Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A PEDRA DA VIDA
Segunda Parte
MARCAS DO PAÍS DE GALES – 1209 a 1215
Adam acordou quando os primeiros raios de sol, que atravessavam a janela estreita, virada a oriente, lhe bateram no rosto. Abriu os olhos e viu Harry, sentado na beira da cama, a vestir as meias. Espreguiçou-se, bocejou com volúpia, lançou a Harry um sorriso sonhador e, por instantes, o seu espírito satisfeito interrogou-se vagamente sobre o local onde se encontravam. Depois, recordou-se da chegada a Shrewsbury, já de noite, sob a chuva suave de Verão, da bela ceia ingerida lá em baixo, na sala de jantar da hospedaria, e do prazer de se deixar cair, já meio adormecido e morto de cansaço, na grande cama, ao lado do irmão. Tinham-se desviado do caminho para irem às minas de chumbo, porque Harry não tencionava perder tempo e, sem esperar sequer para ver o local onde iria construir, queria fazer já a encomenda do material para a cobertura dos tectos.
- Onde vamos tão cedo? - perguntou Adam, numa voz ensonada, enquanto apalpava o chão com a mão, à procura dos sapatos.
- Vamos não... eu vou. Tu podes ir dar uma volta, para veres como está a vila, ao fim destes anos todos. Eu venho ter contigo aqui, dentro de uma hora.
Então, Adam lembrou-se. O torpor do sono evaporou-se e abriu muito os olhos, azuis como centáureas, no rosto tisnado pelo sol.
- Eu podia ir contigo. Quem é que ainda se vai lembrar de ódios antigos?
- Não - respondeu Harry, em tom categórico. - Não quero ver-te atravessar aqueles portões. Não me demoro.
- E se fizerem alguma coisa contra ti? És muito prudente no que me diz respeito mas muito temerário quando se trata de ti.
- A dívida é minha - cortou Harry.
E, dizendo isto, levantou-se da cama onde estava sentado, num rompante tal que o estrado rangeu. Com as mãos cruzadas por trás da nuca, Adam ficou a vê-lo vestir-se. Em Londres, quase fora preciso obrigar Harry a comprar roupas novas, pois este não aceitava que a dignidade e autoridade de um mestre canteiro tivesse alguma coisa a ver com o comprimento da cota. Para ele, as vestes compridas de um mestre arrogante não passavam de um uniforme de fraqueza. Não havia forma de o levar a interessar-se pelo que vestia: a única coisa que queria era roupas que lhe permitissem liberdade de movimentos. Adam tivera de recorrer a várias artimanhas e à persuasão para o convencer a comprar aquela distinta cota castanha clara e aquele pelote verde-escuro de bom corte, com mangas compridas e capuz. Com um olhar satisfeito, apreciou o seu trabalho, enquanto Harry se penteava e apertava o cinto. A gravidade, a determinação e a energia que o seu rosto denotava não deixavam lugar para dúvidas. Por mais velha e gasta que fosse a túnica que envergasse, Harry nunca teria dificuldade em impor respeito e obediência. Todavia, Adam preferia que ele honrasse a sua posição. Não havia muitos homens capazes de chegar ao cargo de mestre canteiro, com apenas vinte e quatro anos.
Harry surpreendeu o olhar complacente dos olhos azuis de Adam e fez uma careta de troça ao reflexo da sua magnificência.
- Não me vão reconhecer.
- Vão conhecer-te, sim - afirmou Adam, orgulhoso e satisfeito, antes de voltar a fechar os olhos para dormir mais um pouco.
Harry atravessou a vila a pé, desceu as ruas sinuosas, batidas pela luz viva e fresca da manhã. Nove anos não haviam trazido grandes mudanças a Shrewsbury. As entradas das lojas, com as suas portadas escuras de madeira, nas frontarias inclinadas e dentadas que se recortavam contra o céu nacarado, eram tal como ele se recordava e os passantes que com ele se cruzavam só não lhe eram familiares devido à sua atitude calma e reservada, quase de suspeita, como se, agora, a presença de estranhos fosse menos frequente e estes menos bem-vindos. Um sinal dos tempos, tal como o silêncio dos sinos. Ali, naquela terra que já fora a sua, Harry sentiu uma necessidade, que mais parecia uma fome lancinante, de voltar a ouvi-los tocar. Aquela hora matinal, os telhados deveriam estar a vibrar com o som dos sinos. Mas havia mais de um ano que todos os sinos de Inglaterra haviam emudecido e as igrejas sido fechadas, que as noivas casavam em cerimónias clandestinas ou sem-cerirnónia alguma e que os mortos eram enterrados sem missa, em fossas à beira das estradas. E o rei, agindo com uma audácia idêntica à do Papa e com igual indiferença quanto aos efeitos que a sua estratégia teria sobre os inocentes e os desfavorecidos, apropriara-se das terras, rendas e bens da Igreja, a pretexto de que esta deixara de cumprir os deveres que lhe cabiam em troca desses privilégios. Sem rendimentos, eclesiásticos e monges não tinham com que se alimentar e, muito menos, com que cuidar dos seus doentes e pobres. Era sempre sobre os ombros dos pequenos e dos indigentes que o fardo acabava por se abater, da mesma maneira que a dívida descia do rei para os seus nobres, destes para os seus feudatários e os feudatários destes, até chegar aos rendeiros livres e, por fim, aos servos, nas suas parcas jeiras de campo. O papa Inocêncio atacava o rei João, o rei João atacava o papa Inocêncio e os golpes recaíam sobre os desgraçados que trabalhavam os campos. Os bispos e os abades podiam refugiar-se no estrangeiro, até a tempestade amainar, mas os párocos das pequenas paróquias, tão afectados pela pobreza como o seu rebanho, não podiam fazê-lo e, agora, eram os pobres quem alimentava os padres e não o contrário. Tudo isto por causa da nomeação de um arcebispo!
Não, não era assim tão simples: a nomeação era a oportunidade escolhida e não a causa. Competente, brilhante e ambicioso, o papa Inocêncio era um imperador falhado e encarava a cristandade como um império temporal, não apenas espiritual. E o rei João, o mais teimoso dos príncipes da cristandade e o mais inclinado a considerar o seu reino insular como uma potência secular, dotada de integridade própria, atravessava-se com firmeza no seu caminho. Na prova de força que os opunha um ao outro, os peões eram o povo de Inglaterra, peões que podiam ser sacrificados até ao dia em que a miséria ameaçasse pesar sobre o resultado da contenda.
Isambard falava frequentemente do rei João e dos problemas do mundo, meditando em voz alta diante de Harry, com uma liberdade que este considerava lisonjeira, embora incómoda. Aqueles monólogos penetrantes e amargamente lúcidos, nada ortodoxos por virem de um homem tão devoto, haviam aberto os olhos de Harry para novas ideias e haviam-no induzido a reflectir mais profundamente e de forma mais crítica sobre tudo o que, até então, tomara por evidente. Todavia, o hábito de pôr tudo em causa podia revelar-se perigoso, pois, mais cedo ou mais tarde, era bem possível que acabasse por levar um homem a colidir com o indiscutível, sem possibilidade de, em consciência, lhe escapar.
Ao fundo da rua inclinada, o muro obscurecia o sol e, entre as duas torres, o túnel da porta da vila formava um feixe de luz dourada, que fendia a penumbra como se fosse uma lança. Harry passou pela porta e atravessou a ponte de pedra. Por baixo desta corria o Severn, verde e tranquilo, no seu caudal de Verão. Olhou para trás, observando os arcobotantes dos muros da vila e os estreitos socalcos de vinhas que se estendiam ao longo do caminho à beira do rio. Aquele vinhedo ainda seria pertença do padre Hugh? Ou havê-lo-ia o rei requisitado?
Diante de si, na outra margem do Severn, erguiam-se os muros do recinto da abadia, o moinho, a longa linha dos telhados da enfermaria e, muito acima de tudo isso, a imponente torre silenciosa da igreja, de um cinzento rosado à luz da manhã.
Na véspera, haviam entrado na vila pela ponte dos Galeses, pois vinham da mina de chumbo. A ponte ficava no outro extremo da vila e, por isso, era a primeira vez em nove anos que Harry via a abadia. Pensara que, ao vê-la, sentiria um choque e seria assolado por uma vaga de recordações, pois os cinco anos que ali passara lhe pareciam, agora, ter sido felizes e frutuosos, e que o regresso, após uma tão longa ausência, iria causar-lhe profunda emoção. Mas, chegado o momento, tudo lhe parecia perfeitamente natural. Era como se houvessem passado apenas algumas semanas, o tempo de umas curtas férias. Todavia, quando se aproximou do portão, foi assaltado por uma recordação pungente, não dos anos da infância passados naquele santuário mas da forma como dali partira.
O rosto gracioso, que lhe era tão querido, voltou a flutuar diante dos seus olhos, parte reminiscência, doce e terno nos seus contornos infantis, parte sonho remoto, de uma feminilidade intimidante. Durante toda a viagem de Londres até ali, a visão fugaz de uma rapariguinha à beira do caminho, as tranças de uma mulher, a bola de uma criança atirada ao ar haviam bastado para a imagem surgir diante dos seus olhos, como um fogo que se ateava, inflamando-lhe o coração com uma dor doce e intensa. Perguntara por ela em todos os lugares onde se haviam detido, para o caso de alguém se recordar da caravana do pai dela e se lembrar de qual fora a última vez que passara por Watling Street. Mas ninguém soubera dar-lhe notícias dela. Queria acreditar que as respostas seriam diferentes em Shrewsbury: fora ali que a conhecera, sem ter sido capaz de reconhecer o tesouro que se lhe deparava, e seria ali que haveria de encontrar o caminho que o conduziria até ela. Todavia, ao chegar à sombra da casa do guarda, teve medo.
Também já tivera a certeza de que ela estaria à sua espera em Londres, de que, naquele mundo em mudança, o mundo à volta dela se haveria mantido estável. Mesmo quando a esposa do primo dos Otley lhe abrira a porta, mesmo depois de, abanando a cabeça numa negativa, marido e mulher haverem respondido o melhor que puderam às suas perguntas, Harry tivera grande dificuldade em aceitar a notícia de que Nicholas Otley morrera dois anos antes e de que Gilleis abandonara Londres pouco tempo depois. O pai deixara-lhe bens suficientes mas ela preferira vender ao primo a sua parte do negócio de tecidos e entrar ao serviço de uma dama nobre, uma decisão acertada para uma jovem rica e órfã. Todavia, os primos não sabiam o nome da dama que a recebera nem em que região de Inglaterra vivia, pois ela saíra de Londres poucas semanas após a morte do pai e, desde então, não haviam voltado a ter notícias. A jovem esposa do primo acrescentara que Gilleis tivera alguns pretendentes obstinados, mais obstinados ainda depois de o pai haver sucumbido à febre, deixando-lhe a fortuna. A prima pensava, aliás, que fora precisamente por essa razão que Gilleis não deixara qualquer indicação sobre o seu destino.
Harry despedira-se atordoado, rememorando mentalmente as parcas informações que obtivera e, durante muito tempo, incapaz de apreender o seu significado. Esta era a única coisa importante da sua vida que nunca confiara a Adam e, embora não compreendesse o motivo de tal reticência, felicitava-se por haver agido assim. Não teria suportado partilhar aquela dor. Assim, durante toda a viagem para Norte, procurara em vão o rastro de Gilleis, assolado por uma tensão constante, mergulhando ora em exaltação ora em desespero, ora na luz ora nas trevas, recusando-se a acreditar que a perdera, apesar de cada dia que passava não deixar motivo para esperanças. O mundo continuava a ser deslumbrante, a amizade doce, o futuro e o trabalho que o esperava uma paixão e uma maravilha. Só lhe faltava Gilleis. A angústia surda que ela deixara no vazio do seu coração fazia aumentar a fúria que o animava, uma fonte de energia sombria, lado a lado com a energia luminosa. Nem mesmo Adam sabia disto.
Quando Harry entrou no pátio, Edmund saiu da casa do guarda. Para além dos ombros um pouco mais curvados e dos cabelos um pouco mais grisalhos, pouco mudara desde o dia em que, junto àquele mesmo portão, erguera Adam da sela e o levara para dentro em braços. O seu olhar inquiridor poisou no estranho que entrava e, a princípio, pareceu não o reconhecer. Mas, quando Harry se aproximou, os olhos penetrantes estreitaram-se, perscrutadores, e os lábios abriram-se numa saudação de boas-vindas, embora parecessem hesitar em pronunciar o nome.
- Dizei-o, Edmund - incitou Harry, cheio de contentamento por ter sido reconhecido. - Não estais enganado.
O rosto do porteiro abriu-se num amplo sorriso de alegria.
- Master Talvace! Sois mesmo vós? Passou tanto tempo!
- Se calhar era melhor atirar primeiro o meu chapéu lá para dentro, para ver o que lhe acontecia.
A verdade era que Harry já não se sentia apreensivo: ver um velho amigo tornara tudo mais simples. Tudo menos uma coisa!
- Costumáveis chamar-me Harry - acrescentou, estendendo a mão.
- Assim era. Mas, na altura, éreis um rapazinho que só me chegava ao cotovelo. - Edmundo agarrou com prazer a mão que lhe fora estendida. - Mas, depois de haverdes corrido mundo, deves ser pelo menos Master Henry. Todavia, não mudastes muito!
- Espero haver mudado alguma coisa! Bem preciso era! Aqui, pelo contrário, as coisas mudaram bastante e não foi para melhor - observou Harry, olhando em volta.
O pátio, outrora pleno de vida, era agora um local triste e calmo. Um cavalariço retirava da estrebaria e conduzia até à casa de hóspedes duas montadas e uma mula de carga, por certo pertencentes a algum pequeno mercador que ali se encontrava à espera. As portas da igreja estavam fechadas e os estaleiros e os andaimes haviam desaparecido, apesar de a obra não estar terminada. Ali, as obras avançavam lentamente e, agora, a proibição real cortara os fundos e tornara impossível a sua conclusão, A volta da esmolaria, alguns mendigos e aleijados apanhavam sol.
- Vejo que ainda conseguis dar de comer a quem tem fome - disse Harry. - Não obstante, devem ser tempos tão maus para vós como para eles.
- Em comparação com a maior parte dos outros, tivemos sorte. O rei pôde sempre contar com Shrewsbury que, noutros tempos, lhe rendeu muito dinheiro e, por isso, não nos temos saído muito mal. Todas as terras da abadia pertencem agora ao rei, excepto as granjas principais mas aí não houve qualquer interferência. E os moinhos permitem-nos manter a cabeça à tona de água e ainda nos sobra qualquer coisinha para dar. Claro que precisámos de prescindir de quase todos os homens livres que subsistiam graças a nós e a vida tem sido difícil para eles. Mas havemos de resistir a esta prova, havemos de resistir. Isto não pode durar sempre.
- E, pelo que vejo, os viajantes continuam a passar por aqui - comentou Harry, de olhos postos no homem que carregava a mula.
- Ainda nunca fechámos as nossas portas. No que diz respeito a viajantes, isto agora está bastante calmo. Mas houve alturas em que parecia que todo o mundo estava em movimento. As estradas estavam cheias de viajantes... seguiam o exemplo do rei, que nunca está parado. Por minha fé, ele deve conhecer cada polegada das suas estradas. E também das estradas de França, pois a verdade é que passa mais tempo lá do que aqui, a tentar recuperar o que é seu. E todos os nobres do reino têm metade dos seus homens a cavalo, para saber notícias e levar cartas, pois estão sempre prontos a firmar alianças, a temer aquelas que já firmaram e a firmar outras. A verdade, Harry, é que não há por aqui nenhum homem que ouse confiar no seu vizinho.
- Edmund! - atalhou Harry, colocando-lhe a mão no ombro. - Lembrais-vos do dia em que saí daqui? Foi há muito tempo mas por certo que não vos esquecestes. Lembrais-vos de um mercador que aqui estava, de partida para Londres, com três carroças carregadas de fardos de tecidos? Chamava-se Nicholas Otley. Costumava vir todos os anos, no Verão, e até pode ter estado aqui há três anos atrás. Recordais-vos dele?
De olhos semicerrados, o porteiro coçou pensativamente o queixo.
- Lembro-me muito bem do dia em que vos deixámos escapar... e da confusão que provocastes. Toda a gente se lembra. Até dragámos o lago. Fiquei bem contente por as nossas redes só haverem pescado peixe e ervas! Sir Eudo quase desmontou a casa pedra por pedra, de tanto vos procurar por todos os cantos e, com ou sem o abade, eu não daria nada pela vossa pele, se vos houvesse encontrado. Mas um mercador de tecidos... e carroças... Ah, afinal, foi assim que escapastes! Sim, agora estou a lembrar-me. Havia uma menina bem bonita que costumava viajar com ele.
O coração de Harry bateu com mais força, ao ouvir falar de Gilleis.
- Era filha dele - disse, sentindo a garganta seca. - Agora, já deve ser uma mulher. Ela esteve aqui no ano passado ou no anterior, Edmund?
Harry susteve a respiração e sentiu a dor da esperança morder-lhe o coração, enquanto Edmund remexia entre as suas memórias, com
uma lentidão que o exasperava.
- A última vez que eles vieram deve ter sido há uns três anos. Depois disso, nunca mais vi nenhum deles.
Apesar de, no fundo, não ter esperança de ser bem sucedido, de cada vez a decepção era mais dura.
- Não vos havereis ausentado? Haver-vos-iam dito, se ela aqui houvesse estado?
- Eu teria sabido. Conheço todas as pessoas que passam por este portão e nunca me esqueço dos visitantes habituais. Se ela cá houvesse estado, eu saberia. Andais em busca dela, Harry?
- Estou em dívida para com o pai dela - respondeu Harry, voltando a cara, pois sentira o sangue afluir-lhe às faces. - Procurei-o em Londres e disseram-me que ele havia morrido há dois anos. Gostaria de pagar à filha aquilo que devia ao pai, se conseguir encontrá-la.
- Talvez tenha casado - disse Edmund, sem ter consciência do golpe que estava a desferir. - Lembro-me de que, da última ou da penúltima vez que aqui estiveram, vinha com eles um jovem que parecia ter os olhos postos nela. E não há dúvida de que ela era bonita. Ficais connosco um dia ou dois, Harry? Bem sabeis que sereis sempre bem-vindo.
- Não. Preciso de seguir para Parfois. Mas quero falar com o abade, se ele tiver tempo e vontade de me ver. Podeis preveni-lo? Enquanto espero, vou conversar com o irmão Denis.
- O irmão Denis? - repetiu Edmund, agarrando-o pelo braço, no momento em que Harry começava a encaminhar-se para a enfermaria. - Lamento ter de vos dizer isto, Harry, mas não ireis encontrá-lo. Deixou-nos vai para cinco anos.
- Morreu?
Harry aprendera a controlar a dor repetida pela perda de Gilleis mas aquele choque, que não previra nem por um instante, atingiu-o duramente. Os velhos morrem, não há nada de estranho nisso. Não obstante, nenhum pressentimento o advertira de que o irmão Denis já não pertencia a este mundo. Deveria ter sentido qualquer coisa diferente naquele ar que lhe era tão familiar, a ausência de uma qualquer tonalidade no verde dos prados junto ao rio, um pouco menos de calor no sol. Agora, nunca poderia pedir-lhe perdão por haver partido sem um adeus e com uma mentira nos lábios. Durante nove anos, esperara poder limpar o peito daquele remorso mas chegara com cinco anos de atraso.
- Deixei-o da pior maneira, Edmund... como um ladrão. Ele culpava-me? Preferia que houvesse sido qualquer outro homem que não ele mas estava encurralado.
- Vamos lá, meu rapaz. Conhecia-lo havia muito... Alguma vez acusou uma criança por se defender o melhor que podia? Não mais do que se pode culpar um gato por deitar as unhas de fora, quando é perseguido.
- Ele falava de nós... depois da nossa fuga?
- Muitas vezes. E sempre para desejar que vos encontrásseis bem. Durante várias semanas depois de haverdes fugido, quando chovia, ele costumava dizer: «Espero que, esta noite, aquelas crianças tenham um bom tecto a cobri-los.» E, até ao fim do Inverno, sempre que geava, ficava preocupado, perguntando-se se disporíeis de roupas quentes. Foi ao vosso pai que ele teve dificuldade em perdoar. Não vos preocupeis com o irmão Denis. Está na companhia dos santos e não é preciso dizer-lhe o que vos vai no coração. De todas as pessoas que partiram desta casa, é ele quem mais falta nos faz. Agora, os rapazes têm uma vida mais dura, porque ele não se encontra aqui para os proteger da tempestade, quando o irmão Martin está em dia «não».
Agora, as recordações desabavam a grande velocidade sobre Harry, esmagando-o sob o seu peso, intoleravelmente presentes.
- Ide ver se o abade me pode receber, Edmund - disse Harry, abalado por todas aquelas imagens. - Preciso voltar à vila dentro de uma hora.
- Quando falastes no irmão Denis, ia dizer-vos que o abade está muito doente. Está assim desde a Páscoa, embora agora pareça um pouco melhor. Oh, claro que vão deixar-vos vê-lo e o mais provável é ele querer receber-vos mal saiba que estais aqui. Agora, já tem as ideias claras mas esteve com febre durante muito tempo. Está muito fraco, e magro como um gato vadio.
- Lamento muito - disse Harry. - Se está autorizado a ter visitas, gostaria de o ver, nem que fosse só por uns instantes. Mas não quero impor-lhe a minha presença, se não estiver em condições de me receber.
- Vindes comigo ou preferis que venha buscar-vos depois?
- Estarei na igreja - respondeu Harry, afastando-se.
Entrou na igreja por onde de lá saíra nove anos antes: pela porta dos claustros. As outras portas estavam fechadas e a porta principal trancada e com barras. Lá dentro, o ar era, ao mesmo tempo, frio e denso e a penumbra, que fazia lembrar uma nuvem ameaçadora, pesou-lhe na alma. Harry arrepiou-se, ao sentir a opressão familiar da pedra, da escuridão e do frio tumular, a que, todavia, reconhecia uma certa majestade. Inclinou a cabeça diante do altar-mor e seguiu pelo deambulatório até à capela de Nossa Senhora. O túmulo do fundador erguia-se, qual barricada, no seu caminho, bloqueando ainda mais a luz preciosa. Luz! Luz! Como podiam suportar privar-se dela? Como podiam ensinar a alma a elevar-se, se não havia espaço para esta abrir as asas nem ar que as sustentasse? Harry sorriu à antiga imagem da Virgem de traços carregados e toscos, uma mulher forte, do campo, já fora de moda, mas que lhe era cara pelo conforto que tantas vezes lhe proporcionara.
- Venho devolver-vos o que é vosso, Virgem Santa. Recebei-o na vossa bondade e cuidai dele. No fundo, ele não é um vagus e não voltará a partir.
Desdobrou o tecido que cobria o volume que trazia debaixo do braço e, suavemente, colocou o pequeno anjo no altar, no seu lugar, e as suas asas delicadas tomaram-se mais firmes e pairaram naquela atmosfera pesada, os seus pés magros e delicados estenderam-se para o solo. Imóvel e radioso, o anjo ficou suspenso, fremente de alegria, de braços abertos, os olhos brilhantes afastados da chama cor de rubi da lamparina. Onde quer que fosse, o seu tempo fora eternamente capturado numa chegada exultante. Desconhecia o que fossem separações ou partidas.
- Aceitai os meus agradecimentos por tudo quanto vi e aprendi, por tudo quanto já fiz e farei ainda - murmurou j
Harry, dirigindo-se à cansada, paciente e imutável imagem de pedra. - Na minha igreja, tereis um altar resplandecente de luz dourada e ambarina, de onde podereis ver todas as cores da Primavera e do Verão e onde nunca tereis frio.
O sorriso intemporal da Virgem envolveu indulgentemente Harry e o resto da Criação, Ela não esperava nada das promessas dos filhos de Deus. Harry rezou uma oração pelo repouso abençoado e garantido da alma do irmão Denis e, depois, deixou-se ficar ajoelhado, a pensar em Gilleis, mas não rezou por ela. Foi ali que Edmund o encontrou, ao voltar dos aposentos do abade.
No quarto de dormir, onde as cortinas haviam sido corridas, um jovem noviço lia em voz alta para o doente. Quando viu entrar o desconhecido, o noviço levantou-se e retirou-se em silêncio, fechando a porta atrás de si. Harry avançou e parou ao lado do grande leito, fitando os olhos encovados que, todavia, brilhavam intensamente. Por um longo momento, observaram-lhe o rosto, enquanto os lábios pálidos se abriam num sorriso fraco.
- Vieste buscar os teus cavalos - sussurrou uma voz que fazia lembrar o murmúrio do vento sobre as folhas mortas. - O garrano morreu. Terás de levar um dos meus cavalos no lugar dele ou fazer-lhe um preço.
Sobre o travesseiro, o rosto de Hugh de Lacy era uma máscara de ossos delicados e gastos, cobertos por uma pele que parecia pergaminho. A mão que repousava sobre a coberta tinha a transparência do alabastro, como se a luz pudesse passar através dela. Harry nunca havia reparado na beleza da ossatura do abade. Agora, era só o que dele restava.
- Senta-te, Harry - suspirou a voz outonal.
Os dedos macilentos agitaram-se num gesto, indicando o tamborete que o noviço leitor deixara vazio.
Harry continuou de pé, impassível, fitando-o. Da bolsa que trazia à cintura, tirou um pequeno saco de couro, que colocou em cima da cama, ao lado da mão estendida,
- Onze xelins e sete dinheiros. E mais qualquer coisa para a reparação da caixa das esmolas. A quantia está certa mas, se quiserdes que alguém verifique, posso chamar o vosso leitor. Quanto ao preço do garrano, podemos considerá-lo como uma esmola para os vossos pobres. Não tenho a menor dúvida de que foi bem tratado.
O sorriso de Hugh de Lacy contraiu-se num esgar de dor mas o abade aguentou o vexame sem um queixume. Ao cabo de alguns instantes, disse:
- Também poderíamos aplicar esse dinheiro em velas pela alma do teu pai, pois estamos proibidos de dizer missa.
- Pela alma do meu pai! - repetiu Harry, lentamente, afastando-se um pouco do leito.
O padre Hugh dera como certo que ele viera de Sleapford e o mesmo acontecera com Edmund, que, se assim não pensasse, lhe teria falado directamente da morte do pai. Já deveria, aliás, ter ocorrido havia algum tempo, caso contrário ter-lhe-iam dado os pêsames logo à chegada. Por conseguinte, Sir Eudo fora juntar-se aos seus antepassados. E o novo senhor de Sleapford era Sir Ebrard Talvace.
A notícia deveria tê-lo abalado mas a verdade era que não sentia nada: nem satisfação, nem dor. Os velhos morrem, sejam eles irmãos Denis ou Sires Eudo, é destino comum a todos os humanos. Harry já não alimentava rancor contra a família e, fosse como fosse, nunca havia desejado a morte do pai. Ao longo de nove anos, pouco pensara nele, fosse com sentimentos de vingança, fosse com afecto. Aquela morte parecia-lhe tão distante que quase não tinha significado. Para ser absolutamente honesto, sempre houvera uma enorme distância entre ele e o pai.
- Como quiserdes - disse, por fim. - Quanto a mim, seria melhor gasto com os vivos mas, mesmo que não ajudem, as vossas velas não farão nenhum mal à sua alma. - As palavras haviam sido mais duras do que desejaria mas recusava-se a fingir um desgosto que não sentia. - Voltei a pôr o anjo no lugar dele - acrescentou.
- Ah, o anjo! Senti muito a falta dele.
A mão de Hugh de Lacy agitou-se sobre o leito, como se tentasse estendê-la para o jovem. Mas o que os seus dedos encontraram foi o saco com dinheiro e ele retirou-a, franzindo a testa.
- Senta-te ao pé de mim - pediu, em voz baixa. - Peço-te que me faças esse favor. Dizem-me que é só fraqueza mas já não vejo tão bem como via dantes. Não posso falar contigo como se fosses um oráculo envolto em nevoeiro.
Harry aproximou o tamborete da cama e sentou-se, corando ligeiramente. Aqueles olhos encovados veriam o suficiente para se aperceberem da cor que lhe afluíra ao rosto?
- Como vai o teu irmão? - perguntou o abade.
Quantas vezes, no passado, me deixei apanhar numa armadilha destas, por não ver por onde ia, pensou Harry. Lembro-me de que o padre Hugh se irritava com isso. Agora, sei para onde vou e não ando às voltas: sigo a direito.
- Bem, muito obrigado. O meu irmão ainda tem as duas mãos - respondeu, sem piedade. - Hoje, não o trouxe comigo para dentro destas paredes. Cuidei ser melhor não pôr a vossa consciência à prova pela segunda vez... ele podia não ser capaz de provar que viveu numa vila franca inglesa durante um ano e um dia e ainda me lembro bem da vossa dedicação aos preceitos da lei, padre.
As comissuras dos lábios arroxeados contraíram-se. O rosto não podia empalidecer mais mas ficou muito tempo voltado para o tecto, imóvel na sua beleza petrificada, demasiado cansado para reflectir o curso dos pensamentos do abade, através de um pequeno estremecimento ou de uma mudança de expressão. Por fim, numa voz tão baixa que Harry foi obrigado a inclinar-se para o ouvir, Hugh de Lacy perguntou:
- Nem ao fim de tantos anos és capaz de perdoar o mal que te fizemos?
- Posso perdoar, sim - respondeu Harry. - Mas o meu perdão não vale muito, pois não espero nada de vós.
- Nem de Deus?
- Isso é entre mim e Deus.
E ficou à espera, olhando para um raio de sol que tentava chegar até ao leito. O silêncio estendeu-se num fio muito delicado, tão delicado como o fio solto de uma teia de aranha. Harry voltou a olhar para o homem deitado na cama: as pálpebras arroxeadas e transparentes estavam cerradas, e cerradas permaneceram, num rosto tão inerte e distante que pensou que o abade adormecera. Com todo o cuidado, levantou-se do tamborete e dirigiu-se lentamente para a porta. Não tinha mais nada a fazer ali. Viera, pagara a sua dívida e a dívida que tinham para com ele fora reconhecida. Que mais podia querer?
Pousara já a mão no fecho da porta, quando ouviu escapar-se do peito do doente um soluço, rapidamente abafado. Como se fosse uma chama, aquele soluço derreteu a camada de gelo que lhe cobria o coração e o calor do remorso e da ternura submergiu-o. Correu para junto do leito e caiu de joelhos, lançando um braço sobre o corpo do abade. Encostou o rosto e depois os lábios à mão ossuda.
- Perdoai-me, padre, perdoai-me! Até há pouco, não tinha nada por que pedir perdão! Porque vos afligis tanto por mim, sendo eu tão arrogante e presunçoso? Não queria magoar-vos. Não, a verdade é que queria! - acrescentou, em tom apaixonado. - Foi por isso que vim. Que Deus me perdoe!
O corpo alto e descarnado era tão imaterial que Harry temeu assentar nele o braço. A máscara cor de cinza, há instantes contorcida e atormentada, distendeu-se num sorriso e ficou calma. O abade abriu os olhos e fixou-os naquele rosto jovem e luminoso onde se liam vergonha, remorso e ternura. Aquele era o Harry que ele conhecia. Não fora sua intenção provocar a piedade dele mas o resultado revelara-se eficaz. Era verdade que Harry era arrogante, uma verdadeira fortaleza de arrogância contra qualquer força que lhe fizesse frente, mas bastava uma pontinha de fraqueza ou de sofrimento para ele se lançar de joelhos, num acto de humildade tão intenso como o orgulho que o provocara.
- Até agora estou a magoar-vos - disse Harry, assaltado pelos remorsos. - Devíeis repousar em calma e em paz e roubei-vos uma e outra. Vou-me embora e não vos perturbarei mais. Dizei apenas que perdoais a dureza do meu coração, pois estou muito envergonhado. Nem sequer sabia que, durante todo este tempo, alimentava em mim tamanho rancor. Foi fácil perdoar àqueles de quem nada esperava mas, em vós, eu depositara toda a minha confiança.
- E não era minha intenção trair essa confiança mas o mal está feito e não se pode voltar atrás - disse Hugh de Lacy, em voz triste.
A sua mão, leve como uma folha seca, poisou nos cabelos castanhos de Harry. Depois, a sua voz, que perdera toda a brusquidão, acrescentou docemente:
- Eu perdoo-te mas tu também tens de me perdoar, meu filho. A minha bênção acompanhou-te sempre. Estou muito feliz por nos havermos reconciliado e por nos separarmos como bons amigos. Pode ser a última vez que nos vemos.
Harry sorriu-lhe e inclinou-se sobre a mão que o estreitava sem força.
- Não, padre. Ainda tendes muitos anos para viver e governar a abadia. Pode bem acontecer que eu venha a conhecer o túmulo antes de vós.
- Deus não o permita, Harry! Fica comigo só mais um pouco. Não irei reter-te por muito tempo, pois canso-me depressa. Conta-me como tem sido a tua vida, desde o dia em que te perdemos. Pensei muitas vezes em ti e o meu espírito não teve sossego.
- Acreditai, padre, que talvez tenha sido melhor assim. Abandonei uma vida inútil e segui um caminho mais produtivo, e isso foi benéfico. Fiz, com as minhas próprias mãos, muitas ofertas de beleza e esplendor a Deus e farei ainda muitas outras.
Harry sentou-se na beira da cama, segurando na sua aquela sombra de uma mão, e falou de Caen e Paris, de Saint-Etienne e de Notre-Dame, até as pálpebras arroxeadas voltarem a fechar-se tranquilamente sobre os olhos cansados. Os traços afilados do rosto pareciam agora mais suaves, a pele enrugada recuperara um pouco de cor e frescura. E, quando o abade o abraçou, Harry sentiu que, dentro de si, sarava miraculosamente uma ferida e que, a cada inspiração cadenciada do doente, uma pele suave e lisa voltava a cobrir a cicatriz. Docemente, beijou a testa seca e saiu do quarto na ponta dos pés.
Só quando franqueou as portas da vila se lembrou de que não fora buscar o cavalo. Mas não voltou atrás. Não fora por causa do cavalo que viera até ali.
Chegaram ao topo da colina pelo caminho verdejante, ao pôr-do-sol e, depois de contornarem o flanco da floresta, do alto da crista ondulada avistaram lá em baixo, à esquerda, o vale onde corria o rio e, diante deles, suspenso sobre a encosta, um afloramento de grés, rasgado por veios e socalcos, onde haviam crescido árvores. E, no alto do penhasco, Parfois.
A superfície plana que coroava a colina não era tão vasta que a ambição dos Isambard não pudesse abarcá-la. A muralha, que dominava as árvores e a encosta abrupta da rocha da qual nascia, ondulava em volta da crista como uma serpente e seis torres redondas, cuidadosamente dispostas, projectavam-se de tal modo que nem mesmo um corvo poderia poisar sem ficar sob fogo cruzado. Dentro das muralhas, a grande torre de menagem hexagonal, com as suas três atalaias salientes, captava os derradeiros raios de sol, parecendo arder com reflexos rosa-avermelhados. As sombras do vale, tingidas pelo tom malva das estevas, escalavam os socalcos rochosos, acariciando as bases das torres exteriores.
Três milhas para lá do rio, Gales dormia, envolto em escuridão, cortada apenas por ocasionais luzes douradas. No vale, havia meia dúzia de aldeias que viviam à sombra mais permanente da grande fortaleza do alto do rochedo, que era, ao mesmo tempo, o seu refúgio e o seu fardo. Outra meia dúzia, anichadas nas pregas das colinas, do lado inglês do castelo, escondiam-se atrás dele das incursões dos Galeses mas temiam quase tanto o seu protector como os próprios inimigos.
A escuridão ganhava terreno, tornava-se mais densa, engolindo, uma a uma, as seteiras das torres redondas. As atalaias brilhavam como altas chamas de velas. Por trás dos balestreiros iluminados da torre de menagem, o céu nocturno era de um azul-esverdeado límpido, a mesma cor dos olhos que, da curva da estrada, contemplavam com ardor e desconfiança o castelo de Parfois.
A pirâmide formada pela colina e pela sua coroa de pedra, bem proporcionada e segura, encimada por uma ponta de luz rosada, já não era um farol aceso sobre a terra mas uma estrela suspensa do céu de um verde puro. Antes de lá chegarem, escureceria por completo. O silêncio era já total.
O caminho estendia-se ao longo da encosta rochosa e, depois de uma curva para a direita, começava a subir a colina, pelo único acesso fácil. Quando se aproximaram das muralhas, deixaram de ver a torre de menagem e, depois, obliquamente, as torres desapareceram da vista.
Agora, só eram visíveis os níveis superiores da porta do castelo e as suas atalaias. A meio da rampa, as copas das árvores fechavam-se sobre o caminho e, de súbito, deixava de haver castelo: restava apenas a floresta sombria que os cercava. Quando voltaram a emergir em terreno aberto, as duas torres de vigia exteriores reapareceram, uma de cada lado do caminho. A rampa tornou-se mais larga e nivelada, desembocando num terreno elevado, como uma ilha verde suspensa, pois uma falha de uns quarenta pés de profundidade na formação rochosa isolava-a da base sobre a qual o castelo fora construído. A esquerda, via-se a porta do castelo com as suas torres, a ponte levadiça descida e o gradeamento de ferro da arcada que dava para a liça, levantado.
Harry parou no extremo da esplanada atapetada de ervas verdejantes. O caminho atravessava-a em linha recta até à ponte, rasgando as ervas a que a luz do crepúsculo dava um tom acinzentado. O espaço mais amplo ficava à esquerda e foi ali que, graças à luminosidade própria e misteriosa do local, Harry avistou, estendido à sua frente, o rectângulo de rocha quase desobstruído, sobre o qual, antes dele, três mestres canteiros haviam começado a construir. Para além dos traços esbatidos, informes e confusos que delimitavam aquela superfície, amontoavam-se antigos materiais e os carpinteiros de Isambard já haviam construído as casinhotas que, em breve, iriam acolher os novos canteiros. Os sinais de actividade comoveram-no e excitaram-no mas, todavia, não foi para estes que olhou. Foi para o rochedo nu, para a superfície profundamente marcada na erva, nos arbustos e no solo.
Um espaço nobre, um local maravilhoso. A ténue luminosidade da rocha, produto da luz do sol armazenada durante o dia, parecia flutuar dois ou três pés acima do solo, como se as paredes houvessem já começado a ser erguidas. A fachada norte ficaria voltada para o castelo, a fachada sul para o caminho. Era preciso considerar o conjunto -o castelo e a igreja - o equilíbrio entre os dois, o todo que deveriam formar para quem olhasse lá de baixo, dos dois vales: o grande vale do Severn, a Oeste, e o vale estreito do riacho, a Leste. Construir é fazer escultura em grande escala. Um edifício é tão facetado, tão versátil, tão complexo como um homem. Tem de ser tão harmonioso como um homem e respeitar os seus vizinhos.
Com o olhar perdido diante de si, na luz que declinava, Harry fez parar o cavalo. A veneração que sentia pela forma, pela proporção e pela nobreza das linhas, a sua paixão pela estabilidade, pela beleza, pela sobriedade e pela harmonia englobavam e transcendiam o castelo e o rochedo, estendiam-se às colinas de Inglaterra daquele lado da fronteira e às colinas de Gales, do outro, sem discernir qualquer rivalidade entre elas, prolongavam-se para além do horizonte, que se esbatia entre os derradeiros raios de luz dourada e verde e a imensa profundidade do céu, com o seu delicado bordado de estrelas. Harry via as paredes da sua igreja tomar forma, erguendo-se para aquelas estrelas hesitantes, via desenhar-se a grande torre central, alta e direita, como um homem absorto num qualquer acto de devoção, com a fronte calma levantada, sob a luz da graça divina. Sentia que, para fazer da sua igreja aquilo que queria que ela fosse, teria de estender os dedos dos sentidos e as cordas da compaixão até aos confins do mundo, e de ligar cada pedra da sua obra a tudo o que se movia, respirava, esperava e amava, a tudo quanto fosse dotado de forma ou de inteligência. Só assim poderia atingir a perfeição.
Tal não estava ao alcance do ser humano. Não obstante, era à perfeição que Harry aspirava, era a perfeição que ousava esperar, dizendo para consigo que, enquanto tivesse essa esperança, não seria necessário realizá-la.
- Vamos entrar ou eles ainda içam a ponte antes de entrarmos - disse Adam, bocejando e tentando acalmar o cavalo, que se impacientava. - Não sei se tens fome mas eu não me importava nada de cear.
Harry emergiu do seu sonho e soltou uma gargalhada. E os dois galoparam para a ponte levadiça e entraram em Parfois.
Apesar de desempenhar o papel de um antigo paladino, sempre rodeado de escudeiros, intendentes, cavaleiros ao seu serviço, pajens, músicos e muitos outros parasitas, Isambard conseguia viver tão solitário como um recluso, naquela casa cheia de gente. O grande salão, pegado a um dos panos da muralha, do lado da Torre do Rei, mais parecia um mercado, tal era a actividade que ali reinava. Era ali que Isambard se ocupava da maior parte dos seus afazeres quotidianos e era também ali que jantava regularmente, com os seus pares, presidindo a uma assembleia por vezes composta de um milhar de pessoas. Mas, quando se retirava para a zona privada da sua vida, ninguém ousava importuná-lo nem se sentia no direito de o seguir sem para tal ser convidado. Isambard tinha servos de confiança mas não amigos de confiança, não por receio, como o seu senhor, o rei - que se rodeava de reféns familiares como um avarento que só se sente bem no meio de dinheiro - mas devido a uma longa experiência de desilusões e desapontamentos, por exigir sempre demais.
Soubera tirar partido da localização de Parfois, instalando os seus aposentos privados na Torre da Rainha, que dominava a vertente mais abrupta do penhasco e que não poderia ser alvejada por tiros disparados de nenhum ponto elevado exterior ao castelo. Ali, as seteiras estreitas haviam sido substituídas por generosas janelas lanceoladas e, em vez de uma penumbra abafada, havia ar e luz. As paredes de pedra estavam cobertas por tapeçarias e o chão frio e irregular pelos tapetes e peles que Isambard trouxera do Oriente. Ali instalara Madonna Benedetta, com um aparato digno de uma rainha. Era raro alguém pedir para ser ali recebido e o facto de Harry ter acesso a estes aposentos indicava uma situação de favor. Obviamente, caso não forçasse a sorte, aquele mestre canteiro era uma pessoa com quem era preciso ter cuidado.
Harry atravessou rapidamente a sala da torre, onde as velas estavam já acesas. Tinha o rosto corado e os olhos brilhantes.
- Peço perdão por vos incomodar a uma hora tão tardia, meu senhor, mas o que me traz é uma questão importante. Depois da ceia, estive a estudar os registos com o vosso intendente, Richard Knollys. Foi a primeira vez que tivemos oportunidade para tal. É um escrivão admirável e um bom organizador e estou-lhe grato pelo trabalho que levou a cabo, antes da minha chegada. Mas temos divergências quanto a alguns aspectos e vejo-me obrigado a confirmar junto de vós que, aqui, só há um mestre-de-obras e que esse mestre-de-obras sou eu. Se Knollys quiser trabalhar comigo como escrivão e administrador muito bem, mas não iremos a lado nenhum, se ele se julgar também mestre-de-obras.
Isambard afastou a cadeira do tabuleiro de xadrez, diante do qual se encontrava sentado, a jogar com Benedetta. Esta tinha os cabelos soltos, caídos até à cintura como uma cortina espessa e sedosa, de um vermelho escuro. A enorme serenidade que emanava da sua pessoa dava a ideia de que se sentia tão perfeita e indiscutivelmente a senhora de Parfois que o papel não era novidade para ela, nem lhe dava especial satisfação. Parecia uma esposa, pensou Harry. Ademais, uma esposa nobre. E, como esposa de nascimento nobre, não esboçou o mínimo gesto de se retirar. Pelo contrário, escutou atenta e gravemente o que estava a ser dito, pronta para dar uma opinião, se lhe fosse pedida e, enquanto esperava, manteve-se prudentemente em silêncio. Qualquer homem casado com uma mulher daquelas, e que não fosse tolo, não hesitaria em recorrer à sua inteligência.
- Não tive intenção de pôr em causa a vossa autoridade e, ademais, pensava que, nesse aspecto, tornara clara qual a posição dele - disse Isambard, num tom um tanto seco. - Knollys é o melhor assistente que poderia dar-vos mas a responsabilidade pela obra pertence-vos. Em que discordais um do outro?
- Descobri, senhor, que muitos dos carpinteiros e pedreiros que me arranjou são homens contratados à força, alguns deles vindos de muito longe, como Somerset. Três deles estão agora presos por haverem tentado fugir para as suas terras. Para além dos meus pontos de vista pessoais sobre a questão, creio, senhor, que somente o provedor do rei tem o direito de arregimentar homens pela força para as suas obras.
- Sois demasiado apressado nas vossas certezas - replicou Isambard. - A verdade é que eu gozo do mesmo direito, que me foi conferido pessoalmente pelo rei. Posso obrigar pela força qualquer artesão, de qualquer parte de Inglaterra, a trabalhar no meu feudo, desde que ele não haja já sido contratado para uma obra do rei. Outrora dizia-se também «ou para obras da Igreja» - acrescentou, com um sorriso trocista. - Mas essa dispensa deixou de existir desde que as relações entre o rei e a Igreja esfriaram. E também posso aprisionar fugitivos, Harry, e pô-los a trabalhar com grilhetas, se for necessário, para os impedir de voltarem a fugir. Neste ponto, Knollys tem a minha aprovação.
- Mas não tem a minha, senhor - replicou Harry, com uma arrogância não premeditada que fez sobressaltar Isambard, enquanto o próprio Harry franzia o sobrolho, numa expressão que anunciava tempestade. - Não ponho em causa o vosso direito legal, senhor, apesar de só agora haver tomado conhecimento dele. Mas, quanto a mim, recuso-me a ter a trabalhar sob as minhas ordens homens que são obrigados a fazê-lo. Penso ser um agravo à dignidade de Deus a Sua casa ser construída por pessoas que odeiam o que fazem. Todos os homens deviam poder vender o seu trabalho onde quisessem.
- Também quereis ensinar a Deus qual é o Seu dever? - perguntou Isambard, num tom de aço, cerrando os punhos sobre os braços da cadeira, como se estes fossem punhos de adagas.
- Tenciono apenas assegurar-me de que cumprirei o meu. Nada mais. Estou aqui para construir uma igreja, a melhor que for capaz. Tenho de proteger a minha obra de influências que poderão desnaturá-la. Não trabalho com trabalhadores forçados. Não é digno de vós nem de mim, nem tão pouco da obra que queremos levar a cabo, utilizar trabalho forçado.
- Fostes contratado para construir - disse Isambard, levantando-se bruscamente. - Limitai-vos à vossa banca de trabalho e não procureis imiscuir-vos no que não vos diz respeito.
- Isto diz-me respeito. Nem vós nem eu conseguiremos obter um bom trabalho de homens submetidos pela força. Prometestes-me que teria toda a liberdade nesta obra e peço-vos que respeiteis o nosso acordo!
Ambos tinham erguido a voz. Na boca de um e de outro, as palavras soavam com igual violência, os olhos de um e de outro brilhavam com igual cólera.
- Há outra coisa que me desagrada ainda mais - apressou-se a acrescentar Harry. - Descobri que é feito um registo diário separado de uns cem trabalhadores que só estão incluídos nas nossas despesas pelo custo daquilo que comem. Knollys afirma ter permissão vossa para exigir aos vossos servos mais dois dias de trabalho por semana, para desobstrução do terreno e, de vez em quando, mais dias para carregar materiais ou para outras tarefas não qualificadas. Não posso acreditar que tenhais dado semelhante ordem e vim aqui para que a confirmeis ou a negueis.
- Eu dei essa ordem. E mantenho-a. Em que é que isso ofende a vossa consciência sensível? Será indigno de vós o terreno para a vossa obra ser limpo pelas mãos de homens não livres?
- Pelo contrário, senhor. Tanto não é indigno que até vos peço que não façais distinção entre homens livres e não livres. Acolherei de bom grado qualquer homem que venha de boa vontade. Mas exigir-lhes dois dias de trabalho agora, quando a colheita está prestes a começar, é privá-los do seu ganha-pão. Deveis saber, senhor, que os tempos já são suficientemente duros para eles. Com quatro dias nas vossas colheitas e dois na vossa igreja, quando vão eles ceifar os seus próprios campos? De noite? Mesmo nas famílias que têm dois ou três filhos adultos, há trabalho para todos e bem parco rendimento. Aqueles que vos dispensam o seu tempo merecem ser pagos.
- Pagos? Pagar aos meus servos pelos seus serviços? Isambard atirou a cabeça para trás e soltou uma grande gargalhada,
sincera e cândida mas carregada de fúria.
- Estais aqui para construir uma igreja nova e não um mundo novo, Harry Lestrange. Mostrai-vos sensato e ficai-vos pelos vossos cinzéis e escopros. Não vos dê cuidado o que eu decido para os meus homens. Se vos conduzirdes como um padre itinerante, tereis a mesma sorte que eles, o que seria uma grande pena, pois sois um jovem dotado para a vossa arte. Gosto de vós, Harry, mas sou eu o senhor do meu feudo e faríeis bem em não me dizerdes constantemente o que devo e não devo fazer com o que é meu. Nem sempre sou tão paciente como hoje.
Interrompendo-se, Isambard dirigiu-se para a mesa, deitou vinho nos copos e, encolhendo os ombros para afastar o aborrecimento, acrescentou:
- E agora, por uma hora ou duas, ponde freio aos vossos ardores e bebei um pouco deste néctar. Depois de alguns copos, levar-vos-eis menos a sério. Não éreis assim tão enfadonho quando vos conheci, na prisão do preboste.
Rindo, voltou-se para oferecer o copo a Harry e ficou espantado e afrontado, ao ver que este corara até à raiz dos cabelos e que as suas narinas e os contornos da boca estavam lívidos.
- Não era necessário que me lembrásseis os vossos favores, senhor. Tenho consciência deles e tenciono pagar a minha dívida.
- Santo Deus, rapaz - ripostou Isambard, novamente irado. - Não era essa a minha intenção. Por minha fé, só os príncipes podem permitir-se um orgulho como o vosso!
Seguiu-se um silêncio de tempestade. Os dois fitavam-se fixamente, como dois inimigos prontos para uma luta de morte. Então, com um movimento amplo e lânguido da mão e do braço, Benedetta abafou um bocejo e aquele gesto quebrou a tensão, como se esta fosse uma teia de aranha.
- Perdoai-me - desculpou-se Harry, em voz baixa. - Foi despropositado da minha parte atribuir-vos tamanha falta de generosidade. Sei que nunca pretendestes nenhuma compensação pela vossa bondade. Não obstante, sinto-me em dívida para convosco e, para minha própria tranquilidade, desejo honestamente compensar-vos. - O rosto de Harry recuperara a cor normal e os lábios não estavam já crispados pela cólera. - Uma vez que achastes possível confiar na minha capacidade para realizar este trabalho, peço-vos agora que confieis no meu discernimento quanto aos métodos que utilizo.
- Não estamos a falar de métodos de construção mas de administração. Construí como vos aprouver mas não tenteis imiscuir-vos nos outros assuntos.
- Insisto em que isso faz parte das minhas responsabilidades e já me imiscuí. Será melhor contar-vos o que fiz e, depois, podereis dizer-me se o nosso contrato continua de pé. Pela minha parte, nunca o quebrarei. Libertei os três homens que estavam presos e disse a todos os homens que vieram obrigados que podiam decidir se queriam trabalhar comigo ou voltar para casa. E que, se decidissem partir, como alguns dos que são casados por certo farão, embora pense que não serão muitos, receberiam dinheiro para a viagem de regresso. Ademais, anulei a requisição dos vossos servos e dei-lhes a saber que aqueles que, de livre vontade, desejassem alistar-se para dias de trabalho receberiam a mesma paga dos homens livres não qualificados. É verdade - admitiu Harry, sustentando o olhar que o fulminava por cima do copo de vinho esquecido - que não tenho dinheiro para cumprir nenhuma destas promessas, a menos que mo concedais. A decisão é vossa. Se sou eu o mestre desta obra, conforme me jurastes, aprovareis as medidas que tomei e dar-me-eis meios para honrar as minhas promessas. Se desautorizardes as minhas decisões, ver-me-ei privado de autoridade e deixarei de ser o vosso mestre-de-obras. Prometestes-me liberdade de acção e todos os meios de que necessitasse. Estou a pedir-vos que cumprais a vossa promessa, como eu tenciono cumprir a minha.
Harry estava à beira de apanhar com o vinho na cara e, muito provavelmente, também com o copo. Viu os dedos compridos e tisnados contraírem-se sobre o pé do copo e os olhos castanho-avermelhados estreitarem-se, furibundos, observando-o com uma expressão calculista, como se Isambard estivesse a pesar a impulsão e a forma do golpe e sentisse prazer, antes mesmo de o desferir. Do outro lado da sala, sob a sombra protectora da sua cabeleira, Benedetta, que os observava atentamente, colocou a mão no canto do tabuleiro de xadrez. Todavia, deve ter visto qualquer coisa no rosto de Isambard, que a levou a voltar a sentar-se e a esperar que o mau momento passasse.
A mão crispada sobre o copo de vinho descontraiu-se. Harry manteve-se imóvel, de olhos cravados no rosto do seu senhor, até que um reflexo de luz fez brilhar os anéis de Isambard e o levou a baixar os olhos.
- Será melhor beberdes isto - disse Isambard, com um sorriso severo. - O vinho fará melhor efeito por dentro do que por fora. Tomai e bebamos à vossa saúde! Pelo menos, tendes mais coragem do que a maior parte das pessoas que me rodeiam. Ou isso ou sois completamente tolo, o que não acredito. Bebei este vinho! É muito raro eu servir de pajem a alguém. Por isso, aproveitai. Talvez - acrescentou, afastando-se bruscamente - seja mais fácil conviver convosco, se estiverdes bêbedo.
A sombra de Isambard projectou-se no chão. Ao passar por Benedetta, a sua mão aflorou a curva suave do ombro dela, numa carícia breve. Depois, a meio de uma passada, voltou-se para trás, para Harry, dizendo num tom peremptório:
- Não gosto que me forcem a mão, Harry. Aconselho-vos a que, de futuro, não volteis a utilizar tal estratégia. Deixastes-me como única saída escolher entre dois extremos. Ou vos ponho num calabouço da Torre de Guarda e mando demolir tudo quanto haveis iniciado ou vos dou a minha aprovação e vos confirmo no vosso cargo. Deus sabe que me sinto tentado a optar pela primeira hipótese mas ela privar-me-ia do prazer de saborear uma obra-prima, saída das mãos de um homem destruído.
- Não haveria obra nenhuma - replicou Harry, grato pelo vinho que lhe expulsara do corpo aquele frio terrível. - Acredito sinceramente, senhor, que só os homens livres e de boa-vontade podem criar obras-primas. E, na verdade, pelo menos nisso, estais a ser injusto comigo. Não agi antes de vos perguntar para vos forçar a escolher o que eu queria. Agi assim por acreditar ter plena autoridade para agir. Hoje, vim ter convosco apenas porque Knollys, por respeito para convosco, reconheço, pôs em causa essa autoridade.
- Não tornará a fazê-lo. Não irei envergonhar-vos perante os vossos homens. Muito bem: seja como ordenastes. Mas, atenção, não me pressioneis demasiado. Mantende-vos no vosso domínio e não torneis a entrar no meu.
- Obrigado, senhor - respondeu Harry.
Não ia dizer mais nada. Que havia para agradecer? Isambard estava apenas a cumprir uma promessa.
- Amanhã, falo com Knollys - prometeu Isambard. - Agora, deixai-nos sós.
- Boa-noite, senhor. Boa-noite, Madonna Benedetta.
Ao sair, surpreendeu um brilho nos olhos dela e reconheceu o mesmo sorriso, magoado mas divertido, que ela lhe dirigira por cima dos ombros curvados de John o Frecheiro, no dia da partida de Paris. «Tomamos certas atitudes quase por acaso», suspirara Benedetta. Quase, mas não inteiramente. Ela, que conhecia bem os impulsos da sua própria natureza, não podia admirar-se com os extremos a que a dele o podia conduzir.
Saiu dali reconfortado. Adam havê-lo-ia apoiado de bom grado e com todo o ardor em qualquer empreendimento, ainda que extravagante, sem tentar compreender a razão que o levava a agir como agia. Benedetta limitara-se a empurrar o tabuleiro de xadrez algumas polegadas, para mais perto do rebordo da mesa, pronta a atirá-lo ao chão caso se revelasse necessária uma diversão. Esse simples gesto mostrara que ela compreendia tudo. Harry estava contente por ela se encontrar presente. Estava contente, extremamente contente, por ela ter vindo com eles para Parfois.
Tiraram bom partido do Verão e não faltaram servos para trabalhar, quando se espalhou a nova de que o trabalho era pago como o dos homens livres e não exigido como corveia. Em poucas semanas, a área de construção ficou completamente limpa e nivelada, porque apenas uma delgada camada de relva e algumas ervas daninhas haviam conseguido agarrar-se à rocha quase lisa e porque o projecto de Harry requeria muito pouco nivelamento suplementar. Em Setembro, quando Isambard foi juntar-se à corte do rei, em Woodstock, as sapatas das paredes e dos pilares estavam instaladas, os talhadores de pedra trabalhavam duramente nas suas bancas e os assentadores estavam já prestes a colocar as primeiras fiadas de pedra das paredes. Os carpinteiros preparavam vigas, travessas, armações e tiras de couro para os andaimes, que só viriam a ser necessários na Primavera. O mestre marceneiro, outrora assistente de mestre Robert em Shrewsbury, começara a construir os cimbres para a grande janela oeste e para o portal. E, com um pouco de sorte, faltavam ainda seis ou sete semanas, até o início das geadas obrigar ao despedimento dos assentadores, durante o Inverno, período em que as paredes começadas seriam protegidas por um manto de urzes e fetos.
Harry gostaria de conservar toda a equipa durante o Inverno mas, naquele ano, isso não era possível pois não havia trabalho debaixo de telha para os assentadores. Se tudo corresse bem, no Inverno seguinte uma parte do estaleiro estaria a coberto e poderia conservar todos os seus homens. Por experiência, Harry sabia que a segurança e a satisfação predispunham a um trabalho melhor executado e mais rápido. Depois de libertos da imposição, a maior parte dos homens contratados à força optara por ficar com ele, o que lhe dera um enorme prazer.
De início, a fama do seu comportamento correcto espalhara-se quase demasiado depressa. Alguns oportunistas das aldeias vizinhas tomaram por simplório aquele jovem mestre-de-obras e foram oferecer-lhe os seus préstimos, na esperança de serem contratados e ficarem à boa vida. Mostrando-se azafamados à volta de uma padiola vazia, dois indivíduos da mesma têmpera podiam facilmente dar a imagem de uma actividade zelosa, sem grandes esforços. Infelizmente para eles, o jovenzinho mostrou-se experiente em lidar com casos difíceis. Em dois dias, a desonestidade foi detectada. Harry dispensou sem-cerimónias aqueles que considerou como inúteis e pôs a trabalhar directamente sob o olhar atento de Adam aqueles que pareciam haver apenas tentado ver até onde podiam ir, obrigando-os a trabalhar duramente, até pagarem, em suor e com juros, o que deviam. Só escaparam a este tratamento aqueles que se apressaram a fugir e a sua fuga não foi lamentada. Mas outros houve que se mostraram obstinados e decididos a provar que, se quisessem, eram capazes de fazer o trabalho que lhes era exigido ou mesmo mais. Harry considerou que o esforço valera a pena. Uma vez terminado o trabalho de transporte, continuaram na obra, sem guardar rancor a Harry por este os haver metido na ordem. Pelo contrário, apreciavam-no ainda mais.
Todavia, também houve quem lhe causasse dissabores. Foi o caso de dois homens corpulentos, barbudos, de rosto tisnado, cujo aspecto não lhe agradou mas que, ainda assim, contratou como jornaleiros. No fim do primeiro dia, quando eles se preparavam para abandonar o estaleiro, mandou-os parar e descobriu que levavam com eles cordas e pedaços de couro dos seus armazéns. Era um saque bem insignificante para por ele arriscarem a vida, caso fossem, conforme Harry suspeitava, homens sem amo, que viviam ao Deus dará, na floresta. Depois de pensar um pouco, fez uma busca no sopé das encostas abruptas do planalto e apercebeu-se de que os dois homens haviam atirado uma boa quantidade de madeira para as ervas que cobriam um vale profundo, do lado inglês, onde poderiam ir buscá-la durante a noite.
Entregou-os a Sir Peter FitzJohn, o alcaide de Isambard, e, pouco depois, lamentava tê-lo feito. Com efeito, um deles, que foi reconhecido como o salteador que, havia mais de dois anos, atacava os viajantes na estrada romana, foi enforcado no dia seguinte. E o outro, provavelmente cúmplice do primeiro, não teve melhor sorte, pois, quando tentou escapar-se, lançaram sobre ele o cão árabe de Isambard, que o apanhou sem a menor dificuldade e lhe despedaçou a garganta.
Harry viu o animal voltar para trás docilmente, quando o grego o chamou, abandonando sem relutância o cadáver da sua vítima, satisfeito por haver levado a cabo a tarefa para que fora treinado. O peito dourado estava manchado de sangue, o corpo belo e ágil movia-se com orgulho, alegria e inocência. Harry julgou sentir nas mãos o sangue quente e pegajoso. Não tinha a impressionante candura do cão para o purificar.
- O que é que te atormenta? - perguntou Adam, impaciente. - Eram inquestionavelmente ladrões, salteadores de estrada. Que podias fazer senão entregá-los à justiça?
A despeito das recordações desagradáveis que lhe evocava a palavra justiça, Harry não teve outro remédio senão concordar.
- Mas que mais poderiam fazer para viver, a não ser roubar? - perguntou, condoído. - Dizem que o mais alto era ferreiro numa aldeia qualquer perto de Caus, até haver partido uma perna. Corbett apreendeu-lhe os bens. E o outro era um servo em fuga, sem dúvida por muito boas razões.
- Eu deveria ser a última pessoa a pôr isso em causa - replicou Adam. - Mas, pelo menos, faz-me a justiça de reconhecer que nunca recorri ao roubo nem ao assassínio para sobreviver. E ele também não era obrigado a fazê-lo.
Harry reconheceu que Adam tinha razão mas nem por isso se sentiu melhor quanto ao papel que desempenhara em toda a história. E quando, pouco tempo depois, foi dar com o rapaz que lhe servia de escrivão, na casa do risco, a furtar pergaminhos, giz e outros materiais insignificantes, para seu uso pessoal, a primeira coisa que fez foi barrar a porta aos intrusos, para ninguém ficar a saber. Não podia deixar passar a falta mas teve o cuidado de, desta vez, não permitir a intervenção da justiça. A pena que o rapaz teve de suportar incluiu umas vergastadas, administradas sem convicção e que não o fizeram soltar uma lágrima, e um sermão, que desencadeou uma torrente delas. O incidente acabou com o rapaz a mostrar os desenhos que fizera a Harry, que os criticou com severidade, mostrando-lhe todavia como poderia melhorá-los, e lhe deu todo o material necessário para o rapaz continuar as suas tentativas, a fim de lhe evitar a tentação de roubar aquilo que podia obter, pedindo. A sombra dedicada, sempre colada a Harry, tornou-se então motivo de brincadeiras de Adam, que, todavia, nunca viria a conhecer toda a história.
No Outono, os carregamentos de pedras provenientes da pedreira das colinas de Bryn sofreram o primeiro ataque galês. Para levar a pedra até ao rio Tanat, era preciso percorrer pouco mais de uma milha. Chegada ao Tanat, a pedra era carregada em barcos, que a transportavam pelo Tanat e pelo Vyrnwy até a um cais provisório no Severn, sob a crista de Long Mountain. O cais distava de Parfois cerca de duas milhas e o caminho, por entre escarpas, era difícil mas bem protegido. A viagem fluvial era bastante segura e barata, embora pudesse haver alguns problemas durante as cheias da Primavera. O percurso mais vulnerável era a primeira milha até ao Tanat, pelas colinas, ao alcance de uma pedra lançada de Gales e onde o único obstáculo a travar os assaltos das tribos era o ribeiro Cynllaith.
Havia um ano que o príncipe de Powis apodrecia nas prisões do rei João. Os Ingleses haviam perdido um vizinho imprevisível mas, em troca, haviam arranjado outro, muito mais temível. Com efeito, mal Gwenwynwyn foi feito prisioneiro, Llewellyn voou dos montes Eryri, que nem um dos seus falcões, para se apoderar de Powis e juntar esta fortaleza ao seu feudo nortenho de Gwynedd. Seria de espantar se Llewellyn não se autoproclamasse em breve Príncipe de Gales. A sua grande ambição era a unidade do seu país. E, dado o grande esforço de imaginação necessário para alguém se sentir galês e não inglês, quem poderia culpá-lo?
Todavia, a questão essencial era o seu conflito declarado com Isambard e qualquer ataque dos montanheses de Cynllaith contra o seu inimigo não deixaria de ser do seu agrado.
Um mensageiro, vindo da pedreira e montado num cavalo esgotado pelo esforço, anunciou-lhes que as carroças haviam sido atacadas a meia milha do Tanat, por um bando armado que matara dois carregadores, afugentara os restantes e se apoderara dos bois e das carroças, depois de haver largado as pedras na berma do caminho. As juntas de animais de carga eram alugadas e era preciso pagar compensações, além de uma pensão às viúvas dos dois carregadores. Não podiam permitir-se a repetição constante de tais despesas. Além disso, Harry não admitia, em circunstância alguma, o sacrifício de vidas humanas. Assim, foi de imediato aconselhar-se com FitzJohn e expôs as suas exigências com a crueza de um general a planear uma campanha.
Era preciso acantonar permanentemente na pedreira uma companhia de arqueiros e outra de homens de armas. A pedreira encontrava-se menos exposta do que as carroças em trânsito mas poderia muito bem ser o próximo alvo dos imaginativos Galeses. Todos os carregamentos que se dirigissem para o rio passariam a ser acompanhados por uma escolta armada e deveria ser colocada uma pequena guarda no local de carga, junto ao rio. Quando começassem as geadas, poderiam retirar todos os homens, pois já haveriam armazenado pedra suficiente Para trabalharem durante o Inverno.
Nessa mesma noite, Harry partiu para a pedreira, com um pequeno grupo de arqueiros e homens de armas. Os restantes seguiriam para lá no dia seguinte. Só se sentiu tranquilo quando verificou por si mesmo não estar planeado nenhum ataque em força contra a pedreira. Todavia, o local estava tão silencioso como uma igreja e os homens que ali trabalhavam haviam montado guarda. Mal começou a amanhecer, Harry percorreu os arredores com William de Beistan, o encarregado do acampamento, e assinalou as melhores posições para colocar sentinelas do lado galês, a fim de evitar ataques de surpresa. Quando as duas companhias chegaram, perto do meio-dia, confiou o comando a William e, depois de haver dormido duas ou três horas com o abandono confiante de um cachorrinho cansado, acordou repousado e, acompanhado por três homens, levou para Parfois os corpos dos dois carregadores.
Um dos mortos era um pai de família, de quarenta e dois anos; o outro um jovem de vinte. Harry visitou a viúva e os pais e retirou algum dinheiro dos fundos da igreja para lhes entregar, um acto que não deixaria de merecer reparos de Knollys, quando conferissem as contas. Não havia mais nada que pudesse fazer, excepto entregar-lhes os corpos para serem sepultados. Seriam funerais sem missa, de dois homens que haviam morrido sem confissão. Harry saiu do casebre miserável da viúva e cavalgou de volta, com o coração apertado. Mas, pelo menos, tomara as medidas necessárias para não haver mais homens seus derrubados pelas flechas dos Galeses.
Uma semana mais tarde, chegou a notícia de um novo ataque, repelido sem perdas para os Ingleses. E, embora os atacantes houvessem conseguido levar consigo os seus feridos, um deles fora atingido mortalmente.
- Muito bem feito! - disse Isambard. - Mas teria preferido que fosse o próprio Gwynedd!
Harry não desejava a morte de Galeses nem de Ingleses mas se, mais do que os parcos proveitos que alcançavam, aqueles pretendiam sobretudo desafiar Isambard, pelo menos não podiam queixar-se do acolhimento recebido. Com o tempo, acabariam por concluir que era melhor desistir.
- Que género de homem é o Príncipe de Gwynedd? - perguntou Harry, desenhando a carvão a curva magnífica da face, do pescoço e dos ombros dela. - É certo que o vistes em Woodstock?
- Vi-o, sim, mas não na corte. Até Ralf hesitaria em apresentar a amante ao rei - respondeu Benedetta, com a candura que já deixara de o desconcertar. - Assisti a um encontro entre os dois, na rua, uma vez em que passaram um pelo outro, a cavalo. Nenhum dos dois queria dar passagem. Quando se cruzaram, havia menos de uma polegada entre os joelhos de ambos mas nenhum deles se desviou. É um homem de aspecto impetuoso, caloroso, apaixonado, mas alegre. Olhou para nós, com curiosidade, e creio que era sua intenção falar mas o olhar de lorde Isambard fixou-se para além dele, como se ele ali não estivesse. E vi-o outra vez, a passear no jardim, com a sua princesa pelo braço.
- Credes que ele é mesmo o diabo?
- Só para um inglês - replicou Benedetta. - Aos meus olhos de estrangeira, é um homem bem parecido. Bastante alto, para um galês, tão alto como Isambard e muito moreno. Não usa barba mas tem um bigode comprido. Tem uns traços tão marcados que todo ele é sombras e luz e um rosto enérgico e inteligente. Mas, a despeito de toda a sua ousadia, é um rosto demasiado bem disposto para pertencer ao diabo. Nunca o haveis visto? Dizem que se encontrou várias vezes com o rei, em Shrewsbury.
- Vivi toda a minha infância numa terra que tremia de cada vez que ele dava um passo, mas nunca o vi. Muitos castelos de lorde Isambard foram queimados e muitas das suas guarnições mortas por vários inimigos. Porque se encarniça ele mais contra este do que contra os outros?
Benedetta ponderou a pergunta por alguns instantes, sem se mover da posição que ele lhe indicara, com a cabeça lançada para trás, contra o espaldar alto da cadeira. A luz acinzentada do Inverno entrava pelas janelas da casa do risco. Uma luz morta, inerte, de Janeiro, que se extinguia duas horas depois do meio-dia mas que se inflamava no calor das madeixas do seu cabelo ruivo, que lhe nasciam em ondas das têmporas.
- Penso que é sobretudo por reconhecer nele um homem de envergadura igual à sua, em todos os sentidos. Não há muitos como eles, Harry. Quando encontra alguém da sua têmpera, lorde Isambard não consegue ficar indiferente. É capaz de amar ou de odiar, mas nunca de ficar indiferente. E não é preciso muito para ele se decidir entre o amor e o ódio. Quem o conhece - acrescentou Benedetta, voltando-se para olhar Harry nos olhos - sabe que ele não conhece o meio-termo. Ama e odeia até à morte... a dele ou a do outro. Disse ao rei, cara a cara, que não voltaria à corte enquanto o príncipe de Gwynedd ali for recebido.
- E cuidais que Liewellyn é da mesma espécie?
- Ah, Llewellyn é um homem que defende uma causa. Está protegido do ódio porque tem um amor que o devora. Penso que não presta mais atenção a lorde Isambard do que a qualquer outro dos seus pares que se atravesse entre ele e a unidade de Gales ou que ouse entravar a causa da liberdade de Gales. Deve ser o homem mais obstinado que conheço. Ralf talvez fosse capaz de dar a vida por uma causa mas não por nada que o tocasse mais de perto, - Sorrindo perante tal paradoxo, que todavia deixou a pairar, Benedetta acrescentou: - Nunca sacrificaria a sua fé ou a sua verdade, nem o seu orgulho. Se a vida do rei João dependesse de Ralf faltar à palavra dada, o rei por certo morreria. Se, para salvar para sempre a Inglaterra, Ralf precisasse de beijar os pés do rei Filipe, a Inglaterra pereceria. Mas...
- Mas - interrompeu Harry - em Woodstock, Llewellyn ajoelhou-se, com os outros príncipes galeses, aos pés do rei João e prestou-lhe homenagem.
- Sinto-me contente por não haver tido de assistir a isso - disse ela. - Todavia, atrever-me-ia a jurar que, quando se ajoelhou aos pés do rei João e colocou as suas mãos entre as dele, Llewellyn não perdeu nem a mais ínfima parcela da sua dignidade, nem a devoção dos homens dos clãs, que o consideram o seu príncipe. Parece-me, Harry, que, por vezes, pode ser mais honroso rebaixarmo-nos do que conservarmos o amor-próprio, e que pode haver mais fé em faltar à palavra do que em respeitá-la.
- Para mim não - replicou Harry, com um trejeito.
- Sei que para vós não é assim - admitiu Benedetta, sorrindo. - Sois da mesma raça que Ralf.
- Vós também não mentiríeis, nem faltaríeis à vossa palavra, nem vos humilharíeis - observou Harry, desviando os olhos da prancha de desenho para o rosto do seu modelo, que fitou intensamente. - Por causa alguma.
- Pensais que não?
- Tal como eu não o faria. Quanto ao Príncipe de Gwynedd, penso que tem boas relações com o rei, que lhe jurou fidelidade de boa fé e que o juramento não será quebrado, a menos que seja também quebrado o entendimento existente entre ambos. Não foi a primeira vez que os príncipes galeses prestaram homenagem ao rei de Inglaterra, E, no Verão passado, lutou lealmente pelo rei contra os Escoceses. Afinal» está casado com a filha do rei.
- Assim é. De todas as mulheres deste país, é ela quem tem o papel mais difícil. Lamentá-la-ia, se ela não fosse do mesmo estofo que ele. Mas, sendo como é, penso que não precisa que tenhamos pena dela. Só uma grande mulher seria capaz de viver entre um tal pai e um tal marido, amando ambos e preservando-os da inimizade um do outro. Cuidais que ela não se humilhou centenas de vezes, perante João, por Llewellyn, e perante Llewellyn, por João? Cuidais que ela não mentiu nem enganou, a fim de evitar que um deles se atire ao pescoço do outro? O orgulho das mulheres deve ser de uma natureza diferente - acrescentou, estremecendo ligeiramente, pois estava muito frio na casa do risco, situada na galeria exterior, e ela estivera a posar, sentada, durante muito tempo.
- E a sinceridade das mulheres será também de uma natureza diferente? - perguntou Harry, poisando o carvão e afastando-se um pouco do seu trabalho. - Vinde ver! Ah, estais gelada até aos ossos! Perdoai-me por não haver pensado nisso. Quando me ponho a desenhar, esqueço-me de tudo.
Sem qualquer acanhamento, pegara na mão dela e aquecia-a entre as suas. Benedetta só retirou a mão para agarrar no pergaminho e o observar mais de perto.
Era um desenho para um capitel, não um retrato. A linha esguia do pescoço dela brotava da cornija do capitel, como o caule de um lírio que se vai abrindo numa flor. E o seu rosto, simplificado mas não obstante reconhecível, olhava na direcção do sol, entre as asas levantadas
dos seus cabelos. Os caracóis, esvoaçantes, formando espirais ondulantes, sustentavam o ábaco, como o jacto de uma fonte sustenta uma pétala de rosa.
- Está lindo - disse Benedetta. - E sinto-me orgulhosa. Deveis ter uns cem desenhos já prontos para serem talhados. Vejo-vos trabalhar, dia após dia, desde que a construção das paredes parou por causa do Inverno. Mas ireis ter de confiar alguns deles a outros, para os esculpirem. Não receais que estraguem o vosso trabalho?
- Serei eu a fazer todos os traçados e velarei por que sejam correctamente executados. E reservo para mim os pilares da nave.
Harry não suportaria privar-se de um só deles. Imaginava uma nave lateral como uma floresta de pedra e todas as árvores esguias dessa floresta desabrochando em hastes igualmente delicadas.
- Mostrais-me os vossos desenhos? - perguntou Benedetta, voltando-se para ele, de olhos brilhantes, nos quais ardia o reflexo da sua própria excitação interior.
Harry abriu o caixote de bom grado e dispôs os pergaminhos sobre as mesas de desenho, para ela ver: os desenhos das ogivas da nave, do coro e dos transeptos; o plano da abóbada da nave, onde todas as hastes sêxtuplas da floresta sagrada desabrochavam em gráceis ramos séptuplos, que se uniam numa trave do tecto, rematados com cachos de flores estreladas; desenhos de vários ornatos para a porta oeste e para a grande janela que seria aberta acima dela, com as suas múltiplas janelas lanceoladas e rosáceas rendilhadas; desenhos da torre, que se ia afilando subtilmente e que era prolongada com elegância em fustes delicados, de tal modo que, a todas as horas do dia, os seus contornos seriam sublinhados por belas linhas verticais de luz e sombra.
- Ouvi dizer que as torres devem ser construídas em pequenas etapas, de não mais de quinze pés por ano, a fim de permitir que o terreno assente - observou Benedetta. - É verdade?
- É verdade, e vós não parais de me espantar com as coisas que sabeis - respondeu Harry, sorrindo. - Mas, aqui, temos rocha sólida. Não há melhor base. Assim, poderei construir mais depressa. Mas vede: estes desenhos são os que irei reservar para mim mesmo. Ninguém lhes tocará, salvo, talvez, o Adam. Não, nem mesmo o Adam! Não sou capaz de os entregar a ninguém.
As mãos de Harry tocavam amorosamente nos desenhos e ele corara como uma criança apaixonada que mostra os seus tesouros. Nesse momento, sem que uma palavra houvesse sido pronunciada, Benedetta percebeu que ele a estava a honrar com uma dádiva que, para ela, não tinha preço.
Um a um, terna e reverentemente, Harry mostrou-lhe os capitéis da nave, seis por pilar. E ela entendeu que tudo quanto vive na terra glorifica a Deus, reconheceu as suas próprias mãos e os seus próprios pulsos erguidos para suportar o tecto da Sua morada, viu as ondas fortes do mar arqueando-se para o céu, o rosto de Isambard, de lábios entreabertos, garganta palpitante, como um anjo de profecia, o galgo de Isambard a saltar, o seu falcão a planar, de asas bem abertas, ramos de árvore soprados pelo vento, flores fortes e vigorosas: tudo transformado, como que por encanto, em formas puras e impetuosas, concebidas para acolher o ímpeto ascendente das colunas, transmitindo-o, numa impulsão renovada de energia triunfante, para o centro da abóbada. Viu o mundo inteiro, reunido numa onda de veneração, apresentando a Deus a oferenda suprema da sua maravilhosa diversidade.
Havia muitos rostos, muitos retratos. Benedetta reconheceu as feições miúdas, astutas e tristonhas de crianças dos povoados das terras altas, por onde passeava frequentemente a cavalo; o corpo e as pernas disformes de um anão que, de vez em quando, mendigava comida à porta do castelo, esmagado sob a sua cabeça demasiado pesada, mas cuja nobreza via agora pela primeira vez. E também uma figura desconhecida: uma velha, que embalava no colo o filho morto. Ao princípio, pensou tratar-se de uma Pietà, imaginada com o aspecto de uma mulher das redondezas, para a tornar mais próxima. Depois, viu que era a mãe do jovem carregador morto, abraçando-o. Quantas coisas não havia Harry visto, desde que aquela visão o assaltara! E quanto do que vira o perturbara! Os rostos infelizes, cansados, inteligentes dos pobres, nascidos das mãos de Harry, fitavam-na num desafio directo, que a vida real não lhes permitia. Saberia ele o que fazia, ao expor aos olhos do seu senhor e ao mundo do seu senhor a revelação que tivera? Teria ele próprio reconhecido o que esta representava? Não conscientemente, pensou Benedetta, não com um espírito como o dele. Mas o seu coração sabia o que o comovia e as suas mãos sabiam o que faziam.
- Começo a conhecer estas folhas - observou Benedetta. Estavam por todo o lado: folhas que se arqueavam e se enrolavam,
que se erguiam, jactos de vida que cresciam irreprimivelmente em direcção à luz. Abrigados por baixo delas, espreitavam homens, animais, aves.
- Nunca vi nada assim - acrescentou. - Nem em Itália, nem em França. Conheço bem as dos capitéis românicos mas estas pertencem a outro mundo.
- E quais preferis?
- Estas - respondeu ela, sem hesitar e com ardor. - Estas fazem parte do tronco. Crescem. As outras são estáticas.
Benedetta adivinhava sempre quando o que dizia agradava a Harry, apesar de este não expressar o seu agrado. Quanto maior era a sua alegria e a sua satisfação, mais calado ele se mostrava.
- Têm vida e crescem mas não são iguais a nenhumas outras folhas das que crescem neste nosso mundo. É uma enorme pena! - disse ela, com um sorriso quase imperceptível e ligeiramente irónico, enquanto acompanhava, com a ponta do dedo gelada, a curva vigorosa de uma folha. - O que são? Deveis saber, já que fostes vós quem as fez.
- Tendes razão - respondeu Harry, sombriamente, arrumando os esboços. - Elas não crescem neste mundo. São folhas da árvore do céu, da árvore de pedra que estamos prestes a plantar do outro lado do portão.
- E qual é o fruto desta árvore?
Benedetta olhou para Harry mesmo a tempo de, antes de ele se voltar para ela, sorrindo, ver reflectirem-se no rosto dele a gravidade, a dúvida e o espanto.
- Reinos. Pequenos reinos de esperança para os servos, os proscritos, os homens sem terra. Liberdade para os que não são livres, alívio para os aflitos, fartura para os que têm fome, segurança para os fugitivos. Tudo o que o coração deseja para os corações que nunca tiveram desejos.
Aquilo que se lia nos olhos dela fez calar Harry, subitamente atingido no mais fundo da alma por tudo quanto ela não dissera, tudo quanto ela jurara não voltar a dizer-lhe. Sentiu os dedos pequeninos de Gílleis cravarem-se nas raízes do seu coração e experimentou na própria carne a dor que Benedetta carregava na sua, como quem leva no ventre uma criança monstruosa. Nunca se sentira tão próximo de nenhuma outra criatura viva como, naquele momento, se sentia de Benedetta. Nem mesmo de Adam,
- Mas esses frutos nunca amadurecem - disse ela, com aquele seu sorriso triste, que se transformara numa das flores do mundo de Harry. - Prometem-nos que amadurecerão no mundo depois deste, se soubermos merecê-lo. Neste, nunca amadurecem. Vejo que sabeis que assim é, pois só desenhastes as folhas e nenhum fruto.
Sacudindo os ombros, como que para afastar a tristeza repentina que, estranhamente, nascera da alegria e da força das imagens criadas por Harry, Benedetta acrescentou:
- Tenho de ir. Ele não tarda a regressar do seu passeio a cavalo. Mas, se o permitirdes, gostaria de voltar aqui, de vez em quando, enquanto trabalhais.
- Vinde quando vos aprouver. Sereis bem-vinda.
Ela encontrava-se já junto à porta, quando Harry pronunciou o seu nome:
- Benedetta!
Era a primeira vez que a tratava assim. Quando ela se voltou, espantada, comovida, ele aproximou-se, pegou-lhe na mão e beijou-lha. Faltando-lhe palavras suas, foram as dela que lhe brotaram dos lábios. E eram perfeitamente adequadas:
- Minha doce amiga!
A MEIO daquela NOITE de PRINCÍPIO DE VERÃO, Harry acordou sobressaltado e voltou-se no largo leito, sentindo que lhe faltava qualquer coisa: um calor, o som de uma respiração suave, qualquer coisa sem a qual a sua paz de espírito se esfumava. Esticou o braço, à procura de Adam, mas a outra metade do leito estava fria e vazia.
A descoberta acabou por despertá-lo por completo mas não o perturbou. A luz brilhante do luar entrava pela janela e o ar nocturno era tão morno e ameno como se fosse dia. Depois de um Inverno interminável e de uma Primavera tímida, era delicioso poder dormir nu, no quarto mais alto da Torre de Guarda. Harry perguntou vagamente a si mesmo qual das muitas raparigas do pátio exterior atraíra Adam para fora do leito. Já era altura de Adam voltar a apaixonar-se. O que mais o espantava era ele ter-se mantido imune durante tanto tempo. Élie nunca haveria acreditado que Adam fosse capaz de passar um ano inteiro com os olhos postos apenas no trabalho.
Harry dormitou mais um pouco mas voltou a acordar, assaltado por uma estranha inquietação. Que sinais prenunciadores recentes haveria Adam apresentado? A verdade é que não houvera indícios da sua antiga febre da Primavera. Quando estava apaixonado, Adam falava muito e qualquer pessoa do seu círculo próximo não tardava a aperceber-se do que se passava.
Harry saltou da cama, embrulhou-se no pelote e encaminhou-se para a escada da torre, cujos degraus estreitos se mostravam ligeiramente desgastados por muitos pés. O simples roçar dos pés de um homem, uma vez por dia, acabava por desgastar a pedra, pensou Harry. O tempo, o vento, as minúsculas ervas que lançam raízes nas fissuras provocadas pelo vento e pelas intempéries acabarão por estragar a minha obra. Mas, nessa altura, estarei morto há muito e até os meus filhos e os meus netos haverão desaparecido. Todavia, não pôde deixar de imaginar os anos esbatendo as linhas nítidas das suas esculturas, corroendo os contornos incisivos das folhas da árvore do céu, transformando em resignação a energia dos traços angulosos dos rostos dos servos, até as suas imagens serem reduzidas a blocos de pedra. E, ao pensar que mesmo aqueles a quem insuflara uma vida mais longa do que a sua acabariam por desaparecer, um forte sentimento de raiva e ciúme apertou-lhe o coração. Uma boa pedra é uma pedra que dura. Mas mesmo as montanhas vão sendo lentamente desgastadas e reduzidas a pó.
Chegado à cobertura de chumbo da Torre da Guarda, Harry avistou, mesmo ao lado, os níveis superiores da torre de menagem, alta e esbranquiçada, sob o luar. Não havia ali sentinelas, pois a atalaia da Torre do Rei abarcava o mesmo campo de visão, permitindo mesmo ver até mais longe, nas duas direcções. Do lado galês, Adam, com os cotovelos apoiados no merlao entre duas ameias, contemplava o vale do Severn, que se estendia diante de si, verde e prateado, de Pool, a montante, onde Gales parecia ao alcance da mão, até aos sólidos contornos cinzentos de Strata Marcella, a jusante, que se destacavam contra os prados planos.
Descalço, sem fazer ruído, Harry atravessou o espaço que os separava e lançou o braço sobre os ombros curvados do irmão. Adam teve um sobressalto e voltou-se, fitando-o de olhos muito abertos.
- Ah! és tu! - disse, com um vago sorriso. - O que estás a fazer acordado, a esta hora? Quando saí do quarto, estavas a ressonar. - Ao reparar nos pés nus de Harry, acrescentou: - Perdeste o juízo? Não devias sair de uma cama quente e andares a passear sobre as lajes, descalço.
- Acordei e dei pela tua falta - explicou Harry. - Porque te levantaste, a meio da noite?
- Não conseguia dormir. Deve ter sido por causa do luar, que batia do meu lado da cama.
- Não foi só o luar que te desassossegou - argumentou Harry, apoiando melhor o braço sobre os ombros do irmão e assentando o outro cotovelo na pedra, ao lado dele. - A minha alma diz-me que há qualquer coisa que te preocupa, já há algum tempo, e que, com todos os meus afazeres, eu não dei por nada. Peço perdão, por não te haver dado ouvidos, mas estou a ouvir-te agora. O que se passa?
Mal-humorado, Adam encolheu os ombros e fixou os olhos na faixa prateada e ondulante que era o rio, lá em baixo. Manteve-se em silêncio durante algum tempo e, depois, abruptamente, voltou-se para Harry e exclamou:
- Preciso de ir a casa, Harry!
- Então, é isso! Sempre é melhor que o deites cá para fora. O que foi que te deu para ficares com saudades de casa, depois de haveres estado longe por mais de dez anos, sem nunca pensares nisso?
Harry não desejava que a sua voz houvesse soado tão amarga mas todo o seu ser se revoltava perante aquela ideia e a rudeza do tom que utilizara era apenas fruto do seu próprio desconforto.
- Pensei nisso muitas vezes - replicou Adam, com veemência. - Mas de que valeria martirizar-me com a ideia, se estávamos demasiado longe para poder voltar?
- Mas estavas feliz!
- Bem sei! Alguma vez disse o contrário? Vimos e fizemos muitas coisas juntos e apreciei cada um dos dias desses tempos. Mas isso não quer dizer que me esqueci de que tenho família. Não chorei por eles, enquanto estiveram fora do meu alcance mas, agora, já não estão. Estão aqui, no mesmo condado que eu. Quero vê-los, Harry. Preciso de os ver! A minha mãe não me põe os olhos em cima há dez anos e os rapazes já são homens. E o meu pai não está a ficar mais novo. Nem sequer sei se ainda é vivo! Não aguento mais. Preciso de ir a casa.
- Se a precisão é assim tão grande, não foi uma atitude de amigo nunca me falares disso - disse Harry, deixando-se arrastar por uma cólera irracional. - Se queres deixar-me...
- Não sejas parvo! - exclamou Adam, ofendido. - Sabes bem que não! Só quero ver a minha mãe e os meus irmãos e fazer-lhes saber que ainda faço parte do mundo dos vivos. E, quanto a falar-te no assunto, devo dizer que tentei várias vezes. Sempre que tento dizer alguma coisa que não tenha a ver com pedras, deixas de me ouvir. Uma vez, pedi-te uns dias para ir vê-los e nem quiseste ouvir falar em tal.
- Não sabia que era para isso que querias uns dias de folga. Estávamos a talhar as aduelas do arco do portal e precisava de ti aqui.
- Não sabias porque não me ouviste. Eu disse claramente o que queria. Mas não: disseste-me qual era o meu dever e eu deixei que fosses tu a ter a última palavra. Desta vez, não vou adiar mais. Vou lá.
- Não vais a lado nenhum - replicou Harry, num tom categórico. - Ainda és um servo fugitivo dos Talvace, apesar dos dez anos que passaste fora de Sleapford. Ser-te-á bem difícil provares que tens um ano completo de residência livre, pois não fez ainda um ano que chegámos a Parfois e, para o resto do tempo, não há nenhuma testemunha inglesa que possa responder por nós. Aliás, Parfois não é um burgo livre. Seria difícil defender a tua causa em tribunal. Fica aqui, onde estás a salvo, pois nenhum homem são de espírito ousaria vir buscar-te aos domínios de Isambard. Mas, se fores visto em Sleapford, o Ebrard pode meter-te na prisão quando lhe aprouver...
- O Ebrard? - interrompeu Adam, erguendo a cabeça, com um sobressalto, para fitar Harry nos olhos. Afastou-se do parapeito e agarrou o amigo pelos braços. - Que história é essa do Ebrard? Já não precisamos de nos haver com o teu pai?
- O meu pai morreu há mais de três anos. O padre Hugh deixou escapar a nova, quando fui vê-lo. Pensou que eu vinha de casa e que já sabia. Mais tarde, o irmão Edmund contou-me os pormenores. O meu pai teve um ataque, ficou de cama durante um mês e, depois, o segundo ataque matou-o. Por esta altura, a minha mãe já deve ter voltado a casar, pois está sob a tutela de Gloucester e possui algumas terras suas. E o Ebrard não vai por certo querê-la em casa, seja casou ou está a pensar fazê-lo; e não pode deixar de pensar nisso, pois terra é terra, e há algumas herdeiras nas vizinhanças. Pelo menos havia, quando de lá saímos, se não estiverem já todas prometidas em casamento. Seja como for, é o Ebrard que teremos de enfrentar e podes acreditar que não é homem para deixar escapar facilmente qualquer coisa que lhe pertença.
- E nunca disseste nada! - exclamou Adam, pensativo. - Tentei saber novas, quando passámos por Shrewsbury, mas não ousava pronunciar nomes e as pessoas pareciam reticentes em dizer fosse o que fosse a um estranho. Pois é, também sei ser cauteloso, quando se trata da minha liberdade.
Novamente de bom-humor, Adam sorria, sacudindo os braços de Harry.
- Mas, agora, a minha decisão está tomada e não vais conseguir demover-me. Sou capaz de entrar e sair de Sleapford, antes de alguém ter tempo para ir contar ao Ebrard. Estou decidido a ir ver a minha mãe, mesmo que o diabo se atravesse no meu caminho.
- Não vais! Não te deixo correr esse risco!
- Tu não me deixas? - troçou Adam. - Queres que te atire ao chão, rapaz, e te puxe as orelhas? Ainda sou capaz de fazer isso, só com uma mão. Queres que te mostre?
A determinação de Adam era grande e nada poderia fazê-lo desistir. Fora a indecisão que lançara sobre ele as sombras do silêncio e do isolamento.
- Sabes porque não queres que eu vá? - prosseguiu, segurando firmemente Harry pelos ombros. - Porque, se eu for e descobrir que está tudo bem, que o caminho está livre e que ninguém nos guarda rancor, deixas de ter desculpas para não ires a casa. E tu não queres ir! Ou melhor: queres e não queres. Receias o que poderás encontrar. Temes ser rejeitado, tens medo de perder o afecto que ainda sentes por eles e de não receberes nada em troca. Receias reabrir velhas feridas, reacender velhos ódios, quando precisas de ter o espírito tranquilo para poderes fazer aquilo que tens a fazer, e fazê-lo bem. Não vês que o único modo de te libertares de todos eles é regressar e enfrentá-los? Depois disso, poderás ficar em paz, quer as coisas corram bem ou mal. Não é o risco que te preocupa.
Harry debatia-se furiosamente entre os braços que o aprisionavam. Em vão.
- Não é verdade! - defendeu-se com ardor, evitando o olhar de Adam, que o desafiava. - Seja como for, nunca pensei muito neles e imagino que eles também não perderam muito tempo a pensar em mim. Porque haveriam de o fazer? Há mais de dez anos que não nos vemos.
Todavia, o que Adam lhe atirara à cara era verdade. Com efeito, conscientemente, pouco pensara na família mas, desde que regressara a Inglaterra, a família era um pesado fardo secreto que trazia no coração, um dever ao qual voltava as costas, uma provação que temia enfrentar. Adam estava certo: nunca se libertaria deles, se não voltasse a vê-los. Perante a ideia de um encontro com a mãe, as suas entranhas revolviam-se, liquefazendo-se num magma de ternura, medo e desgosto. E se ela houvesse sido abandonada à viuvez e à solidão, sem que ele a procurasse? E se ouvisse dizer que ela já morrera e estivesse condenado a viver toda a vida com a certeza de que a sua deserção lhe encurtara os dias?
- Para mim, é fácil - acrescentou Adam, num tom suave. - Só deixei para trás amor e bondade e quero recuperá-los, com ou sem objecções. Trago-te novas de Slepaford e, se estiver tudo bem, volto lá contigo.
Mas Harry aprendera bem a lição e, num tom que não admitia réplica, disse:
- Não! Eu vou primeiro. Ainda há a questão da tua liberdade. Vou falar com o Ebrard e obter a sua palavra de que não irá reclamar-te. Vou a casa hoje. Dentro de dois dias, poderás ter o que desejas.
Da entrada do caminho, longo e tortuoso, que atravessava a aldeia, Harry avistou a torre da igreja e a cobertura de ripas, degradada, após dois anos de interdição. A esquerda, erguiam-se os campos nus, sublinhados a vermelho porque os socalcos por cultivar que separavam os regos estavam cobertos de papoilas e, do outro lado, viam-se as estreitas leiras de pousio, às quais, aqui e ali, algumas almas famintas tentavam arrancar uma colheita suplementar. Na época em que fizera a sua curta aprendizagem de curador dos registos - e levava muito a sério as suas funções - ele próprio considerara lamentável que metade dos campos da aldeia fosse, todos os anos, deixada ao abandono. Mais valiam três campos do que dois e, se pusessem as cabeças e os recursos a trabalhar, poderiam separar um terceiro campo das terras desaproveitadas e cultivá-lo.
Ao atravessar os domínios de Le Tourneur para chegar ao moinho, as recordações assaltaram Harry de uma forma opressiva. Fora ali, naquela floresta, que Adam havia morto a corça. Fora ali, no cercado do moinho, que ele e Adam haviam deixado os cavalos e fora ali que os viera buscar, pela calada da noite. Estava um jovem debruçado junto à roda do moinho, a erguer a adufa que bloqueava o canal a montante. Ao olhar para o cabelo ruivo do jovem, Harry pensou que deveria ser Wilfred. Mas aquele gigante parecia-se tão pouco com a imagem de Wilfred que guardava na memória e acolhera a sua saudação com um olhar tão duro, no qual não havia o mínimo sinal de reconhecimento, que a timidez o impediu de se dar a conhecer. Enquanto atravessava a aldeia, ninguém o chamou pelo nome e, da sua boca seca, não saiu uma palavra, quando se cruzou com velhos amigos. Não, os reencontros teriam de ficar para mais tarde, depois de haver enfrentado o acolhimento que lhe estava reservado no castelo.
Diante dos seus olhos, surgiram as altas muralhas e a torre cinzenta, deselegante, e sentiu o coração apertar-se-lhe. Não sabia muito bem o que esperara mas, agora, ao aproximar-se da porta da muralha, sentia-se ao mesmo tempo perdido e tranquilizado. Visto de fora, o local não mudara e as memórias que dele tinha eram claras, precisas e estranhamente ambivalentes, carregadas de indignação ardente mas, também, de um sentimento de culpa. O guarda-portão que lhe veio perguntar o que desejava era um estranho, que o fitou com o interesse prudente que reservaria a qualquer outro viajante desconhecido. Perante aquele olhar impessoal, Harry sentiu esfumarem-se os seus receios de dor e emotividade forte.
- Sir Ebrard está na armaria - informou o porteiro. - Peço-vos que espereis aqui, sir, enquanto vos anuncio. Quem devo anunciar?
- Eu vou ter com ele - replicou Harry, desmontando do cavalo. - Conheço o caminho. Tempos houve em que esta era a minha casa. Não temais: sir Ebrard conhece-me.
A armaria tinha um telhado novo, o pombal também. Harry ficou satisfeito ao ver que Ebrard cuidava bem das instalações. Na oficina do ferreiro, estava um homem, a moldar o cabo de uma adaga. Não era o velho ferreiro mas um jovem garboso, de uns vinte e cinco anos. O velho devia ter alcançado o repouso eterno, como o seu senhor. Toda uma geração de velhos pode desaparecer numa década.
Ebrard estava debruçado sobre a bigorna, a observar o trabalho, de costas voltadas para a porta, mas a sombra do recém-chegado interpôs-se entre ele e a luz, o que o fez voltar-se, esperando ver um dos seus homens de armas. Ebrard engordara muito, entre os dezanove e os vinte e nove anos. Agora, precisava de um cavalo bem robusto. Quando chegar aos cinquenta, pensou Harry, espantado, pois chegara a invejar o porte elegante do irmão, vai ser ainda mais gordo do que o nosso pai. Mas, pelo menos, como é alto e tem uma ossatura mais leve, vai disfarçar melhor.
Os olhos azuis semicerraram-se, ao encararem a contraluz. O corpo alto endireitou-se, perante a presença de um estranho.
- Alegro-me por vos encontrar de boa saúde, Sir Ebrard - disse Harry.
- Tu! - exclamou Ebrard, respirando fundo. - Ora bem! Quem havia de dizer!
- Estive ausente de Inglaterra até ao Verão passado. Esta foi a primeira oportunidade para vos visitar. E é apenas uma visita - acrescentou, a fim de dissipar a possível apreensão de Ebrard quanto às suas intenções. - Não tomes nenhuma disposição especial por minha causa. O trabalho espera-me em Parfois e não posso ausentar-me por muito tempo. Vim apenas para me assegurar de que estava tudo bem contigo e com a mãe.
Ebrard poisou a adaga e saiu para o terreiro. Aceitou a mão que Harry lhe estendera e inclinou-se para lhe dar um beijo na face, com uma civilidade tão rígida que tornava claro que sentia estar a acolher um estranho. Talvez houvesse mesmo agido com maior naturalidade, se se tratasse de um estranho.
- Soubeste da morte do pai?
A nota de perplexidade detectável na voz de Ebrard advinha de os dois serem irmãos, um facto que admitia mas que já não sentia. A ideia de terem o mesmo pai separava-os ainda mais um do outro.
- Só soube quando regressei a Inglaterra. Então, era já demasiado tarde para sentir desgosto. Receio não lhe haver dado grandes motivos de satisfação, enquanto foi vivo. Espero que a mãe esteja de boa saúde.
- A saúde dela é excelente!
Atravessavam o pátio e Ebrard acertou o passo pelo de Harry, para quem olhava de lado, de testa franzida.
- É melhor eu ir à frente, para a preparar. Tens de perceber que não te vê há muitos anos. Primeiro, pensámos que havias morrido. Depois...
- Que partira para não mais voltar - completou Harry.
- A maneira como partiste não fazia prever o teu regresso. - Os olhos azuis, perspicazes, sondaram Harry, num relance. - Pelo menos, enquanto o pai fosse vivo - acrescentou Ebrard, intencionalmente.
- Não foi por medo dele que me mantive afastado - disse Harry, pensando haver sido isso que Ebrard insinuara. - Nem por lhe guardar rancor. Depois de o Adam estar fora do seu alcance, não tardei a passar por cima de tudo isso. Mas era preciso continuar a fugir até nos encontrarmos a salvo e a fuga levou-nos até França. Só lá nos aventurámos a parar e, com tudo quanto havia para ver e a precisão de ganharmos o nosso sustento, nunca tivemos tempo para pensar em Sleapford, Também não acredito que o pai haja perdido o sono durante muito tempo.
- Ele sentia uma grande amargura por tua causa - retorquiu Ebrard. - Foi há muito tempo e não me lembro bem dos pormenores mas sei que, depois de haver admitido que partiras, não queria que se falasse no teu nome. Nos últimos anos de vida, a sua atitude mudou mas não diria que alguma vez haja chegado a perdoar-te.
- Então, estou em vantagem sobre ele, porque eu perdoei-lhe.
- Foi por já teres essa vantagem que pudeste perdoar-lhe - observou secamente Ebrard. - Que fizeste desde então? Como viveste? E aquele teu irmão de leite continua contigo?
Harry preferiu ignorar a última pergunta mas respondeu de bom grado às outras, enquanto subiam lado a lado a escada para o salão.
- Espanta-me que hajas encontrado motivos para voltar aqui, depois do sucesso que obtiveste sozinho - comentou Ebrard, a quem o nome de Isambard impressionara.
Ser mestre canteiro de um tal patrono era um feito merecedor de respeito.
- Motivos? Afinal, também sou filho desta casa e o meu nome é Talvace, como o teu.
Mais uma vez, Harry surpreendeu os penetrantes olhos azuis pousados sobre si e sentiu quase como uma punhalada o silêncio momentâneo que se instalou entre ambos. Mas, de súbito, ouviu as suas próprias palavras como elas deveriam haver soado aos ouvidos de Ebrard e foi forçado a reprimir um ataque de riso.
Então era essa a razão dos olhares de lado e da testa franzida! Ebrard temia que o motivo da sua vinda fosse reclamar uma parte da herança de Sir Eudo e não se poupava a esforços para lhe mostrar que, ao perder os favores do pai, perdera também os seus direitos filiais. E, ao dizer «sou filho desta casa» e «o meu nome é Talvace, como o teu», fizera involuntariamente tremer o chão debaixo das esporas de cavaleiro do irmão. Irritado, abriu a boca para o tranquilizar mas conteve-se. Não, deixá-lo suar! Deixá-lo pendurado do anzol durante uma hora ou duas. Num impulso de desdém, estivera prestes a dizer-lhe que não queria nada dele. Mas, pensando melhor, havia pelo menos uma coisa que queria e, assim, Ebrard ficaria muito satisfeito por aceder ao seu pedido. Porque haveria de se contentar em obter a liberdade de Adam? Porque não negociar também a dos pais e dos irmãos mais novos de Adam? Afinal, embora sempre houvesse sido aceite que a terra não devia ser dividida, Harry tinha direito legal a uma parte da propriedade. Depois de lhe haver chamado a atenção para todas as provas patentes de prosperidade e de mostrar grande interesse pelas melhorias realizadas no domínio e pelos belos animais ali existentes, Ebrard não poderia deixar de pensar ser uma grande sorte tudo aquilo custar-lhe apenas uma família de servos. A longo prazo, até poderia não ficar a perder. Passaria a receber uma renda pelo aluguer do sobrado e William Boteler e os filhos poderiam dedicar-se integralmente ao seu ofício e tirar proveito dele, algo que acabaria por beneficiar toda a aldeia.
Talvez algum dos rapazes quisesse ir trabalhar com Adam, para Parfois. Mas, primeiro, era preciso jogar forte com Ebrard e, se retirasse disso algum prazer, pelo menos seria sem malícia. Não alimentava desígnios obscuros acerca de um palmo de terra que fosse da herança do desgraçado.
Havia uma nova chaminé de pedra, no centro do salão, sob as vigas escurecidas pelo fumo do majestoso telhado, e uma nova balaustrada trabalhada ornava a escada que conduzia à galeria. Harry admirou uma e outra e, com um sorriso de aprovação, cumprimentou Ebrard pelo seu bom gosto.
- A mãe está lá em cima - disse Ebrard, mudando precipitadamente de assunto. - É melhor eu subir primeiro e dizer-lhe que te encontras aqui.
- Não. Nem pensar! Recuso-me a ser anunciado suavemente, como se fosse uma má nova. Deixa-me ir sozinho. Juro que o choque não lhe fará mal. Quero ser reconhecido e acolhido por ela e não mandado entrar, como um vendedor ambulante que vende ganchos para o cabelo.
- Talvez não esteja sozinha - objectou Ebrard. - Às vezes, o meu escrivão mais novo lê-lhe um pouco, durante a tarde. Ultimamente, os trabalhos de costura cansam-lhe os olhos.
Harry parou a meio dos degraus e voltou-se para trás, assaltado pela dúvida.
- Disseste que ela estava bem!
- Ela está bem, está mesmo óptima. Vais poder ver por ti próprio. O senhor de Gloucester quer que ela volte a casar. Quer dá-la em casamento a um dos seus cavaleiros. A boda deve realizar-se dentro de pouco tempo.
- Se o noivo não lhe agrada... - começou Harry, franzindo o sobrolho.
Um sorriso fugaz, cínico, quase obsceno, contorceu por instantes a boca bem desenhada de Ebrard.
- Agrada-lhe, sim! É dez anos mais novo do que ela e, além disso, é um belo homem. Quem fica a perder é ele.
Era a primeira vez que trocavam impressões tão pessoais acerca da mãe e Harry não achou a experiência agradável. Sempre guardara para si as desilusões que o carácter dela lhe provocara e sempre as perdoara, por vezes à custa de esforços dolorosos. Para acabar rapidamente com a conversa, subiu as escadas a correr e, com um repentino tremor nervoso, bateu à porta, antes de entrar. Houve um silêncio prolongado e, depois, a voz da mãe, um tanto aguda devido à surpresa, mandou-o entrar.
Estava sentada no vão da janela. A princípio, Harry distinguiu apenas a sua silhueta em contraluz e pensou que, miraculosamente, ela não mudara. Usava um vestido verde, comprido, e, por cima deste, um brial de brocado amarelo. O vestuário, a coifa de tule dourado e o colar de âmbar eram mais próprios de uma noiva do que de uma viúva. O escrivão, um jovem de cerca de vinte anos, com hábito e tonsura, estava sentado num tamborete, aos pés dela, atentamente debruçado sobre o livro. Se estivera na verdade a ler, devia ter sido em voz muito baixa.
Lady Talvace olhava para a porta, com uma expressão surpreendida e interrogativa no rosto terno e pálido. Harry fechou a porta atrás de si e deu alguns passos dentro do quarto, até a luz incidir sobre ele. Lady Talvace fechou os olhos, voltou a abri-los e susteve a respiração.
- Perdoai, senhor, não esperava... os meus olhos pregam-me partidas. Por instantes, pensei... Sois muito parecido com Harry!
- Eu sou Harry - disse ele, em tom suave.
Lady Talvace bateu as palmas, num gesto de alegria tão espontâneo que Harry sentiu o coração bater com mais força. Em seguida, levantou-se de um salto, quase derrubando o jovem escrivão, e correu para os braços de Harry, a chorar, a rir, balbuciando como uma criança excitada e cobrindo-lhe o rosto de beijos. Lançou os braços à volta do pescoço do filho e encostou o rosto ao dele, abraçando-o com força.
- Harry, Harry, meu querido, querido Hal!...
O escrivão pôs-se de pé e, quase encostado à parede, tão discretamente quanto possível, dirigiu-se para a porta. Mas, por cima do ombro da mãe, Harry viu o estranho olhar que o jovem lhe lançava, o seu ligeiro sorriso furtivo, feito de ciúme e afronta mas, ao mesmo tempo, de cumplicidade contida, e deu-se conta de que a mãe encontrara mais um jovem adorador para a ajudar a passar o tempo de uma forma agradável, um jovem adorador que não fora mantido à distância. Era mais forte que ela, não valia a pena culpá-la. Não era um vício mas um apetite instintivo, como a necessidade que a terra tem da chuva. Um filho, um escrivão de rosto infantil, um novo esposo jovem, para ela era o mesmo. Privada de um, substituía-o por outro.
Tê-la nos braços representava o fim dos receios de Harry. Viera até ali couraçado contra tragédias e animosidades mas deveria antes haver-se preparado para enfrentar uma realidade mesquinha, vulgar, confusa, à imagem da miserável condição humana. A mãe e o irmão não tinham envergadura para abrigar a paixão que a sua imaginação lhes atribuíra. O melhor seria reconhecer, também, as suas próprias limitações e conformar-se com elas.
- És um filho mau e cruel, Harry! Como pudeste estar tanto tempo longe de mim? Como pudeste abandonar-me? Partiste-me o coração, quando fugiste.
Sorrindo, Harry abraçava-a com ternura. Não duvidava que ela houvesse chorado amargamente a sua fuga mas daí a ter o coração partido... O seu regresso alegrava-a mas, na verdade, não precisava dele: conhecia mil outras maneiras de encontrar a felicidade.
Depois de ter chorado o suficiente, Lady Talvace afastou-se de Harry e observou-o com um olhar crítico. As lágrimas não a haviam desfigurado. Encantada, soltou exclamações de prazer: tão garboso e tão bonito. Coisas que Harry punha em dúvida, pois eram por certo os olhos dela que lhe atribuíam tais atributos. E, depois de ele lhe haver contado tudo quanto acontecera depois da sua fuga - excepto o que se referia a Gilleis, que preferiu guardar no segredo do seu coração - a mãe louvou, com igual entusiasmo, as suas proezas e aventuras, voltou a beijá-lo e começou a falar de si própria. Estava bonita? Aos olhos de Harry, parecia uma rapariga e foi isso que ele lhe respondeu. Talvez estivesse um pouco mais forte, um pouco mais pálida, a pele branca talvez estivesse ligeiramente menos firme, com algumas rugas aos cantos dos olhos, mas os seus cabelos haviam conservado o brilho e o sorriso nada perdera do seu encanto. O jovem cavaleiro de Gloucester não precisaria de muita persuasão para aceitar o casamento.
Sentaram-se lado a lado, junto à janela e ela corou, ao falar do casamento acordado. Estava já a preparar o guarda-roupa para a ocasião. Levantou-se de um salto e deu uma volta, diante de Harry, para que ele admirasse o vestido novo.
- Tenho uma açafata maravilhosa, Harry. Sabe mais de tecidos do que todas as criadas que já tive. Lembras-te da Hawis, que costumava tecer para mim, aquela que queria casar com um homem livre de Hunyate? A ingrata fugiu com ele e deixou-me com um vestido por acabar.
- Sabeis o que foi feito deles? - perguntou Harry, numa voz inocente.
- Desde esse dia que não sei nada. Devem ter saído do condado. Durante anos, não consegui encontrar uma rapariga que soubesse do ofício mas, agora, descobri um verdadeiro tesouro. Sabe cortar maravilhosamente... vê bem a forma desta manga. O pai dela negociava em tecidos e ela sabe escolhê-los. Está a fazer-me uma capa verde.
Lady Talvace mostrou-lhe vários cortes de tecido e, depois, puxou-o para si e, passando-lhe os braços à volta do pescoço, perguntou:
- Precisas mesmo de voltar a partir?
- Preciso sim, mãe. Preciso de voltar para o meu trabalho. Mas não estarei muito longe de vós. Se precisardes de mim, mandai-me chamar.
- Pelo menos, dorme cá esta noite. Até Parfois é uma longa caminhada e seria uma loucura cavalgar por essas estradas de noite.
- Fico de bom grado, minha mãe. Posso dormir no meu antigo quarto, na torre? Lembrais-vos da última noite em que fostes lá ver-me? Eu estava lá fechado. Fostes confortar-me e eu já sabia que ia deixar-vos. Pedi-vos que não pensásseis mal de mim.
- Nunca pensei mal de ti, meu querido Hal - respondeu ela, beijando-o.
Na verdade, nunca pensara mal de ninguém ou, mesmo que pensasse, nunca seria por mais de meia hora.
- Espera aqui por mim, Harry. Vou ordenar que preparem a tua cama e dar instruções para o jantar. Não me demoro.
Uma vez sozinho, Harry pegou nos cortes de tecido e levou-os até à janela, para admirar melhor as cores. A ansiedade evaporara-se. Já não havia mais provas a enfrentar, já não era preciso imaginar dores ou alegrias e o alívio deixara-o exausto. Ficou a olhar lá para fora, para o terreiro, sem pensar em nada, demasiado contente e demasiado cansado para ser capaz de enxergar o que se estendia diante dos olhos. Precisava de obter de Ebrard a liberdade plena de Adam e de toda a sua família - e iria fazê-lo. Mas isso podia esperar até depois da ceia e, até lá, Ebrard iria sentir-se inquieto quanto à herança, esperando um ataque que nunca surgiria. De momento, sentia apenas um enorme langor, simultaneamente agradável e decepcionante.
Ouviu a porta abrir-se mas só reagiu quando se apercebeu de que, nos passos que se aproximavam, havia uma leveza que não lhe era familiar, e de que o som sussurrante da saia era diferente do da mãe. Quando virou a cabeça, a rapariga estava a fechar a porta, de costas para ele. Segurava, sobre o braço e o ombro, muito bem dobradas, as pregas da capa verde, cujo capuz oscilava suavemente contra a sua cintura, uma cintura tão fina que cabia entre duas mãos. Devia ser a tal açafata maravilhosa. Harry saiu do seu torpor para admirar o movimento elegante da mão e do braço, envolto numa manga vermelha cingida, e as tranças pretas, presas no alto da cabeça por uma fita dourada. Mas só soube como era bonito o tesouro da sua mãe quando a rapariga atravessou o quarto para colocar a sua obra em cima da mesa e se apercebeu, pela primeira vez, de que não estava sozinha.
Da sua boca não saiu qualquer som mas parou e lançou a cabeça para trás, com o movimento esquivo de um animal selvagem que se furta à carícia de uma mão. Abriu muito os grandes olhos negros, alegres e atrevidos, e as faces brancas enrubesceram subitamente. A boca, que fazia lembrar um botão de rosa, abriu-se numa exclamação de enorme felicidade:
- Harry!
E o grito transformou-se numa gargalhada de alegria. Harry saltou do vão da janela, a tremer.
- Gilleis! - exclamou, num grito de felicidade. E tomou-a nos braços.
- Como é possível vir encontrar-te aqui? - perguntou Harry, quando recuperou o fôlego, de tantos beijos, e sem a soltar dos seus braços ávidos.
A pouco e pouco, as marcas pálidas dos seus lábios nas faces, no queixo, na garganta de Gilleis, tingiam-se de rosa. Com o rosto encostado ao ombro dele, Gilleis conservava os olhos fechados e sorria: era um sorriso de felicidade triunfante. Quando recuperou a respiração, riu alto.
- Procurei-te em Londres e fiquei a saber da morte do teu pai. Lamento, do fundo do coração, nunca haver podido manifestar-lhe a minha gratidão. Disseram-me que entraras ao serviço de uma senhora nobre, fora da cidade, mas não souberam dizer-me onde. Ao longo de todo o caminho, fui perguntando por ti, em vão. E, agora, venho encontrar-te aqui!
- Não te disseram que o meu tio queria casar-me com um homem escolhido por ele. Aliás, a pobre criatura não era o único pretendente. Foi por isso que tomei todo o cuidado para ninguém saber o meu destino, nem mesmo o meu primo, que é uma alma inofensiva. Se houvesse deixado uma mensagem para ti, qualquer outro poderia aproveitar-se dela. Mas sabia que acabarias por me encontrar.
- E como foi que conheceste a minha mãe?
- Foi muito fácil. Falaste-me muito dela. Assim, fiquei a saber que ela gostava muito de vestidos e que havia perdido a sua tecelã privada. No ano seguinte, convenci o meu pai a desviar-se um pouco do seu caminho, com os tecidos flamengos que levava para Norte, e a parar em Sleapford. A tua mãe comprou-nos alguns brocados e veludos. Depois disso, passámos a vir sempre aqui e, ao cabo de uns anos, comecei a mostrar-lhe a melhor maneira de cortar e combinar os tecidos. Depois, ficava com ela uma ou duas semanas, para lhe fazer vestidos, enquanto o meu pai tratava dos seus negócios em Shrewsbury. Por fim, chegou o dia em que a tua mãe disse que não podia passar sem mim e me suplicou que ficasse ao seu serviço. Isso era impossível, porque nunca abandonaria o meu pai.
- Não percebo... porque fizeste tudo isso? Com que fim?
- Para saber novas tuas, meu tolo - respondeu Gilleis, puxando para si a cara de Harry e beijando-lhe o canto dos lábios. - E não precisas de tentar arrancar-me estas confissões, pois estou disposta a gritá-las aos quatro ventos.
- E eu nem sequer te escrevi! Se eu soubesse, se ao menos soubesse...
- Isso não me surpreendeu. Eu sabia que eras um malvado sem sentimentos e que não tinhas olhos para outra coisa que não fosse as tuas preciosas pedras. Mas também sabia que acabarias por vir aqui. Por isso, quando o meu pai morreu e quis escapar aos meus seguidores... e deixai que vos diga, Master Harry Talvace, que havia melhores partidos do que vós, entre os meus pretendentes... mas como sou uma tola e só gostava de ti, vim buscar refúgio junto da tua mãe, que me acolheu muito bem, e aqui estou desde então. Demoraste muito tempo a lembrares-te de que tens uma mãe!
- Vivi em França até ao Verão passado. E, desde que regressei, mantive-me afastado porque... ah, porque me faltava coragem. Se soubesse o que estava a perder, há meses que teria aparecido. Mas como podia eu adivinhar? Como poderia eu sonhar que estavas precisamente aqui?
- Precisamente aqui! - troçou Gilleis. - Onde mais poderia estar? Este era o único lugar onde sabia que, mais cedo ou mais tarde, voltaria a encontrar-te. Sabia que, um dia, regressarias a Inglaterra e aparecerias por cá, para ver a tua mãe. Também sabia que não virias para ficar, para voltar a viver nesta casa. Mas virias! Como não podia ir ter contigo, deixei-me ficar aqui. Era o sítio onde acabarias por me encontrar.
- E se estivesses enganada? - perguntou Harry, apertando-a mais contra si, tomado de um medo irracional. - Se eu não viesse nunca?
- Se me houvesse enganado a teu respeito, ninguém poderia ajudar-me. Passar o resto da vida aqui ou noutro lugar seria o mesmo. Mas não me enganei.
- Tu amas-me! - disse Harry, em voz rouca, mais maravilhado que exultante.
- Desde sempre. Desde o dia em que toquei na tua cara, quando meti a mão entre os fardos de tecido, à procura da minha bola. - Voltou a tocar-lhe no rosto, ao de leve, e sentiu-o estremecer. - Lembras-te? Não podias falar, porque eles estavam muito perto de nós. Pegaste na minha mão e beijaste-a. Foi então que comecei a amar-te. Eras cheio de truques desses - acrescentou, algo ressentida. - Um dia em que estava zangada contigo por haveres rido de mim, fizeste a mesma coisa. Sabias muito bem como havias de levar-me a fazer o que querias mas nunca me deste nada em troca. Mesmo quando fizeste o meu retrato, estiveste sempre de tão mau humor que eu até tinha medo de pestanejar.
- Não te esqueceste de nada? - perguntou Harry, horrorizado.
- De nada que seja mau. Daquilo que tinhas de bom, esqueci-me. Talvez não houvesse muito para lembrar.
- E, apesar disso, amas-me - observou Harry, com uma expressão de triunfo.
- Ah, eu sou ousada e resoluta mas nunca disse que era sensata.
- Se resmungares muito - ameaçou ele - quando estivermos casados, bato-te.
- Quem te disse que íamos casar? Não ouviste dizer que há uma interdição em Inglaterra? Não há casamentos nem promessa de casamento... estamos a dois passos do reino dos céus.
- O capelão de Isambard casar-nos-á, em Parfois. Afirma que o seu senhor não é abrangido pela interdição, porque estava fora do país, em defesa da Cruz, quando esta foi decretada. Mas, se não fosse a cruzada, haveria de arranjar outra razão para Parfois ser poupado. O Papa está longe e pode ameaçar a sua alma mas Isambard está por perto e é sobretudo o corpo do capelão que se encontra ameaçado.
- Seja como for, não me espantaria que me batesses - disse Gilleis, enrolando nos dedos os caracóis curtos da nuca de Harry. - Uma vez, na noite em que me apanhaste a espreitar para a sala onde estavas a tocar cítara, quase me bateste. Mandaste-me para a cama e eu...
- Recuso-me a ouvir mais! - protestou Harry, pegando-lhe ao colo e levando-a para o vão da janela.
Gilleis pouco crescera, dava-lhe apenas pelo queixo, e era leve como uma pena. E, agora, opunha-lhe menos resistência do que outrora. Não obstante, não abdicou de recordar a Harry o episódio.
- Daquela vez, também quase me deixaste cair.
Harry sentou-se no banco do vão da janela e instalou-a sobre os joelhos.
- Agora, sou eu quem vai começar a lembrar-se de algumas coisas. Eu peguei-te assim, ao colo, e tu choramingaste e insultaste-me - disse Harry, apertando-a contra o coração, rindo. A única linguagem do amor parecia ser o riso. - Não trazias nada vestido por baixo do manto. E tinhas os cabelos soltos - acrescentou, desfazendo os nós da fita que lhe prendia os cabelos pretos e sedosos, que caíram sobre os ombros de Gilleis e sobre o braço dele. - Assim está melhor! E, tanto quanto me lembro, meu amor, foste tu que me bateste e não eu a ti. Deste-me murros, como uma pequena fúria. Aliás, não era a primeira vez!
- E, apesar disso, amas-me! - exclamou Gilleis, exultante.
- Eu ainda não disse tal!
- É demasiado tarde para recuares. Eu bem vi a tua cara, quando me reconheceste. Pouco faltou para gritares de alegria ou começares a chorar no meu ombro.
- Ainda posso fazer isso - disse Harry, poisando os lábios no decote do vestido dela, entre os seios pequenos, redondos e firmes. - Amo-te muito, Gilleis. Quando me tornei homem, tive discernimento para me aperceber disso. Oh, Gilleis, casa comigo! Lorde Isambard está na Irlanda, com o rei, e vai ficar por lá um mês ou mais mas, quando voltar, falar-lhe-ei do nosso casamento. Estou certo de que nos dará aposentos no castelo e poderemos casar-nos na capela. Ah, meu amor, agora que te encontrei, não sei como conseguirei partir sem ti, amanhã. Mas é mister que me ocupe dos preparativos para te receber em Parfois e preciso continuar o meu trabalho. O melhor é ficares aqui, com a minha mãe, até estar tudo pronto para te receber.
- Posso esperar - respondeu Gilleis. - Se esperei até agora, sem me queixar, também posso esperar mais umas semanas.
- Não vais desaparecer, mal eu volte as costas?
- E tu... não irás esquecer-te de me vir buscar?
Harry mergulhou o rosto nos cabelos dela e, através daquela cortina sedosa, beijou-lhe os olhos, as faces, o queixo, o pescoço macio e redondo, a boca sequiosa. Com os lábios ainda comprimidos contra a covinha delicada da garganta dela, recomeçou a tremer de riso e riu, riu, sem conseguir parar. Ela segurou-lhe o rosto entre as mãos e abanou-o, para o fazer recuperar a seriedade.
- Oh, Gilleis, vou ouvir uma terrível reprimenda! O que dirá a minha mãe, quando souber que vou levar comigo o tesouro que lhe faz os vestidos?
Harry partiu para Parfois a cantar, com o ombro ainda húmido das lágrimas da mãe e levando ainda nos lábios o sabor do beijo de Gilleis. Ebrard acompanhou-o, a cavalo, até aos limites do domínio. O alívio por haver recebido de Harry o reconhecimento dos seus plenos direitos de propriedade sobre Sleapford tornou-o tão expansivo que, à despedida, beijou e abraçou o irmão com mais afecto do que alguma vez lhe demonstrara desde a infância. Nesta sua segunda partida, o filho pródigo levava consigo a bênção de toda a gente, incluindo a do escrivão de rosto infantil, cujo ciúme não se atenuara, enquanto o intruso estivera em Sleapford.
Na sacola da sela de Harry, seguia um pergaminho, redigido por esse mesmo escrivão e assinado por Ebrard, atestando que William Boteler, a sua esposa, Alison, e todos os seus descendentes eram a partir de então seres humanos livres, isentados das obrigações dos servos, e que todos os serviços em troca dos quais o dito William Boteler residira no seu sobrado e explorara a sua jeira de campo eram comutados numa renda anual de cinco xelins.
Adam estava em cima do andaime, a ver o mestre marceneiro dar as suas ordens para o assentamento dos cimbres do arco de vão profundo do portal oeste. Harry subiu até ao ponto onde Adam se encontrava, aproximou-se sem ser visto e, estendendo o braço por cima do ombro dele, colocou-lhe o pergaminho diante dos olhos. Adam sorriu-lhe com uma expressão de espanto, uma mistura de boas-vindas e de interrogação, e leu o documento por duas vezes, até apreender o seu sentido. Engoliu em seco e ficou sem fala, de rosto franzido e lábios trementes. Harry envolveu-o nos braços e abraçou-o efusivamente.
- Senti vontade de ir ter com eles e de lhes dizer mas não o fiz. És tu quem deve fazê-lo, hoje mesmo. Gostava de voltar lá contigo mas, neste momento, não podemos sair daqui os dois ao mesmo tempo. Podes dizer-lhes que eu irei em breve e apresenta-lhes os meus respeitos e o meu afecto. Espero que isto lhes sirva de consolo por todos os anos em que estiveram privados da tua companhia.
Adam, cujo ser transpirava alegria, Adam, que nunca chorara nem mesmo quando era muito pequeno, tentou falar mas não foi capaz. As suas mãos tremiam, sobre o precioso pergaminho. Encostou a cabeça no ombro de Harry e, por alguns instantes, chorou lágrimas ardentes e sentidas.
- Não queria abalar-te desta maneira! - disse Harry, demasiado excitado e comovido para se sentir desconcertado por estar a desempenhar aquele papel tão inusitado. - Correu tudo melhor do que eu podia sonhar. Foi muito fácil obter este pergaminho e juro pela minha alma que a minha alegria é tão grande como a tua. Imagina só como vai ser chegares a casa e dares isto ao teu pai! Agora, vai mudar de roupa e põe-te a caminho, para aproveitares o resto do dia. Está tudo bem em tua casa. Vi os dois rapazes, ouvi a voz da tua mãe, dentro de casa, e perguntei pelo teu pai, em minha casa. Está vivo e de boa saúde. Por isso, não tens de te preocupar. O Ranald está mais alto do que tu e o Dickon pouco menos. E, para dizer a verdade, Adam, a minha família não sentiu muito a minha falta. Não lhes causei grande mal e, se eles me causaram mal a mim, isso já passou. Estou mais do que contente por me haveres obrigado a ir. O único medo de Ebrard era que eu reclamasse alguns direitos sobre uma parte da castelania. A minha mãe está a pensar num segundo casamento e sente-se alegre como uma andorinha, comigo ou sem mim. Mas a verdade é que, agora, tem mais motivos do que alguma vez teve para me detestar, pois vou roubar-lhe a açafata.
Adam ergueu a cabeça e limpou à pressa os olhos à manga. O seu rosto estava estranhamente deformado por uma mistura de riso, lágrimas e espanto.
- Pelo amor de Deus, Harry! Ou és tu que estás doido ou sou eu que estou demasiado perturbado para perceber uma palavra do que dizes. A açafata da tua mãe? Para que queres tu uma açafata?
- Ah, mas tu não a viste, Adam! - exclamou Harry, com os olhos soltando faíscas verdes e azuis, sob o sol, e sacudindo alegremente o amigo pelos ombros. - Não é uma açafata qualquer. Chama-se Gilleis Otley. E vou casar com ela.
Em finais de Agosto, Isambard regressou a Parfois, exuberante de energia e boa disposição, devido à avançada vitoriosa do rei na Irlanda e no Sul de Gales, onde pusera os inimigos em debandada. Melhor ainda, alguns grãos de suspeita acerca da lealdade de Llewellyn haviam germinado no espírito do rei João e três meses de cuidados assíduos haviam feito crescer a planta, agora prestes a dar flor. Era improvável que a acusação alguma vez viesse a ser provada mas, na verdade, também era tido por improvável que a acusação alguma vez viesse a ser formulada. Era no segredo da sua mente que João acusava e julgava, em silêncio e sem apelo. Da sua justiça, o mundo veria apenas a execução da sentença. Agia de forma tortuosa, mesmo para com aqueles que lhe eram mais íntimos, concedendo a sua confiança a um apenas para contrabalançar as migalhas de confiança que fora obrigado a depositar no outro. Mas, se havia ainda um homem em quem o rei confiasse, esse homem chamava-se Isambard e, durante a investida, de Fishguard a Bristol, pelo País de Gales - uma demonstração de força destinada a reduzir os nativos a uma submissão total - esse mesmo Isambard não se poupara a esforços para lhe instilar no espírito a ideia de um ajuste de contas definitivo com o príncipe de Gwynedd.
A incursão que o conde de Chester efectuara nos territórios deste último, aprovada mas não abertamente ordenada pelo rei durante a sua campanha da Irlanda, fora útil para encorajar muitos dos inimigos menores de Llewellyn entre os próprios príncipes galeses. O golpe mais rude e mais simples que o rei João podia desferir contra o seu inimigo era libertar Gwenwynwyn e permitir que este se reinstalasse na parte Sul do seu principado de Powis, pois o espírito impetuoso de Gwenwynwyn não lhe permitiria descansar enquanto não reconquistasse a Llewellyn a metade norte. Se fosse libertado no Outono, Gwenwynwyn assediaria Gwynedd pelo Sul e, na Primavera seguinte, estaria preparado o cenário para uma expedição real a ocidente, na região de Conway, o que obrigaria o falcão a sair dos despenhadeiros, para lá de Snowdown.
Assim, Isambard partiu para casa muito satisfeito com a obra que levara a cabo durante o Verão. Levava de volta para Parfois, sem haver sofrido quaisquer baixas, os seus sessenta cavaleiros e a sua companhia de arqueiros. Ali chegado, trocou a cota de malha por vestes de seda e sentou-se no salão principal, para ouvir queixas e fazer justiça. Ao espalhar-se a nova do seu regresso, os camponeses, que haviam derramado sangue e suor para lhe financiarem a expedição, encolheram-se ainda mais nas colinas, como coelhos nas tocas, à espera das próximas exacções que não tardariam a chegar.
- Casar!? - exclamou Isambard, quando Harry lhe deu a notícia.
- Juro pela minha fé que eu cuidava que havíeis casado com a prancha de desenho!
Os seus olhos passearam-se pelo arco, já concluído, do portal oeste, pelas grandes vigas que os carpinteiros estavam a preparar para a cobertura das naves laterais, e voltaram a fixar-se no rosto de Harry, com um brilho que denotava um prazer raramente visto neles.
- Vejo que o amor não prejudicou as vossas capacidades, apesar de haverdes saído a cavalo, mais ou menos de dez em dez dias, para visitar a vossa dama. Nunca vi um edifício tão grande crescer tão depressa. Trazei-a para Parfois, quando vos aprouver. Se ela estiver aqui, não perdereis tempo a ir vê-la. Benedetta tomará conta dela até ao dia da boda e, depois disso, tereis um quarto para ambos na Torre do Rei. - E colocando o braço sobre os ombros de Harry, acrescentou: - E sob que nome pretendeis casar-vos, Master Harry? Lestrange... ou Talvace?
A expressão de espanto de Harry era tão infantil que Isambard atirou a cabeça para trás e fez debandar os pássaros com as suas gargalhadas.
- Não olheis para mim desse modo, não sou nenhum mágico! Há quase um ano que estou ao corrente. Não vos lembrais de, no Outono passado, vos haver dito que Hugh de Lacy vos enviava saudações, quando escreveu a agradecer o vinho que lhe enviei de presente depois de ele se encontrar restabelecido? Com que nome cuidais que vos mencionou?
- É verdade! - disse Harry. - Nunca pensei nisso. Ele só me conhecia por um nome e nunca me ocorreu mencionar-lhe o outro. Mas porque nunca perguntastes nada?
- Porque haveria de perguntar? Se houvesse alguma coisa que quisésseis contar-me, havê-lo-íeis feito. O nome de um homem só a ele diz respeito... embora, pela minha parte, prefira os que têm apenas um e que seja o verdadeiro.
- Sou da mesma opinião, apesar de não haver ficado nada perturbado quando mudei o meu - concordou Harry. - O meu nome é Talvace e Talvace será daqui por diante.
Gilleis chegou a Parfois na segunda semana de Setembro e, dois dias depois, o casamento foi celebrado na capela da Torre da Rainha, pelo capelão de Isambard, um homem idoso, bem-humorado,
subtil e dócil, que já fora capelão do pai do senhor de Parfois.
Nessa noite, demasiado inebriados de felicidade para serem capazes de comer, beber ou falar, Harry e Gilleis sentaram-se na mesa principal, colocada sobre um estrado, no salão, entre Isambard e Benedetta. A esquerda de Isambard, resplandecente no mais sumptuoso dos vestidos que Gilleis confeccionara para ela, Lady Talvace saboreava as atenções do seu esfuziante vizinho. Sentado à direita de Benedetta, Ebrard envergava o seu melhor traje de veludo azul e bebia por dois. Espalhados pelo resto do salão, os habitantes de Parfois festejavam e conversavam. No meio de tanta gente, porém, havia quatro pessoas sozinhas.
Benedetta olhou para o lado e viu os três perfis sobrepostos uns aos outros, como três cabeças numa mesma moeda. O mais afastado dos três, Isambard, com o rosto tisnado avermelhado pelo vinho, manifestava uma exaltação mais profunda do que a que o vinho poderia alguma vez provocar-lhe, enquanto ia controlando as idas e vindas dos criados com olhares coruscantes e gestos eloquentes da cabeça e das mãos. Quando se ria, como agora, derramando sobre os outros o seu calor humano e a sua inteligência, era belo, de uma beleza capaz de atrair os pássaros pousados nas árvores. Mais com o sangue do que com o espírito, Benedetta percebia uma das razões para tamanha boa disposição. Agradava-lhe que um dos homens do seu séquito estivesse perdidamente apaixonado por uma mulher que não fosse ela. Ademais, havia o prazer que experimentava pelas suas intrigas sem tréguas contra o príncipe galês. Mas havia mais qualquer coisa: a satisfação de alguém que tomou uma decisão feliz, um júbilo esfuziante para o qual Benedetta não encontrava uma explicação satisfatória.
Contra a tez escura de Isambard, o perfil branco rosado da rapariga destacava-se, claro e luminoso como uma pérola. Uma criaturinha delicada e bela, com grandes olhos pretos que observavam tudo sem receio e, por trás deles, um espírito sagaz que julgava sem piedade, como é hábito das crianças. Quando a acolhi aqui e a beijei, recordou Benedetta, aqueles olhos trespassaram-me até ao coração e aquele espírito adivinhou, pelo menos em parte, a razão que me move. Sabia que ela era nova. Pensei que seria terna, doce e tímida. Mas ela é alegre, ousada e segura de si. Pensei que não estaria à altura de Harry e que, um dia, talvez ele viesse a procurar outra. Mas ela é sua igual, e minha, e não vai decepcioná-lo. Ela é a morte da esperança, se era esperança o que eu tinha e já não tenho.
E agora, Harry, que me resta?
Benedetta deteve-se mais demoradamente e com uma atenção mais apaixonada e maravilhada no terceiro rosto, o mais amado, tão próximo que, se voltasse a cabeça, poderia tocar com os lábios a sua face corada. Havia nos olhos de Harry uma luz, um brilho que ia mudando, ofuscante como o do topázio e da água-marinha. A enorme palidez da excitação sublinhava as suas feições enérgicas. Fizera um grande esforço para se apresentar bem, em honra da noiva. Ele, que não queria saber de agradar fosse a quem fosse, que não se ralava com as roupas velhas que envergava, estava muito bem vestido. Os espessos cabelos castanhos haviam sido cortados, as faces bem desenhadas e o queixo petulante, recentemente barbeados, estavam lisos como o marfim e, sobre a gola do seu pelote dourado, brilhava um colar de pedras castanhas. Talvace voltara a ser Talvace. Apesar da sua bela aparência, ao lado dele, Ebrard parecia um rústico.
Onde quer que se lhe toque, enquanto alguém precisar dele para se apoiar, ele manter-se-á firme, pensou Benedetta, inebriada pela ternura e pelo orgulho que, como se fossem fogo, lhe abrasavam o coração e consumiam até o terrível ciúme que lhe inspirava Gilleis. Como quer que o sondemos, responderá sempre com a verdade. Quem senão Harry poderia manter-se firme perante mim? Sem nunca se esconder por trás da frieza, sem nunca resolver as dificuldades com uma mentira piedosa ou cruel, sem nunca evitar a minha companhia, sem nunca me envergonhar com um cumprimento evasivo ou com uma carícia falsa, sem nunca escolher o caminho mais fácil, ou menos honesto, nos laços que nos uniam? Quem senão Harry me haveria procurado para me confessar o seu amor por outra e a sua intenção de casar com ela? No lugar dele, todos esses cavaleiros e guerreiros que se crêem heróis haveriam fugido de mim como da peste, enquanto ele, um mero artesão, escolheu a saída mais difícil. Veio ter comigo, não por cortesia ou por piedade. Veio ter comigo como alguém a quem o meu amor conferiu direitos, o direito a ser olhado nos olhos, o direito à verdade. Honrou-me mais com essa maneira de me rejeitar do que qualquer outro homem com a oferta da adoração do seu coração. E não me arrependo deste amor, felicito-me por ele. Dei o meu amor a quem o merecia e juro por Deus que nunca o renegarei.
Não perdi nada, cogitava Benedetta, enquanto ia ouvindo dis-traidamente os galanteios de Ebrard. Não perdi Harry, porque ele nunca foi meu. Não perdi a esperança de o conquistar um dia, porque essa esperança nunca existiu. Apenas, talvez, a ilusão de uma esperança. Se a personalidade dela fosse mais fraca, talvez ainda assim eu conservasse essa ilusão. Mas ela está à altura dele e fico feliz por assim ser, ainda que isso me despoje do último dos meus bens. Um ser tão nobre devia casar com outro igualmente nobre. Se houvesse escolhido uma esposa indigna dele, haver-se-ia rebaixado, a si próprio e a mim. Assim, a ilusão acabou e o meu sentimento de perda é tanto maior quanto mais eu o adoro e admiro, acima de tudo pela amizade e pelo respeito que mostrou por mim.
A partir de agora, não há nada a ganhar. Portanto, Benedetta, vamos ver se, afinal, vieste atrás dele para Inglaterra para receber ou para dar, pensou, sorrindo por cima do copo de vinho.
Sentada diante do espelho polido, na quietude do seu quarto de dormir, Benedetta penteava os longos cabelos. Na superfície luzente, os seus olhos apresentavam um brilho metálico e sombrio. Os movimentos das suas mãos sobre os caracóis ruivos eram lentos e lânguidos. Nunca se sentira tão exausta.
No quarto que havia sido preparado para eles, na Torre do Rei, os noivos repousavam enlaçados, entre a vigília e o sonho. A armadura impenetrável da felicidade que sentiam isolava-os do mundo, sobre o qual pairavam, a alturas que os demais não conseguiam alcançar. Não obstante, um pouco da sua alegria destilava-se no ar, impregnando a noite de uma sensibilidade doce e perturbadora, que transformava em angústia todos os desejos.
Envergando apenas o roupão de peles que usava no quarto, Isambard aproximou-se de Benedetta, pelas costas, e mergulhou as mãos nos cabelos dela. Benedetta ouviu a respiração dele acelerar-se e o longo suspiro de bem-estar que soltou, ao encostar o rosto ao pescoço dela. Lá no alto, na Torre do Rei, estaria também Harry a mergulhar os dedos nos cabelos pretos enquanto acariciava» com a palma da outra mão, os botões dos seios jovens e redondos ou o marfim da coxa de Gilleis? Uma mão inexperiente, mas o talento é um dom da natureza e a arte só serve para o aperfeiçoar. Desejo-lhes todo o bem do mundo, disse silenciosamente Benedetta, do fundo do coração. Como poderia eu querer-lhe mal pelo prazer que ela lhe dá, eu que, se pudesse, lhe daria o mundo? A felicidade deles é a minha alegria e também o meu desgosto. Que a vida lhe conceda tudo quanto tem para oferecer a um homem, orou corajosamente, enquanto devolvia o sorriso ao rosto sombrio e sorridente que a espiava por cima do ombro.
- Benedetta! - sussurrou Isambard, comprimindo os lábios contra a face dela, sorrindo enquanto a beijava.
Ela ergueu a mão e mergulhou-a nos cabelos dele.
- Meu senhor?
- Este casamento é uma coisa estranha. Quantas vezes vi os meus amigos tomarem mulher, sem nunca sentir por eles outra coisa que não fosse pena, porque eram obrigados a submeter-se ao tédio de ir para a cama com mulheres desagradáveis, só para juntarem algumas terras ou um novo feudo ao que já possuíam? Só um homem sem terra pode permitir-se ir para o casamento como este rapaz, sem ganhar nada com isso. Onde irá parar a nossa moralidade, quando os jovens se casam por algo tão imaterial como o amor?
- E o que irá ser das mulheres como eu? - acrescentou Benedetta. - As pessoas têm de ter espírito prático, quando se trata de casar. Dizem que Sir Ebrard se tem dedicado a longas e prudentes negociações para casar com a filha de um vizinho. Como o filho de Le Tourneur morreu, ela trará três castelos ao marido. Tem treze anos e a pele marcada pela varíola, sem o que, com um dote tão significativo, estaria já prometida. Segundo parece, Ebrard já esteve noivo de outra mas a rapariga morreu antes de atingir a idade de casar. Aquele Talvace não se deixa apanhar por uns olhos negros e uma boca em forma de botão de rosa. Nenhuma família pode dar-se ao luxo de ter mais do que um tolo como o vosso mestre Harry.
- Nenhuma família pode ter esperança de ter mais do que um como ele - replicou Isambard, sorrindo. - Estou contente por vê-lo feliz. Segundo parece, ele tinha qualquer coisa para me ensinar acerca da complicada questão que é o amor.
Segurou-a pelos ombros e puxou-a para si. Os olhares de ambos cruzaram-se no espelho.
- Vejo que me enganei a mim próprio e a vós, Benedetta, ao negar o nome de casamento à nossa união, a que não falta harmonia, segurança e continuidade. Não quero nenhuma outra mulher senão vós, nem agora nem nunca. Desejo do fundo do coração que caseis comigo.
A expressão do rosto dela não se alterou mas pareceu a Isambard que o brilho dos seus olhos fora toldado por um véu. Imóvel sob as mãos dele, Benedetta fitava-o através desse véu e ficou calada por tanto tempo que ele se sentiu gelar.
- O que foi? Porque não falais? Estais zangada por eu só agora haver chegado a esta conclusão, tão simples, que há muito deveria ter-me ocorrido? Sabeis que não sou um homem simples. Falta-me a espontaneidade daqueles jovens para me deixar levar pela simplicidade. Que significado poderia o casamento ter para mim, quando, no meu espírito, se limitava a um mero negócio e à cobiça de uns tantos domínios improdutivos? Esta é uma nova versão do paraíso dos inocentes, onde o beijo vem do coração. Não vos honraria nem faria crédito a mim próprio, se vos houvesse pedido em casamento segundo o costume habitual. Mas aceitai agora o meu pedido e talvez possamos ser como aquelas duas crianças.
Isambard viu lágrimas nos olhos dela, as primeiras que neles via, e não compreendeu que ela chorava por ele. Lançou-se de joelhos aos seus pés e envolveu-a com força nos braços.
- Causei-vos dano? O que foi? Dizei-me, minha muito querida, que fiz eu?
- Nada! - respondeu ela. - Honrastes-me! Aumentastes ainda mais a minha dívida para convosco! Deleitastes-me a alma! Só me fizestes bem. Mas eu não sou nem posso ser uma criança, a menos que o tempo voltasse para trás. E não posso nem quero casar convosco. Nem convosco nem com ninguém.
A cólera fez reacender o fogo nos olhos de Isambard, que se tornaram mais escuros devido ao ultraje.
- Porque não? Que significa isto? Aceitastes-me... então porque não aceitar o meu nome e a minha fortuna? É por causa desse outro homem? Ainda estais presa a ele? Alguma vez ele vos testemunhou um amor tão forte como o meu?
Benedetta rodeou-lhe o pescoço com as mãos e ergueu-lhe o rosto, à altura do seu, fitando-o olhos nos olhos.
- Isto vos juro e terá de bastar-vos: nunca houve um momento em que me sentisse tão próxima de vós em espírito como agora, nem um momento em que me enternecêsseis tanto. Repito a promessa que vos fiz e juro, pela honra que o mundo me nega mas que vós me reconheceis, que a respeitarei. Se alguma vez casasse com alguém seria convosco mas há dentro de mim algo que me impede de casar seja com quem for. Não estais contente comigo tal como sou? Não vos tenho dado o meu corpo, o meu conselho, os poucos talentos que possuo e que podem servir-vos, com toda a honestidade? Deixai as coisas como estão! Deixai-me estar como estou!
- Há em vós um recanto onde não consigo chegar - replicou Isambard, com violência, afastando o rosto das mãos dela e erguendo-se de um salto, o que a obrigou a levantar-se. - Tocais-me docemente com as vossas mãos, abris-me o vosso peito» dais-me o vosso corpo, mas não me permitis tocar o vosso coração.
- Não precisais de lá chegar. Há muito tempo que vos dei um pedaço do meu coração. Não tenho mais para vos dar do que já vos dei. Contentai-vos com isso! Se dispusésseis de meios para penetrar no meu coração, descobrir-vos-íeis nele.
- Então, dai-me aquilo que vos peço! Casai comigo! Arrastado por um desejo súbito, desesperado, cobriu-a de beijos,
da testa aos seios, beijou-lhe os olhos, beijou-a nos lábios, tão demoradamente que ela teve de se debater para conseguir respirar.
Quando ele afastou a boca da dela, os lábios pálidos de Benedetta recuperaram lentamente a sua cor vermelho-sangue. Abriram-se apenas para repetir, com uma veemência igual à dele e uma resolução tão inflexível como a sua;
- Não.
“Minha senhora e muito venerada dama”, escrevia Walter Langholme, numa missiva trazida de Aber por um mensageiro, a meio da época das colheitas. «Havendo esta campanha chegado a um feliz termo, encarrega-me o meu senhor de vos escrever, pois os seus deveres junto da pessoa de Sua Majestade o Rei não lhe dão tréguas, fazendo dela um relato completo, e de vos transmitir por esta as suas mais sinceras saudações e os seus respeitos. O meu senhor encontra-se de boa saúde, não havendo sofrido qualquer ferimento em combate, no qual aliás as nossas perdas hão sido ligeiras, embora algumas companhias pior capitaneadas do que a nossa hajam sido vítimas dos talentos dos arqueiros galeses.
«Conforme sabeis, reunimo-nos em Chester, em começos de Maio, havendo Sua Majestade o Rei convocado para ali todos os Galeses, menos o príncipe de Gwynedd, contra quem a nossa campanha era dirigida. Os Galeses obedeceram à sua convocatória quase como um só homem, mesmo aqueles que, de entre eles, haviam até agora apoiado o príncipe Llewellyn. Mas se foi por respeito pelo rei nosso senhor ou por inveja de Llewellyn é coisa que não sei, pois na verdade muitos são os que o invejam e se regozijariam com a sua queda. Sem embargo, nesta primeira convocação da hoste, Sua Majestade o Rei cometeu a insensatez de não prestar atenção ao conselho do meu senhor, e avançou sem demora sobre Tegaingl, apesar de haver sido avisado de que os nossos mantimentos eram insuficientes para uma campanha tão precipitada. Não obstante, avançámos e, conforme é seu costume, os Galeses retiraram diante de nós, preferindo assediar-nos pelos flancos a uma batalha campal, e assim começaram a recuar, levando consigo para as montanhas todos os seus bens, gado e cavalos. Nós chegámos ao Conway em Degannway, havendo já esgotado a maior parte das nossas reservas por razões da época do ano, pois naqueles campos não se encontrava o que comer nem animais que caçar, que nos permitissem poupar o que levávamos. Tornou-se assim manifesto que não poderíamos sobreviver a uma campanha prolongada, pois as magras provisões que ainda se conseguiam comprar eram pagas em ouro e não em prata, e ir por diante seria enfrentar a fome. Por assim ser, o rei nosso senhor ordenou a retirada para Inglaterra e, durante a marcha, fomos comendo os poucos cavalos que podíamos dispensar e, quando estes se acabaram, passámos fome.
«Tudo isto não levou Sua Majestade o Rei a desistir dos seus intentos contra o Príncipe de Gwynedd, antes tomou novas disposições para melhor se preparar e fomos convocados para nos reunirmos pela segunda vez, em Oswestry, na primeira semana de Julho. E assim, assegurados os abastecimentos para as nossas colunas, avançámos sobre Gwynedd, cavalgando a toda a brida em direcção à foz do Conway, e obrigando o príncipe Llewellyn a correr diante de nós para o outro lado desse rio e para as montanhas de Arllechwedd. Os Galeses combateram como sempre combatem os Galeses, em escaramuças rápidas e com arqueiros armados de arcos leves, e o grosso das tropas dissolvendo-se diante de nós, o que nos impedia de lutar corpo a corpo e lhes evitava a eles sofrer pesadas baixas. Mas, a despeito destes estratagemas, não puderam deter o nosso avanço e, assim, fizemos uma entrada triunfal na corte do príncipe Llewellyn, em Aber, e aqui tomámos posse da cidade, havendo o príncipe retirado para as montanhas.
«Agora, o príncipe Llewellyn já regressou com a sua dama e são muitos os debates acerca da paz. O rei nosso senhor tem afeição pela filha e não duvido que ela obtenha para o esposo as melhores condições que possa haver. O meu senhor bem gostaria de o ver despojado de tudo quanto possui mas isso nunca poderá acontecer enquanto a princesa Joana for viva, uma vez que a ruína dele seria também a dela. O príncipe não se comporta de forma alguma como um homem derrotado, antes com modos muito orgulhosos, ainda que se diga que está muito amargurado com esta invasão do seu reino e eu mesmo hei visto quem é que ele culpa por isso. Na presença do rei, o príncipe voltou-se para o meu senhor Isambard e disse: "Eu sei, senhor, que é a vós que devo agradecer haver sido caluniado junto de Sua Majestade. Haveis sido vós quem o levou a acreditar que eu conspirava contra ele com de Breos. E, hoje, aqui estou eu, como suplicante, na minha própria corte e sem poder fazer-vos prestar contas por isso. Mas, um dia, exigir-vos-ei reparação. Até lá, guardai isto por mim." E, com estas palavras, descalçou a luva e lançou-a aos pés do meu senhor. Perante isto, o meu senhor havê-la-ia recolhido e as espadas haveriam saído das bainhas, pois, como sabeis, o seu temperamento não lhe permite conter-se, mesmo na presença do rei. Todavia, alguns nobres seguraram um e outro, o rei proibiu que o desafio fosse aceite e ordenou-lhes que, naquele momento e para sempre, renunciassem à querela. Não obstante, nenhum dos dois prometeu obediência, embora se hajam separado sem mais palavras. Assim, o desafio mantém-se e a grande tarefa do rei será evitar que os dois voltem a encontrar-se, enquanto o exército aqui permanecer. Pela minha parte, e conquanto esteja apenas a falar por mim, acredito no príncipe quando ele jura não haver feito nenhum trato com de Breos, que se encontra arruinado e em fuga, embora possa haver sido abordado com esse fito e talvez até possa haver-se sentido tentado.
«Não se sabe ainda quais serão os termos da paz, nem quando partiremos daqui, mas é certo que Sua Majestade o Rei está muito agradado com o seu feito e afirma que todo o País de Gales pode agora ser tido como submetido, o que lhe deixa o campo livre para o projecto que lhe é mais caro, ou seja, para a reconquista da Normandia.
«Permiti-me, veneranda senhora, que junte as minhas saudações às saudações do meu senhor e os meus respeitos ao seus, e acreditai que rezo a todas as horas pela vossa saúde e pela vossa segurança.
«O vosso muito humilde e devotado servidor, Walter Langholme.
«Feito ao oitavo dia do mês de Agosto, no décimo terceiro ano do reinado de Sua Majestade e ano de Nosso Senhor de 1211, em Aber, Arllechwedd.»
«Escrito a toda a pressa, antes da partida do mensageiro. Senhora: são já sabidos os termos consentidos pelo Rei e devo dizer-vos que não são do agrado do meu senhor, que afirma darem tais termos ao príncipe de Gwynedd uma liberdade excessiva para empreender novos logros. Os quatro distritos do centro do país ficam submetidos ao rei, que deixa o príncipe Llewellyn conservar as terras que ficam para lá do Conway. Gwynedd deverá pagar ao Rei um tributo ruinoso também em gado, cavalos, cães e falcões e enviar reféns escolhidos entre os filhos da nobreza. Ouvi dizer que, entre estes, deverá estar o filho natural do príncipe Llewellyn, um belo rapaz de onze ou doze anos, muito amado pelos Galeses porque a sua mãe era uma dama galesa de boas famílias, filha de um lorde de Rhos. Mas não é ainda certo que o jovem Griffith seja expressamente nomeado como refém da fidelidade do seu pai. Acompanhá-lo-ão uns trinta outros filhos da nobreza.
«O meu senhor está, todavia, muito encolerizado por aquilo que diz ser uma vitória desperdiçada e declarou abertamente que será necessário recomeçar tudo de novo, no próximo ano. Espero que o seu julgamento venha a revelar-se demasiado prudente. Saúdo-vos com todo o respeito e faço votos de que estejais de boa saúde, quando regressarmos.»
- Pelo menos, há uma coisa a correr bem e um homem que sabe do seu ofício - comentou Isambard. - Vai sendo coisa rara, nos tempos que correm. Contais ter toda a nave central coberta antes do Inverno?
- Sim, meu senhor. E, com vossa permissão, este ano gostaria de conservar todos os talhadores e assentadores. A construção da abóbada dar-lhes-á trabalho mais do que suficiente, pelo que não perderemos nada em pagar-lhes durante o Inverno e ganharemos alguns meses. E podeis crer que também ganharemos o seu empenho no trabalho, devido à segurança que lhes oferecemos. Nos tempos que correm, representa muito para um pedreiro ter trabalho assegurado por doze meses e isso fá-lo-á merecer bem a sua paga.
- Cuidai disso, Harry. Quanto a mim, tratais bem demais os vossos trabalhadores - replicou Isambard.
O tom era cortante, como se o mau humor o levasse a morder as palavras.
- Por minha fé, meu senhor, isso não é verdade. Muitos dos meus homens têm de sustentar uma família inteira com os poucos pence que ganham por dia. O emprego que lhes garantis alivia-os dessa preocupação. Não cuideis que isso só é importante para eles: assim, ficam com o espírito livre para poderem dedicar-se por inteiro ao trabalho. E ganhais também o respeito deles. Isso não conta?
- Lá voltais vós ao vosso cavalo de batalha. Haveis sido artesão desde tenra idade e isso deu-vos olhos de artesão. Mas reconheço-vos pelo menos o mérito de trabalhardes a meu gosto - disse Isambard, de olhos postos no arco duplo do portal e na janela recuada que o encimava, remetida para uma zona de sombra por oito fiadas curvas de pedra, delicadamente trabalhadas. - As gradações de cor, entre a madrugada e o crepúsculo, são inimagináveis. Quando a luz incide obliquamente sobre aqueles silhares de pedra, a tensão fá-los vibrar como as cordas de uma harpa. Às vezes, quando saio a cavalo muito cedo, eles cantam como notas musicais.
Isambard viu que Harry corava, viu o prazer brilhar-lhe os olhos. Sorrindo, acrescentou:
- Felicitar-vos é uma alegria, tal é o deleite que irradiais. Sois como uma criança que cumpriu os seus deveres melhor do que cuidava e recebe louvores, em vez das reprimendas que esperava.
- Não é isso - respondeu Harry, rindo. - São os termos do louvor. Vós estais contente com o vosso canteiro e eu estou contente com o meu patrono. Vinde ver o interior.
Harry seguiu à frente, passando pelo meio dos ornatos graciosos do portal. A medida que iam avançando, as colunas delicadas explodiam numa folhagem luxuriante, ao nível dos olhos de Isambard. Este deteve-se, face a face consigo mesmo, mais uma vez sobressaltado pela beleza e pela expressão indómita daquela imagem estilizada, pelos cabelos erguidos e pelas feições ardentes, pela calma mineral daqueles olhos, olhando fixamente por entre as folhas da árvore sagrada. Anjo, homem ou demónio, aquela criatura poderia ser qualquer dos três ou todos eles.
Do outro lado do portal, o rosto de Benedetta sustentava, sobre a massa erguida dos seus cabelos, o ábaco e o nascimento majestoso das aduelas. Parecia que Isambard ia passar por ela sem lhe lançar um olhar mas foi mais forte do que ele. Os seus pés hesitaram no limiar, voltou-se subitamente, com um movimento involuntário, e a sua mão estendeu-se para acariciar a curva esplêndida e regular da garganta de pedra. Os seus dedos fortes demoraram-se sobre ela, num gesto imbuído de uma ânsia e de um sofrimento tão intensos e involuntários, que Harry, abalado e distraído da sua contemplação, seguiu em frente e esperou por ele mais adiante, com a respiração suspensa. Os olhos de Isambard fitavam avidamente o rosto amado, sem encontrarem nele qualquer reconforto. Por fim, afastou-se, num movimento brusco, como se houvesse precisado de lutar para se libertar, e, sem uma palavra, entrou no recinto imponente e gracioso da igreja.
As naves laterais, ainda sem abóbadas» estavam protegidas por coberturas de madeira. A nave central encontrava-se ainda a descoberto mas os transeptos haviam sido cobertos e a base da torre erguia-se, na perpendicular, como que suspensa das nuvens. Os traçados das janelas das naves laterais e do clerestório recortavam-se contra o céu, entrelaçados pelas armações de ferro forjado, sobre as quais os vitrais pintados seriam um dia fixados.
- Por enquanto só se tem noção da forma e da proporção - observou Harry. - Mas, no fim deste Inverno, a abóbada já estará fechada ou, pelo menos, os arcos torais estarão colocados. Na próxima Primavera, vamos precisar de instalar um guindaste grande na torre. Pedimos o de Shrewsbury, que será transportado de barco. Para quê construir um, quando o deles não está a ser utilizado? Este ano, posso remediar-me com as duas gruas pequenas que tenho aqui. Richard Smith, o ferreiro, vai passar um Inverno a trabalhar no quente, a fazer hastes, grampos e cavilhas para as abóbadas. Suar para cima da forja será um prazer, enquanto o frio durar. É um bom homem e sabe do seu ofício. Não há melhor que ele. Mesmo que nunca haja feito nada de semelhante, só preciso de lhe mostrar o tipo de dispositivo que quero e ele fá-lo exactamente igual ao desenho. Estas linhas agradam-vos? É isso que conta. Linhas, formas, proporções são o que dá corpo à beleza. O resto não passa de vestes para as cobrir.
Isambard encontrava-se por baixo da janela oeste, admirando a bela forma do quadro de luz e ar. Ouvia o som dos martelos nas vigas superiores, as vozes dos assentadores de pedras que trabalhavam na base da torre e os gritos dos homens que içavam silhares com a grua manual. A obra, fervilhante de actividade, parecia habitada por um enxame de abelhas. Todavia, Isambard tinha a sensação de que a voz ardente do mestre da obra soava mais alto que todas as outras.
- Sois um homem feliz, Harry - disse, numa voz que deixava transparecer o pasmo e a inveja. - Gostais do que fazeis. Criais, e aquilo que criais permanece. As loucuras dos outros não podem demoli-lo, não tem de voltar a ser feito uma vez e outra, e para nada.
- Sei que sou afortunado.
- O mais feliz dos homens no vosso ofício - prosseguiu Isambard, voltando o rosto para a sombra e com a mão poisada no pilar que se encontrava entre os dois. - E também no amor, Harry?
- Também - respondeu Harry, em voz baixa.
- Ter tudo! - exclamou Isambard, num tom em que se misturavam o espanto e o desespero. - Ter tudo o que a vida tem para oferecer, mesmo o maior bem de todos! Com que direito pode um homem ter tanto? Onde está a justiça de Deus?
Estavam a começar a pisar terreno pouco firme e Harry daria tudo para voltar a uma base mais sólida mas isso não era possível.
- Penso, meu senhor, que fui abençoado mais pela graça divina do que pela justiça - disse lentamente. - E não pretendo haver sido recompensado de acordo com os meus méritos.
- Ah, Harry, peço-vos perdão! Sois a pessoa cuja felicidade me causa maior alegria. Todavia, não posso impedir-me de vos invejar e, mais cedo ou mais tarde, a inveja leva-nos a culpar o outro por não podermos partilhar a sua boa sorte. Mas julgo que haveis sido recompensado segundo os vossos méritos. É o que penso, com toda a sinceridade!
Isambard voltou-se bruscamente e, entre os dois, o ar vibrou com a paixão compulsiva da sua veemência, da sua angústia inexplicável.
- E todavia, Harry, como sabeis, como podeis ter a certeza...
O som de passos leves e apressados e o súbito aparecimento de uma sombra na entrada interromperam Isambard. Recortada diante da porta, encontrava-se Gilleis. A energia e a rapidez dos seus movimentos faziam lembrar um pássaro e, no brilho e na audácia do seu olhar, havia também algo do olhar indomável de um pássaro. Gilleis olhou rapidamente para cada um deles e, em seguida, avançou para o espaço iluminado e aberto da nave.
- Madonna Benedetta está aqui, com Langholme e o falcoeiro, meu senhor. Podereis juntar-vos a eles quando vos aprouver.
Gilleis dirigia-se a Isambard mas olhava para Harry. Quando estavam juntos, flutuava entre aqueles dois qualquer coisa que ultrapassava o entendimento. O rosto vivo dela parecia resplandecer com a imagem da expressão orgulhosa e perspicaz de Harry e os seus grandes olhos, que se abriam ainda mais ao fixar-se nele, reflectiam o brilho sempre diferente do mar. Sobre Harry descia uma tal doçura e um tal fulgor, que o seu ser parecia absorver a feminilidade de Gilleis, dando-lhe em troca uma parte da sua força. Isambard viu a boca dela, como um botão de rosa, tremer e entreabrir-se, tornando-se mais doce ao falar e parecendo beijar o marido através do espaço carregado de tensão. «Como podeis ter a certeza de que sois amado?». Fora o que estivera prestes a perguntar. Olhar para Gilleis dera-lhe a resposta.
- Vou de seguida - disse, encaminhando-se para a porta.
- íeis fazer-me uma pergunta - recordou Harry.
Se o seu espírito e os seus olhos não estivessem concentrados em Gilleis, haveria sem dúvida concluído que era melhor deixar cair o assunto.
- Ia mesmo? Não importa! Esqueci-me do que ia dizer. Benedetta, montada na égua ruana, esperava-o no limite do estaleiro, no local onde o carreiro atravessava o planalto coberto de erva. Langholme segurava o seu cavalo e o do seu senhor. Mais afastado, montado num cavalo cinzento e magro, John o Frecheiro observava-os, em silêncio. O falcoeiro partira adiante, com as aves, mas Benedetta tinha pousado no pulso o seu pequeno esmerilhão, encapuçado. Instalada na alta sela de amazona, Benedetta arvorava um sorriso caloroso mas cansado. Nos últimos tempos, o seu rosto emagrecera um pouco e tornara-se mais grave. O brilho risonho que ainda cintilava nas profundezas das suas pupilas cinzentas e cristalinas era sempre ligeiramente irónico mas, também, terno.
- Não queria interromper-vos, Ralf. Se precisais de conversar com Harry, eu espero.
- Não é preciso. Estou pronto - respondeu Isambard, de olhos postos no rosto dela, sem nele ver reflectida a própria imagem.
Agarrou nas rédeas que Langholme lhe estendia e, sem esperar que este o ajudasse, içou-se para a sela, num salto ágil e gracioso, e fez arrancar o cavalo com uma simples pressão dos joelhos, sem sequer pensar em utilizar as esporas. Com a coifa branca a brilhar ao sol, Benedetta colocou-se ao seu lado. A uma distância respeitosa seguia Langholme e, atrás deste, John o Frecheiro. O som surdo das ferraduras a descer o caminho relvado ficou a palpitar na rocha até deixar de se ouvir.
Pensativa, Gilleis seguiu-os com o olhar.
- Espanta-me ela haver escolhido para servidor um homem tão carrancudo. Anda sempre atrás dela, que nem uma sombra.
- Ela tem bons motivos para confiar na lealdade dele e ele tem bons motivos para a guardar e proteger. Foi graças a ela que conservou a vida.
Gilleis lançou um olhar rápido ao marido e mordeu o lábio inferior com os dentes muito brancos.
- Ela monta bem a cavalo - observou, imparcial.
- É verdade - concordou Harry, num involuntário tom caloroso.
- A verdade é que há tantas coisas que ela faz tão bem...
Harry detectou um subentendido na voz de Gilleis e voltou-se para observar a expressão do seu rosto.
- Além disso, também tem uma inteligência admirável - prosseguiu Gilleis. - Basta ver o interesse que mostra pelos teus desenhos e as visitas constantes que faz à tua casa do risco.
Pelo canto do olho, Gilleis viu a dúvida e, depois, a consternação espelharem-se no rosto de Harry.
- A Madonna Benedetta interessa-se pela igreja desde o princípio - argumentou. - E por que não? A sua cabeça é tão boa como a de qualquer homem e eu aprecio muito as suas opiniões. Ademais, seja por direito ou por costume, é a senhora deste castelo, e pode ir aonde lhe aprouver. Sempre se mostrou generosa e boa para comigo.
- E, se tu deixasses, de bom grado seria ainda mais generosa e boa para contigo! - observou Gilleis, sem rodeios.
O rubor subiu pelas faces bronzeadas de Harry até à raiz dos cabelos.
- Por certo não pensas, Gilleis... minha querida, alguma vez te dei azo...?
Harry tentou pegar-lhe nas mãos mas ela afastou-se e voltou-lhe as costas. Conseguiu apenas segurá-la pelos ombros, puxando-a para si e encostando o rosto ao dela. Gilleis sentiu que a pele dele queimava e arrependeu-se de imediato daquela brincadeira cruel.
- Tontínho!
Voltando-se subitamente, Gilleis depositou-lhe um beijo apressado no queixo e, libertando-se, segurou as saias e correu como uma lebre em direcção à orla do bosque, rindo por cima do ombro, enquanto corria. Dividido entre o alívio e a cólera, Harry voltou costas ao trabalho e lançou-se numa perseguição vingativa. Gilleis tinha o pé firme e ligeiro mas tropeçou entre as árvores, talvez intencionalmente, e Harry agarrou-a pela cintura e deitou-a sobre a relva, que o Outono já secara e começara a tornar amarela.
- A troçar de mim, é? A fazer de mim parvo, não é, menina?
- Senhora! - corrigiu Gilleis imediatamente, estendendo a mão para lhe puxar os cabelos, num dos seus gestos preferidos.
Harry libertou-se, não sem dificuldade ou sem dor, prendeu-lhe os pulsos contra as ervas e usou o peso do próprio corpo para a manter quieta debaixo de si. As respirações ofegantes de ambos fundiram-se em gargalhadas um tanto selvagens.
- Como hei-de castigar-te, diabrete, por tratares mal um marido tão bom como eu?
Por instantes, ela lutou com todas as suas forças e, depois, com todas as suas forças, passou-lhe os braços à volta do pescoço e puxou-o contra o peito. Estendidos na relva, enlaçados, beijaram-se, riram e murmuraram palavras ternas, até ficarem esgotados e mergulharem num doce torpor.
- Seja como for, tu defendeste-te antes de seres acusado - observou Gilleis, mordiscando suavemente o lóbulo da orelha dele. - Eu não disse que tu sentias qualquer coisa por ela, disse que ela...
Harry obrigou-a a calar-se, da maneira mais eficaz que conhecia e, quando voltou à superfície, apenas teve fôlego para murmurar, num tom culpado:
- Tenho de voltar ao trabalho! O que irão pensar, se nos virem? Quando Harry saiu de cima dela, Gilleis continuou deitada por um
momento, sorrindo, com a mão na dele. Depois, voltou a puxá-lo para si e ofereceu-lhe os lábios.
- Harry!
- Amo-te muito, Gilleis. Só a ti e sempre a ti. Sabes disso.
- Sei! E também te amo.
Mas o sorriso de Gilleis indicou-lhe que esta confirmara, para sua própria satisfação, as suspeitas de que aquela mulher veneziana, que para ela nada significava, o amava e de que ele tinha perfeita consciência desse amor. Como pudera ele trair-se, e a ela, com tamanha facilidade? Gilleis fazia de tal modo parte da sua carne e do seu sangue, que não era capaz de guardar dela um segredo. Todavia, embora fosse demasiado feminina para sentir compaixão e talvez demasiado nova para albergar piedade dentro de si, Gilleis também estava demasiado segura da sua felicidade para ter ciúmes. Haveria alguma razão para ela não se sentir segura?
Docemente, fê-la levantar-se. O pequeno ninho que os seus corpos enlaçados haviam cavado nas ervas altas parecia conservar ainda as marcas da paixão e um calor próprio. A neve não voltaria a amontoar-se ali e a geada não mais queimaria as ervas. Pensou em Benedetta, que respeitava o prometido silêncio e se abstinha de lhe tocar nem que fosse na manga. Lembrou-se da voz de Isambard, do seu grito de desespero e desejo: «Ter tudo! Com que direito pode um homem ter tanto?»
- O que foi? - perguntou Gilleis, envolvendo-o nos braços, numa súbita ternura ansiosa. - Estás a tremer, Harry! Que se passa, meu amor?
- Nada! - respondeu, afastando apressadamente os fantasmas. - Absolutamente nada! Foi só uma espécie de premonição!
Antes do fim do ano, as profecias de Isambard acerca do País de Gales começaram a revelar-se verdadeiras mas não foi Llewellyn quem quebrou a paz. Os chefes de clã, que haviam tomado de livre vontade o partido do rei João contra o príncipe, depressa haviam sido alertados para algumas conclusões perturbadoras. Era compreensível que o rei considerasse necessário construir castelos no centro do país, a fim de manter as posições que conquistara ao príncipe de Gwynedd. Mas também em Powis e noutras partes de Gales começaram a ser erguidos à pressa novas praças-fortes e torreões de madeira, até que os chefes começaram a murmurar entre si que o poder invasor, cuja supremacia haviam ajudado a instaurar, se preparava para apontar a lança não à cabeça do príncipe de Gwynedd mas ao coração de Gales. Se permitissem que o rei inglês instalasse os seus castelos por todo o lado, não restaria um lugar seguro para os príncipes galeses, na sua própria terra. Antes do cair das folhas, Rhys Gryg e Maelgwyn, irmãos da linhagem de Deheubarth, haviam tomado de assalto e incendiado o castelo inacabado de Aberystwyth e, por seu lado, Cadwallon, de Senghenydd, revoltara-se em Glamorgan. O príncipe de Gwynedd não erguera um dedo para quebrar a paz que lhe fora imposta no Verão mas muitos daqueles que se haviam aliado ao rei eram agora, aberta ou secretamente, inimigos do monarca.
- Por causa da Normandia, o rei João está a perder Gales e a pôr em risco a Inglaterra - comentou Isambard, pensando alto, diante de Harry, na casa do risco. - Ainda há um homem em Gales capaz de unir todo o país contra ele e, todavia, na sua precipitação para proteger uma fronteira, João está a fazer o jogo desse homem, ofendendo o peixe miúdo. Deveria havê-los cortejado por mais tempo. É demasiado cedo para os assustar com tantos castelos.
- Não obstante, não podeis negar que o príncipe de Gwynedd respeitou lealmente a paz - disse Harry. - Não foi ele quem incendiou Aberystwyth.
- Por que haveria ele de se dar a esse trabalho, se havia quem estivesse disposto a fazê-lo? Mas podeis ter a certeza de que não ignora nada do que está a passar-se. Quando julgar oportuno, assumirá o comando da revolta galesa e nós seremos os tolos que forjámos essa revolta.
- Como, se o rei tem em seu poder vários reféns e, entre eles, o jovem Grifflth?
- Reféns! Vou dizer-vos uma coisa, Harry: o rei tem nas suas mãos tantos reféns, galeses e ingleses, que quase não há uma casa nos dois países que não corra o risco de perder um filho, ao mínimo passo em falso. Isto dura há anos e ninguém sabe o que fazer para não cair em desgraça. E, vendo outros, como de Breos, serem levados à ruína e à morte sem haver cometido qualquer acto de traição... aqueles que têm filhos como reféns começam a desesperar de encontrar um meio de os manterem vivos. Chega uma altura em que agir parece ser um risco menor e com melhores hipóteses de sucesso do que não empreender nenhuma acção e, mesmo assim, ser acusado de traição e pagar o mesmo preço. E digo-vos mais! De todos os reféns que tem em seu poder, o único em que o rei não se atreve a tocar é o filho de Llewellyn. Não por medo mas por uma espécie de respeito que, apesar do ódio, esse homem lhe inspira. E isso que o impede de destruir aquilo que é dele. Posso ficar descansado que aquilo que eu disse não passa daqui, não é verdade, Harry?
- Decerto, meu senhor - respondeu Harry, com altivez.
- Ah, vejo agora agitarem-se em vós todos os Talvace! Pensando bem, houve indícios que traíam a vossa linhagem, mesmo antes de o abade Hugh haver escrito o recado para vós. Quando cavalgávamos para Calais, um dia em que eu estava mal-humorado, disse-vos que cavalgáveis como um camponês. Vós ristes e respondestes: «O meu pai também costumava dizer isso.» Lembrais-vos? Devia ter percebido então, pela vossa impudência e pelas vossas palavras, quem era o vosso pai. Pois bem... podeis ficar satisfeito, Harry, porque não falo com mais ninguém como falo convosco.
Isambard começou a andar de um lado para o outro, inquieto, mas, ao fim de alguns instantes, sem voltar a cabeça, prosseguiu:
- Estive muitas vezes com João, quando éramos novos, e sentia uma certa afeição por ele. Digo-vos que ele podia haver sido um bom rei e um homem feliz mas, agora, não é uma coisa nem outra. Com toda a sua temeridade e a sua valentia gratuita, Ricardo, que considerava Inglaterra apenas como uma fonte a explorar ao máximo para as suas guerras santas, era enaltecido e adorado. João também esgotou as riquezas do país mas, pelo menos, a princípio conhecia as suas gentes e, de certo modo, preocupava-se com elas. Talvez houvesse feito delas uma nação e uma potência, se houvesse obtido um pouco de aceitação. Mas as pessoas odeiam-no. Agora, é muito tarde para voltar atrás. E jamais alcançará a paz de espírito. Não confia em ninguém. E não é capaz de aceitar a perda de uma parte que seja do que foi seu. A Nor-mandia há-de ser a sua morte. Ainda sonha recuperá-la e está a arriscar tudo o que possui por essa ilusão. Com que finalidade cuidais que está a aplicar os novos impostos, que tanto trabalho estão a dar aos meus intendentes? Para equipar a sua frota e o seu exército para a invasão da Normandia! Com que finalidade aceitou ele o risco desta pressão imprudente sobre os Galeses? Para proteger a retaguarda de ataques, enquanto navega para a Normandia!
- Aparentemente, está a obter o efeito inverso - observou Harry, que, apesar de debruçado sobre a mesa de trabalho, ouvia com toda a atenção.
- Assim é, pois ele acordou o demónio que esperava poder agrilhoar, mesmo antes de as grilhetas estarem prontas. Mas digo-vos, Harry, se os rebeldes galeses conseguirem pôr a fronteira a ferro e fogo, de tal modo que o rei seja desviado da campanha da Normandia... e se conseguirem fazê-lo a tempo... então, esses rebeldes prestarão um bom serviço a Inglaterra.
- A tempo? E «a tempo» é quando?
- Até ao próximo Verão, porque é nessa altura que o rei pretende partir - respondeu Isambard. - E se ele despender tanta energia, apegando-se desesperadamente a uma coisa que já está perdida, não será apenas Gales a escapar-se das suas mãos mas também a Inglaterra.
Na floresta de pedra de Harry, onde as folhagens brotavam por magia antes da geadas do Inverno, estes ecos do tumulto que agitava o mundo soavam de uma forma estranha e distante, perdendo muito do seu sentido antes mesmo de atingirem o ouvido. Qual ressaca de uma maré potente e perigosa, o rugido profundo e abafado das vítimas finais rasgava-lhe os sentidos com uma impetuosidade bastante mais desesperada. Os vassalos do rei queixavam-se do fardo que suportavam mas, se algum deles incorresse no seu desagrado, o rei poderia facilmente transformar essa dívida em sentença de morte. Mas os humildes, os camponeses e os servos que cultivavam os campos, não podiam nunca escapar aos seus fardos. Não devido ao capricho do rei mas devido à acção da lei social, todo o peso das dívidas reais acabaria por se abater sobre eles. Do nobre ao feudatário, do feudatário ao camponês, o fardo da extorsão recaía sobre os mais pobres e, através deles, sobre a terra que trabalhavam.
Quantos mais equipamentos, quantas mais campanhas poderiam eles ainda custear? Quando alcançariam o bom senso suficiente para condenarem não a mera extorsão mas a futilidade da honra em nome da qual eram sugados? Lamentavam-se e queixavam-se das talhas que os deixavam sem nada mas, logo a seguir, clamavam como príncipes ultrajados contra o rei Filipe de França, que havia espoliado o seu rei, e apregoavam que ainda era possível reconquistar aquilo que ele confiscara. Se havia quem pensasse de outro modo, tais ideias eram mantidas em segredo. Só as mulheres, que lutavam para conseguir alimentar famílias numerosas, deixavam por vezes transparecer exasperação. Normandia? O que lhes importava a Normandia? Sabiam apenas vagamente onde ficava. Não podiam vender a Normandia para comprar roupas e a honra não punha pão nas bocas dos seus filhos.
Antes da Páscoa, o correio do rei chegou de Cambridge, com uma carta a convocar Isambard para se juntar à corte para as festas. Isambard recebeu o seu hóspede com prodigalidade mas não deu início aos preparativos para a viagem. Antes, queria saber quem iria estar presente mas cortou célere a imponente lista de nomes e títulos, com uma pergunta brutal acerca do príncipe de Gwynedd. Sim, o príncipe Llewellyn e a sua esposa fariam parte do séquito do rei.
- Então, o rei perdeu o seu tempo mandando-me chamar- anunciou Isambard. - Sabe muito bem que eu jurei não frequentar a sua corte enquanto o príncipe de Gwynedd ali for recebido. Dizei-lhe que, em tudo o mais, pode contar com a minha obediência e o meu serviço mas que, quanto a isto, lhe peço que me dispense.
- Não posso transmitir uma tal mensagem - disse o correio, estupefacto.
- Entregar-lha-eis selada. Não podeis ser tido por responsável por aquilo que eu escrevo.
E, logo de seguida, mandou chamar um escrivão, a quem ditou uma carta de uma cortesia tão rebuscada e de uma insolência tão inflexível que o próprio escrivão tentou chamá-lo à razão.
- Não seria melhor, meu senhor... não seria melhor escrever a dizer que estais indisposto e não podeis ir?
- Fazei isso e sereis enforcado por traição - disse Isambard, com um sorriso cruel. - Depois de haverdes sido flagelado por insubordinação, evidentemente. Escrevei o que vos ordenei que escrevêsseis e ficai sabendo que lerei a carta antes de a selardes. Por isso, sede preciso. Que fique bem claro para Sua Majestade que eu não irei. Dizei ainda que, quando me mandar chamar para o acompanhar em armas numa nova visita ao príncipe de Gwynedd, como prevejo que fará em breve, me encontrará pronto a partir.
O aterrorizado escrivão escreveu o que lhe fora dito, tão bem quanto lho permitiu o tremor da sua mão, e o relutante correio levou a carta consigo, embora Isambard duvidasse que esta fosse entregue.
Não teve de esperar muito pelos ecos da sua profecia. O que quer que Llewellyn houvesse visto ou ouvido na corte do sogro, durante as festas da Páscoa, não o levara a recear uma reacção muito eficaz a qualquer acção que os enfurecidos chefes galeses decidissem empreender. Pelo contrário, o que ouvira ou vira levara-o a encarar a possibilidade de se juntar a eles. Os novos castelos, para os quais toda a orgulhosa população de Gales olhava com desconfiança, não faziam parte do acordo firmado em Aber. Quem fora o primeiro a violar os termos da paz?
Mas foi outra voz, uma voz simultaneamente muitíssimo distante e tão próxima e imperiosa como a salvação da alma, que emitiu a nota decisiva para a revolta. Com um entusiasmo oportunista, à primeira e tímida centelha da insurreição galesa, o Papa Inocêncio, esse imperador falhado, proferiu palavras inflamadas, lançando a sua derradeira e mais ardente flecha contra o seu obstinado inimigo.
- Eu não vos havia dito? - proclamou Isambard, irrompendo que nem um furacão na oficina de Harry, dividido entre a cólera, o desprezo e a satisfação, perante a complexidade e a crueza da inteligência pontifical. - Não vos disse, ainda em Paris, que havíamos criado um precedente perigoso, com a nossa cruzada contra um monarca cristão? Não vos disse, Harry, que tal arma era demasiado tentadora para não voltar, em breve, a ser usada? O Papa aproveitou o exemplo e cedeu à tentação. Não há, na Europa, um tratante mais manhoso e mais inteligente que o nosso Inocêncio.
Isambard desatou a rir, ao ver a expressão atónita de Harry, quando este ergueu os olhos do capitel em que estava a trabalhar. Todavia, o espanto de Harry devia-se mais ao choque que sempre sentia perante qualquer intrusão do mundo exterior no seu oásis de paz do que à crueza de Isambard.
- O representante de Deus na Terra decretou uma guerra santa contra o inimigo de Deus, João. Não só incitou o rei de França a invadir a Inglaterra mas também isentou os príncipes galeses do seu dever de fidelidade e levantou a interdição que impendia sobre o País de Gales. Do outro lado da fronteira, vai haver sinos a tocar, Harry, e voltarão a ser celebradas missas. As donzelas poderão casar e os velhos ser enterrados em solo sagrado. Se os Galeses ainda estivessem hesitantes, que restaria agora para os conter? De Gwynedd a Glamorgan, todos eles pegaram em armas, em nome de Deus. Llewellyn está a avançar pelo centro, varrendo tudo diante de si. Tudo quanto tanto nos custou arrancar-lhe voltou a cair-lhe nas mãos, como um fruto maduro. Rhys incendiou Swansea e o príncipe de Powis está às portas de Mathrafal. Adeus, Normandia! Agora, se o rei João tiver juízo, iremos resolver o problema com Llewellyn de uma vez por todas.
- Haveis sido convocado pelo rei para a sua hoste? - perguntou Harry, arrastado, mau grado seu, por aquele turbilhão.
- Ainda não. Mandei um mensageiro perguntar-lhe quantos homens meus ele quer, quando e onde. Ah, meu Deus! - exclamou, cravando os dedos duros como aço no ombro de Harry. - Permiti que, desta vez, eu me encontre cara a cara com ele, sem o rei por perto! Dai-me Llewellyn, seja qual for o preço a pagar, aqui ou no purgatório, e pagá-lo-ei de bom grado.
A convocatória DO rei não fazia qualquer menção à última recusa insolente de Isambard. A situação era demasiado urgente para que tais pecadilhos fossem lembrados. A hoste reunir-se-ia em Chester, a 19 de Agosto, e o rei indicara as forças que exigia a Isambard, que se apressou a alistar mais do que o número de cavaleiros e arqueiros requerido e o dobro dos homens de armas, ao mesmo tempo que fustigava os lavradores de todo o seu vasto feudo com pesadas talhas para custear a expedição. Estava fora de si. Um rasto de capturas, prisões, flagelações e enforcamentos assinalava o ímpeto com que se preparava para avançar sobre o inimigo. Quando, em fins de Julho, partiu de Parfois à cabeça do seu exército, as aldeias haviam sido despojadas de quase tudo quanto possuíam: provisões, os homens mais capazes, os melhores cavalos. E tudo o que era de ferro havia sido requisitado para fabricar armas. Com a época da colheita à porta, haviam perdido metade dos meios para a realizar.
Harry, que era surdo às vozes dos grandes do mundo exterior, apercebeu-se dos murmúrios abafados das pobres gentes, com um ouvido infalível. Mesmo que estes lhe houvessem escapado, Adam haver-se-ia encarregado de lhe transmitir o que diziam. Ninguém pensava sequer em pedir ajuda a FitzJohn. Na ausência de lorde Isambard, FitzJohn era a voz do seu senhor e, mesmo que o quisesse, não ousaria transgredir as ordens recebidas.
- O pior é a falta de braços - disse Adam. - Mas, pelo menos, braços é coisa que não nos falta. E ele não tocou nas reservas de ferro de Richard Smith. Não sou homem para roubar nada de uma obra mas, neste caso, trata-se da sobrevivência deles durante o Inverno. E Deus sabe que, mais do que eles, Isambard pode suportar o custo de mandar fazer alguns malhos e foices.
Harry e Adam trocaram um olhar pensativo e depois sorriram.
- Vamos pedir a todos os mestres que falem com os seus homens e pedir-lhes que libertem o maior número possível daqueles que queiram ir para os campos - disse Harry. - Só peço a Deus que ele fique longe de Parfois pelo menos dois meses. Toda a colheita estará arrecadada, quando ele voltar.
Mas, a 20 de Agosto, muito antes de haver terminado a ceifa dos cereais, Langholme chegou a Parfois com a nova de que a hoste havia sido mandada dispersar, a campanha de Gales cancelada e de que o grosso das tropas se encontrava a um dia de viagem. Langholme demorou-se apenas o tempo necessário para trocar de cavalos e partiu para o castelo de Erington para dar a notícia, deixando-os entregues à tarefa de se prepararem rapidamente para um regresso que não entendiam e que apenas podia ser presságio de desastre.
Harry e Adam estavam a trabalhar numa das aldeias do lado inglês de Long Mountain, quando Gilleis em pessoa foi avisá-los, a fim de eles reunirem os trabalhadores voluntários e voltarem ao trabalho que lhes competia, antes da chegada do senhor de Parfois. De tronco nu, com a pele queimada como qualquer camponês, Harry ergueu os olhos do restolho, fitou Gilleis com uma expressão vazia e, em seguida, correu para junto dela. Beijou-a com um ar quase ausente e perguntou:
- O quê? A campanha foi anulada? Nem sequer adiada? Porquê? O que foi que correu mal?
- Só sei que eles vão voltar para casa. O Langholme só parou por um quarto de hora e o FitzJohn, se é que sabe alguma coisa, não disse uma única palavra. Uma coisa é certa: amanhã, eles estão cá.
- Ah, há tempo que baste. Antes da manhã, todos os homens estarão de volta ao estaleiro. Mas é duro deixar o trabalho por acabar - lamentou Harry, olhando os campos dourados. - Havia muito tempo que não me cansava tanto. Com os homens e os cavalos que vão regressar, eles poderão acabar de fazer a colheita mas eu gostava de terminar o que comecei. Todavia, é melhor não lhe dar motivo para ele descarregar a bílis sobre eles. Vou voltar para a obra e vestir outra vez a minha túnica, e ele nunca vai dar por nada.
- Crês que não? Basta-lhe ver a cor da tua pele para perceber que andaste a fazer das tuas - objectou Gilleis, num tom maternal, passando-lhe a mão pelos cabelos, para retirar pedacinhos de palha presos nos caracóis. - Diz-me quem foi a rapariga com que andaste a rebolar-te na traseira de uma carroça, para teres ficado assim, com a cabeça cheia de palha! Eu bem sabia que devia ter vindo contigo.
- Estás a cometer uma grande injustiça - respondeu Harry, ofendido. - Pergunta ao Adam se não estive a trabalhar sem descanso, como um escravo. Mas, agora que me deste a ideia, ainda há tempo para resolver isso. Vais voltar já para casa, minha querida, não vais?
- Vou e tu também - declarou Gilleis, com firmeza. - Perguntar ao Adam! Não faltava mais nada! Depois de o encobrires tantas vezes! Não saio daqui, enquanto não te vestires e não vieres comigo.
Cavalgaram alegremente, sob o sol da tarde, ora fazendo corridas como crianças, ora andando a passo, como os amantes. Não havia uma única nuvem no céu, nem uma sombra que obscurecesse o prazer de estarem juntos. Só quando chegaram ao carreiro escarpado de Parfois sentiram que lhes entrava no coração um frio súbito, o frio do mundo atribulado, e que as interrogações e as dúvidas desse mundo agitavam a superfície da sua felicidade. Apenas a superfície, porque a segurança interior dessa felicidade nunca seria perturbada.
Isambard chegou na tarde do dia seguinte, escoltado apenas por um número reduzido de cavaleiros. Desmontou no terreiro da liça, afastou-se do cavalo que espumava, antes mesmo de os cavalariços haverem tido tempo de lhe pegar nas rédeas, atirou o manto e as luvas para os degraus da Torre da Rainha, deixando o cuidado de as apanhar a Langholme, que acorrera para o ajudar. O escudeiro regressara de Erington apenas uma hora antes do seu senhor e, nervoso e com a respiração suspensa, acompanhou-o aos seus aposentos privados, para lhe desapertar o cinturão da espada, despir a cota de malha e fazer desaparecer da sua vista os trajes de guerra. Sob as mãos trementes do escudeiro, Isambard, que mais parecia uma pedra, submetia àqueles ritos simbólicos um corpo do qual a alma parecia ter-se ausentado.
Depois de se haver desembaraçado daqueles atavios inúteis, estendeu os braços compridos para vestir a túnica, envolveu-se nela e fez um gesto breve e seco, a dispensar Langholme, que se apressou a sair da câmara, aliviado. Nem uma palavra fora pronunciada. Benedetta trouxe vinho e ofereceu-lho, e ficou de pé diante dele, impedindo-o de imaginar ou fingir que se encontrava só.
- Então, não haverá ajuste de contas com Llewellyn - disse.
Os olhos que haviam estado a olhar através dela foram-se focando lentamente, tomaram consciência da câmara, do copo de vinho e, por fim, do rosto dela. Isambard pegou no copo que lhe era oferecido e dirigiu-se para a janela, de onde ficou a contemplar o vale.
- Desta vez, todos os planos haviam sido bem preparados - disse, numa voz seca e controlada. - Escusávamos de haver feito alto em Aber e poderíamos haver-lhe arrancado até ao último pedaço das suas terras. O rei iria ter connosco no dia 19 mas eu saí de Chester só com de Guichet, para ir ao seu encontro em Nottingham. Era para ali que haviam sido conduzidos todos os rapazes galeses. No dia em que ali chegou, antes mesmo de quebrar o jejum, o rei mandou-os enforcar.
Ao chegar a este ponto da narrativa, o seu tom de voz não se alterou mas qualquer coisa na rigidez das suas costas e dos seus ombros largos, a tensão da sua nuca revelavam a repulsa que sentia. Não era a selvajaria do acto que o revoltava mas o que neste havia de gratuito e medíocre. Com Llewellyn vivo, não deveriam ser desperdiçadas energias em vinganças tão mesquinhas e, com Llewellyn morto, haveria margem suficiente para a magnanimidade. Para Isambard, a execução daquelas crianças havia sido um malbaratar inútil e desprezível de um ódio que devia ser dedicado, por inteiro, a um adversário de maior peso.
- Todos? - perguntou Benedetta, em voz baixa.
A gargalhada curta e dura de Isambard mais parecia um grito.
- Não, nem todos! O Griffith não! Já que sentia necessidade de matar, eu conservaria pelo menos uma centelha de respeito por ele, se houvesse mandado matar Griffith. Não vos havia dito que ele jamais ousaria fazê-lo? A mão do pai estava sobre a cabeça de Griffith, como se fosse um baldaquino, e tornava-o intocável. E João teve a esperteza de adivinhar que, se poupasse apenas um, e precisamente aquele, atrairia sobre si o desprezo do mais ínfimo dos homens. Não, poupou mais uns tantos para fazerem companhia a Griffith. Não sei quantos sobreviveram... não contei os cadáveres dos desgraçados.
- Não podemos dizer que haja sido uma surpresa - comentou Benedetta, com uma expressão sombria. - Na vossa ausência, recebemos notícias de Shrewsbury, que concordam com as vossas. Parece que Robert de Vieuxpont detinha no seu castelo um príncipe galês. Recebeu ordens do rei para o enforcar e assim foi feito.
- Robert de Vieuxpont é lugar-tenente do rei e tem de lhe obedecer ou abandonar o cargo. Mas o remate da história... o cúmulo dos cúmulos é que, três dias antes desta estúpida e lamentável carnificina, o rei anulou os preparativos para a campanha, mandou embora as tropas e isolou-se de todos nós. Demorou dois dias a receber-me e parece confiar tanto em mim como em qualquer outro. João recebeu algumas cartas entre elas da princesa de Gwynedd, todas no mesmo sentido. Tais cartas diziam que a expedição a Gales o colocaria em grande perigo, pois estava em marcha uma conspiração dos seus próprios vassalos, que pretendiam aproveitar a oportunidade para o trair junto do seu inimigo, ou para o fazer prisioneiro. O rei acreditou e mandou dispersar a hoste.
- Se a filha é a autora das cartas, não é difícil adivinhar o seu objectivo - observou Benedetta, com um sorriso triste. - Com essa invenção, ela pretende salvar o marido e o pai.
- Foi o que eu lhe disse: supliquei-lhe que não lhes prestasse atenção e fosse por diante. E ele replicou que havia quem confirmasse a história mas não quis dizer-me quem. Perguntou-me também: se fosse verdade, o que ganharia ele em insistir? Haveria outras oportunidades. O grande perigo era os conspiradores desejarem destroná-lo. Se assim era, não lhes faltariam oportunidades. Aquilo que não caía por si, cairia pela mão deles. Ora, se está rodeado de inimigos, o mais acertado seria ir por diante corajosamente e esmagar o mais temível de entre eles. Mas não, João manteve-se inflexível. Poderia haver-se salvo. Poderia haver avançado, obrigando-os a agir, poderia enfrentá-los no terreno que eles próprios escolheram. Era a única maneira de salvar alguma coisa de todo este descalabro. Tinha tudo a ganhar e nada a perder. Mas não o fez! Supliquei-lhe, pelo seu próprio bem, pelo bem de Inglaterra, até por simples justiça para com aquelas pobres crianças enforcadas, enterradas à pressa, e pelos pais delas, que tinham o direito de o enfrentar de armas na mão. Ajoelhei-me diante dele! - rugiu Isambard, tapando subitamente os olhos com a mão, como que para afastar a recordação de tal imagem. - Pus-me de joelhos, implorando-lhe que não desistisse. Ele não quis! Não vai haver um confronto com Llewellyn... nem agora, nem nunca. Acabou-se.
O Outono e o Inverno passaram. Gráceis, impetuosas, aéreas, as traves da abóbada composta elevavam-se já sob a cobertura de madeira da igreja e a nave começava a justificar o seu nome, as semelhando-se ao belo e estranho esqueleto de um navio de fábula, voltado ao contrário, com a quilha para cima. Antes do fim do Inverno, haviam concluído o enchimento das abóbadas simples e o magnífico esqueleto cobriu-se de carne.
No seu casulo, Harry quase não ouvia os rumores confusos do exterior. As hesitações doentias do rei para encontrar um campeão que empreendesse em seu lugar a guerra contra Gales, a doação a vários primos da casa de Gwynedd de domínios que não possuía e as promessas de lhes conceder outros, se eles os conquistassem, enquanto os Galeses riam das suas promessas e das suas ameaças, todos estes expedientes ridículos e desprezíveis pelos quais o monarca tentava comprar o seu destino, passavam pelos pedreiros como folhas arrastadas pelo vento. Estes tinham coisas mais importantes em que pensar.
Somente quando Isambard saía para ir ver a igreja e ficava a vê-los trabalhar, como fazia todos os dias, o seu silêncio levava até eles um pouco do seu desgosto inesgotável, causando-lhes desalento e perturbação.
Outra Páscoa passara entretanto e, segundo informações fidedignas, em França, o rei Filipe preparava uma frota e um exército para a sua guerra santa contra Inglaterra, uma réplica irónica dos planos gorados do rei João de invadir a Normandia. Se João não agisse depressa, a Inglaterra iria escapar-se-lhe entre os dedos, como a Normandia, como o País de Gales. Mas o monarca inglês nada podia fazer.
Ou melhor: havia ainda uma coisa, um último acto irreparável, a que podia recorrer. E, a 15 de Maio, decidiu cometê-lo. Foi um golpe de mestre, nos seus efeitos imediatos, mas, a longo prazo, foi um golpe de morte. Umas duas semanas antes, o rei João havia recebido uns Cavaleiros do Templo, recém-chegados de França, mas nenhum dos seus oficiais sabia o que fora dito na audiência, após a qual os cavaleiros regressaram a França. Em seguida, haviam voltado a Dover, escoltando Pandulf, o legado do Papa, vigário do vigário de Deus na Terra, a quem, em troca da protecção da Igreja, o filho rebelde dessa mesma Igreja entregou o seu reino da Inglaterra e da Irlanda, e de cujas mãos recebera uma e outra de volta, como vassalo da Igreja, e, com elas, o arcebispo que durante tanto tempo se recusara a reconhecer.
Estas transferências da coroa produziram efeitos mágicos. Transformaram os príncipes cruzados galeses em vulgares rebeldes contra o ungido do Senhor e privaram Filipe das suas aspirações ao prémio que lhe fora prometido. Interpuseram a autoridade protectora da Igreja entre João e os seus vassalos descontentes. Deram-lhe segurança, firmaram-no mais solidamente nos seus direitos ora circunscritos e confundiram todos os seus inimigos.
Mas também o desonraram e lhe destroçaram o coração.
- Ajoelhar-se diante dele, Harry! Ajoelhar-se diante dele e oferecer-lhe a coroa! Foi a Inglaterra que ele pôs de joelhos. Como pôde fazê-lo? Como pôde rebaixar-se e rebaixar-nos a nós? Se havia desafiado Inocêncio, só nos restava morrer e morreríamos sem vergonha. O que é a morte? Todos os homens têm de enfrentá-la, não há nada a temer. Mas cobrir-nos de vergonha é pior que a morte.
Após sete dias de ausência da igreja e do mundo, encontrava-se mais uma vez na nave, entre as árvores do céu petrificadas no silêncio do crepúsculo. As aberturas das magníficas janelas do clerestório, voltadas para um céu verde pálido, fitavam-no como uma fiada de olhos claros e luminosos em rostos sombrios, atentos e interrogativos. Aqueles olhos diziam que, durante quatro dias, ele não comera, não bebera nem dissera uma palavra, depois do grito abafado que soltara ao receber as novas, antes de desmaiar e ser transportado para o leito. O aspecto dele dizia que isso bem podia ser verdade. A tonalidade dourada da pele, adquirida no Oriente, havia muito que desaparecera e os Verões ingleses haviam-lhe deixado apenas o tom ocre deslavado dos homens que vivem ao ar livre. Mas também este se atenuara, substituído por uma palidez acinzentada, por baixo da qual a carne parecia haver-se retraído. O rosto de Isambard era uma máscara de ossos mas, como a ossatura era larga e finamente desenhada, o resultado era não um rosto arruinado mas um rosto ainda mais belo. Os olhos, enormes nas órbitas cavadas, eram janelas para uma dor atroz e a intensidade dessa dor advinha da sua inteligência desesperada, que não lhe permitia deixar por explorar nenhuma das implicações da catástrofe. Estava tão magro que o mais apaixonado dos ascetas de Clairvaux não poderia rivalizar com ele. Sete dias de jejum não podiam explicar tamanho estrago: este vinha do espírito.
- Harry, Harry, vejo-a, à noite. Estou sempre a vê-la. A coroa caída no chão, aos seus pés, e ele a empurrá-la com o pé. Ele adiou o momento de a entregar, para afirmar a sua posse. Inglaterra! Nós não consentimos nisto! O nosso nome foi invocado em vão. Mas agora, Harry, nunca poderemos limpá-lo de tamanha desonra.
Quando começara a falar, Isambard encontrava-se no centro da nave. Era a calma e o isolamento do local que convidavam a falar, ali onde a chegada da noite transformava o alegre e animado bulício em silêncio e paz. As primeiras palavras saíram-lhe como as primeiras lágrimas de alguém que nunca chorou, numa angústia espasmódica, arranhando as cordas vocais contraídas. Depois, começaram a brotar mais livremente e, por fim, numa torrente. Isambard ergueu o rosto contorcido para a pouca luz que ainda restava e respirou fundo, como se não fosse capaz de inalar ar suficiente para se conservar vivo. Todavia, o resto do seu corpo manteve-se imóvel, as mãos cruzadas sobre o peito.
- Não me cabe acusá-lo nem defendê-lo, meu senhor - disse Harry, comovido pela intensidade daquela agonia. - E, todavia, sei que o rei também sofre. Por entre todos os perigos que ele cuidava ameaçarem a Inglaterra, escolheu este caminho e a escolha é sua, tal como era seu o fardo que suportava. Ele quis libertar a Inglaterra. Tal como os vossos, o meu coração e a minha mente dizem-me que fez mal. Todavia, sinto que as suas intenções não eram más. Ele procurava alívio, através de um acto que nem para salvar a minha própria vida eu seria capaz de igualar. Não o esqueçais e perdoai.
- Não é a mim que cabe conceder o perdão e a Inglaterra nunca o concederá. Eu haveria cuspido na cara de Pandulf e nunca me ajoelharia diante dele.
- O mesmo faria eu - disse Harry. - Mas alguém poderá dizer que estaríamos certos?
- Está tudo a desmoronar-se, Harry! Ele conspurcou de tal modo a Inglaterra que eu amava que já não posso olhar para ela sem sentir repulsa. Eu venerava e acreditava na cristandade mas será esta a voz da cristandade, a desse regente de Deus, desse conspirador tortuoso, que ora sopra para Leste, ora sopra para Oeste, conforme mais lhe convém? E sem vergonha alguma! No ano passado, foi a interdição sobre os sinos, o livro santo e as velas, a salvação eterna de todos quantos pegassem em armas contra João, o inimigo de Deus. Este ano, que nenhum príncipe ouse levantar a mão contra o nosso bem-amado filho, sob pena de excomunhão. Ah, Harry, Harry, foi para o Deus de um catavento sem vergonha como este que nós construímos uma casa digna dos arcanjos?
Isambard apertava o braço de Harry. O aperto convulsivo daqueles dedos ossudos, tão compridos e hábeis e agora tão impotentes, com as veias tensas como cordas azuis entre a pele enrugada e os ossos salientes, foi direito ao coração de Harry. Sentiu a tensão febril de Isambard passar para o seu corpo e foi invadido por um afecto tão inesperado e incontrolável que deitou abaixo todas as barreiras da linguagem formal. Harry passou o braço sobre os ombros erectos e descarnados do seu senhor e estreitou-o calorosamente.
- O que tem Inocêncio a ver com isto? Muitas vezes, dei comigo a interrogar-me sobre essas mesmas coisas. Mas de todas as vezes, quando sentia a minha obra crescer sob as minhas mãos, as interrogações acabavam. Eu construo e não sinto nenhuma intervenção do Papa ou de qualquer padre entre mim e Deus. E o meu espírito não duvida de que este acto de fé e louvor é justificado. O rei João pode haver-vos traído mas não a Inglaterra. Inocêncio pode distribuir e retirar sem escrúpulos as suas pequenas bênçãos e interdições, como dados viciados, mas juro que Deus não faz o mesmo. Não estou a construir para nenhum Papa, bispo ou padre. Esta casa é para os arcanjos.
- Ah, isso está bem para vós, que lidais com o material honesto que é a pedra. Mas eu estou ligado a João, não a Inglaterra. Estou ligado a ele por um juramento de fidelidade, pelas terras que possuo, pelas inúmeras vezes em que poisei as minhas mãos entre as dele. Quer queira quer não, sou um vassalo de João. Ele aviltou-me e cobriu-me de vergonha mas continuo a sê-lo. Ainda que ele se comporte como um verme, não ficarei liberto do meu juramento, nunca ficarei liberto desse juramento. A minha fidelidade corrompe-me e enoja-me mas não posso libertar-me. Sou vassalo de João até à morte e não posso ser livre!
A voz rouca, febril, quase sufocada pela dor e pela raiva, pronunciou estas palavras com um esforço convulsivo, como gotas de sangue brotando de uma ferida. Atormentado, Isambard lançou a cabeça para trás, abanando-a para a esquerda e para a direita, como se lutasse para se furtar à compulsão que o arrastava pelo caminho inevitável da fidelidade. O braço poisado sobre o seu ombro, apertou-o mais. Isambard fechou os olhos por instantes. Depois abriu de novo as pálpebras pesadas e fitou o rosto jovem, grave e perturbado, cheio de ternura, que o olhava como um filho querido olha para o pai, esmagado por uma dor incompreensível.
Isambard soltou um grande suspiro e, por um momento, deixou a cabeça repousar no ombro coberto de tecido rugoso.
- Oh, Harry! Estou tão cansado, Harry!
Benedetta foi sozinha À oficina, onde Harry e Adam inspeccionavam as aduelas da última janela da torre, acabadas de talhar. Estivera a chover, como é habitual em Abril, aguaceiros alternados com períodos de sol esplendoroso, e a erva molhada tornara mais escura a orla do seu vestido verde. Passando os dedos sobre os relevos de pedra, talhados em curvas profundas e suaves, Benedetta perguntou, curiosa:
- Porque as talhais assim?
- Para encaixarem perfeitamente umas nas outras. Vede: foram talhadas de tal modo que, depois de montadas, se ajustam tão bem umas às outras que nem se vêem as juntas.
Benedetta acariciava os relevos e ia escutando o ruído arrastado do guindaste, a içar pedra para a torre, e, trazidos pelo vento, dos lados do andaime, pedaços desgarrados de frases.
- Quanto tempo mais? Um ano?
- Talvez um pouco mais. Mas não deve ser muito mais de um ano.
- Parece impossível ficar acabada tão depressa.
Mau grado seu, a voz denotava tristeza. Sob as pálpebras ligeiramente descidas, Benedetta observava Adam, que pegara no macete e no escopro e, assobiando, voltara à mísula em que estivera a trabalhar.
- Quando acabareis o grosso da obra? Antes do Inverno? - perguntou ainda.
- Se Deus quiser! Já estamos no último andar da torre. Mas haverá trabalho suficiente para o Inverno, no interior. É preciso assentar as lajes do chão, fixar as balaustradas e o cadeiral, as pedras dos altares e as estalas do coro. Duvido que o vidraceiro consiga acabar todas as janelas antes da Primavera e, por isso, o andaime vai continuar montado até ao próximo ano. Devíeis pedir-lhe para ver os vitrais que já estão montados. São uma maravilha.
- Então, no próximo Verão, está tudo acabado - concluiu Benedetta, deixando o olhar vaguear sobre as pedras armazenadas.
Eram fantasias de uma esplendorosa vegetação nascente: florões e relevos, bossagens e frisos vários, já preparados, para a cornija da torre.
- Que fareis depois? - perguntou ainda.
- Ainda não pensei nisso. Lorde Isambard sugeriu manter-me ao seu serviço. Um senhor com um feudo tão vasto deve estar sempre a construir, num lado ou noutro. Não me faltaria trabalho.
- Pois não - respondeu Benedetta, deixando em suspenso a frase, curta e pouco convincente.
Todavia, dava a ideia de querer dizer mais qualquer coisa. Não o fez e ficou à espera, Harry não sabia de quê, ouvindo Adam assobiar.
- Sabeis que o rei voltou a partir para França?
- Foi o que ouvi dizer. Não há nada que o faça desistir da ambição de reconquistar a Normandia. Desde que, no ano passado, a sua frota se desembaraçou sem grande esforço dos navios franceses, ao largo da Flandres, o rei recuperou a coragem. O que não é de espantar. O clero bem pode dizer que foi castigo divino por Filipe haver atacado a Inglaterra por vias indirectas, depois de o Papa o haver proibido de o fazer directamente... pela minha parte, julgo que a energia e a habilidade do rei João facilitaram o trabalho à providência. Mas ser-lhe-á mais difícil vencer o rei Filipe no seu próprio terreno. E, pela minha parte, nunca escolheria o imperador Otão como aliado. Que pensa disto o meu senhor?
- Deveria ser eu a perguntar-vos isso - respondeu Benedetta, com amargura. - Já há muito tempo que ele não aborda esses assuntos comigo. Sabeis que considera perdidas as possessões francesas e que é seu desejo que elas assim continuem, por mais que custe aos seus pares privarem-se de metade das suas rendas. No seu entender, aceitar a perda da Normandia é a única esperança da Inglaterra. Penso que uma vitória em França poderia fazer o rei João subir na estima do povo, pelo menos por algum tempo. Mas estou segura de que Ralf ora para que ele seja derrotado.
- Seja como for, o rei não pediu ao meu senhor que se juntasse a ele - observou Harry.
- Graças a Deus! Não, o rei desconfia demasiado dos Galeses. Quer que Ralf fique aqui e defenda a marca em seu lugar. Não tem muita fé nas tréguas que o arcebispo negociou entre Galeses e Ingleses.
Ao ouvir os passos ligeiros do jovem escrivão que, como de costume, saíra da casa do risco a correr, Benedetta voltou-se vivamente. O jovem saltou sobre as pedras empilhadas e, depois, vendo que Harry se encontrava ocupado, dirigiu-se a Adam e, ofegante, murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido.
- O patife! - exclamou Adam, bem disposto. - Não podia escolher melhor altura. Não importa, eu vou lá.
Adam poisou as ferramentas e, com um braço sobre o ombro do jovem, saiu com ele.
Mal os dois se afastaram o suficiente para não poderem ouvi-la, Benedetta afastou-se prontamente das pedras trabalhadas que estivera a observar e disse:
- Mandai Adam embora daqui, Harry!
Harry levantou bruscamente a cabeça e fitou-a, sem compreender.
- Mandá-lo embora? Porquê?
- Porque, aqui, ele corre perigo. Ou pode vir a correr perigo, a qualquer momento. Pensei que ele estaria em segurança até ao fim da obra mas já não tenho tanto a certeza e é melhor não o pôr em risco. Não podeis mandá-lo trabalhar para outro local? Ou mandá-lo, em vosso lugar, aos vidraceiros e à olaria onde comprais as telhas? Sobretudo, não o deixeis ficar em Parfois, constantemente diante dos olhos de Lorde Isambard.
- De Lorde Isambard? - perguntou Harry, poisando o macete e o escopro ao lado das diversas ferramentas que cobriam a sua mesa de trabalho, e fitando-a, perplexo. - Houve algum atrito entre ele e o meu senhor? Não sei de nada. A maior parte do tempo, o meu senhor mal repara nele e, quando isso acontece, mostra-se bastante amigável. Porque haveria ele agora de representar um perigo?
- Porque começou a cismar na lembrança de que, uma vez, por causa de uma canção, Adam partilhou o meu leito - respondeu ela, sem rodeios. - Há-de chegar o momento em que essa recordação se tornará insuportável. Quando tal acontecer, não permitais que Adam se encontre ao alcance dele.
Era difícil de dizer e penoso de ouvir, e a única forma de o tornar tolerável era dizê-lo cruamente. Mas o espanto e a reserva de Harry fizeram sorrir Benedetta. Arrancara-o tão abruptamente aos atalhos aprazíveis da sua floresta de pedra que ele se sentia perdido perante a complexidade de um mundo menos perfeito.
- Não notastes que ele sente ciúmes desesperados de mim? Ele fala mais convosco do que com qualquer outra pessoa. Nunca vos falou de mim... de uma maneira estranha?
- Nunca!
Mal acabara de pronunciar a palavra, Harry deu-se conta de que, ao longo daqueles anos, Isambard só raras vezes referira o nome dela. E lembrou-se também de algumas ocasiões em que, deveras, haviam sido ditas coisas estranhas, não acerca dela mas que, todavia, lhe diziam directamente respeito, agora que as encarava sob outro ângulo. Estivera demasiado absorvido pela sua felicidade pessoal para prestar atenção aos desencantos dos outros. Agora, reprovava-se por haver sido cego. «E no amor também, Harry?» O eco distante da voz de Isambard parecia agora troçar dele. «Ter tudo, mesmo o maior bem de todos! Com que direito pode um homem ter tanto?»
- Estou a ver que vos recordais de alguma coisa - comentou Benedetta.
Harry abanou a cabeça, desanimado:
- Que tolo fui! Deveria haver visto que as suas mudanças de humor ocultavam algo de grave. Não obstante, a verdade é que pouco foi dito e nada acerca de vós. Todos nós sabemos que ele sempre teve horas más. Mas não posso acreditar que sinta ciúmes. Juro que nunca os mostrou. Sabe bem que respeitais honestamente os vossos compromissos. Não pode pôr em dúvida a vossa fidelidade.
- Ah, a fidelidade! - suspirou Benedetta. - Cometeis o mesmo erro que eu, Harry. Ele queria mais do que fidelidade.
Com os dedos esguios, Benedetta alisou os cabelos que lhe nasciam, em caracóis, nas têmporas. Harry reparou na magreza dos dedos dela, a sua palidez contra o ruivo escuro, e espantou-se por não haver notado antes como ela emagrecera. Talvez a fricção das paixões infelizes, que os uniam e os separavam, estivesse a consumir Benedetta por dentro, como consumia Isambard.
- É bom que saibais em que pé se encontram as coisas - disse ela, quase brutalmente. - É preciso que actueis de acordo com o que ora sabeis. Quando me pediu que viesse com ele para Inglaterra, confessei-lhe que amava outro homem, com um amor daqueles que só se experimentam uma vez na vida. Disse-lhe que, se estivesse disposto a aceitar aquilo que me restava para lhe dar, eu seria sua e nunca o deixaria, a não ser por aquele que é dono do meu coração. E Deus sabe que não menti, ao dizer que era pouco provável que ele me reclamasse! Ralf aceitou-me nestes termos e eu sempre respeitei honestamente o nosso pacto. Que insensatez a minha, pensar que ele poderia respeitá-lo! Alguma vez o haveis visto contentar-se com um segundo lugar? Eu devia ter sabido que isto não podia durar.
Com um gesto cansado, Benedetta deitou as mãos à cabeça. Harry não lhe tocou. No passado, muitas vezes lhe havia tocado, sem qualquer maldade. Agora, compreendia o alcance do poder aterrador que ela lhe conferira sobre si mesma, um poder que lhe permitia causar prazer e dor, e conteve o gesto, com medo de que a dor fosse maior do que o prazer. O constrangimento entre os dois parecia-lhe incongruente mas não sabia como evitá-lo.
- Começo a ver até que ponto ele foi ludibriado - disse, em voz baixa. - Oh, não por vós. Ele contentou-se com aquilo que havíeis para lhe oferecer mas pensou que, com o tempo e pelos seus próprios méritos, acabaria por obter tudo. Não podia adivinhar que iria trazer consigo para Inglaterra o homem que esperava poder expulsar do vosso espírito. Penso que isso, pelo menos, não lhe dissestes.
- Vós, homens, sois todos iguais - protestou Benedetta, de novo senhora das suas emoções, olhando-o com um sorriso irónico e terno. - Tal como Ralf, não tendes confiança na constância das mulheres. Não havia necessidade de lhe dizer. Estardes longe ou perto, vivo ou morto, não fazia qualquer diferença. Aquilo que vos dei, dei-o de uma vez por todas. Contei toda a verdade a Ralf: que nunca poderia penetrar nesse último santuário do meu coração. O meu erro não foi tentar enganá-lo, foi não tentar compreendê-lo. Deveria haver percebido que era o mesmo que impedi-lo de alcançar o que desejava. Não o conhecia tão bem então como o conheço hoje. Agora, é demasiado tarde para remediar o mal que está feito.
- E, ainda assim, podereis estar enganada. Não sei o que fazer, Benedetta. Se eu me fosse embora daqui, com o tempo...
- Não podeis partir até o vosso trabalho estar terminado. Foi esse o compromisso que assumistes. Mas, mesmo que pudésseis, já é demasiado tarde. Ele sabe que não... Não, não posso dizer que ele «não é amado»! Como poderia eu não sentir algum amor por ele, depois de tudo o que se passou? Mas ele sabe que nunca terá aquilo que deseja.
Sabe que os meus sentimentos para com aquele de quem lhe falei não mudaram, nem nunca mudarão. Ralf é incapaz de se resignar. A luta vai continuar, até à destruição de um de nós... ou de ambos. Só receio que essa luta possa envolver outras pessoas e não quero que o Adam seja uma delas. Afastai-o da vista dele.
- Essa é a menor das dificuldades. Posso mandá-lo tomar conta da pedreira. Por certo já ouvistes dizer que a pedreira está outra vez a sofrer ataques de Cynllaith e, durante os próximos meses, vamos continuar a precisar de pedra. Mas e a vossa segurança? Se não conseguir deitar a mão a... esse outro... não acabará ele por se voltar contra vós?
- E isso importa? - perguntou ela, em tom indiferente.
Não estava a provocá-lo: estava simplesmente a afastar uma questão que considerava irrelevante. Cabia-lhe a ela sofrer as consequências dos seus actos.
- Sabeis muito bem que importa - contrapôs Harry, zangado. - Penso que deveis deixá-lo.
- Tirai essa ideia da cabeça, pois não o farei.
- Não - disse ele, apertando a cabeça entre as mãos, impotente. - Vejo que seria perder tempo tentar convencer-vos. Bem sei que cumprireis a vossa palavra, mesmo que isso vos custe a vida. Mas, valha-me Deus, deve ser possível fazer alguma coisa por vós! Esta situação não pode manter-se. Quem me dera que houvésseis chegado a amá-lo, pois ele merece-o. Mas veja-se o que vos está a acontecer! Oh, Benedetta, se não fôsseis como sois, a vida seria bem mais fácil para todos nós.
- O mesmo se pode dizer de vós - replicou ela, com um súbito brilho indomável nos olhos, um pálido reflexo do seu antigo humor atrevido. - Cuidais que eu seguiria um homem menos perfeito por essa Europa fora? A vida é sempre fácil para aqueles que pouco pensam e menos amam. Não precisais de vos preocupar comigo: Ralf ama-me. Confia em mim. Nunca me fará mal, a menos que fique louco de desespero e, nele, isso é algo tão improvável como a resignação. Nem sequer é por orgulho que me sinto confiante - acrescentou docemente. - Ele é meu, ainda que eu não o ame da forma como ele entende o amor. Quanto a mim, já não sei o que é o amor. O amor tem tantas faces. Mesmo que... o outro... me reclamasse agora, não poderia partir. Aquilo que fiz a Ralf, fi-lo sem intenção mas, ao fazê-lo, fiquei presa a ele tão solidamente que só a morte poderá libertar-me. A menos que ele corte o nó e me mande embora. Como vedes, não há razão para vos inquietardes por mim. Embora me sinta contente por ver que vos preocupais com o meu destino - disse, com um sorriso nos olhos cinzentos. - Isso restitui-me um pouco do amor-próprio.
- Quem me dera que alguém me restituísse o meu - murmurou Harry. - Que pobre e inútil amigo tenho sido! Prometei-me ao menos que, se um dia necessitardes de ajuda, serei o primeiro a quem mandareis chamar.
- Assim será, se me prometerdes o mesmo. Penso, Harry, que não devo vir ter convosco tão livremente, ou tantas vezes, como até aqui. Seria bom dispormos de outro meio de nos mantermos em contacto. Desejei muitas vezes conhecer melhor a vossa esposa. Podereis interceder por mim junto dela? Dizei-lhe que me sinto só e que lhe ficaria muito grata se ela pudesse passar algum tempo comigo, todos os dias.
Riu-se ao ver o rubor infantil que coloriu o rosto maduro, decidido e grave de Harry.
- Juro-vos que não é apenas estratégia. Sei que poderia gostar dela, se ela me deixasse. Admito, todavia, que também há nisto uma segunda intenção. As esposas e as amantes não se misturam. Uma amizade entre as duas pôr-vos-ia ao abrigo das suspeitas dele e, em caso de necessidade, eu passaria a dispor de um elo de ligação convosco em que poderia confiar. Dizei-lhe o que vos aprouver sobre as razões de tudo isto. Todas, se assim o entenderdes. Penso que ela adivinhará aquilo que não lhe contardes.
- Falarei com Gilleis - prometeu Harry, calmamente. - Ela irá ter convosco. Penso que ficará contente por isso.
- Pedi-lhe que me visite amanhã, enquanto Ralf estiver a verificar as contas com o intendente. E tratai do assunto de Adam. Preciso voltar. Já me demorei mais do que previa.
- Benedetta! - chamou Harry, quando ela se preparava para lhe virar as costas. - Porque foi que a atitude dele mudou de repente?
Benedetta fitou-o, de olhos muito abertos, espantada por ele haver sido capaz de penetrar tão facilmente no único recanto da sua mente que ela quisera esconder-lhe. Hesitante, Harry insistiu:
- Juraria que, quando aqui chegámos, ele era feliz... tão feliz quanto a sua natureza lhe permite ser. Culpo-me por não haver notado que ele começou a mudar mas penso que não foi uma alteração gradual. Ele conhece demasiado bem o seu valor para não haver acreditado que acabaríeis por lhe ceder. E continuaria a ter esperança e a acreditar nisso, se não houvesse acontecido algo que lhe revelou a verdade. O que foi?
Foi a única vez que ela se sentiu tentada a mentir-lhe. Hany viu uma sombra descer sobre os seus olhos cinzentos que se lhe furtaram por instantes. Depois, os olhos dela ficaram novamente límpidos e ele ficou a saber que a sombra fora afastada.
- Foi o vosso casamento - respondeu, em voz baixa. - Ralf descobriu que o casamento pode ser a coroa de glória do amor, e não o resultado de um negócio feito com a finalidade de obter mais terras, riqueza ou alianças de sangue. Suponho que nunca havia assistido tão de perto a uma união como a vossa. E isso tocou-lhe o coração. Nessa mesma noite, ofereceu-me um presente principesco: propôs-me casamento.
Sem se mover, Harry continuou a fitar intensamente Benedetta; o seu rosto ficou pálido de morte. Não foi capaz de falar, pois não havia nada que pudesse ser dito. Desde início que ele havia sido o louco de Deus que, sem querer, perturbava a vida de Benedetta sem qualquer má intenção, esmagava em toda a inocência aquilo que ela mais prezava, deitava abaixo os muros da sua paz, transformava em labirintos os caminhos simples que ela traçava.
- Recusei - prosseguiu Benedetta, com toda a simplicidade. - Não podia fazer outra coisa. E a única coisa que ele podia fazer era compreender.
Ela voltou a cabeça e viu que Adam estava de regresso, caminhado sobre a erva espezinhada. O seu assobio ligeiro e alegre precedia-o, como o canto exuberante de um melro. Adam não tinha uma única preocupação.
- Quem me dera nunca haver entrado na vossa vida - murmurou Harry. - Só vos causei desgostos. Imploro-vos que me perdoeis!
- Perdoar-vos! - exclamou, voltando para ele um rosto que, subitamente, o assombro tornara quase feroz, uns olhos dilatados pelo mesmo assombro.
Esquecendo a prudência, abriu a boca para deixar sair o ouro em fusão que lhe transbordava do coração. Mas os passos leves de Adam soavam já sobre a terra batida do telheiro, logo seguidos de uma gargalhada e de uma voz que se lamentava amargamente da desatenção e da leviandade dos jovens de hoje. Benedetta deu meia volta e saiu da oficina sem dizer palavra.
Naquela Primavera, não se perderam vidas na guerra privada de Cynllaith, apesar dos muitos golpes trocados, de alguns ferimentos menores provocados por flechas e da irritante perda constante de cavalos e bois. Llewellyn parecia querer apenas incomodar o inimigo. Só ocasionalmente se verificava um verdadeiro ataque dos clãs galeses. Afundaram um carregamento de pedra no Tanat, o que interrompeu os trabalhos por dez dias, o tempo necessário para desimpedir o rio. Após a chegada de Adam, realizaram uma operação de reconhecimento contra carroças carregadas, para verem que tipo de homem teriam de enfrentar, e retiraram em boa ordem. Em geral, preferiam infiltrar-se para além dos postos da guarda durante a noite e surripiar um cavalo ou dois, abater uma árvore e atravessá-la no caminho ou roubar os arreios. O roubo, um crime desprezível e severamente punido em Inglaterra, era um divertimento respeitável do outro lado da fronteira.
Para além destes actos que mais pareciam folguedos, o príncipe de Gwynedd não erguera um dedo para pôr termo às tréguas entre a Inglaterra e o País de Gales, que, depois da sua confirmação, o arcebispo Langton se empenhara em prolongar. Estas alfinetadas dificilmente poderiam ser encaradas como uma violação dos termos acordados. Na verdade, por que desejaria Llewellyn relançar as hostilidades, se havia consolidado e mantido tudo o que conquistara, sem contestação? No fim de contas, Inocêncio não esquecera os serviços prestados por aqueles homens das montanhas, que nunca vira.
Mas, a meio do Verão, Adam, que começara a gostar tanto destas escaramuças como os patos gostam de água, reagiu com demasiado zelo a uma incursão inimiga junto do rio e fez três prisioneiros, que enviou sob escolta para Parfois. Sem hesitar, sem sequer os ter visto, Isambard mandou-os enforcar. A partir de então, foi galarias, uma guerra sem tréguas e sem possibilidade de reparação. Os clãs dos três homens mortos, todos da região, começaram a capturar os retardatários dos comboios de pedras e aqueles que cometiam a imprudência de se aproximarem demasiado da fronteira corriam o risco de serem atingidos por uma flecha disparada dos bosques da margem oposta do regato. Antes do fim de Julho, tornou-se evidente que o príncipe de Gwynedd tomara a seu cargo vingar os seus homens. Era senhor de um país pacificado, possuía um pequeno mas vigoroso exército de cento e cinquenta homens, ávidos de acção, e muitas centenas de homens livres dos diversos clãs estavam dispostos a servir-lhe de reserva, se fosse necessário. Noutros tempos, nenhum ódio pessoal o haveria afastado do governo de assuntos mais gerais do seu reino mas, agora, dispunha de tempo para se permitir fazê-lo sem pôr Gales em perigo. A guerra privada de Cynllaith tornara-se mais do que um simples jogo.
Adam defendeu a sua posição contra dois ataques de reconhecimento e enviou um mensageiro para informar Isambard de que a guarda pessoal de Llewellyn havia aparecido em Cynllaith e era comandada pelo capitão da guarda do príncipe, senão mesmo pelo próprio príncipe.
- Muito bem! - exclamou Isambard, ferozmente. - Desta vez, não haverá rei nem tribunal que se interponha entre nós. Vamos enganá-lo, levá-lo até um ponto de onde não possa recuar.
- Devo enviar reforços para a pedreira? - perguntou de Guichet. Nesse momento, Parfois dispunha apenas das suas companhias
regulares de homens de armas que, todavia, representavam uma força bastante significativa.
- Nem um homem! Vós conduzireis uma companhia pela estrada do interior, até Oswestry e eu conduzirei a segunda por Careghofa. Manter-nos-emos escondidos até ele avançar e, então, cercamo-lo pelo Norte e pelo Sul.
A pedreira foi alvo de uma pressão crescente mas não se verificou nenhum ataque directo, enquanto as duas companhias assumiam sem dificuldade as suas posições, a norte e a sul das colinas, à espera de que o príncipe de Gwynedd caísse na armadilha. Os seus batedores infiltraram-se para além da fronteira mas não avistaram nenhum homem armado. Roendo-se de fúria e ansiedade em Careghofa, Isambard esperava.
Ao sétimo dia de Agosto, chegaram a Parfois dois mensageiros. O primeiro era portador da notícia de que o rei Filipe, de França, obtivera uma vitória estrondosa sobre o imperador Otão, em Bouvines, desmantelara a coligação, pondo as suas tropas em debandada pelos campos de França, e obrigara o rei João a negociar uma longa trégua. O segundo vinha de Sul, montado num cavalo que espumava e saltou para o chão mal se encontrou no interior da cerca. Era portador de uma notícia que dizia mais directamente respeito a Parfois. Enquanto Isambard esperava por Llewellyn a norte, este transferira as suas tropas para Sul e atacara o castelo de Erington, na fronteira do Herefordshire.
Numa hora, FitzJohn reuniu todos os homens capazes de montar e aptos a pegar em armas e formou com eles uma companhia heterogénea. Em cinco minutos, mandara um correio, montado no melhor cavalo que havia nos estábulos, dar a notícia a Isambard. Mas Erington não podia esperar a chegada ao Sul das companhias ludibriadas por Llewellyn. Antes de o mensageiro ter conseguido escapar para ir em busca de socorro, os Galeses haviam aberto uma brecha na paliçada e a guarnição, entrincheirada na torre de menagem de madeira, encontrava-se numa posição demasiado vulnerável. Harry largou as ferramentas e ofereceu-se para seguir com os outros, sendo imitado por uma parte dos seus homens. Não era grande mestre na arte da espada mas, numa emergência, sabia manejar uma lâmina e armas era coisa que não lhes faltava.
Partiram a galope de Parfois, em direcção ao Sul, e cavalgaram sob um céu sem nuvens, que vibrava ligeiramente sob a bruma de calor.
- Agosto! - exclamara amargamente FitzJohn, quando montavam a cavalo. - Não vai chover durante um mês e sua reverência, o abade, orgulha-se do êxito das suas preces para pedir bom tempo para a ceifa. Se estivesse bom da cabeça, agora, devia pôr-se de joelhos, a implorar uma boa chuvada.
Os sinos tinham voltado a soar bem alto em Inglaterra. Ouviram os sinos de todas as igrejas do vale tocar as vésperas, quando atravessavam o Clun a vau, quase sem abrandar a marcha para procurar o melhor sítio para transpor o curso de água, que o Verão reduzira um fio.
- Os riachos estão secos e o poço do castelo vai ficar muito baixo - observou FitzJohn, inquieto. - Se lhes faltarem as flechas, precisarão de arriscar-se a sair ou, então, ficam onde estão e morrem assados.
Quando começaram a sair do vale, avistaram, no alto das colinas, o fumo negro e ameaçador que se recortava contra o céu azul-pálido. Longas espirais de fumo subiam e dissipavam-se lentamente no ar quase parado, suspensas como um tecto cinzento acima do horizonte. Ao verem o fiimo, esporearam os cavalos, apesar de estes estarem a espumar por haverem galopado todo o dia.
Mas, a despeito da louca cavalgada, chegaram demasiado tarde. Llewellyn jogara bem as suas cartas e era um homem expedito. Quando desceram das colinas baixas e arredondadas, viram que toda a área da praça-forte deitava fumo, ouviram os estalidos da madeira a ser devorada pelas chamas e pareceu-lhes que todo o castelo estava a arder. Em seguida, enquanto galopavam, gritando, pelos campos, antes de se lançarem ao assalto aos flancos quase a pique da fortaleza, viram os Galeses saltarem do fosso e correrem para os cavalos. Pelo menos um deles tombou, com o corpo atravessado por uma longa flecha. Os arqueiros que se encontravam na torre de menagem ainda tinham flechas. O mais espantoso era conseguirem ver o suficiente para apontar aos alvos.
A coberto da cortina de fumo, os Galeses correram para o bosque mas, antes de terem tempo de soltar as montadas e saltar para as selas, os Ingleses lançaram-se sobre eles, obrigando-os a voltar-se e a combater. Entre as colinas, a floresta de Radnor prolongava-se em grandes línguas de vegetação. Por entre aquela vegetação, os Galeses que haviam conseguido abrir caminho e recuperar os cavalos eram tão difíceis de apanhar como raposas.
Para escapar a uma lança, Harry deitou-se sobre a sela e, com a espada, trespassou o antebraço do adversário, forçando-o a largar a arma. O Galês lançou-se para a frente, para o derrubar da sela, agarrando-o pela cintura com o braço válido, mas Harry voltou a espada ao contrário e, com o punho, desferiu-lhe um golpe violento na testa. Aturdido, o homem afrouxou um pouco a pressão e> libertando um pé do estribo, Harry impeliu o joelho contra o rosto barbudo do adversário, que foi projectado como uma pedra disparada por uma funda. O Galês caiu desamparado em cima das raízes de um carvalho e ali ficou. Pelo espaço de um segundo, Harry hesitou perante o corpo caído e arquejante mas, depois, afastou-se, em busca de um adversário mais válido.
Na confusão da curta batalha na orla da floresta, Harry não feriu mais ninguém. Por duas vezes, foi em perseguição de sombras fugazes, coladas aos pescoços dos seus cavalos, que, tão ousadas e furtivas como os lobos, fugiam a coberto da vegetação. O primeiro distanciou-se com facilidade e Harry abandonou a perseguição do segundo, pois ouvira o chamado da corneta de FitzJohn. Os Ingleses saíram da floresta em formação e convergiram para o casco escurecido de Erington, arrastando consigo seis prisioneiros. Os restantes Galeses haviam-se posto a salvo e, sem cavalos repousados, era inútil tentar apanhá-los. O mais importante era cuidar da guarnição ou do que dela restava.
As portas da paliçada pendiam dos gonzos, abertas para o interior fumarento. À machadada, abriram caminho para dentro do terreiro e lançaram-se ao trabalho, abatendo as vigas que ainda ardiam e apagando as chamas nos locais onde o fogo não se ateara. Todas as cavalariças e todos os armazéns ao longo do pano das muralhas haviam sido pilhados e incendiados. Não havia ali nada que se pudesse salvar; a única coisa a fazer, quando lhes era possível aproximarem-se, era acabar de destruir tudo à machadada. A torre de menagem estava intacta, apenas escurecida pelo fumo e um pouco ardida do lado de onde soprava o vento. As vigas da cave escaldavam e o arqueiro que abriu a porta alta e se debruçou para os chamar estava fumado como um arenque. Mas, lá dentro, a guarnição estava viva. Desceram a escada e retiraram os feridos: estes estavam roucos e sequiosos e beberam avidamente a água que lhes foi oferecida.
- Se não estivéssemos bem providos de frechas e não tivéssemos entre nós quatro excelentes atiradores, há muito que nos haveriam reduzido a cinzas - disse o castelão. - Chegastes mesmo a tempo, pois só nos restavam algumas dúzias de frechas. Levaram o gado há horas, logo que nos encurralaram aqui.
As baixas foram contadas, os feridos e os mortos alinhados em campo aberto, no prado, longe do calor e do fumo sufocante da praça-forte. Sete cadáveres ingleses e quatro galeses jaziam lado a lado, sobre a turfa fresca. Havia três ingleses com ferimentos graves e cinco outros com ferimentos menores. Nos escombros, foram encontrados dois galeses ainda vivos, que foram levados para junto dos seis prisioneiros capturados na luta na orla do bosque.
- Passaremos a noite aqui - anunciou FitzJohn, olhando em volta, à luz do crepúsculo que começava a cair.
As suas instruções foram rápidas: três grupos iam fazer a ronda das aldeias vizinhas - cujos habitantes se haviam por certo barricado dentro das casas à notícia do ataque galês - a fim de requisitarem cavalos repousados e alimentos; uma linha de postos de guarda vigiaria a aproximação dos Galeses, para o caso de estes se sentirem tentados a uma nova visita nocturna; um mensageiro ligeiro, num cavalo fresco, seguiria na direcção de Parfois, ao encontro de Isambard, a fim de o prevenir; e meia dúzia de voluntários iriam embrenhar-se nos bosques, até Radnor, a fim de tentarem descobrir que caminho haviam seguido os homens que conduziam o gado roubado. Os bois são animais muito lentos, que não é possível apressar. Se conseguissem recuperá-los, tanto melhor.
Harry iniciou de boa vontade a patrulha na floresta. Já que tinha de ficar mais um dia ausente do seu trabalho, mais valia gozar a liberdade e o exercício que se lhe ofereciam.
- Aproveitai ao máximo o que resta da luz do dia mas cessai as buscas ao cair da noite - ordenou FitzJohn. - Ficamos a aguardar o vosso regresso dentro de mais ou menos uma hora.
Tal como em Parfois, também ali o domínio de Isambard confinava com as terras de Gales mas, neste caso, sem um rio a separá-los. Harry seguiu sozinho pelo bosque e o silêncio era tão profundo que a agitação e as chamas de Erington se tornaram irreais. Por duas vezes, foi dar a lugarejos no meio da floresta mas os seus habitantes não haviam visto nem ouvido os assaltantes ou, então, era seu hábito fecharem os olhos e os ouvidos quando, por acaso, tais visitantes vinham perturbar a sua solidão. Deste lado da fronteira, havia sangue galês nas veias de muitos e mesmo aqueles que eram incontestavelmente ingleses tinham de viver em paz com ambos os lados para garantirem a segurança das suas casas. Harry encontrou ainda uma clareira cultivada, com um mísero casebre, quase de certeza um terreno ilegal. Nos tempos que corriam, a lei coxeava das duas pernas. Quanto tempo teria passado desde a última visita dos juizes do rei àqueles condados de fronteira? Anos? A perspectiva de uma futura mudança para melhor era nula, agora que se falava abertamente de uma aliança dos nobres contra o rei, para pôr termo às violações dos seus direitos senhoriais. Quando Corbett, FitzAlan e outros que tais começavam a falar de defender os seus direitos, era pouco provável que alguém viesse a prestar atenção aos direitos dos mortais mais humildes.
Harry cavalgava em silêncio sobre o solo esponjoso, contente com a sua solidão. Na verdade, não queria encontrar o rasto dos galeses. Que levassem o produto do saque! Haviam perdido homens bastantes para o conseguir e fora Isambard o primeiro a fazer da rivalidade uma guerra sem tréguas. Estava quase a dar meia volta para regressar ao castelo, quando avistou uma figura pequena e furtiva, que corria entre as sombras do crepúsculo, desaparecendo em seguida numas moitas. Os ramos já tinham deixado de se agitar, quando o cavalo de Harry passou por eles. Quem ali se escondera estava agora acocorado, a coberto da vegetação.
Harry avançou um pouco para além da moita, libertou os pés dos estribos e, de um salto, lançou-se sobre o fugitivo, quase caindo em cima das suas costas. Um grito agudo, de medo, feriu-lhe os tímpanos e um corpo pequeno e magro, escorregadio que nem uma enguia, começou a debater-se para lhe escapar, quase o conseguindo. Harry viu o súbito brilho do aço apontado ao seu peito e, esticando a mão, agarrou um pulso tão frágil que quase se lhe escapava entre os dedos. Uma voz ofegante, sibilante como a de um gato assanhado, cuspia insultos em Galês. A criaturinha assustada debatia-se tanto que lhe era difícil segurá-la. Mas, ao cabo de alguns instantes, as forças começaram a faltar-lhe e as pragas a ser entrecortadas de soluços. Harry arrancou a adaga da mão que desfalecia, atirou-a para o meio dos arbustos e, segurando firmemente o corpo magro com o braço direito, levou-o para terreno aberto e pô-lo de pé.
- Chiu! Acalma-te! Não te vou fazer mal. Sabes Inglês?
De início, não obteve resposta. A criança continuava a tremer entre as suas mãos, pronta a fugir como uma lebre, na primeira oportunidade. Era um rapazinho de cabelos pretos, vestido com umas meias e uma túnica castanhas, com um pequeno manto de tecido de fabrico caseiro preso ao ombro por uma argola de ouro. Na penumbra nascente, o rosto que o mirava de lado parecia dominado pelos olhos, uns olhos vivos e brilhantes, esquivos e provocantes como os de uma raposa. Não devia ter mais de nove ou dez anos e era pequeno para a idade. O manto estava rasgado e a face esquerda arranhada e com uma nódoa negra. Harry pôs um joelho em terra, para ficar à altura da criança e, num tom de voz suave, perguntou-lhe:
- Percebes o que eu digo, não percebes? Não tenhas medo. Não te faço mal. Mas o que andas a fazer, sozinho, no meio do bosque? Caíste do cavalo?
Lentamente, o rapazinho fez que sim com a cabeça e, depois, respondeu em Inglês:
- Tentei apanhá-lo mas ele fugiu.
Tremia mais violentamente mas estava menos assustado.
- Estás ferido?
A pergunta destinava-se mais a criar alguma simpatia do que a obter uma informação. A avaliar pela forma como se debatera, não sofrera nada mais grave do que um enorme susto.
- Pronto. Agora explica-me como vieste aqui parar sozinho. De certeza que não te trouxeram com eles para o ataque.
Para espanto de Harry, o rapaz desatou a chorar ao ouvir estas palavras. Era evidente que havia qualquer coisa que o angustiava mais do que o medo de se encontrar sozinho, apanhado pela noite, do lado errado da fronteira. Harry viu-se forçado a oferecer-lhe o ombro para chorar, a encostá-lo a si e a falar-lhe docemente enquanto ele dava vazão ao seu desgosto, numa mistura de palavras galesas e inglesas. Afinal, aquilo nada tinha de surpreendente, pois há crianças desobedientes em todo o lado.
- Ah, então o teu pai deixou-te em Llanbister e ordenou-te que não saísses dali. Está à espera de te encontrar são e salvo, quando regressar. E é assim que tu lhe obedeces!
- Eu queria ver - justificou-se a criança, com uma réstia da audácia que o lançara naquela situação.
- Nunca te disseram que foi a curiosidade que matou o gato? - perguntou Harry. - Se houvesses feito o que te ordenaram, não terias dado uma queda e apanhado um susto. Seja como for, vamos ter de arranjar um sítio para passares a noite e comida para encheres a barriga.
- O meu pai vai bater-me - disse o rapaz, que começou novamente a chorar.
- É possível e bem o mereces. Mas esta noite não. E, depois, quem sabe? Pode ser que, quando te vir, fique tão contente que se esqueça dos teus pecados. Agora anda, vou levar-te comigo. Não tenhas medo. Prometo que nada te acontecerá.
A cabeça morena afastou-se nervosamente do seu ombro, num salto semelhante ao de um potro assustado.
- Vós sois inglês!
- Pois sou mas, lá por isso, não sou nenhum monstro. O que vai acontecer se te deixar aqui? Vem comigo e confia em mim. Sempre sou melhor que os lobos.
Sentou o rapaz diante de si na sela e levou-o para Erington. Já era de noite quando mergulharam no cheiro acre do fumo e no brilho fraco lançado pelas madeiras que ainda ardiam. O ar ainda vibrava devido ao calor. O rapaz, que dormitara no ombro de Harry durante o trajecto, acordou de repente e olhou em volta receoso, de olhos muito abertos, firmemente agarrado à manga do seu captor, quando este o fez desmontar no meio de estranhos.
- Santo Deus, Harry! - exclamou FitzJohn. - O que trazeis aí?
- Um jovem imprudente, que foi onde lhe disseram para não ir e se perdeu no bosque. Está abalado e tem umas nódoas negras mas nada de grave. Esta noite, vou partilhar o meu manto com ele e, amanhã, tratarei de o levar para a sua terra. Vejo na cara dele que, se lhe derdes de comer, ganhareis o seu eterno reconhecimento.
- É galês? - perguntou FitzJohn, endurecendo o olhar.
- Graças a Deus! - respondeu prontamente o rapaz, sem dar tempo a Harry para responder.
E, todo encrespado, atirou a cabeça para trás, como um cão de caça preparado para atacar.
- E tem um feitio terrível - disse Harry, rindo. - Vem, vamos ver se arranjamos comida, para ver se ficas menos belicoso. Há notícias de Lorde Isambard?
- Enviou de Guichet, com o grosso das tropas, de Clun, para tentar interceptar Llewellyn. Mas não me parece que espere grande coisa, caso contrário iria ele mesmo. Os Galeses levam um grande avanço. O resto das tropas foi mandado para Parfois, excepto as da sua escolta. Passam esta noite em Clun e, amanhã de manhã, estarão aqui.
- Pelo menos, ele já sabe que a maior parte da guarnição se salvou - comentou Harry, agarrando no braço do rapaz, para o conduzir.
Deu-lhe biscoitos de aveia e um pouco da carne de vaca que havia sido cozida e ficou a vê-lo comer com apetite. Depois, cortou algumas braçadas de ervas altas e secas, dispô-las sobre o solo fofo da orla do bosque, para fazerem de colchão. A criança sentou-se, de ombros curvados, os braços em volta dos joelhos dobrados e erguidos até ao queixo, a olhar para os rostos estranhos que o rodeavam, desconfiado e solitário. Harry embrulhou-se no seu manto e deitou-se, sem lhe dizer nada. Poucos minutos depois, os olhos escuros fitaram-no com inveja e o rapaz aproximou-se um pouco. Sorrindo, Harry ergueu-se sobre o cotovelo e ergueu o manto, sem dizer palavra. Como convite, foi quanto bastou. Reconhecida, a criança aninhou-se na cova do braço de Harry e encostou-se a ele. O manto fechou-se sobre ambos.
- Como é que te chamas, diabrete? Esqueci-me de te perguntar.
- Owen ap Ivor ap Madoc - murmurou a voz ensonada, junto ao seu ombro, antes de se ouvir um enorme bocejo.
- Então, boa-noite, Owen ap Ivor ap Madoc! Não tenhas medo. Quando acordares, estarei aqui.
Isambard chegou de madrugada, antes de o sol nascer e de os homens do acampamento haverem acordado. Deixara a armadura em Clun, trazendo apenas a cota de malha e a espada. Escoltavam-no três cavaleiros. De rosto impassível, impenetrável como se fosse uma máscara, examinou, com igual calma, o que fora destruído e o que se salvara do seu castelo. Olhou para os seis prisioneiros vivos e para os dois semimortos e ordenou:
- Enforquem-nos!
- Todos, senhor? Há dois que não se aguentam de pé.
- Só é mister que os iceis mais duas jardas para os enforcar - respondeu Isambard, no mesmo tom neutro, olhando com indiferença para a orla do bosque. - Há ali árvores que cheguem.
O olhar frio deteve-se no monte de erva seca sobre o qual se encontravam dois corpos adormecidos, cobertos por um manto.
- Quem é? Onde encontraram aquela criança? Aproximou-se para ver melhor e franziu o sobrolho, quando olhou para o rosto corado do rapazinho despenteado, aninhado no ombro de Harry. FitzJohn aproximou-se também.
- Harry apanhou-o na floresta, perto da fronteira. Parece que veio atrás dos assaltantes por curiosidade e, na confusão da retirada, caiu do cavalo e perdeu a montada. Penso que a captura dele nos pode ser muito útil.
- É galês? FitzJohn riu.
- Um verdadeiro galês. Quando fiz a mesma pergunta, quase me cuspiu na cara. Só o reconheci quando ele cantou de galo. Não vos lembrais da cara dele, senhor?
Isambard voltou a franzir o sobrolho, reflectindo.
- Parece-me que já o vi mas não me lembro onde. Se sabeis, falai. Quem é ele?
- Deveis tê-lo visto em Aber. Ah, claro que não havia nenhum motivo para atentardes nele: os assuntos que havíeis eram com homens e não com crianças. Mas enquanto ali estive ao vosso serviço, depois de haverdes regressado a casa, encontrei várias vezes este rapaz na corte, na companhia do filho da princesa Joana. É o herdeiro de Ivor ap Madoc, que foi penteulu do príncipe... o capitão da sua guarda... até morrer, há alguns anos. O rapaz é filho adoptivo de Llewellyn.
- Há quem diga que é mais do que isso - acrescentou Langholme, num tom meio respeitoso, meio entendido, olhando de lado para o seu senhor.
- Que quereis dizer com isso? Lembro-me bem de Ivor ap Madoc. É muito natural que Llewellyn haja recolhido o filho dele. Seria apenas uma extensão do costume habitual.
- Decerto, meu senhor, mas não é só isso.
- Não há dúvida de que só vós seríeis capazes de ficar a saber todos os falatórios da criadagem de Aber, após uma única visita - observou Isambard, com um trejeito de desdém.
Apesar disso, escutou com interesse.
- Ninguém ousa dizê-lo em voz alta e eu próprio não o afirmaria, mesmo em voz baixa. Mas Ivor esteve casado, durante cerca de sete anos, com uma dama de Lleyn e, para grande desgosto de ambos, não tinham filhos. Ele recusava-se a repudiá-la por gostar muito dela mas precisava de um herdeiro, para preservar o seu feudo de quatro primos brigões. Penso que estiveram prestes a separar-se quando, de repente, a dama apareceu grávida e tudo se resolveu pelo melhor. O príncipe de Gwynedd era um grande amigo de ambos e também lhe convinha que houvesse um filho, para as terras não serem divididas. Há quem diga que os três fizeram um acordo, embora o boato mais corrente seja que o príncipe e a dama conspiraram em favor da felicidade de Ivor. Morreu quando o rapaz estava para fazer dois anos mas morreu contente.
- Pode ser verdade - comentou FitzJohn, em voz baixa, olhando para a criança. - Tem o cabelo tão preto como o de Llewellyn e a mesma soberba. E, em Aber, pareceu-me que o príncipe gostava tanto do filho adoptivo como do próprio filho. Contudo, não ouvi nenhum rumor sobre a forma como obteve a sua guarda.
- Sim, pode bem ser verdade - disse Isambard, num tom sombrio. - Não seria ela a primeira a conseguir um herdeiro com a ajuda de outro homem. Todavia, Llewellyn reconhece o seu bastardo com todo o orgulho e não me parece ser da sua natureza ocultar este.
- Não podia proceder de outro modo, nem mesmo depois da morte de Ivor, meu senhor, a bem do bom-nome de Ivor e da dama - observou Langholme. - O rapaz é dono uma boa herança por parte do pai que o reconheceu. Possui terras em Arfon e em Ardudwy e não precisa de um dote do príncipe. Quanto ao desejo do príncipe de conservar o filho consigo, bem vedes que já se cumpriu. Quando a mãe voltou a casar... o clã dela casou-a com um lorde de Eifionydd, de quem já tem dois filhos... Llewellyn sugeriu-lhe adoptar o rapaz. Pelo menos é o que se diz. Foi pouco depois do nascimento do jovem David e os dois cresceram juntos. Quer a história seja ou não verdadeira, por aquilo que vi em Aber, o príncipe gosta igualmente dos dois. Penso, meu senhor, que, para recuperar este rapaz, ele acordaria uma paz perpétua e, ainda por cima, seria capaz de vos pagar uma indemnização por Erington.
O sol nascente estendia longos dedos de luz sobre as encostas cobertas de prados, a Leste, e filtrava-se por entre os ramos sob os quais eles dormiam, acariciando primeiro os lábios macios e entreabertos de Owen, depois as faces redondas e, finalmente, as pestanas compridas e as pálpebras lisas. A carícia penetrou no sono de Owen e este mexeu-se, sob o braço protector de Harry. Espreguiçou-se e bocejou como um cachorrinho sonolento e, depois, abriu os olhos. O brilho do sol, reflectido pelos anéis de Isambard fê-lo voltar a semicerrar os olhos e a desviar a cabeça, acabando por o despertar bruscamente.
Owen descobriu rostos estranhos, um céu claro, os ramos que se agitavam ligeiramente por cima da sua cabeça, sentiu o corpo musculado de um homem ao lado do seu, o solo duro por baixo do corpo, em vez do seu leito macio e perfumado e do calor suave do irmão adoptivo. Soltou um gritinho de susto e ergueu-se, despertando Harry, que possuía o dom de acordar por completo mal abria os olhos. O seu braço tranquilizador cingiu o corpo de Owen e apertou-o contra si. A sua voz, já familiar por entre tantas coisas que não o eram, tranquilizou-o:
- Calma, Owen ap Ivor ap Madoc. Para que é preciso gritar, numa manhã tão bonita?
Voltou a cabeça para sorrir ao rapazinho e viu os três homens debruçados sobre eles, fitando-os em silêncio, com expressões estranhas e de mau augúrio. Pelo menos, foi o que lhe pareceu. Ao reconhecer Isambard, afastou o manto e levantou-se de um salto, sorrindo.
- Meu senhor! Não sabia que estáveis aqui. Apanhastes-me desprevenido... espero que o meu sono fosse decente.
- Que nem o de uma criança - replicou Isambard, sem sorrir. - Já me falaram do vosso prisioneiro, Harry. Fizestes uma captura de uma certa importância.
Harry analisou o olhar e a voz e, aos poucos, chegou à verdade. O sorriso desapareceu-lhe do rosto. Estendeu a mão e puxou Owen para si.
- Eu não... eu não o considerei um prisioneiro, meu senhor.
- Nesse caso, é melhor começardes a fazê-lo, pois é isso que ele é.
- Ele não participou no ataque ao vosso castelo - argumentou Harry. - Encontrei-o perdido na floresta e é minha intenção cuidar de que ele encontre o caminho para casa em segurança.
- Em vez disso, podeis levá-lo convosco para Parfois, devidamente escoltado. Receio que não encontrásseis o caminho de volta, Harry, se vos deixasse partir sozinhos.
Não estava irado. Até conseguiu sorrir mas, no seu rosto descarnado, o sorriso parecia extremamente cruel.
- Nunca foi vosso hábito fazer a guerra contra crianças - disse Harry, sustentando-lhe o olhar.
- Não contra elas, Harry, mas talvez com elas. Suponho que não sabeis que tendes junto a vós o preço da paz ao longo desta fronteira. - Dirigindo-se a Owen e dando à voz um tom de uma delicadeza fria mas não agressiva, acrescentou: - Conta-lhe, rapaz. Diz-lhe qual é o teu parentesco com o príncipe de Gwynedd.
Fosse em homenagem ao seu povo, fosse por se sentir ofendido por ser objecto de uma discussão aberta, Owen optou por responder em Galês, com um brilho de desafio no olhar.
- Ele disse «pai», não foi? - perguntou Isambard, que conhecia apenas algumas palavras daquela língua bárbara.
- Não - respondeu Harry. - Ele disse «pai adoptivo».
- Para um galês, isso pouca diferença faz. Se for preciso, lutam até à morte pelos irmãos e filhos adoptivos. Não sabíeis qual era o parentesco?
- Não, não sabia, mas isso não altera nada. Seja quem for, esta criança não é responsável por este conflito. Não é um prisioneiro de guerra.
- Isso é discutível. Foi capturado nas minhas terras e está ligado, ainda que de longe, ao grupo que praticou este saque. É prisioneiro do rei, uma vez que foi apanhado em terras que o rei me confiou, em violação das tréguas decretadas pelo rei. Vai para Parfois.
- Eu prometi-lhe abrigo e segurança - protestou Harry. - Fareis outro tanto, meu senhor?
- Não preciso de fazer promessas aos meus prisioneiros nem farei nenhuma promessa aos meus subalternos.
A secura da voz e a enorme palidez dos lábios crispados indicavam que Isambard estava prestes a perder a paciência, de um momento para o outro, como era habitual. Harry Talvace era o único a beneficiar de uma certa tolerância mas o limite estava perigosamente próximo.
- Se desejais levá-lo, levai-o. Caso contrário, Langholme levá-lo-á. O que me importa é pô-lo a salvo. Llewellyn vai ter de pagar bem caro por ele. Vou fazê-lo suar bastante.
Não havia apelo. O rapaz mantinha uma posição hirta, num silêncio que era um desafio, mas a sua mão pequenina agarrava-se à manga de Harry com uma ansiedade desesperada.
- Muito bem. Eu levo-o, se assim tem de ser. Permiti-me, pelo menos, que sejamos eu e a minha esposa a tomar conta dele, enquanto estiver em Parfois.
- Se assim o desejais - respondeu Isambard, com um sorriso em que se notava algum desprezo. - Arranjai um cavalo para o rapaz, FitzJohn, e escolhei seis arqueiros para o escoltarem. Arqueiros, Harry! - repetiu, intencionalmente. - Quando eu voltar, quero encontrar ambos em Parfois... vivos ou mortos.
- Eu disse que o levava!
- Ainda bem. E é melhor afastá-lo rapidamente daqui, antes de tratarmos dos seus compatriotas.
Harry percebeu e sentiu o coração apertar-se-lhe, ao recordar o galês barbudo que havia ferido. Ainda que não amistoso, o breve encontro entre os dois fora um encontro de homem para homem mas, para Isambard, os inimigos não eram homens. Harry apressou-se a dar de comer ao rapaz e a montá-lo num cavalo. Eles não iriam adiar a sua sinistra tarefa para não chocar o rapaz. Apesar de apreensivo, Owen comeu com tal apetite que Harry achou aconselhável encher a sacola de provisões. Os rapazes pequenos estão sempre com fome. Quando se puseram a caminho, a criança recuperou algum ânimo. Um dia de sol, o passeio a cavalo e a presença de alguém que se mostrava amigável aliviaram o desconforto e o medo. Ainda silencioso e nervoso, enquanto atravessavam as colinas baixas, Owen recuperou a coragem ao ver o alívio de Harry, quando o casco calcinado de Erington desapareceu por trás de uma crista e, com ele, o bosque e as suas árvores utilizadas para tão sinistros fins.
- Quem é aquele homem terrível? É o senhor de Parfois?
- É, mas não o verás muitas vezes. Ficarás comigo. A minha esposa vai cuidar bem de ti. Não te preocupes com ele.
- Vou ter de ficar lá muito tempo?
- Não muito - respondeu Harry, com mais convicção do que aquela que sentia. - Vão chegar rapidamente a um acordo a teu respeito e, depois, vais para casa.
- O meu pai adoptivo só vai ficar a saber que desapareci, quando chegar a Llanbister. E, mesmo assim, não saberá onde estou. Ninguém sabe! - exclamou com os lábios trementes e uma expressão prenunciadora de lágrimas. - Vai ficar preocupado comigo.
- Não te apoquentes tanto - disse Harry, tentando animá-lo. - Vão mandar-lhe dizer onde estás.
Gostaria de ter a certeza disso. Deixar Llewellyn, morto de ansiedade, percorrer a floresta de Radnor em todas as direcções e procurar ao longo da fronteira, em busca do filho adoptivo, poderia agradar a Isambard, como uma agradável primeira etapa na exploração daquela vantagem inesperada.
- Imagina que estás de visita a Parfois e que, em breve voltarás para casa, com os teus pecados perdoados - aconselhou Harry. - Mas não voltes a desobedecer. Prometes?
Owen prometeu, embora com menor fervor do que aquele que haveria mostrado uma hora antes. Começava a tomar gosto pelo passeio e quase a sentir-se desejoso de chegar a Parfois. As palavras tranquilizadoras de Harry pareciam-lhe convincentes, porque desejava ser convencido. Na altura em que atravessaram o rio, chapinhando na água, recuperara a alegria e vangloriava-se da sua principesca escolta de arqueiros, que, embora vigilantes, seguiam atrás a uma distância respeitosa. Muito antes de chegarem ao caminho verdejante que conduzia a Parfois, já ele conversava e cantava que nem um melro. O aparecimento, no alto da encosta, das duas primeiras torres de vigia silenciou-o mas, quando atingiram a plataforma e depararam com o castelo e com a igreja, tingida de dourado pelo sol, com a sua torre alta erguida para o céu, por entre a rede de andaimes, os seus olhos esbugalharam-se de excitação, maravilhados. Estava demasiado encantado e insaciavelmente curioso para sentir medo. Nem mesmo a grande fortaleza de Liewellyn, em Aber, se assemelhava àquilo. Owen voltava a cabeça para a esquerda e para a direita, observando tudo. As perguntas viriam mais tarde, numa torrente inesgotável. De momento, estava sem fala.
Gilleis atravessava o pátio do castelo em direcção à Torre do Rei, quando Harry e Owen atravessaram lado a lado a escura passagem entre a barbacã e o pátio, a mão do primeiro sobre o ombro do rapaz. Ao vê-los, parou, estupefacta, como que abalada por uma visão profética.
Desde o casamento e, mais recentemente, com um desejo insistente e crescente, sonhara com a felicidade que seria segurar nos braços um filho de Harry. Haviam falado várias vezes nisso, sempre como algo que seguramente acabaria por acontecer, mas nos últimos tempos Gilleis principiara a preocupar-se. Ao fim de quatro anos de casamento sem filhos, as pessoas começam a considerar a mulher estéril. O amor continuava a existir, um amor sem sombras mas, também, sem a sua coroa de glória. E, agora, de súbito, ali estava Harry, sem ser esperado e sem os seus companheiros de armas, trazendo pela mão uma criança perfeita, robusta, maravilhada, como quem traz um presente milagroso. Um rapaz atrevido, de cabelo preto, doce, de passadas decididas, com uns olhos escuros e uma boca rosada, como a mãe, e com a tez escura, a tenacidade e o orgulho do pai. Dirigiam-se para ela, Harry a sorrir e a criança com uma expressão grave, comportando-se o melhor que sabia.
Gilleis também sorria, sem se aperceber de tal. Era um sorriso interrogativo e maravilhado, como se o sol brilhasse nos seus olhos.
- Trouxe-te um convidado, Gilleis - anunciou Harry, estendendo para ela a mão que tinha livre. - Apresento-te Owen ap Ivor, que vai viver connosco por algum tempo. Dá-lhe as boas-vindas!
Decidida a honrar o seu sangue e os seus, a criança fez uma vénia tão solene que só a obediência absoluta a um rei parecia ser a resposta adequada mas logo se redimiu, fitando-a com um olhar tão cândido como uma flor e erguendo o rosto para receber um beijo. Gilleis rodeou-lhe as faces com as mãos e beijou-o.
- O meu coração dá-te as boas-vindas, Owen. Estou muito, muito contente por te conhecer.
Puxou-o para si e, nos seus braços, o corpo rígido do rapazinho amoleceu, contra o calor e a doçura do peito dela. Owen lançou-lhe os braços ao pescoço e encostou a face macia ao rosto dela. Gilleis sentiu-se submergida por uma onda de felicidade silenciosa.
Nas colunas do pórtico sul, que Harry esculpia in situ, via-se, de um lado, um pequeno anjo risonho e, do outro, um diabinho rebelde mas sedutor, ambos com o rosto de Owen ap Ivor. Ora anjo turbulento e mimado, ora diabinho terno e generoso, ninguém poderia alguma vez dizer qual das duas figuras era mais fiel ao modelo.
Em meados de Setembro, Owen sentia-se em casa em Parfois, apesar de os seus movimentos se encontrarem limitados aos dois pátios do castelo e de se irritar por ser mandado para trás, sempre que seguia Harry até à ponte levadiça. Dentro de portas, não havia espaço suficiente para a sua energia e para as suas brincadeiras e, além do próprio rapaz, havia mais quem considerasse penosa aquela prisão. Em especial, os falcoeiros, que ele escolhera como companheiros preferidos, juntavam as suas sentidas preces às de Harry, quando este suplicava que fosse permitido ao rapaz ir pelo menos até à igreja. Gostavam bastante dele e admitiam que, para os poucos anos que tinha, o rapaz sabia muito de aves, embora Owen fosse tão perigosamente destituído de medo que tratava os grandes gerifaltes como se estes fossem esmerilhões de estimação para senhoras. Os falcoeiros tinham um medo terrível de que, a qualquer momento, ele perdesse um dedo, ou mesmo um olho.
- Não é intenção dele fugir - afirmava Harry. - E, mesmo que fosse, só há uma via para sair daqui. Tanto faz fixar como limite a babaca ou a porta da muralha. Ele seria mais dócil, se o deixásseis montar a cavalo de vez em quando. Se fosse acompanhado por dois arqueiros, não haveria qualquer perigo de se escapar. Bastava cuidar de que os arqueiros tivessem melhores montadas do que ele.
- Sois muito solícito com ele - comentou Isambard, contorcendo os lábios naquele sorriso raivoso, nele tão frequente.
- Sei como eu haveria reagido, na idade dele, se me houvessem mantido enclausurado durante tanto tempo. Por esta altura, já teria feito desabar as torres sobre a vossa cabeça.
- Isso acredito eu! Está bem, ele pode montar a cavalo, se isso vos deixa satisfeito. Vou ordenar a FitzJohn que escolha dois arqueiros de confiança para o escoltarem e ele poderá ir até à barbacã.
Harry agradeceu e dirigia-se já para a porta, contente por ser portador de tão boas notícias, quando Isambard o chamou.
- Ele faz perguntas? Sobre quando vai voltar para casa?
- Faz. Mas já com menos frequência. Nem todos os dias.
- E que lhe respondeis?
- Que posso eu responder? Digo-lhe que será em breve. - Após uma pausa, durante a qual olhou para a mão ossuda, para os anéis demasiado largos, Harry perguntou: - Llewellyn sabe que ele está aqui?
O sorriso alastrou dos lábios para os olhos encovados, acendendo duas chamas vermelhas de amargo divertimento, que pareciam arder num vasto mar de ódio.
- Amanhã saberá. O mensageiro vai a caminho, neste momento. Não sabíeis que, há três dias, chegou aqui um correio dele? Quem haveria de pensar que ele tardaria tanto tempo a lembrar-se de indagar aqui? De Llanbister a Erington a distância é grande e parece que o cavalo do rapaz já fizera quase metade do caminho de volta, quando o encontraram e, por isso, não era possível adivinhar que direcção havia seguido. Durante todo este tempo, viraram as redondezas de pernas para o ar. Ainda há lobos em Radnor.
- E não só em Radnor - disse Harry, cruamente.
Isambard lançou a cabeça para trás e soltou uma curta gargalhada. Havia naquele movimento algo do movimento de uma fera e o eco selvagem do riso fazia realmente lembrar o uivo de um lobo.
- Ainda tentais ser a minha consciência, não é, Harry? Não vos disse, um dia, que, se fizerdes o papel de padre itinerante, correis o risco de ter o mesmo destino?
- Há fins piores do que os deles - replicou Harry. - Ides entregar o filho adoptivo a Llewellyn, não ides? Uma vez que lhe destes a conhecer que ele está aqui, suponho que haveis fixado as vossas condições para o entregar. Para ser sincero, meu senhor, e apesar de a Gilleis ir sentir muito a falta dele, confesso que ficarei feliz, por vós e por Owen, quando ele regressar a casa são e salvo.
- A vossa esposa poderá contar com ele ainda durante algum tempo - respondeu Isambard, com amarga satisfação. - Não vai ser a bolsa de Llewellyn a pagar por ele, nem o seu gado, nem uma indemnização por Erington, nem a sua promessa de manter a paz. Ainda não estabeleci as minhas condições, Harry. Ainda é muito cedo, Llewellyn ainda não sofreu nada. Muitos mensageiros correrão entre Aber e Parfois, antes de se falar em condições e, quando isso acontecer, há-de haver muitas demoras e incertezas. Vou fazer o príncipe de Gwynedd dançar ao som da minha música durante todo o Outono e, depois, quando houvermos acabado de extrair todas as pedras da pedreira, obrigá-lo-ei a vir aqui e a pedir, de joelhos, que lhe entregue o rapaz.
Isambard calou-se, perscrutando o rosto de Harry, mas foi o silêncio que lhe respondeu.
- Decepcionais-me - disse, num tom trocista. - Pensei que iríeis exclamar: «Ele não fará tal.»
- Claro que fará - respondeu Harry. - Já o fez por Gales e fá-lo-á por Owen. E, quando o fizer, não será ele quem se rebaixa.
Harry voltou as costas e saiu, lentamente, porque esperava voltar a ser chamado mas não ouviu nenhuma voz, suave e fria, pronunciar o seu nome nem foi detido por um grito de raiva. Fechou a porta atrás de si e desceu a escadaria de pedra, sempre à espera de um chamamento irado, quase desejando ouvi-lo, mas em vão.
Todavia, Harry obteve todas as concessões que pedira. Owen saía alegremente a cavalo com os seus dois guardas, considerando-os o tributo devido a um príncipe galês e, quando não corria pelo campo para fazer voar o pequeno falcão bem treinado que lhe fora confiado, andava geralmente colado aos calcanhares de Harry, na igreja e na oficina, metendo o nariz em tudo, mudando as ferramentas de sítio, mexericando nas gruas manuais, agarrando em desenhos para fazer rabiscos no verso, sempre com uma inocência desarmante. A única forma de o manter quieto era fazê-lo posar como modelo. Bastava Harry pedir-lhe que se sentasse para posar para ele ficar imóvel durante uma hora, de bom grado e cheio de fervor. Nos frontões do altar-mor, as feições dos doze anjinhos que tocavam e cantavam, num concerto seráfico, eram as de Owen. Tocava rebeca, harpa, cítara, charamela, guiteme, cornetim, gaita-de-foles e órgão, sempre com uma solenidade atenta, e quatro outras imagens suas cantavam a plenos pulmões, saindo de um grande saltério.
Invariavelmente, utilizava o macete e o escopro em pedras nas quais não deveria tocar mas aleijava os dedos antes de causar muitos estragos. Gilleis ralhava-lhe e consolava-o, banhava-lhe a mão dorida e, mal a dor passava, via-o correr para junto de Harry.
Sob ameaça de um terrível castigo, no qual não acreditava seriamente, estava proibido de pôr os pés nos andaimes, a não ser acompanhado por Harry. Mas isso era mais uma coisa que ele tinha de experimentar por si próprio. Como entrava e saía à vontade, quando deram pela sua falta na oficina ninguém se preocupou muito. Ao fim da tarde, porém, depois de todos os pedreiros haverem regressado da torre, Owen continuava desaparecido e as buscas só terminaram quando um grito agudo, misto de bravata e pânico, atraiu todos os olhares para a prancha mais alta da armação que rodeava o parapeito semiacabado, mais de cem pés acima do solo. O grito que chegou até eles, depois de haver atravessado o ar límpido e parado, era fraco como o de um passarinho. E lá estava Owen ap Ivor, pendurado pelos dois braços de um dos postes dos andaimes, com os pés oscilando sobre o vazio.
Reprimindo o instinto de expressar a cólera e o medo num grito que assustaria o rapaz e poderia fazê-lo cair, Harry chamou-o e ordenou-lhe, em voz firme e calma, que ficasse onde estava e subiu para o ir buscar. Quando Owen estava já a salvo, no solo, Harry teve um ataque de fúria, ainda mais impressionante por haver sido adiado: arrastou o prevaricador para a casa do risco e infligiu-lhe todos os correctivos que até aí lhe prometera
Por nada deste mundo Owen seria capaz de chorar ao ser castigado, embora tivesse gostado de chorar, por razões menos óbvias. Quando voltou a ser posto de pé, sem quaisquer cerimónias, e a vara de aveleira foi atirada para um canto, voltou as costas a Harry e saiu a grandes passadas, de rosto erguido, como o príncipe ofendido que de facto era, com total desprezo pelos golpes que recebera. Mas, dez minutos mais tarde, estava de volta. Espreitou timidamente à porta, primeiro só com um olho, preto, muito aberto e tristonho; depois, com ambos. Avançou um pé, depois o outro, e continuou, colado à parede, com uma indiferença estudada, como se ainda não houvesse decidido se queria ou não que reparassem nele.
Harry encontrava-se debruçado sobre as suas mesas, reunindo os desenhos que fizera para o altar da Virgem. Pelo canto do olho, observou aquela aproximação furtiva mas fingiu não dar por nada. Owen encostou-se à extremidade do cavalete e começou a desenhar aplicadamente na madeira, com a ponta do dedo, e foi prolongando um dos seus traços imaginários de forma a, a pouco e pouco, se aproximar de Harry. Mas o peixe não mordeu o isco. Um instante depois, o ombro do rapaz encostava-se insinuantemente ao flanco de Harry. Só então este olhou para a cabeça coberta de caracóis, que continuava obstinadamente voltada para o lado oposto, mas que acabou por se voltar um pouco, apenas o suficiente para lhe lançar um olhar de reprovação. Harry sorriu, largou o compasso e abriu os braços, nos quais Owen se lançou imediatamente, abraçando-o com força. Não disse nada e mergulhou o rosto na cota de Harry, agarrando-se a ele, pedindo desculpa sem palavras.
- És um rapaz muito mau, Owen ap Ivor ap Madoc! - disse Harry, em tom solene, retribuindo o abraço. - De futuro, vais obedecer-me e não voltas a pregar-me sustos de morte, prometes?
Aninhada no seu ombro, a cabeça de Owen fez que sim.
- Temi que te magoasses... e, por isso, magoei-te eu. Ora aqui tens o que é a lógica!
Todavia, Owen não deu sinal de achar nela nada de irracional. Já lhe devia ter acontecido algo parecido. Tranquilizado quanto ao estado das relações entre ambos, libertou-se dos braços de Harry e correu para Gilleis, assobiando desafinadamente.
Agora, só de vez em quando se deixava arrastar pela nostalgia e repetia a pergunta de sempre:
- Quando é que vou para casa?
- Em breve - respondia apressadamente Harry, olhando em volta, em busca de qualquer coisa que pudesse distraí-lo. - Muito em breve.
Durante a noite, Owen teve um pesadelo e, dominado pelo pânico, acordou numa escuridão palpitante, que lhe pareceu povoada pelas terríveis personagens do sonho. Desejoso de companhia e de carinho, mas demasiado orgulhoso por reclamar uma e outro em voz alta, começou a soltar ténues gemidos e longos suspiros, como se fosse presa de um sono agitado. A artimanha resultou, pois teve a satisfação de ouvir uns passos leves junto à porta do minúsculo quarto onde dormia, junto à parede da torre. Durante a noite, a porta que o separava do cómodo de Harry ficava sempre aberta, para Gilleis poder ouvir, se ele chamasse, coisa que ainda nunca o fizera. Em Aber, não dormia perto do quarto dos pais adoptivos mas, lá, tudo lhe era familiar e David estava sempre ao seu lado, pelo que nunca tivera medo de nada.
De cabelos soltos sobre os ombros, Gilleis trazia uma lamparina na mão. Olhou para o rapazinho adormecido e sorriu, ao ver as pálpebras demasiado fechadas e a expressão vigilante que o traíam. Inclinou-se e beijou-lhe a face, para ele poder acordar e apreciar devidamente o sucesso obtido. Cheio de gratidão, Owen abriu os olhos, estendeu os braços para ela e os maus que haviam povoado o pesadelo desapareceram num instante.
Ajoelhada ao lado do leito, Gilleis encostou-o ao peito, enquanto, meio a dormir, Owen ia balbuciando as suas recordações confusas de perseguições e terror. A confiança do rapazinho, o calor e o peso do seu corpo encheram-na de alegria, com aquela espécie de contentamento e satisfação profundos que fazem a alegria parecer uma coisa frágil e efémera. Owen repousava encostado ao seu coração e Gilleis imaginou que o pequeno ser maravilhoso que trazia dentro de si, já respirava com ele.
- És um tontinho. Como se nós deixássemos que alguém te fizesse mal! Aqui, ninguém pode atingir-te. Somos só nós os três e Deus. Portanto, estás em segurança, não achas? De noite e de dia. Eu estou sempre por perto, basta chamares. Agora vê se dormes!
Quando Owen adormeceu, Gilleis deitou-o confortavelmente na cama e ele voltou-se, espreguiçou-se e mergulhou num sono mais profundo. Por breves instantes, ficou a observar a sua respiração suave e pausada e reparou que todos os sinais anunciadores da virilidade, que se notavam tão bem no seu rosto, quando estava acordado, desapareciam durante o sono, deixando-o tão inocente e vulnerável como um bebé.
Estava consigo havia nove semanas: uma semana por cada ano da idade dele. Não podia esperar tê-lo ali muito mais tempo. Os correios de Llewellyn cavalgavam constantemente entre Aber e Parfois, para apresentar ofertas de resgate e promessas de paz na fronteira. Por certo que, depois de haver atormentado o príncipe o suficiente, Isambard iria mandar-lhe de volta a ovelha desgarrada. Agora, já não receava a partida dele: o milagroso germe que o seu espírito semeara, quando da chegada de Owen, florescera gloriosamente e estava já a tomar a forma arredondada do fruto. O vazio que o rapaz iria deixar no seu coração seria preenchido pelo filho cuja chegada anunciara.
Ajeitou a coberta sobre os ombros nus de Owen, pois já passava de meados de Outubro e as noites estavam frias. O contacto da sua mão não o incomodou. Pelo contrário, fê-lo rir a dormir... um dom estranho que ele tinha... e Gilleis sentiu-se submergir naquele riso, como se este fosse uma doce fonte de água que brotava do seu coração. Lamentava todos aqueles que, por esse mundo, não tinham tantas razões como ela para se sentirem felizes. Lamentava Benedetta, que não tinha filhos e amava um homem que nunca iria ter. Lamentava Isambard, que destruía todos os seres em que se apoiava e que, depois, os odiava por haverem cedido. Lamentava o próprio rei, recentemente desembarcado no Sul, depois de haver sofrido uma humilhação e tendo à sua espera a ameaça de outra: o pobre rei, doente, encolerizado e pressionado, que perdera a sua última aposta na Normandia. E até lamentava um pouco Harry, porque o seu papel era procriar e não dar à luz e porque ainda nem sequer sabia como era feliz. Mas, ao mesmo tempo, invejava-o por ele ainda não saber, porque essa era uma alegria que só se pode experimentar uma vez na vida.
Owen dormia profundamente, com os lábios ainda encurvados pelo riso. Gilleis voltou para o quarto onde Harry descansava e, cobrindo a chama da lamparina com a mão, para a luz não incidir sobre o rosto dele, parou junto ao leito e ficou a contemplá-lo, intensamente.
O sono roubava alguns anos ao rosto de Harry mas, uma vez gravadas, as marcas da virilidade não podiam ser apagadas. Harry possuía a dualidade comovente daquela mistura de criança e homem. A inocência e a tranquilidade que são fruto do conhecimento e da experiência, e não da infância e do condão de nos maravilharmos, são atributo exclusivo dos santos. Harry não era nenhum santo: todavia, durante o sono, estas estavam presentes no seu rosto.
Gilleis poisou a lamparina. O mundo parecia-lhe sacudido por um daqueles acessos de desequilíbrio e leveza que, nos últimos tempos, lhe aconteciam sem aviso prévio. Encontrava-se de pé, as duas mãos comprimidas sobre o ventre, o rosto estranhamente iluminado pela luz fraca que vinha de baixo, quando Harry abriu os olhos e se sentou na cama, soltando um grito abafado de espanto.
- Gilleis, meu amor, o que se passa? O que tens? - perguntou, estendendo as mãos para as dela e puxando-a para si. - Estás doente, meu amorzinho?
- Não estou doente - respondeu Gilleis, sorrindo. - Fui ver o Owen. Teve um pesadelo mas, agora, está outra vez a dormir. Não estou doente, não. Na verdade, até estou muito bem.
- Assustaste-me. Tinhas um ar tão estranho.
Sempre a sorrir, Gilleis apagou a lamparina e deixou cair o manto em que se embrulhara para ir ver Owen. Harry puxou as cobertas e ela deitou-se ao seu lado, a tremer devido ao frio da noite, até por fim se descontrair, no calor do leito. Harry abraçou-a.
- É verdade, que estou estranha - disse, com os lábios encostados à face dele. - Sou um prodígio. Estou grávida.
- Gilleis!
Começara a pronunciar o nome dela num grito de alegria mas abafou-o rapidamente, por causa de Owen.
- É verdade? Tens a certeza? Tens mesmo a certeza? Oh, Gilleis, quando soubeste? Porque não me disseste?
Falava de forma incoerente e tremia de júbilo. Ela riu-se e beijou-o, abraçando-o contra o peito como abraçara Owen e falando com ele num murmúrio.
- Chiu! Vais acordá-lo! Sim, tenho a certeza, esperei até ter a certeza. Há um mês, pensei que era isso mas, agora, sei. Devo ter concebido em Agosto, pouco depois da chegada de Owen. Lembras-te do dia em que mo trouxeste, Harry? Eu não sabia quem ele era nem como o havias encontrado. Pareceu-me que era um presságio. Depois disso, é como se o último recanto secreto do meu ser se houvesse aberto para ti. Sempre te pertenceu, sempre te quis. Mas o Owen abriu a porta.
- Oh, Gilleis! - exclamou, com um enorme suspiro de deleite, poisando uma mão no ventre da esposa, onde a deixou ficar. - Oh, meu cordeirinho, meu amor, minha rosa! Vou ser um bom pai para ele. Vou fazer-lhe um berço digno de um príncipe. Há-de ser tão bonito como tu.
- E tão tonto como tu - acrescentou ela, com ternura, juntando a mão à do marido. - E igualmente caro ao meu coração.
Gilleis voltou o rosto e beijou Harry docemente, como se estivesse a beijar uma criança.
- Estás feliz?
- Feliz? Mais do que feliz! Tenho tudo!
Permaneceu imóvel ao lado de Gilleis, as mãos de ambos entrelaçadas sobre o prodígio, numa carícia que era também adoração. Harry sentiu que as trevas e o frio daquela noite de Outono aqueciam, se tornavam mais doces, sob o fluxo de felicidade que dele transbordava.
- Estou tão grato! - disse. - Tão grato!
Ao princípio de uma tarde soalheira, na altura em que há melhor luz, Isambard entrou na oficina sem ser notado e, por alguns instantes, ficou a observar os golpes precisos e hábeis do macete de Harry, que, usando o mais fino dos seus escopros, esculpia as asas do anjo da Anunciação. A grácil figura ajoelhada erguia para a Virgem um rosto que, apesar de não pertencer ainda a nenhum homem, não enganava ninguém: aquele seria o rosto de Owen ap Ivor, quando fosse adulto.
- É uma pena não poderdes acabá-lo a partir do modelo vivo - disse Isambard.
Harry lançou-lhe um olhar surpreso, por cima do ombro. «Não poderdes acabá-lo...» Dera a estas palavras o significado que desejaria que elas tivessem: os seus olhos brilharam e a alegria fê-los passar do verde-mar para o dourado.
- Quereis dizer que ides mandá-lo para casa? Fico muito contente! Eu sabia que íeis acabar por deixar de os atormentar. Mas já não preciso da presença de Owen: conheço-lhe melhor as feições do que a própria mãe. Vou sentir a falta daquele diabrete mas fico contente por ele se ir embora.
- Não me parece - retorquiu Isambard. - Pelo menos, não da maneira como vai deixar-nos. Todavia, podeis assistir, se assim o desejardes.
Estas palavras imobilizaram o macete de Harry mas foi o tom em que foram pronunciadas que o fizeram voltar de novo a cabeça e lhe apagaram o sorriso do rosto.
- Que quereis dizer? Explicai-vos, meu senhor. Que tencionais fazer com ele?
Poisou as ferramentas e afastou-se das figuras de pedra, limpando as mãos à túnica - um hábito infantil que nunca perdera e que estava sempre a valer-lhe reparos de Gilleis.
- A ideia não foi minha - respondeu Isambard, no mesmo tom neutro e deliberado. - Dou-vos a minha palavra. Recebi ordens do rei.
- Do rei? Como foi que o rei teve conhecimento da presença de Owen? Anda muito ocupado no Sul, com Langton e com os outros nobres que se preparam para acabar com ele, agora que está por terra. Que importância pode ter para ele esta criança?
- Eu defendo esta marca em nome do rei. É meu dever informá-lo de tudo quanto aqui acontece e que lhe diga respeito ou aos Galeses. O meu mensageiro foi ao seu encontro, mal ele desembarcou de França e fez-lhe o relato de tudo quanto acontecera durante a sua ausência. O rapaz foi mencionado, tal como tudo o mais, e a missiva do rei só inclui uma linha a seu respeito mas essa linha é bem clara.
Isambard tinha na mão um pergaminho em que, até então, Harry não reparara, porque a mão que o segurava se encontrava na sombra, entre as pregas do pelote azul.
- Chegou há um quarto de hora - acrescentou, mostrando-o a Harry, para este ver o selo real. - Quereis que vo-lo leia? «Quanto ao jovem ap Ivor, segui a vossa inclinação e o meu desejo e os meus interesses. Enforcai-o e mandai o seu corpo a Llewellyn.»
- Deus nos acuda! - exclamou Harry, encostando-se à parede. Isambard ergueu os olhos do pergaminho mas estes nada diziam: não
havia neles pena ou prazer, repulsa ou aprovação. Os olhos encovados ardiam mas o fogo era o seu elemento natural; deviam arder mesmo durante o sono, por trás das pálpebras lisas e translúcidas. Por instantes, Harry sentiu-se incapaz de dizer uma palavra ou fazer um gesto. Acontecera tudo tão inesperadamente que não conseguia compreender.
- Nunca fareis tal! - acabou por dizer, com um esforço tão doloroso como se estivesse a arrancar as raízes do próprio coração. - O próprio rei há-de desejar desfazer o mal feito. Nunca vos agradecerá por haverdes cumprido uma ordem dada sob o impulso da cólera, uma ordem que nunca tencionou dar. Por amor de Deus, meu senhor, o rapaz é irmão adoptivo do neto dele! E lembrai-vos de que, agora, que tantos nobres se voltaram contra ele, o rei irá procurar aliados onde os houver. Imaginai que, antes de o ano acabar, o rei apela ao genro e que a morte da criança se interpõe entre ambos, porque vós haveis sido demasiado apressado. Pensais que vos ficará reconhecido?
- Desde quando é que eu pretendo gratidão? - perguntou Isambard, enrolando o pergaminho. - Ele é como é mas é o meu soberano. Aquilo que ordenar será cumprido. Mas o rei não se vai arrepender. Só o meu ódio por aquele homem supera o seu.
- E satisfaz esse ódio numa criança de nove anos, que nunca se atravessou no seu caminho e que nem sequer é do sangue de Llewellyn mas apenas seu filho adoptivo, embora muito caro ao seu coração...
- Ah! Então, nunca vos contaram a história toda - observou Isambard, sorrindo sem alegria. - Segundo se diz, Harry, ele tem o sangue de Llewellyn, que o gerou em lugar do seu amigo, que precisava de um herdeiro e não era capaz de o conseguir. Quanto a mim, penso que deve ser verdade. Nem mesmo por Griffith, Llewellyn alguma vez nos incomodou tanto como por causa deste rapaz.
- Estais a dar-me razão! Isto não é política, é despeito. O rei não ousa tocar em Griffith, embora continue a tê-lo em seu poder, porque Griffith foi reconhecido por Llewellyn e está protegido pelo nome do pai. Mas o pobre Owen é vulnerável, porque não tem o poder do nome a protegê-lo. O rei pode eliminá-lo e apunhalar o coração de Llewellyn, fingindo ignorar que está a fazê-lo. Owen vai pagar a imunidade de Griffith. Por certo não ireis prestar-vos a um acto tão vil.
- Chamai-lhe o que quiserdes. Eu cumpro as ordens que recebo - cortou Isambard, com duas rosetas de cólera a arder-lhe no rosto.
- Não podeis fazer uma coisa dessas. Não acredito que sejais capaz de o fazer! Não sois o assassino contratado de ninguém e nem mesmo o rei pode pedir-vos tal coisa. - Agarrou o pulso magro de Isambard, que ficou rígido e frio entre as suas mãos, como se fosse o punho de uma espada, e acrescentou: - É uma criança, meu senhor. Uma criança que tem estado a meu cargo, que vós mesmo haveis visto tantas vezes, a correr no pátio. A morte dele não serve nenhum fim...
- Satisfaz um ódio - disse Isambard, retirando a mão, sem cólera nem impaciência. - Onde está o rapaz?
- Saiu a cavalo - respondeu Harry, passando a mão pelos olhos. - Quem me dera que não voltasse.
- Se não voltar, os dois que o guardam serão enforcados em seu lugar. Mas ele vai voltar. Quando chegar, passará alguns minutos com o padre Hubert e, a seguir, acabaremos com isto. Sou vassalo do rei e cumprirei à risca as suas ordens!
A voz conservara a mesma calma sinistra e o rosto a mesma imobilidade de ferro. Todavia, de súbito, a atmosfera entre ambos carregara-se de emanações de desgosto e raiva tão amargas e tão intensas que Harry ergueu bruscamente a cabeça, para olhar com horror aquilo que as engendrara, como se houvesse dado consigo cara a cara com um demónio. Foi Isambard quem desviou os olhos, ainda que demasiado tarde para ocultar o lampejo, breve e ofuscante, de uma voracidade capaz de engolir crianças.
- Meu Deus! - murmurou Harry, espantado. - Estais contente! Era isto que queríeis! Era este o vosso plano! Não é o rei que se está a servir de vós mas vós que vos estais a servir do rei. Vós tereis essa terrível alegria e ele a vergonha eterna! Quantos mais terão feito dele o bode expiatório?
Isambard quis dar meia volta e afastar-se de Harry mas este estendeu o braço, encostou a palma da mão contra a parede e barrou-lhe o caminho.
- Mostrai-me a ordem do rei ou eu não acreditarei. Fostes vós e não ele quem decidiu isto. A vossa alma está doente...
- Uma alma doente! - repetiu Isambard, em voz baixa, com o peito contra o braço moreno estendido de Harry. - Deus sabe que estou doente! Aí tendes, lede! Vede se encontrais uma escapatória que eu não haja descoberto.
As palavras estavam lá. Isambard nem sequer lera tudo. «O meu neto é demasiado novo para chorar por ele durante muito tempo», escrevera o rei. Como podia um homem ter um tal pensamento e, ainda assim, exigir a morte? Harry deixou cair o braço. Não havia mais nada a acrescentar, nenhuma súplica que encontrasse eco nele, nada capaz de desviar Isambard daquela terrível incumbência. A sua fidelidade não se detinha perante a morte de uma criança e, quer ele o soubesse quer não, essa morte alegrava-o. Matar o rapaz aplacaria por algum tempo o demónio que lhe devorava o coração, o ódio que votava à vida que o decepcionara, ao amor que se lhe escapara, à beleza e à inocência, que o haviam abandonado.
- Deus é minha testemunha, Harry - disse Isambard, numa voz suave e cansada. - Lamento! Pedirei a Benedetta que mantenha Gilleis dentro do castelo, quando chegar a altura. Podeis dizer-lhe que ele foi para casa, se quiserdes.
Harry não respondeu. Olhava sem a ver a graciosa cabeça do anjo inacabado. Depois, ouviu o brocado das vestes de Isambard roçar contra a soleira da porta da oficina e o som incisivo dos seus passos, que se afastavam em direcção à porta do castelo, calcando a erva já espezinhada.
As palavras haviam perdido o seu poder e não havia tempo para pensar, a menos que, como dissera um dia Benedetta, a acção fosse também o pensamento. Tudo tomou a forma que devia. Não havia outra maneira. Harry largou o trabalho como estava e as ferramentas onde se encontravam, e foi até à casa do risco, no terreiro da liça, onde o seu escrivão limpava pergaminhos.
- Vai procurar John o Frecheiro, Simon, e pede-lhe que vá ter comigo à oficina, se fazes favor.
O jovem saiu a correr. Aquela hora, Gilleis estava com Benedetta. Trabalhavam as duas nos panos para o altar. Ir ele próprio procurá-las haveria sido simples mas podia causar surpresa e, por conseguinte, levantar suspeitas. E ser-lhe-ia por certo insuportável. John o Frecheiro era servo de Benedetta e podia ir ao seu encontro a qualquer altura. As suas idas e vindas não suscitavam quaisquer comentários.
«Tratai de a colocar fora do alcance dele, pois estou prestes a fazer uma coisa para a qual não há perdão», escreveu Harry, à sua mesa, na oficina.
Não assinou. Benedetta conhecia a sua letra. Não havia tempo nem necessidade de mais nada. Estava ainda a selar a mensagem e já John o Frecheiro abria caminho por entre as pilhas de pedras.
- Chamastes-me, mestre?
- Podes levar isto a Madonna Benedetta, imediatamente? - perguntou Harry. - Não precisas de lhe dizer nada. Ela compreenderá. Mesmo que lorde Isambard esteja lá, entrega-lho mas de maneira a ele não dar por nada. Estou a confiar-te um bem mais precioso do que a minha própria vida.
- Ser-lhe-á entregue - disse John o Frecheiro. - Lorde Isambard não está lá, está no salão, a ouvir as queixas de dois dos seus feudatários. E, depois disso, ainda terá de ouvir outro caso. Vai estar ocupado pelo menos por uma hora.
- Ainda bem! Então, John... se as damas estiverem sozinhas... diz à minha mulher que eu lhe envio o meu amor e os meus respeitos. Fazes isso?
- Assim farei - prometeu John o Frecheiro. E os seus olhos castanhos observaram Harry atentamente. - Nada mais?
- Nada mais.
- Se tiverdes necessidade de ajuda de alguém, mestre, Madonna Benedetta ceder-vos-á os meus serviços.
- Obrigado, mas posso fazer tudo sozinho - respondeu Harry, surpreso e comovido.
- Deus seja convosco - disse John, sem fazer perguntas, escondendo a mensagem na túnica.
Depois de ele sair, Harry dirigiu-se ao armazém, que ficava perto da vertente inglesa do planalto. Havia ali uma corda de nós, enrolada, uma das que eram utilizadas pelos pedreiros mais jovens como forma rápida de descer dos andaimes e que eram postas de lado mal davam sinais de estarem gastas. Pegou nela e escapou-se sem ser visto para a orla do arvoredo. Lá em baixo, junto à face da escarpa rochosa, ficava o vale profundo para onde, havia muito tempo, no primeiro ano que ali passara, os dois homens sem amo haviam atirado a madeira roubada. Nessa altura não havia prestado muita atenção àquela falésia mas lembrava-se bem dela. Havia uma ravina de uns cinquenta pés e, por baixo, algumas saliências, às quais se agarravam duas ou três árvores raquíticas, junto à orla do vale, coberta de ervas altas. A partir daí, a descida para o povoado era fácil. Harry atou solidamente a extremidade da corda ao tronco de um larício próximo da berma e deixou cair o resto, inclinando-se para a libertar das árvores enfezadas da falésia. A corda ficou encostada ao paredão e desapareceu, invisível contra a rocha, que tinha a mesma cor de palha. Por um momento, encarou a hipótese de seguir por aquele caminho e arranjar um cavalo na povoação mas a rapidez de acção era mais importante do que a discrição absoluta. Como podia ter a certeza de encontrar uma boa montada? Ademais, as suas funções davam-lhe muitas e variegadas razões para entrar e sair livremente de Parfois e, por enquanto, estas não seriam postas em causa.
Para além de Isambard, ninguém se espantaria por ver mestre Talvace selar um cavalo e partir, àquela hora. E Isambard não o veria. Harry escolheu o melhor e o mais rápido dos cavalos disponíveis, atravessou a ponte levadiça e desceu a colina, sem encontrar outro obstáculo que não fosse o mestre marceneiro, que o interpelou diante da oficina.
- Harry! Quereis vir comigo ver a balaustrada? Já está colocada mas penso que a linha podia ser melhorada.
- Quando voltar - disse Harry. - Vou até ao cais. Com um pouco de sorte, as minhas últimas lajes devem chegar ao fim da tarde.
Os homens de guarda à barbacã nem sequer olharam para ele. Que distância teria de percorrer, para poder continuar a ter a certeza de interceptar Owen e a sua escolta? O rapaz adquiria o hábito de lhe dizer exactamente onde tencionava ir; naquele dia, dissera que iria para Leste, por entre as colinas, até à estrada romana e, depois, para Sul, até à planície, onde ainda se viam as ameias da torre de um antigo forte. O pequeno falcão podia exercitar-se naquele céu claro, imóvel e sem sol, sobre o solo de turfa esponjosa, tingido dos tons do Outono. Era pouco provável que, daí, descessem até ao vale, obrigando os cavalos a subir a encosta escarpada. Todavia, mesmo que alterassem o itinerário de regresso, manter-se-iam à mesma altitude, o que significava que seguiriam aquele caminho entre as cristas para voltar a Parfois. Harry tomou posição na orla do bosque, sobre um montículo coberto de ervas, de onde se avistavam as passagens batidas pelo vento por onde eles deveriam vir.
Não teve de esperar muito. Apareceram vindos de baixo, cavalgando em fila por um estreito carreiro verdejante, pois a erva cheia de tufos era traiçoeira e escondia muitas tocas de coelho. Harry foi ao seu encontro. Owen viu-o e avançou para ele, soltando um grito de alegria. Pela primeira vez, Harry perguntou a si mesmo o que faria se os dois guardas desconfiassem dele. Não trazia consigo nem uma simples adaga.
- Lorde Isambard mandou-me vir ao vosso encontro - disse, interrompendo com um gesto peremptório a algaraviada de Owen e mantendo os olhos fixos nos arqueiros. - Aconteceu uma coisa que o levou a pensar que será melhor não voltardes ao castelo com este rapaz. Pediu-me que vos dissesse que, como Robert de Vieuxpont, recebeu uma ordem à qual preferia não ter de obedecer.
Sublinhou estas palavras com um olhar significativo na direcção de Owen e eles perceberam. Afinal, porque duvidariam dele? Nos últimos tempos, Harry tornara-se mais próximo de Isambard do que qualquer outro homem de Parfois; se o seu senhor quisesse furtar-se a uma tarefa desagradável, Talvace seria a pessoa que escolheria como emissário, para afastar o fardo dos seus ombros.
- Então, é isso? - perguntou o mais velho dos dois arqueiros, olhando para Owen. - E que foi que ele decidiu?
- Que eu levasse o rapaz até à clareira de Bryn e o pusesse a caminho de casa.
Ao ouvir isto, Owen apurou o ouvido, soltou um grito, ergueu as mãos enluvadas e bateu as palmas, assustando o pequeno falcão que trazia preso ao pulso, que ergueu as asas e assoprou com indignação.
- Calado, sua peste! Os mais velhos estão a falar - ralhou Harry, puxando-lhe suavemente os caracóis, antes de voltar a dirigir-se aos arqueiros. - Sempre foi seu desejo que o fim fosse este e bem sabeis que ele arranja sempre maneira de conseguir o que deseja.
- Lá isso arranja, que eu bem sei. Quando não consegue ir a direito, dá a volta por outro lado. Mas as nossas ordens são claras. Ele ordenou-nos que nunca perdêssemos o rapaz de vista, fora das muralhas do castelo.
- Acaso vos pedi que o deixásseis? Deveis vir connosco até Bryn. Ouvi-me bem: para além de lorde Isambard, de mim e, agora, de vós, ninguém está ao corrente de nada. Fui enviado porque o rapaz tem estado a meu cargo e confia em mim. Não houve tempo para escrever e selar credenciais. A sua palavra, pela minha boca, deverá bastar-vos - acrescentou Harry, fazendo avançar o cavalo. - É melhor irmos andando. Vem, Owen ap Ivor ap Madoc, tens uma longa caminhada à tua espera.
No lugar deles, pensou Harry, eu teria acreditado; a explicação tem um tal cunho de verdade que me pergunto se, no fundo, não corresponderá à realidade. Porque foi ele ter comigo e contar-me? Por mera cortesia, por eu ser o guardião do rapaz? Ou para me atormentar, por eu ser um homem com demasiada sorte, um homem feliz? Ou haver-me-á contado, para eu fazer exactamente o que estou a fazer, poupando-o a um dever horrível? Pode muito bem ter sido por todas estas razões. Talvez nem mesmo ele saiba qual delas tem mais peso. Deus saberá. Quanto a mim, faço o que devo fazer e é quanto basta.
Os guardas vinham atrás. Harry não se voltou mas sentiu que o momento de hesitação passara, que eles confiavam na sua boa fé. Lembrou-se do que dissera Benedetta sobre os paradoxos relacionados com a honra e a fé: por vezes, a honra podia consistir em rebaixarmo-nos e a fé em faltar à palavra dada. Estou prestes a ilustrar o argumento dela, pensou Harry, com um sorriso forçado, mas nem ela nem eu sabemos como isto vai acabar. Sim, os arqueiros seguiam-nos; sim, confiavam na sua boa fé. Haviam ocupado a sua posição habitual, seis ou sete comprimentos atrás. Com toda a autoridade, obrigara Owen a prometer que nunca tentaria afastar-se deles ou fugir-lhes! Graças a Deus, o rapaz nunca percebera porquê!
- É verdade que vou mesmo para casa? - perguntou Owen, impaciente, agitando-se na sela.
- Vais, pois.
- Mas não me despedi de ninguém. Vão pensar que, em Aber, ninguém me ensinou boas maneiras - disse, sinceramente preocupado, pois a reputação dos Galeses estava nas suas mãos. - Pelo menos, devia dizer adeus à senhora Gilleis, que foi tão boa para mim.
- Tudo foi decidido muito depressa. Por esta vez, tivemos de passar por cima das delicadezas. Terei de ser eu a dizer adeus por ti à senhora Gilleis.
E por mim, pensou, sentindo a realidade apertar-lhe o coração, como se fosse uma mão de ferro. Quando, sem saber porquê, voltei atrás para lhe dar um beijo, nas escadas, antes de ir trabalhar, era um beijo de despedida.
- O seu amor E OS seus respeitos! - exclamou Gilleis, rígida e pálida, no vão da janela, com as pregas coloridas da tapeçaria caídas à volta dos pés. - E partiu! Porquê? Porquê? Porque não me mandou a mensagem a mim?
- Porque é a mim que o John tem sempre acesso. E talvez porque sabia que seria necessário persuadir-vos. - Com um sorriso triste, Benedetta acrescentou: - Foi a vós que ele mandou a mensagem que eu receberia de bom grado. Resta-nos fazer o que ele pediu. E depressa.
- Não irei! - argumentou Gilleis, agarrando-lhe nas mãos. - Se ele corre perigo, maior razão há para eu ficar junto dele. Que seria da minha vida sem ele?
- Ireis. Ireis porque ele assim pediu, porque só ele sabe o que fez e o que tenciona fazer e, por conseguinte, nenhuma de nós pode ter esperança de o fazer mudar de planos. Ireis, porque seria para ele o mais cruel dos golpes se, ficando aqui, vos tornásseis o instrumento da sua perda. Partireis, não por terdes medo ou por não o amardes o suficiente, mas porque não tendes medo e o amais mais do que a vós própria. O suficiente até para viverdes sem ele... só que - acrescentou Benedetta, dobrando o pergaminho e ocultando-o no seio -juntos ou separados, nunca estareis sem ele.
Gilleis voltou-se para a janela e olhou para fora. Com um movimento da saia verde, afastou a tapeçaria do seu caminho.
- Vós também o amais.
- Santo Deus! - exclamou Benedetta. - Será algum segredo? Desde o primeiro instante em que o vi e até à morte. Haver-vos-ia dito isso há muito, se pensasse que era necessário dizê-lo.
- Entendeste-me mal! Queria dizer que... é uma razão para confiar em vós. Se eu partir... se houver mesmo precisão de eu partir... vós continuareis a ser sua amiga, aqui...
- Dele e vossa.
Benedetta viu Gilleis inclinar-se e segurar-se à pedra do parapeito da janela, com a aliança de casamento a brilhar na mão pequena crispada sobre o cinto verde. Correu e tomou-a nos braços, segurou-a até o mal-estar passar. Dos grandes olhos de Gilleis, brotavam lentamente lágrimas, que caíam sobre o bordado que jazia aos seus pés.
- Isso também não é segredo - disse suavemente Benedetta. - Pelo menos para mim. E é por isso que partireis. Há dois reféns a salvar e um deles é um pedaço da própria vida de Harry. Ide depressa buscar o manto» enquanto eu mando o John selar os cavalos.
Pediram comida numa quinta, entre os dois rios, e a dona da casa arranjou-lhes biscoitos de aveia, maçãs e ovos e, para Owen, trouxe uma tigela de leite ainda quente. Harry deu-lhe três pence de prata pela refeição e Owen um beijo, com a boca suja de leite, que a deixou contente. Atravessaram o Vrnwy: Owen continuava a falar e a cantar, mais em Galês do que em Inglês, mas a fadiga acabou por levar a melhor e o rapaz começou a dormitar em cima da sela.
- Pegai na pobre ave - disse Harry, sorrindo, a um dos arqueiros - e passai-me a criança, para ele poder dormir pelo caminho.
- Não estou a dormir - protestou Owen, indignado, quando sentiu que o tiravam da sela.
Harry instalou-o diante de si, entre os seus braços, com o manto a protegê-lo do vento frio. Owen suspirou e mexeu-se, até encontrar uma posição cómoda, com a cabeça entre o braço e o ombro de Harry e a cara confortavelmente encostada ao peito deste.
- E não sou uma criança - acrescentou, segurando-se bem às pregas da cota verde que lhe servia de almofada. - Sou um rapaz, quase um homem.
- És um diabrete e um rapaz muito mau mas tens tudo para vires a ser um homem. Não tenhas muita pressa de deixar de ser criança. Não é muito bom ser adulto.
De rosto afogueado e lábios húmidos, no calor do manto, Owen dormia quando chegaram à pedreira, já o crepúsculo outonal caíra. Da escuridão do bosque que rodeava o caminho, uma voz interpelou-os.
- Talvace - anunciou Harry, apertando o braço em volta do corpo de Owen, para o tranquilizar, pois o rapaz acordara com o grito. - São amigos, dorme. Onde está o Adam?
A enorme barba de William de Beistan saiu das trevas.
- Sois mesmo vós, mestre Talvace? Que vos traz aqui, a esta hora? Quais são as novas de Parfois?
- Nenhumas ainda - respondeu Harry. - Em breve as tereis. Onde está o Adam?
- Nas cabanas. Quando passardes as árvores, logo vereis a luz. Iluminadas pela chama vacilante de uma fogueira, que ardia numa
lareira aberta improvisada com algumas pedras, as paredes rochosas da pedreira tinham uma tonalidade pálida. Owen despertou por completo e, do seu ninho, espreitou os rostos dos estranhos que acorriam de todos os lados, rodeando-os. Adam saiu a correr de uma das cabanas e tirou as rédeas das mãos de Harry.
- Pega no rapaz e deixa-me descer - pediu Harry, cortando as palavras de boas vindas. - Preciso de cavalos frescos, Adam, e qualquer coisa para comer e beber também seria bem-vinda.
Quando desmontou, uma mãozinha ansiosa agarrou-se-lhe à manga. Calmamente, soltou-a e segurou-a na sua.
- Estou aqui, não tenhas medo. Estes são todos meus amigos e teus.
- Entrem - convidou Adam. - Teremos muito gosto em dar-vos de comer. E também temos cavalos. Mas porque os queres esta noite?
- Conto-te enquanto comemos, pois não há tempo a perder. Quanto a ti, Owen ap Ivor, chegou a altura de mostrares que és um homem. Esperas por mim aqui, ao pé do lume. E não vais ficar preocupado se eu não estiver à vista por dez minutos, pois não? Por favor, Robin, tomai conta dele enquanto eu converso com o Adam.
Enquanto engolia a cerveja, a carne e o pão, Harry contou resumidamente a Adam aquilo que tinha a contar.
- O rapaz é filho adoptivo do príncipe de Gwynedd. Quero que seles um cavalo e que sejas tu... tu, Adam... a levá-lo a Aber e a entregá-lo pessoalmente a Llewellyn. Depois de o fazeres, não voltes aqui por nada deste mundo. - Depois, olhando-os por cima da vela, Harry dirigiu-se aos dois arqueiros. - Peço perdão pela artimanha que utilizei para vos arrastar comigo, até aqui. Não menti quando vos disse que o rei enviou uma missiva a lorde Isambard, ordenando-lhe que matasse o rapaz. Mas menti ao dizer que ele queria ser poupado ao dever de obediência. Lorde Isambard estava e está decidido a enforcar Owen. Fui eu quem quis afastá-lo e mandá-lo para casa. Não podia tirá-lo das vossas mãos por outros meios que não os que utilizei e não podia deixar-vos voltar a Parfois e contar a vossa história, porque nos dariam caça cedo demais. Tereis agora de decidir o que fareis. Mas não penseis em utilizar os vossos arcos! Aqui, todos os homens cumprirão as minhas ordens, não as de Isambard: será melhor não os pôr à prova. Se quereis o meu conselho, juntai-vos a Adam e ide para Aber com o rapaz. Tendes garantida a gratidão de Llewellyn, que vos receberá como príncipes. - Bocejou, passou as mãos pelo rosto e disse ainda: - Lamento haver-vos mentido mas não podia fazer outra coisa. Os dois arqueiros e Adam fitavam-no, em silêncio.
- O que foi? Que vos preocupa?
- O que nos preocupa? - exclamou Adam. - E tu, Harry?
O tom em que fizera a pergunta e a expressão do seu rosto, no qual o sorriso se apagara por completo, indicavam que Adam já sabia qual ia ser a resposta.
- Eu vou voltar.
- Não! Juro por Deus que não vais! - protestou Adam, pondo-se de pé. - Nem que eu tenha de te amarrar a um cavalo e levar-te connosco para Gales. Estás louco? Ele enforca-te logo.
- Não o fará. Jurou-me que nunca me privaria do trabalho que me confiou... enquanto este não estivesse terminado. Sabes que ele cumpre a palavra dada. E eu jurei-lhe que não deixaria de estar ao seu serviço, até o trabalho ficar acabado. Eu também cumpro a minha palavra. Vou voltar para a cumprir.
- A tua palavra! É a tua vida que está em causa! Pensas que ele te vai deixar vivo, depois de, de certo modo, haveres feito dele um traidor? E pensas que há alguma lei neste país suficientemente forte para te arrancar às suas mãos? Harry! - suplicou Adam. - Não destruas a tua vida por uma questão de escrúpulos! Vem connosco!
- Continuarei vivo até a igreja estar terminada. Faltam ainda alguns meses. Na verdade, sou eu quem fixa o prazo. Quem sabe? Talvez lorde Isambard e o próprio rei morram antes de mim. Não quero pensar mais nisso - cortou Harry, bebendo o resto da cerveja e pondo-se de pé. - Pensar é inútil. Arranja-me um cavalo, Adam, e pára de me atormentar. Partirei, pois não há tempo a perder. - Deteve Adam, agarrando-o pelos ombros. - E nada de manigâncias para meu bem! Confio em ti para levares o rapaz até casa, são e salvo. Se não o fizeres, os meus esforços terão sido vãos e a perda da minha cabeça também. E isso, nunca te perdoarei.
- Juro pela minha alma que o farei - disse Adam, olhando-o nos olhos. - Ele será a minha única preocupação. Depois de o devolver aos braços de Llewellyn, as minhas acções só a mim dirão respeito.
- Muito bem. E vós? Haveis decidido continuar? Espero que não tenhais esposa nem filhos ao alcance dele - acrescentou, cheio de remorsos. - Prometo que farei tudo quanto puder para vos ilibar desta traição e proteger as vossas famílias da sua cólera.
- Os meus filhos são todos adultos e estão bem longe - disse o mais velho dos arqueiros. - E a minha esposa morreu há sete anos. Aqui o Harald tem muitas raparigas por todo o condado mas não é casado. Vamos seguir o vosso conselho, mestre Talvace, e fazer o resto do caminho com o rapaz, Não tenho a certeza, mas estar ao serviço de Llewellyn talvez seja mais a meu gosto do que estar ao serviço de Isambard e não há dúvida de que vamos cair nas suas boas graças.
- Então, não vos causei qualquer dano e dou graças a Deus por isso. Quanto aos meus, pensei bastante depressa - disse Harry, desviando o rosto da luz e saindo, logo seguido por Adam.
Ainda embrulhado no manto de Harry e rodeado por meia dúzia de carregadores e homens de armas, que o fitavam com curiosidade, Owen estava sentado junto ao fogo, a comer com apetite. Já fizera amizade com eles e aquela estranha viagem deixara de o assustar, parecendo-lhe agora uma aventura apaixonante. Os seus grandes olhos brilhavam, iluminados pelas chamas.
- É um pouco selvagem mas bom rapaz - disse Harry. - Sê bom para ele.
Atravessando o círculo à volta do rapaz, sentou-se no chão, ao lado dele.
- Vou deixar-te aqui, Owen. Ficas com o Adam, que é meu irmão de leite como David é teu irmão adoptivo. Ele leva-te a Aber, em meu lugar. A partir de agora, obedeces às ordens dele como se fossem minhas. Agora, dá-me um beijo e que Deus te acompanhe. Mas limpa primeiro a boca, que eu gosto de beijos limpos. Assim está melhor! - Beijou a boca macia que se erguera para ele e riu-se. - Amanhã, a esta hora, já estás a dormir na tua cama. Apresenta os meus respeitos ao príncipe de Gwynedd e diz-lhe que, se ele gerar filhos tão bons como aqueles que adopta, um dia haverá um príncipe de Gales da sua linhagem.
Depois de abraçar rapidamente Owen, levantou-se e perguntou a Adam:
- Onde está o cavalo que me prometeste?
Já segurava as rédeas, quando Adam lhe murmurou ao ouvido:
- Não quererás mesmo mudar de ideias, Harry? Pensa em Gilleis...
- Pelo amor de Deus, Adam! - sussurrou Harry, num tom dolorido. - Quem cuidas tu que ocupa os meus pensamentos, de dia e de noite? - Voltara o rosto e, por um instante, enterrou-o no pescoço do alazão. Mas o momento de fraqueza passou e a calma voltou. - Faço o que devo fazer, Adam. E isso torna as coisas mais fáceis. Espero bem voltar a ver-te, neste mundo ou no outro. - Desta vez, o rosto que se voltou para beijar Adam tinha uma expressão perfeitamente controlada. - Fiz mal em sentar-me! Ajuda-me, Adam, estou rígido que nem um espeto.
Adam segurou nas rédeas e ajudou-o a montar.
- Põe-te a caminho logo que eu sair daqui. Adeus, Adam! Harry voltou o cavalo e partiu a trote em direcção ao carreiro estreito e sombrio ladeado por paredes de pedra.
- Adeus! - respondeu Adam, numa voz que mal se ouvia. Sensível à tensão que pairava no ar que o rodeava, Owen afastara-se da fogueira e observava alternadamente os dois homens que se separavam. Apercebeu-se de que a voz de Adam fraquejara, viu a dor e o desamparo que se lhe espelhavam no rosto e começou a chorar de medo, correndo atrás de Harry, a chamá-lo por entre as lágrimas:
- Mestre Talvace! Mestre Talvace!
Ao ouvir o grito, Harry voltou-se e as mãos do rapaz agarraram-se-lhe desesperadamente ao tornozelo. Resignado, inclinou-se sobre a sela, agarrou Owen por baixo dos braços e içou-o para junto de si. O rapaz lançou-lhe os braços ao pescoço com toda a força e escondeu a cabeça no seu ombro, soluçando. Harry sentiu o coração de Owen bater com tanta força que parecia ir saltar-lhe do peito.
- Não quero que partais! Não quero! Vão fazer-vos mal! Tenho medo por vós!
- Então, então, Owen ap Ivor ap Madoc. Já se viu um príncipe fazer tanto barulho? Onde está o rapaz que me disse que já era quase um homem? Não me vai acontecer mal algum - afirmou Harry, dando palmadinhas nos ombros sacudidos pelos soluços. - Não penses mais nisso. Estás muito cansado por causa da viagem e por todas estas mudanças e vês o mal onde ele não existe. Olha para mim! Pareço-te assustado? Ou triste? - perguntou, ao mesmo tempo que introduzia um dedo sob o queixo tremente, comprimido com desespero contra o seu peito, obrigando-o a erguer o rosto molhado pelas lágrimas. – Se te vissem, até os fantasmas fugiam! Vamos lá ver se conseguimos remediar isso.
Limpou as faces redondas, com uma ponta do manto, e puxou-lhe para trás os cabelos despenteados.
- Ele vai sentir-se melhor quando nos pusermos a caminho - tranquilizou-o Adam, estendendo os braços para Owen.
- Está cansado. Vais ter de o levar no teu cavalo, enquanto for de noite, mas prefiro que só pares para descansar, quando vos encontrardes já bem no interior de Gales.
- Assim farei.
- Acabaram-se as lágrimas? Ah, assim sim, este é que é o meu falcão! Sê bom rapaz e faz o que o Adam te mandar.
Harry beijou Owen uma última vez e entregou-o a Adam. O rapaz ficou nos braços de Adam enquanto cavalo e cavaleiro desapareciam na escuridão e o ruído das ferraduras se ia tornando cada vez mais fraco, até a parede de pedra o abafar por completo. Owen resignou-se a passar o braço à volta do pescoço de Adam, transferindo para ele a fidelidade e a confiança que dedicara ao irmão deste.
Voltaram juntos à pedreira, sem olharem para trás. Durante esses breves momentos de comunhão, antes de, à maneira das crianças, o rapaz se libertar do fardo prematuro do amor e da perda e de o homem, à maneira dos homens, se recusar a admitir a evidência, ambos compreenderam que nunca mais veriam Harry.
A caçada para o apanhar já começara e não abrandou com o cair da noite mas Harry estava preparado para ela, A maior parte dos perseguidores deveriam andar pela zona do vale do rio, pois seria de esperar que ele se dirigisse directamente para Gales com o seu protegido. Só quando chegou aos Breiddens ouviu o martelar de ferraduras na estrada mas evitou os cavaleiros, embrenhando-se no bosque. Ao voltar ao caminho, teve o cuidado de seguir pela berma coberta de ervas, que lhe permitiam cavalgar quase sem ruído; e aproveitou, reconhecido, todos os abrigos que as árvores ofereciam. Recusava-se a ser arrastado até Parfois, como um fugitivo recapturado; voltava por sua livre vontade e era por sua livre vontade que entraria de novo em Parfois e pegaria nas ferramentas que pousara na véspera.
A viagem de regresso dera-lhe tempo para pensar e até, no fundo do coração, para se revoltar contra o acaso caprichoso que pusera no seu caminho, e não no de outro homem, tamanha provação. Porque haveria Deus de o confrontar, pela segunda vez, com uma escolha tão cruel e de uma forma tão caprichosa, quando a sua felicidade florescia em pleno? Mas, logo em seguida, deu-se conta de que não havia em tudo aquilo nada de caprichoso nem que se pudesse atribuir ao acaso; e que não era a segunda vez mas a centésima, pelo menos, em que era obrigado a escolher. Ou, encarando o assunto segundo um outro ponto de vista, talvez mais verdadeiro, tratava-se da derradeira reafirmação de uma escolha, feita havia muitos anos e de uma vez por todas.
Entre a mão de Adam e a cabeça de Owen, não havia qualquer incoerência, nenhuma intervenção do acaso. A aceitação deliberada das responsabilidades, a afirmação e o desafio tinham de se repetir vezes sem conta, porque o mundo continuava a ser aquilo que fora e ele continuava a ser quem sempre havia sido e seria até à hora da morte. Depois de haver feito o seu julgamento pessoal, contrário ao julgamento do mundo, o fim estava implícito no começo. Lá bem no fundo do coração, sempre soubera que o seu derradeiro desafio ao poder, aos privilégios, à lei, lhe seria fatal e que, apesar disso, não o poderia evitar nem quereria deixar de lançá-lo.
Por isso, não podia queixar-se de Deus nem dos homens e nenhuma queixa seria proferida. Colhia aquilo que semeara e nunca fora homem para discutir o preço a pagar.
Por duas vezes, durante a ascensão cautelosa da colina, Harry teve de se desviar e de se esconder entre as árvores, à passagem de cavaleiros, mas depois a calma voltara. Agora, por certo que o procuravam mais longe, provavelmente em território de Gales. Chegou, sem incidentes nem obstáculos, ao sopé do carreiro coberto de erva que levava a Parfois e, ali chegado, desmontou, enrolou as rédeas à volta do pescoço do cavalo e, com uma palmada no flanco, fê-lo partir a galope em direcção ao castelo. Percorreu a pé a encosta suave que contornava o vale ao fundo
da falésia, até encontrar a corda suspensa. A claridade que antecedia a alvorada só permitia distinguir sombras de cor, mal separando o escuro do claro. A força de braços, uma mão depois da outra, Harry içou-se por entre as ervas altas, até ultrapassar a borda da falésia, e puxou a corda atrás de si.
O silêncio pesava sobre Parfois. A ponte levadiça estava erguida e, na calma reinante, Harry ouviu os passos do guarda no caminho de ronda, entre as torres de vigia.
Depois de se haver desembaraçado da corda, dirigiu-se à oficina, onde se deixou ficar sentado por algum tempo, com a testa encostada ao peito frio e macio da Senhora da Anunciação. Quase adormeceu mas, de cada vez que a sonolência começava a ganhar terreno, obrigava-se a acordar. Logo que houve luz suficiente, pegou nas ferramentas mas a visão do rosto de Gilleis, que lhe sorria da pedra, era insuportável. Durante o regresso a Parfois, prometera ocupar-se de qualquer coisa. Mas de quê? Ah, sim, da balaustrada do coro. O mestre marceneiro nunca se sentira satisfeito com as suas proporções: a sua altura modesta e o seu traçado sóbrio e delicado frustravam-lhe o desejo de mostrar virtuosismo. Ademais, o mestre marceneiro era incapaz de aceitar a supressão da cruz. Harry sempre pensara estar certo. Não tolerava a ideia de nada que quebrasse aquele vasto volume de ar e luz, que era a sua mais bela realização, e amava aquela construção frágil e contudo sólida porque jogava com a luz sem lhe opor obstáculos; e aqueles motivos verticais, trabalhados em filigrana, eram outras tantas fontes de luz, mais pequenas, brotando em direcção à abóbada. Todavia, prometera voltar a analisá-la com um olhar crítico e dar-lhe-ia prazer voltar a vê-la. Ergueu-se com dificuldade e encaminhou-se para a igreja, empunhando ainda o macete e o formão.
A luminosidade que precede a alvorada, débil mas límpida, iluminava a abóbada alta da nave central. Aquele espaço protegido encheu-o de contentamento e paz; era como estar entre duas mãos postas, em oração. Parou, por bastante tempo, junto à porta oeste, enchendo os olhos e o coração daquela serenidade, enquanto a luz cinzenta aumentava e se tornava mais viva. Ouviu os primeiros cavaleiros, que voltavam de mãos vazias, mas não lhes prestou atenção. Passaram junto do seu refúgio, o guarda ergueu a ponte levadiça para os deixar entrar mas Harry continuou indiferente, enfeitiçado pela quietude, liberto do próprio cansaço. A Leste, o céu estava mais claro e os primeiros raios do sol nascente, que dardejavam sobre o estreito vale do regato, brilhavam como pássaros dourados sobre a plataforma rochosa de Parfois. Atravessavam as lancetas vazias das janelas, voltadas para Leste, voavam radiosos de um extremo ao outro da igreja e tingiam de um brilho dourado a parede ocidental. Quem ousaria erguer uma barreira ao percurso aéreo das pombas de Deus? Quem ousaria enclausurá-las por trás de uma rede de madeira e pedra, que mais pareceria uma gaiola ornamentada? De súbito, a própria nave central encheu-se de luz reflectida que oscilava sobre as delicadas nervuras da abóbada, como dedos sobre as cordas de uma harpa, e, nas bossagens, os rostos redondos de todos os querubins iluminaram-se e gritaram de alegria.
A balaustrada do coro era baixa, perfeita, delicada, austera. Mestre Matthew não podia voltar a tocar-lhe; nenhum floreado deveria ser acrescentado àquela simplicidade sóbria. As hastes ascendentes esculpiam camadas de matizes dourados sobre as lajes trabalhadas da nave. Nenhuma cruz, nenhuma imagem do luto iria alguma vez lançar as suas longas sombras assimétricas sobre aquele campo de luz ou quebrar a sua unidade. Tinha pena do mestre marceneiro mas não o ia deixar arruinar tamanha beleza. Ficou parado a olhar, incomensuravelmente feliz, ele que desperdiçara o que lhe restava de vida e deveria, por isso, sentir-se incomensuravelmente triste.
Em seguida, subiu ao trifório e avançou pela estreita galeria que ia dar ao lado leste. Havia deixado uma fiada de modilhões para serem esculpidos ali mesmo e ainda nem lhes tocara, porque se tratava de um trabalho fácil e acessível que poderia ser feito com vagar durante o Inverno. Deteve-se na última das aberturas em trifólio, que tinha apenas a altura suficiente para se poder permanecer de pé, perto das janelas da fachada leste e por cima do altar-mor, e contemplou o trajecto aéreo da luz. Daquele lado, algumas das janelas do clerestório já tinham vitrais e os raios do sol atravessavam-nos obliquamente, bordando a abóbada de jóias brilhantes: esmeraldas e rubis, safiras e topázios, crisoberilo e ametista. Harry estava na sombra mas toda aquela luz era sua.
Ainda ali se encontrava quando, de súbito, na porta ocidental, a porta por onde entrara, se recortou a silhueta de um homem. Entrou devagar, os braços caídos ao longo do corpo, e avançou até um ponto onde a luz reflectida o arrancou ao anonimato da obscuridade, revelando o rosto destroçado de Isambard.
O senhor de Parfois estava certo de se encontrar sozinho. Porque foi que nem os sentidos nem o espírito o alertaram? Ergueu os olhos para a abóbada banhada pela luz matinal e, como uma flor acariciada pelo sol, a sua expressão amargurada suavizou-se, ganhou cor e abriu-se, deixando a nu o coração, pondo cruamente a nu uma tal angústia, uma tal dor, um tal desespero que até o ar da igreja estremeceu e se impregnou daquele sofrimento. Dele emanava também amor e adoração, mas era um amor sem compaixão e uma adoração sem paz de espírito. Negros e desolados, os seus olhos veneravam a beleza e o esplendor cuja concretização ele impulsionara. Neles não encontrava defeito mas tampouco alegria. Mostrou os dentes, inclinou a cabeça e, fechando as mãos descarnadas, ainda detentoras de uma força brutal, bateu violentamente com elas no peito.
- Até ele! - exclamou, com a voz de um demónio atormentado. - Até ele! Traidor para comigo e perjuro para convosco!
Fiel a si mesma, a abóbada fez ecoar aquele grito medonho, amplificado mas não distorcido, até ao ponto onde Harry se encontrava, prolongando-o em ecos tristes e decrescentes de uma ponta à outra da trave da cúpula. Com as ferramentas na mão, Harry debruçou-se das cúspides da abertura em trifólio.
- Quem diz que eu sou perjuro?
As palavras haviam sido ditas num tom bastante baixo mas a proximidade da abóbada transformou-as num grito de desafio. Isambard atirou a cabeça para trás, os seus olhos profundos procuraram-no e, quando o descobriram ali, no trifório, qual santo de pedra no seu nicho, fixaram-se nele por um longo momento de silêncio absoluto, de imobilidade absoluta. Depois, ergueu um braço, cobriu os olhos com a mão e Harry ficou sem saber se para os proteger da luz ou do que não queria ver.
- Porque voltastes? - gritou.
Como interpretar uma tal pergunta? Porque voltastes, para me impor a obrigação de vos matar? Porque voltastes, para me infligir o terrível prazer e a ainda mais terrível dor da vingança? Porque não me libertastes de mais este fardo?
- Para acabar aquilo que comecei - respondeu Harry. - Foi nisso que emprenhei a minha honra e fá-lo-ia de qualquer modo, mesmo que não houvesse dado a minha palavra. Lembro-me muito bem da minha jura. Terei de vos lembrar a vossa?
Isambard descobriu o rosto. A coberto do abrigo do braço, voltara a compor a máscara de pedra, bela e orgulhosa, que arvorava em público. Lançou um olhar fixo a Harry e sorriu.
- Acabá-lo-eis - disse. - A minha memória também é boa. Tudo será feito de acordo com o vosso juramento e com o meu. Tudo! Lembrais-vos das palavras exactas, Harry? Espero que sim. «Juro por este coração vivo que não vos trairei», foi o que dissestes. Mas haveis-me traído, porque me obrigastes a trair.
Isambard não fez uma única pergunta sobre Owen, nem mencionou o seu nome ou o de Llewellyn. Talvez, naquele preciso momento, o seu coração perturbado estivesse dividido entre a gratidão por o rapaz se encontrar a salvo e a raiva contra o instrumento da sua evasão. A desobediência forçada à ordem do rei não tinha perdão mas também nunca teria perdoado a si próprio a execução daquela criança. De todos os ódios que o devastavam, o mais feroz era o que votava a si mesmo.
- Descei daí! - ordenou secamente. - Estou cansado de falar convosco como se fosseis um deus.
Harry desceu a escada de caracol, atravessou a nave banhada pelo sol e parou diante de Isambard. Agora, era ele quem tinha de olhar para cima. Absolvendo-o mentalmente por tirar partido dessa vantagem, sorriu.
- O rapaz está em segurança - disse, num tom suave. - Penso que gostareis de o saber. E lembro-me perfeitamente das minhas palavras.
- Ainda bem. Disporeis de todo o tempo de que necessitardes para acabardes a vossa obra. Mas, quando estiver concluída, vós que fizestes de mim um traidor, sofrereis a morte reservada aos traidores. Exigirei o pagamento da vossa jura por inteiro. Arrancar-vos-ei o coração do peito e queimá-lo-ei, diante dos vossos olhos.
Os guardas que vieram buscá-lo empurraram-no à sua frente pela ponte levadiça, até à porta. Fizeram-no enquanto o estaleiro ainda se encontrava vazio, por receio de que os seus homens tentassem socorrê-lo. Não precisavam de se preocupar, dissera-lhes Harry: os trabalhadores braçais e os artesãos tinham de cuidar de salvar a própria pele. Mas eles não queriam correr riscos com um prisioneiro tão precioso como Harry Talvace, pois por certo pagariam com a vida qualquer passo em falso. Confinaram-no a uma cela da torre de vigia, fechada a sete chaves, puseram-no a ferros e deixaram-no isolado durante quase todo o dia. Mas trouxeram-lhe uma cama de tábuas e comida: Harry comeu com razoável apetite e adormeceu logo que se deitou. Agora que tudo acabara, agora que já não precisava de agir mas apenas de arcar com a sentença contra ele pronunciada, podia dar-se ao luxo de dormir.
Dormiu durante toda a manhã e uma boa parte da tarde, enquanto eram enviados a Fleace e Mormesnil cavaleiros que deveriam trazer consigo, dos outros domínios de Isambard, determinados homens, melhor qualificados para cumprir ordens relativas a um prisioneiro que não conheciam. Em Parfois, eram muitas as pessoas, oficiais, homens de armas, arqueiros, cavalariços, que gostavam demasiado de Harry para este poder ser entregue à sua guarda.
O primeiro a chegar foi um ferreiro de Mormesnil, que parou junto à cama e olhou com enorme espanto o prisioneiro adormecido.
- É este? - perguntou. - Mas não passa de um rapazola! Bem podíeis haver-lhe posto uma das vossas coleiras à volta da cintura e poupar-me o incómodo. Pelo alarido que fazeis por causa dele, pensei que ia encontrar um touro selvagem.
Não obstante, o ferreiro instalou-se no armeiro e fez os grilhões que lhe pediram. Era preciso que mestre Talvace tivesse as mãos livres para trabalhar e liberdade de movimentos para poder subir aos andaimes conforme lhe aprouvesse, estando, todavia, sempre solidamente acorrentado. Uma corrente, presa a dois cintos de ferro articulados por charneiras e dotados de fechos ocultos, que não podiam ser desmontados, ligaria Harry ao seu companheiro permanente, um homem de armas entroncado, natural do Poitou, mestre no manejo da espada e da adaga, e que viera de Fleace, no Flintshire.
- Tende cautela e não confundais os dois cintos, senão o rapaz ainda se escapa - ironizou o ferreiro, ao ver o corpulento Guillaume.
- Se isso acontecer, aqui o meu amigo deita-o abaixo, mesmo a uma distância de quinhentos passos - resmungou Guillaume, por entre a sua barba preta e densa. - Muito me espantaria que ele conseguisse escapar-nos, a menos que aparecesse um santo e o levasse consigo numa nuvem.
- Os santos raramente vêm a Parfois - comentou o ferreiro, com um esgar.
Nesse dia, Harry passou todo o tempo na torre de vigia, enquanto os mais variados rumores corriam entre os seus homens, que não colocaram uma laje nem assentaram uma pedra na igreja. Parfois vibrava com a nova da sua traição e esta gerara cem versões diferentes sobre a sua sorte. Fora apanhado. Morrera. Estava são e salvo em Gales, com o rapaz. O rapaz morrera mas Harry escapara. Fora capturado mesmo na fronteira e levado para Fleace.
Nessa tarde, John o Frecheiro deu conta desses rumores a Benedetta, pelo menos uma dúzia de vezes, mas a conclusão era sempre a mesma:
- Dizem muitas coisas mas não sabem nada. Ninguém o viu desde que ele fugiu com o rapaz ou, pelo menos, ninguém que esteja disposto a falar.
- O cavalo! - exclamou Benedetta, quando ele apareceu, mais uma vez, ao princípio da noite. - Pergunta nos estábulos. Alguém deve saber que cavalo ele levou.
John obteve uma resposta mas só pôde comunicar-lha depois da ceia, no salão, porque antes disso Isambard estivera com ela, nos seus aposentos privados. Então, quando Benedetta se levantava da mesa, John aproximou-se e disse-lhe ao ouvido:
- Um dos cavalos da pedreira voltou sem cavaleiro.
- Então, ele está aqui - concluiu Benedetta, levando a mão ao coração, pois não tinha dúvidas de que assim era.
Apesar disso, manteve uma expressão calma e modos comedidos e não disse uma palavra sobre Harry a Isambard. A verdade acabaria por se saber e ela não queria trair-se nem pedir por Harry até ser absolutamente necessário.
Quando a noite chegou, arrancaram Harry da cama e fecharam-no, sem os grilhões, numa cela por baixo da Torre da Guarda. Chegava-se lá através de uma antecâmara, onde Harry viu pela primeira vez os seus dois guardas: o corpulento Guillaume e um arqueiro alto, triste e ruivo, chamado Fulke. Estes observaram-no com olhos profissionais, imparciais, como ele teria olhado para o projecto de um edifício desenhado por outra pessoa, sem outro prazer que não fosse descobrir soluções para os problemas nele existentes. Harry reparou que Isambard tivera o cuidado de o colocar nas mãos de estranhos e considerou isso como um cumprimento.
A cela que lhe fora destinada era pequena mas seca e, por ser escavada na rocha, mais quente do que o grande salão do castelo, exposto a todos os ventos. Não tinha janela, apenas uma estreita fenda oblíqua, aberta na espessura da muralha, por onde entrava o ar e através da qual, durante o dia, pelo menos um fraco raio de luz haveria de penetrar. Harry viu que havia uma cama e coberturas adequadas; era evidente que lorde Isambard não iria permitir que o seu mestre canteiro morresse de frio ou ficasse tolhido pelo reumatismo, antes de ser confiado às mãos do carrasco, que iria arrancar-lhe o coração. Pelas mesmas razões, dar-lhe-iam sempre comida suficiente e tudo quanto fosse necessário para o manter activo e apresentável. Ainda era o mestre da obra de Parfois e era necessário que continuasse a impor respeito àqueles que trabalhavam sob as suas ordens. Harry julgara que ia passar a noite em claro, assolado por pensamentos febris, por sentimentos amargos, rememorando as etapas que o haviam conduzido à sua perda. Porém, dormiu pacificamente e acordou repousado. O aparecimento de Fulke junto à sua cama, com uma vela numa das mãos e um tabuleiro com comida na outra, quase lhe pareceu irreal. E a entrada de Guillaume foi ainda mais estranha. Trazia água e uma toalha e, quando Harry acabou de se lavar, ofereceu-se para lhe fazer a barba. Harry fitou-o por instantes, espantado, e depois riu-se.
- Isso quer dizer que não querem que eu me sirva de uma lâmina! É uma precaução desnecessária mas ter alguém que faça esse serviço por mim é, também, um luxo que nunca experimentei. E quanto a manejar o macete e o escopro? Também pensaram nisso? Ser-me-á permitido trabalhar hoje?
Tudo indicava que sim, pois trouxeram os grilhões que o ferreiro fizera e prenderam-lhe o cinto mais pequeno à cintura.
- Qual de nós é o cão e qual o que segura a trela? - perguntou, tomando o peso à corrente.
- Tendes uma língua bem comprida - resmungou Guillaume, sem se deixar impressionar. - Vamos ver se, ao fim do dia, ainda lhe dais tão bom uso.
Guillaume já vira muitos prisioneiros bem-dispostos e faladores mas a boa disposição nunca durava muito.
- Bem, vamos experimentar este instrumento - disse Harry, andando um pouco e dando algumas voltas, para testar a liberdade de movimentos. - Isto está bem feito. Gosto das pessoas que têm orgulho no seu trabalho. Lorde Isambard prometeu-me liberdade e tempo para acabar o meu. A promessa mantém-se?
- Recebemos ordens para vos acompanhar para onde fordes e, quando se tratar das obras da igreja, sois vós quem manda. Mas atenção: ninguém deve falar convosco de nada que não seja trabalho. É melhor que os aviseis porque, senão, quem paga são eles.
Pela primeira vez, Harry sentiu o aguilhão do verdadeiro terror. Dirigiu-se para a porta, ansioso por ir ao encontro da única alegria segura e inalterável que lhe restava - o seu trabalho - e da única esperança de reconforto - ter notícias de Gilleis. Encontrar-se-ia a salvo e longe dali? Estaria bem? Teria apoiado aquilo que ele fizera? Teria compreendido e perdoado a brusquidão forçada da despedida? Não valia a pena perguntar àqueles dois, que eram estranhos e que, fosse como fosse, deveriam ter recebido ordens para informar Isambard de tudo quanto ele dissesse. Mas tinha a certeza de que, quando estivesse de novo ocupado, na igreja, Benedetta arranjaria maneira de lhe mandar um recado. Mesmo que tivesse de continuar rigorosamente isolado do mundo, um dia, os seus guardas acabariam por deixar escapar uma palavra. Não acreditava, não queria acreditar, que lhe fosse exigido sofrer e morrer sem saber que ela estava a salvo... ela e o filho, esse filho que nunca iria conhecer.
- Estou a ver que já começais a pensar de outra maneira - disse Guillaume, rindo. - Já sabeis de que lado da trela vos encontrais?
- Estava a pensar naquilo de que irei precisar na casa do risco, para não termos de voltar ao terreiro - mentiu, sem hesitações, pousando fugazmente as mãos no cinto frio de ferro que tinha à cintura.
Uma a uma, as portas foram-se abrindo diante dele, como se fossem camadas de pedra que o isolavam do mundo. Lá fora, apesar de esplêndida, a luz do dia era triste, cinzenta, fria, depois do magnífico nascer do sol da véspera. Como era seu hábito, Harry atravessou o terreiro da liça a passadas impetuosas, a caminho da casa do risco. Só havia uma atitude a tomar relativamente às correntes: afastá-las da mente. Caminhava depressa, como se as grilhetas não existissem, obrigando Guillaume a correr atrás de si, segurando o melhor que podia o peso da corrente. Fulke ia atrás com a besta ao ombro; era ele quem levava as chaves dos cintos de ferro, não fosse dar-se o caso de Harry matar ou pôr fora de combate Guillaume. Se tal acontecesse, não poderia desembaraçar-se do peso do seu guarda.
O reaparecimento de mestre Talvace no castelo de Parfois e o modo como este se deu causaram sensação: os cozinheiros e os ajudantes de cozinha saíram das cozinhas, os cavalariços dos estábulos, e os armeiros, criadas de quarto, homens de armas, camareiros, escrivãos, escudeiros e pajens abandonaram os seus afazeres para o verem e se compadecerem dele. Afinal, não havia fugido para lugar seguro! Estava ali, prisioneiro mas, apesar disso, a sair da sua casa do risco com a mesma autoridade de sempre, agrilhoado mas não abatido nem submisso. Passou entre eles, insensível ao frémito de pavor e admiração que os percorreu ao vê-lo, indiferente aos dois guardas que o seguiam tão de perto. A nova do seu regresso espalhou-se como fogo em pasto seco, como se o cortejo fosse um cometa cuja cauda lançava faíscas.
Na casa do risco, encontrava-se o jovem Simon, com a cabeça entre as mãos, debruçado sobre as contas, sem sequer tentar escrever ou ler. Os seus olhos muito inchados indicavam que quase cegara de tanto chorar. Quando viu Harry na soleira da porta, o seu rosto iluminou-se com uma tal alegria incrédula que o próprio ar à sua volta pareceu colorir-se. Abriu a boca para se lançar num discurso inflamado mas, no mesmo instante, viu a escolta e a corrente. O brilho do seu olhar desapareceu. O sorriso de alegria transformou-se num esgar de horror. Saltou do tamborete e ter-se-ia lançado nos braços de Harry, em busca de conforto, se Guillaume não se houvesse metido de permeio, empurrando-o contra a mesa de trabalho.
- Tira as mãos! Podes dizer-lhe o que quiseres sobre o trabalho mas nem mais uma palavra. E, se quiseres ser chicoteado, é só tocares-lhe.
- Deixai-o em paz! - cortou Harry, secamente, - Ele é o meu ajudante e sou eu quem lhe diz o que deve e não deve fazer.
Olhando o rosto trémulo do jovem, por cima do ombro de Guillaume, Harry sorriu e acrescentou:
- Nunca chores por minha causa, Simon. Como vês, estou de boa saúde e ainda sou o mestre desta obra. Vamos continuar com o nosso trabalho e acabá-lo, tão bem como o começámos... tu e eu. Quando estiver terminado, haverá tempo para nos preocuparmos com outras coisas. Mas não antes. Para já, faz o que ele te disse e fala comigo só do trabalho que temos entre mãos. Isso, podes fazer à vontade. Afinal, que necessidade há de me dizeres que lamentas o que se passa comigo e que serás, como sempre foste, um bom rapaz e um bom amigo? Eu sei isso e isso alegra-me.
- Cuidado com a língua - avisou Fulke. - Estais a ultrapassar os limites.
Harry soltou uma gargalhada.
- Quais limites? Cuidais que podeis impor-me o silêncio? Como? Com chicotadas? Quem é que perde com isso? Eu só morro uma vez e, se morrer cedo demais, lorde Isambard não terá a sua igreja terminada. Se me aleijardes, à paulada ou na mesa de torturas, também não. Não ousareis tocar-me sem ordem dele e sabeis isso muito bem. Nunca houve uma língua mais livre do que a minha. Não me faleis em limites.
Voltou-lhes as costas e dirigiu-se para o cofre onde se encontravam os seus desenhos.
- O Knollys verificou os registos, ontem, Simon?
- Sim, mestre Harry. E aprovou-os. As lajes custaram-nos menos do que a soma que lhes estava destinada.
A voz do adolescente soou pouco firme mas ele conseguira controlá-la. Também tinha o seu orgulho.
- Ontem, houve tantas incertezas por não estardes aqui que será melhor que vos apresseis e descubrais qual é a ideia do mestre Matthew. Sem vós, ele julgou ser seu dever assumir o comando mas bem sabeis que as ideias dele são diferentes das vossas.
- O mestre Matthew é um bom homem mas, se o deixassem, enchia a igreja de belos trabalhos de madeira - replicou Harry, sorrindo. - Não tenhas medo: defenderei a minha balaustrada. Ele já levou a sua avante no cadeiral.
Dito isto, pegou nos seus desenhos e dirigiu-se para a porta.
À passagem da porta e ao longo da ponte levadiça, o frémito de excitação, horror e piedade precedeu-o como uma fanfarra e todos os jornaleiros - os ajudantes, os funileiros, os vidraceiros, os marceneiros que trabalhavam no cadeiral do coro - interromperam o que estavam a fazer e ficaram a olhar, de boca aberta e olhos esbugalhados, a ver Harry avançar para a igreja e entrar, com o mesmo passo rápido e o mesmo olhar altivo de sempre. Nesse preciso momento, mestre Matthew estava a coçar o queixo e a contemplar pensativamente a balaustrada, que tanto o decepcionara; encontrava-se rodeado por um grupo de apoiantes, pois tudo indicava que a sua estrela estava em ascensão, agora que mestre Talvace fugira, morrera ou caíra em desgraça, qualquer que fosse a verdadeira versão do que se dizia sobre o seu desaparecimento. Em vez daquelas linhas verticais e daquelas sóbrias folhagens ascendentes, dizia Matthew, esfregando as mãos, ele poria uma floresta de ornamentos ricos e luxuriantes. Não havia nada a fazer senão desmontar aquela balaustrada e substituí-la por completo.
- Só por cima do meu cadáver! - exclamou Harry, sem rodeios, aparecendo, sem ser esperado, por trás do grupo, no meio da conversa. - Isso será possível um dia destes mas, por enquanto, ainda não.
Atónitos, todos eles se voltaram, desconcertados mas contentes. Todavia, a visão da corrente e do cinto metálico foi um choque que os impediu de falar. O efeito que estes tiveram espantou o próprio Harry, que teve de levar a mão ao cinto para se recordar da causa de tamanha estupefacção.
- Ah, não vos deixeis impressionar. Foi este o meio encontrado pelo meu senhor para garantir que não será privado dos meus serviços. Vereis que continuo a ser o mestre desta obra e que quem puser em causa a minha autoridade terá de se submeter à decisão de lorde Isambard. Lamento haver perdido um dia de trabalho, ontem... os acontecimentos escaparam ao meu controlo. Estou certo de que utilizastes bem o vosso tempo.
Confusos, aliviados, atónitos e horrorizados, voltaram ao trabalho como se nada houvesse acontecido, embora o seu mundo não fosse já o mesmo. O tom mordaz das palavras de Harry, o seu olhar crítico desmentiam a mudança e até as horas do dia, que se escoavam em tarefas vulgares, conspiravam para os fazer duvidar disso. Mas o tilintar da corrente era um aviso contínuo. Ouviram-no durante todo o dia, a intervalos, vindo do trifório, onde Harry começara a última série de esculturas. Era um contraponto discordante dos golpes bem calculados do seu macete e do leve arranhar dos pedaços de pedra que tombavam. John o Frecheiro, que vira a estranha procissão atravessar o terreiro da liça, apareceu no estaleiro por volta do meio-dia e avançou para a igreja com passadas seguras, como se estivesse investido da mais alta autoridade. Do lado de dentro do portal, dois homens de armas tiveram um sobressalto. Uma lança barrou-lhe o caminho e uma mão enorme abateu-se sobre o seu peito.
- Aqui não, John! Aqui só entram aqueles que cá trabalham.
- Isso é novidade - replicou John, em tom calmo. - Ontem, estive aqui. Madonna Benedetta quer as medidas do altar de Nossa Senhora mas, se achardes por bem negar a Madonna Benedetta aquilo que ela quer, sereis vós a responder por isso. Eu lho direi.
Não era de somenos importância alguém ousar opor-se à senhora de Parfois mas eles tinham seguramente ordens rigorosas, visto que não se desviaram nem baixaram as lanças.
- Se estivestes aqui ontem, porque não tirastes as medidas?
- Porque o altar ainda não estava pronto e mestre Talvace não se encontrava aqui e só ele conhece os pormenores de que ela precisa. Pela minha parte, não quero mexer nas pedras já trabalhadas. Suponde que sou acusado de as haver danificado? Só preciso de falar com ele um minuto. Madonna Benedetta mandou-me aqui porque soubemos que ele voltou.
- É por ele haver voltado que não podeis entrar. Com todo o respeito pela tua senhora, nós temos ordens rígidas. Ninguém, John!
John o Frecheiro encolheu os ombros, com aparente indiferença, afastou-se e foi contar a Benedetta o que se passara. Se era preciso travar uma batalha para se entrar na igreja, ela tinha mais probabilidades do que qualquer outra pessoa de ser bem sucedida. Pouco depois, Benedetta em pessoa atravessava o pátio e apresentava-se junto ao portal oeste, ostentando uma expressão altiva e imperiosa e um olhar severo. As lanças cruzaram-se diante dela, travando-lhe a passagem. No seu belo rosto pálido e exausto, os olhos cinzentos tinham a dureza do diamante.
- O que é isto? Quem vos deu autorização para me impedirdes de ir onde eu quiser? Lorde Isambard vai saber disto.
- Foi lorde Isambard quem nos deu estas ordens, senhora. Só podemos deixar entrar aqueles que trabalham aqui e, além deles, só mesmo Lorde Isambard. E Lorde Isambard não mencionou nenhuma outra excepção. Não tencionava por certo banir-vos também, senhora, mas sem a sua permissão não ousamos deixar-vos passar.
- Eu vou entrar - retorquiu Benedetta, com um olhar flamejante. - Se me detiverdes, respondereis por isso.
Segurou as saias com as duas mãos e, audaciosamente, deu dois passos em frente, expondo o peito às lanças cruzadas. Estas estremeceram diante dela e quase se desviaram para não lhe tocar; mas os guardas tinham mais medo de desobedecer às ordens recebidas do que de a ofender. As pernas tremeram-lhes mas mantiveram-se nos seus postos. Benedetta empurrou as lanças mas não conseguiu avançar.
Diante dela, as portas estavam abertas. Viu Harry entre o cadeiral do coro, com as suas duas sombras coladas a ele. Como se os seus olhos tivessem tido o poder de atrair os dele, Harry voltou a cabeça e viu-a, encostada à barreira das lanças. Afastou-se dos marceneiros e atravessou a nave a uma tal velocidade que, antes mesmo de ver a mulher que se encontrava à porta, Guillaume adivinhou que devia opor-se àquela deslocação. Não disse uma palavra mas, sorrindo, firmou bem o seu peso no chão e deixou Harry avançar sem restrições até onde a corrente o permitia. Quando chegou ao fim, esta obrigou-o a parar bruscamente. Benedetta viu-o ficar sem fôlego e levar as mãos à cintura e, então, reparou no brilho do ferro. Ouviu a gargalhada gutural do guarda Guillaume e o seu coração tremeu de impotência. Estavam demasiado longe um do outro para lhe poder comunicar, nem que fosse apenas por um olhar, que cumprira a sua tarefa. A penumbra do Outono que reinava do lado de dentro do portal obscurecia-lhes os rostos e, por isso, de nada serviu haverem esforçado os olhos - e os corações. E tornar demasiado óbvia a aliança existente entre ambos havê-los-ia privado de uma segunda oportunidade.
Por instantes, Benedetta não se moveu, devorando com os olhos os contornos dos ombros de Harry, a sua cabeça vergada pelo desespero: tudo quanto a luz acinzentada lhe permitia ver. Em seguida, deu meia volta, com um daqueles seus movimentos majestosos - que lhe sacudiu dos ombros a humilhação, como se esta fosse poeira que ela sacudia da bainha do seu brial - e afastou-se sem olhar para trás.
- A trela é comprida mas tem os seus limites - disse Guillaume, ainda a rir ruidosamente. - O nosso cão de caça ainda não está habituado à coleira. Mas, com o tempo, vai acabar por ser um cãozinho obediente.
Embora lívido de raiva e abatido pela dolorosa consciência da sua impotência, Harry não respondeu. Ela voltaria a tentar, mil vezes: nunca iria deixar de tentar. Queixar-se-ia altivamente a Isambard do modo como fora tratada e, com estudada cortesia, ele oferecer-se-ia para tratar pessoalmente de tudo quanto ela quisesse da igreja. Se ela insistisse na ofensa sofrida, Isambard mandaria chicotear os guardas, para Benedetta se sentir culpada por esse castigo injusto e nunca mais tentar passar por eles. Ela mandaria outros mensageiros, usando estratagemas diferentes e engenhosos, mas nenhum deles conseguiria chegar até ele. Já haviam sido tomadas todas as precauções para anular os efeitos de qualquer iniciativa dela. Ele tinha de ficar incomunicável, sem saber de nada que não fosse o seu trabalho, o único motivo pelo qual continuava vivo. Para além disso, era já um homem morto. Não tinha esposa, nem amigos, nem direitos entre os vivos, nem sequer tinha nacionalidade ou bens, nem rei, nem intervenção naquilo que acontecia no mundo. Benedetta nunca seria autorizada a voltar a trocar uma palavra com ele e não podia pedir a Simon ou a qualquer outro dos seus subordinados que corressem o risco de mostrarem piedade por ele.
Restava-lhe apenas um recurso, um único: ele mesmo. Um cãozinho obediente? Não. Nem à voz dos treinadores, nem ao assobio do senhor de Parfois, pensou. Uma vez que tenho de procurar aquilo de que preciso onde puder e de resolver tudo sozinho, veremos como os meus treinadores se adaptam ao meu novo modo de agir.
Os vidraceiros estavam a trabalhar numa das janelas da torre. Era fácil arranjar pretextos para subir ao nível mais alto dos andaimes e os seus guardas não tinham outro remédio senão subir também. O ritmo que Harry lhes impôs teria aterrorizado até alguns dos seus pedreiros mas os guardas lá foram atrás dele, a arquejar e a suar terrivelmente, temendo pelas suas vidas. A certa altura, Harry teve de voltar atrás, para arrancar Fulke a um ângulo exposto, onde este parara, com a tez do rosto esverdeada, incapaz de continuar em frente ou de recuar. Quando, por fim, chegaram à prancha mais alta e Harry se dirigiu, com toda a calma, até à extremidade das tábuas, os guardas apoiaram-se desesperadamente à parede, agoniados e a tremer, sem ousarem olhar para baixo. A barba hirsuta de Guillaume tremia e este praguejava em voz baixa e ameaçadora. Com as pontas dos pés sobre o vazio, Harry ria. Sob a luz cada vez mais fraca, pois anoitecia cedo, Parfois era um grande vulto cinzento; lá em baixo, o vale do rio parecia um corpete de veludo rendilhado, com uma fita prateada. A lenta aproximação da noite tornava o ar mais frio e mais calmo.
De súbito, Harry sentiu-se submerso por uma onda de angústia, tão intensa que lhe fez doer o corpo todo. Pegou numa pedra minúscula que alguém levara até ali agarrada ao sapato e deixou-a cair no vazio.
- Haverá alguma coisa que me impeça de ir atrás dela? - perguntou, voltando-se para Guillaume, com um sorriso feroz. - Tira a trela ao cão, guarda, se não quiseres ir atrás dele.
Aterrorizado, o homem de barba preta fitou-o e deitou-lhe a mão ao braço mas Harry conseguiu furtar-se e, sorrindo, correu ao longo das tábuas; depois, agarrou a corrente com as duas mãos e começou a puxar o seu companheiro de ferros. Guillaume passou os dois braços à volta de um dos postes e, a tremer dos pés à cabeça, agarrou-se a ele com toda a força.
- Não seria melhor tirares-lhe a corrente, Fulke? Ou queres vir connosco? Sempre era melhor do que enfrentares lorde Isambard sem nós.
Os guardas começaram por o amaldiçoar e, em seguida, desamparados, passaram às súplicas.
- Ah - disse por fim Harry, farto daquele jogo e farto deles. - Não precisais de ter medo. Comigo os vossos miseráveis pescoços estão a salvo. Se quisesse matar-vos, já poderia ter morto Fulke, há pouco. Bastava tê-lo deixado ali, a tremer de medo, até ele acabar por cair. Vá lá, vamos descer, se ainda fordes capazes de vos mexer. Fazei o que eu vos disser e estareis tão seguros como nas vossas camas.
Guiou-os em segurança na descida mas, mal chegaram ao solo, Guillaume caiu de joelhos e vomitou. Embora a vontade de rir já lhe houvesse passado, Harry fez tilintar a corrente, rindo.
Nessa noite, quando voltaram a conduzi-lo à cela e lhe levaram comida, estavam os três abatidos e sem vontade de falar. Liberto das grilhetas, Harry deitou-se de costas na cama, com as mãos entrelaçadas por baixo da nuca. A cólera desaparecera e só restava a desolação.
- Foi desleal tirar partido da vantagem que tinha sobre vós e estou envergonhado por o ter feito - admitiu, com um sorriso forçado. - É uma capacidade que se adquire com uma longa aprendizagem. Não é vergonha nenhuma não haverdes nascido com ela. Eu também não a possuía. Serei obrigado a levar-vos lá acima, de vez em quando, mas dou-vos a minha palavra de que, da próxima vez, subiremos a uma velocidade mais moderada.
Confundidos, os guardas fitaram-no sem dizer palavra. Era a primeira vez que um prisioneiro lhes pedia perdão por os haver tratado mal.
- Há alguma coisa que desejeis? - perguntou Guillaume, antes de se ir embora, deixando-o nas trevas.
- Só uma - respondeu Harry, soerguendo-se sobre o cotovelo. - Quanto a mim, não haverá nada de que possa queixar-me se souber notícias da minha esposa. Se pudésseis ao menos dizer-me se ela se encontra em Parfois, ou se está a salvo, longe daqui...
A expressão do rosto dos dois guardas endureceu e os olhares que lançaram um ao outro fizeram Harry compreender que era inútil. Para além de o guardar a ele, estavam encarregados de se vigiar mutuamente e nenhum dos dois ousava tranquilizá-lo, por temer pela própria vida.
- Está bem! - suspirou, voltando a deitar-se. - Isso era pedir muito.
Depois de a porta haver sido trancada - a enorme porta, que mais parecia uma pedra tumular - Harry girou sobre si mesmo e, de bruços, enterrou a cabeça nos braços cruzados. A leviandade e o vazio, a irresponsabilidade que lhe havia toldado o julgamento, quando lhe fora retirada toda a possibilidade de acção, haviam desaparecido por completo, como o entorpecimento que se segue a um ferimento. A saudade e a falta de Gilleis invadiram-no como as dores provocadas por um veneno, apossando-se de tal maneira do seu corpo que sentiu o sangue ser-lhe sugado do coração. Jazeu ali, abraçado ao sofrimento, os dentes enterrados com força na carne tisnada do braço, até a crise passar, numa breve explosão de lágrimas escaldantes.
Seguiu-se-lhe a agonia do espírito, a interminável angústia de pensar, sentir e ter medo, uma agonia que só viria a ter fim com a sua morte.
A ÚLTIMA GRANDE OBRA DE HARRY TALVACE EM PARFOIS, O fruto do seu
cativeiro, só superada pelos capitéis da nave, foi a galeria de retratos de cabeças, nas mísulas do trifório.
Como, apesar de banido para um mundo de solidão semelhante a um túmulo, era ainda um homem em cujas veias continuava a correr o sangue, a sua energia e a sua paixão, impossibilitadas de se expressarem por outros meios, fluíram como uma torrente irresistível para aquela derradeira via. Ainda lhe restava uma felicidade, uma alegria, a única que não lhe fora retirada: a obra esplêndida que criava. Todo o seu talento foi transposto para a pedra, abrindo-se como uma flor.
Durante o dia, Harry andava entre os seus semelhantes, atento, competente, exigente. E à medida que se escoavam as semanas e os meses daquele Inverno lento e escuro, aquilo que havia sido estranho e terrível tornou-se um hábito aceite. Um homem habitua-se a tudo. Em certos dias que passavam juntos, os seus homens esqueciam-se das correntes e eram brutalmente afastados dele à pancada, quando caíam na armadilha de se aproximarem demasiado ou de lhe dirigirem meia dúzia de palavras que nada tivessem a ver com o trabalho. Tinham pena dele mas até a piedade se gasta com o uso. Superavam-na, tal como ele parecia haver por fim superado o medo, o desgosto e, até, talvez a saudade. O coração não é capaz de suportar tanta dor por muito tempo.
Mas a pedra era-lhe fiel. A pedra sobrevivia.
Pôs de lado os desenhos já feitos e fez novos desenhos. Todas as mísulas dos arcos interiores do trifório, entre as estreitas janelas lanceoladas, transformaram-se em capítulos da história da sua vida. Ali, naquele local obscuro, longe das vistas de todos, podia gravar com precisão o seu testamento. Começou de forma deliberada e distanciada. Enquanto houvesse uma mísula por esculpir, continuaria vivo. O seu juiz assim lho prometera. Pouco importava que as lajes estivessem assentes, os altares erguidos, os cadeirais instalados, mais de metade das janelas já tivesse vitrais e a outra metade estivesse pronta, à espera apenas da Primavera e dos vidros: só morreria depois de a última escultura se encontrar terminada e plenamente a seu gosto. Podia, pois, se a sua vida dependesse disso, fazer o trabalho durar muito, muito tempo.
Mas as imagens tomavam forma demasiado depressa, brotavam das suas mãos com tamanha insistência que Harry não podia contê-las. Nunca imagens de cabeças haviam sido esculpidas tão depressa, de um modo tão premente e com tamanha economia de traços. Guillaume e Fulke jogavam calmamente aos dados nas lajes do trifório, desviando os olhos dele por uma hora ou duas e, quando se voltavam, havia um novo rosto a fitá-los. Os traços daqueles rostos iam surgindo e Harry não podia mutilá-los, continuando a trabalhar neles, quando sabia que estavam acabados. Ali estavam o seu pai, a sua mãe - graças a Deus, já casada com o jovem cavaleiro de Gloucester e bem longe de uma morte que não podia impedir - o seu irmão Ebrard e Adam Boteler, o seu irmão de leite. Pobre Adam, por certo morto de ansiedade, em Gales, tentando obter notícias fiáveis, um bem que dificilmente podia ser encontrado naquele país conturbado. Ali estava também o rosto austero e aristocrático do abade Hugh de Lacy, normando até às pontas dos dedos, e o irmão Denis, o frade enfermeiro, sem dúvida agora ocupadíssimo em busca de desculpas para os querubins e serafins mais irrequietos de todos os capítulos celestiais. E Nicholas Otley, mercador e magistrado municipal de Londres, um homem de carácter generoso, próprio de um príncipe, mas que os príncipes tão raras vezes possuem. E Gilleis, em criança. E Apollon e Élie, envergando o manto que era propriedade de ambos. Ali estavam Benedetta, o preboste de Paris, Ralf Isambard, John o Frecheiro e Owen ap Ivor ap Madoc, por uma vez representado como ele próprio. Povoavam a sua memória e brotavam dela para a pedra.
O auto-retrato que abria a sequência e alguns dos rostos que reconheceram despertou uma inesperada curiosidade em Fulke e Guillaume. Seguiam Harry de mísula para mísula, para ver quem iria ser representado e faziam inúmeras perguntas sobre aqueles que não reconheciam. Harry havia superado a cólera e eles a indiferença. A corrente, de início uma trela, transformara-se num elo. Era demasiado tarde para dar início a uma nova relação mas esta estabelecera-se sem eles se aperceberem.
Gilleis, já mulher, emergiu da pedra no início da Primavera, como as flores.
- É a mesma que está lá em baixo, no altar - disse Guillaume, olhando por cima do ombro de Harry.
Acabara de perder o que restava do seu soldo, a jogar dados com Fulke, e já não tinha mais nada que pudesse apostar. O vencedor estava confortavelmente sentado, a alguma distância de ambos, encostado à parede, aproveitando um raio de sol, de olhos fechados, e parecia dormir mas era difícil saber se caíra num sono profundo.
- Pois é - disse Harry, num tom de voz que levou Guillaume a voltar-se para lhe lançar um olhar entendido.
- Uma beldade. É mesmo uma mulher de carne e osso?
- É a minha esposa - respondeu Harry.
Guillaume susteve a respiração e olhou interrogativamente para o companheiro. Aos poucos, a mão direita de Fulke fora-se abandonando e escorregara-lhe para o joelho. A sua cabeça repousava contra a pedra e ele não abriu os olhos.
- Não sei nada de certo sobre a vossa senhora - informou Guillaume, num murmúrio, junto ao ouvido de Harry. - Há quem diga que desapareceu. Outros dizem que está aqui, enclausurada. Ninguém a viu.
Espantado e profundamente comovido, Harry voltou a cabeça e olhou para o seu carcereiro. Falar dela, ouvir falar dela, era como um festim após um longo jejum; saber que o seu guarda se lembrara do seu pedido e tentara confortá-lo encheu-o de gratidão, trouxe de volta o mundo dos homens e toda a confiança que neles tinha. A compaixão era capaz de atravessar até as paredes de pedra da sua cela.
- Isso foi simpático, amigo... - murmurou.
Embora com suavidade, Guillaume tapou-lhe a boca com a mão, lançou uma olhadela a Fulke e aproximou-se mais.
- Mais uma coisa, enquanto há tempo. Todas as noites, quando já estais na cela, um de nós tem de lhe dar conta de como foi o vosso dia. Não passa um dia em que ele não nos pergunte se pedistes para o ver. Penso que está à espera disso. Tenho a certeza de que, se lhe suplicasses que vos poupasse a vida, ele acederia.
- Nunca faria tal coisa - desenganou-o Harry, num tom convicto. - Deu-me demasiado de si mesmo para poder perdoar a minha traição.
- Então, porque é que ele pergunta? Mandai-lhe uma mensagem, pedi-lhe que vos receba. Pelo menos tentai. Se o que ele quer é ver-vos de joelhos, não valerá a vossa vida tal sacrifício?
- Vai ter de esperar muito, até me ver de joelhos - replicou Harry, num tom sombrio.
- Mas é pela vossa vida, homem! Benza-me Deus! Sois tão louco como todos esses senhores das marcas.
- Aquilo que existe entre ele e mim não permite que nenhum de nós se ajoelhe. E, mesmo que lhe beijasse os pés, ele nunca se privaria do prazer de me matar. Acreditai-me: sei o que digo.
- Então, pelo menos, andai mais devagar a talhar as vossas pedras, rapaz, e vivereis mais tempo. Vós mesmo estais a fazer com que a vossa hora chegue mais depressa.
Harry abriu a boca para protestar que havia semanas que tentava controlar-se mas, antes de poder dizer fosse o que fosse, sem produzir qualquer som, Guillaume formou com a boca as palavras «Ele acordou!» e distanciou-se tanto quanto a corrente o permitia. Fulke afastara-se do pilar a que estivera encostado e espreguiçava-se. Harry não teve tempo para agradecer a Guillaume, nem mesmo com um olhar e, por isso, voltou ao trabalho. Os sons do cinzel e da corrente soaram em simultâneo.
- Faltam quatro - observou Guillaume, retomando o habitual tom brusco. - O que é que vão ser?
- Hás-de ver quando chegar a altura.
Harry sorria, enquanto ia moldando a boca bem-amada, em forma de botão de rosa. Duas dessas quatro cabeças mostrar-lhes-iam os seus próprios rostos. Se tivesse sido Guillaume a dormitar, talvez Fulke houvesse tomado a mesma atitude benevolente e murmurado conselhos ao seu ouvido. A bondade, a compaixão e a amizade conseguem chegar à beira do túmulo, como os dentes-de-leão amarelo vivo, que conseguem florir em direcção à luz, mesmo entre as pedras seladas das sepulturas. A terceira cabeça seria a do homem que ele ainda não vira mas que os seus carcereiros diziam já ter chegado.
Viu-o no dia seguinte, quando caminhava sob escolta pelo terreiro da liça. Era um homem alto, magro, bastante elegante, vestido de vermelho e preto, que se encontrava ao lado de Isambard, não muito longe da casa do risco, com um braço comprido apoiado na garupa do cavalo. Estava ali para observar Harry mas mostrou-se, de certo modo, desconcertado quando este parou e o examinou demoradamente, com toda a atenção. Talvez o próprio Isambard, que deveria conhecê-lo melhor, tivesse confundido aquele exame com uma atitude de bravata.
- É aquele? - perguntou Harry, quando seguiram em frente.
- É.
- Francês, foi o que disseste? Uma bela cabeça, sinistra. Será nor-mando?
- Ouvi dizer que era da Gasconha. Dizem que é muito hábil.
Harry atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, sem sombra de amargura. Guillaume não era dado a segundos sentidos. Dissera aquilo para o consolar.
- Vamos lá, homem! Se isso quer dizer que ele é perito nessa nova arte de arrancar as entranhas a um homem, deixando-o vivo, preferia que me mandassem um bom carrasco inglês, habituado a trabalhos limpos e rápidos. - Pousando o braço nos ombros de Guillaume, acrescentou: - Não te preocupes, Guillaume. Não faz diferença. Arranja maneira de ele vir à casa do risco, esta noite. Preciso de olhar melhor para ele. Gostava de lhe fazer o retrato.
Quanto à quarta cabeça, a última, Harry pensava nela com um amor tão secreto que o reconfortava saber que nunca ninguém iria perceber quem nela estava representado. Tomá-la-iam por mais um auto-retrato, para concluir a história, e não reparariam nas feições, que não seriam semelhantes às suas. Nunca ocorreria a ninguém sobrepor o rosto de Gilleis ao seu e reconhecer o filho de ambos.
O desejo de prolongar a vida ficara esquecido, em favor do desejo mais imperioso de aperfeiçoar a obra. Não podia retardar nem alterar aquilo que nascia das suas mãos, do mesmo modo que não teria podido maltratar o fruto do seu corpo. Dia após dia, tal como o fruto tem de cair e apodrecer para que a semente possa germinar e a árvore crescer, a sua vida fluía para a pedra sagrada, a árvore do céu da sua grande obra. Ele era o sacrifício humano selado no interior das paredes, era o sangue ritual misturado na argamassa. Nada mais lhe restava a não ser o talento delicado das suas mãos, a paixão obsessiva do seu sonho criador. Até que chegou o dia em que este chegou ao fim.
Foi ao seu encontro numa noite de Maio, estava ele no quarto de dormir a mudar de roupa, depois de um passeio a cavalo. Imóvel, junto à cama, esperou que o escudeiro se fosse embora. Então, avançou e ajoelhou-se aos seus pés. Trazia os cabelos soltos, estava descalça e não usava qualquer jóia ou ornamento. Até então, nunca lhe pedira nada. Colocou-lhe as mãos nos tornozelos, poisou o rosto sobre os pulsos e os seus cabelos espalharam-se sobre os tapetes de pele, como sangue derramado. Na base da nuca, pequenos caracóis de cabelos enrolavam-se como se fossem anéis.
- Esperei muito tempo por este momento - disse Isambard, inclinando para ela o rosto impassível. - Costumava ser eu quem se ajoelhava diante de vós. Mas a minha prece não foi ouvida. Falai, então, se quereis alguma coisa de mim.
- Porque hei-de falar, se já sabeis o que quero? - perguntou Benedetta. - Fizestes de mim uma parte de vós. Escutai, pois, as vossas próprias preces e ficarei calada.
- Eu faço o que me apetece - respondeu ele.
- Acredito. Mas também vos odiais por aquilo que desejais e detestar-vos-eis para sempre por o haverdes feito. Peço-vos que vos alivieis desse fardo, pois mais ninguém pode fazê-lo. Mandai embora o gascão e libertai Harry Talvace.
- Não há preço que possais pagar pela vida dele - disse Isambard, sorrindo para o espelho.
Benedetta ergueu o rosto, pôs as mãos e disse:
- Não estou a propor-vos comprar. Estou a pedir-vos que deis.
- Prossegui! - exclamou Isambard. - Tendes por certo outros argumentos. Quero ouvi-los todos.
Então, ela percebeu que seria inútil. Não obstante, enlaçou-lhe os joelhos e disse tudo quanto podia ser dito acerca daqueles seis anos, ao longo dos quais ele conhecera Harry Talvace, do trabalho inigualável que este fizera para ele, das atenuantes de afecto e de piedade que faziam com que o crime de Harry não fosse um crime, da amizade existente entre os dois. Suplicou pela vida de Harry, em voz baixa e pausada, com palavras ponderadas, sem lágrimas nem recriminações. Mesmo ao humilhar-se, a sua dignidade igualava a dele. Talvez houvesse gritado, chorado e lançado sobre ele uma chuva de rogos histéricos, se soubesse como fazê-lo, mas esse era um talento que não possuía. Aliás, no final, o resultado seria o mesmo. Isambard estava irrevogavelmente decidido a destruir. Não apenas Harry: também ela e ele próprio, fazendo desabar sobre os três todo o edifício das suas vidas, que os esmagaria.
Isambard libertou-se dos braços dela, sem brusquidão mas com uma tal deliberação que confirmou o desespero de Benedetta. Ela soltou-o e continuou ajoelhada, de mãos postas.
- O último andaime já foi desmontado. Por volta do décimo dia, as oficinas também terão sido desmanteladas e o estaleiro estará desimpedido.
Benedetta não falou nem se moveu.
- Na manhã do décimo primeiro dia, logo a seguir à alvorada, tudo estará terminado.
Depois do silêncio que se seguiu, ela falou por fim, quase docemente.
- Cuidais que ficareis curado do vosso inferno, quando houverdes espalhado o inferno em torno de vós. Mas será o vosso coração que o gascão arrancará. E, depois disso, sereis forçado a continuar a viver. Ele, pelo menos, poderá morrer.
- Demorará mais tempo do que pensais - disse Isambard, prendendo ao pescoço um colar de âmbar. - De Perronet contou-me que, uma vez, manteve um cliente vivo e consciente durante mais de meia hora, depois de o haver esventrado. Com o coração é mais difícil mas garantiu-me que Harry viverá o suficiente para sentir a falta dele. Claro que pode estar a exagerar os seus talentos... afinal, é um gascão.
Então, voltou a cabeça para Benedetta, que não se movera. O rosto dela não mudara de expressão. Isambard inquiriu:
- Em que pensais, Benedetta?
- Pergunto a mim mesma que terrível penitência imporeis, um dia, a vós mesmo, por aquilo que agora fazeis.
Só o silêncio lhe respondeu. Benedetta não se moveu nem olhou em volta, até ouvir a porta fechar-se, quando ele saiu.
Estava tudo acabado. Nunca acreditara naquela tentativa, tal como nunca acreditara nas cartas que ajudara Gilleis a escrever e a enviar para alguns dos senhores das marcas, implorando a ajuda deles para salvar Harry. Naquela Inglaterra agitada, cada um cuidava de si. Quem iria imiscuir-se nos assuntos de um homem como Isambard?
Restava salvar aquilo que podia ser salvo. Benedetta levantou-se, vestiu-se e, antes de descer a escada de pedra e atravessar o pátio do castelo, até ao salão, mandou chamar John o Frecheiro. Quando este entrou, estava sentada diante do espelho; foi no espelho que os olhos de ambos se encontraram e aquele olhar bastou para se compreenderem.
- Na manhã do décimo primeiro dia, ao alvorecer - disse Benedetta. - Ele não quer que Knollys dispense os homens antes de tudo estar acabado. Vai haver muita gente, o que deve ajudar. Já estudaste o terreno?
- O telhado da torre é o único sítio seguro - respondeu John o Frecheiro. - Lá de cima vê-se todo o terreno, da porta do castelo ao cadafalso e é fácil fazer pontaria.
- Mas a retirada é mais difícil. Eu posso mandar pôr uma corda pendurada do rochedo, do lado galês, e deixar um cavalo à espera, no bosque. Temos de ir os dois ver o local. Mas descer da torre e sair da igreja vai demorar tempo demais.
- Vai haver muita confusão - argumentou ele. - Além disso, há a igreja entre mim e eles e as árvores ficam perto. Correrei o risco. É o único local perfeito.
- Vais ter a luz do lado esquerdo. Tens a certeza de que és capaz? Consegues fazer um trabalho perfeito?
- Consigo sim, senhora.
- Óptimo! Vou tratar de te arranjar dinheiro e deves sair do condado o mais depressa possível.
Reuniu a farta cabeleira num rolo, simples e brilhante, que cobriu com uma renda de seda. No espelho, os seus olhos tinham um brilho prateado e sombrio, como se estivessem rasos de água, mas a sua boca sorria levemente.
- Quando o levarem até à porta do castelo, a luz da alvorada vai bater na sua igreja. Espero que haja sol. Ele vai olhar para cima, para se despedir dela, e vai parar, para contemplar a sua obra. É esse o momento. Tens de me prometer, John, que ele não chegará a desviar os olhos da igreja, para olhar para o cadafalso.
- Espero que, com a graça de Deus, isso não chegue a acontecer.
Benedetta tinha mais uma coisa para fazer mas só poderia tentá-lo na última noite. O padre Hubert era velho e sabido mas, em alguns aspectos, era também ingénuo, circunstância de que ela poderia aproveitar-se mas de que não queria que mais ninguém tirasse partido. Se o pressionasse antes do momento certo, ele teria tempo para, inadvertidamente, trair os seus intentos ou, o que não seria menos desastroso, para pensar melhor, com toda a calma, e concluir que o melhor era nada ter a ver com aquilo. Na última noite, pouco antes da ceia, no salão, seria a altura certa.
Agora, já não havia guardas na igreja. Harry admirara uma última vez aquele local de oração, feito de espaço e luz, entre duas mãos postas, de pedra, e deixara de haver necessidade de lanças cruzadas no portal. Benedetta foi sozinha, ao fim da tarde, rezar diante do altar da Virgem que tinha o rosto de Gilleis. Do outro lado da plataforma rochosa, o cadafalso aguardava, a árvore da morte diante da árvore da
vida. Em vez de desviar os olhos, ao atravessar a ponte voltou-se e mediu o cadafalso com o olhar, como um soldado avalia a espada do adversário. Em seguida, voltou aos seus aposentos e arranjou-se com o esmero de uma noiva - cota de veludo azul-escuro, pelote dourado, cabelos penteados ao alto e presos numa rede de ouro. O tempo do desespero acabara e o tempo de luto ainda não chegara; aquela noite era o tempo do triunfo, se jogasse bem as cartas de que dispunha.
Sozinha, dirigiu-se à capela em busca do padre Hubert. O ancião passara quase toda a sua vida ao serviço de Parfois e gozava de alguns privilégios, uma situação que era para ele motivo de orgulho.
- Estou preocupada por causa de mestre Talvace, padre - começou, fazendo rodar os anéis nos dedos. - Sabeis que é costume de lorde Isambard, e penso que seria também esse o costume do seu pai, oferecer a todos os condenados, na véspera da morte, qualquer reconforto ou diversão que o condenado mais desejasse. Lorde Isambard não falou disso no caso de mestre Talvace e receio que se trate de um esquecimento da sua parte e que, depois, ele venha a lamentar tal omissão. Mas não quero ser eu a lembrar-lho. Poderia parecer uma crítica da minha parte e não é essa a minha intenção. Mas vós, padre, podeis mais facilmente falar-lhe no assunto, visto que é do vosso ofício. Ides visitar o prisioneiro depois da ceia, não é verdade?
- É essa a minha intenção - concordou o padre.
- Então, à hora da ceia, não poderíeis avivar a memória de lorde Isambard e dizer-lhe que, se ele quiser, podereis ser o mensageiro da sua graciosa clemência? Penso que será um ponto de honra para ele mestre Henry não ser privado de tal graça e que se sentirá profundamente magoado, se isso acontecer por esquecimento seu.
- Lorde Isambard é sempre muito escrupuloso - anuiu o padre Hubert, endireitando os ombros. - É meu dever cuidar de que tudo seja feito segundo os seus desejos. Falar-lhe-ei do assunto antes de me retirar.
- Já agora, padre, podeis dizer da minha parte a mestre Henry que eu aprovo o oferecimento clemente do meu senhor e rezo para que, com a ajuda de Deus, ele saiba utilizá-lo para seu maior conforto. Gostaria que ele soubesse que há quem reze por ele.
- É justo e apropriado lembrarmo-nos dos prisioneiros e dos desafortunados. Transmitir-lhe-ei as vossas palavras.
- Dais-me um grande conforto - agradeceu Benedetta. Sorrindo, dirigiu-se ao salão. Agora, pensou, se não sobrevalorizei o amor que existe entre nós, Harry saberá o pedido que deve fazer. E tu, Ralf, que, para o bem e para o mal, honras todas as tuas promessas, vais ficar encurralado, sem possibilidade de recuar.
Nessa noite, Ralf Isambard apresentou-se à mesa com uma magnificência tão notória como a dela, de olhos brilhantes, tez corada e um dos seus sorrisos oblíquos colado aos lábios. A presença de todos os habitantes do castelo nunca lhe afectava o humor; estava tão habituado a eles, eram-lhe de tal modo indiferentes, que conseguia criar solidão à sua volta. Todavia, era bom que houvesse todas aquelas testemunhas. Isambard comeu pouco e bebeu bem, contrariando os seus hábitos de bebedor moderado. Com um sussurro de veludos e brocados, os belos tecidos flamengos de que ele gostava, a manga de Benedetta roçava a de Isambard e, a cada toque, ela sentia o contágio da sua perigosa excitação e da sua terrível amargura. Poderia ter sentido pena dele mas sabia que ele consideraria tal sentimento uma crueldade.
O capelão levantou-se cedo da mesa e aproximou-se do seu senhor. Falou-lhe junto ao ombro mas tinha uma bela voz, bem sonora, e os cavaleiros e escudeiros não podiam deixar de ouvir.
- Vou visitar o prisioneiro, senhor. Tudo deverá ser feito de acordo com o costume, não é verdade? Conheço a magnanimidade do vosso espírito e sei que desejais que eu observe todas as formalidades habituais em Parfois.
- É um caso igual a todos os outros - respondeu Isambard. - Ele tem os mesmos direitos de todos os condenados.
- Nesse caso, de acordo com o costume, perguntar-lhe-ei qual o privilégio ou conforto que ele deseja para a sua última noite - precisou o padre Hubert.
- Fazei isso, padre!
Isambard sorriu, nada incomodado com esta recordatória. Oferecer uma migalha a um homem que morre de fome podia muito bem ser o último requinte da sua vingança.
- Tirando a liberdade, terá aquilo que pedir - acrescentou. Estava dito: aquela voz sonora levara-o demasiado longe para lhe
ser possível recuar. Agora, pensou Benedetta, cabia a Harry fazer o seu papel e a Deus dar ao velho tolo a coragem de transmitir a resposta dele em voz alta.
A ausência deveria ser prolongada, pois o padre Hubert era habitualmente muito demorado nas suas preces. Benedetta sentia-se incapaz de ficar quieta e também não queria estar ao alcance de Isambard quando a resposta chegasse mas a uma distância razoável, que lhe permitisse olhá-lo bem de frente. Levantou-se da cadeira, a seu lado, contornou a mesa, dirigiu-se para o estrado onde se encontravam os músicos e estendeu a mão para a cítara que o mais novo deles dedilhava descuidadamente. O jovem levantou-se e foi buscar um tamborete almofadado: Benedetta sentou-se calmamente e começou a afinar as cordas. Isambard voltara a cabeça, seguindo os movimentos dela com um olhar atento, que nada revelava do que lhe ia na mente. Os seus dedos começaram a dedilhar a canção esquecida de Abelardo e ela fitou-o, para ver se a boca se lhe crispava ou se os olhos pestanejavam mas ele manteve-se impassível. Espera, pensou ela, não há pressa, cravar-te-ei o aguilhão mais tarde.
Três quartos de hora mais tarde, o padre Hubert reapareceu junto à extremidade da mesa principal. O que é que ele tem?, pensou Benedetta, que tocou uma nota em falso, ao vê-lo. Era natural que estivesse nervoso mas a verdade era que transpirava medo. Os seus dedos coçavam agitadamente a venerável tonsura e os olhos lançavam miradas de esguelha ao seu senhor. Fosse o que fosse que Harry dissera, fora mais do que ela previra e mais ainda do que o pior que o ancião pudesse ter esperado. Era bem capaz de mentir; não julgara necessário ter isso em consideração mas, agora, perguntava a si mesma se o padre Hubert não teria mais medo de Isambard do que do Inferno. Era verdade que costumava tomar algumas pequenas liberdades mas sabia quando era preciso parar. Todavia, trair a última vontade de um condenado à morte era uma coisa terrível.
- Então? - perguntou Isambard, irritado com o silêncio hesitante do capelão.
- O jovem não está no seu perfeito juízo, senhor... é muito inflexível e...
- Está a pagar pela sua inflexibilidade - replicou Isambard, e o seu sorriso de esguelha era mais amargo que nunca. - Tem direito a ela. Recusou a minha oferta, não foi?
Não, pensou Benedetta, com as mãos imóveis sobre a cítara. Não é isso; é qualquer coisa mais.
- Não, senhor, não foi precisamente isso. Embora, com efeito, aquilo que ele pediu seja tão insolente e maldoso...
- Ide directo ao assunto! Ele pediu alguma coisa ou não?
- Pediu, senhor, mas...
O padre Hubert estava com mais medo de ficar calado do que de falar e demasiado confuso para mentir com a rapidez necessária para ser convincente.
- Então, dizei! Repeti o que ele disse, padre!
- Senhor, ele pede... Deus lhe perdoe!... pede que Madonna Benedetta passe esta noite na cama dele.
Aquelas palavras chegaram até ao meio do salão e, daí, foram repetidas, numa vaga de sussurros sibilantes como cobras, em intenção daqueles que, encontrando-se mais atrás, não tinham ouvido. O pé do copo veneziano quebrou-se entre os dedos de Isambard, a taça delicada rolou entre a baixela de prata e o vinho cor de sangue espalhou-se sobre a mesa. Abaixo do estrado da mesa principal, os habitantes de Parfois haviam-se tornado numa floresta de olhos dilatados; num ápice, os murmúrios extinguiram-se e, no salão, reinaram o silêncio e a imobilidade, como se toda a gente se houvesse transformado em pedra.
Era ainda melhor do que Benedetta ousara imaginar: era um golpe em pleno coração. Mas o coração dela quase lhe saltava do peito, pulsava com um júbilo tal que era difícil de ocultar. Atraindo sobre si todos os olhares, levantou-se e lenta, muito lentamente, começou a atravessar o salão, com a cítara na mão. Por alguns instantes, ninguém, nem mesmo Isambard, percebeu qual era a sua intenção. Mas quando ela contornou o estrado e passou diante dele sem se deter, Isambard compreendeu. Pôs-se de pé de um salto, soltando um grito como ela nunca ouvira, nem esperara ouvir, daquela garganta imperiosa. A cadeira de Isambard caiu para trás com estrondo e os punhos dele abateram-se sobre a mesa, fazendo tilintar a baixela de prata.
- Não ireis!
Ela voltou-se e fitou-o com os seus olhos inocentes, sustendo resignadamente aquele olhar enlouquecido.
- Irei sim, senhor - retorquiu, em voz alta e clara. - É a vossa honra que está em jogo. Que sou eu, comparada com o que a vossa palavra tem de sagrado?
Aquela replicai deixou Isambard sem respiração e impediu-o de dizer fosse o que fosse. Fora apanhado na armadilha do seu próprio orgulho inflexível: não podia desdizer o que dissera, nem retirar aquilo que oferecera. Encontrava-se reduzido ao silêncio e à impotência, diante de todos os habitantes do seu castelo. A única maneira de a fazer parar seria matá-la.
Benedetta tinha os olhos fixos no rosto dele e, de súbito, como que aturdida, sorriu. O cinzento suave dos seus olhos escureceu, tornou-se violeta e o olhar adquiriu o brilho do triunfo; a boca carnuda abriu-se de prazer. Endireitou os ombros e passou diante dele com um tal arroubo de alegria provocante que nem mesmo a mais obtusa das testemunhas poderia deixar de compreender. Não se dirigia para o sacrifício mas sim para a vitória. A verdade fora revelada intencionalmente, com um deleite cruel na opulência do gesto. Se houvesse baixado os olhos e mantido a farsa de devoção e sacrifício, poderia haver salvo a vida, pensaram muitos dos que olhavam para ela. Mas acabara de apostar a vida, como quem aposta aos dados, pelo simples prazer de lhe apunhalar o coração.
Para Isambard, aquele olhar de alegria pura desvendou um mistério bem maior. O momento da dissolução da união de ambos chegara sem que fosse dita uma palavra. Benedetta decretara que o contrato chegara ao fim e não havia retorno. Abandonava-o para seguir aquele que amava mais do que a própria vida e ele era obrigado a aceitar isso, sem um protesto. Se, no começo, ela houvesse podido adivinhar o fim, não poderia ter escolhido palavras mais apropriadas.
- Não sei onde é a cela dele, padre - disse Benedetta, o rosto de novo fechado. - Podeis levar-me até lá?
Saiu pelo braço do ancião e, por entre o silêncio e a imobilidade, todos os olhares, fixos e receosos, seguiram a sua partida. Só Isambard ficou onde ela o deixara, com as mãos a cobrir o rosto, e ninguém ousou aproximar-se, nem mesmo para levantar a cadeira caída.
Na antecâmara da cela, Benedetta parou e fixou os olhos nos dois guardas, que se desviaram respeitosamente, tão impressionados pelas suas vestes de ouro como pela autoridade que dela emanava.
- Esperai! - ordenou Benedetta. - Antes de me abrirdes a porta, ouvi o meu conselho. Para vossa própria segurança, quando fechardes a porta à chave, depois de eu entrar, aconselho-vos a saírdes desta antecâmara e a fechardes também a porta exterior. Dormi no limiar, se assim tiver de ser, mas conservai-vos suficientemente longe de nós para não poderdes ser acusados de haver ouvido ou visto seja o que for. Dizei-lhes, padre, dizei-lhes o que aconteceria a qualquer homem que ousasse testemunhar esta união.
- É um bom conselho - concordou o ancião, tremendo. - Lorde Isambard far-vos-ia em pedacinhos.
E depois, pensou ela sem espanto nem preocupação, far-me-á em pedacinhos. Mas então isso já não terá importância.
- Ficai com eles, padre. E servi-lhes de testemunha, se alguém duvidar deles.
- Assim farei, Madonna - prometeu o padre Hubert, segurando entre as suas, para lhes acalmar o tremor, aquela mão quente e tranquila.
- E rezai por nós.
Guillaume rodou a chave na enorme fechadura.
- Quando desejais que vos abramos a porta?
- Quando vierem buscá-lo - respondeu Benedetta, segurando as saias entre as mãos para entrar na cela.
Para a última noite, os guardas haviam deixado a Harry uma vela grande; esta ardia num candelabro de ferro, poisado no rebordo de pedra ao lado da enxerga, e a sua luz vacilava docemente, agitada ao de leve pela corrente de ar. Harry estava deitado na cama, de costas, com a cabeça assente nos braços cruzados. Quando a porta se abriu, voltou a cabeça e ergueu-se sobre o cotovelo, para contemplar aquele brilho dourado, no umbral. Nunca acreditara que a deixassem vir. A chama da vela brilhou nos seus olhos espantados, fazendo o azul-escuro regressar ao verde, que o reflexo do esplendor dela transformou em ouro velho. Entre as pestanas pretas, sob as sobrancelhas escuras e direitas, aquela luz trémula surpreendeu-a e comoveu-a, como o aparecimento das estrelas numa noite de tempestade. Numa pressa febril, Harry passou as pernas sobre o rebordo da cama e pôs-se de pé. O movimento precipitado do seu braço fez abanar a vela. Segurou-a para a impedir de cair e Benedetta viu que a mão dele tremia.
A porta fechou-se atrás dela. A chave rodou na fechadura. A vela lançou sobre a parede rochosa feixes vacilantes de luz branca e depois, lentamente, estabilizou.
Harry tentou dizer o nome dela mas tinha a boca demasiado seca para conseguir falar. Benedetta viu-o engolir em seco e humedecer com a língua, quase tão seca como estes, os lábios trémulos. Não acreditara que ela viesse e, agora que ali estava - ela, a única pessoa que podia dizer-lhe aquilo que ele ansiava por saber - receava perguntar, com medo de que a resposta pudesse ser mais difícil de suportar do que a incerteza.
- A Gilleis está em segurança - disse Benedetta, para o tranquilizar. - Ela está bem e pede para vos transmitir o seu amor.
- Oh, Benedetta! - exclamou Harry, com um suspiro doce e profundo, que expulsou toda a tensão do seu corpo.
Sobre a parede, a sua sombra parecia agora mais suave e mais pequena.
- Nunc dimittis! - murmurou.
Em seguida, enterrou a cabeça entre as mãos e começou a chorar, com alívio, livremente, como uma criança exausta.
Benedetta estendeu os braços e puxou-o para si, para cima da cama, e a tempestade foi amainando, vertendo-se sobre o ombro do seu magnífico pelote. Afastou-lhe da testa os cabelos, castanhos e fartos, e rodeou-lhe a nuca com a mão, encostando docemente a cabeça dele ao peito. Tinha o mundo inteiro nas mãos.
- Pronto, descansai. Temos tempo. Podemos falar à vontade, durante toda a noite. Ninguém nos incomodará, nem virá espiar-nos. Tratei de que assim fosse.
- Onde está ela? - perguntou Harry, quando recuperou a fala.
- A salvo, com as monjas anacoretas, no oratório de Santa Winifrede, nas colinas perto de Stretton. Elas são boas e leais, tão santas que ninguém ousaria interferir com elas. E também são excelentes enfermeiras. Podeis estar descansado quanto a isso, para quando a hora dela chegar. Em breve, terá a criança para a manter viva e nunca nenhum dos dois terá falta de amigos.
- Teria dado a minha mão direita para poder ir ter com ela, naquele dia. Mas não havia tempo. Era preciso salvar o rapaz. Tive tanto medo! Ela é tão teimosa! Temi que ela não quisesse partir.
- Ela não queria deixar-vos. Não é do seu temperamento proteger-se, quando vós correis perigo. Mas nem sequer sabíamos quais eram as vossas intenções e, para bem da criança, não teve outra opção senão obedecer-vos.
- Foi duro para ela - disse Harry, estremecendo. - Sobretudo por não saber porque eu lhe pedia tanto...
- Agora sabe. E apoia-vos de corpo e alma. «Sendo como é, que mais poderia ele fazer?», disse ela. O mais difícil para a Gilleis foi ficar escondida todo este tempo, sabendo o destino que vos estava reservado.
- Ela sabe? Tudo?
- Não, tudo não. Sabe que ides morrer mas não sabe que vai ser agora. Deus sabe que não tenho o direito de lhe ocultar isso mas não podia contar-lhe, com a criança tão perto de nascer. Disse-lhe... ah, quem me dera tivesse sido verdade!... que vós íeis fazer render por vários meses o trabalho que ainda vos faltava fazer. A minha esperança era que houvesse tempo para a raiva dele abrandar ou que o rei o chamasse para junto de si e ele se esquecesse de vós. Porque há um grande litígio que opõe o rei João aos seus nobres e Langton está envolvido nisso até às orelhas... qualquer coisa que tem a ver com eles quererem que o rei restabeleça os seus antigos direitos. Até FitzAlan e FitzWarin estão contra o rei e, agora, as coisas só podem resolver-se pelas armas. Mais uns meses e talvez não houvesse ocasião de pensar em vós. Oh, Harry, porque não controlastes as vossas mãos, para dar algum tempo aos vossos amigos?
- Era o que eu pensava fazer - concedeu Harry. - Foi isso que disse ao Adam. Mas, quando chegou a altura, não consegui. O trabalho parecia aparecer feito, não fui capaz de fazer parar as minhas mãos. Nem para salvar a vida! Benedetta, ela sabe... como é que vai ser?
- Não! - gritou Benedetta, apertando-o ciosamente nos braços. - Nem vai saber! Aliás, nenhum de nós sabe, Harry. Só Deus.
- Nunca lhe conteis! Para quê? Quando ela souber, os meus tormentos terão findado. Não quero que sofra por uma coisa que já acabou. Viste-la desde que a levastes daqui?
- Três vezes. Não me atrevi a ir lá mais vezes. Nas outras alturas, o John serviu de mensageiro.
- Ele andou à procura dela?
- Andou, apesar de nunca me haver falado no assunto, a não ser para perguntar se eu a vira no dia em que levastes o rapaz. Disse-lhe que ela estivera comigo de manhã e que, depois disso, não havia voltado a vê-la. Virou Parfois de pernas para o ar, à procura dela e, mesmo depois de haverdes voltado, continuou a procurá-la nas aldeias vizinhas. Mas não por muito tempo.
- Falai-me dela! - implorou Harry, ansioso. - Contai-me tudo! Ela fala em mim?
- Falar em vós?! Oh, meu querido! - respondeu Benedetta, encostando o rosto ao cabelo dele. - Vós sois o sol e a lua, para ela. A Primavera e o Verão!
Sorrindo por cima da cabeça de Harry, falou-lhe de Gilleis, até ter esgotado todos os pormenores acerca do tempo que as duas haviam passado juntas, amando-o.
- Só ficou quieta e calada por causa da criança. Eu sinto, eu sei que, mal haja dado à luz o filho e o haja posto a salvo, pensa voltar e lutar por vós...
- Acredito - disse Harry, com orgulho e ternura. - Mas já não vai ser preciso.
Voltou-se um pouco nos braços dela e encostou-lhe a face ao peito.
- Benedetta... - começou, hesitante.
Quando baixou os olhos, em busca dos dele, Benedetta viu que Harry a observava.
- Quando a virdes, dizei-lhe que a amarei sempre. E beijai o meu filho por mim.
- Bem sabeis que o farei, meu bem-amado.
- Libertais-me de um grande peso! - agradeceu, com um enorme suspiro de cansaço. - Agora que conto com a bênção dela e com a vossa, o resto é quase fácil. Tenho de agradecer a Deus! Fui muito feliz e muito abençoado. Foi ingratidão esquecer-me disso.
- Há quanto tempo não dormis? - perguntou ela, acariciando-lhe as pálpebras azuladas com as pontas frias dos dedos. - Duas noites? Três?
Ele abanou a cabeça, com um ligeiro sorriso; já não sabia.
- Dormi, agora. Eu fico de vigília.
- Ah, não! - protestou Harry, abraçando-a com força. - Em breve, terei todo o tempo para dormir.
A sombra do terrível portal que dava para esse sono infinito abateu-se pesadamente sobre o seu rosto. Através da camisa amarrotada, Benedetta sentiu o palpitar forte e revoltado daquele coração ameaçado.
- Deixai-me gozar da vossa presença, enquanto posso. Nunca pensei que ele vos deixasse vir. Era a única flecha que podia desferir contra ele e esperava que atingisse o alvo, mas nunca acreditei que podia ganhar o prémio.
- Ele havia dado a sua palavra, diante de toda a gente, e não podia desdizer-se. «É a vossa honra que está em jogo», disse-lhe eu. «Que sou eu, em comparação?» E ri-me na cara dele. Nem pela minha vida seria capaz de me conter. Se não ides dormir, pelo menos deitai-vos e descansai.
- Se vos deitardes ao meu lado. A cama é estreita para dois mas nenhum de nós precisa de muito espaço.
- É verdade, já me esquecera - disse ela, sorrindo. - Pedistes que passasse a noite na vossa cama.
Benedetta levantou-se, atirou com os sapatos e despiu o pelote, deixando-o cair num canto da cela.
- Deitai-vos do lado da parede, Harry - disse. - Assim, eu fico entre vós e o mundo.
Ele deitou-se junto à parede e ficou a olhar, enquanto ela retirava a rede de ouro e soltava os cabelos em cascata sobre os ombros.
- Deus sabe que devia pedir-vos perdão por isto - disse ele, com uma expressão contrita. - Não me sinto muito orgulhoso de mim.
- Fizestes bem! Eu queria que pedísseis para falar comigo mas isto foi mais do que eu esperava. Cravastes-lhe uma adaga no coração.
Harry abriu os braços e, envergando a sua cota de veludo azul, Benedetta deitou-se ao seu lado e puxou-o para si. Ele enterrou-lhe as mãos no cabelo, estendeu por cima de ambos aquele manto sedoso e, de repente, ela sentiu e ouviu escapar-se da garganta dele uma gargalhada sincera, que voltou a fazer estremecer a chama da vela.
- Bem se vê que ele não tem experiência de uma situação como a minha. Se tivesse, saberia que, esta noite, não estou em condições de vos proporcionar grande prazer nem de ficar bem visto. Mas, pensando bem, ele tem levado uma vida de horizontes estreitos.
- Não receeis - tranquilizou-o Benedetta, aninhando-se confortavelmente na curva do braço de Harry. - Não vos exigirei o cumprimento do que anunciastes.
- Ah, não zombeis de mim! Sei que foi uma piada fraca mas tenho falta de prática. Se soubésseis havia quanto tempo não me ria!
- Não me deveis nada - respondeu Benedetta, com a sua franqueza habitual. - Não preciso de nada. Já tenho tudo.
Era verdade que havia muito tempo - quanto, não seria capaz de precisar - superara a angústia de não poder ser mais do que era para ele. O fim dessa angústia chegara sem se fazer notar, num qualquer dia em que, à revelia da sua mente, o seu coração percebera que aquilo que Gilleis representava para ele não era mais mas apenas diferente. Agora, ali estavam os dois, deitados lado a lado, banhados por uma paz maravilhosa, não a paz da resignação mas a paz da plenitude. Benedetta tinha tudo o que desejava dele. Não lhe importava que os outros pudessem pensar que era bem pouco: preenchia a sua vida e fora-lhe oferecido com uma generosidade tão absoluta como a do amor.
- Tendes medo da morte, Harry?
- Quem é que, em seu pleno juízo, não tem pelo menos um certo medo? Quando chega a altura, todos temos medo das trevas. Mas não é a morte que me aterroriza, é a agonia! - exclamou Harry, irritado, procurando controlar o tremor que o agitara. - Tenho medo da dor. Temo a violação ímpia do meu corpo. Continuar a ser um espectáculo, muito depois de haver deixado de ser um homem. Oh, porque me perguntastes? Queria poupar-vos a isto.
Benedetta poisou-lhe a mão na face e, com uma gravidade apaixonada, disse:
- Peço-vos do fundo do coração que confieis em mim, Harry. Deixai de pensar nisso, parai de vos preparardes, não é preciso ter medo. Não sereis humilhado. Ele não vai sair vencedor. Nunca há-de ver-vos quebrar. Juro! Não podemos evitar a morte mas a forma como virá está nas mãos de Deus e não nas de Isambard.
- Ah, mulher! - murmurou Harry, rindo docemente. - Dais-me um novo ânimo. Se me falardes assim, antes de me deixardes, penso que não quebrarei.
- Eu não vou deixar-vos e vós não quebrareis. Confiai em mim e não tenhais medo.
- Milagre!
Harry sorria-lhe, tomado de um cansaço súbito, doce e confiante, um cansaço que lhe pesava nas pálpebras.
- A carícia dos vossos dedos expulsou o medo que havia dentro de mim. Quase me sinto tentado a acreditar que, se lhe houvésseis pedido, Deus tornaria as coisas mais fáceis para mim e me levaria para junto de Si intacto. O outro medo... o medo do que vem depois é um medo bom, só um pouco mais terrível do que aquele que senti quando tive de me apresentar diante dos mestres de Paris e de lhes mostrar a minha obra-prima. Fiquei doente de medo, na véspera à noite. O Adam passou um mau bocado comigo. Mas consegui a aprovação deles.
- E não duvido que obtereis a de Deus - disse Benedetta, acariciando-o.
Não se interrogava sequer sobre se seria a igreja ou a vida dele que ia ser submetida a julgamento ou se as duas formavam um todo; tinham ambas a mesma qualidade e Deus saberia dar-lhes o devido valor.
- E que fareis vós depois, Benedetta? Não estais a pensar em... morrer? Não faríeis isso, pois não?
- Não, enquanto puder amar e servir o vosso filho.
Harry soltou um suspiro profundo de alívio e contentamento.
- Que foi que eu fiz? Que foi que alguma vez fiz para merecer o vosso amor?
- Amastes-me, à vossa maneira - respondeu ela, sorrindo. - E é uma boa maneira que eu não trocaria por outra.
Harry voltou a cabeça sobre o travesseiro e, segurando-lhe o rosto entre as mãos, beijou-a suave e ternamente. Ficaram assim deitados muito tempo, possuídos por uma alegria doce, amena, tranquila, com as bocas coladas. Quando ele se afastou, tão ternamente como se aproximara, ela não se moveu, abandonando-se à felicidade que a submergia.
- Não foi um beijo para uma esposa, uma amante, uma mãe, uma irmã ou uma filha - disse, por fim, extasiada.
- Não, foi um beijo só para vós. Para a minha doce amiga... do mais grato dos amigos, para a mais sincera e terna de todas as doces amigas.
Ela teria falado de bom grado, teria derramado sobre ele o seu coração, como se fosse uma libação. Mas a paz de Harry era demasiado preciosa e frágil para ser abalada. Deixou-se ficar quieta nos seus braços, estreitando-o contra o peito e o silêncio reinou entre ambos por muito tempo. Por fim, numa voz arrastada, devido ao sono, Harry murmurou:
- A morte é uma dádiva de Deus! Se ao menos ela viesse agora! Instantes depois, o peso do braço que lhe rodeava o corpo e a respiração regular contra o seu rosto indicaram-lhe que Harry adormecera.
Dormiu as últimas horas da noite nos braços de Benedetta, que o embalou e velou com o zelo de uma mãe. Quando os primeiros raios pálidos da luz da alvorada chegaram até eles pela fenda aberta na parede, ela tomou entre as mãos o seu rosto, corado e distendido pelo sono, e beijou-o para o acordar. Harry abriu os olhos e sorriu-lhe. Mas, depois, a lembrança do que o esperava voltou bruscamente e o sorriso aberto desapareceu.
- É verdade! - disse. - Como sois boa! É melhor preparar-me. Sentou-se na cama, pôs os pés no chão e alisou as mangas amarrotadas da camisa.
- Vão trazer-me roupas lavadas. É preciso causar boa impressão. Não vos contei nada sobre a minha vida aqui, pois não? Agora é demasiado tarde. Foi mais interessante do que podeis pensar. O Guillaume faz-me a barba todos os dias. Nunca andei tão bem barbeado.
- Neste momento, pica bastante - observou Benedetta, passando-lhe os dedos pela cara.
- Não faz mal. Dar-me-eis o beijo de despedida depois de ele me barbear. Quem me dera que a mão lhe escorregasse - acrescentou, candidamente. - Mas não há esperança de que tal aconteça. Ah, o vosso belo pelote caído no chão! É uma pena! - Dizendo isto, apanhou-o do chão, endireitou-o e sacudiu-lhe o pó com as mãos. - Vesti-o. Gosto de vos ver bem vestida. Deixai que eu faça de vossa aia.
Ajudou-a a vestir o pelote e afastou-se um pouco para admirar o contraste com o veludo da cota. Sem deixar de a segurar pelos ombros, enquanto alisava o tecido brilhante, inclinou-se e beijou-a na testa.
- Doce amiga! Agora, quando eles vierem vestir-me, deveis partir.
- Só até à sala ao lado, para esperar por vós - replicou ela.
- Não, ide-vos. Ide para onde não possais ver nem ouvir, para poderdes lembrar-vos de mim como eu sou agora. Não quero que os vossos ouvidos me oiçam gritar como um animal assustado nem que os vossos olhos me vejam esquartejado, como um animal na mesa do talhante.
- Esquecestes o que vos disse? Parai de pôr à prova a vossa coragem. É uma pena tratar mal um tão belo cavalo. Não tenhais medo, não vai ser como temeis. Ficarei convosco enquanto estiverdes vivo.
Acreditaria ele nela, agora que a manhã chegara e a provação estava tão próxima? Benedetta não seria capaz de o afirmar. Talvez nem ele mesmo soubesse. Emanava dele uma espécie de graça e ligeireza, metade feita de orgulho deliberado, a outra metade de serenidade irreflectida, como se houvesse encontrado algum conforto e tranquilidade na convicção dela. Mas, pensou Benedetta, era apenas o conforto de ter aberto o coração a alguém que o amava e falado à vontade de alguém que ele amava.
Guillaume e Fulke entraram ao amanhecer. Traziam as melhores roupas de Harry. Tiveram o cuidado de fazer girar ruidosamente a chave na fechadura e, depois, esperaram alguns minutos antes de abrirem a porta. Benedetta avançou para eles, envolta nos próprios cabelos, que pareciam uma cota vermelha brilhante. Quando já estava à porta, Fulke chamou-a timidamente.
- Esquecesteis isto, senhora.
Era a rede de ouro que havia rodeado o seu cabelo entrançado. Parecia-lhe impossível voltar alguma vez a usá-la. Olhou com indiferença para a rede e depois para eles. Os dois rostos desconfiados, que os males do mundo haviam endurecido, mostravam-se perturbados diante dela e fitavam Harry com uma simpatia rude e desolada. A sua maneira, tinham sido bons para ele, depois de prisioneiro e carcereiros terem passado a conhecer-se.
- Ficai com ela e dividi entre os dois o que obtiverdes por ela. Bebei em memória dele.
Despenteado e com o rosto marcado pela falta de sono, o padre Hubert esperava na antecâmara. Quando a viu, começou a balbuciar palavras de comiseração, que a surpreenderam um pouco, até perceber que ele estava à espera de que lhe fizesse confidências. Escutou-o com um ligeiro sorriso que não foi capaz de reprimir. O padre não sabia se ainda valeria a pena manter boas relações com ela ou se a sua boa estrela desaparecera e Benedetta não estava disposta a ajudá-lo a decidir-se.
- Ides continuar aqui, senhora? O meu dever retém-me mas vós já cumpristes nobremente o vosso.
Ele continua a apostar em mim, pensou Benedetta, divertida. Talvez devesse adverti-lo que os ventos mudaram de direcção.
- Vou esperar por Harry - respondeu. - Onde está lorde Isambard?
- Já ocupou o seu lugar.
Perto do cadafalso, da fogueira e da mesa de pedra do carniceiro, pensou ela. Era como se estivesse a ver o terreno por baixo da árvore, coberto de ervas novas e verdes, o grande quadrado desobstruído e o caminho até lá, ladeado por homens de armas, com as lanças erguidas, ameaçando os peitos dos espectadores curiosos. Para lá da barreira armada, deviam estar reunidos todos os habitantes do castelo e todos os homens que haviam trabalhado na construção da igreja: os canalizadores, os vidraceiros, os pedreiros, os assentadores, os escrivãos e os desenhadores, os ajudantes. Também ali estariam o velho que cobiçara o lugar de Harry, embora nunca por um tal preço, e o pobre rapaz da casa do risco, que manchara as contas de Knollys com as muitas lágrimas amargas vertidas pela queda do seu mestre. De um lado e do outro do quadrado e ao longo da falha rochosa, estariam dispostas as companhias de arqueiros, prontas a entrar em acção, no caso de haver problemas. E, isolada no meio de tudo aquilo, a grande cadeira de Isambard, onde este se sentaria como num trono. Devia ter mandado colocá-la num ponto de onde pudesse ver bem todos os gestos do carrasco e, também, toda a passagem da ponte levadiça ao cadafalso. Iria querer ver tudo, todos os passos no caminho da morte, mas se para exultar com a visão do seu inimigo ou para se crucificar a si mesmo pelo que estava a acontecer ao seu amigo, era uma coisa que nem mesmo ela alguma vez saberia.
- E o gascão?
- Está à espera.
Portanto, Harry ia ser escoltado para a morte por homens de Parfois. De Peronet, todo vestido de preto, estaria à espera dele perto da escada. Por todo o orgulho que mostrava pelos seus terríveis dotes, o gascão parecia-lhe mais uma aberração do que um homem. O homem procria; a função daquela coisa era destruir - e não apenas a carne; era reduzir a mais bela obra de Deus a uma abominação palpitante, mutilada, ululante, durante tanto tempo quanto possível, antes de deixar partir a sua alma. Quem me dera haver podido postar metade de uma companhia no alto da torre, e não apenas um valente homem, pensou Benedetta. Pelo menos, aquela criatura nunca sairia daqui viva.
Pouco depois, a porta interior abriu-se para deixar passar Harry, ladeado pelos seus guardas. Muito limpo e cuidado, lavado, barbeado e penteado na perfeição, quase nem parecia ele. Estava tão branco como a camisa de linho lavada, mas muito calmo. Naqueles olhos desconcertantes, havia vestígios do antigo sorriso luminoso e imprevisível; era o mesmo olhar que costumava responder aos ataques de riso dela perante o cerimonial da vida em Parfois.
- Bom-dia, padre! Espero que não vos tenhamos feito esperar.
- Devíamos retirar-nos uns minutos para a vossa cela - disse o padre Hubert. - Eles ainda não chegaram e ainda tendes tempo de apaziguar a vossa alma.
- A minha alma está tranquila, muito obrigado, padre. É o meu corpo que não se sente muito à vontade. Confessei-me ontem à noite. Não sou perfeito mas não incorro em pecado assim tão depressa.
Harry sabia muito bem o que o ancião queria. O seu olhar cruzou-se com o de Benedetta e, como um rasto de calor naquele mundo gelado, passou entre os dois um breve brilho de alegria. Se queria absolvê-lo do seu suposto grave pecado, o padre Hubert teria de o nomear em termos bem claros, indiscrição que nunca sonharia cometer, não fosse dar-se o caso de, por milagre, ela ainda se encontrar nas boas graças do senhor do castelo. O dilema dele era cómico; na verdade, por várias vezes, Benedetta achara que ele era cómico e, naquele momento, estava-lhe grata por isso.
- Ajoelhais-vos comigo? - perguntou Harry, já sem sorrir. Estendeu-lhe a mão e ajoelharam-se lado a lado, sobre o chão de pedra, enquanto o padre Hubert realizava o seu último ofício. Ao lado dela, o belo perfil impetuoso mostrava uma expressão grave; as pálpebras cerradas e as mãos postas conferiam-lhe a dignidade rígida de uma figura tumular. Quando se levantaram, a escolta de homens de armas já se encontrava à porta.
Fora Langholme o encarregado de o vir buscar. Parecia doente e infeliz, pensou Benedetta, sentindo pena dele. De Guichet nem teria pestanejado; já desempenhara a mesma tarefa demasiadas vezes.
- Estou pronto - anunciou Harry, voltando-se para estender a mão aos seus carcereiros. - Fostes uma boa companhia. Nunca vos desejei mal e agora também não vo-lo desejo. Com um pouco mais de tempo, haveria feito de vós dois construtores de torres.
- Quem me dera que todos os homens tivessem um coração tão bom como o vosso - gaguejou Guillaume.
Mal acabou de falar, fez uma careta pela inconveniência de, logo num dia como aquele, haver usado a palavra «coração». Harry riu-se e deu-lhe uma palmada tranquilizadora no ombro. Quanto das forças que ainda lhe restavam haveria custado aquela gargalhada? Voltando-se, Harry agarrou-a pelos ombros e abraçou-a, diante de todos. A face dele estava fria e, por um breve instante, a sua respiração regular alterou-se. Em seguida, beijou-a na boca.
- Adeus, Benedetta.
- Adeus, Harry. Mas só vos digo adeus agora para poder fazê-lo calmamente. Vou convosco.
Harry fitou-a, indeciso e intrigado, mas vagamente reconfortado pelo pensamento de que ela sabia qualquer coisa que ele não podia nem precisava perguntar-lhe.
- Não recebi ordens quanto a vós - interveio Langholme.
- Então, não estareis a transgredi-las ao deixar-me acompanhar Harry até à clareira. Não peço mais nada.
Benedetta sabia que podia fazer o que quisesse, porque ninguém tinha a certeza de não ser arriscado pôr em causa a sua autoridade. Era evidente que Isambard não era ainda capaz de pronunciar sequer o seu nome ou eles saberiam o que fazer em relação a ela.
Saíram da cela e subiram a escada de pedra que desembocava no terreiro da liça. A sombra violeta do pano da muralha estendia-se de um lado ao outro do recinto mas o céu sem nuvens era azul-claro e o sol brilhava sobre os merlões ocidentais. Harry ergueu o rosto, aspirando o ar e o desejo de viver espelhou-se, como uma chama, no seu rosto pálido como cera. Morrer em Maio!
Benedetta deu-lhe a mão, para ninguém se poder interpor entre os dois. A liça estava deserta e silenciosa. Só um velho cego, sentado nos degraus da entrada das cavalariças, seguiu a sua passagem, com a cabeça inclinada, atenta ao menor som. Não valia a pena levá-lo a assistir ao espectáculo, uma vez que não podia apreciá-lo. Diante deles, seguia uma coluna de seis homens de armas, aos pares, atrás dos quais avançava o padre Hubert, agarrado ao breviário, atrás do padre Harry e ela, de mãos dadas, e atrás de ambos os restantes seis homens da escolta. Langholme fechava o cortejo. Poderia parecer um cortejo de casamento e, nas suas esplêndidas vestes douradas, ela podia muito bem passar por uma noiva. Sem soltar a mão de Harry, Benedetta rezava.
Entraram na passagem sombria da porta do castelo. Do outro lado, o sol matinal apresentava-se radioso. O rumor indistinto da multidão aglomerada na plataforma chegou-lhes aos ouvidos e, diante deles, a luz parecia cintilar e soltar reflexos de cores e movimentos, como se um tremor de excitação doentia perpassasse pelo ar. Chegaram à ponte. Benedetta abrandou o passo, para tornar maior a distância entre a escolta e o prisioneiro. A plataforma abria-se diante dos seus olhos, quando emergiram entre as duas torres de vigia, Vindo do lado esquerdo, o imenso murmúrio de piedade, horror e expectativa atingiu-os como uma rajada de vento; mas, mesmo à sua frente, isolada, magnífica e correspondendo a todos os desejos de Harry, a igreja erguia-se, banhada pela luz da madrugada.
- Olhai! - disse ela. - A árvore está em flor.
Recuou um passo e soltou-lhe a mão. As primeiras filas da escolta haviam voltado à esquerda, em direcção ao cadafalso. Nada nem ninguém o separava da sua obra-prima. Harry parou, levantou os olhos do chão sombrio e o seu olhar percorreu as linhas esguias e delicadas dos arcobotantes, subiu pelo alto arco da fachada, até à torre. A luz do sol nascente acariciava a pedra cinzenta e abrasava-a de dourado. Os pináculos eram outras tantas chamas em ascensão. Camada após camada, a torre elevava as suas paredes cintilantes, os seus feixes de relevos de luz e sombra, firmes e puros, até o caule dourado desabrochar na pálida e luminosa flor do céu.
Harry ficou imóvel, de rosto erguido, aturdido de deleite, venerando o trabalho das suas mãos. A morte perdera o poder que exercia sobre ele; Harry distanciara-se dela, escapando-se-lhe por uma torre de ouro, uma escada de âmbar, um túnel de cristal.
Do raio de luz, brotou, invisível, um raio de trevas, que assobiou e estremeceu no ar, com um som que fazia lembrar a vibração de asas gigantescas. Atingiu-o em cheio no peito, do lado esquerdo, e lançou-o para trás, para os braços dela, que o esperavam. Benedetta ouviu o ruído surdo do impacto; pareceu-lhe até ouvir a carne rasgar-se, quando a flecha atravessou o coração tão cobiçado; e, apesar de ele não haver emitido qualquer som, ela gritou, no instante da sua agonia. O peso de Harry a cair contra o seu peito arrastou-a com ele para o chão e Benedetta deixou-se cair de joelhos sobre a relva, amortecendo a queda de Harry, que ficou aninhado nos seus braços, como se estivesse numa cama. A primeira convulsão de dor já passara; ela forçou-se a ficar imóvel, para que não houvesse segunda, sorrindo e chorando sobre o corpo dele, pronunciando palavras entrecortadas de soluços, sem saber sequer que estava a falar.
- Meu querido, meu pequenino, amor do meu coração...
Os olhos verde-mar, com reflexos dourados provocados pelo sol, saudaram-na com um último lampejo de triunfo e riso, depois fixaram-se para além dela, surpresos e encantados, na radiante imensidão de eternidade que brotava do caule dourado. Inclinando a cabeça, com todo o cuidado para não tocar na flecha, Benedetta beijou-o na testa, na face, na boca sorridente e perplexa. Quando ergueu o rosto e o fitou, a luz esvaía-se dos olhos dele e a mão que agarrara a haste da flecha que se lhe havia cravado no peito tombara. Mão e braço deslizaram para a relva e descansaram. Benedetta apertou o cadáver contra o peito.
Depois de trespassar o corpo de Harry, a flecha rasgara-lhe a manga e arranhara-lhe o braço, quando ela avançara para o amparar. Benedetta arrancou os pedaços de veludo rasgado e o seu sangue e o dele caíram sobre a relva. Agora que ele estava livre de todo o sofrimento, ela estreitou-o com mais firmeza entre os braços e embalou-o docemente, com a face encostada aos cabelos dele. De um modo lento e grotesco, o mundo à sua volta recomeçou a tomar forma mas, para ela, as suas manifestações não faziam sentido. Os homens da escolta haviam-se juntado à volta deles, confusos, sem saber o que fazer; o padre Hubert rezava como um demente; Langholme agarrara-a pelo ombro e sacudia-a. O terreno batido peio sol estava cheio de pessoas que corriam e gritavam, enquanto os guardas as empurravam para trás. Houve gritos e confusão e os homens de armas olhavam precipitadamente à sua volta, tentando ver de onde viera a flecha. O local onde ela se encontrava, caída sobre a relva, era o centro do turbilhão mas reinavam nele a imobilidade, o silêncio e a calma.
Só levantou a cabeça quando uma sombra esguia e solitária se abateu sobre o corpo de Harry, depois de todas as pessoas insignificantes que haviam batido à porta da sua torre de silêncio haverem recuado, assustadas. Sob o véu rubro dos seus cabelos, o rosto pálido de Benedetta brilhava, de orgulho e triunfo. Desviando os olhos do seu morto, exigiu, num grito bem alto e exultante:
- Dai-me o corpo dele! É meu!
Isambard observava-os em silêncio. O seu olhar deteve-se no rosto sem vida, imobilizado numa expressão de deslumbramento e ânsia de viver. Reparou no pequeno círculo escuro de sangue à volta da haste e na pele branca do braço dela, que brilhava por entre os farrapos da manga rasgada.
- Podeis ficar com ele, se é isso que desejais - disse, pausadamente. - Podeis ficar com o corpo dele e abraçá-lo, abraçá-lo até ao fim da vossa vida.
Cortaram a ponta da flecha, embotada, ensanguentada e orlada de pequenos fragmentos de osso, e arrancaram a haste. O sangue brotou, os lábios da ferida abriram por instantes e, depois, voltaram a fechar-se, selando no peito o coração trespassado.
Os homens tocaram-lhe com cuidado, como se tivessem medo dele, pois, entre a multidão, alguém sussurrara já a palavra «milagre». Teria sido um homem a disparar a flecha? Não tinham encontrado homem algum na igreja nem entre as árvores e não faltava quem estivesse disposto a jurar que a flecha partira de um ponto bem mais alto do que a torre. Só depois de haverem contado todos os habitantes do castelo e de verem se faltava alguém, poderiam ter a certeza de que Deus não estendera a mão para levar para junto de Si o Seu mestre canteiro, arrancando-o ao laço que os seus inimigos lhe haviam preparado.
Envolveram o corpo num manto, atravessaram-no em cima de um cavalo, ajudaram a mulher a subir para outra montada e assim os levaram até à margem do Severn, atrás de Isambard. Chovera abundantemente na Primavera e as águas altas e castanhas do rio formavam remoinhos e arrastavam consigo ramos e arbustos arrancados. De pé sobre o cais temporário, já semidesmontado, onde havia sido descarregada a pedra, Isambard contemplava o rio, que corria apenas a uma jarda dos seus pés e batia nas estacas, fazendo oscilar o pontão. Nas duas margens, os viçosos prados verdejantes apresentavam a cor viva dos brejos, salpicados aqui e ali de pequenos charcos brilhantes. A jusante, a floresta descia pelo flanco escarpado de Long Mountain e as árvores ocultavam toda a margem inglesa.
Isambard voltou-se, atravessou o pontão oscilante e contemplou longamente o morto que os homens haviam deitado sobre as ervas. A carne estava ainda à sua mercê mas a sua contenda não era com a carne. Ele talvez fosse uma ave de rapina mas não se alimentava de carne putrefacta. Nunca vira Harry inerte; em vida, o seu rosto tivera sempre a mobilidade da luz e só o vira a dormir uma vez, na orla do bosque, perto de Erington, com o rapaz aninhado no ombro. Os homens haviam-lhe fechado os olhos mas, ainda assim, não parecia adormecido. Lia-se-lhe no rosto a infância reencontrada, a inocência serena, mas não a vulnerabilidade. Agora, era invulnerável; e o seu rosto dizia isso mesmo.
- Despi-os! - ordenou Isambard.
Ninguém se mexeu. Assustados, relutantes, recusando-se a acreditar no que ouviam, os homens fitavam-no.
- Não ouvistes? Despi o cadáver. E a mulher também.
Os homens ajoelharam-se e começaram a desapertar a cota de Harry e a arrancar-lhe a camisa ensanguentada do corpo, que, impassível, se submetia aos seus movimentos. Mas continuavam a hesitar em tocar em Benedetta. Com um ligeiro sorriso trocista, ela mantinha-se na expectativa, parada ao sol, que fazia brilhar as suas vestes e ornatos e tornava mais escura a mancha de sangue sobre o seu peito.
- Tendes medo dela? - perguntou Isambard, com um rito amargo.
Estendeu a mão para o decote da cota dela e puxou; o veludo rasgou-se com o ruído de tendões que se rompiam mas o tecido dourado do pelote que cobria a cota era demasiado forte. Isambard puxou da adaga e, assentando a ponta desta na cova da garganta dela, cortou-lhe as vestes até à cintura, arrancando-lhe do corpo linhos e veludos. Qual vidoeiro batido e maltratado pelo vento, Benedetta suportava tudo aquilo com indiferença. Agora, Isambard não podia fazer nada que a perturbasse. Depois de guardar a adaga, ele agarrou as roupas que lhe haviam caído sobre as ancas, rasgou-as quase até à bainha e estas tombaram aos pés dela. Sem deixar de sorrir, Benedetta passou os pés por cima dos despojos e descalçou os sapatos de couro macio. Ele estava a humilhar-se a si próprio. Ela estava magnificamente vestida pelo seu triunfo e pela sua indiferença e isso ele não lhe podia tirar.
- Atai-os juntos, de frente um para o outro. Vão dormir nos braços um do outro até apodrecerem.
Estupefactos, incapazes de dizer palavra, mas demasiado assustados para desobedecerem, os homens puseram de pé o corpo nu de Harry, ergueram-lhe os braços sem vida e colocaram-nos à volta do pescoço dela. Embora intimidados pela brancura da sua pele, dois deles preparavam-se para lhe pegar também nos pulsos mas, com uma ternura selvagem no rosto, ela adiantou-se e abraçou com alegria o tronco magro, que conservava ainda um ligeiro tom tisnado do Verão anterior. Abraçou-o com força, peito contra peito, coxa contra coxa, e antes de as cordas serem apertadas à volta de ambos, colocou-o em melhor posição, com a face direita apoiada no seu ombro. Os homens seguravam o corpo de Harry para impedir que o seu peso morto caísse sobre ela mas ele era tão leve que ela quase teria sido capaz de o segurar sozinha. Abriu as mãos sobre as costas dele e puxou-o para si, de forma a ocultar as duas feridas verticais, a da frente contra o peito dela, a outra sob a palma da sua mão. Os braços de Harry foram solidamente atados atrás dos ombros de Benedetta; os joelhos de um foram atados aos joelhos do outro, os tornozelos aos tornozelos, até ambos parecerem uma coluna de mármore, amparada por guardas tão pálidos como eles.
- Atirai-os à água - ordenou Isambard. - Eles que se afoguem ou nadem juntos.
Até ao fim, Benedetta só pensou em Harry. Enquanto eram arrastados pelo pontão, Isambard viu que, apesar de amarrada e impotente, ela erguia o ombro e inclinava o rosto, para manter direita a cabeça oscilante, devido àquele movimento incómodo. E quando os homens os ampararam por um instante, na extremidade do cais, Benedetta voltou-se, olhou para Isambard com uma espécie de compaixão distante e riu-se, antes de beijar a curva firme do queixo de Harry, o único ponto que os seus lábios conseguiam alcançar.
Depois disto, Benedetta não voltou a erguer os olhos. Velava o último sono do seu amor, insensível ao frio, à violência, à vergonha, à morte, à angústia de amor e ódio, impossível de saciar, que envenenava o ar à sua volta. Viva ou morta, Isambard nunca conseguiria tê-la de volta. Mesmo que se houvesse arrastado de joelhos até à beira da água e implorado que tivesse dó dele, que tivesse medo dele, que chorasse, que vivesse, ela teria recusado.
- Atirai-os! Vamos acabar com isto! - gritou, numa voz sufocada.
E, atravessando o cais a passadas largas, arrancou-os das mãos hesitantes que os amparavam e atirou-os ao rio.
A corrente rápida recebeu-os com uma ligeira franja de espuma e puxou-os avidamente para o fundo. Remoinhos assinalaram a sua passagem submarina, rio abaixo. Sob a superfície plúmbea da água, Isambard avistou por um momento a palidez dos seus corpos, que mais pareciam um enorme peixe prateado. Depois, voltaram a emergir umas trinta jardas mais adiante. A corrente arrastava-os velozmente em direcção a Breidden. A comprida cabeleira ruiva flutuava, espalhava-se à volta de ambos, enrolava-se à volta de ambos, enquanto a corrente veloz os fazia rolar uma vez e outra.
Oculta na floresta, outra silhueta pálida deixou-se resvalar da margem, sem ser vista, entrou na água até à altura do peito, curvada contra a força da corrente, vigiando aquela massa flutuante que avançava para a sombra das árvores.
Isambard permaneceu imóvel, seguindo com os olhos aquela triste viagem, até os perder de vista. Então, deu meia volta e regressou lentamente à margem. Com os rostos pálidos e olhares assustados, os seus homens recuaram diante dele mas Isambard nem sequer olhou para eles. O seu rosto apresentava uma expressão petrificada e uma tonalidade cinzenta. Atravessou o terreno coberto de ervas como se estivesse sozinho, montou e voltou o cavalo na direcção do caminho ascendente que ia dar a Parfois. Os seus homens seguiram-no mas ele nem deu por isso. Cavalgava numa solidão sem limites de tempo nem de espaço; despovoara o seu mundo por suas próprias mãos.
A primeira sensação foi de dor E, com ela, veio um sentimento de vulnerabilidade que não era completamente desagradável. Estava a ser agarrada por umas mãos enormes, que lhe magoavam as costas e a obrigavam a inspirar grandes lufadas de ar e a levá-las até às profundezas do seu corpo; eram inspirações dolorosas, que cortavam como facas e queimavam que nem chamas. Mais tarde, sentiu calor à sua volta, um conforto tépido e o toque de qualquer coisa que lhe picava a pele. Mais tarde ainda, veio o sono.
Abriu os olhos e deparou com um rosto barbudo, cheio de ansiedade, debruçado sobre ela; quando uma ligeira cor aflorou às suas faces e um lampejo de consciência brilhou nos seus olhos desfocados, esse rosto verteu sobre ela inesperadas lágrimas. Em volta, reinavam uma penumbra tépida e um odor de madeira, fumo e presença humana; os reflexos do fogo dançavam sobre as traves de um tecto baixo. As mãos que a tinham magoado, taparam-lhe melhor o peito nu com as coberturas de pele.
- John!
- Deus seja louvado! - exclamou John o Frecheiro. - Deixai-vos estar, senhora, eu vou trazer-vos leite. Pensei que não íamos conseguir fazer-vos voltar a vós.
John trouxe-lhe uma malga de leite, ainda quente das tetas da vaca, e amparou-a para ela beber.
- Que sítio é este? - perguntou ela, percorrendo com o olhar a cabana nua e pequena.
- Uma cabana de camponeses, perto de Parfois.
- Tiraste-me do rio - disse ela, encostando-se ao ombro dele. Depois, numa voz um pouco mais forte, perguntou: - Onde está ele?
- Aqui. A salvo.
A palavra arrancou um débil sorriso a Benedetta mas não deixava de ser apropriada. Ele estava a salvo: inviolado, inviolável. John acrescentou:
- Está embrulhado na minha capa, lá fora, no eirado, com o meu arco e o cavalo que me haveis dado. O dono da casa ajudou-me a tirar-vos aos dois da água e a mulher dele vai arranjar-vos roupas, quando acabar de ordenhar a vaca.
- Não tenho com que pagar-lhe - disse Benedetta.
- Mas eu tenho. Tenho o dinheiro que me destes.
- Para a tua fuga - observou ela.
Começava a sentir renascer o espírito e a determinação. Havia coisas que devia fazer, já que tinha de continuar a viver.
- Eu mandei-te sair do condado. Porque não partiste? - perguntou, ao fim de um bocado.
- E deixava-vos nas mãos dele, sem saber o que ele iria fazer convosco? Não, senhora. Pertenço-vos até ao fim da minha vida e não vou para lado nenhum, até ter a certeza de que estais bem. O meu plano era esconder-me na floresta e esperar até ter notícias vossas. Mas ele arrastou-vos até ao embarcadouro, mesmo diante dos meus olhos. Se Deus o permitir, um dia, ainda hei-de cortar-lhe o pescoço por aquilo que fez. Graças a Deus, nasci perto de um rio e aprendi a nadar ao mesmo tempo que aprendi a andar. Agora, deitai-vos e descansai, e cuidai de vos manterdes tapada e quente. O homem anda por fora, a tentar comprar outro cavalo para nós.
- Se vivermos os dois da tua bolsa, vais ficar tão pobre como eu. Por alguns instantes, não disse mais nada e John viu que dos seus olhos muito abertos brotavam pesadas lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Ajoelhou-se ao seu lado e tomou-lhe a cabeça entre as mãos calejadas. Ser assim acarinhada foi para ela um luxo, uma espécie de retorno à inocência e tê-lo ali, a limpar-lhe as lágrimas, tocou-lhe profundamente o coração.
- Fiz tudo bem? - perguntou John, num tom brusco.
Sabia que sim, pois vira o cadáver, mas queria ouvi-lo da boca dela.
- Muito bem, John. Rápido e certeiro. Ninguém poderia fazer melhor.
Com os olhos fixos nas traves escurecidas pelo fumo, Benedetta foi recuperando, a pouco e pouco, a determinação e o autodomínio.
- Só falta enterrá-lo condignamente, antes de irmos procurar os vivos - acrescentou, ao fim de algum tempo.
Lavou-o com as suas próprias mãos, deixando-o limpo do sangue e dos detritos do rio, penteou-lhe os espessos cabelos castanhos e, com a ajuda de John, vestiu e preparou o corpo para o funeral. Colocaram-no numa barca, perto do moinho, e levaram-no a remos até Strata Marcella, na margem galesa. Quando os monges desceram à meia-noite para as Matinas, encontraram um morto, cuidadosamente envolto numa capa de tecido grosseiro, ao fundo dos degraus do coro, e dois desconhecidos, vestidos com roupas de tecido caseiro, a rezar, ajoelhados um junto à sua cabeça e o outro aos seus pés. O que estava aos pés era um camponês, de meia-idade e barbudo. Semioculto pelo capuz, o outro parecia jovem, pálido e digno. O prior estava prestes a ordenar-lhe secamente que se descobrisse, quando, por baixo da bainha do capuz, enxergou o volume de uns seios. Ela pôs as mãos, num gesto de súplica.
- Por caridade, padre, dai guarida a este filho de Deus, morto prematuramente, até ele poder repousar em paz na igreja que ele mesmo construiu. E tende a bondade de marcar o local onde o enterrardes, para podermos voltar a encontrá-lo, nem que seja daqui a alguns anos. Continuarei de joelhos, até aceitardes que vo-lo confie.
O prior olhou longamente para o defunto e viu que era muito magro e novo. Em lugar de apagar do seu rosto o ardor e a energia, a serenidade marmórea da morte havia-os preservado para sempre. Parecia que, se falassem mais alto, ele poderia acordar e abrir os olhos.
- Como posso eu, minha filha, acolher um homem que, como se vê, morreu de morte violenta e sobre cuja vida nada sei? - perguntou o prior.
- Ele era nobre - respondeu Benedetta. - Por nascimento e pela vida que levou. O seu trabalho era nobre e morreu nobremente, em vez de um outro, cuja vida salvou. Isso não basta?
Bastava; todavia, por motivos pessoais, o prior perguntou o nome.
- O seu nome é Harry Talvace, mestre canteiro. O prior inspirou profundamente.
- Muito bem - disse. E, passado um momento, acrescentou:
É bem-vindo à nossa casa. Terá um serviço fúnebre e um túmulo dignos dele.
Benedetta não se espantou por o nome de Harry ser conhecido. O que a espantaria seria havê-lo dito em voz alta e ele não provocar ecos grandiosos em toda a cristandade. Morto ou vivo, Harry preenchia de tal modo o seu mundo que, para ela, aquele reconhecimento era natural.
Com palavras simples, agradeceu ao prior e, depois, debruçou-se ternamente sobre o morto e beijou-lhe a testa fria.
- Descansa em paz, alma minha - disse. - Até ela ou eu virmos buscar-te para te levar para casa.
Depois de ela partir, os monges pegaram reverentemente no corpo e colocaram-no num ataúde, diante do altar. E, depois das Laudes, velaram Harry Talvace durante toda a noite. Aos primeiros alvores do dia, um servo laico partiu a toda a brida para Aber, ao encontro de Llewellyn. Mas chegou demasiado tarde com a notícia: o príncipe de Gwynedd já estava em marcha.
Ainda o dia mal despontara e já a irmã porteira estava acordada. Andava de um lado para o outro na pequena cela, a embalar o bebé e a murmurar palavras apaziguadoras, em voz sonolenta. O som abafado de ferraduras sobre a erva do caminho chegou-lhe claramente aos velhos ouvidos mas era mais uma vibração do que um som. Endireitou a cabeça e imobilizou-se.
Quem viria àquela hora? Em tempos normais, as monjas reclusas de Santa Winifrede, reunidas em torno da pequena capela de madeira, situada em plena natureza, pouco tinham a temer dos homens sem amo; a virgem mártir era tão pronta a punir aqueles que a desrespeitavam como a recompensar os seus devotos. No entanto, aqueles eram tempos conturbados. O rei pegara em armas no Sul e a maior parte dos seus nobres haviam-se aliado contra ele, com o apoio do arcebispo. Shrewsbury, que outrora se aproveitara das faltas de dinheiro do rei João para, carta atrás de carta, alargar as suas liberdades civis, honrava os seus compromissos e apoiava o rei João. Mas, no norte de Gales, os homens de Gwynedd haviam-se reunido sob a bandeira do príncipe Llewellyn, que se aliara aos rebeldes. Corria o rumor de que os insurrectos haviam entrado em Londres. Um cavaleiro a chegar assim, de madrugada, podia haver sido enviado para as advertir da iminência de uma incursão galesa daquele lado da fronteira.
Depois, ouviu bater à porta, contou as batidas e os intervalos entre elas e ficou a saber quem chegara. Com o bebé ao colo, dirigiu-se ao portão do recinto, levantou a tranca e deixou-os entrar.
Ao ver dois homens recuou, subitamente assustada, mas não havia dúvida de que o mais velho era John o Frecheiro, que ela conhecia bem, e o mais novo atirou o capuz para trás e libertou sobre os ombros a cabeleira ruiva de Madonna Benedetta. Usava as meias e a túnica dos camponeses, castanhas e sem ornatos, que, não fora a sua pele leitosa, contra a qual nem o sol nem o vento pareciam nada poder, lhe teriam dado o aspecto do filho de um feudatário.
Quando viu o bebé, parou, levou a mão ao coração e nem sequer conseguiu pronunciar as saudações que tinha nos lábios. Estendeu os braços, pegou-lhe ao colo com todo o cuidado e ficou a olhar para ele, com um sorriso extasiado. Tinha uma penugem, preta como os cabelos da mãe, e uns olhos de cor ainda indefinida, que podiam muito bem vir a ser verde-mar com laivos de dourado.
- Quando nasceu ele? - perguntou, sem deixar de olhar para ele, como que atordoada.
- Há quatro dias, quase à hora das Matinas. Quase à mesma hora a que o pai morria.
- E a Gilleis?
- Passou um mau bocado mas está a recompor-se bem. Trazeis-lhe notícias...
Não chegou a terminar a frase. A palidez de Benedetta dissera-lhe que as notícias não trariam qualquer conforto a Gilleis.
- Morto?
- Morto. Graças a Deus, a Gilleis tem uma cópia perfeita! Contemplava os dois pequenos punhos cerrados sob o queixo do
bebé. Nunca tivera no colo um ser humano tão pequeno; parecia impossível aquele corpo minúsculo conter dentro de si todas as potencialidades de um homem. Quando chega ao mundo, o homem é perfeito, pensou. Uma mão do tamanho de uma primavera e frágil como ela e, apesar disso, tem todas as linhas, todos os ligamentos, as unhas, toda a máquina que, um dia, poderá construir uma catedral, tocar alaúde, manejar armas e ferramentas, escrever canções para aquecer o gelo do Inverno, tocar as cordas do coração de uma mulher e levá-la consigo por esse mundo fora.
- Preciso de falar com Gilleis. Vamos ter de a levar, e ao bebé, para um lugar seguro, se é que existe um tal lugar. A fronteira de Powis já está a ferro e fogo. Não me sentirei tranquila enquanto ela e Isambard estiverem no mesmo condado. Mesmo depois disso, se ele soubesse que havia um filho...
- Não ia fazer mal a uma criatura tão inocente - protestou a irmã porteira, incrédula.
- Talvez uma alma caridosa haja dito o mesmo de Herodes. Salvo faltar à palavra dada, há poucas coisas que ele não seja capaz de fazer. Mais vale não colocar a tentação no seu caminho. Se conseguirmos levá-la para Shrewsbury, estaremos melhor. Ela está em condições de montar a cavalo?
- Ainda não. Pelo menos sozinha. O John talvez pudesse levá-la, se vós levásseis o bebé. Ela é pouco maior que uma criança. Mas, mesmo assim, devia descansar mais dois ou três dias. Quereis que veja se já está acordada? Mais tarde ou mais cedo, tereis de lhe dizer.
- Sim, por favor. Mas, se ela estiver a dormir, deixai-a estar.
A irmã porteira estendeu os braços, para voltar a pegar na criança, mas Benedetta exclamou:
- Não! Deixai-o comigo. Podeis ver que ele se sente bem. Não está a chorar.
Ainda levava o bebé ao colo, quando entrou na cela onde Gilleis estava deitada. Os grandes olhos pretos, rodeados de olheiras, ergueram-se numa interrogação muda. Benedetta parou junto ao leito, incapaz de falar: tinha muito para contar mas não conseguia encontrar forma de começar.
- Ele está morto - disse Gilleis, já sem sombra de dúvida.
- Está morto - repetiu Benedetta, numa voz tão baixa, que as palavras mal se ouviram.
- Eu sabia - disse Gilleis. - Senti-o afastar-se de mim. Rodou a cabeça sobre o travesseiro, voltando a cara para a parede.
- Pediu que vos transmitisse o seu amor eterno. E também me pediu que beijasse o filho por ele.
Um sorriso fugaz aflorou aos lábios carnudos e macios de Gilleis.
- É mesmo dele, ter a certeza de que ia ter um filho!
Sob a coberta, os seus dedos crisparam-se e as unhas enterraram-se nas palmas das mãos.
- Sofreu muito? Humilharam-no?
Não era por isso lhe importar que fazia a última pergunta mas porque sabia que o feriria no mais fundo da alma, haver sido menos do que admirável.
- Não! Foi ele quem venceu. Nunca baixou a cabeça, nem vergou os joelhos. Morreu à hora marcada por Deus e não por Isambard. Foi rápido e certeiro, como se uma flecha houvesse sido disparada do céu, mesmo diante dos olhos dele. Acabou tudo num instante. Os carrascos nem lhe puseram as mãos em cima.
O rosto voltado para a parede manteve-se imóvel, ligeiramente corado, atento, ávido.
- Contai-me.
Benedetta contou-lhe tudo, até mesmo o horror do suplício a que Harry escapara, pois desse modo a vitória dele era ainda maior e a morte que o levara mais fácil de suportar. Só guardou para si, no fundo do coração, o que se passara entre Harry e ela. Bastava que Gilleis soubesse que ele pedira um encontro com ela, a fim de poder receber e enviar as últimas mensagens de amor.
- Se ao menos pudesse tê-lo visto só mais uma vez! - murmurou Gilleis, com a voz e o coração tomados por uma dor insuportável.
Jazia como se estivesse morta, ainda de rosto voltado para a parede. Benedetta inclinou-se e pôs-lhe a criança nos braços. Por instinto, as mãos de Gilleis apertaram-no docemente contra o peito. Passado pouco tempo, ao contacto do calor e do peso do bebé, a sua fronte crispada distendeu-se um pouco.
- Se soubésseis como vos invejo! - disse Benedetta.
Caiu de joelhos ao lado da cama e enterrou a cabeça nos braços. Pouco depois, uma mão deslizou sobre a coberta e tocou-lhe suavemente na face. Quando levantou os olhos, viu que Gilleis voltara a cabeça para ela e que os seus olhos grandes estavam cheios de lágrimas e de ternura.
Ao segundo dia, um mensageiro veio procurar John o Frecheiro que, por seu turno, se apressou a levar a notícia a Benedetta.
- O rapaz é de uma aldeia perto de Parfois. Antes de partir, combinei que ele viria aqui avisar-me, se se soubesse que andavam à procura da senhora Gilleis. Porque eu sabia que, se estivesse ao vosso alcance, haveríeis de vir aqui buscá-la, a ela e ao filho. O rapaz disse que todos os habitantes de Parfois receberam ordem de descobrir o atirador que roubou o jantar àquele corvo do gascão e de inspeccionar os estábulos, para ver se faltava algum cavalo. Isso quer dizer que já sabem quais são as respostas para as duas perguntas e andam a correr a região, à minha procura e do cavalo cinzento. O rapaz diz que eles lhe apanharam o rasto perto da taberna de Walkmill e que vêm para estes lados.
Antes mesmo de ele ter acabado de falar, Benedetta pusera-se de pé.
- Walkmill? Então, antes de eles chegarem aqui, nós podemos descer pela estrada do vale e seguir para Shrewsbury. Antes de conseguirem avistar-nos, terão de dar a volta toda à colina de Longmynd ou de subir até ao cimo.
- É verdade. Isso dá-nos um certo avanço. Mas o cavalo cinzento vai ter de levar dois.
- Não há nada a fazer, quanto a isso! Sela os cavalos, John, enquanto eu vou avisar a Gilleis.
- Cobri os vossos cabelos, senhora. Com esta luz, eles são capazes de os ver a uma milha de distância e ainda melhor do alto da colina.
- Eles julgam que eu morri - argumentou Benedetta. - Não é de cabelos ruivos que eles andam à procura. É de um cavalo cinzento.
- Mesmo assim, escondei-os. Basta que os vejam para ficarem a saber que estais viva. Não há outros cabelos iguais aos vossos em toda a Bretanha.
Benedetta ocultou os cabelos sob o capuz que lhe dera o camponês do casebre perto de Parfois e voltou a vestir as meias e a túnica grosseiras. Não dispunham de um disfarce parecido para Gilleis mas ela embrulhou-se no manto castanho-escuro de John, o mesmo que servira para envolver Harry, enquanto eles o transportavam para a abadia. As despedidas foram breves e apressadas. John foi o primeiro a montar e Benedetta ofereceu o joelho para ajudar Gilleis a subir para a frente dele. Gilleis protestara, dizendo que se sentia com forças suficientes para montar atrás, libertando-o da tarefa de a segurar, mas eles receavam que o seu físico estivesse tão mal como o seu espírito. O bebé foi entregue a Benedetta, que o envolveu nas pregas do manto que as monjas lhe haviam dado. Assim equipados, seguiram pelo caminho verdejante e, depois, entre as colinas, para apanhar a estrada directa para Shrewsbury.
Benedetta impôs um andamento rápido. Diante deles, estendia-se o vale e, à esquerda, erguia-se a grande aresta de Longmynd. De vez em quando, lançava olhares ansiosos à encosta lisa, semicerrando os olhos para tentar ver até ao topo, por onde passava uma estrada muito, muito antiga. O vento era forte e, quando ela virava a cabeça, empurrava-lhe para trás o capuz, demasiado grande, mas as duas mãos de Benedetta estavam ocupadas e ela não podia segurá-lo.
Estavam quase à altura das últimas saliências da crista quando, vindo lá do alto, lhe chegou aos ouvidos o ladrar de um cão. O som, que reconheceu de imediato, fê-la levantar a cabeça, consternada. O vento atirou-lhe o capuz para as costas e os seus cabelos caíram em cascata, sob o sol caprichoso. Libertou uma das mãos para voltar a cobrir aquele fulgor denunciante mas era demasiado tarde. Distante mas nítido, ouviu-se o eco de um grito. Avistou uma silhueta escura e delgada, que começava a correr pela encosta, depois uma segunda, uma terceira, uma quarta, seis pelo menos, e, brilhando diante delas, uma outra, a correr que nem uma flecha pelo caminho de cabras.
- Soliman! - exclamou Benedetta, esporeando o cavalo para o lançar a galope.
Pelo menos, se fossem alcançados, seria apenas pelo cão, que em corrida, era capaz de vencer a maior parte dos cavalos. Não era do animal que ela tinha medo: aquela enorme criatura dormira demasiadas vezes com a cabeça no seu colo para, agora, se voltar contra ela. O que a assustava era ele poder levar os perseguidores até à presa.
- Falta uma milha para o vau - gritou John, a curta distância dela. - Quando lá chegarmos, podemos entrar na água.
John conhecia a região melhor do que ela e Benedetta estava disposta a ser guiada. Lançou um breve olhar ao bebé, que dormia tão serenamente como se estivesse numa cama. Quem havia de dizer que uma criaturinha tão pequena era dona de tamanha resistência?
Assustadoramente próximo, Soliman ladrava. Durante a descida, conseguira alcançar vantagem sobre os cavalos dos perseguidores e levava-lhes uma considerável dianteira. Ali, a estrada romana mergulhava nos bosques e eles poderiam esconder-se dos homens mas não de Soliman. Quando este voltou a ladrar, parecia encontrar-se colado aos calcanhares deles.
- Eu trato-lhe da saúde, quando chegarmos ao vau - gritou John, desembainhando a adaga.
- Não!
Benedetta sabia muito bem qual dos dois teria maiores probabilidades de morrer e não desejava mal a nenhum deles. Dirigiu-se para o vau e voltou à esquerda, abandonando o caminho para entrar na água, como John lhe indicara. Quando ali chegou, puxou as rédeas e gritou-lhe que pegasse na criança.
- O cão não vai tocar-me. Viveu ao meu lado durante seis anos e foi ensinado a conhecer-me como dona. Não me faria mal, nem por ordem de Isambard. Vou tentar mandá-lo para casa. Vai andando com eles! Eu depois apanho-vos.
- Não, cabe-me a mim...
- Leva-os! - gritou ela, colocando o bebé nos braços estendidos de Gilleis. - Eu sigo-vos depois!
E, fazendo saltar a água em torno de si, voltou-se para a margem. O som das ferraduras parecia agora mais distante e, de súbito, numa curva, os arbustos da margem abafaram-no por completo. Depois, foi o silêncio. Benedetta apurou o ouvido, para ver se ouvia o som de vozes ou de ferraduras, mas não ouviu nada. O cão não voltara a ladrar. Com passadas longas e ágeis, a enorme cabeça quase colada ao chão, emergiu de entre o rendilhado de luz e sombra dos arbustos como se tivessem sido apenas estes a agitar-se levemente. Benedetta chamou-o baixinho pelo nome. O animal espetou as orelhas e ergueu os olhos cor de âmbar mas não desviou o focinho da pista que estava a seguir. Ao chegar junto da água, parou, farejou para um lado e para o outro, ergueu a cabeça e, a abanar o rabo, olhou para ela, indeciso.
- Não, Soliman! Para casa! - disse ela, descendo do cavalo. Em seguida, chapinhando na água, caminhou até ele e pegou-lhe na enorme cabeça dourada, pesada como um elmo.
- Estás a ouvir? Agora vai! Já chega!
Os olhos amarelos fitavam-na com uma expressão de dúvida: reconhecia-lhe o direito de lhe dar ordens mas não lhe agradava a ideia de abandonar uma perseguição iniciada por ordem de outra voz, de outra autoridade.
- Já chega, Soliman, acabou-se! Acabou-se! Vai para casa! Erguendo a mão, apontou não para o caminho mas para Oeste, na direcção de Parfois. Lentamente, sempre a olhar para ela por cima das espáduas, o cão deu meia volta e, quando ela voltou a apontar, voltou também a cabeça e começou a andar pela estrada.
- Não, Soliman! Não é por aí! Para casa!
As suas orelhas sedosas denotavam desapontamento e relutância mas o animal obedeceu. Depois de se ter decidido, deu meia volta, apressou o passo e apontou o focinho na direcção de Parfois. Quando Soliman desapareceu da vista, Benedetta voltou a montar e correu atrás de John, seguindo o leito do Cound e avançando com precaução por entre as pedras.
- Foi-se embora. Não para o pé deles, que o mandariam outra vez atrás de nós. Foi para o castelo. A menos que fique confuso de repente, não vão voltar a encontrá-lo deste lado do domínio de Parfois. Mas aquele animal é consciencioso e odeia desistir. É melhor continuarmos dentro de água por algum tempo.
Avançaram tão depressa quanto possível e só abandonaram o curso do regato, no momento em que os seus meandros sinuosos começaram a fazê-los perder terreno. Percorridas duas milhas, acharam melhor voltar ao caminho e atravessar Condover a toda a brida.
Não haviam voltado a ver nem a ouvir o grupo de perseguidores, que haviam despistado em Longmynd mas, em Bayston, quase foram inadvertidamente ao encontro deles. A porta da taberna, encontrava-se um grupo de pessoas, que faziam enorme alarido e olhavam na direcção de Shrewsbury. Benedetta haver-se-ia dirigido a elas, para saber qual era o motivo de tamanha agitação, se John não a agarrasse pelo braço e a puxasse apressadamente para uma ruela.
- De Guichet! - murmurou ela, ao avistar, entre a multidão, aqueles ombros largos e o grande cavalo malhado, que John fora o primeiro a ver.
Avistou também o grego, agora inútil sem o cão. Voltava o rosto esguio e curtido pelo tempo para um e para outro dos presentes, com o olhar cego das pessoas que tentam acompanhar uma conversa numa língua que compreendem mal.
Estavam ali todos, entre eles e Shrewsbury. Para haverem chegado ali antes da sua presa, os perseguidores, abandonados pelo seu guia, deviam ter seguido sempre pela estrada e cavalgado a boa velocidade, enquanto os fugitivos cobriam laboriosamente a sua pista, seguindo pela água. Todavia, pareciam não se ter apercebido de que haviam chegado adiantados.
John o Frecheiro firmou melhor o braço à volta de Gilleis e, enquanto dirigia o cavalo pela ruela de terra batida, fitou-a com uma expressão inquieta.
- A pobre senhora está quase a desmaiar. Pegai outra vez no menino. É melhor estarmos preparados para salvar a pele.
Gilleis abriu os olhos e, em voz fraca, disse que se sentia bem mas, sem protestar, entregou o bebé a Benedetta, que o embrulhou no manto e apertou o cinto à volta daquele berço improvisado. O menino soltou um pequeno gemido, tão fraco como o miado de um gato recém-nascido mas que lhe dilacerou o coração. Ele não podia cair nas mãos de Isambard: seria morto ou, o que era mais provável, deliberadamente educado como uma criatura de Isambard, na ignorância de quem era o seu pai. Enquanto ela fosse viva, isso nunca aconteceria.
Contornaram a aldeia pelos campos e voltaram à estrada um pouco mais adiante, lançando-se novamente a galope sobre a berma, onde a turfa era espessa e mole. Se os homens reunidos à porta da taberna não estivessem sempre a lançar olhares na direcção de Shrewsbury, poderiam ter passado despercebidos. Mas havia sempre alguém a apontar o dedo naquela direcção e o cavalo malhado, quase branco, destacava-se contra o verde primaveril e chamava facilmente a atenção. Quando olhou para trás, Benedetta avistou a poeira, levantada pelos perseguidores que se aproximavam.
Havia fumo no horizonte: uma coluna que subia pelo céu azul e que o vento logo transformava numa espécie de nuvem ténue, a flutuar sobre Shrewsbury. Também em Meole as pessoas haviam saído das suas casas; falavam e apontavam e, quando John o Frecheiro se preparava para passar por elas a toda a pressa, um dos homens correu para ele e deitou as mãos às rédeas do seu cavalo.
- Voltai para trás, se vos resta algum juízo. Shrewsbury está a arder. Não vedes o fumo? Os Galeses lançaram fogo ao moinho e os armazéns da abadia estão em chamas.
- Antes enfrentar uma incursão dos Galeses do que voltar para trás - disse Benedetta, abrindo passagem à força.
- Não é uma incursão, rapaz. Eles estão decididos a tomar a vila e, deste lado de Gloucester, não há ninguém que os possa deter. Contornaram o rio e aproximaram-se pelo lado leste, onde não eram esperados. Há pouco, passou por aqui um cavaleiro que disse que o príncipe de Gwynedd já estava na ponte, a arremeter contra a porta.
- O príncipe de Gwynedd? - perguntou Benedetta, num grito de alegria. - Obrigado pelo aviso, amigo! Não deixeis de avisar também aqueles que vêm atrás de nós.
Dito isto, impeliu o cavalo para a frente resolutamente e eles afastaram-se para a deixar passar, apesar de pensarem que enlouquecera.
Acima de Shrewsbury, o fumo era agora mais denso, observou sem parar de galopar. Só olhou para trás uma vez, antes de Meole desaparecer da vista. De Guichet ultrapassara a barreira de aldeãos agitados mas parara na beira do caminho, indeciso. Os seus homens não queriam segui-lo; eram apenas seis e não haviam recebido ordens para se lançarem contra um exército galês. Todavia, os fugitivos tinham ainda de percorrer uma milha até alcançarem a ponte: ainda seria possível apanhá-los. Furioso, De Guichet acenava aos seus homens e dois deles obedeceram-lhe, depois três - o que queria dizer todos, porque os outros dois nunca ousariam voltar a Parfois, se abandonassem o grupo. Benedetta fixou os olhos na estrada irregular e, com os joelhos, com a voz e com as mãos, incitou o cavalo.
Ao fundo da longa descida, estendiam-se agora os meandros prateados do Severa; e, mais adiante, semioculta pela cortina de fumo, avistava-se já a colina rodeada pelo fosso e coroada pela muralha torreada. O caminho desviava-se para a direita, acompanhando a curva do rio, e as ruas da vila estendiam-se sobre o planalto, como os eixos de uma roda, revelando uma a uma as torres, para em seguida as fazer desaparecer, também uma a uma. A primeira torre de vigia surgiu diante dos seus olhos, depois a outra e logo o fosso escuro entre ambas. Mais abaixo, sobre a ponte levadiça, uma multidão de homens agitava-se num movimento ondulante, ao sabor dos lampejos do aço. O fumo não vinha do interior das muralhas: chegava até ali arrastado pelo vento, vindo da margem mais próxima do rio, onde ficavam a abadia e as suas dependências, os hospícios, os aposentos dos pensionistas devotos, que haviam entregue todos os seus bens à abadia, em troca de um simples catre e de uma mesa frugal. A igreja em si continuava intacta e as grossas paredes exteriores protegiam o seu recheio. Mas o moinho ardia com labaredas bem altas, formando uma enorme coluna de fumo, e os celeiros e as casas de madeira entre a abadia e o rio eram pasto das chamas.
Uma flecha cravou-se no solo atapetado de erva. Benedetta curvou o corpo sobre o corpo do bebé, carregou nas esporas e seguiu em frente. Se os perseguidores já estavam a disparar flechas era porque se preparavam para bater em retirada. Uma segunda flecha zuniu e cravou-se no chão, bem perto. Depois, o fumo envolveu-a, arranhando-lhe a garganta e os olhos. Prendeu a orla do manto entre os dentes, para cobrir o rosto do menino, e avançou às cegas em direcção ao tumulto que reinava na ponte.
Estava rodeada de homens, que haviam deitado as mãos às rédeas do seu cavalo e gritavam em Inglês e em Galês. Por entre o fumo, as caras apareciam e voltavam a desaparecer, deformadas pelas lágrimas que lhe corriam dos olhos. Voltou-se uma vez, para ver se John se encontrava atrás de si e, depois, abriu passagem à força por entre aquela gente, desviando as mãos que a seguravam, dando pontapés em quem tentava agarrá-la. Um dos homens deitou a mão ao seu capuz e puxou-o para trás, descobrindo-lhe a cabeça; os cabelos caíram-lhe sobre os ombros e esvoaçaram ao vento daquela investida desesperada.
- Onde está o príncipe de Gwynedd? Onde está o príncipe Llewellyn?
Finalmente, chegara à ponte. E estava a ser empurrada para diante pelos galeses, homens dos clãs, de ar sombrio e apressado, a maior parte deles a pé, outros montados em pequenos cavalos da montanha, ágeis e fortes. O vento vindo do lado do rio abriu uma clareira no fumo e Benedetta avistou de relance a porta de Shrewsbury, no meio das duas torres, um grupo de cavaleiros que vestiam cotas de malha e montavam cavalos de maior porte e um jovem escudeiro que segurava um grande elmo cercado por uma pequena coroa de ouro. Com um movimento da cabeça, afastou o cabelo dos olhos e, bem alto, para se fazer ouvir por entre o som das ferraduras e o clamor das vozes, voltou a gritar:
- Levai-me ao príncipe de Gwynedd! Onde está o príncipe Llewellyn?
- Quem chama Llewellyn dessa maneira?
Os homens abriram alas e ela viu-o, envolto numa aura de triunfo. Tinha a cabeça descoberta e a espada embainhada, porque a vila capitulara quase sem combate. O fumo sujara os ombros do pelote branco que lhe cobria a longa listrada mas os contornos do dragão vermelho desenhado no seu torso continuavam bem nítidos. O seu cavalo preto era alto e de forte ossatura, como o cavaleiro, o que o colocava uma cabeça acima da maior parte dos que o rodeavam. Tinha um rosto vivo, de falcão, todo luz e sombra em volta dos olhos inteligentes e argutos, corado devido à acção e ao calor do elmo. Estava a rir-se. No seu rosto podiam ler-se riso, cólera, generosidade, piedade: todos os sentimentos impulsivos e calorosos transpareceriam facilmente naquele rosto. Tirou as luvas de malha de aço e deixou-as pendentes dos pulsos; até mesmo esse pequeno gesto denotava ardor e vivacidade.
- Quem procura por Llewellyn?
- Alguém para com quem ele tem uma dívida de honra - respondeu Benedetta, aproximando-se. - O nome dele é Harry Talvace.
Os olhos do príncipe pousaram-se nela espantados, registando a imagem daquelas roupas grosseiras de camponês, daquele belo rosto de mulher, exausto e sujo, daqueles longos cabelos ruivos, que o suor tornara cor de púrpura. Os cabelos revelaram-lhe quem ela era; não era difícil descrever Benedetta de forma a torná-la reconhecível por qualquer pessoa.
- Talvace está aqui?
Os seus olhos procuravam avidamente aquele de quem tanto ouvira falar, a duas pessoas que o louvavam e o amavam. Mas viu apenas um servo de cabelos grisalhos com uma jovem nos braços e os seus olhos voltaram a fixar-se em Benedetta, interrogativos.
- Onde está ele? Trazei-mo, pois é mais do que bem-vindo! íamos a caminho de Parfois para o salvar mas se, com a ajuda de Deus, foi ele que veio até nós, continuo em dívida para com ele.
Com todo o cuidado, Benedetta soltou o cinto, abriu o manto e mostrou-lhe o menino, que dormia pacificamente no meio de todo aquele tumulto. Surpreendido, Llewellyn olhou para aquele ser minúsculo, para aqueles punhos fechados, e o seu rosto revelou compreensão.
- Aqui está Harry Talvace, filho de Harry Talvace, e esta é a sua mãe, Gilleis - disse Benedetta. - Eles precisam muito da vossa protecção e é em nome de ambos que vo-la peço.
No fundo dos olhos cinzentos e límpidos de Benedetta, Llewellyn viu um vazio doloroso, uma perda que ninguém, nem mesmo a criança, poderia preencher.
- Morto? - perguntou.
- Morto. Faz sete dias.
Com uma expressão triste, Llewellyn fitou o bebé.
- Lamento, do fundo do coração. Contávamos dispor de mais tempo, senão eu nunca haveria esperado que FitzWalter chegasse a Londres. O seu irmão de leite, que se encontra entre os meus homens, lamentá-lo-á ainda mais. E, em minha casa, há um jovem que vai chorar amargamente, quando souber a triste notícia.
Abanou a cabeça e os caracóis escuros, despenteados pelo elmo, caíram-lhe sobre a testa.
- Contávamos dispor de mais tempo - repetiu, numa voz triste mas colérica. - A nossa ideia era libertá-lo pela força ou trocá-lo por Shrewsbury.
Diante da porta da vila, aberta para receber o conquistador, os seus cavaleiros observavam com espanto e curiosidade aquela mulher desconhecida e a criança que trazia nos braços; os cavalos, impacientes, batiam com as patas no chão e resfolgavam. O castelão continuava à porta, mergulhado na sombra, diante dos prebostes e dos defensores da coroa, pronto para entregar as chaves da cidade.
- Estamos a fazer esperar estes bons burgueses - disse Llewellyn, voltando a cabeça num movimento brusco e lançando um breve olhar por cima do ombro. – Vinde. Pelo menos, podemos levar a esposa dele para lugar seguro e deitá-la numa cama. Conservai-vos perto de mim, até chegarmos ao castelo – acrescentou, lançando um olhar terno a Gilleis que, muito pálida e de olhos fechados, continuava encostada ao ombro de John. – A viúva de Talvace é minha parente.
Estendendo a mão, tocou ao de leve na testa do bebé e disse ainda:
- E o filho dele é meu filho!
Fez rodar o cavalo e gritou algumas ordens em Galês. Dos dois lados deles, formaram-se fileiras e, lentamente, todos se encaminharam para a porta da vila. Chegados ali, os cavaleiros pararam, para deixar o seu príncipe entrar primeiro mas, num gesto imperioso, este estendeu a mão para as rédeas do cavalo de Benedetta.
- Vinde ao meu lado com o rapaz. Em honra do seu pai, ele fará uma entrada de príncipe e, esta noite, dormirá num leito real.
Num passo altivo e desdenhoso, o cavalo preto poisou uma pata dianteira no limiar da porta, por baixo do gradeamento levantado. O vento que soprava entre as torres agitou o bigode sedoso e os caracóis pretos e curto de Llewellyn e fez esvoaçar os longos cabelos de Benedetta, transformando-os num manto de púrpura imperial, que envolveu a criança que ela levava ao colo. E, assim, o príncipe e o seu filho adoptivo entraram juntos na vila conquistada.
Edith Pargeter
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