Biblio "SEBO"
Livro Cinco, Inglaterra, 1022 d.C.
Madre Winifred, prioresa do convento Santa Amélia, olhou pela janela do scriptorium e pensou: primavera!
Oh, abençoadas cores da natureza, pincel de Deus em ação: botões de cereja rosa pálido, amoras vermelhas e pretas, bagas escarlates de pilriteiro e junquilhos amarelo-sol. Oxalá sua própria paleta de pintura fosse tão rica e variada! As iluminuras que poderia criar!
As cores davam esperanças. Talvez este ano o abade lhe permitisse pintar o retábulo do altar.
Seu entusiasmo murchou. Ela tivera o sonho de novo, embora não pudesse realmente chamá-lo de um sonho, pois lhe viera enquanto estava acordada. Uma visão, então, enquanto orava para Santa Amélia. E na visão contemplou o que já tinha visto inúmeras vezes: a vida da santa abençoada, desde a adolescência à conversão ao cristianismo, desde sua prisão por soldados romanos a uma morte de mártir nas mãos do Imperador Nero. Embora Winifired não fizesse idéia de como eram os soldados romanos, ou até mesmo um imperador romano, nem como as pessoas se vestiam e viviam mil anos atrás — e claro que ninguém sabia como Amélia tinha sido, por certo seus ossos não eram examinados havia séculos —, tinha certeza de que a visão era acurada, pois procedia de Deus.
O problema agora era como convencer o abade. Tal qual um osso entre dois cachorros, o retábulo era uma questão que havia preocupado os dois por mais tempo do que Winifred podia lembrar. Ela pedia para trabalhar em algo mais desafiador do que um manuscrito, e o abade (tanto o atual quanto seus antecessores) se opunha, alegando que sua vontade era inconveniente e de fato beirava os pecados do orgulho e da ambição. Embora Winifred aquiescesse a cada vez, pois assumira votos de obediência, sua mente rebelde pensava secretamente: os homens pintam quadros, as mulheres só são boas para letras maiúsculas.
Porque era exatamente isto que Madre Winifred e as irmãs do convento faziam: pintavam letras maiúsculas, conhecidas como iluminuras, que eram tão famosas em toda a Inglaterra. O único problema era que Winifred não queria pintar iluminuras, e era isto que o abade queria que ela pintasse.
Suspirou e lembrou a si mesma que a vida de uma freira se resumia a obediência.
Enfiando as mãos nas volumosas mangas de seu hábito, ia afastar-se da janela, onde se distraíra com os arco-íris da primavera, quando viu Andrew, o idoso zelador do priorado, correndo pelo jardim e acenando com as mãos. Ao perceber o ar de preocupação no rosto dele, Madre Winifred inclinou-se para fora. Nas janelas do convento não havia vidros, já que as freiras não podiam arcar com tal despesa.
Mourejando com seu topete grisalho, Andrew pediu o perdão da prioresa e disse que estava subindo numa árvore, a fim de cortar galhos velhos para servir de lenha, quando vira Padre Edman na estrada vindo nesta direção.
— Suponho que levará uns quinze minutos para chegar aqui.
Winifred reagiu com um brando alarme. Por que ele estava chegando agora? O abade vinha apenas uma vez por mês ao Santa Amélia para ouvir confissões e pegar manuscritos. Ele costumava rezar a missa muito bem, mas agora era ocupado e importante demais para perder tempo com um punhado de freiras idosas. Padres em funções menores eram designados para este dever incômodo.
Acho que deve haver más notícias, madre.
Winifred franziu os lábios. Nunca soubera que o abade alterasse sua agenda para trazer boas notícias. Ainda assim, não havia necessidade de disseminar pânico.
Talvez tenha vindo nos informar que nosso telhado será consertado este ano.
Seria uma notícia abençoada, por certo.
Mas por enquanto não conte nada às outras. Não precisamos perturbá-las sem necessidade. — Agradecendo e pedindo ao zelador que a avisasse quando Padre Edman tivesse alcançado o portão, saiu da janela. Guardando para si a notícia da visita do abade, pois temia que isto preocupasse suas irmãs, seguiu pela fileira de freiras que já estavam no trabalho naquela gloriosa manhã de primavera do século XI de nosso Senhor.
O scriptorium do convento era uma sala ampla contendo uma comprida mesa e escrivaninhas em toda extensão das paredes, onde as irmãs do Santa Amélia se ocupavam no seu requintado trabalho. As persianas ficavam abertas para deixar entrar a luz matinal. As irmãs trabalhavam em silêncio, as cabeças com véus pretos inclinadas sobre a tarefa. Winifred uma vez visitara o scriptorium da abadia de Portminster, onde o silêncio era imposto aos monges beneditinos, embora copiar textos sacros não fosse uma ocupação silenciosa. Alguns monges estavam começando a experimentar a nova leitura silenciosa, mas a maioria ainda lia do modo como as pessoas tinham feito por séculos: em voz alta.
Enquanto os monges na abadia de Portminster escreviam o texto autêntico de um livro, ali no Santa Amélia elas acrescentavam a primeira letra numa página deixada em em branco por eles. E embora fossem as iluminuras e não o texto que haviam ganhado fama em toda a Inglaterra, eram os monges que recebiam o crédito. Madre Winifred aceitou isto como a ordem natural das coisas, pois era obediente a Deus, à Igreja e aos homens. Mesmo assim, às vezes achava que seria ótimo se a perícia, talento e devoção das suas irmãs fossem reconhecidos de uma vez por todas.
Isto levou de volta seus pensamentos para o abade. Sua visão tinha sido tão forte esta última vez que sentiu uma urgência de tocar no assunto com ele. Claro que nunca poderia se dirigir ao abade, mas sim esperar que ele se dirigisse a ela. Em quarenta anos de vida no priorado, Winifred raramente se aventurara além dos seus muros, e mesmo quando o fazia era para percorrer uma curta distância — nas ocasiões em que membros falecidos de sua família eram enterrados no cemitério da aldeia. Uma vez, ela comparecera à posse de Padre Edman como o novo abade de Portminster.
O abade... Muito estranho que estivesse fazendo uma visita não programada naquela manhã específica. Seria a mão de Deus agindo? Seria um sinal de que o abade iria finalmente se abrandar e satisfazer sua vontade? Entenderia ele por fim que o retábulo não era o próprio prazer ou orgulho de Winifred, mas uma dádiva à santa abençoada em gratidão pelo que fizera por ela?
Quando Winifred era criança, vivendo na mansão do seu pai, havia sido possuída por uma misteriosa habilidade para encontrar coisas perdidas, um alfinete, um broche, e certa vez até mesmo um pastelão de carne que fora carregado por um cachorro. A avó disse a Winifred que ela possuía o dom da visão, herdado dos seus ancestrais celtas, mas avisou-a para não contar a ninguém, pois poderiam considerá-la uma feiticeira. Portanto Winifred havia mantido a sua segunda visão em segredo até o dia em que, por acidente, toda a mansão fora vasculhada, de cabo a rabo, em busca de uma colher de prata que sumira. A Winifred de 14 anos a tinha "visto" na despensa, atrás de uma batedeira. Depois de recuperada a colher, todos exigiram saber como ela adivinhara que estava lá. Sem conseguir explicar, foi considerada malévola e culpada. Ganhou uma sova e o pai do garoto a quem havia sido prometida desmanchou o compromisso, alegando fraqueza de caráter por parte da garota. Foi então que se dirigiu à capela de Santa Amélia e orou por ajuda.
Enquanto sua mãe e irmãs continuavam a oferecer preces na capela, Winifred saíra para explorar o local, e quando entrou no scriptorium, onde as irmãs se inclinavam sobre seu trabalho, e viu suas paletas e pigmentos, suas penas e pergaminhos, soube que era ali que desejava permanecer.
O pai de Winifred ficara muito feliz com o pedido da filha de entrar para o convento, e nele Winifred estava vivendo desde então. Nem um dia se passava sem que ela deixasse de oferecer uma prece de graças a Santa Amélia, que a tinha resgatado de um futuro deplorável: uma filha sem casar, sem produzir netos, pouco contribuindo para seu sustento, estava destinada a se tornar a mais desdenhada das criaturas, a tia solteirona cujas famílias eram obrigadas a sustentar e em troca tendo de agüentar maus humores e rabugices.
O scriptorium no Santa Amélia cheirava a óleo e cera, fuligem e carvão, enxofre e matéria vegetativa. Uma névoa pairava no ar enquanto lamparinas ardiam dia e noite, não para iluminar, mas para a coleta do negro-de-fumo necessário para a fabricação de tintas. As freiras também faziam seus próprios pigmentos: o mais fino azul-escuro era extraído do lápis-lazúli, que só vinha do Afeganistão; para obter tinta vermelha usavam zarcão, cinabre ou besouros quermes esmagados; e a fabricação de umas poucas cores constituía um segredo só conhecido dentro daquelas paredes.
A cabeceira da mesa central estava Irmã Edith, que era a mais hábil na aplicação de folha de ouro, o primeiro estágio da iluminura. Era preciso mão especial para aplicar a base de gesso e depois a folha de ouro por cima; um olho arguto para saber quando a fundação estava na umidade certa, para absorvê-la no ponto certo, para pressionar a seda, manejar a ferramenta de polimento até um ponto. Mão mais pesada ou um olho menos arguto que os da Irmã Edith e a ornamentação com folha de ouro seria, na melhor das hipóteses, de segunda classe.
Outra irmã estava pintando uma miniatura de Adão e Eva no Jardim do Eden. Estavam ambos nus, ambos femininos com quadris e ventres arredondados, já que a freira não fazia idéia de como era um homem nu. Quanto à genitália, folhas de figueira eram uma dádiva divina, pois as irmãs não tinham noção de como os homens eram sob suas vestimentas. A própria Madre Winifred, com toda a sua idade, era totalmente ignorante da anatomia humana, mesmo a feminina, jamais tendo assistido num parto ou visto uma mulher desnuda. Era familiarizada com metáforas: a chave do homem para a fechadura da mulher, a espada dele para a bainha dela, e assim por diante. Mas o assunto de copular e procriar estava além da compreensão de Madre Winifred.
Ela nunca pensara em sexo, ou imaginara que sentia falta dele. Até onde entendia (principalmente das histórias que ouvira de damas convidadas ao convento), o sexo tinha sido criado como um esporte para os homens e um suplício para as mulheres. Lembrava-se de quando sua irmã mais velha tinha contraído matrimônio e as primas vieram ajudar a embalar as coisas para sua viagem, de como as garotas deram risinhos ao ver a chemise cagoule, uma camisola volumosa com um pequeno buraco na frente, para permitir fecundação com o mínimo contato corporal.
Por que não descansa um pouco, irmã? — perguntou Winifred para a freira idosa que estava prestes a pintar a serpente.
Sinto muito que eu esteja demorando tanto, madre, mas minha vista...
Isto acontece a todas nós. Ponha o pincel de lado e feche os olhos por alguns minutos. Talvez uns goles de água possam ajudar.
Mas o abade disse...
Winifred franziu os lábios. Desejou que Padre Edman, durante sua última visita, não tivesse sido tão veemente em suas queixas sobre a lentidão cada vez maior da tarefa. Não havia necessidade de perturbar as irmãs com sua crítica. E ainda havia as enfermidades para complicar. Agnes era idosa, era de se esperar que seu trabalho demandasse mais tempo.
Esqueça o abade — disse Winifred, gentilmente. — Deus não deseja que nos esgotemos a serviço Dele. Descanse os olhos e reassuma depois. — Mentalmente acrescentou mais um item a sua lista de pedidos a fazer ao abade: um colírio medicinal para a Irmã Agnes.
Sinos replicaram então, convocando as freiras para as terças, a terceira das sete horas canônicas estabelecidas durante o dia para cântico religioso. Depondo cuidadosamente os pincéis e penas, as freiras sussurraram uma prece sobre o trabalho por terminar, fizeram o sinal-da-cruz e saíram em silêncio.
Depois de passarem pelo claustro velho de séculos, elas se reuniram no coro que era o coração de sua capela: à direita ficava o altar onde as irmãs celebravam a missa; à esquerda, sob um tabique de madeira, situava-se a nave onde as pessoas locais, peregrinos e convidados do convento vinham participar da missa. A capela, um pequeno e modesto prédio feito de pedra, era o coração das humildes estruturas que constituíam o priorado de Santa Amélia, construído três séculos antes. As irmãs, vivendo sob o Regulamento de São Benedito, que exigia silêncio, celibato, abstinência e pobreza, dormiam em celas em um dormitório e comiam num amplo refeitório. Um dormitório levemente mais suntuoso era destinado às residentes permanentes que não eram freiras e sim damas de posses que tinham vindo em retiro. Havia também uma casa de hóspedes para peregrinos e viajantes, embora permanecesse vazia ultimamente. Perto da pequena igreja ficava o capítulo onde as freiras se reuniam para ler o Regulamento e confessar seus pecados, e finalmente o scriptorium onde passavam a maior parte de suas horas. Todas estas estruturas de pedra estavam dispostas em volta do claustro, um retângulo de colunatas arqueadas onde as irmãs faziam seu exercício. Do interior destes muros frios, cinzentos e silenciosos vinham os mais espantosamente belos manuscritos de toda a Inglaterra.
Winifred observou o punhado de irmãs enquanto entravam na frisa do coro para cantar. Certa vez tinham formado um grupo amplo, mas agora estava reduzido, suas componentes frágeis e idosas, sem uma única noviça jovem entre elas. Não obstante, Winifred era uma rígida disciplinadora e inspecionava suas freiras todas as manhãs para ver se os hábitos estavam imaculados: túnica preta, escapulário e véu; touca branca e faixa na cabeça. Em tempo inclemente ou para raras viagens fora do convento, elas usavam pelerines pretas com capuz. Cada uma tinha um cinto de corda em volta da cintura, do qual pendia um rosário e uma faca de pão. Suas mãos nunca deviam ser vistas a não ser dentro de luvas, os braços cruzados à cintura por trás do escapulário. Os olhos estavam sempre voltados para baixo em modéstia e humanidade. Embora as conversas fossem permitidas, às vezes eram mantidas em tom baixo com um mínimo de palavras.
Como em todos os conventos na Inglaterra, o noviciado só era aberto às mulheres da nobreza. Mulheres da classe média tinham pouca esperança de ser aceitas num convento e camponesas não possuíam a menor chance. Winifred gostaria de abrir a irmandade para mulheres de classe média com vocação e posses, e talvez até para a ocasional garota camponesa que merecesse. Mas as regras eram aquelas e não podia mudá-las. O Santa Amélia estava também equipado para receber moças estudantes residentes — filhas de ricos barões — para aprender bordado, etiqueta, e aquelas com pais de mente liberal, a ler e escrever latim e treinar a aritmética básica, de modo que um dia se tornassem capazes de administrar uma casa. O Santa Amélia também costumava abrigar viúvas com dinheiro e nenhum lugar para ir e mulheres buscando refúgio de maridos e pais abusivos—um santuário feminino livre de homens e da dominação masculina.
Elas já tinham formado uma comunidade próspera de quase sessenta almas. Agora havia apenas onze, incluindo a própria Madre Winifred. Os demais eram sete irmãs veladas, duas idosas da nobreza que já viviam lá havia muito tempo para se mudarem para o novo convento, e Andrew, o idoso zelador, criado no convento desde a infância, quando tinha sido abandonado no portão dentro de um cesto.
Era por causa do novo convento a dezesseis quilômetros de distância, construído cinco anos antes e abrigando uma relíquia muito mais importante que os ossos de uma santa, que o Santa Amélia agonizava. O outro convento estava atraindo as noviças, damas convidadas, garotas estudantes em busca de instrução, peregrinos e viajantes, todos enchendo os alojamentos e os cofres do Convento da Vera Cruz. Winifred tentava não pensar nas escrivaninhas vazias no scriptorium, nos tinteiros havia muito tempo secos e em suas irmãs remanescentes que labutavam nas iluminuras e que, tal como ela, estavam envelhecendo. O priorado do Santa Amélia tinha perdido pupilas e noviças para o Convento da Vera Cruz porque houvera relatos de curas miraculosas por lá: esposas ficando grávidas, barões fazendo fortunas. O abade dissera a Winifred que já fazia muito tempo que nenhum milagre era realizado no Santa Amélia. Mas Winifred achava que Amélia realizava milagres todo dia — era só olhar para as iluminuras!
Não obstante, os peregrinos tinham parado de vir. Como se podia competir com o Vera Cruz? Os peregrinos raramente visitavam ambos os santuários — quando se viaja muitos quilômetros por uma bênção ou uma cura, a pessoa escolhe uma lasca da árvore do sofrimento de Cristo em vez dos ossos de uma mulher — e assim o Santa Amélia ia ficando cada vez mais para trás à cada ano.
E, por fim, quem podia competir com juventude e riqueza? Winifred estava na casa dos cinqüenta e não tinha mais família. Quando seu irmão rico e com ligações políticas ainda era vivo, seu lugar estava seguro. Mas ele estava morto agora, suas irmãs e cunhados todos falecidos, sua família sem um tostão e recentemente desaparecida. O novo convento, porém, era mantido pelo pai da nova prioresa, Oswald de Mercia, que era muito rico e muito generoso. E, claro, tinha pleno apoio da abadia.
A Abadia de Portminster, situada no alto de uma colina sobranceira à pequena cidade de Portminster e ao rio Fenn, originou-se de uma guarnição romana estabelecida em 84 d.C. na costa oriental da Inglaterra que tinha se desenvolvido numa cidade portuária adequadamente chamada Portus, famosa por sua baía protegida e comércio de enguias, uma atividade que continuou até os dias de Winifred. No século IV, os restos mortais de Santa Amélia haviam sido trazidos de Roma para Portminster por cristãos buscando refúgio da perseguição do Imperador Diocleciano. Um grupo de monges eremitas, vivendo num monasterium nos arredores de Portus, adotou a santa fugitiva e deu-lhe refúgio. Ao longo dos séculos a influência anglo-saxã corrompeu a palavra "monasterium" para "mynster", e quando surgiu uma igreja recém-construída deram-lhe o nome de Portus Mynster. No ano de 882, dinamarqueses pilharam e incendiaram Portminster, mas os restos mortais de Santa Amélia foram mais uma vez resgatados e escondidos numa pequena comunidade de irmãs sacras que viviam num priorado que se situava no fim de uma esquecida estrada romana.
Um século depois, quando monges beneditinos chegaram e construíram uma abadia em Portminster, houve discussão sobre o que fazer com os ossos de Santa Amélia. Decidiu-se por fim permitir que continuassem no modesto priorado porque à época uma reputação já se estabelecera acerca dos milagres realizados pela santa, atraindo peregrinos e visitantes de toda parte. Santa padroeira das doenças do peito, dizia-se que Amélia curava tudo, desde pneumonia a colapso cardíaco — alguns chegavam a declarar que a santa abençoava outras aflições do coração, ou seja, mal de amor. Assim, o priorado cresceu em fama e riqueza, enquanto a Abadia de Portminster, que ficava a doze quilômetros de distância e governava o priorado, já havia alcançado uma reputação espantosa por sua produção de exóticos manuscritos com iluminuras.
Enquanto as freiras entoavam o cântico religioso para a terça, os olhos de Winifred desviaram-se para o altar onde ficava o pequeno relicário que continha os ossos de Santa Amélia. Ela retratou seu retábulo imaginado por trás dele: um tríptico de três painéis de madeira com debruns dourados, cada um com quatro braços de altura e três braços de largura. No primeiro ela iria retratar a conversão de Amélia ao cristianismo; no segundo suas missões aos doentes e pobres; e por fim, Amélia agarrando o peito e comandando seu coração a parar antes que os soldados romanos pudessem forçá-la a renunciar a sua fé.
Os olhos de Winifred voltaram-se para o andaime empoeirado que abraçava o teto acima do altar. As escoras e abraçadeiras que tinham sido erguidas cinco anos antes, quando o abade prometera reformar o teto. Contudo, com a abertura do novo convento e todo o dinheiro de Oswald vertendo naquela direção, o abade considerara este projeto de reforma um desperdício, e ele foi cancelado. Mas os operários tinham deixado o andaime, e para Winifred a sua presença era quase uma zombaria.
Enquanto as irmãs erguiam as vozes em Salve Regina, Winifred vislumbrou uma sombra do outro lado da tela destinada a separar os leigos das freiras. Era Andrew.
-— O abade está no último trecho do caminho — disse ele baixinho, os olhos arregalados de preocupação,
Obrigado, Andrew — murmurou ela. — Vá recebê-lo no portão.
Deixando as irmãs com seu cântico, Winifred apressou-se pelo claustro em direção à cozinha, onde uma mulher de cabelos grisalhos num avental simples estava fervendo mingau sobre um fogo. Era Dame Mildred, que viera para o convento há 25 anos, após a morte de seu marido. Como nenhum de seus filhos havia sobrevivido até a idade adulta e seus próprios parentes já estivessem mortos e enterrados, ela adotara a comunidade de freiras como sua família. Quando sua fortuna acabou e ela não pôde mais pagar pela hospedagem, alegremente assumiu as funções de cozinheira, e havia muito tinha se esquecido de que já fora uma dama da nobreza.
Vamos precisar de cerveja para o abade — disse Winifred. -— E de algo para ele comer.
Ai de mim, por que ele vem? É cedo demais!
Embora Mildred tivesse recebido uma ordem para buscar cerveja, ela abandonou seu posto e seguiu Winifred até o portão, onde ambas observaram ansiosas a aproximação do abade.
Mãe reverenda! — disse Mildred em súbita alegria. — Olhe! O abade traz uma braçada de faisões! — Sua alegria murchou. — Não, é só um faisão. Somos onze aqui, mal temos para ir levando, e se o bispo decidir cear conosco...
Não se preocupe. Daremos um jeito.
Madre Winifred observou o progresso do abade enquanto trotava em seu belo cavalo na trilha do jardim. Pela postura dele Winifred podia dizer que seus temores eram justificados. O abade trazia mais do que livros sacros em sua mochila. Também trazia más notícias.
Deus a abençoe, prioresa — saudou ele, enquanto apeava do cavalo.
— E também ao senhor, abade.
Madre Winifred olhou para o insignificante faisão, pensando que não haveria nenhuma ceia farta naquela noite, ao mesmo tempo que o abade farejava o ar discretamente mas sem detectar qualquer aroma convidativo vindo da cozinha. Ele se lembrou dos dias em que podia ficar na expectativa do famoso blankmanger de Winifred, que ela fazia pessoalmente, de pasta de galinha misturada com arroz cozido, leite de amêndoas, açúcar e anis. Ela costumava fazer deliciosos bolinhos de peixe e frituras de dar água na boca. E suas tortas de ameixa... Ele suspirou com as lembranças. Uma pena, aqueles dias não existirem mais! Agora, se ficasse para cear podia esperar pão dormido, sopa rala, repolho murcho e feijões que lhe causariam flatulência a semana inteira.
Entraram juntos no capítulo com os estômagos roncando.
Enquanto caminhavam, falaram do tempo e outras amenidades, "tópicos de circunlóquio", como a prioresa os considerava, pois conhecia o abade muito bem para saber quando ele estava ocultando notícias desagradáveis. E o olho arguto de Winifred não deixou de notar que ele estava usando roupas novas. Seu manto, embora preto, ofuscava distintamente ao sol, tal como o ponto brilhante no seu couro cabeludo, onde os cabelos tinham sido raspados para uma tonsura. Ela também notou que a cintura havia se expandido desde a última vez em que o viu, apenas duas semanas antes.
Mas a prioridade em sua mente era o propósito desta visita inesperada, o assunto que o abade estava evitando. Ele não precisava se incomodar; Winifred já sabia qual era a má notícia: não haveria consertos no teto este ano. Ela e as irmãs iriam sofrer outro inverno de baldes e panelas e camas encharcadas.
Talvez ela pudesse transformar em vantagem esta visita funesta. Sendo o portador de notícias tão decepcionantes, o abade dificilmente poderia continuar recusando o seu pedido para pintar o retábulo do altar. Ela apelaria a qualquer resíduo de caridade abrigado no coração dele.
Winifred acreditava na Bíblia ao pé da letra, mas deixando espaço para interpretação. Embora acreditasse que Deus havia criado os homens primeiro, duvidada que os tivesse criado mais espertos. Não obstante, assumira votos de obediência e, portanto iria obedecer ao abade — dentro da razão. Se ele não podia dar-lhe um telhado novo, então deveria consentir na questão do retábulo. Ela merecia tamanha consideração. Beirando os sessenta, Winifred era uma das mulheres mais idosas que ele conhecia. Era de fato mais velha que muitos homens — mais velha certamente que o abade — e achava que somente isto a habilitava a um privilégio especial.
Quando entraram na casa do capítulo, um salão ventoso mobiliado com cadeiras de espaldar reto e dominado por uma enorme lareira cheia de fuligem, Winifred perguntou ao abade se ele trouxera chá de casca de salgueiro.
Não é a primeira vez que faço este pedido, abade.
Enquanto baixava o traseiro numa cadeira confortável, o abade especulou se Winifred usava sua touca apertada demais ou se o rosto estava naturalmente contraído. Depois captou um vislumbre das mãos dela e concluiu, pelas manchas azul-escuro, que Winifred passara a manhã recolhendo folhas de isate. A erva arbustiforme de folhas largas, que continha a matéria-prima de uma tintura azul, era um excelente substituto para o índigo indiano importado que entrava nos pigmentos das freiras, mas que era raro e dispendioso.
Não se deve pensar só no seu conforto, Madre Winifred — admoestou ele, gentilmente.
Ela franziu os lábios.
Estava pensando na artrite da Irmã Agatha. A dor é tão forte que ela mal pode empunhar um pincel. Se minhas irmãs não puderem pintar... — replicou ela, deixando a ameaça pairar no ar.
Está bem. Mandarei o chá tão logo retorne à abadia.
E carne. Minhas irmãs precisam comer. Elas precisam de energia para trabalhar — disse enfaticamente.
Ele fez uma carranca. Sabia que ela estava por cima. Winifred tinha uma maneira de manter suas iluminuras como reféns em troca de confortos materiais. Mas não estava em posição de barganhar. A procura pelas iluminuras estava crescendo, embora cuidasse para não deixar Winifred saber disso.
Seria incorreto dizer que o Abade Edman detestasse mulheres. Ele simplesmente não via nenhuma utilidade para elas e imaginava por que Deus, na Sua sabedoria infinita, optara por criar uma tal adversária como meio de reproduzir Seus filhos. Porque Edman estava convencido de que homens e mulheres jamais iriam, por toda eternidade, aprender a conviver. Se não fosse por causa da mulher, Adão teria permanecido no Eden e todos os homens estariam vivendo no Paraíso até hoje. Infelizmente, a Inglaterra não era nenhum paraíso e este convento caía sob sua esfera de ação como abade de Portminster, e, portanto era seu dever realizar visitas regulares. Mas ele nunca se demorava, fazendo o que tinha de fazer e partindo tão rapidamente quanto a polidez permitisse.
Enquanto tentava relaxar nesta atmosfera totalmente feminina — por que as mulheres nutriam uma paixão tão frívola por flores? —, ele pensou nos irmãos da sua ordem que tinham dificuldade em manter seus votos de celibato. Edman era celibatário, embora como um sacerdote isto não lhe fosse exigido. Grande parte dos padres eram casados, o que estava além de sua compreensão, e mais espantoso foi o incidente em 964, quando o Bispo Ethelwold deu aos padres casados na Catedral de Winchester a opção de conservar suas esposas ou seus empregos, e eles optaram pelas esposas. O celibato nunca havia sido um problema para Edman, porque jamais tivera qualquer desejo de entrar em conjunção com uma mulher, e estava completamente além de sua compreensão por que qualquer homem racional desejasse isto. Nascido na pobreza com apenas a mais vaga lembrança de sua mãe e órfão após a morte do pai pescador, Edman sobrevivera na cidade portuária por esperteza, permitindo aos lavradores e peixeiros que o usassem como animal de carga. Tinha recebido mais repreensões injustas do que sua cabeça podia contar, o que lhe ensinou a não ter compaixão ou ternura por qualquer mulher viva. Foi a amabilidade de um padre local, que o ensinou a ler e escrever, que resgatou Edman de uma vida de humilhação e desespero esmagador. Ele entrou nas ordens sacras e, com ambição, raciocínio ágil e capacidade de fazer os amigos certos, galgara a escada clerical até que agora chefiava uma ilustre abadia e uma próspera ordem de escribas beneditinos.
Portanto, ele se agastava com essas visitas obrigatórias ao priorado de Santa Amélia. Certamente isto podia ser delegado a um preposto e, de fato, certa vez mandara um de seus subordinados ao convento para buscar um manuscrito com iluminuras. Madre Winifred ficara tão afrontada que dissera que o manuscrito não estava terminado, dando a entender ainda que não estaria até que o próprio abade viesse buscá-lo. A criatura tinha uma estranha maneira de ser obediente e desafiadora ao mesmo tempo. Mas em algumas questões Edman batera pé firme — por exemplo no pedido dela para pintar o retábulo — e nisto ela cumprira suas ordens. Graças a Deus, pois o abade não podia dispor do tempo que ela gastaria no Santa Amélia enquanto suas artes fossem necessárias para atender à demanda crescente por iluminuras.
Ainda assim, apesar de seu desprazer em visitar o convento, tinha de admitir que lugares como este serviam a um propósito útil. Muitas mulheres indesejadas eram mandadas para um convento para viver de modo respeitável, em segurança e sem causar problemas para os homens da família. É claro que havia as criaturas que preferiam a companhia de sua própria espécie, mulheres que se recusavam a obedecer homens, mulheres que se achavam iguais ou superiores aos homens, mulheres que tinham a estranha noção de que poderiam cuidar de si mesmas. Os conventos, portanto, serviam aos objetivos tanto dos homens quanto das mulheres. O abade desejava apenas que as criaturas não fossem tão fanáticas por higiene. O odor de suor honesto nunca matou ninguém, mas Winifred e suas companheiras, como todas as damas bem-nascidas, sempre cheiravam a lavanda e tanásia, que espalhavam nos seus colchões para enxotar as moscas.
— Como foi a sua visita a Canterbury, abade? — perguntou Madre Winifred, não de todo interessada e esperando que a resposta dele não se alongasse demais. Pela protuberância na mochila, ela podia dizer que ele trouxera mais trabalho para suas irmãs, o que significava que ela deveria ocupar-se da preparação de novos pigmentos.
Edman achava tão penoso explicar que semicerrou os olhos. Na Catedral de Canterbury ele havia testemunhado uma estranha visão. Alguma coisa chamada peça, na qual os homens vestidos a caráter representavam uma história. A peça fora encenada como parte dos serviços da Páscoa e era uma nova invenção dos padres de lá. Quando um monge vestido como o Demônio entrou no palco, a congregação tinha irrompido em medo e fúria e quase matara o pobre homem ao investir contra ele. O argumento era que tais encenações ajudariam o povo a aprender as histórias da Bíblia com mais facilidade, porém o abade tinha suas dúvidas. Se as pessoas pudessem simplesmente ver uma história, por que perderiam tempo ouvindo os sermões? Os homens cultos parariam de ler a Bíblia? Talvez esta coisa chamada "peça" não pegasse. Ele por certo não tencionava fazer tais encenações na sua abadia.
Especulava se as peças não seriam um sinal da mudança dos tempos. Embora tivesse havido um dia, apenas 22 anos antes, em que a Igreja achara que os tempos fossem mudar tão drasticamente que chegou a anunciar literalmente o fim do mundo.
Em que decepção se transformara o milênio! Toda a preparação e histeria, os banquetes e orgias, as pessoas afluindo à abadia para confissão, os suicídios e profetas do apocalipse, todos pensando que Jesus estava voltando e que o mundo se aproximava do fim. E os debates intermináveis! Nós contamos mil anos a partir do nascimento ou da morte de Cristo? O milênio assinala o segundo advento de Cristo ou o início do reino de Satã? A destruição do Santo Sepulcro em Jerusalém pelos muçulmanos foi um sinal? Mas isto ocorrera em 1009. Poderiam nove anos mais tarde ainda fazer parte do milênio? O abade Edman, à época um jovem clérigo, havia-se juntado ao movimento Paz de Deus num esforço para refrear a violência dos senhores feudais. Claro que a febre do Juízo Final tivera seus benefícios. Um rico barão do condado doara todas as suas terras e riqueza à Abadia de Portminster e viajara para passar a véspera do milênio no Vaticano vestido de trapos de penitência e cinzas. E então, na manhã de 1º de janeiro do ano 1000 — nada. Apenas outra manhã fria com as habituais dores e flatulência.
— Minha viagem correu bem, graças a Deus — disse ele, por fim, esperando que estas amenidades não levassem de novo ao pedido de pintar o arruinado retábulo, que assunto enfadonho! Não importava quantas vezes tivesse dito a ela que estava fora de questão. Será que não sabia que ir contra a vontade do abade era ir contra a vontade de Deus?
Claro que sabia, por isso não o havia desobedecido. A mulher era um modelo da complacência cristã, embora usasse a oportunidade da confissão para introduzir sorrateiramente suas pequenas rebeliões. "Sou culpada do pecado da gula", murmurava através da tela do confessionário, "e desejo que o abade forneça mais comida para mim e minhas irmãs." Ele ignorava a trapaça e ordenava três padres-nossos para o pecado da gula.
Mas a contrariedade do abade era temperada com piedade. Pobre Winifred. Tão logo se espalhara a notícia do novo convento e de suas generosas amenidades, tinha havido um êxodo embaraçoso de freiras, damas e pupilas do Santa Amélia. Mas como poderia ser de outra maneira? Winifred dificilmente seria conhecida por ter uma mesa farta. Era parcimoniosa com carvão e lenha, e não admitia animais de estimação. As damas convidadas com freqüência queixavam-se a ele das condições precárias. E agora estavam abrigadas confortavelmente no novo lugar, onde lareiras afastavam o frio e na mesa da ceia havia fartura de carne e vinho. A pobre Winifred foi deixada aqui nestes alojamentos ventosos com um grupo de seguidoras descarnadas e leais. Não fosse a contínua produção de iluminuras fabulosas, ele já teria fechado este velho lugar havia muito tempo.
Dame Mildred tinha assado bolos de aveia com mel, um alimento saudável muito necessitado pelas irmãs. Mas como a despensa estava com estoque reduzido de aveia e mel, ela fizera exatamente onze bolos pequenos, um para cada uma das irmãs e um para Andrew, o zelador. Como não podia permitir que a prioresa passasse pelo embaraço de nada ter a oferecer ao abade, ela anunciou o prato, pensando em abrir mão de seu próprio bolo para que o abade pudesse conhecer a hospitalidade delas. Para seu espanto e de Winifred, o abade pegou três bolos de uma vez e os devorou. Observaram-no mastigar o precioso alimento e depois servir-se de mais três. Os bolos desapareceram e Madre Winifred ficou ultrajada.
Enquanto empurrava os bolos com uma caneca de cerveja fraca, o Padre Edman não deixou de notar os olhares que as duas mulheres trocaram e os ignorou. O abade não se desculpou por seu apetite, pois acreditava que Deus gostava de ver seus servos bem alimentados. Como poderia converter pagãos ao cristianismo se ele próprio parecesse um espantalho? "Como pode o seu Cristo ser bom se deixa seus filhos passando fome?" E o Abade Edman levava a sério sua evangelização, pois embora a Inglaterra tivesse todas as marcas exteriores do cristianismo, o abade estava mais do que ciente de que muitos compatriotas adoravam árvores e círculos de pedra. Antigas superstições e comportamentos pagãos jaziam sob uma superfície muito fina de pretensa piedade e, portanto a luta pelas almas humanas era uma batalha sem fim. Ele se via como um guerreiro de Cristo, e todos sabiam que soldados deviam comer. Limpando os dedos no seu hábito, passou ao assunto que interessava e pegou na mochila as novas páginas que necessitavam de letras maiúsculas. Ele também trouxera um livro para Winifred pôr iluminuras — era mais um sinal da mudança dos tempos que pessoas que não os clérigos estivessem começando a demonstrar interesse por livros.
— O patrono quer ter este retrato na página de rosto, usando armadura, montado no cavalo com escudo e com uma equipe de justa. Ele deseja que sua dama seja ilustrada no começo de um dos salmos.
Winifred assentiu. Este era um pedido comum. Ela costumava escolher o salmo 101 para a dama de um cavalheiro. Em latim começava com a letra "D", que emprestava a forma certa e espaço para uma figura humana. Além disso, a frase de abertura, traduzida, era "Cantarei do seu amor", da qual as damas sempre gostavam.
Embora uma variedade de livros estivessem sendo atualmente publicados com iluminuras na Inglaterra e na Europa, desde os Evangelhos e livros litúrgicos às obras do Antigo Testamento e coleções de antigos autores transcritas pelos copistas carolíngios, a especialidade regional do Padre Edman eram os livros de salmos ilustrados com cenas bíblicas de uma excelência encontrada somente na Inglaterra, graças a Winifred. A ilustração era executada num estilo vívido, com figuras humanas em posturas animadas e usando roupagens adejantes. Como Winifred tinha sido instruída quando menina por um artista treinado no estilo Winchester de iluminuras, sua arte-final se manifestava em ricas colorações de azul e verde, suntuosas bordaduras de ornamentação de folhas e animais, mas também acrescida de sua própria marca registrada nos padrões em espiral, entrelaçando animais reminiscentes de trabalho em metal.
A competição entre os centros produtores de livros era feroz, cada abadia ou catedral querendo que seus livros fossem os mais populares entre reis e nobres. Mas a manufatura das iluminuras era um processo lento, com a maioria das catedrais e mosteiros produzindo apenas dois livros por ano. Foi um dos antecessores de Edman quem teve a idéia de pôr as freiras do Santa Amélia neste trabalho, pois com suas mãos menores, visão mais aguçada e dom para o detalhe, elas podiam trabalhar sobre as letras maiúsculas enquanto os monges se dedicavam a toque de caixa ao texto principal. O orgulho tinha impedido o ex-abade de revelar que a arte-final era realizada por mulheres, portanto todos creditavam aos monges da Abadia de Portminster a produção de uma arte tão miraculosa e numa rapidez tão fenomenal. "Eles trabalham com a velocidade de Deus", o abade gostava de dizer.
Mas agora havia um problema: as noviças não estavam mais vindo para o Santa Amélia e as freiras-artistas estavam morrendo. Foi o bispo quem apresentou uma solução. E foi uma solução razoável e brilhante, achava Edman, mas sabia que Winifred não veria desta maneira.
Seu movimento seguinte tinha de ser cuidadoso, pois não fazia idéia de como ela reagiria ao que ia dizer. Devia levar em conta aquela rebeldia peculiar da madre. Se não a manipulasse com cuidado, tudo poderia se perder. E o abade era um homem ambicioso. Dirigir uma abadia era uma prova de sucesso, é claro, mas ele sentia-se destinado a coisas maiores. Uma nova catedral estava sendo construída em Portminster, o que significava que um bispo lá seria instalado, e Padre Edman pretendia ser este bispo. Mas grande parte do seu sucesso dependia de Winifred continuar produzindo iluminuras.
Enquanto o abade devorava os bolos destinados a alimentar onze pessoas, Winifred pedira que os manuscritos completados fossem trazidos à casa do capítulo. Edman os examinava agora. Como sempre, as cores eram empolgantes e vívidas. Ele podia jurar que se a pessoa tocasse no vermelho poderia sentir uma pulsação, se farejasse o amarelo sentiria a fragrância de ranúnculo. O abade achava uma estranha ironia que a própria Winifred fosse tão melancólica e sem cor enquanto suas criações eram estupendamente vibrantes.
Ele não elogiou o trabalho — nunca o fazia e Winifred jamais esperou isto. Mas mesmo assim viu a admiração nos olhos dele e experimentou um momento de orgulho. Portanto achou que já era mais do que hora de renovar seu pedido para pintar um retábulo no altar.
Ele ouviu pacientemente sua explicação.
Desejo dar a Santa Amélia alguma coisa em troca de tudo que ela me deu.
Mas ele já pretendia baixar-lhe a crista. Edman não permitiria que Winifred assumisse um projeto que demandaria meses — um tempo precioso que poderia ser usado para ensinar as noviças a arte das iluminuras.
Ele pigarreou e tentou dar a impressão de que levara o pedido a sério.
Tenho certeza de que Santa Amélia sabe que fez o suficiente a serviço dela por todos esses anos, prioresa.
Então por que não consigo parar de pensar no retábulo? Está na minha cabeça dia e noite.
Talvez você necessite orar — sugeriu ele.
Já o fiz, e a única resposta que pareço ter é pensar mais ainda no retábulo. Agora chego a sonhar com isso. Sinto-me conduzida pela mão de Deus.
O abade franziu os lábios. Este era um pensamento perigoso: uma mulher receber ordens diretamente de Deus. E se todas as mulheres obtivessem tal noção? Nesse caso, esposas não mais obedeceriam aos maridos, filhas não obedeceriam aos pais e a sociedade seria lançada no caos.
Acontece, prioresa, que um retábulo não terá nenhuma utilidade para o Santa Amélia.
As sobrancelhas quase inexistentes de Winifred se arquearam.
Como assim?
Ele pigarreou de novo, desta vez mais nervoso.
Receio que o Santa Amélia vá ser fechado.
Ela olhou fixamente para ele e o silêncio pairou no ambiente. Através das pesadas portas vinha o som de passadas curiosas.
O que quer dizer? — perguntou ela, por fim.
Quero dizer, Madre Winifred, que estes velhos prédios não têm mais jeito, e é um desperdício de dinheiro tentar reformá-los. Falei com o bispo e ele concorda com que a senhora e suas irmãs se mudem para o Convento da Vera Cruz e que este lugar seja fechado.
Mas e o nosso trabalho... as iluminuras?
Ele continuará, é claro. E vocês ensinarão suas habilidades para a nova geração de freiras, assim poderão continuar com a tradição.
Ela ficou sem ação. De todas as possíveis más notícias que previra, esta nem sequer lhe passara pela cabeça.
E quanto a Santa Amélia?
Ela terá sua própria capela na nova catedral em Portminster.
A hora era tardia, a capela estava vazia e silenciosa, exceto por uma figura solitária iluminada pelo bruxulear de uma única vela. Winifred ajoelhada.
Jamais conhecera tamanho desespero. O dia que se iniciara com tanta cor e promessa era agora tão sombrio quanto um inverno inglês. Mudar- se do único lar que já conhecera! Ter de começar, neste estágio final da sua vida, a ensinar habilidades e conhecimento de uma existência inteira a jovens noviças. Ter de informar a suas queridas e idosas irmãs que seriam transferidas para alojamentos estranhos onde teriam de se adaptar, após anos de uma rotina familiar, a novos costumes e comportamentos. Como comunicar uma coisa dessas? Décadas de dedicação não valiam nada?
Mas o pior, oh, o pior era se ver separada de sua santa abençoada.
Na maior parte de sua vida Winifred tinha rezado diariamente para Santa Amélia. Ela nunca começava ou terminava um dia sem dialogar com a santa. Winifred jamais viajara para longe do priorado porque não gostava de se afastar da sua santa. Era Amélia quem lhe dava sabedoria e força. Amélia era mais do que uma mulher que morrera mil anos antes, ela era a mãe que Winifred mal conhecera, a filha que nunca tivera, as irmãs que tinha enterrado no cemitério do convento. E agora, sentada solitária na capela em meio à luz tremeluzente e paredes de pedra silenciosas, Winifred estava sendo forçada a dizer adeus. Sentia-se como se estivesse sentada à beira de um grande e aterrorizante abismo.
Abade — conseguiu dizer, quando se recuperou do choque provocado pela notícia —, vivi aqui por mais de quatro décadas. Não conheço outro lar. Este lugar é onde a abençoada Santa Amélia me concedeu o talento para a pintura. Como posso deixá-lo? Se for separada de Santa Amélia perderei meu dom.
Bobagem — disse o abade. — O seu dom vem de Deus. E ainda poderá visitar Santa Amélia na catedral de vez em quando.
Visitar Santa Amélia de vez em quando. Eu morrerei...
Agora seu coração se dilacerava em conflito. Desde a infância tinha sido ensinada a obedecer a pai, marido, padre, igreja. Mas houve ocasiões em sua vida em que sentira possuir melhor discernimento e ser capaz de tomar decisões melhor do que os outros. Na virada do milênio, por exemplo, o antecessor do Padre Edman lhe havia ordenado que seguisse com as irmãs para a Abadia de Portminster a fim de orar pela salvação de suas almas. Mas Winifred sentira fortemente que estariam a salvo com Santa Amélia e, portanto desobedeceu o abade. Aconteceu que a histeria irrompeu na abadia na virada do milênio, houve tumulto e pessoas ficaram gravemente feridas porque o abade não soubera conduzir as coisas. Seu próprio pânico em relação ao milênio iminente tinha meramente inflamado o povo já impressionável. Assim, graças à desobediência premeditada de Winifred, suas irmãs e hóspedes foram poupadas.
Mas o que ela deveria fazer nesse caso? As questões não estavam claramente definidas. Ela ergueu os olhos para o relicário no altar, brilhando opacamente à luz de vela. O fardo de governar e cuidar de sessenta freiras, damas e pupilas, além de supervisionar diariamente as necessidades físicas e espirituais de rebanhos de peregrinos, não chegava nem à metade da responsabilidade que agora enfrentava pela sua reduzida família de onze pessoas.
Winifred vivenciara um momento de recriminação amarga: não se tratava realmente de fechar um lugar antiquado, pensava, porque com algum dinheiro e um pouco de organização, o Santa Amélia poderia se tornar auto-suficiente de novo. Tratava-se de mulheres chegando ao ocaso de sua utilidade, pois o que o abade queria era que Winifred começasse a treinar as noviças na pintura de iluminuras. "Deixe que Agnes e Edith dêem um descanso às suas mãos cansadas e aproveitem seus últimos dias em paz. Deixe que mãos mais jovens assumam o fardo do trabalho", ele tinha dito. E ela replicara que suas irmãs adoravam o trabalho e que afastá-las dele seria como roubar dessas mulheres a sua razão de viver. Mas o abade se recusara a ouvir.
Isto fez Winifred sentir-se velha e decadente, um refugo inútil, como uma agulha de costura quebrada. A idade de nada valia; a juventude era tudo. E como uma pilha de folhas mortas a ser varrida de modo a permitir que folhas novas e verdes brotassem do solo, ela e suas idosas irmãs seriam varridas.
Pela primeira vez em décadas, Winifred viu-se no limite do desespero. Aquele doce e humilde priorado havia sobrevivido a três séculos de tormentas, inundações, incêndios e até mesmo às incursões dos vikings. Agora ia ser derrubado por uma lasca de madeira!
Repentinamente temerosa de que seus pensamentos fossem sacrílegos — pois não era uma lasca de madeira qualquer que o novo convento abrigava! —, Winifred uniu as mãos e gritou:
Ó abençoada Amélia, nunca vos pedi nada!
Era verdade. Enquanto as pessoas procuravam a santa pedindo favores, curas e respostas para desejos, Madre Winifred, zeladora da santa por quarenta anos, havia oferecido apenas preces de agradecimento. Mas agora tinha um pedido, e não era material. Não estava buscando alívio para dor física, nem aconselhamento sentimental nem um marido — o que pedia agora era orientação.
Dizei-me o que fazer. — Quarenta anos de autocontrole finalmente desmoronaram. — Por favor, ajudai-me! — gritou, e fez algo que nunca fizera antes: precipitou-se sobre o altar e apertou contra o peito o relicário de prata.
Percebendo horrorizada o que tinha feito — o relicário nunca fora tocado nem com um espanador —, ela rapidamente recuou, murmurando desculpas e fazendo o sinal-da-cruz, e acabou prendendo o pé na bainha de seu hábito. Perdeu o equilíbrio, buscou um ponto de apoio, agarrando a toalha do altar involuntariamente, caiu e derrubou tudo consigo — flores, candelabros, relicário.
Bateu nos degraus de pedra com impacto doloroso, rolou, bateu com a cabeça e ficou momentaneamente sem sentidos. Quando sua cabeça clareou, um minuto depois, Winifred se descobriu caída apática nos degraus do altar, os olhos fixados no andaime acima, uma dor aguda no crânio. Quando tentou se mover, descobriu o braço direito preso debaixo de um peso.
O relicário. Que havia se quebrado.
E os ossos da santa jaziam expostos pela primeira vez em quase mil anos.
Winifred se pôs de pé e sussurrou "Mãe de Deus!", enquanto olhava horrorizada para as relíquias profanadas.
Seu coração batia desenfreadamente enquanto tentava pensar no que fazer. Tinha havido profanação? Haveria um ritual especial para a substituição dos ossos da santa? O abade. Tinha de contar imediatamente ao abade.
E então algo a deteve. Contendo o impulso de sair correndo da capela, Madre Winifred ajoelhou-se lentamente e olhou maravilhada para os delicados objetos esparramados nos degraus. Pareciam conchas, ou minúsculas pedras encontradas num riacho — frágeis e vulneráveis, havia um osso de dedo aqui, um esguio osso de braço ali. Para seu espanto, o esqueleto, em sua maior parte, estava completo, embora todo desconjuntado agora e se esfarelando. O crânio ainda estava ligado ao pescoço, o pescoço às omoplatas. As costelas tinham caído havia muito tempo e a pelve se desmanchara em centenas de pedaços. Mas agora o que lhe chamava a atenção era o pescoço, pois havia alguma coisa entre os ossos...
Chegou mais perto e forçou a vista à luz fraca da capela. Na base do crânio, onde as duas primeiras vértebras se uniam...
Seus olhos se arregalaram. Cambaleando, pegou a lamparina e a trouxe para perto dos ossos. Prendeu a respiração enquanto observava como a chama bruxuleante dançava sobre os ossos pálidos e captava o brilho mais estranho e minúsculo no interior deles.
Franziu o cenho, pois ossos não faiscavam.
Aproximou mais a lamparina e inclinou-se, estreitando os olhos, focalizando, detendo-se entre as duas vértebras. Uma aragem soprou através da capela, fazendo a chama dançar, o brilho ocorrer novamente. Era como a faísca que se vê quando se golpeia um sílex, pensou.
O que era aquilo?
Uma sensação soturna a percorria enquanto se ajoelhava solitária na capela silenciosa junto aos ossos de mil anos. Winifred teve de súbito a mais forte noção de que não estava mais sozinha. Olhou em torno e viu que a capela se achava vazia. Ninguém, nada, estava ali à espreita. Ainda assim, o cabelo sob sua touca agitou-se como se para se pôr de pé; sua nuca se arrepiava como se alguém respirasse sobre ela.
Havia alguém ali.
E então ela soube. Num átimo, na mais espantosa clareza mental que jamais vivenciara em sua vida: era Santa Amélia, despertada de seu longo sono pela violação de seus ossos.
— Por favor, perdoai-me — sussurrou trêmula, enquanto tentava pensar num modo de juntar os ossos e recolocá-los no relicário. Teria de ser feito do modo mais religioso e reverente possível — e sem que ninguém soubesse. Estava mais do que certa de que os ossos tinham sido destinados a ser vistos somente por ela e ninguém mais. Foi um sinal. Santa Amélia estava tentando dizer-lhe alguma coisa.
Quando a chama tremeluziu de novo e mais uma vez produziu um brilho entre os ossos do pescoço, Winifred estendeu a mão trêmula e, com a ponta do dedo indicador em riste, tocou cautelosamente a espinha seca e gredosa. As vértebras separaram-se, de tão velhas e ressecadas estavam. E enquanto elas caíam, como as metades de uma noz, expuseram um objeto tão estonteantemente maravilhoso que Winifred, com um grito, caiu para trás e bateu de nádegas no chão.
Entre os ossos cervicais de Santa Amélia estava a mais linda pedra azul que já vira.
Winifred a manteve consigo secretamente, escondida num bolso profundo de seu hábito. O cristal azul da garganta de Santa Amélia. Não contou a ninguém, depois de recolocar os ossos no relicário e devolvê-lo ao altar, pois precisava avaliar o mistério que desvendara. Por que o cristal estava ali? Como havia se alojado nos ossos cervicais da santa? E seria mesmo um sinal de Santa Amélia? O que mais poderia ser, porém? Os ossos ficaram lacrados no relicário por séculos, por mil anos, pelo que Winifred sabia, então por que haviam escolhido aquele momento para se revelar? A resposta era óbvia: depois da saída do abade, fora tomada por um desespero tão grande que poderia ter acreditado que o sol nunca mais despontaria. E portanto Amélia havia falado através do cristal azul.
Mas qual era a mensagem? Teria algo a ver com a mudança para o novo convento? Se assim fosse, Amélia lhe dizia para ir ou ficar? Nada jamais pesara tanto na mente e no coração de Winifred quanto esta nova rodada de eventos. As mulheres a ela subordinadas dependiam de sua correta tomada de decisão.
E eram tão desamparadas! Lá estava a pobre Dame Odelyn, idosa e paralítica, esperando junto ao poço que alguém chegasse para pegar-lhe água. Odelyn viera para o Santa Amélia havia muito tempo, quando uma incursão dos vikings acabara com toda a sua família. Jóias que herdara, escondidas no poço atrás da mansão, haviam custeado sua residência permanente no convento. Mas desde aquele dia em que tivera de descer ao poço para recuperar o tesouro ali escondido por seu pai, mal conseguindo fazer a descida, pois tinha acabado de rastejar de seu esconderijo e visto os cadáveres massacrados dos pais e irmãos, Odelyn ficara traumatizada. E havia ainda Irmã Edith, que estava tão esquecida que precisava ser conduzida toda noite ao necessarium porque sempre errava o caminho. E Agatha, cuja artrite era por vezes tão dolorosa que necessitava de ajuda para comer. A lista era interminável. Como poderia Winifred dizer a estas mulheres que iriam ser privadas da única vida que conheciam, de tudo que era reconfortante e familiar, para ser lançadas em um ambiente totalmente estranho?
Em busca da resposta para sua charada, ela focalizou-se no cristal azul. Tornou-se obcecada por suas cores e tentava recriá-las quando misturava pigmentos. Segurando a pedra semitransparente contra a luz ela via explosões de cores, faixas de azul-do-céu e centáurea-azul, lagos de safira, tanques de água-marinha. Mas a cor continuava mudando. Olhava para a pedra à luz do sol e da lamparina, durante uma tempestade ou ao crepúsculo, e via tons de anil, turquesa, azul-marinho, ultramarino, lápis-lazúli, índigo. Winifred estava fascinada pela cor e composição do cristal. A pedra não era inteiramente transparente, pois havia uma turvação no seu núcleo, um aglomerado de partículas que reluziam quando o sol incidia direto nelas. Prata esbranquiçada, assumindo uma forma diferente segundo o ângulo que fosse observada. Ela pendurou o cristal num fio fino e o deixou rodopiar lentamente à luz do sol. A substância-alma pareceu se mover e mudar. Era hipnotizante. Conforme Winifred observava, ela quase acreditava estar vendo o fantasma de uma mulher ali, chamando...
Ela gostaria de capturar isto em um pergaminho, mas seria um milagre, pois onde iria encontrar tais azuis, tanta luz e transparência, nuanças líquidas como aquelas?
Não tocou no seu desjejum — disse Dame Mildred com grande preocupação depois que as irmãs tinham saído da reitoria para o scriptorium.
Era incomum a frugal Madre Winifred não limpar seu prato; nem mesmo tomara o seu tônico matinal. Winifred acreditava na antiga e saudável prática de enxotar o inverno do sangue bebendo-se uma infusão de ervas da primavera. Desde os seus dias como uma jovem noviça, ela revitalizava anualmente o corpo ao tomar um chá feito de raiz de bardana, folhas de violeta, urtiga, mostarda, dente-de-leão, brotos de hemerocale, e cebola silvestre. O gosto era ruim, mas bastante revigorante.
Você tem estado diferente desde a visita do abade.
Dame Mildred sempre fazia Winifred se lembrar dos pequenos cães fraldeiros que as damas preferiam, a espécie que podia ser carregada numa manga e que espiava com grandes olhos aquosos. Winifred suspeitava de que nada escapava à atenção de Mildred, especialmente sendo a sua função tão crucial para o convento. As irmãs a procuravam com suas aflições e padecimentos, pedindo-lhe linimentos, tônicos, curas e alimentação fortificante. Mildred era uma mulher pequena, porém mais enérgica para todo o seu tamanho do que o desajeitado abade.
As notícias dele foram tão ruins? — pressionou Mildred.
Não teremos nosso telhado consertado este ano — disse, por fim, Winifred.
Não era toda a verdade, mas também não era mentira. Ela ainda não dera as más notícias às irmãs, querendo orar primeiro. Ganhara um pouco de tempo ao dizer ao abade que suas freiras não conseguiriam trabalhar nos manuscritos mais recentes se soubessem da iminente transferência para o novo convento, e assim ele lhe concedera um período de dois meses, decorridos os quais a mudança aconteceria. Nesse meio-tempo Winifred analisava o milagre e o mistério do cristal azul e tentava descobrir sua mensagem.
Deixando Dame Mildred com uma expressão de ceticismo no rosto, Winifred seguiu para o scriptorium onde as irmãs já estavam a postos, silenciosas e reverentes, criando cenas bíblicas de cor tão gloriosa e vibrante que seriam o assunto da Inglaterra. Os pigmentos eram o segredo da criação das notáveis iluminuras. Quão boa, afinal, era a perícia do artista quando tinturas inferiores eram usadas? Mas agora o seu estoque era baixo, e o que restava era de má qualidade. Winifred tentara extorquir algumas moedas do abade para a compra de novos suprimentos, mas ele recusara o pedido, sabendo que a madre operaria milagres com o pouco que tinha, tal como sempre fizera no passado.
Winifred pensava agora no anel novo que ela não deixara de notar na mão do abade. Um presente de um patrono da abadia, sem dúvida. O valor daquela jóia poderia suprir as freiras por um ano de pigmentos da melhor qualidade, talvez até ela pudesse comprar malaquita com a qual criaria verdes empolgantes. Mas ela e suas irmãs deviam estar satisfeitas em obter verdes de espinheiro e amora e, se realmente pressionadas, das bagas de madressilva e folhas de erva-moura. Provavelmente teriam que recorrer ao suco de íris, que era um processo delicado exigindo paciência e habilidade. As flores azul-escuro não pareciam ser uma fonte provável de verde, pois a cor apurpurada que precisava ser primeiro espremida não era prometedora. Mas assim que ela foi combinada com alume, um claro e lindo verde apareceu. O segredo, Winifred sabia, era remover todo o pólen.
Era correto o abade, com seu belo anel, obrigar as irmãs a tanto trabalho extra?
E estava claro que este ano iam ter de produzir seus amarelos a partir de casca de macieira. Se ao menos ela pudesse conseguir açafrão! O açafrão era o elemento indispensável para imitar o ouro. Uma pitada de açafrão seco num prato, coberto com clara de ovo e posto para ferver, produzia um amarelo forte, lindamente transparente. Winifred gostava de usar este açafrão vítreo para causar um efeito ornamental de pena em volta de iniciais coloridas, para molduras imitando ouro de painéis ilustrativos em livros, e para esmaltes e toques dourados em linhas de escrita em vermelho e preto.
Mas não tinham nenhum açafrão, ao passo que o abade possuía um lindo anel de rubi!
Ela quase gritou de frustração e desespero. O abade esperava que ela fizesse o melhor com seus parcos recursos e agora ia ter de ensinar tudo que sabia às jovens freiras! Não apenas a desenhar, pintar ou fazer pigmentos, mas também a comprar os ingredientes e impedir que fossem fraudadas. O abade não via que durante este processo de aprendizado as discípulas iriam produzir iluminuras muito pobres? Não podia ele prever que a reputação de seus livros seria prejudicada até que a habilidade das noviças alcançasse o nível de excelência das próprias irmãs que ele estava determinado a aposentar? Sua falta de antevisão a enfurecia. Típico da maioria dos homens, pensou amargamente, o abade só pensava no presente. As mulheres que se preocupassem com o amanhã.
Madre Winifred! — soou a voz de Dame Mildred enquanto entrava apressada no scriptorium, as sandálias produzindo sons nas pedras do pavimento. — O mascate cigano está aqui! O Sr. Ibn-Abu-Aziz-Jaffar!
A alegria de Winifred foi instantânea.
Deus seja louvado! — gritou ela. Por certo era outro sinal de Deus: justamente quando estavam mais carentes de suprimentos, o Todo- Poderoso trazia o vendedor de pigmentos até sua porta. — As bênçãos de Deus, Sr. Jaffar! — saudou ela, enquanto corria pela trilha com os véus negros se agitando a sua volta.
O mesmo lhe desejo, cara senhora! — saudou ele de volta, tirando o chapéu da cabeça e inclinando-se com uma elegante mesura.
Um homem de origem estrangeira com pele azeitonada e barba prateada aparada rente, o mascate sempre saudava a prioresa de um modo que a fazia se lembrar de cortes e reis. Jaffar usava um manto adornado com estrelas e luas; seu chapéu era acolchoado e orlado com franjas. Era alto e imponente, e embora a madre o situasse com quase sessenta anos, ele conservava as costas retas e os ombros aprumados. Seu velho cavalo puxava uma carroça das mais curiosas, pintada com símbolos celestes, signos zodiacais, cometas, arcos-íris, unicórnios e olhos amplos que tudo viam. O mascate era amplamente conhecido como um fornecedor de sonhos e magia, poeira de estrelas e esperança. As pessoas gostavam do modo como o nome dele — Ibn-Abu-Aziz-Jaffar — rolava de seus lábios; as crianças seguiam sua carroça, entoando o seu nome, fazendo com que esposas saíssem de suas cabanas. Na realidade ele era Simão, o Levita, e era um judeu. Ele dizia a todo mundo que era dos "confins da Arábia, mas de fato tinha nascido em Sevilha, Espanha. Para seus fregueses ele era um cigano-cristão, mas sob o manto comprido usava um xale com borlas e à noite, quando estava sozinho, recitava "Ouve ó Israel". Simão não escondia sua identidade por causa do preconceito local (a perseguição aos judeus só irromperia plenamente na Europa 300 anos depois, quando a Peste Negra teria de ser atribuída a alguém), mas porque descobrira que gostava de representar a persona exótica e da notoriedade resultante disso. Ele gostava de vender mistério e ilusão; deliciava-se ao ver os rostos das crianças iluminados com sua magia e prestidigitação, pois o próprio Simão era jovem de coração. Tinha chegado à Inglaterra por acidente num navio que se dirigia a Bruges e que acabara perdendo o rumo. Ao descobrir que ele era diferente — em sua terra natal era simplesmente igual a todo mundo, mas aqui era diferente, único —, decidiu ficar, pois havia lucro em ser diferente. Levava uma vida solitária, fazendo um circuito anual de ida e volta entre Londres e a Muralha de Adriano, e sonhava com o dia em que se recolheria a sua pequena cabana e aposentaria o velho cavalo Seska, seu fiel companheiro havia quinze anos.
O Sr. Ibn-Abu-Aziz-Jaffar possuía, porém uma fraqueza que em mais de uma ocasião quase resultara em sua ruína: ele adorava mulheres. Fossem jovens ou velhas, gordas ou magras, lentas ou ágeis, ele encontrava alegria e mistério maravilhosos em cada mulher que conhecia. Às vezes especulava se isto era porque procedia de uma família de oito irmãos homens. Mulheres eram uma dádiva de Deus aos homens, declarava, a despeito do que a Torá dizia acerca de Lilith e do desastroso envolvimento de Adão com ela. Simão adorava a maciez e o cheiro delas, seus humores inconstantes, como podiam às vezes ser mais fracas do que os homens, outras vezes mais fortes. O seu feroz instinto maternal. Seus sorrisos provocantes. E o cabelo longo — oh, como adorava o cabelo longo delas! Embora Simão já estivesse entrado em anos, não era tão velho a ponto de não gostar de um aperto firme, seios fartos e um coração cálido. Ele nunca forçou ou assumiu compromisso com uma mulher: ou ela vinha de livre e espontânea vontade ou então nada feito. Mas as mulheres em toda parte ficavam intrigadas com os forasteiros e imaginavam nos seus corações abençoados que um homem vindo de tão longe devia saber mais sobre a arte do amor do que as sobras locais. E a verdade era: ele sabia.
Ele viajava só e raramente era abordado, pois mesmo os salteadores respeitavam o curador e eles próprios às vezes necessitavam do tolo, ou adivinho. Embora as pessoas não os soubessem ler, os símbolos pintados nas laterais da carroça anunciavam suas habilidades como alquimista, adivinho, dentista, mágico. Ele comerciava tudo — botões, alfinetes, dedais e fio, poções e ungüentos, garrafas e colheres — com uma exceção: não negociava relíquias e bens religiosos. Pois Simão, o Levita, pertencia àquela mais rara das estirpes: era um mascate honesto. Portanto, deixava a venda de cabelos, dentes e ossos de santos para os charlatães e sacerdotes, e às vezes achava que não havia nenhuma diferença entre ambos. Também tinha sua própria opinião sobre a lasca da cruz de Cristo que estava abrigada no novo convento estrada acima, pois já encontrara outras lascas semelhantes em suas viagens pela Espanha e França e ouvira falar de outras pela Europa e na Terra Santa, e decidiu que os cálculos mentais de qualquer idiota revelariam que todas as pretensas lascas da Vera Cruz, se colocadas uma em cima da outra, alcançariam a lua.
Ele lembrava-se da loucura que acometera a Inglaterra 22 anos antes, quando uma coisa chamada milênio deveria ter ocorrido. Isto intrigou Simão, pois não havia nenhum marco de mil anos segundo o calendário judaico, nem segundo o calendário de seus irmãos de raça, os muçulmanos, que contavam seus anos a partir do tempo de Maomé. Aquilo significava que apenas um terço do mundo ia acabar enquanto o resto continuaria como antes? Tudo resultou numa questão discutível, pois a meia-noite fatal veio e se foi sem incidentes, e agora os padres declaravam que era no próximo milênio — mil anos a partir daqui, no impossível de imaginar ano 2000 — que Jesus e seus anjos desceriam à terra.
À medida que viajava pela zona rural inglesa, Simão era muitas coisas, mas toda vez que parava no priorado de Santa Amélia, perto do rio Fenn, ele era o Simão autêntico. Admirava a prioresa e sabia que ela podia ver através de sua simulação e reconhecia e respeitava sua sabedoria e erudição. E assim ele tirava o chapéu franjado e livrava-se do bastão e gestos místicos. Mas conservava o manto de mágico por achar que lhe emprestava dignidade.
Já fazia um ano desde que passara por aqui, e a decadência do lar das freiras o deixou alarmado: os muros desmoronando, os campos sem cultivo, a ausência de gansos ou galinhas, ervas daninhas crescendo sobre a trilha que uma vez tinha sido aplainada pelos pés dos peregrinos. Ele soubera que o novo convento estava crescendo em popularidade, mas não havia imaginado que a abadia próxima abandonaria aquelas mulheres a tal ponto. Por certo o abade gordo podia ver que as devotas irmãs precisavam de comida na mesa e cerveja nas taças.
Quando Winifred viu o sorriso de dentes alvos no rosto azeitonado, deu-se conta de que sentia-se muito feliz em rever o Sr. Jaffar. Winifred era muito pouco mundana, tendo nascido a trinta e dois quilômetros do priorado e nunca em sua vida viajado por uma distância maior do que esta. Ela sabia um pouco de latim e tinha lido a Bíblia, mas a extensão de sua leitura parava por aí. Winifred e suas irmãs nada conheciam do mundo, apenas o que ouviam dos peregrinos e viajantes. E como ambos haviam parado de vir ao Santa Amélia, as visitas do Sr. Ibn-Abu-Azziz-Jaffar eram por demais preciosas, pois o mascate itinerante trazia sempre novidades e mexericos.
Ele era um homem estranho, quase repelente em seu exotismo, embora possuidor de uma personalidade curiosamente intrigante. Tivesse ela se permitindo tais pensamentos mundanos, notaria que ele era muito bonito. Embora desconfiasse de que não fosse cristão, sabia que tinha o mais alto respeito por Deus. E às vezes dizia as coisas de maneira tal que acendiam pequenas velas em sua mente. Jaffar era diferente dos outros mascates que por ali passavam. Aqueles eram homens imundos, desonestos e grosseiros, ao passo que o Sr. Jaffar era limpo e gracioso, com um encanto estranho. Acima de tudo, era confiável.
No passado, outros mercadores de material de pigmento a haviam trapaceado. Azurita barata era fácil de passar como um caro lápis-lazúli. Para ser identificadas, as pedras tinham de ser aquecidas ao rubro: a azurita ficava preta, o lápis-lazúli permanecia inalterável. A azurita era comprada em pó, e havia trapaceiros que misturavam areia ao pigmento moído para aumentar o peso de venda e isto arruinava a coloração. Da mesma forma, mercadores desonestos punham o melhor azul no topo do saco e a parte de qualidade inferior no fundo. Mas não o Sr. Jaffar, que agora abria uma caixa ao lado de sua carroça e exibia uma tal riqueza de material de pintura que ela olhou como se fossem travessas de comida num banquete.
— O bom Deus o trouxe no momento mais propício, Sr. Jaffar, pois minhas irmãs e eu estamos necessitadas de suprimentos novos. Estamos desesperadas por amarelos.
Para seu júbilo, ele mostrou cálculos biliares.
Winified enfiou a mão num bolso profundo e pegou o globo cheio de água que usava para amplificar seu trabalho. O Sr. Jaffar uma vez tentara lhe vender uma nova invenção de Amsterdam — vidro polido que chamavam de lente —, mas ela desistira da compra pelo seu elevado preço. Enquanto Winifred examinava os cálculos biliares através do globo, Simão pensou: aí residia o verdadeiro dom da mulher, pois Winifred era mais do que simplesmente talentosa em desenho e pintura, ela possuía o mais fantástico senso de cor. Sob os dedos ágeis e olhos argutos, o mais prosaico dos elementos ganhava a coloração mais gloriosa em toda a criação de Deus. Era só pegar o pigmento conhecido como verde-seiva, um substituto para o verdete, que era raro e muito mais caro. O verde-seiva era feito de bagas maduras de sanguinheiro misturadas com alume e deixado a se espessar por evaporação. O resultado era um verde-oliva transparente e rico. Embora outros mosteiros já tivessem dominado a cor, a perícia de Winifred residia em durabilidade criativa. Normalmente, o verde-seiva não durava muito, o que ficava evidente na pobre qualidade de manuscritos com apenas décadas de idade. Madre Winifred, contudo, conhecia o segredo do espessamento correto do suco, mantendo-o depois em uma bexiga como um denso xarope, em vez de deixá-lo secar. Quando usado desta forma num manuscrito, a cor não só era bonita de se ver, mas também durável.
Enquanto Winifred examinava os pós e minerais, a matéria-prima que iria criar animais vivos numa página, Simão a observava detidamente e achava que ela parecia diferente hoje. Havia sombras no seu rosto, correntes perturbadoras nos seus olhos. Ele sempre considerara a prioresa uma criatura plácida, se não um tanto séria e sem humor. Jamais a considerara capaz de sentir-se inquieta.
Winifred escolheu cuidadosamente o que ia comprar.
Estou sem dinheiro no momento — disse. — O senhor vai permanecer na vizinhança por alguns dias, como é o seu costume, não?
Ele alisou o bigode impecavelmente aparado e pensou sombriamente. Ficou evidente para Simão que a prioresa possivelmente não poderia ficar com os artigos que havia escolhido. Como iria pagar? Não obstante, não queria embaraçá-la levantando a questão — Simão conhecia muito bem como era importante a pessoa manter seu orgulho. Se ao menos ela pudesse pagar com um ou dois de seus livros de iluminuras! Em Londres já lhe haviam perguntado se poderia obter manuscritos de Portminster. Um único livro de Winifred e ela poderia ter todos os pigmentos que desejasse. Mas ele sabia que a madre não pagaria com um manuscrito, pois acreditava que eles pertenciam ao abade.
Muito bem, cara dama, concluiremos nossa transação daqui a três dias.
Ele imaginou que agora seria convidado para uma cerveja e talvez um bolo e, erradamente, tomou a hesitação dela como se significando que estivesse pensando a mesma coisa. Em vez disso, para sua surpresa, ela perguntou se ele, sendo um alquimista, poderia avaliar um objeto um tanto estranho que viera a cair em seu poder.
Esperando por um dente de santo ou um trevo-de-quatro-folhas, Simão ficou atônito quando ela entregou-lhe um cristal azul que era tão profundo e azul quanto o mar Mediterrâneo. Ele o farejou e sussurrou um juramento na sua língua nativa, depois aproximou o cristal de seu olho arguto e o examinou detidamente.
Simão mal podia falar, tal a beleza da pedra. Numa época em que era considerado danoso cortar uma gema, pois acreditava-se que isto destruiria a magia da pedra, raramente se via um cristal de transparência tão clara. Simão vira apenas uns poucos — ele já tinha sido lapidador de diamantes e mal podia acreditar que tão nebulosa peça de cristal pudesse abrigar tamanho brilho interior. Ainda assim esta pedra parecia não- lapidada, pois estava lisa e tinha uma vaga forma ovóide, apenas levemente mais larga do que um ovo de papo-roxo, porém de um azul mais espetacular. Poderia ser água-marinha? Certa vez ele tinha visto uma esmeralda das minas de Cleópatra. Aquela também havia sido lapidada e ofuscava a vista com seu brilho. Mas não, esta não era tão verde nem tão pura no núcleo quanto a esmeralda.
Embora não conseguisse identificar a pedra, sentia que possuía grande valor.
Conheço um homem em Londres — disse Jaffar —, um comerciante de gemas.
Winifred tinha ouvido sobre Londres. A maioria das pessoas possuía escasso conhecimento do mundo além de poucos quilômetros em qualquer direção a partir de onde viviam; poucos sabiam da existência de outros países e sua única familiaridade com estrangeiros era saber que os vikings, que certa vez tinham flagelado a Inglaterra, eram demônios do além-mar. Mas Winifred sabia que Londres era uma cidade do sul, um próspero centro de comércio onde vivia o rei.
Londres é o lugar perfeito para vender semelhante gema — continuou Jaffar.
Vender!
Ora — disse ele, devolvendo-lhe a pedra —, não era isto que queria me pedir?
Vender a pedra de Amélia? — replicou ela, como se o mascate houvesse acabado de lhe pedir para cortar o braço. E então prevaleceu o bom senso. — Ela é assim tão valiosa?
Minha cara prioresa, eu poderia conseguir-lhe uma fortuna por esta pedra. Sua singularidade valeria um resgate em ouro.
Winifred arregalou os olhos e sua mente prática subitamente zumbiu com novos pensamentos e planos. Com um resgate em ouro ela poderia consertar o telhado, reforçar os muros, providenciar camas novas e depois talvez plantar algumas safras e comprar umas poucas cabras, contratar mão-de-obra local para ajudar a tornar o convento auto-suficiente de novo, atrair novas noviças e damas com suas doações e o patrocínio de suas famílias. Instantaneamente, no ofuscante lampejo azul de um cristal, Winifred viu um novo futuro brilhante para o Santa Amélia.
E então franziu o cenho.
Devo consultar o abade.
Ele decide o que fazer com a pedra?
O abade nem sabe ainda que ela existe.
O Sr. Ibn-Abu-Aziz-Jaffar alisou a barba.
Hum — murmurou, e Winifred leu o significado do resmungo.
Eu deveria contar ao abade — disse ela em tom não muito convincente. — Não deveria?
Ele perguntou como ela obtivera aquela gema e quando ela contou, Simão, o Levita, disse:
Na minha opinião, minha cara prioresa, esta gema foi dada apenas à senhora. Como um presente da santa. — Quando ela mordeu o lábio em incerteza, Simão disse seriamente. — A senhora foi apanhada num dilema.
Ela inclinou a cabeça velada.
Sim, fui.
Um dilema entre fé e obediência.
Sinto que Deus está tentando me dizer alguma coisa. Mas Ele disse ao abade exatamente o oposto. Como vou escolher?
Cabe à senhora decidir. Deve olhar dentro de seu coração e ouvir o que ele está dizendo.
Refiro-me a Deus, não ao meu coração.
Não são a mesma coisa? — Ele perguntou mais sobre o cristal, especificamente como ela achava que se alojara nos ossos cervicais da santa. Winifred então contou-lhe como Amélia comandara seu próprio coração a parar antes que as autoridades pudessem torturá-la para que denunciasse os outros cristãos.
Nesse caso — continuou ele — pareceria, se esta pedra está passando uma mensagem, como a senhora crê, que a mensagem é para ser seguida a seu próprio critério.
O rosto dela se iluminou.
E este o meu pensamento! — E de repente estava contando-lhe acerca do seu sonho de pintar um retábulo para Santa Amélia.
E o que mais a perturba — disse o sábio forasteiro — é que, se for viver no novo convento, terá de abandonar este sonho.
Sim — arfou ela. — Sim...
Nesse caso, deve ouvir seu coração.
Mas Deus se manifesta por intermédio do abade. — Quando o mascate nada falou e ela percebeu o ceticismo no rosto dele, apressou-se em acrescentar: — Sr. Jaffar, estou desconfiada de que não seja cristão.
Ele sorriu.
Desconfiou corretamente.
Não há sacerdotes na sua fé?
Não como os seus. Temos rabinos, porém eles são mais conselheiros espirituais do que porta-vozes de Deus. Acreditamos que Deus nos ouve e nos fala diretamente. — Ele quis acrescentar que o Senhor crucificado de Winifred havia sido um rabino, mas decidiu que não era hora nem lugar para abordar semelhante tópico. Preferiu dizer: — Estarei acampado no riacho por alguns dias enquanto visito as fazendas das redondezas, após o que seguirei para Portminster. Antes de eu partir, poderá me contar sobre sua decisão. E espero, cara prioresa, que seja a decisão certa.
Madre Winifred decidiu ir sozinha à abadia. Embora as integrantes de sua ordem costumassem viajar em duplas ou em grupos, esta era uma viagem que ela sabia que deveria fazer sozinha. Ainda não havia transmitido as más notícias às outras, embora as ordens do abade fossem para deixar o Santa Amélia o mais cedo possível. Talvez ela o tivesse feito sem hesitar não fosse o incidente com o relicário e a descoberta do cristal azul. Mas o incidente tinha ocorrido, e ela estava de posse do notável talismã de Santa Amélia, e agora sentia a compulsão de conferir com o abade o que fazer em seguida.
Ela havia rezado a noite inteira e, apesar de não ter dormido, sentia- se estranhamente revigorada. Seus pés pisavam firmes ao tomar a trilha que saía do convento, resolução e espírito fortes, pois levava consigo o cristal azul de Santa Amélia.
Quando chegou à alameda principal, Winifred viu que afinal não ia fazer a viagem sozinha. Juntou-se a um grupo de peregrinos que se dirigia ao convento da Vera Cruz — eles haviam passado direto pelo Santa Amélia.
— Temos de chegar ao convento ao meio-dia—explicou o líder. — E a hora em que as irmãs põem a mesa. Disseram-me que hoje teremos nossa fartura de cordeiro e pão. — Então viu o hábito de Winifred e, alma obtusa que era, percebeu por fim a sua identidade. Enrubescendo, disse sem jeito: — Não quisemos incomodar as boas irmãs do Santa Amélia, sendo os maltrapilhos que somos. — E seguiu para a dianteira do grupo, onde podia se livrar de seu embaraço.
Encontraram mais pessoas na estrada: fazendeiros levando sua produção para a feira de Portminster, cavaleiros acompanhados de seus guardas, damas em liteiras acortinadas. A estrada serpenteava através de florestas de olmos, pilriteiros e faias, onde ravinas se abriam subitamente para revelar canteiros de campainhas e córregos se reunindo em laguinhos escuros salpicados de sol. Trilhas conduziam da estrada para casas de fazenda e campinas onde ovelhas pastavam. E vez por outra encontravam calçamentos de pedra com manufatura antiga, fazendo-os lembrar que legiões romanas haviam passado por ali. E em meio a toda aquela gente, e às cores da primavera, inalando o ar florestal animado pelo canto matinal dos pássaros, Winifred sentiu a confiança aumentar. Estava fazendo a coisa certa, muito embora, caso tivesse sabido, o abade a acusaria de desobediência.
Os mais velhos no grupo falavam dos vikings, demônios altos e de barbas amarelas que usavam capas vermelhas sobre cotas de malha, e eram notórios por combater com um frenesi sedento de sangue, como lobos enlouquecidos. As lembranças dos vikings davam a estes anciãos uma espécie de prestígio, pois fazia trinta anos desde a decisiva Batalha de Maldon, quando os dinamarqueses, com a ajuda do mais temido rei viking, Olaf, derrotaram os anglo-saxões e assolaram a Inglaterra. E muito embora a derrubada do Rei Ethelred pelo dinamarquês Rei Sweyn, alçando o dinamarquês Canuto ao poder, fosse de memória mais recente, os mais novos no grupo viajante não tinham nenhuma experiência com tal temor. Embora ainda corressem rumores de ataques aqui e ali por vikings que se recusavam a aceitar a nova paz com a Inglaterra, o terror constante dos últimos cem anos acabara afinal. A Inglaterra aprendera a dormir tranqüila à noite, e o verso "Que o bom Senhor nos livre da fúria dos nórdicos" tinha sido retirado da litania.
Chegaram a um poste sinalizador com a seta "Portminster" apontando direto à frente, outra estava voltada para a esquerda, apontando uma estreita alameda, marcada "Mayfield", e a terceira seta, mais nova, indicava à direita e dizia "Convento da Vera Cruz". Não havia sido intenção de Winifred visitar o novo convento, embora ela descobrisse seus pés voltando-se para esta nova alameda, com o grupo de peregrinos, cujo tópico da conversa havia mudado para o que os aguardaria na mesa das freiras.
Vislumbraram os muros através das árvores, e a primeira coisa que Winifred ouviu foi o som de risos. Risos femininos, vindo do convento.
E a seguir ouviu vozes — chilreando, cacarejando, como galinhas excitadas. Franziu o cenho. Como alguém poderia se concentrar em questões espirituais com todo aquele barulho? Enquanto atravessavam a campina externa, ela parou e olhou: duas jovens em trajes de noviças estavam jogando uma bola uma para outra, rindo, seus hábitos esvoaçando indecentemente à brisa. Uma terceira estava atiçando um cachorrinho com um osso, fingindo arremessá-lo e depois rindo quando ele corria para buscá-lo. Duas outras noviças estavam em escadas apoiadas em macieiras, as saias arregaçadas, colhendo frutos e gritando alegremente uma para outra. Atravessando os portões principais e entrando no pátio interno, Winifred ficou atônita ao encontrar um mundo ativo de comércio em funcionamento, com peregrinos, gente da cidade, damas hóspedes e freiras, todos se misturando. Quiosques de madeira tinham sido erguidos para a venda de bugigangas de convento — emblemas bordados para que os peregrinos provassem ter visitado o santuário, frascos de água benta, contas de rosário, estátuas, simpatias para boa sorte, doces e pães — e com as freiras envolvidas no comércio!
Enquanto passava pela multidão que se assemelhava a uma feira de aldeia, seu choque inicial virou preocupação. Nada havia de pio neste lugar, nenhuma dignidade ou decoro. O abade lhe assegurara que estas irmãs seguiam a Regra de São Benedito, mas Winifred não via nada de modéstia, pobreza, humildade ou silêncio aqui.
Quando subia os degraus para a casa do capítulo, uma certa ironia a acometeu: que riqueza atraía riqueza. Enquanto parecia óbvio a qualquer observador casual que era o convento de Santa Amélia que estava terrivelmente necessitando de dinheiro, os gastos do abade eram desperdiçados neste novo convento, fundado por um barão rico que não media despesa. Os pomares fora dos muros! Winifred pressionou a mão contra o estômago roncando como se para acalmar uma criança petulante. Chegou a pensar em roubar algumas maçãs e levá-las para suas irmãs famintas.
O interior da casa do capítulo era igual ao lar de um homem rico, com candelabros de prata, bela mobília e tapeçarias nas paredes. E quando a Madre Rosamund chegou para recebê-la, Winifred sentiu um segundo choque.
Era isto que diziam ao povo: quando o dinamarquês Canuto tornou-se o rei de toda a Inglaterra, Oswald de Mercia induziu outros ingleses a declarar sua aliança a ele. Por isto ele foi recompensado com terras no condado de Portminster. E quando Canuto, no seu zelo para tornar-se "o mais cristão dos reis", anunciou sua intenção de construir novos mosteiros, Oswald requisitou o privilégio de construir um convento em honra de seu novo suserano. O que convenceu o conquistador dinamarquês foi o relato que Oswald fez de uma história sobre o ano em que viajou até Glastonbury, para onde, segundo diziam, José de Arimatéia tinha trazido o Cálice Sagrado de Cristo. Lá chegando e acampando uma noite ao longo da estrada, Oswald teve um sonho no qual a localização de uma preciosa relíquia lhe foi revelada. No fundo de uma caverna estava um cofre de ferro contendo uma peça da cruz de Cristo, enterrada ali pelo próprio Arimatéia. Oswald a trouxera para abrigá-la na capela de sua família. Aconteceu que a filha mais velha de Oswald, Rosamund, era devotamente religiosa e havia orado, durante as batalhas entre os dinamarqueses e ingleses, pela vitória dinamarquesa por sentir que era vontade de Deus — ou assim disse Oswald. Por causa das preces da filha, e da peça da Vera Cruz, Canuto graciosamente permitiu a fundação do novo convento em seu nome.
Assim dizia a história. Mas a verdade era: Oswald de Mercia, um covarde até a medula, foi lutar ao lado do rei inglês Ethelred quando viu o rumo que a guerra estava tomando. Assim ele trocou de lado, voltando para seus camaradas ingleses. Quanto a sua filha Rosamund, ela não era lá tão religiosa e detestava os homens. Preferindo a companhia de mulheres, ela se recusava a casar, não importando o quanto o pai a ameaçasse ou subornasse. Ela também queria poder. Assim, ele achou a solução perfeita: deixá-la dirigir um convento. Não poderia ser um convento qualquer, mas um que tivesse prestígio e importância. E que melhor meio de dar prestígio a uma instituição do que depositando uma relíquia muito importante dentro de seus muros — e o que poderia ser maior do que a cruz na qual tinha morrido o próprio Cristo? Claro que não houve nenhuma visita a Glastonbury, nem sonho, nem caverna, e nenhum cofre de ferro contendo a Verdadeira Cruz. O relicário no altar da capela do novo convento não continha nada mais do que ar.
Winifred agora via-se frente a frente com a prioresa do convento que estava levando o Santa Amélia à ruína. Madre Rosamund era espantosamente jovem. Não teria mais do que seis anos na ordem. Levaria quase trinta anos antes que pudesse obter o posto de prioresa. Um cacho extraviado do lindo cabelo ruivo tinha escapado de dentro da touca de Rosamund, e Winifred teve o pensamento maldoso de que fosse de propósito. Ela imaginou a fútil jovem diante de um espelho e escondendo debaixo do tecido branco engomado uma agulha de costura só para puxar o cacho perfeito. O mais chocante de tudo, porém, eram as mãos da jovem mulher — elas estavam por todo o lugar, como borboletas frenéticas atadas por fios aos seus punhos. Agitavam-se para cima e para baixo, para dentro e para fora, suas mangas caindo para expor os braços até os cotovelos! Estava claro que Rosamund não tivera nenhum treinamento formal na disciplina beneditina. E se assim fosse, então como poderia ela, como prioresa, treinar suas irmãs?
O coração de Winifred estava pesado. Como iria ensinar àquelas garotas frívolas a arte da iluminura sagrada? Simplesmente não poderia. Iria, sim, dizer ao abade que este novo convento era uma afronta à ordem e que ele deveria intervir pessoalmente e restaurar a disciplina. Winifred não se importava com o quão rico fosse o pai de Rosamund; este convento era uma ofensa a Deus.
— Minha cara Madre Winifred, como deve estar ansiosa por usufruir seus anos de descanso depois de tanto servir a Deus. Despir o manto de prioresa para ser de novo uma freira.
Winifred olhou para ela. Do que aquela garota estava falando? E então tudo lhe ficou claro como o cristal azul da pedra de Amélia: claro que não poderia haver duas prioresas num convento! Uma vez que o abade nada dissera a respeito, era óbvio que esperava que Winifred fizesse a dedução lógica. Mas mesmo assim ela chegou como um choque. Ela perderia o seu título e seria reduzida de novo a uma freira comum, e obrigada a reportar-se como "madre" a uma garota jovem o bastante para ser sua neta — isto era inimaginável!
Não que vá deixar de ter responsabilidades! — acrescentou suavemente a jovem. — Minhas meninas estão ansiosas para aprender a pintar aquelas adoráveis iluminuras!
Winifred balançou a cabeça. Rosamund fazia a coisa parecer uma brincadeira de criança.
Há algo mais nisto do que simplesmente pintar retratos — respondeu. — Terei de ensinar a feitura de pigmentos, seu uso adequado...
Oh, mas meu pai vai nos fornecer tintas! As mesmas tintas que são usadas em Winchester! Ele as trará a cada mês especial!
Winifred sentiu os ossos congelarem. Usar pigmentos que já tinham sido misturados por outros?
Mas sempre comprei minha matéria-prima do Sr. Jaffar — disse num tom que pareceu quase de súplica.
Não fazemos negócio com ele — disse Rosamund com in- disfarçado desprezo. — Ele ofendeu meu pai. Aquele patife está proibido de pôr os pés em nossa propriedade. E isto se estende por todo o caminho da estrada principal.
Winifred sentiu o chão tremer sob os pés. Os cantos da sala ficaram indistintos. Estava a ponto de desfalecer com o choque do que acabara de transpirar. Não mais ser a prioresa, não mais ter controle sobre a manufatura dos pigmentos, que era a sua própria razão de viver. E agora mais essa: nunca mais ver o Sr. Jaffar!
Enquanto Rosamund escoltava sua convidada num giro pelo novo convento, alegremente apontando todos os maravilhosos luxos e amenidades, Winifred mal ouvia uma palavra. Caminhava com a dificuldade de uma mulher que havia subitamente envelhecido vinte anos. Sua cabeça balançava de pesar, decepção e choque. Mas enquanto era conduzida de um cômodo a outro, através de um jardim enclausurado e descendo alamedas de piso de laje, o choque se transformou em percepção, até que seus olhos gradualmente se abriram e perguntou a si mesma: Como podia ter pensado que ela e suas irmãs nunca se mudariam para este lugar?
Era um outro mundo, um mundo maravilhoso. Cada quarto de hóspedes tinha seu necessarium exclusivo — um pequeno closet construído fora da parede externa com um cano levando os dejetos para uma fossa abaixo. Que luxo, não ter de se arrastar penosamente sob qualquer tempo quando a natureza pedia! Havia amenidades só encontradas nos lares da nobreza rica: velas marcadas para assinalar o tempo, lanternas de chifre de boi transparente, pisos recém-varridos cobertos com ceras de aroma doce. E mais luxos: no pátio atrás da cozinha, criados contratados ferviam trajes, lençóis e roupas de baixo numa tina de madeira contendo uma solução de cinzas de lenha e soda cáustica. Garotas trabalhavam numa horta, mulheres alimentavam bandos de galinhas e gansos gordos. Um velho contratado fabricava barras de sabão perfumado.
A cozinha era cinco vezes maior que a do Santa Amélia e suas despensas plenamente abastecidas ainda cheiravam a madeira e cal frescos. Os olhos de Winifred se arregalaram à visão da refeição do meio-dia: um presunto inteiro, tiras de bife malpassado, pão crocante, barris de cerveja e vinho. Quando Rosamund lhe serviu um generoso prato, Winifred alegou que tinha comido bastante antes de sair do Santa Amélia, mas, sem querer ofender, ela levaria a comida para o convento para consumi-la à noite. Na verdade, pretendia dividi-la com as outras, que havia muito não provavam uma iguaria.
Foi depois levada à capela principal onde os peregrinos — cavaleiros e mendigos, nobreza e clero, doentes e aleijados — esperavam em fila para orar diante do magnífico santuário da Vera Cruz. Esta igreja tinha algo que a sua própria capela não possuía: uma janela de vitral. E quanto ouro! E quantas velas, todas brancas e retas. Tudo para reverenciar um pedaço de pau, enquanto os ossos de uma mulher de verdade, martirizada em nome de sua fé, estavam abrigados em lugar simples onde as velas eram atarracadas e cheiravam mal. Winifred não se sentia amarga em relação a este contraste, apenas triste, e de repente quis juntar Santa Amélia nos seus braços e sussurrar: "Isto aqui pode ser grandioso, porém você é mais amada."
Por fim, este lugar tinha uma enfermaria que humilhava o Santa Amélia. Oito leitos e uma irmã-enfermeira. Winifred arregalou os olhos ao ver o armário de remédios: as poções, loções, ungiientos e pomadas, pílulas e pós. Vários frascos de colírio. Remédios para artrite. Tônicos para males renais.
Encantada com o generoso estoque de medicamentos e pensando no necessarium particular que Irmã Edith deveria ter no seu próprio aposento, de modo a não precisar de acompanhante à noite, e no rapaz no pátio externo sempre pronto a tirar água do poço, acabando assim com o trauma de Dame Odelyn em relação a poços...
Winifred suspirou. Não havia como negar. Este lugar seria um refúgio para suas irmãs idosas. Elas seriam bem alimentadas e cuidadas. Pouco importava que não tivessem mais funções. Paz e conforto valiam mais.
Ela havia sido convidada para pernoitar nos alojamentos de hóspedes, onde os colchões eram estofados com penugem de pato êider, mas Winifred estava ansiosa para voltar ao seu lar antes do escurecer. Agradecendo a hospitalidade de Rosamund, saiu da casa do capítulo tão rápido quanto o decoro permitia. Depois de cruzar os portões e descer a trilha para a estrada principal, parou debaixo de uma faia frondosa e, sozinha nas sombras, retirou o cristal azul do bolso.
Enquanto ele repousava em sua mão, captando a luz do sol que se filtrava através dos galhos acima, Winifred percebeu que o cristal não tinha sido um sinal, afinal de contas. Não havia nenhuma mensagem de Amélia, nenhum significado para a descoberta da pedra. Tinha sido um acidente, nada mais. Winifred sabia agora que ela e suas irmãs deveriam ir para lá e viver suas vidas naquele convento. Daria o melhor de si para ensinar às noviças a arte das iluminuras, mas sabia que a excelência, que uma vez houvera em seus trabalhos, não se repetiria, pois já sentia a centelha criativa se desvanecendo. O talento com que o Santa Amélia a havia dotado tantos anos antes já rendera o máximo. Daqui em diante, Winifred seria uma artista comum; ela ensinaria garotas comuns a executar pinturas comuns. E arquivaria de uma vez por todas o seu sonho banal de criar um retábulo esplêndido para Santa Amélia.
O Sr. Ibn-Abu-Aziz-Jaffar retornou três dias depois, conforme prometera. E Winifred tinha o dinheiro que devia a ele, pois vendera o único artigo de valor que o convento possuía, uma bela tapeçaria unicorne que pendia na casa do capítulo. Que necessidade havia para ela agora que o Santa Amélia ia ser fechado?
Jaffar disse que lamentava ouvir que ela ia perder seu lar, e acrescentou que rezaria por sua felicidade e sucesso no novo lugar. E então ele fez uma coisa surpreendente: deu-lhe um presente, algo que ele poderia claramente ter vendido por um bom preço: um maço de caríssimo cinabre espanhol. Ele o depositava agora gratuitamente nas mãos da prioresa, manchadas e calejadas pelo trabalho.
Winifred olhou sem fala para o presente. A pedra vermelha, moída, daria uma excelente tintura, da qual estavam extremamente necessitadas.
— Obrigada, Sr. Jaffar — disse ela com toda humildade.
Ele a chocou ainda mais ao pegar a mão dela entre as suas. Em quarenta anos Winifred numa sentira um toque humano, e certamente não de um homem! E naquele instante a coisa mais estranha ocorreu: Winifred sentiu a pele cálida sob seus dedos e pela primeira vez na vida viu um membro do sexo oposto não como um pai ou irmão, um mercador ou padre, mas como um homem. Ela olhou nos vívidos olhos negros de Simão e sentiu alguma coisa estranha mover-se dentro do peito.
E então teve uma visão, uma função da premonição celta que certa vez a levara a achar colheres e tortas de carne perdidas, mas desta vez era algo perdido no passado: num lampejo viu-se encontrando este mesmo homem no dia que antecedeu sua primeira visita ao Santa Amélia, mais de quarenta anos antes. Mas agora ele era um jovem andarilho carregando bolas de malabarista e uma caixa de truques mágicos. Seus olhos se encontraram enquanto passavam pela alameda, depois se desencontraram. Porém mais tarde, na capela do Santa Amélia, a Winifred de 14 anos pensa no belo jovem com quem cruzou na estrada. Ela não percorre o convento e não descobre por acaso o scriptorium; em vez disso volta para casa com a mãe e irmãs, a fim de viajar no dia seguinte para a feira na cidade, onde encontra o jovem pela segunda vez.
Nesta ocasião eles se falam, e a magia entre ambos é instantânea. Ele fala com um sotaque carregado e suas roupas são estrangeiras. Ele diz ter vindo da Espanha e que deseja percorrer o país levando sonhos e alegria ao povo. Promete voltar algum dia, e assim Winifred espera por ele. Cinco anos se passam até que ela o vê de novo, e lá está ele no portão da mansão, com uma carroça nova em folha e cavalo, e pede que ela vá com ele. Percorrerão o mundo juntos, ele diz, e terão muitos filhos e muitas aventuras. Então Winifred foge com o estrangeiro sem olhar para trás.
Ela piscou, prendeu a respiração e fitou os olhos escuros do Sr. Jaffar. E se deu conta de que tivera apenas um vislumbre do que poderia ter sido.
Para onde vai depois daqui? — perguntou ela, de repente.
A pergunta o surpreendeu.
Para a abadia, prioresa. Vendo remédios para os monges de lá.
Vá para o interior — disse ela. — Viaje primeiro para Mayfield.
Mas Mayfield fica fora do meu caminho, são mais dois dias de viagem. E depois, para fazer o caminho de volta...
Por favor — disse ela com urgência.
Pode me dizer por quê?
Tenho um pressentimento. Uma sensação. Deve seguir daqui para o interior, viajar por Bryer Wood.
Ele pensou no que ela dissera.
Discutirei isto com Seska, prioresa — disse ele, referindo-se ao cavalo. — Se ele concordar, faremos o desvio.
A seguir, ele subiu na carroça, pegou as rédeas e acenou um adeus pela última vez.
— Onde está a Irmã Agnes? É hora de partirmos.
Dame Mildred chegou à casa do capítulo com os últimos pacotes de suas coisas — velhas panelas e frigideiras, um rolo de pastel quebrado, artigos inúteis mas com valor sentimental que não poderia deixar para trás, muito embora Winifred a tivesse informado de que não precisaria mais cozinhar.
— Agnes está no cemitério — disse Mildred, respirando ofegantemente pelo esforço. Ela se recusara a deixar para trás até mesmo uma colher; todos os apetrechos de cozinha tinham sido limpos e embalados em sacos. O homem incumbido de fazer a mudança para o novo convento ia precisar de mais de uma carroça. Era irônico: embora as irmãs tivessem assumido votos de pobreza, a exigência para entrar num convento era um pagamento em dinheiro e mercadorias para uso comum. E embora Winifred e suas damas fossem elas próprias pobres, não obstante tinham os efeitos acumulados de gerações de mulheres acompanhando-as.
Winifred não ficou surpresa em saber que Agnes estava no cemitério do convento. Ela o visitara a cada domingo durante sessenta anos. Agora deveria dar adeus a este ritual.
A prioresa foi encontrar a freira idosa ajoelhada junto a um pequeno túmulo à sombra de um olmo que recentemente tinha sido atacado por uma praga de folhagem. Ela estava retirando as folhas mortas com os dedos artríticos. E estava chorando.
Winifred ajoelhou-se ao lado dela, persignou-se e fechou os olhos em oração. O caixão em miniatura abaixo delas continha o cadáver de um bebê que vivera somente umas poucas horas. Sessenta anos antes, durante um ataque nórdico a Portminster, Agnes e suas primas tinham sido capturadas no rio por um bando de vikings. Enquanto as outras garotas logravam escapar, Agnes havia sido apanhada e estuprada. Quando engravidou, poucas semanas depois, fora trazida ao convento com ordens para lá ficar, pois na opinião de seu pai ela havia desonrado a família. As freiras a acolheram, mas o bebê não viveu muito tempo. Depois de ele ser enterrado no cemitério do convento, Agnes permaneceu de vez e nunca mais viu sua família. Ela assumiu os votos e aprendeu a pintar iluminuras, passando cada domingo a prantear num túmulo que tinha a simples inscrição: "John — m. 962 Anno Domini".
Ela olhou para os galhos nus e imaginou por que Deus havia atacado a árvore com praga justamente agora, pois as folhas choviam sobre o túmulo e dentro de horas ele estaria completamente coberto. Depois que as freiras se mudassem não haveria mais ninguém para limpar as folhas do túmulo.
Em breve meu pequenino Johnny estará coberto e esquecido.
Ela já juntara uma pilha de folhas ao lado do túmulo, que Andrew queimaria mais tarde. Só que Andrew não estaria mais lá; ele estava de mudança com elas para o novo convento.
Winifired ajudou a anciã a se levantar.
Andrew diz que o novo convento é enorme — disse Agnes.
É, sim, Irmã Agnes, mas é também belo e novo. E... — e olhou através de suas próprias lágrimas para a árvore consumida pela praga — ...todas as árvores lá são saudáveis e verdes.
Nunca acharei meu caminho por lá.
Winifred ouvira o mesmo temor expressado pelas outras freiras. Ela própria tivera de aprender a se orientar pelo labirinto de corredores, pátios e prédios.
E nunca mais poderei pintar — lamentava-se Agnes, enxugando os olhos.
É hora de você descansar. Passou toda a sua vida a serviço de Deus.
Quem se aposenta é cavalo velho—replicou Agnes, petulante. — Por acaso sou uma inútil? Ainda posso enxergar e empunhar uma pena. O que farei comigo mesma? E quem cuidará do meu pequeno Johnny aqui?
Venha — disse Winifred. — É hora de irmos.
Reuniram-se na casa do capítulo, que era dominada por uma enorme lareira que havia sido instalada duzentos anos antes por uma prioresa que era particularmente sensível ao frio; seu irmão rico pagara pela ostentosa lareira, que era grande demais para o recinto, mas negligenciara no fornecimento constante de lenha e carvão que ela exigia, e, portanto a lareira caíra em desuso. Gravadas na cornija maciça estavam as palavras de Cristo por meio das quais Winifred e suas irmãs tentavam viver: "Mandatum novum do vobis: ut diligatis invicem" — "Dou-vos uma nova lei: amai-vos uns aos outros."
Dame Mildred hesitava em se desfazer de sua panela gigante. Fazia anos que não era utilizada por causa da cada vez mais reduzida população do convento.
É uma excelente panela — queixou-se. — Ela nos alimentou durante vários invernos rigorosos. Não deveríamos deixá-la para trás.
E grande demais, irmã — disse gentilmente Winifred. — Não vamos conseguir carregá-la. Talvez, mais tarde, possamos mandar alguns homens vir buscá-la.
Mildred parecia indecisa, o olhar pesaroso voltando-se na direção da cozinha como se ela estivesse abandonando um filho.
Foram interrompidas por gritos do lado de fora e o som de cascos de cavalo no pátio. Andrew entrou correndo, rosto pálido e tagarelando algo sobre um ataque. Enquanto Winifred corria para ele, outro homem entrou, o rosto afogueado pela dura cavalgada. Usava o emblema da abadia e portava uma alabarda.
Desculpem — disse sem fôlego. — Os vikings atacaram e recebi ordens de escoltar as senhoras à abadia para protegê-las.
Vikings! — Winifred fez o sinal-da-cruz e as outras começaram a gritar.
O homem contou rapidamente o que acontecera: os nórdicos tinham desembarcado em Bryer's Point e percorrido a curta distância até o Convento da Vera Cruz. Os relatos eram vagos, mas acreditava-se que todo o complexo havia sido saqueado e incendiado. Pouco sabia dos peregrinos e das irmãs, só tinha certeza de que Madre Rosamund conseguira escapar e fora à abadia para dar o alarme.
Ela disse que suas freiras correram para se refugiar na capela, e lá os demônios as encontraram, todas abraçadas, e foram massacradas ali onde estavam, como gansos num cercado. E agora fui mandado para buscar a senhora e suas freiras. Venham rapidamente, o tempo é curto.
Mas a abadia fica a alguma distância daqui! — protestou Winifred. — Não poderíamos encontrar os vikings no meio do caminho?
Com certeza não estarão a salvo aqui, prioresa — disse o homem, impaciente. — Depressa! Escoltarei vocês. Tomaremos a carroça do homem. — Referia-se ao homem que havia sido contratado para transferi-las para o novo convento.
Enquanto as irmãs choravam e se agitavam à beira do pânico, Winifred tentava pensar. Os invasores não haviam atacado a cidade portuária nem a abadia, mas optaram por um convento desprotegido. O que os impediria de voltar-se nesta direção na esperança de um segundo massacre fácil? Se assim fosse, o soldado e suas indefesas escoltadas dariam de cara com os invasores.
Cada instinto lhe dizia que estariam mais seguras permanecendo lá. Topar com os vikings na estrada era suicídio certo, mas permanecer no Santa Amélia daria tempo aos soldados de Oswald de dar caça e talvez expulsar os invasores.
Winifred sentiu a pedra no seu bolso e recordou como Santa Amélia havia enfrentado seu destino com coragem, como não sucumbira à tortura dos homens. Santa Amélia tinha feito mais do que desafiar as ordens de um mero abade, ela havia se rebelado contra a autoridade do imperador de Roma.
Não — disse ela, de súbito. — Nós ficaremos.
Os olhos do soldado se esbugalharam.
Está louca? Olhe, recebi ordens e pretendo levá-las. Agora, por favor, todas para a carroça.
Foi como se ele não tivesse falado. As freiras idosas e duas damas se agruparam em volta da prioresa como pintos em torno de uma galinha:
O que devemos fazer? — perguntaram.
Winifred lembrou-se de um relato de muitos anos antes, quando ela era criança e os vikings haviam atacado uma aldeia do norte, ao longo do litoral. Os aldeões se agruparam na igreja. Os vikings puseram fogo no prédio e todos lá dentro pereceram. Lembrou-se também de como ela e seus irmãos se agrupavam durante uma tempestade assustadora. Não devemos nos agrupar, pois é isto que eles esperam que façamos.
Agora me ouçam, caras irmãs. Lembrem-se de como nossa abençoada santa enfrentou um processo pior de que este, pois não era apenas a sua fé que estava sendo posta à prova, mas também sua carne. Mas ela reuniu coragem para passar a perna em seus verdugos, e assim faremos nós.
Mas como, Madre Winifred? — perguntou Dame Mildred com voz trêmula.
Cada uma de vocês deve encontrar um esconderijo individual, um lugar onde os invasores não esperem descobrir uma dama. Não se escondam debaixo da cama ou num guarda-roupa, pois são os primeiros lugares que os dinamarqueses vão vasculhar.
Não podemos nos esconder todas juntas?
Não — disse Winifred com firmeza. — Acima de tudo, não devemos nos esconder juntas, nem mesmo em duplas.
Prioresa, é uma ordem do abade que... — O soldado da abadia insistiu.
Eu sei o que é melhor para minhas mulheres. E você também ficará.
Eu?! — Ele pôs a mão no peito, chocado. — Devo retornar para a abadia.
Você permanecerá — comandou ela. — Encontrará um esconderijo e nele deverá ficar, em silêncio e quieto, até que dê um sinal de que está tudo limpo.
Mas recebi ordens do...
Jovem senhor, você está em minha casa, e sou a autoridade aqui. Faça como eu digo, e rápido.
Após um momento de agitação ineficaz, as mulheres finalmente deixaram a casa do capítulo, cada qual correndo para o local que mais amavam, achando que isto as protegeria, ou para aquele que mais temiam, acreditando que um vilão o temeria também, e assim Dame Mildred correu para buscar refugio na sua amada cozinha; a Irmã Agnes para o túmulo de seu adorado Johnny; Dame Odelyn para o seu odiado poço no pátio. E assim continuou até que as onze remanescentes do Santa Amélia desapareceram ante os olhos atônitos do guardião da abadia. Ele achava que isto não daria certo e que todas elas seriam massacradas como ovelhas.
Mas ele subestimou a sagacidade de Madre Winifred. As freiras, sendo bem menores do que os corpulentos vikings, eram capazes de se espremer em esconderijos aos quais os invasores não teriam acesso, tal como camundongos num buraco na parede. E assim Dame Mildred removeu as teias de aranha que haviam crescido sobre a boca de sua enorme panela, entrou nela e recolocou as teias sobre a cabeça. Irmã Gertrude, encontrando força e sagacidade inimaginadas, subiu na chaminé da enorme lareira na casa do capítulo e dependurou-se como um morcego assustado nas dobradiças do fumeiro. A Irmã Agatha correu para o dormitório, onde rasgou a costura de um colchão, retirou um pouco do estofo de palha, jogou-o fora pela estreita janela, depois se enfiou dentro do colchão e segurou o rasgo na costura com a ponta dos dedos. Dame Odelyn pensou em descer no balde até o fundo do poço apavorante, mas então percebeu que o balde baixado dentro do poço poderia dar uma pista. Portanto ela arduamente desceu usando as pedras irregulares da parede do poço como apoio. A Irmã Agnes lançou-se sobre o túmulo do pequeno Johnny e cobriu-se com a pilha de folhas mortas pela praga. A Irmã Edith, que sempre tinha dificuldade em encontrar o necessarium, apressou-se direto para ele e espremeu-se no espaço malcheiroso entre o vaso e a parede.
Só depois de certificar-se de que todas estavam escondidas em segurança, incluindo Andrew e o soldado da abadia, é que Winifired finalmente subiu no andaime sobre o altar e ali escondeu-se.
Mal tinham acabado de se esconder, os vikings chegaram, irrompendo no pátio externo com uivos ferozes e gritos sedentos de sangue. Invadiram a casa do capítulo e a capela, os dormitórios e refeitórios, cozinha e scriptorium como um estouro de boiada. Como Winifred previra, eles procuraram sem descanso pelas irmãs escondidas: no confessionário, atrás do altar e tapeçarias, dentro de armários e baús, debaixo das camas. Dentro do poço Dame Odelyn mantinha o rosto voltado para baixo e viu na água o reflexo de um rosto aureolado com cabelos ruivos que olhava lá de cima. Mas ele não a viu, pois seu vestido azul-escuro confundia-se com as sombras no fundo do poço. Na cozinha, nenhum viking se incomodou em olhar dentro da panela gigante com a boca coberta por teias de aranha. Gertrude, no colchão, ouviu passos pesados e prendeu a respiração. Ouviu a porta sendo escancarada; sentiu um par de olhos examinar o cômodo; depois ouviu os passos ressoando no cômodo ao lado.
Cada mulher aterrorizada no seu esconderijo especial ouvia os vilões vasculhando tudo, pilhando, destruindo, e gritando maldições quando nenhuma mulher era encontrada.
Winifred, escondida no andaime, apertou com força a pedra azul enquanto observava com a respiração suspensa o líder viking irromper na capela, olhando lentamente ao redor. Era o homem mais alto que já tinha visto, com músculos que pareciam melões e o cabelo como fogo. Ele pegou o relicário de prata de Santa Amélia e abriu-o, esparramando os ossos e espalhando-os com os pés. Após uma busca debaixo e atrás do altar, no confessionário, em cada nicho ou recesso onde uma mulher poderia se esconder, ele pôs a caixa debaixo do braço e saiu.
Winifred não relaxou a postura. Embora cada junta e músculo does- sem por causa da posição desconfortável entre as vigas, ela ficou tão imóvel quanto pôde, orando para que os invasores terminassem logo o seu trabalho de destruição e partissem. Sentiu o suor porejar por todo o seu corpo. Ele pingava no seu couro cabeludo e debaixo do véu. Suas mãos estavam úmidas. De repente, para seu desespero, o cristal azul escorregou de seus dedos molhados e bateu no chão diretamente abaixo.
Teve de morder a língua para não gritar, e rezou com toda a sua fé para que nenhum outro viking entrasse na capela. Mas para seu horror o líder voltou, como se tivesse se esquecido de alguma coisa ou sentido algo errado ali. Winifred observou com terror enquanto o gigante alto e louro, usando capacete com chifres, caminhava lentamente pela ala central até o fundo do altar. Fez meia-volta e seu pé chutou o cristal.
Winifred sufocou um arquejo.
O nórdico olhou para baixo, pegou a gema reluzente e depois olhou em volta, sabendo que o cristal não estivera ali um momento antes. Ergueu o rosto e perscrutou as sombras acima, a construção de tábuas, sarrafos e suportes. Olhou por um longo momento. Winifred viu um par de penetrantes olhos azuis, mas não sabia dizer se ele poderia vê-la.
De repente, o olhar circulante parou e seus olhos encontraram os dela. A madre susteve a respiração enquanto aferrava-se à madeira podre e tentava não agitar a poeira sobre as vigas.
O momento se prolongou, com o selvagem abaixo olhando para a freira aterrorizada lá em cima.
E então, na sua língua estrangeira, ele gritou uma ordem para seus homens e Winifred viu, através da janela do clerestório, os outros reunindo sua pilhagem. Quando dois homens chegaram com tochas, o líder rosnou para eles e gesticulou para que saíssem. Quando correram para fora, ele olhou para cima de novo, e desta vez houve um lampejo nos seus olhos, um leve erguer de sua boca. Outra pessoa poderia ter interpretado o olhar como uma saudação de coragem e ingenuidade; Winifred viu apenas como o poder de Santa Amélia atuando.
Ela esperou um longo tempo antes de descer. Seus ossos protestaram quando finalmente desvirou-se da posição incômoda e quase perdeu o pé de apoio enquanto descia para o chão. A seguir apressou-se subindo as estreitas escadas que levavam ao topo do campanário e olhou para fora. A distância ouviu o tropel de cascos de cavalo — os homens de Oswald perseguindo os invasores em fuga. Depois o tropel se desvaneceu e a tarde ficou silenciosa e quieta.
Ela chamou as irmãs de seus esconderijos, ajudando-as a sair dos espaços apertados para os quais poucas horas antes haviam deslizado com facilidade, e todas se reuniram na capela para rezar. Quando elas contaram como haviam escapado de ser descobertas, cada qual no seu respectivo esconderijo peculiar, e como Winifred pensou no andaime erguido havia cinco anos, quando os consertos no teto deveriam ter sido iniciados, como ela o amaldiçoara por todo esse tempo e no fim tinha sido o andaime que a salvara, e pensando no pavor que Odelyn tinha de poços, e no necessarium que havia sido a maldição da vida de Edith, e nas folhas que iam cobrir a sepultura do pobre Johnny, ela concluiu: o andaime, o panelão, o olmo atacado pela praga, o poço — itens que só provocaram irritação e dor de cabeça — não foram acidentais. Foram milagres. Nada nos salvaria se não tivéssemos a coragem de usá-los. A coragem de Amélia.
Winifred pensou na pedra azul que o viking havia pegado e esperou que a graça de Santa Amélia tivesse ido com ele e que, de alguma forma, algum dia trouxesse luz ao coração do bárbaro.
Enquanto descia a alameda em seu excelente cavalo, o abade pensava quão conveniente o novo convento tinha sido para a abadia. Infelizmente, fora inteiramente destruído pelos vikings, ao passo que o Santa Amélia, por algum milagre, tinha sido poupado. E por ter sido poupado, era agora o único convento em Portminster. Por ironia, se ambos houvessem sido destruídos, a reconstrução seria feita em um só lugar, ficando o Santa Amélia entregue às ruínas.
Quando tomou a encruzilhada, juntou-se ao fluxo de peregrinos que se dirigiam ao priorado. A lasca da cruz de Cristo havia sido consumida pelo fogo no outro convento, portanto Amélia voltara a ser a única relíquia na área. O abade sabia que um milagre ocorrera ali. Por que os vikings não tinham também incendiado este lugar? Todo mundo dizia que Santa Amélia os havia detido. Mas, pensando na indomável Madre Winifred, ele especulou...
Mudanças ocorreram desde o milagre dos dinamarqueses. Odores maravilhosos vinham agora da cozinha, onde um gostoso ensopado estava fumegando na panela gigante de Dame Mildred. Lá fora, um rapaz tirava água do poço e entregava o balde à Dame Odelyn. Outro rapaz varria as folhas de um pequeno túmulo. Havia atividade por toda parte, e uma nova prosperidade.
Mas o abade não viera aqui hoje para cumprimentar as freiras do Santa Amélia. Estava aqui porque ouvira notícias perturbadoras: Madre Winifred não estava treinando pessoalmente as jovens noviças na iluminura de manuscritos, mas delegando a tarefa às freiras mais velhas. E em que a prioresa empregava seu tempo enquanto isso? Pintava aquele retábulo dilapidado!
Bem, ele ia pôr um fim a isto de uma vez por todas. Não ia mais tolerar desobediência daquela mulher.
Ele esperava que Winifred estivesse no portão para recebê-lo como sempre fizera no passado, mas ela não se encontrava lá. Era Irmã Rosamund, agora uma residente do Santa Amélia e rebaixada do posto de prioresa, embora parecesse não se importar. Agora era prioresa-assistente e alegremente encarregava-se de cuidar do conforto de viajantes, pupilas e damas, além de supervisionar a manutenção dos prédios, do abrigo das cabras, ovelhas e galinhas, e verificar se a mesa de jantar estava sempre com abundância de comida.
Rosamund graciosamente escoltou o abade até o novo solário onde Madre Winifred estava sentada a um cavalete, pintando. Ele estava começando a falar quando olhou para o painel e emudeceu. E depois viu algo ainda mais desconcertante: Madre Winifred estava sorrindo!
Ele sentou-se e permaneceu em silêncio enquanto ela trabalhava. Winifred havia criado uma excêntrica Santa Amélia, radiante e humilde, servindo aos pobres, disseminando a palavra de Cristo. No quarto painel do novo retábulo, Santa Amélia segurava um cristal azul na mão em concha, junto à garganta. O abade não via o sentido disto, mas era uma cena linda de tirar o fôlego.
Quando uma noviça lhe trouxe cerveja, que ele bebericou distraidamente, o Padre Edman não só havia decidido que deixaria Winifred terminar o retábulo, como já tinha pensado em pinturas futuras que ele a incumbiria de fazer. Os patronos iriam pagar generosamente por elas.
Ínterim
Quando viu a magnificência do retábulo de Winifred, o abade teve uma súbita mudança de opinião. Concedeu-lhe todo o crédito para estimulá-la e depois encomendou um tríptico para sua própria igreja. Ele nunca chegou a bispo, morrendo dois anos depois, engasgado com uma espinha de peixe durante sua terceira porção do jantar da Páscoa.
Madre Winifred viveu mais trinta anos, passando seus dias na produção de um número prodigioso de pinturas magníficas, retábulos e miniaturas — madonas, crucifixos e natividades —todos identificados como de sua autoria pelo indefectível cristal, pois naquele tempo os artistas não assinavam suas obras.
Pouco depois do ataque dos vikings, o Sr. Ibn-Abu-Aziz-Jaffar voltou ao Santa Amélia para uma última visita, agradecer a Madre Winifred pelo aviso de que não fosse à abadia naquele dia, enquanto sua decisão de seguir para o interior e viajar para Mayfield o desviara do caminho dos vikings, salvando assim sua vida. Madre Winifred, se esquecendo da premonição que herdara dos ancestrais celtas, concedeu todo o crédito a Santa Amélia e convidou o mascate a descansar no priorado pelo tempo que desejasse. Ele decidiu se aposentar por lá, vivendo numa pequena cabana com seu fiel cavalo Seska e terminando seus dias num padoque. Simão, o Levita, vez por outra ajudava no convento, era popular entre visitantes e peregrinos, e continuou sendo o amigo e conselheiro de Madre Winifred. Eles desenvolveram um ritual de se encontrar todas as tardes para uma conversa amena — Simão, o judeu, e Winifred, a freira — até a morte dele, catorze anos depois. Embora ele nunca tivesse se convertido ao cristianismo, Winifred insistiu para que seu velho amigo recebesse os ritos finais e fosse enterrado em solo consagrado.
Enquanto Madre Winifred continuava a executar suas pinturas, as mãos e os olhos finalmente começaram a sentir o peso da idade. Às vezes ela fazia uma pausa no trabalho para pensar no viking que se apossara da pedra azul e imaginava o uso que ele teria feito do poder de Santa Amélia.
O que aconteceu foi o seguinte: quando os vikings retornaram ao seu barco, descobriram-no em chamas e foram cercados pelos soldados de Oswald de Mercia, que os massacraram até o último homem. O próprio Oswald tomou parte na pilhagem dos corpos e encontrou uma curiosa pedra azul, inacreditavelmente linda. Ele mandou engastá-la numa espada que mais tarde acompanhou um desditoso soldado cruzado a Jerusalém, onde a pedra foi removida do punho da espada e levada de presente para o califa de Bagdá. Lá ela ornamentou por um tempo o turbante preferido do califa. Num momento de fraqueza, o califa deu o cristal para uma dançarina do templo, que o usava no umbigo enquanto dançava para ele e depois, durante a noite, para seu amante ilícito. O cristal foi carregado em bolsos e algibeiras, teve donos e donas, foi vendido e comprado e roubado de novo, até ser trazido de volta através do canal da Mancha por um soldado voltando das Cruzadas. Tendo ficado cego em consequência de um combate perto de Jerusalém e esperando obter uma cura, ele juntou-se a um grupo de peregrinos a caminho de Canterbury. Foram atacados por bandidos que venderam seu butim no norte. Lá o cristal foi engastado na tampa de uma caixa de jóias de madrepérola por um jovem que esperava conquistar a afeição de uma dama com um presente extravagante. Mas quando a dama recusou o pedido de casamento do pretendente, ele partiu para o continente, onde jurou se matar tão logo encontrasse um lugar adequado. Então conheceu um homem de Assis chamado Francisco, que estava fundando uma nova irmandade baseada na pobreza e, num impulso, o jovem rejeitado juntou-se à ordem abdicando de todas as suas posses, incluindo a amaldiçoada caixa de jóias.
O camponês, que encontrou a caixa na pilha de oferendas de caridade dos franciscanos, retirou a pedra da tampa e com ela comprou um pão. Quando a mulher do padeiro viu a gema fascinante, trocou-a por uma nova invenção, um espelho de vidro, acreditando que um objeto que mostrava seu reflexo era mais precioso.
Em 1349, a Peste Negra matou um terço da população européia, e naquele tempo o cristal azul foi responsabilizado por sete mortes e seis curas enquanto passava de falecido para sobrevivente, de paciente para médico. Quase cem anos depois, quando uma jovem chamada Joana foi queimada viva na França por heresia, um homem na multidão que assistiu ao suplício não percebeu que estava sendo roubado. O ladrão levou-lhe dois florins de ouro e um cristal azul.
Em 1480, num dia quente de verão, uma multidão reuniu-se nas colinas perto de Florença para ver um artista-inventor de 28 anos demonstrar sua mais recente criação, que ele chamava de pára-quedas. Os espectadores alegremente apostavam se o jovem idiota quebraria ou não o pescoço, mas quando Leonardo da Vinci pousou ileso num campo gramado, o cristal azul passou das mãos de um príncipe Medici para um viajante erudito que levou a reluzente gema de volta a Jerusalém como presente para sua amada filha, só para descobrir que ela morrera de parto durante sua ausência. Tal foi sua amargura pela morte dela que escondeu o odiado cristal, pois ele o fazia se lembrar da única filha. E lá ele ficou, numa caixa de ouro numa linda casa com vista para a Cúpula da Rocha, esperando por seu próximo dono, sua próxima virada do destino.
Alemanha, 1520 d.C.
Se lhe perguntassem, Katharina Bauer diria que iria se casar com Hans Roth por amor. Mas na verdade ansiava por fazer parte de uma família.
Poder chamar uma mulher de irmã, ou tia, ou um homem de irmão, ou tio, ou saudar alguém como prima, sobrinha ou sobrinho, este era o estofo dos sonhos de Katharina Bauer. Com 17 anos de idade e a filha única de uma viúva que vivia num quarto humilde em cima de uma hofbrauhaus, Katharina desejava acima de cada estrela, cada talismã de boa sorte, pertencer a uma família numerosa e feliz. E Hans Roth, 22 anos de idade, com os olhos azuis de centáurea, por acaso possuía uma família assim.
Um dos três filhos e duas filhas de Herr Roth, o fabricante de canecos, e de sua hausfrau, Hans vivia numa colméia repleta de parentes, agregados e uma variedade de parentela, todos envolvidos na fabricação e venda de canecos de cerveja. E agora que Katharina tinha recebido permissão para ajudar durante as fases mais movimentadas do negócio (embora não fosse paga para isso), fazendo-a sentir-se parte da família Roth, ela secretamente esperava que por esta época no próximo ano estivesse se dirigindo a Herr Roth como "papai".
Era assim o verdadeiro amor, dizia Katharina a si mesma enquanto alegremente ajudava Hans na sala de secagem — esta sensação de alegria silenciosa, paz e contentamento. Tinha visto isto em casais mais velhos, pessoas que se haviam casado para sempre. Que sorte seria para ela e Hans se pudessem começar já desta maneira. Que estrada perfeita se estendia diante deles!
Quanto aos outros aspectos do casamento — o leito conjugal e bebês — Katharina preferia não se alongar nisto, pois beijar Hans era até onde desejava ir. Durante aqueles poucos momentos roubados, quando ficavam a sós, nos bosques ou à beira do rio, fora das vistas de todos, e Hans se mostrava mais ansioso do que de hábito, Katharina tinha de afastar-lhe as mãos e lembrar a ele que ainda não estavam casados. Mas quando chegasse a época adequada ela faria seu dever e sofreria a breve união física necessária para produzir filhos.
Enquanto erguiam os canecos de cerveja recém-chegados das prateleiras de secagem, detectaram os aromas deliciosos infiltrando-se pela janela aberta: costeletas de porco chiando no fogo, repolho cozinhando numa panela, batatas assando, pão fresco saindo do forno — Fray Roth estava preparando sua habitual refeição pesada do meio-dia. Katharina sabia que não seria convidada; Frau Roth não era notada por sua generosidade. Mas Katharina não almoçaria com eles, de qualquer modo, não enquanto sua mãe estivesse em casa pensando no que fazer com queijo e ovo. Vez por outra um freguês satisfeito pagava Isabella Bauer com salsichas e batatas, que ela esticava por uma semana em refeições para si e Katharina. Mas o pão era farto, sempre havia pão, e como tinham a sorte de morar em cima da hofbrauhaus, e como o proprietário, Herr Muller era enrabichado pela mãe de Katharina, não faltava cerveja.
— Estes vão para a Itália — disse Hans, enquanto colocavam os canecos secos no forno de queima.
Katharina não deixou escapar a nota de reverência e admiração na voz dele enquanto dizia "Itália", pois Hans ansiava conhecer o mundo. Para Katharina, porém, o mundo era Badendorf, onde a praça do mercado central era dominada por uma fonte e rodeada dos dois lados por lojas e casas com fachadas de madeira e alvenaria; no terceiro lado ficava a hofbrauhaus; e no quarto lado a rathaus de trezentos anos que tinha sua porta de entrada no segundo andar, alcançada por uma escada que podia ser retirada em caso de perigo; ao lado ficava a igreja romanesca do século V, com fundações, dizia-se, que remontavam aos antigos romanos. A marktplatz era o cenário para os festivais anuais, casamentos, celebrações, para vendedores de frutas e vegetais e para a ocasional peça religiosa. No entendimento de Katharina Bauer, Badendorf era o mundo inteiro.
Ela não sabia o que havia em torno da margem do rio, ou do outro lado da montanha, nem queria saber. Não tivera notícia da coroação que acabara de acontecer, numa cidade chamada Aachen, de um rei chamado Carlos V, e que foi o maior evento deste tipo desde a coroação de Carlos Magno. Nem estava ciente de que um outro homem, um monge agostiniano chamado Martin Lutero, acabara de ser rotulado de herege pelo papa por disseminar novas e perigosas idéias, e que seus protestos iam se espalhar como fogo em madeira seca pela Europa devido à oportuna invenção de um terceiro homem chamado João Gutenberg. Katharina só sabia de sua cidade, da floresta, do castelo e dos cidadãos de Badendorf. Isto bastava.
Quando Hans pegou um caneco passado por ela, seus dedos se tocaram e ela viu um rubor se formar nas faces dele. Nenhum rubor se formou no rosto dela, pois o amor que Katharina sentia pelo jovem não era do tipo "fogoso", como ela achava ser o dele. Nem mesmo tinha certeza de que aquele tipo de amor realmente existisse fora das canções, poemas e contos românticos. O que contava era empatia, afeto, e uma profunda sensação de sentir-se confortável com alguém. Como tinha conhecido
Hans por toda a vida, este amor crescera lentamente com eles e quando os pais deles mencionaram casamento, parecera simplesmente natural para Katharina que deveriam continuar suas vidas juntos. E seria um casamento perfeito, sabia, com ela tornando-se a mais requisitada costureira em Badendorf e com Hans dirigindo a famosa fábrica de canecos de cerveja Roth.
Séculos antes, fontes naturais de águas termais trouxeram os romanos para esta região por motivos de saúde. Embora as fontes tivessem secado, no seu lugar restou uma argila que era perfeita para fabricação de faiança. E assim Badendorf ficou famosa por seus canecos de cerveja. Cada um começava como um punhado de argila crua que era modelada, esculpida e pintada à mão, e depois levada ao fogo e envernizada. A fim de secar a argila e dar consistência aos canecos, eles eram secados a ar por muitas horas na sala de secagem antes de ir para o forno de queima. O processo geral levava vários dias e exigia um bocado de paciência. Este era o segredo dos canecos Roth: quanto mais lentamente a água era extraída da argila, mais forte o produto final se tornava. E assim os canecos Roth eram procurados por toda a Europa e além. O que significava que algum dia Hans se tornaria um homem muito rico. Então Katharina teria condições de comprar uma casa grande para a mãe e cuidar para que ela nunca mais trabalhasse.
Terminado o seu trabalho da manhã, Katharina seguiu Hans ao ateliê, onde a fornada mais recentemente aquecida estava sendo equipada com tampas de peltre.
Duzentos anos antes, os médicos haviam deduzido que a peste era transmitida pelas moscas e assim, para evitar que a doença se espalhasse, aprovou-se uma lei exigindo que todas as bebidas ficassem cobertas. O problema era que uma tampa removível tirava o prazer de beber cerveja, pois o caneco ocuparia as duas mãos. Uma solução fez-se necessária e assim surgiu a tampa articulada, permitindo que as pessoas utilizassem somente uma das mãos sem deixar de cumprir a lei. Os canecos Roth eram famosos por suas tampas ornadas e decorativas que sempre complementavam o desenho do próprio caneco.
Enquanto Katharina ajudava dois primos de Roth com um fardo incômodo de palha prensada, Hans chegou por trás dela e, enlaçando-a pela cintura, sussurrou algo no seu ouvido. Katharina riu e escorregou do abraço, simulando ter apreciado o flerte. Mas secretamente esperava que, quando estivessem casados, ela não a tocasse tanto. E, de qualquer forma, não seria decente, uma vez que seriam um respeitável casal.
Quando ela já ia comentar acerca da hora e de que sua mãe a esperava, subitamente ouviram um grito lá fora. Alguém chamava freneticamente o nome de Katharina.
Ela saiu para ver Manfred, o filho do hofbraumeister, correndo pela praça, agitando os braços e procurando por todo mundo como um moinho.
Katharina! — gritou. — Venha depressa! Houve um acidente. Sua mãe...
Katharina saiu. Manfred caiu no degrau ao lado dela. Estava sem fôlego.
Ela estava atrás da carroça de cerveja quando o cavalo empinou. Um barril rolou da carroça e atingiu sua mãe. O doutor árabe está com ela.
Katharina agradeceu silenciosamente a Deus por isto. O idoso médico era o homem em quem mais confiava no mundo.
O Dr. Mahmoud fugira da Espanha 28 anos antes, quando os mouros foram expulsos pela Rainha Isabel. Ele estava no norte comprando remédios quando recebeu a notícia de que toda a sua família havia sido aniquilada e que era muito perigoso retornar a Granada. Após um ano vagueando pela Europa encontrara refúgio em Badendorf, onde Isabella Bauer, sabendo o que era ser um estrangeiro numa cidade estrangeira, o tinha tratado com gentileza e convencido os cidadãos a aceitá-lo.
O Dr. Mahmoud foi a primeira pessoa que Katharina viu quando chegou à porta aberta do quarto em cima da hofbrauhaus — seu corpo idoso vestido com os exóticos mantos da sua cultura, um turbante cobrindo o cabelo branco. O Frei Pastorius, um jovem irmão religioso com uma compleição franzina e um pé deformado, estava a um canto, rezando.
Quando viu sua mãe deitada inconsciente no leito, com uma atadura ensangüentada na testa, Katharina correu até a beira da cama e caiu de joelhos.
Isabella Bauer, a melhor costureira de Badendorf e de toda a região circundante, estava com 38 anos e embora tivesse conhecido uma vida de privação e fadiga, ainda conservava as feições da juventude. Mas agora, os olhos fechados em coma mortal, ela parecia ainda mais jovem, o rosto suavizado das linhas de preocupação e idade, a cútis pálida e imaculada.
— Mamãe? — chamou Katharina, pegando a mão fria e inerte da mãe. — Mamãe? — chamou um pouco mais alto. Olhou para o Dr. Mahmoud, cuja expressão era grave.
Katharina sentiu o coração parar. Sua mãe era a única família que tinha. Ela pouco sabia de seu pai, pois era apenas um bebê quando ele morreu vítima de uma febre virulenta que assolou a aldeia deles no norte. Não havia nem mesmo um túmulo para ela visitar. Os mortos tinham sido queimados, para deter a disseminação da febre. Ela e a mãe haviam escapado e vindo para o sul para se estabelecer em Badendorf. Quando Katharina ficou mais velha, com freqüência voltava os olhos verdes para o norte, para a margem do rio e o mundo que nunca tinha visto, imaginando a aldeia e o belo homem sorridente que fora o seu pai.
Embora Katharina e a mãe não pertencessem à florescente classe mercantil alemã, e sua existência fosse uma luta diária e com freqüência passassem necessidades (Isabella muitas vezes tinha de procurar seus clientes e quase implorar pelo pagamento que lhe deviam), elas não se consideravam pobres. Moravam num pequeno quarto em cima da cervejaria, o único lar que Katharina já conhecera, usavam vestidos consertados e sapatos remendados, e às vezes passavam fome ou ficavam sem aquecimento no inverno, mas se consideravam abençoadas por não pertencerem à classe camponesa que era explorada pelos nobres. Isabella Bauer costumava dizer à filha que poderiam não ter dinheiro, mas mantinham a dignidade.
E a vida, no todo, tinha sido boa. Havia um pequeno jardim murado nos fundos da hofbrauhaus, onde Frei Pastorius ensinava latim aos garo- tos e o Dr. Mahmoud atendia seus pacientes. E ali a luz também era melhor e, portanto Katharina e a mãe costuravam no jardim enquanto o idoso médico árabe consultava os pacientes detrás de um biombo portátil que ele trazia de seu quarto, e Frei Pastorius martelava latim rudimentar nas cabeças teimosas dos filhos de comerciantes.
Numa manhã típica, enquanto Katharina e Isabella costuravam seus finos padrões, o ar enchia-se com o canto de pássaros e o recitar dos alunos do frade: "Anima bruta, anima divina, anima humana..." pontuados por uma tosse ocasional detrás do biombo do doutor. Assim, a mente jovem e ágil de Katharina, enquanto tecia rosas e folhas em linho, absorvia as lições destinadas aos garotos: "Leone fortior fides."
Agora, ajoelhada ansiosamente junto ao leito da mãe, Katharina ouvia o canto dos pássaros filtrar-se do jardim através da janela aberta, e foi subitamente acometida por um sentimento premonitório de que os dias idílicos no jardim tinham acabado.
Finalmente, as pálpebras de Isabella se abriram. Seu olhar ficou momentaneamente sem foco, depois ela viu Katharina, seu cabelo dourado formando um halo à luz do sol que entrava pela janela. Isabella sorriu. Como ficara linda a sua menina! O cabelo, uma vez pálido como barba de milho, agora era de um dourado profundo. Pele imaculada. Olhos verde-claros. Isabella ergueu a mão para a face lisa e disse com grande esforço:
Deus decidiu me chamar para Ele, filha. Eu tinha pensado que teria mais tempo.
Mamãe — soluçou Katharina, pressionando a mão fria no rosto dela. — Você vai ficar boa. O Dr. Mahmoud cuidará disso.
Isabella sorriu tristemente e rolou a cabeça no travesseiro.
Sei que só me restam alguns minutos. Eu pensei que seriam anos, mas Deus, na Sua sabedoria...
Katharina esperou. O Dr. Mahmoud continuava alerta, os olhos negros fixos na paciente, enquanto Frei Pastotius não cessava de murmurar suas preces. Uma multidão curiosa se havia aglomerado à porta, mas Herr Müller os mantinha do lado de fora.
Isabella inspirou fundo e falou de novo:
Tem uma coisa que você deve saber, minha filha, uma coisa que preciso lhe contar...
Lágrimas rolaram dos olhos de Katharina sobre o lençol manchado de sangue.
Ali — sussurrou Isabella —, na arca. — Apontou para a única peça de boa mobília que possuíam: uma arca de madeira que continha seus tecidos, linhas, agulhas e tesouras. — A caixa de fitas. Traga-a para mim.
Quando Katharina voltou ao leito com a caixa de fitas, Isabella disse:
Agora devo... lhe contar, Katharina. Seja forte. Peça a Deus por força. E hora de você conhecer a verdade.
A garota esperou. O Dr. Mahmoud inclinou-se à frente. Uma abelha voou através da janela aberta, zumbiu em torno como se procurando alguma coisa, depois voou para fora.
O que é, mamãe? —estimulou gentilmente Katharina.
Lágrimas brotaram nos olhos de Isabella enquanto dizia:
Não sou a sua verdadeira mãe. Você não é minha filha autêntica.
Katharina olhou para ela, depois franziu o cenho. Olhou para o Dr. Mahmoud, para Frei Pastorius, que interrompera suas orações. Teria ouvido direito?
É verdade, Katharina — disse Isabella com grande esforço. — Você não é uma filha do meu corpo. Você veio de outra mulher.
Mamãe, você não está bem. O Dr. Mahmoud disse que sofreu um golpe grave na cabeça.
Estou em meu juízo perfeito, Katharina. Agora preste atenção, pois não tenho muito tempo. — Isabella tomou uma profunda inspiração, soltou o ar, tomou outra. — Dezenove anos atrás, uma peste devastou minha aldeia no norte, levando meu marido e meus bebês, deixando-me sozinha. Nós, os poucos sobreviventes, nos espalhamos. Terminei numa estalagem onde trabalhei como camareira e também fiz serviços de costura. Uma família chegou certa noite, a esposa estava grávida. Incumbiram-me de bordar uma roupa de batizado para o bebê.
Mas a mãe morreu ao dar à luz. O marido me procurou... ele estava devastado pelo pesar. Nunca vi um homem chorar tanto.
Outra respiração dificultosa.
Ele me disse que estava em viagem... que ele e seus filhos iam para muito longe e não poderiam levar um bebê. Ele chegou no meio da noite, Katharina, chorou como uma criança e pediu-me que criasse o bebê, prometendo que voltaria para buscá-lo. Este bebê era você, Katharina.
A multidão à porta murmurou até que Herr Miiller ergueu os braços pedindo silêncio. O Dr. Mahmoud pegou o punho de Isabella e sentiu a pulsação. Sua expressão ficou mais sombria. Seu olhar revelou a Katharina que não havia muito tempo.
Assim — continuou Isabella —, fiquei com o bebê para mim, prometendo cuidar bem dele até que seu pai retornasse. Depois disso, deixei a estalagem. Não confiava nos proprietários e achava que poderiam roubá-lo de mim, pois o estrangeiro me dera moedas de ouro para cuidar de você. Vim aqui para Badendorf, onde contei a todo mundo que era viúva, o que era verdade, e que o bebê era meu, o que era mentira. Achei que seu pai ainda poderia me encontrar, pois eu não tinha ido para muito longe...
A voz de Isabella morreu e ela passou a língua sobre os lábios secos. Gentilmente, o Dr. Mahmoud pôs a mão sob a cabeça da paciente e levou-lhe um copo de água à boca. Mas ela foi incapaz de beber.
O homem... seu pai—disse, após uma longa pausa —, Katharina, me deu uma coisa... Abra a caixa e retire as fitas. O fundo da caixa... levante-a. Tem alguma coisa lá. Pertence a você.
Katharina ficou surpresa ao descobrir um fundo falso na caixa. Quando o levantou, encontrou um objeto enrolado num lenço. Desenrolando-o, viu, com os olhos marejados de lágrimas, uma pintura religiosa em miniatura do tamanho de sua mão.
Esta é uma de um par... um díptico, como aquele em cima do altar de nossa igreja. Porém muito menor, como pode ver. Está vendo a pedra azul no retrato, filha? Ela está também na outra pintura. Juntas, elas contam uma história.
Mãe... — interrompeu a voz de Katharina. — Não estou entendendo.
Seu pai... ele tinha duas pequenas pinturas... um díptico em miniatura unido por uma dobradiça. Ele o dividiu ao meio... — Isabella fechou os olhos, recordando o ritual solene que tivera lugar no meio de uma noite dezessete anos antes — ... e deu-me esta metade, esta pequena pintura, dizendo que caso ele próprio não pudesse voltar para buscá-la, se fosse incapaz de viajar e tivesse que mandar um representante, este homem apresentaria a outra metade e, quando elas combinassem eu saberia.
Katharina olhou confusa para a mãe, depois franziu o cenho para a pequena pintura em suas mãos.
É a Virgem Santíssima? — No pequeno painel, uma mulher vestida com trajes medievais estava segurando um cristal azul junto à garganta. Um gesto misterioso. Mas não havia nenhuma dúvida sobre o valor da pedra, pois era gloriosa na sua cor e transparência.
A voz de Isabella veio de muito longe, como se o seu espírito já estivesse partindo.
Ele mostrou-me a outra pintura... Em latim, no topo, dizia: "Sancta Amaelia, ora pro nobis."
Santa Amélia, orai por nós — murmurou Katharina, incapaz de tirar os olhos da pintura em miniatura que havia pertencido a seu pai.
Ele disse... o cristal azul na pintura é a Pedra de Santa Amélia, que possui propriedades curativas porque foi dada a Amélia pelo próprio Jesus.
Katharina ficou hipnotizada pela pintura. Como descrever a cor da pedra? Não era azul-celeste, pois era pálido demais, nem azul-marinho, pois este era muito profundo. E não era simplesmente uma coloração, mas sim camada sobre camada, como se não fosse a pintura de uma pedra, mas sim a própria pedra. Katharina não tinha como saber que a pintura fora feita na Inglaterra por uma prioresa chamada Madre Winifred, quinhentos anos antes.
Seu pai estava trajado como um homem rico — disse Isabella num sussurro. — Poderia ter sido um nobre. Deixou uma sacola de moedas de ouro. Gastei só um pouco, apenas para nos estabelecermos aqui em Badendorf. Depois disso, nunca mais toquei no dinheiro porque é o seu legado. A cada ano, no seu aniversário... prometia a mim mesma que lhe contaria a verdade. Mas não consegui me obrigar a fazê-lo. Você entrou na minha vida num tempo em que eu estava repleta de pesar e dor pela perda dos meus bebês. Deus que me perdoe, mas uma parte de mim torcia para que o homem nunca voltasse para buscá-la. Mas agora que estou morrendo, você tem o direito de saber a verdade.
Calma, mamãe. Conserve suas forças. Podemos conversar mais tarde.
Isabella sacudiu a cabeça, um gesto que lhe exigiu grande esforço.
Você nunca me foi dada, Katharina. Era só para eu cuidar de você até que ele voltasse. Mas ele não retornou, e isto só poderia ser porque estava ferido, doente ou aprisionado em algum lugar. Talvez exatamente agora esteja rezando a Deus para que seja devolvida a ele. — Ela estendeu a mão e tocou nas tranças douradas de Katharina. — O cabelo dele era da cor do seu. Ele tinha uma barba amarela magnífica, como um raiar de sol. Olhe no verso da pintura.
Katharina virou-a e leu a inscrição: "Von Grünewald".
É o nome da sua família — disse Isabella. — Como vê... você nunca deveria ter sido minha. Seu destino está em outro lugar. Você deve procurar seu pai, Katharina. Ele pode estar ferido. Talvez doente. Deve ir ao encontro dele.
Mas não posso abandonar você! — gritou Katharina.
Criança, tudo isto não era para mim. Talvez, se lhe tivesse dito a verdade muito tempo atrás, as coisas tivessem sido diferentes. Mas no meu egoísmo mantive silêncio. Agora tenho de fazer a reparação. O estrangeiro... ele merece ter a sua filha.
Katharina começou a soluçar.
Mas como o encontrarei?
Ele disse que ia em busca da pedra azul que está nessa pequena pintura, me contou que estava indo para Jerusalém, onde achava ser o paradeiro da pedra. Encontre-a... — disse Isabella, esforçando-se para respirar. — Encontre a pedra azul e encontrará seu pai. Quando comparar esta pintura em miniatura com o seu par, terá encontrado ele, é vontade de Deus.
A mão débil, que costurara tantas flores belas, e pássaros e borboletas, tremia contra a face da filha.
— Prometa-me que irá, Katharina. Porque aonde quer que esta pedra azul leve você, lá encontrará seu destino.
Com essas palavras, Isabella deu seu último suspiro. Katharina arremessou-se sobre o corpo da mãe e chorou, enquanto o Dr. Mahmoud e Frei Pastorius cuidavam para que os curiosos e Herr Müller se dispersassem em silêncio. Isabella Bauer foi enterrada no cemitério da igreja local depois de um serviço fúnebre no qual seus inúmeros fregueses louvaram sua habilidade e se gabaram de possuir muitas peças finas decoradas por sua mão talentosa. Ofereceram especiais condolências a Katharina, homens e mulheres que uma vez tinham feito Isabella Bauer e a filha esperar horas na entrada de serviço de suas residências, e que freqüentemente não pagavam por seu trabalho de semanas, mas que agora, que a garota poderia ser de linhagem nobre e herdeira de uma pequena fortuna, tratavam-na com grande respeito e deferência.
Katharina portou-se de modo apático durante os dias que se seguiram, chocada com a repentina e inesperada reviravolta em sua vida. E quando começou a se refazer um pouco de seu pesar, pensou na história incrível que sua mãe lhe contara, imaginando se era verdade. Assim, com o Dr. Mahmoud e Hans Roth acompanhando-a para dar proteção, Katharina deixou Badendorf pela primeira vez na vida, viajando rumo ao norte para uma aldeia situada a apenas dezesseis quilômetros de distância, mas que parecia outro mundo para a garota de 17 anos de idade.
Lá encontrou a estalagem onde havia nascido. Depois foi até a igreja próxima e o idoso padre se lembrou de uma mulher morrendo ao dar à luz, uma dama da nobreza, forasteira. Ela estava sepultada no cemitério. Katharina encontrou a sepultura: a data da morte era a do seu nascimento. E o sobrenome era Grünewald.
Enquanto se ajoelhava ao lado do túmulo, Katharina tentou sentir alguma coisa pela mulher ali sepultada, mas não conseguiu. Seu pesar era pela costureira que havia sido sua mãe de verdade. Mesmo assim, ali jaziam os ossos e o pó da mulher que lhe tinha dado vida, e Katharina sentiu-se inundada por uma estranha emoção. Enquanto pousava as mãos na lápide de Maria von Grünewald, falecida aos 26 anos, Katharina jurou procurar seu pai — o marido desta pobre mulher —, e não importava os obstáculos que tivesse de enfrentar, iria se juntar a sua verdadeira família.
A ida de Katharina Bauer para Jerusalém tornou-se o assunto do dia.
Hans não ficou nada satisfeito.
Você precisa mesmo ir?
Como era impensável que viajasse sozinha, Katharina pedira primeiro a Hans que fosse com ela, mas claro que não poderia, pois era imprescindível na direção da fábrica de canecos. Depois ela pedira a Frei Pastorius, mas o pobre homem não tinha constituição forte o bastante para empreender tal jornada, por mais que desejasse conhecer a cidade sagrada. Finalmente ela foi aconselhar-se com o Dr. Mahmoud, que respondera dizendo que conhecer um pai, e prestar respeito a ele, era muito importante. Acrescentou que, por coincidência estivera pensando em viajar para o Cairo, onde desejava terminar seus dias, o que não demoraria muito tempo, já que era um homem idoso. E assim decidiram que viajariam juntos.
Fiz uma promessa, Hans — disse Katharina resolutamente enquanto retornavam de seu último passeio nos bosques que circundavam Badendorf. — Preciso encontrar minha família.
Mas eu sou sua família. Quando se casar comigo...
Ela tomou-lhe as mãos e sorriu tristemente enquanto dizia:
Sim, sei disso, Hans. Mas meu pai pretendia voltar para mim. Só pode ser por causa de uma grande calamidade que ele não voltou. Tenho sonhos... vejo-o na prisão, sozinho e esquecido, ou doente numa aldeia longe daqui. Preciso encontrá-lo. Devo isto a ele. E à minha mãe. Minhas duas mães. Depois que tiver feito isto, voltarei para você.
Frau Roth, que nunca acreditou que alguém fosse bom o bastante para casar com seus filhos e que apenas relutantemente testemunhava o "sim" deles no altar, sempre abrigara a esperança de que Hans, seu bebê, jamais se casasse. Era de conhecimento geral que Herr Roth sofria de uma doença cardíaca e que Frau Roth, sendo de constituição robusta e vontade férrea, provavelmente sobreviveria a ele por muitos anos. Ela não pretendia ficar sozinha e certamente, de modo algum, ser dependente de uma nora — menos ainda a filha de uma mera costureira (Frau Roth nem por um momento acreditou na história de um nobre rico). "Katharina deve ir, meu filho", tinha dito no tom mais cálido que pôde reunir. "E obrigação dela estar com seu pai."
— Então prometa que voltará para mim — disse Hans com uma tal paixão que embaraçou Katharina. — Faça o que tem de fazer, encontre seu pai, faça as pazes com seu passado. E depois volte para ser minha esposa.
E assim, em cima das pesadas promessas que Katharina fizera às suas mães — uma no leito de morte, a outra numa sepultura — ela acrescentou outra: voltar a Badendorf e ser a esposa de Hans.
A caravana mercantil chegou e toda a Badendorf foi ver a partida de Katharina. Frau Roth fez uma grande exibição da bolsa cheia de táleres de prata e pfennigs que estava dando a Katharina como um presente-surpresa. A sacola foi passada em volta para que todos olhassem e elogiassem a generosidade de Frau Roth, e então, quando ninguém estava olhando ela retirou metade das moedas, botou-as discretamente no bolso e entregou a sacola bem mais leve a Katharina.
O enorme comboio mercantil tinha sido formado por uma liga de mercadores e investidores que juntaram recursos para proteger suas mercadorias na estrada: peles e âmbar do litoral norte para ser trocados no sul por frutas; azeite e especiarias, que seriam então levados de volta ao norte. A caravana era fortemente protegida por soldados contratados, que cavalgavam lado a lado com as enormes carroças puxadas por cavalos robustos. Ao longo do caminho, certos bandidos ferozes receberiam pagamentos como "pedágio", e em troca manteriam afastados os outros salteadores. Civis se juntavam a essas enormes caravanas, o único meio de viajar com segurança.
Katharina e o Dr. Mahmoud iam viajar com o mais recente embarque para exportação dos canecos de cerveja de Herr Roth, e quando faziam uma despedida lacrimosa, Hans deu a Katharina um caneco especial: o motivo decorativo era uma cena de montanha com um pequeno camafeu da cidade de Badendorf, meticulosamente esboçado e pintado pelo próprio Herr Roth. Frei Pastorius, encabulado e com o rosto vermelho de embaraço, deu um presente a Katharina: uma bolsa de couro cru lustrado e encerado, à prova de água, atado a uma tira de couro para ser levada sob as roupas. Era do tamanho perfeito para a miniatura de Santa Amélia.
E então partiram, um comboio de um quilômetro e meio de extensão que se originara em Antuérpia e continuaria por Nuremberg, o centro comercial e financeiro da Europa. Seguiria uma das principais rotas comerciais terrestres e esperava chegar aos Alpes no verão, quando os desfiladeiros estariam sem neve. A trilha era conhecida como a Rota do Âmbar e fora estabelecida antes mesmo que os romanos tivessem invadido a Europa, milhares de anos antes, quando o povo da Idade da Pedra, no longínquo norte, juntava o precioso âmbar e o transportava por terra desde o mar do Norte até o litoral do Mediterrâneo e do Adriático. As legiões romanas haviam construído estradas e pontes, tornando os Alpes mais facilmente transponíveis. As Cruzadas e a súbita popularidade das peregrinações na Idade Média aumentaram o tráfego na rota, e à época da viagem do Dr. Mahmoud e Katharina, eles faziam parte de um desfile de mercadores, caminhantes, peregrinos, pedintes, nômades, cavaleiros e até mesmo carroças postais do rei. Era um cortejo colorido, com homens tocando gaitas, mulheres carregando pão e bebês, crianças perseguindo cachorros, um grupo barulhento puxando carroções, carretas e troles rangentes, alguns a cavalo mas a maioria a pé, mudando constantemente em cada encruzilhada, onde alguns deixavam o comboio e outros se juntavam. O percurso era retardado por muitas paradas, na medida em que cada fronteira ou divisa a ser transposta exigia uma inspeção de documentos e prova de que o viajante não sofria de peste. As paradas noturnas eram ao ar livre ou em rudes estalagens que cobravam preços exorbitantes. Nos desfiladeiros alpinos eram ajudados pelo povo local, treinado especialmente para carreto que exigia vigor.
Katharina estava achando a aventura maravilhosa, pois apreciava a segurança de viajar sob a proteção de mercadores prósperos que contratavam arqueiros para protegê-los e o conforto de viajar numa carroça fechada que lhe servia de cama à noite. E durante os fins de tarde, tranqüilamente junto à fogueira do acampamento, o Dr. Mahmoud ensinava-lhe sua língua nativa, pois acreditava que o conhecimento do árabe seria uma vantagem para ela na Terra Santa. Enquanto contava a ela histórias de sua juventude, suas lembranças eram todas literalmente doces, pois falava de um fruto dourado da Espanha chamado laranja, e de um suculento fruto egípcio chamado tâmara, nenhum dos quais Katharina jamais provara. Mas a facilidade relativa de sua jornada para o sul terminou quando ela e o Dr. Mahmoud tiveram de despedir-se da caravana em Milão, pois a agência exportadora dos Roth ficava em Gênova, e então foram aconselhados a não velejar a partir de Gênova, pois levaria mais tempo e ainda correriam o risco de ser atacados por piratas da Barbária. Então juntaram-se a uma caravana mercantil que levava têxteis franceses para ser trocados em Veneza por vidro de Murano, e seguiram a planície do rio Pó até virarem ao norte para Pádua, e dali para a costa do Adriático. De Badendorf até os Alpes estiveram entre amigos, porém agora se viam em companhia de estranhos, e assim resolveram se resguardar. O Dr. Mahmoud aprendera muito tempo antes o que era sobrevivência silenciosa. Ele nunca revelava ser muçulmano, pois corria o risco de ser considerado inimigo, principalmente agora que se aproximavam do Mediterrâneo, onde os odiados turcos dominavam os mares.
Veneza representou um choque. Embora no caminho tivessem atravessado cidades maiores, e até mesmo a impressionante metrópole de Nuremberg, estas não passavam de exibições comparadas com Veneza. Katharina jamais vira uma cidade tão plana. Não havia uma montanha ou colina à vista; as pessoas viviam em canais e circulavam em pequenos barcos com curiosas proas curvas; e os cidadãos vestiam-se mais suntuosamente do que pudera ver em qualquer das cidades do norte. Mulheres da classe alta cambaleavam em sapatos de plataforma alta e não cobriam o cabelo, como era moda na Alemanha, mas arrumavam seus cachos e madeixas com redes e fitas douradas. Katharina nunca vira homens com cabelos tão longos, especialmente os jovens, que lhe pareceram muito efeminados. Mas não havia nada de feminino no modo como lançavam sugestivos olhares em sua direção. Seu próprio cabelo era também uma atração. Muito embora sua coloração dourada fosse um tanto chamativa em Badendorf, não era incomum. Porém, quanto mais seguia para o sul, mais singular ele se tornava. Embora visse mulheres com cabelo louro, ele era tingido e obviamente artificial, de modo que Katharina freqüentemente atraía olhares de admiração de homens estranhos. Ela se mantinha próxima ao Dr. Mahmoud, agarrada aos seus fardos, e agora se dirigiam ao porto na vasta laguna.
Enquanto progrediam pelas ruas estreitas e ao longo de canais, puderam ver uma festa de casamento acontecendo em uma das magníficas mansões. De uma sacada, os noivos estavam alegremente jogando comida para a multidão abaixo: Katharina viu toda uma chuva de faisões assados, fôrmas de pão dourado, frutas cristalizadas e amêndoas açucaradas caindo para as mãos dos felizes receptores. A uma rápida sugestão do Dr. Mahmoud, eles se juntaram à multidão e pegaram uma pequena peça de queijo e um cacho de uvas rosadas, com que se banquetearam enquanto prosseguiam na sua jornada para o porto. Tais ostentações de riqueza e generosidade, souberam mais tarde, eram típicas desta poderosa cidade marítima. Igualmente excessivo, Katharina e o Dr. Mahmoud aprenderam, era o senso de justiça dos venezianos. Quando dobraram uma esauina se depararam com um bando furioso que momentos antes trucidara dois homens. As vítimas tiveram o peito rasgado e seus corações palpitantes espetados nas portas de uma pequena igreja. Era um ato de vingança, um dos circunstantes contou a Katharina. Na semana anterior os dois homens haviam assassinado o chefe de uma das famílias mais poderosas de Veneza.
Eles se apressaram rumo ao porto, onde depararam com mais visões espantosas. Em meio a uma floresta de mastros, castelos de proa, velas e cordames, Katharina viu a água flutuante com caravelas, carracas, galeões, navios redondos, latinas, navios mercantes, belonaves, canoas, dingas, lanchas, balsas e até dois juncos chineses de velas vermelhas surradas pela ação do tempo. O cais estava congestionado com hordas de peregrinos, tanto cristãos quanto muçulmanos, indo ou voltando de seus lugares santos. Havia marinheiros de todas as marinhas, mercadores, eruditos, oficiais, tripulantes inferiores esfarrapados e estivadores transportando fardos, barris, animais e mercadorias para bordo. O ar estava repleto de sons, uma centena de línguas estrangeiras, e cheiros estranhos. Katharina viu até mesmo uma coisa chamada livraria. Embora já tivesse visto livros impressos — a igreja de Badendorf orgulhava-se de sua Bíblia produzida numa prensa tipográfica —, nunca vira tantos livros quanto nessa loja: mais de quatrocentos em estoque!
Katharina jamais sonhara com viagem e aventura, e agora ambas tinham se imposto sobre ela. Seu espírito era uma curiosa dicotomia de alegria e tristeza, pois enquanto lamentava ter perdido sua mãe, Badendorf e Hans, emocionava-se com o pensamento de encontrar sua verdadeira família de sangue. Ela não acreditava que uma pessoa pudesse olhar para a frente e para trás ao mesmo tempo, e estava fazendo justamente isto.
Eles foram aos escritórios do porto, onde o árabe e o rústico espanhol do Dr. Mahmoud foram de pouca utilidade, mas o alemão e as noções de latim de Katharina ajeitaram as coisas. Infelizmente, em toda parte em que indagavam, recebiam uma variedade de respostas, de capitães recusando-se a levar um muçulmano, de capitães recusando-se a levar uma mulher, de capitães recusando-a levar passageiros de qualquer tipo.
A superstição secundava o medo na vida de um marinheiro: se um pagão não afundasse um navio, então uma mulher o faria.
O dia estava chegando ao fim e a esperança deles também. O Dr. Mahmoud sugeriu que procurassem alojamento para passar a noite e tentassem de novo na manhã seguinte.
Foi então que Katharina viu o estrangeiro. Ele chamou-lhe a atenção porque era diferente dos outros no cais, embora ela não soubesse explicar exatamente por quê. Tinha o aspecto de um nobre no seu gibão acolchoado branco, calções acolchoados azuis e meias também azuis. Usava um manto estranho que estava fora de moda, porque naqueles dias os homens já não mais usavam mantos. Era todo branco com uma cruz azul de oito pontas bordada nas costas, como se pertencesse a uma ordem religiosa. Cabelo e barbas cortados rente acima de uma gola de rufos. Alto e esguio. Espada elegante pendendo de um cinto no quadril esquerdo. Claramente um homem rico. Mas havia algo na maneira como olhava para o mar; um ar de mistério em torno dele, ou talvez fosse saudade, o que manteve o interesse de Katharina. Ele virou-se de súbito para falar com um dos carregadores, e Katharina captou uma sombra de tristeza nos seus olhos. A tragédia assombra este homem, pensou e surpreendeu-se consigo mesma. Estrangeiros em Badendorf raramente lhe chamavam a atenção, sem contar sua imaginação. Ainda assim, este homem simplesmente o fizera e ela não sabia por quê.
Ao se virar para o Dr. Mahmoud a fim de perguntar para onde iriam em seguida, desordeiros surgiram de repente sabe lá Deus de onde e os encurralaram para roubar seus pertences. Katharina gritou e viu seu idoso acompanhante cair por terra.
Vendo o que tinha acontecido, o estrangeiro de manto imediatamente interveio:
— Fora daqui, seus patifes nojentos! — gritou ele, alcançando-os e agarrando os dois pela gola. Tão logo largaram seu butim, os ladrões se escafederam, desaparecendo na multidão. — Está ferida? — perguntou o estrangeiro a Katharina, falando em latim, a língua universal dos viajantes cristãos.
Estamos bem. Obrigada, senhor — disse Katharina, sem fôlego mais pela proximidade do estranho do que pelo ataque dos ladrões.
Sou Dom Adriano de Aragão, um cavaleiro da Irmandade de Maria. Ele é um turco? — Acenou com a cabeça na direção do Dr. Mahmoud.
Katharina enchia os olhos com o estrangeiro. De perto ele era ainda mais impressionante. Não apenas bonito, mas também de feições interessantes. E as sombras de saudade e solidão ficaram até mais evidentes.
O Dr. Mahmoud é da Espanha, tal como o senhor.
Isto não pareceu interessá-lo.
Para onde estão indo?
Para Haifa e depois para Jerusalém.
Ele examinou-a novamente. Uma garota, com o cabelo parecendo ouro torcido em trança e a ingenuidade de um bebê recém-nascido. O que ela fazia na companhia de um árabe idoso e dirigindo-se a Jerusalém? Isto não seria da sua conta, se ela não fosse uma cristã a caminho da Terra Santa, pois ele assumira um voto de ajudar peregrinos na sua jornada para Jerusalém.
Posso levá-la até Haifa — disse ele, acrescentando rapidamente: — Mas só você. O velho não.
Mas não posso abandonar o Dr. Mahmoud!
Dom Adriano ficou surpreso ao ouvir a paixão na voz dela e vê-la nos seus olhos verdes. Não poderia haver ligação de sangue entre a garota e o velho, portanto o que os ligava? Pensou mais um pouco. A família de Dom Adriano tinha lutado para expulsar os mouros da Espanha. Seu pai havia morrido combatendo os muçulmanos. E a irmandade a que pertencia, sediada numa fortaleza na ilha de Creta, dedicava-se a retomar a Terra Santa dos bárbaros muçulmanos e devolvê-la à cristandade.
Mas finalmente, decidindo que seu dever era com uma peregrina cristã, ele assentiu. Que o velho os seguisse de perto. Ele não seria de responsabilidade de Dom Adriano.
Espere aqui — disse ele e se afastou, seu manto branco com a cruz azul se agitando à brisa.
Katharina o observou se empenhar com um capitão de navio no que parecia uma furiosa discussão, pois o capitão continuava sacudindo a cabeça. Mas Dom Adriano, sendo alto e de porte impactante — e não havia qualquer dúvida sobre sua patente e posição —, por fim levou a melhor e o capitão assentiu.
Convenci o capitão — disse, ao retornar — de que levar um muçulmano a bordo poderia ser uma boa segurança se encontrarmos piratas da Barbária, pois eles deixarão um de seus homens santos escapar ileso, bem como qualquer um que esteja em sua companhia. Também ajudou o fato de seu amigo ser médico. Mas o capitão diz que sua tripulação não tem mulher a bordo. Marinheiros são uma raça supersticiosa Qualquer dificuldade e eles a culparão, senorita. Ele diz que só há um meio de levá-la. Vai ter de se disfarçar.
Me disfarçar? Como?
Viajará como o neto do velho.
Dom Adriano levou-os a uma pequena taverna e lá os deixou, dando ao proprietário um florim para ficar de olho neles. Quando retornou, pouco tempo depois, levou Katharina e o Dr. Mahmoud para um beco onde, após certificar-se de que estavam sozinhos e fora de vista, entregou a ela um frasco de uma pasta preta malcheirosa.
Isto tornará seu cabelo castanho — disse, e depois deixou-a para fazer o trabalho.
Enquanto Katharina massageava a tintura no couro cabeludo e no comprido cabelo, o Dr. Mahmoud procurou na sua sacola de viagem um galabeya sobressalente, um comprido manto egípcio que pendia frouxo sem revelar a forma do corpo. Do xale de Katharina ele conseguiu fazer um turbante decente para cobrir o cabelo recém-tingido, que ela enrolou na cabeça, dobrando as pontas desgarradas. Quando estava vestida, ela emergiu detrás de uma pilha de barris. Foi com olho de médico que Mahmoud estudou o produto acabado. Detectou um problema com os seios, por isso pegou um rolo de ataduras de sua caixa de remédios e disse-lhe para atar o peito do modo mais plano que pudesse. Ele discretamente virou-se de costas enquanto Katharina completava o disfarce.
Quando voltaram ao cais viram Dom Adriano se apressar na direção deles, e quando seus olhos bateram em Katharina, sua boca abriu-se em leve surpresa. Ela estava tão esguia e tão bem disfarçada que seria tomada por um rapaz.
Ele havia comprado garrafas de água, pão, queijo, frutas e tiras de carne-seca, pois os passageiros tinham de se abastecer. Na hora em que subiram a prancha de embarque, o idoso muçulmano, seu neto e o cavaleiro cristão, o sol declinava no horizonte e os marujos rizavam as velas.
Era um navio português que acabara de trazer marfim da África e agora se dirigia à índia com o porão cheio de lingotes de cobre para os artesãos de Bombaim. Houve um breve atraso enquanto o capitão ordenava que parte da carga fosse retirada e rearrumada, pois uma carga que se deslocasse no porão podia causar um naufrágio. Uma vez convencido de que o cobre estava estocado baixo o bastante para dar estabilidade ao navio, ele deu ordens de içar velas. Conduziu sua tripulação numa prece e Katharina ouviu sinceridade nos seus padre-nossos, pois embora o percurso oceânico fosse o meio mais rápido de se viajar, era também o mais perigoso. E depois dois garotos tocaram uma flauta e um tambor enquanto os marinheiros se azafamavam com cordas e sarilhos, o ritmo da melodia ajudando-os a trabalhar em conjunto. Finalmente estavam velejando para fora da laguna e entrando em mar aberto. Katharina ficou de pé na proa, o rosto exposto ao vento enquanto pensava, não no povo e na aldeia que deixara para trás, mas na família que a esperava em uma terra desconhecida.
Tal como os marinheiros, eles dormiam em redes penduradas entre fardos de carga no porão do navio. O espaço era tão apertado que as refeições eram feitas numa pequena mesa calçada entre dois canhões. Mas na maioria das vezes, quando o tempo permitia, os três passageiros ficavam no convés, ao ar livre.
Katharina pensava no seu salvador, pois Dom Adriano permanecia com ela e o Dr. Mahmoud o tempo todo e anunciava com sua presença imponente que era o seu protetor, mas, por outro lado, não tinha nada a ver com eles. Ela notou que ele não tocava em carne nem vinho, e especulou se isto tinha a ver com os votos de sua irmandade. E quando o observava rezar — de joelhos, segurando a espada diante de si com ambas as mãos, o punho da arma parecendo um crucifixo —, suspeitava que fosse um homem profundamente religioso.
Mas um homem perturbado.
Havia rugas no seu rosto que de início achou tivessem sido criadas pela sabedoria e experiência. Mas depois pensou: não, elas foram criadas pela dor. E havia o ar de anseio enquanto ficava olhando o mar por horas sem fim. O que estava vendo? O que estava procurando? Adriano observava o pôr-do-sol, observava o céu escurecer e as estrelas surgirem uma a uma, o rosto erguido para o alto como se esperasse ver alguma mensagem escrita no céu. Ele carregava o silêncio em torno de si mesmo como o manto de cavaleiro que usava. Aquele silêncio estava enrolado nele. Era para manter as coisas de fora ou conservá-las dentro? Talvez as duas coisas. Katharina nunca antes ficara curiosa acerca de uma pessoa. Nunca especulara sobre o que Hans estava pensando, nunca desejara mergulhar na intimidade dele. O que via na superfície ela aceitava como a pessoa inteira. Nunca lhe ocorrera que segredos e paixões podiam jazer sob a superfície. Mas agora não podia parar de pensar neste estrangeiro enigmático que parecia, dia após dia, não ser deste mundo, mas em vez disso habitar a paisagem interior de sua alma.
Seus pensamentos a sobressaltaram. Ocorreu-lhe que eram os pensamentos sábios e elevados de um adulto. Considerou as centenas de quilômetros que tinham percorrido, todas as cidades e pessoas que viram, e agora se encontrava num vasto oceano, o que a fez se sentir subitamente adulta. Tinha comemorado seu 18º aniversário na Rota do Âmbar e agora não se achava mais uma garota, mas sim uma mulher. Gostava da sensação e acreditava que agora compreendia tudo acerca da vida. Havia passado por muita coisa num espaço de tempo muito curto, perdendo a mãe e conhecendo a verdade sobre o seu nascimento e identidade e agora, a meio caminho no mar Adriático, estava convencida de ter visto a maior parte do mundo. E quando pensou em Jerusalém e no dramático encontro com seu pai e família, imaginou-se voltando a Badendorf, sendo recebida como uma pessoa especial por ter viajado para tão longe e se tornado uma mulher sábia. Ela já sabia como descreveria Jerusalém para todo mundo, suas magníficas igrejas dispostas em fileiras, o povo totalmente pio e religioso, todos falando latim e concedendo bênçãos como uma coisa natural. E como ela seria a pessoa mais conhecedora do mundo em Badendorf, as pessoas viriam buscar seu conselho, até mesmo o Padre Benedict, cuja única alegação para a fama residia numa viagem que fizera a Roma. Mas ele nunca tinha ido a Jerusalém, onde o próprio Jesus havia caminhado.
À medida que os dias passavam e o horizonte se estendia diante deles, Katharina tornou-se terrivelmente enjoada, mas o Dr. Mahmoud amenizou seu desconforto com um remédio feito de gengibre. Ela também se sentia desconfortável com os olhares da tripulação, que ficava observando-a com expressões indecifráveis. E quando o navio passava um longo tempo sem visão de terra, ela sentia um pânico especial no coração. Para refrigério, ela freqüentemente tirava a pintura em miniatura da bolsa de couro que Frei Pastorius lhe dera e que usava sob o manto egípcio. Sentada no convés, joelhos puxados para cima, embalando a miniatura nas mãos, fixava os olhos no cristal azul e imaginava o que havia nele que fizera seu pai abandonar a filha recém-nascida para ir procurá-lo. E se o tivesse achado, e o poder do cristal fosse tal que tivesse varrido toda a lembrança de sua mente, fazendo-o se esquecer de suas obrigações na Alemanha?
Ela desejava poder também conservar o caneco que Hans lhe dera porque nestes lugares desconhecidos e assustadores ela extrairia conforto de um objeto tão familiar e da sensação da argila de Badendorf sob seus dedos. Mas o caneco havia sido embalado com sua trouxa de roupas, bastante protegido nas dobras de saias e corpetes, xales e estolas, para evitar que se quebrasse. Ela só poderia ver o caneco quando chegasse a seus alojamentos em Jerusalém. A casa de seu pai, talvez? Eles partilhariam uma bebida no caneco e o pai, sendo um nobre alemão e havia muito ausente de casa, iria chorar à visão de um caneco de cerveja tão excêntrico.
Uma semana após a partida de Veneza, a tempestade atingiu-os.
Metade dos marinheiros quis içar a vela mestra, a outra metade disse que não era hora, pois o vento estava aumentando. Irrompeu uma disputa. Decidiram por içar a vela mestra, mas então já era tarde demais, a lona se rasgou. Todos os fogos se apagaram: o do fogão do cozinheiro e das lanternas. O mar se erguia. Katharina e o Dr. Mahmoud se agarravam um ao outro. Trovão e relâmpago baixaram de súbito sobre eles, e uma chuva pesada desabou. O vento se intensificou até que o mastro principal se partiu com um poderoso som estalejante e desabou no convés. Os marujos caíram de joelhos e começaram a rezar em voz alta. Ondas gigantescas se ergueram por cima das amuradas e lavaram os conveses. Barris e fardos, soltando-se, se arrastaram de um lado para o outro e finalmente caindo no mar. O navio estava na verdade sendo engolido e indo para o fundo, mas no instante seguinte reerguia-se de novo como se num repuxo. E continuou para cima e para baixo na tempestade, com sua frágil tripulação humana gritando, rezando e se agarrando à vida.
Katharina acordou para se descobrir numa praia, as roupas ensopadas, seu longo cabelo emaranhado de algas. O céu estava cinzento mas a chuva havia cessado, e o oceano se turvava como um furioso metal líquido com pontos espumantes. Pranchas de madeira e retalhos de vela flutuavam nas ondas. Ela olhou para os lados e só o que viu foram os restos do navio e da carga espalhados entre as dunas. Não havia ninguém.
Lutou para se pôr de pé e olhou em volta atordoada. Onde estava o navio? Onde estava a tripulação?
— Dr. Mahmoud! — gritou. A única resposta foi o uivo zombeteiro do vento.
Ao caminhar ao longo da praia, seu galabeya se arrastando e esfarrapando na areia molhada, ela encontrou um corpo. Era o capitão, e caranguejos já se banqueteavam. Mais adiante encontrou os destroços de uma arca de madeira, mas pouco restava do seu conteúdo. Seguindo em frente, viu um caco de cerâmica branca. Pegou-o e limpou a areia. Era parte do caneco de cerveja que Hans lhe dera. Procurou pelo resto, mas não achou outros pedaços. Ainda entorpecida pelo choque, Katharina embalou o pequeno fragmento na mão — a pintura em miniatura de Badendorf aninhada nas montanhas.
Então viu uma figura à frente, cambaleando pela areia, o manto esvoaçando e rodopiando a sua volta. Dom Adriano! Katharina começou a correr, agitando os braços e chamando, tropeçando na bainha do galabeya rasgado.
Graças a Deus! — gritou quando se alcançaram. Caiu nos braços dele, soluçando. Ele a envolveu no seu manto úmido, e os dois choraram e tiritaram de frio juntos até que finalmente se ajoelharam e rezaram por terem sobrevivido.
Onde estamos?—perguntou ela, os lábios rachados e encrostados pelo sal.
Ele semicerrou os olhos para o sombrio oceano e o horizonte invisível.
Não faço a menor idéia, senorita.
Viu o Dr. Mahmoud?
Seus olhos encheram-se de tristeza enquanto dizia:
Eu o vi se afogando. Procurei-o sob a água, mas ele tinha ido para o fundo. Sinto muito.
Ela chorou de novo, sentando-se na areia e puxando os joelhos para o peito. Dom Adriano enrolou seu manto de cavaleiro em torno dela e saiu em busca de lenha seca para uma fogueira.
Algum tempo depois ela se lembrou da pequena pintura de Santa Amélia. Gritou de alegria quando ainda a encontrou em volta do pescoço na bolsa à prova de água, e quando a trouxe para a luz das chamas da fogueira de Dom Adriano, extraiu esperança da reconfortante imagem de Amélia e do cristal azul.
Adriano explorou as proximidades e descobriu que estavam numa ilha que era pouco mais que um afloramento rochoso no mar com nenhum sinal de verdor ou vida selvagem. Mas ele encontrou barris de água arremessados à praia e madeira seca o suficiente para conservar a fogueira. Juntos, ele e Katharina cavaram em busca de caranguejos e outros crustáceos, que cozinharam entre pedras quentes e algas secas.
O céu escureceu tanto que eles souberam que o sol tinha se posto, mas nuvens bloquearam as estrelas e uma névoa se arrastou do oceano. Dom Adriano protegeu o fogo para mantê-lo ardendo. Katharina olhava fixamente para as chamas como se em transe. Continuava imaginando o Dr. Mahmoud como o tinha visto pela última vez: sendo varrido pela borda do navio, o turbante solto, um ar de terror no rosto. Ela pensou nas semanas em que viajaram juntos, sua paciência gentil e nas coisas que lhe havia ensinado. Tinha esperança de que pudesse convencê-lo a ficar em Jerusalém com ela em vez de ir para o Cairo, pois o médico árabe tinha sido a pessoa mais próxima de um parente de sangue que já conhecera. Estava também cheia de pesar pela morte da mãe e isto a surpreendeu, pois aprendera a superar isto. Mas a recente morte havia renovado o velho pesar, de modo que Katharina, chorando, lamentava não só pelo Dr. Mahmoud, mas por sua mãe, por sua mãe biológica, pela tripulação e o capitão do navio português.
Nos dias que se sucederam, mais corpos de tripulantes apareceram na praia, e a dupla em dificuldades deu a eles um enterro cristão, Adriano recolhido em profundo silêncio, e o pesar e desespero de Katharina aumentando. Finalmente, certa manhã ela deparou com o cadáver pálido de um dos rapazes que tocavam flauta e tambor no navio, e ela sabia que não poderia continuar. Acreditando que sua sobrevivência tinha sido um acidente, que deveria estar no fundo do mar com o Dr. Mahmoud, correu para a arrebentação, tentando se afogar nas ondas.
Mas Adriano foi atrás dela e, depois de uma breve luta na água, conseguiu trazê-la de volta e depositá-la na areia. Lá, ele segurou-a pelos ombros e disse com paixão:
— Não sabemos qual é o propósito de Deus. Não podemos adivinhar Seu desígnio. Devemos apenas cumprir Sua ordem. Ele nos poupou, senorita, por qual razão, não sei. Mas cair no desespero é desafiar a vontade de Deus. Por amor a Ele, você deve continuar viva. — Era o máximo de palavras que tinha falado em vários dias, e meramente pronunciá-las pareceu renovar sua força.
Katharina chorou por um longo tempo depois disto, e embora ainda achasse que deveria ter morrido com o Dr. Mahmoud, não mais tentou se afogar. Comia um pouco e bebia um pouco, e vagueava pela pequena praia com os olhos fixos no horizonte distante, decidindo que ela e Adriano estavam provavelmente tão bem quanto os mortos, de qualquer forma.
Dormiram juntos para se aquecer e quando amanheceu Katharina acordou para sentir os braços do cavaleiro enlaçando-a, seu corpo sólido contra o dela, o batimento firme do coração de Adriano sob sua cabeça. Levantando-se, estudou o rosto dele à pálida luz da aurora, notando como a areia e os cristais de sal se grudavam às espessas pestanas e sobrancelhas castanhas e à barba cortada rente. Que sonhos perturbados, especulou, faziam os olhos dele rolarem sob as pálpebras? Que paixões o impeliam a permanecer vivo, e a mantê-la viva? Porque sabia que sem Adriano certamente iria se matar. Então se lembrou de ter acordado durante a noite aos gritos, e Adriano ali para agarrá-la e reconfortá-la. O que a fizera gritar? Sonhos de afogamento.
Pela primeira vez em dias, a aurora trouxe a luz do sol, pois as nuvens se haviam dispersado e o oceano até mesmo reluzia em alguns pontos. Enquanto Adriano conseguia pegar alguns peixes na água rasa, Katharina percorreu a praia e encontrou outro barril de água do navio. Especulou quanto tempo poderiam sobreviver numa ilha em que nem uma única árvore crescia. Tinha frutos do mar, porém nada mais. Pássaros não vinham aqui para desovar. Nenhuma vegetação irrompia das fissuras. Então ocorreu-lhe se era adequado um homem e uma mulher viverem juntos sem ser casados. A Igreja incluiria vítimas de naufrágio quando catalogava pecados?
Quando outro pôr-do-sol pareceu zombar do estado deplorável deles, pois era evidente que a tormenta desviara demais o navio da rota e, portanto fora de vista de outros navios de passagem, Adriano encontrou voz e palavras.
Por que vai para Jerusalém? — perguntou, enquanto atiçava o fogo.
Enquanto Katharina trançava o comprido cabelo que, para sua surpresa, continuava castanho, já que a tintura não fora lavada pela água do mar, ela contou-lhe sua história, terminando com:
Portanto, vou em busca do meu pai.
Um homem que abandonou você?
Tenho certeza de que não foi intencional. Ele garantiu que voltaria para me buscar.
Mas e este rapaz que mencionou, Hans Roth? Poderia ter-se casado com ele, vivido com muito conforto. Correu o risco de perder tudo isto?
Ela o fitou com olhos firmes.
Meu pai poderia estar ferido, ou nas mãos de homens cruéis. É meu dever encontrá-lo.
Isto deu a ele algo sobre o que pensar. Para dizer a verdade, Dom Adriano ressentia-se amargamente das mulheres. Tinha amado uma única mulher na sua vida, e quando ela o havia traído com outro homem, jurara nunca mais amar outra mulher como a amara, nem confiar mais em mulher alguma. Ao ingressar na Irmandade de Maria e assumir votos de celibato, afastou as mulheres de sua mente.
É um sacerdote? — perguntou ela, apontando para a cruz azul bordada no peito de seu manto branco.
Adriano lançou-lhe um olhar atônito e depois seu rosto se suavizou num sorriso.
Não, senorita, sou apenas um servo do Senhor. — Ele caiu em silêncio e olhou sombriamente para as chamas. Por fim, disse: — Matei um homem que não era meu inimigo e arruinei a vida de uma mulher. Por um dia e uma noite prostrei-me diante de um altar, pedindo um sinal à Mãe Abençoada. Ela veio a mim numa visão e falou de uma irmandade dedicada a restaurar seu trono na Terra Santa. Ingressei na irmandade. Já faz vinte anos, e continuo servindo tanto à irmandade quanto à Mãe Abençoada. — Voltou seu sofrido olhar para Katharina. — Quem era o velho que chamava de Mahmoud?
Quando fiquei órfã, ele tornou-se meu guardião.
Um pagão?
Ele acredita em Deus e reza. Talvez com mais freqüência do que nós. O Dr. Mahmoud é um bom homem. — Lágrimas brotaram em seus olhos. — Era — corrigiu-se, suavemente.
Dom Adriano tinha suas próprias opiniões sobre homens bons e homens ateus, mas as mantinha para si mesmo. Que criança inocente ela era, para lançar-se no mundo sem nenhuma proteção senão a de um velho e frágil pagão. Dom Adriano sentiu uma rara emoção agitar-lhe o coração, algo que não sentia havia muito tempo, desde que uma mulher chamada Maria destruíra sua vida e o fizera jurar nunca mais amar de novo.
E então ele rapidamente se afastou. Não havia lugar para mulheres na mente de um homem envolvido numa cruzada religiosa.
Enquanto Katharina observava as fagulhas se erguerem para as estrelas, lembranças vaguearam por sua mente: a mãe contando-lhe as histórias de Rapunzel e Chapeuzinho Vermelho. As duas saindo para passear na neve. Isabella varando a noite para terminar o bordado para uma freguesa, tirando o strudel ainda quente do forno, e o delicioso banquete que partilharam naquela noite. Dormindo juntas nas noites frias, Katharina observando a neve cair da janela e sentindo-se a salvo e amada:
Minha mãe — disse, baixinho ao atiçar o fogo — poderia ter ficado com as moedas de ouro e me deixado na estalagem, ou talvez arranjado um marido rico com aquelas moedas de ouro. Mas não o fez. Ela me manteve, me criou e me amou. Passou fome mesmo tendo aquelas moedas de ouro escondidas em nosso quarto. Sacrificou-se tanto para conservar aquelas moedas para mim, e agora as perdi nesse oceano e a desapontei.
Adriano assentiu, sério.
— A mãe é a primeira a nos amar, e a primeira a quem amamos. O pai sempre vem depois. — Seus olhos pousaram no horizonte. — Eu sirvo a Deus, mas é a Mãe Santíssima que amo e a quem dediquei minha vida e alma. — Passou os olhos em Katharina. — Tanto quanto você, lamento ter desapontado minha mãe. Mas sairemos desta ilha, senorita. Não seremos deixados para morrer aqui.
Katharina olhou para as rochas estéreis atrás deles, escarpadas, escuras e proibidas, e pensou: Nada cresce aqui, nada sobrevive aqui, como conseguiremos? Então olhou para Adriano e maravilhou-se com a fé que ele tinha nos apóstolos.
Adriano mantinha-se vigilante enquanto a garota dormia, os olhos fixos no oceano escuro, observando os perigos que sabia que estavam à espreita. Não contou a ela que embora tivessem sobrevivido ao naufrágio, havia outras coisas a temer, pois a ameaça de que fossem encontrados por corsários da Barbária ou por uma belonave otomana era bastante real. E o destino provável para qualquer um deles — uma garota indefesa e um cavaleiro cristão — era cruel. Todavia, ele rezava e extraía esperança dos pensamentos de Deus de que um navio veneziano seria o primeiro a aparecer.
Seus salvadores resultaram não ser nem piratas nem turcos, mas sim predadores a bordo de uma caravela grega, um dos muitos navios mercenários oportunistas que varriam o Mediterrâneo em busca de qualquer coisa que pudesse ser negociada com lucro. Neste caso era um capitão que vendia escravos para a corte do sultão. Ele viu que valia a pena manter a garota virgem, por isso ameaçou matar qualquer tripulante que a tocasse. Da mesma forma queria conservar o cavaleiro em condição saudável, pois sabia que os turcos reservavam uma tortura de morte especial para os cavaleiros cristãos.
E assim, em vez de continuar a leste para Jerusalém e para o cristal azul de Santa Amélia, Katharina viu seu rumo subitamente alterado quando a caravela apontou para o norte e navegou para Constantinopla, o centro do Império Otomano.
— Para onde estão nos levando? Por favor, tenho de ir para Jerusalém. Se é dinheiro que desejam, meu pai...
As súplicas de Katharina caíram em ouvidos moucos. Agrilhoada e ignorada, ela se retraiu em espanto e infelicidade sombrios, rezando para que Adriano estivesse a salvo e que este pesadelo terminasse em breve.
A caravela grega tinha parado na ilha sem nome na esperança de encontrar água potável. Agora, acorrentada no porão e enfrentando um destino desconhecido, Katharina não sabia se agradecia a Deus por sua boa sorte ou se amaldiçoava sua má sorte. Afinal, não eram mais náufragos, mas agora se encontravam num navio de escravos. Se a caravela grega não tivesse aparecido, ela e Adriano poderiam ter ficado presos naquele afloramento estéril até o fim dos seus dias.
Quando a caravela aportou em Constantinopla, o porão estava repleto de mercadorias humanas que iam desde crianças a pessoas idosas, de todas as nacionalidades e línguas, pois havia parado no meio do caminho para atacar, seqüestrar, roubar e comprar escravos para o sultão. Durante a viagem, Katharina tinha sido mantida embaixo com os outros, aglomerada num espaço sem luz e malcheiroso, com pouca água e comida, sem comunicação com o mundo exterior, violentamente enjoada, e certa de que ia morrer. Só voltou a ver Adriano quando foram arrastados do porão superlotado para a luz do sol no porto azafamado. Com a luz perfurando seus olhos, ela o viu agrilhoado a uma fileira de homens de aspecto deplorável, Adriano destacando-se por causa de sua altura e porte. Estava seminu e parecia ter sofrido maus-tratos, mais ainda mantinha a cabeça erguida e ela o viu se abaixando para ajudar um companheiro cativo que tropeçara. Katharina tentou fazer-lhe um sinal, mas chicotes os impeliram para direções opostas, até que ela o viu desaparecer num aglomerado colorido e ruidoso.
A luz do sol e o ar puro pouco fizeram para reanimá-la. O cabelo tingido emaranhado e fervilhando de piolhos, o galabeya manchado de vômito, ela cambaleava descalça sobre o crestado calçamento de pedras arredondadas, com seus companheiros chicoteados e gritando de dor. Não foi longa a jornada até o portão imperial, uma imponente arcada de mármore branco aberta a todos e situado a uns cem metros do hipódromo e da basílica de Hagia Sophia, que havia sido convertida numa mesquita. Penduradas do outro lado do portão estavam as cabeças apodrecidas de criminosos, como um aviso à população. Por esta entrada maciça fluíam pessoas, desde dignitários de alto escalão às classes mais baixas — muçulmanos e cristãos, cidadãos e forasteiros — todos observados por guardas ameaçadores armados com cimitarras, lanças e flechas.
Impelidos por feitores com chicotes, as garotas e mulheres espancadas foram amontoadas num pátio menor guardado por negros enormes com lanças. Ali as cativas foram desnudadas e deixadas para tremer de frio sob o céu. Katharina quis gritar em protesto. Eles tomaram a bolsa de couro de Frei Pastorius que continha a miniatura de Santa Amélia e o caco de cerâmica de Badendorf. Tinha sido o seu pequeno pedaço da Alemanha, um caco de cerâmica feita em solo alemão, modelada por mãos alemães, e pintada com amor alemão. Onde quer que pudesse estar fisicamente, era lá que seu coração pertencia. Mas agora isto tinha sido tomado dela, com a pintura que a identificaria para seu pai. Como a obteria de volta?
Uma mulher de aparência imponente apareceu, equilibrando-se em sapatos muito altos e usando um penteado cômico que a tornava ainda mais alta. Ela parava diante de cada cativa e dizia: "Crente ou não-crente?" As respostas sussurradas, ela realizava então um exame superficial e selecionava a pobre mulher ou garota com uma única palavra: "cozinha", "lavanderia", "caserna", ou "mercado". Quando a mulher chegou a ela, Katharina já havia deduzido que aquelas que alegavam ser crentes eram mandadas para o mercado de escravos ou, talvez pior, para as casernas próximas para servir de objeto de prazer para os soldados.
Antes que a mulher formulasse sua pergunta, Katharina deixou escapar "La illaha illa Allah!", que significava, "Não existe nenhum deus senão Alá", a prece essencial muçulmana que havia aprendido com o Dr. Mahmoud.
A mulher ergueu as sobrancelhas.
Você é muçulmana?
Katharina mordeu o lábio. O Dr. Mahmoud ensinara-lhe o suficiente sobre o Islã e o Corão de modo que ela sabia passar como crente desta fé. Mas então pensou em Adriano e na devoção dele à Virgem Maria e no voto que fizera de ajudar viajantes cristãos. E sabendo que ele seria torturado por causa de sua fé, que nunca fingiria ser outra coisa senão um seguidor de Cristo, baixou a cabeça e murmurou:
Não, senhora, sou cristã. Mas sei ler e escrever — acrescentou depressa, esperando que isto a poupasse do destino das outras mulheres, pois desconfiava que a vida na cozinha e na lavanderia do palácio era dura e curta.
A mulher ficou mais tempo com Katharina do que ficara com as outras, inspecionando suas mãos e dentes, indagando sobre sua linha sanguínea, ao que Katharina respondeu ser de uma estirpe nobre. Finalmente a mulher fez sinal a um assistente, que conduziu Katharina por uma porta que, para sua surpresa, abria-se para as termas, onde mulheres e garotas conviviam em diversas formas de roupas de baixo. Ali ela foi escovada e examinada em busca de piolhos, com a atendente resmungando que era bem notório que cristãos não se lavavam com muita freqüência. E então, para seu choque adicional, foi forçada à remoção de todos os pêlos do corpo, o que, descobriu mais tarde, era exigido de todos os homens e mulheres muçulmanos, segundo exigência do Corão.
Recebeu roupas limpas — um curioso enxoval de mantos compridos, calções e um véu para cobrir o rosto — e, depois de um breve interrogatório e de uma demonstração de sua perícia com uma agulha, foi designada para a equipe da Supervisora de Guarda-Roupa. Logo descobriu que esta função, por mais baixa e servil que fosse, permitia-lhe percorrer toda a ala feminina do palácio com um grupo de costureiras, cada qual especializada numa tarefa. Se Katharina trabalhasse bem, disseram-lhe, poderia um dia ser elevada ao cargo de Guardiã da Fiação, cuja única tarefa seria organizar e acompanhar a fiação de bordado, tendo suas próprias assistentes. Embora esta pequena informação significasse claramente uma boa notícia e ajudasse a animá-la, para Katharina representava uma sentença de prisão, pois indicava que passaria a vida inteira naquele lugar.
Foi assim que começou sua nova vida no palácio do grande sultão em Constantinopla. Ninguém se importava que ela fosse uma cidadã alemã à procura do seu pai, que fosse uma mulher livre com seus direitos, que pudesse até mesmo ter sangue nobre. De fato, ninguém ligava a mínima para ela, nem mesmo para seu nome, pois o palácio do sultão era povoado por milhares de escravos e criados que tinham vindo como cativos a uma época ou outra. Viviam suas vidas dentro daquelas altas muralhas com um ar resignado, e muitos até extraíam vantagem da situação, chegando ao topo de sua própria classe, acumulando riqueza e posição política.
Um complexo de pavilhões nas cercanias verdejantes, circundado por muros altos, o serralho situava-se numa colina com vista para o fórum de Teodósio e para os fabulosos estábulos do sultão que abrigavam quatro mil cavalos. Dentro deste mundo isolado e exótico, Katharina provou arroz pela primeira vez e aprendeu a beber café o dia inteiro. Também aprendeu a prostrar-se de joelhos cinco vezes por dia durante as chamadas para a prece, e a cada vez seu coração doía com a lembrança do Dr. Mahmoud, que tinha orado desta mesma maneira no jardim em Badendorf, durante a viagem ao longo da Rota do Âmbar e no convés do desventurado navio português. Nas suas preces também se lembrava de Adriano, desesperadamente esperançosa de que ele ainda estivesse vivo e em algum lugar próximo, e de seu pai, renovando sua determinação de ir para Jerusalém e encontrá-lo.
As mulheres que viviam no harém imperial eram divididas em duas categorias: as concubinas e aquelas que as serviam. As concubinas eram mulheres que, tendo alcançado os estritos critérios de beleza, postura e encanto, haviam sido separadas como parceiras sexuais para o sultão. As serviçais, que iam desde trabalhadoras braçais àquelas com talento e instrução, atendiam à miríade de necessidades das concubinas. Katharina foi posta para trabalhar acrescentando floreados e enfeites aos tecidos que já eram ricos e suntuosos além da imaginação. Mas pelo menos não foi designada para as cozinhas ou para as termas, onde as serviçais eram incumbidas de manter a água aquecida (em outras sociedades este serviço era feito por homens, mas nenhum homem tinha permissão de entrar no serralho).
Katharina sabia que um outro mundo — um mundo real de comércio, ciência e homens — existia em outra dependência do palácio. Havia uma câmara secreta no topo do Portão Imperial para que as damas do sultão observassem os desfiles sem ser vistas, e de onde Katharina assistia aos intermináveis cortejos de dignitários estrangeiros, visitantes, embaixadores, chefes de estado, cientistas e artistas. Esta era uma época de exploração e descoberta, e como o sultão se considerava um governante esclarecido, ele recepcionava o mundo à sua porta. Debaixo da arcada de mármore cavalgavam conquistadores espanhóis com índios trazidos do Novo Mundo, presenteando o sultão com astecas e incas. Emissários da corte de Henrique VIII traziam livros de astronomia e obras musicais compostas pelo próprio rei. E da Itália chegavam artistas com novas idéias para pintura e escultura. Quando via estes europeus passando montados abaixo, Katharina desejava gritar para eles: "Ei, estou aqui! Por favor, me levem embora!" Mas embora aquele mundo real ficasse além de umas poucas muralhas altas, ele poderia igualmente existir entre as estrelas, pois era tão inacessível quanto elas para as mulheres do Harém Imperial.
Embora às vezes Katharina achasse que enlouqueceria nesta gaiola de ouro, e chorasse com freqüência no travesseiro tarde da noite, ela mantinha-se em silêncio e inseria-se na rotina deste mundo de irrealidade, acompanhando as costureiras, fazendo a sua finíssima costura, observando e ouvindo enquanto ia contando os dias e esperava uma oportunidade de escapar. Discretamente indagou acerca de um homem que fora feito prisioneiro com ela e trazido para Constantinopla pelos mesmos mercadores de escravos. Um cavaleiro cristão espanhol, disse ela. Perguntou também sobre pertences tomados dos cativos, pois havia algo especial que era seu e que precisava desesperadamente obter de volta. Mas suas perguntas eram recebidas com indiferença e olhares vagos.
Assim, teria de encontrá-los por conta própria: Adriano e a miniatura de Santa Amélia.
Embora vivesse numa espécie de prisão, era uma prisão com sua própria forma de liberdade, pois enquanto permanecesse dentro dos muros do serralho Katharina estava livre para circular por onde desejasse. Os corredores sem fim com seus magníficos pilares e fontes de pedra, os bancos de mármore e os exóticos terraços, os jardins onde músicos tocavam sem parar, as súbitas e inesperadas praças onde malabaristas e dançarinos se exibiam, os labirintos de aposentos e banhos termais eram todos como uma cidade independente de luxo imponderável, seus residentes mimados tendo todas as vontades satisfeitas. O recinto inteiro estava repleto de um delicioso aroma de cítricos, já que todas as colunas e paredes de mármore eram lavadas diariamente com sumo de limão para fazê-los brilhar. Mas havia um lugar onde Katharina estava proibida de ir: uma linda colunata arqueada chamada o Portão da Pérola. Este levava, ela foi prevenida, aos aposentos privativos da Sultana Safiya, a concubina favorita do sultão, onde só aqueles sob convite podiam entrar.
Havia sempre alguma coisa excitante acontecendo naquele palácio, quer fosse um feriado religioso com música e banquete, uma festa comemorando o aniversário de alguém, ou um festival de veneração ao sultão, com paradas e trombetas e artistas visitantes. No Harém Imperial os momentos mais excitantes aconteciam quando uma garota era selecionada para a cama do sultão. Embora as mulheres do palácio, da mais humilde escrava à sultana, fossem todas propriedade pessoal do sultão para fazer tudo que ele desejasse, poucas realmente o encontravam. Era por isso que havia tão poucas crianças no harém: apenas garotinhas que tinham sido geradas pelo sultão. Três garotos haviam morrido na infância, deixando somente um filho vivo para o sultão, de uma concubina que Katharina jamais tinha visto. Se tais mulheres ficassem grávidas (em geral de um guarda ou de um visitante que conseguira se introduzir) eram condenadas à morte. Garotas entravam virgens entre aquelas paredes e passavam toda a vida sem conhecer o toque de um homem. Portanto, quando o sultão escolhia uma garota para sua cama (e ninguém sabia exatamente como a seleção era feita, já que ele nunca visitava o harém), os dias de preparação incluíam-se entre os de celebração mais animada, com muita excitação, mexericos e especulação cercando o evento enquanto a afortunada era banhada e massageada e vestida com os trajes e jóias mais finos, tratada como uma rainha e recebia instruções sussurradas sobre como agradar o sultão. Na manhã seguinte, a empolgação continuava enquanto todos ficavam na expectativa dos presentes que a garota receberia, especulando sobre a generosidade do sultão, todos genuinamente felizes por ela, celebrando sua boa sorte e ansiosos para saber como havia sido a noite. Embora a garota nunca mais fosse ser chamada de novo para a cama do sultão, ela, contudo se tornava uma pessoa especial por ter sido escolhida, e sua posição de destaque no harém estava assegurada.
Outra diversão preferida entre as mulheres era embarcar em pequenos botes sobre uma enorme piscina interna, desenrolando os turbantes das cabeças dos eunucos e ver qual equipe conseguia puxar mais rápido os turbantes para a água. Havia diversões sem fim com macacos, papagaios e pombos adestrados que usavam pequenos adornos de pérola nas patas e executavam truques; horas sem fim passadas em torno de tabuleiros de gamão e xadrez; tardes intermináveis provando vestidos e véus, chinelos e jóias; escovando os cabelos umas das outras, ou fazendo experiências com cosméticos, misturando perfumes, testando este ou aquele creme e raspando pêlos imaginários de qualquer parte do corpo.
O mexerico era igualmente parte integrante do harém, à medida que concubinas e suas criadas adoçavam boatos tal como faziam frutos cristalizados: quem estava dormindo com quem (Jamila e Sara), quem partira o coração de quem (aquela bruxa da Farida e a pobrezinha da Yasmin), quem estava manobrando para obter favores com a Sultana Safiya, quem estava engordando, quem estava ficando velha. O tópico principal durante semanas tinha sido o escandaloso caso de amor entre Mariam e um dos eunucos africanos — quando descobertos, ambos foram decapitados e seus cadáveres pendurados no Portão Imperial como um aviso para todos.
O principal passatempo de Katharina, contudo, era simplesmente ocupar as horas ociosas. Boa parte de seu tempo era passada nos banhos — lavando-se, sendo massageada e depilada. As mulheres demoravam- se nas saunas por horas, beliscando frutas e bebendo refrescos enquanto mexericavam. Não havia banheiras nas termas, pois os turcos suspeitavam de que um demônio jinn espreitava na água parada, de modo que as mulheres sentavam-se em bancos de mármore e eram ensaboadas e esfregadas por escravos. Katharina estava atônita com a falta de pudor daquelas mulheres, pois usavam apenas uma tira para cobrir sua nudez e desfilavam de um lado para o outro a exibir peitos e nádegas firmes. Como raramente estas mulheres sensuais iam acabar nos braços de um homem viril — os eunucos geralmente não sendo de nenhum interesse —, elas buscavam prazer sexual umas com as outras e freqüentemente formavam ligações românticas que acabavam em violentas manifestações de ódio e ciúme.
Tanto tédio, languidez e falta de objetivo enchiam Katharina de uma vaga inquietude. Estas mulheres tinham sido todas trazidas para cá contra sua vontade, mas mesmo assim pareciam satisfeitas, felizes até, como se os seus corações e lembranças estivessem entorpecidos. Estavam levando vidas que eram uma espécie de morte agradável e Katharina temia que se passasse tempo demais neste lugar encantando também sucumbiria a sua magia. E isto jamais deveria acontecer. Tinha feito uma promessa de leito de morte para encontrar seu pai. E devia sua vida a Adriano.
Assombrada por visões do que poderia estar acontecendo com ele naquele momento, Katharina consumia-se de culpa por causa da vida de luxo que estava levando. A cada manhã, com a primeira das cinco preces do dia, lembrava a si mesma de que na ilha Adriano não a havia abandonado. Portanto, ela não faltaria a ele agora. De um modo ou de outro, pagaria a sua dívida.
Lá estava ele de novo, o eunuco desfigurado, observando-a. Katharina teve certeza agora de que não era coincidência. Depois de semanas encontrando-o nos locais mais estranhos, convenceu-se de que ele a estava seguindo. E isto a assustava.
Após oito meses no Harém Imperial, Katharina conseguira, por meio de sagacidade e astúcia, manter-se à parte da miríade de relacionamentos emaranhados, atritos e ciumeiras, politicagem e conspirações, golpes e contragolpes que constantemente fervilhavam entre as facções e grupos rivais. A hierarquia era crucial, e mudava e se alterava como dunas de areia, com as concubinas ascendendo ou decaindo dentro da hierarquia do harém, obtendo o favorecimento da maioria ou perdendo-o por causa de um capricho. Somente a Sultana Safiya, a favorita do sultão, permanecia acima de todas, e Katharina ainda não tivera sequer um vislumbre desta grandiosa personagem. Enquanto outras tentavam atraí-la para as diversas facções, ela conseguia manter-se neutra e, depois de um certo tempo passou a ser respeitada por isto, pois todas sabiam que podiam confiar nela e depender de sua honestidade. Também conseguira cair nas boas graças de suas temperamentais supervisoras — da Seda, da Fiação, das Chinelas — e embora não tivesse feito exatamente quaisquer amigas no harém, tampouco ganhara inimigas.
Mas os eunucos eram outro assunto, e mesmo depois de oito meses tentando se adaptar a este mundo impossível, e que era diferente do mundo lá fora, ainda não conseguia compreender as estranhas criaturas que guarneciam as mulheres.
O harém era supervisionado exclusivamente por eunucos negros que eram propositalmente feios ou deformados a fim de desestimular qualquer interesse romântico por parte das mulheres. Capturados na África quando jovens, eles eram castrados no caminho, em geral num deserto onde a areia escaldante era o único remédio contra a alta incidência de hemorragia fatal, sendo a operação tão extensa: pois para ser qualificado para o Harém Imperial o eunuco devia se submeter à remoção completa do pênis e dos testículos (resultando na necessidade de urinar por um canudo que o eunuco mantinha escondido no turbante). Os eunucos podiam alcançar grande poder e eles próprios tinham uma equipe de criados e escravos; podiam ser inimigos formidáveis se alguém incorresse no seu desagrado. Por isso, Katahrina preocupava-se com este que claramente a estava seguindo por toda parte e espionado-a. A quem ele se reportava, e por quê?
Suas suspeitas foram respondidas numa noite em que foi acordada em sua cama no dormitório pela mão que subitamente tapou sua boca. Não era incomum garotas desaparecerem misteriosamente e nunca mais se saber delas — dizia-se que era sempre por infração, desfavorecimento, ciúme. Para onde estas infelizes eram levadas ninguém sabia, e ninguém ousava tentar descobrir.
Katharina foi carregada do dormitório enquanto as garotas observavam fingindo dormir, temerosas de que o simples fato de testemunhar pudesse acarretar-lhes o mesmo destino.
Mas uma vez lá fora, à luz da lua, o eunuco a depositou no chão e fez um gesto para que ficasse em silêncio e o seguisse.
Conduziu-a até um aposento numa ala especial do harém, onde viviam apenas as damas mais altamente favorecidas. Katharina ficou atônita com a suntuosidade do local. Este santuário interno era mais grandioso do que tudo que já vira até então, com suas ricas tapeçarias, divãs estofados e mobiliário de ouro. Quem quer que vivesse ali tinha riqueza e poder.
E então Katharina a viu — uma mulher não muito mais velha que ela, esguia e graciosa, vestida em sedas bruxuleantes de tom carmim e cinabre, debruadas em ouro.
— Paz de Alá — disse a jovem mulher com um sorriso. — Por favor, retire o seu véu.
Katharina assim fez, expondo o longo cabelo que estava atado em tranças intrincadas ao redor da cabeça.
— É o seu chapéu — veio a segunda ordem, embora fosse mais um pedido, e Katharina retirou o pequeno chapéu de seda parecido com uma caixa que cobria o cocuruto de sua cabeça. A concubina estudou-a por um momento, depois irrompeu numa risada agradável. — Parece que você está usando um solidéu amarelo!
Katharina enrubesceu. Todas as garotas implicavam com ela sobre isto. Elas adoravam ouvi-la contar de como se disfarçara como um rapaz e de como tingira o cabelo para parecer uma egípcia. Porém mais hilariante ainda era que agora seu cabelo havia crescido parcialmente, os primeiros poucos centímetros mantendo a cor dourada natural enquanto as madeixas compridas ainda conservavam o tom castanho.
Meu eunuco contou-me que você era loura — disse a jovem mulher, estendendo a mão. — Por favor, sente-se. Fique à vontade.
A seguir, gesticulou para que os criados servissem café em pequenas xícaras, café que Katharina achou intragável.
Estive observando-a — disse a misteriosa anfitriã. — Ou melhor, meu eunuco esteve de olho em você e se reportando a mim. — Bebericou o café refinadamente. — Você não se juntou a nenhuma facção. Não há nenhuma concubina que possa, como se diz, alegar que a tem no bolso. Isto revela algo acerca do seu caráter, pois algumas delas podem ser bastante persuasivas quando recrutam seus capachos. Você conservou sua independência, o que é raro no harém.
Ela falava em árabe, língua que Katharina aperfeiçoara no decorrer dos meses; era capaz de entender sua anfitriã e fazer-se entendida.
O que a sultana deseja de mim? —- perguntou.
Katharina sabia que os sultãos otomanos tinham deixado de se preocupar com o casamento e que nesta dinastia fazia séculos que não surgia uma esposa. As concubinas favoritas, contudo, podiam ascender a uma posição especial e, por falta de um título melhor, a atual favorita recebia o honorífico de sultana.
A jovem mulher a corrigiu.
Não sou a sultana. Mas sou a segunda favorita do sultão. Meu nome é Asmahan e mandei trazê-la aqui para pedir um favor.
Katharina ficou imediatamente em guarda.
Um favor, senhora?
Há oito anos fui raptada do meu lar em Samarcanda e vendida para a corte do sultão — falou Asmahan com voz suave e melíflua. — Como você — continuou —, tornei-me uma prisioneira do harém, condenada a passar a minha vida aqui. Mas tive sorte... fui escolhida para passar uma noite com o sultão. Como você sabe, tais mulheres ganham projeção, muito embora nunca se encontrem com ele de novo. Mas no meu caso, Alá seja louvado, fiquei grávida. Durante nove meses fui mimada, afagada e observada enquanto todos esperavam para ver se eu ia produzir um menino ou uma menina. Se fosse menina, ela seria criada no harém e preparada para um futuro casamento político. Mas se fosse um menino...
Katharina já ouvira falar que o sultão tinha um filho de uma concubina favorita. Asmahan era invejada por todo o harém.
O sultão deve estar muito feliz — disse Katharina, por falta de algo mais a dizer e imaginando que favor esta mulher poderosa possivelmente lhe pediria.
Sim. Ele adora nosso filho. Bulbul é freqüentemente recolhido e levado para passar alguns dias nos aposentos do sultão. — Mais um gole na forte bebida.
Katharina esperou.
Asmahan inclinou-se à frente e sua voz ficou mais tensa.
A sultana também está grávida. Por certo você também sabe disso.
Katharina teve vontade de dizer que se um tordo botasse um ovo no palácio todos os seus milhares de habitantes saberiam.
Ouvi dizer — disse. A Sultana Safiya, a mulher mais poderosa do Império Otomano, porque só ela era chamada repetidamente de volta à cama do sultão.
Não é sua primeira gravidez — continuou Asmahan numa voz que mal passava de um sussurro. Katharina imaginou que mil olhos ocultos as observavam, que mil orelhas ouviam por detrás das cortinas. — As outras gestações resultaram em abortos, ou então deram à luz meninas. Mas os astrólogos dizem que desta vez é um menino. Sabe o que aconteceu com as outras mulheres que engravidaram do sultão?
Katharina tinha ouvido histórias. Uma pobre criatura, poucas semanas antes, estava no seu quinto mês de gravidez, foi chamada aos aposentos de Safiya e nunca mais foi vista. Os rumores eram de que Safiya havia chutado a barriga da garota, provocando um aborto que pôs fim à vida de mãe e filho.
Por vários métodos a sultana conseguiu manter o caminho livre para seu próprio filho. Eu tive sorte... e fui esperta. Quando se aproximava a minha vez, pedi ao sultão para deixar seus médicos pessoais de sobreaviso. Safiya não poderia me tocar ou ao meu bebê. Sei que ela odeia meu filho. Mas mesmo assim ela não teve a desfaçatez de tentar removê-lo. Mas, uma vez que ela dê à luz um filho, então pode legalmente livrar-se do meu.
Ela vai matá-lo? — indagou Katharina.
Antes o fizesse! Mas um destino pior aguarda meu pequeno Bulbul se a sultana der à luz um filho. — Asmahan olhou em torno, muito embora estivessem sozinhas no luxuoso cômodo. — Existe neste palácio um lugar chamado a Gaiola. É um cômodo muito pequeno no fim de um longo corredor. As portas e janelas são lacradas de modo a não haver contato com o mundo exterior. Lá vivem príncipes turcos que não tiveram permissão de herdar o trono. São criados em isolamento completo por surdos-mudos, e após muitos anos finalmente enlouquecem.
Mas que crueldade! Por que isto?
Existe uma lei do governo turco que diz que o filho que herda o trono deve eliminar seus irmãos. Mas a remoção deve ocorrer sem derramamento de sangue. O aprisionamento em vida na Gaiola é a sua sentença. É o que acontecerá com o meu Bulbul se Safiya der um filho ao sultão.
Não entendo, senhora. Seu filho é mais velho.
Mas tenho um berço inferior ao de Safiya. Ela é oriunda de uma família turca muito nobre e antiga, ao passo que a minha é de nômades... somos ricos e poderosos em nossa terra, mas isto não conta aqui. Safiya não perde a oportunidade de lembrar isto ao sultão, e já o posso ver mudando de opinião.
Mas como é que posso ajudá-la?
Por vontade de Deus, você levará Bulbul de volta para minha família em Samarcanda.
Katharina soltou um profundo suspiro.
Samarcanda? Mas por que eu, senhora? Entre centenas de mulheres dentro desses muros...
-— Porque é a única que deseja escapar daqui. Tenho observado em você uma ânsia por sair deste lugar. Alguma coisa a espera além destas muralhas. As mulheres, na sua maioria, são felizes aqui, como certamente já notou. Muitas foram raptadas de aldeias pobres onde enfrentavam uma vida dura com maridos dominadores. Aqui, elas vivem no luxo e, pelo menos dentro destas paredes, usufruem de liberdade. E aquelas que não são felizes, pelo menos estão resignadas com seu destino. Também escolhi você — acrescentou, enquanto erguia os braços para tirar o elaborado véu escarlate da cabeça e revelar um cabelo dourado — porque também tem pele clara e é loura como eu. Bulbul passaria por seu filho.
Katharina ficou maravilhada ao ver um cabelo da cor do seu. Louras eram incomuns no Harém Imperial, mas como o cabelo louro era considerado um sinal de fraqueza e falta de paixão no sangue, mulheres deste tipo físico faziam o possível para tingir o cabelo.
Eu faria isto pela senhora, pois está certa: desejo sair daqui. Mas não posso fazer como me pede.
Ela ergueu as sobrancelhas exoticamente pintadas.
Por que não? Deseja sair deste lugar, não é verdade?
Oh, mas é claro, senhora — disse Katharina com paixão. — Estou procurando minha família. Tal como a senhora, fui separada da família muitos anos atrás... jamais conheci meu pai e irmãos e descobri em mim mesma uma ânsia profunda de conhecê-los.
Asmahan assentiu, séria.
Ser separada dos parentes de sangue é uma infelicidade. É por isso que Bulbul deve ficar com seus parentes. Mas por que não fará isto por mim?
Tem um homem, um cavaleiro cristão, que foi capturado e trazido para Constantinopla. Não posso ir sem ele.
Asmahan franziu o cenho.
Um cavaleiro cristão não duraria muito tempo numa cidade turca, tão profundo está enraizado o ódio. Ele já deve ter sido torturado e morto há muito tempo, que a misericórdia de Deus caia sobre ele.
Mas não sei com certeza. Não posso partir até saber sobre o destino de Adriano. E se ele estiver vivo, deve ir comigo.
Asmahan levou isto em conta.
Mandarei investigar — prometeu.
Posso lhe pedir outro favor, senhora? — perguntou ela. —Quando fui trazida para o palácio, tinha uma pequena posse comigo, uma sacola de couro contendo lembranças sentimentais. Esta sacola me foi tomada. A senhora seria capaz de encontrá-la para mim?
Asmahan franziu o cenho.
Como regra, as posses dos cativos são consideradas inúteis demais para o sultão e sua família para que se preocupem com isto, e, portanto são dadas como pagamento aos homens que trouxeram os cativos para nós, ou para os pobres da cidade, como parte do programa de caridade do sultão. Verei o que posso fazer. Isto está acima de Deus. — Seu tom se tornou cauteloso: — Agora preste atenção. Este é um assunto perigoso. Há espiões por toda parte. A sultana está de olho em mim. Agora que ficou minha amiga, você não está mais a salvo e deve ficar atenta à sua retaguarda o tempo todo. Volte de novo amanhã à noite. E traga seu estojo de bordado.
Na sua visita seguinte aos aposentos de Asmahan, Katharina encontrou a bolsa de couro dada por Frei Pastorius jazendo miraculosamente no divã. Caiu sobre ela e abriu-a imediatamente. A pintura em miniatura de Santa Amélia ainda estava lá. E o caco de cerâmica de Badendorf.
Pressionando-os contra o peito, Katharina chorou:
Deus a abençoe, senhora — disse. — Acaba de restituir minha vida.
Asmahan conteve a língua, achando que seria cruel demais deixar a garota saber que aqueles artigos eram tão insignificantes que ninguém quisera ficar com eles, nem mesmo os mendigos que iam ao hospital de caridade para ganhar roupas e um cálice de vinho medicinal. Mas via aquilo com simpatia, pois ela própria daria todo o seu ouro e jóias para sentir sob os dedos nada mais que um pêlo de carneiro do vasto rebanho de seu pai. Isto confirmava o velho adágio de que uma pérola para um valia menos que um seixo para outro.
Depois disso, Katharina passou a ir todas as noites aos aposentos de Asmahan, levando o estojo de bordado a pretexto de costurar alguma coisa para a concubina, mas na verdade para conhecer Bulbul, um garotinho roliço, louro e afável que, quando chegasse o momento, teria de seguir calado e de boa vontade com sua nova mãe.
Era uma manhã fria e nevoenta, com uma leve garoa caindo sobre a cidade de Constantinopla. A Supervisora do Guarda-Roupa chegou correndo ao Pavilhão das Pombas, onde suas assistentes estavam costurando um conjunto para a afortunada garota que tinha sido selecionada para a cama do sultão, e arrancou agulha e linha das mãos de Katharina.
É a sultana! Mandou chamá-la!
O coração de Katharina saltou. A sultana! Teria ela descoberto o plano secreto de Asmahan?
Um eunuco esperava para escoltá-la, um homem de aspecto formidável que ela nunca vira antes. Trajando mantos elegantes, o turbante ricamente emplumado e feito de tecido dourado. O nariz havia sido cortado muito tempo antes e substituído por um bico de ouro, fazendo-o parecer uma criatura mitológica. Não proferiu uma única palavra a Katharina ao fazer meia-volta e liderar o caminho. Ela o seguia, curiosa, mas quando se aproximaram do proibido Portão da Pérola, ela começou a tremer de medo. Quantos já haviam passado por esta arcada e nunca retornaram? Se a sultana tivesse descoberto acerca de sua colaboração secreta com Asmahan, podia perder as esperanças de sair viva daqueles aposentos.
Katharina não acreditava que pudesse existir alojamentos mais suntuosos que os de Asmahan, mas a suíte particular da sultana a deixou sem fôlego. Ouvira dizer que a sultana era apaixonada por pérolas, mas o que viu suplantou toda a imaginação. Todas as cortinas, colgaduras, tapeçarias, escabelos, divãs e até mesmo os capachos no chão eram trançados com pérolas brancas, pretas e rosadas. E sentada numa cadeira que parecia um trono (também adornada com centenas de pérolas) estava uma mulher tão coberta de roupas decoradas com pérolas que parecia ter ficado parada sob uma nevasca. Katharina nunca tinha visto tantas pérolas em uma pessoa. Como ela podia andar com tanto peso em cima?
O olhar de Safiya era tão duro e permanente quanto suas preciosas pérolas, e estudava a costureira-assistente com franqueza inescrutável. Katharina tentou não ficar nervosa sob o olhar frio, e procurou não olhar fixamente. Rímel pesado delineava as pálpebras da mulher, quase lhe obscurecendo os olhos, e tinha tanto vermelho nos lábios que parecia ter comido geléia e esquecido de usar o guardanapo. Apesar da maquiagem exagerada, era evidente que a concubina favorita do sultão estava velha — o que era de surpreender. Katharina ouvira dizer que Safiya tinha quase quarenta anos. Como era estranho que o sultão convocasse esta mulher de volta ao seu leito quando tinha a opção de centenas de garotas núbeis.
A gravidez de Safiya estava bem avançada.
Você tem visitado Asmahan. Por quê? — perguntou, a voz soou cortante e mortal como uma cimitarra.
Katharina tentou parar de tremer.
Ela gosta dos meus bordados, senhora.
Considero o seu trabalho medíocre. Asmahan não tem bom gosto. — Os olhos escurecidos de rímel perfuraram Katharina, que sentia o coração subir à garganta. — Por que está trêmula, garota?
— É que eu nunca... -— Ela lambeu os lábios ressequidos —... nunca estive em presença de uma figura tão magnífica, senhora. É como estar olhando para uma deusa.
Katharina não fazia idéia de onde as palavras brotaram, mesmo assim elas surtiram efeito. A sultana pareceu suavizar-se um pouco; mesmo uma mulher tão exaltada não estava imune a lisonja.
Você vai fazer uma coisa para mim — disse ela, que não era mulher de perder tempo. — Se a fizer bem, darei o que você quiser.
Katharina mal conseguiu dissimular seu choque.
O que é que deseja, senhora?
-— Você vai espionar Asmahan. Observar o que ela faz, com quem se encontra, e ouvir tudo que é dito. Depois vem se reportar a mim. Está me entendendo?
Sim, senhora. Há alguma coisa em particu...
Tudo — cortou ela. — Conte-me tudo que acontece. Eu decidirei o que é importante. — Olhou pensativa para Katharina por um momento, depois disse: — Talvez você deva alguma lealdade ou aliança a Asmahan. É problema seu, não deixe que isto interfira na tarefa que lhe designei. Mas no caso de seu coração fraquejar, lembre-se de minha promessa de lhe dar tudo que desejar, caso seu relatório me agrade.
A sultana suspirou e pousou as mãos pesadas de jóias no ventre protuberante.
Carrego o herdeiro do sultão — disse, um anúncio desnecessário e sem deixar espaço para equívocos: o filho de Asmahan não teria a menor chance.
Quando Katharina ia se retirar, a voz dura da sultana advertiu:
Tome cuidado, garota, pois enquanto estiver espionando Asmahan também estará sendo vigiada. Cada passo que der me será relatado.
Katharina continuou visitando Asmahan todas as noites sob o pretexto de bordar para ela, mas agora carregando o fardo de um novo e terrível segredo. Enquanto brincava com Bulbul e lhe contava histórias e cantava para ele, com Asmahan olhando com grande tristeza porque estes eram seus últimos dias com o filho, Katharina imaginava o que ia contar à Sultana Safiya, pensava se deveria confidenciar este novo desdobramento a Asmahan, e especulava se Adriano seria algum dia encontrado. Durante o dia, aonde quer que fosse, Katharina imaginava-se observada por centenas de olhos ocultos. O palácio era uma parafernália de portas secretas, passagens ocultas e biombos com buracos para espiar. Era espião espionando espião. A cada noite, quando ia aos aposentos de Asmahan, ela perguntava se havia notícias de Adriano e a cada noite a resposta era de que não havia novidades. Até que Katharina começou a pensar seriamente que a sultana tinha mais poder que Asmahan. Se eu relatar esta história à sultana, será que ela resgatará Adriano para mim e nos libertará? "Darei qualquer coisa que desejar", dissera a poderosa Safiya
Foi então que, certa noite, Asmahan disse:
O perigo para meu filho está aumentando. Safiya jurou que ele não será o herdeiro do sultão.
— Mas e se a sultana tiver uma menina?
Então ela matará meu filho por inveja. A cada dia a vida dele corre mais perigo. Fico cada vez mais temerosa. Meu eunuco encontrou um guarda-costas em quem podemos confiar. O homem permanecerá com Bulbul a cada minuto até o dia da partida.
Tem certeza de que pode confiar nele? — Não pode confiar nem em mim! pensou Katharina e amaldiçoou o destino que a pusera em tal situação: ajudar Asmahan ou se tornar espiã e pedir ajuda à sultana para encontrar Adriano.
Você se considera uma boa juíza de caráter, Katharina? Talvez possa me dizer se podemos confiar neste homem. — Asmahan apontou na direção de seu jardim particular, onde Bulbul gostava de brincar com barquinhos no tanque de peixes.
Katharina saiu sob o céu noturno e viu, parada debaixo de um salgueiro-chorão, uma figura humana alta trajando um manto — um homem, magro e macilento, com uma barba hirsuta e o cabelo passando dos ombros. E quando ele se voltou, Katharina viu olhos abrigados em escuras cavidades, e linhas profundas traçadas a cada lado de uma boca que não sorria havia muito tempo.
Ele a fitou por um momento, e então o reconhecimento inundou seu rosto.
Graças a Deus em Sua misericórdia — sussurrou ele e deu um passo vacilante em sua direção.
Katharina o alcançou primeiro, e braços emaciados a enlaçaram no mais terno dos abraços. Ela sentiu pele e osso sob o manto e chorou num ombro emagrecido.
Adriano chorou com ela, pois imaginara que nunca a veria de novo.
Como...? — começou ela, recuando e bebendo a imagem dele com os olhos.
Adriano enxugou as lágrimas:
Enquanto estava no porão malcheiroso de um navio de escravos pensei numa garota que havia conhecido, uma garota muito valente que abandonou a segurança da sua cidade, deixou uma vida confortável e segura para sair pelo mundo em busca de seu pai. Nenhum perigo haveria de dissuadi-la do seu objetivo, nem mesmo depois de ter naufragado numa ilha com um estranho. Quando ouvi a determinação na voz dela, e vi a força no seu espírito, pensei: Certamente posso ser como esta reles garota. Ofereci uma prece à Virgem Santíssima, renovando o meu voto de restaurar Sua soberania em Jerusalém e de me juntar aos meus irmãos cavaleiros em Creta. E, enquanto dormia, a Virgem Santíssima me apareceu em sonho e me disse que eu de nada lhe servia morto, pois mártires não construíam igrejas, e que ela precisava de seus soldados vivos. Assim, lá mesmo no navio de escravos, descartei meu manto de cavaleiro e me livrei de qualquer evidência de minha verdadeira posição, de modo que quando fomos retirados do porão daquele navio no cais, ninguém sabia de minha identidade. Simulei ser mudo, mas quando viram meu tamanho, os supervisores mandaram-me para trabalhar nas olarias, pois as obras neste palácio nunca terminam. Desde então, estive construindo as próprias muralhas que nos prendem aqui.
Ele tomou as mãos lisas e suaves de Katharina nas suas mãos calosas.
O que me manteve vivo foi o voto que fiz para a Virgem, pois devo retornar a Jerusalém. Mas pensar em você, Katharina, também me manteve vivo, pois eu sabia que teria a energia e a força para superar este infortúnio. — O espectro de um sorriso bailou nos seus lábios. — E pensei que certamente eu, um cavaleiro da Irmandade de Maria, poderia fazer o que uma simples garota faz.
Asmahan entrou no jardim, parou para observar o improvável casal à luz da lua — a carnuda garota em sedas, o homem esquelético em farrapos — e disse:
Decidi, Katharina, que você não deveria viajar sozinha, pois poderia chamar muita atenção. Deveria ir na companhia de um homem que pudesse passar por seu marido, além de servir de proteção para você e meu filho. Tenho bastante dinheiro para arranjar um lugar para vocês dois e Bulbul numa caravana. Darei cartas para levar a minha família. Meu pai é o xeique Ali Sayid, um homem rico e poderoso. Ele a recompensará muito bem por tudo que tiver feito.
Katharina olhou para Asmahan com olhos marejados de lágrimas. Todos os pensamentos na sultana, em espionagem e intriga saíram de sua mente. Estava ciente apenas de uma coisa: das mãos rudes e calosas segurando as suas.
Meus espiões — disse Asmahan — contaram-me que uma caravana vai partir para Samarcanda na primeira lua cheia. Pedirei permissão ao sultão para visitar a mesquita nesse dia. Direi a ele que é o aniversário de meu pai e que desejo homenageá-lo e oferecer-lhe preces. O sultão não recusará. Levarei Bulbul comigo e, claro, um grupo de eunucos e damas para proteção. Você e o seu espanhol estarão entre eles. Nós mulheres rezamos atrás de uma tela na mesquita, de modo que os homens não podem nos ver. Você poderá escapulir sem ser vista com meu filho, e meu eunuco levará você e Adriano ao local de partida das caravanas. Depois disso, retornarei ao palácio.
Katharina finalmente encontrou sua voz, embora fosse difícil na magia daquela noite.
Mas certamente o sultão dará pela falta do garoto.
O sultão está atualmente preocupado em derrubar o império dos Cavaleiros de Rodes — os olhos de Asmahan oscilaram para Adriano — e suas visitas ao nosso filho não têm sido freqüentes. Quando ele der pela falta de Bulbul, você e ele estarão bem no meio do caminho e ninguém saberá para onde foram.
Katharina não desejava perguntar, mas teve de fazê-lo porque era uma pergunta razoável.
Por que a senhora não pode ir conosco?
Se eu desaparecesse, isto seria notado de imediato e uma busca seria desfechada. Os guardas do sultão me achariam em poucos dias. Mas decorrerão semanas até que percebam que Bulbul se foi e, por esta ocasião, será tarde demais para que consigam rastreá-los. — Ela entregou um pacote a Katharina. — Vocês viajarão primeiro para Bagdá, que é a orla do Império Otomano. Nesta primeira parte da viagem viajarão sob a proteção do sultão. Obtive papéis que garantirão sua passagem a salvo. De Bagdá vocês se juntarão a uma caravana rumo a Samarcanda, e nesta parte da jornada estarão sob a proteção do meu pai. Mantive negociações secretas com o embaixador de Samarcanda, que providenciou os documentos necessários. Meu pai é um homem poderoso, seu nome é temido. Vocês estarão a salvo. Uma vez em Samarcanda, ele a recompensará generosamente pelo que fez. E uma vez que entregue Bulbul aos cuidados de minha família, estará livre para ir aonde quiser.
Bagdá, Samarcanda... Tão longe de Jerusalém, tantos quilômetros na direção errada! Mas Katharina pensou no pequeno Bulbul e depois em uma bebê que tinha sido dada fazia quase dezenove anos por um pai recentemente enviuvado que partira em busca de uma pedra azul. Esta situação difícil lembrava muito a sua. E aqui a vida dela corria perigo.
Senhora — disse —, não tenho palavras para exprimir minha gratidão. Por ter encontrado Adriano e por...
Asmahan estendeu a mão cheia de jóias.
— Faço isto por meu filho, e por nenhum outro motivo. Mantenha-o a salvo e fale a ele de mim com freqüência.
Katharina não reviu Adriano depois disso, pois aos homens não era permitida a companhia de mulheres, e portanto apenas ela acompanhava Bulbul quando ele era convocado aos aposentos privados do sultão.
Mas Katharina continuou a visitar Asmahan a cada noite, levando sedas e bordados, e a cada manhã relatava para a sultana que Asmahan falara mal das outras concubinas e da politicagem do harém, imaginando se a arguta mulher poderia perceber seu subterfúgio. A cada noite, na alcova do dormitório, Katharina olhava para a pintura da Pedra de Santa Amélia e sentia o coração disparar cheio de esperança: faltava pouco agora, ela e Adriano mais uma vez se veriam livres e ela estaria de novo na estrada para o cristal azul e, se Deus permitisse, para sua família.
Dois dias antes de levarem a cabo o plano de fuga, a notícia espalhou-se pelo palácio como fogo: Safiya estava em trabalho de parto. Todas as atividades foram suspensas enquanto todos esperavam ansiosamente por notícias. Asmahan mantinha Bulbul por perto, enquanto Katharina aguardava as novidades no dormitório.
E então elas chegaram: a sultana dera à luz um menino.
Tiveram de correr contra o tempo. No instante em que teve o recém-nascido posto no seio, Safiya reclamou seu direito legal de ter o filho de Asmahan trancado na Gaiola. Quase de imediato, Asmahan foi abandonada por seus eunucos e guardas mais jovens. Não fazia mais sentido ir à mesquita para oferecer preces ao seu pai. Era apenas questão de horas até que os eunucos da sultana chegassem para levar Bulbul.
Embora Adriano ainda acreditasse que os turcos fossem pagãos ateus e seus inimigos jurados, mesmo assim esta concubina salvara sua vida e o reunira a Katharina, e assim ele era o seu protetor declarado. Ou pelo menos protetor do filho dela, pois, definitivamente, nada podia ser feito para salvar Asmahan. Com a ajuda do fiel eunuco de Asmahan, Adriano escalou o muro do jardim e, com Bulbul amarrado às costas — adormecido, pois tinham-lhe dado leite misturado com suco de papoula —, ajudou Katharina a subir atrás dele. Sob a cobertura da noite, seguiram o eunuco pelo labirinto de muros externos e alamedas que circundavam o palácio, e finalmente pela coelheira de ruas e becos sinuosos da cidade. Antes de saírem, Asmahan dera a Katharina um pequeno cofre de madeira repleto de dinares de ouro, a moeda do Império Otomano. Tinham-se abraçado e Asmahan beijou o filho pela última vez. Agora, enquanto Katharina e Adriano seguiam o eunuco até o vasto acampamento da caravana, ela soube que o destino de Asmahan tão logo sua trapaça fosse descoberta seria a mesma punição que todas as mulheres do harém recebiam ao transgredir os regulamentos do sultão: ela seria lacrada num saco com um gato e uma serpente e jogada nas águas do estreito de Bósforo.
A caravana partiu ao alvorecer, um comboio de mil camelos que levava perfume e cosméticos do Egito e no meio do caminho recolheria vidro colorido na Síria e couro nas estepes eurasianas — tudo destinado à China, onde as pessoas adoravam tais coisas -— para ser trocados por seda e jade, que na volta seriam levados para as nações do Ocidente, onde as pessoas adoravam tais coisas. Ao longo do caminho encontravam artistas indo para a China — malabaristas, acrobatas, cantores, mágicos — e, voltando do Oriente para a Europa, monges, eruditos e exploradores. Embora fossem encontrar vida selvagem, Katharina e Adriano levaram provisões de pães, frutos secos, carne salgada e queijo curado, bem como farto suprimento de água. E eles se deliciavam em ser um trio despreocupado: Adriano, o protetor; Katharina, a nutriz; e Bulbul, o "filho" deles. Enquanto Constantinopla e seus terrores ficavam para trás, enquanto viajavam sob o sol e ao ar livre, comiam fartamente e descobriam miríades de motivos para rir. Adriano readquiriu vida e força. Seu corpo ganhou consistência e a animação recomeçou a brilhar nos seus olhos. Katharina disse-lhe somente uma vez que agora ele estava livre para seguir para Jerusalém, que não estava obrigado a fazer com ela a longa jornada para Samarcanda, mas Adriano a silenciou com a decisão de não sair de seu lado até que cumprisse a promessa feita a Asmahan. Depois disso, acrescentou, retornariam juntos para Jerusalém.
À medida que a caravana serpenteava em seu caminho para o leste, Katharina — que certa vez pensara ter visto a maior parte do mundo a apenas poucas milhas no Adriático — encontrou o deserto pela primeira vez e o terrível portento das tempestades de areia, que se erguiam tão repentinamente que a morte reclamava o viajante que não estivesse alerta. Ela e Adriano logo aprenderam a observar os camelos; se os animais começassem subitamente a rosnar e enterrar os focinhos na areia, isto significava que uma tempestade de areia se aproximava, muito embora o dia estivesse claro. Os viajantes imediatamente enrolavam com panos os narizes e bocas e, repentinamente, a tempestade se apresentava, feroz e rápida, para se desfazer num instante.
Ao longo do caminho acampavam principalmente ao ar livre, sob as estrelas, nos oásis e encruzilhadas, mas às vezes paravam em guarnições e caravançarás, onde encontravam estalagens e leitos adequados, e músicos e entretenimento animado. À medida que passavam entre areias douradas e céu de azul profundo, sob nuvens brancas impelidas pelo vento e à sombra de palmeiras de cor verde-esmeralda, a jornada adquiriu um aspecto irreal para Katharina, que segurava Bulbul nos braços enquanto o camelo os sacolejava e balançava num quase cochilo. A frente ela observava Adriano, com os ombros largos e costas retas, um homem de convicções profundas e devoção a Deus, um homem misterioso, também.
Katharina não soube precisar o momento em que se apaixonou. Talvez tivesse sido muito tempo antes, quando o viu pela primeira vez nas docas de Veneza. Ou ao observá-lo rezar no convés do navio português. Ou enquanto dormiam nos braços um do outro numa ilha deserta, sentindo-se como os últimos humanos na terra. Onde e quando quer que tenha começado seu amor por ele, Katharina o mantinha em segredo, pois Adriano tinha sua própria estrada a seguir, tal como ela. Nunca abriria o coração, mas sim conservaria seu amor junto a si, protegendo-o na câmara especial onde conservava a sua mãe, e seu pai, e agora até mesmo a infeliz concubina Asmahan, que lhes salvara a vida.
Mas estas emoções novas e estranhas a sobressaltaram, pois não vivenciara uma paixão assim por Hans Roth. Parecia incompreensível para ela agora, enquanto se inflamava com cada olhar de Adriano e o som da sua voz, que certa vez considerara o amor romântico um mito. Seu desejo por Adriano era maior do que qualquer fome ou sede que já tivesse experimentado; era uma ânsia do espírito que ocupava sua mente noite e dia. Portanto, o amor de Katharina necessitava de um escoadouro, e ela o descobriu na feitura de um novo manto para ele. Tendo secretamente pechinchado no mercado de Ankara por um novo manto branco e um pouco de fio de seda e agulhas, ela trabalhava na sua tarefa de amor a cada hora de descanso do dia, quando Adriano saía com os homens para caçar ou catar lenha para as fogueiras. Sabia que Adriano carregava uma dor no íntimo, mais profunda que as cicatrizes no pobre corpo torturado, uma dor que vislumbrara pela primeira vez nas rugas delineadas no rosto, e que tinha percebido na voz dele quando, naquela ilha deserta, ele falara de uma mulher que havia amado. Embora Katharina soubesse que jamais poderia ser o bálsamo para aquela dor profunda, rezou para que o novo manto ajudasse a restaurar um pouco da dignidade dele.
Adriano também ocupava seus pensamentos por causa de algo que a intrigava, um enigma que se aprofundava a cada dia que passava. Ele dissera-lhe ter assumido votos de celibato e austeridade quando se juntara à irmandade, e que esses votos foram assumidos como penitência por ter matado um homem. Mas agora que passavam dias e noites em privacidade, partilhando comida e abrigo, fingindo ser pai e mãe do pequeno e adorável Bulbul, Katharina ia se conscientizando da verdadeira extensão daqueles votos. Dias e noites num navio português, e alguns dias encalhados numa ilha, não haviam sido suficientes para ela observá-lo verdadeiramente. Mas aqui, no deserto sem fronteiras, debaixo de um sol que se estendia até a eternidade, Katharina observava Adriano com uma clareza que era transparente como vidro. E pareceu-lhe que seu voto de abstinência e austeridade iam além de limites razoáveis, pois ele não só abstinha-se de carne e vinho, mas também do alimento na porção adequada. Ele parecia quase à beira da inanição para punir seu corpo, impelindo-se além da resistência diária, continuando a trabalhar e caçar e cortar lenha muito tempo depois que seus companheiros se retiravam para junto das fogueiras. O crime que ele havia cometido (e ela não tinha certeza de que havia sido um crime, pois não estava lutando por uma mulher que amava, lutando por seus direitos?) acontecera havia mais de vinte anos. Penitenciara-se o suficiente? Ou — e esta suspeita crescia a cada distância que deixavam para trás, à medida que a caravana prosseguia para leste — havia mais na história do que tinha sido revelado?
Deu-se conta de que sua obsessão por ele a desviava do propósito de sua vida: encontrar seu pai. E, portanto tinha de confiar cada vez mais no retrato de Santa Amélia a fim de relembrá-la do seu objetivo. Como uma suplicante na igreja com um desejo genuíno de oferecer preces, mas cuja mente instável se extraviava através das janelas de vitral para os campos de margaridas além, Katharina precisava cada vez mais de força de vontade para manter o coração no rumo certo. Noite após noite, no que se tornou um ritual, ela levava a pequena pintura para a luz e olhava para o cristal azul enquanto silenciosamente recitava a litania: É aqui que jaz meu destino.
Tão logo Bulbul fosse entregue à família de sua mãe, Katharina ia fazer meia-volta e seguir para Jerusalém, para procurar o cristal azul e encontrar seu pai.
E Adriano deveria seguir para onde seu destino o levasse.
A caravana era como uma criatura dinâmica em constante mutação, com gente entrando e saindo, clãs inteiros ou viajantes solitários, fazendo o comboio encolher ou se esticar como uma serpente enquanto coleava através do deserto, da pastagem e do planalto. Sentindo-se a salvo agora nas suas falsas personas, e estando tão distantes de Constantinopla e do perigo de serem encontrados, Katharina e Adriano faziam amizade com os recém-chegados, partilhando fogo e comida, e depois dando adeus a eles ao longo do caminho e recebendo a companhia de novos conhecidos.
A questão da língua começou a tornar-se um problema à medida que seguiam para leste, pois encontravam novos dialetos e mutações de idiomas que pensavam dominar. O árabe ficou cada vez mais difícil para Katharina, e o grego de Adriano tornou-se cada vez mais inútil. Embora o latim tivesse sido levado para leste ao longo de milhares de anos, os dois achavam difícil compreender como a antiga língua fora tão mudada e adaptada às regiões locais. Mas dava para se entenderem; a comunicação particular começou a confiar menos em palavras e mais nos gestos, expressões faciais e silêncios preenchidos com olhares significativos. Era, começavam a perceber à medida que passavam dia e noite na companhia um do outro, tudo de que precisavam.
No norte da Pérsia, a caravana parou num pequeno vale entre duas cordilheiras escarpadas, e aqui encontraram um curso de água mais marcante: nenhuma vegetação crescia às suas margens, tudo à volta era rochoso e estéril, mas a água corria morna e, para espanto de todos, corria verde brilhante. Isto era conseqüência de depósitos minerais na sua nascente, explicou o líder da caravana, que davam à água o seu notável tom de esmeralda. Mas ela era potável e até mesmo, alguns alegaram, saudável. E assim acamparam ao lado do riacho cor de esmeralda, mil tendas e uma centena de fogueiras à luz da lua.
Katharina apreciou a oportunidade de poder finalmente dar uma boa lavada no cabelo. Embora o tivesse lavado ocasionalmente no decorrer das semanas, a água tinha de ser racionada. Para manter o cabelo limpo ela usara um truque aprendido com beduínos locais, cujas mulheres esfregavam uma mistura de cinza e soda nos cabelos e depois passavam horas penteando-o. Deste modo a tintura escura, aplicada lá em
Veneza para que pudesse passar por árabe, começou a desvanecer para um castanho-claro, com as raízes recém-crescidas dando-lhe um "capuz" louro. Mas agora ela usava o sabão adequado, cobrindo o cabelo de espuma, escovando, massageando e enxaguando. Depois secava o cabelo ao vento, de modo que ele se encapelava como uma juba dourada. O efeito foi tal que todos no acampamento paravam para olhar.
Adriano principalmente.
Naquela noite, debaixo de uma lua reluzente, Katharina deu a Adriano o novo manto que bordara e ele ficou sem palavras. Tinha seu emblema às costas, a cruz azul de oito pontas da irmandade que dava significado a sua vida. Mais uma vez ele usaria dignidade como se fosse uma vestimenta, e proclamaria ao mundo sua dedicação à Virgem Santíssima.
E finalmente aqui, sob as estrelas, Adriano contou a Katharina sua história completa.
Ela já sabia que mais de vinte anos antes, em Aragão, ele se apaixonara perdidamente por uma garota chamada Maria, com quem assumira compromisso de casamento, quando então ela confessara que estava apaixonada por outro. Adriano se enfurecera e desafiara o rival. Lutaram. Adriano o matou e Maria, pesarosa, recolheu-se a um convento, onde ele supunha que ainda vivesse até aquele dia. Era tudo que Katharina sabia da história dele. Mas nesta noite, com a lua cheia, gorda e majestosa no céu noturno e o riacho cor de esmeralda gorgolejando suavemente no seu leito pedregoso, Adriano confessou a dor que o assolava em cada dia de sua vida.
— Eu sabia — disse, enrolando-se no seu manto de cavaleiro —, no fundo do coração eu sabia que Maria não me amava. Foram o orgulho e a arrogância que me cegaram para este fato. Acreditava que com o tempo poderia fazê-la me amar. Mas o outro homem... se tivesse sido qualquer outro homem eu poderia deixar passar. Poderia ter feito vista grossa e esperado que Maria voltasse para mim. Mas o outro homem era meu irmão, e isto não consegui suportar.
Ele voltou os olhos angustiados para Katharina.
Sim, o homem que matei era meu irmão. Eu o matei por causa do ciúme cego. Ele era inocente de qualquer crime ou má conduta contra mim. Não tenho qualquer direito à felicidade, Katharina. Não tenho nenhum direito a amá-la ou ser amado por você.
Irrompeu em amargos soluços e Katharina pôs os braços em torno dele. Adriano enterrou o rosto nos cabelos dourados de Katharina e sentiu a calidez daquele corpo jovem contra o seu, os lábios dela nas suas faces e pescoço, as lágrimas de ambos se misturando, até que finalmente as bocas se uniram. Deitaram-se debaixo do manto com a cruz azul e por fim encontraram refrigério no amor.
Mais tarde, quando despertaram, Adriano levantou-se, tomou Katharina pela mão e levou-a até a margem do riacho cor de esmeralda. Ali enfiou sua espada no solo, a bela arma com punho de ouro que Asmahan lhe dera para a proteção de seu filho. Ele e Katharina se ajoelharam, como se diante de uma cruz.
Embora estejamos muito longe de padres e igrejas — disse ele, pegando a mão dela —, somos vistos por Deus, pela Mãe Abençoada e por todos os santos. E é diante destas gloriosas testemunhas, minha adorada Katharina, que nos declaro marido e mulher e dedico meu corpo e alma a você, meu amor e minha devoção, até o fim da minha vida e depois que estivermos mortos e unidos no céu.
Katharina fez o mesmo juramento e, independentemente do que os esperasse no futuro, ela e Adriano estariam ligados para sempre.
Desfrutaram uma semana de amor como marido e mulher, ambos imaginando o que tinham feito para merecer tamanha felicidade, cada qual prometendo a Deus realizar grandes obras e favores em recompensa por esta alegria.
Num amanhecer, eles rastejaram para fora da tenda a fim de se banhar no rio. Adriano enrolou-se no seu manto de cavaleiro, Katharina juntou-se às outras mulheres e crianças em outra parte do rio, brincando com Bulbul na água e dizendo-lhe, como fazia diariamente, que em breve ele se reuniria ao seu avô e seus primos. Quando ele perguntava, como sempre fazia, se sua mãe estava indo para lá, Katharina respondia:
— Não sei, talvez. — Era pelo menos uma meia-verdade. E acrescentava: — Mas ela quer que você fique com seu avô, que o ensinará a montar num cavalo. — Pela primeira vez, contudo, ela lamentou ter de entregar o garoto à família, pois rias semanas desde a partida de Constantinopla começara a amá-lo.
Ela o estava enrolando numa toalha quando ouviu o primeiro grito. Voltando-se, viu homens a cavalo, agitando enormes espadas, galopando pelo acampamento.
Katharina pegou o garoto e correu. Alcançou a parte do rio onde os homens se banhavam e viu que tinham sido pegos de surpresa. Na confusão viu Adriano, realçado pelo manto de cavaleiro, sua alvura reluzindo ao sol da manhã. Ela o chamou no justo momento em que uma espada era enfiada nas suas costas, diretamente no centro da cruz azul de oito pontas. Olhou horrorizada enquanto ele abria os braços e a seguir desabava sobre os joelhos, e depois caía sobre o rosto, uma faixa de sangue fluindo das costas. Ela viu a espada sendo erguida bem alto e depois baixada sobre o pescoço de Adriano. Virou-se e tapou os olhos de Bulbul enquanto ouvia o som seco de uma cabeça sendo decepada do corpo.
Katharina voltou-se e correu, mas foi alcançada pelos atacantes. Bulbul foi arrebatado de seus braços. Ela observou horrorizada enquanto o garoto voava pelo ar, como se fosse um pássaro sem peso, e depois caía de ponta-cabeça num rochedo, o crânio infantil arrebentando-se como um melão.
E a seguir uma dor aguda encheu sua própria cabeça e a escuridão a engolfou como uma noite súbita.
Ao recobrar a consciência, Katharina viu-se num complexo com outras mulheres, algumas chorando, outras furiosas, e umas poucas abatidas e desoladas. Ela não se lembrava de nada. A cabeça doía e sentia-se nauseada.
Onde estava? Esfregou os olhos e olhou em volta. Pelo que pôde ver, ela e as outras estavam num recinto improvisado com paredes feitas com pele de cabra. Não havia nenhum abrigo debaixo do sol abrasador, exceto uma árvore desfolhada que espalhava galhos secos e quebradiços. Além das paredes de pele de cabra e da fumaça das fogueiras, ela pôde ouvir gritos, discussões e o galope de cavalos.
Quando a cabeça começou a clarear e a náusea passou, mas sem que ainda toda a sua memória retornasse, ela viu homens inspecionando rudemente as garotas, desnudando-as. Como lhe pareceu que não tinham nenhum interesse em usar as mulheres sexualmente, ocorreu-lhe que deviam ser traficantes de escravos.
A caravela grega! O palácio do sultão! De novo, não!
Katharina recuou até tropeçar e cair de encontro ao tronco de uma velha árvore morta. Levando a mão ao peito, sentiu alguma coisa sob o vestido. Tirou-a e ficou surpresa ao descobrir uma pequena bolsa de couro numa correia. Era vagamente familiar e ela suspeitou de que devia ser importante, de modo que a retirou apressadamente do pescoço e a enfiou num olho de nó no tronco da árvore, tomando cuidado para não ser vista.
Mas então os homens a alcançaram e começaram a comentar excitadamente acerca de seu cabelo. Embora não entendesse a língua, alguns gestos eram universais, e ela soube que tinha algum valor para eles. Despiram-na e a examinaram por completo. Finalmente, quando terminaram com todas as mulheres cativas, recolheram todas as roupas e pertences e distribuíram mantos grosseiros de lã barata. Quando as cativas foram deixadas em paz e o sol começou a se pôr, e as outras mulheres sentaram- se em grupos para lamentar e chorar, Katharina rastejou de volta à árvore e discretamente retirou a bolsa escondida, devolvendo-a ao seu lugar seguro em volta do pescoço.
Foi durante a noite que tudo voltou a ela, pois sonhou com Adriano e Bulbul, e despertou aos gritos. E quando a percepção plena do que havia acontecido e da sua nova situação a atingiu com força brutal, ela começou a chorar tão amarga e desconsoladamente que as outras a deixaram sozinha.
Katharina viveu num estado de torpor depois disso, ignorando as abordagens das outras mulheres, não respondendo a perguntas, só bebendo água quando era posta nos seus lábios, mas recusando comida enquanto ficava sentada olhando fixamente para o horizonte distante.
Adriano, jazendo morto com uma espada enfiada entre as omoplatas.
Bulbul, com o crânio arrebentado num rochedo.
Ainda assim ela estava viva, e era novamente uma escrava.
Quando uma das mulheres da tribo veio lavar o cabelo de Katharina, ela não questionou nem protestou. A tarefa da mulher foi vigorosa e completa, e quando o cabelo secou, ela penteou as madeixas douradas e chamou as outras no cercado para admirar os lindos cachos da cor do sol. No dia seguinte a mulher retornou com sabão e uma faca afiada, e desta vez raspou a cabeça de Katharina, juntando os cabelos num cesto. Mais uma vez Katharina não protestou e ficou olhando para o deserto que se estendia até o infinito.
Uma semana mais tarde, porém, Katharina viu uma mulher que, a julgar pelas muitas moedas que usava, era a esposa principal do chefe, orgulhosamente ostentando uma peruca loura feita de modo rudimentar. No seu estado de torpor, Katharina vagamente imaginou por que essas mulheres iriam se incomodar com perucas se tinham de manter as cabeças cobertas. E então, naquela noite, ela ouviu gemidos de êxtase sexual provenientes da tenda do chefe e se lembrou dolorosamente de como Adriano adorava passar as mãos pelo seu cabelo.
Na manhã seguinte, um homem entrou furioso no cercado. Agarrou a cabeça de Katharina e examinou-a como se fosse um melão. Depois começou a gritar pela mulher que lhe pelara a cabeça. Não entendendo a língua, Katharina não podia imaginar do que se tratava, mas a palavra "Zhandu" repetia-se, e o homem gesticulava sem parar em direção ao leste.
Por intermédio de suas companheiras de cativeiro, Katharina descobriu que aquela gente era da tribo kosh, famosos mercadores de escravos da região, um povo arrogante que acreditava ser o primeiro a ser criado pelos deuses e que todas as outras raças vieram depois e portanto criadas para servi-los.
Uma sociedade nômade guerreira que não se miscigenava com outras raças por considerarem-nas inferiores, os kosh tinham rostos redondos e chatos e olhos oblíquos, e nunca tinham visto um cabelo como o de Katharina. Montavam cavalos fogosos de pelagem lanosa e crinas emaranhadas.
Quando desmontaram o acampamento e começaram a jornada para o leste, Katharina mais uma vez não questionou nem reclamou do seu destino. Mas enquanto cobriam muitos quilômetros, parando brevemente em assentamentos para vender sua mercadoria humana, sendo ela própria mantida à parte do leilão, Katharina começou a perceber que os kosh a estavam levando para um lugar chamado Zhandu.
Enquanto caminhava ao lado dos cavalos e dos camelos de duas bossas dos kosh, Katharina ignorava as areias escaldantes sob os pés descalços, a fraqueza dos ossos, a fome no estômago. Só pensava em Adriano: onde estava sua alma? Tinha voado de volta à Espanha e estava agora na sua amada Aragão? Ou seguira para Jerusalém e era agora uma das sombras numa pequena igreja dedicada à Virgem Santíssima? Ou pairava sobre as cabeças de seus camaradas na irmandade em Creta, incentivando-os silenciosamente na sua luta contra os infiéis? Às vezes, tarde da noite, quando o vento soprava lamentosamente e Katharina olhava para as estrelas, quase podia sentir Adriano a seu lado, um fantasma consolador ansiando tomá-la em braços corpóreos.
E então, uma noite, um homem veio inspecioná-la e discutiu animadamente com a mulher que se tornara responsável por ela. Katharina já ouvira o dialeto kosh o suficiente para captar algumas palavras rudimentares, e percebeu que a mulher estava cobrando um preço exorbitante por ela. Quando o homem exigiu saber por que, a mulher apontou para a barriga arredondada de Katharína e disse: "Há uma criança ali."
E Katharina saiu instantaneamente do seu estado de torpor.
Ela olhou para baixo, maravilhada, e deu-se conta de que a mulher estava certa, pois na sua apatia não notara que sua menstruação não aparecera, nem percebera que a barriga havia crescido apesar de comer pouco.
O filho de Adriano.
Por fim, conseguiu tirar a bolsa de couro do Frei Pastorius de debaixo do manto encardido e examinar seu conteúdo. E quando viu a pequena recordação de Badendorf e a miniatura de Santa Amélia com o cristal azul, ela chorou de novo. Mas mesclada com o seu pesar estava a centelha de uma nova esperança — uma parte de Adriano ainda vivia.
A imensa caravana dos kosh continuava seguindo para leste, só parando para vender escravos e se abastecer, aprofundando-se cada vez mais nas regiões mais misteriosas e distantes do mundo que Katharína conhecia. Embora seus captores a alimentassem, era apenas o bastante para mantê-la viva, e agora Katharina queria muito viver. Assim passou a lutar por nacos extras de comida e ainda roubava das outras, a fim de alimentar a nova vida que crescia dentro de si. Achava que os kosh eram uma raça selvagem, sem deus, e brutal além do imaginável. Quando um criminoso era decapitado, a tribo jogava pólo com a sua cabeça. Os casamentos eram primitivos, a noiva em potencial pulando num cavalo e afastando-se a galope com os pretendentes em sua perseguição. O homem que a capturasse e a derrubasse por terra tornava-se o seu marido. Os kosh faziam seus escravos trabalhar até a morte e deixavam os corpos insepultos para trás. Ainda assim eles riam, dançavam e cantavam bastante, e tomavam uma bebida fermentada tão forte que apenas os seus eflúvios deixavam Katharína tonta.
Depois de algum tempo, observando e ouvindo, ela aprendeu a língua deles, como tinha uma vez aprendido latim e árabe, pois isto poderia significar sua sobrevivência e da criança no seu ventre.
"Finalmente, enquanto os kosh hibernavam num platô entre antigas muralhas esfareladas construídas por uma raça esquecida, o bebê de Katharina nasceu, uma menina de cabelo claro que com seu choramingo abriu uma fratura no muro de pedra que envolvia o coração da mãe. Chamou-a de Adriana em homenagem ao pai e, à medida que os dias e semanas passavam, enquanto dava de mamar à criança e a embalava e mimava, Katharina experimentou uma mistura da sua tristeza com o início de uma nova alegria inesperada. A filha de Adriano, com seu cabelo parecendo um tosão. Mas ela havia nascido abaixo do peso e estava lutando para sobreviver. O leite de Katharina secou muito repentinamente e ela teve de brigar de novo por comida.
Quando o chefe e a esposa principal vieram inspecionar, viram o cabelo dourado da bebê e assentiram com satisfação, e mais uma vez Katharina ouviu-os dizer a palavra "Zhandu" e soube que ela e a filha estavam sendo guardadas para alguém especial.
Enquanto transpunham as montanhas da Grande Dor de Cabeça, os kosh acamparam num desfiladeiro circundado por altos picos nevados e uma noite ouviram um som parecendo um trovão que alarmou Katharina, mas apenas excitou seus captores. Ao amanhecer, eles enxamearam à frente a pé, escalando o desfiladeiro até que chegaram ao local da avalanche recente. Cavaram freneticamente na neve, uma empreitada dura que exigia o trabalho de todos, mesmo das cativas, até que seus esforços foram recompensados. Dando gritos de alegria os mercadores de escravos descobriram os corpos e a carga da infeliz caravana que fora apanhada pela avalanche. Katharina de início pensou que estavam procurando sobreviventes. Mas quando uma vítima ainda viva foi descoberta, mataram-na a porretadas, pois os kosh só estavam interessados no butim. Enquanto ela observava a pilhagem obscena e ouvia os abafados gritos de socorro, os captores de Katharina aliviaram os mortos e moribundos de suas roupas e jóias e carregaram bastante riqueza aquele dia, pois tinha sido uma caravana procedente da China, abarrotada de ouro e seda. Quando a caravana kosh recomeçou sua jornada optou por uma rota alternativa, pois o desfiladeiro não estaria transitável antes da primavera, quando a neve derretida e os corpos de homens e animais seriam carregados para longe.
Katharina teve visões maravilhosas e terríveis durante sua permanência com os kosh, e os observou como duas pessoas: a Katharina que se maravilhava com a diversidade do mundo, e a Katharina que segurava a filha de Adriano no seu peito e chorava silenciosamente.
Somente uma vez tentou escapar. Numa encruzilhada haviam passado por um vasto acampamento onde centenas de cavalos, camelos e pôneis estavam bebendo e a fumaça de mil fogueiras erguia-se calorosamente para o céu. Quando os traficantes de escravas com cabelos de fogo acamparam rio acima, a uns dezesseis quilômetros da encruzilhada, Katharina esperou até que o acampamento estivesse silencioso e adormecido para escapulir da tenda das cativas, desatar um cavalo e, com Adriana amarrada com segurança a seu peito, cavalgar em fuga.
Foi capturada poucos metros além do perímetro, arrastada de volta e espancada severamente à vista de todos. Depois disso, sempre que a caravana se avizinhava de outros viajantes ou assentamentos, alguém tomava Adriana de Katharina e ficava com a bebê até que prosseguissem viagem. Isto evitava que tentasse novas fugas.
Atravessaram as dunas vermelho-douradas do amaldiçoado deserto de Takli Makan, onde miragens e sons sinistros assombravam os viajantes incautos até a morte. Aqui as areias mudavam tão rápida e imprevisivelmente que a trilha logo ficava coberta. Portanto, os que passavam por este caminho erguiam torres de ossos de animais para marcar o caminho para os outros. Quando os kosh construíram estas torres do deserto, elas eram feitas de ossos humanos. A caravana serpenteou através de gargantas de rios nevoentos e terras de pastagem ventosas. No calor do verão só viajavam à noite; no inverno enfrentavam nevascas e geleiras.
Levou mais dois anos até os kosh alcançarem o seu destino no alto das montanhas, num ponto remoto longe da Estrada da Seda, onde sentinelas montavam guarda em estranhas torres de pedra. E quando por fim chegaram ao ponto final de sua rota, na base de um platô coberto de nuvens onde diziam que nenhum estrangeiro podia ir, Katharina permanecera com os mercadores de escravos por quase quatro anos. Seu cabelo crescera de novo, descendo pelas costas, e ela estava com 23 anos de idade. Adriana, sua filha, estava com três anos.
O caminho para Zhandu era um íngreme e estreito desfiladeiro de montanha que cada vez mais se inclinava e estreitava. A subida era em fila indiana ao longo deste precipício, cercado de ambos os lados por enormes paredes de rocha montanhosa da cor do ferro. Ao fim da perigosa trilha erguia-se um elevado portão de madeira, da espessura de muitos braços, encimado com pregos e homens armados de lança. Não havia outro caminho para o platô a não ser este portão, e só aqueles com permissão do Governante Celestial podiam passar. Era desta maneira que Zhandu permanecera por séculos isolado do mundo.
Após ter permissão de cruzar o portão, a caravana dos kosh prosseguiu até transpor a Ponte Celestial, uma proeza de engenharia em mármore e granito fixada sobre pilonos maciços através dos quais rugia um rio verde-esmeralda e branco de espuma, inchado pela neve derretida das montanhas. Aqui se espalhava um platô que dava a sensação de se estar no topo do mundo — um panorama repleto de árvores verdes e campos férteis. Os olhos de Katharina se arregalaram maravilhados com os hectares de frutas, flores e relva, pois nunca vira nada que se assemelhasse tanto ao Jardim do Éden. E no centro deste fabuloso platô erguia- se uma cidade de cúpulas e espiras e muros brancos que parecia de fato ondular à luz intensa do sol.
Os kosh acamparam no platô à sombra de Zhandu, com seus domos resplandecentes cor de turquesa e torres de cristal por trás de muralhas intransponíveis. Não era qualquer um que recebia permissão de entrar; milhares acampavam na planície e somente podiam olhar em admiração para uma cidade que era às vezes engolfada por nuvens baixas, de modo que parecia estar flutuando.
Quando um representante cavalgou para fora da cidade a fim de confabular com o líder kosh, Katharina perguntou a uma das mulheres o que os kosh, e todos os outros mercadores acampados na planície, queriam de Zhandu. O que os motivara a empreender uma viagem tão longa e perigosa até aquele lugar no fim do mundo? A curta resposta foi que Zhandu possuía tanta riqueza que nem sabiam o que fazer com ela. Eles pagavam qualquer preço que fosse pedido e nunca regateavam. E então, quando Katharina viu iaques carregados com pilhas de maravilhosas peles brancas e lhe disseram que era o pagamento por ela, lembrou-se de quão valiosas eram essas peles, chamadas de arminho, lá em Constantinopla e até mesmo na Europa, e era espantoso como as entregavam como se fossem prosaicas fôrmas de pão. O que seus captores disseram era verdade. Claramente Zhandu pagava qualquer preço, não importava o quão exorbitante, e não ligava se era um preço justo ou não.
Katharina montou numa mula, com Adriana no colo, atada ao camelo de duas corcovas do representante, que viajava dentro de uma liteira acortinada, de modo que ninguém podia vê-lo. Acompanhando-os, ia uma centena de guardas em uniformes perfeitamente combinados de pantalonas azuis, túnicas escarlates e turbantes amarelo-canário. Enquanto o peculiar cortejo transpunha os monumentais portões da cidade, Katharina deu uma olhada para trás e viu que os kosh já desmontavam as tendas para partir, sem dúvida ansiosos para retornar à civilização e obter um lucro cem vezes maior com suas peles de arminho.
Katharina e a filha não foram levadas para muito longe na cidade. Quase imediatamente foram desmontadas da mula por uma equipe de criados vestidos de azul e vermelho usando chinelos peculiares com a ponta curvada para cima. Passaram rapidamente por uma porta num muro onde foram entregues a um camareiro suntuosamente trajado que, sem dizer palavra, as apressou por um comprido corredor. Depois subiram três escadarias sinuosas, desceram mais corredores, passaram debaixo de arcadas e através de portas muitas vezes mais altas do que um homem, até que sem a menor cerimônia e sem qualquer palavra foram depositadas num jardim contendo os pássaros de aspecto mais notável que Katharina já vira: criaturas enormes de um rosa brilhante que se apoiavam numa só perna.
Surgida não se sabe de onde, uma mulher de aspecto impressionante veio flutuando num mar de rosa. Tinha o mesmo rosto redondo e os olhos amendoados dos kosh, e faltava um dente no seu sorriso. Seu penteado era espantoso: as longas madeixas vermelhas arranjadas como duas enormes rodas, uma de cada lado da cabeça, com faixas coloridas e ornamentos de prata, ouro e pérolas. O bordado no seu traje de seda era impressionante além da crença, mesmo para Katharina, que já tinha visto trabalho de agulha excêntrico no palácio do sultão. O pavão turquesa e dourado bordado no traje da mulher parecia que ia subitamente espalhar as penas de sua cauda e andar pomposo para fora do tecido.
Ela vinha com uma expressão feliz e esperançosa, notou Katharina, mas seu sorriso murchou tão logo viu a cativa. A mulher franziu o cenho para o comprido cabelo louro de Katharina, depois fitou-a nos olhos.
Ora, bolas! — disse ela e voltou-se para sair.
Por favor, senhora — disse Katharina rapidamente na língua dos kosh.
A mulher se voltou, um ar de surpresa no rosto.
Você fala nossa língua? — perguntou.
Estive com o seu povo por quatro anos — disse Katharina, supondo pelas feições nítidas da mulher que ela era kosh. — Por favor, podemos ir, eu e minha filha?
A mulher olhou para Katharina como se ela fosse uma simplória, fez outro gesto impaciente, deslizando fora de sua nuvem de seda.
Voltando-se para o camareiro, um homem usando um comprido manto de seda escarlate e um chapéu preto de seda, Katharina disse:
Devo partir. Vocês não podem me manter aqui.
Ele lançou-lhe um olhar igual ao da mulher:
Você pode ir — disse, com indiferença. — A Suprema Irmã não quer você. — Ele também falou em dialeto kosk, mas uma versão modificada, que Katharina levou algum tempo para entender.
Ela pestanejou.
Posso sair deste lugar? Posso deixar Zhandu? Eu e minha filha? Não somos prisioneiras?
Você deve partir. Não mantemos prisioneiros e não gostamos de hóspedes. — Ele franziu o nariz como se detectando um odor. — Os guardas as levarão de volta ao portão.
Agora? Mas não temos dinheiro nem comida.
Isso não é da nossa conta.
Então por que fomos trazidas para cá?
Ele fez um aceno, descartando.
Houve um engano — disse, vagamente. — Você terá que partir.
Katharina observou-o se retirar. Tentou protestar quando homens em pantalonas e túnicas de seda coloridas a arrastaram para o jardim. Eles não eram ameaçadores, como tinham sido os guardas e eunucos no palácio do sultão, mas exibiam a impaciência de homens ansiosos por seu almoço. Ela tentou argumentar com eles.
O povo que me trouxe para cá, os kosh, já estava partindo. Jamais conseguirei alcançá-los. Para onde vou com minha filha?
Mas eles apressaram o passo até que ela apertou Adriana nos braços e disparou por um longo corredor que parecia levar apenas a mais corredores. Quando olhou para trás, os guardas haviam desaparecido.
Olhou em torno, perplexa. O que deveriam fazer agora? Não podiam partir e não podiam ficar!
Quando Adriana disse "mamãe" e descansou a cabeça no seu ombro, Katharina percebeu que a provação a deixara fatigada. A pobre menininha, nascida abaixo do peso e agora pequena para a idade, conseqüência da vida dura e de privações entre os kosh. E como os kosh não se incomodaram em alimentá-las naquela manhã, mais provavelmente achando que seria desperdício de comida já que iam ser vendidas para Zhandu, Adriana estava mais enfraquecida ainda. Katharina decidiu que iria encontrar um lugar para esconder-se durante a noite e imaginar o que fazer pela manhã.
Depois de vaguear por mais corredores infinitos, descobriu que o palácio de Zhandu parecia uma colméia, com cortesãos elegantemente vestidos indo e vindo, inclusive mulheres, um agudo contraste com a corte segregada de Constantinopla. Todos tinham as feições asiáticas e o cabelo ruivo dos kosh, portanto Katharina especulou se as duas raças tinham brotado dos mesmos ancestrais remotos. Os homens usavam chapéus exagerados do tamanho de rodas de carroça, as abas debruadas com pele, as copas altas e pontudas. As mulheres armavam seus longos cabelos em estilos impossivelmente intricados, cada qual mais exótico que o outro, e todas pareciam ter um propósito enquanto passavam com papéis e livros, instrumentos musicais e travessas de comida, nenhuma prestando a menor atenção à mulher em farrapos segurando uma criança apática.
Tentando evitar guardas ou qualquer um que pudesse expulsá-las da cidade, Katharina apressou-se acima e abaixo de corredores de mármore polido até chegar a uma ala aparentemente deserta. Lá encontrou uma porta com teias de aranha no seu lintel e, achando que era um cômodo abandonado e, portanto um lugar seguro para se esconder, empurrou a porta e entrou.
A luz filtrava-se pelas altas janelas estreitas, iluminando uma torre de pedra redonda cheia, do chão ao teto, de todos os tipos de armamento: espadas e lanças, machados e azagaias, arcos e flechas, e muitos estilos de cotas de malha e armaduras. Claramente tinha vindo parar num arsenal de armas, mas havia algo estranho — tudo estava coberto de poeira e festonado com teias de aranha, como se não tivesse sido usado por décadas.
Katharina foi até a janela e olhou para fora. Da base do muro de pedra, um precipício caía centenas de metros para uma vasta planície abaixo que se estendia pelo horizonte. De cada lado, montanhas escarpadas perfuravam o céu com picos permanentemente cobertos de neve. Lembrando o que lhe tinham dito acerca do estreito desfiladeiro ser o único meio de chegar a Zhandu, Katharína percebeu que nenhum inimigo poderia atacar este reino encarapitado no alto da montanha, e provavelmente nem tivesse tentado por gerações. Portanto, os cidadãos desta fabulosa cidade não haviam conhecido guerra ou invasores por séculos.
Ela encontrou mantas de lã estocadas numa arca e antigos capacetes de couro que, enrolados na lã, poderiam ser usados como travesseiros. Deixando Adriana a salvo no cômodo, advertindo-a para que não tocasse em nada, Katharina saiu e seguiu por um corredor onde se lembrou de ter visto o que parecia ser o santuário de uma deusa. A estátua no nicho era uma mulher esbelta com um sorriso piedoso; comida e velas ardendo tinham sido deixadas aos seus pés. Notando uma semelhança com a Virgem Santíssima, Katharina sussurrou uma prece e tirou um pouco da comida e uma das velas, sabendo que a deusa entenderia.
Ela e Adriana banquetearam-se com figos e bolos e uma pequena jarra do que tinha gosto de suco de fruta morno. Depois de comerem, Katharina realizou o ritual noturno que iniciara quase no momento em que Adriana nasceu: ela pegava a pintura de Santa Amélia e o caco de cerâmica de Badendorf e contava à filha a história de sua vida. Falava sobre Hans Roth e Isabella Bauer e das outras pessoas da cidade, e depois contava a Adriana sobre a família que esperava por elas onde quer que o cristal fosse encontrado — um avô e possivelmente muitos primos, porque Isabella havia mencionado os filhos de um nobre, que já teriam se casado e tido filhos.
Qual é o seu nome? — Katharina perguntava à filha todas as noites.
E a cada noite a menina respondia:
Adriana von Grünewald.
Quando via a filha bocejando, Katharina sabia que era hora de uma história, para ajudar a menina a dormir em paz durante a noite, porque Adriana com freqüência acordava com pesadelos nos quais sonhava com os kosh.
Era uma vez... — começou ela. — Katharina tinha ensinado à filha a língua dos seus captores, pois algum dia isto poderia significar a sobrevivência, portanto nesta noite contou a história de Amélia e do cristal azul na língua kosh. Mas uma vez que Katharina nunca ouvira falar de Santa Amélia antes do dia em que sua mãe morreu, e não conhecia a verdadeira história da santa, ela inventou uma — ...uma boa e gentil dama chamada Amélia, que vivia nos bosques perto de Badendorf. Amélia era muito pobre, exceto por um tesouro precioso que lhe pertencia: um cristal azul perfeito que Jesus lhe dera quando caminhava um dia nos bosques, faminto, e ela deu-lhe pão e salsichas para comer. Bem, no castelo no alto da montanha morava um rei malvado que queria o cristal azul...
Ignorando as fugitivas escondidas no arsenal abandonado, um velho usando chinelas brancas e um longo manto branco percorria os corredores do palácio quando ouviu a voz. Parando para ouvir melhor, encostou o ouvido na porta. Quando, minutos depois, ouviu as palavras "e Amélia e o belo príncipe viveram felizes para sempre", empurrou a porta e bateu palmas.
Katharina olhou com um sobressalto.
Conte outra história — disse o homem numa variação do dialeto kosh peculiar em Zhandu, e a seguir sentou-se no chão, cruzando as pernas.
Katharina olhou fixamente para o intruso. Ele era muito velho e sua cabeça era perfeitamente redonda, como uma laranja, e calva exceto por uma franja de cabelo branca. Os olhos eram amendoados como aqueles dos kosh, com uma qualidade estrábica que fazia-o parecer estar sorrindo quando na verdade não estava. Tudo nele parecia redondo: a barriga sob o manto branco, a ponta do nariz e as bochechas que se erguiam quando sorria, o que parecia ocorrer sem qualquer motivo. Seria ele um retardado? especulou ela.
Outra história — repetiu, desta vez um tanto impaciente.
Katharina olhou para Adriana, que olhava fixamente para o peculiar visitante. Durante sua curta vida entre os kosh ela aprendera a ficar quieta na presença de estranhos e a não chamar a atenção para si.
Vendo que o peculiar homenzinho não iria embora até ter ouvido uma história, Katharina decidiu-se por "Chapeuzinho Vermelho", que era curta, na esperança de que ele depois se fosse.
Mas quando acabou, tendo o caçador matado o lobo, o velho bateu palmas, riu com suas gengivas desdentadas e pediu-lhe que contasse outra. Katharina alegou que a menina estava com sono. Ele ficou irritado. Quando ela disse que seria bem-vindo se voltasse no dia seguinte, o velho começou a gritar e, de súbito, guardas armados de lanças se materializaram do nada.
Katharina ficou de pé, Adriana nos seus braços, e recuou das lanças com pontas de ouro. Enquanto o velho continuava a arengar de modo tão incoerente que Katharina não conseguia entender o que estava dizendo, outra pessoa apareceu subitamente como se do ar, fazendo-a imaginar se não andara à procura do velho.
Era a mulher do jardim, cujo camareiro chamara de Irmã Suprema, agora trajando um manto de seda bordado com flores tão impressionantes que Katharina pensou que podiam atrair abelhas.
Por que ainda se encontra aqui e por que está afligindo meu irmão? — perguntou a mulher.
Não tínhamos para onde ir....
Ela berrou para os guardas, que deram um passo à frente.
Por favor, senhora — disse Katharina. — Deixe-nos ficar apenas mais um pouco. Minha filha não está bem.
Isto não é da minha conta — rosnou a mulher.
Mas é claro que é! Fui trazida para cá pelos kosh. Eles me venderam a vocês.
Sim, mas não podemos usá-la. Portanto, tem que ir embora.
Não posso ir! Minha filha não está bem!
Os olhos amendoados voltaram-se na direção de Adriana.
O que há de errado com ela?
Não fomos alimentadas direito pelos kosh. Deram-nos restos que nem seus cachorros comeriam. Ela não teve alimento suficiente quando era bebê. Preciso fazê-la recuperar a saúde.
Os kosh são uns porcos — cuspiu ela no dialeto dos "porcos". — Ainda assim, você deve partir.
Mas posso trabalhar para pagar por nossa estada — disse rapidamente Katharina, desesperada. — Sei bordar. Faço trabalho de agulha muito bom.
Ora! Estamos cheios de mulheres fazendo bordado. Eu também bordo. E posso dizer que melhor do que você. — Quando já ia se retirar, a Suprema Irmã foi detida pelo velho, que a puxou pela manga e sussurrou-lhe algo no ouvido. Ela voltou-se e estreitou os olhos para Katharina. — Meu irmão diz que você conta histórias. Que histórias?
Katharina ficou logo na defensiva. Seria um crime contar histórias neste lugar?
Eu só estava contando histórias para crianças, contos de fada, que não causam nenhum dano.
Conte-me uma.
Que tipo de gente era esta? Será que tinham medo de histórias?
Mas são apenas histórias de fada. São inofensivas, senhora.
Quero ouvir. — E, para surpresa de Katharina, a mulher sentou- se no chão e cruzou as pernas, como o velho tinha feito.
Katharina tentou pensar na história mais inofensiva que conhecia, no caso de suas histórias causarem uma ofensa involuntária que lançassem ela e Adriana numa masmorra. Optou por "Rapunzel" e instantaneamente teve uma platéia embevecida, incluindo sua própria filha, o velho, a irmã dele e os guardas, que haviam se aproximado para ouvir. E quando chegou ao fim e contou como Rapunzel tinha enganado a bruxa, todos riram e bateram palmas com satisfação, de Adriana ao mais feroz dos guardas.
A atitude da mulher mudou instantaneamente.
Esta foi uma boa história — disse, o rosto redondo irradiando um sorriso. — Conte outra.
Mas, senhora, minha filha está cansada e fraca. Ambas estamos exaustas.
Outra história, depois vocês podem dormir.
Quando Katharina chegou na metade de "A tartaruga e a lebre", Adriana estava adormecida em seus braços. Mas sua singular platéia continuava mais alerta e atenta do que nunca, mal respirando ou piscando enquanto bebiam cada palavra que ela pronunciava. E quando chegou ao final, todos riram e deram vivas à tartaruga.
Katharina maravilhou-se com a reação daquelas pessoas a histórias tão simples que achava que fossem universais. Em casa, só se podia contar tais histórias a crianças que nunca as tinham ouvido, pois do contrário a platéia se entediava e exigia alguma história nova. Teria o isolamento do povo de Zhandu resultado numa carência de novas histórias? especulou ela. E, entediados com os seus, ansiavam por novos mitos e lendas tal como as outras raças ansiavam por ouro e vinho?
A Irmã Suprema levantou-se.
Você pode ficar. Contará histórias para nós.
A mente de Katharina disparou, cheia de esperança.
Podemos ter um quarto para nós?
Enquanto tiver histórias para nos contar.
— E comida para minha filha?
A mulher desviou os olhos, depois torceu o nariz e disse:
Ela está franzina — disse. — Precisa engordar. Conte-nos histórias e terão um ótimo alojamento, roupas boas e comida farta. — Ela riu de seu próprio emprego das palavras. — Meu irmão está muito feliz — disse, dando uma pancadinha no braço do velho. — Ele providenciará para que vocês também sejam. — Mas Irmã Suprema acrescentou: — Vocês viverão conosco para sempre.
O alívio de Katharina transformou-se em pânico.
Mas preciso ir para Jerusalém.
Hã? Onde fica isso?
Katharina ficou momentaneamente sem fala. O mundo inteiro ouvira falar de Jerusalém.
É uma cidade... — começou a explicar, mas foi contida por um gesto de impaciência.
Depois de contar todas as histórias, poderá partir.
Vou precisar de dinheiro para a viagem.
A mulher deu de ombros.
Dinheiro não nos falta. Conte histórias e vai ficar rica.
Assim Katharina ficou sabendo que se tornara a contadora de histórias para o Governante Celestial, rei de Zhandu, e para Rosa de Verão, sua irmã.
Na primeira noite de histórias, quando ela e Adriana foram conduzidas aos aposentos reais, Katharina recebeu um choque. Em vez de apenas o rei e sua irmã, viu-se diante de uma platéia de centenas.
Não ficou intimidada. Contar uma história para uma criança ou para trezentos adultos era a mesma coisa: prender sua atenção, dar-lhes um herói, mantê-los numa expectativa angustiante, e depois recompensá-los com um final feliz. Enquanto narrava, escribas sentados em escrivaninhas elaboradamente entalhadas, com pergaminhos, penas e tintas, registravam suas histórias na intrincada caligrafia de Zhandu. Isto seria copiado, disseram-lhe, e distribuído por todo o reino para que outros contadores de histórias lessem para os mais influentes cidadãos.
Ela narrou para o Governante Celestial e sua corte histórias das florestas de sua terra natal — "O Príncipe Sapo", "Branca de Neve" e "As doze princesas dançarinas". Quando os contos folclóricos alemães se esgotavam, ela contava a vida de Jesus e dos santos, e depois histórias de Maomé que ouvira em Constantinopla. As preferidas eram histórias repletas de seres assombrosos tais como sapos falantes, macacos dançarinos, cavalos voadores e ogros que se escondiam debaixo de pontes para capturar passantes incautos. E milagres e maldições não faltavam. A cada noite ela deliciava a platéia crescente, e a cada dia era recompensada com a prometida moeda de ouro, comida farta e a liberdade que a cidade oferecia. Deste modo, Katharina aprendeu que as pessoas eram as mesmas em todo lugar, fossem campônios em uma fazenda na Alemanha, ou mágicos em algum antigo reino montanhoso, pois o povo de Zhandu ria quando camundongos enganavam os gatos, choravam quando belas heroínas morriam e aplaudiam quando valentes heróis saíam vitoriosos. Horrorizavam-se quando a rainha má acreditava estar comendo o coração de Branca de Neve; gritavam "Cuidado!" quando Chapeuzinho Vermelho encontrava o lobo na floresta; estremeciam quando Katharina descrevia as grandes florestas sombrias onde viviam sapos e ogros malignos; zombavam da pobre raposa que dizia que as uvas estavam verdes; e batiam palmas quando o heróico Siegfried tomava o tesouro mágico dos Nibelungos. Mas a história que preferiam era aquela da garota cuja mãe no leito de morte diz a ela que vá em busca do seu pai, e ao longo do caminho a garota encontra muitas aventuras e percalços. E quando Katharina concluía a história, todos perguntavam: "A garota encontrou o pai?" E então ela contava-lhes que era sua própria história e eles aplaudiam e diziam que era a melhor de todas.
Pela primeira vez desde o acampamento junto ao riacho cor de esmeralda, Katharina conhecia a felicidade. Zhandu era um fabuloso espetáculo de cumes de montanha nevados e vales musgosos, cúpulas douradas e espiras de marfim. Tudo tinha um nome deliciosamente sonoro: Portão de Jade, Palácio da Felicidade Celestial, Salão das Contemplações Alegres. Os poucos visitantes que vinham do mundo exterior eram trazidos para a frente do Espelho das Verdades Ocultas, e um feiticeiro — ele era o Wu, que na língua ancestral significava "mágico" — examinava o reflexo para julgar a honestidade da pessoa. A cada noite um exército de cozinheiros criava milagres culinários: torres de algodão de açúcar, maçapão moldado em forma de flores e animais, bolos multicoloridos que derretiam na língua. Raras e caríssimas ovas de peixe, trazidas em etapas persistentes do longínquo norte, eram arrumadas com esmero sobre pães e biscoitos finos. O vinho era gelado com neve trazida das montanhas.
Quando Katharina havia chegado lá com os kosh, ficara maravilhada com a riqueza em peles de arminho que os kosh receberam em pagamento por ela, e imaginava se o povo de Zhandu era tão rico a ponto de não se preocupar com dinheiro. Mas agora descobria que não havia nada que o mundo exterior pudesse oferecer: o povo de Zhandu usufruía de árvores que davam frutos e nozes o ano inteiro; campos de cereais e vegetais; caça em farta quantidade; uma floresta inteira de colméias fornecedoras de mel; e água fresca e saudável borbulhando de nascentes perenes. Poucos estrangeiros tinham permissão de entrar, e menos ainda eram convidados a comerciar. Emissários saíam, inspecionavam os produtos em oferta e com freqüência voltavam de mãos vazias. Zhandu tinha todas as sedas, jóias, alimentos, vinho e confortos que se poderia desejar.
Exceto histórias. Porque, pela primeira vez em gerações, alguém do mundo exterior trouxera algo novo.
Katharina e a filha ganharam aposentos fabulosos, com leitos amplos com colchas de seda, roupas e jóias novas, toda comida que podiam consumir, e a liberdade de circular pela cidade — desde que retornassem à noite para a história do Governante Celestial. Elas adotaram as maneiras e costumes de Zhandu. E Katharina descobriu o segredo dos inacreditáveis penteados das mulheres: penteados moldados a partir de jade muito fino eram primeiro firmados no couro cabeludo, e depois o cabelo comprido era penteado sobre a moldura, com cachos e tranças acrescentados de modo que nada do jade ficasse visível, dando a impressão de que o cabelo era natural, todo fixado no lugar com compridas varetas de marfim que pareciam agulhas de tricô. A mãe e a filha estrangeiras usavam mantos compridos de seda e chinelas com ponta virada para cima e a cada noite, depois de contar as histórias, Katharina conferia a lentamente crescente pilha de moedas, pensando no dia em que poderia retomar sua jornada.
À medida que se ajustavam à vida neste reino notável, os pesadelos de Adriana começaram a regredir: lembranças de ter visto um homem sendo queimado por simples prazer, tendo de brigar com cachorros por comida, ser tirada de sua mãe como uma forma de punição. Também começou a ganhar força e saúde. O médico da corte examinou a criança e disse que ela sofria de uma fraqueza no sangue causada por má alimentação enquanto estava no útero. Então prescreveu um chá especial de Zhandu, que juntamente com a água que Rosa de Verão alegava ser mágica e o ar puro devido à altitude, tinha maravilhosos poderes curativos.
Mas o médico avisou que seria perigoso a garota viajar, pois sua saúde estava garantida em Zhandu e iria piorar se ela se afastasse das influências saudáveis do lugar. Katharina aceitou o conselho, especialmente depois de uma vida repleta de perigo, quando muitas vezes achou que a filha não sobreviveria. Podia ver que aqui em Zhandu, afinal, Adriana estava a salvo e segura. A menina conheceu pela primeira vez a estabilidade de um lar, tal como Katharina conhecera certa vez com Isabella Bauer em Badendorf. Será que ela teria o direito de tirar isto dela?
E toda noite, após Adriana ter adormecido e o palácio mergulhado em silêncio, Katharina sentava-se junto a uma lamparina e olhava fixamente para a pintura de Santa Amélia e o cristal azul. Jerusalém estava tão distante que parecia quase inexistente, e agora fazia quase 25 anos desde que seu pai partira e a deixara aos cuidados de uma costureira sem vintém. Será que ele ainda estaria vivo?
Quando já estavam lá havia um ano e Katharina contava suas moedas de ouro e imaginava se já tinham o suficiente para deixar Zhandu, Rosa de Verão procurou-a.
Venha comigo — disse ela.
Katharina automaticamente pegou a mão de Adriana, mas Rosa de Verão disse:
Deixe a menina. Poderá ficar assustada.
Mas Katharina nunca ia a lugar algum sem a filha, e assim Adriana foi levada por um corredor desconhecido até uma parte do palácio que Katharina jamais visitara antes. Rosa de Verão parou diante de uma porta trancada e vigiada.
Ele assustará você no início, mas não vai machucá-la — disse, seriamente.
Quem vou conhecer, senhora?
Meu filho, o príncipe herdeiro de Zhandu.
Katharina ficou chocada. Nunca ouvira falar de um príncipe, ou de quaisquer herdeiros do trono. Ficou ainda mais surpresa ao ser introduzida através de mais duas portas trancadas e vigiadas, e então ao mais deslumbrante aposento que já tinha visto.
Nem uma única janela perfurava as paredes; nem uma réstia de luz penetrava. Em vez disso, uma centena de lanternas pendiam dos tetos altos, e chamas ardiam de candelabros ao longo das paredes. O enorme aposento era encimado por uma alta abóbada que havia sido pintada de azul com nuvens brancas; o chão era dominado por um tanque cuja água se encrespava com peixinhos dourados, e até mesmo uma garça branca passeava entre os juncos. Arvores cresciam em enormes vasos, e arbustos e todas as variedades de flores floresciam em volta do tanque, dando a impressão de estar ao ar livre embora não houvesse nenhum céu de verdade acima. Tufos de grama cresciam aqui e ali e pisos de lajotas tinham sido assentados. Seguindo Rosa de Verão, chegaram a um agradável pavilhão igual àqueles dos jardins externos, brilhantemente iluminado por lamparinas. Katharina não podia crer nos seus olhos: gazelas pastavam entre os arbustos e um pássaro cantou acima, sobressaltando-a. Era como se, por alguma razão insondável, o mundo exterior tivesse sido trazido para dentro.
— Fique calma — disse Rosa de Verão. — No começo ele assusta as pessoas. Mas garanto-lhe que é inofensivo.
Katharina especulou se aquilo era uma espécie de prisão onde mantinham o príncipe herdeiro, longe da luz do sol e dos olhos de seus súditos, e tentou adivinhar qual tinha sido o seu crime. Ela apertou mais a mão de Adriana e tardiamente questionou sua decisão de trazê-la.
Seu nome era Lo-Tan, que significava "Dragão Feroz", e foi explicado a Katharina que toda noite, quando ela contava suas histórias para a corte de Zhandu, ele sentava-se escondido atrás de um biombo, ouvindo. Mas agora ele desejava conhecer pessoalmente a contadora de histórias.
Rosa de Verão continuou dizendo que por causa de seu filho Katharina havia sido trazida a Zhandu. O Governante Celestial expedira uma proclamação pedindo uma mulher que se adequasse a uma certa descrição, com o intento de casá-la com seu herdeiro. Quando Lo-Tan apareceu, Katharina percebeu imediatamente por que havia sido rejeitada tão logo
Rosa de Verão pusera os olhos nela: pois, por mais clara e loura que fosse, não era tão branca quanto este jovem, de fato tão pálido e sem cor que se tratava daquilo que Katharina ouvira chamar de albino.
Teria ele recebido seu nome na esperança de que se transformasse num dragão feroz? Porque para Katharina ele mais parecia uma pomba, uma pomba imaculada, suave, gentil e da cor de neve. Katharina ficou cativada pelos seus olhos — pupilas vermelhas em íris cor-de-rosa. Eles se fixaram nela de modo firme e confiante, e seu sorriso era amistoso e desconcertante.
Antes que Katharina pudesse retribuir sua saudação suavemente falada, Adriana livrou-se da mão da mãe e, em vez de fugir como Rosa de Verão tinha temido, correu até o príncipe.
Você é um coelho? — perguntou, puxando a pantalona de seda amarela dele.
Adriana! — ralhou sua mãe.
Mas o príncipe apenas riu. Apoiando-se num joelho, ele perguntou à menininha de cinco anos:
Eu me pareço com um coelho?
Adriana franziu o cenho.
Bem, você não tem as orelhas compridas.
Ele riu.
É porque não as uso o tempo todo.
O rosto dela se iluminou.
E mesmo? Onde você guarda elas?
Lo-Tan se pôs de pé novamente e falou para Katharina numa voz tão suave quanto nuvens.
A jovem dama me honraria contando uma história?
A honra seria toda minha — disse Katharina, enrubescida.
E Rosa de Verão sorriu com lágrimas de alívio e gratidão nos olhos.
Katharina e Adriana passavam as tardes no encantador jardim interno, descobrindo piscinas e quedas d'água, mais pássaros voando livremente, cervos domesticados. Como os médicos da corte tinham avisado que qualquer exposição ao sol podia adoecê-lo ou talvez até matá-lo, Lo-Yan nunca ia além daquelas paredes. Mas Katharina não se importava, pois encontrava paz e tranqüilidade na presença dele. E Adriana, a quem ele dera o apelido de Mosca Feliz, adorava brincar na sua terra encantada de mentirinha.
Timidamente, Dragão Feroz confessou a Katharina que achava o nome dela inadequado e difícil de pronunciar, portanto deu-lhe um nome novo: Wei-Ming, que significava Lótus Dourado. Assim, quando Rosa de Verão procurou Katharina uma tarde no Jardim das Reflexões de Paz, dirigiu-se a ela como Lótus Dourado e disse solenemente:
Você está pensando em nos deixar.
Katharina percebeu a tristeza no rosto redondo da mulher e deu-se conta de quanto passara a gostar de Rosa de Verão e de como lamentaria deixá-la.
Sim. Já tenho dinheiro suficiente para pagar a passagem numa caravana para Jerusalém.
E levará sua filha?
Katharina não respondeu de imediato, pois ainda estava indecisa. Adriana estava agora com cinco anos, uma criança saudavelmente feliz com muitos amigos, sendo Dragão Feroz o seu preferido. Ela era uma presença tão alegre na corte, com seus mantos de seda em miniatura e o cabelo dourado trançado em pontas, tagarelando em kosh como se tivesse nascido ali, que se tornara a favorita de todos. Mas Katharina dissera o tempo inteiro que a sua estada era apenas temporária, que algum dia deveriam partir.
Deixe-me fazer-lhe uma proposta — disse Rosa de Verão num tom amável, entendendo o dilema da jovem mulher, pois que mãe podia deixar sua filha para trás e partir numa longa e imprevisível viagem? — Esta Jerusalém de que fala é muito distante. Muitas coisas podem acontecer no tempo que se leva para chegar lá. Você já foi seqüestrada e vendida duas vezes. Poderia acontecer de novo. E Mosca Feliz ficaria órfã, se deixá-la aqui. Se levá-la consigo, poderia ser morta ou vendida para a escravidão, ou no mínimo ficar doente ao ser afastada das influências climáticas saudáveis de Zhandu.
Katharina assentiu. Rosa de Verão não estava dizendo nada que ela já não tivesse considerado. Parecia não haver solução: ela precisava partir, embora não pudesse levar nem abandonar a filha.
E então Rosa de Verão pronunciou palavras que, pela primeira vez em sua vida, deixaram Katharina sem fala.
Case-se com meu filho e encontraremos seu pai para você.
Quando Katharina não conseguiu responder, Rosa de Verão falou rapidamente:
Nossa dinastia precisa de herdeiros saudáveis. Você sabe que meu irmão não tem descendentes vivos, e Lo-Tan é meu único filho. Quinze anos atrás, quando Lo-Tan tinha doze, enviamos uma proclamação procurando uma mulher com as características dele. Achamos que era assim que deveria ser feito. Mas agora pensamos que jamais encontraremos uma mulher como ele.
Katharina se recuperou.
Mas... eu não o amo.
Rosa de Verão olhou para ela, confusa.
O que o amor tem a ver com o casamento? Eu não amei o pai de Lo-Tan.
E eu já me casei — disse Katharina, suavemente.
Rosa de Verão bateu na mão dela.
Minha querida criança, o homem do seu coração está morto. Você tem de viver sua vida. Estou certa de que ele desejaria isto. Diga-me: você pelo menos gosta de meu filho?
Oh, sim — respondeu Katharina, que desenvolvera uma profunda afeição pelo gentil Lo-Tan, o homem mais amável e modesto que já conhecera e que gostava muito de Adriana.
Se casar-se com ele — continuou Rosa de Verão —, poderá permanecer em Zhandu e expediremos proclamações como já fizemos quando procurávamos por uma mulher albina. Você já viu a que longas distâncias chegam as nossas proclamações. Não a pegamos lá nos confins da Pérsia? Também podemos alcançar Jerusalém. Todas as caravanas param aqui, e todos os chefes de caravana conhecem as riquezas que os esperam se trouxerem o que procuramos. Desta maneira, Lótus Dourado, você não precisará ser separada de sua filha, nem correr os riscos de uma viagem tão longa e perigosa, e ainda encontrará seu pai!
— Preciso pensar a respeito — retorquiu Katharina.
E naquela noite rezou para Santa Amélia em busca de orientação, segurando a pequena pintura que tinha uma cópia em algum lugar do mundo, outra pequena pintura de Santa Amélia e seu sagrado cristal azul, mais provavelmente em poder de um nobre europeu com uma barba parecida com uma refulgência dourada de sol, esperando que sua filha o encontrasse. Rezou também pelo espírito de Dom Adriano, a quem amaria pelo resto da vida, e finalmente orou sobre a forma adormecida de sua filha, a pequena Mosca Feliz, reluzindo de saúde e livre por fim dos pesadelos.
À medida que a luz do sol filtrava-se através das cortinas de seda de seu quarto na manhã seguinte, e Katharina ouvia os sussurros dos cortesãos, e o retinir das fontes e o glorioso canto dos pássaros, ela se admirou de sua hesitação. Porque o que Rosa de Verão dissera era sábio: as proclamações de Zhandu de fato alcançavam os confins do mundo e se alguém fosse capaz de encontrar seu pai, seriam os emissários deste reino montanhoso.
E, afinal, Katharina gostava de Lo-Tan.
E ela disse sim e, num glorioso dia de verão, quando todos os cidadãos de Zhandu se uniram para a grande celebração, Katharina Bauer-von Grünewald, de Badendorf, Alemanha, mãe de uma criança de um cavaleiro da Irmandade de Maria, Dom Adriano de Aragão, Espanha, casou-se com o sobrinho albino do Governante Celestial e filho de Rosa de Verão, o príncipe Lo-Tan, tornando-se a princesa Wei-Ming de Zhandu.
Como prometido, o Governante Celestial enviou homens à procura da pedra azul e de seu pai: mensageiros e emissários carregando proclamações prometendo ricas recompensas a qualquer um que voltasse com informações sobre a pedra azul, ou trouxesse a própria pedra, ou um estrangeiro de barba amarela.
A notícia se espalhou, levada por camelos e iaques, pelas bocas de homens sonhando com as riquezas de Zhandu, em conversas nas guarnições, em diálogos nos caravançarás e encruzilhadas. Onde quer que dois viajantes se encontrassem numa fogueira de acampamento, o cristal azul de Zhandu e o estrangeiro de barba amarela eram discutidos. Tal como vento soprando através de dunas de areia, as proclamações se espalharam tanto que no espaço de um ano os primeiros frutos começaram a aparecer: pedras azuis de todas as espécies foram trazidas até o platô aos pés de Zhandu, algumas tão grandes quanto melões, outras tão pequenas quanto ervilhas; azul-pavão e azul-celeste, algumas mais para o verde, outras mais para o preto. Diariamente os guardas saíam para recolher as pedras e levá-las para Katharina inspecionar, e a cada dia a recompensa deixava de ser paga.
Então o Governante Celestial mandou seus artistas copiarem o díptico de Santa Amélia em papel durável. Os desenhos ficaram bem parecidos, apesar de não captarem o azul vívido do cristal e de a santa ter feições um tanto asiáticas. Estes desenhos saíram de Zhandu na forma de pergaminhos, com uma promessa de recompensa escrita neles em kosh, latim, árabe e alemão.
Anos se passaram. Embora o amor de Katharina nunca chegasse perto da paixão faminta que sentira por Adriano, sua estima pelo gentil marido se aprofundou. Ela partilhava com ele aquele mundo sem sol, e Adriana cresceu e floresceu para se tornar a irmã mais velha de dois meninos e uma menina. Quando teve idade suficiente, Adriana freqüentou a escola com outras crianças da corte, aprendendo as operações fundamentais num aparelho chamado ábaco e a pintar letras e palavras rudimentares em caligrafia. Embora ela nada aprendesse de geografia, pois o povo local acreditava que o mundo era plano e que Zhandu constituía o seu centro, havia lições de astronomia e matemática, poesia e pintura.
Pedras azuis continuavam chegando a Zhandu — grandes e pequenas, transparentes e opacas, de azul pálido a azul vivo — e com elas chegavam histórias de homens de barba amarela. Katharina ouvia cada uma com a mesma atenção com que examinava as pedras, mas nenhuma descrição combinava com o nobre alemão que fora para Jerusalém em busca de um cristal azul mágico.
"Finalmente, no verão do décimo ano, após expedida a primeira proclamação, e Katharina, embora feliz com Lo-Tan e seus filhos nascidos em Zhandu, começasse a achar que ela mesma deveria ter empreendido a jornada, chegou um mensageiro dizendo que mercadores haviam encontrado o homem que procurava a pedra azul.
Vocês encontraram meu pai? — perguntou Katharina, sempre esperançosa.
E o estamos trazendo para você!
O estrangeiro foi levado ao Jardim da Felicidade Eterna, onde a família real estava reunida em angustiante expectativa. O coração de Katharina martelava com ansiedade enquanto sua mente disparava com perguntas: O que diremos um ao outro? Como me dirigirei a ele? Meus irmãos o acompanham?
E então ele passou pela arcada e entrou na esplêndida luz do sol. Katharina deu um grito. Ela viu primeiro o manto e, embora já surrado e remendado, e não tão branco como tinha sido no riacho cor de esmeralda, ainda parecia belo e dignificante. A pele de Adriano estava bronzeada pelo sol e contrastava com o cabelo branco que caía à altura dos ombros. Embora o cabelo não mais fosse negro, os olhos ainda eram, e ele não tinha o rosto de um idoso, mas sim de um homem bem viajado.
Katharina correu para os braços dele, e enquanto todos olhavam em espanto e admiração, Adriano contou-lhe que estava em Tashkent quando havia encontrado um homem que andava exibindo o pequeno desenho, e soube então que conseguiria achá-la.
Katharina banqueteou os olhos sobre ele, tocou-lhe os braços, sentiu sua solidez e silenciosamente agradeceu a Deus por este milagre.
Mas você foi morto junto ao riacho cor de esmeralda! Eu vi!
Adriano não conseguia se fartar da visão dela, mesmo esta Katharina estrangeira em mantos de seda e o cabelo dourado armado na cabeça como uma exótica gaiola.
Havia um homem na caravana que cobiçava meu manto e o roubou enquanto eu me banhava. Teve a má sorte de, naquele exato momento, os kosh atacarem. Fui ferido e quase me afoguei no riacho. Mas fui resgatado por nômades que me levaram para suas tendas e cuidaram de mim até eu recuperar a saúde.
Percebendo que uma história estava a ponto de ser contada, Governante Celestial, Rosa de Verão e Lo-Tan se aproximaram para ouvir.
Depois que me recuperei — explicou Adriano — e acenei adeus para meus salvadores, fui procurar você, Katharina. Mas não havia nenhuma pista, eu não tinha como saber qual a direção que você havia tomado e se até mesmo estava viva. Assim fui para Jerusalém, pois achava que se fosse encontrá-la em algum lugar só poderia ser lá. Procurei pela pedra azul, mas não estava mais por lá. Conheci um homem que me falou de um nobre saxão, o Barão von Grünewald, que também estivera em Jerusalém procurando a pedra azul. Chegamos com quinze anos de atraso, Katharina. O homem disse que o alemão seguiu depois para Bagdá, e, portanto segui a pista dele até lá. Por todos estes anos estive seguindo a trilha de seu pai, na esperança de que me levasse até você.
Mas nunca o encontrou?
Não, mas encontrei você — disse ele com um sorriso.
Mas e o seu trabalho em Creta? Aquele da sua irmandade? Não tinha de ir ter com eles?
Enquanto estive em Jerusalém ouvi notícias dos turcos invadindo Creta, onde minha irmandade foi exterminada. — Ele fez uma pausa e olhou para sua platéia com o ar de um homem trazendo um segredo maravilhoso. — E agora as boas-novas... Katharina, embora não tenha encontrado seu pai, sei onde ele está.
Um arquejo coletivo encheu o jardim, pois todos estavam familiarizados com a busca de uma vida inteira empreendida por Katharina.
Conte-me rapidamente — pediu ela.
Quando estava em Tashkent, conheci um homem que me contou sobre um pai e três filhos, alemães, carregando uma pequena pintura como a sua. Estavam procurando uma pedra azul. Segundo me foi contado, eles descobriram que a pedra tinha sido vendida para monges viajando para Catai, onde foram encaminhados para a corte do imperador. É para onde foi seu pai, Katharina, para a China, e provavelmente continua por lá.
Trouxeram comida e vinho, e o incrível povo em deslumbrantes sedas adejava em volta dele como pássaros exóticos. Embora grisalho e conturbado, Adriano mesmo assim destacava-se em Zhandu e ria com toda aquela atenção, verdade seja dita, pois não fazia a menor idéia do que esperar quando estava sendo escoltado para este reino isolado no teto do mundo.
Mas quando uma jovem foi trazida diante dele, e inclinou-se respeitosamente chamando-o de pai, seu riso morreu. O jardim caiu em silêncio, até mesmo os pássaros e a fonte tilintante pareceram silenciar em respeito à reação deste homem ante a revelação de algo que nunca soubera: que tinha uma filha.
Levou alguns minutos até que pudesse falar, e foi numa voz embargada de emoção que disse:
Em nossa casa em Aragão havia um retrato de minha mãe quando tinha a sua idade. Você poderia ser ela, Adriana, a semelhança é forte demais.
Pai e filha se abraçaram e todos choraram, ninguém tão alto quanto o Governante Celestial, que soluçava como uma criança e enxugava as lágrimas nas mangas brancas imaculadas.
Naquela noite, enquanto Katharina estava deitada nos braços de Lo-Tan, ele sussurrou para ela:
Se quiser voltar para Adriano como esposa dele, eu entendo e a libero, pois ele é o seu primeiro marido. E se decidir seguir para Catai e procurar seu pai, dou-lhe a minha bênção. Mas suplico a Kwan Yin, minha querida Lótus Dourado, que me conserve para sempre em seu coração.
Mas ela replicou:
Eu e Adriano nunca fomos casados de verdade. Não de acordo com nossas leis. Meu marido é você, Lo-Tan, e sempre será. — Quanto ao outro, seu coração estava pesado quando disse: — Uma pedra azul significou mais para meu pai do que sua própria filha. Ele não me deixou aos cuidados de uma estranha, ele me abandonou. E se eu fosse atrás dele agora, estaria abandonando meus próprios filhos. Mas, ao contrário de meu pai, meus filhos significam mais para mim do que uma impalpável pedra azul. Não irei atrás dele. Meu lugar é aqui, com você, com minha família.
Na manhã seguinte ela procurou Adriano, que estava maravilhado com toda a riqueza e glória de Zhandu.
Não irei para Catai à procura de meu pai. — disse, pegando as mãos dele. — Creio que o cristal azul tornou-se a obsessão dele, tal como se tornou a minha. E acredito que em algum ponto ao longo do caminho perdi de vista meu verdadeiro objetivo, tal como meu pai perdeu o dele. Meu pai escolheu seu caminho, Adriano, e eu escolhi o meu. Ficarei aqui. Mas sentiria uma grande alegria se você encerrasse sua longa jornada e permanecesse neste lugar. Pode ficar aqui... como meu dileto amigo? — indagou, pois o seu casamento com Lo-Tan permanecia entre eles e ambos sabiam que jamais poderiam reacender a intimidade que tinham um dia partilhado.
O tom de Adriano foi profundo e sincero quando replicou:
Quando você me conheceu, Katharina, eu era um homem intolerante. Carreguei ódio no coração por todos os homens de outra crença. Usei a religião como padrão para avaliar um homem. Se ele não abraçasse Cristo, então não podia ser um homem de valor. Em minha arrogância, acreditei ser meu destino trazer todos os homens para o verdadeiro Deus, fosse pela palavra ou pela espada. Mas quando readquiri consciência após o ataque no riacho esmeralda e me descobri na companhia de adoradores do fogo, eu estava à beira da morte e eles cuidaram de mim, me devolveram a saúde e trataram-me com bondade. Em outra época eu os teria chamado de adoradores do demônio, mas durante minha convalescença vi que eram apenas pessoas, como as de qualquer outro lugar, lutando para sobreviver, vivendo em medo e esperança, e adorando os poderes nos quais acreditavam. Eu ficaria feliz em permanecer aqui e ensinar sobre Jesus ao povo de Zhandu, Katharina, e se vierem a aceitá-Lo, então que assim seja. Não comungo mais da crença de que se deve quebrar crânios para trazer a verdadeira fé às pessoas, pois não estou mais convencido de que só existe uma fé verdadeira.
Adriano continuou para dizer que não tivera nenhum direito de desposá-la anos antes. Ele quebrara seus votos e acreditava que o que havia acontecido no riacho fora a sua punição. Passou os últimos dez anos penitenciando-se dos seus pecados, ao procurar o cristal azul e o pai de Katharina e mantendo-se no celibato.
Katharina aceitou isto, mas quando percebeu como as damas da corte olhavam para o robusto estrangeiro, e riam à socapa e cochichavam atrás de seus leques abertos, imaginou se o voto de celibato renovado de Adriano duraria muito tempo.
Ela se maravilhava com os mistérios do destino. E se sua mãe, Isabella Bauer, tivesse morrido antes que Katharina a tivesse alcançado? E se ela morresse guardando o segredo do seu nascimento? Katharina teria se casado com Hans Roth e se mudado para a casa dos fundos da fábrica de canecos de cerveja, e teria terminado os seus dias acreditando que Badendorf era o mundo.
— Tive de me disfarçar — disse a Adriano — como um rapaz e vivi num harém turco; naufraguei, fui raptada, vendida como escrava; fui cristã, muçulmana e adoradora de uma deusa; amei um homem, depois o perdi e o encontrei de novo; conheci o êxtase e a dor, plenitude e perda. Falei alemão, árabe, latim e a língua de Zhandu; viajei até os confins da terra e vi portentos indescritíveis. Mas Badendorf continuava sendo meu lar. E de certa maneira ainda é, com sua marktplatz e a familiar rathaus, o rio, a floresta e o castelo. Mas Zhandu é também meu lar.
E embora eu duvide de que algum dia vá encontrar meu verdadeiro pai, mesmo assim tenho um pai no Governante Celestial. Tenho um irmão em você, Adriano, e uma irmã e terceira mãe em Rosa de Verão. Primos, tias e tios não me faltam aqui em Zhandu, e tenho uma parentela maior até mesmo do que a dos Roth de Badendorf. E tenho Adriana, e Lo-Tan e meus filhos com ele. Por todos estes anos procurei por minha família, e só agora percebo que ela esteve aqui o tempo todo. Procurei pelo cristal azul, mas ele também esteve comigo o tempo todo, nesta pequena pintura de Santa Amélia. E, portanto ficarei aqui, em Zhandu, no lugar a que pertenço.
Ínterim
Katharina viveu o que ainda tinha de vida no reino montanhoso isolado do mundo, vendo seus filhos crescerem, assumindo o trono ao lado de Lo-Tan quando ele sucedeu ao seu tio como Governante Celestial. Quando Rosa de Verão morreu e foi para seu repouso final, Katharina lamentou de novo pelas mães que tinha amado. E quando Adriano morreu, à idade de 93 anos, toda a população o pranteou, pois todos adoravam suas histórias.
Mais duas gerações vieram e se foram, contando e recontando as histórias de Katharina von Grünevald, até que finalmente o reino de Zhandu foi derrubado, não por um exército invasor, mas pela própria natureza — um terremoto tão poderoso que pôs abaixo as muralhas, cúpulas e espiras da fabulosa cidade, matando todos os seus habitantes. E depois vieram as tempestades, de chuva e neve, cobrindo as ruínas de Zhandu com lama, penedos e deslizamentos de areia maciços. Enquanto se passavam décadas e séculos, o clima mudou e as areias do deserto vieram enterrar a última ponta da última espira, de modo que nos cinco séculos seguintes arqueólogos vasculhariam o entulho tentando imaginar a cidade que certa vez se assentara ali.
O Barão Johann von Grünewald tinha de fato ido à China com seus filhos, depois de se inteirar, por intermédio de um mercador em Tashkent, que o cristal azul acompanhava um consórcio de monges cristãos que tencionavam evangelizar a corte do imperador. Ele jamais se esqueceu de que tinha deixado uma filha na Alemanha aos cuidados de uma costureira, e no fundo do coração acreditava que um dia voltaria para buscá-la. Mas o barão era um homem nascido para perambular, tudo de que precisava era uma busca. Tal como o Santo Graal de Cristo atraindo homens de mente nobre para terras estrangeiras, assim a Pedra de Santa Amélia era o seu ímã. Mas quando por fim a encontrou, em poder de um cortesão versado na arte do amor, e enroscou seus dedos em volta do objeto que procurara por quase toda a vida, seu objetivo morreu, e o mesmo sucedeu com ele. Ainda jurando voltar para casa e reunir-se à filha, Johann von Grünewald morreu na longínqua China sem jamais pôr os pés de novo na sua amada Europa.
Da China o cristal azul foi embarcado num navio de especiarias seguindo para as índias Holandesas, onde a gema, tendo perdido toda a ligação com os santos cristãos, foi chamada de Estrela de Catai por um romântico capitão de navio que acreditava ser a pedra possuidora de uma magia de amor. De posse dela esperava convencer uma certa jovem dama de Amsterdam a casar-se com ele.
Ao longo da costa da índia, o navio se deparou com o infortúnio, o capitão foi vendido como escravo e a Estrela de Catai foi levada para um templo em Bombaim, onde foi engastada na estátua de um deus, passando a ser conhecida por uns tempos como o Olho de Krishna. Mas quando o templo foi atacado e saqueado durante uma guerra religiosa, mais uma vez o cristal azul se viu libertado e levado para Amsterdam por um capitão de navio holandês que vendeu a pedra para um mercador de gemas chamado Hendrick Kloppman. Pelas cartas escritas anos antes pelo capitão do navio de especiarias à corporação dos joalheiros pedindo uma avaliação do valor da pedra, Kloppman a identificou como a Estrela de Catai e deduziu a partir das cartas que o capitão apaixonado tencionara levá-la para uma certa jovem na rua Keisersgracht. Agindo honradamente e como um homem consciencioso, Kloppman procurou a jovem dama e ofereceu-lhe a gema. Já não muito jovem e passado todo o desejo por casamento, ela aceitou o cristal com indiferença, dizendo ter apenas uma vaga lembrança do infeliz capitão do navio de especiarias, e vendeu-o no ato para Kloppman por dinheiro suficiente para abrir uma loja de roupas e se tornar independente. Kloppman seguiu para Paris, onde, esperando obter lucro dez vezes maior pela pedra, enfatizou o aspecto romântico da Estrela de Catai, inventando uma história acerca de um mágico na corte imperial da China e de como ele criara o cristal a partir das geleiras do norte e de ossos de dragão, do sangue de uma fênix e do coração de uma virgem.
Em Paris houve quem acreditasse nele.
Martinica, 1720 d.C.
Brigitte Bellefontaine tinha um segredo.
Envolvia amor proibido com um patife de olhos negros. Enquanto sentava-se à penteadeira, escovando os cabelos e removendo a maquiagem, tentava não pensar nisto, pois a cada dia que passava o peso da culpa crescia.
Um som rude a arrancou de seus pensamentos. Olhou para o marido refletido no espelho, atrás dela. Henri. Esparramado na cama e roncando. Bêbado de novo.
Brigitte suspirou. Não havia nada pior do que um francês que não sabia beber vinho.
E ele tinha prometido. Naquela noite, depois que os convidados partissem, ele iria proporcionar-lhe uma noitada especial sob as estrelas.
"Tal como antigamente, ma cherie, quando éramos jovens amantes", ele disse. E então os convidados chegaram e a festa transcorreu desenfreada, com o vinho sendo servido fartamente. E agora Henri estava deitado de costas na cama, a peruca torta, o colete manchado de amostras do cardápio da festa: bolinhos de bacalhau e crepes gotejando chocolate derretido.
Brigitte depôs a escova de cabelo e olhou tristonha para a peça de joalheria que havia usado na festa: um atordoante broche de ouro branco com um cristal azul no centro circundado por diamantes e safiras. A Estrela de Catai, que havia sido tão plena de promessa romântica na sua ingênua juventude.
Acreditava-se que a Estrela de Catai trouxesse amor e romance para a vida de quem a usasse. Não tinha sido o que o cigano também predissera? E assim foi... por um tempo. Na noite de núpcias de Brigitte, Henri (o homem que agora roncava na cama) havia sido um amante magnífico, e a Brigitte de 17 anos pensara ter morrido e ido ao céu. Mas agora, vinte anos mais tarde e com sete filhos, ela tinha tudo, mas abandonara a esperança de conhecer a verdadeira paixão novamente. Henri era um bom homem, porém não havia mais fogo nele. E Brigitte ansiava por fogo.
Inquieta demais para dormir, ela se levantou e foi até as portas que se abriam para uma sacada. Saindo para a noite tropical fragrante com os perfumes de frangipana e mimosa, ela fechou os olhos e o retratou — não Henri, mas o estrangeiro de olhos negros, alto e nobre, de feições aristocráticas e ostentando, impecavelmente vestido, o porte de um hábil espadachim e amante travesso. Ele surgia, súbita e inesperadamente, quando ela estava no jardim, ou observando peixes exóticos na laguna, materializando-se no dia abafado como as nuvens de tempestade que se formavam sobre a ilha escura e rapidamente alagavam a Martinica com um tórrido aguaceiro, depois se dissipavam e só restava a lembrança. Ele era assim. E o ato de amor deles era como uma tempestade tropical — feroz, fumegante, irresistível. O simples pensamento nele enviava tremores por todo o seu corpo.
Infelizmente, ele não existia.
Brigitte pensava que ia enlouquecer se nunca mais vivenciasse romance e paixão novamente. Mas como isso algum dia aconteceria? Era impensável que mantivesse um caso com algum dos colonos locais. Tinha de pensar na sua reputação e na do seu marido. E como ninguém mais havia, ela se refugiara num amante de fantasia, um cavalheiro diabólico de sua imaginação cujo nome mudava de acordo com seu humor e a história. Geralmente ele era francês, chamava-se Pierre, ou Jacques, e vinha à ilha apenas por um dia, encontrando-a na gruta onde usufruíam uma tarde inteira de amor apaixonado. E quando ia embora ele prometia voltar algum dia, uma promessa que nutria sua alma e a mantinha viva.
Suas fantasias não só serviam para trazer amor a sua vida, mas também para recapturar sua juventude, pois nelas era novamente jovem, esguia e linda, virando a cabeça dos homens como fizera muito tempo antes. Infelizmente, embora tais fantasias lhe dessem prazer, elas também a enchiam de culpa. Brigitte era uma boa católica e acreditava, como os padres pregavam, que um ato pecaminoso cometido no coração era equivalente a um cometido na carne. Ter pensamentos lascivos fora dos laços matrimoniais era um pecado. Se ela imaginasse fazer amor com um dos colonos, isto seria adultério. Mas seria adultério se o amante não existisse?
Ela pousou os olhos no horizonte distante, identificável apenas por sua ausência de estrelas. Céu noturno brilhante acima, oceano negro ameaçador abaixo. E além... Paris. A seis mil quilômetros de distância, onde seus amigos, família e filhos viviam num mundo tão diferente das índias Ocidentais que bem poderiam estar vivendo na lua.
Brigitte desejou que pudesse estar lá com os filhos. Não sentia falta do frio ou das multidões de Paris, mas ansiava pela vida cultural e social, Nascida na nobreza, havia desfrutado da companhia de reis e rainhas e do melhor da sociedade francesa. Sentia falta das peças de Molière e Racine e dos espetáculos da Comédie Française, aqueles dias gloriosos em que o Rei Sol esbanjava dinheiro em artes. Mas que peças estavam encenando agora? Qual era o último chiste? O que as damas estavam usando na corte? Os colonos na Martinica dependiam do correio doméstico para todas as suas notícias, e às vezes elas chegavam tarde ou nem chegavam, por causa dos caprichos dos mares, do mau tempo e dos piratas. Três anos antes souberam que seu grande rei, Luís XIV, estava morto — e só souberam depois de dois anos! Agora o seu bisneto, Luís XV, um garoto de dez anos, ocupava o trono francês.
Chegou uma brisa noturna, agitando as frondes das palmeiras e as folhas gigantes das bananeiras, ondeando as dobras do penhoar de seda de Brigitte. Enquanto a brisa roçava sua pele nua como uma visão de amante, ela sentiu sua dor se aprofundar. E isto a assustava. Sentia-se fraca e vulnerável. Mandar os filhos para a metrópole era algo que todos os colonos faziam, para garantir que fossem educados como cavalheiros e damas. Assim Brigitte mandara sua animada prole para a irmã em Paris, a fim de que recebesse ensino adequado de conduta e etiqueta. Mas agora, sentia enormemente a falta dos filhos. Tinha tempo de sobra em suas mãos, luz do sol, perfumes tropicais, ventos alísios balsâmicos. Henri tinha os campos de cana-de-açúcar, o engenho e a destilaria de rum para ocupar seu tempo. Mas com a partida dos filhos e os criados cuidando de tudo, o que mais havia para uma dama fazer nestas ilhas? Brigitte era uma leitora ávida, mas até mesmo este passatempo, ultimamente, estava refletindo seu descontentamento crescente, pois sua predileção tendia para casais de amantes trágicos: dois franceses como ela própria, Abelardo e Heloísa; dois italianos, jovens, mas não menos trágicos, Romeu e Julieta; dois ingleses, de muito tempo atrás, Tristão e Isolda; e um soldado romano e uma rainha egípcia, Antônio e Cleópatra. Ela devorava estas histórias tristes e românticas como suas amigas devoravam frutos suculentos e rum. Não havia tristeza melhor, ela achava, do que a doce tristeza. Na sua fantasia, ela e o seu amante viviam separados, e a dor deliciosa que isto trazia ao seu coração a mantinha suspirando durante as tardes abafadas.
Tentou convencer-se de que os sonhos eram muito mais satisfatórios do que a realidade. Além disso, os sonhos eram seguros, ao passo que a realidade podia ser repleta de perigos. Apesar de a Martinica ser um Éden tropical, tinha também seus perigos — das tempestades súbitas e destrutivas, do vulcão no monte Pelée ameaçando uma erupção, das febres e doenças exóticas, e do pior dos perigos: piratas. No próprio jantar desta noite, a conversa não havia se restringido ao preço do rum e dos escravos, mas versado sobre piratas, e um deles em particular — um cão inglês chamado Christopher Kent. Um dos convidados, um plantador de abacaxi, sofrera um prejuízo apenas alguns dias antes, quando a escuna de Kent, Bold Ranger, atacou o navio mercante do homem, abordou-o, jogou a tripulação no mar e ganhou uma fortuna em moedas de ouro. Ninguém sabia como Kent era, embora os poucos sobreviventes de seus ataques o descrevessem como muito alto e com o aspecto do demônio.
A noite subitamente explodiu em gritos provenientes das senzalas — homens empenhados em lutas mangusto-e-serpente. Como os ventos alísios e palmeiras farfalhantes, era o som da ilha chamando-a. Isto fazia Brigitte pensar no povo nativo que vivera ali muito tempo antes, os índios com seus tambores e nudez, vivendo como Deus os criara, como Adão e Eva. Seus espíritos ainda estavam ali — nas árvores e riachos e nos picos de montanha encobertos pela névoa. Agora, novos primitivos habitavam por lá, procedentes da África; mais gente desnuda com tambores que enchiam as noites com sua batida e ritmos primevos, cantando e dançando à luz de fogueiras.
O ar ficou pesado, lembrando a Brigitte que estavam no início da estação dos furacões. Ela voltou para dentro, fechou as portas duplas e depois se dirigiu para a penteadeira a fim de devolver a Estrela de Catai a sua caixa. O cristal azul tinha, com o passar dos anos, se tornado simbólico dos mares azuis que a cercavam, do azul do céu que a cobria. E quando olhou no núcleo da pedra ela viu fogo e paixão. A sua paixão. Presa, lutando para se libertar.
Foi para a cama e puxou as botas do marido. Henri estava sorrindo no seu sono. Ela suspirou de novo. Henri não era um homem mau, apenas inconsciente. Enquanto deslizava entre as cobertas para perto dele, fechou os olhos e, embora suas fantasias secretas a enchessem de culpa, mais uma vez invocou a imagem dele, seu amante de fantasia. Quando se deixava levar para o sono começou a sonhar, e no sonho ele buscava por ela.
Henri Bellefontaine não estava alheio ao recente descontentamento de sua esposa. Afinal, ela não tinha mais os filhos para ocupar seu tempo. Henri, por sua vez, tinha a plantação para administrar. Ele plantava açúcar e exportava rum, com interesses paralelos na cultura e exportação de canela, cravo-da-índia e noz-moscada, em grande demanda na Europa para uso culinário, medicinal e perfumista. Portanto, Henri era muito rico, mas também muito ocupado. Mas o que Brigitte tinha? Considerando-se um adorável e atencioso marido, mas enganando-se inteiramente sobre a causa dos freqüentes suspiros e inquietude da esposa (saudade do lar, pensava, e falta dos filhos), Henri adquiriu o que achava ser o remédio perfeito.
Comprou um telescópio para ela.
Montou-o numa plataforma especial no telhado, um belo instrumento de latão importado da Holanda, fixado sobre um tripé com uma visão completa de 360 graus da ilha e além. Henri congratulou-se por seu brilhantismo. Brigitte não mais se sentiria tão só e isolada, pois a lente traria o mundo para a ponta dos seus dedos: o horizonte, com a França — e seus filhos — bem ali na sua orla; as ilhas mais próximas (retalhos de verde-esmeralda flutuando sobre o azul do mar); os azafamados portos da Martinica com navios chegando e partindo; e finalmente os quebra-mares e ameias, as alamedas e becos estreitos e telhados se erguendo em camadas nas colinas.
O gesto dele comoveu Brigitte, pois Henri era um homem gentil e seu coração estava no lugar certo. Afinal, ele não a havia levado para os confins da terra. A Martinica era o centro cultural das Antilhas francesas, uma ilha rica e aristocrática famosa por seu gracioso estilo de vida, bem como por sua luxuriante vegetação tropical, desfiladeiros profundos e penhascos elevados. A própria casa deles era uma magnífica plantação empoleirada nos contrafortes do monte Pelée, um vulcão que periodicamente despejava vapor e fazia o solo tremer, como se para lembrar aos humanos de sua mortalidade. A casa era desenhada em típico estilo creole com os cômodos principais no andar térreo e os dormitórios acima. Circundando-a havia gramados verdejantes parecendo tapetes fabulosos, ladeados por palmeiras cujas frondes se farfalhavam ao vento. Brigitte adorava o seu lar tropical, e adorava a Martinica. Ninguém sabia ao certo por que a ilha tinha este nome. Alguns diziam que derivava de um termo indígena que significava "flores"; outros diziam que vinha de São Martinho. Mas Brigitte Bellefontaine, com seu coração romântico, acreditava que quando Colombo a descobriu e achou a ilha fantasticamente linda, deu-lhe o nome de uma mulher que amava em segredo.
Tornou-se um hábito de Brigitte subir diariamente ao seu observatório no telhado ao crepúsculo, sua hora preferida do dia, quando o trabalho cessava e começavam os entretenimentos da noite; uma hora em que também mudanças ocorriam sobre o Caribe, o céu luminoso dando lugar a um negro firmamento salpicado de estrelas. Brigitte daria instruções aos escravos da cozinha para o jantar, depois tomaria um longo e langoroso banho, colocaria suas roupas de baixo, vestiria o seu diáfano penhoar e subiria ao telhado para observar o sol fazer sua espetaculosa saída do mundo.
Enquanto bebericava um cálice de rum, Brigitte mantinha o olho na lente, vasculhando o mar e a baía, as montanhas e as nuvens, as pequenas aldeias de pescadores, e pensou sobre a chegada da noite. Não haveria convidados esta noite, já que era domingo. A noite seria só dela e de Henri. Ficaria o marido com ela ou seria seduzido pelas tentações da ilha, na forma de jogatina em Saint-Pierre? Quando Henri acordou aquela manhã para perceber que pegara no sono antes de cumprir sua promessa, tinha ficado arrependido. "Ma chere! Ma puce! Sou indigno de ti." Depois lhe dera uma bicota no rosto e, vestido em seus trajes de montaria, saíra para inspecionar as plantações de cana-de-açúcar.
Brigitte viu luzes se acendendo na cidade portuária, portas sendo escancaradas para o pôr-do-sol, botes trazendo visitantes famintos dos navios ancorados. Quase podia ouvir a música e o riso, sentir o cheiro dos aromas de cozinha, ver os sorrisos das pessoas. Desviando o telescópio do assentamento, examinou os picos luxuriantemente verdes das montanhas e as cristas se erguendo e caindo como ondas do oceano, selvas tropicais alcançando cada tonalidade de verde conhecido do olho humano. E agora girava para leste, desviando-se do céu escarlate para o lado tranqüilo a barlavento da ilha, com suas praias imaculadas e lagunas verde-limão e angras ocultas...
Parou. Mastros? Velas enfunadas?
Focalizou a lente, trazendo o navio para a claridade e prescrutando atentamente. Tinha de ser uma escuna americana, a julgar pelos dois mastros e casco estreito, e pelo fato de ter um baixo calado para ser capaz de navegar em águas rasas e em uma enseada tão minúscula.
Brigitte franziu o cenho. Por que estava ancorado lá?
Girou o telescópio levemente, para o mastro principal, pelas vergônteas e enxárcias, até que viu a bandeira.
Um navio pirata! Não havia como confundir a insígnia, que os franceses chamavam deturpadamente de joli rouge — "belo vermelho" — e os ingleses de Jolly Roger. Em geral os navios piratas exibiam crânios e tíbias cruzadas; esta bandeira era desenhada com uma alfange pingando sangue.
— Mon Dieu! — sussurrou. Ela sabia que navio era este — o Bold Ranger — pertencente ao sanguinário Christopher Kent. Não pôde ver nenhum tripulante a bordo.
Começou a tremer. Onde eles estavam? Ouvira falar no método de Kent — atacar rápida e brutalmente. Atacar, saquear e ir embora antes que as vítimas pudessem se defender.
Freneticamente, perscrutou através da lente, examinando as colinas entre a angra e a plantação, uma distância de três quilômetros. Henri e seus homens estavam em algum lugar em todo aquele verde, inspecionando o corte da cana, mas não conseguia encontrá-los.
Christopher Kent era o pesadelo de todo colono. Era um daqueles bucaneiros que não se restringiam a atacar navios, mas que também faziam ousados ataques em terra. Todos os donos de plantação mantinham suas fortunas escondidas em algum lugar de suas propriedades. Era o único meio de garantir que ficassem a salvo. Kent sabia disso. Ele viria à noite, apanharia suas vítimas desprevenidas e as forçaria a revelar a localização do seu ouro. Geralmente empregando tortura.
Por favor, meu Deus — sussurrou ela, sentindo a boca subitamente seca. — Não permiti que venham por este caminho.
E então os viu — os piratas estavam subindo a colina, dando estocadas nos supervisores e escravos através dos canaviais. Henri sendo derrubado do seu cavalo...
Colette, traga o meu mosquete! — Ela sabia que não podia acertar coisa alguma daquela distância, mas talvez pudesse disparar tiros de aviso. Especulou se os soldados na fortaleza estavam cientes dos piratas. Duvidava. Se assim fosse, os sinos da igreja estariam repicando e os canhões disparando. Kent e seus homens haviam rastejado pelo lado barlavento da ilha e se esgueirado para a pequena enseada. Duas cristas escondiam o platô, onde a propriedade Bellefontaine se espalhava por muitos hectares. Os piratas atacariam, fariam o seu trabalho letal, silenciosa e rapidamente, e partiriam como fantasmas, deixando somente cadáveres e uma ruína em chamas. Levaria pelo menos um dia para os soldados se inteirarem do que havia acontecido e, a esta altura, o navio de Kent já estaria longe no mar.
O que é, senhora? — perguntou a jovem negra sem fôlego enquanto subia a estreita escadaria, segurando desajeitadamente o comprido mosquete. Colette era uma escrava africana de terceira geração. Era nascida na Martinica, bem como sua mãe, mas sua avó havia sido trazida da África com milhares de outros para trabalhar nas plantações de açúcar e tabaco dos colonos franceses.
Mande Hércules para a fortaleza — começou Brigitte, tentando localizar os piratas sem ajuda do telescópio. Mas o sol finalmente mergulhara além do horizonte e a luz se desvanecia. — Diga-lhe para ir correndo, Colette! Diga-lhe que são piratas...
E então ela o viu pelo telescópio: Christopher Kent, uma figura alta e ameaçadora, todo vestido de preto. Usava calções justos e um casaco comprido, os reluzentes botões de ouro de seu colete refletindo os últimos raios do sol. O rosto estava sombreado pela aba larga do chapéu tricorne, com uma copiosa pena branca se agitando à brisa. Quando ele se virou e seu rosto veio parcialmente à luz, ela percebeu com um choque que ele a fazia se lembrar do amante fantasma de suas fantasias.
A mente de Brigitte trabalhava rapidamente. A fortaleza ficava a dezesseis quilômetros, sobre terreno montanhoso, e a noite caía, mergulhando a selva e as trilhas em escuridão muito antes que um mensageiro pudesse ao menos sair. Os piratas tinham tochas acesas, que agora ardiam brilhantemente no lusco-fusco declinante, e as chamas estavam progredindo firmes como serpentes colina acima.
Dando uma última olhada em Kent pelo telescópio — ele mal era visível agora no dia que morria rapidamente, uma figura fantasmagórica caminhando através da densa vegetação, como um conquistador...
Esqueça — disse Brigitte, e descartou o mosquete.
Mas, madame — gritou Colette. — São piratas! Temos que avisar todo mundo!
Calma — disse Brigitte enquanto descia as escadas e ia para o quarto. — Não conte a ninguém, Colette! — A situação de repente requeria outra estratégia. Mas também exigia cabeça fria.
Ela possuía um lindo vestido que nunca usara. Trouxera-o da França vinte anos antes, um vestido muito especial que havia planejado usar nas comemorações do aniversário do rei. Mas tinha ficado grávida durante a viagem à Martinica e, depois do nascimento do primeiro filho, não coubera mais no vestido. Engravidara de novo e o ciclo continuou até desistir de usar o vestido. E, de qualquer modo, havia outro rei agora, um que ela nem conhecia.
O vestido de seda era num deslumbrante rosa, o peitilho bordado em exuberante escarlate e tons de púrpura, com a anágua num amarelo forte constrastante, como era a moda na época, quando os vestidos visavam ofuscar e as cores deviam ser tão chocantes e contrastantes quanto possível. Assemelhava-se muito a um crepúsculo tropical: o sol dourado ardendo contra um céu avermelhado. Ela ficara com a cintura aumentada depois do nascimento do sétimo filho, de modo que o vestido finalmente coube (com a ajuda de um espartilho apertado), mas a esta altura o vestido estava irremediavelmente fora de moda. Um estilo tão elaborado e tedioso havia saído de moda por ocasião da morte de Luís XIV. Como poderia usá- lo? E assim o vestido se tornara um símbolo: de juventude acabada e de oportunidades perdidas, e a simples constatação disso recordava as suas paixões juvenis e beijos roubados nos jardins de verão.
Seu coração disparava enquanto tirava o vestido do baú e dava ordens a uma Colette muito aturdida. Era difícil se apressar com um aparato tão complicado — os espartilhos, saias e anquinhas e todos os cordões e fechos, e com Colette tão aterrorizada que estava prestes a fugir. A própria Brigitte estava nas garras do medo, mas conservava a imagem de Kent em primeiro plano na mente — uma figura sombria e ameaçadora. Prendendo a respiração enquanto Colette apertava o último cordão, Brigitte fez um rápido cálculo mental: os piratas deviam estar agora à beira da destilaria. A distância dali até a casa principal era de uns oitocentos metros.
Finalmente, mirou-se no espelho. Mas franziu o cenho ao se ver refletida. Embora o vestido fosse impressionante, ela própria ainda aparecia velha e roliça. Kent dificilmente lhe daria uma segunda olhada. Foi então que se lembrou da Estrela de Catai. Com dedos trêmulos, levou o broche ao ponto mais baixo de seu décolletage, de modo que os diamantes e safiras dessem ao cristal azul a aparência de uma borboleta — que havia pairado e pousado sobre o seu peito exposto.
A transformação foi instantânea. Uma nova mulher surgiu diante dela refletida no espelho. O cristal possui de fato magia! Brigitte Bellefontaine estava de novo jovem, esguia e bonita.
Antes de descer, tomou as mãos de Colette num aperto firme.
Agora preste atenção — disse. — Logo iremos receber visitantes não-convidados. Não fique com medo. Não tente fugir.
Mas, senhora...
Colette! Ouça com atenção, pois você deve fazer exatamente como eu disser...
Antes de deixar o quarto, Brigitte deu mais uma olhada em si no espelho e sorriu aprovando. Relanceando o olhar para o mosquete encostado à parede pensou: Às vezes um vestido é melhor que uma arma.
Embora os Bellefontaine possuíssem mais de cem escravos — nos campos, no engenho e na destilaria de rum —, só havia um punhado de homens com pistolas e mosquetes para mantê-los intimidados e obedientes. Ao atravessar a sala de estar principal da casa, ela ouviu passadas lá fora, ordens resmungadas, o som ocasional de um chicote. As mulheres escravas, cujo trabalho se concentrava na casa-grande, nas hortas e terreiros de aves, vieram correndo à visão dos seus homens chegando cambaleantes ao pátio principal sob a mira de pistolas e espadas. Elas imediatamente soltaram uivos de lamento. Criados da casa correram às janelas e lá se amontoaram, olhando para fora com olhos assustados.
Brigitte parou para compor-se. Mal podia respirar. Lá fora ouviu gritos e tiros. Mas esperou atrás da porta da frente trancada, acalmando- se, como uma atriz prestes a fazer sua entrada triunfal. Controlando-se, pois seu impulso era fugir, ela aguardou por outro longo minuto e então alcançou a porta, abrindo-a lentamente.
Os piratas eram uma visão assustadora com seu arsenal de armas: mosquetes, bacamartes, alfanges, adagas e pistolas. Alguns brandiam até mesmo machadinhas de abordagem usadas para cortar redes e cordame. Eram uns cinqüenta, calculou Brigitte, e vestiam-se num arranjo de trapos e farrapos, com os cabelos longos imundos e botas que não combinavam. Contra o pano de fundo de tochas ardentes eles pareciam, ou assim Brigitte achava, o exército de ímpios e demônios de Satanás.
Henri estava amarrado com cordas e tinha sido posto de joelhos. Brigitte se conteve para não correr até ele.
A varanda era ornada com trepadeiras, que possuíam flores de todas as cores do arco-íris, e os pilares eram grossos e revestidos de parreiras verdes. O perfume combinado era forte e estonteante, enquanto a última de umas poucas abelhas industriosas zumbia ao redor das florações.
Assim emoldurada, como se num palco de teatro, Brigitte não disse uma palavra, mas ficou de pé ali até que, um por um, os homens silenciaram e olharam-na fixamente.
O Capitão Kent havia alcançado o primeiro degrau quando percebeu que todos haviam caído em silêncio. Virou-se e olhou para cima. Agora, na escuridão e à luz da tocha, Brigitte pôde ver melhor suas feições: eram penetrantes e duras. Kent estava usando um comprido casaco preto, bem-cortado, quase alcançando seus tornozelos. Era ricamente bordado com seda e fio de ouro, e os botões eram de ouro reluzente. Seus calções eram pretos, e usava meias brancas imaculadas e sapatos bem lustrados com fivelas de ouro. Franzidos brancos enfeitavam seu pescoço e punhos. Debaixo do seu chapéu tricorne de abas largas ele não usava nenhuma peruca, mas tinha o cabelo longo preso num rabo- de-cavalo com cachos laterais sobre as orelhas, na última moda. Cada centímetro de um garboso cavalheiro, pensou Brigitte, como se tivesse chegado para assistir a uma ópera em vez da pilhagem de sua casa.
Quando os olhos do pirata encontraram os seus, um pensamento alarmante veio-lhe de súbito à mente: Na tenda do adivinho nos jardins de Versalhes, uma grande celebração pelo aniversário do rei, com atores, malabaristas e um autêntico carnaval. O velho cigano dizendo à Brigitte de 16 anos: "Esta pedra azul possui um tremendo fogo. Está vendo? Está preso dentro. Um dia este fogo será liberado e a consumirá. Em amor. Em paixão. Nos braços de um homem. Um homem que fará tanto amor com você que você quase sucumbirá ao êxtase."
Agarrando as mãos fortemente diante de si, Brigitte se adiantou até a beirada da varanda.
— Bem-vindo a minha casa, m'sieu — disse suavemente, do modo mais gracioso e sem medo que pôde.
Ele a olhou fixamente. Depois sorriu. E pelo modo como a fitou de cima a baixo — ela sabia que apenas uma hora antes ele não a teria olhado daquela maneira. Mas ela estava linda agora, por causa da magia do cristal azul. Ele havia lançado um encantamento que a transformara.
Milady — disse ele, tirando o chapéu com um floreio e estendendo uma perna enquanto fazia uma reverência.
A voz dela mal passava de um sussurro, ainda assim o silêncio era tanto entre os homens agrupados que todos ouviram.
Oferecemos ao senhor a hospitalidade de nossa casa.
Brigitte agradeceu silenciosamente a Deus por ela e suas irmãs terem tido um tutor inglês na infância, pois seu pai acreditava que as filhas deveriam ter uma educação eclética a fim de atuarem com desembaraço nos mais variados círculos culturais. Uma de suas irmãs casara-se com um barão inglês e tinha se mudado para a Inglaterra, de modo que nos últimos vinte anos Brigitte escrevera cartas em inglês para seus sobrinhos — graças a Deus por isso também. Embora não fosse fluente na língua, conseguia fazer-se entender.
Kent arqueou as sobrancelhas.
Hospitalidade! Não pretendemos ficar, senhora. Viemos buscar o ouro e em seguida seguiremos nosso caminho.
Vários metros atrás, seu marido, tendo sido posto de joelhos, gritou:
Salve-se, Brigitte!
Ela umedeceu os lábios.
Recusar hospitalidade é grosseria, m’sieu. E ouvi dizer que o senhor é um cavalheiro.
Ele sorriu.
Então sabe quem sou — disse ele.
É o Capitão Christopher Kent.
E não tem medo de mim?
Tenho — disse ela no tom mais descontraído que pôde, mas seu coração martelava de medo. — Mas independentemente de quem seja, senhor, ou de sua intenção aqui, é costume entre minha classe social oferecer hospitalidade ao visitante.
A risada dele foi curta e seca.
Está pensando que alguns poucos mantimentos salvarão seu ouro?
Ela ergueu o queixo.
Está interpretando mal minha intenção, senhor. Poderá ter seu ouro, já que é óbvio que não tenho como impedi-lo. Mas havia imaginado que, sendo um cavalheiro, entenderia as regras do comportamento civilizado.
Seus olhos escuros tremeram e ela soube que havia tocado num ponto sensível. Pirata ou não, Christopher Kent acreditava piamente que fosse um cavalheiro. Por que se vestia tão bem quando seus homens mais pareciam animais?
Tenho seis leitões suculentos, prontos para ser assados —acrescentou ela.
Ele colocou as mãos nos quadris.
Bem, este é um truque novo! — comentou e riu.
Enquanto alguns dos homens riam, um deles, mais velho do que Christopher Kent, com um cabelo comprido retorcido num ninho de tranças e um câncer crescendo ao lado do nariz, adiantou-se.
Me desculpa, madama, mas cumé que prepara esses leitão? — perguntou.
Brigitte recusou-se a dar atenção ao homem. Continuou a dirigir-se a Kent.
Eu os tempero com cravo-da-índia e alho, alcaparras e orégano, acompanhados de pão quente embebido em molho de alho, queijo de cabra com ervas e uma sopa fria de gengibre. Tortas de manga com calda de chocolate para a sobremesa.
E que que tem pra beber? — perguntou o grosseirão, respeitosamente.
Vinho francês e conhaque — respondeu ela a Kent.
O homem esfregou o lado bom do nariz.
Até que a idéia não é má, Chris. Deus sabe que tem um tempão que a gente não come comida boa.
E deixar os soldados nos pegarem com a guarda baixa? Não vê que é um truque, Sr. Phipps?
Acho que os soldados nem sabem que a gente está aqui, Chris. Mas posso verificar. — Ele acrescentou, mais baixo: — E não acho que é um truque dela. A dama está só barganhando. Acha que a gente vai ter piedade.
Kent pensou a respeito. E enquanto o fazia Brigitte inspirou profundamente, fazendo o broche de cristal no peito reluzir seu fogo azul.
Como ela pretendia, isto capturou o olhar de Kent. Ele deu uma olhada no seio branco e fez um sinal para Phipps, que por sua vez mandou dois homens subirem em árvores para vigiar. Kent então fez outro sinal e um grupo de homens correu à frente, subiu ruidosamente os degraus da varanda, passou por Brigitte e entrou na casa.
Ela empregou todo o seu autocontrole para ignorar os sons de pilhagem e vandalismo no interior. Sua casa nada significava neste momento; toda a sua preciosa mobília e cerâmica, cortinados e jóias. Os piratas podiam ter tudo.
O Sr. Phipps voltou para relatar:
Os vigias dizem que tudo está tranqüilo, nada de gritos de alarme, tudo normal no porto. E o banquete, o que acha, Chris?
Kent subiu os degraus e se aproximou de Brigitte. Ela mal podia respirar enquanto olhava para cima, pois ele era bem mais alto.
Como vou saber que não pretende nos envenenar? — indagou. — Já fui enganado antes por uma mulher bonita.
Ela prendeu a respiração. Kent a havia chamado de bonita!
Uma cautela compreensível, m'sieu. Então deixe que seus próprios homens façam o abate, preparem o espeto e supervisionem o preparo dos molhos e temperos. Meus escravos provarão tudo que for preparado.
Ela viu o movimento sombrio nos olhos dele enquanto avaliava o que era certamente uma situação inesperada.
Espero que não me tome por um tolo — disse ele, suavemente.
Seus olhos se encontraram e se fixaram.
O momento se estendeu; Brigitte prendeu a respiração. Este era o momento crucial. E então Kent relaxou, os lábios curvados num sorriso.
Muito bem, vamos comer! — disse.
Seus homens aplaudiram e Kent, inclinando-se na direção de Brigitte, disse:
Agora vamos aos negócios. Onde está o ouro, senhora, ou teremos de arrancar a informação do seu marido?
Recordando-se das histórias que ouvira sobre Kent — como seus homens tinham amarrado donos de plantação pelos pulsos debaixo do sol abrasador do meio-dia até que contassem onde sua fortuna estava escondida —, ela disse:
Por favor, não maltrate meu marido. Se prometer não causar dano a ele, eu lhe mostrarei o tesouro.
Certificando-se primeiro de que as covas de assar estivessem sendo preparadas e de que os escravos da cozinha entendessem suas tarefas, garantindo-lhes que se todos cooperassem nada sofreriam, Brigitte conduziu Kent e um punhado de homens do pátio principal até uma trilha pavimentada de lajes abaixo, uma das muitas passagens espalhadas neste paraíso tropical levando a jardins e chalés, bem como aos engenhos e destilarias de rum e, além destes, às senzalas dos escravos. Brigitte caminhava à frente de seus "convidados" com gracioso andar deslizante aprendido muito tempo antes na infância, suas volumosas saias rosa e amarelo flutuando ao longo da trilha como se não houvesse pernas humanas impulsionando-as abaixo. Era uma passada que aperfeiçoara nos jardins de Versalhes para ganhar a atenção dos rapazes namoradores; usava-a agora para guiar ladrões até um tesouro.
Chegaram a uma clareira em meio à vegetação luxuriante e viram-se diante de uma visão que fez até mesmo aqueles homens rudes arregalarem os olhos de admiração. Havia um mirante, aparentemente iluminado pelas estrelas, branco e bruxuleante na noite. Brigitte deu graciosamente um passo para o lado, como se fosse servir chá.
Aí está — disse, apontando para o piso da estrutura. — Debaixo daquelas tábuas.
Fixando as tochas ardentes no chão, os piratas arremeteram à frente, as machadinhas quebrando e dilacerando as tábuas. Romperam o piso e içaram as arcas escondidas debaixo dele. Brigitte permaneceu muda enquanto os piratas arrastavam seu butim de volta à casa-grande. Uma fogueira tinha sido acesa, ela notou, usando-se a fina mobília de sua casa como lenha. À luz das chamas, os saqueadores abriram as arcas e gritaram alto quando viram as moedas de ouro, pois eram de moedas que os piratas mais gostavam.
Aquele foi claramente o sinal para que a comemoração tivesse início, pois uma rabeca surgiu sabe-se lá de onde e alguém começou uma animada jiga. Outros haviam arrombado a destilaria e rolavam enormes barris de rum. As escravas começaram a passar nervosamente em meio ao bando de homens com garrafas e taças de vinho, enquanto do outro lado da fogueira as covas de assar já tinham os porcos girando nos espetos. Brigitte viu seu marido e os outros cativos sendo impelidos a estocadas para dentro do chiqueiro, onde foram jogados no esterco enquanto seus verdugos se dobravam de rir.
Em algum lugar durante a penosa marcha desde os canaviais, Henri tinha perdido sua magnífica peruca. Grande e ricamente preta ela tinha sido, com cachos cuidadosamente dispostos elevando-se sobre sua cabeça e caindo em cascata pelos ombros e costas. Recém-chegados à ilha assinalavam que tais perucas estavam agora fora de moda, mas Henri não se importava. Era apegado às velhas tradições, que ditavam que um cavalheiro devia parecer elegante o tempo todo, não importava o tempo ou a tarefa em que estivesse empenhado. Mas ela havia sido arrebatada de sua cabeça e agora estava de cabeça nua, o cabelo grisalho se elevando em tufos enquanto os piratas o aguilhoavam, chutavam e zombavam dele.
Brigitte enterrou as unhas nas palmas das mãos e manteve a compostura. Ela queria agarrar uma das tochas ardentes e partir sobre o bando de piratas, usando-a como uma clava.
Mas no instante seguinte Kent estava olhando para ela, que lembrou-se da sua resolução e de que esta noite seria sua última chance.
— Hum — fez ele, estudando-a à luz bruxuleante da tocha. — O que a faz ser tão destemida, posso saber?
O comentário a sobressaltou. Poderia ele ver a pulsação em disparada no seu pescoço, o medo em seus olhos, o tremor em suas mãos?
Não sou destemida — disse ela, o que era verdade. Mas do que ela tinha medo era outra questão.
Quando saiu da sua casa não parecia estar surpresa em nos ver. Parecia que estava nos esperando.
Ela apontou para o telhado da casa.
Há um telescópio naquela plataforma. Vi vocês vindo da praia.
Kent a fitou com grande interesse.
Gostaria de ver este telescópio.
Ela assentiu e liderou o caminho. Passaram pelo pátio onde os leitões giravam em espetos cortados de galhos. Os homens de Kent estavam na maior felicidade esvaziando os barris de rum. No topo de duas palmeiras muito altas, vigias com lunetas estavam de olho na fortaleza e na cidade de St. Pierre. Ao menor sinal de movimentação militar, dariam o sinal e Kent e seus homens desapareceriam. Brigitte rezou para que nenhum sinal fosse dado.
A casa havia sido completamente saqueada, com cerâmica estilhaçada nos pisos de madeira polidos, móveis virados, peças de ouro e prata amontoadas numa pilha junto à porta, prontas para ser carregadas. Muda, Brigitte conduziu Kent através do jardim dos fundos, onde orquídeas púrpura e buganvílias laranja se misturavam com hibiscos escarlates e oleandros rosa pálido. Ela o precedeu na subida da estreita escadaria, as costas retas, a cabeça erguida, como se ela estivesse dando dignidade monárquica a um giro por sua casa. Mas estava ciente da aguçada alfange que pendia da cintura dele, da pistola e da adaga enfiadas no seu cinto. O espaço entre suas omoplatas se arrepiava de medo. Sentia como se estivesse sendo seguida por um animal selvagem, como a pantera-negra que o governador mantinha enjaulada em sua casa.
Quando chegaram ao telhado e à curiosa plataforma com um corrimão baixo, viram que a lua cheia estava começando a se elevar. Também tiveram uma boa visão do complexo abaixo, onde os aterrorizados escravos de Brigitte cozinhavam sob os olhos vigilantes dos piratas, sendo obrigados a provar tudo que faziam. Até mesmo o molho usado nos leitões era provado primeiro.
Ao som de tanta música, Brigitte lançou um olhar curioso a Kent, que sorriu.
Somos uma tripulação privilegiada, pois temos músicos entre nós. Não é todo navio pirata que espera ter pelo menos um tocador de gaita e de rabeca. — Ele acenou com a cabeça enquanto se inclinava sobre a grade para observar as festividades lá embaixo. — Tenho uma boa tripulação. — Phipps, o homem com os muitos rabos-de-cavalo, era o imediato, o homem forte do navio, o juiz do navio e o encarregado de punir as infrações menores. Era também o responsável pela seleção e divisão do butim. Havia Jeremy, o mestre de cabotagem encarregado da navegação, e Mulligan, o contramestre, Jack, o artilheiro-chefe, Obadiah, o mestre de velas, Luke, o carpinteiro. Tinham até mesmo um cirurgião de bordo, embora ele fosse de pouca utilidade em águas tropicais, onde as principais causas de morte fossem as incuráveis, febre amarela, malária e disenteria. Sua principal tarefa era fazer amputações.
Brigitte mostrou o telescópio e notou que ele teve de se abaixar para espiar por ele, já que era tão alto. Ela também percebeu um corpo de grande força física sob o casaco comprido e calções. Os colonos franceses, tendo escravos para fazer todo o trabalho e com tal fartura de comida e bebida, eram uma cambada de indolentes; homens que haviam se esquecido da prática da esgrima e da equitação. Mas ela suspeitava que Christopher Kent reunia a força muscular com a perícia na arte do duelo.
Kent olhou pelo telescópio e então, satisfeito, porque soldados não tinham sido despachados do forte distante, empertigou-se e voltou sua atenção à perplexa anfitriã. Seus olhos foram dos seios para o broche.
Esta aí é uma bela peça — comentou.
É uma pedra famosa, m’sieu, chamada a Estrela de Catai. Foi desenhada na longínqua China por um mágico que, diz a lenda, a criou para conquistar o coração de uma dama. A pedra supostamente traz amor e romance para quem a possuir.
Ele sorriu e estendeu a mão querendo tocar a pedra.
Brigitte pôs a mão protetoramente sobre ela. Ele não devia tê-la, ainda! Ela precisava estar linda, pelo menos por mais algum tempo. Se ele a tomasse agora, sua beleza iria com a pedra e o plano fracassaria.
Eu a darei de presente a você quando partir.
Ele riu e seu olhar demorou-se na mão dela, que protegia não só o broche mas também o seio.
E a que se refere quando diz que vai me dar de presente? O broche ou o tesouro debaixo dele?
Ela tentou não desviar a vista, mas sim enfrentar o olhar ousado dele, desafio por desafio.
E assim que tratam as mulheres na ilha onde você vive?
Ele desviou os olhos para o horizonte distante e pareceu avaliar o que responderia.
Não vivo numa ilha — disse, por fim. — Tenho uma plantação na colônia americana de Virgínia.
O choque de Brigitte foi evidente.
Você vive entre gente civilizada?
De fato, entre a assim chamada gente civilizada — disse ele com um sorriso torto —, que apóia minha pirataria. Afinal, pilhagem só é pilhagem até que seja vendida. Sem compradores não haveria razão para a pirataria.
Não entendo.
São os americanos que compram minhas mercadorias. Na Inglaterra, os piratas são tratados impiedosamente, mas nos portos da América dispõem de proteção, até de hospitalidade. São os americanos que aprovisionam meu navio e encontraram compradores para meus tesouros, por uma comissão, é claro. Assim, os americanos enriquecem comigo.
Ela franziu o cenho.
É inimaginável.
É política. Ao apoiar bucaneiros como eu, os amencanos estão desferindo um golpe contra o governo britânico, uma luta que, com o tempo, está crescendo e se tornando mais amarga. Os ingleses criaram este regulamento chamado Lei da Navegação, que estipula que qualquer mercadoria só pode ser importada pelas colônias da Inglaterra, por navios britânicos com tripulação britânica. Os americanos não acham isto justo e burlam a lei britânica sempre que podem.
Quer dizer que meus adoráveis castiçais e a porcelana de minha mãe...
Mais provavelmente vão acabar numa cornija de lareira em Boston.
Mas foi um presente do meu marido! — protestou Brigitte, quando ele começou a desatarraxar o telescópio.
Ele riu enquanto sopesava o instrumento na mão.
Homem sentimental, o seu marido.
Não está entendendo, m’sieu — disse ela com indignação.
Pelo que entendo, as mulheres preferem presentes que tenham um significado romântico, mas um telescópio?
E mais do que um mero telescópio, m’sieu. E um instrumento de poder.
Como assim?
Eu vi vocês, não vi? E vocês nem sabiam de minha presença.
Sim — replicou ele, lentamente. — E verdade. Você nos viu chegando e não sabíamos. Mas podia ter dado o alarme. Muito curioso.
Kent caminhou até a escada e fez um sinal para que ela o precedesse. Portanto, Brigitte desceu para o piso abaixo e liderou o caminho até a sala de estar principal, onde, para sua surpresa, Kent tirou o chapéu e pediu algo para beber. Seu cabelo era do preto mais profundo, sem uma sombra de grisalho, embora ela situasse sua idade mais próxima dos quarenta que dos trinta, pois seu rosto, quando visto bem de perto, era marcado pelas rugas da vida e do tempo.
Recusando uma garrafa que já estava aberta e insistindo para que ela buscasse outra ainda lacrada, Kent foi até a varanda onde conferenciou brevemente com o Sr. Phipps.
Continua tudo normal no forte e na cidade — disse a Brigitte, ao entrar. — Ainda não fomos percebidos.
Através das cortinas transparentes da janela principal, ela pôde ver a lua continuando a se elevar e a despejar sua luz sobre o pátio onde os piratas estavam se tornando ruidosos e algumas mulheres escravas eram encorajadas a ser amigáveis. Ainda não haviam começado a comer, mas aromas de fumaça e assado enchiam o ar.
Kent olhou para o retrato sobre a lareira, uma cena pastoral representando Henri e Brigitte Bellefontaine sentados debaixo de um enorme carvalho, com os filhos reunidos a sua volta. Quando Kent comentou sobre as crianças e sua semelhança fortuita com a mãe e não com o pai, Brigitte disse:
Eles significam o mundo para mim. Meus filhos são a minha vida.
Ainda assim, os mandou embora.
Uma decisão que lamento. — Ela trouxe uma bandeja com dois cálices cheios de conhaque. Kent mandou-a provar os dois antes de escolher um.
Você me insulta — sussurrou ela.
Milady, há mil maneiras de matar um homem, mas o envenenamento é uma arte feminina. E existem mil maneiras de envenenar — replicou Kent e depois disse: — Teremos uma lareira acesa? A noite está começando a esfriar.
Brigitte chamou um dos escravos para acender a lareira e agora as chamas estavam lançando sobre as paredes a sombra alta de Christopher Kent.
Ele provou o conhaque, observando Brigitte por sobre a borda do cálice.
Então seu marido arrasta você para este fim de mundo, onde não pode criar seus filhos.
Meu marido não me "arrastou". Viemos para cá construir alguma coisa. Os Bellefontaine são uma antiga e nobre família, mas a geração anterior esbanjou a fortuna, de modo que não houve terras para meu marido herdar. Ele aceitou um oferecimento do rei para vir e ajudar a construir a colônia. Em troca, a terra seria nossa. Aqui é o nosso verdadeiro lar, m’sieu, que construímos para nossos filhos, pois eles voltarão para a Martinica. Estão em Paris apenas temporariamente, para seus estudos. E é por isto que lhe peço — continuou, um tanto sem fôlego — que não mate meu marido. Nossos filhos precisam do pai.
Kent olhou pela janela e viu o Sr. Phipps observando uma das escravas provar um naco de pão recém-assado antes de ele próprio servir-se de um pedaço. Tudo estava sob controle.
Homens como seu marido — disse Kent agora, num tom sombrio e letal —, homens com riqueza e poder, precisam aprender lições.
Ele caiu num silêncio soturno, sua expressão cada vez mais turbulenta e ilegível enquanto observava seus homens dançando ao redor da fogueira. Depois se voltou, como se lembrando subitamente de onde estava, e disse em tom mais ameno. — De qualquer forma, o destino de seu marido não depende de mim, mas de meus homens.
Mas certamente poderia ordenar a eles que...
Está se vendo claramente que não entende a lei dos mares, milady. Posso ser o capitão do navio, mas somos uma tripulação democrática, como são as de todos os navios piratas. O que meus homens decidem é da conta deles fazer. Não lhes dou ordens nem os faço acatá-las. O que acontecer não é de minha responsabilidade.
Ele caminhou até as portas abertas para o jardim dos fundos.
Que perfume é este? — perguntou, inalando o ar noturno. Era uma mistura estonteante de jasmim, lírio-do-vale, frésias púrpura e cor-de-rosa, lilás e madressilva.
Que pirata é este que não assume responsabilidade por suas ações? - indaga ela atrás dele.
Ele voltou-se.
Madame, você não conhece nada a meu respeito nem do meu mundo. Pense o que quiser. Por que eu me importaria?
Então culpa o mundo pelos seus males?
O que o mundo algum dia me fez?
Você mata por vingança, não é? Até mesmo os inocentes?
É a lei da sobrevivência. Como o gavião mata a cobra, como a cobra mata o rato. Só o forte sobrevive, foi tudo que aprendi.
Mas por que só ataca os franceses?
Ataco qualquer um. A humanidade é minha inimiga. Não faço distinção entre ingleses e franceses, espanhóis ou árabes. Sou um príncipe autônomo, madame. Tenho tanto direito de fazer guerra no mundo inteiro quanto quem comanda uma esquadra no mar ou um exército em terra.
Ela deu-lhe as costas, sem fala. Viu as flores no seu jardim brilhando intensamente ao luar como se fosse dia. Ouviu os chamados encantadores de um pássaro noturno. A ilha continuava adormecida sob a lua refulgente. Não havia nenhum canhoneio do forte. Nenhum sinal de navios, nem tochas sendo carregadas montanha acima. E os vigias no alto das palmeiras não haviam gritado nenhum alarme. Abaixo, fumaça picante e cozimento aromático enchiam o ar, e cantar embriagado e som estridente de rabeca eram quebrados por riso feminino alto.
Kent caiu em silêncio e pareceu retrair-se.
Estranho — murmurou, após um momento. — Tenho visitado estas ilhas em todos estes anos, caminhei por suas terras e bebi das suas nascentes, ancorei nas suas águas e provei seus frutos. Ainda assim, realmente nunca vi estas ilhas.
Brigitte esperou, e a noite pareceu esperar com ela. Imaginou todos os pássaros exóticos com suas plumagens coloridas, todas as flores tropicais com suas folhas e pétalas suculentas, as estrelas cintilantes e a lua cheia e cor de marfim, até mesmo as arrebentações brancas na praia distante, imaginou que todo o universo havia parado por um instante para esperar com ela.
Embora eu pareça estar vendo-as agora. A Martinica, pelo menos. Que magia atua neste lugar? — O olhar dele caiu sobre o cristal azul no peito de Brigitte. — Esta é uma pedra misteriosa. Nunca vi uma assim antes. Nem mesmo um diamante ou safira. E como um topázio azul, porém mais profundo e mais nevoento. E o que jaz no seu núcleo? Um feixe de estrelas, parece.
Existe magia atuando aqui — disse, ao fixar os olhos nos dela. — Será a ilha? Ou você, madame? Que espécie de encantamento lançou sobre mim? — Seu cenho franziu-se e ele pareceu perturbado. — Eu e meus homens devíamos partir — disse decisivamente. — Fico nervoso ao permanecer tanto tempo num lugar. Fomos seduzidos, desconfio.
O coração dela saltou. Ele não podia ir embora!
Seus homens ainda não comeram.
Podem levar a comida com eles.
Os leitões ainda não estão prontos. E alguns de seus homens... — Sua voz arrastou-se enquanto olhava para as árvores frondosas que circundavam a casa. Kent captou sua mensagem: ele também vira alguns de seus homens se esgueirando para os arbustos com as escravas.
Lançou-lhe outro olhar prolongado e curioso.
Por que não tem medo de nós?
Mas eu tenho.
Você já disse, mas não consigo acreditar. Nunca vi uma mulher agindo como você. Estou acostumado com histeria, fuga, desmaios. Ou mulheres se escondendo atrás de seus homens. Você é feita de um estofo diferente. — Seus olhos se desviaram do rosto dela para os ombros, nus e brancos ao luar. — Mas está tremendo, madame. A noite está esfriando.
Nesta altitude — disse ela sem fôlego, como se a altitude dificultasse a respiração — a temperatura cai à noite, muito embora desfrutemos de dias muito quentes.
E como se aquecem à noite? — perguntou, enquanto a ironia bailava em seus olhos.
A Martinica tem seus lugares quentes.
Kent notou o desafio nos olhos dela. E quando Brigitte se moveu levemente, captou o reflexo de fogo azul no seu peito. Outro desafio?
Mostre-me esses lugares quentes — disse em voz baixa.
Enquanto atravessavam de novo o pátio fumacento, alguns homens de Kent se dirigiram a ele alegremente, fazendo comentários jocosos acerca de sua parceira. Agora eles estavam partindo pedaços de pão para si mesmos e entalhando abacaxis e cocos. Brigitte notou que estavam usando suas próprias adagas em vez das facas de cozinha fornecidas pelas escravas. Também notou que o Sr. Phipps havia encontrado as taças de peltre novas em folha chegadas recentemente da França, ainda na sua embalagem de palha, pois era nelas que os piratas bebiam, mais uma vez evitando a possibilidade de ser envenenados. Na verdade, eles não corriam quaisquer riscos, cuidavam para que cada cebola, cada pitada de pimenta que entravam nos pratos fossem testadas num humano, e uma vez que os leitões estavam assados preferiram cortá-los com suas próprias adagas.
Mas pelo menos estavam comendo e bebendo, que era com que Brigitte havia contado, impedindo que se retirassem tão logo se apossassem do ouro. Se fossem embora ela nunca mais teria outra chance com Kent.
Brigitte mantinha a cabeça erguida e tentava não olhar na direção do marido enquanto conduzia o capitão pirata em meio à multidão em festa, passava pela beira do gramado imaculado e entrava na fria e densa folhagem da selva.
Tão logo as folhas e frondes espessas se fecharam atrás deles, o som foi abafado e um estranho silêncio os engolfou. Brigitte ouviu atrás de si a alfange de Kent sendo sacada da bainha. Mas apressava-se à frente na trilha mal visível ao luar. Acima, a cobertura frondosa só permitia alguns lampejos da lua cheia; criaturas invisíveis rastejavam aos pés deles, e olhos dourados piscavam na escuridão. Finalmente chegaram à orla da floresta densa e puderam ouvir acima um curioso som precipitado.
Brigitte entrou primeiro, e quando Kent juntou-se a ela, parando abruptamente ao lado, ouviu a afirmação sussurrada do pirata. Porque estavam diante de uma visão além da crença.
A lagoa estava talvez a uns trinta metros abaixo, orlada por amplas pedras lisas, baixios juncosos, dunas relvosas, e uma estreita faixa de praia arenosa. Ela se abria para o céu de modo que a lua cheia refletia-se como uma moeda de ouro à superfície da água, que se agitava em círculos concêntricos provenientes da mais espantosa queda d'água, originada de um gêiser que borbulhava através de rochas altas acima e cascateava num jorro de espuma branca e vapor quente.
Embainhando sua alfange, pois percebeu que não havia nenhuma armadilha ali, Kent deu um passo à frente.
Nunca em minha vida vi um lugar como este! — afirmou, de novo. — E como uma casa de banho! Como a água fica tão quente?
É aquecida por nascentes vulcânicas muito abaixo do solo — explicou Brigitte, notando que uma fina transpiração tinha brotado na testa dele. Aqui, neste clima abafado, orquídeas silvestres cresciam em profusão e parreira verde-jade, flores de flamingo, muitas variedades de hibisco e outras plantas carnudas com caules intumescidos.
Caminhando até a margem, Kent pôs as mãos nos quadris e examinou a cena espantosa. A atmosfera tórrida já começava a enrolar as pontas de seu cabelo e contas de suor a aparecer em torno de sua boca. Ele tirou o chapéu e depois o comprido casaco preto, dobrando-o cuidadosamente no chão. Brigitte viu como a camisa de linho branca começara a grudar nele em partes úmidas, delineando os músculos.
Kent esfregou a testa, confuso. A névoa quente e o perfume floral estavam confundindo seu raciocínio. Este paraíso verdejante e opulento o havia privado da lógica e da sanidade. Em toda a sua vida nunca se vira tão seduzido, nem sequer pensara que algum dia poderia ser. Olhou para sua enfeitiçante companhia e de novo o refulgir do fogo azul no peito de Brigitte capturou seu olhar. Era o cristal que estava lançando o encantamento, ou era a mulher? Ou ambos?
Ele a alcançou em quatro passadas e tomou-a nos braços.
Desde que chegamos — disse numa voz áspera — tive a sensação de que você queria nos manter aqui. Desconfiei de uma armadilha. Pensei que tivesse mandado mensageiros ao forte. Mas já era tempo agora de os soldados terem chegado, e meus vigias já os teriam detectado. Não mandou nenhuma mensagem, mandou?
Ela sacudiu a cabeça.
Queria que eu ficasse?
Ela assentiu lentamente.
Jure. Por tudo que lhe é mais sagrado. Jure que é verdade que queria que eu ficasse.
Juro — sussurrou ela. — Pela vida dos meus filhos, juro que queria que você ficasse. — E era a verdade.
Ele a puxou para si e beijou-a. Separaram-se por apenas um instante, para tomar um fôlego apressado, depois ele a atraiu para si novamente enquanto a cachoeira se despejava cheia de vapor e a lua olhava para baixo com um olho imparcial. Brigitte, rendendo-se aos beijos dele, pensou no adivinho cigano de tanto tempo atrás e percebeu que a lenda era verdadeira: a Estrela de Catai possuía os poderes do amor e da paixão. Sem ela, Brigitte soube, esta noite nunca teria acontecido.
Jaziam sobre a relva úmida, exaustos. Haviam nadado na lagoa aquecida e se abraçado debaixo da queda d'água.
Você é mágica e rara, tal como esta pedra azul, e tão linda quanto ela. Venha comigo, Brigitte. Venha viver comigo na minha plantação na Virgínia. Eu a faria muito feliz — murmurou Kent.
Falou durante algum tempo sobre seu lar na América, e depois foi caindo no sono com Brigitte em seus braços, olhando para a lua tropical enquanto ela fazia seu lento progresso rumo ao horizonte ocidental.
Kent acordou com o som de pássaros. O céu ainda estava escuro, mas a lua se fora e o alvorecer não ia demorar. Viu Brigitte de pé à beira da água, tão vestida quanto poderia estar sem a ajuda de uma criada para dar os laços no espartilho.
Kent vestiu-se silenciosamente, envolto na magia do que tinha acontecido. E enquanto tomavam o caminho de volta para a plantação e a realidade, Kent soube de duas coisas: que desejava ficar com esta mulher e que estava com uma fome desesperada.
A maioria de seus homens estava espalhada em volta da fogueira quase extinta, cochilando, de boca aberta. Alguns cambaleavam em torno, gemendo e vomitando. As mulheres tinham desaparecido.
Colette apareceu de repente, como se estivesse esperando a volta de sua ama, trazendo um prato de comida quente e uma caneca de rum.
Ela guardou um pouco para você — disse Brigitte a Kent, pegando o prato e estendendo-o a ele. — Do contrário só teriam sobrado ossos.
Kent sorriu enquanto sentava-se no gramado e enchia a boca com a carne suculenta. Tinha sido temperada e assada com perfeição. Seus homens, quando ficassem sóbrios, jurariam que nunca mais comeriam tão bem.
Ele virou o rosto para o leste, onde a claridade começava a lavar o horizonte.
Temos de zarpar em breve. Meu navio está escondido, mas ainda corre o risco de ser descoberto.
Brigitte olhou para os chiqueiros, onde os homens tinham sido trancados. A maioria dormia, tendo bebido toda a sua cota de rum que as mulheres tinham trazido para eles. Mas não receberam comida, sob ordens estritas de Colette, que fora instruída por Brigitte. Ela viu Henri, ainda acorrentado, parecendo abjeto e infeliz.
Recolha tudo que queira levar consigo o mais rápido possível — disse Kent enquanto devorava a suculenta carne de leitão e empurrava com rum. — Não vai precisar de muita coisa, querida, pois comprarei todos os vestidos e jóias que quiser.
Brigitte viu Colette junto à varanda, observando, olhos solenes na face negra. Permanecia de braços cruzados, como se os eventos da noite não lhe dissessem respeito.
O céu continuava a clarear e a floresta tropical circundante despertou com guinchos de macacos e o estridente cantar de pássaros. O último dos piratas desabou ao chão, mas Kent não notou empenhado em embeber o resto de molho no seu prato num pedaço de pão.
Não está com fome, meu amor? — perguntou com a boca cheia.
Ela por fim se ajoelhou ao lado dele, as saias se espalhando ao seu redor, as cores do vestido parecendo um pôr-do-sol — ouro em fundo rosado.
A Martinica é conhecida por suas flores, m’sieu. Mas, mesmo assim, muitas de nós trazemos de casa nossas plantas preferidas. Conhece o oleandro? — Ela apontou para uns arbustos altos e folhosos ostentando brotos cor-de-rosa. Cepos brancos podiam ser vistos onde os galhos tinham sido cortados mais cedo.
Kent sugava o último osso de leitão e depois mastigou o pedaço restante de pele tostada.
Espere até ver as flores na América, minha cara.
Ela apontou para os espetos descartados ao lado das covas de assar.
Assamos os leitões naqueles galhos. Eu disse a Colette que se certificasse de que toda a cortiça fosse bem aparada, antes de se enfiar a carne nos espetos.
Ele tomou um grande gole de rum e lançou-lhe um olhar perplexo.
O que isto tudo tem a ver comigo? — perguntou.
O oleandro é venenoso. Cada parte dele.
Kent pareceu confuso.
Seus homens não estão dormindo, m’sieu, eles estão mortos. — Gesticulou para Colette que, sabendo o que era esperado dela, saiu correndo. Foi de um homem a outro, a todos os corpos esparramados no pátio, sentiu a pulsação de cada um no pescoço, brevemente. Ao terminar, deu um sorriso de triunfo para sua ama.
Kent piscou.
Mortos? Do que está falando? — E então a compreensão despontou sobre ele tal como o alvorecer desponta sobre os picos das montanhas e dispara estrias de luz através da plantação. Agora ele viu o que não tinha visto na luz nevoenta da aurora: que seus homens jaziam em posições estranhas e pareciam silenciosos demais para quem está dormindo.
Ele se pôs de pé, derrubando o prato e o copo.
Não acredito em você. Cada etapa do banquete foi supervisionada, cada ingrediente foi provado.
Você só pensa no veneno que vem de fora para dentro. Nunca pensou no veneno que vem do interior para fora. Enquanto o assamento prosseguia, a seiva dos galhos de oleandro foi liberada e penetrou na carne dos porcos.
Não acredito em você.
Olhe para seus homens.
Ele virou-se lentamente, piscando à visão dos corpos estirados na luz pálida do amanhecer.
A voz de Brigitte chegou-lhe através da vagarosa fumaça das fogueiras.
Você disse que existiam mil maneiras de envenenar um homem. Estava errado, m’sieu. Há mil maneiras, e mais uma. Você não sabia do oleandro.
Kent lançou-lhe um olhar incrédulo.
Quando tomou esta decisão?
A partir do momento em que os vi pelo telescópio. Antes que você e seus homens chegassem à plantação. Esteve certo o tempo todo, m'sieu. Foi uma armadilha. Quando os vi subindo a colina e soube que não havia mais tempo de avisar a fortaleza, percebi que nossa única esperança residia no envenenamento de todos vocês. Mas isto requeria mantê-los aqui. E a única forma de conseguir isto era seduzindo você.
Por Deus, mulher, você não me seduziu! Foi justamente o contrário!
Ela apontou para os espetos descartados.
Aqueles já estavam preparados antes de vocês chegarem à plantação. Já pensou por que não mandei um mensageiro ao forte tão logo os vi? Verdade, os soldados não poderiam chegar a tempo, mas mesmo assim não lhe pareceu estranho que eu nem tentasse?
Ele não respondeu, mas passou as mãos sobre o rosto transpirante, que tinha ficado chocantemente branco.
Decidi não mandar um mensageiro ao forte porque os soldados iriam se pôr em marcha e vocês os veriam e teriam escapado. Para meu plano funcionar eu precisava segurá-los aqui até que os leitões fossem comidos. Portanto, assumi um jogo.
O olhar de Kent tornou-se furioso.
Quer dizer que aquilo que partilhamos na gruta nada significou para você?
Significou algo para mim, m’sieu. Significou salvar a vida de meu marido. Também significou salvar o legado dos meus filhos. — Ela apontou para as arcas de moedas de ouro que os piratas escavaram debaixo do mirante. — Aquele ouro pertence aos meus filhos. Meu marido construiu essa fortuna para transmitir aos nossos filhos e filhas. Pensou que eu deixaria você levá-la?
Ele subitamente agarrou a cabeça.
—- Não me sinto bem.
Deveria tê-lo afetado rapidamente. Ao contrário de seus homens, você comeu um pouco mais, apenas a carne. E teve pouco para beber.
Vai ficar parada aí me vendo morrer?!
Você mesmo escolheu isso — disse ela, sem qualquer vestígio de piedade na voz.
Tem coragem de dizer isto... depois do que tivemos juntos? Você gostou!
Que pretensão, m’sieu. Seu toque foi nojento.
Então você não passa de uma puta.
Não, m’sieu, sou simplesmente uma mulher que faz tudo para conservar sua família. Até mesmo dormir com uma serpente.
O suor escorria de sua testa.
Enganei-me ao considerá-la uma dama.
Você se enganou ao subestimar o que uma mulher é capaz de fazer para proteger sua família.
Ele apertou o estômago.
Pelo amor de Deus! — gritou.
Ela o observou com um frio distanciamento, como olharia para uma panela a ferver. Quando a cor dele passou de branco para cinza, e depois um estranho púrpura ergueu-se do seu pescoço, ela disse:
Meus escravos já estão a caminho da fortaleza para alertar os soldados. Não vai demorar até que cheguem aqui. Mas você já estará morto até lá.
Kent tentou alcançá-la. Ela recuou e, enquanto ele caía, seus dedos se enroscaram no braço, rasgando o corpete. Quando Kent bateu no chão, o cristal azul estava fechado no seu punho, suas tonalidades de magia e encantamento brilhando entre os dedos ao sol nascente.
-Ma chou, você é o assunto das Antilhas. É uma heroína!
Eles estavam prontos para dormir. Embora tivessem acabado de receber convidados, Henri fizera questão de manter-se sóbrio. E agora olhava para a esposa com amor e desejo nos olhos.
Vê que ironia, Henri? Se eu lhe tivesse contado qual a verdadeira fonte de meu descontentamento, você nunca me compraria o telescópio, e sem o telescópio aquela noite teria sido bem diferente.
Graças a Deus, então, por eu ser tão obtuso.
Ela entrou sob as cobertas e apagou a vela.
Henri, quero trazer as crianças de Paris. Sei que não se faz isto. Colonos não educam seus filhos nas ilhas. Mas seremos os primeiros. Importaremos tutores, instrutores de equitação, damas de boa qualidade para ensinar etiqueta e conduta. Talvez eu possa fundar uma escola. Sim, é o que faremos.
Sim, ma chou — disse Henri, decidindo que de agora em diante diria sim a tudo que ela pedisse.
Ele tentou tocá-la, mas ela recuou.
O que é, ma chou?
Você se apaixonou por mim porque eu era linda. E depois você viu o quanto estava bonita naquela noite com Kent. Mas foi a Estrela de Catai. Ela me deixou linda, e fui capaz de distrair o Capitão Kent por tempo suficiente. — Com muito tato, Henri não perguntou sobre o que aconteceu na lagoa e, apesar de o desalinho de suas roupas na manhã seguinte (Brigitte tinha claramente lutado com o patife e defendido sua honra), convencera-se de que sua esposa, sendo uma hábil conversadora, tinha meramente falado com o inglês a noite toda. Brigitte, é claro, não o desenganou desta noção.
Mas você é linda — disse ele. — Não precisa de nenhuma gema para isto. — Ele pensou por um momento, depois disse: — Muito bem. — Saiu da cama e voltou logo depois. No escuro ela sentiu os dedos dele no corpete de sua camisola.
O que está fazendo?
Tornando-a bonita. Aqui. Aqui está o seu cristal azul.
E ela sentiu sua magia atuar de imediato, a Estrela de Catai, transformando-a. Aceitou muito feliz o abraço de Henri, sentindo-se bonita de novo, pois o que pode funcionar com um pirata pode igualmente funcionar com um marido.
E depois que satisfizeram sua paixão, e Brigitte decidindo que a vida na Martinica ia ser um paraíso, afinal, Henri acendeu a vela para iluminar o camafeu de marfim que ele havia pendurado no peito dela. O cristal azul estava ainda na caixa.
Ela sorriu suavemente e o procurou mais uma vez.
Ínterim
Depois da derrota de Christopher Kent, a Martinica nunca mais sofreu invasões piratas, e a assim chamada idade de ouro da pirataria chegou ao fim logo depois, quando todas as marinhas do mundo se uniram para limpar os mares. Henri e Brigitte viveram até a idade madura de 60 e 63 anos, respectivamente, deixando um legado de riqueza e honra para os filhos. A plantação Bellefontaine sobreviveu a terremotos, furacões e a uma erupção maciça do monte Pelée para se tornar, na atualidade, uma popular atração turística onde os visitantes ouvem de simpáticos guias de excursão a excitante história de como o casal Bellefontaine, armados somente com um telescópio e um mosquete, conseguiram derrotar cem piratas sanguinários no decorrer de uma única noite.
Em 1760, o filho, à época um homem dissoluto, sofrendo, de gota e doença venérea, estava num jogo de pôquer com um homem chamado
James Hamilton. Tudo que restava ao Bellefontaine era um cristal azul que havia pertencido a sua mãe. Não fazia idéia do seu valor, só que ficara conhecido como Estrela de Catai. Ele perdeu o jogo e a posse do cristal passou para James Hamilton, que o deu de presente a sua amante, Rachel, que deu-lhe dois filhos bastardos na ilha de Nevis, nas Antilhas. Pouco depois que a família mudou-se para a ilha de St. Croix, James Hamilton abandonou Rachel e os dois meninos, Alexander e James. Usando o cristal azul como penhor, Rachel obteve um empréstimo e abriu uma lojinha na cidade principal, onde James aprendeu carpintaria e Alexander, de 11 anos de idade, tornou-se burocrata no posto comercial. Eles prosperaram e Rachel pôde resgatar o cristal azul, por motivos sentimentais.
Quando o filho mais novo completou 17 anos, um clérigo local levantou recursos para mandá-lo estudar em Nova York. Enquanto cursava o Kings College, Alexander Hamilton conheceu e se apaixonou por Molly Prentice, filha de um ministro metodista. Ele jurou devoção a Molly e deu-lhe o cristal azul, que sua mãe lhe dera de presente quando partiu das Antilhas, para selar seu juramento. O pai de Molly, porém, não aprovou o relacionamento da filha com um rapaz pobre de linhagem dúbia, e mandou-a para a casa de parentes em Boston, onde mais tarde Molly se apaixonou e casou com Cyrus Harding, dando-lhe oito filhos. Ela nunca mais viu Hamilton, mas guardou o cristal como lembrança de seu primeiro amor. Quando soube da morte dele em duelo com um homem chamado Aaron Burr, não agüentou mais olhar para o cristal e deu-o de presente de núpcias à filha Hannah, uma moça com tendências místicas que alegava ser capaz de se comunicar com os mortos. O cristal, Hannah declarava, era de grande ajuda neste aspecto.
O Oeste Americano, 1848 d.C.
Leste, Sul, Norte e Oeste,
Dizei-me, ó Espírito, que caminho é melhor.
Após terminar seu cântico silencioso, Matthew Lively manteve os olhos fechados por mais um instante, depois os abriu para ver onde o cristal giratório tinha ido descansar. Era assim que Matthew tomava todas as decisões importantes: consultando a Pedra da Benção.
Abriu os olhos. A pedra apontava para oeste.
Sentiu um pequeno arrepio de excitação. Já tinha desejado ir para o oeste, para ver a nova região do outro lado das montanhas Rochosas, talvez até mesmo cavar uma vida inteiramente nova para si por lá. Mas se a Pedra da Bênção lhe tivesse dito que fosse para o leste, e depois para a Europa, ele cruzaria o oceano; o sul o teria levado à Flórida, e o norte o faria embrenhar-se nos ermos do Canadá.
Mas a pedra apontava para a palavra "oeste", que ele escrevera numa ampla folha quadrada de cartolina com as palavras "sul", "leste" e "norte", delineando os quatro pontos cardeais com a ajuda de um compasso. Depois havia colocado o cristal liso, que sua mãe batizara de a Pedra da Bênção, no centro da folha e o rodopiara. Ele tinha parado com a sua extremidade mais fina apontando para oeste.
Ele mal continha sua alegria. Amassando a cartolina e devolvendo o cristal ao seu estojo especial forrado de veludo vermelho, apressou-se em descer para comunicar seus planos à mãe. Mas parou ao pé da escada. As cortinas estavam cerradas na entrada para a sala de visitas, o que significava que uma sessão estava em andamento e que, portanto sua mãe não podia ser perturbada.
Matthew não se importou. Era jovem e estava faminto, então comemoraria com bolo e leite na cozinha até que os clientes de centro espírita de sua mãe tivessem partido.
Enquanto cortava para si uma generosa fatia de bolo de chocolate, ele esperava que a mãe tivesse feito bons contatos com os espíritos nesta tarde; não estava disposto a discutir com ela, nem aturar uma recusa à sua partida para a Costa Oeste. Matthew precisava ir; ele morreria aqui em Boston se não fosse.
Tudo por causa de Honoria. Ela quase o matou ao recusar sua proposta de casamento. Seu coração sofria uma dor mortal. Não havia placebos para este tipo de ferida. Não era só por ela ter dito não, mas o modo como disse. Com um tom horrorizado: "Eu não poderia viver com um homem que lida diariamente com corpos de falecidos." Matthew não a culpava. A própria Honoria era frágil, passando metade do tempo recolhida ao leito onde recebia as visitas. Além disso, ele próprio não era feito de proporções heróicas. Matthew Lively sabia muito bem o que as pessoas viam quando olhavam para ele: um jovem pálido e nervoso que freqüentemente gaguejava e que, apesar de sua formação universitária, era completamente inseguro.
Ainda assim, a rejeição de Honoria o havia magoado e Matthew Lively, 25 anos de idade e terminando seu copo de leite, decidiu descartar as mulheres para sempre.
Hannah Lively, filha de Molly Prentice, que certa vez fora o interesse amoroso de Alexander Hamilton, chegou à cozinha, uma mulher simples em bombazina preta, uma pequena touca de renda na cabeça.
Foi uma boa leitura, mãe? — perguntou Matthew. Orgulhava-se do fato de sua mãe ser uma das espiritualistas mais procuradas da Costa Leste.
Os espíritos vieram com muita clareza hoje. Mesmo sem a ajuda da Pedra da Bênção. — A seguir ela lançou-lhe um olhar de expectativa.
Mãe, a pedra apontou para oeste!
Ela assentiu sabiamente
O espírito-guia no cristal sabe onde jaz o seu destino.
Com 60 anos de idade e considerada uma autêntica profetisa por seus muitos amigos e vizinhos, Hannah Lively acreditava piamente no poder do cristal, portanto Matthew não lhe contou que o fizera girar 11 vezes antes que apontasse finalmente para oeste. Ele supunha que a pedra simplesmente necessitava de aquecimento.
Tenho de partir imediatamente para Independence — disse ele empolgado. — Dizem que não se deve partir depois de primeiro de maio. As caravanas que seguem depois das primeiras não obtêm boa pastagem ao longo da trilha, e é crucial alcançar as montanhas da Califórnia antes da primeira nevasca... — Ele parou quando percebeu o que tinha revelado: que o tempo todo planejara ir para o oeste.
Sua mãe não se importou. Desde que o cristal houvesse dado sinal verde, seu filho estava livre para seguir para onde seu coração mandasse.
Ouviram a porta da frente se abrir e fechar, pés pisando no capacho do hall Era o pai de Matthew, batendo as gotas de chuva de sua cartola — um cavalheiro alto de cabelos grisalhos com porte distinto, como convinha a sua profissão.
O garoto do Simson morreu — disse, solenemente. — Pneumonia, não podia ser salvo. — E seguiu para a biblioteca.
Jacob Lively sentou-se à escrivaninha e, como era seu hábito, cuidou dos negócios antes de qualquer outra coisa. Um meticuloso mantenedor de registros, o Lively mais velho pegou um atestado de óbito em branco, molhou a caneta no tinteiro e preencheu cuidadosamente os campos, sacando o relógio de bolso para confirmar a hora da morte: foi uma caminhada de seis minutos exatos desde a casa de Simson.
Só depois de concluída a tarefa é que deu atenção à família e, transformando-se em marido e pai, levantou-se com um sorriso.
Posso deduzir, pelo aspecto do rosto de meu filho, que uma decisão foi tomada?
Vou para o oeste, pai.
Jacob abraçou Matthew.
Sentirei sua falta, filho — disse, com uma rara emoção —, e esta é a verdade de Deus. Mas você nasceu para fincar raízes em terra estranha. Sempre soubemos disso, eu e sua mãe. — Os Lively tinham visto a inquietação crescente no filho mais novo e entendido a sua ânsia em partir para um lugar onde se sentisse necessário. Reconheciam que o oeste era onde suas habilidades seriam mais do que necessárias. — Agora que a hora está sobre nós, filho, desejo-lhe boa sorte.
Os pais o presentearam com uma valise preta com suas iniciais estampadas em ouro. Dentro, havia bisturis, tesouras, agulhas para suturar pele e carne, fios de seda e categute, esparadrapos e ataduras, seringas e cateteres — tudo novo em folha. Os olhos dele se arregalaram quando tirou da valise um prezado instrumento.
Um estetoscópio!
Francês legítimo — disse o pai com o peito inflado de orgulho. Poucos estavam em uso deste lado do Atlântico.
O longo tubo de madeira, com uma extremidade alargada para ser colocada sobre o peito de um paciente, só tinha sido inventado alguns anos antes. As criações originais haviam sido muito mais curtas, e então os médicos perceberam que um tubo de asculta mais comprido permitia distância suficiente para evitar que as pulgas do paciente pulassem sobre eles.
Antes de Matthew partir, sua mãe queria fazer uma última leitura, pois planejava mandar a Pedra da Bênção com ele, levando em conta que naquela viagem de quase cinco mil quilômetros entre Boston e o Oregon, seu filho precisaria muito mais do cristal do que ela.
Enquanto a mãe se consultava reservadamente com a Pedra da Bênção, Matthew andava de um lado para outro na sala. A aventura iminente tanto o empolgava quanto assustava. Era a primeira vez na vida que assumira a iniciativa de fazer algo por conta própria. Desde pequenino que tinha sido um seguidor. Havia até mesmo acompanhado os irmãos mais velhos na profissão do pai (e se Matthew algum dia teve aspirações de seguir uma outra carreira, ele as havia sepultado, pois uma iniciativa tão ousada não estava em sua natureza).
Depois de ter comungado com o espírito na Pedra da Bênção, Hannah pegou a mão do filho e depôs o cristal nela, fechando os dedos dele em torno da pedra.
Preste atenção agora, filho — disse ela, gravemente. — Um grande desafio o espera. Você deve enfrentá-lo com força, coragem e sabedoria.
Sei disso, mãe — replicou, gentilmente. — É uma jornada longa e incerta para o Oregon.
Não, filho, não estou falando da viagem. Sim, ela será árdua, mas qual a trilha que não é? Falo de uma outra coisa... um momento decisivo na jornada. Uma coisa—seu rosto ficou perturbado — terrível e sombria.
Isto o alarmou.
Posso evitá-la?
Ela sacudiu a cabeça.
Ela foi colocada diante de você, é a sua sina. Mas está lá como um teste. Deixe o cristal guiá-lo, filho, ele o conduzirá à luz e à vida.
E então chegou a hora da partida. Ele tinha um longo caminho a percorrer — a pé, a cavalo, de charrete, de balsa e trem — de Boston à Independence, Missouri, onde a estrada do seu destino ia começar.
— Eu já disse a você — o guia da caravana gritou com franqueza. — Não vou levar mulheres desacompanhadas e ponto final!
Emmeline Fitzsimmons olhou exasperada para Amos Tice. Tinha passado as duas últimas semanas em Independence, o ponto de partida para a Trilha de Oregon, percorrendo o vasto acampamento onde famílias aguardavam o início da jornada para o oeste, e ainda não encontrara um chefe de caravana disposto a levá-la. Não era justo. Uma boa quantidade de homens solteiros estavam encontrando vaga nas caravanas. Mas uma mulher sozinha...
Ela queria gritar.
O Capitão Amos Tice fora originalmente um montanhês desbravador e seu traje mostrava isso: jaqueta franjada de pele de gamo sobre calças listradas, botas, camisa de flanela e um cinto indígena de contas do qual pendia uma comprida faca de caça. Seu chapéu de aba larga manchado de suor sombreava um rosto avermelhado pelo sol e uma barba agrisalhada pela idade e vida dura. Ninguém sabia exatamente do que era "capitão", mas ele tinha fama de ser justo e cuidar para que os imigrantes chegassem ao seu destino.
Tice examinou a audaciosa jovem mulher de cima a baixo: embora Emmeline Fitzsimmons não fosse exatamente bonita, e ele não tinha nada contra sardas e cabelos soltos provocativos, ainda assim era graciosa, ele pensou, e gostou da sua figura rechonchuda e robusta. Mas ela era um convite à encrenca no livro de qualquer homem.
Sinto muito, moça — repetiu ele. — Mas temos regulamentos. Não é permitido mulher solteira viajar sozinha.
Emmeline estava para lá de frustrada. Este era o sétimo guia de caravana que a recusava e suas possibilidades estavam diminuindo. Os primeiros comboios já haviam partido; dentro de duas semanas as partidas seriam suspensas por causa da neve nas Sierras.
Mas eu posso ser útil. Sou parteira. — Ela abarcou com o braço a multidão de mulheres e crianças. — Pela aparência de algumas dessas mulheres, elas vão precisar dos meus serviços.
Tice franziu o cenho em desaprovação. Nenhuma dama educada mencionaria um assunto tão delicado quanto o estado gestante de uma mulher. Duvidou que ela fosse mesmo parteira. Jovem demais, gentil demais. E desacompanhada. O tipo que causava as piores encrencas. A jornada para o Oregon tinha pouco mais de três mil quilômetros e com a ajuda de Deus levaria quatro meses. Eram quilômetros demais e noites demais para ter uma mulher assim no trajeto. Começou a virar-se, apresentando as costas largas como sua palavra final.
Se eu encontrar alguém — disse ela, rapidamente —, se encontrar uma família que se responsabilize por mim, permitiria que eu me juntasse a sua caravana?
Ele coçou a barba e cuspiu suco de tabaco no solo lamacento.
Tudo bem, mas primeiro tenho de aprovar a família.
Independence era uma agitada cidade de fronteira onde se misturavam todos os tipos de pessoas: caçadores canadenses envoltos em peles; tropeiros mexicanos em vistosas jaquetas azuis e pantalonas brancas; índios kanza pobremente vestidos montados em pôneis; oportunistas ianques vendendo tudo de imaginável sob o sol; e milhares de imigrantes com seus carroções e vívidas esperanças. O ar primaveril crepitava com o clangor das marteladas dos ferreiros, os gritos dos batoteiros nas ruas lamacentas e os sons de pianos fluindo dos cabarés. Pessoas apressadas entravam e saíam das lojas repletas de mercadorias, enquanto os índios se agrupavam nas ruas para vender suas habilidades.
Enquanto Emmeline permanecia de pé em frente aos armazéns movimentados, imaginando o que fazer em seguida, ela entreouviu um homem dizer para outro:
Isso mesmo, senhor, ouvi diretamente do meu irmão. Ele diz que lá no Oregon os porcos correm livres por toda a parte e sem dono, gordos e roliços e já cozinhados, com garfos e facas enfiados neles, de modo que tudo que você tem a fazer é cortar uma fatia toda vez que estiver com fome.
Foi então que ela viu o jovem doutor, indo para o boticário do outro lado da rua.
Tendo uma idéia súbita, atravessou a rua correndo e entrou. Parando para deixar que os olhos se acostumassem com a penumbra da loja, ela viu anúncios das Pílulas Biliares de Windham, do Bálsamo de Gileade do Dr. Solomon e do Ungüento de Holloway. As prateleiras atrás do balcão estavam repletas de tônicos e pós, destinados à curar tudo, de gota a câncer, todos alegando resultados comprovados. Emmeline pegou um frasco do Xarope Calmante para Bebês. O rótulo dizia que continha morfina e álcool. A dosagem recomendada era "até o bebê se acalmar".
Depois ela viu o jovem doutor conversando com o farmacêutico.
Deduzira que era um médico por causa da valise preta que carregava — era idêntica àquelas que seu pai e tios sempre levavam nas consultas domiciliares, a inconfundível valise preta do médico. O próprio jovem estava magro e pálido, seu terno mal-ajustado. E Emmeline achou que ele parecia nervoso. Quando passou no meio dos fregueses e se aproximou dele no balcão, o rapaz abriu a valise preta e tirou um frasco para o farmacêutico encher. Emmeline viu a gaze e ataduras, fios de sutura e tesouras.
Desculpe-me, doutor, mas estive pensando se poderia me ajudar.
Ele voltou-se para ela, sobressaltado.
Está falando comigo? — perguntou, um rubor se elevando do seu colarinho branco engomado.
Emmeline havia sido criada muito bem para saber que não se devia abordar um homem estranho sem ter sido primeiro apresentada. Mas estes eram tempos peculiares, e ali era a fronteira.
Meu nome é Emmeline Fitzsimmons — disse, ousadamente —, estou tentando ir para o oeste. Sou uma dama que vive por conta própria, porém os chefes de caravana estão relutantes em me aceitar. Deixe-me viajar com você, doutor. Posso ser sua assistente. Sou uma parteira experiente. — Ela ergueu a sacola de couro que continha os instrumentos e remédios de seu ofício. — Mas sou muito mais do que isso — apressou-se em acrescentar enquanto ele continuava a fitá-la boquiaberto. — Meu pai era médico e o ajudei no seu consultório. Eu também queria ser doutora, mas não me aceitaram na faculdade de medicina. — E acrescentou, amarga: — Só os homens podem se tornar doutores. — Depois sorriu animadamente. — Mas eu lhe seria de grande ajuda.
Matthew não sabia o que dizer à descarada mulher. Ao contrário de sua adorada Honoria, que era esguia e frágil, a Srta. Fitzsimmons era roliça e de seios fartos. Tinha lábios vermelhos cheios e os olhos eram orlados com pestanas compridas. Ela exalava um perfume feminino que quase o deixava tonto. Engoliu em seco. A feminilidade espalhafatosa da jovem o inibia, e estava horrorizado por ela sugerir algo tão impensável: dois estranhos, um homem e uma mulher, viajarem juntos.
Eu... eu sinto muito — gaguejou ele.
Olhe — disse ela, abrindo a sacola e extraindo certidões de nascimento em branco. — Vi atestados de óbito na sua valise. Como duas pessoas podem combinar melhor? Eu chamo a isso de um sinal!
Mas Matthew limitou-se a murmurar desculpas, pegou o frasco com o farmacêutico e saiu apressado.
Recusando-se a ser derrotada, Emmeline retornou ao imenso acampamento de imigrantes no rio e examinou o cenário mais uma vez. Muitas das caravanas já haviam partido, poucas permaneciam. Ela realmente queria juntar-se ao grupo de Tice, que deveria partir pela manhã. Ao contrário da maioria dos guias de caravana, Tice já tinha ido ao Oregon e voltado, conhecia o caminho e conhecia os índios. Por isto seu preço era maior do que aquele cobrado pelos outros guias; mas não importava o quanto Emmeline tivesse oferecido pagar, não era o bastante.
Parou para observar um homem jovem num terno axadrezado e chapéu-coco montar uma câmera sobre um tripé enquanto uma pequena multidão assistia. O letreiro no seu carroção dizia: "Silas Winslow, processo de daguerreotípia. Retratos com qualidade garantida." A nova invenção estava no auge. A própria Emmeline já se sentara para tirar um retrato antes de sair de casa no Illinois, uma lembrança para suas irmãs. Infelizmente, não pôde tirar um retrato delas para levar consigo, portanto só carregaria a lembrança dos rostos das irmãs no coração.
Prosseguiu por entre os carroções onde os homens conferiam as provisões e lubrificavam as rodas, e as mulheres supervisionavam o embarque dos utensílios. Quando Emmeline deparou com uma família recém-chegada, a esposa em gravidez adiantada tentando lidar com crianças, galinhas e uma carroça, ela abordou a azafamada mulher e apresentou-se do modo mais caloroso que seu estado de ânimo podia oferecer.
Sou parteira treinada e serei muito útil quando começar seu trabalho de parto, que com toda certeza será na estrada.
A mulher disse chamar-se Ida Threadgood e que ficaria grata pela ajuda.
— Seria uma bênção de Deus se viajasse conosco, Srta. Fitzsimmons. Uma bênção, de fato. Só que aquele homem — disse Ida amargamente enquanto voltava-se com expressão atormentada na direção do marido que colocava os bois na canga — é uma maldição.
Na límpida manhã primaveril de 12 de maio de 1848, todos trajavam as melhores roupas de domingo, as damas em espartilhos apertados e usando chapéus floridos com pára-sol, luvas e leques, os homens bem barbeados, de cabelo engomado, usando suspensórios e cintos com fivelas novas e reluzentes. As casas de banho de Independence ficaram lotadas na noite anterior, todos os imigrantes querendo tomar um banho caprichado antes de enfrentar a estrada. Uma banda tocava "Yankee Doodle" e "Star Spangled Banner" enquanto fogos de artifício espocavam e o Sr. Silas Winslow tirava retratos daqueles que podiam pagar. Família e amigos acenavam e enxugavam lágrimas das faces enquanto diziam adeus a entes queridos que partiam para um lugar desconhecido.
E então, colocando um pé diante do outro, os imigrantes começaram sua jornada. Seria uma viagem de milhares de quilômetros a uma velocidade de três quilômetros por hora. Eles se acomodaram nos carroções cobertos de lona e puxados por bois, que eram apelidados de escunas das pradarias, porque se moviam através da relva alta dando a impressão de navios velejando em meio a um mar verde. A caravana consistia de 72 carroças, 136 homens, 65 mulheres, 125 crianças e 700 cabeças de gado e cavalos. Cada carroça seguia carregada com móveis e pertences pessoais, mais as provisões compradas em Independence: 100 quilos de farinha, 50 quilos de bacon, 5 quilos de café, 10 de açúcar, 5 de sal. Suprimentos adicionais incluíam arroz, chá, feijão, frutas secas, vinagre, picles e mostarda. Os imigrantes também levavam artigos para comerciar: bobinas de algodão para os índios que encontrassem no caminho; renda e seda para os espanhóis; livros e ferramentas para os ianques já estabelecidos no oeste. As mulheres traziam toalhas de mesa, porcelana e a Bíblia da família. Os homens traziam armas, enxadas e pás. Eram acompanhados por um sortimento de cães, galinhas e gansos.
A trilha seguia a oeste de Independence, através do território dos índios shawnee, acompanhando o curso do rio Kansas, onde conseguiram ajuda de índios locais para a travessia em balsas (os índios cobravam 75 cents por carroça, o que os imigrantes chamaram de roubo de estrada). Enquanto os homens seguiam a cavalo, a maioria das mulheres caminhava ao lado das carroças, assim como os condutores de bois, com apenas os velhos e crianças debaixo das lonas. Ao fim do primeiro dia, a massa de carroças, bois, cavalos e mula parou para acampar à noite. Jantaram, dormiram, alimentaram os animais e na manhã seguinte retomaram viagem. Isto iria continuar pelos quatro meses seguintes, como uma grande aldeia em movimento. Encontravam gente ao longo do caminho dirigindo-se para a Califórnia, agora que havia sido anexada aos Estados Unidos e não mais havia guerra com o México. Mas os imigrantes a caminho do Oregon não viam sentido em ir para a Califórnia, que havia sido descrita como uma "terra inóspita sem valor que só tinha mexicanos e índios". Um sujeito, apressado e montado a cavalo, disse algo sobre descoberta de ouro, mas todos riram e zombaram dele como um tolo impressionável.
A pradaria estendia-se diante deles, plana, relvosa e viçosa onde tinha chovido. Os imigrantes ficavam de olho no horizonte enquanto caminhavam ao lado de seus carroções e bois, cada família seguindo obstinadamente a precedente e liderando a que vinha atrás: Tim e Rebecca O'Ross e seus filhos de casamentos anteriores; Charlie Benbow e a esposa Florine, os granjeiros; Sean Flaherty, o cantor irlandês e sua amistosa cadela preta, Daisy; os quatro irmãos Schumann da Alemanha, cuja carroça ia cheia de enxadas de ferro fundido e outros equipamentos agrícolas (os Schumann falavam muito pouco inglês e por um longo tempo pensaram que a palavra para "mula" era "maldição").
Os imigrantes começaram como estranhos um para o outro, mas rapidamente se tornaram íntimos. Como o Capitão Amos Tice nunca fazia perguntas sobre os assuntos pessoais de um homem, só se preocupando com que lhe pagasse o preço da viagem e concordasse em trabalhar duro e ajudar nas tarefas, caça e defesa contra os índios, cabia aos próprios viajantes se conhecerem. Desta maneira descobriam quem procedia de Ohio, Illinois ou Nova York; quem tinha qual profissão; quem enviuvara e se casara de novo e quantas vezes. Uma tarde, um condutor de bois do Kentucky chamado Jeb abordou Matthew Lively e falou, "A Sra. Threadgood disse que a Srta. Fitzsimmons contou a ela que você é médico. Pode me arrancar um dente?" Jeb estava esfregando a mandíbula inchada e parecendo um tanto verde. Mas Matthew disse não ter prática em extrair dentes, mas que ouvira dizer que Osgood Aahrens, no último carroção, era barbeiro e, portanto tinha.
Ida e Barnabas Threadgood, como a maioria dos casais na caravana, estavam no seu terceiro e quarto casamentos, respectivamente, pois tinham enviuvado de seus acasamentos anteriores, e tinham uma ninhada de filhos. Ida estava satisfeita com a assistência da Srta. Emmeline, que ajudava a cozinhar, lavar e cuidar das crianças em troca de uma cama no carroção e a proteção de uma família (pois foi notado entre os homens que uma mulher desacompanhada estava na caravana e aí começaram a zumbir em torno dela que nem abelhas). Este fato não passou despercebido a Albertina Hopkins, que declarou: "Aquela garota vai causar rebuliço entre os homens solteiros. Guardem minhas palavras: a Srta. Emmeline Fitzsimmons será motivo de brigas."
As outras mulheres concordaram, pois desconfiavam de uma mulher viajando por conta própria, especialmente uma mulher jovem que parecia não fazer segredo de estar desacompanhada. A Srta. Fitzsimmons não estava nem um pouco envergonhada ou recatada, e se imiscuía com os homens um tanto livremente demais para o gosto das outras mulheres.
Enquanto revirava o bacon na frigideira, Albertina disse em voz alta o bastante para que todos, inclusive Emmeline, ouvissem: "Nenhuma mulher decente andaria por aí com a cabeça descoberta como aquela, deixando o cabelo esvoaçar livremente. Todos sabem o que aconteceu com Jezebel na Bíblia."
Albertina também opinava sobre outros tópicos. Quando depararam com uma família de negros na trilha, tentando ir para oeste por conta própria com nada mais que três carroças, foi feita uma votação acerca do pedido deles para se juntarem à caravana. Embora Emmeline, Silas Winslow, Matthew Lively, Ida e seu marido votassem a favor dos negros, todos os demais rejeitaram a idéia. Assim, Amos Tice teve de explicar aos ex-escravos do Alabama que fariam melhor se fossem para a Califórnia, onde negros eram bem recebidos. "O Oregon não está admitindo negros", ele disse, o que era verdade.
Enquanto deixavam para trás três carroças decrépitas, seis bois, dois cavalos, uma vaca e uma família de cinco adultos e sete crianças na pradaria aberta, Albertina Hopkins declarou: "Se as pessoas de cor querem ir para o oeste, isto não é da minha conta. Não tenho nada contra essa gente. Só acho que eles deveriam viajar com a sua própria raça. E por que alguém iria para um lugar onde não é desejado, está além de minha compreensão."
Albertina era uma mulher obesa com cara de buldogue e uma voz tão alta quanto sua corpulência. Do mesmo modo que expressava sua cristandade, opinava acerca da moral duvidosa da Srta. Fitzsimmons, e tinha até mesmo batizado seus filhos em honra a duas frases em aramaico na Bíblia — a garota de Talitha Cumi, que significava "Levanta, menininha"; e o garoto de Maranatha, que significava "O Senhor está chegando". Albertina, sempre falando acerca de suas boas obras — talvez porque ninguém mais o fizesse — acreditava estar sendo chamada para o oeste a fim de levar o Senhor e a civilização aos pagãos (embora não soubesse ao certo quem eram os pagãos no Oregon).
O Sr. Hopkins, por outro lado, era um homem tranqüilo, gentil e agradável. Quando ambos enviuvaram, ele trouxera outro grupo de crianças para o casamento, da sua primeira esposa, e Albertina também viera com três, mas acabaram tendo mais dois. Era um bando de fedelhos aos olhos da caravana, correndo livres, pegando comida, atormentando os animais. Mas Albertina fazia vista grossa para as travessuras dos filhos e apregoava em voz alta que eles eram uns anjinhos. Cada homem na caravana lamentava pelo tranqüilo Sr. Hopkins e especulava qual seria a fonte de sua paciência sofrida até que uma noite, poucos dias após deixarem o Forte Loramie, os irmãos Schumann o encontraram sentado atrás de um choupo, bebendo escondido de uma botija de uísque.
Durante a quarta noite em acampamento, Albertina falou enquanto assava seus biscoitos: "Aquela Emmeline Fitzsimmons me disse ter 25 anos. Podem imaginar isto?" Albertina prosseguia usando expressões como "encalhada" e "deixada na prateleira". "Considero inadequado uma mulher solteira dar assistência aos partos. Nem quero saber como ela aprendeu sua profissão. Uma garota ainda donzela não entende dessas coisas." E acrescentou com um suspiro: "Pobre da Ida Threadgood." — As outras concordaram.
Matthew Lively não pôde deixar de ouvir, já que a voz de Albertina se espalhava pelo ar. Teve a forte sensação de que a Sra. Hopkins estava errada acerca da Srta. Fitzsimmons estar "encalhada". Nesses primeiros poucos dias na trilha teve fartas oportunidades de observar a jovem mulher de cabelo cor de gengibre silvestre, já que a carroça dos Threadgood era a terceira a sua frente, e suspeitava de que a Srta. Fitzsimmons não se permitia ser escolhida pelos homens, cabendo a ela a iniciativa da escolha. E se ela era uma solteirona, era porque não havia sido pedida em casamento.
Ele não sabia por que a Srta. Fitzsimmons chamava tanto a sua atenção. Não gostava particularmente dela. Parecia muito pouco feminina, e quando a observava comer com um apetite masculino chegava a ter náuseas. Sua adorada Honoria mal deixava a comida passar por seus lábios. Era tão magra que seus malares e clavículas ficavam dolorosamente proeminentes. E era tão fraca que mal podia erguer um leque para se abanar. Não era de admirar que metade dos rapazes em Boston estivessem desesperadamente apaixonados por ela. Mas havia algo atraindo-o para a Srta. Fitzsimmons o tempo todo, e ele desconfiava de que os motivos dela em ir para o oeste eram iguais aos seus — encontrar um lugar onde suas habilidades fossem necessárias.
À medida que a caravana avançava através da planície de Kansas, Ida Threadgood pressionou as mãos na barriga inchada e disse a Emmeline: "Graças a Deus você veio conosco. Isto não foi idéia minha. O tolo sem miolos do meu marido vendeu a fazenda e nem sequer me avisou. De lá fui retirada, com cinco filhos e mais um a caminho."
Emmeline tentou ocultar seu choque. Nunca tinha ouvido antes uma mulher falar tão desrespeitosamente do marido, mas estava aprendendo com muita rapidez que Ida não era a única com tais sentimentos. Muitas das mulheres na caravana estavam lá contra a vontade, acompanhando um marido ou pai para o oeste porque não tinham outra opção. Elas resmungavam suas queixas junto às fogueiras de comida e tinas de lavar roupa, longe dos ouvidos dos homens. Uma jornada como esta era uma aventura exclusivamente masculina. As mulheres precisavam de raízes, de um lar permanente, em especial quando os bebês começavam a chegar. Uma vez que nada mais podiam fazer, elas se consolavam com a crença de que a fartura de amanhã seria ganha com o trabalho duro de hoje.
A cento e oitenta quilômetros de Independence, depois de doze dias de viagem, a Sra. Biggs entrou em trabalho de parto. Quando Emmeline chegou para assisti-la, Albertina Hopkins tomou-lhe a frente, quase a derrubando ao solo e bloqueando o caminho para o carroção. Emmeline, querendo ir às vias de fato com a hipócrita Albertina, conteve-se em consideração à pobre parturiente.
No dia seguinte uma tempestade maciça se formou no horizonte e, enquanto se avizinhava rapidamente, a caravana dispôs as carroças num enorme círculo e fez um cercado para o gado e cavalos, depois sentaram-se tremendo de frio debaixo das lonas esvoaçantes enquanto trovões ribombavam e relâmpagos ziguezagueavam. Tendo sido apanhada pelo súbito aguaceiro enquanto ajudava a desatrelar os bois dos Threadgoods,
Emmeline correu para se abrigar na carroça mais próxima, que por acaso pertencia a Matthew Lively. Eles se aconchegaram em reverente silêncio enquanto a natureza fustigava os animais e ameaçava derrubar os carroções, provocando os gritos das mulheres e o choro das crianças. E então, tão rápido quanto surgira, a tempestade se espalhou pela planície, deixando atrás de si o mais espetacular arco-íris que alguém já tinha visto. Albertina Hopkins, descendo da sua carroça e enxotando a filharada rebelde para brincar na lama, olhou para a ruptura nas nuvens e disse, "Ah, o sol saiu", transpirando uma espécie de orgulho como se tivesse ela própria provocado o fenômeno.
Enquanto rastejava para fora do carroção, Emmeline sentiu sua curiosidade aumentar a respeito do jovem Dr. Lively. O rosto fino e comprido fazia-o parecer como se já tivesse presenciado muitos funerais. Teria ele perdido um monte de pacientes? ela especulava. Emmeline ignorava que ao mesmo tempo Matthew estava pensando: Por que a Srta. Fitzsimmons está sempre sorrindo? Onde ela consegue tanta energia? Ninguém nunca lhe disse que é censurável para uma garota falar demais?
Em 29 de maio, depois de duas semanas e meia de viagem, chegaram às margens do rio Big Blue, que fluía para o Kansas procedente do norte, e os imigrantes ficaram desanimados ao descobrir que as chuvas pesadas tinham aumentado tanto o volume do rio que era impossível atravessá-lo. Como a caravana se viu obrigada a fazer uma parada, os imigrantes aproveitaram a oportunidade para sua primeira lavagem de roupa e tomar banho desde que partiram de Independence. Sabão de sebo foi vigorosamente aplicado aos corpos e às roupas, as crianças sendo esfregadas com camisas, vestidos, cobertores, casacos e partes "indecentes" para lá de encardidas. Naquela noite uma lua crescente surgiu e os imigrantes se divertiram com música e histórias e flertes inocentes junto às muitas fogueiras. Silas Winslow, um solteiro bom partido com uma profissão lucrativa, descobriu-se como o foco da atenção de mães de filhas solteiras, bem como Matthew Lively, agora que se espalhara a notícia de que era médico.
Mas enquanto Winslow apreciava inteiramente ser tratado como um príncipe, e devorava as tortas e permitia que as damas fizessem remendos e lavassem suas roupas, Matthew Lively não usufruía disso. Tímido por natureza e desajeitado no trato social, Matthew jamais se vira antes no centro da atenção feminina. Além do mais, a frágil Honoria ainda era dona de seu coração e ele continuava a sofrer a dor da rejeição de sua proposta de casamento. Assim, as ávidas filhas dos fazendeiros e colonos, procurando ativamente por maridos, deixavam-no assustadiço. A única exceção era a notável Srta. Emmeline Fitzsimmons, que ouviram ter dito que não acreditava em casamento. Matthew a ouvira dizer isto à Sra. Ida Threadgood, explicando que o casamento era uma instituição artificial, inventada pelos homens como um meio de subjugar as mulheres. E, portanto, embora ela não o desconcertasse da mesma maneira que as filhas dos imigrantes, trazendo-lhe tortas e sorrisos de flerte, desconcertava-o mesmo assim.
Finalmente o rio ficou transponível, mas balsas seriam necessárias para levar os carroções à outra margem. Assim, choupos foram cortados para fazer uma enorme balsa de troncos, grande o bastante para carregar uma escuna da pradaria. O trabalho foi duro, já que a correnteza era profunda e rápida; e forçar os cavalos e bois a atravessar a nado revelou-se uma tarefa quase impossível. Os imigrantes trabalharam por dois dias, debaixo de um novo aguaceiro, até toda a caravana cruzar o rio; durante esse tempo os ânimos se acirraram e dois condutores de bois quase se mataram numa briga de faca.
Já no outro lado, encharcados, enlameados e exaustos, os desanimados imigrantes tentavam pôr os bois na canga, reunir os cavalos e o gado e fazer algum tipo de fogo para cozinhar, quando de repente Barnabas Threadgood deu um grito e desabou no chão.
Todos se agruparam em torno do homem inconsciente enquanto Emmeline corria para buscar Matthew Lively.
— Ele nunca teve isso antes — disse Isa, parada ao lado do marido com as mãos nos quadris.
Matthew chegou abrindo caminho e, apoiando-se num dos joelhos, sentiu a pulsação no pescoço de Barnabas. Os circunstantes permaneceram em silêncio enquanto Matthew abria a valise preta e tirava o estetoscópio, coisa que ninguém nunca tinha visto. Arregalaram os olhos enquanto Matthew colocava a extremidade do tubo no peito do homem e auscultava. Depois de um momento, olhou para cima e disse, penalizado:
Seu marido está morto, madame.
Isto é um fato? — perguntou Ida.
Ela passou um minuto olhando para o rosto do marido, depois mudou o olhar para o oeste, a seguir voltou a olhar para o leste, examinando-o por um tempo mais longo.
Depois que o enterrarmos — disse, por fim —, vou voltar para o Missouri.
Para choque de Emmeline, quatro outras esposas juntaram-se a Ida, com os filhos e seis condutores de bois. Se os maridos protestaram, não o fizeram em voz alta. Mas agora Emmeline estava sem transporte de novo, no meio do nada, a duzentos e cinqüenta quilômetros de Independence. Quando Amos Tice comunicou-lhe que ela teria de retornar com Ida, Emmeline bateu pé firme e insistiu que ia para o Oregon.
O que aconteceu a seguir surpreendeu até mesmo o experiente Tice: quatro condutores de bois, dois fazendeiros viúvos, Silas Winslow, o daguerreotipista e um impetuoso adolescente, todos se ofereceram para escoltar a Srta. Fitzsimmons até o Oregon. Vendo que uma briga estava prestes a irromper sobre a quem caberia dar proteção à jovem dama, Matthew voltou a seu carroção e secretamente pegou a Pedra da Bênção.
Enquanto a segurava na palma da mão, ele avaliou suas ações inesperadas. A decisão acerca do que seria feito com a Srta. Fitzsimmons estava acima de Amos Tice, ou acima da própria jovem voluntariosa, e isto certamente não era da conta de Matthew. Mas alguma coisa dentro dele, estranha e perturbadora, o apoquentara para se adiantar e assumir a iniciativa. Sua consciência o instava a tomar uma decisão, e Matthew não estava acostumado a isso.
Ainda assim, não seria um ato inteiramente seu. Ele faria o que a Pedra da Bênção lhe dissesse para fazer.
Ele desenvolvera um ritual de olhar para o cristal toda noite antes de dormir e a cada manhã ao acordar porque não conseguia tirar da mente a profecia de sua mãe, de que um grande desafio, "terrível e sombrio", o aguardava. Estava esperançoso de encontrar um meio de evitar o que quer que fosse, mas o espírito-guia não lhe estava dizendo nada. Agora tinha outra pergunta para fazer à pedra azul, e pegou uma lousa de jardim-de-infância, que usava especialmente para fazer perguntas ao cristal, e um pedaço de giz. Em uma extremidade da lousa escreveu a palavra "sim", na outra, "não". Depois colocou o cristal entre elas e perguntou: "Devo me oferecer para levar a Srta. Fitzsimmons até o Oregon?" e girou o cristal. Ele apontou para "sim". Girou-o de novo. E mais uma vez. Quando continuou a dar "sim", decidiu que não era bom perguntar ao Espírito Guia se não estaria atraindo má sorte para si mesmo. Assim, voltou para o tumulto que a Srta. Fitzsimmons involuntariamente deflagrara, com Tice tentando separar dois brigões. Com o coração disparado e as palmas das mãos suando com esta audácia que não era absolutamente do seu feitio, ofereceu-se para levar Emmeline na sua carroça.
Ela aceitou de imediato.
Enterraram Barnabas Threadgood à beira da trilha, rezaram uma prece apressada e puseram de novo os carroções em movimento. Seguindo em direção contrária, pelo mesmo caminho que tinham vindo, Ida Threadgood e sua prole, com outros três carroções com mulheres e crianças e condutores de bois que mudaram de idéia acerca de ir para o oeste, iniciavam a viagem de volta à civilização.
Enquanto a caravana para o Oregon seguia seu caminho, Albertina Hopkins deixou que todos soubessem que não aprovava duas pessoas solteiras viajando juntas.
"Isto não é da conta dela", Emmeline queixou-se enquanto subia na boléia da carroça ao lado de Matthew.
Matthew não disse nada. Mas, no fundo, concordava com a Sra. Hopkins.
Albertina continuou a opor-se furiosamente ao arranjo e disse isto ao Capitão Tice na primeira oportunidade. Algumas das mulheres a apoiaram, mas outras não se importaram e pediram a Tice que deixasse os dois médicos em paz. "Podemos precisar de ambos", Florine Benbow disse, mal sabendo que falava palavras proféticas.
Enquanto atravessavam as imensas pradarias de relva alta do Kansas e do Nebraska, que pareciam se estender até o infinito, Emmeline e Matthew sugeriram um arranjo no qual fariam tudo correta e adequadamente, com Emmeline dormindo na carroça enquanto Matthew se ajeitaria num saco de dormir no chão, mantendo a decência intacta. Mas eles comiam juntos, armavam e desmontavam acampamento juntos, cuidavam dos bois, calçavam a carroça e pegavam água juntos. Caíram na rotina diária da caravana: ao raiar do dia, um berrante soava para despertar o acampamento. Os homens que haviam passado a noite cuidando do rebanho traziam o gado e os cavalos do pasto enquanto as mulheres acendiam as fogueiras e preparavam desjejuns de pão, bacon e café. Depois que todos haviam comido — geralmente um momento agradável —, as tendas eram desarmadas e tudo guardado nos carroções, os bois trazidos e atrelados à canga. A caravana partia por volta das 7h para aproveitar o frescor e cobrir quilômetros antes do meio-dia, quando paravam para uma hora de descanso antes de retomar o caminho para outra jornada de cinco horas. Quando o Capitão Tice finalmente fez sinal para a parada noturna, foi acompanhado por gemidos de alívio e uns poucos vivas fatigados. Agora os carroções foram dispostos em círculos e acorrentados para proteção contra possíveis ataques dos índios, embora estes preferissem atacar caravanas em movimento e em linha reta. Os animais eram postos para pastar e as mulheres cozinhavam o jantar. As horas que se seguiam à refeição eram as mais agradáveis do dia, a oportunidade de fazer visitas, talvez com música e dança, certamente mexericos e algumas boas histórias narradas em volta das fogueiras.
Parecia um sonho para pessoas acostumadas ao confinamento de fazendas e casas: os dias eram duros, mas as noites pacíficas, e os acampamentos lembravam piqueniques, com as pessoas fazendo amigos, crianças correndo livremente, comida sendo generosamente partilhada. Ciúme ainda não tinha irrompido, a inveja não começara a fervilhar, queixas ainda não haviam começado a chegar até a tenda de Amos Tice. Brevemente, os ânimos começariam a se exaltar, nervos estariam à flor da pele, e Tice seria acusado, como costumava acontecer com todos os chefes de caravana, de ser injusto e de ter protegidos.
Era um trabalho ingrato. Cabia a Tice determinar cada aspecto da vida na caravana, a ordem dos carroções em fila, a designação das tarefas de cortar lenha e buscar água, manter vigilância, reunir gado. Em dias por vir, aqueles na rabeira da caravana se queixariam de ter de respirar a poeira dos que estavam à frente, e muito embora Tice fizesse um rodízio na ordem das carroças de modo que todos tivessem sua vez na dianteira, ninguém ficava satisfeito.
Cabia-lhe também servir de juiz. Quando a cadela de Sean Flaherty atacou as galinhas dos Benbow e matou seis antes de ser capturada, os Benbow exigiram que ela fosse morta. Mas Sean agarrou-se a Daisy e suplicou por ela em lágrimas, dizendo que a cadela era tudo que tinha no mundo. Houve uma votação e Daisy foi poupada, com Flaherty pagando um preço justo pelas galinhas.
Tinham também suas tristezas. Jeb, o condutor de bois do Kentucky, sucumbiu finalmente ao abscesso que infeccionara no seu maxilar depois que barbeiro Osgood Ashrens extraiu o dente dolorido. Enterraram-no ao longo da trilha e prosseguiram. Mais sepulturas iam se acumulando à medida que crianças morriam de sarampo, homens eram esmagados sob as rodas das carroças e bebês não sobreviviam ao parto, sendo por vezes enterrados com as mães. A caravana encontrou mais sepulturas ao longo do caminho, cavadas por imigrantes que partiram antes. Nas décadas seguintes a Trilha do Oregon estaria repleta de milhares de cruzes e lápides.
Enquanto o carroção de Matthew rolava puxado por cavalos, Emmeline sentava-se a seu lado na boléia, o rosto exposto ao sol, e imaginava a terra prometida adiante, onde homens e mulheres viveriam como iguais. Matthew, manejando as rédeas e mantendo suficiente distância do carroção à frente de modo a não respirar sua poeira, deleitava-se com o amplo brilho de sol das planícies, que lhe exibia uma existência tão diferente das escuras salas de consulta da comunidade espírita de Boston. Lá, a vida focalizava-se nos mortos, aqui centrava-se nos seres vivos — no gado pastando, nos gaviões planando no ar, nas crianças correndo e rindo, em Daisy latindo para os coelhos e perus estúpidos demais para fugir.
Eles pouco falavam, a filha do médico de Illinois e o jovem de Boston, enquanto viajavam lado a lado na boléia, os olhos fixos no horizonte à frente. Eles nunca haviam imaginado uma terra tão vasta, um céu tão ilimitado. Sentiam as almas se expandindo a cada quilômetro vencido, como se tivessem vivido sua juventude comprimidos num sótão e agora estivessem sendo arejados num varal ensolarado. E como o horizonte continuasse distante e fugidio, e o carroção sacolejasse, pareceu a Emmeline que era uma boa hora para conversar. Estava curiosa acerca da pedra azul que vira o Dr. Lively pegar e olhar num momento, e portanto ela perguntou a respeito.
É chamada de Pedra da Bênção — explicou ele, semicerrando os olhos ao brilho do sol enquanto manejava as rédeas, — Foi dada a minha mãe no dia em que se casou. Ela diz que é muito antiga, talvez tão antiga quanto o próprio mundo, e que traz os poderes de todas as pessoas que a possuíram, retroagindo às eras. Minha mãe sempre consultava a pedra para orientação, e assim faço eu. — Ele não continuou para dizer que sua mãe também a tinha usado para contactar os mortos. Nem contou a Emmeline acerca da lúgubre profecia de sua mãe quanto a um grande desafio que o aguardava, sombrio e terrível. Talvez ele já tivesse vindo e ido embora: talvez o teste de sua alma tivesse sido a decisão de viajar com Emmeline, porque isto certamente não o tornara popular entre os demais — homens e mulheres.
O interesse dela se acendeu.
E o cristal realmente o orienta?
Sem ele eu estaria perdido. Às vezes penso — acrescentou, constrangido — que já nasci covarde. Não consigo tomar decisões por conta própria, parece.
Você é apenas cauteloso, Dr. Lively — disse ela. — Meu problema é ser atirada demais. Nada me assusta. E às vezes isto me bota em apuros.
Ela retirou o gorro e sacudiu à brisa os cabelos soltos.
Você não sabe a sorte que tem sendo homem. Você pode seguir a carreira que quiser, sem preconceitos. Eu queria ser médica, mas não me foi permitido porque sou mulher. Não é justo. É por isso que estou indo para o oeste. A atmosfera será mais tolerante lá, e democrática. Uma autêntica terra de liberdade. Existe um novo espírito na nação, as mulheres estão despertando. Assisti a uma convenção maravilhosa em Seneca Falis, onde foi esboçada uma Declaração de Sentimentos enumerando dezesseis formas de discriminação contra as mulheres, incluindo direito de voto, salários iguais para as mesmas funções, controle de nossas pessoas e de nossos filhos. Nós mulheres estamos começando a nos mobilizar, Dr. Lively.
Matthew remexeu-se pouco à vontade na boléia. Já estava familiarizado com as opiniões radicais da Srta. Fitzsimmons. Embora não tivessem partido havia muito tempo de Independence, Emmeline já começara a receber propostas de casamento — de cada um dos irmãos Schumann (com o Sr. Hopkins servindo de intérprete); de Sean Flaherty, que declarou que ia ter a maior plantação de batata de todo o Oregon; do jovem Dickie O'Ross, cuja voz falhou quando fazia a proposta. Mas Emmeline recusara todas, dizendo que não era porque não tivessem qualidades, mas sim porque ela não planejava se casar. Explicou a cada um que não tencionava ser estorvada por uma instituição artificial que foi inventada pelas igrejas e pela sociedade para manter as mulheres na linha. Se ela tivesse filhos, o faria sem ter de prestar contas a um marido.
As esposas na caravana, simples lavradoras ou aldeãs que nunca antes ouviram tais idéias radicais ou leram um livro intitulado Uma defesa dos direitos femininos, de Mary Shelley, consideravam Emmeline ou jovem demais para ter opinião, ou talvez perturbada da cabeça (embora algumas secretamente invejassem a sua independência inflamada e desejassem a sua sorte). Porém Matthew já encontrara mulheres como a
Srta. Fitzsimmons em Boston, que se chamavam de feministas e que o haviam deixado inquieto. Agora ele ansiava por sua tranqüila, pálida e frágil Honoria, que quase não falava e que certamente não tinha idéias políticas na cabeça! Toda noite, quando o acampamento estava adormecido e ele ficava sozinho, tentando consultar a Pedra da Bênção para ver o Espírito Guia que sua mãe tinha visto (mas de algum modo fracassando), também pegava a fotografia de Honoria, tão magra e de olhos encovados que era quase um fantasma. Comia tão mal que os vestidos ficavam largos nela. Os pulsos eram tão delicados como ossos de passarinhos, as faces tão afundadas que lhe davam um aspecto etéreo: a linda e emaciada Ligéia de Edgar Allan Poe.
O que acha da anestesia? — indagou Emmeline agora, mudando de assunto tão abruptamente que o pegou distraído. —- Clorofórmio, éter! — falou antes que ele pudesse responder. — Ela vai revolucionar a cirurgia. Meu pai assistiu à remoção de um tumor mamário. A mulher ficou dormindo o tempo todo! E a próxima revolução será a admissão de mulheres na medicina. Há preconceito demais no leste. As coisas serão diferentes no oeste.
Ela fez uma pausa.
Dr. Lively -— disse —, você precisa sorrir mais.
E ele pensou: E você precisa falar menos.
Quando adentraram pelo território dos índios pawnee, os homens mantiveram as armas à mão, carregadas e semi-engatilhadas. Mas os índios pareciam meramente movidos pela curiosidade e esperando presentes.
À medida que o calor e a poeira aumentavam e a paciência começava a se esgotar, tornou-se cada vez mais difícil manter modos civilizados e gentis, mas as mulheres estavam determinadas. Muitas continuavam a usar espartilhos, embora algumas discretamente se livrassem dos apetrechos que as restringiam. Chapéus floridos eram guardados em baús, dando-se preferência aos mais práticos gorros de algodão. E embora as toalhas de mesa estivessem agora dispensadas e a porcelana de qualidade (tal como ocorrera na travessia de muitos rios turbulentos) estivesse guardada a salvo, ainda assim as crianças e os homens eram obrigados a tomar banho antes das refeições e a dar graças antes que atacassem a comida. E quando um homem foi encontrado enforcado num choupo — morto havia uns três dias, o que significava ter sido um componente da caravana à frente — com um letreiro em seu pescoço dizendo "trapaceando no jogo", eles pararam para fazer-lhe um caixão e dar-lhe um enterro decente.
Quando pararam para acampar junto ao rio Little Blue, Victoria Correll entrou em trabalho de parto do seu primeiro filho. Albertina Hopkins, que se havia autonomeado parteira, tomou conta da situação, apesar dos esforços de outras duas mulheres que ofereceram ajuda. Sua voz podia ser ouvida através da lona da carroça ao admoestar a Sra. Correll, para que parasse de agir como criança. "Quieta agora. Que tola você está sendo! A Bíblia não diz que Deus fez as mulheres para parir crianças em sofrimento e dor? Toda esta cena é uma ofensa aos ouvidos do Todo-Poderoso."
Quando Albertina saiu da carroça para ir à latrina que havia sido construída para as mulheres num bosquete de choupos, Emmeline se esgueirou para dentro da carroça e, destampando um frasco que trouxera consigo, disse para a pobre parturiente: "Deus pode ter nos dado a dor, mas também nos dispôs dos recursos para aliviá-la. Este é um elixir de ervas que meu pai sempre deu às mulheres em trabalho de parto. Facilitará seu trabalho e tornará mais fácil a passagem do bebê para este mundo."
Albertina ficou injuriada, mas depois disso as mulheres passaram a procurar Emmeline por causa de problemas femininos, pois tinha um sortimento de remédios para acalmar dores, nervos e mal-estar em geral.
Quando chegou à orla oriental do território cheyenne, a caravana deparou com um rio engrossado com uma perigosa contracorrente. Normalmente teriam acampado até que o rio se acalmasse, mas os homens estavam nervosos pela proximidade de índios belicosos, de modo que votaram por uma tentativa de travessia. Os protestos de Albertina Hopkins de que era domingo, e que não deviam se empenhar em tal trabalho em pleno Sabbath, caíram em ouvidos moucos. Portanto quando, no meio da tarde, o carroção dos Correll virou, lançando a Sra. Correll e o bebê recém-nascido para a morte nas águas turbulentas, o olhar triunfante de Albertina dizia: Eu bem que avisei.
Emmeline e Florine Benbow cuidaram dos cadáveres, vestindo-os, arrumando os cabelos da Sra. Correll e enrolando o bebê no cobertor mais bonito que puderam encontrar. Silas Winslow tirou o retrato deles de graça, uma lembrança para o Sr. Correll, que tristemente aceitou um cavalo dos irmãos Schumann e seguiu para o Missouri, para nunca mais ser visto.
A caravana prosseguiu.
Silas Winslow, no seu carroção que chocalhava com placas de cobre e garrafas de produtos químicos, continuava a exercer um lucrativo comércio com os retratos de recordação dos mortos à medida que novos infortúnios se abatiam sobre a caravana: pneumonia, disenteria, crianças caindo das carroças e morrendo sob as rodas. Ninguém culpava o Dr. Matthew Lively por não ter conseguido salvar nenhum deles. Todos sabiam que não havia muita coisa que um médico pudesse fazer contra doenças devastadoras e ferimentos gravíssimos. Mas ele ajudava a construir os caixões e preenchia atestados de óbito para que as famílias levassem com elas para o Oregon — outra lembrança.
No dia 9 de junho chegaram ao Platte, um rio largo e raso a quatrocentos e oitenta quilômetros por terra de Independence, o que significava que os imigrantes haviam completado a primeira etapa da viagem. De agora em diante estariam viajando por um novo tipo de território, uma região de relva curta, artemísias, cactos e aridez cada vez maior. Aqui a caravana encontrou pela primeira vez uma nova forma de comunicação: crânios esbranquiçados de búfalos ao lado da trilha com mensagens escritas neles por integrantes de caravanas precedentes. Um desses crânios alertava aos que vinham atrás que havia encrenca com os pawnee mais adiante e muita lama na trilha.
A viagem se tornava cada vez mais difícil. O calor do verão era opressivo e trazia doenças. Enguiços nos carroções aumentavam por causa do encolhimento das rodas e das rachaduras da madeira. Árvores e vegetação eram esparsas e portanto eles tinham de recolher estrume de búfalo para acender as fogueiras. Quando não havia estrume disponível, eles caminhavam nas nuvens de poeira atrás das carroças para colher ervas daninhas para combustível. As mulheres colhiam bagas silvestres e conseguiam enrolar massa nas boléias das carroças e assar tortas em pedras aquecidas para dar variedade à alimentação, que consistia principalmente de feijões e café. Ocasionalmente os homens saíam para caçar e traziam alce, mas com freqüência retornavam sem nada e acabavam tendo de comerciar camisas com os índios em troca de salmão e carne seca de búfalo. Os imigrantes encontravam sepulturas novas ao longo do caminho, mas prosseguiam destemidos, e quando Billy Cego, o batedor noturno (que mal enxergava durante o dia mas que tinha melhor visão noturna do que qualquer homem vivo, sendo portanto sua tarefa vigiar o gado enquanto os demais dormiam), foi encontrado morto pela manhã com uma flechada nas costas e seu cavalo tendo desaparecido, os imigrantes não entraram em pânico; eles simplesmente deixaram uma mensagem num crânio de búfalo para os comboios que vinham atrás.
Diante dos enguiços de carroças e de cangas dos bois, envenenamento alimentar, mordidas de cães e serpentes e mais sarampo, disenteria e febre, morte no parto e outras mazelas, o suprimento médico de Matthew foi gradualmente se reduzindo. Da mesma forma Emmeline viu-se assoberbada na sua profissão, pois muitas das mulheres começaram a antipatizar com Albertina e pediam sua ajuda quando sentiam as dores do parto. Como Florine Benbow previra, "o casal médico" estava provando ser indispensável.
E, involuntariamente, Emmeline e Matthew começavam a se tornar um casal também de outras maneiras.
A maioria se recolhia cedo à noite, mas alguns esticavam o tempo, principalmente os mais jovens. Matthew gostava de aproveitar o tempo tranqüilo no acampamento para ler, principalmente poesia, às vezes a Bíblia. Emmeline gostava de olhar fixamente as estrelas.
Como sabemos que estamos indo na direção certa? — perguntou ela numa noite.
Ele pousou o livro e apontou para o céu noturno.
Você conhece a Ursa Maior? Aquelas estrelas lá, que formam uma caçarola gigante? Vê as duas estrelas na extremidade da alça? Elas apontam para a Estrela Polar, e ela está sempre dentro de um grau do verdadeiro norte.
Emmeline olhou para ele admirada e disse:
Reconheço, Dr. Lively, que é um homem instruído.
Duas noites depois, Matthew tentava costurar um botão na sua camisa usando uma agulha de sutura curvada e fio cirúrgico de seda. Estava a ponto de desistir. Quando notou Emmeline observando-o, pensou que ela fosse rir. Mas, para surpresa dele, ela apareceu com uma pequena caixa de costura, pegou a camisa e, sentando-se ao lado dele, disse com muito tato: "Eu mesma me atrapalho na hora de fazer remendos, mas talvez tenha um pouco mais de experiência."
Ela fez um trabalho perfeito.
Com o passar do tempo — dos dias assolados por calor, poeira e moscas, e noites repletas de uivos de lobos e ventos soprando lugubremente —, a opinião de Matthew acerca da Srta. Fitzsimmons, que nunca se queixara de fazer trabalho de homem, foi se alterando. Quando os rios engrossavam e as carroças encalhavam, Emmeline se enfiava na água sem pensar em si mesma, as saias encapelando-se em torno dela enquanto empurrava com toda a sua força para livrar as rodas do lodo. Ela incitava os bois com os homens, lavava roupa, esfolava búfalos e costurava lonas. Matthew começou a sentir uma crescente admiração por ela. Cada vez menos olhava para o retrato da frágil Honoria, e quando o fazia imaginava quanto tempo ela teria sobrevivido nesta jornada. Por certo teria sido um fardo em vez de uma ajuda.
Matthew também estava mudado fisicamente. Havia músculos crescendo debaixo das mangas da camisa e o rosto mostrava-se cada vez mais bronzeado no espelho. A palidez dos salões escuros tinha sido sobrepujada por um vigoroso clima de sol, calor, poeira e tempestades. Calos cresciam em suas mãos enquanto trabalhava ao lado de Emmeline Fitzsimmons.
E então veio a noite em que a cadela de Sean Flaherty, Daisy, roubou uma das tortas de carne de Rebecca O'Ross. A visão da cadela correndo pelo acampamento com a torta na boca e a diminuta Sra. O'Ross perseguindo-a com um rolo de pastel provocou gargalhadas gerais. Juntando- se aos risos, Matthew olhou para Emmeline e viu que ela ria tanto que lágrimas escorriam por suas faces. E percebeu que a paixão corria fundo em cada traço da personalidade da jovem, não só na maneira de comer, ou propalar sua opinião sobre os direitos das mulheres. Emmeline Fitzsimmons recebia, abraçava e curtia a vida com toda a exuberância que Deus lhe dera. E no instante seguinte uma noção espontânea reluziu em sua mente: que ela devia ser passional no amor.
Sentiu as faces arderem e o ar preso momentaneamente no peito. Quando ela subitamente virou-se para ele e seus olhos se encontraram, Matthew sentiu o coração pular um batimento.
Em 26 de junho, a caravana acampou perto do Forte Laramie sob um céu cálido e límpido. Bandos de índios sioux, preparando-se para guerra com os vizinhos crow, visitaram o acampamento, onde partilharam do desjejum dos imigrantes, composto de pão e carne, em troca de contas e penas. Todos mostraram um espírito amigável, diminuindo um pouco o temor que os americanos tinham dos nativos. Mas quando um caçador de peles francês, chamado Jean Baptiste, juntou-se à caravana por um dia e falou-lhes da possibilidade de neve prematura nas montanhas, novos temores se elevaram (todos tinham ouvido relatos de imigrantes anteriores ficando bloqueados pelo inverno nas montanhas e morrendo de fome), portanto Amos Tice informou ao grupo que seria mais sábio se acelerassem o passo.
Em 4 de julho, os imigrantes comemoraram o 72º aniversário da nação com cerveja e fogos de artifício, discursos patrióticos e preces. Dois mil guerreiros sioux, resplandecentes em peles de búfalo enfeitadas com contas e penas e cavalgando como um exército para enfrentar os crow em batalha, fizeram uma pausa para observar os curiosos festejos dos estrangeiros brancos. Matthew Lively, aceitando um cálice do conhaque do Sr. Hopkins, que o discreto homem havia guardado justamente para esta ocasião, voltou-se com os demais para olhar em direção ao leste e se recordar dos amigos e entes queridos que ficaram para trás. Matthew pensou na sua mãe e nas sessões espíritas, enquanto Emmeline Fitzsimmons, parada ao seu lado e segurando uma taça do vinho de Charlie Benbow (de um barrilete que sobrevivera à travessia do rio), pensou nos seus pais enterrados nas sepulturas gêmeas na fazenda que ela havia herdado e vendido. Sean Flaherty ergueu um brinde à Irlanda; Tim O'Ross pensava em uma ruiva de Nova York; os Schumann se recordavam da família na Baviera. Juntos, todos saudaram o lar que tinham deixado, depois voltaram-se para encarar o oeste e brindar ao novo lar que viria.
O dia 17 de julho os encontrou acampados no cume de South Pass, a ampla passagem através das Montanhas Rochosas, espinha dorsal do continente. Este era um tempo para fazer consertos e remendos, fixar e escorar, e para avaliar a importância deste ponto sem volta, pois o South Pass era a metade do caminho: no lado oriental da grande divisa, os rios corriam para o Mississippi, do outro lado corriam para oeste, rumo ao Pacífico. Surgiram tabuleiros de xadrez e baralhos, uma gaita e uma rabeca tocaram uma música animada. O Sr. Hopkins bebia uísque tranqüilamente, enquanto sua esposa autoritária mantinha sua corte habitual e deixava as crianças correrem agitadamente pelo acampamento.
Emmeline remendava a saia à luz de um lampião quando a filha mais velha dos Hopkins veio procurá-la, timidamente. Era filha da primeira esposa do Sr. Hopkins. Albertina era sua madrasta e a garota tinha pavor dela. Portanto, trouxe seus temores secretos para Emmeline, a parteira. Após ouvir as primeiras palavras entrecortadas da envergonhada confissão, Emmeline rapidamente apreendeu a situação — a garota andara de namoricos com um dos condutores de bois e o inevitável estava prestes a acontecer.
— Receio que possa ser verdade — disse Emmeline baixinho, dando um tapinha na mão da garota apavorada. — Este é o primeiro sinal de que há um bebê a caminho, quando a menstruação não vem. — Quando a garota começou a chorar, principalmente por medo da ira de sua madrasta, Emmeline tornou-se mais prática. — Ouvi falar que há um pastor na caravana que segue um pouco à frente. Pedirei ao Dr. Lively que cavalgue até lá para buscá-lo. Vocês serão casados, o que é a coisa mais sábia a fazer.
O pastor, que na viagem já estivera orando sobre mais túmulos do que imaginara ser possível, simplesmente ficou muito feliz em voltar quilômetros atrás para oficiar um casamento na caravana Tice, e até algumas famílias quiseram vir com ele, por diversão e necessidade de comemoração. Depois que a filha de Hopkins e o condutor de bois deram o "sim", presididos por uma majestosa Albertina, que não estava nada satisfeita por ter ignorado o segredo da enteada, houve uma animada festa, com música de violino e dança sob um céu estrelado, e Silas Winslow tirou o retrato do feliz casal.
Durante as festividades, enquanto comiam bolo sem glacê e bebiam sidra morna, Emmeline olhou para Matthew à luz das fogueiras e pensou: Ele ganhou confiança. Não é mais o homem nervoso de três meses atrás. E o bronzeado combina com ele.
Ela continuou para analisar exatamente o que fazia o Dr. Lively parecer tão especial para ela em meio a um grupo de tantos homens, a maioria deles mais forte e mais resistentemente do que Matthew. E pensou: É a bondade dele. Porque, independente das circunstâncias, do quão terrível ou desgastante fosse uma situação, podia-se contar com a ajuda de Matthew mesmo sem ele ter sido consultado. Ele voluntariamente compartilhava sua comida e sua carroça, com freqüência dando carona a mulheres exaustas quando seus próprios maridos ignoravam as necessidades delas; e indagando sobre a saúde e o conforto de todos quando os outros estavam fatigados demais para dar qualquer importância.
Naquele mesmo momento, enquanto Emmeline estava pensando no Dr. Lively e começando a aceitar que não era tão feio afinal, e até mesmo bonito, Matthew pensava também em Emmeline Fitzsimmons. Mas seus pensamentos não eram tão amplos ou abrangentes quanto os dela. Seu foco mental era muito singular: agora que havia observado melhor, a figura curvilínea da Srta. Fitzsimmons era um tanto cativante, afinal.
O Forte Bridger, assim chamado em homenagem a Jim Bridger, seu fundador, tinha servido de posto comercial nos últimos cinco anos — um estabelecimento com prédios construídos de troncos, por onde circulavam índios trajando peles de gamo, caçadores de peles, lenhadores e imigrantes a caminho do oeste. Ao se aproximar do forte, a caranava Tice encontrou um comboio dirigindo-se para leste, os desanimados imigrantes tendo desistido e optado pela volta ao lar. Para a maioria, foi a grave perda de vidas que havia destroçado o seu sonho, e o comboio de vinte carroças consistia principalmente de mulheres, crianças e uns poucos velhos. A própria caravana Tice era menor, com 12 carroças e 32 almas, e após três meses na trilha, eles constituíam um bando ainda mais desorganizado do que quando partiram de Independence, malgrado os esforços para manter padrões de comportamento civilizado. As crianças andavam descalças e num desalinho vergonhoso, os homens ostentavam barbas longas e malcuidadas, as roupas estavam imundas e rasgadas. Até mesmo Silas Winslon, o daguerreotipista almofadinha, exibia nódoas no colete xadrez espalhafatoso e manchas de graxa nas roupas caras que nenhuma quantidade de soda cáustica e cinza poderia remover. Os integrantes não conservavam mais o espírito animado que uma vez considerara esta jornada como uma brincadeira, pois ciúme e ódio, discussões e rixas, ressentimentos e rivalidades amargas tinham irrompido ao longo da trilha, de modo que muitos amigos antigos eram agora inimigos. Mas eles estavam felizes por ter chegado ao que viam como a encruzilhada para o trecho final da jornada: dali eles virariam para o norte rumo ao Oregon.
E ali, também, alguns tomariam uma decisão que se tornaria a sua sentença de morte.
De passagem pelo forte estava um montanhês que fizera todo o caminho para o oeste e agora regressava para o leste, um homem que avisava a todos que quisessem ouvir que no caminho lhes falariam de um atalho, que deveriam evitar a todo custo.
Sigam a trilha normal das caravanas e jamais se desviem dela — avisou a Amos Tice e a outros guias de caravana. — Tomar o atalho poderia ser fatal.
Mas Tice contestou:
Se existe uma rota mais curta, então é uma tolice seguir a trilha regular. — Ele falou como se estivesse pensando no bem-estar dos seus imigrantes, mas algo havia acontecido com Amos Tice nos últimos quilômetros antes de alcançarem o Forte Bridger; ele sofrera uma total mudança de objetivo, embora ninguém na caravana soubesse. Jean Baptiste, o caçador de peles francês que visitara a caravana por um dia, viajara através das Sierras levando algo mais do que peles. Ele estava carregando um cartaz que trouxera de um lugar na Califórnia chamado a Serraria de Sutter. Para impedir que o francês mostrasse o cartaz a qualquer outro integrante de sua caravana, ou aos imigrantes que estavam voltando atrás, Amos Tice pagou generosamente por ele. Isto porque, no íntimo, Amos Tice era um homem tremendamente ambicioso. Sua única razão para servir de guia ao Oregon tinha sido reclamar para si mesmo o máximo de terra livre possível, além de extrair lucro dos sonhos e esperanças dos imigrantes. Mas tudo mudou quando viu o cartaz trazido pelo francês, pois ele anunciava a descoberta de ouro na Califórnia.
Tice comprou o cartaz, o francês partiu e Tice guardou a novidade para si mesmo. Estivera ruminando o problema ao longo dos últimos quilômetros até o Forte Bridger, imaginando como chegar à Califórnia. Abandonar a caravana significava viajar sozinho, uma aposta altamente perigosa. Havia segurança na quantidade, razão das caravanas terem sido originalmente formadas. Levar essa gente consigo até a Califórnia era, portanto o objetivo secreto de Tice. Ao chegar lá, ele os abandonaria e começaria a negociar com ouro. Mas como convencer o grupo a mudar de rota? A solução abençoada veio justamente do montanhês que avisava contra dar ouvidos a rumores acerca de um atalho para o Oregon.
Tice atiçou as chamas do boato, dizendo que ouvira falar que a rota alternativa não só era mais curta como também mais agradável, e que os imigrantes para o Oregon não precisariam sofrer os riscos e dificuldades dos que os precederam. A seguir, Rice inventou um mapa. Parecia autêntico — trabalhou nele em segredo por um dia e uma noite, fazendo com que parecesse usado, bem manuseado e confiável. Também certificou-se de que a trilha que tomariam ficasse bem longe dos mórmons que se haviam estabelecido no ano anterior perto de uma região que cruzariam. Amos Tice figurara entre os milicianos que tinham detido e encarcerado (e depois assassinado, embora o próprio Tice não fosse o executor) Joseph Smith apenas três anos antes, e portanto nenhum resquício de amor restara entre Tice e os Santos do Ultimo Dia. Depois ele apresentou seu novo plano e o mapa "autêntico" aos componentes da caravana acampados junto ao Forte Bridger. O entusiasmo e a empolgação na sua voz não eram falsos, pois sua mente estava repleta de visões de riachos fluindo engrossados com pepitas de ouro.
— É tão claro como o dia — dizia ele, abrindo o mapa para que todos vissem. — A Trilha do Oregon segue através de montanhas perigosas e depois há uma longa e arriscada jornada fluvial em balsas onde muitos companheiros já pereceram. Proponho esta rota aqui. Vejam, segue direto por uma bela e desimpedida planície, depois mais um estirão por um desfiladeiro. Na Califórnia viramos para o norte e seguimos a rota mais plana, mais agradável, e refrescada pela brisa do mar, onde vicejam árvores frutíferas até onde a vista pode alcançar.
Mas não é mais longa? — perguntou Charlie Benbow.
Em quilômetros, sim, mas a rota normal demanda mais tempo, sofrimento e perigo. Lembram-se do South Pass através das Rochosas? Quão fácil e agradável foi a travessia? Bem, as Sierras não se parecem em nada com as Rochosas. Cruzá-las será como um passeio no parque!
E acreditaram nele.
Todavia, queriam pensar um pouco. Afinal, este era o último posto avançado, e além estava o ermo ainda virgem. Assim, enquanto ruminavam a proposta de tomar o atalho, os imigrantes aproveitaram os poucos dias de descanso para novos reparos nas carroças e arreios, para alimentar os cavalos e o gado e estocar comida para a trilha à frente. Estavam otimistas. O Paraíso jazia logo além da próxima cordilheira, as Sierras da Califórnia. O grupo de Tice quase podia sentir a brisa fresca do Pacífico na face.
Mas vários outros tinham suas dúvidas. Matthew Lively não embarcou no novo plano de Tice, preferindo consultar o Espírito Guia na Pedra da Bênção (embora no íntimo sentisse que o atalho não era uma boa idéia). Permitiu a Emmeline que se juntasse a ele, pois agora estava acostumado a mostrar-lhe a pedra e explicar como funcionava. Sentaram-se na traseira de sua carroça, circulados pelo brilho quente de um lampião, enquanto os demais prosseguiam em sua labuta ruidosa sob o céu estrelado. Matthew usou de novo a lousa, escrevendo nela "não" e "sim". Enquanto indagava baixinho se deveriam tomar o atalho, Emmeline estava sentada solenemente, observando o cristal rodopiar antes de parar diante da palavra "sim".
Matthew franziu o cenho. Detestava duvidar da sabedoria do cristal, mas alguma coisa bem no seu íntimo dizia-lhe que deveriam continuar na velha trilha rumo ao norte. Emmeline concordava. Embora acreditando-se aventurosa e disposta a tentar qualquer coisa nova, parecia tolice abandonar uma trilha conhecida por outra, por mais prometedora que soasse.
Gire-a de novo — disse ela.
E veio a resposta "sim".
Matthew esfregou o queixo.
A Pedra da Bênção diz que devemos seguir Amos Tice.
E o que você acha que deveríamos fazer?
Matthew não fazia idéia. Nunca em sua vida tomara uma decisão por conta própria. Mesmo quando era garoto e sua mãe tomava as decisões por ele, ela consultava o cristal primeiro.
Minha mãe sempre disse que os espíritos nos guiam, e que deveríamos levá-los em conta.
Mesmo que a sua intuição diga o contrário?
Minha intuição, tenho vergonha de dizer, sempre foi fraca. Quando era garoto, deixava-me influenciar pelos meus irmãos. Quando fiquei mais velho, imitava meus pares. Receio que eu seja um seguidor, Srta. Fitzsimmons, e irei para onde quer que líderes como Amos Tice, ou o espírito-guia no cristal, me digam para ir.
Ele fitou-a à luz dourada do lampião e notou a linda coloração âmbar dos olhos dela.
O que você fará, Srta. Fitzsimmons? — perguntou ele, sentindo um bolo na garganta, pois temia a resposta. Foi só neste momento que Matthew percebeu quão profundos eram seus sentimentos em relação a Emmeline.
Descobri em você uma confortadora companhia de viagem, Dr. Lively — disse ela, baixinho —, e acredito que trabalhamos bem juntos. Se eu deixar sua companhia agora, acharia difícil encontrar alguém tão amigável que me convide a acompanhá-lo. Portanto, irei para onde você for, Dr. Lively.
Matthew sentiu o coração disparar. Engoliu em seco e lambeu os lábios.
Srta. Fitzsimmons — disse ele, rapidamente —, há uma coisa que deveria saber...
Ei, vocês — veio uma voz da escuridão. Viram Silas Winslow perambulando com a arrogância que lhe era peculiar, chapéu-coco puxado até as sobrancelhas. — Não vou seguir com Tice, Srta. Fitzsimmons — disse ignorando Matthew, seu rival pelas atenções de Emmeline. — Estou seguindo para o norte com uma nova caravana que está sendo formada por Sthephen Collingsworth. Se descobrir-se sem acompanhante, ficarei feliz em escoltá-la até o Oregon. — Pousou teatralmente a mão no peito. — E asseguro-lhe, Srta. Fitzsimmons, a máxima qualidade cavalheiresca enquanto estiver sob minha proteção.
Emmeline piscou para ele e abriu a boca para falar quando foram subitamente interrompidos por gritos.
— Dr. Lively! — soou uma voz pelo acampamento. — Dr. Lively! Joe Strickland foi ferido gravemente!
O condutor de bois jazia gemendo em sua carroça, inconsciente de dor. Explicaram a Matthew que seu pé tinha sido pisoteado por um boi indócil que não queria voltar para sua canga. Um simples olhar para o pé dele dizia até ao maior dos leigos que Joe estava num sério apuro. O osso se expusera através da pele, e enquanto o sangue começava a estancar, uma horrível coloração púrpura se espalhava a partir dos dedos. Com a assistência de Emmeline, Matthew lavou o ferimento, aplicou ungüento e depois o cobriu com ataduras limpas. Quando tentou empurrar o osso exposto de volta ao lugar, Joe gritou e recaiu na mais profunda inconsciência. A face adquiriu um cinza alarmante e ele suava profusamente. Como Joe estava viajando sozinho, Emmeline ofereceu-se para cuidar dele.
Naquela noite decisões foram tomadas. Várias caravanas se dividiram, algumas com integrantes do grupo original de Tice decidindo seguir com Collingsworth para a trilha norte e recém-chegados de outras caravanas optando por juntar-se a Amos Tice no seu atalho. Silas Winslow, apaixonado pela Srta. Fitzsimmons, decidiu por fim juntar-se ao grupo de Tice.
Despediram-se das pessoas com quem tinham viajado desde o Missouri, prometendo se reencontrarem no Oregon. Embora novos integrantes houvessem aderido, com carroças e gado, esposas e filhos, a caravana Tice estava menor agora, consistindo de 35 carroções, 69 homens, 32 mulheres, 71 crianças e 300 cabeças de gado e cavalos.
A esperança crescia à medida que os carroções passavam por riachos repletos de trutas, campos cobertos de flores silvestres, bosques luxuriantes de álamos e salgueiros. A caravana sentia-se mais forte agora que havia "sangue" novo, pois os integrantes recém-admitidos eram fortes e saudáveis. Porém Matthew Lively estava para lá de apreensivo; alguma coisa estava errada e ele não podia se intrometer. Especulava se a profecia terrível e sombria de sua mãe seria a causa. Mas guardou as dúvidas para si. Os demais pareciam achar que Tice tivera uma boa idéia e os ânimos estavam elevados.
O idílio não durou muito tempo.
Após os primeiros dias agradáveis de viagem, a caravana chegou às montanhas Wasatch, uma cordilheira de altos picos cobertos de neve e abismos profundos. Os lados desses cânions eram atravancados por salgueiros, arbustos densos de bagas, e grossos choupos, negundos e amieiros, e os leitos de rios eram estreitos e cheios de penedos. Isto exigia requisitar cada homem capaz no grupo para ajudar a desobstruir a rota.
Armados com machados e facões, correntes e pás, eles abriam caminho através da densa vegetação. A cada noite os homens caíam exaustos nos seus cobertores enquanto as mulheres cuidavam de bolhas e arranhões de maridos, irmãos e filhos com pomadas e palavras de incentivo. Mas pelo menos tinham água, assinalou Tice, e pasto para o gado. Porém tinham também enxames de moscas e mosquitos.
Progredindo apenas oito quilômetros por dia, finalmente forçaram as parelhas de bois a puxar as carroças por sobre o cume das montanhas Wasatch, e quando desceram do outro lado, os imigrantes depararam com o obstáculo formidável que tinham de superar: o deserto do Grande Lago Salgado.
Os acampamentos noturnos eram menos animados agora e envoltos em silêncio sóbrio. As viagens diurnas tornavam-se mais lentas, pois a temperatura era muito alta e crestava o deserto. Ferimentos contraídos nas montanhas Wasatch atrasavam a viagem, pois havia cada vez menos homens aptos para atrelar e desatrelar os bois, e pausas freqüentes para repousar se faziam necessárias. Enquanto as mulheres se preocupavam com seus homens — o pé de Joe Strickland começara a infeccionar embora Emmeline desse o melhor de si para cuidar dele —, Amos Tice abrigava uma preocupação secreta: que estavam se atrasando. À frente aguardavam as Sierras e a ameaça de neve.
Do outro lado do leito do lago estéril prosseguiram sob um sol impiedoso. À medida que o calor aumentava, parecendo um forno, os imigrantes acreditavam que haviam entrado num novo inferno. Eles banhavam a língua dos animais com toalhas molhadas, pois tão sem água e carente da mais leve umidade era esta terra árida que temiam que os cavalos e o gado enlouquecessem de sede. Era um deserto alcalino desolado onde não se via uma coisa viva. Os carroções que iam à frente pareciam gigantescos através das ondas de calor amplificadas. As montanhas ao longe pareciam flutuar no ar. O sol do meio-dia batia como um martelo. A forja de Vulcano, pensavam aqueles mais instruídos do grupo. Ao pôr-do-sol as sombras estendiam-se por quilômetros. O ar noturno era como um tenaz fino perfurando os cobertores. Crianças choravam, o gado mugia. A superfície da planície era tão compacta que os cascos dos animais não deixavam mais que uma leve impressão no sal duro e na crosta alcalina, mas quando os carroções alcançaram o centro do deserto, encontraram um lago raso que transformava o álcali numa massa pastosa. Agora era como caminhar sobre um mingau de aveia. Cada passada exigia esforço para tirar o outro pé do atoleiro. O esterco viscoso cobria os pés como moldes de cimento, aglomerava-se em volta das rodas das carroças e fazia os bois tropeçar.
Ainda assim os imigrantes prosseguiam através da fornalha, crestados, suando com o calor. O pé de Joe Strickland piorou. Com a infecção e a febre devastando o corpo do pobre homem, Emmeline viajava na carroça dos Hammersmiths com a cabeça de Joe aninhada no colo. Outros integrantes estavam agora igualmente enfermos, mas sabiam que tinham de continuar em frente, que parar significava a morte.
Um grupo de homens escolhidos pelos demais anunciou a Tice sua intenção de ir procurar ajuda com os mórmons (embora ninguém fizesse a menor idéia de onde exatamente se estabelecera o povo de Brigham Young), mas Tice, sabendo ter má reputação entre os Santos do Último Dia, declarou peremptoriamente que os mórmons estavam longe demais do caminho e que seria suicídio procurá-los.
Seguiram em frente, no calor escaldante do dia e no frio noturno de estalar os ossos, lábios rachados e sangrando, as línguas inchadas, a água sendo repartida a colheradas. Os bois dos irmãos Schumann finalmente não resistiram mais, caindo de joelhos e berrando de sede. Assim, os quatro alemães enterraram suas enxadas e implementos agrícolas na areia com a intenção de vir buscá-los depois que achassem terra no Oregon.
O novo bebê dos Biggs, cujo parto fora feito três meses antes por Albertina Hopkins, sucumbiu ao calor e foi enterrado na areia. As galinhas dos Benbow começaram a cair de calor e sede, e até mesmo Daisy, a cadela habitualmente agitada, caiu junto à carroça de Sean Flaherty.
Eles achavam que o deserto do Grande Lago Salgado não terminaria nunca.
Mas finalmente terminou, e enquanto a exaurida caravana arrastou- se até o primeiro poço no sopé das colinas, enquanto o dia calorento dava lugar à noite fria, enquanto o gado disparava para a água e as pessoas tentavam não fazer o mesmo, e enquanto Matthew Lively estava pensando que isto era a sombria e terrível provação profetizada por sua mãe, Emmeline veio procurá-lo e disse:
Joe Strickland tem gangrena. O pé dele precisa ser amputado.
De repente, Matthew sentiu-se como se carregasse sobre os ombros o peso do mundo e todos os seus habitantes. Afundando no chão, onde estivera tentando acender uma fogueira, ele sacudiu a cabeça.
Não posso fazer isto — disse.
Emmeline sentou-se junto a ele e pousou a mão no seu braço. Como ela própria e os demais, Matthew tinha o rosto vermelho e empolado, os olhos turvos, as roupas grudentas de suor e sujeira.
Eu o ajudarei — disse ela. — Certa vez assisti meu pai na amputação de uma perna. Não sou medrosa, Dr. Lively.
Ele olhou para ela e sentiu como se fosse chorar.
Não sou médico, Srta. Fitzsimmons.
O que quer dizer?
Quero dizer que não sou um praticante de medicina. Você fez esta suposição lá em Independence e eu não a corrigi.
-— Então o que você é?
Sou um agente funerário. — A voz dele soou pequena e frágil.
Ela pestanejou, a testa se enrugando.
Um agente funerário? Como um papa-defunto?
Exatamente isso,
Mas... sua valise médica...
Os instrumentos de um homem que cura corpos são os mesmos de um homem que leva corpos para o repouso eterno. Especialmente quando o falecimento foi causado por ferimentos. Temos de fazer as mesmas suturas e curativos como qualquer médico. E o estetoscópio... é o meio de termos certeza de que o homem está mesmo morto antes que vá para o túmulo.
Mas eu o vi comprando remédios no boticário!
Eram para mim mesmo. Sofro de males do peito durante o inverno.
Emmeline estava tão atônita que mal podia falar.
Por que não me corrigiu? Por que deixou todo mundo acreditar que era um médico?
Ele lançou-lhe um olhar pesaroso.
Se tivesse um grupo de pessoas dependendo de você para viver diria a elas que era um papa-defunto? Srta. Fitzsimmons, você esteve se queixando de preconceito e estigma por causa de seu sexo. Bem, eu enfrento os mesmos preconceitos e estigmas por causa da minha profissão.
A expressão de Emmeline tornou-se pensativa.
Sim — disse ela. — Acho que entendo seus motivos.
Deixo as pessoas desconfortáveis — disse ele tristemente. —Faço- as se lembrar de algo de que não querem ser lembradas. Mas é o negócio de nossa família! — Meu pai é agente funerário, bem como meus irmãos. Não tive escolha senão acompanhá-los.
Meu querido Matthew — disse ela gentilmente, tratando-o pela primeira vez pelo nome de batismo. — Não se sinta envergonhado e embaraçado pela profissão que seu pai lhe ensinou, pois não há nada de vergonhoso no que você faz. E uma profissão honrada, uma função necessária, e as pessoas precisam de homens como você, que respeitam os mortos sem lamentações, porque o tenho visto agir quando alguém morre. Meu pai e tios contaram-me de papa-defuntos roubando cadáveres e enganando as famílias, outros vendendo às famílias caixões que não podiam fornecer aproveitando-se de seu pesar e culpa. Você pode fazer a diferença, Matthew, e preencher uma necessidade muito importante, porque é exigido durante um dos mais tristes e vulneráveis momentos numa vida humana.
Ele só pôde olhar para ela, e recordar as palavras de Honoria quando ela rejeitou sua proposta de casamento: "Eu nunca poderia viver com um homem que lida com cadáveres."
Então... minha profissão não a incomoda?
Eu seria a pior das hipócritas se dissesse que sim. Tomei a decisão de vir para o oeste ao perceber o quanto o leste é arraigado a preconceitos e tradições ultrapassados. As pessoas são moldadas e espera-se que continuem assim. Eu queria ser médica, mas tudo que podiam me dizer era que mulheres só serviam para ser esposas e mães. Assim decidi vir para onde o pensamento é livre e não obstado por preconceitos tacanhos. Bem, que tipo de feminista seria eu se exigisse mente aberta dos outros e não mantivesse minha própria mente aberta?
E você não acha... — E pigarreou e as faces enrubesceram — ... que existe um problema com meu nome? Eu preferiria não ter de trocá-lo.
Ela o fitou por um momento e depois, entendendo, fez um "Oh!" e sua mão voou para a boca.
Portanto, você vê que não apenas serei um pária como também motivo de riso.
Ela sorriu.
O nome incomodou seu pai? Então não vai incomodar você.
É diferente — disse ele, infeliz. — Em Boston os Lively[1] têm sido agentes funerários por gerações. Desde a chegada dos primeiros colonos. Ninguém dá um segundo pensamento ao nome. Mas veja bem: um agente funerário chamado Lively pode adquirir algum respeito?
Emmeline admitiu que podia ser um problema, mas agora não era hora de se preocupar com o nome. Joe Strickland ia morrer se algo não fosse feito para salvar sua perna.
Eles foram para o carroção dos Hammersmiths e embora Joe tivesse estado inconsciente por dois dias, ele abriu os olhos e, num daqueles momentos de clareza que às vezes sobrevêm a um homem no limiar da morte, disse:
— Aprecio o que fez por mim, doutor, e embora eu saiba que só quer me ajudar, não vou deixá-lo cortar minha perna. Venho sendo condutor de gado desde garotinho. Não sei fazer mais nada. E não existe nada mais inútil do que um condutor de bois com uma perna só. Portanto direi minhas despedidas agora, se não se importa.
Joe morreu naquela noite, mas ninguém culpou Matthew — disseram que ele fez o melhor possível. Emmeline descobriu uma nova admiração por Matthew Lively naquela noite, porque embora lhe doesse na consciência manter sua profissão em segredo, ele colocava os sentimentos das pessoas diante dos seus próprios. Ela manteve o segredo dele e continuou a chamá-lo de doutor.
Quanto ao próprio Matthew, nas semanas por vir ele se lembraria desta noite e perceberia que este foi o instante em que se apaixonou.
Prosseguiram a jornada. Mais bois pereceram na planície salgada e o gado vagueou em busca de água. Mais quatro carroças foram abandonadas e as famílias enterraram pertences que não podiam mais carregar, com o intuito de voltar algum dia para pegá-los. Debaixo do solo estéril ficaram arcas de roupas e lembranças, heranças de família e colchas, batedeiras de manteiga e frigideiras. Durante a viagem as famílias tinham planejado diferentes maneiras de guardar seu dinheiro. Alguns simplesmente o empacotaram em arcas com outros pertences; outros abriram buracos nas tábuas da carroça e neles esconderam moedas. Silas Winslow tinha uma caixa de latão especial rotulada: "Soda cáustica! Se aberta, poderá causar queimaduras instantâneas nos olhos e pele."
Era na caixa que ele havia escondido todo o seu dinheiro. Tendo agora de abandonar o carroção e todo o equipamento fotográfico, ele pendurou às costas a pesada caixa cheia de moedas.
Havia uma sensação de urgência na caravana. Tinham perdido dias em infrutífera procura de gado extraviado, o verão estava acabando, a neve agora já coroava os picos das redondezas, os víveres diminuíam e estavam ainda enfrentando centenas de quilômetros do deserto do Nevada.
Uma vez saídos da terra desértica do Utah encontraram território montanhoso. De um alto desfiladeiro puderam ver outro vale deserto, e além daquela outra cordilheira seguida de outro vale. Assim era a topografia do Nevada: um ritmo de vale e cordilheira, cordilheira e vale, estendendo-se do deserto de sal às Sierras, cada vale um deserto, cada cordilheira uma muralha. E nada havia a fazer senão pôr um pé adiante do outro e esperar que o último dos bois resistisse.
Entraram no território dos índios paiute, onde as incursões eram um meio de vida. Gado era roubado durante a noite, cavalos laçados em plena luz do dia. E à medida que o número de bois diminuía, mais carroças tinham de ser abandonadas. A maioria dos imigrantes estava agora a pé, tendo deixado boa parte de seus pertences para trás. Crianças dividiam a mesma montaria, enquanto as provisões restantes tinham sido empilhadas na última das carroças.
Charlie Benbow perdera quase toda a sua criação de galinhas, mas ainda havia algumas vivas, e ele as mantinha sob olhar vigilante dia e noite. A filha de Hopkins que se casara em South Pass procurou Emmeline reservadamente queixando-se de dores. Como a garota estava grávida de quatro meses, Emmeline ficou alarmada. Mas escondeu seus temores e deu à jovem um tônico calmante. Sean Flaherty ainda tinha sua cadela Daisy, mas poucas batatas com as quais começar sua fazenda no Oregon. E Osgood Aahrens perdeu todos os seus instrumentos de barbeiro num atoleiro. Quando a caravana por fim retomou a viagem ao longo do serpenteante rio Truckee, o gado remanescente estava macilento e tropeçando nas pedras, as pessoas fracas e desnutridas com os suprimentos perigosamente baixos, e quando viram afinal a Sierra Nevada, a cordilheira estava coberta por nuvens negras e sinistras.
Na terceira semana de outubro a exaurida caravana entrou num amplo vale de montanha onde encontraram neve rodopiando entre os pinheiros. Aqui eles se reagruparam e descansaram, acampando do melhor jeito que podiam. Mas acordaram na manhã seguinte com uma leve nevasca e perceberam que deveriam apressar a subida ao cume da Sierra, do outro lado de onde situava-se a Califórnia.
Cinco dias depois alcançaram um lago, além do qual ficava o desfiladeiro que cruzava as Sierras. Tentaram atravessá-lo, mas a neve frustrou seus esforços, obrigando-os a se retirar para a margem do lago, onde havia solo plano, lenha e perspectiva de caça. Ali construíram abrigos improvisados aproveitando tendas, roupa de cama, mantas de búfalo e arbustos. Eram 159 pessoas amontoadas em toscas habitações, esperando que a neve prematura derretesse e fossem capazes de atravessar o desfiladeiro. Enquanto esperavam e oravam, fizeram um inventário de tudo que restava, e descobriram que ainda tinham carroças com gado e cavalos e algumas provisões: feijão, farinha, café e açúcar. Ficou decidido que tudo seria partilhado, inclusive as galinhas de Benbow e as batatas de Flaherty, e distribuído igualmente entre as famílias.
Naquela noite, quando Albertina Hopkins protestou dizendo que as garotas solteiras, os olhos apontados para Emmeline Fitzsimmons, deveriam dormir em um abrigo separado, seu marido disse baixinho, "cale-se mulher", e Albertina assentiu.
Matthew foi incapaz de dormir. Um vento gélido penetrava nas fendas e rachaduras do abrigo, tornando impossível ficar confortável. Mas alguma coisa mais também o mantinha acordado: o pressentimento incômodo, que o acompanhara nas dez semanas desde a partida do Forte Bridger, de que algo estava terrivelmente errado.
Caminhando entre corpos adormecidos, ele sacudiu Amos Tice para acordá-lo e exigiu num sussurro áspero que o guia se encontrasse com ele lá fora, onde, por sorte, um céu claro e uma lua brilhante iluminavam a paisagem nevada. Com uma energia inédita, Matthew insistiu para dar uma olhada no mapa de Tice, dizendo que esta não era a trilha fácil que o guia prometera.
O chefe da caravana resmungou, mas foi pegar o mapa, secretamente esperando que Matthew não conseguisse ler bem à luz da lua. Mas quando o papel se abriu nas suas mãos, e sua própria respiração gelada lhe toldava a visão, Matthew pôde ler bem o suficiente. E o que viu foi algo que não havia notado lá no Forte Bridger: este era um mapa desenhado de forma amadorística e sem escalas.
Onde conseguiu isto, Amos? — perguntou, suspeitosamente.
Tice não enfrentou seu olhar.
Lá no Forte Bridger.
Ou seja: lá onde aquele velho montanhês estava dizendo a todos que ignorassem os rumores acerca de um atalho. Você viu este mapa e acreditou nele? Por quê? Ele é falso, Amos! Qualquer um pode ver isto!
Alguma coisa se acendeu nos olhos de Tice, um lampejo de poder num rosto fatigado. Ele riu de uma maneira que alarmou Matthew e disse:
Acho que isto não importa agora. — Ele procurou dentro de sua jaqueta de pele de gamo franjada e extraiu um papel grosso esfarrapado, desdobrou-o e mostrou um cartaz anunciando a descoberta de ouro na Serraria de Sutter.
Matthew olhou em choque.
Você deveria ter perguntado aos demais se estavam interessados em ouro!
Mas Tice apenas riu de novo e retornou ao abrigo. Na manhã seguinte, o guia da caravana e mais cinco homens tinham ido embora.
Os imigrantes haviam sido abandonados.
Desfizeram o acampamento, encheram as carroças restantes e puseram-se a caminho, determinados a transpor as montanhas. Porém encontraram mais neve e foram malsucedidos em outras tentativas de atravessar as Sierras. O tempo estava ficando mais frio, com pesadas nuvens pendendo baixas sobre os pinheiros. As roupas dos imigrantes estavam frias e úmidas enquanto eles tremiam até os ossos, pânico e desespero mal eram controlados e todos oravam para que o tempo melhorasse.
Quando uma chuvarada de surpresa encharcou a caravana, alguns disseram que a chuva era um bom sinal, mas Matthew lembrou-se de algo que ouvira Jim Bridger dizer no forte: "Chuva no vale da Sierra significava neve no desfiladeiro."
Pela primeira vez na vida, Matthew sentiu um medo genuíno. Já lidara com os mortos muitas vezes em sua jovem vida, tanto na agência funerária do pai quanto nas sessões espíritas de sua mãe, mas nunca tivera de pensar a sua própria morte antes. E isto o aterrorizava. Ele se recordava de quão valente se sentira, sentado na boléia da carroça quando partiram de Independence, Missouri, um êxodo de gente corajosa para conquistar a imensidão agreste. Mas agora via, através de olhos recentemente frios, que não houvera nenhuma bravura verdadeira entre eles, pois todos tinham considerado a viagem como uma pândega, uma aventura alegre com piqueniques ao longo do caminho.
Ninguém havia previsto isto.
Enquanto armavam um novo acampamento com abrigos improvisados, seu ânimo em baixa, os imigrantes oravam para que a chuva derrotasse as nevascas, mas acordaram na manhã seguinte para ver que a neve estava ainda mais profunda.
A montanha à frente era intimidante, mas eles sabiam que deviam se apressar. Os bois estavam fracos com uma dieta de ramos de pinheiros, e mais carroções tiveram de ser abandonados. Empilharam o que puderam nos bois remanescentes e eles próprios carregaram o resto, com as crianças levando pequenos fardos nos ombros.
A neve tinha agora um metro de profundidade.
Apressaram o passo, mas o último pico da montanha erguia-se diante deles como uma muralha branca. Desanimados e exaustos, o enfraquecido bando não pôde prosseguir. Assim retiraram-se para um pequeno lago onde, durante outra tempestade de neve, novamente construíram abrigos com tábuas das carroças, tetos de lona, adicionando roupas de cama e peles de búfalo para afastar o frio. Acenderam fogueiras no interior e foram rapidamente assolados pela fumaceira, fazendo com que corressem para fora, tossindo e arfando, para abrir buracos de ventilação nas peles, o que também deixava o frio entrar. A caça era pobre aqui. Matthew apanhara em armadilha um coiote, e o remoso animal foi devorado com uma coruja ferventada para fazer um caldo que foi servido apenas às crianças e aos doentes. Caçar cervos também provou-se inútil, já que este animal prefere altitudes mais baixas. Feijão e farinha eram preparados para render o máximo e racionados em magras porções. As últimas galinhas de Benbow foram comidas e as batatas de Flaherty se acabaram. Apesar de tudo, eles ainda davam graças antes de cada parca refeição. A dois mil metros acima do nível do mar, eles pelejaram para produzir fogueiras e mantê-las acesas. Os integrantes mais fracos tinham dificuldade em respirar nesta altitude. E a pobre garota Hopkins recém- casada, grávida de cinco meses, sofreu um aborto que quase lhe custou a vida. O feto teve um funeral cristão e Albertina Hopkins, bem mais magra desde a partida de Independece e bem menos falante, cuidou com dedicação de sua enteada.
Após sete dias de neve ininterrupta, o sol apareceu e, encorajados, os imigrantes votaram para enviar um grupo até o desfiladeiro na esperança de que pudessem atravessá-lo e descer até a Serraria de Sutter, de onde poderiam mandar uma equipe de resgate. Foram escolhidos os oito homens mais fortes, mas quando Matthew Lively se ofereceu como voluntário, todos concordaram que o "doutor" deveria ficar com as mulheres e os doentes. O grupo foi vestido com as roupas mais quentes e recebeu pacotes de carne seca. Todos tentaram dar ao grupo um caloroso bota-fora.
Eles voltaram ao pôr-do-sol. Não havia como avançar, disseram. As tempestades de neve tinham bloqueado todas as trilhas.
Alguém calculou que foi por volta de 5 de dezembro que os imigrantes começaram a matar o gado remanescente, porém muitos animais tinham vagueado nas tempestades para acabar sepultados pela neve. E os homens tiveram tão pouco sucesso na caça que um novo pensamento arrepiante começou a penetrar na mente dos imigrantes: se ficassem confinados ali por todo o inverno, não haveria comida suficiente.
Florine, a esposa de Charlie Benbow, foi descoberta congelada durante o sono. Como o solo estava duro demais para se cavar uma sepultura, ela foi enrolada num lençol e depositada entre duas tábuas e depois coberta com pedras.
Outra tentativa de escapada foi feita, desta vez com mulheres no grupo, mas foram novamente repelidos por outra nevasca. Sentaram-se amontoados nos seus precários abrigos, congelados e ferroados, tentando extrair calor das fogueiras que se extinguiam enquanto encontrar lenha seca se tornava cada vez mais difícil. Bíblias que haviam sido usadas para conforto espiritual eram agora colocadas no fogo para conforto físico, como era tudo que não podia ser usado ou comido. Eles observaram em desolado desespero enquanto os Salmos, os Cânticos de Salomão, os Evangelhos e as Epístolas de Paulo caíam na fogueira. Novas nevascas durante a noite sepultaram seus depósitos de carne, tomando um dia inteiro de busca com varas longas para localizá-la. Na manhã seguinte, a carne armazenada sumiu de vez, carregada por lobos.
Num raro acesso de inspiração heróica, movido principalmente pela fome, Silas Winslow decidiu enfrentar o cume por conta própria, determinado a trazer turmas de resgate até o acampamento. Foi encontrado dois dias depois, ainda vivo mas cego pela neve. Quando o transportaram de volta, envolveram seus olhos com morim para evitar mais dano a eles. Seu moral estava elevado o bastante para gracejar dizendo que esperava que a perda de visão fosse temporária, pois para que serviria um fotógrafo cego?
Emmeline deu o melhor de si para animar o grupo de imigrantes. Envolvia-os com canções e histórias, e pedia a cada um que contasse seus planos para o Oregon. As primeiras noites foram bem-sucedidas, mas à medida que o frio se intensificava e todos tremiam com os dentes chocalhando apesar do fogo e dos cobertores, eles se tornavam menos propensos a conversar.
Os temores de Matthew se intensificaram, como os de todos os demais, pois havia um horror não mencionado pairando no ar. A paisagem, incluindo penedos, pinheiros e o pequeno lago, estava agora completamente branca. Não havia um pássaro, um peixe, uma noz de pinheiro. Quando os suprimentos acabassem, outras coisas teriam de ser comidas.
E quando até mesmo estas — os cães sobreviventes, as sementes de maçã dos irmãos Schumann, couro cozido — fossem consumidas, algo mais teria de ser encontrado.
Matthew segurava o cristal azul na mão enluvada noite e dia enquanto fixava os olhos encovados nos seus companheiros. A inanição estava chegando mais perto. Todos estavam sofrendo de ulceração causada pelo frio. Quando Daisy, o último dos cães sobreviventes, foi sacrificada para ser comida, Sean Flaherty saiu disparado do abrigo num paroxismo de pesar e tentou enforcar-se numa árvore. Mas o galho congelado se quebrou e os homens puderam trazê-lo de volta para dentro.
A Pedra da Bênção não tinha respostas, por mais que Matthew nela fixasse o olhar. Nada sentiu do seu pretenso poder espiritual, não ouviu respostas sussurradas em exalações fantasmais.
Mais pessoas começaram a padecer de febre e pneumonia. Dois rapazes, Freddy Hastings e Abe Waterford, com as suas mães em casa aguardando ansiosamente cartas do Oregon, mergulharam para a morte nas águas quando tentaram abrir um buraco no lago congelado para pescar. Os outros se encontravam fracos demais para içá-los e lá eles foram deixados para o degelo da primavera. Quando os irmãos Schumann conseguiram capturar ratos, que tostaram em brasas de carvão, houve uma luta obscena por comida — ossos, rabos, tudo. Mesmo assim, Osgood Aaherens conduziu uma oração de graças antes que consumissem a repulsiva refeição.
Por fim, nenhum alimento restou. Cozinharam couro e comeram a goma residual que se formou no fundo da panela. Assaram cordões de sapatos entre as cinzas e comeram as tiras crocantes. Pelas primeira vez não deram graças.
Enfraqueciam cada vez mais. Sonhavam com comida. Um homem, enlouquecido pela fome, correu para fora da tenda encharcada e foi encontrado horas depois, morto na neve. Deixaram-no lá, para ser coberto pelas nevascas. Charlie Benbow começou a manter conversas com a falecida esposa, Florine.
Matthew e Emmeline dormiam enlaçados nos braços um do outro. Não entretinham pensamentos de romance ou de intimidade física, mas simplesmente extraíam calor, toque e amor um do outro.
O amanhecer do Dia de Natal trouxe uma nova nevasca. O vento cortava através das tendas como espadas e uivava como fantasmas atormentados pela dor. Os ocupantes de olhos vítreos dos frágeis abrigos tinham dificuldade em acender e conservar acesos os fogos. Pilhavam seus pertences, procurando por algo comestível. Jogavam fora ouro e moedas, pois não tinham mais qualquer valor ou importância. Já estavam havia duas semanas sem comida de qualquer espécie, subsistindo somente de gelo derretido que bebiam em goles.
Rebecca O'Ross, que não era uma mulher forte, para começar, foi a primeira entre os adultos a morrer de fome. Seu marido Tim estava tão desligado de pesar que teve de ser arrastado do túmulo dela por quatro homens, receosos de que ele congelasse ali até a morte. Seu filho, Dickie, enroscado num canto do abrigo, chorou até ficar em silêncio, de olhos vítreos fixados no nada.
Quando, uma semana depois, um dos irmãos Schumann morreu de pneumonia, pela primeira vez houve hesitação entre os sobreviventes acerca de seu funeral. Palavras não eram proferidas, e as pessoas mal podiam se fitar nos olhos, mas o terrível pensamento pairava sobre elas o tempo todo, tão alto como o vento uivante que nunca interrompia o seu tormento incessante.
Ali, na pessoa de Helmut Schumann, jazia alimento fresco.
Meu Deus, não! — gritou Matthew quando o pleno significado do silêncio lhe ocorreu. — Não somos animais.
Mas nós somos — replicou o Sr. Hopkins, suave e tristemente.
Humanos, talvez, e filhos de Deus. Porém animais, de qualquer modo, e precisamos comer. — Sua esposa, Albertina, soluçava com o rosto enterrado nas mãos. Era difícil reconhecer naquela criatura esquelética em roupas folgadas a mesma mulher dominadora que partira de Independence oito meses antes. Mas seus dois filhos estavam mortos, seu espírito alquebrado.
E o que comerei? — gritou Manfred Schumann. — Não posso comer meu próprio irmão!
Outro silêncio cheio de significado lhe respondeu: Helmut era apenas o primeiro; outros se seguiriam, por certo.
Matthew correu para fora, cambaleando na neve, lágrimas se congelando em suas faces. Caiu de joelhos e chorou, soluçando pesadamente. Quando Emmeline juntou-se a ele, puxou-a para seus braços. Apesar das camadas de roupa, o casaco dela feito de um cobertor, ele sentiu a pele e os ossos. Não era mais uma jovem mulher robusta. Mas ainda havia vida em seus olhos que examinavam o rosto de Matthew com angústia e compaixão, e vida nos seus lábios quando procuraram e beijaram a boca dele.
Não podemos fazer isto. — Ele soluçava no pescoço de Emmeline.
Não podemos nos rebaixar a tanto!
Temos opção? Devemos nos deixar morrer? Matthew, estamos isolados aqui. E deveremos estar até a primavera. Não há comida. Não há... — Ela então também desatou a chorar e se abraçaram na neve, balançando de um lado para outro, seus uivos de desespero se elevando até o céu frígido e indiferente.
Finalmente, readquirindo o controle, Emmeline puxou Matthew para se pôr de pé e disse:
Eles precisam de um líder. Precisam de alguém que os mantenha unidos em corpo e espírito. Eles respeitam você.
Não sou um líder. A corajosa é você, Emmeline. Tem sido desde o início em Independence, quando se determinou a fazer esta viagem por conta própria.
Ela o fitou com firmeza.
Não sou corajosa, Matthew. Não sou mais. Ando assustada, fora de meu juízo perfeito. Toda aquela coragem... foi tudo conversa porque era tão fácil. Mas agora que me deparo com a necessidade de bravura autêntica, descubro que não tenho nenhuma. Você tem sorte — acrescentou. —- Tem a Pedra da Bênção para guiá-lo. Eu só tenho a mim mesma, e de fato sou uma guia muito fraca.
Ele tirou o cristal do bolso e tentou ver o Espírito Guia que sua mãe sempre via. De repente, toda a esperança e fingimento de crença na pedra deu lugar à fome e ao desespero.
É uma fraude! Uma farsa! — gritou e arremessou a pedra com um vigoroso lançamento.
Não! — disse Emmeline, pois embora ela própria não acreditasse na magia do cristal sabia que Matthew ainda acreditava. Ela cambaleou pela neve procurando freneticamente o cristal.
Espere — disse Matthew, indo atrás dela.
Quando o encontraram e Emmeline se abaixou para pegá-lo, Matthew viu alguma coisa na neve. Franziu o cenho. Apertou os olhos e se abaixou. Esfregou os olhos e piscou. Não havia erro: eram rastros de urso.
O que é? — perguntou Emmeline ao ver a expressão no rosto dele.
Matthew ergueu-se e olhou em volta. A paisagem era de um branco ofuscante e quase descaracterizada. Ele observou procurando algum movimento.
Então franziu o nariz.
Sente o cheiro?
Ela fungou o ar.
Que fedor horrível!
Acho que sei o que é. — Ele se adiantou pela neve profunda e Emmeline o seguiu.
Depararam com um pequeno monte de fezes de urso. Ainda fumegavam, o que significava que estavam frescas — o urso estava por perto.
Temos de contar aos outros! — disse Emmeline. — Podemos matá-lo! Teremos comida e...
Não! Um grupo de pessoas assustaria a fera e então nunca mais a acharíamos. Se eu pudesse acertá-lo com um tiro...
Matthew, você não é um caçador...
Mas ele sabia que isto era algo para fazer sozinho e com rapidez. Com o coração martelando de medo, correu até um dos abrigos e silenciosamente pegou a arma de Charlie Benbow. Nada contaria aos outros, que estavam, de qualquer modo, desatentos e letárgicos demais para notar ou se importar que ele estivesse pegando o rifle. Seria uma coisa cruel demais soerguer as esperanças deles. Ele disse a Emmeline que esperasse por ele no abrigo aquecido. E que rezasse.
Matthew sabia que era loucura um homem enfrentar um urso sozinho com apenas uma arma, mas a razão não fazia parte de seu pensamento exatamente agora. Ele engatilhou o rifle e enfiou a única outra bala em sua mitene para recarregamento rápido. Depois seguiu os rastros do urso com grande dificuldade, pois a neve estava ofuscante e sua visão cada vez mais borrada. Cada tomada de fôlego era uma estocada nos pulmões e ele não tinha mais sensação nos pés. Parava com muita freqüência para ouvir, mas a floresta branca estava em silêncio.
Seu desespero crescia. Havia encontrado o animal! Tinha de impedir que os outros fossem em frente com o ato impensável que estavam avaliando. Matthew havia sido criado com a noção de respeito aos mortos. A profanação era algo abominável. Os mortos não podiam se defender; cabia aos vivos protegê-los.
Mas as pessoas no acampamento mal eram seres vivos agora; eram eles próprios cadáveres ambulantes.
De súbito, ele congelou. Lá estava, a uns cem metros à frente, um enorme urso-pardo escavando a neve. Matthew moveu-se lentamente à frente, depois se agachou atrás de uma árvore, engatilhou o rifle, fez cuidadosamente pontaria e atirou.
O urso deu um rosnado e recuou nas patas traseiras. Vendo Matthew, atacou. Matthew apressadamente colocou pólvora na arma e socou a segunda carga de chumbo. Nivelou o rifle e disparou de novo. O urso se abaixou e oscilou. Depois se apoiou nas quatro patas e fugiu.
Espere — disse Matthew fracamente, não acreditando que tivesse chegado tão perto e agora perdido a caça. — Por favor! — começou a chorar. Toda aquela carne! Poderia ter salvado a todos. Mas sua pontaria fora medíocre. Ele tinha errado.
A seguir viu a trilha de sangue na neve.
Correu de volta ao acampamento o mais rápido que pôde, tropeçando e caindo na neve. Encontrou vários homens agrupados em torno do cadáver de Helmut Schumann, com o Sr. Benbow empunhando uma faca de açougueiro.
Pare! — gritou Matthew.
Quando contou-lhes apressadamente sobre o urso, acrescentando que deviam segui-lo, nem todos concordaram.
Um urso ferido é muito perigoso — disse Aahrens, o barbeiro.
Já vi o que um urso ferido pode fazer com um homem — acrescentou Charlie Benbow. — E suicídio, doutor.
Por que não vai atrás dele? — indagou Bret Hammersmith. — Dê uma boa olhada. Depois venha nos buscar.
Matthew olhou nos olhos encovados e faces ossudas marcadas com a loucura da fome. Sabia que não iam esperar por sua volta com notícias do urso, que só queriam se ver livres dele.
Estou fraco — disse ele, e era a pura verdade. — Não posso dar mais que uma caminhada através da neve e então estarei acabado. Peço que façam esta caminhada comigo. Eu acertei aquele urso. Ele não vai viver muito tempo. E onde o encontrarmos, encontraremos comida. E sobreviveríamos. Aqui — ele olhou em volta para o inferno para o qual haviam descido —, mesmo que nossos corpos sobrevivam, nossos espíritos morrerão.
Mas Emmeline também estava aterrorizada em deixar o acampamento. Ele a tomou pelas mãos congeladas.
Você precisa ser corajosa, Emmeline. Pelos outros. Se você for, eles a seguirão.
Mas estou com medo.
Providenciarei para que corra tudo bem conosco. Não se preocupe, minha querida.
Por fim acabaram seguindo-o, pessoas famintas segurando-se umas nas outras, carregando entes queridos nos ombros, caminhando com dificuldade pela neve, semimortos de fome. Levavam apenas uns poucos pertences — cobertores e lençóis, utensílios de cozinha e as cinzas quentes das suas fogueiras cuidadosamente protegidas. Por diversas vezes quiseram desistir, pois pareciam estar perdidos num limbo branco ofuscante. Mas Matthew descobriu gotas de sangue, escarlates na neve, e apressou seu maltrapilho grupo à frente, prometendo-lhes um banquete de carne assada no fim. Descreveu gordura chiando numa panela até eles quase sentirem o cheiro e a saliva escorrer. Emmeline participou pegando cada um pelo braço, fazendo-os se pôr de pé, dizendo-lhes como tinha visto o urso ferido — uma mentira — e como tinha certeza de que estava morto agora. Era só mais um pouco à frente... mais alguns passos... apenas um outro passo... não, não, não, não parem, não caiam, aqui está meu braço...
Ruth Hammersmith afundou na neve e ali ficou como um peso morto. O marido desabou ao seu lado e disse aos outros que prosseguissem. Olhou para eles com olhos encovados orlados com sombras negras.
As pessoas semimortas prosseguiram, sem pensar, mal ouvindo as palavras de encorajamento de Matthew, perseverando mecanicamente na neve, mãos e pés dormentes pelo congelamento, rostos brancos pelo frio extremo.
Outros caíram, segurando suas crianças nos braços. Emmeline tentava animá-los, mas ela própria estava cansada demais, tendo apenas força suficiente para seguir Matthew.
E quando parecia até mesmo a Emmeline e Matthew que sua jornada não tinha esperança, encontraram a caverna, a trilha sangrenta entrando nela.
Enquanto os outros esperavam a uma distância segura, Matthew e Manfred Schumann entraram cautelosamente, ouvindo, farejando o ar, rifle engatilhado e pronto. Encontraram o urso lá dentro, e estava morto.
Manfred e Osgood Ashrens encontraram força para cravar as facas e abrir a barriga do animal. A visão das tenras vísceras cruas se derramando para o chão da caverna, os outros avançaram, caindo sobre os maços sangrentos e fumegantes num irracional frenesi alimentar. Eles se empanturraram no sangue e na carne ainda quentes, e então, sentindo-se fortalecidos, voltaram ao longo da trilha para resgatar os que haviam ficado pra trás. Os Hammersmits estavam mortos, mas os demais foram trazidos, inundando a caverna com seu calor humano, enchendo as barrigas com carne de urso.
Naquela noite dormiram exaustos apoiados na carcaça, as crianças rastejando dentro dela para obter calor. E quando acordaram, fizeram uma fogueira das cinzas, ofereceram a Deus uma prece de graças e começaram a esquartejar o urso.
Comiam diretamente dele, lançando pedaços de carne no fogo, mas depois também começaram a cortar tiras finas compridas e pendurá-las sobre a fumaça até que secassem, desta forma preservando a carne para as frias semanas que viriam. Enterraram os ossos e o crânio, para desencorajar os lobos e depois usaram a pele do urso, que quase cobria o chão da caverna, como um tapete para aquecimento.
Mais seis pessoas pereceram, apesar do alimento e do aquecimento, mas quando ficou evidente que os demais sobreviveriam, Matthew fez uma contagem do grupo: havia agora 55 homens, 24 mulheres e 53 crianças. Quarenta almas a menos desde que deixaram o Forte Bridget
E num dia em que o sol aqueceu pela primeira vez e eles encontraram a primeira neve derretida ao lado de um riacho, Matthew virou-se para Emmeline e, tomando-lhe o rosto entre as mãos, disse com paixão: — Adoro o som da sua voz, Emmeline. Não pare nunca de falar. Jamais fique em silêncio. Quando começamos esta jornada, eu era melancólico e sisudo demais. E achava que você sorria demais. Mas sua alegria impediu-me de afundar. Cresci entre os mortos e a penumbra, mas você trouxe luz e animação para minha vida.
E você me impediu de cair no mundo, querido Matthew, pois eu era frívola e superconfiante. Você é a minha rocha e minha estabilidade.
O grupo de resgate de Sutter chegou em meados de março, liderado por um dos homens que fugira com Amos Tice. Assim que alcançaram a civilização, o homem fora acometido de culpa e contou às autoridades sobre uma caravana de imigrantes bloqueada no alto do último desfiladeiro. Voluntários imediatamente se ofereceram, carregados com armas e provisões, e fizeram a jornada em tempo recorde.
Dos 172 homens, mulheres e crianças que deixaram o Forte Bridger em agosto, menos de 120 sobreviveram.
Todos disseram à equipe de resgate que foram salvos graças ao Dr. Lively que com sua coragem tomou a decisão correta diante da adversidade extrema.
Nenhum deles mencionou o incidente a respeito do cadáver de Helmut Schumann.
Quando chegaram enfim à Serraria de Sutter e viram que era um lugar de crescimento e novos começos, com a febre do ouro em toda parte, Matthew tirou a Pedra da Bênção do bolso uma última vez.
Eu não o vejo — disse decisivamente.
Não vê o quê?
O espírito-guia. Está vendo esta mancha no núcleo do cristal? Como poeira de diamante? Muda de forma quando se vira a pedra na luz. Minha mãe dizia que era um espírito, mas vejo apenas depósitos minerais. — Entregou-o a Emmeline. — O que você vê?
Ela perscrutou o núcleo do cristal.
Um vale — disse. — O vale verdejante para onde estamos indo nos fixar e iniciar vida nova. — Devolveu-lhe o cristal.
Estranho — refletiu ele, tentando ver o vale de Emmeline na Pedra da Bênção. — O tempo todo pensei que era o cristal que me dizia o que fazer. Mas talvez fosse eu quem tomava as decisões, não a pedra. Eu queria vir para o oeste, então girei a pedra onze vezes até ela apontar para oeste. E quando Ida Threadgood a abandonou no rio e você precisou de alguém com quem viajar — virou-se e sorriu para ela —, eu já havia tomado minha decisão de pedir-lhe que viesse comigo. Se eu não tivesse assim desejado, nunca teria consultado a Pedra da Bênção, para começar. Mas nunca tive confiança suficiente em mim mesmo para tomar minhas próprias decisões. A pedra era minha muleta. Não preciso mais dela.
Não seja tão apressado no seu juízo — disse ela, tendo dado bastante crédito ao milagre ocorrido no lago da montanha. — Foi a Pedra da Bênção que nos levou aos rastros do urso. Não fosse ela, estaríamos certamente mortos agora.
Ele assentiu, imerso em pensamento por um momento.
Estive pensando, Emmeline — disse —, que Lively pode ser um nome estranho para um agente funerário, mas é um nome perfeito para uma parteira. — Depois, com toda seriedade: — Sei que você jurou nunca se casar, mas...
Ela levou um dedo aos lábios dele e disse com um sorriso:
Claro que casarei com você, meu querido Matthew, pois formamos um par perfeito: parteira e agente funerário. Ajudo a trazer pessoas ao mundo e você as escolta para fora dele.
Ela tomou a Pedra da Bênção dele mais uma vez e segurou-a à luz do sol.
Pensei em todas as pessoas que tiveram este cristal, que olharam para ele em busca de orientação, proteção ou sorte. E imagino se foram como você, Matthew, cego às suas próprias forças, dando crédito a um pedaço de mineral inanimado. Mas você descobriu seu próprio poder no fim, o espírito que está em todos nós, o espírito para superar a adversidade. As pessoas são fortes, Matthew, sei disso agora. Podemos enfrentar quaisquer desafios colocados em nosso caminho, e podemos triunfar. Você está certo, não precisamos mais dela — concluiu, colocando a pedra no bolso dele. — Mas talvez alguém no futuro possa usar a Pedra da Bênção e permitir que ela o ajude a descobrir sua própria força, sabedoria e poder interiores.
Matthew beijou Emmeline, a seguir tomou as rédeas e pôs a carroça em movimento, rumo ao seu futuro no vale verdejante, em direção a uma nova esperança.
Ínterim
Os Lively compraram terra, investiram em minas de ouro e ferrovias e ficaram ricos. Matthew tornou-se um líder em sua comunidade, e nos seus últimos anos foi eleito para a Câmara Estadual e tornou-se uma figura de liderança e prestígio. Quando lhe indagaram que conselho daria aos futuros imigrantes que tomassem as trilhas do Oregon e da Califórnia, Matthew disse: "Não peguem atalhos." Ele e Emmeline viveram até a velhice e foram sepultados em Livelyville, Califórnia.
A Pedra da Bênção foi herdada por seu primogênito, Peter, que a passou para sua filha Mildred, após ela se formar em medicina. A Dra. Lively levou o cristal da boa sorte com ela para a África, onde passou trinta anos em trabalho médico missionário antes de voltar aos EUA para se tratar de uma doença rara contraída durante um safári em Uganda. Como Mildred Lively não tinha filhos, ela doou o cristal à mulher que foi sua enfermeira nos meses finais, uma nipo-americana chamada Toki Yoshinaga.
Toki e sua família foram removidas de seu lar em São Francisco após o bombardeio de Pearl Harbor e mandadas para viver num lugar chamado Manzanar. Depois da guerra a família foi forçada a vender todos os bens que lhes restavam a fim de se recompor. O cristal azul foi vendido por cem dólares, uma soma considerável em 1948.
O comprador foi um contador chamado Homer cujo hobby era gemologia, e quando examinou esta nova aquisição na bancada de trabalho na sua garagem, ele percebeu emocionado que poderia ter descoberto um novo mineral. Submetendo o cristal ao seu primeiro escrutínio científico desde que um holandês chamado Kloppman o analisou em Amsterdam no ano de 1698, Homer considerou-o uma pedra dura, 8.2 na escala de Moh, com um brilho aguçado e clivagem muito baixa. O azul recordava-lhe variedades de topázio e turmalina, mas possuía uma "estrela" no seu centro como as safiras às vezes faziam. Sentindo excitamento pela primeira vez em muitos anos, ele empacotou a pedra com outras e foi para uma convenção de gemologia em Albuquerque, Novo México, onde esperava confirmar sua nova descoberta, com a possibilidade de dar o seu próprio nome à gema — "homerita" lhe soava bem. Na convenção, Homer conheceu uma jovem dama muito interessada em pedras preciosas e ela o convenceu a levá-la ao hotel onde ele se hospedava para ver sua coleção. Infelizmente, o ingênuo contador interpretou mal as intenções da viçosa dama e, na expectativa de uma aventura sexual, sofreu um infarto fulminante.
A coleção de Homer foi deixada negligenciada na garagem por sua viúva até que, decidindo mudar-se para um condomínio de aposentados na Flórida, ela vendeu "toda aquela inutilidade" para um espírito livre chamado Raio de Sol, que produzia bijuterias e toda a parafernália contestatória para as principais lojas do Hollywood Boulevard. Assim, em 1969, a Pedra da Bênção foi parar num lugar chamado Woodstock, engastada no cabo de uma pinça de fumar maconha pertencente a um hippie chamado Argyle. Após a morte de Argyle, numa guerra não-declarada no Sudeste da Ásia, sua irmã recebeu seus pertences e, achando a pinça, desengastou o cristal azul. Achando que a pedra não passava de um pedaço de vidro, ela a deu de presente à filha de oito anos que, usando folha de alumínio e cola, fez do cristal uma coroa para uma de suas bonecas.
Quando a garota chegou à idade universitária e saiu de casa, doou todos os seus velhos brinquedos para o Exército da Salvação, de onde o cristal azul foi resgatado por uma mulher que regularmente percorria brechós procurando artigos de valor negligenciados por olhos menos argutos — pelo menos na sua opinião. Viu possibilidades no cristal, pois era adepta da Nova Era e sentiu vibrações definidas quando o pegou.
E assim a pedra azul que havia viajado através de galáxias e nebulosas para pousar numa Terra primordial — um cristal cósmico que dera a uma proto-humana chamada Mulher Alta a sabedoria de quando conduzir seu povo para longe do perigo, que havia confortado Laliari e iluminado Avram, e concedido fé à senhora Amélia, e dado à Madre Winifred a coragem para desobedecer à ordem de um abade, e a Katharina a esperança de encontrar seu pai, e canalizou a paixão recolhida de Brigitte Bellefontaine para um uso prático, e finalmente transformou Matthew Lively em dono de seu próprio destino — assim esta Pedra da Bênção veio a residir numa pequena loja de uma comunidade praiana da Califórnia. Hoje se encontra na vitrine num despretensioso mostruário de cristais curativos, cartas de tarô e incenso. Se você não andar muito rápido, nem distraído demais lendo um jornal ou falando no telefone celular, poderá vê-la.
E se sentir necessidade de descobrir sua força interior, ou coragem, ou sabedoria, entre na loja, observe a pedra, segure-a na mão e veja o que ela lhe diz. O dono da loja está disposto a vendê-la a um preço razoável... para a pessoa certa.
[1] Lively: vívido, animado, vivaz. (N. do T).
Barbara Wood
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