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Randall levantou-se impulsivamente.
Ao chegar ao seu destino, afastou um pouco a cadeira em frente do ocupante da mesa e sentou-se sem cerimónias. -Monsieur Robert Lebrun, espero que me dê o prazer de aceitar uma bebida e que me permita apresentar-me.
Lebrun baixou um pouco o jornal e fixou Randall com uns olhos que mostravam uma sombra de impaciência. Os seus lábios húmidos movimentaram-se, mostrando uns dentes postiços mal fixados que se removiam dentro da boca, e foi numa voz rouca, como o crucitar de um corvo, que perguntou:
-Quem diabo é você?
- Chamo-me Steve Randall. Ocupo-me de publicidade e sou escritor. Americano, de Nova Iorque. Tenho estado aqui à espera de o conhecer.
-E o que é que pretende? Chamou-me Lebrun... Onde é que ouviu esse nome?
Os modos do francês eram tudo menos cordiais, e Randall viu que tinha de apressar as suas explicações.
-Soube que o senhor foi em tempos amigo do Professor Augusto Monti, isto é que foram uma espécie de sócios numa empresa arqueológica.
- Monti? 0 que é que sabe de Monti?
- Sou amigo íntimo de uma das filhas dele. Na verdade ainda ontem mesmo me avistei com o Professor Monti.
Lebrun mostrou-se imediatamente interessado, mas cauteloso. -Diz que viu Monti? Se assim foi, quer ter a bondade de me dizer em que sítio.
Tudo okay, pensou Randall. Começava o primeiro teste. -Na Villa Bellavista. Visitei-o, falei com ele e falei depois com o médico que o trata, o Dr. Venturi. - Randall hesitou, mas resolveu lançar em jogo o seu trunfo para o segundo teste. - Sei umas coisitas da sua colaboração com o Professor Monti no respeítante ao achado, de Ostia Antica.
Os encovados olhos do homem fixaram"se duramente em Randall.
-Ele falou-lhe de mim?
- Exactamente., não. Não directamente. Acontece até que a memória do professor está, de certo modo, arruinada.
- Continue.
-Mas foi-me dado acesso a verificar os papéis pessoais do professor, todos os apontamentos tomados na altura em que ele se encontrou consigo, fez um ano, aqui mesmo, no Doney.
- Ah... então também sabe esse pormenor.
- Sei, Monsieur Lebrun. Isso, e mais alguma coisa. Tenho feito um grande esforço para descobrir o seu paradeiro, Monsieur Lebrun. Pretendo falar-lhe amigavelmente na esperança de que o que o senhor tenha para me dizer possa vir a redundar em nosso mútuo benefício... meu e seu.
Lebrun levantou os óculos para a testa e começou a afagar a ponta do seu longo queixo de prógnato como tentando chegar a qualquer conclusão e decisão a respeito daquele estranho que estava na sua frente. Mostrava"se impressionado, mas sem baixar a guarda.
- Como posso eu ter a certeza que o senhor não mente?
- Mentir a respeito de quê?
- A respeito de ter visto Monti. Existem tanto charlatães por toda a parte. Como posso eu ter a certeza?
A pergunta transformava-se num obstáculo imprevisto. -Não sei que prova lhe posso fornecer para que acredite
em mim. Estive com o Professor Monti. Falámos os dois -embora a nossa conversa não tivesse nenhum senso - e... mas então que devo eu dizer para que me acredite?
-Tenho que ter a certeza que esteve com ele-insistiu teimosamente o velhote.
-Mas estive com ele. 0 professor até me deu... Repentinamente lembrou-se daquilo que havia metido no bolso do casaco ao deixar o seu quarto e, metendo a mão, tirou a folha de papel e alisou-a em cima da mesa. Não fazia a menor ideia do significado que pudesse ter para Lebrun, mas era tudo o que possuía de Monti, Empurrou o desenho para diante do francês.
-0 Professor Monti desenhou-me isto, um peixe atravessado por uma seta. Foi uma oferta de despedida. Não sei se para o senhor significa alguma coisa, mas é tudo o que possuo do Professor Monti para lhe mostrar, Monsieur Lebrun.
A vista do desenho pareceu exercer um efeito salutar sobre Lebrun, Levantando a folha de papel até a colocar a alguns centímetros dos olhos... na verdade de um dos olhos, porque Randall deu então fé que a outra vista estava obscurecida pela película esbranquiçada de uma catarata... Lebrun, examinou o desenho e devolveu-o, depois, a Randall.
-Sim, esse desenho é-me familiar. -Está então satisfeito?
-Sim, satisfeito porque se trata de um desenho que eu costumava fazer com frequência.
-0 senhor?
Randall fora apanhado de surpresa pela declaração do velhote. Engrolando as palavras, numa espécie de ruminação, Lebrun murmurou:
---Sim, eu. 0 peixe. 0 cristianismo. 0 dardo. A morte do cristianismo. 0 meu desejo. Não me surpreendo que Monti tivesse feito este desenho. A última recordação dele, Eu traí o cristianismo e Monti. Reflecte o desejo da minha morte. 0 desejo ardente dele. Se é que foi ele quem fez esse desenho.
- Como podia mais alguém saber disto? - perguntou, implorativamente, Randall.
-Talvez a filha do Professor Monti.
-Ela nunca mais o viu no seu perfeito juizo desde o último encontro que Monti teve consigo.
0 francês mostrou-se carrancudo e obstinado.
- É possível. Se é que viu Monti... ele referiu-se a mim... ou à minha obra?
Randall sentiu-se impotente.
-Não, não me falou de si. Quanto à sua obra... refere-se ao Evangelho Segundo Jacob e ao Pergaminho Petrónio?
Lebrun não respondeu.
Apressadamente, para que o impacto da revelação não se perdesse, Randall continuou.
- 0 professor julga-se Jacob, o irmão de Jesus. Começou-me a recitar, em inglês, palavra por palavra, aquilo que está escrito em aramaico no Papiro Número 3, a primeira das páginas com palavras escritas. - Randall parou, tentando lembrar-se do conteúdo da gravação que fizera na Villa Bellavista e que várias vezes pusera em funcionamento no gravador durante a passada noite. Preencheu até a porção desaparecida do terceiro papiro,
Lebrun manifestou sinais de aumentado interesse. -Sim? Como é isso?
- Quando Monti descobriu o Evangelho Segundo Jacob, o papiro apresentava um certo número de buracos. No terceiro fragmento existe uma frase incompleta onde se lê: «Os outros filhos de José, os irmãos sobreviventes do Senhor e meus, são» - a parte seguinte perdeu-se, mas o texto prossegue assim: - «Resto eu para falar do primogénito e mais amado Filho». Bom, Monti recitou-me essa parte, mas também recitou a parte perdida.
Lebrun inclinou-se para a frente.
-Como? Como é que ele completou o texto?
-Vamos lá ver se me consigo lembrar. - Randall fez um esforço para desbobinar a gravação na sua mente. - Monti recitou-me: «Os outros filhos de José, os irmãos sobreviventes do Senhor e meus, são Judá, Simão, Josias ... »
« ... e Judas, e estão todos para além das fronteiras da Judeia e da Idumeia e só eu resto para falar do primogénito e mais amado Filho»-rernatou. Lebrun, interrompendo RandalI, ao mesmo tempo que se encostava pesadamente às costas da cadeira.
Randall fixou o velhote surpreendido.
-0 senhor... conhece essa parte do texto...
-É natural- respondeu Lebrun. Os seus lábios arreganha" ram-se num arremedo de sorriso que ainda lhe vincou mais as rugas. -Fui eu que o escrevi. Monti não é Jacob. Eu é que sou Jacob de Jerusalém, irmão do Senhor.
- Nesse caso... Jacob, Petrónio, toda a descoberta... tudo isso não é mais do que uma mentira.
-Uma brilhante mentira-emendou Lebrun. Olhou atentamente para a direita e para a esquerda, acrescentando depois: Uma falsificação, a mais magnificente em toda a história. Agora já sabe a verdade. -Estudou Randall durante uns momentos. Estou satisfeito que se tenha encontrado com o Professor Monti, mas não estou satisfeito sobre aquilo que descia de Robert Lebrun. Afinal de contas, o que é que quer de mim?
- Os factos - respondeu Randall. - A prova da sua falsificação.
- E o que é que fará com essa prova?
- Publicá-la-ei. Exporei aqueles que pretendem pregar uma falsa esperança a um público crédulo.
Estabeleceu-se um longo silêncio, provocado deliberadamente por Lebrun. Finalmente, o francês falou.
- Têm havido outros - disse brandamente, quase como que para si próprio - , outros que têm pretendido a prova da mistificação e que também fizeram a jura solene de revelar ao mundo a podridão interna da Igreja e o lado sórdido da religião. Acontece porém que acabaram por se revelar agentes do clero, tentando obter provas da verdade para a enterrarem bem fundo, onde não possa ser encontrada, de modo a preservarem para sempre os seus mitos. 0 dinheiro deles não bastou para me convencer, por me faltar a confiança neles para fazerem a revelação da verdade ao mundo. Corno posso pois confiar em si?
- Confiará em mim quando souber que fui contratado para dar o máximo de publicidade à Ressurreição Dois e para promover a nova Bíblia, e estive quase a fazê-lo até que comecei a ter dúvidas - respondeu Randall com toda a franqueza. - Confiará porque as minhas dúvidas me levaram a andar em demanda da verdade... uma verdade que talvez tenha encontrado em si.
- Encontrou a verdade em mim - disse Lebrun. - Eu é que não tenho a certeza de ter encontrado a verdade em si. Não posso entregar a verdade a respeito da obra de toda uma vida, a não ser que tenha a certeza... absoluta... de que essa verdade possa ver a luz do dia.
Randall encontrava pela primeira vez, além de de Vroorne, outra pessoa cujo cepticismo ombreava com o seu ou ainda o ultrapassava.
Aquele homem transforinarase num ser exasperado e frustrado que não se deixava convencer. Desde o desagradável incidente com Plumer, Lebrun era provavelmente incapaz de confiar em qualquer ser humano. Quem, num mundo tão traiçoeiro, possuiria a força de carácter suficiente e as credenciais sem mácula necessárias para convencer aquele velhote de que o seu investimento de uma vida seria compensado, que a designada prova seria apresentada ao povo de toda a terra? Vasculhando na sua mente, quase como o filósofo grego Diógenes que percorria as ruas de Atenas, com uma lanterna acesa em pleno dia, à procura de um homem, Randall acabou por pensar em Jim McLoughlin. Se Jim, ali estivesse a seu lado, o Jim com a sua feroz integridade, com a sua admirável história de investigar, onde quer que se encontrasse, a hipocrisia e a chicana, o Jim do Instituto Raker devotado a procurar a verdade para além de todas as consequências possíveis e imaginárias... sim, se Jim ali estivesse com certeza que conseguiria obter a confiança de Robert Lebrun...
Repentinamente, Randall sentiu um estremecimento de esperança.
Afinal Jim McLoughlin e o Instituto Raker estavam ali à mão, em Roma. A alguns metros de distância.
Com um assomo de confiança, Randall voltou-se para o velhote. -Monsieur Lebrun, julgo que o posso convencer a depositar confiança em mim. Peço-lhe que suba comigo ao meu quarto do Excelsior para lhe apresentar a minha prova. Depois de lhe mostrar o que tenho, não terá dúvidas em me fornecer a sua prova.
Encontravam-se os dois no quarto de RandalI, no quinto piso do Hotel Excelsior.
Robert Lebrun, com o seu andar irregular, evitava a estofada cadeira de braços, com o seu banquinho para repousar os pés, e fora sentar-se na cadeira dura de espaldar direito colocada junto à mesa de tampo de vidro que Randall utilizara como secretária. Uma vez alojado, os seus olhos começaram a seguir todos os movimentos de Randall com curiosidade.
0 publicista tinha naquele momento a sua pasta de coiro aberta em cima da cama e procurava algo nos seus arcanos. Finalmente endireitou-se e encaminhouse para junto de Lebrun, exibindo na mão a pasta de arquivo onde avultava a etiqueta com o título: The Raker Institute.
- Sabe ler o inglês coloquial? - perguntou.
- Quase tão bem como leio o antigo aramaico - respondeu Lebrun.
- Ainda bem. Por acaso ouviu falar de uma organização existente nos Estados Unidos que se chama Instituto Raker?
- Não, nunca ouvi.
- Sim, suponho que não tenha ouvido. Até agora ainda não mereceu as honras da grande publicidade. - Estendeu a pasta de arquivo a Lebrun. -Nesta pasta encontra-se correspondência trocada entre mim e um homem chamado Jim McLoughlin, director do Instituto Raker, anteriormente a um encontro que tivemos em Nova Iorque. Também aí estão notas respeitantes à nossa entrevista. Em meses vindoiros irá ouvir, com certeza, falar substancialmente de McLoughlin. Tratase do último exemplar de uma grande tradição de cruzados e dissidentes americanos, sempre prontos a atacar e a revelar o mal onde quer que ele se encontre, homens semelhantes ao vosso Zola...
- Zola... - murmurou Lebrun numa voz que era quase uma carícia.
- A nossa tradição americana tem tido sempre homens desses, embora poucos e crucificados às mãos dos poderosos da terra. Mas apesar disso nunca se calaram nem se deixaram extinguir, porque foram sempre as vozes da consciencia pública. Homens como Thomas Paine e Henry Thorcau. E, mais recentemente, cruzados como Upton Sinclair, LincoIn Steffens, Ralph Nader, que expuseram os atentados praticados pelos grandes capitães da indústria contra um público confiante. Bem, Jim McLoughlin e os seus investigadores do Instituto Raker são os últimos na linha dessa tradição democrática de demanda da verdade e revelação impiedosa do mal.
Robert Lebrun escutara Randall atentamente.
- E o que é que fazem esse homem e o seu Instituto?
- Recentemente têm vindo a investigar uma conspiração secreta levada a efeito por certas indústrias e firmas americanas para sonegarem ao conhecimento do público determinados inventos e produtos. Desenterraram provas de que os grandes monopólios - a indústria petrolífera, a indústria automóvel, a indústria têxtil e indústria do aço, para não nomear muitas outras com culpas no cartório - têm subornado, cometido até violências, para sonegarem do público uma tableta a preços módicos capaz de substituir com vantagem a gasolina, um pneu que praticamente nunca mais se gastaria, um tecido que aguentaria uma vida inteira de uso, um fósforo eterno. E isto é só o começo. Ainda neste decênio revelarão conspirações de cartéis contra o público praticadas pelas companhias dos telefones, por bancos e companhias de seguros, trabalhando de parceria, por fabricantes de armamentos, por militares e certos outros sectores governamentais. McLoughlin acredita que o público está em permanente perigo de ser enganado pelas empresas livres não regulamentadas. Crê também que o povo, não só na democracia como sob o comunismo, possui um governo represen~ tativo... mas não tem representação eficaz. É um homem que nunca pára, que anda sempre à procura de descobrir toda e qualquer conspiração perpetrada contra o público. E, como verá pela documentação nessa pasta, fui eu o único publicista para quem ele apelou a fim de ajudá-lo.
RandalI, colocou a pasta de arquivo na mesa, em frente de Lebrun.
-Aqui estão, Monsieur Lebrun, as únicas credenciais válidas que possuo como homem pronto a revelar a mentira e a procurar a verdade. Leia os documentos e decida depois se deve ou não confiar em mim.
Lebrun agarrou na pasta e abriu-a. Randall dirigiu-se para a porta.
-Vou deixá-lo sozinho durante os mais próximos quinze minutos. Vou lá em baixo ao bar tomar uma bebida, Posso oferecer-lhe também uma?
- Poderei já não estar aqui quando regressar - avisou Lebrun.
- Correrei esse risco.
- Bom, traga-me um uísque simples. Bem forte. Randall saiu do quarto.
Levou consigo a sua bravata, tão pouco segura de si, para o bar junto ao átrio, rezando intimamente. para que Lebrun não desaparecesse.
Teriam passado cerca de vinte minutos quando Randall voltou ao quarto. Ao entrar, seguido por um criado que transportava o uísque simples e um uísque com gelo, Randall magicava se só tomaria a sua bebida ou teria que engolir as duas.
Mas Robert Lebrun ainda lá estava. Continuava sentado junto à mesa, tendo a seu lado a pasta de arquivo fechada.
Randall mandou o criado embora, depois de lhe meter uma nota na mão, e levou o uísque simples ao velhote. Lebrun agarrou no copo.
- já me decidi - disse numa voz estranha e distante. Aliás, você é a minha derradeira possibilidade. Contar-lheei como escrevi o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho Petrónio. Não é uma história muito longa, mas posso garantir-lhe que nunca houve antes uma história como essa. Trata-se de uma história que deve ser tomada conhecida... e cabe-lhe a si, RandalI, o papel de apóstolo para impor a verdade sobre a mentira, para revelar a todo o mundo a mentira da nova vinda de Cristo.
Curvado para a frente, sentado na cadeira junto à mesa, falando para Randall numa voz despida de emoção e monótona, Robert Lebrun contou os acontecimentos da sua mocidade antes de ser condenado ao desterro para a colónia penal da Guiana francesa.
Durante meia hora falara da sua pobre meninice em Montparnasse, na descoberta da sua habilidade para as falsificações e nas suas fraudes criativas que o haviam conduzido a uma vida de pequenos crimes em Paris. Falara das suas numerosas prisões e condenações. Do seu esforço para conseguir um pé-de-meia confortável e a independência por meio da falsificação de um documento governamental. Falara da sua final detenção pelos agentes da Súreté e da sua condenação à deportação para a Guiana pelo Tribunal Correccional.
Embora Randall já antes tivesse ouvido uma súmula daquelas aventuras, manteve uma atenção fascinada por se tratar da própria fonte dos acontecimentos. Randall nem por indícios quis mostrar que menos de vinte e quatro horas haviam decorrido desde que escutara parte da história de Lebrun contada pelo Domince de Vroorne ouvida por seu rumo a Cedric Plummer depois do encontro com o falsário no Père-Lachaise. Mostrou-se interessado e absorvido como se ouvisse o relato pela primeira vez, esperando com toda a paciência ser posto ao corrente do que ainda desconhecia e tão ardentemente desejava.
Nesse momento, Robert Lebrun dizia:
- E assim, devido a já ter estado quatro vezes preso em França por crimes menores, fui automaticamente classificado como incorrigível, sem possibilidades de perdão ou reabilitação e condenado a passar o resto da vida na colónia penal da Guiana francesa. A colónia tornou-se globalmente conhecida pelo nome de fle du Diable-1lha do Diabo,-mas na verdade continha cinco prisões separadas. Três estadeavam-se em ilhas, mas só a mais pequena dessas ilhas, uma ilhota com cerca de mil metros de circunferência, é que era na realidade a Ilha do Diabo, de seu nome. Uma ilha reservada unicamente aos presos políticos-como o capitão Alfred Drejfus vítima de urna conspiração de elementos militares que o acusaram erradamente de ter vendido segredos militares franceses à Alemanha, Em nenhuma ocasião essa ilhota teve nas suas cabanas mais de oito presos ao mesmo tempo. As outras duas ilhas do grupo, situadas a nove milhas das costas da Guiana, eram a Royale e a St. joseph. As duas prisões no continente, situadas a certa distância da cidade de Caiena, eram St. Laurent e St. Jean. Quanto a mim fui enviado para a St. joseph.
A voz seca de Lebrun começara a entaramelar-se, e o homem levou o copo de uísque simples aos lábios e bebeu um bom trago, pigarreando a seguir para aclarar a garganta.
- Em que ano é que o enviaram para a Guiana? -perguntou Randall.
-Muito anos antes de você ter nascido. Em 1912.
- 0 presídio era uma coisa assim tão má como tem sido escrito?
- Muito pior - garantiu Lebrun, em tom grave. - Os condenados que fugiram para escreverem sobre o caso falaram das crueldades praticadas e dos seus sofrimentos, mas sempre com tendências para dar um ar romanesco, como se se tratasse de uma aventura. Mas a Guíana nunca foi nada disso, nunca foi um inferno encantador. Nenhum dos clichés conhecidos é capaz de descrever exactamente aquele inferno vivo. Um tormento muito pior do que a morte. Talvez o espectro da guilhotina possa fornecer a ideia mais aproximada, dentro do sentido revelador de todos os dias se ser executado sem nunca, todavia, a execução pôr termo à vida. Tortura e dor infindáveis, conforme aprendi por experiência pessoal, são muito piores do que a morte. Por isso mesmo penso que Prometeu foi um mártir muito maior do que S. Pedro. Fui embarcado para a Guiana em 1912 a bordo da barca La Martitúère, confinado não a uma cabina, mas sim dentro de uma gaiola de acção, juntamente com mais nove degredados, a bombordo do porão, Originalmente, a colónia penal tinha um significado de local onde os condenados se poderiam reabilitar e redimir pelo seu comportamento. Será capaz de acreditar que o nome oficial dessas ilhas era Res du Salut-1lhas da Salvação? No entanto, tal corno todas as organizações manejadas pelas mãos do homem, o fim para que aquele degredo havia sido criado corrompeu-se. Quando eu fui enviado para a Guiana, a filosofia penal estava assim estabelecida: uma vez que um homem lançado na vida do crime, torna-se para sempre uni criminoso, está para além de qualquer redenção, transforma-se num animal, de modo que deve deixar-se sofrer e apodrecer até à morte para que nunca mais volte a dar preocupações à sociedade.
-E todavia o senhor encontra-se aqui.
-Encontro-me aqui porque a minha vontade foi mais forte do que a desgraça, porque tinha que estar aqui-disse Lebrun, ao mesmo tempo com orgujho e amargura. -Tinha uma razão para sobreviver, como em breve poderá observar. Mas não no princípio. No principio, quando pensava que era ainda um homem, e tentei agir como tal, eles obraram de maneira a lembrar-me que eu não passava de um animal, menos do que isso. Como poderei eu explicar os meus dois primeiros anos no degredo? Dizer que. a vida era brutalizante ou desumana... meras figuras de retórica, eufemismos. Escute bem: de dia mosquitos, chusmas de mosquitos, alimentando-se nas chagas que cobriam todo o espaço de pele de um homem que estivesse à mostra, com matacanhas entranhadas nas unhas e formigas vermelhas a morderem os pés. De noite, mor" cegos, morcegos vampiros, a sugarem-nos o sangue.-- E sempre, mas sempre, disenteria, febre, escorbuto. Olhe.
Abrindo a boca, Lebrun, com os dedos, arranhou os lábios e mostrou as gengivas cheias de cicatrizes, descoloridas que se viam por cima da má dentadura postiça.
- Como é que eu perdi os meus dentes? Apodreceram, caíram devido ao escorbuto. Fui-os cuspindo a pouco e pouco, aos dois e três de cada vez. Com mais de quatro condenações, como forçado para toda a vida, fui classificado entre os relégués, entre um daqueles que jamais sairiam da colónia. Na ilha de Sr. Joseph encarregaram-me de partir pedras desde o alvor do dia até cair a noite, e se protestasse, lançavam-me na solitária ou cela disciplinar. Sabe o que é que significava a solitária na ilha de St. Joseph? Existiam três blocos celulares-a prisão regular, a solitária e o asilo dos lunáticos-mas o mais desumano era o bloco das solitárias. Seria atirado para um buraco de cimento pouco mais ou menos com três metros e meio por dois e meio. Cobertura nem vê-Ia, por cima apenas barras de ferro cruzadas. Na cela existia um banco de madeira, um balde a servir de latrina e um cobertor que s6 podia ser mudado de dois em dois anos.
0 cheiro que se desprendia daquela atmosfera carregada, poluída com intensa mistura de urina e excrementos humanos fá-lo-ia com certeza desmaiar de nojo. Na solitária, teria de passar vinte e três horas e meia dentro do poço de cimento, apenas com meia hora no exterior, no pátio murado, para apanhar um pouco de ar fresco e fazer exercícios. A prisão regular não era muito melhor. Por vezes até era pior, especialmente à noite, quando os invertidos, os homossexuais se resolviam a lançar os seus ataques vampirescos. Fizesse sol ou chuva, a comida era sempre a mesma, nunca variava. Ao pequeno almoço, um púcaro de folha com uma coisa negra a que chamavam café. Ao almoço, um bocado de água quente com umas folhas de couves podres a boiarem, uma fatia de pão e um minúsculo bocado de carne pútrida. Para o jantar, feijões cheios de gorgulho ou um bocado de arroz de goma, que mais parecia grude, Convertido quase a um saco de ossos, era sovado a murro, chicoteado, pontapeado e torturado de muitas outras formas pelos guardas, que na maioria eram corsos selvagens, antigos componentes da Legião Estrangeira, brutais ou ex-flics. Não alimentava sonho mais caro do que o suicídio, do que o alívio que me adviria da morte, podendo então repousar em paz e descanso entre os Bambús - o cemitério dos forçados em St. Laurent. Então, certo dia, aconteceu um milagre -nessa altura, seja corno for, foi assim que pensei - e passei a ter uma razão para viver.
0 padre, lembrou-se, Randall. De Vroorne mencionara um sacerdote francês que havia protegido Lebrun no momento mais negro do degredo,
- A cerca de dezasséis quilómetros de St. Laurent-du-Maroni, perto do rio Maroni, a colónia penal tinha instalações numa clareira cercada por pântanos onde imperava a malária e por densas florestas insalubres, Nesse local ficavam as repartições administrativas, as cabanas dos guardas, uma serração, um hospital, uma prisão de cimento e uma cabana especial, e essa área chamava~se o Campo de St. Jean ou Prisão de St. Jean. Para os trezentos condenados que lá se encontravam confinados, cheios de chagas abertas, de lesões de toda a espécie e de olhos vazios, cegos, aquilo era um lugar terrível. Dormiam sobre o chão de cimento das celas, cobertos de pústulas, pus e excrementos, Eram somente aliinentados com sopa de farelos e com bananas verdes. Eram escravizados desde as seis da manhã às seis da tarde, derrubando árvores na terrível selva, e jungidos a zorras, com arreios e tudo, como bestas de carga, para transportarem os troncos para a serra" ção. Foi para um tal lugar, para St. Jean, que me enviaram, e foi esse o milagre que me forneceu razão para acreditar ainda na vida, para viver.
-Encontrou unia razão para viver num inferno como aquele?
- Sim. Por causa da cabana especial que havia na clareira disse Lebrun. - já mencionei a cabana, não é verdade?
- Mencionou.
-Tratava-se da igreja do campo-a. única igreja que conheci na colónia penal, sem contar com a capela da Ilha Royale, que não era utilizada - disse Lebrun. - Essa igreja, conhecida como a cabana, erguia-se sobre pilastras de sustentação. Com excepção do telhado, de traves de madeira e folhagem, era construída em sólida pedra, com cinco janelas em forma gótica abertas em cada uma das duas paredes principais. Claro está que não era para uso dos forçados. Fora construída como local de orações para os guardas e para os administradores e suas mulheres. Tinha tam" bém um dedicado padre... - Lebrun ficou silencioso durante algum tempo, pensativo, como que a tentar recordar o sacerdote, e depois voltou à sua narrativa. - Chamava-se Paquin, Père Paquin, um padre francês magrinho, débil, anêmico, mas muito devoto, natural de Lião. 0 Padre Paquin tinha a seu cargo a capela de St. Jean. Visitava também os forçados do hospital e, ocasionalmente, fazia viagens do seu metier a outras instalações no continente e também nas ilhas.
-Está-me a dizer que era o único sacerdote que havia em toda a colónia penal?
- Sim, o único - respondeu Lebrun. Reflectiu durante um segundo e corrigiu: - Não, quando eu cheguei à Guiana havia outros sacerdotes, Bom, a colónia penal tinha já um século de existência, e no princípio estava a cargo dos Jesuítas, que mais tarde foram, no entanto, suplantados pela Ordem francesa da Congregação do Espírito Santo, com sede em Paris. Quando cheguei à Guiana havia lá um Vigário Apostólico, uma espécie de bispo, que residia em Caiena, a capital, responsável perante o Vaticano. 0 Vigário era urna espécie de administrador de curas que realizavam activi" dades religiosas nas onze paróquias da Guiana Francesa. Mas três anos depois, isto é, na época a que me. reporto, tinham sido todos expulsos, excepto um. Só o Padre Paquin permaneceu.
- E porque é que os padres foram expulsos?
- Porque, como o cura me disse uma vez, estavam decididos a ajudar o pobre rebanho de deserdados da Guiana - como nos chamavam - iniciando uma cruzada internacional de orações de modo a chamarem as atenções para a situação dos condenados.
0 governo francês mostrou-se hostil à ideia e procedeu à convocação dos religiosos, opondo-se a todas as actividades do culto na Guiana, apenas permitindo a estada de um cura.
- 0 seu Padre Paquin?
- Sim - respondeu Lebrun. - Que oficiava na sua capela de St. Jean. Dado que essa igreja não se encontrava decorada e também não tinha outro mobiliário além do altar-mor, do púlpito e de alguns bancos para os fiéis, o cura decidiu, certo dia, melhorar o templo. Pretendeu colocar vitrais nas janelas e pinturas sagradas nas paredes para tornarem o santuário mais espiritual e mais atraente. 0 cura pretendia um artista para executar a obra e ouviu dizer que eu era o único artista que se podia encontrar entre os oito mil condenados da colónia penal. Desse modo, requisitou a minha transferência da ilha de St. Joseph para a prisão de St. Jean, no continente, Claro está que eu não era artista nenhum, nem nunca tinha sido, limitara-me a gravar o busto de La Belle France em notas falsificadas. Mas o facto de eu ser conhecido por ter falsificado uma Bíblia medieval iluminada fez com que as autoridades do presídio me recomendassem. A mudança de estar sob a custódia dos guardas brutais da ilha para o meu cargo de prestar serviços àquele cura teve tal repercussão que cheguei a pensar que era incrível.
-De que maneira?
-Bom, o Padre Paquin, aparte o facto do seu fanatismo religioso, era um homem razoável, bom para mim e apreciador dos meus talentos criadores. Deixara de me senti aterrorizado. Era tratado com bondade. Fui submetido a cuidados médicos, deram-me um novo uniforme prisional e roupas interiores limpas, comia uma comida ligeiramente melhor. Embora não sendo um verdadeiro artista realizado, sugeri que os vitrais fossem decorados com citações gregas e latinas tiradas do Novo Testamento, e que as paredes da capela fossem pintadas com primitivos símbolos cristãos tais como o peixe e o cordeiro, e com muitos outros. 0 cura, entusiasmado, conseguíu"me obter uma considerável biblioteca de livros para investigações, variadas versões da Bíblia, gramáticas latina, grega e aramaica, histórias ilustradas da Igreja primitiva e outros volumes no gênero. Debrucei-me para todos os livros, absorvi cada uma das palavras que continham, não uma vez nem duas, mas vezes sem conta. Passei um ano a decorar a igreja, obra que mereceu os louvores unânimas dos visitantes, e o Padre Paquin estava orgulhoso da obra e de mim, Durante todo esse período quase imperceptivelmente, fora-me convertendo a Cristo. Sob a orientação do cura, ensinaram-me que a única esperança e paz para mim se encontravam em Deus, no Seu Filho Unigénito, na bondade e no amor. Pela primeira vez em três anos de injustiça naquele inferno vivo, tive um vislumbre de haver decência na terra e senti o forte querer de me manter vivo para de novo voltar à pátria e voltar a tornar-me outra vez um ser humano. Todavia eu estava ligado à colónia penal até que a morte me arrebatasse... e no entanto, devido aos ensinarnentos daquele padre, desejava viver, Foi então que surgiu a grande oportunidade.
- Oportunidade para quê?
-Para ser perdoado. Para ser livre.
Lebrun fez uma pausa, sorveu mais um golo do seu uísque puro e recomeçou o relato.
-Estava-se em 1915 e toda a Europa se encontrava envolvida em luta, durante a primeira fase da Grande Guerra-a Prinicira Guerra Mundial. 0 director da colónia penal reuniu os condamnés, os condenados com sentenças de mais curta duração, e alguns dos relégués, os condenados a prisão perpétua, os incorrigíveis, mas só aqueles que tinham demonstrado bom comportamento, e eu entre eles, uma vez que me encontrava sobre a influência e patrocínio do sacerdote. Foi-nos dito que se nos alistássemos como voluntários para incorporação num batalhão especial do Exército Francês, um batalhão de infantaria destinado a combater na frente ocidental da Europa contra os Hunos, seríamos, depois da guerra, tomados em consideração para clemência do governo. Tudo aquilo se mostrara muito ambíguo, falho de especificação, e poucos foram os condenados que se ofereceram. Quando o meu amigo cura mostrou não compreender a razão porque eu não aproveitara aquela oportunidade, contei~lhe que discutira o caso com os outros condenados e que nenhum de nós se queria arriscar a morrer crivado de metralha, como carne para canhão, sem uma garantia de recompensa. 0 Padre Paquin consultou as autoridades e voltou com uma oferta positiva. Se me oferecesse como voluntário para combater pela França, e se conseguisse persuadir os meus companheiros de degredo a fazerem o mesmo, o Ministério da Guerra nos garantiria amnistia e liberdade uma semana depois da guerra acabar. Mais ainda, o Padre Paquin prometeu-me solenemente que «corno servo de Nosso Senhor Jesus Cristo, em nome do Salvador, tens a minha promessa pessoal de apoiar a promessa do governo. Dou-te a minha palavra que se te apresentares como voluntário para combater, serás perdoado e restaurado dos teus direitos de cidadão e na liberdade, Dou-te a minha palavra não só pelo governo francês, mas também em nome da Igreja.» Aquilo bastava-me... e, em parte devido ao meu poder persuavivo, bastou também aos meus companheiros de desgraça. 0 governo era uma coisa, mas o cura e a Igreja eram coisas muito diferentes no conceito da infalibilidade e de absoluta confiança. De modo que, juntamente com outros condenados, apresentei-me como voluntário para o exército.
A RandalI, aquela parte da narrativa afigurava-se inacreditável. -Monsieur Lebrun, está a querer dizer-me que na Colónia Penal da Ilha do Diabo se formou uma unidade especial que foi enviada para França para lutar contra os alemães?
- Exactamente.
- Mas então porque é que eu nunca li semelhante coisa nos livros de história?
- Compreenderá imediatamente porque é que o caso não teve uma grande publicidade - respondeu Lebrun. Coçou a coxa no sitio onde o coto devia estar ligado à perna artificial (pelo menos segundo pensou Randall), voltando seguidamente à narração. Inspirados pela promessa solene do nosso cura, apresentámo-nos como voluntários para um corpo de infantaria. Embarcámos em Caiena e desembarcamos em Marselha no mês de Julho de 1915. Embora em condições especiais, voltávamos a pisar o solo da nossa bem-amada França. 0 nosso regimento foi formado. Os nossos oficiais eram os guardas da Ilha do Diabo. Possuíamos todos os privilégios dos verdadeiros soldados, salvo um: enquanto fizéssemos parte do exército nunca poderíamos ter uma licença. Fomos designados como Força Expedicionária da Ilha do Diabo e colocados sob a chefia dos corpos de exército comandados pelo general Philippe Pétain.
-Foram enviados na verdade para a frente? -Directamente para as linhas de combate nas trincheiras da Flandres. Estivemos na frente, consecutivamente durante três anos.
0 nosso batalhão sofreu tremendas baixas naquele espantoso banho de sangue, mas sempre era melhor do que o inferno que deixáramos para trás das costas, principalmente devido à garantia que nos fora dada pelo cura. Batemo-nos como verdadeiros leões. Devido a estarmos sempre na vanguarda e sem podermos ser rendidos ficaram nos campos de batalha dois terços dos mil e oitocentos homens pertencentes à Força Expedicionária da Ilha do Diabo. Os que sobreviveram ficaram em parte mutilados. A seis meses do Armistício, a minha perna esquerda ficou crivada de estilhaços pelo rebentamento de um obus alemão. A perna teve de ser amputada, mas eu salvei-me. Era um gigantesco preço a pagar pela liberdade, mas quando acordei no hospital depois da amputação decidi que valia bem a pena. Assim que o coto cicatrizou, aprendi a andar com uma perna artificial primitiva, uma perna de pau muito rudimentar. Veio então o Armistício e a almejada paz. Eu era ainda um jovem e pensava que estava prestes a começar para mim uma nova vida. Com cerca de seiscentos outros sobreviventes do nosso corpo expedicionário, celebrei na mais ruidosa alegria o nosso regresso a Paris, onde devíamos esperar a proclamação da nossa amnistia. Logo que chegamos à capital fomos levados para a prisão de La Santé. A ida para a prisão era uma coisa que não esperávamos e apelei para o meu cura-o Padre Paquin fora capelão do exército num posto de comando das linhas de reserva-e. perguntei-lhe o que é que se passava. Ele abençoou-me e agradeceu-me o sacrifício, até me abraçou corno se eu fora um filho pródigo voltado ao lar, e assegurou-me em nome do Salvador que a estadia na prisão constituía uma espécie de aboletamento temporário antes da nossa libertação. Garantiu-me que a nossa liberdade seria concedida no espaço de uma semana. Fiquei tão aliviado e contente que até chorei de alegria. Passou uma semana. Então, certa manhã, chegaram subitamente à Santé os nossos antigos guardas corsos da Guiana, reforçados por urna multidão de novos guardas, armados de espingardas de baioneta calada, arrebanharamnos como gado, levaram-nos à ponta de baioneta até vagões de gado e fomos conduzidos a Marselha. Naquele porto, substítuíram-nos os uniformes por fatos prisionais do degredo e informaram-nos que, por razões de segurança nacional, devíamos regressar todos a le bagne, às instalações de degredo na Guiana, para continuarmos a cumprir as nossas condenações. Impossível uma revolta. Tínhamos demasiadas armas apontadas contra nós, teria sido um autêntico suicídio. Vi de relance o Padre Paquin. Chamei-o em voz alta, mas o rosto dele manteve-se impassível, limitou~se a encolher os ombros. Recordo-me perfeitamente que o último gesto que fiz antes de embarcar foi mostrar ao cura o punho fechado e gritar-lhe: «A Igreja não passa de fumier et ordure (monte de esterco)! Merde para o teu Cristo! Hei-de-me vingar!»
Randall abanou a cabeça cheio de descrença. -Isso ocorreu de verdade?
- Sim, aconteceu. Não tenha a mínima dúvida. Tudo se encontra registado nos arquivos, em Paris, dos Ministérios da justiça e da Defesa Nacional. E assim, nós que tínhamos dado o nosso coirão na defesa da França voltámos como recompensa, para os mosquitos, para as matacanhas, para os morcegos-vampiros, para o monstruoso calor, para os pântanos, a malária, os trabalhos forçados, os espancamentos e toda a brutalidade da Ilha do Diabo. Mas dessa vez eu tinha ainda uma razão para viver, para sobreviver. Não existe para um homem motivo mais forte do que a vingança. Eu queria vingar-me. Vingar-me do duro governo sem coração e sem palavra? Contra o padre perjuro e traidor? Não. Queria ter oportunidade de me vingar de maneira estrondosa de de todo o dolo representado pela religião, verdadeira inimiga da vida, veneno e ópio que em vez de salvar só oprime o homem com as suas falsas falinhas mansas a respeito de um bondoso Salvador. A minha antiga fé estava tão mutilada, tão coxa como o meu corpo. E foi durante a viagem no navio que nos levou a St. Laurent-du-Moroni que eu concebi o meu golpe de mestre -golpe de graça contra todos os vendilhões do Cristo, contra a própria hierarquia da Igreja pela decepção que um dos seus membros me impusera da forma mais perjura e cruel, numa jura que me fizera pela sua própria fé, Concebi, na sua forma rudimentar, o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho de Petrónio. Desde 1918, ano em que regressara à colónia penal da Guianafrancesa, até 1953, quando a colónia foi finalmente fechada e abandonada pela Comissão de Liquidação francesa devido à má reputação que as suas péssimas condições estavam a desencadear em todo o mundo, com constantes protestos, fiz cuidadosos preparativos para o meu golpe.
Horrorizado e fascinado, sentindo-se ao mesmo tempo chocado e cheio de simpatia por aquele homem submetido a tais provações, Randall continuou a ouvir a estranha história desbobinada pelo velhote.
Como preso exemplar, as autoridades da colónia haviam conferido a Lebrun. mais latitude do que aos outros condenados. Por meio de fazer gravações artísticas em cascas de coco, de realizar vários trabalhos de artesanato e pergaminhos sobre obras religiosas que eram bem vendidos em Caiena, por meio de falsificação de manuscritos medievais (enviados pelo correio para Paris por um guarda colaborante que metia ao bolso uma choruda per" centagem de trinta por cento), vendidos a negociantes de arte através contactos criminosos, Lebrun conseguira obter o dinheiro necessário à compra de livros sobre religião para as suas investigações. Pôde também comprar material para fazer notas falsas, vendidas a preços acomodatícios aos passadores oficiais, o que aumentou as suas potencialidades de obter livros raros destinados ao seu projecto.
Durante os trinta e cinco anos do seu segundo degredo, Lebrun, à custa de enormes esforços, tornara-se um autêntico perito sobre Jesus, sobre tudo o que existe relativo ao Novo Testamento, ao aramaico e grego, a papiros e pergaminhos. Em 1949, devido ao seu excelente cadastro no degredo, a sua posição fora mudada de relégué -condenado a prisão perpétua-para libéré-liberto condenado que saía do confinainento da colónia penal mas que tinha de permanecer nas vizinhanças das instalações de degredados. Mudando o seu uniforme de riscas de preso pelo fato de ganga azul de libéré, Lebrun fora viver para um pobre aldeamento perto do Rio Maroni, a curta distância de St. Laurent, continuando a a viver da feitura de souvenirs e da falsificação de manuscritos. Em 1953, quando acabara a colónia penal da Guiana, os relégués foram enviados para França a fim de continurem a cumprir as suas condenações em prisões governamentais, e Lebrun, com outros libérés regressara finalmente a Marselha a bordo do cargueiro Athesli, sendo posto em completa liberdade em solo da França.
Estabelecendo outra vez a sua casa em Paris, Lebrun reatara a sua falsificação clandestina de notas de banco e passaportes, de modo a obter o dinheiro preciso para se sustentar e para adquirir os caríssimos materiais necessários para perpetrar a sua mistificação há tanto tempo planeada. Logo que tudo estava preparado, voltara para sempre as costas à França. Depois de ter enviado de contrabando para Itália um camião com os materiais para a fraude, Lebrun estabelecera residência em Roma e começara a criar a sua tremenda e pavorosa falsificação bíblica.
Chegado a essa parte da narrativa, Randall quis saber pormenores.
-Mas como é que o senhor pôde começar a aspirar enganar os peritos e os teólogos? Posso compreender que pudesse ter aprendido grego suficiente, mas segundo me têm dito o aramaico é na verdade um quebra"cabeças para além de ser urna língua actualmente extinta...
- Não, ainda não está completamente extinta garantiu Lebrun com um sorriso. - Na sua forma presente ainda é falada por muçulmanos e cristãos na área fronteiriça do Curdistão. Quanto ao aramaico do tempo de Jesus, na verdade um quebra-cabeças, como disse, lembre-se que lhe pude dedicar quatro decênios da minha vida, de longe muito mais que dediquei a todos os refinamentos da minha língua nativa, o francês. Estudei o aramaico através de revistas especializadas em filologia, etimologia, linguística; revistas que publicavam os artigos publicados pelas maiores autoridades mundiais em aramaico como o Abade, Petropoulos de Simopetra e Dr. Jeffries de Oxford. Consultei muitos livros de estudo sobre o assunto, incluindo uma Gramática do Aramaico Bíblico, da autoria do filologo alemão Franz Rosenthal, livro que encontrei em Wiesbaden depois de muitas pesquisas. Mais importante ainda, obtive e estudei em reprodução-que copiei à mão centenas de vezes de modo a que pudesse escrever facilmente a linguagem-os primitivos manuscritos aramaicos do Livro de Enoch, do Testamento de Levi, da Apócrifa Geral do Genesís. Na verdade uma linguagem difícil, mas com aplicação acabei por dominá"la.
Impressionado, Randall quis ainda saber mais detalhes. -Monsíeur Lebrun, o que me intriga mais é a autenticidade dos papiros. Como é que conseguiu fabricar papiros que fossem capazes de passar pelos complicados testes científicos?
-Não tentando sequer fabricá-los -disse Lebrun com simplicidade. -Tentar reproduzir o antigo papel teria sido uma coisa tola. Na verdade, os papiros, bem como o pergaminho, foram os elementos menos difíceis da falsificação. Talvez os mais perigosos, mas os mais fáceis. Como muito bem sabe, Randall, eu não tinha sido somente um falsário mas também um habilidoso ladrão. Os meus amigos do mundo clandestino eram criminosos e ladrões. Actuando em conjunto, durante um período de dois anos, conseguimos adquirir os materiais antigos para eu poder escrever. Devido aos meus intensivos estudos, conhecia a localização de todos os documentos e códices catalogados pertencentes ao século I, além de saber também, por meio de contactos especializados, onde se encontravam as descobertas ainda não catalogadas. Conhecia a fundo os museus públicos e as colecções particulares, bem como as bibliotecas onde os documentos se encontravam expostos. Nunca descurei o conhecimento dos milionários com colecções privadas. Muitos documentos têm páginas em branco no princípio e no fim da obra, ao passo que a maior parte dos códices possuem folhas não utilizadas. Foi essas folhas em branco que roubei ou mandei roubar.
A audácia do sujeito espantava Randall.
- Pode especificar? Isto é, que colecções escolheu? Onde se encontravam?
Lebrun abanou a cabeça negativamente.
- Prefiro não lhe dizer os lugares exactos onde me apropriei, contra a vontade dos donos, de um certo número de papiros e pergaminhos, mas não me importo de lhe falar de um certo número de colecções que tivemos debaixo da mira, entre os quais algumas que visitámos depois, eventualmente, com intenções mais sérias. Posso falar-lhe da Biblioteca Vatícano e do Museu de Turim em Itália, da Biblioteca Nacional em França, da Biblioteca Nacional de Viena, na Áustria, da Biblioteca Bodmer situada perto de Genebra, na Suíça, e de numerosos locais na Grã-Bretanha, como a Colecção Beatty em Dublin, a Biblioteca Rylands em Manchestcr e o Museu Britânico em Londres.
-Praticaram na verdade roubos nesses locais?
- Sim, praticámos roubos em alguns deles, não em todos... principalmente porque nem todos possuíam papiros e pergaminhos datando exactamente do século 1. 0 Museu Britânico foi particularmente frutífero em tal matéria. Uma fonte tantalizante, a mais completa no assunto, de facto o museu ofereceu-me um rolo de papiro do século I com bastantes áreas em branco, um papiro de Samaria com uma grande porção sem nada escrito, mas melhor ainda, grande parte dos papiros do museu, com grande quantidade de porções em branco, não se encontravam catalogados por falta de pessoal e carência de fundos de manutenção. A seguir, deixe-me ver, encontrei um verdadeiro tesouro na Biblioteca Nacional do meu querido Paris nativo-milhares desses manuscritos em armazém, não traduzidos, não publicados, sem figurarem nos catálogos.
Que pena um tal desperdício. De modo que, apoderei-me de algu" inas folhas de papel de pergaminho em branco, de documentos do século I, e dei-lhes o melhor uso possível. Compreende, monúcur?
- Claro que sim - respondeu Randall. - Mas como raio é que conseguiu praticar essas coisas?
- Ora, praticando-as, fazendo o melhor trabalho possível com as minhas próprias mãos - respondeu Lebrun com um ar perfeitamente ingénuo. - Procedendo com o maior cuidado, mas objectivamente. Entrei em certos museu de madrugada e noutros escondi-me até à hora de encerramento. Em ambos os casos, uma vez desligados os sistemas de alarme, levei eu próprio a cabo os roubos. Para os museus mais protegidos, utilizei os serviços de colegas mais práticos no assunto, pagando-lhes bem. Em dois exemplos, empreendia negociações. Bem sabe como os pobres guardas dos museu e bibliotecas são mal pagos. Alguns têm famílias numerosas, muitas bocas a alimentar. Uns modestos subornos fazem abrir muitas portas. Não, RandaIl, de facto dão foi muito difícil obter a soma de papiros e pergaminhos de que necessitava. E, se não se importa, tudo peças autênticas, os pergaminhos não anteriores ao ano 5 antes de Cristo e os papiros não posteriores a 90 da nossa era. Como tinta utilizei uma fórmula usada desde 30 A.D. e até 62 A.D., que reproduzi com um ingrediente especial-bastante idoso, juntamente com negro"de-fumo e um fixador vegetal, a verdadeira tinta empregada pelos escribas dos primeiros séculos da nossa era.
-Mas o conteúdo do seu relatório Petrónio e o Evangelho de Jacob... Como é que ousou inventá-los como fez? Como é que pôde pensar que tais documentos seriam aceites pelos mais esclarecidos teólogos e eruditos do mundo?
A boca de Lebrun entreabriu-se numa careta de troça. -Em primeiro lugar, porque existia uma desesperada necessidade de tais documentos. Existiam aqueles, dentro do meio religioso, ávidos de dinheiro ou de poder que desejavam com todo o seu ser que uma tal descoberta fosse feita para os beneficiar. Os próceres religiosos estavam preparados para um achado de tais repercussões, desejavam que fossem descobertos tais documentos. A época e o clima estavam amadurecidos para uma nova ressurreição de Jesus. Também porque nenhuma das ideias ou acções que invoquei em nome de Petrónio ou de Jacob foram completamente inventadas por mim. Quase tudo o que aproveitei havia já sido antes sugerido pelos patriarcas da Igreja, pelos historiadores religiosos, ou por primitivos escritores de outros evangelhos das épocas que se seguiram ao século I. Tudo estava feito, à espera de moldagem, tudo negligenciando ou completamente ignorado, excepto pelos teóricos da história do cristianismo.
-Pode dar-me alguns exemplos? Comecemos pelo Pergaminho Petrónio. Houve realmente um centurião chamado Petrónio? -0 perdido Evangelho de S. Pedro diz que houve.
-0 perdido Evangelho de S. Pedro? Nunca ouvi falar de semelhante coisa.
-Mas existe-garantiu Lebrun.-Foi encontrado numa antiga necrópole perto da cidade de Akhmim, no Alto Nilo, Egipto, em 1886 por arqueólogos franceses. 0 Evangelho de Pedro é um códice. em pergaminho que foi escrito por volta de 130 A.D. Difere dos evangelhos canónicos de milhentas maneiras diferentes. Diz que foi Herodes -não os judeus, nem Pilatos mas Herodes o responsável pela execução de Jesus. Também diz que o homem que comandava a centúria de legionários encarregados da execução da sentença se chamava Petrónio.
-Macacos me mordam! -exclamou Randall sem se poder conter. - Quer-me dizer que o Evangelho de Pedro é fidedigno?
- Não só fidedigno, como, segundo Justino o Mártir - que
se converteu ao cristianismo em 130 A.D. -, o Evangelho de Pedro, nessa altura, era mais respeitado do que o são presentemente os quatro evangelhos conhecidos. No entanto, quando se procedeu à colectânea do Novo Testamento no século IV, o Evangelho de Pedro não foi admitido, foi posto de parte e relegado para os Documentos Apócrifos - isto é os escritos de autoridade e autenticidade duvidosa.
- Percebo - disse Randall. - Mas, no seu Pergaminho Petrónio, coloca Jesus a ser julgado como revoltoso e subversivo, um homem que se considera acima da autoridade de César. 0 que é que o levou a pensar que os peritos engoliriam tal risco?
- Simplesmente porque a maior parte dos eruditos bíblicos acreditavam no fundo que essa rebelião e subversão foram coisas verdadeiras - respondeu Lebrun. - Para apoiar o que lhe digo basta-me que lhe cite uma passagem, que é um desafio, da obra iconoclástica, 0 Evangelho Nazareno, Restaurado, por Graves e Podro: «Não há dúvida que Jesus foi ungido e coroado Rei de Israel; mas os editores do Evangelho empenharam o melhor dos seus esforços, e com êxito, para ocultarem o facto devido a meras razões políticas.»
-E quanto à sua falsificação do Evangelho Segundo Jacob... os variados discursos que atribui a Jesus, constituem factos ou trata-se de ficção?
Os olhos de Lebrun brilharam picarescamente por trás das grossas lentes.
- Mon cher Monsieur RandalI, acertemos numa coisa: o facto constituiu a base para a minha ficção. 0 Logos, o Verbo do Senhor, apresentou-se como coisa de somenos, não me levantou praticamente problemas. Para isso consultei os documentos ap6crifos, os documentos antigos de duvidosa exactidão. Tomemos como exemplo um antigo documento achado numa escavação arqueológica, a Bpístula Yacobi Apocrypha - documento Apócrifo de Jacob, uma colectânea de dizeres atribuídos a Cristo. Ora eu pedi emprestad% alguns desses discursos, tendo apenas que os rever ou compondo-os para os melhorar ou aumentar. No documento, também chamado Apoeryphon, quando Jesus se despede de jacob, lê-se: «Depois de pronunciar semelhantes palavras, o Senhor foi"se embora. Mas nós caímos de joelhos em terra e eu e Pedro, agradecemos de todo o coração e os nossos corações elevaram-se para o Alto.» na Versão Revista Segundo Lebrun, pus a coisa assim: E o Senhor despediu"se de nós, lançou-nos a sua bênção e perdeu-se na neblina e na escuridão. Então, caímos de joelhos e agradecemos ao céu elevando Para ele os nossos corações.
Com ar de satisfação, Lebrun lançou uma mirada para Randall, esperando a reacção dele.
Mais uma vez Randall abanou a cabeça admirado pela audácia do homem.
- Estou a ver o que quis dizer com o facto servir a ficção. Mas gostaria de saber ainda mais coisas. E quanto à descrição de Jesus por Jacob? Não esperava um tal Cristo, com olhos pequeninos, nariz grande e adunco, rosto desfigurado por cicatrizes e deformidades das bexigas encontrasse resistência em ser aceite?
-Não. Existem antigas insinuações, sugestões da aparência pouco atraente de Cristo. Clemente de Alexandria quando verberava os fiéis preocupados com as suas boas aparências exteriores, lembrava-lhes que Jesus tinha «um semblante feio, deformado». André da Creta escreveu que Jesus «tinha sobrancelhas hirsutas e que se ligavam». Cyrilo de Alexandria recordou que Cristo possuía «um semblante muito feio», acrescentando no entanto que «comparada à glória da divindade, a carne não possuía qualquer valor». Será preciso continuar?
- Não. Mas o que é que o induziu a escrever que Jesus sobreviveu à crucificação?
- Ora, existe uma longa tradição que Jesus não morreu quando foi crucificado. Inácio, que foi bispo de Antióquia, na Síria, em 69 A.D., declarou que Jesus estava «em carne» depois da Ressurrei" ção. Segundo Irineu, o respeitado Papias - que foi bispo de Hierapolis - conheceu pessoalmente o discípulo João, e esse Papias declarou que Jesus não morreu antes dos cinquenta anos. Os rosa-cruzistas * sempre reivindicaram possuir antigos documentos a provarem que Jesus escapou à morte da Cruz de Jerusalém. Um historiador rosa-cruzista escreveu o seguinte: «Qua-ndo os discípulos entraram no túmulo foram dar com Jesus a repousar tranquilamente, recuperando com rapidez, força e vitalidade». Essas mesmas fontes declararam também que a seita dos Essénios ocultou
* Rosa-Cruzistas, membros de uma sociedade dedicada às ciências ocultas
* à magia que se supõe ter sido fundada em 1484 por um tal Christian Rosenkranz. (N. do T.).
Jesus. Incidentalmente, essénio iriao significa só «santo» como também «curandeiro», médico. Um essénio pode muito bem ter curado Jesus. Foi esse o pomo de discórdia arremessado para a arena das discussões religiosas por Karl F. Bahrdt e Karl H. Venturini, que escreveram uma vida de Jesus nos últimos anos do decénio come, çado em 1700. Teorizaram que os essénios foram os promotores dos milagres de Cristo, os promotores da Ressurreição, e disseram que Jesus foi descido da Cruz não morto mas apenas inconsciente, sendo depois reanimado, feito voltar à vida por um curandeiro ou médico essénio.
-E esse caso de fazer Jesus andar por Roma?
- Sim... Roma - proferiu Lebrun, repetindo a palavra arrastadamente, quase com amor. - Esse, foi o meu maior risco... mas afinal porque não? Os judeus farisaicos do século II acreditavam que o Messias se revelaria em Roma. Pedro viu Jesus, em carne, na Via Apia. 0 historiador romano Suetónio, responsabilizou Cristo por fomentar desordens em Roma. De facto, existe uma tradição que reporta Jacob a dizer aos seus partidários que se qualquer deles imaginasse onde poderia estar Deus, ele podia garantir-lhes que «o vosso Deus está na grande cidade de Roma». - Lebrun fez uma pausa, considerando aquilo que tinha dito. Pareceu ficar satisfeito.
- Penso que Roma foi uma coisa bastante lógica.
Aparentemente foi.
Está a ver, Monsieur RandalI, quase todos os conceitos da minha falsificação foram baseados em qualquer antiga indicação. Precisamente as mesmas indicações e pistas que têm levado os teólogos dos tempos modernos e oos eruditos do Novo Testamento a tentarem reconstituir a vida de Cristo, preenchendo os espaços vazios, por meio de dedução e de lógica, por meio de interpretação do ambiente do tempo e com a aplicação de teorias. Os modernos eruditos bíblicos sabem que os actuais quatro evangelhos não constituem a história concreta, verídica. Os quatro evangelhos canónicos não passam de uma série de mitos reunidos muito juntinhos, muito embora esses mitos tenham sido baseados em ocorrências verdadeiras. Isso tem desafiado muitos peritos modernos a especularem sobre aquilo que realmente poderá ter acontecido nos primados do século I. Esses peritos de nada gostariam mais do que virem a constatar que a razão estava com eles por meio da descoberta de um perdido evangelho-um evangelho que sempre se acreditou que existisse como a fonte prinieva para os quatro evangelhos aceites -preenchendo todos os buracos ern aberto. De modo que fosse qual fosse a resistência que o Jacob e o Petrónio pudessem encontrar, continuariam a haver centenas de teólogos e eruditos vivos para clamarem: «Finalmente, a prova daquilo que durante tanto tempo teorizámos afinal aconteceu!»
- Bom, a sua suposição saiu certa, Monsieur Lebrun. Os peritos internacionais mais respeitados estudaram o seu jacob e o seu Petrónio e aprovaram os documentos como verdadeiros.
- Nem um só minuto duvidei que isso viesse a acontecer - garantiu Lebrun. complacentemente. - Depois de ter conseguido enterrar a minha falsificação -e devo dizer que, de certo modo, esse segundo e último passo foi o mais difícil...
- 0 mais difícil porquê? - interrompeu Randall.
-Porque fui forçado a utilizar a área de Ostia Antica como o local para a descoberta, de modo a apoiar as ideias descritas pelo Professor Monti e para o envolver mais tarde no assunto, e porque tive então de enfrentar problemas dificílimos de resolver. -De que maneira?
- Ter ocultado o meu trabalhinho em qualquer caverna de Israel ou da jordânia, ou em qualquer cave poeirenta de mosteiro no Egipto, teria sido mais fácil e mais lógico. A maioria das descobertas bíblicas realizaram-se nessas áreas secas. Mas em Ostia Antica... pavoroso. Ninguém poderia imaginar um lugar mais improvável para um papiro sobreviver dezanove a vinte séculos. Pôs-se o problema da água. Nos antigos tempos a elevação dos terrenos de Ostia era tão pouca que as águas do Tibre inundavam a zona com frequência. Nenhum papiro nem pergaminho poderia ter resistido a essas constantes inundações. Tive então que me apoiar noutro facto histórico. No século II, o Imperador Adriano mandou demolir Ostia e reconstruiu-a numa elevação, com cerca de mais um metro de nível, de modo a neutralizar as inundações. Dominei o problema tomando a decisão de meter os manuscritos num bloco de pedra.
- E isso não seria imediatamente um caso para despertar suspeitas?
- De modo nenhum - respondeu Lebrun. - Sabia que muitos mercadores abastados tinham outrora vivido em Villas situadas no Litoral, perto de Ostia Antica... e se um desses mercadores, um judeu que fosse em segredo um cristão, tivesse desejado preservar manuscritos valiosos trazidos da colónia da Palestina, seria precisamente essa a maneira que utilizaria.
- De modo que para preservar os documentos teve de se wvir de um bloco de pedra antiga?
- Mas não foi assim tão fácil - garantiu Lebrun. - As pedras italianas não garantem protecção suficiente contra as infiltrações do elemento líquido. A argila apropriada ao clima seco do Mar Morto, era demasiado frágil para uma área marítima como Ostia. A tufa calcária, muito comum, provava-se demasiado porosa. Até mesmo os mármores são sujeitos a fragmentar-se por acção da água. Finalmente fixei-me em uma das vinte e cinco variedades de granito cinzento, um granito durável, uma qualidade de granito sem mistura de feldspato que incha e se enfola debaixo da água. Consegui arranjar um grande bloco desse granito antigo, dei-lhe a forma quadrada para o fazer assemelhar-se a um plinto de pedra que tivesse servido para manter qualquer peça de estatuária, depois serrei o bloco ao meio no sentido horizontal e modelei um côncavo em cada uma das partes. Seguidamente meti os papiros e o pergaminho em bolsas protegidas com óleo, coloquei-os dentro de um vaso de olaria, selei o vaso e enfiei-o dentro do buraco cinzento do bloco de granito. Selei também o bloco com breu, envelheci os materiais e enterrei tudo numa área ainda não sujeita a escavações, onde se pensava que houvessem em camadas, enterradas, ruinas do segundo século e possivelmente também do primeiro. Esperei alguns anos para que o bloco enterrado se confundisse com a terra e ganhesse a patine necessária e foi então que abordei o Professor Monti com uni fragmento que retivera e que pretendi tivesse sido descoberto num outro vaso enterrado na área. Logo que tive Monti do meu lado, nunca mais me voltei a preocupar.
Randall pensou que tudo aquilo que ouvira era diabólico. Para ter realizado semelhante trabalho, aquele velhote que estava na sua frente ou era um louco ou um gênio pervertido. Ou ambas as coisas, se na verdade levara tal obra a cabo e não estava a fantasiar.
-E agora está pronto a revelar ao inundo a sua mistificação do Evangelho de Jacob e do Pergaminho de Petrónio?
- Estou pronto.
- Julgo que disse que já antes, uma ou duas vezes, tentou fazer a revelação.
- Sim. No ano passado encontrei-me com Monti, porque necessitava de dinheiro urgentemente, Ameacei-o de tornar conhecida a fraude se não me entregasse mais dinheiro, aliás plenamente merecido por mim. Confesso, no entanto, que se ele me tivesse entregue a massa só manteria a palavra dada de nada revelar por um período muito curto. Mas teria que continuar a possuir parte da minha prova de falsificação para mais tarde revelar a mistificação ao mundo. Isso porque, com dinheiro ou sem ele, nunca poderia deixar que a Igreja escapasse à minha vingança. Depois, mais recentemente, entrei em negociações com outra parte interessada, mas as coisas ficaram em águas de bacalhau quando vi que essa parte estava a agir como intermediária a soldo da própria Igreja, que pretende a todo o custo adquirir as minhas provas a fim de as suprimir, de modo a salvar a falsa fé e a Bíblia mentirosa, forjada.
- Está pronto a venderme essa prova se eu revelar ao mundo toda a história?
- Estou, mas de acordo com uma compensação monetária adequada - disse Lebrun com delicadeza.
- E o que é que considera como uma compensação monetária adequada? - perguntou RandalI, acrescentando rapidamente: Isto é, tendo em consideração que eu sou um mero indivíduo e não uma instituição bancária.
Lebrun acabou de beber o seu uísque.
- Serei razoável se o pagamento for em dólares americanos...
- Será em dólares americanos.
- Vinte mil dólares.
-É uma grande quantia.
- Pode ser dividida em duas prestações - disse Lebrun. No fim de contas aquilo que lhe darei torná-lo-á rico e famoso.
- E o que é que me dará em troca do dinheiro?
- Uma prova - respondeu Lebrun. - Uma prova da minha falsificação irrefutável e indiscutível.
-Que prova é essa?
- Em primeiro lugar um fragmento de papiro que preenche uma lacuna, o que falta e que constitui o buraco do Papiro Número 3 a que se referiu no Doney. Esse fragmento consiste na secção desaparecida que Monti lhe recitou na casa de saúde, aquela em que Jacob fala dos irmãos de Jesus e seus. Mede mais ou menos 6,5 por 9,2 centímetros e ajusta-se perfeitamente ao buraco do chamado original.
-Mas os peritos poderao dizer que se trata de um fragmento autêntico, tão autêntico e verdadeiro como o resto dos papiros que se encontrarn em Amesterdão?
Lebrun arreganhou os lábios num sorriso malicioso, arqueando ao mesmo tempo uma das sobrancelhas.
-Há muito tempo que previ essa possibilidade, Monsieur Randail, Esse fragmento, por mim mantido, porta na folha de papiro comprimida, desenhada com tinta invisível, sobre o texto que é visível, metade de um peixe atravessado por um dardo ou arpão. A outra metade está no Papiro Número 3. 0 fragmento que mantenho oculto tem também a minha assinatura e um pequeno texto escrito pela minha mão a dizer que a obra não passa de uma falsificação. Não, não pense que poderá tomar legível essa tinta invisível por métodos infantis - não é feita de leite para poder tornar-se passível de aparecer quando exposta ao calor. Não, nada disso. A tinta baseia-se numa fórmula usada por Locusta...
- Por quem? - interrompeu Randali?
-Nunca ouviu falar de Locusta? Era a envenenadora oficial do Imperador Nero pouco depois da época que eu arranjei para Jesus ser expulso de Roma. Locusta ensinava a alunos as suas receitas de venenos e costumava experimentar as mistelas nos escravos. Por ordem da mãe de Nero, Locusta misturou veneno numa iguaria de cogumelos estufados comida pelo Imperador Cláudio. Diz-se que matou dez mil pessoas com as suas poções. Naturalmente, tornava-se necessário à envenenadora comunicar frequentemente em segredo com Nero, de modo que se tornou adepta das tintas invisíveis. Acontece que acabei por descobrir uma das melhores, e menos conhecidas, fórmulas de Locusta.
- Pode dizer-me em que consiste?
Lebrun hesitou durante uni segundo, depois mostrou os seus descoloridos dentes.
-Vou dizer-lhe nove décimos da fórmula. 0 décimo restante só será revelado depois de o nosso negócio estar concluído. Na realidade, Locusta apreendeu a fórmula, melhorando-a depois, a partir dos escritos de um tal Philon de Bizâncio, um cientista grego. Philon, por volta de 146 A.C., tinha inventado unia tinta invisível feita de um ácido confeccionado com bagas de centáurea. Escrevendo com essa tinta, os caracteres não podiam ser vistos, Para tornar visível a escrita devia aplicar-se aquilo a que agora se chama sulfato de cobre misturado com um outro ingre" diente. Muito exotérico. Se tudo for cumprido como esperamos, terá conhecimento da fórmula completa e poderá então fazer revelar o meu nome, texto e desenho que agora são invisíveis no papiro, denunciando a autenticidade de todo o evangelho de Jacob. Para a minha entrega dessa fórmula e do fragmento desaparecido, que acabei de descrever, será preciso obter a primeira metade dos vinte mil dólares em que assentámos o pagamento. Se estiver satisfeito, dar-lhe-ei depois a parte restante e a prova mais concludente da minha falsificação a troco dos outros dez mil dólares.
-E que prova concludente será essa? Lebrun continuou a sorrir.
-Fragmentos adicionais que preenchem todas as lacunas do evangelho de Jacob. Monsicur RandalI, conhece com certeza os jogos de paciência, os chamados quebra-cabeças, não é verdade? Como sabe, cada uma das pequenas peças, recortadas da forma mais extravagante, têm que se ajustar para completar a final figura. Ora aí está: os editores em Amesterdão possuem vinte e quatro papiros, alguns dos quais com um ou dois bocados desaparecidos, ao todo nove pequenos fragmentos perdidos; pois eu tenho esses nove bocados do quebra-cabeças. Cada um dos fragmentozinhos irregulares, tirados dos papiros da Ressurreição Dois, se ajustará perfeitamente ao conteúdo que falta para completar o puzzle. Quando esses fragmentos desaparecidos forem utilizados para preencher as falhas, a prova da fraude e da mistificação será óbvia e irrefutável. Tenho oito desses fragmentos. Uma das peças foi a que mostrei a Monti, mas as outras oito estão bem protegidas numa caixa de ferro bem oculta. Serão as coisas que acabo de descrever suficientes para o convencer que o Novo Testamento Internacional se baseia numa íntrujíce?
-Sím-respondeu Randall. Sentia a pele dos braços a arrepiar-se, como se fosse pele de galinha.-Julgo que sim. E quando é que me pode fornecer as provas?
-Quando é que as quer?
-Esta noite-respondeu Randall.-Agora mesmo. -Não, possivelmente não poderei...
- Então amanhã.
- Amanhã também não. Claro que tenho tudo muito bem escondido. Voltei a ocultar as provas do ano passado depois do meu encontro com Monti. Muito recentemente, quase que estive tentado a ir buscar as provas ao lugar onde estão para as mostrar a um eventual comprador... mas depois tive sérias dúvidas a respeito das intenções dele. Resolvi não ir buscar os artigos até ter a certeza da honestidade da pessoa interessada. As minhas suspeitas acabaram por justificar-se. De modo que, Munsieur RandalI, essas provas continuam escondidas no lugar onde as ocultei há mais de um ano. Em resultado disso... bom, não me posso explicar melhor... levará algum tempo a ir buscar os fragmentos. 0 local é fora de Roma, não muito longe, mas ainda assim necessito de um prazo mais largo do que até amanhã para ir buscar os artigos.
Pensando qual seria o lugar em que o homem ocultara as provas e que complicava a entrega, Randall decidiu não mostrar pressa, nem forçar mais explicações.
-Pois muito bem, já que não pode ser amanhã, em vista das circunstâncias que me expôs, digamos então que me trará as coisas depois de amanhã, na segunda"feira, está bem?
-Certo-garantiu Lebrun.-Depois de amanhã posso entregar-lhe aquilo que tenho.
-Dê-me a sua morada. Irei ter consigo.
-Não-disse Lebrun, ao mesmo tempo que se levantava com lentidão. - Não, não seria prudente, nem aconselhável. Encontramo-nos no café Doney às cinco horas da tarde. Procederemos então à nossa permuta. Se quiser, viremos depois aqui, ao seu quarto, para ver se fica satisfeito.
Randall levantou-se.
-Okay, no café Doney, às cinco de segunda-feira. Enquanto se encaminhavam para a porta, Lebrun, de viés, contemplou atentamente Randall.
-Desde já posso prometer-lhe que não ficará desapontado. Au revoir, mon ami. Este é um dia glorioso e feliz. Observando Lebrim a coxear a caminho do elevador, Randall
perguntou a si próprio porque é que para ele, apesar de ter alcan" çado os seus objectivos, aquele dia não lhe parecia nem glorioso nem feliz.
Depois, vendo o falsário a entrar para o elevador, encontrou subitamente a resposta.
A fé tinha voado.
Havia ainda um dever a cumprir, uma tarefa obrigatória e pouco confortável a desempenhar antes de Randall começar a sua vigilia de quarenta e oito horas.
Tinha que fazer uma ligação telefónica de longa distância. Randall pediu a ligação para o Grande Hotel KrasnapoIsky
de Amesterdão, directamente para falar com George L. Wheeler.
0 editor ainda se encontrava no seu gabinete da Ressurreição Dois, e a secretária dele estabeleceu rapidamente a ligação.
-Steve? - rosnou Wheeler.
-Olá, George, pensei que era meu dever...
-Onde raio é que você está desta vez? -interrompeu Wheeler.-Ouvi a minha secretária dizer...
-Estou em Roma. Deixe-me explicar o que se passa. -Em Roma?-explodiu Wheeler. -Macacos me mordam! Em Roma?... E porque é que você não se encontra sentado à sua secretária a trabalhar? Não o esclareci suficientemente que agora era preciso que todas as pessoas trabalhassem vinte e quatro horas por dia a fim de estarmos prontos para a conferência de sexta-feira no palácio real? já não fiquei muito satisfeito quando Naorni me disse que você se tinha escapado ontem de Amesterdão para fazer umas pesquisas não sei onde, mas esperava que tivesse voltado ontem à noite...
-Eu também contava poder voltar para aí a noite passada, mas aconteceu uma coisa de suma importância...
-Não existe nada de mais importante que o nosso trabalho, por isso mesmo espero vê-lo, de uma vez por todas sentar o cu. à sua secretária e não se levantar da cadeira sem ter completado o seu trabalho. Temos que estar prontos para anunciarmos...
- George, ouça"me com atenção - implorou Randali. Talvez não haja qualquer declaração a fazer ao mundo. Tenho a certeza que lhe será difícil ouvir isto, mas ao fim e ao cabo acabará por me agradecer. Penso que será melhor adiar a notícia ao mundo... adiar até mesmo a publicação do Novo Testamento Internacional.
No outro extremo da linha, em Amesterdão ocorreu um período tenso de silêncio, mas logo a seguir ouviu-se a arrepiante voz de Wheeler:
-Que raio está você para aí a dizer?
Randall sentiu o peso da tremenda responsabilidade. Sabia que seria muito duro, mas tinha que contar tudo até ao mais pequeno pormenor, não havia outra alternativa.
-George, vocês não podem publicar a Bíblia. Soube a verdade a respeito dela. 0 achado do Professor Monti... 0 Pergaminho Petrónio... o Evangelho Segundo Jacob... não passam de descaradas falsificações.
Mais uma vez uni silêncio de morte. Depois chegou-lhe, aos ouvidos a voz espantada e dura de Wheeler.
- Está doido?
- Neste momento gostava de facto de estar, Mas acredite-rne, nunca estive tanto na posse de todas as minhas faculdades mentais. Encontrei o falsificador dos documentos. Falei com ele e ele contou-me das provas insofismáveis que possui. Agora quer ouvir-rne com atenção?
-Está a perder o seu tempo e a fazer-me perder o meu o tom de voz de Wheeler denotava grande irrítação. -Apesar disso, se isso lhe dá qualquer conforto, despeje lá o que tem a dizer.
Randall quis dizer ao homem que o tinha para dizer não o fazia sentir~se mais confortável, pelo contrário, fazia-o sentir-se miserável, perdido; mas não era momento para se deter a explicar os seus sentimentos pessoais. Tratavarse do momento crítico da verdade em que o editor teria que enfrentar os factos.
-Muito bem, -disse Randall sombriamente - , aí vai aquilo que descobri em Roma...
Contou-lhe tudo sem parar. Falou-lhe de se ter deslocado a Roma, forçando Ãngela a levá-lo até junto do pai. Disse-lhe onde e como fora encontrar o Professor Monti e alongou-se até à entrevista posterior com o Dr. Venturi, Depois revelou o encontro com o Domínee de Vroome e a longa conversa no quarto do Reverendo no Excelsior. Repetiu detalhadamente o que ouvira da boca de de Vroome.
Nessa altura foi interrompido pela voz do editor, dizendo em tom furioso.
-Logo vi, trata-se então de de Vroorne e desse bastardo do Cedric Plummer... surgindo convenientemente com uma história, rnuito conveniente, de um falsário... E você acreditou nessa patranha? Eu já devia saber que eles tentariam um golpe da última hora. De modo que tentaram contratar um falsificador para verem se conseguiam torpedear-nos, hem?
- Não, George, nada disso - protestou Randall. - Não se trata de uma manobra de de Vroome. Quer fazer o favor de me ouvir com atenção?
Prosseguiu sem dar tempo ao editor de dar uma resposta. Explicou como Plummer se tentara encontrar com o falsário em Roma para adquirir a prova da mistificação, e o modo como o falsificador arrepiara caminho ao ver o Domince de Vroorne com a sua sotaina.
-Foi então que decidi fazer uma tentativa para ver se na verdade existiria o tal falsário, para ouvir da boca dele a história da falsificação.
Relatou conio lhe surgira a ideia de passar uma revista aos papéis do Professor Monti e como encontrara a agenda que continha a data e lugar da entrevista com o mistificador, ocorrida há uni ano e dois meses. Revelou como se dirigira ao café Doney e como finalmente se encontrara cara-a-cara com o autor da falsificação.
-George, o falsário deixou o quarto do hotel de onde estou a telefonar ainda não há meia hora. Tratase de um francês, um parisiense, Robert Lebrun que vive há vários anos em Roma sob o nome de Enrico Toti. É uni octogenário que devotou uma vida inteira à criação da maior mentira do século e da história da religião -os papiros Jacob e, o pergaminho Petrónio. Quer ouvir como é que ele levou a cabo a intrujice?
Mas Randall no deu tempo a Wheeler para esboçar sequer uma resposta. Lançou-se na história de Robert Lebrun, mas sem revelar todos os portrienores. Instintivamente, Randall decidiu não fornecer quaisquer inforrnaçôes sobre o passado de Lebrun, sobre a sua mocidade de crime em Paris, nem sobre a condenação dele, o envio para a colónia penal da Guiana, subsequente desilusão com a Igreja e obsessão de se vingar de uma forma estrondosa. Randall teve a percepção que se contasse tais pormenores a Wheeler serviriam apenas para reforçar a recusa do editor em acreditar nos factos essenciais.
Por conseguinte, manteve-se dentro do quadro daqueles factos. Revelando como Lebrun, motivado por um azedume inexplicável contra a Igreja, se tornara num perito em tudo o que pertencesse ao foro do Novo Testamento e história do primitivo cristianismo, Randall falou dos decênios que Lebrun passara a preparar a mistificação, substanciando a história com o modo como o francês levara o Porefs;sor Monti a realizar a escavação em Ostia Antica e a sensacional descoberta.
Com verdadeira pena, pensando que o editor devia estar num estado de desespero atroz, Randall concluiu:
- Lamento muito ter que lhe contar isto, George. Mas no fundo sei perfeitamente que você, o Dr. Deichhardt e todos os outros só desciam a verdade.
Esperou pela resposta de Wheeler, mas ela não surgiu. A linha, de Amesterdão para Roma, estava muda.
Randall insistiu:
- George! George... Que pensa fazer agora?
De repente surgiu a voz do editor, uma voz que tremia de raiva.
- 0 que penso fazer?... Sei o que devia fazer... Devia despedi-lo... aliás corno já devia tê-lo despedido muito antes. -Fez uma pausa.-Sim, devia despedi-lo de uma vez para sempre por ver o parvo que você é. Mas não o farei. 0 tempo é limitado. Precisamos de si. Mas quanto a toda essa trampa, tem que voltar de novo ao seu perfeito juizo, o mais rápido possível, logo que medite bem em todas as aldrabices que de Vroome lhe pregou.
0 comandante disposto a deixar-se afundar com o seu navio por uma questão de orgulho e tradição, pensou Randall. Era a última coisa que teria esperado.
- George, não ouviu o que eu contei? Apesar de tudo o que está em causa, não está bem claro para si que toda a obra não passa de uma intrujice... uma mistificação engendrada por um gênio maléfico? Sei muito bem o que é que você, especialmente, perderá com o abandono do projecto, mas acho que é melhor pensar em toda a perda de crédito e de dinheiro se quiserem levar avante a publicação da Bíblia e depois ela for revelada ao mundo como uma mentira.
- Não haverá nenhuma revelação dessas, idiota! De Vroorne arquitectou todo esse cenário para o apanhar nas malhas dele. Quis utilizá-lo a si para lançar o pânico entre nós, para causar dissenções no seio do nosso projecto.
-Pois bem, se não acredita, ponha-se em contacto com de Vroorne para ele lhe dar a confirmação.
-Nem sequer desceria a escutar esse filho da mãe. Você é que foi apanhado numa ratoeira, numa hipócrita mentira. Seja suficientemente homem para admitir que foi enganado e liberte a cachimónia de todos esses macaquinhos que lhe encaixaram lá dentro, depois volte depressa a completar o seu trabalho enquanto estamos nesta disposição favorável.
Randall fez um tremendo esforço para se conter. -Na verdade não acredita naquilo que lhe disse?
-Nem numa única vírgula. Tudo o que penso é que se trata de qualquer mentiroso psicopático a soldo de de Vroorne... Espera que acredite numa tal patranha?
- Muito bem, na verdade não é obrigado a acreditar. - Randall lutou para que a sua voz não se alterasse. -Sim, não é obrigado a acreditar até que eu obtenha as provas para lhe mostrar.
- Que provas?
- Depois de amanhã - segunda-feira à tarde, - Lebrun encontrar-se-á comigo no Doney para me entregar a prova da sua -falsificação.
Foi como se Wheeler não tivesse ouvido a declaração de Randall. De repente ali estava a voz do editor a falar de novo, num esforço aparente para dominar a sua ira, enveredando por uma nova táctica conciliatória, exprimindo"se quase como o faria um pai a tentar chamar um filho à razão.
- Steve, deixe-me que lhe diga uma coisa. Sabe bem que eu sou homem temente a Deus. Sabe bem que sempre aceitei Jesus como meu Salvador. Toda a minha vida tenho pensado bastante em Nosso Senhor e naquilo que Ele pode fazer por nós. Pois bem, paralelamente, tive também sempre a sensação que se Jesus regressasse de novo à Terra, tal como agora irá regressar por obra, graça e milagre do evangelho escrito pelo irmão d'Ele, também de novo surgiria alguém disposto a trair uma segunda vez o Salvador por trinta sujas moedas de prata. Esse Roberto Lebrun não passa de um maníaco que odeia Cristo. Se Cristo se sentasse entre nós, seria mais uma vez inspirado a dizer: «Ern, verdade vos digo que um de vós me há-de trair»; e quando lhe perguntassem quem seria o traidor, Nosso Senhor responderia de novo: «0 que meter comigo a mão no prato, esse me há-de trair». E Cristo molharia a sopa e dá"la-ia ao seu Robert Lebrun... e talvez a de Vroome e a você próprio.
Era uma coisa completamente absurda ouvir as palavras e actos de Cristo na "(Ultima Ceia pronunciadas por um capitalista americano, um vendilhão de bíblias por meio de uma chamada de longa distância desde Amesterdão,
Entretanto, Wheeler prosseguira:
- Steve, siga o meu conselho, não queira fazer parte dessa traição imunda. 0 Cristo verdadeiro está entre nós. Deixe-O viver. Não permita que um tal Lebrun se converta num Judas do século vinte. E quanto a si, Steve, não queira ser o Pilatos do Senhor. Não pergunte outra vez o que é a verdade... quando tem a verdade ao seu alcance.
-...Mas, e se a verdade pertencer a Lebrun? 0 que sucederá se na segunda-feira ele me aparecer com...
- Lebrun não irá ao encontro marcado - disse o editor peremptoriamente, - nem na segunda-feira nem nunca mais. Temos a apoiar-nos a autoridade das maiores sumidades do mundo em matéria bíblica. E você, o que é que você tem? A história da carochinha de um ex-condenado maluco determinado a assassinar Deus e o bem-amado Filho, Pense bem nisto, Randall.
0 ruído do desligar do telefone foi como que uma explosão para o ouvido de RandalI, e ele seguiu o conselho do seu «patrão», pôs-se a pensar em tudo o que tinha escutado.
Mas o seu pensamento devotou"se essencialmente a rememorar as últimas palavras proferidas por Wheeler: E você, o que é que você tem? A história da carochinha de um ex-condenado maluco...
Ex-condenado. Corno é que Wheeler sabia que Robert Lebrun fora um condenado? Randall pusera o máximo cuidado em não lhe revelar essa faceta da vida de Lebrun, Não proferida a mais leve palavra reveladora do passado do falsificador...
Não obstante, Wheeler sabia que Lebrun era um excondenado. Era estranhamente sinistro, e Randall estremeceu. Naquele momento sentiu um pressentimento de algo que desconhecia mas que poderia representar uma ameaça, um perigo diabólico.
Finalmente segunda-feira à tarde. 0 sol começava a declinar
e o dia mantinha-se quente sem estar abrasador, enquanto Randall se encontrava sentado no café Doney, da Via Veneto, a esperar por Robert Lebrun.
Distraído, brincava com a taça de campai pousada na sua frente, e a cabeça voltava-se instintivamente para a esquerda e para a direita, para a direita e para a esquerda-como se estivesse a assistir a um jogo de ténis -observando o passar incessante dos transeuntes que se cruzavam para cima e para baixo através a passagem entre as mesas.
Era cansativo manter-se naquela tensão constante. Randall pensou que Lebrun se apresentaria como prometera e tentou descontrair-se, Passou a mão, numa massagem, pela parte anterior do pescoço, sentindo os músculos tensos como cordas de violino. Depois deu-se ao luxo de se recostar na cadeira de verga e começar a devanear.
0 espaço de tempo entre a partida de Lebrun, no sábado ao fim da tarde, e aquela espera no Doney na segunda-feira, talvez tivesse sido difícil de suportar se Randall não tivesse ocupado todos os seus momentos com trabalho. Dig:,ase em abono da verdade que não conseguira trabalhar no sábado à noite. Depois de Lebrun ter saldo do quarto, mas muito especialmente depois do conflito telefónico com George: L. Wheeler, sentira-se demasiado agitado para poder trabalhar cora calma. No entanto, enquanto comia uma ligeira refeição que mandara servir no quarto, ponderara todos os pontos essenciais do futuro imediato. 0 que é que sucederia se... apesar do desprezo ridicularizante de Wheeler sobre as possibilidades da falsificação... Lebrun. entregasse de facto provas absolutas e irrefutáveis da mistificação? Qual seria o passo dado a seguir por ele, Randall? Dirigir-se-ia a Wheeler, a Deichhardt e aos outros editores, apresentando-lhes as provas e obrigando-os a aceitarem aquilo que era impossível negar? Por outro lado, que fazer se eles continuassem irredutíveis na rejeição da verdade? Sim que fazer? Seria improvável que eles se atrevessem a ignorar a existência das provas verdadeiras de uma falsificação... mas, se pretendessem ignorá-las?
Existiam outras alternativas, que Randall ponderava como possibilidades a ter em consideração. A única coisa que não divisara claramente era o que é que tudo aquilo representaria para si, exceptuando a satisfação de ter descoberto a verdade, Uma sombria satisfação, essa perspectiva de verdade acompanhada pela destruição de uma fé revivida. Mas, sombria ou não, de certa maneira emprestava uma nova dimensão ao seu ser mais recôndito.
No dia anterior, domingo, durante quase todo o dia e parte da noite, trabalhara com afinco. Continuava a vigorar o seu contrato com a Ressurreição Dois e a constar das folhas de pagamentos e sentia-se no dever de retribuir essa afinidade. Todavia, o trabalho parecia não querer andar, tratava-se de um trabalho arrancado a ferros operar a colectânea de pesquisas feitas e esque" matizar informações para a imprensa revelando o milagre do Novo Testamento Internacional. Trabalho cansativo por se tratar de preparativos para glorificar aquilo que considerava ser uma causa perdida e urna mistificação que nunca veria a luz do dia.
Também no dia anterior, apesar de ser domingo, mantívera-se num corropio de telefonemas para Amesterdão, pelo menos seis ou sete telefonemas, colaborando com o seu pessoal de relações públicas. Sim, todos estavam no Krasnapolsky, apesar de ser domingo, dedicados e dando o melhor do seu esforço... O'Neal, Alexander, Taylor e Boer. Homens e mulheres, os fiéis da Ressurreição Dois, Haviam-lhe lido os bocados de prosa para a campanha publicitária, e ele tinha-lhes sugerido correcções ou rectificações e fornecera-lhes directrizes de última hora. Em troca, dítara-lhes os seus principais pensamentos para publicaço final, notas destinadas a serem passadas imediatamente ao copiador.
A certa altura, Jessica Taylor, como que por acaso, dissera-lhe que Ãngela Monti tinha regressado de Roma, perguntara por ele, ficara surpreendida de que não estivesse já em Amesterdão e mostrara-se preocupada. Randall pedira a Jessica para transmitir a Ãngela que ainda se encontrava em Roma a tomar uns quantos apontamentos e ocupado numas tentativas úteis, mas que estaria de volta na terça-feira. Jessica perguntara-lhe se era tudo o que queria que transmitisse a Ângela. Sim, era tudo, exceptuando dizer-lhe que tomasse conta do seu gabinete e atendesse todas as chamadas telefónicas.
A não ser Wheeler, nenhum outro componente do pessoal da sua secção lhe perguntara que raio é que ele fazia em Roma numa altura de trabalho tão intenso como aquela.
No dia anterior fizera mais duas coisas importantes: a primeira, vital; a segunda, de certa maneira, crucial.
0 cometimento vital fora telefonar ao seu advogado Thad Crawford. Ligara para casa dele em Nova lorque, acordando-o e ordenara-lhe para ir ao banco na segunda"feira logo de manhã, utilizando todos os poderes de homem de. leis para que o banco enviasse para a sua filial de Roma uma transferência de 20 000 dólares. Recomendou-lhe que a ordem especificasse que o pagamento fosse feito ern dinheiro e na moeda padrão americana.
0 cometimento crucial-crucial apenas porque Wheeler o enervara relativamente à veracidade da história de Lebrun, ou carência de verdade - fora procurar certificar-se relativamente ao ex-condenado com quem estava disposto a negociar. Um velho amigo de Randall - tinham os dois andado juntos no negócio de publicidade -havia muito tempo já que desistira das relações públicas para voltar ao seu primeiro amor, o jornalismo, fixando-se em Paris havia já muitos anos como correspondente da Associated Press, sita na Rue de Berri. Tratava-se de Sam Halsey, um homem duro, franco, bom profissional e imune à rotina, cuja amizade com Randall se mantivera pelos anos fora com encontros em Nova Iorque, para beberem uns copitos juntos e darem uma volta, sempre que Halsey ia aos Estados Unidos de licença.
A tarefa consistiria em localizar Sam Halsey na cidade luz através do telefone. Por sorte, Randall encontrara imediatamente o amigo, a trabalhar, nocturna e solitariamente, à sua secretária da Associated Press, tão folgazão e profano como sempre.
Randall dissera-lhe que precisava de um favor urgente, um trabalho de investigação, com necessidade das respostas ao princípio da tarde de segunda-feira, o mais tardar. Haveria possibilidades de Sam ter alguém disponível que se pudesse encarregar daquele trabalho? Sam perguntara"lhe do que se tratava. Randall pretendia saber se o Exército Francês tinha formado um regimento em 1915 chamado Força Expedicionária da Ilha do Diabo. Pretendia também saber se nos arquivos do Ministério da Justiça haveria algum cadastro respeitante a um jovem francês chamado Robert Lebrun que havia sido preso e julgado por falsificação em 1912, sendo condenado a ir para o exílio da Ilha do Diabo. Intrigado, Sam Halsey oferecerase para fazer ele próprio a investigação, prometendo que telefonaria a dizer qualquer coisa no dia seguinte de manhã.
Naquele dia, segunda-feira, RandalI, tanto de manhã como até meio da tarde, não trabalhara para a Ressurreição Dois. Pelo contrário, corno Wheeler muito bem frisara, Randall trabalhara contra a organização do KrasnapoIsky.
Thad Crawford manobrara de maneira a transferir-lhe aquilo que Wheeler - outra vez Wheeler, maldição! - caracterizava como as trinta moedas de prata. Randall fora ao banco American Express, da Piazza di Spagna, buscar os 20 000 dólares. 0 dinheiro, em notas de fácil transacção, encontrava-se no cofre que alugara no Excelsior, pronto a ser entregue a Lebrun em troca das provas da falsificação.
Antes de ir levantar o dinheiro, Sam Halsey fizera dois telefonemas de Paris. 0 primeiro informara que depois de várias diligências, usando o poder da imprensa e algumas «cunhas» fortes lançadas em cheio na secção de relações públicas do Ministério da Defesa Nacional, conseguira, embora relutantemente, licença para examinar alguns documentos classificados do Serviço Hist6rico do Exército, em Vincennes. No arquivo, o director mostrara-se camarada e cooperativo. Procurando entre velhos documentos, Sam tivera a confirmação de ter na verdade sido estabelecido um regimento de condenados voluntários da Guiana Francesa em 1915, regimento que combatera sob a designação de Força Expedicionária da Ilha do Diabo e circunscrito ao comando do general Pétain. Todavia surgira um desapontamento. Na lista dos voluntários não constava qualquer «Robert Lebrun». 0 nome mais parecido encontrado na lista entre os condenados relativos à letra L, fora o de um tal «Laforgue, Robert». Mas Sam não repousara sobre aqueles primeiros louros, garantira que que se ia dirigir ao Ministério da Justiça para fazer umas sondagens e que voltaria a telefonar a Randall algumas horas depois.
Menos de uma hora depois, de facto, Sam Halsey voltara a falar para Roma. Os poeirentos arquivos do Ministério da Justiça relativos ao ano de 1912 não continham o cadastro de nenhum criminoso com o nome de «Lebrun, Robert». Mas com o seu sexto sentido de jornalista, como um cão de caça seguindo uma pista pelo faro, Sam Halsey acabara de encontrar o cadastro de um tal Laforgue, Robert.
<E Steve, acertei em cheio... um falsificador de documentos e falsário, operando sobre cinco outros nomes diferentes. Aperta bem o cinto, meu rapaz, um dos nomes que figuravam no registo era «Lebrun, Robert», condenado por toda a vida à deportação na Guiana francesa em 1.912.>
De modo que Lebrun não mentira. Apesar das advertências de Wheeler, Lebrun não fora ainda apanhado em nenhuma falsidade, pelo menos no que se referia à sua personalidade. A crença de Randall na história da mistificação, e em que as provas seriam apresentadas, restabeleceu-se completamente.
Fora com a maior confiança que Randall se dirigira para o Doney dez minutos antes das cinco horas a fim de esperar a chegada de Robert Lebrun.
Naquele momento, Randall regressou daquela revisão ao passado, olhando nervosamente para o relógio de pulso. Erem exactamente cinco e. vinte e cinco. Voltou a olhar para toda aquela gente que ia e vinha. Viam-se muitos rostos estranhos, todos diferentes uns dos outros, mas a cara que estava tão bem gravada na memória de Randall não figurava entre aquela multidão desconhecida,
Passavam trinta minutos da hora determinada por Lebrun para o encontro.
Randall concentrou-se, cada vez mais nervoso, na observação daquela mole de gente, esperando o excitante momento em que avistasse o velhote, coxeante, quase corcunda, com as madeixas de cabelo ralo, os óculos de lentes escuras e grossas, as duras feições corroídas por profundas rugas, como um campo arado, o homem que lhe entregaria dois objectos em troca de dinheiro: primeiro uma pequena entrega com os devastadores fragmentos perdidos portando o grito da intrujice traçado em tinta visível e depois a outra entrega mais volumosa de um pequeno cofre de ferro contendo as terríveis partes desaparecidas de um antigo quebra-cabeças que representava a missa de requiem para o Evangelho de Jacob e para o Pergaminho de Petrónío, o centurião.
Escoaram-se os minutos, minutos como eternidades, e ninguém à vista que tivesse a mínima semelhança com Lebrun.
A taça de campa? em cima da mesa, em que Randall ainda não tocara, foi finalmente esvaziada de um trago.
E nada de Robert Lebrun.
0 ânimo e a confiança de Randall foram-se desvanecendo. As grandes esperanças principiavam a ruir como um castelo de cartas soprado por uma criança. Premunição de um desastre total, como que apanhado pelo princípio de uma avalancha esmagadora. Cinco minutos depois das seis atingiu o ponto máximo do desânimo. Tudo se desmoronara até ao fundo dos abismos.
Wheeler avisara-o: Lebrun não irá ao encontro marcado... E de facto faltara,
Randall sentiu-se esmagado e logo a seguir enganado, indignado. Afinal que acontecera ao velho filho da mãe? Acabara por recear entregar os seus pergaminhos e mudara de opinião? Teria decidido que não devia confiar naquele novo sócio, acabando com o negócio? Entrara em negociações com qualquer outra pessoa por uma maquia maior?
Fosse qual fosse a resposta, Randall sentia"se obrigado a saber a razão porque Robert Lebrun desistira da combinação feita. Se Lebrun não vinha ao seu encontro, nesse caso, diabos levassem todo aquele sujo assunto, iria ele ao encontro de Lebrun. Ou, pelo menos, tentaria ir ao encontro de Lebrun.
Randall colocou uma nota de 500 liras e uma gorjeta em cima da mesa, levantou-se e foi à procura do seu especialista em Lebrun, o seu orientador pessoal do Doney, Júlio o chefe-de-mesa.
Júlio estava precisamente no limiar da porta que dava para o restaurante, a ajustar o seu lacinho, Ao avistar Randall, acolheu-o com entusiasmo e calor.
-Está tudo a correr bem, Mr. Randall?
-Não muito bem, Júlio-disse RandaIl-Tinha combinado encontrar-me aqui com o nosso comum amigo, aquele a quem vocês chamam Toti ou Duca Minimo, o meu Robert Lebrun. Combinámos encontrar-nos aqui, na esplanada, às cinco horas. Já passa das seis e ele ainda não apareceu. Teria vindo antes das cinco?
Júlio abanou a cabeça negativamente.
-Antes dessa hora havia pouca gente na esplanada, eu teria inevitavelmente dado por ele,
- Anteontem você disse-me que ele às vezes vinha a pé até ao Doney. Concordámos que com a sua perna artificial não poderia percorrer grandes distâncias, o que provavelmente significará que deve morar nas redondezas, hem?
- Sim, também penso que ele deve morar perto.
-Júlio, reflicta bem. Alguma vez ouviu dizer onde é que ele mora?
0 chefe de mesas enrugou a testa, acabando por declarar com ar desalentado:
-Não, nunca ouvi dizer onde ele morava. Não faço mesmo a mais pequena ideia. Afinal de contas, Signore RandalI, são tantos os clientes, mesmo os mais regulares... - Tentava ser prestável. Por outro lado, nas vizinhanças mais imediatas não há muitas residências privadas e aquelas que existem nunca poderiam estar ao alcance da bolsa de Toti... de Lebrun... do Signore Lebrun. Tenho a impressão de que ele é pobre.
-Sim, é pobre.
-De modo que também não se pode dar ao luxo de viver permanentemente num hotel. Nestas redondezas existem umas quantas pensões menos dispendiosas -principalmente utilizadas pelas raparigas de vida fácil que calcurriam as ruas... mas até mesmo tais pensões seriam demasiado caras para o nosso amigo. Tenho a impressão que ele deve viver num Pequeno apartamento. Ora, não muito longe daqui, existem uns quantos desses apartamentos para as classes menos beneficiadas. É possível que ele viva num desses apartamentos... mas onde? É isso que eu não sei.
Randall procurou a carteira no bolso interior do casaco. Até mesmo em Itália, onde os naturais são na generalidade mais gentis e amigos de ajudarem os estrangeiros do que em nenhuma outra parte da Europa, a lira continuava a servir como uma espécie de estímulo para uma cooperação mais eficaz. Randall meteu três notas de 1000 liras na mão de Júlio.
- Júlio, por favor, precisa que me auxilie mais...
- É muita bondade sua, Nir. Randall - agradeceu o chefe de mesas, metendo rapidamente as notas no bolso.
Randall continuou:
-É possível que você conheça alguém que possa ajudar neste caso. Anteontem conseguiu fazer com que acabasse por encontrar Lebrun. Talvez possa novamente dar um jeito se pensar bem...
A testa de Júlio voltou a enrugar-se e passado um momento de concentração disse:
-Existe uma pequena possibilidade, mas não posso prometer nada. Vou ver o que posso fazer. Se quiser ter a bondade de esperar.
Desenvoltamente, encaminhou-se para a passarelle central que dividia as duas partes da esplanada, fez um ruído imperioso por meio da fricção de dois dedos para vários criados, chamando:
-Per piacere! Facciamo, presto!
Os criados apressaram-se, convergindo para o chefe. Randall observou que Júlio lhes falava animadamente, gesticulando, realizando uma pantomima de caminhar com uma perna hirta, para descrever a perna artificial de Lebrun. Quando acabou a sua mímica, vários dos criados reagiram encolhendo os ombros. Dois ou três coçaram as cabeças, como quem está a pensar, mas continuaram calados como ratos. Finalmente, Júlio, com um gesto, mandou-os para os seus postos. Seis dos criados voltaram para os locais que anteriormente ocupavam, mas um deles ficou estático, pensativo, com o queixo apoiado numa das mãos.
Júlio principiara a encaminhar-se para RandalI, com uma expressão de desapontamento, quando de repente o criado que ficara pensativo chamou:
- Júlio!
0 homem correu positivamente atrás do chefe e puxou-lhe pela manga. Júlio inclinou um pouco a cabeça como para ouvir em segredo aquilo que o outro lhe dizia. 0 criado apontou um dedo para o outro lado da rua, ao mesmo tempo que Júlio acenava cora a cabeça, alargando a boca num sorriso.
- Bene, bene, Grazie! - exclamou finalmente o chefe, dando um pancadinha amigável nas costas do subordinado.
Randall continuava no limiar da porta do restaurante, com ar de espanto, quando Júlio chegou ao pé dele com uma expressão radiante.
-Talvez seja possível, Mr. Randall, embora com tais mulheres nunca se possa saber ao certo. Os criados, os nossos crados, conhecem perfeitamente a maior parte dassas raparigas italianas que vagueiam pelas ruas, bandos de jovens prostitutas. Tal como em muitas outras cidades da Europa, elas andam por toda a Roma, principalmente pelos Jardins do Pincio, pelo Parque Caracalla e pela Via Sistina, junto da Piazza di Spagna, mas as mais bonitas e engraçadas frequentam a Via Veneto para brindarem os transeuntes com os seus sorrisos fatais e fazerem o seu negócio. A esta hora há muitas que se vem sentar para tomarem o aperitivo, algumas aqui mesmo, ao Doney, mas com mais afluência ao outro lado da rua, ao Café de Paris, o nosso principal competidor. De modo que Gino, aquele criado que me falou, lembrou-se que Toti... o seu Lebrun... tem muitas amizades entre as prostitutas. Gino disse-me que até já quis casar com uma.
-Sim, sim, já ouvi dizer isso mesmo -corroborou RandalI, apressadamente.
- Gino disse que aquela com quem Lebrun tencionava casar, quando tivesse muito dinheiro, tem uma amiga com quem partilha o mesmo quarto e que essa amiga quase todos os dias se senta à mesma mesa do Café Paris pouco mais ou menos a esta hora. Chama-se Maria. Eu também a conheço. Gino pensa que ela deve saber onde Toti vive.-Júlio coçou a cabeça. - Talvez ela não queira dizer... mas à vista de dinheiro... bem, o dinheiro costuma soltar as línguas, não é verdade? Gino julga que ela esteja agora no Paris. 0 melhor é deitarmos uma olhadela. Eu vou consigo.
-Será capaz de fazer isso, Júlio?
Júlio mostrou toda a dentadura num largo sorriso.
- Para um italiano deixar o trabalho para falar a uma rapariga bonita não constitui problema... pelo contrário, é um prazer.
E Júlio começou a caminhar pelo passeio, seguido por Randall. Passaram o Hotel Excelsior e detiveram-se na esquina imediata à espera que abrisse o sinal para passagem de peões. Do outro lado da rua, paralela ao Doney, Randall pôde ver uma tabuleta em letras encarnadas onde se lia: CAFÉ PARIS - RESTAURANTE. As mesas da esplanada esttvam parcialmente ocultas por enormes vasos com plantas e buxos, e o local parecia ter ainda mais frequência do que o Doney.
No semáforo acendeu-se a luz verde e eles atravessaram pela zona demarcada da zebra. Enquanto caminhavam, Júlio voltou-se para Randali e disse-lhe:
-Vou apenas apresentá-lo como um amigo americano que pretende travar conhecimento. Depois deixo-os. É a melhor maneira. Pode explicar-lhe directamente o que pretende. Todas essas raparigas falam o seu inglês, e a Maria também.
Logo que chegaram ao quiosque, de venda de revistas na outra esquina, Randall segurou Júlio por um momento. -Quanto é que lhe devo oferecer?
-Para os italianos, uma rapariga como a Maria, uma prostituta de certa classe, leva cerca de dez mil liras, à volta de quinze dólares. Mas para um turista, especialmente para um americano, habitualmente mais endinheirado e que em regra não discute preços, é possível que ela peça vinte mil liras, cerca de trinta dólares... com um bocado de discussão, talvez o preço desça... Esse dinheiro dá direito a um máximo de meia hora na cama, possivelmente em alguma pensão escusa. 0 tempo é escrupulosamente contado. Se apenas quiser falar, a importância é a mesma, mas-Júlio piscou maliciosamente o olho-pode-se perfeitamente falar e fazer amor ao mesmo tempo. Estas raparigas orgulham-se de despacharem depressa os clientes, de modo que a meia hora transformase usualmente em dez minutos. São umas espertalhonas, dão conta de um homem nesse tempo. Ora vamos lá ver se ela se encontra aqui.
Júlio abriu caminho à cotovelada por entre os mirones que rodeavam o quiosque para lerem as revistas à borla, parou por baixo do toldo berrantemente encarnado e deu uma vista de olhos pelas mesas. Randall tinha-o seguido, mas mantendo-se a curta distância.
Júlio continuava a observar os ocupantes das mesas, quando de repente o rosto se lhe iluminou com um ar de satisfação. Acenou, deu uma cotovclada de cumplicidade em Randall e enfiou-se por entre as mesas a caminho da fila encostada à parede. Randall trotou atrás dele como um cachorrinho perdido.
Tratava-se de uma coisinha jovem e bonita, que nesse momento extraía a azeitona, espetada num palito, que lhe adornava o copo de Martini, ao mesmo tempo que fazia um gesto de cumprimento para Júlio. Tinha o cabelo negro e comprido emoldorando um rosto de Madonna, um quadro de pureza e inocência, apenas desmentido pelo vestido leve de verão, generosamente decotado para lhe expor uns seios grandes e rijos e generosamente curto e apertado na orla, expondo umas pernas e parte das coxas bem torneadas e tirando partido de um traseiro bem lançado e abundante.
- Maria - murmurou Júlio, fazendo o rápido gesto de lhe beijar a mão como se ela fosse uma grande dama.
-Signore Júlio- correspondeu a rapariga, agradavelmente surpreendida.
Júlio ficou de pé, inclinando-se para a jovem para lhe murmurar algumas rápidas palavras em italiano. Ouvindo-o atentamente, ela acenou com a cabeça duas vezes e olhou francamente para Randall que, rigidamente em pé, se começava a sentir com ar de pateta.
Júlio fez um sinal a Randall para se aproximar.
-Maria, aqui está o meu amigo americano, Signore RandalI. Peço-te que sejas boa para ele. - Voltou-se para Randall com um sorriso. -Ela será uma camarada para si. Faça favor de se senta. Arrivederci.
Júlio desapareceu com a maior rapidez e Randall ocupou uma cadeira de verga ao lado de Maria, sentindose ainda pouco à vontade e pensando se algum dos clientes das mesas próximas estaria a olhar. Deitou uma olhedala de viés e teve a consolação de verificar que ninguém se preocupava com ele.
Maria deslocouse mais para perto dele e os montículos parcialmente à mostra dos seus seios tremeram provocadoramente. Ela cruzou novamente as pernas e dirigiu-lhe um sorriso.
-Mi fa piacere di vederlo. Da dove viene?
-Tenho pena de não falar italiano -desculpou-se Randall.
- Perdoe-me - disse Maria. - Estava a dizer que tinha muito prazer em conhecê-lo e perguntei onde é a sua casa.
- Sou de Nova Iorque c também tenho muito prazer em conhecê-la, Maria.
- Júlio disse-me que era amigo do Duca Mínimo - alargou o sorriso - é verdade?
- Sim, somos amigos.
- Um velhote simpático. Quis-se casar com Gravina, a minha melhor amiga, mas faltou-lhe o dinheiro. Pouca sorte.
- É possível que em breve tenha muito dinheiro - disse Randall.
- Sim? Verdade? Espero que sim. Hei-de dizer a Gravina.
- Os olhos da rapariga, captaram o olhar apreciador de Randall. -Gosta de mim? Pensa que sou bonita?
-É muito bonita, Maria.
- Bene. Quer ir já fazer amor comigo? Farei tudo o que quiser consigo. Amor bom. Amor regular. Amor francês. 0 que desejar. Ficará satisfeito. São apenas vinte mil liras. Não é muito para passar um bom bocado. Quer ir já com Maria?
-Escute, Maria, ao que parece Júlio não lhe disse... mas há uma coisa mais importante que preciso de si.
Ela pisou os olhos e conside,rou-o como sc Randall fosse maluco.
-Mais importante do que o amor?
-Neste momento, sim. Maria, sabe onde Lebrun... o Duca Mínimo mora?
A rapariga pôs-se imediatamente em guarda. -Porque é que quer saber?
- Tinha a morada dele e perdi-a. Devia ter-me encontrado com ele há uma hora no Doney. Júlio pensou que você podia ajudar-me.
- E foi por isso que me procurou?
- É uma coisa muito importante.
- Importante para si, mas não para mim. Tenho muita pena, Sei a morada dele mas não lha posso indicar. Tanto eu como a minha amiga Gravina jurámos nunca dar a ninguém a morada do Duca. Não posso quebrar a minha jura. De modo que agora talvez tenha tempo para ser amado por Maria.
-Só me sobra tempo para o ver a ele, Maria. Se o Duca Mínimo é seu amigo, posso dizer-lhe que pretendo saber a morada para o ajudar.- Subitamente lembrou-se e levou a mão ao interior do casaco, tirando a carteira.-Você disse que faria amor comigo por vinte mil liras. Okey, ganhará vinte mil liras se me quiser fazer feliz de outra maneira.
Randall tirava da carteira as grandes notas de mil liras, quando ela olhou em volta nervosamente e lhe empurrou a mão com a carteira.
-Por favor, aqui não.
- Desculpe - disse Randall, metendo a carteira no bolso, mas mantendo um punhado de notas fechadas na mão. - Você não tem que fazer nada de especial para obter o dinheiro, apenas mostrar-me onde ele vive.
Maria contemplou o dinheiro semioculto na mão de Randall -Jurei não dizer... mas o senhor quer realmente ajudá-lo. Quer fazê-lo rico?
- Quero - respondeu Randall, disposto a concordar com tudo o que ela quisesse.
-Nesse caso, para bem dele, indicar"lhe-ei onde mora.
0 apartamento dele fica aqui perto.
- Obrigado.
Sem demora, Randall pagou a despesa da moça, levantou-se ao mesmo tempo que ela e saíram juntos da esplanada do Café de Paris. Passaram pelo quiosque da esquina, apanharam o sinal de peões aberto e seguiram pela Via Veneto até à esquina do Hotel Excelsior.
Maria indicou a larga rua que corria ao longo da ala lateral do hotel, dizendo.
-Via Boncampagni. 0 Duca Minimo vive nesta rua, não muito longe, a três ou quatro quarteirões de distância. Podemos ir a pé.
Maria enfiou o seu braço no de Randall e começaram a seguir os dois pela Via Boncampagni. A rapariga à medida que caminhava, ia cantando em surdina, mas, no fim do primeiro quarteirão, parou abruptamente e estendeu a mão aperta para Randall.
-Agora pode pagar-me.
Randall colocou-lhe. na mão o monte de liras dobradas. Maria, cuidadosamente, contou as notas. Satisfeita, encafuou o dinheiro na malinha de mão.
-Vou levá-lo ao seu amigo.
Maria reatou a caminhada, sempre a cantar em surdina, acompanhada por Randall.
Ao passarem pelo terceiro quarteirão, Randall perguntou. -Como é que sabe onde é que o Duca Mínimo mora? -Vou dizer-lhe, mas não conte ao seu amigo. 0 Duca é um homem muito orgulhoso, mas em certas ocasiões, quando Gravina ou eu, ou mais uma ou duas raparigas do nosso círculo, não podemos encontrar lugar nas pensões por estarem cheias, entramos num arranjo com Duca para satisfazermos os nossos clientes, utilizando o quarto dele para fazer amor. Cada vez que usamos o quarto damos-lhe metade do que ganhamos, mas não nos importa. È um homem gentil e bondoso para nós, além disso o dinheiro serve para o ajudarmos a pagar a renda.
- E quanto é que ele paga de renda?
-Cinquenta mil liras por mês por um quarto de cama, uma pequena cozinha e uma casa de banho.
- Cinquenta mil? Equivale a cerca de oitenta dólares. E ele pode pagar tanto?
-Ele diz que já vive ali há muitos anos. Desde que era rico. Atravessaram um cruzamento, a Via Piemonte, e começaram a percorrer o quarto quarteirão.
- Desde que era rico? E quando é que ele foi rico - perguntou Randall.
-Talvez há quatro ou cinco anos, segundo ele diz.
Randall pensou que se ajustava um novo dado do problema. Cinco anos antes Lebrun tinha recebido parte, do bolo de Monti pela descoberta de Ostia Antica.
-Pronto, chegados- anunciou Maria.
Tinham parado em frente de um edifício de apartamentos de seis andares, edificação de idade indeterminada, com a pintura da fachada num estado pouco agradável. A entrada do edifício ficava situado entre a Iranian Express Company e uma loja com uma tabuleta a dizer BARBIERE, onde se via à entrada o poste colorido dos barbeiros.
Por cima do quadrado de mármore que formava a porta de entrada, via-se urna placa de pedra com a palavra CONDOMINIO. Por baixo ficavam duas maciças metades de uma portada de madeira, abertas de par em par, logo seguido de guarda-vento em vidro. Para além divisava-se um átrio e aquilo que parecia ser uma casinhola ou uni balcão, vendo-se ainda mais além a sugestão do que devia ser um pátio.
Maria estendeu a mão.
-Vou deixá-lo aqui, tenho que voltar para o trabalho. Randall apertou-lhe a mão.
- Obrigado, Maria. Mas onde é que...
- Entre por aquela porta. 0 cubículo que se vê à direita é onde o portiere guarda a correspondência. À esquerda há um elevador e também uma escada. Mas deve primeiro encontrar-se com o portiere para lhe dizer que quer ver o Duca Minimo. Se ele não estiver no cubículo, vá até ao pátio. Num dos lados vêem-se urnas janelinhas cheias de flores onde vive o portíere e a mulher. Charne-o e ele leva-o até ao seu amigo. Buona fortuna - Começou a caminhar para se ir embora, mas voltou atrás dados alguns passos, para dizer: - Mr. RandalI, quando vir o Duca não lhe diga que foi a Maria quem o trouxe até aqui.
- Prometo que não direi, Maria.
Ficou a vê-Ia encaminhar-se para a Via Veneto, com as opulentas nádegas a ondularem em compasso com a malinha de mão, branca.
Subiu o lanço de escadas que levava à entrada, abriu o guarda-vento e entrou no átrio. 0 cubículo do portiere estava vazio. Randall dirigiu-se então para o sombrio pátio.
0 centro estava ocupado por renques de grandes vasos providos de plantas de borracha, com as suas largas folhas de um verde escuro. À esquerda, numa janela aberta de par em par, via-se um homem ainda jovem, muito moreno, com todo o tipo de siciliano, que regava uns vasos de flores alinhados no peitoril.
0 homem parou de regar e olhou curiosamente para Randall.
- Boa-tarde - cumprimentou Randall. - Fala inglês?
-Si. Um pouco.
- Onde é que posso encontrar o portiere?
- 0 portiere sou eu, Deseja alguma coisa?
- Um amigo meu vive neste prédio. Queria...
-Só um momento. -0 portiere desapareceu da janela e reapareceu momentos depois a uma porta lateral que dava para o pátio. Era um homem baixinho, de aspecto desenvolto e comunicativo, que vestia uma blusa azul de zuarte e umas calças do mesmo tecido, manchadas. Confrontou Randall de mãos nas ancas, perguntando: - Procura alguém?
- Sim, um amigo meu. - Randall conjecturou que nome havia de utilizar. Lamentou não ter perguntado a Maria o nome porque o velhote era conhecido. 0 mais provável era ter dado o nome italiano. - 0 Signore Toti.
- Toti? Lamento, mas não temos nenhum inquilino que se chame Toti.
-Tem uma alcunha. Chamam-lhe Duca Mínimo.
- Duca ... ? - 0 portiere abanou vigorosamente a cabeça. Não, não há aqui ninguém com esse nome.
Nesse caso devia ser Lebrun, decidiu Randall.
- Bem, na verdade trata-se de um francês... a maior parte dos amigos conhecem-no pelo nome de Robert Lebrun,
0 portiere fitou Randall.
-Ternos um inquilino chamado Robert, um francês, mas não é Lebrun. Talvez quisesse dizer Laforgue. Robert Laforgue, hem? Laforgue, evidentemente. Era o mesmo nome obtido por Sam Halsey, da Associated Press de Paris, nos registos do Ministério da Justiça e nos Arquivos Históricos do Exército, 0 verdadeiro nome de Lebrun.
- Sim, Laforgue! É esse mesmo. Troco sempre o apelido dele. justamente, Robert Laforgue, é a pessoa que pretendo visitar.
0 porteiro olhava agora para Randall de um modo estranho. -É da família dele? -perguntou.
-Sou um amigo íntimo. Laforgue espera"me. Aguarda a minha visita para tratarmos de um importante negócio.
- Mas isso é impossível - murmurou o porticre. - 0 Signore Laforgue foi ontem vítima de um desastre grave em frente da Stazione Ostiense, era meio-dia. Foi atropelado por um automóvel que se pôs em fuga. Morreu imediatamente. As minhas condolências, signore, mas o seu amigo já não pertence ao número dos vivos.
Um jovem graduado da polícia, simpático e cooperativo acompanhara Randall até à porta da Questura, a central da polícia romana, chamara-lhe um táxi e instruíra o motorista «Obitorio, Víale dell'Universitá», dissera mais qualquer coisa em italiano, repetindo a palavra «Obitorio» e especificara o endereço exacto, «Piazzale del Verano, 38».
0 motorista do táxi fizera rapidamente o sinal da cruz, agar rara-se ao volante e arrancara, e naquele momento dirigiam-se, a razoável velocidade, para o imenso complexo universitário de Roma, onde ficava situada a morgue da cidade.
Chocalhado de um para outro lado do assento do táxi quando este seguia ao sabor das curvas e contracurvas do caminho, Randall sentia-se ainda aparvalhado pelo rude golpe que sofrera, de que começava lentamente a recuperar.
Reflectiu que embora muitas pessoas, durante a vida, estejam sujeitas a vários abalos e decepções, com certeza que poucas teriam sido tão afectadas como ele em tão breve espaço de tempo. Em pouco mais de um mês fora presa de emoções intensas e violentas. Primeiro a apoplexia do pai, depois o caso de Bárbara e o divórcio, ligado ao facto de ter sabido a filha, Judy, ligada a um caso de estupefacientes. A seguir toda a tensão vibratória da Ressurreição Dois, os sentimentos arrasadores de desconfiar da lealdade de Angela e o terrível momento em se inteirara da fifia descoberta por Hans Bogardus. Mais recentemente o choque de ter ido encontrar o Professor Monti numa clínica de doenças mentais, a altura em que o Dominee de Vroorne lhe revelara a existência de uma mistificação e de um falsificador nos documentos Jacob e Petrónio. Os momentos alternados de temor e esperança em procurar localizar Lebrun, como se os choques violentos se tivessem tornado uma constante da sua existência.
Todavia, em nenhuma outra ocasião se lhe afigurava ter sofrido uma emoção mais forte do que no momento fatídico em que o portiere lhe anunciara a morte violenta de Robert Lebrun.
Fora tão inesperado o golpe que ficara meio aparvalhado. No entanto o homem é um animal estranho com grande capacidade de sobrevivência, pelo menos quando tem uma missão a cumprir que o manda sobreviver, e ele, aliás, acostumara-se já a um sem número de vicissitudes bruscas desde que se juntara à Ressurreição Dois.
Lembrava-se, como sc fosse num sonho, o modo como o porticre lhe relatara os acontecimentos do dia anterior, domingo. A policia fizera o seu aparecimento no prédio da Via Boncampagni para se certificar se morava lá um Signore Robert Laforgue. Uma vez informados que vivia de facto um Laforgue no prédio, os agentes haviam participado ao portiere que o inquilino fora morto num acidente de viação três horas antes,
A vítima ia a atravessar a praça da Pirâmide de Caio Cestio para a Porta de San Paolo, onde se situava a pequena estação de caminhos-de-ferro chamada Stazione Ostiense, quando um grande automóvel preto-uma das testemunhas dissera tratar-se de um Pontiac americano, enquanto outra contestara ser um Aston Martin inglês-entrara a toda a velocidade na praça, apanhara a vítima em cheio, lançando o corpo a dez metros de distância, e, na confusão que se seguira, com a gente a acorrer de todos os lados, acabara por se sumir num abrir e fechar de olhos, sem sequer reduzir a velocidade. A vítima do brutal choque morrera instantaneamente.
Os agentes tinham explicado ao portiere que os pertences encontrados nos bolsos da vítima haviam revelado tratar-se de Robert Laforgue e indicavam o seu endereço. Entre esses haveres não e encontrara nada que revelasse a existência de familiares ou amigos, nem qualquer cartão de seguro. Conheceria o porteiro qualquer pessoa de família ou amigo íntimo a quem a polícia pudesse notificar ou que, pudesse encarregar-se de fazer o funeral ao morto? Não, o portiere não sabia de nenhuma pessoa de família nem tinha conhecimento de qualquer arni-,0 da vítima. Em missão o
rotineira, os agentes tinham subido ao apartamento de Lebrun à procura de qualquer indício. Mas ao que parecia nada tinham encontrado de positivo para resolver a situação.
Randall recordava que pedira licença ao porteiro para visitar o apartamento de Lebrun. Como um sonâmbulo, seguira o prestável siciliano até ao elevador, onde se lembrava de ter visto uma maquineta que accionava o ascensor por intermédio da íntrodução de uma moeda na ranhura -o porteiro murmurara algo de que quem queria comodidades tinha que pagar por elas, mas depositara uma moeda de 10 liras na ranhura e premira o botão para o terceiro andar.
Chegados ao terceiro piso, à esquerda do elevador, o porteiro abrira unia porta. No interior, passado um pequeno hall, vía-se logo uma sala única que servia simultaneamente de sala de estar e de quarto de cama. Entre as paredes, que outrora tinham sido verdes, mas que agora apresentavam uma cor desbotada e suja, estadeava-se um divã de molas a servir de cama, dois candeeiros de pé alto com uns abat-jours incrivelmente feios, uma cómoda disforme, um rádio, um espelho rachado, um frigorífico pequeno do qual se projectava ainda o ruído da ligação eléctrica (o porticre desligara-o imediatamente), algumas prateleiras toscas onde se viam uns quantos livros, brochados, com a aprência de muito manuseados (na maioria romances e livros sobre política, mas nem um exemplar que falasse de teologia, arte antiga ou que versasse a história da Palestina ou de Roma). A meio do tecto uma lâmpada protegida por um globo sujíssimo. A seguir um aposento que parecia servir de cozinha, recheado de uma quinquilharia que dificultava a circulação, onde avultava um lavadoiro de zinco, e um poial de pedra com um fogãozito. Mais além, uma casa de banho minúscula.
Com reluntância, sob a vigilância do porteiro, Randall percorrera a pobre moradia, procedendo a uma busca entre os miseráveis haveres de Lebrun - dois fatos bastante maltratados, apresentando o peso dos anos e uma gabardina; algumas roupas interiores nas gavetas da cómoda. Com excepção de contas da mercearia e do talho (ainda não liquidadas) não existiam ali documentos pessoais ou cartas que pudessem fornecer qualquer pista de contacto ou associação de Robert Lebrun (ou Laforgue) com qualquer ser vivo no globo terrestre.
-Nada, absolutamente - lamentara-se Randall - , nem fotografias, nem notas, nem qualquer coisa escrita pela mão dele.
0 portiere respondera que Lebrun, a não ser umas amigas da rua, vivera praticamente como um eremita.
- É como se alguém tivesse estado aqui e procurasse eliminar qualquer possível identificação - admirara"se Randall.
- Excepto os agentes da polícia e agora o signore, com o meu conhecimento, não esteve aqui mais ninguém.
- De modo que tudo o que resta de Robert Laforgue é o seu cadáver. Bom, onde é que está o corpo?
-A polícia avisou-me que se descobrisse qualquer pessoa de família ou amigo, o corpo ficava depositado durante um mês no Obitorio,...
-A morgue?
- Si, a morgue... o corpo ficará lá depositado durante um mês à espera de alguém que pague o funeral. No caso de ninguém aparecer, o corpo será enterrado no Campo Comune...
- Campo Comune? A vala comum, onde são enterrados os corpos dos desgraçados que não têm ninguém, não é?
0 portiere fizera sinal que sim.
-Penso que é meu dever ver o cadáver para ter a certeza de que é Robert Laforgue. - A polícia encontrara documentos de identificação no corpo, mas outra pessoa podia transportar documentos com o nome de Lebrun. Randall tinha que se certificar, tinha que ter a certeza. -Como é que devo proceder para ver o corpo?
-Tem que se dirigir primeiro à Questura, a central da polícia, para obter a licença de ver o corpo e fazer a identificação.
E fora assim que Randall se dirigira à Questura, pedindo para ver o cadáver de Robert Leforgue. Tratando com um jovem graduado da polícia, Randall fornecera-lhe os vários nomes do francês morto, a idade da vitima, e uns quantos sinais particulares. Dera ao oficial da policia o seu nome, idade e profissão e contara uma história de ter travado amizade com Laforgue em Paris, sendo seu hábito visitá-lo sempre que vinha a Roma. Preenchera quatro copiosas páginas do Processo Verbale, uma espécie de relatório oficial sobre o desastre, e o polícia fomecera"lhe um passe para ver o corpo, para o identificar e reclamá-lo, se assim desejasse. 0 jovem graduado levara a sua amabilidade ao ponto de lhe chamar um táxi e de orientá-lo para o necrotério da cidade.
0 táxi afrouxou a velocidade e Randall espreitou pela janela. Seguiam por entre os maciços edifícios do complexo universitário, a Cittá Universitaria. Ao atingirem a Piazzale dei Verano, o motorista parou o carro e apontou o dedo para um compacto edifício, num conjunto de três alas, por detrás de um muro de pedra, a que dava acesso um portão de ferro. Obitorio - murmurou o motorista com respeitoso temor.
Randall pagou a corrida ao homem, dando-lhe uma generosa gorjeta.
Depois do táxi desaparecer na sombra, Randall empurrou o portão de ferro, semi"aberto e penetrou num pequeno pátio. Por cima da entrada do edifício mais compacto, via-se um letreiro, iluminado por uma lâmpada, que dizia: UNIVERSITÃ DI ROMA; ISTITUTO DI MEDICINA LEGALE E DELLE ASSICURAZIONI, OBITORIO COMUNALE.
Obitorio Comunale, que estuporado lugar para finalmente se encontrar com Robert Lebrun.
No interior do edifício foi encontrar um guarda envergando um uniforme indiscritível. Para o vasto átrio davam várias portas. Randall mostrou o passe ao guarda e este indicou-lhe uma das portas à direita. Encostado a um comprido balcão de mármore polido via-se um anafado funcionário de bigode farfalhudo a examinar alguns documentos.
Formal como todos os funcionários públicos do mundo, o bigodaças levantou a cabeça dos documentos e perguntou qualquer coisa em italiano.
-Lamento mas só falo inglês -respondeu Randall. -Embora não muito bem, falo qualquer coisinha de inglês.
0 tom do homem era pouco menos de ciciado, aliás o tom
murmurante e respeitoso comum a gatos-pingados e a funcionários dos necrotérios em todas as cidades do mundo.
-Chamo-me Steve Randall e vim para identificar o cadáver de um amigo meu. Chamava-se em vida Robert Lebrun... não, Robert Laforgue. Foi trazido para aqui ontem.
-Tem algum documento passado pela polícia?
-Tenho -respondeu Randali, entregando-lhe o documento passado pela Questura.
0 funcionário agarrou num microfone intercomunicador que se encontrava por baixo do balcão e falou rapidamente, em italiano, dando a volta ao balcão para chegar ao pé de Randall.
-Faça favor de me seguir -disse urbanamente.
Saíram para o vasto átrio e encaminharam-se para outra porta, com dois painéis de vidro fosco com o seguinte dizer: INGRESSO È VIETATO - que Randall conjecturou que quereria dizer proibida a entrada. 0 funcionário abriu a porta, e logo chegou às narinas de Randall um cheiro agoniativo. Era o cheiro inegável da morte e teve que parar subitamente possuído por tremenda náusea. 0 seu primeiro instinto foi voltar-se e fugir daquele local a sete pés. Aquela identificação não tinha nenhum objectivo concreto. A sobrevivência era tudo o que importava, mas o funcionário tinha-o agarrado firmemente por um braço e arrastava-o ao longo de um comprido corredor.
No extremo do corredor, viase um polícia de sentinela em frente de uma porta com os dizeres: STANZE DI RICONOSCIMENTO.
- Que quer dizer - perguntou Randall, apontando.
- Sala de reconhecimento - traduziu o funcionário. - È aqui que pode proceder à identificação do cadáver.
0 polícia abriu a porta e RandalI, tapando o nariz com o lenço, obrigou-se a entrar. Tratava-sc de uma pequena sala iluminada com luz fluorescente indirecta. Duas portas de vidro no extremo oposto da sala foram abertas e um servente entrou empur" rando uma maca de rodas onde se desenhavam as formas de um corpo coberto por um lençol branco.
0 funcionário encaminhou-se para junto da maca e RandalI, como um autómato, aproximou-se também. 0 homem pegou numa das pontas do lençol e ergueu-a parcialmente.
-Será este o seu... Robert Laforgue?
Randall sentiu que as tripas lhe vinham à boca ao inclinar-se para espreitar. Bastou um olhar para se certificar que aquele rosto marcado por fundas rugas, agora na morte amarelento como um bocado de, pergaminho, um rosto pisado, entumescido e de unia cor cianosa, pertencia sem dúvida a Robert Laforgue, aliás Robert Lebrun.
-É sim - respondeu, procurando dominar a náusea. -A sua identificação é positiva?
-Positiva. J
- 0 -funcionário baixou o lençol e fez sinal ao servente para levar a maca embora. Depois voltouse para Randail.
- Obrigado sígnore. Daqui esiamos despachados.
Quando saíram da sala de reconhecimento, andando pelo sombrio corredor, Randall sentia nas'narinas não só o fétido cheiro da morte mas também um odor a estranha coincidência.
E era essa última sensação de cheiro que o avassalava. Quando pretendera ver o original do Papiro Número 9 em Amesterdão, ele desaparecera por coincidência. Quando procurara analisar o negativo de EdIund tirado ao papiro, por coincidência todos os negativos do fotógrafo tinham sido devorados por um incêndio providencial. Há pouco, quando estava preparado para receber a prova da intrujice, ofalsificador, por coincidência, fora atropelado fatalmente por um automóvel desconhecido na véspera da entrega. Atropelado ou assassinado? Coincidência... ou propósito determinado?
0 empregado do necrotério estava a falar.
-Signore, sabe de alguém de família que possa reclamar o corpo?
- Duvido que tenha família.
-Nesse caso, como o senhor foi a única pessoa que procedeu ao reconhecimento do corpo, todas as disposiç5es a seu favor são perfeitamente legais. - Lançou um olhar esperançado para Randall. -Claro, se o desejar.
-Que quer dizer?
- -Uma vez que foi feita a identificação, já podemos dar destino ao cadáver. Se o senhor não tiver intenção contrária, o está enterrado no Campo CQmune...
- Ah, é verdade! Ouvi falar nisso. A vossa vala comum.
- Mas se quiser responsabilizar-se, poderemos arranjar modo de uma agência funerária se encarregar de fazer o funeral, colocá-lo em câmara ardente na capela do cemitério católico, o Cimiticro Verano, com todos os serviços religiosos inerentes. A campa terá uma pedra funerária e será enterro respeitoso, se o senhor quiser pagar.
Tinham chegado ao átrio e voltaram para a sala do grande balcão de mármore polido. Randall não hesitou. Fosse como fosse, Lebrun tinha procurado cooperar. Ainda que não tivesse tido oportunidade de levar até ao fim a sua promessa, merecia sem dúvida algo em troca dos seus préstimos. Além de tudo o mais, tratava-se não de uma obra piedosa mas do respeito devido a todo o ser humano.
-Sim, pagarei todas as despesas para que o cadáver tenha um funeral como deve ser. Apenas com uma rectificação... - não se pôde impedir de sorrir levemente ao recordar as ideias de Lebrun. - Não pretendo serviços religiosos e não quero que o corpo seja enterrado no cemitério católico. 0 meu amigo era... um agnóstico.
0 funcionário do necrotério fez um gesto de compreensão e foi ocupar o seu lugar por trás do balcão.
-As coisas serão feitas com o senhor desejar. Depois da agência arranjar o corpo, o enterramento far-se-á no cemitério não católico... no Cimiticro Acatolico. Existem muitas pessoas não crentes, principalmente poetas estrangeiros que repousam nesse cemitério. Tudo se fará de maneira correcta, fique descansado. Quer pagar já, signore?
Randall pagou a quantia que o homem lhe pediu, aceitou um recibo, assinou um documento oficial da transacção e sentiu-se felicíssimo por poder finalmente partir.
Quando se preparava para partir, o funcionário chamou-o.
- Signore! Um momento...
Pensando no que poderia haver mais, Randall voltou até junto do balcão de mármore. 0 funcionário mostrou-lhe um saquitel de plástico.
-Uma vez que reclamou o corpo para enterramento, tem direito aos haveres da vítima.
-0 quê, às coisas que se encontram no apartamento? Pode oferecer tudo a qualquer instituição de caridade não religiosa.
- Assim se fará... mas não se trata disso, trata-se do que está dentro deste saco, os pertences pessoais do morto, encontrados na altura do acidente.
0 funcionário aliviou o laço da corda que prendia a boca do saco, voltou-o ao contrário e deixou cair no balcão o conteúdo. -Escolha aquilo que quiser como última recordação...
Ouviu-se uma campainha tocar insistentemente num departamento interior. - Desculpe-me - disse o homem, precipitando-se para atender o telefone.
Randall ficou encostado ao balcão, contemplando tudo o que restava da memória de Lebrun.
Era pouca coisa c o que via fazia-lhe doer a alma. Agarrou nos pertencentes um a um, pondo-os de parte à medida que os observava. Havia a caixa metálica retorcida e amolgada de um relógio de bolso, com os ponteiros parados nas doze e vinte e três. Um maço de cigarros franceses da marca Gauloises. Uma caixa de fósforos. Algumas moedas de 10 liras. Finalmente uma imitação barata de uma carteira de couro, em plástico. Randall levantou a carteira, abriu-a e começou a tirar o que estava dentro. Um bilhete de identidade.
Quatro notas de 1000 liras.
Um bocado de papel muito enrugado e dobrado em várias partes.
E um bilhete de comboio, oblongo, em cartão cor-derosa. Randall atirou o bilhete de identidade e as quatro notas para o balcão, junto da carteira. Desdobrou o bocado de papel. No meio via-se desenhado um peixe com uma seta a atravessá"lo. Era semelhante ao que lhe fora ofertado, desenhado pelo Professor Monti, com a diferença daquele peixe ser mais redondinho e ter um outro traço distinto, possivelmente desenhado por Lebrun. No canto inferior direito, numa letra firme e bem desenhada, numa tinta azul viam-se as palavras: Cancello C, Decumanus Maximu. Porta Marina. 600 mtrs. Catacomba.
Agora o bilhete de caminhos"de-ferro. Estava dividido em duas secções dobradas. As partes exteriores estavam numeradas de um a trinta e um, o que representava, obviamente os dias do mês. No meio da primeira secção lia-se: ROMA S. PAOLO / / OSTIA ANTICA. 0 outro lia-se: OSTIA ANTICA / ROMA S. PAOLO.
Randall sentiu as frontes a latejarem.
0 funcionário do necrotério estava outra vez no balcão. -Mil perdões -disse. -Encontrou alguma coisa? Randall mostrou-lhe as duas partes em cartolina cor-de-rosa. -0 que é isto?
0 funcionário examinou.
-Um bilhete de caminho-de-ferro, de ida e volta. Tem a data de ontem. A primeira secção é da estação de S. Paolo em Roma e para Ostia Antica, onde existe uma estância balnear e umas ruínas antigas. 0 outro pedaço representa o regresso, de Ostia Antica para Roma. Foi comprado ontem, mas não utilizado, uma vez que não está picado nenhum dos dias do mês.
As frontes de Randall continuavam a latejar e no seu cérebro instalava-se um caos a tentar reconstruir o que sucedera no dia anterior, domingo: Robert Lebrun dirigia-se à estação de S. Paolo, comprara um bilhete de ida de volta para Ostia Antica. Como era ainda cedo dirigira-se com certeza, a coxear, para a praça, a fim de apanhar um bocado de sol antes de partir. Mais tarde, atravessando a praça de volta à estação, fora apanhado pelo bólide e morto, tendo na carteira o bilhete para Ostia Antica e volta que nunca mais utilizaria.
Ostia Antica, o local onde o Professor Augusto Monti fizera a sua extraordinária descoberta... Lebrun quisera ir a Ostia Antica para recuperar as provas de que esse grande achado não passava de uma falsificação.
Randall meteu o bilhete no bolso do casaco e analisou o desenho do peixe e as palavras escritas no canto inferior direito. Randall olhou para o funcionário.
-Onde fica a Porta Marina?
-Porta Marina? É também em Ostia Antica. No extremo das ruínas romanas de Ostia Antica... as Termas de Porta Marina.. muito interessante 'muito antigo, vera.
Sim, podes apostar que verei, pensou Randall.
Dobrou o papel com o desenho e meteu-o no bolso, ao pé do bilhete do comboio.
-Pode ficar com o resto-disse ao funcionário. -Obrigado, muito obrigado, e as minhas condolências pela perda de um amigo, signore.
Randall pensou: sim, condolências pela morte de um amigo, mas ao mesmo tempo graças a esse mesmo amigo pelo pequeno legado, por aquela pequena esperança.
Randall saiu do necrotério para o ar quente da noite exterior. Sabia que tinha que terminar a viagem que Lebrun procurara iniciar. 0 bilhete de comboio não fora utilizado. Mas no dia seguinte na sua mão haveria um outro bilhete de ida e volta para Ostia Antica... Roma / Ostia Antica e Ostia Antica / Roma... e aquele bilhete seria usado sem dúvida.
E depois? 0 dia seguinte diria.
Quanto custara a noite a fazerse dia. Que lentidão no ontem se tomar em hoje.
Randall tinha um bilhete cor-de-rosa no seu bolso, um bilhete que fora marcado pelo alicate do revisor no número 2, Chegara finalmente a manhã do dia 2, terça-feira.
Ao ritmo baloiçante do comboio eléctrico que o conduzia cada vez mais perto da antiga estância balnear romana, semi-Sepulta pelo decorrer dos séculos e onde a pá.do Professor Monti iniciara a história da Ressurreição Dois, por meio do testemunho de Robert Lebrun, Randall pensava que talvez a sua viagem representasse o fim da Ressurreição Dois... morreria onde nascera.
A noite anterior fora muito ocupada para Randall. Pelo porteiro do Hotel inteirara-se do horário matinal dos comboios para Ostia Antica. Fora-lhe dito que o comboio não levava mais de vinte cinco minutos de viagem desde Roma. Depois de se informar do horário, Randall percorrera as ruas em volta da Via Veneto para bisbilhotar em alguns alfarrabistas que normalmente se mantivessem abertos até às oito horas ou mais tarde para servirem os turistas. Encontrara duas lojas e numa delas, com uma secção de língua inglesa, descobrira aquilo que pretendia: exemplares usados de livros de nomeada sobre Ostia, um da autoria de Guido CaIza, que orientara e dirigira explorações nas ruínas nos princípios do século vinte, e outro da autoria de Russel Meiggs, que escrevera o registo mais histórico do fastígio e queda da antiga cidade do litoral, porto franco da grande metrópole que fora a Roma imperial.
Para substanciar os volumes comprados, como apoio, Randall adquirira também um mapa turístico com a planta de Ostia nos primitivos tempos romanos e na era actual e uma monografia que descrevia as ruínas que haviam sido trazidas à luz do dia desde o passado século. Em nenhuma das obras figurava o nome do Professor Augusto Monti, coisa aliás compreensível, visto que todas aquelas orientações eram anteriores à descoberta feita por Monti seis anos antes. Além disso, segundo Randall se recordou, a descoberta de Monti mantivera"se um segredo bem guardado, que só no fim daquela mesma semana veria em pleno a sua publicidade mundial.
Depois de jantar e até às duas horas da manhã debruçara-se sobre os livros e o mapa, estudando afincadamente como nunca se lembrara de estudar nem nos tempos do liceu. Conseguira quase memorizar o traçado e a história de Ostia Antica e dos seus arredores. Enfronhara-se na descrição de uma típica zona romana patrícia do século I, como aquela cujas ruínas haviam sido objecto das escavações do Professor Monti. A residência típica tinha um vestíbulo, um atrium ou pátio descoberto, um tablinum ou biblioteca, um trictinium ou sala de jantar, uma oecus ou sala principal da casa, uma cozinha monumental, alojamentos para os escravos que serviam a casa, um certo número de latrinas... e, claro, por Júpiter Capitolino, até mesmo uma catacomba.
No pedaço de papel com o desenho do peixe arpoado que metera na carteira, Robert Lebrun escrevera, a seguir de Porta Marna, a seguir de 600 mtrs., a palavra catacomba. Durante a passada noite, Randall procurara o significado daquilo e soubera que numerosas escavações feitas em Itália haviam revelado que determinadas propriedades de um converso cristão, em segredo, possuíam em regra a sua catacomba, o subterrâneo privado que servia de jazigo para toda a família,
Depois do esgotante estudo dos livros e do mapa, Randall abrira a pasta, retirara um dos arquivos e desfolhara as notas que haviam tirado, e as notas que lhe tinham sido fomecidas por Angela, sobre as escavações a que o Professor Monti procedera seis anos antes. Procurando lembrar-de todas as palavras proferidas por Lebrun durante o encontro, juntara-as às notas anteriores já tomadas. Finalmente, com os olhos a arder, fatigado física e intelectualmente, deitara-se e adormecera.
Nessa manhã, apenas armado e equipado com o mapa e a folha de papel com o desenho do peixe atravessado pelo dardo e com as notas criptográficas inseridas no canto inferior direito, tomara um táxi até à Porta San Paolo.
A estação Ostiense parecia-se mais com uma estaçãozinha provinciana. Colunas de mármore sem definição de estilo no exterior, átrio de chão em mosaicos e para lá da cafetaria e lojeca, de venda de jornais, revistas e tabaco, as fileiras de guichets para venda de bilhetes.
Com o bilhete na mão, dirigira-se para a plataforma entrando para uma das carruagens.
Naquele momento, olhando para o mostrador do relógio viu que já tinham decorrido dczassete minutos de viagem e que faltavam apenas oito para chegar ao seu destino.
Normalmente, teria achado a viagem insuportável. Os bancos de madeira eram incómodos. A carruagem estava repleta de passageiros, pobres gentes que regressavam às suas aldeolas. Cruzavam"se conversas em todos os tons, que na maior parte lhe pareciam queixumes. A atmosfera estava sufocante e quase todas aquelas pessoas transpiravam abundantemente, enquanto o sol impiedoso batia de chapa nas janelas. De vez em quando o comboio entrava num curto túnel, mas sem que o calor diminuísse, porque nessa altura acendiam-se as luzes interiores.
Observando a paisagem, Randall não divisava nada que lhe interessasse. A beira da linha viam-se blocos em mau estado de conservação, ostentando o espectáculo de roupas estendidas nas varandas. Aqui e além, a visão rápida de algumas residências de veraneio ou raros projectos de desenvolvimento interurbano incompletos. 0 comboio parava em todas as estações, Primeiro detivera-se em Magliana, depois em Tor di Valle, a seguir em Vittinia.
Naquele instante acabavam de deixar -para trás Acilia. A paisagem melhorava, oferecendo à vista o desenrolar de vastos olivais, quintas, campos cultivados, pequenos cursos de água que iam engrossar a corrente do Tibre. A espaços, por entre as clareiras de buxos que demarcavam a linha férrea, Randall podia observar a linha acimentada de uma auto-estrada moderna, a Via Ostiensis, paralela a um caminho vicinal, feito de lajes cobertas de musgos.
Randall pensou que aquele caminho devia ter sido outrora a majestosa estrada que de Roma levava ao porto de Ostia, estrada mandada lançar por Júlio César, continuada por Augusto e melhorada por outros imperadores. A partir de Cláudio e Nero o porto passara a ser uma fortaleza contra eventuais invasores, e os silos rudimentares de Ostía absorviam o trigo desembarcado de vários pontos do império para abastecimento da capital.
Todavia, Randall pouco se importava com a paisagem que demarcava um dos momentos mais altos e mais baixos da história da humanidade, ao mesmo tempo que quase não sentia o calor e as penosas condições em que a viagem decorria porque o seu pensamento estava exclusivamente voltado para o que o esperava lá adiante. Pensava na possibilidade de que Robert Lebrun, embora em espírito, o pudesse guiar até à prova da mistificação que obviamente se devia encontrar algures nas escavações controladas pelo governo do antigo porto marítimo na embocadura do Tibre. Sim, provavelmente a prova não se devia encontrar muito longe do sítio onde Lebrun plantara a sua falsificação para ser encontrada por Monti.
Randall tinha o pressentimento de que seria difícil alcançar as provas e que, praticamente, era como procurar uma agulha num palheiro. No entanto, tinha uma pista, um indício, que lhe transmitia uma confiança ilimitada que o impelia para aquele final de acto. Fosse como, fosse, nada lhe parecia agora mais importante do que saber se a mensagem contida no Evangelho Segundo Jacob e no pergaminho do centurião Petrónio - que dentro de poucos dias iria ser fornecida ao mundo pela Ressurreição Dois - era a Palavra salvadora... ou uma tremenda mentira.
0 comboio tinha diminuído de velocidade e os freios produziram um ruído arrepiante em contacto com os trilhos de ferro, até que toda a composição imobilizou. Randall mirou o relógio. Desde que, tinham partido de Roma haviam decorrido, vinte e seis-minutos. Qlhou para fora a tempo de ver, um alpendre e um nome. escrito numa das faces: OSTIA ANTICA.
Levantou-se e juntou"se aos outros passageiros que se dirigiam para a saída. Seguiu fielmente as pessoas que, no fim da plataforma, se dirigiran para um lanço de escadas, engolfando-se rio pequeno viaduto de passagem sob a via férrea. Novo lance de escadas e encontrou-se na pequena estação de Ostia um edifício pitoresco em tijolo encarnado. Finalmente a rua.
Procurando fugir ao intenso calor Ráridáli- acabou por ficar agradavelmente surpreendido ao avistar uma praça que se lhe afigurava um autêntico oásis, sombreada por renques de palmeiras e de figueiras. Para além da praça, o esboço de uns degraus que levavam ao tabuleiro superior de um viaduto, com certeza paralelo à estrada. A multidão que saíra com ele do comboio tinha desaparecido como que por encanto e Randall parecia estar só naquele lugar pacífico. Mas essa sensação de solidão foi sol de pouca dura. Em frente via-se um táxi, um veículo com todo o aspecto de
ser contemporâneo dos primitivos dinossauros, e encostado a ele, sorrindo comicamente, via-se o motorista envergando um anacrónico guarda-pó e com um chapéu muito semelhante ao usado pelos gondoleiros de Veneza.
0 motorista levou a mão ao chapéu respeitosamente, interceptou o passo a Randall e disse-lhe com uma rasgada vénia: -Buon giorno, signore. Chamo-me LuPo Farinnaci. Toda a gente em Ostia me conhece. Tenho um táxi, uni Fiat. 0 signore quer um táxi?
- Julgo que não é preciso - disse Randail. - Vou só visitar as escavações...
- Ah, scavi, scavi, escavações, si. Pode ir a pé, não é muito longe. Sobe ao viaduto, atravessa a auto-estrada e vê logo o local.
- Muito obrigado.
- Não deve ficar lá muito tempo. Está muito calor. Talvez depois precise de se refrescar. Se quiser Lupo leva-o no táxi até Lido de Ostia, a praia que serve Roma.
-Julgo que não terei tempo para isso.
-Talvez tenha, depois logo vê. Se precisar de um táxi, Lupo anda por aqui... Lupo costuma estar perto do restaurante chamado Sítio Onde Eneias Desembarcou... também costumo estar junto do lugar que vende fruta, um pouco adiante. Talvez precise de mim.
- Obrigado, Lupo. Se precisar de si, procurá-lo"ei.
Randall subiu as escadas que levavam ao tabuleiro do viaduto e atravessou a auto-estrada. Na altura em que descia o pequeno declive que levava a um campo aberto onde se via um pinheiral, já a camisa empapada em suor se lhe colara à pele. De mapa na mão, identificou o castelo, construido no século XV, por Giuliano della Rovere, que depois foi nomeado Papa, com o nome de Júlio II, e logo a seguir detectou um restaurante que ostentava na fachada um estranho nome, Allo Sbarco di Enea-Sítio Onde Eneias Desembarcou, como lhe traduzira Lupo. Sob a fresca sombra de uma latada, podia ver algumas mesas onde várias pessoas almoçavam em mangas de camisa. Mais adiante lá estava a entrada principal para as ruínas, que o mapa crismava como Cancello A, Porta Romana.
Mais uns passos e avistou o amplo portão de ferro, aberto de par em par, com um poste onde se via a seguinte indicação: SCAVI DI OSTIA ANTICA.
Mal passara o portão e eis que tudo de novo se transformava à sua vista como que por obra de magia. 0 terreno subia ligeiramente, em suave declive. A sua frente ficava um parque, ou aquilo que lhe parecia um parque, cheio da fresca sombra de verdes pinheiros, de que uma brisa imperceptível lhe trazia às narinas o cheiro resinoso tão agradável, Dali avistavase o magnífico mar batido pelo sol que misturava ao cheiro da resina um odor a sal e a iodo.
À esquerda avistou um pavilhão miniatural e, num pequeno balcão, uma mulher gorda que o observava atentamente. A mulher tinha na mão um maço de bilhetes.
-Bisogno comprare un biglieto per entrare, signore! Para entrar tem que comprar um bilhete, senhor!
Randall aproximou-se e comprou um bilhete para ter o direito de ver as ruínas. Procurando o dinheiro certo no bolso, Randall avistou uma outra placa com alguns dizeres e olhou interrogativamente para a vendedora de bilhetes.
Ela correspondeu à solicitaçao e explicou:
-É um aviso da directoria para os visitantes não se aproximarem das escavações. É proibido, Só as ruínas é que são para ver, não as escavações. Diz também para os visitantes terem cuidado com os desníveis de terreno ao caminharem, de modo a não caírem em nenhuma cova,
-Terei o máximo cuidado - garantiu Randall.
Voltando de novo ao mapa, Randall procurou a Decumanus Maximus, a antiga via que levava a tudo aquilo que fora descoberto nas ruínas de Ostia Antica. Não teve dificuldade em encontrar a estrada, mas, logo ao dar os primeiros passos, reconheceu que não era nada fácil caminhar por ali.
A via, tal como na altura do século II em que fora construída, estava pavimentada com seixos redondos e escorregadios, separados por intervalos. Caminhar por aqueles lajedos demandava um autêntico prodígio. de equilíbrio que levou Randall a desistir e a preferir a berma da estrada invadida pela erva. Seguiu por entre as altas ervas, onde por vezes se viam clareiras pejadas de destroços, mármores e materiais de construção, locais que outrora haviam formado a cidade de Ostía, estância marítima que fora a abastecedora de trigo a Roma e lugar de veraneio dos orgulhosos patrícios.
Consultando o mapa, inteirou-se que naquele sítio estavam as paredes derrocadas de um silo do século II, mais adiante, colunas quebradas e umas lajes em socalcos, tudo o que restava de um anfiteatro do ano 30 antes de Cristo, onde os romanos e ostienses tinham asistido a grandes representações das tragédias e comédias da época. Além o Templo da Fortuna e mais adiante os Banhos do Forum. Impaciente com os detalhes do mapa, que lhe roubavam urna vista do conjunto das ruínas, RandalI, a breve trecho, desistiu de o consultar para deliciar a vista por aquelas soberbas ruínas de uma civilização morta. As camadas expostas revelavam urnas de mármore com as suas elaboradas gravações, todo um sector de uma casa, com as paredes, interiores pintadas, fontes quebradas e piscinas onde outrora a água cantara alegremente enchendo o ambiente de frescura. Imponentes 'restos de arcos, e um comprido socalco onde se lia Decumanus Maximus'.
Percorrera já mais de dois terços das ruínas de Ostia Antica e a área evelava-se cada vez mais um lugar desolado. Nem sombra de outro ser humano à vista e Randall começava a sentir-se perdido naquela imensidão de mármores quebrados.
Caminhou até junto da sombra de um pinheiro, sentou-se na beira de um grande bloco de pedra, resto da parede de uma villa, e tirou do bolso à folha de papel que encontrara na carteira de Lebrun.
Voltou a ler a inscrição criptográfica no canto inferior direito: Cancello C, Decumanus Maximus, Porta Marina. 600 mtrs. Catacomba.
Estudando as palavras pela centésima vez, Randall sentiu-se naquele momento menos certo de que elas quisessem dizer aquilo que no dia anterior pensara. julgara que fosse aquele o destino de Lebrun no domingo em que morrera, que significasse um registo da área onde o velhote escondera a prova da sua falsificaçao. Mas começava a ter dúvidas que esse pensamento prévio estivesse a par da realidade.
Contudo, não havia outra alternativa senão prosseguir. De acordo com o seu mapa, Cancelo C (que segundo o seu dicionário italiano-inglês queria dizer Portão C) ou Porta Marina ficavam adiante, numa curva da estrada, no extremo da Decumanus Maximus e para além dos limites exteriores das ruínas de Ostia Antica.
Meteu no bolso do casaco o papel e o mapa, levantou-se do socalco de pedra, voltou para o sol esmagador para lá da sombra do pinheiro e encaminhou-se para a curva que a via desenhava mais adiante.
Em cinco minutos chegou ao fim da estrada pavimentada pelos seixos escorregadios. Diante dele estavam agora as lájeas das termas ou Banhos da Porta Marina. À sua direita, para além de casas e jardins da era de Adriano, produtos de recentes escavações, estadeava-se um cabeço cultivado, onde a terra acastanhada, com vestígios de feno recentemente ceifado, reverberava aos intensos raios do sol, pesado como chumbo.
Pondo as mãos em pala nos olhos, a perscrutar a zona entre o campo de cultivo e os Banhos da Porta Marina, Randall observou uma pequena cabana, com um balcão rudimentar para venda de fruta e refrescos aos turistas e avistou também urna figura humana que corria para o lugar onde ele estava, acenando com a mão, uma figura que ia crescendo a olhos vistos.
Esperou até ver que a figura que corria ao seu encontro era um rapazito, talvez de treze ou catorze anos, de encaracolado cabelo preto, uns olhos pretos como contas, de tronco nu, onde se podiam contar as costelas urna a uma, envergando apenas uns calções de cáqui e uns sapatos de lona, muito rotos e sujos.
- Eh, signore! - gritou percorrendo os últimos metros que o separavam de Randall e colocando as mãos nas ancas a procurar controlar a respiração. - Lei é inglese, vero? É inglês, não é verdade?
- Americano - respondeu Randall.
- Eu falo inglês - anunciou o rapaz. - Aprendi na escola e com os turistas que aqui vêm. Vou-me apresentar. Chamo-me Sebastiano.
- Pois muito bem, olá, Sebastiano.
-Quer um guia? Sou um bom guia. Tenho ajudado muitos americanos. Mostro-lhe tudo o que há para ver em Ostia Antica durante uma hora por mil liras. Quer que lhe mostre as ruínas principais?
-já vi as ruínas principais. Agora ando à procura de outra coisa. Talvez me possas ajudar, hem?
- Sim, posso ajudá"lo -disse Sebastiano entusiasmado. -Disseram-me que havia uma outra escavação por estes lados, que foi feita há uns seis anos numa propriedade privada que fica perto. Ora se...
-Scavi de Augusto, Monti? -interrompeu o rapaz. Randall manifestou a sua surpresa.
- Sabes onde é? Ouvi dizer que era uma coisa muito secreta.. .
- Sim, muito secreta - corroborou Sebastiano. - Ninguém ouviu falar dela, e nunca veio cá ninguém para ver. A tabuleta diz que a área é reservada porque ainda existem buracos e trincheiras e as autoridades não dão licença aos turistas para visitarem as escavações. 0 governo proclamou o terreno de interesse histórico e fiscaliza tudo. Mas eu c os meus amigos vivemos aqui perto, brincamos pelos campos e conhecemos tudo o que existe em redor. Quer visitar a scaz de Augusto Monti?
-Mas então não é uma zona proibida? Sebastiano encolheu os ombros.
-Não há ninguém de vigia. Ninguém está lá para ver. Quer ir lá por mil liras?
- Quero. - Lembrou-se do criptograma de Lebrun que tinha no bolso. - 0 sítio que eu quero visitar fica a seiscentos metros da Porta Marina.
- É fácil - disse o rapaz. - Venha comigo. Contarei os seis" centos metros quando chegarmos. 0 signore é arqueólogo?
- Sou geólogo. Quero examinar o... terreno.
- Não há problemas. Podemos começar. Contarei os seiscentos metros de cabeça. 0 sítio fica antes dos pântanos e das dunas. Sei muito bem onde irernos ter.
Dez minutos depois, foram ter à entrada de uma profunda trincheira, uma escavação central de onde partiam muitas ramificações de trincheiras e onde se viam, de quando em vez buracos em parte tapados com grandes pranchas de madeira que em regra estavam apoiadas sobre as grossas traves que serviam de escoras transversais.
Ao lado da trincheira central, descoberta, via-se um poste de madeira com uma tabuleta já bastante deteriorada pelo tempo, mas que ostentava uma mão fechada com o indicador espetado e umas palavras em italiano.
-Que quer dizer? -perguntou Randali?
- Diz ... é difícil para mim traduzir... Scavi... bom, agora me lembro ... diz: «Escavações de Augusto Monti. Perigo. Área proibida. Não entrar.» Cá está o que lhe tinha dito.
- Muito bem. - Randall debruçou-se para a trincheira, olhando lá para dentro. - Para descer viam-se quatro ou cinco degraus de madeira que levavam ao túnel debaixo do chão. - Lá em baixo existe alguma luz?
-Só a do sol. Mas é suficiente. As traves das zonas tapadas deixam entrar a luz. Esta trincheira leva a urna grande escavação de uma antiga zona, apenas meio desenterrada. Quer que lhe mostre?
-Não-disse Randall rapidamente-, não, parece-me que não será necessário. Só estarei lá em baixo alguns minutos. -Tirou do bolso uma nota de 1000 liras e colocou-a na palma da mão do rapaz. - Aprecio imenso a tua boa-vontade em me ajudares, mas prefiro não ter ninguém a meu lado enquanto procedo ao exame do solo. Compreendes.
Imponente de solenidade, o rapaz levantou a mão. -Juro que não contarei a ninguém. 0 signore é meu cliente. Se voltar a precisar de mim para ver mais alguma coisa, estou lá em baixo na barraca da fruta e dos refrescos.
E Sebastiano voltou-se, lançou-se em corrido e aos saltos através de campo, voltou-se para trás acenando com a mão, e perdeu-se de vista por trás de uma elevação cheia de mato. Randall esperou até que ele desapareceu e encaminhou-se depois para a boca da trincheira, onde se viam os degraus de madeira.
Hesitou. Repentinamente, aquilo parecia"lhe uma aventura quixotesca, louca, ridícula. Que diabo fazia ele, um dos mais destacados homens de relações públicas americanas, director de publicidade da Ressurreição Dois, naquele lugar, algures em Itália, junto daquela escavação isolada e abandonada?
Mas era como se uma mão invisível o estivesse a empurrar... a mão de Robert Lebrun. Dois dias antes Lebrun. não estava disposto a dirigir-se para aquele local?
Imediatamente colocou o pé dirieto no primeiro degrau e começou a descer com cuidado até colocar os pés no chão de terra batida do fundo da trincheira. Deu alguns passos e avistou a boca da estreita escavação a uns vinte passos, a escuridão subterrânea, cortada aqui e ali pelos raios de luz do sol filtrados pelas pranchas mal ajustadas que formavam uma espécie de tecto.
Começou a avançar cautelosamente. A intervalos regulares as altas paredes de terra estavam escoradas, para evitar aluimentos, e viam-se toros de madeira, como colunas, a apoiarem as vigas e pranchas que formavam o tecto parcial. Em certo local, a terra abaulava-se revelando um chão formado de mosaicos, num corredor lateral. Logo a seguir viam-se vários caixotes cheios de pedras encarnadas, bocados de mármore e tijolos de cor amarelada.
Aproximando-se do extremo da trincheira, antes desta se ramificar para outras escavações, Randall observou que as traves por cima estavam ligeiramente deslocadas até com certas pranchas parcialmente chegadas para o lado, de modo que aquele lugar recebia sensivelmente mais luz.
Inspeccionando atentamente as redondezas, encontrou-se repentinamente frente a um sector da parede da escavação que parecia curiosamente diferente - formava uma espécie de vão, parecia formada de certa espécie de calcário pouco consistente e apresentava a configuração dos restos de uma especie de gruta... e Randall parou, sentindo um baque no coração.
Naquele vão à sua direita, o calcário apresentava sinais de grafite.
Seria aquele estranho lugar a catacomba familiar? 0 antigo subterrâneo que servia de jazigo para a família? Desmaiadamente traçados na rocha porosa, conhecida como tufa granulare, viam"se desenhos primitivos, do século I, os traços feitos pelos primitivos cristãos perseguidos dos tempos apostólicos.
Não eram muitos e também não eram muito distintos, mas podiam divisar-se perfeitamente as suas formas,
Randall deslocou-se para junto da parede de tufa. Observou um desenho em forma de âncora. A secreta e primitiva âncora cristã que servia para disfarçar o sinal da Cruz de Cristo. Viu as letras gregas X e p, as primeiras duas letras da palavra grega Cristo. Logo a seguir via-se o desenho rudimentar de uma pomba com um ramo de oliveira no bico, símbolos do primitivo sinal cristão para a paz.
Randall pôs-se de cócoras. Limpou com a mão aquilo que se assemelhava a... sim... a uma baleia, sinal dos pioneiros cristãos para designarem a Ressurreição. E a seguir, na rocha vermelha e porosa como ardósia o vago delinear de um peixe, mais outro peixe e ainda um terceiro peixe primitivíssimo,, gravados como pequenos peixes anões, os símbolos da palavra I-CH-TH-U-S, cujas letras eram as iniciais das palavras gregas para Jesus Crisfo, Filho de Deus e Salvador.
Sem dúvida que a parede de tufa escondia uma subcâmara, ocultava uma espécie de subterraneo, uma catacumba onde uma família romana convertida ao cristianismo enterrara os seus mortos e deixara pela parede sinais da sua crença e da sua fé.
Randall pôs-se em pé, esquadrinhando cuidadosamente a superfície para ver se descobria mais grafitos. Os seus olhos desceram ao longo da parede, tomaram a subir e depois, quando seguiam pela terceira vez o sentido descendente, talvez a uns cinquenta centímetros do solo da trincheira, viu aquilo que procurava.
Deixou-se cair positivamente de joelhos para observar melhor o desenho, para ter a certeza de que era o que procurava com tanto afã. Entre os vários sinais desenhados, um deles apresentava um traço de longe mais recente.
Na parede de tufa tinha sido gravado o desenho de um peixe redondo atravessado por uma seta.
Randall levou a mão ao bolso e tirou o papel de Lebrun, desdobrando-o e com ambas as mãos ajustou-o contra a parede.
0 peixe atravessado pelo dardo que Robert Lebrun desenhara no papel era a cópia exacta daquele que se via na parede da escavação realizada pelo Professor Augusto Monti.
Randall ficou com a respiração suspensa. Levantou"se a custo e murmurou:
-Deus do Céu, encontrei... Santo Deus, posso estar em cima do túmulo da Ressurreição Dois...
Que deveria fazer a seguir?
Encostou-se à parede e reflectiu cuidadosamente. Logo que a sua elaboração mental lhe pareceu satisfatória, começou apressadamente a seguir o caminho inverso para o boca da trincheira.
Saindo do fresco túnel para o braseiro da tarde, percorreu com rapidez o campo em frente, trepou o montículo até a barraca dos refrescos estar ao alcance da sua voz. Viu o rapazito que há pouco lhe servira de guia, Sebastiano, a brincar com uma bola, perto de uma outra pessoa que bebia qualquer coisa encostada ao balcão - era o motorista do sorriso perpétuo, do chapeu à gondoleiro e do Fiat antediluviano.
Randall chamou o rapaz, tentou chamar-lhe a atenção agitando os braços, e finalmente Sebastiano viu-o, deixou a bola e correu para ele. Randall pretendeu pedir a Sebastiano que lhe arranjasse tantas ferramentas quantas possível-uma picareta, uma pá e um carrinho de rodas-mas decidiu que tais coisas deviam estar muito além dos recursos imediatos do moço e que forçá-lo a arranjar-lhe todo esse equipamento poderia ser perigoso e levantar suspeitas.
Randali esperava-o com três notas de 1000 liras fechadas na mão. Quando se aproximou mostrou-lhe duas notas.
- Sebastiano, gostavas de ganhar duas mil liras? Os olhos do rapaz arregalaram-se.
- Tenho necessidade de examinar melhor certa porção de terra da trincheira e levar comigo algumas amostras. Preciso de uma pá bem afiada. Uma pá que seja forte. Preciso dela talvez por uma hora. Sabes onde posso arranjar uma emprestada?
-Eu posso arranjar-lhe uma boa pá-prometeu Sebastiano rapidamente. -Temos uma no quintal da nossa casa que serve para a horta.
- Só a quero emprestada - repetiu Randall. - Volto a entregar-ta quando partir. Demoras muito a ir buscá-la?
- Quinze minutos, nem tanto.
Randall entregou ao rapaz as duas mil liras e depois exibiu a terceira nota.
- Aqui tens mais mil liras se mantiveres tudo isto em segredo, só entre nós.
Sebastiano agarrou na terceira nota. Jurando, como se fosse um conspirador:
-É il iostro segreto, lo prometo, lo giuro. Fica tudo entre nós, é o nosso segredo. Prometo-lhe, juro.
-Então vai num pé e vem no outro.
Sebastiano, como um cavalicoque veloz, começou a trotar pelo campo, não em direcção à barraca de fruta mas na direcção ao lado direito da estrada.
Randall ficou impacientemente à espera, chupando o seu cachimbo e a olhar para as ruínas de Ostia Antica, esforçando-se por não pensar nas escavações de Augusto Monti que ficavam nas suas costas.
Em menos de um quarto de hora Sebastiano reapareceu com uma pá ponteaguda, não muito grande, parecida com as pás picaretas que os soldados costumam usar para abrir trincheiras. Randall agradeceu ao moço, murmurou-lhe algo de novo sobre o manter segredo e prometeu-lhe voltar a entregar a pá, na barraca dos refrescos dentro de uma hora.
Depois do moço se ter ido embora, Randall encaminhou-se apressadamente para as escavações Monti, desceu os degraus da trincheira principal e, seguiu com cuidado até ao extremo do túnel, onde os raios do sol, passando por entre as pranchas desviadas, continuavam a iluminar a parede de tufa, revelando os antigos desenhos e aquele mais recente, do peixe arpoado, que fora com certeza traçado pela mão de Lebrun. Tirou o casaco, colocou-o no chão juntamente com a pá e foi até ao lugar onde tinha visto os caixotes de madeira, uns cheios e outros vazios. Escolheu três dos vazios e levou-os, um a um, até ao local onde se encontrava o desenho do peixe atravessado pela seta.
Traçando um amplo círculo em volta do peixe de Lebrun, principiou a atacar a tufa, abrindo um caminho com a acerada ponta da pá, a demolir o peixe arpoado (o que afinal não representava a destruição de nenhuma antiguidade), definindo e aprofundando o círculo. A superfície era mais rija e menos penetrável do que imaginara, e foi preciso empregar toda a solidez dos seus músculos para abrir caminho. No entanto, mal aquela superfície mais sólida cedeu, desintegrando-se positivamente, a tufa foi-se tomando cada vez menos resistente, esboroando-se mais facilmente, e tornando mais encorajadora a sua tarefa. Cavando com firmeza e retirando as pasadas de pedra calcária para dentro dos três enormes caixotes, sentiu que estava a fazer verdadeiros progressos.
Prevendo o que iria encontrar no interior, foi enterrando a pá cada vez mais fundo na pedra porosa.
Decorrera uma hora, durante a qual Randall não cessara de cavar com a pá e de retirar terra do buraco.
Sentia correrem rios de suor que lhe inundavam o rosto, o peito e as costas e doiam-lhe os bíceps e a coluna vertebral devido à posição. Voltou mais uma vez a enterrar a ponta da pá na parede da catacumba e depois colocou a terra e os bocados de calcário dentro do caixote a seus pés.
Sem fôlego, parou para descansar, encostando-se ao cabo da pá e tirando o lenço do bolso para limpar o suor que lhe inundava a testa e lhe corria para os olhos.
Por toda a parte existiam pessoas malucas - reflectiu Randall encostado ao cabo da pá - malucos fanáticos como os que geriam o projecto em Amesterdão, sem dúvida o Professor Monti, encerrado numa clínica romana para dementes, malucos como Lebrun, quer estivesse no céu ou no inferno, mas parecia"ihe que o mais tolo de todos era ele próprio, metido ali naqueles trabalhos.
Que. pensaria seu pai, doente em Oak City, se o pudesse ver naquele momento? Que diriam George L, Wheeler e Naomi? Pior ainda, o que diria Angela Monti?
0 veredicto deles seria unânime: ou na verdade estaria louco ou tinha o diabo metido no corpo.
Não obstante, não pudera ignorar a pista fantástica que lhe fora oferecida pela sombra de Robert Lebrun-o peixe arpoado no pedaço de papel e o peixe gêmeo da parede da escavação.
Após semelhante descoberta, um dos seus primeiros pensamentos tinha sido entrar em contacto com o Alto Conselho para as Antiguidades e Belas-Artes, em Roma, explicando tudo o que sucedera e pedindo-lhes auxílio. Acabara por pôr de parte tal ideia. Com toda a lógica, temera que os altos poderes italianos estivessem em concluio com os altos poderes dimanados da Ressurreição Dois. Sim, o mais provável era que as autoridades romanas, tal como o trust de Amesterdão, quisessem lucros e êxito fácil. Randall experimentou pela primeira vez uma pontinha da paranóia que perseguira Lebrun a respeito dos seus inimigos-os homens da Igreja e as autoridades governamentais, formando uma frente unida para defenderem a hipocrisia.
E por isso, mesmo fora de tal sentido de mania da perseguição-embora a sua decisão pudesse ter algo de criancice, de imaturidade e até de romantismo impratícável-Randall decidira-se a fazer o que podia e devia ser feito para chegar à verdade.
0 peixe arpoado desenhado na parede da catacumba fora um convite para escavar e Randall não hesitara.
Aprendera que aquela parede granítica, a tufa, tinha a excelente qualidade, principalmente quando oculta da luz do sol e exposta à humidade, de ser facilmente escavável. Por essa mesma razão, os crístãos primitivos haviam escolhido tais formações rochosas para nelas construírem as suas catacumbas. Por outro lado, a tufa quando exposta aos raios do sol e ao ar endurecia autornaticamente e tornava-se impraticável de demolir, tão resistente como o mármore. Eram factos que haviam chegado ao conhecimento de Randall e que haviam tornado possível a sua empresa de amadorismo arqueológico.
Uma hora depois de ter começado o trabalho, podia já observar um buraco formidável na parte inferior da parede mas um buraco onde não descobria outra coisa além de barro e partículas de rocha,
Ora a parte mais desanimadora do seu aturado trabalho residia no facto de não saber com exactidão, aquilo que esperava encontrar.
Coberto de suor e dorido, descansando encostado ao cabo da pá, Randall tentou lembrar-se do que Robert Lebrun tinha prometido, como prova insofísmável da sua mistificação, no quarto do Hotel ExceIsíor:
Primeiramente um fragmento de papiro que se ajusta perfeitamente à parte que falta no Papiro Número 3... a parte desaparecida que Monti lhe recitou, aquela onde 7acob revela os irmãos de 7esus e também seus. Tem uma forma irregular e mede pouco mais ou menos 6,5 por 9,2 centímetros e ajusta-se perfeita~ mente ao buraco do chamado original... Esse fragmento porta o desenho de um peixe atravessado por uma seta traçado com tinta invisível... metade de um peixe. A outra metade encontra-se no próprio Papiro Número 3. 0 fragmento que guardei tem também a minha assinatura e umas palavras escritas pelo meu punho a dizer que se trata de uma falsificação...
Depois entregar-lhe-ei a prova restante e mais concludente da minha falsificação... os editores possuem vinte e quatro bocados de -papiros, alguns com uma ou duas partes desaparecidas, ao todo nove pequenas partes. Tenho em meu poder essas partes... oito estão protegidas dentro de um pequeno cofre de ferro bem escondido.
Arranjar,lhe as provas leva um bocado de tempo. Estão escondidas fora de Roma -não muito longe...
Com mais vírgula menos ponto tinha sido a revelação feita por Robert Lebrun.
Fora de Roma, não muito longe... A mensagem parecia suficientemente clara. Arranjar provas leva um bocado de tempo... Sim, inferno.--- um bocado de tempo bem bom.
A segunda parte das provas, ocultas num pequeno cofre de ferro... exa sem dúvida uma mensagem clara,
Mas a primeira parte, aquela que Lebrun prometera entregar a troco da primeira prestação do pagamento, o fragmento de papiro de forma irregular e com cerca de 6,5 por 9,2 centímetros... em parte é que não se mostrava clara, Lebrun esquecera-se de descrever a espécie de receptáculo em que se encontrava escondida e Randall esquecera-se também de lhe perguntar, a nequele momento era tarde para rectificar as coisas.
No entanto, essa parte da prova devia estar dentro de algo que lhe oferecesse a maior protecção e por certo seria um receptáculo facilmente identificável no caso de ser encontrado. Randall contemplou os bocados de tufa e greda dentro dos caixotes. Não havia deixado passar nenhum objecto estranho. Desfizera cada bocado daquela espécie de argila a fim de certificar de que não havia nenhum objecto estranho. Começava a pensar se na verdade tal prova existia fora da delirante imaginação do ex-condenado da Ilha do Diabo.
Endireitou-se agarrou com firmeza o cabo da pá e recomeçou a escavar.
Mais tufa, greda, mais detritos, mais... nada.
À medida em que prosseguia, enquanto os minutos se iam escoando, começou a ver que o seu obstáculo principal não era o passar do tempo mas o esgotar das suas forças.
Mais uma pásada... greda fora.
De novo, pá dentro do buraco e... um som oco, o bater da pá contra um objecto mais duro... um pedregulho? Maldição, se tivesse encontrado um veio granitico, então a escavação tinha terminado. Ajoelhou,se com um gemido e olhou para dentro do buraco, por entre as bagas de suor que lhe obscureciam a visão. Lá no fundo tinha a aparência de mais uma camada de tufa... mas vendo bem não era tufa nem greda, era diferente. Pôs a pá de lado e meteu as mãos no buraco, apalpando o obstáculo, percorrendo-o com os dedos para lhe avaliar a forma e o tamanho. Teve a imediata percepção, através a sensação táctil, que era um objecto feito pela mão do homem. Talvez uni antigo artefacto. Mas...
Talvez não fosse.
Os seus dedos enclavinharam-se no objecto tentando desalojá-lo da sua posição entre as camadas de tufa amolecida. Mas os movimentos tornavam-se difíceis. Agarrou de novo na pá, com cuidado, manipulando-a em volta do súbito obstáculo, utilizando-a como uma alavanca.
Novamente com as mãos. Aquilo estava a soltar-se... e finalmente encontrava-se nas suas mãos.
Era unia espécie de cerâmica, um jarro ou vaso de barro, atarracado, com cerca de 24 centímetros de altura e uma circunferêncía de 36 centimetros. A boca estava selada por uma substância preta, espessa e sólida, provavelmente pez. Randall tentou quebrar aquele selo, mas sem resultados práticos. Apressadamente, limpou o vaso da sujidade e descobriu que a meia altura, na sua parte mais bojuda, via~se um veio do mesmo material que tapava a boca. Aparentemente o vaso fora separado em duas partes e consertado depois com pez.
Randall pousou o objecto de cerâmica no chão da trincheira, agarrou no cabo da pá e atirou uma pancada seca a meio do vaso, que se separou em duas partes, com a parte superior praticamente em cacos.
Randall debruçou"se para os fragmentos de barro e viu imediatamente entre a parte inferior do vaso aquilo que procurara com tanto afã: uma bolsa feita numa pele acinzentada.
Deteve-se com aquilo não, quase incapaz de se atrever a abrir. Com movimentos lentos, desatou a boca da bolsa e os seus dedos procuraram com cuidado o que haveria no interior. A sensação táctil provou-lhe que se tratava de um objecto aveludado, que começou a puxar para cima. Tratava-se de uma espécie de papel amarelecido protegido por uma camada de azeite vegetal, um papel que estava cuidadosamente dobrado em várias partes.
Era um fragmento de papiro - o precioso papiro de Lebrun. Estava cobcrto com caracteres aramaicos, várias linhas de um aramaico esmaccido escrito com tinta antiga. A parte desaparecida do Papiro Número 3, tal como Lebrun descrevera, a primeira parte das provas que prometera entregar em troca da primeira prestação do pagamento.
Pronto, ali estava aquilo, o bocado quer da prova de uma falsificação moderna que faria estoirar a validade do Novo Testamento Internacional e impediria o resurgir da fé em todo o mundo, quer de um antigo e autêntico papiro que Monti não conseguira descobrir ou que fora parar às mãos de Lebrun e com o qual ele ficara; um bocado que poderia também ser um ponto de apoio para a Ressurreição Dois e que revelaria Lebrun como um mero fanfarrão, um mentiroso psicopático.
Todavia, fosse como fosse, orientara-o até aquela descoberta e lembrara-lhe que aquele papiro inseria uma prova invisível a provar que o Evangelho Segundo Jacob não passava de uma intrujice bem consumada.
Randall estava demasiado esgotado para experimentar qualquer emoção forte.
Sim, ali estava aquele objecto, capaz de revelar a verdade. Com cuidado, Randall voltou a dobrar o fragmento e entalá-lo entre a camada protectora de azeite vegetal, metendo tudo direito na bolsa de pele.
0 seu primeiro ímpeto foi de fugir dali com aquele pequeno tesouro, mas a lembrança da segunda parte das provas, o pequeno cofre de ferro contendo os fragmentos adicionais, constituía um desafio a que não era fácil renunciar. Uma vez aquela primeira parte descoberta, talvez a segunda não estivesse muito longe. Se o cofrezinho existia de facto devia estar oculto nas redondezas, talvez nas profundidades daquele mesmo buraco.
Vacilando, Randall pôs-se de pé, servindo-se da pá como arrimo, e olhou para dentro do buraco. Pensou como é que um homem idoso como Lebrun poderia ter encontrado forças para operar semelhante tarefa... a não ser que fosse mais vigoroso do que Randall imaginava ou que se tivesse servido de algum cúmplice mais jovem. Bom, naquela altura as especulações de nada adiantavam. Fosse como fosse, Lebrun conseguira realizar a proeza. Randall pesou as probabilidades de ser capaz de repetir o feito, presumindo que muito mais haveria a escavar.
Apelando para as últimas reservas de energia, Randall decidiu-se a continuar com o trabalho. Mais uma vez cravou a pá no interior do buraco, procurando aprofundá-lo e alargá-lo, ao mesmo tempo que pensava se Lebrun ocultara todas as provas no mesmo local ou se resolvera enterrar o cofrezinho de ferro noutro sítio.
0 facto é que naquele momento de nada valiam as especulações e o melhor era prosseguir na tarefa.
Acabava de retirar mais uma pásada de tufa, quando aos seus ouvidos chegou o som de vozes. Poisou a ferramenta e escutou atentamente.
Sim, tratava-se de vozes humanas, com predominância de uma voz feminina, voz que flutuava à distância, presumivelmente para além do terreno fronteiro à escavação Monti.
0 seu primeiro movimento foi dirigir-se para a boca do túnel e chegar depressa aos degraus existentes na trincheira aberta, mas um forte instinto de conservação impediu"o desse gesto de pânico, lembrando-se que ficaria completamente exposto junto da única entrada.
Todavia tinha que saber o que se estava a passar no exterior. Olhou para cima, para a trincheira com o seu tecto de pranchas, cuja borda ficava bem meio metro acima da sua cabeça. Depois o olhar desceu-lhe para os caixotes cheios daquele calcário poroso. Sim, era a única solução. Com esforço, colocou-os uns em cima dos outros de forma a formarem uma espécie de degraus, depois, cautelosamente, alcandorou-se até ficar com os olhos ao nível do rebordo, após ter afastado duas pranchas para arranjar um buraco suficiente.
Naquela posição gozava de uma ampla perspectiva do campo fronteiro, do pequeno montículo, que descia em suave declive para o lado de Ostia Antica, da estrada e do lugar de fruta e de venda de refrescos.
Ao primeiro olhar localizou logo a origem das vozes: três pessoas, esbracejando, desciam o declive da colina e dirigiam-se para a escavação Monti.
Uma delas era uma rnatrona com ar de decidida, que caminhava no meio de um homem e de um rapaz. A mão sapuda da amazona fechava-se como uma tenaz no braço do rapazelho... que era, nem mais nem menos, o solícito Se-bastiano. Com a outra mão a mulher de armas ameaçava desancar o pequeno, verberando-o numa voz aguda, cujos termos não podiam ser ouvidos àquela distância, Sebastiano parecia protestar, mas a mulher, com todo o ar de ser mãe dele, arrastava-o firmemente para as escavações Monti.
A atenção de Randall concentrou-se essencialmente no terceiro comparsa daquela tragicomédia, e o que observou alarmou-o. A terceira personagem tinha todo o aspecto de um agente da autoridade. Embora não usasse o chapéu de opereta dos carabinieri, envergava unias calças e uma camisa esverdeadas, uni boné de pala preta e ostentava não só uma braçadeira encarnada, como um coldre branco ameaçador à cintura. Era sem dúvida um agente da polízía, talvez um rural.
0 trio aproxímava-se a olhos vistos.
A mulher devia ser sem dúvida a mae de Sebastiano. Dera com certeza por falta da pá e acabara por extrair a verdade do filho. Depois dirigira-se ao polícia local e denunciara Randall. Claro que o problema transcendia a mera perda de uma pá. Um estranho, um estrangeiro, invadira em segredo propriedade privada e estava a escavar sem licença num local arqueológico controlado pelo governo. Pericolo! Perigo, perigo para o estado! Fermi quell'uomo! Detenham o homem!
Ali vinha aquela gente, possivelmente para o prender. Randall saltou da sua escada improvisada. Se o que pensava era ou não exacto, estava agora fora de toda a especulação. 0 que importava é que aquilo, fosse como fosse, representava um perigo real, uma ratoeira, estava prenhe de complicações. Não podia ser apanhado com a bolsa contendo o fragmento de papiro. A bolsa! Baixou-se e apanhou-a juntamente com o casaco. Para o diabo o resto.
Dominava"o um único pensamento: fugir. Se fosse apanhado ali e com a bolsa nem num milhão de anos conseguiria explicar as coisas cabalmente às autoridades.
Voltou a alcandorar-se para cima dos caixotes, espreitando para fora. 0 trio tinha-se desviado ligeiramente, não se encaminhavam directamente para o local onde se encontrava, mas sim para a boca da trincheira. Para lá chegarem tinham que dar a volta por uma curva do caminho, em desnível com a zona demarcada das escavações. Na altura em que chegassem à entrada, seria o momento propicio para ele se escapar. Ou então ou nunca.
A mãe de Sebastiano dizia, puxando o filho:
-Lei dice che lo straniero, à sceso da solo qui? -E voltando-se para o polícia rural: - Dovete fermarlo! È un ladro! Randali, desesperado, pensou naquilo que ela estaria a dizer.
Com certeza algo a respeito de um estrangeiro estar sozinho nas escavações, utilizando-se de uma pá que lhe pertencia. Devia estar a dizer ao polícia para o prender, para prender o ladrão.
Estavam agora a desaparecer do raio de visão de Randall. Primeiro o polícia, depois Sebastiano e a seguir a irada matrona. Podia ouvir as palavras a ressoarem cavamente pelo túnel. Randall movimentou-se com rapidez. Subiu ao cimo dos caixotes e colocou a bolsa e o casaco na borda da trincheira. Depois, com todo o vigor que lhe restava, apoiando-se com os cotovelos nas traves, içou"se até ao parapeito, deixando-se rolar pelo declive relvado. Agarrou no casaco e na bolsa e desatou a correr com toda a presteza que lhe consentiam as pernas. Subiu a vertente do montículo e parou um segundo para observar a estrada e o lugar de fruta que lhe ficavam na frente, e logo a seguir projectou-se para diante com uma velocidade que só a noção de perigo podia explicar.
À medida que se ia aproximando do casinhoto onde se vendia fruta e refrescos, observou a figura conhecida com o famoso chapéu de gondoleiro, que se despedia do dono do lugar e se dirigia para o seu anacrónico Fiat.
- Lupo! - gritou. - Lupo, espere por mim!
0 motorista do táxi voltou-se, admirado, mas ao ver Randall que se dirigia ao seu encontro a correr como uma lebre, sorriu rasgadamente, levando a mão ao chapéu e olhando esperançosamente para o americano.
- Lupo, preciso de si. Quero alugar o carro.
- Quer ir para a estação? - perguntou Lupo, verificando pela primeira vez com admiração a aparência descomposta do seu potencial cliente.
Randall apresentava o rosto e as mãos sujas de terra e a camisa era uma mancha de suor e de greda.
-Não, para a estação não! -exclamou Randall agarrando com firmeza o braço de Lupo e arrastando-o para o táxi. - Quero que me leve directamente a Roma, o mais depressa possível. Pagar-lhe-ei bem por me levar. Pago-lhe a gasolina e também a corrida de regresso a Ostia. Pode dar toda a velocidade?
- Signore, estamos praticamente em Roma! - garantiu o motorista.
Enquanto abria a porta traseira do Fiat, Lupo perguntou:
- Então, signore, gostou das ruínas de Ostia Antica? Foi um dia de repouso e boa disposição, hem?
Estava finalmente a salvo no seu quarto do Hotel Excelsior. No átrio, onde fora alvo de olhares de surpresa, dirigira-se à recepção e pedira para lhe marcarem um lugar no primeiro avião que partisse para Paris. Completamente alheio às atençoes que tinha despertado pela sua extravagante aparência, fizera, do balcão da recepção, uma chamada para o Professor Henri Aubert, para a capital francesa. Aubert não se encontrava no seu gabinete, tinha saído, mas a secretária dele tomou cuidadosamente conta do recado. Monúeur Randall estaria em Paris antes da hora do jantar. Ouí. Monsieur Randall tinha toda a urgência em se encontrar com o Professor Aubert no laboratório a essa hora. Oui. Monsieur Randall telefonaria para confirmar o encontro quando da sua chegada ao aeroporto de Orly. Oui.
Naquele momento, já no seu quarto, Randall verificou que mal tinha tempo para fazer mais uma chamada telefónica, tomar um banho, pagar a conta do hotel e ir-se embora.
Mais uma chamada telefónica.
Presumindo que Aubert viesse a provar que o fragmento de papiro na bolsa era genuíno, um produto do século I, necessário se tornaria dar um último passo, procurar um derradeiro teste. Como o próprio Professor Aubert lhe dissera, a autenticidade do papiro não garantia a autenticidade do documento de por si. Ao fim e ao cabo, o que importava era o texto em aramaico. E em tal foro, como Randall sabia, havia ainda um outro pormenor a esclarecer: a tinta invisível que Lebrun tinha mencionado,
Para quem falar pois?
Teve uma tentação, quase uma devoção filial, em contactar George L. Wheeler ou o Dr. Emil Deichhardt e revelar,lhes o que tinha em seu poder, pedindo-lhes para convocarem o Dr. Jeffries e o Dr. Knight, os peritos em aramaico da Ressurreição Dois, bem como alguns entendidos em história romana. Mas não obstante, por mais tentador que o caso lhe parecesse, não obstante toda a aparente facilidade, Randall resistiu a tal ideia.
A menos que Wheeler e Deichhardt tivessem estímulos suicidas ou fossem masoquistas jamais colaborariam num assunto que poderia provar a falsificação de Lebrun. Eram pessoas que não mereciam confiança. Do mesmo modo era impossível confiar no Dr. Jeffries, que tinha os olhos postos na chefia do Conselho Mundial das Igrejas, um lugar a que ia ascender por obra e graça da sua colaboração fiel com o Novo Testamento Internacional. Quanto ao Dr. Knight, havia o milagre de ter passado a ouvir. Como seria possível convencer alguém a agir contra aquilo que lhe havia dado um legítimo ímpeto de renovada fé? Não, não existia ninguém na Ressurreição Dois passível de ser convencido a auxiliá-lo, para todos havia demasiado em causa ligado ao êxito do projecto.
Chegou à conclusão de que precisava de alguém de características cépticas, alguém de natureza objectiva que procurasse a verdade com tanto afã como ele a buscara por todos os meios ao seu alcance.
Só conhecia uma pessoa que preenchia tais requisitos. Randall agarrou no telefone e disse à operadora:
- Pretendo fazer uma chamada de longa distância para Amesterdão. Desconheço o número, mas sei que o local se chama Westerkerk, na capital holandesa. Tratase de uma Igreja e a ligação é para o Reverendo de Vroome, tendo grande urgência. A operadora respondeu:
-Pode fazer o favor de desligar, vamos providenciar para descobrir o número que deseja. Daqui a pouco ligaremos para o seu quarto.
Apressadamente, Randall esvaziou as gavetas e meteu todos os pertences, que tinha espalhados por cima da escrivaninha de vidro, dentro da pasta. Em cima da cama deixou apenas uma camisa e urna muda de roupa interior. Depois de ter enrolado a camisa e o resto da roupa suja e colocado tudo dentro do saco de viagem, pôs o maior cuidado em esconder a bolsa com o precioso papiro no fundo da pasta, que fechou à chave.
Soou a campainha do telefone. Era a operadora do hotel. -Localizámos a pessoa com quem desejava falar em Amesterdão. Pode começar.
A linha estava desimpedida. Instintivamente, Randall baixou a voz.
-Dominee de Vroorne? Daqui fala Steve Randall. Estou a falar-lhe de Roma...
- Sim... de certa maneira, entregou. Contar-lhe-ei tudo Roma. - A voz do clérigo era suave e atenciosa como sempre.
- É muita bondade da sua parte lembrar-se de mim. Pensei que me tivesse voltado as costas definitivamente.
- Não. Embora tivesse acreditado em tudo aquilo que me contou, o facto é que tinha que descobrir as coisas por mim próprio. Procurei descobrir Robert Lebrun e encontrei-o.
-Encontrou-o? Falou com ele?
-Sim, falei com ele frente a frente. Ouvi a história da própria boca dele, que, em essência foi pouco mais ou menos a que Plummer lhe transmitiu ao senhor. Claro está que o relato que obtive é de, longe muito mais completo. De momento não posso demorar-me em pormenores. Estou prestes a apanhar um avião, mas cheguei a acordo com Lebrun.
-Ele entregou-lhe as provas?
- Sim, sou eu, a operadora disse-me que a chamada era de quando nos virmos. Mas o que interessa... é que tenho comigo, aqui no meu quarto, a prova da falsificação.
Do outro lado da linha ouviu-se um prolongado assobio de admiração.
-Excelente, excelente. É a parte desaparecida de um dos papiros?
-Exactamente. Um fragmente com palavras em aramaico. Vou levar o fragmento comigo para Paris. Chegarei ao aeroporto de Orly às cinco horas, a bordo de um aparelho da Air France. Vou direitinho ao laboratório do Professor Aubert. Quero que ele verifique o papiro.
-Para mim Aubert não se reveste de nenhuma importância -disse o Dominee de Vroome.-Mas compreendo que seja importante para si e para os seus «patrões». Evidentemente que ele declarará o papiro genuíno. Parece-me que essa foi a parte mais fácil para Lebrun. 0 que está escrito no fragmento é que poderá ou não oferecer a prova da falsificação.
-É por isso mesmo que lhe telefono. Conhece alguém em quem possamos confiar-deu-se rapidamente conta de ter usado a palavra nós-, alguém que tenha a perícia suficiente para examinar o aramaico e dizer-nos...
-Mas eu já lhe disse anteriormente, Mr. RandalI, que devem haver poucas pessoas tão familiares com o aramaico como eu sou-interrompeu o clérigo.-Num assunto tão delicado, julgo que o melhor será confiar inteiramente em mim.
-Com todo o prazer-disse Randall, aliviado. -Estava esperançado no seu auxílio. Só mais uma coisa, ja ouviu falar sobre uma mulher chamada Locusta?
-A envenenadora oficial do Imperador Nero? Claro que sim. -Domince, o senhor está tão relacionado com a história da antiga Roma como com o aramaico?
-Talvez mais, até.
-Bem, para ter a certeza de não poderem haver dúvidas a respeito da sua intrujice, o nosso comum amigo Lebrun conseguiu aprender uma antiga fórmula grega usada por Locusta para fabricar tinta invisível e aplicou essa fórmula ao fragmento que prova cabalmente a sua mistificação e que eu tenho em meu poder.
0 Dominee de Vroorne emitiu uma risadinha.
- Positivamente um gênio do mal. Ele forneceu-lhe a fórTnula?
- Não completamente - respondeu Randall. - Sei que a tinta invisível é composta de bagas de uma planta chamada centáurea. Para fazer aparecer a mistura tem que se utilizar uma mistura de sulfato de cobre e de outro ingrediente... mas não sei qual é o outro ingrediente.
-Não importa. Essa coisa não constituirá um problema. De modo que, Mr. MandalI, devo dar-lhc os meus parabéns. Temos finalmente nas mãos aquilo que sempre suspeitámos que existisse. Muito bem, excelente. Os meus mais profundos agradecimentos. Agora podemos pôr termo ao logro. Partirei imediatamente de Amesterdão e estarei em Paris quando lá chegar. Disse cinco horas, não foi? Lá estarei pronto levar a efeito o exame. Sabe bem que temos que trabalhar com a máxima velocidade, não temos tempo a perder. Sabe que os seus editores estão preparados para anunciar ao mundo a nova Bíblia na sexta-feira de manhã? A decla" ração será feito do salão principal do Palácio Real de Amesterdão.
- Sim, sei isso perfeitamente - respondeu Randall. - Penso no entanto que o programa não se realizará, nem no Palácio Real nem em qualquer outro sítio, pelo menos se o barril de pólvora que tenho na minha pasta explodir na quinta-feira. Até logo às cinco horas.
Randall não se sentiu seguro senão quando o avião em que viajava aterrou numa das pistas do aeroporto de Orly.
A experiência em Itália tinha sido perturbante e carregada de ameaças. Mas tudo isso ficava agora para trás. 0 aparelho ia descarregando os passageiros para solo francês, e embora o aeroporto de Orly estive envolvido em neblina e caísse uma chuva miudinha, tratava-se da França e tudo era maravilhoso. França significava liberdade. RandalI, pela primeira vez no período de alguns dias, sentia-se livre, aliviado de um grande peso.
Agarrou na preciosa pasta (não a tinha perdido de vista enquanto entrava a bordo do avião em Roma e tinha-lhe sido concedido quea mantivesse como bagagem de mão) e juntou-se aos outros passageiros que saíam do aparelho.
Dentro de minutos estaria junto do Dominee de Vroome, um aliado, de quem dependia de certa maneira, e iriam os dois ao laboratório do Professor Aubert. Com a bolsa que continha o fragmento, as forças da luz, da claridade, possuíam uma arma contra as recentes e dominantes forças da escuridão e da superstição.
Rápida e eficientemente, Randall foi transportado à sala de desembarque e orientado pela hospedeira francesa para o andar superior. Em bicha com os outros passageiros, colocourse no tapete rolante que transportava toda aquela gente pelo comprido corredor, saindo onde se via um sinal luminoso que dizia: PARIS.
Ali, a actividade era intensa. Viam-se as secretárias e os balcões de fórmica que já tivera oportunidade de examinar antes, cada secção governada por um police de l'air, um polícia do aeroporto com o peculiar bonet de pala, marcado por um emblema que representava um par de asas. Os uniformes eram constituídos por uma camisa e calças azuis-claras. Era aquilo que os franceses chamavam a secção de controle de passaportes ou secção de Filtragem Policial. Logo a seguir, mais balcões compridos, também de fórmica, por cima dos quais se lia: Dowanes. As alfândegas. Os balcões estavam divididos em secções separadas por anteparos, como as caixas dos bancos, e atrás de cada balcão encontrava-se um funcionário envergando um elegante uniforme. Quépi de pala preta e casacos azul-marinho com botões de metal. Para além das alfândegas, viam"se as portas giratórias, onde a multidão de visitantes aguardavam os desembarcados.
Ao aproximar-se da secção de controle de passaportes, Randall estendeu o pescoço para ver se avistava a dominadora figura do Dominee de Vroorne, envolto na sua sotaina negra. Mas a multidão era demasiado compacta. Pelo menos àquela distância não podia avistar nada de parecido com o Reverendo.
Estava agora junto do balcão e um police de l'air, de rosto fechado e aspecto aborrecido, estendia-lhe a mão. Randall, por breves instantes, poisou a pasta e procurou o passaporte no bolso interior do casaco, apresentando"o juntamente com a oarte de débarquement. 0 polícia voltou uma ou duas páginas do passaporte, considerou a fotografia de Randall (quando tirara aquela foto tinha mais seis quilos e tal, por isso não gostava de a exibir), e comparou-a com o exemplar humano que tinha na sua frente. Depois consultou um molho de misteriosos papéis que estavam em cima de uma mezinha. Olhou para Randall uma segunda vez e fez um gesto afirmativo com a cabeça. Ficando com a carte de débarquement, entregou o passaporte a Randall e apontou-lhe para a alfândega. Uma vez realizado tudo aquilo, o polícia saiu da sua secção, perante os protestos de toda a outra gente que estava na bicha.
Com a pasta de novo bem segura na mão, e com a mão livre exibindo as declarações de bagagem, Randall encaminhou-se para a mais próxima secção aduana, ao mesmo tempo que olhava para a porta na esperança de ver a figura tão peculiar do Dominee Maertin de Vroorne.
Sempre mantendo a pasta bem agarrada, entregou ao funcionário os papéis, desejoso de que tivessem acabado todas as formalidades e pudesse finalmente lançar-se ao seu crítico trabalho. Mas o funcionário, ao aceitar os papéis, parecia distraído, falando com um colega que se encontrava atrás dele. Finalmente, concentrou a sua atenção no balcão, pronto para prestar toda a atenção ao serviço que estava a fazer. Olhou para Randall.
-Não tem mais nenhuma bagagem a declarar, Monsieur? É tudo quanto tem?
- Sim, senhor. É tudo. Estive ausente pouco tempo. Odiou-se por estar a dar aquelas nervosas explicações, mas os funcionários das alfândegas, em todas as partes do mundo, possuíam a ingrata particularidade de fazerem sentir uma pessoa nervosa e culpada, mesmo sem haver culpas nenhumas. - Trata-se apenas da minha bagagem de mão-acrescentou mostrando a pasta.
- Não excedeu o limite de importação de 125 francos? Não comprou quaisquer artigos, recebeu quaisquer presentes ou outros objectos de valor adquiridos em Itália durante a sua estadia?
- Tudo exactamente como declarei nos papéis que preenchi
- disse Randali, num ligeiro tom de aborrecimento. - Só tenho isto comigo, onde estão coisas de natureza pessoal.
- Então não tem nada a declarar? - insistiu o funcionário.
- Nada. - A irritação de Randall começava a aumentar.
- já apresentei a declaração. Está tudo explícito. Responsabilizo-me pelo que escrevi.
- Muito bem - disse o funcionário levantando-se e cha" mando: - Maurice 1 - Esperou que um colega o fosse render dentro da sua repartição, saiu e voltando-se para Randall disse: - Monsieur, queira fazer o favor de vir comigo.
Surpreendido, Randall seguiu o funcionário da alfândega. Passaram a porta giratória, abrindo caminho por entre a mole de gente que aguardava. Randall tentou de novo localizar o Dominee de Vroome, mas não viu nem vestígios de uma sotaina.
0 funcionário olhou impaciente para Randali, que principiava a estar seriamente zangado com tudo aquilo. De repente, Randall reparou que era flanqueado por um outro funcionário, reconhecendo o fleumático police de Pair a quem apresentara o passaporte para verificação.
- Eh, que raio se passa agora aqui? - protestou Randall.
- Vamos simplesmente ao andar superior - explicou o funcionário alfandegário sucintamente. - Uma simples formalidade.
- Que formalidade?
-Verificação rotineira da bagagem.
-E porque é que não fazem a verificação aqui?
- Impediríamos todo o tráfego. Possuímos salas especiais perto dos depósitos de bagagens. - Apontou a escada rolante a Randall -por aqui, se faz favor.
Randall hesitou ligeiramente, olhando de soslaio para o adua, neiro e depois para a impressionante massa do polícia, e desistiu de resistir. Sempre agarrado à sua pasta, encaminhou-se para a escada rolante no meio dos dois funcionários. Ã medida que ia caminhando sentia uma sensação de perigo. A apreensão que se começara a apoderar dele enquanto em Itália, começava agora a produzir os mesmos efeitos em solo francês.
Quando atravessaram o gigantesco átrio da terminal, dirigindo-se para um sinal onde se lia SORTIE, Randall protestou de novo.
-Julgo que os senhores estão a cometer um grosseiro erro. Os dois funcionários não se dignaram responder. Guiaram-no até uma vastíssima sala onde os passageiros recuperavam as bagagens pesadas, que iam chegando por sistema de correia de transmissão, conduzindo-o para unia série de pequenos compartimentos vazios, de portas abertas que se alinhavam discretamente junto da parede mais distante. Junto de uma dessas portas abertas, encontrava-se um gendarme-Randall não conseguiu distingAuir se se tratava de um agent de police ou de uma homem da Súreté Nationale -de guarda, com o seu bastão e a coronha do revólver bem visível. 0 guarda fez um sinal enquanto o funcionário da alfândega e o policia do aeroporto escoltavam Randall para dentro da sala.
-Ora serão agora capazes de me informar porque é que eu me encontro aqui? - perguntou Randall.
- Coloque a pasta naquele balcão - disse calmamente o homem das alfândegas. - Agora abra-a para procedermos a uma revista, Monsieur.
Randall colocou a pasta em cima do balcão, levando a mão ao bolso para procurar as chaves, ao mesmo tempo que insistia: -já lhes disse que não tenho nada para declarar.
-Abra a pasta, por favor.
0 polícia do aeroporto havía"se chegado para trás, corno quem se alheasse de um serviço que não lhe dizia respeito, enquanto os funcionários da alfândega continuava ao lado de Randall observando-o atentamente a abrir a fechadura, não só do saco de mão como da pasta.
- Pronto. Faça lá a revista e veja com os seus olhos que nada tenho de anormal.
0 funcionário parecia não o estar a escutar. Abriu a bolsa, a tampa e o fundo da pasta para ver se teria fundos falsos. Depois passou em revista as camisas, roupa interior e pijamas. Tirou para fora algumas pastas de arquivo, que abriu, voltando a arrumar tudo como estava. Finalmente, a sua mão, foi até ao fundo e levantou-a, exibindo um objecto que mostrava a Randall.
Era a bolsa de pele escondida por Lebrun em Ostia Antica. -0 que é isto, Monsieur?
-Urna recordação de Roma, sem importância -respondeu Randall apressadamente, tentando ocultar a sua apreensão. -É uma coisa que só tem valor para mim. Trata~se de um fac-simile de um manuscrito bíblico. Sou coleccionador.
0 funcionário, com eficiência profissional, começou a apalpar extraiu o pedaço de couro envolto em azeite virgem e retirou o encarquilhado e dobrado pedaço de papiro. 0 olhar dele dirigiu-se para o polícia do aeroporto, que se encontrava no outro extremo do balcão, perguntando:
- C'est bien ça, Inspecteur Queyras?
0 polícia aproximou"se e fez um sinal com a cabeça.
- De le crois, Monsieur Delaporte.
0 polícia a quem o funcionário tratara por Inspector Queyras, exibia na mão um dos papéis cor-de-rosa que Randall observava na secretária da secção de controle de passaportes.
-Monsicur Randall-disse o Inspector-, é meu dever informá-lo de que o nosso Serviço de Investigações foi alertado pelas autoridades italianas para o vigiarmos. As autoridades judiciárias italianas notificaram"nos que o senhor se apropriou, indevidamente, de um documento de grande valor pertencente ao tesouro de arte italiana. 0 senhor apoderou-se deste objecto sem estar autorizado a fazê.-lo. Trata-se de uma acção proibida pela lei italiana e ficará sujeito a pagar uma enorme multa, se alguma vez regressar a Itália. Todavia...
Randall escutava as palavras do inspector como se estivesse petrificado. Como é que as autoridades italianas poderiam saber que ele transportava o pedaço de papiro na sua bagagem?
- Os princípios da lei italiana não são exactamente os mesmos inerentes à lei francesa -prosseguiu o oficial da polícia do aeroporto no mesmo inglês defeituoso e mal articulado. Naquilo que nos diz respeito, o senhor cometeu um flagrant délit ao esconder este objecto de valor na sua bagagem sem o declarar nos formulários alfandegários. Sem dúvida que tal acto só pode ser interpretado como uma tentativa de contrabando ilegal. É um acto que viola as nossas leis, Monsieur, é que é punível com todo o rigor...
- Eu não escondi nada i - explodiu Randall. - Nada declarei porque não tinha nada de valor a declarar!
- 0 governo italiano parece ter uma opinião diferente a respeito deste papiro -retorquiu calmamente o inspector. -Uma opinião diferente? Não pode haver outra opinião.
0 que podem eles saber a respeito deste fragmento de papiro? Eu sou a única pessoa que sei da sua existência, Escutem, não queiram representar o papel de patetas... esse fragmento dentro da bolsa não tem qualquer valor monetário; é uma imitação, uma falsificação que pretende passar por um original. Não tem valor para ninguém, excepto para mim. Posso acrescentar que intrinsecamente esse fragmento não vale nem um centime.
0 oficial da polícia encolheu os ombros.
-Isso é o que falta ver, Monsieur. Existem peritos em tais assuntos, e já chegámos a contacto com um deles para proceder a um estudo e fornecer"nos a sua abalizada opinião. Entretanto, até que isso esteja esclarecido...
Passou pela frente do espantado Randall e agarrou na bolsa contendo o papiro, que funcionário da alfândega lhe estendia. -0 objecto fica confiscado.
E preparou-se para abandonar a sala. Randall gritou, desesperado:
- Espere! Onde é que vai com isso?
Antes de chegar à porta, o inspector parou, respondendo:
- É uma coisa que só a nós diz respeito.
Randall sentiu-se possuído por uma ira incontrolável perante o papiro, a sua preciosa prova, a testemunha da tremenda mistificação, para ficar na posse daqueles detestáveis burocratas! Era impossível. Não podia ser!
-Não! -insistiu. Precipitou-se subitamente para a frente e agarrou o inspector por um braço, obrigandoo a voltar-se.- Não! Diabos me levem, vocês não se podem apoderar assim disso disso sem mais nem menos!
Randall deitou a mão à bolsa. 0 inspector tentou livrar-se dele, mas RandalI, lesto, apoiou o antebraço contra a garganta do oficial da polícia e fez pressão, apoderando-se da preciosa bolsa na altura em que o inspector, para se livrar do braço, abriu a mão para a levar à garganta.
0 inspector, aflito, deu um passo atrás, cambaleando e gritou: -Bon Dieu, attrape cet imbécil!
Randall tinha agora a bolsa na mão, mas nesse momento, depois de refeito da surpresa, o funcionário da alfândega correu para ele. Freneticamente, RandalI, como um bom jogador de râguebi, esquivou-se à placagem e empurrou-o com a mão livre.
0 alfandegário proferiu um palavrão e voltou à carga, agarrando um dos braços de Randail.
Repentinamente, eis que chegaram mais dois homens. 0 inspector, que se recompusera do ataque, e o guarda que se encontrava à porta. Os três levaram-no de roldão contra a parede e procuraram imobilizá-lo.
Cegamente, tentando tudo por tudo para se ver livre daquelas garras, Randall viu que um joelho se preparava para lhe vibrar uma pancada. Tentou esquivar-se, mas quatro braços tinham,no manietado e a joelhada explodiu-lhe contra as partes. Dos seus testículos pisados escapou-se-lhe por todo o corpo uma dor cruciante, acima dos limites do suportável, e RandalI, largando a bolsa, caiu de borco no chão, ficando a revolverse como um animal ferido.
Os seus ouvidos ainda conseguiram captar as seguintes palavras em francês:
- Ça y est, il ne nous embétera plus. Ele está liquidado. Não causará mais complicações.
Dois dos homens agarraram-no por baixo dos braços arrastando-o.
Gradualmente, os olhos de Randali foram-se de novo apercebendo das imagens em seu redor. 0 inspector da polícia exibia outra vez a bolsa na mão, dirigindo-se para a porta.
Randall seguiu-o com os olhos e detectou outra figura, mas essa familiar, postada a uma certa distância. A figura de um homem alto, austero, envolto numa sotaina negra. Finalmente, ali estava o Domince Maertin de Vroorne. Randall gritou:
-De Vroome! De Vroome, estou aqui!
Mas o clérigo holandês parecia estar totalmente alheado da sua presença. Randall viu-o dirigir"se ao oficial da polícia, que lhe dizia algumas palavras e lhe mostrava a bolsa. De Vroorne escutava atentamente o que o outro lhe dizia, abanando a cabeça cadenciadamente. Depois, ao lado do inspector, começou a afastar-se.
-Esperem, deixem-se ir ter com ele-disse Randall com desespero aos dois homens que o seguravam. -De Vroorne está à minha espera. Eu telefonei-lhe.
-Ah, sim?-perguntou o funcionário da alfândega com ar divertido. -Parece que não posso acreditar nessa versão. Nós é que pedimos a comparência do Reverendo.
Randall olhou para o homem com um ar confuso.
-Não compreendo o que é que está para aí a dizer. Tenho que ver o Dominee! Fez um esforço para se libertar e, nesse momento, sentiu o frio aço de um par de algemas a manietar"lhe os pulsos. - Preciso de ver Domince... - implorou Randall.
0 funcionário da alfândega dirigiu-lhe um gesto de assentimento.
- Pois vê-lo-á amanhã quando o senhor comparecer perante o juge dinstruction de Paris, o magistrado que vai examinar o seu caso, monsieur Randall. A partir de agora está sob detenção por infracção aos deveres alfandegários, por não preencher a sua declaração de bagagem como devia ser, tentando contrabandear para França um objecto de grande valor. Além disso está preso por perturbar a ordem pública e por ter tentado agredir um agente da lei. Vamos levá"lo para a prisão.
-E quanto ao papiro... -protestou Randail.
-Não vale a pena pensar nele. Trata-se de uma prova, e o seu futuro será decidido amanhã num tribunal da Galerie de Ia St. Chapelle, no Palácio da Justiça.
Era finalmente manhã, uma manhã parisiense sombria e proibitiva vista através as grades da cela.
Pelo menos, reflectiu Randall amargamente, sentado na beira do seu catre e a abotoar a camisa lavada, pelo menos não tinha sido tratado como um criminoso comum.
Naquele momento, completamente desperto e refrescado, apesar da insônia que o perturbara durante quase toda a noite naquela cela desolada do Dépôt de detenção ligado com o Palais de Justice, Randall tentava analisar o que lhe acontecera, ao mesmo tempo que procurava prever o que se seguiria.
Ainda se sentia perplexo. Tinha sido preso por ter tentado contrabandear para França um objecto de valor do património arqueológico italiano, além de ser acusado de resistir à autoridade e ter batido num polícia, o que era na verdade certo. Depois do episódio louco do aeroporto de Orly, na tarde anterior, fora transportado numa panier à saWe-calão francês para designar uma carrinha de transporte de presos-e transportado para o complexo de edifícios conhecidos como Palais de Justice, na Ile de Ia Cité.
A toda a velocidade, fora praticamente arrastado para um dos edifícios chamado Le Petit Parquet. Aí, numa sala brilhantemente iluminada, confrontara-se com um rígido homenzinho francês, de cara fechada, que se apresentara como le substitut de procurcur de Ia république- título pomposo e ameaçador, até que um intérprete, também na sala, explicara tratarse simplesmente do delegado do procurador da república ou acusador público.
Tinha havido um curto interrogatório e finalmente estabelecidas as acusações formais. Ele tinha cometido um outrage à fonctíonnaíre dans l'exercice de ses fonctions (traduzido pelo intérprete como um ultrage contra um funcionário público durante o exercício das suas funções) e tentara contrabandear para França mercadorias não declaradas. 0 substitut assinara um mandato, que tomara oficial a sua detenção.
Devido a circunstâncias especiais (Randall bem puxou pela cabeça para ver se descobria que circunstâncias especiais seriam essas) o Ministério do Interior arranjara maneira de se proceder sem demora à instrução do processo. De manhã compareceria perante um juge d'instruction para um completo exame do caso. Até lá, teria de ser mantido como preso preventivo nos cárceres do Palácio da justiça. Mas antes do encarceramento, uma última coisa: podia solicitar os serviços de um advogado para o inquérito do dia seguinte. Quereria telefonar para um advogado ou para quaquer amigo que lhe arranjasse um defensor?
Randall pesara tais particularidades. Não conhecia advogados em Paris. Pensou, para logo rejeitar a ideia, em solicitar os serviços da Embaixada Americana. Tudo aquilo que o envolvia era humilhante e difícil de explicar, de tal modo que Randall não se queria expor a ser atendido por uni dos seus altivos compatriotas que poderia imediatamente começar a espalhar a história antes dos factos estarem destrinçados. Pensou em Sam Halsey, da Associated Presse na Rue de Barri. Com certeza que Sam lhe arranjaria um advogado competente. Mas por outro lado havia a possi" bilidade de qualquer entusiasta da Associated, colega de Sam, vir a saber do dilema de Randall e pôr-se a espalhá-lo deformadamente pela imprensa, sem ter absoluto conhecimento dos factos, criando-lhe uma situação de absurdo. Além disso, ponderando bem, a ideia de convocar um advogado de defesa para um caso breve como aquele (podia provar-se com toda a facilidade que o fragmento de papiro não passava de uma falsificação) afigurava-se pretensioso e ridículo.
Quando Randall inquirira qual a legítima necessidade de possuir um conselho de defesa, disseram-lhe que pela virtude de lhe dar a maior protecção possível, mas que o facto de requerer um advogado demoraria três ou quatro dias e o julgamento sumário do seu caso, Tal resposta ajudara-o a resolver-se. Uma vez que a Ressurreição Dois iria ser oferecida ao mundo dentro de quarenta e oito horas, não podia pois adiar o exame do caso e por conseguinte não havia hipótese para um advogado. Afirmou"se satisfeito em poder defender-se pessoalmente.
Um vez o assunto arrumado, Randall tivera de atravessar um largo pátio do Palácio da Justiça, fora conduzido pelo Boulevard du Palais até à Prefeitura da Polícia. Levando à repartição antropométrica, fora de novo interrogado sobre se já tinha antecedentes criminais, inquirido sobre a sua versão dos acontecimento no aeroporto de Orly, tinham-lhe tirado as impressões digitais e fora fotografado de frente e de perfil.
Uma vez tudo pronto, voltara a enfrentar a chuva miudinha no meio de dois agents de police, reentrara no Palais de Justice e fora finalmente encerrado numa cela do Dépôt. Era uma cela solitária, tudo menos confortável, mas conhecera contudo locais de pernoita mais desagradáveis durante certas noites negras da sua vida, quando andava perdido de bêbado.
A cela, com a sua janela classicamente gradeada, a porta chapeada de ferro, rangedora, apenas com um pequeno orifício para vigilância dos guardas, oferecera-lhe as faustosas instalações de um catre com um duro colchão de palha, um lavatório onde só corria água fria e uma retrete cujas descargas de água não podiam ser reguladas visto que se faziam automaticamente todos os quartos de hora. No entanto, haviam concedido a Randall alguns números do Pais Match e da Lui para ler, o cachimbo, a bolsa de tabaco e fósforos. Randall não se sentira interessado em mais nada a não ser aproveitar a oportunidade para coordenar ideias, procurando descobrir modo de poder fazer chegar as coisas ao conhecimento de de Vroome e de Aubert a fim de se tomarem conhecidos os factos da falsificação, antes que o mundo, a menos de dois dias de vista, tivesse a declaração pública do Novo Testamento Internacional.
Mas fora incapaz de conciliar ideias, de pensar. 0 dia fora tão longo e tão carregado de emoções desde Ostia Antica, Roma, Paris, Orly, até àquela cela do Dépôt!... Mas por outro lado não conseguira também conciliar o sono, por causa de uma fadiga excessiva, que não lhe dava repouso, e pelas imagens fantasmagóricas que lhe perpassavam pela mente: Wheeler e os outros editores, Ãngela e de Vroorne, e sempre, sempre a lembrança de Lebrun. Conseguira apesar de tudo adormecer, um sono inquieto, povoado de sonhos terríveis; mas dormira.
E chegara finalmente a manhã, cinzenta. 0 carcereiro fora gentil com ele, não tivera de que se queixar. Ao que parece, gentileza por se tratar de um caso especial. Além do habitual pequeno-almoço da cadeia constituído por café e pão escuro, o carcereiro trouxera sumo de frutas e dois ovos escalfados. Mais adiante, levara-lhe à cela (objectos tirados da sua pasta de viagem) a ffillett, um pente, uma muda lavada de roupa interior, meias, camisa e uma gravata limpa. Finalmente, lavado, barbeado e penteado, Randall podia pôr em ordem as suas ideias.
Tentou lernbrar"se do que lhe fora dito sobre o que o esperava nessa manhã. Um julgamento formal ou um inquérito judicial? Não se recordava bem. Na noite anterior a confusão fora tanta. Lembrou-se que o delegado do ministério público lhe falara de um exame perante um juge Xinstruction. Mas que diabo seria um exame daqueles? Pensando bem recordou que lhe haviam dito algo sobre um processo de inquérito, feito por um juiz, com as devidas testemunhas e com ele como réu e seu próprio defensor. Quando perguntara quem eram as testemunhas, obtivera um desenvolvido relambório de que estava acusado de perturbação da ordem pública, resistência à autoridade e tentativa de agressão o que constituía um crime de natureza menor. 0 mais importante no caso era o contrabando de um tesouro do património nacional italiano para França (nessa altura gritara de novo que não se tratava de nenhum tesouro mas sim de uma falsificação, nada mais do que uma mistificação) e por isso as testemunhas seriam peritos para determinarem a autenticidade e valor do fragmento de papiro.
0 que se tornava mais confuso para Randall era o Papel desempenhado por de Vroome em toda a questão. 0 clérigo holandês aparecera no aeroporto de Orly conforme prometera, estava lá para prestar assistência a Randall. Contudo, o homem, idiota, da alfândega insistira que a comparência de de Vroorne: fora a instâncias das autoridades francesas. Uma coisa que, para RandalI, não fazia qualquer sentido.
Um outro mistério, talvez o mais ameaçador de todos: Quem teria fornecido a informação à aduana francesa?
Em termos chãos, havia alguém que lhe armara uma ratoeira. Mas então quem diabo saberia que ele tinha em seu poder o perdido fragmento de papiro? Bom, recolhendo dados, havia evidentemente o rapaz, Sebastiano, a mãe do moço e o polícia rural de Ostia. Todavia nenhum deles sabia a sua identidade, ainda que soubessem que tinha tirado algo da escavação Monti. Outra hipótese era Lupo, o motorista do táxi que o conduzira de Ostia a Roma, mas o facto é que o motorista não podia saber quem ele era nem o que tinha consigo. Não era de desprezar a hipótese do Professor Henri Aubert, para quem enviara de Roma uma mensagem telefónica urgente. Mas Aubert não podia adivinhar a razão que o levara a pedir-lhe uma entrevista. Finalmente, chegava ao Domince Maertin de Vroorne, a quem telefonara também de Roma, e o único que tinha conhecimento de tudo. Não obstante, de Vroorne era a única pessoa no mundo que sabia o que se passava com a mistificação da Ressurreição Dois, a única que não tinha nem o mais leve motivo para o trair, pelo contrário, todo o interesse do sotaina era derrubar, esmagar ferozmente o sindicato de editores do Novo Testamento Internacional. Afinal de contas, trazendo de Ostia a prova da falsificação, Randall fornecia a de Vroome a única arma disponível para destruir a Ressurreição Dois e ascender ao poder.
Não havia explicação lógica, salvo uma.
Se Robert Lebrun não tivesse sido morto por acidente, se tivesse sido assassinado deliberadamente, então a pessoa ou pessoas que haviam tido conhecimento daquilo que Lebrun estava disposto a dar a RandalI, tinham sido também capazes de saberem o que ele Randall, andara a fazer em Roma e Ostia Antica.
Era essa a única possibilidade, muito embora fosse uma possibilidade ténue, fugidia, visto que os suspeitos não tinham nomes nem rostos.
Um beco sem saída.
Acabara de fazer o nó da gravata, quando a porta da cela rangeu nos gonzos.
Um homem ainda jovem, com um quepi, de pala, e um uniforme azul"marinho, apresentando uma leve semelhança com um cadete da Academia Militar de St. Cyr, entrou na cela.
-Passou bem a noite, Monsicur Randall? Sou o Inspector Bavoux: da Garde Républicaíne. Estou encerregado de o escoltar até ao Palais de Justice. 0 inquérito começará dentro de uma hora. Nessa altura já estarão reunidas as testemunhas. Vai ter a oportunidade de ser ouvido.
Randall levantou-se do catre e enfiou as mangas do casaco.
- Pedi a comparência do Reverendo Maertin de Vroome, de Amesterdão, para depor a meu favor. Estará entre as testemunhas chamadas?
- Com certeza, Monsieur.
Randall soltou um suspiro de alívio.
-Graças a Deus... Muito bem, Inspector, estou pronto, podemos ir.
Estavam reunidos numa pequena sala, funcional, localizada na Galeria dos Juízes de Instrução, no quarto piso do Palácio da justiça.
Ao ser conduzido para o edifício do Palais, voltando à esquerda para a Galeria da Santa Capela, Steve sentiu um restauro na sua abalada confiança ao ler a inscrição na placa à entrada: LIBERTÉ, ÉGALITÉ, FRATERNITÉ.
Enfim, justiça-pensou, enchendo o peito de ar.
Naquele momento, mantendo-se ainda numa posição rígida, no banco dos réus, encostado a uma da paredes, Randall notou que haviam passado vinte e dois minutos desde que se iniciara o surpreendente inquérito informal. Sabia que a altura de ser ouvido estava próxima. Sentia-se calmo e cheio de confiança. Seria chamado a prestar declarações meramente para determinar a sua crença que o bocado de papiro que trouxera de Itália para França era apenas uma falsificação sem qualquer valor monetário. Uma vez o seu depoimento corroborado pela opinião autorizada e inatacável do Domince Maertin de Vroome, tudo estaria esclarecido. Com o depoimento de se tratar de uma mistificação pronunciado por de Vroome, Randall sabia que o magistrado nada mais poderia fazer do que multá-lo pela resistência à autoridade e tentativa de agressão a um agente, mandando-o em liberdade.
RandalI, de soslaio, avaliou mais uma vez as testemunhas. Randall não se surpreendera com a presença daquela gente quando fora introduzido na sala. As vidas daqueles homens, bem como as suas fortunas em dólares, libras, francos, liras e marcos estavam em causa e dependiam daquele inquérito.
A sala tinha cinco filas de bancos. Na primeira fila, como figuras esculpidas em granito, encontravam-se Whecler, Deichhardt, Fontaine, Young e Gayda. Atrás deles, solene e atento, estava de Vroorne, tendo ao lado Aubert e a seguir o inspector Heldering. No banco imediato, sentavase Naomi Dunn, impassível, com os finos lábios apertados. As primeiras testemunhas já não estavam presentes, depois de prestarem os depoimentos tinham sido dispensadas pelo juiz.
Não havia público, nem elementos da imprensa. No início do inquérito, o magistrado esclarecera bem este ponto, dizendo que o julgamento sumário seria efectuado à porta fechada devido «à discrição requerida pelo assunto a ser debatido»-como se exprimira eufemisticamente.
Era um tribunal de «estrelas», pensou Randall.
Imaginou quem teria procedido a todo o arranjinho para que o julgamento fosse à porta fechada. Evidentemente que andara ali a mão toda poderosa da cabala de editores, com todo o concerto das tremendas relações que estendiam os seus tentáculos até ao Vaticano e ao Conselho Mundial das Igrejas. Afinal de contas, a França, como país católico por excelência, responderia aos desejos da Igreja. Pois ali estavam Monsieur Fontaine, e o seu alter ego, Professor Sobrier, bem como o Signore Gayda e sua eminência parda, Monsenhor Riccardí. Homens como aqueles não pesavam só na religião, como estavam também fortemente envolvidos na política... e a igreja e a política continuavam a ser duas forças de poder avassalador, para o bem e para o mal, Aqueles homens tinham querido segredo, e os seus desejos haviam sido atendidos.
Randall não se importava, porque tinha de Vroorne pelo seu lado, e com de Vroome em breve seria imposta a verdade e seria montada uma via para que ela chegasse ao conhecimento do público.
Escutando, mas quase sem interesse, o depoimento da testemunha que ainda estava a ser interrogada, Randall passou em revista os acontecimentos que tinham ocorrido antes daquele momento.
0 juge Xinstruction (chamava-se Le Clere) entrara na sala e sentara-se a uma das grandes secretárias metálicas que estavam cheias de papéis e colocadas mesmo em frente da teia das testemunhas e dos bancos onde se sentava a selecta e reduzida assistência. Inesperadamente, o magistrado não se apresentara com a respeitável toga, mas envergando um fato castanho, de corte conservador. Mostrava o ar anêmico, de típico funcionário público, do consumado burocrata, com um cabelo de estopa que fazia lembrar a cabeleira dos juizes ingleses e exibia uma voz sumamente aguda e desconcertante.
0 juiz iniciara as matérias processuais pedindo a leitura do documento de acusação contra o réu e logo, por detrás de uma secretária, colocada de viés em relação à secretária da presidência do tribunal, se erguera o greflier, escrivão do tribunal, para ler em voz alta, primeiro em francês e depois em inglês, o documento de pronúncia, segundo o interrogatório a que Randall fora submetido no dia anterior juntamente com os depoimentos das partes contrárias. Impacientemente, o juge dinstruction declarara que tinha dispensado os serviços de um intérprete (exceptuando para as testemunhas que falavam somente francês), para poupar tempo precioso. Tal coisa tomara-se possível porque, para além da justiça a administrar ao réu, o inquérito judicial seria feito em inglês. Depois de declarar aquilo, o digno magistrado começara a movimentar toda a articulação do processo celeremente, como se o tempo fosse na verdade dinheiro, ou como se tivesse marcado encontro para um almoço que por nada deste mundo desejaria perder.
0 depoimento de abertura havia sido prestado pelo funcionário aduaneiro do aeroporto de Orly, Monsicur Delaporte, que pormenorizava o horroroso comportamento do réu. A segunda testemunha chamada a depor fora o guarda da Súreté Nationale, de seu nome Gorin, que proclamandose um humilde mas acérrimo protector do bem público e da sua segurança, disse que havia sido alertado antecipadamente pela força de segurança de Orly de que haveria um contrabandista a ser revistado e que poderia ser pessoa violenta. Gorin declarou que fora convocado para ajudar a subjugar o réu.
A terceira testemunha fora o inspector da police de l'air, o oficial da polícia do aeroporto, chamado Queyras, que depôs que tinha sido informado pelo chefe dos carabiniè? de Roma que um americano, um tal Steve Randall, havia adquirido ilegalmente um tesouro cristão de grande antiguidade e que o transportara de Roma sem licença para o tentar introduzir em Paris. Queyras preparara em pormenor um dos seus documentos -descrevendo criminosos procurados pela polícia -e quando Randall surgira na sua secção confiscara-lhe a bolsa com o fragmento de papiro, tendo que se unir aos outros funcionários para subjugar o intratável visitante. Queyras fora dispensado pelo magistrado juntamente com as testemunhas anteriores.
A testemunha seguinte, uma cara nova para RandalI, fora o Dr. Fernando Tura, antigo superintendente da região de Ostia Antica e elevado recentemente a membro do Alto Conselho de Antiguidades e Belas-Artes de Roma. 0 Dr. Tura deslocara-se a Paris em representação do Ministero della Pubblica Istruzione. Um italiano peso pluma, oficioso, de olhos furtivos e bigodes parecidos com a barra de um trapézio. Randall antipatizara imediatamente com o homem, e com uma excelente razão: segundo Ãngela era aquele o indivíduo que levantara obstáculos e difamara o Professor Augusto Monti desde princípio.
0 juiz interrogara o Dr. Tura.
Não, o arqueólogo italiano nunca antes vira o réu. Só soubera da existência do Signore Randall no dia anterior: tivera conhecimento de que aquele estrangeiro, aquele americano, por meios ilícitos e sem licença do Ministério, obtivera um fragmento de papiro desaparecido, pertencente ao códice do Evangelho Segundo Jacob, uma descoberta feita em Ostia Antica seis anos antes pelo Professor Augusto Monti, da Universidade de Roma, com a cooperação dele, Dr. Tura. 0 réu esforçara-se por deslocar esse tesouro nacional de solo italiano. Não, o Dr. Tura não tinha qualquer ideia definida sobre a maneira como o Signore Randall obtivera o valioso fragmento, nem sabia se fora roubado ou encontrado por acaso, mas em qualquer dos casos violara sem dúvida a lei.
A apoiar as suas declarações, o Dr. Tura citara a lei italiana relativa ao assunto que estava em causa: «Os objectos arqueológicos encontrados em Itália pertencem ao Estado, com base no princípio de que qualquer coisa de procedência subterrânea constitui propriedade do Estado. Só o Ministério da Instrução Pública pode conceder licença para execução de pesquisas arqueológicas, sendo proibida toda e qualquer escavação sem uma licença.»
Ultrajantemente, o réu tinha entrado em contravenção com os princípios da lei italiana, não só não reportando o caso como tentando ainda contrabandear para fora de Itália o fragmento.
0 governo italiano queria pois recuperar o citado fragmento de papiro de modo a poder entregá-lo a um sindicato de editores, conhecido como Companhia do Novo Testamento Internacional, visto que o sindicato em causa tinha a concessão dos documentos descobertos pelo Professor Monti. Ora sem dúvida que o fragmento em causa formava parte integral para os devidos efeitos da publicação de uma versão revista desse Novo Testamento.
0 pomposo Dr. Tura havia terminado o seu depoimento, retirando-se do banco das testemunhas com um ar de grande dignidade. Nessa altura, ainda a seguir o arqueólogo com os olhos, Randall deu fé de que o magistrado se dirigia a ele próprio.
-Monsieur RandalI, estou agora em condições de escutar o seu depoimento. Queria fazer o favor de me declarar a sua profissão.
- Sou director de uma firma de relações públicas de Nova Iorque.
- Que circunstâncias o levaram a Roma?
- Bem, Excelência, trata-se de uma longa história.
- Monsieur RandalI, agradecia-lhe o favor de nos contar os factos essenciais, encurtando a história-pediu o juiz Le Clere destituído de qualquer senso de humor. - Peço-lhe que vá direito até ao momento do seu aparecimento, ontem, no aeroporto de Orly.
Randall ficou embatucado. Como é que poderia transformar uma montanha num ratinho? Bom, tentaria. De resto queria o mais breve possível, ceder a vez ao depoimento pericial de de Vroorne.
- Tudo começou quando fui convocado, em Nova Iorque, Para uma entrevista com um bem conhecido editor de livros religiosos, Mr. George L. Wheeler - lançou um olhar na direcção de Wheeler, que começou a contemplar a biqueira dos seus sapatos, recusando-se a tomar conhecimento de ter ouvido a menção ao seu nome. - Mr. Wheeler pretendia contratar os meus préstimos para publicação de uma nova Bíblia. Representava um sindicato internacional de editores de livros religiosos -pessoas que estão todas presentes nesta sala-que preparavam a revisão do Novo Testamento com base numa excepcional descoberta arqueológica. Se deseja saber pormenores a respeito dessa descoberta ... ?
-Não é necessário -disse o juiz Le Clere.-Possuo já um depoimento de Monsieur Fontaine resumindo o conteúdo do Novo Testamento Internacional.
0 bom juiz tinha sido já aliciado numa conferência antecipada pelos cavalheiros da Ressurreição Dois. Excelente trabalho de previsão, pensou Randall.
-0 senhor foi então contratado para dirigir a publicidade dessa Nova Bíblia? -perguntou o magistrado,
- Sim, Excelência, fui.
-E o senhor acreditava na autenticidade da publicação? -Acreditava, Excelência.
- E continua a considerar os documentos do Novo Testamento Internacional como autênticos?
- De modo nenhum, Excelência. Muito pelo contrário. Considero agora os documentos do Novo Testamento como descaradas falsificaçôcs, como se pode provar pelo conteúdo da bolsa de pele que ontem me apreenderam no aeroporto de Orly.
0 magistrado tirou do bolso um lenço e assoou-se estrondosamente.
- Muito bem. E como é que o levou a ficar desencantado com a obra?
- Se me for possível explicar...
- Pode explicar, mas sem se desviar dos factos relevantes para este inquérito e relativos à pronúncia.
Havia tantas coisas que Randall queria relatar, um tremendo complexo de tantas suspeitas, o desbobinar de tantas coincidências... mas sabia, no entanto, que as suas palavras não seriam aceites como provas para apoiar a defesa. Rebuscou então a memória em demanda de factos explicativos directos... c sentiu-se surpreendido, mesmo desalentado, por ver como eles eram poucos e de peso tão ligeiro.
- Bem, Excelência, para abreviar, no hotel em que estive hospedado em Roma reuni-me com o declarado falsificador dos manuscritos Jacob e Petrónio. Tratava-se de um subdito francês chamado Robert Lebrun. Ele...
- Como é que o senhor o conseguiu descobrir?
- Primeiramente soube da existência do homem por intermédio de Dominee de Vroorne.
- 0 Domince de Vroome tinha-se encontrado com esse aleoado falsificador?
-Bom, encontrar não se encontrou, Excelência.
- Não estou a perceber. Em que ficamos? Encontrou-se ou não?
- 0 Dominee disse-me que viu o homem, mas não conseguiu encontrar-se com ele, falar-lhe. Aliás o Dominee soube da existência de Robert Lebrun por intermédio de um jornalista.
- Mas quanto a si, encontrou-se com o alegado falsário, hem?
- Encontrei-o. Por meio de um indício encontrado em documentos que procurei em casa do Professor Augusto Monti. Certo papel levou-me até Lebrun. Persuadi depois Lebrun a contar-me o modo como falsificara o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho. Petrónio. Contou-me que passou longos anos a preparar a sua mistificação. 0 homem era um erudito bíblico incomparável e um verdadeiro gênio na falsificação de documentos antigos. Relatou-me tudo o que fez, passo a passo, na preparação da grande intrujice. Fiquei plenamente convencido de me ter contado a verdade.
-E o senhor obteve o fragmento, encontrado na pasta, desse Lebrun?
- Não.
- Não? Então ele não lhe vendeu o fragmento?
- Estava preparado para me vender as provas, tal como eu estava preparado para as comprar, a fim de mostrar aos editores que o novo evangelho não passava de uma fraude, um dolo, de modo a impedi-los de levarem avante a publicação do Novo Testamento Internacional. No entanto, Lebrun foi impedido de me entregar as provas da falsificação... de me dar em mão aquilo que prova a mistificação, esse precioso fragmento que a polícia ontem me apreendeu indevidamente no aeroporto de Orly.
- Impedido? Como é que o impediram?
- Foi morto, convenientemente silenciado numa coisa a que se convencionou chamar um acidente de viação... precisamente no dia em que ia buscar as provas para mas entre-ar.
0 juiz Le Clere fitou Randall intensamente.
- Se estou a compreender bem as suas palavras, parece ter querido dizer que esse Lebrun não pertence já ao número dos vivos para poder corroborar o depoimento que o senhor está a prestar a este tribunal de inquérito. Expliquei-me bem?
- De facto, Excelência, Lebrim morreu.
- De modo que temos só a sva palavra, não é verdade?
- Excelência, tem mais do que a minha palavra. Possui a prova da falsificação nesse fragmento que as autoridades me apreenderam no aeroporto. Por vezes, Senhor Doutor juiz, os mortos podem servir de testemunhas. De certo modo, não obstante ter morrido, Lebrun, mesmo na sepultura conseguiu fornecer-me indícios suficientes para eu achar a sua prova.
Randall contou como as posses pessoais de Lebrun depositadas no necrotério romano o haviam guiado até à escavação Monti, perto de Ostia Antica, concluindo:
-Uma vez desenterrada a prova de Lebrun passei a ter a certeza de que os documentos da Nova Bíblia eram na verdade uma mistificação. Telefonei de Roma para o escritório do Professor Henri Aubert a marcar urna entrevista. Queria que o professor realizasse um teste de radiocarbono ao fragmento. Telefonei a seguir para o Domince de Vroome e pedi-lhe a cooperação para determínar se o texto em aramaico - e o desenho e dizeres escritos em tinta invisível pelo punho de Lebrun - apoiavam a confissão de falsificação feita por Lebrun, Quanto a mim, não tinha a mínima dúvida a respeito da intrujice, mas sabia perfeitamente que tinha que buscar a opinião de peritos para convencer os editores de se tratar de uma fraude e para os obrigar a abandonarem a publicação do Novo Testamento Internacional. Desse modo, parti de Roma para Paris com o fragmento na minha posse, sabendo que não se tratava de um tesouro nacional italiano, mas sim de um bocado de papiro sem valor, com excepção da sua valia para deter a continuação do projecto da Ressurreição Dois. Porque a polícia do aeroporto me confiscou a única prova que possuía, tentei instintivamente recuperá-la. Não tive a intenção de cometer qualquer violência. Pretendia tãosomente manter em meu poder uma prova que podia salvar o público de uma descarada mentira e salvar os editores de cometerem um erro grave.
- Acabou?
- Sim, Excelência,
- Pode sentar-se. Vamos chamar as duas testemunhas que faltam. - Olhou para os documentos que tinha na frente. - Se o Professor Henri Aubert se encontra na sala, queira fazer o favor de se sentar no banco das testemunhas.
0 Professor Aubert, com o seu habitual aprumo, impecavelmente vestido e com um ar de cortesão do tempo de Madame Pompadour, levantou-se do seu lugar e dirigiu-se para o banco das testemunhas. Passou junto a Randall sem sequer lhe dedicar um olhar e aprontou-se para ler ao tribunal o relatório que escrevera antecipadamente.
0 depoimento do homem foi breve, não durou mais de dois ou três minutos, e o seu resumo de modo nenhum constituiu qualquer surpresa para Randall.
-Os testes normais com radiocarbono requerem um prazo de uma a duas semanas para serem efectuados. Mas por meio do utilização de um novo aparelho de contagem, tanto eu como os meus assistentes, trabalhando durante a noite, pudemos no espaço de catorze horas proceder a verificações relativas ao fragmento do papiro que ontem nos foi apresentado para análise. Eis os resultados.
Exibiu uma folha de papel dactilografada, começando a ler: -«Segundo as nossas medições ao fragmento de papiro em questão, após os devidos testes na nossa aparelhagem para determinação de datas por meio de radiocarbono, a data da vida desse papiro pode, razoavelmente, ser determinada à volta do ano 62 A.D. Em resultado do que acabo de expor, o fragmento de papiro que nos foi submetido para exame ontem à noite pode ser considerado autêntico pelos padrões cientificos. Assinado, Henri Aubert.»
A magistrado pareceu ter ficado impressionado por aquela peça de oratória científica.
-Nesse caso, o fragmento trazido para França pelo réu é de uma autenticidade incontestável, não é assim?
- Absolutamente - respondeu Aubert, que todavia se apressou a acrescentar: - Devo no entanto dizer, em abono da verdade, que apenas me limitei a verificar a idade do fragmento de papiro. De modo nenhum posso falar da autenticidade do texto. Essa é uma decisão que deixo inteiramente à avaliação de Dominee de Vroorne.
- Muito obrigado, Professor.
Enquanto Aubert se levantava e ia ocupar o seu anterior lugar, o Domince de Vroorne estava já levantado e à espera de ser convocado para o banco das testemunhas.
0 magistrado dirigiu-se a ele.
- 0 tribunal sentir-se-á muito honrado e grato se o Reverendo Maertin de Vroorne quiser vir prestar o seu depoimento neste inquérito.
Randall observou com evidente interesse os movimentos felinos de Dominee a ocupar a sua posição no banco das testemunhas, enrolando, como era seu hábito a sotaina. Esperou por um olhar do Reverendo na sua direcção, mas o teólogo não se dignou olhar e ficou sentado numa posição de perfil que não permitia a Randall observar-lhe bem as expressões fisíonórnícas.
0 juiz Le Clere iniciou imediatamente o interrogatório.
- Domínce Maertín de Vrome, é verdade que o réu, tal como declaroli no seu depoimento, lhe telefonou de Ronia a pedir-lhe para que emitisse uma douta opinião sobre uma parte perdida do Papiro Número 3, a qual reivindicou ser a prova de uma falsificação?
- Sim, é verdade.
-É verdade que o Reverendo recebeu também um pedido de uma das organizações de Segurança Nacional, por intermédio dos bons ofícios do laboratório especial do Museu do Louvre, para proceder a um estudo desse fragmento a fim de determinar o seu valor?
-Sim, também é verdade.
0 magistrado manifestou-se satisfeito.
- Nesse caso a pronúncia de avaliação satisfará tanto a acusação como a defesa, não é verdade?
0 Dominee de Vroorne esboçou um dos seus sorrisos tão característicos, em que a boca, quase sem lábios, emitia apenas uma ligeira contracção.
- Quanto a isso, duvido que a minha avaliação possa satisfazer as duas partes. Só poderá satisfazer uma delas.
0 magistrado também sorriu.
- Bom, passo a explicar melhor o caso. Tanto a acusação como a defesa estão de acordo com as suas credenciais para emitir julgamento em matéria tão melindrosa.
- Segundo parece, assim é.
- Nesse caso renuncio a levar a efeito qualquer outro inquérito às suas aptidões como um perito em língua aramaica e como perito em textos relativos à história do cristianismo e à história romana. As partes em causa aceitam tacitamente o seu julgamento abalizado. Reverendo, estudou o fragmento de papiro confiscado a Monsieur Randall?
- Estudei. Examinei-o com o maior cuidado e minúcia durante parte da noite de ontem e por toda a madrugada de hoje. Estudei o fragmento dentro do contexto de toda a colecção dos papiros Monti, que me foram facultados pelos proprietários do Novo Testamento Internacional. Estudei-o também à luz da informação dada por um certo Robert Lebrun e pelo réu, Stevc Randall, com respeito ao texto em aramaico ser uma falsificação e quanto à folha de papiro conter algo escrito em tinta invisível bem como um desenho-texto e desenhos traçados com uma tinta preparada segundo uma antiga fórmula romana-feitos pela mão do tal Lebrun de modo a provar que o novo evangelho não passava de uma mistificação genial.
0 magistrado Le Clere inclinou-se para a frente, olhando com firmeza para o depoente.
-Dominee de Vroorne, será capaz de emitir uma decisão coricreta e justa sobre o valor do fragmento do papiro?
- Perfeitamente. Cheguei a uma conclusão absoluta.
- Então, Domince de Vroorne, transmita-nos essa conclusão.
0 Domince de Vroorne, com o seu imponente aspecto de um apóstolo de Deus, deu tempo a impor-se um ligeiro intervalo dramático, antes da sua vibrante voz soar por toda a sala, pronunciando bem as sílabas.
-Não há dúvidas na conclusão a que cheguei: posso dizer com toda a verdade que o fragmento de papiro trazido pelo réu de Itália não é uma falsificação... trata-se, pelo contrário, acima de toda a suspeita, de uma obra autêntica e inspirada saída da pena de Jacob o justo, irmão de Jesus... e assim, não só é uma preciosa obra do tesouro nacional italiano como pertence também à herança cultural de toda a humanidade. Posso dizer que faz parte integrante da maior descoberta feita em dois mil anos da saga cristã. Devo até cumprimentar os proprietários do Novo Testamento Internacional por poderem acrescentar o fragmento à obra inspirada que estão prestes a oferecer ao mundo!
E com tais palavras solenes, sem sequer esperar a resposta do magistrado, o Dominee de Vroorne levantou-se e foi com passo decidido ocupar o lugar anterior. Na sua fila os editores levantaram-se como que impelidos por uma mola e dispensaram ao eclesiástico uma ruidosa ovação.
0 julgamento de de Vroome abalou Steve RandalI, como o deflagrar de uma granada. Ficou esmagado, estupidificado, sem encontrar palavras perante aquele súbito e inesperado volte-face nos acontecimentos.
Quando o Dominee passou junto dele, Randall quis levantar-se e gritar: «De Vroome, seu sujo traidor, seu vendido filho da puta!» Mas da boca não lhe saiu o mínimo som. Ficou ali encostado à parede, estarrecido como se uma espada invisível o tivesse trespassado e não o deixasse mover-se.
No meio da confusão que seguiu e do vozear que se levantou, quase que não pôde compreender aquilo que se seguiu.
0 Juiz Le Clere estava a dizer:
- 0 tribunal está pronto a emitir o seu veredicto, a não ser que haja qualquer outra testemunha que pretenda ser ouvida. Alguém, dentre as pessoas presentes quererá prestar depoimento neste caso?
Uma mão se levantou: a de George L. Wheeler, que chamava a atenção dos seus colegas reunidos em volta de Dominee Maertin de Vroorne, e pedia licença para falar.
-Senhor Doutor juiz, peço uma breve interrupção neste julgamento para poder falar a sós com o réu antes de ser pronunciado o veredicto.
- Defiro o seu pedido, Monsieur Wheeler. Tem permissão do tribunal para falar ao réu em privado. - Deu três pancadinhas sacramentais no tampo da mesa com o martelinho. - 0 inquérito é interrompido. 0 tribunal voltará a reunir-se dentro de trinta minutos para pronunciar a sentença.
- Raios me comam - berrou George L. Wheeler - nem eu próprio sei porque é que me estou a preocupar consigo.
RandalI, com a maior calma, replicou:
- Está a preocupar-se comigo porque pretende que a sua Bíblia apareça imaculada e acima de qualquer dúvida mortal e porque sabe muito bem que eu represento uma fonte de defecção, de potencial dissidência, e você não quer, não pode tolerar tal coisa.
Encontravam-se os dois a sós numa salinha, desprovida de janelas, adjacente à sala onde se realizara o inquérito.
A ira sentida por Randall devido à traição de de Vroorne acalmara-se e acabara por se transformar na sua habitual e cínica desconfiança por todos os homens. Naquele momento estava sentado, ou antes estiraçado, numa cadeira, a fumar imperturbavelmente o seu cachimbo e a observar pelo canto do olho a figura de Wheeler que cirandava de um para o outro lado, como um leão numa jaula.
Não obstante a aversão que sentia pelo editor americano, considerava agora o homem com uma espécie de ressentido respeito. Afinal de contas, aquele mercador de bíblias, aquele fala barato conseguira, fosse como fosse, atrair para o seu lado um inimigo infinitamente superior em intelecto: o Dominee Maertin de Vroorne. Aquele truão de feira levara de Vroorne a transformar-se num lacaio subserviente da capelinha religiosa ortodoxa. Pensava, com verdadeira mágoa, que subestimara as potencialidades daquele vendilhão do templo. E pensando nas convincentes potencialidades de conversão do homem, interrogava-se para que raio quisera ele uma entrevista a sós. Estaria o repelente feiticeiro a tentar envolvê-lo em qualquer encanto?
Entretanto, Whcelcr terminara o seu passeio e parara de chofre em frente da cadeira onde Randall se encontrava estiraçado.
-É então isso o que você pensa, que eu o trouxe aqui para tentar convertê-lo de modo a que não haja nenhum dissidente, hem? Steve, não há dúvida que você é um rematado asno, um parvo com pretensões a esperto. Escute bem: a sua oposição nada significa para nós, todo o berreiro que você possa fazer pouco mais será do que o coaxar solitário de uma rã num imenso tanque. Não, na verdade você está mil por cento enganado a respeito das minhas intenções. Considerando a maneira como você nos tentou sabotar, devia na verdade não me ralar nada consigo, deixá-lo escorregar à vontade para a valeta. Mas não posso. Não posso porque-e já sei que não acreditará naquilo que vou dizer por se julgar muito esperto e não passar de um parvo-acontece ter-me afeiçoado a si. Sim, acabei por gostar de si e não posso abandonar e ver seguir um mau caminho uma pessoa a quem me dediquei e em quem depositei confiança. Há outra coisa que me move também a proceder assim-e não me sinto envergonhado de admiti-Ia-, porque sou acima de tudo um comerciante, uma homem de negócios e tenho orgulho de ser assim, e você entra no quadro dos meus préstimos. Posso utilizar as suas faculdades. Não apenas para a cerimônia da declaração. Isso é uma coisa que já está sob controlo. Neste mesmo momento, as estações de rádio e de televisão e os jornais de todas as partes do mundo estão já a alertar o público de que será feita uma transmissão internacional na sexta-feira para anunciar uma descoberta bíblica da mais momentosa natureza. Essa é uma das partes do programa que já está em movimento. No entanto, não posso esquecer-me de que a nossa campanha de vendas só começará a partir da cerimónia de anúncio ao mundo que se realizará depois de amanhã. Ora eu quero que você dê continuidade à campanha, porque você conhece o projecto como poucas pessoas, sabe perfeitamente o que nós pretendemos e poderá dar tremendo auxílio à nossa promoção. Estou aqui a falar-lhe desta maneira, dado estar convencido que você já aprendeu bem a lição. Tenho a certeza disso.
-Qual lição, George? -perguntou Randall complacentemente.
- De que estava redondamente enganado a respeito da autenticidade dos documentos Jacob e Petrónio e que a razão está do nosso lado. Que deverá estar pronto a admitir o erro, juntando-se à nossa equipa. Penso que é homem suficiente para isso e pode crer que o recebermos como um filho pródigo, matando o mais gordo bezerro. Escute bem, Steve, se uma personalidade tão importante, um clérigo tão famoso e um erudito tão excepcional como o Domince Maertin de Vroome, cujo cepticismo ultrapassava todos os outros, pôde ser suficientemente homem para ver a luz, admitir o erro e oferecer-se para nos auxiliar, não veio porque e que voce não lhe venha a seguir o exemplo.
Randall tirou o cachimbo da boca.
- Estava precisamente a pensar em de Vroome. Como raio é que você conseguiu voltá-lo do avesso?
Wheeler, com ar ofendido, empertigou-se.
-Você não tem emenda, Steve, pois não? Para si todos são uns safados...
Sentado, ou antes estiraçado, numa cadeira, a fumar imperturbavelmente o seu cachimbo e a observar pelo canto do olho a figura de Wheeler que cirandava de um para o outro lado, como um leão numa jaula.
Não obstante a aversão que sentía pelo editor americano, considerava agora o homem com uma espécie de ressentido respeito. Afinal de contas, aquele mercador de bíblias, aquele fala barato conseguira, fosse como fosse, atrair para o seu lado um inimigo infinitamente superior em intelecto: o Dominee Maertin de Vroorne. Aquele truão de feira levara de Vroorne a transformar-se num lacaio subserviente da capelinha religiosa ortodoxa. Pensava, com verdadeira mágoa, que subestimara as potencialidades daquele vendilhão do templo. E pensando nas convincentes potencialidades de conversão do homem, interrogava-se para que raio quisera ele uma entrevista a sós. Estaria o repelente feiticeiro a tentar envolvê-lo em qualquer encanto?
Entretanto, Wheeler terminara o seu passeio e parara de chofre em frente da cadeira onde Randall se encontrava estiraçado.
-É então isso o que você pensa, que eu o trouxe aqui para tentar convertê-lo de modo a que não haja nenhum dissidente, hem? Steve, não há dúvida que você é um rematado asno, um parvo com pretensões a esperto. Escute bem: a sua oposição nada significa para nós, todo o berreiro que voce possa fazer pouco mais será do que o coaxar solitário de uma rã num imenso tanque. Não, na verdade você está mil por cento enganado a respeito das minhas intenções. Considerando a maneira como você nos tentou sabotar, devia na verdade não me ralar nada consigo, deixá-lo escorregar à vontade para a valeta. Mas não posso. Não posso porque-e já sei que não acreditará naquilo que vou dizer por se julgar muito esperto e não passar de um parvo-acontece ter-me afeiçoado a si. Sim, acabei por gostar de si e não posso abandonar e ver seguir um mau caminho uma pessoa a quem me dediquei e em quem depositei confiança. Há outra coisa que me move também a proceder assim-e não me sinto envergonhado de admiti-Ia-, porque sou acima de tudo um comerciante, uma homem de negócios, e tenho orgulho de ser assim, e voce entra no quadro dos Uleus préstimos. Posso utilizar as suas faculdades. Não apenas para a cerimónia da declaração. Isso é uma coisa que já está sob controlo. Neste mesmo momento, as estações de rádio e de televisão e os jornais de todas as partes do mundo estão já a alertar o público de que será feita uma transmissão internacional na sexta-feira para anunciar uma descoberta bíblica da mais momentosa natureza. Essa é uma das partes do programa que já está em movimento. No entanto, não posso esquecer-me de que a nossa campanha de vendas só começará a partir da cerimônia de anúncio ao mundo que se realizará depois de amanhã. Ora eu quero que você dê continuidade à campanha, porque você conhece o projecto como poucas pessoas, sabe perfeitamente o que nós pretendemos e poderá dar tremendo auxílio à nossa promoção. Estou aqui a falar-lhe desta maneira, dado estar convencido que você já aprendeu bem a lição. Tenho a certeza disso.
-Qual lição, George? -perguntou Randall complacentemente.
- De que estava redondamente enganado a respeito da autenticidade dos documentos Jacob e Petrónio e que a razão está do nosso lado. Que deverá estar pronto a admitir o erro, juntando-se à nossa equipa. Penso que é homem suficiente para isso e pode crer que o recebermos como um filho pródigo, matando o mais gordo bezerro. Escute bem, Steve, se uma personalidade tão importante, um clérigo tão famoso e um erudito tão excepcional como o Domince Maertin de Vroome, cujo cepticismo ultrapassava todos os outros, pôde ser suficientemente homem para ver a luz, admitir o erro e oferecer-se para nos auxiliar., não vejo porque é que você não lhe venha a seguir o exemplo.
Randali tirou o cachimbo da boca.
-Estava precisamente a pensar em de Vroome. Como raio é que você conseguiu voltá-lo do avesso?
Wheeler, com ar ofendido, empertigou-se.
-Você não tem emenda, Steve, pois não? Para si todos são uns safados...
-Eu não diria que são todos...
-Claro que não. Você exceptua-se a si mesmo. -Apontou um dedo ameaçador para Randall. - Deixe de armar-se em espertinho e ouça-me com atenção. Ninguém, mas mesmo ninguém, poderá subornar ou comprar um homem com a integridade de de Vroorne. Foi a própria consciência dele que o levou a pronunciar-se finalmente sobre o nosso projecto da forma mais favorável, e não hesitou, precisamente por ser um homem recto e íntegro. Até agora o Domince tentava arruinar-nos, subverter-nos, mas sem saber com exactidão o que estava a fazer e desconhecendo os pormenores sobre os magníficos documentos que tínhamos na nossa posse. Mas quando ele veio até nós para lhe mostrarmos os documentos -e uma vez que estávamos em vésperas da declaração ao mundo, pensámos que podíamos deferir a sua pretensão - imediatamente desapareceu o antagonista e a resistência que antepunha ao nosso projecto. Sentiu que a verdade estava connosco, que possuíamos o verdadeiro Cristo e que a humanidade só beneficiaria em receber Jesus através do Novo Testamento Internacional. De Vroorne capitulou imediatamente. Quis estar do lado dos anjos do Espírito Santo, tal como o demonstrou há poucos minutos perante o tribunal de inquérito.
-De modo que agora está de casa e pucarinho com vocês, hem? - perguntou Randall.
- Sim, RandalI, o Dominee está connosco. Estará junto de nós na tribuna montada no palácio real de Amesterdão quando a Boa Nova for transmitida a todos os cantos do Mundo. Steve, não foi fácil para um homem como de Vroorne confessar o seu erro e modificar a sua forma de pensar. Mas tal como já disse, Maertin de Vroorne foi suficiente homem para realizar o que lhe pareceu justo. Ora tanto o Dr. Deichhardt como nós, os editores compreendemos quão difícil seria para um homem como de Vroorne reconhecer que estava errado, por isso, a fim de amenizarmos as coisas também nos manifestámos caridosos e compreensivos. Na verdade, para lhe provarmos a si que não somos uns quaisquer vilões com pélos no coração, posso dizer,lhe que fomos ao encontro das aspirações do Dominee Maertin de Vroome.
-Ao encontro das aspirações dele? 0 que é que isso quer dizer, George?
- Que elaborámos uma maneira de homens adultos resolverem os seus diferendos, operando em conjunto para formarem uma frente sólida. Uma vez que de Vroome se mostrava preparado para nos apoiar, nós tínhamos também de o apoiar a ele. Retirámos pois o nosso auxílio à candidatura do Dr. Jeffries para apoiarmos, unidamente a nomeação de Dominee de Vroome como próximo secretário-geral do Conselho Mundial das Igrejas.
-Compreendo -disse Randall.
Sim, compreendia. Bateu com o cachimbo na beira do cinzeiro para despejar a cinza. Sim., compreendia tudo muito bem.
- E quanto ao Dr. Jeffries? - perguntou Randall. - Onde é que o colocam?
-Tem já outro cargo, a cargo do presidente da Comissão Central do Conselho Mundial das Igrejas.
-Um cargo meramente honorário. Está a dizer-me que ele se conforma em não ser a figura suprema?
- Steve, tanto o Dr. Jeffries. como nós todos temos uma opinião muito diferente da sua sobre tais assuntos. Não nos preocupamos com vaidades mesquinhamente. pessoais. Possuímos uma causa em comum para defender. Unidade acima de tudo. Ora é natural que façamos certos sacrifícios pelos nossos ideais. A coisa mais importante é que temos unidade com de Vroome ao nosso lado.
- Ah, claro que têm - anuiu RandalI, tentando dominar o vitríolo no seu timbre de voz.
Como se o não tivesso ouvido, Wheeler prosseguiu.
- Agora, depois de tudo resolvido, com um dínamo como de Vroome a chefiar o Conselho Mundial e com o unânime apoio eclesiástico ao Novo Testamento Internacional, temos garantido o maior regresso à religião e a um renascimento da fé desde a Idade Média. 0 próximo século tornar-se-á conhecido como a Idade da Paz.
Ocultando a sua aversão, Randall empertigou-se na cadeira. -Muito bem, grande George, excelente trabalho. Mas gostava
que me explicasse mais uma coisa. Ainda não há muito tempo que falei com de Vroorne. Sei muito bem qual é a posição dele... ou qual era a posição dele. Só quero que me diga como é que um reformista radical como ele conseguiu arranjar-se para realizar um compromisso de tudo aquilo que representava para se bandear com a vossa ortodoxia conservadora?
Wheeler pareceu sentir-se ferido pela pergunta.
-Você tem uma opinião errada a nosso respeito. Não nos julgue uns seres enquistados em rigidez. Estamos e sempre estivemos preparados para nos adaptarmos a todas as mudanças necessárias que possam preencher as necessidades humanas quer de natureza espiritual quer de natureza temporal. Foi esse o milagre do homem da Galileia. Jesus era flexível, compreensivo e transigente. E nós somos os seus filhos. Também nós somos flexíveis de modo a servir da melhor forma o bem comum. Steve,, sabemos perfeitamente que a transigência não pode ser unilateral. Quando de Vroorne aceitou a nossa descoberta, preparando-se para terminar com a sua revolta e oposição, nós também nos preparámos para fazer dele o presidente do Conselho Mundial das Igrejas com tudo o que esse cargo significa. Isto é, estamos preparados para o acompanhar em certo montante de reforma, não só nas interpretações das Sagradas Escrituras, como nas formas litúrgicas, em certos sectores de reformas sociais e em esforços destinados a tomar a Igreja mais permeável às necessidades humanas. Como resultado desse compromisso, que terminou com um cisma perigoso, não só vamos avante com uma nova Bíblia como estamos igualmente dispostos a seguir a trilha que conduzirá a uma nova e mais dinâmica igreja mundial.
Randall continuou sentado, sem se mexer, contemplando aquele hipócrita capaz de negociar com tudo o que pudesse servir os seus interesses.
Pensou que tinha na sua frente um dos ilustres membros do clube do Poder. Uma liga poderosa, como uma gigantesca ventosa, aspirando tudo e cedendo as coisas de menos importância, capaz de utilizar a tremenda arma dos compromissos para conseguir os seus fins de domínio, servindo-se dos mais sujos truques para acabar com toda a resistência. Gigante invencivel, tal como as Empresas Cosmos, como os quartéis de armamentos e munições, as grandes organizações governamentais, a liga de bancos mundiais, exactamente como uma fé ortodoxa que se regia pelos números. Estava pela primeira vez a ter uma visão exacta como todo aquele amálgama podia subsistir. E fora ele, RandalI, quem agira como involuntário catalizador. Tinha descoberto a arma capaz de destruir aquilo que representava uma coisa enganadora para o povo e de natureza verdadeiramente cínica, a prova que liquidaria a Ressurreição Dois como uma farsa. Confiante, passara a arma para as mãos de Dominee, Maertin de Vroorne. Ora com aquela arma ao seu dispor, de Vroome ficara com a alavanca capaz de forçar os chefes da Ressurreição Dois a entrarem numa solução de compromisso. Reconheçam-me que eu vos reconhecerei. Resistamme e, com a arma encontrada por Randall lutarei contra vós e acabarei, em última análise, por destruí-los. No fim de contas, de Vroorne preferira não alargar a guerra civil até chegar à vitória final, que poderia demorar muito tempo e desgastar os combatentes de ambos os lados, trocara a luta por um compromisso imediato que lhe conferia uma semivitória. Uma vez instalado como secretário-geral do Conselho Mundial das Igrejas, passaria a ser o Judas capaz de levar as inocentes ovelhas fiéis ao aprisco de Wheeler & C.a.
E naquele tremendo esquema, como podia perfeitamente ver, só ele se isentava da podridão, mas relegado para uma posição de bode expiatório. Só ele era o grande vencido de uma causa perdida.
As perspectivas eram óbvias. Resistir sozinho era impossível. Vencer em conjunto ou perecer sozinho. juntar-se à hoste vitoriosa, significava uma violência espiritual, um perpétuo sofrimento da alma; ficar sozinho, era a morte.
Voltando-se para Wheeler, perguntou com toda a calma:
- George, o que é que pretende de mim? Quer que eu seja um homem como de Vroorne, não é verdade?
-Pretendo que enfrente os factos como de Vroome fez. Os factos e nada mais. Você envolveu-se em joguinhos temerários e precipitados, seguindo suspeitas tolas, bandeando-se com criminosos e falsários... ora tal atitude só o levou a um beco sem saída, não foi capaz de encontrar nada, fora mais uma outra afirmação do valor do Novo Testamento Internacional... e uma multidão de complicações pessoais. Agora deve admitir o seu erro.
E se eu admitir, o que se passará a seguir?
Talvez possamos salvá-lo - respondeu Wheeler cautelosamente. - Deve ter a consciência de como está enterrado até aos olhos perante o tribunal. Tenho a certeza de que o juiz atirará contra si todo o rigor da lei. Irá apodrecer para a prisão, Deus sabe por quanto tempo, em total desgraça e, o que é pior, sem ter lucrado um ceitil. Num futuro muito próximo o mercado para mártires dissidentes deixará de ter qualquer valor. Quando voltar à sala de audiências para escutar o veredicto final, peça para fazer uma declaração. Arranjaremos maneiras do magistrado anuir a esse pedido. Monsieur Fontaine tem grande influência junto da justiça francesa. Além do nosso projecto merecer o maior respeito.
- E que declaração é que deverei fazer, George?
- Muito simples, contanto que seja feita convicta e humildemente, retracte-se do seu depoimento anterior. Declare que ouviu dizer que, em Roma, tinha sido encontrado um fragmento autêntico de papiro, uma das partes perdidas do Evangelho Segundo Jacob. Como membro devotado da Ressurreição Dois, lançou-se imediatamente a caminho para recuperar o fragmento e devolvê-lo aos seus legítimos proprietários. Em Roma, viu que o fragmento se encontrava na posse de um criminoso endurecido., Robert Lebrun, que o roubara ao Professor Augusto Monti. Você acabou por comprá-lo por tuta e meia, sem fazer a mais leve ideia de que o governo italiano objectaria ao fragmento sair de Itália. Você apenas considerava que ele fazia parte dos papiros de Jacob, de Amesterdão. Garanta que não teve qualquer intenção para praticar contrabando de um objecto de arte. Quando os inspectores do aeroporto começaram as suas investigações você entrou em pânico, assustou-se.
Diga que declarou que o fragmento era uma falsificação sem valor apenas para provar que não se encontrava na posse de um tesouro nacional. História arquitectada para se proteger em face das acusações que lhe eram feitas. Diga que foi um erro ocasionado pela ignorância da lei e motivado por um entusiasmo sem limites para com o nosso projecto. Declare que lamenta o incidente e que pede a clemência do tribunal. É tudo o que terá a dizer.
- E se eu contar isso tudo, essa história da carochinha, o que é que o juiz responderá.
-Entrará em consultas connosco, os cinco editores, e com o representante do governo italiano, e não subsistirão mais problemas. 0 juiz aceitará aquilo que lhe recomendarmos. Reduzirá a multa que impôs e suspenderá a sentença, permitindo que você saia do Palácio da justiça como um homem livre, de cabeça levantada, e que se junte a nós para realizar a maior e mais espectacular conferência de imprensa de toda a história, um inesquecível espectáculo que será levado a todo o mundo depois de amanhã de manhã, transmitida da tribuna erguida no Palácio de Real de Amesterdão. Steve, Steve, você entrará para a história, não se esqueça!
-Devo admitir que isso soa bem. Apesar disso, que acontecerá se eu recusar a retractar-me.
0 sorriso desapareceu do rosto de Wheeler.
-Lavamos as nossas mãos. Abandonámo-lo ao juízo do tribunal. Deixaremos de poder manter o seu comportamento em segredo, mesmo de Ogden. Towery e das Empresas Cosmos.
Esperou um momento, para logo em seguida perguntar: -Steve, então que diz?
Randall encolheu os ombros.
-Não sei.
-Depois de tudo ainda não sabe?
-É verdade, simplesmente não sei que dizer.
Wheeler franziu o cenho e deu uma olhadela ao seu pomposo relógio de ouro.
- Tem dez minutos para se resolver - disse sombriamente. Mas talvez seja melhor você passar esses dez minutos com alguém que deve ter mais influência sobre si do que eu. - Encaminhou-se para a porta, abriu-a, fez sinal a alguém que estava no exterior e olhou depois para Randall. - Steve, vai ter a sua última oportunidade. Aproveite-a.
Saiu e, um segundo depois, hesitante, surgiu à porta a figura de Ãngela Monti.
Lentamente, Randall levantou-se. Parecia-lhe que havia decorrido uma vida inteira desde que a vira pela última vez. Ela parecia-se desconcertanternente com a primeira imagem viva que dela tivera - pelo calendário da sua emoção tinham decorrido séculos naquele dia em Milão, quando lhe batera à porta do hotel. Vestia uma blusa de seda, suficientemente transparente para revelar a sombra do soutien rendado. A blusa ligava com uma pregueada saia e entre as duas coisas, a cintura era marcada por um largo cinto de couro, Ãngela tirou os óculos de sol e estudou-o com preocupação, como se esperasse uma palavra de boas-vindas.
0 primeiro instinto de Randall fora de correr para ela, tomá-la nos braços, beijá-la e abrir-lhe o coração.
Mas o coração dele estava corroído pela desconfiança. Wheeler dissera que podia passar os últimos dez minutos com alguém que poderia exercer alguma influência sobre ele. E ali estava Ãngela para o influenciar.
Como único cumprimento, Randall baixou-lhe a cabeça e disse:
- Que grande surpresa...
- Olá, Steve. Não temos muito tempo. Mas deramme licença de te ver.
Ângela atravessou o sombrio aposento. Dado que não o viu fazer o mais leve movimento para a receber de maneira carinhosa c expansiva, aproximou-se de uma cadeira postada em frente de Randall e sentou-se.
- Quem é que te enviou aqui? - perguntou Randall com rudeza. - Foi Wheeler e o resto da Máfia galileica?
Os dedos dela contraíram-se contra a pega da mala de mão. -Pelo que vejo nada mudou, com excepção de que te encontras ainda mais refinado no azedume. Não, Steve, ninguém me mandou cá. Vim de Amesterdão para te ver por iniciativa própria. Ouvi contar o que aconteceu. Ontem à noite, depois de teres sido preso, Naorni telefonou-me por causa de certa informação e nessa altura contou-me as tuas complicações. Ao que parece, foi o Dominee de Vroorne quem convocou os editores a Paris. Naorni disse-me que eles iam partir e perguntou-me se não queria utilizar o mesmo avião que eles.
- Mas não te vi na sala de audiências.
- Não, não quis ir para lá. Não tenho pretensões a Maria, nem sinto um gosto particular por assistir chorosa a martírios e gólgotas. Suspeitei aquilo que poderia suceder. Ontem à noite, Wheeler, depois de ter finalizado a sua entrevista com de Vroorne, fez-me uma visita e contou-me tudo o que os editores ouviram da boca do Reverendo. E ainda há pouco, quando Wheeler veio falar contigo, Naorni relatou-me tudo o que se passou na audiência. Randall sentou-se.
- Sabes então que eles estão a tentar crucificar-me. Não só Wheeler e o seu bando como também de Vroorne.
- Sim, Steve, como já disse, receava aquilo que pudesse acontecer. E pelo que Naorni me contou parece que as minhas previsões estavam certas.
- Sabes que Wheeler apelou para mim, o herege, a fim de me retractar, de dar o dito por não dito, para voltar de novo a juntar-me à Ressurreição Dois?
- Não me surpreende - respondeu Ãngela. - eles precisam de ti.
-Precisam de opiniões unânimes. Não querem foriadores de complicações. - Reparou que ela tinha um ar desconsolado, inconfortável, e quis desafiá-la, -E quanto a ti? 0 que é que tu pretendes?
- Para já quero que saibas que, seja o que for que decidas, os meus sentimentos para contigo não se modificarão.
-Mesmo que eu continue a atácar a descoberta de teu pai? Mesmo que tenha êxito em expor ao mundo a mentira e destruir o projecto... e com ele a reputação de teu pai?
0 belo rosto italiano enrijeceu.
- A reputação de meu pai deixou de constituir problema.
0 problema agora é a vida ou a morte da esperança. Sei que tu encontraste Robert Lebrun e que te juntaste a ele, tal como de Vroome já havia feito. Mas isso não me forçará a voltar-te as costas. Como vês continuo aqui a teu lado.
Porquê? Para que fiques a saber que mesmo que não tenhas fé
- que não tenhas fé naquilo que meu pai encontrou, naqueles que apoiam essa descoberta, ou até mesmo que não tenhas fé em mim podes ainda encontrar o caminho justo, recto e bom.
- 0 caminho justo? - repetiu Randall iradamente, elevando a voz. - Queres dizer o mesmo caminho seguido por Vroome? Pretendes então que eu me venda como fez de Vroorne?
- Como é que podes ter a certeza que de Vroorne se vendeu, como tu dizes? - Ãngela tentava ser razoável. - Não crês que de Vroorne seja um homem decente e de fé?
- Pode ser que sim, que seja isso tudo - concedeu Randall. Mas de qualquer modo manteve o preço dele: o Conselho Mundial das Igrejas. Claro, podes continuar a chamar-lhe decente se sentires que quaisquer meios são justificados para se atingir um fim, seja ele qual for.
- Steve, então tu também não pensas assim? Não acreditas que o fim é realmente o que conta-se os meios utilizados para lá chegar não prejudicam ninguém?
-Não-disse ele com firmeza-, não acredito se o fim a atingir for uma mentira. Seja o que for que se atinja será um prejuízo para toda a gente.
- Steve, Steve, mas tu não possuis a mais leve prova, nem o mais pequeno átomo que leve a concluir que os relatos de Jacob e Petrónio a respeito de Cristo sejam uma mentira. Alimentas apenas suspeitas. Estás sozinho nessas dúvidas.
Randall começou a agitar-se no seu lugar.
- Ãngela, se eu não tivesse ficado sozinho em Roma - se nestes últimos dias tivesses estado junto de mim - também agora alinharias do meu lado. Se pudesses ter conhecido e ouvido falar Lebrun, se tivesses passado por tudo o que a seguir aconteceu, os teus olhos já estariam abertos e não poderias manter essa cegueira. Se tivesses estado comigo, farias a ti própria perguntas difíceis e duras e acabarias por receber respostas duríssimas. Perguntarias como é que é que um homem como Lebrun, que conseguiu sobreviver a toda a espécie de brutalidades para atingir os oitenta anos sempre alerta e ainda cheio de vigor, um homem que vivia há tantos anos em Roma, poderia descuidar-se de tal maneira a atravessar uma praça que se fosse meter debaixo do rodado de um automóvel que o matou; e veículo que fugiu a toda a velocidade, precisamente no mesmo dia em que deveria ir buscar a prova da sua falsificação para me entregar? Agora já posso pensar como o «acidente» foi possível. Wheeler e os editores, ou de Vrome agora posso falar deles como de um todo - mantinham-se sob vigilância. Tal como de Vroorne sabia que eu tinha ido visitar o teu pai à clínica para doentes mentais, tinha todos os meios à sua disposição para saber perfeitamente que eu tentaria tudo por tudo para encontrar Lebrun. Possivelmente mandaram alguém andar a espiar-me. Provavelmente o meu encontro com Lebrun. no café Doney e a nossa entrevista no meu quarto do Excelsior foram reportados. Não duvido que Lebrun, tivesse sido seguido até casa. E, no dia seguinte, foi liquidado sem piedade. Ãngela, nós não vivemos num mundo de contos de fada onde os valores da vida humana são todos igualmente altos. Nem vivemos num mundo encantado em que os bons triunfam sempre e os maus são sempre castigados. Não, estamos num mundo cruel, cinico, impiedoso, mundo em que a vida de um pobre diabo, de um ex-condenado nada vale se a sua morte servir para promover uma maior glória de Cristo, para salvar a igreja e para melhorar a venda de milhões de bíblias e até para instalar um novo conspirador no mais alto lugar da hierarquia protestante,
- Steve...
- Não, espera, ouve o que tenho a dizer, mais uma pergunta
- de facto, uma pergunta que engloba muitas outras. Quem é que sabia que eu tinha ido a Ostia Antica; quem sabia que eu tinha descoberto o fragmento de papiro; e quem é que forneceu ao governo italiano o indício para telefonar para a alfândega do aeroporto de Orly a dizer que eu transportava comigo essa prova da mistificação? Agora as respostas já não oferecem dúvidas. Só de Vroome sabia que Lebrun possuía um tal fragmento. Depois, por mim, de Vroorne soube que o fragmento estava na minha posse. De Vroome dirigiu-se a Wheeler, Deichhardt, Fontaine e aos outros e entrou em negociações, apresentou exigências e uniram-se todos para me mandarem apanhar no aeroporto de Orly a fim de eliminarem a prova da falsificação e, de uma assentada, eliminarem-me também a mim. Pensa bem nestas perguntas, Ãngela,, e não me digas que elas não te preocupam também.
Durante alguns segundos, Ãngela deu voltas nas mãos à malinha, nervosa.
- Steve, como é que hei-de falar contigo? Falamos dois idiomas diferentes-a tua linguagem é a do cepticismo, a minha é a da fé -de modo que as nossas respostas às mesmas perguntas traduzem-se diferentemente. Quanto à morte de Lebrun no dia em que te ia ajudar? Será assim tão raro Para um velho, com mais de oitenta anos, a passear distraído pelas ruas de Roma ser atropelado por um automóvel? Steve, eu sou uma romana. Leio e ouço o que se passa diariamente na nossa cidade. Os motoristas de Roma são os mais descuidados e se.Ivagens da Europa. Existe lá um carro por cada quatro pessoas. 0 caso do condutor atropelar um velhote e fugir? Uma ocorrência vulgar, nem uma conspiração nem um crime. De Vroome, Wheeler e o Dr. Jeffries assassinos? Só imaginá-lo já é absurdo. Quanto a tu teres sido apanhado na alfândega? 0 governo italiano possui muitos agentes em volta dos seus tesouros nacionais. Foste visto a fugir de Ostia Antica, o que seria uma coisa suficiente para despertar as atenções. Mas mesmo que tivessem sido os homens da Ressurreição
que elaborassem a tua prisão. Seria uma maldade deliberada ou uma coisa ilógica? Eles tinham que ver, que saber aquilo que havias descoberto, antes que tu chegasses a conclusões e fizesses mau uso da fragmento. Tinham que mandar confiscar, submeter a experiências e examinar o bocado de papiro. Tivesse o fragmento mostrado a prova de urna falsificação, estou convencida que te mandariam entregar o fragmento e que adiariam ou parariam com a publicação do Novo Testamento Internacional. Mas quando souberam, através precisamente daquele que tu tinhas escolhido como perito, que o fragmento era afinal um bocado de um dos papiros já descobertos por meu pai, claro que tinham que te fazer parar, que te deter, que se queixarem de ti e impedirm um escândalo imerecido. Steve, então não vês? A linguagem da fé fornece respostas diferentes.
- Muito bem, então poderá a fé fornecer resposta cabal a uma pergunta que ainda não fiz?
Ãngela manifestou-se intrigada.
- Que pergunta é? Vamos, diz.
- Como é que um certo Professor Augusto Monti resolveu ir escavar em Ostia Antica?
Ela pareceu ter ficado confusa.
- Porque uma pessoa encontrou um pedaço de papiro fora das ruínas, há seis anos, e mostrou-o ao Professor.
- Não sabias que tinha sido Lebrun quem forneceu a pista a teu pai?
-Não. Nunca ouvi pronunciar esse nome até Wheeler o ter mencionado a noite passada.
- Não sabias que Lebrun se encontrou com o teu pai no Doney no ano pasado, precisamente no dia em que o teu pai perdeu a consciência?
- Não. Nada sabia até ontem, altura em que Wheeler me contou que tu afirmas ter visto uni apontamento na agenda de meu pai a marcar tal encontro.
-E não vês nada de raro nisso? Nada de suspeito?
- Não. Meu pai lidava com a mais variada casta de pessoas. Aconteceu ter uma certa entrevista com determinada pessoa como já tinha tido tantas em dias anteriores.
- Muito bem, Ângela, deixa-me experimentar a tua fé. Estarias pronta a dizer ao juiz que o teu pai se encontrou com Lebrun, no ano passado? Seria uma coisa que estabeleceria uma relaçao entre teu pai e Lebrun. Lançaria dúvidas no caso, e poderia levar q uma nova busca da verdade definitiva. Tens suficiente fé para fazeres isso?
Ela abanou a cabeça.
- Steve, já revelei ao juiz tudo o que sabia, juntamente com os depoimentos feitos pelos directores do projecto. Ontem à noite telefonei para Roma, para a Lucrezia e mandei-a lerme a anotação na agenda. Toda a gente, incluindo o próprio magistrado, achou que as iniciais «R. L.» seriam uma prova muito pouco conclusiva. Mas mesmo que as iniciais quisessem dizer Robert Lebrun, o que é que isso de facto poderia provar? Seja como for, quis que o juiz soubesse do caso. Como vês, Steve, não devo nem temo. Quando uma pessoa tem fé, não tem medo da verdade.
Até aquela possibilidade se perdia. Sentiu esmagadoramente o peso das circunstâncias. Perdera. Mas ainda restava uma tábua para se agarrar.
- Serias capaz de dar essa informação a uma outra pessoa?
- A quem?
-A Cedric Plummer. Serias capaz de confirmar aquilo que Plummer apenas soube pela boca de Lebrun: que na verdade teu pai se encontrou com Lebrun no Doney?
Ela levantou as mãos.
- Steve, Steve, basta! Plummer também já sabe esse pormenor. Plummer já sabe tudo. E não vê nada de suspeito nesse facto. Quando o Domince de Vroorne se juntou à Ressurreição Dois, pois Plummer seguiu-lhe o exemplo. Converteu-se, pôs de lado a sua venenosa caneta, e agora vai escrever, em exclusivo, a história de todo o projecto, desde a descoberta de meu pai há seis anos até hoje.
Randali afundou-se positivamente na sua cadeira. Era demasiado. Cada palmo de território inimigo estava guarnecido, fora invadido e bem ocupado. Significava que Herr Hennig já nada tinha a recear. A chantagem de Plummer com Hennig para obtenção antecipada de um exemplar do Novo Testamento Internacional, para desvendar a fraude ao mundo, terminara em beleza, com todos amiguinhos de todos. Exemplar.
Voltou a cara para o lado. Bateram à porta e ela abriu-se.
0 oficial de diligências meteu a cabeça pela frincha:
-Monsieur RandalI, chegou a altura de veredicto. Randal levantou-se.
-Só mais alguns segundos-pediu. Ãngela também se levantara. Mais uma vez ele defrontou-a. -Queres que me desminta, hem? Ela pôs os óculos de sol.
-Quero que tu faças aquilo que deves fazer, sem tirar nem pôr.-Parou, parecendo querer dizer algo que se tornava difícil, mas finalmente concluiu.-Na verdade vim aqui para te dizer, quem quer que tu sejas, e quem quer que venhas a ser, que te podia amar... se tu em troca aprendesses a dar amor: primeiro amando-te a ti mesmo, depois amando-me a mim. Mas isso é uma coisa que nunca conseguirás aprender enquanto não tiveres fé, fé na humanidade e no futuro. Lamento por ti, Steve, mas ainda lamento mais por nós. Seria capaz de sacrificar tudo por ti, tudo... com excepção da fé. Tenho esperança que virás a compreender algum dia. Agora faz aquilo que te parecer, justo.
Ãngela saiu a correr do aposento. Randall ficou só.
-Monsieur RandalI, deseja fazer qualquer declaração antes de pronunciar o veredicto?
-Desejo, Excelência -respondeu Randall à solicitação do magistrado. -Passei em revista todo o depoimento que fiz a este tribunal. Pretendo dizer que fui a Roma sem intenção de prejudicar a Ressurreição Dois ou o Novo Testamento Internacional, mas somente com o motivo de verificar, de investigar, tanto por mim como por conta dos directores do projecto. Pretendia que tudo funcionasse sem que pudesse haver a mais leve sombra de dúvida a manchar a descoberta de um novo mas verdadeiro Jesus Cristo.
Reparou que Wheeler, os seus colegas editores e até Ãngela, esticavam os pescoços para ouvirem melhor a sua declaração. Randall olhou com firmeza para o juiz.
- Aquilo que ouvi em Roma, aquilo que vi com os meus olhos, tudo o que se passou contribuiu para me radicar no convencimento de que o fragmento de papiro que trouxe para Paris, bem como todo o resto da colecção de papiros que servem de base ao Novo Testamento Internacional, além do pergaminho, correspondem a uma mistificação moderna, uma aldrabice, uma fraude, tudo fabricado pela mão de um falsário genial. Acredito que os produtos do achado do Professor Monti não valem um pataco e que o Jesus apresentado pelo suposto Jacob o justo e pelo inventado Petrónio constituem uma imagem falsa de um Cristo espúrio. Não obstante anteriores depoimentos em contrário, continuo a manter que a prova que tinha comigo quando entrei em França é uma falsificação sem qualquer valor, volto a repetir, e que por conseguinte eu não cometi qualquer crime contra o disposto pela lei. Confio que o tribunal, tendo em consideração tudo aquilo que sei de fonte fidedigna e com o único intuito de investigar a verdade das coisas, investigações que não foram motivadas por qualquer lucro pessoal, me considere inocente. Além disso, rogo ao douto tribunal que me confira a posse do fragmento do Papiro Número 3, o qual, em certo sentido constitui um legado que me foi feito por Robert Lebrun. E pretendo esse documento para poder mandar examinar o seu conteúdo por peritos mais objectivos e mais verdadeiros que existam no mundo. Nada mais tenho a dizer.
-Terminou a sua declaração, Monsieur Randall?
- Terminei.
- Muito bem. 0 réu falou em sua defesa. Vou agora proferir a sentença do seu caso. -0 juiz Le Clere folheou alguns papéis que tinha em cima da secretária. - 0 réu estava pronunciado por dois atropelos à lei. Ora no caso de ser julgado por distúrbios públicos, resistência à autoridade e agressão a um agente da polícia, com respeito a essa acusação o tribunal resolveu tomar em consideração o facto do réu possuir um cadastro criminal limpo no seu país, tomando também em linha de conta as circunstâncias especiais de que se revestiu a sua prisão. Quanto à pronúncia de ter tentado introduzir em França, sem declaração adequada, um documento antigo de valor inestimável, que constitui um tesouro sem preço do país de onde foi contrabandeado... Randall susteve a respiração.
-...declaro que o tribunal, em face de depoimentos do maior valor e peritagem, tem o documento como verdadeiro e que, por conseguinte, o réu é culpado tal como o apontado na acusação que o trouxe a este tribunal.
Randall aguardou o resto, rígido. Pensou que estava só.
0 magistrado continuou:
-0 réu, Steve RandalI, é multado em cinco mil francos e condenado a três meses de prisão, mas em vista da afirmação, que nos pareceu sincera, do réu dizer que não cometeu deliberadamente atropelos à lei, e tendo em consideração certo pedido feito a este tribunal pelos empregadores do réu, a multa e a condenação a prisão ficam em suspenso. No entanto, de modo a oferecermos adequada protecção aos queixosos e para impedir novas perturbações da ordem pública, o réu voltará temporariamente para a sua cela onde cumprirá dois dias de cárcere até que seja feita a declaração pública do Novo Testamento Internacional. Daqui a quarenta e oito horas-na sexta-feira à tarde, ou seja depois de amanhã - o réu será escoltado pela policia até ao aeroporto de Orly onde, por sua própria conta, tomará lugar num voo em direcção aos Estados Unidos, sendo pois expulso de França como persona non gratz
0 magistrado pigarreou para aclarar a garganta.
- Quanto ao pedido que fez a este tribunal, Monsieur RandalI, para lhe ser entregue o fragmento de papiro que originou este julgamento, o tribunal indefere o pedido. Uma vez que foi estabelecida a necessária autenticidade, o papiro confiscado será entregue, por incumbência do governo italiano, aos directores da Companhia do Novo Testamento Internacional, também conhecida como Ressurreição Dois, para que eles façam do fragmento aquilo que muito bem entenderem.
Bateu uma palmada em cima do tampo da secretária. -Terminou o julgamento de inquérito e instrução. Vindos de algures, surgiram dois agents de police. Randall sentiu o frio de um objecto metálico nos pulsos e viu que tinha sido algemado.
Os seus olhos dirigiram-se para os bancos em frente, evitando Ãngela, mas observando os jubilantes Wheeler, Deichhardt e Fontaine, que formavam um cacho humano em volta de Dominee de Vroome.
Enquanto observava aquele quadro, Randall sentiu-se dominado por um pensamento. Sacrílego ou não, tal pensamento dominava-o por completo, acendendo-lhe letras de fogo no cérebro.
Pai, perdoa-lhes; porque eles não sabem o que fazem. Impunha-se todavia uma emenda: -Pai, perdoa-lhes não pelo que fazem, mas pelo que vão fazer ao Espírito Santo, pelo mal que irão fazer a uma humanidade crédula e inocente em todo o vasto mundo.
Meia hora depois, quando voltou para a cela, Randall passou por outro momento crucial-não tão mau como o anterior, mas de certa forma chocante e quase inacreditável.
Tinha sido condenado à expulsão de França, como pessoa indesejável, tendo de pagar as despesas do próprio bolso. 0 Inspector Bavoux, da Guarda Republicana, pedira-lhe o dinheiro para lhe comprar o bilhete de avião com destino a Nova Iorque. Randall pesquisara a carteira e os cheques de viagem e dera-se conta que não tinha consigo a soma necessária. 0 Inspector avisara-o que seria melhor arranjar o dinheiro o mais depressa possível.
Randall lembrara"se que não trouxera consigo os 20 000 dólares que havia colocado nos cofres do Hotel Excelsior em Roma. Antes de partir para Paris arranjara maneira do hotel lhe transferira a quantia para a sua conta de Nova Iorque, pagando ele todas as despesas. Não tendo o dinheiro necessário, o seu primeiro pensamento fora telefonar para Thad Crawley ou para Wanda, mas logo a seguir recordara-se que possuía um amigo íntimo em Paris.
E assim, do gabinete do carcereiro, telefonara para Sam Halsey na Associated Press.
Sem entrar em todos os pormenores complicados da Ressurreição Dois, do Novo Testamento Internacional e dos negócios com o defunto Lebrun, Randall disse a Halsey que fora preso no dia anterior no aeroporto de Orly por ser portador de um objecto de arte que não declarara à alfândega. Tratara-se de um erro, mas a verdade é que estava preso no Depósito de presos do Palácio da justiça.
-Sam, preciso de algum dinheiro. Neste momento não tenho massa que chegue. Logo que chegue aos Estados Unidos envio-te o dinheiro.
-Precisas de dinheiro? Quanto? Fala homem. Randall mencionou a importância.
-Vou-te enviar imediatamente o que pedes-garantiu Halsey. - Eh, Steve, espera um bocadinho, ainda não me contaste tudo... Declarastete culpado ou não culpado?
-Não culpado, evidentemente. -Bem, e quando é que é o julgamento?
- Já fui julgado. Fui a julgamento esta manhã e o juiz declarou-me culpado. Fui condenado a prisão e a uma multa, mas a sentença ficou suspensa. Aquilo que trouxe de Itália foi confiscado e vou ser expulso de França. É por isso que preciso do dinheiro.
Do outro lado do fio houve uma longa pausa.
-Vamos lá ver as coisas com calma, O.K., Steve? Foste preso... quando?
-Ontem à noite.
- E julgado e condenado esta manhã?
- Exactamente, Sam.
- Aguenta um bocado, Steve... um de nós deve estar maluco... É impossível, isso não pode ser... as coisas em França não correm assim. Parece melhor que me contes tudo o que sucedeu esta manhã.
Com simplicidade e numa exposição breve-tendo consciência dos guardas que o cercavam, Randall relatou a Halsey tudo o que se passara na sessão perante o juge d'instruction, falando do veredicto e da condenação final.
- Mas... isso não pode ser... não pode, é uma coisa sem pés nem cabeça. Steve, tens a certeza de que sucedeu exactamente como me contas?
-Sam, por amor de Deus, foi precisamente o que aconteceu. Tudo isto se passou nestas últimas horas. Qual seria o meu interesse em te mentir?
- Meu Deus! - exclamou Halsey. - Meu Deus, em todos os anos que tenho vivido em Paris claro que já me chagaram aos ouvidos rumores de julgamentos fictícios, julgamentos de intimidação... só rumores... mas agora foi a primeira vez que ouvi falar claramente de semelhante abuso.
Randall ficou espantado pelas palavras do amigo.
-Eh... que raio queres tu dizer? 0 que é que houve de errado?
-Steve, escuta, meu inocente pacóvio americano, foste enro" lado como um anjinho. Então não sabes nada a respeito do funcionamento da lei em França? Evidentemente que podes ser preso e incriminado por determinado crime. Claro está que terás de comparecer perante um juge d'instructian para seres ouvido, mas tratar-se-á apenas de um exame preliminar. 0 juiz de instrução não tem o mínimo poder judicial para pronunciar qualquer sentença nem para emitir veredictos finais. 0 juiz de instrução tem como dever manter ou não as acusaç5es segundo o crime e, no caso da pronúncia ser mantida, passar o caso às instancias superiores.
No caso da pronúncia mantida levar-te-ia pelo menos seis meses a um ano a compareceres em tribunal perante uma junta de três juizes do Tribunal Correccional. Aí, sim, nesse tribunal colectivo explanar-se-á um julgamento com todos os requisitos, advogados de defesa, de acusação, acta de registo, etc., até à decisão do veredicto final. Um julgamento rápido só pode ser possível quando uma pessoa é apanhada flagrante delito, sem que haja a mais leve sombra de dúvida para o crime cometido. Só apanhado com a boca na botija é que alguém poderá ser levado a julgamento imediato, mas um julgamento onde se responde perante um tribunal colectivo e com a assistência de advogado de acusação e defesa, etc. Mas ao que parece tu não foste apanhado em flagrante delito, pois não?...
- Não. Na verdade não foi isso que sucedeu.
- Bom... aquilo que te sucedeu parece uma mistura coxa e bastarda das duas formas processuais de julgamento... masuma coisa que nada tem a ver com as leis francesas, pelo menos segundo aquilo que aprendi.
Randall lembrou-se que a polícia lhe oferecera uma oportunidade de mandar chamar um advogado, provavelmente para o desarmarem, para lhe impedir qualquer suspeita. Mas logo a seguir os agentes haviam-lhe mostrado as coisas difíceis, dizendo4he que o julgamento teria que ser demorado se solicitasse conselho de defesa legal. Mas... e se tivesse arranjado um advogado, alguma coisa se teria modificado? Não, obviamente não; tudo teria então sido arranjado de modo a que as coisas se passassem dentro de um aspecto de legalidade conforme às leis, mas sem dúvida que as pessoas de poder ilimitado teria feito com que fosse à mesma condenado.
-Steve, não há dúvida que te armaram uma ratoeira e caíste como um patinho - disse Halsey do outro lado. - Por tudo o que contaste afigura-se-me que alguém alcandorado muito lá no alto tenha usado da sua influência para te afastar do caminho, mas afastar-te de uma maneira calma, silenciosa, sem muito alarido público. Desconheço aquilo em que estás envolvido, mas certamente que isso deve ter afectado alguém muito importante.
-Tens razão. Os meus assuntos abalaram alguém muito importante... ou melhor vários alguéns muito importantes.
- Steve, queres que eu me misture nessa coisa?
Randal considerou por momentos a intervenção do amigo no caso. Finalmente perguntou:
- Sam, gostas de trabalhar em França, na Europa? -Porque é que fazes essa pergunta? Sabes bem que gosto do trabalho que faço aqui, adoro"o.
-Então não te metas no meu assunto. -Mas, Steve, e quanto à justiça?
- Deixa isso a meu cargo, Sam. - Fez uma pausa. - Aprecio imenso o que tentaste fazer, acredita, Agora envia-me o dinheiro se fazes favor.
Desligou. justiça... Liberté, Égalité, Fraternité...
Mas de repente teve a noção que tais palavras constituíam uma promessa somente relativa à França e ele não havia sido julgado pela França nem pelo poder de um simples governo. Fora julgado e condenado por um poder superior, por algo que se elevava acima das meras formalidades da justiça humana - a Ressurreição Dois.
Naquela sexta"feira, dia da sua libertação, tudo parecia efervescente. Era a história mais grandiosa que Randall conhecera em toda a sua vida.
Em boa verdade, embora vasculhasse lá no fundo da memória, não se podia lembrar de nada que pudesse ultrapassar aquilo em cobertura, atenção e desenvolvimento.
Recordava-se de coisas emotivos e momentosas, tais como o ataque japonês a Pearl Harbour, a queda de Berlim e a morte de Hitler, o lançamento do sputnik para o espaço exterior, o assassinato do presidente Kennedy e o primeiro passo dado pelo homem na Lua por intermédio do astronauta Neil Armstrong, mas nada que se comparasse ao ambiente electrizante produzido pela declaração do Palácio Real de Amesterdão de que Cristo vivera indesnientivelmente na terra não só como um ser humano mas também como um mensageiro espiritual do Criador.
Randall andara absorvido durante tantos dias por problemas de conceitos processuais e dilemas sobre verdade e autenticidade, andara tão preocupado pela sua própria sobrevivência que quase esquecera o impacto que o Evangelho Segundo Jacob e o Pergaminho Petrónio poderiam ter sobre milhões e milhões de seres humanos permeáveis ao milagre e às soluções religiosas de salvação.
Mas durante todo o tempo que o Citroên da polícia levara a percorrer a distância entre o Palácio de justiça e o aeroporto de Orly tivera oportunidade de observar a prova da reacção pública a esse milagre histórico, prova evidente em cada esquina de rua, em cada café, em cada vitrina de loja.
Tanto franceses como turistas estrangeiros pejavam as ruas de Paris. As pessoas, avidamente, devoravam os jornais, escutavam os transistores ou congregavam-se em frente dos locais onde havia aparelhos de televisão para poderem seguir o desenrolar do grande acontecimento.
No automóvel da polícia em que seguia juntamente com três agentes, Randall sentia-se como que um comparsa menor e olvividado do drama que se estava a representar.
Ia sentado no banco traseiro do carro ladeado pelos agentes Gorin e Lefèvre, ambos completamente absorvidos na leitura das edições especiais de Le Figaro, Combat, Le Monde e L'Aurare, que ocupavam grande parte dos jornais à declaração de Amesterdão. Randall deitou uma rápida vista de olhos aos cabeçalhos. CRISTO VOLTA PARA JUNTO DE NõS!
CRISTO RESSUSCITADO DEVIDO A UMA NOVA DESCOBERTA!
Por baixo das gigantescas parangonas viam-se fotografias de três dos papiros originais dos documentos e Jacob, do pergaminho de Petrónio, do local da escavação em Ostia Antica e do retrato revisto de Jesus Cristo tal como Ele era descrito pelo irmão e como figurava na capa do Novo Testamento Internacional.
No lugar da frente, o agente que guiava o carro ia absorvido a escutar o rádio. Alguém de Amesterdão fazia comentários prelim minares a anteceder a principal declaração.
Ocasionalmente, os dois polícias que ladeavam Randall liam um ao outro em voz alta certas notícias que lhes pareciam mais importantes e significativas e, por vezes, conscientes do inadequado francês de Randall faziam rápidas e libérrimas traduções para inglês. Por aquilo que Randall pôde entender, o relato dos jornais a respeito do Novo Testamento Internacional, com a sua história de Jesus Cristo escrita por seu irmão Jacob e a história do julgamento de Cristo escrita por um centurião romano, baseava-se em notícias antecipadas, embora limitadas, libertadas na noite passada para a imprensa mundial. Os pormenores completos seriam apresentados a partir de uma tribuna erguida no Bugerzaal - salão nobre - do Palácio Real de Amesterdão. À revelação assistiriam dois mil jornalistas dos principais órgãos de informação distribuídos no mundo civilizado, mas além disso o impacto seria levado directamente a biliões de telespectadores nos quatro cantos do globo por meio do Intelsat-5, um satélite provido de 1900 circuitos independentes em funcionamento com toda uma rede de rastreio à escala mundial.
Em certa ocasião da viagem até ao aeroporto, o agente chamado Lefèvre trocara algumas palavras pessoais com Randall. Pousara repentinamente o jornal, olhara para Randall com incredulidade e perguntara-lhe:
- Então o senhor não fazia parte de tudo isto?
- Sim, pertenci à Ressurreição Dois.
-Mas então porque é que o deportam?
- Porque são malucos - respondeu Randall, que acrescentou: -E porque eu não acredito na obra deles.
Lefévre arregalou os olhos.
-Nesse caso deve ser o senhor quem é maluco.
Pararam diante do terminal do aeroporto de Orly. Lefèvre abrira a porta e saíra do veículo a fim de ajudar Randall. Devido a estar preso a Gorin, Randall ao fazer um movimento em falso aleijara o pulso. A dor fizera com que se lembrasse da sua condição.
0 piso térreo do terminal do aeroporto, sempre barulhento, estava no mais absoluto silêncio. Para servir passageiros, visitantes e até o seu próprio pessoal, a Air France colocara vários aparelhos de televisão pela principal área de recepção. Junto desses aparelhos aglomeravam-se as pessoas em colunas a vinte de fundo. Até mesmo nos balcões de controlo de bilhetes e informações, tanto clientes como pessoal tratavam dos seus assuntos, um pouco alheadamente, enquanto prestavam atenção aos aparelhos portáteis.
0 agente Lefèvre foi buscar a marcação de Randall para o voo transatlântico, confirmando ao mesmo tempo a tabela horária. Ora enquanto ele se dirigia para um dos balcões, Gorin, o outro agente, chegara-se junto de um denso aglomeramento para deitar uma vista de olhos às imagens que apareciam na televisão. RandalI, ligado a ele pelo pulso, foi obrigado a segui-lo.
Estendendo o pescoço por entre as cabeças dos espectadores, Randall tentou ver as imagens que se projectavam na pequena tela ao mesmo tempo que ia ouvindo a voz do comentador, primeiro falando em francês e depois em inglês, os dois idiomas oficiais adoptados para fazer a declaração ao mundo civilizado.
Uma das câmaras vasculhava o interior do salão nobre do Palácio Real de Amesterdão, mostrando, fila a fila, a aglomeração dos homens da imprensa e dos vários dignitários convidados para a cerimónia. As imagens das pessoas que enchiam a sala eram alternadas com as imagens das belezas arquitectónicas e decorativas do salão. As típicas janelas, formando uma espécie de vãos abobadados, fechadas por tabuinhas castanhas, cada uma exibindo uma magnífica flor dourada no centro, foram percorridas em pormenor nos close-ups. Depois foi a vez dos seis gigantescos lustres de cristal suspensos do tecto por cadeias de oiro, que haviam pertencido ao Imperador Luís Napoleão, e a seguir o maravilhoso piso de mármore cintilante como um espelho.
Do ambiente as câmaras desceram aos motivos humanos e a tribuna foi focada, mostrando cada um dos homens de destaque da Ressurreição Dois como se fossem os bonzos detentores da verdade fundamental, da pedra filosofal. Ali estavam todos os próceres sentados nas suas sumptuosas cadeiras de veludo encarnado. Formavam um semicírculo e a voz do comentador foi-os identificando respeitosamente: Dr. Deichhardt, Whecler, Fontaine, Sír Trevor, Gayda; depois o Dr. Jeffries, o Dr. Knight, Monsenhor Riccardi, o Reverendo Zachery, o Dr. Trautmann, o Professor Sobrier, o Dominee de Vroorne, o Professor Hubert, Hennig e, finalmente, como a bela entre os monstros, Angela Monti (representando seu pai doente, o Professor Monti, o arqueólogo italiano, segundo explicou a voz do comentador).
Eis o Dr. Deichhardt que se encaminhava para o primeiro plano da plataforma, subindo à tribuna, ornamentada com panos de cetim, onde se via tecida unia enorme cruz.
0 Dr. Deichhardt lia em voz alta a pormenorizada declaração da descoberta do Evangelho de Jacob e o relato do centurião Petrónio sobre o julgamento de Cristo. Fornecia uma notícia resumida do conteúdo dos dois documentos, exibindo na mão (primeiro plano) um exemplar do Novo Testamento Internacional que seria oficialmente publicado a partir daquele dia histórico.
Randall sentiu que lhe puxavam pela manga. Era o agente Lefevre que lhe mostrava o bilhete.
- Não o perca ou terá de voltar para a cadeia - avisou. Enfiou o bilhete no bolso do casaco de Randall e voltou"se depois para o colega, murmurando:
- Temos quinze minutos antes de o metermos no avião. Vamos ver a televisão para a sala de espera onde ao menos nos podemos sentar.
Minutos depois, entrando na sala de espera da primeira classe situada no terceiro piso, Randall ficou espantado com o que observava. Nunca havia sido testemunha de nada como aquilo.
A sala estava completamente apinhada, viam-se espectadores não só sentados nas mesas do bar, nos bancos corridos, como também sentados no chão alcatifado. Algumas pessoas choravam, comportando-se precisamente como Peregrinos de visita à gruta de Lourdes ou a Fátima. Viam-se os lábios a murmurarem orações e rostos pios como que transfigurados a fixarem a tela dos aparelhos de televisão. Num canto houve uma súbita agitação, alguém pedia socorro para uma mulher que desmaiara de comoção.
Não se via um único lugar disponível, mas um dos criados do bar arranjou modo de os conseguir. Randall lembrou"se que para a polícia acabavam sempre por aparecer lugares.
Como que entorpecido por todo aquele espectáculo deprimente, Randall sentou-se alinhadamente com o seu <siamês» forçado, o agente Gorin, e lançou um olhar em volta de si perguntando-se se alguém daria fé das suas algemas. Mas o facto é que ninguém ali em redor estava interessado noutra coisa que não fosse o pequeno «écran» dos receptores.
Randall lançou um olhar para um dos aparelhos mais próximos e viu imediatamente aquilo que motivava a reacção emocional que engolfava toda aquela gente.
0 aspecto ascético do Domince Maertin de Vroome, envolto nas suas vestes talares, imponente na sua magreza e rosto cheio de religiosidade, avultava no «écran». Da tribuna do Palácio Real de Amesterdão, de Vroorne lia em francês, as páginas do Novo Testamento Internacional, do livro que tinha aberto diante de si, sublinhando com voz prenhe de emoção as grandes passagens do Evangelho Segundo Jacob (enquanto uma bateria de intérpretes traduzia instantaneamente as suas palavras noutros idiomas principais destinados à compreensão dos biliões de espectadores em todo o mundo). A sua sonora recitação da Palavra ressoava pela sala como se se tratasse da voz do próprio Senhor, de tal maneira que até as orações e os soluços se suspenderam.
A certa distância, ouviu"se o sistema interno de comunicações, abafando por momentos a declaração televisiva, a anunciar um voo prestes a partir. 0 agente Lefèvre esmagou a ponta do cigarro no mais próximo cinzeiro e fez um sinal a Randall.
-Chegou o momento.
De caminho, de todas as direcções, lhes chegavam os sons zumbidores das televisões e dos rádios de transistores com uma persistência alucinante.
Na rampa de embarque, viam-se os passageiros que se preparavam para entrar a bordo do grande jacto intercontinental. Enquanto Gorin se afastava um pouco com Randall, Lefévre entrou numa consulta sussurrante com um funcionário da companhia de aviação. Regressou pouco depois a explicar:
- Monsieur RandalI, temos instruções para que seja a última pessoa a entrar a bordo. Temos que esperar ainda uns quantos minutos.
Randall fez um gesto aquiescente com a cabeça e olhou para a esquerda. Até mesmo ali, quase à beira da partida, estava em funcionamento um televisor portátil, com a sua assembleia de seguidores, a maior parte deles passageiros em trânsito entre dois voos, que engoliam o último bocado de uma refeição em terra, enquanto não embarcavam de novo. Randall tentou apanhar as várias cenas que se seguiam com rapidez, numa sucessão de imagens.
Grandes planos de dirigentes mundiais a proferirem breves comentários, a congratularem a humanidade em geral por poderem ter oportunidade maravilhosa de receberem o Cristo na verdade Ressuscitado, o Cristo Regressado ao grémio dos homens. 0 Papa da sua varanda sobranceira à Praça de S. Pedro a abençoar os peregrinos, o presidente da França nos jardins do Eliseu, a família real britânica no palácio de BucIdngham e o presidente dos Estados Unidos da América no seu gabinete oval da Casa Branca. 0 comentador prometia para mais tarde as opiniões de presidentes e primeiros-ministros em Bona, Roma, Bucareste, Belgrado, Cidade do México, Brasília, Buenos Aires, Tóquio, Melbourne e Cidade do Cabo.
0 cenário voltava a focar-se no interior do Palácio Real de Amesterdão, e a câmara principal deslocava-se para os teólogos sentados na plataforma, enquanto o porta-voz daqueles eruditos bíblicos, Monsenhor Riccardi, falava dos doze dias que celebrariam -um dia determinado para cada um dos discípulos de Cristo (evidentemente Matias em vez de Judas) -o aparecimento do Cristo corpóreo nas páginas do Novo Testamento Internacional.
Monsenhor Riccardi estava a anunciar que no Dia de Natal os púlpitos de todas as igrejas da cristandade, tanto protestantes como católicas, seriam dedicados à maior glória do Cristo Ressurgido, enquanto os pregadores e sacerdotes pronunciariam os seus sermões aos fiéis com base no novo quinto evangelho que passaria a ser o primeiro e o de maior esperança para a humanidade.
Natal... Randall pensou no Dia de Natal, o dia em que ele costumava (com excepção dos dois últimos anos) deslocar-se ao Wisconsin, a Oak City para assistir ao sermão proferido pelo Reverendo Nathan Randall do púlpito do seu templo pintado de branco. Rapidamente o seu pensamento deteve-se no pai e no ajudante, e seu amigo, o pastor Tom Carey. Pensou que naquele particular momento deviam estar a observar o programa transmitido via satélite. Seria como se fosse Natal para aquela gente simples, e Jacob o Justo passaria a fazer parte da veneração da família.
0 olhar de Randall voltou a fixar-se no «écran» do aparelho. Grandes planos de Ãngela Monti, do Professor Aubert, do Dr. Knight e de Herr Hennig, enquanto o comentador explicava que aquelas pessoas envolvidas na descoberta, autenticação, tradução e impressão da nova Bíblia em breve estariam à disposição dos homens dos jornais para responderem a todas as perguntas.
A câmara voltou-se outra vez para Monsenhor Riccardi que finalizava a sua prelecção.
Randall deu de repente fé que o agente da companhia estava a fazer"lhe sinais desesperados do portão que levava à rampa de embarque.
- Voilà, já está toda a gente a bordo - disse Gorin. - Monsieur Randall será o último e nós vamos agora escoltá-lo até lá dentro.
Os dois polícias impeliram Randall para o portão, enquanto Lefèvre tirava do bolso um molho de chaves e abria as algemas que prendiam Randall ao seu colega Gorin. Randall ao sentir o pulso livre fez-lhe uma massagem com a outra mão.
Chegaram à rampa de embarque.
-Bon voyage-desejou Lefèvre.-Lamento que tenha de ser desta forma.
RandalI, sem pronunciar palavra, acenou um adeus com a cabeça. Também ele lamentava que as coisas tivessem que ser daquela forma.
Esticou o pescoço para dar uma olhadela final ao espectáculo de Amesterdão. já não conseguia ver o «écran» do televisor, mas podia ouvir o som. Randall afastou-se dos seus guardas, enquanto a voz de Monsenhor Riccardi perorava nas suas costas :
-Tal como João escreveu «vós não acreditareis se não virdes sinais e prodígios», temos agora Jacob que escreve: «Eu, com os meus olhos, vi os sinais e os prodígios e posso acreditar». Agora toda a humanidade pode clamar: Cremos! Chtstos anesti! Cristo ressuscitou! Alithos anesti! Cristo na verdade ressuscitou! Amen. Amen.
Entrou na cabina do gigante dos ares e, nas suas Costas, a hospedeira do ar, com um aspecto solene, fechou a porta.
Agora só ouvia o rugir dos motores a jacto.
Sentou-se no lugar que a hospedeira lhe designou, Estava pronto a voltar de novo para a pátria.
Tinham-se passado cinco meses e meio. Incrível... estava de novo em casa.
Mais outro dia de Natal em Oak City, Wisconsin, e contudo diferente de todos os outros natais anteriores, bem o sentia no fundo do seu coração.
Steve Randall estava sentado, descontraído, na primeira fila de bancos da Primeira Igreja Metodista, rodeado por aqueles que eram do seu sangue e que pertenciam ao seu passado, aqueles a quem ele estremecia e que o estremeciam a ele. Do púlpito de madeira negra que se alcandorava à sua direita, o Reverendo Tom Carey proferia o seu sermão natalício, um sermão que falava da visão de Cristo, do Calvário e de tudo o que continha o Novo Testamento Internacional; sermão que se ampliaria como um eco em milhares de outros púlpitos de milhares de outros templos espalhados pelo globo naquela quadra de Natal-um símbolo do Cristianismo de sempre. 0 sermão de Tom Carey, tal como toda a sua pessoa, haviam adquirido uma nova confiança, uma nova convicção e nova força, reflectindo a reviviscência e o esforço da sua crença devido à nova esperança encontrada na nova pessoa, no novo ministério e nas parábolas sociais e espirituais do Cristo Ressurecto.
Prestando relativa atenção à história e à mensagem que já se lhe haviam tornado tão familiares-mais familiares a ele em particular, entre as centenas de pessoas que enchiam a velha igreja de seu pai-Randall olhou furtivamente em ambas as direcções de banco.
Estava sentado entre a mãe, Sarah, com o seu rosto rechonchudo e feliz a seguir embevecida todas as palavras que eram proferidas no púlpito, e o pai, o pastor Nathan, com o seu rosto de velho fidalgo de aldeia parcialmente restaurado no seu antigo vigor, cujos olhos azuis, seguiam, como contas buliçosas, a cadência das palavras que o seu protegido e sucessor proferia daquele púlpito onde outrora ressoara a sua própria voz de pregador. Somente a bengala que tinha entre as pernas e um pouco de dificuldade pastosa no falar relembravam a apoplexia que o abatera e à qual tinha sobrevivido. Ao lado do pai, Randall podia ver sua irmã, Clare, e a seguir dela o mento proeminentemente sueco de Ed Johnson. Inclinando-se um pouco, Randall examinou as pessoas que estavam sentadas do outro lado da mãe. Primeiro Judy, a sua filha de olhos claros, com a mata de cabelos louros a cobrirem-lhe o rosto de anjo; depois o tio Herman, mais gordo mas menos apatetado e indolente do que nos velhos tempos da sua meninice.
Estavam todos atentos, inteiramente devotados ao sermão do Reverendo Tom Carey, todos ouvindo de almas ao alto aquilo que ainda era novidade para eles, o sinal e o prodígio seguro da Ressurreição de Cristo.
Mas Randall já tinha ouvido aquilo, já tinha vivido aquilo, duvidado daquilo, combatido aquilo e sido derrotado por aquilo, e por isso o seu espírito vagueava. Nenhuma das pessoas que ali estavam tinha conhecimento de que ele, o filho pródigo, fizera parte da Ressurreição Dois, pelo menos até então não o sabiam. Randall resolvera contar-lhes tudo depois do serviço religioso, primeiro faria saber ao pai e depois aos outros. Contar-lhes-ia o que o levara ao estrangeiro. Mas não tinha a certeza ainda sobre tudo o que lhes poderia revelar. Ainda tinha que resolver até que ponto lhes contaria.
RandalI, por cima daquelas cabeças, lançou uma olhadela para os vitrais da igreja, observando as sombras esbatidas dos ramos de árvores, ramos despidos de folhas, mas ainda testemunhas constantes do último nevão de Inverno. Tentou voltar atrás ao passado, aos seus anos de criança e inocência, mas estavam já muito distantes. 0 pensamento não se podia despregar do passado mais recente, daqueles últimos cinco meses e meio incansáveis, agonizantes, cheios de ira e desespero.
Mergulhou profundamente numa rude introspecção, de tal maneira que, na sua memória torturada, tudo aquilo passou a ter mais acuidade do que o momento presente.
Voltou a viver de novo aquelas semanas depois que se separara da Ressurreição Dois e fora deportado da França.
De regresso a Nova Iorque, recordou os escritórios da firma de relações públicas Randall Associados. Rememorou a presença confortável de Wanda, a sua devotada secretária, de Joe Hawkins, o seu mexido assistente, e Thad Crawford, o seu esperto advogado, e do resto dos seus colaboradores, pessoas de quem dependia para o impulso enérgico e criador que haviam dado fama à firma.
Randall voltara aos movimentos de rotina, rotina em que o telefone se transformava num quinto membro sempre em manejo. Mas falhava-lhe a energia, porque o seu interesse se alheara, a sua atenção não conseguia fixar-se, porque carecia de objectivo.
Pretendera fugir a tudo aquilo que o esgotava e durante três dos últimos cinco meses e meio conseguira-o. Thad Crawford tinha uma casa de veraneio enf Vermont, uma quinta com um guarda, com gado, com uma varanda aberta para os campos cultivados e com uma casa confortável, datando dos tempos da guerra da Secessão, mas restaurada; residência que não tinha ninguém a ocupá-la. E Randall fora para Vermont para ver se se desfazia do fantasma, do pesadelo que criava um fantasma, que tinha memórias de Amesterdão, de Paris, de Roma, de Ostia Antica, de Wheeler, de de Vroome, de Lebrun, de Jacob o justo. Possuía as gravações que fizera, as notas que tomara, as memórias dos acontecimentos recentes e uma máquina de escrever portátil. Tentara viver como um recluso e quase o conseguira. 0 telefone mantivera-o em ténue contacto com o mundo exterior, estabelecendo-o em ligação com os seus subordinados no escritório, a respeito de decisões a tomar, em ligação com a filha, Judy, em S. Francisco, e com os seus pais em Oak Ciry. Mas quase todas as suas horas eram dedicadas ao livro que queria escrever; o livro anti-Bíblia, cujo conteúdo lhe fervilhava no cérebro.
Mas na maior parte do tempo havia-se sentido confuso, irado, chorandose a si mesmo em gestos de autocompaixão. Escrevia e bebia, encharcava-se em álcool para tentar levar o ser do veneno que se lhe tinha entranhado no espírito. Escrevia páginas e páginas onde mostrava os podres da Ressurreição Dois, onde contava o seu envolvimento no projecto, o que passara em Roma com Lebrun, a nojenta traição do poderoso de Vroome, a expulsão de França, tudo... tudo menos Ãngela. A ela poupava-a.
Ao traçar aquelas palavras parecia-lhe por vezes que estava a escrever a maior história policial de todos os tempos. Outras vezes, parecia-lhe certo que nunca tinha havido uma revelação de mentira religiosa, de traição e de duplicidade como aquela que os seus dedos flageladores como o marquês de Sade batiam nas teclas da máquina. Noutras ocasiões ainda, tinha a certeza de que estava a produzir o mais cônscio auto-retrato até então lançado no papel, de uma criatura atacada da paranóia mais cínica.
Bebia e escrevia e o livro aproximava-se da sua conclusão flutuando num rio de uísque.
Quando acabou, a catarse ekoara dele a mais pequena gota de veneno. 0 que restou foi a concha da sua vacuidade e uma confusão que parecia ter aumentado ainda mais.
Saindo da quinta de Vermont, quando o Outono começava a enregelar a erva e a terra, Randall regressara a Nova Iorque com o seu manuscrito dentro da pasta. Depusera-o no cofre do seu gabinete, cofre de que só ele e Wanda conheciam a combinação. Não sabia se o deixaria ali como uma parte, sem publicação, do corpo que representava o seu esforço para exorcismar as forças satânicas que haviam residido dentro dele, ou se acabaria por publicar o manuscrito para combater o monstro Frankenstain que lançara os seus tentáculos por todo o país e por todo o mundo civilizado.
Na longa saga da literatura moderna, estava certo, nunca tinha havido um êxito tão completo como o do Novo Testamento Internacional. Para onde quer que uma pessoa lançasse o olhar, aquele Livro dos Livros aparecia-lhe à frente dos olhos, tentava uma obra de prosclitismo, de envolvimento e conquista. Dia e noite, as estações de rádio e os programas de televisão não falavam noutra coisa. Afiguravase a Randall que não existia qualquer outro assunto no mundo para ser falado. Raro era o dia em que os jornais diários e as revistas não viessem cheios de cabo a rabo de histórias, de fotografias ou até de colossais anúncios. Se uma pessoa resolvia ir fazer compras, se visitava um bar, se jantava num restaurante, se assistia a uma festa particular, fosse onde fosse, o Novo Testamento Internacional era objecto de discussões, tinha entrada em toda a parte.
Os tambores de guerra batiam o seu compasso e o novo Cristo reunia almas de novo, conquistava inumeráveis almas. 0 decréscimo na violência estava a ser atribuído por algumas pessoas ao regresso a Cristo. Outras pessoas atribuíam ao Salvador a melhoria na economia mundial. 0 baixar do consumo de estupefacientes era devido a Cristo. 0 fim daquela guerra, o início daquelas conversações de paz, o bem-estar geral, a euforia e a fraternidade que engolfavam a terra inteira eram apregoados pelos recém-catequizados como a obra de Cristo.
Segundo as últimas estatísticas, o Novo Testamento Internacional vendera três milhões de exemplares brochados nos Estados Unidos e cerca de quarenta milhões de exemplares em todo o mundo. E tudo aquilo m menos de três ou quatro meses depois da declaração de Amesterdão.
Começou a pensar que devia publicar o seu livro revelador. Poderia representar um mero beliscão no monstruoso Golias ou então, tal como a pedra do surrão de David, por meio de uma campanha de propaganda bem dirigida, podia representar para o monstro o golpe fatal que o derrubasse, cortando a cabeça à mentira.
Foi nessa altura, enquanto considerava como devia agir, que Randall recebeu o telefonema há muito esperado de Ogden Towery III, director das Empresas Cosmos, um cartel industrial. Os contratos estavam já prontos para a mudança de mão da firma e para a segurança do seu próprio futuro, esperando somente as assinaturas que selariam defintivamente o negócio - a assinatura do fabuloso Towery e a sua própria assinatura. Tinha-se estabelecido uma demora inesperada nas negociações. Crawford tentara chegar a Ogderi Towery através das suas cortes de advogados, mas falhara nos seus intentos. Crawford não compreendia o que se estava a passar nos bastidores, mas Randall suspeitava que sabia muito bem o que se passava. Wheeler, amigo de Towery avisara Randall em Paris: Alinha connosco sem desvios da Ressurreição Dois ou sofre-lhe as consequências,
De repente, Towery tinha telefonado, ligara directamente para RandalI, numa conversa estritamente pessoal.
Uma conversa breve, sem perda de palavras, pouco amistosa, directa ao ponto nevrálgico.
-Randall, George Wheeler contou-me tudo. Ele está a obter um êxito notável e disse"me que não lhe ficou a dever nada a si. Contou-me que você fez tudo o que pôde para lhe torpedear o êxito, que lhe tentou sabotar o projecto. 0 que é que tem a dizer-me sobre o caso?
-Nada. Tentei impedir o projecto porque tinha provas de ser uma intrujice.
- Também ouvi falar disso. RandalI, o que é que o preocupa? Será você um ateu ou um comunista... ou alguma coisa parecida com isso?
- Não posso aprovar aquilo em que não creio, nem posso vender aquilo em que não confio.
- Ouça-me bem, RandalI, deixe aquilo que deve ser acreditado ou não a pessoas como Wheeler, Zachery e o Presidente, e realize apenas o seu trabalho. Tenho neste momento os contratos em cima da minha secretária, mas antes de os assinar, antes de o receber na família Cosmos, preciso primeiro de saber qual é a sua posição.
- Qual é a minha posição?
-0 que irá fazer de futuro a respeito do Novo Testamento Internacional? Vai arranjar mais complicações, tentar sabotar de novo o projecto ou realizar mais algum movimento subversivo? Quero dizer, estará na disposição de fazer quaisquer conferências ou terá ideias de publicar qualquer coisa porca contra o novo Livro Sagrado? Prtendo saber e Wheeler pretende também saber com aquilo que podemos contar. Se forem essas as suas intenções, devo declarar-lhe desde já que não quererei mais nada consigo. Se você resolver comportar"se como uma pessoa decente e temente a Deus, como um digno filho de um clérigo que possa ter orgulho de si, nesse caso o negócio far-se-á. Mas primeiro preciso que isso seja posto em forma escrita, como uma adenda ao contrato. Por essa adenda provaremos para que você não diga nem publique nada que possa ser prejudicial ao Novo Testamento Internacional. Se você estiver disposto a dar-me essa garantia, tem desde já a minha palavra de que a sua firma será absorvida pelas Empresas Cosmos segundo as condições previamente acordadas. Qual é a sua resposta: sim ou não?
- Talvez.
- Que raio quer isso dizer?
- Mr. Towery, quer dizer que talvez sim ou talvez não. Quer dizer que nunca tomo decisões importantes sem primeiro reflectir a respeito delas.
-Pois bem, meu jovem, terá que pensar com rapidez. Espero a sua resposta até ao último dia do ano.
0 «tubarão» desligara e Randall sentira"se gelado de medo. Ter sido posto de parte pela Ressurreição Dois era uma coisa, mas permitir-se perder o negócio com as Empresas Cosmos era outra coisa completamente diferente, porque a venda, as condições de contrato eram o último rumo seguro de escapar à corrida de ratos, representavam a sua futura segurança e independência. Todavia a nova condição imposta era simplesmente enojante e sentia-se doente e deprimido. Tentou pesar o contrato Towery contra o manuscrito revelador que se encontrava fechado no seu cofre, sem saber bem qual pesaria mais nos pratos daquela balança da verdade.
Várias semanas depois, surgiu um outro telefonema que contribuiu ainda mais para acentuar a confusão de Randall. Durante meses tentara encontrar Jim McLoughEn para o informar de que, por razões que não podiam ser reveladas (novamente Towery e a Cosmos), não lhe podia ser possível entrar em negociações de promoção que o Instituto Raker. McLauglilin ausentara-se numa das suas famosas viagens secretas e tomara-se impossível poder entrar em contacto com ele.
Foi Wanda quem o informou pelo telefone interno: -Jim McLoughlin está na outra linha, com uma chamada de Washington. Diz que ao regressar encontrou uma tonelada de recados e entre eles cartas que lhe foram enviadas por si e por Iliad Crawford. Informa lamentar ter sido tão negligente, mas que esteve fora, num local remoto, a trabalhar vinte e quatro horas por dia. Está agora desejoso de entrar em contacto consigo e está a fazer planos para que o patrão lhe promova o primeiro «livro branco» contra o grande capital. Quer que faça a ligação?
Randall sentiu-se sem coragem para dizer a McLoughlin o que havia para ser dito.
-Não, Wanda, hoje não. Não estou com disposição para lhe falar. Wanda, diga-lhe que acabo de seguir para o aeroporto, que parto para a Europa outra vez para um assunto de emergência. Diga-lhe que estarei de volta no próximo mês e que então entrarei em contacto com ele. Telefonar-lhe-ei antes do fim do ano.
Naquele dia decidiu que a melhor maneira de resolver problemas era ignorá-los. Se uma criatura não os enfrentar, talvez que eles acabem por desaparecer. E se desaparecerem, acabarão por não existir. Pelo menos até ao fim do ano.
Sim, a melhor maneira de resolver problemas era ignorá-los e diluí-los em álcool.
E por isso começou a beber, a beber por todo o resto de Outubro, pela totalidade de Novembro e durante largos dias de Dezembro, a beber como nos velhos tempos. Catadupas de álcool. como um antídoto contra os problemas de consciencia e os negocios, contra a confusão e contra a desolação. 0 único problema residia no acordar. Nessa altura chegava a sobriedade e com ela a solidão, a profunda solidão.
Randall nunca na sua vida se sentira tão só, tanto na cama como fora dela.
Bem, recordava-se também do velho remédio contra essa solidão, um remédio que nos seus tempos heróicos tomara em doses industriais.
Aquelas raparigas, as mulheres, aqueles seres cuja melhor aparência era em posição horizontal c nuas... encontravam-se por toda a parte e eram fáceis de conquistar por um tipo com uma certa reputação e com a carteira recheada. As coristas com os seus desenvolvimentos mamários, as neuróticas ninfomaníacas da sociedade, as mundanas encontradas em bares e discotecas... todas elas bebiam juntamente com ele como esponjas, desnudavam"se com ele, copulavam com ele, mas no momento crucial de dormir ou no mais crucial ainda de acordar, Randall sabia que se sentiria ainda mais terrivelmente só.
Tais mulheres não ofereciam o desejado envolvimento. RandalI, cheio de desespero, procurou algo mais do que o sexo, procurou a compreensão, o envolvimento.
Certa noite, afogado em álcool, decidiu fazer uma chamada telefónica para S. Francisco, para Bárbara, para ver o que poderia sair de tudo aquilo. Mas quando a governanta respondera: «Fala de casa da família Burke», Randall recordou-se, por entre os fumos do álcool, que Bárbara se casara com Arthur Burke há cerca de dois meses. Sem dar resposta pousou o telefone.
Outra noite, de novo perdido de bêbado, sentindo a terrível solidão a pesar, resolveu fazer uma chamada para a sua última amiguinha, para Darlene - Darlene Nicholson - , sim, onde raio é que ela se encontrava?... Ah, em Kansas City, claro está. Iria pedir-lhe desculpa e fazer com que ela voltasse de novo para a cama com ele. Não tinha dúvidas que ela abandonaria o tal Roy Ingram e que viria a correr para os seus lençóis. Mas quando levava a mão ao telefone recordou-se que a estúpida Darlene tinha querido casar e que a essa parvoíce fora a causa de terem rompido em Amesterdão. Por isso, em vez de lançar a mão ao telefone lançara a mão à garrafa.
Naquela procura doentia arriscou"se até ficar sem a luxuriante e alegre secretária que já o aturava há três anos, a esplendente Wanda, convidando-a a ir para a cama com ele em certa tarde antes de sair do escritório. Sentia-se mais só e abandonado do que nunca e queria ir para a cama com alguém... naquela noite com a camaradona Wanda. E ela, aquela rapariga negra de imenso peito aquela pequena que o conhecia tão bem, e que não o receava, respondera-lhe:
-Está bem, patrão. De resto já tinha pensado quando é que me faria esse pedido.
Aquela magnífica mulher de longilínco corpo de ébano enfiara-se na sua cama, abrira,lhe generosamente os braços, com os vermelhos mamilos a apontarem para o tecto, abrira-lhe as bem tomeadas pernas para ele se aninhar no meio delas e fizera amor com ele, durante muitas noites a fio. Wanda copulara com ele, não por desejo de reter o seu emprego, porque era uma garota laboriosa, mas por profunda e tocante compreensão humana do período de depressão que ele atravessava, amara-o sem piedade, por sentir a solidão dele. Um mês depois, RandalI, percebendo os sentimentos dela, envergonhado mas cheio de gratidão, resolvera libertá-la de sua companheira de cama e retê-la apenas como sua secretária e amiga.
Finalmente, uma semana antes, chegara-lhe um sobrescrito com a indicação posta aerea e com um selo italiano e o carimbo de ROMA. Dentro encontrou um delicado e artístico cartão de boas-festas - Feliz Natal e Alegre Ano Novo - e no outro lado do cartão uma nota. Os olhos dele procuraram a assinatura. Simplesmente «Ãngela».
Dizia que pensara nele constantemente, queria saber o que é que ele estaria a fazer naquele momento e pedia a Deus que estivesse bem e com o espírito em paz. Falava do pai, dizendo que estava na mesma, vivo e morto ao mesmo tempo, completamente inconsciente daquilo que a sua espada escavadora produzira para a humanidade. Contava que a irmã e os sobrinhos se encontravam de boa saúde. Quanto a ela, tinha sempre que fazer. Acabados os preliminares da apresentação da Bíblia, ocupava-se a responder a centenas de cartas dirigidas de todo o mundo ao pai, ocupada em escrever artigos e a dar entrevistas em nome do pai. A propósito dizia que iria a Nova Iorque por uma semana, convidada por Wheeler para um programa de televisão. Chegaria na manhã do dia de Natal. Ficaria hospedada no Plaza. «Se julgares que isso te possa ser agradável, Steve, ficarei muito contente por te ver.» E a assinatura, sem mais nada, «Ãngela».
Sentira-se impotente para encontrar uma resposta que lhe desse, por isso não lhe respondera, nem sequer para lhe explicar que não estaria em Nova Iorque, que prometera visitar os pais na semana entre o Natal e o Ano Novo, e que visitaria a filha, que viajaria da Califórnia para se encontrar com ele em Wisconsin.
0 cartão de Ãngela fora a primeira coisa que contribuíra para o despertar, para o pôr sóbrio, no espaço de cinco meses e meio. A segunda coisa fora a viagem até casa na noite anterior, a viagem até Oak City, para estar junto da família em volta do tradicional e simbólico pinheiro, enfeitado luxuriantemente e cheio de embrulhinhos de presentes. Na noite anterior ouvira com Judy um grupo de crianças a cantarem as loas de Natal à neve, em frente da porta da casa.
A terceira coisa plena de sobriedade fora o sermão na Primeira Igreja Metodista de Oak City.
Subitamente Randall deu-se conta que estava sentado ali naquele banco, entre a família, e que o sermão do Reverendo Tom Carey terminara. As pessoas começavam a levantar-se.
Ora o que ele observou naquele particular momento foi que os olhos dos seus entes queridos brilhavam iluminados de uma nova esperança-sua mãe, agradecida e feliz, e o pai como que transportado pela fé renovada, ambos com um aspecto muito mais rejuvenecido, como já não lhes via há muito tempo. Sim, seus pais pareciam sentir-se felizes por lhes ter sido permitido viver o sufi" ciente para ouvirem a Palavra. Sua irmã, Clare, apresentava um ar de mais resoluta, de mais confiante, como nunca até então se apercebera, com uma fé renovada na sua decisão de se desligar do amante e patrão, um homem casado, seguindo o seu caminho ao encontro de algo novo e de alguém a quem pudesse amar sem pecado. A filha, Judy, com um ar recatado, pensativa, verdadeiramente transformada interiormente por virtude da Palavra contida no sermão de Tom Carey. Randall sentia nela uma maturidade e uma compenetração que nunca observara antes.
Olhou para trás, considerando aquele magote de paroquianos que, em grupinhos, ia abandonando o templo. Nunca vira seres humanos tão cheios de calor, tão dóceis, com um aspecto tão confortado e cheio de segurança-uma segurança que era pessoal mas que contava também com a bondade e receptividade dos outros.
Angela dissera-lhe da última vez que tinham estado juntos que aquele começo era o fim que justificava o emprego de quaisquer meios.
Os meios não importavam. 0 fim era tudo. Era o que ela havia dito.
Mas ele respondera-lhe que Não.
Contudo naquele momento particular - porque era Natal, porque estava em casa, porque atravessava o momento mais sóbrio em vários meses, porque testemunhava um vislumbre de paraíso reflectido por todas aquelas centenas de pares de olhos - , naquele momento sentia-se inclinado a dizer a Ãngela Talvez... Talvez o fim de tudo o que interessava.
Mas nunca, nunca teria a certeza.
Inclinou-se e beijou meigamente a mãe, perguntando:
- Foi maravilhoso, hem?
- Sim, filho, sinto-me feliz por poder ter vivido este dia. Se nunca mais voltar a haver um dia como este de felicidade para teu pai e para mim, o momento que acabamos de atravessar será suf iciente.
-Também creio, mamã. Feliz Natal. Olhe, volte para casa com a Clare, com o tio Harry, com Ed Johnson e com a Judy. Tenho lá fora um automóvel que aluguei e vou levar o pai para casa nele. Daremos um grande passeio. Será como quando eu era miúdo, lembra-se? Quando o pai dava longos passeios comigo. Mas não demoraremos muito mamã. Estaremos em casa antes da comida esfriar.
Voltou-se para o pai, que se apoiava à bengala, e deu-lhe o braço para ele se apoiar melhor.
0 pai fitou-o com um sorriso.
-Devemos ao Senhor a paz nos nossos corações, a felicidade nas nossas almas, a confiança que nos deu a Sua revelação neste dia memorável. Devemos-lhe o estarmos juntos e termos juntos recebido a Sua mensagem de Amor.
-Sim, papá -respondeu com respeito, contente de ver quo o pai já conseguia falar quase tão bem como antes da doença que o afectara.
0 Reverendo Nathan RandalI, com uma centelha do seu velho espírito, voltou-se para Steve.
-Bem, meu filho, penso que agora já chega de igreja para um dia de festa. Será divertido ir para casa contigo de carro. Será como nos velhos tempos.
Era como nos velhos tempos aquele passeio de automóvel, mas Randall sentia todavia que se tratava de um momento novo, um momento de verdade e intimidade que nunca se repetira.
0 longo caminho até casa, pela estrada vicinal cheia de covas mas naquele momento com a alfombra da neve recém-caída, ao longo da margem do lago, a que toda a gente dos arredores chamava a banheira, uma caminho que levava cerca de quinze minutos mais do que pelo centro da cidade. Randall guiava devagarinho para saborear aquele nostálgico interlúdio.
Pensou que tinham ambos um aspecto cómico, como dois esquimós metidos nos seus agasalhos. No vestíbulo da igreja, consciente de que a temperatura descera bastante e que o clarão do sol, parcialmente oculto pelas nuvens baixas, era decepcionante, tinham enfiado os sobretudos, posto cada um deles o seu tufado cachecol e as grossas luvas de lã. Ali, no carro alugado (cujo aquecimento interior não funcionava, claro está) sentiam-se no entanto confortáveis, quentinhos, contemplando a neve que caía lá fora.
Como em tempos idos, o pai falava sem parar. De vez em quando notava-se uma ligeira hesitação na sua voz que acusava a recente doença, mas no entanto manifestava uma energia desusada e Randall sentia-se contente de poder ficar calado, escutando-o.
-Filho, olha para além para o lago. Haverá no mundo uma paisagem mais repousante e natural do que esta? já disse mais do que uma vez ao Ed Johnson que Thoreau gostaria mais das margens do nosso lago do que das margens de Walden Pond, se cá tivesse vindo. Mas ao mesmo tempo estou contente de que isso não tivesse acontecido, porque agora teríamos que sofrer a invasão dos turistas; deixariam por toda a parte os seus papéis sujos de comida e as suas latas de cerveja vazias. Ainda bem porque aqui as coisas se mantêm calmas como quando tu eras um rapazito de dez ou doze anos. Lembras-te desses dias, Steve?
- Muito bem, papá - respondeu Randall calmamente, olhando para o lago cercado por moitas de arbustos e por salgueiros onde a neve formava cama. 0 gelo tinha formado uma camada que ocultava a água. - Agora está quase gelado.
- Quase gelado - repetiu o Reverendo Nathan. - Quando ele gela completamente a camada atinge a maior solidez. Lembras-te quando tínhamos que abrir buracos no gelo para pescarmos? - Não esperou pela resposta. - Cada um de nós cavava vários buracos no banco de gelo, depois lançávamos as nossas linhas e iscos, cinco por pessoa conforme a lei. Passou muito tempo desde a última vez que pesquei assim. Lembras-te? Lançávamos a linha com o isco, amarrávamos um guiso na ponta e colocávamos uma bandeira vermelha para assinalar o sítio. Depois voltávamos para junto do carro para nos aquecermos um pouco, corríamos para restabelecer a circulação. Fazíamos uma fogueira e ficávamos ali a cantar contentes, observando as bandeirinhas. De repente ouvia-se um guiso tocar e lá íamos nós como doidos, escorregando no gelo, aos berros como Peles Vermelhas para apanharmos uma perca ou um lúcio. Tu chegavas sempre primeiro, principalmente quando as tuas pernas começaram a crescer.
RandalI, com um baque de tristeza no coração, lembrou-se vivamente do passeio.
- Papá, devia voltar a vir à pesca de vez em quando. -Nunca mais. No Inverno não. Há coisas que não poderei voltar a fazer no Inverno. Mas o Dr. Oppenheimer disse que já estou suficientemente bom para poder voltar a pescar quando o tempo melhorar. Na semana passada eu e o Ed até estivemos a discutir o caso. Quando vier a Primavera combinamos uma pescaria em volta de Dells. É também um local muito bonito.
Fez-se silêncio entre eles. Lentamente, Randall guinou o volante c afastou-se das margens do lago pela estreita estrada vicinal.
Passado um bocado, o Reverendo Nathan voltou a falar. -Tenho estado a pensar em como o passado nunca se afasta por completo, em como faz sempre parte do presente. A matutar em como o meu passado tomou mais realce e mais significado
- a minha mocidade, a minha vida com a tua mãe, o meu serviço a Deus - por causa da nova Bíblia. Essa descoberta continua a manter-me preso à sua maravilha, sinto o extraordinário poder do novo evangelho. A tua mãe e eu já o lemos e relemos pelo menos uma dúzia de vezes. A revelação é notável. A ternura de Jesus pelo Seu rebanho. Jesus junto da campa de José, proferindo palavras ao mesmo tempo tão humanas e tão divinas. Nunca ouvi nem li nada que pudesse ter tanto significado humano. Mesmo não se sendo um crente, o novo evangelho obriga a acreditar. Sabe-se que Deus está entre nós e ganha-se alento e fortaleza. Transmite um significado à vida.
- Se assim é, papá, nada mais importa.
- Sim, filho, nada há de mais importante - disse o Reverendo com fervor. Para citar Coleridge - Acredito em Platão e em Sócrates. Eu creio em Jesus Cristo. Vou-te dizer o que estava a pensar na igreja enquanto Tom proferia o sermão. Nunca vacilei na minha fé, por isso não interpretes mal aquilo que vou dizer. Tenho vindo a sofrer nos últimos anos, a sofrer por ver como os jovens... e não só os jovens, também os pais... vinham a abandonar a igreja e a alhearem-se das Sagradas Escrituras. Estavam a voltar aos falsos ídolos, a radicarem-se num racioalismo do Ver para Crer, da crença única na Ciência como prova provada, como se só o visível pudesse conter a verdade, como se a própria ciência não fosse cheia de abstracções e de mistérios. As pessoas faziam profissão de fé de tudo aquilo que pudessem tocar e ter nas suas mãos... Todavia, por muito estranho que parecesse, nos momentos de verdadeira reflexão toda a gente começava a sentir que faltava um fim à vida humana, um propósito definido, um significado. Meu filho, não tens a impressão que era isso mesmo que estava a acontecer?
-Estou de acordo.
-Jovens e velhos não podiam encontrar uma resposta cril Deus e no Seu Filho, porque não podiam ver Cristo apenas através da fé, de modo que não podia aceitar a mensagem de alguém em quem não acreditavam, Steve, julgo que foi precisamente o que te aconteceu a ti. E, na mais variada escala, foi precisamente o que sucedeu à maior parte das famílias da nossa paróquia.
-Papá, conheço o problema. Discuti-o com Tom quando o pai estava doente.
-Bem, sinto-me pessoalmente abençoado por saber que tudo isso já terminou. Na verdade julgo que Cristo sabia o que estava a acontecer com a fé e por isso mesmo fez uma reaparição no momento exacto. A descoberta de Ostia Antica pode não ter sido um puro acidente, mas sim divinamente inspirada.
Ostia Antica... pensou Randall. Não, não tinha sido um acidente. Como seria difícil poder contar ao pai a verdade sobre o caso.
Entretanto, o Reverendo Randall prosseguiu:
- A partir de agora, para satisfação de todos, podemos dar resposta às duas perguntas fundamentais do nosso credo. Consideramos Cristo como o nosso Salvador e Senhor e prometemos a nossa fidelidade ao Seu Reino? Recebemos e professamos a fé cristã tal como está contida no Novo Testamento de Nosso Senhor Jesus Cristo? Aqueles que antes não podiam responder afirmativamente podem agora fazê-lo em perfeita consciência. Sim, graças a Jacob o Justo, podem hoje responder Sim. Para eles, existe - através um total critério científico - a prova visível da existência do Salvador. Para mim, o meu julgamento egoísta está terminado. Veio a minha igreja salva. Vejo Tom Carey novamente em toda a posse dos seus recursos e da sua fé e vejo que o meu púlpito está em boas mãos e restaurado em toda a imponencia do seu respeito tradicional. Antevejo um paraíso terreal para os jovens errantes, como a minha neta Judy como a minha filha Clare. Reparaste na diferença que fazem, não reparaste, Steve? Randall acenou gravemente.
-Sinto-me feliz por elas. Nem lhe sei dizer o quanto me sinto feliz.
-Quanto a mim, já não sinto o mínimo receio de partir quando chegar a minha hora. Mantive sempre uma profunda fé num céu lá em cima... não um céu de ruas douradas e altas espirais de ouro, mas um céu onde as almas redimidas fossem recebidas no seio de Deus e do Seu Filho Bem Amado. Foi esse sempre o céu que imaginei, mas agora foi"me dada a consolação de poder ter vivido até ao dia em que antevejo também um céu na terra, um tempo em que a bondade se sobreporá à pobreza e acabe com a violência e a injustiça. Daqui em diante a bondade do seu sentido ecurnénico, o sentido de paz e amor envolvendo todo o mundo, prevalecerá para todo o sempre. A nova Ressurreição unificará num só corpo as nossas duzentas seitas protestantes, fará com que sejamos um só corpo e uma só alma com a igreja católica, aproximar-nos-á dos nossos irmãos judeus, porque cada um de nós, tal como o próprio Cristo, será na essência e antes de tudo o mais judeu. - Calou-se por momentos, para aliviar um pouco o cachecol. - Deixaste-me falar muito meu filho. A intimidade do Inverno parece que nos faz ser mais faladores. Agora basta de falar de mim. Steve, quero saber de ti. Disseste que me ias contar como tinhas passado o Verão.
-Nada de importante, papá. Falaremos disso noutra altura.
- Sim, temos que voltar a falar em todas estas coisas. Randall voltou a cabeça para observar o pai e viu que ele
tinha recostado a cabeça no assento e que tinha os olhos fechados. Pensou que não estava ali Spinoza, mas sim o Reverendo Nathan RandalI, o verdadeiro homem intoxicado de Deus.
-Papá, deve sentir"se cansado-disse, enquanto voltava numa das ruas do centro.-Tem que repousar um bocado. Diminuiu a velocidade antes de chegar à esquina.
- Filho, apenas me sinto em paz - ouviu o pai murmurar. Nunca antes senti esta paz divina. Espero que tu venhas também a encontrar uma paz assim.
Randall passou em frente da casa e voltou na pequena ruela de cascalho que dava para as traseiras. Parou e fechou a ignição do motor. Voltou-se para dizer ao pai que acreditava que acabaria por encontrar a sua paz algures fosse como fosse. Queria também anunciar-lhe que tinha chegado ao lar.
Mas os olhos do pai continuavam fechados como se dormisse profundamente. Em toda a atitude do progenitor havia uma infinita quietude.
Mesmo antes de ter agarrado na mão do pai para lhe apalpar o pulso, Randall teve a premunição de que o Reverendo já não era deste mundo, que estava morto. Chegou-se mais para junto do corpo, como se fosse impossível o seu alarmante pensamento.
0 pai não parecia morto. 0 suave sorriso no seu rosto repousado estava mais vivo do que nunca.
Randall puxou o corpo para si, tomou"o nos braços, encostando aquela cabeça nevada ao peito.
-Não, papá-murmurou-, não se vá embora, não me deixe sozinho. -embalou o pai nos braços e do mais fundo do seu ser saiu a voz da sua infância a rogar: «Papá, por favor, fique, não se vá embora, não me deixe sozinho.»
Apertou ainda mais o corpo do pai, recusando-se a aceitar aquilo, tentando fazê-lo voltar à vida com a sua vontade.
0 velhote não podia estar morto, não podia, era impossível. Mas passado um bocado sentiu dentro de si que o pai só tinha morrido em corpo, mas que a sua alma estava mais viva do que nunca, que era uma memória imperecível, e finalmente libertou o corpo do amplexo em que o estreitava.
0 serviço religioso na câmara ardente montada na capela tinha terminado. 0 último dos muitos amigos do Reverendo acabara de desfilar perante a urna e os acompanhantes iam-se reunindo lá fora, na nave. RandalI, amparando a mãe, arrancou-a de junto da urna e entregou-a nos braços do tio Herman e de Clare. Deu-lhe um respeitoso beijo na testa.
- Mamã, não chores mais. 0 pai está finalmente em paz. Ficou um momento parado à porta, vendo o tio e a irmã a conduzirem a mãe até ao lugar, para além da carreta fúnebre, onde se encontrava Judy, Ed Johnson e Tom Carey.
Sozinho, de novo na capela, Randall olhou em volta para aquele santuário no derradeiro adeus. Os bancos estavam vazios; o púlpito do celebrante não tinha ninguém; o órgão estava silencioso. Mas na sua memória ecoavam os momentos do serviço religioso. Ainda tinha nos ouvidos o eco do salmo de abertura: «Deus de Misericórdia, Deus de Graça, Deus de Glória ... » Ouvia ainda a voz de Tom Carey a ler a Bíblia: «jesus disse: eu sou a ressurreiçao e a vida eterna; aquele que crê em mim, embora morto, continuará a viver, e onde quer que viva e creia em mim nunca morrerá.» Ouvia todos os presentes a cantarem em coro: «Glorificado seja o Pai, e o Filho, e o Espírito Santo; tal como era no princípio, assim é agora e assim há-de sempre ser pelos tempos dos tempos. Amen.»
Os seus olhos voltaram-se para a urna, em cima da essa, coberta de flores.
Quase involuntariamente como que hipnotizado, deslocou-se para junto da urna e ficou ali a contemplar os restos mortais do pai, do Reverendo Nathan RandalI, que lá dentro jaziam no seu sono eterno.
A mente acudiu-lhe um pensamento: Não podes ser um verdadeiro homem até que teu pai morra. Quem é que dissera tais palavras? Lembrou-se subitamente: tinha sido Freud.
Não podes ser um verdadeiro homem até que teu pai morra. Olhou para a urna. Ali estava o pai morto, completamente morto e contudo de modo nenhum se sentia como um homem, sentia-se como um filho, um filho que tinha sido um rapaz, um rapazinho perdido na vida.
Lutou contra tais pensamentos e sentimentos, lembrando-se que era um homem, mas as lágrimas deslizaram-lhe pela cara abaixo, sentiu na boca aquele gosto a sal e a chocante sequidão que lhe tomava as vias respiratórias e desatou a soluçar incontrolavelmente.
Alguns minutos depois os soluços começaram a esmaecer e Randall limpou os olhos. Sabia que já não era um rapazinho perdido, que era um homem, quisesse ou não, mas inexplicavelmente esiáva impregnado do mesmo calor de esperança, de crença e de segurança que havia sentido quando deixara há longo tempo para trás o estranho rapazito que havia sido.
Um último olhar. Repouse em paz, papá, repouse aí nesse céu de pensamento e espírito, de corpo e alma, na paz de Deus e de Jesus Cristo que conhecia tão bem na sua inocente fé. Vou-o deixar, papá, mas não ficará sozinho até ao dia em que voltarmos de novo a estar juntos.
Depois, após um momento de hesitação e de temor, Randall afastou-se da essa e foi-se juntar lá fora, na neve, aos outros que aguardavam o funeral.
Durante os sessenta minutos seguintes, no cemitério, viveu como que entre um estranho nevoeiro.
A beira da sepultura, perante a uma fechada que ia descer à terra, recitou a oração dos mortos pela alma -de seu pai.
- Padre Nosso Todo Misericordioso, olhos que tudo vêem e ouvidos que tudo ouvem, oh, escuta a minha prece por Nathan c envia o arcanjo Miguel, chefe das tuas hostes celestes, e o arcanjo Gabriel, teu mensageiro de luz, para que conduzam a alma de meu pai, Nathan, para as tuas altas mansões de paz.
Só depois de terem abandonado o cemitério, em dois grandes carros negros, voltando para casa para receberem os parentes e amigos, que iam prestar os respeitos à viúva e filhos, é que Randall se lembrou da oração que rezara à beira da sepultura do pai.
Fora a mesma oração que, de acordo com o Evangelho Segundo Jacob, Jesus rezara junto da campa de seu pai José.
Uma oração segundo Jacob o justo ou segundo Robert Lebrun. Fosse como fosse, para Randall aquilo já não interessava nada, não tinha o mais leve significado. As palavras confortariam o pai na sua derradeira jornada e, qualquer que fosse a origem, eram sagradas e apropriadas a momento tão solene.
0 nevoeiro acabara por se esfumar da sua cabeça e já não sentia aquele peso horrível no peito. A quinhentos metros de casa, pediu ao condutor da grande limousina para parar a fim de sair da viatura.
- Não se preocupe, mamã - disse. - Apenas quero apanhar um pouco de ar fresco. Dentro de minutos vou-me juntar a si, à Clare e à Judy.
Ficou no passeio, a acenar para a mãe até que o veículo se perdeu de vista, depois, dando um salto para o lado para evitar um rapazinho que deslizava numa espécie de trenó, Randall tirou as pesadas luvas, meteu profundamente as mãos nos bolsos do sobretudo e começou a andar.
Tendo caminhado um pouco, quando a casa familiar estava já à vista, a neve começou de novo a cair de mansinho, levemente, com os cristais a flutuarem no ar, uma neve que lhe arrefecia o rosto e que era como um cântico de vida e de beleza.
Ao chegar ao jardinzito em frente da casa, todo branco da neve, já se sentia plenamente restaurado e pronto a voltar a integrar-se na comunidade dos homens. Havia um negócio por acabar para todo aquele ano prestes a despedir-se, um negócio que tinha que ser completado. Encaminhouse para a porta e, pela grande janela frontal, pôde ver a sala de visitas cheias de gente que cercava a mãe e a irmã. Observou Ed Johnson a servir o ponche e o tio Herman a andar de um lado para o outro com um tabuleiro cheio de sandes. Sabia que a mãe estava bem entregue. Iria para ao pé dela dai a pouco. Mas primeiro, como um filho que se tornava um homem, devia resolver os seus assuntos.
Afastou-se da porta da frente e dirigiu-se para o caminho lateral que corria paralelo à residência e que levava à porta das traseiras. Apressando o passo, chegou à porta do quintal, atravessou a cozinha e subiu para o primeiro andar, onde ficavam situados os quartos de cama.
Foi encontrar Wanda no quarto de hóspedes, a arrumar os seus pertences numa pequena mala de mão. Havia-lhe telefonado para Nova Iorque no dia anterior para lhe contar o sucedido e para lhe dizer que não voltaria ao escritório até ao dia seguinte ao Ano Novo. E ela aparecera na noite anterior, não na qualidade de secretária mas como uma amiga, para poder estar junto dele e auxiliá-lo em tudo que pudesse. Naquele momento estava-se a preparar para voltar a Nova Iorque.
Randall aproximou-se dela pelas costas, agarrou-a voltou-a para ele, espetou-lhe um sonoro beijo na face e agradeceu-lhe.
- Obrigado, Wanda, obrigado por tudo.
Wanda afastou-se um pouco e estudou-lhe as feições com ar preocupado.
- Sente-se bem? já mandei chamar um táxi para me levar ao aeroporto de O'Hare, mas se precisar de mim posso ficar o tempo que quiser.
-Preciso de si em Nova Iorque, Wanda. Há uma coisa especial que quero que faça, e outras coisas que tem de me resolver antes do dia de Ano Novo.
-Amanhã já estarei no escritório. Quer que escreva um memorando dessas coisas?
- Não é preciso, julgo que se lembrará perfeitamente de tudo. Para começar, lembra-se do livro que eu lhe disse que escrevi em Vermont, aquele que meti no cofre?
- Lembro.
-As folhas estão dentro de uma pasta de cartão e tem uma etiqueta com o título Ressurreição Dois.
-Sei muito bem, patrao. Fui eu que fiz a etiqueta.
- Muito bem, você sabe a combinação do cofre. Amanhã tire para fora a pasta de cartão e mantenha-a à mão. Vou ver-me livre dessa coisa.
- Como?
- As velhas pontes são para queimar, Wanda. Não necessito delas. Vou voltar atrás. Quero seguir sempre em frente...
-Mas depois de todo o trabalho que teve com o manuscrito, patrãozinho?
-Nada de precipitações, Wanda. Ainda não lhe disse como é que me vou ver livre do manuscrito. Dentro de alguns minutos saberá. Passemos agora a outro assunto. Quero que me faça um telefonema para o Thad Crawford. Ele sabe que Ogden Towery e a Cosmos estão à espera de uma resposta minha antes do dia de Ano Novo. Diga ao Thad para fazer ciente a Towery que já tomei a minha decisão. A resposta é Não, que diga ao Sr. Towery que ele perdeu a aposta. Não vou vender a firma às Empresas Cosmos. Penso numa coisa muito melhor.
- Ena pá, patrãozinho! - exclamou Wanda, abraçando-o Por vezes até as orações dos pecadores são escutadas.
- Agora mais uma coisa. Pode fazê-la mesmo daqui. Sabe onde é que pode localizar o Jim McLoughlin?
- Falei com ele na semana passada. Queria saber quando é que o patrão voltaria.
- Muito bem, localize-o - Randall apontou para o telefone que estava na mesinha de cabeceira. - Diga-lhe que voltei. Que lhe quero falar imediatamente.
Naquele momento estava envolvido numa chamada de longa distância, a falar para Jim MeLoughlin, que se encontrava em Washington D. C.
A voz de McLoughUn chegou-lhe aos ouvidos.
- já não era sem tempo, Mr. Randall. Pensei que só chegariamos à fala um com outro quando fosse já demasiado tarde. As coisas estão realmente a aquecer à nossa volta. Obtivemos factos essenciais sobre todos aqueles gatunos e aldrabões de que lhe falei. Vamos fazer com que a empresa volte na realidade a ser de novo livre, e acredite que não há um minuto a perder.
0 próximo passo compete-lhe a si dá-lo. Está pronto a falar ao mundo a respeito do Instituto Raker? Está preparado para marchar objectivamente em frente?
-Imponho apenas duas condições, Jim. E a propósito o meu nome de baptismo é Steve.
- Steve... tomo nota. -Mas a voz do outro extremo da ligação manifestava-se algo preocupada. - Quais são as condições, Steve?
- Primeira. Enquanto estive na Europa tive um bocado de oportunidade para jogar o vosso jogo. Estive envolvido em sondar, tentar seguir a pista, de um certo assunto... de certo modo um assunto de negócios. Estive a tentar saber se certa coisa... chamemos-lhe um produto de consumo... seria uma fraude, uma intrujice apresentada ao público ou se seria um emprendimento honesto. Tinha razões para crer que se tratava de uma fraude, mas não fui capaz de provar nada. As pessoas envolvidas nas vendas desses produtos, na sua maioria, acreditam que ele é honesto. Talvez tenham razão. No entanto o caso está cercado de dúvidas razoáveis, racionais. Seja como for, escrevi um longo relatório sobre o meu envolvimento em tal projecto. Amanhã a minha secretária enviar-lhe-á o relatório de que falo. Você receberá uma pasta de cartão cheia de folhas de papel dactilografadas com o título Ressurreição Dois...
-Ressurreição Dois? -interrompeu McLoughin-O que é que você tem a ver com isso? Quer-me contar o que se passou? -Agora não, Jim. Além disso o manuscrito dir"lhe-à tudo o que há necessidade de saber sobre a história, pelo menos por agora. Depois, conversaremos. De qualquer maneira, se você decidir seguir o caso onde eu o abandonei -se quiser um dia entrar no âmago da coisa e reatar a busca da verdade, se pensar que está em linha com o interesse do público e onde quer que a coisa possa levar - será excelente. A minha única preocupação é que venha a considerar aturadamente o caso. Chamei-lhe a atenção para ele, depois disso faça o que quiser.
-A primeira condição foi apresentada e aceite. -A voz de McLoughlin tornou a hesitar. - Steve, e qual é a segunda condição para promover o Instituto Raker?
- Juntar-me-ei a vocês se vocês se juntarem a mim -disse Randall com simplicidade.
- E o que é que isso significa?
- Significa que eu também decidi entrar no negócio da verdade. Vocês têm os meios, os braços de trabalho para investigarem, mas não têm voz. Eu não tenho o aparelho de investigação, nias possuo uma voz de estentor para me fazer ouvir. De modo que estou a pensar porque é que não juntamos forças, porque é que não havemos de nos fundir, trabalharmos juntos para tentarmos limpar o país e tomarmos a vida melhor para toda a gente? Uma vida melhor aqui mesmo, nesta terra onde suamos?
Jim McLoughlin deu um berro selvagem.
Steve, estou a ouvir bem? É realmente isso que você quer? Tem carradas de razão e os seus ouvidos funcionam bem, é isso realmente o que quero. Ou vamos para a frente juntos ou então desisto. Você pode ficar como presidente e eu como vice-presidente. Eu serei a voz. Está a ouvir?
-Estou a ouvir, homem de Deus! Estou a ouvir muito bem. Temos o negócio fechado! Mas que belo presente de Natal! -Também para mim, Jim-disse Randall calmamente.- Pronto, voltaremos a ver-nos nas barricadas.
Quando se voltou para Wanda e lhe tirou a mala da mão para a levar até ao taxi, pôde ver que as faces dela estavam ainda molhadas de lágrimas e que a esplêndida negra tinha um ar felicíssimo.
- Oh, Steve, Steve... -e não pôde dizer mais nada porque a comoção lhe embargou a voz.
-Menina, parece-me melhor que volte para a sua máquina de escrever e que deixe as coisas loucas para mim-disse Randall em ar de quem está a ralhar.
Randall foi acompanhá-la até ao taxi. Quando o carro se começou a pôr em movimento, Wanda baixou o vidro da janela, meteu por ele a cabeça e disse:
-Patrão, queria dizer-lhe que gostei muito das suas duas pequenas, muito mesmo. Talvez me esteja a antecipar à jogada de surpresa da sua italiana, mas as duas estão no pátio do outro lado da rua a fazerem um boneco de neve. Feliz Ano Novo, patrão!
0 táxi arrancou a toda a velocidade.
Randall voltou até junto da porta. Pensou em entrar, mas havia tempo de se juntar às pessoas na sala.
Havia ainda um assunto para terminar, o último assunto e a solução estava no pátio das traseiras.
Deu a volta lentamente à casa, limpando os suaves flocos de neve que lhe pendiam das sobrancelhas e do cabelo.
Sabia que tinha finalmente encontrado para si próprio a resposta à clássica pergunta de Pôncio Pilatos, uma pergunta que o perseguira desde o verão.
Pilatos fizera a pergunta: Quid est veritas? 0 que é a verdade? Randall pensara que era uma pergunta para a qual não haveria resposta. Mas já estava convencido que se tinha enganado. Havia uma resposta.
Gozando a carícia de sentir a neve fundir-se ao contacto com o calor do seu rosto, murmurou a resposta para si mesmo: Verdade é amor.
E para amar, uma pessoa tem que acreditar em si mesmo, nos outros, na razão de viver de todos os seres vivos e no plano situado para além da própria existência.
É essa a verdade -disse para com os seus botões.
Chegou ao grande pátio atrás da casa, sentindo-se pela primeira vez como o pai sempre desejara que ele se sentisse: em paz, sem temores, e sem se sentir sozinho.
Divisou adiante o gigantesco boneco de neve, com a concepção de formas de uma mulher e viu a filha a moldar um bocado de neve entre as mãos para aplicar como nariz do boneco. -Olá, Judy!
A rapariga voltou a cabeça e acenou alegremente, dizendo: -Olá, papá!
E voltou ao seu trabalho de escultura.
Depois viu outra figura feminina, a outra pequena corno dissera Wanda, com um engraçado barrete de borla sobre os cabelos como a asa de um corvo, uma figura que nem a espessura do fato de neve conseguia esconder as esplendentes formas, uma figura que se afadigava a tentar transformar a boneca de neve num boneco com a aparência de um homem.
- Olá, Ãngela! - gritou. - Quero que saibas que te amo. Ãngela correu para ele, quase aos tropeções devido à neve fresca que a impedia de se movimentar livremente, gritando:
- Querido! Meu querido!
Finalmente atingiu os braços que ele lhe estendia e Randall naquele momento teve a certeza, a certeza absoluta de que nunca mais a deixaria sair daquele amplexo, que nunca mais a deixaria partir.
Irving Wallace
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