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A paz conjugal (em francês: La Paix du ménage), apesar de ser uma das novelas menos conhecidas e de extensão reduzida, é uma das obras mais densas de A comédia humana.
Dir-se-ia uma pequena joia, trabalhada com incrível requinte até na saliência mais insignificante do engaste, polida nas menores facetas da pedra. Começa por uma admirável síntese da história dos costumes de uma época das mais movimentadas, a das guerras napoleônicas. Em poucas frases o autor nos introduz nos bastidores de uma sociedade efêmera, ciente da brevidade de sua existência e por isso mesmo ávida de viver e gozar, queimada por uma febre voraz, impaciente de tudo saborear, pouco escrupulosa, desdenhosa das formas. E logo entramos num baile, espécie de laboratório onde se misturam todos esses apetites, ambições e paixões, um campo de experiência de atmosfera extremamente carregada, onde os olhares fuzilam e as evoluções dos pares despedem centelhas elétricas. Desde o começo, sente-se essa tensão, cada vez mais nítida e interessante, à medida que o leitor, em sua volta pelo salão, surpreende aqui e ali fragmentos de conversas. Ao cabo de poucas páginas estamos tão identificados com os sentimentos e as intenções das figuras que seguimos com impaciente interesse o duelo frenético e mudo de várias delas, duelo todo de olhares que se cruzam e são “como fachos trazidos para o desenlace de uma tragédia”. Chegamos a simpatizar até com essas antigas belezas que, como a sra. de Lansac, vêm aos bailes como os velhos marinheiros vão assistir às primeiras manobras dos novatos. E com que gozo descobrimos os fios tênues e quase imperceptíveis urdidos pela esperta matrona, e com que delícia aplaudimos o bom êxito da virtude que, para vencer, não hesitou em disfarçar-se em vício. As poucas páginas desta novela bastam para dar toda a medida do “fluido vital” (para nos servirmos de uma expressão cara a Balzac) que corre por toda a obra do romancista, abolindo os limites entre a realidade e a ficção. Usando de um processo tipicamente seu, o autor promove, aliás, essa fusão ao pôr termo à vida de uma das personagens num “fato do dia” real.
Numa nota publicada no fim da primeira edição de A paz conjugal, o próprio Balzac assinala que, depois de ter escrito a sua obra, encontrou, por curiosa coincidência, o assunto dela resumido em três linhas no Anatole, de Delphine Gay. Mas se A paz conjugal não foi inspirada pelo romance da sra. Gay, provavelmente o foi—segundo aventou André Bellessort em Balzac et Son Oeuvre - pela Aventura do diamante, episódio dos Divertimentos sérios e cômicos (em francês: Amusements sérieux et comiques), de Charles Rivière Dufresny, autor cômico do fim do século XVII. Balzac manteve todos os elementos do enredo; apenas acrescentou a figura da velha duquesa, a quem encarrega de conduzir os fios da ação, papel que na historieta de Dufresny cabe ao acaso. No entanto, a transformação é imensa. Nas mãos do criador do romance moderno, o conto frívolo transforma-se num pequeno drama e, ao mesmo tempo, numa cena sumamente característica do começo do século XIX, num verdadeiro documento social.
A aventura narrada nesta cena passou-se em fins de novembro de 1809, momento em que o fugaz império de Napoleão atingia o apogeu de seu esplendor. As fanfarras da
vitória de Wagram ecoavam ainda no coração da monarquia austríaca. Assinava-se a paz entre a França e a Coalizão. Reis e príncipes vieram então, como astros, fazer
suas evoluções em torno de Napoleão, que se permitiu o prazer de arrastar a Europa na sua esteira, magnífico ensaio do poderio que ostentou mais tarde em Dresde.
Nunca, no dizer dos contemporâneos, Paris vira festas mais belas do que as que precederam e se seguiram ao casamento desse soberano com uma arquiduquesa da casa
da Áustria; nunca, nos mais faustosos dias da antiga monarquia, tantas cabeças coroadas se reuniram nas margens do Sena, e nunca a aristocracia francesa fora tão
rica, nem tão brilhante, como então. Os diamantes profusamente prodigalizados nos adornos, os bordados a ouro e prata dos uniformes contrastavam tão bem com a indigência
republicana que se tinha a impressão de ver as riquezas do globo a rolar nos salões de Paris. Uma embriaguez geral como que se havia apoderado desse império de um
dia. Todos os militares, sem exceção do chefe, gozavam, como parvenus, dos tesouros conquistados por um milhão de homens de dragonas de lã, cujas exigências se satisfaziam
com algumas varas de fita encarnada. Nessa época, a maioria das mulheres ostentava essa liberdade de costumes e o relaxamento da moral que assinalaram o reinado
de Luís XV. Ou fosse para imitar o tom da monarquia esboroada, ou porque certos membros da família imperial tivessem dado o exemplo, como pretendiam os maldizentes
rebeldes do Faubourg Saint-Germain, o que é certo é que homens e mulheres, todos se atiravam aos prazeres com uma intrepidez que fazia pressagiar o fim do mundo.
Mas existia, então, um outro motivo para essa licenciosidade. A predileção das mulheres pelos militares tinha-se tornado uma espécie de frenesi, e estava tão de
acordo com os desejos do imperador que este de modo nenhum lhes opunha freio algum. As guerras sucessivas, que faziam com que todos os tratados, firmados entre a
Europa e Napoleão, se assemelhassem a simples armistícios, expunham as paixões a desenlaces tão rápidos quanto as decisões do chefe supremo daqueles colbaques, daqueles
dolmans e daqueles alamares que tanto agradavam ao belo sexo. Naquele tempo os corações eram nômades como os regimentos. De um primeiro a um quinto boletim do Grande
Exército, uma mulher podia ser sucessivamente amante, esposa, mãe e viúva. Seria a perspectiva de uma viuvez próxima, de uma dotação ou a esperança de usar um nome
destinado à história que tornaram os militares tão sedutores para as mulheres? Teriam sido elas arrastadas para eles pela certeza de que o segredo de seus amores
ficaria enterrado nos campos de batalha, ou se deverá procurar a causa desse doce fanatismo na nobre atração que a coragem exerce sobre elas? É possível que essas
razões, que o futuro historiador dos costumes do Império se divertirá sem dúvida em avaliar, contribuíssem todas, de alguma forma, para a facilidade com que elas
se entregavam às paixões. Seja como for, confessemo-lo aqui: os louros acobertaram então muitas faltas; as mulheres procuraram com ardor esses ousados aventureiros
que se lhes afiguravam verdadeiras fontes de honrarias, riquezas ou prazeres, e, aos olhos das moças, uma dragona, esse futuro hieróglifo, significava felicidade
e liberdade. Um dos traços dessa época única nos nossos anais, e que a caracterizam, foi uma paixão desenfreada por tudo que brilhava; jamais houve tanto fogo de
artifício, jamais o brilhante alcançou tão grande valor. Os homens, com avidez igual à das mulheres, enfeitavam-se como estas, com aquelas pedrinhas transparentes.
Talvez a necessidade de dar à presa a forma mais fácil de ser transportada tornasse as joias tão estimadas no Exército. Um homem, naquele tempo, não era tão ridículo
como o seria hoje quando o peito de sua camisa ou os seus dedos exibiam enormes diamantes. Murat, um verdadeiro tipo de oriental, deu o exemplo de um luxo absurdo
num militar moderno.
O conde de Gondreville, que se chamava outrora o cidadão Malin e se tornara famoso pelo rapto de que fora vítima (O rapto de que fora vítima o conde de Gondreville
é contado em Um caso tenebroso.), um dos Luculos daquele Senado conservador que nada conservou, não protelara sua festa em comemoração da paz, senão para melhor
fazer sua corte a Napoleão, esforçando-se por eclipsar os bajuladores que se lhe haviam antecipado. Os embaixadores de todas as potências amigas da França em benefício
de inventário, as personagens mais importantes do Império, até mesmo alguns príncipes estavam naquele momento reunidos nos salões do opulento senador. As danças
estavam esmorecendo. Todos esperavam o imperador, cujo comparecimento fora prometido pelo conde. Napoleão teria cumprido com a palavra, não fora a cena que explodira
naquela mesma tarde entre Josefina e ele, cena que revelou o próximo divórcio do augusto casal. A notícia dessa aventura, mantida no momento em grande segredo, mas
que estava sendo recolhida pela história, não chegou aos ouvidos dos cortesões e não influiu senão pela ausência de Napoleão na alegria da festa do conde de Gondreville.
As mais belas mulheres de Paris, solícitas de ali comparecer, atraídas pelo boato, realizavam naquele momento uma competição de luxo, de coqueteria, de adornos e
de beleza. Os banqueiros, orgulhosos das suas riquezas, desafiavam aqueles brilhantes generais e grandes titulares do Império, recentemente cumulados de cruzes,
de títulos e condecorações. Esses grandes bailes eram sempre oportunidades aproveitadas pelas famílias ricas para exibir suas herdeiras aos olhos dos pretorianos
de Napoleão, na falaciosa esperança de trocar seus magníficos dotes por um favor incerto. As mulheres que se julgavam bastante poderosas, exclusivamente por sua
beleza, vinham experimentar seu poder. Ali, como por toda parte, o prazer nada mais era do que uma máscara. Os semblantes serenos e risonhos, as frontes calmas encobriam
odiosos cálculos; as manifestações de amizade mentiam, e mais de uma personalidade desconfiava menos dos inimigos que dos amigos. Essas observações eram necessárias
para explicar os acontecimentos do pequeno imbróglio, assunto desta cena, e a pintura, por mais atenuada que seja, do tom que então reinava nos salões de Paris.
— Olhe um momento para aquela coluna partida que suporta um candelabro; não está vendo uma jovem senhora penteada à chinesa? Ali, naquele canto à esquerda; a que
tem flores azuis nos cabelos castanhos que lhe tombam em tufos sobre a fronte. Não está vendo? Está tão pálida que até parece doente; é mimosa e pequenina; olhe,
virou agora a cabeça para o nosso lado; seus olhos azuis, em forma de amêndoa e meigos de enternecer, parecem feitos de propósito para chorar. Mas, repare! Ela se
inclina para ver a sra. de Vaudremont, através dessa confusão de cabeças, sempre em movimento, cujos penteados altos lhe interceptam a vista.
— Ah! já vi, meu caro! Bastava teres dito que era a mais clara de todas as mulheres aqui presentes, e eu a teria reconhecido; já a tinha notado; tem a mais bela
tez que jamais admirei. Desafio-te a que distingas daqui, no seu pescoço, as pérolas que separam as safiras de seu colar.
— Mas essa criatura deve ser ou muito pudica ou muito coquete, porque os babados do seu vestido mal e mal deixam suspeitar da beleza das suas formas. Que ombros!
Que alvura de lírio!
— Quem é?—perguntou o que primeiro falara.
— Ah! Isso não sei.
— Aristocrata! Mas então, Montcornet, queres guardá-las todas para ti?
— Era só o que faltava, troçares de mim!—replicou Montcornet, sorrindo. -Julgas-te com direito de insultar um pobre general como eu, pelo fato de, rival feliz de
Soulanges, não fazeres uma única pirueta sem que a sra. de Vaudremont fique alarmada? Ou será porque faz apenas um mês que eu cheguei à terra prometida? Como sois
insolentes, vós outros administradores, que ficais grudados numa cadeira, enquanto nós estamos no meio dos obuses! Vamos, senhor referendário, deixe-nos mandar no
campo cuja posse precária só lhes é concedida no momento em que o abandonamos. Que diabo, todos precisam viver. Ah!, meu caro, se conhecesses as alemãs, estou certo
de que me protegerias junto à tua parisiense.
— Pois bem, general, já que honrou com sua atenção essa jovem dama, a quem vejo pela primeira vez, diga-me por caridade se a viu dançar.
— Ora essa, meu caro Marcial, de onde vens? Auguro mau de teu êxito, se te enviarem em embaixada. Não estás vendo três filas das mais intrépidas coquetes de Paris,
entre ela e o enxame de bailarinos que zumbem embaixo do lustre? E não te foi preciso o auxílio do teu lornhão para descobri-la junto àquela coluna, onde ela parece
estar enterrada no escuro, apesar das velas que lhe brilham por sobre a cabeça? Entre ela e nós, tantos diamantes e tantos olhares cintilam, tantas plumas flutuam,
tantas rendas, flores e tranças ondulam que só por um verdadeiro milagre algum dançarino a poderia descobrir no meio de tantos astros. Como é, Marcial, que não adivinhaste
nela a esposa de algum subprefeito da Lippe ou da Dyle (Lippe: principado da Alemanha, nesse momento sob o domínio da França. Dyle: província da Bélgica, que então
formava um departamento francês.), que vem tentar fazer do marido um prefeito?
— Oh!—disse com vivacidade o referendário—e ele o será!
— Não o garanto!—disse a rir o coronel (Neste conto, a mesma personagem é alternadamente chamada de “coronel” e de “general”.) dos couraceiros.—Ela parece-me tão
inexperiente em intrigas ministeriais como tu em assuntos diplomáticos. Aposto, Marcial, que não sabes de que forma ela está aqui.
O referendário olhou para o coronel dos couraceiros da guarda com um ar que revelava tanto desdém quanto curiosidade.
— Pois bem—continuou Montcornet -, seguramente terá chegado às nove em ponto, em primeiro lugar, talvez, terá causado tremendos embaraços à condessa de Grondeville,
que não sabe alinhavar duas ideias. Repelida pela dona da casa, empurrada sucessivamente de uma cadeira para outra pelas recém-chegadas, até às trevas daquele cantinho,
ela se terá deixado encerrar ali, vítima da inveja dessas senhoras, que não desejariam outra coisa senão sepultar essa perigosa figura. Com certeza não achou um
amigo que a encorajasse a defender o lugar que deve ter ocupado de início, no primeiro plano, pois cada uma dessas pérfidas dançarinas terá ordenado aos homens de
sua confraria que não dessem atenção à nossa pobre amiga, sob pena dos mais terríveis castigos. Aí está, meu caro, como essas carinhas tão ternas, tão cândidas na
aparência, devem ter formado sua coligação contra a desconhecida, e isso sem que essas senhoras tenham dito, uma às outras, mais do que: “Conhece, querida, aquela
mulherzinha de azul?”. Olha, Marcial, se te quiseres ver agraciado em um quarto de hora com mais olhares lisonjeiros e perguntas provocantes do que as que poderás
receber em toda a tua vida, tenta atravessar a tríplice trincheira que defende a rainha da Dyle, da Lippe ou da Charente. Verás se a mais bronca daquelas mulheres
não inventará logo um ardil, capaz de impedir o homem mais resoluto de trazer à luz nossa plangente desconhecida. Não achas que ela tem um pouco o ar de uma elegia?
— Parece-lhe, Montcornet? Julga ser ela casada?
— E por que não viúva?
— Porque, nesse caso, seria mais ativa—disse a rir o referendário.
— Será talvez uma viúva, cujo marido joga bouillotte - replicou o belo couraceiro.
— Efetivamente, depois da paz, fazem-se tantas viúvas dessa espécie—respondeu Marcial.—Mas, meu caro Montcornet, somos dois idiotas. Aquela cabeça é demasiado ingênua,
e há demasiada mocidade e frescor naquela fronte e naquelas têmporas para que seja uma mulher casada. Que tons vigorosos tem a carnação dela! Não tem nada emurchecido
nas faces. Os lábios, o mento, tudo naquele rosto é viçoso como um botão de rosa branca, conquanto a fisionomia esteja nublada por um véu de tristeza. Quem poderia
fazer essa jovem chorar?
— As mulheres choram por tão pouca coisa!—disse o coronel.
— Não sei—retorquiu Marcial -, mas não creio que ela chore por estar ali sem dançar; seu desgosto não é de agora; vê-se que ela se aformoseou para esta noite premeditadamente.
Apostaria que ela já está amando.
— Ora! Talvez seja a filha de algum principote alemão, ninguém lhe fala!—disse Montcornet.
— Ah!, como uma pobre moça é infeliz—continuou Marcial.
— Ninguém é mais graciosa, nem mais fina do que a nossa pequena desconhecida. Pois olha: nenhuma das megeras que a cercam, e que se dizem sensíveis, lhe dirigirá
a palavra. Se ela falasse, poderíamos ver se tem dentes bonitos.
— Ora essa! Tu sobes como o leite à menor elevação de temperatura?—exclamou o coronel, espicaçado por encontrar tão rapidamente um rival no amigo.
— Como!—disse o referendário, sem notar a interrogação do general e fixando através do lornhão todas as personagens que os cercavam.—Não haverá aqui ninguém para
nos informar quem é aquela flor exótica?
— Ora, é alguma dama de companhia—disse-lhe Montcornet.
— Qual! Uma dama de companhia ataviada de safiras dignas de uma rainha e um vestido de rendas de Malines? Não me venha com essa, general! O senhor também não será
muito forte em diplomacia, se nos seus julgamentos salta de uma princesa alemã para uma dama de companhia.
O general Montcornet segurou pelo braço um homenzinho gorducho cujos cabelos grisalhos e olhos espirituosos se divisavam em todos os vãos de porta, e que se metia
sem cerimônia em todos os grupos, onde era acolhido respeitosamente.
— Gondreville, meu amigo—disse-lhe Montcornet -, quem é aquela encantadora mulherzinha que está sentada ali embaixo daquele imenso candelabro?
— O candelabro? É um Ravrio, meu caro, cujo desenho foi feito por Isabey.
— Oh! Eu já tinha reconhecido teu gosto e teu fausto no móvel; mas e a mulher?
— A mulher? Não a conheço. Deve ser uma amiga da condessa.
— Ou tua amante, velho sonso.
— Não, palavra de honra! A condessa de Gondreville é a única mulher capaz de convidar pessoas que ninguém conhece.
Apesar desse comentário cheio de azedume, o gorducho homenzinho conservou nos lábios o sorriso de satisfação interior que a suspeita do coronel de couraceiros nele
despertara. Este foi ter de novo com o referendário, que estava então ocupado, num grupo vizinho, em buscar, mas em vão, informações a respeito da desconhecida.
O general agarrou-o pelo braço e disse-lhe ao ouvido:
— Meu caro Marcial, toma cuidado! A sra. de Vaudremont está a olhar-te há algum tempo, com uma atenção desesperadora; sabes que ela é mulher capaz de adivinhar,
só pelo movimento dos teus lábios, o que me estás dizendo; já basta que nossos olhares tenham sido demasiado significativos, e ela bem o percebeu e acompanhou a
direção que tomavam. Creio que, neste momento, ela está mais preocupada com a damazinha de azul do que nós mesmos.
— Isso, Montcornet, é um velho estratagema de general! E, ademais, que me importa? Sou como o imperador, quando faço uma conquista, conservo-a.
— Marcial, tua fatuidade precisa de uma lição. Como! Paisano, tens a sorte de ser o marido designado da sra. Vaudremont, viúva de vinte e dois anos, afligida de
uma renda de quatro mil napoleões, mulher que te enfia no dedo diamantes tão lindos como este—acrescentou, segurando a mão esquerda do referendário, o qual a entregou
complacentemente—e ainda tens a pretensão de querer fazer de Lovelace (Lovelace: nome do sedutor em Clarice Harlowe, famoso romance de Richardson.), como se fosses
coronel e obrigado a sustentar a reputação militar nas guarnições! Sai daí! Trata de pensar em tudo que podes perder.
— Pelo menos a liberdade não perderei—redarguiu Marcial, com um riso forçado.
Lançou um olhar apaixonado à sra. de Vaudremont, a qual lhe retribuiu apenas com um sorriso inquieto, pois vira o coronel a examinar o anel do referendário.
— Ouve, Marcial—disse o coronel -, se começas a adejar em torno da minha jovem desconhecida, vou empreender a conquista da sra. de Vaudremont.
— Estás autorizado, meu querido couraceiro, mas não o conseguirás—disse o jovem referendário, estalando faceciosamente a unha brunida do polegar em um dos seus dentes
superiores.
— Lembra-te que sou solteiro—retrucou-lhe o coronel -, que a minha espada é toda a minha fortuna e que desafiar-me por essa forma é instalar Tântalo (Tântalo: personagem
mitológico que, para experimentar a divindade dos deuses que o vieram visitar, mandou servir-lhes os membros de seu próprio filho. Júpiter castigou-o precipitando-o
no Tártaro e condenando-o a viver eternamente no meio de um rio cuja água lhe escapa sempre aos lábios, debaixo de árvores que levantam os ramos cada vez que lhes
quer colher os frutos.) diante de um banquete que ele devorará.
— Prr!
Esse sarcástico acúmulo de consoantes serviu de resposta à provocação do general, a quem o amigo mediu de alto a baixo com um sorriso zombeteiro. A moda da época
obrigava os homens a usar, para os bailes, calções de cashmere branco e meias de seda. Esse lindo traje punha em relevo a perfeição das formas de Montcornet, que
tinha então trinta e cinco anos e atraía os olhares com essa elevada estatura, exigida para os couraceiros de guarda imperial, e cujo belo uniforme realçava ainda
mais seu garbo, não obstante a gordura incipiente que provinha da equitação. Seus bigodes negros contemplavam a expressão franca de uma fisionomia verdadeiramente
militar, cuja fronte era ampla e altiva, o nariz aquilino e os lábios rubros. As maneiras de Montcornet, imbuídas de certa nobreza, devida ao hábito do comando,
podiam agradar a uma mulher que tivesse o bom senso de não querer escravizar o marido. O coronel sorriu ao olhar o referendário, que era um dos seus melhores amigos
do tempo de colégio e cujo pequeno talhe esbelto o obrigou, para responder ao motejo, a abaixar um pouco seu olhar amistoso.
O barão Marcial de la Roche-Hugon era um jovem provençal, protegido de Napoleão, que parecia destinado a alguma faustosa embaixada. Seduzira o imperador com uma
complacência italiana, com o gênio da intriga, com essa eloquência de salão e essa ciência das maneiras que tão facilmente substituem as qualidades eminentes de
um homem de valor. Embora vivaz e moço, seu rosto já possuía o brilho imóvel do estanho, uma das qualidades indispensáveis aos diplomatas e que lhes permitem esconder
suas emoções, disfarçar seus sentimentos; se é que essa impassibilidade não resulta da ausência de qualquer emoção e da morte dos sentimentos. Pode-se considerar
o coração dos diplomatas como um problema insolúvel, pois os três mais ilustres embaixadores da época (Os três mais ilustres embaixadores da época. Provável alusão
a Talleyrand, Metternich e Chateaubriand.) se assinalaram pela persistência do ódio e por ligações romanescas. Não obstante, Marcial pertencia a essa categoria de
homens capazes de calcular seu futuro em meio aos seus mais ardentes prazeres; já havia julgado a sociedade e escondia sua ambição sob a fatuidade do homem dado
a saias, disfarçando seu talento sob a libré da mediocridade, depois de ter notado a rapidez com que subiam as pessoas que pouca desconfiança inspiravam ao senhor.
Os dois amigos foram obrigados a se separarem, após um cordial aperto de mão. O ritornelo que prevenia as damas para formarem as quadrilhas de uma nova contradança
repeliu os homens do vasto espaço onde conversavam no meio do salão. A rápida conversação acima referida, mantida no intervalo de duas contradanças, realizara-se
em frente à lareira do grande salão do palacete Gondreville. As perguntas e respostas daquela tagarelice, bastante comum em bailes, foram como que sussurradas de
boca a ouvido pelos dois interlocutores. Todavia, as serpentinas e os castiçais da chaminé espargiam uma claridade tão intensa por sobre os dois amigos que seus
rostos vivamente iluminados não puderam disfarçar, apesar de sua discrição diplomática, a quase imperceptível expressão de seus sentimentos, nem à arguta condessa,
nem à cândida desconhecida. Essa espionagem do pensamento é talvez, para os ociosos, um dos prazeres que encontram na sociedade, enquanto muitos tolos ludibriados
nela se aborrecem, sem se animarem a confessá-lo.
Para compreender todo o interesse daquela conversação, é preciso narrar um acontecimento um pouco anterior que, por laços invisíveis, ia reunir as personagens desse
diminuto drama, naquele instante disseminados pelo salão. Cerca das onze horas da noite, no momento em que as damas voltavam para os seus lugares, os convidados
do palacete Gondreville viram surgir a mais bela mulher de Paris, a rainha da moda, a única que faltava naquela esplêndida reunião. Tomara ela por norma nunca chegar
a uma festa senão no momento em que os salões ofereciam essa animação que não permite às mulheres conservar ainda muito tempo o viço do rosto, nem o da toilette.
Esse momento rápido é como que a primavera do baile. Uma hora mais tarde, quando o prazer passou, quando chega o cansaço, tudo fica desmerecido. A sra. de Vaudremont
nunca cometia o erro de ficar numa festa para deixar ver flores pendidas, cachos desencrespados, enfeites amarrotados e com uma face semelhante àquelas que, assediadas
pelo sono, nem sempre o enganam. De modo nenhum deixava ver, como suas rivais, sua beleza adormecida; sabia sustentar habitualmente sua reputação de coquetismo,
saindo sempre de um baile tão brilhante como quando chegara. As mulheres murmuravam aos ouvidos umas das outras, com inveja, que ela preparava e usava tantos adereços
quantas contradanças tinha num sarau. Desta vez a sra. de Vaudremont não ia ser senhora de se retirar, quando bem lhe aprouvesse, do salão onde acabava de entrar
triunfante. Detida um momento no umbral, lançou olhares observadores, embora rápidos, sobre as mulheres cujas toilettes foram logo estudadas, para se convencer de
que a sua eclipsava a todas. A célebre coquete ofereceu-se à admiração da assembleia, conduzida por um dos mais bravos coronéis da artilharia da Guarda, favorito
do imperador, o conde Soulanges. A momentânea e fortuita união dessas duas personagens teve indiscutivelmente algo de misterioso. Ao ouvir anunciar o sr. de Soulanges
e a condessa de Vaudremont, algumas mulheres que “faziam crochê” se levantaram e homens vindos de outras salas se acotovelaram nas portas do salão principal.
Um desses graciosos, que nunca faltam nas reuniões mundanas, disse ao ver a condessa entrar com o seu cavalheiro: “As senhoras estavam com tanta curiosidade de contemplar
um homem fiel à sua paixão quanto os homens de examinar uma linda mulher difícil de prender”. Embora o conde de Soulanges, moço de cerca de trinta e dois anos, fosse
dotado desse temperamento nervoso que engendra as grandes qualidades de um homem, suas formas franzinas e sua tez pálida não advogavam em seu favor; seus olhos negros
revelavam grande vivacidade, mas em sociedade se mostrava taciturno e nada deixava entrever um dos talentos oratórios que deveriam brilhar na direita, nas assembleias
legislativas da Restauração. A condessa de Vaudremont, mulher de boa altura e levemente gorda, com uma pele de alvura deslumbrante, sabendo manter graciosamente
sua cabecinha, e que possuía a vantagem imensa de inspirar amor pela gentileza de suas maneiras, era uma dessas criaturas que não desmentem as promessas de sua beleza.
Esse par, que momentaneamente se tornara alvo da atenção geral, não deixou que a curiosidade se exercesse por muito tempo à sua custa. O coronel e a condessa mostraram
compreender perfeitamente que o acaso os colocara numa situação embaraçosa. Ao vê-los avançar, Marcial precipitou-se para o grupo de homens que ocupavam o posto
da chaminé a fim de observar, através da multidão de cabeças que lhe formavam como que uma muralha protetora, a sra. de Vaudremont, com a atenção ciumenta que dá
o primeiro ardor da paixão: era como se uma voz secreta lhe dissesse que o triunfo de que se orgulhava seria talvez precário; mas o sorriso de fria polidez com que
a condessa agradeceu ao sr. de Soulanges e o gesto que fez para despedi-lo, sentando-se junto à sra. de Gondreville, distenderam todos os músculos que o ciúme contraíra
em sua face. Não obstante, vendo, a dois passos do sofá em que a sra. de Vaudremont se sentara, o sr. de Soulanges, de pé, parecendo não ter compreendido o olhar
pelo qual a jovem coquete lhe dissera estarem os dois desempenhando um papel ridículo, o provençal de cabeça vulcânica franziu de novo as negras sobrancelhas que
lhe sombreavam os olhos azuis, acariciou, para tomar uma atitude, anéis de seus cabelos castanhos e, sem deixar transparecer a emoção que lhe fazia palpitar o coração,
observou a atitude da condessa e a do sr. de Soulanges, enquanto gracejava com os que lhe estavam ao lado. Apertou a mão do coronel que vinha renovar relações com
ele, mas ouviu-o sem prestar atenção em suas palavras, de tão preocupado que estava. Soulanges relanceava olhares serenos pela quádrupla fila de mulheres que enquadrava
o imenso salão do senador, admirando aquela moldura de diamantes, de rubis, de broches de ouro e de cabeças ornamentadas, cujo brilho quase fazia empalidecer a chama
das velas, o cristal dos lustres e os dourados do salão. A calma despreocupada do rival fez com que o referendário perdesse o sangue-frio. Incapaz de dominar a secreta
impaciência que o exacerbava, Marcial dirigiu-se para a sra. de Vaudremont, a fim de cumprimentá-la. Quando Soulanges viu o provençal aproximar-se, dirigiu-lhe um
olhar sem expressão e virou impertinentemente a cabeça. Reinou no salão um grave silêncio, provocado pela curiosidade que chegara ao auge. Todas as cabeças estendidas
apresentavam as expressões mais esquisitas, todos temendo e esperando uma dessas explosões que as pessoas educadas evitam cuidadosamente. De súbito a pálida face
do conde ficou tão vermelha quanto o escarlate da gola do seu uniforme e seu olhar baixou logo ao assoalho, para não dar a perceber a causa de sua perturbação. Ao
ver a desconhecida, humildemente colocada junto ao candelabro, ele passou com ar triste pelo referendário, indo refugiar-se num dos salões de jogo. Marcial e a assistência
acreditaram que Soulanges lhe cedia publicamente o lugar pelo temor ao ridículo, que está sempre ligado aos amantes destronados. O referendário ergueu altivamente
a cabeça, olhou a desconhecida e, depois, quando se sentou desembaraçadamente ao lado da sra. de Vaudremont, ouviu-a com ar tão distraído que não percebeu estas
palavras pronunciadas por trás do leque da coquete:
— Marcial, far-me-á o favor de não usar esta noite o anel que me arrancou. Tenho minhas razões para isso, e lhe explicarei daqui a pouco, quando nos retirarmos.
Dar-me-á o braço para irmos à princesa de Wagram.
— Por que motivo aceitou a mão do coronel?—perguntou o barão.
— Encontrei-o no peristilo—respondeu ela—mas, deixe-me, que nos estão observando.
Marcial foi ter com o coronel de couraceiros. A pequena dama de azul tornou-se então o laço comum da inquietação que agitava, ao mesmo tempo e por motivos diversos,
o couraceiro, Soulanges, Marcial e a condessa de Vaudremont. Quando os dois amigos se separaram, depois do desafio que pôs termo à sua palestra, o referendário precipitou-se
para a sra. de Vaudremont e teve a habilidade de colocá-la no meio da mais brilhante quadrilha. Protegido por essa espécie de embriaguez em que uma mulher se sente
sempre mergulhada pela dança e pelo movimento de um baile, no qual os homens se mostram com o charlatanismo da toilette que não lhes empresta menos atrativos que
às mulheres, Marcial julgou poder entregar-se impunemente à sedução que o atraía para a desconhecida. Se conseguiu ocultar os primeiros olhares que lançou para a
dama de azul à inquieta atividade dos olhos da condessa, não tardou em ser apanhado em flagrante delito; e se conseguiu desculpar uma primeira distração, não pôde
justificar o impertinente silêncio pelo qual respondeu mais tarde à mais sedutora pergunta que uma mulher possa fazer a um homem: “Ama-me esta noite?”. Quanto mais
cismarento se mostrava ele, tanto mais solícita e provocante se tornava ela.
Enquanto Marcial dançava, o coronel ia de grupo em grupo colher informações a respeito da jovem desconhecida. Depois de ter esgotado a complacência de todos os seus
amigos, e mesmo a dos indiferentes, já se havia resolvido a aproveitar um momento em que a condessa de Grondeville estivesse livre para perguntar a ela própria o
nome da misteriosa dama, quando percebeu um pequeno espaço vago entre a coluna partida que suportava o candelabro e os dois sofás que a ele se uniam. O coronel aproveitou
o instante em que a dança deixava desocupada a maior parte das cadeiras, que formavam várias fileiras de fortificações, defendidas por mamães ou por senhoras já
um pouco maduras, e tentou atravessar aquela paliçada coberta de xales e de lenços. Pôs-se a saudar as matronas e depois, de mulher em mulher, de cortesia em cortesia,
acabou por atingir o espaço vago junto à desconhecida. Com o risco de se prender nos grifos e nas quimeras do imenso candelabro, permaneceu sob a chama e a cera
das velas, com grande aborrecimento de Marcial. Demasiado hábil para interpelar bruscamente a pequena dama de azul, que estava à sua direita, o coronel começou por
dizer a uma grande dama, bastante feia, que se achava à sua esquerda:
— Que belo baile, minha senhora! Que luxo! Que movimento! Palavra que todas as mulheres são bonitas! Se a senhora não dança é naturalmente porque não quer.
Essa insípida conversação iniciada pelo coronel tinha por fim fazer falar sua vizinha da direita, que, silenciosa e preocupada, não lhe concedia a menor atenção.
O oficial tinha em reserva uma porção de frases que deviam terminar por um: “E a senhora?”, com o que muito contava. Mas ficou estranhamente surpreendido ao ver
algumas lágrimas nos olhos da desconhecida, a qual parecia inteiramente empolgada pela sra. de Vaudremont.
— A senhora sem dúvida é casada, não?—acabou por perguntar o coronel Montcornet com voz não muito firme.
— Sim, senhor—respondeu a desconhecida.
— O senhor seu marido decerto está presente, não?
— Sim, senhor.
— E então por que a senhora fica aqui neste lugar? Por coquetismo?
A aflita sorriu tristemente.
— Conceda-me, senhora, a honra de ser seu par na próxima contradança e fique certa de que não a trarei novamente para aqui! Vejo junto à lareira uma gôndola vazia,
venha. Quando há tanta gente que se propõe dominar e a loucura do dia é a realeza, não concebo que recuse o título de rainha do baile, que sua beleza merece.
— Não dançarei, senhor.
O tom breve das respostas daquela mulher era tão desanimador que o coronel se viu forçado a abandonar a praça. Marcial, que adivinhara a última pergunta do coronel
e a recusa que recebera, pôs-se a sorrir e passou a mão pelo queixo fazendo brilhar o anel.
— De que está rindo?—perguntou a condessa de Vaudremont.
— Do insucesso desse pobre coronel que acaba de dar um passo em falso...
— Eu lhe tinha pedido que tirasse o anel—interrompeu-o a condessa.
— Não ouvi.
— Se nada ouve hoje, em compensação vê tudo, senhor barão—respondeu-lhe a sra. de Vaudremont, contrariada.
— Ali está um rapaz que exibe um belíssimo brilhante—disse então a desconhecida ao coronel.
— Magnífico—replicou este.—Aquele rapaz é o barão Marcial de la Roche-Hugon, um dos meus mais íntimos amigos.
— Agradeço-lhe por me haver dito seu nome—respondeu a dama -, parece um homem muito amável.
— Sim, mas é um pouco leviano.
— Dir-se-ia que está nos melhores termos com a condessa de Vaudremont—disse a dama, interrogando o coronel com os olhos.—Mais do que melhores.
A desconhecida empalideceu.
— Vamos—pensou o coronel -, ela está apaixonada por esse diabo do Marcial.
— Eu julgava que a sra. de Vaudremont estivesse há muito ligada ao sr. de Soulanges—comentou a dama depois de se refazer do sofrimento íntimo que alterara o viço
do seu rosto.
— Faz oito dias que a condessa o engana—respondeu o coronel.—Mas devia ter visto esse pobre Soulanges quando ela entrou; ele ainda se esforça por não se convencer
da sua desgraça.
— Vi-o—disse a dama de azul. Depois acrescentou um:—Senhor, muito obrigada—cuja entonação equivalia a uma despedida.
Nesse momento, estando a contradança prestes a terminar, o coronel, desapontado, mal teve tempo de se retirar dizendo a si mesmo, à guisa de consolo: “Ela é casada”.
— E então, valente couraceiro!—exclamou o barão, puxando o coronel para o vão de uma janela, a fim de respirar o ar puro dos jardins.—Em que pé está?
— É casada, meu caro!
— E que tem isso?
— Com os diabos, eu tenho bons costumes—replicou o coronel.—Não quero dirigir-me senão a mulheres que eu possa desposar. Aliás, Marcial, ela manifestou-me formalmente
sua decisão de não dançar.
— Coronel, apostemos seu cavalo tordilho contra cem napoleões em como ela dançará esta noite comigo?
— Aceito!—disse o coronel, apertando a mão do fátuo.—Enquanto isso vou ver Soulanges, que talvez conheça essa dama, a qual me pareceu interessar-se por ele.
— Perdeu, meu bravo!—disse Marcial, rindo-se.—Meus olhos se cruzaram com os dela e sou mestre no assunto. Caro coronel, não ficará zangado comigo se eu dançar com
ela depois da recusa que sofreu?
— Não, não, rirá melhor quem rir por último. Aliás, Marcial, sou leal jogador e bom inimigo, previno-te de que ela gosta de diamantes.
Ditas essas palavras, os dois amigos se separaram. O general Montcornet dirigiu-se para a sala de jogos, onde viu o conde de Soulanges sentado a uma mesa de bouillotte.
Embora entre os dois coronéis houvesse apenas a vulgar amizade que os perigos da guerra e os deveres do ofício estabelecem, o coronel de couraceiros ficou sensivelmente
afetado ao ver que o coronel de artilharia, a quem conhecia como homem ponderado, estava metido numa partida em que se podia arruinar. Os montes de ouro e de cédulas,
esparramadas sobre o fatal pano verde, atestavam o furor do jogo. Um círculo de homens silenciosos cercava os jogadores. Ouviam-se, entretanto, por vezes, palavras
como estas: “Passo, jogo, feito, mil luíses, pago”; mas parecia, ao olhar aquelas cinco personagens imóveis, que só se falavam com os olhos. Quando o coronel, assustado
com a palidez de Soulanges, se aproximou dele, o conde estava ganhando. O marechal duque de Isemberg (O marechal duque de Isemberg: personagem balzaquiana que só
aparece nesta cena.) e Keller, um célebre banqueiro (Keller, um célebre banqueiro: personagem de destaque da A comédia humana, particularmente de César Biroteau,
Eugênia Grandet etc.), levantavam-se completamente aliviados de quantias consideráveis. Soulanges mostrou-se mais sombrio ainda ao recolher um montão de ouro e maços
de cédulas; nem sequer contou o dinheiro; um desdém amargo contraía-lhe os lábios, parecia ameaçar a sorte, em vez de lhe agradecer seus favores.
— Ânimo, Soulanges, ânimo!—disse-lhe o coronel e, depois, julgando prestar-lhe um relevante serviço ao arrancá-lo do jogo, acrescentou:—Venha, que tenho uma boa
notícia a dar-lhe, mas com uma condição.
— Qual?—perguntou Soulanges.
— A de responder ao que eu lhe perguntar.
O conde de Soulanges levantou-se bruscamente, pôs o lucro, com ar completamente despreocupado, num lenço que amarfanhara convulsivamente, e sua fisionomia tinha
uma expressão tão bravia, que ninguém se lembrou de dizer que ele se retirava sem desobrigar-se do jogo. O rosto dos presentes pareceu mesmo desanuviar-se quando
aquela cara fechada e tristonha saiu do círculo luminoso que um candelabro projeta sobre a mesa.
— Esses diabos de militares se entendem como ladrões de feira!—disse em voz baixa um diplomata que estava entre os espectadores ao tomar o lugar do coronel.
Unicamente uma fisionomia lívida e cansada virou-se para o novo parceiro e disse, atirando-lhe um olhar que brilhou, mas logo se apagou como a cintilação de um diamante:
— Militar não quer dizer civil, senhor ministro.
— Meu caro—disse Montcornet a Soulanges, levando-o para um canto -, o imperador esta manhã falou de você elogiosamente e sua promoção ao marechalato não me parece
duvidosa.
— O patrão não gosta de artilharia.
— Sim, mas a verdade é que ele aprecia a nobreza e você é um ci-devant! O chefe—continuou Montcornet—declarou que os que se casaram em Paris durante a campanha não
deviam ser considerados em desfavor. E daí?...
O conde de Soulanges parecia não compreender coisa alguma.
— Bem! Agora quero crer—disse o coronel—que me vai dizer se conhece uma encantadora mulherzinha que está sentada perto do candelabro.
Ao ouvir essas palavras, os olhos do conde se animaram, segurou com violência inaudita a mão do coronel.
— Meu caro general—disse ele com voz sensivelmente alterada -, se outro que não você me fizesse essa pergunta, eu lhe partiria a cabeça com este punhado de ouro.
Deixe-me em paz, suplico-lhe. Tenho esta noite mais vontade de estourar os miolos do que... Sinto ódio por tudo o que vejo. Assim é que vou embora. Esta alegria,
esta música, esses semblantes estúpidos, a rir, matam-me.
— Meu pobre amigo—replicou Montcornet com voz meiga, dando tapinhas amistosos na mão de Soulanges -, você é muito arrebatado. Que diria você, se eu lhe afirmasse
que Marcial está tão pouco interessado pela sra. de Vaudremont que até se apaixonou por aquela damazinha!
— Se ele falar com ela—tartamudeou Soulanges enfurecido -, eu o deixarei tão chato como a sua carteira, mesmo que esse tolo estivesse no colo do imperador.
E o conde caiu, como que aniquilado, numa conversadeira para a qual o coronel o encaminhara. Este último se retirou lentamente; compreendera que Soulanges estava
tomado de tão violenta ira que gracejos ou solicitudes de uma amizade superficial seriam insuficientes para acalmá-lo. Quando o coronel Montcornet voltou ao grande
salão de dança, a sra. de Vaudremont foi a primeira pessoa que surgiu ante seus olhos, e ele pôde notar no seu rosto, habitualmente tão calmo, alguns vestígios de
uma agitação mal disfarçada. Havia ao lado dela uma cadeira desocupada, na qual o coronel se sentou.
— Sou capaz de apostar que a senhora está aflita—disse ele.
— Ninharias, general. Quisera já ter partido. Prometi ir ao baile da grã-duquesa de Berg (A grã-duquesa de Berg: Carolina Bonaparte, esposa de Murat.) e tenho de
ir, antes, à casa da princesa de Wagram (A princesa de Wagram: a princesa Elisabeth Marie, sobrinha do rei da Baviera, esposa do marechal Berthier.). O sr. de la
Roche-Hugon, que está a par disso, diverte-se em tecer madrigais a matronas.
— Não é esse exatamente o motivo de sua inquietação, e aposto cem luíses em como ficará aqui esta noite.
— Impertinente!
— Quer dizer que acertei?
— Então, que julga que estou pensando?—replicou a condessa, dando uma leve pancada com o leque nos dedos do coronel.—Sou capaz de dar-lhe uma recompensa, se o adivinhar.
— Não aceito o desafio, porque é muito fácil.
— Presumido!
— A senhora tem receio de ver Marcial aos pés...
— De quem?—perguntou a condessa, fingindo-se surpreendida.
— Daquele candelabro—respondeu o coronel, mostrando a bela desconhecida e olhando para a condessa com uma atenção embaraçosa.
— Adivinhou—respondeu a coquete, escondendo o rosto por trás do leque, com o qual se pôs a brincar.—A velha sra. de Lansac, que, como o senhor sabe, é maldosa como
um macaco velho—continuou ela, depois de um momento de silêncio -, acaba de dizer-me que o sr. de la Roche-Hugon corria algum perigo ao cortejar essa desconhecida,
que se acha hoje aqui como uma desmancha-prazeres. Antes ver a morte do que aquele rosto tão cruelmente belo e pálido como uma visão. É a minha asa-negra. A sra.
de Lansac—continuou ela, depois de deixar escapar um gesto de despeito -, que só vem aos bailes para bisbilhotar tudo, fingindo que está dormindo, preocupou-me cruelmente.
Marcial me pagará caro o que me está fazendo. Entretanto, general, já que o senhor é amigo dele, convença-o a que não me dê desgostos.
— Acabo de ver um homem que se propõe nada menos que lhe estourar os miolos, se ele falar com essa mulher. E esse homem, minha senhora, é homem de palavra. Mas eu
conheço Marcial, e sei que esses perigos são outros tantos incentivos. E há mais: nós fizemos uma aposta—acrescentou o coronel, baixando a voz.
— Sério?—perguntou a condessa.
— Palavra de honra.
— Obrigada, general—respondeu a sra. de Vaudremont, lançando-lhe um olhar faceiro.
— Quer dar-me a honra de dançar comigo?
— Sim, mas a segunda contradança. Durante esta, quero ver no que vai dar tudo isso e saber quem é essa pequena dama de azul, que tem um ar tão espirituoso.
O coronel, vendo que a sra. de Vaudremont queria ficar só, afastou-se, satisfeito de ter tão bem iniciado o ataque.
Encontram-se nas festas mundanas algumas senhoras que, semelhantes à sra. de Lansac, ali se acham como velhos marinheiros, ocupados à beira-mar em contemplar os
marujos noviços às voltas com a tempestade. Naquele momento, a sra. de Lansac, a qual parecia interessar-se pelas personagens desta cena, pôde facilmente adivinhar
a luta a que estava entregue a condessa. Por mais que a jovem coquete se abanasse graciosamente, por mais que sorrisse aos rapazes que a saudavam e pusesse em jogo
todas as manhas de que uma mulher se serve para ocultar suas emoções, a matrona, uma das mais perspicazes e maliciosas duquesas que o décimo oitavo século legara
ao décimo nono, sabia ler no seu coração e no seu pensamento. A velha dama parecia decifrar os movimentos imperceptíveis que revelam as afecções da alma. O mais
leve franzido que enrugava aquela fronte tão branca e pura, o mais sensível frêmito das faces, o arquear das sobrancelhas, a menor visível inflexão dos lábios, cujo
móvel coral nada lhe podia esconder, eram para a duquesa como que as letras de um livro. Do fundo da sua ampla poltrona, que seu vestido enchia completamente, a
coquete emérita, enquanto conversava com um diplomata que procurava sua companhia em busca das anedotas que ela contava espirituosamente, admirava-se a si mesma
na jovem coquete; gostou dela, ao vê-la tão bem disfarçar seu pensar e as torturas de seu coração. E, de fato, a sra. de Vaudremont sofria tanta dor quanto fingia
estar alegre: acreditara ter encontrado em Marcial um homem de talento, com cujo amparo ela contava para adornar sua vida de todos os encantos do poder: naquele
momento reconhecia o erro tão cruel para a sua reputação quanto para o seu amor-próprio. Nela, como nas outras mulheres daquela época, a subitaneidade das paixões
lhe aumentava a veemência. As almas que vivem muito, e rapidamente, não sofrem menos do que as que se consomem numa única afeição. A predileção da condessa por Marcial
datava da véspera, na verdade, mas o mais inepto dos cirurgiões sabe que o sofrimento causado pela amputação de um membro vivo é mais doloroso do que a de um membro
doente. Na simpatia da sra. de Vaudremont por Marcial havia futuro, ao passo que sua paixão precedente era sem esperança e envenenada pelo remorso de Soulanges.
A velha duquesa que aguardava o momento oportuno para falar à condessa apressou-se em se livrar do diplomata, porquanto em presença de amantes arrufados todo e qualquer
outro interesse empalidece, mesmo para uma mulher velha. Para iniciar a luta, a sra. de Lansac lançou à sra. de Vaudremont um olhar sardônico que fez a jovem coquete
temer que sua sorte fosse parar às mãos da matrona. Há olhares de mulher para mulher que são como fachos trazidos para o desenlace de uma tragédia. Só quem conhecesse
a duquesa poderia compreender o terror que as manifestações de sua fisionomia inspiravam à condessa. A sra. de Lansac era alta, suas feições faziam dizer dela:—Eis
uma mulher que deve ter sido linda!—Punha tanto carmim nas faces que suas rugas quase não apareciam mais, entretanto, em vez de receber um brilho factício desse
carmim carregado, seus olhos nem por isso eram menos embaciados. Adornava-se com uma quantidade enorme de diamantes, e vestia-se com gosto suficiente para não beirar
o ridículo. Seu nariz pontudo prenunciava o epigrama. Uma dentadura bem colocada conservava-lhe na boca um ríctus de ironia que lembrava o de Voltaire. Entretanto,
a apurada polidez de suas maneiras adoçava tão bem a feição maliciosa de suas ideias que não era possível acusá-la de maldade. Os olhos cinzentos da velha dama se
animaram; um olhar triunfante acompanhado de um sorriso que significava: “Bem que eu dizia!” atravessou o salão e fez surgir o rubor da esperança nas faces pálidas
da jovem senhora, que gemia junto ao candelabro. Essa aliança entre a sra. de Lansac e a jovem desconhecida não podia escapar ao olhar atilado da condessa de Vaudremont,
a qual entreviu um mistério e quis desvendá-lo.
Nesse momento, o barão de la Roche-Hugon, depois de ter interrogado todas as matronas, sem poder saber o nome da dama de azul, dirigia-se, em desespero de causa,
à condessa de Gondreville, não recebendo dela mais do que esta resposta pouco satisfatória:
— É uma dama que a antiga duquesa de Lansac me apresentou.
Ao voltar-se, por acaso, para a poltrona ocupada pela velha senhora, o referendário surpreendeu o olhar de inteligência por ela lançado para a desconhecida e, embora
de havia muito não estivesse em bons termos com ela, resolveu abordá-la. Ao ver o irrequieto barão rondando em torno à sua poltrona, a velha duquesa sorriu com malícia
sardônica e olhou para a sra. de Vaudremont com um ar que fez rir o coronel Montcornet.
— Se a velha cigana toma seus ares amistosos—pensou o barão -, é sinal de que me vai pregar uma das suas.
— Senhora—disse ele -, dizem que a senhora se encarregou da guarda de um tesouro bem precioso.
— Toma-me por um dragão?—perguntou a velha dama.—Mas de quem está falando?—acrescentou com uma voz tão doce que fez renascer a esperança em Marcial.
— Daquela pequena dama desconhecida, que a inveja de todas essas coquetes relegou para aquele canto. Com certeza conhece a sua família?
— Sim—disse a duquesa.—Mas que interesse pode causar-lhe uma herdeira provinciana, casada faz pouco tempo, moça de bom nascimento, que os senhores aqui não conhecem,
pois ela não vai a parte alguma?
— Por que motivo ela não dança? Se é tão bela! Quer que façamos um tratado de paz? Se se dispuser a informar-me de tudo o que eu tenho interesse em saber, juro-lhe
que seu pedido de restituição dos bosques de Navarreins pelo Domínio Extraordinário, será calorosamente advogado junto ao imperador.
O ramo mais novo da casa de Navarreins esquartela de Lansac, que é de blau com um bastão decotado de prata, acompanhado de seis ferros de lança também de prata dispostos
em pala, e a ligação da velha dama com Luís XV valera-lhe o título de duquesa por diploma; e, como os Navarreins ainda não tinham voltado, o que o jovem referendário
propunha à velha dama era uma vileza, insinuando-lhe que reivindicasse um bem que pertencia ao ramo primogênito.
— Senhor—respondeu a velha dama com uma gravidade enganadora -, traga-me aqui a condessa de Vaudremont. Prometo revelar a ela o mistério que torna essa desconhecida
tão interessante. Veja como todos os homens presentes ao baile chegaram ao mesmo grau de curiosidade que o senhor. Os olhares se dirigem involuntariamente para aquele
candelabro, onde minha protegida modestamente se colocou; ela recolhe todas as homenagens que lhe quiseram roubar. Feliz daquele a quem ela conceder uma contradança!—Nisso
ela interrompeu-se, fixando a condessa com um daqueles olhares que tão bem dizem: “Estamos falando de si”, e depois acrescentou:
— Penso que gostaria mais de ouvir o nome da desconhecida dos lábios de sua bela condessa do que dos meus, não?
A atitude da duquesa era tão provocante que a sra. de Vaudremont se levantou e veio para junto dela, sentando-se na cadeira que Marcial lhe ofereceu, sem dar atenção
a este.
— Adivinho, senhora—disse ela a rir, à duquesa -, que estão falando de mim; mas confesso minha inferioridade, pois não sei se é bem ou mal.
A sra. de Lansac apertou com sua mão seca e enrugada a bonita mão da jovem senhora e em tom de compaixão respondeu-lhe em voz baixa:
— Pobre pequena!
As duas mulheres se olharam. A sra. de Vaudremont compreendeu que a presença de Marcial era demais naquele momento e despediu-o com um ar imperioso:
— Deixe-nos!
O referendário, pouco satisfeito em ver a condessa sob a fascinação da perigosa sibila que a atraíra para junto de si, lançou-lhe um desses olhares de homem, de
grande poder sobre um coração ofuscado, mas que parecem ridículos para uma mulher, quando começa a julgar aquele por quem se apaixonou.
— Terá o senhor a pretensão de macaquear o imperador?—disse a sra. de Vaudremont, virando a cabeça de três quartos para contemplar o referendário, com um ar irônico.
Marcial era demasiado conhecedor dos usos sociais, e demasiado sutil e calculista para que se expusesse a romper com uma mulher tão bem-vista na corte, e a quem
o imperador queria casar; de resto, contava com o ciúme que se propunha despertar nela como o melhor meio de adivinhar o segredo de sua frieza, e por isso se afastou
tanto mais prazenteiro, porquanto naquele momento uma nova contradança movimentava a todos. O barão simulou ceder o lugar às quadrilhas e foi apoiar-se ao mármore
de um consolo, cruzou os braços sobre o peito e ficou atento ao diálogo entre as duas mulheres. De quando em quando, seguia os olhares que as duas lançaram repetidas
vezes para a desconhecida. Comparando então a condessa àquela nova beleza que o mistério tornava tão atraente, o barão deixou-se empolgar pelos odiosos cálculos,
habituais aos homens galantes: hesitava entre uma fortuna e o seu capricho a contentar. O reflexo das luzes fazia tão bem sobressair sua fisionomia preocupada e
sombria sobre os cortinados brancos, afundados por seus cabelos negros, que o poderiam comparar a um gênio. De longe, mais de um observador decerto terá dito com
os seus botões: “Ali está mais um pobre-diabo que parece divertir-se à grande!”.
Com o ombro direito levemente apoiado contra o alizar da porta, que fazia se comunicarem o salão de danças e a sala de jogo, o coronel podia rir incógnito, sob seus
bastos bigodes, e gozar do prazer de contemplar o tumulto do baile: contemplava cem lindas cabeças que giravam no capricho da dança; lia no semblante de alguns,
como no da condessa e no de seu amigo Marcial, os segredos de suas preocupações; depois, desviando a cabeça, a si mesmo perguntava que relação existiria entre o
ar sombrio do conde de Soulanges, sempre sentado na conversadeira, e a fisionomia pungente da dama desconhecida, em cujo rosto apareciam ora as alegrias da esperança,
ora as angústias de um terror involuntário. Montcornet ali estava como o rei da festa, achando naquele quadro movimentado uma visão completa do mundo, e ria daquilo
tudo, recolhendo o sorriso interessado de cem mulheres brilhantes e preciosamente vestidas; um coronel da guarda imperial, posto que comportava a graduação de general
de brigada (Como dito anteriormente, neste conto a mesma personagem é alternadamente chamada de “coronel” e de “general”.), era um dos melhores partidos do Exército.
Era cerca da meia-noite. As conversações, o jogo, as danças, o coquetismo, os interesses, as malícias e os projetos, tudo atingia esse grau de calor que arranca
dos lábios de um rapaz a exclamação: “Que lindo baile!”.
— Meu lindo anjinho—dizia a duquesa de Lansac à condessa -, está na idade em que eu cometi muitos erros. Ao vê-la, há pouco, sofrer mil tormentos, tive a ideia de
lhe fazer algumas advertências caridosas. Cometer erros aos vinte e dois anos não será estragar o próprio futuro, não será rasgar o vestido que se vai usar? Creia,
querida, que só muito tarde aprendemos a nos servir dele sem amarrotá-lo. Continue, meu coração, a arranjar inimigos espertos e amigos sem espírito de coerência,
e verá a bela vida que terá de viver um dia.
— Ah!, senhora, é muito difícil para uma mulher ser feliz, não é?—exclamou ingenuamente a condessa.
— Minha querida, na sua idade é preciso saber escolher entre a felicidade e o prazer. Quer casar-se com Marcial, que não é suficientemente tolo para dar um bom marido,
nem suficientemente apaixonado para ser um amante. Ele tem dívidas, querida: é homem capaz de engolir sua fortuna. Isso entretanto nada seria, se lhe desse a felicidade.
Não vê quanto ele é velho? Esse homem deve ter estado muitas vezes doente, hoje goza das sobras. Daqui a três anos será um homem acabado. Começará então o ambicioso,
pode ser que triunfe. Não creio. O que é ele? Um espertalhão que talvez conheça o espírito dos negócios e saiba tagarelar agradavelmente; mas é muito pretensioso
para ter verdadeiro mérito; não irá longe. De resto, olhe-o! Não está escrito no seu rosto que neste momento não é uma mulher jovem e bonita que ele vê em si, mas
sim os dois milhões que a senhora possui? Ele não a ama, querida. Ele a avalia como se se tratasse de um negócio. Se quer casar-se, procure um homem de mais idade,
que seja conceituado e já esteja bem encarreirado. Uma viúva não deve encarar o casamento como uma questão de amoricos. Já se viu um camundongo cair duas vezes na
mesma ratoeira? Agora, um novo contrato deve ser para si uma especulação, e é preciso, ao tornar a casar-se, ter pelo menos a esperança de ouvir se chamar um dia
senhora marechala.
Nesse momento, os olhos das duas mulheres fixaram-se com toda a naturalidade na bela estampa do coronel Montcornet.
— Se quiser viver o difícil papel de uma coquete e não casar—continuou a duquesa, com toda a bonomia -, ali!, minha filha, melhor do que ninguém saberá acumular
as nuvens de uma tempestade e depois dissipá-las. Mas aconselho-a a nunca perturbar a paz dos lares, a nunca destruir a união das famílias e a ventura das mulheres
que são felizes. Eu representei esse perigoso papel, minha querida. Ai de mim, meu Deus, por um triunfo de amor-próprio, assassina-se muitas vezes uma pobre criatura
virtuosa, pois existem na verdade, minha cara, mulheres virtuosas, e atraímos, por essa forma, sobre nós, ódios mortais. Só demasiado tarde aprendi que, segundo
a expressão do duque de Alba, um salmão vale mais do que mil rãs! Não há dúvida de que um amor verdadeiro dá mil vezes mais gozos do que as paixões efêmeras que
excitamos! Pois bem! Vim aqui para lhe pregar um sermão. Sim, a senhora é a causa da minha presença neste salão que recende a plebe. Até atores já vi. Antigamente,
minha querida, nós os recebíamos na alcova, mas no salão nunca! Por que motivo me olha com esse ar tão espantado? Ouça-me: se está disposta a divertir-se à custa
dos homens—continuou a velha dama -, só transtorne o coração daqueles que ainda não estão com a vida assentada, dos que não têm deveres a cumprir; os outros não
nos perdoam as desordens que os fizeram felizes. Aproveite-se dessa máxima que devo à minha velha experiência. Esse pobre Soulanges, por exemplo, a quem a senhora
virou a cabeça e durante quinze meses mantém embriagado, sabe Deus como!, pois bem, sabe em quem recaíam os seus golpes?... Em toda a vida dele. Ele é casado e adorado
por uma encantadora criatura a quem ele ama e engana; ela vive em pranto no mais amargo silêncio. Soulanges teve momentos de remorso mais cruéis do que a doçura
dos seus prazeres. E a senhora, sua manhosa, o traiu! Pois bem, venha contemplar a sua obra.
A velha duquesa segurou na mão da sra. de Vaudremont e as duas se levantaram.
— Olhe—disse a sra. de Lansac, indicando-lhe com o olhar a desconhecida, pálida e trêmula sob o clarão do candelabro -, ali está minha sobrinha-neta, a condessa
de Soulanges; finalmente cedeu hoje à minha insistência e consentiu em deixar o quarto de dores, onde a vista do filho não lhe trazia senão muito fracas consolações:
está vendo? Parece-lhe encantadora, não? Pois bem, minha formosa, imagine daí o que ela devia ser, quando a felicidade e o amor esparziam seu brilho sobre aquele
semblante, hoje emurchecido.
A condessa volveu a cabeça, silenciosamente, e pareceu mergulhar em profundas reflexões. A duquesa levou-a até a porta da sala de jogo e aí, depois de relancear
um olhar, como se procurasse alguém, disse à condessa com tom de voz profundo:
— E ali está Soulanges.
A condessa estremeceu quando entreviu, no canto menos iluminado do salão, o semblante pálido e contraído de Soulanges, o qual estava atirado na conversadeira: o
aluamento de seus membros e a imobilidade de sua fronte diziam eloquentemente de seu sofrimento. Os jogadores iam e vinham por diante dele, sem lhe prestar mais
atenção do que se ele estivesse morto. O quadro apresentado pela mulher lacrimosa e pelo marido triste e sombrio, separados um do outro naquela festa, como as duas
metades de uma árvore partida pelo raio, teve, talvez, algo de profético para a condessa. Assaltou-a o temor de ver naquilo uma imagem das vinganças que lhe reservava
o futuro. Seu coração não se pervertera ainda o bastante para que dele tivessem sido expulsas totalmente a sensibilidade e a indulgência. Apertou a mão da duquesa,
agradecendo-lhe com um desses sorrisos que têm uma certa graça infantil.
— Minha querida filha—disse-lhe a velha senhora, ao ouvido -, lembre-se, daqui por diante, de que tanto sabemos repelir as homenagens dos homens como atraí-los.
— Se não for um tolo, ela é sua!
Estas últimas palavras foram sussurradas pela sra. de Lansac ao ouvido do coronel Montcornet, enquanto a bela condessa se entregava à compaixão que lhe inspirava
o aspecto de Soulanges, a quem ela ainda queria bastante sinceramente para desejar restituí-lo à felicidade, e prometia, a si mesma, empregar o irresistível poder
que suas seduções ainda exerciam sobre ele a fim de fazê-lo voltar para a esposa.
— Oh! Como o vou aconselhar—disse ela à sra. de Lansac.
— Nada disso, minha querida!—exclamou a duquesa, ao voltar para a sua poltrona.—Escolha um bom marido para si e feche sua porta para meu sobrinho. Não lhe ofereça
sequer a sua amizade. Acredite-me, querida, uma mulher não aceita de outra o coração de seu marido, julga-se cem vezes mais feliz crendo que ela própria o reconquistou.
Ao trazer aqui minha sobrinha, penso ter-lhe dado uma excelente oportunidade para recuperar a afeição do marido. Como cooperação para esse fim, tudo o que lhe peço
é provocar o general.
E, quando lhe indicou o amigo do referendário, a condessa sorriu.
— E então, senhora, sabe finalmente o nome daquela desconhecida?—perguntou o barão à condessa, com ar amuado, quando ficaram a sós.
— Sim—disse a sra. de Vaudremont encarando o referendário.
Sua fisionomia revelava tanto sutileza quanto alegria. O sorriso que dava vida aos seus lábios e às suas faces, a luz úmida de seus olhos assemelhavam-se a esses
fogos-fátuos que iludem o viandante. Marcial, que ainda se julgava amado, tomou então esse ar de coquetismo com que um homem se pavoneia tão complacentemente junto
da mulher amada e disse com fatuidade:
— E não fica zangada comigo se eu insistir ainda em saber esse nome?
— E não ficará zangado—replicou a sra. de Vaudremont—se por um resto de amor eu não lho disser, e se o proibir de fazer qualquer tentativa junto a essa jovem senhora?
Talvez arrisque a sua vida.
— Senhora, perder suas boas graças não é perder mais do que a vida?
— Marcial—disse severamente a condessa -, é a sra. de Soulanges, e seu marido lhe faria saltar os miolos, se é que o senhor ainda os tem.
— Ah! Ah!—replicou o fátuo a rir.—O coronel deixará viver em paz o homem que lhe roubou seu coração, senhora, e se baterá pela esposa? Que reviravolta de princípios!
Peço-lhe que me permita dançar com aquela damazinha. Poderá assim ter a prova do pouco amor que lhe tributava aquele coração de gelo, porque se o coronel se zangar
por eu dançar com sua mulher, depois de ter suportado que eu lha...
— Mas não vê que ela ama o marido?
— Mais um obstáculo que eu terei prazer em vencer.
— Mas é casada.
— Graciosa objeção.
— Ah!—disse a condessa com um sorriso amargo.—Os senhores nos castigam tanto pelas nossas faltas quanto pelos nossos arrependimentos.
— Não se zangue—disse Marcial com vivacidade.—Oh!, suplico-lhe, perdoe-me. Veja, não me preocupo mais com a sra. de Soulanges.
— Bem merecia que eu o mandasse para junto dela.
— Pois vou—disse rindo o barão -, e voltarei mais apaixonado pela senhora do que nunca. Verá que a mais bela mulher do mundo não se pode apoderar de um coração que
lhe pertence.
— O que quer dizer que deseja ganhar o cavalo do coronel.
— Ah! O traidor!—disse ele, rindo e ameaçando com o dedo o amigo que sorria.
O coronel chegou-se a eles, e o barão cedeu-lhe o lugar junto à condessa, à qual disse com ar sardônico:
— Senhora, eis aqui um homem que se gabou de poder conquistar suas boas graças em um único sarau.
Aplaudiu-se a si mesmo, enquanto se afastava, por ter ferido o amor-próprio da condessa, prejudicando assim a Montcornet; mas, não obstante sua esperteza habitual,
não percebera a ironia de que estavam impregnadas as palavras da sra. de Vaudremont, e tampouco compreendeu que ela dera tantos passos em direção ao coronel quanto
este em direção a ela, ambos sem o saberem. No momento em que o referendário se aproximava borboleteando do candelabro sob o qual a condessa de Soulanges, pálida
e temerosa, parecia viver somente pelo olhar, seu marido assomou à porta do salão com os olhos cintilantes de paixão. A velha duquesa, atenta a tudo, precipitou-se
para o sobrinho, pediu-lhe o braço e sua carruagem para sair, pretextando um tédio mortal e esperançada de assim impedir uma explosão lamentável. Antes de sair,
fez um singular sinal de inteligência à sobrinha, designando-lhe o afoito cavalheiro que se preparava para falar-lhe, e esse sinal parecia dizer-lhe: “Ei-lo, vinga-te”.
A sra. de Vaudremont surpreendeu o olhar da tia e da sobrinha; um súbito clarão iluminou-lhe o espírito e temeu ser ludibriada por aquela velha senhora tão sábia
e tão ardilosa em intrigas.—Aquela pérfida duquesa—disse ela de si para si—é capaz de ter achado divertido pregar-me moral, ao mesmo tempo que me pregava uma das
suas.
Ante esse pensamento, o amor-próprio da sra. de Vaudremont se sentiu mais intensamente interessado do que mesmo a sua curiosidade em desenredar os fios daquela intriga.
A preocupação íntima que a empolgou não a deixou senhora de si mesma. O coronel, interpretando de modo favorável para ele o embaraço que transparecia na conversação
e nas maneiras da condessa, tornou-se mais ardoroso e premente. Os velhos diplomatas calejados, que se divertiam observando as expressões das fisionomias, jamais
haviam deparado com tantas intrigas para acompanhar ou adivinhar. As paixões que agitavam os dois pares variavam a cada passo naqueles salões animados, manifestando-se
com outros matizes em outros semblantes. O espetáculo de tantas paixões ardentes, todas aquelas competições amorosas, aquelas doces vinganças, aqueles cruéis favores,
aqueles olhares incendiados, toda aquela vida chamejante expandida em torno deles, eram outros tantos fatores que os faziam sentir vivamente a sua impotência. Finalmente
o barão pudera sentar-se junto à sra. de Soulanges. Seus olhos vagavam disfarçadamente por sobre um colo fresco como o orvalho, perfumado como uma flor agreste.
Admirava de perto belezas que de longe haviam impressionado. Era-lhe dado ver um pezinho bem calçado, medir com o olhar um corpo flexível e gracioso. Nessa época,
as mulheres usavam cintura alta, sob os seios, numa imitação das estátuas gregas, moda impiedosa para as mulheres cujo busto apresentasse um defeito qualquer. Ao
lançar olhares furtivos sobre aquele colo, Marcial ficou encantado com a perfeição das formas da condessa.
— Não a vi dançar nem uma só vez esta noite, senhora—disse ele com voz meiga e lisonjeira.—Quero crer que não por falta de cavalheiro?
— Não frequento a sociedade, sou nela uma desconhecida—respondeu com frieza a sra. de Soulanges, que nada compreendera do olhar pelo qual sua tia a induzira a procurar
agradar ao barão.
Marcial fez então, para se dar uma atitude, tremeluzir o belo diamante que ornava sua mão esquerda, cujas cintilações pareceram lançar um súbito clarão na alma da
jovem condessa, a qual corou e olhou para o barão com expressão indefinível.
— Aprecia a dança?—perguntou o provençal, tentando reatar a conversação.
— Oh! Muito, senhor.
Ante essa estranha resposta, os olhares de ambos se cruzaram. O rapaz, surpreendido com o acento penetrante, que lhe despertou no coração uma vaga esperança, interrogara
subitamente os olhos da jovem senhora.
— Seria uma temeridade de minha parte, senhora, propor-me para seu par na próxima contradança?
Um ingênuo acanhamento fez enrubescer as faces da condessa.
— Mas, senhor, já recusei um convite, de um militar...
— Será aquele coronel de cavalaria que está ali?
— Justamente.
— Então nada deve temer, senhora, pois é um amigo meu. Concede-me o favor que ouso esperar?
— Sim, senhor.
Sua voz acusava uma emoção tão nova e tão profunda que a alma já cansada do referendário se sentiu abalada. Invadiu-o uma timidez de colegial, perdeu sua confiança
habitual em si mesmo, sua cabeça meridional inflamou-se, quis falar, mas suas expressões lhe pareceram insípidas, comparadas às respostas espirituosas e finas da
sra. de Soulanges. Foi uma sorte para ele o iniciar-se a contradança. De pé, diante de seu belo par, sentiu-se mais à vontade. Para muitos homens a dança é um modo
de ser; pensam, exibindo as graças de seu corpo, atuar mais eficientemente, do que pelo espírito, sobre o coração das mulheres. O provençal queria, sem dúvida, empregar
naquele momento todos os seus meios de sedução, a julgar pela pretensão de todos os seus gestos e movimentos. Conduzira sua conquista à quadrilha, na qual as mais
sedutoras mulheres atribuíam à dança uma quimérica importância, superior a qualquer outra. Enquanto a orquestra executava o prelúdio da primeira quadrilha, o barão
sentia uma incrível satisfação de orgulho, quando, ao passar em revista as damas colocadas nas linhas daquele temível quadrado, percebeu que a toilette da sra. de
Soulanges podia desafiar até a da sra. de Vaudremont, que, por um acaso talvez procurado, fazia, com o coronel, vis-à-vis ao barão e à dama de azul. Os olhares,
por um momento, fixaram-se na sra. de Soulanges: um murmúrio lisonjeiro demonstrou ser ela o objeto das conversações de cada par. Os olhares de inveja e de admiração
cruzavam-se tão insistentemente sobre ela que a jovem senhora, enleada por um triunfo ao qual parecia querer furtar-se, baixou modestamente os olhos, corou, ficando
assim mais encantadora ainda. Se inadvertidamente erguia suas alvíssimas pálpebras, era para olhar seu par inebriado, tal como se lhe quisesse referir as glórias
daquelas homenagens e dizer-lhe que preferia a dele a todas as demais; pôs inocência no seu coquetismo, ou, antes, pareceu entregar-se à ingênua admiração pela qual
começa o amor, com a boa-fé que só se encontra nos corações novos. Quando dançou, os espectadores puderam facilmente acreditar que ela patenteava aqueles encantos
somente para Marcial, e, conquanto modesta e estreante nas lides dos salões, ela soube, tanto ou mais do que a mais hábil coquete, erguer oportunamente os olhos
para ele, e baixá-los com fingida modéstia. Quando as novas leis de uma contradança, inventada pelo bailarino Trénis, e à qual deu seu nome, levaram Marcial diante
do coronel, disse, rindo:
— Ganhei teu cavalo.
— Sim, mas perdeste oitenta mil libras de renda—replicou-lhe o coronel, apontando para a sra. de Vaudremont.
— E que me importa isso!—respondeu Marcial -, se a sra. de Soulanges vale milhões.
No fim dessa contradança, mais de um sussurro zumbia em mais de um ouvido. As mulheres menos bonitas pregavam moral com os seus pares, a propósito da nascente ligação
de Marcial com a condessa de Soulanges. As mais belas se espantavam de tal facilidade.
Os homens não podiam compreender a sorte do pequeno referendário, no qual nada viam de sedutor. Algumas famas indulgentes opinavam que não se deviam apressar em
julgar a condessa: a gente moça seria bem infeliz se um olhar expressivo ou alguns passos de dança graciosamente executados bastassem para comprometer uma mulher.
Só Marcial conhecia a extensão de sua felicidade. Na última figura, quando as damas da quadrilha tiveram de formar o moulinet, seus dedos comprimiram os da condessa,
e ele julgou sentir, através da pele fina e perfumada das luvas, que os dedos da jovem senhora respondiam ao seu amoroso apelo.
— Senhora—disse-lhe ele, no momento em que a contradança terminou -, não volte para aquele odioso canto, onde enterrou até agora a sua pessoa e a sua toilette. A
admiração será acaso a única vantagem que possa auferir dos diamantes que ornam seu colo tão alvo e suas madeixas tão bem trançadas? Venha dar um passeio pelos salões
e gozar um pouco da festa e de si mesma.
A sra. de Soulanges acompanhou seu sedutor, o qual julgava que ela lhe pertenceria com tanto mais certeza quanto mais a pudesse exibir.
Os dois deram então algumas voltas em torno dos grupos que enchiam os salões do palacete. A condessa de Soulanges, inquieta, detinha-se um momento antes de entrar
em cada um dos salões, e só entrava depois de espichar o pescoço, a fim de ver quais os homens que lá estavam. Aquele medo, que saturava o referendário de alegria,
só parecia atenuar-se quando ele dizia à trêmula companheira:
— Tranquilize-se, ele não está aqui.
Foram assim até uma imensa galeria de quadros, situada numa ala do palacete de onde se gozava, por antecipação, do aspecto magnífico de uma mesa de frios, doces
e frutas, preparada para trezentas pessoas. Como iam dar começo à refeição, Marcial levou a condessa para uma alcova oval que dava para os jardins, na qual as mais
raras flores e alguns arbustos formavam um bosquete perfumado, sob brilhantes tapeçarias azuis. O murmúrio da festa ali vinha morrer. A condessa estremeceu ao entrar,
e recusou-se obstinadamente a acompanhar o rapaz, mas depois de ter lançado um olhar a um espelho, viu sem dúvida que havia outras pessoas, porquanto foi sentar-se
de bom grado numa otomana.
— Esta peça é deliciosa—disse ela, admirando um painel azul-celeste, enfeitado com pérolas.
— Tudo aqui respira amor e voluptuosidade—disse o rapaz, intensamente emocionado.
Favorecido pela misteriosa claridade que reinava ali, ele olhou a condessa e surpreendeu no seu rosto, suavemente agitado, uma expressão de enleio, de pudor, de
desejo, que o encantou. A jovem senhora sorriu, e aquele sorriso pareceu pôr ponto final aos sentimentos que se lhes entrechocavam no coração; tomou com o modo mais
sedutor a mão esquerda de seu adorador e tirou-lhe do dedo o anel sobre o qual seus olhos se haviam detido.
— Que belo diamante!—exclamou com a ingênua expressão de uma mocinha que deixa transparecer os pruridos de uma primeira tentação.
Marcial, emocionado pela carícia involuntária, mas perturbadora, que a condessa lhe fizera ao tirar o diamante, pousou sobre ela seus olhos mais brilhantes do que
o próprio anel.
— Queira usá-lo como recordação desta hora divina e pelo amor de...
Ela o contemplava tão extasiada que ele não terminou a frase e beijou-lhe a mão.
— É um presente?—disse ela com um ar de espanto.
— Quisera oferecer-lhe o mundo inteiro!
— Não é isso um gracejo?—perguntou ela com voz alterada por uma satisfação demasiado viva.
— Aceitará somente meu diamante?
— Não o pedirá de novo?
— Nunca.
Ela enfiou o anel no dedo. Marcial, contando com uma ventura próxima, fez um gesto para enlaçar a cintura da condessa, que, repentinamente, se levantou e disse com
voz clara, despida de qualquer emoção:
— Senhor, aceito este diamante com tanto menos escrúpulo, porquanto me pertence.
O referendário ficou perplexo.
— O sr. de Soulanges tirou-o ultimamente de cima do meu toucador e disse-me tê-lo perdido.
— Deve estar enganada, senhora—disse Marcial com ar ofendido -, foi a sra. de Vaudremont que me deu esse anel.
— Precisamente—replicou ela, sorrindo.—Meu marido tomou-me este anel emprestado e deu-o à sra. de Vaudremont; ela lho deu de presente, meu anel viajou, eis tudo.
Este anel me dirá, talvez, tudo o que eu ignoro e me ensinará o segredo de agradar sempre. Senhor—continuou ela -, pode ficar certo de que se este anel não me pertencesse,
eu não me teria aventurado a pagá-lo tão caro, pois, segundo dizem, uma jovem dama corre perigo junto do senhor. Mas, veja—acrescentou, acionando uma mola oculta
sob a pedra -, ainda estão aqui os cabelos do sr. de Soulanges.
E enveredou para os salões com tal presteza que parecia inútil procurar alcançá-la. Marcial, aliás, estava tão confuso que não se sentia disposto a tentar a aventura.
O riso da sra. de Soulanges encontrara eco na alcova, onde o jovem fátuo entreviu, por entre os arbustos, o coronel e a sra. de Vaudremont, que riam gostosamente.
— Queres o meu cavalo para correr atrás da tua conquista?—perguntou o coronel.
O modo gentil como o barão suportou os gracejos com que a sra. de Vaudremont e Montcornet o acabrunharam granjeou-lhe a discrição de ambos sobre os acontecimentos
do sarau, em que seu amigo trocou seu cavalo de batalha por uma jovem, rica e bela senhora.
Enquanto a condessa de Soulanges atravessava o espaço que separa a Chausée d’Antin do Faubourg Saint-Germain, onde residia, sua alma foi alanceada pelas mais vivas
inquietações. Antes de deixar o Palácio de Gondreville, ela percorrera os salões sem encontrar nem a tia, nem o marido, que se haviam retirado sem ela. Horríveis
pressentimentos vieram então atormentar-lhe a alma ingênua. Testemunha discreta dos sofrimentos experimentados pelo marido desde o dia em que a sra. de Vaudremont
o atrelara a seu carro, ela esperava com confiança que um próximo arrependimento lhe devolveria o esposo. Por isso fora com incrível repugnância que consentira no
plano formado por sua tia, a sra. de Lansac, e naquele momento temia ter cometido um erro. O sarau de onde vinha entristecera-lhe a alma cândida. Apavorada a princípio
com o ar doloroso e sombrio do conde de Soulanges, ela mais ainda o ficou ao ver a beleza da rival, e a corrupção da sociedade angustiara-lhe o coração. Ao passar
pela Pont-Royal atirou fora os cabelos profanados, que estavam por baixo do diamante, oferecidos outrora como penhor de um amor puro. Chorou ao lembrar-se dos intensos
sofrimentos que de havia muito padecia e estremeceu mais de uma vez ao pensar que o dever das mulheres que querem obter a paz conjugal as obrigava a enterrar no
fundo do coração, e sem se lamentarem, angústias tão cruéis quanto as suas.
— Ai de mim!—suspirou.—Como farão as mulheres que não amam? Onde a fonte de sua indulgência? Não posso crer, como diz minha tia, que baste a razão para sustentá-las
em tais circunstâncias.
Ainda suspirava quando o lacaio baixou o elegante estribo pelo qual ela desceu e precipitou-se no vestíbulo de seu palacete. Subiu a escada apressadamente e quando
chegou ao quarto estremeceu de terror ao ver o marido sentado junto à lareira.
— Desde quando, querida, vai a bailes sem a minha companhia e sem me prevenir?—perguntou ele com a voz alterada.—Devia saber que uma mulher está sempre deslocada
sem o marido.
Estava singularmente comprometida no canto escuro, onde se aninhou.
— Oh!, meu bom Leão—disse ela com voz carinhosa -, não pude resistir à felicidade de ver-te sem que tu me visses. Minha tia levou-me a esse baile, e me senti lá
bem feliz.
Esse tom desarmou o olhar do conde de sua severidade fictícia, pois acabava de fazer a si mesmo acerbas censuras, temendo a volta da esposa, sem dúvida informada
no baile de uma infidelidade que ele supunha lhe haver ocultado, e, segundo o hábito dos amantes que se sentem culpados, procurava, sendo o primeiro a querelar a
esposa, evitar sua muito justa cólera. Olhou silenciosamente para a mulher, que no seu brilhante vestuário lhe pareceu mais linda do que nunca. Feliz por ver o marido
sorridente e por encontrá-lo a tais horas num quarto aonde, havia algum tempo, ele vinha com menos frequência, a condessa olhou-o com tanta ternura que ele corou
e baixou os olhos. Aquela clemência tanto mais inebriou Soulanges, porquanto se sucedia aos tormentos que ele sofrera durante o baile; apoderou-se da mão da esposa
e beijou-a com gratidão: não se encontra tantas vezes a gratidão no amor?
— Hortênsia, que tens no dedo que tanto me magoou os lábios?—perguntou ele a rir.
— É o meu diamante, que tu me dizias perdido e que eu achei.
O general Montcornet não se casou com a sra. de Vaudremont, não obstante o bom entendimento no qual viveram durante alguns momentos, pois ela foi uma das vítimas
do pavoroso incêndio (O pavoroso incêndio verificou-se, realmente, no baile oferecido pelo príncipe de Schwarzenberg, embaixador da Áustria, por ocasião do casamento
do imperador Napoleão com a filha do imperador Francisco II, em abril de 1810.) que tornou para sempre célebre o baile dado pelo embaixador da Áustria, por ocasião
do casamento do imperador Napoleão com a filha do imperador Francisco II.
Julho de 1829
Honoré de Balzac
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