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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PELE DO LOBO / Artur Azevedo
A PELE DO LOBO / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

PERSONAGENS: CARDOSO (subdelegado) AMÁLIA (sua mulher) APOLINÁRIO PERDIGÃO JERÔNIMO MANUEL MARIA VITORINO O COMPADRE UMA PARTE DOIS SOLDADOS DA POLÍCIA
A cena passa-se no Rio de Janeiro. Atualidade.


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ATO ÚNICO Sala, secretária, relógio de mesa, etc., etc.
 
CENA I Cardoso, Amália (vestidos para a cerimônia e prontos para sair). Uma Parte (que logo sai, à porta do fundo).
 
CARDOSO Sim, senhor; sim, senhor! Pode ir com Deus. Descanse, que hoje mesmo serão dadas as providências que o caso exige.
 
PARTE  Às ordens de vossa senhoria. (Retira-se)
 
CARDOSO Safa!
 
AMÁLIA (erguendo-se)  Deixar-te-ão desta vez?
 
CARDOSO E metam-se!
 
AMÁLIA Hein?
 
CARDOSO E metam-se a servir o país!
 
AMÁLIA Para que aceitaste esta maldita subdelegacia?
 
CARDOSO (ainda passeando)  Eu não aceitei: pedi. Mas já tenho dito um milhão de vezes que os serviços prestados ao país e ao partido pesam muito no ânimo daqueles que me podem fazer galgar mais um degrau na escala social.
 
AMÁLIA Deixa-te disso, Cardoso; um degrau dessa tão falada escala social, não vale decerto o sacrifício que te custa essa autoridade de ca-cara-cá. São uns desfrutadores, eis o que são! Hás de ser pago com um pontapé. Verás!
 
CARDOSO Hei de ser promovido na primeira vaga que aparecer. O Cantidiano está por pouco a bater a bota. Verás se o lugar é ou não é meu!
 
AMÁLIA Fia-te na Virgem e não corras.
 
CARDOSO E uma vez que aceitei o cargo...
 
AMÁLIA A carga, deves dizer.
 
CARDOSO Venha com ele o sacrifício. Antes de tudo o dever!
 
AMÁLIA Estamos prontos para sair há duas horas.
 
CARDOSO (consultando o relógio de mesa)  Há duas horas e dois minutos.
 
AMÁLIA (embonecando-se ao espelho)  Creio que não chegamos a tempo para o batizado.
 
CARDOSO Que remédio terão eles, senão esperar pelos padrinhos?
 
AMÁLIA E o carro na porta há tanto tempo?
 
CARDOSO Anda com isso, anda com isso! E metam-se!
 
AMÁLIA Hein?
 
CARDOSO E metam-se a servir o país!
 
AMÁLIA Vamos. Não percamos mais tempo.
 
CARDOSO Vamos. 
 
(Vão saindo. Batem palmas)
 
AMBOS  Bateram.
 
CARDOSO Quem é?
 
APOLINÁRIO (fora)  Sou eu.
 
AMÁLIA Eu quem?
 
APOLINÁRIO (no mesmo)  Um criado de vossa senhoria.
 
CARDOSO Entre quem é.
 
AMÁLIA Temo-la travada! 
 
(Entra Apolinário. Pisa macio e fala descansado)
 
  CENA II Os mesmos e Apolinário.
 
APOLINÁRIO (à porta do fundo)  Dá licença, senhor subdelegado?
 
CARDOSO Entre, senhor. (Vai outra vez por o chapéu na secretária)
 
APOLINÁRIO (entrando e sentando-se em uma cadeira que deve estar no meio da cena)  Não se incomode vossa senhoria. Estou muito bem. Vossa senhoria como tem passado?
 
CARDOSO Bem, obrigado. O que pretende o senhor?
 
APOLINÁRIO Sua senhora tem passado bem, senhor subdelegado?
 
AMÁLIA Bem, obrigada. O senhor o que pretende?
 
APOLINÁRIO Ah! estava aí, minha senhora? Os meninos estão bons?
 
AMÁLIA Que meninos, senhor?
 
APOLINÁRIO Os seus filhos, minha senhora.
 
AMÁLIA Não os tenho. E esta!
 
APOLINÁRIO Pois levante as mãos pra o céu e dê graças a Nosso Senhor Jesus Cristo! (Sinais de impaciência em Cardoso e Amália) Eu tenho três, três! Todos três machos, felizmente. Mas que consumição! Que canseira! Quando não está um doente, está outro; quando não está outro, está outro; quando não está nenhum, está a mãe; quando não está a mãe, está o pai. Às vezes estão, filhos e pais, todos doentes. É preciso chamar a vizinha para dar-nos qualquer coisa. É uma lida, minha rica senhora! Peça a Deus que lhe não dê filhos. Olhe... (Mostra a cabeça) Não vê?
 
AMÁLIA O quê? o quê?
 
APOLINÁRIO Já estou pintando... Ainda anteontem... Anteontem não... Quando foi, Apolinário? Segunda... terça... Foi anteontem mesmo... Eu tinha acabado de tomar o meu banhinho e de ouvir minha missinha...
 
CARDOSO (interrompe-o)  Meu caro senhor, tomo a liberdade de preveni-lo que temos muita pressa e não, podemos perder tempo. Íamos saindo justamente quando o senhor entrou...
 
APOLINÁRIO (erguendo-se)  Nesse caso, senhor doutor...
 
CARDOSO Perdão, não sou doutor.
 
APOLINÁRIO Fica para outro dia... Eu vinha dar minha queixa, mas... (Cumprimenta) Senhor doutor... minha senhora... (Vai saindo)
 
CARDOSO Venha cá, senhor: já agora diga o que pretende.
 
APOLINÁRIO (voltando-se e preparando-se como para um discurso, com força)  Senhor subdelegado...
 
CARDOSO Não é preciso gritar tanto...
 
APOLINÁRIO Esta noite fui roubado.
 
CARDOSO Diga.
 
APOLINÁRIO Dezoito cabeças de criação... dezoito ou dezenove... Ontem esteve em nossa casa um cunhado meu, irmão de minha mulher, empregado no Arsenal de Guerra, e não tenho certeza de que ele levasse alguma galinha consigo, mas creio que não. Em todo caso, foram dezoito ou dezenove cabeças, não falando em um bonito galo de crista, que comprei no mercado, não há quinze dias.
 
CARDOSO Muito bem. O senhor chama-se...
 
APOLINÁRIO Apolinário, um criado de vossa senhoria.
 
CARDOSO Apolinário de quê?
 
APOLINÁRIO Apolinário da Rocha Reis Paraguaçu (Dando um cartão) Olhe, aqui tem vossa senhoria meu nome e morada.
 
CARDOSO Bem; pode ir descansado, que serão dadas as providências que o caso exige.
 
APOLINÁRIO (preparando-se outra vez para um discurso e elevando muito a voz)  Ainda não fica nisso, senhor doutor!
 
CARDOSO Já tive ocasião de dizer-lhe, primeiro, que não é preciso gritar tanto; segundo, que não sou doutor.
 
APOLINÁRIO (com a mesma inflexão, porém baixinho)  Não fica nisso. Eu conheço o gatuno!
 
CARDOSO E por que estava calado?
 
AMÁLIA (não se podendo conter)  Com efeito, Senhor Paraguaçu!
 
APOLINÁRIO (atarantado)  Hein! (Falando com cada vez mais descanso) Não conheço eu outra coisa! Chama-se Jerônimo de tal, um ilhéu, um vagabundo, que foi há tempo cocheiro de bondes e agora não sai da venda de seu Manuel Maria, ao qual dizem que vende por um precinho de amigo, o que... (Ação de furtar) Vossa senhoria sabe qual é a venda de seu Manuel Maria? É a que fica mesmo em frente à casa do meu cunhado, do mesmo que esteve ontem em nossa casa, e sobre o qual estou em dúvida se levou ou não alguma galinha. (A Amália) Mas que bonito galinho, senhora! Vossa senhoria dava oito mil réis por ele com os olhos fechados... Era branco, branquinho, como aqueles patinhos do Passeio Público. Uma crista escarlate! Que bonito galo!
 
CARDOSO Vamos! Não temos tempo a perder! Faça o favor de sentar-se naquela mesa e dar a queixa por escrito.
 
APOLINÁRIO De muito bom gosto, senhor doutor. (Obedece)
 
CARDOSO E o senhor a dar-lhe! Já lhe disse que não sou doutor.
 
APOLINÁRIO Isso é modéstia de vossa senhoria.
 
AMÁLIA Parece de propósito, Senhor Paraguaçu.
 
CARDOSO Deixa-o para lá. (Vai para junto de Amália) Que maçador! E metamse!
 
AMÁLIA Não chegaremos a tempo.
 
APOLINÁRIO (à mesa)  Esta pena está escarrapachada, senhor subdelegado...
 
CARDOSO Vou dar-lhe outra... vou dar-lhe outra...
 
AMÁLIA Anda... Tem paciência... Acaba com isso. 
 
(Cardoso vai abrir a secretária e mudar a pena da caneta)
 
APOLINÁRIO Muito obrigado! Que incômodo tem tomado vossa senhoria! Mas também não há quem diga à boca cheia: "Aquilo é que é um subdelegado! Zelo até ali... É o pai das partes!"
 
CARDOSO Faça o favor de escrever o que tem de escrever...
 
APOLINÁRIO Às ordens de vossa senhoria. (Escreve)
 
CARDOSO (voltando para junto de Amália)  Decididamente peço a demissão!
 
AMÁLIA Isso já devias ter feito há muito tempo.
 
CARDOSO Olha que é bem difícil suportar uma maçada assim... E metam-se!
 
AMÁLIA Hein?
 
CARDOSO E metam-se a servir o país!
 
AMÁLIA Pede demissão, Cardoso, pede demissão.
 
APOLINÁRIO (da mesa)  Senhor subdelegado, faça o favor de me dizer o modo por que devo principiar este requerimento... Em matéria de polícia sou completamente leigo... Diga-me só o cabeçalho... O cabeçalho! o resto vai...
 
CARDOSO Aí, Senhor Paraguaçu! O senhor é maçante! Tenho estado a aturá-lo há meia hora!
 
AMÁLIA (olhando o relógio)  Há meia hora e sete minutos.
 
CARDOSO Estamos muito apressados, meu caro senhor... não posso estar com isso...
 
APOLINÁRIO Eu quis retirar-me quando vossa senhoria disse que...
 
CARDOSO Vamos lá! Escreva no alto: — Ilustríssimo Senhor.
 
APOLINÁRIO O Ilustríssimo Senhor — já cá está.
 
CARDOSO Bem (ditando): —"O abaixo assinado, morador nesta freguesia, à rua de tal, número tal..."
 
APOLINÁRIO (escrevendo)  ...número treze...
 
CARDOSO "Queixa-se a vossa senhoria de que, ontem, às tantas horas da noite..."
 
APOLINÁRIO "Queixa-se" é com x ou ch?
 
AMÁLIA Ó céus! (Rindo-se)
 
CARDOSO Como quiser! Não faço questão de ortografia.
 
APOLINÁRIO Vai com ch. (Acabando)... "da noite"...
 
CARDOSO Como está?! (Vendo) Fulano de tal, tal, tal. Ah! (Ditando) "Furtaramlhe tantas galinhas..."
 
APOLINÁRIO (escrevendo)  ..."e um galo de crista"...
 
CARDOSO "...as suspeitas de cujo furto faz recair em Fulano de Tal." (Consultando o relógio) E metam-se!
 
APOLINÁRIO (escrevendo) "Fulano de tal, vulgo Barriga-cheia". Pronto!
 
CARDOSO Na outra linha: "Deus guarda a vossa senhoria."
 
APOLINÁRIO  ..."a Vossa senhora"...
 
CARDOSO Na outra linha: "Ilustríssimo Senhor Subdelegado de tal freguesia."
 
APOLINÁRIO Pronto.
 
CARDOSO Assine.
 
APOLINÁRIO  ..."Apolinário da Rocha Reis Paraguaçu." (Erguendo-se) Pronto.
 
CARDOSO Bem; agora pode ir descansado, que serão dadas as providências que o caso exige.
 
APOLINÁRIO Com licença, senhor subdelegado... Às ordens de vossa senhoria...
 
CARDOSO Passe bem.
 
APOLINÁRIO Minha senhora...
 
AMÁLIA Viva. (Volta-lhe as costas)
 
APOLINÁRIO Sem mais incômodo. (Saída falsa)
 
CARDOSO Safa!
 
AMÁLIA Saiamos, saiamos quanto antes! pode vir outro... 
 
(Vão saindo)
 
APOLINÁRIO (voltando)  Ia-me esquecendo, senhor subdelegado...
 
CARDOSO Outra vez!
 
AMÁLIA Assustou-me até!
 
CARDOSO O que mais deseja?
 
APOLINÁRIO Hoje, logo depois do almoço, encontrei-me cara a cara com o tal Jerônimo!
 
CARDOSO Que Jerônimo, senhor?
 
APOLINÁRIO O Barriga-cheia, o tal que me furtou as galinhas...
 
CARDOSO E o que tenho eu com isso, não me dirá?
 
APOLINÁRIO Direi, sim, senhor. Com licença. (Desce à cena e senta-se) Chamei-o de ladrão! Disse-lhe assim: "Você é um ladrão!" — Com licença da senhora...
 
AMÁLIA E o que tem meu marido com isso?
 
APOLINÁRIO É que o sujeito tomou três testemunhas, e diz que me vai processar por crime de injúrias verbais.
 
CARDOSO Mas, enfim, faz favor de me dizer para que voltou cá?
 
APOLINÁRIO Vim prevenir a vossa senhoria de que...
 
CARDOSO Vá prevenir ao diabo que o carregue!
 
APOLINÁRIO (levantando-se)  Senhor doutor.
 
CARDOSO (gritando)  Já lhe disse que não sou doutor!
 
APOLINÁRIO (imitando-o)  Isso é modéstia de vossa senhoria!
 
CARDOSO Saia! Ponha-se ao fresco! Supõe o senhor que sirvo de joguete?
 
APOLINÁRIO Mas vossa senhoria...
 
CARDOSO Saia!
 
APOLINÁRIO É que...
 
AMÁLIA Oh! senhor, já é a terceira vez que se lhe diz — saia.
 
APOLINÁRIO Minha senhora, eu... (Tornando a sentar-se, com todo o sossego) Com licença...
 
AMÁLIA Oh! isto é demais!
 
CARDOSO Então, não ouve!
 
APOLINÁRIO Quero justificar-me!
 
CARDOSO (ameaçador)  Cuidado, Senhor Paraguaçu!
 
APOLINÁRIO Bem, vossa senhoria está em sua casa: manda. (Levantando-se e cumprimentando) às ordens de vossa senhoria.
 
CARDOSO Viva! Há mais tempo! (Passeia agitado)
 
APOLINÁRIO Minha senhora...
 
AMÁLIA Passe bem. (Saída falsa de Apolinário) Que inferno! que inferno! E metam-se!
 
APOLINÁRIO (voltando)  Acredite senhor doutor, que eu não queria de forma alguma...
 
CARDOSO (desesperado) 
 
Ah! ele é isso? (Agarra uma cadeira e levanta-a, correndo para Apolinário)
 
AMÁLIA (muito aflita)  Ah! 
 
(Suspende o braço de Cardoso. Ficam todos numa posição dramática)
 
APOLINÁRIO (com todo o sangue frio)  Tableau. (Desaparece)
 
  CENA III Cardoso e Amália.
 
CARDOSO Vês, Sinhá, vês como um homem se deita a perder?
 
AMÁLIA Sim, sim, mas vamos, anda daí!
 
CARDOSO (caindo na cadeira que tinha nas mãos)  E que dor de cabeça fez-me este bruto!... E metam-se.
 
AMÁLIA Hein?
 
CARDOSO E metam-se a servir o país!
 
AMÁLIA Espera... vou buscar a garrafinha de água-flórida. (Sai e volta com a garrafinha)
 
CARDOSO Depressa... depressa, Sinhá! (Amália esfrega-lhe as frontes com águaflórida) Bem... basta... está pronto... Aí! que ferroadas! deita a garrafinha em cima a mesa e vamos, vamos! (Amália deita a garrafinha sobre a mesa e vai dar o braço a seu marido)
 
AMÁLIA Vamos! (Saem e voltam) Esqueci-me do leque. (Entra à direita baixa)
 
CARDOSO (falando para dentro)  Que demora, Sinhá, que demora! Ainda há de vir alguém, verás! (Passeia) Então não achas esse leque! Aí! minha cabeça! E metam-se! (Quebra-se alguma coisa dentro) O que foi isso?! O que foi isso?! (Corre também para a direita baixa)
 
AMÁLIA (dentro)  O meu frasco de água da Colônia!
 
CARDOSO (dentro)  Que pena!
 
AMÁLIA (dentro)  Ah! cá está o leque! 
 
(Voltam à cena, de braço dado e dirigem-se para a porta)
 
CARDOSO Já estou suando. (Procura nos bolsos) Não tenho lenço.
 
AMÁLIA Oh que maçada! Quanto mais pressa, mais vagar. (Sai correndo pela direita baixa)
 
CARDOSO E metam-se, hein! E metam-se a servir o país!
 
AMÁLIA (voltando com um par de meias na mão)  Toma, toma... Apre! (Dá-lho)
 
CARDOSO Isto é um par de meias, Sinhá! Estás a meter os pés pelas mãos! (Restitui-lho)
 
AMÁLIA Como está esta cabeça, meu Deus! (Sai e volta com um lenço) Toma... Vamos... uf!
 
CARDOSO Vamos! 
 
(Encaminham-se para a porta. Batem palmas)
 
AMBOS  Ah!
 
CARDOSO (fora de si)  Não estou em casa!
 
JERÔNIMO (aparecendo, de chapéu na cabeça)  Licença para um...
 
  CENA IV Os mesmos e Jerônimo.
 
CARDOSO Então é assim que se entra em casa alheia?
 
JERÔNIMO (sombrio)  Assim como? A casa da autoridade é uma repartição pública. (Deita no chão a cinza de um cachimbo; e escarra na parede)
 
CARDOSO E que tal?
 
AMÁLIA Vê o que ele quer, Cardoso?
 
JERÔNIMO  Venho preveni-lo de que é falso o que lhe veio hoje dizer um tal Paraguaçu, acerca de um furto de galinhas. É provável que ele lhe dissesse que eu, Jerônimo Linhares, vulgo Barriga-cheia, sou o autor desse furto, como andou por aí dizendo a quem quis ouvi-lo. É falso! (Cospe outra vez na parede)
 
AMÁLIA (empurrando um escarrador com o pé)  Faz favor de não cuspir no chão... Aqui tem o escarrador... 
 
(Jerônimo nem olha para Amália)
 
CARDOSO Era só isso? Estou ciente.
 
JERÔNIMO  Não, senhor; por isto só não vinha eu cá, ora viva! Venho queixarme do queixoso por crime de injúrias verbais. Chamou-me de ladrão, e se quiser o mais, mande aquela mulher para dentro. (Cospe outra vez na parede)
 
CARDOSO Pois apresente a queixa e as testemunhas.
 
JERÔNIMO  A queixa aqui está. (Apresenta um papel sujo, que Cardoso pega com repugnância. Vai à porta do fundo) Ò compadre! Ó seu Manuel Maria! Ó seu Vitorino? podem entrar... Nada de cerimônias!
 
CARDOSO (a Amália)  O tratante dispõe desta casa como se fosse sua!
 
 
CENA V Os mesmos, Manuel Maria, depois o compadre, depois Vitorino.
 
MANUEL MARIA (entrando)  Aqui estou eu!
 
COMPADRE (entrando)  E eu...
 
VITORINO (entrando)  E eu...
 
AMÁLIA Cardoso, dize-lhes que venham em outro dia... (À parte) Como cheiram a cachaça!
 
CARDOSO Meus senhores, tenham a bondade de voltar amanhã.
 
JERÔNIMO  Aí vem o maldito sistema da demora e do papelório.
 
CARDOSO Cala-te daí, insolente, que não tens autoridade para fazer considerações neste lugar... Apareçam terça-feira ou mesmo amanhã! Mas terça-feira é melhor, porque é o dia da audiência. Não posso estar agora com isto... Estamos prontos para sair há muito tempo!
 
AMÁLIA Há três horas!
 
CARDOSO (consultando o relógio)  Há três horas e três minutos!
 
JERÔNIMO (cuspindo na parede)  Então, podiam ter dito logo! Escusava a gente de estar aqui à espera! É isto sempre! A autoridade vai para a pândega, e o povo que sofra!
 
CARDOSO Insolente! Espera que te ensino! (Agarra numa cadeira que está perto do toucador)
 
AMÁLIA Cardoso! O que vais fazer?!...
 
JERÔNIMO  Ah! Ele é isso? 
 
(Tira uma faca e deita a correr atrás de Cardoso. Amália fecha-se no quarto. As três testemunhas correm atrás de Jerônimo, para retê-lo. Cardoso apita)
 
MANUEL MARIA  O que é isto, seu Jerônimo?!
 
COMPADRE  Compadre, tenha mão!
 
VITORINO  Não se deite a perder!
 
(Cardoso continua a apitar. Confusão)
 
AMÁLIA (grita de dentro)  Aqui del-rei!
 
 
CENA VI Os mesmos e dois soldados.
 
SOLDADOS  O que é isto? o que é isto?...(Correm todos em redor da cena)
 
CARDOSO Prendam-no! prendam-no! (Jerônimo é afinal preso) Levem-no! 
 
(Os soldados levam o preso. Saem também as testemunhas)
 
 
CENA VII Cardoso e depois Amália.
 
CARDOSO (caindo extenuado em uma cadeira)  Uf!
 
AMÁLIA (entrando)  Feriu-te o maldito, feriu-te?
 
CARDOSO Creio que não. (Apalpando-se) Não feriu, não, Sinhá! Se não fossem as ordenanças que estavam na porta, a estas horas estavas viúva!
 
AMÁLIA Credo! Viúva!
 
CARDOSO Maldita subdelegacia! Maldita a hora em que aceitei semelhante cargo!
 
AMÁLIA Como estás suando! Esta camisa é incapaz de aparecer no batizado...
 
CARDOSO É verdade! O batizado! Vou mudar de camisa...
 
AMÁLIA Mas isso depressa... depressa! (Saída falsa de Cardoso) Ó Senhor Deus! Isto contado lá se acredita! É bem feito, senhor meu marido, é bem feito! Quem não quiser ser lobo, não lhe vista a pele. (Rolo na rua. Apitos. Gritos. Pancadaria. Amália vai à janela) Que vejo! Uma malta de capoeiras! Cardoso! Cardoso! Não tardam a entrar...
 
CARDOSO (entra em mangas de camisa e com o fitão de subdelegado)  O que é isto? (Espirra) Atchim! constipei-me... Atchim! O que é isto? Atchim! (Sai a correr pelo fundo)
 
 
CENA VIII Amália, depois Perdigão.
 
AMÁLIA Meu Deus! Hoje parece ser o dia de São Bartolomeu! Se não anda o diabo solto na cidade, ao menos nesta freguesia...
 
PERDIGÃO (entra apressado pelo fundo, vestido para a cerimônia)  Ó compadre! Ó comadre!
 
AMÁLIA Mais uma parte!
 
PERDIGÃO  Deixe-se de partes!
 
AMÁLIA Meu marido não está... (Reparando) Ah! é o compadre!
 
PERDIGÃO  Estamos até estas horas à espera do padrinho e nada!
 
AMÁLIA Queixe-se da maldita subdelegacia, compadre! Estamos vestidos há três horas... (Consultando o relógio) Há três horas e um quarto...
 
PERDIGÃO  Ora! Para que foi o compadre buscar sarna para se coçar...
 
AMÁLIA O compadre não imagina! Quantas vezes, alta noite, está ele sossegado a dormir, quando, de repente, é despertado pelas malditas partes...
 
PERDIGÃO  Por força!
 
AMÁLIA (indo à janela)  Já está aplacado o rolo... (Voltando) Hoje quase o matam!
 
PERDIGÃO (dando um salto)  A quem?
 
AMÁLIA Ao Cardoso.
 
PERDIGÃO  Ah! Ele descia a escada com tanta impetuosidade! Ia em mangas de camisa e de fitão... Olhem que figura! Espirrava, que era um Deus nos acuda! "Viva!" lhe disse eu; ele, porém, não me conheceu, apesar de responder: "Dominus tecum", em vez de: "Obrigado!"
 
 
CENA IX Os mesmos e Cardoso.
 
CARDOSO (entra e cai espirrando em uma cadeira)  Atchim!
 
PERDIGÃO  Viva!
 
CARDOSO Dominus te... Quero dizer: Obrigado... Atchim! Ah! É o senhor, compadre? Desculpe.
 
PERDIGÃO  Já sei de tudo... Está mais que desculpado... Mas não perca tempo!
 
AMÁLIA Sim, não percamos tempo!
 
CARDOSO Vamos! (Ergue-se e deita o chapéu) — Estou pronto!
 
PERDIGÃO  Em mangas de camisa, compadre? 
 
CARDOSO É verdade! (Corre ao quarto e volta vestindo a casaca)
 
AMÁLIA De fitão, Cardoso?
 
CARDOSO É verdade! (Despedaça o fitão zangado) Atchim!
 
PERDIGÃO  Já leu o que traz hoje o Jornal a seu respeito?
 
CARDOSO Já: descompostura bravia! É o pago que dão a tantos sacrifícios.
 
PERDIGÃO  Diga antes: é o castigo que infligem ao erro de aceitá-los.
 
AMÁLIA (impaciente)  Vamos embora! 
 
(Vão todos saindo)
 
 
CENA X Os mesmos e um soldado.
 
SOLDADO (a Cardoso)  Trouxeram este ofício e esta carta para vossa senhoria. (Entrega a carta e o ofício e sai)
 
CARDOSO De cá. (Abrindo a carta) Com licença. (Lê) É um bilhete em que o oficial do gabinete do ministro me participa haver sido outro nomeado para a vaga do Cantidiano... E metam-se!
 
PERDIGÃO  Hein?
 
CARDOSO E metam-se a servir o país! (Abrindo o ofício) Com licença! (Depois de ler o ofício) Sabem o que é? Minha demissão.
 
PERDIGÃO e AMÁLIA Demissão?
 
CARDOSO À vista do que a meu respeito tem aparecido na imprensa periódica!
 
PERDIGÃO  Não falemos mais nisso! Vamos embora.
 
CARDOSO Poupou-me o trabalho de pedi-la.
 
AMÁLIA Quem não quiser ser lobo...
 
PERDIGÃO  Mas o compadre acaba de despir a pele do lobo. (Apanhando o fitão) Ei-la!
 
CARDOSO Atchim! 
 
(Saem juntos os três e cai o pano)

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

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