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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PAMPA TRAGICA / Albert Bonneau
A PAMPA TRAGICA / Albert Bonneau

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Então, aos olhos do basco e do seu pessoal, desenrolou-se uma cena impressionante. Dando um relincho de furor, o cavalo, sentindo soltarem-se os lazos que o sujeitavam, julgou-se livre. Não contara com o cavaleiro. Executando as mais fantásticas cabriolas, ora erguendo-se nas patas traseiras, ora nas da frente, tentou desembaraçar-se daquele fardo imprevisto; mas Perez, longe de seguir o exemplo dos que precedentemente tinham afrontado a cólera do animal, continuou firme na sela, sem parecer incomodar-se com as frenéticas sacudidelas.
O pôtro negro lembrava um animal diabólico; com o olhar em fogo, as narinas fumegantes, erguia-se, formando ângulo recto com o solo; depois, deixava-se cair bruscamente, e repetia a manobra sôbre as patas dianteiras, até encostar o nariz à terra, dando formidáveis parelhas de coices. Estupefactos, os espectadores esperavam, a cada instante, ver Perez ser atirado para longe. Semelhante a um centauro, o cavaleiro mantinha-se inabalável, e os seus punhos de aço dominavam o fogoso corcel.
No cúmulo do furor, o cavalo utilizava todos os artifícios possíveis para lhe fazer abandonar a partida, mas o rapaz evitava os saltos laterais bruscos, com que o animal procurava esmagá-lo contra a paliçada. A cada uma destas tentativas, respondia, imperturbável, com um movimento no sentido inverso, para restabelecer o equilíbrio. Semelhantes a uma tenaz, suas pernas cingiam os flancos do pôtro, cujo pêlo escuro começava a cobrir-se de espuma.
Entusiasmados pelas prodigiosas evoluções daquele cavaleiro que mal conheciam, mas cuja perícia começavam a admirar, os assistentes multiplicavam manifestações, agitando no ar os largos chapéus, e êsses clamores enfureciam ainda mais o animal.
Por fim, compreendendo que tais manobras não lhe assegurariam a vitória, o nobre animal, depois de se ter imobilizado durante alguns instantes, partiu, em louca correria. Por três vezes, deu a volta ao curral; descobrindo que a porta estava aberta, largou em desvairado galope, pela pampa, levando o cavaleiro, sempre firme na sela.

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CAPÍTULO I
A locanda La Noche
O pampeiro que, toda a tarde, soprara com violência, desaparecera subitamente, ao fim do dia. A noite estava muito clara, e as nuvens haviam sido varridas da atmosfera. No céu imenso, brilhavam milhares de estrelas. O Cruzeiro do Sul cintilava no horizonte.
Infinita calma reinava na pampa, apenas perturbada, de quando em quando, pelo piar de uma coruja ou o uivar distante de algum lobo vermelho, à procura de presa. A perder de vista, sob os raios pálidos do luar, estendia-se a planície imensa. Nem um bosque, nem uma árvore, sequer. Nada que revelasse um ensaio de cultura; por toda a parte, erva, só erva, sempre erva! Por vezes, à volta de alguma lagoa de água salobra, erguiam-se canaviais ; de longe em longe, um tufo de cardos ou ginérios, ou um pé de cicuta gigante surgia de repente, no meio da extensão plana - depois a pampa continuava, monótona, sem que nada denunciasse a proximidade de terras habitadas.
Saltando através do espesso tapete de alfilerilo(1), uma sombra surgiu e passou, a toda a velocidade. Era um veado que, desalojado do seu refúgio e assustado, se escapara com agilidade vertiginosa. Em poucos segundos, desapareceu, semelhante a um fantasma, e, então, cortando o silêncio impressionante, ergueu-se uma voz - a voz de um homem que, montado num cavalo branco, apareceu no fundo da paisagem.
Amedrontada, uma coruja ergueu vôo. As palavras da canção flutuavam no ar enluarado. Alguém que se encontrasse naquela imensidade não deixaria de sentir-se impressionado pela pureza daquela voz que os sons de uma guitarra acompanhavam. E os versos da canção sucediam-se, distintos, repassados de estranha nostalgia:
Siempre com mi dolor
Como eterna y fiel companera,
Voy como un trovador
Que aún sueña en bella quimera.
Dulce sueno de mi amor!
Sucho hermoso de ventura,
Todo pasó y el llanto de amargura
Ès la canción de mi dolor...(1)
(1) Erva fina, característica da pampa. (N. do A)
(2) Dada a semelhança entre as línguas portuguesa e espanhola, achamos inútil traduzir a letra deste tango, que, transposta para a nossa prosa, decerto bastante perderia em beleza e harmonia. O mesmo faremos com algumas frases espanholas que surgem pelo volume adiante. (N. do T.)
Sem dúvida habituado ao canto do dono, que assim procurava vencer a melancolia opressora da pampa sem limites, o cavalo prosseguia tranquilamente o seu caminho. Sobre a erva, os cascos não faziam o menor ruído. O animal caminhava a passo, e, de tempos a tempos, o cavaleiro interrompia a canção para dizer ao seu companheiro de quatro patas:
 - Adelante, Ardiente! Adelante, hijo mio!
E, apesar de ter já percorrido uma distância considerável, o cavalo, encorajado pela voz do dono, prosseguia com ardor.
O desconhecido teria vinte e cinco anos, quanto muito. Olhos negros, brilhantes, rosto crestado pelo Sol e pelo vento, exprimindo indomável energia, via-se, pelo trajo, que pertencia ao grupo desses intrépidos aventureiros que, ainda hoje, apesar do progresso, dos caminhos de ferro e dos automóveis, a tudo isso preferem o cavalo, indispensável, de resto, no meio das vastas planícies que percorrem: os gaúchos.
Largo sombrero escuro, cobrindo-lhe os cabelos castanhos, jaleca de pano preto, calzoncillo de algodão sobre a calça larga e ricamente bordada, faja ou cinta de seda, solidamente fixada pelo tirador, cinto de couro, ornado de medalhas e moedas de prata e de ouro, e o inevitável poncho, ampla capa característica, constituíam o trajo pitoresco do viajante, cujas fortes botas de couro cru ostentavam esporas de enorme roseta, que êle parecia não utilizar muitas vezes, pois contentava-se em acelerar o passo da montada com simples palavras de incitamento.
Por agora, o rapaz avançava descuidadamente, prosseguindo na sua canção. Causaria prazer ouvi-lo, mas, à volta, a solidão era impressionante. O rebenque(1) que lhe pendia do pulso oscilava com o movimento da mão, ao tanger as cordas da guitarra, e a Lua fazia cintilar a lâmina da navaja, suspensa do tirador. Junto da sela, ou recado, finamente trabalhada, estavam as duas armas inseparáveis dos filhos da pampa: o lazo, semelhante àquele de que se servem os cow-boys da América do Norte, e as bolas, arma formada por três bolas de chumbo, cobertas de couro e ligadas por correias entrançadas, que usam os gaúchos para capturar os cavalos selvagens. Atirado com perícia, o engenho enrola-se nas patas do animal e fá-lo cair.
Por muito tempo, ainda, o cavaleiro prosseguiu a lenta caminhada, sempre cantando a mesma canção, sem dúvida a sua predilecta.
(1) Chicote utilizado pelos gaúchos. E' formado por uma longa correia, presa a um cabo curto, de couro entrançado. (N. do A.)
Insensível ao cenário nocturno, deixava-se embalar pelo som da própria voz. De súbito, porém, alguém surgiu, a poucos passos, exclamando:
 - Buenas noches, amigo! Não esperava ouvir cantar tão bem no meio da pampa!
O cavaleiro voltou-se, admirado, e olhou na direcção da voz. Avistou um homem, vestido de negro e montado num cavalo côr de cinza, que erguia o braço direito, em sinal de amigável acolhimento.
O cantor ia tão distraído, que não se apercebera da aproximação do estranho. Agora, olhava-o, de sobrolhos franzidos. Não podia perdoar-lhe tê-lo arrancado ao seu devaneio musical. Só ao cabo de alguns segundos se resolveu a corresponder à saudação:
 - Buenas noches, amigo!
Mas o recém-vindo parecia disposto a não ficar por ali. Fez avançar o cavalo, até se colocar a par com o gaúcho.
 - Dirige-se sem dúvida para San Luís, amigo - disse, ao cabo de alguns momentos.
O rapaz observava absoluto mutismo. Quanto mais olhava o interlocutor, maior antipatia êle lhe despertava. Apesar das palavras amigáveis, aquela fisionomia não lhe agradava. Além disso, gostava de deixar-se guiar pela fantasia, sem que importuno algum lhe impusesse a sua presença. O desconhecido notou-lhe a hesitação.
- Diabo! - exclamou êle. - Talvez a sua bela o espere em San Luís! Não quero demorar-lhe o passo nem um segundo...
 - Quem lhe disse que vou para San Luís? - interrompeu o cavaleiro, com mal contida irritação. - Quanto ao encontro a que alude, deixe-me rir. Perez Mariposo não é dos que se prendem! A liberdade parece-lhe o bem mais precioso do Mundo... Segue descuidadamente através da pampa... Ás vezes, quando uma estância lhe agrada, detém-se e oferece os seus serviços... Por algumas semanas, interrompe a sua vagabundagem; depois, a fascinação das cavalgadas apodera-se dele novamente e parte, tão livre de amo como de afeições!
 - Quê! É Perez Mariposo, o domador!(1) - exclamou o recém-vindo.
 - O próprio; mas não vejo em que isso possa causar-lhe admiração.
O homem não respondeu. O nome do companheiro era célebre na pampa. Pela sua audácia e habilidade, Perez Mariposo era muito procurado pelos estancieros, pois não havia melhor cavaleiro entre os gaúchos. Apesar disso, como êle mesmo dissera, nunca se demorava muito tempo na mesma casa.
O cantor desejaria bastante desembaraçar-se do interlocutor, mas este não parecia disposto a deixá-lo.
(1) Domesticador de cavalos selvagens. (N. do A.)
 - Estou desolado por ter posto fim ao seu concerto - disse o desconhecido. - Não se preocupe com a minha presença. Terei muito gosto em apreciar o seu talento. Não se ouve com frequência uma voz tão agradável como a sua.
Os elogios não lograram convencer o domador. O encanto perdera-se. Sem dizer palavra, repôs a guitarra no arção da sela, e permaneceu silencioso.
Aquela atitude não perturbou o intruso.
 - Sou Marco Palavez, o capataz da estância de Gil Ribeira - explicou. - Conhece-o, sem dúvida. É um dos maiores criadores de gado da região. Enorme fortuna e domínio considerável. Tem mais de tresentos gaúchos e peones(1) ao seu serviço. Mas o diabo do homem é como o senhor... Apesar dos seus sessenta anos bem puxados, não quis acorrentar-se e permanece celibatário. É triste pensar que não tem um único parente para lhe herdar a fortuna... Mas Gil Ribeira não se preocupa com isso. É ainda forte e são...
O homem falava com volubilidade. Quanto mais o domador se mostrava reservado, mais êle procurava fornecer-lhe explicações. Limitando-se a estimular de vez em quando o cavalo com um estalo da língua, o gaúcho deixava-o falar, maldizendo o acaso que colocara aquele importuno
(1) Criados.
no caminho, e saudoso do passeio solitário assim interrompido. Pouco lhe importava, com efeito, que Gil Ribeira nunca tivesse pensado em casar-se e que a sua propriedade fosse uma das mais consideráveis da Argentina!...
 - De resto - prosseguia o capataz - vai conhecer o meu amo. Vamos encontrá-lo em San Luís, na locanda La Noche. Se quiser trabalhar connosco, tenho a certeza de que êle aceitará os seus serviços com vivo prazer...
 - Mas quem lhe disse que vou para San Luís? Além disso, não ando à procura de emprego!
A inesgotável verborreia de Marco Palavez começava a irritá-lo; mas o homem pareceu não se aperceber do tom assaz hostil em que estas palavras foram pronunciadas.
 - Quem me disse que vai para San Luís! - exclamou êle. - Ora, amigo! Primeiro, vi que gosta de cantar; depois, essa guitarra que traz consigo. Além disso, todos os gaúchos que hoje se encontram na pampa a esta hora dirigem-se infalivelmente ao grande baile que se realiza na locanda La Noche para festejar o fim da hierra(1).
 - Ignorava que houvesse tal festa - declarou o domador. - Nunca estive em San Luís...
 - Não é, evidentemente, uma grande cidade, como Buenos Aires, mas para nós, pobres cavaleiros, acostumados a viver no meio dos rebanhos,
(1) Marcação do gado a ferro, pelos criadores. {N. do A.)
San Luís é um verdadeiro paraíso. As poucas horas que ali passamos, de tempos a tempos, permitem-nos distrair da monotonia da nossa existência. San Luís é o oásis deste deserto. E, na locanda La Noche, bebe-se magnífico pulque(1) e boa aguardente, joga-se o monte com os amigos, dança-se com lindas raparigas...
As pupilas de Marco Palavez brilhavam, enquanto assim se exprimia, mas o cantor mostrava-se indiferente. Amava a pampa, apreciava aquela solidão, de que o companheiro se queixava. Que belas noites passava, estendido sob as estrelas, a cabeça apoiada na sela e enrolado nas quentes peles de carneiro que o protegiam do pampeiro! Era ali o seu elemento, e não compreendia que alguém pudesse aborrecer-se no meio daquela vastidão, que não trocaria por todo o ouro do Mundo. O cavalo, a guitarra, a planície sem fim era tudo quanto necessitava para ser feliz. Pouco lhe importava o dinheiro, só precioso nas cidades, detestáveis, desde que o automóvel nelas dominava e fazia terrível concorrência ao cavalo.
 - Vamos, amigo - prosseguiu o capataz - uma vez não constitui hábito. Dê-me o prazer de vir comigo até à locanda La Noche. Ficará conhecendo San Luís... Se dança tão bem como
(1) Licor extraído do tronco da árvore da maguey ou pita. (N. do T.)
canta, tem o êxito assegurado. Além disso, encontrará, talvez, alguns amigos que tenha conhecido durante a sua permanência nas diversas estâncias...
O domador encolheu os ombros. Não tinha amigos; os poucos gaúchos com quem se dava eram apenas conhecimentos de acaso. Quanto ao triunfo que poderia obter, não o interessava, também. Resolveu, por isso, recusar o convite. - Então, amigo, deixe-se tentar. Talvez precise fazer algumas compras. Na locanda, encontrará tudo quanto necessitar: armas, mate, coberturas... E não estamos longe de San Luís. Veja! Avistam-se já as luzes, lá em baixo!
Com o dedo, indicava alguns pontos luminosos, que surgiam no horizonte.
Por instantes, o domador ficou indeciso. Continuava a antipatizar com o companheiro, cujo olhar falso não lhe agradava, mas, reflectindo, lembrou-se de que estava quási esgotada a sua provisão de munições. O lazo, as bolas e a navalha não o dispensavam, com efeito, de trazer um revólver, que lhe pendia do cinto, num coldre, e uma carabina presa à sela. Por isso, respondeu:
 - Bem! Acompanhá-lo-ei!
 - Não terá de que arrepender-se - continuou o homem. - Quando se trava conhecimento com San Luís, volta-se sempre lá...
Um sorriso de incredulidade entreabriu os lábios do domador. Apertando bruscamente os flancos do cavalo, que até então seguira a passo, gritou-lhe:
 - Adelante, Ardiente!
O fogoso animal acelerou o andamento, e o capataz teve certo trabalho para alcançá-lo. Depressa, as luzes se aproximaram e em breve avistaram grupos de casas, alinhadas. A pampa estava animada, nos arredores. Numerosos cavaleiros convergiam para a povoação. Alguns dirigiram a palavra ao domador e ao companheiro, mas; estes não lhes prestaram atenção, levados pelo galope frenético dos seus cavalos, que a competição entusiasmara.
Por algum tempo ainda, correram loucamente através da planura. Depois, o domador, que se adeantara bastante, reteve o cavalo, com mão firme, e diminuiu o andamento. Não conhecendo a cidade, Perez Mariposo desejava ser precedido pelo capataz, que o guiaria. Em breve, penetraram na rua principal. A um sinal de Marco, o gaúcho deteve Ardiente junto de uma casa brilhantemente iluminada, e onde se ouvia cantar e rir. Era a locanda La Noche.

CAPÍTULO II
Conchita
UNS quarenta cavalos estavam amarrados em fila, perto do estabelecimento. Marco Palavez e o companheiro conduziram os seus para o mesmo local e prenderam-nos ali; depois, penetraram na locanda.
Logo à entrada, o domador julgou sufocar, tão espesso era o fumo que enchia o recinto. A afluência era considerável, e o estabelecimento merecia bem o nome: nem mesmo em pleno dia, a locanda, que servia simultaneamente de armazém, de taberna e de salão de baile, tinha luz suficiente. Na vasta sala, acumulavam-se ricos estancieros, rancheros dos arredores, gaúchos de toda a espécie, desde o vaqueano, que guia os "comboios" através das pampas, até ao matador, que abate os animais, e ao lanzador, que captura com o lazo os cavalos selvagens. Cerca de trinta mulheres, quási todas jovens, ali se encontravam também, e, quando os recém-chegados entraram, entregavam-se a uma dança endiabrada.
Era el galego, que Perez Mariposo vira muitas vezes executar, durante as suas numerosas excursões através das vastas planícies argentinas. Sentados numa espécie de estrado, quatro músicos tocavam guitarra, outro cantava, tocando, ao mesmo tempo, harmónio. A assistência estava dividida em grupos, enquanto alguns formavam círculo em redor dos pares que dançavam.
A um sinal de um dos espectadores, segundo grupo de dançarinos iniciou as suas complicadas evoluções, na cadência da música, por vezes vertiginosa.
O capataz e o domador contemplavam em silêncio aquele rodopiar de corpos, em movimentos, ora graciosos e lentos, ora rápidos - mas sempre obedecendo a regras cujo menor desrespeito era punido com o afastamento do par colhido em falta. Perez, habituado à solidão da pampa, julgava-se transportado a outro planeta.
Pouco a pouco, os pares foram desistindo, até que só ficou no meio do vasto círculo, triunfante, uma jovem de radiosa beleza, que, pela sua elegância e mestria, vencera todos os concorrentes. Era a rainha da noite! Quando a música parou, soaram entusiásticas aclamações, de todos os lados.
Não teria mais de dezassete anos. Olhos negros, magníficos, lhe iluminavam o rosto moreno, de perfil impecável, emoldurado em espessos cabelos escuros. Tinha entre os dentes uma haste de mimosa, cujas flores amareladas lhe dissimulavam em parte os lábios vermelhos. Inclinando-se, agradeceu gentilmente os aplausos. De todos os lados, ouviram-se gritos:
 - Dança agora sozinha, Conchita! - pediam. Perez Mariposo fitava a encantadora criatura, cujos movimentos harmoniosos lhe atraíram o olhar. No meio daquelas figuras rudes de gaúchos, a jovem parecia uma aparição sobrenatural.] Ficara fascinado! Acostumado à áspera existência da pampa, jamais pensara que houvesse naquelas paragens ente tão gracioso.
A funda impressão que lhe causara a jovem não passou despercebida a Marco Palavez, que, inclinando-se, lhe disse ao ouvido:
 - E' Conchita, a filha de Juan Balermo, o dono da locanda. E' a melhor bailarina da cidade. Tem uma legião de apaixonados, mas, até à data, nenhum pretendente à sua mão foi bem sucedido. Quer, talvez, continuar livre e independente, como o senhor...
Depois, como visse o domador persistir no: seu silencioso êxtasis, acrescentou:
 - Segundo me declarou há pouco, as mulheres não o interessavam... Mas parece que esta o impressionou deveras!
Perez não respondeu. Continuava a fitar a jovem, que o notara já. Seus olhares cruzaram-se, por segundos.
Mas a imobilidade da fogosa dançarina não durou muito. Reajustou a mantilha, e, voltando-se para os músicos, ordenou:
 - Vamos!
Imediatamente, as guitarras e o harmónio recomeçaram, enquanto a jovem, à volta de quem o círculo de admiradores se apertara, iniciava um voltear gracioso, embalado pela cadência da música e pelos clamorosos aplausos da assistência. Por vezes, parava, e os seus pèzitos bem calçados batiam a compasso, no sobrado. A saia vermelha, cheia de bordados de cores vivas, rutilava, ao passar, e ela ia e vinha, embriagada pelo triunfo, radiante de mocidade e beleza, como exótica flor perdida naquele cenário banal.
Perez já não lamentava ter acompanhado o capataz a San Luís. Todas as mulheres de brilhantes trajos que o rodeavam e por vezes o fitavam com olhares complacentes, lhe interessavam pouco. Só a jovem o atraía, e, ao vê-la, esquecia a anterior determinação, não pensando já na sua pampa, que horas antes não queria abandonar nem por um instante.
Alguém lhe pôs a mão no ombro. Era um peón, e, como o rapaz, admirado, ia a interpelá-lo por aquela intervenção, Marco Palavez, que permanecia junto dele, explicou:
 - Esquecemo-nos ambos de deixar à entrada os revólveres e as carabinas. As armas de fogo não são permitidas no interior da locanda. É fácil imaginar, amigo, que, em semelhante ambiente, sob a influência do pulque e dos vinhos] as discussões são frequentes, e não é de desejar que as balas vão atingir, entre a assistência, pessoas que nada têm com os possíveis conflitos, Daí esta medida de prudência.
Em qualquer outra ocasião, Perez preferiria sair da sala a ver-se privado das suas armas. O interesse que Conchita lhe despertara venceu, porém, a sua relutância. Docilmente, entregou a carabina e o coldre com o revólver ao criado. O capataz imitou-o.
Cumprida esta formalidade, o domador voltou a contemplar a jovem, que parara e recebia as aclamações dos espectadores. Alguns incitavam-na a recomeçar, mas ela, incapaz de pronunciar uma palavra, fez sinal de que necessitava de descansar um pouco. Reparando a desordem do penteado, foi sentar-se a uma mesa vizinha, onde se tinham instalado alguns frequentadores do estabelecimento. Então, deixando o capataz, o gaúcho tratou de aproximar-se.
Fatigada, Conchita encostara a cabeça à mão. Os músicos recomeçavam, entretanto, e os pares movimentavam-se de novo.
De súbito, a jovem sentiu que alguém lhe prendia o pulso. Voltou-se. Um indivíduo ricamente vestido, de estatura atlética e face congestionada, viera sentar-se junto dela. Reconheceu Gil Ribeira, o rico proprietário que sempre procurava aproximar-se, quando a via. Por diversas vezes o evitara, naquela noite, mas agora era-lhe impossível consegui-lo. O importuno, fazendo uma careta que pretendia ser sorriso de ternura, interrogou-a:
 - Então, Conchita, reflectiste?
A jovem franziu a testa. Sem reprimir um gesto de impaciência, preguntou, com visível desagrado:
 - Em que quere o senhor que tenha reflectido?
 - Na proposta que te fiz, há dias - respondeu Ribeira. - Sabes quanto gosto de ti... Sou imensamente rico e não tenho herdeiros. Pedi-te que consentisses em ser minha mulher.
 - Porque insiste em fazer-me tal proposta? - disse a jovem, afastando-se um pouco do homem, que se curvara para ela. - Sabe muito bem que sou de condição humilde...
 - Que me importa a tua condição, se estou louco por ti! - exclamou o estanciero, enquanto os pares continuavam a voltear em redor. - Até aqui, tive cem vezes ensejo de me casar. Recusei sempre. Tenho sessenta anos, é verdade, mas podes preguntar aos meus gaúchos se não sou mais ágil do que qualquer rapaz. Acabo de ver-te dançar e não resisti. Pensa que posso fazer de ti uma verdadeira rainha da pampa... Até agora, tencionava deixar o que possuo ao meu capataz, que me tem servido fielmente; mas porque darei a esse peón uma fortuna que pode assegurar-te a felicidade? Vamos, aceita... Pensa no futuro...
 - Afaste-se, senhor! Estão a olhar-nos! - murmurou a jovem, a quem aquela insistência começava a impacientar.
Apesar da bela perspectiva da riqueza que lhe prometia Gil Ribeira, Conchita experimentava instintiva repulsa. Sabia que os pais, donos da locanda, acolheriam de braços abertos aquele hóspede de categoria, e fariam o possível para que as suas entrevistas fossem frequentes, mas pensava que podia muito bem ser neta do rico proprietário, cujo rosto lhe lembrava sempre o focinho de um cão de fíla. Além disso, aquele pretendente metia-lhe medo. Sabia-lhe a história. Quantas vezes, abatera os inimigos que ousaram desafiá-lo! Manejava a navalha com terrível perícia!
A atitude hostil da jovem não desanimou o estanciero. Bebera naquele dia mais do que o habitual. Durante a semana finda, participara na hierra, extenuando-se com os seus gaúchos nesse violento trabalho. Viera ali para esquecer as fadigas, acalmar a sede inextinguível, e, sobretudo, para obter uma resposta favorável daquela que tanta impressão lhe causava.
 - Vamos, fala, chica! - continuou. - Seria insensatez rematada recusares o oferecimento que te fiz. Ser mulher de Gil Ribeira! De todas as que se encontram nesta sala, quantas quereriam estar no teu lugar! Pensa nas jóias, nos vestidos que poderás ter...
 - Mais vale ficar por aqui, senhor! - respondeu a jovem, levantando-se bruscamente. - Conchita não é das que se compram. Tais promessas não me seduzem.
O rosto do estanciero tornou-se escarlate. A mão que segurava o pulso da rapariga fechou-se como se fora uma tenaz.
 - Deixe-me! - gritou ela. - Não vê que me
magoa!
 - Que importa, chica! Já brincaste demasiadamente comigo. Vais dizer-me imediatamente que aceitas...
A infeliz tentou em vão libertar-se. A dôr que sentia aumentava. Sinistro sorriso perpassou nos lábios do miserável.
 - Vamos - prosseguiu Gil Ribeira. - Já esperei bastante. Preciso de uma resposta favorável!
 - Largue-me, senhor! O pulque subiu-lhe à cabeça! Se não me solta a mão, peço socorro - murmurou Conchita, desesperada.
E, como o pouco simpático indivíduo não fazia caso da sua advertência e continuava a apertar-lhe o pulso, a jovem agarrou, com a mão que tinha livre, o leque pousado sobre a mesa. Antes que o estanciero pudesse evitá-lo, vergastou-lhe o rosto.
Surpreendido, o homem soltou um rugido de furor. A dança, que até então prosseguira, interrompeu-se bruscamente, e a assistência aproximou-se da mesa. Ouviram-se exclamações indignadas, visando Gil Ribeira. Mas este não teve ocasião para replicar. Mão de ferro lhe agarrara, por sua vez, o punho, e, antes de êle próprio compreender o que se passava, sentiu-se atirado para trás, por força irresistível. - Sangre de Dios! - rugiu. Em vão o estanciero tentou resistir àquele que assim interviera. Em poucos instantes, vigorosamente empurrado, perdeu o equilíbrio e foi estender-se no chão, virando, na sua queda, a mesa e as cadeiras.
Sem saber quem desta forma se manifestara em seu favor, Conchita olhava a cena. Enquanto o importuno pretendente se debatia por terra, proferindo as mais enérgicas pragas, ela fitou o cavaleiro desconhecido, que pouco antes vira entrar, na companhia do capataz.
Deslizando por entre os pares que dançavam, o domador colocara-se perto dela e assistira à cena. Quando viu a jovem ameaçada, dispôs-se a intervir; agora, sem se importar com o estanciero, oferecia tranquilamente o braço à gentil bailadeira.
 - Permita-me que dance consigo um tango, senorita? - interrogou, sorrindo, no intuito de evitar o escândalo e afastar as pessoas que se tinham aproximado.
Maquinalmente, Conchita acedeu e deixou-se arrastar pelo recém-vindo, enquanto os outros assistentes procuravam conter Gil Ribeira, que, já de pé, queria atirar-se a Perez. Os músicos tinham-se levantado, também. Voltando-se para eles, o gaúcho gritou-lhes:
 - Um tango, senores! Toquem Siempre... Siempre! Era a canção que êle cantava, quando a chegada do capataz perturbara o seu nocturno devaneio. Era a sua ária favorita... As guitarras e o harmónio executaram o prelúdio. Então, sem se importar com o que poderia fazer o homem por êle tão rudemente tratado, o gaúcho, arrastando a jovem ainda aturdida, elevou a sua voz vibrante e harmoniosa, que dominou os murmúrios e comentários dos assistentes:
Siempre con mi dolor
Como eterna y fiel companera,
Voy como un trovador
Que aún sueña en bella quimera.
Dulce sueno de mi amor!
Sucho hermoso de ventura,
Todo pasó y el llanlo de amargura
És la canción de mi dolor!...
Presos ao encanto daquela voz, os espectadores deixaram de ocupar-se com Gil Ribeira, furioso e ameaçador, e voltaram-se para os dois
jovens.
íam e vinham, ao compasso da suave melodia. Conchita pensava viver um sonho; ao impulso do cavalheiresco defensor, seu corpo gentil ondulava. De olhos nos olhos, esqueciam a discussão de há instantes.
Exclamações entusiásticas partiram de toda a sala, saudando o belíssimo par, e, acompanhando o cantor, outras vozes puras e bem timbradas entoaram em coro o estribilho, que todos conheciam:
Siempre! Siempre la soñaba eternamente!
Nunca la amarga duda tortura mi corazón.
Pêro el destino implacable desmorona en un instante,
Pobre sueño! Desmorona mi sueno azul!
O domador dançava sempre, mostrando-se tão hábil na dança como o era no canto. Quási inconsciente, Conchita deixava-se levar no turbilhão, vendo, voltados para ela, o rosto enérgico e os belos olhos escuros do gaúcho. Aquele desconhecido que ali surgira parecia-lhe diferente de quantos homens até então vira!
Enquanto os dois jovens, estreitamente enlaçados, continuavam a evoluir no meio da sala, Gil Ribeira, trémulo de cólera, ruminava sombrios pensamentos de vingança. Nos primeiros momentos, alguns conhecidos, entre os quais o capataz, tinham-se aproximado, procurando acalmá-lo; pouco a pouco, a sua vigilância afrouxou. Então, antes que alguém pudesse evitar-lhe o gesto, o estanciero abriu a navalha; visou, durante um segundo, o seu audacioso adversário e a mão distendeu-se-lhe, como se tivera molas de aço: com toda a força de que era dotado, lançou a arma contra o domador.

CAPÍTULO III
Gil Ribeira recebe uma lição
PEREZ Mariposo estava perdido. Com efeito, Gil Ribeira não tinha rival como atirador de navalha. As suas vítimas eram já numerosas. Antes que o gaúcho, todo entregue à contemplação de Conchita, pudesse aperceber-lhe o gesto, a lâmina roçou-lhe pelo rosto. A jovem viu o seu par estremecer, enquanto grossas gotas de sangue lhe caíam na mantilha. Ouviram-se gritos de surpreza. A assistência, que seguia a dança com entusiasmo, não compreendeu, a princípio, o que acontecera.
 - Está ferido, senor? - preguntou Conchita,
pálida como cera.
 - Não é nada, senorita! - murmurou o domador.
Surpreendido pela súbita agressão, Perez recuperou a serenidade em poucos segundos. A arma não o atingira gravemente. Trémulo de cólera, o estanciero não tivera a pontaria habitual e a navalha lacerara apenas o lóbulo da orelha direita do alvejado. A arma passara entre os dois tanguistas e fora fixar-se no soalho.
A música parara. Os espectadores da cena receavam que o rapaz estivesse gravemente atingido, tanto mais que a ferida da orelha sangrava com abundância.
Mas Perez não dava mostras de desfalecimento. Receando que Conchita servisse de alvo ao seu adversário, afastara-a de si; depois, sozinho no círculo que permanecia à sua volta, pois o espanto imobilizara a assistência, procurou o agressor com o olhar. Em voz segura, infinitamente calma, interrogou:
 - Quem foi o miserável que tentou alcançar-me à traição? Tem tanto medo de mim que receia mostrar-se? Ignorava que a locanda La Noche fosse um refúgio de assassinos!
Profundo silêncio se sucedeu a estas palavras, mas o domador não teve dificuldade em descobrir o culpado. Compreendendo que a situação se tornara perigosa, Gil Ribeira, afastando as pessoas que o rodeavam, procurava atingir a porta e desaparecer.
Não pôde ir muito longe. Quando se encontrava a três passos apenas da saída, a figura enérgica do gaúcho ergueu-se-lhe na frente. Com incrível agilidade, rompera através da assistência e agora, barrando a porta, dizia, com os braços cruzados e voz sempre espantosamente calma, sem se importar com o sangue que continuava a correr da ferida:
- Vai-se embora, senor? Que pressa! Tenho o maior desejo de conversar consigo. Há apenas alguns minutos que nos conhecemos, e temos já uma conta séria a ajustar!
Em contraste com o sangue frio do rapaz, o estanciero parecia desvairado. Lançava em volta olhares de fera acossada. Pela primeira vez, encontrava pela frente um adversário a quem a sua terrível reputação não fizera tremer.
Silêncio impressionante se estabelecera agora na locanda. A música, o canto e os gritos que, momentos antes, enchiam o recinto tinham cessado. Apertando-se uns contra os outros, os assistentes fitavam os dois homens que decerto iam travar um duelo de morte.
Sem poder conter por mais tempo a sua fúria, o estanciero atirou-se para a frente, julgando ser bastante o seu aspecto feroz para afastar do caminho o homem que êle alvejara tão desajeitadamente.
 - Atrás, hombre! - disse com voz surda. -
Já te dei um aviso...
Mas a atitude ameaçadora de Gil Ribeira não intimidava o domador. Não se desviou uma linha, continuando a desafiar o energúmeno. Nem sequer levou a mão à navalha pendente do cinto. Leve sorriso lhe entreabria os lábios.
Aquela impassibilidade ainda mais exasperou o estanciero, acostumado a que todos se inclinassem diante dele. Nem os murmúrios hostis da assistência lhe prenderam a atenção.
Se o criador de gado se houvesse atirado ao domador, para desafiá-lo, após o incidente havido, teria isso parecido absolutamente legítimo àqueles homens, habituados a uma existência brutal ; mas a agressão covarde que aquele cometera, desacreditara-o. Por isso, o rapaz tinha o papel mais simpático; contudo, ninguém alimentava dúvidas sobre o resultado do conflito, agora inevitável. O gaúcho teria de confessar-se vencido, quando experimentasse a força hercúlea de Gil Ribeira.
O domador, todavia, parecia contar com a vitória. No rosto, lia-se-lhe uma expressão de profundo desprêso. Desafiava o adversário. Então, este ergueu os braços; o enorme punho ia abater-se sobre a face do defensor de Conchita... quando soltou um rugido de furor. Perez previra-lhe o gesto e, abandonando a imobilidade escarninha que mantivera, agarrara o braço que ia agredi-lo. Executando brusco movimento de torção, obrigou o mata-mouros a dar um salto para trás.
 - Vais pagar-me caro, franganito! - resmungou Gil Ribeira. - Ficarás sabendo que ainda ninguém ousou desafiar-me...
 - Sou então o primeiro a castigar um covarde! - respondeu-lhe o gaúcho, sempre calmo.
 - Precisas de facto uma boa lição, para aprenderes que não basta ameaçar para ser invencível. Não te falta coragem para maltratar uma mulher ou atacar um adversário à traição... Talvez, até aqui, te deixassem agir à vontade, mas fica sabendo que Perez Mariposo não tolerará que um valentão perturbe uma festa... Gosto de dançar com quem me apetece e não admito que me interrompam...
 - Sangre de Dios!...
Ouvindo aquelas palavras que o chicoteavam, o estanciero julgava-se em meio de um pesadelo. E era um vulgar gaúcho, um peón, que ousava dirigi-las, a êle, Gil Ribeira, o maior criador de gado da região, por todos respeitado e temido... Incapaz de raciocinar e lembrar-se de que o seu adversário o mantivera em respeito por duas vezes, atirou-se de novo contra êle.
Então, desenrolou-se um combate encarniçado. Mais alto e corpulento do que o gaúcho, o estanciero julgava ter todas as vantagens, mas em breve verificou que o domador lhe resistia e ripostava energicamente.
 - Por la muerte! - rugiu, com o rosto congestionado.
Os dois homens enlaçaram-se selvàticamente. Gil Ribeira procurava desiquilibrar o adversário e atirá-lo a terra, mas, com profunda admiração de todos, os seus esforços foram inúteis. O rapaz suportou sem vacilar o ataque que êle julgara fulminante, e ao qual nenhum adversário resistira. Solidamente apoiado nas pernas, o gaúcho, com as maxilas cerradas e os músculos contraídos, susteve galhardamente a ofensiva do agressor.
Conchita não desviava os olhos dos combatentes. Pensamentos angustiosos lhe ocorriam. Era ela a causa principal do conflito... Ainda tentara intervir, mas as pessoas que a rodeavam não lho tinham permitido. Muda de terror, receava ver o seu gentil cavaleiro ser vencido pelo adversário.
Conhecia a reputação de Gil Ribeira, e julgava que Perez, ignorando-lhe a espantosa força, seria dominado em poucos instantes.
Porém, com grande satisfação da jovem e de todos os ocupantes da locanda, o domador resistia bem. Sabendo a vantagem que lhe dava a corpulência, o estanciero procurava esmagá-lo sob o seu peso, mas o rapaz, executando torções bruscas, conseguira repeli-lo e quási o fizera cair.
Tal resistência exasperava o brutamontes, e, enfurecido, cometeu algumas faltas perigosas. Após três minutos de corpo-a-corpo implacável, durante o qual pensara esmagar o peito do adversário, viu-se obrigado a deixá-lo e recuar. Então, o domador passou da defeza ao ataque. Um soco violento, na maxila do colosso, fê-lo vacilar, e a assistência julgou que êle ia a terra. Conseguiu ainda equilibrar-se. As exclamações entusiásticas, que se dirigiam ao seu inimigo, decuplicavam-lhe o furor.
Quanto mais o estanciero se enfurecia e atirava golpes ao acaso, mais a calma do domador espantava a assistência. Não desfitava o adversário. Apesar de ter a navalha no cinto, nem por um instante pensara servir-se dela, achando covardia combater com outros meios que não fossem aqueles de que dispunha o antagonista.
A' medida que o tempo decorria, era evidente que Gil Ribeira se esgotava em baldados esforços. Dispunha, é verdade, de força brutal, e teria esmagado Perez, se este não lhe opusesse uma agilidade surpreendente. Perito em servir-se da navalha, o estanciero parecia desconhecer a arte da luta, enquanto o gaúcho se revelava um lutador emérito. Por diversas vezes, o outro procurara atingi-lo em cheio, mas só encontrou o vácuo e recebeu, em troca, rudes golpes.
Combatendo sempre, os dois evoluíam num círculo formado pelos espectadores. À luz dos candeeiros de petróleo, a assistência, à qual se juntavam constantemente novos curiosos, atraídos pelo ruído da luta, seguia o combate, vivamente interessada.
Conchita verificava, com indizível alegria, que o seu defensor desconhecido, em vez de sucumbir aos golpes tremendos que o alvejavam, os evitara, e parecia até brincar com o adversário.
Em pouco tempo, os papéis estavam invertidos, e Gil Ribeira revelava-se, ao soco, pouco para temer.
Consciente da sua inferioridade, levou a mão ao cinto, procurando a arma que nunca o abandonava. No ardor da peleja, esquecera-se de que dela se servira minutos antes. Quando verificou a sua falta, compreendeu que teria de continuar lutando apenas com os punhos; e o gaúcho multiplicava agora os golpes, atingindo-o com alguns directos formidáveis. O sangue corria-lhe do nariz, encharcando-lhe a camisa. Os ouvidos zumbiam-lhe e estava prestes a cair por terra. Tudo, à sua volta, girava confusamente.
De repente, o estanciero julgou-se salvo. Nas evoluções do combate, chegou junto do local onde, momentos antes, fora fixar-se a navalha com que alvejara o domador. A assistência, entregue às peripécias da movimentada luta, não pensara em retirá-la do sobrado, onde ela se embebera profundamente.
Gil Ribeira manobrou por forma a aproximar-se da arma. Enquanto Perez, sem a menor desconfiança, avançava sempre, o estanciero baixou-se de súbito e, antes que o adversário lhe adivinhasse a intenção, apoderou-se da navalha. Convencido de que a arma lhe daria rápida vitória, e sem o menor escrúpulo pela covardia que ia praticar, atirou-se ao domador.
A assistência soltou um grito de indignação.
O rapaz compreendeu num momento a gravidade do perigo. Enquanto Conchita, horrorizada, esperava um trágico desenlace e soltava um gemido de desespero, Perez, dando um salto para o lado, evitou o golpe e, com prodigiosa habilidade, no momento em que o colosso ia atingi-lo, agarrou-lhe o pulso.
Por alguns segundos, os dois homens ficaram assim, peito contra peito; o gaúcho mantinha acima da cabeça a mão do antagonista, esmagando-a na tenaz dos seus dedos de aço.
Ofegantes, os espectadores ouviram então Gil Ribeira soltar um grito de dôr... Os dedos abriram-se-lhe e deixou cair a arma. Antes que pudesse atacar de novo, um soco tremendo, aplicado em pleno peito, cortou-lhe a respiração e atirou-o ao solo, definitivamente vencido.

CAPÍTULO IV
Dois tiros no meio da noite
O estanciero apanhara uma lição. Incapaz de levantar-se, deixou-se ficar estendido no sobrado. Alguns momentos permaneceu imóvel, gemendo e olhando os circunstantes, a quem custava ainda a acreditar que êle estivesse vencido.
Imperturbável, de pé, junto do adversário caído, o domador limitava-se a reparar a desordem do vestuário, que a luta rasgara em vários pontos.
De súbito, voltou-se... Uma mãozita morena, que segurava um lenço, limpou-lhe o sangue dos lábios e das faces. Estonteador perfume o envolveu. Conchita estava junto dele. Angustiada durante o combate, parecia agora radiante.
 - Obrigada, senor! - murmurou, com voz suave. - Nunca mais esquecerei o que fez por mim.
Perez sorriu.
 - Todo o homem que se preza deve proteger uma mulher, em semelhantes casos - respondeu. - Apenas cumpri o meu dever!
O olhar cheio de admiração que lhe dirigia a jovem, as palavras que pronunciara, a sua atitude reconhecida - tudo isso o recompensava largamente dos perigos que correra. Tomou-lhe a mão e apertou-lha. Por instantes, esqueceram o local onde se encontravam, a multidão que se juntara em volta de Gil Ribeira, para se olharem longamente.
Uma praga despertou-os da mútua contemplação. Sustido pelo capataz, o estanciero erguera-se a custo. A raiva que sentia era medonha. Apesar do lamentável estado em que se encontrava, teve ainda a veleidade de se atirar de novo ao seu vencedor; mas Palavez e os companheiros seguraram-no, sem muito custo, pois Gil Ribeira, cuja voz, pouco antes, faria tremer muitos deles, estava reduzido a um farrapo humano.
 - Voltaremos a encontrar-nos! - exclamou êle, olhando rancorosamente o domador.
 - Não deseje novo encontro - disse Perez, sempre calmo. - Desta vez, poupei-o, apesar da covardia de que deu provas; mas, se o acaso o colocar de novo no meu caminho, previno-o de que o matarei como se fosse um cão!
Os assistentes não puderam deixar de estremecer, ao ouvir aquelas palavras. Enquanto o colosso batido era levado para uma cadeira, na extremidade da sala, o gaúcho pôs o chapéu, que caíra logo no princípio do conflito, e prendeu o rebenque ao punho. Saudando em volta e dirigindo-se para a porta, disse:
 - Hasta la vista, senoras y señores!
Dispunha-se a partir, como se nada tivesse acontecido. Na sua precipitação, não pensou nas armas, que o peón lhe confiscara, à entrada. O capataz preveniu-o do esquecimento.
 - Então, deixa-nos já? - disse para o seu companheiro de jornada nocturna. - A festa apenas principiou...
 - Para mim, já durou demasiado - respondeu-lhe o rapaz.
 - Em todo o caso, não deixe as suas armas na locanda. Pode ter necessidade delas.
Assim falando, Marco prendia-lhe o coldre ao cinto, enquanto Perez Mariposo punha a carabina em bandoleira.
 - Adios, amigo! - disse o domador. Palavez curvou-se para êle.
 - Um bom conselho - disse-lhe ao ouvido. - - Gil Ribeira não é pessoa que esqueça uma injúria, e, o que é pior, uma derrota... Acredite-o e esteja precavido. Meu amo é muito poderoso nesta região... Pode causar-lhe sérias dificuldades...
 - Pouco me importa! - retorquiu Perez, despreocupadamente. - Se êle me aborrecer, achará homem pela frente. Já lhe provei, há pouco, que as suas ameaças me deixam indiferente e que sei responder-lhes.
Sem esperar mais, fez um gesto amigável de despedida e saiu. Em poucos instantes, achou-se junto de Ardiente, que, ao reconhecer o dono, deu um relincho de contentamento.
 - Vamos, hijo mio - murmurou, passando-lhe a mão pelas crinas. - Nada vale a nossa pampa. É melhor dormir à luz das estrelas do que andar metido nesta agitação.
Assim falando, assegurava-se de que a sela estava bem firme sobre a pele de carneiro que protegia o animal, e a cilha convenientemente apertada. Tomadas estas indispensáveis precauções, dispunha-se a meter o pé no estribo, quando alguém lhe pôs a mão no ombro.
Surpreendido, voltou-se. A' luz que vinha das janelas fortemente iluminadas da locanda, reconheceu Conchita.
Não o desejando ver assim afastar-se, sem ao menos lhe conhecer o nome, aquele que tão corajosamente se batera por ela, deixara também a sala onde o baile recomeçara com animação. Estava agora junto do gaúcho, infinitamente sedutora, com a cabecita envolta na mantilha de renda.
 - Vai-se embora! - disse, quando Perez se voltou. - Porque não fica em San Luís? Se soubesse como lhe estou grata...
A sinceridade daquelas palavras comoveu-o. Tirando o chapéu, murmurou:
 - É muito generosa, senorita. Creia que conservarei do nosso encontro e do tango que dançámos uma recordação imperecível... Pela primeira vez, na minha existência, esqueci que pertencia inteiramente à pampa. Agora, porém, é inútil demorar-me aqui...
Conchita não o deixou continuar: - Que vai ser de mim, então? Não terei o meu protector para defender-me... Gil Ribeira está furioso e com certeza voltará a importunar-me...
Os punhos do gaúcho cerraram-se com força. Compreendia o bem fundado receio da jovem. Violenta luta se lhe travava no íntimo. Por fim, apertando de novo a mão que ela lhe estendia, respondeu:
 - Não tenha receio, senorita. Ficarei por estas paragens, e prometo-lhe que não será importunada.
Havia tal firmeza na voz do rapaz, que a jovem sentiu-se, a um tempo, tranquilizada e inquieta. O desconhecido, porém, inspirava-lhe toda a confiança.
 - Ao menos - disse - poderei saber o seu nome?
 - Chamo-me Perez Mariposo - respondeu com simplicidade o cavaleiro, abandonando-lhe a mão e saltando agilmente para a sela. Voltando-se ainda, saudou:
 - Hasta la vista, senorita!
Um breve estalo de língua incitou Ardiente, que partiu a meio galope.
Por instantes, a jovem permaneceu apoiada à balaustrada onde estavam presos os cavalos dos clientes da locanda. Pouco a pouco, a figura do audacioso cavaleiro desapareceu nas sombras da noite. Dominando o concerto de guitarras e harmónio, uma voz clara vibrou, cada vez mais afastada, na direcção que Perez havia seguido:
" Siempre con mi dolor
Como eterna y fiel compañera
Voy como un trovador
Que aún suena en bella quimera...
As palavras perderam-se em breve na distância. Lentamente, a jovem regressou à locanda.
Apenas Conchita reapareceu na sala, de todos os lados choveram pedidos:
 - Vamos chica! Dança comigo...
 - Não me queres para teu par?
 - Um tango, senorita?
Acenou negativamente a quantos assim a interpelaram. Com passo rápido, deslizou por entre os pares que volteavam e atingiu a escada de madeira que conduzia ao seu quarto. Em vão, os pais lhe fizeram sinal para que ficasse. Fingiu não os ver e desapareceu.
O leito e outros pobres móveis rústicos guarneciam o aposento. Fechando com precaução a porta, Conchita dirigiu-se para o espelho, diante do qual habitualmente se vestia. Com um movimento brusco, tirou a mantilha de seda em que envolvera a cabeça, e os cabelos, de um negro de azeviche, espalharam-se-lhe pelos ombros.
A jovem não perdeu tempo a mirar-se. Segurando entre os dedos febris a mantilha, contemplava as manchas sombrias que nela se destacavam: o sangue do domador, ferido pela navalha de Gil Ribeira, coagulara ali. Ao olhar aqueles vestígios, recordava os dramáticos acontecimentos de que fora a heroína. Indizível expressão de melancolia lhe velou o olhar, e pousou longamente os lábios no estofo maculado. - Meu belo cavaleiro! - murmurou. Na sala, o baile prosseguira com animação. Sentado numa cadeira, o estanciero, ainda combalido, remoía torvas ideias de vingança. Vencido! Fora vencido, êle, Gil Ribeira! Julgava-se vítima de um pesadelo.
Vários conhecidos tinham-lhe dedicado alguns momentos, mas, quando o baile recomeçou, foram atraídos pelo turbilhão da dança. O criador de gado ficou só, afogando o seu desgosto com grandes copos de pulque. Por fim, surgiu, no meio dos grupos, o capataz, que, vendo o amo sozinho, se encaminhou para êle.
 - Por la muerte! Até que enfim apareces, Marco. Já era tempo. Onde está esse chacal, que quero estripá-lo!...
 - Não se excite, senor... Foi-se embora - respondeu o recém-chegado.
 - Covarde! Teve medo da minha desforra! Mas, cedo ou tarde, encontrá-lo-ei! Não me escapará!...
O capataz facilmente verificou que o homem não estava senhor das suas faculdades. Sentou-se junto dele, procurando acalmá-lo, mas não conseguiu fazê-lo calar.
 - Viste! - gritava o colosso. - Essa Conchita... Recusar semelhante oferta! Tornar-me ridículo aos olhos dessa gente! Se não me tivesse contido, castigava-a à chicotada.
 - Não grite assim, senor! - pediu Marco. - Esta gente não tem necessidade de nos ouvir.
 - Esta gente! - prosseguiu Gil Ribeira, com voz avinhada. - Para mim, é como se não existisse. São todos uns peones... Procuraram, por ventura, defender-me desse cão?... Não! Estavam até encantados ao verem-me maltratado, porque me temem. Mas saberei agradecer-lhes, descansem...
 - Por favor, mais calma! - recomendou ainda o capataz.
 - Calma! Queria ver-te no meu lugar! Pensa que eu, o maior proprietário desta região, ofereci a minha fortuna a uma mendiga, e fui enxotado como se fora um cão sarnento. Ah! Mas ela nada terá! Nem um simples peso.(1) Visto que és o meu único amigo, ficarás com tudo...
Estas palavras tiveram o condão de operar profunda mudança na atitude do capataz. Olhando à volta com ar desconfiado, verificou se alguém ouvira o amo. A maioria dos assistentes entregava-se ao prazer da dança, mas Marco Palavez franziu a testa, ao avistar, perto de si, um homem vestido à maneira gaúcha, que o olhava com interesse.
Alto, magro, bigode apenas marcando o lábio superior, o indivíduo que parecia ter surpreendido a conversação entre Gil Ribeira e o seu companheiro chamava-se Yago e era lanzador, na estância do rico proprietário. Os olhos cinzento-azulados brilhavam-lhe estranhamente.
 - Mais baixo! Suplico-lhe - aconselhou Marco, inquieto. - Não é preciso revelar os seus segredos a toda a gente.
 - Os meus segredos! Não tenho segredos para ti - prosseguiu Ribeira, sem diminuir o tom da voz. - Todos sabem que és o meu único amigo e que tenho a máxima confiança em ti! Ninguém virá dizer o contrário... Madre de Dios! Visto que essa delambida não aceitou as minhas propostas, ficarás sendo o meu único herdeiro... Não destruirei o testamento que fiz em teu favor
(1) Moeda argentina.
no meu notário... É justo que os bons sejam recompensados e punidos os maus! Serás rico... muito rico... mais tarde, e essa maldita morrerá de fome, chorará lágrimas de sangue, por não me ter querido...
O capataz estava sobre brasas. Ora fitava o estanciero, cada vez mais comunicativo, ora vigiava o lanzador, que, impassível, não perdia palavra da estranha confidência.
 - Divagações, senor, puras divagações - disse, impaciente. E, desejando interromper a conversação, levantou-se.
 - Deixas-me sozinho, Marco? - gemeu o criador de gado. - Isso não pode ser...
Palavez afastara-se rapidamente. Em poucos segundos, transpôs a porta da locanda. Fora, respirou com delícia o ar fresco da noite, limpando o suor que lhe corria pela testa. Mas, apenas deu alguns passos, enrolando um cigarro, alguém surgiu junto dele, apresentando-lhe um acendedor, ao mesmo tempo que dizia, muito baixo.
 - Não quere lume, amigo?
Marco estremeceu, ao reconhecer o lanzador.
 - Que me queres? - interrogou, cada vez mais perturbado.
 - Pouca coisa - respondeu Yago, sorrindo, sarcástico. - Tenho somente uma combinação a propôr-te, e espero que me ouvirás atentamente.
Dominando a sua inquietação, o capataz seguiu o companheiro, e ambos desapareceram na treva, sem que a sua ausência fosse notada na locanda, onde a festa prosseguia.
O trágico duelo fora olvidado, e o baile estava no auge. Dezenas de pares volteavam, infatigáveis.
Por algum tempo ainda, Gil Ribeira, engrolando frases, olhou aquela gente. A atmosfera da sala tornara-se sufocante, e o ar que entrava pelas janelas abertas de par em par não conseguia vencer o fumo dos cigarros. Emborcando um último copo, o estanciero atirou algumas moedas para cima da mesa e levantou-se.
O dono da locanda apressou-se ajudá-lo. Desolado pela atitude da filha, que, em sua opinião, comprometera tolamente o futuro, tentava desculpar-se junto do cliente. O colosso limitou-se a soltar alguns monossílabos. Por fim, já impaciente, ordenou:
 - Acompanha-me até ao cavalo!
 - Mas o senhor não vai assim, sozinho...
 - Acompanha-me! - repetiu Gil Ribeira, em tom que não admitia réplica.
Juan Balermo não hesitou mais, e, segurando o irrascível freguez, conduziu-o até junto da montada. Não foi sem dificuldade que o estanciero, bêbado de pulque e ainda muito abatido pelo severo correctivo que recebera de Perez Mariposo, conseguiu instalar-se na sela.
Chicoteando o animal, que relinchou de dôr, embrenhou-se na escuridão.
O dono da locanda acabara de regressar à sala, quando, apesar do barulho das guitarras e do harmónio, se ouviram, fora, dois tiros...

CAPÍTULO V
Os vigilantes
APESAR da agitação que reinava na locanda, músicos, bailarinos e espectadores ouviram as detonações. Bruscamente, os pares que volteavam pararam, olhando na direcção da porta. As mais diversas suposições se sucederam. Dois tiros, a uma hora tão avançada da noite, só poderiam ter um significado trágico. Juan Balermo recordou-se dos conselhos de prudência dados, minutos antes, ao estanciero. O estado de excitação em que este se encontrava admitia as piores hipóteses.
Estabeleceu-se silêncio absoluto, na sala. Toda aquela gente, que, pouco tempo antes, ria e procurava divertir-se o melhor possível, apurava agora os ouvidos, tentando distinguir algum ruído, no exterior; mas nada se ouvia. Nos rostos angustiados, era fácil ler-se tal silêncio não ser considerado de bom augúrio.
O ruído de uma porta, abrindo-se, fez estremecer bailarinos e bebedores. Era Conchita, que surgia no alto da escada. Ouvira, também, as detonações e interrogava-se, ansiosa, àcêrca do seu significado.
Por fim, ao cabo de alguns minutos, cansados de esperar, os assistentes emitiram alto as suas opiniões. O estado de Gil Ribeira, no momento da partida, a pouca lucidez que lhe restava, a ninguém escapara. Sem dúvida, sucedera-lhe alguma desgraça.
 - Eu bem o avisei de que não era prudente aventurar-se assim - disse Juan Balermo. - Não quis escutar-me...
 - Tanto mais - lembrou outro - que devia lembrar-se das ameaças aqui pronunciadas, pouco tempo antes, pelo seu adversário. Recordem-se... Antes de Gil Ribeira sair, esse homem disse-lhe: "Se o encontrar no meu caminho, mato-o!" O tal indivíduo, a quem não falta coragem, não tinha saído há muito tempo, quando o estanciero resolveu ir-se embora...
 - E quem lhe diz que esse homem assassinou o criador de gado? - interrompeu uma voz vibrante. - Para que serve fazer semelhante suposição?
Todos se voltaram, admirados. Era Conchita quem assim se exprimia. Ao ouvir a absurda hipótese formulada, apressara-se a protestar. Estava firmemente convencida: Perez Mariposo não era um assassino. Contudo, a sua intervenção não influenciou a assembleia, e o dono da locanda, que estava próximo da filha, tratou logo de dizer:
 - É inútil tomares assim a defeza do teu belo par, chica. Devias, antes, evitar que se recordasse a tua atitude de há pouco e deixar esse indivíduo em paz.
 - Defendo esse desconhecido - prosseguiu a jovem, sem fazer caso da reprimenda - porque verifiquei ser um adversário leal, ao passo que o estanciero procedeu, durante o combate, como um covarde, e à traição...
 - Em todo o caso - objectou alguém - não compreendo estarmos aqui a discutir, sem saber ainda ao certo o que se passou.
A observação era justa; e muitas das pessoas reunidas na sala decidiram-se a realizar pesquisas, não sem previamente algumas se munirem das armas, que tinham deixado à entrada.
A locanda La Noche ficava no extremo sul de San Luís. Não havia edifícios, em frente. Só se distinguiam, à direita e à esquerda, alguns corrales, onde estavam numerosos cavalos. Para além, estendia-se a pampa sem limites, uniforme e plana, de onde, de tempos a tempos, chegavam até à povoação os uivos distantes dos lobos vermelhos.
O primeiro grupo de uns vinte homens dera já alguns passos, quando surgiram dois vultos. A luz das lanternas de que se tinham munido, os clientes de Juan Balermo reconheceram imediatamente Marco Palavez e Yago. Ambos caminhavam a pé, parecendo sustentar animada conversação. Ao avistá-los, os do grupo interpelaram-nos, julgando que talvez pudessem fornecer alguma explicação para as misteriosas detonações. Com geral desapontamento, o capataz e o companheiro aproximaram-se rapidamente, e foram os primeiros a interrogar:
 - Que tiros foram estes?
Pablo Trabuco, um dos gaúchos mais conhecidos na cidade, que se pusera à frente do grupo, exclamou:
 - Madre de Dios! Isso íamos nós preguntar-lhes!... Esperávamos, até, que pudessem esclarecer-nos!
 - Esclarecê-los?! Da melhor vontade, se soubéssemos... A locanda estava sufocante e saímos, Yago e eu, para tomar fresco e conversar um pouco, quando estalaram dois tiros... Pensámos logo que se tratasse de alguma ocorrência desagradável, e interrompemos o passeio - explicou Marco Palavez.
 - A julgar pela intensidade das detonações - disse então Pablo Trabuco - os tiros não foram disparados muito longe. Parecia virem daquele lado...
Estendendo o braço, o gaúcho designava a direcção sul. Os companheiros mostraram-se de acordo, e, sem esperarem mais, encaminharam-se resolutamente para a planície, semeada apenas de raras moitas, que marcava o início da pampa.
De repente, pararam. Dirigia-se para eles um animal, cujo vulto em breve se destacou da sombra.
 - Um cavalo! - exclamou o gaúcho.
 - E creio ser o do nosso amo! - disse o lanzador, correndo para a frente.
Ao cabo de breves instantes, Pablo Trabuco e os companheiros obtinham a confirmação da suspeita de Yago. Era, de facto, o cavalo baio de Gil Ribeira, que todos conheciam muito bem. As rédeas estavam caídas. A sela continuava firme no dorso do animal, com o lazo e as bolas, mas, do cavaleiro, não havia vestígios.
Marco Palavez franzira a testa, ao fazer esta verificação.
 - Não há dúvida - disse. - Sucedeu alguma coisa a meu amo!
O mesmo pensamento ocorrera a todos os componentes do grupo, que logo se afastaram em várias direcções, procedendo febrilmente a pesquizas.
Estas não foram demoradas. Ao cabo de poucos minutos, avistaram um corpo imóvel, estendido na erva.
Correram todos, e em breve estavam reunidos em volta do misterioso vulto. A' luz das lanternas, viram tratar-se de um homem, que fora ferido pelas costas. Uma bala atingira-o num ombro e outra penetrara-lhe na nuca. Esta última devia tê-lo morto instantaneamente. O cadáver estava de bruços, com o rosto voltado para baixo. Um fio de sangue corria-lhe do pescoço e empapava a erva.
 - Não resta dúvida - declarou Pablo Trabuco, depois de ter erguido um pouco o corpo.
 - Trata-se de Gil Ribeira...
 - Não lhe mexa! - exclamou Marco Palavez.
 - É preciso chamar o alcaide e os vigilantes, a fim de procederem ao inquérito.
 - Quanto a mim - objectou o lanzador - a identidade do assassino não oferece dúvidas. É o homem com quem o nosso amo se bateu, na locanda. O patife deve tê-lo esperado, oculto por trás das moitas, e abateu-o friamente, pelas costas, sem que êle tivesse dado pela sua presença...
 - Antes de mais nada - interrompeu o gaúcho - creio que seria melhor prevenir imediatamente as autoridades. Depois, poderemos então dar as nossas opiniões.
 - Enquanto esperamos - resmungou Yago - o assassino desaparecerá... Não seria melhor ir já em sua perseguição?
 - Procurar-lhe a pista! - exclamou Pablo Trabuco. - Seria o mesmo que procurar agulha em palheiro. Conheces bem a pampa, para saberes que os sinais de um cavaleiro não ficam impressos na erva. Perderíamos tempo inutilmente. É preferível ir alguém em busca do alcaide. Depois se verá o resto!
Embora não fosse esta a opinião do lanzador, um dos homens ofereceu-se para cumprir a missão indicada e encaminhou-se para a cidade, a passos rápidos.
O capataz e os companheiros aguardaram, discutindo, a chegada dos representantes da autoridade. A maioria das opiniões não era favorável a Perez Mariposo, cujo nome foi revelado por Marco Palavez. As palavras ameaçadoras do rapaz, pouco antes de partir, estavam na memória de todos. De tempos a tempos, Yago interrompia a conversação e praguejava contra a demora do alcaide.
 - Se continuarmos assim - dizia - o assassino terá tempo de chegar a Buenos Aires... Ah! Se estivéssemos no Texas ou no Arizona, a justiça seria mais expedita. Tratar-se-ia, em primeiro lugar, de deitar a mão ao criminoso.
Em vão o capataz procurou tranquilizar o seu impaciente camarada. Até que, por fim, se ouviu um grito:
 - Vêm aí!
 - Custou! - resmungou ainda Yago, que não se acalmara. - Começava a sentir crescer raíses nas botas!
Entretanto, o homem que fora prevenir a polícia caminhava à frente dos recém-vindos, guiando-os para o teatro do crime. Seguia-o o alcaide, que, apoiado a uma bengala, parecia sentir certa dificuldade em mover-se. Atrás, vinham quatro vigilantes, conduzindo os cavalos a passo.
Apenas o grupo chegou junto do cadáver, ouviu-se uma voz de falsete preguntar:
 - Vejamos, que aconteceu, caballeros? É horrível! Já não se pode dormir tranquilo em San Luís. Acordaram-me, para me dizer que Gil Ribeira fora assassinado! É inacreditável!
Era Benigno Camorral, alcaide de San Luís, quem assim se exprimia. Baixa e gorda, esta importante personagem sugeria, logo à primeira vista, a ideia de uma bola. As pernas, excessivamente curtas, a custo sustinham o corpo, sobretudo o ventre, que tomara proporções extraordinárias, devido à predilecção do seu proprietário pelos bons petiscos. Cervantes decerto pensara numa criatura assim constituída, quando criou Sancho Pança. A cabeça, redonda e lisa como o são as bolas de bilhar, ostentava um chapéu de incríveis dimensões; a tríplice papada caía-lhe sobre o peito, ocultando o colarinho e a gravata; o nariz redondo, os olhos muito pequenos e irrequietos, e a boca abrindo-se em forma de O - eis o retrato do notável indivíduo, exemplo perfeito do êxito da circunferência e do círculo, adaptados ao corpo humano.
Por agora, Benigno Camorral, exausto pela marcha realizada, enxugava o rosto, banhado em suor, com um lenço de quadrados amarelos e alaranjados, do mais extraordinário efeito...
Convencido de que dissera já o bastante, esperava, assoprando como se fosse uma locomotiva, que os gaúchos lhe descrevessem o trágico acontecimento.
Foi Pablo Trabuco quem se encarregou de ilucidar o alcaide. Fazendo sinal aos companheiros para que não o interrompessem, afim de evitar perdas de tempo prejudiciais ao prosseguimento do inquérito, expôs pormenorizadamente os incidentes desenrolados na locanda, desde a chegada do domador. De cada vez que terminava uma frase, Benigno Camorral fazia um pequeno gesto de assentimento, soltando, também, de tempos a tempos, grunhidos aprovadores. Pareceu mesmo que a ameaça dirigida por Perez Mariposo a Gil Ribeira lhe causou grande prazer, pois o rosto encheu-se-lhe de alegria. Passou a língua pelos lábios, como se acabasse de saborear alguma gulodice.
A partir desse momento, o gaúcho em vão prosseguiu o seu discurso. A importante personagem escutou-o distraídamente. Sem dúvida, chegara já a uma conclusão, pois, a cada instante, entreabria os lábios, para murmurar:
 - Vamos... abrevie!
Enfim, quando Pablo Trabuco terminou a exposição, o homenzinho, cruzando as mãos sobre o ventre, contemplou, com ar satisfeito, aquelas pessoas que solicitavam a sua opinião. Durante alguns segundos, um sorriso trocista lhe pairou no rosto, depois, a enorme barriga começou a tremer, com uma espécie de convulsão, produzida pelo riso.
 - Santa Virgem! - exclamou, enxugando as lágrimas provocadas por aquela estranha hilaridade - não é necessário ser feiticeiro para adivinhar quem é o culpado! É simplesmente esse homem, esse domador, que levou a imprudência ao ponto de participar as suas criminosas intenções diante de toda a gente reunida na locanda!
 - É essa, também, a minha opinião - declarou o gaúcho. - Contudo, julgo que, antes de acusá-lo, é preciso possuir provas suficientes...
 - Provas? Não tardaremos, sem dúvida, a tê-las - respondeu o alcaide, fazendo sinal aos vigilantes para que o seguissem.
Abandonando os cavalos, os representantes da autoridade aproximaram-se do cadáver e, ajoelhando-se junto dele, procederam a meticuloso exame.
 - Afastem-se! - gritou um deles ao capataz e companheiros. - Precisamos de bastante espaço para reconstituir as circunstâncias em que foi cometido o crime.
Gaúchos e peones apressaram-se a obedecer. Só Benigno Camorral ficou junto dos quatro polícias.
 - Vamos, Ricardo - ordenou ele ao chefe dos vigilantes.
O exame dos ferimentos levou a conclusões idênticas às já anunciadas por Pablo Trabuco e os outros. Não podiam subsistir dúvidas: o estanciero fora atacado pelas costas; o assassino, emboscado atrás de qualquer moita, esperara-o a pequena distância, e, friamente, deixara-o passar, alvejando-o, em seguida, com duas balas.
 - O maldito sabe manejar o revólver - resmungou Ricardo, voltando o cadáver.
O exame revelou igualmente aos vigilantes que o corpo de Gil Ribeira estava coberto de equimoses, decerto recebidas durante o combate na locanda, pois alguns pedaços de papel colados, aqui e ali, sobre as feridas, indicavam curativos sumários, feitos após a dramática luta.
 - Por la muerte! - exclamou Ricardo. - O indivíduo que pôs a cara do senor Ribeira em tal estado deve ser um estupendo lutador! Não devia ser fácil tratar assim semelhante colosso!
 - O que não o impediu de matá-lo covardemente - disse o alcaide, apontando o ferimento que provocara a morte do estanciero. - A forma como decorreu a cena não me oferece dúvida de espécie alguma. Os dois homens combateram durante o baile, e, desejando desfazer-se do adversário, o domador esperou-o, oculto na sombra...
 - Não estou tão convencido disso como o senhor - objectou Ricardo - Semelhante atitude parecer-me-ia natural, se o domador tivesse sido derrotado. Nesse caso, o motivo do crime estaria claro; desejando desforrar-se, decidira-se a matá-lo. Não sucedeu, porém, assim. Todavia, acabo de verificar que as algibeiras da vítima não foram revistadas. Contêm dinheiro em abundância. A hipótese de roubo tem, igualmente, de ser posta de parte.
 - Mas aquela ameaça! Aquela ameaça, pronunciada diante de mais de duzentas testemunhas, não explica tudo? - preguntou o alcaide. - De que serve procurarmos outras, se temos à vista a solução mais simples e evidente? O domador ameaçou Gil Ribeira de matá-lo, se o voltasse a encontrar. Os dois homens acharam-se de novo, frente a frente, e o bandido cumpriu a promessa. De resto, além dele, quem poderia ter interesse em abater o estanciero? Ribeira era temido em toda a região. Afirmo-lhe, Ricardo: É inútil formular outras hipóteses... aliás muito vagas e absurdas...
Com a mão, o alcaide acompanhou estas palavras de um gesto que parecia afastar quaisquer outras possibilidades, como se fossem moscas ou importunos mosquitos. Interrompeu-se, ao ouvir um dos vigilantes que se afastara alguns passos e chamava:
 - Venha, venha depressa, señor alcaide! Acabo de fazer uma descoberta importante!
Com certo custo, Benigno Camorral levantou-se, e, respirando ruidosamente, dirigiu-se para o seu auxiliar.

CAPÍTULO VI
A prisão de Perez
O vigilante acocorara-se junto de uns arbustos que se erguiam a cerca de quinze metros do local onde fora encontrado o cadáver, e tinha na mão um objecto que brilhava à luz da lanterna, posta no chão, junto dele.
 - Um revólver! - exclamou o alcaide, apoderando-se do objecto que o representante da autoridade lhe estendia.
Era, com efeito, um revólver que o homem acabava de achar, entre as ervas. O exame da arma revelou a Benigno Camorral tratar-se de um Colt de calibre 45, semelhante aos usados pelos cow-boys, na América do Norte. No cilindro, havia quatro cartuchos carregados e duas cápsulas detonadas.
 - Não resta dúvida! - exclamou. - É a arma do crime.
Os outros vigilantes tinham-se aproximado, enquanto, a pequena distância, Pablo Trabuco e os companheiros se interrogavam com ansiedade, sem saberem a importância do achado.
Ricardo estava junto de Benigno Camorral.
 - É claro como o dia - disse-lhe o homenzinho. - O assassino encontrava-se aqui mesmo. Atirou contra o estanciero, que lhe passava ao alcance...
 - Permita-me que lhe observe, senor alcaide - objectou o chefe dos vigilantes - ser estranho que o assassino deixasse aqui a arma. Um revólver destes é precioso, e tão indispensável na pampa que ninguém se resignaria a abandoná-lo de boa vontade. Se o indivíduo, em questão tivesse deixado outros vestígios, não me admiraria. Mas esse Colt...
 - Decididamente, meu caro Ricardo, tens sempre reservas a formular! Não vês que a Providência vela... Um revólver! É como se o miserável deixasse atrás de si o seu bilhete de identidade!
Pronunciando estas palavras, Benigno Camorral exultava. Satisfação sem limites se lhe lia no rosto. Para êle, a prisão do culpado era uma questão de horas. Semelhante êxito ia contribuir para a sua promoção, e deixaria San Luís para ir exercer o seu cargo nalguma cidade mais importante.
Imóvel junto dele, o chefe dos vigilantes parecia não compartilhar de tal optimismo. Pegara na arma e examinava-a com persistência.
Não podia haver dúvidas. Fora com aquele revólver que Gil Ribeira tinha sido morto... Contudo, que misterioso fim visara o assassino, abandonando-o? Muitas vezes, Ricardo perseguira os bandidos que se refugiavam na pampa; mas nunca qualquer deles levara a imprudência ao ponto de abandonar as suas armas...
A voz de falsete do alcaide arrancou-o àquelas reflexões.
 - Vamos mostrar a arma a esses homens. Talvez a conheçam.
Benigno Camorral fez um gesto ao grupo de gaúchos, para que se aproximasse. O capataz e os companheiros não se fizeram rogados.
 - Acabamos de achar este revólver, amigos - disse-lhes. - Algum dos senhores poderá dizer o nome da pessoa a quem pertence?
Marco Palavez foi o primeiro a pegar na arma. A' luz de uma lanterna que o lanzador segurava, examinou-a longamente. Por fim restituíu-a ao alcaide, que o fitava com olhos inquiridores.
 - É a primeira vez que vejo este Colt - declarou o capataz.
Todo o grupo, desde Yago a Pablo Trabuco, fez idêntica declaração.
 - Contudo - lembrou Ricardo - costumam conhecer as armas uns dos outros, que, muitas vezes, examinam e experimentam.
 - Assim é, com efeito - declarou o gaúcho.
 - Sei o calibre e a marca dos revólveres de todos os meus camaradas. Este, não conheço. De resto, tem duas iniciais marcadas na coronha de marfim: P. M.
 - As iniciais do assassino! - exclamou o alcaide. - Vejam como eu tinha razão!
Mas o chefe dos vigilantes parecia prestar medíocre atenção às descobertas do homenzinho. Sem hesitar, prosseguiu o inquérito, deixando Benigno Camorral multiplicar à vontade as suas exclamações de satisfação, em que tomava a assistência como testemunha da sua perspicácia.
 - Alguém conhece o nome desse tal domador que se bateu, ao princípio da noite, com Gil Ribeira!
 - Chama-se Perez Mariposo - declarou o capataz. - Encontrei-o, quando vinha para o baile na locanda. Conhecia-o já, de nome, pois é célebre a sua habilidade em domar cavalos selvagens. ..
Mas o alcaide não quis ouvir mais, àcêrca das qualidades e intrepidez do domador. A resposta ouvida dava-lhe razão.
 - Perez Mariposo! - exclamou. - P. M.! P. M.! Vêem, são as suas iniciais!
Ricardo, desejoso de esclarecer a ocorrência, prosseguiu, dirigindo-se ao capataz:
 - De todos quantos estão aqui, é então o senhor o único que falou com esse homem. Durante o seu encontro, viu este revólver?
 - Como, se o domador o tinha no coldre, que entregou a um peón, ao entrar na locanda? - respondeu Marco. - Lembro-me, contudo, de que fui eu quem lho restituiu, à saída.
 - Além desse Perez Mariposo, ninguém mais saiu da locanda?
 - Yago e eu saímos, pouco antes do nosso amo, mas não tínhamos armas connosco. Pode verificá-lo. Os nossos cintos, com os coldres, ficaram na locanda. Fazia tanto calor na sala, que viemos respirar um pouco de ar fresco e fumar um cigarro.
Uma rápida inspecção convenceu Ricardo da veracidade deste facto. Surpreendidos ao ouvir as detonações, quási todos os homens do grupo tinham esquecido as armas, e aqueles que as traziam mostraram-nas ao chefe dos vigilantes. Os cilindros ostentavam todos os cartuchos carregados.
De resto, nenhum daqueles indivíduos podia ser culpado, pois estavam no estabelecimento de Juan Balermo, quando o crime fora cometido. Só o lanzador e o capataz se encontravam fora, mas as circunstâncias excluíam-nos, pois não tinham armas em seu poder.
Contudo, Ricardo continuava perplexo. Seria preciso que Perez Mariposo fosse de uma inconsciência absolutamente louca, para abandonar assim o revólver e atrair, desta forma, todas as suspeitas! Todavia, não restava outro caminho: em face das provas e testemunhas, o homem devia ser perseguido e preso no mais curto espaço de tempo possível.
 - Se continuamos aqui, sem nada fazer, o pássaro voará para bem longe - disse Yago.
 - Tem razão - respondeu o chefe dos vigilantes. - Vamos correr imediatamente na sua pista.
 - A pampa é vasta e o homem tem a reputação de ser um cavaleiro emérito! - prosseguiu o lanzador. - Cada minuto perdido rouba-nos grandes probabilidades de êxito.
As palavras de Yago eram razoáveis; contudo, a perseguição não podia ser lançada ao acaso, e os vigilantes decidiram dividir-se em vários grupos. Para esse efeito, porém, eram pouco numerosos; Marco Palavez foi em seu auxílio, declarando a Ricardo:
 - Teremos muito prazer em coadjuvá-lo nas pesquizas. Dê-nos tempo para irmos buscar as nossas armas e cavalos à locanda e ficaremos inteiramente à sua disposição.
A proposta foi imediatamente aceita. Minutos depois, uns trinta gaúchos, montados em fogosos cavalos, juntaram-se aos vigilantes, e, dali a momentos, partiam, divididos em quatro grupos. Cada um destes, dada a impossibilidade de seguir uma pista, devia esforçar-se por ir o mais longe possível, através da pampa, em direcções diferentes.
A dispersão de forças fazia prever um êxito rápido. Era evidente, com efeito, que, apesar do avanço obtido pelo fugitivo, lhe seria difícil ocultar-se numa planície onde só cresciam raras moitas de arbustos insignificantes.
Sem perder mais tempo, os quatro grupos partiram. O alcaide, pouco habituado a exercícios violentos, viu-os largar a galope; depois, quando o ruído dos cavalos se perdeu na distância, o homenzinho voltou-se para os peones que tinham ficado junto dele e ordenou-lhes que levassem o corpo do estanciero para a locanda. A ordem foi executada imediatamente, e Benigno Camorral seguiu, esfregando as mãos de satisfeito, o fúnebre cortejo.
 - Santa Virgem - dizia de si para si - o caso está arrumado! Dentro de duas horas, voltarão com o assassino, amarrado de pés e mãos... Enquanto a esquisita personagem assim se desvanecia com o êxito, os perseguidores continuavam a cavalgada noturna. Deixando três dos grupos afastar-se para a direita e para a esquerda, Ricardo galopou na direcção Sul. O lanzador e seis gaúchos acompanhavam-no. Curvados sobre os cavalos, os oito homens corriam como se fossem demónios. De tempos a tempos, as esporas feriam os flancos das montadas; os cavaleiros não trocavam palavra entre si. A' volta, a pampa estendia-se, monótona, impressionante. A Lua iluminava pàlidamente aquela ilimitada vastidão.
O chefe dos vigilantes e os companheiros não se esqueciam de percorrer o território com a vista, sem, contudo, descortinarem o menor vulto que lhes revelasse a proximidade de qualquer ente humano. Os olhos de lince de Yago, para quem a campina não tinha segredos, nada divisavam que parecesse suspeito. A corrida prosseguia. Ricardo desesperava já de encontrar o fugitivo, cada vez mais convencido de que escolhera má direcção, quando o lanzador, que ia à frente do grupo, se ergueu nos estribos:
 - Ojo a Ia derecha! - exclamou.
Imediatamente, os gaúchos detiveram os cavalos. Com o dedo, Yago apontava-lhes, a uns oitocentos metros do ponto onde se encontravam, uma luz fraca, junto da qual se recortava uma forma branca, imóvel.
Não havia dúvida: era um cavalo que avistavam, próximo de uma fogueira.
 - É a montada do nosso homem! - gritou um dos cavaleiros.
Com um gesto brusco, o chefe dos vigilantes intimou silêncio absoluto. Por instantes, examinou os arredores.
 - O assassino está acampado além - murmurou o lanzador ao ouvido do representante da autoridade.
Ricardo parecia um tanto admirado. Na verdade, esperava encontrar o matador de Gil Ribeira, mas pensava ter de realizar uma longa perseguição. Após o crime, decerto o fugitivo não ignorava que se lançariam em breve à sua procura. Parar constituiria a mais insensata das imprudências.
Desejando proceder a um reconhecimento, Yago saltou do cavalo, e, quási rastejando, tratou de aproximar-se da fogueira, sem despertar a atenção do proprietário do cavalo branco, que certamente estava deitado próximo do braseiro.
O chefe dos vigilantes e os companheiros viram-no afastar-se com precaução, fazendo-lhes sinal para que esperassem. Durante um quarto de hora, aguardaram. O mais profundo silêncio reinava na pampa, e o fogo parecia prestes a extingir-se, quando um vulto se recortou na sombra. Era o lanzador, de regresso da expedição.
 - Estamos em boa pista? - preguntou-lhe Ricardo, em voz baixa.
Ao clarão lunar, o representante da força pública pôde ver um sorriso no rosto do recém-vindo.
 - Sim - respondeu. - É de facto esse miserável. Dorme profundamente e de certo não espera a nossa visita!
 - Para um criminoso, esse rapaz tem a consciência estranhamente tranquila - pensou Ricardo. - Parece-me que, se eu tivesse assassinado Gil Ribeira, tomaria mais precauções!...
Não havia que hesitar, agora. Era necessário efectuar a prisão do domador. Um gaúcho ficou de guarda aos cavalos, e os outros, apeando-se e de revólveres na mão, seguiram Yago, pelo caminho por este tomado, para proceder ao anterior reconhecimento.
Sem ruído, o chefe dos vigilantes e os companheiros chegaram em breve a poucos metros do sítio onde Perez Mariposo estabelecera acampamento. Sem dúvida, o cavalo branco, que pastava perto do fogo, ouviu algum deslizar suspeito, pois endireitou bruscamente as orelhas e voltou a cabeça, na direcção dos perseguidores. Quanto ao dono, nem por sombras adivinhava aquela inquietante vizinhança. Com a cabeça apoiada na sela e envolto numa quente pele de carneiro, estava mergulhado em profundo sono, como o provava a sua respiração regular.
Lentamente, Ricardo e os seus homens manobraram por forma a cercá-lo e evitar que êle opusesse qualquer resistência. Avançaram mais alguns passos, quando se ouviu um relincho. Ardiente dava o alarme.
Imediatamente, o domador sentou-se, olhando admirado, em volta. Por várias vezes, o inteligente animal o advertira dum perigo - a aproximação de algum jaguar ou a presença, sempre para recear, dos lobos vermelhos. Ao débil clarão que se elevava da fogueira, o rapaz olhou o cavalo, que parecia anormalmente agitado. Levou a mão ao coldre, que abriu. Já inquieto, queria empunhar a arma, para qualquer eventualidade.
Uma exclamação de espanto lhe escapou: o revólver não estava no lugar habitual.
Perturbado pela singular desaparição, Perez não sabia a que atribuí-la, quando ouviu um silvo e sentiu os braços prêsos, imobilizados ao longo do corpo. Ao mesmo tempo, alguns vultos surgiram em volta, apontando-lhe revólveres, e uma voz enérgica avisou:
 - Se fazes um movimento, morres!
O infeliz, mesmo que quisesse resistir, não poderia fazê-lo. Yago lançara-lhe o lazo, reduzindo-o à impotência. O chefe dos vigilantes e os outros gaúchos limitaram-se a segurá-lo com fôrça, amarrando-o, para lhe tornar impossível a fuga.
Cheio de espanto, Perez não compreendia o significado daquele ataque imprevisto. Debatia-se em vão.
 - Mas que me querem? - preguntou, por fim, ainda atordoado por aquele insólito despertar.
 - Quem são vocês?
 - Sou - respondeu Ricardo - o chefe dos vigilantes de San Luís...
 - Se é o chefe dos vigilantes, trate de desembaraçar a pampa dos bandidos que a infestam e não perturbe pacíficos viajantes!
 - Pacíficos viajantes! - exclamou o interpelado, sem saber se se tratava de uma inútil bravata.
Que um assassino não tomasse as mais elementares precauções, era coisa que espantava sinceramente o ajudante de Benigno Camorral. A indignação do prisioneiro, porém, elevava ao cúmulo êsse espanto.
Contudo, o lanzador e os gaúchos depressa dissiparam as hesitações do chefe dos vigilantes.
 - É êle! - exclamaram todos. - É o homem que dançou com Conchita, no baile da locanda!
 - Conchita! - murmurou o domador, preguntando a si mesmo aonde queriam chegar os captores, ao pronunciarem o nome da jovem.
Mas Ricardo não lhe deixou tempo para fazer preguntas.
 - Chama-se Perez Mariposo e é domador de cavalos selvagens? - interrogou.
 - Nunca pensei em dizer o contrário - respondeu o rapaz.
 - Nessas condições, vejo-me constrangido a apoderar-me da sua pessoa.
 - Prender-me! - exclamou Perez, no auge do espanto.
 - É acusado de ter cometido um assassínio, na pessoa do estanciero Gil Ribeira - explicou Ricardo. - A partir dêste momento, encontra-se em poder da Justiça!...

CAPÍTULO VII
Provas esmagadoras
ADMIRADÍSSIMO, o domador preguntava a si mesmo se estaria sonhando. Ainda mal acordado, arregalava os olhos, procurando afastar aquela estranha cena. Não conhecia nenhum dos homens que se lhe erguiam na frente, e o ameaçavam com os revólveres. A acusação contra êle pronunciada enchia-o de espanto. Reunindo as suas recordações, reconstituía os acontecimentos da véspera. As dramáticas peripécias desenroladas desde o encontro com o capataz, a locanda La Noche, os músicos, a dança; Conchita, tão bela e graciosa, o estanciero, que conseguira vencer, e contra quem Marco Palavez o prevenira - tudo isto lhe ocorria.
Depois de se despedir da filha de Juan Balermo, recordava-se de que se afastara a galope, através da pampa, montado no seu fiel Ardiente. Caminhara cêrca de vinte quilómetros; sentindo-se cansado do combate e da corrida, pensara em repousar. Apeara-se, acendera uma fogueira, preparara e engulira um copo de mate, e embrulhara-se na jerga(1). E eis que acordava agora, rodeado de desconhecidos que o tinham manietado e o acusavam do assassínio de Gil Ribeira! Que significava isto?
Ricardo e os companheiros não mostravam disposição para brincadeiras. A atitude do chefe dos vigilantes provava ao gaúcho que êle falava com a maior seriedade possível. Assim, procurando vencer o espanto, disse, ainda estremunhado:
 - Assassinei o estanciero Gil Ribeira?!... Por Dios, caballeros, que história é essa? Afirmo-lhes, por minha honra, que estão enganados!
O espanto do domador e as palavras que pronunciava pareciam sinceras, mas o lanzador não o deixou prosseguir.
 - É inútil tentares iludir-nos - disse, num tom que não admitia réplica. - Reconhecer-te-ia entre mil. Foste tu quem provocou Gil Ribeira, na locanda La Noche, e travaste com êle um duelo implacável, de que saíste triunfante, com enorme admiração minha, confesso-o.
 - É êle, com efeito! - exclamaram três dos gaúchos. - Reconhecemo-lo, também!...
 - Pór la muerte! - interrompeu o rapaz. - Nunca pensei em negar que me bati em San Luís,
(1) Cobertura.
com o indivíduo a quem se referem. Contudo, entre um duelo leal e um assassínio, há certa diferença!...
 - Confessas - prosseguiu Yago, sem se mostrar perturbado pela resposta de Perez - ter ameaçado de morte Gil Ribeira, se voltasses a encontrá-lo no teu caminho?
 - Estava tão enfurecido pela covarde atitude do meu adversário, que pronunciei, com efeito, qualquer coisa nesse sentido. Desde que êle apanhara a navalha, para atacar-me deslealmente, via tudo vermelho, diante de mim. Isso não quere, todavia, dizer que estava resolvido a executar a ameaça.
 - Deve evitar-se sempre pronunciar palavras tão imprudentes, diante de tantas testemunhas - disse o chefe dos vigilantes. - O estanciero a quem as dirigiu foi encontrado morto, por duas balas, a pouca distância da locanda. Nestas condições, conhecendo o que se passara no estabelecimento de Juan Balermo, não nos foi difícil adivinhar quem era o culpado. Perez Mariposo, está apanhado e bem apanhado. Não tente fazer de esperto. Vai dar contas do seu crime à Justiça!
Em vão, o domador procurava libertar-se das cordas. As declarações do seu interlocutor indignavam-no.
 - Juro-lhe - exclamòu, quando verificou a inutilidade dos seus esforços - que não voltei a ver êsse Gil Ribeira, desde que saí da locanda.
Afastei-me a galope para o Sul, desejoso de acampar ao ar livre, e com pouca vontade de me demorar mais tempo em San Luís.
 - Essa precipitação parece-me bastante anormal - objectou Ricardo. - O baile não findara, segundo me consta, quando partiste, e podias muito bem encontrar um quarto, na cidade, onde ficarias muito melhor.
 - Vão para o diabo os vossos quartos, onde se dorme entaipado! - resmungou o gaúcho. - Prefiro ao melhor leito do mundo a sela e a minha jerga... Quando estou fechado nesses cubículos, sinto-me sufocado... É por isso que, após algum tempo passado na locanda, desejava voltar para o ar livre.
 - Tudo mentira! - gritou Yago. - Veja, chefe! Êste miserável procura enganar-nos!
Sem dúvida indignado com a morte do amo, o lanzador não pudera reprimir por mais tempo a cólera. A sua intervenção, porém, não alterou o rapaz. Replicou, com voz perfeitamente calma:
 - Vejamos: Tenho o aspecto de um criminoso? Se fôsse o autor da acção que me imputam, teria estabelecido tranqüilamente o meu acampamento, em vez de fugir para o mais longe possível, e escapar, dessa forma às pesquisas e perseguições que não deixariam de visar-me? Bem vêem que a acusação não tem fundamento, e devem procurar outro culpado. Antes de me acusar, precisam de provas... Têm uma única que possa tornar-me suspeito?
Um sorriso mau brilhou no rosto de Yago.
-Permite-me, amigo, que te faça uma pregunta - disse. - Podes dizer-me o que fizeste do teu revólver?
 - O meu revólver?! Mas... Tenho-o no coldre.murmurou Perez.
Interrompeu-se, porém. Os homens que o rodeavam olhavam-no com ar trocista. Reprimiu a custo um estremecimento, pois lembrara-se, de repente, de que, minutos antes, debalde procurara a arma, para se defender dos agressores.
De resto, o chefe dos vigilantes não deixou por muito tempo o prisioneiro perder-se em conjecturas. Tirou da algibeira o Colt encontrado próximo do corpo de Gil Ribeira e pô-lo diante dos olhos de Perez. Ao clarão vacilante da fogueira, o domador reconheceu-o fàcilmente.
 - O meu revólver! - exclamou, admiradíssimo. - Como se encontra êle em seu poder?
 - Achámo-lo junto do cadáver do estanciero
 - respondeu Yago, com ar triunfante. - Visto que reclamavas provas com tanta insistência, aqui tens uma, e espero que compreenderás ser inútil persistires em negar. O indivíduo que deixou um tal objecto no próprio local onde o crime foi cometido é, com certeza, o assassino. A vítima foi atingida por duas balas e há justamente dois cartuchos detonados no cilindro.
Não sabendo que pensar, o prisioneiro olhou em volta. A atitude de quantos o rodeavam era hostil, ao mais alto grau. Só o chefe dos vigilantes conservava calma absoluta.
 - Vejamos! - exclamou, por fim, o domador.
 - Não é possível! Como tem em seu poder essa arma, se ela nunca me deixou?
 - Talvez tenhas outra igual no coldre - troçou o lanzador. - É fácil verificá-lo.
Ricardo e os gaúchos viram, sem demora, que o coldre do rapaz estava vasio.
 - Em suma, reconhece esta arma? - interrogou o representante da autoridade. - Pertence-lhe?... Tem as suas iniciais...
 - Pertence-me, com efeito - respondeu Perez,
 - Mas ignoro em conseqüência de que milagre foi parar às suas mãos... Julgava tê-la comigo, quando, no momento em que os senhores apareceram, dei pela sua falta...
 - Vejam que êle continua a mentir - interrompeu Yago. - Há pouco, afirmava que o Colt estava no coldre, e, agora, diz-nos que dera pela sua falta quando o agarrámos!
 - Há instantes, surpreendido pela chegada de tão numeroso grupo, que estava longe de esperar, posso assegurar-lhes, foi-me difícil exprimir com precisão... Acordara em sobressalto...
 - Isso não interessa - interrompeu de novo o lanzador, que parecia decidido a substituir Ricardo, no interrogatório ao prisioneiro. - uma coisa é certa: o revólver foi encontrado junto do cadáver...
 - Deixe-me falar, amigo - interveiu o chefe dos vigilantes, cortando a palavra ao seu auxiliar, que começava a mostrar-se excessivamente zeloso. - Se continuamos a discutir, nada conseguiremos. Mais vale tratar o assunto com clareza e procurar a verdade.
Depois, voltando-se para Perez Mariposo, preguntou-lhe:
 - Onde estava, amigo, quando, pela última vez, viu o seu revólver?
O rapaz concentrou-se por alguns segundos, tentando reunir as idéias. Com voz calma, respondeu:
 - Tinha entrado na locanda La Noche, em companhia de um tal Marco Palavez, e dispunha-me a ver o baile, quando o meu companheiro me avisou de que as armas não eram admitidas no interior da sala. Entreguei então a um peón que estava perto da entrada o coldre e a carabina.
 - Essas armas foram-lhe restituídas - disse Ricardo - pois vejo a carabina junto da sela.
 - Com efeito, foram-me dadas, à saída, e foi o próprio capataz quem se lembrou de as reclamar.
O rapaz esquecia-se de dizer que estava absorto em tais pensamentos, nessa altura, que não tomara a precaução de verificar se o Colt estava no seu lugar. Conchita produzira-lhe profunda impressão, e o curto diálogo trocado em seguida, diante da porta, com a encantadora dançarina, não contribuíra, também, para que se lembrasse de inspeccionar as armas.
 - Nesse caso - objectou o lanzador, que continuava altamente interessado em tomar parte activa no interrogatório - tinhas a arma contigo quando partiste. Vê, chefe, êle confessa...
 - Se digo que reentrei na posse do revólver - ripostou o rapaz com voz vibrante - isso não quere dizer que assassinasse Gil Ribeira. A minha pretensa vítima encontrava-se ainda na locanda, julgo eu, quando me afastei, e tinha outras coisas em que pensar. Quando êle se decidiu a sair, é provável que me encontrasse já a alguns quilómetros de San Luís...
 - Não é essa a minha opinião - prosseguiu Yago, implacável. - Podes muito bem ter ficado à espreita, oculto atrás de qualquer moita. Meu amo, em resultado de copiosas libações, não estava muito lúcido... Foi, para ti, que acabavas de pronunciar ameaças de morte contra êle, um alvo fácil de atingir. Covardemente, mataste-o pelas costas...
 - Mentira! - rugiu Perez Mariposo, sem poder ouvir o lanzador por mais tempo. - Provei, na locanda, que o estanciero não me metia mêdo e que era homem para o defrontar, sem ser preciso abatê-lo traiçoeiramente. Além disso, que vantagem podia tirar dêsse inútil assassínio?
De facto, se Gil Ribeira me atacasse, na pampa, ter-me-ia defendido, mas tal não sucedeu. Que motivo teria, então, para me desembaraçar dêle?
 - Que motivo?! - exclamou Yago, sempre mostrando agressividade. - Primeiro, agindo assim, cumprias a promessa feita diante de tôda a gente, de matá-lo como a um cão. Depois, parece-me, também, que a bela Conchita te produzira séria impressão. A tua vítima constituía, para ti, um rival perigoso, que era prudente eliminar... A chica poderia hesitar, com efeito, entre o seu sedutor cavalheiro e os pêsos do estanciero...
 - Miserável! - protestou o domador. - Dar-me-ás um dia contas dêsses insultos!
O rapaz tentou atirar-se ao gaúcho, mas as cordas penetraram-lhe profundamente nas carnes e constrangeram-no à imobilidade. Impassível, de braços cruzados, o lanzador olhava-o, em ar de desafio:
 - Vê, chefe - prosseguiu, voltando-se para Ricardo. - Encontrei a corda sensível. Veja a raiva dêsse patife! O motivo do crime apareceu agora em plena luz. Levado pelo ciume, atacou o meu amo. Primeiro, na locanda, provocou a sua vítima... Foi pelos belos olhos da pequena que decidiu desembaraçar-se dêle!
 - É uma infâmia! - vociferou Perez. - Foi a primeira vez na minha vida que entrei em San Luís e que vi essa menina!
Mas a exasperação que se apoderava cada vez mais do prisioneiro, parecia incitar Yago a acumular as maiores perfídias contra êle.
 - Não conhecias então a chica?! - exclamou êle. - Essa é boa! Viste-a e ficaste logo louco por ela!... O ciume cegou-te, quando meu amo lhe fez propostas. Visto que o teu crime, como verificamos, não teve por motivo o roubo, só o ciume e o ódio te instigaram!...
As palavras do lanzador feriam o prisioneiro, como se fôssem chicotadas. Debatia-se em vão, rugindo ameaças, mas Yago não parecia impressionado com tal atitude. Mostrava-se, pelo contrário, muito satisfeito, ao vê-lo assim excitado e impotente.
 - Se os teus olhos fôssem pistolas - troçou - não daria muito pela minha pele; mas, como disse há pouco o vigilante, estás apanhado e bem apanhado. Dentro de pouco tempo, a Justiça te preguntará os motivos do teu crime! Não te cabe ameaçar, mas aos juízes, que te aplicarão o castigo devido!
O lanzador calou-se. Alguém lhe pusera a mão no ombro: era Ricardo, desejoso de pôr termo ao diálogo entre os dois homens.
 - Calma, Yago - aconselhou ao seu irrequieto auxiliar. - Para que servem êsses excessos? Explicar-nos-emos mais oportunamente em San Luís( diante do alcaide. Se êsse homem é culpado, sofrerá a pena que merece; se o não é, se as circunstâncias nos permitirem verificar a sua inocência, será posto em liberdade. De qualquer modo, são inúteis estas cenas. Tenho por hábito só acreditar na culpabilidade das pessoas, no momento em que não me resta o menor meio de alimentar qualquer dúvida.
 - Então, não julga êste revólver prova suficiente?! - exclamou Yago, trémulo de cólera. - Acha as ameaças proferidas na locanda coisa de pouca importância!... Tome cuidado, chefe, essa maneira de pensar pode perdê-lo...
Ricardo encolheu os ombros. Na verdade, verificava existirem gravíssimos indícios contra Perez Mariposo; contudo, havia, na atitude do rapaz, qualquer coisa que o convencia de não estar em presença de um assassino. Seria preciso que êle fôsse um comediante de génio, para dar tal impressão de sinceridade. Apesar dos gaúchos estarem certos de terem prendido o culpado, e das afirmações veementes do lanzador, o representante da autoridade não podia eximir-se a pensar que o mistério da trágica morte de Gil Ribeira estava longe de ser solucionado.
Ricardo interrompeu, porém, o curso destas reflexões e decidiu-se a voltar para San Luís. Tinha pressa, com efeito, de anunciar ao alcaide o resultado da expedição e de verificar se os outros três grupos teriam também encontrado indivíduos suspeitos.
 - Vamos! - ordenou, voltando-se para os companheiros, que discutiam com animação.
Ràpidamente, dois dos gaúchos selaram Ar-diente, e o prisioneiro, sempre amarrado, foi posto na sela, e enquadrado por quatro dos captores.
Compreendendo ser inútil qualquer novo protesto, o domador calara-se. Os mais diversos pensamentos lhe assaltavam o espírito. Não compreendia a atitude do lanzador e não lhe perdoava as alusões a Conchita. A lembrança da jovem vinha-lhe à memória com insistência, e experimentava sincera angústia, ao pensar nas palavras trocadas, quando se despedira dela. Agora, ia voltar a vê-la, sem dúvida, pois levavam-no para San Luís; mas em que situação! Prisioneiro, vencido, acusado de um crime que não cometera!...
Desejosos de juntar-se aos companheiros, os guardas de Perez galopavam sem descanso. Yago colocara-se à frente, junto de Ricardo. A alegria do triunfo era evidente no seu rosto.
 - Pode dizer, chefe - declarou ao companheiro - que temos o assassino. Creio podermos orgulhar-nos da nossa missão. Madre de Dios! Manobrámos com acêrto!
O representante da autoridade não respondeu. Estimulava, de quando em quando, o cavalo, e voltava-se, para verificar se o prisioneiro e a escolta seguiam em boa ordem. Direito na sela, Perez Mariposo, impassível, parecia mergulhado em profunda meditação...
Por muito tempo, a cavalgada prosseguiu, através da pampa, em completo silêncio; depois, no horizonte, surgiram as luzes da locanda, que se distinguia da aglomeração da cidade, imersa agora na bruma.

CAPÍTULO VIII
A libertadora
NINGUÉM pensara em dormir, aquela noite, na locanda. Apenas os quatro grupos de cavaleiros se afastaram, à procura do criminoso, chegara o alcaide, com os peones que transportavam o corpo de Gil Ribeira. O digno Benigno Camorral ostentava uma atitude pouco em harmonia com as circunstâncias. O rosto mostrava-se radiante, e, quando Juan Balermo e numerosos clientes se precipitaram ao seu encontro, contentou-se em declarar-lhes, arfante de cansaço:
 - Muito bem! Muito bem!
Os fregueses da locanda poderiam pensar que o alcaide enlouquecera sübitamente, pois a trágica ocorrência parecia causar-lhe a mais comunicativa alegria. A maioria das gentis dançarinas que, havia pouco, volteavam ao som das guitarras, estava, com efeito, muito longe de partilhar aquele bom humor. Por seu lado, os homens, mais curiosos do que comovidos, comprimiam-se à volta do cortejo fúnebre, para verem o rosto crispado do cadáver, e multiplicando as preguntas aos peones. Benigno Camorral em breve teve junto de si um grupo compacto, quando, depois de limpar com o lenço o crâneo liso e reluzente de suor, se decidiu a explicar o motivo da sua profunda satisfação.
 - Estou contente - declarou - porque descobri o assassino.
As interrogações choveram. Todos queriam saber o nome do criminoso, mas Juan Balermo, afastando os curiosos, interrogou, com voz trémula:
 - Onde devo colocar o corpo, senor alcaide?
 - No armazém - respondeu a importante personagem, enxotando uma mosca que lhe pousara desrespeitadoramente no nariz. - Não é decente deixá-lo aqui.
O homem apressou-se a obedecer, enquanto o círculo se tornava cada vez mais apertado, em volta de Benigno Camorral. E as preguntas assaltaram-no:
 - O assassino?
 - Conhece-o?
 - Quem é?
 - Diga-me o nome?
De momento, o alcaide não parecia disposto a satisfazer os impacientes. Notava-se mesmo que se sentia satisfeito por ser alvo da curiosidade geral. Todavia, a pressão tornava-se cada vez mais forte e os curiosos quási lhe faziam perder o equilíbrio, empurrando-se uns aos outros, até que o homenzinho, indignado, os chamou à ordem:
 - Para trás! - exclamou. - Não vêem que me esmagam? O primeiro que me empurrar, mando-o prender!
Os fregueses da locanda afastaram-se um pouco, e o alcaide, respirando à vontade, teve espaço para caminhar. Dir-se-ia que estava brincando à cabra-cega, pois as pessoas fugiam lestamente à sua aproximação... Por fim, deixando aquela gente morta de curiosidade, sentou-se, dando um fundo suspiro.
O magistrado parecia exausto. Resfolegava, e a mão acariciava maquinalmente a mesa que tinha junto de si. Muito feliz por nele se concentrarem as atenções, olhava, com ar distraído, as flores e as bandeiras, com as côres da República Argentina, que decoravam o teto e as paredes da sala, ornamentada por motivo de baile.
Os gaúchos, rancheros e peones começavam a impacientar-se, em face do mutismo do alcaide, que lhes anunciara uma notícia tão sensacional e os deixava às aranhas, depois de lhes ter aguçado o apetite. Alguns, mais enérgicos, enervaram-se e gritaram:
 - O nome?! O nome do assassino?!
Êstes gritos não perturbaram, porém, a esquisita personagem, que acabava de avistar o dono da locanda, procurando abrir caminho para junto dêle.
 - Balermo! - gritou. - Tenho uma fome dos diabos! Esta aventura apressou-me a digestão. Tens por aí alguma coisa que se coma?
O alcaide não queria perder o ensejo de satisfazer a sua insaciável gulodice. E, enquanto o pai de Conchita se apressava a servi-lo, prendeu pachorrentamente um guardanapo ao pescoço. Dentro de momentos, tinha na frente um prato, um copo e uma garrafa; passando a língua pelos lábios, tratou de saborear um belo pedaço de galinha assada, insensível à impaciência da multidão, que o via cortar e mastigar a carne como quem celebra um rito.
Por fim, aplacadas as exigências do seu estômago inverosímil, dignou-se a olhar a assistência. Sorriu maliciosamente e falou então:
 - Não quero fazê-los esperar por mais tempo, amigos. Querem saber quem é o assassino de Gil Ribeira? É Perez Mariposo, o mesmo que, segundo me contaram, teve, nesta sala, um rude combate com o estanciero. A prisão está para breve... Os vigilantes foram em sua procura...
De todos os lados se elevaram novas preguntas, mas Benigno Camorral deu a entender, com um gesto categórico, não admitir que continuassem a perturbar-lhe a ceia. Insensível a tudo, prosseguiu no ataque ao conteúdo do prato, que diminuía ràpidamente.
O silêncio que reinava na locanda deu lugar às mais acesas discussões. A notícia dada pelo alcaide causava profunda surprêsa àquela gente, que experimentava manifesta simpatia pelo domador. Admiravam-se de que o rapaz, tão leal durante a luta, se tivesse deixado arrastar para aquela acção ignóbil. Contudo, as ameaças de morte estavam bem vivas ainda na memória de todos. Imaginavam que, sem dúvida, os dois homens se tinham encontrado e produzira-se o inevitável. A' falta de pormenores, que Benigno Camorral não quisera fornecer-lhes, formulava diversas hipóteses. Esgotado o assunto, resignaram-se, enquanto o alcaide acabava de comer, a esperar o regresso dos vigilantes e seus auxiliares.
As conversações prosseguiam, na locanda, onde ninguém pensava em recomeçar o baile, tão tràgicamente interrompido; uma pessoa, porém, entre tôda aquela gente, se torturava de ansiedade bem mais dolorosa do que a dos outros. Era, como pode bem calcular-se, Conchita.
A jovem, mortalmente inquieta, desde que os dois tiros tinham soado, estivera prestes a desmaiar, quando o alcaide pronunciara o nome de Perez, declarando-o assassino do estanciero. O espanto era tão grande, na sala, que ninguém deu pela sua perturbação.
Enquanto todos se embrenhavam em discussões, ou iam à porta, ver se se avistavam já os grupos, regressando da sua caçada ao homem, Conchita recordava as palavras pronunciadas pelo domador, ao separar-se dela. Considerava-se a maior responsável por aquele acto. Quando lhe dissera o receio que experimentava, em face de Gil Ribeira, o gaúcho respondera: "Prometo-lhe que não será importunada!" E não tinha dúvidas, agora: Perez matara, por ela; por ela, não hesitara em colocar-se fora da lei!
A agitação que se apoderou da jovem era terrível. Pouco a pouco, serenou, mas os seus olhos ansiosos não desfitavam a porta. Intimamente, alimentava a esperança de que o domador conseguiria escapar à perseguição.
O tempo decorreu, lento e penoso. Algumas pessoas, cansadas de esperar, abandonaram a locanda. Até que, enfim, se ouviram exclamações. Surgira um grupo de cavaleiros, que se apeavam em frente do estabelecimento. Gaúchos e peones correram ao seu encontro, enquanto Benigno Camorral, que começara a dormitar, depois de ter honrado o pulque de Juan Balermo, se levantava da cadeira, resmungando.
Os recém-vindos em breve entraram na locanda. Eram dois dos vigilantes e os respectivos auxiliares, constituindo dois dos grupos; depois de em vão terem galopado pela pampa, tinham-se juntado, a alguns quilómetros do ponto de partida, e resolvido regressar.
Conchita deu um suspiro de satisfação, ao ver que os cavaleiros não traziam o domador. Marco Palavez, que fazia parte de um dos grupos, parecia desesperado com a inutilidade da expedição.
 - É incrível! - exclamava. - Não encontrámos um rato! Esperemos que Ricardo tenha tido mais sorte do que nós!
Benigno Camorral ainda tentou responder ao capataz, mas sem dúvida aquele regresso precipitado lhe perturbou a digestão, pois foi acometido de invencíveis soluços. Se as circunstâncias não fôssem trágicas, os assistentes não deixariam de rir, ao ver a face congestionada do homenzinho, que sentia fugirem-lhe cinqüenta por cento das probabilidades de agarrar o fugitivo.
Decorreram ainda vinte minutos, durante os quais as discussões recomeçaram, com animação. Por vezes, um ruído insólito perturbava os ouvintes. Benigno Camorral não se libertara ainda dos desastrados soluços, e não conseguia pronunciar uma frase, sem provocar a hilaridade mal contida dos auditores. Até que uma galopada se ouviu, de novo, lá fora. Ao mesmo tempo, a voz do lanzador avisava:
 - Venham todos, amigos! Capturámos o pássaro!
A satisfação do alcaide foi tanta, que o livrou, como por encanto, do ridículo incómodo que o afligia. Quis correr para a porta, mas a multidão não lho permitiu, e apanhou tal encontrão que perdeu o equilíbrio, e caiu, soltando gritos de vitelo mal tratado.
Quando o chefe dos vigilantes entrou na sala, empurrando na sua frente o prisioneiro, deparou com o pomposo Benigno, de pernas para o ar, tentando baldadamente levantar-se. Os movimentos desesperados do homenzinho parecia indicarem que se treinava em exercícios natatórios, praticados em sêco. Por fim, com certo custo, Juan Balermo e o capataz conseguiram tirá-lo daquela situação embaraçosa, e pô-lo novamente de pé.
Balbuciando palavras ininteligíveis e repondo na cabeça o chapéu, que fôra parar longe e sofrera numerosos desacatos, infligidos pelos pés da assistência, o alcaide fitou o domador, que continuava bem amarrado.
 - O caso é claro - disse, por fim, ainda esbaforido da triste aventura. - Eu estava certo de que a Justiça venceria!
A despeito da sua triste situação, Perez Mariposo não pôde deixar de sorrir, ao ver o homenzinho, rubro de cólera, com o fato cheio de poeira, procurando assumir uma postura de suprema dignidade. Aquela atitude irónica redobrou a cólera da importante personagem, que tomou o céu por testemunha do cinismo do criminoso.
Depois de gritar a sua indignação, Benigno Camorral viu-se constrangido a parar. Nenhum som lhe saía da garganta. Dispendera tal eloqüência que ficara áfono.
Compreendendo o embaraço em que êle se encontrava, o chefe dos vigilantes interveio:
 - Não se exalte dessa forma, senor alcaide. Vamos dar-lhe todos os pormenores susceptíveis de ter interêsse.
Benigno Camorral sentou-se e Ricardo tomou lugar junto dêle. O círculo da assistência fechou-se em volta dos dois homens. Todos queriam conhecer em que circunstâncias o assassino de Gil Ribeira fôra prêso.
Só Marco Palavez não se mostrava interessado pelo assunto. O regresso de Yago parecia inquietá-lo particularmente; enquanto o representante da autoridade iniciava o seu relatório, o capataz reuniu-se ao lanzador. A poucos passos de distância, o prisioneiro permanecia de pé, guardado à vista pelos gaúchos que o tinham escoltado.
Aproveitando o facto da atenção de todos se ter afastado dêle, o domador tentou dirigir algumas palavras a Palavez, a única pessoa que conhecia, entre aquela multidão; mas estremeceu e abandonou o projecto, ao avistar Conchita, a pouca distância, fitando-o com os seus belos olhos tristes.
Oh! Aquele olhar era mais significativo do que as palavras. Exprimia a profunda compaixão da jovem pelo desventurado! Pela sua atitude calma e resoluta, a filha de Juan Balermo adivinhara depressa que êle não era culpado.
Abanando negativamente a cabeça, êle fizera-lhe compreender que a acusação era injusta.
Os dois interromperam, porém, a muda troca de sinais, com receio de despertar a atenção dos guardas. Êstes, contentes por terem concluído a cavalgada nocturna, sacudiam a poeira que se acumulara nos ponchos. Quando se voltaram, Perez, com os olhos baixos, parecia mergulhado nos seus pensamentos.
Os cavaleiros sentiram desvanecer-se qualquer desconfiança que ainda alimentavam; dois dêles montavam a guarda no limiar da porta, intredizendo a saída, e seria difícil tentar a fuga por aquele lado. Tranquilizados, enrolaram cigarros, felizes por poderem finalmente descansar, após a extenuante corrida daquela noite agitada. Por fim, começaram a conversar, atenuando as precauções, inicialmente tomadas.
Conchita espreitava aquele ensejo. Tanto ela como o domador notaram a despreocupação dos gaúchos. Ràpidamente, ela ocultou uma faca por trás do leque, que agitava com negligência, e aproximou-se lentamente de Perez; aproveitando o momento em que os guardas acendiam os cigarros, estendeu a mão e cortou a corda que cingia os pulsos do rapaz, ao mesmo tempo que murmurava:
 - Continue quieto, señor... Quando eu conseguir desviar a atenção desta gente, procure fugir...
O domador não teve tempo para responder. Os gaúchos voltavam-se... Então, Conchita, dirigindo-lhes o mais encantador sorriso, preguntou-lhes:
 - Quem me oferece um cigarro, senores?
Os guardas apressaram-se a satisfazer o desejo da gentil interpelante, enquanto o prisioneiro, cujo coração batia com fôrça, preguntava a si próprio se conseguiria um momento favorável para se escapar. Pela porta aberta, avistava o vulto esbranquiçado de Ardiente; na sela, continuava suspensa a guitarra, que ninguém se lembrara de confiscar. Infelizmente, os dois gaúchos permaneciam junto da entrada, conversando, mas atentos. Era preciso esperar, e o domador receava não poder pôr em execução o seu audacioso projecto.
 - Então, chica, o teu belo par não era de confiança?! - disse um dos guardas.
Conchita, que se afastava já, encolheu despreocupadamente os ombros, enviando para o teto o fumo azul do cigarro. Abrindo passagem através do grupo, atento à narrativa do chefe dos vigilantes, a jovem aproximou-se da escada que levava ao seu quarto. Em breve desapareceu pela porta dêste, não sem ter feito, a ocultas dos gaúchos, um sinal a Perez, para que estivesse atento.
O prisioneiro estava sôbre brasas. Sentia verdadeira angústia. Encontravam-se ali mais de duzentas pessoas, acumuladas na locanda, que se oporiam com violência à sua fuga. Tinha, na verdade, as mãos livres, embora as mantivesse na mesma posição, para não despertar a desconfiança dos guardas; mas de que lhe servia? À menor tentativa da sua parte, esmagá-lo-iam!
Todavia, apesar das dificuldades, estava resolvido a tudo arriscar, de preferência a expôr-se à sorte infamante que lhe reservava a Justiça. Inocente do crime de que o acusavam, revoltava-se contra o tratamento que lhe fora infligido.
De repente, estremeceu. Dominando o murmúrio das conversas, várias detonações soaram perto. Os ocupantes da locanda ergueram a cabeça. Os tiros pareciam ter sido disparados no quarto de Conchita!

CAPÍTULO IX
A fuga através das salinas
 - CONCHITA! Que terá acontecido? - murmurou a mulher de Juan Balermo,que servia refrescos aos vigilantes.
A assistência mostrava-se hesitante. A atenção afastara-se do prisioneiro, e todos os olhares se dirigiram para a porta, por trás da qual a jovem desaparecera, momentos antes.
 - Pela Virgem! Responde-nos, Conchita! Sucedeu-te alguma coisa? - preguntou o dono da locanda, cada vez mais inquieto.
Como ninguém respondesse, Juan Balermo subiu a escada, seguido de Ricardo, enquanto o alcaide, desorientado, soltava uma interminável série de exclamações, e todos os assistentes se agrupavam junto dos degraus, pressentindo novo drama: ou Conchita fôra alvo dalguma agressão, talvez um rapto, ou tentara suicidar-se. Contudo, nada fazia prever resolução assim desesperada...
Os guardas de Perez, igualmente intrigados, afastaram-se também, e os próprios peones que se encontravam de sentinela à porta não resistiram à curiosidade e correram para o grupo. O rapaz ficou isolado, no fundo da sala.
Longe de compartilhar a inquietação dos outros, compreendeu o estratagema utilizado pela gentil dançarina. Exactamente como lhe anunciara, conseguira desviar a atenção geral, para lhe permitir a fuga.
Num abrir e fechar de olhos, vendo que todos se dirigiam para o quarto de Conchita, Perez Mariposo compreendeu ter chegado o momento de agir. Antes que os guardas se lembrassem de voltar, desembaraçou-se das cordas; rápido como um relâmpago, saltou para a porta e correu em frente, sem se preocupar se os vigilantes e os gaúchos se lançavam em sua perseguição. Chegou junto de Ardiente em menos tempo do que é necessário para dizê-lo. O inteligente animal fôra amarrado ao lado dos outros, diante da locanda. Desprendê-lo, enfiar o pé no estribo e saltar para a sela foi obra de segundos. Excitan-do-o com os habituais estalos da língua, o fugitivo desaparecia já na treva, quando os clamores soaram no interior do estabelecimento:
 - Agarrem-no! Fugiu!
Muitos dos gaúchos estavam nos degraus da escada que conduzia ao quarto de Conchita. O alarme fôra dado por um dos tocadores de guitarra, que dera pela ausência do prisioneiro.
Imediatamente, estabeleceu-se indiscritível confusão, na sala. Uns procuravam correr atrás do domador; outros, intrigados com o enigma dos tiros, pretendiam, primeiro, solucioná-lo. Do tumulto, resultou apreciável demora que deu um avanço substancial ao fugitivo.
Abrindo caminho com os cotovelos e os punhos, Ricardo e muitos dos seus auxiliares conseguiram, por fim, chegar à porta. Uns atrás dos outros, saltaram para os cavalos e precipitaram-se atrás do domador, que escolhera maravilhosamente a oportunidade para fugir.
Um dos primeiros a verificar a evasão fôra Yago, cuja cólera era extrêma. Ao chegar à rua, arrastando consigo o capataz, montou sem hesitação. Em escassos minutos, uns quarenta cavaleiros perseguiam Perez Mariposo. Não formavam, contudo, um grupo compacto; disseminados, galopavam na obscuridade, procurando alcançar o cavalo branco, cujo vulto distinguiam vagamente, algumas centenas de metros adiante.
O alcaide e a maioria das pessoas que se encontravam na locanda não pensaram em seguir os cavaleiros. Algumas não chegaram mesmo a compreender o que se passava. Produziu-se um refluxo, ao longo da escada, e, em breve, Benigno Camorral sentiu-se arrastado pela multidão. A custo, repeliu alguns gaúchos e peones, que o empurravam. Gritava, sem nada conseguir:
 - Para trás, homens! Não me esmaguem! Não vêem que me sufocam?!
Sem dúvida, porém, os interpelados não estavam resolvidos a facilitar a respiração da importante personagem, pois, desta vez, nem gritos nem ameaças surtiam efeito. Por fim, passados os primeiros momentos de confusão, o alcaide conseguiu obter espaço para limpar o suor que lhe inundava a fronte. Os perseguidores tinham largado a galope, e o homenzinho propunha-se desaparecer prudentemente da cena, quando alguém lhe pôs a mão no ombro. Era Juan Balermo, que, inquieto àcêrca da filha, se importava pouco com o fugitivo.
 - Senor alcaide, estão talvez a assassinar a minha filha! Isto não pode ficar assim - dizia o dono da locanda.
E tratou de empurrar Benigno Camorral e outros para a escada, que de novo subiram. Estabeleceu-se outra vez silêncio, e todos apuraram o ouvido, procurando surpreender algum ruído suspeito; mas nada ouviram, além dos dolorosos suspiros da autoridade, que via, com a fuga de Perez Mariposo, desvanecerem-se as belas esperanças e as felicitações esperadas pelo seu brilhante êxito...
No alto da escada, Juan Balermo e sua mulher chamavam a filha, sem obterem resposta. A porta fôra fechada à chave, por dentro, e a jovem não aparecia ao encontro das pessoas que iam socorrê-la.
Sem esperar mais, um gaúcho robusto atirou-se à porta, e, ajudado por outros, conseguiu fazê-la saltar. Estranho espectáculo se deparou às pessoas que invadiram o aposento.
Tranqüilamente estendida sôbre o leito, Conchita, com os olhos fechados, parecia dormir. No sobrado, via-se um pequeno revólver. Maria Balermo correu para a filha:
 - Que se passou, chica mia? - interrogou, ansiosa. - Estás ferida?
E, erguendo a cabeça da jovem, procurou quaisquer sinais de ferimentos. O exame tranqüilizou-a. Conchita estava indemne e respirava regularmente.
As pessoas que tinham invadido o recinto e ali se comprimiam estavam perplexas. Um dos gaúchos pegara no revólver; verificou que os cartuchos tinham sido percutidos. Outro descobriu, na parede, os sinais das seis balas.
Não havia dúvida: a jovem não fora ferida. Além disso, a janela continuava fechada, e êsse pormenor indicava que ninguém entrara ou saíra do quarto. Porque fizera ela, então, uso da arma?
Benigno Camorral gesticulava, emitindo tôda a casta de hipóteses absurdas. A' luz da candeia que iluminava o recinto, todos quantos se encontravam no aposento fitavam, ansiosamente, a gentil bailarina, que continuava imóvel.
 - Depressa, Juan! Traz-me água! - pediu a mãe.
O dono da locanda apressou-se a obedecer e a aflita mulher, cujas preguntas não obtinham resposta, pôs-se a umedecer a fronte da filha. O tratamento foi eficaz, pois, ao cabo de dois ou três minutos, a jovem abriu os olhos e fitou a assistência, com ar profundamente admirado.
 - Que é isto? - preguntou, com voz fraca.
 - Socega, filha, não é nada. Estamos aqui todos - disse-lhe Maria, a acalmá-la. - Mas, que se passou?
Por instantes, Conchita continuou a olhar em volta, sem responder. Por fim, murmurou:
 - Não sei!
 - Como? Não sabe? - exclamou o alcaide, a quem tal atitude desnorteava. - Isto parece-me muito extraordinário! Estávamos todos na sala da locanda, a discutir as medidas a tomar, com respeito ao assassino de Gil Ribeira, quando ouvimos, neste quarto, vários tiros... Não sonhámos! Porque descarregou a arma?
O rosto rubicundo de Benigno Camorral tornava-se cada vez mais vermelho. Era evidente que aquele novo episódio, tão complicado, não era de molde a facilitar-lhe a digestão. Apoiada ao ombro da mãe, Conchita conseguira sentar-se.
 - Oh! Recordo-me! - disse, como despertando de um pesadêlo. - Entrara no quarto para descansar e tratava de limpar o revólver, que guardara numa gaveta... De repente, quando eu lhe mexia, êle disparou-se... Não me lembro de mais nada. Assustei-me... Decerto, caí sôbre o leito.
 - Incrível! É incrível! - exclamou o alcaide, erguendo os braços para o teto. - E esta estúpida imprudência permitiu que o prisioneiro fugisse!...
O homenzinho ia prosseguir na série das lamentações, mas a jovem, levando a mão à testa, fez sinal de que se sentia ainda indisposta e queria ficar sòzinha. Tanta gente à volta fatigava-a. Empurrados por Maria Balermo, os curiosos que tinham penetrado no quarto regressaram pouco a pouco à sala. A mulher do dono da locanda foi a última pessoa a sair, depois de Conchita lhe ter assegurado que de nada precisava. Ao fechar a porta, não viu o malicioso sorriso que iluminava o rosto da falsa doente. O estratagema resultara: conseguira desviar a atenção dos guardas e o prisioneiro recuperara a liberdade. Galopava, agora, através da pampa...
Enquanto a sua hábil protectora assim manobrava, retendo em San Luís o maior número possível de gaúchos, Perez Mariposo encorajava sem cessar o seu fiel cavalo, para escapar aos perseguidores. Ardiente corria, como se fôsse uma flecha, através da vasta planície. Curvado sôbre o pescoço do animal, o domador relanceava de quando em quando um olhar para a rectaguarda, a ver se os outros ganhavam terreno. A surpreza da fuga inesperada permitira-lhe distanciar-se bastante.
O cavalo branco não necessitava de estímulo para acelerar o andamento. Os quilómetros sucediam-se, sem que êle desse mostras da menor fadiga. No horizonte, já o céu clareava, anunciando a aproximação da aurora... Em volta, distinguiam-se, cada vez com maior nitidez, os raros chafiars(1) que quebravam, de longe em longe, a monotonia da pampa. Nenhuma habitação, pelos arredores. A zona das culturas, que rodeava San Luís, fôra, há muito, ultrapassada, e apenas se estendia, em frente do fugitivo, a perder de vista, êsse terreno tão familiar aos gaúchos, semeado de lagoas, de pântanos, e, por vezes, de salinas.
Embora o rapaz se sentisse fatigado das aventuras daquela espantosa noite, o desejo de escapar, a todo o custo, aos vigilantes emprestava-lhe energias novas... Os clamores que, de tempos a tempos, chegavam até êle, vindos do grupo perseguidor, incitavam-no a correr, sem se preocupar com o cansaço. Com fixidez, olhava a paisagem, cada vez mais distinta, e repetia:
 - Adelante, Ardiente! Adelante, hijo mio!
Era preciso que o cavalo branco fôsse um corredor de notável resistência, para manter uma tal velocidade. Com os olhos brilhantes, as crinas flutuando ao vento, não diminuía um só instante a rapidez do galope. Dir-se-ia compreender a gravidade da situação. Perez, ao voltar-se,
(1) Moitas de arbustos.
verificava, com satisfação crescente, que "semeava" os adversários. Eram uns quarenta, à saída de San Luís, mas não seriam agora mais de vinte. Ricardo e Yago galopavam sempre na dianteira.
A corrida prosseguiu por mais duas horas ainda, e o número de gaúchos e de vigilantes diminuiu. Contudo, parecia que o lanzador e os companheiros se aproximavam cada vez mais do fugitivo. Com efeito, o terreno tornara-se muito mais difícil. O Sol subira no horizonte, e o calor tornava ainda mais penosa a cavalgada.
Perez, verdadeiro filho da pampa, importava-se pouco com aqueles inconvenientes. Depois de ter reflectido por alguns segundos, dirigiu o cavalo para uma imensa planura esbranquiçada, que se estendia a cêrca de quatro quilómetros do local onde chegara, e que parecia, de longe, lisa e brilhante como se fôsse um espelho. Sem dúvida, os perseguidores surpreenderam-lhe a intenção, pois Ricardo exclamou:
 - As salinas! Dirige-se para as salinas! É preciso evitar que as atinja!
Decidido a tudo, para escapar aos adversários, o domador não hesitava, com efeito, em abordar essa zona perigosíssima, onde a marcha seria arriscada. O chefe dos vigilantes compreendia, sem custo, que, dentro em pouco, a perseguição se tornaria impossível, se êle se aventurasse por ali, pois a camada de sal multiplicaria as armadilhas, sob os pés dos audaciosos que tentassem percorrê-la. As esporas feriram, mais uma vez, os flancos dos animais, cobertos de espuma, mas o fugitivo distanciou-se ràpidamente. Apesar das suas tentativas, o lanzador e os companheiros não lograram ganhar terreno.
Em menos de um quarto de hora, Perez Mariposo chegou à beira do imenso lençol de deslumbrante alvura, que os raios solares faziam cintilar. Verificando ser suficiente ainda a distância que o separava dos inimigos, saltou em terra e tirou dos alforges um pedaço de pano, que embebeu em mate misturado com rum. Umedeceu com êle as narinas do cavalo; depois, sem perder um segundo, pegou numas tiras de tecido forte e enrolou-as nas patas do animal. Era uma precaução indispensável para realizar a travessia que se dispunha a fazer, pois, sem ela, o sal feriria perigosamente a pele do seu fiel companheiro.
Em seguida, como os cavalos da pampa não são ferrados, ajoelhou-se e untou-lhe os cascos com sebo, para evitar que o sal lhes produzisse falhas.
Vendo o fugitivo parar, Yago dera um grito de alegria. Esporeando o cavalo, pensou que ia, dentro de momentos, deitar-lhe a mão, pondo termo àquela caça ao homem. Estava a poucas centenas de metros, quando o audacioso aventureiro saltou de novo para a sela, com extraordinária rapidez.
 - Adelante, Ardiente! Adelante, hijo mio!
O cavalo meteu pela grande salina. O tapete
branco estalava-lhe sob as patas. O terreno não era firme, e tinha que avançar a passo... Por alguns instantes, os gaúchos julgaram estar prestes a capturar Perez Mariposo. Mas tiveram de parar junto do imenso depósito de sal. Quatro dêles, entre os quais o lanzador, aventuraram-se imprudentemente, sem tomar as precauções adoptadas pelo fugitivo, mas tiveram de recuar.
 - Escapa-nos! - rugiu Yago.
Os vigilantes ergueram as carabinas e iam alvejar o domador. Ser-lhes-ia fácil atingi-lo, pois o seu vulto distinguia-se bem, na brancura do solo. Mas Ricardo impediu-os de fazer fogo.
 - Madre de Dios! - berrou o lanzador. - É a solução que nos resta! É preciso acabar com êsse bandido!
 - Um pouco de paciência, amigo - objectou o representante da autoridade. - Mais vale tentar capturá-lo. Visto não podermos segui-lo, procuremos vencê-lo em velocidade, contornando as salinas. O caminho é cinco vezes mais longo, de certo, mas é a única maneira de agarrá-lo.
Não sem resmungar, Yago rendeu-se aos argumentos, do companheiro, e, imediatamente, os perseguidores reiniciaram a corrida, ao longo do grande depósito de sal.

CAPÍTULO X
Os lobos vermelhos
AVENTURANDO-SE através daquele terreno difícil, Perez Mariposo jogava o todo pelo todo. Não ignorava ter de lutar com dificuldades inumeráveis, mas esperava que os perseguidores não trouxessem consigo as tiras de pano necessárias para defender os cascos dos animais, em semelhante travessia.
Não se enganara. Ao dirigirem-se para o baile, os gaúchos e os peones não haviam pensado na passagem de tal zona. Os vigilantes, por sua vez também não o previam. Como o domador conjecturara, essa negligência ia permitir-lhe escapar aos adversários.
Incitando sem cessar o cavalo, fechou os olhos, para evitar a acção deslumbradora dos raios do Sol na superfície cristalizada. Por momentos, receou que o alvejassem. Tal não sucedeu, porém, e, voltando-se repetidas vezes, pôde verificar que os vigilantes e os gaúchos, desistindo de tomar o mesmo caminho, se afastavam a todo o galope, ao longo das salinas, após um breve conciliábulo.
Perez adivinhou as intenções do lanzador e seus companheiros. Não abandonavam a partida; a direcção que tomavam indicava claramente estarem resolvidos a contornar o obstáculo, a fim de aguardarem o fugitivo, na margem oposta. Necessitava, pois, fazer diligência para chegar antes dêles.
Sem fraquejar, Ardiente, encorajado pelo dono, avançava sempre. O galope e mesmo o trote eram impossíveis, naquela zona amaldiçoada. Quanto mais o Sol subia, mais o calor se tornava insuportável. Repetidas vezes, o domador teve de erguer os braços e proteger a vista da reverberação da luz na imensa toalha branca, cujo fim não alcançava. Perez sabia que precisava percorrer cêrca de quinze quilómetros, antes de atingir de novo a campina. O pampeiro, que começara bruscamente a soprar, tornava ainda mais difíceis as evoluções do homem e do animal.
Ao cabo de meia hora, Ardiente começou a manifestar sinais de fadiga. Desde a fuga de San Luís, dispendera um esforço prodigioso. A língua pendia-lhe, e baixava a cabeça, ofegante, os olhos queimados, coberto de suor. Em breve parou, e o dono teve de apear-se e umedecer-lhe de novo as narinas.
Por seu lado, o rapaz morria de sêde.
Contentou-se, porém, com gargarejar e absorver alguns goles do líquido contido no seu cantil, que a longa exposição aos ardentes raios solares tornara escaldante e absolutamente impróprio para lhe aliviar o sofrimento.
 - Coragem, Ardiente! Mais um bocadinho!
Acabrunhador silêncio reinava naquela extensão desolada, de onde a vida fôra expulsa. O domador estava acostumado a percorrer a pampa em todos os sentidos, mas jàmais se encontrara em situação semelhante; nunca se aventurara através das salinas, com o Sol a caminho do zénite, brilhando com todo o seu fulgor. Os ouvidos zumbiam-lhe, a cabeça andava-lhe à roda. Por diversas vezes, interrogara o horizonte, sem que lhe fôsse possível distinguir coisa alguma, para lá do oceano de sal.
Enfim, ao cabo de mais de duas horas de extenuante marcha, soltou um grito de alegria, ao mesmo tempo que o cavalo acelerava o passo... Diante dêles, surgira, afinal, uma linha de verdura, distante, ainda; ela indicava-lhes o termo daquele martírio.
 - Estamos quási a chegar, hijo mio!
Com certo custo, cavalo e cavaleiro abordaram, por fim, à margem tão desejada - se margem se lhe podia chamar. Ao aproximar-se, Perez examinou os arredores, com desconfiança. Nenhum vulto suspeito se destacava da uniformidade do terreno, aqui e ali semeado de pequenas moitas. Certo de que conseguira distanciar-se dos perseguidores, apeou-se.
Por alguns minutos, estendeu-se na erva, procurando desentorpecer os membros. Os olhos, inflamados pela acção violenta da luz, distinguiam a custo os objectos. O terrível pampeiro continuava a soprar com violência... O domador ficou-se imóvel.
Teria sido fácil, naquele momento, aos vigilantes e seus auxiliares, agarrar aquele que tanto desejavam prender; mas decerto a longa volta os demorara, e fôra-lhes necessário diminuir o andamento, em face de sucessivos obstáculos, pois estavam ainda longe.
Pouco a pouco, Perez sacudiu o torpor que o invadira. Reagiu. O pressentimento do perigo, que surgiria de um momento para o outro, incitou-o. Ergueu-se e tratou de libertar as patas de Ardiente das tiras de pano protectoras. O nobre animal esperava, talvez, que lhe concedessem algum repouso; mas o dono, implacável, saltou para a sela e convidou-o a continuar a viagem.
 - Vamos, hijo mio! Teria sido inútil fazer uma tal travessia, para nos deixarmos apanhar, como imbecis! Quando encontrarmos um local susceptível de nos fornecer abrigo suficiente, juro-te que teremos então um descanso bem merecido!
Assim falando, acariciava o pescoço do companheiro. A' direita e à esquerda, não havia sinais do inimigo. Para trás dêles, ficava a salina. Na frente, estendia-se a planície atapetada de erva, na qual se destacavam, aqui e ali, as manchas de alguns pântanos ou lagoas.
 - Adelante! - gritou o rapaz, tranqüilizado por aquela calma.
Afastando-se das salinas, o fugitivo pensava que o lanzador e os companheiros, cansados da infrutífera perseguição, a haviam abandonado. Durante meia hora, correu através da campina; depois, compreendendo que os adversários lhe tinham perdido a pista, deteve-se, nas proximidades de uma lagoa.
A água ali estagnada não era das mais límpidas, mas cavaleiro e cavalo beberam-na com delícia; extinguia-lhes o fogo que lhes ardia na garganta. Embora de uma frescura bastante relativa, pareceu-lhes o melhor dos néctares.
Depois de mitigar a sêde, o domador tirou os arreios ao seu fiel companheiro.
 - Isto agora vai melhor, meu velho - disse, acariciando Ardiente.
O animal parecia bastante satisfeito com a paragem, e começou a pastar a erva abundante, que crescia à beira da água.
Perez estendeu-se no solo, colocando a sela a servir-lhe de travesseiro. Enquanto o sono não chegava, deixou vagabundear o pensamento. A figurita graciosa de Conchita perpassava-lhe constantemente diante dos olhos.
Nenhuma outra mulher preocupara assim o domador! Ainda na véspera, percorria a pampa despreocupadamente, sem pensar no futuro, feliz na sua completa independência. Tinham bastado alguns instantes para se produzir uma modificação incrível. A pampa, que, até aquele momento, fôra a sua única razão de ser, encontrara uma tremenda rival. O rapaz lembrava os momentos passados na locanda, a dançar com a encantadora jovem - breves instantes, interrompidos pela brusca intervenção de Gil Ribeira, mas que lhe tinham deixado imperecível lembrança. Os versos de Siempre voltavam-lhe aos lábios; trauteava a ária favorita, mais amada ainda desde que embalara os compassos dançados com Conchita.
O tempo decorria, sem que Perez o notasse. Esquecera a sua trágica situação. De homem livre, transformara-se em fugitivo implacávelmente perseguido e que nada de bom podia esperar dos seus semelhantes. Que lhe importava tudo isso?! Um só pensamento lhe ocorria: Conchita não se lhe mostrara indiferente.
Era essa a grande consolação, nas circunstâncias difíceis que atravessava. A liberdade de que gosava era devida à filha de Juan Balermo. Fôra ela, com efeito, quem, imaginando um engenhoso estratagema, conseguira libertá-lo, iludindo a vigilância dos guardas. Não era, porém, apenas a gratidão que lhe enchia o peito; outro sentimento, muito mais suave, ali se instalara e lhe fazia esquecer as dramáticas peripécias de que fôra protagonista.
O futuro permitiria ao domador voltar à locanda La Noche e agradecer à sua libertadora? Desejava-o de todo o coração.
Gritos agudos arrancaram-no aos seus pensamentos. Surpreendido, ergueu-se, levando a mão à navalha que tinha no cinto. Sorriu, ao ver os inofensivos periquitos, que discutiam animadamente, nos ramos de uns arbustos vizinhos. Êsses esquisitos pássaros de brilhante plumagem verde e dourada produziam tôda a espécie de ruídos, no mais desafinado concêrto que pode imaginar-se. Perez afugentou-os, pois aquela complicada algaraviada poderia impedir-lhe que desse pela eventual aproximação dos seus perseguidores.
Tomada esta precaução, tratou de reconfortar o estômago. Alguns pedaços de tasajo(1) e um copo de mate bastaram. Ardiente continuava a roer a erva, próximo dêle.
Por momentos, o domador contemplou o cenário que o circundava. Escolhera acertadamente o seu refúgio. As moitas de cardos e cicuta gigante, que se erguiam em volta, davam-lhe suficiente protecção e dissimulavam-no aos olhos de inimigos que viessem do lado das salinas.
 - Decididamente, podemos descansar por
(1) Carne sêca.
algum tempo - murmurou de si para si. - Começo a acreditar que os meus adversários abandonaram a partida.
Persuadido de que era inútil, por agora, ir mais longe, envolveu-se nas coberturas e preparou-se para dormir.
Por quanto tempo o domador permaneceu imóvel, mergulhado em profundo sono, que a imagem da filha de Juan Balermo povoava de lindas miragens? Não saberia dizê-lo. Acordou-o um relincho do cavalo. O seu fiel companheiro avisava-o de qualquer perigo.
Perez sentou-se imediatamente. Desagradável impressão de frio o fez estremecer. Pareceu-lhe que um animal estranho se enrolara nele, metendo-se por entre as coberturas. Assentou algumas palmadas na misteriosa forma que lhe viera fazer companhia e logo uma serpente de respeitáveis dimensões fugiu, apressada, através das ervas. O réptil procurara o calor do corpo adormecido.
Semelhante aventura não inquietava o domador, por ser deveras freqüente. O mesmo não sucedia com a atitude desconfiada do cavalo.
 - Por la muerte! Dormi bastante! - resmungou o gaúcho, ao verificar que o Sol desaparecera já no horizonte.
Era evidente não ter sido a presença do réptil que levara Ardiente a dar o alarme. O animal continuava a mostrar grande agitação.
Com as orelhas agitadas, voltava-se para o Norte, como se dali os ameaçasse qualquer perigo.
Perez olhou com atenção. O silêncio persistia. Uma núvem de mosquitos pairava sôbre a lagoa.
Cada vez mais inquieto, o rapaz preguntava a si próprio que poderia significar a atitude desconfiada de Ardiente. Teriam os vigilantes descoberto o local onde êle se refugiara? Algum jaguar rondava pelas cercanias, pronto a atirar-se ao fogoso corredor?
De súbito, soou um longo uivo, ainda distante. Perez compreendeu a causa da inquietação de que o cavalo dava mostras.
 - Os aguaras! - murmurou, franzindo a testa.
Não havia que duvidar. Os terríveis lobos vermelhos da pampa aproximavam-se. Deviam vaguear em grupos, e assinalavam a sua presença uns aos outros, pois o gaúcho ouviu novos uivos, vindos de diferentes direcções.
Perez sabia as medidas de precaução a tomar, em tal ocorrência. Se os carnívoros tinham descoberto a presença do homem e do cavalo, não hesitariam em dirigir-se para essas convidativas prêsas. Quando se encontram em grande número, essas feras, quási sempre famintas, atacam até grupos de gaúchos, sem que as balas sejam suficientes para as afugentar ou lhes diminuir o ardor. Só um inimigo lhes parece de temer e os incita a ser prudentes: o fogo.
O fogo! Ao pensar neste meio de defeza, único capaz de afugentar os quadrúpedes, o domador não pôde deixar de estremecer. Acendendo uma fogueira, não iria, com efeito, revelar a sua presença aos vigilantes, que lhe tinham perdido a pista? Um clarão avista-se de muito longe, na pampa!
Contudo, os uivos dos aguaras eram cada vez mais próximos. O rapaz compreendeu não ser possível hesitar. Antes de mais nada, devia fazer frente àqueles adversários. Ràpidamente, dirigiu-se às moitas mais próximas e apanhou alguns braçados de plantas sêcas, que acumulou em volta do local por êle ocupado, perto da lagoa; depois, puxou Ardiente para junto de si. Receando que a presença dos lobos vermelhos o assustasse, levando-o a afastar-se, prendeu-lhe as patas dianteiras, com uma correia.
Concluíra estas precauções, quando notou umas sombras, correndo velozmente através da pampa: era a matilha dos carnívoros, que não contava menos de trezentas cabeças. Tinham farejado a prêsa e avançavam, rosnando.
Os olhos ferozes dos aguaras brilhavam como se fôssem brasas, no meio da obscuridade. Em breve, chegaram a poucos metros do acampamento. Dispunham-se a atacá-lo, quando, do meio das fôlhas e ervas sêcas amontoadas pelo gaúcho, se elevou uma chama crepitante. Alguns ramos resinosos que o domador conseguira encontrar ardiam fàcilmente, e com pouco fumo.
 - Para trás! - gritou Perez, brandindo o rebenque.
A terrível correia sibilou nas trevas e caiu sôbre os mais audazes atacantes. Ouviram-se uivos de dôr; mas aquela ofensiva do homem intimidava muito menos as feras do que as chamas, cada vez mais brilhantes e intensas, e cujo brilho as amedrontava. Ardiente mantinha-se junto da lagoa, que reflectia a fogueira. O pobre animal tremia nervosamente.
O gaúcho fazia frente à horda. De tempos a tempos, tirava um tição do lume e atirava-o aos lobos, que fugiam, uivando de mêdo, para voltarem em seguida, com admirável persistência. Compreendendo que, de momento, não podiam atirar-se ao fugitivo, esperavam, sem dúvida, apanhá-lo distraído.
Bastante inquieto, Perez viu ter de lutar durante tôda a noite, para afastar os perigosos visitantes. Sozinho em face de todos aqueles animais, possuiria resistência e energia suficientes para não sucumbir nos dentes ferozes dos aguaras?

CAPÍTULO XI
Em apuros
A precipitação de Perez, para escapar aos seus guardas, fôra tal que não tivera tempo para se munir de um revólver ou de uma carabina. De resto, para pouco lhe serviria qualquer destas armas, na situação em que se encontrava. Só o fogo constituía meio eficaz de manter os carnívoros a distância, impedindo-os de tentar um supremo ataque, durante o qual o seu número triunfaria, sem custo, do homem e do cavalo.
Havia, junto da margem, vários tufos de plantas meio sêcas, ao alcance do domador, permitindo-lhe obter combustível. Perdido o receio inicial, os aguaras repetiam constantemente os assaltos. Atiravam-se, rosnando, as fauces abertas, tentando atingir os adversários. Ardiente coadjuvava o dono, na defeza, e as suas desesperadas parelhas de coices atiraram para longe numerosos lobos ; alguns dêles, com a espinha partida, não se moveram mais.
Por muito tempo os atacantes utilizaram a mesma táctica e o gaúcho teve de dispender prodígios de valor, para alimentar o fogo e manter o inimigo a distância. Quando o assalto era mais perigoso, agarrava uma brasa maior e atirava-a para o meio do bando. O fogo afugentava, por momentos, os aguaras, mas êstes, certos de triunfar, em breve voltavam à carga.
Felizmente para o cavaleiro e o cavalo, a lagoa constituía, por trás dêles, barreira suficiente para impedir o ataque por aquele lado. Que poderiam fazer, com efeito, se os lobos os rodeassem por completo? Além disso, o reflexo das chamas na água contribuía para dar ao fogo aspecto mais atemorizador.
Por momentos, os tições atirados para o meio dos atacantes, e as repetidas parelhas de coices do cavalo incutiram-lhes certa prudência.
O espectáculo que o domador e Ardiente apresentavam era verdadeiramente fantástico. Agitavam-se em tôdas as direcções, e a luz que se desprendia da fogueira projectava-lhes as sombras, aumentando a confusão da cena. Contudo, a fadiga começava a apoderar-se do rapaz. O suor corria-lhe pelo rosto e os membros entorpeciam-se-lhe. Preguntava a si próprio, com angústia, se possuiria energia suficiente para resistir ainda muitas horas, quando deu um grito de surpreza. Abandonando a táctica primitiva e recuando, os aguaras punham-se em movimento.
A princípio, Perez julgou que os lobos desistiam da partida. Não se tratava disso, porém. Os ferozes animais tinham formado semicírculo diante do acampamento, e iniciavam uma ronda sem fim, não desfitando o gaúcho, com as pupilas luzentes quais carvões a arder. Iam e vinham de uma extremidade à outra do local, sem se aproximarem.
Malograda a sua primeira ofensiva, utilizavam outro estratagema, destinado a entontecer o adversário. Movendo-se sem cessar, lentamente, com a cabeça voltada para o acampamento, o ondular constante das dezenas de pontos luminosos, que eram os olhos das feras, no meio da treva, produzia uma rápida impressão de náusea. Perez Mariposo percorria a região há muito tempo e sabia o que pretendiam os astutos adversários. Contavam vencer daquela forma, pois rara é a pessoa que consegue evitar a fascinação da alucinante ronda, que latidos breves, contínuos, irritantes, completam, por forma a desvairar o mais endurecido corredor da pampa.
O rapaz esteve prestes a sucumbir. A diabólica manobra, associada ao cansaço extremo, causava um enervamento vizinho da loucura. Parecia que tudo se agitava, em volta, que o próprio terreno oscilava.
Mas a reacção não se demorou. Êle sabia ser-lhe fatal um só instante de desfalecimento, e não ignorava a sorte de quantos pretenderam resistir àquele sortilégio. Junto dêle, Ardiente dava também mostras de estranha agitação. Fez um esforço supremo, para combater a embriaguez que começava a perturbar-lhe os sentidos. Fechou os olhos e baixou-se, agarrando algumas brasas, que arre-meçou, às cegas, para cima dos aguaras. Os que foram atingidos, ao desviarem-se, quebraram a cadência em que a horda se movia. Isso bastou para romper o encantamento; o rapaz prosseguiu, com redobrada energia, o seu ataque, até a confusão se estabelecer entre as fileiras do inimigo, inibindo-o de pôr em prática o fantástico ardil que o instinto lhes ensinara.
Era tempo! Alguns minutos mais, e o domador teria sofrido a sorte de tantos desgraçados que, entontecidos por tais evoluções dos lobos vermelhos, foram devorados por êles, apesar de disporem de armas capazes de lhes permitirem longa resistência.
Contudo, se a manobra dos carnívoros não dera resultado, o perigo mantinha-se. Tornava-se necessário não afrouxar um só instante a vigilância, tanto para repelir qualquer assalto, como para evitar a repetição da ronda desvairadora. A despeito da fadiga, Perez tratou de alimentar constantemente o fogo.
As horas decorriam com terrível lentidão naquela noite de pesadêlo, sem que o infeliz pudesse gosar um instante de repouso. A alcateia acossava-o sem cessar. Não desfitava os vultos do homem e do cavalo, que se destacavam, iluminados pela fogueira; mas, tôdas as vezes que procurava recomeçar o bailado fantasmagórico, Perez intervinha, e alguns carvões inflamados interrompiam a tentativa.
A tenacidade do gaúcho venceu a táctica das feras, e conseguiu mantê-las a distância respeitosa. Assaltado pelo sono, esteve, muitas vezes, prestes a cair. Todavia, sustido por indomável energia, lutou contra êsses desfalecimentos, até que findou aquela dramática velada. O horizonte clareou, anunciando a aurora. Os primeiros raios de Sol iluminaram a pampa.
Então, os aguaras retiraram. Salteadores nocturnos, não estavam habituados a atacar em pleno dia. Tinham mêdo da luz. Uns atrás dos outros, afastaram-se, e, quando a claridade solar iluminou a planície, Perez verificou que nenhum se encontrava nas proximidades. Só a erva pisada indicava a longa permanência das feras, em volta do acampamento.
Não podendo mais, o domador, esmagado pela fadiga, deixou-se cair por terra. Quási não fechara os olhos, nas últimas quarenta e oito horas. Em troca, que esforços não tivera de dispender! Agora,, passado o perigo, irresistível torpôr se apoderara dêle. Deixando o fogo extinguir-se lentamente, adormeceu.
Se o fugitivo não se encontrasse em tal estado de esgotamento, ter-se-ia prevenido contra inimigos tão temíveis como os lobos vermelhos: o lanzador e os vigilantes. Êstes, depois de tentarem em vão, alcançá-lo, antes que êle metesse pelas salinas, haviam decidido, como se disse, contornar o obstáculo. Yago continuava a dar mostras de indizível furor.
 - Caramba! - rugia êle. - Não podemos deixar fugir êsse bandido! É preciso ultrapassá-lo.
Mais calmo, mas não menos resoluto, Ricardo mostrava as mesmas intenções. Os doze cavaleiros, gaúchos e vigilantes, que tinham conseguido acompanhá-lo até ali, eram corredores intrépidos, com quem poderia contar. Por isso, o grupo não insistiu em lançar-se na pista de Perez, através da vasta extensão branca. Era conveniente, pelo contrário, ganhar em velocidade ao domador, executando a volta a que aludira o chefe. As esporas laceraram os flancos dos cavalos, que galoparam na direcção requerida.
As salinas parecia não terem fim, e Yago preguntava, de si para si, se a distância a percorrer não seria demasiada para que pudessem apanhar o fugitivo à saída da zona perigosa, pela qual êle enveredara.
O receio do lanzador era fundamentado. Quando, após duas horas de galope frenético, deram a volta às salinas, não encontraram o menor vestígio do rapaz. Por mais que explorassem, com a vista, a deslumbrante toalha, não distinguiram o menor ponto escuro que lhes indicasse a presença de Perez.
 - Por la muerte! - resmungou o lanzador, dirigindo-se ao chefe dos vigilantes. - O pássaro voou! Teria sido melhor persegui-lo através das salinas...
 - Não me agradava a idéia de estropiar os cavalos - respondeu o interpelado. - E não adivinhava que êsse homem atingisse tão depressa estas paragens.
 - Em todo o caso, uma coisa é certa - resmungou o auxiliar de Gil Ribeira. - Ficámos logrados! Êsse patife deve estar a rir-se de nós, agora.
 - Não vale desanimar - continuou Ricardo.
 - Esta região é vasta, mas podemos, ainda assim, encontrá-lo.
Uma expressão de dúvida passou no olhar de Yago.
 - Creia, chefe - declarou - que, se êsse maldito conseguiu atingir terra firme, nunca mais o apanharemos. Examine o terreno que nos cerca: pântanos, chanars e lagunas são outros tantos esconderijos que podem ocultá-lo.
O chefe dos vigilantes não respondeu. O seu companheiro falava com acêrto. Quantos malfeitores, refugiados em semelhante região, tinham escapado sem custo a todas as pesquisas! Perez Mariposo, mais audacioso ainda do que os outros, conseguiria, certamente, tirar-se de dificuldades.
O grupo continuou, apesar de tudo, a avançar. Com os olhos fatigados pela reverberação solar na camada de sal, procuravam ainda distinguir a figura do domador. Decorreram horas, sem que descobrissem o ponto onde êle aportara, para se lançar de novo através da pampa. A erva pisada pelo cavalo tinha-se erguido de novo, e tornava-se impossível encontrar qualquer pista.
Quando o Sol desapareceu, o lanzador e os companheiros tinham percorrido muitas léguas, sem o menor resultado. Os cavalos davam sinais de fadiga. Era preciso parar. A decepção do grupo era tão grande que ninguém falava. A atitude despeitada de Yago revelava que êle não perdoava o desaire e responsabilizava dêle o representante da autoridade.
Os gaúchos e os vigilantes reconfortaram-se com alguns pedaços de carne sêca e o inevitável mate. Uivos longínquos dos aguaras deram-lhes a entender a probabilidade de um ataque. Tomaram as precauções devidas, formando quatro grandes montes de combustível, a que lançaram fogo. Seria protecção suficiente contra os lobos vermelhos.
Colocando duas sentinelas, para prevenir qualquer eventualidade, Ricardo envolveu-se nos cobertores e estendeu-se no solo. Os companheiros imitaram-no, e, ao cabo de alguns minutos, dormiam todos, sob a vigilância dos dois camaradas a quem coubera o primeiro quarto de guarda.
Êstes, sentados junto das fogueiras, prescrutavam o horizonte, e prestavam atenção a todos os ruídos. Por vezes, ouviram uivos dos lobos. Dir-se-ia que, a pequena distância, os ferozes animais se encarniçavam contra uma prêsa. Sem dúvida, o fogo do acampamento os levou a ser prudentes, pois não se aventuraram pelas proximidades.
As horas decorreram sem coisa alguma perturbar o repouso dos vigilantes e seus auxiliares. As sentinelas foram rendidas por três vezes. De manhã, Yago, que se erguera primeiro, resolveu realizar uma breve exploração, em volta do acampamento.
O céu clareara, no horizonte, anunciando o dia. Distendendo os membros entorpecidos, o lanzador percorreu algumas centenas de passos, quando parou, com a atenção prêsa a um ponto luminoso que se avistava do local onde se encontrava. Não conteve uma exclamação de alegria. A dúvida era impossível: tinham acendido uma fogueira, no meio da pampa.
 - Só êsse Perez se encontra, decerto, nestas paragens - murmurou Yago. - O que espanta é ter levado a imprudência ao ponto de assim revelar a sua presença. É verdade que os aguaras obrigam todos os viajantes a defender-se por êste processo. Madre de Dios! Não percamos um minuto! É preciso averiguar a identidade dêsse indivíduo que vagueia pela pampa.
O auxiliar de Gil Ribeira voltou para o acampamento, gritando:
 - A cavalo, amigos!
Os vigilantes e os gaúchos, meio adormecidos ainda, ergueram-se.
 - O que há? - interrogou Ricardo.
 - Há, chefe, que, se queremos capturar o assassino, não temos um segundo a perder.
Em poucas palavras, Yago explicou a descoberta que fizera, e os companheiros trataram de selar os cavalos, com a maior rapidez. Em menos de cinco minutos, estavam prontos a montar.
 - A caminho! - exclamou Yago, cujas pupilas brilhavam, certo de que, graças a êle, fôra reencontrada a pista do criminoso.
Refeitos das fadigas da véspera, pelo repouso nocturno, os vigilantes e os gaúchos avançaram com rapidez, na esperança de que a extenuante perseguição ia, finalmente, terminar. Percorreram assim cêrca de um quilómetro, sem dizer palavra. O Sol erguera-se já, quando, sübitamente, os cavalos deram visíveis mostras de inquietação e diminuíram o andamento. Em vão, os cavaleiros os incitaram. Os animais não lhes obedeciam.
Depressa, Ricardo compreendeu a causa dessa hesitação, pois avistou um vulto acastanhado, esgueirando-se por entre as moitas.
 - Os aguaras! - exclamou.
Eram, com efeito, os lobos vermelhos, que se dispunham a voltar aos seus esconderijos; apesar da sua atitude não ser agressiva, pois eram incapazes de atacar em plena luz e fugiam o mais ràpidamente que lhes era possível, os cavalos davam o alarme da sua presença.
Erguidos nos estribos, os gaúchos não resistiram à tentação de enviar algumas balas aos odiados habitantes da pampa. Descarregaram as carabinas sôbre os carnívoros, e alguns dêstes rolaram, ensangüentados, pelo chão. A alcateia apavorada dispersou-se em tôdas as direcções, perseguida pelas balas e sem pensar sequer, em atacar um inimigo tão numeroso e bem armado.

CAPÍTULO XII
A captura de Ardiente
PEREZ Mariposo adormecera havia poucos minutos, quando uma série de detonações, muito próximas, o despertou subitamente.
Bastante inquieto, arregalou os olhos, afastou as coberturas, e, aplicando o ouvido contra o chão, escutou.
Ao cabo de alguns instantes, ergueu-se. O' ruído cadenciado de uma galopada, cada vez mais perceptível, revelava-lhe que um grupo de cavaleiros avançava naquela direcção, e não tinha dúvidas sôbre a sua identidade: os vigilantes haviam-lhe encontrado a pista! Para afugentar os aguaras, vira-se obrigado a acender a fogueira e esta chamara a atenção dos perseguidores. Contudo, não compreendia a razão daquela fusilaria.
Não se demorou a aventar hipóteses. O tempo urgia, e era necessário proceder com a máxima rapidez, para iludir o inimigo. Apenas dispunha de alguns momentos.
Pensou, primeiro, em montar no cavalo e afastar-se o mais ràpidamente possível, mas em breve compreendeu tal resolução não servir. No estado de esgotamento em que êle e o animal se encontravam, a fuga através da pampa malograr-se-ia com certeza. Depressa os adversários o alcançariam.
Ficou hesitante, sem saber que partido tomar; mas logo os olhos lhe brilharam, e voltou-se para Ardiente:
 - É preciso separar-nos, hijo mio! Talvez o futuro permita que volte a encontrar-te!...
Tirou a peia que retinha o animal; depois, arreou-o, como se fôsse partir para nova corrida. Enquanto assim procedia, olhava em tôrno, para se assegurar de que os vigilantes não estavam ainda à vista. As moitas de arbustos que o rodeavam eram suficientes para dissimulá-lo, mas a fogueira não se extinguira, e, embora tivesse diminuído de intensidade, continuava a enviar para o espaço uma colunazita de fumo, suficiente para denunciar a sua localização a qualquer cavaleiro habituado a viajar pela pampa.
Com alguns pontapés, o rapaz procurou apagar os restos da fogueira, mas a precaução era tardia. Olhou mais uma vez em redor. Tinha de recorrer à astúcia, pois, de outro modo, ser-lhe-ia impossível escapar.
O pântano de águas esverdinhadas parecia atrair a atenção do fugitivo angustiado. Após curta hesitação, remexeu nos alforges e tirou um frasco de rum, que sempre o acompanhava e lhe permitira, na véspera, estimular o cavalo, umedecendo-lhe as narinas, quando se aventurara através da planície salgada. Partiu o fundo do frasco e, voltando-se para Ardiente, ordenou:
 - Vamos, hijo mio! Êles estão quási a chegar!
O inteligente animal não lograva compreender o que pretendia o dono. Nunca se tinham separado. Então, com um gesto brusco, após uma carícia de despedida, o domador indicou-lhe a pampa.
 - Vamos! - ordenou novamente.
Com evidente custo, o animal partiu, a trote, voltando-se, por vezes, para olhar o dono; mas êste, entregue à idéia de escapar aos adversários, não se preocupava com êle. Atirava a água os fragmentos do fundo do frasco; depois, segurando a parte superior do recipiente mutilado e enrolando no pulso o rebenque, encaminhou-se para o pântano.
A galopada aproximava-se cada vez mais... O rapaz não tinha um instante a perder; lentamente, aventurou-se através da água lodosa, afundando-se pouco a pouco, primeiro, até aos joelhos, depois, até à cintura, até aos ombros. Por fim, o próprio rosto desapareceu abaixo da superfície lamacenta, e só emergiu o fundo do frasco partido, cujo gargalo metera entre os dentes e ia permitir-lhe respirar, oculto aos olhos dos perseguidores.
O estratagema do domador parecia insensato. Continuava, porém, resolvido a tudo, para escapar aos vigilantes. Meio sufocado, respirava apenas pelo apertado orifício que o mantinha em contacto com a atmosfera. A sua volta, grandes bolhas de ar vinham rebentar à superfície do pântano; mas, dentro em breve, êste adquiriu o seu aspecto tranqüilo. Ninguém diria que as suas águas escuras dissimulavam um homem.
Instantes depois, o lanzador e seus companheiros surgiam no local onde Perez se batera heroicamente contra os lobos vermelhos. Os cavaleiros apearam-se, e, de carabinas em punho, trataram de procurar o fugitivo.
 - Não deve estar longe, êsse maldito! - resmungou Yago. - Vejam... Há pouco, encontrava-se estendido nêste local! Distingue-se ainda na erva o contorno do corpo.
 - Julgo que não teve tempo para fugir - declarou, por sua vez, o chefe dos vigilantes. - Manobrámos por forma a cortar-lhe a retirada... Sem dúvida, procurou ocultar-se nalgum dêsses chanars que nos rodeiam...
 - A sua captura está por pouco - comentou um dos gaúchos. - De mais, não há que recear alguma bala, pois não tem armas de fogo consigo... Vai ser apanhado como um rato na ratoeira! Reparem que a fogueira ainda arde. Surpreendemo-lo, certamente, quando acabava de acordar.
Olharam todos em volta. O pântano estendia-se diante dêles, lamacento e tranqüilo, próximo do centro, flutuava um frasco partido...
De súbito, Ricardo soltou um grito: acabava de ver o vulto de um cavalo, fugindo através da pampa.
 - Alerta! - exclamou. - Lá vai êle!
Os cavaleiros saltaram para as selas e partiram a todo o galope, na direcção em que fôra avistado o animal. Estavam convencidos de que o domador se escapara de novo; mas, ao cabo de poucos minutos, aproximando-se um pouco do cavalo, verificaram que êle corria sozinho.
 - Maldição! - rugiu o lanzador. - O patife desapareceu!
 - Não conseguirá ir longe, se nos apoderarmos do cavalo - observou Ricardo.
Reconhecendo o fundamento desta observação, o auxiliar de Gil Ribeira incitou a sua montada, continuando a perseguição.
Consciente das intenções daqueles homens, o nobre animal corria agora como se fôsse uma flecha, e a guitarra, sempre suspensa da sela, batia-lhe nos flancos, estimulando-o.
Contudo, apesar dos esforços de Ardiente, os perseguidores, dispostos a capturá-lo, para tirar ao adversário o único meio de se escapar, ganhavam terreno com rapidez. A distância, a princípio considerável, que o separava do inimigo, foi diminuindo. Não tendo, devido ao combate nocturno com os lobos, gozado o repouso que retemperara as montadas de Ricardo e seus companheiros, o cavalo branco não podia escapar. Em breve, um dos cavaleiros se aproximou dêle, com vertiginosa velocidade. Era o lanzador, acostumado àquela espécie de corrida através da pampa. Decidido a acabar, custasse o que custasse, o auxiliar de Gil Ribeira preparava as bolas e, fazendo-as voltear por cima da cabeça, dispunha-se a pôr fim à furiosa galopada de Ardiente.
Algumas dezenas de metros, apenas, separavam Yago do grande amigo de Perez. O temível engenho gaúcho, atirado com mão de mestre, foi enrolar-se nas patas dianteiras do animal, que rolou por terra, enquanto os perseguidores soltavam gritos de vitória.
Em vão, Ardiente tentou ainda escapar ao seu captor. Com agilidade prodigiosa, Yago saltara em terra e segurara-lhe as rédeas. Os outros chegavam, também, e ajudaram-no a dominar o animal.
 - Bela prêsa, amigo! - exclamou o representante da autoridade, quando o lanzador saltou para a sela do cavalo branco.
 - Ficarei muito mais satisfeito, quando deitar a mão ao dono - resmungou o interpelado.
 - Não deve faltar muito - respondeu Ricardo.
Estas palavras, porém, não lograram tranqüilizar o auxiliar de Gil Ribeira; cravou as esporas no cavalo, para recomeçar as pesquisas quanto antes. Pouco habituado a semelhante tratamento, Ardiente relinchou de cólera e de dôr e empinou-se; o cavaleiro a custo se conservou na sela.
 - Hei-de domar-te, bicho do diabo! - vociferou Yago, aplicando-lhe algumas chicotadas cruéis.
Por indicação de Ricardo, gaúchos e vigilantes espalharam-se pelo terreno, procurando o fugitivo que, estavam convencidos, não devia achar-se longe.
Durante uma hora, procederam a buscas, sem que lhes fôsse possível encontrá-lo. Pesquisaram os arredores do pântano em todos os sentidos, sem resultado.
 - Cuerpo de Cristo! - rugiu Yago, furioso. - Êsse bandido não é invisível. Deve estar oculto nalguma parte. Encontrei vestígios de passos na direcção do pântano...
Por mais que multiplicassem os esforços, Perez Mariposo não foi encontrado. Os cavaleiros, a quem o resultado negativo da diligência desapontava, clamavam haver artes de feitiçaria, naquele desaparecimento.
Entretanto, o Sol, que brilhara com o seu mais vivo fulgor, desaparecera, encoberto por nuvens, anunciadoras de borrasca. O pampeiro começara a soprar, com violência crescente. Os perseguidores, que de novo se tinham reunido, consultaram-se com o olhar, sem saberem como proceder, quando, de súbito, Yago teve uma idéia.
 - Caramba - exclamou - o vento sopra em direcção às salinas! Nada nos impede de incendiar as moitas, constrangendo assim o bandido a sair do seu esconderijo... O fogo conseguirá aquilo de que não fomos capazes!
O alvitre não agradou, a princípio, ao representante da autoridade. Sob a influência do vento, o incêndio podia propagar-se com grande rapidez e causar uma verdadeira catástrofe; o lanzador, porém, adivinhou-lhe os receios, e, apontando um arbusto que se erguia a poucos passos, tranqüilizou-o:
 - Não tenha receio, chefe! O sinistro não tomará demasiadas proporções. Dentro de duas horas, a chuva extingui-lo-á... As fôlhas daquele lluvero estão levantadas e o céu tolda-se com rapidez.
Ricardo rendeu-se à argumentação do seu interlocutor. Com efeito, a planta que êle indicara constitui, para o viajante da pampa, um verdadeiro barómetro, pois as suas fôlhas murcham muitas horas antes do bom tempo e erguem-se, para anunciar chuva, igualmente muito antes dela começar a cair.
Os vigilantes e os gaúchos não hesitaram mais em seguir o conselho de Yago. Saltaram dos cavalos e trataram de incendiar as moitas que os circundavam. Activadas pelo pampeiro, as chamas propagaram-se com rapidez, devorando a erva sêca e inflamando os insignificantes bosquesitos de jarillas que cresciam nas proximidades.
De carabina em punho, os homens procuravam divisar, por entre os turbilhões de fumo, o vulto do domador; decerto, o incêndio não deixaria de expulsá-lo do seu ignorado refúgio. Durante meia hora, cavalgaram em tôrno da zona incendiada, sem obter qualquer resultado. A barreira das chamas, tomando cada vez maior amplitude, prosseguia na sua marcha em direcção às salinas.
O ambiente tornara-se insuportável. O fumo sufocava os cavaleiros, provocando-lhes grandes acessos de tosse. Diante dêles, a pampa verde e doirada ennegrecia ràpidamente; o pântano, um momento iluminado pelas chamas, estava agora rodeado de cinzas fumegantes.
Grossas gôtas de água principiaram a cair, amortecendo a violência do fôgo e extinguindo-o, por fim. Exasperado, o lanzador vomitava pragas terríveis, vendo a inutilidade do estratagema.
 - É incrível! - vociferava. - Um homem não desaparece em semelhantes condições! Êsse miserável é, com certeza, protegido por algum sortilégio!
O chefe dos vigilantes, embora tão despeitado como o seu companheiro, não pronunciava uma palavra. Entendia ser inútil permanecer naquelas paragens, e comandou:
 - Vamos! Não podemos demorar-nos mais. Devem estar admirados da nossa ausência, em San Luís!
Curvados sob as rajadas, cada vez mais impetuosas, os cavaleiros resolveram-se a regressar, renunciando a compreender as causas daquela misteriosa desaparição. A chuva caía com violência, trespassando os ponchos dos gaúchos. O grupo afastou-se com rapidez. Yago, que foi o último a abandonar o local, voltou-se ainda uma vez para trás, exclamando, como punho cerrado:
 - Tarde ou cêdo, encontrar-nos-emos, Perez Mariposo! Hoje, apanhei o cavalo! O dono acabará por ter a mesma sorte!
Apenas os cavaleiros se afastaram do pântano, uma cabeça emergiu das águas lodosas, agora açoitadas pela chuva. Perez, a quem o frasco partido permitira manter-se oculto, preparava-se para deixar o seu pouco cómodo esconderijo.
Por diversas vezes, quando os captores se ocupavam da captura do cavalo ou incendiavam as moitas das proximidades, o domador arriscara-se a lançar um olhar em volta; mas, ao verificar a presença dos inimigos, mergulhara de novo, mantendo sempre entre os lábios o gargalo do frasco. Embora êste não tivesse passado despercebido aos gaúchos, a água escura do pântano não lhes permitira notar o vulto do rapaz.
Perez necessitara de resistência e energia invulgares, para suportar aquela prova. Teria, contudo, preferido morrer asfixiado no fundo do pântano, a cair em poder dos perseguidores. Os minutos tinham-lhe parecido séculos. Com a morte na alma, percebera que o lanzador capturara Ardiente; todavia, resistira a todas as dificuldades.
Agora, que o grupo se afastara, Perez podia, enfim, retomar contacto com a terra firme. Erguido no meio das águas, respirava a plenos pulmões. Lentamente, sem se importar com a chuva que continuava a cair, saiu do pântano, cambaleando de cansaço.
Se Yago ainda ali estivesse, não o reconheceria, assim coberto de lodo verde. Com a pressa de se ocultar, não se libertara do poncho, nem de qualquer outra peça do vestuário, cuja presença, na margem, teria, de resto, chamado a atenção dos vigilantes. A água empapara-lhe as vestes e enchera-lhe as botas, por forma que êle dificilmente se movia.
Como pôde, aproximou-se da margem; ao chegar ali, estendeu-se na erva calcinada, cuspindo o líquido que se lhe insinuara pelas narinas.
Se os perseguidores o atacassem naquele momento, não poderia opôr-lhes a menor resistência. Os membros entorpecidos mal podiam mover-se. Incapaz de pensar, extenuado por aquele prolongado suplício, só aspirava ao descanso, sem mesmo procurar qualquer abrigo. Deixou-se cair por terra e fechou os olhos, perdendo a consciência de quanto o cercava.
Por muitas horas, a chuva tombou sôbre o infeliz, completamente insensível. Conseguira, na verdade, escapar aos perseguidores; mas a sua sorte não era invejável. Sem outras armas além da navalha e do rebenque, privado do indispensável companheiro que era o seu cavalo fiel, que poderia fazer, perdido no meio da pampa, e exposto a todos os perigos? Como lograria defender-se, naquele território hostil, se os aguaras se decidissem a atacá-lo outra vez?...

CAPÍTULO XIII
Uma caçada que termina mal
A chuva caiu, durante todo o dia. As horas decorreram sem que Perez fizesse um movimento. Quando voltou a si, as sombras da noite começavam a estender-se pela pampa. As rajadas tinham diminuído de violência.
Admirado, o domador olhou em volta. Muitas vezes, cavalgara através da tempestade e fôra colhido por aguaceiros tremendos; nunca, todavia, se sentira tão molhado. Espirrou vezes sem conta. Com dificuldade, moveu os membros dormentes, até que conseguiu restabelecer a circulação do sangue. Ergueu-se a custo e deu alguns passos, estendendo os braços e as pernas, como se fôsse um autómato. O esforço dispendido foi tamanho, que esteve prestes a desanimar. A permanência no pântano esgotara-lhe as energias.
Pouco a pouco, veio-lhe a recordação dos acontecimentos desenrolados horas antes. Infinito cansaço se lhe lia no rosto. Para que lhe serviria continuar a luta? Os inimigos tinham-lhe capturado o cavalo e roubado a sua querida guitarra. Para o futuro, não seria mais do que um pária, um fora-da-lei, cuja cabeça ia ser posta a preço e que devia evitar a vizinhança dos outros homens...
O desânimo pouco durou. Perez não pertencia ao número dos que se deixam vencer fàcilmente pelos acontecimentos, por mais desfavoráveis que êles fôssem. Em breve um clarão lhe iluminou as pupilas: pensou em Conchita. Queria, custasse o que custasse, voltar a vê-la, surgir na sua frente, isento de tôda a suspeita.
Transido de frio, sob a chuva persistente, o fugitivo encarou a situação. Nada tinha que lhe fôsse favorável. Era-lhe proibido acender uma fogueira, para se aquecer, primeiro, porque o terreno e o combustível estavam encharcados, e depois, porque ignorava se os perseguidores se tinham afastado e de forma alguma desejava chamar-lhe de novo a atenção.
O vento mudara e parecia agora afastar as nuvens. As fôlhas de lluvero, que, de manhã, haviam servido de indicador aos seus inimigos, tinham descaído. O bom tempo voltaria em breve, mas, de momento, o domador interrogava-se, angustiado, àcêrca da forma como poderia manter-se, naquelas paragens. Com que delícia não engoliria algumas chávenas de mate bem quente, que lhe dariam novas energias!...
Além disso, tinha fome, e os seus alforges, que continham tôdas as suas provisões, estavam agora em poder de Yago. Via-se constrangido a prover tôdas as suas necessidades com os escassos meios de que dispunha, e a perspectiva não era risonha. Com Ardiente e o equipamento habitual, ser-lhe-ia fácil prolongar a sua estadia na pampa, mas, nas condições actuais, como poderia aprovisionar-se e defender-se dos animais ferozes? A navalha e o rebenque escasso auxílio lhe prestariam.
Ao pensar que se encontrava à mercê dos aguaras, o infeliz não pôde deixar de estremecer. Relembrava os principais episódios da trágica noite anterior, e receava que as trevas, que começavam a rodeá-lo, trouxessem outra vez àquelas paragens a alcateia faminta.
Felizmente para êle, essa terrível eventualidade não se produziu. Sem dúvida, as feras, pouco satisfeitas com o acolhimento da véspera e o resultado obtido, tinham-se dirigido para outras regiões, e a noite decorreu tranqüilamente. Por várias vezes, Perez ouviu o uivar distante dos perigosos salteadores da pampa, mas não lhes avistou as pupilas cintilantes na obscuridade.
Cêrca da meia noite, a chuva parou e o céu libertou-se das nuvens que o encobriam. O rapaz pôde mesmo contemplar o Cruzeiro do Sul, que brilhava no horizonte. Refugiado num chanar, esperou a aurora, imerso nas suas tristes preocupações.
Pouco dormiu. Contudo, a manhã veiu encontrá-lo de melhor disposição e muito menos abatido. O Sol, ao erguer-se, proporcionou-lhe o benéfico calor dos seus raios, circunstância que foi apreciadíssima pelo domador. Há muitas horas que estava envolto nas vestes encharcadas, e, se a sua robusta constituição conseguira triunfar dêsse inconveniente, agradava-lhe contudo imenso secar a roupa e expôr-se um pouco ao calor. Apenas o Sol se encontrou bastante alto, despiu-se e estendeu as diversas peças do vestuário sôbre a erva, onde dentro em pouco ficaram sêcas. Foi com verdadeiro prazer que o rapaz então as envergou de novo.
Alguns exercícios gimnásticos que executou restituíram-lhe a flexibilidade aos músculos. Precisava, com efeito, na situação em que se encontrava, de dispôr de tôdas as suas faculdades. O banho de Sol que as circunstâncias lhe proporcionaram fez-lhe imenso bem. Em resultado do bem estar físico, o futuro, pareceu-lhe menos negro; mas as exigências do estômago tornaram-se imperiosas, e tratou de procurar alimento.
Não o conseguiu sem dificuldade. Privado do lazo e das bolas, foi-lhe impossível capturar dois veados que avistou a pequena distância e que fugiram velozmente através da pampa. Por felicidade, descobriu, após algumas horas de investigações, uns quinze ovos de nandu, ainda frescos... Era tempo; estava prestes a cair de inanição e com bem compreensível contentamento acendeu uma fogueira para coser o seu frugal almoço nas cinzas.
Quando acabou de comer, guardou os ovos que lhe restavam e lhe assegurariam alguns dias de subsistência. Para beber, tinha à sua disposição a água das inumeráveis lagoas da pampa. Embora não muito límpida, não o deixaria morrer de sêde...
Os dias passaram, sem que pensasse em aproximar-se de algum local habitado. Não desejando cair em poder dos vigilantes, evitava todos os seres humanos; a morte do estanciero era ainda demasiado recente para que os seus inimigos se decidissem a deixá-lo em paz. As longas horas de inacção a que se via forçado davam-lhe ensejo para reflectir sôbre os acontecimentos; preguntava a si mesmo, sem encontrar resposta, quem seria o verdadeiro assassino de Gil Ribeira e quais os motivos do crime. Estrangeiro em San Luís, não conhecia as pessoas que rodeavam o criador de gado, e isso forçava-o a limitar as conjecturas. Só o capataz o poderia elucidar convenientemente, mas o domador não esquecia que Marco Palavez figurara entre os seus perseguidores. Isso indicava o seu ocasional companheiro de jornada, na noite do baile, também o considerar culpado.
Quanto mais reflectia, mais se convencia de que fôra vítima de uma odiosa maquinação. O facto de o seu revólver ter sido encontrado perto do corpo do assassinado, quando êle julgava tê-lo consigo, ultrapassava as raias do verosímil... Uma interrogação mais insistente do que qualquer outra lhe surgia no espírito: "Trouxe comigo a arma quando deixei a locanda?"
Não encontrava resposta para esta pregunta. Lembrava-se de que Conchita era, nesse momento, a sua única preocupação, e de que fôra preciso o capataz falar-lhe na carabina e no coldre, para êle os reclamar. Depois, quando saíra, só a jovem se aproximara dêle. Perez nem por sombras suspeitava dela. Interviera generosamente em seu favor, e considerava-a a única pessoa amiga que lhe restava, quando todos o reputavam culpado.
Por várias vezes, o domador se lembrou de que a arma lhe podia ter sido roubada enquanto dormia, na pampa, mas a hipótese não era admissível. Ardiente, guarda fiel, jàmais permitiria a um desconhecido aproximar-se do acampamento. Quando notava qualquer ruído ou presença suspeita, dava imediatamente o alarme.
"Fui um imprudente - resmungava êle - pronunciando ameaças de morte diante daquela gente! A cólera cegava-me. A atitude de Ribeira enfurecera-me a tal ponto, que não pude conter-me... Essa imprudência vai custar-me caro..."
Todavia, por mais desesperada que parecesse a sua situação, não desanimava. Compreendia só lhe restar um meio de recuperar a sua tranqüilidade: descobrir o culpado. De certo, a empreza parecia impossível de tentar; mas Perez estava resolvido a levá-la a cabo. Perseguido, desarmado, reduzido a viver como um pária, tentaria, apesar de tudo, descobrir e desmascarar o assassino.
Decorreram semanas, sem que o fugitivo avistasse um ser humano. Vagueava através da vasta planície situada ao norte das salinas, procurando refúgio entre as moitas. No decurso das suas investigações, descobrira uma ilhota, no meio de uma lagoa, que lhe proporcionava um retiro para passar as noites fora do alcance dos aguaras. Por várias vezes, avistara os ferozes animais, mas tinham-se mostrado tão relutantes em atravessar a água como em afrontar o fogo.
Continuava a procurar ovos de nandu e, por várias vezes, instalando armadilhas, lograra capturar algumas vizcachas, espécie de marmotas, muito numerosas na pampa; embora a carne dêsse animal não fôsse das mais saborosas, servira-lhe para variar de alimentação. Além disso, êsses curiosos mamíferos, que formam verdadeiras colónias, escavam enormes tocas, dentro das quais armazenam tôda a espécie de vegetais sêcos que podem recolher. Quando o domador queria coser os alimentos, aventurava-se por algum dos túneis em espiral, abertos pelos industriosos animais, e que fàcilmente se localizavam, devido às clareiras abertas junto dêles pelos seus habitantes. Podia assim recolher boa porção de combustível. A pesquisa não era isenta de perigos, devido aos indesejáveis hóspedes que os roedores albergam: serpentes e aranhas. Muitas vezes, Perez esteve prestes a ser picado por esses venenosos bichos.
A despeito de tôdas as dificuldades, o domador habituara-se àquela existência. Tornara-se irreconhecível. Quem seria capaz de identificar, naquele indivíduo de vestes despedaçadas, cabelos e barba incultos, o sedutor dançarino que, no baile da locanda La Noche, causara admiração a todos, evoluindo com a encantadora Conchita? Só um observador atento reconheceria os seus inconfundíveis olhos escuros e brilhantes.
Por vezes, à medida que a situação se eternizava, o domador a custo reprimira a sua impaciência! A noite, quando as estrélas cintilavam no Céu e infinita paz se estendia sôbre a Natureza, gostaria de cantar, como tinha por hábito, acompanhando-se à guitarra... Mas esta fôra-lhe roubada. O mesmo sucedera a Ardiente. Ao pensar no cavalo, seu fiel companheiro, não podia reprimir um gesto de raiva. Que fôra feito do nobre animal? Sem dúvida, ficara pertencendo ao lanzador, que manifestara, ao persegui-lo, tão particular encarniçamento e que devia considerar um dos seus piores adversários.
E o domador procurava ter paciência, e assegurar a sua defeza o melhor possível. Evitava os lobos vermelhos; por mais de uma vez, os jaguares se tinham aproximado do seu refúgio, e, com o poncho enrolado no braço esquerdo e a navalha bem firme na mão direita, aguardara o ataque eventual de algumas dessas feras. Tal não sucedera, porém. E o adversário que êle mais temia era ainda o homem. Com certeza, fôra prometido um prémio importante pela sua captura. Todo o indivíduo que encontrasse podia ser um inimigo...
Contudo, até então, não fôra inquietado, desde que os gaúchos e os vigilantes haviam abandonado a perseguição, contentando-se com a captura do cavalo. E ia produzir-se um incidente susceptível de proporcionar-lhe o desejado ensejo de esclarecer o mistério do crime em que fôra envolvido.
Certo dia, quando Perez procurava caça, avistou um vulto que se aproximava ràpidamente. Inquieto, a princípio, em breve serenou, ao averiguar tratar-se de um nandu. Muitas vezes, desde que se instalara na pampa, encontrara exemplares dêsses gigantescos pernaltas, próximos parentes do avestruz, e cujos ovos constituíam parte importante da sua alimentação.
Por êsse motivo, ocultou-se num chanar, não para tentar a captura do recém-aparecido, para o que necessitaria de um bom lazo, mas pensando em, espiando-o, descobrir o local onde êle tinha os ovos, pois não ignorava que o macho e a fêmea chocam alternadamente a postura; seguindo-os de longe, conseguira muitas vezes localizar os ninhos. Talvez se desse agora o mesmo, fornecendo-lhe alimento para muitos dias.
Ao observar, porém, o nandu, notou que êle evoluía de maneira anormal. Não corria em linha recta, como é seu hábito, mas sim executando caprichosos ziguezagues.
 - Por la muerte - murmurou o rapaz. - Eu seja enforcado se êste pássaro não é perseguido! Já os cacei, e sei muito bem que só caminham assim quando se sentem ameaçados de perto... Certamente, vem algum cavaleiro atrás dêste...
O domador não se enganava. Apenas concluíra o raciocínio, surgiu um cavaleiro. Galopava com denodo, tentando aproximar-se do pernalta. Ao avistá-lo, Perez ocultou-se melhor ainda. Era a primeira vez, desde a fuga, que se lhe deparava um homem, e resolveu não revelar a sua presença.
Seguindo uma linha que constituía a corda do arco do círculo descrito pelo nandu, o desconhecido ganhava terreno. Espavorido, o pernalta fugia sempre, abrindo as asas. Mais de duzentos metros o separavam ainda do perseguidor, mas a distância diminuía.
Imóvel, Perez viu o cavaleiro aproximar-se cada vez mais. Volteava as bolas acima da cabeça, esperando o momento em que se encontrasse a distância conveniente, para lançá-las. Até então, as evoluções do nandu não lho tinham permitido.
Quando o desconhecido se aproximou da moita onde o domador se dissimulara, Perez verificou que êle envergava o trajo usual dos gaúchos. Segurava-se firme na sela, com os pés bem assentes nos estribos. O seu rosto bronzeado exprimia energia a toda a prova. Com as maxilas cerradas, encorajava o cavalo, desejoso de aproximar-se o mais possível do nandu; êste prosseguia na sua manobra, mas começava a dar evidentes sinais de cansaço. O resultado daquela caçada frenética não podia deixar dúvidas.
Como se fôsse um furacão, o cavaleiro passou junto do refúgio de Perez, sem imaginar que uma testemunha o espiava com viva curiosidade. O domador não perdia um movimento do perseguidor nem do perseguido, interessadíssimo no desfecho.
O caçador comportava-se maravilhosamente. Continuava a marcar o seu avanço e o pernalta parecia definitivamente fcondenado, quando Mariposo soltou uma exclamação de espanto. Antes que pudesse compreender o que se passara, no momento preciso em que o desconhecido ia atirar a arma, o cavalo escorregou, detendo-se subitamente, e o cavaleiro, cuspido da sela, descreveu uma parábola por cima da cabeça do animal; foi cair alguns passos à frente e ficou inerte.

CAPÍTULO XIV
Um amigo
POR algum tempo ainda, o nandu repetiu os seus zigue-zagues; depois, verificando que o caçador já não o seguia, abandonou as complicadas evoluções e correu a direito, desaparecendo em breve.
Perez, porém, não prestava já atenção ao pernalta. Olhava o sítio onde caíra o cavaleiro e onde êle continuava imóvel. O cavalo levantara-se ràpidamente e parecia não se ressentir da queda. Cheirou o corpo do dono e, tranqüilamente, começou a pastar a erva espessa que crescia em volta.
O domador hesitava em ir socorrer o homem, vítima de tão imprevisto desastre. Violento combate se lhe travava no íntimo. Pensava, acertadamente, que, se revelasse a sua presença, poria fim à tranqüilidade até então gosada. Contudo, a solidariedade humana ordenava-lhe que socorresse o infeliz. Com a cabeça descoberta, pois perdera o chapéu no momento da queda, e exposto aos raios ardentes do Sol, estava votado infalivelmente à morte. Sem esperar mais, o rapaz saiu do esconderijo.
Em pouco tempo, chegou junto do desconhecido. Êste tinha os olhos cerrados; ao cair, batera com a testa no terreno e fendera a arcada superciliar. A ferida sangrava com abundância.
 - Dios mio! - exclamou o domador. - Terei chegado demasiado tarde?
Um exame mais completo revelou-lhe não estar em presença de um cadáver. O coração do caçador batia ainda, mas era urgente pôr termo à hemorragia.
Desprovido de tudo, Peres não tinha meios de fabricar um penso e fixá-lo na cabeça do ferido. Pensou então que talvez encontrasse o necessário a êsse tratamento nos alforges pendentes da sela do cavalo. Estendeu novamente o infeliz caçador na erva, protegendo-lhe a cabeça com o chapéu, e dirigiu-se para o animal.
Êste deixou de pastar e ergueu a cabeça, olhando com desconfiança o intruso; mas Perez sabia, como ninguém, a forma de dirigir-se-lhe.
 - Vamos, hijo mio! Não te faço mal! - disse, com voz acariciante. E aproximou-se, conseguindo, sem custo, segurar-lhe a rédea e fazer-lhe festas.
Perdendo o receio, o cavalo deixou que êle rebuscasse os alforges. Com viva satisfação, achou, junto com outros objectos, um estojo de farmácia capaz de permitir-lhe prestar eficazes socorros ao seu imprevisto companheiro. Um cantil com água fresca, igualmente suspenso da sela, ia facilitar o tratamento.
Ajoelhando junto do cavaleiro, o fugitivo lavou cuidadosamente a ferida, que continuava a sangrar. Limpou-lhe o rosto e, com a gaze e o algodão hidrófilo encontrados no estojo, fabricou um penso que, embora rudimentar, se revelou eficaz.
Todavia, êstes primeiros cuidados não conseguiram reanimar o desconhecido. O choque fôra brutal. O domador voltou a pesquizar os alforges e achou uma garrafita de rum. Entreabriu então os dentes do cavaleiro e fê-lo engulir algumas gôtas do líquido. O remédio teve pronto efeito, pois o homem reabriu imediatamente os olhos.
 - Onde estou?... - interrogou, bastante admirado.
 - Socegue, caballero - respondeu Perez. - Está em segurança. Caiu do cavalo, mas a queda não terá conseqüências graves...
O ferido olhava o domador. Não conhecia aquele rosto que se debruçava para êle e não compreendia porque motivo se encontrava estendido na erva, com o cavalo a pastar a pequena distância, nem a ferida que sentia na testa. Pouco a pouco, a memória voltou-lhe.
 - Ah! Recordo-me! - exclamou. - O nandu... Perseguia-o há mais de uma hora e dispunha-me a agarrá-lo, quando, de súbito, fui atirado da sela. Caí para a frente... e não me lembro de mais nada... E êsse maldito pássaro, onde se meteu?
O domador não pôde deixar de sorrir àquela pregunta. Parecia-lhe de bom augúrio que o ferido só se preocupasse com o pernalta.
 - Deve ir bem longe - respondeu. - Mas console-se, porque, sem dúvida, em breve o senhor poderá tirar a sua desforra. Enquanto espera, é melhor não falar. Não pode ficar aqui, exposto ao Sol. Vou levá-lo para o chanar onde eu estava escondido, quando o senhor passou...
O desconhecido assentiu com um movimento. Embora o vestuário de Perez estivesse em farrapos e o seu aspecto geral indicasse não ter há muito contacto com o mundo civilizado, o rapaz inspirava-lhe confiança; docilmente, deixou-se transportar aos ombros robustos do seu inesperado companheiro.
Durante o trajecto, o fugitivo verificou a causa da súbita queda do cavalo. Todo entregue à perseguição ao nandu, o caçador não notara que o terreno estava minado pelas tocas das vizcachas. O cavalo conseguira evitar muitos dos buracos, mas acabara por enfiar uma das patas num dêles, provocando o desastre. Fôra felicidade o pobre animal não partir uma perna.
Ao cabo de alguns minutos, o rapaz, conduzindo o seu pesado fardo e caminhando com precaução, devido às dificuldades do solo esburacado, chegou junto do chanar e colocou o ferido à sombra dos arbustos.
Extenuado e enfraquecido pela perda de sangue, o caçador fechara os olhos e parecia ter renunciado a pedir mais explicações; todavia, os cuidados prestados pelo domador tinham sido eficazes e a hemorragia parara.
O rapaz conservou-se junto do desconhecido, sem saber se devia bendizer ou recear aquele encontro. Ao cabo de alguns momentos, sentiu que êle lhe pegava na mão, ao mesmo tempo que murmurava:
 - Quanto lhe agradeço, amigo! Salvou-me a vida... Creia que não prestou um serviço a um ingrato...
Soerguendo-se a custo, o ferido fitava no seu salvador um olhar reconhecido.
 - Não vale a pena falar nisso, caballero - atalhou Perez. - Qualquer pessoa agiria da mesma forma.
 - Não esperava - prosseguiu o desconhecido
 - encontrar pessoa alguma nestas paragens da pampa, tão pouco freqüentadas... Devo êste encontro a um verdadeiro acaso.
A presença de Perez era, com efeito, digna de despertar estranheza. Pela atitude devotada do rapaz, o ferido compreendera não se encontrar em presença de um salteador, que pensasse em atacá-lo, com intuito de roubar. Por seu lado, o domador sentia-se favoràvelmente impressionado pela fisionomia do seu companheiro, que observava disfarçadamente.
O ferido devia ter trinta anos, quanto muito. Algumas rugas precoces lhe sulcavam o rosto bronzeado, que deixava transparecer franqueza e honestidade. Todavia, o gaúcho hesitou. Devia contar àquele desconhecido as suas atribulações? Não seria uma imprudência revelar-lhe a identidade?... Por fim, verificando que o caçador se mostrava disposto a ouvi-lo, decidiu-se a declarar:
 - Estou completamente só neste local. E, se vagueio desta forma, através da pampa, como se fôsse uma fera acossada, é por ter sido acusado dum crime que não cometi...
 - Um crime que não cometeu?...
O mais profundo espanto se lia no rosto do desconhecido. Aquelas palavras intrigaram-no no mais alto grau. Como visse que o rapaz hesitava em falar, pegou-lhe de novo na mão.
 - Vamos, amigo - disse. - Confie em mim sem receio. Não tenho a menor intenção de traí-lo, tanto mais que nunca poderei esquecer a sagrada dívida contraída para consigo.
O domador compreendeu que podia ter a máxima confiança no seu companheiro; pondo de parte quaisquer reservas, e contente por falar, declarou:
 - Sou Perez Mariposo...
 - Perez Mariposo, que consideram responsável pela morte de Gil Ribeira? - exclamou o ferido.
 - O próprio - confirmou o rapaz, esboçando um triste sorriso. - Verifico, pelas palavras que pronunciou, estar feita a minha reputação... Consideram-me um criminoso, com a cabeça posta a prémio... Nessas condições, compreende fàcilmente porque procurei refúgio nestas paragens desertas.
Longo silêncio se seguiu. Apesar da confissão feita pelo gaúcho, a mão do caçador não abandonara a dêle. Por fim, rompendo a pausa, o ferido declarou:
 - Que o senhor seja êsse Perez Mariposo, de quem tanto se tem falado, em San Luís, é coisa que não me custa acreditar; mas recuso-me terminantemente a crer que o senhor seja um assassino!
 - Obrigado, muito obrigado, caballero - respondeu o domador. Se soubesse quanto lhe fico reconhecido por essas palavras... Pelo que possa haver de mais sagrado, juro-lhe não ter morto o estanciero!
Com um gesto, o desconhecido deu a entender a Perez não necessitar de mais testemunhos para se persuadir. Aquela fisionomia franca impunha-se; e, compreendendo que o rapaz devia estar ansioso por tomar conhecimento das notícias que lhe diziam respeito, contou-lhe:
 - Acredita-se, firmemente, em San Luis, na sua culpabilidade e foi prometido um prémio de mil pêsos a quem o entregasse, vivo ou morto, nas mãos dos vigilantes. Fizeram pesquisas, e creio que elas estiveram prestes a dar resultado, pois o seu cavalo caiu em poder de Yago, o lanzador... Há cêrca de oito dias, fui à cidade e notei que muita gente se admirava de o senhor não ter sido prêso ainda. Outros pretendiam que, sem recursos nem armas, devia infalivelmente ter sucumbido a algum ataque dos aguaras. Isso não impede que o seu retrato esteja afixado nas diversas locandas de San Luís e as conversações continuem a versar o seu desaparecimento.
Ouvindo o companheiro aludir às locandas, Perez não pôde evitar um estremecimento. Desejaria imenso preguntar ao seu interlocutor se tinha ido ao estabelecimento de Juan Balermo, mas depressa compreendeu não ser conveniente revelar o interêsse que sentia por Conchita.
-Elucidei-o àcêrca da situação - concluiu o caçador - e asseguro-lhe que, se não me tivesse revelado a sua identidade, não o teria reconhecido, com essa barba e êsses cabelos crescidos. Todavia, o retrato de Perez Mariposo é-me bastante familiar, como, de resto, o é de todos os habitantes da região, por vê-lo afixado pelas paredes... Em qualquer caso, interesso-me por si, amigo. Se posso fazer alguma coisa para lhe ser útil, não hesite em pedir-ma. Ramón Cohatéguy orgulhar-se-á sempre de ser seu amigo.
 - Agradeço-lhe, caballero - respondeu o domador. - Por agora, tenho uma fome de lobo, e verifiquei, ao mexer nos seus alforges, à procura do necesssário para lhe fazer o tratamento, que trouxe consigo algumas provisões... Obsequiar-me-á muito, se me convidar a partilhá-las consigo... Começo a fartar-me extraordinàriamente de ovos de nandu e assado de vizcacha...
 - Sem a menor hesitação! - exclamou o caçador. - Considere-se convidado... De resto, tôdas estas comoções abriram-me extraordináriamente o apetite. A cabeça doi-me muito menos... Dentro em breve, espero poder montar de novo.
 - Enquanto esperamos, tratarei do jantar - disse Perez, levantando-se e dirigindo-se para o cavalo, que, desta vez, o deixou aproximar sem o mínimo receio. O domador pôde procurar à vontade nos alforges, e em breve voltou, trazendo alguns pedaços de carne sêca, brôas de milho e mate. Em poucos minutos, reuniu lenha sêca e preparou uma fogueira; entretanto o companheiro repousava, abrigado dos raios ardentes do Sol. Meia hora depois, comiam e bebiam ambos, com belo apetite. Ramón Cohatéguy fez as honras ao repasto, por forma que ninguém diria ter êle escapado pouco antes de um desastre de tal gravidade. E os pedaços de carne fumada pareceram ao domador o mais delicioso dos manjares.
Enquanto o rapaz assim se regalava, o companheiro olhava-o em silêncio. Por fim, ao deitar-lhe um copo de mate ainda a ferver, disse:
 - O senhor não pode permanecer mais tempo na pampa, como se fôsse um pária. Permite-me fazer-lhe uma proposta?
Vendo que Perez o escutava, sem compreender, prosseguiu:
 - Meu pai possui um rancho, a uns trinta quilómetros daqui e a uma dezena de léguas de San Luís... A reputação que o senhor tem, como domador, não nos é desconhecida; temos alguns cavalos selvagens. Gostaria de entrar, por algum tempo, para o nosso serviço? Há muito que procuramos um auxiliar corajoso; estou persuadido de que nos satisfará plenamente.
O oferecimento era tentador. Não só lhe permitia deixar aquela existência selvagem, como o aproximaria de San Luís. Talvez, ao mesmo tempo que exercia a sua profissão, conseguisse resolver o enigma que pairava sôbre a morte do estanciero, libertando-se da acusação. E, além disso, teria decerto algum ensejo para voltar a ver Conchita.
Todavia, voltando-se para o seu interlocutor, objectou:
 - Esquece, amigo, que os meus sinais estão espalhados por tôda a parte; acolhendo um homem considerado criminoso, pode ser tomado como cúmplice?...
 - Que importa?! - respondeu Ramón Cohatéguy. - E o senhor hesitou, quando correu a socorrer-me?... Tranqüilize-se. Ninguém o reconhecerá. Mudou muito. Dar-lhe-emos outro nome, que afaste as suspeitas.
Apesar de tudo, o domador parecia relutante.
 - Deixe-se tentar - continuou o caçador. - Não se esqueça de que encontrou um amigo fiel, capaz de empregar todos os meios para lhe permitir libertar-se da terrível acusação que pesa sôbre o senhor.
O rapaz compreendeu não dever hesitar por mais tempo; aceitou o convite. A esperança enchia-lhe o coração. Até ali, além de Conchita, não tinha ninguém que pudesse apoiá-lo; agora, a idéia de dispôr de um amigo enchia-o de coragem e levava-o a tudo arriscar. Ah! Que enorme desejo tinha de obter implacável desforra do miserável que assim o deixara ser perseguido e utilizara o seu revólver, afim de atirar as suspeitas para cima dêle! E, além do mais, poderia encontrar e reapoderar-se do seu fiel Ardiente...
A tarde decorreu, sem que pensassem em mudar de acampamento. O estado do ferido exigia, com efeito, algum repouso. O tempo estava magnífico e os pássaros voejavam e cantavam pelos chanars visinhos.
Perez sentara-se junto do companheiro e contara-lhe pormenorizadamente os acontecimentos que se tinham desenrolado desde o seu encontro com o capataz, na pampa. Ramón Cohatéguy escutou, sem a menor interrupção, a narrativa daquelas trágicas peripécias, admirando a audácia de que o seu interlocutor dera provas, para escapar aos implacáveis perseguidores.
Quando o fugitivo concluiu, tratou de dar-lhe, em troca, algumas explicações.
 - Meu pai, Paulo Cohatéguy - disse - é um basco-francês que veio para a Argentina há cêrca de quarenta anos, para se dedicar à criação de gado. Possui actualmente um rancho bastante vasto e dispõe de alguns vaqueiros e peónes... Infelizmente, não conseguiu ainda encontrar um homem suficientemente enérgico para defender os limites das suas propriedades, das depredações incessantes de um vizinho poderoso. Nós ambos não chegamos para assegurar o policiamento de um território tão vasto. Equivale isto a dizer que o seu concurso será bem acolhido.
 - Pode contar absolutamente com êle - replicou com ardor o interpelado. - Sejam quais forem os vizinhos que lhes causem aborrecimentos, encarrego-me de metê-los na ordem.
 - Tanto mais - prosseguiu Ramón - que, ao secundar-nos, pode talvez tratar de outro negócio que o interessa mais directamente...
 - Que quere dizer? - interrompeu o domador, intrigado.
 - Outro que não fôsse o senhor ficaria admirado de eu, há pouco, me mostrar tão bem informado, quanto à acusação que lhe é feita. A sua permanência longe dos centros habitados levou-o a não estranhar o facto, que lhe pareceu natural... Afastados, como estamos, de San Luís, poderíamos muito bem, no rancho, saber da morte do estanciero, sem lhe ligar mais importância do que a qualquer outro incidente vulgar. Contudo, ninguém se ocupou com maior interêsse dos dramáticos acontecimentos que então se desenrolaram, e aos quais acaba de aludir... Vai compreender a razão. O vizinho sem escrúpulos de quem lhe falei era Gil Ribeira...
 - Gil Ribeira! - exclamou Perez Mariposo. - Mas então, agora...
 - Agora - concluiu o filho do ranchero, abanando tristemente a cabeça - tudo vai de mal a pior, desde que o sucessor de Ribeira, o seu antigo capataz Marco Palavez, se instalou como dono nas propriedades...

CAPÍTULO XV
O rancho de Paulo Cohatéguy
 - MARCO Palavez! - exclamou o domador, estupefacto com aquela revelação. - O capataz comprou então o domínio do estanciero?
 - Não teve necessidade disso - explicou Ramón Cohatéguy. - Herdou-o, simplesmente, após a morte de Gil Ribeira. Êste redigira um testamento pelo qual lhe deixava tudo quanto possuía. Chegou a pensar-se que mudaria de opinião, pois enamorara-se de Conchita Balermo, a filha do dono da locanda La Noche; mas, como ela lhe rejeitasse as propostas, Ribeira não modificou as suas disposições. Isso não impediu que Marco Palavez se visse em risco de perder aquela imensa fortuna, e decerto deu um grande suspiro de alívio, quando o patrão morreu, e bendisse o assassino - supondo que o não conheça... Prestou-lhe um grande serviço!
Perez ficara silencioso. As revelações do filho do ranchero rasgavam-lhe novos horizontes...
Gil Ribeira... o capataz... Conchita! Três entes intimamente ligados no drama de que êle fôra o herói!... Durante semanas, permanecera longe dos homens, e só agora obtinha aqueles esclarecimentos. Até então, debalde se interrogara sôbre quem poderia ter interêsse em desfazer-se do estanciero, visto êste nem sequer ter sido roubado, após a agressão que o vitimara. As indicações prestadas por Ramón Cohatéguy permitiam-lhe olhar os acontecimentos à luz de uma nova hipótese. Quási apostava agora que Marco Palavez se interessara poderosamente na morte do patrão, pois a insistência dêste junto de Conchita pusera-lhe a herança em perigo, O capatar decerto não desejava que o criador de gado se casasse. O facto da filha de Juan Balermo opôr recusa terminante àquele pretendente demasiado idoso e pouco simpático dera-lhe certo alívio, mas não afastara inteiramente o perigo, que poderia ressurgir de um momento para o outro... As senoritas eram numerosas, em San Luís, e outra qualquer poderia mostrar-se muito menos difícil do que a gentil dançarina e aceitar os oferecimentos de Gil Ribeira, seduzidas pela fortuna e pela situação que dessa forma conquistariam.
No espírito do fugitivo, fazia-se pouco a pouco a luz. A conduta de Marco Palavez parecia-lhe cada vez mais estranha. O facto de ser êle o único beneficiado com a morte do estanciero dava-lhe que pensar. Contudo, não levou mais longe a sua conversa com o ferido. Mais do que nunca, estava decidido a aceitar o cargo de domador, no rancho de Paulo Cohatéguy. A proximidade da estância permitir-lhe-ia, com certeza, esclarecer uma situação até agora extremamente confusa e tirar justa desforra do assassino, que o deixara ser acusado e decerto conhecia o herdeiro de Gil Ribeira.
Quando a noite chegou, os dois companheiros enrolaram-se nas mantas e dispuseram-se a gosar um repouso bem ambicionado. Uma grande fogueira protegia-os de algum eventual ataque dos aguaras. Em breve, a respiração regular do caçador indicou ao companheiro que êle mergulhara em profundo sono.
Perez, porém, esteve muito tempo sem fechar os olhos. Tumultuosos pensamentos lhe assaltavam o espírito. Recordava os incidentes da noite trágica. A figura graciosa de Conchita sucedia à fisionomia inquietante do capataz. Parecia-lhe agora possível que, enquanto o baile decorria e êle se encontrava privado das suas armas, a enigmática personagem teria conseguido apoderar-se do revólver, com o secreto intuito de responsabilizá-lo, mais tarde, pelo crime. Além disso, fôra Marco quem, à saída, lhe dera a carabina e o coldre... Ainda estonteado pela presença da filha de Juan Balermo, não verificara se o Colt se encontrava no seu lugar.
"Fui bem pouco esperto" - murmurava de si para si, cerrando os punhos. E bendizia o acaso que lhe deparara Ramón Cohatéguy. Prometia esclarecer o mistério da morte de Gil Ribeira; as informações acabadas de obter indicavam-lhe uma pista, e estava decidido a segui-la até ao fim. Desafiaria, se fôsse preciso, todos os inimigos, por mais numerosos que fôssem, e faria triunfar a verdade ou sucumbiria na luta!
Os' uivos longínquos dos lobos não o arrancaram aos seus pensamentos. A noite ia muito adeantada quando adormeceu, vencido pela fadiga.
Ramón foi o primeiro a acordar. A fogueira extinguia-se lentamente e, na linha do horizonte, o Sol surgia, iluminando a pampa. A pequena distância, o cavalo pastava tranqüilamente. Erguendo-se devagar, o filho do ranchero distendeu os membros entorpecidos. Sentia a cabeça ainda pesada, mas o ferimento já não o fazia sofrer. Conseguiu levantar-se e dar alguns passos.
 - Olá, amigo! Isso parece estar cada vez melhor.
O domador acabava de acordar e verificava com satisfação os progressos feitos pelo seu companheiro.
 - Dentro em breve nos poremos a caminho - respondeu o caçador. - Meus pais devem estar inquietos com a minha ausência; não devo prolongá-la. Precisamos percorrer uns trinta quilómetros e devemos chegar, custe o que custar, antes do meio dia.
Os dois homens comeram uma refeição frugal, composta de tasajo, mate e broas de milho. Meia hora depois, estavam prontos a partir. O cavalo foi cuidadosamente selado e o ferido montou, saltando o domador para a garupa.
 - Adelante, Infierno! - ordenou Ramón.
O fogoso animal lançou-se através da pampa. Constrangido a vagabundear a pé, há muitas semanas, Perez não se recusara a utilizar o seu meio de locomoção favorito. Sentia-se reviver, respirando a plenos pulmões o ar fresco da manhã. O orvalho acumulado na erva evaporava-se lentamente e ligeira névoa se elevava da planície.
Algumas lebres saltavam dos chanars e fugiam a toda a velocidade, diante do cavalo. Um veado, surpreendido à beira de uma lagoa, estacou durante alguns segundos, admirado, e depois disparou como se fôsse uma flecha.
Os dois homens, porém, não pensavam em caçar. O cavalo ia bastante carregado com a dupla carga, e não era de aconselhar impôr-lhe novo fardo, sem qualquer utilidade. Além disso, Ramón não desejava que se repetisse o incidente da véspera. O terreno estava crivado de tocas de vizcachas, o que exigia contínua vigilância.
Nem um nem o outro pronunciavam palavra. A' sua vista, desenrolava-se o habitual cenário: chanars, bosques mais ou menos espessos, lagoas e pântanos, pela beira dos quais era por vezes perigoso aventurar-se, devido à falta de consistência do terreno. A' direita, na linha do horizonte, as salinas, que o fugitivo atravessara, reflectiam os raios solares. Parecia um imenso tapete de neve, cobrindo aquela parte da pampa.
A cavalgada prosseguiu, durante cêrca de três horas, através de uma paisagem monótona e sem obstáculos. O cavalo, apesar da carga, manteve o trote regular, até que Ramón Cohatéguy se ergueu nos estribos e, estendendo o braço direito, gritou:
 - Estamos a chegar, amigo!
Perez, mergulhado em profunda meditação, levantou a cabeça. A' volta, disseminados pela campina, distinguiu rebanhos de vacas e touros. Alguns vaqueiros vagabundeavam por ali, vigiando os animais, e, fazendo estalar os rebenques, tratavam de evitar que se tresmalhassem. Nalguns pontos, a terra estava revolvida. Servindo-se de um madeiro recurvo, armado de uma ponta de ferro e prêso à sela de um cavalo, um gaúcho lavrava, ou, antes, esgaravatava a terra, para semear milho.
O domador, habituado a ver os habitantes da pampa cultivar o solo com aqueles instrumentos primitivos, não tinha de que se admirar. Enquanto o companheiro respondia às saudações dos homens, olhava em frente, procurando o rancho. Não tardou que o descobrisse, junto a um bosquezito que se erguia a um quilómetro de distância, no meio da planície. Em poucos minutos, chegaram junto dêle.
A habitação, solidamente construída, desafiava os incessantes ataques do pampeiro. Próximo, ficavam três currais, onde se agrupavam os cavalos. No meio do páteo, fôra aberto um pôço que fornecia a água para os usos domésticos. à volta, erguiam-se diversos barracões, de construção mais rudimentar do que a casa, destinados a abrigar os servidores e os vaqueiros, e a guardar as alfaias agrícolas, tão rústicas como a charrua já entrevista. Verificava-se com facilidade que a cultura mecânica ainda não penetrara na região.
Apenas Ramón Cohatéguy e o companheiro entraram no páteo, dois enormes cãis precipitaram-se para êles, ladrando. O cavalo estava decerto acostumado àquelas manifestações, porque não deu mostras de se assustar com tal intervenção.
 - Fido! Bela! Quietos! - ordenou o filho do ranchero, saltando em terra.
Todavia, se os cãis parecia experimentarem viva alegria, com o aparecimento do dono, não deixaram de rosnar desconfiados, ao verem o domador. Foi preciso que Ramón os repreendesse, para se resolverem a acolher o desconhecido com mais amabilidade...
Enquanto o companheiro confiava o cavalo a um peón que acorrera, Perez aproximou-se da habitação. Dera apenas alguns passos, quando viu na frente uma mulher. Não lhe foi difícil reconhecer nela a mãe de Ramón, tanto as suas feições eram semelhantes. Apesar dos seus cinqüenta anos, era ainda bela e, embora os cabelos apresentassem já muitos fios brancos, conservava certo ar de senhoril distinção. O regresso do cavaleiro causava-lhe evidente alegria. Contudo, parou, admirada, ao ver o desconhecido.
Descobrindo-se e inclinando-se respeitosamente, o domador pronunciou as tradicionais palavras de saüdação, na pampa:
 - Avé, Maria puríssima...
 - Sem pecado concebida - respondeu a mulher, cujo olhar denotava grande estranheza. Ao avistar a ligadura que ornava a fronte do filho, exclamou, aflita, correndo para êle:
 - Santa Virgem! Que te aconteceu? Estás ferido?
 - Tranqüilize-se, mãe, é coisa sem importância - respondeu o rapaz, abraçando-a.
 - Se soubesses quanto estávamos inquietos, teu pai e eu, por tua causa!... Esperávamos-te ontem, à noite, para jantar... Mandámos alguns peones à tua procura, mas sem resultado.
 - Os receios eram infundados, porque tive a sorte de surgir alguém que me tirou de embaraços... - prosseguiu Ramón, apontando o companheiro. - Sem êle, êste dói-dói sem importância teria motivado uma insolação... e, nesse caso, duvido de que tornassem a ver-me.
 - Seja benvindo, caballero - disse então a mãe de Ramón. - Não sei como agradecer-lhe! Peço-lhe que se considere sob o nosso tecto como em sua própria casa.
Nova personagem surgira entretanto no páteo. Alto, magro, barbeado, nariz adunco e olhos de um cinzento metálico, que exprimiam indomável energia, Paulo Cohatéguy aproximava-se, para inquirir do estado de seu filho, cuja cabeça entrapada lhe chamara a atenção. Em poucas palavras, o rapaz explicou a sua aventura e a intervenção do domador, referindo também o oferecimento que lhe fizera.
 - Não era necessário dar-lhe trabalho para o acolher em nossa casa, amigo - declarou imediatamente o ranchero, apertando vigorosamente a mão de Perez. - Seja nosso hóspede todo o tempo que quizer.
 - Mas, pai - interrompeu Ramón - êste caballero tem razões particulares para desejar um emprêgo em nossa casa... Explicá-las-á dentro em pouco. A sua presença como hóspede poderia despertar certas suspeitas...
O basco franziu ligeiramente as sobrancelhas, sem saber ao certo o que o filho queria dizer. Acrescentou, apenas:
 - Como queira, amigo. Agora, visto a corrida que fizeram lhes ter com certeza aberto o apetite, vamos para a mesa. O nosso modesto almoço espera-o... Queira dar-nos a honra...
Foi com vivo prazer que o fugitivo aceitou o convite. Instantes depois, entrava na vasta sala do rancho. Duas criadas dispunham os talheres e colocavam os bancos junto de uma enorme mesa, pois, segundo os hábitos tradicionais da pampa, os peones e os vaqueiros comiam com os amos.
A simplicidade quási patriarcal que reinava na habitação não causava estranheza a Perez, a ela acostumado. Os auxiliares do ranchero foram surgindo uns após outros. A sala era de um asseio meticuloso. Grandes candeeiros de petróleo pendiam do tecto, onde estavam dispostos, em filas paralelas, molhos de cebolas e de espigas de milho. Algumas imagens piedosas ornavam as paredes, ao lado de vários retratos emoldurados dos mais notáveis chefes do Exército francês da Grande Guerra. Verificava-se, desta forma, que o dono da casa conservava, na Argentina, o fervoroso culto pelas gloriosas figuras do seu país natal.
No decorrer da sua aventurosa carreira, o domador encontrara muitas vezes compatriotas do seu hospedeiro - êsses bascos, trabalhadores infatigáveis, que são bastante numerosos nos Estados da América do Sul. Admirava a sua tenacidade e coragem. Simples agricultores ou tornados, à fôrça de perseverança, estancieros, rancheros ou chefes de explorações, trabalhavam sempre com entusiasmo e fé, representando condignamente a sua pátria, naquelas regiões longínquas.
A um sinal de Paul Cohatéguy, todos se sentaram à mesa. Um enorme prato de cebolas e batatas foi acolhido com entusiasmo, mas foi sobretudo o assado que obteve o aplauso de Perez. Privado, há muito tempo, de tal comida, o fugitivo devorou literalmente os apetitosos bocados que lhe serviram.
Durante o almôço, o ranchero e os convivas falaram longamente dos trabalhos em curso. As notícias trazidas por dois vaqueiros eram francamente más. Uma vez mais, o gado da estância vizinha viera beber aos bebedouros do rancho. Os fios de arame farpado que delimitavam as duas propriedades tinham sido cortados, e os homens de Marco Palavez haviam-se comportado como se se encontrassem em terra conquistada, ameaçando com as carabinas os peones que tentaram opôr-se à invasão.
 - Isto agrava-se, senor - disse um dos homens que assistira ao incidente. - Os nossos vizinhos parecem resolvidos a tentar tudo para desalojar-nos dos pontos mais férteis dêste domínio. Mostram uma audácia e uma impertinência que não manifestavam no tempo de Gil Ribeira.
Ao ouvir o nome do estanciero, o domador a custo reprimiu um estremecimento; quanto a Paulo Cohatéguy, cerrou raivosamente os punhos.
 - Não haverá uma lei que me proteja dêsse bandido? - resmungou. - Serei obrigado a defender os meus direitos com as armas na mão?...
 - A tática de Marco Palavez é fácil de compreender - declarou o vaqueiro que trouxera as notícias alarmantes. - Procura apoderar-se dos nossos bebedouros para o seu gado...
 - Para os obter, terá de passar por cima do meu corpo! - rugiu o ranchero, cada vez mais encolerizado. - Êsse miserável, que ainda há dias limpava as botas do amo, tornou-se, mercê de circunstâncias ainda bastante confusas, senhor e dono de um domínio vinte vezes maior do que o meu e quere desapossar-me das minhas terras, a mim, que há quarenta anos vivo nesta região!... Visto o alcaide de San Luís nada fazer, apesar das minhas queixas constantes, encarregar-me-ei eu próprio da defeza dos meus direitos!
As pupilas do basco brilhavam, ao falar assim, e Perez compreendeu que êle não estava disposto a brincar. No desejo de contemporizar, fôra até o extrêmo limite das concessões, mas era de prever que, desta vez, o primeiro incidente teria graves repercussões.
Dolores, a mãe de Ramón, quis intervir, para apaziguar o marido, mas o ranchero estava resolvido a empregar, para o futuro, os grandes meios, se o seu pouco escrupuloso vizinho lhe invadisse de novo o território. Nem conselhos de prudência de sua mulher, nem os argumentos de um vaqueiro, mais pacífico do que os outros, conseguiram alterar-lhe a determinação. Uma atmosfera de tempestade reinava na sala, quando o almôço terminou e os auxiliares se levantaram para regressar ao trabalho.

CAPÍTULO XVI
O domador assume as suas funções
O pessoal do rancho saiu e só ficaram à mesa o ranchero, sua mulher, Ramón e Perez. Compreendendo que podiam conversar tranqüilamente, Ramón inclinou-se para seu pai:
 - Diante de tôda esta gente, não convinha revelar a identidade do meu salvador - disse.
 - Agora, que estamos sozinhos, permita-me explicar-lhe as razões que tornam necessário êle entrar para o nosso serviço, a fim de ser considerado, para o futuro, nosso auxiliar e não um hóspede...
 - Tinha, na verdade, a intenção de interrogá-lo àcêrca dêsse desejo, amigo - declarou o ranchero, dirigindo-se a Perez. - Desculpe que primeiro tenha tratado dos meus negócios... Preferiria, confesso-lhe, considerá-lo um amigo e não um subordinado, mas, enfim, se o deseja... Se prestou atenção à conversa de há pouco, decerto já percebeu que a presença de um homem decidido não é para despresar, neste momento...
 - Verifiquei, com efeito, a situação ser bastante complicada - respondeu o domador - e agradeço-lhe a discreção de que deu provas, a meu respeito. Agora, posso revelar-lhe a identidade da pessoa que o senhor acaba de sentar à sua mesa... Sou Perez Mariposo, o domador de cavalos selvagens!...
Quando o rapaz pronunciou estas palavras, os olhos do ranchero e de sua mulher abriram-se desmesuradamente. O seu espanto foi profundo. Por alguns segundos, olharam-se, em silêncio. Depois, Paulo Cohatéguy exclamou:
 - Como?! O senhor é o homem a quem acusam de ter morto o estanciero Gil Ribeira?
 - Sou, com efeito, êsse homem - respondeu o fugitivo com voz tranqüila - e fico-lhe muito reconhecido por não haver dito, simplesmente, que eu era o assassino de Gil Ribeira... Isso prova-me que conserva algumas dúvidas a respeito da minha pretendida culpabilidade.
 - Não precisa de agradecer-me, amigo - redarguiu o basco, recuperando o sangue frio. - Primeiro, estou persuadido de que o homem que salvou o meu filho não pode ser um criminoso ; depois, há muito penso que os vigilantes se enganaram, ao culpar do crime um inimigo de ocasião, que via o estanciero pela primeira vez, e deviam antes ter procurado o assassino entre os auxiliares dêste, alguns dos quais podiam ter todo o interêsse em provocar o desaparecimento da vítima. Que a polícia se esforce por demonstrar o seu zêlo, perseguindo-o e pondo-lhe a cabeça a prémio, é coisa difícil de compreender... Conhecia bem o morto e o seu capataz. Sei do que um e o outro eram capazes. Perdi, com a morte de Gil Ribeira, um vizinho brutal e pouco tratável, mas que respeitava ao menos os meus direitos. Não sucede o mesmo com o sucessor; pretende tornar-se o dono de tôda a região, espoliando os rancheros menos poderosos, que rodeiam os seus domínios. De servil que era, êsse pouco simpático indivíduo tornou-se, após a morte do amo, arrogante e tirânico... Mas isto afasta-nos da questão...
-Engana-se - atalhou o domador. - Isso interessa-me prodigiosamente; abre-nos novas perspectivas, a respeito das circunstâncias trágicas que acompanharam a morte de Gil Ribeira.
E Perez Mariposo explicou os incidentes desenrolados na locanda La Noche, na noite do crime. Enquanto o rapaz fazia a narrativa, Paulo Cohatéguy, seguindo-a atento, meneava a cabeça. Os pormenores fornecidos pelo seu interlocutor despertavam-lhe enorme interêsse. Quando êle acabou, disse, após alguns instantes de reflexão:
 - Benigno Camorral é um burro, e pregunto a mim mesmo como é que os habitantes de San Luís confiam nele. Admito e estou inteiramente convencido de que o senhor não atacou covardemente o estanciero. Demais, reflectindo bem, verificamos que alguém tinha o mais alto interêsse na desaparição de Gil Ribeira, e êsse alguém era Marco Palavez... Uma única coisa não sei explicar: é o senhor não haver suspeitado, no momento de o capataz lhe entregar o coldre, que o revólver tinha sido tirado. Sem dúvida, o homem aproveitou o ensejo para subtrair-lhe a arma... Com um pouco de atenção, o senhor teria dado pela proeza e evitado os incómodos que daí lhe advieram.
Perez não respondeu. Compreendia serem fundamentadas as palavras do seu hospedeiro, mas não desejava, de forma alguma, informá-lo das frases trocadas com Conchita e da impressão que a jovem nele produzira. Fôra por êsse motivo que não lhe passara pelo pensamento verificar se o revólver se encontrava no seu lugar, negligência causadora de todos os seus males.
 - Não é menos verdadeiro - prosseguiu o basco, a quem o silêncio do rapaz intrigava - que Marco Palavez soube tirar tôdas as vantagens da situação, e atirar as suspeitas para cima de outro. Por agora, é inatacável, visto o senhor ser unânimemente considerado o assassino... Para o caso se esclarecer, serão precisas provas iniludíveis. Adquiri-las é uma empreza bastante difícil.
 - É justamente por êsse motivo que lhe peço admissão ao seu serviço. O senhor tem necessidade de um auxiliar. Ocupando êsse lugar, farei que os seus direitos sejam respeitados; ao mesmo tempo, não descansarei enquanto não descobrir e desmascarar o verdadeiro assassino de Gil Ribeira... Que êle seja Marco Palavez ou qualquer outro, não importa! Pagará caro a sua habilidade, e saberei pedir-lhe contas dos sofrimentos passados, por causa dêle. Nenhum local seria mais propício do que êste rancho, para eu levar a cabo a minha empreza. Poderei vigiar de perto os manejos do seu incómodo vizinho, Por mais numerosas que sejam as dificuldades, estou convencido de triunfar. Levarei talvez muito tempo, mas a vitória será minha!
O ranchero, a mulher e o filho olhavam com admiração o seu interlocutor, que as piores atribulações não tinham logrado abater. Com as pupilas brilhantes e as maxilas cerradas, parecia disposto a esmagar nas suas mãos robustas os miseráveis que o tinham convertido num pária...
Silêncio impressionante se estabeleceu na vasta sala. Duas criadas entraram, para levantar a mesa, mas Dolores Cohatéguy fez-lhes sinal para os deixarem conversar mais algum tempo. Então, estendendo a mão ao domador, o basco disse, com voz firme:
 - Pode contar connosco, como fiéis aliados. Teremos a maior satisfação, quando o virmos  liberto da terrível acusação que pesa sôbre o senhor! A partir dêste momento, figurará, aos olhos de todos, como fazendo parte dos nossos auxiliares. Entretanto, continuará a ser, para nós, um amigo fiel.
 - Como agradecer-lhe tudo quanto faz por mim?! - exclamou Perez, muito comovido.
 - Nada de palavras inúteis, amigo! - interrompeu o ranchero. - Somos seus devedores... Mas pensemos em coisas práticas. Evidentemente, não pode usar, por enquanto, o seu nome. Chamar-se-á Eugénio Palermo e terá o cargo de domador.
 - Entendido. Serei Eugénio Palermo! - respondeu o fugitivo, sorrindo. - E faço votos por não vir longe o dia em que possam pronunciar bem alto o meu verdadeiro nome, sem qualquer receio.
 - É êsse igualmente o nosso mais sincero desejo - declarou Dolores.
 - E pode contar em absoluto comigo, para secundá-lo na sua empreza - concluiu Ramón.
Sem esperar mais, Perez pediu a Paulo Cohatéguy que lhe mostrasse o seu domínio. O ranchero aquiesceu, e, pouco tempo depois, montados em bons cavalos, os dois homens encaminharam-se para a pampa. A princípio, atravessaram terras cultivadas de trigo e milho; mas o território do rancho era sobretudo destinado à criação de gado, e a vista de algumas centenas de animais revelou ao domador que a propriedade do basco tinha quási a importância de uma estância, tanto pela extensão como pelo número de rebanhos que encerrava.
Após meia hora da cavalgada, chegaram às demarcações que separavam as terras de Cohatéguy das de Marco Palavez.
 - Eis os famosos bebedouros - disse o ranchero, designando ao companheiro duas lagoas bastante vastas, a menos de um quilómetro dos limites das terras.
A' volta, o solo estava espezinhado; o arame farpado que interdizia o acesso à propriedade fôra cortado e alguns postes arrancados. Não era difícil verificar tudo aquilo ter sido feito intencionalmente. Por ordem do estanciero, os vaqueiros tinham forçado a entrada e violado o território do vizinho, para levar o gado aos bebedouros.
Apeando-se, Perez e o companheiro trataram de reparar o melhor possível os estragos causados na vedação.
 - É a décima vez, pelo menos, que isto se dá, desde que êsse maldito capataz se apossou da herança de Gil Ribeira! - resmungou o basco. - Os meus avisos de nada têm servido...
Uma rápida inspecção revelou ao domador o interêsse que, para Marco Palavez, tinha a propriedade do vizinho. As terras do rancho prolongavam-se, em ângulo, através do domínio do estanciero, que, fora isso, apresentava grande homogeneidade.
Semelhante obstáculo ao desenvolvimento da sua exploração causava decerto enorme furor ao antigo capataz. Não contente com ter-se tornado dono de uma das mais ricas propriedades da pampa, procurava desembaraçar-se, a todo o custo, daquele vizinho incómodo, embora êste se tivesse estabelecido no local muito antes de Gil Ribeira. Sabendo possuir a fôrça e o número, o herdeiro do criador de gado não se embaraçava em escrúpulos. Visto o outro se recusar a ceder aquela parte do domínio, não obstante os oferecimentos vantajosos que lhe fizera, apossava-se êle mesmo dos bebedouros que considerava necessários aos seus rebanhos e conduzia-os ali quando desejava.
 - Que posso fazer, com um punhado de homens, contra o verdadeiro exército de gaúchos de que êsse miserável dispõe? - exclamou Paulo Cohatéguy, desolado, para o companheiro.
 - Esteja tranqüilo. O seu vizinho nem sempre gozará de impunidade nas suas depredações
- respondeu o domador. - Encarrego-me, tarde ou cedo, de obrigá-lo à renúncia a êsses abusos...
Desde que se sentia de novo sôbre uma sela, Perez Mariposo estava pronto a afrontar as piores dificuldades. O seu hospedeiro fizera-lhe presente de uma carabina, um revólver, lazo e bolas. Assim armado, considerava-se capaz de se medir com os piores adversários. Com a maior atenção, tomava nota das informações prestadas pelo ranchero, e, ao mesmo tempo, avaliava o conjunto da propriedade. Duas horas lhe bastaram para ficar conhecendo o domínio do basco, como se o percorresse há muito tempo.
Quando os dois homens voltaram para a habitação, reinava grande efervescência junto de um dos currais. Os peones e os vaqueiros rodeavam um camarada que, com os cabelos em desordem e o vestuário coberto de poeira, parecia achar-se em bastante mau estado.
 - Henrique tentou montar o pôtro negro - explicou um dos servidores, quando o basco se aproximou.
Erguendo-se nos estribos, Perez tentou avistar o animal a que o homem aludia. Era um exemplar soberbo; com as crinas ao vento, o pêlo escuro reluzente aos raios do Sol, galopava à volta da paliçada que o retinha prisioneiro.
 - Que magnífico corredor! - exclamou, voltando-se para Paulo Cohatéguy.
 - Dois dos meus homens conseguiram capturá-lo, há mais de quinze dias, na pampa - explicou o ranchero - mas nenhum dêles logrou, até agora, montá-lo. Dir-se-ia que êsse pôtro tem pacto com o diabo. Creio ser difícil fazer dêle alguma coisa.
Ao ouvir estas palavras, o domador animou-se e um clarão lhe brilhou nas pupilas. Esquecia, por agora, os trágicos acontecimentos das últimas semanas, para só dar ouvidos ao seu instinto profissional. Sem dizer palavra, saltou da sela e, afastando os peones, dirigiu-se para o curral.
 - Que vai fazer, amigo? - interrogou Cohatéguy. - Não pense em vencer êsse demónio! Fá-lo-á em pedaços...
 - Visto ter sido contratado como domador
- respondeu o rapaz - cumpre-me agir em tais circunstâncias. Vou provar-lhe ainda não ter esquecido o meu ofício!
Perez fez sinal a quatro vaqueiros para que o seguissem e penetrou no curral. Ao avistar o recém-chegado, o cavalo soltou um relincho de desafio. Estava certo, sem dúvida, de desembaraçar-se dêle como o fizera de todos os audaciosos que tinham pretendido dominá-lo.
Os lazos sibilaram, atirados pelos auxiliares de Paulo Cohatéguy. O pôtro, já por várias vezes reduzido à impotência, por aquele processo, tentou escapar-se; mas não foi suficientemente ágil para consegui-lo. Em poucos segundos, sentiu as quatro pernas prêsas pelas correias de couro, puxadas em sentidos contrários e teve que deitar-se no chão.
Os peones e os vaqueiros que não tomavam parte na operação assistiam com ansiedade a êstes preparativos. O ranchero, direito na sela, sentia algumas dúvidas àcêrca das possibilidades de Perez. Conhecia a reputação do domador, mas, desde que se instalara na pampa, jàmais encontrara um cavalo tão selvagem.
Parecia, contudo, que a tremenda empreza não intimidava o rapaz. Tranqüilamente, calçava as altas botas de couro cru, armadas de esporas sem roseta, com mais de dez centímetros de comprimento. Enquanto assim se preparava, os vaqueiros imobilizavam o animal e conseguiam pôr-lhe a cabeçada; depois, deixaram que se levantasse e, não sem dificuldade, prenderam-lhe sob o ventre uma larga cilha.
O cavalo multiplicava os esforços para se escapar; mas os homens de Paulo Cohatéguy seguravam-no com mão firme, enquanto procediam à colocação de largas tiras de couro, de ambos os lados da sela.
 - Está pronto? - preguntou o domador, com voz firme.
 - Si, senor! - responderam os auxiliares.
 - Vamos! - comandou Perez. - Abram a porta do curral!
Os peones obedeceram. Então, o rapaz ordenou aos vaqueiros que largassem o potro, e, com maravilhosa agilidade, cavalgou o selvático animal, enterrando as esporas nas duas tiras de couro para êsse efeito colocadas pelos auxiliares.
Então, aos olhos do basco e do seu pessoal, desenrolou-se uma cena impressionante. Dando um relincho de furor, o cavalo, sentindo soltarem-se os lazos que o sujeitavam, julgou-se livre. Não contara com o cavaleiro. Executando as mais fantásticas cabriolas, ora erguendo-se nas patas traseiras, ora nas da frente, tentou desembaraçar-se daquele fardo imprevisto; mas Perez, longe de seguir o exemplo dos que precedentemente tinham afrontado a cólera do animal, continuou firme na sela, sem parecer incomodar-se com as frenéticas sacudidelas.
O pôtro negro lembrava um animal diabólico; com o olhar em fogo, as narinas fumegantes, erguia-se, formando ângulo recto com o solo; depois, deixava-se cair bruscamente, e repetia a manobra sôbre as patas dianteiras, até encostar o nariz à terra, dando formidáveis parelhas de coices. Estupefactos, os espectadores esperavam, a cada instante, ver Perez ser atirado para longe. Semelhante a um centauro, o cavaleiro mantinha-se inabalável, e os seus punhos de aço dominavam o fogoso corcel.
No cúmulo do furor, o cavalo utilizava todos os artifícios possíveis para lhe fazer abandonar a partida, mas o rapaz evitava os saltos laterais bruscos, com que o animal procurava esmagá-lo contra a paliçada. A cada uma destas tentativas, respondia, imperturbável, com um movimento no sentido inverso, para restabelecer o equilíbrio. Semelhantes a uma tenaz, suas pernas cingiam os flancos do pôtro, cujo pêlo escuro começava a cobrir-se de espuma.
Entusiasmados pelas prodigiosas evoluções daquele cavaleiro que mal conheciam, mas cuja perícia começavam a admirar, os assistentes multiplicavam as manifestações, agitando no ar os largos chapéus, e êsses clamores enfureciam ainda mais o animal.
Por fim, compreendendo que tais manobras não lhe assegurariam a vitória, o nobre animal, depois de se ter imobilizado durante alguns instantes, partiu, em louca correria. Por três vezes, deu a volta ao curral; descobrindo que a porta estava aberta, largou em desvairado galope, pela pampa, levando o cavaleiro, sempre firme na sela.
O ranchero e os seus auxiliares viram o animal afastar-se. Em poucos minutos, desapareceu no horizonte. Ansiosos, interrogavam-se mudamente sôbre o fim provável daquela corrida espantosa. Receavam que o cavalo conseguisse, por fim, desembaraçar-se do domador.
Em breve, Paulo Cohatéguy soltou uma exclamação de triunfo. Na mesma direcção onde o rapaz e a sua montada haviam desaparecido pouco tempo antes, acabavam de avistá-los, regressando a galope. Em pouco tempo, atingiram de novo o curral; mas, desta vez, o pôtro, vencido, obedecia à vontade do cavaleiro. Reluzente de suor, escarvando o solo com furor, deixou-se prender nos lazos, enquanto o domador, sorridente, se apeava, tão tranqüilo como se acabasse de montar o seu fiel Ardiente. A vontade e a energia do homem tinham vencido a tenacidade do animal.

CAPÍTULO XVII
As ameaças de Marco Palavez
O pseudo-Eugénio Palermo depressa ganhou as simpatias e a admiração do pessoal do rancho. Maravilhados pela proeza que êle realizara, peones, gaúchos e vaqueiros não lhe pouparam manifestações e cumprimentos, felicitando o amo por haver contratado um tal domador.
Em pouco tempo, Perez tornou o feroz pôtro negro tão dócil como o mais manso cavalo do domínio. Após a demonstração do seu primeiro encontro, fê-lo jejuar durante vinte e quatro horas. Quando, no dia seguinte, lhe levaram uma dose de forragem, o animal, faminto, deixou que os tratadores se aproximassem e o domador pôde fàcilmente passar-lhe a mão pelo dôrso. Domesticá-lo completamente foi simples questão de tempo. Depois de o ter acostumado à sela, ensinou-o a parar instantâneamente, quando, em pleno galope, ouvisse o silvo de um lazo. Ramón Cohatéguy, que seguia interessado os progressos das lições, aplaudia sem reservas a habilidade do domador.
Yago, o lanzador, e o chefe dos vigilantes teriam séria dificuldade em reconhecer, no novo auxiliar do basco, o fugitivo que procuravam com tanto afinco. Perez mudara de vestuário; mas conservava a barba, que o desfigurava por completo. Todos os dias, seguia para o trabalho, como se não tivesse em mente qualquer outra preocupação.
Por várias vezes, dirigiu-se para os bebedouros, sôbre os quais exercia aturada vigilância; parecia, contudo, que o vizinho do ranchero se decidira a suspender os desacatos. Nenhum dos seus rebanhos voltara a transpor os limites da propriedade, e as vedações permaneciam no estado em que o domador as tinha reposto.
Isto não impedia Paulo Cohatéguy de continuar àlerta; pelo contrário, a trégua trazia-o desconfiado, e pressentia um ataque, quando menos fôsse esperado. Mas, desta vez, a paciência esgotara-se-lhe e estava resolvido a opôr-se enèrgicamente à invasão da sua propriedade.
Por seu lado, o domador começava a impacientar-se. Ardia em desejos de encontrar o antigo capataz e procurar, sem que êle o suspeitasse, uma pista susceptível de conduzi-lo ao culpado. Abstivera-se, todavia, de ir a San Luís, apesar do vivo desejo de tornar a ver Conchita e informá-la das suas aventuras.
O acaso não tardou a proporcionar-lhe um encontro com o seu companheiro de uma noite. Certa tarde, em que procedera, com alguns vaqueiros, à ferra de gado pertencente ao rancho, Perez, ao regressar a casa, avistou de súbito um cavaleiro que penetrara no páteo.
Erguendo-se nos estribos, o rapaz procurou reconhecer a visita, cuja figura não lhe era estranha. Ramón Cohatéguy, que se encontrava próximo, exclamou:
 - Olha! É o nosso bom amigo Marco Palavez!...
Tratava-se, com efeito, do antigo auxiliar de Gil Ribeira. Desde que herdara os domínios do estanciero, visitava, pela primeira vez, o vizinho.
Sem se preocupar com a aproximação do grupo de cavaleiros, o recém-vindo prendeu o cavalo à cancela do curral que lhe ficava mais próximo e dirigiu-se para a residência de Paulo Cohatéguy.
Aquela visita desconhecida não era de molde a agradar a Fido e a Bela. Os dois cãis, ao avistarem o homem, vestido de escuro, que atravessava o páteo, atiraram-se a êle, ladrando, e o antigo capataz, um tanto inquieto, começava a recear muito sèriamente que os fiéis guardas o fizessem em pedaços, quando surgiu o basco, no limiar da porta.
 - Quietos, amigos! - gritou aos animais.
Ao ouvirem a voz do dono, os molossos detiveram-se. Afastaram-se com manifesto pesar, mostrando os dentes, enquanto Marco Palavez saüdava o seu vizinho.
 - A que devo a honra da sua visita, senhor?
 - preguntou Paulo Cohatéguy, um tanto admirado.
 - É necessário entendermo-nos - respondeu o estanciero, sêcamente. - Não podemos continuar na situação em que nos encontramos, um e outro.
 - Tenho o mais vivo desejo de viver em boa harmonia com os meus vizinhos - respondeu o basco. - Se a sua visita pode contribuir para dissipar o equívoco que reina entre nós, ficarei deveras encantado...
O ranchero afastava-se polidamente para deixar passar o visitante, mas êste não parecia disposto a responder com palavras e modos igualmente cordeais. Com o olhar duro e as maxilas cerradas, mostrava-se mais resolvido a entabolar uma rude discussão do que a procurar um entendimento.
A convite do dono da casa, o antigo capataz sentou-se numa cadeira, na grande sala do rancho, deserta, naquele momento.
 - Poderemos conversar aqui à vontade - declarou Paulo Cohatéguy, ao cabo de alguns instantes, rompendo o incómodo silêncio que se estabelecera. - Confesso-lhe, senhor, que não me contraria trocar impressões consigo. Desde a trágica morte de Gil Ribeira, não tive ainda ocasião de discutir senão com os seus auxiliares, e tal facto não contribuiu para melhorar as nossas relações, antes as prejudicou. Há numerosas questões pendentes entre nós, e bendigo a resolução que o trouxe aqui.
Enquanto o basco se exprimia nestes termos, Marco Palavez tirara a cigarreira do bolso e oferecia, negligentemente, um cigarro ao seu interlocutor, tirando outro para si. Parecia concentrar-se, antes de falar, e lançara já para o tecto bom número de fumaças, quando se decidiu a abrir a bôca.
 - Tem razão! - declarou. - Chegou o momento de jogarmos jôgo franco. A actual situação não pode prolongar-se, sem acarretar graves prejuízos. É êste o motivo que me levou a não hesitar mais em visitá-lo... Contudo, dada a importância da conversa que vamos entabolar, desejaria que ninguém viesse interromper-nos e nenhum ouvido indiscreto surpreendesse as nossas palavras.
 - Pode estar tranqüilo a êsse respeito - respondeu o basco. - Ninguém virá importunar-nos.
Exprimindo-se assim, o ranchero não supunha que o diálogo com o visitante ia ter dois auditores atentos. Com efeito, Perez Mariposo e Ramón, apenas tinham descoberto a presença do estanciero, haviam confiado os cavalos à guarda dos vaqueiros e penetrado na habitação. O primeiro intento do domador era entrar também na sala, mas o companheiro, mais prudente, retivera-o.
 - Nada de despertar suspeitas a êsse indivíduo - disse-lhe ao ouvido. - É preferível procurarmos surpreender-lhe os intentos, sem êle nos ver. No celeiro, que fica justamente por cima da sala grande, encontraremos um observatório ideal, de onde nos será fácil averiguar o motivo que trouxe até aqui o antigo capataz...
Evitando produzir ruído que denunciasse a sua presença, os dois homens subiram a escada e entraram no celeiro, onde molhos de espigas de milho e de cebolas secavam, suspensos das traves do tecto. Sem se preocupar com o cenário que o rodeava, o domador ajoelhou, seguindo o exemplo do companheiro. Uma larga fenda entre duas tábuas permitia-lhes avistar o compartimento inferior. Depressa verificaram que o visitante e o basco se encontravam sentados um em frente do outro. Um murmúrio contínuo chegou até êles, indicando-lhes que a discussão estava entabolada. Estendendo-se no sobrado, conseguiram ouvir.
Nesse momento, falava Marco Palavez, com voz sêca, martelando bem as palavras e interrompendo-se de quando em quando, para aspirar longamente o cigarro.
 - Evidentemente - dizia êle - esta situação é insustentável. As minhas propriedades são tão vastas que, nalguns pontos, os animais não têm onde beber. Vejo-me obrigado a sustentar um pessoal excessivo, para os conduzir aos bebedouros. Semelhante estado de coisas é verdadeiramente paradoxal, quando penso que os meus touros e as minhas vacas encontrariam, a menos de um quilómetro do ponto onde estão, local apropriado para matarem a sêde...
As sobrancelhas de Paulo Cohatéguy franziram-se ligeiramente, ao ouvir o visitante exprimir-se nestes termos; mas não perdeu a calma e, com a maior tranqüilidade, declarou:
 - Gil Ribeira, durante vinte anos, encontrou-se na mesma situação. Todavia, nunca procurou desrespeitar os limites que separavam a minha propriedade das suas...
 - Que quere insinuar com isso? - interrogou o estanciero, tornando-se agressivo.
 - Nada quero insinuar, senhor - respondeu o basco. - Registo simplesmente um facto. Nas últimas semanas, os seus vaqueiros têm-se conduzido por forma vergonhosa. Os fios de ferro que delimitam as minhas terras foram cortados, por mais de uma vez. Os seus homens e rebanhos têm-se instalado em volta dos meus bebedouros. Até hoje, não formulei qualquer queixa ao chefe dos vigilantes; contudo, visto que o senhor trouxe a conversa para êste terreno, julgo conveniente adverti-lo de que saberei evitar a repetição de semelhantes incidentes, que me causam graves prejuízos...
O antigo capataz não pestanejou.
 - Caramba! - exclamou por fim. - Que quere que eu faça?... Não posso dedicar-me a conduzir em pessoa os rebanhos aos bebedouros...
 - Mas pode - interrompeu Paulo Cohatéguy
 - dar as instruções convenientes e as reprimendas necessárias ao seu pessoal. Durante mais de vinte anos, o seu antecessor esteve nos mesmos casos em que o senhor se encontra... Não tinha caracter brando, sabe-o o senhor tão bem como eu, mas, apesar disso, conservou-se tranqüilamente em sua casa...
 - Há um meio bem simples de pôr fim a semelhantes incidentes - declarou o estanciero.
 - Qual meio? - interrogou o basco.
-Vender-me êsses bebedouros - concluiu o visitante. - Estou disposto a aceitar a sôma que entender...
Reinou silêncio, por instantes, na sala. O oferecimento causara o mais profundo espanto ao ranchero. Impacientado pelo seu mutismo, Marco interpelou-o:
 - Então? Convém-lhe a proposta?
 - O seu oferecimento não me seduz - respondeu o interpelado. - Seja qual fôr o preço que esteja decidido a prometer-me, isso não me resolverá a vender a menor parcela do meu domínio!
O sucessor de Gil Ribeira fechou os punhos, enraivecido. Todavia, conteve-se e prosseguiu, com voz cada vez mais insinuante:
 - Vamos, senhor Cohatéguy, seja razoável! Conhece muito bem a disposição da sua propriedade. Próximo dos tais bebedouros, penetra profundamente nos meus terrenos. Os rebanhos que passam por êsse sítio não têm, como já disse, uma só nascente onde possam beber, ao passo que, a algumas centenas de metros, o senhor possui êsses magníficos bebedouros...
 - Permita-me lembrar-lhe, senhor Palavez, que, se os bebedouros em questão lhe poderiam ser úteis, não deixam, por isso, de me ser indispensáveis. Não possuo outros, em todo o meu domínio... Como poderia viver, se me desfizesse de tão preciosa zona de terreno?
A objecção não impressionou de forma alguma o antigo capataz; pelo contrário, esboçou um sorriso, ao mesmo tempo que declarava:
 - Pois bem! Se fôr preciso, comprarei a sua propriedade...
Comprar o rancho! Paulo Cohatéguy empalideceu, ao ouvir o oferecimento. Vivia há quarenta anos naquele solo, ali se casara, seu filho vira a luz sob aquele teto. Cedê-lo a um estranho parecer-lhe-ia tão doloroso como arrancar um pedaço do próprio coração, tanto as suas mais amadas recordações estavam ligadas àquele pedaço de terra. Era a sua segunda pátria; mesmo que o necessitasse, não se resolveria a vendê-lo.
E tal não sucedia, felizmente. A' custa do seu trabalho, reunira uma fortuna apreciável, e tudo corria favoràvelmente, no rancho. A proposta parecia-lhe uma tal monstruosidade, que respondeu:
 - Vender o rancho!... Isso, senhor Palavez, é a última coisa que poderia pedir-me... Que faria eu, se me decidisse a deixar esta propriedade? Como abandonaria sem remorsos êste terreno que tornei fértil?... Para onde iria, depois?... Há quarenta anos, quando, muito novo, vim para aqui, era ainda fácil adquirir um bom domínio; agora, as estâncias são cada vez mais numerosas... Os criadores de gado pululam por toda a parte. A pampa, outrora inculta, cobre-se de campos de milho e de trigo... E o senhor queria que eu abandonasse impensadamente êste solo por mim conquistado e cultivado com o suor do meu rosto? Engana-se redondamente, senhor Palavez!
A' medida que o basco falava, o visitante perdia a calma. Lia-se-lhe no olhar a mais profunda decepção. Contudo, embora considerasse, pelo tom do interlocutor, ser inabalável a sua decisão, tentou ainda:
 - Vamos, senhor Cohatéguy, deixe-se convencer... A ocasião é magnífica, não encontrará outra semelhante, e talvez se arrependa, mais tarde, de não ter aceite uma proposta que lhe evitaria desagradáveis conflitos... Duzentos mil pêsos?... Duzentos e cinqüenta?... Trezentos?...
O ranchero sorriu.
 - Não, senhor Palavez - declarou. - É inútil tentar convencer-me... Pode prometer até um milhão, que nada conseguirá. Nem por todo o ouro do Mundo me resolveria a vender a menor porção do meu domínio... Tenciono deixá-lo a meu filho, tal qual se encontra.
Diante de tão inabalável decisão, o sucessor de Gil Ribeira a custo conservou a calma.
 - Mas - exclamou - êsses bebedouros são-me indispensáveis!
 - Que quere que lhe faça, senhor Palavez? Eram igualmente indispensáveis ao seu antecessor, parece-me, e, contudo, êle nunca manifestou tamanho empenho em adquiri-los...
O antigo capataz franziu a testa.
 - É essa, então, a sua última palavra? - vociferou. - Não há meio de chegarmos a acôrdo?
 - É sempre possível um acôrdo entre nós, desde que se trate de manter a boa harmonia necessária - respondeu Paulo Cohatéguy.
Uma gargalhada interrompeu o ranchero. Palavez deixava finalmente explodir a raiva que lhe causava a recusa do seu interlocutor.
 - Tome cuidado! - exclamou, com a voz sibilante. - Aquilo que o senhor não quere ceder de boa vontade posso eu apanhá-lo, pela fôrça, se me fôr preciso! Possuo os meios necessários para reduzi-lo à obediência. Quem é o senhor, afinal?... Um pobre ranchero, que dispõe apenas de uns tantos vaqueiros e peones!... Os meus gaúchos fàcilmente lhe quebrarão as veleidades... Pense bem! Declara-me a guerra, recusando-se a transaccionar comigo... Não poderá dizer, depois, que eu não fui até ao extrêmo limite das concessões. Responde dessa forma ao meu generoso oferecimento... Encarregar-me-ei de enxotá-lo dos bebedouros, ao senhor e aos seus auxiliares!
Semelhantes ameaças parecia não causarem ao basco a menor impressão. Nem um músculo do rosto lhe estremecera.
 - Seremos dois a jogar a partida, senhor Palavez - respondeu, com voz estranhamente calma. - Não me esqueço de que tenho a lei do meu lado... Se o senhor fôr até ao ponto de devastar as minhas terras, recorrerei aos vigilantes....
 - Os vigilantes!... - troçou o antigo capataz, - Deixe-me rir! Não me fazem mêdo. Não se embale com ilusões nem espere que êles lhe prestem qualquer auxílio!
 - Eis o que me admira bastante, senhor Palavez... Numa conjuntura bastante grave, êsses dignos representantes da autoridade deram-lhe um apoio que o senhor não despresou, muito pelo contrário... Convencidos, com ou sem fundamento, de que o senhor tinha a razão do seu lado, prestaram-lhe bons e leais serviços... Não se deu mal com êles, a ajuizar pela sua actual situação...
O estanciero empalidecera, quando o basco pronunciara estas palavras. Sem poder conter-se mais, levantou-se, brandindo o rebenque.
 - Que quere insinuar? - rugiu. - E, cego de cólera, ia talvez agredir Paulo Cohatéguy; mas êste, sem perder a calma, tirou o revólver do coldre e apontou-o ao enraivecido visitante.
-Vá-se embora! - disse, com voz firme. - A nossa conversa já durou demasiado!... Se não sai da minha vista imediatamente, mato-o como a um simples aguara...
Dominado pela enérgica atitude do seu interlocutor, Marco Palavez resmungou ainda algumas palavras de ameaça, mas, compreendendo que o basco não estava a brincar, saiu.

CAPÍTULO XVIII
A chave do enigma
PEREZ Mariposo e Ramón Cohatéguy não tinham perdido palavra do diálogo travado entre o ranchero e o seu visitante.
Por várias vezes, considerando o basco em perigo, o domador tinha querido intervir, mas o companheiro contivera-o, pois sabia muito bem que seu pai era homem para se defender.
Quando, mantido em respeito pelo revólver, Marco Palavez saiu, e, a grandes passadas, desejando evitar os dentes dos dois molossos, que ladravam enfurecidos, alcançou o local onde amarrara o cavalo, o basco, de pé, no limiar da porta, limitava-se a sorrir. O sucessor de Gil Ribeira estendeu para êle o punho cerrado:
 - Veremos qual de nós será o mais forte! - gritou-lhe.
Mas Bela e Fido aproximavam-se, ameaçadores, e o estanciero apressou-se a desprender o cavalo e a saltar para a sela. Depois, fazendo ; voltear o rebenque, para afastar os cãis, partiu a galope, em direcção ao Sul.
Perez e Ramón não haviam esperado que o antigo capataz desaparecesse, para se juntarem ao basco.
 - Ouvimos tudo... Estávamos ambos no celeiro - declarou Ramón. - É preciso tomar cuidado, pai. Êste homem pode ser perigoso.
O ranchero contentou-se em encolher os ombros.
 - Por mais poderoso que seja, êste Marco Palavez não me mete mêdo - declarou. - Volte quando quiser. Encontrará com quem falar!
Sem se preocupar com a conversa entre pai e filho, o domador tinha-se dirigido ao curral. Quando os dois homens fizeram menção de segui-lo, deu-lhes a entender que deviam ficar onde estavam.
Desde que o antigo capataz entrara em casa de Paulo Cohatéguy, Perez debatia-se em tumultuosos pensamentos. Os trágicos episódios que tinham precedido a morte de Gil Ribeira voltavam-lhe à memória. A discussão entre o basco e o visitante e a atitude cada vez mais ameaçadora dêste último tinham-lhe mostrado ser Marco Palavez um indivíduo capaz de se desembaraçar, por qualquer meio, de um adversário. O papel que podia ter desempenhado na tragédia de San Luís parecia-lhe deveras equívoco.
Por tal razão, decidira seguir na pista do estanciero e não o perder de vista. Primeiro, não duvidava de que êle ia pôr em prática alguma manobra para se apoderar dos bebedouros. As palavras que pronunciara, antes de deixar o rancho, não ofereciam dúvidas a êsse respeito. Mas, além disso, o domador, espiando a inquietante personagem, esperava talvez vislumbrar os processos da sua actuação e obter até alguma prova susceptível de provar a sua inocência. Desta forma, sem deixar de ser útil a Paulo Cohatéguy, poderia chegar a um resultado que lhe seria igualmente favorável.
Em poucos segundos, Perez chegou junto de Diablo, o pôtro negro que domara. Selou-o ràpidamente, e, como Ramón e seu pai, admirados por aquela resolução, se tivessem aproximado, comunicou-lhe em breves palavras os seus desígnios. Depois, saltou para a sela, e partiu no encalço de Marco Palavez.
Embora o sucessor de Gil Ribeira tivesse algum avanço, o rapaz não tardou a avistá-lo. O estanciero afastava-se a trote, parecendo mergulhado em profunda meditação. Reflectia, sem dúvida, no plano a pôr em prática para se apoderar das nascentes de água tão ambicionadas. O domador avançou cautelosamente, pois não queria advertir o outro da sua presença. De resto, o Sol desaparecia ràpidamente na linha do horizonte, e a obscuridade ia favorecer a sua missão.
Por mais de uma hora, avançaram, sem que Perez perdesse o outro de vista. Em vez de se encaminhar para a sua estância, o antigo capataz afastava-se, através da pampa. Quando chegou junto de um bosque de jarrillas, parou, e, levando os dedos aos lábios, modulou um silvo semelhante ao pio da coruja. Som idêntico lhe respondeu. Então, Marco apeou-se; amarrou o cavalo a um tronco e penetrou resolutamente na espessura do arvoredo.
O domador apressou-se a seguir-lhe o exemplo. Cada vez mais intrigado com aquela manobra, Perez deslizou, sem fazer ruído, por entre as altas ervas; depois de verificar que o revólver estava pronto a fazer fogo, aventurou-se também pelo bosque.
A noite estava clara, e Marco Palavez evoluía sem dificuldades, através das jarillas. De tempos a tempos, voltava-se e olhava em volta, desconfiado. De súbito, teve um sobressalto. Um vulto esguio lhe surgira na frente.
 - Não te assustes, amigo! Sou eu - murmurou a nova personagem.
 - Com efeito, assustaste-me, Yago! - respondeu o estanciero.
 - Mas ouviste o meu sinal...
 - Ouvi, sim... Mas esta noite, estou muito impressionável. Receei uma agressão.
Já não existem salteadores na pampa...
Enquanto os dois homens trocavam estas palavras, Perez tinha-se aproximado com a maior prudência. Acabava também de reconhecer o lanzador, e interrogava-se, não sem ansiedade, sobre o significado daquela entrevista nocturna. O coração bateu-lhe com força, ao aperceber, não longe do sítio onde se encontrava, uma forma branca, que lhe era familiar: o seu fiel Ardiente, roubado por Yago.
Uma ideia louca lhe passou pelo cérebro. Oferecia-se-lhe a ocasião de recuperar o animal; aproveitando o momento em que os dois amigos conversavam, podia apoderar-se do cavalo.
Pôs de parte, após um instante de reflexão, tal golpe de audácia, que seria a pior das imprudências. Não devia denunciar dessa forma a sua presença. Comprometeria o êxito da sua empresa, se realizasse um acto tão temerário. Ser-lhe-ia fácil, na verdade, recuperar Ardiente, mas, admitindo que o conseguia, o estanciero e o seu interlocutor reconhecê-lo-iam e de novo os vigilantes se lançariam em sua perseguição. Por agora, era absolutamente necessário que o julgassem bem longe dali.
De resto, a conversação travada entre os dois homens não permitiu a Perez continuar nas suas divagações. Prestou atenção, para surpreender-lhes os propósitos.
 - Então, Marco? Esse maldito ranchero aceitou as tuas propostas? - preguntava o lanzador. Estendera-se na erva, logo imitado pelo herdeiro de Gil Ribeira. A menos de seis metros deles, oculto atrás de um chanar, Perez não perdia uma palavra.
 - Não aceitou o meu oferecimento, apesar de vantajoso - respondeu o estanciero, com visível mau humor.
 - Então, é a guerra?...
 - É a guerra!... Sabia que esse basco era teimoso, mas pensei que se rendesse à minha argumentação. Em vez disso, opôs uma recusa formal, apesar de eu ter ido até ao ponto de oferecer-lhe trezentos mil pesos...
 - O maldito é difícil de contentar! Essa gente tem uma mentalidade especial... Tomaremos, a partir de amanhã, de manhã, as medidas necessárias.
 - Foi para isso que te marquei este encontro, receando já o malogro das negociações.
 - Tens razão. Desde aquele negócio, para afastar quaisquer suspeitas, não continuei ao serviço da estância, mas sabes muito bem que podes contar comigo, quando se trate de algum tiro bem empregado... Gil Ribeira experimentou-o à sua custa...
 - Mais baixo!... É uma estupidez falar outra vez nesse incidente... Se alguém nos ouvisse...
E o antigo capataz olhava em volta, inquieto.
 - Por la muerte!... Não perdeste o medo! - exclamou Yago. - Tranquiliza-te, Ribeira não contará o sucedido aos vigilantes... Só eu sei como o caso se passou, e conheces o meio infalível de te assegurares do meu silêncio!...
Ao ouvir esta troca de palavras, o domador sentiu a mais viva comoção. Decididamente, tivera boa ideia, quando se lançara na pista do estanciero. Agora, nenhuma dúvida lhe poderia restar. Conhecia os verdadeiros autores da morte de Gil Ribeira. Apertando nervosamente na mão a coronha do revólver, sentiu tentações de abater friamente os dois miseráveis que tinham contribuído com tamanho encarniçamento para a perseguição contra êle movida pelos vigilantes.
Contudo, o rapaz depressa raciocinou que tal execução sumária de nada lhe serviria. Mais valia esperar, e resignou-se a ouvir calmamente o fim do diálogo.
 - De que servem esses contínuos remoques?!... - dizia Marco Palavez, mais sereno.
 - Servem para te refrescar a memória, amigo! - troçou o lanzador. - Desde que eu suprimi Gil Ribeira, não te tens mostrado muito generoso para comigo...
 - Como?! - interrompeu o estanciero, indignado. - Não recompensei os teus serviços?... Já te dei dois mil pesos, por três vezes...
 - Olha a grande coisa, para um homem que arriscou a pele... e gosta de jogar, lá de vez em quando...
 - Bom! Visto ser assim, para que usar de subterfúgios? Queres mais dinheiro?
 - É verdade. Ontem, à noite, estive na locanda La Noche, e joguei... Perdi, sob palavra, uma soma razoável...
O antigo capataz parecia hesitar. O pedido contrariava-o. Por fim, preguntou:
 - Quanto?
 - Dez mil pesos - respondeu Yago, sem mostrar a mínima timidez.
 - Apre! Dez mil pesos?!... Estás a brincar?
 - Não costumo brincar, e tenho por hábito pagar com regularidade as minhas dívidas.
 - Sangre de Dios! Parece-me que te tenho recompensado suficientemente, até aqui!... Por dois simples tiros de revólver que deste num homem meio bêbado, paguei já bastante caro!...
 - Vamos, não te exaltes, amigo!... - interrompeu bruscamente o lanzador. - A minha palavra está em jogo, neste negócio. Visto recusares-me o que peço, devo lembrar-te uma coisa: possuo, cuidadosamente oculto no meu tirador, um papelito que pode despertar a atenção do chefe dos vigilantes e desse patusco Benigno Camorral... Não te esqueças! Quando, à saída da locanda, me propuseste abater o Ribeira com o revólver tirado a esse rapazito, tomei certa precaução. Encostado à janela, garatujaste umas linhas, e, visto seres um ingrato, vou repetir-te o que elas dizem, pois sei-o de cór: "Declaro - escreveste - ser o único responsável pela morte de Gil Ribeira e ter levado Yago, o Lanzador, a assassiná-lo..." Por baixo, há uma assinatura...
 - Estava louco quando escrevi isso - murmurou o estanciero.
 - Não sei se tinhas perdido a razão - continuou Yago, implacável - mas estou bem certo de que estavas disposto a tudo para te apoderares da herança do teu patrão. Só ao pensares que êle podia casar-se, com a Conchita ou com qualquer outra, ficavas desvairado. Agora, recolheste os benefícios do meu acto e é justo que te ajude a memória. As palavras voam, sabes muito bem, mas a escrita fica, e tenho comigo quanto basta para te fazer enforcar...
Exasperado pela cínica atitude do cúmplice, o antigo capataz levara a mão à navalha. Mas o lanzador advinhou-lhe o pensamento.
 - Podes pegar no canivete, amigo! Mas previno-te caridosamente - acrescentou em tom ameaçador - que te tenho sob a mira do meu revólver... És ágil, não há dúvida, mas a bala será mais rápida!
Marco Palavez nada respondeu. Yago continuou:
 - Para que empregar tais argumentos? Podemos entender-nos o melhor possível! Que são para ti dez mil pesos?... Nada! Para mim representam uma soma considerável...
 - Concedo-te o que me pedes - disse o sucessor de Gil Ribeira, com voz soturna - mas, em troca, hás de dar-me o papel que te confiei...
Yago modulou um assobio; depois, desatou a rir.
 - Dar-te o papel! - exclamou. - Não sou tão parvo como isso! Não quero matar a galinha dos ovos de ouro! É o único meio que possuo para conservar a tua amisade e manter certas relações contigo... Bem longe de mim a ideia de um rompimento tão rápido...
 - Então, nada terás...
 - Se nada me deres, saberei dirigir-me a alguém...
O antigo capataz torceu-se, para dominar a cólera. O cúmplice tinha-o em seu poder e brincava com êle, como o gato com o rato.
 - Está combinado - disse por fim, vencido, ao ver que o seu interlocutor mostrava certa impaciência. - Terás os dez mil pesos... Recebê-los-ás amanhã, quando passares pela estância.
Um sorriso de satisfação entreabriu os lábios do lanzador.
 - Eu sabia, amigo, que te mostrarias razoável - declarou. - Vês, tudo se pode arranjar... Esta discussãozinha afastou-nos do verdadeiro motivo do nosso encontro. Agora, visto a concórdia estar restabelecida, estou pronto a ouvir-te.
O estanciero quási esquecera os seus projectos.
Olhou, um tanto perplexo, para o interlocutor. Parecia-lhe sair de um pesadelo.
 - Ah! Sim! - murmurou. - Marquei-te este encontro para combinarmos as medidas a tomar contra esse maldito basco.
 - Se puseres à minha disposição alguns gaúchos, tratarei do caso... Os seus peones nada farão contra nós. E, se pensarem em resistir, saberemos opôr-lhes sérios argumentos...
 - É preciso não esquecer, contudo - objectou o estanciero - que devemos agir com a maior prudência. É preciso não irritar os vigilantes e o alcaide...
 - O alcaide!... - replicou o lanzador, desatando a rir. - Encarrego-me de lhe desviar a atenção. Quanto aos vigilantes, não me parecem muito para temer. Ricardo está em Mendoza, e os seus homens não são capazes da menor iniciativa. O momento parece-me propício para agir...
 - Nessas condições - declarou o antigo capataz - vens passar a noite à estância. Ao alvorecer, penetrarás no território do rancho e ocuparás solidamente os bebedouros. Se os peones tentarem aborrecer-nos, serão recebidos a tiro de carabina. Fugirão como coelhos...
 - Demais, são pouco numerosos.
 - Uma dúzia, no máximo. Só o pai e o filho são para recear!...
 - Fala-se, também, de um tal domador de cavalos, chamado Eugénio Palermo, que o rancho contratou. Parece ser notável na sua arte...
 - Isso não quere dizer que seja bom atirador - concluiu Marco Palavez, rindo. - Com certeza, não será esse indivíduo que pesará demasiado na balança e porá em risco os nossos projectos... Não passará muito sem que Cohatéguy chore lágrimas de sangue por não se ter rendido aos meus argumentos!
Imóvel, Perez ouvira o diálogo dos dois miseráveis. Compreendendo que a conversa chegara ao fim, achou conveniente retirar-se. Sabia o suficiente àcêrca de ambos. Afastou-se lentamente, evitando produzir o menor ruído, sempre de revólver em punho, pronto a defender-se, se o lanzador e o companheiro dessem pela sua presença. Conseguiu, porém, sair, do bosque sem ser pressentido.
Ao cabo de dez minutos, chegou junto do potro negro. Sem mais se preocupar com os dois cúmplices, galopou para o rancho de Paulo Cohatéguy. Um sorriso de triunfo se lhe desenhava nos lábios. Pensava, enquanto corria através da pampa, que, ao facto do crime e dos planos dos adversários, podia dar-lhes batalha. Um desejo imperioso comandaria as suas acções: apoderar-se, custasse o que custasse, e o mais rapidamente possível, da declaração assinada por Marco Palavez.

CAPÍTULO XIX
Um plano que se malogra
QUANDO Perez deteve o cavalo junto do rancho, tudo parecia adormecido. Só Fido e Bela, sempre vigilantes, se precipitaram ao seu encontro, acolhendo-o com alegre latir.
 - Soceguem, amigos! - gritou-lhes o domador, batendo à porta do basco. Imediatamente se ouviu ruído de passos, e uma voz interrogou:
 - Quem é?
 - Sou eu, Eugénio Palermo - respondeu o rapaz.
Desde que Marco Palavez proferira as suas ameaças, o rancho estava alerta. A pesada tranca da porta foi retirada, e esta abriu-se lentamente. A luz de uma lanterna, o domador avistou o rosto inquieto de Ramón, logo serenado, quando verificou que se tratava, com efeito, do seu amigo.
 - Então, que se passou? - preguntou o filho
do ranchero, apenas o domador deu entrada na habitação.
 - É preciso acordar imediatamente seu pai - respondeu o interpelado. - Tenho a dizer-lhe coisas importantes, que não podem demorar um só momento.
Paulo Cohatéguy não esperara que o filho o fosse chamar. Muito inquieto, também, por causa de Perez, cujos intentos não compreendera, deitara-se, mas não conseguira dormir e surgiu imediatamente na sala.
 - Então, amigo - preguntou - que tem para dizer-nos?
Em poucos minutos, o rapaz narrou a conversa surpreendida. Enquanto o ouviam, o ranchero e o filho entreolhavam-se, com certa inquietação. Quando concluiu, o basco exclamou:
 - Os meus pressentimentos não me enganaram! Sempre pensei que esses dois indivíduos eram uns autênticos bandidos... Estamos identificados, e vamos tentar tudo para que seja proclamada a sua inocência e desmascarados esses miseráveis!
Na sua indignação, o ranchero nem se lembrava do perigo que ameaçava o seu domínio. Foi preciso que Perez lho recordasse.
 - Estou igualmente resolvido a não dar tréguas a esses patifes, enquanto não tiver em meu poder as provas do seu crime - disse. - Todavia, é preciso tratar do mais urgente. Não se esqueça do plano que o lanzador e os seus auxiliares tentarão pôr em prática, ao romper do dia, para estabelecer o gado da estância dentro deste território.
 - Partiremos antes de amanhecer - respondeu Paulo Cohatéguy. - Agora, estamos prevenidos e não seremos colhidos de surpreza. E asseguro-lhe reservar a esses patifes uma recepção que lhes ficará na memória... Como deve estar fatigado e temos algum tempo na nossa frente, tratemos de repousar. A's 4 horas, acordarei os nossos auxiliares e iremos todos para junto das nascentes.
Os três homens separaram-se, dirigindo-se cada um para o seu quarto. Foi com o mais vivo prazer que o domador se estendeu no leito.
Contudo, apesar da fadiga, o sono demorou a chegar. Muitos pensamentos lhe agitavam o espírito. Tivera boa inspiração, ao seguir Marco Palavez! Agora, sabia quem eram os verdadeiros culpados; sabia onde se ocultava a prova da sua inocência. Mais do que nunca, estava resolvido a restabelecer a verdade. De tempos a tempos, também, abandonando os seus projectos de vingança, pensava em Conchita... Por fim, o sono dominou o intrépido cavaleiro, e adormeceu pesadamente.
Acabavam de soar as 4 horas, quando Ramón foi acordar os gaúchos e os peones, que dormiam no abarracamento vizinho. Em poucas palavras, expôs-lhes o plano do adversário e o que deles esperava.
Imediatamente, reinou grande agitação entre aqueles homens, fartos de serem humilhados pelos auxiliares do poderoso vizinho. Em poucos minutos, estavam prontos a realizar a cavalgada matinal, e compareceram no rancho, para tomarem a ligeira refeição que Dolores lhes preparara.
 - Levamos os cães? - preguntou o domador, quando todos se aprontaram para partir.
 - Decerto - respondeu Paulo Cohatéguy. - Será preciosa a sua ajuda.
Deixando Dolores com as criadas e dois peones, o ranchero dirigiu-se para o curral, com o filho e os restantes auxiliares. Era ainda noite, e dificilmente se distinguia o caminho. Tal particularidade não desagradava a Perez e seus amigos. A treva seria boa aliada, permitindo-lhes atingir o local em litígio, sem despertar a desconfiança do pessoal da estância.
Em breve, o grupo se deslocou, em silêncio, precedido dos dois molossos. Semelhantes a fantasmas, os homens meteram, em fila indiana, pelas terras, mergulhadas na obscuridade. Cada um levava a carabina em bandoleira e revólveres nos coldres. Os lazos e as bolas pendiam das selas. Estavam decididos a infligir aos vizinhos uma lição que lhes ficasse de memória.
Em menos de meia hora, chegaram às nascentes. Os arredores estavam desertos, e intactos os postes que demarcavam o território. O pessoal da estância não deixara ninguém de vigia.
No horizonte, surgiam os primeiros alvores da madrugada. Próximo da vedação de arame, avistava-se uma massa sombria; era um rebanho bastante numeroso, que Yago e os seus acólitos iam sem dúvida utilizar para invadir a propriedade do basco.
Sem dizer palavra, o ranchero e os seus auxiliares apearam-se. Os chanars e as moitas eram numerosas, nas proximidades dos bebedouros; não lhes foi difícil encontrar sítios onde dissimulassem os cavalos. Tomada esta precaução, foi cada um postar-se no local que o chefe lhes designou, escalonando-se por forma a rodear o ponto ameaçado. Estendidos na erva úmida do orvalho, esperaram pacientemente, e ninguém diria, em face do impressionante silêncio, que uns quinze homens estavam ali prontos a defender os direitos do ranchero.
Lentamente, o horizonte clareou. Então, ouviu-se o ruído de uma galopada que se aproximava. Com as carabinas prontas a fazer fogo, Perez e os companheiros aguardaram o momento de entrar em acção. O lanzador e seus cúmplices preparavam-se para realizar a proeza.
Em número de trinta, os gaúchos da estância tinham chegado aos limites do território do rancho. O sucessor de Gil Ribeira evitara acompanhá-los, não desejando ser reconhecido pelo seu vizinho, no caso - que de resto considerava pouco provável - de se malograr o empreendimento dos seus homens.
Antes de saltar do cavalo, Yago olhou em volta. Tudo parecia tranquilo. Os primeiros raios de Sol reflectiam-se na superfície lisa dos dois bebedouros e faziam brilhar as gotas de orvalho, sobre a erva. Dir-se-ia terem sido ali dispersas milhares de pedras preciosas; mas o digno cúmplice do estanciero não tinha alma de poeta que se detivesse em tais comparações. Sorriu satisfeito. Tudo parecia favorecê-lo. Recebera, antes de deixar a estância, os dez mil pesos prometidos por Marco Palavez. Só lhe faltava executar o plano do seu sinistro associado.
Não duvidava do êxito da empresa. Ignorando que a sua conversa com o antigo capataz fora ouvida, estava convencido de que ocuparia, sem dar um tiro, as nascentes e suas proximidades.
 - Dormem todos a sono solto, no rancho - disse para os companheiros. - O basco nem desconfia da partida que vamos fazer-lhe!...
O lanzador mostrar-se-ia muito menos tranquilo, se tivesse visto Paulo Cohatéguy e os seus homens, dissimulados entre as moitas circundantes e prontos a acolhê-lo. O favor da surpresa, com que contava, ia perdê-lo, em proveito dos adversários, apesar da superioridade numérica de que se assegurara.
Perez e Ramón continham com dificuldade o ardor de Fido e Bela. Os dois molossos queriam atirar-se imediatamente aos recém-vindos e a custo evitaram que eles ladrassem ou rosnassem, revelando a sua presença.
Sem desconfiarem do perigo que os ameaçava, os gaúchos de Marco Palavez apearam-se, por ordem de Yago. Quatro de entre eles, munidos de tesouras, começaram a cortar os fios de ferro da vedação. Indignados, os auxiliares de Paulo Cohatéguy tinham boa vontade de enviar uma salva de balas aos intrusos, antes de eles invadirem o território do rancho, mas, do seu esconderijo, o basco fez-lhes sinal para que esperassem. Aguardava que os outros entrassem no seu domínio, para então os combater.
Por várias vezes, o lanzador olhou na direcção da residência do ranchero, mas sem dúvida o silêncio que persistia o tranquilizou. Quando os acólitos praticaram uma brecha suficiente, ordenou-lhes que montassem de novo. Então, incitando os cavalos, os gaúchos afastaram-se. Parecia abandonarem a partida, mas Perez e os companheiros, adivinhando-lhes a táctica, sabiam chegado o momento do perigo.
Em poucos minutos, volteando em redor do rebanho que se encontrava a algumas centenas de metros dali, os trinta cavaleiros, evoluindo com habilidade, obrigaram os ruminantes a pôr-se em movimento. Então, vacas e touros precipitaram-se, tumultuosamente, em direcção aos bebedouros.
O solo tremeu sob as patas dos animais; parecia que nada resistiria à sua carga. Em pouco tempo, invadiriam o território das nascentes e espalhar-se-iam pelos arredores. Os gaúchos, com as suas armas, impediriam que a gente do rancho se aproximasse para desalojá-los do terreno conquistado.
Já o lanzador e os companheiros se consideravam seguros do triunfo, quando estalaram algumas detonações. Mortalmente feridas, quatro ou cinco vacas que seguiam na primeira linha, caíram por terra. Ao mesmo tempo, Fido e Bela, saltando do seu refúgio, atiraram-se aos animais, ladrando furiosamente.
Espantados pela aparição inopinada dos molossos, os ruminantes da frente voltaram-se, mugindo, e entravaram o passo aos seus congéneres, que, inconscientes ainda daquela intervenção, procuravam avançar. Em pouco tempo, indescritível confusão se estabeleceu no rebanho, embaraçando a sua entrada no território do rancho.
Louco de raiva, Yago não compreendia como aquilo sucedera. A salva dirigida pelos auxiliares de Paulo Cohatéguy contra o rebanho tinha-o colhido de surpresa. Persuadido de que a inacção dos últimos dias havia adormecido a vigilância dos adversários, não esperava que as nascentes estivessem guardadas.
A mais elementar prudência aconselhava o miserável a abandonar os seus intuitos e desaparecer o mais depressa possível. Mas não deu ouvidos à voz da razão; dominado pela fúria provocada pela aquela resistência imprevista, ergueu-se nos estribos, e, voltando-se para os gaúchos, espalhados entre os animais, gritou-lhes: - Adelante! Contra esses cães!... Se os homens da estância estivessem reunidos, o seu grupo, superior em número, talvez conseguisse desalojar o inimigo dos seus esconderijos; mas o rebanho obstava-lhes que operassem uma concentração. Os cães, as detonações, os gritos furiosos do pessoal do basco provocaram verdadeiro pânico entre os animais. Vacas e touros mugiam desesperadamente, atropelando-se uns aos outros. Fido e Bela acossavam-nos sem cessar, e os companheiros de Yago, preocupados em evitar serem colhidos pelo gado desvairado ou cuspidos das selas, não podiam pensar em servir-se das armas para abater os molossos.
Novos tiros, habilmente dirigidos pelo pessoal do rancho, aumentaram ainda a confusão dos bovídeos. Uma dezena de gaúchos, rodeados pelos animais, que regressavam ao território da estância, tiveram de deixar-se arrastar, para não serem esmagados.
Aquela derrocada do seu plano não convencia, contudo, O' lanzador a abandonar a partida. Agrupando os cavaleiros que tinham podido resistir ao impulso do rebanho desorientado, galopou em direcção às cobiçadas nascentes.
 - Adelante! Adelante! - gritava, enfurecido, com voz que lograva dominar o tumulto.
Menos obstinados do que o seu chefe, os gaúchos sentiam certas apreensões... Cada moita lhes parecia ocultar um inimigo.
Imóveis, Paulo Cohatéguy e os companheiros deixaram-nos aproximar. O basco ordenara aos seus auxiliares que não matassem os agressores, ferindo-os apenas e obrigando-os a retirar. Yago e a sua gente puderam avançar alguns passos, na direcção dos bebedouros; mas, de súbito, o basco deu uma ordem, e quinze detonações soaram. Largando os estribos, onze gaúchos caíram por terra, enquanto os cavalos, livres dos donos, fugiam em todas as direcções. Por mero acaso, o lanzador não fora atingido. Direito na sela, procurava sempre atirar o seu grupo contra as moitas de onde partiam os tiros, mas, desmoralizados por aquela recepção que não esperavam, os gaúchos fizeram meia volta e fugiram, enquanto os camaradas, mais ou menos feridos pelas balas, se erguiam, procurando penosamente recuperar os seus cavalos.
 - Cuerpo de Cristo! - rugiu o cúmplice de Marco Palavez. - Covardes! Não vêem que eles são apenas uma dezena de homens!...
Mas a experiência bastara aos assaltantes. Sem dar ouvidos às ameaças, insultos e ordens do chefe, tratavam apenas de evitar as balas dos atiradores que nem ao menos tinham avistado até então. Cravando as esporas nos cavalos, atravessaram novamente as vedações e seguiram o rebanho, que se afastava a galope, deixando no terreno uns tantos bovídeos vitimados pelas balas do basco e seus corajosos auxiliares.
Exasperado, o lanzador em breve verificou encontrar-se sozinho. Interrompendo as suas invectivas, compreendeu não ser prudente obstinar-se por mais tempo e resolveu seguir os companheiros. Apenas voltara as costas, ouviu-se um silvo. Ao mesmo tempo, um nó corredio lhe envolveu o corpo.
Era Perez que intervinha. Saindo do seu refúgio, decidira-se, custasse o que custasse, a capturar o bandido. Não se esquecera de que êle ocultava no seu tirador a prova do crime cometido semanas antes.
O choque que Yago suportou foi tão violento que esteve prestes a cair do cavalo. Contudo, segurou-se, e, como a tira de couro se lhe enleara no corpo mas deixara-lhe relativa liberdade de movimentos, conseguiu abrir a navalha e cortá-la. Algumas balas lhe assobiaram aos ouvidos.
Cravando as esporas nos flancos de Ardiente, o lanzador fugiu a todo o galope. Voltando-se, na sela, para o domador, que, despeitado, via não lhe ser possível, por agora, deitar a mão ao miserável, gritou-lhe:
 - Hasta la vista, amigo!... Voltaremos a ver-nos! Yago tem por costume pagar sempre suas dívidas...
E, lançado este desafio, atravessou de novo os limites do rancho e em breve se reuniu aos companheiros.

CAPÍTULO XX
A "fiesta" em San Luís
SEM dúvida, a lição infligida pelos auxiliares de Paulo Cohatéguy aos gaúchos do rancheiro deu resultado, pois os rebanhos de Marco Palavez não voltaram, nos dias que se seguiram, a invadir o domínio do basco. De resto, este, habilmente secundado pelo domador, montara no local uma guarda segura. Todas as noites, alguns vaqueiros ficavam ali, prontos a dar o alarme, caso houvesse alguma tentativa hostil, da parte dos vizinhos.
Assim passaram dias, e o ranchero felicitava-se por ter encontrado um colaborador tão precioso. Incansável, Perez ocupava-se dos cavalos encerrados nos currais, domava os mais rebeldes e treinava-os no serviço.
Contudo, se o fugitivo procurava desta forma dar inteira satisfação àquele que tão urbanamente o acolhera, não deixava de pensar no seu desaire, inconsolável por ter deixado escapar o lanzador. Além disso, tornara-se imperioso o desejo de voltar a ver Conchita. Queria saber se a filha de Juan Balermo pensava ainda no seu par daquela noite. Queria, também, agradecer-lhe o auxílio prestado à sua evasão... Mas receava aventurar-se a ir a San Luís.
Certo dia, apresentou-se a ocasião. O ranchero disse-lhe:
 - Está sempre triste, amigo! Vê-se que tem uma preocupação constante... Porque não vem connosco à fiesta de San Luís? Ninguém o reconhecerá, com essas barbas... Já passou bastante tempo...
Um relâmpago brilhou nas pupilas do rapaz. Não levou muito tempo a convencer-se. Duas horas depois, cavalgava junto do basco e seu filho.
Seguindo o exemplo da população de San Luís, a Natureza parecia, também, em plena festa. Radioso Sol iluminava a pampa. Papagaios e pássaros de toda a espécie pairavam e cantavam nas moitas. Intensa luz e alegria se espalhava por toda a parte.
 - Precisa distrair-se um pouco - disse-lhe o ranchero, ao ver que ele permanecia silencioso e retraído. - Não se deixe dominar pelas suas preocupações.
Perez não respondeu; quanto mais se aproximava de San Luís, maior era a sua comoção. Enquanto o pai e o filho conversavam, pensava que talvez lhe fosse possível falar com Conchita.
Receava, todavia, que surgissem dificuldades, a entravar-lhe os projectos. A sua cabeça continuava posta a preço e estava decidido a tomar todas as precauções para defender-se, em caso de ser reconhecido.
Após duas horas de viagem, os três cavaleiros chegaram enfim à vista da povoação. A' medida que se aproximavam, cruzavam-se com grupos de gaúchos que, ostentando seus trajos de gala, se encaminhavam também para a fiesta. Alguns tocavam guitarras, e, ao vê-los, Perez recordou-se saudosamente do seu instrumento favorito, roubado por Yago; outros, mais numerosos, traziam à garupa jovens vestidas de sumptuosos trajos. Chailes de cores garridas cobriam os ombros das graciosas amazonas. Por vezes, surpreendidas por algum passo em falso dos animais, soltavam gritinhos de susto, que divertiam os seus companheiros. Ao vê-las, tão alegres e satisfeitas, o domador sentia dobrada melancolia. Toda aquela gente era feliz. Os gaúchos poderiam dançar o tango com as encantadoras companheiras... E êle, entretanto, que faria?... Encontraria, sem correr grande perigo, aquela que há tanto tempo desejava voltar a ver?
Incitando deliberadamente o seu cavalo negro, Perez meteu pela rua principal da cidade, seguido pelos companheiros. Ao evoluir por entre a multidão policroma que cantava e ria, procurava dissimular a perturbação cada vez maior que sentia.
A cada momento, receava que alguém o reconhecesse. Avistou mesmo, ao passar por entre os grupos, um dos vigilantes que o prendera; mas o representante da autoridade não mostrou dar pela sua presença. A fisionomia do fugitivo, endurecida e magra, em resultado de privações e sofrimentos, a barba que lhe sombreava o rosto, o fato que envergava - tudo isso contribuía para afastar as suspeitas. Ninguém esperava que o audacioso rapaz, acusado do assassínio de Gil Ribeira, se decidisse a comparecer à festa.
 - Vamos à locanda La Noche - disse Paulo Cohatéguy.
O domador não pôde reprimir um estremecimento. Dir-se-ia que o ranchero pretendia facilitar-lhe o seu maior desejo. Avançando a passo, através da rua cheia de gente e ornamentada de flores e bandeiras da República, Perez julgava viver um sonho. Tudo parecia agitar-se, à sua volta: a multidão, as casas batidas do Sol, os gaúchos que se cruzavam com êle e saudavam os Cohatéguy.
Por fim, conseguiram abrir caminho através da calçada coberta de barracas de tiro e de jogos, e chegaram à outra extremidade da povoação, parando em frente do estabelecimento de Juan Balermo, vistosamente engalanado.
Muitos cavalos estavam presos em frente da porta da locanda, quando o ranchero, o filho e o domador se apearam. Todavia, os três homens encontraram lugar para as suas montadas. Momentos depois, entravam na vasta sala. Perez reconheceu com facilidade o local onde pela primeira vez encontrara a jovem que tanto o preocupava agora. Densa multidão ali se acumulava. Os mesmos músicos acompanhavam as mesmas danças, sentados no estrado - tal como na noite da tragédia. O fumo era igualmente espesso, e os recém-chegados tiveram dificuldade em distinguir os vultos dos assistentes, pois seus olhos, habituados à gloriosa luz do Sol, recusavam-se a ver naquele ambiente obscurecido.
 - Olá, taberneiro de má morte! Onde nos descobres três lugares? - gritou Paulo Cohatéguy, avançando para o interior do estabelecimento.
 - A lá disposición de usted - respondeu Juan Balermo, comparecendo imediatamente.
O domador teve, por momentos, receio de que o pai de Conchita o reconhecesse, mas o homem nem pareceu dar pela sua presença. Tranquilizado, o gaúcho sentou-se junto dos companheiros, enquanto uma criada lhes trazia uma garrafa de pulque e outra de água fresca. Com profunda satisfação, os três homens, a quem o longo passeio e o calor da pampa enchera de sede, beberam alguns copos. Satisfeito, Paulo Cohatéguy acompanhava a música, batendo as mãos, a compasso, e já Ramón partira, pelo braço de uma dançarina, quando Perez estremeceu, ao reconhecer Conchita, entre os pares que evoluíam próximo. A jovem conservava a radiosa beleza e dançava com infinita graça; contudo, o domador julgou achar certa melancolia nas suas atitudes, muito diferente da alegria comunicativa do dia do seu primeiro encontro.
 - Então, Eugénio, não se decide a convidar algumas dessas jovens? - disse o ranchero.
O gaúcho encolheu os ombros. Não lhe faltava, de certo, vontade de se aproximar de Conchita, mas receava sempre que alguém, entre a assistência, o reconhecesse. Muitas das pessoas presentes tinham testemunhado a sua discussão e o combate com Gil Ribeira. Não seria uma imprudência arriscar-se a despertar-lhes a atenção?
Todavia, o desejo de falar com a filha de Juan Balermo foi mais forte do que os seus receios. Levantou-se e, rompendo por entre o grupo dos admiradores, que solicitavam a honra de acompanhar a jovem, na próxima dança, conseguiu aproximar-se. Um movimento brusco da multidão colocou-o em frente da encantadora rapariga... Então, sem hesitar mais, curvou-se para ela.
 - Quere dar-me o prazer de dançar comigo? - murmurou.
A jovem empalideceu subitamente, ao fitar o desconhecido que assim lhe falava. Junto dela, os gaúchos não deixaram de protestar indignadamente contra o intruso que, vindo depois deles, parecia decidido a suplantá-los, perante a filha de Juan Balermo. Não duvidavam de que ela lhe responderia com uma recusa categórica. Mas, com profundo espanto de todos, os lábios de Conchita descerraram-se para responder, e, ao mesmo tempo, um sorriso lhe iluminou a face:
 - Com muito gosto, senhor!... Depois, infinitamente graciosa, e antes que os seus inúmeros admiradores voltassem a si da surpreza experimentada, deixou-se arrastar pelo domador, que não desfitava dela o olhar enternecido.
Reconhecera-o imediatamente! Quantas vezes pensara nele, recordando a sua generosa intervenção, no momento em que Gil Ribeira a importunava? Quantas vezes evocara a elegante figura do domador, ao ouvir o tango Siempre, que ambos haviam dançado? Nunca, entre tantos pares que a convidavam a acompanhá-los, outro lhe produzira impressão tão duradoura. Além disso, sabia-o inocente e perseguido, e dedicava-lhe um interesse cujo verdadeiro significado nunca tentara analisar.
Agora, o desconhecido daquela noite voltara. Apesar da profunda modificação que se operara na sua fisionomia, reconhecera-lhe os olhos escuros. Ligeiro rubor lhe coloria as faces, ao deixar-se arrastar, obedecendo maquinalmente ao ritmo da música. Parecia-lhe que não podia ser real aquela aparição; contudo, eram os mesmos olhos, que tão profundamente a haviam perturbado e agora a fitavam, exprimindo a maior adoração. Durante algum tempo, voltearam em silêncio. Por fim, a jovem murmurou:
 - O senhor!... Como conseguiu...
 - Sim, sou eu, senorita - interrompeu o rapaz com voz breve. - Explicar-lhe-ei tudo...
Levados no turbilhão da dança, voltearam ainda alguns momentos. Olhando furtivamente em volta, a filha de Juan Balermo verificou se alguém os observava. Depois, murmurou ao ouvido do seu par:
 - Daqui a instantes... em frente da locanda...
O rapaz fez um sinal de assentimento; terminado o tango, separou-se da jovem, para não despertar suspeitas, e voltou para junto de Paulo Cohatéguy.
 - Os meus cumprimentos, amigo! - exclamou o ranchero, batendo-lhe amigavelmente no ombro. - Tem bom gosto... Escolheu a mais linda rapariga de San Luís...
 - Sangre de Cristo - disse um matador de estatura hercúlea, que se encontrava próximo deles, fitando no domador os olhos estranhamente pequenos. - Formam um lindo par! Vendo-os, não pude deixar de pensar em certo desconhecido que, uma noite, dançou nesta locanda e desapareceu, depois de ter enviado ad patres o estimável Gil Ribeira...
Perez suportou sem um estremecimento o olhar do importuno vizinho.
 - Ouvi já falar desse caso - respondeu serenamente.
 - Esse indivíduo é ainda procurado - continuou o outro. - Ali, na parede, está um retrato dele, com as indicações para a sua captura. E o mesmo sucede em todas as locandas de San Luís.
 - Esperemos que a justiça em breve apanhe o culpado - contentou-se em responder o rapaz, voltando-se para o basco.
Sem mais se ocupar com Perez, o colosso deitou aguardente no copo e continuou a interessar-se pelas evoluções dos pares.
Enquanto se travava o breve diálogo, Paulo Cohatéguy compreendera que Conchita estava longe de ser uma desconhecida para o seu auxiliar. Todavia, desejando não perturbar o rapaz, nada lhe preguntou. Ramón, por seu turno, continuava a divertir-se. Por fim, depois de ter trocado com o ranchero algumas palavras sem importância, Perez, que parecia não se sentir à vontade, levantou-se.
 - Desculpe-me - disse, - Vou ver se os nossos cavalos têm necessidade de alguma coisa.
O domador acabava de ver a filha de Juan Balermo, que, despedindo-se dos seus admiradores, saía da locanda.
O basco esboçou um sorriso, adivinhando os três animais não constituírem, na verdade, a principal preocupação do companheiro. Absteve-se, contudo, de retê-lo.
Com certo custo, o rapaz atingiu a porta da locanda, atravessando os grupos de consumidores. Saiu e, olhando em volta, procurou distinguir Conchita entre a multidão. Não teve dificuldade em reconhecer o chaile côr de rosa da jovem. Com o passo rápido, esta tinha deslizado até junto de uma barraca de tábuas que ficava em frente do estabelecimento.
Perez alcançou-a e penetraram ambos no oportuno refúgio. A barraca estava deserta. Só quatro cavalos, presos à mangedoura, a ocupavam. Sentaram-se a um canto e Conchita apressou-se a formular mil preguntas ao fugitivo.
 - Se soubesse, senor, como estava inquieta por sua causa? Por que milagre conseguiu chegar aqui? Não sabe que permanecer em San Luís pode ser perigoso para si?...
 - Não o ignoro, señorita - respondeu o domador. - Mas era preciso que voltasse a vê-la e lhe agradecesse... Graças a si, pude escapar aos vigilantes. Quando toda a gente me perseguia implacàvelmente, só a señorita teve compaixão de mim e acreditou na minha inocência...
 - Não tem de que me agradecer... Estou muito satisfeita por tornar a vê-lo... Receava tanto que lhe acontecesse alguma desgraça! Quási não acreditei nos meus olhos, quando, há pouco, o vi na minha frente... Não sei como me contive... Mas estou a falar de mais, sem deixar que me diga como conseguiu escapar a todos os perigos...
O rapaz explicou alguns dramáticos incidentes sucedidos desde que fugira da locanda La Noche. Contou-lhe a interminável vagabundagem pela pampa, o acolhimento simpático, dispensado por Paulo Cohatéguy, a conversa surpreendida entre o antigo capataz e o lanzador. Quando terminou, Conchita, que não o interrompera uma só vez, exclamou:
 - Mas, então, existem provas da sua inocência!...
 - Yago tem, no cinto, uma declaração que bastaria para me absolver e denunciar os verdadeiros autores da morte de Gil Ribeira. Infelizmente, tentei, sem resultado, capturá-lo, quando êle procurava apoderar-se das nascentes de Paulo Cohatéguy... Não sei se voltarei a ter outra oportunidade.
 - O lanzador veio à fiesta. Vi-o chegar à locanda, na companhia de Marco Palavez. Saíram um quarto de hora antes do senhor chegar, mas não devem estar longe; os seus cavalos estão presos além... Creio mesmo que Yago trouxe o cavalo branco...
 - Ardiente está aqui! - exclamou Perez, muito agitado. - Se pudesse àpanhar-lho...
 - Não faça isso! - avisou a filha de Juan Balermo. - Mais vale esperar até que tenha em seu poder as provas capazes de desmascarar os culpados.
O domador facilmente compreendia, com efeito, qualquer tentativa sua, visando o seu fiel cavalo, constituir uma imprudência.
 - É "absolutamente necessário deitar a mão ao papel de que lhe falei - disse por fim.
 - Tenha paciência por mais algum tempo, suplico-lhe - murmurou Conchita, pegando-lhe nas mãos. - Se puder ajudá-lo, fá-lo-ei da melhor vontade. Sentir-me-ei feliz, se contribuir para demonstrar a sua inocência...
A filha de Juan Balermo interrompeu subitamente a frase. O companheiro levara um dedo aos lábios, a recomendar silêncio. No meio da multidão que ia e vinha, sem cessar, acabavam de ver, pela porta aberta, de par em par, o lanzador, discutindo animadamente com Marco Palavez.

CAPÍTULO XXI
O combate de galos
OS dois homens não deram pelo domador. Sem dúvida, as palavras que trocavam não eram muito cordeais, pois pareciam bastante irritados um com o outro. Sem esperar mais, Perez acompanhado por Conchita, seguiu o antigo capataz e o cúmplice. Apesar da multidão compacta, não os perdeu de vista. Ao cabo de alguns instantes, a jovem disse-lhe:
 - É melhor que nos separemos. Não devo continuar junto de si, para não despertar suspeitas. Vendo-nos, talvez o estanciero conseguisse identificá-lo... Encontrar-nos-emos outra vez, na locanda.
O rapaz sentiu-se desolado por deixar a sua gentil companheira, mas compreendeu a razão do seu reparo. Trocaram um breve aperto de mão, e a filha de Juan Balermo desapareceu rapidamente, enquanto, resoluto, o domador rompia por entre os grupos, em seguimento dos dois
miseráveis, que continuavam a discutir, com a maior animação.
Sem desconfiar da proximidade do seu pior inimigo, Marco Palavez e Yago caminhavam lado a lado. Se o gaúcho estivesse mais perto deles, teria ouvido o sucessor de Gil Ribeira dizer, bastante irritado:
 - Mais mil pesos! Caramba!... Julgas que poderás explorar sempre assim as minhas algibeiras?...
 - Tenho comigo um papel pelo qual darias cem vezes essa quantia... - respondeu o outro.
 - Mais baixo, desgraçado! Não vês que podem ouvir-nos?... Dou-te o dinheiro que pedes, mas hás-de restituir-me o papel. Se aceitas, pega lá os mil pesos...
 - Nada disso, amigo! Estou muito satisfeito por ter o teu autógrafo... Quando entender que devo dar-to, por já ter sido convenientemente pago o meu trabalho, prevenir-te-ei... Por agora, trata-se apenas de apostar no rueno (1) e não posso aparecer lá sem um simples boliviano na algibeira... Se não aceitas a minha proposta,
ali o nosso comum amigo Ricardo... Encaminha-se para nós e talvez lhe agrade resolver a nossa divergência...
 - Está bem! Está bem! - atalhou o estanciero, sentindo suor frio perolar-lhe as fontes. - Por la muerte! Sempre fui muito estúpido em assinar esse documento!...
Yago sorriu, com ar triunfante. O miserável compreendia estar senhor da situação. Marco Palavez não era mais do que um brinquedo, nas suas mãos. Na verdade, nunca se resolveria a executar a ameaça, tão comprometedora para êle como para o outro, mas usava-a para obter do herdeiro de Gil Ribeira tudo quanto desejava.
Em breve, arrastados pela onda humana, chegaram à praça central de San Luís, onde se erguiam numerosas barracas. O tiro ao alvo e as lotarias, porém, parecia não atraírem, naquele momento, a atenção geral; todos se dirigiam para o local onde ia realizar-se o rueno.
O gaúcho da pampa tem três paixões: o cavalo, a guitarra e os combates de galos. Muitas vezes, gasta o dinheiro que juntou durante longos meses numa simples aposta a favor do galináceo favorito. O entusiasmo despertado por esse género de desporto era bem evidente nos grupos que ali se acumulavam. Ricos estancieros, gaúchos, peones, pastores, amazonas, homens e mulheres de San Luís comprimiam-se e empurravam-se, à volta de uma minúscula arena, onde o combate se efectuaria. Não havia nenhum lugar vago, na bancada que rodeava o recinto. Os dois cúmplices tiveram de contentar-se em ficar de pé, erguendo-se o mais possível, para não perder as peripécias do encontro.
Na primeira fila, sentado numa confortável cadeira, Benigno Camorral presidia solenemente. E eram numerosas as pessoas que o olhavam com inveja, pelo lugar privilegiado onde se instalara, mas o alcaide de nada se apercebia, todo entregue à apreciação dos preparativos para o rueno.
A multidão aumentava sem cessar, e os vigilantes, encarregados de manter a ordem, tinham sérias dificuldades para se impor. Por fim, estabeleceu-se o silêncio, quando Alfonso Tabolar, organizador do combate, se ergueu no meio da arena, limitada por quatro postes cravados no solo, formando um quadrilátero de dezasseis metros quadrados.
 - Senoras y senores! - disse a imponente personagem. - Vão defrontar-se neste recinto dois adversários que só têm conhecido vitórias, até hoje: Blanco e Verde! Esperámos pela festa de San Luís, para promover este combate, que marcará entre os mais sensacionais ainda realizados!
Exclamações e aplausos estrondearam por toda a parte. Os chapéus agitaram-se nos ares. Blanco e Verde eram, com efeito, há muito conhecidos dos amadores de rueños; o primeiro triunfara dos adversários, em Mendoza, no decorrer de seis combates renhidos; o segundo era o verdadeiro campeão de San Luís, e todos quantos haviam apostado por êle se tinham saído bem.
Iniciaram-se imediatamente as apostas:
 - Cem onças, no Branco!
 - Cinquenta pesos, no Verde!
 - Vinte bolivianos, pelo Verde!
As moedas de ouro e de prata começaram imediatamente a acumular-se nas mesas colocadas de ambos os extremos da arena, do lado de fora, e onde dois indivíduos inscreviam os nomes dos apostadores e as quantias propostas, procedendo com método e sem se perturbarem com a afluência de jogadores entusiastas. O favorito parecia ser o Branco, a boa distância do antagonista.
 - Mil pesos no Verde! - gritou de súbito o lanzador.
 - Aceito! - respondeu um ranchero que estava perto.
 - Para que arriscas tanto dinheiro? - observou Marco Palavez, tomando o braço do cúmplice.
Sabia, com efeito, caberem-lhe as despezas, naquela partida. Se o outro perdesse, reclamaria mais dinheiro, ameaçando entregá-lo aos vigilantes, caso recusasse; mas Yago não ligou a menor importância à intervenção. Com os olhos brilhantes de entusiasmo, afastou os importunos que lhe tiravam a vista, pois não queria perder um só pormenor do encontro.
Por mais impaciente que estivesse, teve de resignar-se e esperar que terminasse a inscrição das apostas, que, às centenas, afluíam às mesas do registo; as mulheres não se mostravam menos arrebatadas do que os homens. Gesticulavam e discutiam todos, com tal veemência que Ricardo e os seus auxiliares intervieram numerosas vezes, para separar aqueles a quem a admiração pelos respectivos favoritos levava a agredir os antagonistas.
Por fim, a agitação cessou como por encanto, à entrada, no recinto vedado aos espectadores, e entraram dois homens, vestidos de negro: eram os peritos.
 - Senhoras e senhores - declarou então o organizador do rueño - estes caballeros desejam ter junto de si dois apostadores, um a favor do Branco, o outro pelo Verde, para que fiscalizem melhor a forma como decorre o encontro.
Dois gaúchos saltaram imediatamente a corda que formava a vedação e instalaram-se junto dos juízes do combate. Impressionante silêncio sucedera ao tumulto de momentos antes. A um sinal de Alfonso Tabolar, duas novas personagens penetraram no recinto.
 - Os proprietários dos dois campeões! - gritaram numerosas vozes.
Trazendo cada um debaixo do braço um galo, os indivíduos assim designados avançaram, e, tirando os chapéus, saudaram amavelmente a assistência. Reboaram as aclamações:
 - Bravo, Verde!
 - Não é um galo, é um demónio!...
 - Viva o Branco!
 - Vi-o lutar em Mendoza! Em dois minutos, esmagou o adversário.
Enquanto estas e outras exclamações se cruzavam, os dois galináceos permaneciam imóveis e indiferentes; o primeiro merecia bem o nome. A sua plumagem, de deslumbrante alvura, atraía os olhares; quanto ao Verde, campeão favorito dos habitantes de San Luís, era bem conhecido pelo verde escuro das suas penas e a magnífica cauda negra.
Com mil precauções, os proprietários dos dois preciosos bichos prepararam-nos para o combate. Primeiro, os peritos examinaram-nos, para verificar se algum deles fora untado com sebo ou com algum perfume demasiado forte, susceptível de neutralizar os ataques ou de perturbar o adversário. Cumprida esta formalidade, os donos dos campeões trataram de fixar-lhes aos esporões longas pontas de ferro, bem aguçadas. Eram as armas com que iam bater-se.
Depois, alisaram-lhes as penas, com auxílio de água fresca, posta à sua disposição, num balde. Nenhum subterfúgio era possível, Centenares de olhos assistiam às operações, e não desfitavam os dois contendores; estes, insensíveis ao interesse que despertavam, deixavam os donos proceder ao minucioso tratamento.
Por fim, o organizador do rueno deu um assobio. O combate ia principiar. Muito comovido, Benigno Camorral aspirou uma boa pitada de tabaco. Apostara trezentos pesos no Branco, e esperava confiadamente que o animal saísse vencedor do encontro.
 - Vamos! - comandou Alfonso Tabolar.
Depois de uma última apresentação ao exame dos peritos, os proprietários dos dois campeões foram colocá-los nos extremos da arena. Poder-se-ia ouvir voar uma mosca, tal era o silêncio da assistência. Com efeito, segundo as regras, nenhuma palavra devia ser pronunciada, pois qualquer grito de encorajamento ou de censura era severamente proibido, enquanto durasse o combate.
A princípio, o Blanco mostrou mais ardor combativo do que o adversário. Sacudiu-se vigorosamente e bateu as asas; depois, resoluto, correu sobre o antagonista. Em vez de suportar o assalto, o galo verde afastou-se, evitando as bicadas do outro. Dir-se-ia recusar-se a combater, visto fugir precipitadamente; mas tratava-se de uma manobra. Apenas o Blanco, considerando-se já vencedor, soltou sonora cantiga de triunfo, o campeão de San Luís voltou-se e aplicou-lhe furiosa bicada.
As fisionomias dos partidários de Verde, visivelmente preocupadas, recuperaram a serenidade. O lanzador dificilmente conteve o entusiasmo, ao passo que o alcaide crispou a mão na inseparável bengala.
O galo branco não ripostara ao ataque do adversário; parecia admiradíssimo. Imobilizara-se, com as penas do pescoço eriçadas; mostrava-se, contudo, disposto a castigar severamente o autor da agressão.
Mas o Verde encarregou-se de reduzir o antagonista à defensiva. Com fúria irresistível, atirou-se a êle, crivando-o de bicadas; saltou-lhe para cima, cravando-lhe os esporões nos flancos. O campeão de Mendoza defendeu-se como pôde. Travou-se então luta encarniçada, no meio de uma revoada de penas. Por várias vezes, os contendores foram a terra, e algumas gotas de sangue mancharam a minúscula arena. A plumagem de Blanco apareceu maculada de vermelho, em muitos pontos.
O galo de Mendoza em vão procurava evitar os tremendos golpes do outro; até aquela data, saíra sempre vencedor e nenhum inimigo lhe opusera tamanha resistência. Vencera-os facilmente. Soltando furiosos gritos, atirava-se para a frente, enlouquecido pelos ferimentos que sem cessar recebia; mas o Verde mostrava-se lutador experimentado. A sua rapidez estonteava o adversário. Caía constantemente sobre êle, apenas o infeliz, que começava a dar sinais de fadiga, lograva desenvencilhar-se.
Era visível a vantagem do campeão de San Luís.
O outro perdia sangue em abundância; enfraquecia, as suas reacções eram menos rápidas. Por fim, incapaz de resistir mais, fugiu, batendo as asas, e, perseguido pelo outro, saltou a vedação da arena. Estava derrotado.
Imediatamente, reboaram ensurdecedores aplausos e aclamações ao vencedor. Aqueles que tinham apostado no Blanco, pelo contrário, mi-moseavam o seu favorito de há pouco com os piores epítetos. O pobre galo de Mendoza refugiara-se junto do dono, cujo desapontamento era evidente.
Senhor do terreno, o Verde pavoneava-se orgulhosamente, alisando as penas com o bico e soltando sonoras cantigas. Nem parecia sentir as feridas que também recebera.
O alcaide, desolado, recostara-se melancolicamente na cadeira. Eram muitos os que o acompanhavam no desgosto, por terem considerado invencível o campeão de Mendoza. Pelo contrário, o lanzador manifestava ruidosamente a alegria que lhe causava a vitória do seu favorito.
Perez Mariposo misturara-se, durante o rueno, com a multidão dos espectadores. Em tempo normal, o desenrolar da luta tê-lo-ia absorvido por completo; mas, desta vez, desejoso de não perder de vista os dois cúmplices, fitara mais estes do que os dois belicosos galináceos. Durante a confusão que se estabeleceu no fim do combate, perdeu-os de vista, por momentos; depois de se ter debatido baldadamente, entre a multidão, viu Yago reaparecer, brandindo um saco com os pesos acabados de ganhar. O triunfo parecia entusiasmá-lo ao mais alto ponto.
 - Venham, amigos, venham todos! - gritava. - Pago eu! Venham à locanda La Noche! Há ali excelente pulque e tequila das melhores!...
Bastante inquieto, o estanciero procurava acalmar o cúmplice. Mas este, já impaciente, replicou, por fim:
 - Caramba! Não posso fazer o que quero?! A sorte favoreceu-me e tenho o direito de associar estes caballeros à minha boa fortuna!
Rodeado por uma centena de gaúchos, atraídos pelo oferecimento que lhes fora feito, Yago dirigiu-se para a locanda. O sucessor de Gil Ribeira resignou-se a segui-lo, preguntando a si próprio se o lanzador não perderia a cabeça, fazendo-lhe mais uma vez pagar as despesas daquela inconsiderada generosidade.
Perez a custo logrou conservar-se na esteira de Yago e seus companheiros, mas, como ouvira dizer que iam para a locanda de Juan Balermo, prometia a si mesmo alcançá-los, custasse o que custasse, e esperava, no estado de exaltação em que aquele se encontrava, apanhar alguma declaração imprudente.
De súbito, um choque brusco deteve o domador. Preocupado em não perder de vista o lanzador, fora de encontro a um indivíduo, que o advertiu, com voz forte:
 - Preste atenção, amigo!
O rapaz estremeceu. Parecia-lhe ter já ouvido aquela voz. Voltando-se, viu-se em frente de Ricardo, que o fitava com insistência.
Perez sentiu-se perdido. A atitude do chefe dos vigilantes era inquietante. Seus olhos pareciam ler até ao fundo do pensamento. Apesar de tudo, manteve a calma, dominando a comoção. Durante segundos, os dois homens encararam-se sem titubear; o domador murmurou algumas palavras de desculpa e perdeu-se de novo no meio da multidão, enquanto o representante da autoridade, perplexo, dizia para consigo:
 - Onde diabo vi eu esta cara!...
Perez não tinha o menor empenho em continuar nas proximidades de Ricardo. Apressou o passo, voltando-se várias vezes, para verificar se êle o seguia. Não o vendo, serenou e prosseguiu o caminho, sempre desejoso de alcançar o sucessor de Gil Ribeira e o cúmplice.
Em breve, estes, acompanhados por uma centena de indivíduos, atingiram a locanda La Noche, onde penetraram, e o rapaz imitou-os.

CAPÍTULO XXII
O duelo a chicote
CONCHITA apressara-se a voltar para junto dos pais. Juan Balermo e a mulher estavam já inquietos por não a verem no estabelecimento, onde a dança não parara. Deslizando pelos grupos, ela regressou ao local onde se encontrava, no momento em que Perez Mariposo lhe surgira na frente. Ao vê-la os rapazes que pretendiam dançar com ela soltaram vivas aclamações. Em breve, a jovem dissipou quaisquer desconfianças, respondendo amavelmente aos convites.
Enquanto se deixava arrastar no rodopio dos tangos, não cessava de rememorar a conversa que tivera com o domador. As revelações deste preocupavam-na no mais alto grau. Sabendo que Yago trazia no cinto a prova da inocência de Perez, prometia a si mesma apoderar-se do precioso documento; mas não imaginava como consegui-lo. A tarefa, porém, impunha-se-lhe, pois de forma alguma desejava que o gaúcho pagasse, tarde ou cedo, pelo crime dos outros.
O coração de Conchita batia com força, quando, indiferente às palavras que os pares lhe dirigiam, pensava naquele que, desafiando todos os perigos, voltara para vê-la. Comprendia agora quanto lhe queria!... Em defesa da liberdade e da existência de Perez, estava disposta a fazer o impossível!
O tempo corria lentamente, para a jovem,
enquanto se sucediam os tangos, na atmosfera
quási irrespirável da locanda. Até que apareceu
à entrada, a alta figura do lanzador, seguido de
numeroso grupo de gaúchos e peones.
 - Venham, amigos - gritava êle, satisfeito por haver ganho a aposta. - É Yago quem paga!
Abrindo caminho com os cotovelos, o companheiro de Marco Palavez acercou-se de uma das mesas.
 - Vamos, Balermo! - disse, dando um formidável soco no móvel. - Aguardente e pulque para todos estes caballeros!
Sem deixar de dançar, Conchita não perdia de vista os recém-chegados. Viu também Perez, que, depois de lhe dirigir um olhar de aviso, fora juntar-se a Paulo Cohatéguy e a seu filho.
Então, uma ideia se apoderou da jovem. Procedeu de forma a aproximar-se, dançando, do lanzador, que parecia extremamente sequioso de pulque, pois bebia copo sobre copo. Em breve, ela conseguiu chamar a atenção do cúmplice de Marco Palavez.
Meio embriagado, o bandido gesticulava sem cessar, multiplicando os protestos de amisade aos seus convidados. Parando de dançar, a jovem foi sentar-se junto dele. Avistara o famoso tirador; e, depois de trocar algumas palavras banais com Yago, disse-lhe:
 - Tem um cinto muito bonito!
Ouvindo a filha de Juan Balermo pronunciar estas palavras, o lanzador deu uma palmada no ombro do estanciero.
 - Vês, Marco!... - exclamou. - As mulheres reparam em mim... Sim, tenho um lindo cinto, e não o daria por todo o ouro do Mundo - acrescentou, voltando-se para Conchita.
Um clarão brilhou nos olhos do sucessor de Gil Ribeira. A alusão da jovem ao tirador do cúmplice recordava-lhe o documento nele encerrado. Se pudesse aproveitar a embriaguez de Yago para se apoderar do comprometedor papel... Destruiria a única prova do crime, e deixaria de ser um joguete nas mãos do outro.
Mudando então de atitude, tratou de deitar mais pulque ao companheiro.
 - Vamos, amigo, bebe! - disse. - Tens razão. É preciso distraírmo-nos um pouco...
Como os olhares de Conchita continuassem fixos no cinto, o miserável exclamou:
 - Queres vê-lo mais de perto, chica?
Desapertou o tirador e estendeu-o à jovem, que se pôs a mirar com manifesto interesse os arabescos desenhados no couro e as moedas de ouro e de prata que o ornavam.
 - O seu cinto está bem guarnecido! - disse a jovem, rindo, enquanto seus dedos ágeis tac-teavam os bolsos do tirador.
O estanciero a custo se conteve para não tirar o cobiçado objecto das mãos de Conchita. Se ela levasse demasiado longe as suas pesquisas, poderia descobrir o célebre documento. Mas o lanzador, consciente também desse perigo, pegou bruscamente no cinto e colocou-o de novo.
Marco Palavez soltou um suspiro de alívio; receava ver-se desmascarado, diante de toda aquela gente. A sua inquietação não passou despercebida à jovem. Fez um gesto de despeito, mas Yago explicou:
 - Sabes, chica, guardo toda a minha fortuna e papéis importantes, no cinto, e não posso deixá-lo em mãos alheias...
A jovem compreendeu ter falhado a tentativa. O assassino de Gil Ribeira era desconfiado. Contudo, não desanimou.
Do seu lugar, Perez Mariposo assistira, com certa inquietação, à manobra de Conchita. Aquela súbita familiaridade com o lanzador não lhe agradara, mas depressa compreendera a filha de Juan Balermo agir assim para tentar apoderar-se do famoso papel.
Meia hora decorreu, infinitamente lenta para o rapaz. Por fim, Yago levantou-se. Depois de dirigir algumas palmadas amigáveis aos gaúchos que o rodeavam, atirou dez ou doze pesos para cima da mesa e dirigiu-se para a porta, sempre seguido pelo antigo capataz.
Este decidira não abandonar o companheiro um só momento. Pressentia estar próxima a ocasião em que êle tombaria, completamente embriagado. Se tal eventualidade se produzisse, ser-lhe-ia fácil subtrair-lhe o documento.
O lanzador não parecia admirado com a atitude de Marco. Cantava e ria como um possesso, e o antigo capataz associava-se a estas manifestações. A certa altura, agarrando o rebenque que lhe pendia do pulso, Yago começou a fazê-lo estalar à sua volta, obrigando as pessoas a afastar-se, para lhe abrir caminho.
Perez Mariposo levantara-se, também, e seguia-o, acompanhado de Ramón e seu -pai. Verificara o estado do lanzador e não desejava perder qualquer súbita oportunidade. Conchita imitara-o, abandonando imediatamente a dança.
Sem reparar que eram seguidos, os dois cúmplices encaminharam-se para o local onde estavam amarrados os cavalos. Ardiente encontrava-se ali, e, assaltado por uma nuvem de moscas, mostrava-se impaciente.
Sem nada que justificasse o seu gesto, Yago levantou o chicote:
 - Vou ensinar-te a ser mais dócil, bicho do diabo! - berrou. - Hás-de aprender a ter paciência!
Brandiu o rebenque. A vista do fogoso animal enfurecera-o; queria bater, bater muito, para acalmar aquele inexplicável acesso de fúria. A alegria de há pouco transformara-se em cólera.
Por três vezes, a tira de couro estalou nos ares e foi cair sobre o cavalo. Relinchando, o animal encabritou-se, procurando partir a corda que o prendia e dando grandes saltos laterais, para escapar ao injusto castigo.
De todos os lados, partiram gritos de indignação ; mas estes, em vez de acalmarem o miserável, mais o excitaram. Erguera mais uma vez o chicote, para atingir Ardiente, quando sentiu alguém arrancar-lho da mão. Agarrado por força irresistível, foi estatelar-se a três passos de distância...
 - Sangre de Dios!... - berrou, louco de cólera. - Quem é o canalha...
As palavras morreram-lhe nos lábios. Acabava de ver na sua frente, de chicote em punho, o vulto de Perez Mariposo.
Ao presencear os maus tratos infligidos ao seu velho companheiro, o rapaz não pudera conter-se. Interviera, e desafiava agora o adversário. A' volta, a multidão, cada vez mais numerosa, aprovava manifestamente o seu gesto.
Yago levantou-se. Levou a mão à navalha.
Saltando como se fosse um tigre, atirou-se ao domador.
Exclamações de terror soaram entre a assistência. Mas, executando um salto brusco para o lado, Perez evitou, com extraordinária agilidade, o golpe que o miserável ia dirigir-lhe; como este pretendesse renovar o ataque, o gaúcho ergueu o chicote e a correia atingiu o pulso de Yago, obrigando-o a largar a arma. Antes de êle a agarrar de novo, o auxiliar de Paulo Cohatéguy prendeu-lhe o braço, com força prodigiosa.
O bandido soltou um rugido de dor.
 - Hei-de matar-te! - berrou.
Mas a ameaça não perturbou o rapaz.
 - Disseste que voltaríamos a encontrar-nos, no dia em que tentaste apoderar-te das nascentes... - disse-lhe com voz calma. - Os acontecimentos justificaram as tuas previsões...
Imóveis entre os espectadores, o basco, Ramón, Conchita e Marco Palavez assistiam ao incidente, dominados por pensamentos bem diversos.
 - Matar-te-ei! - vociferou de novo o lanzador, a quem o antagonista não largara.
 - Está bem, hás-de matar-me... - respondeu o rapaz. - Parece, porém, que não segues esse caminho...
 - Quero um duelo, tum duelo de morte! - berrou o miserável, a quem o desaire exasperava.
 - Muito bem, estou às tuas ordens. Mas sei que és demasiado forte em servir-te da navalha.
Se queres um duelo, bater-nos-emos a chicote. Veremos se te sentes tanto à vontade diante de um adversário resoluto como em face desse pobre cavalo que não podia escapar aos teus maus tratos...
Ouviu-se um murmúrio aprovador da multidão.
 - Muito bem! A chicote! A chicote!
O lanzador parecia uma fera acossada. Com o rosto congestionado, incapaz de raciocinar, compreendia, contudo, não poder recusar o combate.
 - Por la muerte! Seja a chicote! - rosnou, por fim. - Provarei a esse franganote que sou capaz de matá-lo como a um cão!
A multidão afastou-se um pouco, enquanto os dois adversários se preparavam para a luta. Com um gesto brusco, Perez atirara o rebenque aos pés de Yago ; depois, tranquilamente, despira o casaco, a camisa e o tirador, confiando-os a Paulo Cohatéguy. O lanzador imitou-o.
Um clarão brilhou nos olhos de Marco Palavez; aproximou-se do cúmplice, estendendo a mão, para que êle lhe confiasse o precioso cinto; mas, sem dúvida, Yago não alimentava confiança ilimitada no amigo, pois afastou-o, com um gesto brusco. Percorrendo a assistência com o olhar, procurou alguém que pudesse encarregar do precioso depósito. Avistando Conchita, disse-lhe:
 - Guarda, chica, é um grande favor!
A filha de Juan Balermo apressou-se a aceitar a incumbência, a custo dissimulando a satisfação que sentia. O miserável fora ao encontro do seu mais ardente desejo.
A atenção geral estava bem longe, naquele momento, de se preocupar com a jovem. Toda aquela gente sentia vivo empenho em assistir ao duelo. Por várias vezes, tinham visto gaúchos baterem-se à navalha, mas os duelos a chicote eram muito raros.
Perez e Yago ficaram nus da cintura para cima. O aspecto do lanzador era tremendo. Muito mais alto do que o adversário, e espumando de furor, constituía um inimigo de respeito, e, à primeira vista, podia julgar-se ser-lhe fácil vencer o domador. Mas este dera já à multidão provas de notável destreza e força muscular. O resultado do encontro era, por isso, bastante duvidoso!
Lentamente, os dois antagonistas, segurando o rebenque na mão crispada, afastaram-se cinco passos, de costas um para o outro; depois, voltando-se, ficaram frente a frente.
Então, soltando uma terrível praga, o cúmplice de Marco Palavez atirou-se ao adversário. O chicote estalou no área tira de couro cingiu o dorso do rapaz, marcando-o com um sulco ensanguentado.
A ofensiva não fez recuar o gaúcho; cerrando os dentes, insensível à dôr, respondeu, e,
atingido em pleno rosto e meio cego, Yago vacilou. O seu rebenque volteou várias vezes nos ares, mas Perez, surpreendentemente ágil, evitou a maioria dos golpes.
O estalar dos chicotes sucedia sem descanso. Três minutos depois de iniciado o trágico duelo, os corpos dos dois lutadores estavam cobertos de sulcos avermelhados. Desejoso de vencer rapidamente a resistência do adversário, o lanzador descobria-se imprudentemente, e Perez não perdia um único ensejo de colocar os seus golpes certeiros.
Yago esperava, a cada momento, ver o domador cair inanimado, mas este parecia invencível. Dir-se-ia que a terrível correia não lhe fazia o menor mal. Exasperado, o bandido, a quem as enérgicas respostas do antagonista abalavam cada vez mais, sentia as forças abandonarem-no.

CAPÍTULO XXIII
Denunciado pelo cavalo
ENQUANTO decorria o duelo, Marco Palavez não ficara inactivo. Pouco lhe importava que o cúmplice saísse ou não vitorioso... A sua preocupação era outra: Conchita tinha em seu poder a prova do crime de ambos; era preciso deitar-lhe a mão.
Assim, enquanto toda a gente se voltava para a improvisada arena e o sinistro estalar dos rebenques enchia o ambiente, o estanciero tratou de procurar a jovem.
Não foi sem custo que o sucessor de Gil Ribeira conseguiu chegar perto dela. Os assistentes faziam os maiores esforços para manter-se nas primeiras filas, a fim de não perderem as peripécias da luta.
A filha de Juan Balermo pareceu não dar por Marco Palavez; com o rosto contraído, via o sangue correr pelas costas e pelo peito do domador. Contudo, conservava debaixo do braço o cinto que Yago lhe confiara. Desejando ardentemente a vitória do seu amigo, verificava com alegria a coragem de que êle dava provas e a hábil tática empregada na defeza.
De repente, estremeceu... Alguém lhe pusera a mão no ombro. Voltou-se e viu o estanciero; este, esboçando um sorriso com pretensões a aliciante, mas muito parecido com uma careta, disse-lhe:
 - Santas tardes, senorita!
A jovem não estava disposta a conversar; mas o seu silêncio não desconcertou o antigo capataz. Estendendo a mão para o precioso cinto, propôs:
 - Permita-me que a liberte desse encargo, senorita. Eu próprio o darei depois a Yago...
A filha de Juan Balermo não fez qualquer objecção. Radiante; Marco Palavez apoderou-se do cobiçado tirador e afastou-se um pouco. Reparou se alguém o observava e, vendo todos preocupados com o duelo, tratou de procurar o comprometedor documento nos bolsos do cinto, evitando fazer tilintar as moedas. Chegou a recear que o lanzador tivesse ocultado a imprudente declaração noutro local; mas em breve serenou. Sob os dedos, tinha um papel dobrado em quatro. Estava ali o que êle procurava!
Olhando furtivamente em volta, retirou com rapidez o papel do cinto e meteu-o na algibeira, sem se demorar a examiná-lo, temendo que alguém surpreendesse a manobra. Realizada  a proeza, e não querendo despertar suspeitas, simulou prestar a maior atenção ao combate, que prosseguia, mas cujo resultado já não admitia dúvidas.
Em vão, Yago se atirava ao seu intrépido antagonista. Evitando a maioria dos golpes, o domador ripostava com força e destreza pouco comuns, provando ser um mestre no manejo do rebenque.
Ofegante, a multidão não poupava aplausos e encorajamentos aos lutadores; mas Perez tornara-se manifestamente o preferido. A sua atitude entusiasmava a assistência. Louco de raiva, Yago sentia aproximar-se a derrota, quando uma voz dominou as aclamações e comentários do público:
 - Lugar ao señor alcaide!
Benigno Camorral, passando a certa distância, fora atraído pela extraordinária afluência ao sítio. Intrigado, tentara abrir passagem, interrogando algumas pessoas que, nas pontas dos pés, procuravam ver o combate. O estalar dos chicotes e as pragas, cada vez mais furiosas, aumentaram as desconfianças da digna autoridade, que alguém, por fim, elucidou. O seu espanto e indignação não conheceram limites, quando soube tratar-se de um duelo a chicote.
 - Mas os combates desse género estão proibidos! - gritou, enfurecido.
Baldadamente, porém, o conspícuo magistrado quis romper o círculo formado à volta dos contendores. Empurraram-no sem a menor cerimónia, pisaram-no com rudeza, sem atender aos seus protestos nem às importantes funções que desempenhava.
 - Em nome da lei, deixem-me passar! - gritou ainda o alcaide.
O homenzinho esforçou-se em vão. Mesmo que anunciasse ser o presidente da República, não obteria mais êxito. O interesse da multidão pelo combate fazia-a esquecer quaisquer considerações.
 - É incrível! - gritava. - E não aparece um único vigilante, para manter o respeito à lei!... Isto é um autêntico motim... uma revolução!... Vamos, caballeros, afastem-se, deixem-me cumprir os deveres do meu cargo!
Os gritos dos espectadores e o estalar dos chicotes dominaram-lhe a voz, e Benigno Camorral desistiu de impor a sua autoridade. Contentou-se em limpar o copioso suor que lhe corria pelo rosto congestionado. Nunca se vira em tais dificuldades; jamais os seus administrados haviam sido tão surdos às suas palavras.
A certa altura, soltou um suspiro de alívio. Acabava de avistar Ricardo, atraído também pelo ajuntamento. Vendo o alcaide em dificuldades, o chefe dos vigilantes apressou-se a juntar-se-lhe. Em poucas palavras, Benigno Camorral informou-o.
Mais vigoroso do que o seu superior, o representante da autoridade penetrou resolutamente na barreira humana, bradando com a sua voz estentórica:
 - Lugar ao senor alcaide!
Produziu-se certo movimento na multidão. Abrindo caminho, Ricardo avançou alguns passos. O estalar dos rebenques era agora mais espaçado. De repente, antes de o chefe dos vigilantes e o seu companheiro atingirem o teatro do combate, estalou uma formidável ovação. Dominando a resistência do lanzador, Perez acabava de vencê-lo. Incapaz de suportar por mais tempo o sofrimento atroz que lhe infligia o adversário, Yago caíra por terra. O chicote escapou-lhe da mão, e deixou-se ficar, estendido, enquanto o domador, triunfante, se lhe erguia na frente, ainda com o rebenque levantado.
Conchita julgava sonhar. Era preciso, com efeito, Perez ser dotado de uma coragem e resistência a toda a prova, para assim vencer um indivíduo considerado entre os mais fortes e denodados da pampa. As vítimas do lanzador eram inumeráveis; até ali, saíra sempre vencedor de recontros semelhantes.
Paulo Cohatéguy e o filho tinham-se aproximado do seu auxiliar, e o basco não deixou de dizer-lhe:
 - Foi soberbo, amigo! Nunca assisti a um combate tão impressionante!
De todos os lados, choviam felicitações ao vencedor, tanto mais entusiastas quanto era certo Yago ser bastante temido. Mas o rapaz parecia não ver a multidão de admiradores. Fitava Conchita, com indizível expressão de triunfo. A presença da filha de Juan Balermo, num momento tão crítico, insuflara-lhe novas energias e não fora de modo algum estranha ao brilhante resultado do combate.
Mas logo todos se afastaram, para dar passagem ao chefe dos vigilantes e ao alcaide, que tinham finalmente aberto caminho. Pararam junto do triunfador, a quem Ricardo fitou com insistência. Reconheceu imediatamente o homem que chocara com êle, pouco tempo antes, na rua. A voz aguda de Benigno Camorral pôs fim àquele exame.
 - É uma indignidade! - gritou. - Desobedece-se à lei, em San Luís!... Num dia de festa, tolera-se que dois indivíduos se entreguem a um duelo, como se estivessem numa toldería(1)... Não permitirei tais hábitos selvagens!... Serão severamente punidos!
O chefe dos vigilantes atalhou a indignação demasiado palavrosa do seu superior.
 - As suas ameaças para nada servem, senor alcaide - disse, tão calmo quanto o companheiro estava congestionado. - O facto está bem patente:
(1) Aldeia de índios.
estes dois homens bateram-se e importa agora conhecer os motivos do conflito. Depois, serão castigados.
Ao ver Ricardo, o domador dificilmente contivera um estremecimento. Saíra vencedor do duelo com Yago, mas via na sua frente um perigo muito mais para recear. Bastava, com efeito, que o recém-chegado o reconhecesse, para êle ser de novo acusado do assassínio de Gil Ribeira. Os ferimentos produzidos pelo antagonista faziam-no sofrer cruelmente; apesar de tudo, permanecia impassível, decidido a afrontar mais esta prova.
Aproximando-se, o chefe dos vigilantes continuava a fitar Perez. Profundo silêncio se estabelecera entre a multidão, pouco antes tão ruidosa. Mortalmente inquietos, Paulo Cohatéguy e o filho receavam bastante que o representante da autoridade identificasse o seu amigo.
 - Quem é o senhor? - preguntou Ricardo, por fim.
 - Eugénio Palermo, para o servir, señor vigilante - respondeu o rapaz.
Um sorriso céptico entreabriu os lábios do interlocutor.
 - É com certeza a primeira vez que ouço esse nome - declarou. - Contudo, quanto mais reparo em si, mais me convenço de que já o encontrei...
 - Engana-se, senor... Nunca vim a San Luís. Estou ao serviço do ranchero Paulo Cohatéguy, que pode testemunhar sobre a minha identidade e ocupações.
 - É mais fácil enganar um patrão do que ludibriar a polícia - replicou Ricardo, em quem a vista do domador despertava certas recordações. - Todavia, deixemo-nos de palavras inúteis e tratemos do incidente. Porque se bateu com Yago? Não sabia que combates deste género eram proibidos no território de San Luís?...
 - Não tive ainda tempo para estudar a legislação em vigor nesta terra, señor - replicou Perez. - Este indivíduo maltratou, sem o menor motivo, o seu cavalo... Considerei isso uma covardia e desafiei-o para um duelo a chicote... Quanto ao resultado, pode o senhor mesmo verificá-lo... E garanto-lhe que, em circunstâncias análogas, voltarei a proceder da mesma forma.
Um murmúrio aprovador partiu da multidão. O entranhado amor que os gaúchos têm aos seus cavalos levava-os a considerar o gesto brutal de Yago um autêntico crime. Estavam prontos a apoiar o domador e a interceder por êle, junto da autoridade.
 - Incrível! Incrível! - gritou Benigno Camorral, não podendo permanecer mais tempo calado. - Por causa de um animal, pôr em risco a vida de um homem...
 - Devo fazer-lhe notar, señor alcaide - redarguiu Perez - que não ataquei um adversário desarmado. Corri os mesmos riscos...
 - Isso não impede - continuou o alcaide - que tais hábitos sejam indignos de gente civilizada, e eu reprovo-os com a maior energia...
O magistrado não concluiu a frase. Sem desfitar o falso Eugénio Palermo, o chefe dos vigilantes interrompeu-o, preguntando:
 - O cavalo contra o qual o lanzador usou de excessiva brutalidade encontra-se ainda perto daqui?
 - Está além, em frente da locanda - respondeu o gaúcho, a quem o interrogatório inquietava cada vez mais.
 - Conduza-me imediatamente até junto dele - ordenou Ricardo.
O domador teve de obedecer. A multidão afastou-se, para lhe dar passagem, e em poucos instantes, estava junto de Ardiente.
 - Eis o animal em questão, señor - disse.
O chefe dos vigilantes examinou atentamente o cavalo indicado. Este mostrava ainda os sinais do rebenque do lanzador. Impaciente, escarvava o solo. Contudo, via-se bem que a aproximação do grupo o não assustara, antes lhe causava evidente satisfação. Ao avistar Perez, deu um relincho de alegria e estendeu a cabeça para o moço domador.
 - Caramba! - exclamou Ricardo. - Este cavalo sabe apreciar os serviços que lhe prestam!
Dir-se-ia compreender perfeitamente quem tomou a seu cargo defendê-lo!...
E, como Perez se calasse, continuou:
 - Este animal não me é desconhecido: está ligado a um negócio bastante obscuro, e caiu em poder de Yago, em circunstâncias deveras dramáticas... Começo a convencer-me de que o lanzador não conseguiu fazer-lhe esquecer o antigo dono... Se voltasse a encontrá-lo, estou certo manifestaria grande satisfação... semelhante àquela que mostra agora. Não lhe parece, amigo?
O domador sentia-se cada vez menos à vontade. Compreendia, com efeito, que o seu interlocutor o reconhecera. Todavia, nem um músculo do rosto se lhe contraiu. Mas o chefe dos vigilantes, sem se deixar vencer por tal impassibilidade, dirigiu-se ao cavalo e desprendeu-o. Ardiente voltou-se com rapidez, foi direito ao domador e pôs-lhe a cabeça no ombro.
Então, o rapaz não pôde conter-se por mais tempo... Os olhos enevoaram-se-lhe de lágrimas e murmurou, acariciando o nobre animal:
 - Ardiente, hijo mio!...
Logo, vigorosa mão lhe agarrou um braço, ao mesmo tempo que a voz de Ricardo pronunciava distintamente:
 - É inútil tentar enganar-nos por mais tempo, Perez Mariposo! Está preso sob a acusação de ter assassinado o estanciero Gil Ribeira!...

CAPÍTULO XXIV
A verdade vence
ENTRE a assistência, ouviram-se exclamações. Ninguém esperava aquele lance teatral!... Cheios de admiração pelo moço desconhecido que triunfara de um adversário tão forte, os espectadores da cena imprevista não chegavam a compreender aquela evocação dos nomes de Perez Mariposo e Gil Ribeira. A surpreza do alcaide não era menor.
Só Marco Palavez parecia muito satisfeito. Volteava entre os dedos, dentro do bolso, o precioso papel subtraído ao cúmplice. Nada tinha a recear. O lanzador continuava por terra, incapaz de se dar conta do que sucedia. Negligentemente, atirou-lhe o tirador. Os acontecimentos serviam-no à maravilha. Enquanto Yago voltava penosamente a si, teria tempo de sobra para destruir o perigoso documento.
Perez Mariposo não insistira em afirmar que se chamava Eugénio Palermo. De que lhe serviria?... Ardiente, sem de tal suspeitar, traíra-o.
As suspeitas do chefe dos vigilantes haviam-se transformado em certeza. A identidade do fugitivo estava desmascarada; sob a barba loura que lhe enquadrava o rosto, reconhecia perfeitamente o audacioso cavaleiro.
 - Vamos, amigo, não procures negar! Já esperava que o cavalo me permitiria descobrir-te. Não queiras iludir-nos por mais tempo... Confessa o crime! Vá! Diz-nos como e porque mataste Gil Ribeira...
 - Eu bem sabia que a justiça havia de triunfar! - exclamou Benigno Camorral, sem esperar a resposta do domador. - Vêem, habitantes de San Luís! O vosso alcaide sabe o que faz e o que diz...
Contudo, apesar dos elogios que a si próprio prodigalizava a importante personagem, a multidão não parecia convencida. Os sentimentos admirativos, despertos pela forma como o rapaz procedera, impunham-se mais do que a lembrança já amortecida do crime.
Por instantes, Perez Mariposo manteve-se em silêncio, contentando-se em encolher os ombros. Conhecia os autores da morte do estanciero; mas onde estavam as provas para apoiar a sua acusação? Se pronunciasse o nome de Yago, não julgariam pretender êle vingar-se do miserável contra quem acabava de sustentar um combate implacável?... Todavia, a atitude assumida pelo chefe dos vigilantes revoltava-o. Homem de honra, intrépido cavaleiro da pampa, estava farto de ser tratado como se fosse um assassino vulgar!
 - Confessas? - preguntou Ricardo, curvando-se para êle.
O domador não pôde conter-se.
 - Não sou culpado do crime de que me acusam... Não fui eu quem matou Gil Ribeira! Conheço os assassinos desse desgraçado e sei os motivos que os levaram a matá-lo.
Produziu-se certa agitação na assistência. O interesse despertado por estas palavras foi enorme... Ouviram-se numerosos gritos:
 - Nomes! Os nomes! - pediam.
O rapaz olhou em volta; fitou sucessivamente Benigno Camorral, o basco, Ramón e Conchita, que lhe fez um sinal cuja significação não logrou compreender; por fim, fixou Marco Palavez, que se encontrava na primeira fila dos assistentes.
Ao ouvir Perez Mariposo dizer aquelas palavras, o antigo capataz sentira-se pouco à vontade. Contudo, tratou de mostrar despreocupação. Evidentemente, o gaúcho exprimira-se assim, para salvar a cabeça. Em circunstâncias tão desesperadas, procurava jogar o todo pelo todo, Como poderia, com efeito, conhecer o seu segredo? Só o lanzador estava habilitado a explicar o acontecimento, mas, se procedesse assim, poria igualmente em perigo a liberdade e a vida. De resto, encontrava-se, de momento, incapaz de se pronunciar.
Assim, apesar das palavras do domador, o herdeiro de Gil Ribeira manteve-se tranquilo. Na verdade, se o incidente se tivesse produzido algum tempo antes, ficaria muito mais inquieto; mas sentia agora, entre os dedos, o precioso papel cuja destruição o ilibaria por completo. Contudo, certo mal estar se apoderou dele, quando os olhos do rapaz o fitaram com insistência, parecendo adivinhar-lhe o pensamento.
 - Nomes! - clamou a multidão, cada vez mais exaltada. E logo se estabeleceu profundo silêncio, pois toda a gente compreendeu que o gaúcho ia falar.
Estendendo o braço para o antigo capataz, Perez disse, pausadamente:
 - Acuso Marco Palavez de ter assassinado Gil Ribeira, com a cumplicidade do lanzador Yago!
O estanciero empalideceu. Não esperava semelhantes palavras. Por que artes diabólicas o seu crime era conhecido pelo domador? Mas, compreendendo estar a sua existência em jogo, recompôs-se depressa.
 - Só posso responder com o desprêso a semelhante calúnia! - disse.
 - É uma indignidade! - vociferou o alcaide. - Marco Palavez é um homem de bem... Posso garantir a sua perfeita honorabilidade!
Mais uma vez, o chefe dos vigilantes interrompeu Benigno Camorral.
 - Deixe este homem explicar-se - disse. E, voltando-se para o domador, acrescentou:
 - Vejamos, amigo, em que baseias semelhante acusação? Mediste bem a gravidade das palavras que pronunciaste?... Sabes muito bem que todas as provas são contra ti, desde as ameaças de morte, dirigidas ao estanciero, até ao achado do teu revólver, próximo do corpo de Gil Ribeira.
 - Essa arma - protestou o acusado - foi-me roubada por Marco Palavez, sem que eu desse por isso. Tendo-a em seu poder, cometeu o crime e atirou as responsabilidades para cima de mim...
 - Caramba! - exclamou o alcaide. - Não podemos permitir por mais tempo que esse bandido pronuncie acusações contra uma das personagens mais importantes de San Luís, de quem tenho a maior honra em ser amigo! Que motivo poderia levar esse estimável caballero a matar o seu amo?
 - O seu digno amigo, señor alcaide - respondeu Perez Mariposo - tratava simplesmente de guardar a herança, em sérios riscos de não lhe ir parar às mãos, em face de certos projectos matrimoniais, manifestados pela sua vítima!
 - Isso é um disparate! - barafustou Benigno Camorral. - Recuso-me a consentir que este miserável continue a sustentar tão extravagantes acusações.
Sentindo-se apoiado pelo alcaide, o antigo
capataz recuperara o sangue frio. Ligeiro sorriso lhe errava nos lábios.
 - Semelhantes acusações não me atingem!... Só o ciúme leva esse criminoso a falar assim. Não pode resignar-se à ideia de o crime para nada lhe ter servido... Não conseguirá evitar o castigo. Mas, se quere acusar-me, exiba as provas da minha pretensa culpabilidade!...
 - O señor Palavez tem razão! - concordou o alcaide. - Tens provas capazes de justificar o que afirmas? - acrescentou, voltando-se para o domador.
Em poucas palavras, o rapaz contou as circunstâncias em que surpreendera a conversa entre o lanzador e o cúmplice. Exprimia-se com tal sinceridade que muitos dos assistentes se mostravam convencidos; mas o alcaide, não querendo, de maneira alguma, desmerecer os seus créditos de fino psicólogo, como êle próprio se considerava, interrompeu a narrativa:
 - Ninguém pode acreditar semelhantes absurdos! - exclamou. - Nem vale a pena escutar por mais tempo as fantasias desse canalha!... Fará o resto das suas divagações diante dos juízes, que lhe pedirão contas do crime! Visto não apresentar provas do que diz, levem-no imediatamente para a prisão!
O chefe dos vigilantes mantinha-se silencioso, mas parecia não compartilhar inteiramente a opinião de Benigno Camorral.
Além disso, via o basco e o filho aproximarem-se, de certo para intervir a favor do prisioneiro.
Marco Palavez, entretanto, observava prudente mutismo. De mais, não tinha necessidade de esboçar qualquer desmentido, visto o alcaide se haver constituído seu advogado incondicional...
De súbito, quando o representante da autoridade se dispunha a levar o preso, uma figurinha gentil surgiu junto dele, ao mesmo tempo que uma voz dizia:
 - Aqui está a prova do que Perez Mariposo afirmou, senor!...
Era Conchita. Estendia ao chefe dos vigilantes um papel dobrado em quatro. A admiração do antigo capataz foi tal que não pôde conter uma praga. Não compreendia como a famosa declaração fora parar às mãos da filha de Juan Balermo, quando julgava tê-la no bolso. Depressa se convenceu: desdobrando disfarçadamente o papel que tirara do tirador de Vago, viu tratar-se de uma folha completamente em branco!
Empalideceu e considerou-se perdido. Conchita zombara dele! Tirara o terrível documento e substituíra-o, para que não se desse pela sua desaparição. E Ricardo acabava de tomar conhecimento do seu conteúdo!
Quiz fugir, mas o círculo da assistência fechara-se à sua volta. As mãos dirigiam-se aos coldres dos revólveres. A fuga era impossível!
Benigno Camorral, desnorteado, não sabia que fazer. Balbuciava frases sem nexo, olhando alternadamente o domador e o antigo capataz; mas a atitude deste não permitia qualquer dúvida.
 - Prendam esses homens! - ordenou o chefe dos vigilantes, designando o sucessor de Gil Ribeira e o cúmplice, que se erguia penosamente, ainda estonteado e ignorante do lance teatral acabado de produzir-se.
Vinte pares de mãos se estenderam para os dois miseráveis. Gritos de morte se lhes dirigiram, ao passo que soaram aclamações ao moço domador. Os gaúchos, indignados, teriam feito passar um mau bocado aos criminosos, se alguns vigilantes não tivessem acorrido, para secundar os esforços de Ricardo. Produziu-se indescritível tumulto... Empurrado, pisado, esmagado, Benigno Camorral debatia-se, procurando evadir-se do turbilhão humano que o submergia.
Pouco a pouco, a onda passou. A populaça acompanhou os dois criminosos à prisão. Só Perez e Conchita ficaram junto do local onde estavam amarrados os cavalos.
Não lhes interessava a sorte reservada aos assassinos... Estavam juntos, agora. O domador nem reparava que tinha ainda o tronco nu e ferido em numerosos pontos. Não se cansava de contemplar a jovem.
 - Obrigado! Obrigado de todo o coração!
- murmurou, com voz comovida. - Mas, como conseguiu?...
 - Não custou muito - respondeu, sorrindo, a filha de Juan Balermo. - Desde que me disse existir um papel, com a prova da sua inocência, no cinto do lanzador, fiz o possível para o apanhar... Havia quem tivesse as mesmas intenções, mas tive a sorte de chegar primeiro...
 - Como provar-lhe a minha gratidão?... Lentamente, Conchita tirara o lenço e limpava
com êle as feridas do seu interlocutor ; mas Perez segurou-lhe as mãos.
 - Conchita, querida! Se soubesse quanto a amo!... Quere ser minha mulher?
O olhar da jovem iluminou-se de felicidade. Aquela confissão e a pregunta que se lhe seguira enchiam-na de alegria.
 - Sim, Perez! - murmurou. - Aceito!...
O domador puxou-a para si. A satisfação recompensava-o largamente dos sofrimentos passados... A vida sorria-lhe de novo.
Quanto tempo estiveram assim? Não saberiam dizê-lo. Uma sacudidela brusca os afastou: era Ardiente; também queria associar-se à sua felicidade e pedia algumas festas; fitando Perez com os grandes olhos, parecia querer dizer-lhe:
 - Quando voltaremos ambos para a pampa? Tenho saudades dos nossos grandes passeios solitários...
 - Tranquiliza-te, hijo mio! - disse-lhe o dono, fazendo-lhe festas. - Em breve, regressaremos à nossa amada pampa! Mas, agora, seremos três...
Duas semanas decorreram após os dramáticos acontecimentos encerrados com a prisão de Yago e Marco Palavez. Os dois miseráveis confessaram tudo. O antigo capataz declarou ter de facto roubado o revólver de Perez e levado o lanzador a assassinar o estanciero. Esperavam, na prisão, o julgamento, cujo resultado não oferecia dúvidas.
Naquela noite, soberbo luar envolvia a pampa. Da locanda La Noche, saíra um cavalheiro, que se encaminhava para a imensa planura, levando à garupa uma jovem vestida de branco. Votos de felicidades e adeuses comovidos eram formulados, em sua intenção. Dezenas de gaúchos e de mulheres, em trajos de gala, os viam afastar-se. Acabava de festejar-se o casamento de Perez Mariposo e de Conchita. Encaminhavam-se agora ambos para o rancho.
Entre os grupos, notavam-se Juan e Maria Balermo, Dolores, Paulo e Ramón Cohatéguy e Ricardo, o chefe dos vigilantes. O próprio alcaide quisera presidir ao banquete, e, ao ver os noivos desaparecer em direcção à pampa, não deixou de afirmar, com a mais sã convicção:
 - Nunca acreditei que este rapaz fosse culpado!...
O ranchero e o filho trocaram um olhar divertido. Dentro em pouco, juntar-se-iam aos noivos, na sua morada comum; tinham querido, porém, deixá-los ir sozinhos. A prisão de Marco Palavez pusera fim às discussões àcêrca das célebres nascentes e dos limites do seu domínio; haviam conseguido convencer o domador a tornar-se seu associado. A próxima venda dos bens de Gil Ribeira ia permitir-lhes aumentar as suas propriedades e utilizar os serviços de muitos gaúchos que se lhes ofereciam.
Enquanto os seus amigos se demoravam ainda em San Luís, Perez e Conchita cavalgavam, sob o céu estrelado. Ardiente levava-os, com o seu passo regular, através da pampa. O véu branco da jovem flutuava, agitado pelo pampeiro, e a filha de Juan Balermo segurava-se bem, cingindo os ombros daquele que ia ser o companheiro da sua existência.
Então, na noite calma, elevou-se uma voz clara, vibrante de mocidade:
Siempre! Siempre! La soñaba eternamente!
Nunca la amarga dada torturo mi corazón.
Pêro el destino implacable desmorona en un instante,
Pobre sueno! Desmorona mi sueño azul!
Docemente, Conchita interrompeu o cantor...
 - Siempre!... - murmurou. - Sempre! Podemos conservar esta palavra como nossa divisa, mas as outras são falsas. O teu sonho não se
desmoronou, não é verdade querido? Pelo contrário, realizou-se...
 - Mi sueño azul! - respondeu o gaúcho, apoiando-lhe a cabeça no ombro. - Sim, tornou-se realidade, e não podia esperá-la mais bela!
Longo silêncio se sucedeu; deixavam-se ambos embriagar pela felicidade da hora. Enquanto Ardiente, semelhante a um cavalo fantasma, os levava através da noite clara, insensíveis ao cenário que os cercava, acariciados pela brisa, confiantes no futuro, esquecidos dos passados infortúnios - eles deixavam-se embalar pela beleza do seu lindo sonho azul...

 

 

                                                                  Albert Bonneau

 

 

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