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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PELE DO TAMBOR - P.2 / Arturo Pérez Reverte
A PELE DO TAMBOR - P.2 / Arturo Pérez Reverte

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

UMA DAMA ANDALUZA

- Não sentes o cheiro dos jasmins?

- Quais, se não há jasmins?

- Os que aqui havia antigamente.

         (António Burgos, Sevtlla)

 

Se existe sangue-azul, o de Maria Cruz Eugenia Bruner de Lebrija y Álvarez de Córdoba, duquesa do Nuevo Extremo e doze vezes grande de Espanha, era azul-marinho. A mãe de Macarena Bruner tivera antepassados no cerco de Granada e na conquista da América e apenas duas casas da rança aristocracia espanhola, Alba e Medina-Sidónia, a ultrapassavam em tradição. Havia muito, porém, que os seus títulos estavam destituídos de conteúdo.

 

 

 

 

O tempo e a história tinham engolido as terras e o património, e a extensa relação que cruzava em todas as direcções a sua árvore genealógica e os quartéis dos seus escudos de armas, era uma fiada de conchas vazias como as que branqueiam atiradas pelo mar às praias. Faltavam à velha senhora que tomava goles de coca-cola diante de Lorenzo Quart no pátio da Casa do Postigo, um mês e sete dias para perfazer os setenta anos. Os seus antepassados haviam viajado de Sevilha a Cádis sem sair das suas terras, o rei Afonso XIII e a rainha Victoria Eugenia tinham-na segurado sobre a pia baptismal e, apesar do seu desdém pela antiga aristocracia espanhola, o próprio general Franco não pudera deixar de lhe beijar a mão naquele mesmo pátio andaluz depois da guerra civil, inclinado, muito contra a sua vontade, sobre o mosaico romano que ocupava o solo desde que fora trazido directamente, quatro séculos atrás, das ruínas de Itálica. Mas o tempo corre, implacável, rezava a lenda do relógio inglês de parede que dava as horas e os quartos na galeria de colunas e arcos mudéjares, decorada com tapeçarias das Alpujarras e contadores do século XVI que a amizade familiar do banqueiro Octavio Machuca resgatara de um triste destino nos leilões sevilhanos. Do antigo esplendor restavam o pátio pleno de aromas e vasos com gerânios, aspidistras e fetos, o portão plateresco, o jardim, a sala de jantar de Verão com bustos romanos de mármore, alguns móveis e quadros nas paredes. E, no meio de tudo isto, com uma criada, um jardineiro e uma cozinheira como única assistência numa casa onde crescera entre vinte pessoas ao serviço, com o ar ausente de uma sombra tranquila, inclinada sobre a sua memória, vivia a velha dama de cabelo branco e colar de pérolas ao pescoço. A mesma que oferecia mais café a Quart, ao mesmo tempo que se abanava com um estragado leque pintado, com dedicatória pessoal, por Júlio Romero de Torres.

Quart serviu-se um pouco mais na chávena, ligeiramente fendida, da Companhia das índias. Estava em camisa, pois a duquesa insistira tanto para que despisse o casaco por causa do calor que não tivera outro remédio senão obedecer, pendurando-o nas costas da cadeira. Uma camisa de manga curta, negra, de colarinho impecável, que lhe deixava a descoberto os antebraços bronzeados e fortes. O seu cabelo grisalho muito curto e o aspecto desportivo e asseado davam-lhe uma aparência de missionário, saudável, com boa figura, em contraste com o pequeno e duro padre Ferro, que ocupava a cadeira contígua, enterrado na sua sotaina coçada e cheia de manchas. Sobre a mesinha baixa posta no pátio, junto da fonte central, havia café, chocolate e uma insólita garrafa de coca-cola familiar. Como acabavam de ouvi-la dizer, a velha duquesa não suportava as latas. O sabor era diferente, metálico. Até os picos picavam de maneira diferente.

- Mais chocolate, padre Ferro?

Assentia brevemente o pároco sem olhar para Quart, aproximando a chávena para que Macarena Bruner a enchesse de novo, sob o olhar aprovador da mãe. A duquesa parecia satisfeita com a presença de dois sacerdotes em casa. Havia anos que o padre Ferro comparecia pontualmente às cinco da tarde, salvo às quartas-feiras, para rezar o terço com a velha senhora e depois ser convidado para merendar, no pátio, quando fazia bom tempo, ou na sala de jantar de Verão, nos dias de chuva.

- Que sorte viver em Roma - comentava a duquesa, entre um abrir e fechar do leque. - Tão perto de Sua Santidade.

Era extraordinariamente esperta e viva para a idade. Tinha o cabelo branco com suaves reflexos azulados e manchas de velhice nas mãos, nos braços e na testa. Delgada, miúda, de feições angulosas, a sua pele estava tão enrugada como a de uma passa de uva. Uma fina linha de carmim definia os seus lábios quase inexistentes, e pendiam-lhe das orelhas brincos com pequenas pérolas, idênticas às do colar. Os olhos eram escuros como os da filha, mas o tempo tornara-os húmidos, rodeados por círculos avermelhados. Continuavam, porém, resolutos e inteligentes, com um brilho que se tornava frequentemente opaco; como se recordações, pensamentos, velhas sensações, passassem diante deles, obscurecendo-os à maneira de uma nuvem que segue o seu caminho. Tinha sido loira na infância e durante a juventude - Quart pôde comprová-lo num quadro de Zuloaga pendurado na saleta junto do vestíbulo -, muito diferente da filha em aspecto, salvo a parecença dos olhos. O cabelo negro de Macarena vinha, sem dúvida, do marido, cavalheiro de boa figura numa fotografia emoldurada junto do Zuloaga. Moreno, de alvo sorriso, o duque consorte tinha luzido um fino bigode, penteava-se para trás com risca muito alta e usava um alfinete de ouro segurando, sob a gravata, as pontas do colarinho da camisa. Uma pessoa, pensou Quart, metia no computador todos estes dados seguidos das palavras cavalheiro andaluz e saía aquela fotografia. A esta altura, conhecia já bastante bem a história familiar de Macarena Bruner para saber que Rafael Guardiola Fernández-Garvey fora o homem mais atraente de Sevilha; e também cosmopolita, elegante, capaz de delapidar em quinze anos de casamento os restos do já minguado património da mulher. Se Cruz Bruner era uma consequência da história, o duque consorte fora-o dos piores vícios da aristocracia sevilhana. Todos os negócios empreendidos terminavam em consistentes falências e só a amizade do banqueiro Octavio Machuca, que sempre acudia, leal, para o safar, evitara que duque consorte do Nuevo Extremo fosse bater com os ossos na cadeia. Acabara sem um tostão, arruinado por um último negócio de criação de cavalos, borgas flamengas até de madrugada e uma saúde destroçada por litros de manzanilla, quarenta cigarros e três charutos por dia. Pedindo aos gritos a confissão, como nos filmes antigos e nos folhetins românticos. Enterraram-no, confessado e sacramentado, com o uniforme de cavaleiro da Real Maestranza de Sevilha, penacho e sabre incluídos, e ao enterro acudira, de luto e com longas salvas, toda a boa sociedade local. Metade - especificara um malévolo cronista de sociedade - consistia em maridos cornudos, desejosos de se assegurarem de que, efectivamente, descansava em paz. A outra metade eram credores.

- Uma vez fui recebida em audiência por Sua Santidade - disse a Quart a velha duquesa. - E Macarena também, quando casou.

Inclinava um pouco a cabeça, evocadora, contemplando o estampado do vestido escuro, como se, entre as florinhas vermelhas e amarelas, houvesse um rasto de tempos perdidos. Entre a sua visita a Roma e a da sua filha distavam mais de um terço de século e vários papas; mas referia-se a Sua Santidade como se fosse sempre o mesmo e Quart disse para consigo que, de certo modo, era essa a explicação lógica. Quando se chega aos setenta anos, algumas coisas mudam demasiado rapidamente ou já não mudam de todo. O padre Ferro continuava a contemplar, carrancudo, o fundo da sua chávena de chocolate e Macarena Bruner observava Quart. A filha da duquesa de Nuevo Extremo vestia jeans e camisa azul aos quadrados, com o cabelo preso num rabo-de-cavalo e sem pintura. Movia-se lentamente, tranquila e segura de si, com a xícara de chocolate do pároco ou a cafeteira nas mãos, atenta à mãe e aos convidados, sobretudo a Quart. Parecia divertida com a situação. Cruz Bruner bebeu um golinho de coca-cola e sorriu, afável, com o copo e o leque no regaço:

- Como achou a nossa igreja, padre?

Tinha uma voz firme, apesar da idade. Insolitamente firme e serena. Fitava-o agora, à espera de resposta. Sentindo também os olhos de Macarena Bruner, Quart esboçou um sorriso, cortês.

- Adorável - disse, esperando que aquilo não o comprometesse demasiado num ou noutro sentido. Sentia, de soslaio, a presença obscura, silenciosa, do padre Ferro. Estavam em terreno neutro, depois de trocarem algumas fórmulas convencionais na presença da duquesa e da filha. O resto do tempo, procuravam não dirigir a palavra um ao outro, mas Quart tinha a intuição de que isso era apenas o prólogo de outra coisa. De maneira que se reservava para mais tarde. Ninguém convida para tomar café um caçador de cabeças e a sua suposta vítima sem ter alguma em mente.

- Não crê que seria uma lástima perdê-la? - insistiu a duquesa.

Quart abanava a cabeça, conciliador:

- Espero que isso nunca aconteça.

- Julgávamos - disse, com intenção, Macarena Bruner

- que viera a Sevilha nesse intuito.

O colar de marfim destacava-se entre o colarinho aberto da camisa, e Quart não pôde deixar de perguntar a si mesmo se, nessa tarde, também esconderia o isqueiro de plástico na alça do soutien. De boa vontade teria pago dois meses de Purgatório para ver a expressão do padre Ferro enquanto ela acendia o cigarro.

- Enganam-se - disse. - Estou aqui porque os meus superiores querem ter uma ideia exacta da situação - bebeu outro gole de café e pousou cuidadosamente a chávena no pires, sobre a mesa embutida. - Ninguém pretende desalojar o padre Ferro da sua paróquia.

O interpelado ergueu-se na sua cadeira.

- Ninguém? - sob o cabelo branco mal cortado, o seu rosto coberto de cicatrizes erguia-se até às galerias do primeiro andar, como se, à laia de resposta, alguém fosse assomar lá em cima.

- Ocorrem-me vários nomes e entidades de imediato. O arcebispo, por exemplo. O Banco Cartujano. O genro da senhora duquesa... - os olhos escuros e receosos cravaram-se em Quart. - E não venha dizer-me que a defesa de uma igreja e de um cura tem andado a tirar o sono a Roma.

"Conheço-vos de sobra", diziam aqueles olhos. "Por isso não me venhas com histórias." Sentindo-se observado por Macarena Bruner, Quart fez um gesto conciliador:

- Qualquer igreja, qualquer cura interessam a Roma.

- Não me faça rir - disse o padre Ferro. E riu-se sem vontade. Cruz Bruner tocou-lhe afectuosamente no braço com o leque.

- Estou certa de que o padre Quart não pretende fazê-lo rir, Don Príamo - fitava Quart, pedindo-lhe que confirmasse as suas palavras. - Parece um sacerdote muito sério, e creio que a sua missão é importante. Posto que se trata de se informar, devíamos cooperar com ele - dirigiu um rápido olhar à filha, antes de se abanar um pouco, com ar fatigado. - A verdade nunca fez mal a ninguém.

O pároco inclinava a cabeça teimosa, ao mesmo tempo respeitoso e rude.

- Oxalá eu partilhasse a sua inocência, minha senhora - bebeu um pouco de chocolate e uma gota ficou suspensa nos reflexos brancos e cinzentos, mal escanhoados, da barba. Enxugou-a com um lenço enorme e ensebado, que tirou do bolso da sotaina. - Mas receio que na Igreja, como no resto do mundo, quase todas as verdades sejam mentira.

- Não diga isso - escandalizava-se a duquesa, meio a sério, meio a brincar. - Olhe que se dana.

Fechava e abria o leque, abanando-o diante dos olhos. E então, pela primeira vez, Lorenzo Quart viu o padre Ferro sorrir de verdade. Uma careta bonacheirona e céptica, semelhante à de um urso adulto incomodado com os ursinhos. Um gesto que suavizava o seu rosto talhado a buril, humanizando-o de modo inesperado: o da fotografia polaroid que tinha no seu quarto de hotel, tirada naquele mesmo pátio. Por associação, Quart recordou-se de monsenhor Spada, o seu chefe do IOE. Arcebispo e pároco sorriam do mesmo modo, à maneira de gladiadores veteranos para quem a direcção do polegar, para cima ou para baixo, fosse o menos. Perguntou a si mesmo se ele alguma vez sorriria assim. Macarena Bruner fitava-o ainda, e também ela parecia possuir o segredo daquele sorriso.

A duquesa observou a filha, depois Quart.

- Escute, padre - disse, após uma curta reflexão. - Esta igreja é importante para a minha família... Não só pelo que significa mas também porque, como diz Don Príamo, uma igreja que se destrói é um pedaço de céu que desaparece. E não me interessa que o lugar para onde quero ir se reduza em extensão - levou à boca o copo de coca-cola, semicerrando os olhos de prazer quando as bolhinhas lhe fizeram cócegas no nariz. - Confio no nosso pároco para que me faça chegar dentro de um prazo razoável.

O padre Ferro assoava ruidosamente o nariz ao lenço.

- A senhora irá para ali - assoou-se de novo. - Tem a minha palavra.

Meteu o lenço no bolso, fitando Quart como se o desafiasse a desmentir a sua faculdade para fazer aquele tipo de promessas. Cruz Bruner aplaudia com o leque contra a palma da mão, encantada.

- Vê? - disse para Quart. - É a vantagem de convidar para a merenda um sacerdote seis dias por semana... Conseguem-se certos privilégios - os olhos húmidos fitavam o padre Ferro, ao mesmo tempo graves e trocistas. - Certas seguranças.

O pároco remexeu-se na cadeira, incomodado com o silêncio de Quart.

- Chegaria na mesma sem mim - disse, carrancudo.

- Talvez sim ou talvez não. Mas tenho a certeza de que, se não me facultarem a entrada, o senhor saberá armar um belo escândalo lá em cima - a velha senhora lançou um olhar ao terço de azeviche que estava em cima da mesinha coberta de revistas e jornais, junto de um livro de orações e suspirou, esperançada. - Na minha idade, é tranquilizador.

Do jardim próximo, do outro lado da cerca aberta sobre um dos arcos da galeria, vinha o canto dos melros. Uma melodia suave, eivada de tonalidades doces, terminando sempre com dois trinados agudos. Maio era o mês do cio, explicou a duquesa, que se voltara de lado para escutar. Os melros costumavam pousar na cerca que dava para um convento de clausura e muitas vezes soavam juntos o seu canto e o das irmãs. O seu pai, o duque, avô de Macarena, tinha passado os últimos anos da sua vida a gravar o canto daquelas aves. As fitas e discos andavam pela casa, algures. Por vezes, entre os pássaros, podia-se ouvir os passos do avô no saibro do jardim.

- O meu pai - acrescentou a velha duquesa - era um homem muito à maneira antiga. Um grande senhor. Não teria gostado de ver como anda o mundo que conheceu - pela maneira como inclinava a cabeça ao dizê-lo, era evidente que ela também não gostava. - Há um livro publicado antes da guerra civil, Os Lati-ifúndtos em Espanha, que cita a minha família como sendo uma das lais ricas da Andaluzia. Mas já então era só no papel. O dinheiro ludou de mãos; as grandes propriedades são dos bancos e dos financeiros, esses que têm herdades com vedações electrificadas e Iveículos todo-o-terreno de luxo, e compram todas as adegas de Xerez. Gente esperta que enriqueceu em dois dias, como o meu genro pretende fazer.

- Mamã...

A duquesa ergueu a mão na direcção da filha.

- Deixa-me dizer o que me apetece. Se bem que Don Príamo l nunca tenha gostado de Pencho, eu gostei. E o facto de estares

separada dele não altera as coisas - abanou-se de novo, com um vigor insuspeito numa anciã da sua idade. - Mas reconheço que, nisto da igreja, não se tem portado como um cavalheiro. Macarena Bruner encolheu os ombros.

- É coisa que Pencho nunca foi - tinha tirado um torrão do açucareiro e chupava-o, distraída. Quart esteve a observá-la até que, de súbito, ela ergueu os olhos para ele, com o açúcar a desfazer-se na boca. - Nem pretende fazer passar-se por tal.

- Não, claro - a ironia assobiou de repente, inesperada, na boca da velha senhora. - O teu pai, sim, era um cavalheiro. Um cavalheiro andaluz.

Quedou-se pensativa, tocando com a ponta dos dedos o friso de azulejos que rodeava a fonte do pátio. Aqueles azulejos, explicou inesperadamente a Quart, sem que viesse a propósito, eram do século XVI e estavam dispostos segundo as mais ortodoxas leis da heráldica: não encontraria em toda a casa uma única cor junto de outra cor, nem metal junto de metal. Nem vermelho e verde, ou prata e ouro, não andavam emparelhados, mas sim frente a frente.

- Um cavalheiro andaluz - repetiu, ao cabo de um instante de silêncio. E a linha de carmim nos seus lábios murchos e quase inexistentes agitou-se um pouco, como um sorriso amargo que não tivesse chegado nunca a concretizar-se em público.

Macarena Bruner movia a cabeça como se o anterior silêncio se tivesse destinado a ela:

- Para Pencho, a igreja nada significa - parecia dirigir-se mais a Quart do que à sua mãe. - Traduz-se em metros quadrados de solo urbanizável. Não podemos exigir-lhe que partilhe os nossos pontos de vista.

Interveio, de novo, a duquesa:

- É isso mesmo - afirmou. - Alguém da tua classe, talvez. A filha não gostou. Fitava-a agora, muito séria:

- Tu casaste com alguém da tua classe.

- Tens razão - a anciã voltava a esboçar um sorriso triste.

- Pelo menos, homem por homem, o teu marido é-o da cabeça aos pés. Valente, com essa insolência que advém de contar apenas com as suas próprias forças... - dirigiu ao pároco um rápido olhar.

- Quer gostemos ou não do que faça com a nossa igreja.

- Ainda não o fez - opôs Macarena. - E não o fará, se eu puder evitá-lo.

Cruz Bruner franziu um pouco mais os lábios:

- Pois estás a fazê-lo pagar bem caro, minha filha. Entravam num terreno onde a velha dama parecia sentir-se

incomodada e a forma como se dirigia à filha revelava uma discreta censura. Esta contemplou o vazio sobre o ombro de Quart, satisfeito por não ser o objecto ausente daquele olhar.

- E ainda não pagou tudo - murmurou Macarena.

- Seja como for - opinou a mãe - será sempre o teu marido, quer vivas com ele ou não. Não é verdade, Don Príamo?... - de novo senhores de si, os olhos húmidos e trocistas pousaram em Quart. - O padre não gosta do meu genro, mas defende o carácter indissolúvel do matrimónio. De qualquer matrimónio.

- E verdade - o pároco tinha deixado cair pingos de chocolate na sotaina e sacudia-os com a mão, irado. - O que um sacerdote une na terra nem Deus o pode desunir.

Que difícil, pensava Quart, traçar a fronteira objectiva entre orgulho e virtude. Entre verdade e erro. Decidido a manter-se à margem, observava sob os sapatos o mosaico romano trazido de Itálica pelos antepassados de Macarena Bruner. Um barco com peixes à volta e algo que parecia uma ilha com árvores e uma mulher à beira-mar com um cântaro, ou uma ânfora. Havia também um cão com a legenda Cave canem e uma mulher e um homem tocando-se. Algumas pedrinhas incrustadas estavam soltas e arranjou-as com o pé.

- E que diz de tudo isso o banqueiro Octavio Machuca? - perguntou e imediatamente viu adoçar-se a expressão da duquesa.

- Octavio é um bom e velho amigo. O melhor que sempre tive.

- Está apaixonado pela duquesa - disse Macarena.

- Não digas disparates.

A velha senhora abanava-se, fitando a filha com ar desaprovador. Macarena insistiu, desatando a rir e a duquesa viu-se forçada a admitir que Octavio Machuca lhe fizera um pouco a corte a princípio, recém-estabelecido em Sevilha, quando era solteira. Mas semelhante casamento era inimaginável na época. Depois ela casara-se. O banqueiro nunca o fizera, mas também nunca se insinuara em vida de Rafael Guardiola, que era seu amigo. Disse isto como se, de certa forma, o lamentasse, sem que Quart pudesse estabelecer se se referia a uma coisa ou outra.

- Pediu-te para casares com ele - observou Macarena.

- Isso foi mais tarde, já viúva. Mas pareceu-me melhor deixar as coisas como estavam. Agora passeamos às quartas-feiras no parque. Somos velhos e bons amigos.

- De que falam? - interessou-se Quart, sorrindo para suavizar a indiscrição.

- De nada - disse a filha. - Já os espiei e Hmitam-se a namorar em silêncio.

- Não faça caso. Apoio-me no seu braço e conversamos acerca das nossas coisas. Do tempo que passou. De quando ele era um jovem aventureiro, antes de assentar.

- Don Octavio recita-lhe El tren expreso, de Campoamor.

- Como sabes tu disso?

- Contou-me ele.

Cruz Bruner ergueu-se, tocando no colar de pérolas, com um resto de antiga garridice:

- Pois sim, é verdade. Sabe que gosto muito. "A minha carta, que é feliz porque vai ver-vos l vos dará contas da minha lembrança..." - os versos ficaram suspensos num sorriso melancólico. – Também falamos de Macarena. Gosta dela como de uma filha e foi seu padrinho de casamento... Olhe para a cara do padre Ferro. Também não gosta de Octavio.

O pároco enrugava o rosto, despeitado. Dir-se-ia que aqueles passeios lhe inspiravam ciúmes. Quarta-feira era o dia em que a duquesa do Nuevo Extremo rezava o terço sem ele e tão-pouco o convidava para merendar.

- Não gosto nem deixo de gostar, minha senhora - explicou, incomodado. - Mas parece-me censurável a posição de Don Octavio Machuca no problema de Nossa Senhora das Lágrimas. Pencho Gavira é um seu subordinado e ele poderia proibi-lo de levar por diante este sacrilégio - o desagrado endurecia ainda mais o seu rosto coberto de cicatrizes. - Nesse aspecto serviu mal as duas.

- Octavio tem um sentido da vida extraordinariamente prático

- afirmou Cruz Bruner. - Não quer saber da igreja. Respeita os nossos laços sentimentais, mas também crê que o meu genro tomou a decisão acertada - quedou-se a contemplar os escudos nobiliárquicos lavrados nos espaços dos arcos do pátio. - O futuro de Macarena, dizia ele, não era flutuar sobre os restos do naufrágio, mas subir a um iate novo e flamejante. E quem o poderia pagar era o meu genro.

- Em todo o caso - interveio a filha - há que dizer que Don Octavio não toma partido nem contra nem a favor. Mantém-se neutro.

Don Príamo ergueu um dedo apocalíptico:

- Não conheço neutros quando está em jogo a casa de Deus.

- Por favor, padre - Macarena sorria-lhe com doçura. - Tenha calma. E tome mais um pouco de chocolate.

O pároco recusou aquela terceira taça com ar digno, para ficar a olhar, enfadado, a biqueira dos seus grossos sapatorros por engraxar. "Já sei quem me faz lembrar" disse Quart para consigo. "Jock, o terrier escocês brigão e rabugento de A Dama e o Vagabundo, mas muito mais atravessado." Olhou para a velha duquesa:

- Referiu-se há pouco ao seu pai, o duque... Era irmão de Carlota Bruner?

A velha senhora pareceu surpreendida.

- Conhece a história? - brincou um instante com as varetas do leque; depois olhou para a filha e, por fim, de novo para Quart.

- Carlota era minha tia: irmã mais velha do meu pai. É um triste assunto de família, como talvez saiba... Macarena era obcecada por [essa história desde pequena. Passava o dia junto do baú, lendo as [desditosas cartas que nunca chegaram ao destino, provando velhos [vestidos à janela onde se diz que ela assomava.

Pairava no ambiente algo de novo. O padre Ferro desviou os [olhos, incomodado, como se estivesse longe de se sentir à vontade Iriaquele assunto. Quanto a Macarena, parecia preocupada.

- O padre Quart - disse - tem um dos postais de Carlota.

- É impossível - objectou a duquesa. - Estão dentro do baú, no pombal.

- Pois tem-no. Um onde se vê a igreja. Alguém o pôs no seu quarto de hotel.

- Que disparate. Quem iria fazer uma coisa dessas? - a velha dama fitou Quart brevemente, com receio. - Devolveu-to? -

perguntou à filha. Esta negou com a cabeça:

- Permiti-lhe que o conserve. De momento. A duquesa parecia perplexa:

- Não consigo entender. Ao pombal só tu sobes e os empregados.

- Sim - Macarena fitava o pároco. - E também Don Príamo. O padre Ferro quase saltou da cadeira.

- Por amor de Deus, minha senhora - o seu tom era ofendido, a meio caminho entre a indignação e o sobressalto. - Não estará a insinuar que eu...

- Estava a brincar, padre - disse Macarena, com uma expressão tão indefinível que Quart perguntou a si próprio se realmente

tinha estado a brincar, ou não. - Mas o certo é que o postal chegou ao Hotel Dona Maria. E isso é um mistério.

- Que é isso do pombal? - perguntou Quart.

- Não se vê daqui, mas do jardim - explicou Cruz Bruner. - É o nome que damos à torre da casa, porque noutros tempos

houve aí um pombal. O meu avô Luís, pai de Carlota, gostava muito de astronomia e instalou lá um observatório. Com o tempo, tornou-se o quarto onde a minha pobre tia passou, reclusa, os (últimos anos... Agora é Don Príamo quem ali trabalha.

Quart fitou o pároco sem dissimular a sua surpresa. Percebia

agora os livros encontrados na casa dele.

- Não sabia que se dedicava à astronomia.

- Dedico-me - o pároco parecia maçado. - E não há motivo para que saiba, porque não é assunto que lhe diga respeito nem a si nem a Roma. A senhora duquesa tem a bondade de me permitir que utilize o observatório.

- É verdade - confirmou Cruz Bruner satisfeita. - Todos os instrumentos estão antiquados, mas o padre mantém-nos limpos, a uso. E conta-me as suas observações. Não tem material para descobertas, evidentemente. Mas é agradável - bateu suavemente nas pernas com o leque, sorrindo. - Eu não tenho forças para subir, mas Macarena por vezes vai lá.

Surpresas umas atrás das outras, pensava Quart. Era insólito, o padre Ferro. O cura indisciplinado e astrónomo.

- Também não me tinha contado - voltara-se para os olhos escuros de Macarena, perguntando a si mesmo que mais surpresas encerrariam - o seu interesse pela astronomia.

- Interessa-me a paz - retorquiu ela, com singeleza. - E lá em cima, perto das estrelas, existe paz. O padre Ferro trabalha e permite-me estar ali, a ler ou a olhar, sossegada.

Quart observou o céu por sobre as suas cabeças; um rectângulo de azul emoldurado pelos beirais do pátio andaluz. Havia uma única nuvem, ao longe. Era pequena, solitária e imóvel, como o padre Ferro.

- Noutros tempos - disse - era uma ciência proibida aos clérigos. Excessivamente racional e portanto perigosa para a alma - sorria agora sinceramente ao velho sacerdote. - A Inquisição tê-lo-ia encarcerado por causa disso.

O pároco baixou a cabeça. Mal-humorado. Duro.

- A Inquisição - murmurou - ter-me-ia encarcerado por um monte de coisas, além da astronomia.

- Mas já não o fazem - disse Quart, recordando-se do cardeal Iwaszkiewicz.

- Vontade não lhes falta.

Pela primeira vez riram todos juntos, incluindo o próprio padre Ferro, primeiro a contragosto, depois do mesmo modo bonacheirão que da vez anterior. Era como se, ao falar de astronomia, Quart se tivesse aproximado um pouco mais dele. Macarena apercebia-se disso e parecia satisfeita, olhando alternadamente um e outro. Os seus olhos tinham, de novo, reflexos cor de mel e parecia feliz, recobrado o riso sonoro e franco, de rapaz. Sugeriu então ao pároco que mostrasse o pombal a Quart.

Reluzia o telescópio de latão junto dos arcos mudéjares abertos à laia de galeria nos quatro lados da torre, sobre os telhados de Santa Cruz. À distância, entre antenas de televisão e bandos de pombas voando em todas as direcções, podiam ver-se a Giralda, a Torre del Oro e um trecho do Guadalquivir com os traços azuis dos jacarandás em flor nas suas margens. O resto da paisagem diante da qual, um século atrás, tinha enlanguescido Carlota Bruner, estava agora ocupado por edifícios modernos de cimento, aço e vidro. Não havia nenhuma vela branca à vista, nem barcos baloiçando na corrente, e os quatro pináculos do Arquivo das índias pareciam sentinelas esquecidas sobre a antiga Lonja, que guardava o papel, o pó e a memória de um tempo morto.

- Magnífico lugar - disse Quart.

O padre Ferro não respondeu. Tinha tirado do bolso o lenço sujo e esfregava o tubo do telescópio, bafejando-o. O instrumento era um modelo azimutal de lentes, muito velho, de quase dois metros de comprimento, instalado sobre um tripé de madeira. O comprido tubo de latão e todas as peças metálicas tinham o lustro puxado com esmero e reluziam sob os raios de sol que se afastava lentamente para a outra margem, sobre Triana. Não havia muito mais coisas com interesse no pombal: um par de velhos cadeirões de couro rasgado pelo tempo, uma escrivaninha com muitas gavetas, um candeeiro, uma gravura da Sevilha do século XVII na parede, e alguns livros encadernados em pele: Tolstoi, Dostoievsky, Quevedo, Heine, Galdós, Blasco Ibánez, Valle-Inclán, e também tratados de cosmografia, mecânica celeste e astrofísica. Quart aproximou-se para dar uma vista de olhos: Ptolemeu, Porta, Alfonso de Córdoba. Algumas edições eram muito antigas.

- Nunca teria imaginado - comentou. - Refiro-me a si e a tudo isto.

Adoptava um tom conciliador, não inteiramente desprovido de sinceridade. Havia no seu ponto de vista sobre o padre Ferro alguma coisa que mudava com rapidez nas últimas horas. Por seu lado, o pároco esfregava o telescópio como se, no interior do tubo de latão, estivesse um génio adormecido a quem coubessem todas as respostas. Ao cabo de um instante, curvou os ombros sob a sotaina tão coçada e cheia de nódoas que parecia virar do negro ao pardo. Era um curioso contraste, considerou Quart: o pequeno e descuidado sacerdote e aquele instrumento que reluzia sob os cuidados minuciosos do seu lenço.

- Gosto de olhar para o céu à noite - disse, por fim. - A senhora duquesa e a sua filha permitem-me vir duas horas por dia, depois do jantar. Subo directamente do pátio, sem maçar ninguém.

Quart tocou na lombada de um dos livros. Da Celeste Fisionomia, 1616. Ao lado havia umas Tabulae Astronomicae de que nunca tinha ouvido falar. Tosco cura rural, dissera Sua Eminência Ilustríssima Aquilino Corvo. A lembrança fê-lo sorrir intimamente, enquanto folheava as tabelas astronómicas.

- Quando começou a interessar-se por isto?

O padre Ferro, que parecia já satisfeito com o estado do telescópio, guardara o lenço no bolso e, virado para Quart, observava com receio os seus gestos. Passado um momento, tirou-lhe o livro das mãos para o devolver ao seu sítio.

- Vivi muitos anos numa montanha. De noite, quando me sentava no pórtico da igreja, não havia outra distracção além de contemplar o céu.

Calou-se de súbito, bruscamente, como se tivesse dito mais do que o exigiam as circunstâncias. E não era difícil imaginá-lo imóvel ao escurecer, sob o pórtico de pedra da sua igreja rural, observando a abóbada celeste, ali onde nenhuma luz humana podia perturbar a harmonia das esferas rolando no Universo. Quart pegou num volume dos Cenas de Viagem de Heine e abriu-o ao acaso numa página marcada com cinta vermelha:

A vida e o mundo são o sonho de um deus ébrio, que escapa, silencioso, do banquete divino e vai dormir numa estrela solitária, ignorando que cria o que sonha,,. E as imagens desse sonho apresentam-se ora com uma variegada extravagância ora harmoniosas e razoáveis... A Ilíada, Platão, a batalha de Maratona, a Vénus de Medíeis, o Munster de Estrasburgo, a Revolução Francesa, Hegel, os barcos a vapor, são pensamentos que se desprendem desse longo sonho. Um dia, porém, o deus despertará, esfregando os olhos adormecidos, sorrirá, e o nosso mundo afundar-se-á no nada sem nunca ter existido...

Corria uma leve brisa cálida. Dos pátios e ruas que se estendiam a seus pés, entre os tectos de telhas pardas e os terraços, chegavam até ao pombal sons amortecidos pela altura e a distância. Detrás das janelas de um colégio próximo, um coro de vozes infantis recitava uma lição, um poema ou uma cantiga. Quart aguçou o ouvido: algo sobre ninhos e pássaros. Imediatamente a récita parou e o coro estalou em gritos e risos. Na direcção dos Reais Alcazares, um relógio batia três badaladas. Quinze minutos para as seis.

- Porquê as estrelas? - perguntou Quart, restituindo o livro de Heine ao seu lugar.

O padre Ferro tinha tirado do bolso da sotaina uma lata estreita e amolgada, e dela, um cigarro de tabaco escuro, sem filtro, que meteu uma boca depois de humedecer uma das extremidades com os lábios.

- São limpas - disse.

Acendia o cigarro com um fósforo na cova da mão, inclinando a cabeça mal tosquiada e o gesto enrugava-lhe mais a fronte e o rosto cortado por velhas cicatrizes. O fumo evolou-se pelos arcos das galerias, ao mesmo tempo que o cheiro, acre e forte, chegava até Quart.

- Compreendo - disse este e os olhos escuros do pároco detiveram-se nele com uma chispa de interesse, ou curiosidade, enquanto lhe acudia à boca algo como um sorriso que não chegou a definir. Incomodado, sem saber se o devia lamentar ou congratular-se, Quart compreendeu que alguma coisa havia mudado. O carácter neutro do pombal situado entre céu e terra dissipava um pouco a mútua desconfiança, como se, à maneira antiga, ambos se acolhessem ao sagrado. Sentiu, por um instante, o impulso de camaradagem que frequentemente - não muito frequentemente, no seu caso - se estabelecia entre dois clérigos. Soldados perdidos, solitários, reconhecendo-se na confusão de um campo de batalha hostil.

- Quanto tempo passou lá em cima?

O pároco fitava-o com o cigarro consumindo-se na boca.

- Vinte e tantos longos anos - disse.

- Uma paróquia pequena, suponho.

- Muito pequena. Quarenta e dois habitantes, quando cheguei. Nenhum, quando parti: morriam ou iam-se embora. A minha última paroquiana era uma octogenária e não resistiu às neves do último Inverno.

Uma pomba pousara no peitoril da galeria e passeava para cima e para baixo, perto do sacerdote. Este ficou a olhá-la do mesmo modo como se esperasse uma mensagem e ela pudesse trazê-la atada a uma das patas. Mas, quando largou voo, adejando, o pároco manteve os olhos postos no mesmo lugar. Os seus gestos torpes, o seu desalinho, continuavam a recordar a Quart o velho e detestável cura da sua infância; mas era agora capaz de perceber importantes diferenças. Tinha julgado que a rudeza do padre Ferro correspondia a um estado primitivo original. Que se limitava a ser um desses apêndices marginais e miseráveis do ofício, pardos eclesiásticos incapazes - como o longínquo sacerdote que ocupava a memória de Quart - de vencer a sua própria mediocridade e ignorância. No entanto, o pombal revelava uma variedade clerical diferente: a regressão voluntária, a renúncia ao desempenho brilhante da vocação ou da profissão escolhida, podiam realizar-se sob a forma de um passo atrás dado em plena consciência. Saltava à vista que o padre Ferro fora alguma vez - e de certo modo continuava a ser, quase na clandestinidade - algo mais que um grosseiro cura rural, ou o pároco tosco e fechado que se entrincheirava no latim preconciliar para dizer missa em Nossa Senhora das Lágrimas. Não era um problema de cultura nem de idade, mas de atitudes. Usando as referências de Quart: se se tratava de escolher uma bandeira, era evidente que Don Príamo Ferro tinha escolhido a sua.

Havia um caderno aberto sobre a escrivaninha, com desenhos a lápis de uma constelação de estrelas. Quart pensou no sacerdote inclinado sobre o seu telescópio, de noite, absorto no silêncio do firmamento que girava lentamente no outro extremo da lente, enquanto Macarena Bruner lia Ana Karenina ou as Sonatas, sentada numa das velhas poltronas, com as mariposas nocturnas revoluteando à luz do candeeiro. De súbito, sentiu um inquietante desejo de desatar a rir. Aquilo inspirava-lhe um ciúme terrível.

Quando ergueu os olhos, encontrou o olhar pensativo do padre Ferro, como se a expressão que deixara transparecer lhe desse que pensar:

- Orion - disse, e Quart, desconcertado, levou alguns segundos a compreender que se referia ao esboço desenhado no caderno. .- Nesta época do ano só pode ver-se a estrela superior do ombro esquerdo do Caçador. Chama-se Betelgeuze e aparece por ali - mostrou um ponto do céu ainda azul, no horizonte. - Na direcção Oeste-Noroeste.

Continuava com o cigarro na boca e as cinzas do péssimo tabaco caíam-lhe sobre o peitilho da sotaina. Quart passou páginas cheias de anotações, números e desenhos. Apenas reconheceu a constelação do Leão, o seu próprio signo zodiacal, em cujo corpo de metal, segundo a lenda, ricocheteavam os dardos de Hércules.

- O senhor é dos que crêem - perguntou - que tudo está escrito nas estrelas?

O pároco fez uma cara azeda, nos antípodas de qualquer sorriso.

- Há três ou quatro séculos - disse - esse tipo de perguntas custavam a cabeça a um cura.

- Repito-lhe que venho em paz.

"Vai impingir essa a outro", diziam os olhos de Priámo Ferro. Ria agora em voz baixa, sarcástico. Uma espécie de guincho.

- Fala de astrologia - referiu, passado um pouco. - O que me interessa é a astronomia. Espero que a distinção conste no seu relatório a Roma.

Depois calou-se, mas continuava a olhar para Quart com curiosidade, como se o apreciasse de novo, depois de uma desafortunada primeira impressão.

- Ignoro onde estão escritas as coisas - acrescentou, ao cabo de uma longa pausa. - Mas basta lançar-lhe uma vista de olhos para compreender que não lemos pela mesma cartilha.

- Explique-me isso.

- Não há muito que explicar. Acredite ou não acredite nela, você serve uma multinacional cujos estatutos se baseiam em toda essa demagogia que o humanismo cristão e o Iluminismo nos meteram na cabeça: o homem evolui através do sofrimento até estádios superiores, o género humano é chamado a reformar-se, a boa vontade concita a boa vontade... - voltou-se para a grande janela, com mais cinza a cair-lhe no peito. - Ou que a Verdade com maiúscula existe e se basta a si mesma. Quart abanava a cabeça.

- Não me conhece - protestou. - Não sabe nada de mim.

- Conheço os que o empregam e isso basta-me. Voltara-se para o telescópio, à procura de mais poeira. Meteu de

novo as mãos nos bolsos da sotaina para tirar o lenço, mas manteve-as ali.

- Que sabe você - acrescentou - e que sabem os seus chefes em Roma, com a sua mentalidade de funcionários?... Que sabem do amor e do ódio, salvo definições teológicas e sussurros de confessionário?... - baloiçava-se um pouco nos pés, ainda de mãos nos bolsos. - Basta olhar para si: a sua maneira de falar, ou de se mover, revela uma pessoa que prestará contas de pecados de omissão e não de pecados cometidos. Pertence a esses telepregadores, pastores de uma igreja sem alma, que falam dos fiéis com a linguagem que as televisões empregam para se referir à audiência.

- Equivoca-se a meu respeito, padre. O meu trabalho...

De novo o padre deixou ouvir, entredentes, o guincho semelhante a uma gargalhada.

- O seu trabalho! - voltara-se subitamente para Quart. - Agora quer dizer-me que suja as mãos, não é verdade?... Apesar de andar sempre tão limpo e asseado. Mas estou seguro de que não lhe faltam justificações. É jovem, forte, tem chefes que lhe dão cama e comida, que pensam por si e lhe atiram ossos para roer. É um perfeito polícia de uma corporação poderosa que diz servir a Deus. Seguramente nunca amou uma mulher, não odiou um homem, não se compadeceu de um desgraçado. Não há pobres que o bendigam pelo seu pão, nem enfermos pelo seu consolo, nem pecadores pela sua esperança de salvação... Faz o que lhe mandam, e nada mais.

- Eu cumpro as regras - disse Quart e arrependeu-se imediatamente de ter dito aquilo.

- Cumpre? - o pároco fitava-o com intensa ironia. - Em boa hora. Quer dizer que salvará a sua alma. Os que cumprem as regras vão sempre para o céu - torceu a boca, levando os dedos à beata, que terminou com uma última fumaça. - Para gozar a presença de Deus.

Atirou a beata pela janela e ficou a vê-la cair.

- Pergunto a mim mesmo - Quart olhava-o com dureza - se o senhor ainda tem alguma fé.

Na sua boca, aquilo tornava-se um paradoxo e o próprio Quart estava bem consciente disso. Além disso, a sua missão não incluía este tipo de perguntas, mais próprias dos cães negros do Santo Ofício. Como monsenhor Spada teria dito, "no IOE não trabalhamos com as ideias dos outros, mas com os seus feitos. Limitemo-nos a ser bons centuriões, deixando para sua eminência Jerzy Iwaszkiewicz a perigosa tarefa de rebuscar o coração humano".

Apesar de tudo isso, Quart aguardou uma resposta durante o longo silêncio que se seguiu. O pároco movia-se lentamente junto do telescópio, e o reflexo da silhueta negra deslizou ao longo do tubo de latão lustroso.

- Ainda é um advérbio de tempo.

Disse-o por fim, tosco, carrancudo, virado para si próprio, depois esteve um instante calado, reflectindo sobre o tempo ou sobre os advérbios. Parecia seguir o fio de um secreto raciocínio.

- Mas eu perdoo os pecados - acrescentou mais tarde, a modos de conclusão. - E ajudo a morrer em paz.

Dir-se-ia que aquilo explicava tudo, embora Quart estivesse longe de imaginar o quê. Sentiu a tentação de ser malévolo.

- Não é o senhor quem perdoa - precisou. - Só Deus pode fazê-lo.

O pároco fitou-o, surpreendido de vê-lo ainda ali.

- Quando eu era um jovem sacerdote - disse de repente - li toda a filosofia da Antiguidade: de Sócrates a Santo Agostinho. E esqueci-a toda, salvo um travo agridoce de melancolia e desilusão. Agora, com sessenta e quatro anos, tudo o que sei acerca dos homens é que recordam, que têm medo e que morrem.

Quart devia mostrar uma expressão singular, de surpresa e embaraço, visto que o padre Ferro assentiu, com os olhos negros e duros postos nele, como se com este gesto o convidasse a acreditar nas suas palavras. Depois, voltou-se para o céu. A nuvem solitária - talvez já não fosse a mesma - fora ao encontro do sol poente, estendendo agora um resplendor avermelhado sobre as silhuetas dos edifícios distantes.

- Durante muito tempo - prosseguiu o pároco - procurei-o lá em cima. Teria gostado de trocar umas palavras com ele: uma espécie de ajuste de contas, mano a mano. Vi sofrer e morrer muita gente... Esquecido pelo meu bispo e pelos que o rodeavam, vivi numa solidão atroz, de que saía para dizer missa ao domingo numa igreja pequena e quase vazia, ou para caminhar debaixo de neve e de chuva, chapinhando na lama, levando a extrema-unção a anciãos que apenas esperavam a minha chegada para morrer. E, durante um quarto de século, sentado à cabeceira de agonizantes que se agarravam às minhas mãos, porque eu era a sua única consolação, falei apenas numa direcção. Jamais obtive resposta.

Interrompeu-se, como se desse ainda uma oportunidade a essa resposta; mas apenas se escutavam os sons amortecidos pela distância e o debicar das pombas nos beirais da torre. Foi Quart quem falou:

- Ou nascemos e morremos de acordo com um plano, ou nascemos e morremos por acidente.

A velha citação teológica não era nem uma afirmação nem uma resposta. Era apenas um convite a prosseguir o raciocínio interrompido. Pela primeira vez Quart compreendia o homem que estava diante dele; e viu que o outro se dava conta disso. Um brilho de reconhecimento suavizava o olhar do velho sacerdote.

- Como preservar, então - prosseguiu o pároco - a mensagem da vida num mundo com o selo da morte?... O homem extingue-se, sabe que se extingue e que, ao contrário de reis, papas e generais, não ficará memória dele. Tem de haver mais alguma coisa, diz para consigo. Caso contrário, o Universo é uma brincadeira de mau gosto, um caos desprovido de sentido. E a fé converte-se numa forma de esperança. Nem uma consolação. Talvez por isso já nem mesmo o Santo Padre acredite em Deus.

Quart deixou escapar uma gargalhada que sobressaltou as pombas.

- Por isso defende a sua igreja com unhas e dentes.

- Pois claro - o padre Ferro franziu o sobrolho, mal-humorado. - Que importa que eu tenha ou não tenha fé?... Os que vêm ter comigo têm-na. E isso justifica de sobra a existência de Nossa Senhora das Lágrimas. Repare que não é por acaso que se trata de uma igreja barroca: a arte da Contra-Reforma, do não penseis, deixai isso para os teólogos, contemplai as talhas e os dourados, estes altares sumptuosos, que são, desde Aristóteles, a mola essencial para fascinar as massas... Aturdi-vos com a glória de Deus. Uma análise excessiva rouba-vos a esperança, destrói o conceito. Só nós somos a terra firme que vos põe a salvo da torrente tumultuosa. A verdade mata antes de tempo.

Quart ergueu a mão:

- Há uma objecção moral, padre. Chama-se a isso alienação. Posta desse modo, a sua igreja é a televisão do século XVII.

- E então? - o pároco encolhia os ombros com despeito. - O que foi a arte religiosa barroca senão uma tentativa para roubar audiência a Lutero e Calvino?... Além disso, diga-me o que seria feito do papado moderno sem a televisão. A fé nua não se aguenta de pé. As pessoas precisam de símbolos onde possam abrigar-se, porque lá fora faz muito frio. Somos responsáveis pelos nossos últimos fiéis inocentes, aqueles que continuaram a acreditar, como no Anabase, que os conduziríamos ao mar e a casa. Ao menos as minhas velhas pedras, o meu retábulo e o meu latim são mais dignos que todas essas canções com megafonia, os écrans gigantes e a santa missa convertida em espectáculo para massas aturdidas pela electrónica. Crêem que desse modo conseguem conservar a clientela, mas aviltam-nos e equivocam-se. A batalha está perdida e chegou o tempo dos falsos profetas.

Fechou a boca e inclinou a cabeça, tosco, dando por concluída a conversa. Depois foi apoiar-se na janela, olhando na direcção do rio. Passado um instante, Quart, que não sabia o que fazer nem o que dizer, foi apoiar-se, a seu lado, no peitoril. Nunca tinham estado tão próximos um do outro; a cabeça do pároco chegava-~lhe à altura do ombro. Permaneceram assim uns momentos, sem dizer palavra, até muito depois que os relógios batessem as seis nas torres de Sevilha. A nuvem solitária desfizera-se e o sol descia no céu, que continuava lentamente a dourar-se, a oeste. Então Don Príamo falou de novo:

- Apenas sei uma coisa: quando a sedução terminar, também nós teremos terminado, porque a lógica e a razão significam o final. Mas, enquanto uma pobre mulher necessitar de se ajoelhar em busca de esperança ou de consolação, a minha pequena igreja deve manter-se de pé - tirou do bolso o lenço sujo e assoou-se ruidosamente. A luz poente fazia ressaltar os pêlos brancos da sua barba mal escanhoada. - Apesar de toda a nossa miserável condição, os párocos como eu continuam a ser necessários... Somos a velha pele de tambor sobre a qual redobra ainda a glória de Deus. E só um louco invejaria semelhante segredo. Nós conhecemos - o pároco torceu agora o semblante sob as cicatrizes, num esgar absorto e obscuro - o anjo que tem a chave do abismo.

 

                   O MUNDO CABE NUM LENÇO

Digna de ser morena e sevilhana.

           (Campoamor, El tren expreso)

 

Os focos que iluminavam a catedral criavam um espaço irreal entre noite e luz. Desorientadas com o contraste, as pombas voavam em todas as direcções, aparecendo subitamente e depois desaparecendo no escuro, entre a imensa e harmónica montanha de cúpulas, pináculos e arcobotantes em que se destacava a torre da Giralda. Era quase fantástico, pensava Lorenzo Quart. Uma paisagem de fundo tão extraordinária como a das antigas super-produções de Hollywood à base de tela pintada e muito cartão. A diferença residia no facto de a praça Virgem dos Reis ser autêntica, construída à custa de ladrilhos e de séculos - a parte mais antiga datava do século XII - e não havia estúdio fotográfico capaz de reproduzir o seu aspecto impressionante, por muito dinheiro ou talento que se dedicasse ao assunto. Era uma decoração única, irrepetível. Um cenário perfeito. Sobretudo quando Macarena Bru-ner andou uns passos para se deter sob o enorme candeeiro central da praça e ali ficou, imóvel, contra a claridade dourada da pedra e dos projectores de luz. Alta e esbelta, o colar de marfim sobre a Pele morena do pescoço, o cabelo preso num rabo-de-cavalo. Os °lhos negros, tranquilos, fitos em Quart.

- Quase não existem lugares como este - disse.

Era verdade e o homem de Roma percebia até que ponto a presença daquela mulher acentuava o fascínio do lugar. A filha da duquesa do Nuevo Extremo estava vestida da mesma maneira que na tarde no pátio da Casa do Postigo. Trazia agora sobre os ombros um casaco ligeiro e na mão uma bolsa de cabedal semelhante a uma mochila de caça. Tinham ido até ali caminhando em silêncio, depois de o padre Quart haver deixado o padre Ferro no observatório e se ter despedido da duquesa. "Venha visitar-nos outra vez", dissera a velha senhora, satisfeita, e ofereceu-lhe, como recordação, um pequeno azulejo procedente da antiga decoração da casa: um pássaro que os mestres-de-obras mudéjares tinham incluído no pátio e que, caído da parede com os bombardeamentos de 1843, estava há um século e meio entre várias dezenas de peças partidas e defeituosas, num sótão junto das antigas cavalariças. Depois, quando Quart saíra à rua com o seu azulejo no bolso, Macarena retivera-o junto à entrada. A sugestão de um passeio antes de comerem uma coisa ligeira ao jantar nas tascas de Santa Cruz tinha vindo dela. "Se não tem outro compromisso", acrescentara, observando-o do fundo dos seus olhos escuros e serenos. "Um bispo ou coisa do género." Quart desatara a rir, abotoando o casaco e de novo ela lhe olhou para as mãos, depois a boca e outra vez as mãos, até que se pôs também a rir com aquele seu riso, tão franco e sonoro como o de um rapaz. E ali estavam os dois, na praça da Virgem dos Reis, com a catedral iluminada ao fundo e as pombas revoluteando em cima, desorientadas entre a luz e a noite. E Macarena continuava a fitar Quart e este fitava-a a ela. E nada de tudo aquilo, pensava ele com a calma lúcida que costumava reservar para este tipo de situações, contribuía para a saudável tranquilidade de espírito que as sagradas ordens recomendavam para a salvação eterna de um sacerdote.

- Quero agradecer-lhe - disse ela.

- Porquê?

- Por Don Príamo.

Passaram mais pombas rumo à noite. Caminhavam então em direcção aos Reais Alcazares e ao arco aberto sob a muralha. Macarena voltava-se para observar Quart, com um ligeiro sorriso que de vez em quando lhe despontava.

- Aproximou-se dele o suficiente, parece-me - acrescentou. - Talvez agora possa compreender.

Quart fez um gesto ambíguo. Podia compreender algumas coisas, disse. A atitude do pároco ou a sua intransigência a respeito da igreja e o seu empenho nela. Mas era apenas uma parte do problema. A sua missão em Sevilha consistia num relatório geral sobre a situação, que incluísse, se possível, a identidade de Vésperas. E sobre o pirata informático, a investigação continuava atrasada. O padre Oscar estava prestes a partir, sem que Quart estabelecesse a sua possível relação com o caso. Também tinha de rever relatórios da polícia e as indagações do Arcebispado sobre as mortes na Igreja. Além disso - tocou no casaco à altura do bolso interior, onde trazia o postal de Carlota Bruner - estava por resolver o mistério do postal e da citação assinalada no Novo Testamento do seu quarto.

- Quem são os suspeitos? - perguntou ela.

Estavam sob o arco da muralha, junto do pequeno altar barroco da Virgem, encerrado na sua urna de vidro e o riso de Quart arrancou ecos à abóbada. Uma gargalhada seca, desprovida de humor.

- Todos são suspeitos - disse, olhando a imagem como se hesitasse em incluí-la naquele todos. - Don Príamo Ferro, o padre Oscar, a sua amiga Gris Marsala... E até você mesma. Aqui toda a gente é suspeita, por acção ou omissão - olhou para a direita e para a esquerda, quando saíram do pátio das bandeiras dos Alcazares, como se esperasse encontrar algum deles ali, à espreita. - Estou certo de que se encobrem uns aos outros - caminhou um pouco mais, deteve-se brevemente e, de novo, olhou em redor. - Bastaria que algum de vós falasse com franqueza durante trinta segundos e a minha investigação ficaria resolvida.

Macarena Bruner estava a seu lado, olhando-o fixamente, a bolsa de couro apertada contra o peito.

- E o que pensa?

Quart aspirava o aroma das laranjeiras que povoavam o pátio.

- Tenho a certeza - disse. - Toda a certeza. Imagino que Vésperas é um de vós, que enviou a mensagem para chamar a atenção de Roma e ajudar o padre Ferro a conservar a sua Igreja...

Crê que apelar para o Papa significa estabelecer a verdade em todo o seu esplendor. Pois a verdade, julga o nosso ingénuo pirata informático, não pode prejudicar uma causa justa. Então aterro eu em Sevilha, disposto a procurar o tipo de verdade que interessa a Roma, que talvez não coincida com a vossa. Talvez por isso ninguém me ajude, mas aparecem com mistérios uns atrás dos outros, incluído o enigma do postal.

De novo caminharam, atravessando a praça. Por vezes os seus passos aproximavam-nos e Quart podia sentir o seu perfume: algo próximo do jasmim, com fragâncias de flor de laranjeira. Macarena Bruner cheirava como aquela cidade.

- Talvez o objectivo não seja ajudá-lo a si - disse, ao cabo de um momento - mas outras pessoas. Talvez tudo isto seja para o fazer compreender o que está a acontecer.

- De acordo: posso entender a atitude do padre Ferro. Mas a minha compreensão não lhes serve de nada. Enviaram a mensagem à espera de um bondoso clérigo cheio de amor e compreensão e o que lhes mandam é um soldado com a espada de Josué - abanou um pouco a cabeça, mal-humorado. - Porque eu sou um soldado, como esse Sir Marhalt de que tanto gostava quando era jovem. Apenas informo acerca de factos e procuro responsáveis. A compreensão e as soluções, se as há, cabem a outros - fez uma pausa, antes de acrescentar um débil sorriso. - De nada serve seduzir o mensageiro.

Tinham chegado à passagem que ligava o pátio das bandeiras ao bairro de Santa Cruz. Sob a luz da curva, as suas sombras deslizaram juntas nas paredes caiadas. Aquilo criava uma estranha sensação de intimidade e Quart sentiu-se aliviado quando, de novo, saíram do outro lado, para a noite aberta.

- E o que julga? - perguntou Macarena Bruner. - Que pretendo seduzi-lo?

Quart não respondeu. Continuaram a caminhar em silêncio ao longo da muralha e depois por uma das ruas estreitas que penetravam no bairro judeu.

- Também Sir Marhalt - disse ela, ao cabo de alguns instantes - tomava partido pelas causas justas.

- Eram outros tempos. Além disso, o seu Sir Marhalt foi inventado por John Steinbeck. Agora já não existem causas justas.

Nem sequer a minha o é - quedou-se um instante em suspenso, como meditando sobre a verdade daquilo. - Mas é a minha.

- Esquece-se do padre Ferro.

- Isso não é uma causa justa. É um recurso pessoal. Cada um arranja-se como pode.

Quart caminhava olhando em frente, mas pôde perceber que ela fazia um movimento de impaciência.

- Por favor. Vi Casablanca vinte vezes. E era só o que me faltava. Um cura a brincar aos heróis desenganados - tinha-se adiantado um pouco e voltava-se agora para ele, com despeito e mau-humor. - À Humphrey Bogart.

- Não. Eu sou mais alto. E você engana-se. Não viu nada, nada sabe a meu respeito - sentia vontade de pegar-lhe num braço e de a deter enquanto falava, mas conteve-se. Ela continuava a caminhar, um pouco adiantada e de novo olhava em frente, como se negasse a escutar. - Não sabe porque sou cura, nem porque estou aqui, nem o que fiz para estar aqui. Não sabe quantos Príamos Ferros conheci na vida, nem o que fiz com eles quando recebi as ordens apropriadas.

Disse-o com uma amargura que caiu no vazio; Macarena Bruner não podia saber. Viu que girava sobre os sapatos:

- Parece que lamenta não ter uma cabeça para enviar a Roma com o próximo correio - encarava-o, o corpo um pouco curvado para a frente. -Julgou que seria tudo fácil, não é verdade?... Mas eu estava certa de que as coisas mudariam quando conhecesse a vítima de perto.

- Engana-se - negou Quart, sustentando o seu olhar. - O facto de eu conhecer melhor o padre Ferro não muda coisa nenhuma, pelo menos no aspecto formal.

- E no resto? - tocava a testa com o dedo. - As suas ideias.

- O resto é comigo. E há uma coisa acerca da qual se engana. Conheci de perto muitas das minhas vítimas, como diz. E também não mudou nada.

Ouviu-a suspirar, com despeito:

- Suponho que não. Suponho que é por conta disso que lhe compram roupa por medida em bons alfaiates, usa sapatos caros, cartões de crédito e um relógio estupendo no pulso - olhava-o de alto a baixo, provocadora e insolente. - Devem ser essas as suas trinta moedas.

Demasiado agressiva. Demasiado desdém nas suas palavras para que tudo aquilo lhe fosse indiferente, de modo que Quart começou a perguntar desesperadamente a si próprio até onde pretendia chegar. Estavam parados frente a frente, numa das estreitas ruas com candeeiros de ferro e cujas varandas carregadas de vasos de flores quase se tocavam de um lado e de outro, sobre as suas cabeças.

- Folgo muito que o pense, porque é assim mesmo - Quart pegou com os dedos na lapela do casaco. - Esta roupa, estes sapatos, estes cartões de crédito e este relógio são muito úteis quando se trata de impressionar um general sérvio ou um diplomata norte-americano... Há curas operários, curas casados, curas que dizem a missa das oito e curas como eu. Eu não saberia dizer-lhe quais deles tornam possível a existência dos outros - esboçou um sorriso amargo, mas o seu pensamento voara já para longe das palavras que proferia; Macarena Bruner continuava demasiado perto, naquela rua demasiado estreita. - Se bem que o seu padre Ferro e eu tenhamos algo em comum: nenhum de nós se ilude no tocante ao ofício.

Depois ficou calado, porque de súbito teve medo da necessidade de se justificar perante ela. Encontravam-se sozinhos na rua, à luz de um candeeiro distante e ela estava muito bonita, olhando-o em silêncio, com a boca entreaberta, onde despontavam os brancos dentes incisivos. Respirava lentamente, com a serenidade da mulher bonita que tem plena consciência disso. A sua expressão não era já de desprezo, como se este se houvesse esgotado nas suas palavras; e Quart sentia um medo masculino e real, físico, muito próximo da vertigem. Tanto que teve de se conter para não dar um passo atrás, o que o teria feito bater com as costas na parede:

- Porque não me conta o que sabe?

Viu que o fitava como se tivesse esperado dele outras palavras, outro gesto. Os olhos da mulher, até então fixos nos seus, deslizaram pelo seu rosto e pelo colarinho da camisa negra.

- Embora não acredite, eu sei muito pouco - respondeu, após um silêncio que se tornou extraordinariamente longo. - Posso talvez adivinhar coisas. Mas não serei eu a contar-lhas. Faça o seu trabalho enquanto os outros fazem o deles.

Disse isto e ficou de novo calada e imóvel, à espera de averiguar o que Quart teria para responder àquilo. Ele, porém, nada disse, mas pôs-se a andar pela rua estreita; e ela seguiu-o em silêncio, abraçando contra o peito a bolsa de cabedal.

Em Las Teresas pendiam presuntos entre garrafas de La Guita, velhos cartazes da Semana Santa e da Feira de Abril, fotografias de toureiros delgados e sérios, mortos há tempos, com a tinta das suas dedicatórias amarelecendo atrás do vidro das molduras. Os empregados anotavam os preços dos consumos sobre o balcão de madeira, enquanto Pepe, o encarregado, cortava compridas fatias de Jabugo com uma faca longa e afiada como uma navalha de barbear:

Como me alegra, primito irmão, como me alegra, comer presunto de pata negra.

Cantava entredentes, para sevilhanas. Tinha chamado Dona Macarena à acompanhante de Quart e, sem que nenhum dos dois tivesse tido ocasião de pedir o que quer que fosse, pusera-lhes na frente tapas de presunto magro com tomate, aparas de presunto fritas, tiras de lombo, cogumelos a La plancha e dois copos estreitos, de pé alto, cheios até dois terços de cheirosa e dourada manzanilla. Junto da porta, encostado ao balcão perto de Quart, um freguês de aspecto habitual e rosto avermelhado emborcava conscienciosamente um tinto atrás do outro; e de vez em quando, Pepe interrompia o versejar e, sem desviar a atenção das fatias de presunto, dirigia-lhe umas palavras acerca de uma certa partida de futebol que estava para realizar-se entre Sevilha e o Betis.

- Apoteótico - referia o da cara corada, com teimosia de bêbedo; e, enquanto Pepe assentia com a cabeça, reatando a canção, o outro voltava a mergulhar o nariz no copo de vinho. Do bolso de cima do casaco assomava-lhe a cabeça de um ratinho cinzento, verdadeiro, ao qual de vez em quando oferecia pedacinhos de queijo do prato que tinha ao lado, sobre o balcão. O roedor devorava o queijo com diligência e ninguém se mostrava minimamente surpreendido.

Macarena bebia manzanilla a tragos lentos. Apoiava um cotovelo no balcão, tão segura de si como se estivesse na Casa do Postigo. Na realidade, como Quart pôde apreciar, movia-se por toda Santa Cruz como se se tratasse dos aposentos da sua própria casa e de certo modo eram-no, ou haviam-no sido durante séculos. Saltava à vista que cada recanto estava inscrito na sua memória genética, no seu instinto territorial. Quart confirmou a impressão - e isto não tranquilizava o agente do IOE - de que lhe era difícil conceber aquele bairro e a cidade sem a presença daquela mulher e do que ela significava. Cabelo negro apanhado na nuca, dentes brancos, olhos escuros. De novo recordou as pinturas de Romero de Torres, o edifício da Tabaqueira, agora convertido em Universidade. Carmen, a "cigarreira" e as folhas de tabaco húmido enrolando-se na palma da mão, contra a face interior de uma coxa de mulher de pele morena. Ergueu os olhos e encontrou os dela fixos nos seus. Outra vez reflexos de mel, pensativos. Tranquilos.

- Gosta de Sevilha? - inquiriu, de súbito, Macarena.

- Muito - respondeu, perturbado, perguntando a si próprio se ela penetrava os seus sentimentos.

- É um sítio especial - continuava a fitá-lo sem deixar de debicar os pratos; dava agora conta de um cogumelo a La plancha. - Aqui o passado convive com o presente sem problemas. Gris diz que nós, os sevilhanos, somos velhos e sábios. Tudo se pode aceitar, tudo é possível - olhou rapidamente para o seu vizinho de cara corada e sorriu -... Até partilhar queijo com um rato ao balcão de um bar.

- A sua amiga é perita em informática? Fitou-o com estranheza. Quase admirada.

- Não se dá por vencido, pois não? - espetou um palito noutro cogumelo e levou-o à boca. - É um homem de ideias fixas. Porque não lho pergunta a ela?

- Já o fiz. E veio com evasivas, como toda a gente.

Olhava na direcção da porta, por cima do ombro da mulher, e viu entrar um homem gordo, cinquentão e vestido de branco, que por um instante não lhe pareceu inteiramente desconhecido. O gordo descobriu-se ao passar junto deles, deu uma vista de olhos pelo interior como se em vão procurasse alguém, consultou o relógio, que tirou do bolso do casaco e desapareceu por outra porta, baloiçando uma bengala com castão de prata. Quart observou que tinha a face esquerda avermelhada, coberta de creme ou pomada, e um curioso bigode curto, muito reduzido, como se acabasse de ter sido chamuscado.

- E quanto ao postal? - perguntou a Macarena, prosseguindo a conversa. - Gris Marsala tem acesso ao baú da sua tia-avó Carlota?

Viu-a sorrir um pouco, divertida com as suas ideias fixas.

- Uma vez esteve lá perto, se é a isso que se refere. Mas também podia ter sido Don Príamo. Talvez o padre Oscar ou eu mesma. Ou a minha mãe... Imagina a duquesa, com as suas coca-colas e um boné de baseball posto ao contrário, fazendo saltar as chaves de segurança do Vaticano às tantas da madrugada?... - espetou um palito num pedaço de carne com tomate e ofereceu-o a Quart. - Receio que a sua investigação possa raiar o grotesco.

Quart pegou na ponta do palito e os seus dedos roçaram os de Macarena.

- Gostaria de dar uma vista de olhos a esse baú. Levou o petisco à boca, enquanto ela o fitava:

- Você e eu, sozinhos? - sorria. - É uma ideia um tanto atrevida, embora eu receie que o objectivo seja verificar se tenho um computador pirata. - Pepe pusera o prato de presunto em cima do balcão e ela contemplava, distraída, as fatias avermelhadas, entremeadas de cheirosa gordura. - Porque não? Poderia contar às minhas amigas e gosto de imaginar a cara do arcebispo quando souber - inclinou a cabeça, pensativa. - Ou ao meu marido.

Quart olhava para as argolas de prata nos lóbulos das orelhas, sob o cabelo liso e bem penteado para trás, esticado no rabo-de-cavalo.

- Não queria causar-lhe mais problemas. Ela desatou a rir subitamente.

- Problemas?... Espero que Pencho rebente de raiva e de ciúme. Se, além do aborrecimento da igreja, lhe contam que há um sacerdote interessante metido no assunto, pode ficar louco - observou Quart, atenta. - E perigoso.

- Você inquieta-me - Quart terminava o seu copo de manzanilla e era evidente que não se sentia nada inquieto.

Macarena reflectia:

- De qualquer modo - disse - isso do baú de Carlota é boa ideia. Compreenderá melhor o que significa Nossa Senhora das Lágrimas.

- A sua amiga Gris - Quart provou uma fatia de presunto

- queixa-se de falta de dinheiro para continuar as obras...

- É verdade. A duquesa e eu temo-lo à conta para viver e a paróquia está arruinada. O salário de Don Príamo é pequeno e a colecta dominical não dá nem para a cera das velas. Por vezes sentimo-nos como os exploradores dos filmes, com a sombra dos abutres a pairar sobre as nossas cabeças... Às quintas-feiras, sobretudo, produz-se um espectáculo curioso.

Explicou, então, a Quart, diante de um par de novas manzanillas, que Nossa Senhora das Lágrimas era intocável enquanto fosse rezada missa por alma do seu antepassado Gaspar Bruner de Lebrija, todas as quintas-feiras - dia do seu falecimento, no ano de 1709 - às oito da manhã. Era por isso que, todas as quintas-feiras, se podia ver na última fila de bancos um enviado do arcebispo e um notário pago por Pencho Gavira, ambos à espreita de uma irregularidade ou um descuido.

Quart não podia acreditar e ambos riram juntos. O riso de Macarena, porém, extinguiu-se primeiro:

- Parece infantil, não parece? - pusera-se subitamente séria.

- Que tudo dependa dessa estupidez - ergueu o copo para o levar aos lábios, mas interrompeu o gesto a meio, deixando-o de novo sobre o balcão. - Qualquer outro sacerdote que não dissesse a missa ou omitisse a fórmula condenaria a igreja à picareta; e tanto o arcebispo como o Banco Cartujano ganhariam a partida... Por isso, receio que, afastado o padre Oscar, intentem alguma coisa contra Don Príamo.

Olhava para Quart com uma inquietação aparentemente sincera. Este não sabia o que pensar.

- Seria uma barbaridade - argumenta por fim. - Monsenhor Corvo não me é simpático, mas estou certo de que nunca toleraria...

Ela ergueu a mão de forma irreflectida, como se fosse levá-la aos lábios dele. Quart estranhou não sentir o contacto. Macarena devia ter interpretado o seu olhar, pois retirou a mão, deixando-a sobre o balcão.

- Não falo do arcebispo.

Brincava com o pé do copo de Quart. "E estás a enganar-me", disse este para consigo. Ignorava se ela o fazia por conta própria ou de outrem, se o objectivo consistia em seduzir o mensageiro ou neutralizar o inimigo; mas o certo é que, a pretexto de lhe fazer ver o outro lado da trincheira, o que uns e outros conseguiam era que ele perdesse toda a perspectiva. "Precisas de alguma coisa a que possas agarrar-te", pensou. "O teu trabalho, a investigação, a igreja, o que quer que seja. De dados e factos, ainda que não sirvam para mais nada. Perguntas e respostas, cabeça tranquila. Serenidade como a que ela possui e dissipa a cada instante, mulher instrumento do Maligno, farol de perdição, inimiga do género humano e da alma imortal. Mantém a distância ou estás feito, Lorenzo Quart. Como era aquela de monsenhor Spada?... Se um clérigo conseguia manter o dinheiro longe do bolso e as pernas fora da cama de uma mulher, tinha muitas possibilidades de salvar a sua alma. Ou qualquer coisa assim."

- Voltando ao dinheiro - disse. Tinha de falar, tinha de fazer perguntas, mesmo inúteis. Estava ali para investigar, não para que a Carmen da Tabaqueira lhe pusesse os dedos nos lábios. - Já pensaram em vender os quadros da sacristia para prosseguir com as obras de restauração?

- Essas telas não valem nada. Nem sequer o Murillo é um Murillo.

- E as pérolas?

Ela fitava-o como se acabasse de ouvir uma enorme estupidez:

- Também o Vaticano poderia vender a sua pinacoteca e dar o dinheiro aos pobres - sugeriu.

Esvaziou o copo antes de tirar a carteira do bolso e pedir a conta. Quart insistia em pagar, mas ela não permitiu. O encarregado desculpava-se com um sorriso. "O padre perdoe, mas Dona Macarena é cliente, etc."

Saíram à rua, onde um candeeiro projectou as suas sombras alongadas. Nos espaços com pouca luz ganhava relevo a Lua, branca e quase redonda entre as sombras dos beirais e as varandas que se aproximavam sobre as suas cabeças. Passado um instante, ela mencionou de novo as pérolas e, ao fazê-lo, parecia troçar de Quart. - Continua a não compreender - disse. - São as lágrimas de Carlota. O testamento do capitão Xaloc.

Nas ruas estreitas ressoava facilmente o eco dos passos, de modo que os três truões se mantinham à distância do par, revelando-se para não levantar suspeitas: por vezes Don Ibrahim com a Nina Punales, seguindo-os o Potro del Mantelete mais atrás, outras vezes o Potro sozinho, ou com a Nina pelo braço - o são, porque o queimado, trazia-o ao peito -, sempre em contacto visual com o cura e a duquesa jovem. Não se tornava tarefa fácil, porque o traçado de Santa Cruz era irregular, com muitas voltas, reviravoltas e passagens sem saída. Numa ocasião, os três sócios tiveram de se afastar e retroceder a toda a pressa, correndo nas pontas dos pés entre as sombras, dominados pelo pânico, quando Quart e Macarena chegaram a uma praceta fechada e voltaram atrás, depois de passarem ali uns minutos a conversar.

Agora ia tudo bem. O par caminhava por uma rua com suaves curvas e contracurvas e amplos saguões onde era fácil segui-los sem grande risco. De modo que, mais relaxado, grossa mancha clara na penumbra, Don Ibrahim tirou um havano do bolso e meteu-o na boca, fazendo-o girar com voluptuosidade entre os dedos. Oito ou dez passos mais adiante caminhavam o Potro del Mantelete e a Nina Punales, controlando a caminhada do cura e da duquesa jovem; o ex-falso advogado sentiu uma lufada de ternura ao observar os seus compadres. Cumpriam o seu dever com consciência, suspensos do duplo objectivo que os precedia rua acima. Em sítios muito silenciosos, a Nina descalçava os sapatos de salto para não fazer ruído e andava descalça com aquela sua graça que, apesar de tudo, a idade não conseguira arrancar-lhe, os pés descalços e os sapatos na mão, junto da bolsa onde levava o crochet, a máquina fotográfica de Peregil e o inexistente recorte de jornal onde se contava que, uma vez, um homem de olhos verdes como o trigo verde tinha matado outro por amor dela. Eterna Nina com o seu vestido às pintas, o cabelo pintado, o seu caracolinho de Estrellita Castro e aquele ar de folclórica sempre a caminho de um palco já impossível. A seu lado, sério, masculino, o Potro dava-lhe o braço são com a deferência de quem sabe, ou intui, que este gesto cortês, de homem respeitador e sério como sempre foram os homens que sabiam vestir-se pelos pés, era a mais valiosa homenagem que uma mulher como a Nina podia receber neste mundo.

Com a bengala debaixo do braço, Don Ibrahim inclinou a cabeça para acender o charuto, ocultando a chama sob a larga aba do panamá e, ao guardar no bolso o ameigado isqueiro de prata - desta feita, uma lembrança de Gabriel Garcia Márquez, que, dizia, tinha conhecido quando o autor de El coronel Páramo no time quien Io visite era um humilde repórter de acontecimentos em Cartagena de índias - tocou nas entradas para a corrida de domingo que comprara, nessa mesma tarde, o Potro del Mantelete. Em momentos livres, o antigo toureiro e pugilista ganhava a vida com as quadrilhas que se estabeleciam junto da ponte de Triana, fazendo-se passar por artista e manipulando três copos e uma bolinha - La borrega, na linguagem do ofício - sobre a caixa de cartão: "aqui a tenho, aqui não a tenho; vista e não vista; esta me ganha e esta me perde; venha e aposto cinco mil duros, cavalheiro." Os aliciadores em redor, fingindo que não paravam de ganhar, e um par de comparsas nas esquinas, para darem o alarme, caso surgissem complicações. Com o seu ar grave e formal, o casaco aos quadrados demasiado apertado, o Potro inspirava confiança às pessoas; de modo que, graças à sua actuação como chamariz, ele e os seus colegas tinham aliviado nessa manhã um turista porto-riquenho de um belo maço de dólares. De modo que, para se fazer perdoar pela asneira do Anis del Mono, o Potro explicou-se com três entradas à sombra para os toiros. Entradas nas quais tinha investido inteiramente os lucros da operação, pois o cartel era de arromba: Curro Romero, Espartaco e Enrique Ponce - Curro Maestral tinha sido retirado do cartel à última da hora, sem explicações - com seis touros de Cardenal e Murube, seis.

Don Ibrahim exalou uma baforada de fumo, abrindo e fechando a boca para comprovar o estado da pele cuidadosamente coberta de creme para queimaduras. As cerdas do bigode e as sobrancelhas estavam chamuscadas, mas não podia queixar-se da sorte: por pouco não tinham sofrido uma desgraça com a gasolina, mas tudo redundara nuns churrascos superficiais, a mesa queimada, uma mancha de fumo no tecto e o susto. Um susto de morte, sobretudo quando viram o Potro a correr em volta do quarto com um braço a arder - o esquerdo; por sorte, era muito homem e fumava com a mão esquerda -, como naquele filme de Vincent Price, dos crimes no museu de cera. Até que a Nina, com grande presença de espírito e dizendo "Virgem Santíssima", os regou a ele e a Don Ibrahim com um jacto do sifão que tinha na cozinha, antes de deitar sobre a mesa uma manta para apagar o fogo. Depois tudo se resumiu a fumo, explicações, vizinhas apinhadas à porta e uma grande sensaboria quando chegaram os bombeiros e já não havia nada para apagar, salvo a acesa vergonha dos três sócios. De tácito acordo, nenhum deles voltaria a referir-se ao infausto sucesso. Pois, como arrematou Don Ibrahim, erguendo academicamente um dedo, enquanto a Nina voltava da farmácia com um tubo de pomada e umas gazes, a vida tem capítulos dolorosos que há que esquecer a todo o transe.

O cura e a duquesa jovem deviam ter parado a conversar, porque a Nina e o Potro estavam discretamente a uma esquina, colados à parede, dissimulando. Don Ibrahim agradeceu a pausa - deslocar os seus cento e dez quilos em longas caminhadas não era tarefa fácil - e contemplou a Lua sobre os obscuros limites da rua estreita, saboreando o aroma do charuto, cujo fumo subia em suaves espirais, na luz prateada que se derramava sobre Santa Cruz, ao mesmo tempo que os candeeiros eléctricos ficavam distantes ou desapareciam atrás de uma curva. Nem mesmo o cheiro a urina e sujidade próximo de alguns bares, nas ruas mais escuras, conseguia afastar o perfume das laranjeiras, das flores que assomavam às varandas cobertas com persianas por detrás das quais se escutava, ao passar, música abafada, fragmentos de conversas, o diálogo de um filme ou os aplausos de um concurso televisivo. De uma casa vizinha chegavam os acordes de um bolero que recordaram a Don Ibrahim outras noites de lua cheia noutros tempos e noutras ruas, e o índio deixou-se embalar na saudade das suas duas juventudes caribenhas: a real e a imaginada, que se mesclavam na recordação de noites elegantes nas cálidas praias de San Juan, longos passeios pela Havana Velha, aperitivos em Los Portales de Veracruz com mariachis que cantavam Mujeres divinas, do seu amigo Vicente, ou daquela Maria Bonita cuja composição muito lhe devia. Ou talvez, disse para consigo com uma nova e longa fumaça no havano, fosse pura e simplesmente saudade da sua juventude. E dos sonhos que depressa a vida se encarrega de nos ir arrancando.

De todas as formas - meditou, ao mesmo tempo que via o Potro e a Nina retomando a marcha e caminhava atrás deles -, restar-lhe-ia sempre Sevilha; Sevilha onde alguns lugares lhe pareciam tão idênticos aos que haviam marcado os anos das suas recordações. Porque, como nenhuma outra, aquela cidade conservava nas esquinas das ruas, nas cores e na luz, o rumor do tempo que se extingue lentamente, ou melhor, de nós próprios extinguindo-nos com aquelas coisas do tempo a que se apegam a vida e a memória.

Se bem que o mal das longas agonias fosse que a pessoa se arriscava a perder a compostura. Don Ibrahim deu outra fumaça no puro, abanando tristemente a cabeça: numa entrada, debaixo de jornais e cartões, dormia a sombra confusa de um mendigo; e, mais do que ver, adivinhou o prato vazio da esmola, a seu lado. Meteu instintivamente a mão no bolso, afastando as entradas para os touros e o isqueiro de Garcia Márquez, até encontrar uma moeda de vinte duros que, inclinando-se a custo sobre a barriga, colocou junto do corpo adormecido. Dez passos mais adiante lembrou-se que não tinha trocos para telefonar a Peregil e considerou a possibilidade de voltar atrás e reaver a moeda, mas conteve-se, confiando no facto de o Potro ou a Nina terem moedas. Um gesto é uma profissão de fé. E aquele não teria sido honroso.

O mundo cabe num lenço, mas, depois daquela noite, Celestino Peregil havia de perguntar muitas vezes a si próprio se o encontro do seu chefe Pencho Cravira com a duquesa jovem e o cura de Roma fora casual ou se ela quisera passeá-lo de propósito debaixo do seu nariz, sabendo, como sabia, que àquela hora o marido, ex-marido ou o que quer que fosse, tecnicamente, o banqueiro naquela altura da vida, tomava sempre um copo no bar do Loco de La Colina. O facto é que Gavira estava sentado no terraço cheio de gente, com uma amiga e Peregil no interior, no balcão junto à porta, fazendo de guarda-costas. O seu chefe tinha pedido um malte escocês com muito gelo e saboreava o primeiro trago, mirando a sua acompanhante, uma atraente modelo sevilhana que, apesar do seu notório défice intelectual, ou talvez precisamente graças a ele, começava a ser conhecida mercê de uma breve frase de um anúncio no Canal Sur acerca de uma certa marca de soutiens. A frase engenhosa era "o busto é meu" e a modelo - uma tal Penélope Heidegger, que tinha motivos anatómicos para o afirmar - pronunciava-a com devastadora sensualidade. A tal ponto que, como saltava à vista, Pencho Gavira se dispunha muito seriamente a partilhar durante as próximas horas e não pela primeira vez, a propriedade titular do referido busto. Uma forma como qualquer outra, pensava Peregil, de esquecer por um momento o Banco Cartujano, a igreja e toda aquela confusão que o trazia pelas ruas da amargura.

O esbirro arranjou o cabelo sobre o crânio com a palma da mão e olhou em redor. Do seu posto junto ao balcão e à porta podia ver a Calle Placentines até à esquina, incluindo a generosa porção de coxas da tal Penélope, deixadas a descoberto, sob a mesa, pela mini-saia de licra, junto das pernas cruzadas de Pencho Gavira, o qual estava em mangas de camisa, com a gravata desapertada e o casaco pendurado nas costas da cadeira, porque a temperatura era amena. Apesar de tudo o que estava a passar-se, Gavira tinha bom aspecto: todo penteado com fixador e o caracol negro atrás da orelha, boa figura e cheirando a dinheiro, o relógio de ouro reluzente no pulso forte e moreno. No cabo musical do bar soava Europa, de Santana. Uma cena feliz, aprazível, quase doméstica. E Peregil disse para consigo que tudo parecia correr sobre rodas. Não havia rasto do cigano Mairena nem do Pollo Muelas e o ardor da uretra desaparecera com um frasco de Blenox. E, nesse momento, precisamente quando mais relaxado e tranquilo se sentia, augurando um bom momento em nome do seu chefe e de si mesmo - controlava um par de jeitosas sentadas ao fundo, com as quais havia estabelecido contacto visual - e pedia outro uísque de doze anos - tuelf years old, dissera ele ao empregado com aprumo cosmopolita - lembrou-se de pensar por onde andariam àquela hora Don Ibrahim, o Potro e a Nina, e que tal estariam os assuntos que tinham em mãos. Segundo as últimas instruções, preparavam-se para queimar um pouco a igreja, o bastante para impedir a missa às quintas-feiras e pô-la fora de serviço; mas, para já, não tinha resultado. Teria, certamente, uma mensagem no gravador ao chegar a casa. Eis no que pensava Peregil, enquanto emborcava o conteúdo do copo que acabavam de colocar em cima do balcão. E foi então que viu a duquesa jovem e o cura de Roma dobrar a esquina, e por pouco não se engasgou com um cubo de gelo.

Afastou-se um pouco do balcão, abeirando-se da porta sem sair à rua. Pressentia uma catástrofe. Por muita Penélope e muito busto que houvesse pelo meio, não era segredo para ninguém que Pencho Gavira continuava a sentir ciúmes da sua ainda legítima. E, mesmo que assim não fosse, a capa da Q + 5 e as fotografias com o toureiro Curro Maestral constituíam motivos de sobra para que o banqueiro andasse aceso, e muito. Para cúmulo, o cura tinha uma pinta estupenda, bem vestido, um ar saudável, com classe. Como Richard Chamberlain em Pássaros Feridos, mas mais macho. De modo que Peregil se pôs a tremer, tanto mais que viu assomar discretamente à esquina a cabeça do Potro del Mantelete, de braço dado com a Nina Punales. Pouco depois Don Ibrahim veio juntar-se a eles e os três sócios ficaram ali, desconcertados e disfarçando a custo, e Peregil não sabia por onde se enfiar. Como se já não bastasse...

Pencho Gavira tinha as têmporas a latejar, quando se ergueu lentamente, tentando conter-se.

- Boa noite, Macarena.

"Não ajas nunca sob o primeiro impulso", dissera-lhe uma vez o velho Machuca, estava ele a começar a vida. "Há coisas que te fazem descer a adrenalina, ocupa as mãos e deixa livre o pensamento. Ganha tempo." De modo que vestiu o casaco e abotoou-o cuidadosamente, enquanto fitava os olhos da mulher. Frios como dois círculos de escarcha escura.

- Olá, Pencho.

Mal tinha olhado para a acompanhante, um quase imperceptível ricto de desprezo na comissura da boca perante a saia apertada e o decote comprimindo aquele busto que era património nacional. Por um momento, Pencho ficou sem saber quem merecia acusações. Toda a esplanada, o bar e a rua inteira estavam a olhar para eles.

- Querem tomar alguma coisa?

Os seus muitos inimigos podiam dizer tudo a seu respeito, menos que era um homem pouco comedido. Ainda lhe restara ânimo para meio sorriso cortês, embora tivesse tensos os músculos todos do corpo e um véu encarnado toldando-lhe a visão, à medida que aumentavam as marteladas no cérebro e o sangue batia fortemente nos ouvidos. Ajeitou o nó da gravata e os punhos da camisa de modo a mostrar os botões, fitando o cura, à espera que fossem apresentados. O cavalheiro estava muito elegante, com um fato leve feito por medida, camisa de seda negra e cabeção. Era também muito alto, o fulano. Quase mais dois palmos que ele. Pencho Gavira não gostava de tipos altos. Especialmente quando se exibiam à noite em Sevilha, com a sua mulher. Perguntou a si mesmo se ficaria muito mal partir a cara a um sacerdote à porta de um bar.

- Pencho Gavira. O padre Lorenzo Quart.

Ninguém fez menção de se sentar, e Penélope Heidegger manteve-se na sua cadeira, momentaneamente esquecida, à margem do assunto. Gavira estendeu a mão ao outro, apertando com força e notou que ele a segurava com firmeza. O cura de Roma possuía uns olhos inexpressivos e tranquilos, e o banqueiro pensou que, afinal de contas, o tipo não tinha que estar ao corrente de nada. Mas, quando se voltou para fitar a mulher, os olhos de Macarena pareceram-lhe bandarilhas negras. Começou a sentir-se mais irritado do que era capaz de controlar. Notava os olhos das pessoas postos nele: aquilo ia dar que falar a semana inteira.

- Agora sais com curas?

Não quisera dizê-lo daquela maneira. Nem sequer quisera dizê-lo, mas estava dito. Viu, então, deslizar um levíssimo sorriso de triunfo nos lábios de Macarena e soube que caíra na ratoeira. Isto pô-lo ainda mais furioso.

- Isso é uma grosseria, Pencho.

As coisas eram claras e tudo o que dissesse seria tomado contra ele. Ela ia apenas a passar e, naquele terraço, Sevilha inteira servia de testemunha. Podia até apresentar o cura alto como sendo o seu director espiritual. Com tudo isto, o cura alto olhava os dois sem abrir a boca, prudente e à espera. Era óbvio que não queria causar problemas, mas também não se mostrava preocupado ou incomodado com a situação. Tinha mesmo um aspecto simpático, tão silencioso e com aquele ar desportivo, de jogador de basquete vestido de luto por Giorgio Armani.

- Como vamos de celibato, padre?

Dir-se-ia que outro Pencho Gavira diferente dele tomava as rédeas da situação e que o banqueiro se deixava levar sem poder evitá-lo. Quase resignado com a sua sorte, sorriu depois de dizer aquilo. Era um sorriso largo, inquietante. "Malditas sejam todas as mulheres do mundo", dizia o sorriso. "Por culpa delas estamos nós aqui, cara a cara."

- Bem, obrigado - a voz do sacerdote parecia ponderada, senhora de si, mas Gavira observou que se pusera um pouco de lado. Já não lhe oferecia, como a princípio, o corpo de frente, mas parecia dispor-se a entrepor o ombro esquerdo no meio dos dois. E também tirara a mão esquerda do bolso. "Este cura já levou", pensou o banqueiro.

- Há dias que tento falar contigo - Gavira voltava-se para Macarena, sem perder de vista o outro. - E não vens ao telefone.

Ela encolheu os ombros, desdenhosa.

- Não há nada para falar - disse muito devagar e claramente. - Além disso, tenho andado ocupada.

- Bem vejo.

Na sua cadeira, a Heidegger cruzava e descruzava as pernas em benefício dos transeuntes, do público e dos empregados. Acostumada a ser o alvo das conversas, sentia-se deslocada.

- Não me apresentas? - perguntou aborrecida, a Gavira.

- Cala-te - o banqueiro encarava de novo o sacerdote. - Quanto a si...

Viu, pelo canto do olho, que Peregil se aproximara um pouco da porta, para o caso de vir a ser preciso. Nesse momento passou pela rua um tipo de casaco aos quadrados e com um braço ao peito. Tinha o nariz esborrachado, como os pugilistas e olhou fugazmente Peregil, como se esperasse dele algum sinal. Não obtendo resposta, seguiu caminho rua abaixo, perdendo-se depois da esquina.

- Quanto a mim - disse o sacerdote. Estava terrivelmente tranquilo e Gavira perguntou a si mesmo como iria sair daquela sem perder a cara ou dar escândalo. Entre ambos, Macarena desfrutava o espectáculo.

- Sevilha engana muito, Padre - disse Gavira. - Surpreendê-lo-ia como pode tornar-se perigosa, quando não se conhecem as regras.

- As regras? - o outro fitava-o com grande calma. - Quem me surpreende é você, Moncho.

- Pencho.

- Ah!

O banqueiro sentia que perdia a cabeça por momentos:

- Não gosto de curas sem sotaina - acrescentou, áspero. - Parece que têm vergonha.

O sacerdote olhava para Gavira, imperturbável.

- Não gosta - repetiu, como se isso lhe desse que pensar.

- De todo - o banqueiro abanava a cabeça. - E aqui as mulheres casadas são sagradas.

- Não sejas imbecil - disse Macarena.

O cura olhou distraidamente para as coxas da Heidegger, e de novo para o seu interlocutor.

- Compreendo - disse.

Gavira ergueu a mão, apontando o dedo indicador para o peito do outro.

- Não - a voz tornara-se-lhe lenta, espessa, com ecos ameaçadores. Arrependia-se de cada uma das palavras mal acabava de as pronunciar, mas era impossível evitá-lo; tudo aquilo mais parecia um pesadelo. - Você não compreende nada de nada.

O cura olhava para o dedo, como se o surpreendesse vê-lo ali. O véu encarnado espessava-se diante dos olhos de Gavira que, mais do que ver, sentiu Peregil aproximando-se um pouco mais, bom subalterno pronto para a defesa. Agora sim, havia inquietação nos olhos de Macarena, como se tudo fosse mais longe do que o previsto. Gavira sentia um irreprimível desejo de os esbofetear, primeiro ela, depois o cura, despejando no gesto toda a raiva e o mau-humor acumulados ao longo das últimas semanas: a crise do seu casamento, a igreja, Puerto Targa, o conselho de administração que, dentro de poucos dias, ia decidir o seu futuro à frente do Cartujano. Por instantes toda a sua vida lhe passou diante dos olhos, a luta passo a passo para levantar cabeça, a renda de bilros com Don Octavio Machuca, o casamento com Macarena, as inúmeras vezes que tinha jogado cara ou coroa e havia ganho. E agora que estava prestes a chegar, Nossa Senhora das Lágrimas despontava ali, a meio de Santa Cruz, como um escolho. Era tudo ou nada: "ou lhe foges ou te afundas. E, no dia em que deixares de pedalar, cais", como repetia o velho.

Fez um esforço para não erguer o punho e bater no cura alto. Viu, então, que este tinha pegado num copo, o seu, e o segurava entre os dedos com ar distraído, mas muito próximo do bordo, de onde podia parti-lo com um simples movimento do pulso. E Gavira compreendeu que aquele não era um clérigo dos que oferecem a outra face. Isto teve a virtude de o acalmar de imediato, fazendo-o olhar o outro com curiosidade. E mesmo com retorcido respeito.

- Esse copo é meu, padre.

O seu tom de voz era quase de desconcerto. O sacerdote desculpou-se com um leve sorriso, deixando o copo em cima da mesa, onde Penélope Heidegger tamborilava, impaciente, com as unhas laçadas de rosa. Fez, depois, uma ligeira vénia e ele e Macarena seguiram o seu caminho sem mais comentários. E Pencho Gavira levou o copo de malte à boca e bebeu um longuíssimo trago, vendo-os ir, pensativo e mesmo agradecido, enquanto, nas suas costas, Penélope exalava um suspiro de alívio.

- Leva-me a casa - disse a Heidegger, que se pusera de má cara. Gavira, que tinha os olhos fixos na esquina onde desapareciam a sua mulher e o cura, nem sequer se voltou. Acabava de beber o copo, reprimindo a vontade de o atirar ao chão e parti-lo.

- Vai pedir à tua mãe.

Depois deu o copo a Peregil com um olhar que era uma ordem. E Peregil, com um novo e resignado suspiro, deixou cair o mais discretamente que pôde o copo entre os pés. Ao fazê-lo sobressaltou um estapafúrdio par que, nesse momento, passava diante do bar: um gordo vestido de branco, de chapéu e bengala, dando o braço a uma mulher de vestido às pintas, caracolito como o de Estrellita Castro e uma máquina fotográfica na mão.

Dobrada a esquina, reuniram-se os três sob o pórtico árabe da mesquita, nos degraus que cheiravam a esterco de cavalo e à Sevilha de sempre. Don Ibrahim sentou-se com dificuldade, apoiado na bengala, com a cinza do charuto a cair sobre a imensa barriga.

- Tivemos sorte - disse. - Havia luz suficiente para as fotografias. Mereciam descansar uns minutos e estava de bom humor, com a satisfação do dever cumprido. Audaces fortuna llevat e tudo o mais, se bem que não estivesse muito seguro do verbo. A Nina Punales veio sentar-se ao lado dele, tilintando argolas e pulseiras, a máquina fotográfica sobre a saia.

- Bem - aclarou a voz aguardentosa e rouca. Tinha os sapatos ao lado e esfregava os tornozelos ossudos, cheios de varizes. - Desta vez Peregil não pode queixar-se. Por nada deste mundo.

Don Ibrahim abanava-se com o panamá, acariciando o chamuscado bigode. Nesse momento de triunfo, o aroma do havano sabia-Lhe a glória bendita:

- Não - rubricou, festivo. - Não pode. Ele próprio é testemunha ocular de que tudo foi feito de uma forma impecável, quase castrense. Não é verdade, Potro?... Apresentação, acção e desenlace. Como os comandos nos filmes.

De pé, como se montasse guarda, pois ninguém o mandara sentar-se, o Potro del Mantelete fez um gesto afirmativo:

- Precisamente - disse - Apresentação e tudo isso.

- Por onde andam os pombinhos? - interessou-se o ex-falso letrado, encasquetando de novo o chapéu.

O Potro deitou os olhos pela rua abaixo e disse que "a caminho do Arenal" tinham mais que tempo para os alcançar. A luz amarelada dos candeeiros tornava-lhe o rosto ainda mais duro em torno do nariz esborrachado. Don Ibrahim tirou a máquina da saia da Nina e entregou-lha.

- Anda, tira o rolo, não vá estragar-se.

Obediente, o Potro abriu a máquina entre a mão do braço ao peito e a sã, enquanto Don Ibrahim procurava o outro rolo. Finalmente encontrou-o, abriu o invólucro e passou-o ao comparsa.

- Rebobinaste, imagino - comentou à passagem - Antes de abrir a máquina.

O Potro pusera-se muito quieto, como se o árbitro acabasse de ordenar-lhe que não baixasse tanto a cabeça e observava Don Ibrahim com toda a atenção. De repente fechou a máquina.

- O que é que devia rebobinar? - perguntou, desconfiado e erguendo uma sobrancelha.

Com o rolo novo numa das mãos e o charuto na outra, Don Ibrahim ficou a olhar para ele um longo momento:

- Caramba! - disse.

Caminharam em silêncio até ao Arenal. Quart verificou que Macarena se voltava para, de vez em quando, o fitar, mas nem um nem outro disseram o que quer que fosse. Também não é que tivessem muito para dizer, salvo esclarecer as dúvidas do sacerdote sobre o encontro com o marido: casual ou propositado. Imaginou, porém, que nunca viria a saber.

- Por aqui se foi - disse, por fim, Macarena, quando chegaram ao rio.

Quart olhou em torno. Estavam junto da antiga torre árabe chamada "dei Oro", descendo por uma larga escadaria até aos molhes do Guadalquivir. Não corria uma brisa e o luar imobilizava as sombras das palmeiras, jacarandás e buganvílias.

- Quem?

- O capitão Xaloc.

A margem estava deserta, com os barcos de turistas escuros e imóveis, amarrados aos seus cabos, junto dos pontões de betão, água negra reflectia as luzes de Triana na outra banda, delimitada por faróis de automóveis nas pontes de Isabel II e San Telmo.

- Este era o antigo porto de Sevilha - disse Macarena. Trazia o casaco sobre os ombros e continuava a apertar a bolsa de cabedal contra o peito. - Há apenas um século, atracavam aqui barcos a vapor, veleiros... Havia ainda restos do que fora o grande centro do comércio com a América e os barcos zarpavam para descerem pelo rio até Sanlúcar e depois até Cádis, antes de atravessar o Atlântico - deu uns passos e deteve-se junto de uma das escadas que desciam até à água escura. - Em velhas fotografias da época podem ver-se bergantins, escunas, chalupas e todos os tipos de embarcações amarradas às duas margens... Do outro lado ficavam os barcos dos pescadores, e também uns com toldos brancos que traziam de Triana as empregadas da Fábrica de Tabacos. Aqui, neste molhe, ficavam os alpendres do porto, as gruas e os armazéns.

Quedou-se em silêncio, contemplando, mais acima, o passeio do Arenal, a cúpula do teatro da Maestranza, os edifícios modernos que se entrepunham entre eles e a torre da Giralda, iluminada ao longe e o oculto Bairro de Santa Cruz.

- Parecia uma floresta de mastros e velas - acrescentou, ao cabo de um instante. - Era esta a paisagem que Carlota avistava da torre do pombal.

Tinham voltado a passear sob a sombra lunar das árvores, ao longo do molhe. Um par de jovens beijava-se no círculo de luz de um candeeiro de ferro e Quart viu que Macarena os olhava com um sorriso pensativo.

- Parece sentir saudade - disse ele - de uma Sevilha que nunca conheceu.

O sorriso da mulher acentuou-se, um momento antes que o seu rosto voltasse a cair na penumbra.

- Engana-se. Conheci-a muito bem. E conheço-a. E e sonhei muito com esta cidade. Algumas coisas foram-me contadas pelo meu avô e a minha mãe, outras não mas contou ninguém - tocou no pulso, ali onde devia latejar. - Sinto-as aqui.

- Porque escolheu Carlota Bruner? Macarena tardou uns passos a responder.

- Ela é que me escolheu a mim - voltava-se ligeiramente para Quart. - Os sacerdotes acreditam em fantasmas?

- Não muito. Os fantasmas são refractários à luz eléctrica, à energia nuclear... Aos computadores.

- Nisso reside talvez o seu encanto. Eu sim, acredito, pelo menos num certo género. Carlota era uma jovem romântica que lia novelas. Vivia num mundo artificial, a salvo de tudo. Refiro-me a um homem de verdade. Foi como se lhe tivesse caído um raio aos pés e nunca conseguiu resignar-se. Desgraçadamente, Manuel Xaloc também se apaixonou por ela.

Passavam, por vezes, junto da sombra imóvel de um pescador sentado no molhe, a brasa de um cigarro, o reflexo de luz no extremo da cana e da linha, e um chapinhar na água tranquila. Um peixe agitava-se sobre o empedrado do molhe e a Lua cintilou-lhe nas escamas húmidas, até que uma mão escura o restituiu ao balde de que, na sua agonia, tinha escapado.

- Fale-me de Xaloc - pediu Quart.

- Era um jovem e pobre segundo oficial de trinta anos, a bordo de um dos vapores que faziam o percurso Sevilha-Sanlúcar. Conheceram-se durante uma viagem que Carlota fez com os pais rio abaixo. Dizem que era também um homem com boa figura e imagino que o uniforme devia ajudar. Já se sabe que isso acontece frequentemente com os marinheiros, os militares...

Parecia prestes a acrescentar "e com certos sacerdotes", mas a frase ficou em suspenso. Passavam junto de um barco de turistas atracado ao molhe, negro e silencioso. À luz da Lua, Quart conseguiu distinguir-lhe o nome: Camla Fina.

- O facto é que - prosseguia Macarena - Manuel Xaloc foi surpreendido rondando as grades da Casa del Postigo e o meu bisavô Luís conseguiu que ele perdesse o emprego. Moveu ainda todas as suas influências, que eram muitas, no sentido de que não arranjasse trabalho em parte alguma. Desesperado, decidiu partir para a América, a fim de fazer fortuna. E ela jurou esperá-lo. É um tema perfeito para um folhetim romântico, não é verdade?

Caminhavam juntos e de novo os seus passos os aproximaram até se tocarem. Macarena fugiu, então, de um cabo de ferro no escuro, e o movimento trouxe-a até Quart. Pela primeira vez, este teve-a muito próximo, contra as suas costas. Pareceu-lhe que levava uma eternidade a afastar-se de novo.

- Xaloc embarcou aqui mesmo - acrescentou ela. - A bordo de uma escuna chamada Nausicaa. E Carlota não teve sequer licença para lhe dizer adeus. Viu, do pombal, o veleiro desaparecer rio abaixo e, embora fosse impossível distingui-lo de tão longe, assegurou sempre que ele ia à popa, acenando com um lenço, até que o barco se perdeu de vista.

- Como correram as coisas com o marinheiro?

- Correram bem. Ao fim de algum tempo, conseguiu comandar um barco e fez contrabando entre o México, a Florida e a costa de Cuba - havia na voz de Macarena um laivo de admiração e Quart entreviu fugazmente Manuel Xaloc na ponte de um barco, entre duas luzes, uma coluna de fumo perseguindo-o no horizonte. - Contam que não foi propriamente um santo e que praticou actos de pirataria. Alguns barcos que se cruzaram com o seu apareceram à deriva, misteriosamente saqueados, ou afundaram-se sem deixar rasto. Suponho que teria pressa em ganhar dinheiro e regressar... Navegou durante seis anos pelo Caribe e tornou-se famoso. Os norte-americanos puseram-lhe a cabeça a prémio. E, um dia, inesperadamente, desembarcou neste mesmo lugar, com uma fortuna em contas bancárias e moedas de ouro, além de uma bolsa em veludo com vinte maravilhosas pérolas para o seu casamento.

- Apesar de não ter recebido notícias dela.''

- Apesar disso - tinham-se detido num molhe de pontões, cujos pilares de betão se afundavam na água; juncos e outras plantas cresciam entre eles. - Suponho que também Manuel Xaloc seria um romântico. Julgou, e com razão, que o meu bisavô tinha tornado Carlota incomunicável. Confiava, porém, no seu amor. Esperar-te-ei, dissera-lhe ela. E, de certo modo, não estava enganado. Ela continuava a esperá-lo na torre, contemplando o rio - Macarena contemplava também a corrente escura, sob o molhe. - Havia dois anos que perdera a razão.

- Chegaram a ver-se?

- Sim. O meu bisavô estava destroçado mas, a princípio, manteve a negativa. Era um canalha arrogante, e culpava Xaloc pela desgraça. Finalmente, a conselho dos médicos e a pedido da mulher, acedeu a uma entrevista. O capitão chegou, uma tarde, ao pátio que você conhece, vestido com o uniforme da marinha mercante: azul-marinho, botões dourados... Está a ver a cena? Tinha a pele tisnada pelo sol, o bigode e as patilhas haviam encanecido. Contam que aparentava mais vinte anos do que realmente tinha. Carlota não o reconheceu. Tratou-o como um estranho, sem lhe dirigir a palavra. Ao fim de dez minutos, soaram as badaladas de um relógio e ela disse: "Tenho de ir para a torre. Ele pode regressar de um momento para o outro." E foi-se embora.

- E o que disse Xaloc?

- Não abriu a boca. A minha bisavó chorava, o meu bisavô estava consumido de desespero. Pegou então no boné e saiu. Foi para a igreja onde haviam sonhado casar e entregou ao pároco as vinte pérolas de Carlota. Passou a noite caminhando por Santa Cruz e, ao amanhecer, partiu no primeiro veleiro que largou amarras. Desta vez ninguém o viu acenar com um lenço.

Havia uma lata de cerveja vazia no chão. Macarena empurrou-a com o pé, fazendo-a cair na água. Ouviu-se um ligeiro salpico e ambos ficaram a ver a pequena mancha escura desaparecendo na corrente.

- O resto - disse ela - pode lê-lo nos jornais da época. Estávamos em 1898 e, enquanto Xaloc navegava de regresso, o Maine voava pelo porto da Havana. O Governo espanhol autorizou a guerra naval contra a América do Norte e ele obteve uma licença para partir imediatamente. O seu barco era um iate armado muito rápido, o Manigua, com uma tripulação recrutada entre gentalha das Antilhas. Com ele forçou o bloqueio. Em Junho de 1898, atacou e afundou dois navios mercantes no Golfo do México e teve um encontro nocturno com a canhoneira Sheridan, do qual nenhum dos dois saiu em boas condições...

- Diz isso com orgulho.

Macarena desatou a rir. Era verdade, disse. Sentia-se orgulhosa com o que podia ter sido seu tio-avô, por não partilhar a cegueira imbecil da família. Manuel Xaloc fora um homem a sério, e fora-o até ao fim. Sabia Quart que passara à história como o último corsário espanhol, e o único que tinha agido durante a guerra de Cuba? A sua façanha póstuma consistiu em romper o bloqueio do porto de Santiago, entrando de noite com mensagens e provisões para o Almirante Cervera. E, na madrugada de 3 de Julho, fez-se ao mar com os outros barcos. Podia ter ficado no porto, uma vez que era da marinha mercante e não estava sob as ordens da esquadra, que todos sabiam condenada ao desastre: velhos navios com más máquinas e mal armados contra couraçados e cruzadores ianques. Mas quis zarpar. Foi o último a fazê-lo, quando todos os espanhóis, que tinham saído uns atrás dos outros, estavam já a afundar-se ou a arder. Nem sequer tentou escapar, mas rumou em direcção aos navios inimigos, a todo o vapor, com um pavilhão negro içado junto da bandeira de Espanha. Quando se afundou, tentava ainda investir contra o couraçado Indiana. Não houve sobreviventes.

Reflectidas no rio, as luzes de Triana agitavam-se suavemente no rosto de Macarena.

- Vejo que conhece bem a história - disse Quart.

O sorriso dela veio lento, sem chegar a desabrochar inteiramente:

- Claro que conheço. Li os relatos da batalha centenas de vezes. Guardo ainda no baú os recortes dos jornais.

- Carlota nunca soube?

- Não - sentara-se num dos bancos de pedra, frente a um embarcadouro flutuante e procurava cigarros no bolso. - Esperou ainda doze anos àquela janela, contemplando o Guadalquivir. Pouco a pouco, os barcos foram desaparecendo e o porto seguiu o seu declive. As escunas deixaram de vir rio acima. E, um dia, também ela desapareceu da janela - meteu o cigarro na boca e enfiou a mão no decote, em direcção ao ombro esquerdo, para tirar o isqueiro. - A certa altura, a sua história e a do capitão Xaloc tornaram-se lendárias. Já lhe disse que até se fizeram canções acerca deles. De modo que foi enterrada na cripta da igreja onde se teria casado. E, por indicação do meu avô Pedro, que era o novo chefe da nossa casa depois da morte do pai de Carlota, as vinte pérolas foram encastoadas como lágrimas na imagem da Virgem.

Acendeu o cigarro, protegendo a chama do isqueiro na cova das mãos, esperou que arrefecesse e voltou a metê-lo sob a alça do soutien sem prestar atenção ao modo como Quart seguia os seus movimentos. Sumida na recordação do capitão Xaloc.

- Foi essa a homenagem do meu avô - prosseguiu, com a brasa do cigarro entre os dedos - à memória da sua irmã e ao homem que poderia ter sido seu cunhado. A igreja é agora o que deles resta. A igreja e as recordações de Carlota, as cartas e o resto - olhou para Quart como se subitamente tivesse recordado a sua presença. - Incluindo o postal.

- Resta também você e a sua memória.

O luar bastava para iluminar o sorriso de Macarena. Não havia nele uma ponta de alegria ou bem-estar.

- Eu morrerei, como morreram os outros - disse em voz baixa. - E o baú e aquilo que contém acabarão num leilão, entre objectos cobertos de pó - aspirou uma baforada de fumo e expeliu-a rapidamente, quase com despeito - Como tudo acaba.

Quart sentara-se junto dela. Os seus ombros roçavam-se ao de leve, mas não fez esforço algum para aumentar a distância. Era grato estar próximo. Chegava até ele o aroma suave do jasmim misturado com o do tabaco claro.

- Por isso trava a sua batalha. Ela meneou lentamente a cabeça:

- Sim. Não a do padre Ferro, mas a minha. Uma batalha contra o tempo e o esquecimento - continuava a falar em voz baixa, tanto que Quart tinha de fazer um esforço para captar as suas palavras. - Pertenço a uma casta que se extingue e estou ciente disso. Torna-se quase conveniente, pois já não há lugar para pessoas como estas, ou para memórias como a minha... Ou para histórias bonitas e trágicas como a de Carlota Bruner e do capitão Xaloc - a brasa do cigarro brilhou-lhe na boca, entre os dedos. - Limito-me a travar a minha guerra pessoal, a defender o meu espaço - elevava o tom de voz e já não parecia ensimesmada. Dirigia-se agora a Quart: - Quando terminar, encolherei os ombros e aceitarei que chegue o final com a consciência tranquila. À maneira desses soldados que só se rendem depois de disparar o último cartucho. Depois de ter cumprido o meu dever para com o nome que uso e as coisas que amo. Isso inclui Nossa Senhora das Lágrimas e a recordação de Carlota.

- Porque haveria de terminar tudo dessa maneira? - perguntou Quart com suavidade. - Podia ter filhos.

Alguma coisa atravessou o rosto da mulher como uma chicotada. Fez-se, depois, um silêncio desconcertante, muito longo, até que, por fim, ela falou de novo:

- Não me faça rir. Os meus filhos seriam uns extraterrestres, sentados diante do monitor de um computador, vestidos como nas comédias televisivas americanas; e o nome do capitão Xaloc soar-Lhes-ia a série de desenhos animados - lançou o cigarro à corrente do rio, e Quart seguiu com os olhos a trajectória da brasa, até que desapareceu na água. - De modo que me poupo a esse final. O que tiver de morrer, morrerá comigo.

- E o seu marido?

- Não sei. De momento, já o viu; em boa companhia - soltou uma curta gargalhada, tão carregada de desprezo e crueldade que Quart desejou nunca ser objecto de um riso como aquele. - Faça-mo-lo pagar tudo o que deve... Afinal, Pencho é do género de homens que gosta de bater com os nós dos dedos no balcão e sair de cabeça bem erguida - inclinou a testa e o gesto parecia um augúrio, ou uma ameaça. - Mas, desta vez, a conta vai ser muito alta. Demasiado cara.

- Ainda tem hipóteses?

Voltou-se para o olhar com uma estranheza trocista:

- Com quem? Com o seu negócio da igreja? Com a ordinária das mamas grandes?... Comigo? - ao mover-se na sombra, os olhos escuros reflectiam luzes distantes, palidez de luar. - Mais depressa as teria qualquer outro homem. Mesmo você.

- Não me meta nisso - exclamou Quart. O seu tom devia ter sido convincente, pois ela pôs a cabeça de lado, interessada.

- Porque não? Seria uma bonita vingança. E agradável. Pelo menos assim o espero.

- Uma vingança contra quem?

- Contra Pencho. Contra Sevilha. Contra tudo.

A sombra silenciosa e chata de um rebocador passou, rio abaixo, recortando-se na contraluz da outra margem. Pouco depois, chegou até eles um ruído surdo de máquinas que não parecia provir do barco, como se este deslizasse sem ajuda pela corrente.

- Parece um barco fantasma - disse ela. - Como a escuna em que se foi o capitão Xaloc.

A única luz visível da embarcação, o solitário fanal de bombordo, iluminava de vermelho o seu rosto. Seguiu-o com a vista, até que começou a virar na curva do rio e apareceu também a luz verde do outro costado. Depois a vermelha começou a ocultar-se lentamente, para apenas deixar o reduzido rasto verde, diminuindo até desaparecer por completo.

- Vem em noites assim - acrescentou, passados alguns instantes. - Com esta lua. E Carlota assoma à sua janela. Quer ir vê-la?

- A quem?

- A Carlota. Podemos ir até ao jardim e esperar. Como quando eu era pequena. Não gostaria de me acompanhar?

- Não.

Fitou-o longamente, em silêncio. Parecia surpreendida.

- Pergunto a mim mesma - disse depois - onde vai buscar esse maldito sangue-frio.

- Não é tão frio como crê - e Quart pôs-se a rir baixinho. - Neste momento tenho as mãos a tremer.

Era verdade. Tinha de conter-se para não rodear com elas a nuca da mulher, sob o rabo-de-cavalo e atraí-la a si. Deus dos Céus! Chegavam até ele, vindas de algum lugar remoto da sua consciência, as gargalhadas de monsenhor Paolo Spada. Criaturas abomináveis, Salomé, Jezebel. Invenção do Maligno. Ela chegou a mão e enlaçou os dedos de Quart, verificando que era real o tremor. A mão estava cálida e tíbia, e pela primeira vez não se tocaram, apertando-as numa saudação. Quart, então, desprendeu-se suavemente e bateu com toda a força, com o punho, no banco de pedra onde estavam sentados. A dor chegou-lhe até ao ombro como um estalido.

- Creio que são horas de regressar - disse, pondo-se de pé. Desconcertada, ela olhava-lhe a mão, depois o rosto. Em seguida ergueu-se, sem uma palavra, e ambos caminharam devagar até ao Arenal, evitando cuidadosamente roçar um no outro. Quart mordia os lábios para não gemer de dor. Sentia o sangue gotejar-lhe nos nós feridos dos dedos.

Há noites que são demasiado longas e aquela não tinha terminado. Quando Quart chegou ao Hotel Dona Maria e recebeu a chave das mãos de um sonolento porteiro, Honorato Bonafé estava sentado num cadeirão do vestíbulo, à sua espera. Entre os muitos aspectos desagradáveis daquele indivíduo, pensou, mal-humorado, o sacerdote, contava-se o de aparecer nas alturas mais inoportunas.

- Podemos falar um momento, Padre?

- Não, não podemos.

Com a mão ferida dentro do bolso e a chave na outra, Quart fez menção de seguir na direcção do elevador, mas Bonafé cortou-lhe o passo. Sorria do mesmo modo viscoso como na sua anterior entrevista. Vestia também de maneira idêntica: um amarrotado fato bege e a bolsa presa ao pulso por uma corrente. Quart olhou de alto o cabelo laçado do jornalista, a papada prematura e os olhos pequenos e astutos que o observavam. Nada de bom poderia ter trazido aquele indivíduo até ali.

- Tenho andado a investigar - disse Bonafé.

- Afaste-se - replicou Quart, disposto a pedir ao porteiro que o tirasse dali.

- Não lhe interessa saber o que sei?

- Nada do que tenha a ver consigo me interessa.

Bonafé franzia os lábios húmidos com um ar magoado, mantendo o sorriso ao mesmo tempo obsequioso e ruim.

- Que pena - deplorou. - Poderíamos chegar a um acordo. E a minha oferta é generosa - movia um pouco a grossa cintura, bamboleando-se. - O senhor conta-me umas coisas que eu possa citar sobre a igreja e o seu pároco, e em troca eu ofereço-lhe um bonito dado que ignora - o sorriso acentuou-se. - Entretanto, evitamos falar dos seus passeios nocturnos.

Quart quedou-se imóvel, sem acreditar no que acabava de ouvir:

- Do que está a falar?

O jornalista parecia satisfeito por ter despertado o seu interesse:

- Do que averiguei acerca do padre Ferro.

- Refiro-me - Quart continuava muito quieto, olhando-o fixamente - a isso dos passeios nocturnos.

O outro ergueu a mão, pequena, de unhas tratadas pela mani-cura, tirando importância ao assunto.

- Bem, que quer que lhe diga? Já sabe - entortou um olho. - A sua intensa vida social em Sevilha.

Quart apertou a chave na mão sadia, ao mesmo tempo que considerava a possibilidade de a utilizar contra o fulano. Mas era impossível. Nenhum sacerdote, nem mesmo uma pessoa tão falha de mansidão cristã e com a inquietante especialidade de Lorenzo Quart, podia pegar-se com um jornalista por causa de um nome de mulher, de noite e a vinte metros do Arcebispado de Sevilha, poucas horas depois de ter tido uma cena pública com um marido ciumento. Mesmo pertencendo ao IOE, por menos que isso mandavam uma pessoa evangelizar para a Antárctida. De modo que fez um esforço inaudito por manter a cabeça fria e conter-se. "A vingança pertence-me", dissera teoricamente o de Lá no Alto.

- Proponho-lhe um pacto, padre - disse Bonafé, sentindo-se no seu elemento. - Contamos umas coisas um ao outro, deixo-o à margem do caso e ficamos amigos. Pode confiar em mim. O facto de ser jornalista não significa que não possua um código moral - tocou no peito à altura do coração, teatral, os olhos reluzentes de cinismo entre as pálpebras inchadas. - Afinal, a minha religião é a Verdade.

- A Verdade - repetiu Quart.

- Isso mesmo.

- E que verdade quer contar-me acerca do padre Ferro?

O sorriso do outro acentuou-se de novo. Uma expressão servil. Cúmplice.

- Bom - olhava para as unhas, a ver o brilho. - Teve problemas.

- Acontece a qualquer um.

Bonafé fez estalar a língua num gesto mundano.

- Não deste género - baixava o tom, receoso de que os ouvisse o porteiro. - Pelos vistos, na sua anterior paróquia estava necessitado de dinheiro. De maneira que vendeu umas coisas: uma imagem valiosa, um par de quadros... Não cuidou devidamente da vinha do Senhor - ria, divertido com a sua própria piada. - Ou então bebeu o vinho.

Quart manteve-se impassível. Há muito que tinha sido amestrado para assimilar uma informação e analisá-la depois. Em todo o caso, sentiu uma incómoda pontada no seu orgulho. Se era verdade, ele devia ter sabido, mas ninguém o tinha informado.

- E o que tem isso a ver com Nossa Senhora das Lágrimas? Bonafé franzia os lábios, apreciativo.

- Nada, em princípio. Mas há-de convir que se trata de um bonito escândalo - o sorriso que Quart tanto detestava acanalhou-se. - O jornalismo é assim, Padre: um pouco daqui e dali... Basta uma ponta de verdade em alguma parte e temos uma história para a capa. Depois desmente-se, completa-se a informação, ou qualquer outra coisa. Mas, entretanto, esta semana vendi duzentos mil exemplares.

Quart fitou-o com desprezo:

- Ainda há um instante disse que a sua religião era a Verdade.

- Ai disse? - o desdém do sacerdote resvalava sobre o sorriso de Bonafé, que parecia blindado. - Devia estar a referir-me à verdade com minúscula, padre.

- Afaste-se.

- Perdão?

Bonafé já não sorria. Retrocedeu um passo, olhando, desconfiado, para a ponta aguçada da chave que o seu interlocutor segurava entre os dedos da mão esquerda. Quart tinha tirado a direita do bolso, com os nós inchados e cobertos de uma crosta de sangue seco e os olhos do jornalista iam de uma à outra, inquietos.

- Estou a dizer-lhe que se vá embora, ou faço que o expulsem. Posso até esquecer que sou clérigo e expulsá-lo eu mesmo - avançou um passo em direcção a Bonafé, que retrocedeu dois. - A pontapé.

O jornalista protestou debilmente. A mão ferida de Quart intimidava-o:

- Não se atreverá...

Não disse mais. Havia precedentes evangélicos: os vendilhões do Templo e tudo aquilo. Havia mesmo um expressivo relevo sobre o tema, a poucos metros dali, sobre a porta da mesquita, entre São Pedro e um São Paulo que, por certo, empunhava a espada. De modo que a mão sã de Quart o atirou dois ou três metros atrás, em direcção à porta, perante os surpreendidos olhos do porteiro da noite. Era como arrastar uma coisita miúda e fofa, sem consistência. Desconcertado, Bonafé tentava restabelecer-se dando um jeito à roupa, quando apanhou um último empurrão que o projectou directamente através da porta aberta até à rua. A bolsa que trazia no pulso desprendera-se, caindo por terra. Quart inclinou-se para a apanhar e atirou-a aos pés do outro, no passeio.

- Não quero vê-lo mais - disse. - Nunca mais.

À luz do candeeiro da rua, o jornalista tentava recompor a sua dignidade. Tinha as mãos a tremer e estava despenteado, lívido de cólera e humilhação.

- Ainda não acabei consigo - articulou, por fim. A voz quebrava-se-lhe num soluço quase feminino. - Filho da puta.

Não era a primeira vez que lhe chamavam aquilo, de modo que Quart encolheu os ombros. Depois, desligando-se do assunto, fez meia volta para atravessar o vestíbulo a caminho do quarto. Na recepção, ainda com a mão junto do telefone - momentos antes, considerava a hipótese de chamar a polícia - o porteiro da noite estava de olhos arregalados. "Ver para crer" dizia o seu olhar, num misto de estupefacção e respeito. "Que cura!"

À parte a inflamação e os arranhões nos nós dos dedos da mão direita, Quart não tinha dificuldade em mover a articulação. De forma que, maldizendo em voz alta a sua estupidez, despiu o casaco e foi até à casa de banho para lavar a ferida com desinfectante. Em seguida, aplicou sobre a mão um lenço com o gelo que conseguiu no minibar do quarto. Deixou-se ficar assim um instante à janela, contemplando a praça Virgem dos Reis e a catedral, iluminadas atrás do beiral do Arcebispado, sem conseguir tirar Honorato Bo-nafé da cabeça.

Quando o gelo acabou de derreter, a mão já não estava tão mal. Foi, então, ao casaco e, antes de o pendurar num cabide, dentro do armário, tirou tudo o que tinha nos bolsos, arrumando-o em cima da cómoda: carteira, caneta, cartões para tomar notas, lenços de papel, moedas soltas. O postal do capitão Xaloc ficou virado para cima, mostrando a velha fotografia amarelada da igreja, o aguadeiro com o seu burrico diluído como um fantasma no halo esbranquiçado que cercava a ilustração. E a imagem, a voz, o perfume de Macarena Bruner chegaram, subitamente, até ele, uma vez rompido o dique onde aquilo esperava o momento de transbordar. A igreja, a sua missão em Sevilha, Bonafé esfumaram-se de súbito, como a silhueta do aguadeiro evanescente, e tudo foi apenas ela: o seu meio sorriso na penumbra dos molhes do Guadalquivir, o reflexo de mel nos olhos escuros, o perfume suave da sua proximidade, a pele da coxa onde Carmen, a "cigarreira", enrolava folhas de tabaco húmido sob a saia arregaçada e virada... Macarena despida numa tarde ardente, contraste sobre lençóis brancos e o sol filtrando-se em riscas horizontais entre as persianas, com minúsculas gotas de suor na raiz do cabelo negro, no púbis escuro e nas pestanas.

Continuava a fazer muito calor. Era quase uma da madrugada, quando abriu o chuveiro e se despiu lentamente, deixando cair a roupa aos pés. E, enquanto o fazia, o espelho do armário devolveu-Lhe a imagem de um desconhecido. Um tipo alto de olhar sombrio que descalçava os sapatos e as peúgas, despia a camisa e, depois, de tronco nu, se inclinava para desapertar o cinto e deixar cair no chão as calças negras. Os calções de algodão branco desceram nas coxas, descobrindo o sexo excitado com a recordação de Macarena. Por um instante, Quart observou o estranho que o fitava com atenção do outro lado do espelho. Delgado, de ventre chato, ancas estreitas, peitorais marcados, firmes, como a curva dos músculos nos ombros e nos braços. Tinha bom aspecto aquele indivíduo silencioso como um soldado sem idade e sem tempo, desprovido da sua cota de malha e das suas armas. E perguntou a si mesmo de que raio lhe servia aquele bom aspecto.

O rumor da água e a consciência do seu próprio corpo trouxeram até ele a lembrança de outra mulher. Tinha acontecido em Sarejevo, no mês de Agosto de 92, durante a curta e arriscada viagem que Quart fizera à capital bósnia para servir de intermediário na evacuação de monsenhor Franjo Pavelic, um arcebispo croata muito estimado pelo papa Wojtila, ameaçado tanto pelos muçulmanos bósnios como pelos sérvios. Naquela ocasião, foram necessários 100 000 marcos alemães, levados por Quart a bordo de um helicóptero das Nações Unidas - maleta presa no pulso por uma corrente e escolta de capacetes azuis franceses - para que uns e outros consentissem na evacuação do prelado para Zagreb, sem lhe darem um tiro num controlo de estrada, como já tinham feito ao seu vigário, monsenhor Jesic, morto por um franco-atirador. Era a Sarajevo da época dura, bombas nas bichas para a água e o pão, vinte ou trinta mortos por dia e centenas de feridos que se amontoavam, sem luz e sem medicamentos, nos corredores do hospital de Kosevo; quando já não havia mais terra nos cemitérios e as vítimas eram sepultadas em campos de futebol. Jasmina não era precisamente uma prostituta. Havia raparigas que sobreviviam oferecendo-se como intérpretes a jornalistas e diplomatas no Hotel Holiday Inn, e que muitas vezes trocavam com eles mais do que palavras. O preço de Jasmina era tão relativo como tudo o mais naquela cidade: uma lata de conservas, um maço de cigarros. Tinha-se aproximado de Quart induzida pela sua indumentária eclesiástica, contando-lhe uma história que, na cidade sitiada, se tornava pouco original: um pai inválido e sem tabaco, a guerra, a fome. Quart prometeu-lhe conseguir cigarros e alguma comida, e ela voltou à noite, vestida de negro para escapar aos franco-atiradores. Por um punhado de marcos, Quart arranjou-lhe meio pacote de Malboro e um caixote de rações militares. Naquela noite houve água corrente nos quartos e ela pediu-lhe licença para tomar o primeiro banho desde há um mês. Tinha-se despido à luz de uma vela, pondo-se debaixo do jacto de água, enquanto ele a olhava, fascinado, de costas contra o umbral da porta. Era loira, de pele clara, e tinha os seios grandes e firmes. Ali, com a água a escorrer-Lhe pelo corpo, voltara-se para fitar Quart com um sorriso convidativo, agradecida. Mas ele ficou imóvel, encostado à porta, limitando-se a devolver-lhe o sorriso. Daquela vez não fora uma questão de regras. Simplesmente, certas coisas não podiam ser feitas em troca de meio pacote de cigarros e uma ração de comida. De modo que, quando ela se enxugou e vestiu, desceram ao bar do hotel e, à luz doutra vela, beberam meia garrafa de conhaque, ao mesmo tempo que, lá fora, as bombas sérvias continuavam a cair. Depois, com o meio pacote e a comida, Jasmina deslizou um rápido beijo na boca do sacerdote e saiu a correr, por entre as sombras.

Sombras e rostos de mulher. A água fria a correr-lhe pela cara e os ombros fez muito bem a Quart. Mantinha a mão ferida longe do jacto, apoiada nos azulejos da parede e deixou-se ficar assim um momento, imóvel, com a pele eriçada. Depois saiu e a água pingava-lhe por todo o corpo, deixando manchas nos ladrilhos do chão. Enxugou-se ligeiramente com uma toalha e deixou-se cair na cama, de costas. Rostos de mulher e sombras. Sob o seu corpo despido, a silhueta húmida ficava impressa nos lençóis. Meteu a mão ferida entre as coxas e sentiu crescer a carne, vigorosa e endurecida pelo pensamento e as lembranças. Vislumbrava, ao longe, a silhueta de um homem caminhando sozinho, entre duas luzes. Um templário solitário, num terreno deserto, debaixo de um céu sem Deus. Fechou os olhos, angustiado. Tentava rezar, desafiando o vazio oculto em cada palavra. Sentia uma imensa solidão. Uma tranquila e desesperada tristeza.

 

                                       IN ICTU OCULI

Vede esta casa. Foi construída por um espírito santo.

Barreiras mágicas a protegem.

         (Livro dos Mortos)

 

Ia a manhã a meio, quando Quart foi à igreja, após uma curta visita ao Arcebispado e outra ao subcomissário Navajo. Nossa Senhora das Lágrimas estava deserta e o único sinal de vida era a lamparina do Santíssimo, ardendo junto ao altar. Sentou-se num banco e ficou um longo momento a olhar, em torno, os andaimes contra as paredes, o tecto enegrecido, os relevos dourados do retábulo na penumbra. Quando Oscar Lobato saiu da sacristia, não mostrou surpresa por o encontrar ali. Aproximou-se, até se achar de pé a seu lado, olhando-o inquisitivo. O vigário vestia uma camisa de um cinzento clerical, calças de ganga e sapatilhas desportivas. Parecia ter envelhecido desde o incidente do último encontro. Tinha o cabelo loiro despenteado e marcas de fadiga sob as lentes dos óculos. A sua pele estava com um aspecto gorduroso, por ter madrugado muito ou passado a noite em branco.

- Vésperas ataca de novo - disse-lhe Quart.

Depois mostrou-lhe a cópia de uma mensagem que acabava de receber por fax enviado de Roma, onde tinha chegado por volta da uma da manhã: à mesma hora em que ele discutia com Bonafé no vestíbulo do Hotel Dona Maria. Porém, o agente do IOE não contou nada disto ao padre Oscar, nem tão-pouco que, como na ocasião anterior, a equipa do padre Arregui tinha conseguido desviar o intruso para um arquivo paralelo, onde deixara a sua mensagem, julgando fazê-lo no computador pessoal do Santo Padre. Perseguido o seu sinal pelo padre Garofi, esta levou os jesuítas até à linha telefónica do Corte Inglês, no centro de Sevilha, onde o pirata fizera uma volta electrónica para dissimular o seu rasto:

O templo do Senhor é campo de Deus, é edificação de Deus. Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá. Porque o templo de Deus é santo.

- Primeira aos Coríntios - disse o padre Oscar, restituindo o papel a Quart.

- Sabe alguma coisa a este respeito?

O vigário ficou a olhar para ele, com um ar abatido e prestes a dizer alguma coisa. Limitou-se, porém, a mover a cabeça, negativo, ao mesmo tempo que se sentava ao lado dele.

- Continua a disparar às cegas - disse, por fim. Ficou calado um momento e, depois, torceu a boca:

- Não é tão bom como diziam - acrescentou. Quart guardou a mensagem de Vésperas no bolso:

- Quando parte?

- Amanhã à tarde.

- Creio que o seu novo destino é um mau sítio.

- Pior - sorriu com tristeza. - Chove um dia e meio por ano. É como se fosse desterrado para o deserto de Gobi.

Olhava de soslaio o seu interlocutor, como que atribuindo-lhe as culpas. Quart ergueu a mão, mostrando a palma vazia.

- Não tenho nada a ver com isso - disse suavemente.

- Eu sei - Oscar Lobato passou os dedos pelo cabelo, para trás e ficou um pouco em silêncio, olhando a lamparina acesa no altar. - É monsenhor Aquilino Corvo em pessoa que ajusta contas comigo. Considera que o atraiçoei - teve um risinho mal-humorado e voltou-se para Quart. - Sabe, eu era um jovem sacerdote de confiança, com um futuro pela frente. Foi isso que o convenceu a colocar-me junto de Don Príamo como tampão. E, em vez de ser uma toupeira do Arcebispado, passei-me para o inimigo.

- Alta traição - observou Quart.

- Isso mesmo. Há coisas que a hierarquia eclesiástica nunca perdoa.

Quart assentiu. Sabia-o perfeitamente.

- Porque o fez? Sabia melhor do que ninguém que era uma batalha perdida.

O vigário cruzava os pés sobre o reclinatório de madeira do banco, olhando para as sapatilhas.

- Creio que já respondi a essa pergunta durante a nossa última conversa - os óculos escorregavam-lhe sobre a cana do nariz, acentuando o seu aspecto inofensivo. - Mais tarde ou mais cedo, Don Príamo será afastado da paróquia e virá o tempo dos vendilhões... A igreja será derrubada e lançarão sortes sobre a sua túnica - ria-se do mesmo modo obscuro que dantes, de olhos fixos diante de si. - O que já não me parece tão certo é que a batalha esteja perdida.

Soltou um longo suspiro muito baixo, perguntando a si mesmo se falar com Quart de tudo aquilo valeria de alguma coisa. Depois ergueu os olhos para o altar e deixou-se ficar assim, imóvel. Parecia muito cansado.

- Ainda há dois meses atrás eu era um clérigo brilhante - acrescentou por fim. - Bastava manter-me agarrado ao cadeirão do arcebispo e ficar de boca calada... Mas descobri aqui a minha dignidade de homem e de sacerdote - olhava em redor e parecia encontrar nas paredes cobertas de andaimes razões ocultas para o seu discurso. - É paradoxal, não é? Que o tenha aprendido com um velho pároco de aspecto e maneiras detestáveis; um cura aragonês, teimoso como uma mula, amante de latim e astronomia - recostou-se no banco, cruzando os braços, de novo virado para Quart. - Como as coisas são... Anteriormente, o destino que me espera seria uma tragédia. Hoje vejo-o de outro modo. Deus está em toda a parte, está em cada recanto, porque está connosco. E Jesus Cristo jejuou quarenta dias no deserto. Monsenhor Corvo não sabe, mas é agora que sinto verdadeiramente que sou sacerdote, com uma razão para lutar e resistir. Desterrando-me, tudo o que conseguem é tornar-me mais combativo e mais forte - acentuou o sorriso desesperado, triste. - Acabam de me couraçar a fé.

- Você é Vésperas?

O padre Oscar tinha tirado os óculos e limpava-os à camisa. Os olhos míopes fitavam Quart com receio.

- Só isso lhe importa, não é?... A igreja, o padre Ferro, eu próprio, não lhe interessamos - estalou a língua com desprezo. - Você tem a sua missão.

Limpou vagarosamente uma lente, depois a outra, distraído, como se o pensamento discorresse longe.

- Quem é Vésperas - acrescentou, por fim - é o menos. Trata-se de uma advertência, ou de um apelo ao que de nobre resta nos alicerces desta empresa onde você e eu trabalhamos - pôs os óculos. - Um lembrete de que a honestidade e a decência ainda existem.

Quart sorriu com pouca simpatia:

- Que idade tem você? Vinte e seis anos?... No seu caso isso perde-se com a idade.

A expressão de desdém torcia a boca do padre Oscar:

- Esse cinismo foi-lhe emprestado em Roma, ou já o possuía?... - meneou a cabeça. - Não seja estúpido. O padre Ferro é um homem honrado.

Quart conteve um sarcasmo. Uma hora antes tinha estado no Arcebispado, efectuando uma prolongada visita aos arquivos onde estava guardado o dossier completo de Don Príamo Ferro. Um dossier cujos extremos lhe haviam sido confirmados, ponto por ponto, pelo próprio monsenhor Corvo numa breve conversa mantida na galeria dos Prelados, sob os retratos de Suas Eminências Ilustríssimas Gaspar Borja (1645) e Agustín Spínola (1640). Dez anos antes, o padre Ferro tinha sido submetido a um processo eclesiástico na diocese de Huesca, em consequência de uma venda não autorizada de bens da igreja. Durante a sua última etapa à frente da paróquia de Cillas de Ansó, nos Pire-néus, tinham desaparecido uma tela e um Cristo crucificado. O Cristo não era grande coisa, mas o bispo local deu pela falta do quadro, do primeiro quartel do século XV e atribuída ao Mestre de Retascón. Em todo o caso, tratava-se de uma paróquia de terceira categoria e esse tipo de incidentes eram comuns na época, quando os padres quase podiam dispor com plena liberdade do património que lhes estava confiado. O padre Ferro tinha-se saído bem, com uma simples admoestação do seu bispo.

A coincidência entre os dados e a informação sugerida por Honorato Bonafé era singular; e Quart intuiu que o arcebispo Corvo, tão reticente noutras alturas e tão franco desta vez, não via com desagrado que aquele ponto obscuro no passado do padre Ferro circulasse um pouco por aqui e ali. Chegou mesmo a perguntar a si próprio se na fonte informativa do jornalista não luziria, de modo mais ou menos directo, um anel episcopal e o debrum púrpura na sotaina. Em todo o caso, a história de Cillas de Ansó era certa; e Quart obteve um segundo episódio do folhetim no comissariado da Polícia, quando o subcomissário Navajo fez dois telefonemas ao seu colega madrileno, o inspector-chefe Feijoo, responsável pelo grupo de investigação de arte. Um retábulo do Mestre de Retascón que coincidia exactamente com o desaparecido em Cillas de Ansó havia sido adquirido legalmente, com o recibo passado, pela leiloeira Claymore de Madrid, que o revendera a um preço elevado. O director da Claymore, um conhecido marchand chamado Francisco Montegrifo, confirmava o pagamento de uma certa quantia ao sacerdote Don Príamo Ferro Ordás. Quantia irrisória em comparação com o preço, sextuplicado, que o quadro alcançara em leilão. Mas isso - tinha explicado o tal Montegrifo ao inspector-chefe Feijoo e este ao subcomissário Navajo - eram coisas da oferta e da procura.

- A propósito da honradez do padre Ferro - disse Quart ao vigário. - Você não tem provas de que tenha sido sempre honesto.

Oscar Lobato fitou-o, incomodado:

- Não sei o que pretende insinuar, mas tanto se me dá. Eu respeito o homem que conheço. De modo que vá procurar o seu Judas noutro sítio.

- É essa a sua última palavra? Talvez estejamos a tempo. Não disse do quê. O outro olhava-o com hostil curiosidade.

- A tempo? Isso cheira-me a oferta de perdão. Serão bondosos comigo se cooperar? - abanou a cabeça, sem acreditar no que estava a acontecer e ergueu-se. - Tem graça. Ainda ontem Don Príamo comentou, depois de uma conversa que, pelos vistos, tiveram em casa da duquesa, que você estava, talvez, a começar a compreender. Mas que compreenda ou não é o menos. A única coisa que interessa é matar o mensageiro, não é verdade? Para si e para os seus chefes, o mal não reside no problema, mas sim na pessoa que se atreve a denunciá-lo. Tudo se reduz a um pescoço para cortar.

Voltou a abanar a cabeça do mesmo modo e, com um último olhar de desprezo, afastou-se para a sacristia. De repente, pareceu pensar em qualquer coisa, pois deteve-se a meio caminho

- Afinal de contas, pode ser que Vésperas se equivocasse - disse, meio virado para Quart e em voz alta, que ressoava na abóbada. - Talvez nem mesmo o Santo Padre mereça as suas mensagens.

Um raio de sol movia-se muito lentamente da esquerda para a direita sobre as gastas lajes do chão, ao pé do altar-mor. Quart observou-o durante um momento, depois ergueu os olhos para o vitral por onde entrava a luz: uma Descida da Cruz onde faltavam ao Cristo os vidros coloridos do torso, da cabeça e das pernas. O resultado era que São João e a Virgem pareciam descer da cruz apenas os braços no vazio e o caixilho de chumbo em torno da silhueta ausente assemelhava-se ao rasto de um fantasma: uma presença desvanecida, tornando inútil o sofrimento da mãe e do discípulo.

Ergueu-se e caminhou até ao altar-mor e à entrada da cripta. Junto da tranca de ferro, fechada sobre os degraus que desciam em direcção às trevas, tocou a caveira esculpida no dintel e, como da outra vez, a frieza da pedra esfriou o sangue que lhe latejava no pulso. Dominando a incómoda sensação produzida pelo silêncio da igreja, os degraus escuros e o ar húmido e fechado vindo lá de baixo, Quart obrigou-se a permanecer ali, imóvel, fitando o negrume da cripta. "Do grego kriptos, oculto", murmurou. Onde a pedra escondia as chaves de outros tempos e outras vidas. Onde jaziam as ossadas de catorze duques do Nuevo Extremo e a sombra de Carlota Bruner.

Esfregando o pulso entumescido, Quart voltou-se para o retábulo do altar-mor, que a claridade dos vitrais cobria de suave resplendor dourado, deixando na penumbra os relevos externos, a folhagem e os anjinhos, as cabeças das estátuas orantes de Gaspar Bruner de Lebrija e esposa. E ao centro, no seu nicho sob o dossel, atrás do andaime de tubos metálicos aparafusados que sustinham uma pequena plataforma, a Virgem erguia os olhos para o céu, com as pérolas do capitão Xaloc correndo-lhe, como lágrimas, pelo rosto e a túnica azul, assente sobre a meia lua e com um pé esmagando a cabeça da serpente que arrebatou aos homens o Paraíso em troca da lucidez; da medusa cuja visão os converteu depois em pedra, para que guardassem o terrível segredo. Isis ou Ceres, ou Astarte, Tanit, Maria: tanto fazia o nome escolhido para resumir o refúgio, a mãe, o resguardo, o medo diante da escuridão, do frio e do nada. Era uma vertigem, reflectiu Quart, a quantidade de símbolos que se podiam congregar naquela imagem e na sua evolução através das religiões e dos séculos. De pé sobre a meia-lua, vestida de azul, cor simbólica do astro da noite e também das sombras cimérias, o sable da heráldica, a terra, a morte.

O raio de sol no chão tinha-se deslocado mais um ladrilho para a direita e minguava de tamanho, quando o agente do IOE andou até ao centro da nave e percorreu com o olhar a cornija sobre os andaimes, de onde se havia desprendido o troço mortal para o secretário do arcebispo. Foi até lá e tentou mover a estrutura metálica, mas estava presa e mantinha-se agora firme. Situou-se precisamente onde estava o padre Urbizu ao sofrer o impacto na cabeça. Dez quilos de estuque caindo de uma altura de dez metros eram necessariamente mortais. Havia espaço na passadeira do andaime junto da cornija para que alguém os tivesse feito cair, mas o relatório policial negava essa possibilidade. Isto, mais a história do arquitecto municipal escorregando do telhado - desta vez perante testemunhas, distinguiu, aliviado, Quart -, parecia descartar em ambas as mortes a intervenção humana e atribuía as culpas, como Vésperas e o padre Ferro afirmavam, à ira de Deus. Ou do Destino, que, na opinião de Quart, era uma boa explicação para os caprichos de um cruel relojoeiro cósmico que todas as manhãs parecia acordar com vontade de brincar. Ou, talvez, do acaso de uns deuses rabelai-sianos, sonolentos e torpes como os descritos por Heine, os quais, quando ao pequeno-almoço deixavam cair uma torrada, era sempre do lado da manteiga.

Neste ponto da investigação, Quart tinha estabelecido de sobta os ingénuos móbiles de Vésperas. As suas mensagens constituíam um apelo à justiça e ao senso comum de Roma, a reivindicação de um velho cura que travava a sua derradeira batalha num canto esquecido do tabuleiro. Mas nalguma coisa o padre Oscar tinha razão: Vésperas, equivocara-se ao enviar as suas mensagens. Nem Roma as podia entender nem monsenhor Spada enviara a pessoa adequada. O mundo e as ideias para que apelava o pirata informático tinham deixado de existir há muito tempo. Era como se, depois de uma guerra nuclear que tivesse arrasado a Terra, os satélites do espaço continuassem a enviar sinais inúteis a um planeta morto, enquanto giravam, fiéis e silenciosos, lá no alto, na solidão do espaço infinito.

Quart recuou uns passos, percorrendo com o olhar a estrutura dos andaimes e os deteriorados vitrais das janelas abertas na parede esquerda da igreja. Depois voltou-se para a nave e Gris Marsala estava atrás dele, fitando-o.

Quando o presidente da Câmara declarou inaugurada a exposição A Arte Sacra na Sevilha Barroca, os aplausos encheram os salões da fundação cultural do Banco Cartujano. Depois, uma dúzia de criados de jaqueta branca passearam bandejas com bebidas e canapés, enquanto os convidados apreciavam as obras-primas que durante vinte dias ficariam expostas no edifício do Arenal. Entre o Cristo da Boa Morte de Juan de Mesa, cedido pela Universidade, e um São Leandro de Murillo, procedente da sacristia-mor da Catedral, Pencho Gavira cumprimentava os cavalheiros e beijava a mão às damas, sorrindo à esquerda e à direita. Vestia um impecável fato cinzento mesclado e a risca do seu cabelo empastado era tão perfeita como a alvura dos punhos e do colarinho da camisa.

- Estiveste muito bem, Presidente.

Manolo Almanzor, presidente da Câmara de Sevilha, trocou com o banqueiro umas agradecidas palmadinhas nas costas. Era um tipo gorducho, de bigode, com uma cara honesta que lhe valera as boas graças populares e uma reeleição; no entanto, um escândalo de contratações irregulares, um cunhado enriquecido de forma obscura e a denúncia por assédio sexual levantada contra ele por três das suas quatro secretárias na Câmara deixavam-no com um pé na rua, a menos de um mês das autárquicas.

- Obrigado, Pencho. Mas é o meu último acto público. O banqueiro sorria, consolador:

- Melhores tempos virão.

O presidente meneou a cabeça, pensativo e triste. Em todo o caso, Gavira ia suavizar a sua despedida da política. Em troca da reclassificação municipal do edifício de Nossa Senhora das Lágrimas, da promessa de compra e venda e do levantamento de todos os impedimentos ao projecto urbanístico em Santa Cruz, Almanzor obtinha a anulação automática de um generoso crédito com o qual acabava de adquirir uma luxuosa moradia no bairro mais caro e selecto de Sevilha. Com a sua frieza de jogador de póquer, o director-geral do Cartujano resumira-o admiravelmente, havia poucos dias, num jantar no restaurante Becerra, expondo a oferta sem rodeios: "lágrimas com pão passageiras são, Presidente."

Passou um criado com uma bandeja, e Gavira pegou num copo de xerez frio, molhando os lábios enquanto olhava em redor. Entre senhoras com vestidos de cocktail e cavalheiros engravatados - Gavira estipulava este trajo formal em todos os convites para actos sociais no Cartujano -, o segundo avançado, o eclesiástico, também andava por ali. Sua Eminência Ilustríssima o Arcebispo de Sevilha encontrava-se a um canto da sala, junto de Octavio Machuca, aparentemente trocando impressões sobre o Valdés Leal cedido à exposição pela igreja do Hospital da Caridade. In Icíu Oculi: a morte apagando uma vela diante da coroa e das tiaras de um imperador, um bispo e um papa. Mas Gavira sabia que não era esse o tema da conversa.

- Cabrões - ouviu o presidente dizer, a seu lado.

Manolo Almanzor não se referia ao arcebispo nem ao banqueiro. Gavira viu que olhava em redor, para os convidados que lhe viravam ostensivamente as costas. Sevilha inteira estava ao corrente de que manteria o cargo por menos de um mês. O candidato à sua sucessão, um político do mesmo partido - Andalucismo Andaluz - andava pelo salão, recebendo congratulações antecipadas com um cauteloso sorriso. Gavira fez uma piscadela animadora:

- Toma um copo, Presidente.

Alcançou-lhe um uísque da bandeja e o outro emborcou metade ie um só trago, ao mesmo tempo que, agradecido, cravava no Banqueiro o seu olhar de cão espancado. Era surpreendente, reflectiu Gavira, a facilidade com que os mortos que se mantêm de pé criam o vazio à sua volta. Manolo Almanzor, noutros tempos objecto de adulação, fedia a cadáver político ambulante e ninguém mais acercava, por receio de ficar socialmente contaminado. Eram regras do jogo: não existia, no seu mundo, piedade para com os vencidos, salvo o trago de álcool nas vésperas da execução. O próprio Gavira continuava a seu lado, oferecendo-lhe uísque por conta do Cartujano depois de o fazer inaugurar a exposição, em parte porque ainda precisava dele e, em parte, porque tinha comprado aquele homem e isso implicava uma certa responsabilidade para o seu orgulho. Perguntou a si mesmo se alguma vez lhe ofereceriam a ele um copo.

- Encarrega-te da igreja, Pencho - o presidente esvaziava o copo, com rancor. - Constrói o que te der na gana e lixa-os a todos.

Gavira assentiu, distraído, de novo com o pensamento no par que conversava junto do Valdés Leal e, pedindo desculpa a Almanzor, iniciou um movimento de aproximação a que tentou dar uma aparência casual, uma espécie de ida para a direita e depois para a esquerda, como um veleiro dando bordadas. De caminho, sorriu nos devidos locais, apertou e beijou algumas mãos e um par de faces pintadas, correcto, seguro, sentindo-se invejado pelos homens e admirado pelas mulheres que dele se aproximaram mal se afastou um pouco do presidente. Duas vezes ouviu sussurrar nas suas costas o nome de Macarena, mas conseguiu que isso não fizesse esmorecer o seu sorriso. Pousou o copo na bandeja, levou a mão ao nó da gravata e, passado um momento, estava junto de monsenhor Corvo e Don Octavio Machuca.

- Bonito quadro - disse por dizer.

O arcebispo e o banqueiro observaram a tela como se até ao momento não tivessem reparado. A Morte tinha na mão a gadanha e um féretro sob o braço descarnado. A seus pés, um mapa-mundi, uma espada, livros, pergaminhos constituíam a alegoria do seu triunfo sobre a vida, a glória, a ciência e os prazeres terrenos. Apagava, com a outra mão ossuda, a chama de um círio e as duas covas vazias da caveira olhavam o espectador. In Ictu Oculi. Gavira não sabia latim, mas o quadro era muito conhecido em Sevilha e o seu significado tornava-se evidente. A Morte atinge qualquer um num abrir e fechar de olhos.

- Bonito? - o arcebispo trocou um olhar com o velho Machuca. Seguindo as últimas directrizes papais acerca de aparições públicas dos prelados, Aquilino Corvo vestia sotaina filetata, um discreto mas eloquente debrum vermelho completando a cruz de ouro sobre o peito e o brilho da pedra amarela na mão sob a cruz. - Só um jovem o diria desta cena terrível - deitou para trás a cabeça, olhando com desagrado a tiara episcopal da tela, tão parecida com a sua. - Visto pelos seus olhos, tudo parece muito distante, querido Gavira, mas para nós o quadro torna-se mais próximo... Não lhe parece, Don Octavio?

O velho banqueiro meneava a cabeça, os olhos rapaces à espreita atrás do nariz adunco. Na realidade, monsenhor Corvo era quase vinte anos mais novo do que ele, mas o titular da sede hispalense gostava de se dar ares veneráveis, por uma questão de dignidade do cargo.

- Pencho é um triunfador - observou Machuca. - E não teme que lhe apaguem o círio.

Havia entre as pálpebras semicerradas do ancião um brilho velhaco. Tinha uma das mãos enterrada no bolso do casaco cruzado, de corte antigo, a outra, caída de lado, quase tão descarnada como a que extinguia a chama na tela de Valdés Leal. O arcebispo sorriu com cumplicidade.

- Todos nós estamos sujeitos à vontade de Deus - disse em tom profissional.

Gavira admitiu-o vagamente, sem questionar o facto. Olhava para o velho banqueiro, que interpretou o gesto:

- Falávamos da tua igreja.

Aquilino Corvo deixou passar o possessivo sem alterar o sorriso, coisa que Gavira considerou de bom augúrio. Afinal, o Arcebispado ia receber uma indemnização substancial, além do compromisso assumido pelo Cartujano de construir uma igreja noutro sítio. Sem esquecer a fundação para a obra social na comunidade cigana, que o arcebispo tinha introduzido habilmente no pacote. Em última instância, alguém tivera também que custear a bacia a Pilatos.

- É ainda a igreja de Sua Eminência Ilustríssima - distinguiu, atento, Gavira, que nunca fechava todas as portas a uma pessoa. Conhecia os riscos de negar retiradas dignas.

Monsenhor Corvo agradeceu o pormenor com um gesto da mão onde brilhava o anel. Posto que de igrejas se tratava, parecia obrigado a um comentário oficial a esse respeito.

- Doloroso conflito - disse, após um breve silêncio à procura da frase adequada.

- Mas inevitável - acrescentou Gavira.

Assumiu uma atitude de pesar, para suavizar o tom. Tom grave, algo de subentendido de homem para homem, ambos conscientes das decisões penosas que o progresso, por vezes, impunha. Pelo canto do olho viu intensificar-se o brilho velhaco entre as pálpebras semicerradas de Octavio Machuca e recordou que o velho estava ao corrente de que, entre as ofertas feitas pelo Cartujano a Sua Eminência Ilustríssima, contava-se um relatório ainda inédito sobre as actividades contrárias ao celibato de meia dúzia de clérigos da sua diocese. Eram todos sacerdotes muito queridos nas suas paróquias e a publicação desses dados, que incluíam fotografias e declarações, causaria um sério abalo. Aquilino Corvo não tinha meios nem autoridade técnica para encarar o problema e um escândalo podia obrigá-lo a tomar decisões que desejava menos que ninguém. Aqueles sacerdotes eram homens bons e, numa época de mudança e de falta de vocações, qualquer decisão precipitada podia ser inoportuna e lamentável. Por isso, Monsenhor aceitara com alívio o compromisso de Gavira no sentido de comprar e bloquear o relatório. Na Igreja Católica, problema adiado significa problema resolvido.

Fosse como fosse, concluiu Gavira, era difícil que Octavio Machuca conhecesse o resto da operação, se bem que o olhar do velho banqueiro o levasse a suspeitar de que estava ao corrente. Uma sensação incómoda, tendo em conta que o próprio Gavira era o inspirador da manobra, depois de pagar à agência de detectives que executara o trabalho, e em seguida recorrer às suas influências junto da imprensa para fazer o favor de camuflar ao arcebispo o que, em rigor, não passava de uma impecável acção de chantagem.

- Sua Eminência Ilustríssima garante a sua neutralidade - comentou Machuca, observando ainda as reacções de Gavira.

- Mas contava-me há pouco que o processo disciplinar contra o padre Ferro é lento. Pelos vistos - as pálpebras reduziram o seu olhar a uma ténue fenda -, o sacerdote enviado de Roma não conseguiu reunir provas suficientes contra ele.

Monsenhor Corvo ergueu a mão, sugerindo maior precisão. Mostrava-se agora incomodado sob a sua placidez sacerdotal. Não era exactamente assim, disse com voz grave, perfeita para o púlpito. O padre Lorenzo Quart não viera a Sevilha para actuar contra o pároco de Nossa Senhora das Lágrimas, mas para proporcionar a Roma uma informação especializada. Com requintado ênfase, o prelado recordou aos seus informadores que a sede hispalense, por pura formalidade eclesiástica, não podia actuar directamente. Alinhavou, depois, os conceitos de penoso problema, pároco em idade avançada, questão disciplinar e outros. Havia coincidência de critérios com Roma, mas com ligeiras diferenças. A este ponto, Aquilino Corvo evitou os olhos de Gavira e fitou Octavio Machuca, consultando-o silenciosamente acerca da oportunidade de prosseguir. O ancião manteve-se imperscrutável, de modo que Sua Eminência Ilustríssima observou que a gestão do padre Lorenzo, ai!, não decorria com a diligência desejável. O próprio arcebispo tinha alertado os seus superiores para este ponto, mas estava de mãos atadas neste campo. Via os touros da barreira, se é que lhe permitiam a comparação laica. Esperava ter-se explicado.

- Quer dizer - Gavira franzia o sobrolho, irritado - que não prevê para breve o afastamento do padre Ferro?

Desta vez o arcebispo ergueu ambas as mãos, como para dizer-Lhes ite, missa est.

- Mais ou menos - fitava agora, evasivo, a gravata de Gavira.

- É claro que se conseguirá, mas não em dois dias. Talvez duas semanas - tossicou, incomodado. - Um mês, no máximo. Desde já lhes digo que o caso não está nas minhas mãos. Se bem que, é claro, você tenha toda a minha simpatia.

Gavira ergueu os olhos para o Valdés Leal, ganhando tempo para reprimir qualquer inconveniência. Sentia desejos de morder os lábios ou dar um soco no nariz do arcebispo. Contou até dez, fitando as órbitas vazias da Morte, depois tentou esboçar um sorriso. Machuca não tirava os olhos dele:

- Demasiado tempo, não é? - perguntou o banqueiro. Parecia dirigir-se ao arcebispo, mas as fendas das suas pálpebras rapaces continuavam apontadas para Gavira. Foi Monsenhor quem se sentiu na obrigação de responder. No que dependia da sua autoridade - explicou - enquanto não chegasse uma ordem de Roma e o padre Ferro continuasse a rezar missa todas as quintas-feiras, nada podia fazer.

Desta vez Gavira não pôde dissimular o seu mau-humor:

- Talvez Sua Eminência Ilustríssima não tivesse necessitado de transferir o assunto para Roma - aventurou, áspero. - Podia ter decidido sob a sua responsabilidade, quando estávamos a tempo.

A censura fez empalidecer o arcebispo.

- Pode ser que sim - tinha-se erguido, fitando de soslaio Octavio Machuca. - Mas também nós os prelados temos a nossa consciência, senhor Gavira. Com licença.

Fez uma seca vénia e passou entre eles, afastando-se com cara de poucos amigos. Machuca torceu o nariz de um lado para o outro, duas vezes, sem que Gavira pudesse precisar se estava desolado ou divertido com a cena. Em todo o caso, pensava, tinha cometido um erro. Porque tudo o que não produzia benefício a curto, médio ou longo prazos era um erro.

- Ofendeste a sua dignidade pastoral - disse, velhaco, Machuca.

Reprimindo uma praga à flor dos lábios - que teria sido um segundo erro - Gavira fez um gesto de impaciência:

- A dignidade de Monsenhor tem um preço, como todas as coisas. Um preço que posso pagar - hesitou um instante, em atenção ao velho banqueiro. - Que o Cartujano pode pagar.

- Mas, de momento, o cura continua por aí - Machuca fez uma pausa de três segundos. Uma pausa incrivelmente maldosa. - O cura velho, quero dizer.

Observava Gavira com curiosidade, mas este estava demasiado consciente disso. Tocou na gravata e nos punhos da camisa, olhando em redor. Uma mulher bonita passou por ele e dirigiu-lhe um sorriso distraído.

- Isso - prosseguiu Machuca, vendo a mulher afastar-se - mantém Macarena e a tua sogra na primeira linha. De momento.

Era inútil. Gavira tinha-se recomposto e encarava a situação, impassível.

- Não se preocupe - disse. - Hei-de conseguir.

- Assim o espero, porque o tempo acaba-se-te. Quantos dias te faltam para a reunião? Uma semana?

- Sabe muito bem - o velho tinha dito te faltam e o tempo acaba-se-te. Era odiosa, pensou Gavira, aquela sensação de estar sempre a ser sujeito a um exame a seguir a outro, numa espécie de reavaliação contínua. - Oito dias.

Machuca moveu lentamente a cabeça.

- Um final de enfarte, dizem os do Betis - olhou em volta, como se pensasse noutras coisas; de súbito, voltou-se para ele. - Sabes uma coisa, Pencho? Estou realmente curioso de ver como irás resolver rudo isto. Vão atacar-te no conselho - sorria com a boca pergaminhada, como uma serpente prestes a largar a pele. - Mas, se conseguires, tanto melhor. O que não mata, engorda.

Machuca afastou-se, solicitado por conhecidos seus, e Gavira ficou só com Valdés Leal. Estava ali perto um tipo gorducho e mole, com uma papada que mais parecia o prolongamento das faces, cabelo laçado e uma bolsa de pele no pulso. Quando os seus olhos se cruzaram, o desconhecido aproximou-se:

- Sou Honorato Bonafé, da revista Q + S - estendia a mão, a modos de cumprimento. - Podemos falar uns instantes?

Gavira ignorou aquela mão, olhando em redor, de sobrolho franzido, perguntando a si próprio quem teria deixado entrar aquele indivíduo.

- Roubar-lhe-ei apenas uns minutos.

- Telefone à minha secretária - sugeriu friamente o banqueiro, virando-lhe as costas. - Um dia destes.

Deu uns passos entre as pessoas, afastando-se. Mas, para sua surpresa, Bonafé foi com ele. Franzia a boca, mirando-o de esguelha, entre obsequioso e seguro de si. Ruim, concluiu Gavira, detendo-se por fim: eis a descrição exacta do fulano.

- Estou a preparar uma reportagem - disse o outro com rapidez, antes que ele o despachasse com maus modos. - Sobre a igreja que lhe interessa.

- E o que me conta?

Bonafé ergueu a mão pequena e fofa, a mesma que Gavira tinha ignorado.

- Bom - continuava a franzir a boca num trejeito conciliador. - Tendo em conta que o Banco Cartujano é o principal interessado no derrube de Nossa Senhora das Lágrimas, creio que uma conversa, umas declarações... Entende-me...

Gavira manteve-se impassível.

- Não. Não entendo de todo.

Untuoso, paciente, Honorato Bonafé obsequiou o banqueiro com um rápido esboço do panorama: o Cartujano, a igreja e a reclassificação do terreno. O pároco, indivíduo um tanto duvidoso, confrontem com o arcebispo de Sevilha e sujeito a processo disciplinar ou coisa do género. Dois mortos por acidente, sabe-se lá. Um enviado especial de Roma. E, bem, uma bela esposa, ou ex-esposa, filha da duquesa do Nuevo Extremo. E ela e aquele cura de Roma...

Deteve-se subitamente, ao ver a expressão de Gavira. O banqueiro tinha dado um passo na direcção dele e olhava-o de muito perto.

- Bem, entende-me - conciliou Bonafé, resumindo as coisas. - Conto-lhe isto para ter uma ideia: títulos, capa e o resto. Publicamos a história completa para a semana. E, naturalmente, a sua opinião ou as suas palavras têm muito peso.

O banqueiro continuava imóvel, fitando-o sem dizer palavra. Honorato Bonafé esboçou um sorriso, mas deixou-o por aí, entre os lábios rosados que franzia, paciente, à espera da resposta.

- Você - disse, por fim, Gavira - quer que eu lhe conte.

- Isso mesmo.

Peregil passou por perto e Gavira julgou perceber nele um olhar alarmado ao ver Bonafé. Sentiu-se tentado a chamá-lo para lhe perguntar se tinha alguma coisa que ver com a presença do jornalista na exposição, mas não era o momento. O que realmente lhe apetecia era expulsar a pontapé aquele indivíduo gordinho e mole com ares de chantagista.

- E que ganho eu, falando consigo?

O sorriso do jornalista disparou por fim, insolente e seguro. "Assim é que é falar", insinuava o trejeito da boca.

- Bom, controla a informação. Fornece a sua versão dos factos - Bonafé fez uma pausa carregada de sentido. - Põe-nos do seu lado, para nos entendermos.

- E se não o fizer?

- Ah, isso é diferente. A reportagem publicar-se-á de qualquer modo, mas você terá perdido a sua oportunidade.

Foi agora a vez de Gavira sorrir e fê-lo com a sua expressão mais perigosa: a do Tubarão do Arenal.

- Isso soa-me a ameaça.

O outro meneava a cabeça, alheio aos sorrisos e às pequenas distinções.

- Não, por Deus. Apenas ponho as cartas em cima da mesa - os olhinhos inchados, porcinos, brilhavam de cobiça. - Jogo limpo consigo, Senhor Gavira.

- E porque joga limpo comigo?

- Ah, pois... Não sei - Bonafé puxava as abas do casaco amarrotado. - Suponho que a sua imagem desperta simpatia na opinião pública, entende: jovem banqueiro que impõe um novo estilo, etc. Fica bem nas fotografias, agrada às senhoras. Numa palavra: vende. E um homem da moda e a minha revista pode ajudá-lo muito, e bem, a continuar na moda. Veja a coisa como uma operação de imagem - fez cara de circunstância. - Ao passo que a sua mulher...

- O que há com a minha mulher?

As palavras soavam como lascas de gelo, mas Bonafé não parecia reparar nos sinais de perigo:

- Também fica bem nas fotografias - disse, sustendo o olhar do interlocutor com grande aprumo. - Embora eu ache que esse toureiro... Bem, já sabe. Isso acabou. Precisamente agora que o sacerdote de Roma... Sabe a quem me refiro?

Gavira pensava muito a correr, medindo os prós e os contras. Precisava apenas de uma semana de tréguas, depois tanto se lhe dava. E o preço daquele tipo estava à vista.

- Sim, já compreendo - respondeu, ainda com ar ausente. - E diga-me: quanto calcula que possa custar-me essa operação de imagem?

Bonafé ergueu as mãos, juntando as pontas dos dedos num gesto de oração ou de acção de graças. Parecia relaxado. Feliz.

- Bem - disse - eu tinha pensado numa conversa mais prolongada sobre a igreja. Uma troca de impressões. E depois, não sei - dirigiu ao banqueiro um olhar significativo - talvez lhe interesse investir na imprensa.

Peregil voltou a passar por perto, olhando-os como que por acaso. Gavira reparou que o seu assistente continuava preocupado. O banqueiro compôs um último sorriso, voltando-se para Bonafé, mas ninguém teria interpretado este gesto como indício de simpatia. O outro tão-pouco o deve ter considerado como tal, pois pestanejou um instante, inquieto.

- Há muito tempo que invisto na imprensa - disse Gavira. - O que acontece é que nunca tive de me ocupar de gente como você.

O jornalista franziu a boca num trejeito de cumplicidade, de modo que a sua papada estremeceu como se fosse gelatina. E Gavira, observando-o, disse para consigo que Honorato Bonafé dava o tipo perfeito do personagem abjecto e viscoso que costuma aparecer assassinado nos filmes.

- O que me fascina na Europa - disse Gris Marsala - é a sua longa memória. Basta entrar num lugar como este, contemplar uma paisagem, encostar-se a um velho muro e aí está tudo. O nosso passado, as nossas recordações. Nós mesmos.

- Por isso anda obcecada com a igreja? - perguntou Quart.

- Não é só esta igreja.

Encontravam-se no átrio, diante do Nazareno de cabelo natural e dos ex votos poeirentos, pendurados na parede. Os dourados do retábulo reluziam ao fundo, sob os andaimes, na penumbra que envolvia a imagem da Virgem e as estátuas dos duques do Nuevo Extremo em oração.

- Talvez seja necessário ser norte-americana para compreender - acrescentou Gris Marsala, passados alguns instantes. - Dá-nos ali a impressão, por vezes, de que tudo isto foi construído por gente estranha, alheia. De repente, vimos um dia e compreendemos que é a nossa própria história. Que, pela mão dos nossos antepassados, nós mesmos colocámos pedra sobre pedra. Pode ser que isto explique o fascínio que muitos dos meus compatriotas sentem pela Europa - sorriu a Quart, com um ar absorto. - Inesperadamente, dobramos uma esquina e recordamos. Julgávamo-nos órfãos e, afinal, não é assim. É talvez por isso que não quero agora regressar. Estava encostada à parede branca, junto da pia de água benta. Trazia, como sempre, o cabelo encanecido preso numa pequena trança sobre a nuca e o velho pólo azul-escuro, cheirando ligeiramente a suor. Tinha os polegares metidos nos bolsos traseiros das calças de ganga manchadas de gesso e cal.

- Fizeram-me órfã várias vezes - disse. - E a orfandade é escravidão. A memória dá-nos ânimo, sabemos quem somos e para onde vamos. Ou não vamos. Sem ela, ficamos à mercê do primeiro que aparece e nos chama sua filha. Não acredita? - aguardou até ver que o seu interlocutor assentia em silêncio. - Defender a memória é defender a liberdade. Só os anjos podem dar-se ao luxo de ser espectadores.

Quart fez um gesto de compreensão que não o comprometia com nada. Pensava, nesse momento, no relatório que recebera de Roma acerca desta mulher e que estava agora em cima da mesa do hotel, com alguns parágrafos sublinhados a vermelho. Entrada, aos dezoito anos, numa ordem religiosa. Arquitectura e Belas-Artes na Universidade de Los Angeles, com cursos especializados em Sevilha, Madrid e Roma. Brilhante curriculum académico. Professora de arte durante sete anos. Directora de um colégio universitário religioso, em Santa Bárbara, durante quatro anos. Crise pessoal com complicações de saúde. Dispensa temporal indefinida. Três anos em Sevilha, onde devia dar aulas a alunos norte-americanos de Belas-Artes. Discreta, sem nada a apontar, apenas mantinha contacto com uma residência local da ordem a que pertencia. Residente numa casa particular. Não tinha pedido para deixar o estado religioso. Não constava que tivesse realizado estudos especiais de informática.

Quart olhou para a freira. Lá fora, na praça, a luz ganhava intensidade e o calor começava a fazer-se sentir. Agradeceu o refúgio fresco que a igreja oferecia.

- É então a sua memória reconquistada o que a prende aqui.

- Mais ou menos.

Gris Marsala sorriu tristemente, observando a medalha militar atada às flores secas do ramo de noiva, entre os ex votos do Nazareno - pernas, braços, figurinhas em latão e cera -, com um ar de quem se perguntava qual o paradeiro das mãos que haviam segurado aquelas flores. Estava endurecida a expressão dos seus olhos, cuja claridade a luz exterior intensificava.

- Os futuristas - disse, após um novo silêncio - propuseram que se dinamitasse a cidade de Veneza, para assim destruírem um modelo. O que então aparecia como um paradoxo snobe tornou-se realidade na arquitectura, na literatura... Na teologia. Arrasar cidades bombardeando-as é apenas um exemplo excessivo, uma maneira brutal de abreviar as coisas - sorria, ensimesmada e triste, observando o seco ramo de noiva. - Há métodos mais subtis.

- Vocês não podem vencer - disse suavemente Quart.

- Nós?... - a freira olhou-o, surpreendida. - Não se trata de um clã ou uma seita. Apenas gente agrupada em torno desta igreja, cada qual com motivos pessoais diferentes - movia a cabeça; tudo aquilo era óbvio. - O padre Oscar, por exemplo, é jovem e descobriu uma causa pela qual se apaixonar, causa que poderia ter sido uma mulher, ou a Teologia da Libertação... Quanto a Don Príamo, recorda-me o livro magnífico de um espanhol que tive oportunidade de ouvir na universidade, Ramón Sender: La aventura equinocial de Lope de Aguirre. Aquele conquistador pequeno, desconfiado e duro, que coxeava em consequência de antigos ferimentos e andava sempre armado apesar do calor, porque não confiava em ninguém... Tal como ele, o nosso pároco decidiu revoltar-se contra um rei longínquo e ingrato, e travar a sua guerra pessoal. Não tem graça?... Também a tipos como Aguirre enviavam os reis pessoas como você, com ordens de prisão ou de execução - suspirou, antes de guardar silêncio por um instante. - Imagino que seja inevitável.

- Fale-me de Macarena.

Ao ouvir o nome, Gris Marsala fitou Quart com atenção. Este suportava, impassível, o escrutínio.

- Macarena - disse, por fim, a freira - defende a sua própria memória: algumas recordações, o baú da sua tia-avó e as leituras a marcaram desde menina. Debate-se com o que ela mesma, nos seus momentos de humor, designa por "efeito Buddenbrook": a consciência de um mundo em extinção, a tentação leopardiana de se aliar aos adventícios para sobreviver. A desesperança da inteligência.

- Conte-me mais coisas.

- Não há muito mais que contar. Está tudo à vista - Gris Marsala olhou, através da porta aberta, a praça cheia de sol.

- Herdou um mundo que já não existia e é tudo. Também ela é uma órfã que se agarra aos restos do seu naufrágio.

- E que papel tenho eu em tudo isso?

Sentiu-se incomodado assim que a pergunta lhe saiu dos lábios, mas ela não parecia dar-lhe demasiada importância. Viu que movia os ombros sob o pólo manchado de gesso.

- Não sei. Você tornou-se a testemunha - pareceu reflectir mais um pouco. - Estão todos tão sós que precisam de alguém para fazer o registo. Imagino que desejem a sua compreensão, ou melhor, a de quem o enviou. Do mesmo modo como, no fundo, Aguirre ansiava pela do seu rei.

- Macarena também?

Desta vez, Gris Marsala tardou um pouco a responder. Observava os arranhões nos nós dos dedos de Quart.

- Você agrada-lhe - disse, por fim, com simplicidade.

- Como homem, quero dizer. E não me surpreende. Não sei se está ciente disso, mas a sua presença em Sevilha confere a todas as coisas um cariz especial. Imagino que ela tente seduzi-lo à sua maneira - sorriu ligeiramente, adoptando um ar de garoto malvado. - E não me refiro ao aspecto físico da questão.

- Isso importa-lhe?

A freira dirigiu-lhe um olhar de curiosidade desapaixonada.

- Porque haveria de me importar?... Não sou lésbica, padre Quart. Digo-lho no caso de o preocupar a natureza da minha amizade com Macarena - deu uma curta gargalhada, encostando-se com desenvoltura à velha porta de carvalho. Apesar do cabelo grisalho como o seu nome e dos círculos que a idade lhe marcava em torno dos olhos, continuava a ter, pensou uma vez mais Quart, um corpo de rapariga ágil e delgado, sublinhado pelos jeans apertados e pelas silenciosas sapatilhas brancas. - Quanto aos varões em geral e aos sacerdotes atraentes em particular, tenho quarenta e seis anos e sou virgem por votos e vontade própria.

Incomodado, Quart contemplou a praça por cima do ombro da mulher.

- O que sente Macarena pelo marido?

- Ama-o - parecia um pouco surpreendida, como se fosse tudo tão evidente que as explicações se tornassem desnecessárias. Depois observou Quart com atenção e um lento sorriso de ironia desenhou-se-lhe nos lábios. - Não faça essa cara, padre. Salta aos olhos que frequenta pouco o confessionário. Não sabe nada acerca das mulheres.

Quart saiu para o exterior e o sol caiu-lhe sobre os ombros do casaco negro como uma manta de chumbo. Gris Marsala seguiu-o, enquanto evitava um monte de areia e cascalho e se detinha diante da betoneira. O sacerdote contemplou o campanário da igreja, entre os andaimes de tábuas e tubos aparafusados e, ao fazê-lo, a sua vista deteve-se na Virgem decapitada sobre a porta.

- Gostava de visitar a sua casa, Irmã Marsala. O som dos passos da freira deteve-se no cascalho.

- Você surpreende-me.

- Não creio.

Fez-se silêncio. Quando Quart se voltou para ela, viu que o observava, meio incomodada, meio divertida.

- Detesto esse "Irmã Marsala". Ou talvez seja apenas uma forma de dar um tom oficial à solicitação... - arqueava agora as sobrancelhas, irónica. - Ao fim e ao cabo, propõe-se visitar uma casa onde vive uma freira sozinha. Não lhe preocupa o que poderão dizer? Monsenhor Corvo, por exemplo. Ou os seus chefes em Roma... - deu uma exagerada palmada na anca, trocista, como se acabasse de perceber. - Se bem que, evidentemente, seja você quem informa os seus chefes de Roma.

Quart hesitou um instante entre franzir o sobrolho ou desatar a rir. Desatou a rir.

- Foi apenas uma sugestão - disse. - Uma ideia. Estou a juntar as peças de um quebra-cabeças - olhou em volta, de novo o campanário entre os andaimes, a imagem mutilada, de novo ela. - Ver como vive ajudar-me-ia.

Enfrentava agora directamente o seu olhar. Era sincero e Gris Marsala dava-se conta disso.

- Já estou a perceber. Procura pistas do crime, não é?

- Isso mesmo.

- Computadores ligados a Roma e coisas do género.

- Exacto.

- E se eu negar, entrará de qualquer forma, como fez na casa de Don Príamo?

- Como sabe disso?

- Disse-me o padre Oscar.

Demasiadas informações circulando, pensou, irritado, Quart. Naquele estranho clube, contavam tudo uns aos outros e o único que conseguia as coisas a saca-rolhas era ele. Sentiu um grande cansaço com o sol impiedoso na cabeça e nos ombros, a tentação de tirar o colarinho ou despir o casaco. Mas manteve-se imóvel, a mão no bolso, aguardando.

Gris Marsala movia-se lentamente em torno da betoneira, com a mão no bordo. Olhava lá para dentro, como se esperasse encontrar alguma coisa esquecida. Sorria também, meditabunda.

- Porque não? - disse por fim. - Ao longo destes três anos, nunca levei um homem a casa. Não seria mau experimentar - deslizou sobre Quart um longo olhar apreciativo e fez um trejeito.

- Espero não me atirar a si, mal feche a porta... Defender-se-ia como Santa Maria Goretti ou está disposto a dar-me alguma hipótese? - fez um curioso gesto com o dedo indicador, um movimento circular em torno dos pés-de-gaiinha que tinha em volta dos olhos, depois deslizou o dedo ao longo do nariz, até à boca.

- Embora receie muito que, na minha idade, eu não constitua uma prova para o celibato de ninguém... É duro, sabe, para qualquer mulher saber que perdeu os seus atractivos para sempre - de novo endureceu a expressão nos seus olhos claros, cujas pupilas pareciam desaparecer, contraídas com a luz ofuscante da praça. - Sobretudo para uma freira.

- Acomode-se - disse Gris Marsala.

Era uma ironia evidente. As comodidades eram mínimas na saleta da casa; um segundo andar cuja estreita varanda, enfeitada com vasos e protegida do calor e da luz por uma esteira de esparto, dava para a Calle San José, nas proximidades da Puerta de La Carne. Tinham levado apenas dez minutos desde Nossa Senhora das Lágrimas, pelas ruas que o sol transformava em fornos rebocados a cal, com aquela claridade que feria, penetrando até aos mais insuspeitos recantos. Sevilha era, acima de tudo, luz. Paredes brancas e luz em todas as suas tonalidades, concluiu Quart, que tinha caminhado junto de Gris Marsala numa espécie de ziguezague, procurando a sombra dos beirais e das esquinas do mesmo modo como, em Sarajevo, monsenhor Pavelic e ele se moviam de abrigo em abrigo, por causa dos franco-atiradores.

Deteve-se no centro da sala, ao mesmo tempo que guardava os óculos de sol no bolso de dentro do casaco e olhou em volta. Estava tudo imaculadamente limpo e arrumado. Havia um sofá estofado com rendas sobre os braços e nas costas, um aparelho de televisão, um pequeno móvel com livros e cassetes, uma mesa de trabalho com lápis e esferográficas dentro de copos de louça, pastas e papéis. E um computador pessoal. Sentindo os olhos de Gris Marsala, Quart foi até ao PC: um 486 com impressora. Suficiente para Vésperas, embora sem modem de ligação com a linha telefónica que havia no outro extremo da sala. Além disso, o telefone era de cavilha antiga, directamente encastrada na parede, incompatível com o computador.

Aproximou-se para ver as cassetes e os livros. No musical, predominava o barroco, mas encontrou também muito flamengo clássico e moderno, com o Camarón completo. Os livros eram tratados de arte e restauro, com manuais técnicos ou estudos sobre Sevilha. Dois deles, Arquitectura Barroca Sevilhana, de Sancho Corbacho, e o Guia Artístico de Sevilha e Sua Província, estavam cheios de folhinhas autocolantes com anotações, a marcar as páginas. O único livro religioso era uma Bíblia de Jerusalém em pele, com a lombada muito gasta. Na parede, protegida por um vidro, estava a reprodução de um quadro. Olhou o papel impresso: A Partida de Xadrez, de Pieter van Huys.

- Culpada ou inocente? - perguntou, nas costas de Quart, Gris Marsala.

- Inocente, de momento - replicou ele. - Por falta de provas.

Ouviu-a rir, enquanto se virava para ela, sorrindo também. Ao fazê-lo, viu a sua imagem reflectida na parede oposta, nas costas da mulher, sobre um antigo e belo espelho emoldurado em madeira muito escura. Era o único objecto que destoava na modesta casa e chamou a atenção de Quart. Devia ser um espelho muito caro.

A freira seguiu a direcção do seu olhar.

- Gosta? - perguntou.

- Muito.

- Passei meses a comer mortadela e pão Bimbo para o poder pagar - observou-se por momentos ao espelho e encolheu os ombros. Depois foi à cozinha e voltou com dois copos de água fresca.

- Que tem de especial? - quis saber Quart, deixando o copo vazio em cima da mesa.

- O espelho?... - Gris Marsala hesitou um instante. - Pode considerá-lo como uma espécie de vingança pessoal. Um símbolo. Foi o único luxo que me permiti desde que vivo em Sevilha - olhou Quart com malícia. - Isso e deixar que um homem, mesmo sendo cura, entre em minha casa - inclinou a cabeça, ajustando contas consigo mesma. - Para três anos, não são muitas fraquezas, pois não?

- Mas não se atirou a mim - disse Quart. - Controla-se bem.

- É que nós as freiras veteranas somos gente dura. Suspirou com exagerada tristeza antes de unir o seu sorriso ao do sacerdote. Sorria ainda, quando pegou nos dois copos e os levou para a cozinha. Ouviu-se correr a água da torneira e regressou passado um momento, enxugando as mãos na camisola, com um ar pensativo. Olhou para o espelho na saleta e, por fim, de novo para Quart.

- Desde noviças que nos ensinam que os espelhos são perigosos na cela de uma freira - disse. - Segundo a regra, a nossa imagem deve reflectir-se no rosário e no devocionário. Não possuímos nada de nosso: o hábito, a roupa interior e mesmo os pensos higiénicos devemos recebê-los das mãos da comunidade. A salvação da nossa alma não tolera individualismos nem decisões pessoais.

Ficou calada, como se já tivesse dito tudo o que queria dizer e deu uns passos até à janela, levantando um pouco a esteira de esparto. A claridade inundou a sala, ofuscando Quart.

- Toda a minha vida fui fiel às regras - acrescentou ela. - E aqui em Sevilha também o sou, apesar desta pequena infracção ao voto de pobreza - foi até ao espelho e olhou longamente o rosto. - Tive um problema. Você sabe, porque Macarena disse-me que lhe contou. Um problema de enfermidade espiritual, mais do que física. Era directora de um colégio de universitárias, em Santa Bárbara. Nunca troquei uma palavra com o bispo da minha diocese que não fosse acerca de questões profissionais. Mas apaixonei-me por ele, ou julguei apaixonar-me, o que vem a dar no mesmo... E, no dia em que me vi diante de um espelho, pintando discretamente os olhos aos quarenta anos, porque ele tinha anunciado uma visita, compreendi o que estava a acontecer - olhou para a cicatriz do pulso, antes de a mostrar a Quart através do reflexo da superfície de vidro. - Não foi, como as minhas companheiras suspeitaram, uma tentativa de suicídio, mas um acesso de cólera. E de desespero. E, quando saí do hospital e pedi conselho às minhas superioras, tudo o que lhes ocorreu foi recomendar-me orações, disciplina e o exemplo da nossa irmã, Santa Teresita de Lisieux.

Ficou um pouco calada, esfregando os pulsos como se tentasse apagar a cicatriz.

- Lembra-se de Teresa de Lisieux, padre? - acrescentou, enquanto o sacerdote assentia em silêncio. - Apesar de estar tuberculosa e dormir numa cela gelada, nunca pediu uma manta para combater o frio da noite, mas foi capaz de suportar humildemente as dores da sua enfermidade... E o Bom Deus recompensou-a de tanto sofrimento, levando-a para junto de Si aos vinte e quatro anos de idade!

Parecia rir muito baixo, entredentes, semicerrando os olhos como se observasse algo muito longe dali, com todas as pequenas rugas acusando-se mais no seu rosto. Tinha sido uma mulher atraente, pensou Quart. De certo modo, continuava a sê-lo. Perguntou a si mesmo quantos religiosos, homens ou mulheres, teriam tido a coragem de fazer o que ela fizera.

Gris Marsala sentou-se na poltrona e Quart permaneceu de pé, com o casaco desapertado e as mãos nos bolsos, encostado ao móvel dos livros e da música, fitando-a. Ela dirigiu-lhe um sorriso extraordinariamente amargo:

- Alguma vez visitou um cemitério de freiras, padre Quart? Filas de pequenas lápides alinhadas, todas iguais. E, gravado nelas, o nome religioso, não o de baptismo. O que foram consiste exclusivamente na sua pertença a uma ordem; o resto não conta perante Deus. Impossível encontrar sepulturas que inspirem mais tristeza. É como as necrópoles de guerra com milhares de cruzes onde se pode ler a inscrição "desconhecido". Provocam uma insuportável sensação de solidão. E também a pergunta fatal: de que serviu tudo isto?

Brincava com uma das rendinhas sobre os braços do sofá e, de súbito, pareceu muito desamparada, longe da coragem que reforçava cada uma das suas palavras, cada um dos seus gestos. Quart conteve o impulso de se sentar junto dela; não era uma questão de piedade, mas de oportunidade operacional. Não teria talvez melhor ocasião para iluminar os ângulos sombrios de Gris Marsala. Falou com muito cuidado, como um pescador que não estica demasiado a linha para que o peixe não se assuste ou escape:

- São as normas. Você sabia, quando professou. Ela fitou-o, como se tivesse falado noutra língua.

- Quando professei, desconhecia o sentido de palavras como repressão, intolerância ou incompreensão - sacudiu a cabeça. - É essa a norma real. Como no Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de Orwell, com o olho da Irmã Superiora em cima de nós. E quanto mais jovem e atraente, pior. Compadrios, grupinhos, amigas preferidas, ciúmes, invejas... Conhece a velha frase: juntam-se sem se conhecerem, vivem sem se amarem, morrem sem se chorarem... Se eu alguma vez deixar de acreditar em Deus, espero continuar a acreditar no Juízo Final. Como gostaria de encontrar ali algumas das minhas companheiras e todas as minhas superioras!

- Porque se fez freira?

- Isto parece cada vez mais uma confissão geral. Não o trouxe até aqui para aliviar a minha consciência... Porque se fez cura?... A velha história do pai opressor e da mãe demasiadamente afectuosa?

Quart negou com a cabeça, incomodado. Não era para esse terreno que pretendia levar a conversa.

- O meu pai morreu, era eu ainda muito pequeno - disse.

- Bem, outro caso de projecção edipiana, como diria o velho porco do Freud.

- Não creio. Também cheguei a pensar tornar-me militar.

- Que literário. O vermelho e o negro - tinha colocado a renda sobre os joelhos e dobrava-a cuidadosamente, uma e outra vez, num gesto distraído. - O meu pai era ciumento, dominador. E eu tinha medo de o desiludir. Se analisar a fundo certas vocações femininas, sobretudo de raparigas que foram bonitas, descobrirá, com insuspeitada frequência, uma angústia de anos sob a perseguição contínua de um pai: todos os homens procuram a mesma coisa, etc. Muitas religiosas como eu foram ensinadas desde pequenas a terem cuidado com os homens e a não perderem o controlo diante deles... Ficaria surpreendido se soubesse quantas fantasias sexuais de freiras giram em torno do tema da bela e do monstro.

Fitaram-se longamente, sem necessidade de palavras. Pairava agora entre os dois, percebeu o sacerdote, a mais grata sensação que, de uma ou de outra forma, se podia extrair do ofício que ambos exerciam. Aquela solidariedade singular e dolorosa que só era possível entre clérigos que se reconhecem mutuamente num mundo difícil. Uma camaradagem feita de rituais, subentendidos, intuição, instinto de grupo e solidões paralelas, compreensíveis. Solidões partilhadas.

- Que pode fazer - acrescentou Gris Marsala - uma freira que, aos quarenta anos, compreende que continua a ser a mesma menina dominada pelo pai?... Uma criatura que, desejosa de não lhe desagradar, de não cometer nenhum pecado, carregou com o maior de todos eles: o de nunca ter vivido uma vida verdadeiramente própria... Fez bem ou foi uma irresponsável e uma estúpida quando, aos dezoito anos, renunciou ao amor terreno que inclui palavras como confiança, entrega ou sexo? - observou Quart como se deveras esperasse dele uma resposta. - Que fazer, quando estas reflexões vêm demasiado tarde?

- Não sei - disse ele, amistoso e sincero. - Sou apenas um cura de infantaria, sem demasiadas respostas - passeou os olhos pela sala, os móveis modestos e o computador e, ao voltar a ela, esboçou um sorriso. - Talvez partir um espelho e depois comprar outro - fez uma pausa. - É preciso ter muita coragem para isso. Gris Marsala ficou um momento sem responder. Depois, desdobrou lentamente a rendinha, colocando-a com cuidado sobre o braço do sofá.

- Talvez - disse, por fim. - Mas o reflexo já não é o mesmo

- havia uma desesperada ironia nos seus olhos claros, quando de novo os ergueu para Quart. - Há poucas coisas tão trágicas nesta vida como descobrir algo fora de tempo.

 

Estavam à espera dele na Casa Cuesta, pontuais em torno da mesa sob o anúncio dos vapores Sevilha-Sanlúcar-Mar, como um bando de facínoras contritos em torno de uma garrafa de La Ina.

- Vocês são um desastre - disse Celestino Peregil. - Estão a colocar-me muito mal.

Don Ibrahim contemplava a cinza do seu charuto, prestes a cair sobre o colete branco. Tinha o sobrolho franzido e passava, incomodado, um dedo pelas cerdas do bigode chamuscado, enquanto Peregil lhes lia a cartilha. A seu lado, o Potro del Mantelete mantinha os olhos pregados na superfície da mesa, num lugar indeterminado que ficava mais ou menos entre a sua mão esquerda, ainda vendada com gaze e pomada para queimaduras, e o círculo húmido de vinho deixado pelo copo que nesse momento levava à boca. A Nina Punales era a única que parecia alheia à vergonha geral, com os seus olhos negros e ausentes, fitos num cartaz amarelado da parede

- Praça de Touros de Linares, 1947, Gitanillo de Trtana, Dominguín e Manolete - e as mãos longas, morenas e descarnadas, com as unhas tão vermelhas como os lábios e os brincos de coral, as pulseiras de prata nos pulsos tilintando a cada viagem de ida e volta entre o copo e a garrafa. Só ela tinha bebido mais de metade.

- Em má hora vos encarreguei deste negócio - acrescentou Peregil.

Estava furioso, em baixo de forma, com o nó da gravata torcido e um aspecto gorduroso na pele e na calva, uma vez desfeita a complicada arquitectura do cabelo empastado com fixador, a partir da orelha esquerda. Menos de uma hora antes, Pencho Gavira dera-lhe um raspanete. "Resultados, imbecil. Pago-te para me trazeres resultados e há uma semana que andas a apanhar bonés. Dei-te seis milhões para o assunto e continuamos na mesma, e ainda por cima temos esse jornalista, o tal Bonafé, a querer meter a colherada. Porque, com certeza, Peregil, quando tivermos vagar vais contar-me o que tens que ver com esse fulano, sim? Vais contar-mo muito devagarinho, porque cheira-me que aqui há gato. Quanto ao outro, tens até quarta-feira para me resolver o caso. Ouviste? Até quarta-feira. Porque, na quinta, não quero que entre nessa igreja nem Deus. Caso contrário, vais cagar os seis quilos grama a grama. Atrasado mental. És um atrasado mental."

- As coisas com curas dão muito azar - comentou Don Ibrahim.

Peregil fitou-o com dureza:

- Azar têm-no vocês.

O Potro inclinava um pouco a cabeça, do mesmo modo quando era admoestado pelo árbitro ou aguentava, estóico, cenas do público em praças de poeira e sol.

- Aquilo da gasolina - disse a Nina Punales - foi um aviso celeste. As chamas do Purgatório.

Continuava a olhar, ausente, o último cartaz de Manolete e uma mosca que tinha andado a beber as marcas de vinho da mesa passeava pelas suas pulseiras de prata. Don Ibrahim observou, com ternura, o seu perfil cigano, a pintura estalando em torno dos pés-de-galinha e no carmim da boca, e sentiu, uma vez mais, o peso incómodo da responsabilidade. O Potro ergueu a cabeça para lhe lançar um daqueles seus olhares de cão fiel. Já devia ter digerido o "azar têm-no vocês" de Peregil e aguardava um sinal para saber de que maneira iam encarar aquilo. Don Ibrahim tranquilizou-o com um olhar, que depois passeou pela cinza do charuto antes de o fixar, repassado de melancolia, no panamá, pendurado nas costas da cadeira contígua, junto da bengala que Maria Félix lhe havia oferecido. "É o que acontece", disse para consigo, tristemente clássico, "quando Ulisses, de noite na terrível lucidez da ponte do seu barco, ouve a proa embater em recifes e, ao mesmo tempo, sente os olhos confiantes dos seus argonautas pelágicos fixos nele." Agarrem-me essa mosca. Só de adivinhar os seus pensamentos, os argonautas saltariam borda fora até ao último. A começar por Don Ibrahim.

- Um aviso celeste - admitiu, apoiando a tese da Nina por respeito e à falta doutra coisa, ao mesmo tempo que tentava conferir ao seu semblante a devida gravidade homérica. - Ao fim e ao cabo, não se pode lutar contra os elementos.

- Ozú.

Peregil resumiu o seu parecer acerca dos avisos celestiais com uma blasfémia longa e barroca - relacionada com as hipotéticas cuecas da Virgem - que fez erguer a cabeça, interessado, ao empregado que limpava copos atrás do balcão.

- Isso - inquiriu Peregil ao recuperar o fôlego - quer dizer que desistem?

Don Ibrahim levou ao peito a mão do falso anel de ouro, com dignidade exemplar. Ao fazê-lo, a cinza do havano caiu-lhe, por fim, sobre a barriga.

- Aqui ninguém desiste.

- Ninguém - repetiu o Potro como um eco - observando, ensimesmado, a lona do ringue.

- Depois contam-me - disse Peregil. - O tempo está a terminar. Na próxima quinta-feira não pode haver missa na igreja.

O falso letrado ergueu a mão:

- Descartado o recipiente - sugeriu - ocupemo-nos do conteúdo. Se bem que, por motivos de consciência, tenhamos decidido não atentar contra um recinto sagrado, não há obstáculo, ou óbice, a que nos ocupemos do elemento humano - deu uma fumaça no charuto, vendo afastar-se o anel de fumo havanês. - Refiro-me ao cura.

- A qual dos três?

- Ao pároco - Don Ibrahim fez um meio sorriso, confidencial. - Segundo as informações recebidas pela Nina nas vizinhanças e entre as paroquianas, o vigário jovem parte em viagem na terça-feira de manhã, de modo que o titular da paróquia fica sozinho diante do perigo - os seus olhos avermelhados e tristes, desprovidos de pestanas desde o episódio da gasolina, pousaram no sicário de Pencho Gavira. - Estás a seguir-me, amigo Peregil?

- Estou - interessado, Peregil mudava de posição na cadeira.. - Mas não sei aonde.

- Tu, ou lá quem é, não querem que haja missa na quinta-feira... Correcto?

- Correcto.

- Pois não havendo cura, não há missa.

- Claro. Mas, no outro dia, disseram-me que partir uma perna ao velho lhes causava pesos de consciência. E, diga-se de passagem, eu estou farto da vossa consciência até aos tomates.

- Não é preciso ir tão longe - o índio olhou em redor, e depois para o Potro e Nina, antes de baixar cautelosamente o tom. - Imagina tu que esse digno sacerdote, esse venerável ministro do Senhor, desaparece durante dois ou três dias sem danos físicos.

Um lampejo de esperança iluminava o sorriso do esbirro:

- Podem encarregar-se disso?

- Claro - Don Ibrahim voltou a dar uma fumaça no charuto. - Coisa limpa, sem complicações nem fracturas pelo meio. Só que te fica um pouco mais caro.

Peregil fitou-o com desconfiança:

- Quanto mais?

- Nada, pouca coisa - Don Ibrahim olhou fugazmente os seus comparsas e arriscou uma quantia. - Meio quilo por cada para alojamento e sustento.

Quatro milhões e meio não era nada naquela altura, de maneira que Peregil fez um gesto para indicar que a questão era irrelevante. Naquele momento estava mais teso que um bacalhau mas, se desse resultado, não era por isso que Pencho Gavira ia regatear.

- O que pensaram?

Don Ibrahim olhava pela janela, em direcção ao estreito arco branco da ruela da Inquisição, hesitando em fornecer pormenores. Sentia calor, muito calor, apesar do vinho fresco e também do desejo de se pôr em mangas de camisa e respirar fundo. Pegou no leque da Nina e abanou-se. Sabe-se lá como tudo aquilo poderia terminar.

- Há um sítio no rio - adiantou. - Um barco onde vive o Potro. Se quiseres, podemos reter aí o cura até sexta-feira.

Peregil observou os olhos inexpressivos do Potro e ergueu as sobrancelhas:

- Daria bom resultado?

De novo assentiu, grave e seguro, Don Ibrahim. De todas as formas, dizia para consigo nesse instante, há momentos na vida em que um homem se torna prisioneiro dos seus próprios passos; como Cortês, quando disse aquela de "a Tenochtitlán vai-se por aí", ou seja, "vamo-nos a eles". Abanando-se, erguendo um pouco a cabeça em busca de mais ar, como se emanasse nas suas costas o cheiro a fumo dos barcos a arder nas praias de Veracruz.

- Dará.

Como todos os homens quando desejam ver-se tranquilizados, Peregil sentia-se mais tranquilo. Sacou de um maço de tabaco americano e acendeu um cigarro.

- Têm a certeza de que não farão mal ao velho? Porque imaginem que resiste.

- Por favor - Don Ibrahim lançou um inquieto olhar de soslaio à Nina, depois colocou a mão do charuto no ombro do Potro. - Um sacerdote de idade. Um santo homem.

Peregil continuava a mostrar-se de acordo. Mas era necessário manter também, recordou-lhes, a vigilância sobre o cura de Roma e, ai!, a senhora. E as fotografias. Sobretudo que não se esquecessem das fotografias.

- Sabem que não é má ideia? - acrescentou depois, voltando ao assunto do pároco. - Como foi que lhes ocorreu?

Ao mesmo tempo que acariciava os restos do bigode, Don Ibrahim compôs um sorriso meio agradado, meio modesto:

- Foi um filme que deu ontem na televisão: O Prisioneiro de Zenda.

- Acho que já vi - Peregil tocava no cabelo que lhe caía sobre a orelha, procurando camuflar de novo a calva. Estava com outra disposição. Fizera até um sinal ao empregado para que trouxesse uma segunda garrafa, que a Nina Punales via aproximar-se com uns olhos impassíveis de azevinho, ao mesmo tempo que as suas unhas longas e descascadas acariciavam o vidro do copo vazio. - Aquele do tipo que os amigos metem na cadeia e que depois encontra um tesouro e se vinga deles?

Don Ibrahim moveu a cabeça de um lado para o outro. O empregado tinha aberto a garrafa e o xerez cantava ao encher os copos, ao mesmo tempo que a Nina o acompanhava, movendo os lábios, em silêncio.

- Não - disse. - Esse é O Conde de Montecristo - O nosso é o do irmão malvado que sequestra o rei para se fazer coroar, mas então aparece Stewart Granger e salva-o.

- Tenho de ver - Peregil assentia, comprazido, olhando o Potro. - A verdade é que se aprende muito com a televisão.

 

Honorato Bonafé possuía certas qualidades porcinas e não apenas no aspecto moral do seu carácter. Quando chegou à penumbra fresca do átrio, o suor escorria-lhe generosamente pela papada cor-de-rosa, encharcando-lhe o colarinho da camisa. Tirou um lenço do bolso e enxugou-o pouco a pouco, com ligeiros toques das suas mãos moles e pequenas, ao mesmo tempo que contemplava os ex votos pendurados na parede, a metade dos bancos arrumados de um lado da nave, os andaimes contra as paredes e sobre o altar-mor. Entardecia em Santa Cruz. A última luz que entrava pelos vitrais incompletos era dourada e avermelhada, dando uma aura de mistério às figuras baças e poeirentas na madeira talhada. Dois anjos fixavam o olhar no vazio e as estátuas dos duques do Nuevo Extremo em oração pareciam figuras reais, acocoradas nas sombras do retábulo.

Deu uns passos inseguros, olhando para a abóbada, o púlpito e o confessionário, cuja porta estava aberta. Não havia ninguém nem ali nem na sacristia. Caminhou até à tranca de ferro da cripta, olhou para os degraus que desciam até à escuridão e depois virou-se para o altar. A imagem da Virgem estava no seu nicho, rodeada pelos tubos e as plataformas dos andaimes. Bonafé ficou a contemplá-la de baixo e, depois, com a decisão de quem executa movimentos bem meditados, dirigiu-se à escada do andaime e subiu até à imagem, a uns cinco metros acima do solo. A luz avermelhada que entrava pelos vitrais iluminava os escorços da talha barroca, o coração trespassado por punhais sobre o peito, os olhos da Dolorosa erguidos para os céus. E nas faces, no manto azul e na coroa de estrelas que circundava a cabeça, reluziam as pérolas do capitão Xaloc.

Bonafé voltou a tirar o lenço do bolso, enxugou mais suor da testa e da papada e, depois, serviu-se dele para sacudir o pó que cobria as pérolas, observando-as com muita atenção. Virou-se para contemplar a nave deserta da igreja, antes de tirar do bolso uma pequena navalha, que abriu com cuidado. Depois raspou ligeiramente uma das pérolas encastoadas no manto da estátua e estudou-a um instante, pensativo. Ao cabo de alguns momentos de indecisão, introduziu, com muito tento, a ponta da navalha no encaixe, pressionando até desprender a pérola do seu alvéolo. Era grande como um grão-de-bico e teve-a um segundo na palma da mão, antes de a meter no bolso do casaco com um sorriso satisfeito.

A luz crepuscular entrava através do Cristo sem corpo do vitral quebrado, tingindo de vermelho as gotas de suor no frouxo perfil de Bonafé. De novo recorreu ao lenço para enxugar o rosto. E, nesse momento, ouviu um suave roçar nas suas costas, ao mesmo tempo que uma ligeira vibração estremecia a estrutura do andaime.

 

                       O BAÚ DE CARLOTA BRUNER

Toda a sabedoria do mundo está nos olhos desses bonecos de cera.

    (Valéry Larbaud, Poemas)

 

O relógio inglês bateu dez badaladas quando terminavam a sobremesa, de modo que Cruz Bruner propôs que tomassem o café ao fresco, no pátio. Lorenzo Quart ofereceu o braço à duquesa ao sair da sala de jantar de Verão, onde tinham jantado entre bustos de mármore trazidos quatro séculos atrás das ruínas de Itálica, com o mosaico que adornava o solo do pátio principal. No corredor que o circundava, antepassados de expressão grave, gola branca e roupagens escuras, viram-nos passar nas suas telas sob o friso mudéjar. A velha senhora, vestida de seda negra com florinhas brancas no pescoço e nos punhos, ia-os mostrando a Quart, apoiada no seu braço: um almirante do Mar Oceano, um general, um governador dos Países Baixos, um vice-rei das índias Ocidentais. Ao passar junto dos candeeiros cordoveses, a delgada sombra do sacerdote projectava-se junto da sombra diminuta e curvada da duquesa, entre os arcos da galeria. E atrás deles, de sandálias, vestido escuro ligeiro até aos tornozelos, uma almofada para a mãe nos braços e, [nos lábios, um sorriso silencioso, caminhava Macarena Bruner.

Sentaram-se nas cadeiras de ferro pintado de branco; Quart [entre as duas mulheres, junto da fonte de azulejos dispostos segundo as mais rigorosas leis da heráldica. Os vasos cobriam o pátio de flores e folhas verdes, e o cheiro a jasmim fazia sentir-se nos rebentos tenros. Macarena mandou embora a criada, quando esta pousou na mesa embutida a bandeja do café e ela própria serviu as chávenas. Simples para Quart, com leite para ela. Uma coca-cola não muito fria para a mãe.

- Já sabe que é a minha droga - disse a velha senhora, em resposta ao interesse de Quart. - Os médicos negam-me o café.

Macarena dirigiu ao sacerdote um gesto desolado:

- Dorme muito pouco e, se se deita cedo, acorda às três ou quatro da manhã. Isto ajuda-a a manter-se acordada mais tempo. Por isso a toma assim, com cafeína. Todos nós lhe dizemos que não pode fazer-lhe bem, mas não dá ouvidos a ninguém.

- Porque haveria de dar-vos ouvidos? - perguntou Cruz Bruner. - Esta bebida é a única coisa que me agrada na América do Norte.

Macarena fitou-a, numa suave censura:

- Gris também te agrada, mamã.

- Isso é verdade - concedeu a anciã, entre dois goles. - Mas ela é da Califórnia, quase espanhola.

Macarena voltou-se para Quart, que segurava o pires e a chávena nas mãos e mexia o café com a colher:

- A duquesa julga que, na Califórnia, os fazendeiros ainda andam de charro e botões de prata, Frei Junípero prega nas igrejas e o Zorro cavalga, batendo-se com o seu florete pelos pobres.

- E não é assim? - perguntou, divertido, Quart. Cruz Bruner fez um vigoroso gesto afirmativo.

- Devia ser - disse, e depois olhou para a filha como se o comentário do sacerdote tivesse sido decisivo. - Afinal o teu arquitetravô Fernando foi governador da Califórnia antes de nos tirarem aquilo.

Disse-o com a coragem do seu sangue e a dos graves cavalheiros postados nas telas do corredor; dir-se-ia que a Califórnia lhe tinha sido directamente roubada a ela ou à sua família. Era singular a mescla de familiaridade e tolerância cortês, um tanto altiva, com que Cruz Bruner se dirigia aos seus semelhantes, com toda aquela longa memória desfilando em silêncio pelos seus olhos avermelhados, lúcidos e tristes, a que, de súbito, assomava o sorriso como o estalido de um vidro partido. Quart observou as mãos e o rosto cobertos de rugas, salpicados de manchas pardas; a pele seca e a débil linha de carmim rosa-pálido que traçava o contorno imaginário de uns lábios murchos. O cabelo branco com reflexos azulados, o colar de pequenas pérolas ao pescoço, o leque de Romero Torres. Já quase não havia mulheres destas. Conhecia algumas sobreviventes - damas solitárias que passeavam o seu tempo perdido e as suas nostalgias em pequenas aldeias da Costa Azul, matronas da antiga nobreza negra italiana, secas relíquias centro-europeias com sonoros apelidos austro-húngaros, piedosas senhoras espanholas - e sabia que restavam muito poucas do molde original, e Cruz Bruner era das últimas. Os filhos e filhas eram balas perdidas sem ofício nem benefício, pasto da imprensa sensacionalista, quando não trabalhavam das nove às seis num escritório ou num banco, dirigiam bares, lojas ou discotecas da moda e faziam o jogo dos financeiros e políticos de quem dependia o seu sustento. Estudavam na América do Norte, viajavam até Nova Iorque em vez de Paris ou Veneza, não sabiam falar francês e casavam com pessoas divorciadas, modelos de alta costura ou adventícios cuja única memória eram os dígitos de uma conta corrente recém-estreada com a especulação e os golpes de sorte. Ela própria o dissera ao jantar, com um sorriso e um lampejo de humor inteligente, trocista. "Como as baleias e as focas, também eu pertenço a uma espécie ameaçada: a aristocracia."

- Há mundos que não terminam com terramotos, nem estrépitos formidáveis - a septuagenária fitava Quart com ar de dúvida, perguntando a si mesma se seria capaz de compreender as suas palavras. - Limitam-se a extinguir-se em silêncio, com um discreto ai.

Acomodou a almofada nas costas antes de se calar por instantes, à escuta. Cantavam os grilos no jardim junto do muro do convento vizinho e um leve esplendor no céu anunciava o despontar da Lua.

- Em silêncio - repetiu.

Quart fitou Macarena. Batia-lhe nas costas a luz dos candeeiros da galeria e tinha metade do rosto na penumbra, sob o cabelo que lhe escorregara sobre o ombro. Cruzava as pernas sob o comprido vestido de algodão escuro, com as sandálias a mostrar os pés nus. O marfim do colar resplandecia-lhe suavemente no pescoço.

- Não é o caso de Nossa Senhora das Lágrimas - aventurou Quart. - A sua decadência faz ruído.

Macarena nada disse. Foi a sua mãe quem moveu ligeiramente a cabeça.

- Nem todos os mundos se resignam a desaparecer - sussurrou. O comentário soava como um suspiro.

- A senhora não tem netos - disse Quart.

Procurou dizê-lo em tom neutro, casual. Que não pudesse ser considerado como uma provocação ou uma impertinência, embora tivesse alguma coisa das duas ao mesmo tempo. Mas Macarena ficou impassível e foi Cruz Bruner quem falou, virando a cabeça para fitar a filha:

- Tem razão, não tenho.

Fez-se um silêncio que ele aguentou, na esperança de não ter falhado o tiro. Macarena tinha agora avançado o rosto, o suficiente para que o troço de lua que despontava sobre o beiral iluminasse um olhar hostil, fixo em Quart:

- Isso não lhe diz respeito - disse, por fim, em voz muito baixa.

- E talvez nem mesmo a mim - concedeu a duquesa, indo em socorro do seu convidado. - Mas é uma pena.

- Porque há-de ser uma pena? - o tom de Macarena foi cortante como uma faca; falava com a mãe, mas continuava a olhar para o sacerdote. - Por vezes mais vale não deixar nada para trás - fez um gesto violento, exasperado, para afastar o cabelo. - Felizes os soldados que partem para a guerra com tudo o que têm: o cavalo, a espada ou a espingarda. Sem ninguém que os preocupe e faça sofrer.

- Como alguns sacerdotes - concluiu Quart, que também não tirava os olhos dela.

- Talvez - Macarena ria agora sem vontade, muito longe do seu habitual riso franco, de rapaz. - Deve ser maravilhoso sentir-mo-nos tão irresponsáveis e egoístas. Escolher a causa que amamos ou que nos convém, como faz Gris. Ou como você. Não a que herdamos ou nos impõem.

As últimas palavras deixaram um rasto de amargura. Cruz Bruner entrelaçava os dedos em torno do leque:

- Ninguém te obrigou a ocupar-te da igreja, minha filha. Nem a fazer dela uma questão pessoal.

- Por favor. Sabes melhor que ninguém que há obrigações que não escolhemos, mas que recaem sobre nós. Baús que não se abrem impunemente... Há vidas governadas por fantasmas.

A duquesa fez estalar o leque.

- Está a ouvir, padre? Quem disse que as heroínas românticas tinham desaparecido?... - abanou-se um pouco, antes de fechar as varetas, pensando noutra coisa. Olhava, distraída, os arranhões nos nós dos dedos do sacerdote. - Mas os fantasmas só doem na juventude. O tempo multiplica-os, é certo, mas também suaviza os seus efeitos: a dor transforma-se em melancolia. Todos os meus fantasmas nadam numa balsa de azeite - deslizou um longo olhar em redor, para os arcos mudéjares do pátio, a fonte de azulejos e a Lua, que ascendia no rectângulo de céu negro e azulado. - Nem sequer isso já dói - olhou para a filha. - Só tu, talvez. Um pouco.

A anciã pôs a cabeça de lado, num gesto idêntico ao de Macare-na e, de súbito, Quart descobriu no seu rosto os traços familiares da filha. Foi uma rápida visão que, por um estranho momento, o fez assomar ao futuro, trinta ou quarenta anos mais tarde, da bonita mulher que estava ao seu lado, olhando-o calada, ao mesmo tempo que escutava a mãe. "Tudo tem um princípio", disse Quart para consigo". "E tudo tem um fim."

- Durante algum tempo, confiei no casamento da minha filha - continuava a dizer Cruz Bruner. - Isso consolava-me, quando pensava que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por deixá-la sozinha. Octavio Machuca e eu concordámos que Pencho Gavira era o ideal: esperto, boa figura, um futuro pela frente... Mostrava-se muito apaixonado por Macarena e tenho a certeza de que ainda está, apesar do que aconteceu - franziram-se os lábios inexistentes da duquesa. - Mas, da noite para o dia, tudo começou a mudar - dirigiu à filha um olhar fugaz. - A menina abandonou a sua casa e voltou para junto de mim.

O tom da anciã caíra na censura, mas Macarena continuava impassível. Quart bebeu um último gole da sua chávena e colocou-a em cima da mesa. Tinha a sensação contínua de roçar certezas, sem o conseguir.

- Não me atrevo - aventurou - a perguntar porquê.

- Não se atreve - Cruz Bruner abanava-se, olhando-o com lronia. - Nem eu tão-pouco. Noutra altura, teria considerado tudo isto uma desgraça, mas já não sei o que é melhor... Sou a penúltima da minha estirpe, quase com três quartos de século às costas e uma galeria de retratos de antepassados que já ninguém teme, respeita ou recorda.

A Lua foi encaixar-se no meio do rectângulo celeste. Cruz Bru-ner mandou apagar todos os candeeiros. A luz tornou-se azul e prateada, com os brancos do pátio - desenhos em azulejos, cadeiras, tons pálidos no mosaico do solo - destacando-se na penumbra como se fosse dia.

- É como atravessar uma linha - prosseguiu a duquesa, e Quart soube que continuava a conversa interrompida. - E, visto dali, o mundo seria diferente.

- E o que existe aí?

A velha senhora fitou-o com fingida surpresa:

- É uma pergunta inquietante na boca de um sacerdote. Nós as mulheres da minha geração sempre acreditámos que os senhores tinham resposta para tudo. Quando pedia conselho ao meu velho confessor, já falecido, acerca das libertinagens do meu marido, aconselhava-me sempre resignação, orações e oferecer as minhas angústias a Jesus Cristo. Para ele, uma coisa era a vida privada de Rafael, outra, a minha salvação. Não tinham nada que ver.

Fitava alternadamente a filha e Quart, e este perguntou-se que conselhos conjugais Don Príamo Ferro teria dado a Macarena.

- Deste lado da linha - prosseguiu Cruz Bruner, retomando o fio à meada - há uma certa curiosidade desapaixonada. Uma ternura tolerante pelos que mais cedo ou mais tarde chegarão aqui e não sabem disso.

- Como a sua filha?

A velha senhora pensou um momento.

- Por exemplo - disse, por fim, e estudou Quart, interessada. - Ou como o senhor. Não será sempre um sacerdote com boa figura que atrai as suas paroquianas.

Quart ignorou a alusão. Continuava à beira de certezas, mas sem êxito:

- E o que tem tudo isto que ver com o padre Ferro?... Qual a sua visão do outro lado?

A senhora fez um gesto de ignorância. A conversa começava a maçá-la.

- Teria de perguntar-lhe a ele. Parece-me que Don Príamo não é terno, nem tolerante. Mas é um sacerdote honrado e eu acredito nos sacerdotes. Acredito na Igreja católica, apostólica, romana, e espero salvar a minha alma na vida eterna - tocou no queixo com o leque fechado. - Acredito até nos sacerdotes como o senhor, que não dizem missa nem essas coisas; mesmo nos que andam de calças de ganga e sapatilhas de ténis, como o padre Oscar... Neste mundo desaparecido de que procedo, um sacerdote significa alguma coisa. Por outro lado - olhou para a filha - Macarena gosta muito de Don Príamo e eu também acredito em Macarena. Gosto de vê-la travar as suas batalhas pessoais, embora por vezes não a entenda. Batalhas impossíveis, quando eu tinha a idade dela.

Quart reflectia sobre a integridade do pároco de Nossa Senhora das Lágrimas. Era a segunda vez que ouvia proclamar aquela honradez nos últimos dias, mas isso estava em contradição com o relatório sobre Cillas de Ansó. Olhou para o relógio:

- O padre Ferro está agora no observatório?

- É cedo de mais - respondeu Cruz Bruner. - Costuma subir um pouco mais tarde, por volta das onze... Quer esperar por ele?

- Quero. Tenho umas coisas a comentar com ele.

- Excelente. Teremos o prazer da sua companhia durante mais tempo - voltavam a cantar os grilos e a velha senhora escutava, atenta, meio virada para o jardim. - Já sabe quem lhe mandou o nosso postal?

Só voltou a olhar para ele depois de ter feito a pergunta; Quart tinha metido a mão no bolso interior do casaco e pusera sobre a mesa o postal nunca recebido pelo capitão Xaloc.

- Não faço a menor ideia - sentia-se observado por Macarena. - Mas, pelo menos, agora sei quem era quem e o que significava.

- Sabe mesmo? - Cruz Bruner abria e fechava o leque, tocando, por fim, com a ponta no rectângulo de cartolina que se destacava sobre a mesa. - Nesse caso, enquanto espera Don Príamo, talvez seja boa altura para restituir o postal ao baú de Carlota.

Quart fitou as mulheres, indeciso. Macarena erguera-se e aguardava, imóvel, com o postal na mão e a Lua recortando-lhe, num traço pálido, a silhueta do cabelo e os ombros. Pôs-se de pé e seguiu-a através do pátio e do jardim.

Quando subiram ao pombal, as nuvens tocavam a parte inferior da Lua, e aquela claridade velada conferia uma aparência irreal à cidade a seus pés. Os telhados de Santa Cruz estavam escalonados à maneira de um antigo cenário de teatro, em planos de sombras quebrados, a espaços, pela luz de uma janela, um candeeiro distante num troço de ruela estreita entre dois beirais, um terraço onde a roupa estendida pendia, como sudários na noite. A Giralda erguia-se, iluminada, ao fundo, como se houvesse sido pintada sobre um pano escuro, e o campanário de Nossa Senhora das Lágrimas parecia muito próximo, quase ao alcance da mão, do outro lado das compridas cortinas brancas que se moviam lentamente, agitadas pela aragem.

- Não é brisa do rio, mas do mar - disse Macarena. - Sobe de noite, vinda de Sanlúcar.

Introduziu, depois, os dedos à esquerda do decote e, tirando o isqueiro da alça do soutien, acendeu um cigarro. O fumo desvaneceu-se pelos arcos da sala, entre o enxame de insectos nocturnos que esvoaçavam em volta da lâmpada acesa, no espaço de luz que esta projectava junto do baú aberto.

- Eis o que resta de Carlota Bruner - disse.

Havia no baú caixas laçadas, contas de azeviche, uma figurinha em porcelana, leques quebrados, uma mantilha de seda muito velha e coçada, alfinetes de chapéu, corpetes de barbas de baleia, uma bolsa de fina malha de prata, uns binóculos de teatro com guarnições de madrepérola, as deterioradas flores de tecido, papel e cera de um chapéu, livros de fotografias e postais, velhas revistas ilustradas, estojos em pele e cartão, umas insólitas luvas vermelhas e compridas, em camurça, livros de poesia danificados e cadernos escolares, bilros em madeira para fazer renda, uma trança de cabelo castanho muito claro de quase três palmos de comprimento, um catálogo da Exposição Universal de Paris, um pedaço de coral, uma gôndola em miniatura, um vetusto folheto turístico das ruínas de Cartago, uma peineta de tartaruga, um pisa-papéis em vidro com um cavalo-marinho no interior, várias moedas antigas, romanas, e outras em prata com a efígie de Isabel II e Afonso XIII. Quanto ao maço de cartas, era grosso e estava atado com uma fita. Macarena desatou o laço e pô-las nas mãos de Quart. Este calculou meia centena: quase dois terços eram sobrescritos contendo folhas dobradas três vezes e o resto, cartões postais. A tinta havia empalidecido no papel amarelado e quebradiço, virando do negro ou azul para um sépia diluído que se tornava, por vezes, ilegível. Nenhuma estava carimbada e todas eram escritas com a letra tombada, fina e inglesa, de Carlota Bruner. Dirigidas ao capitão Don Manuel Xaloc, porto de La Havana, Cuba.

- Não existe nenhuma dele?

- Não - ajoelhada diante do baú, Macarena pegou em várias cartas e passou-as em revista, com o cigarro fumegante nos dedos. - O meu bisavô queimava-as à medida que os correios as recebiam. É uma pena. Sabemos o que ela escrevia, mas não o que ele contava.

Sentado numa das velhas poltronas, com as estantes cheias de livros nas suas costas, Quart passou os olhos pelos postais. Eram todos estampas populares de Sevilha, como a que ele havia recebido: a ponte de Triana, o porto com a torre del Oro e uma escuna atracada diante dela, um cartaz da feira, a reprodução de um quadro da catedral. Espero-te, esperar-te-ei sempre, com todo o meu amor, sempre tua, aguardo notícias, amo-te Carlota. Extraiu uma carta do sobrescrito. A data do cabeçalho era 11 de Abril de 1896:

 

                   Querido Manuel,

Não me resigno a viver sem notícias tuas. Estou certa de que a minha família intercepta a tua correspondência, pois sei que não me esqueceste. Existe no meu coração alguma coisa, um pequeno tiquetaque como o do teu relógio, que me diz que as minhas cartas e a minha esperança não viajam no vazio. Vou enviar-te esta por uma criada que julgo ser segura e espero que as minhas palavras cheguem junto de ti. Com elas renovo a minha mensagem de amor e a minha promessa de te esperar sempre, até que por fim regresses.

Que longa é a espera, amor! O tempo passa e continuo esperando que a das velas brancas que vêm rio acima te traga consigo. A vida tem forçosamente que acabar por ser generosa com os que tanto sofrem por confiar nela. Faltam-me, por vezes, as forças, choro, desespero e chego a crer que não voltarás nunca. Que me esqueceste, apesar do teu juramento. Vês como posso ser injusta e estúpida?

Espero-te sempre, todos os dias, na torre de onde te vi partir. A hora da sesta, quando todos dormem e a casa está em silêncio, venho cá para cima e sento-me na cadeira de baloiço a contemplar o rio por onde voltarás. Faz muito calor e ontem pareceu-me ver mover-se, navegando, os galeões pintados nos quadros da escada. Sonhei também com crianças brincando numa praia. Creio que são bons sinais. Quem sabe se, neste momento, não estarás já a caminho, voltando para mim.

Volta depressa, meu amor. Preciso de ouvir o teu riso, de ver os teus dentes brancos, as tuas mãos trigueiras e fortes. E de te ver olhar-me como me olhas. E de renovar o beijo que um dia me deste. Volta, por favor. Suplico-te. Volta ou morrerei. Sinto que, por dentro, estou já a morrer.

Meu amor.

                     Carlota

 

- Manuel Xaloc nunca leu esta carta - disse Macarena. - Como nenhuma das outras. Ela conservou ainda o juízo durante mais seis meses, depois sobrevieram as trevas. Não exagerava: estava a morrer por dentro. E quando, por fim, ele veio vê-la e sentou-se no pátio, com o seu uniforme azul e os seus botões dourados, Carlota já estava morta. Aquela que se movia diante dele, incapaz de o reconhecer, era uma sombra.

Quart dobrou a carta, restituindo-a ao seu cemitério de papel amarelado, de sobrescritos como lápides sobre mensagens lançadas às cegas, na escuridão e no vazio. Sentia-se perturbado, incomodado, quase culpado por violar, intrometendo-se, a intimidade de um obscuro diálogo feito de gritos de auxílio, de palavras de amor que nunca haviam tido resposta. Aquela carta inspirava nele uma indefinível vergonha. Uma infinita tristeza.

- Quer ler mais? - perguntou Macarena.

Quart negou com a cabeça. A brisa subindo, desde Sanlúcar, pelo Guadalquivir agitava as cortinas brancas, descobrindo, de quando em quando, a silhueta sombria do campanário da igreja. Macarena sentara-se no chão, apoiada no baú e relia algumas cartas à luz do candeeiro, que arrancava reflexos escuros da madeixa negra sobre metade do seu rosto. Quart admirou a curva do pescoço, a pele morena do decote e o despontar dos ombros, os pés nus nas sandálias de couro. Emanava uma sensação de tão intensa tepidez que teve de conter-se para não estender a mão e tocar com os dedos a carne do seu pescoço.

- Olhe para isto - disse ela.

Estendia-lhe uma folha manuscrita: o esboço de um barco e um texto escrito por baixo, com a letra e os traços de Carlota. Intitulava-se: Iate armado "Manigua". Acompanhavam-no as características técnicas do navio e era evidente que havia sido copiado de uma revista da época.

- Esta pasta é posterior - disse Macarena, passando-lhe um cartapácio atado com fitas. - Foi o meu avô quem a colocou aqui dentro, depois da morte de Carlota. É o outro epílogo da história.

Quart abriu a pasta. Continha vários recortes de jornais e revistas ilustradas, tudo referente ao final da guerra de Cuba e ao desastre naval de 3 de Julho de 1898. Uma capa de La Ilustración reconstruía numa gravura artística a destruição da esquadra do almirante Cervera. Havia também uma página com o relato da batalha, um plano da costa de Santiago de Cuba, gravuras dos principais chefes e oficiais mortos no combate e, entre eles, Quart encontrou o que buscava. Não era de muito boa qualidade e, como dizia a legenda do ilustrador, "realizado a partir de testemunhos fidedignos". O retrato mostrava as feições de um homem bem parecido, com a gola do casaco abotoada até cima sobre um lenço branco, a expressão melancólica. Era o único que trajava à civil e dir-se-ia que o desenhador pretendera sublinhar a sua pertença acidental à esquadra de Cervera. Tinha o cabelo curto e um largo bigode que se juntava a umas patilhas frondosas: Capitão da marinha mercante, Don Manuel Xaloc Ortega, comandante do "Mamgua". Havia sido desenhado olhando para um lugar impreciso para além do ombro de Quart, como se, no fundo, pouco lhe importasse figurar entre os heróis de Cuba. Mais abaixo, na mesma página, o texto:

... Enquanto o Infanta Maria Teresa, depois de suportar durante quase uma hora o fogo cerrado da esquadra norte-americana, encalhava na costa, envolto em chamas, o resto dos barcos espanhóis iam subindo um a um a entrada do porto de Santiago, entre os fortes de El Morro e Socaba, sendo recebidos no acto por uma densa salva de artilharia dos couraçados e cruzadores de Sampson, cuja superioridade de fogo e de blindagem era esmagadora. Com as suas torres inutilizadas, as pontes e a superstrutura crivadas de balas e um elevado número de mortos e feridos a bordo, todo o costado de bombordo a arder, o Oquendo passou diante do local onde estava encalhado o seu navio almirante e, incapaz de continuar, com o seu capitão (capitão de navio Lazaga) morto, foi encalhar uma milha mais a oeste, para não cair nas mãos do inimigo.

O Vizcaya e o Cristóbal Cólon forçaram as máquinas, navegando paralelos à costa, contra a qual os empurrava o dilúvio de fogo norte-americano. Passaram junto dos seus companheiros destruídos, cujos sobreviventes tentavam ganhar a costa a nado. Mais rápido, o Cólon adiantou-se, enquanto o desafortunado Vizcaya sofria os impactos de todas as unidades adversárias. Ardeu o navio e, depois que o seu comandante (capitão de navio Eulate) em vão tentou investir contra o couraçado Bro-oklin, foi encalhar sob o fogo intenso do lowa e do Oregon, com a bandeira a arder, pois não foi arriada. Em seguida chegou a vez do Cólon (capitão de navio Díaz Moreu), que, à uma da tarde, perseguido por quatro navios norte-americanos, indefeso sem artilharia pesada, foi atirado contra a costa e afundado pela sua própria tripulação. Ao mesmo tempo, mais atrasadas e sem esperança de sobreviver, saíam do porto uma a uma as unidades ligeiras da esquadra, os contratorpedeiros Plutón e Furor, aos quais se juntara, nas últimas horas, o iate armado Manigua, cujo comandante (capitão da marinha mercante Xaloc) se negou a permanecer ao abrigo do porto, onde o seu barco seria capturado com a cidade prestes a cair. Estas pequenas unidades, conscientes da impossibilidade de escapar, foram directamente ao encontro dos couraçados e cruzadores norte-americanos. Encalhou o Plutón (tenente de navio Vásquez), partido em dois por um pesado projéctil do Indiana, e foi a pique o Furor (comandante Villaamil), sob o fogo do mesmo couraçado e do Gloucester. Quanto ao ligeiro e rápido Manigua, foi o último a sair do porto de Santiago, quando a costa era já uma sucessão de barcos espanhóis encalhados e em chamas, içou uma insólita bandeira negra junto do pavilhão nacional, circundou o baixio do Diamante, suportando já fogo inimigo e, sem vacilar, rumou contra a unidade norte-americana mais próxima, o couraçado Indiana, Desta forma, o Manigua navegou três milhas, aproximando-se em ziguezague

do couraçado, recebeu um fogo intensíssimo e afundou-se à uma e vinte da tarde, com a coberta arrasada e incendiado da proa à popa, quando tentava ainda investir contra o inimigo...

Quart colocou de novo o recorte dentro da pasta e restituiu-a ao baú, com o resto dos documentos. Já sabia agora o que fitavam os olhos indiferentes do capitão Xaloc no retrato publicado pela revista. Os canhões do couraçado Indiana. Por um momento, entreviu-o, agarrado à amurada da ponte, entre o fragor dos tiros de canhão e o fumo do barco incendiado, resolvido a terminar a sua longa viagem a parte nenhuma

- Carlota chegou a saber disto?

Macarena folheava as páginas de um velho álbum de fotografias.

- Não sei. Em Julho de 1898, tinha já perdido completamente a razão, de modo que ignoramos o que pode ter significado para ela. Creio que lhe esconderam a notícia. Em todo o caso, continuou a subir até aqui para esperar, até à morte.

- Que triste história.

Ela mantinha aberto o álbum numa das páginas, que lhe mostrava. Tinha colada uma antiga fotografia, uma cartolina rectangular com a assinatura do estúdio fotográfico a um canto. Mostrava uma jovem vestida com roupa clara, estival, uma sombrinha fechada na mão e um chapéu de abas muito largas, com flores parecidas com as de tecido e cera que havia no baú A impressão fotográfica estava tão desvanecida que todas as feições eram amarelas, e em grande parte apagadas pelo tempo; podiam, porém, apreciar-se as mãos finas segurando as luvas e o leque, o cabelo claro preso na nuca, a oval do rosto pálido, o sorriso triste e o olhar ausente Não era bela, mas tinha um aspecto agradável, doce e sereno. Quart deu-lhe pouco mais de vinte anos.

- Quem sabe se não tirou esta fotografia para ele - aventurou Macarena.

Uma aragem mais forte fez mover as cortinas e, de novo, Quart avistou o campanário próximo de Nossa Senhora das Lágrimas. Para atenuar o seu mal-estar, ergueu-se, foi até um dos arcos moçárabes, despiu o casaco, dobrando-o sobre o parapeito e ficou a ver recortar-se o telhado da igreja nas trevas. Era tão grande a sua desolação como a que Manuel Xaloc devia ter sentido ao sair, pela última vez, da Casa do Postigo, a caminho da igreja, para ali depositar as pérolas do vestido de noiva que Carlota Bruner nunca usaria.

- Sinto muito - murmurou para a noite, incapaz de precisar diante de quem formulava aquela desculpa. Não sabia sequer do que desculpar-se, mas tinha necessidade de o fazer. Sentia o frio do arco da cripta nos pulsos, o crepitar das velas a arder durante a missa do padre Ferro, o cheiro a passado estéril que emanava do baú aberto. E um templário solitário num campo deserto, apoiando-se, exausto, na sua espada, via passar diante dos olhos, lentamente, o iate armado Manigua, fazendo-se ao mar naquele dia 3 de Julho de 1898, com uma silhueta imóvel na ponte de comando e, junto do pavilhão, uma bandeira negra como a desesperança.

Ouviu um roçar próximo. Macarena aproximara-se e contemplava também a torre de Nossa Senhora das Lágrimas.

- Agora - disse - já sabe tudo o que é preciso.

Nunca houve tão grande verdade. Quart sabia mais do que desejava saber e Vésperas tinha cumprido o seu inútil objectivo. Mas nada de tudo aquilo podia traduzir-se na prosa oficial do relatório esperado pelo IOE. O que monsenhor Spada, Sua Eminência Jerzy Iwaskiewicz e Sua Santidade o Papa desejavam conhecer, a identidade do pirata informático e a possibilidade de um escândalo em torno da pequena paróquia sevilhana, eis o que importava do assunto. O resto, as histórias e as vidas albergadas entre as paredes da igreja, não contavam para ninguém. A apaixonada juventude do padre Oscar acertara em cheio: Nossa Senhora das Lágrimas ficava demasiado longe de Roma. Era apenas, como o Manigua do capitão Xaloc, um pequeno navio navegando em ziguezague, com o destino previamente traçado, frente à impávida mole de aço de um couraçado sem alma.

Macarena pousara a mão sobre o seu braço - o que tinha a mão ferida - e ele manteve-o imóvel, sem o retirar, se bem que ela sentisse endurecer os músculos sob o contacto.

- Vou-me embora de Sevilha - disse, por fim, Quart em voz baixa.

Ela nada comentou de imediato. Passado um momento, sentiu que se virava para o fitar:

- Acha que em Roma irão compreender?

- Não sei. Mas não importa que compreendam ou não - Quart fez um gesto na direcção do baú, do campanário, da cidade escura a seus pés - Não foram eles que estiveram aqui. Isto é apenas um ponto minúsculo no mapa, para o qual um audacioso intruso informático chamou a sua atenção por um instante. O meu relatório será arquivado minutos depois de ser lido.

- É injusto - protestou Macarena. - Trata-se de um lugar especial.

- Engana-se. O mundo está cheio de lugares como este. Cada recanto, cada história têm uma Carlota esperando a uma janela, um velho pároco teimoso, uma igreja a cair em pedaços algures... Vocês não são tão importantes que tirem o sono ao Papa.

- E a si?

- Isso não tem nada que ver. Eu já dormia pouco.

- Bem vejo - retirava a mão apoiada no seu braço. - Não gosta de se sentir envolvido, não é? A menos que se trate de cumprir ordens - atirou o cabelo para trás com violência, colocando-se de forma que ele não teve outro remédio senão encará-la. - Não vai perguntar-me porque deixei o meu marido?

- Não, não vou perguntar-lhe. Tão-pouco isso é imprescindível no meu relatório.

Soou o riso baixo, desdenhoso, da mulher.

- Pouco me importa o seu relatório. Você veio cá fazer perguntas e, agora, não pode dizer que se vai embora e foge ao resto das respostas... Bisbilhotou a vida de toda a gente, de modo que pode completar a minha - não tirava os olhos de Quart. A voz tornava-se-lhe absorta, grave, como se, antes de se modular, percorresse um longo caminho interior. - Eu queria um filho, sabe?... Algo que atenuasse a sensação de que não há nada entre os meus pés e o abismo. Eu queria um filho e Pencho não - o tom converteu-se em sarcasmo. - Imagine os argumentos: prematuro, má altura, momento crucial nas nossas vidas, necessidade de concentrar esforços e energias, tê-lo-emos mais tarde... Não lhe dei ouvidos e fiquei grávida. Porque vira o rosto, padre Quart?... Escandaliza-se?... Imagine que está no confessionário. Afinal, faz parte do seu ofício. Quart movia a cabeça, subitamente seguro de si. Era precisamente a única coisa que lhe parecia clara. O seu ofício.

- Engana-se de novo - respondeu suavemente. - Não é assim. Já lhe disse uma vez que não quero confessá-la.

- Não pode evitá-lo, padre - Quart sentiu despeito e ironia no tom da mulher. - Considere-me como uma alma atribulada que o seu ministério lhe impede de repelir - fez-se um silêncio.

- Além disso, também não lhe peço absolvição.

Ele encolheu os ombros, como se isso bastasse para o pôr à margem. Mas ela tinha os olhos cheios de reflexos de luz, de lua, de noite e não pareceu perceber o gesto.

- Fiquei grávida - prosseguiu, no mesmo tom que antes

- e, para Pencho, foi como se o mundo lhe tivesse caído em cima. Demasiado cedo, demasiados problemas antes de tempo, insistia. Pressionou-me como ninguém mais na vida... Pressionou-me para que me desfizesse dele.

Então era isso. As peças soltas continuaram a encaixar lentamente nas reflexões do sacerdote. Macarena permanecia calada e ele não pôde deixar de abrir a boca sem querer:

- E fê-lo - disse.

Não era uma pergunta. Voltou-se para a fitar, vendo-a sorrir com uma amargura que nunca lhe conhecera.

- Fi-lo - Santa Cruz continuava a reflectir-se nos seus olhos, pálida de luar. - Sou católica e resisti tanto quanto pude. Mas amava realmente o meu marido. Contra a opinião de Don Príamo, dei entrada numa clínica e perdi a criança. Só que as coisas complicaram-se: tive uma perfuração do útero com hemorragia arterial e foi preciso fazer-me uma histerectomia de urgência... Sabe o que isso significa? Que nunca mais poderei ser mãe - ergueu os olhos, que se inundaram de luar, apagando todos os vestígios do resto. - Nunca mais.

- Que disse o padre Ferro?

- Nada. É velho e já viu demasiado. Continua a dar-me a comunhão sempre que lha peço.

- A sua mãe sabe?

- Não.

- E o seu marido?

Ela emitiu uma gargalhada curta e seca.

- Também não - passava a mão pelo parapeito, perto do braço de Quart, mas agora sem chegar a tocá-lo. - Ninguém sabe, excepto o padre Ferro e Gris. E, agora, você.

Hesitou um instante, como se fosse acrescentar mais um nome. Mas, Quart fitava-a, surpreendido:

- A Irmã Marsala aprovou a sua decisão de abortar?

- Pelo contrário. Quase me custou a sua amizade. Mas, quando as coisas se complicaram, acudiu-me... Quanto a Pencho, não permiti que me acompanhasse durante a intervenção e pensou sempre que o aborto foi normal. Voltei a casa, convalescente e, para ele, tudo parecia correr bem.

Guardou silêncio um instante, contemplando a Giralda, iluminada ao longe. Depois, voltou-se para o sacerdote.

- Há um jornalista - disse. - Um tal Bonafé, o mesmo que, na semana passada, publicou umas fotografias...

Calou-se, por certo à espera de um comentário, mas Quart nada disse. As fotografias do Hotel Afonso III eram o menos. Preocupava-o o nome de Honorato Bonafé na boca de Macarena.

- Um tipo desagradável - prosseguiu ela, passado um momento. - Frouxo, sujo... Desses a quem nunca estenderíamos a mão, porque a adivinhamos húmida.

- Eu conheço-o - disse, por fim, Quart.

Macarena dirigiu-lhe um olhar desconfiado, perguntando a si mesma de onde podia ele conhecer semelhante indivíduo. Depois curvou a cabeça e o cabelo negro entrepôs-se no meio de ambos.

- Veio ver-me esta manhã - prosseguiu. - Na realidade, abordou-me à porta, pois nunca o teria recebido aqui. Mandei-o passear, mas, antes de ir, insinuou algo acerca da clínica... Andou a fazer perguntas.

Santo Deus! Quart torcia a cara, imaginando a cena. Por um momento lamentou não ter sido mais contundente com Bonafé, aquando da sua última entrevista. Miserável ratazana! Desejou de todo o coração voltar a encontrá-lo, no vestíbulo do hotel, ao regressar, para apagar do seu rosto aquele sorriso viscoso.

- Estou um pouco inquieta - confessou Macarena. Disse-o com um ar preocupado, inseguro, que tão-pouco lhe

notara anteriormente. Quart não tinha dificuldade em imaginar o partido que Bonafé ia tirar da história.

- Abortar - comentou - já não constitui um problema em Espanha.

- Não, mas esse homem e a sua revista vivem de escândalos. Cruzava os braços, apertados. De repente, pareceu ter frio.

- Sabe como se faz um aborto, padre Quart?... - voltara-se para o estudar, procurando uma resposta no seu rosto para, finalmente, a descartar com um trejeito de desprezo. - Não, creio que não sabe. Quero dizer, não sabe de verdade. Toda aquela luz, o tecto branco e as pernas abertas. E uma vontade de morrer. E a infinita, fria, espantosa solidão... - afastou-se bruscamente da janela. - Malditos sejam todos os homens do mundo, mesmo você. Maldito até ao último.

Deteve-se num suspiro muito profundo, expelindo o ar como se lhe doessem os pulmões. O contraste de luz e sombras no seu rosto parecia envelhecê-la, ou talvez fosse aquele tom de voz lento, amargo, que a convertia noutra mulher, mais dura e mais gasta.

- Eu negava-me a pensar - prosseguiu, passado um momento. - A reflectir sobre o que tinha acontecido. Vivia um estranho sonho de que queria acordar... E, um dia, três meses depois de regressar, entrei na casa de banho, enquanto Pencho tomava um duche, depois de termos feito amor pela primeira vez. Estava debaixo de água, ensaboando-se, e eu sentei-me na borda da banheira a olhar para ele. De repente sorriu, e eu, então, vi-o como um perfeito desconhecido... Alguém sem relação com o homem que eu amava e por causa do qual tinha perdido a possibilidade de ter filhos.

Calou-se de novo, para desespero de Quart, que teria preferido não saber e, contudo, estava suspenso das suas palavras. Por um momento pareceu que tinha terminado, mas aproximou-se novamente da janela, a mão parada no parapeito, a meio caminho entre ela e o sacerdote, sobre o casaco dobrado.

- Senti-me muito vazia e muito só - prosseguiu, finalmente. - Pior que na clínica. Fiz então a mala e vim para aqui... Pencho nunca compreendeu. E continua ainda sem compreender.

Quart respirou lentamente, cinco, seis vezes. Ela parecia aguardar um comentário seu.

- Por isso o prejudica - disse, por fim. Tão-pouco agora era uma pergunta.

- Prejudicar?... Ninguém o pode prejudicar. O seu egoísmo e as suas obsessões estão blindados. Mas posso fazê-lo pagar um elevado preço social: a igreja, o seu prestígio de financeiro e o seu orgulho de homem. Sevilha passa muito facilmente do aplauso aos assobios... Estou a falar da minha Sevilha, essa cujo reconhecimento Pencho anseia. E há-de pagar por isso.

- A sua amiga Gris afirma que você ainda o ama.

- Por vezes fala de mais - riu, de novo, com idêntica amargura. - Talvez o problema seja eu amá-lo. Ou o contrário. Seja como for, isso nada modificaria.

- E eu?... Porque me conta tudo isto?

A lua fitava Quart. Dois discos brancos. Opaca.

- Não sei. Disse que se vai embora e, de súbito, isso incomoda-me - estava agora tão perto que, quando soprou outra brisa, os seus cabelos roçaram o rosto de Quart. - Talvez eu me sinta menos só a seu lado; parece que encarna, contra a minha vontade, a imagem atávica que o sacerdote sempre teve para uma grande parte das mulheres: uma pessoa forte e sábia em quem confiar, ou a quem confiar-se... Talvez sejam o seu fato negro e o colarinho, ou porventura o facto de ser, também, um homem atraente. Pode ser que a sua vinda de Roma e o que representa, atraiam o meu interesse. Talvez eu seja o seu Vésperas. Pode ser que tente conquistá-lo para a minha causa, ou simplesmente procure infligir uma nova e mais retorcida ofensa contra a honra de Pencho... Também poderia tratar-se de algumas ou todas as coisas ao mesmo tempo. No que é agora a minha vida, o padre Ferro e você são os extremos de um terreno tranquilizador: opostos e complementares.

- Por isso defende a igreja - concluiu Quart. - Precisa dela tanto como os outros.

Ela tinha erguido os braços, levantando até à nuca o cabelo recolhido nas mãos. O seu pescoço era uma linha suave e obscura desde os lóbulos das orelhas até ao despontar dos ombros.

- Também você necessita, talvez, dela mais do que julga - abriu as mãos e o cabelo derramou-se numa cascata negra, ocultando-lhe pescoço e ombros. - Quanto a mim, não sei do que necessito. Talvez da igreja, como diz. Talvez de um homem silencioso e com boa figura que me faça esquecer ou, pelo menos, que me conceda o dom da indiferença. E de outro, velho e sábio, que me absolva de buscar o meu próprio esquecimento. Sabe uma coisa?... Até há dois séculos atrás era uma sorte ser católico. Resolvia tudo: bastava abrirmo-nos com um cura e esperar. Agora nem mesmo vocês os curas acreditam em si próprios. Há um filme,

Jennie... Num momento do diálogo, Joseph Cotten, o pintor protagonista, diz a Jennifer Jones: "Sem ti estou perdido." E ela responde: "Não digas isso. Não podemos estar perdidos os dois"... Está tão perdido como parece, padre Quart?

Voltou-se para ela, deixando o casaco abandonado na janela, sem uma resposta nos lábios. E a Lua ria-se dele com o seu duplo reflexo pálido. E perguntou a si mesmo como era possível que uma boca de mulher sorrisse trocista e terna ao mesmo tempo, tão desavergonhada e tão tímida, e tão próxima. E, no momento em que ia a abrir a sua, disposto a dizer algo que ignorava ainda, um relógio próximo bateu, sobre os telhados, onze badaladas e Quart disse para consigo que, por certo, o Espírito Santo acabava de terminar o seu turno de guarda. Deus dos Céus! Ergueu a mão em direcção ao rosto da mulher - a mão ferida -, mas teve o domínio suficiente para a deter a meio caminho. Então, incapaz de estabelecer se o que sentia era decepção ou alívio, viu que Don Príamo Ferro estava à porta, fitando-os.

- Demasiado luar - comentou o padre Ferro. Estava de pé, junto do telescópio, observando o céu. - Não é boa altura para trabalhar.

Macarena descera a escada, deixando-os sós no pombal. Quart inclinou-se para fechar o baú de Carlota antes de se quedar imóvel, atento à pequena e ressequida figura de costas para ele, tão escura na sua sotaina negra.

- Apague a luz - disse o pároco.

Quart obedeceu e as lombadas dos livros, o baú de Carlota, a gravura de Sevilha do século XVII que havia na parede, fundiram-se em negro. A silhueta da janela parecia agora mais compacta e vigorosa. A noite reforçava nela uma qualidade singular, feita de sombras.

- Quero falar consigo - disse Quart. - Vou deixar Sevilha.

O padre Ferro não fez comentários. Continuava parado, a contemplar o céu, recortado por uma réstia de lua no arco da janela, entre as cortinas que se moviam.

- Berenice - disse, por fim. - Consigo ver a Cabeleira de Berenice.

Quart andou até ficar a seu lado. O telescópio ficava entre os dois, apontado para o céu.

- Aquelas treze estrelas - acrescentou o padre Ferro. - A noroeste. Ela ofereceu os cabelos para conseguir a vitória dos seus exércitos.

Quart não olhava para o céu, mas sim para o perfil sombrio do pároco, virado para cima. Como que satisfazendo, atrasada, os seus desejos, a torre iluminada da Giralda apagou-se de súbito, acabando de esfumar-se na noite. Um instante depois, à medida que a retina de Quart se adaptou à nova situação, os seus contornos obscuros começaram de novo a perfilar-se sob a lua.

- E além, mais longe - prosseguia o padre Ferro - quase no zénite, estão os Cães de Caça.

Pronunciou o nome com um desprezo infinito: intrusos invadindo um território amado. Desta vez, Quart olhou para cima e pôde distinguir, a norte, uma estrela grande e outra pequena que pareciam viajar juntas no espaço.

- Não lhe são simpáticas - comentou.

- Não. Detesto caçadores. E mais ainda quando caçam por conta doutros... Além disso, neste caso são os cães da adulação. A estrela grande é Cor Caroli. Halley baptizou-a desta maneira porque brilhou com mais intensidade no dia do regresso de Carlos II a Londres.

- Então o cão não é culpado.

Ouviu-se o riso chilreante, apagado, do pároco. Voltara-se, finalmente, para olhar Quart de alto a baixo, por sobre o ombro. O luar acentuava a brancura do seu cabelo mal tosquiado, fazendo-o parecer quase limpo.

- Parece-me muito desconfiado, padre Quart. E fama de desconfiado é comigo - riu-se de novo, baixinho. - Estava apenas a falar de estrelas.

Meteu a mão no bolso da sotaina para tirar um cigarro da caixinha de lata amolgada. Ao inclinar-se sobre a chama protegida na cova da mão, o brilho avermelhado iluminou no seu rosto devastado cicatrizes e rugas, os pêlos brancos e negros da barba mal feita e já crescida, as manchas pardacentas no pescoço, as mangas da sotaina.

- Porque se vai embora? - apagou o fósforo e o cigarro era uma brasa incandescente no duro perfil - Já descobriu Vésperas?

- Vésperas é o menos, padre. Pode ser qualquer um de vocês, ou todos, ou nenhum. A sua identidade não modifica as coisas.

- Gostaria de saber o que vai contar em Roma.

Quart disse-lho: as duas mortes tinham sido acidentes lamentáveis e a sua investigação coincidia com a versão policial; por outro lado, um pároco veterano travava uma batalha privada, apoiado por vários paroquianos. Uma história que vinha já do tempo de São Paulo, de modo que não acreditava que ninguém na Cúria se escandalizasse com isso. Se não tivesse sido a interferência do pirata informático e o memorando a Sua Santidade, o caso nunca teria saído do âmbito do ordinário de Sevilha. Eis, em síntese, o panorama.

- E o que farão comigo?

- Oh, nada de especial, suponho. Como monsenhor Corvo moveu já um processo disciplinar a que irá juntar-se o meu relatório, imagino que lhe arranjarão uma reforma antecipada, discreta, um pouco mais cedo do que é costume... Talvez uma capelania de freiras, se bem que o mais provável seja uma residência para sacerdotes de idade. Já sabe: descanso.

A brasa do cigarro movia-se no perfil.

- E a igreja?

Quart estendeu a mão para o casaco, que continuava sobre o peitoril. Desdobrou-o e voltou a dobrá-lo, antes de o colocar de novo no mesmo sítio.

- Isso já não é da minha conta - disse. - Mas, no ponto em que estão as coisas, vejo pouco futuro. Em Sevilha, sobram igrejas e faltam curas. Além disso, Sua Reverência Don Aquilino Corvo já lhe impôs o requiescat.

- À igreja, ou a mim?

- A ambos.

Rangeu o riso atravessado do pároco:

- Possui todas as respostas, ao que vejo. Quart meditou um pouco.

- Para dizer a verdade, falta-me uma - assinalou, passado um pouco. - Algo que figura no seu processo, mas não quereria citá-lo no meu relatório sem conhecer a sua versão... Teve um problema lá em cima, quando era pároco em Aragão. Um tal Montegrifo. Não sei se se recorda.

- Recordo perfeitamente o senhor Montegrifo.

- Diz que comprou um retábulo da sua paróquia.

O padre Ferro manteve-se calado durante algum tempo. De soslaio, Quart viu que o perfil obscuro continuava virado para o céu e a brasa do cigarro, quase extinta na boca. Caindo-lhe sobre o ombro, o luar iluminava-lhe uma das mãos, apoiada no tubo de latão do telescópio.

- A igreja era românica, pequena - disse o pároco após um longo silêncio. - Vigas apodrecidas e paredes rachadas. Nela faziam ninho corvos e ratazanas... Era uma paróquia muito pobre, tão pobre que, por vezes, não tinha sequer com que comprar vinho para a missa. E os meus paroquianos viviam espalhados por quilómetros em redor. Gente humilde, pastores e camponeses. Gente de idade, doente, inculta, sem futuro. E eu, todos os dias, durante a semana só para mim e, aos domingos, para eles, dizia missa diante de um retábulo ameaçado pela humidade, as rachas, o caruncho... Espanha estava cheia de lugares como aquele, de obras de arte indefesas que eram roubadas por traficantes, desapareciam quando o tecto da igreja ruía ou ficavam expostas ao fogo, à chuva, à miséria... Um dia veio visitar-me um estrangeiro que já ali tinha estado: vinha acompanhado de um indivíduo elegante, com bom aspecto, que se apresentou como sendo o director de uma leiloeira de Madrid. Fizeram uma oferta pelo Cristo e o pequeno retábulo do altar.

- Era um retábulo valioso - assinalou Quart. - Do século XV.

O pároco impacientava-se. A brasa do cigarro brilhou com mais intensidade:

- Que importa o século?... Pagavam-no. Não sendo uma quantia extraordinária, representava um tecto novo para a igreja e, mais importante, ajuda para os meus paroquianos.

- De modo que o vendeu?

- Claro que vendi. Sem hesitar um instante. À custa disso reparei o telhado, obtive medicamentos para os enfermos, minorei os prejuízos das geadas e das doenças do gado... Ajudei as pessoas a viver e a morrer.

Quart assinalou a silhueta obscura do campanário:

- E, contudo, defende agora esta igreja. Parece contraditório.

- Porquê?... O valor artístico de Nossa Senhora das Lágrimas interessa-me tanto como a si ou ao arcebispo. Deixo isso para a Irmã Marsala. Os meus paroquianos, por poucos que sejam, valem mais que uma madeira pintada.

- Portanto não acredita... - começou a dizer Quart.

- Em quê?... Nos retábulos do século XV? Nas igrejas barrocas? No Mecânico Supremo que aperta, lá em cima, os nossos parafusos um por um?...

A brasa do cigarro brilhou pela última vez, antes que o padre Ferro a deixasse cair da janela.

- Que importa? - disse. Movia o telescópio sem olhar pela objectiva, como se buscasse alguma coisa nas estrelas. - Eles sim, acreditam.

- Esse retábulo deixou uma nódoa no seu processo - referiu Quart.

- Eu sei - o pároco continuava a mover o telescópio. - Tive até uma desagradável entrevista com o meu bispo... Se, em Roma, fizessem o mesmo, repliquei, outro galo cantaria. Mas aqui, o único galo que ouvimos cantar é o de São Pedro. Depois, tudo são lágrimas e "Quo Vadis Domine" e "Crucifiquem-me de cabeça para baixo". Mas, entretanto, ficamos à margem, negando a nossa consciência enquanto as bofetadas soam no Pretório.

- Seja. Tão-pouco São Pedro lhe é simpático, ao que vejo.

Rangeu de novo o riso baixinho do sacerdote:

- Tem razão. Devia ter-se deixado matar em Getsemani, quando sacou da espada para defender o Mestre.

Foi agora Quart quem deu uma gargalhada:

- Nesse caso, teríamos ficado privados do primeiro Papa.

- Isso é o que você julga - o pároco negava com a cabeça. - No nosso ofício há padres de sobra. O que falta são colhões.

Inclinara-se e colava o olho ao telescópio, fazendo girar os carretos de ajustar. O tubo deslocou-se lentamente para cima e para a esquerda.

- Quando observamos o céu - o padre Ferro falava sem se afastar da lente - as coisas giram devagar até ocuparem um lugar diferente no Universo... Sabe que a nossa pequena Terra apenas dista do Sol uns cento e cinquenta miseráveis milhões de quilómetros, quando Plutão dista cinco mil e novecentos? E que o Sol não passa de um minúsculo pontinho, comparado com a superfície de uma estrela média como Arcturo?... Para já não falar dos trinta e seis milhões de quilómetros de diâmetro de Aldebaran, ou de Betelgeuse, que é dez vezes maior.

Fez o telescópio descrever um breve arco para a direita, tirou o olho da lente e indicou a Quart a estrela com o dedo.

- Veja: é Altair. A trezentos mil quilómetros por segundo, o seu brilho leva dezasseis anos a chegar até nós... Quem lhe garante que entretanto não explodiu e vemos a luz de uma estrela que já não existe?... Por vezes, quando olho para Roma, tenho a sensação de que estou a olhar para Altair. Tem a certeza de que, quando regressar, tudo continuará ali, intacto?

Convidou Quart a olhar e este inclinou-se para encostar o olho à lente. A medida que se afastava do brilho da Lua, aparecia entre as estrelas uma infinitude de pontos de luz, cachos de resplendores e nebulosas avermelhadas, azuladas e brancas, cintilantes ou imóveis. Uma delas foi-se afastando para depois desaparecer, ofuscada por outra; uma estrela fugaz, ou talvez um satélite artificial. Recorrendo aos seus escassos conhecimentos astronómicos, Quart procurou a Ursa Maior e ascendeu desde a linha de Merak e Dubhe, quatro vezes a distância, julgava recordar. Ou talvez cinco. Lá estava a Estrela Polar, grande e brilhante, segura de si mesma.

- Essa é Polaris - o padre Ferro tinha seguido os movimentos do telescópio - o extremo da Ursa Menor, que assinala sempre a latitude zero da Terra. Mas tão-pouco isso é imutável - assinalou um sítio à esquerda, convidando Quart a deslocar a lente nessa direcção. - Há cinco mil anos, era aquela outra, o Dragão, que os Egípcios adoravam como custódia do Norte... Tem um ciclo de vinte e cinco mil e oitocentos anos, de que apenas passaram três mil. De modo que, dentro de duzentos e vinte e oito séculos, substituirá de novo a Polar - olhava para cima, tamborilando com as unhas no tubo de latão. - Pergunto a mim mesmo se haverá ainda na Terra alguém para sentir a mudança.

- Causa vertigens - disse Quart, tirando o olho da lente.

O pároco fez estalar a língua, concordando. Parecia comprazer-se com a vertigem de Quart; como um cirurgião vendo empalidecer os estudantes numa autópsia.

- Tem graça, não tem?... O Universo é uma divertida brincadeira. A mesma Polaris que você contemplava há instantes encontra-se a quatrocentos e setenta anos-luz. Significa isso que nos guiamos pelo brilho emitido por uma estrela no começo do século XVI, e que levou quase cinco séculos a chegar até nós - indicou outro ponto na noite. - E mais além, sem que possa ver-se à vista desarmada, na nebulosa do Olho do Gato, camadas concêntricas de gás, anéis e lóbulos gasosos formam o fóssil final de um astro que morreu há mil anos: restos de planetas mortos girando em torno de uma estrela morta.

Afastou-se do telescópio e foi até outro dos arcos da torre, onde o luar iluminava melhor as suas feições. Ali ficou, pequeno e seco na sotaina demasiado curta sob a qual espreitavam os seus grandes sapatos. A esta distância, de novo falou a Quart:

- Diga-me o que somos. Que papel temos nisto, em todo este cenário que se estende sobre a nossa cabeça. Que significam as nossas vidas miseráveis, os nossos anseios - ergueu um pouco a mão, sem olhar para onde apontava. - Que importam a estas luzes o seu relatório a Roma, a igreja, o Santo Padre, você ou eu próprio?... Em que lugar desta abóbada celeste residem os sentimentos, a compaixão, o cálculo das nossas pobres vidas, a esperança? - de novo se fez ouvir o riso baixo, áspero, inquietante. - Ainda que brilhem supernovas e agonizem estrelas, morram e nasçam planetas, tudo continuará a girar, aparentemente imutável, quando tivermos desaparecido.

Quart voltou a sentir a solidariedade instintiva que, no seu mundo de clérigos, fazia as vezes de amizade. Guerreiros exaustos, cada um deles na sua casa do xadrez, isolados, longe de reis e príncipes. Travando o combate da sua incerteza apenas com as suas forças e à sua maneira. Teria gostado de se aproximar do pequeno e velho pároco, e pousar-lhe a mão no ombro, mas conteve-se. As regras implicavam também a solidão de cada qual.

- Nesse caso - disse lentamente - não gosto de astronomia. Confina com o desespero.

O outro fitou-o um instante, em silêncio. Parecia surpreendido.

- Desespero?... Muito pelo contrário, padre Quart. Inspira serenidade. Porque só o grave, o valioso, o transcendente, nos custa perder... Nada resiste à impiedosa lucidez de nos sentirmos uma minúscula gotinha de água do mar, no vermelho entardecer do Universo - fez uma pausa e voltou-se para contemplar o campanário da igreja entre as cortinas agitadas pela brisa. - Excepto, talvez, uma mão amiga que nos inspire resignação e consolo, antes que as nossas estrelas se apaguem uma a uma e que faça muito frio, e tudo esteja consumado.

Depois daquilo, o padre Ferro nada mais disse. Quart estendeu a mão para o interruptor. Acendeu a luz e as estrelas desapareceram.

Desceu ao jardim, com o casaco sobre o ombro, aspirando o perfume da noite. Ela esperava a um canto, com o luar recortando na sombra, sobre o seu rosto e os seus ombros, folhas de buganvílias e de laranjeiras.

- Não quero que se vá embora - disse. - Ainda não.

Os seus olhos brilhavam, os incisivos pareciam muito brancos, despontando na boca entreaberta e o colar de marfim era um traço pálido de lado a lado do pescoço moreno na penumbra. Quart abriu os lábios para exalar um suspiro longo e abafado, que também podia ter sido um gemido infantil ou um protesto. Estava calor. Uma persiana na tarde filtrava finas riscas de sol sobre o corpo moreno de uma mulher desnudada, e Carmen, a "cigarreira", enrolava folhas de tabaco na face interna da coxa, onde brilhavam minúsculas gotas de suor perto de um sexo de fêmea escuro, crespo e húmido. Houve uma aragem. As folhas das laranjeiras e das buganvílias moveram-se sobre o rosto de Macarena Bruner, e a lua deslizou sobre os ombros do sacerdote Lorenzo Quart como uma cota de malha, uma couraça caindo-lhe aos pés. O templário ergueu-se e olhou em redor, cansado, escutando o rumor da cavalaria sarracena em direcção à colina de Hattin, nas vertentes da qual o sol branqueava os ossos dos cavaleiros francos. E era o mar enfurecido que batia no pontão do farol, debaixo do temporal, enquanto os frágeis barquinhos tentavam alcançar abrigo. E uma mulher enlutada segurava a mão de um menino, sobre o qual gotas de chuva caíam como lágrimas. E cheirava a sopa a ferver numa panela, enquanto um velho pároco junto de uma chaminé declinava rosa, rosae. E a sombra do rapazinho, perdido num mundo guiado pela luz de uma estrela com cinco séculos de idade, recortou-se na delgada parede que o mantinha a salvo do frio intenso que reinava lá fora. E esta mesma sombra foi-se aproximando da outra que aguardava sob as buganvílias e as laranjeiras até respirar o seu aroma, a sua tepidez e o seu talento. Mas, um segundo antes de enlaçar os dedos naquele cabelo para escapar por uma noite à solidão - minúsculas gotas vermelhas num imenso entardecer - a sombra, o menino, o homem que contemplava o corpo nu sob as linhas de luz da persiana, o templário desamparado e exausto, voltaram-se todos ao mesmo tempo para olhar para cima e para trás, em direcção à janela fracamente iluminada na torre do pombal. Ali onde um velho sacerdote intratável, céptico e corajoso, decifrava o terrível segredo de um céu desprovido de sentimentos, na companhia do fantasma de uma mulher que buscava velas brancas no horizonte.

 

                                   A IRA DE DEUS

Desapareceu diante dos nossos olhos sem que possamos adivinhar como.

               (Gastem Leroux, O Fantasma da Ópera)

 

A satisfação bailava nos olhos do arcebispo de Sevilha, por detrás do fumo do cachimbo.

- De modo que Roma se rende - disse.

Quart pousou a chávena no pires e enxugou os lábios com um guardanapo bordado pelas freiras Adoradoras. O seu sorriso parecia um suspiro.

- É uma maneira de ver, Ilustríssima.

Monsenhor Corvo exalou mais fumo. Estavam sentados frente a frente, separados pela mesinha baixa com dois serviços sobre bandejas de prata. Era costume do arcebispo convidar para o pequeno-almoço a sua primeira visita da manhã. O café com torradas, manteiga e doce de laranjas amargas estava, na realidade, destinado ao deão da catedral, mas a visita inesperada de Quart, que vinha despedir-se, tinha alterado o protocolo. E o arcebispo detestava o café frio.

- Já lhe tinha dito que este assunto não era fácil de resolver. Quart reclinou-se na poltrona. Bem teria gostado de privar o arcebispo do prazer de o despedir com sarcasmos e sorrisinhos cheios de fumo de tabaco inglês, mas as normas exigiam que apresentasse os seus respeitos antes de partir. E era o que fazia.

- Recordo a Sua Eminência Ilustríssima que não vim resolver nada, mas informar Roma acerca da situação. E é o que me disponho a fazer.

Monsenhor Corvo estava encantado.

- Sem averiguar quem é Vésperas - sublinhou.

- Certo - Quart olhava para o relógio. - Mas o problema não é só Vésperas. O pirata informático é uma anedota e, mais cedo ou mais tarde, a sua identidade acabará por ser conhecida. O que importa é a situação do padre Ferro e de Nossa Senhora das Lágrimas... O meu relatório permitirá que qualquer decisão a esse respeito seja adoptada com conhecimento de causa.

Brilhou a pedra amarela no anel arcebispal, quando o prelado ergueu, cortante, a mão.

- Não me venha com arabescos de jesuíta, padre Quart. Espalhou-se neste assunto - fitou-o com um regozijo que o fumo do cachimbo mal dissimulava. - Vésperas riu-se de Roma e de si.

Quart sentia-se irritado com aquela desenvoltura em atribuir culpas a outro.

- É um ponto de vista, Ilustríssima - admitiu, sem dissimular o seu desdém. - Mas, já que menciona esse aspecto, permito-me recordar-lhe que nem Roma nem eu teríamos intervindo se Sua Reverência tivesse acordado um pouco mais cedo... Tanto Nossa Senhora das Lágrimas como o padre Ferro pertencem à sua diocese. E é notório o dito evangélico: pastor adormecido, ovelhas à solta.

Ao ouvir aquilo, monsenhor Corvo quase deu um salto na poltrona. O facto de se tratar de uma citação apostólica não lhe trazia consolo algum. O agente do IOE viu-o morder, exasperado, a boquilha do cachimbo.

- Ouça, Quart - a voz saía-lhe dura, entredentes. - Aqui a única ovelha que pasta à solta é você. Julga que sou tonto? Sei das suas visitas à Casa do Postigo e tudo o mais. Dos seus passeios e dos seus jantares.

E, acto contínuo, uma vez rompidos os diques, monsenhor Corvo - cujo talento para o púlpito era muito apreciado na sua diocese - pôs-se a resumir admiravelmente o seu despeito e mau-humor numa áspera homilia de minuto e meio, cuja tese central era que o enviado do IOE se deixara enredar pelo pároco de Nossa Senhora das Lágrimas e o seu Greenpeace particular de freiras, aristocratas e beatas, até perder o sentido da perspectiva e atraiçoar a missão que o trouxera a Sevilha. Sedução a que não havia sido estranha a filha da duquesa do Nuevo Extremo. Que, por certo - acrescentou com manifesta má fé - continuava a ser Senhora de Gavira.

Quart encaixava, impávido; mas esta última alusão fê-lo torcer o rosto:

- Agradecia muito a Monsenhor que, se tem alguma coisa a dizer acerca desse pormenor, o faça por escrito.

- Pois claro que o farei - Aquilino Corvo estava satisfeito por ter assestado finalmente uma estocada em Quart. - Aos seus chefes do Vaticano. E ao Núncio. E ao Sursum Corda. Fá-lo-ei por escrito, por telefone, por fax e com música de guitarra e palmeros finos - tirou o cachimbo da boca, deixando espaço para um sorriso rasgado. - Você vai perder a sua reputação do mesmo modo como que eu perdi o meu secretário.

Não havia mais nada a dizer. Quart dobrou o guardanapo, deixando-o cair sobre a bandeja e pôs-se de pé.

- Se Sua Reverência não deseja mais nada...

- Mais nada - o arcebispo fitava-o, irónico. - Meu filho. Continuava sentado, olhando para as mãos, como se hesitasse em rematar a faena dando a beijar a Quart o anel pastoral. Tocou, então, o telefone e limitou-se a despedi-lo com um gesto, enquanto se erguia a caminho da mesa.

Quart abotoou o casaco e saiu para o corredor. Os seus passos ressoaram sob as pinturas venezianas do tecto da galeria dos Prelados, depois no mármore da escada principal. Via, pelas janelas, a Giralda para além do pátio, onde, noutros tempos, havia estado a cadeia de La Parra, utilizada pelos bispos sevilhanos para encerrar os seus sacerdotes desobedientes. E disse para consigo que, dois séculos antes, o padre Ferro e, talvez, ele próprio teriam tido muitas probabilidades de trocar impressões lá em baixo, enquanto monsenhor Corvo enviava a Roma, por via ordinária e lentíssima, a sua própria versão dos factos. Quart reflectia sobre as vantagens da modernidade e do telefone, já no último lance da escada, quando ouviu pronunciar o seu nome.

Deteve-se e olhou para cima. O arcebispo em pessoa estava na balaustrada, chamando-o. E tinha-se-lhe desvanecido o ar satisfeito de quem acaba de cobrar uma velha dívida:

- Suba, padre Quart. Temos de falar.

Voltou atrás, intrigado. E, à medida que subia os degraus em direcção a Sua Eminência Ilustríssima, percebeu a palidez do seu rosto. Tinha o cachimbo entre os dedos e batia com ele, distraído e sombrio. As brasas e a cinza manchavam o mármore negro e rosa da balaustrada, esvaziando a caçoleta; mas não parecia reparar.

- Não pode ir-se embora - disse a Quart, quando este chegou à sua altura. - Sucedeu outra desgraça na igreja.

Passou entre a betoneira e os carros da polícia. Nossa Senhora das Lágrimas era um vaivém de agentes à paisana e fardados. Quart calculou uma dúzia, com o guarda da porta e os que estavam lá dentro a tirar fotografias, à caça de impressões digitais ou em plena revista ao solo, aos bancos e andaimes. Ressoavam o seu ruído e as suas conversas em voz baixa.

Gris Marsala estava sentada nos degraus do altar-mor, sozinha. Quart dirigiu-se a ela pelo corredor central e, quando ia a meio caminho, veio ao seu encontro Simeón Navajo. O subcomissário usava, como sempre, o cabelo preso num rabicho, os óculos redondos sobre o enorme bigode, camisa de um vivo vermelho garibaldino e a sua bolsa de couro árabe pendurada ao ombro, com a 3-57 Magnum, supôs Quart, lá dentro. Pensou absurdamente que Navajo destoava muito naquele cenário: o altar barroco iluminado para os polícias, os deteriorados vitrais e pinturas do tecto, o confessionário em madeira escura à entrada da sacristia, os ex votos pendurados junto do Cristo da porta. Apertaram as mãos. Navajo parecia satisfeito por ver Quart.

- E vão três, pater.

Disse-o em tom leviano, como se aquilo constituísse uma confirmação das suas conversas acerca do índice de mortalidade potencial de Nossa Senhora das Lágrimas. Apoiava-se no reclinatório de um banco, desenvolto; e, quando Quart olhou por cima da sua cabeça, observou que uns pés imóveis assomavam do confessionário.

Aproximou-se sem dizer palavra, seguido de perto por Navajo. A porta do confessionário estava aberta. Quart pensou que os pés se encontravam numa posição demasiado estranha. Depois, pôde distinguir uns amarrotadas calças de cor bege. O resto do corpo estava coberto por um pedaço de lona azul, embora fosse possível ver uma das mãos, com a palma aberta virada para cima e atravessada por um ferimento que ia desde o pulso até ao dedo indicador. A mão tinha a cor amarelada da cera velha.

- Um sítio estranho, não é? - o subcomissário fez uma pausa ecléctica, olhando para o cadáver, depois para o sacerdote, disposto a ouvir qualquer sugestão válida. - Para morrer.

- Quem é?

A pergunta que Quart havia formulado com voz rouca, ausente, tornava-se supérflua. Tinha reconhecido os sapatos, as calças beges, a mão pequena, mole e fofa. O polícia tocava no bigode com ar distraído. Parecia que a identidade do defunto era o menos e que estava a pensar noutra coisa:

- Chama-se Honorato Bonafé e é um jornalista conhecido em Sevilha.

Quart fez um gesto afirmativo. Demasiadas perguntas, pensava. Demasiadas visitas inoportunas. Agora, sim, Navajo fitava-o:

- Conhece-o, não conhece?... Era o que eu pensava. Segundo me contam, o infeliz tinha andado a mexer-se muito pelas redondezas, nos últimos dias... Quer vê-lo, pater?

Metendo meio corpo no confessionário, com o rabicho agitando-se como a cauda de um esquilo diligente, Navajo levantou a lona que cobria o cadáver. Bonafé estava muito quieto e muito amarelo, recostado no assento de madeira do confessionário e contra um ângulo deste, o queixo afundado nas pregas da grossa papada. Tinha um hematoma arroxeado e muito grande do lado esquerdo do rosto e os olhos fechados. A sua expressão era plácida, talvez cansada. Uma crosta pálida saía-lhe, num fio, do nariz e da boca, alargando-se-lhe no pescoço e no peito da camisa.

- O legista acaba de o examinar - o subcomissário apontou para um jovem que tomava notas, sentado num dos bancos. - Está rebentado por dentro, diz ele, com alguma fractura. Um golpe, talvez, ou uma queda. O que já não é tão evidente é como se meteu aqui. Ou o meteram.

Por mero reflexo profissional, sobrepondo-se à repugnância que em vida lhe causara aquele indivíduo, Quart murmurou uma breve oração de defuntos e traçou sobre ele o sinal da Cruz. Nas suas costas, Navajo observava-o com interesse:

- Se fosse a si, não me incomodava, pater. Está assim há um bom pedaço. De modo que, onde quer que tenha tido que ir - as suas mãos imitavam duas asinhas a voar para algum sítio - há algum tempo que deve ter chegado.

- Quando morreu?

- É cedo para saber - apontou para o legista. - Mas assim, a olho, o artista dá-lhe doze a catorze horas.

Uns polícias que haviam subido ao andaime junto da Virgem conversavam animadamente e as suas vozes ressoavam na abóbada. O subcomissário fez-lhes sinal que baixassem o tom e eles obedeceram, confusos, como rapazes repreendidos na capela da escola. Quart voltou-se para o sítio onde Gris Marsala continuava sentada, fitando-o. Pela primeira vez pareceu-lhe muito frágil, muito só, quieta nos degraus do altar. Enquanto cobria novamente Bonafé, o polícia disse que tinha sido a freira quem o encontrara ao chegar de manhã cedo.

- Queria falar com ela.

- Claro que sim, pater - Navajo esmerava-se com a lona sobre o cadáver, ao mesmo tempo que sorria torcendo o bigode, animador e compreensivo. - Mas, se não se importa, preferia que me contasse primeiro, brevemente, de onde conhece o falecido... Deste modo não misturamos testemunhos e torna-se tudo muito mais espontâneo - levantou-se, observando-o por cima dos óculos redondos. - Não acha?

- Como queira. Mas devia falar era com o pároco.

O polícia susteve um instante o seu olhar, sem responder. Depois assentiu vigorosamente:

- Sim, é o que me parece. O mal é que não há quem encontre Don Príamo Ferro esta manhã. Estranho, não?

Olhava em redor, com gesto de quem espera descobrir o pároco atrás de um andaime, ou em qualquer recanto escuro da nave.

- Foram a casa dele? - perguntou Quart.

Navajo voltou-se, para o fitar, com cara de quem acaba de ouvir uma estupidez. Parecia decepcionado, como se esperasse outra ajuda da sua parte.

- Segundo me contam - disse - desapareceu do mapa. Alehop! No carro do profeta Elias.

Quart contou em pormenor a Simeón Navajo o que sabia de Honorato Bonafé, como também o que conseguiu recordar dos encontros no vestíbulo do Hotel Dona Maria. A conversa foi interrompida duas vezes pelo bip-bip de um telemóvel, que o polícia extraiu da sua bolsa moura, pedindo desculpa a Quart. A primeira foi para confirmar que o padre Ferro continuava sem dar sinais de vida. Tinha estado, como todas as noites, no pombal da Casa do Postigo - pormenor que Quart confirmou, incluindo a hora a que dele se despediu - e depois desaparecera sem deixar rastos. Quanto à casa paroquial, a mulher das limpezas confirmava que a cama do quarto estava por abrir. Relativamente ao vigário, o padre Lobato tinha empreendido viagem para a sua nova paróquia à última hora do dia anterior, de autocarro, e a viagem era longa, com várias combinações possíveis. Polícia e Guarda Civil encarregavam-se de o localizar... Suspeitos? - o subcomissário guardava o telefone depois da última chamada. - Até que sejam determinadas as causas da morte, ninguém era ainda suspeito. Ou por outras palavras, eram todos. Olhava por cima dos óculos, com uma tíbia desculpa emboscada no bigode. Embora uns mais que outros.

- Como andamos, desta vez, de percentagens? - interessou-se Quart.

Navajo coçou a ponta do nariz:

- Bem, aqui para nós, pater, eu diria que desta vez alguém ajudou um pouquinho a igreja.

Quart não deu mostras de surpresa. Estava longe de ser entendido em cadáveres, embora já tivesse visto um ou outro. Quanto a Bonafé, bastava olhar.

- Assassinado?

Disse-o, na realidade, para incitar o subcomissário a falar um pouco mais. Navajo sorriu ligeiramente, percebendo-lhe o jogo, e levou a mão à nuca para mostrar o cabelo preso no rabo-de-cavalo:

- Aposto o meu apêndice - em seguida pôs-se sério, encolhendo os ombros. - E o seu colega, o pároco tem muitos papelinhos na rifa.

- Por causa da ausência?

- Claro. A menos que o legista seja doutra opinião.

Um dos agentes veio reclamar a sua atenção e Navajo foi com ele. Quart seguiu até aos degraus do altar-mor, onde Gris Marsala continuava sentada.

- Como se sente?

Estava abraçada às pernas, o queixo apoiado nos joelhos:

- Aturdida, suponho - o seu sotaque norte-americano era mais áspero do que de costume. - Mas estou bem.

- A polícia incomodou-a muito?

A freira reflectiu um pouco, sem mudar de posição.

- Não - disse, por fim. - Têm sido amáveis.

Vestia, como sempre, um pólo e as calças de ganga manchadas de gesso. Tinha a trança do cabelo rematada por um elástico. Ali sentada, parecia mais só e desamparada do que habitualmente, na igreja invadida pelo vaivém, os ruídos e as vozes dos polícias.

- Procuram o padre Ferro - Quart foi sentar-se ao lado dela. De súbito, pareceu-lhe que aquilo soava excessivo, de modo que acrescentou, após uma pausa: - E também o padre Lobato.

Ela assentiu ligeiramente. Agora que ele estava a seu lado, continuava a olhar para o confessionário, ensimesmada. De vez em quando, pestanejava, como quem tenta estabelecer limites entre o que sonhou e a realidade. Passado um instante, suspirou fundo e de novo assentiu.

- É possível - disse, por fim - que Oscar tenha ido visitar os pais, que vivem numa pequena povoação de Málaga, antes de seguir caminho para Almería... Por isso levam tempo a dar com ele.

O clarão de um flash ofuscou-os. Um dos polícias fotografava qualquer coisa no solo, nas costas deles. Quart desabotoou o casaco e inclinou-se para a frente, entrelaçando os dedos.

- E Don Príamo?

Ela aguardava esta pergunta, que certamente já lhe haviam feito antes.

- Não sei. Vim esta manhã como todos os dias, às nove horas. E encontrei a igreja fechada... Um dos dois abria-a sempre às sete e meia, para a missa das oito. Hoje ninguém disse missa.

- Dizem-me que foi você quem o encontrou.

- Sim. Primeiro fui a casa, mas ninguém respondia. De modo que entrei pela porta da sacristia, com a minha chave - fez um trejeito de perplexidade, encolhendo os ombros. - A princípio não vi nada. Fui até ao andaime do vitral, acendi as luzes e preparei as minhas coisas. Mas parecia tudo muito estranho, de modo que resolvi telefonar a Macarena, a ver se Don Príamo tinha trabalhado no pombal durante a noite... E, a caminho da sacristia, vi o homem no confessionário.

- Conhecia-o?

Os olhos claros endureceram por um instante:

- Conhecia. Abordou-nos uma vez na rua, a Oscar e a mim, fazendo-nos perguntas acerca dos trabalhos na igreja e de Don Príamo. Oscar mandou-o à fava.

Quart olhava para as suas sapatilhas desportivas, a pele pálida dos tornozelos sob as calças, a cicatriz no pulso. Continuava abraçada às pernas, o queixo apoiado nos joelhos. A irrupção de toda aquela gente na igreja parecia desconcertá-la, roubando-lhe a segurança do terreno conhecido. Isto fez que Quart se remexesse, incomodado. Tinha imensas coisas a fazer - ainda não pudera comunicar com Roma - mas não se decidia a deixá-la daquela maneira. Apontou para Simeón Navajo, que ia e vinha, controlando o trabalho da sua gente:

- Receio que o subcomissário continue a maçá-la. Três mortes são já muitas. E, desta vez, a hipótese de acidente parece improvável... Quer que telefone ao seu cônsul?

O oferecimento obteve um sorriso agradecido:

- Não creio que seja necessário. Os polícias estão a portar-se muito bem.

- Falou com Macarena?

Quart sentiu uma extrema perturbação ao pronunciar o nome que, até esse instante, procurava conter dentro da cabeça. Podia deixar-se ir à deriva, sem o menor esforço, atrás das quatro sílabas que, ainda umas horas antes, tinha repetido nos próprios lábios da mulher, dentro da sua boca. E, de súbito, tudo voltava a ser penumbra, brilho de marfim, tacto de carne tíbia cujo perfume conservava ainda na pele, nas mãos, nos lábios que ela mordera até fazer sangrar. O corpo moreno materializando-se a partir dos seus sonhos, linhas de luz e trevas na brancura imensa dos lençóis que os acolhiam como um deserto de neve ou sal. Ela, tensa, esbelta, debatendo-se para escapar sem querer, para fugir querendo ficar, a cabeça para trás, ausente a expressão do rosto transfigurado e belo, egoísta como uma máscara, gemendo, crispada, nos braços que a agarravam com firmeza, vigorosos, cravada na carne do homem cuja cintura rodeava com as coxas nuas. Recobrando fôlego entre o calor e a saliva sobre a pele húmida, o sexo húmido, a boca húmida, a curva húmida dos seios até ao ombro, e o pescoço cálido, o queixo, e de novo a boca e o gemido, de novo as coxas tensas, abertas em desafio, abrigo ou refúgio. Longas horas intensas de paz e combate passadas em apenas um instante, pois ele soube a cada segundo que o que estava a acontecer tinha um limite e um final. E o final veio com o amanhecer e o seu último estalido, longo, intenso, sob a luz parda, ingrata, que se filtrava já através das janelas da Casa do Postigo. E, de súbito, Quart viu-se novamente sozinho, nas ruas desertas de Santa Cruz, ignorando - caso alentasse algo mais sob a carne exausta - se acabava de condenar a sua alma, ou de salvá-la.

Sacudiu a cabeça para afastar a recordação. Desespero, eis a palavra exacta. E, para não ceder a ele, pôs-se a olhar em redor, a igreja, os andaimes, a imagem da Virgem no retábulo agora iluminado, os polícias conversando animadamente junto do cadáver de Honorato Bonafé; e fê-lo, recorrendo à proximidade da tragédia como mecanismo de controlo. "Mais tarde", disse para consigo, fazendo um esforço. "Talvez mais tarde." Ocupar o espírito com tudo aquilo proporcionava-lhe um alívio muito próximo do esquecimento.

- Ainda não nos falámos esta manhã.

Gris Marsala voltara-se para o olhar fixamente e Quart tardou um pouco a recordar que ela respondia a uma interrogação sua. Perguntou a si mesmo quantas mais coisas ela saberia acerca do ocorrido nas últimas horas, tanto na igreja como entre ele e Macarena.

- Mas a polícia foi vê-la - acrescentou a freira. - Parece-me que há uns agentes na Casa do Postigo.

O sacerdote franziu o sobrolho; Simeón Navajo não era pessoa para perder tempo. E ele também não podia ficar para trás. Meia hora antes, no Arcebispado, monsenhor Corvo deixara-lho bem claro, para evitar mal-entendidos: quer Vésperas tivesse ou não tivesse que ver, o assunto era da exclusiva competência de Roma - ou, o que vinha a ser o mesmo, de Lorenzo Quart - e Sua Eminência Ilustríssima lavava daí as suas mãos. Que dançasse quem tinha tocado música, e não era esse o caso do ordinário de Sevilha. Claro que Quart e o IOE podiam contar com todo o seu apoio e as suas orações, etc. De modo que adeus e boa sorte.

- Onde está o padre Ferro?

Sem esperar a resposta de Gris Marsala, Quart afundou-se na análise do panorama. Simeon Navajo levava vantagem, mas deviam terminar a corrida lado a lado; Roma não ia encaixar a detenção de um clérigo antes que Quart pudesse fornecer-lhe informações para amortecer o golpe. Se bem que o ideal fosse que a própria Igreja tomasse a iniciativa. Isto significava arranjar ao pároco um bom advogado e defender a sua inocência enquanto não houvesse provas em contrário; mas também, em caso de culpabilidade manifesta, facilitar ao máximo a acção da justiça secular. Como sempre, o que importava era salvar as aparências. Por resolver ficava em que ponto de tudo aquilo se situava a consciência do próprio Quart, mas isso era algo que podia esperar melhores tempos.

- Sei tanto como você acerca de Don Príamo - Gris Marsala dirigiu-lhe um longo olhar, surpreendida com o pouco interesse que ele parecia revelar pelas suas respostas. - Vi-o aqui ontem, a meio da tarde, um momento. Tudo normal.

Também Quart o tinha visto à meia-noite, tudo normal, e entretanto Honorato Bonafé estava morto. Olhou para o relógio, inquieto. O problema da sua corrida contra Simeón Navajo era que o polícia dispunha de meios melhores, e ainda não fora feita a autópsia para determinar responsabilidades, não havia pistas que os orientassem. Qualquer movimento nas próximas horas teria de ser feito às cegas, a partir de intuições.

- Quem fecha a igreja? Gris Marsala titubeou:

- A porta da rua ou da sacristia?

- Da rua.

- Eu, como sempre - enrugava a testa, arrumando a memória. - Nesta época trabalho enquanto tenho luz, até às sete, sete e meia da tarde. Foi o que fiz ontem... A porta da sacristia quem costuma fechá-la é Oscar ou Don Príamo, às nove.

Oscar Lobato estava fora de alcance, de modo que Quart resignou-se a descartá-lo por razões práticas. Navajo seria a única fonte de informação a seu respeito. Consolou-se pensando que, quanto ao resto, o clero levava vantagem. Mas era urgente telefonar para Roma, ir à Casa do Postigo, manter Gris Marsala sob controlo e, sobretudo, localizar o pároco. Porque o golpe duro viria nessa direcção.

Apontou para o confessionário:

- Viu o homem a rondar ontem por aqui?

- Até às sete e meia, não andou de certeza. Não deixei a igreja nem por um momento - a freira reflectiu um pouco. - Deve ter entrado mais tarde, pela sacristia.

- Entre as sete e meia e as nove - instou-a Quart a precisar.

- Suponho que sim.

- Quem fechou a sacristia?... O padre Lobato?

- Não creio. Oscar despediu-se de mim a meio da tarde, e o seu autocarro partia às nove. De modo que não pôde fechar a porta da sacristia. Foi, com certeza, o padre Ferro quem o fez. O que já não sei é a que horas.

- Em todo o caso, teria visto Bonafé no confessionário.

- É muito possível que não. Esta manhã, também eu comecei por não o ver. Talvez Don Príamo não chegasse a entrar na igreja e se limitasse a fechar a porta no corredor que comunica com a sua casa.

Quart juntou as pontas. Era fraco como álibi, mas constituía o único que de momento se podia estabelecer: se a autópsia determinasse que Bonafé morrera entre as sete e meia e as nove, o leque de possibilidades abria-se mais um pouco, considerando que o pároco pudesse ter fechado a porta sem espreitar para o interior. Se, porém, a morte se havia produzido mais tarde, as coisas iam complicar-se com aquela porta fechada. E, sobretudo, com o desaparecimento, que fazia do padre Ferro um suspeito.

- Onde estará? - murmurou Gris Marsala.

A perplexidade e um toque de angústia tornavam descuidado o seu castelhano, acusando o sotaque norte-americano. Quart ergueu um pouco as mãos, impotente, sem saber o que dizer e pensando noutras coisas. A sua cabeça funcionava como um relógio, para a frente e para trás, estabelecendo horas e álibis. Doze a catorze horas, dissera Navajo. Teoricamente, havia uma série de imponderáveis, personagens desconhecidos que podiam estar implicados, mas, nesse aspecto, era inútil aventurar suposições. Nas proximidades, a lista não era, em contrapartida, nem longa nem difícil. Para incluir toda a gente, o padre Oscar poderia tê-lo feito e depois partir. Também o padre Ferro tivera tempo de sobra para matar Bonafé, fechar a porta da sacristia e ir para o pombal, onde encontrara Quart às onze em ponto da noite, antes de se desvanecer. E, de qualquer maneira, como assinalava a lógica policial de Simeon Navajo, o seu desaparecimento colocava-o à cabeça da lista, com grande vantagem sobre os demais. Seguindo o rol de suspeitos, a própria Gris Marsala era um personagem a considerar, movendo-se pela igreja como um gato, com a porta principal fechada e a sacristia aberta até às nove, sem que ninguém mais pudesse corroborar as suas afirmações. Quanto a Macarena Bruner, Quart fora jantar a sua casa às nove, e ela estava lá, junto da mãe. Isso permitia, em princípio, descartá-la, mas a hora e meia anterior situava-a também na zona de perigo. Além disso, ela temia a chantagem de Bonafé.

Deus dos Céus! Irritado consigo mesmo, Quart teve de fazer um novo esforço para manter a concentração. A imagem de Macarena dispersava os seus pensamentos, enredando o fio lógico entre a igreja, o cadáver e os personagens conhecidos da história. Nesse momento, teria dado tudo para dispor de uma cabeça tranquila e não querer saber de nenhum deles para nada.

Tinha chegado o juiz instrutor. Os polícias agrupavam-se junto do confessionário, dispostos a proceder ao levantamento do cadáver. Quart viu que Siméon Navajo conversava com o juiz em voz baixa e que, de vez em quando, olhavam para ele e para Gris Marsala.

- Talvez você tenha de responder a mais perguntas - disse à freira. - E prefiro que, daqui para a frente, o faça assessorada por um advogado. Até que encontremos o padre Ferro e o vigário, é preferível sermos prudentes. Concorda?

- Sim, concordo.

Quart escreveu um nome num cartão e entregou-lho.

- Há uma pessoa de plena confiança, especialista em direito canónico e penal, a quem telefonei do Arcebispado. Chama-se Arce e já trabalhou para nós. Chegará de Madrid ao meio-dia... Conte-Lhe o que sabe e siga à risca as suas instruções.

Gris Marsala olhou para o nome escrito no papel:

- Você não mandou chamar um advogado como este por minha causa.

Mostrava-se, não assustada, mas imensamente triste. Parecia que a igreja tinha ruído, de facto, diante dos seus olhos.

- Claro que não - Quart quis reconfortá-la com um sorriso. - Mas por causa de todos nós. Trata-se de um assunto muito delicado, no qual intervém a justiça civil. É melhor que sejamos assessorados por um especialista.

Ela dobrou cuidadosamente o bilhete, antes de o guardar num dos bolsos traseiros dos jeams.

- Onde está Don Príamo? - perguntou de novo. Havia nos seus olhos claros uma censura, quase culpando Quart pelo desaparecimento do pároco. Este abanou um pouco a cabeça.

- Não faço a menor ideia - disse em voz baixa. - E o problema é esse.

- Não é pessoa para fugir.

Estava de acordo com ela, mas não acrescentou coisa alguma. Olhava para o confessionário. Os polícias tinham retirado a lona azul e tiravam o corpo de Bonafé, introduzindo-o num saco de plástico metalizado que colocaram em cima de uma maca. Sem deixar de conversar com o juiz, o subcomissário Navajo fitava-os.

- Sei que não é pessoa para fugir - disse, por fim Quart. - E é justamente esse o outro problema.

Levou menos de cinco minutos a percorrer a distância entre Nossa Senhora das Lágrimas e a Casa do Postigo. Nunca suava mas, nessa manhã tinha a camisa negra colada aos ombros e às costas, sob o casaco, quando tocou a campainha. A criada veio abrir e, acabava Quart de perguntar por Macarena, quando a viu sob os arcos do pátio, conversando com dois polícias, um homem e uma mulher. Ao dar conta da sua presença, fitou-o, muito quieta e, depois, despediu os guardas e veio ao seu encontro. Vestia uma camisa aos quadradinhos azuis, um par de jeans e as sandálias da noite passada, e estava sem pintura, com o cabelo solto e ainda húmido. Cheirava a espuma de banho.

- Não foi ele - disse.

A princípio, Quart não respondeu. E, quando foi a fazê-lo, esteve quase a perguntar a quem se referia ela. O pátio cheirava a relva e alfavaca, e o sol da manhã, reflectido nas vidraças do andar de cima, roçava já, com rectângulos de luz, as largas folhas verdes dos fetos, os vasos de gerânios no chão de mosaico recém-esfregado. E também punha gotas de mel nos olhos escuros da mulher, e todas as referências nas quais Quart baseava a sua calma iam, de novo, à deriva, desorientando-o.

- Onde está? - perguntou, por fim.

Macarena inclinava o rosto, grave, ao mesmo tempo que o fitava.

- Não sei. Mas não matou ninguém.

Estavam muito distantes da noite, do jardim sob a janela iluminada do pombal, das folhas das buganvílias e laranjeiras recortando-se no seu rosto e nos seus ombros, em sombras de luar. Da máscara absorta de luz e penumbra. O marfim não era o mesmo na pele acabada de lavar da manhã e já não havia mistério, nem cumplicidade, nem sorriso. O templário exausto olhou em redor, um pouco desconcertado, sentindo-se despedido ao sol, a espada quebrada, desfeita a cota de malha. Mortal como o resto dos mortais e tão vulnerável e vulgar como todos eles. Perdido, segundo havia dito Macarena com extrema precisão, pouco antes de sentir na sua carne o sombrio milagre. Porque estava escrito: Ela destruirá o teu coração e a tua vontade. E as velhas escrituras eram sábias. A delicada, inocente maldade vinculada ao poder destruidor de toda a mulher implicava que fosse deixada ao outro a lucidez necessária para contemplar os estragos da sua derrota. E isto era o suficiente para que Quart se visse confrontado com a sua própria condição, envolvido sem querer, desprovido para sempre de razões que lhe permitissem apaziguar a sua consciência.

Olhou para o relógio sem conseguir ver as horas, tocou no colarinho da camisa, apalpou o casaco à altura do bolso, onde tinha os cartões para tomar notas. Procurava o último resto de sangue -frio por detrás dos gestos rotineiros e familiares. Macarena fitava-o, paciente, à espera. "Falar", disse ele para consigo. "Falar longe do jardim e da sua pele e do luar. Há um mistério por resolver e foi para isso que vim."

- E a tua mãe?

Era incómodo tratá-la pela primeira vez por tu à luz do sol, mas Quart, embora já não fosse um bom soldado, detestava as hipocrisias de clérigo escandalizado consigo mesmo. Indiferente às meias-tintas, Macarena fez um gesto vago em direcção à galeria superior.

- Está lá em cima, a descansar. Não sabe de nada.

- O que se passa aqui?

Ela meneou a cabeça. As pontas do cabelo deixavam-lhe manchas de humidade na camisa, sobre os ombros.

- Não sei o que está a passar-se - continuava atenta ao padre Ferro, não a Quart. - Mas Don Príamo nunca faria uma coisa destas.

- Nem sequer pela sua igreja?

- Nem sequer por ela. Os polícias dizem que esse tal Bonafé morreu à última hora da tarde. E tu estiveste ontem à noite com Don Príamo. Achas que veio até aqui, tranquilamente, para contemplar as estrelas depois de matar um homem?... - ergueu as mãos, invocando o senso comum e deixou-as cair. - É ridículo.

- Mas fugiu.

Macarena fez uma expressão de incerteza:

- Não tenho a certeza. E é isso que me inquieta.

- Pois então dá-me outra explicação. Ou ajuda-me a encontrá-lo.

Ela contemplava, agora, os desenhos no chão, ensimesmada. Quart estudou o seu rosto; o despontar das linhas suaves, descendo sob a gola aberta da camisa, onde se insinuava a alça de um soutien branco. Sentiu um formigueiro nos dedos ao reconhecer aquele caminho obscuro e tíbio, com a desolação das coisas perdidas. Macarena continuava a ser absolutamente bela à luz do dia.

- Os polícias vieram há uma hora e mal tive tempo para pensar... Mas há qualquer coisa. Coisas que não encaixam – franzia o sobrolho, partilhando com Quart a sua perplexidade. - Imagina, por um momento, que Don Príamo nada tenha que ver. Que por isso se tivesse comportado ontem à noite de um modo tão natural.

- Não foi dormir a casa - opôs ele. - E supomos que fechou a igreja com o cadáver lá dentro.

- Não posso acreditar - Macarena apoiava agora a mão no seu braço. - E se lhe aconteceu também alguma coisa?... Talvez tenha saído daqui e depois... Não sei. Por vezes acontecem coisas.

Quart fez um movimento seco para um lado, afastando-se da mão; ela, porém, indiferente a tudo o que não fosse a sua própria inquietação, não se apercebeu. Entre ambos, a água cantava na fonte de azulejos.

- Estás a pensar nalguma coisa - disse ele. - Uma coisa que eu desconheço. Onde estiveste ontem, antes do jantar?

Viu-a regressar de muito longe.

- Estive com a minha mãe - parecia surpreendida com a pergunta. - Viste-nos aqui, juntas.

- E antes?

- dei um passeio pelo centro, andei a ver lojas... - interrompeu-se de repente, fitando-o, assombrada. - Não irás dizer que suspeitas de mim.

- O que eu suspeito não importa. O que me preocupa é a polícia.

Ficou ainda a observá-lo um pouco mais, depois expeliu o ar retido nos pulmões. Não parecia aborrecida, mas confusa.

- Os polícias são estúpidos - murmurou. - Mas não até esse ponto. Pelo menos, assim o espero.

Começava a fazer muito calor. Quart desabotoou o casaco e permaneceu imóvel diante de Macarena. Era a única carta que lhe dava ligeira vantagem sobre Siméon Navajo, se bem que essa distância se encurtasse de minuto para minuto. Talvez tivessem já localizado Oscar Lobato, com a sua versão dos factos.

- E amanhã é quinta-feira - disse ela.

Estava encostada ao parapeito da fonte, desolada; e, desde logo, Quart soube o que tinha pensado todo o tempo, desde que os polícias lhe haviam dado a notícia: se, no dia seguinte, não fosse celebrada missa, o foro de Nossa Senhora das Lágrimas poderia ser considerado como extinto. O arcebispo de Sevilha, a Câmara e o Banco Cartujano lançar-se-iam como abutres sobre a sua presa.

- A igreja é, agora, o menos - disse, mal-humorado. - Se o padre Ferro aparecer, é muito possível que amanhã esteja detido.

- A menos que nada tenha que ver...

- Primeiro vai ser preciso encontrá-lo. E perguntar-lhe. É melhor sermos nós do que a polícia.

Macarena abanou a cabeça, como se a questão não fosse essa. Tinha levado a mão à boca para morder, absorta, a unha do dedo polegar. Quart receava assustá-la, interromper os seus pensamentos. Ela era a sua única esperança.

- Amanhã é quinta-feira - repetiu Macarena, ainda ausente. O seu tom era diferente do da primeira vez. Transparecia agora

uma colérica certeza e também uma ameaça contra algo, ou contra alguém. E Quart viu-a assentir muito devagar, com expressão sombria.

 

O engraxador acabou de dar lustro aos sapatos de Octavio Machuca, vendeu-lhe um bilhete de lotaria e foi-se embora, com a caixa da graxa debaixo do braço, cantarolando. O sol estava vertical e um empregado de La Campana fazia chiar a manivela do toldo para resguardar as mesas dispostas na esplanada. Sentado junto de Machuca, Pencho Gavira bebia com prazer uma cerveja gelada. Os pára-brisas dos automóveis reflectiam a luz da rua nas lentes dos seus óculos escuros e no reluzente cabelo negro penteado para trás com brilhantina.

O velho banqueiro contava qualquer coisa, um episódio relacionado com a última reunião de accionistas e Gavira assentia, distraído, virado para ele e sem lhe prestar muita atenção. O secretário de Machuca fora-se já embora e o presidente do Banco Cartujano consumia os últimos minutos antes de ir almoçar na Casa Robles. De vez em quando, Gavira olhava furtivamente para o relógio. Tinha um encontro de trabalho: um almoço com três dos conselheiros que, na semana seguinte, iam decidir o seu futuro. Gavira era partidário de fazer chover sobre o molhado, de forma que, nas últimas horas, tinha accionado um delicado jogo de pressões. Dos nove membros do conselho, aqueles três eram maleáveis com os devidos argumentos; e contava com um quarto, da parte de quem pormenores de carácter íntimo - fotografias num iate de Soto-grande com um certo bailarino amante de banqueiros maduros e de cocaína - permitiam prever uma cooperação mais ou menos entusiástica. Por isso, contra seu costume, não prestava, naquele meio-dia, a devida atenção às palavras do seu chefe e protector, limitando-se a assentir de vez em quando, entre dois goles de cerveja. Concentrava-se como um samurai antes do combate, já atento à disposição dos lugares ao almoço, aos termos em que ia expor o assunto, ao clímax e ao previsível desenlace. Gavira sabia muito bem, por experiência própria, que subornar três conselheiros do banco não era a mesma coisa que fazê-lo com um qualquer manga de alpaca. Embora, no fundo, os conselheiros acabassem sempre por ser mais fáceis, o estilo era outro e as aparências um pouco mais custosas.

O empregado interrompeu a conversa de Machuca: chamavam Don Fulgencio Gavira ao telefone. Este desculpou-se e entrou, tirando os óculos de sol. Era certamente Peregil, que não tinha dado sinal de vida toda a manhã. Foi até uma esquina do balcão e tirou o auscultador das mãos da caixeira. Não era Peregil, mas sim a sua secretária; e telefonava do gabinete do Arenal. Durante os três minutos seguintes, Gavira escutou em silêncio, sem fazer o menor comentário. Depois agradeceu e desligou.

Levou uma eternidade a chegar à porta, tocando o nó da gravata como se se dispusesse a afrouxá-lo. Quis arrumar as ideias, mas estas confundiam-se com o calor, o rumor das conversas, a forte luz e o ruído dos automóveis. Tornava-se difícil estabelecer se o que tinha acontecido era bom ou mau; os seus planos viam-se, porém, desajustados, reclamando-lhe outros novos. De todas as maneiras, Gavira tinha ânimo de sobra; antes de chegar à porta, tinha já olhado para o relógio, consciente da impossibilidade de anular o almoço previsto, amaldiçoado Peregil por não estar à mão quando mais precisava dele e concebido, pelo menos, três boas razões para considerar positivo o que acabava de saber. De forma que quase raiou o optimismo ao sair, ainda com os óculos de sol na mão, meditando na maneira de o apresentar a Don Octavio Machuca. O velho, porém, não estava só. Erguera-se para beijar Macarena, escoltada pelo cura alto, vindo de Roma; e os três fitavam-no. Gavira, então, soltou entredentes uma blasfémia sonora como uma chicotada, que fez voltar a cabeça a duas senhoras maduras escandalizadas que se cruzaram à porta.

Foi Macarena quem lhe disse quase tudo. Mantinha-se sentada à borda da cadeira, diante de Machuca, inclinando-se sobre ele ao falar. Franzia o sobrolho, concentrada e áspera; e Lorenzo Quart observou o seu perfil entre o cabelo que lhe caía sobre os ombros, as mangas da camisa aos quadrados azuis, dobradas à maneira masculina, sobre os antebraços morenos e as mãos longas e expressivas, que agitava perto dos joelhos do banqueiro. Este, de vez em quando, pegava numa delas para a apertar suavemente entre as suas garras descarnadas, numa tentativa de a tranquilizar. Macarena, porém, não parecia inquieta, mas furiosa. Eram o seu terreno, o seu marido e o seu padrinho. Eram as suas filias e as suas fobias, a sua memória e as suas mágoas. De maneira que Quart apenas pôde manter-se à margem, deixando-se guiar por ela, escutando enquanto observava os dois homens que, de uma ou de outra forma, tinham nas mãos a sorte de Nossa Senhora das Lágrimas. Finalmente, Macarena terminou, atirando-se para trás na cadeira com um olhar hostil a Pencho Gavira, que tinha estado a fumar em silêncio, de pernas cruzadas. Impávido, abria e fechava as hastes dos óculos de sol sobre a mesa, dirigindo, de quando em quando, uns olhares silenciosos a Quart.

Todos o observavam, agora, a ele. E começou por falar o velho Machuca:

- Que sabes tu disto, Pencho?

Quart viu que Gavira deixava os óculos em paz. A mesma mão foi até à boca, firme, para segurar o cigarro entre dois dedos:

- Não diga barbaridades, Don Octavio. Que hei-de eu saber? A cerveja, já sem espuma, aquecia no seu copo. Um mendigo

veio pedir-lhes uma moeda e Macarena afastou-o com um gesto.

- Não estamos a falar do morto - disse Macarena - mas do desaparecimento de Don Príamo.

Houve outra fumaça do cigarro e seguiu-se uma eternidade até que Gavira exalou o fumo. Continuava a olhar para Quart.

- Uma coisa deve ter que ver com a outra. Acho eu. Macarena fechava o punho, como para bater na mesa. Ou no marido.

- Sabes que não tem nada que ver.

- Enganas-te. Eu saber, não sei nada - a boca de Gavira teve uma expressão cruel. - A especialista em igrejas e em curas és tu - apontou para Quart. - Que não vais a parte nenhuma sem o teu director espiritual.

- Maldito sejas tu.

Octavio Machuca ergueu a mão fraca para acalmar os ânimos. Quart, que se mantinha em silêncio e à margem, observou que, por detrás das suas pálpebras semicerradas, o velho banqueiro não perdia de vista Gavira.

- A verdade, Pencho - disse Machuca. - Quero a verdade. Gavira terminou o cigarro e atirou-o para o chão, aos pés de um vendedor de lotaria que se acercava para lhes oferecer um décimo. Depois fitou o seu chefe nos olhos.

- Don Octavio, juro-lhe que não sei nada acerca desse morto na igreja, salvo que era jornalista e, ao que contam, muito mau sujeito. Também não sei onde diabo se terá metido o cura - estendeu a mão, dispondo-se a brincar de novo com as hastes dos óculos, mas deixou-a imóvel junto deles. - Só sei o que me contou a minha secretária pelo telefone, ainda há pouco: há um cadáver, o padre Ferro é suspeito e a polícia anda atrás dele - observou de novo Macarena, depois Quart. - O resto são tretas.

- Tu andaste a meter-te nos assuntos da igreja - insistiu ela. - Passaste todo o tempo a manobrar a esse respeito. Não posso acreditar que estejas fora disto.

- Mas estou - Gavira mantinha-se muito sério. - Não vou esconder que me tenho mexido um pouco. Alguém, obedecendo a instruções minhas, andou um pouco por aqui e por ali, analisando a situação - voltou-se para Machuca, apelando para o seu bom senso. - Sou sincero, Don Octavio, não me importo de lhe contar que considerei a hipótese de convencer o pároco com métodos drásticos... Estudou-se tudo, com os prós e os contras. Mas nada mais. Acontece agora que o padre Ferro se meteu num enredo, que o foro da igreja fica em suspenso e que vem tudo a calhar-me - alargou-se o sorriso do Tubarão do Arenal. - Pois que querem que lhes diga? Que sinto muito pelo pároco e que me regozijo por mim - fez um gesto em atenção ao velho Machuca. - Por mim e pelo Cartujano. Ninguém verterá lágrimas pela igreja. Macarena lançou-lhe um olhar de desprezo:

- Eu sim.

Aproximou-se uma florista, oferecendo jasmins para a senhora e Gavira pô-la a andar. Olhava, agora, a mulher menos renitente.

- E a única coisa que lamento nesta história. As tuas lágrimas - o seu tom pareceu suavizar-se por momentos. - Continuo sem perceber o que aconteceu entre nós - duro olhar de soslaio a Quart. - Nem as coisas que depois se passaram.

Ela abanava a cabeça, negando-se a entrar por aquele caminho:

- É tarde para falarmos de nós. O padre Quart e eu viemos perguntar-te por Don Príamo.

Reluziram os olhos negros de Gavira:

- Pois começo a estar farto de tropeçar no padre Quart.

- E eu em si - disse Quart -, cuja mansidão profissional raiava os limites. - Isso acontece por se meter com igrejas aonde ninguém o chamou.

Um lampejo de cólera endureceu a boca do banqueiro e por um segundo Quart julgou que ia atirar-se a ele. O seu pulso bombeou adrenalina, mas o outro sorria já, de novo perigoso e tranquilo. Tudo havia sido fugaz, sem um gesto fora do lugar, sem uma ameaça. Gavira falava agora com Macarena:

- Garanto-te que não tenho nada que ver.

- Pois não - ela inclinava-se de novo para diante, os cotovelos sobre a mesa, mortalmente séria. - Eu conheço-te, Pencho. Não saberia dizer porquê, mas tenho a certeza de que estás a mentir-me. Nota bem o que te digo: embora estejas a ser sincero, mentes. Há coisas que não encaixam, que não se explicam sem a tua intervenção. Mesmo que nada tivesses que ver, o desaparecimento de Don Príamo, justamente hoje, tem a tua marca. O teu estilo.

Quart viu que Gavira vacilava por um instante. Foi apenas um momento, um breve relâmpago de dúvida nos seus olhos escuros e impassíveis. Os dedos abriram e fecharam duas vezes as hastes dos óculos sobre a mesa, para depois quedarem de novo imóveis.

- Não - disse ele.

Mais do que uma negação dirigida eles, parecia responder a uma reflexão interior. Octavio Machuca semicerrava mais as pálpebras, observando-o com curiosidade e foi então que Quart teve a certeza de que a ideia de Macarena não era um tiro às cegas.

- Pencho - disse Machuca.

Era uma recriminação e um pedido formulados em voz baixa. A expressão de Gavira tornara-se de novo imperscrutável, mas ergueu levemente a mão, como a pedir um momento de calma para reflectir. Um condutor incomodado com um carro mal arrumado ensurdeceu-os com a sua buzina.

- Se tens alguma coisa que ver, Pencho... - insistiu Machuca. Parecia agora deveras incomodado, lançando a Macarena e Quart breves olhares de preocupação.

- Estas coincidências não acontecem - murmurou Gavira, abismado, muito longe dali.

Depois, parecendo mover-se no limite impreciso entre o real e o sonho, fitou Quart e, em seguida, Macarena, quase esperando que confirmassem os seus pensamentos não expressos. Abria a boca, como se fosse a dizer alguma coisa, ou talvez precisando de mais ar para respirar. Mantinha-se firme, mas o seu aprumo tinha desaparecido. De súbito, um semáforo passou do vermelho ao verde e o desfile de pára-brisas dos automóveis ofuscou-os, numa sucessão de cintilações e lampejos de sol. Gavira pestanejou, corando vivamente. Sacudido por uma onda de calor inesperado.

- Agora vão desculpar-me - disse. - Tenho um almoço de trabalho.

Apertava o punho, levando-o ao queixo, como se fosse bater em si próprio. E, ao erguer-se, entornou o copo de cerveja.

 

                                O CANELA FINA

Ah, Watson - disse Holmes. - Pode ser que você também não se comportasse muito elegantemente se se visse privado num instante de esposa e de fortuna.

               (A. Conan Doyle, Aventuras de Sherlock Holmes)

 

Um altifalante amplificava o discurso do guia, algo acerca dos oito séculos da Torre del Oro, com música de fundo de pasodoble. Ao passar, o motor da lancha para turistas ressoou lá fora, nas águas do rio e, ao cabo de alguns instantes, o movimento da sua ondulação chegou até aos costados do Canela Fina, fazendo baloiçar a embarcação atracada ao molhe. A cabina cheirava a ranço e a suor, entre os tabiques de madeira pintada, e pintada de novo, e as manchas de ferrugem nas pranchas de ferro. Enquanto motor e música se afastavam, Don Ibrahim viu como o raio de sol que entrava pela escotilha aberta se deslocava, lentamente, para estibordo sobre a mesa com restos de comida, fazendo brilhar as pulseiras de prata nos pulsos da Nina Punales, antes de voltar vagarosamente para bombordo, para se imobilizar na calva mal dissimulada de Peregil.

- Podiam ter escolhido - disse este - um sítio que mexesse menos.

Tinha o cabelo despenteado sobre o crânio húmido de suor e enxugava a testa com um lenço. Não gostava de superfícies oscilantes: olhos de brilho mortiço, semelhante ao de um touro manso à espera do golpe mortal; pele com a palidez inconfundível das angústias do enjoo. Os barcos de turistas eram muitos e a esteira de cada um deles desencorajava-o um pouco mais.

Don Ibrahim nada disse. A sua própria vida ensinara-o a ter consideração pelos homens e a ser compassivo com as suas misérias e as suas vergonhas. Afinal a existência era um sobe e desce, e todos acabavam por tropeçar num degrau. De modo que retirou silenciosamente a cinta de um Montecristo para acariciar com delicadeza a superfície suave, ligeiramente nervurada, das negras folhas de tabaco. Em seguida, cortou-o com o canivete de Orson e levou-o aos lábios, fazendo-o girar voluptuosamente, ao mesmo tempo que humedecia a extremidade. Saboreando o aroma daquela perfeita obra de arte.

- Que tal se tem portado o cura? - perguntou Peregil.

Tinha cessado o baloiçar e mostrava um pouco mais de integridade, embora continuasse tão pálido como uma das velas da paróquia que os seus três mercenários tinham deixado, temporariamente, sem titular. Com o charuto ainda por acender na boca, Don Ibrahim assentiu com toda a gravidade. Um gesto apropriado à matéria que os ocupava, pois referia-se a um digno homem de igreja, a um santo varão. E, até onde ele chegava, um sequestro não tinha necessariamente de ir contra o respeito. Aprendera-o na América Latina, onde as pessoas se fuzilavam tratando-se todo o tempo por você.

- Porta-se muito bem. Muito íntegro e tranquilo. Como se não fosse nada com ele.

Apoiado na mesa e procurando manter os olhos afastados dos restos de comida, Peregil teve forças para compor um desmaiado sorriso:

- É duro, o velho.

- Ozú - disse a Nina. - Tem tomates.

Fazia crochet, quatro para cima, duas largas, movendo as mãos com rapidez entre o tilintar das pulseiras e, de vez em quando, largava sobre a saia as agulhas e o trabalho para beber um trago do copo de manzanilla que tinha ao pé, junto da garrafa que ia em mais de meia. O calor estendia-lhe a mancha escura de maquilhagem à volta dos olhos, aumentando-os, e a manzanilla fizera.

escorrer um pouco o carmim. Quando a embarcação baloiçava, faziam-no também as suas grandes argolas de coral.

Don Ibrahim referendou o comentário da Nina Punales, arqueando as sobrancelhas. No tocante ao pároco, não exagerava tanto assim. Tinham ido ao seu encontro passava da meia-noite, na ruela onde se abria a porta do jardim da Casa do Postigo e haviam levado um momento a deitar-lhe uma manta sobre a cabeça e a manietá-lo a caminho da furgoneta - alugada por vinte e quatro horas - que tinham parada na esquina. Na refrega, Don Ibrahim ficara com a bengala de Maria Félix partida, o Potro arranjara um olho negro e a Nina perdera os chumbos de dois dentes. Parecia mentira como o avôzinho pequenote e ressequido, ainda por cima cura, podia defender a pele.

Além de enjoado, Peregil estava inquieto. Deitar a mão a um sacerdote e mantê-lo dois dias fora de circulação não era precisamente o género de crime que inspira a compreensão dos juizes. Don Ibrahim tão-pouco estava satisfeito, mas tinha plena consciência de que era tarde de mais para voltar atrás. Tratava-se, além disso, de uma ideia sua e os homens como ele lançavam-se nas coisas sem pestanejar. Além de que quatro quilos e meio, somando o correspondente a cada um dos compadres, eram uma beleza.

Peregil tinha despido o casaco, como Don Ibrahim. Mas, ao contrário das sóbrias mangas de camisa brancas do índio, com elásticos sobre os cotovelos, as do assistente de Pencho Gavira luziam um devastador conjunto de riscas brancas e azuis com colarinho cor de salmão e uma gravata de crisântemos verdes, vermelhos e roxos pendurada a meio do peito como um ramo de flores murcho. Um círculo de suor humedecia-lhe o colarinho:

- Espero que sigam o plano.

Don Ibrahim fitou-o, reprovador e ofendido. Ele e os seus comparsas eram precisos como bisturis - passou um dedo cauteloso pelas cerdas do bigode e a pele chamuscada -, salvo imprevistos aleatórios como o do Potro e da gasolina ou a propensão de certos rolos de fotografias para se estragarem quando apanhavam luz. Além disso, o plano operacional também não era nada do outro mundo. Tudo consistia em reter o pároco mais um dia e meio, e depois soltá-lo. Coisa fácil, bonita e barata, com um toque, um não sei quê de elegante na execução. Stewart Granger e James Mason, e até Ronald Colman e Douglas Fairbanks Júnior - Don Ibrahim, o Potro e a Nina tinham ido a um clube de vídeo para alugar as duas versões e documentar-se devidamente sobre a matéria - tê-lo-iam achado impecável.

- Quanto aos nossos emolumentos...

O ex-falso advogado deixou a frase em suspenso, por delicadeza, concentrando-se no acender do charuto. Falar de dinheiro entre pessoas honradas não tinha cabimento. Honestidade era coisa que Peregil desconhecia, mas isso não obstava a que lhe concedessem, pelo menos formalmente, o benefício da dúvida. De modo que chegou a chama do isqueiro ao extremo do Montecristo, enchendo a boca e as fossas nasais com a primeira e deliciosa baforada, e esperou que o outro completasse a sugestão.

- No momento em que soltarem o cura - referiu Peregil, um pouco mais desenvolto - pago-vos aos três. Milhão e meio a cada um, sem I VA.

Riu entredentes da sua própria chalaça, ao mesmo tempo que voltava a puxar pelo lenço para enxugar a testa e a Nina Punales afastou, por um momento, os olhos do crochet para lhe lançar um olhar por entre as pestanas postiças cobertas de rimel. Também Don Ibrahim dirigiu ao esbirro um olhar por entre o fumo havano, mas, no seu caso, de preocupação. Não gostava do indivíduo e muito menos daquele riso, e por um momento estremeceu, sem saber se Peregil teria dinheiro suficiente para pagar honorários ou jogava falso. Com um suspiro fatalista, chupou de novo o puro, e do casaco pendurado nas costas da cadeira tirou o relógio no extremo da sua corrente. Não era fácil ser chefe, pensava. Nada cómodo aparentar segurança, dar ordens ou sugerir comportamentos, procurando fazer que não nos falhe a voz, dissimulando a incerteza sob um gesto, um olhar, um sorriso oportuno. Tal como Xeno-fonte, o dos quinhentos mil, ou Colombo, ou Pizarro quando traçou a risca no chão com a espada e disse "daqui para ali ouro e ter tomates", tinham experimentado também aquela incómoda sensação de estarem a pintar o tecto e ficarem presos à brocha, enquanto a escada desaparecia sob os seus pés, como nas bandas desenhadas de Mortadelo.

Don Ibrahim olhou com ternura para a Nina Punales. A única coisa que o preocupava na hipótese de ir parar à cadeia era terem de se separar... Quem iria então cuidar dela? Sem o Potro, sem ele próprio para lhe dizer "olé!" quando trauteasse uma copla, elogiar o seu cozido dos domingos, levá-la à Maestranza nas tardes de bom cartaz, dar-lhe o braço quando se toldava nos bares com a primeira loira de Sanlúcar, a pobre morreria como um passarinho fora da gaiola. Além disso, havia o tablado que tinham de conseguir a todo o custo, para fazerem dela uma rainha.

- Rende o Potro, Nina.

A Nina contou mais duas voltas de agulha até completar a série. Moveu silenciosamente os lábios ao fazê-lo; depois, emborcando de caminho o resto do copo de manzanilla, ergueu-se para alisar a saia do vestido às pintas, lançando um olhar à escotilha. Atrás dos gerânios plantados em latas vazias de atum Alho, murchos embora o Potro os regasse todas as noites, avistava-se o antigo molhe, um par de embarcações atracadas e, ao fundo, a torre del Oro e a ponte de San Telmo.

- Não há mouro na costa - disse.

Depois, levando com ela o crochet, atravessou a cabina numa revoada de saia de folhos engomados, deixando um espesso aroma a Maderas de Oriente que Peregil acusou visivelmente à sua passagem. Ao abrir-se a porta do camarote, Don Ibrahim entreviu por um momento o pároco: de costas, sentado numa cadeira, com os olhos vendados por um lenço de seda da Nina, os pulsos atados ao espaldar com adesivo largo, comprado na tarde anterior numa farmácia da Calle Pureza. Continuava tal e qual o tinham deixado: quieto, hermético, sem dizer palavra quando lhe perguntavam se queria comer alguma coisa, beber um copo ou mijar; e, nesses casos, limitava-se a mandá-los à fava.

Entrou a Nina e saiu o Potro del Mantelete, fechando a porta nas suas costas.

- Como vai? - perguntou Peregil.

- Quem?

O Potro parara junto da mesa, com um ar perplexo, um olho ainda maltratado da rixa nocturna. Sob a camiseta de suspensórios moldavam-se-lhe os duros e enxutos peitorais gordurosos de suor.

Exibia ainda uma ligadura no antebraço esquerdo. No ombro oposto, junto da marca da vacina, tinha uma cabeça de mulher tatuada em azul, com boné de legionário e um nome ilegível em baixo. Don Ibrahim nunca lhe perguntara se era o nome da infiel causadora da sua ruína, nem o Potro jamais o mencionara. Como se não recordasse. De qualquer forma, a vida pertencia a cada um.

- O cura - insistia Peregil com voz desmaiada. - Como reage.

O antigo toureiro e pugilista considerou demoradamente a questão. Enrugava o sobrolho, baloiçando-se um pouco nas pernas e, por fim, olhou para Don Ibrahim como um lebréu recebendo a ordem de um estranho, virado para o dono em busca de confirmação.

- Reage bem - respondeu, por fim, não encontrando objecção nos olhos do seu chefe e compadre. - Está quieto e não diz nada.

- Não fez perguntas?

O Potro esfregava com os dedos o nariz esborrachado, ao mesmo tempo que puxava pela memória, voluntarioso. O calor não lhe aguçava os reflexos.

- Nenhuma - respondeu, por fim. - Desabotoei-lhe um pouco a sotaina para o deixar respirar, mas não deu um pio - reflectiu longamente acerca de tudo aquilo. - Nem que fosse mudo.

- É natural - interveio Don Ibrahim. - Trata-se de um homem da igreja. É a dignidade ofendida.

Sacudiu um pouco a fralda da camisa, pois caía-lhe já sobre a barriga a primeira cinza do charuto, enquanto o Potro assentia, lento, com a cabeça, olhando em direcção à porta fechada como se acabasse de resolver uma coisa que há muito o intrigasse. "Deve ser isso", repetiu duas vezes. "A dignidade."

Peregil abria a boca, pálido e suado. Tinha o lenço encharcado.

- Vou-me embora - disse. - O fumo do charuto, como a oscilação, era-lhe nitidamente fatal. - Mas mantenham-se atentos às minhas instruções.

Começou a levantar-se, ajeitando maquinalmente o cabelo sobre a careca. Nesse momento o Canela Fina baloiçou à passagem doutro barco de turistas e o olhar de Peregil seguiu, com fixação obsessiva, o movimento de estibordo a bombordo do raio de sol entrando pela escotilha dos gerânios. A pele pôs-se-lhe mais oleosa e pálida, e aspirou o ar como um peixe acabado de pescar, fitando Don Ibrahim e o Potro com olhos esgazeados.

- Desculpem - murmurou com voz afogada, antes de se precipitar a caminho da porta e da escada.

Foi o pior almoço da sua vida. Pencho Gavira mal provou as tenras favas com lulas e o salmão a La plancha, e só recorrendo a todo o seu sangue-frio chegou à sobremesa com o sorriso intacto e sem saltar da mesa de cinco em cinco minutos para telefonar à sua secretária, que procurava afanosamente Peregil por Sevilha inteira. Por vezes, em plena conversa com os conselheiros do Cartujano, o banqueiro ficava parado, deixando os outros suspensos do que estava a dizer, e só com um inaudito esforço era capaz de rematar a questão de modo airoso. Teria precisado de todo aquele tempo para pensar, traçando planos e soluções para as alternativas que a ausência do sicário fazia sucederem-se no seu espírito; mas não dispunha dessa trégua. Esta reunião também era decisiva para o seu futuro e não podia descurar os seus comensais. Batia-se, pois, em duas frentes, como Napoleão contra um exército inglês e outro prussiano em Waterloo. Um sorriso, um trago de vinho, uma exposição, uma reflexão oculta apenas o tempo de acender um cigarro. Pouco a pouco os conselheiros iam-se rendendo, mas a falta de notícias da parte de Peregil começava a ser angustiante. Gavira tinha a certeza de que o seu assistente estava relacionado com o desaparecimento do cura e - isso causava-lhe suores frios - também poderia ter que ver com a morte de Bonafé. Isso causava-lhe tremores pela espinha dorsal abaixo, mas, apesar de tudo, o banqueiro tinha paciência e aguentava. No seu lugar, outro com menos ânimo ter-se-ia ido abaixo.

O chefe aproximava-se por entre as mesas e, pela maneira como o olhou, Gavira soube que se dirigia a ele. Reprimindo o impulso de se precipitar da cadeira, concluiu a frase que tinha começado, apagou o cigarro no cinzeiro, bebeu um gole de água mineral, enxugou cuidadosamente os lábios ao guardanapo e ergueu-se, dirigindo um sorriso aos conselheiros:

- Desculpem um instante.

Depois foi até ao vestíbulo, fazendo um par de vénias para saudar alguns conhecidos, com a mão direita no bolso para evitar que tremesse. O vazio do seu estômago afundou-se ao ver Peregil com o cabelo despenteado sobre a calva e uma gravata espantosa.

- Trago boas notícias - anunciou o sicário.

Estavam sós. Gavira quase o empurrou para dentro da casa de banho dos homens, fechando a porta nas suas costas, quando se assegurou de que não havia lá ninguém.

- Onde estiveste?

Peregil fez uma cara satisfeita:

- A tratar de fazer que não haja missa amanhã - disse. Toda a tensão, toda a angústia acumulada dispararam como uma

mola em Gavira. Teria matado Peregil ali mesmo. Com as suas próprias mãos.

- Que fizeste, cabrão?

O sorriso do assistente esvaiu-se-lhe da boca. Pestanejava, aturdido.

- Pois o que havia de fazer? - balbuciou. - O que me mandou. Neutralizar o cura.

- O cura?

O esbirro apoiava as costas no lavabo onde Gavira o tinha encurralado. A luz de néon fazia-lhe brilhar a careca sob as madeixas de cabelo penteadas a partir da orelha esquerda.

- Sim - confirmou. - Uns amigos meus puseram-no fora de circulação até depois de amanhã. Em perfeito estado de saúde.

Observava, desconcertado, o seu chefe, sem compreender aquela atitude agressiva. Gavira recuou um passo, fazendo cálculos.

- Quando foi isso?

- Esta noite - Peregil arriscou um tímido sorriso, atento às reacções do seu chefe. - Está em lugar seguro e bem tratado. Na sexta-feira soltamo-lo e adeuzinho.

Gavira abanava a cabeça. As contas não lhe batiam certas.

- E o outro?

- Qual outro?

- Bonafé. O jornalista.

Viu Peregil corar como se lhe tivessem bombeado um litro de sangue no rosto.

- Ah, esse - o assistente parecia agora desfigurado. Erguia as mãos para definir algo no ar. - Bem... Posso explicar tudo, acredite em mim - sob o néon, o sorriso forçado parecia um buraco escuro no meio do seu rosto. - É uma história um pouco complicada, mas posso esclarecer tudo. Juro-lhe.

Gavira sentiu uma vaga de pânico. Se o seu assistente estava relacionado com a morte de Honorato Bonafé, os problemas ainda agora começavam. Deu uns passos na casa de banho, tentando reflectir a toda a pressa. Mas os azulejos brancos inspiravam-lhe o mais absoluto vazio. Voltou-se para fitar Peregil:

- Pois mais vale que tenhas uma boa explicação. A polícia anda atrás do cura.

Ao contrário do que esperava, Peregil não se mostrou especialmente impressionado. Antes mostrava alívio com o novo rumo da conversa:

- Que rápidos! Mesmo assim, não se aflija.

Gavira não acreditava nos seus ouvidos:

- Não me aflijo?

- De todo - o esbirro esboçou um sorrisinho nervoso. - Só vai custar-nos mais cinco ou seis quilos.

Gavira dirigiu-se outra vez a ele. A dúvida oscilava entre atirá-lo ao chão com um murro e bater-lhe na cabeça ou continuar a interrogá-lo. Com um esforço para se autodominar, perguntou de novo:

- Falas a sério, Peregil?

- Claro. Esteja descansado.

  • - Ouve - esforçando-se por manter a compostura, o banqueiro passava as palmas das mãos pelas fontes. - Estás a levar-me.

- Nunca me passaria tal coisa pela cabeça, chefe - Peregil sorria com candura. - Nem a cair de bêbedo.

Gavira deu outro passeio pela casa de banho.

- Vamos lá a ver... Vens dizer-me que tens sequestrado um cura que a polícia procura por assassínio e queres que não me preocupe?

Peregil deixou cair o queixo:

- Por assassínio, como?

- É como te digo.

O esbirro olhou para a porta fechada. Depois para a retrete. Depois de novo para Gavira.

- Mas qual assassínio qual quê!

- Assassínio, sim. E culpam o teu maldito cura.

- Ora essa - Peregil soltou uma curta gargalhada, de absoluto desespero. - Não me venha com brincadeiras, chefe.

Gavira aproximou-se tanto que o outro quase teve de sentar-se em cima do lavatório.

- Olha bem para mim. Tenho cara de estar a brincar?

Não tinha, não, e o assistente não teve a menor dúvida. Peregil estava, agora, branco como os azulejos da parede:

- Um assassínio?

- Isso mesmo.

- Um assassínio de verdade?

- Claro que sim, estúpido. E dizem que foi o cura.

O outro levantou a mão, pedindo tempo para digerir tudo aquilo mais devagar. Estava tão descomposto que as compridas madeixas de cabelo lhe caíam sobre a orelha.

- Antes ou depois de o termos filado?

- Sei lá. Antes, suponho.

Peregil engoliu em seco com muita dificuldade e muito ruído.

- Vamos a ver se nos entendemos, chefe. O assassínio de quem?

Depois de deixar Peregil a vomitar para a retrete, Pencho Gavira despediu-se dos conselheiros, entrou no Mercedes estacionado diante do restaurante, mandou o motorista ligar o ar condicionado e ir tomar qualquer coisa e, com o telemóvel na mão, reflectiu durante algum tempo. Estava certo de que o seu assistente lhe contara a verdade, o que - uma vez passado o pânico inicial - abria novas perspectivas ao problema. Tornava-se difícil estabelecer se era tudo uma sucessão de casualidades ou se, de facto, a gente de Peregil tinha incorrido na extraordinária coincidência de sequestrar o pároco logo depois de este se ter encarregado do jornalista. O facto de a polícia ter determinado a morte de Bonafé à última hora da tarde e o desaparecimento do pároco não se ter verificado - de acordo com o testemunho da própria Macarena e do cura de Roma - antes da meia-noite deixava Príamo Ferro sem álibi. De todas as formas, culpado ou não, isso alterava as posições de cada um. O sacerdote era suspeito e a polícia andava atrás dele; retê-lo durante mais tempo tornava-se arriscado. Gavira estava certo de que podia ser posto em liberdade sem prejuízo para os seus projectos. Antes, beneficiava-os, visto que o cura ia andar muito ocupado entre inquéritos e interrogatórios. Se o soltassem de noite, com a polícia no seu encalço, era mais que certo que, no dia seguinte, não haveria missa em Nossa Senhora das Lágrimas. O golpe de mestre podia, pois, vir do inesperado. A habilidade consistia em desembaraçar-se do pároco e restituí-lo à vida pública com a devida limpeza, sem escândalos. Que fugisse ou se entregasse à polícia, era coisa que não interessava a Gavira. Fosse como fosse, Príamo Ferro estava para ficar fora de jogo por uma temporada e, talvez, se pudessem facilitar as coisas com um telefonema anónimo, uma denúncia ou coisa do género. Não era o arcebispo de Sevilha que iria ter pressa de lhe arranjar um substituto. Quanto a Don Octavio Machuca, para o pragmático banqueiro tudo estava bem quando acabava bem.

Ficava por resolver a questão de Macarena, mas também neste aspecto a nova situação oferecia vantagens. A jogada perfeita consistia em vender-lhe a libertação do pároco como um favor, proclamando-se Gavira alheio ao excesso de zelo de Peregil. Qualquer coisa como "quando me disseste, intervim", etc. Com o caso de Bonafé pesando sobre todos, e em especial sobre o seu admirado Don Príamo, ela faria os possíveis por não ser indiscreta. Isto podia, até, facilitar uma reaproximação dos dois. Quanto ao pároco, Macarena e o cura de Roma que se encarregassem dele, com polícia ou sem ela. Gavira nada tinha contra o cura velho: tanto se lhe dava que se entregasse ou que emigrasse. Com um pouco de sorte, estava tão acabado como a sua igreja.

O suave ronronar do motor mantinha, com o ar condicionado, uma temperatura perfeita no interior do Mercedes. Mais relaxado, Gavira recostou-se no assento de cabedal negro, apoiando a cabeça e contemplando-se, satisfeito, no espelho retrovisor. Afinal, talvez não tivesse sido um mau dia. No seu rosto tisnado reluzia o sorriso do Tubarão do Arenal, quando marcou o número da Casa do Postigo.

Ao desligar o telefone, Macarena Bruner ficou a olhar para Quart. Parecia reflectir, muito quieta, apoiada na mesa coberta de revistas e livros, a um canto da sala do andar superior, convertida em escritório. Um escritório singular, com azulejos reproduzindo motivos vegetais e cruzes de Malta, escuras vigas no tecto e uma grande chaminé em mármore negro. Era o escritório de Macarena, e a sua marca estava em toda a parte: um televisor com vídeo, uma reduzida aparelhagem de música, livros de arte e história, antigos cinzeiros de bronze, cómodas poltronas de veludo escuro, coxins bordados. Havia um grande armário onde se misturavam antigos maços de papel manuscritos, volumes encadernados em pergaminho amarelado, cassetes de vídeo e também um par de bons quadros nas paredes: um São Pedro de Alonso Vázquez e outro, de autor desconhecido, representando uma cena da batalha de Lepanto. Perto da janela, a escultura de um carrancudo arcanjo erguia a sua espada sob uma campânula de vidro que o protegia do pó.

- Já está - disse Macarena.

Quart pôs-se de pé, tenso, preparado para a acção. Ela, porém, permaneceu imóvel, como se ainda não tivesse dito tudo:

- Foi um engano e pede desculpa. Garante que não tem nada que ver, e que as pessoas que trabalham indirectamente para ele se excederam sem o seu consentimento.

Quart não queria saber. Depois teriam tempo de averiguar a responsabilidade de cada um. O que importava era chegar junto do pároco antes da polícia. Culpado ou não, era um eclesiástico; a Igreja não podia ficar de mãos atadas.

- Onde o mantêm?

Macarena dirigiu-lhe um olhar de dúvida. Mas foi apenas um momento.

- Está são e salvo, num barco atracado no antigo molhe do Arenal... Pencho telefona quando tiver tudo resolvido - deu uns passos na sala, pegou num cigarro da mesa e tirou o isqueiro do decote. - Oferece-mo a mim em vez da polícia, em troca da paz. Se bem que, evidentemente, a polícia esteja errada.

Quart expeliu o ar dos pulmões, aliviado. Pelo menos esse aspecto do problema estava resolvido.

- Vais contar à tua mãe?

- Não. É melhor que continue sem saber de nada até que esteja tudo bem. Esta notícia pode matá-la.

Fez uma cara desolada. Tinha o isqueiro e o cigarro na mão, por acender; parecia tê-los esquecido.

- Se tivesses ouvido Pencho - acrescentou. - Atencioso, encantador, à minha disposição... Sabe que está prestes a ganhar a partida e vende-nos uma alternativa inexistente. Don Príamo não escapa, quando for libertado.

Disse-o friamente, absorta na sua única preocupação: o pároco. Quart escutava-a, desolado, mas não por causa das suas palavras. Cada vez que um gesto de Macarena evocava recordações recentes, ele enchia-se de uma tristeza imensa, desesperada. Depois de se aproximar tanto dele e de o levar para o terreno onde os limites se diluíam e tudo, salvo a solidão partilhada e a ternura, carecia de sentido, ela afastava-se de novo. Era cedo para determinar o que perdia e o que ganhava o sacerdote Lorenzo Quart na carne tíbia daquela mulher, mas a atraiçoada figura do templário perseguia-o como um remorso. Era tudo uma armadilha larga e velha, com aquele rio tranquilo por onde corria o tempo que nada respeita, ou que mais cedo ou mais tarde confirma a condição dos homens. Que arrasta as bandeiras dos bons soldados. Quanto a Quart, Sevilha arrebatava-lhe demasiadas coisas em muito pouco tempo, sem em troca lhe deixar mais do que uma dolorosa consciência de si mesmo. Ansiava por um rufar de tambor que lhe restituísse a paz.

Quando voltou à realidade, os olhos escuros, egoístas, de Macarena estavam fixos nos seus. Quart não era, porém, o objecto do seu interesse. Não viu gotas de mel, nem luar agitando folhas de buganvílias e laranjeiras. Nada havia que lhe dissesse respeito e, por um instante, o agente do IOE perguntou a si próprio que diabo estava ele ainda a fazer ali, reflectido naqueles olhos estranhos.

- Não vejo porque havia o padre Ferro de fugir - disse, fazendo um esforço por regressar às palavras e à disciplina que implicavam. - Se a causa do seu desaparecimento foi um sequestro, isso atenua as suspeitas contra ele.

O argumento não pareceu tranquilizá-la:

- Não modifica coisa nenhuma. Dirão que fechou a igreja com o cadáver lá dentro.

- Sim. Mas, talvez, como disse a tua amiga Gris, possa demonstrar que não chegou a vê-lo. Será bom para todos que se explique finalmente. Bom para ti e para mim. Bom para ele.

Ela abanou a cabeça:

- Tenho de falar com Don Príamo antes da polícia.

Tinha ido até à janela. Olhava para o pátio interior, apoiada no caixilho.

- Também eu - disse Quart, aproximando-se. - E seria melhor que ele próprio se apresentasse, acompanhado por mim e pelo advogado que mandei vir de Madrid - consultou o relógio. - Que, neste momento, deve estar com Gris no Comissariado da Polícia.

- Ela nunca acusará Don Príamo.

- Claro que não.

Voltou-se para Quart. A ansiedade reflectia-se nos olhos escuros:

- Vão prendê-lo, não vão?

Teria erguido os dedos para tocar aquela boca; contudo, o gesto dela não era seu, mas doutro. Que absurdo ter ciúmes de um velho cura pequeno e sujo, mas o certo é que os tinha. Tardou uns segundos a responder:

- Não sei - após o momento de dúvida, desviou o olhar para o pátio. Sentada numa cadeira de baloiço, junto da fonte dos azulejos, abanando-se, alheia a tudo, Cruz Bruner lia aprazivel-mente. - Pelo que vi na igreja, receio que sim.

- Foi ele, não achas? -Também Macarena olhou para a mãe. E fê-lo com uma imensa tristeza. - Embora não tenha desaparecido por vontade própria, continuas a crer.

- Eu não creio coisa nenhuma - safou-se Quart, mal-humorado. - Crer não é o meu ofício.

Vinha-lhe à memória o salmo da Bíblia relativo à história de Uzá, "que ousou tocar a Arca da Aliança, e o Senhor encolerizou-se contra ele pelo seu atrevimento, feriu-o e morreu ali mesmo, junto da Arca de Deus"... Macarena, por seu lado, inclinava o rosto. Tinha desfeito o cigarro entre os dedos, sem chegar a acendê-lo, e os filamentos de tabaco caíam aos seus pés.

- Don Príamo nunca faria uma coisa dessas.

Quart moveu a cabeça, mas nada disse. Pensava em Honorato Bonafé, morto no confessionário, fulminado pela cólera implacável do Todo Poderoso. Era precisamente o padre Ferro que ele imaginava fazendo uma coisa daquelas.

Um quarto para as onze. Encostado a um candeeiro sob a ponte de Triana, Celestino Peregil ouviu as badaladas do relógio sem erguer os olhos das luzes reflectidas na água negra do rio. Os faróis dos automóveis que passavam lá em cima corriam ao longo do varandim de ferro, sobre os arcos rebitados e os pilares em pedra, e também para lá do parapeito de jardins e terraços que se erguia no passeio de Cristóvão Colombo, junto da Maestranza. Mas em baixo, na margem do rio, tudo estava tranquilo.

Pôs-se a andar pela esplanada sob a ponte, em direcção aos antigos molhes do Arenal. A brisa de Sanlúcar começava a encrespar suavemente a superfície escura do Guadalquivir e o fresco da noite levantou o ânimo do sicário. Depois das emoções das últimas horas, tudo regressava à normalidade. Até a úlcera parecia disposta a deixá-lo em paz. O encontro estava previsto para as onze, junto do barco onde aguardavam Don Ibrahim e os seus sequazes, e o próprio Gavira fornecera a Peregil toda a espécie de instruções e garantias para evitar falhas: iriam a senhora e o cura alto, e ele devia limitar-se a efectuar a entrega sem problemas. Tirariam o pároco do Canela Fina e o par encarregar-se-ia dele num dos antigos armazéns do cais, cuja chave Peregil tinha no bolso. Quanto ao dinheiro dos três malandrins, o assistente tivera alguma dificuldade em convencer o chefe a largar o necessário; mas a urgência do caso e a vontade do banqueiro de se ver livre do pároco haviam facilitado as coisas. Com um íntimo sorriso, o esbirro tocou na barriga: trazia os quatro milhões e meio em notas de dez mil, escondidos debaixo da camisa, no elástico das cuecas; e tinha em casa outras quinhentas mil que conseguira cravar ao chefe à última hora, a pretexto de gastos imprescindíveis para levar a coisa a bom termo. Tanta massa à cintura obrigava-o a caminhar rígido, como se tivesse vestido um corpete.

Pôs-se a assobiar, optimista. Salvo um par de namorados ou um pescador isolado, o passeio até aos molhes estava deserto. Rãs coaxavam entre os juncos da margem e Peregil escutou-as, agradado. A Lua espreitava sobre Triana e o mundo era maravilhoso. Onze menos cinco. Estugou o passo. Estava desejoso de acabar com aquela história para ir direito ao Casino, a ver quanto rendia o meio quilo. Reservando-se cinco mil duros para uma homenagem a Dolores, Ia Negra.

- Olha, Peregil! Que surpresa!

Estacou. Duas silhuetas sentadas num dos bancos de pedra tinham-se erguido à sua passagem. Uma delgada, alta, sinistra: o cigano Mairena. Outra miúda, elegante, com movimentos precisos de bailarino: o Pollo Muelas. Uma nuvem ocultou a lua, ou aconteceu talvez que os olhos de Peregil se enevoaram subitamente. Via pontinhos negros a dançar diante dos olhos e a úlcera despertou de modo selvagem. Fraquejaram-lhe as pernas. Uma lipotimia, pensou. Vou cair redondo com uma lipotimia.

- Adivinha que dia é hoje.

- Quarta-feira - a voz saía-lhe desmaiada, quase inaudível, num arremedo de protesto. - Ainda tenho um dia.

As duas sombras aproximaram-se. Em cada uma delas, uma mais acima que a outra, reluzia a brasa de um cigarro.

- Fizeste mal as contas - disse o cigano Mairena. - Tens uma hora, porque a quinta-feira começa à meia-noite em ponto de hoje - acendeu um fósforo e a sua chama iluminou a mão com o dedo mindinho amputado e a esfera de um relógio. - Uma hora e cinco minutos.

- Vou pagar - disse Peregil. - Juro. Soou o riso simpático do Pollo Muelas:

- Pois claro. Por isso vamos sentar-nos os três juntos, neste banco. A fazer-te companhia até que chegue a quinta-feira.

Cego de pânico, Peregil lançou um olhar em redor. As águas do rio não lhe ofereciam amparo algum e iria encontrar as mesmas possibilidades numa corrida desesperada pelo molhe deserto. Quanto a um arranjo negociado, o que tinha com ele podia resolver temporariamente o caso, com duas objecções: não cobria a totalidade da dívida junto do prestamista, nem ele podia justificar a sua perda diante de Pencho Gavira, para o qual o montante ascendia já a onze milhões como onze tiros de canhão. Isto, sem contar com o sequestro do pároco, que tinha pendurado como uma corda ao pescoço, o encontro com a senhora e o cura alto, e a cara que iam fazer Don Ibrahim, o Potro del Mantelete e a Nina Punales, se os deixasse naquela enrascada. Ao que podia somar-se o morto da igreja, a polícia e toda a sua pouca sorte. De novo observou a negra corrente do rio. Mais valia atirar-se à água e afogar-se.

Suspirou fundo, muito fundo, e sacou de um maço de cigarros. Depois olhou para a sombra alta, e em seguida para a baixa, resignado perante o inevitável. "Quem falou em medo?", pensou. "Havendo hospitais..."

- Têm lume?

Ainda o cigano Maireno não tinha tirado um fósforo, já Peregil corria a toda a brida pelo molhe fora, de volta à ponte de Triana, como se disso dependesse a sua vida. E, de facto, dependia.

Por um momento julgou-se a salvo. Acelerava a corrida, respirando, compassado, um, dois, um, dois, com o sangue a latejar fortemente nas têmporas e no coração, os pulmões queimando como se lhos arrancassem do peito para os virarem do avesso. Corria quase às cegas no escuro, ouvindo atrás dele as passadas dos outros, as imprecações do cigano Mairena, o ofegar do Pollo Muelas. Por duas vezes julgou que lhe roçavam as costas ou as pernas e, louco de terror, apertou o galope, sentindo aumentar a distância entre ele e os seus perseguidores. As luzes dos automóveis na ponte aproximavam-se rapidamente. "A escada", disse para consigo, num atropelo, ofuscado pelo esforço. Havia uma escada nalgum sítio à esquerda e lá em cima ruas, luzes, carros, gente. Guinou para a direita, aproximando-se do muro na diagonal, algo lhe bateu nas costas, de novo acelerou, soltando um grito de angústia. Lá estava a escada: mais do que vê-la, adivinhou-a nas sombras. Fez um derradeiro esforço, mas tornava-se-Lhe cada vez mais difícil coordenar o movimento das pernas. Descompassavam-se, perdiam terreno, o corpo ia para a frente, no vazio. Os seus pulmões eram uma chaga dolorosa e não encontravam ar para respirar. Chegou, assim, ao pé da escada e pensou, fugazmente, que ia talvez conseguir. Faltaram-lhe, então, as forças e caiu de joelhos, encolhido, como se o tivessem abatido a tiro.

Estava desfeito. Sob a camisa, as notas colavam-se-lhe ao corpo com o suor. Girou até ficar caído de costas sobre o primeiro degrau, e todas as estrelas do céu se moviam à sua volta, como numa atracção de feira. "Para onde terão levado todo o oxigénio?", pensou, contendo com a mão os saltos do coração para que não lhe saísse pela boca aberta. A seu lado, bufando, encostados à parede, o cigano Mairena e o Pollo Muelas tentavam recobrar fôlego.

- Filho da puta - ouviu o cigano dizer, com a voz entrecortada. - Corre como uma bala.

O Pollo Muelas pusera-se de cócoras, respirando como uma gaita esburacada. A luz de um candeeiro da ponte iluminava meio sorriso simpático.

- Foste mesmo estupendo, Peregil - disse quase com ternura, dando-lhe palmadinhas na cara. - Impressionaste-nos bastante. Palavra.

Depois ergueu-se a custo e, sem deixar de sorrir, deu-lhe mais duas palmaditas amistosas na cara. Em seguida saltou sobre o seu braço direito, partindo-o com um estalido. Assim lhe quebrou um dos primeiros ossos naquela noite.

 

Macarena Bruner olhou para o relógio pela enésima vez. Passavam quarenta minutos das onze.

- Alguma coisa correu mal - disse em voz baixa.

Quart tinha a certeza disso, mas não fez comentários. Aguardavam no escuro, perto da cancela fechada de um embarcadouro de esqui aquático. Sobre as suas cabeças, para além das palmeiras e das buganvílias, depois dos terraços desertos do Arenal, via-se a cúpula iluminada do teatro da Maestranza, e um canto do edifício do Banco Cartujano. Uns trezentos metros mais abaixo, na margem, a torre del Oro, iluminada, montava guarda junto da ponte de San Telmo. E mesmo a meio, atracado ao molhe, estava o Canela Fina.

- Alguma coisa correu mal - insistiu Macarena.

Trazia uma camisola com as mangas atadas sobre os ombros. Estava tensa, inquieta, suspensa do cais onde devia apresentar-se o homem de Pencho Gavira. A embarcação onde, segundo o seu marido, ou ex-marido, estava o padre Ferro, via-se, silenciosa e às escuras, sem sinais de vida. Durante um momento - dispunham de tempo - Quart considerou intimamente a possibilidade de o banqueiro ter feito uma má jogada mas, depois de lhe dar umas voltas, pôs de parte a ideia. Da maneira como estavam as coisas, havia enganos que Gavira não podia permitir-se.

Uma aragem fez ranger as tábuas do embarcadouro. A água chapinhou debilmente nos pilares do molhe. Fosse o que fosse, algum facto havia alterado os planos e as coisas ameaçavam desenrolar-se de modo menos tranquilizador que o previsto. O instinto de Quart dizia-lhe que aquele ponto morto augurava novos problemas. Supondo que o pároco estivesse no barco - coisa de que não tinha outros indícios além da palavra de Gavira - o seu resgate ia complicar-se muito mais se o presumível mediador não aparecesse. Quart observou o perfil escuro e vigilante de Macarena, depois pensou no subcomissário Siméon Navajo. Iam, talvez, demasiado longe.

- Talvez fosse bom - disse suavemente - chamar a polícia.

- Nem pensar - ela não desviava a atenção do molhe deserto e do barco. - Primeiro temos de falar com Don Príamo.

Quart olhou para um e outro lado, sob as acácias ao longo da margem.

- Pois não vem ninguém.

- Mas há-de vir. Pencho sabe o que está em jogo nisto.

Mas ninguém acudiu ao encontro. Passou a meia-noite e a tensão tornou-se insuportável. Macarena passeava, nervosa, junto da cancela do embarcadouro. Tinha, além disso, esquecido os cigarros. Quart ficou a vigiar o Canela Fina, enquanto ela ia até uma cabine telefónica do passeio, para telefonar ao marido. Voltou, sombria. O banqueiro assegurava que Peregil se tinha comprometido a comparecer às onze em ponto, com dinheiro para o resgate. Não percebia o que se passava, mas estaria com eles dentro de quinze minutos.

Apareceu, passado um pouco, caminhando debaixo das acácias até se juntar a eles no embarcadouro. Vestia um pólo sob o casaco, calças leves e sapatos desportivos. No escuro parecia muito mais moreno do que habitualmente.

- Não percebo esta do Peregil - disse à laia de saudação.

Não houve desculpas, nem comentários inúteis. Em poucas palavras puseram-no a par da situação. O banqueiro estava muito preocupado com a ausência do seu assistente e disposto a tudo, contanto que não metessem a polícia no assunto. Uma coisa era que esta se entendesse com o pároco em liberdade, outra muito diferente, que os agentes tivessem de o resgatar de um sequestro mais ou menos imputável a Gavira. Enquanto falavam, Quart admirou o seu sangue-frio: não fazia espavento, nem protestos de inocência, nem tentava convencer ninguém. Tinha trazido cigarros, e ele e Macarena fumaram, com as brasas protegidas no côncavo da mão. O banqueiro escutava mais do que falava, a cabeça inclinada, senhor de si. A única coisa que parecia preocupá-lo era que tudo se resolvesse a contento de todos. Por fim, olhou directamente para Quart:

- O que acha você?

Desta vez não havia desconfiança nem piada no tom. Era objectivo e tranquilo: rainha, cavalo e rei, uma consulta técnica antes de passar à acção. O seu penteado com brilhantina reflectia as luzes do rio.

Quart hesitou apenas um instante. Também não lhe agradava que o pároco passasse das mãos dos seus sequestradores para as do subcomissário Navajo, sem tempo para uma longa troca de impressões. Olhou para o Canela Fina.

- Devíamos tentar - opinou.

- Pois então vamos - disse Marcarena, decidida.

- Um momento - contrariou Quart. - Primeiro, convém saber o que lá vamos encontrar.

Gavira disse-o. De acordo com as informações de Peregil, o bando era constituído por três. Um tipo gordo, grande, cinquen-tão, era o chefe. Havia também uma mulher e um antigo pugilista. Este último podia ser perigoso.

- Conhece o barco por dentro? - perguntou Quart. Gavira disse que não, embora fosse do tipo comum para turistas:

uma coberta superior com várias filas de assentos, uma ponte à proa e um interior com meia dúzia de camarotes, sala das máquinas e uma cabina. Este, concretamente, estava há muito fora de serviço, quase abandonado. Tinha, por vezes, reparado nele enquanto tomava uns copos nas esplanadas do Arenal.

À medida que a acção ganhava contornos, os fantasmas que nas últimas horas haviam perturbado Quart afastavam-se pouco a pouco. A noite, o barco às escuras, a iminência de uma confrontação inspiravam-lhe uma expectativa quase de prazer, um pouco infantil. Era jogar de novo, recobrar os velhos gestos conhecidos, o autocontrolo. Percorrer as casas do surpreendente Jogo do Ganso que era a vida. Reconhecia, por fim, o seu território, a paisagem incerta do mundo em que se movia habitualmente; e voltava, deste modo, a ser ele mesmo. De súbito, a presença de Macarena situava-se de modo tranquilizador na ordem exacta das coisas e o templário inseguro podia recuperar a paz do bom soldado. Descobria até em Pencho Gavira - e isto era o mais singular daquela situação - um inesperado camarada de campanha, trazido pela brisa do mar e as águas do rio, que deslizava, lento e manso, a seus pés, diluindo a antipatia que antes pudera sentir e que, certamente, experimentaria no dia seguinte. Mas, ao menos por uma noite, nem todos os amigos mortos de um templário estavam mortos. E gostava que aquele, inesperado, tivesse vindo a pé, sem escolta, caminhando só sob as acácias escuras da margem do rio, em vez de se entrincheirar atrás do seu medo e de tudo o que tinha a perder, dispondo-se agora a abordar o Canela Fina sem outras palavras que não fossem as imprescindíveis.

- Vamos de uma vez - impacientou-se Macarena. Nesse momento um e outro eram-lhe indiferentes. Só tinha olhos para o barco atracado no molhe.

Gavira fitava Quart. Os seus dentes resplandeciam nas sombras da cara:

- Depois de si, padre.

Aproximaram-se, procurando não fazer ruído. A embarcação estava presa aos cabos do molhe com duas grossas amarras, uma na proa, outra na popa. Subiram silenciosamente pela passadeira até chegar a uma coberta onde se amontoavam rolos de cabos, destroçados salva-vidas, pneumáticos, mesas e cadeiras velhas. Quart guardou a carteira no bolso das calças e, despindo o casaco, colocou-o, dobrado, sobre um dos assentos. Gavira imitou-o sem uma palavra.

Percorriam a coberta superior. Por um momento julgaram ouvir um rocegar sob os pés e o molhe iluminou-se muito fracamente, como se alguém tivesse espreitado de dentro por uma das escotilhas. Quart continha a respiração, procurando pisar em silêncio, da maneira como lhe tinham ensinado os seus instrutores dos serviços especiais da polícia italiana: primeiro o calcanhar, depois a ponta do pé e por fim a planta. A tensão tamborilava-lhe nos tímpanos, de modo que procurou serenar para escutar os ruídos em redor. Chegou, assim, à ponte, onde o leme e os instrumentos estavam cobertos com capas de lona e foi apoiar-se no tabique de ferro, com o ouvido atento. Cheirava a desleixo e sujidade. Viu como Macarena e, depois, Gavira entravam atrás dele e se imobilizavam, tensos, a seu lado, as suas sombras recortadas pela luz distante dos candeeiros do Arenal. Tranquilo o banqueiro, trocando com Quart um olhar inquiridor. De sobrolho franzido, Macarena, olhando-os alternada-mente, à espera de um sinal, tão resoluta como se tivesse passado a vida inteira a assaltar barcos à meia-noite. Havia uma porta de madeira atrás da qual se escutava o som abafado de um rádio. Uma fina réstia de luz percebia-se a seus pés, na soleira da porta.

- Se surgirem complicações, um a cada homem - sussurrou Quart, apontando para o seu próprio peito e, depois, para o de Gavira, antes de indicar Macarena. - E ela encarrega-se do padre Ferro.

- E a mulher? - perguntou Gavira.

- Não sei. Se intervier, logo vemos. Na altura.

O banqueiro sugeriu que podiam, talvez, tentar a bem, falando ele em nome de Peregil. Debateram brevemente e em voz baixa a questão. O problema, concluíram, era que os sequestradores esperavam a entrega do resgate e Gavira só tinha com ele os seus cartões de crédito. Quart reflectia a toda a pressa, com os seus companheiros de aventura fitando-o, expectantes; deixavam-lhe a decisão final de clérigo a clérigo, com os riscos que implicava cada uma das opções. Lamentando pela última vez não ter recorrido à polícia, Quart tentou recordar a maneira de enfrentar este género de problemas. A bem, palavras: muita calma e muitas palavras. A mal, rapidez, surpresa, brutalidade. Em ambos os casos, nunca dar ao adversário tempo para pensar. Aturdi-lo com uma avalancha de impressões que bloqueassem a sua capacidade de reacção. E, no pior dos casos, que a Providência - ou quem estivesse de guarda nessa noite - não permitisse desgraças a lamentar.

- Vamos entrar.

"Tudo isto é grotesco", disse para consigo. Depois, tirou de cima da bitácula um tubo de aço com três palmos de comprimento e um aspecto ameaçador. "Quem com ferro mata...", murmurou intimamente. Oxalá aquilo chegasse ao fim sem que ninguém matasse ninguém. Depois encheu os pulmões, oxigenando-os meia dúzia de vezes, antes de abrir a porta. A meio caminho, perguntou a si mesmo se não devia ter feito o sinal da Cruz.

Don Ibrahim deixou cair a chávena de café em cima das calças. O cura alto tinha aparecido à porta da ponte, em mangas de camisa, com o colarinho posto e uma tranca de ferro, de aspecto ameaçador, na mão direita. Enquanto se erguia a custo, estreitando a barriga contra a borda da mesa, viu atrás outro homem moreno, com boa pinta, no qual reconheceu o banqueiro Gavira. Depois apareceu a duquesa jovem.

- Sosseguem - disse o cura alto. - Vimos conversar.

O Potro del Mantelete tinha-se levantado do beliche, em camiseta, a tatuagem legionária do ombro envernizada de suor, apoiando os pés descalços no chão. Olhava para Don Ibrahim, como perguntando-lhe se aquela visita devia ser considerada como estando dentro ou fora do programa.

- Manda-nos Peregil - anunciou o banqueiro Gavira. - Está tudo em ordem.

Se estivesse tudo em ordem, disse para consigo Don Ibrahim, eles não estariam ali, Peregil teria posto quatro milhões e meio em cima da mesa, e o cura alto não andaria com aquela tranca na mão. Alguma coisa se tinha complicado em alguma parte, e olhou por cima do ombro dos recém-chegados, esperando ver aparecer a polícia de um momento para o outro.

- Temos de falar - repetiu o cura alto.

O que tinham, pensou Don Ibrahim, era de largar dali a sete pés, ele, a Nina e o Potro. Mas a Nina estava no camarote com o cura velho e desaparecer não era assim tão fácil, entre outras coisas, porque os três intrusos estavam, precisamente, na porta de saída. Maldito fosse ele, disse para consigo. Maldita a sua pouca sorte e todos os Peregiles e todos os curas do mundo. Um assunto com sotainas pelo meio tinha de dar azar. Estava dito e ele era um imbecil.

- Há aqui um mal-entendido - disse, para ganhar tempo. No tocante a curas, o alto tinha o rosto como uma pedra, a mão crispada em torno da tranca de ferro, que condizia com o seu colarinho como condizia um Cristo com duas pistolas. Don Ibrahim apoiava-se na mesa, aturdido, com o Potro a olhar para ele como um cão à espera da ordem do dono para se lançar ao ataque ou lamber a mão. Se ao menos pudesse pôr a Nina a salvo, pensou. Que ela não se visse implicada, se aquilo desse para o torto.

Estava nesta, quando os acontecimentos decidiram por ele. A duquesa jovem não parecia nada coibida, muito pelo contrário. Olhava em redor, deitando chispas pelos olhos.

- Onde o têm? - perguntou.

Depois, sem esperar pela resposta, deu dois passos na cabina, em direcção à porta fechada do camarote. Vinha quente, a moça, disse para consigo Don Ibrahim. Mais por reflexo do que por outra coisa, o Potro pôs-se de pé, cortando-lhe a passagem. Olhava, indeciso, para o seu compadre, mas o índio estava incapaz de reagir. Então, o banqueiro Gavira aproximou-se da mulher, como para socorrê-la e o Potro, com as ideias mais claras tratando-se de um varão adulto deu-lhe um murro com a esquerda que o atirou contra o tabique. As coisas, então, complicaram-se. Como se tivesse soado o gongo em algum lugar da sua maltratada memória, o Potro ergueu os punhos, pondo-se aos saltos ao longo da cabine do barco, golpe daqui, golpe dali, disposto a defender o título de peso pluma. Com tudo isto, o banqueiro Gavira tinha batido num armário cheio de taças metálicas, que caiu com estrépito; a duquesa jovem esquivou-se a um soco da direita do Potro, quando ia, decidida, em direcção à porta do camarote onde estava fechado o pároco e Don Ibrahim pôs-se a gritar por calma, sem que ninguém fizesse caso.

A partir daí, foi um Deus nos acuda, porque a Nina Punales tinha ouvido o barulho e saiu a ver o que se passava, dando de caras com a duquesa jovem; e entretanto o banqueiro Gavira, sem dúvida para se ressarcir do soco do Potro, caía sobre Don Ibrahim com péssimas intenções. O cura alto, depois de olhar, indeciso, para a barra de ferro que tinha na mão, atirou-a ao chão, antes de retroceder uns passos para se esquivar aos golpes que o Potro continuava a lançar contra tudo o que se mexia, incluindo a sua própria sombra.

- Calma! - suplicava Don Ibrahim. - Calma!

A Nina Punales teve um ataque de histeria, empurrou a duquesa jovem e atirou-se ao banqueiro Gavira, de unhas prontas a arrancar-lhe os olhos. Com muito pouco sentido de cavalheirismo, Gavira fê-la parar em seco com uma bofetada que a mandou de volta para o camarote, numa revoada de folhos e pintinhas, mesmo aos pés da cadeira onde, manietado e de olhos vendados, o cura velho tentava voltar a cabeça para averiguar o que se estava a passar. Quanto a Don Ibrahim, a bofetada na Nina destruiu os seus anseios conciliadores, pondo-lhe um pano vermelho diante do rosto. De modo que, assumindo o inevitável, o gordo ex-falso letrado derrubou a mesa, baixou a cabeça como lhe tinham ensinado Kid Tunero e Don Ernesto Hemingway no bar Floridita de Havana e, largando um grito de combate - "Viva Zapata", disse, porque foi a primeira coisa que lhe veio à cabeça, lançou os seus cento e dez quilos contra o estômago do banqueiro, atirando-o, com o embate, para o extremo da cabina, precisamente quando o Potro assestava no cura alto um com a direita na cara e o agredido se agarrava à lâmpada para não cair no chão. Os fios eléctricos crepitaram quando os arrancou e o barco ficou às escuras.

- Nina! Potro! - gritou Don Ibrahim sufocado pelo forcejo, desfazendo-se do banqueiro Gavira.

Algo se quebrou com estrépito. Repetiam-se por toda a parte os gritos e os golpes no escuro. Alguém, sem dúvida o cura alto, caiu em cima do índio e, antes que este pudesse levantar-se, o outro deu-lhe uma cotovelada na cara que o fez ver estrelas. Raios partissem o clero e a outra face e a puta que os pariu. Sentindo pingos de sangue a cair-lhe do nariz, Don Ibrahim afastou-se de gatas, arrastando a barriga. Fazia um calor espantoso e a gordura do corpo impedia-o de respirar. Na porta recortou-se por um momento a silhueta do Potro, que continuava a disparar para a direita e para a esquerda, no seu elemento. Ouviram-se outros golpes e gritos de procedência diferente, e mais alguma coisa se partiu com ruído de estilhaços. Um sapato de salto pisou a mão de Don Ibrahim, depois um corpo caiu-lhe em cima. Imediatamente reconheceu a saia aos folhos e o cheiro a Maderas de Oriente.

- A porta, Nina!... Fecha a porta!

Levantou-se conforme pôde, puxando pela mão que encontrou às apalpadelas, deu um soco - falhando por muito - a alguém que se interpôs no seu caminho e, com a energia do desespero, conduziu a Nina para a ponte e a coberta. Subiu sem fôlego, verificando que o Potro já estava lá fora, dando saltos em volta do leme, cuja coberta de lona sacudia como se fosse um saco de boxe. Com o coração desfalecido, esgotado, certo de que estava quase a dar-lhe um enfarte de um momento para o outro, Don Ibrahim agarrou o Potro por um braço e, sem soltar a Nina da mão, conduziu-os a toda a pressa para a escada, a fim de saltarem para terra. Ali, empurrando-os à sua frente, conseguiu levá-los molhe acima. Agarrada à sua mão, aturdida, a Nina Punales soluçava. Junto dela, com a testa inclinada e respirando pelo nariz, hop, hop, o Potro del Mantelete continuava a dar murros nas sombras.

Trouxeram o padre Ferro para a coberta superior e sentaram-se com ele, maltratados e doridos, gozando o ar fresco da noite depois da escaramuça. Tinham encontrado uma lanterna e, à sua luz, Quart pôde observar a face inchada de Pencho Gavira, começando a fechar-lhe o olho direito, a cara suja de Macarena, que tinha um arranhão superficial na testa, e o aspecto desastroso do velho pároco, com a sotaina mal abotoada e a barba de quase dois dias enchendo-lhe o rosto de ásperas cerdas brancas entre as antigas cicatrizes. O próprio Quart não se achava em melhor estado: o murro que lhe dera o tipo com pinta de pugilista antes que a luz se apagasse tinha-lhe comprimido o maxilar, e o tímpano correspondente zumbia de uma forma incómoda. Tacteou, com a ponta da língua, um dente, julgando que abanava. Deus dos Céus!

Era uma estranha situação. A coberta do Canela Fina cheia de assentos destroçados, as luzes do Arenal sobre o parapeito, a torre del Oro iluminada atrás das acácias, margem abaixo. E Gavira, Macarena e ele formando um semicírculo em volta do padre Ferro, a quem não tinham ouvido soltar uma palavra, nem um queixume. Nem sequer um gesto de agradecimento. Olhava para a superfície negra do rio como se estivesse muito longe dali.

Foi Gavira quem falou primeiro. Tinha posto o casaco sobre os ombros, preciso e muito tranquilo. Sem fugir à sua responsabilidade, falou de Celestino Peregil e do modo como este tinha interpretado mal as suas instruções. Eis o motivo porque ele tinha aparecido nessa noite, tentando reparar, na medida do possível, os estragos causados. Estava disposto a oferecer ao pároco todo o tipo de satisfações, incluindo o esquartejamento de Peregil, quando conseguisse pôr-lhe a vista em cima; mas era melhor deixar bem claro que isso em nada modificava a sua atitude relativamente à igreja. Cada coisa no seu lugar, explicou. Após o que entrepôs um breve silêncio, passou os dedos pela face inchada e acendeu um cigarro.

- De modo que - acrescentou, após alguns instantes de reflexão - volto a ficar à margem deste assunto.

E não voltou a abrir a boca para coisa alguma. Foi Macarena quem falou em seguida, fazendo um relato minucioso do que tinha acontecido na ausência do pároco, o qual a escutou sem dar mostras de emoção, nem mesmo quando ela mencionou a morte de Honorato Bonafé e as suspeitas da polícia. O que conduzia o assunto a Lorenzo Quart. O padre Ferro tinha-se agora voltado para ele, e fitava-o.

- O problema - disse Quart - é que não tem um álibi.

A luz da lanterna, os olhos do pároco pareciam mais escuros e herméticos:

- Porque havia eu de precisar de um álibi? - perguntou.

- Bem - inclinava-se para ele, com os cotovelos sobre os joelhos. - Há um horário crítico, por assim dizer, na morte de Bonafé: das sete ou sete e meia da tarde até às nove, aproximadamente. Depende da hora a que fechou a igreja... Se tivesse testemunhas do que esteve a fazer durante todo esse tempo, seria estupendo.

Era um cabeça dura o pároco, pensou uma vez mais, enquanto aguardava a resposta. Aquele cabelo branco mal cortado, o nariz largo, a cara marcada, como talhada a martelo. A luz da lanterna acentuava esta aparência.

- Não há testemunhas de nada - disse.

Parecia indiferente ao que isso significava. Quart trocou um olhar com Gavira, que permanecia em silêncio, depois suspirou, desanimado:

- Complica-nos a situação. Macarena e eu podemos garantir que foi à Casa do Postigo por volta das onze e que a sua atitude estava, evidentemente, fora de qualquer suspeita. Gris Marsala, por seu lado, provará que, até às sete e meia, tudo decorreu com normalidade... Suponho que a primeira coisa que a polícia lhe vai perguntar é como foi que não viu Bonafé no confessionário. Mas não chegou a entrar na igreja, pois não?... É a explicação mais lógica. E suponho que o advogado que vamos pôr à sua disposição lhe pedirá que confirme este ponto.

- Porque haveria eu de fazê-lo?

Quart fitou-o, irritado com a evidência de tudo aquilo:

- Que quer que lhe diga? É a única versão credível. Será mais difícil defender a sua inocência se lhes contar que fechou a igreja sabendo que havia um morto lá dentro.

Don Príamo Ferro manteve-se inexpressivo, como se não fosse nada com ele. Quart, então, recordou-lhe asperamente que já lá ia o tempo em que as autoridades aceitavam a palavra de um sacerdote como artigo de fé e muito menos quando lhe apareciam cadáveres no confessionário. O pároco, porém, não prestava atenção às suas palavras, limitando-se a dirigir a Macarena longos e silenciosos olhares. Depois ficou calado outro instante, de novo sumido na contemplação do rio:

- Diga-me uma coisa... O que convém a Roma?

Era a última coisa que Quart esperava ouvir. Remexeu-se no assento, impaciente.

- Esqueça Roma - disse com mau-humor. - O senhor não é assim tão importante. De todas as formas haverá um escândalo. Imagine: um sacerdote suspeito de assassínio e na sua própria igreja.

Se o imaginava, não disse. Tinha levado a mão ao rosto, coçando a barba. Por alguma estranha razão, parecia expectante. Quase divertido.

- Bom - assentiu por fim. - Parece que o sucedido convém a toda a gente. Você livra-se da igreja - disse a Gavira, que guardou silêncio - e vocês - a Quart - livram-se de mim.

Macarena ergueu-se, com uma exclamação de protesto.

- Não diga isso, Don Príamo. Há pessoas que precisam da igreja e que precisam do senhor. Eu preciso. A duquesa também - olhou para o marido, desafiadora. - E amanhã é quinta-feira, não se esqueça.

Por um momento, o duro perfil do padre Ferro pareceu adoçar-se um pouco.

- Não esqueço - disse. - De novo a lanterna desenhava o relevo da pele talhada a buril. - Mas há coisas que não estão nas minhas mãos... Diga-me, padre Quart: acredita na minha inocência?

- Eu sim - disse Macarena e as suas palavras soaram como uma súplica. Mas os olhos do pároco continuavam pregados em Quart.

- Não sei - respondeu este. - Na verdade, não sei. Embora o que eu acredite ou deixe de acreditar não interesse. O senhor é um clérigo; um companheiro. O meu dever é ajudá-lo tanto quanto puder.

Don Príamo Ferro olhou para Quart de um modo singular, como nunca antes o fizera. Um olhar por uma vez desprovido de dureza. Agradecido, talvez. O queixo do ancião tremeu um instante, como se fosse proferir palavras que resistiam nos seus lábios. De súbito, pestanejou, cerrando os dentes, tudo aquilo se desvaneceu imediatamente do seu rosto, para apenas deixar o pequeno e desabrido pároco, que passeou em redor um olhar hostil, antes de o fixar de novo em Quart:

- Você não me pode ajudar - disse. - Ninguém o pode fazer... Eu não preciso de álibis, porque, quando fechei a porta da sacristia, esse homem estava morto dentro do confessionário.

Quart fechou os olhos um segundo. Aquilo não lhe deixava saída.

- Como pode estar certo disso? - perguntou, embora soubesse a resposta.

- Porque o matei.

Macarena virou-se bruscamente, contendo um gemido e agarrou-se à balaustrada sobre o rio. Pencho Gavira acendeu outro cigarro. Quanto ao padre Ferro, pusera-se de pé, abotoando com os dedos torpes as casas da sotaina.

- E agora - disse a Quart - é melhor entregar-me à polícia.

A Lua deslizava lentamente sobre o Guadalquivir, ao encontro da torre del Oro, que se reflectia ao longe, na corrente. Sentado na margem, com os pés pendurados a pouca distância da água, Don Ibrahim inclinava a cabeça, abatido, estancando com o lenço o sangue que lhe pingava do nariz. Tinha a fralda da camisa de fora, descobrindo a grossa barriga manchada de café e óleo do barco. Tombado junto dele, de bruços como se lhe tivessem contado até dez e não quisesse saber, o Potro del Mantelete contemplava também a água negra, silencioso, franzindo o sobrolho; perdido em longínquos sonhos de praças de touros e tardes de glória, de aplausos sob os focos, na lona de um ringue. Imóvel como um lebréu cansado e fiel que aguardasse junto do dono.

E dizem-te os madrugadores: por que esperas, Maria Paz...

Ao pé da escadaria de pedra que descia até ao rio, a Nina Punales molhava a ponta do vestido entre os juncos da margem e passava-a pelas têmporas, cantarolando uma copla baixinho. Soava tranquila no rumor da água a sua voz rouca de manzanilla e derrota. E as luzes de Triana piscavam do outro lado, enquanto a brisa vinda de Sanlúcar e do mar, e - diziam - da América, encrespava um pouco o rio, para aliviar as penas dos três compadres:

... Quem te fez jura de amores é já soldado doutra bandeira.

Don Ibrahim levou maquinalmente a mão ao peito, para depois a largar no regaço. Tinha deixado para trás, no Canela Fina, o relógio de Don Ernesto Hemingway, o isqueiro de Garcia Már-quez, o panamá e os charutos. E, com os últimos laivos de dignidade e vergonha, os nunca vistos quatro milhões e meio para montarem um tablado à Nina. Fizera muitos negócios ruinosos na vida, mas nenhum como aquele.

Suspirou muito fundo, uma e outra vez e, apoiando-se no ombro do Potro, pôs-se torpemente de pé. A Nina Punales saía já do rio, recolhendo, graciosa, a saia húmida às pintas e folhos e, à luz dos candeeiros do Arenal, o ex-falso letrado contemplou com ternura o caracolinho desfeito na testa, as farripas do totó desgrenhadas nas fontes, o rimel escorrido dos olhos e aquela boca murcha onde desaparecera o carmim. O Potro levantava-se também, com a sua camiseta branca com suspensórios e chegou até Don Ibrahim o seu cheiro a suor masculino e honrado. E então, dissimulada nas trevas, pela face do índio - ainda chamuscada pela garrafa de Anis de Mono - correu uma lágrima redonda, grossa, que ficou suspensa no queixo, onde começava já a azular a barba de tão infausta noite. Mas estavam os três a salvo e aquilo era Sevilha. E, no domingo, toureava Curro Rornero na Maestranza. E Triana erguia-se, iluminada do outro lado do rio, como um refúgio, guardada qual sentinela impassível pelo perfil de bronze de Juan Belmonte. E havia onze bares em trezentos metros, no Altozano. E a sabedoria, o tempo que passa e a pedra imutável aguardavam no fundo de garrafas de vidro negro e loira manzanilla. E algures uma guitarra arranhava, impaciente, à espera da voz que lhe cantasse uma copla. Um dia, Don Ibrahim, o Potro, a Nina, o Rei de Espanha e o Papa de Roma, todos eles estariam mortos. Mas aquela cidade continuaria ali, onde sempre estivera, cheirando a flor de laranjeira e laranjas amargas, a dama-de-noite e a jasmim na Primavera. Mirando-se no rio por onde tinham chegado e haviam desaparecido tantas coisas boas e más, tantos sonhos e tantas vidas:

 

               Paraste o cavalo,

               eu lume de ti

               e foram dois verdes

               luzeiros de Maio

               teus olhos pra mim...

 

Cantou a Nina. E como se o canto fosse um sinal, um rufar de tambor ao longe ou um suspiro atrás de uma grade, os três compadres puseram-se em marcha, lado a lado, sem olhar para trás. E a lua seguiu-os silenciosamente ao longo da água do rio, até que se afastaram por entre as sombras, deixando apenas para trás, muito baixinho, o eco da última copla da Nina Punales.

 

                               A MISSA DAS OITO

Há pessoas - entre as quais eu me incluo - que detestam os finais felizes.

       (Vladimir Nabokov, Pnin)

 

Atrás do seu tabique de vidro blindado, o polícia de plantão fitava com curiosidade o fato negro e o colarinho de Lorenzo Quart. Passado um momento, largou o seu posto diante dos quatro monitores do circuito fechado que vigiava o exterior do Comissariado da Polícia e trouxe-lhe uma chávena de café. Quart agradeceu, reconfortado com o líquido quente, vendo afastarem-se as costas com algemas e dois carregadores de balas junto da culatra da pistola. Os passos do guarda, depois a porta da guarita a fechar-se, ressoaram no silêncio do vestíbulo, que era frio, luminoso e branco, de um asseio obsessivo. A luz de néon dava um tom asséptico, de hospital, ao mármore do pavimento e à escada com corrimão em aço inoxidável. Na parede, junto da porta fechada, um relógio digital marcava, vermelho sobre negro, as três e meia da madrugada.

Estava ali há quase duas horas. Ao desembarcar do Canela Fina, Pencho Gavira fora directamente para casa, depois de trocar umas palavras com Macarena e de estender a Quart a mão, que este apertou em silêncio. "Estamos em paz, padre". Disse-o sem sorrir, olhando-o fixamente antes de rodar sobre os calcanhares e se afastar, com o casaco sobre os ombros, a caminho da escadaria que conduzia ao Arenal. Era impossível saber se se referia ao caso do pároco ou a Macarena. Fosse como fosse, aquele gesto desportivo saía muito barato ao banqueiro. Atenuada a sua responsabilidade no sequestro graças à intervenção de última hora, seguro de que nem Macarena nem Quart iriam causar-lhe problemas, apenas inquieto com a sorte do seu assistente e o dinheiro do resgate, Gavira tivera o cuidado de não fazer alarde da posição em que os acontecimentos o deixavam relativamente a Nossa Senhora das Lágrimas. Depois da confissão do padre Ferro, o vice-presidente do Banco Cartujano era, sem dúvida, o grande triunfador da noite. Tornava-se difícil imaginar que alguém tropeçasse ainda no seu caminho.

Quanto a Macarena, parecia mover-se à beira de um pesadelo. Na coberta do Canela Fina, virada para o rio, Quart vira os seus ombros estremecer enquanto dizia adeus, entre lágrimas, ao sonho que se afundava nas águas negras, a seus pés. E não pronunciou nem mais uma palavra. Depois de terem conduzido o pároco ao Comissariado da Polícia, Quart acompanhou-a a casa, de táxi, mas nem então Macarena disse o que quer que fosse. Deixou-a, sentada no pátio, junto à fonte de azulejos, às escuras e, quando murmurou uma indecisa despedida antes de partir, ela contemplava a torre apagada do pombal. No rectângulo de céu negro, a noite continuava a parecer um cenário de teatro com pontinhos luminosos pintados sobre a Casa do Postigo.

Uma porta bateu, ouviram-se vozes e passos no extremo do vestíbulo branco e Quart manteve-se alerta, com a chávena de café ainda na mão. Mas ninguém apareceu e ao cabo de um momento era outra vez apenas o silêncio sob o néon e a imagem estática, a preto e branco, da rua deformada pela objectiva grande angular nos monitores do polícia. Quart ergueu-se, dando uns passos sem rumo, e, quando se encontrou diante do painel de vidro blindado, o agente sorriu-lhe com uma simpatia embaraçosa. Compôs um sorriso idêntico e assomou à porta da rua. Havia ali outro guarda, com um colete à prova de bala azul-escuro e uma autometralhadora pendurada ao ombro, passeando, aborrecido, sob as grandes palmeiras da entrada. O Comissariado estava situado na parte moderna da cidade e, no cruzamento das ruas, desertas àquela hora, os semáforos iam lentamente do vermelho ao verde, do verde ao amarelo.

Esforçava-se por não pensar. Quer dizer, reflectia apenas sobre as circunstâncias técnicas do caso. A nova situação do padre Ferro, os aspectos judiciais, os relatórios que deviam mandar para Roma mal amanhecesse... E procurava que tudo o mais - sensações, incertezas, intuições - não tomasse conta dele, roubando-lhe a serenidade necessária ao seu trabalho. Atrás do ténue limite de tudo aquilo, à espreita do menor resquício para dominarem a situação, os seus velhos fantasmas lutavam para se unir aos novos; com a diferença de que, desta vez, o sacerdote Lorenzo Quart sentia o rufar na própria pele. Era fácil ficar à margem quando alguma coisa - ainda que fosse apenas uma certa ideia de nós mesmos - se entrepunha entre a acção e as suas consequências, mas o mesmo já não acontecia tratando-se de manter o pulso firme quando se escutava a respiração da vítima. Ou quando se reconhecia nela o seu alter-ego e os conceitos do bem e do mal, do justo e do inconveniente, esfumavam os seus contornos naquela terrível certeza.

Contemplou-se um longo momento no reflexo escuro do vidro da porta. O cabelo grisalho, muito curto, de quem noutros tempos havia sido um bom soldado. O rosto delgado a precisar de uma navalha e espuma da barba. O colarinho preto e branco que já não podia mantê-lo a salvo de nada. Era um longo caminho para se encontrar de novo no dique batido pela chuva, com as gotas de água caindo na mão fria, tão desamparada como a do menino que se agarrava a ela. Como os braços que desciam da Cruz um Cristo de vidro inexistente, reduzido a um vazio contornado a chumbo na janela que Gris Marsala se obstinava em recompor.

Uma porta abriu-se do outro lado do vestíbulo e o som de vozes chegou até Quart. Ao virar-se, viu que Simeón Navajo vinha ao seu encontro; a sua camisa vermelha garibaldina era uma pincelada de cor na asséptica brancura do vestíbulo. De modo que devolveu a chávena vazia ao guarda da guarita e foi ao seu encontro. O subcomissário enxugava as mãos a uma toalha de papel. Acabava de sair dos lavabos e o cabelo húmido estava esticado para trás, acabado de prender na nuca num rabo-de-cavalo. Círculos de fadiga marcavam-lhe os olhos e os óculos redondos escorregavam-lhe para a ponta do nariz.

- Já está - disse, atirando a toalha para um cesto de papéis. - Acaba de assinar a sua confissão.

- Afirma que matou Bonafé?

- Sim - Navajo encolhia os ombros, como que desculpando-se por aquilo. "São coisas que acontecem", dizia o gesto; "nenhum de nós tem culpa". - E, quando interrogado acerca das outras duas mortes, coisa que fizemos por mera formalidade, não afirma nem nega. É uma maçada, porque constituíam casos encerrados, e agora obriga-nos a reabrir a investigação...

Meteu as mãos nos bolsos, deu uns passos em direcção à porta e deteve-se, olhando as luzes da rua deserta.

- A verdade - acrescentou - é que o seu colega não é muito comunicativo. Limitou-se a responder sim, não, quase todo o tempo, ou a guardar silêncio, como lhe aconselhava o advogado.

- Só isso?

- Só isso. Nem sequer quando fizemos a acareação com a Senhora, Menina... Irmã Marsala, ou lá como se diz, o vi pestanejar.

Quart olhou em direcção à porta:

- Ela continua lá dentro?

- Sim, está a assinar as últimas declarações, com esse advogado que você trouxe. Daqui a pouco poderá ir para casa.

- Referenda a confissão de Don Príamo? Navajo fez um trejeito:

- Muito pelo contrário. Insiste em não acreditar. O pároco é incapaz de matar quem quer que seja, assegura.

- E o que responde ele?

- Nada. Olha para ela e não diz nada.

Voltou a abrir-se a porta no extremo do vestíbulo e Arce, o advogado, veio ao encontro deles. Era um indivíduo de aspecto agradável, vestido de escuro e com uma insígnia colegial em ouro na lapela. Havia anos que se ocupava de assuntos jurídicos da Igreja e tinha merecida fama de especialista em todo o tipo de situações irregulares, incluindo esta. Quanto a honorários, cobrava uma fortuna.

- E ela? - perguntou Navajo.

- Acaba de assinar a sua declaração - disse Arce. - E pediu dois minutos com o padre Ferro, para se despedir. Os seus colegas não vêem inconveniente, de modo que os deixei a falar um pouco. Sob vigilância, claro está.

Desconfiado, o subcomissário olhou para Quart, depois para o advogado.

- Pois já passa de dois minutos - observou. - De forma que é melhor levarem-na.

- Vão conduzir o pároco à cadeia? - perguntou Quart.

- Esta noite dormirá na enfermaria - Arce indicava com um gesto que a deferência se devia ao subcomissário. - Até que amanhã o juiz decida.

Abriu-se de novo a porta e Gris Marsala veio até eles, acompanhada de um agente que trazia na mão umas folhas dactilografadas. A freira tinha um ar abatido, muito cansado. Continuava com as mesmas calças de ganga e sapatilhas que usava na igreja e vestia um blusão sobre o pólo azul. À luz branca e crua do vestíbulo, parecia ainda mais desamparada do que de manhã.

- Que disse? - perguntou-lhe Quart.

Ela levou uma eternidade até se voltar para o sacerdote, como se tivesse dificuldade em reconhecê-lo.

- Nada - as palavras saíram-lhe lentamente, inexpressivas. Abanava a cabeça de um lado para o outro, desesperada. - Diz que o matou, depois cala-se.

- E você acredita?

Em algum lugar do edifício, abafada e distante, ouviu-se uma porta fechar. Gris Marsala olhou para Quart, sem responder. Os seus olhos claros reflectiam um infinito desprezo.

Quando o advogado Arce saiu, de táxi, com a freira, Siméon Navajo pareceu descontrair-se, aliviado. "Detesto estes fulanos", confiou a Quart em voz baixa. "Com os seus truques, os seus babeas corpus e tudo o mais. São uma peste, pater; e este seu tem mais conchas que as Ilhas Galápagos." Depois deste desabafo, o subcomissário passou os olhos pelas folhas que trouxera o outro polícia, antes de as passar ao sacerdote:

- Aqui tem uma cópia da declaração. Não é muito regular, por isso faça-me o favor de não a arejar demasiado por aí. Mas você e eu... - Navajo esboçou um sorriso. - Bom. Teria gostado de ajudar mais neste assunto.

Quart fitou-o, agradecido:

- Já o fez.

- Não me refiro a isso. Quero dizer que um sacerdote detido por assassínio... - Navajo tocou no rabicho, incomodado. - Está a perceber. Não é coisa que nos faça sentir satisfeitos com o nosso trabalho.

Quart folheava as páginas fotocopiadas, escritas em linguagem oficial. Em Sevilha, aos tantos de tantos, comparece Don Príamo Ferro Ordás, natural de Tormos, província de Huesca. Ao fundo da última estava a assinatura do pároco: um traço torpe, quase um garatujo.

- Conte-me como o fez. Navajo assinalou as diligências.

- Está aí tudo. O resto podemos deduzi-lo das suas respostas afirmativas às nossas perguntas, ou do que se negou a responder. Segundo parece, Honorato Bonafé estava na igreja por volta das oito, oito e meia. Tinha, provavelmente, entrado pela porta da sacristia. O padre Ferro foi à igreja fazer a sua ronda antes de fechar e estava lá o outro.

- Andava a chantagear toda a gente - referiu Quart.

- Se calhar foi isso. Combinação prévia ou casualidade, o facto é que o pároco diz que o matou e ponto. Sem mais pormenores. Apenas acrescenta que fechou depois a porta da sacristia, deixando-o lá dentro.

- No confessionário? Navajo abanou a cabeça:

- Não se pronuncia. Mas os meus homens reconstituíram o que se passou. Bonafé estaria no cimo do andaime do altar-mor, junto da imagem da Virgem. Segundo todos os indícios, o pároco subiu também - acompanhava o relato com os seus habituais gestos de mãos, dois dedos caminhando para cima como a treparem o andaime, depois outros dois aproximando-se. - Discutiram, lutaram, ou lá o que foi. O facto é que Bonafé caiu, ou foi empurrado, de uma altura de cinco metros - Navajo enlaçou dois dedos num instante, depois imitou a queda de um dos contendentes. - A ferida na mão, fê-la ao tentar agarrar-se a um rebite do andaime. No chão, rebentado, mas ainda vivo, arrastou-se uns metros, levantando-se depois - Quart seguia, quase angustiado, o lento arrastar dos dedos do polícia. - Mas não conseguia andar, e o mais próximo que encontrou foi o confessionário. De forma que se atirou lá para dentro e ali morreu.

Os dedos que representavam Bonafé jaziam, agora, imóveis, sobre a palma da outra mão, que oficiava como improvisado confessionário. Graças à mímica de Navajo, Quart podia imaginar a cena sem esforço; e, apesar disso, continuavam a aturdi-lo todas as conjunções adversativas que tinha aprendido em pequeno, na escola: mas, porém, todavia, contudo.

- Don Príamo confirma-o?

Navajo fez cara de aborrecido. Teria sido bom de mais. Era pedir muito.

- Não. Cala-se apenas - tirou os óculos, para os observar contra a luz de néon, como se a limpeza das lentes lhe inspirasse suspeitas profissionais. - Diz que foi ele e cala-se.

- Esta história não tem pés nem cabeça.

O subcomissário aguentou o olhar céptico de Quart sem pestanejar, num silêncio de mera cortesia.

- Não estou de acordo - disse, por fim. - Como clérigo, é possível que prefira outros indícios, ou circunstâncias. Imagino que seja o lado moral do facto que o repugne e compreendo. Mas coloque-se no meu lugar - pôs os óculos. - Sou polícia, e as minhas dúvidas são mínimas: tenho um relatório do legista e um homem, sacerdote ou não, no pleno uso das suas faculdades mentais, confessa ter matado. Como dizemos aqui: líquido branco e engarrafado, com uma vaca na etiqueta, só pode ser leite. Pasteurizado, desnatado ou leite creme, como gostar, mas leite.

- Bom. Você sabe que ele o fez. Mas eu preciso de saber como e por que motivo o fez.

- Bem, pater. Afinal o assunto é seu. Embora nesse aspecto talvez eu possa fornecer-lhe mais algum pormenor. Lembra-se que Bonafé estava em cima do andaime do altar-mor, quando o pároco o surpreendeu? - tirou do bolso das calças um saquinho de plástico com uma pequena bola nacarada lá dentro. - Pois veja o que encontrámos no cadáver.

- Parece uma pérola.

- É uma pérola - confirmou Navajo. - Uma das vinte que a imagem da Virgem tem encastoadas no rosto, no manto e na coroa. E Bonafé tinha-a no bolso do casaco.

Quart olhava para o saquinho de plástico, desconcertado:

- E?

- Pois é falsa. Como as outras dezanove.

No seu gabinete, rodeado de mesas desertas, o subcomissário forneceu a Quart o resto dos pormenores, enquanto lhe servia outro café e ele despachava uma garrafa de cerveja. Tinha passado a tarde inteira e parte da noite a realizar as necessárias averiguações, mas podia estabelecer-se com segurança que alguém havia substituído, meses antes, as pérolas da imagem por outras vinte idênticas, de imitação. Navajo deu a ler ao confuso Quart os relatórios e faxes correspondentes. O seu amigo, inspector-chefe Feijoo, trabalhara até à última hora em Madrid para seguir a pista das pérolas. Ainda não estava determinado com exactidão, mas os indícios apontavam uma vez mais para Francisco Montegrifo, o marchand madrileno que já havia sido contactado pelo padre Ferro aquando da venda irregular do retábulo de Cillas, dez anos antes. E Montegrifo pusera em circulação as pérolas do capitão Xaloc. A descrição, pelo menos, coincidia com um lote detectado nas mãos de um perito, um joalheiro catalão confidente da polícia, especialista em branquear material adquirido de modo ilegal. Evidentemente, não era possível provar nada contra Montegrifo no tocante à sua suposta mediação, mas os indícios eram mais que razoáveis. Quanto ao dinheiro obtido, a data que o confidente fornecia coincidia com um recomeço das obras na igreja, durante o qual se havia adquirido material de alvenaria e se tinham chegado a alugar máquinas. Fornecedores contactados pelos homens do comissário Navajo afirmavam que o custo das entregas era superior às possibilidades do soldo do pároco e à caixa das esmolas da igreja.

- De modo que temos um móbil - concluiu Navajo. - Bonafé anda na pista, vai à igreja e confirma que as pérolas são falsas... Tenta chantagear o pároco, ou então este nem sequer lhe dá tempo - as mãos do subcomissário voltaram a representar a cena, desta vez sobre o tampo da mesa, com o tabuleiro para papéis fazendo as vezes de andaime. - Surpreende-o, talvez, em plena acção e mata-o. Depois fecha à chave a porta da sacristia, e passa duas horas na torre da Casa do Postigo, reflectindo. Em seguida desaparece um dia inteiro.

Depois da última frase, o polícia ficou a olhar para o seu interlocutor, inquiridor, animando-o a completar as lacunas do relato. Pareceu decepcionado quando viu que Quart não dizia nada.

- Claro - prosseguiu de má vontade - que o padre Ferro não quis contar nada acerca do seu desaparecimento. Estranho, não é?... - deslizava agora um olhar magoado por cima dos óculos. - Também neste aspecto, pater, se me permite que lhe diga, não me ajudou muito.

Como em busca de consolo, aproximou-se, na cadeira, do pequeno frigorífico que tinha atrás, tirou outra garrafa de cerveja e um pedaço de pão com presunto embrulhado em papel de alumínio, perguntou a Quart se gostava e pôs-se a devorá-lo com ferocidade, enquanto o sacerdote perguntava a si mesmo onde metia o pequeno subcomissário toda aquela comida e toda aquela cerveja.

- Prefiro calar-me a mentir-lhe - disse Quart, enquanto o outro mastigava. - Comprometeria pessoas que nada têm que ver. Mais tarde, talvez, quando tudo estiver terminado... Mas conte com a minha palavra de sacerdote: nada disto afecta directamente o caso.

Navajo deu uma mordidela no pão, acompanhando-a de um trago da garrafa e observou Quart, pensativo:

- Segredo de confissão, não é?

- Poderíamos considerá-lo assim.

- Bem - outra mordidela. - Não tenho outro remédio senão acreditar em si, pater. Além disso, recebi instruções dos meus chefes no sentido, e cito literalmente, de ser extremamente discreto neste assunto - esboçou meio sorriso, com a boca cheia, invejando as influências profissionais de Quart. - Embora deva dizer-lhe que, enquanto resolve o imediato, tenciono ocupar-me dos aspectos obscuros do caso, ainda que a título pessoal... Sou um polícia terrivelmente curioso, se me permite a expressão - por um momento, o olhar do subcomissário tornou-se sério, por detrás das lentes dos óculos. - E não gosto que me enganem.

Fez uma bola com o invólucro do presunto e atirou-a para o cesto dos papéis.

- De todas as maneiras, não esqueço que continuo em dívida para consigo - ergueu, de súbito, um dedo. Acabava de recordar-se de alguma coisa. - Claro. Acaba de entrar no Hospital Rainha Sofia um homem num estado lamentável. Foi encontrado debaixo da ponte de Triana, ainda há pouco - Navajo perscrutava, agora, Quart com toda a atenção. - E um detective privado de baixa categoria, que, segundo me contam, escolta Pencho Gavira, o marido, ou lá o que é, da Senhora Bruner filha. Que noite de coincidências, não foi?... Imagino que também não saiba de nada.

Quart sustentava o olhar do polícia, impassível:

- Também não.

Navajo limpava os dentes com a unha.

- Já supunha - disse. - E não sabe como me alegro, porque o indivíduo está feito num Cristo: dois braços partidos, mais o maxilar. Levou meia hora a conseguir articular duas palavras, imagine. E, quando o fez, foi para dizer que tinha caído da escada.

Não havia muito mais o que dizer. Como Quart era o único representante eclesiástico que tinha à mão, Navajo entregou-lhe alguns documentos oficiais, com o jogo de chaves da igreja e da casa paroquial. Fê-lo também assinar uma breve declaração sobre o carácter voluntário da entrega do padre Ferro.

- Nenhum outro clérigo, à parte o senhor, compareceu aqui. Tivemos esta tarde um telefonema do arcebispo, mas foi para lavar daqui as mãos com muita arte - o polícia fez uma careta. - Ah! E também para pedir que mantenhamos os jornalistas afastados do assunto.

Atirou, depois, a garrafa vazia para o cesto dos papéis, articulou um descomunal bocejo e, tendo olhado para o relógio, insinuou o seu desejo de ir dormir. Quart pediu para ver o pároco pela última vez e Navajo, depois de considerar a questão por um momento, declarou que não havia inconveniente, se o interessado autorizasse. Foi tratar do caso e, ao fazê-lo, deixou a pérola falsa dentro do saquinho de plástico, em cima da mesa.

Quart observou-a sem lhe tocar, ao mesmo tempo que pensava em Honorato Bonafé com aquilo no bolso. Era grande, descascada a capa brilhante do lado onde estivera colada ao alvéolo da imagem. Para o assassino, fosse ele quem fosse - o padre Ferro, a própria igreja, qualquer um dos personagens que se moviam em torno dela - a pérola ganhava, uma vez fora do lugar onde estivera engastada, o carácter de objecto mortal. Bonafé tinha andado a passear sem saber no próprio fio do mistério: algo que transcendia os limites policiais do caso. Não profanareis a casa de meu Pai. Não ameaceis o refúgio dos que buscam consolo. A partir daí, a moral convencional era inadequada para considerar os factos. Havia que ir mais longe, até às trevas exteriores, aos inóspitos caminhos por onde o pequeno e duro pároco transitava há anos, carregando sobre os seus ombros cansados o peso desolador, excessivo, de um céu desprovido de sentimentos. Disposto a dar paz, abrigo, misericórdia. Disposto a perdoar os pecados e mesmo - como naquela noite - a carregar com eles.

Não era tão grande o mistério, ao fim e ao cabo. E Quart esboçou um sorriso lentíssimo e triste, os olhos fixos na pérola falsa de Nossa Senhora das Lágrimas, enquanto tudo à sua volta se punha a girar lentamente, com a abóbada negra que todas as noites perscrutava o padre Ferro na mais assustadora das certezas. E tudo se revelou a Quart incrivelmente simples, vendo-o encaixar-se de maneira perfeita: a pérola, a igreja, aquela cidade, o ponto no espaço e no tempo em que tudo se situava. Personagens reflectidos no rio largo, velho e sábio, a caminho de um mar imenso, imutável; um mar que continuaria a bater em praias desertas, ruínas, portos abandonados, barcos oxidados com amarras imóveis, quando, muito tempo depois, todos eles tivessem desaparecido.

Era tão breve o espaço, tão precário o refúgio, tão frágil o consolo, que não se tornava difícil compreender quem desembainhava a espada de Josué para travar a batalha que a tudo dava sentido, ou quem carregava a cruz com os pecados dos outros. Eram as duas faces da mesma moeda: o único heroísmo possível, o valor lúcido desprovido de bandeiras e de vitória. Peões solitários no extremo do tabuleiro, esforçando-se por terminar o seu jogo com dignidade, mesmo ultrapassados pela derrota, como batalhões de infantaria cujo fogo se extinguisse pouco a pouco num vale inundado de inimigos e de sombras. Esta é a minha casa, aqui estou e aqui morro. E, no centro de cada casa, um cansado rufar de tambor.

- Quando quiser, pater - anunciou Navajo, assomando à porta.

Era isso. Era exactamente isso e não interessava quem tinha empurrado Honorato Bonafé do cimo do andaime. Quart estendeu a mão até tocar no invólucro da pérola. E, deste modo, olhando a lágrima falsa de Nossa Senhora, o soldado perdido na ladeira da colina de Hattin reconheceu, ao longe, a voz rouca e o fragor do ferro doutro irmão, travando o seu combate naquela esquina do tabuleiro. Já não havia mãos amigas que depois sepultassem em criptas heróicas, iluminadas por luz dourada de seteiras, entre estátuas jazentes de cavaleiros, de guantes postos e um leão aos pés. O sol ia agora no zénite e as ossadas de homens e corcéis estendiam-se sob a colina, pasto de chacais e abutres. De modo que, arrastando a espada, suado sob a cota de malha, o guerreiro cansado ergueu-se e seguiu Siméon Navajo no corredor longo e branco. E ali, no extremo, numa pequena sala com um guarda à porta, o padre Ferro estava sentado numa cadeira, sem sotaina, com umas calças cinzentas sob as quais assomavam os seus velhos sapatos por engraxar e uma camisa branca abotoada até ao pescoço. Tinham tido a consideração de não o algemar mas, mesmo assim, parecia muito pequeno e desamparado, o hirsuto cabelo branco mal tosquiado, a barba de quase dois dias entre marcas, rugas e cicatrizes. Os seus olhos escuros, avermelhados nos cantos, observaram o recém-chegado, impassíveis. Quart dirigiu-se então a ele e, enquanto o subcomissário e o guarda o olhavam, atónitos, da porta, ajoelhou-se diante do velho sacerdote.

- Absolva-me, padre, porque pequei.

Eram as suas desculpas, o seu respeito, a sua contrição e precisava de testemunhá-lo publicamente. Por um instante, o assombro comoveu o olhar do pároco. Esteve assim, quieto, sem apartar os olhos do homem que esperava, ajoelhado e imóvel diante dele. Por fim ergueu a mão lentamente e traçou o sinal da Cruz sobre a cabeça de Lorenzo Quart. Havia nos olhos do ancião um brilho húmido de reconhecimento; tremiam-lhe o queixo e os lábios enquanto proferia, em silêncio, sem palavras, a antiga fórmula do consolo e da esperança. E, com ela, sorriram por fim aliviados, todos os fantasmas e todos os amigos mortos do templário.

Deixou para trás as três palmeiras e cruzou a praça deserta, entre os semáforos que passavam do verde ao vermelho e do vermelho ao amarelo. Seguiu, depois, em linha recta pela avenida em direcção à ponte de San Telmo, na solidão e no silêncio perfeitos da madrugada. Viu a luz de um táxi livre na paragem, mas seguiu em frente; precisava de andar. Fê-lo, pois, ao mesmo tempo que os faróis alongavam e encurtavam a sua sombra no passeio. À medida que se aproximava do Guadalquivir, a humidade tornava-se mais intensa e, pela primeira vez desde que estava em Sevilha, teve frio. Levantou a gola do casaco. Perto da ponte, sem luzes nem turistas que a admirassem àquela hora, a torre almóade fundia-se com a escuridão, ensimesmada no seu tempo perdido.

Atravessou a ponte. Os repuxos da fonte da Puerta de Jerez estavam secos, quando passou junto à fachada de ladrilho e azulejos do Hotel Afonso XIII. Seguiu a base da muralha dos Reais Alcazares e, no pátio de bandeiras, dois varredores municipais afastaram à sua passagem o jacto de água de uma brilhante agulheta de cobre. Aspirou o ar aromatizado de laranjeiras e terra húmida a caminho do Arco da Judiaria, depois pelas ruas estreitas de Santa Cruz, precedido pelo eco dos seus passos sob os candeeiros de luz indecisa. Ignorava quanto tinha andado, mas o certo era que a caminhada o levara muito longe, fora do tempo; a um lugar impreciso onde, a meio de um sonho, se viu subitamente no centro de uma pequena praceta, entre casas pintadas de almagre e cal branca, que a escuridão iluminava como se fosse dia. Uma praça com grades, vasos com gerânios, e bancos de azulejos com cenas do Quijote. E, ao fundo, entre andaimes que escoravam o seu decrépito campanário, guardada por uma Virgem sem cabeça que as trevas mantinham semi-oculta no seu nicho, erguia-se, velha de três séculos e da memória longa dos homens que debaixo do seu tecto se haviam abrigado, a igreja de Nossa Senhora das Lágrimas.

Foi sentar-se num dos bancos e esteve a contemplá-la dali, imóvel, durante muito tempo. As badaladas sucediam-se no relógio da torre próxima, e de cada vez os andorinhões e as pombas esvoaçavam, inquietos, arrancados ao sonho, para de novo voltarem a pousar no resguardo dos beirais. Já não havia lua no céu. As estrelas continuavam lá em cima, cintilando, geladas e, ao alvorecer, o frio tornou-se mais intenso, atenazando as coxas e as costas do sacerdote. Tudo se tornava mais claro no seu espírito cheio de paz, e deste modo viu como a claridade que começava a insinuar-se a leste crescia lentamente, perfilando cada vez mais a silhueta do campanário que parecia ensombrar-se, por contraste com o negrume minguante atrás dela. E soaram mais badaladas do relógio, e de novo pombas e andorinhões serenaram o seu voo. E era o dia que se anunciava já com decisão, na claridade avermelhada, empurrando a noite para o outro lado da cidade, no perfil nítido do campanário, no telhado, nos beirais da praça e nas cores que reforçavam o seu matiz escuro de ouro e terra sobre a cal branca dos muros. E cantaram os galos, porque Sevilha era uma dessas cidades onde ainda havia galos para cantar à alvorada. Então Lorenzo Quart pôs-se de pé, como se regressasse de um longo sonho. Ou talvez continuasse envolto nele, como teria dito quem quer que observasse a sua maneira de caminhar até à igreja.

Sob o arco da entrada tirou do bolso a chave e fê-la rodar na porta, que se abriu rangendo. Entrava já luz suficiente pelos vitrais para lhe permitir avançar com segurança entre os bancos amontoados ao fundo da nave e os dispostos de ambos os lados do corredor central, diante do altar e do retábulo, ainda escuro de sombras, junto ao qual brilhava a pequena lamparina do Santíssimo. Escutando os seus passos, foi até ao centro da igreja e ali contemplou o confessionário com a porta aberta, os andaimes nas paredes, as gastas lajes do solo e a negra boca da cripta onde repousavam os restos de Carlota Bruner. Depois ajoelhou-se num dos bancos e aguardou, imóvel, até que amanheceu por completo. Não rezava, pois não sabia diante de quem fazê-lo, e tão-pouco a antiga disciplina dos ritos profissionais lhe parecia apropriada às circunstâncias. Limitou-se, pois, a esperar com a mente vazia, deixando-se embalar no consolo silencioso das velhas paredes, sob o tecto enegrecido do fumo das velas, incêndios e manchas de humidade estendendo-se sobre a sua cabeça, ali onde a claridade crescente mostrava o rosto barbado de um profeta, as asas de um anjo, uma nuvem vazia ou uma silhueta irreconhecível como um fantasma desvanecendo-se na quietude do tempo. Por fim veio a luz do sol, penetrando justamente através da silhueta de chumbo do Cristo desaparecido da janela; e o retábulo tornou-se um barroco arabesco em folha de ouro, loiras colunas mostrando a glória de Deus. O pé da Mãe esmagava a cabeça da serpente e isso, supôs Quart, era a única coisa que deveras importava. Subiu, então, ao coro e fez tocar o sino. Aguardou um quarto de hora sentado no chão, sob o cabo da corda rematada com grossos nós, depois, erguendo-se, fê-lo soar de novo com dois últimos toques espaçados, a terminar. Faltavam quinze minutos para a missa das oito.

Acendeu a luz do retábulo e os seis círios, três de cada lado do altar. Em seguida, depois de dispor os livros e os galheteiros, foi à sacristia e lavou as mãos e o rosto, esfregando com uma toalha o cabelo húmido. Abriu o armário e as gavetas da cómoda, preparou os objectos litúrgicos e escolheu os paramentos adequados ao dia do ano. Quando tudo ficou pronto, começou a vestir-se lentamente, segundo a ordem e da maneira que aprendera no seminário e que nenhum clérigo jamais esquece. Começou pelo amito, o quadrado de linho branco já em desuso, que só os sacerdotes integristas ou os muito velhos, como o padre Ferro, utilizavam ainda. Seguindo os movimentos rituais, beijou a cruz do centro, antes de o estender sobre os ombros e apertar as tiras cruzadas nas costas. Havia no armário três alvas - a peça de vestuário branca que cobria o oficiante dos ombros até aos pés - e duas eram demasiado curtas para a sua estatura, mas a terceira, sem dúvida utilizada pelo padre Lobato, tinha um comprimento razoável. Vestiu-a, apertando o laço do pescoço e ajustou-a à cintura com o cíngulo. Pegou, depois, na larga tira de seda branca chamada estola e, depois de beijar a cruz ao centro, colocou-a sobre o amito. Em seguida, cruzando-a sobre o peito, introduziu cada uma das pontas de um lado. e prendeu-os sob o cíngulo. Tomou, por fim, a velha casula de seda branca, com o desluzido fio de ouro bordando o anagrama de Cristo na parte da frente e enfiou a cabeça pela abertura, deixando-a cair ao longo do corpo. Uma vez vestido, permaneceu imóvel, as duas mãos apoiadas na cómoda, contemplando o maltratado crucifixo entre os pesados candelabros de prata à sua frente. Embora não tivesse dormido, sentia a mesma lucidez e a mesma paz experimentadas quando aguardava, sentado no banco da praça. O seu reencontro com os antigos gestos familiares, o início do ritual, reforçavam esta sensação. Era como se a solidão tivesse deixado de importar, atenuada pela execução de movimentos que outros homens, outras solidões, tinham vindo a repetir do mesmo modo, terminada a Ceia, ao longo de quase dois mil anos. Não importava que o templo estivesse cheio de rachas e maltratado, que andaimes escorassem o campanário, que na abóbada se desvanecessem antigas pinturas como fantasmas. Que, no quadro da parede, Maria inclinasse diante de um anjo a face ruborizada numa tela estropiada, cheia de gretas e manchada, obscurecida pela oxidação do verniz. Ou que, no extremo do velho telescópio do padre Ferro, a milhões de anos-luz, a fria cintilação dos astros risse às gargalhadas de tudo aquilo.

Talvez aquele judeu inteligente chamado Heinrich Heine tivesse razão e o Universo não fosse mais do que o resultado do sonho de um deus ébrio que pernoitava numa estrela. Mas o segredo, sob a chave que dava três voltas à porta do abismo, estava bem guardado. O padre Ferro dispunha-se a ir para a prisão por causa disso e nem Quart nem ninguém tinham o direito de o revelar à boa gente que aguardava, agora, lá fora, na igreja cujo rumor - tosse, ruído de passos, o ranger de um banco onde alguém se ajoelhava - chegava através da porta da sacristia, junto do confessionário onde Honorato Bonafé morrera por tocar o véu de Tanit.

Olhou para o relógio: eram horas.

 

                         VÉSPERAS

Utilizar o seu verdadeiro nome teria ido contra o Código.

             (Clough y Mungo, Approachtng Zero)

 

Dois dias depois do seu regresso a Roma e da apresentação do relatório sobre Nossa Senhora das Lágrimas, Quart recebeu na sua casa da Via del Babuino a visita de monsenhor Paolo Spada. Voltava a chover sobre a cidade, como três semanas atrás, quando lhe haviam dado ordem para viajar até Sevilha. Quart estava agora de pé diante das grandes janelas abertas do terraço, vendo a água cair nos telhados, as paredes ocres das casas, o reflexo pardo da calçada e a escadaria da praça de Espanha, quando a campainha da porta tocou. Monsenhor Spada estava à soleira, maciço e quadrado sob uma encharcada gabardina negra, sacudindo com movimentos de cabeça a água das suas duras cerdas de mastim.

- Ia a passar - disse - e pensei que talvez me convidasse para um café.

Sem esperar resposta, pendurou a gabardina num cabide e foi até à austera saleta, onde se sentou numa das poltronas perto do terraço. Ali esteve, silencioso, vendo cair a chuva, até que Quart veio da cozinha com a cafeteira fumegante e duas chávenas numa bandeja.

- O Santo Padre recebeu o seu relatório.

Quart assentiu, ao mesmo tempo que se servia de um pouco de açúcar, depois aguardou de pé, mexendo o café com a colher. Tinha as mangas da camisa reviradas sobre os antebraços, com o colarinho aberto sem a tira de celulóide branco. O Mastim inclinava a pesada cabeça de gladiador, olhando-o por cima da sua chávena:

- E também - acrescentou - recebeu outro relatório do arcebispo de Sevilha, onde se faz referência a si.

A chuva aumentava lá fora, e o bater da água no terraço chamou por um momento a atenção dos dois homens. Quart pousou a chávena vazia na bandeja e sorriu. O gesto triste, distante, que uma pessoa tem preparado há muito tempo, na certeza de que mais cedo ou mais tarde vai precisar dele.

- Lamento ter-lhe causado problemas, Monsenhor.

Era o velho tom de sempre. Disciplinado, respeitador. Embora estivesse na sua própria casa, permanecia de pé, quase a ponto de alinhar os polegares com as costuras das calças negras. O director do IOE dirigiu-lhe um olhar de afecto, depois encolheu os ombros.

- Você não me causou problemas a mim - disse com suavidade. - Pelo contrário: informou pontualmente num tempo recorde, fez um trabalho difícil e tomou as decisões adequadas relativamente à entrega do padre Ferro à polícia e à sua defesa legal - esteve calado um momento, olhando para as enormes mãos entre as quais quase desaparecia a sua chávena. - Tudo teria sido perfeito se se tivesse limitado a isso.

O sorriso triste de Quart acentuou-se:

- Mas não o fiz.

Os olhos de cão velho do arcebispo, sulcados de laivos castanhos, contemplaram longamente o seu agente:

- Não o fez. No final resolveu tomar partido - hesitou um instante, franzindo o sobrolho. - Envolver-se, suponho, é a palavra. E fê-lo da maneira e no momento menos oportunos.

Quart fitou-o com franqueza:

- Para mim, era oportuno, Monsenhor.

O arcebispo inclinava de novo a cabeça, benévolo.

- Tem razão, desculpe. Para si era-o, naturalmente. Mas não para o IOE - deixou a sua chávena junto da outra, na bandeja e ficou a observar o seu interlocutor com curiosidade. - Nem para o papel imparcial que lhe tinham ordenado que desempenhasse ali.

- Sabia que era inútil - insistiu Quart. - Um símbolo, nada mais - ficava absorto, recordando. - Mas há momentos em que esse tipo de coisas tem importância.

- Bem - concedeu monsenhor Spada. - Na realidade, não foi inteiramente inútil. Segundo as minhas notícias, a Nunciatura de Madrid e o Arcebispado de Sevilha receberam esta manhã instruções para preservar Nossa Senhora das Lágrimas, bem como para a nomeação de um novo pároco... - estudou a expressão de Quart, antes de lhe dedicar um aceno irónico e bem-humorado. - Aquelas suas considerações finais acerca do pedacinho de céu que desaparece, da pele do tambor e tudo o mais surtiram efeito. Muito emotivo e convincente. Se conhecêssemos as suas capacidades retóricas, há muito que as teríamos utilizado.

Dito isto, o Mastim calou-se. "Cabe-te a ti perguntar", dizia em silêncio. "Facilita-me um pouco as coisas."

- Essa é uma boa notícia, Monsenhor - Quart fitava-o, expectante. - Mas as boas notícias dão-se pelo telefone... Qual é a má?

O prelado suspirou.

- A má chama-se Sua Eminência Jerzy Iwaszkiewicz - desviou o olhar um momento e suspirou de novo. - O nosso querido irmão em Cristo viu o rato escapar-se-lhe por entre as garras e quer cobrá-lo de alguma maneira... Fez render muito o relatório de Sevilha. Segundo conclui, você excedeu-se nas suas atribuições. E, além disso, Iwaszkiewicz deu crédito a certas insinuações de monsenhor Corvo acerca do seu comportamento pessoal... A verdade é que entre um e outro tornaram as coisas bastante difíceis.

- E Sua Eminência Ilustríssima?

- Oh, bem - Monsenhor Spada erguia a mão, descartando-se de si mesmo. - Eu sou menos fácil de atacar, tenho processos e coisas dessas. Gozo do relativo apoio do secretário de Estado... Na realidade, ofereceram-me a paz em troca de uma pequena compensação.

- A minha cabeça.

- Mais ou menos - o arcebispo erguera-se para dar uns passos ao longo da sala. Estava agora nas costas de Quart, observando um pequeno esboço emoldurado na parede. - Trata-se de uma coisa simbólica, compreenda. Mais ou menos como a sua missa de quinta-feira passada... Tudo isto é injusto, bem sei. A vida é injusta. Roma é injusta. Mas é o que temos. São as regras do nosso jogo e você sempre o soube.

Caminhou em volta do sacerdote, até se encontrar de novo diante dele. Tinha as mãos cruzadas nas costas e um ar pensativo:

- Vou sentir a sua falta, padre Quart - disse. - Antes e depois de Sevilha, você continua a ser um bom soldado. Sei que fez as coisas o melhor que soube. Talvez, durante estes anos, eu tenha descarregado sobre os seus ombros demasiados fantasmas. Espero que o desse brasileiro, Nelson Corona, repouse agora em paz.

- Que vão fazer de mim?

Era uma pergunta neutra, objectiva, sem o menor indício de ansiedade. Monsenhor Spada ergueu as mãos ao céu, impotente:

- Iwaszkiewicz, sempre tão piedoso, queria mandá-lo como funcionário para alguma obscura secretaria... - o arcebispo fez estalar a língua, dando a entender que muito o teria surpreendido outro tipo de projectos da parte de Sua Eminência. - Por sorte, eu tinha aí umas cartas na manga. Não vou dizer que tenha posto a cabeça a prémio por sua causa, mas tive a precaução de me fazer acompanhar do seu currículo e fiz brilhar os serviços prestados, inclusivamente o do Panamá e aquele bispo croata que você tirou de Sarajevo. De modo que finalmente Iwaszkiewicz se deu por satisfeito com a sua mera execução formal como agente do IOE - os ombros quadrados voltaram a erguer-se um pouco sob o casaco do Mastim. - Com esta, o polaco come-me um peão, mas a partida continua empatada.

- E qual é o veredicto? - interessou-se Quart. Pensava em si próprio longe de tudo aquilo. "Talvez não seja assim tão difícil", disse para consigo. "Talvez mais duro. E fará mais frio, mas também cá dentro faz frio." Por um momento perguntou a si mesmo se teria coragem para abandonar tudo por causa de uma sentença excessiva. Começar noutro sítio, de corpo limpo, sem o protector fato negro que era o seu uniforme e a sua única pátria. O problema, depois de Sevilha, era que havia menos lugares para onde ir.

- O meu amigo Azopardi - dizia monsenhor Spada - o secretário de Estado, oferece-se para nos dar uma mão. Prometeu ocupar-se de si. A ideia é conseguir-lhe um destino como agregado numa nunciatura; América Latina, se possível. Passado algum tempo, se soprarem melhores ventos e eu continuar à frente do IOE, voltarei a reclamá-lo... - parecia aliviado por não observar nenhuma reacção da parte de Quart. - Considere-o como um exílio temporário, ou uma missão mais longa que as outras. Resumindo: desapareça durante uma boa temporada. Afinal, embora seja eterna a obra de Pedro, os papas e as suas equipas passam. Os cardeais polacos envelhecem, jubilam-se, detectam-lhes um cancro, já se sabe - rubricou aquilo com um sorriso torcido. - E você é jovem.

Quart aproximara-se da janela do terraço. A chuva continuava a fustigar as lajes, a seus pés e era um manto cinzento deslizando pelos telhados das casas próximas. Aspirou o ar húmido. Os ocres das fachadas e a praça de Espanha reluziam na rua deserta como um óleo sob verniz fresco.

- Que notícias há do padre Ferro?

O Mastim ergueu as sobrancelhas. "Isso já não está nas minhas mãos", dava o gesto a entender.

- Segundo nos conta a Nunciatura de Madrid - disse - o advogado que você chamou está a sair-se muito bem. Julgam poder obter a sua liberdade alegando senilidade e falta de provas ou, no pior dos casos, uma sentença suave de acordo com as leis espanholas. Trata-se de um homem velho, afectado pela idade e há um monte de razões que podem mover os juizes a seu favor. De momento está no hospital penitenciário de Sevilha, numa situação razoavelmente cómoda e é possível solicitar o seu internamento numa residência de sacerdotes anciãos... Tenho a impressão de que se sairá bem, embora, na idade dele, eu não tenha a certeza de que isso lhe interesse muito.

- Não - admitiu Quart. - Não creio que lhe importe. Monsenhor Spada voltara à mesa para se servir de mais café.

- Um personagem incrível, esse pároco. Acredita realmente que ele o fez?... - olhava Quart com a chávena de novo cheia na mão. - De quem não voltámos a ter notícias é de Vésperas. É uma pena que você não tenha conseguido averiguar a identidade do pirata. Isso ter-me-ia permitido defendê-lo melhor perante Iwa-szkiewicz - fez uma pausa, sombrio, bebendo um gole. - O polaco teria adorado roer esse osso.

Quart assentiu em silêncio. Continuava imóvel na janela aberta do terraço, vendo cair a chuva e a luz do exterior tornava mais cinzento o seu cabelo curto de soldado. Pequenas gotas de água salpicavam-lhe o rosto.

- Vésperas - disse.

Naquela noite, a última, tinha descido ao vestíbulo do hotel para encontrá-la como da primeira vez, sentada na mesma poltrona. E passara apenas uma semana desde o primeiro dia, mas a Quart pareceu que estava há uma eternidade em Sevilha. Que sempre estivera ali, como a imensa nave de pedra, pináculos e arcobotantes, encalhada a poucos metros de distância, do outro lado da praça. Como as pombas que cruzavam, desorientadas, o espaço de noite iluminada pelos focos. Como Santa Cruz, o rio, a torre almóade e a Giralda. Como Macarena Bruner, que o via agora aproximar-se. E, quando se ergueu da poltrona, de pé no vestíbulo deserto, Quart pensou que a sua presença o comovia ainda até à medula. Por sorte, reflectiu, indo ao seu encontro, ela não o amava.

- Venho despedir-me - disse Macarena. - E agradecer-lhe. Saíram à rua, para dar um passeio. Era, de facto, uma despedida:

frases curtas e monossílabos, lugares-comuns, fórmulas de cortesia próprias para perfeitos desconhecidos e nem uma única referência a eles dois. Quart não deixou de notar o regresso ao você. Ela mostrava a desenvoltura de sempre, mas fugia ao seu olhar e demorava-se no colarinho do sacerdote. Pela primeira vez, viu-a intimidada. Falaram do padre Ferro, da viagem que Quart empreenderia na manhã seguinte. Da missa que tinha celebrado em Nossa Senhora das Lágrimas.

- Nunca teria imaginado vê-lo ali - concluiu Macarena. Por vezes, como na noite em que tinham passeado em Santa

Cruz, o acaso dos seus passos levava-os a tocar-se e todas as vezes Quart experimentou a aguda certeza física das coisas perdidas: sensação de vazio, imensa e desesperada tristeza. Caminhavam agora em silêncio, pois tudo estava dito entre os dois e continuar a falar teria exigido palavras que nenhum queria pronunciar. A luz dos candeeiros empurrou as suas sombras até à muralha árabe e ali se detiveram, frente a frente. Quart contemplou os olhos escuros, o colar de marfim sobre a pele cor de tabaco claro. Não lhe guardava rancor. Deixara-se utilizar com plena consciência; ele era uma arma tão adequada como qualquer outra e para Macarena tornava-se legítimo pleitear por uma causa que cria justa. Quanto a Quart, o deve e haver ainda se misturavam, confusos, nos seus pensamentos, que a serenidade das últimas horas mal começava a pôr em ordem. Em breve restaria apenas o vazio da perda, devidamente atenuado pelo orgulho e a disciplina. Mas nem aquela mulher nem Sevilha poderiam jamais apagar-se dos seus sentidos nem da sua memória.

Procurou uma frase. Uma palavra, ao menos, para pronunciar antes que Macarena desaparecesse da sua vida para sempre. Algo que ela pudesse recordar, em consonância com a muralha centenária, os candeeiros de ferro, a torre iluminada ao fundo e o céu onde brilhavam as estrelas geladas do padre Ferro. Mas no seu íntimo apenas encontrou o nada mais absoluto. Um cansaço longo, objectivo, resignado, inexprimível de outro modo que não fosse um olhar, ou um sorriso. De modo que sorriu ligeiramente na penumbra, diante dos olhos de mulher onde uma vez vira reflectirem-se duas belas luas gémeas num jardim. E ela ficou a olhá-lo pela primeira vez nos olhos, os lábios entreabertos como se neles rondasse uma palavra que também não era capaz de encontrar. Quart, então, rodou sobre os calcanhares e afastou-se, sentindo os olhos da mulher fixos nas suas costas. E, enquanto o fazia, pensou estupidamente que, se nesse momento ela gritasse amo-te, arrancaria o colarinho da camisa, voltando atrás para a tomar nos braços como os oficiais que estragavam a carreira nos braços de mulheres fatais, nos velhos filmes a preto e branco, ou aqueles outros ingénuos varões - Sansão, Holofernes - do Antigo Testamento. A ideia fê-lo dirigir a si próprio uma expressão zombeteira. Sabia - sempre soubera - que Macarena Bruner não voltaria a dizer aquelas palavras a nenhum homem.

- Espere! - disse ela inesperadamente. - Quero mostrar-lhe uma coisa.

Quart deteve-se. Não era a fórmula mágica, mas bastava para se mover e poder olhá-la de novo. E, ao fazê-lo, viu que continuava quieta no mesmo sítio, junto da sombra que projectava na muralha. Parecia ter reflectido muito, antes de se decidir a chamá-lo. Atirava para trás o cabelo com um movimento enérgico da cabeça, num gesto de desafio mais dirigido a si mesma do que ao próprio Quart.

- Você mereceu-o - acrescentou. E sorria.

A Casa do Postigo estava em silêncio. O relógio inglês da galeria deu doze badaladas quando atravessaram o pátio da fonte de azulejos, entre gerânios e fetos. Todas as luzes estavam apagadas e a lua, despontando sobre os arcos mudéjares fazia deslizar as suas sombras pelo mosaico do solo, que brilhava com a água dos vasos acabados de regar. No jardim próximo cantavam os grilos, ao pé da torre escura do pombal.

Macarena conduziu Quart através da galeria decorada com contadores e tapeçarias e, depois de passar um pequeno salão, precedeu-o numa escada de degraus de madeira e corrimão de ferro, nos ângulos da qual havia reluzentes bolas de bronze. Chegaram, assim, ao piso superior, à galeria envidraçada que circundava o pátio. Havia, ao fundo, uma porta fechada e dirigiram-se a ela. Antes de a abrir, Macarena deteve-se e olhou gravemente para Quart.

- Ninguém - sussurrou - deve jamais saber.

Depois colocou o dedo sobre os lábios, abriu a porta silenciosamente e chegaram até eles as notas de A Flauta Mágica. A sala estava dividida em duas e, na primeira, sem luzes, havia móveis cobertos com capas de pano branco e uma janela cujas cortinas deixavam penetrar o luar. A música vinha do fundo. Ali, atrás de uma porta de correr envidraçada, completamente aberta, a luz de um candeeiro iluminava uma mesa com uma complicada aparelhagem PC, dois monitores Sony de alta definição, impressora a laser e ligação com uma linha telefónica. E, diante do computador, com o leque de Romero Torres e duas garrafas vazias de coca-cola sobre uma pilha de exemplares da revista Wtreã, atenta ao monitor, onde cintilavam letras e ícones, absorta na fuga que todas as noites a libertava daquela casa, de Sevilha, de si mesma e do seu passado, Vésperas viajava silenciosamente através do ciber-espaço infinito.

Nem sequer mostrou surpresa. Teclava cuidadosamente, com os olhos fixos num dos monitores. Quart observou que o fazia com extrema atenção, como se receasse premir uma tecla errada e isso danificasse algo de importante. Dirigiu um olhar ao monitor cheio de números e sinais cujo sentido lhe escapava inteiramente, mas o pirata informático parecia mover-se à vontade no meio de tudo aquilo. Vestia um roupão de seda escura, calçava chinelas e tinha ao pescoço o seu bonito colar de pérolas. Desconcertado, Quart olhou para Macarena, depois abanou a cabeça, esperando que tudo aquilo fosse uma grande partida que ela e a mãe queriam pregar-lhe. Mas, de súbito, mudaram os sinais do monitor e outros novos apareceram. Os olhos de Cruz Bruner, duquesa do Nuevo Extremo, reluziram intensamente.

- Cá está! - ouviu-a dizer.

Com inesperada agilidade, as mãos da velha dama percorreram o teclado, controlando o monitor. Uma chave e uns sinais deram lugar a outros e, passados instantes, carregou na tecla enter e inclinou a cabeça um pouco para trás, com o ar satisfeito de quem vê coroado um longo esforço. Os seus lábios murchos distenderam-se. Os olhos, vermelhos de cansaço por causa do monitor, brilhavam de malícia quando, por fim, fitou a filha e o sacerdote.

- E o dia do Senhor virá como um salteador durante a noite... - citou, dirigindo-se a Quart. - Não é certo, padre?... Primeira aos Tessalonicenses, parece-me. Cinco, dois.

Apesar da idade, dos olhos cansados e da hora avançada, parecia mais esperta e inteligente que nunca. A filha pousara-lhe a mão no ombro e observava Quart. A anciã inclinou na direcção dela a cabeça branca com reflexos arroxeados, à luz do candeeiro.

- Se tivesse imaginado uma visita a estas horas, ter-me-ia arranjado um pouco - tocava no colar de pérolas, num tom de suave censura. - Mas, como foi Macarena que o trouxe aqui, está bem - ergueu um pouco a mão, para apertar a da filha. - Agora já sabe o meu segredo.

Quart estava ainda longe de acreditar em tudo aquilo. Olhou para as garrafas vazias de refresco, as pilhas de revistas especializadas em inglês e castelhano, os manuais técnicos que enchiam as gavetas da mesa, as caixas de disquetes. Cruz e Macarena Bruner espiavam as suas reacções, uma divertida, grave, a outra. Rendendo-se perante a evidência, franziu os lábios como se fosse emitir um assobio, mas não o fez. A partir daquela mesa, uma septuagenária tinha posto em xeque o Vaticano.

- Como conseguiu? - perguntou. - Parece incrível.

- Não é necessário que alguém acredite - disse Cruz Bruner. - Nem sequer é conveniente. Nem provável.

A velha dama afastou a mão que apoiava na da sua filha para a deslizar sobre o teclado do computador. "Um piano talvez", disse Quart para consigo. As duquesas antigas limitavam-se a tocar o piano toda a vida, a fazer bordados e renda de bilros, ou a deixar-se embalar pelas águas mortas do tempo; não se convertiam durante a noite em piratas informáticos à maneira do Doctor Jekyll e Mister Hyde, Aquilo era um pesadelo e não importava que Macarena contasse de antemão com o seu silêncio. A duquesa tinha razão: ninguém acreditaria em Quart, se ele o contasse.

- Refiro-me à senhora - protestou. - Refiro-me a tudo. Nunca pensei...

- Que uma velha pudesse mover-se com facilidade através disto?... - ergueu um pouco a cabeça, com o olhar ausente, meditando sobre aquilo. - Bem, admito que não seja usual. Mas bem vê... Um dia aproximamo-nos, por curiosidade. Carregamos numa tecla e descobrimos que acontecem coisas no monitor. E que podemos viajar até lugares incríveis e fazer coisas que nunca sonhámos fazer... - os lábios pergaminhados franziram-se noutro sorriso que lhe rejuvenesceu o rosto. - É mais divertido que bordar ou ver telenovelas venezuelanas na televisão.

- Há quanto tempo faz isto?

- Oh, não muito. Há três ou quatro anos - voltava-se para a filha, pedindo-lhe que a ajudasse a recordar. - Fui sempre uma mulher curiosa, incapaz de passar diante de duas linhas impressas sem parar para as ler... um dia Macarena comprou um computador para trabalhar. Quando saía, eu sentava-me diante dele, impressionada. Havia um jogo, uma espécie de bolinha de pingue-pongue, e com ela aprendi a manejar o teclado. Tenho dificuldade em dormir, como sabe, de modo que acabei por passar muitas horas diante do computador... Creio que me tornei uma viciada.

- Na sua idade... - disse docemente Macarena.

- Pois sim - a velha senhora olhava para Quart, como animando-o a exprimir a sua reprovação. - Mas, bem vê, sentia tanta curiosidade que comecei a ler tudo o que se relacionava com a informática. Falo inglês desde que o estudei, em criança, nas Irlandesas, de maneira que acabei por me inscrever em cursos por correspondência e por assinar revistas especializadas - deu uma breve gargalhada, tapando a boca com a mão, quase escandalizada consigo mesma. - Por sorte, embora a minha saúde deixe a desejar, ainda tenho a cabeça no sítio. Em pouco tempo tornei-me perita... E garanto-lhe que, na minha idade, é terrivelmente divertido.

- Também se apaixonou - disse Macarena.

A mãe e a filha riram, agora, juntas. Quart perguntou a si mesmo se as duas não estariam mal da cabeça: aquilo parecia uma partida monumental. Ou talvez fosse outra razão, a sua, que começava a fraquejar. "Esta cidade subiu-te à cabeça", pensou num atropelo. "Fazes bem em ir-te embora enquanto estás a tempo."

- Ela exagera - explicava Cruz Bruner. - O que aconteceu foi que obtive a equipa apropriada e, pouco a pouco, saí para o exterior. E, bem, sim, apaixonei-me, ciberneticamente falando. Uma noite entrei, por casualidade, no computador de um jovem hacker de dezasseis anos... Devia ver-se ao espelho, padre. Tem a cara mais estupefacta que alguma vez vi nos dias da vida.

- Não estava à espera de ver-me normal.

- Não, suponho que não.

A anciã aproximou a mão do monte de revistas técnicas que tinha em cima da mesa e passou o dedo polegar por entre as páginas de algumas. Depois apontou para o modem ligado à linha telefónica.

- Imagine - acrescentou - o que a descoberta desse mundo constituiu para uma velha de quase setenta anos... O meu amigo respondia com um nick, a alcunha em gíria informática, de Mad Mick, embora operasse por vezes sob o nome de Visconde de Valmont. E, pela mão do meu visconde, cuja voz e cujo rosto desconhecerei para sempre, comecei a percorrer os caminhos deste mundo fascinante... O computador dele tinha uma BBS pirata, de modo que entrei em contacto com outros viciados em alta tecnologia, muitas vezes rapazes que passam horas sozinhos nos seus quartos, manipulando computadores doutras pessoas.

Disse-o com um gesto de orgulho, como se se referindo ao mais exclusivo dos clubes. O desconcerto devia reflectir-se outra vez na expressão de Quart, porque Macarena sorriu de novo:

- Explica-lhe o que é uma BBS pirata - disse à mãe.

- Uma espécie de quadro de anúncios - a velha senhora pousou a mão no teclado - um computador carregado com soft-ware especializado, ligado a um modem telefónico. Se temos acesso a ele, significa que chegámos a um certo nível de clandestinidade informática. Quando entramos em contacto pela primeira vez, pedem-nos o nome real de utilizador e o número de telefone, e os incautos que respondem com os seus dados autênticos não são admitidos... O truque consiste em introduzir um nome fictício e um número de telefone falso; uma certa dose de paranóia é o melhor aval para um hacker.

- Qual o seu nome fictício?

- Interessa-lhe mesmo?... É contra as normas, mas vou dizer-lho, já que esta noite, graças a Macarena, veio de tão longe - ergueu a cabeça, orgulhosa e irónica - Rainha do Sul é o meu nick.

Alguma coisa começou a cintilar no monitor e a duquesa interrompeu para carregar nalgumas teclas. Um longo texto, de letra pequena e apertada, alinhava-se no monitor. Cruz Bruner olhou para a filha sem dizer uma palavra, depois continuou a falar com Quart:

- O facto - disse - é que, depois das BBS telefónicas, comecei a aceder aos Sites clandestinos, escondidos na rede Internet... Se a BBS é um quadro de anúncios, o Site é como uma taberna de piratas. Ali fazemos amigos, divertimo-nos e trocamos truques, jogos, vírus, informações úteis e coisas assim. Pouco a pouco aprendi a mover-me em todas as redes, viajar pelo estrangeiro, camuflar as entradas e saídas, penetrar em sistemas protegidos... Nunca fui tão feliz como no dia em que entrei no Município de Sevilha para manipular as minhas facturas de contribuição urbana.

- Que é um delito - censurou-a a filha; era evidente que não pela primeira vez. - Quando soube, fui a correr à repartição. Tinha saldado todas as facturas até ao ano 2005!... Tive que dizer que se tratava de um erro.

- Talvez sejam delitos - consentiu a velha senhora. - Mas, quando estás aqui sentada, não parece. Nada parece - sorriu a Quart com um misto de inocência e malícia. - E é isso que é maravilhoso.

Falar de tudo aquilo rejuvenescia-a. O sorriso refrescava-lhe os lábios e a humidade avermelhada dos olhos chispava, picaresca.

- Agora - prosseguiu - além do meu visconde favorito, mantenho contacto habitual com vários Sites e BBS de alto nível, e com uma vintena de hackers que na sua maior parte não têm mais de vinte anos... Ignoro os seus nomes reais e a que sexo pertencem, só conheço os seus nomes fictícios. Mas mantemos apaixonantes conversas cibernéticas em lugares como as Galerias Lafayette de Paris, o Imperial War Museum ou as sucursais da Confederação Bancária Russa... Que são, certamente, tão vulneráveis que até uma criança poderia manipular nelas as suas contas. Usam-se habitualmente como pista de provas para os piratas novatos.

Era ela, portanto, Vésperas em pessoa. Quart imaginou-a, por fim, sem dificuldade, inclinada noite após noite sobre o computador, viajando em silêncio pelo espaço electrónico, cruzando-se no caminho com outros navegadores solitários. Encontros inesperados, fugazes, trocas de informações e de sonhos, a excitação de violar segredos e transgredir os limites do proibido: uma confraria secreta onde o passado e o presente, o tempo, o espaço, a memória, a solidão, o triunfo ou o fracasso perdiam o seu sentido tradicional para comporem um espaço virtual onde tudo era possível e nada estava sujeito a limites concretos, a normas invioláveis. Um formidável escape, de possibilidades infinitas. Também Cruz Bruner se vingava à sua maneira da Sevilha encarnada no homem de boa figura retratado no vestíbulo, junto da menina loira pintada por Zuloaga.

- Como conseguiu entrar no Vaticano?

- Por acaso. Um contacto romano, Deus ex Machina, que suspeito ser um seminarista ou um jovem sacerdote, tinha andado a passear pelo sistema de forma periférica, por simples brincadeira. Simpatizámos e passou-me algumas boas pistas. Foi há seis ou sete meses, quando se punha aqui com maior gravidade o problema de Nossa Senhora das Lágrimas... Nem no Arcebispado de Sevilha nem na Nunciatura de Madrid faziam caso do padre Ferro e ocorreu-me que era uma boa maneira de nos fazermos ouvir em Roma.

- E consultou-o?

- De maneira nenhuma. Nem sequer consultei a minha filha, que só muito mais tarde se inteirou, ao saber da existência daquela que vocês baptizaram com o nome de Vésperas... - a velha senhora pronunciou o nome com evidente satisfação e Quart perguntou a si próprio que cara fariam Sua Eminência Jerzy Iwaszkiewicz e monsenhor Paolo Spada se ouvissem aquilo. - A princípio, a minha ideia era deixar uma simples mensagem no sistema central do Vaticano, esperando que caísse em boas mãos. A ideia de manipular o computador do Papa ocorreu-me mais tarde, à medida que aprofundava o sistema. Encontrei um arquivo inesperado, IMMA-VAT, muito protegido, e compreendi que guardava algo de importante. De modo que fiz umas tentativas para entrar, recorri aos truques dos meus amigos mais entendidos e, uma noite, meti-me lá dentro... Durante uma semana visitei INMAVAT, até que compreendi do que se tratava. De maneira que, depois de localizar o que queria, dispus as minhas forças e iniciei o assalto. O resto já sabe.

- Quem enviou o postal?

- Ah, isso. Fui eu, naturalmente. Já que aqui estava, pareceu-me boa ideia que começasse a ver o outro lado do problema. De forma que subi ao pombal e procurei algo apropriado no baú de Carlota. O recurso foi um pouco rocambolesco, mas surtiu efeito.

Muito sem querer, Quart desatou a rir:

- Como chegou até ao meu quarto?

A velha senhora parecia escandalizada.

- Céus! Não o fiz pessoalmente. Imagina-me nas pontas dos pés, no corredor do seu hotel?... Resolvi o caso de maneira mais prosaica. A minha criada deu uma gorjeta à empregada - virou-se em parte para a filha. - Quando o senhor lhe mostrou o postal, ela soube logo que tinha sido eu. Mas teve a delicadeza de não me ralhar demasiado.

Quart leu a confirmação nos olhos de Macarena. Também não precisava de que ninguém confirmasse o que quer que fosse: tudo adquiria, afinal, uma veracidade esmagadora. Olhou para o monitor do computador:

- Conte-me o que a ocupa agora.

- Oh, isso! - Cruz Bruner seguiu a direcção dos olhos do sacerdote. - Poderíamos chamar-lhe um acerto de contas... Mas não se alarme. Desta vez não tem nada que ver com Roma. É uma coisa mais próxima, mais pessoal.

Quart lançou um olhar. S& B Confidencial, pôde ler. Resumo investigação interna B.C. assunto P.T. e outras. Os nomes do Banco Cartujano e de Gavira figuravam no texto:

... Como argúcias desse ocultamento, podem assinalar-se: busca frenética de novos e dispendiosos recursos, contabilidade falsa transgredindo as normas bancárias, e um risco qualificável como temerário que, sem a materialização da esperada venda de Puerto Targa a Sun Qafer Alley (anunciada em 180 milhões de dólares), pode produzir um descalabro com gravíssimas consequências para o Banco Cartujano, assim como um escândalo público que diminuiria consideravelmente o seu prestígio social junto dos pequenos accionistas de carácter conservador.

Quanto às irregularidades directamente imputáveis à actual vice-presidência, a investigação detectou...

Olhou para Macarena, depois para a duquesa. Aquilo era um tiro de canhão na linha de flutuação do ex-marido. Por um momento recordou o financeiro na noite anterior, no molhe; a breve corrente de simpatia estabelecida entre ambos, quando se dispunham a libertar o pároco.

- Que pensam fazer com isto?

"Não é nada comigo", dizia a expressão de Macarena. "Os meus acertos de contas são uma questão mais pessoal." Foi Cruz Bruner quem respondeu:

- Disponho-me a equilibrar um pouco a situação. Todos fizeram muito pela igreja. Mesmo o senhor, com a missa de ontem, deu-nos mais uma semana... - observou o sacerdote e de novo a filha. - Suponho que por causa disso ela achou que merecia vir aqui esta noite.

- Ele não vai dizer nada - referiu Macarena, muito séria, com os olhos fixos em Quart.

- Não?... Assim espero - ficou a olhar para ela com súbita atenção, de sobrolho franzido, antes de dirigir outro olhar a Quart. - Se bem que aconteça comigo o mesmo que com o padre Ferro. Na minha idade as coisas deixam de ter importância e podemos aventurar-nos sem receio das consequências - acariciou distraida-mente o teclado do computador. - Agora, por exemplo, vou fazer justiça. Já sei que não é um sentimento muito cristão, padre Quart - havia na sua voz uma nova cadência, endurecido o tom. Uma determinação que lhe pareceu subitamente perigosa. - Depois terei de confessar-me, imagino. Estou prestes a pecar contra a caridade.

- Mamã...

- Por favor, filha, deixa-me em paz - dirigia-se a Quart como se esperasse mais compreensão da parte dele do que de Macarena, mostrando-lhe o texto do monitor. - Isto é o relatório de uma auditoria interna do Banco Cartujano, que põe a descoberto os problemas de Pencho e tudo o que urdiu com Nossa Senhora das Lágrimas. Torná-lo público prejudicará um pouco o banco e muito o meu genro. Suponho que muitíssimo - um pequeno sorriso suavizou a sua boca. - Não sei se Octavio Machuca alguma vez me perdoará.

- Pensas contar-lhe? - perguntou Macarena.

- Naturalmente. Não vou atirar a pedra e esconder a mão. Mas já viveu o suficiente para compreender... Além disso, está-se nas tintas para o banco. Tornou-se um irresponsável com a idade.

- Aonde foi buscar esse relatório? - perguntou Quart.

- Ao computador do meu genro. A sua chave de segurança não é difícil - abanou a cabeça, mostrando um pesar que parecia sincero. - Lamento sinceramente, porque sempre simpatizei com Pencho. Mas ou ele ou a igreja. Cada um por si.

Uma luz piloto cintilava no aparelho de ligação com a linha telefónica e Quart interessou-se por aquilo. Cruz Bruner olhou um instante para a luzinha, depois, virando-se para o sacerdote, todas as gerações de duques do Nuevo Extremo que repousavam no seu sangue congregaram-se nela:

- É o fax - disse, com os olhos brilhantes. E os seus lábios pergaminhados distenderam-se numa expressão que Quart não lhe conhecia: de desprezo e crueldade. - Estou a transmitir o relatório a todos os jornais de Sevilha.

De pé, a seu lado, o rosto na penumbra, Macarena tinha retrocedido e olhava o vazio. As lentas badaladas do relógio inglês ressoaram em baixo, entre os quadros de verniz escuro que montavam guarda secular nas sombras da Casa do Postigo. Toda a vida possível naquelas paredes mortas parecia refugiar-se sob a luz do candeeiro que iluminava o teclado do computador e as mãos ossudas da anciã. E Quart teve a certeza de que, nesse mesmo instante, o fantasma de Carlota Bruner sorria na torre do jardim e as velas brancas de uma escuna deslizavam rio acima, impelidas pela brisa que todas as noites subia do mar.

Cruz Bruner de Lebrija, duquesa do Nuevo Extremo, faleceu no começo do Inverno, quando Lorenzo Quart era há cinco meses o terceiro secretário na Nunciatura Apostólica de Santa Fé de Bogotá. Soube-o por umas linhas na edição internacional do diário ABC, acompanhadas de uma participação com o longo rol nobiliárquico da falecida e o pedido de sua filha Macarena Bruner, herdeira do título, de que rezassem pela sua alma. Duas semanas depois chegou um sobrescrito com carimbo de Sevilha, contendo apenas uma pequena recordação de defuntos debruada a negro, repetindo mais ou menos o texto da participação. Não era acompanhada de nenhuma carta, mas sim do postal de Nossa Senhora das Lágrimas dirigido por Carlota Bruner ao capitão Xaloc, que Quart um dia encontrara no seu quarto de hotel.

Com o tempo, o acaso foi-lhe trazendo mais pormenores sobre os diversos finais da história. Uma carta do padre Oscar Lobato, que tinha seguido um complicado itinerário desde uma pequena povoação de Almería até Roma, de onde fora reexpedida para Bogotá, trouxe - com algumas considerações de índole geral e um par de rectificações relativas à ideia que Quart fizera do jovem vigário - a notícia de que Nossa Senhora das Lágrimas continuava aberta ao culto e funcionando como paróquia. Quanto a Pencho Gavira, tudo o que Quart soube foi uma breve menção nas páginas económicas da edição americana de El País, onde se dava conta da jubilação de Don Octavio Machuca à frente do Banco Cartujano de Sevilha e da nomeação de um desconhecido como presidente do conselho de administração. A nota de imprensa dava ainda conta da demissão de Pencho Gavira e da renúncia a todos os seus poderes executivos como vice-presidente e director-geral do banco.

No tocante ao padre Ferro, Quart foi recebendo notícias esporádicas acerca da sua estada no hospital penitenciário, a sentença que o declarou responsável por homicídio involuntário e o seu posterior confinamento a uma residência vigiada da diocese sevilhana destinada a sacerdotes de idade. Ali continuava, em precário estado de saúde, no final do Inverno em que morrera Vésperas; e, segundo a breve e cortês carta que o director do centro remetera em resposta a Quart, quando este se interessara pelo velho pároco, era pouco provável que vivesse até à Primavera. Passava os dias no quarto sem ver ninguém; e de noite, quando fazia bom tempo, saía ao jardim, acompanhado por um guarda, para se sentar num banco e contemplar em silêncio as estrelas.

Do resto dos personagens cujas vidas se haviam cruzado com a de Quart durante as duas semanas passadas em Sevilha, nunca soube mais nada. Soçobraram pouco a pouco na sua memória, unindo-se aos fantasmas de Carlota Bruner e do capitão Xaloc, que o acompanhavam frequentemente nos seus longos passeios ao entardecer no bairro colonial da velha Santa Fé. Desapareceram todos menos um, e mesmo a visão desse foi fugaz, incerta, de que nunca teve a inteira certeza. Aconteceu muito mais tarde, quando Quart, recentemente transferido para outra secretaria ainda mais obscura em Cartagena de índias, folheava um jornal local com uma notícia acerca da insurreição rural no estado mexicano de Chiapas. A reportagem gráfica mostrava a vida numa pequena povoação anónima da zona rural controlada pela guerrilha, e na escola local um grupo de rapazes tinha sido fotografado com a professora. A fotografia era confusa e, observando-a através de uma lupa, Quart não conseguiu estabelecer grande coisa, excepto a semelhança: a mulher vestia calças de ganga, tinha o cabelo grisalho preso numa curta trança e apoiava as mãos nos ombros dos seus alunos, fitando a câmara com olhos claros e frios, desafiadores. Uns olhos idênticos aos que Honorato Bonafé vira pela última vez, antes de cair fulminado pela cólera de Deus.

 

                                                                                Arturo Pérez Reverte 

 

 

                      

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