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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PAPISA JOANA - P.2 / Donna Woolfolk Cross
A PAPISA JOANA - P.2 / Donna Woolfolk Cross

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Da última vez que o pai a tinha visto, ela era uma criança de doze anos. Tinha mudado muito nos dez anos seguintes. Talvez ele não a reconhecesse. Talvez...

Chegaram ao jardim com os seus canteiros semeados em filas rectilíneas - treze ao todo. O número tinha sido escolhido cuidadosamente para simbolizar a sagrada congregação de Cristo e dos Doze na Última Ceia. Cada canteiro tinha exactamente sete pés de largura, isso também tinha um significado, uma vez que sete era o número de dons do Espírito Santo, o que simbolizava a plenitude de todas as coisas criadas.

O seu pai estava ao fundo do jardim, de costas para eles, entre canteiros de mastruço e de cerefólio. O seu corpo atarracado, o seu pescoço grosso e a posição resoluta foram imediatamente familiares a Joana. Ela escondeu bem a sua cabeça dentro do capuz volumoso, de maneira a cobrir bem o cabelo e, tanto quanto possível, o rosto.

Ao ouvir os seus passos a aproximarem-se, o cónego virou-se.

 

 

 

 

O seu cabelo escuro e as suas sobrancelhas fartas, que tinham despertado, em tempos, tanto terror a Joana, estavam completamente grisalhos.

- Deus tecum - o irmão Samuel deu um empurrãozinho encorajador à Joana. - Deus esteja contigo.

Depois, deixou-os.

O seu pai atravessou o jardim hesitante. Era mais baixo do que ela pensava, ela reparou, com surpresa, que ele utilizava uma bengala para se apoiar. Quando ele se aproximou, Joana virou-se e, sem falar, fez-lhe sinal para que ele a acompanhasse. Levou-o do sol do meio-dia, que brilhava a pique, para a capela sem janelas que ficava junto ao jardim, onde a escuridão era mais segura. Uma vez lá dentro, esperou que ele se sentasse num banco. Depois, sentou-se ela própria na outra ponta do banco, de cabeça baixa, de forma a que o capuz lhe escondesse o perfil.

- Pater Noster qui es in caelis, sanctificatur nomen tuum...

O seu pai começou a rezar o Pai-Nosso. As suas mãos cruzadas tremiam de velhice, falava no tom trémulo e frágil de um velho. Joana juntou a sua voz à dele e as palavras de ambos fundiram-se e ecoaram na pequena sala com paredes em pedra.

Depois de terminada a oração, ficaram em silêncio durante algum tempo.

- Meu filho - disse, finalmente, o cónego - fizeste bem. O irmão hospitaleiro disse-me que vais ser padre. Honras a nossa família como eu esperei, um dia, que o teu irmão fizesse.

Mateus. A Joana apalpou o medalhão de Santa Catarina que tinha pendurado ao pescoço, aquele que Mateus lhe tinha dado havia tanto tempo.

O pai apercebeu-se do seu gesto.

- A minha vista tornou-se fraca. Isso é o medalhão da tua irmã Joana?

Joana largou-o, maldizendo a sua estupidez, não tinha pensado em escondê-lo.

- Fiquei com ele como recordação... depois. - Ela não conseguia falar do horror do ataque dos normandos.

- A tua irmã morreu sem ser... desonrada?

Joana lembrou-se de repente de Gisla, gritando de dor e de medo enquanto os normandos a violavam à vez.

- Morreu pura.

- Deo gratias. - O cónego benzeu-se. - Então, foi a vontade de Deus. Criança teimosa e desnaturada, nunca ficaria em paz com o mundo, foi melhor assim.

- Ela não teria dito isso.

Se o cónego se apercebeu da ironia na sua voz, não o deu a entender.

- A sua morte foi um grande desgosto para a tua mãe.

- Como está a minha mãe?

O cónego demorou muito tempo a responder. Quando, finalmente, acabou por o fazer, a sua voz tremia ainda mais do que antes.

- Foi-se.

- Foi-se?

- Para o Inferno - disse o cónego - para arder para toda a eternidade.

- Não - Joana atingiu os limites da sua compreensão. - Não. A mamã, não, com o seu belo rosto, os seus olhos bondosos, as mãos delicadas que lhe davam ternura e conforto - a mamã, que a amava.

- Morreu há um mês - disse o cónego - sem absolvição e sem se reconciliar com Cristo, invocando os seus deuses pagãos.

Quando a parteira me disse que ela não sobreviveria, eu fiz o que pude, mas ela não aceitou os Santos Sacramentos. Eu meti-lhe a Hóstia Sagrada na boca, mas ela cuspiu-ma na cara.

- A parteira? Não quereis dizer...

A sua mãe tinha mais de cinquenta anos, já tinha passado, havia muito, a idade de ter filhos, não tinha concebido mais nenhuma criança desde que Joana tinha nascido.

- Não me deixaram enterrá-la no cemitério cristão por causa da criança não baptizada que lhe ficou no ventre.

Ele começou a chorar. O seu corpo estremecia todo com grandes soluços.

Então, ele amava-a? Tinha uma forma estranha de o demonstrar, com os seus acessos de fúria brutal, a sua crueldade e a sua luxúria, a sua luxúria egoísta, que tinha acabado por a matar.

Os soluços do cónego acalmaram e ele começou a rezar pela morta. Desta vez Joana não o acompanhou. Silenciosamente, entredentes, começou a recitar o Juramento, invocando o nome sagrado de Thor, o deus do trovão, tal como a mamã lhe tinha ensinado havia muito tempo.

O pai pigarreou desconfortavelmente.

- Há uma coisa, João. A missão na Saxónia... achas que... quer dizer, será que os irmãos precisam da minha ajuda no seu trabalho de conversão dos pagãos?

Joana estava perplexa.

- Então e o vosso trabalho em Ingelheim?

- É que a minha posição em Ingelheim tornou-se difícil. A recente... desgraça... com a tua mãe.

Joana compreendeu imediatamente. As restrições ao casamento do clero, que tinham sido raramente aplicadas durante o reinado do imperador Carlos, tinham endurecido no reinado do seu filho, cujo zelo religioso lhe tinha granjeado o título de Luís, o Piedoso. O recente sínodo de Paris tinha reafirmado veementemente tanto a teoria quanto a prática do celibato do clero. A gravidez de Gudrun, prova evidente da falta de castidade do cónego, não podia ter vindo em pior altura.

- Haveis perdido o vosso lugar?

O pai confirmou, relutante.

- Mas Deo volente, ainda tenho força e capacidade para fazer o trabalho de Deus. Se pudesses interceder por mim junto do abade Rábano...

Joana não respondeu. Estava cheia de desgosto, ira e dor, não havia lugar no seu coração para a compaixão pelo seu pai.

- Não me respondes. Tornaste-te orgulhoso, meu filho.

Ele levantou-se e a sua voz assumiu algo do seu velho tom de comando.

- Lembra-te que fui eu que te permiti que viesses para aqui e que adquirisses a posição que tens agora na vida. Contritionem praecedi suerbia, et ante ruinam exaltatio spiritus - admoestou-a ele, rigidamente.

- O orgulho leva à destruição e um espírito altivo, à queda.

Provérbios, capítulo dezasseis.

- Bonum est homini mulierem non tangere - ripostou Joana. - É bom que o homem não toque numa mulher, Primeira aos Coríntios, capítulo sete.

O pai levantou a bengala para lhe bater, mas o movimento fez com que ele perdesse o equilíbrio e caísse. Ela estendeu a mão para o ajudar, mas ele agarrou-se a ela, atirando-a ao chão.

- Meu filho - a sua voz soava chorosa aos seus ouvidos - meu filho. Não me abandones. És tudo quanto eu tenho.

Enojada, ela recuou com tal violência que o seu capuz lhe escorregou da cabeça. Ela puxou-o rapidamente, mas, era tarde de mais.

O rosto do seu pai ostentava uma expressão horrorizada ao reconhecê-la.

- Não - disse ele, aterrado - não, não pode ser.

- Pai...

- Filha de Eva, o que fizeste? Onde está o teu irmão, João?

- Morreu.

- Morreu?

- Os normandos mataram-no, na igreja de Dorstadt. Eu tentei salvá-lo, mas...

- Bruxa! Feiticeira! Demónio do Inferno!

Fez o sinal da cruz no ar, diante de si.

- Pai, por favor, deixai-me explicar... - pedia Joana, desesperadamente. Ela tinha de o acalmar antes que os seus gritos atraíssem os outros.

Ele pegou na bengala e lutava desesperadamente para se pôr de pé, com o corpo todo a tremer. Joana aproximou-se para o ajudar, mas ele repeliu-a e disse, num tom acusador:

- Mataste o teu irmão mais velho. Não podias ter poupado o mais novo?

- Eu amava o João, Pai. Nunca lhe faria mal. Foram os normandos, vieram de surpresa, com espadas e machados. - Ela controlou-se para não começar a chorar, tinha de continuar a falar, fazer com que ele compreendesse. - O João tentou resistir, mas eles mataram todos, todos. Eles...

Ele virou-se para a porta.

- Tenho de pôr termo a isto, antes que faças mais algum mal.

Ela agarrou-lhe o braço.

- Pai, não, por favor, eles matam-me, se...

Ele virou-se para ela, ameaçador:

- Demónio tentador! Devias ter morrido no ventre da tua mãe pagã antes de teres nascido! - Lutava para se libertar dela, com o rosto a enrubescer de uma forma alarmante. - Deixa-me!

Ela continuava a agarrá-lo, desesperada. Se ele passasse por aquela porta, a sua vida estava condenada.

Soou uma voz da porta. Era o irmão Samuel:

- Irmão João. - com o seu rosto bondoso crispado de preocupação. - Passa-se alguma coisa?

Surpreendida, Joana abrandou a pressão no braço do pai. Ele libertou-se e dirigiu-se ao irmão Samuel.

- Levai-me ao abade Rábano. Eu tenho... eu ten... - ele interrompeu-se de repente com um olhar surpreendido.

Ficou com uma expressão estranha. A sua pele tinha-se tornado ainda mais vermelha, o seu rosto estava retorcido grotescamente, com o olho direito mais fechado do que o esquerdo e a boca retorcida para um lado.

- Pai! - Ela aproximou-se, hesitando, estendendo a mão.

Ele dirigiu-se para ela, com o braço direito mexendo-se como se tivesse perdido o controlo sobre ele.

Aterrada, Joana recuou.

Ele gritou qualquer coisa incompreensível, depois, caiu como uma árvore cortada.

O irmão Samuel gritou por ajuda. Apareceram imediatamente cinco irmãos à porta.

Joana ajoelhou-se ao lado do pai e segurou-o nos seus braços. A sua cabeça pendia pesadamente contra o seu ombro. O seu cabelo juntava-se aos seus dedos. Ao fitá-lo nos olhos, Joana ficou chocada com o ódio maligno que viu neles.

Os seus lábios moviam-se determinados:

- M... m... m...!

- Não tenteis falar - disse Joana. - Não estais bem.

Ele fitou-a com uma fúria selvagem. Com um último esforço explosivo, cuspiu uma única palavra:

- M... m... m... mulier!

Mulher!

A sua cabeça virou-se convulsivamente para o lado e ficou nessa posição. Os seus olhos ficaram a fitar o vazio.

Joana debruçou-se sobre ele, procurando sinais de respiração vindos dos seus lábios retorcidos, assim como qualquer pulsação no seu pescoço exausto. Depois, fechou-lhe os olhos.

- Está morto.

O irmão Samuel e os outros benzeram-se.

- Pensei que o tinha ouvido falar antes de morrer - disse o irmão Samuel. - O que é que ele disse?

- Ele... ele invocou Maria, mãe de Cristo.

O irmão Samuel abanou a cabeça gravemente.

- Um santo homem.

E disse para os outros:

- Levai-o para a igreja. Prepararemos o seu corpo com a cerimónia devida.

- Terra es, terram ibis - entoou o abade Rábano. Tal como o resto da irmandade, Joana inclinou-se para pegar num punhado de terra, depois lançou-o para a sepultura e ficou a ver os torrões de terra escura e húmida a escorregarem sobre a madeira macia do caixão do seu pai.

Ele sempre a tinha odiado. Mesmo quando ela era pequena, antes de ter sido declarada guerra entre ambos, ela nunca tinha obtido dele mais do que uma tolerância azeda e condescendente. Para ele, ela não passava de uma rapariga estúpida e inútil. Mesmo assim, ela estava chocada por causa de se ter apercebido de como ele estava disposto a denunciá-la, de como ele a teria entregado, sem hesitação, a uma morte inenarrável.

Apesar disso, quando as últimas pás de terra cobriram a sepultura do seu pai, Joana sentiu uma melancolia estranha e inesperada. Ela não se lembrava de alguma vez não ter ficado ofendida com o seu pai, de não o ter temido, mesmo odiado.

Mas, sentia uma estranha sensação de perda. Mateus, João, a Mamã - todos tinham partido. O seu pai era a última ligação a casa, à rapariga que ela tinha sido em tempos. Já não havia nenhuma Joana de Ingelheim, só havia o João Anglicus, sacerdote e monge da casa beneditina de Fulda.

 

                      Fontenoy, 841

O prado brilhava à luz sombria e parda da madrugada, atravessado pelas suaves linhas sinuosas de um ribeiro.

Cenário pouco adequado a uma batalha, pensou Geraldo, amargamente.

O imperador Luís tinha morrido havia menos de um ano, mas o fogo da rivalidade entre os três filhos já tinha ateado uma guerra civil.

O mais velho, Lothar, tinha herdado o título de Imperador, mas as terras do Império foram divididas entre ele e os seus dois irmãos mais novos, Carlos e Luís - combinação insensata e perigosa que deixou todos os três filhos descontentes. Mesmo assim, a guerra poderia ter sido evitada se Lothar fosse mais habilidoso na diplomacia. Peremptório e despótico por natureza, Lothar tratava os seus irmãos mais novos com uma arrogância que os levou a unirem-se em rebelião aberta contra ele. Assim, os três herdeiros ao trono acabaram por vir aqui a Fontenoy, determinados em resolver os seus diferendos através do derramamento de sangue.

Depois de uma longa hesitação, Geraldo acabou por tomar o partido por Lothar. Ele conhecia bem os defeitos de Lothar, mas, enquanto Imperador sagrado, ele era a única esperança para um reino franco unido. As divisões que tinham assolado o país ao longo do ano anterior tinham custado um preço terrível: os normandos, aproveitando-se do caos resultante da desordem política, tinham intensificado os seus ataques à costa franca, provocando grande destruição. Se Lothar obtivesse uma vitória decisiva aqui, os seus irmãos não teriam outra opção senão apoiá-lo. Um país governado por um tirano era, melhor do que não haver, sequer, país.

Começou o bater das tábuas para reunir os homens. Lothar tinha decidido que haveria uma missa de manhã cedo para encorajar tropas, antes da batalha.

Geraldo deixou as suas meditações solitárias e regressou ao acampamento.

Vestido com uma casula dourada, o bispo de Auxerre estava em cima de um carro de mantimentos para que todos pudessem vê-lo.

- Libera me, Domine, de morte aeterna - cantava ele numa voz de barítono, enquanto dezenas de acólitos passavam entre os homens, distribuindo a hóstia consagrada.

Muitos dos soldados eram coloni e camponeses sem qualquer experiência no exército, homens que, normalmente, estariam isentos do bannum imperial requerido para o serviço militar.

Mas, estes dias não eram normais. Muitos tinham sido arrancados ao lar, tendo-lhes sido dada pouco mais de uma hora para tratar dos seus negócios ou para se despedirem dos seus entes queridos. Estes recebiam a hóstia distraidamente, não estando preparados para a morte. Os seus pensamentos estavam ainda agarrados às coisas deste mundo das quais tinham sido separados de uma forma tão abrupta: os seus campos, os seus haveres, as suas dívidas, as suas esposas e as crianças que tinham deixado. Fora de si e assustados, ainda não se tinham apercebido da situação tremendamente perigosa em que se encontravam, não podiam acreditar que os esperava a luta e a morte em terra desconhecida, em nome de um imperador cujo nome, alguns dias atrás, não passava de um eco distante nas suas vidas. Quantos destes inocentes sobreviverão para ver o Sol a pôr-se hoje?, pensou Geraldo.

- Ó Senhor dos Exércitos - rezava o bispo, ao concluir a missa - Campeão contra o inimigo, Granjeador de vitórias, concedei-nos a protecção da Vossa ajuda e a espada da Vossa glória para a destruição dos nossos inimigos. Ámen.

- Ámen.

O ar reverberou com o som de milhares de vozes. Pouco depois, os primeiros raios de sol assomaram no horizonte, espalhando a sua luz pelo campo, fazendo brilhar as pontas das suas espadas e flechas como pedras preciosas. Os homens deram um grito de alegria.

O bispo retirou o pallium e deu-o a um acólito que esperava.

Ao tirar a sua casula, deixou-a cair ao chão e, por baixo dela, apareceu a cota de um soldado: a brunia, o grosso casaco em cabedal mergulhado em cera quente e cerzido com placas de aço, e a bauga, as chuteiras em metal.

Então, ele tenciona combater, pensou Geraldo.

A rigor, o ministério sagrado do bispo proibia que ele derramasse sangue de outro homem, mas, na prática, este ideal piedoso era muitas vezes esquecido, os bispos e os sacerdotes lutavam ao lado dos seus reis como qualquer outro vassalo real.

Um dos acólitos estendeu ao bispo uma espada com o sinal da cruz gravado. O bispo levantou a espada e a cruz em ouro reluziu ao sol.

- Louvado seja Jesus Cristo! - gritou ele. - Ao ataque, bons cristãos!

Geraldo comandava o flanco esquerdo, colocado no cimo de uma colina que bordejava o extremo sul do campo. Na colina oposta, o sobrinho de Lothar, Pepino, comandava o flanco direito, um contingente enorme e bem armado de aquitanos. A vanguarda, comandada pelo próprio Lothar, encontrava-se por trás da orla de árvores que marcava o extremo oriental da pradaria, de frente para o inimigo.

O garanhão baio de Geraldo baixou a cabeça, assoprando impacientemente. Inclinando-se, Geraldo passou a mão pelo seu pescoço russo, acalmando-o. Era melhor reservar aquela energia fogosa para o ataque, quando ele viesse.

- Já vai, - murmurou ele firmemente - já vai.

Olhou para o céu. Eram seis horas, a primeira hora da manhã.

O Sol, ainda baixo no horizonte, batia directamente nos olhos do inimigo. Ainda bem, pensou Geraldo. É uma vantagem que podemos utilizar. Olhou para Lothar, à espera do sinal para avançar. Passou um quarto de hora e não vinha nenhum sinal. Os exércitos inimigos estavam alinhados frente a frente, fitando-se através da grande extensão de verde. Passou outro quarto de hora. Depois, outro. E mais outro.

Geraldo rompeu as fileiras e cavalgou colina abaixo, em direcção à linha da frente, onde Lothar estava montado sob uma floresta de estandartes.

- Majestade, porque esperamos? Os homens estão impacientes para avançar.

Lothar olhou do alto do seu nariz empinado, irritado:

- Eu sou o Imperador, não é adequado que seja eu a ir ao encontro dos inimigos.

Ele não gostava de Geraldo, que era demasiado independente para o seu gosto, resultado, sem dúvida, dos anos que tinha passado entre pagãos e bárbaros no Norte do Império.

- Mas, Senhor, olhai para o Sol! Agora, somos nós que estamos em vantagem, mas, dentro de uma hora, ela terá desaparecido!

- Confiai em Deus, conde Geraldo - ripostou Lothar altivamente. - Eu sou o rei consagrado pelos Céus, Ele não deixará de nos conceder a vitória.

Pelo tom decidido de Lothar, Geraldo compreendeu que não valia a pena continuar a insistir. Curvou-se com rigidez, virou o cavalo e regressou à sua posição.

Talvez Lothar tivesse razão e Deus lhes concedesse a vitória. Mas, será que Ele não estaria à espera de uma ajudinha dos homens?

Eram quase dez horas, o Sol estava a aproximar-se do zénite.

Maldição, praguejou Geraldo entredentes. O que raio está Lothar a pensar? Há quase quatro horas que estavam à espera. O sol batia nas suas cotas em aço, aquecendo-as de tal forma que os homens se torciam, desconfortáveis. Aqueles que tinham de fazer as suas necessidades, eram obrigados a fazê-las onde estavam porque não podiam quebrar a forma, o cheiro desagradável começava a fazer-se sentir no ar quente.

Nestas circunstâncias difíceis, Geraldo ficou contente ao ver que se aproximava um pequeno grupo de servos, trazendo barris de vinho. Os homens tinham calor e tinham sede, um bom copo de vinho era justamente aquilo que precisavam para animar os seus espíritos abatidos. Ouviu-se um suspiro de satisfação, à medida que os homens começaram a circular, distribuindo copos cheios de vinho tinto dos Francos. Geraldo serviu-se e sentiu-se muito melhor. Mas, não se permitiu nem permitiu aos seus homens que bebessem mais do que um copo. Enquanto um pouco de vinho podia aumentar a coragem de um homem, muito vinho podia fazer dele um tolo, tornando-o um perigo para si próprio e para os seus companheiros.

Lothar não manifestava essa preocupação. Generoso, encorajou os seus a continuarem a beber. Gritando e tagarelando, vangloriando-se da sua habilidade com as armas, os homens da sua vanguarda disputavam uma posição, atropelavam-se uns aos outros para ganharem a honra de ficarem na fila da frente, empurrando-se e dando encontrões uns aos outros como crianças desobedientes - que eram, de facto, tirando um punhado de veteranos experientes, a maior parte não tinha mais de dezoito anos.

- Eles vêm aí! Eles vêm aí!

O grito ecoou pelas filas de soldados. O exército inimigo avançava, devagar, de forma a que os peões e archeiros apeados pudessem acompanhar a cavalaria, que avançava à sua frente. O efeito era solene, majestoso, parecendo mais uma procissão religiosa do que o cenário de uma batalha. Na vanguarda de Lothar, havia uma desordem enorme, enquanto os homens procuravam recuperar os elmos, lanças e escudos espalhados.

Tinham acabado de conseguir montar quando a cavalaria inimiga que se pôs a galope, abatendo-se sobre eles com uma velocidade terrível, fazendo com que a terra vibrasse com um ribombar ensurdecedor, como se se tratasse de milhares de trovões.

Os estandartes da vanguarda imperial caíram e voltaram a levantar-se, assinalando a carga de resposta. A cavalaria avançou, com os cascos dos cavalos pisando a turfa verde à medida que avançavam com os pescoços esticados.

O baio de Geraldo saltou em resposta, Geraldo puxou-lhe as rédeas.

- Ainda não.

Geraldo e os seus homens tinham de esperar, o flanco esquerdo seria o último a entrar em campo, depois de Lothar e Pepino.

Como duas grandes ondas, os exércitos inimigos avançaram um para o outro. Quarenta mil nobres, o orgulho da nobreza franca cavalgando em filas cerradas com meia milha de comprimento e de fundura.

Com um grito selvagem, um grupo da vanguarda imperial saiu da forma, esporeando os cavalos numa corrida desordenada, fazendo corridas uns com os outros para disputarem a glória de serem os primeiros a enfrentar o inimigo diante do imperador.

Geraldo olhava, desgostoso. Se continuassem assim, chegariam ao regato demasiado cedo e seriam apanhados dentro de água, enquanto o inimigo os combateria a partir da margem.

Ébrios de vinho e de juventude, os cavaleiros de Lothar avançaram direitos ao rio e colidiram com o inimigo, provocando um estrondo tão ensurdecedor como o de dois ossos gigantescos a partirem. Lutaram corajosamente, em grande desvantagem porque tinham de atacar a partir de uma posição inferior, enquanto o inimigo se encontrava na margem, falhando o alvo quando os cavalos tropeçavam, para se conseguirem equilibrar nas pedras escorregadias. Os que eram atingidos, caíam na água onde atolados em lama e lutando para se levantar contra o peso das suas cotas, eram pisados pelos seus próprios cavalos, em pânico.

Os homens das fileiras anteriores viram o que se passava à frente, mas aproximavam-se a uma velocidade tal que não podiam parar sem serem atropelados violentamente pelos que vinham atrás deles. Também eles eram forçados a entrar nas águas barrentas, que corriam, agora, umas vezes brancas, outras, vermelhas de sangue, levando involuntariamente os sobreviventes da primeira carga ao encontro das espadas do inimigo.

A cavalaria, que incluía Lothar, conseguiu-se aperceber a tempo, rodaram os seus cavalos e recuaram, cavalgando pelo campo, de uma forma desordenada, que fez com que chocassem de frente com as filas de homens apeados que seguiam atrás deles.

Estes entraram numa confusão frenética, tentando libertar-se das suas armas e escapar pelos lados, para evitar a investida precipitada.

Era uma confusão. A única esperança estava nos flancos, comandados por Pepino e por Geraldo. Na posição em que se encontravam, podiam irromper pelo campo por trás do ribeiro e atacar directamente o rei Luís, no centro. Olhando para a encosta em frente, Geraldo viu que Pepino e os seus aquitanos se tinham virado, lutando de costas para o campo. O rei Carlos devia ter dado a volta, atacando-os pelas costas.

Não havia nada a fazer.

Geraldo voltou a olhar para o campo de batalha. A maior parte dos homens de Luís tinham atravessado o ribeiro, perseguindo Lothar, em retirada, enfraquecendo involuntariamente as suas fileiras e deixando, assim, o rei momentaneamente indefeso. Era uma hipótese em mil, mas uma hipótese desesperada era melhor do que nenhuma hipótese.

Geraldo pôs-se de pé nos seus estribos, erguendo a sua lança.

- Avançar! - gritou ele - Em nome do Imperador!

- Em nome do Imperador!

O grito ergueu-se como o ladrar de uma matilha de cães e ficou a ecoar atrás deles, enquanto eles desciam a colina, como se fossem uma grande cunha em voo, dirigida para o local onde o estandarte escarlate e azul de Luís adejava à luz do sol de Verão.

O pequeno bando de homens que tinham ficado com o rei lutava para cerrar fileiras diante dele. Geraldo e os seus homens desceram ao seu encontro, abrindo caminho pelo meio das fileiras.

Geraldo atingiu o primeiro homem com uma lança, que lhe trespassou o peito e se partiu com o impacto do golpe. O homem saltou da sela, levando a lança espetada consigo. Armado apenas com a sua espada, Geraldo avançou com uma determinação selvagem, desferindo golpes à esquerda e à direita para abrir caminho, persistentemente, através da turba, na direcção do estandarte flutuante. Os seus homens entraram pelos lados e por trás, alargando o caminho que ele tinha aberto.

Jarda a jarda, palmo a palmo, a guarda de Luís cedia à investida. Então, de repente, o caminho ficou livre. Mesmo à frente de Geraldo, ergueu-se o estandarte real, um grifo vermelho sobre um fundo azul. Diante dele, montado num cavalo branco, estava o próprio rei Luís.

- Rendei-vos - gritou Geraldo a plenos pulmões para se fazer ouvir no meio do barulho. - Rendei-vos e sereis poupado!

Em resposta, Luís desfechou um golpe de espada sobre Geraldo, partindo-lhe a espada. Lutaram corpo a corpo num combate igual em força e habilidade, até que um cavalo que se encontrava perto desfechou um coice, ao ser atingido por uma seta, fazendo com que a montada de Geraldo se empinasse e caísse violentamente. Luís aproveitou-se da situação de vantagem em que tinha ficado momentaneamente, desferindo um golpe oportuno no pescoço de Geraldo. Geraldo desviou-se e descaiu para o lado de dentro, por baixo do braço com o qual o rei empunhava a espada, espetando a sua própria lâmina entre as costelas do rei.

Luís tossiu e veio-lhe à boca uma golfada de sangue; o seu corpo torceu-se lentamente e escorregou da sela, batendo no chão pisado.

- O rei morreu! - gritaram os homens de Geraldo, exultantes.

- Luís foi derrotado!

O grito fez-se ouvir, ecoando no meio das hostes.

O corpo de Luís estava pendurado na sela, com um pé preso nos arreios. O seu cavalo empinou-se, dando patadas no ar e arrastando o corpo do rei pela terra revolvida. O elmo cónico com a placa protectora do nariz soltou-se e caiu, mostrando um rosto morto, com um nariz largo, completamente desconhecido.

Geraldo praguejou. Era um truque de um cobarde, indigno de um rei. Aquele não era Luís, mas sim um sósia, vestido como o rei para os enganar.

Não havia tempo para lamentos porque foram imediatamente rodeados pelas tropas de Luís. Guardando os flancos uns dos outros, Geraldo e os seus homens procuravam escapar da cilada do inimigo, lutando com determinação para saírem do perímetro do círculo.

Geraldo viu subitamente um pedaço de verde e respirou uma lufada de ar fresco e perfumado. Mais alguns metros e estariam livres, com campo aberto e espaço de manobra para retirarem.

Um homem atravessou-se no caminho de Geraldo, plantando-se como uma árvore. Geraldo tomou nota, rapidamente, da sua altura - era um homem alto, corpulento, com uma grande barriga, braços possantes, brandindo uma maça, uma arma de força, não habilidade. Geraldo desfechou a sua espada à esquerda; quando o homem se voltou para lhe responder, Geraldo recuou rapidamente, desferindo um golpe penetrante no outro braço. O homem praguejou e passou a maça rapidamente para a mão esquerda.

Por trás dele, fez-se ouvir um som sussurrante, como o do bater de asas de pássaros.

Geraldo sentiu uma dor súbita e atordoante nas costas no momento em que uma seta lhe trespassou o braço direito.

Indefeso, viu a sua própria espada escorregar-lhe dos seus dedos subitamente dormentes.

O homenzarrão levantou a sua pesada maça e rodopiou. Geraldo moveu-se para lhe tentar fugir, sabendo que era tarde de mais.

Pareceu-lhe que algo tinha explodido dentro da sua cabeça quando o golpe o atingiu, mergulhando-o numa escuridão total.

 

As estrelas brilhavam com uma beleza imperturbável sobre o campo, mergulhado na escuridão e pejado de corpos daqueles que tinham caído na batalha. Vinte mil homens tinham acordado naquela manhã e jaziam, agora, mortos ou moribundos na noite escura - nobres, vassalos, camponeses, mercadores, pais, filhos, irmãos - a grandeza passada de um império e a esperança esfumada do seu futuro.

Geraldo mexeu-se e abriu os olhos. Ficou acordado por alguns momentos, olhando para as estrelas, incapaz de se recordar de onde estava e do que tinha acontecido. Chegou-lhe às narinas um cheiro forte, desagradável e enjoativamente conhecido.

Sangue.

Geraldo sentou-se. O movimento brusco provocou-lhe uma explosão de dor dentro da cabeça e a dor fez com que ele recuperasse a memória. Tocou no seu ombro direito; a seta que o tinha atingido ainda se encontrava alojada no ombro, trespassando a carne de um lado ao outro, mesmo por cima do seu braço. Tinha de sair, senão a ferida infectava. Apertando o braço contra o corpo, puxou a ponta em aço, depois puxou a mão esquerda e, de um só golpe, puxou a ponta da seta.

Gritou e praguejou por causa da dor aguda, lutando para permanecer consciente. Depois, a dor começou a abrandar e ele tomou consciência do que se passava à sua volta. O chão estava cheio de espadas abandonadas, de escudos partidos, membros decepados, estandartes esfarrapados, cadáveres rígidos - os despojos sinistros de uma batalha.

Da colina onde Carlos e Luís estavam acampados, subiam sons da celebração da vitória, gracejos bíbulos e risos roucos, que ecoavam no silêncio profundo do vale. A luz das tochas dos vitoriosos luzia, tremelicante, iluminando o campo com uma luz sombria. Do acampamento do imperador, na colina oposta, não vinha qualquer som, nem havia nenhuma fogueira; a colina estava silenciosa, escura e calma.

Lothar tinha sido derrotado. As suas tropas, ou o que restava delas, tinha-se refugiado na floresta da cercania, procurando esconder-se como podiam do inimigo.

Geraldo levantou-se, lutando contra as náuseas. Alguns passos mais adiante, encontrou o seu garanhão baio, horrivelmente ferido, agitando no ar as patas da frente. Tinha sido atingido por trás; as suas entranhas saíam-lhe pela ferida que tinha no ventre. Quando Geraldo se aproximou dele, uma forma pequena e furtiva mexeu-se, alerta: era um cão magro e esfomeado, que vinha para o festim do banquete nocturno.

Geraldo esbracejou ameaçadoramente e o cão fugiu, de lado, ressentido. Geraldo ajoelhou-se junto ao seu cavalo, afagando-lhe o pescoço, falando-lhe baixinho; em resposta ao toque familiar, as convulsões angustiantes abrandaram, mas os olhos estavam abertos na agonia da dor. Geraldo tirou a sua faca do cinto. Premindo-a com força, para ter a certeza de que atingia a veia, passou o fio pelo pescoço do cavalo. Depois, segurou-o, falando-lhe mansamente ao ouvido, até que as grandes pernas deixaram de tremer e o flanco musculoso relaxou mansamente entre as suas mãos.

De repente, ouviu-se um murmúrio de vozes por trás de Geraldo:

- Olha! Aqui está um elmo que vale pelo menos um soldo!

- Deixa-o - disse outra voz, mais grave e autoritária. - Não vale a pena, está rasgado na parte detrás, não vês? Aqui, rapazes, aqui há coisas melhores para levar!

Larápios. O rescaldo da guerra atraía este tipo de foras-da-lei, afastando-os das estradas e caminhos, onde assaltavam habitualmente, porque os mortos eram presa mais fácil do que os vivos. Moviam-se furtivamente no escuro, despojando as suas vítimas de roupas, armas, armaduras e anéis - tudo o que valesse alguma coisa.

Soou uma voz perto:

- Este está vivo!

Ouviu-se o som de uma pancada e um grito que cessou bruscamente.

- Se houver outros - disse outra voz - trata-os da mesma maneira. Não queremos testemunhas para que ainda nos ponham uma corda ao pescoço.

Dali a pouco, estariam junto dele. Geraldo levantou-se, cambaleando. Depois, mantendo-se na sombra, esgueirou-se na escuridão dos bosques por trás.

 

A irmandade de Fulda não foi muito afectada pela contenda entre os irmãos da realeza franca. Tal como uma pedra lançada a um charco, a Batalha de Fontenoy criou grandes ondas nos centros de poder, mas, aqui, na parte oriental do Império, não passou de uma pequena ondulação. É verdade que alguns dos maiores senhores feudais da região tinham ido servir no exército de Luís; de acordo com a lei, qualquer homem livre que possuísse mais de quatro quintas tinha de responder à chamada para o serviço militar. Mas, a vitória rápida e decisiva de Luís implicou o regresso a salvo de todos os homens da região, à excepção de dois.

Os dias corriam como antes, urdidos de forma indistinta na trama imutável da vida monástica. A colheita bem sucedida tinha resultado num tempo de abundância sem precedentes. Os celeiros da abadia estavam a abarrotar; até os porcos austrasianos, magros e secos, tinham engordado graças à boa alimentação que recebiam.

Então, de repente, aconteceu um desastre. Semanas de chuva ininterrupta arruinaram a cultura da Primavera. A terra estava demasiado húmida para aceitar os pequenos regos necessários para plantar e as sementes apodreceram à superfície. O pior de tudo foi a humidade que penetrou nos celeiros, apodrecendo os cereais armazenados.

A fome do Inverno seguinte foi a pior de que havia memória.

Para horror da Igreja, alguns chegaram a praticar canibalismo.

As estradas tornaram-se mais perigosas porque os viajantes eram assassinados não só por causa dos bens que traziam, mas também por causa do sustento que os seus cadáveres forneciam.

Depois de um enforcamento público em Lorsch, a multidão esfomeada assaltou a plataforma e arrancou a forca, lutando pela carne ainda quente.

Enfraquecido pela fome, o povo era presa fácil de doenças.

Milhares morreram de peste. Os sintomas eram sempre os mesmos: dores de cabeça, arrepios e confusão, seguidos de febre alta e de uma tosse violenta. Havia pouco a fazer, para além de despir os doentes, embrulhando-os em panos frescos, para que a temperatura descesse. Se sobrevivessem à febre, tinham alguma possibilidade de recuperar. Mas, eram muito poucos os que sobreviviam à febre.

A santidade das paredes do mosteiro também não oferecia qualquer protecção contra a peste. O primeiro a cair doente foi o irmão Samuel, o hospitaleiro, cuja posição o levava a ter contactos frequentes com o mundo exterior. Morreu em dois dias. O abade Rábano atribuiu esta desgraça ao carácter mundano de Samuel e à sua afeição intemperada pelos gracejos; afirmou que as aflições da carne não passavam de manifestações exteriores da decadência moral e espiritual. Depois, o irmão Aldoardo, reconhecido por todos como um modelo de piedade e virtude monástica, também foi atingido, seguido de muito perto pelo irmão Hildwin, o sacristão, e muitos outros.

Para surpresa da irmandade, o abade Rábano anunciou que ia fazer uma peregrinação ao santuário de São Martinho para rezar pela intervenção do santo mártir contra a peste.

- O prior José substituir-me-á em tudo enquanto eu estiver ausente - disse Rábano. - Obedecei-lhe porque a sua palavra é exactamente como se fosse a minha.

A forma abrupta como Rábano deu a notícia, assim como a precipitação da sua partida deu muito que falar. Alguns dos irmãos louvavam o abade por causa de ele ir empreender uma viagem tão difícil para bem de todos. Outros murmuravam que o abade se tinha ausentado para escapar ao perigo.

Joana não tinha tempo para debater esses assuntos. Estava ocupada de manhã à noite a dizer a missa, a ouvir confissões e a administrar os rituais da unctio extrema, cada vez com maior frequência.

Uma manhã, deu pela ausência do irmão Benjamim durante a vigília. Alma devota como ele era, nunca falhava aos ofícios diários. Quando terminou a cerimónia, Joana apressou-se a ir à enfermaria. Ao entrar na sala comprida e rectangular, veio-lhe ao nariz o cheiro penetrante de gordura de ganso e de mostarda, conhecidas como remédio para doenças de pulmões. A sala estava a abarrotar, camas e enxergas estavam colocadas lado a lado e estavam todas ocupadas. Entre as camas, os irmãos cuja opus mannum era na enfermaria circulavam, ajeitando cobertores, oferecendo água, rezando em silêncio junto àqueles que já estavam suficientemente longe para não necessitarem de qualquer outro conforto.

O irmão Benjamim estava sentado numa cama, explicando ao irmão Deodato, um dos irmãos mais novos, a melhor forma de aplicar o emplastro de mostarda. Ao ouvi-lo, Joana lembrou-se da primeira vez em que ele lhe tinha ensinado esse mesmo tratamento, havia muito tempo.

Sorriu enternecida, ao recordá-lo. Certamente que se Benjamim ainda era capaz de dirigir as coisas na enfermaria, era porque não estava muito doente, pensou ela.

Um súbito ataque de tosse interrompeu a rapidez com que as palavras do irmão Benjamim fluíam. Joana dirigiu-se rapidamente para a sua cama. Mergulhando um pano na malga com água de rosas que se encontrava junto à cama, colocou-a suavemente sobre a fronte de Benjamim. A sua pele estava incrivelmente quente. Benedicite! Como era possível que ele estivesse lúcido com uma febre tão alta?

Por fim, a tosse parou e ele ficou deitado de olhos fechados, respirando com dificuldade. O seu cabelo grisalho circundava a sua cabeça como uma áurea fraca. As suas mãos, mãos grossas e grandes de lavrador, que possuíam uma gentileza e habilidade inesperadas, jaziam sobre a coberta, abertas e indefesas como as mãos de um bebé. O coração de Joana apertou-se.

O irmão Benjamim abriu os olhos, viu Joana e sorriu.

- Vieste - disse ele, fraco. - Ainda bem. Como vês, estou a precisar dos teus serviços.

- Um pouco de milefólio e de pó de salgueiro põem-vos bom num instante - disse Joana num tom mais animado do que ela se sentia.

Benjamim abanou a cabeça.

- É como padre e não como médico que eu preciso de ti agora. Tens de me ajudar a passar para o outro mundo, irmãozinho, porque eu estou a partir deste.

Joana pegou-lhe na mão:

- Não vos entregarei sem lutar.

- Aprendeste tudo quanto te ensinei. Agora, tens de aprender a resignar-te.

- Não aceitarei perder-vos - respondeu ela firmemente.

Nos dois dias que se seguiram, Joana lutou determinadamente pela vida de Benjamim. Utilizou todas as técnicas que ele lhe tinha ensinado, tentou todos os remédios de que se lembrou.

A febre continuava a subir. O corpo largo e bem guarnecido de Benjamim mirrava como a película vazia de um casulo depois de o enxame ter partido. Sob a irrupção da febre, começou a aparecer uma lividez horrível.

- Confessa-me. Quero estar plenamente consciente quando receber o Sacramento.

Ela não podia negar-lho mais tempo.

- Quid me advocasti? - começou ela, segundo as cadências cerimoniais da liturgia. - O que pretendeis de mim?

- Ut mihi unctionem trados - respondeu ele. - Dá-me a unção.

Mergulhando o dedo numa mistura de cinzas e água, Joana fez o sinal da cruz sobre o peito do irmão Benjamim, depois colocou um pedaço de serapilheira, símbolo da penitência, sobre o desenho que tinha feito.

Benjamim voltou a ser agitado por um forte ataque de tosse.

Quando este terminou, Joana reparou que ele tinha cuspido sangue. Subitamente assustada, apressou-se a recitar os sete salmos penitenciais e a unção ritual dos olhos, ouvidos, nariz, boca, mãos e pés. Parecia que tinha passado muito tempo. Quando terminou, Benjamim jazia com os olhos fechados, completamente imóvel. Joana não sabia se ele ainda estava consciente.

Finalmente, chegou o momento de administrar o viático. Joana ostentou a Hóstia Sagrada, mas Benjamim não respondeu. É tarde de mais, pensou a Joana. Não lhe fiz o que ele queria.

Chegou a hóstia aos lábios de Benjamim; ele abriu os olhos e engoliu-a. Joana abençoou-o. A sua voz tremia quando começou a oração sacramental:

- Corpus et Sanguis Domini nostri Jesu Christi in vitam aeternam te perducat...

Ele morreu de madrugada, quando os suaves cânticos dos Laudes perpassavam o ar da manhã. Joana mergulhou num profundo desgosto. Desde o momento em que, doze anos antes, Benjamim a tinha apadrinhado, tinha sido sempre um amigo e um mentor.

Mesmo quando as suas obrigações como sacerdote a tinham afastado da enfermaria, ele tinha continuado a ajudá-la, a encorajá-la, a apoiá-la. Tinha sido um verdadeiro pai para ela.

Incapaz de encontrar consolo na oração, Joana entregou-se ao trabalho. A missa diária estava ainda mais cheia do que o costume, desde que o espectro da morte tinha trazido o rebanho de fiéis à igreja num número sem precedentes.

Um dia, enquanto Joana oferecia o cálice comum a um dos comungantes, um homem idoso, olhou para os seus olhos lacrimosos e para o tom sombrio e febril das suas faces.

Passou ao seguinte, uma jovem mãe com uma criancinha com um rostinho doce nos braços. A mulher estendeu a criança para que ela recebesse o Sacramento; os pequeninos lábios rosados abriram-se para beber do mesmo sítio onde tinha poisado a boca do velho.

Joana afastou o cálice. Pegando num pedaço de pão, molhou-o no vinho e deu-o à criança. Surpreendida, a menina olhou para a mãe, que acenou encorajadoramente; era um desvio à norma, mas o padre da abadia sabia certamente o que estava a fazer.

Joana prosseguiu pela fila, molhando o pão no vinho, até todos os comungantes terem recebido o Sacramento.

Imediatamente a seguir à missa, o prior José apareceu. Joana estava satisfeita de ser a José e não a Rábano que tinha de responder. José não era homem para se agarrar à tradição sem apelo nem agravo, se existisse um argumento suficientemente bom para a mudança.

- Fizeste uma alteração na missa, hoje - disse José.

- Sim, Padre.

- Porquê?

A pergunta não era um desafio, apenas fruto da curiosidade.

Joana explicou-lhe.

- O velho doente e a criança saudável - repetiu José, pensativamente. - Uma incongruência repelente, concordo.

- Mais do que uma incongruência - respondeu Joana - penso que pode ser uma forma de transmissão da doença.

José ficou confundido.

- Como pode ser? É certo que os espíritos malignos podem estar em toda a parte.

- Talvez não sejam espíritos malignos que provocam a doença - pelo menos, não são só os espíritos malignos. Pode ser que ela se transmita por contacto físico com as suas vítimas, ou com um objecto em que elas tenham tocado.

Era uma ideia nova, mas não radicalmente. Era sabido que algumas doenças eram contagiosas; afinal, era por causa disso que os leprosos eram estritamente segregados da sociedade.

Também era indiscutível que a doença atingia famílias inteiras, ceifando as vidas em poucos dias, senão mesmo, em algumas horas. Mas, não se sabia ao certo qual era a sua causa.

- Transmitida através de contacto físico? Como?

- Não sei - admitiu Joana. - Mas, hoje, quando vi o homem doente e as úlceras abertas na sua boca, senti... - calou-se, frustrada. - Não sei explicar, Padre, pelo menos, ainda não. Mas, enquanto não souber mais qualquer coisa, gostaria de deixar de passar o cálice comunitário e de, em vez disso, molhar o pão no vinho.

- Baseias esta mudança numa simples... intuição? - perguntou José.

- Se estiver enganado, não resultará nenhum dano do meu erro porque os fiéis continuarão a comungar tanto o Corpo como o Sangue - argumentou Joana. - Mas, se a minha... intuição estiver certa, então teremos salvo vidas.

José pensou por alguns momentos. Uma alteração na missa não era algo para tomar de ânimo leve. Por outro lado, João Anglicus era um irmão instruído, conhecido pelos seus talentos como médico. José não se tinha esquecido de que ele tinha curado a mulher leprosa. Então, como agora, não havia muito maior fundamento do que a intuição de João Anglicus. Estas intuições não deviam ser desprezadas porque eram um dom de Deus, pensou José.

- Podes agir assim, por agora - disse ele. - Quando o abade Rábano voltar, ele dará a sua opinião sobre a questão.

- Obrigado, Padre.

Joana fez uma vénia e saiu rapidamente, antes que o prior José mudasse de ideias.

Intinctio, era como chamavam à imersão da hóstia no vinho e, para além de alguns irmãos mais idosos, renitentes nos seus hábitos, a prática recebeu grande apoio por parte da irmandade porque satisfazia tanto a estética da missa como os requisitos de limpeza e higiene. Um monge de Corbie, que passou pelo mosteiro a caminho de casa, ficou tão impressionado que levou a ideia para a sua própria abadia, que também a adoptou.

Entre os fiéis, a frequência das novas ocorrências de peste abrandou consideravelmente, apesar de não ter cessado. Joana começou a registar cuidadosamente os novos casos de doença, estudando-os para detectar a origem da infecção.

Os seus esforços foram suprimidos pelo regresso do abade Rábano. Pouco depois da sua chegada, ele chamou Joana aos seus aposentos e confrontou-a com um nítido tom de reprovação.

- O Cânone da Missa é sagrado. Como ousaste alterá-lo?

- Padre Abade, a mudança é apenas na forma, não na substância. E eu acredito que está a poupar vidas.

Joana começou a explicar o que tinha observado, mas Rábano interrompeu-a.

- Essas observações são inúteis porque não provêm da fé, mas dos sentidos físicos, nos quais não se pode confiar. São instrumentos do Diabo, com os quais ele afasta os homens de Deus e os aproxima das conjecturas intelectuais.

- Se Deus não desejasse que nós observássemos o mundo material - ripostou Joana - então porque nos teria dado olhos para ver, ouvidos para ouvir e um nariz para cheirar? Certamente não é pecado usar os dons que Ele Próprio nos deu.

- Lembra-te das palavras de Santo Agostinho: A fé serve para acreditarmos naquilo que não vemos.

Joana respondeu-lhe à letra:

- Agostinho também diz que nós não poderíamos acreditar se não tivéssemos mentes racionais. Ele não nos mandaria desprezar o que os sentidos e a razão nos dizem.

Rábano franziu o sobrolho. A sua mente era de um tipo rigidamente convencional e sem qualquer imaginação, pelo que não gostava de trocas de argumentos racionais, preferindo o chão mais seguro da autoridade.

- Recebe o conselho do teu pai e obedece-lhe - disse ele, citando a regra sentenciosamente. - Regressa a Deus pelo caminho difícil da obediência, porque te afastaste dEle seguindo a tua própria vontade.

- Mas, Padre...

- Basta, já disse! - Rábano explodiu em ira. O seu rosto estava lívido. - João Anglicus, a partir deste momento estás dispensado dos teus deveres como padre. Aprenderás a humildade regressando à enfermaria, onde assistirás o irmão Odilo, servindo-o com devoção e obediência.

Joana ia protestar, mas, depois, pensou melhor. Rábano tinha sido provocado até ao limite; se continuasse a discutir, podia ser muito prejudicada.

Esforçou-se por dobrar a cabeça.

- Como mandais, Padre Abade.

Mais tarde, reflectindo no que tinha acontecido, Joana compreendeu que Rábano tinha razão; ela tinha sido orgulhosa e desobediente. Mas, para que servia a obediência, se os outros tinham de sofrer por causa dela? A Intinctio significava salvar vidas; ela tinha a certeza. Mas, como poderia convencer o abade? Ele não toleraria qualquer outro argumento vindo dela. Mas, talvez se se deixasse persuadir pelo peso da autoridade estabelecida.

Portanto, agora, para além da Opus Dei e dos seus deveres na enfermaria, a Joana passava longas horas a estudar na biblioteca, investigando os textos de Hipócrates, Oribasius e Alexandre de Tralles, à procura de qualquer coisa que pudesse apoiar a sua teoria. Trabalhava permanentemente, dormindo apenas duas ou três horas por noite. Até que chegou a um ponto de exaustão.

Um dia, ao debruçar-se sobre um capítulo de Oribasius, encontrou aquilo que procurava. Estava a copiar a parte mais importante, traduzindo-a, quando começou a sentir dificuldade em escrever; doía-lhe a cabeça e não era capaz de pegar na pena como devia ser. Pensou que era a consequência natural de pouco sono e continuou a trabalhar. De repente, a pena escorregou-lhe da mão, inexplicavelmente, e rolou sobre a página, manchando o vellum limpo com borrões de tinta, que taparam várias palavras. Sorte maldita, pensou ela. Tenho de limpar isto e recomeçar. Tentou pegar na pena, mas os seus dedos tremiam tanto que ela não era capaz de os controlar.

Levantou-se, apoiada à secretária, sentindo-se tonta.

Cambaleando em direcção à porta, conseguiu sair precisamente no momento em que lhe subiu um vómito à boca, fazendo com que ela se dobrasse e ficasse de gatas, vomitando tudo quanto tinha no estômago.

Sem saber como, conseguiu arrastar-se até à enfermaria. O irmão Odilo deitou-a numa cama vazia e pôs-lhe a mão na testa.

A ela, pareceu-lhe que a sua mão estava gelada.

Joana pestanejou, surpreendida:

- Acabaste de lavar as mãos?

O irmão Odilo abanou a cabeça:

- As minhas mãos não estão frias, irmão João. Tu é que estás a arder de febre. Temo que tenhas sido atingido pela peste.

A peste! Joana estava estonteada. Não, não pode ser. Estou cansada, nada mais. Se ficar a descansar um pouco...

O irmão Odilo colocou-lhe na fronte uma compressa de linho embebida em água de rosas.

- Fica deitado quieto, enquanto eu vou buscar um pouco de linho fresco. Não demoro nada.

A sua voz parecia vir de muito longe. Joana fechou os olhos.

Sentia o tecido fresco sobre a pele. Era bom estar deitada, envolvida num aroma agradável, mergulhando docemente numa escuridão bem-vinda.

De repente, abriu muito os olhos. Iam cobri-la com um pano de linho molhado para fazerem descer a febre. Para o fazerem, tinham de a despir completamente.

Ela tinha de o impedir. Então, apercebeu-se de que, por muito que resistisse - e, nas condições em que se encontrava, não seria capaz de resistir muito - os seus protestos seriam tomados como delírios febris.

Sentou-se e pôs os pés no chão. A dor de cabeça regressou imediatamente, latejante e insistente. Começou a dirigir-se para a porta. A sala rodopiava, mas ela forçou-se a si própria a continuar a andar e a sair. Depois, avançou rapidamente em direcção ao portão. Quando estava próxima, respirou fundo, obrigando-se a endireitar-se à medida que se aproximava de Hatto, o porteiro. Ele olhou para ela com curiosidade, mas não fez nada para a impedir. Uma vez no exterior dirigiu-se para o rio.

Benedicite. O barquinho da abadia encontrava-se ali, atado com uma simples corda a um ramo de uma árvore. Ela desatou a corda e subiu para o barco, inclinando-se para a margem verdejante para o puxar. Quando o barco se afastou da margem, ela desmaiou.

O barco ficou muito tempo imóvel dentro de água. Depois, a corrente levou-o, fazendo-o rodar, antes de o impelir para a veloz torrente.

O céu movia-se lentamente, transformando as nuvens altas e brancas em desenhos exóticos. Um Sol vermelho-escuro tocava o horizonte com os seus raios mais quentes do que o fogo, batendo no rosto de Joana, cegando-a. Ela ficou a olhar, fascinada, enquanto o seu rebordo desaparecia e se dissolvia, formando uma figura humana.

O rosto do seu pai pairava à sua frente, uma cabeça de morto horrenda e retorcida, sem carne entre as linhas escuras das sobranceLhas. A boca sem lábios abriu-se. Mulier - gritava ela, mas, não era a voz do pai, era a da sua mãe. A boca abriu-se mais e Joana viu que não era uma boca, mas sim um portão escancarado para uma caverna escura. Ao fundo, havia um fogo a arder, lançando grandes labaredas vermelhas-azuladas.

Havia pessoas dentro das chamas e os seus corpos retorciam-se em pantomimas grotescas de dor. Um deles olhou para a Joana.

Aterrada, ela reconheceu os olhos azuis e o cabelo saxónio alourado da sua mãe. Ela chamava pela Joana, estendendo-lhe os braços. Joana dirigiu-se para ela; de repente, o chão por baixo dos seus pés desapareceu e ela caiu em direcção ao portão com forma de garganta.

- Mamããããããã! - gritou ela, quando caiu nas chamas...

Estava num campo coberto de neve. Villaris brilhava à distância, o sol a derreter a neve no seu telhado, fazendo com que as gotas de água a cair brilhassem como milhares de pequenas pedras preciosas.

Ela ouviu o rufar de cascos e virou-se para ver Geraldo aproximar-se dela, montado na Pistis. Ela correu para ele através do campo; ele aproximou-se dela, debruçou-se e pegou-lhe, colocando-a à sua frente sobre a montada. Ela inclinou-se para trás, aconchegando-se nos seus braços que a apertavam com uma força terna. Estava a salvo. Não lhe aconteceria nada porque o Geraldo não permitiria. Cavalgaram juntos em direcção às torres reluzentes de Villaris, com o trote do cavalo a embalá-los suavemente, a embalá-los, a embalá-los...

A visão tinha terminado. Joana abriu os olhos. Por cima da borda do barco, as copas das árvores eram silhuetas negras e imóveis contra o céu estrelado. O barco tinha encalhado.

Ouviu um murmúrio de vozes vindas de algum lado, mas Joana não era capaz de compreender o que diziam. Umas mãos pegaram-lhe e tiraram-na do barco. Lembrou-se vagamente de que não podia deixar que a levassem para Fulda, pelo menos, enquanto estivesse doente. Lutou furiosamente, agitando os braços e as pernas, dando pontapés. Ouviu praguejar ao longe.

Sentiu uma dor curta e aguda no queixo e, depois, não sentiu mais nada.

Joana emergiu lentamente de um poço de escuridão. A cabeça latejava-lhe e a garganta estava tão seca como se estivesse em carne viva. Passou a língua seca pelos lábios crestados, aspirando gotinhas de sangue da pele rebentada. Doía-lhe o maxilar. Estremeceu quando os seus dedos exploraram um inchaço visível no seu queixo. Onde arranjei isto?, pensou ela.

Depois, uma pergunta mais urgente: onde estou?

Estava deitada num colchão de penas num quarto que não conhecia. A avaliar pela quantidade e qualidade da mobília, o proprietário era próspero: para além da cama enorme na qual ela estava deitada, havia bancos estofados com um tecido macio, uma cadeira de espaldar coberta com almofadas, uma mesa com um tabuleiro comprido, uma escrivaninha e vários baús e malas, muito bem gravadas. Perto dela, ardia uma lareira e, havia pouco, tinham sido colocados sobre as brasas um par de pães frescos, cujo aroma tinha começado a fazer-se sentir.

A alguns passos de distância, encontrava-se uma jovem roliça, de costas para Joana, amassando massa de farinha.

Quando terminou, sacudiu a farinha da túnica e os seus olhos poisaram em Joana. Dirigiu-se apressadamente para a porta e chamou alto:

- Marido! Vinde depressa. A nossa visita acordou!

Apareceu imediatamente um jovem de rosto largo, grande e desengonçado.

- Como está ela? - perguntou ele.

Ela? pensou Joana ao ouvir a palavra. Olhou para baixo e viu que o seu hábito de monge tinha desaparecido; no seu lugar, tinham-na vestido com uma túnica de mulher em linho azul e macio.

Eles sabem.

Esforçou-se para se levantar da cama, mas os seus membros estavam tão pesados e fracos como água.

- Não deveis fazer esforços.

O jovem tocou-lhe no ombro carinhosamente, metendo-a novamente na cama. Tinha um ar agradável e honesto, com os olhos redondos e azuis como centáureas.

Quem é ele?, pensou Joana. Será que ele vai contar ao abade Rábano e aos outros acerca de mim... ou será que já o fez?

Serei realmente sua convidada, ou serei uma prisioneira?

- Se... sede - titubeou ela.

O jovem mergulhou uma taça num balde em madeira que se encontrava junto à cama e encheu-a até cima com água.

Encostou-a aos lábios da Joana e inclinou-a cuidadosamente, deixando cair uma corrente de pequenas gotas na sua boca.

Joana agarrou a taça, inclinando-a para que a água escorresse mais depressa. O líquido fresco era a coisa mais doce que ela alguma vez já tinha provado. O jovem acautelou-a:

- É melhor não beber de mais. Há mais de uma semana que não tem bebido senão umas colheres.

Há mais de uma semana! Estava ali havia tanto tempo?

Não se lembrava de nada, depois de ter entrado no pequeno barco de pesca.

- On... onde estou? - murmurou ela a custo.

- Estais na propriedade do senhor Riculf, cinquenta milhas a sul de Fulda. Encontrámos o vosso barco encalhado nos ramos das árvores junto à margem do rio. Estáveis a delirar de febre. Mas, doente como estáveis, ainda haveis tentado impedir-nos de vos trazermos.

Joana tocou no inchaço que tinha no maxilar. O jovem sorriu.

- Perdão. Não era possível chamar-vos à razão no estado em que estáveis quando vos encontrámos. Mas, não vos preocupeis, pois destes quase tanto quanto haveis recebido.

Ele levantou a manga, mostrando uma nódoa negra, enorme e com mau aspecto, no seu ombro direito.

- Haveis-me salvado a vida - disse Joana. - Obrigado.

- De nada, Não fiz mais do que retribuir o que haveis feito por mim e pelos meus.

- Eu... conheço-vos? - perguntou ela, surpreendida.

O jovem sorriu.

- Imagino que mudei bastante desde a última vez que nos vimos. Nessa altura, eu tinha apenas doze anos, quase treze, Vejamos... - Começou a contar pelos dedos, utilizando o método de contagem beda, - Foi há seis anos. Seis vezes trezentos e sessenta e cinco dias, bem, são... dois mil cento e noventa dias!

Os olhos de Joana abriram-se, ao reconhecê-lo.

- Arn! - gritou ela, e ele abraçou-a, imediatamente, entusiasmado.

Não falaram mais um com o outro nesse dia porque Joana ainda estava muito fraca e Arn não queria que ela se esforçasse.

Depois de ter comido algumas colheres de caldo, adormeceu imediatamente. Acordou no dia seguinte, sentindo-se mais forte e, mais encorajador ainda, esfomeada. Tomando o pequeno-almoço com Arn, no que comeu uma fatia de pão e um pedaço de queijo, ouviu atentamente enquanto ele lhe contava tudo quanto tinha acontecido desde a última vez que se tinham encontrado.

- Tal como haveis previsto, o padre abade ficou tão satisfeito com o nosso queijo que nos aceitou como prebendarii, prometendo-nos uma vida desafogada em troca de cem libras de queijo por ano, mas isso já vós sabeis.

Joana abanou a cabeça afirmativamente. O extraordinário queijo miado de azul, de aspecto repelente e sabor requintado tinha-se tornado o alimento principal à mesa do refeitório. Os hóspedes da abadia, tanto leigos como monges, ficavam tão encantados com a sua qualidade, que a procura aumentou em toda a região.

- Como está a vossa mãe? - perguntou a Joana.

- Muito bem. Voltou a casar com um homem bom, um criador de gado. O leite dos seus animais permitiu-nos fazer ainda mais queijo, O negócio aumenta de dia para dia e eles são felizes e prósperos.

- Não menos do que tu. - Com um gesto, Joana apontou para a casa grande e bem cuidada.

- Devo-vos a minha boa sorte - disse Arn. - Na escola abadia aprendi a ler e a trabalhar com números - capacidades que me deram muito jeito à medida que o negócio crescia e se tornou necessário fazer contas exactas.

Ao saber o que eu sabia fazer, o senhor Riculf tomou-me para seu intendente. Administro a sua propriedade aqui e guardo-a de caçadores e pescadores furtivos. Foi assim que eu encontrei o vosso barco.

Joana abanou a cabeça, pensativa, recordando-se de Arn e da sua mãe, havia seis anos, vivendo na sua cabana exígua como criados e coloni - condenados, segundo parecia, a uma vida de pobreza e fome. E agora, Madalgis tinha voltado a casar, era uma negociante próspera e o seu filho um intendente de um senhor poderoso! Vitaem regit fortuna, pensou Joana. Na verdade, é a sorte, que governa a vida humana - a minha e a de todos os outros.

- Esta é a minha mulher, Bona, e a nossa filhinha, Arnalda - disse Arn, orgulhoso. Bona era uma jovem bonita com os olhos sorridentes e de sorriso pronto, mais nova do que o seu marido - tinha dezassete invernos, no máximo, já era mãe e o seu ventre inchado revelava que estava outra vez grávida. Arnalda parecia um anjinho, de olhos azuis muito redondos e cabelo louro aos caracóis. Tinha as faces rosadas e era adorável.

Sorriu para Joana, mostrando uma fila de dentes de leite.

- Uma bela família - disse Joana. Arn sorriu e virou-se para a mulher e a filha:

- Venham falar... - hesitou, - Como vos hei-de chamar? «Irmão João» é estranho, sabendo nós... o que sabemos.

- Joana - a palavra era simultaneamente estranha e familiar para os ouvidos dela. - Chamai-me Joana porque é esse o meu verdadeiro nome.

- Joana - repetiu Arn, satisfeito por lhe ter sido confiado esse segredo, - Contai-nos, então, se quiserdes, como viestes viver para os Beneditinos de Fulda, porque isso é uma coisa que parece quase impossível. Como haveis conseguido? O que vos levou a fazê-lo? Alguém sabia o vosso segredo? Ninguém desconfiava?

Joana riu-se.

- Vejo que o tempo não abrandou a tua curiosidade.

Não valia a pena decepcioná-lo. Joana contou tudo a Arn, desde a sua educação pouco ortodoxa na escola de Dorstadt, até aos anos que passou em Fulda e ao seu acesso no presbiterado.

- Então, os irmãos ainda não sabem nada de vós - disse Arn, pensativo, quando ela terminou.

- Pensámos que talvez tivésseis sido descoberta e que tivesse sido por isso que havíeis sido forçada a fugir... Então, podeis regressar! Podeis fazê-lo, se quiserdes. Mais depressa morreria na forca do que alguém me conseguiria arrancar o vosso segredo!

Joana sorriu. Apesar de parecer um homem, Arn continuava a ser o rapazinho que ela tinha conhecido.

Ela disse:

- Felizmente, não é necessário tal sacrifício. Fugi a tempo; a irmandade não tem motivo para desconfiar de mim. Mas... não estou certa de que voltarei.

- Então, o que ireis fazer?

- Boa pergunta - disse Joana. - Uma pergunta mesmo muito boa. Por agora, ainda não sei a resposta.

Arn e Bona tratavam dela como um par de mães-galinha ansiosas, recusando-se a deixá-la levantar-se da cama durante mais uns dias.

- Ainda não estais suficientemente forte - insistiam eles.

Joana não tinha grande alternativa senão resignar-se à solicitude deles. Passava o tempo a ensinar as letras e os números à pequena Arnalda. Apesar de ainda ser muito novinha, já manifestava as aptidões do pai para aprender e respondia depressa, encantada com a atenção de uma companhia tão divertida.

Quando, ao fim do dia, Arnalda ia dormir, Joana ficava acordada a pensar no seu futuro. Deveria regressar a Fulda?

Tinha passado quase doze anos na abadia, tinha crescido dentro dos seus muros; era difícil imaginar-se em qualquer outro lugar. Mas, tinha de enfrentar os factos: tinha vinte e sete anos, já não era jovem. Os irmãos de Fulda, gastos pelo clima rigoroso, a dieta espartana e os quartos frios, raramente viviam para além dos quarenta anos; o irmão Deodato, o mais velho da comunidade, tinha cinquenta e quatro anos. Quanto tempo poderia ela resistir ao envelhecimento - antes de voltar a ser atingida pela doença e de ser forçada a voltar a fugir ao risco de ser descoberta e morta?

Além disso, havia que considerar o abade Rábano. Ele estava decidido a hostilizá-la e não era homem para mudar de atitude.

Se ela regressasse, que rigores e castigos teria ainda que enfrentar?

O seu espírito exigia mudança. Não havia livro na biblioteca de Fulda que ela não tivesse lido, não havia racha no tecto do dormitório que ela não conhecesse de cor. Há anos que ela tinha deixado da acordar de manhã na alegre expectativa de acontecer algo novo e interessante. Desejava explorar um mundo maior.

Para onde poderia ir? Regressar a Ingelheim? Agora, que a mamã tinha morrido, não havia lá nada que lhe interessasse.

Dorstadt? O que poderia encontrar lá - Geraldo, ainda à espera, acalentando o seu amor por ela, depois de tantos anos?

Que tolice. Era quase certo que ele tinha voltado a casar e não ficaria contente com o reaparecimento súbito de Joana.

Além disso, havia muito que ela tinha escolhido uma vida diferente - uma vida em que o amor por um homem não desempenhava qualquer papel.

Não, tanto Geraldo quanto Fulda pertenciam ao passado. Ela tinha de olhar determinadamente para o futuro - qualquer que ele fosse.

- Bona e eu decidimos - disse Arn. - Tendes de ficar connosco. Seria bom ter outra mulher em casa para fazer companhia à Bona e a ajudar a cozinhar e a fiar - especialmente agora, com a vinda do bebé.

A sua condescendência era irritante, mas a oferta tinha boa intenção, pelo que Joana respondeu com delicadeza:

- Temo que esse negócio não seja bom. Eu sempre fui uma fraca costureira, sem jeito para fiar e sem qualquer préstimo na cozinha.

- Bona teria todo o prazer em ensinar-v...

- A verdade é que eu vivi demasiado tempo como um homem para voltar a ser uma mulher como deve ser, se é que alguma vez o fui! - interrompeu Joana. - Não, Arn - ela deu largas ao seu protesto - a vida de um homem serve-me. Gosto demasiado dos seus benefícios para prescindir deles de bom grado.

Arn pensou durante algum tempo e disse:

- Então, mantende o vosso disfarce. Não importa. Podeis ajudar no jardim... ou ensinar a Arnaldinha! Já a haveis cativado com as vossas lições e jogos, como haveis feito comigo.

Era uma oferta generosa. Ela não podia pedir maiores facilidades ou segurança do que aquela que encontraria no seio desta família feliz e próspera. Mas, o mundo deles, estreito e protegido, era demasiado pequeno para conter o espírito de aventura que ela tinha redescoberto. Não trocaria quatro paredes por outras quatro.

- Bendito sejais, Arn, pelo vosso coração bondoso. Mas, tenho outros planos.

- Quais?

- Vou tomar o caminho dos peregrinos.

- Para Tours e o túmulo de São Martinho?

- Não - disse Joana - para Roma.

- Roma! - Arn estava espantado. - Estais louca?

- A guerra já terminou, haverá outros a fazerem a mesma peregrinação.

Arn abanou a cabeça.

- O meu senhor Riculf disse-me que Lothar não resignou, apesar da sua derrota em Fontenoy. Retirou-se para o palácio imperial em Aachen e anda à procura de homens para preencherem os lugares vazios nas suas hostes, O meu senhor diz que ele até se manifestou aberto aos Saxónios, oferecendo-lhes a possibilidade de voltarem a adorar os seus deuses pagãos se estiverem dispostos a lutar por ele!

Como a mãe se teria rido, pensou Joana, com esta mudança inesperada no rumo dos acontecimentos: um rei cristão a oferecer-se para restabelecer o culto dos antigos deuses. Ela imaginava o que a mãe teria dito: o gentil deus-mártir dos cristãos pode servir para coisas comuns, mas, para ganhar batalhas, é preciso invocar Thor e Odin e os outros destemidos deuses-guerreiros do seu povo.

- Não podeis ir com as coisas por resolver como estão - disse Arn. - É demasiado perigoso.

Ele tinha razão. O conflito entre os irmãos reais tinha resultado num colapso completo da ordem civil. As estradas sem guarda tinham-se tornado alvos fáceis para bandos de malfeitores assassinos e fora-da-lei.

- Eu saberei proteger-me - disse Joana. - Quem quererá alguma coisa de um padre peregrino, sem nada de valor, a não ser a roupa que traz no corpo?

- Alguns desses demónios matar-vos-iam pela roupa, quanto mais pelos paramentos! Proibo-vos de irdes sozinha! - Ele falou com uma autoridade que nunca teria assumido se ainda pensasse que ela era um homem.

Ela disse num tom seco:

- Eu sou dona de mim mesmo, Arn. Vou onde quero.

Reconhecendo o seu erro, Arn arrependeu-se imediatamente.

- Pelo menos, esperai três meses - sugeriu ele. - Os mercadores de especiarias aparecem nessa altura para trocarem as suas mercadorias. Viajam bem escoltados porque não querem correr riscos com a sua mercadoria preciosa. podem dar-vos protecção até Langres.

- Langres! Essa não é a estrada mais directa, pois não?

- Não - concordou Arn. - Mas, é a mais segura. Em Langres há uma hospedarie para peregrinos que se dirigem para sul; não haverá dificuldade em encontrar um grupo de viajantes que sejam companhia segura.

Joana pensou.

- Talvez tenhais razão.

- O meu senhor Riculf fez a mesma peregrinação há alguns anos. Tem um mapa do caminho que seguiu; tenho-o aqui.

Abriu uma arca, pegou num pedaço de pergaminho e desenrolou-o com cuidado. Estava enegrecido e gasto pelos anos, mas a tinta não tinha desaparecido, as linhas percebiam-se nitidamente, assinalando o caminho para Roma.

- Farei como sugeres, Arn - disse Joana. - Três meses de atraso não é muito. Dá-me mais tempo para estar com a Arnalda. Ela é muito esperta e vai muito bem nas lições!

Arn começou a enrolar o pergaminho.

- Gostaria de ter mais tempo para estudar o mapa, se for possível.

- Gastai o tempo que quiserdes, Vou aos estábulos ver como está a tosquia.

Arn saiu a sorrir, contente por ter sido capax de a convencer. Joana respirou fundo, enchendo os pulmões com os aromas doces do início da Primavera. O seu espírito elevou-se como um falcão liberto das suas grilhetas, subitamente entregue à liberdade miraculosa do vento e do céu. Àquela hora, os irmãos de Fulda estavam reunidos dentro da sala escura do capítulo, apinhados nos bancos em pedra, ouvindo o irmão Ecónomo a prestar as contas da abadia, Mas, ela estava ali, livre e sem impedimentos, com a aventura da sue vida diante dos olhos.

Joana estudou o mapa, sentindo uma onda de excitação. Havia uma estrada boa e larga dali até Langres. Em Langres, a estrada rumava para sul, passando por Besançon e Orbe, descendo ao longo do lago de São Maurice e entrando em Le Valais. No sopé dos Alpes, havia uma hospedaria monástica onde os peregrinos podiam descansar e abastecer-se para o árduo caminho pelas montanhas, através de São Bernardo - a passagem dos Alpes melhor e mais frequentada. Uma vez passados os Alpes, a longa Via Francigena passava directamente por Aosta, Pavia e Bologna, na Toscânia, e chegava a Roma. Roma.

Os maiores pensadores do mundo reuniam-se naquela cidade; as suas igrejas albergavam tesouros incontáveis, as suas bibliotecas acumulavam uma sabedoria centenária. Certamente que, ali, junto dos túmulos sagrados dos apóstolos, Joana haveria de descobrir o que procurava. Em Roma, descobriria o seu destino.

Estava a carregar a sua mula - Arn tinha insistido que ela a levasse para a viagem - quando a pequena Arnalda saiu de casa a correr, com o seu cabelo louro ainda desalinhado de ter estado a dormir.

- Onde vais? - perguntou o rostinho angelical, ansiosamente.

Joana ajoelhou-se de forma a que o seu rosto ficasse ao nível do da criança.

- Vou para Roma - respondeu ela - a Cidade das Maravilhas, onde vive o Papa.

- Gostas mais do Papa do que de mim?

Joana riu-se.

- Nunca o vi. E não há ninguém de quem eu goste tanto como gosto de ti, pardalinho.

Afagou o cabelo macio da criança.

- Então, não vás - Arnalda pôs os braços em torno do pescoço de Joana. - Eu não quero que tu vás.

Joana abraçou-a. O corpinho da criança encostou-se ao seu, enchendo os seus braços e o seu coração. Eu podia ter tido uma menina assim, se tivesse escolhido outro caminho. Uma menina em quem pegar e a quem mimar - e ensinar. Recordou-se do desgosto que tinha sentido quando Asclépios tinha partido.

Tinha-lhe deixado um livro para ela poder continuar a estudar.

Mas, ela, que tinha fugido do mosteiro apenas com a roupa que tinha no corpo, não tinha nada para dar à criança.

Excepto...

Joana meteu a mão na túnica e puxou o medalhão que tinha usado desde o dia em que Mateus lho tinha posto ao pescoço:

- Esta é a Santa Catarina. Ela era muito inteligente e muito corajosa, como tu.

Contou-lhe a história de Santa Catarina.

Os olhos de Arnalda ficaram ainda mais redondos de espanto.

- Ela era uma rapariga e fez isso?

- Sim. E tu também podes fazer, se continuares a estudar.

Joana tirou o medalhão do pescoço e pô-lo ao pescoço de Arnalda.

- Agora, é teu. Toma conta dele.

Arnalda agarrou no medalhão, com o rostinho contorcido, num esforço para não chorar.

Joana despediu-se de Arn e de Bona, que tinha saído para se despedir dela. Bona deu-lhe um farnel e um odre em pele cheio de cerveja.

- Tendes aí pão e queijo e um pouco de carne seca - o suficiente para um dia, até chegardes à hospedaria.

- Obrigado - disse Joana. - Nunca esquecerei a vossa generosidade.

Arn disse:

- Lembrai-vos, Joana. Sois sempre bem-vinda. Esta casa é vossa.

Joana abraçou-os.

- Ensina a menina - disse ela. - Ela é inteligente e tão desejosa de aprender como tu eras.

Montou na mula. A pequena família rodeou-a, com um ar triste. Parecia ser seu destino deixar sempre para trás aqueles que amava. Era o preço a pagar pela vida estranha que tinha escolhido, mas ela sabia o que fazia, pelo que não valia a pena lamentar-se.

Joana pôs a mula a trote. Com um último aceno por cima do ombro, virou-se para a estrada do sul - e para Roma.

 

                         Roma, 844

Anastácio poisou a sua pena, esticando os dedos para se libertar de uma cãibra. Observou com orgulho a página que tinha acabado de escrever - a última entrada na sua obra-prima, o Liber pontificalis, ou Livro dos Papas, um registo pormenorizado dos papados do seu tempo.

Anastácio passou a mão, carinhosamente, pelo velum imaculado que estava diante de si. Naquelas páginas em branco seriam um dia registados os feitos, os triunfos, a glória do seu papado.

Como o seu pai, Arsénio, ficaria orgulhoso! Apesar de a família de Anastácio ter acumulado muitos títulos e honrarias ao longo dos anos, tinha-lhes escapado a honra máxima do trono papal. Uma vez, tinha parecido a Arsénio que a ia alcançar, mas, o tempo e as circunstâncias tinham conspirado contra ele e a oportunidade tinha passado.

Agora, era a vez de Anastácio. Ele tinha de fazer, ele ia fazer jus à fé que o seu pai depositava nele, tornando-se Senhor Papa e Bispo de Roma.

Não imediatamente, é claro. A ambição desmedida de Anastácio não o impedia de ver que o seu tempo ainda não tinha chegado.

Ele só tinha trinta e três anos e a sua posição como primicerius, apesar de ser de um grande poder, era um cargo demasiado secular para poder ascender a partir dele à catedral Sagrada de São Pedro.

Mas, a sua situação em breve iria mudar. O papa Gregório jazia no seu leito de morte. Uma vez passado o tempo formal de luto, haveria eleições para o novo Papa - uma eleição cujos resultados Arsénio tinha influenciado de forma determinante através de uma mistura habilidosa de diplomacia, suborno e ameaça. O Papa seguinte seria Sérgio, cardeal da Igreja de São Martinho, fraco e descendente corruptível de uma família romana nobre.

Ao contrário de Gregório, Sérgio era um homem que sabia muito bem como era o mundo; saberia como exprimir a sua gratidão àqueles que o tinham ajudado a chegar ao seu lugar. Pouco depois da eleição de Sérgio, Anastácio seria nomeado bispo de Castellum, posição perfeita a partir da qual ascenderia ao trono papal, depois de chegar a vez de Sérgio partir.

Era um quadro perfeito, excepto num pormenor - Gregório ainda vivia. Como uma vinha envelhecida, cujas raízes se tinham aprofundado para sugar alimento do solo árido, o velho homem estava teimosamente agarrado à vida. Prudente e contemplativo na sua vida pessoal, tal como no seu papado, Gregório agia com uma lentidão desesperante, até na sua morte.

Tinha reinado durante dezassete anos, mais tempo do que qualquer outro papa desde Leão III, de boa memória. Um homem bom, modesto, bem intencionado, piedoso, Gregório era muito amado pelo povo romano. Tinha sido patrono solícito da população da cidade, constituída por peregrinos miseráveis, dando-lhes abrigo e arranjando-lhes casas de refúgio, providenciando para que fossem distribuídas esmolas generosas em todos os dias de festa e nas procissões.

Anastácio sentia uma mistura complexa de emoções em relação a Gregório, da qual fazia parte uma quantidade igual de admiração e de desprezo: admiração pela sinceridade da piedade e da fé do homem, mas desprezo pela sua simplicidade e lentidão de raciocínio, que o expunha constantemente ao engano e à manipulação. O próprio Anastácio tinha-se aproveitado frequentemente da ingenuidade do Papa, sobretudo no Campo das Mentiras, quando tinha combinado a traição das negociações de paz de Gregório com o Imperador Franco Luís, mesmo à sua frente. O seu estratagemazinho tinha sido pago de forma generosa; o beneficiado, Lothar, filho de Luís, tinha sabido exprimir a sua gratidão e, agora Anastácio era um homem rico.

Mais importante ainda: Anastácio tinha conseguido ganhar a confiança e o apoio de Lothar. É certo que, durante um tempo, Anastácio tinha temido que a sua aliança com o herdeiro franco - cultivada de forma tão cuidadosa - tivesse caído por terra.

De facto, a derrota de Lothar em Fontenoy tinha sido um desastre, era preciso admiti-lo. Mas, Lothar tinha conseguido chegar a um acordo com seus irmãos rebeldes, no Tratado de Verdun, uma peça notável de malabarismo político que lhe tinha permitido manter tanto a coroa como os seus territórios.

Lothar tinha voltado a ser o imperador incontestado - facto que viria a revelar-se de muita importância para o futuro de Anastácio.

O som dos sinos despertou Anastácio dos seus devaneios. Os sinos tocaram uma, duas, três vezes. Anastácio bateu nas ancas, rejubilante. Finalmente!

Já tinha vestido o fato de luto quando lhe bateram à porta, como ele esperava. O notário do Papa entrou silenciosamente.

- O Apostólico juntou-se a Deus - anunciou ele, compungido. - A Vossa presença, primicerius, é requisitada na câmara papal.

Lado a lado, em silêncio, percorreram o seu caminho através dos corredores em labirinto do Palácio de Latrão, até aos aposentos papais.

- Era um homem de Deus - disse o notário, quebrando o silêncio. - Um pacificador, um santo.

- Era, de facto, um santo - respondeu Anastácio e pensou para si próprio: sendo assim, em que lugar melhor poderia ele estar senão no Céu?

- Quem poderá substituí-lo? - perguntou o notário, com voz trémula.

Anastácio reparou que o homem estava a chorar. Ficou impressionado com a manifestação de emoção autêntica. Ele, por seu lado, era demasiado artificial, estava demasiado consciente do efeito que tudo quanto ele fazia e dizia tinha sobre os outros para se comprometer em lacrimae rerum. Mesmo assim, a emoção do notário lembrou-o de que devia preparar a sua própria manifestação de desgosto. À medida que se aproximavam da câmara papal ele susteve a respiração, contraindo o rosto, até os olhos lhe começarem a arder. Era um truque que ele utilizava para fazer com que lhe brotassem lágrimas quando ele queria; utilizava-o raramente, mas sempre com bons resultados.

A câmara estava aberta para que nela se reunisse a multidão de enlutados. Gregório estava deitado numa grande cama de penas, com os olhos fechados e os braços cruzados de forma ritual sobre uma cruz em ouro. Os outros optimates, funcionários principais da corte papal, ladeavam o leito de morte: Anastácio viu Arighis, o vice-dominus; Compulus, o nomenclator; e Estêvão, o vestiarus.

- Anastácio, o primicerius - anunciou o secretário, quando Anastácio entrou. Os outros levantaram os olhos para o verem mergulhado na dor, com o rosto desfigurado e as faces banhadas em lágrimas.

 

Joana levantou a cabeça e ofereceu o rosto às carícias do sol romano. Ainda não se tinha acostumado àquele tempo agradável, temperado, em Wintarmanoth - ou Janeiro, como lhe chamavam no Sul do Império, onde reinavam costumes romanos, não francos.

Roma não era o que ela imaginava. Ela tinha imaginado uma cidade esplendorosa, pavimentada a ouro e mármore, com centenas de basílicas erguendo-se para o Céu num testemunho glorioso da existência de uma verdadeira Civitas Dei, uma Cidade de Deus na terra.

A realidade revelou-se muito diferente. Caóticas, sujas, apinhadas de gente, as ruas estreitas e tortas de Roma pareciam ter sido engendradas no Inferno, não no Céu. Os seus velhos monumentos - aqueles que não tinham sido convertidos em igrejas cristãs - estavam em ruínas. Os templos, anfiteatros, palácios e termas tinham sido despojados do seu ouro e prata e deixados a céu aberto. As trepadeiras enrolavam-se em torno das suas colunas caídas; os jasmins e as ervas cresciam nos buracos das suas paredes; porcos e cabras e bois de grandes cornos vagueavam pelos seus pórticos destruídos. As estátuas dos imperadores estavam espalhadas pelo chão; os sarcófagos dos heróis, vazios, eram utilizados agora como lavadouros, cisternas e manjedouras para os animais.

Era uma cidade de contradições antigas e aparentemente irreconciliáveis: a maravilha do mundo e um turbilhão sujo e decadente; um lugar de peregrinação dos cristãos, cuja arte grandiosa celebrava deuses pagãos; um centro de livros e de ensino, cujo povo chafurdava na ignorância e na superstição.

Apesar destas contradições, talvez por causa delas, Joana adorava Roma. O tumulto esfervilhante das suas ruas estimulava-a.

Nestes corredores apinhados de gente convergiam os cantos mais afastados do mundo: romanos, lombardos, germânicos, bizantinos e muçulmanos acotovelavam-se uns aos outros, numa mistura excitante de costumes e línguas. Passado e presente, pagão e cristão estavam intertecidos numa tapeçaria rica e colorida. O melhor e o pior do mundo inteiro encontrava-se dentro destes velhos muros. Em Roma, Joana encontrou o mundo de oportunidades e de aventura que tinha procurado ao longo de toda a sua vida.

Passava a maior parte do tempo no Borgo, onde as várias scholae ou sociedades de estrangeiros estavam situadas.

Chegada perto de um ano antes, tinha-se dirigido primeiro à Schola Francorum, naturalmente, mas não conseguiu entrar porque o local estava a abarrotar com peregrinos e emigrantes francos. Por isso, tinha ido para a Schola Anglorum, onde a sua ascendência inglesa, por parte do pai, assim como o seu apelido, Anglicus, lhe tinham proporcionado uma recepção calorosa.

A profundidade e vastidão da sua educação depressa lhe angariaram reputação de grande intelectual. Vinham teólogos de todas as partes de Roma para debaterem com ela;

e partiam abismados com a vastidão dos seus conhecimentos e a sua habilidade de argumentação nas disputes. Como teriam ficado consternados se soubessem que tinham sido superados por uma mulher, pensava Joana, sorrindo intimamente.

Os seus deveres regulares incluiam celebrar missa diariamente numa pequena igreja mesmo ao pé da schola. Depois da refeição do meio-dia e de uma pequena sesta (porque era costume no Sul dormir durante as horas mais abrasadoras da tarde), ela dirigia-se à enfermaria, onde passava o resto do dia a tratar dos doentes. A sua ciência era-lhe útil porque a prática da medicina aqui não era de maneira nenhuma tão avançada como na terra dos francos. Os romanos conheciam mal as propriedades terapêuticas das ervas e das plantas e não sabiam nada acerca do exame da urina para diagnosticar e tratar doenças.

Os sucessos da Joana como médica tornaram os seus serviços muito requisitados. Levava uma vida activa e ocupada, como gostava, oferecia-lhe todas as oportunidades da vida monástica e nenhuma das suas desvantagens, podia exercer completamente toda a sue inteligência, sem controlo ou censura. Tinha acesso à biblioteca da schola, uma colecção pequena, mas requintada de mais de cinquenta volumes e ninguém a vigiava para lhe perguntar se tinha escolhido ler Cícero ou Suetónio, em vez de Agostinho.

Era livre de sair e entrar quando quisesse, de pensar como gostava, de exprimir os seus pensamentos sem ter medo de ser flagelada ou denunciada.

O tempo passava depressa, escoando-se no cumprimento do trabalho quotidiano. Assim poderiam ter prosseguido as coisas indefinidamente, se o papa Sérgio, recém-eleito, não tivesse adoecido. Desde o Domingo da Septuagésima que o papa tinha sido acometido de um conjunto de sintomas vagos, mas preocupantes: como má digestão, insónia, torpor e inchaço dos membros; pouco antes da páscoa, foi atacado por uma dor tão intensa que quase se tornou insuportável, todo o palácio acordava noite após noite com os seus gritos.

A sociedade de medicina mandou uma dúzia dos seus melhores homens para tratarem do papa achacado, experimentaram uma quantidade de procedimentos para obterem uma cura: trouxeram um fragmento do crânio de São Policarpo para Sérgio lhe tocar; massajaram os seus membros doridos com óleo retirado da lâmpada que tinha ardido toda a noite no túmulo de São Pedro, medida que se sabia curar mesmo as aflições mais desesperadas; sangraram-no repetidas vezes e purgaram-no com eméticos tão fortes que todo o seu corpo foi sacudido por violentos espasmos. Quando até mesmo estes curativos tão poderosos falharam, eles tentaram dissipar a dor através de uma contra-irritação, colocando tiras de cera a ferver sobre as veias das pernas.

Nada resultava. Quando o estado do Papa se agravou, a população de Roma começou a alarmar-se: se Sérgio morresse tão pouco tempo depois do seu predecessor, deixando o Trono de S. Pedro novamente vacante, o imperador franco, Lothar, talvez tentasse descer à cidade para impor sobre eles a sua autoridade imperial.

O irmão de Sérgio, Bento também estava preocupado - não devido a qualquer sentimento fraternal, mas porque a doença do seu irmão representava uma ameaça para os seus próprios interesses. Tendo persuadido Sérgio a nomea-lo para seu missus papal, Bento tinha utilizado habilmente a sua posição para concentrar a autoridade dos funcionários papais em si próprio. Em resultado disso, cinco meses depois de ter iniciado o seu papado, já Sérgio só governava de nome; o poder efectivo em Roma estava nas mãos de Bento - para considerável aumento da sua fortuna pessoal.

Bento teria preferido ter também o título e a honra do cargo papal, mas sabia muito bem que isso estava fora do seu alcance. Não tinha nem educação nem polimento para um cargo tão elevado. Era o segundo filho e em Roma não era costume dividir a propriedade e os títulos entre os herdeiros, como na terra dos francos. Como primogénito, Sérgio tinha sido cumulado de todos os privilégios familiares possíveis - roupa cara, tutores privados. Era terrivelmente injusto, mas não havia nada a fazer e, ao fim de pouco tempo, Bento tinha abandonado a atitude amuada e tinha procurado prazeres mais mundanos, os quais, como ele veio a descobrir rapidamente, não faltavam em Roma. A sua mãe tinha resmungado com os seus hábitos dissolutos, mas não tinha feito nenhuma tentativa efectiva para os impedir; o seu interesse e a sua esperança tinham estado sempre concentradas em Sérgio.

Agora, finalmente, os longos anos de esquecimento da sua pessoa tinham chegado ao fim. Não tinha sido difícil conseguir que Sérgio o nomeasse missus papal; Sérgio sempre se tinha sentido culpado da preferência que lhe tinha sido dada, em detrimento do seu irmão mais novo. Bento sabia que o seu irmão era fraco, mas ainda tinha sido mais fácil corrompê-lo do que ele estava à espera. Depois de tantos anos de estudo incessantes e privações monásticas, Sérgio estava mais do que pronto para gozar a vida. Bento não procurou tentar o seu irmão com mulheres porque Sérgio estava firmemente agarrado ao voto de castidade sacerdotal.

De facto, os seus sentimentos neste ponto aproximavam-se da obsessão, a tal ponto que Bento teve de se esforçar por manter em segredo as suas próprias aventuras sexuais.

Mas, Sérgio tinha outra fraqueza - um apetite insaciável pelos prazeres da mesa. Enquanto consolidava o seu próprio poder, Bento tratava de manter o seu irmão distraído com um desfile interminável de prazeres gastronómicos. A capacidade de Sérgio para comer e beber era prodigiosa. Sabia-se que era capaz de comer cinco trutas, duas galinhas assadas, uma dúzia de empadões de carne e uma perna de veado numa só refeição.

Uma vez, depois de uma orgia assim, tinha aparecido na missa matinal tão empanturrado e inchado, que vomitou por cima da Hóstia Sagrada sobre o altar para horror da comunidade reunida.

A seguir a este episódio vergonhoso, Sérgio resolveu regenerar-se, regressando à dieta simples, constituída por pão e verduras, na qual tinha sido criado. Este regime espartano restabeleceu-o; começou a interessar-se novamente pelos assuntos de Estado. Isto tinha interferido nos planos de Bento. Mas, Bento esperou pela sua hora. Quando achou que Sérgio já tinha feito experiência suficiente de uma mortificação piedosa, começou a tentá-lo com ofertas extravagantes: exóticos bombons recheados, pastéis de carne e sopas, leitões assados, barris de vinho da Toscana. Sérgio depressa regressou às suas comezainas.

Mas, desta vez, a comezaina tinha ido longe de mais. Sérgio ficou doente, perigosamente doente. Bento não tinha pena do seu irmão mais velho, mas não queria que ele morresse. A morte de Sérgio significaria o fim do poder do próprio Bento.

Era preciso fazer qualquer coisa. Os médicos que estavam a tratar de Sérgio eram uns incompetentes que atribuíam a doença do Papa a demónios poderosos, contra cuja maldade só a oração podia prevalecer. Cercaram Sérgio de uma quantidade de padres e monges, que choravam e rezavam junto à sua cama de dia e de noite, erguendo as suas vozes pungentes ao Céu. Mas não resultava: Sérgio continuava a piorar.

Bento não estava disposto a deixar que o seu futuro estivesse dependente de um fio de oração. Tenho de fazer qualquer coisa. Mas, o quê?

- Senhor.

Bento foi despertado dos seus sonhos pela vozinha hesitante de Celestino, um dos cubicularu ou camareiros do Papa. Como a maior parte dos seus colegas, Celestino era proveniente de uma família romana rica e aristocrata que tinha pago generosamente pela honra de ter o seu jovem filho ao serviço como camareiro do Papa.

Bento olhou para o rapaz com antipatia. O que sabia esta criança desmamada e privilegiada acerca da sua vida, da dura luta para sair da obscuridade?

- O que é?

- Monsenhor Anastácio pede uma audiência convosco.

- Anastácio? - Bento não se lembrava do nome.

- Bispo de Castellum - esclareceu Celestino, aprontadamente.

- Ousas ensinar-me?

Furioso, Bento deu uma bofetada a Celestino.

- Isto é para aprenderes a respeitar os teus superiores. Desaparece e traz-me cá o bispo.

Celestino saiu apressadamente, esfregando a bochecha com os olhos rasos de água. A mão de Bento ficou-lhe a doer; fechou-a, sentindo-se melhor.

Anastácio entrou pouco depois pela porta. Alto e elegante, o epítome da elegância aristocrática estava perfeitamente ciente da impressão que causava a Bento.

- Pax vobiscus - saudou-o Bento, num latim atrapalhado.

Anastácio reparou no barbarismo, mas preocupou-se em não lhe mostrar o desprezo que sentia por ele.

- Et cum spiritu tuo - respondeu ele, suavemente. - Sua Santidade o Papa? Como está?

- Mal. Muito mal.

- Desgosta-me ouvi-lo.

Isto era mais do que delicadeza. Anastácio estava realmente preocupado. Ainda não tinha chegado a hora certa para Sérgio morrer. Anastácio só teria trinta e cinco anos - a idade mínima requerida para um Pontífice - dali a mais de um ano. Se Sérgio morresse - agora, podia ser eleito um homem mais novo do que ele e isso poderia significar que a Cátedra de São Pedro só voltaria a vagar dali a vinte anos. Anastácio não tencionava esperar tanto para realizar a ambição da sua vida.

- Espero que o vosso irmão esteja a ser bem tratado?

- Está rodeado noite e dia por santos homens, que oferecem orações pelas suas melhoras.

- Ah!

Fez-se silêncio. Ambos eram cépticos relativamente à eficácia daquelas medidas, mas nenhum deles podia manifestar as suas dúvidas abertamente.

- Há uma pessoa na Schola Anglorum - aventurou-se Anastácio. - Um padre com uma grande reputação como médico.

- Ah, sim?

- João Anglicus, penso que é assim que se chama. Um estrangeiro, Parece que é um homem muito instruído. Dizem que é capaz de fazer curas verdadeiramente milagrosas.

- Talvez eu possa mandar chamá-lo - disse Bento.

- Talvez - concordou Anastácio.

Depois, deixou o assunto morrer, Bento não era homem para ser pressionado, segundo lhe parecia. Tacticamente, Anastácio desviou a conversa para outro tema. Quando lhe pareceu que já tinha passado um lapso de tempo suficiente, levantou-se para sair.

- Dominus tecum, benedictus.

- Deus vobiscus - titubeou Bento novamente.

Imbecil ignorante, pensou Anastácio. Era uma vergonha que um homem daqueles pudesse ter tanto poder, era uma nódoa na reputação da Igreja. Com uma vénia e um movimento elegante das suas vestes, Anastácio virou-se e saiu. Bento ficou a vê-lo partir, Nada mal, para um aristocrata. Vou mandar chamar esse pequeno curandeiro, chamado João Anglicus. Provavelmente, ia haver problemas por causa de ele mandar chamar alguém que não era membro da sociedade de medicina, mas não importava. Bento havia de arranjar uma forma. Havia sempre uma maneira, quando se sabia o que se queria.

Aos pés da grande cama sobre a qual repousava Sérgio havia três dúzias de velas. Por trás delas, ajoelhava-se uma multidão de monges vestidos de preto, desfiando litanias em uníssono, em voz baixa.

Enódio, arquiatro de Roma, levantou o seu lancete de ferro e enterrou-o profundamente no antebraço esquerdo de Sérgio, atingindo a veia principal. O sangue escorreu da ferida para dentro de uma taça em prata segurada por um aprendiz de Enódio. Enódio abanou a cabeça, ao examinar o sangue na taça.

Era grosso e escuro; o humor mórbido que estava a causar a doença ao Papa estava concentrado no corpo e não saía. Enódio deixou a ferida aberta, deixando o sangue correr mais do que o costume; não iria poder sangrar Sérgio durante alguns dias porque a Lua estava a passar para Gémeos, um sítio impropício às sangrias.

- Como está ele? - perguntou Florus, um colega médico.

- Mal. Muito mal.

- Saiamos - sussurrou Florus. - Preciso de falar convosco.

Enódio estancou a ferida, juntando a pele e fazendo pressão com a mão. Deixou para o seu aprendiz a tarefa de ligar a ferida com as folhas de arruda, cobertas em gordura, embrulhadas em pano. Depois de ter lavado as mãos, seguiu Florus, saindo para o corredor.

- Mandaram chamar mais alguém - disse Florus apressadamente logo que ficaram sozinhos. - Um médico da Schola Anglorum.

- Não!

Enódio estava consternado. Era suposto a prática da medicina dentro da cidade estar estritamente confinada aos médicos da sociedade de medicina - apesar de, na verdade, haver um pequeno exército desconhecido de presumíveis médicos que exerciam os seus talentos duvidosos entre a populaça. Eram tolerados, desde que atuassem anonimamente entre os pobres.

Mas, o reconhecimento oficial de um deles, trazendo-o ao palácio do próprio papa, representava uma ameaça inegável.

- João Anglicus, chama-se o homem - disse Florus. - Existem rumores de que ele possui poderes extraordinários. Dizem que é capaz de diagnosticar uma doença apenas através do exame da urina do paciente.

Enódio suspirou:

- Um charlatão.

- É óbvio. Mas, alguns destes impostores são bastante dotados. Se este João Anglicus conseguir fazer parecer que tem alguma habilidade, pode ser danoso.

Florus tinha razão. Numa profissão como a deles, onde os resultados eram, frequentemente, desapontadores e sempre imprevisíveis, a reputação era tudo. Se este estranho obtivesse sucesso onde era visível que eles tinham falhado...

Enódio pensou por um momento.

- Ele examina a urina, dizeis vós. Bem, então, nós damos-lhe uma amostra.

- Ora, a última coisa que nós vamos fazer é ajudar um estranho!

Enódio sorriu.

- Eu disse que lhe íamos dar uma amostra, Florus. Não disse de quem.

Guiada por uma escolta de guardas papais, Joana dirigiu-se rapidamente para o Patriarchum, o palácio enorme que albergava a residência papal, assim como a multiplicidade de serviços administrativos que constituiam a sed do governo em Roma.

Passando pela grande basílica de Constantino, com as suas linhas magníficas de janelas em arco, entraram no patriarchum.

Dentro, subiram um pequeno lance de escadas, que levavam ao triclinium major, ou grande sala do palácio cuja construção tinha sido ordenada pelo papa Leão, de boa memória. A parede era revestida a mármore e decorada com miríades de mosaicos, trabalhados com um grau de qualidade artística que deixava a Joana maravilhada. Nunca tinha visto cores tão brilhantes, nem figuras tão vivas. Ninguém na terra dos francos - bispo, abade, conde, nem sequer o próprio imperador - podiam aspirar a tamanha magnificência.

No meio do triclinium, estava reunido um grupo de homens. Um deles dirigiu-se a ela, cumprimentando-a. Era moreno, com uns olhos pequenos e inchados e uma expressão enérgica.

- Sois o padre João Anglicus? - perguntou ele.

- Sou, sim.

- Eu sou Bento, o missus papal e irmão do papa Sérgio. Mandei chamar-vos para curardes Sua Santidade.

- Farei o que puder - disse Joana.

Bento baixou a voz, num murmúrio de conspiração:

- Há quem não deseje que vós tenhais sucesso.

Joana compreendeu imediatamente. A maior parte dos membros daquele grupo pertenciam à sociedade elitista e exclusiva dos médicos. Não receberiam bem uma pessoa de fora.

Veio juntar-se a eles um outro homem - alto, magro, com um olhar penetrante e nariz curvo. Bento apresentou-o como Enódio, arquiatro da sociedade de medicina.

Enódio cumprimentou Joana com um pequeno aceno.

- Descobrireis por vós mesmos, se fordes capaz, que Sua Santidade é afligido por demónios, cuja influência perniciosa não será desalojada por medicinas ou purgas.

Joana não disse nada. Dava pouco crédito a teorias daquelas.

Por que haveria de se procurar uma explicação sobrenatural, quando há tantas causas de doença de índole física e detectável?

Enódio estendeu-lhe um frasquinho com um líquido amarelo.

- Esta amostra de urina foi tirada a Sua Santidade há menos de uma hora. Estamos curiosos para ver o que ides descobrir nela.

Então, vão pôr-me à prova, pensou Joana. Bom, suponho que seja uma maneira de começar tão boa como qualquer outra.

Pegou no frasquinho e pô-lo diante da luz. O grupo fez um semicírculo. O nariz adunco de Enódio tremeu enquanto a observava com uma expectativa manhosa.

Ela virou e revirou o frasquinho para ver bem o seu conteúdo. Estranho. Cheirou-o e voltou a cheirá-lo. Mergulhou um dedo no líquido, chegou-o à língua e provou-o cuidadosamente.

A tensão na sala, agora, era quase palpável.

Voltou a cheirá-lo e a prová-lo. Não havia dúvida.

Um ardil astucioso, substituir a urina do Papa pela de uma mulher grávida. Eles tinham-na confrontado com um verdadeiro dilema. Como um simples padre e um estranho, ela não podia acusar uma companhia tão augusta de a querer enganar deliberadamente. Por outro lado, se não detectasse a substituição, seria denunciada como uma fraude.

A armadilha tinha sido lançada com habilidade. Como haveria de lhe escapar?

Pôs-se a pensar.

Depois, virou-se e anunciou com prontidão:

- Deus acabou de realizar um milagre. Dentro de trinta dias, Sua Santidade dará à luz.

 

Bento ria às bandeiras despregadas ao sair do triclinium.

- A cara daqueles velhos! Tive de me esforçar para não começar a rir alto!

Ele estava divertidíssimo com aquilo que tinha acontecido.

- Haveis demonstrado a vossa arte e exposto o seu embuste sem pronunciar uma única palavra de acusação. Brilhante!

Ao aproximarem-se da câmara papal, ouviram uma gritaria vinda do outro lado da porta.

- Vilões! Vampiros! Ainda não morri!

Ouviu-se um estrondo, como se se tivesse partido qualquer coisa.

Bento abriu a porta. Sérgio estava sentado na cama, com o rosto contorcido de fúria. No meio do quarto, estava um vaso partido, que tinha sido atirado a um grupo de padres assustados. Sérgio tinha agarrado uma taça em ouro, que estava em cima da mesa de cabeceira, e estava prestes a atirá-la aos infelizes prelados, quando Bento se apressou a tirar-lha das mãos.

- Então, Irmão. Sabes o que os médicos disseram. Estás doente; não deves exaltar-te.

Sérgio disse, num tom acusador:

- Acordei e apercebi-me de que me estavam a ungir. Estavam a tentar administrar-me a extrema-unção.

Os prelados alisaram as vestes com uma dignidade ofendida.

Pareciam ser homens importantes; um deles, que usava o pallium de arcebispo, disse:

- Pensámos que era melhor, como Vossa Santidade estava a piorar...

- Saí imediatamente! - interrompeu Bento.

Joana estava espantada; Bento devia ser poderoso, realmente, para se dirigir a um arcebispo de uma forma tão incivilizada.

- Pensai bem, Bento - avisou-o o arcebispo. - Quereis pôr em perigo a alma imortal do vosso irmão?

- Rua! - Bento agitou os braços, como se estivesse a enxotar um bando de corvos. - Saí todos!

Os prelados recuaram rapidamente, sentindo-se todos igualmente indignados.

Sérgio caiu pesadamente sobre as suas almofadas.

- As dores, Bento - lamentou-se ele. - Não consigo suportar as dores.

Bento pegou num jarro que se encontrava sobre a mesa, encheu uma taça de ouro com vinho e chegou-a aos lábios de Sérgio.

- Bebe - disse ele. - Vai aliviar-te.

Sérgio bebeu com sofreguidão.

- Mais - pediu ele, mal tinha acabado de esvaziar a taça.

Bento encheu a taça novamente, depois, voltou a enchê-la. O vinho escorria pelos cantos da boca de Sérgio. Ele era pequeno de ossos, mas muito gordo. A sua figura era constituída por uma série de esferas ligadas umas às outras: o rosto redondo ligava-se ao queixo redondo, os olhos redondos ocupavam o centro de duas órbitas circulares.

- Agora, - disse Bento, quando a sede de Sérgio já tinha sido saciada - olha o que eu fiz por ti, Irmão! Trouxe-te uma pessoa que te pode ajudar. É João Anglicus, um médico de grande reputação.

- Outro médico? - disse Sérgio, desconfiado.

Mas, não fez qualquer objecção quando Joana puxou os cobertores para trás para o examinar. Ela ficou chocada com o estado em que ele estava. As suas pernas estavam tremendamente inchadas, com a carne esticada a abrir fissuras e a estalar.

Sofria de uma inflamação grave nas articulações; Joana suspeitou da sua origem mas tinha de se certificar. Examinou as orelhas de Sérgio. Como seria de esperar, encontrou sinais de tofo, pequenas excrescências esbranquiçadas, semelhantes a olhos de caranguejo, cuja presença só podia significar uma coisa, que Sérgio estava a sofrer um ataque agudo de gota.

Como era possível que os médicos não tivessem descoberto?

Joana passou cuidadosamente os dedos pela carne avermelhada e lustrosa, sentindo a origem da inflamação.

- Pelo menos, este não tem mãos de lavrador - reconheceu o Sérgio.

Era espantoso que ele ainda estivesse lúcido porque estava a arder em febre. Joana tomou-lhe o pulso, reparando nas diversas feridas que ele tinha no braço, em resultado das sangrias. A pulsação era fraca e o seu parecer, agora que já lhe tinha passado o acesso de cólera, era de um branco-azulado doentio.

Benedicite, pensou ela. Não admira que ele tenha febre.

Sangraram-no até à morte.

Virou-se para o camareiro e disse.

- Trazei-me água. Depressa.

Ela tinha que diminuir o inchaço, antes que este o matasse.

Graças a Deus que tinha trazido pó de cólquico. Joana pegou no seu saco e tirou um pedaço de pergaminho encerado, desdobrando-o cuidadosamente para não desperdiçar o pó precioso. O camareiro voltou com um jarro de água. Joana deitou um pouco numa taça, depois deitou-lhe dois dracmas de raiz em pó, a dose recomendada. Acrescentou-lhe mel diluído, para disfarçar o sabor amargo e uma pequena dose de meimendro, para adormecer Sérgio - porque o sono era o melhor remédio contra a dor e o descanso a melhor esperança de cura.

Deu o copo a Sérgio, que o bebeu de um só trago.

- Pah! - disse ele, cuspindo-o. - Isto é água!

- Bebei-o - disse Joana com firmeza.

Para sua surpresa, Sérgio obedeceu-lhe.

- E agora? - perguntou ele, depois de ter esvaziado a taça. - Ireis purgar-me?

- Pensava que estáveis farto dessas torturas.

- Quer dizer que não ides fazer mais nada senão isto? - desafiou-a Bento. Um simples reforço, mais nada?

Joana suspirou. Já se tinha deparado com reacções daquele tipo em outras ocasiões. O senso comum e a moderação não eram apreciadas na arte da cura. As pessoas exigiam medidas mais dramáticas. Quanto mais séria era a doença, mais violenta se esperava que fosse a cura.

- Vossa Santidade sofre de gota. Dei-lhe meimendro, um medicamento especialmente indicado para esta doença. Daqui a pouco, ele vai adormecer e, Deo volente, as dores e o inchaço que o têm afligido abrandarão daqui a alguns dias.

Como que a comprovar a verdade daquilo que ela tinha acabado de dizer, a respiração ofegante de Sérgio começou a abrandar; encostou-se ás almofadas, relaxado, e fechou os olhos sossegadamente.

A porta abriu-se com um estrondo. Entrou um homem pequeno e tenso, com um rosto semelhante ao de um galo de Bantam preparado para atacar. Brandiu um rolo de pergaminho diante do nariz de Bento.

- Eis o documento. Só preciso da assinatura.

Pela forma como estava vestido e como falava, parecia ser um mercador.

- Agora não, Aio - respondeu Bento.

Aio abanou a cabeça furiosamente:

- Não, Bento, não voltareis a mandar-me embora. Toda a cidade de Roma sabe que o Papa está gravemente doente. E se ele morrer esta noite?

Joana olhou preocupada para Sérgio, mas ele não tinha ouvido. Estava a dormir profundamente.

O homem agitou um saco com moedas diante dos olhos de Bento.

- Mil soldos, como combinado. Assinai o papel agora e isto, - levantou outro saquinho - também será vosso.

Bento levou o pergaminho para a cama e desenrolou-o sobre o lençol.

- Sérgio?

- Ele está a dormir - protestou Joana. - Não o acordeis.

Bento ignorou-a.

- Sérgio! - agarrou o irmão pelos ombros e abanou-o.

Sérgio abriu os olhos. Bento pegou numa pena que se encontrava sobre uma mesa ao lado da cama, mergulhou-a na tinta e meteu-a na mão de Sérgio.

- Assina isto - ordenou-lhe ele.

Atordoado, Sérgio colocou a pena sobre o pergaminho. A sua mão tremeu, espalhando a tinta sobre o pergaminho num rabisco torto. Bento pegou na mão do irmão e ajudou-o a fazer a assinatura papal.

De onde estava, Joana via bem o papel. Era uma formata nomeando Aio bispo de Alatri. O contrato que tinha sido feito mesmo à frente de Joana era um suborno para comprar uma nomeação para bispo!

- Agora, descansa, Irmão - disse Bento, satisfeito por ter conseguido o que queria.

Voltando-se para Joana, disse:

- Ficai com ele.

Joana assentiu. Bento e Aio saíram do quarto.

Joana tapou Sérgio com os cobertores, aconchegando-os suavemente. Tinha o queixo espetado, posição característica dela, que demonstrava determinação.

Era evidente que as coisas no palácio papal corriam mal. E não era provável que se endireitassem enquanto Sérgio estivesse doente e o seu irmão venal governasse em seu lugar. A sua tarefa era simples: restabelecer a saúde do Papa o mais depressa possível.

Nos dias que se seguiram, Sérgio manteve-se em estado grave.

O canto constante dos padres impedia-o de dormir, por isso, a pedido insistente de Joana, a sua vigília junto ao leito papal terminou. Tirando uma pequena ida à Schola Anglorum para ir buscar alguns medicamentos, Joana não saiu de ao pé de Sérgio.

Durante o dia, vigiava o seu estado; durante a noite, dormia numa pilha de almofadas ao lado da cama.

Ao terceiro dia, o inchaço começou a diminuir e a pele que o cobria começou a descamar. De noite, Joana acordou de um sono agitado para descobrir que Sérgio tinha deixado de transpirar.

Benedicite, pensou ela. A febre passou.

Ele acordou na manhã seguinte.

- Como vos sentis? - perguntou Joana.

- Não sei - disse ele, vacilante. - Acho que me sinto melhor.

- Estais com muito melhor aspecto.

O seu ar macilento tinha desaparecido, assim como o tom cinzento-azulado doentio da sua pele.

- As minhas pernas... sinto um formigueiro!

Ele começou a coçar as pernas desesperadamente.

- A comichão é um bom sinal; quer dizer que as pernas estão a voltar à vida - disse Joana. - Mas, não deveis irritar a pele porque ainda há perigo de infecção.

Ele retirou a mão. Mas, a comichão era intensa; pouco depois, estava outra vez a coçar as pernas. Joana administrou-lhe uma dose de meimendro para o acalmar e ele voltou a adormecer.

Quando abriu os olhos no dia seguinte, estava lúcido, perfeitamente consciente do que se passava à sua volta.

- Já não tenho dores! - Olhou para as pernas. - E o inchaço!

O que viu animou-o; sentou-se. Ao ver um camareiro através da porta, disse:

- Tenho fome. Trazei-me um pedaço de presunto e um pouco de vinho.

- Um prato de legumes e um copo de água - contra-ordenou Joana.

O camareiro desapareceu apressadamente, antes que Sérgio pudesse protestar.

Sérgio ergueu as sobrancelhas, surpreendido.

- Quem sois vós?

- O meu nome é João Anglicus.

- Não sois romano.

- Nasci no país dos francos.

- No Norte! - Os olhos de Sérgio tornaram-se mais penetrantes. - É uma região assim tão bárbara como dizem?

Joana sorriu:

- Há menos igrejas, se é isso que quereis dizer.

- Porque vos chamais Anglicus - perguntou Sérgio - se haveis nascido no país dos francos?

Ele estava espantosamente lúcido, dado tudo aquilo por que tinha passado.

- O meu pai era inglês - explicou Joana. - Veio pregar a fé aos saxónios.

- Aos saxónios? - Sérgio franziu o sobrolho. - Uma tribo ímpia.

Mamã. Joana sentiu aquela onda de vergonha e amor que lhe era familiar e disse:

- A maior parte deles, agora, são cristãos - tanto quanto é possível a quem foi trazido para a fé pelo fogo e a espada.

Sérgio olhou para ela com severidade.

- Não concordais com a missão da Igreja de converter os pagãos?

- Que valor pode ter qualquer compromisso obtido pela força? Sob tortura, uma pessoa pode confessar seja que mentira for, apenas para pôr termo ao sofrimento.

- Mas, nosso Senhor mandou-nos anunciar a Palavra de Deus: Ide e ensinai todas as nações, baptizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.

- É verdade - concordou Joana. - Mas... - Interrompeu-se. Lá estava ela outra vez a deixar-se arrastar para um debate imprudente e, possivelmente, até perigoso, desta vez, com o próprio Papa!

- Continuai - incitou Sérgio.

- Perdoai-me, Santidade. Não estais bem.

- Também não estou assim tão mal que não possa raciocinar - retorquiu Sérgio, impacientemente. - Prossegui.

- Bem... - ela escolheu as palavras com cuidado. - Pensai na ordem dos mandamentos dados por Cristo: primeiro, ensinai as nações, depois, baptizai-as.

Não nos é ordenado que administremos o sacramento do baptismo antes que o pensamento abrace a fé pela prática, primeiro, ensinai, disse Cristo, depois baptizai.

Sérgio observou-o com interesse.

- Pensais bem. Onde fostes educado?

- Um grego de nome Asclépios, um homem de grande saber, foi meu tutor em criança. Depois, mandaram-me para a escola da catedral de Dorstadt e, mais tarde, para Fulda.

- Ah, Fulda! Ainda à pouco tempo recebi um manuscrito de Rábano Mauro com iluminuras lindíssimas, contendo um poema da sua autoria sobre a Santa Cruz de Cristo. Quando lhe escrever para lhe agradecer, hei-de contar-lhe os serviços que haveis prestado à nossa pessoa.

Joana pensava que se tinha livrado do abade Rábano para sempre; será que o seu ódio tirânico a ia perseguir até aqui, pondo em perigo a vida nova que ela tinha construído para si própria?

- Temo que não vos mandem boas informações de lá acerca da minha pessoa.

- Porquê?

- O abade considera a obediência o maior de todos os votos religiosos. Mas, para mim, sempre foi o mais difícil.

- E os vossos outros votos? - perguntou Sérgio, solenemente. - O que haveis feito deles?

- Nasci na pobreza e acostumada a ela. Quanto à castidade - acrescentou ela esforçando-se por não deixar transparecer qualquer ironia na sua voz -, sempre resisti á tentação das mulheres.

A expressão de Sérgio suavizou-se.

- Folgo em ouvi-lo. Porque, neste aspecto, eu não concordo com o abade Rábano; de todos os votos religiosos, a castidade é certamente o maior e aquele que mais agrada a Deus.

Joana ficou surpreendida com os seus pensamentos. O ideal da castidade sacerdotal estava longe de ser praticado universalmente em Roma. Não era nada fora do comum um sacerdote romano ter uma esposa, assim como não existia qualquer proibição de acesso de homens casados ao sacerdócio, desde que concordassem em renunciar a todas as relações conjugais ulteriores - acordo que, como seria de esperar, era mais quebrado do que cumprido. Uma mulher raramente se opunha a que o seu marido quisesse ser padre porque partilhava com ele o prestígio da sua posição; a mulher de um padre recebia o tÍtulo honorífico de "sacerdotisa" ou de "diaconisa", se fosse esposa de um diácono, O papa Leão III era casado quando ascendeu ao trono papal e ninguém tinha pensado mal dele em Roma por causa disso.

O camareiro voltou com uma salva de prata com pão e legumes, que colocou diante de Sérgio. Este pegou num pedaço de pão e deu-lhe uma dentada, esfomeado.

- Agora, contai-me tudo o que se passou entre vós e o abade Rábano - disse ele.

 

Joana veio a aperceber-se que era como se o Sérgio fosse duas pessoas: uma, dissoluta, ordinária e má; a outra, culta, inteligente e ponderada. Tinha lido num livro de Celso que havia casos destes: animae divisae, chamava-lhes ele - almas divididas.

Era o que se passava com Sérgio. Mas, no seu caso, era a bebida que desencadeava a metamorfose. Gentil e bondoso, quando sóbrio, tornava-se um terror sob o efeito da bebida. Os criados do palácio, sempre prontos para a maledicência, contaram a Joana que, uma vez, Sérgio tinha condenado um deles à morte apenas porque não lhe tinha levado o jantar a horas.

Tinha voltado ao estado de sobriedade a tempo de impedir a execução, mas não a tempo de impedir que o servo tivesse sido vergastado e exposto no pelourinho.

Os seus médicos, afinal, não estavam assim tão enganados, como veio a descobrir Joana: Sérgio estava possesso, apesar de os demónios que o afligiam não terem nada a ver com o Diabo, mas sim com ele próprio.

Assim que se apercebeu das suas melhores qualidades, Joana fez sua a missão de o recuperar. Colocou-o sob uma dieta rigorosa constituída por vegetais e água de cevada. Sérgio resmungou, mas obedeceu, temendo que as dores voltassem.

Quando ela considerou que ele já estava pronto, instituiu um regime de passeios diários a pé nos jardins lateranenses. Ao início, ele tinha de ser levado até lá na sua cadeira, carregado por três criados, que gemiam sob o seu peso. No primeiro dia, mal conseguiu andar alguns passos, caiu imediatamente na sua cadeira, esgotado. Com a persistência de Joana, cada dia foi um pouco mais longe; ao fim de um mês, já era capaz de dar uma volta completa ao jardim.

O inchaço residual em torno das suas articulações diminuiu e a pele recuperou um tom rosado saudável. Os seus olhos desincharam e as suas feições ganharam um contorno mais definido, pelo que Joana se apercebeu de que ele era um homem muito mais novo do que ela tinha pensado inicialmente - talvez não tivesse mais do que quarenta e cinco ou cinquenta anos.

 

- Sinto-me um homem novo - disse Sérgio um dia a Joana, durante o seu passeio quotidiano.

Era Primavera e os lilases já estavam em flor, perfumando o ar com o seu aroma activo.

- Não tendes tonturas, nem sentis fraqueza ou dores? - perguntou Joana.

- Não, nada. Realmente, Deus operou um milagre.

- Bem podeis dizê-lo, Santidade - disse Joana com um sorriso de lado, - Mas, pensai no estado em que estáveis, quando apenas Deus vos servia de médico!

Sérgio puxou afectuosamente a orelha de Joana.

- Deus mandou-vos para realizardes o Seu milagre!

Riram-se os dois. Estimavam-se mutuamente. É este o momento, pensou Joana.

- Se vos sentis realmente bem... - e deixou as palavras a pairar no ar.

- Sim?

- Estava só a pensar que... o tribunal papal se reúne hoje.

O vosso irmão Bento preside no vosso lugar, como é costume.

Mas, se vos sentis bem...

Sérgio disse, resolutamente:

- Bento está habituado a presidir. Certamente, não é preciso...

- As pessoas não escolheram Bento para seu senhor. Precisam de vós, Santidade.

Sérgio suspirou, Fez-se um longo silêncio.

A Joana pensou: falei cedo de mais e de forma demasiado clara.

Sérgio disse:

- O que dizeis é verdade, João Anglicus, Negligenciei estas coisas durante demasiado tempo.

A tristeza que os seus olhos exprimiam davam ao seu rosto uma expressão de sabedoria.

Joana respondeu suavemente:

- O remédio, meu senhor, está em agir.

Sérgio olhou para ela. Depois, virou-se de repente, encaminhando-se para a entrada do jardim.

- João, então! - chamou-a ele. - ... Que esperais?

Joana apressou-se a segui-lo.

Havia dois guardas encostados à parede exterior da sala do tribunal, conversando um com o outro. Ao verem Sérgio, deram um salto, pondo-se direitos e abriram as portas.

- Sua Santidade o Papa, Sérgio, bispo metropolita de Roma! - anunciou um deles, com voz forte.

Sérgio e Joana entraram na sala. Por uns momentos, fez-se um silêncio atónito, ao qual se seguiu um ranger de cadeiras, quando as pessoas se puseram de pé para saudar a entrada do Papa. Quer dizer, menos Bento, que ficou sentado na cadeira papal, de boca aberta.

- Fecha a boca, irmão, a não ser que queiras engolir uma mosca - disse Sérgio.

- Santidade! Será prudent? - Exclamou Bento. - Não deveis colocar em risco a vossa saúde, assistindo a esta audiência!

- Obrigado, Irmão, mas sinto-me bastante bem - respondeu Sérgio. - E não vim para assistir, mas para presidir.

Bento levantou-se.

- Folgo em ouvi-lo, como toda a cidade de Roma. - a sua voz soava a tudo menos a alegria.

Sérgio sentou-se confortavelmente na cadeira acolchoada.

- Qual é o assunto que tendes em mãos?

O notário apressou-se a pô-lo ao corrente dos pormenores.

Mamertus, um mercador abastado, pedia permissão para renovar o Orphanotrophium, um albergue e uma escola para órfãos instalada num edifício em ruinas, perto do Laterano. Mamertus propôs reconstrui-lo completamente e transformá-lo num abrigo para peregrinos abastados.

- O Orphanotrophium - murmurou Sérgio. - Conheço bem o local; vivi lá durante algum tempo, depois da morte da minha mãe.

- Santidade, o edifício está a cair - disse Mamertus. - É uma vergonha, uma nódoa para a nossa grande cidade. A minha proposta vai transformá-lo num palácio!

- E os órfãos? - perguntou Sérgio.

Mamertus encolheu os ombros.

- Podem procurar caridade noutro sítio. Há albergues que os podem receber.

Sérgio parecia ter dúvidas.

- É muito duro expulsarem-nos da nossa casa!

- Santidade, esta hospedaria será o orgulho de Roma! Os duques não hesitarão em lá dormir, nem os reis!

- Os órfãos não são menos amados por Deus do que os reis. Não foi Cristo quem disse: bem-aventurados os pobres, porque deles é o Reino de Deus?

- Santidade, peço-vos que considereis o meu pedido. Pensai naquilo que a existência deste estabelecimento pode fazer por Roma!

Sérgio abanou a cabeça:

- Não sancionarei a destruição deste orfanato. A petição é negada.

- Protesto! - disse Mamertus, exaltado. - O vosso irmão e eu já tínhamos chegado a um acordo; o edifício foi confiscado e o pagamento feito.

- Pagamento? - Sérgio ergueu o sobrolho.

Bento fez um sinal aflito a Mamertus.

- Eu... eu... - Mamertus levantou os olhos, procurando as palavras. - Eu fiz uma oferta, uma oferta muito generosa ao altar de São Servatius para apressar o sucesso deste empreendimento.

- Então, estais de parabéns - disse Sérgio. - Tanta caridade traz consigo a sua própria recompensa porque sofrereis menos na vida eterna.

- Mas...

- Tendes a nossa gratidão, Mamertus, por haverdes chamado a nossa atenção para o estado em que se encontra o Orphanotrophium. Será nossa preocupação imediata repará-lo.

A boca de Mamertus abriu-se e fechou-se várias vezes, como a de um peixe fora da água. Lançando um último olhar turvo a Bento, saiu da sala.

Sérgio sorriu para Joana, que sorriu também em troca.

Bento apercebeu-se da troca de olhares. Então é João, pensou ele. Recriminou-se a si próprio por não ter reparado antes.

Tinha sido uma época muito ocupada para o tribunal pontifício, a época do ano mais lucrativa para Bento; tinha estado tão ocupado com estas coisas que não tinha prestado atenção suficiente ao grau de influência que o padrezinho estrangeiro tinha adquirido junto do seu irmão.

Não faz mal, disse ele de si para si. O que está feito pode ser desfeito. Todos têm um ponto fraco. Tratava-se apenas de descobrir qual era o ponto fraco de João Anglicus.

Joana apressou-se pelo corredor, a caminho do triclinium.

Como médico pessoal de Sérgio era-lhe permitido jantar à sua mesa - um privilégio que lhe permitia vigiar de perto tudo quanto o Papa comia e bebia. O seu estado de saúde ainda estava longe de ser robusto; um desleixo podia voltar a provocar um ataque de gota.

- João Anglicus.

Ela virou-se e viu Arighis, o vicedominus, ou principal mordomo do palácio, que se dirigia para ela.

- Está uma senhora em estado muito grave no Trastevere, deveis ir assisti-la.

Joana suspirou. Já tinha sido chamada três vezes naquela semana para incumbências daquele género. As notícias da cura do papa Sérgio tinham-se espalhado por toda a cidade. Para grande consternação dos membros da sociedade de medicina, os serviços da Joana como médica tinham passado a ser muito procurados.

- Porque não mandais um médico da schola? - sugeriu Joana.

Arighis franziu o sobrolho. Não estava habituado a ser contrariado: como vicedominus, assistia-lhe o direito e o dever de exercer controlo sobre todos os assuntos relacionados com a casa papal e o seu pessoal - facto que este estrangeirinho impertinente não percebia.

- Já prometi os vossos serviços.

Joana irritou-se com esta afirmação de autoridade; como médica pessoal de Sérgio, em rigor, não estava sob a autoridade de Arighis. Mas, não valia a pena discutir por causa disso, além disso, um pedido de ajuda com urgência tem de ser atendido, por muito inoportuno que fosse o momento da sua chegada.

- Está bem - assentiu Joana. - Vou buscar a minha mala de medicamentos.

Ao chegar à morada indicada, a Joana deparou-se com uma grande casa, do estilo de uma velha domus romana. Um criado guiou-a através de uma série de pátios interligados e de um jardim, até a uma câmara interior decorada prodigamente com mosaicos brilhantemente coloridos, conchas encrostadas no estuque e pinturas trompe l'oeil desenhadas para dar a ilusão de paisagens e quartos distantes. Esta sala fantástica exalava um cheiro doce a maçãs maduras. Ao fundo da sala estava uma grande cama, alumiada com velas, como um altar. No meio da cama, estava deitada uma langorosa mulher numa pose langorosa.

Era a mulher mais bonita que Joana já tinha visto, mais bonita do que Richild, ainda mais bonita do que a sua mãe, Gudrun, que Joana, até àquele momento, pensava ser a mulher mais bela da Criação.

- Eu sou Marioza.

A voz da mulher era de um mel líquido.

- S-senhora - titubeou Joana, com a língua presa diante de tanta perfeição. - Eu sou João Anglicus e vim em resposta ao vosso apelo.

Marioza sorriu, satisfeita com a impressão que causava.

- Aproximai-vos, João Anglicus - ordenou a voz melada. Ou quereis examinar-me daí?

O cheiro a maçã doce era mais forte perto da cama. Joana pensou: conheço este cheiro. Mas, de momento, não foi capaz de o identificar.

Marioza tinha uma taça com vinho na mão.

- Não quereis beber à minha saúde?

Joana bebeu, por delicadeza, esvaziando o copo, como era costume. De perto, Marioza era ainda mais bela. A sua pele era de uma alvura marmórea, os seus olhos, enormes, com umas órbitas de um violeta profundo, que as grandes pupilas negras tornavam num negro de ébano.

Demasiado grandes, pensou a Joana subitamente. Uma dilatação tão grande das pupilas era realmente anormal. A observação clínica quebrou o feitiço da beleza de Marioza.

- Dizei-me, senhora - Joana poisou o copo - o que vos atormenta?

- Tão belo e tão atarefado? - suspirou ela.

- Desejo ajudar-vos, senhora. Que aflição me chamou a vós com tanta urgência?

- Já que insistis, é o meu coração - disse Marioza, visivelmente contrariada.

Uma queixa fora de comum numa mulher da sua idade, pensou Joana; Marioza não tinha mais do que vinte e dois anos. Bem, sabia-se que havia casos daqueles, que havia crianças nascidas sob uma má estrela, com um mal no coração que transformava cada suspiro da sua breve existência num tormento e numa agonia. Mas aqueles que sofriam dessa aflição não tinham o aspecto de Marioza cujo ser, para além daquelas pupilas misteriosamente dilatadas irradiava boa saúde.

Joana pegou no pulso de Marioza e sentiu-lhe a palpitação forte regular. Examinou as mãos de Marioza. Tinham boa cor e a ponta dos dedos era cor-de-rosa por baixo das unhas. A pele reagia ao tacto, sem qualquer marca ou descoloração. Joana examinou as pernas e os pés de Marioza com o mesmo cuidado, voltando a não encontrar qualquer sinal de necrose; a circulação de Marioza parecia saudável e forte, assim como todas as partes do corpo.

Marioza encostou-se às almofadas, com os olhos semicerrados.

- Procurais o meu coração? - brincou ela. - Não o encontrareis aí, João Anglicus!

Abriu o robe de seda, mostrando o peito de uma brancura marmórea.

Benedicite, pensou Joana. Esta deve ser a célebre Marioza, a mais célebre hetaera ou cortesã de toda a cidade de Roma!

Dizia-se que entre os seus clientes se encontravam alguns dos homens mais importantes da cidade. Está a tentar seduzir-me, percebeu Joana. O absurdo da situação provocou-lhe um sorriso.

Interpretando mal o sorriso da Joana, Marioza sentiu-se encorajada. Este padre não ia ser tão difícil de seduzir como Bento tinha dito quando requisitou os seus serviços. Padre ou não, João Anglicus era um homem e ainda não tinha nascido o homem que fosse capaz de lhe resistir.

Com um desinteresse ostensivo, Joana concentrou-se na sua consulta. Examinou as costas de Marioza, à procura de costelas magoadas; a dor que um ferimento desses causava era interpretada muitas vezes como um problema de coração. Marioza não se queixou nem deu qualquer sinal de desconforto.

- Tendes umas mãos muito macias - disse ela, colocando-se numa posição em que as curvas sedutoras do seu corpo se notassem melhor. - Que mãos macias e fortes.

Joana virou-se para o lado direito.

- A maçã de Satanás!

É mesmo de um padre, pensou a Marioza, falar de pecado num momento destes. Bom, os padres não lhe eram estranhos; sabia como lidar com estas crises de consciência de última hora.

- Não reprimais os vossos sentimentos, João, porque eles são naturais, são um dom de Deus. Não está escrito na Bíblia que os dois serão uma só carne! Na realidade, Marioza não tinha a certeza se aquelas palavras se encontravam na Bíblia, mas achava que sim.; tinham-lhe sido ditas por um arcebispo, numa situação muito semelhante àquela.

- Além disso, - acrescentou ela - ninguém saberá nunca daquilo que se passou aqui entre nós, a não ser nós próprios.

Joana abanou a cabeça com veemência.

- Não era isso que eu queria dizer. O cheiro neste quarto - é mandrágora - uma coisa a que se chama, às vezes, maçã de Satanás.

O fruto amarelo era um narcótico; isso explicava as pupilas dilatadas de Marioza.

- Mas, de onde vem o cheiro? - Joana cheirou uma vela que se encontrava perto da cama. - O que fizestes, misturastes o sumo com a cera da vela?

Marioza suspirou. Já tinha visto aquelas reacções em jovens prelados virgens. Embaraçados e inseguros, tentavam desviar a conversa para um terreno mais seguro.

- Vinde - disse ela - deixai o assunto das poções. Há maneiras melhores de passarmos o tempo.

Passou a mão pela parte da frente da túnica de João Anglicus, à procura dos seus órgãos íntimos.

Antes que ela lá chegasse, Joana deu um salto para trás.

Cheirou a vela e agarrou a mão de Marioza com força.

- Ouve, Marioza. A mandrágora - que usas por causa das suas qualidades afrodisíacas - eu sei, tens de a deitar fora porque o seu vapor é venenoso.

Marioza franziu o sobrolho. Isto não estava a correr como planeado. Ela tinha de conseguir arranjar maneira de desviar o homem das suas doutorices.

Ouviram-se passos no andar de baixo. Não havia tempo para o convencer. Agarrou a parte de cima do robe com ambas as mãos e rasgou-o de repente.

- Oh! - gemeu ela - estou a sentir uma dor! Ouvi-me!

Agarrou a cabeça da Joana e encostou-a ao seu peito.

Joana tentou afastar-se, mas Marioza agarrava-a com força.

- Oh, João - a voz dela era líquido puro - não posso resistir ao poder da vossa paixão!

A porta abriu-se de repente. Irromperam pela sala uma dúzia de guardas papais e agarraram Joana, levantando-a rudemente da cama.

- Ora, Padre, que forma estranha de dar a comunhão! - disse o chefe do grupo, troçando.

Joana protestou:

- Esta mulher está doente; eu fui chamado aqui para a tratar.

O homem ironizava:

- Claro, muitas mulheres têm sido curadas da infertilidade com esse remédio.

Uma explosão de riso fez tremer as paredes do quarto. Joana disse a Marioza:

- Dizei-lhes a verdade.

Marioza encolheu os ombros, com o robe rasgado a escorregar-lhe dos ombros.

- Eles viram-nos. Porque havemos de tentar negá-lo?

- Bem-vindo às hostes, Padre! - troçou um dos guardas. - O número dos amantes de Marioza deixariam o Coliseu a abarrotar!

Esta afirmação foi saudada com outra explosão de gargalhadas. Marioza juntou-se aos outros:

- Vá, Padre.

O chefe dos guardas pegou no braço de Joana, puxando-a para a porta.

- Para onde me levais? - perguntou Joana, apesar de saber a resposta.

- Para o Laterano. Ides ter de responder ao Papa por isto.

Joana libertou-se da mão dele. E disse a Marioza:

- Não sei porque fizeste isto ou quem te mandou fazer, mas aviso-te, Marioza: não faças depender a tua fortuna dos favores dos homens porque eles são tão efémeros como a tua beleza.

O riso de Marioza morreu-lhe nos lábios.

- Bárbaro! - ripostou ela, com desprezo.

Joana foi levada do quarto por entre uma onda de risos.

Ladeada por guardas, Joana caminhou em silêncio ao longo das ruas escuras. Não era capaz de sentir ódio por Marioza. Joana podia ter acabado como ela se o destino não a tivesse levado para um caminho diferente. As ruas de Roma estavam cheias de mulheres que se ofereciam por pouco mais do que o preço de uma refeição. Muitas tinham chegado à Cidade Santa como piedosas peregrinas, mesmo como freiras; quando se achavam sem abrigo ou meios para comprar a passagem de regresso, voltavam-se para uma alternativa já pronta. O clero vociferava contra estas servas do Demónio, do alto dos seus púlpitos. Diziam que era melhor morrer casto do que viver no pecado. Mas eles nunca tinham conhecido a fome, pensou Joana.

Não, Marioza não tinha culpa; ela era apenas um instrumento.

Mas, nas mãos de quem? Quem ganhava em desacreditá-la? Enódio e os outros membros da sociedade de medicina eram bem capazes de recorrer a um expediente tão sórdido como aquele. Mas, eles teriam concentrado os seus esforços em desacreditá-la como médica.

Então, se não eram eles, quem era? A resposta surgiu-lhe imediatamente: Bento. Desde o negócio do Orphanotrophium que ele tinha ficado ressentido com ela, ciumento da sua influência sobre o irmão. A ideia animou-a; pelo menos, sabia quem era o inimigo. Além disso, não tencionava deixar Bento escapar daquela. Era verdade que ele era o irmão de Sérgio, mas ela era amiga dele; faria com que ele visse a verdade.

Ao chegar ao Laterano, Joana ficou desanimada ao ver que os guardas não passaram pelo triclinium, onde Sérgio estava a jantar com os amigos e com outros altos funcionários da corte papal, levando-a directamente para os aposentos de Bento.

- Bem, bem. O que temos nós aqui? - disse Bento, em tom trocista, quando Joana e os guardas entraram. - João Anglicus rodeado de guardas como um vulgar ladrão?

E disse ao chefe dos guardas:

- Falai, Tarasius, e dizei-me qual a natureza do crime deste padre.

- Meu senhor, prendemo-lo nos aposentos de Marioza, a prostituta.

- Marioza! - Bento fingiu um ar de grave desaprovação.

- Encontrámo-lo na cama da prostituta, enrolado no seu abraço - acrescentou Tarasius.

- Foi uma armadilha - disse Joana. - Fui lá chamado sob o pretexto falso de que Marioza precisava de ser consultada por um médico. Ela sabia que os guardas iam aparecer e abraçou-me no momento em que eles iam a entrar.

- Esperais que eu acredite que tenhais sido dominado por uma mulher? Tende vergonha, falso padre!

- A vergonha é para vós, Bento, não para mim - respondeu Joana, agastada. - Fostes vós que engendrastes isto tudo para me desacreditar. Tratastes de fazer com que Marioza me chamasse, fingindo estar doente, depois, mandastes os guardas, sabendo que eles nos iriam encontrar juntos.

- Reconheço-o.

A confissão apanhou Joana desprevenida.

- Confessais a vossa artimanha?

Bento pegou numa taça com vinho e bebeu, saboreando-a.

- Sabendo que não sois casto e não me agradando ver traída a confiança que o meu irmão deposita em vós, procurei prova da vossa perfídia, é tudo.

- Eu não sou incasto, nem tendes qualquer motivo para o pensar de mim.

- Não sois incasto? - troçou Bento. - Dizei-me como o haveis encontrado, Tarasius.

- Meu senhor, ele estava deitado com a libertina na cama dela e ela estava nua nos seus braços.

- Imaginai como o meu irmão vai ficar desgostoso quando ouvir um testemunho tão danoso - ainda para mais, depois da grande confiança que ele depositou em vós!

Joana apercebeu-se pela primeira vez da gravidade da situação.

- Não façais isto - disse ela. - O vosso irmão precisa de mim porque ainda não está livre de perigo. Sem cuidados médicos adequados, ele sofrerá outro ataque - e o próximo pode matá-lo.

- Enódio tratará do meu irmão daqui para a frente - retorquiu Bento, num tom seco. - As vossas mãos pecaminosas já lhe fizeram mal que baste.

- Eu fiz-lhe mal? - O ultraje que Joana sentiu obliterou a sua réstia de controlo. - Atreveis-vos a dizer que eu... vós, que haveis sacrificado o vosso irmão à vossa própria inveja e ganância?

Sentiu o rosto molhado; Bento tinha-lhe atirado com o conteúdo da taça à cara. O vinho forte ardia-lhe nos olhos, fazendo correr as lágrimas; correu-lhe também pela garganta, engasgando-a e fazendo-a cuspir.

- Levai-o para o calabouço - ordenou Bento.

- Não!

Joana libertou-se dos guardas com um grito agudo. Tinha de chegar ao pé de Sérgio antes que Bento o envenenasse contra ela. Correu apressadamente pela sala, a caminho do triclinium.

- Agarrai-o! - gritou Bento.

O barulho dos passos dos guardas soava atrás dela. Joana dobrou uma esquina e correu desesperadamente na direcção das luzes que brilhavam no triclinium.

Estava a poucos passos da entrada quando a agarraram e atiraram ao chão. Ela tentou levantar-se, mas os guardas ataram-lhe os braços e as pernas. Indefesa, levaram-na.

Transportaram-na por corredores desconhecidos e por escadas que desciam tão fundo e tão longe que Joana começou a pensar se teriam fim. Finalmente, os guardas pararam diante de uma porta em madeira maciça, trancada com uma barra em ferro; levantaram o ferrolho e a porta abriu-se, rangendo. Puseram Joana de pé e atiraram-na lá para dentro. Ela caiu numa escuridão húmida e ficou com os pés dentro de água. A porta fechou-se com um estrondo aterrador e a escuridão tornou-se absoluta.

Os passos dos guardas afastaram-se pelo corredor abaixo.

Joana levantou-se de braços estendidos, tacteando na escuridão. Tocou no seu saco - não se tinham lembrado de lho tirar, o que era uma pequena bênção. Meteu a mão dentro do saco, sentindo os vários pacotes e frasquinhos, reconhecendo cada um deles pela forma e o tamanho. Finalmente, encontrou o que procurava - a caixa com o seu sílex e o pequeno coto de vela que ela usava para aquecer as suas poções.

Pegou no sílex e raspou-o no lado da caixa em metal, lançando faíscas ao pavio seco. Ele acendeu rapidamente. Ela chegou a vela à chamazinha, que se tornou mais firme, espalhando a sua luz amarela em volta dela, num suave elo.

A luz brilhou, trémula, na escuridão, revelando sombras e contornos incertos. A cela era grande. Tinha cerca de trinta pés de comprimento e vinte de largo. As paredes eram em pedra, suja e escurecida pelos anos. Pelo aspecto escorregadio do chão, Joana adivinhou que ele também fosse em pedra, apesar de ser impossível ter a certeza porque estava coberto com várias camadas de água lamacenta e estagnada.

Ela levantou mais a vela, espalhando o seu círculo de luz.

Num canto mais afastado, descortinou uma sombra - uma forma humana, pálida e etérea como um fantasma.

Não estou sozinha. Sentiu-se aliviada, mas, depois, imediatamente assustada. Afinal, aquele era um lugar de castigo. Seria um louco ou um assassino - ou talvez ambas as coisas?

- Dominus tecum - disse ela, a medo.

O homem não respondeu. Ela repetiu a saudação em vernáculo acrescentando:

- Eu sou João Anglicus, padre e médico. Posso fazer alguma coisa por vós, Irmão?

O homem estava sentado, encostado à parede, com os braços e as pernas afastadas. Joana aproximou-se. A luz da vela bateu na cara do homem - mas, não era uma cara, era uma caveira, uma cabeça de um morto horrenda, com pedaços de carne podre e de cabelos.

Com um grito, Joana afastou-se e correu, chapinhando, para a porta. Bateu na porta pesada.

- Tirem-me daqui!

Bateu até ficar com os pulsos em carne viva.

Ninguém respondeu. Não apareceu ninguém. Iam deixá-la ali morrer na escuridão.

Cruzou os braços, tentando parar de tremer. Lentamente, a onda de terror e de desespero começou a abrandar. Sentiu crescer dentro de si outro sentimento - uma determinação teimosa em sobreviver, em lutar contra a injustiça que a tinha posto ali. A mente, temporariamente embotada pelo medo, voltou a começar a raciocinar. Não posso perder a esperança, pensou ela, resolutamente. Sérgio não deixará que eu fique neste calabouço para sempre. Primeiro ficará furioso, quando ouvir a versão de Bento acerca daquilo que teceu com Marioza, mas, ao fim de alguns dias, vai acalmar e vai mandar chamar-me. Tenho de esperar até lá. Começou a andar cuidadosamente à volta da cela. Encontrou os restos de mais três presos, mas, desta vez, já estava preparada e eles não eram tão assustadores como o primeiro porque os seus ossos há muito que tinham perdido qualquer vestígio de carne. A sua exploração também a levou a fazer uma descoberta importante: um dos lados da cela era mais alto do que o outro, do lado mais alto, a água lamacenta parava antes de chegar ao pé da parede, deixando uma longa faixa de chão seco. Encostado à parede, estava um cobertor em lã rasgado, cheio de buracos, mas, mesmo assim, uma protecção útil contra o frio penetrante da câmara subterrânea. No outro canto da sala, encontrou outra coisa, um colchão em palha ensopado de água. Era grosso e estava bem feito. Estava tão cheio que a sua parte de cima ainda estava seca. Joana arrastou-o para o lado mais alto da sala e sentou-se, poisando a vela ao lado. Abriu o saco e tirou um pouco de heléboro, espalhando o pó preto venenoso à sua volta, num círculo amplo, uma linha traçada contra os ratos e outros vermes. Depois, pegou num pacote de pó de raiz de carvalho e noutro com salva seca, esmagou-a e deitou-a num frasquinho com vinho misturado com mel. Virando cuidadosamente o frasquinho com o líquido precioso, bebeu um trago para resistir aos humores negativos daquele lugar. Depois, deitou-se no colchão, apagou a vela e cobriu-se com o cobertor rasgado. Ficou imóvel na escuridão. Tinha feito tudo o que era possível de momento. Agora, tinha de descansar e poupar as suas forças, até chegar a hora de Sérgio a mandar chamar.

 

Era a Festa da Ascensão e a celebração do dia ia ser na Igreja titular de São Prassede. Apesar de o Sol mal ter acabado de nascer, os fiéis já estavam reunidos, enchendo de movimento, cor e conversas a rua do Patriarchum.

As enormes portas em bronze do Patriarchum abriram-se, finalmente. Os primeiros a aparecerem foram os acólitos e outros clérigos com ordens menores, que saíram a pé, humildemente. Seguia-se-lhes um grupo de guardas a cavalo, que olhavam atentamente para a multidão, à procura de potenciais agitadores. Atrás deles, apareceram os diáconos e notários das sete regiões eclesiásticas, cada um deles precedido por um clérigo ostentando o estandarte com os siina da sua região.

Depois, vinha o arcebispo e o primicerius dos defensores, seguido pela sua irmandade.

Finalmente, apareceu o papa Sérgio, revestido com um manto magnífico, adornado a ouro e prata, montado num cavalo enorme, arreado com seda branca. Imediatamente a seguir, vinham os optimates, os principais dignitários da administração papal, por ordem de importância: Arighis, o vicedominus e depois o vestiarius, o sacellarius e o nomenclator.

O longo cortejo atravessou o pátio do Laterano, evoluindo com uma dignidade solene. Passou pela estátua em bronze da loba, mater romanorum, ou mãe dos romanos, que os antigos acreditavam ter amamentado Rómulo e Rémulo. A estátua tinha ocasionado bastante controvérsia porque havia quem dissesse que era uma blasfémia que estivesse uma peça de idolatria pagã diante dos muros do palácio papal, enquanto outros a defendiam com igual paixão, louvando a sua beleza e a excelência da sua arte.

Ao passar por trás da loba, a procissão virou para norte, passando por baixo do grande arco do aqueduto de Cláudio, com o seu belo trabalho em pedra, na direcção da velha Via Sacra, a estrada sagrada que os papas tinham atravessado desde tempos imemoriais.

Sérgio pestanejou por causa dos raios de sol. Doía-lhe a cabeça e o balanço ritmado do seu cavalo estava a pô-lo tonto, agarrou-se às rédeas para se endireitar. É o preço que pago pela gula, pensou ele, penitenciando-se. Tinha voltado a pecar, empanturrando-se com comida e vinho abundantes. Com remorsos da sua fraqueza, Sérgio resolveu - pela vigésima vez naquela semana - regenerar-se.

Pensou em João Anglicus com um baque de arrependimento.

Sentia-se muito melhor quando o padre estrangeiro era médico dele. Mas, claro que era impensável mandá-lo regressar, depois daquilo que ele tinha feito. João Anglicus era um pecador detestável, um padre que tinha quebrado o mais sagrado de todos os votos.

- Deus abençoe o Senhor Papa!

A multidão rejubilante voltou a chamar Sérgio à realidade.

Fez o sinal da cruz, abençoando-os e lutando contra o enjoo, à medida que a procissão evoluía com uma dignidade solene, percorrendo a linha estreita da Via Sacra.

Tinham acabado de passar pelo Mosteiro de Honório quando se espalhou a confusão entre a multidão. Um homem a cavalo vinha na sua direcção. O cavalo e o cavaleiro tinham sido sujeitos a um grande esforço, o cavalo espumava da boca, os seus quadris estavam agitados. As roupas do cavaleiro estavam rasgadas e o seu rosto negro, como o dos sarracenos, coberto de pó da estrada. Ele puxou as rédeas do cavalo e apeou-se à frente do cortejo.

- Como vos atreveis a interromper este cortejo sagrado? - perguntou o arcebispo Eustácio, indignado. - Guardas, levai este homem e flagelai-o. Cinquenta chicotadas ensiná-lo-ão a ter mais respeito!

- Ele... vem...

O homem estava tão ofegante que as suas palavras mal se percebiam.

- Esperai - disse Sérgio, detendo os guardas. - Quem vem lá?

- Lothar - disse o homem.

- O Imperador? - perguntou Sérgio, espantado.

O homem confirmou com um aceno de cabeça:

- À frente de um exército enorme de francos. Santidade, ele jurou vingança de sangue contra vós e esta cidade por causa do agravo cometido contra ele.

Ouviu-se um murmúrio de consternação entre a multidão.

- Agravo?

Por um momento, Sérgio não foi capaz de compreender o que isto poderia significar. Depois, lembrou-se.

- A consagração!

Após a eleição de Sérgio, a cidade tinha avançado com a cerimónia consecratória sem esperar pela aprovação do imperador. Isto constituía uma grave violação da carta de 824, que concedia a Lothar o direito de jussio imperial, ou ratificação, de um papa eleito antes da consagração. Apesar disso, o passo dado tinha sido muito aplaudido porque as pessoas encaravam-no como uma reafirmação orgulhosa da independência romana face à longínqua coroa franca. Foi um desrespeito claro e deliberado por Lothar, mas, como a jussio era mais simbólica do que efectiva - porque o imperador nunca tinha deixado de confirmar um papa eleito - ninguém acreditou que Lothar fizesse fosse o que fosse.

- Onde está o imperador? - a voz de Sérgio não passava de um sussurro.

- Em Viterbo, Santidade.

Esta notícia foi recebida com gritos de alarme. Viterbo fazia parte da região rural romana, ficando apenas a dez dias de caminho de Roma.

- Meu senhor, ele é uma praga sobre a terra - a língua do homem soltou-se, agora que tinha recuperado o fôlego - os seus soldados saqueiam tudo quanto encontram, pilham as quintas, levam todos os víveres, arrancam as vinhas pela raiz. Levam o que querem e o que não querem, queimam-no. Matam sem piedade aqueles que se lhes atravessam no caminho - mulheres, velhos, crianças de colo - não poupam ninguém. É um horror - a sua voz quebrou-se - um horror que não se pode imaginar.

Aterrado e inseguro, o povo olhou para o Papa. Mas, não puderam encontrar nele qualquer conforto. Diante dos olhos horrorizados dos romanos, o rosto de Sérgio empalideceu, os olhos reviraram-se e caiu para a frente, desmaiado.

- Oh, morreu!

O grito de lamento ecoou numa dúzia de outras línguas. Os guardas papais apressaram-se a ladear Sérgio, apeando-o do cavalo e levando-o para o Patriarchium. O resto do cortejo seguiu atrás dele.

A multidão assustada apinhou-se no pátio, ameaçando entrar num pânico perigoso. Os guardas avançaram com chicotes e espadas, dispersando-os pelas vielas estreitas e escuras, a caminho do terror solitário das suas casas.

 

O pânico e a agitação aumentaram quando os refugiados começaram a entrar pelas portas da cidade, provenientes do campo em redor, de Farfa e Narni, Laurentum e Civitavecchia.

Vinham em grupos, com as suas magras posses às costas, com os mortos empilhados em carruagens. Todos contavam histórias parecidas sobre a depredação e a selvajaria franca. Estes relatos aterradores estimularam o esforço da cidade em fortalecer as suas defesas: os romanos trabalhavam dia e noite, com toda a energia, para retirar as camadas de terra que se tinham acumulado junto às muralhas da cidade, ao longo dos séculos, e que facilitavam a entrada ao inimigo.

Os sacerdotes da cidade estavam ocupados desde a hora prima até às vésperas, rezando missa e ouvindo confissões. As igrejas estavam cheias a rebentar pelas costuras, com as fileiras de fiéis engrossadas por uma multidão de caras desconhecidas - porque o medo tinha transformado muitos cristãos pouco convictos em crentes fervorosos. Acendiam velas, piedosamente, e erguiam a voz em orações pela segurança dos seus lares e das suas famílias - e pelas melhoras de Sérgio, que estava doente e do qual dependia toda a sua esperança. Que Deus dê forças ao nosso Senhor Papa, rezavam eles, porque era certo que ele iria precisar de muita força para salvar Roma do demónio Lothar.

 

A voz de Sérgio ergueu-se e entoou as melodias fluidas do canto romano, mais sincera e suave do que a de qualquer outro rapaz da schola cantorum. O mestre do canto sorriu com um tom aprovador. Encorajado, Sérgio cantou ainda mais alto, com a sua voz de soprano subindo cada vez mais, num êxtase gozoso, chegando a acreditar por instantes que ela o elevaria a ele próprio até ao Céu.

O sonho terminou e Sérgio acordou. O medo, vago e indefinido, enchia a sua mente, fazendo o seu coração bater mais depressa, sem ele perceber porquê.

Lembrou-se, com uma náusea.

Lothar.

Sentou-se. A cabeça latejava-lhe e a boca sabia-lhe mal.

- Celestino! - a sua voz rangeu como a de uma dobradiça enferrujada.

- Santidade!

Celestino levantou-se do chão, ensonado. Parecia um querubim celestial, com as suas bochechas de um rosado suave, os seus olhos redondos infantis e o seu cabelo louro comprido.

Tinha dez anos e era o mais jovem dos cubicularii, o pai de Celestino era um homem muito influente na cidade, por isso ele tinha vindo para o Laterano mais cedo do que a maioria. Bem, pensou Sérgio, não é mais jovem do que eu era quando me tiraram de casa dos meus pais.

- Trazei-me o Bento - ordenou ele. - Quero falar com ele.

Celestino acenou com a cabeça e apressou-se, abafando um bocejo.

Um dos servos da cozinha entrou com uma bandeja com pão e presunto. Sérgio não devia quebrar o jejum senão depois de ter celebrado a missa - porque as mãos que tocavam nos dons eucarísticos tinham de estar libertas de qualquer mancha mundana. Mas, em privado, estas delicadezas de forma eram frequentemente desrespeitadas - especialmente, com um papa com um apetite tão prodigioso.

Mas, esta manhã, o cheiro do presunto enjoou Sérgio. Afastou o tabuleiro.

- Levai isto daqui.

Entrou um notário e anunciou:

- Sua Graça, o Arcipreste, espera por vós no triclinium.

- Ele que espere - respondeu Sérgio, num tom seco. - Primeiro, falarei com o meu irmão.

O bom senso de Bento, neste caso, tinha-se revelado útil.

Tinha sido sua a ideia de tirar dinheiro do tesouro papal para comprar Lothar. Cinquenta mil soldos em ouro deviam ser suficientes para suavizar o orgulho ferido, mesmo que fosse o de um imperador.

Celestino voltou, não com Bento, mas com Arighis, o vicedominus.

- Onde está o meu irmão? - perguntou Sérgio.

- Foi-se embora, Santidade - respondeu Arighis.

- Foi-se embora?

- Ivo, o porteiro, viu-o partir antes do nascer do Sol com perto de uma dúzia de subordinados. Pensámos que sabíeis.

Sérgio sentiu a bílis subir-lhe à boca.

- O dinheiro?

- Bento recolheu-o na noite passada. Havia onze cofres. Ele tinha-os consigo quando partiu.

- Não!

Mas, no próprio momento em que estava a pronunciar a palavra, Sérgio sabia que era verdade. Bento tinha-o traído.

Estava indefeso. Lothar viria e não havia nada, nada que Sérgio pudesse fazer para o deter.

Sentiu uma onda de náuseas. Encostou-se à cama, esvaziando para o chão o conteúdo azedo do seu estômago.

Tentou levantar-se, mas não foi capaz, sentia uma dor nas pernas que o imobilizava. Celestino e Arighis correram a ajudá-lo, levantando-o. Encostando a cara à almofada, Sérgio começou a chorar perdidamente, como uma criança.

Arighis virou-se para Celestino e disse:

- Ficai com ele. Eu vou aos calabouços.

Joana ficou a olhar para a malga de comida à sua frente.

Havia uma crostazinha de pão duro e alguns pedaços de carne cinzenta, com vermes, o cheiro a podre entrou-lhe pelas narinas. Já não comia há alguns dias porque os guardas, quer fosse por desleixo, quer fosse propositadamente, não lhe traziam comida todos os dias. Ficou a olhar para a carne, com a fome a lutar com o juízo. Acabou por afastar a malga.

Pegando na crosta de pão, deu-lhe uma pequena dentada, mastigando-a lentamente, para durar mais.

Há quanto tempo estava ali? Havia duas semanas? Três? Estava a começar a perder a noção do tempo. A escuridão permanente desorientava-a. Tinha poupado a vela, acendendo-a apenas para comer ou para preparar medicamentos, que tirava do saco. Mesmo assim, a vela estava reduzida a um pequenino coto de cera, que só chegava para mais uma ou duas horas de luz preciosa.

Mais terrível ainda do que a escuridão era a solidão. O silêncio total e constante enervava-a. Para se manter lúcida, Joana impôs-se a si própria uma série de tarefas mentais: recitar de cor toda a Regra de São Bento, os cento e cinquenta salmos e o Livro dos Actos dos Apóstolos. Mas, estas tarefas de memória rapidamente se tornaram demasiado rotineiras para manter a sua atenção vigilante.

Lembrava-se como o grande teólogo Boécio, que também tinha estado preso, tinha encontrado forças e consolo na oração.

Ajoelhava-se durante horas na pedra fria do chão da cela, tentando rezar. Mas, não sentia nada no fundo do seu ser, senão vazio. A semente da dúvida, plantada na sua infância pela sua mãe, tinha criado raízes na sua alma. Ela tentou arrancá-las, erguer-se para a luz da graça, mas não era capaz.

Deus estaria a ouvir? Será que Ele existia, sequer? Começou a perder a esperança, à medida que os dias passavam sem notícias de Sérgio.

Deu um salto ao ouvir um ruído metálico, quando alguém abriu a tranca da porta. Pouco depois, a porta abriu-se para trás, lançando luz na escuridão. Protegendo os olhos da luz, Joana aproximou-se da entrada. Viu a silhueta de um homem contra a luz.

- João Anglicus? - perguntou ele, inseguro, na escuridão.

Reconheceu imediatamente a voz.

- Arighis! - disse Joana, aliviada, quando se levantou e se encaminhou por cima da água estagnada na direcção do vicedominus papal. - Vindes da parte de Sérgio?

Arighis abanou a cabeça.

- Sua Santidade não deseja ver-vos.

- Então, porquê...?

- Ele está muito doente. Em tempos, destes-lhes remédios que o ajudaram, tendes algum convosco, agora?

- Tenho.

Joana pegou num pacote com pó de cólquico, que tinha no saco. Arighis estendeu a mão para lhe pegar, mas Joana recuou.

- O que foi? - perguntou Arighis. - Odiais o Papa assim tanto? Cuidado, João Anglicus! Desejar mal ao Vigário escolhido por Cristo é colocar a vossa alma imortal em perigo grave.

- Eu não o odeio - disse Joana, com sinceridade. Sérgio não era mau homem, ela sabia-o bem, era apenas fraco e demasiado confiante no seu irmão venenoso. - Mas, não entrego este remédio em mãos sem conhecimentos. Ele tem muito poder e o seu mau uso pode ser fatal.

Isto não era inteiramente verdade porque o pó de raiz não era tão forte como ela tinha dito, seria necessária uma dose muito grande para causar algum mal. Mas, era a sua única oportunidade de alcançar a liberdade, não deixaria que a porta voltasse a fechar-se.

- Além disso, - acrescentou ela - como hei-de saber se Sérgio sofre da mesma doença que tinha antes? Para curar Sua Santidade, tenho que o ver primeiro.

Arighis hesitou. Libertar o preso seria um acto de insubordinação, uma desobediência directa a uma ordem do Senhor Papa. Mas, se Sérgio morresse com o imperador franco às portas, o papado, a própria cidade de Roma, podiam perecer.

- Vinde - disse ele, decidindo de repente. - Vou levar-vos a Sua Santidade.

Sérgio estava encostado às fofas almofadas de seda da cama papal. O auge da dor já tinha passado, mas tinha-o deixado exausto e fraco como um gatinho recém-nascido.

A porta do quarto abriu-se e Arighis entrou, seguido de João Anglicus.

Sérgio começou a dizer, num tom violento:

- O que está este pecador a fazer aqui?

Arighis disse:

- Veio com um remédio poderoso, que restabelecerá a vossa saúde.

Sérgio abanou a cabeça:

- A verdadeira medicina vem de Deus. A graça da Sua cura não será transmitida através de um meio tão impuro.

- Eu não sou impuro - protestou Joana. - Bento mentiu-vos, Santidade.

- Estáveis na cama da prostituta - replicou Sérgio num tom acusador. - Os guardas viram-vos.

- Eles viram o que era suposto verem, o que lhes tinham dito para observarem - replicou Joana. Explicou rapidamente como Bento tinha conspirado para a apanhar numa armadilha.

- Eu não queria ir lá - disse ela -, mas Arighis insistiu.

- É verdade, Santidade. - confirmou Arighis. - João Anglicus pediu se eu não podia mandar um dos outros médicos. Mas, Bento tinha insistido que devia ser João Anglicus e não outro a ir.

Sérgio ficou muito tempo em silêncio. Finalmente, disse numa voz sumida:

- Se isso é verdade, fostes gravemente prejudicado.

Caindo em desespero, disse:

- A vinda de Lothar é o castigo de Deus por todos os meus pecados!

- Se Deus quisesse castigar-vos, encontraria uma maneira mais fácil de o fazer - disse Joana. - Porque haveria de sacrificar a vida de milhares de inocentes, quando vos poderia abater com um só golpe?

Sérgio foi apanhado de surpresa. Isto não lhe tinha ocorrido, em virtude do alto conceito de si mesmo, típico dos poderosos.

- A vinda de Lothar não é um castigo - prosseguiu Joana. - É uma prova, uma prova à fé. Tendes de guiar o povo com a força do vosso exemplo.

- Estou doente no corpo e no espírito. Deixai-me morrer.

- Se morrerdes, a vontade do povo morrerá convosco. Tendes de ser forte, por causa deles.

- Que diferença faz? - disse Sérgio, desesperado. - Não podemos vencer as forças de Lothar, seria preciso um milagre.

- Então - disse a Joana com firmeza - temos de fazer um.

 

No dia seguinte ao Domingo de Pentecostes, a data em que se previa que Lothar chegasse, a piazza diante da Basílica de São Pedro começou a encher-se com membros das várias scholae da cidade, vestidos com os seus melhores fatos.

Lothar não tinha feito uma declaração formal de hostilidade, portanto tinha sido planeada uma recepção em consonância com uma personagem de tão alto gabarito. A demonstração inesperada de boas-vindas talvez o desarmasse durante o tempo suficiente para pôr em execução a segunda parte do plano de Joana.

A meio da manhã, estava tudo pronto. Sérgio deu sinal e o primeiro grupo, os judices, avançou com os estandartes amarelos ostentando as suas insígnias flutuando por cima das suas cabeças. Atrás deles, avançaram os defensores e os diáconos, depois, a pé, as várias sociedades de estrangeiros - frígios, francos, saxónios, lombardos e gregos. Encorajavam-se uns aos outros, à medida que desciam a Via Triumphalis, passando pelos esqueletos decadentes dos templos pagãos que ladeavam a via antiga.

Deus lhes permita que não estejam a caminhar para a morte, pensou Joana. Depois, virou-se para Sérgio. Ele tinha melhorado muito nos últimos dias, mas estava longe de estar bem. Será que ele iria aguentar aquele dia? Joana falou com um camareiro, que foi buscar uma cadeira, na qual Sérgio se sentou agradecido. Joana deu-lhe um pouco de sumo de limão misturado com mel para o fortalecer.

Agora, cinquenta dos homens mais poderosos de Roma estavam reunidos à entrada da basílica: eram todos funcionários superiores da administração do Laterano, um grupo escolhido de cardeais-presbíteros, duques e príncipes da cidade, juntamente com o seu séquito.

O arcipreste Eustácio guiou-os numa breve oração e, depois, ficaram todos em silêncio. Não havia mais nada a fazer senão esperar.

Com rostos crispados, não tiravam os olhos do ponto da estrada onde ela se perdia de vista por trás das sebes e prados da planície de Nero.

O tempo passava com uma lentidão insuportável. O Sol subia num céu sem nuvens. A brisa da manhã abrandou, depois, morreu, fazendo com que os estandartes pendessem das suas hastes.

Enxames de moscas começaram a voar em torno das cabeças, zumbindo no ar silencioso.

Tinham passado mais de duas horas desde que o cortejo tinha saído. Já deviam ter voltado!

Começou a ouvir-se um leve ruído à distância. Eles apuraram o ouvido. O barulho voltou a ouvir-se, contínuo e inequívoco - o som de vozes distantes, que cantavam.

- Deo gratias - suspirou Eustácio, quando se viram os estandartes dos judices a flutuar, emergindo do horizonte verde como velas amarelas sobre o mar.

Momentos depois, apareceram os primeiros cavaleiros, seguidos por membros das várias scholae, a pé. Atrás deles marchava uma multidão escura, que se espraiava até onde a vista alcançava - o exército de Lothar. Joana susteve a respiração, nunca tinha visto um exército tão grande.

Sérgio levantou-se, apoiando-se no seu báculo. A vanguarda do cortejo dirigiu-se para a basílica e abriu alas, deixando uma passagem para o imperador.

Lothar passou pelo meio. Ao olhar para ele, Joana era bem capaz de acreditar nas histórias de uma crueldade bárbara que o tinham precedido. Era atarracado, possuía um pescoço grosso e uma cabeça maciça, o seu rosto era rude e achatado e os seus olhos pequenos deixavam transparecer uma inteligência malévola.

Os dois grupos rivais enfrentaram-se, um escuro e enlameado por causa dos rigores da estrada, o outro impoluto e brilhando nas suas vestes alvas de clérigos. Por trás de Sérgio, o telhado de São Pedro erguia-se brilhando, com as suas placas em prata reluzindo à luz da manhã - o coração espiritual da Igreja, o farol do mundo, o santuário mais sagrado de toda a Cristandade. Diante de tal grandeza, até os imperadores se curvavam.

Lothar desmontou, mas não se ajoelhou para beijar o degrau da basílica, costume que demonstrava reverência. Limitou-se a subir as escadas, seguido por um grupo de homens armados. Os prelados que estavam reunidos diante das portas abertas da basílica recuaram assustados, a guarda papal rodeou Sérgio para o proteger, com as mãos sobre as espadas.

De repente, as portas da basílica de São Pedro rangeram e começaram a fechar-se. Lothar deu um salto para trás. Os seus homens pegaram nas suas espadas, depois, ficaram espantados, olhando de um lado para o outro. Mas, não havia ali ninguém. As portas moveram-se lentamente nos seus gonzos, como que empurradas sobrenaturalmente. Depois, fecharam-se com um estrondo final e definitivo.

Agora, Joana desejou que Sérgio agisse. Como se tivesse ouvido a sua ordem silenciosa, ele levantou-se, estendendo os braços num tom dramático. O homem fraco e doente de alguns dias antes tinha desaparecido, no seu camelaucum branco e nas suas vestes douradas, parecia imponente, majestático.

Falou em franco, para ter a certeza que os soldados de Lothar compreenderiam:

- Eis a mão de Deus - entoou ele, solenemente -, que protegeu o mais sagrado dos Seus altares contra vós.

Os homens de Lothar gritaram assustados. O imperador não saiu de onde estava, desconfiado.

Agora, Sérgio começou a falar em latim:

- Si pura mente et prosalute Reipublicae huc advenisti... Se viestes à república com uma mente pura e com boas intenções, entrai, sede bem-vindo, se não, então nenhum poder terreno vos abrirá estas portas.

Lothar hesitou, ainda desconfiado. Sérgio tinha operado um milagre? Ele duvidava, mas, não podia ter a certeza: os caminhos de Deus eram misteriosos. Além disso, a sua posição, agora, estava consideravelmente enfraquecida porque os seus homens, aterrados, tinham caído de joelhos, com as espadas a caírem-lhe das mãos.

Com um sorriso artificial, Lothar abriu os braços a Sérgio.

Os dois homens oscularam-se, com os lábios encontrando-se no beijo formal da paz.

- Benedictus qui venit in nomine Domini - cantou o coro, rejubilante. - Bendito o que vem em nome do Senhor.

As portas começaram a mover-se novamente. Os painéis cobertos a prata começaram a abrir-se, perante os olhos abismados de todos. De braço dado, com os rejubilantes sons do Hosana a soarem-lhes aos ouvidos, Sérgio e Lothar entraram na basílica para rezar diante do sepulcro do Abençoado Apóstolo.

As dificuldades com Lothar ainda não tinham terminado - ainda era preciso apresentar explicações, pedir desculpas, negociar vantagens, fazer concessões. Mas, o perigo imediato tinha sido afastado. Joana pensou em Geraldo e em como ele teria ficado divertido se tivesse visto a forma como ela tinha utilizado o seu truque hidráulico com a porta. Lembrou-se dele, dos seus olhos azuis cheios de humor, da sua cabeça deitada para trás numa gargalhada generosa de que ela se lembrava tão bem.

Estranho, como são as coisas do coração! Era possível passar anos e anos habituada à perda, reconciliada com ela e, depois, num momento de fraqueza, a dor reaparecia, aguda e crua, como de uma ferida aberta.

 

Geraldo suspirou de alívio quando desceu, juntamente com os seus homens, a última encosta do Monte Cenis. Com os Alpes atrás deles, a parte pior da viagem já estava terminada. A Via Francigena estendia-se à frente deles, abençoadamente plana e bem conservada, uma vez que ainda mantinha o seu velho pavimento em pedra, lançado pelos romanos em tempos imemoráveis.

Geraldo pôs o cavalo a trote. Talvez agora conseguissem recuperar o tempo que tinham perdido. Um nevão fora da época tinha tornado a estreita passagem alpina extremamente perigosa, tinham morrido dois homens quando as suas montadas perderam o pé no chão escorregadio, levando os cavalos e os cavaleiros à morte. Geraldo tinha-se visto forçado a parar até as condições melhorarem, o atraso aumentara ainda mais a distância entre eles e a vanguarda do exército imperial, que, agora, já devia estar próximo de Roma.

Não importava, Lothar não iria sentir a sua falta. Esta divisão da retaguarda era constituída apenas por duzentos homens - senhores e pequenos latifundiários que tinham chegado tarde à inspecção primaveril, no Campo de Marte. Era um comando insultuoso para um homem da envergadura de Geraldo.

Nos três anos seguintes à Batalha de Fontenoy, a relação de Geraldo com o imperador Lothar ia de mal a pior. Lothar tinha-se tornado cada dia mais tirânico, fazendo-se rodear de seguidores bajuladores que passavam a vida a lisonjeá-lo. Ele não tinha qualquer tolerância para súbditos como Geraldo, que continuavam a manifestar as suas opiniões de forma honesta - como, por exemplo, quando ele o tinha desaconselhado da presente expedição romana.

- As nossas tropas são necessárias na costa da Frígia - tinha argumentado Geraldo -, para nos defenderem dos normandos. Os seus ataques estão a tornar-se cada vez mais frequentes e destrutivos.

Era verdade. No ano anterior, os normandos tinham atacado São Wandrille e Utreque, na Primavera anterior tinham navegado pelo Sena e tinham queimado Paris! Isto tinha provocado uma onda de terror por toda a região rural. Se uma cidade tão grande como Paris, no coração do império, não estava a salvo dos bárbaros, então, nenhum lugar estava.

Mas, a atenção de Lothar estava concentrada em Roma, que se tinha atrevido a proceder à consagração do papa Sérgio sem pedir primeiro a sua aprovação imperial - uma omissão que Lothar tomou como uma afronta pessoal.

- Mandai um emissário a Sérgio, manifestando-lhe o vosso desagrado real - aconselhou-o Geraldo. - Castigai os romanos recusando-lhes o pagamento da feoh de Roma. Mas, deixai ficar aqui os nossos combatentes, onde eles são necessários.

Lothar tinha ficado furioso com este desafio à sua autoridade. Em retaliação, tinha atribuído a Geraldo o comando desta divisão de retaguarda.

Tinham evoluído bem em terreno pavimentado, fazendo quase quarenta milhas antes do anoitecer, mas não tinham passado por uma única cidade ou vila. Geraldo já se tinha resignado a passar outra noite ao relento, deitado à beira da estrada, quando viu uma espiral de fumo erguer-se acima das copas das árvores.

Deo gratias! Havia uma aldeia mais adiante, ou, pelo menos, um povoado qualquer. Agora, Geraldo e os seus homens estavam certos de conseguirem passar a noite dormindo confortavelmente. Ainda não tinham entrado em território papal; o Reino da Lombardia, que eles atravessavam, era território imperial e a hospitalidade exigia que os viajantes fossem bem recebidos - se não dando-lhes camas dentro de casa, pelo menos, no feno, em estábulos quentes e secos.

Fizeram uma curva e viram que o fumo não vinha de nenhuma fogueira de boas-vindas, mas sim das ruínas de casas completamente destruídas pelo fogo, que ainda fumegavam. Devia ter sido uma povoação próspera; Geraldo contou quinze edifícios em ruínas. O fogo devia ter sido ateado por alguma faúlha de uma lâmpada ou fogueira deixada ao descuido; estas calamidades não eram raras quando as casas eram de madeira e de feno.

Passando pelas casas fumegantes, Geraldo lembrou-se de Villaris. O seu aspecto era semelhante naquele dia, havia muito tempo, que ele tinha regressado, encontrando tudo queimado pelos normandos.

Lembrou-se de ter procurado Joana entre os destroços, ao mesmo tempo que tinha receado encontrá-la. Era espantoso - tinham-se passado quinze anos desde a última vez em que a tinha visto, mas a sua imagem estava gravada na sua mente como se tivesse sido na véspera: o caracol de cabelo dourado que lhe caía para a testa, a voz profunda e melodiosa, os olhos verde-acinzentados profundos, muito mais maduros do que a sua idade.

Esforçou-se por afastar aquele pensamento. Algumas coisas eram insuportavelmente dolorosas.

Uma milha para além da povoação destruída, junto ao cruzeiro que marcava o local onde convergiam duas estradas, estava uma mulher e cinco crianças andrajosas a pedir esmola. Quando Geraldo e os seus homens se aproximaram, a pequena família fugiu, assustada.

- Paz para vós, boa mãe - tranquilizou-a Geraldo. - Não vos vamos fazer mal.

- Tendes comida, senhor? - perguntou ela. - Para as crianças?

Quatro crianças correram para Geraldo, com as mãos estendidas, num pedido mudo, com os pequeninos rostos fechados marcados pela fome. A quinta, uma rapariga bonita, de cabelo escuro, com cerca de treze anos de idade, ficou para trás, agarrando-se à mãe.

Geraldo tirou do seu alforje o quadrado de pele de carneiro ensebada onde guardava a sua ração para os dias seguintes.

Restava-lhe um bom pedaço de pão, uma barra de queijo e um pouco de carne de veado seca. Começou a partir a fatia de pão ao meio, depois, viu as crianças a olharem. Ora, só faltam alguns dias para chegarmos a Roma; posso ir buscar biscoitos ao carro de mantimentos, pensou ele, dando-lhes o embrulho todo.

Com um grito de alegria, as crianças caíram em cima da comida como um bando de pássaros esfomeados.

- Sois da vila? - perguntou Geraldo à mulher, apontando para a ruína fumegante atrás dele.

A mulher acenou afirmativamente.

- O meu marido é moleiro.

Geraldo escondeu a sua surpresa. A figura andrajosa diante dele parecia tudo menos a esposa de um moleiro próspero.

- O que aconteceu?

- Há três dias, depois da sementeira da Primavera, vieram os soldados. Os homens do imperador. Disseram que tínhamos de jurar fidelidade a Lothar ou que morreríamos imediatamente às suas espadas. Por isso, jurámos.

Geraldo abanou a cabeça. As dúvidas de Lothar acerca desta parte da Lombardia não eram inteiramente infundadas porque era uma região que tinha sido acrescentada ao Império havia relativamente pouco tempo. Tinha sido adquirida pelo avô de Lothar, o grande imperador Carlos.

- Se fizestes o juramento - perguntou ele - porque foi destruída a vossa aldeia?

- Eles não acreditaram em nós. Chamaram-nos mentirosos e atiraram tochas para os nossos telhados. Quando tentámos apagar os fogos, eles impediram-nos, de espada na mão. Também deitaram fogo ao nossos armazéns de cereais, apesar de nós termos suplicado que não o fizessem, por causa das crianças.

Eles riram-se e chamaram-nos filhos de traidores, que mereciam morrer à fome.

- Vilões! - exclamou Geraldo, furioso.

Tinha tentado muitas vezes convencer Lothar de que ele não ia conseguir ganhar a lealdade dos súbditos através da força, mas sim através de um tratamento justo e do governo pela lei.

Como costume, as suas palavras tinham caído em ouvidos surdos.

- Levaram os homens todos - continuou a mulher - excepto os mais novos e os mais velhos. O imperador foi para Roma, segundo disseram, e precisava de homens para engrossar as tropas apeadas.

Começou a chorar.

- Levaram o meu marido e dois dos meus filhos - o mais novo só tem onze anos!

Geraldo franziu o sobrolho. As coisas tinham chegado a uma triste situação quando Lothar precisava de crianças para combaterem nas suas batalhas.

- Meu senhor, o que significa isto? - perguntou a mulher, ansiosa. - O imperador vai atacar a Cidade Santa?

- Não sei.

Até àquele momento, Geraldo pensava que Lothar apenas queria intimidar o papa Sérgio e os romanos, demonstrando-lhes o seu poder. Mas, a destruição daquela aldeia era um mau augúrio, com um estado de espírito tão vingativo, Lothar era capaz de tudo.

- Vinde, boa mãe - disse Geraldo. - Levar-vos-emos connosco para a próxima cidade. Isto não é um local seguro para vós e para os vossos filhos.

Ela abanou a cabeça com determinação.

- Eu não saio daqui. Como me irão encontrar o meu marido e os meus filhos, quando voltarem?

Se voltarem, pensou Geraldo, sombriamente. E disse para a rapariga de cabelo negro.

- Dizei à vossa mãe que venha connosco, por causa dos pequenos.

A rapariga ficou muda a olhar para Geraldo.

- Ela não pretende ser mal educada, senhor - desculpou-se a mãe. - Ela respondia se pudesse, mas não pode falar.

- Não pode falar? - perguntou Geraldo, admirado.

A rapariga parecia saudável e não dava sinais de ser atrasada.

- Cortaram-lhe a língua.

- Meu Deus!

A perda da língua era um castigo comum para ladrões e outros larápios que não obedeciam com a rapidez desejada à justiça legal. Mas, esta jovem inocente não era, certamente, culpada de nenhum crime.

- Quem fez isso? Certamente, não foi...

A mulher abanou a cabeça, tristemente.

- Os homens de Lothar serviram-se dela, depois, cortaram-lhe a língua para que ela não os pudesse acusar desse acto vergonhoso.

Geraldo estava petrificado. Estas atrocidades seriam de esperar de pagãos como os normandos ou os sarracenos - não dos soldados do imperador, defensores da lei e da ordem cristã.

Geraldo deu uma ordem bruscamente. Os seus homens dirigiram-se às carruagens e pegaram num saco de biscoitos e num pequeno barril de vinho, que colocaram no chão diante da pequena família.

- Deus vos abençoe - disse a mulher do moleiro, sentidamente.

- E a vós, boa mãe - disse Geraldo.

Seguiram caminho, passando por outras povoações saqueadas e desertas, ao longo do caminho. Lothar tinha deixado destruição atrás de si por todos os lugares por onde tinha passado.

Fidelis adjutor. Como súbdito fiel da coroa imperial, Geraldo estava obrigado, por honra, a servir o imperador com fidelidade. Mas, que honra existia em servir um selvagem como Lothar? O desrespeito com que o Imperador infringia a lei e todos os outros padrões de decência humana certamente varriam o vínculo da obrigação.

Geraldo levaria esta retaguarda do exército imperial até Roma, como tinha prometido. Mas, dali para a frente, estava determinado a abandonar para sempre o serviço do tirano Lothar.

Depois de Nepi, a estrada piorou. O caminho amplo, sólido e plano deu lugar a uma estrada estreita e deteriorada, cheio de buracos e de precipícios.

O pavimento romano tinha desaparecido, as velhas pedras tinham sido retiradas para serem utilizadas noutras construções - de facto, naqueles dias negros, era raro encontrar materiais de construção tão fortes como aqueles. Geraldo viu marcas da passagem de Lothar na terra escura, sulcada por grande quantidade de marcas de carruagens e de cavalos. Tinham de ter cuidado adicional com os cavalos, para não os ferirem com um passo mal dado.

Durante a noite, uma chuva intensa transformou a estrada num mar de lama intransponível. Em vez de fazer outra paragem, Geraldo decidiu cortar o caminho pelo meio do mato e seguir pela Via Palestrina, que os levaria até Roma através da porta oriental, de São João.

Cavalgaram rapidamente através de prados verdejantes e aromáticos de giestas e de florestas em flor, com as folhas de um verde-dourado primaveril. Emergindo de um canteiro de arbustos densos, encontraram, de repente, um grupo de cavaleiros escoltando uma pesada carruagem puxada por quatro cavalos.

- Saudações - disse Geraldo, dirigindo-se ao homem que parecia ser o seu chefe, um tipo moreno com olhos pequenos e papudos. - Podeis dizer-nos se vamos na direcção da Via Palestrina?

- Ides - respondeu o homem e virou-se para seguir caminho.

- Se vos dirigis para a Via Flaminia - disse Geraldo - é melhor pensardes melhor. A estrada está destruída, o vosso carro partirá os eixos a menos de dez jardas de caminho.

O homem disse:

- Não vamos para lá.

Era curioso. Para além da estrada, não havia nada naquela direcção, a não ser campo deserto.

- Onde ides? - perguntou Geraldo.

- Já vos disse o que precisáveis de saber - retorquiu o homem. - Segui caminho e deixai um honesto mercador fazer o seu negócio.

Não havia nenhum mercador vulgar que se dirigisse a um senhor de forma tão arrogante. Geraldo ficou ainda mais desconfiado.

- Qual é o vosso negócio? - perguntou Geraldo, aproximando-se do carro. - Talvez tenhais algo que eu esteja interessado em comprar.

- Afastai-vos - gritou o homem.

Geraldo retirou a cobertura do carro e o seu conteúdo ficou à mostra: uma dúzia de cofres em bronze presos por uma corrente em ferro, cada um deles com a marca distinta das insígnias papais.

Homens do Papa, pensou Geraldo. Devem ter sido mandados sair da cidade para transportarem o tesouro papal para fora do alcance de Lothar.

Pensou em aprisionar o tesouro e de o levar de volta a Lothar.

Mas, pensou: Não. Os romanos que salvem o que puderem. O papa não daria, certamente, melhor uso ao dinheiro do que Lothar, que se serviria dele apenas para financiar mais campanhas militares brutais e sangrentas. Estava prestes a partir, quando um dos romanos saltou do cavalo e se mostrou diante dele.

- Piedade, senhor! - gritou ele. - Poupai-nos! Não podemos morrer sem absolvição, com o peso deste grande crime sobre as nossas cabeças.

- Crime? - repetiu Geraldo.

- Tento na língua, louco!

O chefe esporeou o cavalo e teria pisado o outro, se Geraldo não o houvesse interceptado com a espada desembainhada. Os homens de Geraldo desembainharam imediatamente as suas espadas e cercaram os romanos, que, vendo como estavam em tão grande desvantagem, mantiveram, sensatamente, as suas espadas embainhadas.

- A culpa é de Bento! - disse o homem que estava no chão, numa explosão de fúria vingativa. - A ideia de roubar o dinheiro foi dele, não foi nossa!

Roubar o dinheiro?

O homem a quem tinham chamado Bento falou num tom firme.

- Não tenho contenda convosco, senhor, nem as nossas questiúnculas vos dizem respeito. Deixai-nos passar em paz e, em sinal da nossa gratidão, podeis ficar com um dos cofres. - Sorriu para Geraldo com um ar cúmplice. - Têm ouro suficiente para vos tornar um homem rico.

A oferta e a maneira como ela foi feita não davam margem para dúvidas.

- Prendei-o - ordenou Geraldo. - E aos outros também. Vamos levá-los e aos cofres para Roma.

 

O triclinium estava iluminado com a luz de centenas de archotes. Havia uma falange de criados por trás da mesa à qual se sentava o papa Sérgio, ladeado pelos altos dignitários da cidade: os padres de cada uma das sete regiões de Roma, à sua esquerda, os seus parceiros temporais, os sete defensores, à sua direita. Perpendicularmente a esta mesa e tão grande como ela, estava outra, à qual estavam sentados, em lugar de honra, Lothar e a sua comitiva. O resto da companhia, cerca de duzentos homens, estava sentada em bancos de madeira, à frente de longas mesas, no centro da sala. Pratos, jarros, copos e comensais amontoavam-se em torno das mesas, com as roupas já cheias de marcas de inúmeros pingos e nódoas.

Como não era nem quarta, nem sexta-feira, nem qualquer outro dia de jejum, a refeição não se confinou a pão e peixe, mas incluía também carne de vaca e de outros animais. Mesmo para a mesa do Papa, era um repasto extraordinário: havia pratos de capões com molho branco e ornamentados com romãs e carnes suculentas, terrinas de sopa, cheias com pedaços tenros de coelho e de galinholas mergulhadas num creme espesso, que largava um aroma intenso, geleia de caranguejo e de lagosta, leitões inteiros barrados com gordura e grandes bandejas de veado assado, cabrito, pombo e ganso. No meio da mesa de Lothar, estava um cisne cozinhado e disposto de maneira que parecia estar vivo, com o seu bico e corpo prateados sobre uma massa de verduras, colocadas de forma a parecerem ondas do mar.

Sentada a uma das mesas no centro da sala, Joana olhava, preocupada, para a cena extravagante. Aquelas delícias podiam tentar Sérgio a excessos.

- Um brinde! - O conde de Mâcon, sentado ao lado de Lothar, levantou o seu copo. - À paz e amizade entre os nossos dois povos cristãos!

- Paz e amizade! - repetiram todos em coro e esvaziaram os seus copos. Os criados apressaram-se a encher novamente os copos, ao longo da mesa.

Seguiu-se uma quantidade de brindes. Quando, finalmente, já não tinham assunto para prestar uma homenagem líquida, começou o festim.

Joana olhava alarmada, vendo Sérgio comer e beber despreocupadamente. Os seus olhos começaram a inchar, o seu discurso a ficar entaramelado, a sua pele a escurecer terrivelmente. Naquela noite, ela ia ter de lhe dar uma dose forte de cólquico para prevenir outro ataque de gota.

As portas do triclinium abriram-se e um grupo de guardas entrou. Desviando-se, para evitarem os inúmeros servos que deambulavam pela sala, trazendo e levando pratos, os guardas encaminharam-se para o fundo da sala. Fez-se um silêncio súbito, quando os convidados se calaram e viraram a cabeça para verem qual a causa desta extraordinária intrusão. Este silêncio foi seguido por um murmúrio de surpresa, quando viram o homem que entrou no meio de soldados, com as mãos atadas e de olhos baixos: Bento.

Os círculos bem-humorados do rosto de Sérgio desapareceram-lhe do rosto, como ampolas que se tivessem esvaziado.

- Tu! - gritou ele.

Tarasius, o chefe dos guardas, disse:

- Um grupo de francos encontrou-o no campo. Ele tinha o tesouro consigo.

Bento tinha tido muito tempo na viagem de regresso a Roma para pensar no que ia dizer. Não podia negar que tinha levado o tesouro, uma vez que tinha sido apanhado com ele. Nem tinha conseguido pensar numa desculpa plausível para o que tinha feito, apesar de ter espremido o cérebro a pensar. Acabou por decidir que a melhor coisa a fazer seria implorar misericórdia do irmão. Sérgio tinha um coração bom - uma fraqueza que Bento desprezava, apesar de esperar conseguir utilizá-la para seu proveito.

Caiu de joelhos, levantando os braços na direcção do irmão.

- Perdoa-me, Sérgio. Pequei e arrependo-me humilde e sinceramente.

Mas, Bento não tinha contado com o efeito do vinho no temperamento do seu irmão. O rosto de Sérgio contorceu-se, ao mesmo tempo que se enfurecia inesperadamente.

- Traidor! - gritou ele. - Vilão! Ladrão!

Cada palavra era acompanhada de um murro violento em cima da mesa, que fazia os pratos saltarem.

Bento empalideceu.

- Irmão, peço-te...

- Levai-o! - ordenou Sérgio.

- Para onde havemos de o levar, Santidade? - perguntou Tarasius.

A cabeça de Sérgio andava à roda, tinha dificuldade em pensar. Só sabia que tinha sido traído e que queria vingar-se para o ferir como ele o tinha ferido.

- É um ladrão! - disse ele, amargamente. - Que seja castigado como um ladrão!

- Não! - Bento gritava, à medida que os guardas o agarravam.

- Sérgio! Irmão!

As últimas palavras ficaram a ecoar, quando ele foi levado da sala.

Sérgio empalideceu e deixou-se cair na cadeira. A cabeça pendeu-lhe para trás, os olhos reviraram, os seus braços e as suas pernas começaram a tremer descontroladamente.

- É mau olhado! - gritou alguém. - Bento enfeitiçou-o!

Os convidados gritavam consternados, benzendo-se para se protegerem contra as obras do demónio. Joana correu entre os bancos cheios de gente, apressando-se a chegar ao pé de Sérgio. O seu rosto estava azul. Ela pegou-lhe na mão e abriu-lhe os maxilares cerrados. Tinha a língua enrolada, bloqueando a passagem do ar. Pegando numa faca que estava em cima da mesa, Joana introduziu a lâmina dentro da boca de Sérgio, fazendo-a deslizar até à língua enrolada. Depois, puxou. Ouviu-se um ruído seco, quando a língua se desenrolou.

Sérgio tossiu e começou a respirar novamente. Joana fez pressão com a faca, mantendo a abertura livre. Pouco depois, o paroxismo tinha desaparecido. Com um gemido surdo, Sérgio desmaiou.

- Levai-o para a cama - ordenou ela. Vários servos levantaram Sérgio da sua cadeira e levaram-no pela porta, com a multidão apinhada, cheia de curiosidade.

- Deixai passar! Deixai passar! - gritou Joana, enquanto levavam o Papa inconsciente para fora da sala.

Quando chegaram ao seu quarto, Sérgio estava consciente.

Joana deu-lhe mostarda preta misturada com genciana para ele vomitar.

Depois, ele melhorou bastante. Ela deu-lhe uma dose forte de cólquico para ficar mais segura, misturando-a com sumo de papoila, para ele dormir melhor.

- Ficará a dormir até amanhã - disse ela a Arighis.

Arighis abanou a cabeça.

- Pareceis estar exausto.

- Estou bastante cansado - admitiu Joana. Tinha sido um longo dia e ela ainda não tinha recuperado completamente das semanas que tinha passado no calabouço.

- Enódio e outros da sociedade dos médicos estão à espera lá fora... Querem interrogar-vos sobre a recaída de Sua Santidade.

Joana suspirou. Não lhe apetecia enfrentar uma barreira de perguntas hostis, mas, segundo parecia, não havia nada a fazer. Dirigiu-se, penosamente, para a porta.

- Só um momento - Arighis fez-lhe sinal para o seguir para o outro lado da sala, afastou uma das tapeçarias e empurrou a parede.

Esta deslizou lateralmente, deixando uma passagem aberta com cerca de dois pés e meio de largura.

- Mas, o que é isto - admirou-se Joana.

- Uma passagem secreta - explicou Arighis. - Construída nos dias dos imperadores pagãos - para o caso de eles precisarem de se escapar depressa aos seus inimigos. Agora, liga o quarto do Papa à capela privada para que o Apostólico possa entrar e rezar a qualquer hora do dia ou da noite, sem ser perturbado. Vinde. - Ergueu a vela e passou. - Assim, podeis evitar aquela matilha de chacais, pelo menos esta noite.

Joana ficou sensibilizada por causa de Arighis ter partilhado com ela o conhecimento da passagem secreta, era sinal de que a confiança e o respeito crescia entre ambos.

Desceram um lance de escadas em caracol, que terminava diante de uma parede na qual se encontrava uma alavanca em madeira.

Arighis abaixou-a e a parede moveu-se, abrindo uma passagem.

Joana escapou-se por ela e o vicedominus voltou a accionar a alavanca. A abertura desapareceu, não deixando qualquer traço da sua existência.

Estava atrás de uma coluna em mármore, ao fundo da capela privada do Papa, o Sanctum Sanctorum. Ouviam-se vozes perto do altar. Isto era inesperado, não era suposto estar ali alguém àquela hora da noite.

- Há quanto tempo, Anastácio - disse uma voz, com um sotaque forte, que ela reconheceu ser a de Lothar.

Ele tinha chamado Anastácio ao outro, devia ser o bispo de Castellum. Era óbvio que os dois homens se tinham retirado para a capela para falarem em particular. Não ficariam contentes em descobrir um intruso.

O que hei-de fazer?, pensou Joana. Se tentasse escapar sorrateiramente pela porta da capela, eles podiam vê-la.

Também não podia regressar ao quarto do Papa, a alavanca que controlava a passagem secreta estava do outro lado da parede.

Tinha de ficar escondida até que o encontro terminasse e ambos os homens se fossem embora. Depois, podia escapar-se da capela sem ser vista.

- Muito preocupante, o ataque de Sua Santidade esta noite - disse Lothar.

Anastácio respondeu:

- O Apostólico está muito doente. Pode não sobreviver mais do que um ano.

- Uma grande tragédia para a Igreja.

- Muito grande - concordou Anastácio delicadamente.

- O seu sucessor deve ser um homem de poder e de visão - disse Lothar -, um homem que seja capaz de compreender melhor... o entendimento histórico entre os nossos dois povos.

- Tendes de usar toda a vossa influência, senhor, para garantir que o próximo Pontífice seja um homem assim.

- Não quereríeis dizer... um homem como vós?

- Tendes razão para desconfiar de mim, Senhor? Certamente o serviço que vos prestei em Colmar provou a minha lealdade acima de suspeita.

- Talvez - disse Lothar, num tom descomprometido. - Mas, os tempos mudam e os homens também. Agora, senhor bispo, a vossa lealdade vai voltar a ser posta à prova. Apoiareis o juramento, ou não?

- O povo terá relutância em jurar-vos fidelidade, senhor, depois dos prejuízos que o vosso exército provocou na província.

- A vossa família tem poder para modificar isso - respondeu Lothar. - Se vós e o vosso pai, Arsénio, jurardes, os outros imitar-vos-ão.

- O que me pedis é muito. Exige algo muito grande em resposta.

- Eu sei.

- Um juramento não passa de palavras. O povo precisa de um papa que seja capaz de o guiar para o velho caminho, - para o Império Franco, e para vós, meu senhor.

- Não me ocorre ninguém melhor do que vós para o fazer, Anastácio. Farei tudo o que está no meu poder para que sejais o próximo Papa.

Houve uma pausa. Depois, Anastácio disse:

- O povo jurará, Senhor. Eu certificar-me-ei disso.

Joana sentiu uma onda de fúria. Lothar e Anastácio tinham acabado de negociar o papado como um par de mercadores num bazar. Em troca dos privilégios do poder, Anastácio tinha concordado em entregar Roma ao controlo do imperador franco.

Bateram à porta e o servo de Lothar entrou.

- Chegou o conde, senhor.

- Mandai-o entrar. O bispo e eu já terminámos o nosso assunto.

Entrou um homem, vestido com a brunia de um soldado. Era alto e elegante, com um longo cabelo ruivo e olhos azuis.

Geraldo.

 

Dos lábios de Joana soltou-se um grito de surpresa...

- Quem está aí? - perguntou Lothar, num tom seco.

Joana saiu lentamente de detrás da coluna. Lothar e Anastácio olharam para ela, espantados.

- Quem sois vós? - perguntou Lothar.

- João Anglicus, meu senhor. Padre e médico de Sua Santidade, o papa Sérgio.

Lothar perguntou, desconfiado:

- Há quanto tempo estais aí?

Joana pensou rapidamente.

- Há algumas horas, Senhor. Vim rezar pelas melhoras de Sua Santidade. Devo estar mais cansado do que pensava porque adormeci e acabei de acordar agora.

Lothar olhou para ela, desconfiado. Era mais provável que o padrezinho tivesse sido apanhado na capela quando Anastácio e ele tinham entrado. Não havia por onde fugir, nem onde se esconder. Mas, não importava. Quanto teria ele ouvido e, mais importante ainda, quanto teria compreendido? Pouco. O homem não oferecia perigo, era óbvio que era insignificante. A melhor coisa a fazer era ignorá-lo.

Anastácio tinha chegado a uma conclusão diferente. Era óbvio que João Anglicus tinha estado a escutar. Mas, porquê? Seria um espião? Não a mando de Sérgio, certamente, porque o Papa não era engenhoso a ponto de utilizar espiões. Mas, se não era a mando dele, então, era a mando de quem? E porquê? Anastácio decidiu que a partir dali o padrezinho estrangeiro passaria a ser vigiado.

Geraldo também observava Joana com curiosidade.

- Pareceis-me conhecido, Padre - disse ele. - Já nos encontrámos?

Ele procurava descortinar as suas feições à luz fraca.

Subitamente, a sua expressão mudou, ficou a olhar como alguém que tivesse acabado de ver um fantasma:

- Meu Deus - disse ele, chocado. - Não pode ser...

- Conheceis-vos - perguntou Anastácio.

- Conhecemo-nos em Dorstadt - respondeu Joana, rapidamente. - Eu estudei na escola da catedral durante alguns anos, a minha irmã - enfatizou um pouco a palavra - ficou com o conde e a sua família durante esse tempo.

Os seus olhos transmitiram a Geraldo uma mensagem urgente: Não direis nada.

Geraldo recuperou a sua postura.

- Claro - disse ele. - Lembro-me muito bem da vossa irmã.

Lothar interrompeu, impaciente:

- Basta. O que vindes dizer-me, Conde?

- A minha mensagem é para ser ouvida apenas por vós, meu senhor.

Lothar acenou com a cabeça:

- Muito bem. Os outros podem sair. Voltaremos a falar, Anastácio.

Quando Joana se virou para sair, Geraldo tocou-lhe no braço.

- Esperai por mim. Quero saber mais de... da vossa irmã.

À saída da capela, Anastácio seguiu o seu caminho. Joana esperou nervosamente sob o olhar sinistro do pajem de Lothar.

A situação era extremamente perigosa, uma palavra em falso e a sua identidade podia ser revelada. Devia ir-me embora, agora, antes que Geraldo saia, pensou ela. Mas, desejava vê-lo. Ficou ali, agarrada por uma mistura complexa de medo e de expectativa.

A porta da capela abriu-se e Geraldo apareceu.

- Então, és tu: - disse ele, admirado. - Mas, como...

O criado olhava para eles com curiosidade.

- Eu, não - disse Joana.

Levou-o para uma salinha onde guardava os seus medicamentos e as suas ervas. Lá dentro, acendeu as lâmpadas de óleo de papoila, a sua chama avivou-se, rodeando-os num círculo íntimo de luz.

Ficaram a olhar um para o outro, maravilhados com a redescoberta. Geraldo tinha mudado nos quinze anos em que Joana tinha estado sem o ver, o espesso cabelo ruivo estava raiado de cinzento e havia rugas em torno dos olhos azuis e da grande boca sensual - continuava a ser o homem mais belo que ela já tinha visto. Ao olhar para ele, o seu coração começou a bater mais depressa.

Geraldo aproximou-se dela. Caíram nos braços um do outro, num abraço tão apertado que Joana sentia as malhas de metal da cota de Geraldo através da sua grossa veste de padre.

- Joana - murmurou Geraldo. - Minha querida, minha pérola. Nunca pensei voltar a ver-te.

- Geraldo - a palavra varria qualquer pensamento razoável.

Os dedos de Geraldo tocaram suavemente na cicatriz da face esquerda de Joana.

- Os normandos?

- Sim.

Ele inclinou-se e beijou-a delicadamente, encostando os lábios quentes à sua face.

- Então, eles apanharam-te... a ti e à Gisla?

Gisla. Geraldo nunca poderia vir a saber, ela nunca lhe poderia contar o horror por que a sua filha mais velha tinha passado.

- Eles apanharam a Gisla. Eu... eu consegui escapar.

Ele estava espantado.

- Como? E para onde? Os meus homens e eu esquadrinhámos o campo, à tua procura, mas não te encontrámos.

Ela contou-lhe resumidamente o que se tinha passado - tanto quanto era possível numa circunstância tão rápida e limitada: a sua fuga para Fulda e a sua entrada como João Anglicus, o momento em que a sua identidade quase tinha sido descoberta e a fuga da abadia, a sua peregrinação para Roma e a subsequente ascensão e posição de médica do Papa.

- E durante todo este tempo - disse Geraldo, lentamente, quando ela terminou -, nunca pensaste em me mandar notícias tuas?

Joana apercebeu-se da dor e da ironia na sua voz.

- Eu... eu não pensei que me quisesses. Richild disse que a ideia de me casar com o filho do ferreiro tinha sido tua, que tu lhe tinhas pedido que ela tratasse de tudo.

- E tu acreditaste nela? - libertou-a abruptamente. - Meu Deus, Joana, pensava que me conhecias melhor!

- Eu... eu não sabia o que pensar. Tu tinhas partido, eu não sabia bem porquê. E Richild sabia... de mais, daquilo que tinha acontecido na margem do rio. Como poderia ela saber, se tu não lhe tivesses contado!

- Não sei. Só sei que te amava como nunca amei ninguém antes... nem depois. - A sua voz apertou-se. - Quase esgotei a Pistis no caminho para casa, ansioso por ver Villaris porque tu estavas lá, e eu estava louco de impaciência para te ver... para te pedir para seres minha mulher.

- Tua mulher? - Joana estava estupefacta. - Mas... Richild...?

- Aconteceu qualquer coisa enquanto eu estive ausente... algo que me ajudou a ver como o meu casamento era vazio, como tu eras vital para a minha felicidade. Eu ia voltar para te dizer que queria divorciar-me de Richild e casar contigo, se tu me quisesses.

Joana abanou a cabeça.

- Tantos mal-entendidos - disse ela, tristemente. - Tantas coisas que correram mal.

- Tantas coisas para recompensar.

Ele puxou-a para si e beijou-a. Foi como se tivessem chegado uma vela a uma placa de cera, derretendo aquilo que os anos tinham escrito. Estavam de novo juntos na margem do rio por trás de Villaris, ao sol primaveril, jovens e estonteados pelo amor recém-descoberto.

Depois de um bocado, ele libertou-a.

- Ouve, meu coração - disse ele, suavemente. - Eu vou abandonar o serviço de Lothar. Acabei de lho dizer na capela.

- E ele concordou em libertar-te?

Lothar não parecia ser homem para desobrigar alguém do seu serviço voluntariamente.

- Ao princípio, foi difícil, mas acabei por conseguir convencê-lo. A minha liberdade teve um preço, tive de entregar Villaris com todas as suas propriedades. Já não sou um homem rico, Joana, mas, tenho a força dos meus dois braços e amigos que me apoiarão. Um deles é Siconulf, príncipe de Benevento, com quem fiz amizade quando servimos juntos na campanha do imperador contra os obodritas. Ele precisa de homens bons junto dele porque está a ser muito pressionado pelo seu rival Radelchis. Vens comigo, Joana? Queres ser minha mulher?

Passos enérgicos do lado de fora da porta separaram-nos.

Alguns momentos depois, a porta abriu-se e uma cabeça espreitou. Era Florintinus, um dos notários do palácio.

- Ah! - disse ele. - Estais aqui, João Anglicus! Procurei-vos por todo o lado. - Olhou atentamente para Joana e para Geraldo, depois, novamente para Joana. - Estou... estou a interromper alguma coisa?

- De modo nenhum - apressou-se Joana a dizer. - Em que vos posso ser útil, Florintinus?

- Tenho uma dor de cabeça terrível - disse ele. - Será que podeis preparar um dos vossos paliativos?

- Com todo o gosto - respondeu Joana delicadamente.

Florintinus esgueirou-se pela porta, trocando algumas palavras com Geraldo, enquanto Joana preparava rapidamente uma mistura de folhas de violeta e de salgueiro, mergulhando-as numa chávena de chá de rosmaninho. Deu-a a Florintinus e ele voltou a sair.

- Não podemos falar aqui - disse ela a Geraldo, mal ele saiu. - É demasiado perigoso.

- Quando posso voltar a ver-te? - perguntou Geraldo ansiosamente.

Joana pensou.

- Há um Templo de Vesta na Via Ápia, mesmo à saída da cidade. Encontramo-nos lá amanhã depois da terça.

Ele tomou-a nos braços e beijou-a de novo, tão docemente como da primeira vez, depois, com uma intensidade que a encheu de um desejo ardente.

- Até amanhã - sussurrou ele.

Depois, saiu, deixando a cabeça de Joana estonteada por uma mistura de emoções.

 

Arighis espreitou na escuridão antes do nascer do Sol, revistando o pátio do Laterano. Estava tudo pronto. Tinha sido colocado um braseiro aceso junto da grande estátua em bronze da loba. Dentro do braseiro a arder tinha sido colocado um par de ferros de fogão cujas pontas começavam a estar incandescentes devido ao calor das chamas. Junto dele estava um soldado de espada em riste.

Os primeiros raios de sol emergiram no horizonte. Era uma hora fora do comum para uma execução pública, normalmente, acontecimentos desse tipo ocorriam depois da missa. Apesar de ser tão cedo já havia uma multidão de espectadores - os mais ansiosos chegavam sempre mais cedo para assegurarem a melhor posição para verem. Muitos tinham trazido os filhos, que deambulavam na expectativa excitada do espectáculo sangrento.

Arighis tinha estabelecido deliberadamente a hora do castigo de Bento para o nascer do dia, antes que Sérgio acordasse e mudasse de ideias. Podia ser que houvesse alguém que o acusasse de ser demasiado diligente, mas ele não se importava.

Sabia muito bem o que estava a fazer e porquê.

Arighis ocupava o cargo de vicedominus havia mais de vinte anos, tinha dedicado a vida inteira ao serviço do Patriarchium, à orientação do vasto e complicado enxame de funcionários pontifícios que constituíam o governo de Roma, guiando-os de uma forma discreta e eficiente.

Depois de tantos anos, Arighis tinha chegado à conclusão de que a casa papal era um ser vivo, cujo bem-estar era responsabilidade e preocupação exclusivamente sua.

Este bem-estar estava agora ameaçado. Em menos de um ano, Bento tinha transformado o Patriarchium num centro de negociações de poder e de simonia. Ganancioso e manipulador, a própria existência de Bento era uma gangrena maligna no Papado. A única maneira de salvar o paciente era amputar o membro doente. Bento tinha de morrer.

Sérgio não tinha coragem para o fazer, por isso era preciso que Arighis metesse mãos à obra. Fê-lo sem hesitar, sabendo que agia para bem da Santa Madre Igreja.

Estava tudo pronto.

- Trazei o preso - ordenou Arighis aos guardas.

Trouxeram Bento. Com as vestes rasgadas, o rosto pálido e cinzento de uma noite de insónia nas masmorras, percorreu o pátio com o olhar, ansiosamente.

- Onde está Sérgio - perguntou ele. - Onde está o meu irmão?

- Sua Santidade não pode ser incomodada - disse Arighis.

Bento rodopiou sobre si mesmo e encarou-o.

- O que pensais que estais a fazer, Arighis? Vistes o meu irmão na noite passada. Estava bêbado, não sabia o que dizia. Deixai-me falar com ele e vereis: ele retirará a condenação.

- Avançai - ordenou Arighis aos guardas.

Os guardas arrastaram Bento para o meio do pátio e forçaram-no a ajoelhar-se. Amarraram-no pelos braços e ataram-no ao pedestal da estátua da loba, com as mãos abertas sobre a pedra.

O terror estampou-se no rosto de Bento.

- Não! Parai! - Gritava ele.

Levantando os olhos em direcção às janelas do Patriarchium, começou a gritar:

- Sérgio! Sérgio! Sér...!

A espada desfechou-se sobre ele. Bento gritou quando as suas mãos cortadas caíram para o chão, jorrando sangue.

A multidão aplaudiu. O esgrimista pregou as mãos de Bento do lado da loba. De acordo com o velho costume, elas ficariam ali um mês como aviso para outros que fossem tentados a cometer o pecado do furto.

Enódio, o arquiatro, avançou. Tirando os ferros do braseiro, encostou-os com força aos cotos sangrentos de Bento. O cheiro de carne queimada encheu o ar de um cheiro enjoativo.

Bento voltou a gritar e desmaiou. Enódio debruçou-se sobre ele para o assistir.

Arighis inclinou-se para a frente, atento. A maior parte dos homens morriam depois de lhes ser infligido um ferimento daqueles - se não imediatamente, do choque e da dor, então, pouco depois, devido a infecção e à perda de sangue. Mas, aqueles que eram mais fortes, às vezes, conseguiam sobreviver.

Viam-se nas ruas de Roma, com as suas mutilações grotescas revelando a natureza dos seus crimes: lábios cortados, para aqueles que tinham mentido sob juramento, pés cortados, para os escravos que tinham fugido aos seus proprietários, olhos arrancados, para aqueles que tinham desejado as esposas ou filhas dos seus superiores.

A possibilidade de sobrevivência foi o motivo que levou Arighis a pedir a Enódio e não a João Anglicus para assistir o homem condenado porque a competência do último podia ser suficiente para salvar Bento.

Enódio levantou-se.

- Foi executado o julgamento de Deus - anunciou ele solenemente. - Bento está morto.

Cristo seja louvado, pensou Arighis. O papado está salvo.

 

Joana estava na fila do lavatorium, à espera da sua vez para a lavagem ritual das mãos antes da missa. Tinha os olhos pesados e inchados por causa de não ter dormido, tinha passado a noite agitada, só a pensar em Geraldo. Na noite anterior, sentimentos que ela pensava enterrados havia muito tempo tinham emergido com uma intensidade que a espantou e assustou.

O regresso de Geraldo tinha despertado os desejos perturbadores da sua juventude. Como seria voltar a viver como mulher, pensou ela. Estava habituada a ser responsável por si própria, a controlar totalmente o seu destino. Mas, por lei, uma esposa devia entregar a sua vida ao seu marido. Será que ela poderia confiar num homem até esse ponto - mesmo sendo Geraldo?

Nunca te entregues a um homem. A voz da sua mãe ecoava como um sino de alarme na sua cabeça.

Precisava de tempo para distinguir o turbilhão de emoções que lhe iam no coração. Mas, tempo era uma coisa que ela não tinha.

Arighis apareceu ao seu lado.

- Vinde - disse ele, com urgência.

Retirou-a da fila.

- Sua Santidade precisa de vós.

- Está doente?

Preocupada, seguiu Arighis ao longo do corredor, até ao quarto do Papa. Na noite anterior, a comida e a bebida em abundância tinham sido purgadas do corpo de Sérgio e a forte dose de cólquico que Joana lhe tinha administrado devia ter sido suficiente para prevenir um novo ataque de gota.

- Ficará, se continuar assim.

- Porquê? O que aconteceu?

- Bento morreu.

- Morreu!

- A sentença foi executada hoje de manhã. Ele morreu imediatamente.

- Benedicite! - Joana apressou o passo. Imaginava o efeito que estas notícias tinham tido em Sérgio.

Mesmo assim, quando o viu, ficou chocada. Sérgio estava quase irreconhecível. Tinha o cabelo desgrenhado, os olhos vermelhos e inchados de chorar, as bochechas cobertas com arranhões causados pelas suas unhas. Estava de joelhos junto à cama, balançando para a frente e para trás, chorando como uma criança abandonada.

- Santidade! - disse Joana, com firmeza, falando-lhe ao ouvido. - Sérgio!

Ele continuou a balançar-se, cego e surdo no abismo do seu desgosto. Era óbvio que não havia maneira de comunicar com ele no estado em que se encontrava. Tirando um pouco de tintura de meimendro do seu saco, Joana calculou uma dose e levou-lha aos lábios. Ele bebeu distraidamente.

Ao fim de alguns minutos, começou a abanar-se mais devagar e, depois, parou. Olhou para Joana como se estivesse a vê-la pela primeira vez.

- Chorai por mim, João. A minha alma está condenada para toda a eternidade!

- Que disparate - disse Joana com firmeza. - Agistes completamente de acordo com a lei.

Sérgio abanou a cabeça negativamente:

- Não sejais como Caim, que era do Diabo e assassinou o seu irmão, - disse ele, citando a Primeira Epístola de João.

Joana replicou com outra passagem:

- E porque o matou ele? Porque as suas obras eram más e o seu irmão era justo. Bento não era justo, Santidade, ele traiu-vos e traiu Roma.

- E agora, está morto, por ordem minha! Ó meu Deus! - bateu no peito e gemeu de dor.

Ela tinha de o arrancar ao seu desgosto, senão ele acabaria por ter outro ataque. Agarrou-o firmemente pelos ombros e disse:

- Tendes que fazer uma confissão auricular.

Esta forma do sacramento da penitência, na qual se fazia uma confissão privada e regular ad auriculum, ao ouvido do padre, estava muito difundida no País dos Francos. Mas, Roma continuava teimosamente arreigada aos antigos procedimentos, de acordo com os quais a confissão e a penitência eram feitas e dadas em público e apenas uma vez na vida.

Sérgio agarrou a ideia:

- Sim, sim, eu confessar-me-ei.

- Vou mandar chamar um dos vossos cardeais-presbíteros - disse ela. - Tendes preferência por alguém?

- Confessar-me-ei a vós.

- A mim? - Um simples padre e estrangeiro, - Joana não era certamente a melhor candidata para servir de confessora ao Papa. - Tendes a certeza, Santidade?

- Não quero mais nenhum.

- Está bem.

Ela voltou-se para Arighis e disse:

- Deixai-nos.

Arighis lançou-lhe um olhar agradecido ao sair do quarto.

- Peccavi, impie egi, iniquitatem feci, miserere mei Domine... - começou Sérgio a dizer, nas palavras rituais da penitência.

Joana ouviu com uma compaixão emocionada os seus desabafos desgostosos, o seu remorso e arrependimento. Com uma alma tão carregada e atormentada, não era de admirar que Sérgio procurasse a paz e o esquecimento na bebida.

A confissão fez o efeito que ela tinha imaginado, a paixão descontrolada do desespero começou a ceder, deixando Sérgio esgotado e exausto, mas fazendo com que ele deixasse de constituir um perigo para si mesmo ou para os outros.

Agora, vinha a parte difícil, a penitência que tinha que preceder o perdão dos pecados. Sérgio devia estar à espera que a sua penitência fosse severa - talvez mortificação pública nos degraus de São Pedro. Mas, esse acto só serviria para enfraquecer Sérgio e o papado aos olhos de Lothar - e isso tinha de ser evitado a todo o custo. Mas, a penitência que Joana ia impor não podia ser demasiado leve, senão Sérgio rejeitá-la-ia.

Ela teve uma ideia.

- Como penitência - disse ela - abster-vos-eis de todo o vinho e carne de quadrúpede até à hora da vossa morte.

Os jejuns eram uma forma habitual de penitência, mas, normalmente, prolongavam-se apenas por alguns meses, quanto muito, um ano. Uma vida de abstinência era um castigo rigoroso - especialmente para Sérgio. Mas, tal penitência tinha o benefício acrescido de ajudar a proteger o Papa dos seus próprios piores instintos. Sérgio baixou a cabeça, em sinal de aceitação.

- Rezai comigo, João.

Ela ajoelhou-se ao seu lado. Afinal, em muitos aspectos, ele não passava de uma criança - fraco, impulsivo, carente, caprichoso. Mas, ela sabia que ele era capaz de fazer o bem. E que, nesse momento, ele era tudo quanto se interpunha entre Anastácio e o Trono de São Pedro.

Quando a oração terminou, ela levantou-se. Sérgio agarrou-se a ela.

- Não saiais - pediu-lhe ele. - Não sou capaz de ficar sozinho.

Joana cobriu as suas mãos com as dela.

- Eu não vos deixarei - prometeu ela solenemente.

 

Ao entrar pelos portais a cair das ruínas do Templo de Vesta, Geraldo constatou, desapontado, que Joana ainda não tinha chegado.

Não faz mal, pensou ele, ainda é cedo. Sentou-se à espera, encostado a uma das colunas em granito.

Tal como a maior parte dos monumentos pagãos de Roma, o templo tinha sido despojado de todos os seus metais preciosos: as rosetas douradas que tinham adornado, em tempos, os tesouros do templo tinham desaparecido, assim como os baixos-relevos doirados que ornamentavam o pedestal dos pronaos. Os nichos ao longo das paredes estavam vazios. As suas estátuas de mármore tinham sido levadas para os fornos de cal para serem transformadas em material de construção para as paredes das igrejas cristãs. No entanto, espantosamente, a estátua da deusa tinha sido poupada, escondida no seu santuário por baixo do templo. Tinha uma das mãos partidas e as linhas das suas vestes estavam gastas, apagadas pelo tempo e elementos naturais, mas a estátua continuava a ter um poder e uma raça poderosas, testemunhando o talento do escultor pagão.

Vesta, antiga deusa do lar e da terra. Representava tudo quanto Joana significava para ele: vida, amor e um novo sentimento de esperança. Respirou fundo, aspirando o ar húmido e doce da manhã, sentindo-se melhor do que se tinha sentido nos últimos anos. Nestes últimos tempos, tinha-se sentido abatido com as voltas da vida. Tinha-se resignado, dizendo a si próprio que era o resultado inevitável da sua idade porque já tinha quase quarenta e três anos, a idade de um homem velho.

Agora, sabia que estava completamente enganado. Longe de estar cansado da vida, estava ávido dela. Sentia-se jovem, vivo, cheio de energia, como se tivesse bebido do cálice milagroso de Cristo. O resto da sua vida estendia-se diante dos seus olhos, cheio de promessas. Casaria com Joana e iriam para Benevento e haviam de viver juntos em paz e com amor.

Talvez até tivessem filhos - não era tarde de mais. Da maneira como se sentia naquele momento, tudo era possível.

Levantou-se quando ela atravessou o portal a correr, com as vestes sacerdotais esvoaçando atrás dela. Tinha as faces rosadas da corrida, o seu cabelo dourado encaracolava-se em torno do seu rosto, acentuando os seus olhos verde-acinzentados-escuros, olhos que o olhavam como lagos de luz neste santuário escuro. Como tinha ela conseguido passar despercebida naquele disfarce masculino?, pensou ele. Aos seus olhos, ela parecia muito feminina e desejável.

- Joana.

A palavra era em parte um nome, em parte uma súplica.

Joana manteve uma distância cautelosa entre ambos. Se deixasse que Geraldo a abraçasse, sabia que a sua decisão se esvairia.

- Trouxe uma montada para ti - disse Geraldo. - Se partirmos agora, estaremos em Benevento daqui a três dias de viagem.

Ela respirou fundo:

- Eu não vou contigo.

- Não vais? - repetiu Geraldo.

- Não posso deixar Sérgio.

Ele ficou demasiado perturbado para reagir imediatamente.

Depois, conseguiu perguntar:

- Porquê?

- Sérgio precisa de mim. Ele é... fraco.

- Ele é o Papa de Roma, Joana, não é uma criança a precisar de mimos.

- Eu não o mimo, eu sou a sua médica. Os médicos da schola não conhecem a doença de que ele sofre.

- Ele sobreviveu muito bem sem ti, antes de chegares a Roma.

Era uma ligeira ironia, mas, doeu.

- Se eu me for embora agora, Sérgio morrerá de tanto beber no espaço de seis meses.

- Então, que beba - respondeu Geraldo, num tom agreste. - O que tens tu e o que tenho eu a ver com isso?

Ela ficou chocada.

- Como podes dizer uma coisa dessas?

- Bom Deus, não te sacrificaste já o suficiente? A primavera das nossas vidas já passou. Não desperdicemos o tempo que nos resta!

Ela virou-lhe as costas para que ele não visse como aquilo a tinha afectado.

Geraldo pegou-lhe pelos pulsos.

- Eu amo-te, Joana. Vem comigo agora, enquanto ainda é tempo.

O toque da sua mão inflamou a carne dela, despertando o desejo. Teve o impulso de o abraçar, de sentir os seus lábios nos dela. Envergonhada por esta fraqueza e por estes sentimentos vergonhosos, ficou súbita e irracionalmente zangada com Geraldo por causa de ele ter despertado nela aqueles sentimentos.

- O que esperavas? - gritou ela. - Que eu fugisse contigo mal apareceste?

Dava largas à cólera que sentia dentro de si, esperando que ela reprimisse as suas outras emoções, mais perigosas. - Eu tenho aqui uma vida boa. Tenho independência e sou respeitada e tenho oportunidades que nunca tinha tido como mulher. Porque hei-de desistir de tudo? Para quê? Para passar o resto dos meus dias confinada a alguns quartos exíguos, cozinhando e bordando?

Geraldo disse em voz baixa:

- Se fosse isso que eu quisesse de uma esposa, já me tinha casado há muito tempo.

- Então, casa! - respondeu Joana, agastada. - Não te impedirei!

Geraldo franziu o sobrolho, perpassando-lhe pelos olhos sinais de irritação. Perguntou gentilmente:

- Joana, o que aconteceu? O que se passa?

- Nada. Eu mudei, é tudo, já não sou a rapariga ingénua e carente que tu conheceste em Dorstadt. Agora, sou dona de mim mesma. E não quero abrir mão disso - nem por ti, nem por qualquer outro homem!

- Eu pedi-te para o fazeres? - perguntou Geraldo, num tom sensato.

Mas, Joana não queria ouvir argumentos razoáveis. A proximidade de Geraldo e a atracção física fortíssima que sentia por ele eram um tormento, uma serpente que se enrolava à volta da sua vontade estrangulando-a. Tentou libertar-se do seu abraço com brusquidão.

- Não aceitas, pois não? A ideia de eu já não estar disposta a desistir da minha vida por causa de ti? Que eu seja uma mulher que é realmente imune ao teu charme masculino?

Geraldo ficou a olhar para ela, espantado, como se visse qualquer coisa nova escrita no seu rosto.

- Pensei que me amavas - disse ele, hirto. - Vejo que estava enganado. Perdoa-me, não voltarei a importunar-te.

Dirigiu-se para a saída, hesitou e voltou atrás.

- Quer dizer nunca mais voltaremos a ver-nos. É realmente isso que tu queres?

Não! Joana sentiu vontade de chorar. Não é isso que eu quero! Não é nada disso que eu quero. Mas, havia uma outra parte dela que a aconselhou a manter-se firme.

- É isso que eu quero - disse ela. A sua voz soava-lhe curiosamente distante.

Mais uma palavra de amor e de desejo da parte dele, e ela cederia e correria para os seus braços. Mas, ele virou-se de repente e afastou-se na direcção da porta. Ela ouviu-o a descer os degraus do templo a correr.

Correu para a porta.

- Geraldo! - gritou ela. - Espera!

O som estridente dos cascos a baterem nas pedras fez com que ela se desfizesse em lágrimas. Geraldo cavalgou apressadamente pela estrada abaixo. Pouco depois, dobrou uma curva e desapareceu.

 

O Verão romano surgiu impiedoso. O sol brilhava sem descanso, ao meio-dia, as pedras da calçada estavam suficientemente quentes para queimarem os pés de um homem. O fedor a lixo podre e a estrume, intensificado pelo calor, elevava-se no ar quieto e pairava sobre a cidade como uma nuvem sufocante. Febres pestilentas começaram a grassar entre os pobres que viviam no pântano e nas casas degradadas alinhadas nas terras baixas das margens do Tibre.

Temendo o contágio, Lothar e o seu exército abandonaram a cidade. Os romanos regozijaram-se com a sua partida porque o fardo da manutenção de um exército tão numeroso tinha esgotado os recursos da cidade.

Sérgio foi saudado como um herói. A adulação do povo ajudava-o a ultrapassar o seu desgosto com a morte de Bento.

Emergindo com uma saúde e energia redescobertas - recuperadas, em grande parte graças à dieta espartana que Joana lhe tinha imposto como penitência - Sérgio era outro homem. Fiel à sua promessa, começou a reconstruir o Orphanotrophium. As paredes em ruína foram reforçadas e o tecto foi posto de novo. Foram arrancadas do templo de Minerva placas de mármore travertina, utilizadas para revestir o chão do grande salão. Foi construída uma nova capela, dedicada a Santo Estêvão.

Enquanto, anteriormente, Sérgio estava muitas vezes demasiado cansado ou doente para dizer missa, agora, celebrava o sagrado sacramento todas as manhãs. Além disso, encontrava-se muitas vezes a rezar na capela privada. Entregou-se à sua fé com o mesmo fervor que tinha posto nos prazeres da mesa - porque ele não era homem para fazer as coisas pela metade.

Dois anos de invernos amenos e de colheitas abundantes resultaram numa época de prosperidade generalizada. Até as legiões de pobres que enchiam as ruas da cidade pareciam ter diminuído um pouco porque os bolsos dos seus irmãos prósperos tinham-se aberto e as esmolas tinham aumentado. Os romanos ofereciam orações de acção de graças aos altares das suas igrejas, satisfeitos com a sua cidade e o seu Senhor Papa.

Não suspeitavam - como poderiam? - da catástrofe que estava prestes a abater-se sobre eles.

Joana estava com Sérgio num dos seus encontros regulares com os príncipes da cidade, quando o mensageiro irrompeu ao seu encontro.

- O que é isto? - perguntou Sérgio, com severidade.

O mensageiro ajoelhou-se, em sinal de obediência

- Trago-vos uma mensagem da maior importância para a cristandade proveniente de Siena. Uma grande frota de navios sarracenos fez-se ao mar em África. Dirigem-se directamente para Roma.

- Para Roma? - repetiu um dos príncipes num tom sumido. - O relatório deve estar enganado.

- Não há erro nenhum - disse o mensageiro. - Os sarracenos estarão aqui daqui dentro de quinze dias.

Fez-se silêncio por momentos, enquanto todos tomavam consciência desta notícia surpreendente.

Outro príncipe disse:

- Talvez seja melhor levar as relíquias sagradas para um sítio mais seguro.

Referia-se à ossada do apóstolo Pedro, a relíquia mais sagrada de toda a Cristandade que se encontrava depositada na basílica de seu nome, fora da protecção dos muros da cidade.

Romualdo, o maior na assembleia de príncipes atirou a cabeça para trás e riu-se:

- Não pensais que os infiéis atacariam São Pedro?

- O que os impede? - perguntou Joana.

- Eles podem ser bárbaros, mas não são loucos - respondeu Romualdo. - Sabem que a mão de Deus os esmagaria no momento em que eles entrassem no túmulo sagrado!

- Eles têm a sua própria religião - lembrou Joana. - Não temem a mão do nosso Deus cristão.

O sorriso de Romualdo esmoreceu.

- Que blasfémia pagã é esta?

Joana argumentou:

- A basílica é um alvo evidente para o saque, mais que não seja, pelos tesouros que se encontram dentro dela. Por uma questão de segurança, devemos trazer os seus objectos sagrados e o sarcófago do santo para dentro dos muros da cidade.

Sérgio hesitava:

- Já tivemos avisos destes antes e não aconteceu nada.

- De facto, - disse Romualdo, em tom de troça - se nos enchêssemos de medo cada vez que é avistado um navio de sarracenos, as relíquias sagradas andariam num vaivém, como se fossem um par de agulhas num tear!

A explosão de gargalhadas de concordância foi interrompida instantaneamente pelo ar reprovador do Pontífice.

Sérgio disse:

- Deus defenderá os Seus. O apóstolo Bendito ficará onde está.

- Pelo menos - insistiu a Joana - mandemos chamar homens das povoações limítrofes, para defender a cidade.

- É tempo de vindimas - disse Sérgio. - As povoações precisam de todos os homens robustos para trabalharem nas vinhas. Não vejo necessidade de pôr em risco a vindima, da qual tudo depende, quando não existe perigo iminente.

- Mas, Santidade...

Sérgio interrompeu-a.

- Confiai em Deus, João Anglicus. Não existe escudo mais forte do que a fé e a oração cristãs.

Joana baixou a cabeça em sinal de submissão. Mas, intimamente, pensou, revoltando-se: quando os sarracenos estiverem às portas da cidade, todas as orações do mundo não ajudarão nem metade daquilo que ajudaria uma única divisão de homens combatentes.

 

Geraldo e a sua companhia estavam acampados mesmo às portas da cidade de Benevento. Os homens dormiam a sono solto dentro das suas tendas, depois de uma noite de desbragamento - um festim que Geraldo lhes tinha concedido como recompensa pela sua vitória retumbante no dia anterior.

Nos últimos dois anos, Geraldo tinha comandado os exércitos do príncipe Siconulf, lutando para assegurar o seu trono contra o ambicioso pretendente Radelchis. Comandante hábil, que exigia muito dos seus homens, enquanto eles estavam a aprender a disciplina e manejo das armas e que, depois, confiava que eles tinham um bom desempenho no campo de batalha, Geraldo tinha infligido derrota sobre derrota aos exércitos de Radelchis.

A vitória do dia anterior tinha sido tão retumbante que era provável que tivesse posto para sempre fim à pretensão de Radelchis ao trono de Benevento. Apesar de as sentinelas armadas estarem colocadas em torno de todo o acampamento, Geraldo e os seus homens dormiam com as espadas e os escudos junto de si, onde estavam à mão. Geraldo não arriscava porque um inimigo podia ser perigoso mesmo depois de derrotado. O calor da vingança levava, por vezes, os homens a precipitarem-se em acções desesperadas. Geraldo conhecia muitos acampamentos que tinham sido apanhados de surpresa, nos quais os seus ocupantes tinham sido chacinados antes de terem tido, sequer, tempo para acordarem.

No entanto, de momento, esses pensamentos estavam longe da mente de Geraldo. Estava deitado descontraidamente, com os braços por trás da nuca e as pernas dispostas à vontade. Ao seu lado, uma mulher tapada com uma coberta respirava compassadamente, fazendo um som ritmado, interrompido, por vezes, por um ligeiro ressonar.

À luz do dia, Geraldo arrependeu-se do breve arroubo de paixão que a tinha trazido para a sua cama. Ao longo dos anos, tinha havido outros encontros fortuitos, cada um deles menos satisfatório e mais passageiro do que o anterior. Geraldo continuava a acalentar no seu coração a recordação de um amor que não podia esquecer.

Abanou a cabeça, impaciente. Era inútil remexer no passado. Joana não partilhava os seus sentimentos, senão, não o teria mandado embora.

A mulher deitou-se de lado. Geraldo tocou-lhe no ombro e ela acordou, abrindo uns lindos olhos negros que o fitaram sem perceber.

- Já é dia - disse Geraldo. Tirou algumas moedas do seu saco e deu-lhas.

Ela agarrou-as e sorriu, contente.

- Devo voltar esta noite, senhor?

- Não, não é preciso.

Ela ficou desiludida.

- Não vos agradei?

- Sim, sim, claro. Mas, nós levantamos o acampamento hoje à noite.

Pouco depois, ele ficou a vê-la atravessar o campo, com as sandálias a chinelarem pela relva molhada. O céu enevoado estava a começar a clarear, adquirindo um tom pálido e cinzento.

Em breve, voltaria a ser dia.

Siconulf e os seus principais fideles já estavam reunidos na grande sala quando Geraldo entrou. Dispensando as cortesias usuais, Siconulf anunciou abruptamente:

- Acabei de receber uma mensagem da Córsega. Da costa africana partiram setenta e três navios sarracenos. Trazem cerca de cinco mil homens e duzentos cavalos a bordo.

Seguiu-se um silêncio espantoso. Era difícil imaginar uma frota tão grande.

Eburis, um dos fideles de Siconulf, disse num tom grave:

- O que quer que seja que eles querem, é mais do que apenas outro ataque de pirataria à nossa costa.

- Dirigem-se para Roma - disse Siconulf.

- Roma! Certamente que não! - disse outro fideles.

- Que disparate! - disse um terceiro. - Nunca se atreveriam!

Geraldo mal os ouvia. Os seus pensamentos corriam à sua frente:

- O papa Sérgio vai precisar da nossa ajuda - disse ele de uma forma tensa.

Mas, não era em Sérgio que ele estava a pensar. De um só golpe, as notícias da aproximação da armada dos sarracenos tinham apagado toda a amargura e mágoa dos últimos dois anos.

Só importava uma coisa - chegar ao pé de Joana e fazer tudo quanto estava ao seu alcance para a proteger.

- O que sugeris, Geraldo? - perguntou Siconulf.

- Meu príncipe, deixai-me comandar as nossas tropas para defender Roma.

Siconulf franziu o sobrolho.

- Certamente, a Cidade Santa tem os seus próprios defensores..

- Só tem a família Sancti Petri - um grupo pequeno e indisciplinado de milícias papais. Cairão como trigo maduro diante das espadas dos sarracenos.

- E o Muro Aureliano? Certamente os sarracenos não serão capazes de o derrubar.

- O muro parece ser bastante forte - admitiu Geraldo. - Mas várias das suas portas têm poucos reforços. Não aguentarão um assalto persistente. E o túmulo de São Pedro está completamente desprotegido porque fica fora do muro.

Siconulf ficou a pensar naquilo. Tinha relutância em comprometer as suas tropas numa causa que não fosse sua. Mas, era um príncipe cristão, venerava a Cidade Santa e os seus locais sagrados. A ideia de bárbaros infiéis a profanarem o túmulo do Apóstolo era terrível.

Além disso, ocorria-lhe, agora, que talvez pudesse tirar algum benefício pessoal do envio de homens para defenderem Roma.

Depois, um papa Sérgio grato podia recompensá-lo com um dos ricos domínios papais que ficavam na fronteira do território de Siconulf.

Disse a Geraldo:

- Podeis contar com três divisões. De quanto tempo precisais para vos preparardes para partir?

- As tropas estão endurecidas pela batalha e a postos. Podemos partir imediatamente. Se o tempo se mantiver propício, estaremos em Roma dentro de dez dias.

- Rezemos para que seja suficiente. Deus vá convosco, Geraldo.

 

Em Roma, vivia-se uma estranha atmosfera de calma. Desde o aviso inicial, vindo de Siena duas semanas antes, não se tinha voltado a ouvir palavra sobre a armada dos sarracenos. Os romanos começavam gradualmente a acalmar, convencendo-se de que os relatos de uma frota inimiga, a mal, tinham sido falsos.

A manhã de 23 de Agosto acordou luminosa e promissora. A missa foi celebrada na Catedral de Santa Maria dos Mártires, conhecida no tempo dos pagãos como Panteão, uma das igrejas mais bonitas de Roma. Foi uma celebração particularmente bonita, com o sol a entrar pelas aberturas circulares no grande tecto em abóbada da basílica, espalhando um alo dourado por cima de toda a assembleia. Ao regressar ao Patriarchium, o coro cantava a plenos pulmões: Gloria in excelsis Deo.

O canto morreu-lhes nos lábios assim que entraram na piazza ensolarada do Laterano e viram uma multidão de cidadãos num círculo ansioso em torno de um mensageiro estranho e enlameado.

- Os infiéis desembarcaram - anunciou o mensageiro, pesaroso. - A cidade do Porto foi tomada, as pessoas massacradas e as igrejas profanadas.

- Cristo nos ajude! - gritou alguém.

- O que será de nós? - gemeu outro.

- Vão matar-nos a todos! - gritou um terceiro, histericamente.

A multidão ameaçava entrar numa desordem perigosa.

- Silêncio! - a voz de Sérgio ergueu-se acima do rumor. Acabai com esta atitude indigna! - A voz de autoridade irrompeu, dominante, sobrepondo-se ao barulho e apelando à obediência.

- Então - disse ele - somos ovelhas para nos acobardarmos assim? Somos crianças, para pensarmos que somos indefesos!

Fez uma pausa dramática.

- Não! Somos romanos! E isto é Roma, protectorado de São Pedro, berço do Reino dos Céus! Tu és Pedro, disse Cristo, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja. O que temos a temer? Iria Deus permitir que o Seu altar sagrado fosse profanado?

A multidão agitou-se. Ouviram-se vozes dispersas em resposta:

- Sim! Ouvi o Senhor Papa! Sérgio tem razão!

- Não temos os nossos guardas e as nossas milícias?

Com um gesto, Sérgio apontou para a guarda papal que reagiu, erguendo as suas lanças e agitando-as convictamente.

- O sangue dos nossos antepassados corre nas nossas veias, eles dispõem da força do Deus Omnipotente! Quem prevalecerá contra eles?

A multidão lançou um grito de saudação. O passado heróico de Roma continuava a ser uma fonte de orgulho, os triunfos militares de César, de Pompeu e de Augusto eram conhecidos por todos os cidadãos.

Joana olhou para Sérgio com admiração. Seria aquela figura heróica o mesmo homem doente, mal-humorado, desanimado que ela tinha encontrado dois anos antes?

- Que venham os infiéis! - gritou Sérgio. - Que eles brandam as suas armas contra esta fortaleza sagrada! Despedaçarão os seus corações contra os nossos muros protegidos por Deus!

Joana sentiu a onda de excitação e de entusiasmo que se levantou e se abateu sobre a multidão num tumulto de emoção barulhento. Mas, tinha os pés demasiado assentes na terra para se deixar entusiasmar tão facilmente.

O mundo não é o que gostaríamos que fosse, pensou ela, por muito habilidosos que sejamos a conjurá-lo.

A multidão mantinha-se firme, de cabeças levantadas e faces iluminadas. À volta de Joana ecoavam em uníssono vozes excitadas:

- Sérgio! Sérgio! Sérgio! Sérgio!

Por ordem de Sérgio, o povo passou dois dias a jejuar e a rezar. Os altares de todas as igrejas brilhavam, iluminados com uma profusão de velas votivas. Havia relatos de milagres por todo o lado. Dizia-se que a estátua de ouro da Madona do Oratório de São Cosme tinha mexido os olhos e rezado uma litania. O crucifixo por cima do altar de Santo Adriano tinha derramado lágrimas de sangue. Estes milagres eram interpretados como sinais da bênção e favor divinos. Dia e noite ouvia-se o som do Hosana a sair das igrejas e mosteiros, uma vez que o clero da cidade tinha respondido ao desafio do Senhor Papa preparando-se para enfrentar o inimigo com a força invencível da sua fé cristã.

Imediatamente a seguir ao amanhecer do dia 2 de Agosto, ouviu-se um grito junto aos muros:

- Eles vêm aí! Eles vêm aí!

Os gritos aterrados do povo penetraram até na grossa parede dos muros do Patriarchum.

- Tenho de ir para as trincheiras - anunciou Sérgio. - Quando o povo me vir, saberá que não têm nada a temer.

Arighis e os outros prelados protestaram, argumentando que era demasiado perigoso, mas Sérgio estava decidido. Acabaram por o levar, contrariados, até ao muro, escolhendo cuidadosamente um local onde as pedras se erguiam um pouco mais alto, permitindo melhor protecção.

Ouviu-se uma grande ovação quando Sérgio subiu os degraus.

Depois, todos os olhares convergiram para ocidente.

Levantou-se uma grande nuvem de pó. Os sarracenos emergiram dela a galope rápido, com as suas vestes soltas flutuando como asas de aves de rapina gigantes. Ouviu-se um tremendo grito de guerra, um ulular prolongado, agudo, que ficou a pairar no ar, provocando um arrepio de medo naqueles que o ouviram.

- Deo, juva nos - disse um dos padres, a tremer.

Sérgio ergueu um pequeno crucifixo com pedras preciosas encrostadas e gritou:

- Cristo é o nosso Salvador e o nosso Escudo.

As portas da cidade abriram-se e a milícia papal marchou corajosamente ao encontro do inimigo.

- Morte aos infiéis! - gritaram eles, brandindo as suas espadas e os seus punhais.

Os exércitos beligerantes colidiram com um barulho ensurdecedor de metal, mais alto do que o barulho de mil ferreiros. Em minutos, tornou-se evidente que a batalha era fatalmente desigual, a cavalaria sarracena dirigiu-se precisamente para a linha da frente dos peões romanos, cortando e despedaçando com as suas cimitarras curvas.

A milícia da retaguarda não conseguia ver a mortandade que se passava na frente. Ainda convencidos da vitória, avançaram, empurrando por trás aqueles que os precediam. Os homens foram todos passados à espada dos sarracenos, fila a fila. Os corpos amontoavam-se, impedindo o avanço dos que vinham atrás.

Foi um massacre. Derrotada e aterrada, a milícia retirou numa desordem desesperada.

- Fugi! - gritavam eles, correndo pelo campo, como sementes lançadas ao vento. - Fugi para sobreviverdes!

Os sarracenos não se deram ao trabalho de os perseguir porque a sua vitória lhes tinha alcançado um prémio muito melhor: a Basílica de São Pedro, desprotegida. Cercaram-na como um enxame negro. Não desmontaram. Subiram as escadas com os cavalos e entraram pelas portas adentro.

Os romanos esperaram, exaustos, por trás dos muros. Passou um minuto. Depois, outro. Não se ouviu nenhum trovão a rasgar os céus, nem desceu nenhum mar de chamas do céu. Em vez disso, ouviu-se o som inequívoco de madeira e metal a partir dentro da basílica. Os sarracenos estavam a pilhar o altar sagrado.

- Não pode ser - murmurou Sérgio. - Meu Deus, não pode ser.

Um bando de sarracenos emergiu da basílica, brandindo a cruz em ouro de Constantino. Dizia-se que havia homens que tinham morrido apenas por se atreverem a tocar-lhe. Mas, agora, os sarracenos mostravam-na, troçando, rindo, fazendo-a oscilar entre as pernas numa paródia obscena e animalesca.

Com um suspiro mudo, Sérgio largou o crucifixo e caiu de joelhos.

- Santidade!

Joana correu para ele.

Um ataque cardíaco, pensou ela, alarmada.

- Levai-o - ordenou ela.

Arighis e vários guardas levantaram o Papa desmaiado, carregando-o nos braços, e transportaram-no para uma casa perto, onde o deitaram num colchão de palha.

A respiração de Sérgio era ofegante. Joana preparou-lhe uma infusão de bagas de espinheiro-alvar e de raiz de valeriana e deu-lha. Pareceu aliviá-lo, pois ficou com melhor cor e começou a respirar melhor.

- Eles estão às portas! - gritava o povo do lado de fora. Cristo nos ajude! Estão às portas!

Sérgio tentou levantar-se da cama, mas a Joana fez com que ele voltasse a deitar-se.

- Não vos deveis mexer.

O esforço ter-lhe-ia saído caro, ele apertou os lábios com força.

- Falai por mim - pediu-lhe ele. - Dirigi os pensamentos deles para Deus... Ajudai-os... Preparai-os...

Os seus lábios moviam-se agitadamente, mas não saíam palavras.

- Sim, Santidade, sim - assentiu Joana. - Era evidente que isso o pacificaria. - Farei como dizeis. Mas, agora, tendes que descansar.

Ele acenou com a cabeça e deitou-se. As suas pálpebras tremeram e fecharam-se quando o remédio começou a fazer efeito. Não havia mais nada a fazer senão deixá-lo dormir e esperar que o remédio actuasse.

Joana deixou-o aos cuidados de Arighis e saiu para a rua.

Perto, ouvia-se um ruído dilacerante como de um raio. Joana começou a ter medo.

- O que se passa? - perguntou ela a um grupo de guardas que ia a passar.

- Os porcos idólatras estão a tentar arrombar os portões! respondeu um guarda, quando passaram por ela.

Ela regressou à praça. O terror tinha provocado o frenesim entre a multidão. Os homens arrancavam a barba violentamente, as mulheres gritavam e arranhavam as faces com as unhas, até correr o sangue. Os monges da Abadia de São João estavam ajoelhados num canto, todos juntos, com os capuzes negros a caírem da cabeça e os braços levantados ao céu. Alguns deles tinham rasgado as vestes e começado a flagelar-se com paus em madeira, numa tentativa frenética para propiciar a evidente ira de Deus. Assustadas com este espectáculo, as crianças choravam e as suas vozes agudas sobressaíam do coro louco e dissonante dos adultos.

Ajudai-os, tinha pedido Sérgio. Preparai-os.

Mas, como?

Joana subiu os degraus do muro. Pegando no crucifixo que Sérgio tinha deixado cair, levantou-o bem alto para que todos o vissem. O sol reflectiu-se nas suas gemas, espalhando um arco-íris de luz dourada.

- Hosanna in excelsis - começou ela a entoar alto. As notas agudas e claras do cântico sagrado sobrepuseram-se à multidão, num tom forte, doce e seguro. As pessoas que estavam mais perto do muro levantaram os rostos cobertos de lágrimas para o som familiar. Padres e monges uniram as suas vozes no canto, ajoelhando-se nas pedras gastas ao lado de pedreiros e costureiras.

- Christus qui venit nomine Domini...

Voltou a ouvir-se um grande estrondo, seguido do som de madeira a partir-se. Os portões começaram a ceder. A luz entrava por onde tinha sido feita uma fenda.

Meu Deus, pensou Joana. E se eles conseguirem entrar? Até ali, essa possibilidade tinha parecido impensável.

Vieram-lhe à cabeça recordações. Voltou a ver os normandos entrarem pelas portas da catedral de Dorstadt, brandindo os seus machados. Ouviu os gritos tremendos dos moribundos... viu o João no chão, com o crânio esmagado... e Gisla... Gisla...

A voz tremeu-lhe e apagou-se. O povo olhou, alarmado.

Continua, disse ela para si mesma, continua. Mas o seu pensamento parecia que se tinha paralisado, não se lembrava das palavras.

- Hosanna in excelsis.

Uma voz grave de barítono soou atrás dela. Era Leão, cardeal-presbítero da Igreja de Sancti Quattro Coronati. Tinha subido para ao pé dela. O som da sua voz libertou-a do medo e, juntos, prosseguiram o cântico.

Ouviu-se um grito ressoando do oriente.

- Deus e São Pedro.

Os guardas do muro saltavam de contentamento, aplaudindo, gritando:

- Deus seja louvado! Estamos salvos.

Ela olhou por cima do muro. Aproximava-se a galope um grande exército, que se dirigia para a cidade com os estandartes flutuantes enfeitados com os emblemas de São Pedro e da cruz.

Os sarracenos deixaram os toros com que batiam nas portas e correram para as suas montadas.

A Joana olhou na direcção do Sol. Quando as tropas se aproximaram mais, ela deu, subitamente, um grito agudo.

À frente, com a lança já pronta para ser lançada, alto, elegante e heróico como um dos velhos deuses da sua mãe, cavalgava Geraldo.

A batalha que se seguiu foi encarniçada e impiedosa. O ataque dos beneventanos tinha apanhado os sarracenos desprevenidos, foram expulsos dos muros da cidade e forçados a retirarem através dos campos, em direcção ao mar. Na costa, os infiéis embarcaram os seus tesouros roubados e partiram. Na debandada, deixaram para trás uma grande parte do seu saque.

Geraldo e os seus homens passaram semanas a subir e a descer a costa, à caça de bandos de salteadores.

Roma estava salva. Os romanos dividiam-se entre a alegria e o desespero - alegria por causa de terem sido libertados, desespero por causa da destruição de São Pedro. A basílica sagrada tinha sido saqueada de tal forma que estava irreconhecível. A velha cruz em ouro do túmulo do Apóstolo tinha desaparecido, assim como o grande retábulo em prata com a libertação de Bizâncio, oferecida pelo imperador Carlos Magno. Os infiéis tinham arrancado as incrustações em prata das portas e as placas em ouro do chão. Tinham mesmo - que Deus os cegasse! - levado o próprio altar-mor. Como não tinham conseguido retirar o sarcófago em bronze com o corpo do Príncipe dos Apóstolos, tinham-no arrombado, espalhando e profanando as cinzas sagradas.

Toda a Cristandade estava mergulhada no luto. Os sinais dos antepassados tinham sido preservados dentro das portas - antes invioláveis - deste templo cristão, o mais velho e o maior de todos. Gerações incontáveis de peregrinos, incluindo os maiores príncipes do mundo, tinham-se prostrado humildemente no pavimento sagrado. Fileiras de papas repousavam dentro das suas paredes. Não havia local que o Ocidente reconhecesse como mais sagrado do que este. E, no entanto, este santuário da Verdadeira Fé, que nem os godos, nem os vândalos, nem os gregos, nem os lombardos se tinham atrevido alguma vez a desafiar, tinha caído diante de uma horda de arruaceiros de África.

Sérgio culpava-se a si próprio pela catástrofe. Retirou-se para os seus aposentos, recusando-se a receber fosse quem fosse, a não ser a Joana e os seus conselheiros mais próximos.

E voltou a beber, esvaziando taças de vinho da Toscana umas atrás das outras até cair num esquecimento misericordioso.

A bebida tinha o efeito que já era conhecido: a gota voltou a atacá-lo; para aliviar a dor, ele bebia mais ainda. Dormia mal. Acordava todas as noites a gritar, atormentado por pesadelos nos quais era visitado pelo espectro vingativo de Bento. Joana temia a pressão que isto causava no seu coração já enfraquecido.

- Lembrai-vos da penitência que combinámos - lembrou-lhe ela.

- Agora, já não interessa - respondeu Sérgio, desanimado. Não tenho esperança de ir para o Céu. Deus abandonou-me.

- Não vos deveis culpar daquilo que aconteceu. Há coisas que ultrapassam todos os poderes mortais de as remediar ou evitar.

Sérgio abanou a cabeça:

- A alma do meu irmão assassinado clama contra mim! Eu pequei e isto é o meu castigo.

- Se não quereis pensar em vós próprio - argumentou Joana - pensai no povo! Agora, mais do que nunca, eles esperam o vosso consolo e a vossa orientação.

Ela tinha de o animar, mas, a verdade era outra. O povo tinha-se voltado contra Sérgio. Diziam que tinha havido avisos suficientes acerca da aproximação dos sarracenos, que tinha havido muito tempo para o Senhor Papa ter transportado o sarcófago sagrado para dentro dos muros. A fé de Sérgio na libertação de Deus, que, na altura, tinha sido louvada por todos, agora, era condenada por todos como resultado de um orgulho pecaminoso e um erro desastroso.

- Mea culpa - respondeu Sérgio, chorando. - Mea maxima culpa.

Joana argumentou, resmungou, tentou persuadi-lo, em vão. A saúde de Sérgio deteriorou-se rapidamente. Joana fez tudo quanto podia por ele, mas não havia nada a fazer. Sérgio estava determinado a morrer.

Mesmo assim, demorou algum tempo até que a morte viesse. Já tinha perdido o juízo havia muito, caindo num estado de inconsciência, e continuava a resistir, como se o seu corpo tivesse relutância em libertar-se da última réstia de vida.

Morreu, finalmente, numa manhã escura e sem sol, entregando o espírito de uma forma tão tranquila que, inicialmente, ninguém se apercebeu de que ele tinha morrido.

Joana teve um desgosto autêntico com a sua morte. Ele não tinha sido um homem ou um papa tão bom como podia ter sido.

Mas, ela sabia melhor do que ninguém os demónios que o atormentavam, sabia como ele tinha lutado para se libertar deles. O facto de ter perdido a última batalha não tornava o combate menos honroso.

Foi sepultado na basílica em ruínas, ao lado dos seus predecessores, com um cerimonial tão sóbrio que quase roçou o escândalo. Os dias de luto previstos quase não foram observados pelos romanos porque eles, impacientes, já tinham os olhos postos no futuro e na eleição de um novo papa.

 

Anastácio fugiu ao temporal provocado pelos ventos de Janeiro e entrou no conforto do palácio ancestral da sua família. Era a maior residência em Roma, para além do Patriarchium, evidentemente, e Anastácio tinha razão para ter orgulho nela. O tecto abobadado da sala de entrada tinha a altura de dois andares e era todo em mármore branco de Ravena.

As suas paredes estavam pintadas com frescos de cores vivas, representando cenas da vida dos antepassados da família. Um deles representava um cônsul a fazer um discurso perante o Senado, o outro, um general sentado num carro negro, comandando as tropas, um outro representava um cardeal recebendo o pallium das mãos do papa Adriano. Uma das paredes tinha sido deixada em branco, prevendo o dia há muito esperado, quando a família alcançasse finalmente a sua maior honra: a coroação de um dos seus filhos como papa.

Normalmente, esta sala era palco de uma grande azáfama.

Hoje, se não fosse o intendente da família, estaria vazia.

Ignorando os seus cumprimentos efusivos - já que Anastácio nunca perdia tempo com subalternos - ele dirigiu-se directamente para o quarto do seu pai. Àquela hora, normalmente, Arsénio já estava no salão, ocupado com os notáveis da cidade em jogos de poder sinuosos e gratificantes.

Mas, no mês anterior, tinha sido atacado por uma febre devastadora que tinha secado as suas formidáveis energias, confinando-o ao seu quarto.

- Meu filho.

Arsénio levantou-se do seu sofá quando Anastácio entrou.

Estava pálido. Anastácio sentiu uma onda curiosa e exaltante de força, como se a sua juventude e energia aumentassem, de certa maneira, por contraste com a diminuição das forças do seu pai.

- Pai.

Anastácio dirigiu-se para ele de braços abertos e eles abraçaram-se calorosamente.

- Que notícias trazes? - perguntou Arsénio.

- A eleição foi marcada para amanhã.

- Deus seja louvado! - exclamou Arsénio.

Era apenas uma forma de falar. Apesar de possuir o título honorífico de bispo de Horta, Arsénio não tinha sido ordenado e não era um homem religioso. A sua nomeação para o episcopado tinha sido apenas um reconhecimento político do poder enorme que ele tinha na cidade.

- Já é tempo de um filho meu se sentar no Trono de São Pedro.

- É possível que esse resultado não seja tão certo quanto esperávamos, Pai.

- O que queres dizer com isso? - Perguntou Arsénio.

- O apoio de Lothar à minha candidatura pode não ser suficiente. O facto de ele não ter feito nada para defender Roma dos sarracenos voltou muitos contra ele. O povo pergunta-se porque motivo há-de prestar homenagem a um imperador que não nos protege. Cresce a sensação de que Roma devia afirmar a sua independência do trono franco.

Arsénio pensou no assunto cuidadosamente. Depois, disse:

- Tens de denunciar Lothar.

Anastácio estava horrorizado. O pensamento do seu pai, sempre tão lúcido e acutilante, estava obviamente a toldar-se.

- Se eu fizesse isso - respondeu ele - perderia o apoio do partido imperial, do qual dependem as nossas esperanças.

- Não. Vais ter com eles e explicas-lhes que estás a agir apenas por necessidade política. Assegura-os de que, seja o que for que sejas obrigado a dizer, na realidade, és um homem do Imperador e que o provarás depois da tua eleição, atribuindo-lhes benefícios e privilégios de monta.

- Lothar vai ficar furioso.

- Nessa altura, já não interessa. Avançaremos para a cerimónia de consagração depois da eleição sem esperar pela jussio imperial. Dadas as circunstâncias, ninguém protestará porque é óbvio que Roma não pode continuar sem chefe nem mais um dia do que o necessário, sob a contínua ameaça dos sarracenos. Quando Lothar receber a notícia daquilo que aconteceu, serás Senhor Papa, bispo de Roma - e o imperador não poderá fazer nada para o alterar.

Anastácio abanou a cabeça com admiração. O seu pai tinha tomado conta da situação imediatamente. A velha raposa podia estar a envelhecer, mas não tinha perdido nem um pouco da sua astúcia.

Arsénio pegou numa grande chave em ferro.

- Vai aos armários e tira o ouro de que precisares para conquistar as suas mentes para ti. Raios! - praguejou ele. - Se não fosse esta maldita febre, era eu próprio que o fazia.

Anastácio pegou na chave fria e dura com uma sensação de poder gratificante.

- Descansai, Pai. Eu trato disto.

Arsénio agarrou-o pela manga.

- Tem cuidado, meu filho. O jogo que tu estás a jogar é perigoso. Não te esqueceste do que aconteceu ao teu tio Teodoro?

Esquecido! O assassinato do seu tio no Palácio Laterano tinha sido o momento de viragem da infância de Anastácio. A expressão de Teodoro quando os guardas papais lhe arrancaram os olhos perseguiria Anastácio até ao dia da sua morte.

- Eu terei cuidado, Pai - disse Anastácio. - Deixai tudo comigo.

- É precisamente isso que eu pretendo fazer - retorquiu Arsénio.

 

Ad te, Domine, levavi animam meam... rezava Joana, ajoelhada na pedra fria da capela do Patriarchium. Mas, por muito que rezasse, não era capaz de ascender à luz da graça; havia um laço mortal que a mantinha presa aqui em baixo.

Amava Geraldo. Não valia a pena continuar a iludir ou a negar essa verdade simples. Quando o tinha visto a caminho da cidade, à frente das tropas beneventanas, o seu ser tinha-se precipitado na sua direcção com uma convicção poderosa.

Tinha trinta e três anos. Mas, não tinha ninguém a quem estivesse ligada intimamente. As realidades práticas do seu disfarce não tinham permitido que ninguém se aproximasse muito. Vivia uma vida de mentira, negando a verdade de quem era.

Seria por isso que Deus a tinha privado da Sua graça? Será que Ele queria que ela abandonasse o seu disfarce e vivesse a vida de uma mulher, para a qual ela tinha nascido? A morte de Sérgio tinha-a libertado de qualquer obrigação de permanecer em Roma. O próximo papa seria Anastácio e não haveria lugar para Joana na sua administração. Ela tinha combatido os seus sentimentos por Geraldo durante muito tempo. Que alívio abençoado seria seguir os ditames do seu coração e não da sua cabeça. Que aconteceria quando ela e Geraldo voltassem a encontrar-se? Sorria intimamente, imaginando a alegria desse momento. Agora, tudo era possível. Podia acontecer tudo.

Ao meio-dia do dia marcado para a eleição, tinham-se reunido todos os romanos, leigos e clero, participavam na eleição do novo papa.

Joana teve que se pôr em bicos dos pés para conseguir espreitar por cima das cabeças e dos braços. Onde estava Geraldo? Havia rumores de que ele tinha regressado da sua campanha de meses contra os sarracenos. Se era verdade, ele estaria ali. Subitamente, ficou com medo - e se ele tivesse regressado a Benevento sem voltar a vê-la?

A multidão abriu alas respeitosamente quando Eustácio, o arcipreste, Desidério, o arcediago, e Pascal, o primicerius, entraram na praça: o triunvirato dos funcionários que, por tradição, governavam a cidade sede vacante, isto é, no interregno entre a morte de um papa e a eleição de outro.

Eustácio fez uma pequena oração:

- Pai Celeste, guiai-nos naquilo que vamos fazer aqui hoje para que ajamos com prudência e honra, que o ódio não destrua a razão e o amor não interfira com a verdade. Em Nome da santa e indivisível Trindade do Pai, Filho e Espírito Santo. Ámen.

Pascal falou a seguir:

- Tendo o senhor papa Sérgio partido para Deus, cabe-nos eleger o seu sucessor. Qualquer romano aqui presente pode falar e manifestar os sentimentos que Deus lhe inspirou para que a vontade geral seja, assim, cumprida.

- Meu Senhor Primicerius.

Tassilo, o chefe da facção imperial e um dos agentes de Lothar falou imediatamente:

- Há um nome que se impõe acima de todos os outros. Anastácio, bispo de Castellum, filho do ilustre Arsénio. Todas as qualidades da natureza deste homem o recomendam para o trono - o seu nascimento nobre, a sua erudição extraordinária, a sua indiscutível piedade. Em Anastácio teremos um defensor não só da nossa fé cristã, mas também dos nossos interesses.

- Dos vossos interesses, quereis vós dizer! - disse uma voz, trocista, vinda da multidão.

- Não - retorquiu Tassilo. - A generosidade e grandeza de coração de Anastácio fará dele um pai para todos vós.

- Ele é o homem do imperador! - voltou a gritar o provocador. - Não queremos um instrumento do trono franco para nosso Senhor Papa!

- É verdade! É verdade! - disseram várias vozes, num acordo vigoroso.

Anastácio subiu à plataforma. Levantou os braços num gesto dramático, acalmando a multidão.

- Companheiros romanos, julgais-me mal. O orgulho dos meus nobres antepassados romanos corre tão intensamente nas minhas veias como nas vossas. Não me submeto a nenhum senhor franco!

- Ouvi, ouvi! - aclamaram-no os seus apoiantes, entusiasticamente.

- Onde estava Lothar quando o infiel estava às nossas portas? - prosseguiu Anastácio. - No momento em que não respondeu às nossas necessidades, perdeu o direito de se chamar a si mesmo Protector das Terras de São Pedro! Como soldado de Lothar, devo-lhe honra, como ele é um companheiro cristão, devo-lhe respeito, mas a minha fidelidade vai primeiro e sempre para a Mãe Roma!

Tinha falado bem. Os seus apoiantes voltaram a aclamá-lo e, desta vez, foram acompanhados por outros entre a multidão. A maré de opinião estava a virar-se para Anastácio.

- É mentira! - gritou Joana. Todos os rostos se voltaram para ela, surpreendidos.

- Quem falou? - procurou Pascal entre a multidão. - Que o acusador avance.

Joana hesitou. Tinha falado sem pensar, picada pela ira perante a hipocrisia de Anastácio. Mas, agora, não podia recuar. Subiu à plataforma.

- Mas, é João Anglicus! - disse alguém.

Um murmúrio de reconhecimento atravessou a multidão, todos tinham conhecimento ou tinham ouvido falar da forma como Joana se havia postado corajosamente no muro da cidade, durante o ataque dos sarracenos.

Anastácio tapou-lhe a passagem.

- Não tendes o direito de vos dirigirdes a esta assembleia! Não sois um cidadão romano.

- Deixai-o falar! - gritou uma voz. Ouviram-se mais gritos, até Anastácio acabou por ser forçado a deixá-la passar.

Pascal disse:

- Fazei as vossas acusações abertamente, João Anglicus.

Respirando fundo, Joana disse:

- O bispo Anastácio fez um acordo com o Imperador. Eu ouvi-o prometer que voltava a entregar Roma ao trono franco.

- Falso Padre! Mentiroso!

Os membros do partido imperial começaram a gritar para tentar abafar a sua voz. Levantando a voz mais alto do que eles, ela descreveu como tinha ouvido Lothar pedir a Anastácio que o ajudasse a levar o povo a jurar fidelidade e como Anastácio tinha concordado, a troco do apoio de Lothar.

- Essa acusação é muito grave - disse Pascal -, O que tendes a dizer, Anastácio, Diante de Deus.

- O padre está a mentir - disse Anastácio. - Certamente os meus concidadãos não vão acreditar na palavra de um estrangeiro contra a de um cidadão romano!

- Vós fostes o primeiro a apoiar o juramento! - gritou alguém.

- E então - argumentou outro. - Isso não prova nada!

Seguiu-se uma grande confusão. O debate aquecia cada vez mais, com o humor da multidão pendendo primeiro para um lado, depois, para o outro, à medida que se levantavam vozes para apoiar ou condenar Anastácio.

- Meu Senhor Primicerius!

Arighis, que até ali se tinha mantido calado, avançou.

- Vicedominus.

Pascal saudou Arighis respeitosamente, apesar de estar surpreendido. Servo dedicado e leal ao trono papal como ele era, Arighis nunca se tinha metido em políticas.

- Tendes alguma coisa a acrescentar a esta disputa?

- Tenho - Arighis virou-se para a multidão. - Cidadãos de Roma, não estamos livres de perigo. Quando vier a Primavera, os sarracenos podem tentar um novo assalto à cidade. Temos de nos manter unidos perante esta ameaça.

Não podem existir divisões entre nós. Seja quem for que escolhais para nosso Senhor Papa, tem de ser alguém que reúna o consenso de todos.

Ouviu-se um murmúrio de assentimento perpassar a multidão.

- Existe um homem assim? - perguntou Pascal.

- Sim - respondeu Arighis. - Um homem de visão e poder, assim como instruído e piedoso: Leão, cardeal-presbítero da Igreja de Sancti Quatro Coronati!

A sugestão foi acolhida com um silêncio profundo. Estavam tão embrenhados na discussão sobre os méritos da candidatura de Anastácio, que não tinham parado para considerar outra possibilidade.

- A linhagem de Leão é tão nobre como a de Anastácio - prosseguiu Arighis. - O seu pai é um respeitado membro do Senado. Ele desempenhou as suas obrigações de cardeal-presbítero com distinção.

Arighis guardou o seu ponto mais revelador para o fim:

- Algum de nós poderá esquecer como ele ficou corajosamente junto aos muros, durante o ataque dos sarracenos, animando-nos? Ele é um leão de Deus, outro São Lourenço, um homem que pode, que nos protegerá dos infiéis!

A exigência do momento tinha feito despontar em Arighis uma eloquência que não lhe era característica. Inflamados pela profundidade da sua convicção, muitos na multidão irromperam espontaneamente em aclamações.

Sentindo que era oportuno, os membros da facção papal começaram a gritar.

- Leão! Leão! - gritavam eles. - Queremos Leão para nosso senhor!

Os apoiantes de Anastácio tentaram contrariar a tendência, a favor da sua candidatura. Mas, o sentimento da multidão tinha mudado claramente. Quando se tornou evidente para a facção imperial que não iam vencer, transferiram o seu apoio para Leão. Leão foi proclamado Senhor e Papa a uma só voz.

Levado triunfalmente aos ombros pelos seus concidadãos, ele subiu à plataforma. Era baixo, mas bem constituído, ainda jovem. As suas feições, acentuadamente romanas, eram emolduradas por um cabelo castanho encaracolado e forte e a sua expressão insinuava inteligência e humor. Com sensibilidade para as ocasiões solenes, Pascal prostrou-se diante dele e beijou-lhe os pés. Eustácio e Desidério seguiram-no imediatamente.

Todos os olhos se voltaram para Anastácio, na expectativa.

Por uma fracção de segundos, ele hesitou. Depois, forçou os seus joelhos a dobrarem-se. Estendendo-se ao comprido no chão, beijou os pés do Papa eleito.

- Levantai-vos, nobre Anastácio - Leão estendeu-lhe a mão, ajudando-o a levantar-se. - A partir de hoje, sois Cardeal-Presbítero de São Marcelo.

Era um gesto generoso. Leão tinha presenteado Anastácio com uma das sinecuras mais prestigiadas de Roma.

A multidão manifestou a sua aprovação.

Anastácio forçou os seus lábios a sorrirem porque o gosto amargo da derrota lhe sabia a cinzas secas.

 

Magnus Dominus et laudibilis nimis. As notas do intróito atravessavam a janela do quartinho onde Joana guardava os seus medicamentos. Como São Pedro estava em ruínas, a cerimónia de consagração tinha sido na Basílica de Latrão.

Joana devia estar na igreja com o resto do clero, testemunhando a coroação jubilosa de um novo papa. Mas, tinha muito que fazer ali: tinha de pendurar as ervas recém-colhidas para secarem, tinha de encher os jarros e as garrafas com os medicamentos respectivos, pondo tudo em ordem. Quando acabou, encheu as prateleiras com as suas filas alinhadas de poções, ervas e medicamentos - testemunho tangível de tudo quanto ela tinha aprendido na arte da cura. Sentiu um aperto no coração e apercebeu-se de que iria sentir falta daquela oficinazinha.

- Pensei que te encontrava aqui.

A voz de Geraldo soou atrás dela. O coração de Joana deu um salto de alegria. Virou-se para ele e os seus olhos encontraram-se.

- Tu? - disse Geraldo suavemente.

- Eu.

Sorriram um ao outro com o calor da intimidade restabelecida.

- É estranho - disse ele. - Quase me tinha esquecido.

- Esquecido?

- Cada vez que te vejo... volto a descobrir-te.

Ela avançou para ele e abraçaram-se terna e suavemente.

- As coisas que eu disse da última vez que estivemos juntos... murmurou ela. - Eu não quis...

Geraldo colocou um dedo sobre os seus lábios.

- Deixa-me falar primeiro. O que aconteceu foi culpa minha. Eu estava errado em pedir-te para partires; compreendo-o agora. Não percebi o que tinhas alcançado aqui... aquilo em que te tinhas tornado. Tinhas razão, Joana - não há nada que eu te possa oferecer que se lhe compare.

Excepto amor, pensou Joana, mas, não o disse. Disse simplesmente:

- Não quero perder-te outra vez.

- Não me vais perder - disse Geraldo. - Não vou voltar para Benevento. Leão pediu-me para eu ficar em Roma - como superista.

Superista! Era uma honra extraordinária, a posição militar mais alta em Roma: comandante-chefe da milícia papal.

- Há trabalho para fazer aqui - trabalho importante. O tesouro que os sarracenos roubaram de São Pedro só vai encorajá-los a voltarem à carga.

- Pensas que eles vão regressar?

- Sim.

A qualquer outra mulher, Geraldo teria mentido para a tranquilizar. Mas, Joana não era como as outras mulheres.

- Leão vai precisar da tua ajuda, Joana - da tua e da minha.

- Da minha? Não vejo o que possa fazer.

Geraldo disse lentamente:

- Então, quer dizer que ainda ninguém te disse?

- Me disse o quê?

- Que vais ser nomenclator.

- O quê!

Ela não podia ter ouvido bem. O nomenclator era um dos sete optimates, ou oficiais superiores, de Roma - o ministro da caridade, protector de menores, viúvas e órfãos.

- Mas... eu sou estrangeira!

- Isso não interessa a Leão. Ele não é homem para se vergar a tradições sem sentido.

Tinha-lhe sido oferecida uma oportunidade única. Mas, aceitá-la significaria também o fim de qualquer esperança de uma vida com Geraldo. Dividida por desejos opostos, Joana não se atrevia a falar.

Interpretando mal o seu silêncio, Geraldo disse.

- Não te preocupes, Joana. Não voltarei a maçar-te com propostas de casamento. Agora, sei que nunca poderemos ficar juntos dessa maneira. Mas, será bom voltar a trabalhar contigo, como dantes: Sempre fomos uma boa equipa, não fomos?

A cabeça da Joana andava-lhe à roda; tinha saído tudo tão diferente daquilo que ela tinha imaginado. A sua voz, quando respondeu, era um sussurro:

- Sim. Sim, fomos.

Sanctus, Sanctus, Sanctus. As palavras do hino sagrado chegaram-lhes aos ouvidos através das janelas abertas. A cerimónia de consagração tinha terminado; o Cânone da Missa estava quase a começar.

- Anda - Geraldo pegou-lhe na mão. - Vamos saudar o nosso senhor Papa juntos.

 

O novo Pontífice assumiu as suas tarefas com um vigor juvenil que surpreendeu toda a gente. Parecia que, de um dia para o outro, o Patriarchium, de um palácio monástico poeirento, se tinha transformado numa colmeia cheia de actividade. Notários e secretários corriam pelos salões com os braços cheios de rolos de pergaminho com planos, estatutos, cartulários e benefícios.

A primeira tarefa era fortalecer as defesas da cidade. Por ordem de Leão, Geraldo fez um circuito pormenorizado pelos muros, anotando cuidadosamente todos os pontos de fraqueza.

Seguindo as suas sugestões, foram traçados planos e iniciaram-se as obras de reparação dos muros e das portas da cidade. Três dos portões e quinze das torres foram completamente reconstruídas. Foram construídas duas novas torres na outra margem do Tibre, onde o rio entrava na cidade, na porta de Portus. Foi feita uma ligação estratégica entre as várias torres, através de correntes de ferro reforçado, de forma a que, quando as correntes fossem esticadas por cima do rio, formassem uma barreira que não permitisse a passagem a navios. Os sarracenos nunca conseguiriam entrar na cidade, pelo menos, por ali.

Ainda se punha a difícil questão da protecção de São Pedro.

Leão convocou uma reunião do alto clero e dos optimates, incluindo Geraldo e Joana para pensarem no problema.

Foram avançadas algumas sugestões: colocar uma guarnição de milícias permanente em torno da basílica, fechar a praça, fortificar as portas e as janelas com grades em ferro.

Leão ouvia sem entusiasmo.

- Essas medidas só servirão para atrasar uma entrada à força, mas não para a impedir.

- Com todo o respeito Santidade, - disse Anastácio -, o atraso é a nossa melhor defesa. Se não pudermos reter os bárbaros até as tropas do imperador chegarem...

- Se chegarem... - interrompeu Geraldo, num tom seco.

- Tendes de confiar em Deus, superista - retorquiu Anastácio.

- Em Lothar, quereis vós dizer - disse Geraldo. - Não, não confio.

- Perdoai-me, superista - disse Anastácio com uma delicadeza exagerada -, por apontar para aquilo que é óbvio, mas, de momento não podemos fazer mais nada, uma vez que a basílica fica fora dos muros da cidade.

Joana disse:

- Podemos trazê-la para dentro dos muros.

As sobrancelhas escuras de Anastácio arquearam-se sardonicamente.

- O que propondes, João... que se transfira o edifício todo, pedra a pedra?

- Não - respondeu a Joana. - Proponho que se aumentem os muros da cidade, de forma a cercarem São Pedro.

- Um novo muro! - o interesse de Leão ficou aguçado.

- Totalmente impraticável! - troçou Anastácio. - Desde os dias dos antigos que não se realiza um projecto dessa envergadura.

- Então - disse Leão - chegou a hora de outro.

- Não temos fundos! - protestou Grácio, o arcarius, ou tesoureiro papal. - Chegaremos à bancarrota sem que a obra tenha chegado, sequer, a meio!

Leão considerou a questão.

- Lançaremos novos impostos. Afinal, é justo que o novo muro, que servirá para nos proteger a todos, seja construído com a ajuda de todos.

O pensamento de Geraldo já seguia à frente:

- Podíamos começar a construir aqui - e apontou para um mapa da cidade - no Castel SantAngelo. Fazer passar o muro ao longo da Colina do Vaticano - traçou uma linha imaginária com o dedo - fazê-lo circundar São Pedro e fazê-lo descer numa linha recta até ao Tibre.

A linha em forma de ferradura que Geraldo tinha desenhado não só incluía São Pedro, como também incluía os mosteiros e diaconae que o rodeavam, assim como todo o Borgo, no qual se concentravam as colónias dos saxónios, dos frígios, dos francos e dos lombardos.

- É como se fosse uma cidade! - exclamou Leão.

- Civitas Leonina - disse Joana - a Cidade Leonina.

Anastácio e os outros olhavam, perplexos, enquanto Leão, Geraldo e Joana se agitavam numa feliz conspiração.

Depois de semanas de consultas com os mestres-construtores da cidade, o plano do muro ficou terminado. Era um projecto ambicioso. Construído em camadas de tufo calcário e de ladrilhos, o muro teria cerca de quarenta pés de altura e doze de espessura e seria defendido por nada menos do que quarenta e quatro torres - uma barreira que resistiria mesmo ao cerco mais determinado.

Em resposta ao apelo de Leão, afluíram à cidade trabalhadores provenientes de todas as povoações e colónias do território papal. Amontoavam-se nos alojamentos quentes e cheios do Borgo, levando os recursos da cidade a um ponto de ruptura. Apesar de serem leais e ambiciosos, eram trabalhadores sem conhecimentos, indisciplinados e os seus esforços tornaram-se difíceis de coordenar. Apareciam todos os dias sem saberem bem o que deviam fazer porque não havia construtores habilitados em quantidade suficiente para supervisionarem os seus esforços. Nos idos de Maio, uma secção inteira do muro ruiu inesperadamente, matando vários trabalhadores.

O clero, comandado pelos cardeais-presbíteros da cidade, pediu a Leão que abandonasse o projecto. A queda do muro era um sinal claro do desagrado de Deus, disseram eles. A ideia era uma loucura; uma estrutura tão alta nunca se manteria de pé e, mesmo que se mantivesse, nunca estaria acabada a tempo de os defender contra os sarracenos. Era muito melhor orientar as energias do povo para a oração solene e para o jejum para afastar a ira de Deus.

- Rezaremos como se tudo dependesse de Deus e trabalharemos como se tudo dependesse de nós - respondeu Leão com firmeza.

Ele dava todos os dias uma volta para examinar o progresso da construção e para animar os trabalhadores. Não havia nada que o pudesse deter na sua determinação para ver o muro terminado.

Joana admirava a forma teimosa como Leão desafiava os cépticos. Completamente diferente de Sérgio em carácter e temperamento, Leão era um verdadeiro guia espiritual, um homem enérgico e determinado. Mas, a admiração que Joana sentia por ele não era partilhada por todos. Os sentimentos na cidade dividiam-se entre aqueles que aprovavam a construção do muro e aqueles que se lhe opunham. Depressa se tornou claro que a possibilidade de Leão continuar a governar dependia muito do sucesso na construção do muro.

 

Anastácio tinha a noção exacta da situação e da oportunidade que ela representava. A obsessão de Leão com o muro tornava-o perigosamente vulnerável. Se o projecto se revelasse um fracasso, a desaprovação popular daí resultante podia dar a Anastácio a oportunidade que ele esperava. Os seus apoiantes do partido imperial podiam marchar para o Laterano, destituir o Papa desacreditado e instalar o seu candidato no seu lugar.

Uma vez papa, Anastácio protegeria a santa Basílica de São Pedro, renovando e fortalecendo os laços de Roma com o império franco. Os exércitos de Lothar seriam uma defesa muito melhor contra os infiéis do que o muro impraticável de Leão.

Mas, Anastácio lembrou a si próprio que tinha de agir cautelosamente. Era melhor não se opor abertamente a Leão, pelo menos, enquanto as pessoas ainda esperavam para ver o resultado final do empreendimento arrojado do Pontífice.

O mais sensato era apoiar Leão publicamente, enquanto fazia tudo o que podia para sabotar o projecto em construção. Para tanto, Anastácio já tinha conseguido maquinar a derrocada de uma parte do muro. Não tinha sido difícil, alguns dos seus homens de confiança tinham aparecido de noite e tinham minado a fundação com algumas escavadelas subreptícias. Mas, a queda do muro não tinha representado senão um pequeno atraso. Era evidente que era preciso fazer mais qualquer coisa - um desastre de proporções suficientes para pôr termo àquele projecto ridículo de uma vez por todas.

Anastácio dava voltas à cabeça, procurando uma forma de atacar. Mas, continuava a não ter ideia nenhuma. Sentia-se cada vez mais frustrado. Se ao menos ele pudesse chegar-lhe com uma mão gigantesca, que esmagasse a construção toda e a levasse para o fogo do Inferno de um só golpe irrefutável.

O fogo do Inferno...

Anastácio sentou-se muito direito, excitado com a aparição súbita de uma ideia.

 

Joana acordou lentamente. Ficou confusa durante alguns momentos, olhando para a forma desconhecida das vigas de madeira no tecto. Depois, lembrou-se: não era o dormitório, mas sim os seus aposentos privados - um dos privilégios da sua posição como nomenclator. Geraldo também tinha sido agraciado com aposentos privados no Patriarchium, mas não dormia neles havia várias semanas, preferindo ficar na Schola Francorum no Borgo para estar mais perto das obras de construção do muro.

Joana tinha-o visto de longe, cavalgando em torno do local de construção, animando os trabalhadores, ou debruçado sobre uma mesa, discutindo os planos com os mestres-construtores.

Não tinham oportunidade para trocar senão um olhar de relance.

Mas, o seu coração batia, excitado, cada vez que o via.

Realmente, pensou ela, este meu corpo de mulher é um traidor.

Com um esforço deliberado, fixou a sua atenção no trabalho do dia e nos deveres que a esperavam.

A luz da madrugada já entrava pela janela. Com surpresa, apercebeu-se de que devia ter adormecido. Se não se despachasse, chegava tarde ao seu encontro com o chefe do Hospício de São Miguel.

Ao saltar da cama, apercebeu-se de que a luz que lhe entrava no quarto não era do sol nascente. Não podia ser a luz do Sol porque a janela estava virada para ocidente.

Correu para a janela. Por trás da silhueta negra da Colina do Palatino, no outro extremo da cidade, erguiam-se para o céu sem luar cortinas de luz vermelha e laranja.

Chamas. E vinham do Borgo.

Sem parar para calçar os sapatos, Joana correu descalça pelos salões:

- Fogo! - gritou ela. - Fogo! Fogo!

As portas abriram-se e as pessoas começaram a aparecer, agitadas, no corredor. Arighis dirigiu-se a ela, esfregando os olhos.

- O que se passa - perguntou ele.

- O Borgo está a arder!

- Deo, juva nos! - Arighis benzeu-se. - Tenho de acordar Sua Santidade.

Correu na direcção do quarto papal.

Joana correu pelas escadas abaixo e saiu. Era mais difícil ver dali porque os numerosos oratórios, mosteiros e casas do clero que rodeavam o Patriarchium obscureciam a vista, mas ela diria que o incêndio se tinha ateado porque o céu nocturno estava completamente iluminado com um brilho sinistro.

Havia outros que tinham seguido Joana até ao pórtico. Caíram de joelhos, chorando e invocando Deus e São Pedro. Depois, apareceu Leão, com a cabeça descoberta e com uma simples túnica.

- Procurai a guarda - ordenou ele ao camareiro. - Acordai os palefreneiros. Eles que preparem todos os cavalos e todos os carros que estiverem disponíveis.

O rapaz correu a levar as ordens. Os cavalos estavam agitados, irrequietos e irritáveis por terem sido tirados do conforto dos seus estábulos a meio da noite. Leão montou o baio que se encontrava à frente. Arighis ficou horrorizado:

- Não pretendeis ir vós mesmos?

- Pretendo, sim - respondeu Leão, tomando as rédeas.

- Santidade, tenho de me opor! É muito perigoso! Será certamente mais adequado que permaneçais aqui e que celebreis uma missa a pedir clemência!

- Posso rezar tanto fora dos muros de uma igreja como dentro - respondeu Leão. - Afastai-vos, Arighis.

Arighis obedeceu com relutância. Leão esporeou a montada e cavalgou pela rua abaixo. Joana e dezenas de guardas montaram e partiram logo a seguir a ele. Arighis seguiu atrás deles.

Não era um grande cavaleiro, mas o seu lugar era ao lado do Papa. Se Leão se tinha metido naquela loucura, era dever de Arighis acompanhá-lo. Montou desajeitadamente e partiu atrás deles.

Puseram-se a galope, com as tochas a reflectirem-se nas paredes das casas. As suas sombras perseguiam-se umas às outras pelas ruas escuras, como fantasmas enlouquecidos.

Quando chegaram perto do Borgo, o cheiro intenso a fumo entrou-lhes pelo nariz e eles ouviram um grande ruído, como se fosse o rugido de milhares de animais selvagens. Depois de passarem uma curva, o fogo estava mesmo à frente deles. Era uma cena infernal. O quarteirão estava completamente a arder, coberto com um manto de chamas. Através do fumo avermelhado, as construções em madeira retorciam-se, presas das chamas que as consumiam. Recortadas contra o fogo, as figuras humanas corriam em todas as direcções, como almas condenadas. Os cavalos relincharam e recuaram, baixando as cabeças. Um padre veio a correr na direcção deles, pelo meio do fumo denso, com o rosto manchado de suor e de fuligem.

- Santidade! Graças a Deus que viestes!

Pelo sotaque e pela maneira como estava vestido, Joana percebeu que se tratava de um franco.

- É tão mau como parece? - perguntou Leão lapidarmente.

- É ainda pior do que parece - respondeu o padre. - O Hadrianium está destruído, assim como o Hospício de São Peregrino. As colónias estrangeiras também desapareceram - a Schola Saxonum ardeu completamente, assim como a sua igreja.

Os edifícios da Schola Francorum estão em chamas. Eu quase não escapava com vida.

- Haveis visto Geraldo? - perguntou Joana, aflita.

- O superista - O padre abanou a cabeça negativamente. - Ele dormia num dos andares superiores, com os pedreiros. Duvido que algum deles tenha conseguido escapar, o fumo e o fogo espalharam-se demasiado depressa.

- E os sobreviventes - perguntou Leão. - Onde estão?

- A maior parte deles refugiaram-se em São Pedro. Mas, há fogo por toda a parte. Se ninguém o apagar, a própria basílica pode estar em risco!

Leão estendeu-lhe a mão:

- Vinde connosco, é para lá que vamos agora.

O padre saltou para cima da montada, sentando-se atrás do Papa e dirigiram-se todos para São Pedro.

Joana não os acompanhou. Tinha outra coisa em mente: encontrar Geraldo.

A linha de fogo erguia-se sólida e intransponível à sua frente. Não havia forma de passar através dela. Rodeou-a, até chegar a um cruzamento de ruas escuras e em ruínas por onde o fogo já tinha passado. Desceu uma delas que seguia na direcção da Schola Francorum.

Continuava a haver focos de incêndio de cada lado da rua e o fumo era mais espesso. O medo começou a apertar-lhe a garganta, mas forçou-se a continuar. O seu cavalo começou a relinchar e a lutar, sem querer avançar, ela gritou e bateu-lhe e ele avançou nervosamente. Ela passou por uma paisagem de horror - troncos de árvore queimados, esqueletos de casas, corpos retorcidos e carbonizados daqueles que tinham tentado fugir. O coração da Joana batia-lhe dentro do peito, não era possível que tivesse saído alguma coisa com vida daquele holocausto.

De repente, inesperadamente, as paredes de um edifício ergueram-se diante dela. A Schola francorum! A igreja e as construções vizinhas estavam reduzidas a cinzas, mas, miraculosamente, a residência principal ainda estava de pé.

O coração bateu-lhe com uma esperança renovada: talvez Geraldo tivesse escapado! Ou talvez ainda estivesse lá dentro, ferido, precisando de ajuda.

O cavalo estacou, recusando-se a avançar. Ela voltou a bater-lhe,: desta vez, ele empinou-se furiosamente, atirando-a ao chão. Depois, largou a galope.

Ela ficou no chão, atordoada. Ao seu lado, estava um corpo humano, brilhante e escuro como metal fundido, com as costas arqueadas numa agonia de morte.

Com um sobressalto, ela levantou-se e correu para a schola.

Tinha de encontrar Geraldo, nada mais importava.

Havia cinzas por toda a parte, no chão, nas suas roupas, no seu cabelo, suspensas à sua volta numa nuvem pesada e sufocante. As brasas queimaram-lhe os pés descalços e ela arrependeu-se de não ter calçado uns sapatos.

Viu ao longe a porta da schola. Mais alguns metros, e estaria junto dela.

- Geraldo! - gritou ela. - Onde estás?

Selvagem e incontrolável como o vento que o fustigava, o fogo mudou de direcção, depositando uma quantidade de brasas a arder sobre o telhado, já seco como uma mecha apagada, depois da primeira passagem do fogo. As brasas quase se apagaram e, depois, voltaram a atear-se, poucos momentos depois, todo o edifício começou a arder.

Joana sentiu que o cabelo se lhe levantava todo e caía devido à lufada violenta de ar abrasador. O fogo avançou para ela com as suas línguas escaldantes.

- Geraldo! - gritou ela, novamente, recuando devido ao avanço das chamas.

 

Geraldo tinha ficado acordado até tarde, examinando os planos para o muro. Quando apagou, finalmente, a vela, estava tão exausto que caiu logo num sono profundo e sem sonhos.

Acordou com o cheiro do fumo. Deve ter-se incendiado uma lâmpada, pensou ele e levantou-se para a apagar. A primeira lufada de ar que ele respirou ressequiu-lhe os pulmões, provocando-lhe uma dor que o fez ajoelhar-se, com falta de ar.

Fogo. Mas, de onde vem? O fumo espesso não lhe permitia ver mais do que alguns passos em todas as direcções.

Ouviu gritos aterrados de crianças perto dele. Geraldo arrastou-se na direcção deles. Da escuridão, emergiram rostos assustados - duas crianças, um menino e uma menina com pouco mais de quatro ou cinco anos. Correram na sua direcção e agarraram-se a ele, chorando copiosamente.

- Está tudo bem. - Ele fingiu uma segurança que não sentia. Já vamos sair daqui. Alguma vez brincaram aos cavaleiros?

As crianças acenaram que sim, com os olhos muito abertos.

- Muito bem.

Ele pôs a menina às cavalitas, depois, o menino. - Agarrem-se bem. Vamos sair.

Moveu-se com dificuldade por causa do peso das crianças às costas. O fumo tinha-se tornado ainda mais espesso, as crianças tossiam, com falta de ar. Geraldo combateu o medo que começava a crescer dentro dele. Muitas vítimas de incêndios não morriam queimadas, mas sim asfixiadas, por causa do fumo.

De repente, deu-se conta de que tinha perdido os seus fardos. Os seus olhos procuraram na escuridão, mas não era capaz de encontrar a porta porque o fumo era cada vez mais espesso.

- Geraldo! - gritou uma voz através do fumo.

Dobrando-se para respirar melhor, ele encaminhou-se às cegas na direcção do som.

 

Diante dos muros de São Pedro, travava-se uma batalha árdua contra o fogo que avançava. Tinha-se reunido uma multidão para defender a basílica ameaçada - monges vestidos de negro do mosteiro vizinho de São João e os seus correspondentes encapuçados do mosteiro grego de São Cirilo, diáconos, padres e acólitos, prostitutas e pedintes, homens, mulheres e crianças de todas as scholae estrangeiras do Borgo - saxónios, lombardos, ingleses, frígios e francos. Sem qualquer coordenação central, os esforços daqueles grupos dispersos eram bastante ineficazes. Faziam uma tentativa caótica para encontrar recipientes e jarros e para trazer água dos poços e cisternas das imediações. Um dos poços estava apinhado de gente, enquanto outro estava completamente abandonado.

Gritando numa confusão de línguas diferentes, as pessoas empurravam-se e acotovelavam-se para encherem os seus recipientes, os jarros batiam uns nos outros e partiam-se, derramando a água preciosa para o chão. No meio da confusão, um dos baldes para tirar água do poço partiu-se, a única forma de chegar à água era descer ao poço e voltar a subir - um processo que era tão difícil que depressa foi abandonado.

- Para o rio! Para o rio! - gritavam alguns, encaminhando-se para o Tibre.

No meio do medo e da confusão, alguns dirigiram-se para o rio de mãos a abanar, apercebendo-se disso apenas quando chegaram à margem e viram que não tinham nada com que transportar água. Outros, traziam jarros tão grandes que, quando cheios com água, eram demasiado pesados para as suas forças, a meio caminho, deixavam-nos cair, chorando de raiva e de frustração.

No meio deste caos, Leão estava diante das portas de São Pedro, sólido e imóvel como as pedras da própria basílica. As pessoas ficavam mais consoladas com a sua presença. Enquanto o seu Senhor Papa estivesse, não estava tudo perdido, ainda havia esperança. Por isso, continuavam a combater as chamas que avançavam inexoravelmente como uma maré, fazendo recuar a linha daqueles que o combatiam, suados e esforçados.

À direita da basílica, a biblioteca do Mosteiro de São Martinho estava em chamas, saíam pedaços de pergaminho a arder pelas janelas abertas e, levados pelo vento, aterravam no telhado de São Pedro.

Arighis tocou na manga de Leão.

- Tendes de ir embora agora, Santidade, enquanto é tempo.

Ignorando-o, Leão continuava a rezar.

Vou chamar a guarda, pensou Arighis, desesperado. Farei com que eles o levem daqui à força. Como vicedominus tinha autoridade para o fazer. Mas hesitava, torturado. Será que se poderia permitir desafiar o Apostólico, mesmo que fosse para o salvar?

Ele apercebeu-se do perigo que se aproximava antes de qualquer outro. Um grande pedaço de seda da cortina do altar varreu as paredes a arder do mosteiro, formando uma corda de fogo. O vento apanhou-a, transformando-a numa seta de fogo apontada directamente a Leão.

Arighis atirou-se sobre Leão, afastando-o para o lado. Pouco depois, o revestimento do altar atingiu Arighis na cara, queimando-lhe os olhos, enrolando-se à volta da sua cabeça e do seu corpo como um lençol de chamas. Subitamente, as suas vestes e o seu cabelo começaram a arder.

Cego e surdo por causa das chamas, correu pelos degraus da basílica até as suas pernas cederem. Caiu. Nos últimos terríveis momentos, enquanto o seu corpo ardia, mas o seu cérebro estava perfeitamente consciente, Arighis compreendeu subitamente: era aquele o seu destino, era este o momento sacrificial para o qual toda a sua vida tinha estado orientada.

- Cristo Jesus! - gritou ele quando as dores indizíveis lhe trespassaram o coração.

A nuvem de fumo levantou-se um pouco e Geraldo viu a porta aberta à sua frente. Na ombreira da porta, a imagem da Joana tremeluzia no ar quente, com o seu cabelo dourado como uma aura brilhante à luz do fogo. Com um esforço final, Geraldo levantou-se, pegou nas crianças e irrompeu pela porta.

Joana viu-o emergir do fumo e correu para ele. Ajudou-o a pôr no chão as crianças que choravam e pegou-lhes ao colo, enquanto os seus olhos ficavam presos aos de Geraldo, que estava parado, incapaz de falar ou de se mexer.

- Graças a Deus - limitou-se ela a dizer.

Mas, a mensagem dos seus olhos dizia muito mais.

Deixaram as crianças entregues a um grupo de freiras e correram para a basílica, onde Geraldo viu imediatamente que aqueles que combatiam o fogo estavam mal colocados, estavam a combater o fogo perto de mais.

Geraldo assumiu o comando. Ordenou aos homens que recuassem para uma distância mais segura e criassem uma barreira ao fogo, arrancando arbustos, galhos de árvores e tudo o que ardesse e, depois, espalhassem por cima erva e molhassem o chão.

Ao ver as fagulhas a caírem sobre a basílica, Joana tirou um jarro de água das mãos de um monge que ia a passar e subiu ao telhado. Houve outras pessoas que a seguiram: duas, depois, quatro, depois, dez. Formaram uma cadeia humana, passando baldes de água de mão em mão e devolvendo os vazios para voltarem a ser enchidos. Passar, encher, passar, encher, passar, encher, passar, encher - trabalhavam lado a lado, com os braços a arder com o esforço, as roupas e as faces sujas de fuligem, as bocas abertas para conseguirem respirar no ar cheio de fumo.

No chão por baixo deles, o fogo aproximava-se, as chamas lambiam a erva, que se tornava imediatamente negra. Geraldo e os homens lutavam desesperadamente para aumentar a área de barreira ao fogo.

Nos degraus da basílica, Leão fez o sinal da cruz, com o rosto voltado para o céu, implorando:

- Oh Senhor Deus - rezou ele. - Ouvi-nos agora, que Vos imploramos!

O fogo chegou à barreira. As chamas agigantaram-se, procurando transpor a barreira, avançando para o solo nu.

Geraldo e os seus homens atacaram com mais baldes de água. As chamas hesitaram, recuaram, silvando furiosamente, depois começaram a consumir-se a si próprias.

A basílica estava salva.

Joana sentiu a humidade das lágrimas no seu rosto.

Os primeiros dias a seguir ao fogo passaram-se a enterrar os mortos - aqueles cujos corpos tinham sido encontrados. O calor intenso do fogo tinha reduzido muitas das suas vítimas a ossos calcinados e a cinzas.

Arighis, tal como era adequado à sua alta posição, foi sepultado com uma cerimónia solene. Depois de uma missa fúnebre em Latrão, o seu corpo foi enterrado numa cripta numa pequena capela junto aos túmulos dos papas Gregório e Sérgio.

Joana chorou a sua partida. Ela e Arighis nem sempre se tinham dado bem, especialmente no início, mas tinham acabado por se respeitar mutuamente. Ela ia ter saudades da sua eficiência discreta, do seu conhecimento de todos os pormenores das complicadas manobras internas do Patriarchium, mesmo do orgulho com que ele cumpria os deveres do seu ofício.

Era justo que ele descansasse para toda a eternidade junto dos Apostólicos, que ele tinha servido com tanta dedicação.

Depois de terem sido observados os dias de luto requeridos, começou o balanço dos prejuízos causados pelo fogo. O Muro Leonino, onde o fogo parecia ter começado, apresentava danos de pouca monta, mas três quartos do Borgo tinham sido completamente destruídos. As colónias estrangeiras e as suas igrejas tinham sido reduzidas a pouco mais do que cascalho enegrecido.

Depressa se considerou que tinha sido um milagre que a Basílica de São Pedro tivesse resistido àquele holocausto.

Dizia-se que o papa Leão tinha feito parar o fogo, fazendo o sinal da cruz diante das chamas que avançavam. Esta versão dos acontecimentos foi assumida avidamente pelo povo romano, que necessitava muito de sentir que Deus não se tinha voltado contra ele.

Encontraram uma afirmação da sua fé no milagre de Leão, atestado fervorosamente por todos aqueles que lá tinham estado. De facto, o número de testemunhas crescia de dia para dia, acabando por parecer que toda a Roma tinha estado em São Pedro naquela manhã fatal.

As críticas a Leão foram esquecidas. Ele era um herói, um profeta, um santo, a encarnação do espírito de São Pedro. O povo exaltava-o porque um papa que era capaz de operar tal milagre certamente era capaz de os proteger dos infiéis sarracenos.

Mas, o regozijo não era universal. Quando a notícia do milagre de Leão chegou à Igreja de São Marcelo, as portas fecharam-se imediatamente. Os baptismos foram todos adiados e os compromissos cancelados abruptamente, aqueles que perguntavam porquê recebiam como resposta que ninguém podia ser admitido à presença do cardeal-presbítero Anastácio porque ele sofria de uma indisposição súbita.

Joana trabalhava de noite e de dia, distribuindo roupas, medicamentos e outros produtos de primeira necessidade aos hospícios e casas da caridade da cidade. Os hospícios estavam cheios de feridos do incêndio e não havia médicos que chegassem para tratar deles, por isso, ela teve de dar uma ajuda onde pôde. Alguns corpos queimados e calcinados não eram passíveis de cura, não havia nada a fazer, a não ser administrar doses de papoila, mandrágora e meimendro para aliviar as suas agonias mortais. Outros tinham queimaduras graves que ameaçavam infectar, a esses, ela aplicava-lhes emplastros de mel e aloés, remédios que se sabia serem especialmente adequados para queimaduras. Mas, havia ainda outros cujos corpos não tinham sido tocados pelo fogo, mas que sofriam de problemas respiratórios, por causa de terem respirado muito fumo. Estes agonizavam, lutando pela vida a cada respiração.

Abatida pelo efeito cumulativo de tanto horror e morte, Joana passava novamente por uma crise de fé. Como era possível que um Deus bom e benevolente deixasse que acontecesse uma coisa daquelas? Como podia Ele afligir de forma tão terrível até crianças e bebés, que não tinham, certamente, nem culpa nem pecados?

O seu coração estava perturbado e a sombra das suas antigas dúvidas voltou a abater-se sobre ela.

Uma manhã, estava reunida com Leão para tratar da abertura dos armazéns papais às vítimas do fogo, quando Waldipert, o novo vicedominus, entrou inesperadamente. Era um homem alto e espadaúdo cuja pele clara e cabelo louro revelava a sua origem lombarda. Joana ainda não se tinha habituado a ver este estranho vestido com as vestes do ofício de Arighis.

- Santidade - disse Waldipert, fazendo uma vénia - estão aqui dois cidadãos que desejam uma audiência imediatamente.

- Eles que esperem - respondeu Leão. - Ouvirei as suas petições mais tarde.

- Perdão, Santidade - insistiu Waldipert. - Penso que deveríeis ouvir o que eles têm para dizer.

Leão levantou a sobrancelha. Se fosse Arighis, Leão teria aceitado a sua palavra sem qualquer dúvida porque a opinião de Arighis era acertada e digna de confiança, mas Waldipert era novo e inexperiente, desconhecedor das limitações da sua posição, corria o risco de presumir da sua própria importância.

Leão hesitou, depois decidiu dar a Waldipert o benefício da dúvida.

- Muito bem. Admiti-os.

Waldipert fez uma vénia e saiu, regressando pouco depois com um padre e um rapaz. O padre era moreno e magro. Joana reconheceu nele um homem piedoso, daqueles que viviam de forma honrada e humilde nas igrejas menores de Roma. O rapaz, pela maneira como estava vestido, parecia possuir uma ordem menor - um leitorado ou talvez acolitado. Era um jovem esbelto, com quinze ou dezasseis anos, entroncado e agradável, com grandes olhos abertos, que, normalmente, deviam radiar uma natureza acolhedora, apesar de, naquele momento, estarem ensombrados pelo desgosto.

Os recém-chegados prostraram-se diante de Leão.

- Levantai-vos - disse Leão. - Dizei-nos que assunto vos traz aqui.

O padre foi o primeiro a falar.

- Eu sou Paulo, Santidade, pela graça de Deus, e vosso padre, da casa de São Lourenço em Damasco. Este rapaz, Domingos, veio hoje à capela pedindo uma confissão auricular, serviço que lhe prestei com prazer. O que ele me contou era tão chocante que eu o trouxe aqui para que ele vos conte.

Leão franziu o sobrolho.

- O segredo dessas confissões não pode ser violado.

- Santidade, o rapaz veio aqui de livre vontade porque está numa grande tribulação de mente e espírito.

Leão voltou-se para Domingos.

- Isto é verdade? Fala honestamente porque não há vergonha nenhuma em recusar-se a repetir os segredos da confissão.

- Eu quero contar-vos, Santo Padre - respondeu o rapaz, a tremer. - Eu tenho de vos contar para bem da minha alma.

- Então, conta, meu filho.

Os olhos de Domingos encheram-se de lágrimas.

- Eu não sabia, Santo Padre! - ele começou a chorar. - Eu juro pelas relíquias de todos os santos que não sabia o que ia acontecer, senão, não o teria feito!

- Feito o quê, meu filho? - perguntou Leão delicadamente.

- Posto fogo.

O rapaz começou a chorar copiosamente.

- Tu puseste o fogo? - perguntou Leão a meia-voz.

- Sim, que Deus me perdoe!

O rapaz engoliu as lágrimas, lutando para se dominar.

- Ele disse-me que a construção do muro era um mal terrível porque o dinheiro e o tempo que se gastavam nela seriam melhor empregues na reparação de igrejas e no alívio da miséria dos pobres.

- Ele? - perguntou Leão. - Alguém te mandou pôr o fogo?

O rapaz acenou que sim.

- Quem?

- O meu senhor cardeal Anastácio. Santo Padre, ele deve ter a língua do Demónio porque me falou de uma maneira tão convincente que o que ele disse parecia certo e bom.

Fez-se novamente um longo silêncio. Depois, Leão disse, num tom grave:

- Tem cuidado com o que dizes, meu filho. Tens a certeza de que foi Anastácio que te mandou fazer isso?

- Sim, Santo Padre. Era para ser apenas uma fogueira - disse Domingos com a voz estrangulada - o suficiente para queimar os andaimes do muro. Deus sabe que era bastante fácil: eu ensopei alguns trapos em azeite de lamparina e atirei-os para um canto dos andaimes, depois, deitei-lhes fogo. Ao princípio, o fogo confinou-se aos andaimes, como o meu senhor cardeal disse que iria acontecer. Mas, depois, veio vento e levou-o e... e... - ele caiu de joelhos. - Oh, Deus! - gritou ele, desesperado. - Sangue inocente! Não voltaria a fazê-lo, nem que mil cardeais me mandassem!

O rapaz atirou-se aos pés de Leão.

- Ajudai-me, Santo Padre. Ajudai-me! - Levantou o rosto atormentado. - Não posso viver com o que fiz. Pronunciai a vossa penitência para mim, eu suportarei qualquer morte, por muito terrível que seja, para salvar a minha alma!

Joana ficou imóvel, trespassada pelo horror e pela piedade.

À lista dos crimes de Anastácio tinha de ser acrescentada, certamente, a perversão maldosa da natureza deste rapaz. A sua alma simples e honesta não estava destinada a cometer um crime daqueles, nem a suportar na sua consciência um fardo tão pesado.

Leão poisou uma mão sobre a cabeça do rapaz.

- Já houve muitas mortes, meu filho. Que benefício representaria para o mundo acrescentar a tua às outras? Não, Domingos, a penitência que eu te imponho não é a morte, mas a vida - uma vida passada em expiação e penitência. A partir deste dia, estás banido de Roma. Tomarás o caminho dos peregrinos para Jerusalém, onde poderás pedir o perdão divino diante do Santo Sepulcro.

O rapaz levantou uns olhos espantados.

- É tudo?

- O caminho da expiação nunca é fácil, meu filho. Verás que a viagem é bastante dura.

Joana, lembrando-se da sua própria peregrinação do país dos francos até Roma, pensou que aquilo era muito mais verdadeiro do que o jovem Domingos podia pensar. Ele iria ter de viver os seus dias longe da sua terra natal, separado da família e dos amigos, de tudo quanto ele tinha conhecido. No caminho para Jerusalém, ele teria de enfrentar inúmeros perigos - desfiladeiros e estreitos traiçoeiros, estradas infestadas com ladrões e salteadores, fome e sede e mil outros perigos.

- Consagra a tua vida ao serviço desinteressado ao próximo - prosseguiu Leão. - Comporta-te sempre de forma a que o bem que faças exceda este grande mal.

Domingos atirou-se ao chão e beijou a orla da veste de Leão.

Depois, levantou-se, pálido e resoluto, com o rosto transfigurado, como se tivesse sido lavado por chuva do céu.

- Curvo-me diante de vós, Santo Padre. Farei exactamente o que mandais. Juro-o pelo sagrado Corpo e Sangue de Cristo nosso Salvador.

Leão abençoou-o:

- Vai em paz, meu filho.

Domingos e o padre saíram da sala.

Leão disse num tom grave:

- O cardeal Anastácio é de uma família poderosa, temos de fazer tudo em estrita concordância com a lei. Redigirei um decreto especificando as acusações contra ele. João, vinde comigo, posso necessitar da vossa ajuda. E, Waldipert...

- Sim, Santidade?

Leão acenou-lhe em tom de aprovação.

- Muito bem.

- Fizestes bem em me trazer estas notícias, vicedominus - disse Arsénio.

Estava com Waldipert numa sala privada do seu palácio. Ele tinha acabado de terminar o relato dos pormenores do encontro entre o papa Leão e Domingos.

- Permiti que exprima a minha gratidão pela vossa ajuda.

Arsénio abriu um pequeno cofre em bronze, que se encontrava sobre a mesa, tirou de dentro dele vinte soldos em ouro e deu-os a Waldipert, que guardou rapidamente as moedas.

- Congratulo-me por ter sido de serventia, Senhor Bispo.

Fazendo uma vénia curta, Waldipert virou as costas e saiu.

Arsénio não se ofendeu com a partida apressada de Waldipert, era imperativo que o vicedominus regressasse ao Patriarchium antes que alguém. desse pela sua falta.

Arsénio congratulou-se pelo facto de se ter apercebido, muitos anos antes, quando Waldipert ainda não passava de um camareiro da casa do Papa, de que ele era um jovem com futuro.

Tinha sido dispendioso comprar a lealdade do rapaz ao longo de todos aqueles anos. Mas, agora, que Waldipert era vicedominus, o investimento tinha sido amplamente recompensado.

Arsénio chamou um criado:

- Vai à Igreja de São Marcelo e diz ao meu filho que venha ter comigo imediatamente.

Ao ouvir as notícias, Anastácio deixou-se cair pesadamente sobre uma cadeira em frente ao seu pai. Amaldiçoou-se a si próprio intimamente, humilhado pelo facto de o seu pai ter ficado a saber da maneira desastrada como ele tinha tratado das coisas.

- Quem iria adivinhar que o rapaz iria falar? - disse ele, para se defender. - Para me trair, teve de se condenar a si próprio.

- Foi um erro deixá-lo vivo - disse Arsénio num tom pragmático. - Devias ter mandado cortar-lhe o pescoço no momento em que o assunto ficou tratado. Bem, agora, acabou. Temos de olhar para o futuro.

- Para o futuro? - repetiu Anastácio. - Que futuro?

- O desespero é para os fracos, meu filho, não para pessoas como tu ou como eu.

- Mas, o que hei-de fazer? A situação não tem emenda possível!

- Tens de sair de Roma. Agora. Esta noite.

- Oh, Deus!

Anastácio enterrou o rosto nas mãos. O seu mundo desabava completamente à sua volta.

Arsénio disse num tom firme:

- Basta! Lembra-te de quem és e do que és.

Arsénio levantou-se, lutando para se dominar.

- Vais para Aachen - disse Arsénio - para a corte do imperador.

Anastácio estava destroçado. O medo que lhe apertava o coração impedia-o de pensar com clareza.

- Mas... Lothar sabe que eu o denunciei na eleição papal.

- Sim e também sabe porque foste obrigado a fazê-lo. Ele é um homem que compreende as contingências políticas - senão, como pensas que ele teria usurpado o trono ao seu pai e aos seus irmãos? E, além disso, também é um homem que gosta de dinheiro.

Arsénio tirou uma bolsa em cabedal da sua secretária e deu-a a Anastácio.

- Se o imperador ainda estiver arrufado, esta bolsa irá ajudar a acalmá-lo.

Anastácio ficou a olhar para o pesado saco de moedas.

Tenho mesmo que sair de Roma? A ideia de viver o resto dos seus dias no meio de uma tribo de francos bárbaros enchia-o de repugnância. Talvez seja melhor do que morrer agora e acabar com tudo.

- Considera isto como uma oportunidade - dizia o seu pai. - Uma oportunidade para ganhar amigos poderosos na corte imperial. Vais precisar deles, quando fores papa.

Quando for papa. As palavras penetraram no espesso nevoeiro do desespero de Anastácio. Então, ele não ia ficar exilado para sempre.

- Eu olho pelos teus interesses aqui, não tenhas medo - disse Arsénio. - A maré da opinião não pode continuar a favor de Leão para sempre. Pode ser que suba e, depois, desça. Quando eu achar que é tempo de agir, mando-te chamar.

A náusea fria que Anastácio sentia começou a acalmar-se. O seu pai ainda não tinha desistido de ter esperança, por isso, ele também não podia desistir.

- Arranjei-te uma escolta - disse Arsénio. - Doze dos meus melhores homens. Anda, eu acompanho-te aos estábulos.

Os doze guardas estavam montados e prontos, armados com espadas, lanças e maças. Anastácio não teria falta de protecção nas estradas perigosas. A sua montada estava perto, batendo com os cascos impacientemente - um animal forte e com carácter, Anastácio reconheceu-a como o garanhão preferido do pai.

- Ainda têm duas ou três horas de luz - o suficiente para um bom começo - disse Arsénio. - Hoje, não vêm à tua procura porque não têm forma de saber que tu suspeitas de algo e Leão tomará, certamente, a precaução de redigir um decreto oficial para a tua prisão. Só começarão à tua procura amanhã de manhã e começarão por São Marcelo. Quando pensarem em vir aqui, já estarás longe.

Atingido por uma súbita preocupação, Anastácio disse:

- E vós, Pai?

- Não têm qualquer motivo para suspeitar de mim. Se tentarem interrogar-me acerca do teu paradeiro, descobrirão que agarraram um lobo pela cauda.

Pai e filho abraçaram-se.

Isto está mesmo a acontecer, pensou Arsénio. Era espantoso como tudo estava a acontecer tão depressa.

- Deus te acompanhe, meu filho - disse Arsénio.

- E a vós, Pai.

Anastácio montou e virou o cavalo rapidamente para que o pai não visse que as lágrimas começavam a chegar-lhe aos olhos.

Mesmo ao pé do portão, virou-se para trás, mais uma vez, para uma última despedida.

O Sol estava a pôr-se, lançando sombras alongadas sobre os contornos suaves das colinas romanas, pintando com tons dourado-avermelhados as ruínas majestosas do Fórum e do Coliseu.

Roma. Tudo aquilo para que ele tinha trabalhado, tudo quanto lhe importava, ficava por trás dos seus muros sagrados.

O seu último olhar foi para o seu pai - sofrendo, mas decidido, firme e seguro como o rochedo de São Pedro.

 

- Membrum putridum et insanibile, ferro excommunicationis a corpore Ecclesiae abscidamus...

Na escuridão fria da Basílica de Latrão, Joana ouviu Leão pronunciar as palavras solenes e terríveis que expulsariam para sempre Anastácio da Santa Madre Igreja. Reparou que Leão tinha escolhido a expressão excommunicatio minor, a forma menor de excomunhão, na qual o condenado estava proibido de administrar ou receber os sacramentos (excepto os últimos ritos, dos quais nenhuma alma podia ser excluída), mas não de todo o contacto com os seus irmãos cristãos. Realmente, pensou Joana, Leão tem um coração bom.

O clero de Roma estava reunido para testemunhar a cerimónia solene, até mesmo Arsénio estava presente porque não ia pôr em risco a sua posição de bispo de Horta por causa de uma inútil manifestação pública de oposição. Leão suspeitava, evidentemente, que Arsénio tinha sido cúmplice na fuga do seu filho à justiça. Mas, não havia provas para consubstanciar uma acusação dessas e não havia qualquer outro motivo para apresentar queixa contra ele, uma vez que era certo que não era crime ser pai de um homem.

Quando a vela que representava a alma imortal de Anastácio foi virada ao contrário e apagada no pó, Joana sentiu, inesperadamente, uma certa tristeza. Que deperdicio trágico, pensou ela. Uma mente tão brilhante como a de Anastácio podia ter sido usada para fazer o bem, se o seu coração não tivesse sido distorcido pela ambição obsessiva.

 

A construção do Muro Leonino - como todos lhe chamavam agora - prosseguia rapidamente. O fogo que tinha pretendido destruí-lo, na realidade, não tinha causado grandes danos, os andaimes em madeira utilizados pelos trabalhadores tinham ardido completamente e uma das plataformas ocidentais tinha ficado muito chamuscada, mas era tudo. Os problemas que tinham atacado o projecto desde o início, agora, tinham cessado, graças a Deus. O trabalho prosseguiu sem interrupções durante o Inverno e a Primavera seguintes porque o tempo se manteve abençoadamente ameno, marcado por dias grandes, frescos, solarengos e sem chuva. As pedreiras forneciam constantemente pedra de primeira qualidade e os trabalhadores vindos dos campos ao redor apareciam para trabalhar lado a lado, num uníssono produtivo.

No Pentecostes, o muro já atingia a altura de um homem.

Agora, ninguém considerava que o projecto era uma loucura, ninguém se queixava do tempo e do dinheiro que ele gastava. Os romanos sentiam cada vez mais orgulho no trabalho, cujas dimensões faziam lembrar os dias do antigo Império, quando estes prodígios da construção eram lugares-comuns e não uma raridade. Quando estivesse terminado, o muro seria magnífico, monumental, uma barreira que nem os sarracenos conseguiriam transpor ou quebrar.

Mas, o tempo passava. Nas calendas de Julho, chegaram mensageiros à cidade com notícias aterradoras: estava a reunir-se uma frota de sarracenos em Totarium, uma ilhazinha ao largo da costa oriental da Sardenha. Preparava-se outro ataque a Roma.

Ao contrário de Sérgio, que tinha procurado o poder da oração para proteger a cidade, Leão optou por uma reacção mais agressiva.

Mandou chamar imediatamente à grande cidade marítima de Nápoles uma frota de navios armados, para combaterem o inimigo no mar.

A ideia era corajosa e arriscada. Nápoles continuava a manter uma aliança formal com Constantinopla, apesar de, na realidade, ser independente havia muitos anos. Será que o duque de Nápoles iria ajudar Roma na sua hora de necessidade?

Ou utilizaria a oportunidade para juntar forças aos sarracenos e atacar a sede romana em nome do Patriarcado do Oriente? O plano estava cheio de perigos. Mas, qual era a alternativa?

A cidade esperou durante dez dias numa expectativa tensa.

Quando a armada napolitana chegou ao Porto na embocadura do Tibre, finalmente, Leão partiu ao seu encontro, acompanhado por uma grande comitiva de milícias armadas sob o comando de Geraldo.

A ansiedade dos romanos acalmou quando Cesário, o comandante da frota, se prostrou diante de Leão e lhe beijou os pés, humildemente. Com um alívio que não demonstrou, Leão abençoou Cesário, encomendando solenemente à sua protecção os despojos sagrados dos apóstolos Pedro e Paulo.

Tinham sobrevivido à primeira jogada, os seus futuros dependiam da próxima.

Na manhã seguinte, a armada dos sarracenos apareceu. As velas latinas enfunadas espalharam-se pelo horizonte como garras abertas. Joana contou-as: cinquenta, cinquenta e três, cinquenta e sete - e continuavam a aparecer - oitenta, oitenta e cinco, noventa - havia tantos navios no mundo? - cem, cento e dez, cento e vinte! Deo, juva nos! Os navios napolitanos eram apenas sessenta e um, com os birremes romanos que ainda estavam em condições de serem utilizados, perfaziam um total de sessenta e sete. Entre eles havia uma desproporção de quase dois para um.

Leão ficou nas escadas perto da Igreja de Santa Aurea e fez uma oração com os cidadãos assustados de Porto.

- Senhor, Vós que haveis salvado Pedro de se afogar, quando ele andou sobre as ondas, Vós que haveis arrancado Paulo às profundezas do mar, ouvi-nos. Concedei poder às armas dos Vossos servos que lutam contra os inimigos da Vossa Igreja. Que, pela sua vitória, o Vosso santo nome seja glorificado entre todas as nações.

As vozes do povo ecoaram ao ar livre com um Ámen.

Cesário gritou as suas ordens do convés do navio que comandava. Os napolitanos acorreram aos remos, vigorosamente.

Por um momento, os birremes pesados ficaram imóveis na água.

Depois, com um ruído tremendo de madeira a ranger, os navios começaram a mover-se. Os remos erguiam-se e mergulhavam, erguiam-se e mergulhavam, brilhando como pedras preciosas, o vento bateu nas velas e os grandes birremes avançaram com as suas proas revestidas a metal rasgando a água turquesa e fazendo sulcos duplos de espuma.

Os navios sarracenos viraram-se para os enfrentarem. Mas, antes que as frotas inimigas se confrontassem, um trovão ensurdecedor anunciou a chegada de uma tempestade. O céu escureceu e nuvens negras rolaram a toda a velocidade sobre o mar. Os navios napolitanos bem equipados conseguiram regressar a porto seguro. Mas, os navios sarracenos, armados com obras mortas baixas para conseguirem maior velocidade e manobrabilidade em combate, eram demasiado fracos para conseguirem resistir à tempestade. Baloiçavam nas ondas crispadas, abanavam como cascas de árvore, com os seus esporões em metal atingindo os navios irmãos e despedaçando-os.

Vários navios dirigiram-se para o porto, mas, mal chegaram, foram atacados. Instigados pela ira violenta que se segue ao terror, os romanos massacraram a tripulação sem dó nem piedade, arrastando-os para fora dos seus navios e enforcando-os em patíbulos construidos ao longo da costa. Ao testemunhar o destino dos seus camaradas, os outros navios sarracenos tentaram desesperadamente dirigir-se para alto mar, onde foram despedaçados pelas ondas gigantescas.

No momento da vitória inesperada, Joana estava a observar Leão. Ele estava de pé nas escadas da igreja, de braços erguidos, com os olhos levantados ao Céu, em acção de graças.

Parecia santo e beatífico como se fosse tocado pela presença divina.

Talvez ele faça milagres, pensou ela. Os seus joelhos dobraram-se voluntariamente, fazendo-lhe uma vénia.

- Vitória! Vitória em Ostia!

As notícias foram anunciadas jubilosamente pelas ruas. Os romanos saíram das suas casas, os armazéns papais foram abertos e o vinho correu livremente, durante três dias, a cidade mergulhou numa celebração estrondosa e ébria.

Quinhentos sarracenos foram conduzidos para a cidade, perante a multidão que os escarnecia e hostilizava. Muitos foram apedrejados ou espancados, morrendo nas ruas. Os sobreviventes, cerca de trezentos, foram acorrentados e levados para um campo no Planalto Neroniano, onde foram colocados como trabalhadores forçados na construção do Muro Leonino.

Com a ajuda desta mão-de-obra suplementar, o muro ergueu-se mais rapidamente ainda. Em três anos, ficou pronto - uma obra-prima da engenharia medieval, a construção mais extraordinária que a cidade tinha visto nos últimos quatrocentos anos. O território do Vaticano estava completamente protegido dentro de uma estrutura com doze pés de grossura e quarenta pés de altura, defendida por quarenta e quatro torres maciças. Havia duas galerias sobrepostas, uma superior e outra inferior, a galeria inferior era sustentada por uma série de arcadas graciosas com uma abertura interior.

Três portas permitiam a entrada: a Posterula SantAngeli, a Posterula Saxonum, assim chamada porque dava para o bairro saxónio, e a Posterula San Peregrinus, a entrada principal pela qual as futuras gerações de reis e príncipes passariam para venerar o santuário sagrado de São Pedro.

Apesar de o muro ser notável, era apenas o início dos planos ambiciosos que Leão tinha para a cidade. Decidido a proceder à restauração de todos os locais santos, Leão deu início a um grande plano de reconstrução. O som das bigornas ouvia-se dia e noite por toda a cidade, à medida que o trabalho passava de uma igreja da cidade para outra. A basílica saxónica, que tinha ardido, foi restaurada, assim como a igreja frígia de São Miguel e a Igreja de Sancti Quattro Coronati, da qual Leão tinha sido cardeal em tempos.

Mas, o mais importante foi que Leão iniciou a reconstrução de São Pedro. O pórtico queimado e destruído foi completamente restaurado, as portas, despojadas dos seus metais preciosos pelos sarracenos, foram cobertas com novos revestimentos em prata, nos quais miríades de histórias sagradas foram gravadas com uma arte impressionante. O grande tesouro tinha sido tirado do lugar pelos sarracenos, o altar-mor foi revestido com placas em prata e ouro e decorado com um crucifixo em ouro maciço, coberto de pérolas, esmeraldas e diamantes, por cima dele, foi suspenso um cibório em prata pesando mais de mil libras, colocado sobre quatro colunas do mais puro mármore travertino, ornamentado com grinaldas de lilases. O altar era alumiado por lâmpadas suspensas por correntes em prata, ornadas com esferas em ouro.

A sua luz tremeluzente iluminava um verdadeiro tesouro de cálices com jóias encrostadas, estantes em prata, ricas tapeçarias e cortinas em seda. A grande basílica brilhava com um esplendor que excedia a sua antiga magnificência.

Joana ficou preocupada ao ver as grandes quantias de dinheiro retiradas do tesouro papal. Leão tinha recriado um santuário de beleza inspirada.

Mas, a maioria daqueles que viviam à sombra desta magnificência esplendorosa passavam os seus dias numa pobreza embrutecedora e degradante. Uma só das salvas em prata maciça de São Pedro, fundida e transformada em dinheiro, podia alimentar e vestir a população do Campo de Marte durante um ano. Será que o culto a Deus exigia mesmo tal sacrifício?

Só havia uma pessoa no mundo a quem Joana se atrevia a pôr essa questão. Quando lha pôs, Geraldo ficou a pensar antes de responder.

- Já ouvi dizer - disse ele, finalmente - que a beleza de um santuário sagrado dá aos fiéis uma forma diferente de alimento - alimento para a alma, não para o corpo.

- É difícil ouvir a voz de Deus quando se tem o estômago vazio.

Geraldo abanou a cabeça:

- Não mudaste. Lembras-te daquela vez em que perguntaste a Odo como é que ele podia ter a certeza de que a Ressurreição tinha acontecido, uma vez que não havia testemunhas oculares?

- Lembro-me.

Joana esfregou a mão.

- Também me lembro da resposta que ele me deu.

- Quando eu vi a ferida que Odo te tinha provocado - disse Geraldo - quis bater-lhe - e tê-lo-ia feito, se não soubesse que isso ainda tornaria as coisas mais difíceis para ti.

Joana sorriu:

- Foste sempre o meu protector.

- E tu - gracejou ele - tiveste sempre a alma de uma hereje.

Eles sempre tinham podido falar assim, livres dos constrangimentos do mundo. Fazia parte da intimidade especial que os ligava desde o início.

Ele olhou para ela com um carinho familiar. Joana reparou, sentiu a sua proximidade como se ele tocasse na sua pele nua.

Mas, ela tinha aprendido a esconder os seus sentimentos.

Apontou para uma pilha de petições que se encontravam sobre a mesa entre ambos.

- Tenho de ir ouvir estes peticionários.

- Não devia ser Leão a fazer isso? - perguntou Geraldo.

- Ele pediu-me que eu o fizesse.

Havia já algum tempo que Leão tinha começado a delegar cada vez mais nela as suas responsabilidades quotidianas para se poder dedicar à continuação dos planos de reconstrução. Joana tinha-se tornado a embaixadora de Leão junto do povo, cumpria tão bem os seus deveres de caridade nas diferentes regiões da cidade que era conhecida por toda a parte como o pequeno Papa e saudada com algum do afecto reservado ao próprio Leão.

Quando ia a pegar na pilha de papéis, Geraldo tocou-lhe na mão.

Ela retirou-a bruscamente, como se se tivesse queimado.

- É... é melhor eu ir - disse ela, embaraçada.

Ficou imensamente aliviada, ainda que um pouco desapontada por ele não a ter seguido.

Insuflada pelo sucesso do Muro Leonino e pela renovação de São Pedro, a popularidade de Leão crescia. Chamavam-lhe o Restaurator Urbis, Restaurador da Cidade. O povo dizia que ele era outro Adriano, outro Aurélio. Por todo o lado para onde ia, as multidões aclamavam-no. Roma ressoava com os ecos do seu louvor.

Por todo o lado, quer dizer, excepto no palácio na Colina Palatina, onde Arsénio esperava com impaciência crescente o dia em que poderia mandar regressar Anastácio.

As coisas não tinham corrido como se esperava. Não havia forma de depor Leão, como Arsénio tinha pensado inicialmente, nem sequer havia a mínima esperança de que o trono ficasse vago através do feliz acidente da morte. Saudável e vigoroso, Leão parecia dar sinais de que ia viver para sempre.

Agora, a fortuna da família tinha recebido outro golpe. Na semana anterior, o segundo filho de Arsénio, Eleutério, tinha morrido. Cavalgava pela Via Recta abaixo, quando um porco se meteu no meio das patas do seu cavalo, o cavalo tropeçou e Eleutério caiu, partindo o fémur. Ao princípio, ninguém se preocupou porque a ferida não era profunda. Mas, uma desgraça atrai sempre outra desgraça. A ferida infectou. Arsénio mandou chamar Enódio, que fez uma sangria a Eleutério, mas não resolveu nada. O seu filho morreu dali a dois dias. Arsénio ordenou imediatamente uma busca ao dono do porco, quando o descobriu, mandou-lhe cortar a garganta de orelha a orelha.

Mas, tal vingança era pouco reconfortante, porque não podia trazer Eleutério de volta.

Não que se tivesse perdido muito amor entre pai e filho.

Eleutério era exactamente o oposto do seu irmão - indolente, preguiçoso e indisciplinado desde criança, tinha rejeitado a oferta de Arsénio de uma educação na igreja, escolhendo em vez dela as gratificações mais imediatas de uma existência laica - mulheres, vinho, jogo e outros deboches.

Não, Arsénio não chorava Eleutério por causa do homem que ele tinha sido ou podia ter sido, mas por causa daquilo que ele representava: outro ramo da árvore da família, um ramo que talvez ainda pudesse vir a dar um fruto promissor.

A família deles tinha sido, durante séculos, a família mais importante de Roma. Arsénio era capaz de reconstituir a sua árvore genealógica até ao próprio César Augusto. Mas, esta herança ilustre foi atingida pelo fracasso porque nenhum dos seus filhos nobres tinha alcançado a honra máxima em Roma: o Trono de São Pedro. Quantos homens menores tinham sido colocados no trono, pensava Arsénio, amargamente, e com que resultados trágicos? Roma - em tempos, a maravilha do mundo - estava afundada numa decadência ruinosa e embaraçosa. Os bizantinos troçavam dela abertamente, apontando para o esplendor da sua própria Constantinopla. Quem, senão um dos membros da família de Arsénio, herdeiros de César, podia reconduzir a cidade à sua antiga grandeza?

Agora, Eleutério tinha desaparecido e Anastácio era o último da sua linhagem, a única oportunidade que restava para a família redimir a sua honra e a de Roma.

E Anastácio tinha sido banido para o país dos francos.

Arsénio sentiu-se desesperado. Libertou-se bruscamente desse sentimento, como se fosse um manto indesejado. A grandeza não esperava uma oportunidade, criava-a. Aqueles que haveriam de governar tinham de estar dispostos a pagar o preço do poder, por muito alto que ele fosse.

Durante a missa no dia da Festa de São João Baptista, Joana apercebeu-se de que algo se passava com Leão. As suas mãos tremiam ao receber as oferendas e hesitou de uma forma incaracterística durante o Nobis quoque peccatoribus.

Mais tarde, quando Joana lhe perguntou, ele não deu importância aos seus sintomas, considerando-os resultado do calor e de uma indigestão.

No dia seguinte, não estava melhor, nem no dia a seguir e no outro. Doía-lhe constantemente a cabeça e queixava-se de dores nas mãos e nos pés. Começou a enfraquecer de dia para dia, fazendo cada dia um esforço maior para se levantar da cama.

Joana começou a ficar alarmada. Tentou todos os remédios que conhecia para doenças que enfraquecem. Nada ajudou. Leão continuava a caminhar para a morte.

 

As vozes do coro ergueram-se no Te Deum, o cântico final da missa. Anastácio esforçava-se por se manter sem expressão, tentando esconder um sorriso provocado pelo barulho.

Nunca tinha conseguido acostumar-se ao canto franco, cujos acentos bruscos e desconhecidos lhe soavam aos ouvidos como o grasnar de corvos. Sentiu saudades de casa, ao lembrar-se das harmonias puras e suaves do canto romano.

Não que desse por perdido o tempo passado em Aachen.

Seguindo as instruções do seu pai, Anastácio tinha procurado conquistar o apoio do imperador. Começou por cortejar os amigos e íntimos de Lothar e por agradar à esposa do imperador, Hermengarda. Encantava e elogiava com insistência a nobreza franca, impressionando-os a todos com o seu conhecimento das Escrituras e, especialmente, do grego - um talento raro. Hermengarda e os seus amigos intercederam junto do imperador e Anastácio foi readmitido à presença real.

Lothar esqueceu qualquer ressentimento que tivesse tido contra ele, em tempos, Anastácio voltou a gozar da confiança e apoio do imperador.

Fiz tudo quanto o pai dise e mais ainda. Mas, quando virá a recompensa? Havia momentos, como agora, em que Anastácio temia ser deixado para sempre naquele frio e bárbaro pântano.

Ao regressar aos seus aposentos depois da missa, encontrou uma carta que tinha chegado na sua ausência. Reconhecendo a letra do seu pai, pegou numa faca e quebrou o selo ansiosamente. Leu as primeiras linhas e deu um grito de júbilo.

Chegou a hora, escrevia o seu pai. Vem reclamar o teu destino.

 

Leão estava deitado de lado, com as pernas encolhidas, torturado por dores terríveis no estômago. Joana preparou-lhe uma poção emoliente à base de clara de ovo batida com leite açucarado, à qual acrescentou um pouco de funcho como carminativo. Ficou a vê-lo a beber o líquido.

- Era bom - disse ele.

Ela esperou para ver se ele era capaz de o manter no estômago, o que aconteceu e fez com que ele dormisse mais descansado do que nas últimas semanas. Quando acordou algumas horas depois, sentia-se melhor.

Joana decidiu fazer-lhe uma dieta à base da poção, proibindo-o de comer ou beber qualquer outra coisa.

Waldipert protestou:

- Ele está tão fraco, certamente, precisa de algo mais substancial para recuperar as forças.

Joana respondeu com firmeza:

- O tratamento ajuda-o. Ele não pode tomar mais nada senão a poção.

Vendo que ela estava determinada, Waldipert desistiu:

- Como quiserdes, Nomenclator.

Leão continuou a melhorar durante a semana seguinte. Deixou de ter dores, recuperou a cor, parecia até estar a recuperar alguma da sua antiga energia. Quando, uma noite, Joana lhe trouxe o medicamento, ele olhou para a mistura leitosa com um ar triste.

- E que tal um pastel de carne, em vez disto?

- Estais a recuperar o apetite - é um bom sinal. Mas, é melhor não ter pressa. Observar-vos-ei de manhã, se ainda tiverdes fome, autorizar-vos-ei a comer um pouco de caldo simples.

- Tirano - respondeu Leão. Ela sorriu. Era bom vê-lo a gracejar com ela novamente.

Na manhã do dia seguinte, ao chegar, ela constatou que Leão tinha voltado a sofrer uma crise. Gemia na cama, com demasiadas dores para lhe responder quando ela lhe falou.

Joana apressou-se a preparar outra dose de poção emoliente.

Ao fazê-lo, os seus olhos depararam com um prato com restos, na mesa ao lado da cama.

- O que é isto? - perguntou ela a Renato, camareiro pessoal de Leão.

- É o pastel de carne que vós haveis mandado vir - respondeu o rapaz.

- Eu não mandei vir nada - disse Joana.

Renato parecia confuso.

- Mas... o meu senhor vicedominus disse que vós havíeis pedido isto expressamente.

Joana olhou para Leão dobrado com dores. Despertou nela uma suspeita terrível.

- Correi! - disse ela a Renato. - Chamai o superista e os guardas. Não deixeis Waldipert sair do palácio.

O rapaz hesitou um pouco, depois, saiu a correr do quarto.

Com as mãos a tremer, Joana preparou um emético forte de mostarda e de raiz de sabugueiro, vertendo-o pela boca meio-fechada de Leão. Pouco depois, o espasmo de limpeza tomou conta dele, o seu corpo tremia convulsivamente, mas só vomitou um pouco de bílis.

Demasiado tarde. O veneno já não está no estômago. Joana viu, com desgosto, que ele já tinha começado a actuar mortalmente, prendendo os músculos dos maxilares e a garganta de Leão, sufocando-o.

Desesperada, tentou pensar em mais alguma coisa que pudesse fazer.

 

Geraldo ordenou uma busca a todos os compartimentos do palácio. Waldipert não apareceu. Foi declarado imediatamente como criminoso e fugitivo e foi instaurada uma perseguição intensa por toda a cidade e arredores. Mas, procuraram em vão, Waldipert tinha desaparecido completamente.

Quando estavam quase a desistir da perseguição, encontraram-no. Flutuava no Tibre, com a garganta cortada de orelha a orelha e o rosto com um esgar de surpresa.

O clero e os altos funcionários de Roma reuniram-se na câmara papal. Formavam uma fila compacta aos pés da cama, como que para se confortarem com a presença uns dos outros.

As lâmpadas de óleo de papoila ardiam nos seus fanais em prata. Ao raiar do dia, o deão dos camareiros veio apagá-las.

Joana ficou a ver enquanto o ancião soltava os cabos e baixava as correntes cuidadosamente para que não se perdesse nenhuma gota da substância preciosa. Aquele simples gesto doméstico parecia deslocado na atmosfera carregada do quarto.

Joana não tinha esperado que Leão sobrevivesse àquela noite.

Tinha deixado de responder havia muito à voz ou ao contacto.

Havia horas que a sua respiração se mantinha inalterável, cada vez mais ruidosa e em estertor, até atingir uma intensidade alarmante, interrompendo-se abruptamente. Fez-se uma pausa, durante a qual ninguém se mexeu, depois o ciclo terrível recomeçou.

O movimento de uma veste chamou a atenção de Joana. Do outro lado do quarto, Eustácio, o arcipreste, chorava, tapando a boca com a manga, para abafar o som.

Leão soltou um suspiro longo e ruidoso depois ficou em silêncio, um silêncio que se prolongou infinitamente. Joana aproximou-se da cama. A vida tinha partido do rosto de Leão.

Ela fechou-lhe os olhos depois ajoelhou-se ao lado da cama.

Eustácio gritou de dor. Os bispos e optimates ajoelharam-se a rezar. Pascal, o primicerius, benzeu-se, depois, saiu, para dar a notícia aos que esperavam lá fora.

Leão, Pontiféx Maximus, Servu Servorum Dei, Primaz dos Bispos da Igreja e Senhor Papa da Sede Apostólica de Roma, tinha morrido.

Fora do Patriarchium, começou o choro.

Leão foi sepultado em São Pedro, diante do altar de um oratório novo, que lhe foi dedicado. Os rituais fúnebres foram feitos com rapidez, por causa da altura do ano em que ocorreu a morte.

De facto, por muito santa que a alma que o tinha habitado fosse , um corpo não resistia muito à corrupção no calor de Julho, em Roma.

Pouco depois do funeral, o triunvirato regente anunciou que, dali a três dias, haveria uma eleição pontifical. Com Lothar a norte, os sarracenos a sul e os lombardos e bizantinos no meio, a situação de Roma era demasiado precária para permitir que o Trono de Pedro ficasse vacante por mais tempo.

Demasiado cedo, pensou Arsénio desgostoso, mal ouviu a notícia. A eleição é cedo de mais. Anastácio não chegará antes. Waldipert, aquele tolo, tinha estragado tudo. Tinha recebido instruções expressas acerca da forma como administrar o veneno gradualmente, em pequenas doses, assim, Leão teria sobrevivido um mês ou mais - e a sua morte não teria levantado suspeitas.

Mas, Waldipert tinha entrado em pânico e tinha administrado uma dose demasiado forte, matando logo Leão. Depois, tinha tido a deselegância de vir à procura de protecção junto de Arsénio. Bem, agora a justiça não lhe pode chegar, apesar de não ser da forma que ele estava a pensar, pensou Arsénio.

Já tinha mandado matar homens antes, fazia parte do preço a pagar pelo poder e só os fracos hesitavam em pagar. Mas, nunca tinha tido de eliminar ninguém que conhecesse tão de perto como Waldipert. Por muito desagradável que aquilo tivesse sido, era inevitável. Se Waldipert fosse apanhado e interrogado, teria confessado sob tortura tudo quanto sabia.

Arsénio tinha-se limitado a fazer o que tinha de fazer para se proteger a si próprio e à sua família. Destruiria qualquer pessoa que ameaçasse a segurança da família, esmagá-la-ia como se esmaga uma mosca que nos mordeu.

Mesmo assim, a morte de Waldipert tinha-o deixado deprimido e desconfortável. Aqueles actos de violência, por muito necessários que fossem, custavam sempre.

Com um esforço de vontade, Arsénio desviou o pensamento para assuntos mais urgentes. A ausência do seu filho complicava as coisas, a sua eleição para o papado, agora, seria mais difícil, mas não impossível. A primeira coisa a fazer era conseguir que Eustácio, o arcipreste, revogasse a sentença de excomunhão contra ele. Para tanto, eram necessárias algumas manobras políticas.

Pegando numa campainha em prata que se encontrava sobre a sua mesa, Arsénio chamou o seu secretário. Havia muito que fazer em pouquíssimo tempo.

 

Joana estava sentada num banco na sua oficina no Patriarchium, esmagando algumas folhas de hissope secas, transformando-as num pó fino no seu almofariz. Esmagar e moer e esmagar e moer, os movimentos familiares da mão e do pulso eram um bálsamo para o desgosto que lhe atormentava o coração.

Leão tinha morrido. Parecia impossível. Ele era tão vigoroso, tão forte, parecia ainda cheio de vida. Se tivesse sobrevivido, teria feito muito para tirar Roma do charco de ignorância e pobreza em que tinha caído havia séculos, ele tinha força para isso e vontade. Mas, não tinha tido tempo.

A porta abriu-se e Geraldo entrou. Ela olhou para os seus olhos, sentindo a sua presença de uma forma tão próxima como se ele a tivesse tocado.

- Acabei de receber a notícia - disse ele, bruscamente. - Anastácio saiu de Aachen.

- Não pensas que vem para aqui?

- Penso que sim. Senão, porque teria deixado a corte do imperador de forma tão súbita? Vem reclamar o trono que lhe foi negado há seis anos.

- Mas, ele não pode ser eleito, está excomungado.

- Arsénio está a tentar convencer o arcipreste a levantar a sentença de excomunhão.

- Benedicite!

As notícias eram más. Depois dos seus anos de exílio na corte imperial, Anastácio era certamente um homem do imperador, mais do que nunca. Se fosse eleito, o poder de Lothar estender-se-ia a Roma e a todos os seus territórios.

Geraldo disse:

- Ele não terá esquecido a maneira como falaste na eleição de Leão. É perigoso para ti ficares em Roma com ele como papa. Anastácio não é homem para perdoar uma ofensa.

A acrescentar à emoção ainda viva provocada pela morte de Leão, aquele pensamento era de mais. Os olhos da Joana encheram-se de lágrimas.

- Não chores, coração.

Geraldo abraçou-a. Os seus braços, fortes e seguros, confortaram-na. Os seus lábios afloraram a sua testa, a sua face, despertando nela o desejo.

- Já fizeste muito, já basta de sacrifícios. Vem comigo e viveremos como sempre quisemos - juntos, como marido e mulher.

Ao levantar os olhos, apercebeu-se do rosto dele junto ao dela. Depois, ele beijou-a.

- Diz que sim - disse ele, ansioso. - Diz que sim.

Ela sentiu-se como se estivesse a ser puxada sob a superfície da sua consciência e transportada por uma corrente poderosa de desejo.

- Sim - murmurou ela, quase sem se aperceber do que estava a dizer. - Sim.

Tinha falado involuntariamente, respondendo por impulso à força da sua paixão. Mas, mal as palavras lhe saíram da boca, abateu-se sobre ela uma grande calma. Tinha tomado a decisão que parecia tanto certa quanto inevitável.

Ele inclinou-se e beijou-a novamente. O sino tocou nesse preciso momento, convocando todos para a refeição da tarde.

Pouco depois, ouviram-se vozes e passos apressados do outro lado da porta.

Eles separaram-se rapidamente, murmurando carinhos, prometendo voltar a encontrar-se depois da eleição do papa.

No dia da eleição, Joana foi rezar na igrejinha inglesa que tinha sido sua quando chegou a Roma.

Completamente destruída pelo incêndio, a igreja tinha sido reconstruída com materiais retirados aos velhos templos e monumentos romanos. Quando Joana se ajoelhou diante do altar-mor, viu que o pedestal de mármore sobre o qual ele se encontrava continha o símbolo inequívoco da Magna Mater, antiga deusa da Terra, venerada pelas tribos pagãs em tempos imemoriais. Por baixo do desenho rude estava escrito em latim: "Neste mármore, foi oferecido incenso à Deusa." Era óbvio que, quando a grande placa de mármore tinha sido trazida para ali, ninguém tinha compreendido o símbolo ou a sua inscrição. Isto não era nenhuma surpresa porque muitos dos membros do clero romano mal sabiam ler, sendo incapazes de decifrar a letra antiga, muito menos de compreender o seu significado.

A incongruência do altar sagrado e da sua base pagã pareceu à Joana um símbolo perfeito da sua própria condição: padre cristão, continuava a sonhar com os deuses pagãos da sua mãe, um homem aos olhos do mundo, era atormentada pelo seu coração secreto de mulher, em busca da fé, vivia dividida entre o desejo de conhecer Deus e o medo de que Ele não existisse.

Mente e coração, fé e dúvida, vontade e desejo. Será que as contradições dolorosas da sua natureza alguma vez se resolveriam?

Amava Geraldo, não tinha dúvida. Mas, será que poderia ser sua esposa? Nunca tinha vivido como mulher. Será que podia começar agora, tão tarde?

- Ajudai-me, Senhor - rezava Joana, erguendo os olhos para o crucifixo em prata que se encontrava sobre o altar. - Mostrai-me o caminho. Dai-me a conhecer o que devo fazer. Bom Deus! Iluminai-me!

As suas palavras elevavam-se, mas o seu espírito continuava preso à terra, carregado com a sua incerteza.

Uma porta rangeu atrás dela. Ela levantou-se do lugar onde se encontrava junto do altar e viu uma cabeça a espreitar pela porta, desaparecendo imediatamente.

- Está aqui! - gritou uma voz. - Encontrei-o.

O seu coração saltou-lhe com um medo súbito. Será que Anastácio ia agir contra ela tão depressa? Levantou-se.

As portas abriram-se de par em par e entraram sete proceres, secundados por acólitos transportando os estandartes do seu ofício. Seguia-se-lhe o clero cardinalício e, depois, os sete optimates da cidade. Foi só quando viu Geraldo entre eles que Joana se convenceu de que não ia ser presa.

Numa procissão lenta, a delegação desceu a nave da igreja e parou diante de Joana.

- João Anglicus - disse Pascal, o primicerius, dirigindo-se-lhe num tom solene. - Por vontade de Deus e do povo de Roma, fostes eleito Senhor Papa de Roma, Bispo da Sé Romana.

Depois, prostrou-se diante dela e beijou-lhe os pés.

Joana ficou a olhar para ele, sem querer acreditar. Era alguma brincadeira de mau gosto? Ou uma armadilha para a levar a exprimir deslealdade ao novo papa?

Olhou para Geraldo. O seu rosto estava tenso e sério quando caiu de joelhos diante dela.

O resultado da eleição tinha apanhado todos de surpresa. A facção imperial, chefiada por Arsénio, tinha tomado o partido de Anastácio. A facção papal contra-atacou, propondo Adriano, padre da Igreja de São Marcos. Ele não era propriamente um guia carismático. Baixo e forte, com o rosto desfigurado por bexigas, tinha os ombros arqueados como se já estivesse carregado com a responsabilidade que lhe queriam impor. Era um homem piedoso, um bom padre, mas poucos o teriam escolhido para chefe espiritual do mundo.

Era evidente que Adriano concordava com a opinião geral porque, inesperadamente, retirou a sua candidatura, informando a assembleia que, depois de muita oração e profunda reflexão, tinha decidido declinar a grande honra que lhe queriam dar.

Este anúncio provocou alguns comentários entre os membros do partido papal, que não tinham sido informados da decisão de Adriano antecipadamente. Ouve grandes manifestações de júbilo da parte imperial. Agora, a vitória de Anastácio parecia certa.

Depois, ouviu-se um clamor vindo da assembleia, onde estavam reunidas as fileiras dos leigos mais humildes.

- João Anglicus! - gritavam eles. - João Anglicus!

Pascal, o primicerius, mandou guardas para os calarem, mas eles não se queriam calar. Conheciam os seus direitos, a constituição de 824 dava a todos os romanos - leigos e clero, da classe alta ou baixa - o direito de votarem na eleição papal.

Arsénio tentou resolver este problema inesperado fazendo uma tentativa descarada para comprar a lealdade do povo, os seus agentes circularam diligentemente pelo meio da multidão, oferecendo subornos em vinho, mulheres e dinheiro. Mas, nem mesmo estas fortes seduções resultaram, o povo pôs-se contra Anastácio, que o seu amado papa Leão tinha considerado bom excomungar. Aclamavam o pequeno Papa vociferando, o amigo de Leão e seu ajudante, João Anglicus, e não se deixavam convencer.

Mesmo assim, não estava garantido que tivessem ganho porque a aristocracia no poder não ia deixar que a sua vontade fosse vencida pela populaça, estivesse isso na constituição ou não.

Mas, o partido do Papa, vendo nesta insurreição popular uma forma inesperada de impedir Anastácio de aceder ao Trono, juntou as suas vozes às do povo. Estava resolvido - Joana foi eleita.

Anastácio e o seu partido estavam acampados perto de Perugia, a noventa milhas de Roma, quando o mensageiro chegou com a notícia. Anastácio mal tinha acabado de ler a mensagem quando lançou um grito de dor. Sem dizer palavra aos seus companheiros surpreendidos, virou as costas e voltou a entrar na tenda, tapando a entrada para impedir que alguém o seguisse.

Dentro da tenda, os seus homens ouviram-no chorar copiosa e furiosamente. Pouco depois, o choro transformou-se num uivo animalesco que se prolongou durante toda a noite.

Revestida com uma túnica em seda púrpura, enfeitada a ouro e sentada sobre um palafrém também revestido e decorado a ouro, Joana encaminhava-se solenemente para a sua coroação. Fitas e bandeiras adejavam de todas as portas e janelas da Via Sacra, com cores garridas, o chão estava coberto com mirto aromático.

Magotes de pessoas aclamando-a bordejavam a rua, empurrando-se para verem o novo Senhor Papa.

Perdida nos seus próprios pensamentos, Joana mal ouvia o barulho da multidão. Pensava em Mateus, no seu velho mestre Asclépios, no irmão Benjamim. Eles tinham todos acreditado nela, tinham-na encorajado, mas nenhum deles tinha sonhado com uma coisa daquelas. Ela própria mal podia acreditar.

Quando se tinha disfarçado de homem pela primeira vez para ser aceite na irmandade de Fulda, Deus não tinha levantado a Sua mão contra ela. Mas, será que Ele iria mesmo permitir que uma mulher ascendesse ao sagrado Trono de São Pedro? A pergunta volteava-lhe na cabeça.

A guarda papal, comandada por Geraldo, escoltava Joana.

Geraldo não tirava os olhos da multidão que se apinhava ao longo do caminho. Havia sempre tentativas para romper a fila da guarda e, cada vez que acontecia, Geraldo deitava a mão à espada, pronto a defender Joana de qualquer ataque. Mas, não foi preciso desembainhá-la porque, cada vez que aquilo acontecia, o intruso só queria beijar a orla do manto de Joana e receber a sua bênção.

Desta forma lenta e entrecortada, a longa procissão seguiu o seu caminho através das ruas, até Latrão. O Sol estava no zénite quando eles chegaram diante da catedral papal. Quando Joana desmontou, os cardeais, os bispos e os diáconos ocuparam os seus lugares atrás dela. Ela subiu lentamente os degraus e entrou no interior sombrio da grande basílica.

Repleta de rituais antigos e complicados, a Ordo coronationis ou cerimónia de coroação demorou várias horas.

Dois bispos conduziram Joana à sacristia, onde ela foi paramentada solenemente com uma alba, uma dalmática e uma pénula, antes de se aproximar do altar-mor para ser entoada a Litania e o longo ritual da consagração ou unção. Durante a recitação do vere dignum, Desidério, o arquidiácono e dois dos diáconos regionais seguraram um livro aberto, com os Evangelhos, sobre a sua cabeça. Depois, foi a missa propriamente dita, muito mais longa do que o habitual por causa das numerosas orações e formulários próprios da solenidade da ocasião.

Durante todo este tempo, Joana manteve-se numa postura solene e direita, suportando o peso das vestes litúrgicas, tão carregadas de ouro como as de um príncipe bizantino. Apesar da magnificência do seu aspecto, sentia-se muito pequena e mal preparada para a responsabilidade enorme que lhe tinha sido colocada nos ombros. Pensou que aqueles que tinham estado naquela posição antes dela também deviam ter tremido e duvidado. No entanto, tinham acabado por conseguir levar por diante a sua missão.

Mas, tinham sido todos homens.

Eustácio, o arcipreste, começou a bênção final:

- Senhor Todo-poderoso, estendei a Vossa dextra sobre o Vosso bendito, o Vosso servo João Anglicus e derramai sobre ele o dom da Vossa misericórdia...

Será que Deus me vai abençoar agora?, pensou Joana. Ou será que me derrubará no momento em que a coroa papal for colocada sobre a minha cabeça?

O bispo de Ostia avançou, trazendo a coroa sobre uma almofada em seda branca. Joana engoliu em seco quando ele levantou a coroa por cima da sua cabeça. Depois, o peso do círculo em ouro pousou sobre a sua fronte.

Não aconteceu nada.

- Viva o nosso ilustre Senhor João Anglicus, declarado por Deus como nosso Bispo Supremo e Papa Universal! - proclamou Eustácio.

O coro cantou Laudes quando Joana enfrentou a assembleia.

Ao aparecer ao cimo da escadaria da basílica, foi saudada por uma aclamação estrondosa. Milhares de pessoas tinham esperado horas ao sol ardente para saudarem o seu Papa recém-consagrado. O seu desejo era que ela fosse coroada.

Agora, manifestavam essa vontade num grande coro de aclamações jubilosas:

- Papa João! Papa João! Papa João!

Joana abriu-lhes os braços, sentindo que o seu espírito começava a elevar-se. Invadiu-a uma beatitude que, ainda na véspera, lhe parecia inalcançável e que, agora, era plena.

Deus tinha permitido que aquilo acontecesse, portanto, não podia ser contra a Sua vontade. Desapareceram todas as dúvidas e medos, agora substituídos por uma certeza gloriosa, esplendorosa: Este é o meu destino e este é o meu povo.

Sentia-se inundada do amor que lhes tinha. Servi-los-ia em nome do Senhor todos os dias da sua vida.

E talvez, no fim, Deus lhe perdoasse.

A curta distância, Geraldo olhava-a deslumbrado. Ela resplandecia, transfigurada por uma alegria indizível, com o rosto brilhando, belo como uma luz. Só ele - que a conhecia tão bem - sabia o que ia no íntimo do seu espírito, muito mais importante do que a cerimónia anterior. Ao vê-la receber a aclamação da multidão, o seu coração ficou despedaçado por uma verdade insuportável: tinha perdido para sempre a mulher que ele amava, mas amava-a mais do que nunca.

 

O primeiro acto da Joana como papisa foi dar uma volta a pé pela cidade. Acompanhada por um séquito de optimates e de guardas, visitou cada uma das sete regiões eclesiásticas, saudando as pessoas e ouvindo as suas queixas e necessidades.

Quando se aproximava do fim da sua volta, Desidério, o arquidiácono, orientou-a para a Via Lata, longe do rio.

- E o Campo de Marte? - perguntou ela.

Os outros membros do séquito papal entreolharam-se, consternados. O Campo de Marte, a região pantanosa, abafada, baixa junto ao Tibre, era a mais pobre de Roma. Nos grandes dias da República Romana, tinha sido dedicada à veneração do deus pagão Marte. Agora, cães esfomeados, pedintes andrajosos e ladrões vagueavam nas suas velhas ruas.

- Não nos aventuramos a entrar lá, Santidade - protestou Desidério. - O local está cheio de tifo e de cólera.

Mas, Joana já se dirigia para o rio, acompanhada por Geraldo e pela guarda. Desidério e os outros não tinham outro remédio senão segui-la.

Filas de insulae, os alojamentos exíguos dos pobres, apinhados ao longo de ruas nojentas à beira do rio, tinham as vigas podres pendentes como costelas partidas de mulas velhas.

Algumas das insulae tinham ruído, os restos das vigas podres jaziam onde tinham caído, atravancando as ruas estreitas. Por cima, estendiam-se os arcos em ruínas do aqueduto de Marcião, em tempos uma das maravilhas arquitectónicas do mundo. Agora, as suas paredes em ruína pingavam água suja que formava poças de água estagnada, um alfobre de doenças.

Grupos de pedintes reuniam-se em torno de panelões com comida com um cheiro estranho, aquecendo-se a pequenas fogueiras feitas de aparas e de bosta seca. As ruas estavam cobertas com camadas de lama que tinha ficado das várias cheias do Tibre. O lixo e os excrementos entupiam os esgotos, o cheiro era insuportável por causa do calor do Verão, atraindo enxames de moscas, ratos e outros vermes.

- Meu Deus - murmurou Geraldo junto a ela. - Isto é um foco de doenças.

Joana conhecia a pobreza, mas nunca tinha visto nada semelhante àquela miséria terrível e brutal.

Duas crianças estavam agachadas junto ao lume. As suas túnicas estavam tão gastas que Joana conseguia ver a alvura da sua pele por baixo delas, os seus pés descalços estavam enrolados em panos imundos. Era óbvio que uma delas, um rapazinho, tinha febre, apesar do calor do Verão, tremia descontroladamente. Joana tirou a sua pénula em linho e cobriu-lhe os ombros com ela, suavemente. O rapaz esfregou a cara no tecido macio, tão macio como ele nunca tinha sentido na vida.

Ela sentiu um puxão no seu manto. A criança mais pequena, uma menina com olhos redondos, como um anjo, olhava para ela, interrogativamente.

- Sois um anjo? - perguntou a vozinha.

Joana fez uma festa no queixo sujo da criança.

- Tu é que és um anjo, pequenina.

Dentro do panelão, um pedacinho de carne magra, impossível de identificar, começava a queimar-se. Uma jovem loura veio do rio, carregando um balde com água. Seria a mãe das crianças?, pensou Joana. Ela própria parecia também uma criança - não tinha, certamente, mais do que dezasseis anos.

Os olhos da jovem ergueram-se esperançados, quando viu Joana e os outros prelados.

- Uma esmola, bons padres? - estendeu a mão. - Uma moedinha para os meus pequeninos?

Joana fez um sinal a Vítor, o sacellarius, que colocou um denário em prata na palma estendida da jovem. Com um sorriso de felicidade, a rapariga pousou o balde com água para guardar a moeda.

Havia restos de despejos a flutuar na água.

Benedicite!, pensou Joana. A sujidade da água era, seguramente, o que tinha adoecido o rapazinho. Mas, com o aqueduto em ruínas, que alternativa tinha aquela mãe? Tinha de utilizar a água poluída do Tibre ou morrer de sede.

Mas, agora, havia outros que tinham começado a reparar em Joana e no seu séquito. As pessoas começaram a juntar-se, ansiosas por saudar o seu novo Senhor Papa. Joana esticava-se para eles, tentando tocar e abençoar tantos quanto podia. Mas, à medida que a multidão aumentava, aproximava-se tanto dela que ela mal se podia mexer. Geraldo deu ordens, os guardas dispersaram a multidão, abrindo o caminho, e a comitiva papal saiu da Via Lata, para o ar solarengo, limpo e saudável da Colina Capitolina.

- Temos de reconstruir o aqueduto de Marcião - disse Joana durante uma reunião com os optimates, na manhã seguinte.

As sobrancelhas de Pascal, o primicerius, ergueram-se com a surpresa.

- O restauro de um edifício cristão seria uma forma mais apropriada de começar o vosso papado, Santidade.

- Para que querem os pobres mais igrejas? - respondeu ela -, Roma está cheia delas. Mas, um aqueduto a funcionar pode salvar muitas vidas.

- O projecto é arriscado - disse Vítor, o sacellarius. - Pode ser que não se consiga fazer.

Ela não o podia negar. Reconstruir o aqueduto era uma obra monumental, talvez mesmo, impossível de realizar, dado o estado lastimoso da engenharia naqueles dias. Os livros que tinham conservado os conhecimentos dos antigos acerca destas obras de construção complicadas tinham-se perdido ou tinham sido destruídos havia séculos. As páginas de pergaminho nas quais tinham sido registados os preciosos planos tinham sido raspadas e reescritas com homilias cristãs e histórias da vida de santos e de mártires.

- Temos de tentar - disse Joana, com firmeza. - Não podemos permitir que as pessoas continuem a viver em condições tão miseráveis.

Os outros mantiveram-se em silêncio, não porque concordassem, mas porque seria indelicado opor-se, quando era tão evidente que o Apostólico estava decidido.

Ao fim de algum tempo, Pascal perguntou:

- Quem tendes em mente para supervisionar a construção?

- Geraldo - respondeu Joana.

- O superista? - Pascal estava surpreendido.

- Quem havia de ser? Ele dirigiu a construção do Muro Leonino. Aliás, também houve muitos que pensaram que não era possível.

Nas semanas que se tinham seguido à sua coroação, ela tinha-se apercebido de que Geraldo estava cada vez mais infeliz. Era difícil para ambos estarem sempre juntos. Pelo menos ela tinha o seu trabalho, uma missão e um objectivo claros. Mas, Geraldo estava aborrecido e inquieto. Joana sabia-o, sem que ele lho tivesse dito, eles nunca tinham precisado de falar um com o outro para saberem o que o outro estava a sentir.

Quando Geraldo veio ter com ela, ela apresentou-lhe a sua ideia de reconstruir o aqueduto de Marcião.

Ele franziu o sobrolho, pensativo:

- Perto do Tivoli, o aqueduto continua por baixo do chão, num túnel ao longo de várias colinas. Se essa secção estiver destruída, não será fácil de reparar.

Joana sorriu ao aperceber-se de que o seu espírito já estava a começar a assumir a ideia, prevendo os problemas que ela envolvia.

- Se alguém o pode fazer és tu.

- Tens a certeza que é isso que queres?

Os olhos de Geraldo fitaram os seus com um olhar de desejo indubitável.

Ela sentiu que lhe correspondia. Mas, não se atreveu a demonstrar os seus sentimentos. Admitir a intimidade entre ambos, mesmo aqui, em privado, seria abrir caminho ao desastre. Ela respondeu pragmaticamente:

- Não vejo nada que seja de maior benefício para o povo.

Ele desviou o olhar:

- Então, está bem. Não te esqueças de que não te estou a prometer nada. Vou ver se é possível. Farei tudo o que puder para que o aqueduto seja reparado para poder voltar a funcionar.

- É tudo quanto eu peço - disse ela.

Ela começava a perceber de uma forma nova o que significava ser Papa. Apesar de ser uma posição de grande poder formal, na realidade, era uma posição com grandes obrigações. Ela tinha o tempo todo ocupado com obrigações litúrgicas pesadíssimas. No Domingo de Ramos, benzeu e distribuiu ramos de palmeira em frente a São Pedro. Na Quinta-feira Santa, lavou os pés aos pobres e serviu-lhes ela própria uma refeição. Na Festa de Santo António, ficou diante da Catedral de Santa Maria Maior e aspergiu com água benta os bois, os cavalos e as mulas trazidas pelos seus donos para serem benzidos. No terceiro Domingo do Advento, abençoou os candidatos apresentados para serem ordenados presbíteros, diáconos ou bispos.

Também tinha de celebrar a missa quotidiana. Em certos dias, era uma missa estacional, precedida de uma procissão pela cidade até à igreja titular, na qual seria celebrada a missa, parando pelo caminho para ouvir petições, a procissão e a cerimónia ocupavam-lhe grande parte do dia. Havia mais de noventa missas estacionais, incluindo as festas marianas, as Quatro Têmporas, a Missa de Cristo, o Domingo da Septuagésima e da Sexagésima e a maior parte dos Domingos e dias feriados da Quaresma.

Havia dias de festa em honra de São Pedro, São Paulo, São Lourenço, Santa Inês, São João, São Tomé, São Lucas, Santo André e Santo António, assim como da Natividade, da Anunciação e da Assunção da Virgem Maria. Estas eram festas fixas, o que queria dizer que calhavam no mesmo dia todos os anos, como a Missa de Cristo e a Epifania. A Oblação, a festa da Sede Gestatória, a Circuncisão de Cristo, a Natividade de São João Baptista, a festa de São Miguel, de Todos os Santos e da Exaltação da Cruz eram todas em dias fixos. A Páscoa, o dia mais sagrado do calendário cristão, era uma festa móvel, a sua localização no calendário seguia o ritmo da lua cheia eclesiástica, tal como os feriados satélites da Terça-Feira de Entrudo, da Quarta-Feira de Cinzas, do Dia da Ascensão e do Pentecostes.

Cada um destes feriados cristãos era observado com, pelo menos, quatro dias de celebrações: a vigília ou véspera da festa, o dia da festa, o dia seguinte e a oitava ou oitavo dia a seguir. Ao todo, havia mais de cento e setenta e cinco dias festivos para os cristãos, entregues a cerimoniais complicados e consumidores de tempo.

Tudo isto dava pouco tempo a Joana para governar realmente, ou para falar daquilo que lhe interessava mais: tratar dos pobres e melhorar a educação do clero.

Em Agosto, a árdua rotina litúrgica foi interrompida por um sínodo. Participaram setenta e sete prelados, incluindo todos os suburbicarii, ou bispos provinciais, assim como quatro bispos francos enviados pelo imperador Lothar.

Dois dos assuntos tratados no sínodo tinham especial interesse para Joana. O primeiro, diz respeito à intinctio, a prática de distribuir a Comunhão mergulhando o pão eucarístico no vinho, em vez de serem tomados separadamente. Nos vinte anos que se seguiram à introdução dessa ideia em Fulda, por iniciativa de Joana, como forma de evitar a propagação de doenças, tinha-se tornado tão popular na região dos francos que se tinha tornado um costume quase universal.

O clero romano, que, como era evidente, não sabia que existia uma relação entre Joana e a intinctio, encarava a nova prática com suspeição.

- É uma transgressão à lei divina - argumentou o bispo de Castrum, indignado. - Na Sagrada Escritura afirma-se que Cristo deu aos Seus discípulos o Seu corpo e o sangue separadamente.

Houve sinais de concordância pela assembleia.

- O Senhor Bispo tem razão - disse Pothos, bispo de Trevi. A prática não tem precedentes nos escritos dos padres, portanto, tem de ser condenada.

- Devemos condenar uma ideia apenas porque é nova? - perguntou Joana.

- Devemos guiar-nos pela sabedoria dos antigos em todas as coisas - respondeu Pothos num tom solene. - A única verdade de que podemos estar seguros é aquela que nos foi transmitida no passado.

- Tudo o que é velho já foi novo um dia - disse Joana. - O novo precede sempre o velho. Não será insensato rejeitar o que precede e estimar o que se segue?

As sobrancelhas de Pothos franziram-se ao mesmo tempo que a sua mente meditava sobre aquela complexa dialéctica. Como a maior parte dos seus colegas, também ele não possuía qualquer conhecimento da argumentação e debate clássicos, só se sentia à vontade quando citava uma autoridade.

Seguiu-se uma longa discussão. Claro que Joana podia ter imposto a sua vontade por decreto, mas preferia a persuasão à tirania. No fim, os bispos acabaram por ser vencidos pelos seus argumentos. A prática da intinctio continuaria na região dos francos, pelo menos, de momento.

A questão seguinte tinha um grande interesse pessoal para Joana porque envolvia o seu velho amigo Gottschalk, o monge oblato cuja liberdade ela tinha ajudado a ganhar, em tempos.

Segundo o relatório dos bispos francos, ele estava novamente em grandes apuros. Joana ficou triste com as notícias, mas não muito surpreendida, Gottschalk era um homem que cortejava a infelicidade com a mesma intensidade com que um amante persegue a sua amada.

Agora, era acusado do sério crime de heresia. Rábano Mauro, antigo abade de Fulda, agora promovido a arcebispo de Mainz, tinha ouvido falar de algumas teorias radicais que Gottschalk tinha pregado sobre a predestinação. Aproveitando a oportunidade para se vingar, o arcebispo tinha mandado prender e açoitar selvaticamente Gottschalk.

Joana franziu o sobrolho. A crueldade com que homens de alegada piedade, como Rábano, tratavam os seus irmãos cristãos nunca deixava de a espantar. Os normandos pagãos provocavam-lhes uma fúria menor do que um crente cristão que se desviasse um pouco que fosse das doutrinas estritas da Igreja. Porque será que temos sempre de guardar o nosso pior ódio para os nossos?, pensou ela.

- Qual é a natureza concreta dessa heresia? - perguntou ela a Wulfram, o chefe dos bispos francos.

- Primeiro - disse Wulfram - o monge Gottschalk afirma que Deus predestinou todos os homens para a salvação ou para a perdição. Segundo, que Cristo não morreu na cruz por todos os homens, mas apenas pelos eleitos. E, finalmente, que os homens decaídos não podem fazer nada de bom fora da graça, nem podem exercitar livremente a sua vontade para nada a não ser o mal.

É mesmo do Gottschalk, pensou Joana. Um pessimista nato, era inevitável que tendesse para uma teoria que predestinava o homem à condenação. Mas, não havia nada de herético naquelas ideias, nem sequer particularmente novo. O próprio Santo Agostinho tinha dito exactamente o mesmo em duas das suas obras mais importantes - o De civitate Dei e o Enchiridion.

Mas, ninguém na sala pareceu aperceber-se disso. Apesar de todos reverenciarem o nome de Agostinho, era evidente que nenhum se tinha dado, realmente, ao trabalho de ler as suas obras.

Nirgotius, bispo de Anagni, levantou-se e disse:

- Isso é uma apostasia pecaminosa - disse ele. - Porque é sabido que a vontade de Deus predestina os eleitos, mas não os condenados.

Aquele raciocínio era muito defeituoso, já que a predestinação de um grupo implicava, inevitavelmente, a predestinação do outro. Mas, Joana não disse nada porque também estava preocupada com a pregação de Gottschalk. Era perigoso levar as pessoas a acreditarem que não podiam alcançar a sua salvação evitando o pecado e tentando agir de forma justa. Afinal, porque haveria alguém de se dar ao trabalho de fazer boas obras se a lista do Céu já estava feita?

Ela disse:

- Concordo com Nirgotius. A graça de Deus não é fruto da predestinação, mas sim do poder abundante do Seu amor, que se derrama sobre todas as coisas que existem.

Os bispos acolheram bem esta intervenção porque concordava com o seu próprio pensamento. Votaram por unanimidade a refutação das teorias de Gottschalk.

Mas, por instigação da Joana, incluíram também uma condenação do arcebispo Rábano pela forma rígida e imprópria de um cristão, como tinha tratado o monge transviado.

Foram votados quarenta e dois cânones naquele sínodo, a maior parte deles relacionados com a reforma da disciplina e da educação eclesiástica. No fim da semana, a assembleia estava terminada. Todos concordaram que tinha corrido muito bem e que o Papa João tinha presidido com uma distinção rara.

Os romanos estavam particularmente orgulhosos de serem representados por um guia espiritual de inteligência e erudição tão elevadas.

Mas, a boa-vontade de que Joana ficou a gozar a seguir ao sínodo não durou muito. No mês seguinte, a comunidade eclesiástica revoltou-se em peso quando ela anunciou a sua intenção de instituir uma escola para mulheres. Até aqueles do partido papal que tinham apoiado a candidatura da Joana ficaram chocados: que Papa tinham eles elegido?

Jordanes, o secundicerius, confrontou Joana com o assunto publicamente, durante a reunião semanal dos optimates.

- Santidade - disse ele - fazeis muito mal em procurar educar mulheres.

- Porquê? - perguntou ela.

- Santidade, sabeis muito bem que o tamanho do cérebro e do útero da mulher é inversamente proporcional, portanto, quanto mais uma rapariga aprende, menos provável é que venha a ter filhos.

É melhor ser estéril de corpo do que de espírito, pensou Joana com frieza, mas guardou o pensamento apenas para si própria.

- Onde lestes isso?

- É do senso comum.

- Pelo que parece, é tanto do senso comum que ninguém se deu ao trabalho de o escrever para que todos pudessem aprendê-lo.

- Não é preciso aprender aquilo que é óbvio para todos. Ninguém escreveu que a lã vem das ovelhas, mas todos o sabem.

Os outros sorriram. Jordanes envaideceu-se da esperteza do seu argumento.

Joana pensou um pouco e depois disse:

- Se o que dizeis é verdade, como havemos de interpretar a fecundidade extraordinária de mulheres instruídas como Laeta, que se correspondia com São Jerónimo e que, segundo ela relata, deu à luz quinze crianças saudáveis?

- Uma aberração! Uma rara excepção à regra.

- Se bem me lembro, Jordanes, a vossa irmã Juliana sabe ler e escrever.

Jordanes foi apanhado desprevenido.

- Só um pouco, Santidade. O suficiente para poder fazer as contas da casa.

- Mas, de acordo com a vossa teoria, mesmo que a instrução fosse pouca, afectaria sempre a fertilidade da mulher. Quantos filhos tem a Juliana?

Jordanes corou.

- Doze.

- Outra aberração?

Fez-se um silêncio longo e embaraçoso.

- É óbvio, Santidade - disse Jordanes, num tom agreste -, que já tendes uma ideia formada quanto a este assunto. Portanto, não digo mais nada.

E não disse, pelo menos, não na assembleia.

- Não foi sensato insultar Jordanes em público - disse Geraldo depois. - Podes tê-lo atirado para os braços de Arsénio e do partido do imperador.

- Mas, ele não tem razão, Geraldo - disse Joana. - As mulheres são tão capazes de aprender como os homens. Eu não sou uma prova disso?

- Claro. Mas, tens de dar tempo às pessoas. O mundo não pode ser refeito num só dia.

- O mundo nunca será refeito se ninguém tentar refazê-lo. Tem de se começar a mudar por algum lado.

- É verdade - concedeu Geraldo. - Mas, agora não, aqui não, contigo não.

- Porquê?

Porque eu te amo, queria ele dizer, porque tenho medo por ti.

Em vez disso, disse:

- Porque não te podes dar ao luxo de fazer inimigos. Já te esqueceste de quem és e daquilo que és? Eu posso proteger-te de muitas coisas, Joana - mas, não de ti própria.

- Ora, certamente não é uma coisa assim tão séria. O mundo vai acabar se algumas mulheres aprenderem a ler e a escrever?

- O teu velho tutor - Asclépios, não era? - o que foi que tu me contaste uma vez que ele te tinha dito?

- Algumas ideias são perigosas.

- Exactamente.

Fez-se um longo silêncio.

- Está bem - concedeu ela. - Vou falar com Jordanes e farei o que puder para apaziguar o seu ressentimento. E prometo ser mais diplomática no futuro. Mas, a escola para mulheres é demasiado importante, não vou desistir dela.

- Nem pensei que desistisses - respondeu Geraldo, sorrindo.

 

Em Setembro, a escola para mulheres foi inaugurada formalmente. Joana deu-lhe o nome de Escola de Santa Catarina, em memória do seu irmão Mateus, o primeiro a falar-lhe da santa instruída. Cada vez que ela passava pelo pequeno edifício na Via Merulana e ouvia o som de vozes femininas recitando, pensava que o coração lhe rebentava de alegria.

Cumpriu a promessa que tinha feito a Geraldo. Foi delicada e cortês com Jordanes e com os outros optimates. Conseguiu, até, controlar a língua quando ouviu o cardeal-presbítero Citronatus pregar que, depois da ressurreição, as imperfeições das mulheres seriam emendadas porque todos os seres humanos renasceriam como homens! Chamando Citronatus, ofereceu-lhe, à guisa de uma sugestão útil, a ideia de eliminar aquela linha do sermão porque, assim, poderia alcançar melhor efeito sobre as paroquianas. Apresentada em termos tão diplomáticos, a sugestão foi bem aceite, Citronatus ficou lisonjeado com a atenção dispensada pelo Papa e não voltou a repetir a ideia.

Joana suportava a rotina diária das missas, audiências, baptismos e ordenações pacientemente e sem um queixume. E assim, os dias longos e frios do Outono passaram sem mais incidentes.

Nos idos de Novembro, o céu escureceu e começou a chover.

Durante dez dias, a chuva caiu, deixando grandes lençóis de água, batendo contra os telhados das casas, fazendo com que os habitantes tivessem de tapar os ouvidos para não ouvirem o barulho enlouquecedor. Os velhos esgotos da cidade depressa ficaram a transbordar, nas ruas, a água concentrava-se em poças cada vez maiores, que se iam juntando, formando correntes rápidas, levando consigo pedras de basalto e tornando o piso perigosamente escorregadio.

E continuava a chover. As águas do Tibre começaram a subir ameaçadoramente, submergindo os diques, inundando os campos dos arredores, destruindo as terras de cultivo e as pastagens e afogando o gado.

Dentro dos muros da cidade, a primeira região a ficar inundada foi a zona baixa de Campo de Marte, sobrepovoada de pobres.

Alguns fugiram para zonas mais altas, mal as águas começaram a subir, mas muitos ficaram para trás, sem se aperceberem das consequências do atraso, não querendo deixar as suas casas e as suas magras posses.

Depois, já era tarde de mais. As águas ultrapassaram a altura de um homem, impedindo qualquer tentativa de fuga.

Centenas de pessoas ficaram encurraladas dentro das insulae raquíticas, se as águas continuassem a subir, iam morrer afogados.

Naquelas circunstâncias, o Papa, normalmente, retirava-se para a Catedral de Latrão e rezava uma litania solene, prostrando-se diante do altar e rezando pela salvação da cidade. Para surpresa e consternação do clero, Joana não o fez. Em vez disso, chamou Geraldo para discutir planos de evacuação.

- O que podemos fazer? - perguntou ela. - Há-de haver uma maneira de salvar aquela gente.

Ele respondeu:

- Os acessos ao Campo de Marte estão completamente alagados. Não há forma de lá chegar a não ser de barco.

- E os barcos que estão ancorados em Ripa Grande?

- São pequenas embarcações de pescadores - demasiado frágeis para águas tão revoltosas.

- Vale a pena tentar - argumentou ela, aflita. - Não podemos ficar a ver as pessoas a afogarem-se!

Geraldo sentiu uma onda de ternura por ela. Nem Sérgio, nem sequer Leão, tinham demonstrado tal preocupação com a população deserdada do Campo de Marte. Joana era diferente, como não via nenhuma diferença entre rico e pobre, tratava-os da mesma maneira.

Aos seus olhos, todos eram igualmente merecedores do seu cuidado e atenção.

- Vou convocar imediatamente a milícia - disse ele.

Marcharam para a doca de Ripa Grande, onde Joana usou a sua autoridade para requisitar todas as embarcações que estavam em condições de navegar. Geraldo e os seus homens meteram-se nos barcos e Joana pronunciou algumas palavras de bênção sobre eles, levantando a voz para se fazer ouvir mais alto do que a chuva que batia. Depois, espantou todos entrando no barco de Geraldo.

- O que estás a fazer? - perguntou ele, alarmado.

- O que te parece?

- Não pretendes vir connosco!

- Porque não?

Ele olhou para ela, espantado, como se ela tivesse enlouquecido.

- É demasiado perigoso!

- Vou aonde sou precisa - respondeu ela, com determinação.

Eustácio, o arcipreste, franziu o sobrolho na doca.

- Santidade, pensai na dignidade da vossa posição! Sois o Senhor Papa, Bispo de Roma. Arriscareis a vida por um punhado de pedintes andrajosos?

- São filhos de Deus, Eustácio, não são menos do que vós ou do que eu.

- Mas, quem nos guiará na litania? - perguntou ele, insistindo.

- Vós, Eustácio. Fazei-o bem porque bem precisamos das vossas orações - voltou-se impacientemente para Geraldo. - Agora, superista, ides remar ou tenho de ser eu a fazê-lo?

Reconhecendo o ar de determinação obstinada naqueles olhos verde-acinzentados, Geraldo pegou nos remos. Não havia mais tempo para discussões porque a água estava a subir rapidamente. Ele pegou nos remos, remando energicamente e o barco afastou-se da doca.

Eustácio gritou-lhes qualquer coisa, mas as suas palavras perderam-se no vento e na chuva.

A flotilha de embarcações dirigia-se para noroeste, para Campo de Marte. As águas tinham subido. O Tibre corria pela parte baixa da cidade como se estivesse no seu próprio leito.

Entre a Porta Septimania e o sopé da Colina Capitolina, todas as igrejas e casas estavam inundadas. A coluna de Marco Aurélio estava meio-submersa, as ondas batiam nas portas superiores do Panteão.

Ao aproximarem-se de Campo de Marte, viram indícios dos terríveis prejuízos causados pela inundação. Boiavam pedaços de madeira, restos das insulae que tinham ruído, havia corpos a flutuarem ao sabor da corrente. Os habitantes cujas casas tinham sido poupadas, aterrados, tinham-se refugiado nos andares superiores. Apinhavam-se às janelas, com os braços estendidos, gritando por ajuda.

Os barcos separaram-se, um ou dois por edifício. As ondas tornavam difícil a aproximação às casas. Algumas pessoas entraram em pânico e saltaram cedo de mais, não acertando nas embarcações aos círculos. Outros, caíam demasiado perto da borda ou da parte da frente dos barcos, fazendo com que eles se voltassem. Havia uma confusão dentro de água, provocada por aqueles que não sabiam nadar e que tentavam agarrar-se desesperadamente àqueles que sabiam, enquanto os remadores praguejavam, tentando reequilibrar os barcos.

As embarcações acabaram por recuperar o equilíbrio e por partir, seguindo na direcção da Colina Capitolina, onde descarregaram os seus passageiros. A partir dali, era fácil subir para lugar seco e porem-se a salvo. Depois, a flotilha regressou para salvar mais pessoas.

Os salvadores repetiram a viagem, ficando encharcados até aos ossos, com as roupas coladas ao corpo, arfando com o esforço e o cansaço. Finalmente, parecia qe tinham salvo toda a gente. Dirigiam-se para a Colina Capitolina, quando Joana ouviu a voz de uma criança a pedir socorro. Voltando-se, viu a silhueta de um rapazinho a uma das janelas. Talvez estivesse a dormir e tivesse acabado de acordar, ou talvez tivesse tido demasiado medo para sair pela janela antes.

Joana e Geraldo olharam um para o outro. Sem uma palavra, ele virou o barco e remou de regresso, parando por baixo da janela onde o rapaz estava agora debruçado. Geraldo levantou os remos, para manter o barco parado.

Joana levantou-se, esticando os braços.

- Salta! - disse ela. - Salta, que eu apanho-te!

O rapaz ficou onde estava, com os olhos espantados de terror, a olhar para o barco por baixo da janela.

Ela olhou para ele, procurando convencê-lo a atirar-se.

- Salta agora! - ordenou-lhe ela.

Timidamente, o rapaz meteu uma perna fora da janela.

Ela esticou-se para ele.

Nesse momento, ouviu-se um barulho ensurdecedor. A velha Posterula de Santa Ágata, a porta mais a norte do Muro Aureliano, tinha cedido à pressão da água que subia. O Tibre entrou pela cidade dentro numa onda com uma força aterradora.

Joana viu o rosto do rapaz encostado à janela, com a boca formando um O de terror, quando o edifício começou a ceder.

Nesse momento, ela sentiu o barco por baixo dos seus pés levantar-se e tremer, indo com a corrente.

Começou a gritar, agarrando-se desesperadamente às bordas da frágil embarcação, levada nos rápidos, ameaçando virar-se a qualquer momento. A água entrava pelos lados, ela levantou a cabeça, à procura de ar, e viu num relance Geraldo debruçado junto à proa.

O barco parou com um estrondo tremendo. Joana foi projectada contra o lado.

Ficou imóvel, tonta e confusa durante alguns segundos.

Quando, finalmente, conseguiu olhar à sua volta, viu paredes, uma mesa, cadeiras.

Estava dentro de casa. A força extraordinária da corrente tinha arrastado o barquinho fazendo-o entrar para dentro de casa por uma janela de uma das insulae.

Viu Geraldo deitado na parte da frente do barco, com o rosto metido dentro de água. Arrastou-se para ele.

Quando o voltou, ele estava inconsciente e não respirava.

Ela puxou-o para fora do barco e deitou-o no chão do quarto.

Virando-o, de forma a que ele ficasse com a barriga para baixo, começou a pressionar as suas costas para obrigar a água a sair dos seus pulmões.

Pressionar e soltar, pressionar e soltar. Ele não pode morrer, pensou ela.

Ele não pode morrer. Certamente que Deus não seria tão cruel. Depois, lembrou-se do infeliz rapazinho que tinha ficado dentro de casa e pensou: Deus é capaz de tudo.

Pressionar e soltar. Pressionar e soltar.

A boca de Geraldo abriu-se, soltando uma golfada de água.

Benedicite! Ele tinha voltado a respirar. Joana examinou-o cuidadosamente. Não tinha ossos partidos, nem feridas abertas. Mas, tinha uma grande nódoa negra por baixo da linha do cabelo, onde tinha recebido uma grande pancada. Devia ter sido ela que o tinha deixado inconsciente.

Já devia ter recuperado a consciência, pensou ela. Mas, Geraldo continuava mergulhado no seu estranho sono, pálido e flácido, com a respiração pouco profunda e o pulso fraco e perigosamente rápido. O que se passa?, pensou ela, ansiosa. O que posso fazer mais?

O choque de uma pancada violenta pode matar um homem com um frio penetrante.

As palavras de Hipócrates, palavras que já tinham salvo a vida a Gottschalk, uma vez, vieram-lhe, agora, à memória.

Tinha de aquecer Geraldo rapidamente.

Pelo buraco deixado pela passagem do barco entravam rajadas de vento e chuva. Ela levantou-se e começou a explorar a pequena casa. Por trás do quarto da frente, havia outro, mais pequeno, sem janela e, portanto, mais quente e mais seco. E - Deo gratias! - no meio do quarto havia um pequeno braseiro em metal, no qual se encontravam alguns pedaços de madeira. Num armário perto, ela encontrou um sílex e uma mecha. Numa arca a um canto, havia um cobertor em lã grossa, rasgado, mas, graças a Deus, ainda seco.

Ao regressar ao quarto da frente, ela pegou em Geraldo por baixo dos braços e levou-o, melhor, arrastou-o para o quarto da parte de trás, deitando-o ao pé do braseiro. As mãos dela tremiam tanto que teve que tentar várias vezes, até conseguir fazer lume. Finalmente, conseguiu pegar fogo à pequena mecha de palha. Colocou a mecha a arder no braseiro, cuidadosamente, e ela pegou, lambendo os pedaços de madeira. A madeira húmida chiou e estalou, sem querer pegar fogo. Por fim, um pequeno pedaço de madeira tornou-se incandescente num canto de um dos toros. Ela assoprou o fogo frágil com a habilidade própria de quem está habituada a fazê-lo.

Precisamente quando ele tinha começado a pegar, entrou vento pela janela do outro quarto e apagou-o.

Ela olhou, desesperada, para os pedaços de madeira frios. Já não havia mais mecha, não havia forma de tentar voltar a acender o lume. Geraldo continuava inconsciente. A sua pele tinha um tom azulado terrível, os seus olhos estavam encovados.

Só havia mais uma coisa a fazer. Ela tirou-lhe a roupa rapidamente, despindo o seu corpo tenso, elegantemente musculoso, marcado aqui e ali com cicatrizes de antigos combates. Depois, tapou-o com o cobertor.

Levantou-se, tremendo de frio, e começou a tirar a sua roupa encharcada: primeiro, a pénula e a dalmática, depois, a roupa de baixo, a alba, o amicto e o cíngulo. Quando ficou nua, meteu-se debaixo do cobertor e encostou-se toda a Geraldo.

Agarrou-se a ele, aquecendo o seu corpo com o dela, para lhe insuflar um pouco de força e de vida.

Luta. Geraldo. meu amor. Luta.

Fechou os olhos e concentrou-se em estabelecer uma ligação entre eles. Nada mais interessava. O quartinho, o lume apagado, o barco, a tempestade lá fora - nada disso era real.

A única coisa real eram eles os dois. Eles haviam de viver juntos ou de morrer juntos.

As pálpebras de Geraldo mexeram-se. A sua mão levantou-se, por reflexo, como que para tirar um véu invisível. Nesse mesmo instante, Joana viu uma luz ao fundo do túnel e agarrou-se a ela com ele. Eles tinham emergido juntos de um lugar distante.

Ele acordou. Os seus olhos azuis olharam para ela, surpreendidos, ele sabia que ela estava junto dele.

- Minha pérola - murmurou ele.

Ficaram muito tempo em silêncio, unidos numa comunicação sem palavras. Depois, ele levantou o braço para a puxar mais para si e os seus dedos passaram pelas cicatrizes nas suas costas.

- Marcas de chicote? - perguntou ele, suavemente.

Ela corou.

- Sim.

- Quem te fez isto?

Lenta e penosamente, ela contou-lhe a tareia que tinha levado do pai quando se recusou a destruir o livro de Asclépios.

Geraldo não disse nada, mas os músculos do seu maxilar retesaram-se. Inclinou-se sobre ela e começou a beijar cada uma das cicatrizes.

Ao longo dos anos, Joana tinha aprendido a conter as suas emoções, a não manifestar dor, nem a chorar. Agora, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem ela dar por isso.

Ele abraçou-a ternamente, murmurando palavras doces, até que ela deixou de chorar. Depois, beijou-a nos lábios com uma experiência e ternura que a encheu de calor. Ela abraçou-o e fechou os olhos, deixando que o vinho doce e escuro dos seus sentidos corresse nela, rendendo, finalmente, a vontade da mente ao desejo do corpo.

Meu Deus!, pensou ela. Eu não sabia, eu não sabia! Era acerca daquilo que a mãe dela a tinha avisado, era daquilo que ela tinha fugido durante todos aqueles anos? Aquilo não era entregar-se, era uma maravilhosa e gloriosa expansão de si própria - uma oração não com palavras, mas dos olhos e das mãos e dos lábios e da pele.

- Amo-te! - gritou ela no momento do êxtase e as palavras não eram uma profanação, mas um sacramento.

 

No Salão Grande do Patriarchium, Arsénio esperava por notícias com os optimates e os membros do alto clero de Roma.

Quando recebeu a notícia de que o papa João tinha desaparecido, Arsénio não queria acreditar. Mas, afinal, o que era de esperar de um estrangeiro - e, para mais, de um camponês?

Radoin, segundo no comando da milícia papal, entrou no salão.

- Novidades? - perguntou Pascal, o primicerius, impaciente.

- Conseguimos salvar uma parte dos habitantes - relatou Radoin. - Mas, temo que Sua Santidade se tenha perdido.

- Perdido? - repetiu Pascal com uma voz sumida. - O que quereis dizer com isso?

- Ele estava num esquife com o superista. Pensámos que eles vinham atrás de nós, mas devem ter voltado para trás para salvar outro sobrevivente. Foi precisamente quando a porta de Santa Ágata cedeu e a água jorrou naquela zona.

Estas notícias foram recebidas com gritos de alarme e de consternação. Vários prelados benzeram-se.

- Existe alguma hipótese de que tenham sobrevivido? - perguntou Arsénio.

- Nenhuma - respondeu Radoin. - A força da corrente levou tudo quanto encontrou.

- Deus tenha misericórdia deles - disse Arsénio num tom grave, usando todo o controlo que possuía para esconder a sua alegria.

- Devo ordenar que toquem os sinos do luto? - perguntou Eustácio, o arcipreste.

- Não - respondeu Pascal. - Não podemos precipitar-nos. O papa João é o vigário escolhido por Deus, é possível que Deus tenha operado um milagre para o salvar.

- Porque não voltais para o procurar? - sugeriu Arsénio.

Ele não tinha nenhum interesse em que ele fosse salvo, mas precisava de ter a certeza que o Trono de São Pedro estava novamente vacante.

Radoin respondeu.

- A ruína da porta-norte tornou a área intransitável. Não podemos fazer mais nada, até as águas baixarem.

- Então, oremos - disse Pascal. - Deus misereatur nostri et benedicat nobis...

Os outros juntaram-se a ele, baixando as cabeças.

Arsénio recitou as palavras mecanicamente, com a mente concentrada noutras coisas. Se, como parecia certo, o papa João tinha morrido nas cheias, então Anastácio tinha uma segunda oportunidade de subir ao trono. Desta vez, pensou Arsénio com determinação, não pode correr nada mal com a eleição. Desta vez, ele usaria todo o seu poder para ter a certeza de que a candidatura do seu filho não iria falhar.

- ... et metuant eum omnes fines terrae. Amen.

- Ámen - repetiu Arsénio. Mal podia esperar pelas notícias que o dia seguinte traria.

 

Ao acordar ao romper do dia, Joana sorriu ao ver Geraldo a dormir ao seu lado. Repousou os olhos no seu rosto longo, magro e distinto - tão resplandecente agora na sua beleza como quando ela o tinha visto pela primeira vez, à mesa de um banquete, vinte e oito anos antes.

Será que eu percebi logo naquele momento?, pensou ela. Será que percebi que o amava? Acho que sim.

Finalmente, tinha acabado por aceitar aquilo que tinha lutado para negar durante tanto tempo - Geraldo fazia parte dela, era ela, de uma forma insondável que ela nem era capaz de explicar, nem de negar. Eram almas gémeas, ligadas de uma forma inextricável, para sempre, duas metades de um todo perfeito e incapaz de atingir a plenitude um sem o outro.

Não quis aprofundar todas as implicações que esta descoberta maravilhosa tinha. Bastava viver o momento presente, a felicidade suprema de estar ali, agora, com ele. O futuro não existia.

Ele estava deitado de lado, com a cabeça junto à sua, a boca ligeiramente aberta, o cabelo longo e vermelho despenteado junto à cara.

Dormindo, parecia vulnerável e jovem, quase um rapazinho.

Movida por uma ternura inexprimível, Joana estendeu a mão e fez-lhe uma festa na cara.

Geraldo abriu os olhos, olhando para ela com uma expressão de amor e desejo tão intensa que a deixou sem respiração. Sem dizer uma palavra, puxou-a para ele e ela aproximou-se dele.

Estavam novamente a dormitar nos braços um do outro, quando Joana começou a ouvir um som estranho. Ficou quieta, de ouvido alerta. Estava tudo silencioso. Depois, ela apercebeu-se de que não tinha sido o barulho que a tinha despertado, mas sim o silêncio - a ausência de um barulho constante de água a tamborilar no telhado.

A chuva tinha parado.

Levantou-se e aproximou-se da janela. O céu estava carregado e cinzento, mas, pela primeira vez em mais de dez dias, havia pedaços de azul no horizonte, com raios de luz através das nuvens.

Graças a Deus, pensou ela. Agora, as inundações vão acabar.

Geraldo aproximou-se dela e abraçou-a. Ela encostou-se a ele, adorando senti-lo.

- Achas que vão começar a procurar-nos já? - perguntou ela.

- Acho que sim, agora que a chuva parou.

- Oh, Geraldo! Ela enterrou a cabeça no seu ombro. - Nunca fui tão feliz nem tão infeliz.

- Eu sei, coração.

- Nunca mais vamos poder estar juntos, pelo menos, assim.

Ele tocou no seu cabelo claro.

- Nós não precisamos de regressar, sabes.

Ela olhou para ele, surpreendida.

- O que queres dizer com isso?

- Ninguém sabe que estamos aqui. Se não fizermos nenhum sinal aos barcos de salvamento quando eles aparecerem, eles vão-se embora. Daqui a um dia, quando as águas descerem, desaparecemos da cidade durante a noite. Ninguém virá atrás de nós porque pensarão que morremos ambos nas cheias. Estaremos livres e juntos.

Ela não respondeu, mas virou-se para voltar a olhar pela janela.

Ele esperou pela decisão dela. Estava em causa a sua vida, a sua felicidade.

Pouco depois, ela virou-se para ele, novamente. Olhando para os seus olhos verde-acinzentados, cheios de dor, Geraldo percebeu que tinha perdido.

Ela disse, lentamente:

- Não posso fugir à grande responsabilidade que me foi confiada. O povo acredita em mim, não o posso abandonar. Se o fizesse, tornar-me-ia outra pessoa, uma pessoa diferente da pessoa que tu amas.

Ele sabia que nunca mais voltaria a ter tanto poder sobre ela como naquele momento. Se usasse o seu poder, se a tomasse nos braços e a beijasse, podia ser que ela concordasse em ir com ele. Mas, seria desonesto. Mesmo que ela cedesse, a sua entrega podia não durar para sempre. Ele não iria tentar persuadi-la a fazer algo de que ela viesse, depois, a arrepender-se. Ela tinha de vir ao seu encontro de livre vontade.

- Eu compreendo - disse ele. - E não te pressionarei mais.

Mas, quero que saibas uma coisa. Só o digo uma vez. És a minha verdadeira esposa neste mundo e eu, o teu verdadeiro esposo.

Aconteça o que acontecer, faça de nós o tempo e o destino o que fizer, nada pode alterar isso.

Vestiram-se para estarem prontos para quando os viessem buscar. Depois, sentaram-se os dois, abraçados um ao outro, Joana com a cabeça pousada sobre o ombro de Geraldo. Estavam sentados assim, encostados um ao outro, quando os barcos de salvamento chegaram.

Quando os levaram de volta ao Patriarchium, Joana manteve a cabeça baixa, como se estivesse a rezar. Consciente dos olhares vigilantes da guarda, não se atrevia a olhar para Geraldo porque não tinha suficiente controlo sobre os seus sentimentos.

Ao chegarem ao cais, foram rodeados imediatamente por uma multidão rejubilante, que os aclamava. Apenas tiveram tempo para um último olhar de relance, antes de serem levados, em triunfo, para os seus respectivos aposentos.

 

Papa populi, chamavam-lhe eles, o Papa do povo.

Contava-se vezes sem conta a história de como o Senhor Papa tinha saído do seu palácio no dia das cheias, arriscando a sua vida para salvar aquela gente. Onde quer que Joana fosse na cidade, era sempre recebida em júbilo. No caminho, espalhavam pétalas aromáticas de acanto e as pessoas saudavam-na do alto de todas as janelas. Ela encontrava força e consolo no amor do povo, dedicando-se-lhes com um fervor renovado.

Os optimates e o alto clero, por seu lado, estavam escandalizados com o comportamento de Joana no dia das cheias.

O Vigário de São Pedro sair a correr para salvar as pessoas num bote - que coisa absurda, uma vergonha para a Igreja e para a dignidade do cargo papal! Encaravam-na com uma antipatia crescente, aumentada pelas diferenças entre ambos: ela era uma estrangeira e eles, eram romanos por nascimento, ela acreditava no poder da razão e da observação e eles acreditavam no poder das relíquias sagradas e dos milagres, ela olhava para o futuro e era progressista e eles eram conservadores, presos aos hábitos e à tradição.

Muitos tinham entrado nas fileiras da burocracia clerical ainda em crianças. Quando chegaram à idade adulta, foram introduzidos na tradição de Latrão, tornando-se avessos à mudança. Nas suas cabeças, havia uma maneira certa de fazer as coisas e uma maneira errada - e a maneira certa era aquela que era conforme ao que se tinha feito sempre.

Era compreensível que ficassem desconcertados com o estilo de governação de Joana. Sempre que detectava um problema - a necessidade de um hospício, a injustiça de um funcionário corrupto, uma diminuição no fornecimento de mantimentos - ela procurava agir rapidamente para o corrigir.

Era frustrada frequentemente pela burocracia papal, o sistema de governo vasto e pesado que, com o passar dos séculos, se tinha transformado numa complexidade labiríntica. Havia literalmente centenas de departamentos, cada um deles com a sua própria hierarquia e as suas próprias responsabilidades guardadas ciosamente.

Impaciente por fazer as coisas, Joana procurava encontrar formas de contornar a pesada ineficácia do sistema. Quando o Geraldo ficou sem fundos para prosseguir as obras no aqueduto, ela tirou, pura e simplesmente, o dinheiro do tesouro, passando por cima do sistema habitual, de acordo com o qual o pedido tinha de passar pelo departamento do sacellarius ou tesoureiro papal.

Arsénio, sempre à espreita de uma oportunidade, fez o que pôde para explorar a situação. Procurando Vítor, o sacellarius, abordou a questão com prudência.

- Temo que Sua Santidade não tenha suficientemente em conta os nossos procedimentos romanos.

- É natural, uma vez que não nasceu aqui - respondeu Vítor, num tom descomprometido. Homem prudente, não revelaria a sua posição até Arsénio revelar a sua.

- Fiquei chocado ao saber que ele retirou fundos do tesouro, sem passar pelo vosso departamento.

- Foi bastante... impróprio - admitiu Vítor.

- Impróprio! - exclamou Arsénio. - Meu caro Vítor, no vosso lugar, eu não seria tão caridoso.

- Não?

- Se eu fosse a vós - disse Arsénio - procurava proteger-me.

Vítor abandonou o seu ar de indiferença estudada.

- Ouvistes dizer alguma coisa? - perguntou ele ansiosamente. - Sua Santidade pretende substituir-me?

- Quem sabe? - respondeu Arsénio. - Talvez ele pretenda acabar com o cargo de sacellarius. Depois, pode tirar os fundos que quiser do tesouro, sem ter de dar quaisquer explicações a ninguém.

- Ele nunca se atreveria!

- Não?

Vítor não respondeu. Esgrimista exímio como ele era, Arsénio, calculou a jogada seguinte.

- Começo a temer - disse ele - que a eleição de João tenha sido um erro. Um erro grave.

- Já pensei nisso - admitiu Vítor. - Algumas das ideias de Sua Santidade - por exemplo, a escola para mulheres... - Vítor abanou a cabeça. - Os caminhos de Deus, realmente, são misteriosos.

- Não foi Deus que pôs João no trono, Vítor, fomos nós. E podemos retirá-lo.

Aquilo era de mais.

- João é o Vigário de Cristo - disse Vítor, profundamente chocado. - Admito que ele é... estranho. Mas, agir contra ele? Não... não... certamente, não temos de chegar a tanto.

- Bem, bem, pode ser que tenhais razão.

Arsénio deixou a questão cair, habilmente. Não havia necessidade de continuar, ele tinha plantado a semente e sabia que ela acabaria por germinar.

 

Geraldo não tinha visto a Joana desde o dia em que se tinham separado, depois da cheia. O trabalho que ainda havia para fazer no aqueduto não era dentro da cidade, mas sim no Tivoli, a cerca de vinte milhas. Geraldo estava muito envolvido em todos os aspectos da construção, desde a supervisão dos planos de reparação, até à supervisão das equipas de trabalho. Muitas vezes, envolvia-se directamente no trabalho, ajudando a levantar pedras pesadas e a cobri-las com argamassa nova. Os homens ficavam surpreendidos de ver o senhor superista a fazer um trabalho tão humilde, mas Geraldo não se importava, porque era só no trabalho físico duro que ele encontrava um momento de alívio do desgosto que o queimava interiormente.

Era melhor, pensava ele, muito melhor se nunca nos tivéssemos deitado como marido e mulher. Talvez, então, ele pudesse continuar como antes. Mas, agora...

Era como se tivesse vivido cego todos aqueles anos. Todos os caminhos por onde tinha andado, todos os riscos que tinha corrido, tudo quanto tinha feito conduziam a uma única pessoa: Joana.

Quando o aqueduto ficasse pronto, ela esperava que ele retomasse o seu posto como comandante da guarda papal. Voltar a estar perto dela todos os dias, vê-la e saber que ela estava fora do seu alcance... seria insuportável.

Sairei de Roma, pensou ele, mal o trabalho do aqueduto termine. Voltarei para Benevento e retomarei o comando do exército de Siconulf. Havia uma simplicidade atraente na vida de soldado, com os seus inimigos definidos e objectivos precisos.

Trabalhava com os seus homens dia e noite. Três meses depois, a obra estava pronta.

O aqueduto restaurado foi dedicado solenemente na Festa da Anunciação. Encabeçado por Joana, todo o clero - porteiros, acólitos, leitores, exorcistas, padres, diáconos e bispos -, rodearam os arcos em peperino maciço numa procissão solene, aspergindo as pedras com água benta, enquanto cantavam litanias, salmos e hinos. A procissão parou e Joana pronunciou algumas palavras de bênção. Olhou para o sítio onde estava Geraldo, à espera no cimo dos arcos, de pé, com as suas longas pernas, mais alto do que todos os outros à sua volta.

Ela acenou-lhe e ele puxou uma alavanca, abrindo os portões das comportas. As aclamações do povo fizeram-se ouvir quando as águas frias, puras e saudáveis da nascente do Subiaco, que ficava a cerca de quarenta e cinco milhas dos muros da cidade, correram até ao Campo de Marte pela primeira vez em mais de trezentos anos.

 

Construído em estilo imperial, o trono papal era uma peça maciça e espaldada em carvalho, adornada com rubis, pérolas, safiras e outras pedras preciosas, tão desconfortável como impressionante. Joana tinha estado sentada nele durante mais de cinco horas, concedendo audiência a uma corrente de peticionários. Agora, estava inquieta, tentando aliviar o desconforto crescente que sentia nas costas.

Juvianus, o decano dos intendentes, anunciou o peticionário seguinte.

- Magister militum Daniel.

Joana franziu o sobrolho. Daniel era um homem difícil, colérico e irascível - e era um amigo próximo do bispo Arsénio. A sua presença ali só podia significar problemas.

Daniel entrou apressadamente, fazendo vénias a vários notários e a outros funcionários papais.

- Santidade.

Saudou Joana com uma pequena vénia, depois começou a dizer, com uma rude brusquidão:

- É verdade que, nas ordenações de Março, pretendeis instalar Nicéforo como bispo de Trevi?

- É.

- O homem é um grego! - protestou Daniel.

- E isso que interessa?

- Uma posição tão importante tem de ser para um romano.

Joana suspirou. Era verdade que os seus predecessores tinham utilizado o episcopado como instrumento político, distribuindo bispados entre as famílias romanas, como tesouros escolhidos.

Joana discordava com esta prática porque tinha resultado numa grande quantidade de episcopi agraphici - bispos iletrados, que tinham espalhado todo o tipo de ignorâncias e superstições. Afinal, como é que um bispo podia interpretar correctamente a palavra de Deus pai para o seu rebanho, se nem sequer era capaz de a ler?

- Uma posição tão importante - respondeu ela, calmamente -, deve ser para a pessoa mais qualificada. Nicéforo é um homem conhecedor e piedoso. Será um óptimo bispo.

- É natural que assim penseis, uma vez que sois estrangeiro.

Daniel utilizou deliberadamente o termo barbarus, e não o termo peregrinus, mais neutro.

Os outros ficaram manifestamente incomodados.

Joana fitou Daniel directamente nos olhos.

- Isto não tem nada que ver com Nicéforo - disse ela. - Estais guiado por motivos egoístas, Daniel, pois quereis que o vosso próprio filho, Pedro, seja bispo.

- E porque não? - disse Daniel, num tom defensivo. - Pedro é mais adequado para o lugar em virtude da família e do nascimento.

- Mas não por capacidade - disse Joana num tom seco.

Daniel abriu a boca de espanto.

- Atreveis-vos... atreveis-vos... o meu filho...

- O vosso filho - interrompeu-o Joana - lê tão bem o leccionário de pernas para o ar como direito porque não sabe latim. Empenhou-se em decorar as poucas passagens da Escritura que consegue citar. O povo merece melhor. E terá Nicéforo!

Daniel levantou-se, profundamente ofendido.

- Tomai nota das minhas palavras, Santidade: ainda havereis de ouvir falar deste assunto.

E saiu.

Joana pensou: vai ter com Arsénio, que, sem dúvida nenhuma, arranjará maneira de provocar mais sarilhos. Daniel tinha razão numa coisa: ela ainda ia ouvir falar daquele assunto.

De repente, sentiu-se extremamente cansada. O ar na sala sem janelas pareceu abater-se sobre ela, sentiu-se tonta e a desfalecer. Agarrou o pallium, afastando-o do pescoço.

- O senhor superista - anunciou Juvianus.

Geraldo! Joana animou-se. Eles não falavam um com o outro desde o dia em que tinham sido salvos. Ela tinha esperado que ele aparecesse naquele dia, apesar de, ao mesmo tempo, temer o encontro dos dois. Consciente de que os outros a observavam, Joana manteve um rosto impassível.

Então, Geraldo entrou e o seu coração traiçoeiro deu um salto ao vê-lo. A luz tremeluzente iluminou-lhe o rosto, lançando luz sobre os ângulos elegantemente desenhados do seu queixo e das maçãs do rosto. Ele correspondeu ao seu olhar, os seus olhos estabeleceram uma comunicação silenciosa e, por momentos, ficaram completamente a sós no meio de tanta gente.

Ele avançou e ajoelhou-se diante do trono.

- Levanta-te, superista - disse ela.

Será que era imaginação dela, ou a sua voz tremia?

- Neste dia, ficaste coroado de glória. Toda a cidade de Roma te é devedora.

- Agradeço-vos, Santidade.

- Hoje à noite, celebraremos a tua grande obra com um banquete. Sentar-te-ás na minha mesa, num lugar de honra.

- Infelizmente, não poderei estar presente. Parto hoje de Roma.

- Partes de Roma? - Ela foi apanhada de surpresa. - O que queres dizer com isso?

- Agora, que a grande obra de que me havíeis encarregado está pronta, renuncio ao meu cargo de superista. O príncipe Siconulf pediu que eu voltasse para Benevento, para retomar o comando dos seus exércitos e eu aceitei o cargo.

Joana manteve a sua postura rígida no trono, mas as suas mãos crisparam-se sobre os seus braços.

- Não podes fazer isso - respondeu ela, bruscamente. - Eu não o autorizarei.

Os prelados na assembleia levantaram o sobrolho. Era verdade que era raro que alguém renunciasse a um posto de tanto prestígio, mas Geraldo era um franco livre que podia assumir os compromissos que entendesse.

- Ajudando Siconulf - respondeu Geraldo, com sensatez -, continuarei a servir também os interesses de Roma porque os territórios de Siconulf constituem um forte baluarte cristão contra os lombardos e os sarracenos.

Joana cerrou os maxilares. Virando-se para os outros, ordenou:

- Deixai-nos.

Juvianus e os outros trocaram olhares surpreendidos, depois saíram da sala fazendo vénias.

- Foi sensato? - perguntou Geraldo, depois de eles terem saído. - Agora, podem ficar com suspeitas.

- Eu tinha de falar contigo a sós - respondeu ela, aflita. - Deixar Roma? O que tens em mente? Não interessa, eu não o autorizarei. Siconulf que encontre outro para comandar as suas tropas, eu preciso de ti aqui comigo.

- Oh, minha pérola. - A sua voz era uma carícia. - Abre os olhos: não podemos, sequer, olhar um para o outro sem trair o que sentimos. Úm único olhar imprudente, uma palavra descuidada, e a tua vida pode ficar em perigo! Tenho de partir, não vês?

Joana compreendia o que ele estava a dizer, sabia, inclusivamente, que ele tinha razão, de certa maneira. Mas, não queria saber. A ideia da sua partida, enchia-a de desgosto. Geraldo era a única pessoa que a conhecia verdadeiramente, a única em que podia confiar absolutamente.

Ela disse:

- Sem ti, eu fico completamente sozinha. Acho que não sou capaz de o suportar.

- És mais forte do que pensas.

- Não - disse ela.

Levantou-se do trono para se aproximar dele, e cambaleou, sentindo uma onda de tonturas.

Geraldo estava instantaneamente ao seu lado. Pegou-lhe no braço, apoiando-a.

- Estás doente!

- Não, não. Só... muito cansada.

- Tens trabalhado demasiado. Precisas de descansar. Anda, eu ajudo-te a chegar aos teus aposentos.

Ela agarrou-se a ele com força.

- Promete-me que não partes antes de termos oportunidade de voltar a conversar.

- Claro que não parto. - Os seus olhos estavam cheios de preocupação. - Não partirei antes que te sintas bem outra vez.

 

Joana estava deitada na sua cama, no sossego do seu quarto.

Será que estou mesmo doente?, pensou ela. Se estou, tenho de descobrir o que tenho e tratar-me depressa, antes que Enódio e os outros médicos da schola fiquem a saber.

Começou a pensar no problema, colocando questões a si própria, como se fosse paciente de si própria.

Quando começaram os primeiros sintomas?

Agora que pensava nisso, já não se sentia bem havia algumas semanas.

Quais são os sintomas?

Fadiga. Falta de apetite. Uma sensação de inchaço. Náuseas ao levantar-se de manhã...

De repente, ficou aterrada.

Começou a fazer contas, tentando lembrar-se de quando tinha tido a última menstruação. Havia dois meses, talvez três.

Tinha estado tão ocupada, que nem tinha prestado atenção.

Os sintomas condiziam todos, mas, havia uma forma de ter a certeza. Inclinou-se e pegou no vazo de noite que se encontrava no chão junto à cama.

Pouco depois, voltou a poisá-lo com as mãos a tremer.

Não havia dúvidas. Estava grávida.

 

Anastácio tirou os seus coturnos de veludo e recostou-se confortavelmente no divã. Belo dia, pensou ele, satisfeito consigo próprio. Sim, o dia tinha corrido muito bem. De manhã, tinha aparecido na corte imperial, impressionando Lothar e todo o seu séquito com a sua sabedoria e cultura.

O Imperador tinha-lhe perguntado a opinião acerca do De corpore et sanguine Domini, o tratado que estava a causar tanta polémica entre os teólogos do país. Escrito por Paschasius Radbertus, abade de Corbie, o tratado avançava a teoria arrojada segundo a qual a Eucaristia continha o verdadeiro Corpo e o verdadeiro Sangue de Cristo Salvador - não a Sua carne simbolicamente, mas a sua verdadeira carne, a sua carne histórica: aquela com que ele nasceu de Maria, sofreu na cruz e ressuscitou do túmulo.

- O que pensais, cardeal Anastácio? - tinha-lhe perguntado Lothar. - A Hóstia sagrada é o Corpo de Cristo em mistério ou em verdade?

Anastácio foi rápido na resposta:

- Em mistério, senhor. Porque pode ser demonstrado que Cristo tem dois corpos distintos: o primeiro, nascido de Maria, o segundo, representado simbolicamente na Eucaristia. Hoc est corpus meum, disse Jesus acerca do pão e do vinho, na Última Ceia. Isto é o meu corpo. Mas ainda estava presente aos seus discípulos em corpo, quando o disse. Portanto, é evidente que as Suas palavras tinham um sentido figurado.

O argumento era tão inteligente que, quando ele acabou de falar, todos o aplaudiram. O imperador tinha-lhe feito um elogio, chamando-lhe outro Alcuino. Arrancando vários cabelos à sua barba, apresentou-os a Anastácio - um gesto da maior honra entre aquele povo bárbaro e estranho.

Anastácio sorriu, revivendo o prazer daquele momento. Deitou vinho numa taça em prata, vertendo-o do jarro que se encontrava em cima da mesa, depois pegou no rolo de pergaminho com a última carta do seu pai.

Quebrou o selo em cera e desenrolou o fino vellum branco. Os seus olhos percorreram avidamente as linhas. Deteve-se no relato do roubo dos corpos de São Marcelino e de São Pedro do cemitério onde se encontravam.

Não que o roubo de corpos de santos fosse raro, os santuários cristãos pelo mundo inteiro reclamavam constantemente aquele tipo de relíquias sagradas para atraírem multidões de fiéis com a promessa de milagres. Os romanos, com um espírito pragmático, tinham feito fortuna com esta obsessão estrangeira com relíquias, fazendo comércio regular com elas.

Os peregrinos incontáveis que inundavam a Cidade Santa estavam dispostos a desembolsar somas avultadas por um dedo de São Damiano, uma clavícula de Santo António ou uma pestana de Santa Sabina.

Mas, os corpos de São Marcelino e de São Pedro não tinham sido vendidos, tinham sido roubados, retirados ignominiosamente dos seus túmulos, de noite, e contrabandeados para fora da cidade. Furta sacra - o roubo de coisas sagradas - era o nome que se dava a tais crimes.

Tinham que ser impedidos porque despojavam a cidade dos seus maiores tesouros.

Depois deste roubo miserável - escrevia o seu pai - pedimos ao papa João que duplicasse o número de guardas colocados nos pátios das igrejas e nos cemitérios. Mas, ele recusou. Diz que os homens são mais úteis no serviço dos vivos do que dos mortos.

Anastácio sabia que João tinha posto grande parte das milícias papais a trabalharem na construção de escolas, hospícios e casas de acolhimento. Tinha dedicado o seu tempo e a sua atenção - e grande parte das finanças papais - a projectos seculares daqueles, enquanto as igrejas da cidade tinham sido deixadas ao abandono. A igreja do seu próprio pai não tinha recebido nem mais uma lâmpada em ouro ou um candelabro de prata, desde que João tinha tomado posse. Mas, as inúmeras catedrais, oratórios, baptistérios e capelas eram a glória de Roma. Se não fossem embelezadas e melhoradas constantemente, Roma não podia ter esperança de competir com o esplendor da sua rival oriental - Constantinopla - que, agora, tinha o descaramento de se chamar a si própria a Nova Roma.

Se - não, Anastácio corrigiu-se a si próprio - quando ele fosse papa, as coisas seriam diferentes. Ele faria Roma regressar aos seus dias de glória. Sob o seu patronato solícito, as suas igrejas voltariam a resplandecer com riquezas fabulosas, ainda mais esplendorosas do que os melhores palácios de Bizâncio. Ele sabia que essa era a grande obra para a qual Deus o tinha posto na terra.

Retomou a leitura da carta do seu pai, mas com menos interesse, porque a última parte se ocupava de assuntos de menor importância: a lista dos nomes daqueles que seriam ordenados nas cerimónias da Páscoa seguinte tinha acabado de ser publicada, o seu primo Cosme tinha voltado a casar, desta vez, com uma diaconisa viúva, um certo Daniel, magister militum, tinha ficado muito ofendido porque o seu filho tinha sido preterido para o episcopado, a favor de um grego.

Anastácio endireitou-se. Um grego para bispo! O seu pai parecia considerar aquele gesto apenas como mais um exemplo da lamentável falta de romanità do papa João. Seria possível que lhe tivessem passado completamente despercebidas as possibilidades que a situação apresentava?

Esta, pensou Anastácio, cada vez mais excitado, é a oportunidade por que eu esperava. Finalmente, a sorte tinha-lhe posto uma possibilidade nas mãos.

Levantou-se rapidamente e dirigiu-se para a sua secretária.

Pegando numa pena, começou a escrever: Querido Pai: não percais tempo ao receberdes esta carta. Mandai o magister militum Daniel vir ter comigo imediatamente.

 

Joana andava de um lado para o outro no quarto papal. Como é que eu pude ser tão cega?, perguntava-se ela a si própria. Não lhe tinha ocorrido, pura e simplesmente, que podia estar grávida. Afinal, tinha mais de quarenta e um anos de idade, já tinha passado, havia muito, o tempo de dar à luz.

Mas, a mamã era ainda mais velha quando deu à luz pela última vez.

E morreu no parto.

Nunca te entregues a um homem.

Medo, frio e irracionalidade apertaram o coração de Joana.

Procurou acalmar-se. Afinal, o que tinha acontecido à mamã, não tinha necessariamente de lhe acontecer a ela. Ela era forte e saudável, tinha grandes hipóteses de sobreviver ao parto. Mas, mesmo que sobrevivesse, o que aconteceria depois?

Na colmeia vigiada que o Patriarchium era, não havia forma de manter o seu parto em segredo, nem de esconder a criança depois de ela ter vindo ao mundo. A sua feminilidade seria descoberta, de certeza.

Que espécie de morte seria considerada suficiente para castigar um crime daqueles? Certamente, seria uma morte terrível. Podia ser que lhe arrancassem os olhos com ferros em brasa e que a descarnassem. Ou podia ser que a desmembrassem lentamente e depois a queimassem viva. Alguma dessas mortes hediondas seria inevitável quando a criança viesse.

Se ela viesse...

Pôs ambas as mãos na barriga, não havia qualquer sinal de movimento do bebé que crescia dentro dela. O fio de vida ainda era muito fraco, não era preciso muito para o quebrar.

Dirigiu-se ao armário fechado onde guardava os seus medicamentos. Tinha-os mandado vir do seu herbarium pouco depois da sua consagração, estavam mais à mão aqui e mais seguros contra roubos. As suas mãos pegaram em vários frascos e garrafas, até encontrar o que procurava. Habilidosamente, deitou uma medida de cravagem-de-centeio num copo de vinho forte. Em pequenas doses, era um medicamento que fazia bem, em doses maiores, podia provocar abortos - apesar de nem sempre actuar e ser um grande risco para a mulher ingeri-lo.

Que escolha tinha ela? Se não pusesse fim àquela gravidez, podia enfrentar uma morte muito pior.

Levou a taça aos lábios.

As palavras de Hipócrates vieram-lhe à mente, inconscientemente: a arte medicinal é sagrada. Um médico deve usar o seu saber para ajudar os doentes, de acordo com a sua habilidade e julgamento, mas nunca para fazer mal.

Joana afastou o pensamento resolutamente. Toda a sua vida o seu corpo de mulher tinha sido fonte de desgosto e de dor, um impedimento para tudo quanto ela queria fazer e ser. Agora, não deixaria que ele lhe roubasse a vida.

Inclinou a taça e bebeu-a.

Nunca para fazer mal. Nunca para fazer mal.

As palavras queimavam-na, despedaçando-lhe o coração. Com um soluço, atirou com a taça vazia para o chão. Ela rolou, fazendo uma nódoa escarlate no chão, ao verter as suas últimas gotas.

Ela deitou-se na cama e esperou que a cravagem-de-centeio fizesse efeito. O tempo passou, mas ela não sentiu nada. Não está a resultar, pensou ela. Estava assustada e, simultaneamente, muito aliviada. Quando se sentou, deu-lhe um ataque de tremor. O seu corpo tremia com espasmos descontrolados. O coração batia-lhe, quando tomou o pulso, viu que ele batia irregularmente.

Sentiu dores. Ficou espantada com a sua intensidade, como se fosse um ferro em brasa espetado nas suas entranhas. Abanava a cabeça de um lado para o outro, mordendo o lábio para não gritar. Não se atrevia a correr o risco de chamar a atenção da casa papal.

As horas seguintes passaram-se numa espécie de névoa, com Joana a oscilar entre a consciência e a inconsciência. A certa altura, começou a ter alucinações, parecia-lhe que a sua mãe estava sentada ao pé dela, que lhe chamava passarinho, e que cantava para ela na Velha Língua, tal como costumava fazer, colocando as suas mãos frias sobre a sua testa a arder.

Acordou antes de amanhecer, fraca e a tremer. Ficou deitada, quieta, durante muito tempo. Depois, começou a examinar-se a si própria, lentamente. O seu pulso era regular, a batida do seu coração mais forte, a sua pele tinha boa cor. Não havia hemorragias, nem sinais de qualquer dano irreversível.

Tinha sobrevivido à tribulação.

Mas, a criança dentro dela, também.

Só podia contar com uma pessoa. Quando disse a Geraldo o estado em que estava, ele começou por reagir com uma descrença chocada.

- Meu Deus!... é possível?

- Claro - disse Joana, secamente.

Ele parou por um momento, com o olhar fixo e pensativo.

- Por isso é que tens estado doente?

- Sim.

Ela não mencionou a tentativa de aborto, era provável que nem mesmo Geraldo compreendesse.

Ele tomou-a nos braços e abraçou-a com força, encostando-lhe a cabeça ao seu ombro. Ficaram muito tempo em silêncio, partilhando silenciosamente o que lhes ia nos corações.

Ele disse calmamente:

- Lembras-te do que eu te disse no dia das cheias?

- Dissemos muitas coisas um ao outro - respondeu ela, mas sentiu que o pulso se tornava mais rápido porque sabia ao que ele se referia.

- Eu disse que tu eras a minha verdadeira esposa neste mundo e eu o teu verdadeiro esposo.

Pegou-lhe no queixo com a mão, levantando os olhos dela para os seus.

- Compreendo-te melhor do que tu pensas, Joana. Sei como o teu coração está dividido. Mas, agora, o destino decidiu por nós. Vamos embora daqui e ficaremos juntos como estamos destinados a ficar.

Ela sabia que ele tinha razão. Não havia mais nada a fazer.

Todos os caminhos à sua frente se reduziam, agora, a um único.

Sentia-se triste e ansiosa e, ao mesmo tempo, estranhamente excitada.

- Podemos partir amanhã - disse Geraldo. - Despede os teus camareiros de noite. Quando todos estiverem a dormir, não será difícil fugires pela porta lateral. Eu estarei à tua espera com roupas de mulher, para mudares mal sairmos dos muros da cidade.

- Amanhã!

Ela tinha aceitado a ideia de partir, mas não tinha pensado que fosse tão depressa.

- Mas... eles virão à minha procura.

- Quando vierem, já nós estamos longe. E irão à procura de dois homens, não de um simples peregrino e da sua mulher.

Era um plano audacioso, mas podia resultar. Mesmo assim, ela resistia-lhe:

- Não posso partir agora. Ainda tenho tanta coisa para acabar, tanta coisa para fazer.

- Eu sei, coração - disse ele, ternamente. - Mas, não há outra hipótese, certamente que o compreendes.

- Espera pela Páscoa - propôs ela. - Depois, eu vou contigo.

- Pela Páscoa! Mas, é quase daqui a um mês! E se alguém se aperceber do teu estado antes disso?

- Só estou de quatro meses. Por baixo de vestes tão longas, posso esconder a gravidez durante mais um mês.

Geraldo abanou a cabeça veementemente:

- Não posso permitir que corras esse risco. Tens de sair daqui agora, enquanto ainda é tempo.

- Não - disse ela com igual convicção. - Não deixarei o meu povo sem o seu papa no dia mais santo do ano.

Ela está assustada e perturbada, pensou Geraldo, por isso não está a pensar com clareza. De momento, concordaria com ela, uma vez que não tinha muita escolha, mas, calmamente, iria preparar as coisas para uma partida rápida. Se houvesse qualquer perigo, ele levá-la-ia para um lugar seguro - mesmo que fosse à força.

 

Na nox magna, a Grande Noite da celebração da Páscoa, milhares de pessoas estavam reunidas dentro e à volta da Catedral de Latrão para acompanharem a celebração da vigília pascal, do baptismo e da missa. A longa liturgia começava na noite de sábado e continuava até ao romper da manhã de Páscoa.

Fora da santa catedral, Joana acendeu o círio pascal, depois, entregou-o a Desidério, o arquidiácono, que o transportou cerimoniosamente para a igreja às escuras. Joana e o resto do clero seguiram-no, cantando o lumen Christi, hino à luz de Cristo. A procissão parou três vezes a caminho da nave central, enquanto Desidério acendia as velas dos fiéis no círio pascal. Quando Joana chegou ao altar, a grande nave brilhava à luz de milhares de pequenas velas, cuja luz tremeluzente se reflectia, brilhando, no mármore polido das paredes e das colunas, representando a Luz trazida ao mundo por Cristo.

- Exultet jam angelica turba caelorum. Exultent divina mysteria!

Desidério deu início ao Exultet, jubilosamente. O canto venerando, com a sua velha melodia, lindíssima e impressionante, soou aos ouvidos de Joana de forma especial.

Nunca mais voltarei a estar diante deste altar e nunca mais ouvirei esta doce melodia, pensou ela. A ideia provocou nela um grande sentimento de perda. Aqui, durante a celebração da redenção e da esperança, ela fez a experiência de uma fé verdadeira em Deus.

O vere beata nox, quae expoliavit Aegyptios. ditavit Hebraeos! Nox, in qua terrenis caelestia junguntur...

Ao sair da catedral, no fim da missa, a Joana viu um homem com as roupas rasgadas e enlameadas à espera, na escadaria.

Tomando-o por um pedinte, fez sinal a Vítor, o sacellarius, para lhe dar uma esmola.

O homem recusou as moedas oferecidas.

- Não sou um pedinte, Santidade, sou um mensageiro, trago notícias urgentes.

- Então, contai-as.

- O imperador Lothar e o seu exército estão em Paterno. À velocidade a que viajam, estarão em Roma daqui a dois dias.

Ouviu-se um murmúrio de alarme proveniente dos prelados que se encontravam perto.

- O cardeal-presbítero Anastácio vem com eles - acrescentou o mensageiro.

Anastácio! A sua presença entre o séquito imperial era muito mau sinal.

- Porque lhe chamais cardeal-presbítero? - perguntou Joana, em tom de censura. - Anastácio já não tem direito a esse título, uma vez que está excomungado.

- Peço perdão, Santidade, mas foi assim que ouvi o Imperador dirigir-se-lhe.

Esta era a pior notícia. O desrespeito do imperador pela sentença de excomunhão de Leão era um desafio directo e inequívoco à autoridade papal. Em tal estado de espírito, Lothar era capaz de tudo.

Nessa noite, ao discutirem aqueles acontecimentos, Geraldo voltou a pressioná-la para manter a sua promessa.

- Eu esperei até à Páscoa, como tu querias. Agora, tens de partir, antes que Lothar chegue.

Joana abanou a cabeça.

- Se o trono papal ficar vago quando Lothar chegar, ele utilizará o seu poder para conseguir que Anastácio seja eleito papa.

A Geraldo não agradava mais a ideia de Anastácio se tornar papa do que a ela, mas a sua segurança preocupava-o ainda mais. Disse:

- Haverá sempre um motivo para nos impedir de partir, Joana. Não podemos adiar para sempre.

- Não vou trair a confiança do povo, deixando-o nas suas mãos - disse ela, teimosamente.

Geraldo teve de se controlar para não pegar nela, pura e simplesmente, levando-a dali, da teia de perigos que se estava a tecer à volta dela. Como se adivinhasse os seus pensamentos, a Joana apressou-se a falar.

- É uma questão de dias - disse ela, num tom conciliador. Seja qual for a intenção da vinda de Lothar, é pouco provável que fique mais tempo do que o necessário para atingir os seus fins. Mal ele se for embora, eu partirei contigo.

Ele pensou nisso por momentos.

- E não levantarás mais objecções à partida?

- Não - prometeu Joana.

No dia seguinte, Joana esperava na escadaria de São Pedro, enquanto Geraldo foi esperar Lothar para o cumprimentar. Havia sentinelas postadas ao longo de todo o Muro Leonino, vigiando.

Pouco depois, ouviu-se o grito de anúncio, vindo do lado do muro:

- O Imperador chegou!

Joana mandou abrir a porta de San Peregrinus.

Lothar vinha à frente. Anastácio cavalgava ao seu lado, ostentando o pallium de cardeal. O seu rosto de patrício distinto registava um ar orgulhoso.

Joana agiu como se ignorasse a sua presença. Esperou nos degraus que o Imperador desmontasse e se aproximasse dela.

- Majestade, sêde bem-vindo à Cidade Santa de Roma.

Estendeu-lhe a mão direita, na qual tinha o anel papal.

Lothar não se ajoelhou, mas inclinou-se para beijar o símbolo da sua autoridade espiritual.

Até aqui, está tudo bem, pensou ela.

A primeira fila dos homens de Lothar abriu-se em duas e ela viu Geraldo. O seu rosto estava irado e tinha os pulsos atados com uma corda.

- O que significa isto? - perguntou Joana. - Porque está o superista manietado?

Lothar respondeu:

- Foi preso sob acusação de traição.

- Traição? O superista é meu fiel servidor. Não há ninguém em quem eu confie mais.

Anastácio falou pela primeira vez.

- A traição não é contra o vosso trono, Santidade, mas sim contra o do imperador. Geraldo é acusado de conspirar para entregar Roma nas mãos dos gregos.

- Que disparate! Quem fez uma acusação tão infundada?

Daniel saiu detrás de Anastácio e fixou Joana com um olhar de triunfo maligno.

- Eu - disse ele.

 

Mais tarde, na privacidade dos seus aposentos, Joana concentrou-se no problema, tentando pensar numa forma de reagir. Reconhecia que era um complô diabolicamente bem pensado. Como Pontífice, ela não podia ser posta em tribunal.

Mas, Geraldo podia - e se fosse considerado culpado, ela também estaria implicada. O plano tinha a marca evidente de Anastácio.

Bem, mas ele não vai conseguir o que pretende. Espetou o queixo, em tom de desafio. Anastácio podia fazer o que quisesse. Não conseguiria ganhar. Ela ainda era Papa, tinha poder e recursos próprios.

 

O Grande Triclinium era uma parte relativamente recente do Patriarchium, mas já tinha um grande significado histórico.

A pintura das suas paredes tinha acabado de secar quando o avô de Lothar - Carlos Magno - e o papa Leão III se encontraram ali com os seus sequazes para estabelecerem o acordo épico que faria de Carlos, rei da França, imperador do Sacro Romano Império, mudando a face do mundo para sempre.

Os cinquenta e cinco anos que tinham decorrido desde então não tinham diminuído em nada o esplendor do salão. As suas três naves estavam revestidas de mármore branco e adornadas com colunas requintadas em porfíria, decoradas com uma complexidade maravilhosa. Por cima do revestimento em mármore, as paredes estavam cobertas com murais coloridos, representando a vida do apóstolo Pedro, cada um deles desenhado com uma arte extraordinária. Mas, estas maravilhas eram ofuscadas pelo grande mosaico colocado sobre o arco da nave central. Nele, estava representada a coroação magnificente de São Pedro, rodeado por uma auréola de santo. À sua direita, ajoelhava-se o papa Leão e à sua esquerda, o imperador Carlos, cada um deles com a cabeça rodeada por uma auréola quadrada, o sinal dos vivos - ambos tinham vivido no tempo em que o triclinium tinha sido construído.

Ao cimo do salão, encontravam-se Joana e Lothar, sentados em dois grandes tronos cobertos de jóias e colocados sedentes pariter, o que queria dizer que ocupavam lugares de igual cerimónia, os dois tronos estavam colocados cuidadosamente lado a lado, nivelados um pelo outro, para não dar mais importância a um do que a outro. Os arcebispos, os cardeais-presbíteros e os abades de Roma estavam sentados de frente para eles em cadeiras de espaldar de estilo bizantino, estofadas confortavelmente com veludo verde. Os outros sacerdotes, os optimates, e o resto dos chefes dos francos e dos romanos estavam atrás, enchendo completamente o salão.

Quando todos já tinham tomado os seus lugares, os homens de Lothar trouxeram Geraldo, com as mãos ainda atadas atrás das costas. Joana cerrou os lábios, quando viu as nódoas negras que ele tinha no rosto e no pescoço, era óbvio que lhe tinham batido.

Lothar dirigiu-se a Daniel:

- Aproximai-vos, Magister Militum, e pronunciai a vossa acusação de forma a que todos a oiçam.

Daniel disse:

- Eu ouvi o superista dizer ao papa João que Roma devia fazer uma aliança com os gregos para libertar a cidade do domínio franco.

- Mentiroso! - rugiu Geraldo e foi recompensado, imediatamente, com uma grande bofetada de um dos guardas.

- Afastai-vos! - disse Joana ao guarda, num tom ríspido.

E disse a Geraldo:

- Negais estas acusações, superista?

- Nego. São falsas e mentiras maldosas.

Joana respirou fundo. Tinha de agir agora ou nunca. Falando alto, para que todos ouvissem, disse:

- Confirmo o testemunho do superista.

Ouviu-se um murmúrio chocado entre a assembleia dos prelados. Respondendo assim, o papa João tinha passado de juiz para acusado, colocando-se a si próprio em tribunal, a par de Geraldo.

Pascal, o primicerius, interferiu com sobriedade:

- Santidade, a acusação não deve ser apoiada ou negada por vós. Lembrai-vos das palavras de Carlos Magno: Judicare non audemos. Não estais em julgamento, nem podeis ser julgado por qualquer tribunal terreno.

- Eu sei, Pascal. Mas, estou preparado para responder a estas acusações de livre vontade para libertar as mentes dos homens de qualquer suspeita injusta.

Acenou a Florentinus, o vestiarius. Tal como combinado, ele avançou imediatamente com um grande livro dos evangelhos, com uma encadernação magnífica, contendo a palavra sagrada dos apóstolos João, Lucas, Marcos e Mateus. Joana pegou no livro com reverência.

Declarou com uma voz sonora.

- Juro diante de Deus e de São Pedro, sobre estes evangelhos sagrados, onde se revela a Palavra de Deus, que esta conversa nunca ocorreu. Se não estiver a dizer a verdade, que Deus me atinja aqui mesmo.

O gesto dramático parecia ter resultado. Durante o silêncio absoluto que se seguiu, ninguém se mexeu, nem ninguém disse palavra.

Depois, Anastácio avançou, tomando posição ao lado de Daniel.

- Ofereço-me como sacramentale por este homem - disse ele.

O coração de Joana apertou-se. Anastácio tinha respondido com um contra-argumento perfeito. Tinha invocado a lei da conjuratio, de acordo com a qual a culpa ou a inocência se atestava de acordo com o lado da disputa que conseguia reunir maior número de sacramentales ou garantes do juramento.

Apressando-se, para dominar a situação, Arsénio levantou-se do seu lugar e juntou-se ao seu filho. Um a um, outros encaminharam-se lentamente para o seu lado. Jordanes, o secundicerius, que se tinha oposto à Joana na questão da escola para as mulheres, encontrava-se entre eles, assim como Vítor, o sacellarius.

Joana lembrou-se pesarosamente das repetidas vezes em que Geraldo a tinha avisado para ter calma e para ser mais diplomática com os seus opositores. Na sua ânsia de avançar, não tinha prestado suficiente atenção ao seu conselho.

Agora, arrependia-se.

- Servirei como sacramentale para o superista. - Ouviu-se uma voz distinta vinda da assembleia.

Joana e os outros viraram-se e viram Radoin, segundo-comandante da guarda papal, abrindo caminho por entre a multidão. Colocou-se ostensivamente ao lado de Geraldo. A sua atitude influenciou outros, em breve, Juvianus, o decano dos intendentes, avançou, seguido pelos cardeais-presbíteros José e Teodoro e por seis bispos ruburbicarii, assim como por várias dúzias de membros do clero menor que, estando mais perto do povo, podiam apreciar melhor o que Joana tinha feito por eles. O resto da assembleia manteve-se distante, sem querer comprometer-se.

Quando todos aqueles que desejavam tinham avançado, começou a contagem: cinquenta e três homens do lado de Geraldo e setenta e quatro do lado de Daniel.

Lothar pigarreou:

- O juízo de Deus manifestou-se. Avançai, superista, para receberdes a vossa sentença.

Os guardas avançaram na direcção de Geraldo, mas ele esquivou-se-lhes.

- A acusação é falsa, não importa quantos tenhais escolhido para cometer perjúrio, apoiando-a. Reclamo o direito a uma prova física.

Joana conteve a respiração. Aqui, no Sul do Império, a prova física era pelo fogo, não pela água. E o homem acusado tinha de caminhar descalço sobre uma fila de ferros em brasa com vinte pés de comprimento. Se conseguisse passar, era considerado inocente. Mas, eram poucos os que conseguiam sobreviver a esta prova.

Do outro lado da sala, os olhos de Geraldo lançaram uma mensagem urgente a Joana: não tentes impedir-me.

Ele pretendia sacrificar-se por ela. Se conseguisse passar por cima das brasas, a sua inocência - e a dela - ficariam comprovadas. Mas, era provável que ele morresse na prova.

Tal como Hrotrud, pensou Joana. A memória da parteira da aldeia morta de forma tão cruel deu-lhe uma ideia súbita.

Disse:

- Antes de avançardes, há algumas perguntas que eu gostaria de colocar ao magister militum.

- Perguntas? - Lothar franziu o sobrolho.

Anastácio protestou:

- Isto é altamente irregular. Se o superista quer passar pela prova, está no seu direito. Ou será que Sua Santidade duvida da eficácia da justiça divina?

Joana respondeu calmamente:

- Não, de maneira nenhuma. Nem escarneço das obras da razão dada por Deus. Que mal pode existir em fazer algumas perguntas?

Incapaz de pensar numa resposta razoável, Anastácio encolheu os ombros e ficou calado. Mas, no seu rosto podia ver-se que estava vexado.

As sobrancelhas de Joana franziram-se ao tentar lembrar-se das seis perguntas probatórias de Cícero.

Quis.

- Quem - perguntou ela a Daniel - para além de vós, testemunhou esta alegada conversa?

- Ninguém - respondeu ele. - Mas o testemunho destes sacramentales atesta as minhas palavras.

Joana avançou para a pergunta seguinte.

Quomodo.

- Como conseguistes ouvir uma conversa tão confidencial?

Daniel hesitou um pouco antes de responder:

- Ia a passar pelo triclinium, a caminho do dormitório. Ao ver a porta aberta, aproximei-me para a fechar. Foi então que ouvi o superista a falar.

Ubi.

- Onde estava o superista nesse momento?

- Diante do trono.

- Onde está agora?

- Sim.

Quando.

- Quando foi isso?

Daniel puxou a túnica no pescoço, nervosamente. As perguntas estavam a ser feitas com tanta rapidez, que ele não tinha tempo para pensar.

- Aah... na Festa de Santa Ágata.

Quid.

- O que haveis ouvido, ao certo?

- Já o disse ao tribunal.

- Foram as palavras exactas do superista ou um relato aproximado da conversa?

Daniel sorriu. O papa João pensava que ele era estúpido ao ponto de cair numa armadilha tão evidente? Disse com firmeza:

- Relatei as palavras do superista, tal como ele as pronunciou.

Joana inclinou-se para a frente.

- Vamos a ver se compreendi bem, Daniel. Segundo o vosso testemunho, na Festa de Santa Ágata, estáveis atrás da porta do triclinium e ouvistes cada palavra de uma conversa em que o superista me disse que Roma devia fazer uma aliança com os gregos.

- Correcto - disse Daniel.

Joana virou-se para Geraldo.

- Onde estáveis na Festa de Santa Ágata, superista? - perguntou-lhe ela.

Geraldo respondeu:

- Estava no Tivoli, a acabar a obra do aqueduto de Marcião.

- Alguém pode testemunhá-lo?

- Trabalharam lado a lado comigo dezenas de homens durante todo o dia. Eles podem testemunhar todos onde eu estava nesse dia.

- Como explicais isto, Magister Militum? - perguntou Joana a Daniel. - Certamente, um homem não pode estar em dois lados ao mesmo tempo?

Daniel, agora, tinha empalidecido a olhos vistos.

- Ah... ah... - gaguejava ele, procurando desesperadamente uma resposta.

- Será que vos haveis enganado acerca da data, Magister Militum? - interrompeu Anastácio. - Depois destes meses todos, um detalhe tão insignificante pode ser difícil de recordar.

Daniel aproveitou a oportunidade.

- Sim, sim. Agora que me lembro, foi antes disso - na Festa de Santo Ambrósio, não de Santa Ágata. Um erro involuntário.

- Onde existe um erro, podem existir mais - respondeu Joana. - Regressemos ao vosso testemunho. Dizeis que haveis ouvido todas as palavras que foram pronunciadas enquanto estáveis atrás da porta?

- Sim - disse Daniel, respondendo lentamente, já desconfiado.

- Tendes ouvidos apurados, Magister Militum. Por favor, demonstrai essa acuidade extraordinária repetindo esse feito.

- Como? - Daniel estava completamente perdido.

- Ide para trás da porta, como haveis feito. O superista dirá algumas palavras. Quando voltardes, contar-nos-eis o que ele disse.

- Que ridicularia é esta? - objectou Anastácio num tom acalorado.

Lothar olhou para Joana em tom de reprovação:

- Vamos, Santidade, o recurso a truques subestima a gravidade deste processo.

- Majestade - respondeu Joana - o que eu tenho em mente não é um truque, mas sim um teste. Se Daniel está a dizer a verdade, será capaz de ouvir o superista agora como o ouviu então.

- Senhor, eu protesto! - disse Anastácio. - Uma coisa destas é contrária ao direito habitual.

Lothar considerou o assunto. Anastácio tinha razão, o recurso a provas para fundamentar ou refutar uma acusação era uma ideia nova e estranha. Por outro lado, Lothar não tinha motivo para pensar que Daniel estava a mentir. Ele passaria, certamente, no estranho teste do papa João - e isso daria ainda maior crédito ao seu testemunho. Dependiam demasiadas coisas do resultado daquele julgamento para que a sua honestidade viesse a ser posta em causa posteriormente.

Lothar levantou a mão imperiosamente:

- Que se proceda ao teste.

Daniel atravessou o salão, contrariado, e pôs-se atrás da porta.

Joana colocou um dedo sobre os lábios, ordenando a Geraldo que ele se mantivesse em silêncio.

- Ratio in lege summa justitia est - disse ela em voz alta.

- A razão é a suprema justiça na lei.

Acenou ao guarda à porta:

- Trazei Daniel de volta.

- Então - perguntou-lhe ela, quando ele voltou a colocar-se diante dela. - O que ouvistes?

Daniel arriscou uma resposta verosímil:

- O superista repetiu o seu protesto de inocência.

Aqueles que tinham avançado para testemunhar a seu favor gritaram, chocados. Anastácio virou a cara, desapontado. O semblante sempre carregado de Lothar, ficou ainda mais carregado.

Joana disse:

- Não foi isso que foi dito. E não foi o superista que falou, fui eu.

Encurralado, Daniel explodiu em ira:

- Que diferença faz eu ter ouvido a conversa ou não? As vossas atitudes demonstraram as vossas verdadeiras simpatias! Não haveis ordenado bispo o grego Nicéforo?

- Ah! - disse Joana. - Isso leva-nos à última pergunta: Cur.

Porquê? Porque relatastes ao imperador uma conversa que era mentira? Não estáveis motivado pela verdade, Daniel, mas sim pela inveja - porque o vosso próprio filho foi preterido na posição atribuída a Nicéforo!

- Que vergonha! - gritou uma voz vinda da multidão, à qual se associaram rapidamente outras. - Traidor! Mentiroso! Tratante!

Os sacramentales de Daniel também se envolveram na torrente de insultos, ansiosos por se dissociarem dele, agora.

Joana levantou a mão, fazendo silenciar a multidão. Eles esperavam que ela pronunciasse a sua sentença contra Daniel.

Para um crime tão grave, o castigo devia ser muito severo: primeiro, a língua que tinha pronunciado uma mentira tão grande devia ser cortada, depois, Daniel seria, certamente, arrastado e esquartejado.

Joana não estava inclinada a mandar executar uma sentença tão terrível. Tinha conseguido o que queria, ilibar Geraldo.

Não havia necessidade de tirar a vida a Daniel, ele era um homenzinho desagradável, desprezível e ambicioso, mas não era pior nem melhor do que outros que ela tinha conhecido. E Joana tinha a certeza que, nesta circunstância, ele tinha sido pouco mais do que um instrumento nas mãos de Anastácio.

- Magister militum Daniel - disse ela, solenemente. - A partir deste momento, ficareis privado do vosso título e de todos os vossos bens e privilégios. Deixareis Roma hoje mesmo e ficareis para sempre banido da Cidade Santa e dos seus santuários sagrados.

A multidão ficou calada perante esta manifestação espantosa de caritas. Eustácio, o arcipreste, aproveitou o momento:

- Louvado seja Deus e São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, graças ao qual a verdade se manifestou! E viva o nosso Senhor e Supremo Pontífice, o papa João!

- Viva! - gritaram os outros. O som ecoou nas paredes da sala, fazendo tremer as lâmpadas nos seus vasos em prata.

- O que esperavas?

Arsénio andava pelo quarto, agitadamente, diante do seu filho, que estava sentado num dos divãs.

- O papa João pode ser ingénuo, mas não é parvo. Tu subestimaste-o.

- É verdade - reconheceu Anastácio. - Mas, não importa. Eu estou outra vez em Roma - com o apoio total do imperador e das suas tropas.

Arsénio parou.

- O que queres dizer com isso? - perguntou ele, num tom severo.

- Quero dizer, Pai, que, agora, estou em posição de tomar aquilo que não ganhei por eleição.

Arsénio ficou a olhar para ele.

- Tomar o trono pela força das armas? Agora?

- Porque não?

- Estiveste longe tempo de mais, filho. Não sabes como as coisas estão por aqui. É verdade que o papa João fez inimigos, mas há muitos que o apoiam.

- Então, o que sugeris?

- Tem paciência. Volta para a terra dos francos, conforma-te e espera.

- Espero o quê?

- Que o vento mude.

- Quando irá isso acontecer? Já esperei tempo de mais para reclamar aquilo que me pertence por direito!

- É perigoso avançar de forma demasiado precipitada. Lembra-te do que aconteceu a João, o diácono.

João, o diácono, tinha sido o candidato rival na eleição que tinha colocado Sérgio no trono papal. Depois da eleição, João, desapontado, tinha entrado no Patriarchium com um grupo de apoiantes, tomando o trono pela força. Mas, os príncipes da cidade uniram-se contra ele, o Patriarchium tinha sido tomado em poucas horas e João foi deposto. No dia seguinte, Sérgio foi ordenado Papa solenemente - e a cabeça cortada de João ficou no alto de um pilar no pátio do Laterano.

- Isso não me vai acontecer, Pai - disse Anastácio, cheio de confiança. - Pensei em tudo. Deus sabe que tive tempo para pensar, enterrado durante tantos anos naquele pântano estrangeiro.

Arsénio sentiu o ressentimento do seu filho.

- O que tens em mente, concretamente?

- Quarta-feira é a Festa da Rogação. A missa votiva é em São Pedro. O papa João encabeçará a procissão até à basílica.

Esperaremos que ele esteja longe e tomaremos o Patriarchium de assalto. Acabará tudo antes de João suspeitar, sequer, o que aconteceu.

- Lothar não ordenará que as suas tropas ataquem o Patriarchium. Ele sabe que uma atitude dessas une toda a cidade de Roma contra ele, mesmo os que são do seu partido.

- Não precisamos dos soldados de Lothar para tomar o Patriarchium, a nossa guarda pode fazê-lo. Uma vez que esteja claramente na posse do trono, Lothar apoiar-me-á - tenho a certeza.

- Talvez - disse Arsénio. - Mas, não será fácil tomar o palácio papal. O superista é um combatente formidável e a guarda papal é-lhe completamente fiel.

- A principal preocupação do superista é com a segurança pessoal do Papa. Com Lothar e o seu exército na cidade, Geraldo estará a prestar guarda na procissão, assim como os seus melhores homens.

- E depois? Certamente, sabes que Geraldo irá atrás de ti com todo o poder de que dispõe?

Anastácio sorriu:

- Não vos preocupeis com Geraldo, Pai. Eu tenho um plano que se encarregará dele.

Arsénio abanou a cabeça.

- É demasiado arriscado. Se falhares, significará a ruína da nossa família, o fim de tudo aquilo por que trabalhámos ao longo de tantos anos.

Ele tem medo, pensou Anastácio. A ideia deu-lhe satisfação.

Toda a vida tinha dependido da ajuda do pai e do seu conselho, tendo-se ressentido, ao mesmo tempo, por causa de isso ser assim. Agora, provava que era o mais forte. Talvez, pensou Anastácio, olhando para o velho com um misto de amor e piedade, talvez tenha sido este medo, esta falta de vontade no momento exacto da prova que o impediu de ser grande.

O pai olhava para ele com um ar estranho. No fundo daqueles olhos familiares e bem-amados, agora esmorecidos pela idade, Anastácio via preocupação, mas algo mais, algo que Anastácio nunca tinha visto antes - respeito.

Pousou a mão em cima do ombro do pai:

- Confiai em mim, Pai. Prometo-vos que vos orgulhareis de mim.

 

O Dia Santo da Rogação era uma festa fixa, celebrada invariavelmente no dia 25 de Abril. Tal como muitas outras festas fixas - a Festa da Oblação, a Festa da Cadeira de São Pedro, as semanas das Quatro Têmporas, a Missa de Cristo - as raízes desta celebração remontavam até ao tempo dos pagãos. Na Roma antiga, o 25 de Abril era a data da Robigalia, a festividade pagã em honra de Robigo, deus do Gelo, que, precisamente nesta época, podia trazer grandes prejuízos aos frutos da terra, em crescimento, se não fosse aplacado com ofertas e dons. Robigalia era uma festividade alegre, com um cortejo vivo pela cidade, a caminho dos campos de cultivo, onde eram sacrificados animais, em sinal de reverência, seguindo-se corridas e jogos e outras formas de divertimento ao ar livre, no campo. Em vez de tentar suprimir estas tradições imemoriais, o que só afastaria aqueles que se pretendia ganhar para a Fé verdadeira, os primeiros papas decidiram, sensatamente, manter a festividade, mas dar-lhe um carácter mais cristão. A procissão no Santo Dia da Rogação continuava a dirigir-se para as terras de cultivo, mas, primeiro, parava na Basílica de São Pedro, onde era celebrada uma missa solene de louvor a Deus e de intercessão, através dos santos, para que Ele abençoasse a colheita.

Naquele ano, o tempo tinha ajudado. O céu estava azul como um tecido recém-tingido e limpo de qualquer nuvem, o Sol brilhava sobre as árvores e as casas, sendo o calor que ele lançava um pouco aliviado por uma brisa do norte.

Joana cavalgava no meio da procissão, atrás dos acólitos e defensores, que iam a pé, e os sete diáconos regionais, que iam a cavalo. Atrás dela, seguiam os optimates e outros dignitários do Palácio Apostólico. Quando a linha comprida, com as suas insígnias e os seus estandartes coloridos, ia a passar pelo pátio de Latrão, passando pela estátua de bronze da mater romanorum, ela mexeu-se no seu palafrém branco, sentindo-se desconfortável, a sela devia estar mal colocada porque já lhe doíam as costas, sentindo umas guinadas que iam e vinham a intervalos regulares.

Geraldo percorria a procissão para trás e para a frente com os outros guardas. Agora, estava ao lado dela, alto e bonito de cortar a respiração no seu uniforme da guarda.

- Sentes-te bem? - perguntou ele ansiosamente. - Estás pálida.

Ela sorriu-lhe, recuperando forças com a sua presença.

- Estou óptima.

A longa procissão dirigiu-se para a Via Sacra e Joana foi saudada imediatamente por uma aclamação tonitruante.

Consciente da ameaça que a presença de Lothar e do seu exército representavam, o povo tinha aparecido em massa para demonstrar o seu amor e apoio ao seu Senhor Papa. Ocupavam a borda do caminho, em filas de vinte pés de largura de cada lado, aclamando e pedindo a sua bênção, pelo que os guardas se viram forçados a empurrá-los para trás para que a procissão pudesse passar. Se Lothar procurava qualquer prova da popularidade de Joana junto do povo, ali estava ela.

Cantando e espalhando incenso, os acólitos avançaram pela velha rua, percorrida pelos papas desde tempos imemoráveis. O passo era ainda mais lento do que o costume porque havia muitos peticionários pelo caminho e, como era costume, a procissão parava frequentemente para que a Joana os pudesse ouvir. Numa das paragens, uma mulher idosa, de cabelo grisalho e um rosto com cicatrizes atirou-se ao chão diante de Joana.

- Perdoai-me, Santo Padre - pediu a mulher - perdoai-me o mal que vos fiz!

- Levantai-vos, boa mãe, e acalmai-vos - respondeu Joana. Não me fizestes mal nenhum, que eu saiba.

- Estou tão diferente, que não me reconheceis?

Algo na face devastada que se levantava para ela, implorando, acordou nela uma lembrança.

- Marioza? - exclamou Joana.

A famosa cortesã tinha envelhecido trinta anos, desde a última vez que Joana a tinha visto.

- Meu Deus, o que vos aconteceu?

Desolada, Marioza levou a mão ao rosto com cicatrizes:

- As marcas de uma faca. Uma oferta de despedida de um amante ciumento.

- Deus misereatur.

Marioza disse, amargamente:

- Não façais depender a vossa sorte dos favores dos homens, haveis-me dito vós uma vez. Tínheis razão. O amor dos homens foi a minha ruína. É o meu castigo - o castigo de Deus pelo mal que vos fiz. Perdoai-me, Santo Padre, senão, estou condenada para sempre!

A Joana fez o sinal da cruz sobre ela:

- Perdoo-vos de todo o coração.

Marioza agarrou a mão da Joana e beijou-a. As pessoas que por ali estavam manifestaram a sua aprovação.

A procissão prosseguiu. Quando iam a passar junto da Igreja de São Clemente, Joana reparou numa zaragata do lado esquerdo.

Um grupo de rufiões junto à multidão estavam a injuriar e a atirar pedras ao cortejo. Um deles, atingiu o seu cavalo no pescoço e ele empinou-se, fazendo com que Joana batesse na sela. Ela sentiu uma dor atravessá-la. Em choque e sem conseguir respirar, agarrou-se às rédeas douradas, enquanto os diáconos se apressavam a socorrê-la.

Geraldo já tinha visto o grupo de agitadores antes de todos os outros. Virou o cavalo e avançou para eles, ainda antes de ter voado a primeira pedra.

Ao verem que ele se aproximava, os rufiões fugiram. Geraldo perseguiu-os. Diante das escadas da Igreja de São Clemente, os homens viraram-se subitamente, puxaram de armas, que tinham escondidas na roupa, e vieram na direcção de Geraldo.

Geraldo puxou da espada, fazendo sinal aos guardas para que o acompanhassem. Mas, ninguém respondeu, nem se ouviu o som de cavalos atrás dele. Ele estava sozinho quando os homens o cercaram como um enxame, brandindo punhais e empurrando-o.

Geraldo empunhou a espada com perícia, medindo cada estocada, feriu quatro dos seus assaltantes, sendo atingido na coxa apenas por uma faca, até que eles o atiraram do cavalo abaixo.

Ele deixou-se cair, fingindo insensibilidade, mas manteve a mão firme na espada.

Mal chegou ao chão, saltou, pondo-se de pé, de espada na mão. Com um grito de surpresa, o atacante mais próximo arremeteu contra ele de espada em riste, Geraldo desviou-se, fintando-o e, quando o homem tropeçou, Geraldo desfechou-lhe a espada no braço. O homem caiu, com o braço cortado a espirrar sangue. Aproximaram-se outros, mas, agora, Geraldo ouvia os gritos da sua guarda que se aproximava por trás. Mais um pouco, e chegaria a sua ajuda. De espada em riste, Geraldo recuou, mantendo-se atento aos que o emboscavam.

O punhal apanhou-o pelas costas, entrando-lhe pelas costelas silenciosamente, como um ladrão num santuário. Antes que ele se apercebesse do que tinha acontecido, os joelhos começaram-se-lhe a dobrar e ele caiu no chão, admirando-se de não sentir qualquer dor, mas apenas o sangue que lhe escorria pelas costas.

Ouviu gritos e o tilintar de espadas por cima da sua cabeça.

Os guardas tinham chegado e estavam a lutar com os agressores.

Tenho de me juntar a eles, pensou Geraldo e procurou a sua espada, caída no chão junto dele, mas não se conseguiu mexer.

 

Ao recuperar o fôlego, Joana viu Geraldo voltar para trás, em perseguição daqueles que atiravam pedras.

Viu os outros guardas seguirem-no, gesto que foi observado por um grupo de homens que se encontravam no meio da multidão daquele lado do caminho, o grupo cerrou fileiras, não deixando passar ninguém, como se agissem a um sinal invisível.

É uma armadilha!, pensou Joana. Gritou freneticamente, para os avisar, mas as suas palavras foram abafadas pelo barulho e a confusão da multidão. Esporeou o cavalo para ir ter com Geraldo, mas os diáconos agarraram-lhe as rédeas.

- Largai-me! Largai-me! - gritou ela.

Mas, eles continuavam a agarrá-la, sem confiarem no cavalo.

Impotente, Joana viu os rufiões cercarem Geraldo, viu como estenderam as mãos para o puxar, agarrando-o pelo cinto, pela túnica, pelos braços, arrastando-o para fora da sela. Viu um último pedaço de cabelo ruivo, quando ele desapareceu sob o grupo que o cercava.

Ela apeou-se do cavalo e correu, abrindo caminho pelo meio do grupo de acólitos atónitos e assustados. Quando chegou à berma do caminho, a multidão já se tinha apartado, abrindo caminho à guarda, que se dirigia a ela transportando o corpo inerte de Geraldo.

Depositaram-no no chão e ela ajoelhou-se junto dele. O sangue escorria-lhe em fio pelo canto da boca. Ela retirou rapidamente o longo quadrado do pallium que tinha ao pescoço, rasgou-o e encostou-o à ferida que ele tinha nas costas, tentando estancar o sangue. Não havia nada a fazer, alguns minutos depois, o tecido grosso estava completamente ensopado.

Os seus olhos encontraram-se num olhar profundamente íntimo, um olhar de amor e entendimento doloroso. Joana ficou aterrada, com um medo que nunca tinha sentido antes.

- Não! - gritou ela e tomou-o nos braços, como se a proximidade física fizesse com que ela pudesse impedir o inevitável. - Não morras, Geraldo. Não me deixes aqui sozinha.

Ele levantou a mão. Ela tomou-a nas suas e os seus lábios moveram-se num sorriso.

- Minha pérola - disse ele.

A sua voz era muito fraca, como se estivesse a falar de muito longe.

- Luta, Geraldo, luta - disse ela. - Vamos levar-te para o Patriarchium, vamos...

Ela apercebeu-se de que ele tinha expirado, mesmo antes de ter ouvido o seu último suspiro e sentiu que o seu corpo se tinha tornado pesado nos seus braços. Inclinou-se para ele, fazendo-lhe festas no cabelo, no rosto. Ele estava quieto e sereno, de boca entreaberta, os olhos cegos, fixos no céu.

Era impossível que ele tivesse morrido. Ainda era capaz de ver o seu espírito numa sucessão de imagens, como num espelho.

Era capaz de o ver novamente, se quisesse. Levantou-lhe a cabeça e olhou à sua volta. Se ele estivesse por ali, far-lhe-ia um sinal. Se estivesse em qualquer lado, dar-lhe-ia a saber.

Não viu nada, não sentiu nada. Nos seus braços jazia um cadáver com o seu rosto.

- Ele partiu para Deus - disse Desidério, o arquidiácono.

Ela não se mexeu. Enquanto o tivesse nos braços, ele não tinha partido completamente, uma parte dele ainda estava com ela.

Desidério tocou-lhe no braço.

- Vamos levá-lo para a igreja.

Ela ouviu e compreendeu, meia anestesiada. Ele não podia ficar ali na rua, a ser visto por todos os estranhos curiosos.

Ela tinha de o honrar com todos os ritos e dignidades adequadas, era tudo quanto lhe restava fazer por ele, agora.

Pousou-o no chão cuidadosamente para não o magoar, depois fechou-lhe os olhos e cruzou-lhe os braços sobre o peito para que os guardas o pudessem transportar condignamente.

Quando ia a levantar-se, foi atingida por uma dor tão violenta que se dobrou e voltou a cair no chão. O seu corpo começou a estrebuchar, sem que ela conseguisse controlar os espasmos. Sentiu uma pressão enorme, como se tivesse caído um peso sobre ela, a pressão desceu, até ela sentir que a ia despedaçar.

A criança. Está a nascer.

- Geraldo!

A palavra transformou-se num terrível gemido de dor.

Agora, Geraldo não a podia ajudar. Ela estava sozinha.

- Deus misereatur! - exclamou Desidério. - O Senhor Papa está possesso do Demónio!

O povo gritava e chorava, mergulhado num extremo terror.

Auriano, o exorcista-mor, aproximou-se. Aspergindo Joana com água benta, entoou solenemente:

- Exorcizo te, immundissime spiritus, omnis incursio adversarii, omne phantasma...

Todos os olhos estavam postos em Joana, à espera que o espírito maligno lhe saísse pela boca ou pelos ouvidos.

Ela gritou com uma última dor, enquanto a pressão interna aliviou, jorrando sangue para fora dela.

A voz de Auriano interrompeu-se, bruscamente, seguindo-se um longo silêncio.

Por baixo das volumosas vestes brancas de Joana, agora tingidas pelo seu sangue, apareceu o corpinho minúsculo de um nado-morto.

Desidério foi o primeiro a reagir.

- Um milagre! - gritou ele, caindo de joelhos.

- Bruxaria - gritou outro.

Todos se benzeram.

O povo empurrava-se para ver o que tinha acontecido, acotovelando-se e passando uns por cima dos outros, para observarem melhor.

- Afastai-vos! - gritaram os diáconos, empunhando os seus crucifixos como escudos para impedirem que a multidão desgovernada avançasse. Começou a haver lutas ao longo do caminho da procissão. A guarda acorreu, gritando ordens.

Joana ouvia tudo ao longe. Deitada na rua numa poça do seu próprio sangue, sentiu subitamente uma paz transcendente. A rua, as pessoas, os estandartes coloridos da procissão brilhavam aos seus olhos com um brilho estranho, como fios de uma enorme tapeçaria cujo padrão só ela era capaz de ver.

O seu espírito expandiu-se dentro dela, enchendo o seu vazio interior. Ela estava banhada numa grande luz. Fé e dúvida, vontade e desejo, coração e mente - finalmente, ela viu e compreendeu que era tudo um só e que esse Um era Deus.

A luz tornou-se mais intensa. Sorrindo, ela dirigiu-se para a luz, à medida que as cores do mundo se esbatiam, até se tornarem invisíveis, como a Lua ao nascer do Sol.

 

 

                         EPÍLOGO

 

         Quarenta e dois anos depois

Anastácio estava sentado à sua secretária no scritorium Laterano, a escrever uma carta. As suas mãos, perras e com artrite por causa da idade, doíam-lhe a cada movimento da pena. Apesar da dor, ele continuava a escrever. A carta era extremamente urgente e tinha de ser enviada imediatamente.

Para Sua Majestade Imperial, o venerável imperador Arnulf - escreveu ele.

Lothar tinha morrido havia muito. Tinha falecido poucos meses depois de deixar Roma. O seu trono tinha ido primeiro para o seu filho Luís II e, depois da sua morte, para o sobrinho de Lothar, Carlos, o Gordo, ambos governantes fracos e medíocres. Com a morte de Carlos, o Gordo, em 888, a dinastia carolíngia iniciada com o grande Carlos - ou Carlos Magno, como era agora conhecido - tinha chegado ao fim.

Arnulf, duque de Caríntia, tinha conseguido usurpar a coroa imperial a uma hoste de pretendentes. Anastácio, apesar de tudo, achava que a mudança na sucessão era positiva. Arnulf era mais esperto e mais forte do que Lothar. Anastácio contava com isso. Porque tinha de se fazer qualquer coisa com o papa Estêvão.

No mês anterior, para horror e escândalo de Roma inteira, Estêvão tinha ordenado que o corpo do seu antecessor - o papa Formoso - fosse retirado do seu túmulo e trazido para o Patriarchium. Depois de ter mandado instalar o cadáver numa cadeira, Estêvão tinha presidido a um arremedo de julgamento, tinha lançado calúnias contra ele e tinha acabado por cortar três dedos da sua mão direita, os dedos usados para dar a bênção papal, como castigo pelos crimes confessos de Formoso.

"Apelo a Vossa Majestade - escreveu Anastácio - para que venhais a Roma e ponhais fim aos excessos do Papa, que são um escândalo para toda a Cristandade."

Uma cãibra súbita na mão de Anastácio fez tremer a pena, deixando cair pingos de tinta no pergaminho em branco.

Praguejando, Anastácio limpou a tinta espalhada, depois poisou a pena e esticou os dedos, esfregando-os para aliviar a dor.

Estranho, reflectiu ele com uma ironia amarga, que um homem como Estêvão tenha chegado a papa, enquanto eu, perfeitamente adequado para o cargo, em virtude de todas as qualificações de origem e erudição, não o tenha recebido.

Esteve perto, tão perto de ganhar o prémio cobiçado! Depois da revelação chocante e da morte da Papisa, Anastácio tinha ocupado o Patriarchium, reclamando o trono para si com a bênção do imperador Lothar.

O que ele teria feito se tivesse ficado no trono! Mas, não tinha de acontecer. Um grupo de clérigos, pequeno mas influente, tinha-se-lhe oposto frontalmente. Durante meses, a questão da sucessão papal tinha sido debatida vivamente, com um lado, primeiro, e depois, o outro, a ganhar terreno. Por fim, convencido de que um grupo substancial de romanos nunca aceitaria Anastácio como papa, Lothar tomou uma decisão política e retirou o seu apoio.

Anastácio foi deposto e mandado na ignomínia para o Mosteiro do Trastevere.

Pensavam todos que tinham acabado comigo, pensou Anastácio. Mas, enganaram-se.

Com paciência, habilidade e diplomacia, ele lutou para regressar, acabando por ganhar a confiança do papa Nicolau.

Nicolau tinha-o promovido a encarregado da biblioteca papal, uma posição de poder e um privilégio que ele mantinha havia mais de trinta anos.

Tendo chegado à extraordinária idade de oitenta e sete anos, Anastácio, agora, era venerado e respeitado, louvado universalmente pela sua grande erudição. Mestres e homens da Igreja vindos do mundo inteiro acorriam a Roma para se encontrarem com ele e admirar a sua obra-prima - o Liber pontificalis, a crónica oficial dos papas. No mês anterior, um arcebispo franco de nome Arnaldo, tinha-lhe pedido permissão para fazer uma cópia do manuscrito para a sua catedral e Anastácio tinha-lha concedido de graça.

O Liber pontificalis era o lanço de Anastácio para a imortalidade, o seu legado ao mundo. Era também a sua vingança final sobre o seu detestado rival, a pessoa cuja eleição no dia fatal de 853 lhe tinha negado a glória que lhe estava destinada.

Anastácio omitiu a papisa Joana no registo oficial dos papas, o Liber pontificalis nem sequer mencionava o seu nome.

Não era o seu desejo mais profundo, mas, já era alguma coisa. A fama de Anastácio, o Bibliotecário, e da sua grande obra ecoaria ao longo dos tempos, mas a papisa Joana seria esquecida, apagada para sempre.

A cãibra na mão tinha desaparecido. Pegando na pena, Anastácio recomeçou a escrever.

 

No scriptorium do Palácio Episcopal de Paris, o arcebispo Arnaldo trabalhava na última página da sua cópia do Liber pontificalis. A luz do Sol entrava pela janela estreita, filtrando um raio de luz cheio de pó a flutuar. Arnaldo copiou a última linha, voltou a lê-la, depois, pousou cuidadosamente a pena.

Tinha sido um trabalho longo e difícil, copiar todo o manuscrito do Livro dos Papas. Os escribas do palácio tinham ficado muito surpreendidos quando o arcebispo se encarregou de o fazer pessoalmente, em vez de entregar a tarefa a um deles, mas Arnaldo tinha as suas razões para o fazer. Ele não se tinha limitado a duplicar o famoso documento, tinha-o corrigido. Entre as crónicas das vidas do papa Leão e do papa Bento, havia agora uma entrada para a papisa Joana, devolvendo o seu pontificado ao lugar a que tinha direito na história.

Ele tinha-o feito tanto por causa de um sentimento pessoal de lealdade, como por causa de um desejo de ver a verdade relatada. Tal como Joana, também o arcebispo não era o que parecia. Porque Arnaldo, nascida Arnalda, na realidade, era a filha do servo franco de nome Arn e da sua esposa, Bona, com quem Joana tinha morado depois de ter fugido de Fulda. Na altura, Arnalda não passava de uma menina, mas nunca tinha esquecido Joana - os olhos bondosos e inteligentes que a observavam com tanta insistência, a excitação das suas lições diárias, a alegria partilhada do sucesso quando Arnalda tinha começado a ler e a escrever.

Devia muito a Joana porque tinha sido ela que tinha salvo a família da Arnalda da pobreza e do desespero, apontando o caminho de saída do negro abismo da ignorância para a luz do conhecimento, tornando possível a alta posição que Arnalda ocupava agora. Inspirada pelo exemplo de Joana, Arnalda também tinha escolhido, ao aproximar-se a idade adulta, disfarçar-se de homem para poder concretizar os seus sonhos.

Quantas haverá como nós?, pensava mais uma vez Arnalda.

Quantas mais mulheres tinham dado o salto arriscado, abandonando as suas identidades femininas, renunciando a vidas que podiam ter sido ocupadas com filhos e família para alcançarem aquilo que, de contrário, teriam sido impedidas de atingir? Quem sabia? Podia ser que Arnalda tivesse passado por outra como ela na catedral ou no mosteiro, sem saber, partilhando em segredo e às escondidas a mesma irmandade.

Sorriu ao pensar nisso. Metendo a mão por dentro das suas vestes de arcebispo, agarrou no medalhão em madeira com a efígie de Santa Catarina que tinha ao pescoço. Tinha-o usado sempre desde o dia em que Joana lho tinha dado, havia mais de cinquenta anos.

No dia seguinte, mandaria encadernar o manuscrito em pele fina, debruada a ouro, e mandá-lo-ia colocar nos arquivos da biblioteca da catedral. Assim, haveria pelo menos um local onde permaneceria um registo de Joana, a papisa, que, apesar de ser mulher, foi uma boa e fiel Vigária de Cristo. Um dia, a sua história seria encontrada e relatada novamente.

A dívida está paga, pensou Arnalda. Requiesce in pace, Johanna Papissa.

 

 

                                                                                Donna Woolfolk Cross

 

 

                      

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