Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PATENTE DE CORSO - P.2 / Patrick O'brian
A PATENTE DE CORSO - P.2 / Patrick O'brian

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Pegou um pedaço de torta e saiu da hospedaria. O cachorro fez uma pausa, olhou à direita e à esquerda com seus olhos míopes enquanto retorcia o nariz e o viu. Então cruzou a rua subindo e descendo a cabeça e movendo a calda. Stephen o acariciou a cabeça, observou seu horrível sorriso e notou com tristeza a capa com que os anos haviam coberto seus olhos. Depois lhe deu palmadas nas ancas misturadas e gordas e lhe ofereceu o pedaço de torta, que pegou devagar pelo extremo. Imediatamente se separaram. O cachorro regressou para o açougue, onde, depois de olhar ao seu redor, colocou o pedaço de torta intacto debaixo de um monte de lixo e se jogou no solo. Stephen voltou ao Grapes e disse à senhora Broad:

X
X
X

X
X

- No que se refere ao meu quarto, não se preocupe nem um pouco. Não vim para buscar um quarto para mim mas para Padeen, meu servente. Vão operá-lo amanhã em Guy's.
Infelizmente, será uma extração difícil, e não quero que fique em uma sala comum. Provavelmente a senhora terá algum quarto na planta baixa.
- Vão extrair-lhe um dente? Pobrezinho! Sem dúvida, já está preparado um pequeno quarto que se encontra debaixo do seu, mas também Deb pode ficar com Lucy; o que talvez seja melhor, porque o seu quarto é melhor ventilado.
- Padeen é um bom homem, senhora Broad. É do condado de Clare, em Irlanda. Não fala muito inglês e quando fala o pouco que sabe gagueja e demora cinco minutos antes de dizer cada palavra, que com freqüência não é a correta. Contudo, é obediente como um cordeiro e sempre está sóbrio. Agora tenho que deixá-la, porque tenho um encontro do outro lado do parque.
Em seu percurso tinha que passar pela rua Strand, que ficava cheia de gente, e também por Charing Cross, que ficava ainda mais cheia, pois além de três ruas de muito tráfego confluírem para ali, havia caído um cavalo que puxava um carro, obrigando a deter-se ao seu redor carruagens, caleches e diligências, e entre eles e os passageiros que haviam descido passavam ginetes, liteiras e coches pequenos. O cocheiro permanecia sentado sobre a cabeça do animal esperando que o garoto que o ajudava desatasse todas as fivelas desnecessárias. A multidão, entre a qual Stephen passou lentamente, estava de bom humor, e que rodeava ao garoto e ao cavalo dava ao primeiro muitos conselhos em tom humorístico. Era composta por pessoas muito diversas, que se diferenciavam sobretudo pelos uniformes, majoritariamente vermelhos. Aquela maré humana produzia uma agradável sensação, sobretudo para quem acaba de regressar do mar; contudo, havia que esforçar-se e empurrar muito para passar por ela, e Stephen sentiu
alívio ao voltar a entrar no parque. Recolheu seu pacote em Black's e foi até o mercado Shepherd, perto do qual vivia sir Joseph em uma casa que tinha a porta verde,
um curioso apagador de velas duplo e um aldravão em forma de delfim que parecia de ouro polido.
Levantou a mão para pegar a calda do animal, porém, antes que pudesse fazê-lo, a porta se escancarou e apareceu sir Joseph, em cujo largo e pálido rosto se refletiu
uma alegria maior do que muitos de seus colegas acreditariam ser capaz de expressar.
- Bem-vindo, bem-vindo outra vez para casa! - exclamou -. Estava olhando pela janela do salão para ver-lhe chegar. Entre, meu querido Maturin, entre.
Ele o conduziu pela escada até a biblioteca, a habitação mais agradável da casa, que tinha as paredes atapetadas de livros e pequenos armários com gavetinhas para
guardar insetos, ofereceu-lhe uma cômoda cadeira que pôs de um lado da chaminé e se sentou do outro lado. Ficou olhando para Stephen com expressão satisfeita até
que a primeira pergunta deste a apagou de sua cara:
- Tem notícias de Wray e Ledward?
- Foram visto em Paris - respondeu -. Me envergonha dizer que lograram escapar. O senhor pode dizer que, apesar de todos os serviços secretos que temos, somos um
bando de estúpidos, porque os deixamos sair do país. E não negarei que a primeira operação, a que fizemos em Button's, foi muito mal dirigida. O senhor já sabe:
quando algo concerne a todos os serviços secretos, qualquer coisa é possível, além de cometer estupidez.
Stephen olhou para Blaine por um momento. Conhecia ao seu chefe o bastante para compreender que não só queria dizer que não confiava na discrição e na competência
de alguns dos serviços secretos do reino, como também que estava convencido de que Ledward e Wray tinham pelo menos um comparsa e protetor que ocupava um alto cargo
na administração. Deu isso por subentendido e se limitou a dizer:
- Mas o senhor tem de novo a autoridade em sua própia casa, não é mesmo?
- Acredito que sim - respondeu sir Joseph, sorrindo -, porém, como o senhor sabe muito bem, a organização estava quase em ruínas e tem que ser refeita de cima abaixo.
Ademais, apesar de minha posição no Almirantado estar mais sólida do que nunca, não estou muito contente com alguns de nossos colegas e correspondentes e... Bem,
neste momento não vou lhe propor nenhuma missão no continente. Acho que tem muito mais valor sua informação sobre as possibilidades que temos na América do Sul.
- Eu lhe fiz estas perguntas indiscretas porque me preocupam e porque têm estreita relação com a reabilitação do capitão Aubrey.
- Jack Aubrey o Afortunado - disse Blaine, sorrindo outra vez com grande satisfação -. Meu Deus, nunca se viu um golpe semelhante! Como o senhor deixou?
- No seio de sua família e muito contente com relação às questões monetárias; porém, como o senhor sabe, isso lhe importa muito pouco em comparação com aparecer
de novo no Boletim Oficial da Armada.
- Quanto ao processo formal, indubtavelmente, não pode começar até que um tribunal condene a Wray e a Ledward e Aubrey obtenha o perdão pelo que não fez, quer dizer,
que o veredito de culpabilidade seja revogado. Também há processos informais e, no que se refere a eles, ele conta com todo meu apoio, naturalmente; contudo, inclusive
em assuntos em que as influências contam, meu apoio tem pouca importância, e em um deste tipo, não tem nenhuma. Ele tem o apoio de outros homens, e se alguns podem
favorecê-lo muito mais, outros, como o duque e vários dos almirantes que mais simpatizam com os radicais, podem fazer-lhe mais estrago que bem. Na Armada e entre
os cidadãos a opinião geral é que foi humilhado, e o fato de que tanta gente se alegre de seu êxito é uma clara prova disso. A propósito, o senhor sabia que o comitê
não aceitou sua renúncia a ser membro do clube?
- Não. Porém, diga-me, não acha que seu êxito atual terá algum efeito? Não acha que ajudará a mudar a opinião das autoridades? Pelo amor de Deus, é um êxito assombroso,
como o senhor mesmo reconheceu.
- Uma mudança? Oh, não! Conforme as autoridades, ter êxito fazendo o corso não tem importância para o país nem para a Armada Real. Cometeram um erro, como todo mundo
sabe, e daqui a vinte anos quando já tenham morrido todos os funcionários da atual geração e, certamente, todos os ministros atuais, é provável que alguém faça algum
gesto. Porém, por enquanto não é possível submeter Wray a um julgamento, algo que caso ocorra seria vergonhoso para os ministros devido à série de escândalos que
se produziram; por isso a culpa não pode recair sobre outra pessoa e, portanto, os funcionários só poderiam salvar a cara se ele fizesse algum ato cuja importância
para a nação fosse evidente e justificasse o perdão do rei, a revisão do caso ou a reabilitação. Se, por exemplo, o capitão Aubrey entabulasse um combate com um
navio da Armada francesa ou da estadunidense que eles pudessem fazer passar por embarcações de igual ou maior potência que a sua, e se ele os capturasse ou seu barco
sofresse muitos danos, ou ambas as coisas, poderiam reabilitá-lo dentro de um ano em vez, de esperar À próxima coroação. Do contrário não o farão. Porém, como já
disse ou quis dizer, fazer o corso tem suas própias recompensas. E que recompensa ele teve neste caso! Conforme o preço atual do mercúrio, Maturin, ele deve de ser
um dos mais ricos marinheiros na ativa, e isso sem contar o resto do butim. Além disso, dizem que a quem tem lhe dão, e ouvi dizer que os homens que fazem o comércio
com as Antilhas lhe presentearam com uma louça de prata em agradecimento por ter capturado o Spartan.
 - Indubtavelmente, ele nunca mais temerá que o prendam por não pagar dívidas - disse Stephen -. Além disso, quando regressou para sua casa soube que o tribunal
de apelações havia decidido em seu favor em um caso muito grave cujas custas só Deus sabe a quanto ascendem. Nesse caso esteve enfrentado os herdeiros e cessionários
de um malvado ladrão durante anos, desde que...
- Meu Deus, que golpe! - exclamou de novo sir Joseph sem lhe prestar atenção e olhando fixamente o fogo -. Na Armada e na cidade não se falava de outra coisa. Diziam
que Jack Aubrey fez uma viagem de prova com poucas provisões para onde durante meses só se capturaram algumas falucas e quechemarines e voltou com sete abundantes
presas e o valioso carregamento de mercúrio saindo pelos costados de seu barco. Ah, ah, ah! Alegro-me quando penso nisso.
Blaine pensou nisso um momento, rindo para seu interior, e depois perguntou:
- Diga-me, Maturin, como induziram às presas do Spartan a sairem de Horta?
- Interroguei os prisioneiros franceses da forma habitual e me informei de que um era o encarregado dos sinais do Spartan - respondeu Stephen -. Então o chamei à
parte e lhe propus que em troca da liberdade e de uma recompensa me dissesse com que bandeiras haviam acordado fazer os sinais, pois, como o senhor sabe, Horta está
situado ao fundo de uma profunda e intrincada baía e era óbvio que os barcos iam se comunicar a grande distância. Ademais, eu o adverti que se não me dissesse, tinha
que ater-se às consequências de sua negativa, ainda que não especifiquei quais eram. Ele riu e disse que com muito gosto me comprazeria em troca disso e que ganharia
muito por muito pouco. Isso era verdade, porque o sinal consistia em desdobrar a bandeira de saída e fazer uma salva para barlavento, o que indubtavelmente teríamos
feito de qualquer maneira. Sim, esse era o sinal, e a escuna entrou na baía com o vento em contra, içou a bandeira, fez a salva e as presas saíram tão rápido como
puderam.
- Creio que isso os encheu de regozijo, ah, ah, ah!
- Nos encheu de regozijo, mas nos esforçamos para ser discretos porque tínhamos medo de dizer alguma palavra ou fazer algum gesto inapropiado. Atuamos com cautela,
pois cabia a possibilidade de que tudo se desse a perder; a situação era precária como uma fina capa de gelo. Tínhamos que tomar o controle de uma presa depois de
outra e devíamos mandar um grupo de tripulantes para bordo de cada uma delas; cada vez tínhamos um maior número de prisioneiros descontentes e menos homens para
mantê-los debaixo do convés e manobrar ao mesmo tempo. Por outro lado, duas das presas, a John Busby e a Pretty Anne, eram tão pesadas e lentas que tivemos que rebocá-las
e temíamos que a Constitution aparecesse a qualquer momento. Foram momentos horríveis, ainda que o vento quase sempre foi favorável. Não pudemos respirar até que
atravessamos o banco de areia de Shelmerston, cortamos os cabos de rebocar, fizemos salvas com todos os canhões e mandamos os marinheiros para terra para celebrar
o êxito.
- Os marinheiros devem estar muito contentes com o capitão Aubrey.
- Sim, estão. Engalanaram a fragata e dedicaram vivas ao capitão até que chegou à praia. Com excessão de alguns poucos homens que ele expulsou por pilhagem e má
conduta, em Shelmerston todos o veneram.
- Também aqui teriam dado vivas em sua honra nas ruas se houvesse vindo - disse Blaine -. Havia dúzias de panfletos e cartazes por toda parte. Guardei alguns para
o senhor.
Aproximou-se de uma mesa baixa sobre a qual havia um monte de papéis, e enquanto rebuscava neles Stephen viu cair um anúncio impresso colorido com um balão desenhado.
Stephen tinha os balões em mente desde que passou por Pall Mall em seu percurso, pois ali vira vários trabalhadores reparando os condutos que levavam o fedorento
gás obtido do carvão para os postes das ruas e pensou que talvez ele poderia ser usado no lugar do hidrogênio, que era muito mais perigoso. Comentaria isto com sir
Joseph se ele não tivesse se apressado em tapar o anúncio e a metê-lo sob o tabuleiro da mesa. Em lugar disso, Stephen se pôs de pé e pegou o pacote.
- Aubrey não quis vir à cidade, mas me disse que lhe apresentasse seus respeitos e me deu isto para que lhe entregasse. É o diário de navegação do Spartan, e me
parece que o senhor encontrará nele valiosa informação sobre os espiões franceses e estadunidenses, já que ambos iam a bordo dele amiúde. Quando o estava envolvendo,
incluí os interrogatórios que fiz aos prisioneiros, que não carecem de interesse.
- Estou muito agradecido ao senhor Aubrey - disse Blaine, pegando o pacote imediatamente -. Diga-lhe que agradeço de todo coração e, se achar adequado, apresente
meus respeitos à sua esposa, a quem recordo de Bath e considero uma das jovens mais bonitas que conheci. Desculpe-me um momento; quero ver o que diz o diário no
mês de julho do ano passado, quando acredito que...
Sir Joseph não disse o que achava, mas era evidente que era algo mau. Quando começou a passar as páginas, Stephen apoiou a costas no respaldo da cadeira e se pôs
a observar os desenhos que o lume formava na cúpula de latão, no tapete turco e nos livros encadernados em marroquim que formavam longas filas sob a brilhante luz,
oculta atrás das elegantes molduras de gesso do teto. Em sua juventude vira tetos de estilo românico e gótico que podiam reter a umidade do inverno durante o caloroso
verão catalão, e durante seu breve matrimônio com Diana, na rua Half Moon, pelo menos de um estádio de distância, vira tetos com pinturas de estilo elaborado debaixo
dos quais seria apropriado distribuir pequenas cadeiras douradas e celebrar muitas festas; contudo, a maior parte de sua vida passara em estranhos alojamentos e
barcos, e nunca teve uma habitação tão tranqüila, cômoda e elegante como essa. Nem ao menos a tivera em Melbury Lodge, a casa que compartiu com Jack durante o período
de paz. Estava pensando em quais eram as condições necessárias para tê-la quando entrou a governanta e comunicou a sir Joseph que a janta estaria servida ao cabo
de cinco minutos.
A janta foi excelente e sóbria: lagosta fervida, o prato favorito de Blaine, com uma taça de moscatel, seguida de moelas e aspargos com uma taça de excelente clarete
e depois torta de morango. Enquanto comiam, Stephen encenou para sir Joseph a batalha ao estilo da Armada, com pedacinhos de pão sobre a toalha da mesa, e voltou
a falar da imensa alegria dos tripulantes da Surprise quando viram pelos telescópios que as presas saiam de Horta "como ovelhas que iam para o matadouro", conforme
palavras de Aubrey.
- Meu Deus, que golpe! - voltou a exclamar sir Joseph -. Só com o mercúrio pode obter uma quantidade dez vezes superior ao valor da fragata. Ademais, não tem que
dar uma parte ao almirante! Desculpe-me, Maturin, porque pensar em semelhante fortuna e na alegria que produz tê-la conseguido me faz esquecer as normas de educação.
Confio em que este golpe de sorte não interferirá no plano para a América do Sul.
- Certamente que não! Aubrey não poderá ser feliz em terra, ainda que seja rico, a menos que o reabilitem. E mesmo que não fosse assim, ele prometeu cumprir o compromisso
de fazer esse viagem na fragata e pensa fazê-lo passe o que passe. Também me pediu que depois lhe venda. Meu ajudante, o senhor Martin, a quem o senhor recordará...
- O pastor que escreveu esse desafortunado opúsculo sobre os excessos na Armada?
- Ele mesmo, que é ademais um especialista ornitólogo. Também ele disse que cumpriria o compromisso, ainda que esteja recém casado e agora tenha o que chama de fortuna,
uma quantidade suficiente para viver comodamente. Alegra-me muito a atitude de ambos.
- Não duvido. Porém, querido Maturin, peço que me desculpe outra vez por ter a pouca delicadeza de falar de dinheiro. Sei muito bem que esse é um tema inapropiado,
mas acho muito interessante e gostaria de saber que quantidade de dinheiro o senhor Martin considera uma fortuna.
- Não sei quanto é, mas meu banqueiro de Londres, a quem ele consultou, disse para ele que se investisse tudo em títulos da dívida pública, menos algumas centenas
de libras para equipamento e menus plaisirs, receberia um benefício de duzentas e vinte e cinco libras por ano.
- Bem, acho que isso é mais do que gana normalmente um pastor de paróquia rural, e indubtavelmente é muito mais do que um coadjutor espera receber. E o ganhou em
quinze dias fazendo o corso! Que Deus lhe abençoe! A esse passo, logo será arcebispo.
- Acho que não lhe entendo, Blaine.
- Estou tão contente que me permito brincar.Talvez não deveria falar assim de um cargo sagrado, mas é um fato que o doutor Blackburne, que era arcebispo de York
em tempos de meu pai, anteriormente fazia o corso nas costas dos territórios espanhóis da América, e o senhor Martin e o senhor estarão nessas mesmas latitudes.
Quer que voltemos para a biblioteca? Tenho uma garrafa de vinho de Tokay e queria que o provasse depois do café. A senhora Barlow nos servirá alguns doces.
Durante a ausência de ambos, a senhora Barlow ou o corpulento negro que era o único servente que residia ali além dela, haviam aceso o fogo. A conversa havia se
interrompido, Stephen e Blaine se sentaram a olhá-lo como se fossem dois gatos e assim passaram um bom momento. Depois Stephen disse:
- Lamento muito a morte de Duhamel.
- Eu também - respondeu Blaine -. Era um homem extraordinariamente hábil.
- E correto - acrescentou Stephen -. Não lhe disse que me devolveu o diamante que Diana teve que deixar em Paris, o diamante azul.
Então pegou o diamante do bolso.
- Recordo que uma noite que o senhor teve a amabilidade de convidar-me para sua casa de Half Moon, ela o usou como pingente. Ademais, recordo muito bem as circunstâncias
que a obrigaram a deixá-lo em Paris. Não esperava voltar a vê-lo. É uma jóia maravilhosa e talvez estivesse melhor na caixa forte de um banco, não acha, Maturin?
- Talvez - respondeu Stephen e, depois de uma pausa, acrescentou -: Mas tenho remuído o assunto e pensei que, se fosse possível prolongar o período em que os tripulantes
da fragata não podem ser recrutados forçosamente, iria para Suécia para devolver a pedra preciosa antes de zarpar para a América do Sul.
- Naturalmente que sim.
- Diga-me, Blaine - pediu Stephen, cravando nele seus olhos claros-, tem alguma informação sobre a atual situação de lá?
- Não fiz nenhuma pergunta sobre a senhora Maturin através da rede de espionagem, absolutamente nenhuma pergunta como profissional - respondeu Blaine em tom grave
-. Absolutamente nenhuma. Porém, extra-oficialmente, como um homem comum, ouvi os rumores que correm pela cidade, e às vezes algo mais.
- Conforme esses rumores, ela fugiu com Jagiello porque lhe fui infiel no Mediterrâneo, não é assim?
- Sim - respondeu Blaine, olhando-o atentamente.
- Pode dizer-me algo sobre Jagiello?
- Sim - respondeu sir Joseph -. Conforme os serviços secretos, é uma pessoa confiável e, ainda que sua influência política seja mínima, como pode imaginar, é a favor
da aliança conosco. Mas sei algo mais importante para o caso que nos ocupa, algo que não tem nada a ver com esses rumores, mas que soube por um homem da legação:
parece que Jagiello vai se casar com uma jovem dama da Suécia. Também me informei de algo mais, ainda que não me o disseram diretamente senão que o deduzi, assim
que não posso afirmar que seja verdade, e inclusive é possível que seja totalmente falso. Eu me informei de que as relações entre ele e a senhora Maturin não eram
de natureza... não eram como as que geralmente os outros supunham que eram. Por outro lado, não acredito que me equivoque muito ao dizer que atualmente ela está
muito longe de ser rica, ainda que também seja possível que as pessoas subam em um balão só por seu espírito aventureiro.
Aproximou-se da mesa baixa, meteu a mão sob o tabuleiro e pegou o anúncio impresso que antes havia ocultado. Nele se via um balão azul entre enormes nuvens rodeadas
de grandes pássaros vermelhos que pareciam águias, e na nacela havia uma mulher de cabelo loiro e faces rosadas montada em um cavalo que sustentava uma bandeira
britânica e uma sueca. No texto escrito em tom exclamatório que havia debaixo ressaltava o nome Diana Villiers, que estava repetido três vezes em letras maiúsculas
e entre sinais de exclamação. Esse era o nome de Diana quando ele a conheceu e também o que geralmente recordava ao pensar nela, já que seu matrimônio, celebrado
a bordo de um barco de guerra e sem a presença de um sacerdote, não convenceu a nenhum dos dois.
Durante um tempo observou o desenho. Os cabos que rodeavam o balão e sustentavam a nacela estavam cuidadosamente desenhados; a figura, que parecia de madeira, tinha
o rosto inexpressivo e uma postura teatral, porém, ainda que parecesse absurdo, tinha algo de Diana. Ela era uma magnífica amazona e, ainda que nunca se sentasse
assim, nem mesmo sobre um animal que parecia um cruzamento entre um asno e uma mula, e tampouco adotasse uma postura ridícula, a improvável existência do desenho,
a consideração do cavalo como símbolo e a indiferença da figura tinham muita relação com ela.
- Obrigado, Blaine - disse depois de um tempo -. Estou muito agradecido por esta informação. Tem algo a acrescentar, ainda que seja insignificante?
- Não, nada. Porém, não lhe parece significativa a ausência de rumores para um lugar como a Suécia atual?
Stephen assentiu com a cabeça, observou de novo o desenho e tentou compreender o comportamento dos suecos.
- Eu gostaria de subir em um balão - disse.
- Quanto eu estava na França, antes da guerra, vi como subiam Pilâtre de Rozier e um amigo dele - contou Blaine -. Tinham dois balões, um Mongolfier que ficava justo
em cima da nacela e outro maior cheio de gás em cima. Subiram a grande velocidade, mas quando chegaram a três ou quatro mil pés de altura todo o conjunto se incendiou.
Não acredito que Ícaro se fizesse em pedaços com tanta rapidez.
Sir Joseph lamentou ter dito aquelas palavras quando as pronunciou, mas pensou que qualquer explicação e qualquer frase atenuante só serviriam para piorar as coisas,
assim que foi para um canto buscar o vinho e serviu um copo para cada um.
Falaram do vinho em geral e do de Tokay até tomarem a metade da garrafa, e então Stephen disse:
- O senhor falou da Suécia atual como de um lugar cheio de rumores.
- Se parar para pensar, não é surpreendente que assim seja. Bernadotte foi escolhido herdeiro da Coroa e se rebelou contra Napoleão, mas não deixa de ser um francês,
e os franceses não desistem de conseguir que mude de novo. É possível que lhe ofereçam a Finlândia e a Pomerânia, ou seja, grande quantidade de terra, e também podem
influir nele porque tem meia dúzia de filhos naturais em Pau, Marselha e Paris. E se isso não dé resultado, podem utilizar aos numerosos seguidores da legítima família
real afastada do trono, os Vasas, para que provoquem um golpe de estado. Ademais, os melhores suecos desaprovam o Tratado de Abo. Naturalmente, os russos e os dinamarqueses
também estão muito preocupados, bem como os estados do norte da Alemanha; assim que, apesar das alianças, Estocolmo está cheio de agentes secretos de um país ou
de outro que tentam influir em Bernadotte, sua corte, seus conselheiros e seus opositores atuais ou potenciais, e o que fazem ou o que se supõe que fazem dá muito
o que falar. Nosso departamento não toma parte nisso, graças a Deus, pois vi Castlereagh com a cabeça oculta pelo monte de informes, porém, naturalmente, ouvimos
algo.
O pequeno relógio com a borda do mostrador prateado deu a uma, e Stephen se levantou.
- Não abandone nunca uma garrafa quando ainda resta a metade - Blaine lhe admoestou. Que vergonha! Sente-se outra vez, por favor.
Stephen se sentou, ainda que para ele dava no mesmo tomar aquele vinho ou chocolate, e quando se serviram do último copo, perguntou:
- Quer que lhe fale de um curioso exemplo do poder do dinheiro?
- Sim, por favor - respondeu Blaine.
- Meu servente, Padeen, a quem o senhor conhece, tem um dente siso incrustado e está sofrendo terrivelmente por isso. Eu não estou preparado para fazer a operação
que necessita, assim que o levei ao melhor dentista de Plymouth, mas nada o convenceu de que abrisse a boca e preferiu suportar a dor. Contudo, agora que o trouxe
a Londres para que lhe atenda o senhor Cullis, de Guy's, a situação mudou. Agora abre a boca de boa vontade e suporta sem proferir uma queixa que lhe espetem com
lancetas e agulhas e lhe metam uma sonda na boca, mas não porque o senhor Cullis seja o dentista do príncipe regente, o que não significa nada no condado de Clare,
mas porque a operação custa sete guinéus e ademais há que dar meio guinéu ao ajudante, e essa soma, que é maior que todas as que Padeen vira antes do golpe da Surprise,
não só dá certa importância a um homem como implica que deve sentir bem-estar.
- Quer dizer que não o está esperando abaixo? - inquiriu Blaine -. Quer dizer que voltará ao clube andando e com o grande diamante no bolso? Suponho que a companhia
de seguros declinará toda responsabilidade nestes casos.
- Que companhia de seguros?
- Não me diga que não está assegurado!
- Não.
- E creio que o que vai me dizer a seguir é que o barco tampouco está assegurado.
- Ah! - exclamou Stephen ao pensar nisso -. Sim, também há um seguro marítimo. Amiúde ouvi falar dele. Talvez devesse contratar um.
Sir Joseph juntou as mãos, mas se limitou a dizer:
- Vamos, eu o acompanharei até a esquina de Picadilly. Ali sempre há um monte de garotos com tochas. Dois deles podem acompanhá-lo ao clube e dois podem vir comigo
até aqui.
Quando ambos estavam caminhando, explicou:
- Quando falei da possibilidade de que o senhor Aubrey combatesse com um barco de outro país de potência similar à de sua fragata não falava por acaso, ainda que
parecesse. Se não me equivoco, ele conhece bem o porto de Saint Martin.
- O inspecionou duas vezes e participou no bloqueio durante muito tempo.
- Há possibilidades... Pode ficar na cidade por uma semana?
- Sim, certamente, e sempre poderá encontrar-me no Black's. Porém, de qualquer maneira, nós nos encontraremos no almoço da Royal Society na quinta-feira, antes de
minha conferência. O senhor Martin me acompanhará.
- Será um prazer encontrar-lhe ali.
Para ambos foi um prazer se encontrarem. Stephen sentou Martin entre ele e sir Joseph, e os dois falaram sem parar até que começaram os brindes. Martin admitiu que
não prestou muita atenção aos coleópteros, mas assegurou que havia aprendido muito sobre os hábitos e as formas das espécies da América do Sul porque as observara
atentamente em seu hábitat, e os dois falaram somente dos escaravelhos, sobretudo dos luminosos, e Blaine propôs uma nova classificação baseada em princípios científicos.
Na reunião da Royal Society, Stephen leu seu trabalho sobre a osteologia das aves aquáticas com voz apagada e seu habitual tom baixo. Depois, os colegas que puderam
ouvir-lhe e entendê-lo o felicitaram, Blaine o acompanhou ao grande pátio e, em um aparte, perguntou-lhe por Padeen.
- Oh, a operação foi terrível! Alegro-me de não ter tentado fazê-la. Tiveram que partir-lhe o dente e sacar os pedaços de nervo, que podiam ver-se um a um. A suportou
melhor do que eu imaginava, mas ainda tem muita dor, ainda que consegui que diminuisse com tintura de ópio. Ademais, tem uma grande fortaleza.
- Então, valeu a pena que o pobre homem gastasse sete guinéus - disse Blaine e depois, mudando de tom, acrescentou -: Falando de marinheiros, seria conveniente que
seu amigo se preparasse para fazer uma viagem curta que lhe proporão com pouca antecedência.
- Quer que lhe mande uma carta urgente?
- Sim, contanto que lhe faça saber que não é realmente um compromisso. É possível que eu tenha mal interpretado algo e que tudo seja falso, mas seria uma lástima
que não estivesse preparado se fosse verdade.
Ninguém escolheria Ashgrove Cottage como residência, pois ficava situada em uma colina despovoada, árida, muito úmida e de frente para o norte. Ademais, a única
via de acesso era uma profunda vala, a maior parte do ano coberta de barro, que se tornava intransitável depois de um aguaceiro. Contudo, do cume, onde ficava o
observatório, podia-se ver Portsmouth, Spithead, a ilha de Wight, a parte do Canal do outro lado da ilha e uma grande quantidade de barcos. Por outro lado, quando
a fortuna sorriu para Jack Aubrey, apresentou-lhe muitas coisas e duplicou o tamanho da casa. No terreno onde antes se levantavam arbustos raquíticos destacava agora
um bosque de árvores jovens, e ainda que a casa não podia se comparar com o nobro estábulo, que tinha uma garagem para dois carros e várias filas de amplos compartimentos,
tinha várias habitações confortáveis. Em uma delas, a sala onde se tomava o café da manhã, Jack Aubrey e Sophie estavam sentados compartilhando uma cafeteira grande.
Haviam passado alguns anos desde que sir Joseph viu Sophie em Bath, mas ainda podia descrevê-la como uma das jovens mais bonitas que conhecia. Apesar de conviver
com um homem de caráter um pouco difícil, intrépido, hiperativo e sem idéia dos negócios como seu esposo, um homem que podia ficar ausente durante anos, fazendo
o possível para arriscar sua vida e seus membros em mares distantes, e apesar de que trazer ao mundo seus três filhos a havia afetado e de que o horrível processo
ao qual a submeteram e sua desgraça acabaram com sua louçaria, nem a bonita forma de seu corpo nem seus olhos nem sua cabelo haviam mudado. Ademais, seu enorme esforço
mental e espiritual para manter em ordem a casa em sua ausência e para tratar com homens de negócios, às vezes pouco escrupulosos, apagara de sua cara todo rastro
de expressão insípida ou cândida. E a recente maré de ouro, que voltava a encher de vida a casa (agora parecia difícil acreditar que pouco antes essa cálida, luminosa
e alegre habitação estava fechada com chave e tinha os postigos tirados e os móveis tapados com lençóis) também fizera maravilhas com sua pele, que agora parecia
a de uma menina.
Mas Sophie Aubrey não era tonta, e ainda que soubesse que somente a derrota na eterna guerra e a bancarrota do Estado poderiam lhe causar graves problemas econômicos,
também sabia que Jack não seria realmente feliz até que seu nome voltasse a figurar no Boletim Oficial da Armada. Jack estava contente e se alegrava de estar com
ela e as crianças, e, naturalmente, o desaparecimento da angústia que sentia por aquele aparentemente interminável pleito haviam influído muito nele; contudo, ela
sabia perfeitamente bem que ele tinha muito menos vontade de viver do que antes (percebeu isso, entre outras coisas, por evitar de ir caçar e por no estábulo só
haver dois cavalos e serem de carga) e que com relação aos diferentes aspectos de sua vida podia se dizer que estava desolado. Convidavam muito poucas pessoas para
almoçar e quase nunca comiam fora, em parte devido a que a maioria de seus companheiros de tripulação estarem navegando, mas em parte porque recusava todos os convites
exceto os que lhe faziam pessoas às quais estava muito agradecido ou que lhe haviam dado provas de amizade durante o processo.
Era muito sensível, e muito pouco tempo atrás Sophie havia passado alguns momentos difíceis com os membros do comitê dos comerciantes que se dedicavam ao comércio
com as Antilhas. Haviam lhe falado do presente que iam dar a Jack, ou melhor, do escudo e da inscrição que iam gravar nele, que já estava na oficina de Storr. Ela
lhes rogou que omitissem "antigo membro da Armada Real", "antigo barco de sua majestade" e a palavra "corsário", que aparecia repetidas vezes, mas os cavalheiros
pareciam muito satisfeitos com o que escreveram e convencidos de que não era possível melhorá-lo, assim que ela duvidava que fizessem alguma mudança.
Um grupo do marinheiros passou pela frente da janela quando se dirigiam para o salão para limpá-lo ao estilo da Armada, quer dizer, tirando tudo o que havia dentro,
esfregando e polindo tudo o que estava à vista e voltando a colocar tudo, cadeiras, mesas e estantes, em perfeita ordem. Quando estava no mar, normalmente faziam
isso na cabine do capitão, e achavam normal fazer o mesmo em sua casa quando estava em terra. Ademais, desde o fim de semana de licença que passaram em Shelmerston
entregues aos prazeres, haviam repintado tudo o que era de madeira no interior de Ashgrove Cottage e haviam branqueado todas as pedras que beiravam o caminho da
entrada e as veredas do jardim.
Apenas passaram, um melro que estava pousado em uma árvore do outro lado do terreno coberto de grama começou a cantar. Ainda que estivesse muito longe seu bonito
canto podia ser ouvido bem, pois a casa, apesar de seus inconvenientes, tinha a vantagem de ser um lugar muito tranqüilo.
- Quanto eu gostaria de poder cantar assim! - murmurou Jack, cheio de admiração.
- Meu amor- disse Sophie, apertando-lhe a mão -, você canta muitíssimo melhor.
O pássaro interrompeu seu canto e então ouviram às crianças que se aproximavam gritando.
- Venha, George, bunda gorda! Dê uma mão, Charlotte, você vai?
- Já vou! - replicou George, e sua voz parecia mais débil e distante -. E verá como tem que me esperar.
- Charlotte, não deve falar assim perto de casa porque não é correto e podem ouvir - disse Fanny tão alto como se soprasse um vento forte que obrigasse a rizar as
gáveas.
Para qualquer observador teria parecido que falavam muito alto e que suas palavras eram rudes e seu tom agressivo, mas o que ocorria era que quando estavam sozinhos
falavam como os marinheiros, em parte porque foram criados por homens do mar, que substituíam os serventes em Ashgrove Cottage. Mas seus insultos eram puramente
convencionais, pois todos se queriam muito, o que se fez evidente quando da janela puderam ver os três saltando alegremente, as duas meninas levando pela mão ao
seu irmão pequeno.
- Já chegou! - gritaram, mas não ao mesmo tempo, produzindo um conjunto de sons discordantes -. Já chegou!
- Já chegou, senhor - disse Killick abrindo a porta bruscamente -. Já chegou, senhora.
Killick desempenhava a função de mordomo em Ashgrove, e em sua opinião os mordomos podiam sorrir e fazer sinais com o polegar para cima.
- Está em um coche fechado que o cocheiro levou para o estábulo vigiado por dois tipos com arcabuzes - continuou -. Havia um cavalheiro encarregado de pronunciar
um discurso, mas encheu a cara, e perdão pela expressão, em Godalming, assim que eles chegaram sozinhos. O discurso está escrito em um papel e o senhor mesmo poderá
lê-lo. Eles me perguntaram se quer que tragam os baús para aqui, senhor.
- Não. Leve-os para a cozinha, mas diga-lhes que têm que descarregar os arcabuzes antes de pôr um pé na casa. Dá-lhes cerveja, pão, queijo, presunto e bolo de porco.
Você e Bonden trarão os baús e também uma chave de fenda e uma alavanca.
Chegaram os baús, escoltados pelas crianças, e no corredor que dava para a cozinha gritaram:
- Podemos abri-los, papai?
- George - disse seu pai, observando os baús selados e assegurados com tiras de couro que tinham pintado na tampa: Senhor John Aubrey, Ashgrove Cottage, Hants Muito
Frágil -, tenha a amabilidade de ir para o quarto de sua avó e diga-lhe que chegou algo de Londres.
Antes que a senhora Williams se penteasse e se vestisse adequadamente e descesse devagar a escada, já haviam aberto a tampa do primeiro baú e uma extraordinária
quantidade de palha e lascas de madeira haviam coberto as três quartas partes da habitação. Gritou horrorizada e sua potente voz percorreu a sala de desjejum. Jack
Aubrey acabava de tocar as folhas de papel de seda que envolviam o conteúdo importante do baú e procurava uma separação entre os amontoados pacotes. Sophie, com
o coração encolhido, observou como levantava, pegava e desenbrulhava o volumoso pacote que estava no meio, deixando à vista de todos uma brilhante sopeira.
- Espere um momento, senhora - disse Jack, em um tom capaz de afogar as palavras de indignação da senhora Williams e entregou a sopeira para sua esposa.
A sopeira, trabalhada conforme o estilo moderno, era tão pesada que Sophie quase a derrubou. Quando pegou a outra alça olhou o fundo e, antes de pô-la na horizontal,
viu que a inscrição dizia o que ela desejava e então a leu em voz alta:
Ao capitão de marinha mais distinto,
o senhor John Aubrey, a Associação
de Comerciantes que faz o comércio
com as Antilhas lhe presenteia com esta louça
em agradecimento pela incalculável ajuda
e a proteção que deu ao comércio do país,
que é sua seiva, em todas as latitudes
e em ambas guerras, e sobretudo pela captura
do spartan, o barco corsário maior,
temível e rapace dos de sua classe.
Debaixo da inscrição estava a frase "Debellare superbos", a cujos lados havia gravados dois leões que olhavam para ela.
- Muito bem dito: a seiva - disse a senhora Williams -. Muito bem dito. Parabéns, senhor Aubrey - acrescentou apertando-lhe a mão como amostra de seu sincero afeto
e, tirando a sopeira das mãos de sua filha, acrescentou: - Deve pesar umas cento e cinqüenta onças.
- Oh, senhor, acho que há outra igual! - exclamou Charlotte, pondo-se na ponta dos pés -. Por favor, por favor, deixe-me pegá-la.
- Pode pegá-la, querida - concedeu Jack.
- É muito pesada e delicada para que uma menina a pegue - interveio a senhora Williams inclinando-se rapidamente para frente para sacar a segunda sopeira -, mas
ela pode pegar a tampa, que está do lado.
- Eu também posso tirar algo, papai? - sussurrou Fanny, puxando a manga de Jack.
Era justo que também o fizesse, e pouco depois a tarefa de abrir os pacotes se converteu em uma espécie de jogo, pois todos pegavam por turnos uma coisa e diziam
seu nome: molheira, concha pequena, concha grande, pires, tampa, fruteira enorme... pegaram montes de pratos grandes e pequenos e continuaram pegando coisas até
que encheram com elas as mesas e sobre o tapete não restou nenhum lugar em que não houvesse palha, lascas, papel de seda ou algodão. A habitação parecia a caverna
de um bandido, já que os homens que faziam o comércio com as Antilhas haviam sido muito generosos, exageradamente generosos.
- Terá que buscar um ajudante ou dois para lhe ajudar a polir - disse Jack para Killick, que olhava ao seu ao redor assombrado da quantidade de superfícies que ia
ter que esfregar com calcário e um pedaço de camurça.
Como todos os marinheiros, Killick tinha a obsessão de fazer brilhar os metais, e já havia reduzido as velhas bandejas de prata de Jack quase a uma lamela de metal.
- Agora ela deve ser toda lavada com água quente e sabão, porque as crianças estavam com as mãos sujas - disse a senhora Williams -. E quando esteja completamente
seca deve ser envolvida em pedaços de feltro e guardada no sótão debaixo de chave. É boa demais para ser usada.
- Charlotte - disse Jack -, esta colher é para você. E esta para você, Fanny.
- Oh, obrigado, senhor! - exclamaram, fazendo uma reverência e ruborizando de satisfação.
Como eram gêmeas, puseram a mesma expressão e ruborizaram, falaram e fizeram os mesmos movimentos ao mesmo tempo. A coincidência de todas essas coisas parecia absurda
e tinha algo de comovente.
- E esta é para você, George. Necessitará de uma quando se aliste pela primeira vez em um barco.
A senhora Williams expressou sua opinião sobre a educação naval. Jack a conhecia porque ela a havia repetido frequentemente desde que George se punha calções e a
ouviu sem prestar atenção.
- Mamãe, omitiste a frase final: Debellare superbos - observou Fanny, olhando a inscrição do fundo. O que significa?
- É latim, querida - respondeu Sophie -. Isso é tudo o que sei. Terá que esperar que o doutor Maturin ou a senhorita O’Mara venham.
A senhorita O’Mara, a filha de um oficial morto no Nilo, era a futura tutora, e seu nome geralmente entristecia o dia das meninas, mas desta vez quase não influiu
em Fanny.
- Perguntarei a papai - acrescentou.
- Ei, os do salão! - gritou Dray, que tivera que ficar na cozinha porque sua bota estava cheia de barro (usava só uma porque a outra perna era de madeira).
- Que foi? - perguntou Killick.
- Carta urgente para o capitão!
- Chegou uma carta urgente para o senhor, senhor - anunciou Killick.
- Uma carta urgente? Que poderá ser? - perguntou a senhora Williams, levando seu lenço à boca.
- Vá à cozinha para buscá-la, George, por favor - pediu Jack.
- O garoto caiu do cavalo no caminho e está coberto de sangue - disse George com certa satisfação quando regressou -. E a carta também.
Jack foi até a sacada e, em meio do silêncio que havia produzido o assombro (uma carta urgente em Ashgrove Cottage era algo muito raro), ouviu sua sogra sussurrar
para Sophie:
- Isto é de mau agouro. Espero que a carta não diga que o banco do senhor Aubrey quebrou, mas estou quase segura de que o sangue no envelope significa que o banco
do senhor Aubrey quebrou. Nenhum banco está seguro hoje em dia. Quebram por toda parte.
Jack se ficou pensativo por alguns momentos. Pensou que faltava pouco para terminar de armar a Surprise e que se Tom Pullings, um marinheiro tão confiável e diligente,
tivesse ficado a bordo, estaria pronta para zarpar em questão de horas; contudo, Tom não teria que se apresentar ali até a terça-feira. Também pensou que Davidge
e West eram oficiais competentes e experientes, porém, como não os conhecia bem, não podia deixar que decidissem conforme seu critério a preparação para o combate,
um combate que provavelmente ocorreria no final da viagem que Stephen lhe propunha com tão pouca antecedência, pois não a teria chamado de viagem curta se não houvesse
essa probabilidade.
Enquanto contemplava todas as possibilidades percebeu que seu silêncio e os burburinhos da senhora Williams estavam embaçando a cena e que as crianças o olhavam
muito sérias.
- Sophie - disse, metendo a nota no bolso -, acho que terei que ir ver a fragata amanhã pela manhã em vez de esperar a terça-feira. Mas vamos levar estas coisas
para a sala de jantar e pô-las como se fôssemos dar um banquete.
Acrescentando duas folhas à mesa da sala de jantar, podiam sentar-se comodamente nela catorze pessoas, e para servir a catorze pessoas fazia falta uma grande quantidade
de pratos. A louça era mais volumosa, rebuscada e empetecada que qualquer uma que Jack e Sophie teria escolhido, e quando apenas a metade estava colocada, a mesa
parecia muito luxuosa, sobretudo porque as cortinas estavam abertas e as velas acesas para fazê-la brilhar mais. As crianças iam de um lado para o outro como formigas
quando ouviram um ruído lá fora. Então olharam por entre as cortinas e viram um coche puxado por quatro cavalos.
Stephen desceu do carro com as costas encurvadas e cãimbras provocadas por uma viagem tão longa e depois desceu Padeen com uma bolsa na mão. As crianças, cheias
de emoção, passaram juntos gritando com todas suas forças:
- O doutor Maturin veio em um coche com quatro cavalos e um deles está babando muita espuma, e Padeen tem a cara vendada!
- Stephen! - exclamou Jack, descendo a escada -. Quanto me alegro em vê-lo! Não poderia ter escolhido um momento mais oportuno. Estamos a ponto de celebrar um banquete.
Padeen, espero que esteja melhor. Killick lhe ajudará a subir a bagagem do doutor para seu quarto.
O coche se foi para Goat and Compasses, onde o cocheiro esperaria até que voltassem a chamá-lo. Stephen entrou na casa, beijou Sophie e os dois pequenos rostos de
olhar expectante inclinados para cima, e depois ele e George se cumprimentaram com uma inclinação de cabeça.
- Eu me alegro de lhe encontrar aqui - disse a Jack no corredor -. Temia que se tivesse ido a Shelmerston ontem ou anteontem.
- Recebi sua carta urgente faz só uma hora.
- Boa tarde, senhora - cumprimentou Stephen, fazendo uma inclinação de cabeça para a senhora Williams na sala -. Pode acreditar nisto, senhora? Mandei há dois dias
uma carta urgente da cidade de Londres, não do remoto Ballymahon nem dos pântanos de Cambridge, e chegou apenas duas horas antes que eu. Desperdicei dezesseis xelins
e oito peniques e mais a meia coroa que dei ao recadeiro.
- É claro que acredito, senhor! - exclamou a senhora Williams -. Isso faz parte do plano do governo para arruinar o país. Hoje em dia nos governam demônios, senhor,
demônios.
- Tenho uma colher de prata, senhor - interveio George, sorrindo -. Gostaria de vê-la?
- Sophie, esta é a melhor oportunidade de fazer o batismo da louça - disse Jack -. Stephen não comeu e nós tampouco. Tudo está preparado ou quase preparado como
se um almirante fosse fazer uma inspeção. Não poderíamos cozinhar um ou dois pratos simples e almoçar suntuosamente? Tem cabeça de javali conservada em vinagre...
- Naturalmente que podemos, querido! - exclamou Sophie sem vacilar -. Dê-me uma hora e pelo menos porei algo sob cada tampa.
- Stephen, entretanto nós iremos para a sala de fumar e nos tomaremos um copo de vinho Madeira. Provavelmente quer fumar um charuto depois da viagem.
Depois, quando estavam na sala de fumar, disse:
- Parece que Padeen foi para a guerra. Foi muito dolorosa a operação?
- Sim. Muito dolorosa e muito longa. Mas os galos e roxos que tem conseguiu em uma briga em Black's. Na habitação onde se reúnem os serventes dos membros, três homens
zombaram de sua venda e lhe perguntaram se seu pai era um asno ou um coelho e ele os destroçou. Quebrou a perna de um, fraturando a tíbia e o perônio; ao outro o
jogou sobre um grande aquecedor de gás antigo e o manteve sobre ela um bom momento, e ao terceiro o perseguiu até que se jogou no lago do parque Saint James e não
o seguiu porque usava uma roupa negra muito elegante. Afortunadamente, há alguns membros que são magistrados de Middlesex e pude tirá-lo dali.
- Um não pode meter-se com ele. É como um leão; isto é, como um lobo em pele de cordeiro. Eu o vi abordar o Spartan e se comportou como um autêntico herói.
- Sim - disse Stephen e depois se aproximou do fogo, acendeu o charuto e acrescentou -: Jack, temos a possibilidade de tomar parte em uma batalha naval, de atacar
uma fragata da Armada francesa. Asseguraram-me que uma vitória ou uma derrota digna em um combate assim poderiam influir favoravelmente nas autoridades para que
lhe incluam de novo no Boletim Oficial da Armada.
- Juro por Deus que daria meu braço direito por isso - replicou Jack.
- Por favor, meu amigo, não diga essas coisas - pediu Stephen -. Isso é desafiar o destino. Certamente, meu amigo não me garantiu nada, mas é um fato que um combate
com um barco de guerra de um país tem valor para as autoridades, enquanto que um combate da mesma magnitude com um barco de guerra privado não tem nenhum. Em poucas
palavras, a situação é a seguinte: entre os barcos atracados em Saint Martin há uma fragata de trinta canhões chamada Diane, que será preparada e aprovisionada para
fazer uma viagem muito parecida com a nossa para a América do Sul, e concretamente para o Chile e Peru, mas talvez cruze também o Pacífico sul para atacar nossos
baleeiros. Já estão a bordo quase todas as provisões e quase todos os representantes da França, tanto oficiais como não oficiais, e zarpará no dia treze com a baixa-mar,
quando ainda não haja saído a lua, para atravessar o Canal antes que se faça de dia. Durante algum tempo a fragata e vários dos outros barcos que se encontram em
Saint Martin tiveram que permanecer ali porque o porto estava bloqueado por uma pequena esquadra entre as que se encontravam a Nymph, que poderia enfrentar-se com
ela e com qualquer dos bergantins ou as canhoneiras que saíssem para ajudá-la; contudo, a situação atual é crítica e nem a Nymph nem sua habitual acompanhante, a
Bacchante, podem largar outras operações mais importantes em outra parte e a esquadra se há reduzido à Tartarus e à desconjuntada Dolphin. Tentaram ocultar essa
debilidade enviando o barco aprovisionador Carriel e outra embarcação para a zona, mas o inimigo conhece nossos movimentos e pensa levar a cabo seu plano. Meu amigo
acredita que se a Surprise puder intervir, todos os que tenham relação com o caso se beneficiarão.
- Oh, Stephen, não poderias ter-me trazido melhores notícias! - exclamou Jack, apertando-lhe a mão -. Posso dizer a Sophie?
- Não, não pode dizer nem a ela nem a ninguém até que estejamos navegando, ou pelo menos a ponto de recolher âncoras. Quero que demos uma surpresa. Agora escute-me:
tomei a liberdade de dar seu consentimento...
- Você fez bem. Ah, ah, ah!
- ... à operação, à operação proposta, e também ao caráter oficial que deve ter. Emprestamos, isto é, alugamos a fragata à Coroa, e o Almirantado nos deu um documento
para o caso de encontrarmos algum oficial de serviço de caráter difícil ou legalista. Como nosso querido amigo William Babbington é agora o oficial de mais antiguidade,
as possibilidades de desacordo são remotas, mas é conveniente ter o documento e acredito que é o melhor modo de proteger-nos em nossa viagem para a América do Sul.
O documento começa: "Os comissionados para executar as ordens do lorde almirante supremo da Grã-Bretanha, etcétera". Destina-se: "aos oficiais dos navios insígnia,
aos capitães de corveta e de navio dos barcos de sua majestade, aos quais se deve apresentar". E o texto é: "Enviamos o senhor Jack Aubrey para cumprir uma missão
na fragata Surprise, alugada por sua majestade, e pela presente se ordena não lhe exigir que mostre as instruções que lhe havemos dado para realizar a dita missão
nem atrasá-lo por nenhum motivo senão, pelo contrário, prestar-lhe a ajuda que necessite para que possa seguir fielmente as instruções". Está assinado por Melville
e outros dois lordes do Almirantado e também, por ordem sua, por Croker, esse maldito ladrão. Como vê, leva data e selo.
Jack pegou o papel com a solenidade com que teria agarrado algo sagrado e as lágrimas assomaram aos seus olhos. Como Stephen sabia que os ingleses eram muito propensos
a pôr-se em uma situação embaraçosa por exteriorizar suas emoções, disse em tom áspero:
- Mas devo dizer que a Diane está sob o comando de um capitão excepcional, o irmão de Jean-Jaques Lucas, o que lutou tão valentemente na Redoutable em Trafalgar.
Permitiram que escolhesse seus tripulantes e ele os treinou conforme os métodos de seu irmão. Para muitos observadores entendidos na matéria, a agilidade com que
esses homens mudam as velas e fazem outras operações lhes parece surpreendente, e ainda mais a rapidez e a precisão com que disparam os canhões e as armas leves.
É muito provável que haja a bordo alguns civis com certos documentos que é importante conseguir intactos. Tem algum mapa ou alguma carta marinha que represente esse
lugar que possamos estudar?
- Tenho a segunda e a fiz eu mesmo - disse Jack -. Vamos ao que eu chamo, talvez equivocadamente, de biblioteca. Pegue sua taça de vinho.
Jack Aubrey era meticuloso e metódico em casos desse tipo e em menos de dois minutos abriu uma folha de papel amarelada na mesa da biblioteca. Disse que fizera a
carta marinha em 1797 com o senhor Donaldson, o oficial de derrota do Bellerophon, o melhor hidrógrafo da Armada e depois acrescentou:
- A medição com a bússola variou trinta e um segundos para o leste desde então e há que comprovar a profundidade de alguns lugares, mas me atreveria a entrar no
porto e atracar a fragata perto das baterias sem ajuda de um piloto.
Na carta marinha aparecia um porto comprido e estreito, um porto que media menos de um quarto de milha de largura na entrada e duas milhas de comprimento. Tinha
uma bateria com seis canhões ao fundo e um quebra-mar havia reduzido a entrada. Os dois lados eram escarpados, mas o lado sul, que terminava em um amplo cabo, era
muito mais, exceto na parte em que o cabo se unia à ilha. No cabo havia um farol e o istmo era protegido por uma enorme fortaleza. A cidade se estendia pela parte
do cabo situada ao leste do farol e pelo outro lado do porto; os barcos de guerra estavam atracados em um magnífico cais de pedra na parte sul do porto e os mercantes,
em geral, na outra parte. Na cidade habitavam quatro ou cinco mil pessoas além da guarnição e havia três igrejas, vários armazens de material de guerra e um estaleiro
de muita fama.
- Aqui foi onde desembarcamos no início da guerra - indicou Jack, assinalando o istmo -. Os atacamos pelas costas e incendiamos o estaleiro e um barco de vinte canhões
que estava em construção. Meu Deus, que chamas! Soprava o vento do sul e o breu, a pintura, a madeira e a lona arderam imediatamente. Inclusive se houvesse podido
ler com facilidade. Depois dessa jogada eles colocaram esta bateria. Como vê, os bancos de areia dificultam que um barco de tão grande calado como uma fragata entre
e saia do porto movendo-se em linha reta, e como o capitão da Diane não quer se encontrar com a esquadra, que está mais ao norte, e terá que rumar para sudoeste
dentro de pouco, a tirará por aqui com a baixa-mar - acrescentou enquanto assinalava um escarpado cabo -, e aqui é onde vamos esperá-la com todas as luzes apagadas.
Chamamos esse cabo de Bowhead.
Fez alguns comentários sobre a maré e sobre o modo com que os ventos que soprariam ali a afetariam.
Quando Stephen gravou em sua memória onde ficavam o porto e as montanhas que o rodeavam e quais eram seus acessos, Jack guardou a carta marinha e olhou pela janela
para a custa que levava para seu pequeno observatório rematado por uma cúpula dourada. Importava-lhe muito a opinião que seus filhos tinham dele e pensava que lhes
mostrar a louça de prata que os comerciantes com as Antilhas lhe presenteara influíra nela muito mais do que podia imaginar. Eles sabiam que algo ocorrera, ainda
que ele ignorasse que era exatamente o que sabiam e o que pensavam disso. Ainda que só fosse por eles, daria o braço direito para voltar a aparecer no Boletim Oficial
da Armada, e a idéia de que essa possibilidade terminasse sendo uma realidade o transtornava. Estava disposto a falar de suas reflexões de forma geral e impessoal,
quando Killick, vestido com uma casaca de gala, abriu a porta e anunciou:
- O almoço está servido, senhor, com sua permissão.
A senhora Williams não era dotada de um alto grau de observação, mas se assombrou tanto como sua filha quando viu Jack entrar depois de Stephen e sussurrou:
- Se não conseguir que Killick mantenha as garrafas longe do senhor Aubrey, teremos que deixar os cavalheiros sozinhos no início da refeição.
CAPÍTULO 5
Jack Aubrey nunca gostou do costume que muitos homens da Armada tinham de subir a bordo sem avisar para pegar os tripulantes desprevenidos; contudo, desta vez não
teve opção, já que nem sua falua nem seu timoneiro estavam no porto. Mas se alegrou de fazê-lo, pois quando se afastou dali junto com Stephen em um esquife viu que
a Surprise era um modelo de laboriosidade. Ainda penduravam dos costados alguns andaimes e os últimos traços de tinta azul haviam desaparecido sob uma capa de tinta
branca ainda fresca. O senhor Bulkeley e seus ajudantes caminhavam pela exárcia como enormes arranhas repondo os olhais e assegurando com tiras de pele vermelha
as vinhateiras maiores, que adquiriam um bonito aspecto. Ainda que o velame não estivesse desdobrado exatamente como desejava (pois a proa estava um pouco mais afundada),
era evidente que já tinha dentro a maior parte dos barris de água. A água de Shelmerston era a melhor que havia ao sul do Tâmisa para ser levada em uma viagem para
o estrangeiro, mas não era fácil pegá-la; por isso, em sua ausência os tripulantes da Surprise deviam de ter feito muitas viagens nos botes.
Enquanto contemplava a fragata escutava pela metade ao barqueiro, cujo filho (como muitos outros habitantes da pequena cidade) estava desejoso de navegar com o capitão
Aubrey. O garoto era um bom navegante e fizera três viagens para Cantão e uma para Botany Bay, e desde o início fora qualificado como marinheiro de primeira. Tocava
muito bem o violino, sempre estava sóbrio e só brigava quando estava no convés de um barco inimigo. Pertencia à Igreja anglicana e (com ênfase) sempre obedecia as
ordens.
- Estou seguro de que é um jovem bom - disse Jack -, mas já temos todos os marinheiros que necessitamos, sabe? Contudo, é possível que sujam vagas quando o resto
do butim chegar e o repartamos, pois me parece que alguns querem pôr um negócio ou comprar uma taberna.
- E aqueles tipos desajeitados que o senhor rechaçou, sua senhoria?
- Bom homem, outros os substituiram essa mesma tarde. Diga ao seu filho que venha me ver ou ao capitão Pullings quando tudo haja terminado, aproximadamente dentro
de duas semanas, e lhe daremos uma espiada. Como se chama?
- Abel Hayes, senhor, com sua permissão - respondeu -. Abel, não Set - acrescentou o barqueiro lançando-lhe um olhar significativo, mas Jack não compreendeu a que
se referia.
- Dê uma volta ao redor da fragata antes de abordar-se com ela.
O esquife passou em frente da popa da fragata a um cabo de distância e depois pela frente do imaculado costado de estibordo, onde se via claramente o nome Set pintado
na coxia sobre a faixa branca, justo entre as negras portalós dos canhões doze e catorze. Jack não fez nenhum comentário, mas seu rosto rosado, que durante a viagem
ao porto havia adquirido uma expressão quase tão alegre como a que habitualmente tinha, ficou cinza e tenso e uma expressão de irritação substituiu a alegre mais
uma vez.
- Para o pescante central de bombordo! - ordenou depois de uma pausa.
Ao chegar lá subiu rapidamente pelo costado e foi até o castelo de popa, um de tantos castelos de popas onde fazia menos de trezentos anos haviam colocado um crucifixo.
Então fez a saldação obrigatória aos oficiais e lhe responderam Davidge, West e Martin, que se haviam apresentado ali no sábado para evitar ter que viajar no domingo,
algo que não molestava a Jack nem a Stephen. Os três estavam muito melhor vestidos que no momento em que se alistaram na fragata e, evidentemente, eram mais ricos;
contudo, tinham uma expressão angustiada e preocupada.
- Boa tarde, cavalheiros - Jack os cumprimentou-. Vou descer, senhor Davidge, e gostaria de escutar seu relatório dentro de cinco minutos.
Na cabine o esperavam várias mensagens e cartas. Na maioria destas havia petições de admissão na fragata, mas algumas continham felicitações e bons augúrios de antigos
companheiros de tripulação, alguns dos quais se encontravam em um lugar tão distante como o hospital de Greenwich. Quando ainda estava lendo uma delas, Davidge entrou
e disse:
- Senhor, lamento sinceramente ter que lhe informar de um motim a bordo.
- Um motim? Pelo aspecto da fragata deduzo que não foi geral. Quem participou dele?
Percebera que não ouvira risos nem conversações alegres e vira muitos homens com expressão triste e preocupada, ainda que não ressentida. Tanto quando menino como
adulto presenciara vários motins e sabia que se haviam produzido muitos mais (eram muito freqüentes na Armada) além dos grandes distúrbios de Spithead e Nore, mas
nunca ouvira que se produzisse um a bordo de um barco próspero e ativo e cujos tripulantes podiam desfrutar de um comprido período de licença e de todos os prazeres
que o dinheiro podia comprar.
- Slade, os irmãos Brampton, Mould, Hinckley, Auden e Vaggers, senhor.
- Oh, meu Deus!
Esses marinheiros estavam entre os melhores de Shelmerston. Dois deles eram timoneiros, um era ajudante do condestável e os outros eram marinheiros de primeira.
Eram homens tranqüilos e confiáveis, e excelentes navegantes.
- Sente-se, senhor Davidge, e resuma o ocorrido - acrescentou.
Mas a mente de Davidge funcionava de uma maneira que lhe impedia fazer um resumo completo, em ordem cronológica e coerente. Era um oficial competente, que não vacilava
em dar ordens com rapidez para agir em uma situação perigosa provocada por uma tempestade ou pela proximidade de uma costa a sotavento, mas divagava tanto ao fazer
uma narração que Jack não estava seguro de ter se informado de tudo quando terminou de forma brusca as numerosas repetições e parêntese. O que entendeu foi que no
domingo pela manhã os sete homens, que eram seguidores de Set ("Que significa "seguidores de Set", senhor Davidge?", perguntou, e ele respondeu: "Acho que são tipos
extravagantes parecidos aos metodistas, senhor, mas não indaguei muito sobre isso".), haviam ido todos ao local onde se reuniam em seu povoado de origem, o antigo
Shelmerston, que ficava situado no interior da região. Depois comeram na costa e regressaram para a fragata, onde alguns, ou todos, subiram no andaime que ainda
pendurava do costado de estibordo e pintaram a ofensiva palavra.
Davidge não a viu imediatamente, pois estava na câmara dos oficiais onde se celebrava um banquete em honra da senhora Martin, porque era a primeira vez que visitava
a fragata; contudo, a viu claramente a uma grande distância quando regressou para a Surprise depois de acompanhar os Martin para a costa, já que a fragata havia
virado ao mudar a maré, e ordenou apagá-la de imediato. Aparentemente, ninguém sabia quem a havia pintado. Ademais, ninguém queria apagá-la nem tapá-la com tinta
porque todos deram inumeráveis desculpas, entre outras que as broxas já estavam limpas, que tinham posta sua melhor roupa, a roupa do domingo, e que iam nesse momento
à proa porque tinham o estômago revirado de tanto comer caranguejos. Finalmente, Auden admitiu que havia pintado o nome mas se negou a apagá-lo alegando que sua
consciência não lhe permitia, e os outros seis homens o apoiaram. Não estava bêbado nem usou um tom violento nem blasfemou, mas tanto ele como os outros asseguraram
que se um marinheiro tentasse apagar o nome, o primeiro movimento que fizesse seria o último. Davidge e West não contaram com o apoio do contramestre nem do condestável
nem do carpinteiro, e muito menos com o dos marinheiros, que ainda que não quisessem ter uma atitude rebelde diziam que não fariam nada que trouxesse má sorte para
a fragata. Davidge não deu ordens terminantes para não complicar a situação nem pôs grilhões aos sete homens porque não havia infantes da marinha a bordo. Ademais,
a fragata não estava navegando nem se regiam pelo Código Naval, e nem ele nem West estavam seguros do que deviam fazer. Contudo, substituiu os homens em suas tarefas
até que o capitão chegasse e lhes proibiu de subir ao convés. Disse que talvez devesse tê-los mandado para terra imediatamente, que se se equivocara pedia desculpas
por isso e que apelava pela benevolência do capitão Aubrey.
- Consultou ao senhor Martin? - inquiriu Jack.
- Não, senhor, porque regressou apenas alguns minutos antes do senhor.
- Compreendo. Acredito que atuou bastante bem nesta difícil situação. Por favor, pergunte aos doutores se têm um momento para falar comigo.
Durante o curto período que os esperou passaram por sua mente várias possibilidades, mas os argumentos contra e a favor de cada uma estavam quase em equilíbrio quando
a porta da cabine se abriu.
- Senhor Martin - disse -, provavelmente já se informou do atual problema. Por favor, diga-me tudo o que saibe dos seguidores de Set. Não ouvi falar deles.
- Bem, senhor, provêm dos gnósticos valentinianos, mas a vinculação é tão remota e confusa que seria inútil tratar de achá-la. Na atualidade estão agrupados em pequenas
comunidades que, conforme acredito, são independentes; quer dizer, não estão governadas por nenhum organismo, ainda que é difícil sabê-lo com certeza, porque foram
perseguidos como hereges durante tanto tempo que são muito reservados e com relação a muitas coisas ainda se comportam como membros de uma sociedade secreta. Acreditam
que Caín e Abel nasceram por desígnio dos anjos e que Set, que, como o senhor recordará, nasceu depois do assassinato de Abel, foi criado pelo própio Todo-poderoso
e não só é antepassado de Abraão e de todos os homens vivos, senão a viva imagem de nosso Senhor. Veneram a Set e acreditam que cuida muito de seus seguidores; contudo,
têm uma má opinião dos anjos porque pensam que eles... como lhe diria?, que eles, por causa de suas impurezas, provocaram o dilúvio em tempos de Noé. Acreditam que
isso poderia ter acabado com seus descendentes, mas que alguns se salvaram na arca e que são eles, não Set, os antepassados dos maus.
- É estranho que nunca tenha ouvido falar deles. Se fazem ao mar com freqüência?
- Acho que não. A maioria dos poucos que encontrei e dos poucos de que ouvi falar vivem em pequenos grupos isolados em lugares remotos, no interior da região ocidental
do país. Às vezes gravam o nome de Set em suas casas e estão divididos em duas escolas diferentes rivais entre si: a velha escola, que escreve o s ao revés, e a
nova, que a escreve como nós. Além disso e de sua resistência a pagar o dízimo, têm fama de ser sóbrios, honestos e confiáveis, ao contrário dos quacres. Também
diferem destes por não terem aversão à guerra.
- Mas são cristãos, não é?
- Quanto a isso - respondeu Martin olhando para Stephen -, devo dizer que alguns gnósticos assombrariam a são Pedro.
- Os valentinianos tiveram a bondade de dizer que os cristãos poderiam se salvar - interveio Stephen -, assim que deveríamos devolver-lhes o amável gesto.
- De toda forma - continuou Martin -, esta gente largou há muito tempo o gnosticismo de Valentín, e quase o esqueceu. Seus livros sagrados são os nossos e acho que
podemos considerá-los cristãos, ainda que estejam em desacordo com alguns pontos da doutrina.
- Alegra-me sabê-lo. Agradeço por suas explicações, senhor. Maturin, tem algum comentário a fazer?
- Não. Não posso ensinar nada sobre teologia a Martin, que conhece tão bem à Divindade.
- Então irei dar um passeio pelo convés e depois falarei com os seguidores de Set.
Deu o passeio desfrutando da agradável tarde e quando regressou para a cabine, mesmo que ainda não decidira como ia enfocar o problema, mandou chamar os amotinados.
Nas relações públicas não era um Maquiavel, assim que com total sinceridade lhes disse:
- Eu lhes asseguro que temos um grave problema. Que demônios... quer dizer, o que lhes induziu a pintar o nome Set no costado da fragata?
Os sete homens permaneceram ali, de costas para a fragata, formando uma perfeita linha reta sobre a lona de quadros brancos e negros que cobria o piso. A luz que
entrava pela ampla janela de popa lhes batia em cheio, e Jack, de costas para ela, podia vê-los muito bem. Tinham o semblante grave e estavam nervosos e um pouco
assustados por encontrar-se ali, mas não pareciam chateados nem muito menos ressentidos.
- Vamos, Slade - disse Jack -, o senhor que é o mais velho, conte-me como tiveramessa idéia.
Slade olhou alternativamente para os companheiros que tinha a direita e a esquerda e todos consentiram com a cabeça. Então, com o forte sotaque da região ocidental,
respondeu:
- Bem, senhor, nós pertencemos ao grupo de seguidores de Set.
- Sim. O senhor Martin acaba de me falar deles e diz que constituem um respeitável grupo cristão.
- Sim, senhor. No domingo comparecemos ao local onde celebramos nossas reuniões no velho Shelmerston...
- Justo depois de passar na ferraria - interveio o mais tonto dos irmãos Brampton.
- ... e lá nos recordaram que Set - continuou e, quando disse seu nome, ele e todos os outros moveram o polegar da mão direita para cima e para um lado - fora muito
generoso conosco em nossa última viagem.
- Sim - assentiram seus companheiros.
- E quando estávamos comendo no William pensamos que se desde tempos imemoriais nossa gente há gravado seu nome em suas casas como prova de agradecimento pelos dons
recebidos, nós devíamos gravá-lo na fragata quando regressássemos.
- Compreendo. Mas quando lhes ordenaram que o apagassem, os senhores não o fizeram.
- Não, senhor. Para nós o nome é sagrado e não se deve apagar nunca. Nenhum de nós levantará a mão para fazê-lo.
- Sim - afirmaram seus companheiros.
- Compreendo seu ponto de vista - disse Jack -. Porém, digam-me, o que beberam durante a refeição?
- Não estávamos bêbados, senhor - replicou tranqüilamente Slade.
- Isso me hão dito; contudo, os senhores não comeram sem beber nada e é lógico que com ouro no bolso não bebessem água nem soro de leite. O que beberam?
A resposta, que deram com uma precisão religiosa, foi que todos haviam tomado pouco mais de um quarto de galão de cerveja ou de sidra exceto Slade e Auden, que haviam
compartido uma garrafa de vinho.
- Isso é beber moderadamente, sem dúvida - disse Jack -, mas é assombroso como um par de taças de vinho podem afetar a capacidade de julgar de um homem sem que ele
se dê conta. Se os senhores não tivessem tomado álcool, teriam pensado que a Surprise é um barco de guerra privado e que é necessário que passe desapercebida e engane
ao inimigo. Mas não é possível que passe desapercebida nem que engane ao inimigo se tem esse nome claramente pintado na coxia. Além disso, todos os cristãos sabem
que devem tratar aos outros como gostariam de ser tratados. Os senhores têm mais de uma centena de companheiros de tripulação: acham adequado privá-los da oportunidade
de conseguir um butim por seu costume peculiar? Isso não seria justo. O nome tem que ser tirado. Não, não - acrescentou ao ver que os homens punham um gesto austero
e baixavam os olhos -, não quero dizer que há que tocá-lo nem apagá-lo nem tapá-lo com pintura. O cobriremos com um pedaço de excelente lona, como a que pusemos
quando nos dirigíamos a São Miguel, e talvez voltemos a pintá-la se fizer mau tempo, mas o nome ainda estará lá.
Viu que a maioria dos marinheiros fizeram um gesto afirmativo e depois, quando Slade olhou a direita e esquerda, assentiram com a cabeça.
- Bem, senhor - interveio de novo Slade -, como vai ser assim, estamos satisfeitos. E lhe agradecemos muito que nos tenha escutado, senhor.
- Lamentaria ter que despedir a bons marinheiros - disse Jack -. Mas ainda resta uma coisa para fazer. Os senhores replicaram ao senhor Davidge e resmungaram, assim
que devem se desculpar.
Hesitaram alguns momentos e se olharam uns para os outros inquisitivamente. Mas Auden disse:
- A verdade é que ele é um cavalheiro muito fino, senhor, e nós somos uns toscos e não sabemos o que dizer.
- Todos devem se apresentar diante dele e tirar os chapéus, que é o correto - respondeu Jack -. Um dos senhores deve dizer: "Nós lhe pedimos perdão, senhor, por
replicar-lhe e por resmungar".
- É estranho que Killick não esteja aqui e que não chegue até amanhã - disse Jack para Stephen quando lhe servia um grande pedaço de bolo de bezerra e presunto que
Sophie lhes entregara para a janta -, mas precisamente esta tarde não me houvesse gostado tê-lo aqui nem por cem libras. Ele gosta de ficar escutando, sabe?, e ainda
que falei sinceramente aos seguidores de Set, não poderia ter-lhes dado uma lição de moral se ele estivesse escutando.
- Quando chegarão os homens de Ashgrove? - inquiriu Stephen.
- Em torno das quatro da tarde, se tudo sair bem e o coche não virar. Mais ou menos na mesma hora que Pullings.
- Essa é uma má notícia. Esqueci de pôr uma camisa limpa e de trocar esta na semana passada, e os oficiais, que agora estão cheios de orgulho e têm alguns guinéus,
vão nos convidar para almoçar amanhã para que conheças à senhora Martin. Sinto um grande respeito por ela e não queria parecer um tipo saído de um presídio.
Observou os punhos da camisa, que estavam um pouco sujos antes de fazer aquela longa viagem durante a noite no imundo coche e agora eram a vergonha da fragata.
- Que tipo mais raro você é, Stephen! - exclamou Jack -. Depois de tantos anos no mar ainda não sabe nada da vida a bordo de um barco. Dê a camisa a qualquer um
dos antigos tripulantes da Surprise que você curou de sífilis ou de gripe, a qualquer um deles, a Warren, a Hurst, a Farrell ou a qualquer outro, e verá como a lavarão
com a água doce do barril de onde todos bebem, secarão na cozinha e amanhã pela manhã lhe darão ela limpa. Entretanto pode usar uma camisa de dormir. Tenho vontade
de conhecer esta senhora, sobretudo porque é raro que elogie uma mulher. Como ela é?
- Não se gaba de ser bela nem culta nem de ter disposição para a arte ou o trato social. Às vezes usa óculos e não é alta nem magra. Mas tem um caráter tão doce
e tão bom humor que resulta uma agradável companhia.
- Lembro que me disse que cuidou de Martin devotamente quando lhe abriu a barriga. Alegro-me de conhecê-la na hora do almoço porque várias horas depois seria muito
tarde, e não queria que pensasse que não lhe dou atenção. Quando Pullings, Bonden, Killick e os outros cheguarem zarparemos, ainda que seja possível que antes carreguemos
as poucas provisões que faltam e escolha a um cozinheiro. Entraremos no Canal durante a próxima mudança da maré ou na seguinte.
- Você me surpreende, meu amigo. Estou realmente assombrado. A Diane não zarpará até o dia treze e hoje é quatro, e em um período mais curto que esse poderíamos
ir até Saint Martin, isto é, até o lugar do oceano onde pensa interceptá-la.
Jack desarrolhou outra garrafa de vinho e depois de alguns momentos explicou:
- Pela noite, enquanto vínhamos, fiquei pensando nesse assunto, e desde então segui pensando nele e recordei o que você me disse sobre seu capitão e sua tripulação
escolhida. Acredito que é melhor ir ao seu encontro do que esperar que chegue em frente ao cabo, expostos aos temporais, aos fortes ventos e arriscando-nos a perder
a posição vantajosa. Ademais, é muito provável que uma corveta ou um bergantim a acompanhem até a saída do Canal. A artilharia francesa é muito boa e, ainda que
os antigos tripulantes da Surprise poderiam lutar contra ela, com o atual complemento da tripulação não poderíamos disparar ao mesmo tempo com as baterias dos dois
costados com a rapidez necessária.
- Então, por que não contrata mais homens, pelo amor de Deus? Por acaso não há marinheiros que nos perseguem pelas ruas rogando-nos que os admitamos?
- Stephen, creia-me que isso não serviria de nada. Não se pode converter um homem em um artilheiro em uma semana nem em muitas. Por outro lado, não podemos sair
pela rua e chamar aos infantes da marinha com um apito. Poderá dizer que são simples soldados, e é verdade, mas são homens fortes, adestrados e disciplinados, e
os trinta e tantos que costumavam nos acompanhar nas batalhas proporcionavam uma valiosa ajuda. Basta se recordar como disparavam as armas leves.
Stephen pensou perguntar a Jack por que o complemento da tripulação da Surprise não era similar ao de antes e por que não incluía homens comparáveis aos infantes
da marinha, fosse qual fosse o nome que lhes desse ao subir a bordo, mas a resposta era óbvia, pois tanto nisto como em muitas outras coisas Jack tentava poupar.
- Meu Deus! - exclamou Jack -. Eu lhe disse que havia falado com sinceridade aos seguidores de Set e lhes disse exatamente o que pensava, mas meu afã de não perder
sete marinheiros de primeira fez com que atuasse com menos dureza do que se todo o complemento da tripulação estivesse respaldado pelo Código Naval. Porém, por outro
lado, devo dizer que adotar uma postura muito dura em um caso como este incomoda mais, muito mais à tripulação do que os oficiais déspotas, os açoites excessivos
ou a suspensão da licença para descer a terra.
- Estou seguro de que fez o adequado - disse Stephen -. Os homens estão dispostos a ir à fogueira por nomes menos respeitáveis do que Set. Então pensa zarpar imediatamente.
- Sim, porque me parece que o melhor é sacar ou tratar de sacar essa fragata do porto durante a noite. Apesar de que um patrulhe uma zona durante um longo tempo
e muito perto da costa para encontrar com um barco, é possível que no final não o encontre, o que é imprescindível se se quer entrar em batalha com ele.
- Não posso negá-lo, meu amigo.
- Pretendo recolher âncoras amanhã no máximo, sabe? Então direi aos tripulantes o que vamos fazer e desenharei uma grande carta marinha para mostrar-lhes qual é
a posição, a forma de Saint Martin e a profundidade das águas que a rodeiam. Marcarei nela onde estará situada a Diane e onde nós estaremos. Depois iremos até Polcombe
ou outra dessas enseadas solitárias, dependendo do tempo, e atracaremos a fragata. Então praticaremos como tirá-la dali usando os botes noite depois de noite, até
que todos os homens saibam exatamente onde devem se colocar e o que devem fazer.
- Aplaudo seu plano - disse Stephen -. E seria estupendo que durante esse tempo a fragata não estabelecesse comunicação com a costa, pois os planos deste tipo são
facilmente descobertos, sobretudo em um litoral onde há muitos barcos fazendo contrabando. Além disso, sugiro que contrate a alguns desses tipos forçudos e desalmados
para esta operação, se o consideras oportuno.
- Estou de acordo no que diz sobre a comunicação, e eu também havia pensado nisso; contudo, com respeito a esses rufiães, acho que não são necessários porque William
e seus companheiros nos proporcionarão todos os voluntários que caibam em suas lanchas e esses homens estão acostumados a observar a disciplina naval. O que temo
é que... - Jack se interrompeu e tossiu - que haja muitos homens, e também que falem ou façam ruído.
Como havia dito antes nesse dia, mesmo um pouco de vinho era capaz de afetar a capacidade de julgamento de um homem. Esteve a ponto de dizer que lhe horrorizava
que Babbington, por ser diligente e para demostrar sua amizade (ainda que neste caso demostrar sua amizade era terrivelmente prejudicial) se unisse à expedição,
porque, então, todos acreditariam que a Diane fora tirada do porto pelo capitão Babbington, que governava a corveta Tartarus, da Armada Real, com ajuda dos botes
dos barcos de guerra que tinha sob seu comando e de um barco corsário. Tampouco podia recusar a oferta que temia, pois a captura da Diane converteria a William Babbington,
agora um simples capitão de corveta, em um capitão de navio, o que era um passo fundamental para chegar a ser um almirante e ter um alto comando. Jack esteve a ponto
de dizer isto a Stephen, mas não teria servido de nada fazê-lo. Se William chegasse a compreendê-lo, tinha que compreendê-lo por si mesmo. Jack não duvidava do afeto
e da lealdade de William, que haviam sido demostrados tantas vezes, mas pensava que seu bom coração não era acompanhado de uma inteligência brilhante, uma inteligência
que lhe permitisse dar um valor relativo à probabilidade de uma ascensão e à remota possibilidade da reabilitação. Mas Babbington era muito bem relacionado e contava
com o apoio de muitos parlamentares, pelo que estava certo de que conseguiria uma ascensão logo, e Jack, em troca, talvez não voltasse a ter uma oportunidade como
essa em toda sua vida. Jack dirigiu o olhar para o outro lado da mesa e o fixou em Stephen, que disse:
- Fazer práticas pela noite é uma excelente idéia.
- Espero que sejam úteis. Pelo menos é melhor que perseguir um touro em uma louçaria sem um plano. Lutar com o Spartan era diferente, porque nesse caso só tínhamos
que derrotar ao inimigo; enquanto que neste temos que derrotá-lo e, além do mais, sacar seu barco do porto sob o fogo das baterias e dos barcos de guerra que haja
ali. Se não se faz muito bem é melhor não fazê-lo. Diga-me, Stephen, acredita que Babbington tem uma inteligência aguda?
Stephen esteve a ponto de rir e em tom alegre respondeu:
- Aprecio a William Babbington, mas acho que ninguém mais que a senhora Wray se atreveria a dizer que tem uma inteligência, uma mente ou um entendimento agudo. Não
há dúvida de que é sagaz nas duras ações de guerra e quando se enfrenta com os perigos do oceano; contudo, não tem reflexos para perceber com rapidez os assuntos
mais complexos. Está perfeitamente capacitado para as práticas noturnas que se propõe fazer, que requerem ir de um ponto estabelecido a outro entre a umidade e a
escuridão com um claro propósito. E como lhe disse, acho uma estupenda idéia fazê-las.
Todos os marinheiros compartiam a opinião do doutor Maturin e todos, enquanto a fragata avançava para Polcombe com poucas velas desdobradas, observaram com grande
atenção a grande carta marítima que Jack desenhou com giz entre o pau de mezena e o coroamento. Alguns haviam estado em Saint Martin durante a paz e corroboraram
que, em geral, o porto, o estaleiro e os canais navegáveis não haviam mudado. Assim como seus companheiros, estavam de acordo com Jack em que a parte mais difícil
da entrada era onde se encontrava o quebra-mar, um quebra-mar situado no lado sul do porto, junto ao escarpado onde ficava o farol, e que protegia o lugar das ondas
do oeste e por cuja rampa patrulhavam vários sentinelas. Os botes tinham que passar forçosamente muito perto dele, porém, por sorte, na tripulação da Surprise havia
dois homens de Jérsei, Duchamp e Chevènement, e Jack sugeriu que dissessem rápido algo breve como "marinheiros e provisões para a Diane" em caso de que lhes pedissem
que se identificassem.
Quando chegaram a Polcombe o vento amainou e tiveram que rebocar a fragata pelas águas pouco profundas. A levaram até um lugar tão recôndito que provavelmente também
teriam que sacá-la a reboque, pois ali não chegava nem uma pitada de vento que pudesse inchar suas velas, porque o alto escarpado o impedia de entrar. Ademais, durante
a maré-cheia as ondas chocavam com força contra o arrecife de Old Scratch, uma ilhota rochosa que protegia a entrada da enseada (que podia ser considerada uma pequena
baía) das fortes ondas do sul e do sudoeste. Ali, observados por um milhar de curiosas ovelhas da borda superior do escarpado, que estava coberto de capim curto
e espesso, e por um assombrado pastor, os marinheiros a atracaram com cabos às amarras da âncora e começaram a pôr bóias para delimitar um espaço como o porto de
Saint Martin, de acordo com as distâncias e os ângulos que o tenente Aubrey medira com tanta exatidão anos atrás. Também colocaram marcas que representavam a ponta
do cabo onde ficava o farol e o quebra-mar com sua pronunciada rampa. Quando terminaram a tarde já estava muito avançada, mas todos estavam tão animados que rodearam
com suas lanchas a de Jack e, deixando-se levar por seu bom humor e alentados porque os rodeava a escuridão e estavam longe da fragata, tomaram a liberdade de pedir
permissão a Jack para remar até um ponto de alto mar que distasse dessa costa tanto como o lugar em que se situaria a fragata do cabo e depois "fazer uma tenativa".
- Muito bem - disse Jack -, mas temos que fazer a operação completa. Formaremos uma linha colocando a proa de um bote atrás da popa do outro. Todos devem remar devagar
e com suavidade para não molhar a pólvora das armas de seus companheiros. Não podem falar nem sequer emitir um maldito burburinho, porque não estamos em Bartholomew
Fair. O primeiro homem que fale terá que voltar para sua casa a nado.
Os botes avançaram para o alto mar até que Jack achou que haviam chegado no lugar indicado para atracar a Surprise diante do cabo Bowhead. Ali repetiu três vezes
sem a menor variação onde cada bote devia se colocar para que seus tripulantes abordassem a fragata e o que cada grupo devia fazer. Depois repetiu com maior ênfase
o pedido de silêncio. As estrelas já assomavam no claro céu, e guiando-se por Vega, Arturo e a bússola, conduziu a fileira de botes até a baliza que indicava o cabo,
depois até a do quebra-mar, onde descreveram uma pronunciada curva e Duchamp gritou: "Novos marinheiros para a Diane", e depois até o desprevenido barco. Os marinheiros
remaram suavemente milha depois de milha enquanto a maré subia e por fim Jack murmurou: "Cortem e afastem-nos". Os botes, já soltos do cabo que os mantinha unidos,
aproximaram-se rapidamente dos pontos de ataque: a roda de proa, os pescantes de proa, centrais e de popa e a escada de popa. Então os tripulantes invadiram a fragata
simultaneamente fazendo um ruído ensurdecedor. Alguns dos gavieiros mais jovens e ágeis subiram rapidamente pela exárcia e soltaram as maiores e as gáveas; Padeen
e um negro tão forte como ele correram para as amarras da âncora e subiram nelas simulando que tinham um machado nas mãos; dois timoneiros pegaram o leme; e Jack
Aubrey desceu correndo para a cabine, ainda que isto não só o fez para dar os passos necessários para apresar o capitão e os civis e apoderar-se de seus documentos,
como também para saber a hora. - Acredito que demoramos uma hora e quarenta e três minutos - anunciou -, mas não estou seguro de quando começamos. Da próxima vez
eu levarei uma lanterna com portinhola. Surpreenderam-se com a gritaria?
- Muito - respondeu Stephen.
- Foi realmente uma surpresa - disse Martin.
- Assustaram-se?
- Talvez nos houvesse assustado mais se tivessem rido menos. O tempestuoso riso de Plaice podia ser reconhecido a grande distância.
- Não seria mais desconcertante um ataque silencioso? - perguntou Martin -. Não acham que a violência sem nada que a inicie ou a anuncie é contrária ao contrato
social, conforme o qual deve precedê-la pelo menos um desafio? Mas o ataque, tal como se fez, aterrorizou ao seu novo cozinheiro, senhor. Estávamos falando com ele
para que preparasse pilaff para a janta quando começou o vozerio e então gritou algo, provavelmente em armênio, saiu correndo da cabine e se agachou mais do que
o humanamente possível em um canto.
- Pilaff. Que boa idéia! Agrada-me comer um bom pilaff. Espero que possamos desfrutar de sua companhia, senhor Martin.
Os dias seguintes foram muito alegres. As tarefas de rotina se reduziram ao mínimo, e os marinheiros, além de atacar a fragata duas vezes por noite, se esforçavam
para adquirir destreza no manejo dos sabres, machados de abordagem e pistolas. O restante do tempo, como os dias eram ensolarados, passavam deitados no castelo ou
nos corrimãos com uma despreocupação que raras vezes se via em um barco de guerra, tanto público como privado. Os observadores que se haviam unido ao rebanho de
ovelhas no alto do escarpado se assombraram com isso, e para as aldeia próximas correu o rumor de que um barco pirata estava atracado na enseada Polcombe e que seus
homens iam destruir os campos e levar as donzelas de Berbería. Ao ouvir isso, as jovens que habitavam várias milhas ao redor correram para a borda do precipício
com a intenção de ver seus raptores e, se fosse possível, implorar piedade. Além disso, o capitão de um cúter que perseguia contrabandistas se aproximou dali suspeitando
que levavam artigos sem declarar e teve que suportar a humilhação de que o ajudassem a desencalhar o cúter da ponta do arrecife situado em frente ao Old Scratch
com duas amarras presas ao cabrestante da Surprise.
Jack estava muito ativo, o que muito lhe convinha. Durante os ataques noturnos costumava acompanhar a fileira de botes no esquife de Stephen e observava atentamente
como remavam os homens de cada um e media com exatidão, até o último segundo, o tempo de cada uma das fases da operação. Depois do primeiro ataque, que levaram a
cabo principalmente para entreter-se, organizou uma espécie de resistência. Só comsentia aos defensores usarem como armas os esfregões, mas o atraso que causavam
lhe permitia fazer um cálculo mais exato da duração provável. Como era justo, fazia que se revezassem os dois grupos de guarda e misturava seus componentes, de modo
que cada homem em uma noite era atacante e na seguinte um defensor. Todos os marinheiros gastavam grande quantidade de energia, e seu capitão, como devia ser, gastava
ainda mais. Nadava muito bem, e durante sua carreira na Armada raras vezes realizara uma missão em que não salvasse algum marinheiro ou algum infante da marinha
de morrer afogado. Pelo menos meia dúzia dos antigos tripulantes da Surprise que estavam a bordo estariam mortos se não fosse por ele. Mas durante estas manobras
Jack superou a si mesmo, pois quando ele e seus companheiros repeliam aos homens que abordavam a fragata os empurravam para trás, para o mar, e só em uma noite tirou
cinco da água. Os pegava sem esforço, só estirando seu braço de orangotago dos pescantes ou da borda de um bote e levantando-os pelo pulso.
A intensa atividade física fez muito bem ao seu corpo (seu robusto corpo necessitava de mais exercício do que a vida rotineira de um barco lhe oferecia a oportunidade
de fazer), mas ainda mais ao seu coração ferido e à sua mente, já que não lhe deixava tempo para a triste retrospecção nem para as fantasias relacionadas com um
hipotético êxito que amiúde pugnavam por encontrar uma forma de expressão.
Essa combinação lhe devolveu o apetite que tinha antes do processo, e teria sido uma pena que não fosse assim, porque Killick comprou para seu capitão uma quantidade
de provisões de acordo com sua recém adquirida fortuna e o cozinheiro do capitão, Adi, merecia ter estado no navio insígnia de Lúculo. Adi era um homenzinho gorducho,
de cabelo grisalho, doce, tímido e propenso a chorar. Era inútil como combatente, já que não havia modo de induzi-lo a que atacasse ou defendesse a fragata, mas
conhecia todos os tipos de cozinha naval de Constantinopla a Gibraltar. Fazia bastante bem o pudim de sebo e ainda que seus maids of honor recordassem mais a baía
de Rosia que Richmond Hill, eram muito bons.
Na opinião de Maturin, esses dias também foram felizes. Não podia fazer nada com respeito à seus planos futuros, como não tinha mais relação com Londres do que quando
estava no Pacífico, e ainda que não parasse de pensar em Diana (levava seu talismã no bolso de seus calções) agora se dedicava a tomar tanto sol como seu pequeno
corpo pudesse absorver. Esteve privado dele durante o longo inverno inglês e nesses brilhantes dias detestava até o último momento que passava entre as cobertas
ou na sombra.
Ele e Martin, que não formavam parte das brigadas que abordavam ou defendiam a fragata, teriam morrido de chateação se não estivessem perto do Old Scratch, um lugar
capaz de deleitar a qualquer naturalista ou amante do sol. Tempos atrás haviam chegado ali ovelhas e coelhos, e as ovelhas haviam desaparecido há muito tempo, mas
os coelhos ainda estavam lá. Justamente nos terrenos cobertos de capim habitados por eles, na parte sul, era onde Stephen tomava sol quando ele e Martin não estavam
deleitando-se com muitas outras coisas, como, por exemplo os charcos que a maré formava, as focas que viviam em cavernas na costa norte, plantas raras como a bisnaga,
as fárdelas que aninhavam em tocas de coelhos e os petréis, cujos amigáveis berros chegavam dos buracos com odor de almíscar.
Em uma dessas tardes perfeitas, quando as grandes ondas do sudoeste golpeavam suave e ritmicamente a parte de Old Scratch mais próxima do mar aberto, sentaram-se
na grama para observar as séries de pequenas ondas que se originavam depois de cada impacto e chegavam à enseada em forma de sucessivos semicírculos que iam diminuindo
regularmente até que chegavam a acariciar a fragata. Formavam um desenho de rara beleza.
- Na fragata há um surpreendente número de crenças - observou Martin -. Não duvido que em outros barcos de seu tamanho haja muitas, mas provavelmente em nenhum serão
tão variadas. Confesso que estava preparado para encontrar ali a judeus e muçulmanos, e também a gnósticos, anabatistas e seguidores de Set, Muggleton e mesmo de
Joana Southcott, mas me surpreendeu encontrar a um devoto de Satanás.
- Um autêntico devoto de Satanás?
- Sim. Só menciona o nome do demônio sussurrando e com a boca rodeada pela mão arqueada, e se refere a ele como o pavão real. Seus devotos têm um pavão real desenhado
nos templos.
- Seria uma indiscrição perguntar qual de nossos companheiros de tripulação tem uma crença tão excêntrica?
- Não, em absoluto. Ele não me disse que era um segredo. É Adi, o cozinheiro do capitão.
- Achava que por ser armênio era um cristão gregoriano.
- Eu também. A verdade é que ele é um dasni, quer dizer, do território que se encontra entre Armênia e o Curdistão.
- Porém, acredita em Deus, essa criatura?
- Oh, sim! O e seu povo acredita que Deus fez o mundo e que Nosso Senhor é de natureza divina e, além do mais, reconhecem a Maomé como profeta e a Abraão e aos outros
patriarcas; contudo, acreditam que Deus perdoou Satanás e voltou a pô-lo em seu lugar. Conforme eles, é Satanás que controla os assuntos mundanos e seria uma perda
de tempo render culto a outro ser.
- Contudo, parece um homem afável e aprazível. E, sem dúvida, é um grande cozinheiro.
- Muito amavelmente estava me ensinando a fazer os autênticos caramelos turcos, pelos quais Deborah sente fraqueza, quando me falou. Também me falou das montanhas
peladas de Dasni, onde se encontram as casas meio subterrâneas onde vivem seus habitantes, que vivem perseguidos por armênios e curdos. Parece que as famílias se
querem muito e são muito unidas e conservam inclusive os laços de afeto que as unem aos parentes mais distantes, mas é evidente que os dasnis não praticam o que
pregam.
- E quem o faz? Se Adi conhecesse a fundo o credo que dizemos professar e o comparasse com nosso modo de vida nos olharia com tanto assombro como nós a ele.
Stephen pensou perguntar a Martin se não notara certa analogia entre a opinião que os dasnis e os seguidores de Set tinham dos anjos, mas a sensação de bem-estar
e o calor do sol haviam embotado sua mente e se limitou a dizer:
- Vejo uma fárdela voando com três peixes no bico, e me pergunto como pôde pegar o segundo e o terceiro.
Martin tampouco tinha uma explicação, e os dois permaneceram sentados em silêncio observando o sol até que se ocultou detrás do distante cabo. Então os dois ao mesmo
tempo que dirigiram o olhar para a fragata, onde os marinheiros faziam uma das manobras mais estranhas que se realizavam nos barcos: descer os botes pelo costado.
Primeiro se afastavam dos calços subindo-os, depois passavam por cima da borda e depois desciam com moitões fixos aos penóis da verga maior e da verga traquete.
Era um processo laborioso que desde tempo imemorial ia acompanhado de gritos, sons retumbantes e chapes e, nesta ocasião, além disso, dos gritos que os marinheiros
de Shelmerston emitiam cada vez que pegavam uma corda. Nas noites tranqüilas, quando soprava o terral, era possível que se ouvisse em terra aquele ruído ainda que
se produzisse em alto mar, e que fracassasse a operação tão bem planejada e silenciosa exceto nessa fase. Jack Aubrey tratou de que os marinheiros realizassem a
manobra sem fazer ruído; contudo, isso supunha ir contra a corrente, contra os velhos costumes, e os marinheiros se puseram nervosos e seus movimentos se tornaram
lentos e desajeitados, tão desajeitados que a popa de um bote chocou-se com estrondo contra a superfície da água quando a proa ainda se encontrava a uma braça de
distância dela. Então o espantoso grito do capitão "Atenção os de proa! Soltem essa maldita corda!" encheu a enseada até que foi afogado pelo ruído ainda mais forte
que produziram os risos, no início reprimidos e depois incontrolados, que entorpeceram de novo a todos os marinheiros.
Esses raios de sol foram quase os últimos que Stephen viu na enseada Polcombe e esses risos quase os últimas que ouviu. O mau tempo chegou do sudoeste e trouxe consigo
chuvas que às vezes eram fortes e outras exageradamente fortes, quase cegantes, e também grandes ondas que chegavam a ser gigantescas na maré-cheia e se transformavam
em horríveis ondas pequenas e cruzadas na baixa-mar. Durante esse tempo os marinheiros e oficiais da Surprise continuaram atacando e defendendo a fragata duas vezes
a cada noite, mas não era uma tarefa fácil fazer a abordagem vestidos com trajes ou capas de lona alcatroada e quase sem luz depois de afastar-se da fragata e aproximar-se
de novo dela remando entre as agitadas águas. Depois de vários acidentes e de um homem estar a ponto de se afogar, Jack teve que suspender a viagem ao alto mar e
a defesa.
Contudo, as baixas aumentaram. Muitos marinheiros sofreram deslocamentos, esfolaram as canelas ou romperam as costelas ao cair dos escorregadios costados dos botes,
e alguns inclusive quebraram ossos, como Thomas Edwards, que sofreu uma fratura complicada de fêmur que causou grande preocupação a Stephen e a Martin. Thomas era
um dos gavieiros encarregados de subir imediatamente depois da abordagem até as vergas das gáveas para soltá-las, mas ignorava que os defensores haviam amarrado
linhas de vida e caiu de costas. Ia caindo com a cabeça para baixo, mas mudou de posição quando bateu no estai do pau mezena, justo acima do castelo de popa, e conseguiu
salvar a vida, mas quebrou a perna.
Stephen e Martin se revezavam na enfermaria, e noite depois de noite chegavam os acidentados para aquele lugar úmido e cheio de ar fétido (pois as escotilhas ficavam
fechadas a maior parte do tempo), e, ainda que não houve nenhum caso tão grave como o de Edwards, cuja perna teria que ser cortada ao menor sinal de gangrena, nenhum
foi trivial.
Chegou um momento em que Maturin se encheu das práticas e pensou que, ainda que arriscasse tanto, talvez Jack não deveria deixar que continuassem entre a umidade,
o frio, os perigos e as terríveis incomodidades, já que todos os marinheiros já haviam repetido várias vezes todas as fases em todas suas variantes. Também pensou
que os marinheiros, que já não mostravam alegria, mas ainda conservavam suas forças, e como só iam ganhar dinheiro e provavelmente não muito (muito menos que o que
haviam ganhado com a gloriosa captura recente), talvez não deviam pôr tanto zelo no que faziam.
Comentou isso a Martin quando estavam sentados um de cada lado de Tom Edwards e enquanto apalpava sua ferida com sua mão esquerda para ver se notava o frio que indicava
a gangrena e lhe tomava o pulso, que, por sorte, era rápido e regular. O fez em latim, e Martin, na mesma língua, isto é, em uma cômica variante dessa língua com
influência inglesa, respondeu:
- Talvez o senhor esteja tão familiarizado com seu amigo que não se dá conta que os marinheiros o consideram um grande homem. Se ele pode se mover com rapidez debaixo
da chuva torrencial, desafiando os elementos, e eles não puderem fazer o mesmo, sentir-se-iam envergonhados. Ainda que tenha visto a alguns quase chorando no segundo
ataque ou quando lhes ordenaram que voltassem a praticar o uso dos sabres. Duvido que fizessem igual por nenhuma outra pessoa. Essa qualidade só alguns homens possuem.
- Acho que tem razão - disse Stephen -, mas se ele me pedisse que subisse a um bote em uma noite como esta, ainda que usasse roupa a prova de umidade e uma casaca
de cortiça, eu me negaria.
- Eu nunca teria a coragem de fazê-lo. Que acha desta perna?
- Tenho muitas esperanças - respondeu Stephen, inclinando-se sobre ela e cheirando-a -. Muitas esperanças.
Então, em inglês, disse a Edwards:
- Está melhorando, meu amigo. Até agora estou muito satisfeito. Senhor Martin, vou à minha cabine. Se houver mais acidentados no segundo ataque, não hesite em me
chamar. Não vou dormir.
O doutor Maturin estava satisfeito do estado da fratura complicada e de muito poucas coisas mais. O mau tempo, que agora era quase tão mau como o que fazia no cabo
Horn mas não oferecia a possibilidade de ver um albatroz, havia lhe impedido de ir ao Old Scratch justo quando um pássaro ostreiro fêmea ia pôr ovos; o láudano lhe
fazia cada vez menos efeito e, como estava decidido a não aumentar sua dose habitual, passava grande parte da noite pensando, e raras vezes em coisas alegres; e
além disso estava incomodado com Padeen. Via pouco ao seu servente, que dedicava muito tempo a ensaiar seu papel de homem que passa para abordagem com um machado,
mas lhe desgostava do via. Não fazia muito havia se encontrado com Padeen, que regressava da bodega onde guardava seu baú levando uma garrafa de conhaque sob a casaca.
Apesar da tartamudez de Padeen, entendeu ele dizer que era uma garrafa vazia, mas pelo rubor que cobriu seu rosto, soube que era culpado e que estava cheia.
Nos barcos do rei não era permitido tomar bebidas alcoólicas a excessão do grogue, que estava autorizado oficialmente, e Stephen não sabia qual era a norma em um
barco corsário com respeito a isso nem lhe importava. O que sabia era como o álcool podia afetar a seus conterrâneos e desde então tratava de encontrar a maneira
de afastar Padeen dele, que até esse momento era abstêmio. O comportamento do jovem havia mudado, e ainda que sua conduta ainda fosse correta, tinha tendência a
tomar demasiada confiança (um comportamento não muito bem visto pelos irlandeses) e às vezes fazia surpreendentes manifestações de alegria.
A verdade era que Padeen se convertera em um bebedor de ópio e tomava sessenta gotas diárias. Quando estava em terra tentou comprá-lo várias vezes, mas não teve
êxito, pois só recordava ter ouvido a palavra "tintura" e não sabia ler nem escrever. Os farmaceuticos lhe disseram: "Há centenas de tinturas, marinheiro. Qual quer?",
mas ele não tinha nenhuma resposta. O álcool foi mais fácil de conseguir. Desde que começou a tomar a tintura ouvira o doutor Maturin dizer que era composta de bom
conhaque, e diluía regularmente a que Stephen tomava com o melhor conhaque produzido nas destilarias. Regularmente a diluía, porém, como o fazia de forma gradual,
Stephen nem suspeitava. Tampouco suspeitava que abria seu estojo de remédios e, contudo, com sua extraordinária força, nada podia ser mais fácil. A Surprise havia
começado sua vida sendo a fragata francesa Unité, e seu estojo de remédios ficava embutido e tinha uma porta de madeira maciça segura por gonzos de estilo francês,
e um homem forte podia sacá-la deles movendo-a para cima em linha reta.
Mas na manhã seguinte já não estava insatisfeito. Levantou-se muito cedo e com a cabeça limpa, algo raro nele, ainda que cada vez menos porque o efeito da dose que
tomava peas noites havia diminuído muito. Fez uma rápida ronda pela enfermaria e comprovou que, quase com toda segurança, Edward poderia conservar a perna e que
nenhum dos outros casos necessitava de nada urgente. Subiu para o convés e notou que o ar era cálido. No céu limpo observou os restos da noite acima da ilha e viu
que a parte oriental da abóbada celeste tinha um delicado colorido violeta com diversos matizes, que eram cada vez mais pálidos até chegar ao azul claro no horizonte.
Os marinheiros encarregados da limpeza estavam muito ocupados e avançavam para ele. Já haviam chegado à grade do castelo de popa e Tom Pullings, o oficial de guarda,
estava sentado sobre o cabrestante com as calças arregaçadas para protegê-las da iminente inundação.
- Bom dia, doutor - ele o cumprimentou -. Venha sentar-se comigo em terreno neutro.
- Bom dia, estimado capitão Pullings - respondeu Stephen -. Vejo que meu pequeno esquife está atracado a essas gruas da popa e já faz tempo penso...
Por sua forma, a Surprise não podia levar gavietes como os que geralmente eram usados nessa época e que todas as embarcações modernas de seu tamanho empregavam;
contudo, levava outros dois na popa e eram esses os que sustentavam o esquife do doutor.
- deixem a limpeza e desçam o esquife do doutor! - ordenou Pullings -. Doutor, suba nele para o centro, sente-se e fique quieto. Devagar, devagar!
Os marinheiros o desceram lentamente até as tranqüilas águas e ele começou a remar em direção ao Old Scratch. Remava ao seu estranho estilo, de frente para o lugar
aonde queria ir e empurrando os remos, e justificava seu estilo dizendo que era muito melhor olhar constantemente para o futuro que ver sempre o passado, mas a verdade
era que esse era o único modo de evitar dar voltas.
A ilha não havia sido prejudicada pelo mau tempo, pelo o contrário. Ainda que nunca se poderia dizer que fosse empoeirada nem que necessitasse de uma limpeza, agora
estava especialmente limpa e brilhante. A grama havia adquirido um colorido verde muito mais intenso, e agora que o sol estava bastante alto para que seus raios
passassem por cima do escarpado da parte mais próxima ao mar aberto, milhares do margaridas descobriam seus inocentes rostos buscando sua primeira aventura, e eram
um deleite para os sentidos. Stephen subiu pela ladeira rochosa até a borda do escarpado, e diante dele, estendendo-se por ambos os lados, contemplou o imenso mar
em calmaria. Não se achava muito acima de seu nível, mas estava sentado com os pés pendurando no vazio, a uma altura da qual lhe pareciam muito pequenas as fárdelas
que estavam abaixo dele e que voavam com rapidez para o mar ou regressavam com suas presas.
Durante algum tempo contemplou as aves: as fárdelas, alguns pássaros bobos e mergulhões, muito poucas gaivotas, ainda que de vários tipos, algumas rolas, uma revoada
de gralhas e os pais dos ostreiros, que, a julgar pelas boas condições em que se encontravam as cascas dos ovos das quais haviam saído, encontravam-se bem. Depois
observou o mar, onde pôde distinguir as diversos veredas que cruzavam sua enorme superfície e que não pareciam seguir nenhum modelo nem levar a nenhuma parte, e
voltou a sentir a alegria que experimentava tão amiúde quando era menino e que agora sentia de vez emquando, e só ao amanhecer. Não era causada pelo azul nacarado
do mar (ainda que sentisse prazer em vê-lo) nem um milhar de circunstâncias mais que podia mencionar, mas algo inexplicável. Uma parte de sua mente o instou a averiguar
a origem desse sentimento, mas ele não queria fazê-lo, em parte por medo da blasfêmia, já que a frase "estado de graça" lhe parecia grotesca se aplicada a um homem
de sua condição, e sobretudo porque não desejava fazer nada que pudesse alterar esse estado.
Aquela inoportuna idéia desapareceu tão de repente como surgiu. Uma rola que voava devagar pela sua frente mudou de orientação de repente e começou a voar mais rápido
e em direção norte; um falcão peregrino desceu do alto com estrondo, arrancou um monte de penas da rola e a levou até o escarpado da ilha grande, além de onde se
encontrava a Surprise. Quando Stephen observava o falcão, que ainda voava com rapidez apesar da carga, ouviu tocar as oito badaladas na fragata. Foram seguidas pelos
apitos com que chamavam os marinheiros para desjejuar, quase não perceptíveis, e os gritos dos famintos marinheiros, muito mais fortes. Um momento depois Stephen
viu a Jack Aubrey jogar-se ao mar do coroamento como sua mãe o trouxe ao mundo e começar a nadar em direção ao Old Scratch, com seu cabelo loiro flutuando a suas
costas. Quando Jack estava na metade de caminho, uniram-se a ele duas focas, dois desses animais exageradamente curiosos, e às vezes mergulhavam e saiam para a superfície
diante dele, quase ao alcance da mão, para olhá-lo na cara.
- Eu lhe felicito por ter vindo com as focas, meu amigo - disse Stephen quando Jack caminhava pela dourada areia da pequena praia onde se encontrava o esquife, agora
seco e imóvel -. Os bons e os sábios opinam que nada traz melhor sorte que a companhia das focas.
- Sempre me agradaram - disse Jack sentando-se na borda jorrando -. Se pudessem falar, estou seguro de que diriam algo agradável. Porém, Stephen, esqueceu o café
da manhã?
- Não. Já faz algum tempo acaricio a idéia de tomar café, muito café, e de comer papa de aveia, pudim, bacon e torradas com geléia.
- Contudo, não poderia ter tido nada disso até muito depois da hora de almoçar, sabia?, porque seu esquife está encalhado.
- O mar recuou! - exclamou Stephen -. Estou surpreso!
- Dizem que nesta zona faz isso duas vezes por dia - contou Jack -. E isso é conhecido com o nome de maré.
- Vá ao diabo, Jack Aubrey! - exclamou Stephen, que se havia criado nas praias do Mediterrâneo, um mar onde a maré não baixava, e depois, golpeando-se a frente com
a mão, acrescentou -: Algo deve me de falhar aqui, mas algum dia me acostumarei a pensar na maré. Diga-me, Jack, notou que o esquife estava, por assim dizer, encalhado,
e por isso se jogou na água?
- Acho que quase todos a bordo notaram. Vamos, agarre-o pela borda e juntos o desceremos. Quase posso cheirar o café daqui.
Quando estavam terminando a segunda cafeteira, Stephen ouviu o estridente som de um violino em um lugar da proa pouco distante, e depois das primeiras notas ouviu
as graves vozes dos marinheiros de Shelmerston cantando: "Dá-lhe a volta e dá-lhe a volta assim. Dá-lhe a volta. Dá-lhe a volta e dá-lhe a volta assim. E ele a volta
dá".
Provavelmente ao fio da memória restaram o grito "Todos a desamarrar a fragata!" e os familiares apitos que ouvira, pois nesse momento disse:
- Acho que essas criaturas estão recolhendo a âncora.
- Oh, Stephen, peço que me perdoe! - exclamou Jack -. Queria lhe falar disto quando subíssemos a bordo, mas a gula me transtornou. O que vamos fazer agora é recolher
a âncora, sacar a reboque a fragata ao final da baixa-mar e avançar para o leste com o pouco vento que sopra. Que lhe parece?
- Minha opinião sobre esse assunto vale tanto quanto a sua sobre a amputação da perna do jovem Edwards, que, a propósito, provavelmente a conservará, se Deus quiser;
contudo, sei que me fala assim só porque quer ser amável comigo. O único comentário que tenho a fazer é que esperava e temia que, como a Diane zarpará no dia treze,
ainda tivéssemos que passar pelo menos outras duas noites infernais.
- Sim, vai zarpar no dia treze - confirmou Jack -; mas já sabe que deste lado do Canal muitas vezes nos detivemos porque o vento soprava em uma direção inadequada
ou muito forte, sobretudo em Plymouth, e me partiria o coração chegar tarde demais. Ademais, ocorreu-me na guarda de meia que se os oficiais e os guardas-marinhas
de mais antiguidade da Diane são como os nossos, passarão a noite do dia doze em terra com seus amigos, pelo que será um pouco menos difícil sacá-la do porto. E
se derramará menos sangue, muito menos sangue.
- Tanto melhor. Já pensou como vai levar a cabo o ataque?
- Não fiz outra coisa desde que saímos de Shelmerston. Como provavelmente saberá, a esquadra se aproxima da ilha pela manhã e se afasta dela pela noite, e espero
reunir-me com ela em alto mar no dia onze pela noite para falar com Babbington. Se chegamos a um acordo, a esquadra se aproximará ao amanhecer, como sempre, e nós
ficaremos longe e passaremos o dia trocando os canhões por caronadas. No dia doze pela noite eles se retirarão com todos os faróis acesos e nós nos reuniremos outra
vez com eles, e quando os voluntários estejam a bordo nos aproximaremos da ilha com todas as lanternas apagadas e ancoraremos em águas de vinte braças de profundidade
em um lado do farol, muito perto da costa mas fora do alcance dos canhões da fortaleza. A fileira de botes já terá avançado na escuridão, e quando tenhamos notícias
deles começaremos a disparar contra o extremo oriental da cidade como se quiséssemos desembarcar no istmo, tal como fizemos em outra ocasião, e queimaremos o estaleiro.
Os homens dos botes farão seu trabalho enquanto nós disparamos tão rápido como possamos carregar as armas, ainda que não em um alvo, porque assim evitaremos derrubar
as casas das pessoas, que sempre achei um ato mesquinho. Este é o plano geral, mas não me ocuparei dos detalhes até conhecer a opinião de Babbington. Inclusive é
possível que não esteja de acordo com o plano geral.
- Nunca duvidará da boa vontade de Babbington, não é?
- Não - respondeu Jack, e depois de uma pausa acrescentou -: Não, mas a situação não é a mesma de quando ele era meu subordinado.
Em meio do silêncio Stephen ouviu um gritou na proa:
- Acima e abaixo, senhor.
Depois ouviu outro homem responder desde o cabrestante muito mais alto:
- Prontos para recolher a âncora.
Pouco depois apareceu Tom Pullings sorrindo e informou de que a fragata estava desamarrada, que o bote e os dois cúteres estavam na frente puxando o cabo para rebocar
e que, aparentemente, em alto mar soprava o vento do oeste.
- Muito bem - disse Jack -. Continue com seu trabalho, senhor Pullings, por favor. - Então, com um tímido sorriso e em tom vacilante, acrescentou -: O vento é favorável
para ir à França.
CAPÍTULO 6
Durante a brumosa noite da quinta-feira, um serviola da Surprise permanecia no alto da exárcia e de repente, da verga velacho, gritou:
- Convés! Acho que já os vejo!
- Onde estão? - perguntou Jack.
- A dez graus pela amura de bombordo e a não mais de dois ou três milhas.
A fragata navegava com todas as velas desdobradas, com um vento fraco e instável, cuja direção, a maior parte do tempo, formava um ângulo de vinte e cinco graus
com a alheta; portanto, dos cestos das gáveas grande parte do que tinha adiante ficava oculto. Devido a isso, Jack subiu com seu telescópio de noite pelos amantilhos
tensos e úmidos pelo orvalho até a cruzeta do mastro maior. Ficou olhando para frente um tempo, mas não pôde ver nada até que de repente se fez um claro na névoa,
e lá, muito mais perto do que esperava, viu quatro barcos alinhados, eqüidistantes uns dos outros e com as velas amuradas para bombordo que, indubtavelmente, formavam
a esquadra de Saint Martin. Como o mar estava em calmaria e a noite era cálida, a maioria das portalós estavam abertas e a luz saía por elas. Jack contou as portalós
e teve tempo para perceber que a terceira embarcação era a corveta Tartarus, de dezoito canhões, antes que a névoa os envolvesse de novo e as convertesse em quatro
borrões amarelos que pareciam cada vez menores e finalmente desapareceram. Quando reapareceram, todas as portalós da proa estavam escuras, já que acabavam de soar
as oito badaladas, e na Tartarus só se via luz em alguns escotilhões, na portaló da cabine e no farol de popa. O velho e machucado sino da Surprise deu oito badaladas
e Jack ouviu os ajudantes do contramestre ordenar da escotilha que apagassem as luzes. Chegou ao convés quando mudavam a guarda.
- Alguém deve de ter dado a volta no relógio muito rápido na Tartarus - disse a Pullings depois de indicar-lhe o rumo -, pois nos adiantaram em dois ou três minutos.
Foi para a cabine e ao entrar exclamou:
- Oh, Stephen, que alívio! Os barcos da esquadra estão situados a noroeste e seus cascos já podem ser vistos, assim que poderemos falar com eles dentro de uma hora.
- Alegro-me muito - disse Stephen, levantando a vista da partitura que estava arrumando -. Agora acho que poderia sentar-se e comer a janta em paz, a menos que prefira
convidar Babbington e a senhora Wray para jantar. Adi preparou uma magnífica bouillabaisse e há suficiente para quatro ou mesmo seis comensais.
- Não. A junta de guerra deve celebrar-se a bordo da Tartarus.
- É verdade. Além disso, comer algum alimento lhe ajudará a se tranqüilizar. Estava muito nervoso, meu amigo, e poucas vezes lhe vira tão impaciente.
- Bem, acho que hoje teria sido um dia esgotador para qualquer capitão - disse, sorrindo e deixando-se cair em sua poltrona.
Pensou em tentar explicar para Stephen quais foram as dificuldades que a Surprise tivera que enfrentar: a falta de vento durante a maior parte do dia e as correntes
contrárias. Como a primavera estava próxima, as correntes que se formaram naquelas águas eram contrárias ao seu movimento e, ainda que aparentemente a fragata avançara
a uma velocidade razoável quando foi rebocada por todos os botes e os tripulantes remavam como heróis, só havia deslizado para frente com relação à superfície, e
toda a massa de água que formava o mar, com a fragata e os botes nela, durante intermináveis horas realmente se movera para trás, para a terra que não era visível.
Na mente de Jack, além desta preocupação, remoia como um torvelinho o medo de que o capitão da Diane tivesse se informado de que a esquadra era muito débil e houvesse
zarpado vários dias antes. Por outro lado, a névoa e a chuva impediram que se fazesse as medições do meio-dia, e como não se via o litoral não se pôde averiguar
a posição exata da fragata, o que era necessário para chegar ao ponto de reunião essa noite. Só se pôde fazer uma estima, ainda que foi muito complicado devido às
correntes e às freqüentes mudanças de rumo que ordenou para aproveitar os ventos fracos e variáveis. Além disso, Jack não sabia com certeza qual era o rumo que Babbington
seguia essa noite, e se a Surprise não tivesse se encontrado com a esquadra, teria que procurá-la na manhã seguinte perto da costa de Saint Martin, observada por
todos os franceses que tivessem um telescópio, tanto os marinheiros como os soldados como os civis, o que eliminaria um fator que lhe parecia decisivo, o fator surpresa.
Mas Stephen não podia adentrar-se com ele nessas profundidades. Ninguém que não conhecesse a fundo a náutica poderia entender a frustração que ele tinha que superar;
ninguém que não conhecesse bem o mar poderia saber quais eram as inumeráveis coisas que podiam sair mal em uma viagem tão simples como essa e a enorme importância
que tinha lograr que saíssem bem (neste caso, ter conseguido que todas essas coisas saíssem bem e encontrar-se com a esquadra em alto mar não era um triunfo em si
mesmo, mas uma condição necessária para o triunfo). Só um homem que arriscasse tanto como ele poderia entender por que sentia alívio ao ter cumprido pelo menos esse
objetivo.
Lamentava ter se mostrado impaciente, e agora, enquanto pegava a garrafa de vinho de Madeira, disse:
- Stephen, proponho que comamos a bouillabaisse depois de um aperitivo. E depois poderemos tocar sua obra até que falemos com a Tartarus.
- Muito bem - murmurou Maturin, e em seu rosto, que geralmente tinha um gesto difícil de interpretar, apareceu uma expressão satisfeita -. Killick! Ei! Que comece
o festim enquanto Adi frita os croûtons.
A obra era uma série de declinações que Stephen havia escrito sobre um tema de Haydn, e ainda que fosse harmoniosa e fluida não era particularmente interessante
até a última página, em que a criação de Stephen e a de Haydn se uniam para formar uma curiosa frase musical cujos dois suaves compassos eram muito comoventes. Primeiro
tocou o violino, e enquanto o violoncelo lhe respondia ambos ouviram a pouca distância deles o grito:
- Ei, do barco! Que barco é?
imediatamente, justo acima deles, ouviram uma potente voz responder:
- Surprise!
O violoncelo fez uma pausa e depois terminou a frase. Então ambos combinaram seu trabalho para aproximar-se do final. A porta se abriu e apareceu Pullings, que ficou
imóvel de pé. Jack assentiu com a cabeça e seguiu tocando com Stephen até chegar ao enormemente satisfatório final.
- A Tartarus se encontra a barlavento, senhor - informou Pullings quando eles baixaram os arcos.
- Alegro-me muito de ouvi-lo. Por favor, desça o esquife do doutor. Stephen, você me emprestará seu esquife, não é? E Bonden me levará até ela. Killick, traga minha
melhor casaca azul.
pegou do escaninho a carta marítima que representava a zona onde ficava Saint Martin e em um aparte perguntou:
- Não acha que deveria vir também, Stephen?
- Não acho, pois não devo dar a conhecer a sutil relação que tenho com a espionagem - respondeu Stephen -. Com respeito aos detalhes do ataque que tenham a ver com
ela, poderemos pôr-nos de acordo nós sozinhos. Mas desta vez eu gostaria de participar no ataque, se decidirem levá-lo a cabo.
- Bem-vindo a bordo outra vez, senhor! - exclamou Babbington -. seja duplamente bem-vindo, pois não esperava ver-lhe antes que mudasse a maré.
- Verdadeiramente, esteve a ponto de não me ver - respondeu Jack Aubrey -. Buscar-te em uma noite brumosa como esta pode comparar-se a buscar uma agulha em um palheiro,
mas um remendo a tempo poupa cento, como muito bem sabe, e zarpamos com bastante antecedência. Podemos descer?
Ao chegar à pequena cabine de Babbington procurou com a vista algum sinal da presença de Fanny Wray e o único que viu foi um pedaço de lona com a frase "Que o céu
proteja a nossos marinheiros" bordada com ponto de cruz.
- Assim que estava me esperando - disse Jack.
- Sim, senhor. O capitão de um cúter me informou da parte do almirante que possivelmente, se o tempo e o vento o permitiam, o senhor viria no dia treze e que eu
tinha que ajudá-lo em qualquer ataque que planejasse empreender contra a Diane, que atualmente está ancorada no porto de Saint Martin.
- Ainda segue ancorada lá, não é? Ainda não zarpou, não é verdade?
- Oh, não, senhor! Ainda está junto ao cais, atracada aos cabeços pela proa e a popa. Não vai zarpar até que haja lua nova, no dia treze.
- Está certo disso, William? Quero dizer, de que ainda está ancorada lá.
- Oh, sim, senhor! Quando nos aproximamos da costa pela manhã, subo com freqüência na exárcia para observá-la. Já faz mais de uma semana tem as vergas colocadas.
E quanto ao dia treze... Bem, nunca molestamos aos barcos pesqueiros e alguns nos trazem caranguejos, lagostas e excelentes linguados quando voltam para a costa
ao entardecer, antes de afastar-nos para passar a noite em alto mar. Seus homens sabem muito bem o que vale a pobre Dolphin apesar de a terem calafetado, pintado
e adornado com grinaldas recentemente, e também que armamento levam o transporte Carriel e o bergantim Vulture, e nos pediram que no dia treze fiquemos em alto mar
o mais longe possível e não prestemos atenção à Diane. Dizem que é nova e rápida, que tem gabaritos como os de um navio de quarenta canhões e que leva peças de artilharia
tão potentes que poderia afundar qualquer um de nossos barcos com uma só descarga. Contam que os tripulantes manejam com grande destreza os canhões e as armas leves
e que os cestos das gáveas estão cheias de atiradores como os da Redoutable, que acabou com Nelson. Ademais, asseguram que uma potente corveta vai esperará-la frente
ao cabo e a protegerá até que saia das águas pouco profundas porque poderia encontrar-se com a Euryalus, que regressa de Gibraltar a meados do mês. É possível que
exagerem um pouco a desgraça que pode nos ocorrer, mas acredito que o fazem com boa vontade. Simpatizam muito com Fanny, que é quem falou com eles em francês quase
sempre, e, conforme dizem, seu sotaque é magnífico, muito parecido ao dos parisienses.
- Vou ter o prazer de vê-la esta noite?
- Oh, não, senhor! A mandei para casa no cúter. Não é correto que a leve comigo a uma batalha, não é, senhor? Lembro claramente, ainda que o ouvi há quase um século,
que o doutor me disse que não havia nada pior para o corpo feminino que o fogo de artilharia. Lamento que ele não tenha vindo.
- Pensou que estaria fora de lugar em uma junta de guerra.
- Eu teria gostado de comunicar aos dois uma boa notícia que tenho, mas provavelmente o senhor terá a amabilidade de dá-la por mim.
- Eu o farei com muito gosto, se me disser qual é.
- Bem, senhor... Envergonha-me comunicá-la antes de falar-lhe de coisas muito mais importantes, mas a verdade é que vão me nomear capitão de navio. - Então riu alegremente
e acrescentou -: E a antiguidade a contarão desde o dia primeiro deste mês.
Jack se pôs de pé de um salto (por passar toda a vida no mar, mesmo agora sua cabeça estava protegida contra os vaus), apertou a mão de Babbington e disse:
- Felicito-lhe de todo coração, William. Durante muitos dias não ouvi nada que me produzisse maior prazer. Não acha que deveríamos brindar por sua ascensão?
Enquanto bebiam, Babbington explicou:
- Sei muito bem que isto se deve principalmente às relações que tenho no Parlamento. O senhor ficou sabendo que meu tio Gardner foi nomeado par na semana passada?
Meu Deus, o Governo deve necessitar de muito dinheiro! Apesar de tudo, alegro-me muito. E minha querida Fanny também se alegra.
- Estou seguro disso. Mas não siga atribuindo sua promoção às suas relações. É melhor do que pelo menos a metade dos que estão na lista como navegantes e como oficiais
da marinha.
- O senhor é muito amável, senhor, muito amável. Mas não vou falar eternamente de meus própios assuntos. Poderia dizer-me se pensa empreender um ataque contra a
Diane e, se é assim, como posso lhe ajudar melhor?
- Sim, penso empreender um ataque e refleti sobre ele durante algum tempo. Eu lhe contarei grosseiramente meu plano, e posso lhe falar sem reservas porque lhe nomearão
capitão de navio. Mas quero acrescentar isto, William: é o oficial de mais antiguidade na esquadra e se não gostar que seus barcos e seus homens façam algo que está
em meu plano, diga-me abertamente. Podemos resolvê-lo antes da junta geral.
- Muito bem, senhor, mas me estranharia muito que não estivéssemos de acordo.
Jack o olhou com afeto. O que Babbington dizia era verdade, especialmente agora, porque sua ascensão era certa.
- Bem... - começou a dizer -. Minha idéia é sacá-la do porto, e agora está justificada por outra razão, já que me disse que uma corveta vai se reunir com ela em
frente ao cabo. - desdobrou a carta marítima -. Se há um oficial de derrota inteligente na esquadra, William, peça-lhe que comprove as medidas da profundidade da
água, pois são as únicas que poderiam ter mudado. A Surprise jogará âncora aqui - acrescentou, assinalando o lado sul do cabo Bowhead - e amarraremos um cabo da
alheta para a amarra. Se logramos situá-la na posição adequada... Quando falarmos dos detalhes tem que me dizer exatamente que correntes haverá perto da costa no
dia doze...
- Dia doze, senhor?
- Sim. Espero que na noite antes de zarpar a maioria dos oficiais esteja molhando a faringe em terra, e isso evitará que morram e que animem seus homens a adotar
uma postura extrema.
- Brilhante - anotou Babbington, que sabia que nenhum homem, nem sequer no porto do margate, passava de outra maneira a noite antes de fazer-se ao mar.
- Como lhe dizia, se logramos situá-la na posição adequada, esta elevação do terreno a resguardará da fortaleza que protege o istmo. Jogaremos a âncora quando hajam
transcorrido três quartos do período da maré-cheia e então os botes dobrarão o cabo. É provável que tenham dificuldades no quebra-mar, mas confio em que o passem.
Em caso de que não possam, nos avisarão com um tiro de mosquete, e ao ouvi-lo começaremos a disparar os canhões contra o istmo. Na realidade, será Tom Pullings que
disparará, pois eu penso encabeçar o grupo que vai fazer a abordagem. Fará o mesmo se lançamos um foguete azul dos botes, já que isso quererá dizer que estamos a
ponto de abordar. Disparará muito seguido, o que provavelmente distrairá o inimigo, pois, como recordará, foi pelo istmo por onde os invadimos uma vez, e dará tempo
para que os botes tirem a Diane do porto esquivando as baterias do fundo da baía, quer seja navegando, se o vento for favorável, quer seja a reboque, se não for.
Acho que, de toda forma, teremos que rebocá-la, porque este tipo de coisa têm que ser feita rápido. Nesse momento a maré estará baixando, e isso será uma grande
ajuda. Queria que os barcos de sua esquadra estivessem perto da costa em caso de emergência e que me proporcionassem quatro botes para ajudar a rebocar a fragata.
- Não acha que também deveríamos abordá-la?
- Não, William. Pelo menos não no primeiro assalto. Nas últimas semanas os tripulantes da Surprise praticaram todos os passos da abordagem de uma fragata duas vezes
a cada noite; sabem exatamente o que fazer e cada um tem uma tarefa designada, assim que a presença de outros homens só serviria para distraí-los. Porém, naturalmente,
se os tripulantes da Diane forem muito rebeldes, pediremos ajuda.
Babbington ficou pensativo por um momento e de vez em quando olhava para seu antigo capitão.
- Bem, senhor - disse -, o plano me parece excelente e não tenho nenhuma sugestão que possa melhorá-lo. Quer que faça o sinal para que todos os capitães venham agora?
- Sim, William, por favor. Mas há um detalhe que quase havia me esquecido: amanhã, quando se aproximar da costa, eu ficarei em alto mar. Pela noite, quando regressar
ao alto mar, deve se encarregar de que todos os barcos estejam muito bem iluminados, porque quando esteja ali passarei por seu lado sem acender nenhuma luz e levarei
a reboque seus botes. Resta dizer que se os tripulantes de algum barco pesqueiro se informarem de que a Surprise está aqui, é preferível que regressemos para casa
em vez de avançar para a costa com as maiores desdobradas com a esperança de pegar os homens da Diane desprevenidos.
- Eu me ocuparei disso, senhor.
- Mas discretamente, William, discretamente. Não os trate mal nem lhes faça sinais para que se vão, porque suspeitariam que passa algo.
- Eu mesmo conversarei com eles e não permitirei que ninguém mais fale.
Subiu para o convés ordenar que fizessem o sinal e quando regressou, Jack lhe disse:
- Recordo quando o doutor falou das mulheres e o fogo de artilharia. Foi na última guerra, quando estávamos diante do cabo de Creus e apresamos uma corveta francesa
com um carregamento de pólvora. O capitão havia levado sua esposa para navegar com ele e ela estava dando a luz. O doutor ajudou no parto da criança. Meu Deus, como
eram felizes aqueles dias! O almirante nos encarregava uma missão atrás da outra.
- E nós capturávamos uma presa atrás da outra. Que maravilha! Capturamos o Cacafuego! Lembra que nós tiznamos a cara na cozinha e o abordamos gritando como loucos?
Mowett escreveu um poema sobre isso.
Ainda estavam falando animadamente da última guerra quando o primeiro dos botes se abordou com a corveta, e os outros o seguiram quase imediatamente.
- Senhor - disse Babbington quando cessaram os ruídos da obrigada recepção, o guarda-marinha fez os pertinentes anúncios e a procissão pela escada terminou -, permita-me
apresentar-lhe ao capitão Griffiths, da Dolphin, o senhor Leigh, capitão do Carnet, e o senhor Strype, capitão do Vulture.
- Boa noite, cavalheiros - Jack os cumprimentou, olhando-os atentamente.
Griffiths era um homem baixo, de cabeça redonda e olhos brilhantes. Era um capitão jovem e fazia pouco que haviam lhe dado o comando daquela velha corveta que não
deveria seguir navegando. Leigh era um homem alto e velho e tinha um único braço. Era tenente e não tinha esperanças de conseguir uma ascensão, mas se alegrava de
estar ao comando de um transporte em vez de ter que viver em terra com uma família numerosa e com menos de cem libras de soldo por ano. Strype, o capitão do bergantim
Vulture, estava tão pálido e silencioso que era quase inexistente e tinha um aspecto estranho com o uniforme da Armada Real.
- Bem, cavalheiros - disse Babbington, e Jack se assombrou ao notar que empregava com naturalidade um tom autoritário, pois sua conversa lhe recordara aquele garoto
do camarote de guardas-marinhas da Sophie a quem ainda tinha que dizer que assoasse o nariz -, tenho ordem de cooperar com o senhor Aubrey, capitão da Surprise,
em um ataque que se propõe empreender contra a Diane. Vou pedir que ele faça um esboço de seu plano para que os senhores estejam bem informados, mas antes devo dizer-lhes
que ele e eu estamos totalmente de acordo com os aspectos gerais da estratégia. Tenham a amabilidade de escutá-lo sem fazer nenhum comentário até que ele lhes pergunte
quais são suas observações, que só farão referência aos aspectos concretos sobre os quais tenham informação especial, tais como as correntes, a profundidade das
águas ou a posição do inimigo.
Jack voltou a descrever seu plano, assinalando ao mesmo tempo os diversos pontos da carta marítima, e terminou dizendo:
- Se algum oficial tem alguma pergunta ou alguma observação a fazer, escutarei com muito gosto.
Houve um comprido silêncio, rompido apenas pelas ondas ao acariciar os costados da Tartarus, até que o grisalho tenente se levantou e, colocando seu gancho sobre
o quebra-mar, explicou:
- A única observação que tenho que fazer é que quando a maré sobe ou desce se forma uma corrente em direção contrária à rampa. Muitas vezes vi pequenas embarcações
tratando de esquivá-la ou roçando-a quando entravam no porto. Acho que deveria considerar isto, senhor, se quer que os botes passem desapercebidos.
- Obrigado, senhor - disse Jack -. Esse é um detalhe muito importante. Capitão Griffiths, queria dizer algo?
- Só que, se o capitão Babbington me permitisse, dirigiria o grupo de botes, senhor.
Imediatamente Babbington interveio:
- O senhor Aubrey e eu combinamos que os capitães se ficarão em seus barcos. A esquadra se aproximará da costa quando a operação começar e é possível que tenhamos
que tomar decisões importantes no caso de que... se não sair tudo bem.
Jack pensou: "Deus te abençoe, William. Não sabia que era tão astuto". E depois, em voz alta e em resposta à pergunta que flutuava no ar, disse:
- O capitão Pullings, que me acompanha como voluntário e é o oficial da Armada Real de mais antiguidade nestas águas, tomará o comando da Surprise em minha ausência.
Quer fazer algum comentário, senhor Strype?
- Sim - respondeu, e pela primeira vez notou-se que estava bêbado, bêbado como um gambá de genebra -. Que parte nos corresponde do butim?
Disse isso com um olhar malicioso e os outros se ruborizaram de vergonha. Jack o olhou com indiferença e replicou:
- Isso é vender o urso... Isso é vender a pele do urso... - Vacilou um momento e depois continuou -: Bem, acho que é prematuro falar deste assunto e que pode trazer
má sorte. Certamente, será repartido de acordo com o costume no mar. Os que ajudam obtêm o mesmo que os que capturam.
- É o justo - interveio Leigh -. Foi assim na última guerra e anteriormente, na guerra com os Estados Unidos.
- Agora, voltando ao tema dos botes - prosseguiu Jack -, quero determinar algo. O capitão Babbington e eu estamos de acordo de que os maiores de cada barco, e sobretudo
as pinaças e os botes longos, serão os melhores. Têm que ter a tripulação completa e remadores suplentes porque há que percorrer um vão muito comprido remando, e
todos os homens devem ir bem armados para abordar a fragata, ainda que espero não precisar que o façam. Também devem levar cabos com ganchos e todos os apetrechos
necessários, e é conveniente que um contramestre ou um ajudante do oficial de derrota de certa antiguidade esteja ao comando deles. E mais importante que tudo isto
é que os homens compreendam que o silêncio é fundamental. Naturalmente, devem forrar os toletes, mas sobretudo não devem falar, não devem dizer nem uma palavra.
Deterão os botes quando eu os solte e não se moverão nem falarão até que os chamem por seu nome, tanto para rebocar como para ajudar a vencer a resistência. Já que
é possível que tenham que abordar a fragata, deveriam usar uma faixa branca para colocá-la no braço no último momento, assim como os tripulantes da Surprise. A contra-senha
é "Feliz Natal" e a resposta "Próspero Ano Novo". Acredito que isso é tudo, cavalheiros.
Jack se levantou. Vira demasiadas reuniões desse tipo em que o resultado havia ficado escurecido por intermináveis discussões sobre detalhes sem relação com o assunto
principal e achava melhor deixar o esboço de seu plano na forma mais simples possível. Mas quando os capitães se foram, sentou-se com Babbington e o oficial de derrota
da Tartarus para comprovar as medidas da profundidade das águas e a posição dos lugares, e para saber em que ordem estavam atracados no porto os barcos franceses:
um imprestável bergantim, duas canhoneiras com canhões de trinta e duas libras, a Diane e dois mercantes de considerável tamanho que há pouco haviam abandonado o
fundo da baía, provavelmente com a intenção de escapulir atrás da fragata. Fizeram três cópias de um desenho dos barcos e dos bancos de areia que deviam evitar na
saída do porto e, além disso, da explicação das sucessivas fases da operação na linguagem mais concreta e simples que puderam encontrar. Quando terminaram as cópias,
Jack Aubrey disse:
- Bem, acho que fizemos tudo o que podíamos. William, me farás um grande favor se as entregar aos capitães e lhes ordenar que as examinem amanhã durante todo o dia
para que as memorizem e ensinem bem aos tripulantes. Agora irei afastar ainda mais a fragata da costa. Recolherei os botes amanhã quando me aproxime dela. Espero
lhe ver amanhã à meia-noite ou pouco depois se tudo sair bem. Mas se não nos vermos, William, se algo sair mal, não deve, repito, não deve me seguir nem deixar que
nenhum de seus barcos o faça. Se a operação tardar tanto que os franceses percebam que não estamos invadindo a ilha pelo istmo, dispararão tanto na estreita passagem
que nenhum barco poderia sair incólume. Eu disse o mesmo para Tom Pullings e ele está de acordo.
- Bem, senhor, farei o que o senhor diga - respondeu Babbington de má vontade -. Mas desejaria ir com o senhor.
Durante o curto trajeto que percorreu para regressar à fragata, Jack escrutinou o céu. A névoa, como um véu, ainda o cobria, mas se dissipava com rapidez e na parte
mais alta se viam alguns cirros que vinham do oeste-sudeste passando devagar entre as estrelas.
- Queria que não fizesse mau tempo antes do amanhecer - disse a Bonden com o propósito de afastar a má sorte.
- Não fará, senhor - Bonden o tranqüilizou-. Nunca vi uma noite tão bonita.
Depois de dar as ordens necessárias para que a Surprise avançasse um pouco para o noroeste e permanecesse ali duas horas, navegando de um lado para o outro, Jack
desceu. A cabine estava iluminada mas vazia. Stephen já havia ido para a cama e havia largado ali algumas notas sobre questões médicas, três livros com uma página
marcada, uma partitura inacabada, uma lupa e perto dela três bolachas de Nápoles que os ratos já haviam atacado. Jack jogou as bolachas pelo escotilhão, observou
o barômetro pingente e notou que havia subido um décimo de polegada e que a borda da coluna de mercúrio tinha uma profunda convexidade, o que confirmava seus prognósticos.
Abriu a tampa de sua escrivaninha, onde se encontrava ainda aberta a carta que escrevia para Sophie. Sentou-se e escreveu:
Minha querida:
Acabo de chegar da Tartarus. William foi nomeado capitão de navio e está tão contente como eu. Esta noite é uma das mais belas que já vi. O vento sopra do OSO ou
um pouco mais para S e o barômetro subiu um pouco. Deus lhe abençoe, minha querida. Estou a ponto de me deitar. Estive muito ocupado hoje e espero ficar ainda mais
amanhã.
Depois acendeu sua lanterna de mão e foi para a cama. Pendurou a lanterna em uma fenda que tinha ao alcance da mão. Feixou a portinhola quase completamente e só
saía dele um débil raio de luz que iluminava dois pés do teto. Observou tranqüilamente o raio de luz durante uns dois minutos. Pensou que havia cumprido com seu
dever, que se o tempo fosse bom no dia seguinte teria muitas possibilidades de triunfar, que a operação era justificada mesmo que dependesse dela algo muito menos
importante e que a realizaria em quaisquer circunstâncias. Sabia que seus companheiros não eram infalíveis, que podiam interpretar mal ou desobedecer a ordem mais
simples e que a má sorte sempre podia intervir, mas agora a sorte estava lançada e tinha que esperar o resultado.
Ao mesmo tempo que olhava o raio de luz percebia os distantes sons da fragata enquanto navegava para o nordeste com o vento em popa, o burburinho da exárcia (tensa,
mas não demais) e os ocasionais rangidos do leme, e também a mistura do odor da madeira esfregada, a brisa marítima, a água da sentina, os cabos alcatroados e a
lona úmida das velas.
A última parte da manhã do dia doze, um dia cinzento e aprazível em que o vento soprava frouxo do oeste-sudeste, o único lugar cômodo da Surprise era o cesto da
gávea do mastro mezena. O convés estava cheio de grupos de marinheiros que desciam os canhões para a bodega, subiam as últimas caronadas e as prendiam para que estivessem
preparadas para disparar pela noite. As caronadas podiam disparar mais rápido que os canhões e, por isso, fariam mais ruído no ataque, e, por outro lado, para manejá-las
bastavam dois homens, enquanto que para manejar os canhões era necessário um grupo de seis ou oito. Na cabine estavam o capitão, os oficiais e os timoneiros dos
botes ultimando os detalhes. Por tudo isso, os doutores decidiram subir pela exárcia muito cedo com livros, telescópios e fichas de xadrez. Sobre um tabuleiro traçado
no piso do cesto da gávea jogaram uma partida não muito agressiva que terminou em empate e agora estavam recostados nas alas dobradas.
Em uma revoada de gaivotas que voavam devagar contra o vento e com as asas inclinadas, Stephen distinguiu a Larus canus, abundantes no oeste da Irlanda, onde havia
passado parte de sua juventude. Lá aninhava um grande número delas no arrecife e nas praias solitárias, mas era estranho encontrá-las nestas águas, e quando estava
a ponto de dizer: "Eu vi uma gaivota comum", Martin lhe perguntou:
- Como traduziria peripeteia?
- Como "revés". Mas provavelmente se refere ao seu significado na dramática. Não acha que pude usar a palavra peripety? Os franceses têm a palavra péripétie, ainda
que não a usam com propriedade, mas com o significado de "vicissitude ordinária".
- Acho que vi a palavra peripety, mas quase não se usa na linguagem comum, e não acredito que esclareça nada a Mowett.
Entregou a Stephen um livro fino, a Poética de Aristóteles, dizendo:
- Prometi traduzi-lo.
- O senhor é muito generoso.
- Seria realmente generoso se tivesse percebido que era difícil fazê-lo. Eu o lera na universidade com meu tutor, que Deus o tenha. Era um homem excelente, um intelectual
com uma grande capacidade para fazer aos menos agudos entender tudo, e inclusive amar um texto. Com sua ajuda compreendi o essencial do livro e o recordo, mas me
parece que fazer uma tradução fiel e em um tipo de linguagem bastante comum, que qualquer cristão compreenda, é uma tarefa que está acima de minhas possibilidades.
- Pelo que me lembro da estranha natureza do livro e seus numerosos tecnicismos, também estaria acima das minhas.
- O orgulho e a precipitação me põe a perder. Quando Mowett me disse que queria escrever uma ambiciosa obra intitulada A tragédia do oficial da marinha baseada na
vida do capitão Aubrey, suas vitórias e suas desgraças, eu lhe disse que confiava em que lhe pusesse um final feliz. Então me replicou: "Isso não é possível, porque
se é uma tragédia tem que terminar com uma desgraça". Eu lhe disse que lamentava discordar dele e que me respaldava a máxima autoridade na matéria no mundo civilizado,
o própio Aristóteles, que dizia que apesar da tragédia dever ter necessariamente um assunto sério e relacionado com as ações de homens e mulheres de idéias elevadas,
não devia ter forçosamente um final triste. Depois citei um fragmento que me atrevi a traduzir: "A natureza da trama da tragédia requer que o âmbito em que se desenrola
alcance a maior amplitude possível sem escurecê-la, e a provável ou necessária sucessão de acontecimentos que mudam o estado de uma pessoa de triste para alegre
ou de alegre para triste deve ser formada pelo menor número possível deles" e depois lhe disse que se fixasse em que não só é possível a mudança do mau como do bem
nas tragédias, senão que Aristóteles o mencionava em primeiro lugar.
Duas badaladas. Na Surprise se havia relaxado consideravelmente a disciplina naval. Os oficiais e os contramestres já não golpeavam os marinheiros com varas ou cabos
com nós para que se movessem rápido; a colocação das macas na antepara a cada manhã já não era uma desenfreada carreria; nenhum marinheiro era castigado com açoites
por descer por último de uma verga e todos caminhavam pela fragata tranqüilamente, falando ou mastigando tabaco. Mas ainda perdurava o obsessivo afã pela limpeza
e se respeitavam as guardas e as horas de troca como se fossem sagradas, assim como o ritual das refeições. Durante a última parte da partida de xadrez haviam perdido
a concentração ao ouvir abaixo deles um alvoroço quando os marinheiros foram chamados para almoçar, um alvoroço em que o estrondo das bandejas e das vasilhas que
iam da cozinha para a popa com a carne de vaca salgada se somou ao ruído surdo das jarras de couro quando chegou a cerveja do tonel que estava junto à escotilha
(a Surprise ainda não havia chegado nas águas onde era permitido servir grogue e os marinheiros tinham que se contentar com um galão de cerveja por dia repartido
em duas rações, e, respeitando as tradições, a serviam em jarras de couro). Agora o homem que tocava o tambor (que não era um infante da marinha, mas um marinheiro
com bastante talento que trabalhava no mastro traquete) deu um forte golpe e começou a tocar sua versão particular de Roast Beef of Old England, o equivalente das
badaladas que anunciavam a refeição dos oficiais, para avisar de que o almoço não tardaria a ser servido.
Os dois se levantaram de um salto e, enquanto recolhiam os livros, os papéis e as fichas de xadrez, Stephen disse:
- Alegro-me que me tenha contado o que Aristóteles escreveu. Havia esquecido ou passado por alto essas palavras. Li o livro superficialmente e muito incomodado porque
naquela época tinha antipatia pelos comentários triviais que fizera sobre as aves e porque havia educado a Alejandro, aquele bárbaro arrogante tão nocivo para a
sociedade como Bonaparte. Mas sem dúvida era um homem exageradamente instruído.
Passou os pés pela boca de lobo e, apoiado na borda com os cotovelos, procurou com eles os amantilhos que ficavam debaixo dele enquanto pensava: "Talvez Jack faça
uma importante peripécia esta noite. Meu Deus, quanto eu gostaria que esta tragédia tivesse um final feliz e que...". Nesse momento vários amáveis marinheiros o
agarraram pelos tornozelos e guiaram seus pés até onde podia apoiá-los firmemente.
Ao chegar à cabine surpreendeu-se ao ver que Jack Aubrey o estava esperando ali de pé, muito sério. Parecia chateado e muito mais alto vestido com uma casaca de
cor verde garrafa e uma reluzente gravata recém amarrada.
- Como você é, Stephen! - exclamou -. Fomos convidados para almoçar na câmara dos oficiais e você se comporta como alguém recém enviado de um barco recrutador. Padeen!
Padeen venha!
- Barbeie e penteie o seu amo imediatamente - ordenou a Padeen quando este assomou a cabeça -, e depois pegue do baú sua melhor casaca, seus calções de cetim negro,
suas meias de seda e seus sapatos com fivelas prateadas. Tem que estar aqui dentro de cinco minutos.
Cinco minutos depois estava ali, sangrando por três pequenos cortes e um pouco perturbado. Jack enxugou o sangue de Stephen com um lenço, endireitou sua peruca e
o colete e o conduziu até a câmara dos oficiais, onde seus anfitriões deram as boas-vindas no momento em que soavam as três badaladas da guarda da tarde.
Na realidade, era a primeira vez que o capitão da Surprise era convidado para almoçar com os oficiais desde que a fragata se converteu em um barco de guerra privado.
Antes de capturar o Spartan e suas presas, os oficiais eram muito pobres para convidar-lhe, e durante os esgotadores dias que passaram na enseada Polcombe não lhes
foi possível acolhê-lo. A refeição foi magnífica, porque o cozinheiro dos oficiais estava decidido a superar Adi. Ainda que a mesa estivesse cheia de lagostas, caranguejos
do rio e do mar, linguados e mexilhões, tudo conseguido na Tartarus mediante subornos e preparado de três maneiras diferentes, houve irritantes esperas entre os
pratos. Jack conhecia essa mesa há muitos anos e com freqüência vira a muitos comensais ao seu redor, e inclusive às vezes cotovelo com cotovelo; contudo, agora
não havia ali nem um oficial de derrota, nem um contador, nem um capelão, nem oficiais de Infantaria da marinha nem convidados do camarote dos guardas-marinhas ou
de outros barcos, e ele sozinho ocupava um lado inteiro, à direita de Pullings, enquanto que Stephen e Davidge estavam sentados no outro e Martin em uma cabeceira,
e no início todos estranharam. Ainda que Jack Aubrey conhecesse West e Davidge e soubesse que eram excelentes profissionais, nunca os vira fora do serviço e não
se sentia a vontade com eles (nem com qualquer outro estranho, depois de seu processo). Jack os intimidava e estavam aflitos porque os haviam despojado de seu cargo,
de seu sustento e de seu; futuro. Eram conscientes (mais conscientes que os que iam participar) de que dentro de umas horas os outros teriam que zarpar e acreditavam
que as amostras de alegria estavam fora de lugar. Os que iam tomar parte na operação também se sentiam tensos, e Jack Aubrey, ainda que tivesse participado de mais
batalhas que qualquer marinheiro de sua idade, tampouco estava tranqüilo. Notou com assombro que tremia o pedaço de lagosta que sustentava com seu garfo enquanto
esperava que Davidge terminasse uma frase, e o comeu rápido. Depois, com a cabeça inclinada e um sorriso de cortesia, seguiu escutando a desconexa história que lentamente
avançava para o desastroso final. Davidge havia viajado para a França durante a paz e em uma ocasião quis comer em uma famosa pousada situada entre Lyon e Aviñón,
mas estava cheia e lhe recomendaram uma da mesma qualidade perto da catedral. Falou com o hospedeiro sobre essa catedral e outras e comentou que lhe surpreendera
a beleza de um dos meninos do coro, e o homem, que era um pederasta, interpretou mal suas palavras e lhe fez uma proposição pouco dissimulada. Davidge, sem se ofender,
recusou-a, e ele, que gostou dele, negou-se a lhe cobrar a esplêndida refeição e ambos se despediram amistosamente. Mas quando Davidge chegou por fim ao Ródano,
depois de fazer inumeráveis parênteses, pensou que a sodomia, que era algo divertido em si mesmo e justificava a narração de uma anedota por longa que fosse, não
agradaria ao solene e atento capitão. Então tentou mudar a história para que não parecesse muito estúpida, uma vã tentativa da qual o resgatou o prato seguinte,
consistente em focinho de porco em conserva (o prato favorito de Jack) e perna de quarto de cordeiro, que encarregaram a Martin que trinchasse. Como Martin, até
seu recente matrimônio, costumava almoçar em casas especializadas em costeletas e bifes, nunca havia trinchado nenhuma; tampouco a trinchou agora, pois empurrou
o garfo com tanta força que lançou o cordeiro no colo de Davidge. Desse modo, Davidge saiu da difícil situação, ainda que ao preço de sujar seus calções; um preço
baixo, em sua opinião, e passou silenciosamente a perna de cordeiro para Stephen, que a cortou adequadamente ao modo dos cirurgiões.
O cordeiro estava bom, pois estava bem condimentado e cozinhado à perfeição, e o acompanharam com um magnífico clarete de Fombrauges que Jack gostou tanto que depois
da primeira taça disse uma das poucas coisas que recordava do curto período de aprendizagem em terra:
- Nunc est bibendum{2} - disse, lançando um triunfante olhar para Stephen e para Martin -. Estou seguro de que não poderíamos pedir um vinho melhor.
Depois disto, a refeição se animou, ainda que a tensão não desapareceu por completo, já que se ouviam os chiados de duas pedras de amolar que haviam colocado no
convés quando o armeiro e seus ajudantes afiavam sabres e machados de abordagem, o que lhes recordava o futuro imediato. Apesar de tudo, o almoço não foi harmonioso,
pois os comensais se dividiram em dois grupos, um formado por Aubrey e Pullings, que falaram de antigos companheiros de tripulação e de viagens anteriores, e outro
por Stephen e Davidge, que falaram do difícil que era para um estudante do Trinity College de Dublim manter-se vivo. Davidge tinha ali um primo a quem haviam ferido
três vezes, duas com espada e a outra com pistola.
- Não sou um brigão nem tenho inclinação para mostrar-me ofendido e, contudo, no primeiro ano me bati uma vintena de vezes- dizia Stephen -. Acho que agora a situação
é melhor, mas naquela época era desesperador.
- Isso diz meu primo. Quando veio visitar-nos na Inglaterra, meu pai e eu lhe demos algumas lições. Estivemos todo o verão rebatendo, fazendo contra-ataques e defesas
e ganhando os terços da espada, e pelo menos há sobrevivido.
- Pelo que vejo, o senhor é um excelente espadachim.
- Eu não, mas meu pai sim, e logrou que fosse bastante competente. Isso me foi útil depois, quando, infelizmente, tive que deixar a Armada e Angelo me contratou
para trabalhar em seu salle d'armes.
- Ah, foi? Eu lhe agradeceria muito que fizéssemos alguns lances com a espada depois de almoçar. Estou destreinado e não queria que me matassem como a um estúpido
esta noite.
Stephen não era o único que pensava isso na Surprise: quando o almoço terminou e ambos foram tomar ar no castelo de popa, ouviram uma sucessão de estampidos na proa,
onde os marinheiros disparavam com suas pistolas contra garrafas colocadas a curta distância. Todas as caronadas já estavam prontas, os botes, colocados paralelos
uns aos outros, iam a reboque amarrados na popa e as armas estavam preparadas. O mar, o vento e o céu estavam quase o mesmo que haviam estado até então: tranqüilo
o primeiro, estável o segundo e cinzento o terceiro. O dia parecia não evoluir.
Jack observou as tabuinhas de navegação enquanto assobiava quase para si e depois se voltou para o oficial de guarda e lhe indicou:
- Senhor West, quando soem as oito badaladas viraremos e poremos rumo ao este-sudeste com as velas de estai desdobradas.
Depois de dar algumas voltas foi para a cabine pegar seu pesado sabre de cavalaria, e depois de fendir o ar com ele durante um tempo foi para a proa para que o armeiro
o afiasse como uma navalha de barbear.
- Bem, doutor, quer praticar um pouco? - perguntou Davidge.
- Com muito prazer - respondeu Stephen, jogando para o mar a guimba, que durante um momento fez um som sibilante.
- Estas eram o orgulho de Angelo - disse quando desataram a gravata e puseram suas casacas dobradas em cima do cabrestante -. Amarram-se à ponta das espadas para
que não firam, de maneira que um não tem que trocar de espada. São melhores que qualquer tipo de botão.
- Glória a Deus! - exclamou Stephen.
Ambos se cumprimentaram e ficaram alguns momentos em uma postura apropiada, fazendo movimentos ameaçadores quase imperceptíveis com o pulso e a ponta da espada.
Então Stephen golpeou o piso duas vezes com o pé, como um toureiro, e se lançou-se sobre Davidge com ferocidade. Davidge fez uma defesa e os dois começaram girar
ao redor de seu adversário chocando as espadas, umas vezes acima e outras abaixo, e umas vezes com os corpos quase roçando-se e outras tão distantes que tinham que
estender os braços.
- Espere! - gritou Stephen, saltando para trás e levantando a mão -. Meus calções desabotoaram os. Por favor, Martin, abotoe-me a fivela.
Quando a fivela já estava abotoada, cumprimentaram-se outra vez, e de novo Stephen, depois de ficar alguns momentos imóvel e com o olhar fixo como um réptil, avançou
gritando:
- Aaah!
A mesma defesa, os mesmos giross e o mesmo choque de espadas, cujos movimentos eram tão rápidos que só os dois espadachins podiam segui-los. De novo os mesmos golpes
no piso com os pés, o mesmo ofego nas estocadas, a mesma agilidade... Mas de repente mudou o ritmo e um leve erro provocou que a espada de Davidge caísse no parapeito.
Davidge olhou com assombro sua mão vazia um instante e imediatamente, pondo a melhor expressão que pôde, em meio dos aplausos, gritou:
- Bem feito, bem feito! Sou um homem morto, sou mais um cadáver, não há dúvida -. Depois recolheu sua espada e quando comprovou que não havia quebrado perguntou
-: Posso ver a sua?
Stephen lhe entregou e Davidge lhe deu voltas examinando a empunhadura e o guarda-mão.
- O guarda-mão é flexível, não é?
- Exatamente. Recebo a lâmina da espada de meu adversário aqui e tudo é questão de controlar o tempo e fazer alavanca.
- É um arma letal.
- Afinal de contas, as espadas são para matar. Mas lhe agradeço de todo coração por este combate, senhor. O senhor é a amabilidade personificada.
Soaram as oito badaladas e imediatamente se ouviu o grito: "Todos a mudar de bordo!"
A Surprise virou descrevendo uma grande curva até que a proa ficou situada em direção este-sudeste e depois começou a avançar devagar para o lugar onde seu rumo
convergiria com o da esquadra de Babbington, que navegava em direção ao alto mar. O sol ia se pôr na guarda do segundo quartilho, e todos sabiam que esse era o último
vão que percorreriam antes de subir aos botes para empreender a longa rota que bordejava o cabo Bowhead. A bordo a atmosfera era tensa, ainda que alguns dos gavieiros
mais jovens, pouco mais que meninos, brincavam no alto da exárcia seguindo um companheiro saltando do tope de um mastro para outro e descendo até a cruzeta e depois
até o estropo dos botalós. Jack e Stephen arrumaram suas coisas, como faziam usualmente antes das batalhas, e entregaram seus documentos a Pullings. Todos os oficiais
haviam feito isso muito amiúde (era uma prática habitual antes dos combates) e, contudo, hoje lhes parecia um pouco mais que uma conscienciosa precaução, um pouco
mais que uma reverência ao destino.
As badaladas se sucederam; o sol se pôs quando se via por debaixo da verga do traquete; chamaram os marinheiros para jantar.
"Pelo menos não tem que guardar tudo na bodega", pensou Stephen, colocando uma partitura no móvel de Diana, que era ao mesmo tempo um atril e uma escrivaninha. Tocou
algumas notas estridentes que fizeram vibrar as janelas de popa e depois começou a interpretar uma peça musical nova para ele, uma sonata de Duport. Ainda estava
no andante, com o nariz quase roçando a partitura, quando Jack entrou exclamando:
- Mas está sentado na escuridão, Stephen! Se segue assim estragará a vista. Killick, Killick! Acende uma lanterna.
- Suponho que o sol já se pôs.
- Conforme dizem, faz isso de vez em quando. O vento aumentou de intensidade e estamos navegando só com as velas de estai abertas.
- Isso é bom?
- Fazemos isso para que se alguém, enquanto passeia pelo cabo Bowhead, vê a silhueta da fragata na escuridão, pense que é uma embarcação de velas triangulares sem
importância. Vou trocar de roupa.
- Talvez deveria fazer igual - disse Stephen -. Tenho que preparar o revólver de Duhamel, uma arma realmente mortífera. Ainda estou penalizado por Duhamel. Era um
homem muito afável... meu Deus, quase me esqueço disto! - exclamou, tocando o bolso dos calções.
Correu para a cabine de Pullings e lhe disse:
- Tom, por favor, junte isto ao pequeno pacote que lhe dei em caso de que tenha que entregá-lo, que Deus não o queira. É uma magnífica e valiosíssima jóia, assim
que lhe rogo que cuide dela e nunca a tire do bolso.
- Eu a guardarei no bolso do relógio - disse Pullings -, mas estou seguro de que amanhã voltará a estar em seu poder.
- Isso espero, meu amigo, isso espero. Agora, diga-me, o que um deve pôr para uma ocasião assim?
- Botas hessianas, calças largas, uma casaca de beira, uma bandoleira para pendurar o sabre e um cabo ao redor da cintura para pendurar as pistolas. Oh, doutor,
quanto eu gostaria de ir com o senhor!
Quando regressou para sua cabine, Stephen revirou a pouca roupa que tinha tratando de encontrar peças equivalentes a essas e sem muito bom resultado. Ademais, mas
com melhor resultado, refletiu sobre se nessas circunstâncias devia desbedecer a regra relativa à dose de láudano e aumentá-la. Não queria usá-lo como soporífero
(nada mais longe de isso), senão como um meio para eliminar a angústia ilógica, quase instintiva, que poderia perturbar-lhe e para ter agudeza mental suficiente
para enfrentar-se às contingências que poderiam apresentar-se na nova situação. Se em vez da tintura de ópio tivesse as benditas folhas de coca que havia encontrado
na América do Sul, não teria dúvidas, pois era inquestionável que estimulavam o organismo, aumentavam sua resistência e tranqüilizavam o nervosismo, enquanto que
a tintura tinha certa tendência a induzir à contemplação. Mas fazia muito tempo que havia comido, isto é, mastigado, todas as folhas de coca e, por outro lado, era
inegável que a tintura sempre fazia efeito nas emergências e suas virtudes compensavam suas pequenas desvantagens. Ademais, os estímulos que forçosamente teria em
um combate desse tipo contrariariam a ligeira sonolência que pudesse produzir. A julgar pelo destino da Diane, provavelmente teria a bordo um importante agente secreto
e, como era muito importante aprisionar-lhe, seria um erro desperdiçar qualquer fator que contribuísse para consegui-lo. Nada era pior que supor que havia uma contradição
entre o dever e a inclinação.
Terminou de beber o copo de láudano, mas sem muita satisfação, e se sentou para fazer a metódica operação de carregar seu revólver enquanto Killick e seus companheiros
colocavam ruidosamente os postigos na grande cabine. Quando subiu para o convés já estava escuro. Ao sudeste se viam os barcos da esquadra, que com seus portalós
iluminados e seus faróis de popa brilhando avançavam para alto mar formando uma fileira. E para lá dos barcos, muito além, via-se o oscilante raio de luz do farol
Bowhead.
Todos os oficiais estavam no castelo de popa olhando silenciosamente os barcos. Jack estava sozinho junto ao lado de barlavento com as mãos atrás das costas e se
inclinava para contrariar o balanço e o cabeceio. Não havia nenhuma luz a bordo além do resplendor da bitácula e havia pouca no céu, pois a velha lua, que estava
em seu último dia, já havia se ocultado e a névoa escurecera todas as estrelas exceto as mais brilhantes, que agora não eram mais que manchas borradas. Era uma noite
muito escura. Ainda que a costa estivesse muito longe, os poucos homens que falavam o faziam em voz baixa. A desagradável voz nasal de Killick podia ser ouvida enquanto
discutia com o cozinheiro do capitão abaixo, nas entranhas da fragata.
- Você faze a maldita empanada agora e eu farei as torradas com queijo no último momento, enquanto você bate um ovo em uma taça de vinho do marsala. O doutor diz
que há que protegê-lo do que chamamos a umidade da noite, mas ele não quer descer até que hajamos recolhido os botes.
Killick tinha razão, porque nada além da chegada do dia do juízo final poderia afastar Jack Aubrey do costado antes que levasse a reboque os botes da esquadra. De
vez em quando Jack gritava para o serviola que estava na cruzeta:
- Atento, serviola!
E por fim o homem gritou:
- Convés! Acho que vi uma luz descer pelo costado da Tartarus!
Passou meia hora. A fila de barcos estava cada vez mais perto. Por fim Jack encheu seus pulmões de ar e gritou:
- Tartarus?
- Surprise? - gritou alguém em resposta -. Soltaremos os botes imediatamente e se dirigirão para o sudoeste. Podem acender uma luz?
Jack abriu a portinhola de sua lanterna um momento e ouviu a ordem:
- Soltem os botes!
Depois, quando as embarcações partiram, ouviu outra voz, a de Babbington, que dizia:
- Deus o abençoe, senhor!
A esquadra seguiu avançando e pouco depois pôde perceber-se a luz das lanternas dos botes, que estavam cobertas para que não fossem vistas do distante litoral. Depois
se ouviram gritos não muito altos quando os marinheiros que cuidavam a fileira de seis botes da Surprise amarraram os dos recém chegados. Jack, inclinado sobre o
coroamento, gritou:
- Que subam a bordo os capitães dos botes!
Seus olhos haviam se acostumado à escuridão e pôde vê-los muito bem à luz que se refletia na bússola: o robusto oficial de derrota da Tartarus e os contramestres
dos outros três barcos. Todos eles eram marinheiros experientes, marinheiros do tipo que ele apreciava. Cada um disse o nome de seu barco e o número de tripulantes
que havia em seu bote; e das respostas às perguntas de Jack se deduzia que sabiam o que deviam fazer lá, e de seu olhar, que era muito provável que o fizessem.
- Todos os marinheiros jantaram antes de sair dos barcos? - perguntou Jack -. Se não é assim, podem jantar agora. Em assuntos como este ter a barriga cheia é ter
ganho a metade da batalha.
- Oh, sim, senhor! - responderam.
Haviam lhes dado carne de porco fresca e na Tartarus lhes serviram pudim de passas.
- Senhor, por favor - interveio Killick em seu habitual tom lamuriento justo atrás dele -, a empanada está pronta e as torradas com queijo se estragarão se não forem
comidas quentes.
Jack olhou para a distante costa, assentiu com a cabeça e desceu. Stephen já estava lá, sentado junto a uma vela.
- Isto não é muito diferente do que estar em um palco esperando para que se levante a cortina - observou Stephen -. Pergunto-me se os atores também percebem o tempo
distorcido, se acham que o presente realmente avança, mas quase de forma imperceptível, como a sombra da barra de um relógio de sol, e que pode inclusive voltar
atrás.
- Talvez sim - opinou Jack -. Contam que a comida dos banquetes que há no cenário é feita de papelão: salsichas de papelão, pernas de cordeiro de papelão, presunto
de papelão. E dizem que também as taças em que aparentam beber estão feitas de papelão. Stephen, juro por Deus que este bolo de Estrasburgo é excelente. Já o provou?
- Não.
- Deixe-me servir-lhe um pedaço.
Geralmente o ópio reduzia tanto o apetite de Stephen que depois de uma considerável dose não desfrutava da comida; contudo, esta vez deu o prato a Jack para que
lhe desse outro pedaço dizendo:
- Está realmente muito bom.
Depois chegaram as torradas com queijo e as comeram acompanhadas de uma garrafa de vinho de Hermitage. Ambos eram muito aficionados ao vinho e ambos sabiam que essa
garrafa poderia ser a última que beberiam. Em caso de que fosse assim, pelo menos teriam um final digno, porque aquele era um vinho generoso que se achava em seu
melhor momento, um vinho que suportava o constante movimento do mar. Beberam-no lentamente, sentados à luz da vela sem falar, pois preferiam ficar em silêncio, simplesmente
fazendo-se companhia, enquanto a fragata se aproximava do litoral a uma velocidade constante.
Já fazia mais de uma hora que não soava nenhuma badalada, mas Jack ouviu que o timoneiro foi substituído no final da guarda.
Terminou de beber a taça de vinho e, ainda com seu sabor na boca, pegou um compasso para medir o azimute que ele mesmo havia desenhado.
- Vou calcular nossa posição - disse a Stephen.
Os barcos da esquadra ainda podiam ser vistos muito longe pela popa, ainda que menos claramente agora porque haviam apagado os faróis pouco depois do encontro. Pela
proa se via a silhueta do cabo Bowhead, uma massa mais escura que a própia escuridão a umas três milhas de distância. Cada dois minutos, os que observavam o litoral
deixavam de vê-lo, pois lhes batia de cheio a luz do farol e os cegava. Quando o risco de luz se afastava, todos voltavam a ver na escuridão, e podiam distinguir
as luzes de terra e a forma do litoral ao norte-nordeste do cabo Bowhead. Não tardariam em ver as grandes ondas rompendo na costa, especialmente ao redor do cabo,
porque havia forte marejada e a maré estava mudando. Jack conhecia bem a configuração do litoral, pois tinha uma excelente memória visual e a vira muitas vezes na
carta marítima, e sabia que em torno de meia hora poderia rumar para o lugar onde pensava ancorar, um lugar em cujo fundo a âncora agarraria bem e a fragata estaria
protegida do fogo dos canhões que defendiam o vulnerável istmo.
- Senhor Pullings, a âncora já está preparada no pescante? - perguntou.
- Sim, senhor, e também um cabo de manobra na popa.
- Então desça-a polegada a polegada até o escovém para jogá-la sem que se produza um chape. Vou dar uma espiada nos botes.
Entregou o compasso ao suboficial encarregado dos aparelhos de navegação e se dirigiu para a popa. estava tão familiarizado com a Surprise como com Ashgrove ou até
mesmo mais, e saltou por cima do coroamento e desceu pela escada de popa sem pensar um segundo. Passou pela fileira de botes até que chegou à da Tartarus.
- Ânimo, tripulantes da Tartarus! - disse em voz baixa.
- Ânimo, senhor! - replicaram todos no mesmo tom suave.
Jack notou os toletes forrados.
- Bom, muito bom - disse -. Zarparemos dentro de pouco. E recordem: nem uma palavra, nem uma só palavra, e remem suavemente. Quando soltem os botes, deixem de mover
os remos, ponham as faixas ao redor do braço e preparem-se para lutar como heróis quando os chame, nem um momento antes.
- Estaremos preparados, senhor - murmuraram.
Deu a mesma saldação e a mesma mensagem aos tripulantes da Dolphin, do Camel e do Vulture, e a todos pareceu impressioná-los muito que fosse necessário guardar silêncio.
Quando regressou a bordo da fragata começou a fazer medições para determinar a posição. Já podia ver as grandes ondas rompendo na costa, e agora o oscilante raio
de luz era muito útil porque a aba do chapéu protegia seus olhos. Parou junto ao leme e, em voz baixa, deu algumas instruções ao timoneiro. Depois, quando soube
exatamente a latitude e a longitude, ordenou diminuir o velame, e o avanço da fragata entre as ondas, só com as velas de estai maior e de proa abertas e o vento
pela alheta de estibordo, tornou-se quase imperceptível. Passaram silenciosamente pela frente do alto escarpado onde ficava o farol, muito perto dos escolhos onde
rompiam as ondas, tão perto que os marinheiros contiveram o fôlego. Quando dobraram o volumoso cabo, os escolhos onde rompiam as ondas estavam a bombordo a um tiro
de pistola. Estavam à sombra do escarpado e nem sequer chegavam a eles os dispersos lampejos do raio de luz, mas o raio iluminava a colina que lhes servia de escudo
deste lado da fortaleza. Afrouxou as escotas e murmurou:
- Preparados para jogar a âncora.
A Surprise se movia de um lado para o outro com a corrente; o raio de luz deu a volta e iluminou a colina; a fragata se achava exatamente no lugar que ele desejava.
Então, em voz muito alta, ordenou:
- Joguem a âncora!
A âncora afundou silenciosamente em águas de dezoito braças de profundidade; os marinheiros desenrolaram um longo tramo da amarra falando baixo e se comunicando
com gestos. Quando ficou agarrada no fundo, moveram o cabo de manobra até que o costado ficou situado diante do istmo, onde podiam ver-se algumas luzes da parte
sul da cidade.
Jack olhou seu relógio à luz da bitácula e ordenou:
- Que desçam os tripulantes do cúter azul.
Os tripulantes, reunidos no corrimão de estibordo há mais de meia hora, passaram em fila por seu lado com o contramestre. Depois passaram os tripulantes do cúter
vermelho, que estavam no corrimão de bombordo, com o condestável, e depois, de um corrimão e outro alternativamente, passaram os tripulantes da pinaça com Davidge,
os do esquife com West, os do bote com Beattey, o carpinteiro, e por último os de sua falua. Quando Bonden passou, Jack o pegou por um braço e lhe sussurrou:
- Mantenhasse muito perto do doutor quando abordarmos.
Depois desceu para a cabine, onde Stephen estava jogando xadrez com Martin, à luz da vela, e com o sabre diante dele em cima da mesa.
- Quer vir comigo? - perguntou Jack -. Já estamos indo.
Stephen, sorrindo, levantou-se e pôs a bandoleira, e Martin, com uma expressão preocupada, abotoou-lhe por trás. Jack o guiou até o castelo de popa e depois até
o coroamento, e Pullings e Martin foram até lá para desejar-lhes que Deus os protegesse e esperar que descessem a escada de popa. Os botes já estavam colocadas formando
uma longa corrente que a falua do capitão precederia, e quando Jack subiu nela, o único membro da expedição que faltava chegar, Bonden a desamarrou e Jack murmurou:
- Retroceda.
No início tiveram que remar contra a corrente, as ondas e o vento moderado, mas seu zelo contrariou tudo isso durante os primeiros três quartos de hora. Psicionaram-se
diante do cabo Bowhead, longe dos escolhos onde as ondas rompiam, remando com força e a um ritmo constante, e até então os toletes não haviam rangido nem se ouvira
nenhum ruído além de uma tosse reprimida. Depois de olhar para Bowhead, Jack dirigiu a vista para o alto mar e não viu a esquadra, ainda que provavelmente Babbington
avançava devagar para a costa.
Em frente ao cabo e sobretudo quando fizeram rumo ao leste, a corrente estava a seu favor. Jack ordenou que diminuissem a velocidade, que havia chegado a ser excessiva,
e mandou passar a ordem de trocar os remadores até o último bote da fila.
Passaram outros vinte minutos e então viram uma parte do lado mais distante do porto, que estava muito iluminada. Imediatamente puderam ver uma parte maior e depois
todo o lado norte, com o fundo da baía muito bem iluminado, e, o que era mais importante, puderam ver o quebra-mar. Mais perto, cada vez mais perto. Remavam suavemente.
Quando passaram o quebra-mar viram uma débil luz que oscilava e se aproximava com rapidez deles, Era possível que só fosse a de um barco pesqueiro que saía para
pescar de noite. Jack abriu a portinhola da lanterna.
- Ohé du bâteau! - disse uma voz desde a embarcação.
- Ohé - respondeu Stephen, a quem Jack pôs a mão no ombro -. A Diane, où est-ce-que'elle se trouve à présent?
- Au quai toujours, nom de Dieu! T'es Guillaume?
- Non, Etienne.
- Bien, je m'en vais. Qu'est-ce que tu as là?
- Des galériens.
- Ah, les bougres! Bon. Au plaisir, eh?
- Au plaisir, et je te souhaite merde, eh?
Seguiram remando, ainda que não tão regularmente. Agora podia ver-se o quebra-mar, com luzes nos parapeitos que rematavam a rampa da parte mais próxima de terra.
Era evidente que na rampa se celebrava uma festa, pois se ouviam música e vozes cantando e rindo. Jack tomou o leme das mãos de Bonden e notou a corrente (a maré
estava começando a baixar). Então o virou para passar o mais longe do quebra-mar que fosse possível sem se chocar com o banco de areia do outro lado. A falua não
teve dificuldades. A segunda embarcação não teve dificuldades e tampouco a terceira... Nenhuma teve dificuldades. Todos haviam conseguido entrar no porto, ou talvez
em uma armadilha. Jack, alçando a voz para ser ouvido apesar da algaravia da rampa, disse a Bonden:
- Prepara o foguete azul.
Estava de pé e na difusa luz distinguiu uma parte do cais onde havia barcos atracados. Aproximaram-se um pouco mais e os viram quase claramente: um bergantim, umas
embarcações de outro tipo, a Diane e dois mercantes. Agora estavam mais próximos, apenas movendo os remos, e pôde ver que os objetos que estavam diante da Diane
eram canhoneiras atracadas em paralelo.
- Muito bem - disse Jack -. Tartarus, Dolphin, Camel e Vulture, detenham-se. Bonden, lance o foguete azul.
Bonden aproximou da mecha do foguete uma chama. O foguete se elevou com um movimento ondulante e depois começou a subir em linha reta, e seguiu subindo até que estourou
e formou uma estrela azul que avançou para sotavento seguida por sua própia fumaça. Um segundo depois pôde ver-se na parte sul do céu o resplendor que produziram
os disparos da bateria da Surprise.
- Soltem os botes e separem-se - ordenou Jack.
Quando os botes começaram a se mover, chegou até eles o ruído estrondoso das caronadas, cujo eco ia de um lado para outro do porto e voltava para trás de novo.
Os botes foram rapidamente ocupar seus postos. A falua se abordou com estrondo com o pescante central; ouviu-se o grito: "Mais que'est-ce qui se passe?" e um homem
se assomou por cima da borda, mas imediatamente os marinheiros que subiram pelo costado para fazer a abordagem o derrubaram. Os poucos homens mais que formavam a
guarda do porto e estavam conversando com seus amigos do cais, foram descidos pelas escotilhas pelos grupos de homens que chegaram pela proa e popa. Stephen, seguido
de Bonden, foi correndo não para a grande cabine mas para a que ele ocuparia se estivesse nessas mesmas circunstâncias, e lá encontrou a um homem de meia idade que
estava sentado escrevendo em uma mesa. O homem levantou a vista e o olhou com uma mistura de raiva e surpresa.
- Segure-o, Bonden - ordenou Stephen, apontando com a pistola para a cabeça do homem -. Amarre suas mãos e meta-o em um bote. Não deixe que grite nem que escape.
Equanto isso Padeen e Johnson o Moreno correram para as pranchas colocadas na proa e na popa para descer ao cais e cortaram as amarras das âncoras; os gavieiros
subiram pela exárcia e cortaram os brioles e os chafaldetes para largar o velacho; os tripulantes de três botes correram para a coberta inferior e sacaram das macas
os marinheiros que estavam descansando e os levaram para a bodega junto com as mulheres que estavam com eles. A Surprise seguia disparando e fazendo um ruído estrondoso,
como um barco de linha; os sinos da igreja soavam e soavam; ouviam-se tambores e trompetes em uma dúzia de pontos diferentes e se viam fileiras de tochas aproximando-se
do istmo.
Finalmente, os homens que abordaram a Diane juntaram todos os tripulantes isolados que encontraram na coberta superior e na inferior, os conduziram também para a
bodega e levantaram o gradeado para deixá-los entrar.
- O senhor, senhor Bulkeley, e o senhor, condestável - ordenou Jack, que estava junto aos homens escolhidos para levar o leme -, subam nos cúteres e puxem a proa
com uma corda para virá-la para fora.
Os tripulantes dos cúteres desceram imediatamente pelo costado, estenderam um cabo e começaram a remar com brio, mas devido a sua diligência e de uma inoportuna
rajada de vento que inchou o velacho, a proa da Diane se meteu entre as canhoneiras que estavam atracadas diante. Jack foi correndo até a proa e olhou para as águas
anegradas que estavam justo abaixo.
- Senhor West - disse -, vá com um grupo de homens desamarrar a canhoneira de fora para que se mova para onde flue a água.
- Senhor, está amarrada com uma corrente na proa e outra na popa - informou West ao regressar empapado, ofegante e com a cara negra.
- Muito bem - disse Jack e notou que Davidge estava junto dele e que havia marinheiros de uma ponta a outra dos corrimãos -. Os senhores vão com os tripulantes de
seus botes e movam esses dois mercantes que estão atrás. Não acho que tenham muitas dificuldades para fazê-lo.
Não as tiveram, mas quando os barcos se moviam para onde fluía a água o panorama mudou por completo. Por uma rua que ia da colina ao centro do cais vinha um grupo
do marinheiros a cavalo que eram os oficiais da Diane. Corriam a galope, golpeando com fúria os paralelepípedos, e os seguiam os marinheiros que estavam de licença
e um grupo de soldados.
Jack se inclinou sobre a borda de estibordo e gritou com força:
- Davidge! West! Virem a popa para fora! Agite uma mão! Estão me ouvindo?
Não havia mais tempo. Na Diane ainda estavam colocadas as pranchas e, ainda que não tivesse obstáculos por trás, tinha a parte de bombordo da proa metida entre as
canhoneiras, que estavam amarradas ao cais. Ademais, a baixa-mar contribuía para que se metesse mais para dentro.
O oficial da frente fez saltar seu cavalo até o castelo de popa da fragata e apontou sua pistola para o timoneiro, mas o cavalo perdeu o equilíbrio e ele caiu. Jack
agarrou o homem, o arrastou pelo convés e o jogou no mar. Mas outros oficiais a cavalo o seguiram (pelo menos cinco) e muitos marinheiros subiram a bordo pelas pranchas
de proa e de popa. Alguns marinheiros puxaram os brioles e os chafaldetes porque lhes permitiria manobrar as velas com o comando, mas estavam cortados; outros correram
pelo corrimão para tomar parte na violenta luta que havia no castelo de popa. Ali os cavalos que haviam caído chutavam como loucos e formavam uma barreira, mas dois
deles lograram pôr-se em pé, e no espaço que deixaram se produziu um feroz ataque encabeçado pelo capitão da Diane. Jack, encurralado pela multidão junto ao cabrestante,
viu como Stephen disparou em seu ombro e o atravessou com a espada a sangue frio. Depois a luta se tornou mais violenta e os marinheiros se apertaram ainda mais
uns contra os outros; os golpes se ouviam mas não se viam. De baixo e dos botes chegaram muitos tripulantes da Surprise gritando: "Feliz Natal!", que se uniram ao
grupo brandindo seus sabres e seus machados de abordagem. Agora havia muito mais gente no cais. Parecia que as coisas se voltavam contra os tripulantes da Surprise,
pois seus adversários, que os superavam em número, tentavam encurralá-los entre o leme, o mastro mezena e o costado.
Jack conseguiu chegar até o centro da primeira fila, onde não havia espaço para a esgrima. Os homens se atacavam furiosamente com armas leves e os sabres chocavam
produzindo o mesmo ruído que o de uma ferraria, e assim seguiram até que um cavalo enlouquecido passou por entre os dois bandos. No amplo espaço, um soldado francês
que tentava se levantar do convés, onde havia caído ao tropeçar, moveu a espada para cima e feriu acidentalmente uma perna de Jack acima do joelho. Seus amigos,
que avançavam a empurrões para frente, o derrubaram de novo e um deles lançou-se para Jack, e, ainda que este tenha se defendido, fez um pouco tarde e a ponta da
espada lhe fez um furo no antebraço. Ao fazer a envestida, o homem se aproximou muito de Jack, e ele o pegou com a mão esquerda, deu-lhe um golpe com a empunhadura
do sabre que o deixou aturdido e o lançou contra seus companheiros com tanta força que três deles caíram. No breve descanso, quando havia se virado pela metade para
chamar os botes da esquadra, recebeu um golpe pelas costas que lhe pareceu um chute. "Um cavalo", pensou e encheu os pulmões para gritar, mas nesse momento os tripulantes
da Diane e os soldados pararam de dar os furiosos gritos de guerra para lançar uma ameaça gritando com todas suas forças: "Corram, corram enquanto possam!". Mas
era tarde demais. Agora Davidge e West tinham fortemente segura a popa da fragata e, quando puxaram ela, a prancha de popa primeiro e a de proa depois se descolaram
do cais e caíram pelo lado. Alguns dos tripulantes da Diane saltaram para o cais quando a separação não era muito grande; outros saltaram, mas não chegaram a ele;
outros seguiram lutando de costas para o coroamento até que por fim, ao ficar em desvantagem, jogaram suas armas.
Mas ainda lhes disparavam com pistolas e mosquetes desde o cais e Jack correu para as caronadas do castelo gritando:
- Vamos, Plaice! Vamos Killick!
Verificou as pederneiras, moveu uma caronada para apontar para os soldados e, ainda que seu braço jorrasse sangue, puxou o rabicho. Estava carregada com balas, não
com um pote de metralha, que causava mais estrago, mas a bala destroçou os tijolos e a fachada de uma casa e provocou a dispersão dos soldados.
- E, já que estamos aqui - disse Jack -, aposto que podemos apresar as canhoneiras também.
Enquanto dizia isso, os inimigos abriram fogo com a bateria do fundo do porto, mas seus própios barcos dificultavam que alcançassem seu objetivo, e as balas só destruiram
a comandância do porto e parte do cais. O objetivo de Jack era muito claro.
- Parem! - gritou para os que puxavam a popa e apontou com a caronada seguinte para um poste de amarração.
Voltou a puxar o rabicho e, com grande estrondo, saiu da caronada uma língua de fogo que quase alcançou o alvo. Quando a fumaça se dissipou, o poste de amarração
desaparecera, as canhoneiras haviam começado a se mover com a maré e suas correntes estavam quebada.
- Senhor Bentley, vá com seus homens no bote e se encarregue das canhoneiras.
A Diane estava se movendo. Os homens que se encontravam no castelo de popa conseguiram pegar o leme e outros haviam aberto as gáveas e a vela de estai de proa, e
com o movimento da maré, os puxões dos cúteres e o vento moderado começou a se separar lentamente do cais. Nesse momento Jack chamou os tripulantes da Tartarus,
da Dolphin, do Camel e do Vulture, pois tinha cinco presas e necessitava tirá-las do porto antes que os franceses apontassem as peças de artilharia para o cais.
Não apontaram as peças de artilharia e eles avançaram como uma solene procissão, cada vez mais rápido, enquanto a maré baixava e o vento aumentava de intensidade.
Na apertada passagem os inimigos os atacaram repentinamente com mosquetes, mas uma descarga da Diane os fez desistir, e conseguiram sair imediatamente para o alto
mar. Navegavam entre as familiares ondas enquanto o impassível raio de luz do farol fendia o ar por cima de suas cabeças, e lá, a menos de uma milha de distância,
com os faróis dos cestos das gáveas acesos, achavam-se a Surprise e os barcos da esquadra.
CAPÍTULO 7
Jack Aubrey logrou subir a escada de popa com ajuda de Bonden, que o empurrava por trás, mas Tom Pullings se surpreendeu a palidez marmórea de sua cara quando o
iluminou com a lanterna. Ao mesmo tempo que desaparecia sua expressão alegre e triunfal, Pullings se adiantou para pegá-lo no braço perguntando:
- Está bem, senhor?
- Só são alguns cortes - respondeu Jack quando avançava para o castelo de popa, onde suas botas empapadas de sangue deixavam uma marca a cada passo -. Que é isto?
- perguntou ao ver um enorme buraco que havia no costado de bombordo, justo no final da popa.
- Uma bomba, senhor. Os franceses lograram subir um morteiro para a colina quando estávamos recolhendo a âncora. Mas só causou danos no jardim, não abaixo.
- Então poderemos pôr... - começou a dizer Jack e se virou para ver melhor a parte ferida, mas o desafortunado giro lhe causou tanta dor que teve que se agarrar
a um brandal para não cair e se passaram alguns momentos antes que pudesse continuar -: pôr gavietes modernos por fim.
- Venha, senhor, tem que descer imediatamente - disse Pullings, segurando-o fortemente -. Já faz mais de meia hora que o doutor subiu a bordo e está na coberta inferior
com o senhor Martin. Ajude aqui, Bonden.
Jack não pôde resistir e só murmurou:
- Nós nos aproximaremos da Tartarus com as maiores desdobradas.
Depois deixou que eles o levassem até a iluminada coberta inferior, onde Stephen e Martin estavam atendendo aos feridos. Sentou-se em uma maca enrolada e se pôs
dobrado e encolhido, pois era a única posição em que sentia alívio. Provavelmente perdeu a consciência, pois quando voltou a si, estava desnudo em cima dos baús
cobertos com uma lona ensangüentada e Stephen e Martin examinavam a parte de abaixo de suas costas.
- Não é aí onde me dói - disse com uma voz assombrosamente forte -. Me dói a maldita perna.
- Bobagem, meu amigo - replicou Stephen -. Essa é uma dor refletida pelo nervo ciático. Estamos no ponto correto. Tem uma bala de pistola alojada entre as duas vértebras
- acrescentou apalpando a região.
- Aí? Pensei que um cavalo me dera um coice. Naquele momento quase não notei nada.
- Todos somos falíveis. Agora quero que me escute, Jack, por favor. Temos que tirá-la imediatamente e, se Deus quiser e tudo vai bem, só terá que passar uma semana
rígido, nada mais. Mas quando eu pegar a bala com o saca-balas e começar a movê-la, sentirá muita dor, mais do que poderá suportar sem se mover, assim que tenho
que lhe amarrar. Aqui tens uma almofaddinha de couro para pôr entre os dentes. Bem, já está atado. Morda duro e relaxe as costas todo o possível. A dor não durará
muito. Martin, pode passar-me o saca-balas longo?
Para Jack pareceu que o fato de que fosse longo ou curto não tinha nenhuma relação com a agonia que seguiu a essas palavras. A dor foi tão grande que, apesar de
sua foça, retorceu-se debaixo das amarras forradas de couro e ouviu sair de sua boca um bramido semelhante ao de um animal, e depois outro, e outro... Mas a agonia
terminou por fim e Martin soltou as amarras enquanto Stephen tirava a almofadinha de sua boca e secava o suor que cobria sua testa. A dor ainda estava ali e se estendia
em ondas pelo seu corpo, mas era só uma sombra do que fora e cada vez as ondas tinham menor alcance; eram como a baixa-mar.
- Bem, meu amigo, já terminou - disse Stephen -. A bala saiu bem e, se não fosse assim, sua perna não teria muito valor.
- Obrigado, Stephen - murmurou Jack, ainda ofegando como um cachorro quando eles lhe puseram uma faixa e o viraram para curar as outras feridas: a do antebraço direito,
superficial mas espetacular, e a da coxa, um talho bastante profundo. Não notara quase nada quando lhe fizeram, ainda que tenham provocado uma grande perda de sangue.
Agora tinha tão pouca sensibilidade como então, e ainda que notasse como Stephen futucava nelas e as espetadas que lhe dava com a agulha ao cosê-las, ou seja, que
via, ouvia e notava Stephen trabalhando, quase não sentia nada.
- Qual foi o saldo de feridos? - perguntou.
- Muito alta para uma batalha tão curta - respondeu Stephen -. Não houve mortos, mas três homens têm feridas abdominais que não me gostam nada e o senhor Bentley
tem todo o corpo machucado porque tropeçou em um balde e caiu pela escotilha central. E há muitos, muitos mais do que pareceria razoável em uma batalha naval, que
sofreram lesões pelos coices e as mordidas dos cavalos. Tome um trago disto.
- O que é?
- Um remédio.
- Tem sabor de conhaque.
- Tanto melhor. Padeen, tu e Bonden tirarão o capitão daqui neste lençol. Não o dobrem. Têm que pô-lo estendido na maca. O caso seguinte.
Stephen estava acostumado a ver seu amigo cair em melancolia depois da euforia da batalha e quando foi ver como estava na guarda de meia, depois de fazer a ronda
com uma lanterna na mão, encontrou-lhe acordado e disse:
- Jack, é possível que a angústia que sentias faz pouco, a perda de sangue, a dor que tens e a incômodo que as suturas produzem tenham feito seu ânimo decair; mas
deve pensar que apresou uma fragata do Governo francês mais potente do que a sua junto com duas de suas canhoneiras, que possuem valiosos canhões, e também dois
mercantes que pertencem aos nossos inimigos.
- Querido Stephen - começou Jack, e seus dentes brilharam na penumbra -. Estive pensando precisamente nisso desde que me costurou e por isso não consegui dormir.
- Fez uma pausa e depois acrescentou -: A verdade é que pensei que havia perdido a pele nessa batalha. Quase não notei nada ali e quando cheguei aqui eu estava morrendo,
ou pelo menos pensava assim.
- Indubtavelmente, a dor deve ter sido muito intensa, mas não tem nada que temer porque a bala saiu. Não tinha fragmentos de tecido e entrara em linha reta e sem
produzir lacerações, e saiu exatamente da mesma forma que entrou. Também saiu um considerável fluxo de sangue, mas a ferida é mínima. Quanto às outras, são dois
cortes horríveis, mas já teve uma dúzia deles muito piores e nenhum lhe causou prejuízos permanentemente. Se beber isto, você relaxará e dormirá, amanhã pela manhã
se sentirá um pouco melhor. Poderá voltar a trabalhar, ainda que com moderação, assim que lhe tire as suturas, e já sabe que quase sempre a cicatrização de suas
feridas é boa.
Raras vezes o doutor Maturin fizera uma profecia tão acertada. No dia treze pela manhã subiram Jack Aubrey em uma poltrona para o castelo de popa, e lá sentado,
sob os suaves raios do sol, contemplou a fileira de presas e recebeu felicitações.
- Oh, senhor, isto é comparável à captura do Cacafuego! - exclamou Babbington -. Não poderia ter conseguido maior êxito, mas confio em que não haja pago um preço
muito alto.
- Não, não. O própio doutor diz que isto não é nada.
- Bem, se ele chama a isto de nada - observou Babbington, assinalando com a cabeça seu braço na tipóia, sua perna vendada e sua cara, que estava branca como a cera
-, que Deus nos ajude quando nos diga que temos feridas graves.
- Amém - disse Jack -. William, examinou a Diane?
- Sim, senhor. É uma embarcação muito bonita, de elegantes linhas, e tem a proa muito estreita, ainda que esteja tão afundada na água que parece que não avança.
- É que tem provisões para doze ou treze meses porque ia para longe, muito longe. Mas me referia a todas essas jovens que estão caminhando pelo convés. As observou?
- Oh, sim, senhor! - respondeu Babbington, que era um homem lascivo e as estava olhando pela luneta desde que apareceram -. Há uma vestida de verde justo atrás da
grade do castelo de popa que é singularmente bonita.
- Sempre foi um puteiro, William - sentenciou Jack.
Todos na Armada sabiam que o jovem Aubrei havia sido degradado, quando estava em frente ao Cabo a bordo do navio Resolution, porque escondera uma jovem negra na
parte da coberta inferior onde se guardavam as amarras da âncora. Ademais, sendo tenente, capitão e capitão de navio, nunca se havia comportado como um modelo de
castidade.
- Recordo que no mar Jônico, quando estava ao comando da Dryad, levava a bordo um harém de jovens gregas - acrescentou -. Mas a minha intenção era sugerir que as
mandasse para a Inglaterra junto com os feridos em um barco com bandeira branca.
- É uma boa idéia, senhor - disse, afastando com desânimo a vista da jovem vestida de verde -. Provavelmente o doutor me dirá quando os feridos poderão ser movidos.
Mas agora que o penso, não o vi em toda a manhã.
- Nem acredito que o veja até o meio-dia. O pobre lutou ontem à noite como um herói no ataque, onde, por certo, matou ao capitão francês limpamente. E depois passou
o restante da noite costurando aos franceses que espetara e aos nossos homens. Justo depois de mim, operou a um oficial francês a quem lhe saía sangue aos borbotões
dos pulmões.
- O que ele fez no senhor, senhor?
- Bem, envergonha-me dizer que ele tirou uma bala da parte baixa de minhas costas. Provavelmente a dispararam quando me virei para chamar mais marinheiros, o que
não fiz, graças a Deus. Nesse momento pensei que havia sido atacado por um dos cavalos que andavam atrás do leme.
- Porém, senhor, não é possível que um cavalo haja disparado uma pistola.
- Contudo, alguém a disparou. Diz o doutor que a bala estava alojada junto ao nervo ciático.
- O que é nervo ciático?
- Não tenho idéia, mas quando deixou de ficar, por assim dizer, paralizado e eu, com um movimento desajeitado, fiz com que a bala se aproximasse ainda mais, a questão...
Não poderia descrever o mal-estar que senti até que o doutor a tirou.
Babbington, com uma expressão grave, negou com a cabeça e depois de alguns momentos disse:
- Os norte-americanos chamam de estai ciático ao que vai do mastro maior ao tope do traquete.
- Sim, eu me recordo. Provavelmente é porque lhes causa uma verdadeira agonia colocá-lo.
- Aqui vem o senhor Martin, ele nos poderá dizer quantos franceses feridos podem se mover.
Meia hora depois o conjunto de barcos com suas presas, um impressionante conjunto de dez embarcações que ocupavam uma grande extensão do mar, estava situado a umas
duas milhas ao sudoeste do cabo Bowhead com as velas amuradas para bombordo, em meio do vento do nor-nordeste, e se movia somente o suficiente para poder manobrar.
Os botes iam de um lado para outro. Os feridos foram descidos com cuidado para o bote da Tartarus e as jovens, junto com uma velha desagradável que aparentemente
era uma alcoviteira, para a pinaça da Surprise. Ambas embarcações colocaram os mastros, desdobraram as velas e se dirigiram para Saint Martin com uma bandeira branca.
A esquadra havia virado duas vezes e ao passar outra vez pela frente da entrada do porto puderam ver à altura do quebra-mar os botes que regressavam. Nesse momento
o doutor Maturin subiu para o convés com uma xícara de café na mão. Depois de dar os bons dias aos seus companheiros de tripulação, de perguntar a Jack como se encontrava
e de ouvi-lo dizer: "Muito bem, enquanto estou sentado. Agradeço muito seus cuidados. Quer dar uma espiada na bonita popa da Diane?", voltou-se para Tom Pullings
e disse:
- Capitão Pullings, meu amigo, poderia fornecer-me um bote para ir à Diane para ver o meu prisioneiro? Disse a Bonden que o metesse na bodega com os outros para
que não atrapalhasse enquanto rebocávamos a fragata.
- O própio Bonden o levará, senhor. Chamem a Bonden.
Uma vez mais Stephen foi de coche do Grapes para o mercado Shepherd e uma vez mais sir Joseph abriu a porta e lhe deu as boas-vindas, mas desta vez ambos tiveram
que levar documentos e pacotes de papéis para a biblioteca.
- Sente-se, querido Maturin, e bebamos uma taça de vinho de Madeira enquanto recobramos o fôlego. Mas antes quero felicitá-los ao senhor e a Aubrey por sua grande
vitória. Só vi o sucinto relatório que ele enviou ao Almirantado, porém, pelo que li nas entre linhas, soube que esse foi um dos brilhantes ataques surpresa nos
que nosso amigo é um especialista, e, sem dúvida, também ouvi o estrepitoso aplauso do público. Contudo, a julgar por sua expressão grave e, perdoe-me que o diga,
melancólica, acho que apesar da operação ter permitido a Aubrey lograr seus fins, não permitiu o mesmo ao senhor. Por acaso não era verdade tudo o que se sabia da
Diane?
- Oh, sim! Em efeito, tinha a missão de ir às colônias espanholas e de interceptar-nos, e nestes papéis estão os nomes de todas as pessoas com quem os agentes secretos
franceses poderiam haver-se posto em contato, assim como grande quantidade de informação sobre outras coisas; por exemplo, as somas entregues a distintos oficiais.
Ademais há pastas com papéis que ainda não decifrei e que provavelmente contenham comentários dos residentes das povoações sobre a situação atual nelas.
- Bem, meu angelical doutor, o que mais o senhor pode pedir? - perguntou sir Joseph, deslizando com enorme prazer sua mão para os documentos e lendo rapidamente
o encabeçamento -. Aqui está todo o trabalho feito por nós: todos seus agentes e seus planos descobertos. Como é possível que esteja tão triste?
- Porque deveria ter trazido também ao Almirante Vermelho, o autor da metade destas notas.
O Almirante Vermelho era um oficial de marinha francês nomeado Segura que era famoso por sua participação nos massacres que sucederam à evacuação dos aliados de
Toulon, e que havia ingressado em um dos serviços secretos franceses. Não era um almirante de verdade, mas era cruel e sanguinário e um dos membros mais importantes
de sua organização.
- Eu o tinha atado de pés e mãos no fundo do bote no início do ataque, mas depois, como tinha que rebocar a Diane, ordenei que o metessem na bodega com os outros
prisioneiros. Cometi a imperdoável leviandade de deixá-lo ali até o dia seguinte, mas o maldito porco pôs um condenado trapo na cabeça e uma saia e desceu para terra
com as mulheres e os homens com feridas leves. Buscamos e buscamos e por fim encontramos seus calções, que tinham na cintura a inscrição: Paul Segura.
- Quantas maldições terá proferido, querido Maturin! Isso deve de ter doído na alma. Acho que eu ficaria a ponto de cortar meu pescoço ou pagar a alguém para que
me enforcasse. Mas provavelmente, quando teve tempo de refletir, não deixou de advertir que sua presença não era realmente importante e que sua ausência não desmerece
em absoluto seu triunfo. Nem ao menos sob uma grande pressão nos teria dito mais do que está escrito nestes papéis, porque, ou muito me equivoco, ou contêm as considerações
de todos os membros de seu departamento sobre este assunto e as instruções dos agentes secretos.
- talvez houvéssemos podido induzi-lo a nos dizer onde escondeu o dinheiro com que ia convencer os funcionários na América do Sul, uma quantia equivalente à enorme
soma que recuperamos na última viagem. Acho que equivale ao valor de um de seus navios de linha de primeira classe, conforme um cálculo muito prudente, e queria
poder dizer que havia acrescentado uma embarcação assim aos barcos da Armada. Jack Aubrey afundou um quando estava ao comando do horrível Leopard, que é algo muito
similar, ainda que ao contrário.
- Com respeito a isso pode ficar tranqüilo. Sem dúvida, a Armada comprará a Diane, e os carpinteiros a repararão toda com sua varinha mágica. Há dois que são particularmente
hábeis em assuntos deste tipo, e me admiraria que seu pensamento não seguisse a mesma pauta do dos franceses.
- Isso é um alívio, querido sir Joseph. Que tonto fui ao não dar-me conta disso antes! - Então sorriu enquanto assentia com a cabeça, bebeu um trago de vinho de
Madeira e disse -: dessa varinha mágica, da varinha mágica que usarão os louváveis carpinteiros navais, ouvimos falar todos os dias e, contudo, não vi a ninguém
com uma, nem hoje nem em nenhum outro dia.
- É possível que por ser mágica não se veja.
- Certamente, certamente! - exclamou Stephen e se deu um golpe na testa -. Vejo que esta não é minha hora mais brilhante. Confesso que sei tão pouco da atual situação
de Jack Aubrey como ele mesmo, e lhe rogaria que me falasse dela.
- Se ainda estivesse na lista, receberia o título de cavalheiro ou mesmo o de barão por isto. Já sabe que o teria conseguido com o Waakzamheid se seu velho pai,
lamentavelmente, não houvesse incomodado com insistência aos ministros na Câmara dos Comuns. Apesar de tudo, esta façanha, que vem se somar ao golpe que deu nas
Açores, foi aplaudida com entusiasmo pelos membros da Armada e, o que é mais importante para nossos objetivos, pelo público. Já se ouvem baladas nas ruas referentes
a isso. Aqui tenho uma que comprei ontem. O poeta diz que deveriam dar a Aubrey o título de duque. Ou acaso as folhas de morango representam um título inferior ao
de duque?
- Acho que representam simples condes, mas não estou muito seguro disso - disse Stephen, pegando a folha que dizia:
A capa de arminho, a coroa de ouro,
e as folhas de morango.
Quem é o marinheiro que está na cidade?
É o capitão Aubrey, já não há dúvida.
Quem lhes golpeou por cima e por abaixo?
Ah, o das folhas de morango!
Quem aos franceses deu uma surra?
O capitão Aubrey, sem dúvida.
No porto de Saint Martin a outra noite.
Ah, o das folhas de morango!
Quem os despertou com um fragor horrível?
Quem senão o capitão Aubrey?
- Bem - disse Stephen depois de lê-la -, um não pode fazer outra coisa que compartir seus sentimentos. Mas permita-me afastar-me do tema e perguntar-lhe pelo general
Aubrey.
- Não se sabe nada com certeza, mas aquele homem pertinaz, inteligente e sagaz que o senhor contratou, Pratt, acredita que agora há encontrado de verdade sua pista
no norte do país.
- Tanto melhor. Agora queria voltar à atual situação. Compreendo perfeitamente que Jack Aubrey por ser um simples civil, não possa aspirar a um título, e de passagem
lhe direi que provavelmente ele não o deseje, porém, há possibilidades de que o reabilitem, que é o que deseja de todo coração?
- Maturin - disse sir Joseph depois de ficar pensativo alguns momentos -, quisesse poder dizer: "Sim, e muito cedo, sem esperar à coroação do rei". Contudo, a situação
é muito rara. - Moveu sua cadeira para frente e, em voz mais baixa, continuou -. Eu lhe disse faz algum tempo que não estava satisfeito com o modo com que Wray e
Ledward foram perseguidos depois que nós falhamos ao tentar pegá-los. Deveria ter-lhes sido impossível sair do país, mas saíram, pelo que suspeito que têm um aliado
em uma posição muito alta. Naturalmente, esse aliado é contra Jack Aubrey e sua existência explicaria a inveterada animosidade por nosso amigo, uma animosidade cujos
motivos vão além da antipatia que os ministros sentem por ele por tê-los tratado mal, além de seu ódio pelos amigos radicais de seu pai e além de sua resistência
de admitir que cometeram um erro. Porém, por outro lado, aqui há pessoas que antes tinham uma atitude hostil por ele e agora têm uma benévola, como, por exemplo,
Melville, alguns dos lordes mais jovens e vários membros muito respeitáveis da Câmara. E, certamente, aí está a grande força que tem a opinião pública. Tenho a impressão
de que neste momento há um equilíbrio e que se... - O pequeno relógio de mostrador prateado deu a hora e sir Joseph se pôs de pé -. Perdoe-me, Maturin - interrompeu-se
-, mas não comi e estou morto de fome. Ademais, eu disse para Charles que nos reservasse a mesa que fica no canto, junto à janela, e se não formos logo a arrebatarão.
Foram até o clube, e uma vez mais Stephen notou que os discretos gestos e inclinações de cabeça e com a frase "Lhe felicito, senhor" dita em voz baixa com que foi
recebido eram os que teriam usado para receber a alguém que tivesse conseguido um grande triunfo. A mesa, situada junto à janela no canto da sala de jantar e bastante
afastada, estava esperando-os, e durante os poucos minutos que passaram antes que aparecesse o frango fervido com molho de ostras, o prato que geralmente pediam
para jantar, sir Joseph comeu com voracidade vários pedaços de pão.
- Como o senhor indubtavelmente saberá - começou -, o despacho, isto é, o relatório oficial, foi conciso. Só dizia que a Surprise foi até Saint Martin depois de
receber instruções de interceptar à Diane, e no dia doze deste mês pela noite desamarrou a fragata e outras embarcações citadas da margem e que, com a ajuda dos
botes dos barcos de sua majestade, as tirou do porto a reboque e que depois as entregou ao comandante do porto de Plymouth. Certamente, em todos os jornais apareceram
versões não oficiais, em muitos em tom sensacionalista, junto com a confirmação de que essas embarcações foram recebidas em Plymouth, mas lhe alegrará saber que...
Nesse momento trouxeram o frango para a mesa. Blaine serviu Stephen e quando foi comer uma coxa, o duque de Clarence, aparentemente mais robusto do que nunca, com
uma casaca azul brilhante e a estrela de Garter pendurando em seu largo peito, cruzou rapidamente o refeitório e se aproximou deles. Ambos se levantaram quando ouviram
que com sua potente voz perguntava:
- Maturin, como está? - Então apertou a mão de Stephen e acrescentou -: Sir Joseph, boa tarde. Quando já ia partir Joe me disse que o doutor estava aqui e decidi
me aproximar para perguntar como estava, ainda que não tenho nem um minuto a perder.
Blaine olhou com desespero a coxa de frango e secou um pouco de saliva da comissura dos lábios.
- O senhor esteve lá, Maturin? Esteve em Saint Martin com Aubrey?
- Sim, senhor.
- Claro que esteve lá! Uma cadeira! Traga-me uma cadeira, Arthur! Sentem-se, cavalheiros. Conte-me tudo enquanto come, Maturin. Quanto eu gostaria de ter estado
com o senhor! Pelo que dizem, foi algo extraordinário, ainda que não acredito que o senhor tenha visto muitas coisas, se estava na coberta inferior.
Um homem vestido de negro se aproximou desde a porta e murmurou algo em seu ouvido. O duque se levantou dizendo:
- Estão me esperando. Tenho que ir a Windsor amanhã pela manhã, doutor, mas diga a Aubrey que da próxima vez que venha à cidade eu gostaria vê-lo. Felicite-o de
minha parte e diga-lhe que eu gostaria de ouvir o relato de seus própios lábios da próxima vez que venha à cidade.
- Outros cinco minutos e eu teria enfurecido tanto que cometeria um delito de lesa majestade - disse pouco depois sir Joseph, limpando a boca -. Porém, Maturin,
se já acalmou seu apetite, agradeceria que me fizesse um relato completo do ocorrido, tendo em conta que não sou um bom marinheiro.
Escutou atentamente enquanto observava os pedacinhos de pão que ajudavam às explicações e ao final suspirou e, movendo a cabeça de um lado para outro, comentou:
- Como disse o duque, foi algo extraordinário.
- Acho que a operação houvesse saído à perfeição se não fosse pelas malditas canhoneiras e pela baixa-mar. Se não se houvessem perdido esses poucos minutos que permitiram
aos tripulantes da Diane e aos soldados subirem a bordo, teríamos podido tirá-la sem derramamento de sangue.
- O combate deve de ter sido terrível até que as pranchas se separaram. Mas não mencionou o número de baixas nem eu lhe perguntei, porque a alegria que senti pelo
triunfo me fez esquecer de perguntar.
- Nenhum de nossos homens morreu, mas muitos ficaram feridos, alguns gravemente.
- Espero que não o tenham ferido ao senhor tampouco.
- Não tive nem um arranhão, obrigado. Contudo, Aubrey recebeu uma bala de pistola a uma polegada da coluna, muito perto do nervo ciático.
- Meu Deus! Não me havia dito que estivesse ferido.
- Bem, a ferida já não tem importância, mas por pouco foi a última que recebeu em sua vida. Extraímos muito bem a bala e o pequeno orifício está se curando como
esperava. Também lhe deram dois golpes, um na coxa e outro no antebraço, e lhe fizeram perder muito sangue porque se movia muito quando o atingiram.
- Que me conta, Maturin! Pobre homem! Suponho que teve muitas dores.
- Durante a extração da bala e no período justamente anterior foi espantoso. Mas durante a batalha não se sente quase nada, sabe? Já vi pacientes com horríveis feridas
que não haviam percebido.
- Bem, bem - disse sir Joseph pensativo -. Isso é um consolo; contudo, suponho que estará muito pálido depois de perder tanto sangue.
- Tem a cara semelhante a um pergaminho.
- Tanto melhor. Não creia que sou um desalmado, Maturin. O que ocorre é que um herói pálido tem muito mais importância que um rosado. Pode se mover?
- É claro que pode se mover! Eu o levei para Ashgrove Cottage e está caminhando entre suas rosas e passando sabão líquido nos pulgões.
- Acredita que ele poderia vir até Londres em uma diligência? Pergunto isso porque me parece que este é o melhor momento para que o público, e sobretudo os homens
que tomam as decisões, o vejam. Mas talvez ache que a viagem é muito comprida.
- Oh, não! Em uma diligência que tenha boa suspensão e venha devagar e pelos caminhos mais modernos, qualquer homem poderia viajar comodamente. Mas não sei se se
sairá bem entre uma multidão, porque lhe ordenei que só comesse papas e que não tomasse cerveja nem vinho, só uma colherada de vinho do porto antes de ir para a
cama. E além disso, às vezes se irrita com facilidade, como geralmente ocorre com os convalescentes.
- Limitarei o número de pessoas a doze.
- Poderia dar-lhe uma boa dose de um remédio que o tranqüilizasse e inclusive lhe proporcionasse brilhantismo ao seu discurso, mas me pergunto se um médico deve
manipular ao seu paciente por causas alheias às estritamente relacionadas com a medicina. Permita-me refletir durante um tempo.
Tomaram o café na biblioteca e, enquanto estavam ali sentados, Stephen disse:
- A irritabilidade dos convalescentes pode começar muito cedo. Um exemplo disso é o que ocorreu em Shelmerston. Quando os barcos capturados se foram para Plymouth
para que o tribunal que entende em matéria de presas decidisse se eram de lei ou não e a Surprise estava sozinha, uma corveta da Armada Real com uma tripulação muito
numerosa entrou no porto. Seu capitão tinha intenção de escoltar a Surprise até Dock, onde o comandante do porto queria que a reparassem no estaleiro da Armada Real
às custas do rei; contudo, os tripulantes da Surprise, muitos dos quais tinham a possibilidade de serem condenados por diferentes causas, especialmente por deserção,
não sabiam disso e se propuseram lograr que a corveta se afastasse, aproveitando que não havia oficiais no castelo de popa porque haviam ido nas presas. O capitão
Aubrey estava escrevendo seu relatório nesse momento, mas assim que ouviu seus gritos, subiu para o convés feito uma fúria e lhes fez calar dizendo-lhes que eram
um bando de marinheiros de água doce, que não serviam nem para tripular um iate do margate, que não iam navegar mais com ele e que ia lhes dar cem chicotadas. Ele
os maldice, os chamou de sodomitas e lhes ordenou que deixassem que o bote onde vinham vários guardas-marinhas se abordasse com a fragata e que colocassem guarda-mancebos
para que subissem a bordo. Depois de perguntar-lhes se não sabiam como deviam tratar aos oficiais do rei, os chamou de inúteis e os ameaçou a deixá-los em terra
em menos de uma hora.
- E eles estavam muito abatidos?
- Não. Sabiam que deviam fingir que sua expulsão os havia surpreendido até o ponto de ficar sem palavras e isso fizeram o melhor que puderam. Mas ao final ele os
perdoou e sugeriu aos que não queriam que os vissem em Plymouth que descessem para terra imediatamente.
- Então vão repará-la em Dock. Fanshawe foi muito generoso. Sofreu muitos danos?
- Uma bomba destruiu o pequeno jardim do costado de bombordo, mas nada mais. Isso não tem importância porque há outro no estibordo e precisamente em seu lugar porão
uma espécie de grua muito conveniente.
Sir Joseph assentiu com a cabeça e depois de um momento disse:
- Mas penso que se Jack Aubrey for à América do Sul agora... Bem, suponho que o senhor o autorizará a navegar outra vez muito cedo.
- Assim que façam os reparos e esteja a bordo a enorme quantidade de provisões, ele poderá fazer-se ao mar sem preocupações, sobretudo com um imediato a bordo como
Tom Pullings.
- Muito bem, mas se for agora para a América do Sul, onde a gente não pode vê-lo, é como se se fosse para o esquecimento. Ainda que derrotasse todos os barcos franceses
e norte-americanos que há por lá ao preço de perder seu braço direito e um olho, não poderia voltar ao seu país a tempo para tirar vantagem de sua glória; quer dizer,
não receberia a aclamação do público nem se beneficiaria da influência disso nas autoridades, e em dois ou três meses sua glória seria esquecida. Não se acharia
em circunstâncias tão favoráveis como estas, assim que teria desperdiçado a maré.
- Indubtavelmente - respondeu Stephen -, essa é uma observação muito importante. - Durante toda sua carreira naval ouvira essas palavras, usadas tanto em sentido
própio como em sentido figurado e às vezes em um tom tão grave que pareciam fazer referência a um pecado imperdoável, pelo que haviam adquirido um significado funesto,
como o das que se usavam ao fazer um conjuro ou uma maldição -. Seria horrível que desperdiçasse a maré.
O longa sala de jantar da casa de sir Joseph, que raras vezes se usava, estava impecável. Era antiquada, pois tinha as paredes forradas de nogueira em vez de cetim
ou mogno, mas a harpia mais exigente do mundo não poderia encontrar nem uma mancha de poeira nele. As doze reluzentes cadeiras de fundo largo estavam muito bem alinhadas
e a toalha de mesa era tão branca como a neve recém caída e estava completamente lisa, já que a senhora Barlow não deixava que se formassem rugas que impedissem
o perfeito caimento do tecido, e, naturalmente, a prataria brilhava outra vez. Contudo, sir Joseph ia de um lado para outro, movendo ora um garfo ora uma faca, e
perguntava para a senhora Barlow se estava segura de que os diferentes pratos estariam quentes e se teria pudim suficiente porque "o cavalheiro e o lorde Panmure"
gostavam muito, e as respostas eram cada vez mais curtas. Depois disse:
- Talvez devessemos mudar tudo. O cavalheiro está ferido na perna e poderia estendê-la na banqueta da biblioteca, mas para que possa fazê-lo teria que ficar sentado
na ponta da mesa, mas que perna e que ponta?
A senhora Barlow pensou: "Se isto continuar por mais cinco minutos, jogarei pela janela toda a janta, a sopa de tartaruga, as lagostas, os pratos que acompanham
ao principal, o pudim e tudo".
Mas antes que passassem cinco minutos, antes que Blaine movesse de lugar mais de um par de cadeiras, começaram a chegar os convidados. Era um interessante grupo
de homens: dois colegas de Blaine de Whitehall, quatro membros da Royal Society, um arcebispo que participava na política, vários respeitáveis terratenentes, alguns
donos de seus distritos eleitorais e outros representantes de seus condados, e dois homens da Cidade, um dos quais era um eminente astrônomo. Ainda que nenhum pertencia
à oposição, nenhum tinha um cargo na administração nem desejava uma condecoração nem dependia dos ministros. Todos os que ocupavam uma cadeira na Câmara dos Lordes
ou na dos Comuns podiam abster-se de dar seu voto ou votar contra o Governo em assuntos em que estavam em franco desacordo com a política oficial, enquanto que os
que não ocupavam nenhuma cadeira eram homens cujas recomendações tinham peso na administração.
Em ocasiões deste tipo sir Joseph contratava serventes de Gunter's, e o esplêndido mordomo anunciou nove cavalheiros antes de dizer: "O doutor Maturin e o senhor
Aubrey". Todo o grupo olhou com interesse para a porta, e ali, junto à frágil figura do doutor Maturin, apareceu um homem exageradamente alto, magro e de ombros
largos que estava pálido e sério. A seriedade e a palidez se deviam em parte à terrível fome (seu estômago estava acostumado aos horários de efeição da Armada, que
era várias horas antes que a de Londres), mas a primeira era, sobretudo, uma armadura que lhe protegia de possíveis gestos desrespeitosos e a segunda era principalmente
consequência de suas feridas.
Blaine avançou apressadamente e felicitou ao senhor Aubrey, agradeceu a sua presença, disse que esperava que suas feridas não lhe molestassem muito e perguntou se
queria uma banqueta. Antes do que mandava a etiqueta lhe seguiu um homenzinho rosado com uma casaca de cor cereja que tinha uma expressão alegre e bondosa.
- Provavelmente não se recordará de mim, senhor - disse, fazendo uma profunda reverência -. Tive a honra de conhecê-lo junto à cabeceira de meu sobrinho William,
o filho de minha irmã casada com o senhor Babbington, quando o feriram na vitoriosa batalha em que tomou parte em 1804, uma das vitoriosas batalhas daquele ano.
Até faz pouco me chamava Gardner, mas agora me chamo Meyrick.
- Lembro do senhor perfeitamente, milorde - respondeu Jack -. William e eu falamos do senhor faz apenas duas semanas. Permita-me felicitá-lo.
- De jeito nenhum, de jeito nenhum! - exclamou lorde Meyrick -. É ao contrário. Acho que mudar de uma câmara para outra não pode se comparar a sacar do porto uma
fragata.
Disse mais algumas frases bajuladoras e, ainda que a maioria de suas palavras foram afogadas pelos cumprimentos dos homens que Jack já conhecia e pelo que dizia
sir Joseph ao apresentar-lhe aos demais, sua sinceridade não podia lhe produzir outra coisa que prazer. Nenhum dos outros convidados chegou a se expressar como lorde
Meyrick (faltava-lhes sua simplicidade) e, contudo, suas sinceras felicitações haveriam satisfeito a qualquer homem muito mais orgulhoso de si mesmo que Aubrey.
Sua reserva e sua seriedade (que não costumava ter antes) se desvaneceram, e o xerez de sir Joseph, que se estendeu por seu estômago reduzido e necessitado de vinho,
contribuiu para isso.
O tio de Babbington insistiu em dar a precedência a Jack, que se sentou ao lado direito de Blaine muito alegre e desejoso de ingerir a sopa de tartaruga que seu
nariz havia detectado fazia tempo. O arcebispo bendisse a mesa e a promessa se converteu em realidade: a parte verdosa e a parte ambarina do interior da carapaça
nadavam em seu própio suco. Depois de alguns momentos, Jack comentou a Blaine:
- Os clássicos falam sem parar da ambrosia, mas não sabem o que dizem. Nunca comeram sopa de tartaruga.
- Não há tartarugas no Mediterrâneo?
- Oh, sim! Mas somente tartarugas marinhas, as tartarugas das quais se tira a carapaça. A verdadeira, a que contém a ambrosia, é a verde, e para encontrá-la há que
ir às Antilhas ou à ilha da Ascensão.
- A ilha da Ascensão! - exclamou lorde Meyrick -. Quantas recordações me traz à memória! Que oceano de vasta eternidade! Quando era jovem ansiava viajar, senhor.
Ansiava ver a Grande Muralha chinesa, o venenoso antiar, o fluxo e refluxo do fabuloso Nilo e as lágrimas do crocodilo, mas quando cheguei a Calais compreendi que
não poderia, que meu corpo não suportava o movimento. Esperei nessa maldita cidade até que houvesse um dia tranqüilo, um dia de calmaria, e então me trouxeram devagar,
ainda meio morto e cheio de melancolia. Desde então só viajei, lutei, sofri, conquistei e sobrevivi na pessoa de William. Quantas coisas me conta, senhor! Como o
senhor e ele, na Sophie, um barco de catorze canhões, aprisionaram o Cacafuego, de trinta e dois...
Seguiu contando com todo detalhe as batalhas em que Aubrey havia participado e disse que tivera muita sorte nelas. Os dois terratenentes, que estavam do outro lado
da mesa, sentiram mais respeito por Jack e o olharam surpreendidos porque sua carreira, contada fielmente, era realmente extraordinária.
- Senhor Aubrey - murmurou Blaine, interrompendo o relato justo quando a Surprise estava afundando um barco turco no mar Jônico -, acho que o arcebispo quer brindar
com o senhor.
Jack olhou para a ponta da mesa e ali viu ao arcebispo sorrindo-lhe e com uma taça na mão.
- Brindo ao senhor, senhor Aubrey - sentenciou.
- Muito obrigado, milorde - respondeu Jack, assentindo com a cabeça -. Brindo por sua felicidade.
A este brinde seguiram outros com outros cavalheiros, e Stephen, sentado no centro do outro lado da mesa, notou que a cor voltava ao rosto de Jack, ainda que mais
rápido do que o desejável. Pouco depois notou também que seu amigo ia começar a contar uma anedota. As anedotas de Jack Aubrey raras vezes terminavam bem, porque
não tinha talento para contá-las, mas como sabia desempenhar o papel de convidado, olhou alegremente para o homem que estava do seu lado e começou o relato.
- Quando era menino havia um bispo em nossa região, o bispo anterior ao doutor Taylor, que quando foi nomeado para o cargo percorreu toda a diocese. Foi a muitos
lugares e quando chegou a Trotton não podia acreditar que aquele lugar solitário, onde só havia algumas cabanas de pescadores na costa, fosse uma paróquia. Então
perguntou ao pastor West, que era um excelente pescador também, e que me ensinou a pescar enguias... Perguntou ao pastor West...
Jack franziu o cenho e Stephen juntou as mãos. Nesse ponto era onde a anedota poderia dar a perder, dependendo da palavra que incluísse na pergunta do arcebispo.
- Perguntou ao pastor West: "Há muitas almas aqui?"
- Stephen relaxou -. E o pastor West respondeu: "Não, milorde, somente peixes".
Jack Aubrey, comprazido pela boa acolhida que tivera seu relato, por tê-lo feito quase de um puxão e porque de momento havia cumprido com as normas sociais, passou
a comer o excelente cordeiro, e ao seu redor começou uma conversa. Alguém sentado perto do arcebispo disse que os franceses desconheciam os costumes e os títulos
ingleses, e um dos homens de Whitehall disse:
- Sim. Quando Andréossy, o enviado de Bonaparte, estava aqui, dirigiu-se ao meu chefe em uma carta como dom sir Williamson. Além disso, fez algo pior: Intrigava
com a esposa de um de nossos colegas, uma mulher francesa, e quando ouviu que os Devonshire estavam em má situação econômica, mandou-a ver a duquesa e oferecer-lhe
abertamente dez mil libras por segredos do Conselho de Ministros. A duquesa comunicou isso a Fox.
- A ignorância será a causa que fará os franceses perderem esta guerra - disse o homem que estava ao seu lado -. Começaram por cortar a cabeça de Lavoisier alegando
que a República não necessita de cientistas.
- Acredita que pode se dizer que os franceses são ignorantes se se compara a sua atitude para com os balões com a nossa? - perguntou o homem que estava sentado na
frente dele -. Sem dúvida o senhor recordará que muito cedo tiveram uma divisão aerostática e que ganharam a batalha de Fleurus, em grande parte pela detalhada informação
precisa conseguida com os balões aerostáticos que tinham colocados a uma altura considerável acima do inimigo. Viram quantos eram, como estavam distribuídos e quais
eram seus movimentos. E nós, em troca, o que sabemos de balões? Nada.
- A Royal Society os condenou - interveio o arcebispo -. Lembro muito bem a resposta que deu o Rei, orando se ofereceu a pagar alguns testes, porque então estava
fazendo retiro. A sociedade disse: "Não se pode esperar nada de bom destes experimentos".
- Uma parte da sociedade - disse um dos membros secamente -. Uma minúscula parte da sociedade, um comitê formado principalmente por matemáticos e antiquários.
O outro membro da sociedade presente disse que discordava com ele e com os outros dois homens; contudo, Aubrey e Maturin não participaram na discussão, pois ainda
que estivessem estreitamente relacionados com a Royal Society, passavam muito tempo fora do país e sabiam muito pouco dos freqüentes e apaixonados debates internos
e das manobras políticas, e lhes interessavam ainda menos. Stephen dedicou toda sua atenção ao homem que estava a sua direita, que havia viajado em um balão, e com
êxito, antes da guerra, na época em que começou o entusiasmo por eles. O homem disse que era tão jovem e tão tonto então que não havia registrado nenhum detalhe
técnico, mas tinha um vivido recordo da surpresa e do prazer que experimentou quando o balão, depois de passar por uma massa de névoa cinza durante alguns momentos
angustiantes, subiu entre os raios do sol. Então pôde ver debaixo, por todos lados, brancas montanhas de nuvens com cristas e pináculos, e acima o imenso céu, que
tinha um colorido azul mais escuro, muito mais escuro que o que vira desde a terra. Aquele era um mundo completamente diferente e silencioso. O balão se elevava
rápido, cada vez mais rápido, sob o sol, e ele via sua sombra projetar-se sobre o mar de nuvens.
- Meu Deus, posso ver tudo agora! - exclamou -. Quanto eu gostaria de poder descrevê-lo! Acima, aquela enorme pedra preciosa e abaixo, aquele extraordinário mundo
por cima do qual eu passava rapidamente com a sensação de ser um intruso.
Tiraram a toalha da mesa. O momento dos brindes se aproximava e Jack o temia. Suas feridas, a recente dieta de água e leite e a falta de exercício haviam diminuído
sua resistência, e mesmo uma moderada quantidade de álcool como a que havia bebido bastava para fazer que sua cabeça não ficasse tão limpa como desejaria. Mas não
havia nada que temer. Depois de brindar ao rei, sir Joseph ficou pensativo por uns momentos enquanto tentava juntar as duas partes de um quebra-nozes, e lorde Panmure,
sentado a sua esquerda, disse:
- Pouco tempo atrás, um grande número, um extraordinário número de pessoas teria deixado o vinho na garganta ao fazer este brinde. Justamente ontem a princesa Augusta
disse à minha esposa que nunca acreditou que tivesse verdadeiramente esse título até que o cardeal de York morreu.
- Pobre senhora - interveio Blaine -. Seus escrúpulos a honram, ainda que acho que estavam estreitamente relacionados com a traição. Mas agora pode ficar tranqüila.
Já o senhor nunca deixaria o vinho na garganta, não é verdade, senhor? - perguntou, voltando-se para Jack.
Jack estava escutando a Babbington, que contava como o Leopard havia chocado com um iceberg na Antártica e como o haviam reparado na ilha Desolação, mas sir Joseph
reclamou sua atenção e repetiu a pergunta.
- Oh, não! - respondeu -. Sempre segui o conselho de Nelson nisso e em todo o resto, na medida do possível. Brindo ao rei com plena convicção.
Blaine sorriu e assentiu com a cabeça. Depois se voltou outra vez para o lorde Panmure e perguntou:
- O que acha de tomarmos café na sala? Por um lado, lá poderemos nos mover melhor, e por outro, muitos cavalheiros desejam falar com Aubrey.
Efetivamente, muitos deles falaram com Aubrey, e Stephen notou que se punha mais pálido a medida que a tarde avançava.
- Sir Joseph, meu amigo - disse por fim -. Devo levar meu paciente para que se deite. Diga ao seu servente que consiga umas liteiras, por favor.
Seu servente, Preserved Killick, podia considerar-se bêbado mesmo se fosse julgado pelos padrões navais, e era incapaz de se mover; mas Padeen, que se encontrava
perto, estava sóbrio e após um tempo trouxe duas cadeiras transportadas por irlandeses, as únicas pessoas que podiam entendê-lo. Durante a espera um dos homens de
Whitehall, o senhor Soames, chamou Jack à parte e lhe perguntou onde se hospedava e se lhe permitiria ter a honra de visitá-lo para falar-lhe de duas questões.
- É claro! - exclamou Jack -. Com muito prazer.
No dia seguinte havia esquecido quase completamente a Soames quando a senhora Broad, a dona do Grapes, disse:
- O senhor Soames deseja vê-lo, senhor.
Jack o recebeu cortesmente, ainda que ainda tinha dentro de si meio decompostas a refeição e a bebida do dia anterior, para as quais já não estava acostumado, tinha
coceiras na perna e acabava de manter uma conversa com o mal-humorado e teimoso Killick, que, entre outras coisas, havia perdido ou deixado de meter no baú um livro
que prometera a Heneage Dundas e que agora teria que mandar-lhe com um amigo que ia para a base naval da América do Norte.
Fizeram alguns comentários sobre a tarde anterior, elogiaram o excelente vinho de sir Joseph e falaram da probabilidade de que chovesse mais tarde.
- Não sei como começar o meu encargo - começou o senhor Soames, olhando atentamente para a alta figura que se achava diante dele -. E não queria parecer impertinente.
- Não o é em absoluto - disse Jack em voz baixa.
- A verdade é que me pediram que falasse com o senhor extra-oficialmente para averiguar se o senhor estaria de acordo em que solicitássemos o perdão para o senhor.
- Não lhe compreendo, senhor - respondeu Jack -. Perdão pelo que?
- Bem, senhor, pelo desafortunado assunto de Guildhall, o assunto da Bolsa.
- Porém, senhor, indubtavelmente o senhor recordará que eu me declarei inocente, que jurei por minha honra que era inocente.
- Sim, o recordo perfeitamente.
- Então, como vão me perdoar por algo que não fiz? Como posso pedir perdão se sou inocente? - Ao começar a entrevista Jack se sentia bastante irritado e agora estava
vermelho de raiva -. Não compreende que se pedisse perdão reconheceria que menti? Não compreende que declararia que há algo que devem me perdoar?
- Não é mais do que uma formalidade ou, por assim dizer, uma ficção legal, e pode influir em sua reabilitação.
- Não, senhor - sentenciou Jack, pondo-se de pé -. Não posso ver isso como uma formalidade. Sei que nem o senhor nem os cavalheiros que lhe pediram que falasse comigo
têm a intenção de me ofender, mas lhe rogo que lhes apresente meus respeitos e lhes comunique que vejo o caso de outro ponto de vista.
- Senhor, não quer pensar um pouco nem pedir conselho?
- Não, senhor. Um homem deve decidir coisas como esta por si mesmo.
- lamento muito. Então, devo dizer que o senhor não vai considerar a sugestão?
- Eu temo que sim, senhor.
CAPÍTULO 8
- Ele desperdiçou a maré - disse sir Joseph -. Raras vezes tive um desgosto maior.
- Soames abordou o caso como um imbecil - sentenciou Stephen -. Se o houvesse tratado com leveza, se houvesse começado com as mentiras que se dizem habitualmente,
como, por exemplo "Não estou em casa" ou "Sou seu humilde servidor", e depois com as fórmulas que se dizem ou fazem para salvar a cara, dando-lhes a pouca importância
que merecem, e finalmente houvesse pedido a Aubrey que firmasse o petido já preparado, é possível que ele o houvesse firmado cheio de agradecimento e de felicidade.
- É terrível... - suspirou sir Joseph, seguindo o fio de seus própios pensamentos -. Mesmo depois de ter convencido aos susceptíveis, como Quinborough e seus aliados,
para citar alguns, a balança só se inclinara ligeiramente em favor de Jack Aubrey; só o suficiente para dar o passo decisivo. Não poderia persuadi-lo de que diga
a Soames que depois de refletir...? Afinal de contas ele, como todos os marinheiros, aprenderam a não julgar mal a corrupção de pequena escala, cujo resultado é,
por exemplo, o desaparecimento de grandes quantidades de provisões ou o fato de que marinheiros mortos e serventes inexistentes sigam recebendo seu pagamento. Ademais,
sei muito bem que foi declarado culpado de ter pelo menos três róis falsos porque havia inscrito neles aos filhos de seus amigos para que constasse que haviam passado
no mar um tempo durante o qual na realidade estiveram em terra frequentando a escola. Inclusive seu própio meio irmão estava a bordo como um fantasma na última vez
que os senhores fizeram uma viagem ao Pacífico.
- Corrupção de pequena escala, sim. Se o enfoque do caso tivesse sido esse, poderia ter mordido a isca, como dizem os marinheiros, mas agora que o fator predominante
nele é a moral, e não a pequena escala, não poderia fazê-lo mudar de opinião nem acredito que deva tentar.
- Bem, como disse, é terrível que tenha estado tão perto do êxito e depois...
Depois de uma pausa Stephen disse em tom vacilante:
- Suponho que não seja possível que haja benevolência para ele se não a solicitar formalmente.
- Não. Atualmente Aubrey tem muitos aliados, e por isso muita influência, mas não é suficiente para isso. Faz falta muito mais.
- E isto não muda nada? - perguntou Stephen, assinalando as folhas cuidadosamente escritas nas quais Pratt informava que havia encontrado ao general Aubrey morto
em um poço próximo da taberna onde vivia com o título de "capitão Woolcombe".
Blaine negou com a cabeça.
- Não - respondeu -. No que se referere à sua influência sobre os ministros, o general e seus amigos radicais perderam seu poder ao não depositar uma fiança; quer
dizer, deixaram de existir politicamente, e mesmo os jornais de pior reputação da oposição deixaram de falar deles. Daria no mesmo se o general tivesse morrido então
que agora. Ademais, isso tampouco implica uma mudança para o que nos interessa, pois Pratt e seus colaboradores viram e reviram os papéis do general e não encontraram
nem o menor rastro de que tenha estado em contato com Wray e Ledward.
- Certamente que não. Não é possível que tenham tido contato.
- Contudo - disse Blaine -, poderia se dizer que a morte do general favoreceu um pouco o caso de Aubrey, porque com ela fica descartada sua possível conexão com
os radicais, ainda que esse pouco não é bastante, infelizmente. O que sugere que façamos agora?
- Enviarei para Pratt as instruções necessárias para que se ocupe do cadáver e o mande para a casa de Aubrey amanhã. Depois, como ainda há que preparar a Surprise
e subir a bordo as provisões necessárias para a viagem à América do Sul, penso ir à Suécia e esperá-lo lá. Pegarei o paquete de Leith.
- Não acredita que esta morte fará mudar os planos de Aubrey?
- Eu me surpreenderia se lhe afetasse muito, pois o general não era um homem que despertava simpatia nem afeto.
- Não, porém, conforme dizem, deixa terras de muito valor.
- Sei muito pouco dessas terras além de que têm uma considerável carga fiscal, porém, ainda que abarcassem a metade do condado, Jack Aubrey não deixaria de fazer-se
ao mar por elas. Comprometeu-se em fazer esta viagem e, além do mais, ouviu o rumor de que os norte-americanos enviaram uma ou duas fragatas da mesma potência que
a nossa para bordejar o cabo Horn.
Há muitas gerações, os Aubrey eram enterrados em Woolhampton. A igreja estava cheia de gente e Jack se surpreendeu e se emocionou ao ver tantas pessoas assistirem
ao funeral, pois não era freqüente ver em Woolcombe House a nenhuma daquelas famílias de antiga estirpe que tão amiúde comia lá quando sua mãe vivia. Naturalmente,
faltavam alguns rostos, mas muitos menos dos que pensava. Por outro lado, no grupo não havia só velhos amigos ou conhecidos dos Aubrey, como também arrendatários,
habitantes do povoado e homens e mulheres de casas dos arredores, todos os que haviam esquecido os maus tratos, os aluguéis exorbitantes e a atmosfera opressiva
da igreja de Woolhampton. Outra coisa que emocionou muito a Jack foi que muitas mulheres do povoado que haviam sido criadas de sua mãe e mesmo de sua avó haviam
ido a Woolcombe imediatamente para preparar a casa para receber tantos convidados. A casa tinha um aspecto descuidado desde antes do longo período em que o general
Aubrey esteve fugindo para o norte do país por medo de ser preso, mas agora o caminho da entrada estava em tão boas condições como antes, os quartos de visitas estavam
varridos, lavados e encerados com cera de abelhas e as mesas estavam servidas para que comessem os que chegavam de longe. Na sala de jantar ficava uma das mesas,
que tinha todas as alas abertas, e na biblioteca ficava a outra, montada sobre cavaletes, que ia ser presidida por Harry Charnock, um primo de Jack de Tarrant Gussage.
A viúva do general não tomou parte em nada disso, pois quando se informou de que o carro fúnebre havia chegado a Shaftesbury se meteu na cama e desde então não se
havia movido de lá. Foram sugeridas várias razões que poderiam justificar seu comportamento, mas nenhuma delas foi uma profunda aflição. Fosse qual fosse a causa,
Jack se alegrava muito disso. Era uma mulher de bonitos olhos negros que fora leiteira em Woolcombe e costumava regressar para sua casa muito tarde dos bailes e
das feiras, uma mulher muito bem conhecida por todos os jovens da localidade, incluído Jack. Ainda que ele tenha se indignado quando seu pai se casou com ela, sua
indignação não tardou em desaparecer. Não pensava que fosse uma má mulher nem acreditava no rumor de que havia ficado na cama porque os objetos de prata da família
estavam debaixo, mas tampouco esquecia as noites que haviam passado juntos no palheiro, e por isso seus encontros eram embaraçosos. Mas tinha que admitir que, nas
raras ocasiões em que ele voltara ali, havia doído vê-la sentada no lugar que ocupava sua mãe.
Assim, a senhora Aubrey estava na cama, e Sophie, que não queria perturbar seus momentos de dor nem agir tão pronto como a atual dona da casa e se hospedou em Hampshire.
O filho da segunda senhora Aubrey, Philip, havia voltado do colégio. Era um menino pequeno, muito jovem para sentir tristeza, e a princípio não estava certo se isso
era uma festa ou não, mas logo adotou a mesma atitude que Jack e, com sua roupa negra nova, foi de um lado para outro com seu meio irmão para agradecer aos convidados
a amabilidade de vir e repetindo seu "Obrigado, senhor, pela honra que nos faz".
Falava bem, sem demasiada confiança nem demasiada timidez, e Jack se sentiu satisfeito com ele. Apenas se haviam visto meia dúzia de vezes desde que Philip se havia
posto calções, mas Jack achava que, de certa forma, era responsável por ele e, por se queria fazer carreira na Armada em vez de no Exército, durante os últimos anos
havia logrado que alguns capitães escrevessem seu nome no rol de seus barcos e havia acordado com Heneage Dundas (que logo chegaria da América do Norte) que o levaria
para navegar assim que tivesse idade suficiente. Jack supunha que o garoto lhe daria motivos de satisfação.
Contudo teve pouco tempo para pensar no futuro de Philip, porque quando tencionava convencer aos convidados de que se sentassem viu a um homem velho, muito velho,
que parecia alto apesar de estar encurvado pela idade, entrar devagar na abarrotada sala de jantar e olhar ao seu redor. Era o senhor Norton, um dos rostos que lamentava
que houvessem faltado (compreensivelmente) na igreja. Era um rico terratenente do outro lado de Stour e, ainda que seu parentesco com os Aubrey fosse remoto, por
relação e pela amizade que existia entre eles e sua família, desde menino Jack se acostumara a chamá-lo de tio Edward. Foi o tio Edward que propôs ao pai de Jack
que fosse representante do distrito de Milport no Parlamento. Esse distrito estava situado em uma de suas propriedades e o general o representou conforme lhe convinha,
primeiro como um conservador e depois como um radical. Os rumores da furiosa luta originados por esta mudança e o comportamento do própio general chegaram aos ouvidos
de Jack nos confins do mundo e lhe causaram uma grande tristeza, e depois, ao regressar para a Inglaterra e comprovar que os rumores eram certos, pensou que nunca
voltaria a ver o senhor Norton em Woolcombe.
- Tio Edward - disse, avançando para ele apressadamente -. Obrigado por ter a bondade de vir.
- Lamento chegar tarde, Jack - respondeu Norton, apertando-lhe a mão e olhando-o com angústia -, mas o estúpido de meu cocheiro virou do outro lado de Barton.
- Lamento muito, senhor - disse Jack -. Senhoras, por favor, sentem-se sem cerimônia. Cavalheiros, peço que se sentem.
Então conduziu o senhor Norton até uma cadeira, serviu-lhe uma taça de vinho e por fim o almoço começou.
Foi uma refeição comprida e tediosa e não isenta dos momentos embaraçosos que costumavam produzir-se em ocasiões desse tipo, mas ao fim terminou e, em geral, foi
melhor do que Jack esperava. Depois de acompanhar a todos os convidados aos seus carros, voltou à salinha de estar, onde encontrou ao tio Edward dormindo em uma
poltrona, um dos poucos móveis que haviam escapado da modernização de Woolcombe House. Saiu na ponta dos pés e no corredor se encontrou com Philip, que lhe perguntou:
- Não deveria despedir-me de tio Edward?
- Não, porque ele vai ficar aqui esta noite. É muito velho e se machucou quando seu coche virou do outro lado de Barton.
- Acho que é mais velho que meu pai, quero dizer, nosso pai.
- Muito mais velho. Meu avô e ele eram contemporâneos.
- O que quer dizer "contemporâneos"?
- Pessoas da mesma idade. Contudo, geralmente a palavra se usa para indicar pessoas que alguém conheceu quando era jovem, como os amigos do colégio e outros. Foi
com esse sentido que a usei. Quando eram jovens tinham uma matilha em comum e caçavam lebres.
- O senhor tem muitos contemporâneos, senhor?
- Não em terra. Quando ficava aqui não conhecia bem a nenhum garoto de minha idade, além de Harry Charnock. Comecei a navegar muito cedo, quando era apenas um pouco
maior que você.
- Mas o senhor sente-se aqui como em sua casa, não é, senhor? - perguntou o garoto com curiosidade, ansiedade e tristeza ao mesmo tempo -. Sente que este é um lugar
que nada poderá fazer-lhe esquecer, não é assim?
- Sim - respondeu Jack, e não só para complazê-lo -. Agora vou ver a pérgola e o horto. Quando era menino jogava atrás do paredão com a mão direita contra a esquerda.
Mas agora que o penso, como somos irmãos, deverias chamar-me de Jack, ainda que eu seja muito mais velho do que você.
- Sim - disse Philip, ruborizando-se, e não falou mais até que chegaram à pérgola.
Na pérgola Jack lhe mostrou a rã domesticada do tanque de pedra, perpetuamente transbordado, de onde gotejava a água com um som melodioso. O horto havia mudado ainda
menos, se era possível. Ali estavam as mesmas filas de vegetais, plantas leguminosas, groselheiros vermelhos e negros, o mesmo marco formado por pepinos e melões,
que eram tão vulneráveis às bolas, e as mesmas cercas fedorentas, e no própio muro de tijolos vermelhos os damascos e os pêssegos mudavam de cor. Jack ainda se recordava
muito bem de toda a parte posterior da casa, toda a parte que não se havia modificado, onde estavam o estábulo, o lavadouro e a cocheira, e vieram a sua mente as
primeiras coisas que havia conhecido, como o canto do galo, e durante alguns momentos se sentiu como se fosse menor do que o menino que corria por ali com seu inadequado
traje negro.
Quando regressaram para a casa, os morcegos volteavam junto com as andorinhas por cima do bebedouro e o senhor Norton já havia se deitado. Jack não voltou a vê-lo
até a amanhã seguinte.
O advogado de Dorchester acabava de partir com sua pasta cheia de documentos quando tio Edward apareceu.
- Bom dia, Jack - cumprimentou -. Vi a Whiters chegar quando estava me barbeando. Parece que teve uma longa reunião, e espero que isso signifique que tenha tido
disputas.
- Não, senhor - disse Jack -. Tudo terminou bem, ainda que tivemos que discutir muitos detalhes.
Na verdade, a demora deveu-se em grande parte ao fato de sua madrastra não querer revelar que não sabia assinar, mas Jack não quis falar disso e se limitou a perguntar:
- Quer que tomemos café na sala de desjejum?
- Já não consigo encontrar nenhuma parte da casa - disse Norton enquanto caminhavam -. Além de meu quarto e da biblioteca, tudo está mudado desde que estive aqui
pela última vez, inclusive a escada.
- Sim, mas penso pôr pelo menos o saguão e os quartos de minha mãe como eram antes - disse Jack -. Encontrei todos os velhos painéis no celeiro, atrás de onde estão
os palheiros.
- Vai viver aqui?
- Não sei. Isso depende de Sophie. Nossa casa de Hampshire é muito incômoda, mas ela tem vivido ali desde que nos casamos e tem muitos amigos na região. Eu gostaria
que Woolcombe estivesse mais ou menos como era quando eu era criança. Minha madrastra não quer ficar aqui porque a casa é muito grande para ela e teme que se sentiria
muito sozinha. Pensa viver em Bath, onde tem família.
- Bem, alegro-me de que vá ter pelo menos um pé no condado - disse tio Edward, olhando-o significativamente; e quando chegou o café, acrescentou -: Jack, alegro-me
de que estejamos sozinhos.
Fez uma pausa e depois seguiu falando em um tom muito diferente, como se recitasse um discurso que houvesse escrito com muito cuidado e inclusive mudado várias vezes,
e com evidente nervosismo.
- Suponho que se surpreendeu ao me ver aqui ontem - começou -. Sei que a Carolina sim e também a Harry Charnock e a alguns outros. E, falando com sinceridade, não
deveria ter vindo - acrescentou e, depois de outra pausa, continuou -: Não é minha intenção falar mal de seu pai, mas você sabe muito bem como me tratou.
Jack fez um movimento com a cabeça que podia significar qualquer coisa.
- Uma das razões pelas quais eu vim é fazer o que é correto para a família - continuou -, porque, afinal de contas, seu avô e eu éramos amigos íntimos e eu gostava
muito de sua mãe. Mas a razão principal é lhe dar a minha opinião sobre o que merece pela façanha que realizou em Saint Martin e sobre a injustiça de que foi vítima
em Londres.
A porta se abriu e Philip irrompeu na habitação. Parou ao ver ao tio Edward e depois seguiu avançando com passo vacilante.
- Bom dia, senhor - disse, ruborizando, e depois acrescentou -: Irmão Jack, o coche veio me buscar e já me despedi de mamãe.
- Irei me despedir - disse Jack, e quando caminhavam pelo corredor lhe deu um guinéu -. Aqui tem um guinéu.
- Oh, muito obrigado, senhor! Mas espero que não seja uma descortesia dizer que eu gostaria mais era ter algo seu como, por exemplo, um lápis usado, um velho lenço
ou um pedaço de papel com seu nome para mostrar aos meus amigos do colégio.
Jack meteu a mão no bolso do colete e disse:
- Pode mostrar-lhes isto. É a bala de pistola que o doutor Maturin tirou das minha costas.
Subiu o menino no carro e continuou:
- Nas próximas férias, se sua mãe deixar, pode vir a Hampshire para conhecer seus sobrinhos. Alguns são mais velhos que você, ah, ah, ah!
Eles se disseram adeus com a mão até que o coche dobrou a esquina. Então Jack regressou para a sala de café da manhã. A turbação de tio Edward desaparecera, e agora
o ancião, muito tranqüilamente, perguntou:
- Vais ficar aquí por algum tempo? Espero que sim, pelo menos por necessidade devido às suas feridas.
- Com relação a elas, digo que me molestaram um tempo, mas me curei tão rápido como um filhote e, agora que tiraram os pontos, quase não me recordo delas. Eu irei
assim que tenha agradecido a todos no povoado e nas casas dos arredores. A Surprise está sendo aprovisionada para fazer uma viagem ao estrangeiro e tenho que me
ocupar de mil coisas além dos reparos. Meu médico aprova a viagem, sob a condição de que a faça em uma carruagem.
- Não poderia passar uma tarde em Milport para conhecer aos eleitores? Não são muitos e os poucos que há são arrendatários meus, assim que será só uma formalidade,
mas convém fazer as coisas decentemente. A ordem real chegará logo.
Ao ver a expressão de assombro de Jack, acrescentou:
- Quero lhe oferecer a cadeira no parlamento.
- Ah, é? - perguntou Jack, e ao perceber a importância, as implicações e as consequências do que Edward acabava de dizer, disse -: Acho que o senhor é exageradamente
amável, senhor. Não encontro palavras para expressar meu agradecimento.
Apertou a velha e delgada mão de Norton e o olhou fixamente alguns momentos enquanto passavam por sua mente, como os lampejos de uma frota em uma batalha, numerosas
possibilidades que não se atrevia a nomear.
- Pensei que isso faria com que tivesse mais força quando tratasse algum assunto com o Governo - explicou Edward -. Um membro do Parlamento não tem outro mérito
que o de representar o seu condado, mas um membro que tenha seus própios méritos pode lograr que o reconheçam, quer dizer, além de ladrar pode morder.
- Exatamente. Tem armas. Outro dia um homem que tem certa relação com os ministros veio me fazer uma visita extra-oficial e disse que se eu me arrastasse e suplicasse,
poderia conseguir que me perdoassem. Além disso, disse ou sugeriu, já não me recordo, que se me perdoassem me poriam outra vez na lista, quer dizer, que me reabilitariam.
Contudo, eu disse que quando um pede perdão por um delito é porque o cometeu, e eu sei muito bem que não cometi nenhum delito. Disse que a fome faz o lobo sair bosque,
mas que eu não sou um lobo nem tenho fome e pedi que me desculpasse. Portanto, tudo ficou assim e pensei que já havia perdido todas as possibilidades. Mas se eu
fosse um membro do Parlamento, duvido que ele abordasse o assunto daquela maneira e que caso tivesse abordado, não o deixaria assim.
- Estou seguro de que não, sobretudo se você fosse um membro moderado que cumprisse estritamente as normas da Igreja do Estado e que não vociferasse, como estou
certo de que será. Eu não ponho condições, Jack. Pode votar como queira sob a condição de que não vote a favor da abolição da monarquia.
- Deus me livre! Deus me livre!
- Mas nem mesmo na situação atual é essa a forma com que deveria falar a um homem de sua reputação.
- Não acredito que tivesse má intenção, mas trabalha em Whitehall e eu já percebi que todos os que trabalham ali acreditam ter muita importância, tão alta como se
estivessem na lista dos oficiais dos navios insígnia desde que nasceram.
O mordomo entrou e, olhando para o senhor Norton, disse:
- Senhor, Andrew me pediu que lhe apresentasse seus respeitos e dissesse que já recuperou a roda e tem o coche no pátio. Também quer saber se prefere que o traga
agora ou que deixe os cavalos descansarem.
- Que o traga agora - disse o senhor Norton e, quando a porta se fechou, acrescentou -: Vamos, Jack, faça-me o favor de passar um dia comigo solicitando votos. Desfrutaremos
de um excelente almoço no Stag, em Milport, e depois poderemos tomar uma tijela de ponche com os habitantes do distrito. Sem dúvida, isso não será mais que uma formalidade,
mas os agradará. Provavelmente falarão da situação política mais que o desejável, mas deve prestar-lhes atenção. Poderá estar de regresso em sua casa na quarta-feira.
Acha que é um sacrifício muito grande? A política de um país pode ser muito chata, eu sei.
- Um sacrifício, tio Edward? - perguntou Jack, pondo-se em pé -. Poderia pedir-me muito, muito mais que isso, asseguro. Daria meu braço direito para voltar a estar
no Boletim Oficial da Armada ou a meio caminho dele.
No quarto do doutor Maturin no Grapes, um quarto cômodo e atapetado de livros, ele e Padeen observavam a bagagem com satisfação. Foi fácil para eles prepararem uma
das peças, uma bolsa cheia como uma salsicha de Leadenhall que continha o que Stephen necessitava para fazer a viagem a Edimburgo (Stephen sozinho, pois Padeen iria
para o norte na Surprise); contudo, sua verdadeira façanha foi preparar o baú do doutor. Padeen se beneficiara muito de sua amizade com Bonden e fazia prodígios
com os cabos, e agora o baú estava no meio do quarto com cabos que cruzavam seus lados diagonalmente e formavam uma intrincada rede que admiraria a qualquer marinheiro,
pois os extremos dos rabichos estavam rematados com bonitos nós de Matthew Walker, e o conjunto, com um nó de ballestrinque{3}.
- Não se esqueceu de minha poção, não é, Padeen? - perguntou Stephen.
Não quis ser mais específico, mas com poção queria dizer láudano, o tranqüilizante que habitualmente tomava pelas noites, e que Padeen conhecia muito bem porque
agora ele também o tomava, e teria se esquecido antes de sua camisa do que dele (ainda que depois que Padeen, que o diluía constantemente com conhaque, o havia diluído
ainda mais depois de sua temporária separação, tomá-lo havia se reduzido a pouco mais que um ato de fé).
- Não, cavalheiro - respondeu Padeen -. Não está justo sob a tampa e envolvido em um tecido acolchoado?
Soaram fortes passos na escada e depois a senhora Broad abriu a porta com o cotovelo e entrou. Sustentava dois montes de roupa íntima limpa em seus braços estendidos
e os segurava com o queixo.
- Aqui tem - disse -. Todas suas camisas com peitilho ficaram estupendas, pois as lavei como nunca.
Então, em um aparte, contou a Stephen:
- A a senhora Maturin sempre gostava que as arrumassem em Cecil Court.
Depois, alçando a voz como se estivesse no tope de um mastro, ordenou:
- No meio, Padeen, entre os lençóis e os calções de lã.
Padeen tocou sua testa repetidamente em sinal de submissão, e assim que ela se foi, ele e Stephen deram uma espiada no quarto e aproximaram umas cadeiras ao alto
baú armário. Como Stephen não podia alcançar a parte superior nem mesmo com uma cadeira, teve que limitar-se a alcançar a Padeen alternativamente páginas de The
Times e camisas e dizer como tinha que colocá-las. estava nessa postura e dizia: "Não importam os peitilhos nem o colarinho" quando Lucy, uma jovem delgada e de
passos leves, irrompeu no quarto gritando:
- Uma carta urgente para o doutor! Oh, senhor!
Compreendeu imediatamente o que faziam e primeiro lhes lançou um olhar horrorizado e depois um desaprovatório. Os dois se envergonharam e se sentiram culpados e
não acharam nada o que dizer até que Stephen murmurou:
- Só as estávamos pondo aí momentaneamente.
Lucy franziu os lábios.
- Aqui tem sua carta, senhor - disse, pondo-a sobre a mesa.
Então Stephen lhe pediu:
- Não é necessário que fale disto à senhora Broad - pediu Stephen.
- Nunca fui uma delatora - replicou Lucy -. Oh, Padeen, que vergonha, está com as mãos cheias de poeira!
Stephen pegou a carta e seu nervosismo e seu sentimento de culpa desapareceram quando reconheceu a letra de Jack Aubrey.
- Padeen, lave as mãos, por favor, e depois vá ao bar e diga que me preparem uma tisana com limão.
Aproximou a poltrona da janela e rompeu o selo conhecido:
Ashgrove Cottage
Querido Stephen:
Felicite-me! Tio Edward teve a generosidade de me oferecer a cadeira que ocupa o representante do distrito de Milport, que é de sua propriedade. Fomos lá e passamos
um dia entre seus habitantes, homens amáveis que tiveram a bondade de dizer que, devido ao ocorrido em Saint Martin e nos Açores, teriam votado em mim de toda maneira,
ainda que o primo Edward não lhes houvesse aconselhado que o fizessem.
Quando estávamos lá chegou o coche de um mensageiro enviado pelos ministros com propostas para meu tio, mas ele lhe disse que não podia aceitá-las porque já estava
comprometido comigo. O mensageiro o olhou assombrado e se foi.
Regressei para casa depois de passar outro dia na casa de tio Edward, porque queria que visse suas rosas. Não podia fazer menos. Quando dava a notícia e tudo o que
espero que se derive dela a Sophie pela vigésima vez, chegou Heneage Dundas.
Sabia que a Eurydice ia regressar, mas não tive tempo para ir a Pompey para dar-lhe as boas-vindas e, quando lhe mandei uma mensagem convidando-o para almoçar, a
resposta foi que havia ido à cidade, assim que não nos surpreendeu vê-lo. Supusemos que regressava para seu barco e que havia dobrado no Jericó para nos visitar.
Mas sim, nos surpreendeu que depois de ter elogiado a captura da Diane e ter me pedido que descrevesse a operação com todo luxo de detalhes, adotasse uma atitude
estranha e se pusesse muito sério. Após um tempo disse que tinha ido visitar-me como amigo e como emissário. Disse que os ministros haviam ouvido que eu ia ser o
representante de Milport e que seu irmão se alegrava muito porque esse apoio adicional lhe permitiria pressionar mais intensamente aos seus colegas para que me reabilitassem
sem condições, quer dizer, sem ter que pedir perdão. Acrescentou que para fazer isso Melville tinha que assegurar-lhes qual seria minha postura no Parlamento e que
não me pedia que apoiasse aos ministros sempre, dissessem o que dissessem, mas que pelo menos esperava poder dizer-lhes que eu não me oporia a eles violenta e sistematicamente,
quer dizer, que não atuaria com veemência nem entusiasmo. Olhei para Sophie, que sabia perfeitamente bem o que eu queria, e consentiu com a cabeça. Então disse a
Heneage que era improvável que alguma vez falasse no Parlamento de outra coisa que não fossem questões navais, pois já vi a muitos oficiais da marinha perderem o
norte por se meter na política, e que, em geral, votaria com muito prazer pelas medidas propostas pelo lorde Melville, a quem estimo muito e com cujo pai tenho uma
dívida de gratidão. Quanto a agir com veemência e entusiasmo, nem mesmo meus inimigos podem me acusar de agir assim. Heneage concordou com nisso e disse que nada
podia fazê-lo mais feliz que levar essa mensagem, que Melville lhe dissera que se a resposta fosse favorável, começariam a revisar meus documentos imediatamente,
e que apesar de que tardariam vários meses em passar pelos canais adequados e que não fariam público o acordo oficial até que não pudessem fazê-lo coincidir com
alguma vitória na Península ibérica ou, melhor ainda, no mar, ele se encarregaria de que incluíssem meu nome e meu cargo atual em uma lista especial para que considerassem
a antiguidade que realmente tenho. Oh, Stephen, como estamos contentes! Sophie vai cantando por toda a casa. Diz que daria qualquer coisa para que compartilhasse
nossa alegria, assim que lhe faço estes garranchos com a esperança de que lhe cheguem antes que saia para Leith. Mas se não for assim, terei o prazer de lhe dizer
isto quando nos reunamos na Suécia. Queria fazer só uma mudança no plano que temos, e é que quando estivermos no Báltico irei a Riga comprar cabos, paus e lona para
nossa viagem. A melhor lona que já vi em minha vida é a de Riga. Que Deus te abençoe, Stephen. Sophie me encarrega que lhe mande um carinhoso cumprimento. Afetuosamente,
John Aubrey
- Que foi? - perguntou Stephen, pondo rapidamente a carta debaixo de um livro.
- Com sua licença, senhor - disse a senhora Broad, que a julgar por sua expressão doce desconhecia o que havia ocorrido com o baú armário -. Sir Joseph está embaixo
e pergunta se pode falar-lhe agora.
- Certamente que pode. Por favor, diga-lhe que suba.
- Oh, Maturin, quanto me alegro de encontrá-lo! - exclamou Blaine -. Temia que já se tivesse ido.
- O coche postal não sai até as seis e meia.
- O coche postal? Achava que iria em uma carruagem.
- A catorze peniques a milha? - perguntou Stephen com uma expressão de assombro -. Não, senhor.
- Bem - disse Sir Joseph, sorrindo -, posso poupar-lhe não só o enorme gasto de pegar uma carruagem como também ficar sentado dia e noite em um compartimento mal
ventilado, abarrotado de gente desconhecida e mais ou menos limpo que dá constantes sacudidas, comer refeições rápidas e ouvir constantemente: "Não esqueça do cocheiro,
senhor", fazer a chata viagem de Edimburgo a Leith e ter que subir a bordo do paquete, o que lhe custaria muito mais material e espiritualmente, e chegar esgotado.
- Como se propõe a conseguir essa maravilha, meu querido amigo?
- Levando-o a bordo do cúter Netley amanhã à primeira hora da manhã. O cúter levará mensagens e mensageiros a diversos barcos que se encontram em Nore, Maturin,
entre eles, conforme soube por telégrafo faz uma hora aproximadamente, está o Leopard, que se dirige para Gefle.
- Não será o horrível Leopard em que fomos à Nova Holanda e no qual constantemente corríamos o risco de naufragar e morrer de fome ou afogados? - perguntou Stephen.
- O mesmo, mas já lhe tiraram a maioria dos canhões e navega com a bandeira do Ministério de Transportes. Agora tem uma tarefa de pouca importância consistente em
recolher apetrechos navais em Gefle. Vai substituir um transporte capturado por um par de barcos norte-americanos no Skager Rack. Eu soube nesta mesma tarde, quando
chegou o informe do comissionado no qual dizia que o Leopard devia preparar-se para zarpar amanhã. Eu estava lá por casualidade e quando ouvi que seu destino era
Gefle pensei: "Vou comunicar a Maturin imediatamente, porque podem deixá-lo em Estocolmo sem perder um minuto e assim ele se poupará da viagem esgotadora, de uma
grande quantidade de dinheiro, da péssima comida e de ficar em má companhia. Saí correndo e o procurei no Black, no Museu Britânico, em Somerset House e ao final
o achei aqui, por onde devia ter começado a procurá-lo. Isso teria me poupado muita angústia e muita irritação quando eu abria passagem através de uma horda de toscos
que se moviam com lentidão. Nesta época do ano Londres fica cheia de toscos, e não fazem mais que olhar ao seu redor como bois.
- Honra-o ter tido tanto interesse, sir Joseph, e lhe agradeço infinitamente sua ajuda. Quer tomar um copo de bebida de cevada com limão ou prefere uma jarra de
cerveja de milho?
- Uma cerveja, por favor. Nenhuma quantidade será demasiada para mim, pois devo de ter perdido umas quinze libras na difícil corrida. Mas valeu a pena. Alegro-me
muito por tê-lo encontrado! Se não pudesse lhe dar a mensagem, ficaria chateado por um mês.
Bebeu a metade da cerveja, abriu a boca e continuou:
- Ademais, isso me houvesse impedido convidá-lo para ver uma magnífica representação de Figaro esta noite. O jovem que interpreta ao Cherubino parece um perfeito
andrógino em calções e tem uma voz!
Seguiu falando do restante do elenco, sobretudo de uma extraordinária Contessa, mas Stephen, que o observava atentamente, notou que pensava em algo que mantinha
em segredo, e por fim o revelou:
- Ainda que escutar música e falar da viagem no Leopard fosse importante - disse Blaine -, mais ainda era conseguir que partisse com tranqüilidade de espírito.
Blaine não era casado nem tinha família e ainda que conhecesse muitas pessoas quase não tinha amigos íntimos. Além disso, em sua profissão não havia muitas possibilidades
de exercitar os afetos. Esta era uma das raras ocasiões em que a amizade e o interesse da Armada iam de mão dadas. Olhou para Stephen durante um tempo e depois comentou:
- Jack Aubrey vai representar a Milport ah, ah, ah!
Então se levantou, deu umas palmadas no ombro de Stephen e começou a passear pelo quarto dizendo:
- Por Milport! Não está surpreso? Eu sim, garanto. O distrito de seu pai! Nunca havia conhecido a um dono de distrito tão magnânimo. Precisamente esse distrito!
É um parente distante, conforme entendi. Conhece ao senhor Norton, Maturin?
- Só o vi no casamento de Jack. É um cavalheiro alto e magro.
- Isso muda as coisas - disse Blaine e depois continuou -: Chega bem a tempo. Naturalmente, eu havia pensado que a representação de um distrito particular lhe proporcionaria
o peso que necessita para inclinar a balança ao seu favor. Sei que esses distritos custam muito caro, porém, dadas às circunstâncias, eu lhe teria sugerido comprá-lo
se alguma de suas cadeiras estivessem à venda, mas não é assim. Não me ocorreu que a única vaga, por assim dizer, pusessem-na em seu colo.
- Essa expressão não é muito correta, Blaine.
- Certamente que não, mas vem bem nesta ocasião. Melville mandou o seu irmão Heneage para vê-lo, e creio que ele tratará o assunto melhor do que Soames. São velhos
amigos e, além disso, a proposta será discreta e não incluirá nenhum tipo de condição explícita. Acho que, como Heneage Dundas falará com ele de marinheiro para
marinheiro, poderá convencê-lo de que não seja muito duro com Melville e seus colegas.
- Alegro-me muito de ouvir isto, Blaine - disse Stephen -. Não duvido que Heneage Dundas seja o negociador perfeito e, de acordo com as idéias do Jack Aubrey que
eu conheço, não acho que fracasse. Mas talvez valha a pena indicar aos políticos amigos seus que o único modo de assegurar-se de que um marinheiro não fale no Parlamento
durante um período interminável sobre problemas navais ou sobre qualquer outro tema que não conheça em profundidade, é mandá-lo fazer uma longa viagem. Tem que se
ocupar dos problemas da América do Sul, indubtavelmente, mas também dos que a rivalidade entre os sultães malaios causa à Companhia das índias, os quais não pôde
resolver o pobre capitão Cook, nem Vancouver, menos afortunado que ele. E pense nos insetos desconhecidos que habitam em Celebes! Brindemos com uma garrafa de champanhe.
O champanhe e a agradável excitação que produzia haviam desaparecido fazia muito, muito tempo na sexta-feira, quando o Leopard passou pela frente de Swin durante
a guarda de meia. A cada minuto seus homens disparavam um canhonaço para barlavento entre a névoa; o tambor soava constantemente, ainda que a umidade impedia a ressonância;
no pescante o sondador, sem pausa, sustentava o barbante com a nacela e, com voz rouca, dizia a ladainha: "Marca sete, marca sete. Marca seis, seis e meio". Às vezes,
quando o banco de areia que ficava a sotavento se achava mais perto, dizia em tom angustiado: "Marca cinco, cinco e meio". O barco navegava apenas a dois nós de
velocidade entre a névoa, mas a profundidade variava muito. Ao redor, nos mercantes e nos barcos de guerra situados a distâncias difíceis de calcular que entravam
ou saiam do rio de Londres, ouviam-se outros canhonaços, gritos e o ruído de outros tambores, e suas luzes mortiças apareciam quando se aproximavam muito e depois
desapareciam na espessa névoa.
Era incômodo navegar por águas pouco profundas e muito transitadas, e o capitão, o piloto e os oficiais mais responsáveis estavam ainda no convés, onde haviam permanecido
salvo em escassos intervalos, desde que Stephen havia subido a bordo, durante a última hora de bom tempo. O Leopard teve que zarpar com grande rapidez, com poucos
tripulantes, mal preparado e com o convés desordenado. A recepção que fizeram a Stephen não foi digna de elogio, porém, indubtavelmente, ele não podia escolher um
momento pior, já que naquele momento estavam recolhendo a âncora. Mas havia se entristecido muito antes disso, muito antes de ter ouvido dizer em tom irritado: "Vá
para baixo, senhor, vá para baixo. Tirem este maldito baú do meio!". Não havia reconhecido o barco de meia milha de distância e supôs que o guarda-marinha do cúter
zombava dele; contudo, depois de juntar curvas, volumes e proporções que tinha armazenadas em alguma parte da desordenada biblioteca que era sua mente, compreendeu
que esse velho transporte era na realidade o Leopard. Tinha o casco menos arqueado, o que lhe dava o aspecto de um cachorro de orelhas baixas; usava o mastro correspondente
ao de uma fragata de trinta e dois canhões, que lhe haviam posto para aliviar seu peso e que havia modificado toda sua estrutura tirando-lhe sua beleza, e o estado
da pintura era lamentável.
Sentiu tristeza ao ver isso e sentiu tristeza ao subir a bordo, mas até descer para a câmara dos oficiais, na qual lhe eram familiares inclusive o ranger da porta
no umbral e a pequena inclinação da escotilha do jardim com um fecho de latão gasto, não havia percebido que guardava muitas gratas lembranças do velho barco e lamentava
que o houvessem degradado. Em toda parte encontrou negligência e sujeira; em toda parte as coisas haviam mudado para pior. Era indubitável que não podia julgar-se
de acordo com o estado em que se encontrava quando era um barco de guerra, quando um severo capitão e um diligente primeiro oficial dispunham de trezentos e quarenta
tripulantes para mantê-lo em bom estado; contudo, mesmo comparando-o com barcos onde havia menos exigências, como os que faziam o comércio nas costas, era um barco
sujo. Era um barco sujo e sem harmonia.
Muito antes de Stephen subir pelo costado ajudado pelo guarda-marinha do cúter, teve o pressentimento de que sucederia um desastre, e ainda que o fato de haver ou
não harmonia não tinha relação com a idéia de que ocorreria uma catástrofe, esta se afiançou quando viu pela primeira vez ao capitão do Leopard discutir com o piloto
e a três oficiais açoitarem os marinheiros que moviam as barras do cabrestante enquanto blasfemavam tão alto como podiam.
A janta não foi muito alegre. Devido à névoa, o chuvisco, o vento fraco e instável, as perigosas correntes, os bancos de areia e o perigo de colisão, a janta teria
sido angustiante mesmo no velho Leopard; no atual foi espantosa. Os oficiais estavam divididos em dois grupos hostis, o do oficial de derrota e seus amigos e o do
contador e seus amigos, e pelo que Stephen pôde ver, ambos estavam decididos a mostrar que não respeitavam ao capitão, um homem velho, alto, magro, mal-humorado
e com aspecto de empregado que se assomava de vez em quando. Também havia ali outros passageiros que iam para Suécia, todos eles homens dedicados ao comércio de
apetrechos navais. Cada um desses três grupos mantinham uma conversa aparte em voz muito baixa. O grupo dos passageiros (o mais adequado para Stephen, agora que
o cirurgião do Leopard estava em sua cabine bêbado como um gambá) não tinha interesse para os marinheiros. Para eles eram simples homens de terra adentro que estavam
de passagem, e como se enjoavam amiúde e sempre ficavam atrapalhando, achavam que eram incômodos, mas serviam de intermediários entre os dois grupos. As palavras
dirigidas a um homem de Austin Friars que se dedicava ao comércio do cânhamo quicaram nele e chegaram ao final da mesa, e assim Stephen se informou de que o capitão
de um barco carvoeiro havia dito aos gritos que alguém vira perto de Overfalls alguns barcos norte-americanos navegando rumo sul e que por isso o velho passaria
entre os bancos Ower e Haddock.
Pouco depois disto chamaram todos os marinheiros para afastar um barco holandês que havia chocado contra a alheta do Leopard apesar dos gritos e dos canhonaços.
Stephen seguiu os comerciantes para o escuro, úmido e escorregadio convés, e ao perceber que não podia ver nem fazer nada, afastou-se de lá, ouvindo cada vez com
menor intensidade os gritos: "Cabeças-ocas! Sodomitas!" até que chegou à sua cabine e fechou a porta.
Desde então estava deitado com os braços atrás da cabeça na maca onde Babbington dormia durante a viagem do Leopard para as ilhas Molucas, passando pela Antártica,
e se movia com o balanço do barco. Ao longo de muitos anos, imperceptivelmente, havia chegado quase a ser um marinheiro, e achava que essa postura era a mais cômoda
e esse movimento o mais agradável e que eram os melhores para dormir e refletir, apesar do ruído dos trabalhos no barco, dos gritos e das pisadas que ouvia acima
de sua cabeça e, nesta ocasião, além do mais, o estampido do canhão que fazia os sinais.
Durante a primeira parte da noite, enquanto esperava que seu remédio fizesse efeito, preparou-se mentalmente para ajudar o sono a chegar. Houve um comprido período
em que pensou em coisas agradáveis. Pensou que os assuntos de jack Aubrey não podiam ir melhor e que, a menos que ocorresse uma desgraça (tirou a mão e se benzeu),
tinha muita possibilidade de que não tardassem em reabilitá-lo. Também pensou que era provável que lhe dessem o comando de um barco depois da viagem à América do
Sul e lhe encomendassem outra missão para levar a cabo independentemente, já que tinha talento para isso, e que talvez poderiam explorar juntos as altas latitudes
norte, o que, sem dúvida, seria muito interessante, ainda que ali não esperava encontrar tanta riqueza como no sul. Seu pensamento voltou então para a ilha Desolação,
aonde lhe havia levado esse mesmo barco com essas mesmas balizas que agora estavam deterioradas e descuidadas, e lembrou dos elefantes marinhos, dos inumeráveis
pingüins, dos petréis de todas as espécies e dos extraordinários albatrozes que lhe permitiam pegá-los e, ainda que não fosse muito amáveis, pelo menos não eram
hostis. Lembrou também dos falaropos, dos cormorãos de olhos azuis, das focas frade, das focas manchadas e das focas.
Talvez porque perseguia tenazmente a felicidade, seu pensamento voltou para a tarde que havia passado com Blaine. Durante um tempo esteve pensando na excelente comida
e na garrafa de Latour, uma garrafa lisa, redonda e alta. Depois lembrou das confidências que sir Joseph lhe fez quando terminaram de beber: "O retiro ao campo para
me dedicar à jardinagem e à entomologia foi um fracasso. Eu tentei uma vez e nunca voltarei a fazê-lo. A esta idade, com a experiência adquirida em minha profissão,
as idéias que apareciam pela noite à minha mente desocupada eram desagradáveis. Sentia-me culpado de tudo, ainda que podia dar uma explicação satisfatória em cada
caso, e a única justificativa era a atual atividade encaminhada para perseguir sem trégua ao inimigo". Depois veio a sua mente a recordação da ópera, onde vira uma
brilhante interpretação de Le nozze di Figaro, brilhante desde as primeiras notas da abertura até o fragmento que sempre lhe havia parecido o verdadeiro final, o
momento prévio ao alvoroço dos jovens camponeses, a parte em que em meio de um silêncio absoluto o assombrado Conte cantava com infinita doçura: "Contessa, perdono,
perdono, perdono". Repetiu isto para si várias vezes e também a excelente resposta da Contessa e as palavras da multidão anunciando que todos seriam felizes: "Ah
tutti contenti saremo cosí", mas nenhuma vez satisfatoriamente.
Em algum momento devia de ter adormecido, pois de repente percebeu que a guarda havia mudado e que a velocidade do barco havia aumentado mais ou menos um nó. O tambor
deixara de tocar no castelo, mas o canhão seguia disparando aproximadamente a cada minuto e sua voz íntima ainda cantava: "Ah tutti contenti saremo cosí...". Ainda
que agora a cadência fosse quase a correta, repetia as palavras com muito menos convicção, repetia mecanicamente, sem pensar, porque em seu sonho voltara a aparecer
o pressentimento de que ocorreria uma desgraça e ocupava por completo sua mente.
Agora parecia óbvio que a viagem para a Suécia podia ser inoportuna. Era verdade que ia para dar a Diana o diamante azul que ela apreciava tanto, mas podia tê-lo
mandado com um mensageiro ou através da legação. Ela poderia interpretar o fato de que o levasse pessoalmente como uma mesquinha exigência de gratidão, que por sua
própia essência estava necessariamente condenada ao fracasso. Era provável que Blaine tivesse razão ao dizer que Diana não amava ou já não amava Jagiello, e ele
se alegrava porque simpatizava com o bonito jovem e não desejava entabular com ele um sangrento combate por convencionalismo. Mas isso não significava que Diana
não gostasse de outro homem, talvez muito mais pobre, mais discreto e mais afastado da vida pública. Diana era uma mulher apaixonada e quando amava, amava com paixão.
Ele sabia muito bem que dos sentimentos que os uniam só os seus eram profundos, pois ela só sentia por ele simpatia e o afeto própio dos amigos, mas não o amava
com paixão.Talvez seu ódio por Stephen devido a sua suposta infidelidade fosse apaixonado, mas nada mais o era.
Havia amplas e importantes zonas da mente de Diana que ela conhecia tão pouco como ele, mas estava seguro de uma coisa: seu amor pela vida luxuosa era mais falso
do que real. Sem dúvida, detestava passar apertos e ficar encerrada, mas detestava ainda mais que lhe dessem ordens. Gostava das excentricidades, mas fazia pouco
ou nada para buscar o meio de chegar a elas e, em qualquer caso, nada contra sua vontade. Nada tinha mais valor para ela que a independência.
E o que podia ele lhe oferecer, pela entrega de pelo menos uma pequena parte dela? Dinheiro, sem dúvida, porém, naturalmente, neste contexto o dinheiro não tinha
importância. Se alguém não beijasse desinteressadamente, isso não era beijar. Que outra coisa podia oferecer-lhe? Poderia ganhar dez mil libras por ano e ter uma
área de caça, mas não se podia considerar bonito, nem sequer medianamente bonito. Ademais, não era um bom conversador, carecia de encanto e a ofendera publicamente,
ou pelo menos isso pensavam ela e suas amigas, o que dava no mesmo.
Quanto mais pensava nisso, deitado ali se balançando com as ondas enquanto o Leopard avançava em direção à Suécia, mais fundamento lhe parecia que tinha o seu pressentimento
e que a viagem não poderia ser outra coisa que um fracasso doloroso. Ao mesmo tempo, na parte de sua mente menos racional se arraigou com tal força o desejo de que
fosse um êxito que sentiu um grande cansaço e seu corpo se pôs tão rígido que teve que fazer esforços para respirar. Sentou-se, juntou as mãos e começou a se balançar
na maca. Pouco depois, contra seu senso comum e sua fortaleza, e esquecendo sua resolução, abriu seu baú, procurou às apalpadelas o frasco da poção que tomava pela
noite e tomou outra dose.
Não lhe custou despertar porque o sono estivesse induzido pelo o láudano, já que agora a tintura quase não fazia efeito em um adulto, mas porque sua mente alcançara
um inusual grau de esgotamento. Contudo, ainda estava tão aturdido que parecia que tomara suco de dormideira, mandrágora e nepente e tardou alguns momentos em compreender
cabalmente o que dizia o servente.
- Vamos, senhor! Estamos afundando!
O homem repetiu suas palavras enquanto sacudia os cabos que sustentavam a maca e Stephen reconheceu o áspero som que se ouvia abaixo dele: o barco havia encalhado,
mas não em uma rocha mas em um banco de areia.
- Estamos afundando? - perguntou Stephen, sentando-se.
- Bem, não, senhor - respondeu o servente -. Eu lhe disse isso de brincadeira para que se levantasse. Mas esse maldito estúpido fez o barco encalhar na ponta do
banco Grab e o senhor Roke vai descer para terra para pedir ajuda. O capitão acredita que os passageiros devem ir com ele, pelo acaso do barco se fazer em pedaços.
- Obrigado - disse Stephen e se levantou, amarrou a gravata-borboleta, a única coisa que havia tirado, e fechou o baú -. Por favor, entregue isto a um marinheiro
para que desça minha bagagem para o bote - acrescentou, dando-lhe meia coroa -. E lhe agradeceria que me trouxesse ao convés uma xícara de café. No convés viu que
o dia era cinzento e chuviscava, mas não havia vento e o barco se movia menos porque a maré estava baixando. O contramestre tinha o piloto encurralado no corrimão,
e entre insultos o capitão o golpeava com um cabo amarrado. Os outros membros da tripulação desciam cuidadosamente o bote pelo costado sem fazer caso dos gritos
do piloto. Não se via terra, somente o chuvisco cinzento caindo sobre o mar cinza, mas parecia que todos sabiam onde se encontravam e não pensavam que estivessem
em uma situação de emergência.
Quando o bote já estava abaixo e os tripulantes se achavam a bordo, perceberam que lhe entrava água, e apenas avançara cinco minutos quando a água lhes cobriu os
pés.
- Mova a manivela! - gritou o senhor Roke para Stephen -. Eu disse para mover a manivela!
Um jovem ajudante, que Stephen não vira até esse momento, inclinou-se para ele e começou a mover a manivela com rapidez. Era muito amável e disse a Stephen que chegariam
a Manton antes que a maré mudasse e que se quisesse ficar em uma hospedaria cômoda lhe recomendava que fosse ao Feathers, que sua tia dirigia. Acrescentou que, de
toda forma, não era provável que ficassem ali por muito tempo porque, apesar do barco ter perdido a prancha do leme e um pedaço da falsa quilha, Joe Harris, um homem
de Manton, o rebocaria e quando voltasse a flutuar todos subiriam outra vez a bordo. E acrescentou que haviam mandado os passageiros para terra por segurança, mas
que ele não tinha nada a temer.
- Mova a manivela! - gritou de novo o senhor Roke.
- Aí está Manton, justo diante de nós! - exclamou o jovem quando Stephen havia tirado quase toda a água do bote.
O terreno era plano, era característico do leste da Inglaterra. Os elementos se uniam quase imperceptivelmente nos derruídos quebra-mar e juncais sob a luz mortiça
e o odor do gás dos pântanos se misturava com o das algas.
- Conhece o reverendo Heath, de Manton? - perguntou Stephen.
- O reverendo Heath? Todo mundo conhece o reverendo Heath. Sempre lhe levamos tudo o raro que encontramos, tanto um pequeno peixe como um arenque.
O senhor Roke se pôs de pé e começou a se balançar ao compasso do movimento do bote.
- Ouça, senhor, se não move a maldita manivela troque de lugar comigo e eu a moverei! - gritou.
Em Shelmerston, em um quarto do primeiro andar do William's Head situado na frente, Sophie leu:
- "Pão em bolsas, 21.226 libras; o mesmo em barris, 13.440 libras; farinha para pão em barris, 9.000 libras; cerveja em tonéis, 1.200 galões; rum, 1.600 galões;
carne, 4.000 unidades; farinha em barris médios, 1.400 libras; sebo, 800 libras; passas, 2.500 libras; ervilhas em tonéis, 187 celemines; aveia, 10 celemines; trigo,
120 celemines; azeite, 120 galões; açúcar, 1500 libras; vinagre, 500 galões; sauerkraut, 7.860 libras; malta em tonéis, 40 celemines; sal, 20 celemines; porco, 6.000
unidades; sementes de mostarda, 160 libras; suco de lima concentrado, 10 barriletes; suco de limão, 15 barriletes."
- Os preços se encontram na lista que está junto ao tinteiro - disse -. Já somei todas as quantidades exceto as duas últimas, pois o doutor Maturin já as pagou.Talvez
pudéssemos comparar nossos resultados.
Entretanto o senhor Standish, o novo e inexperto contador da Surprise multiplicava e dividia, Sophie olhava pela janela para a ensolarada baía. A Surprise estava
atracada no cais Boulter e seus homens estavam carregando-a com a enorme quantidade de provisões da lista que se encontrava sobre a mesa. Não tinha muito bom aspecto
porque as escotilhas estavam abertas e as gruas desciam até sua parte mais profunda e, além do mais, não lhe haviam dado a última demão de tinta porque teria sido
disparatado fazê-lo antes de acabar de carregá-la. Mas qualquer marinheiro observaria os cabos novos de cânhamo de Manila que haviam na exárcia e que provocariam
a inveja em qualquer um que navegasse em um barco do rei, assim como a reluzente folha de ouro do mascarão de proa e das volutas que ficavam detrás. Durante sua
vida, a fragata se havia chamado L'Unité, Retaliation e Retribución, e a figura de expressão indefinida parecia bastante adequada para cada um dos nomes; contudo,
agora alguém com muito talento lhe havia elevado as sobrancelhas e lhe havia franzido a boca, de modo que sua expressão era de surpresa, e com seu notável peito
e seus cachos de ouro tinha um aspecto muito agradável.
Enquanto Sophie olhava para ali viu seus filhos entrarem correndo abaixo e, sobretudo, ouviu seus gritos. As crianças não podiam ser qualificadas de refinadas, pois
foram criadas por vários marinheiros que berravam, usavam uma linguagem vulgar e os agradavam muito e, depois de ter passado um tempo entre um grupo de corsários
que sentiam adoração por eles e que lhes abarrotavam de caramelos, davam tragos de genebra açucarada, e lhes presenteavam com navalhas e cabeças reduzidas de lugares
remotos, estavam a ponto de se estragarem. Agora Bonden e Killick estavam encarregados de cuidar delas, porém, como ambos estavam tão preocupados com o traje de
gala de Jack Aubrey (essa noite os Aubrey iam jantar com o almirante Russell), eles as haviam deixado para trás. Em resposta aos seus ameaçadores gritos, as duas
meninas pararam e subiram no muro de quatro pés de altura que bordejava a rampa. Justo nesse momento seu pequeno irmão as empurrou e elas caíram na praia. Então
ele correu em direção da fragata tão rápido como lhe permitiam suas curtas pernas e três mulheres do povoado levantaram suas irmãs dos seixos que estavam descobertos
porque a maré havia baixado. As mulheres as sacudiram e as consolaram o melhor que puderam, sobretudo a Charlotte, que tinha o avental roto. Ademais lhes disseram
que não deviam correr atrás de seu irmão gritando "sodomita", "lerdo" ou "filho da puta" porque a sua mãe não gostaria.
A sua mãe não gostava, mas ainda que não gostasse sabia que podiam passar de uma linguagem para outra sem nenhuma dificuldade. Apesar disso, voltou-se para a senhora
Martin, que remendava umas meias de seu esposo, e disse:
- Minha querida senhora Martin, me partirá o coração quando a fragata zarpar, mas se estas crianças continuarem aqui por muito mais tempo, temo que se converterão
em selvagens.
- Dois dias a mais não lhes prejudicarão - replicou a senhora Martin tranqüilamente -, e eu acho que só faltam mais dois dias.
- É o que eu acredito - disse Sophie -. Prometeram que trarão a sauerkraut amanhã, não é, senhor Standish?
- Sim, senhora - respondeu o contador, que ainda somava -. E confio que assim será.
Ela suspirou. Naturalmente, sentia muito, muitíssimo separar-se de seu esposo, e a idéia de sua partida, apesar de que era algo previsto e inevitável, algo pelo
que inclusive havia rogado com todas suas forças, causava-lhe uma profunda tristeza. Mas uma minúscula parte de sua tristeza devia-se a ter que abandonar Shelmerston.
Vivera retirada e apesar de ter estado duas vezes em Bath, duas em Londres e várias em Brighton, Sherlmerston era muito distinto dos lugares que vira ou imaginara.
Era parecido a um refúgio de piratas do Caribe, especialmente nesses dias, já que o sol brilhava desde o dia de sua chegada. Mas era um refúgio habitado pelos piratas
mais amáveis, e ela podia ir sem medo de um lado a outro passeando por suas ruas de areia, onde a cumprimentavam e lhe sorriam porque era a esposa do homem mais
respeitado e admirado do porto, o capitão da Surprise, essa imensa mina de ouro.
No início se surpreendeu com as prostitutas, pois, ainda que soubesse que havia algumas muito raras em Portsmouth, nunca vira tantas juntas. Ali constituíam uma
considerável parte da população e eram aceitas. No grupo havia algumas velhas amargas, mas a maioria delas eram jovens, bonitas e alegres e se vestiam de cores chamativas.
Bailavam e riam e se divertiam muito, sobretudo pelas noites.
Fascinavam a Sophie, e como ela lhes agradecera sincera e abertamente várias vezes por serem amáveis com seus filhos, não lhe tinham aversão por ser virtuosa. Na
realidade, toda a cidade a fascinava, porque ali sempre ocorria algo, e, se não fosse porque se comprometera a ajudar ao jovem senhor Standish com as contas, não
teria se afastado quase nunca da sacada, da qual se abarcava com o olhar todo o passeio marítimo, os cais, os barcos e a baía, e que era como o camarote real de
um teatro onde a função era interminável.
O principal evento dessa tarde era a aparição da carruagem do William, um veículo construído para o capitão geral de Guatemala e profusamente decorado para impressionar
aos nativos desse lugar. Um corsário de Shelmerston havia se apoderado dele na Guerra dos Sete Anos e a entregara ao William para saldar uma dívida contraída a uns
cinqüenta anos atrás. O haviam construído para ser puxado por seis ou oito mulas, mas agora, nas raras ocasiões em que saía, era puxada por quatro cavalos percherões
do velho Shelmerston. Nesse momento os cavalos passaram trotando por baixo do arco do pátio e se dirigiram ao cais Boulter, e os meninos da cidade começaram a correr
de ambos os lados da carruagem dando gritos. Então Sophie subiu apressadamente para pôr seu vestido de musselina bordada.
Fazia algum tempo, que não era mais um segredo que Jack Aubrey ia ser incluído de novo na lista de capitães de navio, e ele não recusava convites (ademais oferecia
banquetes para grandes grupos de velhos amigos, o que esgotava as provisões do William). Agora estava desejoso de jantar com o almirante Russell.
- Só o que lamento é que Stephen não esteja aqui - disse quando a carruagem avançava pelo amplo caminho que passava por trás de Allacombe -. O almirante convidou
o médico chefe da esquadra e provavelmente ambos teriam gostado.
- Pobre Stephen! - exclamou Sophie, movendo a cabeça de um lado para o outro -. Suponho que agora estará na Suécia.
- Sim, estará lá, se a viagem foi rápido - disse Jack.
A viagem não foi rápida. Na realidade, nesse momento Stephen não avançara por Estocolmo mais que trinta milhas, e quando a Surprise zarpou dois dias depois, desde
o Leopard, com sua falsa quilha e seu leme novos por fim, quase não deixara de avistar a igreja de Manton. Depois dos primeiros dias de espera, Stephen pensou que
era inútil continuar a viagem para o norte por terra, porque não poderia pegar o paquete, assim que ficou onde estava, alojado no Feathers, e passava a maior parte
do dia com seu amigo o pastor Heath. Reconheceu que não se importava que a viagem atrasasse, quer fosse por um naufrágio, por um caso de força maior ou por qualquer
outra coisa que estivesse fora de seu controle, e ademais se alegrou de poder se familiarizar com os perus marinhos.
Os vira amiúde quando passava pelas lagunas da costa mediterrânea na época da migração e lhe pareceram aves sem importância, mas Heath o levava a cada dia a um lugar
onde aninhavam aves selvagens e ali pôde ver centenas deles. Estavam na época do cio, e os machos dançavam abrindo a plumagem e depois avançavam para seus adversários
estremecendo-se e, aparentemente em um estado de exacerbado apetite sexual, entabulavam um combate ritual mostrando a extraordinária variedade de plumas de seu colete.
- Seu instinto é muito forte, Maturin - disse o senhor Heath.
- Sim, é muito forte, senhor, muito forte.
Mas o instinto das fêmeas era ainda mais forte, mesmo que não fosse tão evidente. Apesar da falta de atenção de seus companheiros, do afã dos predadores cujas vidas
dependiam de sua eficácia e do péssimo tempo, Stephen e Heath puderam ver três dos pintinhos mais valentes sacarem suas garras das cascas de ovo e a outro começar
a rompê-la no momento em que um mensageiro com voz de menino de coro chegou para lhe dizer que o Leopard estava saindo do estaleiro.
Os tripulantes do Leopard começaram a tratá-lo um pouco melhor. Isso se devia em parte a que todos, incluído o esquivo senhor Roke, estavam contentes, porque quando
o barco saiu do porto de Manton suas velas se incharam com um forte vento e alcançou seis e inclusive sete nós, uma magnífica velocidade em seu estado atual. Também
se devia em parte a que um marinheiro aleijado que fora tripulante da Boadicea e agora trabalhava no estaleiro de Manton o reconheceu e, além do mais, a a lona que
cobria seu baú, na qual estava escrito S. Maturin, passageiro do Leopard, rompeu-se quando o subiram a bordo e puderam ver os nomes de todos os barcos em que navegara,
pois, conforme o costume naval, eles eram pintados na frente e riscados com uma fina linha vermelha no final da missão.
Stephen notara que os homens do mar, apesar de ser crédulos e ignorar muitas coisas do mundo, geralmente eram desconfiados e prudentes no momento menos oportuno,
mas os dois testemunhos independentes eram irresistíveis. No primeiro dia que estiveram em alto mar, depois de um silêncio geral durante o almoço, o senhor Roke
disse:
- Então o senhor que foi um tripulante da Boadicea, senhor.
- Efetivamente - respondeu Stephen.
- Por que não nos disse quando subiu a bordo?
- Porque nunca me perguntaram.
- É que ele não gosta de se gabar - observou o contador.
Os oficiais fizeram outras suposições e depois o cirurgião disse:
- O senhor deve ser o doutor Maturin que escreveu As doenças dos marinheiros.
Stephen assentiu com a cabeça. O contador suspirou e, movendo a cabeça de um lado para o outro, disse que a culpa era do Almirantado, que se limitava a mandar uma
nota dizendo: "Admitam a bordo a esta pessoa que vai a Estocolmo e dê-lhe de comer", sem dizer uma palavra de sua importância, e que podia ser Agamenon ou Nabucodonosor
e um não saberia.
- Pensamos que o senhor era um comerciante comum que ia ao Báltico a negócios, como estes cavalheiros - disse, apontando para os comerciantes, que baixaram a vista
e olharam fixamente a toalha de mesa manchada.
- O Leopard ainda era um barco de guerra quando o senhor estava a bordo, não é, senhor? - perguntou o senhor Rolke.
- Fez sua última viagem como um barco de cinqüenta canhões. Nessa viagem afundou o Waakzaamheid, um barco holandês de setenta e quatro canhões, nas altas latitudes
do sul. Essa ação de guerra quase não se conhece porque nessas águas era impossível que restassem restos da embarcação ou prisioneiros. Acho que nunca saiu em nenhum
jornal.
- Falem-nos dela, doutor, por favor - rogou o senhor Roke, com o rosto radiante como se compartisse a glória conseguida nela; os outros marinheiros aproximaram mais
suas cadeiras.
- Um barco de cinqüenta canhões afundando um de setenta e quatro!
- Tenham em conta que eu estava abaixo e que apesar de que ouvi os canhonaços não vi nada. Tudo o que posso lhes contar é o que me disseram os que participaram do
combate.
Todos disseram que não lhes importava e escutaram com muita atenção. Pediam que lhes desse detalhes e que repetisse alguns episódios para poder recordá-los melhor,
pois ainda que o Leopard estivesse longe de se encontrar em seu melhor momento, ainda era seu barco. Esse foi o tema principal e, ainda que também falaram respeitosamente
das recentes façanhas de Jack Aubrey e expressaram sua indignação porque o haviam atropelado, o fizeram brevemente, como se tudo isso estivesse em outro plano. Era
o Leopard, o tangível Leopard o que lhes importava.
Durante os seguintes dias contou uma e outra vez toda a história ou alguns de seus episódios. Umas vezes os contou na cabine do capitão, aonde havia ido almoçar
com ele, e assinalou o lugar exato em que ficavam colocados os canhões de popa, onde ainda se via seu rastro; outras, no castelo de popa, onde seus ouvintes o corrigiam
quando trocava ligeiramente a ordem ou qualquer epíteto. E enquanto isso o vento soprava com força e fazia navegar o barco para o norte-nordeste muito rápido, mais
rápido do que Stephen desejava. Viu no Skagerrak algumas aves do norte, alguns patos de plumagem, e lhe partiu o coração quando viu que uma rajada de vento do oeste
os empurrava para o Kattegat e o Grande Belt. Avançaram sem pausa até que o mastaréu de proa se rompeu ao norte de Oland, e navegaram muito lentamente desde então
e todos perderam a esperança de fazer uma excelente viagem, o que provocou que muitos se irritassem e blasfemassem. Mas para Stephen o avanço não lhe parecia muito
lento, e nessas longas horas se dissipou a grande tensão que sentia.
Apesar disso, quando avistaram a Surprise na quinta-feira pela manhã, subiu a bordo a toda pressa.
Havia subido ao convés muito cedo, pois havia dormido mal e não podia suportar ouvir outro espirro forçado na câmara dos oficiais. Seu jovem colega, o atual cirurgião
do Leopard, não era um homem mau, mas pensava que era gracioso exagerar o som dos espirros e tinha o costume de fazê-lo. E cada vez que fazia esse ruído, o que ocorria
com freqüência, olhava de um lado e para o outro da mesa para compartir seu regozijo.
Stephen, portanto, subiu para o convés muito cedo, e viu ao capitão e à maioria de seus oficiais olhando ansiosamente para um barco que se aproximava por barlavento
pela alheta de estibordo e cujo casco já podia ser visto.
- Não tem estandarte - observou o capitão -, assim que não pode ser um barco de guerra.
- Não. Estou seguro de que é um barco corsário, um barco corsário norte-americano - disse o oficial de derrota.
- Se houvesse colocado o mastaréu ontem à noite, poderíamos refugiar-nos em Verstervik, mas agora não temos esperanças de fazê-lo. Olhe quanta espuma forma.
Com efeito, formava muita espuma. Tinha desdobradas as joanetes e as alas de barlavento e navegava a mais de dez nós e sua proa formava grandes faixas de espuma
de ambos os lados.
Enquanto o capitão e o jovem oficial de derrota se faziam sensuras (pois, naturalmente, o oficial de derrota havia culpado também ao capitão), este último, Francis,
pediu emprestado o telescópio ao senhor Roke. Esteve olhando o barco com atenção durante um bom tempo e depois deu o telescópio para Stephen.
- Tranqüilize-se, senhor Francis - disse Stephen depois de assegurar-se bem do que via -. É a Surprise e está sob o comando do senhor Aubrey, que ia se reunir comigo
em Estocolmo. Capitão Worlidge, eu lhe rogo que detenha o barco e ice uma bandeira para indicar que gostaríamos de comunicar-nos com ele. Acho que poderei ir a Estocolmo
na fragata e poupar assim muito tempo.
Havia ganhado autoridade por ser o tripulante do Leopard de mais antiguidade e havia falado com certeza do que queria, e o pedido era tão pouco importante que Worlidge
respondeu que sempre estava disposto a comprazer a um oficial do rei. Então os tripulantes do Leopard aproximaram a gávea maior do mastro.
Ninguém teria podido olhar para o novo representante de Milport no Parlamento sem se animar. Mas isso não se devia a que Jack Aubrey estivesse exultante ou a que
tivesse uma expressão satisfeita (na verdade, teve uma expressão sombria até algum tempo depois de abordar a fragata com o Leopard), mas se notava que tinha em seu
íntimo alegria e paz e que desaparecera o desencanto que as havia ocultado durante meses levando-o quase à insensibilidade. Tinha o semblante risonho até que lhe
arrebataram a alegria, e o riso e os sorrisos formaram as rugas em seu rosto rosado. Seu semblante voltou a ser o mesmo, mas sua cara tomou um colorido rosado mais
forte e seus olhos azuis adquiriram um brilho mais intenso.
Stephen notou que sua tristeza e seu desespero diminuiram e quase chegaram a desaparecer enquanto falava com Jack da generosa ação de seu primo Edward Norton e da
Câmara dos Comuns. Ambos concordavam em que o melhor que Jack podia fazer era guardar silêncio exceto em casos que tivessem muita relação com os assuntos navais
e em geral, ainda que não incondicionalmente, dar seu apoio aos ministros ou pelo menos a lorde Melville. Depois que Jack escutou um relato bastante detalhado de
como o Leopard havia encalhado, em companhia de Pullings e Martin mostrou a Stephen os novos cabos de cânhamo de Manila que haviam posto na exárcia e o mastro traquete,
que haviam colocado um pouco mais inclinado.
- Acho que assim poderá ultrapassar uma braça a mais por nó - disse Jack.
- Move-se tão rápido como um cavalo ao trote - assegurou Stephen, olhando por em cima do costado para as tranqüilas águas que desciam pouco a pouco e permitiam ver
as placas de cobre que cobriam a parte central do costado.
Enquanto dizia isso percebeu de que cada hora ficava dez milhas mais perto de Estocolmo e que provavelmente desceria para terra no dia seguinte.
- Não confio neste vento, porque esteve mudando de direção durante toda a guarda, e duvido que as alas possam ficar abertas até as oito badaladas.
A idéia de que aquele rápido avanço dava urgência ao seu futuro permaneceu na mente de Stephen enquanto ambos comiam, e, depois de dizer tudo o que podiam dizer
sobre o Parlamento, Ashgrove, Woolcombe, as crianças, Philip Aubrey e os novos tonéis de ferro onde levavam a água da Surprise, seu pensamento se afastou dali. Apesar
da grande satisfação que lhe produzia ver o Jack Aubrey de outrora do outro lado da mesa, voltou a sentir angústia.
Jack sabia por que Stephen havia ido ao Báltico, sem dúvida, e ao final da refeição notou que seu amigo parecia dez anos mais velho e tinha uma expressão triste;
contudo, esse era um terreno no qual não podia se meter se não o chamassem. Depois de um longo silêncio, algo inusual entre eles, pensou que não podia voltar a falar
de seus própios assuntos porque havia se comportado como um egocêntrico e um desconsiderado durante tempo demais, assim que pediu outra cafeteira cheia de café e
falou de Standish e a música.
- Tenho a satisfação de dizer que desde que nos encontramos pela última vez a fragata incorporou um contador - anunciou -. Nunca navegou antes e, como não é um contador
experiente, Sophie o ajudou a fazer as somas; mas é um cavalheiro, é amigo do martin e toca violino assombrosamente bem.
Standish procedia de uma família do marinheiros, mas não de renome (seu pai havia morrido sendo tenente). Sempre havia desejado fazer-se ao mar, mas seus amigos
eram contra e para complazê-los decidiu estudar para ser um pastor, pensando que teria a proteção de um eclesiástico primo seu. Contudo, estudou mais matérias relacionadas
com a navegação e a antiguidade clássica que com a teologia. Não lhe ocorreu ler atentamente os Trinta e Nove Artigos até o momento em que teve que aderir-se a eles,
e então compreendeu com angústia que não podia fazê-lo, mas se não o fizesse não podia chegar a ser pastor. Dadas as circunstâncias, podia escolher fazer-se ao mar,
o que sempre desejara, porém, obviamente, já era mais velho para tomar parte pela primeira vez do grupo de oficiais de um barco de guerra. A única forma de entrar
na Armada era como contador e, apesar de seu inexperiência (a maioria dos contadores começavam sua carreira muito cedo como escreventes do capitão), um antigo companheiro
de tripulação de seu pai usou a influência que tinha com a Junta Naval e conseguiu que lhe dessem esse cargo; contudo, mesmo para o contador de um barco de sexta
classe se lhe exigia como garantia a prova de que possuía quatrocentas libras, e como Standish ofendera a sua família, não possuía nem quatrocentos peniques.
- Pensei que podia esquecer a garantia em vista de que trazia um violino - disse Jack -. Garanto que tem um excelente ouvido e que toca com grande delicadeza, nem
com demasiada doçura nem com demasiada secura, compreende? E, como Martin toca bastante bem a viola, pensei que poderíamos tocar um quarteto. O que acha de preparamos
uma tijela de ponche e os convidarmos para tomá-la conosco? Também poderíamos convidar a Tom e a Martin.
- Me encantaria reunir-me com esses cavalheiros - disse Stephen -, mas faz muito tempo que não toco o violoncelo e antes tenho que tocá-lo sozinho.
Foi para sua cabine e enquanto tratava de afinar o violoncelo ouviram-se vários sons chiantes e roucos. Depois tocou algumas frases musicais muito devagar e perguntou
a Jack:
- Reconhece isto?
- Certamente! - respondeu Jack -. O final de Figaro, é muito bonito.
- Não posso cantá-lo bem e se ouve melhor quando o toco com o violoncelo - disse Stephen.
Então fechou a porta e pouco depois a popa do barco, que geralmente ficava silenciosa quando o vento soprava pela popa e havia ondas de moderado tamanho, encheu-se
das agudas notas do Dies Irae, que se repetiram uma e outra vez e provocaram o assombro dos oficiais.
Mais tarde, muito mais tarde, depois da apresentação, o ponche e uma comprida conversa, a cabine voltou a encher-se de música; mas desta vez de uma com menos convicção
e mais suave, pois os quatro homens interpretaram o concerto em ré maior de Mozart.
Stephen foi dormir muito tarde essa noite, com os olhos úmidos e avermelhados pelo esforço de ler uma partitura pouco conhecida à luz da lâmparina, mas com a mente
fresca, tão fresca que quando chegou a dormir submergiu em um sono profundo e extraordinariamente vivido do qual não saiu até que Jack lhe disse:
- Desculpe que lhe desperte, Stephen, mas o vento rolou noventa graus e não podemos chegar a Estocolmo. O barco de um prático da costa está abordado com a fragata
e poderá levar-te até lá, ou pode vir comigo até Riga e ir quando regressemos. Que prefere?
- O barco do prático da costa, por favor.
- Muito bem - disse Jack -. Direi a Padeen que lhe traga água quente.
Enquanto esperava a água chegar, Stephen afiou a navalha, mas quando tinha tudo pronto percebeu de que sua mão tremia muito para se barbear.
- Estou em um estado horrível - murmurou.
Então, com a intenção de melhorá-lo, pegou seu remédio, mas ele caiu antes que pudesse colocar pelo menos uma gota no copo. Imediatamente se notou na cabine o odor
do láudano e mais ainda o do conhaque, e Stephen ficou olhando os pedaços do frasco quebrado alguns momentos e observou o contratempo, mas não tinha a energia mental
nem o tempo necessários para resolvê-lo. Pensou que se descesse para a enfermaria e trouxesse um botijão grande e um pequeno frasco poderia substituir o que havia
perdido.
- Ao diabo! - exclamou -. Comprarei mais em Estocolmo e, além disso, eu me barbearei em uma barbearia.
- Ah, está aí, Stephen! - exclamou Jack, olhando-o com ansiedade -. Temo que fará uma longa viagem. Não vai levar Padeen?
Stephen negou com a cabeça.
- Só queria dizer, antes de subir ao convés... Só queria dizer que desse uma afetuosa saldação à prima Diana de nossa parte.
- Obrigado, Jack - disse Stephen -. Não esquecerei.
Ambos subiram pela escada.
- Este vento nunca se mantém assim - sentenciou Jack enquanto o passava para a parte exterior do costado, onde Bonden e Plaice o ajudaram a descer para o barco -.
Regressaremos de Riga dentro de muito pouco tempo.
CAPÍTULO 9
Ainda que a Surprise, passando por entre inumeráveis ilhas, tenha se aproximado da costa tudo o que podia, o prático da costa teve que percorrer uma longa distância
antes de poder deixar Stephen no amplo cais situado no coração da cidade.
Quando o sol saiu o dia ficou mais fresco e brilhante, e o vento, ainda que desfavorável, encheu-se de vida. Ao descer para terra, Stephen havia se separado quase
por completo de outro mundo, do mundo de seus sonhos, com sua extraordinária beleza, seus possíveis perigos e a velada ameaça de um grande perigo iminente.
O prático da costa, um homem sério e respeitável que falava inglês com soltura, o levou a um respeitável hotel onde também se falava inglês. Stephen pediu café e
pãozinhos e depois, já reanimado, foi ver o representante de seu banco. O banqueiro o recebeu com o respeito do qual agora começava a se sentir merecedor (ou, pelo
menos, já não achava engraçado) e lhe entregou moeda sueca e o endereço do melhor boticário da capital. Disse que era "um homem instruído, com conhecimentos de todas
as ciências, um discípulo do grande Linneo" cuja farmácia ficava a menos de cem jardas de distância, e que o doutor Maturin só tinha que dobrar duas vezes para a
direita para encontrá-la.
O doutor Maturin dobrou duas vezes para a direita, e lá estava. A vitrine era inconfundível, pois não só estava cheia dos habituais potes com um líquido transparente
de cor verde ou vermelho ou azul de aspecto parecido ao das pedras preciosas e ramalhetes de ervas secas, como também de grande variedade de monstros e animais raros
conservados em álcool e de esqueletos, um dos quais era o de um tamanduá. Stephen entrou. Aparentemente, não havia ninguém na loja, mas enquanto olhava atentamente
o feto de um canguru (havia estendido o braço para girar o pote) um homenzinho saiu de detrás do balcão e, com uma voz que parecia de gnomo e em tom áspero, perguntou
o que desejava.
Stephen teve a certeza de que, apesar de que ele tinha conhecimentos de todas as ciências, não sabia inglês nem francês, por isso disse em latim:
- Queria um frasco de láudano de moderado tamanho.
- Certamente! - respondeu o boticário em latim com um tom mais amável.
Enquanto ele preparava a tintura Stephen inquiriu:
- Por favor, está à venda o tamanduá que há na vitrine?
- Não, senhor - respondeu o boticário -. É de minha coleção.
E depois de uma pausa acrescentou:
- Vejo que reconheceu o animal.
- Faz algum tempo, quando estava no Cabo, estudei muito bem um tamanduá - explicou Stephen -. É uma criatura afetuosa, mas tímida. Ademais, vi um esqueleto que pertencia
a monsieur Cuvier em Paris.
- Vejo que o senhor é um viajante, senhor - disse o boticário enquanto pegava a garrafa com ambas as mãos e a subia à altura dos olhos.
- Sou um cirurgião naval e por minha profissão estive em muitas partes do mundo.
- Sempre sonhei em viajar - confessou o boticário -, mas estou atado à minha farmácia. Contudo, animo aos marinheiros a que me tragam tudo o que encontrem e encomendo
aos ajudantes de cirurgião mais inteligentes que me tragam determinadas espécies de plantas, medicamentos estrangeiros, diversos tipos de chá e outras infusões,
assim que viajo indiretamente.
- Talvez o senhor viaje mais do que eu - disse -. Até que um experimente, não pode conceber a frustração que sente um naturalista em um barco. Apenas começa a ver
uma ordem entre, digamos, os cupins, e lhe dizem que o vento rolou ou que há que aproveitar a maré e que se não sobe a bordo ficará para trás. Uma vez estive em
Nova Holanda e vi estas criaturas saltando em uma verde pradeira - acrescentou, assinalando para o canguru -. E o senhor acha que permitiram que me aproximasse deles
a cavalo ou pelo menos me emprestaram um telescópio para vê-los? Não, senhor. Disseram que se não estivesse na praia ao cabo de dez minutos, mandariam um grupo de
infantes da marinha me buscar. E o senhor, senhor, em troca, tem cem olhos e seu único inconveniente é que permanece aqui fisicamente enquanto sua mente viaja por
outros lugares. O senhor tem uma notável coleção - observou, olhando as paredes.
- Aqui está o verdadeiro bálsamo de Gilead - disse o boticário -. Aqui, o asbesto; aqui, a mandrágora negra de Kamchatka.
Ele mostrou muito mais raridades, em sua maioria relacionadas com a medicina, e depois de um tempo Stephen perguntou:
- Alguns desses jovens lhe trouxe folhas de coca de Peru?
- Oh, sim! - respondeu o boticário -. Estão em uma pequena bolsa atrás da camomila. Dizem que dilue os humores espessos e que tira o apetite.
- Tenha a amabilidade de dar-me uma libra - pediu Stephen -. E por último, pode dizer-me onde fica o distrito de Christenberg? Eu gostaria de ir andando até lá,
se não fica muito longe.
- Não tardará mais de uma hora. Eu desenharei um mapa. Esta pradeira está cheia de lírios pseudocorus e na praia que fica justo detrás, perto da ponte, poderá ver
o ninho de um cisne trompete.
- O nome da casa que quero encontrar é Koningsby.
- Fica aqui, onde ponho esta cruz.
Stephen tinha a intenção de ir ver o lugar onde vivia Diana e seus arredores e depois regressar ao hotel, solicitar os serviços de um barbeiro, trocar a camisa (havia
trazido três, uma gravata-borboleta de reposição e um colete), almoçar e enviar ali a um mensageiro para perguntar se podia visitá-la.
Atravessou as pontes que tinha que cruzar, passou pela frente do hospital Serafimer olhando-o atentamente e muito rápido começou a ver casas mais espaçadas. Pouco
depois chegou a um largo caminho com bosques de ambos os lados que atravessava um terreno ondulado abundante em pastos, e aquele conjunto predominantemente verde
lhe produziu uma agradável sensação. Viu pequenas fazendas, várias casinhas de campo e uma ou outra grande e rodeada de árvores.
Apesar do caminho ser largo e estar em boas condições, não havia muito tráfego. Viu dois coches, algumas carrças e carretas, cerca de uma dúzia de homens a cavalo
e alguns homens a pé. Todos o cumprimentaram ao passar por seu lado, e ele, impressionado por ver o verde dos campos e os corvos, respondeu em irlandês:
- Que Deus, Maria e são Patrício estejam com o senhor!
Não havia muito tráfego no caminho principal e ainda menos no que Stephen tomou ao dobrar à direita depois de consultar de novo o mapa do boticário. O caminho era
muito estreito e passava por entre pradeiras que tinham cercas de madeira desconjuntadas e aparentemente formavam parte de uma só propriedade muito grande mas abandonada,
o que parecia confirmar a presença de um muro ao redor de um parque na parte sul, para onde Stephen olhava de vez em quando.
Encontrou o terreno pantanoso coberto de lírios e quando viu o cisne em seu ninho ouviu o ruído dos cascos de alguns cavalos diante dele e, ainda que estavam ocultos
por um bosque de amieiros, teve a certeza de que estavam perto e de que puxavam uma cuagem que avançava muito rápido. Olhou ao seu redor em busca de um lugar onde
se meter para poder sair do caminho, que ali era mais apertado e flanqueado por sarjetas, profundas sarjetas que na borda do lado interior tinham um montículo sobre
o qual estava colocada a cerca. Escolheu a parte menos larga da sarjeta da direita, pôs entre os dentes a corda com que estava atado o pacote, cruzou a sarjeta de
um salto, agarrou-se à cerca e ficou de pé em cima do montículo. Quando apareceu a carruagem, viu que era um faetonte puxado por um par de cavalos alazões, e um
momento depois seu coração pulou porque era Diana que o conduzia.
- Oh, Maturin, bendito seja! - exclamou Diana, puxando com força as rédeas -. Quanto me alegro de ver-te, querido!
O moço correu para segurar os cavalos e ela foi até a faixa de capim que bordejava o caminho.
- Se dé um grande salto poderá cruzar a sarjeta - disse, estendendo-lhe a mão.
Ela o segurou enquanto ele cruzava, pegou o pacote e o beijou nas faces.
- Quanto me alegro de lhe ver! - repetiu -. Suba e lhe levarei para minha casa. Você não mudou nada - acrescentou enquanto o fazia se mover para os cavalos.
- Você sim, minha querida- disse Stephen em tom suave -. O aspecto de sua pele melhorou infinitamente. Parece uma jeune fille en fleur.
Era verdade. O clima do norte, um clima mais úmido e mais frio que o da Inglaterra e a comida sueca haviam feito maravilhas em sua pele. Para que a beleza de alguém
como Diana, com cabelo negro e olhos azuis-escuros, alcançasse o grau máximo, sua pele devia ter uma excelente aparência, e agora ela tinha um aspecto muito mais
bonito do que nunca.
Chegaram ao portal de acesso a um campo e ela girou o faetonte com a habilidade que a caracterizava e começou a percorrer o caminho em direção contrária a grande
velocidade. Em algumas partes as rodas distavam escassamente seis polegadas da borda e, como um dos cavalos tinha tendência a sacudir a cabeça e a fazer bobagens,
era necessário conduzir com mão firme e muita atenção, o que impedia manter uma conversa. O faetonte voltou a passar pelo bosque de amieiros e depois tomou um caminho
mais largo.
- Este é o caminho de Stadhagen - explicou Diana.
Então abriu as folhas de uma grade de ferro e os cavalos entraram por ali por sua própia vontade. O caminho estava coberto de ervas daninhas e formava um par de
curvas entre as árvores, depois das quais se bifurcava. Um ramal atravessava o parque e chegava até uma casa enorme e bonita que parecia sem vida, pois estava quase
toda fechada.
- Essa é a casa da condessa Tessin, a avó de Jagiello - anunciou Diana -. Eu vivo ali - acrescentou, assinalando um extremo do parque, onde Stephen viu uma casa
ainda mais velha com uma torre.
Stephen pensou que era a casa que costumava destinar-se à mãe viúva do dono da propriedade, mas não fez nenhuma observação.
O faetonte parou. O moço desceu de um salto e o levou.
- Esse homem é finlandês? - inquiriu Stephen.
- Oh, não! - respondeu Diana, sorrindo -. É um lapão, um dos lapões de Jagiello. Possue uma dúzia, mais ou menos.
- São escravos?
- Não, não exatamente. Acho que são como servos. Entre, Stephen, por favor.
A porta se abriu e atrás dela havia uma criada velha e alta que fez uma reverência enquanto lhes sorria. Diana lhe gritou algo em sueco muito perto da orelha e conduziu
Stephen pelo corredor. Abriu uma porta e imediatamente a fechou dizendo:
- Muito sujo.
Depois abriu outra que dava acesso a uma agradável habitação quadrada onde havia um piano, estantes, uma estufa de porcelana, duas ou três poltronas e um sofá e
de onde se via uma limeira. Diana pegou uma das poltronas e disse:
- Sente-se onde eu possa ver-lhe bem. Sente-se no sofá.
Ela o olhou afetuosamente e exclamou:
- Meu Deus, faz tanto tempo que não lhe vejo e temos tantas coisas de que falar!
Fez uma pausa e em tom amável continuou:
- Vou lhe dizer algo sobre Jagiello, não porque tenha que lhe dar explicações, sabe, Maturin?, mas porque chegará de um momento para o outro e não quero que se veja
obrigado a cortar-lhe o pescoço. Pobrezinho! Isso seria cruel. Quando lhe disse que queria pôr-me sob sua proteção para vir à Suécia quis dizer justamente isso:
proteção contra qualquer insulto ou abuso. Não queria nada mais e lhe disse claramente. Acrescentei que eu pagaria meus gastos, naturalmente. O que eu queria era
proteção no sentido própio da palavra, não um amante, mas ele não acreditou. Disse que não podia respeitar-me nem amar-me como um irmão e outras coisas, ainda que
sorrisse afetadamente, como fazem todos os homens. Demorou muito tempo em convencer-se de que eu falava sério, mas ao final teve que admitir. Eu lhe disse que era
inútil que insistisse, pois havia jurado que nunca voltaria a submeter-me à autoridade de nenhum homem porque assim nenhum poderia machucar-me. Parece muito devastado,
mas não deve ficar assim, já que tudo passou, falo com sinceridade, e espero que Deus nos ajude a não cometer a estupidez de deixar que isso nos impeça de sentir
afeto mútuo. Mas como dizia, ele teve que acreditar, e agora somos amigos outra vez ainda que insiste em me impedir de subir em balão. Vai se casar com uma doce
e bonita jovem que o adora. Não é muito astuta, mas é de boa família e tem um esplêndido dote. Ajudei a combinar o matrimônio e sua avó me tem tanto apreço... bem,
quando se lembra, o que não ocorre sempre.
- Alegro-me de ouvir isso, querida Villiers... - Stephen começou a dizer, mas se interrompeu ao ver a criada entrar.
Diana lhe falou tão alto como lhe era possível e depois, com voz rouca, disse:
- Ulrika diz que só temos ovos e truta defumada na casa... Tinha saído para comprar quando nos encontramos. Ademais me perguntou se o cavalheiro gostaria de um pouco
de carne de rena salgada e conservada seca que o lapão trouxe.
Ulrika observou o rosto de Stephen e ao ver sua expressão comprazida saiu rindo.
- Bem, isso é tudo com respeito à Gedymin Jagiello - disse Diana -. A propósito, quando eles vierem teremos que falar em francês, porque ela fala inglês pior do
que ele. Mas agora comecemos do início. De onde vem?
- Vim da Inglaterra com Jack Aubrey na Surprise.
- Ele está em Estocolmo?
- Foi até Riga, mas regressará dentro de um ou dois dias. Mandou-lhe, quer dizer, mandaram-lhe uma afetuosa saldação. Ele me disse: "Dê uma afetuosa saldação à prima
Diana de nossa parte".
- O bom de Jack. Tivemos tanta raiva, eu e Jagiello, daquele espantoso processo! Como ele está constantemente na legação tem todos os jornais ingleses. Ele reagiu
muito mal?
- Muito mal. Durante a viagem anterior à última, quando fomos aos Açores, não parecia o mesmo homem. Não tinha entusiasmo nem sorria. Não estabeleceu relações humanas
com os oficiais e marinheiros novos e quase não o fez com os antigos. Ele os fez temer realmente a Deus. Notei que nos barcos ninguém pode representar um papel durante
longo tempo porque os homens detectam imediatamente a falsidade. Porém, os homens reconhecem os verdadeiros sentimentos, e neste caso todos chegaram a temê-lo muito.
- Contudo, foi nos Açores onde conseguiu todas aquelas presas, e provavelmente seu humor terá melhorado por isso.
- Alegrou-se disso por Sophie e as crianças, pois acho que as coisas não iam bem em Ashgrove, mas o dinheiro dos butins, ainda que tenha chegado como uma avalancha,
não mudou a parte fundamental do problema. Foi o combate de Saint Martin que o fez.
- Ah, sim, sim! Como o celebramos! O capitão Fanshawe, que estava na legação, disse que era a melhor batalha desse tipo que vira nesta guerra. Vai reabilitá-lo,
não é?
- Acredito que existe a possibilidade, sobretudo porque seu primo Norton lhe deu a cadeira do Parlamento que corresponde a Milport, um distrito do oeste que é de
sua propriedade.
- Isso a converte em uma certeza, já que as eleições estão muito próximas. Alegro-me pelos dois porque sinto muito carinho por Sophie. Stephen, desculpe-me um momento;
tenho que ir ver o que houve com a rena. É possível que Ulrika tenha problemas com o lapão. Ele não pertence a esta casa, sabe? Jagiello me o emprestou junto com
o faetonte e os cavalos para que levasse a sua avó à igreja e às vezes à cidade, mas se dá bem comigo.
Quando Stephen ficou sozinho, passou a refletir. Em uma ocasião havia pensado que Diana subia em balão para se divertir, mas agora parecia muito mais provável que
sua primeira idéia, que coincidia com a de Blaine, fosse a acertada. Ainda que ela não vivesse na pobreza, a verdade era que estava muito longe de viver com luxo.
Tratava de aplacar seu ímpeto e sua agitação para poder encontrar uma forma de expressar suas idéias com coerência e convicção. Pegou do bolso o frasco que o boticário
lhe dera e quando estava rompendo o selo de cera do envoltório ela entrou com seu pacote nas mãos.
- Stephen - disse -, deixou isto no coche. Pishan o levou para a cozinha.
- Oh, obrigado! - exclamou, guardando o frasco -. São as folhas de coca que comprei em Estocolmo.
- Para que são?
- Tiram o cansaço e deixam a um muito inteligente e até mesmo engenhoso quando as toma adequadamente. Eu lhe mandei algumas da América do Sul.
- Infelizmente, nunca as recebi. Eu teria gostado de ser muito inteligente e engenhosa.
- Que pena. Às vezes as coisas se perdem. Diga-me, recebeu uma carta que mandei de Gibraltar justo antes de viajar para a América do Sul? Mandei-a por Andrew Wray,
que ia fazer parte da viagem de regresso para a Inglaterra por terra.
- Não confiou realmente naquele maldito sem-vergonha, não é? Eu o vi uma vez ou duas depois que regressou e me disse que lhe vira em Malta e que havia escutado música
contigo. Pelo que disse, você se divertia muito com um sino de escafandrista e outros encantos de Valletta. Não me falou de nenhuma carta nem de nenhuma mensagem.
Espero que não dissesse nada confidencial.
- Nenhum estranho teria entendido nada - disse Stephen e se levantou, pois nesse momento uma anciã abriu a porta.
Era a condessa Tessin. Diana apresentou Stephen em francês como monsieur Maturin e Domanova, o que era em parte correto e em parte falso, e acrescentou que era um
amigo de Gedymin. Não tinha que haver-se preocupado, porque a anciã estava com a mente confusa e decidiu sair ao saber que Jagiello não chegaria até depois do almoço,
embora tenham pedido para que ficasse.
- Posso oferecer-lhe meu braço, senhora? - perguntou Stephen.
- O senhor é muito amável, senhor, muito amável, mas Axel está me esperando e ele está acostumado ao meu passo.
- Se chegar a ser velha, espero adaptar-me às mudanças do dinheiro.
- Poucas pessoas se adaptam.
- Não. A condessa Tessin não conseguiu, e a mudança a assustou tanto que a levou a... bem, eu não diria que à avareza, porque, na realidade, é muito generosa. Contudo,
diz que deve poupar até o último penique e despediu quase todos os serventes. Ademais, ela me cobra uma quantidade astronômica de aluguel e me deixou somente um
pequeno potreiro porque permite usar praticamente todo o parque como terreno de pastoreio. Pensava criar cavalos árabes, mas não há espaço. Stephen, não está comendo.
Tenho uma parelha, e quero mostrar-lhe a égua depois de almoçar porque é preciosa, mas se dispusesse de um terreno coberto de capim curto e espesso como o que Jack
Aubrey tem no alto de uma colina de seu imóvel, poderia criar uma vintena.
"Acho que minha agitação a afetou. Ela não se comporta assim", pensou Stephen. Esforçou-se para comer e fingiu o melhor que pôde que tinha muito apetite e enquanto
isso a escutava. Diana falou das lições de inglês, nas quais não tinha que fazer um grande esforço porque muitos suecos falavam um pouco de inglês, e do absurdo
organizador de espetáculos que lhe pagou uma quantiosa soma para subir em um balão.
- Quer que da próxima vez use um vestido com lantejoulas - disse.
Raras vezes Stephen havia podido controlar menos suas emoções e tolerar menos uma conversa trivial. Notou que sua irritação aumentava e bendisse o momento em que
Diana fez um movimento desajeitado e derrubou a garrafa no piso.
- Esse era o último vinho que restava - disse, sorrindo -. Mas pelo menos posso fazer uma xícara de café decente. Um dos poucos trabalhos do lar que sei fazer.
O café era excelente. Beberam-no sentados no terraço do lado sul da casa e a égua árabe se aproximou deles dando passos curtos e vacilantes até que ficou segura
de que a receberiam com amabilidade. Parou junto de Diana e passou a cabeça por cima de seu ombro e a olhou fixamente com seus olhos brilhantes. Então Diana disse:
- Ela me segue por todas as partes como um cachorro quando a deixo entrar na casa e inclusive sobe e desce a escada. É o único cavalo que me atreveria a meter na
nacela de um balão.
- Duvido que tenha visto um animal mais bonito e simpático - disse Stephen.
A beleza da égua era equiparável à de Diana, e sentiu um grande prazer ao vê-las juntas.
Depois de ver o estábulo e o outro cavalo árabe, que Diana disse que era castrado, e depois de criticar duramente o pequeno potreiro, voltaram para a casa. A tensão
entre eles havia diminuído e falaram com calma das primas de Diana, dos filhos de Sophie, da reconstrução do Grapes e da prosperidade da senhora Broad. Quando chegaram
ao saguão Stephen disse:
- Permita-me retirar-me um momento, minha querida. Tenho que tomar um medicamento. Poderia me dar um copo?
Sentado ali mediu a dose de láudano, uma dose apropiada para a ocasião, como costumava fazer, pondo o polegar na boca do frasco.
- Jesus, Maria e José! - exclamou -. O gnomo deve de usar aquavit.
Imediatamente se acostumou ao novo sabor do láudano, e atribuiu a diferença ao uso de uma bebida alcoólica distinta para fazer a tintura. Quando terminou baixou
as calças e, não sem dor, arrancou o esparadrapo que mantinha o diamante azul colado ao seu corpo. Limpou a pedra preciosa, olhou-a com admiração novamente e a guardou
no bolso do colete.
Quando desceu a escada notou que o medicamento já estava fazendo efeito, e quando entrou no pequeno quarto quadrado estava bastante tranqüilo e decidido a jogar
sua felicidade em uma só carta.
Diana olhou ao seu redor sorrindo.
- Tenho que afinar o piano - disse, tocando algumas notas com a mão direita enquanto ele permanecia ali de pé -. Lembra dessa peça de Hummel que Sophie praticava
tanto faz muito, muito tempo? Ela me veio à memória, mas há alguma nota errada que a estraga - acrescentou enquanto a tocava.
- Essa nota se parece com Judas - disse Stephen.
Suas mãos deslizaram pelo teclado e tocaram algumas frases da peça de Hummel, declinações, melodias improvisadas e finalmente a ariana de Almaviva que começava:
"Comtessa perdoo...". Não se atreveu a cantá-la por temor de que sua voz fosse desagradável ou que destoasse, ou ambas as coisas, mas quando fechou o piano disse:
- Diana, eu vim para lhe pedir perdão.
- Mas meu querido, já o perdoei há muito tempo. Sinto um grande carinho por você e não guardo rancor nem lhe desejo nenhum mal, juro.
- Não era isso ao que me referia, querida.
- Oh! Com respeito ao resto, Stephen, digo que nosso matrimônio foi absurdo. Nunca pude ser uma boa esposa para você. Gosto muito de você, mas não fazemos outra
coisa além de nos ferir mutuamente. Não fomos feitos um para o outro e somos independentes como os gatos.
- Só peço que me faça companhia. Obti muito dinheiro com os butins e herdei mais. Digo isto só porque significa que poderá ter espaço para criar os cavalos árabes,
poderá dispor da metade do Curragh no condado de Kildare, além de uma grande extensão de terra no sul da Inglaterra.
- Stephen, já sabe o que eu disse a Jagiello: nunca voltarei a me submeter à autoridade de nenhum homem. Mas se alguma vez um homem e eu vivêssemos como marido e
mulher, esse homem seria você, ninguém mais. Peço que aceite isso como resposta.
- Não a importunarei mais, minha querida- disse Stephen.
Aproximou-se da janela e observou as folhas do limeiro, de um perfeito colorido verde. Depois de alguns momentos se voltou e, com um sorriso forçado, perguntou:
- Quer que lhe conte o sonho que tive esta manhã, Villiers? Tinha a ver com um balão.
- Propulsado a fogo ou a ar?
- Acho que pelo ar, porque se não, eu me recordaria do fogo. Eu estava na nacela e voava acima das nuvens, uma grande massa de nuvens brancas com imensos picos que
davam voltas, mas que se mantinham em um mesmo plano por baixo de mim. E por acima delas se estendia o céu, incrivelmente puro e de cor azul-escuro.
- Oh, sim! - exclamou Diana.
- Tudo isso eu soube por um homem que havia subido em um balão, pois eu nunca me separei da terra. Mas o que não peguei de seu relato foi a extraordinária sensação
de estar vivo, a palpável profundidade do silêncio do universo e o brilhantismo da luz e o colorido que há nesse mundo, outro mundo cuja existência era cada vez
mais evidente porque através dos claros nas nuvens podia ver muito abaixo dele nosso mundo ordinário, com prateados rios e nítidos caminhos. Depois de um tempo tudo
se transformou em gelo e rocha, inclusive o que havia ali debaixo, e eu sentia ao mesmo tempo prazer e um medo terrível, tão grande como o própio céu. Não era medo
de ser destruído mas de algo pior, talvez de me perder para sempre, de que se perdessem meu corpo e meu mundo.
- Como terminou?
- Não terminou. Jack me chamou para dizer-me que havia um barco abordado com a fragata.
- Jagiello costumava contar-me horríveis histórias de pessoas que subiam mais e mais e se afastavam mais e mais até que chegavam a lugares muito distantes e nunca
voltavam a ser vistos e morriam de frio ou de fome. Mas eu só subo em um balão propulsado a ar, que tem uma válvula que permite tirá-lo para poder descer e, além
do mais, leva uma âncora amarrada a uma comprida corda. Nunca me afasto muito e sempre Gustav vai comigo, que tem muita experiência e é muito forte.
- Querida Villiers, não quis assustá-la nem fazer que desista de sua intenção. Deus me livre! Isto era só um sonho, não uma conferência nem uma parábola. Impressionou-me
muito, sobretudo a intensidade das cores, como por exemplo, o vermelho do balão. Contei-lhe em parte por isso, ainda que bem sabe Deus que meu relato foi muito simples
e não chegou nem perto de sua essência, e em parte para deixar um espaço entre o que estávamos falando e o que vou dizer-te agora, um espaço que simbolize a total
independência de ambas conversações. Recorda de D'Anglars, o amigo da Mothe que vimos em Paris?
- Sim - respondeu ela, e sua expressão distraída se transformou em inquisitiva.
- Ele prometeu que lhe devolveria seu grande diamante azul, que o enviaria quando partíssemos, e cumpriu sua palavra. Um mensageiro o trouxe justo depois do processo
de Jack. Aqui está.
Nunca a vira perder a compostura até tal ponto. Quando lhe entregou a pedra, que brilhava à luz do sol, em seu rosto se refletiram sucessivamente a desconfiança,
o assombro, a satisfação e o medo, que desapareceu por completo quando estourou em lágrimas.
Stephen voltou a olhar pela janela e ficou ali até que a ouviu assoar e suspirar. Ela estava sentada com o diamante entre as mãos e ele notou que tinha as pupilas
dilatadas, tão dilatadas que seus olhos pareciam negros.
- Nunca pensei que voltaria a vê-lo - disse ela com voz trêmula -. Eu lhe tinha tanto carinho! Um carinho póximo ao pecado! E ainda lhe tenho um carinho póximo ao
pecado - acrescentou, girando-o para um lado e para o outro sob um raio de sol -. Não tenho palavras para expressar-lhe meu agradecimento. Fui tão dura contigo,
Stephen! Perdoe-me.
Do lado de fora alguém gritou: "Diana!". E ela exclamou:
- Oh, meu Deus, aí estão os Jagiello!
Olhou imediatamente ao seu redor, mas já não era possível escapar. Um momento mais tarde a porta se abriu, mas foi a égua que entrou, e alguns instantes depois os
Jagiello a seguiram.
Ainda que Stephen estivesse de costas para a luz, Jagiello o reconheceu imediatamente e mostrou uma expressão de assombro e satisfação ao mesmo tempo, que depois
indicou preocupação. Então viu que seu potencial inimigo se aproximar, apertar-lhe a mão, agrader-lhe a amabilidade que tivera com Diana e felicitá-lo por sua ascensão,
pois ele tinha agora em sua bonita casaca de cor lilás os galões de coronel e usava esporas de ouro.
Diana cumpria estritamente as normas sociais, e depois de tirar a égua dali e fazer o que pôde para arrumar o rosto, que estava muito inchado pelo pranto (choramingo
era uma palavra muito forte, pois ela não chorava com facilidade nem sem que suas lágrimas deixassem rastro), fez todo o possível para atender bem aos seus visitantes.
Lovisa, a noiva de Jagiello, era muito jovem e venerava Diana, a quem Jagiello considerava um modelo, e sua juventude, seu respeito e sua inata estupidez combinados
com seu desconhecimento do francês e sua suposição de que a situação era delicada, convertiam-na em uma pesada carga para ele. Jagiello se achava em uma posição
melhor, mas sabia que sua habitual conversa alegre estava fora de lugar nesse contexto, e como havia se surpreendido ao ver aquela situação não lhe ocorreu nenhuma
alternativa. Stephen, cujo cumprimento das normas sociais não lhe serviriam para conseguir uma recomendação em nenhuma parte, disse algumas frases corteses para
Lovisa, que era verdadeiramente bonita, e depois, ao ouvir que Diana contava a Jagiello as últimas notícias sobre Jack Aubrey, também guardou silêncio. Há um tempo
tinha uma estranha sensação que atribuía à intensidade de sua emoção, ainda que não sabia o que a causava, além do desespero por seu fracasso. Pensou que havia uma
analogia entre isso e as feridas em um combate, pois um sabia que lhe haviam ferido e mais ou menos onde, mas não sabia se a ferida fora causada pela lâmina ou a
ponta de uma espada, uma bala ou um pedaço de madeira pontiagudo, nem se era grave até que as examinavam e lhes davam nome. Mas desejava com ânsia que essa gente
se fosse para poder tomar outra dose do medicamento, uma dose que lhe proporcionasse serenidade e lhe permitisse regressar a Estocolmo pelo menos com aparente serenidade.
Por fim ocorreu a Diana dizer a Jagiello que sua avó a havia visitado antes do almoço. Ademais, sugeriu que ele fosse para a grande casa para evitar que ela voltasse
a sair, o que era provável que fizesse porque provavelmente os vira passar, e que caminhar duas vezes até ali seria muito para a condessa Tessin.
Jagiello lhe agradeceu muito, porque se sentia como um estorvo desde que havia chegado, mas não lhe havia ocorrido nenhuma desculpa plausível para ir embora. Mas
depois das primeiras frases de despedida, Lovisa começou a falar a Diana de seu vestido de casamento. E seguiu falando durante muito tempo, a maioria do tempo em
sueco, e Stephen retrocedeu pouco a pouco e finalmente fez uma inclinação de cabeça e subiu a escada.
Voltou a se assombrar com a força do medicamento, e desta vez pensou que a diferença podia dever-se ao ópio em vez de ao dissolvente. Enquanto descia a escada pensou:
"Contudo, nunca ouvi falar de nenhuma diferença notável entre a farmacopéia de um país e a de qualquer outro com relação a isso. A tintura é a mesma, com uma margem
de variação de uns poucos escrúpulos, quando é preparada por um respeitável boticário, tanto se for de Paris como de Dublim, de Boston ou de Barcelona".
- Oh, Maturin, achei que não iriam nunca! - exclamou Diana -. Essa estúpida menina papagaia ainda estava falando da renda de seu vestido quando a condessa Tessin
se assomou, mas dei uma cotovelada em Jagiello e por fim ele a levou.
- Jagiello vale muito.
- Sim. E desta vez não disse nada em contra os balões, ainda que saiba muito bem que vou subir em um no sábado.
- No próximo sábado?
- Sim. Já começaram a enchê-lo.
- Eu também poderia subir?
- Certamente que sim! Desta vez subirei no balão vermelho, assim que haverá muito espaço na nacela. Quer vê-lo?
Stephen não respondeu até que ela perguntou outra vez:
- Quer vê-lo?
Então ele olhou para cima com uma expressão de assombro e respondeu:
- Adoraria. Você o guarda aqui?
- Oh, não, não! É muito grande. Eles o estão enchendo na fundição, porque usam ferro e vitríolo para produzir o gás inflamável, sabe? Pode ser visto da torre. Está
bem, Stephen?
- Devo confessar que tenho uma sensação estranha, minha querida, mas é que me levantei antes do amanhecer. Contudo, sou perfeitamente capaz de subir a torre correndo.
- Iremos devagar. Há um luneta em cima do armário que aí atrás.
Ela o guiou por um corredor abobadado que havia detrás do saguão e depois pela escura torre que ficava no final e que era muito mais velha que a casa.
- Tenha muito cuidado, Stephen - advertiu, voltando a cabeça para trás enquanto subia pela escada de caracol -. Mantém pegue na parede, porque não há grade na metade
superior.
Deram voltas e mais voltas entre as sombras e por fim chegaram a uma porta diminuta que ficava no alto e saíram para a brilhante luz. Estavam a uma surpreendente
altura de onde podiam ver toda a ilha aos seus pés.
- Por aqui - indicou Diana levando-o até o muro do lado leste.
De lá se via a antiga Estocolmo, situada a uma hora de caminho, e de um lado dela, as altas chaminés das indústrias. Diana levava na mão o diamante azul, mas agora
o envolveu em um lenço, guardou-o no bolso e enfocou a luneta.
- Ali! - exclamou -. Localize a que joga muito fumaça e depois mova a luneta para a esquerda. Em um pátio verá a metade superior de uma grande bola vermelha. Esse
é meu balão!
- Que Deus o abençoe! - disse Stephen, devolvendo-lhe a luneta.
- Acho que deveríamos descer e tomar uma xícara de chá - disse Diana, escrutinando seu rosto -. Está muito pálido. Desça primeiro e eu lhe seguirei; sei exatamente
onde estão os parafusos.
Stephen abriu a porta, disse algo ininteligível sobre o sábado e caiu de cabeça no vazio.
Aparentemente, apesar do atraso e dos problemas, não haviam cancelado e sim adiado a ascensão. Se era um espetáculo público, haviam comparecido muito poucas pessoas,
pois não recordava ter visto a uma multidão nem ter ouvido ruído. Tinha lembranças confusas de uma queda, de feridas indeterminadas e de um alvoroço, e isso nublava
o passado imediato. Mas eles haviam subido até acima das nuvens, algo que podia se comparar ao que ele fizera em sua nebulosa mente, e estavam rodeados de ar puro
e acima e ao redor deles estava o céu, de um azul muito escuro que já lhe era familiar. Quando olhava para baixo por cima da borda da nacela, via as rápidas mudanças
da geografia do mundo de nuvens que ficava abaixo e suas fantásticas circunvoluções. Tudo era mais puro e mais brilhante que em seu sonho, que recordava perfeitamente.
E ainda que em seu sonho as cores fossem vivas, não alcançaram a extraordinária intensidade que tinham agora. Inclusive o vime que formava a nacela tinha uma infinidade
de belas tonalidades, desde o marrom escuro até uma cor mais clara que a palha. Por outro lado, as cordas que saiam da rede que envolvia o balão tinham graça própia,
e as olhava como se nunca houvesse visto nenhuma ou houvesse recuperado a vista depois de ficar cego durante muitos anos. Nesse momento olhou para Diana e ficou
sem fôlego ao ver a perfeição de suas faces. Diana vestia um traje de montar verde. Estava sentada e tinha as mãos juntas sobre o colo, sustentando o diamante, que
olhava com os olhos semicerrados e meio ocultos atrás de suas compridas pestanas.
Os dois estavam em silêncio (aquele era um mundo de silêncio), mas ele sabia que se entendiam perfeitamente e que por muito que conversassem não poderiam se compreender
melhor. Então pensou na altura e seu efeito e se perguntou se era só a altura que fazia mais forte a sensação de estar vivo. Lembrou de sua lenta subida à Maladeta,
o ponto mais alto ao qual havia chegado em terra. Havia saído de Benasque em uma mula antes do amanhecer e havia subido e subido até chegar ao meio-dia ao terreno
mais alto em que pastava o gado, onde saíam jorros de água largos como um barril das rochas que flanqueavam o caminho. Depois de fazer uma pausa no refúgio seguiu
subindo a pé, atravessou vastos campos cobertos de rododendros e depois outros com inumeráveis gencianas entre a grama espessa e curta. Depois subiu até a borda
rochosa do glaciar, onde havia uma multidão de altas primaveras situadas de forma perfeita, como se todos os jardineiros do rei houvessem estado trabalhando ali.
Pôde ver bem todas essas coisas e também uma manada de camurças que corriam e duas águias que davam voltas e voltas acima de sua cabeça porque o ar era puro e havia
muita claridade, mas essa claridade não podia se comparar com a que o rodeava agora. Ademais, ambos os lugares eram de distinta índole. Durante aquele comprido dia
ele esteve preocupado com o tempo pois não queria que a noite lhe pegasse na ladeira da montanha, mas aqui o tempo não existia, quer dizer, aqui havia a sucessão
no tempo, pois um gesto ou um pensamento seguiam aos que os precediam, mas havia perdido a noção de duração. Diana e ele poderiam ter estado flutuando ali desde
horas ou a dias. Por outro lado, ainda que na Maladeta houvesse perigos, não podiam se comparar com as indefiníveis ameaças que havia agora naquela imensidade.
Estava quase seguro de que Diana havia adormecido e não lhe contou nada. Tampouco lhe falou da capa de névoa que velou o céu e em consequência da qual o sol parecia
ter dois halos e apareceram dois parélios em forma de prisma. Mas ele também tinha muito sono e pouco depois também fechou os olhos.
No início de seu sono podia dizer: "Estou sonhando", mas quase imediatamente deixou de percebê-lo e sentiu tanta angústia como se não houvesse sabido que só era
a alteração de uma mente adormecida. Agora percebeu que, com vento favorável, haviam empreendido uma viagem a Spitzbergen, onde desceriam para se encontrarem com
os baleeiros que se congregavam ali nessa época do ano e veriam as maravilhas do Ártico, que tão bem havia descrito Mulgrave, e o muro de gelo do norte que o havia
impedido chegar ao pólo Norte. Mas não haviam chegado a um acordo, e ainda que em um determinado momento viu um terreno rochoso debaixo, não tentaram descer. Agora
só se via o cinzento oceano estender-se de um lado ao outro do céu.
Era um sonho dentro de outro sonho, e quando terminou apareceu uma habitação desconhecida. Diana estava ali, mas não vestia o traje de montar verde mas um simples
vestido cinza, e também estava Jagiello em companhia de dois homens com casaca negra e peruca que, obviamente, eram médicos, um tonto e outro inteligente. Ambos
falavam com Diana em sueco e Jagiello traduzia suas palavras, pois os conhecimentos que ela tinha dessa língua apenas eram suficientes para governar uma casa; e
falavam do caso entre eles em latim. Muito cedo se reuniu com eles outro médico, que usava a estrela de alguma ordem e a quem trataram com grande respeito. Recomendou
aplicar ventosas porque a perna não apresentava nenhum problema especial. Depois disse que vira muitas fraturas desse tipo e que sempre respondiam bem ao tratamento
do método de Andersen Basra desde que o paciente tivesse boa saúde. Acrescentou que neste caso o paciente tinha maus hábitos, estava mal nutrido e se encontrava
em um estado que não hesitava em chamar "de incipiente melancolia", mas que deviam ter em conta que, apesar de não ser corpulento, era de constituição forte e ainda
havia nele vestígios de juventude.
Stephen os observou muito tempo enquanto eles faziam os gestos inerentes da consulta de alguns médicos a outros e falavam em tom grave, em parte pela audiência e
em parte por eles mesmos, mas ele estava muito acostumado a essas reuniões para ter interesse nela e dedicou sua atenção ao que estava ao seu redor e a Diana e Jagiello.
Graças à intuição que proporcionavam os sonhos soube que estava no quarto de Diana, em sua cama, e que ela havia passado algum tempo deitada no divã que ficava ao
lado e lhe cuidando com ternura. Também soube que Jagiello havia chamado o médico do rei, o homem que tinha a estrela e que agora recomendava que quando o paciente
pudesse comer alimentos sólidos, não lhe dessem carne de cordeiro nem de vaca e muito menos de porco, mas de tetraz fervido com um pouquinho de cevada.
Stephen pensou: "Tetraz... Nunca tenha visto um tetraz, mas se seguem o conselho deste bom homem logo incorporarei um ao meu corpo e serei em parte um tetraz, e
terei as virtudes que ele possua". Depois pensou em Finn MacCoul e seu salmão, e enquanto pensava na penumbra acenderam as lâmparinas. Ainda estava pensando nele
quando apagaram todas menos uma cuja luz fizeram diminuir de intensidade. Agora a maior parte da luz do quarto procedia do fogo de uma chaminé que ficava a certa
distância a sua direita, um fogo cujo vibrante resplendor se via no teto. Não havia dúvida de que todos se haviam despedido com discrição e provavelmente alguém
havia prescrito algo, mas agora Diana se encontrava sozinha e sentada no divã situado junto à cama. Colocou sua mão sobre a dele e em voz muito baixa disse:
- Oh, Stephen, Stephen, quanto eu gostaria que pudesse me ouvir, meu querido!
Mas Stephen viu outra vez o maldito balão e voltou a viver no tempo com a noção de duração, pois tinha a espantosa certeza de que haviam ascendido durante intermináveis
horas e de que ainda ascendiam, e muito mais rápido. Enquanto subiam e se aproximavam do céu absolutamente puro, a iminente ameaça, que só percebia pela metade a
princípio, sentiu o mais profundo horror que havia sentido em sua vida. Diana vestia de novo o traje verde e provavelmente se havia subido o colarinho em certo momento,
porque agora tinha junto à cara a parte de baixo, que era vermelha e contrastava com sua palidez, com o colorido branco da ponta de seu nariz e com o azul de seus
lábios gelados. Seu olhar era inexpressivo e parecia que est;ava completamente sozinha. Assim como antes, tinha a cabeça baixa e olhava para seu colo, sobre o qual
tinha postas as mãos, agora menos apertadas, e nelas sustentava o diamante, que parecia um pedacinho do brilhante céu.
Enquanto ela respirava com tranqüilidade e quase em silêncio, subiam cada vez mais alto e o ar que os rodeava era cada vez mais rarefeito. Seguia respirando quase
imperceptivelmente, fazendo um levíssimo movimento. Mas o movimento cessou e ela perdeu o sentido e inclinou a cabeça para frente, e então o diamante caiu. Stephen
se levantou protestando furiosamente:
- Não, não, não!
- Calma, Stephen - disse ela, pegando-o entre os braços e tratando de deitá-lo de novo -. Calma - repetiu como se se dirigisse a um cavalo e, como se falasse a um
homem, acrescentou -: Tem que cuidar da perna, querido.
Ele confiou em suas cálidas palavras e passaram por sua mente uma série de fatos reais até chegar à realidade atual, ainda que não estivesse muito convencido de
sua existência. Mas sua convicção aumentava à medida que passava a noite, enquanto ele permanecia deitado, olhando o resplendor do fogo no teto e ouvindo um relógio
dar as horas. Às vezes ela se movia pelo quarto para reanimar o fogo ou ajudar-lhe a fazer suas necessidades, o que fazia com muita eficiência e com uma ternura
que o comovia profundamente. Durante esses curtos intercâmbios de palavras, ele começou a dizer coisas inteligíveis e relevantes.
Eles se conheciam há muitos anos, mas na relação que haviam mantido ela nunca o tratou tenramente e ele achava que a ternura não fazia parte de seu caráter. Sim
faziam parte a valentia, o brio e a determinação, mas nenhuma outra coisa mais próxima da ternura que da generosidade e da bondade. Estava fraco, porque havia recebido
duros golpes em sua queda física e na metafísica e não havia comido nada desde então; estava débil e muito sentimental, e ao pensar na nova situação chorou silenciosamente
na escuridão.
Pela manhã, ao ouvir que ela se movia, perguntou:
- Está acordada, Diana, meu céu? Ela se aproximou, olhou sua cara, beijou-o e disse:
- Está em seu juízo outra vez, graças a Deus, meu amor. Tinha tanto medo de que voltasse a ter pesadelos com o balão!
- Falei muito?
- Sim, meu pobrezinho. Não havia maneira de lhe tranqüilizar. Tudo era tão deprimente! E durou tanto tempo!
- Horas?
- Dias, Stephen.
Ficou pensativo e sentiu uma dor terrível na perna.
- Por favor, resta café na casa? - perguntou -. E alguma bolacha? Estou morto de fome. E diga-me, o frasco que tinha no bolso se salvou?
- Não. Quebrou e por pouco não causa a sua morte. Ele lhe fez um profundo talho no lado.
Quando ela se foi, ele olhou sua perna, que estava engessada de acordo com o método de Basra, e olhou debaixo da venda que lhe rodeava o corpo à altura do estômago.
Provavelmente o vidro quebrado havia chegado muito perto do peritoneu. Então pensou: "Se estivesse em pior estado, consideraria isso um mau presságio".
Terminaram de desjejuar e, enquanto falavam amigavelmente, o doutor Mersennius, o mais inteligente dos médicos, veio para perguntar como estava o paciente e para
trocar-lhe a venda da ferida. Stephen lhe falou da dor na perna.
- Creio que não me pedirá que lhe prescreva láudano, colega - disse Mersennius, olhando-o nos olhos -. Conheço casos em que umas poucas gotas, tomadas depois de
ter bebido uma dose massiva, acidentalmente ou não, causaram uma turbação mental extrema e duradoura, semelhante à que o senhor acaba de sofrer, mas ainda mais comprida,
que em ocasiões há desembocado na loucura ou na morte.
- O senhor tem algum motivo para supor que eu tomei láudano?
- Suas pupilas, sem dúvida, e ademais, a etiqueta do boticário, que ainda estava no frasco quebrado. Um médico inteligente não acrescentaria nem uma gota mais de
láudano a um organismo já saturado dele, do mesmo modo que um artilheiro não entraria em uma santa-bárbara com uma lanterna que não tivesse a chama resguardada.
- Muitos médicos usam a tintura contra a dor e os transtornos emocionais.
- Certamente! Mas estou convencido de que neste caso é melhor suportar a dor e aplacar a agitação com uma moderada dose de heléboro.
Stephen teve a intenção de felicitar a Mersennius por sua firmeza, mas não o fez e ambos se despediram cortesmente. De acordo com a limitada informação que Mersennius
possuía, ele tinha razão. Obviamente, pensava que ele era viciado em láudano e não tinha forma de saber, como Stephen sabia, que ainda que o tomasse com freqüência
ou quase de maneira habitual, isso não era propriamente vício senão o aspecto positivo dela. O limite entre eles era difícil de estabelecer e não culpava Mersennius
por seu erro, especialmente agora, porque sentia esse desejo irresistível que era o sinal de que um homem havia ido longe demais. Não obstante, tinha que acabar
com sua falta de equilíbrio emocional. Podia suportar a dor, mas nunca se perdoaria de chorar diante de Diana ou de mostrar alguma fraqueza.
- Está muito contente contigo e com a ferida - disse Diana ao regressar -, mas diz que não devo lhe dar láudano.
- Eu sei. Pensa que neste caso poderia prejudicar-me e é possível que tenha razão.
- Jagiello me há perguntado se quer que seu criado venha lhe barbear e se se sentes forte o bastante para recebê-lo.
- Me encantaria. Que amável é Jagiello! Diana, minha querida, pode me dar o pacote que trouxe?
- As folhas que lhe deixam inteligente e engenhoso? Stephen, está certo de que não lhe farão estrago?
- Nenhum em absoluto, meu mundo. Os peruanos e seus vizinhos mascam coca dia e noite. Para eles é tão comum como o tabaco.
Quando o criado de Jagiello terminou de barbear Stephen, ele já sentia na boca o agradável formigamento que produziam as folhas de coca ao mascá-las, e quando Jagiello
lhe fez uma visita breve mas cheia de cordialidade, as folhas haviam anulado seu paladar, um insignificante preço que tinha que pagar para tranqüilizar e fortalecer
sua mente. A perda do paladar não podia ter sido mais oportuno, pois depois que Stephen ficar prestando atenção por um tempo ao indubitável efeito da coca na perna,
Diana lhe trouxe um frasco com o remédio receitado por Mersennius, uma emulsão sumamente desagradável.
Tampouco podia ter sido mais oportuno o fortalecimento de sua mente, agora com toda sua capacidade de raciocinar, porque três dias depois, três dias em que Diana
o tratou com uma invariável ternura que lhe fez sentir-se mais unido a ela do que nunca, quando deram as dez, ela veio para dar-lhe o remédio com o frasco e a colher
na mão. E depois de dá-lo e de ir de um lado para outro do quarto se sentou no divã e, em tom envergonhado, disse:
- Maturin, não sei o que se passou com minha razão no dia que nos encontramos. Nunca hei tido facilidade para recordar a história nem as datas nem a ordem dos acontecimentos,
mas isto vai mais além... E não foi até agora, quando descia correndo a escada, que recuperei o senso comum e me disse: "Ouve, Diana, tonta, aquela poderia ter sido
sua resposta".
Stephen não queria demostrar que havia compreendido imediatamente. Moveu a bola de folhas de coca para o interior de sua bochecha, esteve pensativo um momento e
disse:
- A carta que entreguei a Wray era a resposta a uma sua na qual dizia que não estava muito contente e me pedia explicações porque havia ouvido o rumor de que ia
de um lado para outro do Mediterrâneo com minha amante, uma italiana ruiva.
- Então aquela era sua resposta. Você respondeu. Stephen, não queria lhe incomodar fazendo que se recorde de uma história passada em um momento como este, mas como
tem tão bom aspecto, come tão bem e o doutor Mersennius está tão satisfeito do heléboro, pensei que podia lhe falar dela para demostrar que não era insensível nem
estúpida.
- Nunca pensei que fosse, meu mundo - disse Stephen -, ainda que sabia que você recordava um pouco melhor que eu a cronologia. Eu não posso saber minha idade se
não faço uma subtração com papel e caneta. A carta era, de fato, minha resposta, e uma resposta muito difícil de escrever. Em primeiro lugar, tinha que escrevê-la
rápido porque tínhamos ordem de zarpar e queria que você a recebesse o mais cedo possível e, além do mais, porque um mensageiro me esperava para levá-la; em segundo
lugar, tinha que ir de um lado para outro do Mediterrâneo com uma dama ruiva, ou pelo menos de um lado somente, de Valletta para Gibraltar seguindo a costa africana,
e as aparências indicavam que ela era minha amante; contudo, não era. A verdade é que..., mas isto deve ficar entre nós, Diana. A verdade é que ela tinha relação
com o serviço secreto da Armada, mas os franceses tinham em Malta alguns agentes secretos muito perigosos, e, além disso, na própia cidade havia um ninho de traidores,
e houve uma crise e foi necessário tirá-la dali imediatamente. Sua saída dali lhe salvou a vida, mas estragou a reputação que tinha entre aqueles que não estão relacionados
com a espionagem. Inclusive Jack o achou, o que me surpreendeu muito, pois pensava que ele me conhecia melhor.
- Assim que foi Wray. E também muitas outras pessoas. Eu ouvi por todos os lados. É tão irritante que lhe tratem diplomaticamente! E nunca recebi nem uma palavra
de você. A Theseus, a Andromache e a Naiad regressaram para a Inglaterra e trouxeram cartas e mensagens para Sophie, mas nem uma palavra para mim. Estava furiosa.
- Não me admira. Mas escrevi a carta e, como lhe disse, foi difícil escrevê-la, porque seria uma temeridade falar de assuntos relacionados com a espionagem em uma
carta que poderia cair em mãos inimigas; e se não falasse era quase impossível desculpar-me, pois, como notei com assombro, minha afirmação sem nenhum apoio não
tinha validade. As pessoas me olhavam com malícia e sorriam.Talvez tudo se devia a que era ruiva, já que no estrangeiro pensam muitas coisas obscenas com respeito
às mulheres ruivas. Devo acrescentar que seu esposo, um oficial tão longe de ser um mari complaisant como é capaz de imaginar, não acreditou, pois sabia que o cabelo
avermelhado e a castidade são perfeitamente compatíveis.
- Stephen, você disse que ela não era sua amante?
- Eu disse e voltaria a dizer diante da santa cruz se desejar.
- Oh, não faça isso! Porém, por que disse que havia vindo para me pedir perdão?
- Porque fizera tão mal as coisas que você pensava que eu necessitava seu perdão; porque lhe causei tristeza; porque fui estúpido o bastante para não mandar uma
cópia da carta na Theseus; porque fui idiota o bastante para não suspeitar que Wray era um traidor.
- Oh, Stephen, eu lhe tratei tão mal, tão mal! - exclamou e depois de uma pausa continuou -: Mas lhe compensarei por isso, se posso. Eu lhe compensarei por isso
da forma que queira.
Ambos levantaram a cabeça ao ouvir o ruído de um coche.
- Esse deve de ser Mersennius - disse ela -. Tenho que lhe abrir a porta, porque Ulrika não o ouvirá e o lapão está cortando madeira.
Era Mersennius. Estava muito contente com Stephen porque era um paciente agradecido e responsável e um perfeito exemplo do que o heléboro podia conseguir. Voltou
a falar de suas virtudes e Stephen disse:
- Certamente! Eu mesmo o receitarei. Diga-me, estimado colega, teria algum inconveniente em que eu deixasse de ficar sob seus cuidados dentro de um dia ou dois?
Um barco, que provavelmente já está em Estocolmo neste momento, vem me buscar e não queria fazê-lo esperar.
- Algum inconveniente? - perguntou Mersennius -. Não, nenhum, com esta bandagem com gesso conforme o método de Basra - disse, dando-lhe palmadinhas na perna de Stephen-,
desde que viaje de carruagem e depois se meta imediatamente em sua maca. Trarei heléboro para a viagem. O barco vem da Inglaterra?
- Não, de Riga.
- Então pode ficar tranqüilo, porque apesar de que hoje o vento é favorável, durante muitos dias foi desfavorável e nenhum barco terá podido sair do golfo de Riga
a menos que se haja atrevido a atravessar o Suur Väin. Tenho um pequeno barco de recreio e observo o tempo atentamente.
- Pelo menos terei tempo para fazer a bagagem - disse Diana e depois, em um tom muito mais alegre, acrescentou -: Stephen, que vou fazer enquanto estiver na América
do Sul?
- Fique na casa de Sophie até que encontre um lugar com bons pastos para os cavalos árabes e uma casa em Londres. Acho que a de Half Moon está a venda.
- Acha que demorará muito?
- Espero que não. Mas lhe advirto, minha querida, que até que a guerra não termine e Bonaparte seja derrotado, terei que estar no mar a maior parte do tempo.
- Sem dúvida - disse Diana, que procedia de uma família de militares -. Preferiria ficar com Sophie até então, se ela deixar.Talvez possa usar o estábulo de Jack,
porque está vazio. Stephen, de verdade podemos comprar uma casa na cidade? São tremendamente caras.
- Isso mesmo, mas meu padrinho, que descanse em paz, deixou-me muito dinheiro. Esqueci qual é a quantidade equivalente em libras inglesas, mas a parte que está investida
gera uma quantidade maior que o pagamento de um almirante da esquadra. Quando a paz chegar, também poderemos ter uma casa em Paris.
- Oh, quanta alegria! De verdade, Stephen? Vou adorar. Que pessoa mais materialista eu sou! Meu coração dá pulos. Estava muito contente porque meu esposo havia regressado,
mas quando descobri que estava coberto de ouro dos pés à cabeça caí em êxtase. Quanta vulgaridade!
Levantou-se de um salto do lugar, caminhou de um lado para outro do quarto com passos rápidos e depois olhou pela janela.
- Aí está Jagiello em seu coche. Meu Deus! - gritou -. Jack Aubrey está sentado do seu lado no assento!
Jack entrou no quarto na ponta dos pés, com uma expressão ansiosa e temerosa ao mesmo tempo, e o seguiram Martin e Jagiello. Beijou Diana como é própio entre primos,
sem prestar muita atenção, e pegou com afeto e delicadeza a mão de Stephen.
- Meu pobre amigo - disse -. Como está?
- Muito bem, Obrigado, Jack. Como está a fragata? Já tem a lona?
- Está muito bem. Atravessou o Suur Väin tão veloz como um cavalo de corridas, com as joanetes e as alas superiores e inferiores abertas e as velas amuradas para
estibordo. E passou pelo estreito canal Wormsi quase roçando-o, de tal maneira que se podia lançar uma bolacha para a costa a sotavento. E tem uma dúzia de rolos
da lona que usam no céu.
Stephen soltou um riso escandaloso com o qual expressava sua satisfação e disse:
- Diana, permita-me apresentar-lhe ao meu amigo íntimo o reverendo Martin, de quem tanto ouviu falar. Senhor Martin, minha esposa.
Diana lhe estendeu a mão com um amável sorriso e disse:
- Acho que o senhor é o único de nossos amigos que foi mordido por um macaco-da-noite.
Falaram durante muito tempo do macaco-da-noite, da capivara e do mico. Ulrika e o lapão trouxeram café e, em uma pausa, Stephen perguntou:
- Jack, a fragata está junto ao elegante cais da velha cidade?
- Sim. Está amarrada pela proa e pela popa aos cabeços e já virou em redondo.
- Acha que seria conveniente que subisse a bordo esta noite?
- Eu gostaria muito - disse Jack -. Não acredito que o vento se mantenha assim outras vinte e quatro horas.
- O senhor pode viajar com uma perna quebada? - inquiriu Jagiello.
- Mersennius disse que podia se fosse até a fragata de carruagem. Jagiello, teria a amabilidade de levar-me?
- Certamente! Certamente! Tiraremos uma porta das dobradiças, o desceremos deitado nela e o meteremos no coche, onde o senhor Martin o segurará. Conduzirei o coche
muito devagar. E meu regimento o escoltará como a um coronel.
- Diana, minha querida, isso lhe convém ou preferiria dispor de um ou dois dias para fazer a bagagem?
- Em duas horas estarei pronta - respondeu Diana com os olhos brilhantes -. Não se movam, cavalheiros, eu lhes rogo, e terminem o café. Mandarei Pishan trazer alguns
sanduíches.
Pouco depois os cavalheiros se moveram, pelo menos Aubrey e Jagiello. Ambos foram ver se servia uma porta que Jagiello recordava que havia no celeiro de sua avó
e para ver se uma das criadas que lhe restavam podia ajudar a preparar a bagagem.
- Ouvi Bonden lé embaixo - disse Stephen quando ele e Martim ficaram sozinhos -. Padeen também está aqui?
- Para dizer a verdade, Maturin, não - respondeu Martin -. Infelizmente, tivemos uma discussão esta manhã e o capitão Pullings o acorrentou. Sinto dizer - continuou
-, mas eu o surpreendi, sem a menor intenção de encontrá-lo fazendo algo indevido, pegando láudano de um botijão com um sifão e substituindo a tintura por conhaque.
- Claro, claro, claro - murmurou -. Que tonto eu fui! Como não me dei conta disso?
Quando Martin terminou de contar que Padeen havia reagido violentamente quando lhe tiraram o frasco, Stephen disse:
- Eu tenho grande parte da culpa por deixar esse tipo de coisas ao seu alcance. Teremos que analisar seriamente a questão. Não podemos deixar que se converta em
um viciado em ópio.
Ficaram silenciosos e pensativos durante um momento. Depois Martin contou a Stephen detalhadamente o que haviam feito em Riga e lhe falou dos costumes dos letões
e de seus amos russos. Ia falar dos mergulhões que achava ter visto ao longe sobre a ampla Letônia quando Diana entrou. Diana causou uma impressão tão forte em Stephen
que para suportá-la foi necessária toda a fortaleza que recuperara e as folhas que estava mascando, pois estava com o traje de montar verde que vestia no sonho.
- Stephen - disse, com os olhos ainda mais brilhantes -, meti em um par de baús tudo o que necessito pelo momento. O resto pode ser enviado depois. O coche chegará
dentro de cinco minutos com a porta da condessa Tessin, mas eu não irei contigo. Necessita que um homem lhe segure e com ele e a porta não resta espaço para mim,
assim irei a cavalo - acrescentou e riu alegremente -. Recolherei suas coisas no hotel e porei flores em nosso camarote...
- querida, sabe onde fica a farmácia localizada perto do hotel e que tem na vitrina monstros e um tatuetê embalsamado?
- A de um boticário muito baixinho?
- Essa mesma. Por favor vá lá... Alguém poderá segurar o cavalo?
- O lapão irá comigo.
- Compra-me todas as folhas de coca que lhe restem. Estas são só as do fundo de um saco.
- Stephen, necessitarei de um pouco de dinheiro.
Quando ele se voltou para seu paletó, ela perguntou:
- Se dá conta de que as esposas se convertem em sanguessugas, senhor Martin?
A Surprise, como Jack havia dito, estava amarrada ao cais pela proa e pela popa. O convés estava deserto, já que Tom Pullings e o contador estavam em terra tratando
de decifrar as contas dos comerciantes de Riga e um grande número de tripulantes estavam de licença até a seis. West era o único oficial que se encontrava no castelo
de popa e todos os marinheiros que teciam esteiras e faixas para proteger os cabos no castelo eram de Shelmerston. Bocejava e olhava distraidamente por cima do coroamento
quando viu uma mulher, exageradamente bonita, correndo a cavalo para o cais seguida por um moço. Ela desmontou em frente da fragata, entregou as rédeas ao moço,
subiu rapidamente a bordo pela proa e se foi abaixo.
- Ei, um momento! - gritou, correndo atrás dela -, este é o camarote do doutor Maturin.
- Sou sua esposa, senhor - disse ela -. Peço que mande o carpinteiro pendurar uma maca para mim aqui - acrescentou assinalando o lugar.
Depois se inclinou para frente e assomou a cabeça pelo escotilhão.
- Aí estão! - gritou -. Por favor, ordene aos marinheiros que se preparem para ajudá-lo a subir a bordo.
Instou West a sair da cabine e subir para o convés e lá ele e os assombrados marinheiros do castelo viram um coche azul e dourado puxado por quatro cavalos e escoltado
por soldados de um regimento da cavalaria com casacas de cor lilás com as bordas prateadas. A carruagem avançava lentamente pelo cais e o capitão e um oficial do
Exército sueco estavam sentados no assento, enquanto que o cirurgião e seu ajudante estavam assomados pela janela. E todos eles, acompanhados agora pela dama que
estava no convés, cantavam: "Ah tutti contenti saremo cosí, ah tutti contenti saremo, saremo cosí..." com voz potente mas melodiosa e com uma imensa alegria.
x
x
x
x
x
{1} Monterilla: vela triangular que em tempo sereno se larga sobre os últimos joanetes.
{2} Nunc est bibendum: Agora é hora de beber.
{3} Ballestrinque: Mar. Nó marinheiro que se forma com duas voltas de cabo, dadas de tal modo que resultam cruzados os chicotes.

 

 

                                                                                                    Patrick O'brian

 

 

 

                                          Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades