à mesa, de ar carregado, os dedos a tamborilarem sobre o tampo. Aos lados, os dois oficiais perfilavam-se, soturnamente. Soldados alinhavam, muito tesos, pelas ombreiras da porta. A janela que dava para o lado de Espanha, com um batente entreaberto e o outro escorado por uma viga fincada no chão, coava uma luz difusa, cinzenta, que tornava indefinidos os contornos, ao primeiro olhar.

Os homens sentiram-se atemorizados e vagamente arrependidos de terem pedido aquele encontro. Entreolharam- se, muito bisonhos, de tricórnios amarfanhados nas mãos. E puseram todos os olhos no pároco, recuando muito devagar.

O conde foi o primeiro a falar, interrompendo o titubeio do prior, que já descrevia com ambas as mãos um grande gesto arqueado:

- Então, meus mestres? Viestes dar contas ao governador do vosso zelo e dedicação? Ou trazeis qualquer alvitre novo para a melhor defesa desta praça?

O pároco ainda começou:

- A bem dizer, senhor...

Mas o conde atalhava, áspero:

- Então e esses cavalos estão bem luzidos, bem tratados, não lhes deu a pulmoeira? E o teu balcão de botica, sempre prestes, com arnica de sobra? E a tua bigorna, pronta a afeiçoar fecharias e a endireitar canos? E as vossas missas, em dia?

O conde fitava-os, severamente, o sobrolho franzido, os olhos a fuzilarem por uma fresta apertada, a cabeça, inquisitória, levemente descaída para um lado. Estava ainda vestido de gala, de casaca verde e cabeleira empoada, carregando, com a solenidade do trajo, a gravidade das palavras.

Por uns instantes, o silêncio pairou, lerdo e denso, naquela sala. Depois, adiantando-se ao pároco, o tendeiro avançou um passo e disse:

- Senhor conde, atrevemo-nos a vir aqui por mandado do povo desta praça...

- Muito bem, vindes portanto em união... Eu não me lembro de vos ter nomeado representantes de quem quer que fosse!

A isto não sabia o tendeiro responder. Preferiu ladear as complicações que o conde lhe ia deitando ao discurso e, recomeçando com firmeza, com um "meu senhor!", alto e bom som, manifestou o sofrimento dos da praça, com larga retórica, a que não faltaram as mães chorando pelos filhos, os jovens ceifados na flor da idade, e alguns quadros de horror que fazem parte do cabedal de quem seja medianamente letrado e se adequam às tribulações dos cercos de todas as praças do mundo.

O conde mostrou enfado - no que havemos de convir que tinha razão - e interrompeu uma vez mais:

- Tudo isso é sabido. Vamos ao ponto.

O homem respirou fundo e despejou, muito depressa, quase sem transição lógica:

- O ponto é que, senhor, entendemos que a guarnição e o povo desta praça já fizeram mais do que o devido e chegou a altura de negociar a capitulação.

Homem, que foste tu dizer? Firmeza desesperada e mal segura essa que logo se sobressaltou ao som da punhada que o conde deu no tampo. Encolheu-se mais o grupo para o lado da porta quando o governador se levantou, contornou a mesa e se postou na frente deles, de braços cruzados, a voz alteada:

Como ousavam pedir-lhe que entregasse uma pertença de el-rei que lhe havia sido confiada? Quem lhes ditara o atrevimento: a cobardia ou o inimigo? Compenetravam-se eles da felonia que estavam a cometer?

Um dos homens, de olhos baixos, ainda tentou argumentar:

- Senhor...

Mas o conde, com um passo em frente:

- Cala-te!

E por alguns instantes apenas ressoaram na sala os passos do conde, de cá para lá, de lá para cá, pára aqui, retoma acolá. E os da embaixada nem chus nem bus, fazendo de conta que não estavam presentes.

O conde, enfim, deteve-se e mirou-os um a um:

- O que vos livra do açoute é serem homens simples e não saberem o que dizem. Se não, iam já direitos ao pelourinho!

E, num grito, de braço estendido:

- Fora daqui! Ala!

Tropeavam já de cambulhada pelas escadas, de envolto com os soldados, quando a voz rouca do conde ecoou pelas paredes de granito:

- Senhor prior!

O pároco voltou para trás, penosamente, muito afogueado, e assomou à porta do gabinete, os olhos esgazeados, a sotaina em desalinho. E foi ali mesmo que o conde lhe rezou o responso:

- Aqueles são gente meã, homens de ganhar, mas Vossa Mercê não o é, por ofício e formação. E se lhes prometi o açoute quando me cheirasse a traição, Vossa Mercê se o torno a saber envolvido em sedições, saiba que tem a enxovia garantida, sem qualquer consideração pelo seu estado e pela sua idade!

Virou-lhe as costas, ordenando-lhe, bruscamente, que se retirasse:

- E volte-me cá daqui a duas horas, que me quero confessar!

Escada abaixo, acudiam ao pároco frases, objurgatórias, apóstrofes. Consigo ficaram, que não teve ocasião de as fazer brilhar. E nem sabia o que o atenazava mais: se a ameaça de desforço contra a igreja, com agravo de um dos seus servos, se o desprezivo tratamento de "Vossa Mercê" com que o nobre o havia humilhado.

Neste entretanto, o capelão roçava-se por uma esquina, à distância: não queria ser visto da torre, nem perder pitada do que se ia passando. Não tardou muito em casa, porque Brízeda acorrera a dizer, agitada, que o povo ia falar com o conde e pedir-lhe que pusesse termo ao martírio da praça. Vinha vindo, manselinho, quando ouviu vozearia nas ruas e passos batidos. Misturou-se, aqui e além aos grupos que confluiam para o adro. Mas mantinha uma reserva discreta. Falavam-lhe? Não dava troco. Era capelão da casa do conde, devia-lhe lealdade, não queria ser acoimado de felonia. Pela primeira vez, nos largos meses de desterro naquele calcanhar do mundo, o padre sentiu que os seus manejos compensavam, que lhe rendia a semeadura. Após tantos e tão inglórios insucessos, uma manobra sua, enfim, resultara, assim mantivesse ele os cordelinhos na mão, com o flanco bem resguardado, não fossem os voltefaces da vida armar-lhe algum percalço.

Quando chegou ao adro, já a delegação tinha entrado na casa de armas e o povo dispersava, em pequenos grupos de conversa solta. De quando em quando, deitavam olhares para a torre, na expectativa do que viria dali. A maior parte confiava em que, vendo a determinação dos habitantes de S. Gens, o conde poria fim à guerra. Alguns sustentavam até que a embaixada tinha sido encomendada pelo conde que a tomaria como pretexto e aval para a rendição da praça. A maior parte dos presentes eram mulheres, as mais exaltadas, e também crianças e velhos. Mas não eram raras as fardas de estamenha cor de pinhão dos milicianos, em folga dos turnos nas muralhas, ou, mesmo, em transgressão dos seus mandados.

De súbito, soldados assomaram à porta da torre e, em passo escandido, formaram duas filas ao longo das paredes. Era uma tropa diminuta e um tanto desconforme, via-se que convocada à pressa: Havia dragões de casaca verde, milicianos de equipamento compósito, soldados da guarda, alguns ainda de cabeleira e farda de gala, da prestação de honras de há pouco.

Fez-se na praça um silêncio tenso, a multidão comprimiu-se mais, e recuou lentamente. De início, houve alguns gestos de incomodidade, alguma expectativa. Mas logo o burburinho recomeçou, mais alto, enquanto o sargento passeava, de mãos atrás das costas, de cá para lá, de lá para cá, em frente das fileiras na posição de descanso.

Perto do padre, o velho do chapeirão, vestido de andrajos, com botas de canhão rotas, ia de grupo para grupo, com gestos sacudidos, resmungando uma lengalenga que ninguém ouvia:

- Ardeu o palheiro, e agora o gado, que come? Biscoito de marinha? É acabar com isto, é acabar com isto, antes que venham dias mais piores.

Veio também serrazinar o padre que o afastou impaciente:

- Larga-me da mão, homem!

Mas já um clamor se erguia na praça e o ajuntamento se alvoroçava. Os três homens e o pároco saíam da torre e eram rodeados pelo povo. O padre ouviu vozes esganiçadas, gritos, exaltações. Que era? O conde tinha expulso e ameaçado a delegação!

As vozes soltas tornaram-se num apupo unânime, que cresceu quando a figura do conde apareceu na janela do salão, junto à sentinela. Havia punhos erguidos, gritos soltos de mulher. A indignação crescia e electrizava a multidão.

As duas fileiras de soldados deram um passo em frente. ao comando do sargento, que já havia tomado posição, no flanco do destacamento.

De súbito, um grupo de homens irrompeu, correndo duma rua afluente, num torvelinho. O alarido subiu de tom. Circulou de mão em mão vasta bandeira branca, um lençol de linho aparelhado a uma cana de caiar. O que se passou a seguir ocorreu muito rápida e confusamente: o padre ocultou-se mais atrás da esquina, o coração balançando forte no peito.

O pano branco removeu-se junto à muralha, no meio do tropel. Oscilou, numa hesitação breve. Logo o tendeiro, o tomou e com ele alçado, subiu a correr pela escada das muralhas, sem que ninguém, nem os soldados de serviço lá em cima, lhe travasse o passo. Prosseguiu pelas adarves, aos saltos, com a bandeira bem ao alto. Depois parou, fazendo-a pendular largamente dum lado para o outro.

O tiro, seco, reboou, levantando um estralejar arrastado de pequenas ressonâncias pelas paredes além.

O padre distinguiu, confusamente, a penachada de fumo, obscurecendo sombras moventes na janela de mainel da torre; viu a bandeira desabar, lenta, ondulando à brisa, sobre o corpo dobrado do tendeiro que se segurava à muralha num último desespero, e apercebeu-se de que, lá ao fundo, havia sido ladrada uma ordem e que a primeira fila de soldados punha o joelho em terra.

A multidão enovelou-se, retrocedeu. Ainda que o padre tivesse o espírito assente e os sentidos imperturbados não poderia ver muito mais. Crepitaram tiros no ar. A turba precipitou-se, fugindo do adro, tresmalhando-se pelas ruas em redor. O padre sentiu-se empurrado, tropeçou, andou aos baldões no meio das correrias. Fugiu também, pernas para que vos quero, contagiado pelo pânico geral.

Mas a tropa não tinha disparado contra o povo. Eram os espanhóis, lá de fora, que ouvindo o tiro e notando agitação nas muralhas, largavam umas salvas de reconhecimento, umas fogachadas.

Deixemos estas entretengas mornas de tiro demonstrativo, e deixemos o padre - ala que se faz tarde! - a caminho de casa, e apreciemos melhor como tudo se passou à janela da torre e perto do conde que é o sítio de melhor vista.

Quando a multidão lhe soltou vaias o fidalgo fez-se muito pálido, mas não arredou pé, hirto como estava. Olhava lá em baixo os da comissão, a vadiar de grupo para grupo e perguntava a si mesmo se não havia desperdiçado uma boa oportunidade de lhes deslombar os costados. Logo, se precipitou aquele ruído da rua da esquerda e a cavalgada dos homens com a bandeira branca. O conde franziu mais o sobrolho, fez-se ainda mais pálido, e sem se mexer, ordenou à sentinela, especada a seu lado:

- Aponta ao da bandeira. Se ele trepar ao parapeito, atira!

O homem recuou um passo, armou o cão e hesitou, ora olhando para o conde ora para o ajuntamento. Quando o tendeiro irrompeu, escadas acima, o governador mandou, seco:

- Agora! Dispara!

Mas o soldado ficou-se, boquiaberto, a arma incerta a tremer-lhe na mão. Deu tempo a que o tendeiro acenasse da muralha e derivasse por ali à solta, como foi contado.

O que não foi dito é que o próprio conde empurrou a sentinela, arrancou-lhe a espingarda da mão, fez pontaria de olho esquerdo fechado e abateu o tendeiro. E como já sabemos desde Homero, que criteriosamente demarcou as especificidades derradeiras, a morte deste homem foi muito diferente da que antes se relatou de perto. O tendeiro esbracejou, agarrou-se à vida, estrebuchou, ali, à vista de todos, não como aquele espanhol que, num ápice, foi atirado de pernas ao ar, e ainda era vivo e já estava morto. O tendeiro prestou honras ao espectáculo da agonia. Mas apenas o conde e, talvez, a sentinela lhe contaram as convulsões, posto o burburinho, a correria e o tiroteio que se seguiram, e que já foram falados do lado de lá do adro.

O conde baixou a espingarda, sacudiu a fumaraça que ia no ar, devolveu a arma ao soldado, sem uma palavra e, desinteressando-se do movimento que corria agora pelo adro, tomou caminho das escadas, que o preocupava mais aquele tiroteio descarregado pelo inimigo. Nada de novo nas operações do campo espanhol. Era uma descarga de afirmação. Não se notavam sinais de concentração de tropas ou ameaços de arremetida. Da esplanada da torre, o conde vagueou em volta, com o óculo, certificando-se da rotina, até fixar o alcance no seu apoquentamento principal: sempre a trincheira funda e ramificada que progredia na direcção da porta de armas e que já tinha disposto um parapeito com defesas e manteletes a pouco mais de cem braças da muralha. Por um pronto, mandou, de novo, chamar os oficiais-capitães.

 

Quando o pároco chegou à torre, paramentado, os oficiais estavam para reunir lá em cima.

- Venho para a confissão do senhor conde - explicou, sem que ninguém lhe tivesse travado o passo ou pedido explicações. Disseram-lhe que aguardasse, que o senhor governador estava em conferência. Ele deu por ali uns passos, e sentou-se desconfortavelmente em cima duma velha arca de munições de tampa pontuda. Assistiu com curiosidade aos ires e vires dos homens, numa movimentação que parecia louca e inteiramente destituída de sentido a quem lhe não estivesse dentro das voltas. E bocejou.

Não era homem para ficar muito tempo quieto este prior. Não tardava já se tinha levantado e aproveitava todas as oportunidades para dar à taramela. Então e para que é que servia aquele ferro? Ai era um medidor de pólvora? E aqueles homens para onde iam, com a escada? Ah, e havia muitas brechas no muro? E foi incomodando toda a gente e palrando por aqui e por ali, tomando sempre embora o cuidado de nunca referir as políticas da praça, que a ameaça do conde lhe fora bastantemente persuasora.

Não é que não houvesse naqueles homens sinais, trejeitos, gestos bruscos, alusões torneadas, meias palavras e um geral pesadume derivado dos acontecimentos da tarde. O temor é que não deixava ninguém afoitar-se a ser explícito. Mas todos compreendiam, ainda o soldado mais burro e raso, que quando se estava a conversar de outra coisa, se estava, no fundo, a falar daquilo.

Bem pôde esperar o pároco... Volta e meia a transbordante energia cedia às exigências da idade e acabava por passar pelas brasas, toscanejando, empoleirado na arca.

Neste comenos tinha o conde conferência com os oficiais. Procedia organizadamente, como era seu costume: cada figo em sua figueira. Enquanto aguardava os outros, garatujou uma lista de assuntos, numa ardósia, que a ocasião requeria poupança de papel e nem em tudo, por mais prudente, o conde se havia sabido prevenir, como melhor se verá adiante.

Ponderou sobre se deveria informar-se do destino do tendeiro e do moral da população depois do motim da tarde, mas acabou por rejeitar qualquer alusão ao assunto, não fosse mostrar ansiedade, receio, ou dar azo a comentários que preferia não ouvir. Talvez espontaneamente, e com cautela, algum dos subordinados o informasse sem ter de perguntar... Nestas e noutras preocupações parafusava o conde sentado em frente do modelo da praça, quando os oficiais chegaram e teve início a reunião.

- O nosso tenente, como está? - indagou o governador.

Os oficiais informaram, com solenidade, mostrando-se o capitão de dragões mais veleiro na apreciação do estado do tenente.

- Os mortos, enterrados? - continuou o conde, de olhos fixados na lousa, a pena aparelhada para um rabisco de descarga. Os oficiais entremoveram-se, houve uma pausa incomodada, e o de cavalaria respondeu:

- O último morto, o desta tarde, foi há pouco a enterrar. O senhor pároco até veio logo para cá...

Nos segundos que vieram depois, o conde, olhando a lousa sem a ver, passava abstractamente a pena pela face. Debatia-se num conflito: por um lado, desejava fortemente que os homens lhe fizessem um relato, lhe contassem do estado de espírito da multidão, lhe dessem pormenores sobre a morte do tendeiro, se tinha sido rápida, se tinha sofrido muito, se sobrevivera até à extrema-unção, como reagira a família; por outro lado, não queria, em frente dos subalternos, expôr as suas comesinhas preocupações humanais. Prolongou-se o silêncio e o conde, num supremo esforço, muito disfarçado de displicência, ainda apelou secretamente para a espontaneidade dos subordinados.

- Alguma novidade mais de carácter geral?

Os dois oficiais, rebuscaram no fundo do olhar, tiveram uns gestos indiciadores de compenetração, deixaram arrastar o silêncio e, de repente, à uma, muito agitados, foram relatando minudências, trapalhadas práticas, coisarias de rotina. O conde teve de os interromper, com dois toques da pena na ardósia:

- Meus senhores, vamos por ordem!

A ordem, numa longa fieira, desde o pormenor miúdo às questões decisivas, era longa, enfadonha e se o leitor a não dispensar, dispenso-a eu. Basta referir que os três homens andaram às voltas com o incêndio na casa do feno, procurando remédio para o sustento do gado, e chegaram prestes à conclusão de que havia pouco fornecimento de madeiras e carvões para o lume, o que bem mostra que houve falhas no apetrechamento da praça, desprevenções naturais em homens comuns que nem aspiram a deuses.

Prossigam eles as congeminações e os inventários, sisudamente, que o tempo nos dá para irmos ao arraial espanhol, ver como se dispõem as coisas.

Dorme-se pouco, só quem tem o sono destinado. Toda aquela gente é movimentação, é esforço, é labor. Vista de perto, com olhos do autor (que os tem de gato, assim lhe fosse também o fôlego... ) na noite negra, a azáfama lembra o remexer de uma colónia larvar. Ouvida de perto, dá um arquejo áspero e continuado, penetrado de toques rijos e retinires abafados. Muito eles trazem, levam, removem, escarafuncham, arrastam, escavam...

Lá ao fundo, para trás do pinhal, o marquês de Alagon, instalado numa poltrona, desencantada sabe-se lá onde, entre coxins, pontifica, com muito espírito, até desoras. Dizem-se adivinhas, contam-se calhandrices de corte.

Alagon não deu muita importância à notícia de que algo de anormal se poderia ter passado intramuros. Que houvera agitação nas muralhas e uns tiros, veio dizer-lhe um alferes, muito corado da corrida. O marquês riu, floreando a luneta:

- Mas, meu caro, como se, num cerco, a agitação e os tiros não fossem a normalidade...

E todos os presentes sorriram conformes, sem darem mais atenção ao alferes que por ali ficou, ao canto da tenda, até encontrar oportunidade para se raspar à francesa.

O marquês encontrava-se muito bem disposto, com muito chiste, e por duas razões: a primeira, porque lhe tinham preparado um bom jantar de codornizes; a segunda, porque lhe anunciavam que os trabalhos de cerco progrediam a bom ritmo, com ciência e previsão, que nem o imperador Tito em frente de Jerusalém.

Esta desenvoltura de hoje contrastava com a contrariedade da véspera quando uma ordenança lhe trouxera mais um recado do duque de Sarriá: que muito se maravilhava de Sua Excelência ali atracado em frente dum objectivo secundaríssimo, quando os sitiantes de Bragança precisavam de reforços. Que tivesse a bondade de formar coluna e marchar adiante.

Alagon tinha destemperado, em grande furor, e quem pagou as favas foram os oficiais de campo. Queria aquela praça tomada o mais prestes possível. Poucos homens para o cerco? Trouxessem-se as mulheres; poucas pás e picaretas? Saltassem as gadanhas, os sachos, os cacos, o raio que os partisse, mas queria aquelas trincheiras mais chegadas à praça e menos ripanso nas metralhas.

Lá desandaram patrulhas para as aldeias recônditas, à cata de mão-de-obra, petrechos e carros. Homens, que é deles? Andavam todos fugidos pelos montes, quando não arremetiam à traição. trouxeram o refugo dos povoados que já bem despovoados estavam: mulherio, velhos e rapaziada. E como às mulheres anda sempre atracada a canalha, lá veio também, debaixo de armas, uma caterva ranhosa e endiabrada.

E assim, naquela noite, enquanto Alagon, reclinado, exercitava o seu manejo cortesão, as trincheiras fervilhavam de gente exausta, numerosa e turbulenta, que mais pareciam os Hebreus no Egipto, nos tempos do faraó vilão. Derrear-lhes os lombos com trabalho conseguiram os espanhóis.

Mantê-los calados é que não.

Por isso, de S. Gens, estando a brisa de feição, não era preciso apurar muito os ouvidos para distinguir as revoadas sonoras que vinham da trincheira, num crepitar de rangidos, sussurros, e rechinos. E a poder daquele esforço multiplicado, iam as obras mais fundas mais anchas, mais pegadas às muralhas.

Havia muito que os de dentro não varejavam as trincheiras. Espaçavam o fogo, economizavam munições e material, à espera de melhor ocasião para um tiro concertado. Ainda assim, lá ficaram algumas mulheres varadas por disparos ocasionais.

Tudo visto, volte-se às muralhas, e, dentro delas à torre de menagem onde o conde conferencia com os seus oficiais e o prior vai dormitando, à espera: inventariadas as questões, dadas as ordens mais urgentes, o governador deixara para o fim a matéria que mais o preocupava: A progressão dos entrincheiramentos já com baterias dispostas em frente da porta de armas, ali à mão-tente. Tinha a noção de que não conseguiria desmantelar os espaldões inimigos, a poder de canhonaços. Seria preciso bater a posição com um fogo muito mais intenso, nutrido e preciso do que o que as peças de ferro de S. Gens podiam proporcionar.

Em palavras breves, expôs a sua apreciação do problema, no que foi confirmado e secundado pelos presentes. Rematou, estendendo-se mais na cadeira e fixando olhos na abóbada:

- Meus senhores, aguardo as vossas sugestões.

Os oficiais tinham sugestões: que se reforçasse a porta de armas com chapearias e entulhos atrás do gradão, à falta de madeirames, e que se movessem para a área dois canhões de dezoito, durante a noite, alvitrava o capitão de dragões. O da praça torcia o nariz à deslocação dos canhões e concordava em que se escorasse a porta. Quanto às ameias, sacos de areia, sacos de areia para cima.

- Hum, parece-me pouco. - resmungou o conde fixando os oficiais alternadamente, cotovelos na mesa e cara apoiada nas mãos.

Remexendo-se na cadeira o capitão da praça, com alguns gaguejos e muitos rodeios propôs que, pelo sereno da madrugada, um dos homens se afoitasse a furar as linhas inimigas e fosse pedir reforços ou instruções a Abrantes ou a Lisboa. Até porque, como era natural pela força das circunstâncias, Sua Excelência estaria desmunido de ordenações e regimento para o trato com o inimigo.

O conde percebeu a insinuação, mas preferiu nada dizer, limitando-se a fitar o subalterno com um vago sorriso interrogativo, cortando-lhe a vontade de ir mais além.

Os oficiais entenderam que Sua Excelência queria falar e calaram-se, sem aguardarem sequer o costumado toque na mesa com o "Bom!" que precedia as intervenções do fidalgo. Este levantava-se agora, passeava pelo gabinete e expunha, por fim, o seu plano:

Estava de acordo com entulhamento parcial da entrada e o escoramento da porta. Já outras deslocações de peças lhe pareciam ineficazes, e perigosas, com o desguarnecimento de ângulos da praça igualmente débeis. Concentrar todo o poder de fogo no lado sul era dar azos de avanço e à-vontade ao inimigo nos outros quadrantes. Pedir reforços e regimento afigurava-se-lhe contingente e inútil. Era pouco de admitir que um homem conseguisse cruzar as linhas e, ainda que as cruzasse, não se adivinhava, da tropa de Abrantes, capacidade militar disponível para vir incomodar os sitiantes.

Quanto a regimento, ele, conde sabia o que tinha a fazer. Não era, aliás de crer que o emissário, uma vez saído, o que já era obra, regressasse pelo mesmo caminho, o que seria obra dobrada e quase impossível. Depois sem transição, voltou-se    para o capitão da cavalaria e informou-se miudamente sobre ; o estado dos dragões, dos cavalos e dos arreios, das clavinas.

Tudo em ordem, salvo algumas baixas de homens feridos e alimárias doentes, relatou o oficial.

E o conde prosseguiu: aquela trincheira, já tão ao rés das muralhas, servia de testa de ponte aos espanhóis. Com o morteiro e a artilharia que lá estava apontada, podia causar grande dano à praça, como se havia visto nessa tarde. E piores iriam sendo os efeitos, se o inimigo fosse dispondo outras peças, para já não falar nas minas que ali podiam ter origem. Em suma: impunha-se uma sortida para encravar as peças e castigar os ousios.

Os oficiais ouviam-no, compenetrados, meditando nos prós e contras. Foi o de dragões o primeiro a falar:

- Tem Vossa Excelência razão. Temos de lá ir.

Mas o outro hesitava:

- Vai-se lá e pode-se lá ficar. Os riscos são enormes. Se formos derrotados ficaremos pior do que antes e vai-se tudo quanto Marta fiou.

O conde atalhou:

- Mas se não formos, Marta não chega sequer a fiar...

- Vossa Excelência, senhor conde, manda e dispõe! Se em vosso alto critério for entendido. . Quem sou eu para... Mas ainda que a acção seja eficaz - insistiu o da praça, eles depois recuperam a trincheira e reforçam- na com mais peças em bateria.

- Pois - observou o conde - Tem Vossa Senhoria razão. É o papel que lhes está distribuído: eles a armar trincheiras e nós a darmos cabo delas. O ponto é que não podem permanecer ali sem mais incómodos, sem aprenderem que aquele terreno é nossa devassa.

- Aprestamo-nos para logo? - perguntou o de cavalaria, com entusiasmo.

- Amanhã! - respondeu o conde - É lua nova, céu escuro. E estou a contar que eles apontem outro canhão esta noite. Assim se matam mais coelhos com uma só cajadada.

Pausadamente, como quem tinha já bem pensados todos os pormenores, o conde ministrou instruções sobre a operação. Empenhariam todo o esquadrão de cavalaria na carga, saindo à socapa, a meio da noite, pela porta da traição. Nada de cavalos brancos ou malhados. Enrodilhar-lhes os cascos em pedaços de lona, para atabafar os ruídos. No couce da tropa deveriam seguir um mestre-artilheiro e seus serventes, com pólvora, trapos, tampos de cortiça, soquetes e demais apetrechos aptos a estourar as peças e o morteiro. Visse-se bem quem era o pessoal de artilharia capaz de montar à desfilada; mas um a um, com discrição. Ele próprio comandaria o esquadrão.

Uns segundos de silêncio e o oficial de dragões irrompia, muito teso na cadeira, o lábio inferior a tremer, a cabeça a desandar num "não!" curto e repetido.

- Vossa Excelência não há-de fazer-me essa desfeita! Eu, com licença de Vossa Excelência, é que sou o comandante do esquadrão. Salvo o devido respeito, é a mim que compete seguir à testa da tropa.

O outro capitão, olho esquivo para um lado e para o outro, também quis pronunciar-se: considerou que, com efeito, não era avisado, nem nunca se tinha visto, um governador abandonar uma praça para comandar uma surtida. E a guarnição, quem ficaria com o cargo da guarnição?

- Vossa Senhoria - respondeu o conde.

O capitão de dragões já se levantava, alterado. Tinha, de habitual uma voz afectada, arrastada, peganhenta, mas, desta vez, as palavras saíam-lhe atropeladas, a froixo:

- Se Vossa Excelência, senhor governador, me não consente o comando do esquadrão, como me é de competência, então seguirei como soldado raso, troco o sabre pela clavina, e terei o cuidado de deixar que me matem.

A tirada produziu efeito. O homem estava sinceramente encrespado, de lábios apertados, voz entre dentes, punho cerrado e laço da gravata torto, o que, sobre os demais, era sinal de coisa séria.

O conde considerou a birra e acabou por ceder, entre o sisudo e o divertido:

- Pois bem! Vamos os dois...

Seguiu-se uma controvérsia viva, mais alimentada pelo capitão de dragões que pelo outro oficial, que discordava formalmente, molemente: Se Sua Excelência não tinha confiança no seu comando ele não podia deixar de tomar isso como uma desconsideração. O conde respondia que não era de seu feitio expôr os subordinados em acções arriscadas que ele próprio tinha decidido. Depois de longa perlenga muito temperada pelo tacto diplomático do conde, acabou por se chegar a uma conclusão que removia os melindres: o esquadrão dividia-se em duas secções, cada qual chefiada por seu comandante: o capitão e o conde.

quando o outro, fora de tempo, sem convicção, insistiu em que lhe não parecia avisado o governador sair a terreiro, ambos o olharam com algum desdém, como se aquela opinião estivesse completamente deslocada no conselho. Não lhe deram troco, e prosseguiram na discussão entusiasmada dos pormenores da operação.

Eram já altas horas quando um soldado foi acordar o pároco para a confissão do senhor conde. Grande confissão havia de ser, tomando em linha de conta os acontecimentos últimos. Respeitemos-lhe o sigilo.

Cabe apenas notar que o conde estava tão cansado e com o espírito tão fora dali que deixou o prior atrevidamente, tratá-lo por "meu filho".

 

A noite correu sem percalços, tirante aquele sussurrar remoendo lá das trincheiras. Nem um tiro. Mas era o sol a assomar, ainda muito modorro, toscanejando, e já uma ventaneira de metralha sarabandeava forte sobre a praça. O conde tinha razão, naquela fala de há bocado: o inimigo aprestara artilharia pela calada, reparara as peças a preceito, e aí vinha dar conta dos minuciosos preparos da obscuridade.

Havia novidades: bombas explosivas, granadas. Alagon encontrara o calibre próprio, a distância certa e entremeava a metralha de ferrarias lixosas, dispersa e zunidora, com estopas incendiadas, pelouros de ferro maciço de muita força e pouco estrondo, e granadas bulhentas de estilhaçamento retardado em flor.

Avantajava-se o primado daquela trincheira que já espreitava as muralhas de perto, agora com o morteiro, de parceria com dois canhões, visando quase à queima-roupa, não a porta, ao contrário do que o conde esperava, mas o casario de trás dos muros.

Se o pároco havia classificado o pandemónio de dias antes como o dia da ira, que outros recursos metafóricos poderia aplicar a este? Os projécteis sopravam, zuniam estrondeavam, cruzadamente, por todo o lado, levantavam cachões de terra aqui, levavam ameias e melrões acolá, ateavam labaredas mais além, espalhavam estilhaços sibilantes por todo o ar. A própria torre de menagem, até aí incólume ou por intocada das pontarias, ou por valimento das cantarias grossas, mostrava já um rombo fumegante do lado de Espanha. Os habitantes de S. Gens anichavam-se nos seus buracos, que andar pela rua era loucura com a inferneira que ia lá fora. E ao estrondo dos rebentamentos e impáctes misturava-se, cavamente, o baque do alude de muros e paredes.

Fora a tropa, de serviço aos adarves e piquetes, mal resguardada atrás das protuberâncias, ou de sacos de areia, ninguém bulia naquela terra, enquanto pelouros e granadas a revolviam e desfeiteavam. Ninguém bulia, excepto uma pessoa: o pároco às sete horas lá caminhava para a igreja, como sempre. Havia guerra entre os homens? A Eucaristia não era ditada deste mundo e não iria a fazer-se às tristes contingências humanais. A hora da missa era a hora da missa. O padre não faltaria, nem no próprio dia da ira, a não ser que a mesma divindade, inequivocamente, lhe conferisse dispensa.

E assim lá seguia, pé ante pé, encolhendo-se muito aos estouros, e benzendo-se aos arquejos e zunidos das ferrarias encabrioladas. Longo e zinguezagueante foi o trajecto. Não poucas vezes teve de se acachapar contra uma esquina ou dobrar ao medo dos estilhaços que riscavam os ares. Bem lhe bradavam os soldados que se arredasse, que se recolhesse. O pároco não era corajoso, não tinha prosápias de homem fero e decidido. Que mais não fosse, a idade admitiria todas as condescendências. Mas era-lhe arraigado o sentido do múnus. Missa era missa. Os espanhóis pintavam a manta? O serviço do Senhor é que não sofria ficar descurado.

Lá chegou à igreja, mais rastejando que caminhando, ofegante do esforço. De vez em quando todo o adro estremecia, a terra abalada das deflagrações; as paredes da igreja rangiam, e fiadas de poeira escorriam sinistramente da abóboda, zebrando de claro os bancos de pau preto que, não o sabia o pároco, os oficiais já haviam considerado para suprimento de lenhas e escoras.

Com desgosto, verificou que, além do campanário destruído que vertera para dentro montes de entulho indiscerníveis, a luz entrava agora a jorros por um enorme buraco, mesmo por cima da velha janela gótica. A descomunal bala de ferro negro, responsável pelo desacato, lá estava pousada, inofensivamente, sobre a laje quebrada de um túmulo, deixando assinalada a passagem por um rasto de alvenarias quebradas e dispersas.

Remover tudo aquilo era trabalho excessivo para um homem só, para mais velho de muitos anos. Nenhum paroquiano apareceu à missa. E o prior deixou-se ficar, sentado no canto de um banco, muito quieto, ao sabor dos estremeções que sacudiam o sítio.

Quanto ao capelão estava como os demais, escondido na cave de um vizinho, à espera que a saraivada passasse. Brízeda, ajoelhada, no meio de outras velhas, lamuriava uma ladaínha que mais incomodava que consolava o padre. Orações a Santa Bárbara! Mesmo a propósito! De quando em vez, suspiros e lamentos:

- Ai, senhor padre, quando é que Deus deixará de nos pôr à prova! Ai, senhor padre, reze Vossa Paternidade para que Nosso Senhor ilumine o senhor conde! Ai, senhor padre, tenha pena de nós e interceda junto do senhor governador! Ai, senhor padre, antes os espanhóis que este martírio! Ai, senhor padre...

O padre estava farto de as ouvir, o pranto bulia-lhe com os nervos, como se já não bastasse o cafarnaum que se abatia sobre a vila. Chegou a esboçar um gesto brusco de impaciência, irritado com aquela moenga das velhas. Davam-lhe ganas de as mandar calar com um par de berros, mas lá se conteve, enrodilhado a um canto, olhando-as de viés, vai não vai para irromper em imprecações e insultos. Ora que companhia lhe havia de calhar...

Mais esparso, mais concentrado, o bombardeio durou toda a manhã. Pelo meio dia, as peças inimigas foram-se calando, ainda com uma ou outra recediva tardia e rancorosa. Nem o material era imune aos calores, nem as munições perenes. Cessou a fogachada do lado de lá? Chegou a vez de as peças de S. Gens entrarem em acção. Badabum!

O conde receava um assalto, depois da barragem de fogo e entendeu prevenir veleidades de manobra. Quis também demonstrar que o potencial de fogo da praça se mantinha intacto para cortar logo tentações ao inimigo.

Já as velhas, no abrigo do padre, se calavam e espevitavam orelhas quando a artilharia da praça ribombou, por sua vez. Mais gritos e gemidos de mãos ao alto:

- Ai valha-nos Nossa Senhora!

O padre não se conteve:

- Ó senhoras, calem-se lá! Não vêem que são os nossos?

E para o lado, num rosnido:

- Velhas taralhoucas...

Lá foram trovejando os canhões de S. Gens que aquilo era um diálogo e não um monólogo. Mas o inimigo já não deu troco. O programa desse dia marcava-lhes obras de campo, após a flagelação. Competia-lhes agora a eles, encostados a pás e picaretas, esperar que o fogo da praça abrandasse.

Era própria e adequada esta táctica militar? Não mo perguntem a mim que me limito a contar a história e sei tanto de assédios militares como de grego. Era assim que eles procediam. Se bem, se mal, julgue-o o leitor, ou, se não quiser julgá-lo, suspenda o juízo, como o outro... Dessarte me avenho eu...

Pois isto de bombardeamentos permite comparações com os aguaceiros. Batem forte, retumbam, enxotam o bicho-homem para os abrigos e depois passam. Durante as abertas - a chover-e-a-fazer-sol-e-as-bruxas-no-pão-moleficam os vestígios de águas derramadas e alguns sinais do ímpeto passado.

Flagelada a praça, e bem varejada que foi, como se viu, os moradores saíram, a pouco e pouco, a assomar às portas e às janelas a modos de quem vê se chove. Surge aqui, surge acolá, um tenteio de passos saltitados na rua, um ficar pasmado com os estragos à vista, um escarafunchar entre os destroços em busca do quer que seja, um afoitar-se às muralhas à fala com a soldadesca, e daí a nada estava a população toda na rua.

Deus, ao que asseguravam o capelão por um lado e o prior por outro, tinha desta vez intervindo em prol de S. Gens. Feitas as contas, debaixo do sarrabulho de muros arrasados, tectos desfeitos e fogaréus disseminados, em que poucas casas se tinham inteiras, eram quase nada as baixas resultantes, sem comparação com o bombardeamento precedente. Poucos fregueses teve o mestre barbeiro na enfermaria. Curiosamente, sem qualquer ajuste prévio, que se encontravam em pontos distantes, tanto um como outro dos padres iam advertindo que a imunidade dos corpos, contra a destruição da fazenda, era sinal de Deus a que O não tentassem. Chegava a hora de se conformarem com a Sua vontade. Deixar que acontecesse outra martelada como a daquela manhã seria, decerto, desafiar a cólera do Senhor.

Assentiam os paroquianos com o que queriam ouvir. Assentiam, indignavam-se, rumorejavam, e, primeiro às esconsas, depois à descarada, chegavam a levantar o punho para a torre. As esperanças de que o conde tivesse perecido nas derrocadas logo se desvaneceram quando alguém o viu no caminho de ronda, rodeado de soldados, a apreciar os estragos. Mais ressaibados ficariam se soubessem que o conde pensava em tirar vantagem daquele rombo na parede da sala de armas instalando lá uma peça...

Serenada a guerra, que não os espíritos, o padre resolveu ir visitar o tenente. Avisaram-no de que o homem estava aqui estava a pé, e não queria deixá-lo levantar-se sem lhe dar umas palavras que tinha fisgadas. Foi dar com ele no catre, na casa térrea, pobre e desmunida, de telhado de colmo, acompanhado da mulher, loura, desdentada, agravada dos anos. Tinham estado para ali os dois durante o bombardeamento, sozinhos, revesando-se nas rezas, à espera que um impacte os atirasse pelos ares. Deus fora misericordioso, considerando, talvez que os pecados dele não mereciam mais que o sofrimento de que já padecia.

O padre ofereceu-se logo para lhe angariar outro poiso. Melhor ficaria na adega do cirurgião, ou noutra cave que assim, exposto aos balázios.

O tenente agradecia e retomava a sua lengalenga preferida:

- Ai, senhor padre, isto assim não pode continuar. É demais, é um excesso...

O padre consentia, gravemente, com um aceno de cabeça, que era demais. E o tenente, soerguendo-se dos lençóis, olhos muito acesos:

- É que não convém, não convém a el-Rei se saiba que se deixou martirizar assim uma praça! Havia que resistir? Resistiu-se. O brio está salvaguardado. É tempo de parlamentar... Assim, não, senhor Padre! É demais... É excesso!

E o homem, que não estava em vias de escorreito como mal tinham avisado o padre, deixava-se tombar no travesseiro e gemia de dores.

- Ó senhor, deixe-se estar... - recomendava o padre. Mas ele, erguendo o punho são e abanando a cabeça, repetia, com os olhos no vago:

- Ná! É demais... É excesso!

O padre tinha ali mais um adepto. Com alvoroço receberia a notícia se o soubesse levantado, activo, mandador de homens. Assim, enfermo, de pouco lhe servia aquela opinião.

Preparava-se para sair, com o pretexto de que o queria descansado e promessas de lhe encontrar melhor abrigo, quando bateram à porta. O capitão da praça entrou pela quadra, de olhos piscos, mal afeitos à escuridão do ambiente, e logo tirou o tricórnio, ao distinguir o capelão:

- Dá-me licença, senhor capelão? Vinha saber como vai o nosso tenente...

O ferido lamentou-se, queixou-se das dores. A mulher acompanhou-o com choraminguice e lamentos. O capitão e o padre brincaram, afectuosamente, consolando: que rija era a compleição de Sua Senhoria, que daí a dias se levantaria, são como um pêro, que o mestre cirurgião estava tranquilo. Tomasse ele a tisana, não descurasse as teias de aranha nas feridas, e havia de ver: não tardava nada e aí estava outra vez, a dirigir a tropa, com luzimento...

A mulher do tenente cedeu o mocho em que sentava ao capitão e retirou-se, deixando os três homens muito enleados, muito macambúzios, ali, sem tinarem com um recomeço de conversação.

O padre, depois de uma pausa de ponderação, que aproveitou para o ritual do rapé, espirrou, assoou-se ao grande lenço de Alcobaça, e acabou por dizer, distraidamente, como de ocasião:

- Esta manhã eles deram-nos rijo, hem?

- É demais -- gemeu o tenente - é demais, é excesso...

O padre e o capitão olharam-se, por cima da cama. O capitão, com um gesto hesitante de mão, a procurar ideias, foi arriscando:

- Não há dúvida, esta praça já sofreu muito...

- Diz bem Vossa Senhoria - acrescentou o padre -. Mais, muito mais do que lhe cumpria, sendo o forte insignificante que é. Mas vem sempre a toleima dos homens a contrariar a deontologia natural, vem uma tal soberba... - E o padre suspirou e calou-se, sem saber se tinha ou não ido longe de mais.

De deontologia não sabia o capitão, sequer o que a palavra queria dizer. Mas ao suspiro do padre achou-o acolhedor a novos tentames:

- Eu, senhor padre, não sou homem de letras, mas sei assinar o meu nome e conheço bem os meus deveres. E entendo também - inclinando-se sobre a cama o capitão repetiu, com ênfase, o também - que há aqui, como hei-de dizer?, que há aqui um... despique... Não é que o senhor conde não saiba o que está a fazer... fidalgo ilustre ele é, e dos mais nobres de Portugal. Mas a guerra tem as suas leis, e Sua Excelência é ainda moço, muito verde...

O tenente, lá dos abismos do abatimento, completou:

- O martírio, os sofrimentos do povo. Murmura-se... É demais.

- Pois, vox populi, vox dei - interrompeu o padre, mais interessado na conversa do capitão.

Mas ouviu-se o tropel de um cavalo e, logo a seguir, vozes na quadra do lado. A mulher assomou à porta, risonha, e deu passagem ao capitão de dragões. O homem entrou, muito aperaltado, de tricórnio ao peito, cabeleira bem frisada, a véstia escovada. Se não fora a face levemente tisnada, que a aplicação da esfregadela não pudera tudo, ninguém diria que pouco antes torvelinhara endemoinhado pelos adarves, negro de pólvora, distribuindo berros e insultos, assistindo às peças, dispondo as defesas nas muralhas, sempre de sabre recurvo na mão e brado pronto. Agora, até mesmo a faixa de seda trazia no seu lugar, pontas franjadas elegantemente descaídas sobre o calção.

Fez uma vénia breve à soleira, deu dois passinhos direito ao padre a quem fez menção de beijar a mão, deixou no ar um aceno breve ao camarada de armas e, finalmente, dirigiu-se ao enfermo com condescendência.

O senhor governador tinha-o encarregado, entre dois serviços, de informar como passava o nosso tenente e ele aí vinha, com alegria, cumprir a sua missão, alegria tanto maior quanto podia notar que Sua Senhoria se encontrava a recuperar e melhor acompanhado.

O tenente lamentou-se, de vale de lençóis, abanando a cabeça, e o de cavalaria tentou consolá-lo, explicando que aquele escarcéu do inimigo não havia causado uma única baixa e que, a continuarem assim, ainda antes do Inverno largariam as bagagens e iriam à sua vida, de rabo entre as pernas. Qual Inverno! Tentassem eles o assalto, vir às mãos, que nem ao pino do Verão chegaria o cerco...

Sisudamente, prudentemente, todos mantiveram um silêncio concordante, vagamente incomodado.

Mas já o capitão de dragões, na missão um tanto oficiosa de levantar o moral, rompia num elogio do conde e das suas qualidades de governador. Abençoado fosse, que o povo da praça lhe devia o resguardo contra as tropelias dos estrangeiros. Homens daquela têmpera é que se queriam. Tinham Suas Senhorias e Sua Reverência visto como dominara o motim, de inspiração traidora? Pois enquanto Portugal produzisse homens assim, não havia bilhostre que se atrevesse a pôr o pé para cá da raia...

Falava numa vozinha aguda e esganiçada, com volteios de mão efeminados. Não tardava, já levava à boca o lencinho de cambraia, de uma alvura impoluta. Olhava os interlocutores alternadamente, convencendo-os de verdades incontestáveis. Cultivava uma pronunciazinha afectada, numa linguagem afrancesada em que era recorrente um "u-lá-lá" que julgava de muito efeito.

Palrou nesta toada durante um bom quarto de hora. Depois, tirou o relógio de prata de um bolsinho da jaqueta, fez um grande "oh!" de sobressalto e declarou que tinha de se retirar. Deus bem guardasse o nosso tenente, dando-lhe rápidas melhoras. Vénia elegante, de pé direito atrás, floreio com o tricórnio e ei-lo pela porta fora com grande alívio dos circunstantes.

- Este rapaz - avançou o padre depois de pigarrear e de ouvir o tropeio da cavalgadura afastando-se. - Este rapaz conheço-o há muitos anos. Sempre foi servidor da casa de Fróis: antes de vir em capitão era camareiro, aliás muito a preceito...

- Muito chegado ao senhor conde... - observou o tenente.

- Pois - completou o capitão, devagar - São, com licença de Vossa Reverência, como o padre e o sacristão. Com todo o respeito... se um diz mate-se, o outro diz esfole-se!

- Às vezes pasmo - ponderou o padre -, às vezes chego a pasmar como um homem assim tão alfenim lhe dá para gostar de guerras e zaragatas. Como é que aquele lencinho embebido em água de rosas se casa com o cheiro da pólvora...

Os dois oficiais riram, esquecido o ferido das dores, que a ocasião era propícia a apreciações interessantes.

E, por instantes, rataram na reputação do de dragões, com torpezas mais acentuadas, à medida que iam percebendo que o padre lhes dava campo livre. Por pudor, omitam-se as alusões, nem todas verdadeiras, com que o capitão de cavalaria foi brindado, e cheguemo-nos mais ao final da conversa, de novo derivada para a apreciação das circunstâncias do cerco, quando o capitão da praça, já muito à-vontade, explicava:

- Para mim, o fundamental na guerra é o objectivo. Há um objectivo? Então faça-se a guerra! Mas, no nosso caso, qual o objectivo, hem, qual o objectivo? Que proveito tem esta praça para el-Rei? Ainda se Miranda se tivesse sustido... Mas assim...

- Não, senhor padre, é de mais, é excesso... lamentava-se o tenente lembrado das dores. - E matarem assim o tendeiro, aquele pobre homem...

- Com efeito - respondia o padre soturnamente -, morto como um cão, e sem julgamento. A pena de morte está reservada à justiça del-Rei...

- E ao que dizem - acrescentou o tenente - foi o senhor conde, por suas mãos, que o matou...

- Ao que dizem, não! Eu estava lá por trás e vi com estes olhos. O senhor conde é que fez a pontaria e deitou o homem abaixo.

O padre mostrou-se escandalizado, levando a mão à boca:

- Nem me digam uma coisa dessas!

O capitão assegurou, com pormenores, que era verdade o que se contava. Aliás, quem estivesse próximo da torre, na ocasião, podia confirmar que o senhor conde tirou a arma ao soldado e disparou, às escâncaras, em frente de todos.

Caiu um silêncio longo, soturno, tenso. O padre aproveitou para manejos de rapé, satisfeito por dentro por a conversa lhe correr de feição.

- Hum, estamos a fatigar aqui o nosso tenente - acabou por dizer, por desfastio.

Mas o capitão, sem o ouvir, já segredava do outro lado da cama:

- E esta noite vai-se fazer uma surtida de cavalaria, comandada pelo senhor governador em pessoa. Imagine Vossa Paternidade: um comandante lançado numa surtida... É loucura. Perdoe-me Vossa Reverência. É dislate!

- Ah, sim? Uma surtida?

- Contra a trincheira, para encravar as peças. Vão os dois. O conde e o capitão de dragões...

Durante uns instantes, o padre olhou fixamente o capitão que chegou a estranhar aquela imobilidade. Na verdade, não estava nada interessado na figura do outro: pensava.

- E quem fica a comandar a praça? - inquiriu por fim

- Vossa Senhoria?

O outro encolheu os ombros e abriu os braços, resignado. Que remédio...

Mas já o padre se levantava, com o pretexto de deixar repousado o ferido, e convidava o capitão a sair com ele. Abandonaram no ar morno do tugúrio umas palavras de conforto, demoraram-se ainda um pouco à cabeceira e lá se retiraram, lado a lado.

Os habitantes da praça afanavam-se a dar remédio aos estragos das bombas. Dispunham sacos de areia, remexiam nos monturos, extraíam madeiras e chumbos, escoravam paredes, derrubavam as em perigo, arredavam destroços, desimpediam as portas. O capitão tinha destinado este tempo de folga a dormir um pouco, antes da operação dessa noite. Passara um instante para ver o tenente e ala para a cama que os tempos próximos se adivinhavam desinquietos. Mas o padre não o deixava recolher tão cedo.

Foram os dois pela rua fora, com o padre a saltitar numa gesticulação viva. De vez em quando paravam. Agora falava o capitão, grande, com gestos espaçados e lentos; agora falava o padre, e era o que mais falava, com trejeitos nervosos, miudinhos e insistentes. Aqui passavam de largo, frente a uma parede mal segura, ali tinham de trepar para um monte de destroços, os braços no ar do equilíbrio precário. Eis o padre, apressando-se para acompanhar as largas passadas do outro, numa esgrima de gestos sarilhada e tumultosa. Eis o capitão, a olhá-lo e a cofiar os largos bigodes com uma mão, a outra na anca, os olhos ao alto de quem pensa. Vão agora lentos, por um largo, e já o padre trava o capitão pelo braço e o arrasta para um canto. Ouve-o o capitão, meio dobrado. Volta atrás, com um encolher de ombros e logo o padre o alcança de dedo em riste.

Nisto um retumbar sonoroso ecoa pelas paredes. Surde da esquina, a trote largo, o esquadrão de cavalaria, com o oficial à frente. O padre encostou-se à parede e o capitão postou-se em continência, enquanto a cavalaria passava, as alimárias a escorregarem nos detritos espalhados.

Durante o percurso, neste pára, arranca, volteia, hesita, despede, que temos visto, os dois cruzaram repetidamente os cavaleiros: ora em esquadrão formado, ora em grupos dispersos, ora em passo repousado, ora em galope disparado. O esquadrão exercitava-se para a operação dessa noite, os cavalos aqueciam os músculos, depois do recolhimento forçado de tantos dias.

Enfim, o padre lá deixou o capitão à porta de casa, não sem largos minutos de perlenga muito sublinhada de gestos e de olhares de viés. E o "guarde-o Deus" foi dado após uma longa fala, ao ouvido do oficial, escondida pela palma da mão, com o padre muito teso, em bicos de pés.

Recolheu-se o capitão, que lhe cumpriam ainda uns instantes de repouso, mas não se recolheu o padre. Passeou por um instante em frente da casa do outro, muito absorto, meditando de braços atrás das costas, deu um toque ao cabeção e lançou-se com passo apressado pela ruela fora.

Nessa tarde, o padre andou muito conversador. Falou com o pároco, passou pela oficina de ferreiro, onde se atardou um bom bocado, andou pela enfermaria, onde chamou o barbeiro à parte, deu um salto às cavalariças vazias, trocou umas palavras com o alveitar, atreveu-se às muralhas e cochichou com os sargentos.

O sol ia caindo. Tocaram os sinos, estralejaram uns tiros para o lado da torre de S. Lourenço. O povoléu recolheu apressadamente aos abrigos, que os não retiveram muito tempo. Nada de cuidado. Tiroteio de rotina: umas sombras, uns dedos nervosos, estava constantemente a acontecer...

Ceou o padre num ápice, de boca cheia, ralhou com Brízeda, que se queria servido depressa. E, definida a noite já cirandava de novo pela vila.

 

Quem quer que passeasse desprevenido, aceitando que, no tempo da guerra, alguma desprevenção fosse admitida em S. Gens, e atinasse os passos pela rua direita para os lados do largo do moínho, havia de se sobressaltar naquele ponto em que a rua se estreita, afunilando-se entre muros de granito solto, toado de musgo seco. Na mais negra escuridão e muito em silêncio, um grande grupo de homens aguardava, com os seus cavalos. Um afeiçoar dos olhos à escuridão daria sinal, muito esbatido, dos brilhos dos olhos, da claridade dos alamares e pinchavelhos dourados nas fardas e chapéus, e das formas moventes das cavalgaduras, seguras pela brida. Se os homens nada diziam, ou porque tivessem sido instruídos nesse sentido, ou porque a altura era de se ensimesmar e deitar contas à vida, de que o termo podia estar prestes, já as alimárias, aqui e além, resfolegavam e sopravam de impaciência ou de tédio e queriam escarvar o solo numa afirmação de presença.

O padre não vinha desprevenido - como o leitor e eu estaríamos. Não deambulava à toa pelas ruas de S. Gens, antes levava o passo bem destinado pelo ponto aonde queria ir. Nem se encontrou sozinho, sobressaltado, em chegando lá que muito antes do estreitar da rua já topava com uma multidão silenciosa que ali se deixava ficar, à espera do que se anunciava, aquietada pelos rosnidos do capitão de dragões que havia enumerado ameaças eficazes.

Passeava este para cá e para lá, bichanava aqui com um sargento, acariciava além um cavalo, media, mais acolá a lubrificação de um sabre, e era encontrado, misteriosamente, onde quer que a sua presença fosse necessária, sempre decidida, serena e despreziva.

Homens e cavalos amontoavam-se, rés às paredes, de ambos os lados da rua e do pequeno largo em que ela desembocava, enquadrado pelas muralhas de S. Gens. Num ressalto, meio ocultada por entulhos, escoras, e por uma parede nova de reforço, furava a velha porta gótica, chamada da traição, como em outras praças, por razões benéficas que não cabe aqui referir.

Todos os dragões haviam, antes, comungado, na igreja. O pároco, depois, viera acompanhá-los e quisera também estar presente, como símbolo do apoio da Fé ao empreendimento. Mas o capitão, energicamente, tinha-o afastado de ao pé dos soldados, de maneira que se limitava a sediar entre a multidão, assistindo ao que pouco tinha para ver.

O capitão de cavalaria estava apreensivo, com aquele molho de gente, ali especado na rua, e pasmava na presteza com que a notícia correra. Não era curial em termos militares, que a operação fosse sabida dos civis, acrescentando muito ao risco da expedição. Pensou ir ter com o conde e propor-lhe o adiamento da surtida que, sendo do conhecimento público, envolvia perigos escedentários. Mas considerou a trincheira, o perigo de a deixar incólume por mais uma noite, lembrou a determinação do Governador, e deliberou cerrar os dentes, manter a ordem possível, evitar sobretudo estardalhaço, com voz de prisão, sendo caso disso, a quem não respeitasse o silêncio.

Algumas silhuetas correram pela adarve, meio dobradas, ocultando-se atrás das ameias. Era um piquete de infantaria que tomava posição por cima da porta e que deveria intervir em reforço da operação, em caso de necessidade. Atrás deles, em passo repousado, veio o próprio capitão da praça.

Já havia mais que tempo que os homens ali aguardavam, quando se apresentou o mestre-ferreiro com os seus ajudantes. Mesmo às escuras, esperou que retirassem os sacos de terra que cobriam ainda um dos batentes chapeados da porta, e aplicou-se minuciosamente a deitar óleo nas ferragens e dohradiças, para que abrissem sem ruído.

Compareceu, enfim, o conde, depois de se ter feito esperar muito. Tinha permanecido na torre, às escuras, entre duas portadas, perscrutando o escuro com o óculo, a ver se divisava movimentos, rasgos suspeitos da banda do inimigo. Mas se a negrura defendia as intenções dos de S. Gens, também, equitativamente, como elemento imparcial do caso, reservava as vistas de espanhóis, apenas oferecendo à devassa aquilo que já era sabido: fogaréus ao longe, lumes e lanternas dos bivaques em círculo, e reflexos distantes.

Ruídos, sim, é que surdiam de mais ao perto, difusos e abafados, por entre o canto das cigarras, trazidos esparsamente pelo ondear da brisa. Trabalhava-se afanosamente nas obras de campo, noite fora. Quando ao conde se afigurou a madrugada propícia e pareceu que "sem novidade" era a fórmula militar que convinha àquela aparente rotina do lado de lá, tomou o sabre, arrumou o óculo, benzeu-se, deu um jeito à peruca empoada e pôs-se a caminho, pelas ameias adiante.

Já sabia daquele ror de gente pasmado nas imediações da porta da traição, porque um furriel o viera avisar, estranhando a concorrência, às horas que eram. Apresentaram-se-lhe ao espírito as mesmas interrogações que ocorreram ao comandante dos dragões, exceptuando a conveniência de adiar a surtida. Passou pelo capitão de armas que o saudou, apercebeu, com contrariedade, o ligeiro rumorejar que perpassou pela multidão apinhada, quando o adivinhou a descer da muralha, e veio, cá em baixo, conferenciar com o capitão da cavalaria numa derradeira verificação dos pormenores. Estava tudo a postos.

O conde ordenou, então, que fosse aberta a porta.

Cautelosamente, o ferreiro e os ajudantes retiraram a tranca, a fechadura deu dois estalidos secos e breves, e o batente, livre de escoras e entulhos, entrou a rodar, devagar, sem ruído, tirante um arranhar subtil de madeira trôpega que mal se ouviu.

Do seu sítio, o pároco desenhou, no ar, o sinal da cruz. O padre, perto, imitou-o. A tropa, apeada, formava em fila indiana, com os cavalos pela trela. O silêncio era agora absoluto, dentro da praça. E a todos pareceu, numa curiosa ilusão, que o rumor sincopado das cigarras, que vinha lá de fora, do negrume dos campos, se tinha subitamente incrementado e tornado mais insistente, após a abertura da porta. Saudações no escuro, de espada ao alto. O capitão de dragões tomou o seu lugar, à frente da fila e saiu pela porta, apeado. Um a um, os homens seguiram-no. O conde ia no meio da fila, à frente da sua secção.

Ainda a pé, em passo vagaroso, rés à muralha, os dragões desceram para a depressão antiga do fosso, hoje seco e muito entulhado de pedras e escórias, e prosseguiram, largo espaço, ao longo da muralha. A porta fechou-se atrás do último soldado. Avançavam muito devagar, tenteando o terreno, os animais bem seguros, que o chão ali era irregular, solto e movediço. Temiam-se de derrocadas imprevistas ou de escorregadelas ruidosas dos cavalos, de passo menos seguro pelas serapilheiras que lhes entrapavam os cascos.

Em volta das muralhas, pelos campos fora, até aos pontos já no horizonte, e fora do alcance da artilharia, onde brilhavam fogueiras, estendia-se, abafada pela escuridão, uma terra de ninguém silenciosa, aparentemente adormecida. Os homens, porém, não iam tranquilos. De noite todos os gatos são pardos: qualquer rumor sobressalta, qualquer sombra de arbusto ou remover de ervas figura sinistramente uma ameaça. De maneira que este percurso pelo fosso, que não foi além de cem braças bem contadas, decorreu lento, acautelado, tenso e enervante. E quase todos suspiraram de alívio quando, mais além, receberam ordem, num passa-palavra ciciado, de se afastarem da muralha e formarem em duas fileiras. Em pouco, estavam montados e progrediam agora a passo, pela charneca adiante, as muralhas cada vez mais lá para trás.

Iam já bem distanciados de S. Gens e preparava-se o conde para dar ordem de "trote!" quando das muralhas rompeu um tiroteio vivo, em múltiplos fogachos, esgaçando o escuro ao longo dos melrões.

O conde voltou-se na sela, a montada revoluteou, surpreendida com o rompante brusco do cavaleiro. Houve uma hesitação nas fileiras.

Seria talvez a altura de o autor, que nunca no decorrer da narração deixou de mostrar alguma admiração pelo conde e governador de S. Gens, lhe pôr na boca ou no pensamento uma tirada dramática, de burilado recorte, dando conta do agastamento com a traição que assim era perpetrada. Mas a história tem os seus pruridos de verdade que se sobrepõem às parcialidades do autor e este vê-se constrangido a relatar o que ao conde calhou dizer, e não o que ele gostaria que o conde dissesse:

Ora o fidalgo limitou-se a exclamar, alto e bom som:

- Merda!

Se estes eventos não tivessem sido tão obscuros e mal conhecidos e se esta guerra tivesse levado os seus comparsas à notoriedade universal, talvez a exclamação houvesse imortalizado o conde, tirando a primazia ao desforço de Cambronne, ocorrido mais de cinquenta anos depois. Dir-se-ia então, numa perífrase elegante, "a célebre palavra do conde de Fróis", aparecendo Cambronne como um plagiador depreciado. Para mal das glórias nacionais não foi assim que aconteceu, porque da imprecação do conde dou eu notícia, já a quase duzentos anos de distância de Waterloo, razão por que, bem o receio, Cambronne reterá a glória e a propriedade do palavrão.

- Merda! - insistia o conde, ainda antes que o último tiro soasse dos lados da praça. Logo aquietou o cavalo e tomou uma decisão imediata, não fosse aquela hesitação que pressentia nos soldados fixar-se, ou ceder lugar à debandada. Bradou à carga, ainda com a cavalaria parada, precipitando os termos da operação, que deveria prosseguir, afeiçoada ao plano de campanha, com trote, galope, resolvendo-se em carga desencadeada já quase ao rés da trincheira.

O esquadrão lançou-se para diante, tropeou, mais e mais célere, com um trovejar abafado que fazia estremecer o chão, os homens curvados sobre os cavalos, as clavinas aperradas, e os ares, desinquietados, a fustigarem-lhes as caras.

Mas a eficácia da surpresa estava já gorada. Do lado dos espanhóis corriam luzeiros, ouviam-se brados, e um ou outro estampido de tiro desgarrado.

De súbito, o negrume foi traçado por uma fieira de luminárias curtas e breves, seguidas de um estrondo que reboou pelo escuro, até embater nas muralhas de S. Gens que breve lhe devolviam os ecos. A tropa inimiga já fazia tiro de salva, de longe. O conde ouviu, ao seu lado, o nitrido de um cavalo e sentiu o baque convulso de alimárias e cavaleiros revolvidos, a despenharem-se, ao desamparo.

Mas a desfilada prosseguia, a rija pressa, em direcção às obras de sítio. Breve o conde e o capitão davam alto, e os homens saltavam em terra, ainda mal parados, clavinas e pistolas aprontadas, frente ao parapeito da trincheira.

Levantou-se um clamor confuso das baterias. Tiros de pistola, dispersos, estalavam no ar, lançando clarões e reflexos para todo o lado. A uma ordem do capitão, os dragões desfecharam as clavinas sobre as valas, varejando as profundidades ao acaso. Acompanhado do seu grupo, gritando que nem um possesso, o conde saltou, deslizou pelo parapeito, de sabre em riste.

Logo se gerou a confusão do corpo-a-corpo, às escuras, por entre as intermitências erradias dos clarões de disparos soltos.

Com o artilheiro e o servente ao lado, o conde espadeirava, a torto e a direito, forcejando em direcção às peças e ao morteiro. Era um torvelinho, de corpos apertados, baques berros, gemidos, tiros, tinires metálicos. A serventia das baterias estava mal armada para a emergência: espadas, piques e pistolas. O grupo do conde, protegido por fora pelo do capitão, que segurava os cavalos e dava cobertura de fogo, em breve se apoderou da posição, acalcando corpos derrubados. O mestre-artilheiro, mais os serventes, acorreram, céleres, a uma peça, com os seus apetrechos. O propósito era atacá-la de pólvora, até vasar, fechando-lhe depois a embocadura, e dar-lhe explosão, a poder de mecha longa.

Mal os artilheiros começaram freneticamente a trabalhar, após um breve instante de silêncio, uma revoada de brados atroou a noite. Um efectivo, numeroso, a crer no alarido que largava, corria já pelas trincheiras fora, a trazer reforços à bateria. Do lado de cima, o grupo do capitão disparou uma salva, que iluminou momentaneamente a cena, deixando que o conde se apercebesse, pelos uniformes tombados em torno, que as suas baixas, ao invés do que pensava, não tinham sido pequenas.

Todo o campo inimigo parecia já estar alevantado e em progressão. Partiram mais tiros do fundo da trincheira e o conde deu por que o artilheiro, empoleirado no parapeito, de soquete em riste, se dobrava, deslizava por sobre o cano do canhão e desabava na lama.

Já o capitão esbracejava, lá de cima, em altos berros, que era o momento de retirarem. O conde ainda recolheu o soquete do chão e fez menção de trepar pela peça, mas uma nova descarga, mais intensa e mais ao perto, acompanhada de gritos de soldados que baqueavam, decidiu-o a abandonar a trincheira.

O capitão esperava-o, alarmado, já montado a cavalo, com o do conde pela brida. A galope, o grupo de cavaleiros, muito desfalcado, despediu em direcção às muralhas, no meio duma granizada de balas.

A surtida tinha dado em completa derrota. À passagem, os cavaleiros iam sendo alvejados por magotes de soldados inimigos, dispersos ao longo da charneca. Aqui e além, quando menos se esperava, piscavam no negrume luzes de detonações e ouvia-se o baque surdo de um corpo no chão ou o tombo tumultuoso de um cavalo com rinchos de dor.

De S. Gens, respondia um mortal silêncio. Ao aproximarem-se das muralhas, a galope desabalado, o conde e o capitão bradavam para cima que ripostassem ao fogo, que desatassem tiro de peça. Nada!

Foi só um pequeno lote de cavaleiros o que, muito agitado, adregou chegar à porta da traição. Por trás parecia que todo o arraial inimigo se movimentava e fazia fogo. O conde e o capitão, esbaforidos, apeavam agora em frente da porta. Chamaram, chamaram, atacaram os batentes com grandes punhadas, reforçadas com os copos dos sabres. Estava fechada a sete chaves. De dentro, ninguém dava voz.

Já sentiam, mais além, o aproximar-se da cavalaria inimiga num tropel cavo e divisavam a sombra ondulante de uma fileira de soldados que se chegava, formada. Por entre disparos e ribombos, ouviam distintamente as vozes de comando.

A noite foi picotada de faíscas breves e avermelhadas, num estouro arrastado, interminável. Dos seis homens que se encontravam à porta, dois caíram, e o capitão com eles. Outros dois montaram a cavalo e romperam à desfilada, fugindo à toa, ao longo da muralha.

Alevantando o sabre, num desespero, o conde lançou-se contra o inimigo, a correr. O oficial espanhol ainda lhe gritou que se rendesse e tentou suster a sanha dos seus homens. Era tarde. Após uma breve esgrima, frenética e atabalhoada, o conde foi derrubado e trespassado de baionetas. O seu cadáver ali ficou, retorcido, a dez braças da praça, em frente da porta gótica, levemente descaído sobre a lomba que algum dia quisera transformar em espaldão.

Ainda não tinha chegado o sol e já vastas bandeiras brancas ondulavam no alto da torre e em pontos salientes das muralhas. Alagon foi magnânimo. Não autorizou o saque à praça, recebeu o capitão rendido, concedeu-lhe palavras de consolo, e autorizou-o a conservar a espada.

O cadáver do conde jazeu, durante dois dias, em câmara ardente, na igreja. Na missa de corpo presente, a que Alagon assistiu, o capelão prestou ao jovem fidalgo um alevantado elogio fúnebre, repassado de tropos retóricos, em que a temperança, a virtude e a coragem, eram comparadas às de figuras egrégias dos livros antigos. Houve muito quem chorasse. A cerimónia teve fausto e luzimento. Vieram diáconos até de Espanha.

 

                                                                                Mário de Carvalho  

 

 

                      

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