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A PELE VERMELHA / Bram Stoker
A PELE VERMELHA / Bram Stoker

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A PELE VERMELHA

 

Naquela época, Nuremberga estava longe de ser a cidade conhecida e frequentada que se tornou nos nossos dias. Irving e a sua companhia não tinham ainda representado Fausto, e o nome desta antiga cidade não evocava grande coisa para a maioria dos viajantes da altura. Estávamos, eu e a minha mulher, na segunda semana da nossa viagem de núpcias; e sem ousarmos confessá-lo, começávamos a desejar a presença de um terceiro. Assim, acolhemos com satisfação a companhia de um tal Elias P. Hutcheson - de Isthmian City, Bleeding Gulch, condado de Maple Tree, no Nebraska - quando este homem jovial, mal acabado de sair da estação de Francoforte do Meno, declarou logo, com um acentuado sotaque ianque, que se propunha visitar uma maldita cidade antiga da Europa pelo menos tão antiga como Matusalém, mas que uma tal viagem requeria necessariamente uma companhia. Qualquer homem, explicava ele, mesmo de espírito vivo e sensato, arriscava-se muito, se viajasse sempre sozinho, a terminar os seus dias entre as quatro paredes de um manicómio. Amélia e eu próprio verificámos alguns dias mais tarde quando comparávamos as nossas notas de viagem respectivas, que havíamos igualmente decidido só abordá-lo com circunspecção e discrição a fim de não parecermos demasiadamente encantados por tê-lo encontrado, o que não seria muito compatível com um início de vida conjugal. Mas por muito louvável que fosse, esta resolução permaneceu letra morta, porque não pudemos deixar de falar os dois ao mesmo tempo, e de nos interrompermos do mesmo modo para recomeçarmos com mais entusiasmo. Todavia, o que estava feito, estava feito; e Elias P. agarrou-se a nós como uma lapa. Na verdade, Amélia e eu próprio colhemos vantagem imediata deste novo estado de coisas: em vez de desperdiçarmos o nosso tempo em pequenas disputas de apaixonados, tal como fizéramos até então, a obrigação em que nos encontrávamos de ter em conta aquela presença, afinal muito incómoda, era tal que nunca mais acabávamos de nos beijarmos nos cantos. E foi fortalecida por esta experiência que Amélia pôde, depois, aconselhar as amigas a nunca empreenderem viagens de núpcias sem se terem assegurado do concurso de alguém mais. Em suma, seguimos para Nuremberga de pleno acordo; e divertimo-nos muito com a fala saborosa do nosso amigo de além-Adântico, o qual, tanto pelos seus repentes como pela pas-mosa narrativa das suas aventuras passadas, parecia saído direitinho de um qualquer romance picaresco. Tínhamos combinado reservar para o fim a visita do castelo imperial de Nuremberga, o Kaiserburgo. E a nossa estada aproximava-se do termo quando um passeio lá nos conduziu, durante o qual caminhámos, a leste, junto das altas muralhas da velha cidade.

O Kaiserburgo ergue-se sobre uma rocha escarpada que domina a cidade; imensos fossos muito profundos impedem o acesso pelo norte. Nuremberga teve a sorte de nunca ter sido saqueada; se não fosse assim, claro que não poderia mostrar este aspecto flamante novo que então lhe vimos. Os fossos já não serviam há séculos: casas de bebidas ao ar livre e plantações de árvores frutíferas - algumas delas com um tamanho respeitável - ocupavam-lhes o fundo. Avançávamos em ar de passeio ao longo do muro da cerca, debaixo do ardente sol de Julho; mas também parávamos de vez em quando para admirar o panorama que se espraiava à nossa vista e especialmente a imensa planície de onde emergiam burgos e aldeias, e que era barrada no horizonte por uma linha de colinas azuladas tal como se vê nas paisagens de Claude Lorrain. Depois, os nossos olhares transferiram-se com um prazer incessantemente renascente para a própria cidade, a sua multidão de velhas empenas irregulares e o seu mar de telhados avermelhados eriçados por inúmeras lucar-nas, vaga após vaga. As torres do Kaiserburgo, agora próximas, erguiam-se à nossa direita; e, mais perto ainda, a orgulhosa, a feroz Torre das Torturas que era realmente, e talvez ainda hoje seja, o local mais curioso da cidade. Durante séculos, citaram a Virgem de ferro de Nuremberga como o exemplo mais acabado dos horrores e da crueldade que o homem pode alcançar. Pela nossa parte, tínhamos esperado imenso tempo poder vê-la um dia; e eis que, enfim, nos achávamos no limiar da sua residência.

 

Aproveitando uma das nossas paragens debruçámo-nos por cima do muro sobranceiro aos fossos. Ao fundo, muito ao fundo, os jardins - que podiam distar uns dos outros quinze ou vinte metros - dormitavam ao sol, esmagados pelo peso do seu imóvel e sufocante calor: dir-se-ia que estávamos num forno. Para além, enormes muralhas cinzentas e inacessíveis, de uma altura impressionante, iam perder-se à direita e à esquerda nas esquinas do bastião e da contra-escarpa. Árvores e arbustos coroavam-lhe a cumeeira, por cima da qual se erguiam também altaneiras moradias cuja maciça beleza o tempo mais embelezara. O calor abafava-nos; arrastávamo-nos um pouco. Como nada nos pressionava, parámos mais uma vez e debruçámo-nos de novo por cima do muro. Um quadro encantador foi-nos então oferecido: uma grande gata preta estava estendida ao comprido a apanhar sol, ao passo que um gatinho da mesma cor andava aos pulos à volta dela. A mãe agitava lentamente a cauda a fim de divertir a cria, e empurrava-a com a pata para encorajá-la a brincar. Os dois animais mantinham-se junto do muro, exactamente por baixo de nós; e Elias P. Hutcheson, baixando-se, pegou numa pedra de bom tamanho a fim de participar nas brincadeiras.

- Olhem! - disse ele com o seu belo sotaque ianque. - Vou atirá-la para perto do gatinho; e os dois vão querer saber de onde ela veio.

- Oh, tenha cuidado! - recomendou a minha mulher. - Poderia ferir o pobre bichano.

- Eu? Nem pensar nisso, minha querida senhora - replicou Elias - Tenho um coração tão terno como uma cerejeira do New Hampshire. Deus a abençoe! Agradar-me-ia tão pouco atingir este animalzinho como escalpar uma criança de mama. Aliás, não há nada a recear. Olhe, aposto aquilo que quiser... Um par de meias de fantasia, mesmo! Olhe, vou atirá-la um pouco de lado; assim, não haverá perigo.

Dito isto, inclinou-se para a frente, estendeu o braço e lançou a pedra. Talvez exista uma força de atracção que faz com que o corpo, qualquer que seja o seu volume, acabe sempre por atingir um outro mais importante do que ele ou talvez tenha acontecido muito simplesmente que o muro não estivesse a prumo - o que não podíamos observar muito bem atendendo ao sítio onde nos encontrávamos. Seja como for, um ruído mole, agoniativo, chegou até nós através do ar quente: a pedra acabara de atingir o gatinho na cabeça, fazendo espirrar o seu cérebro ali à volta. A gata preta lançou um rápido relance de olhos para o nosso lado; e vimos as suas pupilas verdes e flamejantes fixarem intensamente Elias P. Hutcheson. Depois regressou ao corpito estendido junto dela e cujas patas se agitavam ainda imper-ceptivelmente, convulsivamente, ao mesmo tempo que um fino fio de sangue escorria da ferida aberta. Então, com um queixume abafado, quase humano, ela inclinou-se para o gatinho agora inerte e pôs-se a lamber a ferida e a gemer. De súbito, pareceu tomar consciência da sua morte; e, pela segunda vez, ergueu o olhar na nossa direcção. Um olhar que estou longe de ter esquecido, a tal ponto ele extravasava ódio. Um fogo dissimulado ardia-lhe no fundo dos olhos verdes; os dentes brancos e agudos pareciam faiscar sob o sangue que lhe maculava os lábios e os bigodes. E aqueles dentes rangiam, ao mesmo tempo que o animal descobria e esticava compridas garras afiadas. De súbito, saltou ferozmente contra o muro para tentar atingir-nos; mas não o conseguiu e caiu em cima do pequeno cadáver. Quando se levantou, pareceu ainda mais horrível: o seu pêlo escuro estava todo besuntado de miolos e de sangue. Amélia desmaiou. Tive que transportá-la até um banco próximo à sombra de um plátano, onde recuperou lentamente os sentidos. Voltei então para junto de Hutcheson que, de pé, imóvel, observava no fundo do muro a gata enfurecida.

- Esta agora! - exclamou quando me viu aproximar. - Não me lembro de ter alguma vez visto um ar mais feroz do que o deste animal... Excepto uma vez, uma índia da tribo dos Apaches, uma squaw, como eles lá dizem. Odiava de morte uma espécie de mestiço, um rapaz a que chamavam “Relâmpago” devido ao modo ultra-rápido com que ele tinha liquidado o papoose, quero dizer, o filho daquela mulherzinha para vingar a sua defunta velha mamã que os malvados Apaches tinham feito assar a fogo lento. Ora bem, esta squaw de que lhe estou a falar, exibia justamente o arzinho muito gentil que estamos a ver naquele animal. E seguiu no encalço do “Relâmpago” durante mais de três anos; até ao dia em que os bons apóstolos o apanharam e lho entregaram por mão própria. Diz-se que nunca houve homem branco ou cor de chocolate que levasse tanto tempo a entregar a alma sob a tortura dos Apaches. A única vez que a vi sorrir, a essa squaw, foi quando lhe dei um encontrão ao forçar a entrada no seu acampamento exactamente no instante em que o pobre “Relâmpago” estava a ir desta para melhor e não parecia estar com pena disso. Era um duro, e não estava lá muito de acordo com ele acerca daquela história do papoose que era deveras muito desagradável. E, depois, dir-se-ia que o “Relâmpago” era um branco... Seja como for, tinha pago largamente. Mas pelo sim pelo não apanhei um pedaço da sua pele para mandar fazer uma carteira. Nunca a largo; está aqui... - e, ao mesmo tempo que dizia isto, batia energicamente com a mão na algibeira de peito do casaco.

Enquanto falava, a gata continuava freneticamente a tentar alcançar o cimo do muro. Começava por recuar, depois saltava, atingindo por vezes uma altura surpreendente. Mas, embora continuasse a cair sempre, não parecia ralar-se muito com isso e recomeçava com um ardor crescente. Cada queda tornava-a ainda mais repugnante. Hutcheson era um valente rapaz - a minha mulher e eu próprio não tínhamos deixado de reparar na gentileza que ele a todos testemunhava, animais ou pessoas - e parecia sinceramente agastado com o estado de furor em que víamos a gata.

- Nada posso fazer - disse ele. - Pobre animal, parece-me terrivelmente desesperado... Não é culpa minha, sabes, foi um acidente. Tudo isso não te devolverá o teu filhote. Lamento muito e nunca teria desejado uma coisa destas, mesmo em troca de um maço de notas. É espantoso como um homem pode ser desastrado quando quer brincar. Dir-se-ia que tudo me escorrega das mãos, mesmo quando me divirto com um gatinho... Diga-me cá, coronel (era uma das suas piadas favoritas, esta maneira de atribuir aos outros títulos imaginários), espero que a sua mulher não fique muito zangada comigo por causa deste infeliz caso. Não foi culpa minha, e não pode imaginar o quanto lamento o sucedido.

Tinha-se aproximado de Amélia e nunca mais parava de apresentar desculpas. Ela tranquilizou-o - é um bom coraçãozinho - dizendo que nunca duvidara de que se tratava de um acidente. Depois voltámos para junto do muro a fim de ver o que fazia a gata.

Esta, que deixara de ver Hutcheson, instalara-se na beira do fosso e mantinha-se alerta, pronta, dir-se-ia, a saltar novamente. Na verdade, mal o tornou a ver, o animal pulou com um furor cego e aberrante que teria parecido risível noutras circunstâncias. Já não tentava alcançar o cimo do muro; limitava-se agora a atirar-se a Hutcheson como se a violência do seu ódio, dando-lhe asas, pudesse permitir-lhe transpor aquela grande distância que os separava um do outro. Amélia, com o seguro instinto do seu sexo, deu-se imediatamente conta do perigo.

- Acautele-se - disse a Elias P. com uma voz inquieta -, este animal procuraria certamente matá-lo se estivesse aqui. Lê-se o crime no seu olhar.

- Desculpe-me, minha querida dama - replicou Hutcheson enquanto ria de boa vontade -, mas não posso deixar de rir. É muitíssimo engraçado! Eu, eu que cacei o grizzli e o índio, ter medo de ser morto por um gato!

Quando o animal ouviu as risadas, interrompeu a sua manobra, deixando de tentar atirar-se a Hutcheson ou de gaitar contra a parede. Mas foi lentamente sentar-se junto do cadáver do filhote e começou a lambê-lo, como se ainda estivesse vivo.

- Aqui temos - disse eu - o efeito da vontade do homem forte. Até esta gata, embora enfurecida, reconheceu o amo e verga-se diante dele.

- Tal e qual como uma squaw!

Foi este o último comentário de Elias P. Hutcheson, na altura em que retomámos o nosso caminho ao longo dos fossos. De vez em quando, voltávamos para olhar para além do muro e, de cada vez, avistávamos a gata que nos seguia. De longe em longe, voltava para junto do pequeno cadáver; mas, como a distância entre os pobres restos mortais e nós não cessava de aumentar, ela pegou-lhe pela pele do pescoço e seguiu-nos daí em diante trazendo-o consigo. Todavia, voltámos em breve a vê-la sozinha: devia ter escondido o corpinho num sítio qualquer. Ao reparar na constância da gata em seguir-nos, Amélia recomeçara a inquietar-se e renovara ao americano os seus conselhos de prudência. Mas Elias P. não parava de rir, divertido. Contudo, quando se apercebeu de que estava verdadeiramente alarmada:

- Não se aflija - disse - por causa deste animal, minha linda dama. Estou preparado; tenho tudo quanto é preciso. - E, ao dizer isto, batia com a mão no coldre do revólver. - Para deixar de vê-la preocupada por tão pouco, vou abater a gata. Mesmo se isso levar a polícia local a ocupar-se de um cidadão da livre América por porte de arma proibida.

Enquanto falava, Hutcheson lançara uma olhadela para lá do muro; mas, ao tornar a vê-lo, a gata dera um salto para trás e fora esconder-se, com um grunhido, num maciço de flores.

- Que Deus me perdoe - prosseguiu ele -, mas este animal tem mais bom senso do que um cristão. Farejou o perigo. E aposto que acabamos de vê-lo pela última vez. Agora vai sem dúvida ter com o seu filhote e fazer-lhe um enterro de primeira. Só para ela...

Amélia não insistiu mais, com receio de que - para lhe agradar - Hutcheson pusesse em execução o seu projecto de abater o animal. Metemo-nos mais uma vez a caminho. Atravessámos uma pequena ponte de madeira que conduzia a um arco de pedra, para além do qual uma íngreme calçada pavimentada ligava o Kaiserburgo à pentagonal Torre das Torturas. No momento em que transpúnhamos a ponte, tornámos a ver a gata que estava debaixo dela. Quando nos avistou, a fúria pareceu invadi-la de novo; e fez esforços desesperados e vãos para tentar alcançar-nos agarrando-se à parede abrupta do fosso. Hutcheson encarou-a a rir.

- Ora viva, minha velha! - gritou-lhe. - Lamento muito ter ferido o teu coraçãozinho de mãe! Mas vais esquecer depressa, verás! Tive muito prazer em conhecer-te!

Após isto, passámos debaixo de uma extensa abóbada tenebrosa e chegámos, por fim, ao portão do Kaiserburgo.

Quando nos vimos novamente no exterior, após a visita a este notável monumento que os restauros bem intencionados dos especialistas do gótico - restauros que distavam na altura uns quarenta anos - não haviam conseguido afeiar, ainda que fossem demasiadamente vistosas, quando, dizia eu, nos vimos novamente no exterior, tínhamos esquecido quase de todo o penoso incidente que marcara o início do nosso passeio. A velha tília, de tronco forte e nodoso, que vira passar os séculos; o poço insondável cavado pelos prisioneiros do passado mesmo no coração da rocha; a importante e pitoresca cidade que se nos oferecia à vista para lá do muro da cerca - de onde escutámos elevar-se durante perto de um quarto de hora o canto múltiplo dos carrilhões - tudo isto contribuíra para apagar dos nossos espíritos a morte do gatinho.

Ninguém a não ser nós os três visitara naquela manhã a Torre das Torturas. Foi, pelo menos, o que nos afirmou o velho guarda do local. Em todo o caso, encontrámo-nos lá sozinhos; portanto, foi-nos possível visitá-la com minúcia e melhor do que se a tivéssemos efectuado na companhia de outros turistas.

O guarda, saboreando antecipadamente uma gorjeta que muito se arriscava a ser a única do seu dia, pôs-se à nossa inteira disposição com os melhores modos do mundo. A Torre das Torturas é ainda hoje um local sufocante e lúgubre, embora tenha adquirido, com o contacto de milhares de visitantes, uma aparência de vida e de benignidade. Mas, na época a que me reporto, apresentava-se sob um aspecto particularmente aterrador e sinistro. A poeira dos séculos parecia ter-se acumulado ali; a “presença” quase tangível da escuridão ambiente dos suplícios horrorosos que se imaginavam teriam satisfeito o panteísmo de Fílon ou de Espinosa. A sala baixa na qual penetrámos devia banhar-se em tempos normais numa penumbra irremediável. Mesmo os raios solares, que por vezes inundavam o limiar da porta, esses raios embotavam-se contra a espessura das paredes, apenas permitindo adivinhar um material mal trabalhado, tal como o deixara o pedreiro quando desmontara o andaime. E embora se achasse atapetado de poeira, ainda se via aqui e além largas manchas acastanhadas. Se estas paredes tivessem podido falar, as suas terríveis confidências não passariam de calafrios e sofrimentos. Assim, agradou-nos bastante sair desta sombria sala. Subimos uma empoada escada de madeira; e, como a única, comprida e mal-cheirosa vela que se enrugava num candelabro instalado na parede só iluminava escassamente - o guarda deixou a porta aberta para nos dar mais luz. Quando, depois de transpormos um alçapão, pusemos os pés num canto da sala alta, Amélia apertou-se com tanta força contra mim que senti bater-lhe o coração. O seu pavor não me surpreendeu, porque este novo local era ainda mais lúgubre do que aquele que acabávamos de abandonar. Contudo, aqui via-se com um pouco mais de nitidez; o bastante em todo o caso para que pudéssemos distinguir os horrores que nos rodeavam. Os construtores da torre tinham provavelmente pensado que apenas aqueles que lograssem alcançar o seu topo deviam beneficiar da luz e da vista, porque era lá em cima, somente lá em cima - tínhamos reparado nisto cá de baixo - que se avistava um certo número de janelas, ainda que fossem de uma estreiteza bem medieval. Em toda a volta, a torre era apenas perfurada por raras seteiras, tal como estava em uso nas fortalezas da Idade Média. Duas ou três destas seteiras iluminavam a sala onde nos encontrávamos; mas abriam-se tão acima na muralha, e a espessura desta era tal, que se nos tornava impossível entrever a mínima nesga de céu. Em prateleiras, ou então desordenadamente ao longo das paredes, via-se um grande número de espadas de justiça e de machados. Enormes machados com ferro largo, de gume afiado, e que só conseguíamos levantar com as duas mãos. Mesmo ao lado, duros cepos de patíbulo onde tinham rolado cabeças, e sobre os quais ainda se viam entalhes profundos que o aço aí fizera através da carne dos supliciados. Havia também, dispostos ao acaso em redor da sala, múltiplos instrumentos de tortura cujo aspecto, só por si, provocava vómitos: cadeiras guarnecidas com pontas de ferro pontiagudas, em que a dor devia ser instantânea, atroz; poltronas e catres, com estranhas protuberâncias e parecendo mais benignos, mas que, por serem mais lentos no seu efeito, nem por isso eram menos eficazes. Rodas, cinturões, botas, manoplas, colares, capazes de moer à vontade; curiosas cestas de aço adequadas, se tal fosse necessário, a reduzir insensivelmente cabeças a papas; croques de ferro com longas hastes que muito agradavam aos archeiros de vigia; facalhões a que nada resistia, e que foram outrora a arma preferida dos esbirros de Nuremberga; e muitas, muitas coisas ainda que homens tinham inventado para matar outros homens. Amélia empalideceu ao descobrir este macabro arsenal; mas com muita felicidade não desfaleceu. Contudo, como não se sentia suficientemente forte, deixou-se cair na primeira cadeira que apareceu. Voltou a pôr-se de pé, soltando um grande grito, afastada qualquer veleidade de desmaio: era uma poltrona de tortura. Pretendeu convencer-me de que a sua emoção era apenas devida ao estrago que o vestido sofrera, tanto por causa da poeira do assento como da ferrugem das suas pontas. Hutcheson teve o bom senso de aceitar esta explicação com um largo riso cordial. O principal ornamento deste museu dos horrores ainda estava por ver: era a abominação conhecida pelo nome de Virgem de ferro, e que se exibia quase no centro da sala, aí erguendo uma grosseira figura de mulher. Uma figura que tinha um pouco a forma de um sino ou, melhor ainda, o aspecto da Mãe Noé tal como a podemos ver nas pequenas arcas repletas de animais, e com que se divertem as crianças, mas sem aquela cintura fina nem as ancas bem redondas que são o apanágio da família do patriarca bíblico. Na verdade, se o construtor desta máquina não tivesse modelado a parte cimeira inspirando-se mais ou menos num rosto de mulher, teria sido muito difícil encontrar-lhe fosse o que fosse de humano. Da dita máquina, toda coberta de pó e de ferrugem, e mais precisamente de um anel soldado no seu centro, partia uma corda que depois passava sobre uma roldana fixa num dos pilares de madeira que suportavam os vigamentos do tecto. O guarda pegou na ponta pendente, puxou-a e mostrou-nos, ao fazer isto, que a parte dianteira da máquina, girando sobre dois gonzos laterais, se abria à maneira de uma porta. Notámos então que a espessura considerável das paredes da Virgem de ferro só permitira arranjar nos seus flancos um espaço muito exíguo, mas suficiente, no entanto, para ali alojar um homem. A própria porta era muito espessa; pesava muitíssimo, e o guarda, embora auxiliado pela roldana, teve que puxar a corda com toda a força a fim de abrir a máquina. Este peso - o da porta - era principalmente suportado pela parte inferior do batente, de maneira que ele pudesse fechar-se sozinho assim que largassem a corda. O interior da máquina achava-se inteiramente besuntado de ferrugem, mas não daquela ferrugem que nasce dos séculos e ataca habitualmente o ferro. Esta ferrugem era também constituída por antigas e horríficas manchas de sangue! Foi só quando nos aproximámos para ver a Virgem mais de perto que compreendemos, num ápice, o quanto ela era manifestamente diabólica: numerosos e compridos punhais quadrangulares, maciços, muito aguçados, guarneciam a parede interior da porta. Achavam-se dispostos de tal forma que se compreendia facilmente que, mal se cerrava, os do topo furavam inexoravelmente os olhos do supliciado, ao passo que os de baixo perfuravam o coração e os outros órgãos vitais. Isto era demasiado para a pobre Amélia; e, desta vez, desmaiou por completo. Tomei-a nos meus braços, desci a escada de madeira, levei-a para fora da torre até ao ponto mais próximo onde a instalei; e aguardei a seu lado que recuperasse os sentidos. Não se pode duvidar de que tivesse ficado profundamente abalada: basta-me para prova a estranha mancha que o nosso primogénito - um rapaz - mostrava quando nasceu, que ainda presentemente possui no peito, e que o círculo da família reconhece unanimemente como sendo a imagem da Virgem de Nuremberga.

Quando regressámos à sala alta, demos com Hutcheson de pé diante da Virgem de ferro. Ela dera-lhe, seguramente, muita matéria para reflectir; e entregou-nos de imediato o fruto das suas meditações, como se fosse um exórdio:

- Enquanto andavam a apanhar o fresco, compreendi uma porção de coisas. E creio que há ainda muito que aprender sobre a arte e a forma de administrar um caldinho da meia-noite. Nós, os brancos, nas planícies, pensávamos muito convictos que só os índios poderiam bater-se connosco quanto à melhor maneira de nos desembaraçarmos de um tipo. Mas agora sei muito bem que a vossa famosa Idade Média, com as suas leis e a sua justiça, era ainda mais capaz do que nós todos para este género de trabalho. O “Relâmpago” não se defendia nada mal da sua squaw, na questão papoose, mas esta engraçadinha que nos contempla bate-o largamente por mais de dez comprimentos. As suas agulhas ainda estão danadamente pontiagudas. E os nossos índios fariam muitíssimo bem se arranjassem algumas destas lindas bonecas e as expedissem para o interior mais remoto das suas reservas: isso calaria o bico aos seus matu-lões e também às suas squaws. Mostrar-lhes-ia que, embora eles sejam manhosos, ainda têm tudo a aprender com as velhas civilizações da vossa execranda velha Europa! Agora vou entrar um minuto nesta caixa, só para ver qual é o efeito!

- Oh, não, não! Isso não! - exclamou Amélia. - Seria demasiado terrível.

- O que está para aí a dizer, minha linda senhora! Nunca há nada terrível quando se faz funcionar um pouco as meninges. Eu que lhe falo já vi imensos recantos estranhos, e até coisas estranhas, na minha tramada existência. No Montana, repare, aconteceu-me passar uma noite inteira no ventre de um cavalo rebentado, enquanto disparavam sobre mim na pradaria. Noutra vez, dormi debaixo da pele de um búfalo morto, para salvar a minha dos Comanches que queriam apropriar-se dela. E depois fiquei enterrado dois dias inteiros, no Novo México, numa galeria de mina de ouro de Broncho Bill. Depois disto, fui um dos quatro tipos que se viram entalados dezoito horas debaixo de um caixote deitado de lado, enquanto trabalhavam nas fundações da ponte de Buffalo. Nunca torci o nariz perante as experiências ou as situações mais arriscadas; e não é agora que vou começar!

Tendo ficado certo de que nada o faria voltar atrás na sua decisão, adoptei o meu partido.

- Nesse caso - disse -, despache-se, meu velho, para acabarmos com isto de uma vez por todas.

- De acordo, general - aquiesceu ele.- Mas ainda não estou completamente preparado: os cavalheiros que me precederam nesta caixa de sardinhas não entraram nela de livre vontade, seguramente que não! E tenho a certeza de que devia haver um lindo trabalho de encenação antes do grande salto. Por isso quero entrar lá para dentro fazendo jogo limpo. Quero entrar devidamente amarrado e espero que este velho valente arranje corda suficiente para me atar como deve ser. Não é verdade, chefe?

O velho guarda que tinha evidentemente compreendido onde Hutcheson queria chegar, mas, apesar disso, sem apreciar plenamente todas as subtilezas especificamente ianques da sua petição, o velho guarda meneou negativamente a cabeça. A sua recusa era, porém, puramente formal e sentia-se que estava pronto a ceder. O americano meteu-lhe uma moeda de ouro na palma da mão.

- Tome então lá isto, chefe - disse ele. - É para si. E não se assuste porque não chegarei ao ponto de pedir-lhe que me ponha a corda do enforcado ao pescoço...

O guarda, indo então buscar a um canto uma corda rugosa, começou a amarrar o nosso amigo com todo o cuidado requerido. Quando o busto ficou inteiramente atado, Hutcheson interveio:

- Um minuto, senhor juiz! Sou com certeza demasiado pesado para que possa levar-me para esta caixa de sardinhas. Vou para lá sozinho e terminará o seu trabalho aí atando-me as pernas.

Ao mesmo tempo que falava, tinha deslizado para o interior da Virgem. Mas ficara muito apertado, porque ali quase não havia lugar para um homem com a sua corpulência, e não conseguia mexer-se. Amélia era toda ela olhos e, embora apavorada, absolutamente decidida a não dizer mais nada. O guarda terminou a sua tarefa atando juntas as duas pernas do americano, de tal maneira que este ficou, enfim, encaixado no côncavo da sua prisão voluntária sem nenhuma possibilidade de sair dali pelos próprios meios. Parecia extrair um verdadeiro prazer deste jogo singular, e o semi-sorriso que nunca o abandonava expandiu-se então num ápice:

- Se foi neste buraco que nasceu a nossa mãe Eva, devem tê-la retirado da costela de um anão! E não há muito espaço, neste estuporada caixa, para que um homem feito, cidadão da livre América, possa mexer-se. No nosso país, os fabricantes de caixões do Idaho têm, apesar de tudo, vistas mais largas do que isto! E agora, senhor juiz, vai fechar esta porta muito lentamente. Quero saber o que sentiram os seus rapazes nos outros tempos quando viram estes punhais aproximarem-se dos seus lindos olhos!

- Oh, não, não, não! - berrou histericamente Amélia. - É demasiadamente horrível! Não quero ver isto! Não quero ver isto! Não quero!

Mas as suas súplicas não demoveram o americano.

- Olhe cá, coronel - sugeriu ele -, leve então a sua dama a dar um pequeno passeio. Não gostaria por nenhum preço de magoá-la; mas agora que estou aqui, nesta torre, depois de ter coberto mais de oito mil milhas, desagradar-me-ia bravamente renunciar a esta experiência que me tenta fortemente. Não pode pedir-se a um homem que seja sempre razoável. O senhor juiz, aqui presente, e eu próprio vamos despachar este caso prontamente. E, quando estiverem de volta, haveremos todos de rir um bom bocado!

Mais uma vez a curiosidade se sobrepôs ao medo; e finalmente Amélia ficou, crispando os dedos sobre o meu braço, enquanto o guarda começava a largar a corda, centímetro a centímetro. Hutcheson rejubilou literalmente quando viu a porta de ferro girar no seu eixo e aproximarem-se os punhais.

- Ainda bem! - exclamou. - Nunca fui tão feliz desde que parti de Nova Iorque. Excepto em Wapping, numa grande zaragata com um marinheiro francês... e asseguro-lhes que em nada se parecia com uma reunião de pensionistas! Tirando isto, nada que me tenha realmente dado prazer neste maldito continente! Sem índios, sem grizzllis, mas apenas marinheiros que nos lançam a âncora. Devagar, senhor juiz! Não tenha pressa! Quero aproveitar bem o meu dinheiro!

O guarda devia ter nas veias um pouco do sangue daqueles que o tinham precedido nesta sinistra torre, porque manobrava a porta com uma lentidão sádica e calculada que, decorridos cinco minutos - durante os quais o rebordo exterior do batente mal percorrera a metade do percurso - começou a abalar seriamente os nervos de Amélia. Vi que os lábios lhe embranqueciam; e senti afrouxar o apertão dos seus dedos. Lancei um rápido relance de olhos à minha volta procurando um sítio onde pudesse eventualmente estendê-la; mas quando a fitei de novo, vi-a a fixar intensamente o sobrado, próximo de um dos lados da Virgem de ferro. Acompanhei-lhe o olhar e avistei a gata preta que se acercava a rastejar subrepticiamente. As suas pupilas verdes reluziam implacavelmente na penumbra, e o seu brilho era avivado pelo sangue que ainda lhe maculava o pêlo e lhe enrubescia os lábios. Foi mais forte do que eu e gritei:

- A gata! Cuidado com a gata!

Todavia o animal já tinha saltado para a frente da máquina. Apareceu-nos então como um demónio triunfante: uma labareda feroz ardia-lhe no fundo das pupilas; o pêlo tinha-se eriçado ao ponto que ela parecia ter aumentado o volume para o dobro e a cauda fremente varria o ar como a do tigre no instante de abater-se sobre a presa. Mal a viu, Elias P. Hutcheson pôs-se a sorrir com um ar francamente divertido.

- Palavra! - exclamou. - Dir-se-ia esta squaw de quatro patas sarapintou o focinho para marchar pelos caminhos da guerra! Corram com ela! Ponham-na lá fora se acham que se quer meter comigo. Amarrado como estou por este valente, nem sequer consigo mexer o dedo mínimo! A pele não corre grande risco porque torna a colar, mas não estou interessado em que me fure os olhos! Vamos lá moleza, senhor juiz! Não dê muita folga à corda, onde estou transformado em ratazana!

Neste momento preciso, uma vez mais, Amélia desmaiou, soberbamente; e se eu não a tivesse agarrado pela cintura, ter-se-ia esparramado por terra. Enquanto me ocupava dela, vi que a gata preta, recomeçando a rastejar, se preparava para saltar; e avancei para afastá-la.

Mas neste mesmo instante, com um miado demoníaco, o animal saltou não como eu julgava para cima da cabeça de Hutcheson, mas antes à cabeça do guarda. As suas garras rasgaram-lhe selvaticamente a cara, como vemos ser feito pelos dragões rastejantes das estampas chinesas. Uma das patas atingiu o olho e dilacerou a face, deixando para trás um largo traço vermelho.

Com um grito de terror - de um terror que ele sentiu antes mesmo de ter sequer consciência da dor - o velhote deitou-se bruscamente para trás, e a corda que retinha o batente de ferro escapou-se-lhe. Corri na sua direcção, mas era já demasiado tarde: a corda corria prestamente na roldana e a porta maciça que arrastava o seu próprio peso fechou-se pesadamente.

Apenas tive tempo de entrever, durante uma fracção de segundo, o rosto do nosso pobre amigo. Parecia petrificado de terror; nos seus olhos, de uma impressionante fixidez, lia-se uma angústia horrificada. Mas nenhum som saiu da sua boca.

E os punhais desempenharam a sua tarefa. Graças a Deus, o fim foi rápido porque, quando consegui reabrir precipitadamente a porta, vi que se achavam tão profundamente enterrados que tinham esmagado a caixa craniana. Então puxei o cadáver para fora do seu caixão de ferro; e, amarrado como estava, abateu-se aos meus pés com um ruído repugnante, estendendo-se de costas, a face virada para mim.

Depois regressei à pressa para junto da minha mulher. Tomei-a nos braços e levei-a para fora da torre, temendo pela sua razão se, ao recuperar os sentidos, descobrisse aquele aterrador espectáculo. Tornei a instalá-la no banco; e voltei a correr para o quarto alto. Aqui, encostado ao pilar de madeira, o guarda gemia abafadamente ao mesmo tempo que comprimia um lenço ensanguentado sobre os olhos. E a gata, sentada na cabeça do pobre americano, ronronava serenamente, enquanto lambia o sangue que escorria das órbitas.

Espero que ninguém me taxará de crueldade se confessar que empunhei uma das velhas espadas de justiça que ali estavam e que com ela rachei de alto a baixo a gata que não se mexera.

 

                                                                                Bram Stoker  

 

                      

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