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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PENULTIMA VONTADE / Philip K. Dick
A PENULTIMA VONTADE / Philip K. Dick

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O nevoeiro entrou insidiosamente desde a rua e invadiu a casa de alguém. »De pé junto da alta janela da sua biblioteca ? uma estrutura digna de Ozymandias construída a partir dos blocos de concreto que noutra era distante constituíra a rampa de acesso à autoestrada de Bayshore ? Joseph Adams meditava, olhando o nevoeiro vindo do Pacífico. E porque era o entardecer e escurecia, aquele nevoeiro assustava-o tanto quanto aquele nevoeiro anterior, ali dentro, que não invadia a casa mas antes se disseminava, espalhando-se paulatinamente por todos os cantos do seu corpo. Geralmente, este último tipo de nevoeiro recebeu o nome de solidão.
— Consegue pra mim uma bebida? ? disse melancolicamente Colleen por trás de si.
— E as suas mãos ? retorquiu ele ? , caíram? Não consegue espremer nem um limão? ? Afastando-se da janela e da sua paisagem de árvores mortas, com o Pacífico em pano de fundo e com o céu por cima de tudo, com a escuridão pairando lá sobre todas as coisas, aproximando-se cada vez mais, e por um momento chegou mesmo a considerar a hipótese de lhe arranjar a bebida. E então, de repente, compreendeu o que tinha a fazer e onde tinha de estar.
Se encaminhou até ao escritório com a mesa de tampo de mármore que salvara de uma casa bombardeada em Russian HilI, na antiga cidade de S. Francisco, aproximou-se do retorizador e apertou o comando de operação.
Resmungando, Colleen afastou-se à procura de um robô que lhe conseguisse a bebida. Joseph Adams, agora junto ao escritório e operando o retorizador, ouviu-a afastar-se e ficou satisfeito. Por qualquer razão ? mas não queria se dar a grandes trabalhos sobre esse assunto? sentia-se mais só junto a Colleen Hacket do que longe dela; e de qualquer maneira, na noite de domingo, a bebida que arranjara fora um horror; demasiadamente doce, como se, por engano, algum robô tivesse aberto uma garrafa de Tokay e ele a usasse, em vez de vermute seco, ao preparar os martinis. Ironicamente, por si próprios, os robôs nunca cometiam tais erros... seria um presságio? Joe Adams pensou:
«Será que eles estão ficando mais espertos que nós? »

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No teclado do retorizador imprimiu cuidadosamente o substantivo que desejava: Esquilo. Depois, passados uns bons dois minutos de intensa e vagarosa ponderação, teclou o adjetivo adequado: inteligente.
? Muito bem ? disse por fim bem alto, recostando-se e tocando na tecla de retorno.
O retorizador, no momento em que Colleen voltava à biblioteca com o copo de gim bem cheio, começou a transmitir-lhe a resposta:
«É um castor espertalhão», dizia na sua voz baixinha (dispunha apenas de um alto falante de alguns centímetros), «e, no entanto, a esperteza deste tipinho não lhe pertence de todo; a natureza dotou-o de...»
Oh, Deus! ? exclamou Joe Adams selváticamente, e desligou a hipócrita máquina de aço e plástico, e mais todos os seus microcomponentes; ficou silenciosa. Depois reparou em Colleen.
? Desculpa, mas estou exausto.
? Porque é que o Brose o general Holt ou o marechal Harenzany, ou alguém numa posição de responsabilidade, deixou o trabalho por fazer na noite de domingo ao invés de entre a tarde de sexta-feira e? ...
— Querido ? retorquiu Colleen suspirando. ? Te ouvi marcar apenas duas unidades semânticas. Dá-lhe mais alguma coisa para meditar.
— Vou mesmo dar-lhe muita coisa para meditar. ?
Tocou na tecla e, imprimiu uma frase inteira, enquanto Colleen ficava de pé atrás de si, olhando e sorvendo a sua bebida.
? Está tudo certo?
— Contigo, nunca sei ao certo ? comentou Colleen ? se de fato amas apaixonadamente o teu trabalho ou se o odeias. ? Leu a frase em voz alta.
 
«O ratão bem informado revirava-se loucamente sob o cepo cor-de-rosa que tinha atado a língua. »
 
— Escute ? disse depois sobriamente.
? Eu sempre quis ver o que é que este auxiliar imbecil, que me custou quinze mil dólares da Wes-Dem, vai fazer com isto. E estou falando sério; fico à espera.E depois pressionou a tecla de retorno da máquina.
— Quando é que o discurso tem de estar pronto? ? perguntou ela.
— Amanhã.
— Então levante cedo.
— Ah, não. ? Pensou para si: « É ainda pior de manhã cedo. »
O retorizador, na sua vozinha de grilo, começou a entoar em tom familiar:
«Claro que pensamos nos ratos como nossos inimigos. Basta lembrarmo-nos do seu enorme valor para nós, quanto mais não seja no campo da pesquisa sobre o câncer. O rato foi um verdadeiro servo para a humani...»
A máquina emudeceu de novo, quando ele furiosamente apertou o botão.
? ...dade ? concluiu Colleen quase indiferente; estava a inspecionar o há muito desenterrado busto autêntico de Epstein, no nicho que separava as estantes de livros da parede voltada para o ocidente, onde Joseph Adams guardava os seus livros de referência sobre anúncios de TV do já longínquo e glorioso século XX, especialmente os anúncios religiosos, as criações marcianas de Stan Freberg.
? Uma metáfora estúpida ? murmurou ela.
? Um servo rato...servos eram os jovens aldeões durante a Idade Média, e tenho a certeza de que apesar de você ser tão inteligente não sabia disso.
Acenou para um robô, que, a seu chamado, chegara à porta da biblioteca.
? Traga-me a minha capa e prepara-me o transporte junto da porta principal.
Dirigindo-se a Joe, disse:
? Vou até à minha vila. ? Perante o seu silêncio, insistiu:
? Joe, faça um rascunho do discurso inteiro sem esse auxiliar; escreve-o com as tuas próprias palavras. E já não terás «ratos servos» para te chatearem tanto.
Ele pensou para si: «Não chego sequer a admitir que o possa fazer com as minhas próprias palavras, sem aquela máquina; já estou viciado nela. »
Lá fora, o nevoeiro estava completamente vitorioso; pôde ver, com um breve relance de soslaio, que enchia o mundo até bem junto da janela da sua biblioteca. «Bom, pelo menos estamos livres de mais um daqueles brilhantes ocasos com as suas partículas radioativas em suspensão que parecem que vão durar uma eternidade. »
— O seu transporte, Miss Hackett ? anunciou o robô ? está junto da entrada principal e tenho no meu rádio que o seu motorista tipo II tem a porta aberta à sua espera. Devido aos vapores do entardecer, um dos criados domésticos do Sr. Adams espalhará ar quente à sua volta até estar satisfatoriamente instalada lá dentro.
— Jesus ? exclamou Joseph Adams, e abanou a cabeça.
Collen retorquiu:
— Foste tu que o ensinaste, querido. Apanhou esta preciosa linguagem diretamente de ti.
— Porque ? retorquiu ele, azedo ? eu gosto de pompa, circunstância e ritual.Voltando-se para ela disse suplicante: ? Brose disse-me, vindo diretamente do seu escritório em Genebra, que esse discurso devia ter o esquilo como entidade operacional. E que podemos dizer sobre eles, o que já não tenha sido dito? Que economizam; que são poupados. Todos sabemos isso. Terão ou farão mais alguma coisa conhecida sobre a qual possamos assentar qualquer maldita moral? ? E depois pensou para si:
— «Estão todos mortos. Tal forma de vida já não existe pura e simplesmente. Mas ainda continuamos a exaltar as suas virtudes... depois de os termos exterminado como raça. »
Vigorosamente, com deliberação, imprimiu então sobre o teclado do retorizador outras duas unidades semânticas. Esquilo. E.... genocídio.
A máquina declarou então:
«Aconteceu-me uma coisa engraçadíssima ontem a caminho do banco. Por acaso atravessei o Central Park e sabem como...»
Incrédulo, fitando a máquina, Joe afirmou:
— Tu atravessaste o Central Park ontem? O Central Park já desapareceu há quarenta anos.
— Joe, é apenas uma máquina. ? Já de capa, ela ficou ainda um pouco para lhe dar um beijo de boas-noites.
— Mas tudo isto é uma loucura ? protestou ele. ? E ela disse «engraçada» quando eu marquei genocídio. Você...
— São reminiscências ? comentou Colleen, tentando explicar-lhe; ajoelhou-se por momentos, tocou-lhe o rosto com os dedos e olhou-o bem nos olhos.
? Eu te amo- ? disse ? , mas vais morrer; vais dar cabo de você trabalhando assim. Através do meu escritório na Agência vou enviar um pedido formal a Brose, perguntando se podes tirar duas semanas. Tenho algo para ti, um presente; um dos meus robôs desenterrou-o junto da minha vila; legalmente dentro dos limites da minha residência, devido à recente troca feita entre os meus robôs e os do meu vizinho ao norte.
— Um livro. ? Ele sentiu um estremecimento dentro de si, a ardente chama da vida.
— Um livro particularmente bom, mesmo o original, não uma cópia. Sabes de quê?
— Alice no País das Maravilhas. ? Ouvira tanto falar dele, e sempre o desejara ter e poder ler.
— Melhor ainda. Um daqueles livros engraçadíssimos dos anos 60... e em bom estado: com as duas capas intactas. Um livro de autossugestão; Como Me Acalmei Bebendo Sumo de Cebola, ou qualquer coisa assim. Como Fiz Um Milhão de Dólares Vivendo Duas Vidas e Meia para o FBI. Ou...
Ele retorquiu então:
— Colleen, um dia olhei pela janela e vi um esquilo.
Fitando-o, ela exclamou:
? Não.
? A cauda, não nos podemos enganar por aí. É tão redonda e gorda quanto um piaçaba. E depois andam assim. ? Fez um gesto rápido com a mão, para lhe mostrar, tentando também ele próprio tentando lembrar-se.
? Dei um berro; pus quatro dos meus robôs lá fora .... ? Encolhi os ombros. ? Enfim, voltaram e disseram-me:
«Lá fora não tem nada disso, dominus», ou qualquer outro comentário do gênero. ? Por um momento ficou silencioso. Fora, é claro, uma alucinação hipnagógica, provocada por demasiadas bebidas e muito pouco sono. Ele bem o sabia. Os robôs também. E agora Colleen também o sabia. ? Mas supôs apenas ? disse então.
— Escreve com as tuas próprias palavras o que sentiste. No papel., e não ditando para um gravador. O que teria significado para ti encontrares um desses esquilos vivazes. ? E acenou mordazmente para o retorizador de quinze mil dólares.
? E não o que aquilo pensa. E...
? E até o próprio Brose ? continuou ele ? ficaria varado. Talvez o pudesse mandar depois pelo Megavac para o teclado e depois em fita; penso que iria até aí. Mas nunca para além de Genebra. Porque na verdade eu não teria dito: «Vamos lá, rapazes, para a frente e sempre. » Estaria a dizer...Meditou um pouco, sentindo-se agora em paz.
? Vou tentar ? decidiu, e levantou-se, afastando a sua antiga cadeira de balanço californiana. ? Muito bem, até o vou fazer à mão; tenho de encontrar uma... como é que lhes chamam?
— Esferográfica. Pensa no teu primo que foi morto na guerra: Ken. Depois lembra-te que és ambos. Depois descobres: caneta.
Ele concordou em silêncio.
? E depois programa-se o Megavac diretamente a partir daí. Talvez tenhas razão; poderia ser deprimente, mas pelo menos não me daria voltas ao estômago; já não teria mais aqueles horríveis espasmos pilóricos. ? E começou a procurar por toda a biblioteca... como é que ela lhe chamara?
Ainda ativado, o retorizador falava sozinho: «... e aquele tipinho; dentro daquela cabeça minúscula estava armazenada uma impressionante massa de sabedoria. Talvez mesmo bem mais do que você ou eu podemos sequer calcular. E penso que podemos aprender com ele. » E continuava monotonamente. No seu interior, milhares de componentes analisavam o problema a partir de uma dezena de tambores de data; podia continuar assim para sempre, mas Joe Adams estava distraído; encontrara uma caneta, e a única coisa de que necessitava era papel branco virgem. Diabos, com certeza que tinha algum, protestou para o robô, que esperava Colleen para a levar até ao seu transporte.
— "Põe toda a gente" ? ordenou então ? à procura de papel para eu escrever. Procurem em todas as salas da vila, incluindo todos os quartos, mesmo aqueles não utilizados neste momento. Lembro-me distintamente de ter visto um bloco ou uma resma, ou qualquer coisa dessas. Que foi desenterrado.
Por meio do seu contato direto por rádio, o robô transmitiu essa ordem e ele começou a ouvir o crescente rumor que se erguia a partir das cinquenta divisões da vila, à medida que o pessoal se começava a dedicar à nova tarefa que lhe fora cometida, a partir do ponto onde a ordem apanhara cada um. Ele, o dominus, sentia na sola dos pés o fervilhar de atividade, e parte do nevoeiro que penetrara na casa começou a sair. Ele, o dominus sentia distintamente o fervilhar da vida que daí se desprendia, apesar de não serem mais do que aquilo a que os Checos chamavam robots, a estranha designação que tinham para trabalhadores.
Mas lá fora o nevoeiro escorria pela janela.
E assim que Colleen se fosse embora, sabia-o perfeitamente, voltaria ao ataque, tentando desesperadamente invadir novamente a casa, ainda com maior determinação.
Só queria que fosse segunda-feira, e de estar na Agência, no seu escritório em Nova Iorque, com outros os homens de Yancy à sua volta. E então, aí sim, a vida que sentiria em torno de si não seria unicamente aquele movimento de coisas mortas... ou, para ser mais justo, não viventes. Seria a sua própria realidade.
? Eu te garanto ? exclamou subitamente.
? Adoro o meu trabalho. Na verdade, preciso dele; não há mais nada. Isto nunca... ? e abrangeu com um gesto a sala onde se encontravam e depois a janela escura e enevoada.
? Como uma droga ? comentou Colleen, compreensiva.
? Muito bem. ? Acenou afirmativamente com a cabeça. ? Se queres usar essa expressão arcaica. Adquiro essa.
? Mas que linguista ? comentou ela suavemente. ? E «compro». Talvez o que devesses mesmo era usar essa máquina.
? Não ? exclamou ele imediatamente. ? Tinhas toda a razão; vou recuar tudo o que puder para fazer a coisa diretamente, sozinho. ? A qualquer momento um dos seus robôs iria aparecer com o papel; tinha a certeza de que possuía papel em algum lugar. E se não tivesse trocaria alguma coisa com um dos seus vizinhos, sairia por aí, acompanhado e protegido, claro, pelo seu séquito de robôs, até um das mansões ao sul, até a propriedade de Ferris Granville.
— Ferris devia ter papel; estava, tal como anunciara a toda a gente na semana anterior pelo vídeo, a escrever, Deus nos perdoe, as suas memórias.

2
Fossem lá o que fossem essas tais memórias. Era altura de ir para casa. O relógio dizia que sim, mas... e se a corrente tivesse desaparecido novamente como acontecera quase um dia inteiro na semana anterior? O relógio podia estar atrasado por horas. «De fato», pensou morbidamente para si.
Nicholas St. James «era mesmo hora de levantar? » E o metabolismo do seu corpo, mesmo depois de tantos anos no subsolo, não lhe dava qualquer indicação.
No lavabo comum do cubículo 67-B do Tom Mix corria água: a sua mulher estava tomando uma ducha. Portanto, Nicholas procurou sobre o toucador até encontrar o seu relógio de pulso e viu as horas; concordavam os dois; portanto, estava certo. Porém, sentia-se bem desperto. Compreendeu que se tratava do caso Maury Souza; remoía- lhe todas as entranhas, fazia- -lhe o cérebro pegar fogo. «Deve ser assim quando se contrai a Praga do Saco, quando todos aqueles vírus nos penetram e nos fazem inchar a cabeça até estourar como um saco de papel. Talvez eu esteja doente. » pensou para si. «De verdade. Talvez até mais do que Souza. » E Maury Souza, o mecânico-chefe daquele abrigo, agora na casa dos setenta anos de idade, estava moribundo.
? Já estou ? disse Rita do lavabo. No entanto, o chuveiro continuava a funcionar; não saíra ainda. ? Quer dizer, pode entrar e escovar os dentes ou colocar eles no copo, ou seja lá o que você queira fazer.
«O que eu faço é apanhar a Praga do Saco... provavelmente o último maldito robô que mandaram para cá aqui em baixo não estava devidamente desinfectado. Ou então apanhei o Stink of Shrink. » E teve uma desagradável sensação física. «Imaginem só», pensou para si, «sentir a cabeça encolher até ao tamanho de um limão».
? Muito bem ? respondeu mecanicamente, e começou a desapertar as botas de trabalho. Sentia a necessidade de estar limpo; tomaria também uma ducha, apesar do severo racionamento de água em curso no Tom Mix, de resto ordenado por ele.
? «Apercebermo-nos de que quando não nos sentimos limpos estamos condenados. Tendo em conta as coisas que nos podiam sujar, as coisas microscópicas que qualquer desinfetante de metais pudesse ter deixado passar antes de apertar o botão de descida, atirando-nos para cima cem quilos de matéria contaminada, uma coisa ao mesmo tempo contaminada e suja... contaminada com radioatividade e suja de germes. Grande combinação», pensou para si.
E lá no fundo do seu cérebro novamente a mesma lembrança:
«Souza está morrendo. Que mais importa? Porque... na realidade, quanto tempo podemos nós ainda durar sem esse velhote mal-humorado? »
Aproximadamente duas semanas. Pois a quota estava em verificação dentro de duas semanas. E desta vez, para mal dos seus pecados e do seu abrigo, seria um enviado do ministro do Interior Stanton Brose, e não do general Holt. Faziam por turnos. Isso evitava, tal como afirmara uma vez a imagem de Yancy na grande tela, corrupção.
Pegando no áudio fone, ligou para a clínica do abrigo.
— Como está ele?
Na outra extremidade, a Dra. Carol Tigh, a GP a quem estava entregue a pequena clínica, disse:
— Sem alterações. Está consciente. Desça aqui; ele disse que gostaria de falar contigo.
— Está bem ? Nicholas desligou, gritou, por cima do barulho da água a correr, para Rita, que se ia embora, e deixou o cubículo; lá fora no corredor comum cruzou-se com outros, vindos das lojas e das zonas de recreio e que se dirigiam também para os seus cubículos, para a cama: os relógios estavam certos, pois pôde observar vários com os seus roupões e chinelos. Era realmente hora de deitar, concluiu. Mas sabia que ainda não podia dormir.
Três pisos mais abaixo, na clínica, atravessou salas de espera vazias ? a clínica estava fechada, exceto para os doentes ? e depois passou pelo posto da enfermeira; a enfermeira levantou-se respeitosamente para o cumprimentar, pois, de qualquer das maneiras, Nicholas era o presidente eleito, e depois deu por si diante da porta fechada do quarto de Maury Souza, com a tabuleta:
SILÊNCIO ? NÃO INCOMODE.
Entrou.
Sobre a larga cama branca jazia algo espalmado, algo tão esquálido que quase não se podia distinguir, como se fosse algo indistintamente observável num tanque que absorvia mais a luz do que a que refletia. O tanque onde se encontrava o velho- era um consumidor de energia de todos os tipos, apercebeu-se Nicholas, à medida que se aproximava da cama.
«Isto é só uma casca que para aqui está; foi esvaziado como que por uma estranha aranha; uma aranha, ou melhor, para nós, no submundo, uma sub-aranha. Mas mesmo assim, uma devoradora de existência humana. Mesmo aqui nesse abismo tão fundo. »
Da sua amorfa imobilidade, o ancião moveu os lábios.
— Olá.
— Olá, velho de cabeça dura ? retorquiu Nicholas, e aproximou uma cadeira da cama.
? Como te sentes?
Passados alguns momentos, como se as palavras de Nicholas tivessem demorado todo esse tempo a atingi-lo ? essa enorme viagem através do espaço ? o velho mecânico respondeu:
— Não muito bem, Nick.
«Não sabes o que tens», pensou Nicholas. «A menos que Carol te tenha dito desde a última vez que falei com ela sobre ti. » Olhou para o velho mecânico, tentando descobrir se este teria algum pressentimento. A pancreatite era fatal em quase cem por cento dos casos, bem o sabia; Carol informara-o. Mas claro que ninguém lhe dissera e nem ele diria isso a Souza, pois poderia de repente acontecer um milagre.
— Vais aguentar ? disse Nicholas desajeitadamente.
— Escuta, Nick. Quantos robôs fizemos este mês?
Pensou se devia mentir ou dizer a verdade. Souza estava ali naquela cama há oito dias; certamente perdera toda a noção, não poderia ir verificar os seus números. Portanto, mentiu:
— Quinze.
— Então... ? Uma pausa de meditação; Souza olhava para cima, nunca virou os olhos para Nicholas, como se os estivesse a esconder de vergonha.
? Ainda podemos fazer a nossa quota.
— E isso o que me importa ? retorquiu Nicholas ? , que façamos a nossa quota? ? Estivera sempre com Souza; ali fechados no Tom Mix durante todo o período de guerra; durante quinze anos. ? O que me interessa é se... ?
Meu Deus, uma palavra errada; e já impossível de emendar.
— Se eu puder sair daqui ? murmurou Souza.
— É claro que eu queria dizer quando. ? Estava furioso consigo próprio. E agora podia ver Carol junto da porta, com o seu ar todo profissional, de bata branca, sapatos de salto raso, trazendo o bloco onde certamente estava o registo de Souza. Sem dizer uma palavra, Nicholas levantou-se, afastou- -se da cama e, cruzando-se com Carol, passou para o corredor.
Ela seguiu-o. Ficaram por momentos no corredor vazio, até que Carol falou.
— Ele vai viver mais uma semana e depois morre. Quer a tua língua se entaramele e diga «quando» ou «se» ou se tu...
— Disse-lhe que as nossas oficinas tinham fabricado uns quinze robôs este mês; cuidado vê lá se ninguém lhe diz outra coisa.
— Tanto quanto ouço dizer ? retorquiu ela ? foram mais ou menos cinco.
— Sete ? respondeu ele, não porque ela fosse a sua médica e alguém de quem eles dependiam, mas devido à relação. Dizia sempre tudo a Carol; era um dos vícios emocionais que o acorrentavam, que o ligavam a ela: Carol, o que era raro, podia ver além de qualquer tentativa de impostura, até mesmo para além das pequenas mentiras quotidianas, tão inocentes. Portanto, para que havia de tentar mentir, agora? Carol nunca quis saber de palavras bonitas; vivia pela verdade. Mais uma vez o conseguira.
— Então não vão obter a quota ? retorquiu ela. Apenas como uma mera constatação.
Ele confirmou com a cabeça.
— Em parte porque eles pediram três do tipo VII, o que é bastante duro; isso põe as oficinas em polvorosas. Se tivessem sido todos do tipo III ou IV.
? Mas tal não tinha sido assim, nunca fora nem nunca seria. Jamais.
Enquanto durasse a guerra na superfície.
? Sabes que ? continuou Carol ? na superfície podem encontrar-se pâncreas... artificiais. Claro que já deves ter considerado essa possibilidade, tendo em conta a tua posição oficial.
Nicholas respondeu.
— É ilegal. Só para os hospitais militares. Prioridade máxima. Escalão 2-A. Não estamos nessa posição.
— Dizem que...
— E se depois formos apanhados. ? Seguir-se-ia certamente um rápido conselho de guerra e depois a execução, se alguém fosse apanhado a fazer negócio no mercado negro. De resto, bastava ser apanhado lá em cima por qualquer razão.
— Tens medo de ir lá acima? ? perguntou Carol, com a sua rápida, incisiva perspicácia.
— Claro. ? E reforçou a afirmação com um aceno de cabeça; era a verdade. Ele podia escolher viver por mais 15 dias: antes de morrer devida à incapacidade da medula vertebral em fabricar mais glóbulos vermelhos. Uma semana: a Praga do Saco ou o Stink of Shrink ou Raw-Ckaw-Paw, e já começava a ficar com a fobia dos germes; já umas semanas antes se fora abaixo com o respectivo trauma, como acontecia virtualmente com todos os habitantes dos abrigos, e sem que nenhum caso de qualquer dessas epidemias tivesse ocorrido no Tom Mix.
— Poderia convocar uma reunião ? concordou Carol ? reunir todos eles... bem sabes, todos aqueles em quem podes confiar. E depois pedir um voluntário.
— Deus que me livre e guarde. Se vai alguém, sou eu. ? Mas ele não queria mandar ninguém, porque sabia como era lá em cima. Ninguém poderia regressar, pois qualquer arma homotrópica, se não mesmo o tribunal, o seguiria até à morte. E isso talvez apenas numa questão de minutos que era o mais provável.
E as armas homo trópicas eram insidiosas; atuavam de uma forma atroz.
Carol comentou então:
— Sabes muito bem que estás desesperado para salvares o velho Souza.
— Adoro-o ? retorquiu. ? Bem acima e para lá das oficinas, da quota, e de toda essa tralha. Teria ele alguma vez, durante todos estes anos que estivemos juntos, recusado algo a alguém? A qualquer hora da noite, um cano de água furado, uma quebra de energia, uma queda de protina... vinha sempre e arranjava, e punha tudo a andar (funcionar) de novo. ? E, uma vez que Souza era, oficialmente, o mecânico-chefe, poderia ter mandado qualquer dos seus cinquenta assistentes, e continuado a dormir. Nicholas aprendera com o velhote: «És tu que tens de fazer o trabalho... e não deves deitar tudo para cima dos ombros dos subordinados. »
«E tudo enquanto», continuou a meditar para si, «as ruínas da guerra continuam a cair em cima de nós. Construindo os combatentes metálicos em oito modelos básicos, e tudo isso, com o Governo de Estes Park, os funcionários de Wes-Dem e o próprio Brose em pessoa sempre em cima de nós, sempre no nosso encalço. »
E como se as palavras tivessem obscuramente produzido o seu efeito inesperado, uma figura cinzenta e imprecisa começou a deslocar-se rapidamente na sua direção pelo vestíbulo. O comissário Dale Nunes, era ele; ansioso, ocupadíssimo, sempre sob a pressão das suas funções.
— Nick! ? Ofegante, Nunes lia diretamente de um pedaço de papel. ? Um grande discurso dentro de dez minutos; liga todos os circuitos dos cubículos e manda toda a gente para a Sala Redonda: temos de acompanhar isso juntos porque depois seguem-se as perguntas.
? É sério? Os seus rápidos olhos de pássaro moveram-se num espasmo de angústia.
? Falo sério, Nick, pelo que ouvi pelo coaxial, foi Detroit inteira; penetraram no último reduto.
? Jesus? Nicholas exclamou. E aproximou-se pensativo de um dos consoles do circuito que ligava diretamente com todos os pisos e alojamentos do Tom Mix. ? Mas está tudo deitado ? comentou para o comissário Nunes. ? Muitos estão a despir-se ou a deitar-se; não poderiam utilizar os seus vídeos individuais?
As perguntas ? retorquiu Nunes agitado.
? Eles vão subir as quotas devido a esta derrota de Detroit... é disso que eu tenho medo. E quero ter a certeza de que todas as pessoas conheçam o motivo, se for caso disso. ?
Ele não parecia nada contente.
Nicholas disse então:
? Mas, Dale, você conhece muito bem a nossa situação. Nem sequer podemos...
? Você irá reuni-los na Sala Redonda, O.K.? Podemos conversar depois. Abrindo o microfone, Nicholas disse, dirigindo-se a todos os cubículos do abrigo-fábrica:I
? Amigos, aqui fala o presidente St. James, e lamento muito, mas todos temos de ir para a Sala Redonda dentro de dez minutos. Venham assim mesmo como estão; não se preocupem com isso... um roupão já serve perfeitamente. As notícias são graves.
Nunes murmurou:
? Certamente Yancy vai falar: foi o que me disseram.
? O Protetor ? continuou Nicholas ao microfone, e conseguiu ouvir a sua voz ressoar por todo o corredor deserto da clínica, como de resto devia acontecer por todo o lado na grande fábrica-refúgio subterrânea, com as suas quinhentas almas humanas ? vai dirigir-se a nós, ao que sei. E depois podemos fazer perguntas.
Desligou o microfone colocando-o no suporte sentindo-se destroçado. Não era realmente uma altura razoável para lhes dar más notícias. E a isso se somava a gravidade de Souza e a quota e a reunião que tinha de convocar...aproximava...
? Eu não posso deixar o meu paciente? disse Carol.
Irritado, Nunes comentou:
? Mas me mandaram- reunir todo mundo, doutora.
? Então ? retorquiu Carol num rasgo daquela inteligência superior que levava Nicholas a amá-la e a receá-la ao mesmo tempo ? , o Sr. Souza deve levantar-se e vir também. Se essa ordem é para ser cumprida ao pé da letra...
Deu resultado. Nunes, apesar de toda a sua rigidez burocrática, a sua determinação quase neurótica em cumprir ao pé da letra toda e qualquer ordem, enviada ali para eles ? por seu intermédio ? abaixou a cabeça.
? O.K., fica aqui. ? Dirigindo-se a Nicholas, disse:
? Vamos. ? E começou a afastar-se, curvado ao peso da consciência; a sua tarefa principal era vigiar a sua lealdade: Nunes era o comissário político do abrigo, o seu comissário-político.
Cinco minutos mais tarde, Nicholas St. James estava já sentado, ereto e formal, na sua cadeira de presidente, ligeiramente mais alta, na primeira fila da Sala Redonda; atrás de si estavam já todos reunidos também, impacientes e murmurantes, em reboliço surdo, olhando sem exceção, ele incluído, para a tela que cobria todo o espaço do chão ao teto. Aquela era sua janela aberta para o mundo exterior.
— A sua única janela ? para o mundo lá em cima, e era verdade que levavam bastante a sério tudo o que se passava na sua superfície gigantesca.
Ficou-se uns momentos a pensar se Rita teria ouvido a sua chamada ou se estaria ainda entretida no chuveiro, chamando-lhe de vez em quando sem receber resposta.
— Há algum avanço? murmurou Nunes para Nicholas ? no estado de saúde do velho Souza?
— Com uma pancreatite... está brincando?
Aquele comissário era um idiota.
— Já mandei mais de quinze memorandos ? continuou Nunes ? para os tipos lá de cima.
— E nenhum desses quinze ? comentou Nicholas ? era um pedido formal para mandarem um pâncreas artificial que permitisse a Carol fazer um transplante. Não é isso?
— Só pedi uma suspensão da inspeção ? respondeu Nunes quase suplicante se desculpando. ? Nick, a política é a arte do possível; podemos conseguir uma suspensão, mas nunca um pâncreas artificial; pura e simplesmente não são acessíveis. Em vez disso temos de pôr Souza de lado e promover um dos mecânicos do escalão inferior, como Winton ou Robbs ou...
De um momento para o outro a grande tela comum passou do seu cinzento baço para um branco brilhante. E o sistema sonoro disse:
— Boa noite.
Na Sala Redonda, a ampla audiência de mil e quinhentas pessoas murmurou:
— Boa noite.
Era apenas uma formalidade legal, pois nenhum áudio-receptor não levava nenhum áudio para cima: as linhas só transportavam dados num único sentido; para baixo. De cima para baixo.
— Boletim Informativo ? continuou a voz do locutor. Na tela, uma fotografia imóvel: edifícios em plena desintegração suspensos no ar. E depois a fita começou a mover-se novamente. E os edifícios, com o ruído odioso de longínquos tambores rufando, desfizeram-se em poeira e caíram, desintegrando-se; o seu lugar foi ocupado por fumaça e, quais formigas, inúmeros robôs que certamente habitavam Detroit fugiam correndo, como que saídos de um jarro entornado. Depois eram eliminados sistematicamente por forças invisíveis.
O som subiu ainda mais; os tambores soaram mais forte e a câmara, sem dúvida filmando de um satélite espião ocidental, centrou-se sobre um grande edifício público, biblioteca, igreja, escola ou banco; talvez todos ao mesmo tempo. Mostrava, um pouco ao retardador, a solidez da estrutura que o suportava à medida que se ia desintegrando. Os objetos eram levados de novo até às suas origens poeirentas. «E podíamos ter sido nós, ali em cima, e não robôs», pois ele próprio vivera um ano em Detroit, quando criança.
Felizmente para todos, comunistas e cidadãos dos E. U. A., a guerra rebentara numa colônia, numa confusão para a qual os dois blocos, Wes-Dem e Pac-Peop, tinham contribuído igualmente. Pois naquele primeiro ano de guerra em Marte as populações da Terra puderam pura e simplesmente se refugiarem bem embaixo na terra. «E», pensou ele para si, «ainda aqui estamos, o que não será assim grande coisa, mas é muito melhor do que aquilo»; olhou fixamente a tela, viu um grupo de robôs se derreter ? e, para seu grande horror, tentando ainda fugir à medida que se iam derretendo. Virou os olhos com desgosto.
— É horrível ? comentou atrás de si o comissário Nunes, de rosto sombrio.
Subitamente, no assento situado ao lado direito de Nicholas apareceu Rita, de roupão e chinelas; com ela o irmão mais novo de Nicholas, Stu. Olhando ambos atentamente para a tela, não lhe disseram nenhuma palavra, como se ele não estivesse ali. De fato, naquele momento, todas as pessoas na Sala Redonda estavam isoladas pela catástrofe que se desenrolava na gigantesca tela de TV, até que finalmente e o locutor expressava-se em voz alta o que todos pensavam.
— Isto... era... Detroit.
Em 19 de Maio do ano do Senhor de 2025. Amém. Uma vez defeituoso o escudo defensivo que protegia a cidade, só foi preciso alguns segundos para aniquilar e destruir a cidade.
Durante quinze anos Detroit resistira intacta. Finalmente o marechal Harenzany e o seu Soviete Supremo podiam já arranjar um pintor que lhes pintasse, como símbolo de mais um tiro certeiro, uma pequena esfera na porta da sala. Que mais uma cidade americana fora varrida do mapa.
E, no cérebro de Nicholas, por entre o horror da visão de ver decapitada mais uma das remanescentes e poucas capitais da civilização ocidental ? que amava e em que acreditava verdadeiramente? , e que se solapou de novo um pensamento egoísta, mesquinho e de interesse pessoal. Tudo isto quer dizer uma quota maior de produção. À medida que cada dia menos ia ficando à superfície mais teria de ser exigido àqueles que se encontravam no subsolo.
Nunes murmurou:
— Yancy vai explicar agora como é que aquilo pôde acontecer. Portanto, prepare-se. ? E Nunes, claro, tinha razão, pois o Protetor nunca desistia; tinha aquela enorme grandeza de ânimo e desprendimento que Nicholas tanto apreciava nele, e que lhe permitia admitir que o golpe fora mortal. E, que, porém...
«Eles expulsaram-nos», compreendeu Nicholas... «e nem mesmo tu, Talbot Yancy, nosso chefe espiritual, político e militar, que és suficientemente corajoso para viveres na tua fortaleza nas Rochosas: nem mesmo tu, bom amigo, podes desfazer o que acaba de ser feito. »
— Todos Norte Americanos ? proferiu a voz de Yancy, sem nem sequer mostrar um mínimo sinal de cansaço. Nicholas ficou espantado com o vigor daquela voz e pestanejou. Yancy parecia quase não estar afetado pelo que se passara, mantendo-se fiel à sua férrea disciplina que lhe haviam inculcado em West Point; observava tudo, aceitava e compreendia, mas sem que qualquer emoção perturbasse o seu calmo e frio raciocínio.
Acabaram de ver ? continuou Yancy com a sua voz baixa e serena de homem de meia-idade, a voz de um velho guerreiro, de corpo ainda ereto e de espírito alerta; pronto para mais alguns anos... ao contrário daquela coisa esquelética e moribunda jazendo na cama da clínica constantemente observada por Carol.
? Vocês acabaram de ver, repito uma coisa terrível. De Detroit não resta nada, e, como sabem, bastante material de guerra emergia diariamente das suas fábricas, automáticas ao longo de todos estes anos, e agora tudo isso está perdido. Mas não sacrificámos nenhuma vida humana, a única coisa que não podemos nos dar ao luxo de perder.
? Muito bom ? murmurou Nunes, tirando notas.
De repente, mesmo ao lado de Nicholas, apareceu Carol Tigh, com a sua bata branca e os seus sapatos de salto baixo; ele levantou-se instintivamente, saudá-la.
Ele faleceu ? disse apenas Carol. ? Souza. Mesmo agora. Congelei-o imediatamente; eu estava ali mesmo junto da cama portanto não se perdeu tempo. Os tecidos cerebrais não devem ter sido afetados. Ele só... se foi. Tentou sorrir, até que as lágrimas lhe encheram os olhos. O que o chocou; nunca vira Carol chorar, e ele ficou horrorizado, como se aquilo que os seus olhos presenciavam fosse perigoso.
— Havemos de superar esse revés ? continuava a dizer o sistema sonoro da transmissão coaxial da fortaleza de Estes Park, e agora na tela era a vez de aparecer o rosto de Yancy, enquanto se iam desvanecendo as imagens da guerra e das suas nuvens de matéria em suspensão ou completamente desintegrada em gases de calor. E era mais uma vez aquele homem erguido e firme na sua enorme sentado atrásde sua enorme mesa de carvalho, num lugar qualquer escondido onde osSoviéticos, mesmo com os seus mais aperfeiçoados e recentes mísseis termo nucleares chineses.
Nicholas fez com que Carol se sentasse, e lhe indicou com o dedo para que ela olhasse para a tela.
— A cada dia que passa ? dizia Yancy, e falava com orgulho, um orgulho sensato e razoável ? estamos cada vez mais fortes. Não cada vez mais fracos. Vocês estão cada vez mais fortes. ? E, santo Deus, estava ali mesmo, a olhar bem nos olhos de Nicholas, Carol e Dale Nunes e Stu e Rita e de todos eles ali no Tom Mix, de todos exceto nos de Souza, que estava morto... «E quando se está morto», pensou para si Nicholas, «ninguém, nem mesmo o Protetor, pode dizer que estamos cada vez mais fortes. Porque quando ele morreu, uma parte, de todos nós morreu com ele. A menos que esse pâncreas possa ser obtido num mercado negro qualquer com acesso aos hospitais militares, a qualquer preço. »
« Mais cedo ou mais tarde », compreendeu Nicholas, «apesar da lei que o proíbe, terei de subir à superfície. »

3
Quando a imagem desmesurada do rosto duro e inquebrantável de Talbot Yancy desapareceu da tela para ser substituída novamente para a cinzenta tela de costume, o comissário Dale Nunes pôs-se em pé de um salto e disse para a assembleia:
— E agora, amigos. Perguntas.
A audiência manteve-se inerte. Tão inerte quanto lhe era possível... e safou-se. Levado pelas suas obrigações de eleito, Nicholas levantou-se e colocou- -se ao lado de Dale.
— Tem de haver diálogo entre nós e o Governo de Estes Park ? disse então.
Vinda da parte mais longínqua da sala, uma voz aguda ? tanto podia ser de um homem como de uma mulher ? , perguntou:
— Presidente St. James, é verdade que Maury Souza morreu? Estou a ver aqui a Dr.a Tigh.
Nicholas respondeu:
— Sim. Mas foi submetido a um congelamento rápido, portanto ainda há esperanças. Agora, minha gente, ouviram falar o Protetor. Antes disso puderam presenciar a infiltração e destruição de Detroit. Como sabem já estamos atrasados na nossa produção; temos de fornecer vinte e cinco robôs estes mês, e no próximo...
— No próximo mês o quê? ? perguntou uma voz vinda da multidão, amarga e desencantada. ? Já não estaremos aqui para o mês que vem.
— Estaremos, sim ? retorquiu Nicholas. ? Podemos sobreviver a uma inspeção. Não se esqueçam. A primeira penalização é apenas um corte de cinquenta por cento nos fornecimentos de comida. Só depois disso é que qualquer de nós pode receber as ordens de recrutamento, e mesmo então elas pararão nas dízimas... um entre cada dez homens. Só se não cumprirmos três meses seguidos é que podemos ficar sujeitos a um possível... e digo bem, possível... encerramento. Mas temos sempre recursos legais; podemos mandar o nosso advogado perante o Supremo Tribunal de Estes Park, e asseguro-vos que é o que faremos antes de aceitarmos qualquer encerramento.
Outra voz inquiriu:
— Já se pediu novamente um substituto para o mecânico-chefe?
— Sim ? respondeu Nicholas. «Mas no Mundo não há mais Maury Souza», pensou para si. «Talvez noutro abrigo. E de entre os... qual fora o último número fornecido... cento e sessenta mil abrigos do Hemisfério Ocidental nenhum vai sequer negociar a cedência de qualquer mecânico-chefe verdadeiramente bom, e isso mesmo, se pudéssemos contatar com alguns dos outros abrigos. Há uns cinco anos atrás, quando aquele abrigo mais ao norte, o Judy Garland, conseguiu abrir aquele túnel horizontal até nós e nos implorou (literalmente implorou) um simples empréstimo de Souza. Apenas por um mês. E nós dissemos que não. »
— Muito bem ? disse bruscamente o comissário Nunes, uma vez que não fora colocada qualquer outra pergunta voluntária. ? Vamos ter de fazer um teste para ver se a mensagem do Protetor foi bem compreendida.
E apontou para um jovem casal de recém-casados. ? Qual foi a causa da ineficácia á nossa barreira Protetora no tomo de Detroit? Levantem-se e digam os vossos nomes, por favor.
Com enorme relutância, o casal lá se levantou; o marido disse:
— Jack e Myra Frankis. O nosso insucesso deveu-se à utilização do novo míssil dos Pac-Peop, o tipo 3, Galatea, de desintegração, que conseguiu produzir partículas submoleculares. Cálculo ou qualquer coisa desse gênero. Sentou-se rapidamente, arrastando a mulher nesse movimento.
— Muito bem ? comentou Nunes; era aceitável. ? E por que razão é que a tecnologia dos Pac-Peop se pôde colocar temporariamente à frente da nossa? ? Olhou em volta, procurando uma vítima para o interrogatório. ? Terá sido uma falha na nossa direção?
A mulher de meia-idade e de aparência solteirona levantou-se.
Miss Gertude Prout. Não, não se deve a qualquer falha na nossa direção. ? E sentou-se de novo.
— Então deve-se a quê? ? continuou Nunes, ainda para ela. ? Faz favor de se levantar, Madame, quando responder. Obrigado. ?
Miss Prout levantara-se novamente.
? Será que nós falhámos? ? Interrogou-a Nunes.
? Não este abrigo, mas nós, os seus habitantes, produtores de material de guerra em geral?
— Sim ? disse então Miss Prout com a sua vozinha frágil e obediente.
? Não fomos capazes de fornecer... ? e parou; não se conseguia lembrar do que é que não tinham sido capazes de fornecer. Seguiu-se um silêncio pesado e incômodo.
Nicholas interveio:
? Gente, nós produzimos o instrumento fundamental com o qual é conduzida a guerra; é porque os robôs conseguem viver na superfície radioativa, no meio daquela multiforme argamassa de bactérias e vapores destruidores...
? Gases ? corrigiu Nunes.
? ... que ainda estamos vivos. Devemos as nossas vidas a estes objetos construídos nas nossa oficinas. É vital que compreendamos porque é que devemos...
— Eu trato disto ? interrompeu Nunes tranquilamente.
Nicholas retorquiu:
— Não, Dale. Falarei eu.
— Você acabou de proferir uma afirmação antipatriótica. O gás neural destruidor foi uma invenção dos E. U. A. Agora, posso ordenar-lhe que se sente.
— No entanto ? retorquiu Nicholas
? Eu não o farei. Esta gente está cansada; não é hora para ficar perturbando-as. Com a morte de Souza...
? Você está equivocado: esta é exatamente a melhor hora para as perturbar ? interrompeu Nunes, e eu fui treinado, Nick, no Instituto Psiquiátrico Waffen-Institute de Berlim, pelos assistentes do próprio Dr. Morgen, e sei perfeitamente o que eu estou fazendo. ? Levantou a voz, dirigindo-se à audiência.
? Como todos compreendem, o nosso mecânico-chefe...
Vindo da multidão ergueu-se uma voz hostil e irônica.
— Vamos lá, ver: vamos lhe dar um saco cheio de nabos, Sr. Comissário. Ou melhor Comissário político, Nunes, senhor. E vamos ver a garrafa de sangue que consegue de lá espremer. O. K.? ? Aqui e além as pessoas murmuravam, em aprovação, concordando.
— Eu bem lhe disse ? murmurou Nicholas para o comissário, que ficara todo vermelho e escrevia apressadamente notas com os seus dedos a tremer espasmodicamente. ? Agora vai deixá-los voltar para a cama?
Alto, Nunes exclamou:
Há aqui um desentendimento entre o vosso presidente eleito e eu. Transigindo um pouco, farei apenas mais uma pergunta. ? E parou, observando-os a todos; com um receio já algo fatigado, eles esperavam. A única voz que se levantara hostil estava agora silenciosa; Nunes dominara-os, pois Nunes, e apenas ele no abrigo, não era um cidadão comum, mas um funcionário da própria Wes-Dem e podia, se assim o entendesse, mandar chamar policiais bem vivos e humanos lá de cima ou, se os agentes de Brose não se encontravam suficientemente perto, podia mandar chamar um comando de robôs veteranos do general Holt.
? O comissário ? disse então Nicholas ? vai colocar uma outra questão. E depois, graças a Deus, vamos todos para a cama. ? E sentou-se.
Nunes, refletindo, disse numa voz lenta e fria.
— Como é que podemos compensar o Sr. Yancy do nosso fracasso?
Nicholas gemeu para dentro de si. Mas ninguém, nem mesmo o próprio Nicholas, tinha qualquer poder legal para deter aquele a quem a voz hostil que se erguera chamara de comissário-político. E no entanto, à face da lei, isso não era de todo mau. Pois através de Nunes existia uma ligação humana direta entre aquele abrigo e o Governo de Estes Park; teoricamente, por intermédio de Nunes podiam responder e o diálogo, mesmo naquele momento, em plena guerra mundial, podia estabelecer-se entre os abrigos Governo.
Mas era penoso para os habitantes do refúgio estarem sujeitos às tácticas psicológicas de Dale Nunes sempre e quando Dale ? ou melhor, sempre e quando os seus superiores na superfície ? , como naquele momento, em plena hora de sono, achavam por bem aplicá-las. Mas também havia que considerar as alternativas.
Já lhe fora sugerido (e ele rapidamente, com grande e deliberado esforço, esquecera para sempre os nomes daqueles que se lhe tinham dirigido para tal) que se podia fazer desaparecer o comissário-político durante uma noite tranquila qualquer e silenciosa. «Não», retorquira Nicholas. Isso não servirá de nada. Porque eles mandarão outro. E... Dale Nunes é um homem. Não uma força. E eles acharão preferível ter de tratar com ele e não com uma força abstrata como o Governo de Estes Park, apenas através da tela da TV, que poderão ver e ouvir... Mas a quem não poderão replicar.
Portanto, por muito desagradável que lhe fosse a pessoa do comissário Nunes, Nicholas aceitava a necessidade da sua presença no Tom Mix. Os radicais que se lhe tinham dirigido, alta noite, com as suas ideias sobre aquela solução imediata e simples para o problema do comissário-político, tinham sido firmes e completamente dissuadidos. Ou pelo menos era esse o desejo de Nicholas.
De qualquer das maneiras Nunes ainda estava vivo. Portanto, aparentemente, as suas recomendações aos radicais tinham sido convincentes... e isso passara-se há três anos, quando Nunes começou a praticar suas atitudes intimidadoras.
Por vezes se perguntava se Dale Nunes alguma vez suspeitara. Se alguma vez imaginara quanto estivera à beira do assassínio, e que fora Nicholas que os convencera a não o cometerem.
Como seria interessante saber qual seria a reação de Nunes. Gratidão? Ou ... desprezo?
Naquele momento, Carol estava a fazer gestos na sua direção, acenando-lhe bem à vista de toda a assembleia ali reunida na Sala Redonda. Enquanto Dale Nunes percorria as filas com os olhos procurando alguém que respondesse à sua pergunta, Carol ? incrivelmente ? gesticulava para Nicholas, expressando que ambos tinham de sair dali... imediatamente.
A seu lado, a sua mulher, Rita, viu os gestos, a gesticulação; cara de pau, olhou deliberadamente para a frente, como se não tivesse visto nada, ao escolher o seu alvo. Dale Nunes também viu finalmente e franziu o cenho.
No entanto, obedientemente, Nicholas acompanhou Carol pela e depois saíram da Sala Redonda, para o corredor deserto e solitário.
— Por todos os santos, o que é que foi? ? perguntou-lhe ela por fim. A julgar pela maneira como Nunes olhara para eles quando saíam... ouviriam notícias suas muito em breve.
— Quero que assine a certidão de óbito ? retorquiu Carol, dirigindo- -se para o elevador. ? Para o pobre e velho Maury...
— Mas porquê agora? ? Havia mais qualquer coisa; ele bem sabia.
Ela não respondeu; ambos ficaram calados durante a descida até à clínica, até à cabine de congelação onde jazia o corpo rígido ? olhou rapidamente, depois saiu da cabine para assinar os impressos que Carol preparara, cinco cópias ao todo, cuidadosamente datilografadas e prontas para serem enviadas pela linha vídeo para os burocratas na superfície.
Depois, de sob a frente abotoada da sua bata branca, Carol tirou um minúsculo aparelho eletrônico que ele percebeu ser um gravador camuflado, Retirou a fita, abriu a porta metálica de um armário, que aparentemente seria de material médico ? e deixou-o ver por momentos outras fitas gravadas e outros instrumentos eletrônicos, nenhum deles relacionados, tanto quanto podia saber, com medicina.
? Que é que está se passando? perguntou ele, desta vez controlando-se mais. Era óbvio que ela queria que ele fosse, testemunha do gravador e do reservatório de fitas gravadas que guardava longe das vistas dos outros. Embora ele a conhecesse tão intimamente como a qualquer outro no Tom Mix, tudo aquilo era novidade.
Carol disse por fim:
— Gravei o discurso de Yancy. Pelo menos a parte em que lá estive.
— E aquelas outras fitas gravadas no armário?
Tudo de Yancy. Discursos anteriores. Desde o ano passado.
— E isso é legal?
Carol respondeu, enquanto juntava as cinco cópias da certidão de óbito de Maury Souza e as introduzia na ranhura do transmissor xerox que as levaria até aos arquivos de Estes Park:
— Na realidade é legal. Eu me informei-.
Mais aliviado, ele continuou:
? Às vezes chego a pensar que você é louca. Disse ele mais aliviado «? A mente de Carol com efeito seu pensamento estava situado sempre, num lugar estranho qualquer, brilhando e ecoando plenamente, e despistando-o eternamente; nunca a conseguia acompanhar; portanto, o seu respeito por ela não parava de crescer.
? Explique-se ? ele disse.
? Você já reparou? começou Carol ? que Yancy, nos seus discursos do mês de Fevereiro passado, quando usou a frase coup de grâce, pronunciou esta última palavra como «gras». E em Março pronunciou a mesma frase... ? do armário de ferro tirou uma folha de registos e se pôs consulta-los. ? No dia 12 de Março. Pronunciou «cu de grah». Depois, em Abril, dia quinze, foi novamente «gras». Dirigindo os olhos, com uma mirada perspicaz, de relance fitando os olhos de Nicholas.
Ele encolheu os ombros, fatigado, irritado.
? Olha Carol deixa-me ir deitar; falamos disto outra hora...
? Depois? ? Carol continuou inflexível.
? Em 3 de Maio, ele voltou a usar esse termo. Aquele discurso memorável no qual anunciou a completa destruição de Leninegrado... ? e levantou novamente os olhos para as suas anotações.
? Aqui ele voltou a dizer «cu de grah», sem o «S».
Com a pronúncia antiga. ? Voltou a pôr a folha dentro do armário e fechou a porta à chave.
Ele reparou que ela utilizara não apenas uma chave, mas também a pressão dos dedos; mesmo com um duplicado da chave, ou com a sua chave, a porta ficaria sempre fechada. Só ela a poderia abrir.
? E daí, onde você quer chegar?
Carol retorquiu:
— Não sei. Mas tem de ter algum significado. Quem é que combate à superfície?
— Os robôs, é claro.
— E onde estão os seres humanos?
— O que é isto, outra vez o comissário Nunes, nos interrogando a uma hora destas, quando devíamos estar...
? Eles estão em abrigos ? continuou Carol contestando a sua própria pergunta ? Abaixo da superfície. Como nós. Agora, quando se pede um órgão artificial dizem-nos que só podem ser fornecidos para os hospitais militares, que supomos que presumivelmente estão na superfície.
— Não sei ? retorquiu ele, nem me interessa saber onde estão os hospitais militares. Só sei que eles têm prioridade, e nós não.
Carol observou então:
? Mas homem de Deus, se são os robôs que estão combatendo, para que eles precisam de hospitais militares? Para os robôs? Não, porque mandam os robôs danificados para as oficinas. E um robô é um artefato mecânico, não tem pâncreas. Claro que há alguns humanos na superfície, claro; o Governo de Estes Park. E nos Pac-Peop, os Sovietes. Serão para eles os pâncreas?
Ele estava silencioso; os argumentos de Carol lhe haviam deixado completamente desconcertado.
? Há algo que não se encaixa ? concluiu ela ? algo errado. Não podem existir hospitais militares porque não há civis nem militares a participarem nos combates e que, portanto, precisem de órgãos artificiais. Porém, não nos dão os órgãos artificiais. A mim, por exemplo, para Souza; apesar de saberem que não podemos sobreviver sem Souza. Pense nisto, Nick.
? Hum ? disse ele.
Tranquilamente, Carol observou:
? Vais ter de arranjar algo melhor que «hum», Nick, e bem depressa.

4
Na manhã seguinte, assim que acordou, Rita disse:
? Vi-te sair ontem à noite com aquela mulher, aquela Carol Tigh. Porquê e para onde foram?
Nicholas, sonolento e confuso, a pele ainda por se barbear, ainda sem ter tido oportunidade de lançar alguma água fresca sobre o rosto, ou sequer de escovar os dentes, respondeu:
— Era para assinar a certidão de óbito do Souza. Coisa do serviço.
E saltou para a casa de banho, que ele e Rita partilhavam com o cubículo da direita ? para dar com a porta fechada.
— Muito bem, Stu ? exclamou ele. ? Acaba lá de te barbeares e abre a porta.
A porta abriu-se; ali estava de fato o seu irmão mais novo barbeando- -se ao espelho e com um ar realmente de culpado:
— Não te preocupes comigo ? disse Stu ? , começa a...
A mulher do seu irmão, Edie, disse do seu cubículo;
— Esta manhã chegámos primeiro à casa de banho, Nick; a tua mulher ocupou-a durante uma hora inteirinha ontem à noite a tomar uma ducha. Por isso fazes favor de esperar. Desistindo, tomou a fechar a porta da casa de banho e foi para a cozinha ? que não partilhavam com ninguém, nem à esquerda nem à direita ? e começou a aquecer o café no fogão. Era só aquecer o da noite anterior; não estava com energia suficiente para fazer um novo, e de resto as provisões de grão de café sintético estavam bastante baixas. E podiam ficar sem qualquer fornecimento durante meses, agora, tendo depois de começar a pedir, implorar ou negociar com outros residentes no abrigo, oferecendo açúcar ? nem ele nem Rita usavam muito açúcar ? em troca dos preciosos grãozinhos castanhos.
E grãos de café, ele bem podia usar aos montes. Se é que tal coisa era possível. Mas, como tudo o resto, o (era esse o seu nome ali em baixo) estavam rigorosamente racionados. E depois de todos aqueles anos era coisa que ele já aceitava ? intelectualmente. Mas o seu corpo ansiava, por muito mais.
Ainda se conseguia recordar de como sabia o sabor do verdadeiro café, nos tempos anteriores aos abrigos. Aos dezenove anos, lembrava-se; eram os primeiros tempos na Universidade, começara a beber café em vez dos leites com malte, coisa de criança. Começara a amadurecer... e depois, isto.
Mas, como dizia Talbot Yancy, exuberante ou carrancudo, conforme as circunstâncias: «Pelo menos não fomos incinerados, como prevíramos. Porque tivemos todo aquele ano para irmos lá para baixo, e nunca o devemos esquecer. »
Portanto, Nicholas não o esquecia; enquanto ali estava requentando o café sintético da noite anterior viu-se incinerado há quinze anos, ou com os colinesterase do seu corpo destruído pelo terrível gás neural dos E. U. A., até então a pior arma inventada pelos dementes que ocupavam os postos elevados que antes habitavam aquilo que fora Washington D. C., eles sim, por sua parte eram dotados do antídoto, da atropina, e portanto estavam a salvo... a salvo do gás neural fabricado no Complexo Químico de Newport, na Indiana Ocidental, como fora contratado com a ainda poderosa F.M.C Corporation, mas não a salvo dos mísseis da U. R. S. S. E ao pensar nisso ficou contente por estar ali e por estar vivo para beber aquela água suja sintética, amarga como era.1
Finalmente, a porta da casa de banho abriu-se e Stu disse:
? Já acabei.
Nicholas dirigiu-se para a casa de banho. E então bateram à porta da 1 entrada do seu cubículo.]
Dirigindo-se para lá, curvando-se às exigências do seu estatuto de eleito, Nicholas abriu a porta e deu de cara com o que percebeu logo ser um comitê. Jorgenson, Haller, Flanders ? batiam-lhe novamente à porta os ativistas do abrigo, e por trás deles Peterson e Grandi, e Martino e Giller eChristenson; os apoiantes. Suspirou. E depois deixou-os entrar.
Silenciosamente ? já sabiam o suficiente para tal ? o comitê entrou no cubículo, enchendo-o completamente. Assim que a porta que dava para a entrada se fechou, Jorgenson disse:
— Nós vamos resolver a coisa assim, presidente. Estivemos esta noite até às quatro da manhã a planejando tudo. ? A sua voz era dura, baixa, determinada.
— Planejando o quê? ? perguntou Nicholas, mas sabia perfeitamente.
— Vamos tratar daquele comissário político, daquele Dale Nunes. Fingimos um burburinho no piso vinte; o acesso ao vinte é difícil devido à forma como estão arrumadas as pilhas de componentes para os robôs. Vai demorar meia hora a acabar com a pancadaria. E isso dar-lhe-á tempo. O tempo de que precisa.
— Café? ? inquiriu Nicholas, voltando para a cozinha.
— Tem que ser hoje ? acrescentou Jorgenson.
Sem responder, Nicholas bebeu o seu café. E desejou ardentemente estar no banheiro. Bem fechado num sítio onde nem a sua mulher, nem o irmão, nem a cunhada, nem aquele comitê ? onde ninguém o pudesse chatear. Desejou poder ? nem que fosse por um minuto ? estar fechado. E depois deixar-se ficar sentado, no silêncio e solidão da casa de banho; estar ali, apenas.
E então, se pudesse fazer isso tudo, talvez pudesse também pensar. Recompor-se, descobrir-se. Não o Nicholas St. James, presidente do abrigo Tom Mix, mas o homem; e então saberia, saberia ao certo, se o comissário Nunes tinha razão e se a lei era a lei. Ou se Carol tinha razão, e se havia algo falso e equivocado ? algo que ela tinha armazenado nas suas fitas com os discursos de Yancy pronunciados no último ano. «Coup de grace», pensou.
«É isto aqui, a espada suspensa sobre a minha cabeça. »
Voltou-se para o comitê de ativistas, com a chávena de café na mão.
? O que tem que ser hoje? ? disse, imitando Jorgenson, cujo homem a quem ele não ligava muito; Jorgenson era um tipo corpulento, de pescoço curto e vermelho, adorador de cerveja.
— Sabemos que tem de ser feito rapidamente ? afirmou Heller, em voz baixa; apercebeu-se da presença de Rita, arranjando o cabelo ao espelho que o punha nervoso. De fato, todo o comitê estava nervoso. Receando, o comissário político. E mesmo assim tinham ali ido.
— Vou descrever-vos a situação no tocante aos órgãos artificiais ? começou Nicholas, para ser logo interrompido por Flanders.
— Já sabemos tudo o que há para saber. Tudo o que queremos saber, Ouça, presidente: sabemos muito bem a trama que eles arranjaram. ? Os seis ou sete membros do comitê olhavam-no com um misto de fúria e frustração o cubículo onde Nicolas vivia estava agora repleto de desconforto e desconfiança.
— Quem? ? perguntou ele.
E Jorgenson continuou:
— Os mandões em Estes Park. Que comandam tudo. Que dizem aos pequenotes como Nunes onde devem remexer e bisbilhotar.
— Mas que trama?
— A trama ? retorquiu Flanders quase gaguejando de comoção. ? É que eles estão com falta de comida e querem apenas um pretexto para eliminarem um ou outro abrigo; não sabemos ao certo quantos é que eles querem encerrar, para depois forçarem os refugiados a subirem à superfície, para a morte... muitos, talvez, ou talvez apenas alguns... depende dos problemas que estão tendo com falta de comida.
— Portanto ? disse depois Heller quase suplicante, com um crescendo na voz (o que se encontrava a seu lado deu-lhe um encontrão e ele imediatamente baixou a voz para um mero sussurro) ? , eles precisam de um pretexto. E conseguem-no assim que nós não formos capazes de satisfazer a nossa quota mensal de robôs. E ontem à noite, depois dos filmes de Detroit a ser destruída, quando Yancy anunciou que as quotas iriam ser aumentadas... foi quando percebemos; eles vão aumentar as quotas e todos os abrigos não as conseguirem cumprir serão eliminados. Como nós. E depois lá para cima... ? E fez um gesto na direção do teto. ? Morreremos todos como ratos.
Rita, sem deixar o espelho, disse asperamente:
— Como vocês também querem que Nicholas morra ao subir lá acima à procura desse orgão artificial.
Dando meia volta, Haller observou:
— Sr.a St. James, ele é o nosso presidente; nós o elegemos.... e foi por isso que o elegemos, para que ele..., nos ajudasse quando fosse necessário.
— Mas Nick não é o vosso pai ? retorquiu Rita. ? Não é um mágico. Não é mais uma engrenagem no Governo de Estes Park. Não é capaz de fabricar um pâncreas artificial. Ele não pode...
— Aqui está o dinheiro ? interrompeu-a Jorgenson. E estendeu a Nicholas um gordo sobrescrito branco. ? Tudo em notas de cinquenta. Quarenta ao todo. Vinte mil dólares Wes-Dem. Durante toda a noite passada percorremos o abrigo, enquanto Nunes ressonava, e fizemos esta coleta. Essa soma representava o salário de metade do abrigo durante... não conseguia calcular com certeza, sob a tensão em que se encontrava. Mas certamente durante muito tempo. O comitê trabalhara duro. Rita disse então ao comitê, de voz ainda azeda:
? Então é o que vocês fazem; arranjam o dinheiro. Tiram à sorte, fazem apostas. Não metam o meu marido nisso ? e a sua voz tomou-se mais doce.
? É mais fácil que Nunes não repare no desaparecimento de um de vocês do que no de Nick. Pode mesmo se passar vários dias sem que ele repare, mas logo que Nicholas desapareça, Nunes dará logo por isso, e....
? E o quê, Sr.a St. James? ? retorquiu Haller, com determinação mas delicado.
? Nunes não pode fazer nada se o presidente St. James sair daqui, subir pelo túnel e chegar à superfície.
Rita observou então:
? De acordo Jack. Mas Nunes irá executá-lo assim que ele regressar.
Pensando para si, Nicholas meditou: «E além do mais, eu posso nem sequer regressar lá de cima. »
Jorgenson, com uma relutância clara e sincera, levou a mão a seu bolso da sua roupa de trabalho e tirou um pequeno objeto plano, semelhante a um maço de cigarros.
? Sr. Presidente ? disse com uma voz rouca, com um tom formal e digno, qual arauto de grandes notícias ? , sabe o que é isto?
«Claro», pensou para si Nicholas. «É uma bomba portátil, e se eu não for, e hoje mesmo, vocês vão colocá-la em algum lugar aqui no meu cubículo ou no meu gabinete, irão arma-la ou colocam-na para uma hora determinada e depois ela explodirá e irá me desfazer em pedacinhos e talvez também a minha mulher, e talvez mesmo o meu irmão mais novo, e a sua mulher, ou quem estiver no meu gabinete nessa altura, se for no gabinete. E todos vocês
E pelo menos alguns? são eletricistas; profissionais em eletrônica, e montagem de circuitos miniaturizados como de resto o somos todos, até certo ponto... pelo que todos sabem como o fazer, pelo que terão cem por cento de probabilidade de êxito. Portanto», deduziu ele, «então se eu não for até à superfície, o vosso comitê destruir-me-á pela certa ? e a mais alguns inocentes junto de mim ? e se eu for, Nunes será eliminado por um louco qualquer de entre os mil e quinhentos habitantes deste abrigo e apanhar-me-á a meio caminho, aproximadamente, da minha ? e não nos esqueçamos que estamos em tempos de guerra e que é a lei marcial que prevalece ? viagem ilegal, até à superfície».
Flanders explicou:
? Escute, presidente; sei que pensa que vai ter de tentar subir até lá acima com todos aqueles robôs sempre, ou quase sempre, a espreitar ou prestes a mandarem mais um robô avariado aqui para baixo... mas escute.
? Um túnel ? disse Nicholas.
? Sim. Abrimo-lo bem cedo esta manhã, assim que o barulho das oficinas começou a encobrir o barulho da escavadora e dos outros instrumentos que tivemos de usar. É absolutamente vertical. Uma obra-prima.
E foi a vez de Jorgenson falar:
— Desemboca na parte do teto da sala BAA, no piso um; um armazém para elementos de redução para robôs de tipo II. Há uma corrente a toda a altura e que está presa... de certeza, garanto, juro... à superfície, escondida entre alguns...
— Mentira ? disse Nicholas.
Pestanejando, Jorgenson respondeu:
— Não, juro...
? Nunca conseguiriam um canal vertical até à superfície em duas horas retorquiu Nicholas.
? Qual é, a verdade?
Após um longo e desalentado silêncio, Flanders conseguiu balbuciar:
— Na realidade conseguimos começar o túnel. Fizemos cerca de doze metros. A escavadora portátil está aí. Pensámos em colocá-lo no túnel, com equipamento de oxigênio, e depois fechávamo-lo cá por baixo, para amortecer as vibrações e o barulho.
— E então... ? continuou Nicholas ? aí eu ficaria no túnel e teria que abrir o meu caminho até sair. Quanto tempo calcularam que isso me levaria, trabalhando sozinho e apenas com essa escavadora portátil, sem nenhum material pesado?
Depois de novo intervalo, alguns de entre o comitê murmuraram:
— Dois dias. Já temos preparado comida e água, mais precisamente um daqueles fatos auto-suficientes que se costumavam usar quando ainda se voava para Marte. Com compensação para a humidade, eliminação de dejetos... e etc. Ainda assim sempre pode valer a pena ir até lá acima com todos aqueles robôs.
— E Nunes? ? comentou Nicholas ? cá em baixo.
— Nunes estará a tentar deter a luta no piso quatro...
— Muito bem ? disse então Nicholas. ? Eu vou.
Todos o fitaram estupefatos.
Rita, meio para si, deixou exalar um soluço, um sinal de desespero.
Dirigindo-se a ela, Nicholas notou:
— Sempre é melhor do que ser feito em pedaços. Eles falam sério.
E apontou para a pequena embalagem nas mãos de Jorgenson. «Ipse dixit», pensou para si; «entendo essa língua estranha. Uma afirmação emitida mas não provada. E neste caso particular não quero presenciar a sua confirmação; até mesmo o nosso comissário político, o comissário Nunes, ficaria espantado com o que um dispositivo destes consegue fazer quando ativado. »
Foi até à casa de banho e fechou ? à chave ? a porta atrás de si. Apenas para conseguir aquele momento, tão breve como de fato era, de tranquilidade. De ser apenas um ente bioquímico, e não o presidente St. James do abrigo comunitário Tom Mix da Terceira Guerra Mundial, inaugurado em Junho de 2010 d. C. «E muito d. C.», pensou para si; «uma eternidade depois de Cristo. »
«O que eu devia fazer», decidiu, «era voltar não com o órgão artificial, mas com a peste negra para todos vocês. Todos, do primeiro ao último, sem exceção. »
O seu azedume surpreendeu-o. Mas claro que era superficial. «Pois», e começou a compreendê-lo assim que começou a deixar correr a água quente para se barbear, «a realidade é que eu sou um homem aterrorizado. Não quero estar metido quarenta e oito horas naquele túnel vertical, sempre à espera de ouvir o Nunes por baixo ou um grupo de robôs policiais de Brose ouvindo um ruído meu lá em cima, e depois, se nada disso acontecer, sair para a superfície, para a radioatividade, para as ruínas, para a guerra. Para aquele pântano de morte de onde fugimos, do qual nos escondemos: não quero subir à superfície nem mesmo por uma causa necessária. »
Sentiu desprezo por aquela sua atitude; era difícil, quando começou a ensaboar o rosto, olhar-se no espelho. Na realidade, era impossível. Portanto, abriu a porta da casa de banho para o lado de Stu e Edie e chamou:
— Ei, me empresta- a tua máquina de barbear?
— Claro ? respondeu o seu irmão mais novo, e a deu para ele.
— Que se passa, Nick? ? perguntou Edie, com uma compaixão, pelo menos para ele, inabitual.
— Deus meu, estás com um aspecto horrível.
— Estou péssimo ? retorquiu Nicholas, e sentou-se sobre a cama revolta, ainda por fazer, barbeando-se. ? Só à força ? disse ? é que conseguem que eu faça o que devo. ? Não estava com disposição para falar nada disso; e barbeou-se num longo silêncio introvertido.

5
Joseph Adams voando por sobre uma paisagem verde, sobre os campos, os prados, o mundo aberto das florestas da América do Norte, com grupos de edifícios aqui e ali, com mansões nas mais estranhas localizações, Joseph Adams dirigia-se do seu mansão no Pacífico, onde era dominus, para a Agência em Nova Iorque, onde era apenas mais um homem de Yancy entre muitos outros. O seu dia de trabalho, a tão esperada e finalmente chegada segunda-feira, aí estava.
A seu lado, no assento, uma pasta de couro, com as iniciais JWA em dourado, contendo o seu discurso manuscrito. Por trás de si, amontoadas no assento traseiro, quatro robôs do seu séquito pessoal.
Entretanto, por meio do vídeo discutia coisas do serviço com o seu sócio da Agência, Veme Lindblom. Veme, que não era um homem de ideias, que não era um manipulador de palavras, mas antes um artista no sentido visual do termo, estava numa posição melhor do que Joseph Adams para saber exatamente o que é que o seu superior Emest Eisenbludt, em Moscou, estava a pensar em termos de imagem, em suma, o que preparava no estúdio.
— A seguir é São Francisco ? disse Lindblom. ? Estou neste momento na fase de construção.
Em que escala? ? inquiriu Adams.
? Sem escala.
? Em tamanho natural? ? disse Adams, incrédulo. ? E Brose concordou? Não será mais um dos loucos devaneios de Eisenbludt?
Só uma parte da cidade. Nob Hill e a vista sobre a baía. Deve levar cerca de um mês a construir; não há pressas. Que diabo, só ontem à noite é que passaram aquelas sequências de Detroit. ? Lindblom parecia descontraído. O que, de resto, a sua situação de habilidoso maquetista lhe permitia amplamente. Os homens das ideias eram muito poucos, mas os construtores maquetistas... eram de fato uma seita muito fechada, que nem sequer Brose com todos os seus agentes conseguia penetrar. Eram como os antigos construtores dos vitrais na França do século XIII: que desaparecerem, e com eles o segredo de sua arte.
— Queres ouvir o meu último discurso?
— Por Deus, não ? respondeu Lindblom com ironia.
— Eu o escrevi à mão ? Adams falou fingindo modéstia. ? Dei um pontapé naquela maquineta; estava me levando para um beco sem saída.
— Escuta ? disse então Lindblom, repentinamente sério. ? Ouvi um boato. Tu vais ser retirado da secção de discursos e colocado num projeto especial. Não me pergunte o que é; meu informante não me disse. ? E acrescentou: ? Foi um agente de Foote que me disse.
— Hum! ? Adams tentava aparentar calma, mostrar-se descontraído. Mas lá por dentro estava nervoso. Era mais do que certo, pois tinha prioridade sobre o seu trabalho regular, que tudo aquilo provinha do próprio gabinete de Brose. E havia algo em Brose e nos seus projetos especiais que não lhe agradava. Se bem que...
— É algo que pode talvez te agradar ? continuou Lindblom. ? Tem a ver com arqueologia.
Adams fez uma careta.
— Já sei. Mísseis soviéticos vão destruir Cartago.
— Sim, e você terá programar a Heitor e Príamo, e toda essa gente. Terá que reler Sófocles para ficar em dia.
— Meus amigos ? exclamou Adams num tom sarcástico. ? Tenho graves notícias para vos dar, mas iremos vencer. O novo míssil soviético ICBM Hatcheck Girl A-3, com uma ogiva de cobalto, espalhou sal comum radioativo sobre uma zona em redor de Cartago com a extensão de oitenta quilômetros quadrados, mas isto serviu apenas para... ? quando foi interrompido.
? O que é que Cartago produzia de materiais artificiais? Vasos? ? Enfim, era essa a missão de Lindblom. Mostrar montanhas de destroços e ruínas, tudo apanhado e ampliado devidamente pelo sistema múltiplo e intrincado de câmaras (de fato sempre repletos de propaganda) nos seus colossais e intrincados estúdios de Eisenbludt, em Moscou.
? Isto, meu bom povo e amigos, é tudo o que resta, mas o general Holt informou-me de que a nossa retaliação, utilizando a arma de terror mais desenvolvida, a Polifemus X-B, zagaia eletrônica, dizimou completamente a frota de guerra de Atenas, e com a ajuda de Deus conseguiremos...
? Sabe de uma coisa? ? interrompeu-o Lindblom pensativo, falando do minúsculo alto falante do vídeo instalado no transportador ? , creio que você vai se sentir bastante esquisito se um dos homens de Brose estivesse interceptando essa conversa.
Lá em baixo, um rio largo como uma fita de prata molhada serpenteava de norte a sul, e Joseph Adams debruçou-se um pouco para poder ver melhor o Mississipi e mais uma vez apreciar a sua beleza. Não tinham sido encenadores a preparem aquilo; o que brilhava àquele sol matinal era parte da velha criação. Do mundo original que não tivera de ser criado, ou preparado, pois nunca desaparecera. Aquela visão, como a do Pacífico, acalmavam-no sempre, pois mostravam que algo fora mais forte; algo que tinha escapado.
— Pois que que gravem o que eu disse ? retorquiu Adams cheio de vigor; aquela fita prateada lá em baixo fortalecia-o... com força suficiente para cortara comunicação, do aparelho de vídeo. Para o caso de Brose estar realmente gravando.
E então, para além do Mississipi descortinou um grupo de edifícios feitos pelo homem, e também isso lhe produziu uma sensação esquisita. Pois eram os enormes edifícios. Uma obra digna de Ozymandias, os majestosos edifícios erigidos por aquele ativo construtor que era Louis Runcible. Esse homem que, com o seu exército de formigas mecânicas que, não escavava o solo mas erguia com as suas enormes mandíbulas de aço uma enorme estrutura de dormitórios, que incluíam jardins para as crianças, piscinas, mesas de pingue-pongue e jogos de dardo.
«Então conhecereis a verdade», pensou Adams, «e ela os fará escravos». Ou, como diria Yancy: ‘Norte-americanos, tenho perante mim um documento tão sagrado e importante que vos vou pedir para...’ e assim sucessivamente. Agora sentia-se cansado, e ainda nem sequer chegara ao número 580 da Quinta Avenida em Nova Iorque, e a Agência, ainda nem sequer começara verdadeiramente o seu dia. Sozinho, no seu mansão no Pacífico, sentia o nevoeiro pegajoso e voraz da solidão crescer de dia para dia e de noite para noite tapando- lhe cada vez mais as passagens da garganta; ali, por cima das zonas já ocupadas e por sobre as zonas (graças a Deus) ainda não ocupadas, mas que muito em breve o seriam ? e, claro, por sobre os locais ainda contaminados, que de vez em quando se descortinavam como anéis de morte ? , sentia aquela vergonha estranha e desconfortável. Todo ele era culpa, não porque tudo aquilo fosse mal, mas porquê... era mau, e porque ele sabia quem e o que se fizera.
«Quem me dera que ainda tivesse sobrado um míssil», pensou para si. «Em órbita. E por mero acaso podia-se tocar num daqueles velhos e exóticos botões que os chefões tinham dantes à sua disposição, e o míssil faria pfooom! E cairia como uma flecha sobre Genebra. E sobre Stanton Brose.»
«Deus seja louvado», pensou Adams, «talvez um dia destes eu ainda programe o computador, não com um discurso, nem mesmo com um excelente discurso como o que levo aqui a meu lado e finalmente terminei na noite passada, mas com uma declaração muito simples e calma sobre o que se passa. Envio-o através do Megavac diretamente para o teclado, depois para o vídeo e gravação de som, pois uma vez que é um sistema autônomo, não há montagem, a menos, é claro, que apareça por ali o Eisenbludt... mas nem mesmo ele, tecnicamente, pode tocar na parte da leitura dedicada ao discurso.»
«E então é o céu que cai por aí abaixo.»
«Seria de fato interessante de observar», pensou Adams. «Se se conseguisse um distanciamento suficiente para poder contemplar.»
«Escutem», programaria ele no MegaMegavac 6-V. E todas aquelas engraçadas teclazinhas existentes no computador começariam a tremular, e de sua boca sairia o discurso ligeiramente transformado; a cada simples palavra seria conferido aquele minúsculo mas decisivo detalhe que daria vero semelhança ao que seria ? tenhamos consciência disso, pensou causticamente para si ? uma narrativa incrivelmente descabelada e inverossímil. O que entraria no MegaMegavac 6-V como uma simples ideia sairia para os microfones e câmaras da TV como uma declaração, e uma declaração que ninguém no seu juízo perfeito ? especialmente se estivesse há quinze anos enclausurado no subsolo ? poria em dúvida. Mas ? seria um paradoxo, pois seria o próprio Yancy a pronunciá-la, como o velho adágio: «Tudo o que eu digo é mentira»; isto confundir-se-ia, apertar-se-ia com o seu ego resvaladiço e fino num bom e seguro nó de marinheiro.
«E o que se conseguiria assim? Pois, em qualquer dos casos, Genebra ficaria em pedacinhos... e não achamos graça nenhuma», articulou Joseph Adams em pensamento com a voz que ele, como todos os outros homens de Yancy, que há muito tempo interiorizara. O superego, como lhe chamavam os intelectuais de antes da guerra, ou, antes deles, a voz da consciência, ou qualquer outro nome rústico e medieval desse gênero.
Consciência.
Stanton Brose, enfurnado no seu Festung em seu castelo de Genebra, como um antigo alquimista queimado pela sua química, qual peixe branco do mar, corrupto e decadente, mas, como eles dizem, brilhante e fedorento, de um pálido resplandecente, uma cavala morta de olhos esbugalhados e turvos num glaucoma descomunal... seria mesmo esse o aspecto de Brose?
Só por duas vezes na sua vida é que ele, Joseph Adams, vira realmente Brose em carne e osso. Brose era velho. Quantos ele tinha, oitenta e dois? E não era magro. Não era propriamente uma vara, ossudo e marcado como um velho peixe seco e fumado; Brose, aos oitenta e dois, pesava uma tonelada, bamboleava, balançava e ondulava, com a boca fina, bem como o nariz... e, no entanto, o coração ainda batia, porque, é claro, era um coração artificial, e um baço artificial e outros vários órgãos de seu corpo.
Porém, ainda ficava muito do autêntico Brose, pois o cérebro não era artificial; não existia tal coisa; manufaturar um cérebro artificial ? fazer tal coisa quando ainda existia a firme Arti-Gan Corporation, de Phoenix, bem antes da guerra ? seria entrar no que Adams gostava de chamar em pensamento «um autêntico caso de simulação»... que era o termo que utilizava para aquilo que considerava como sendo a mais elevada e mais nova entidade aparecida no panorama da Natureza, com as suas já tão multiformes decorrências: o universo dos autênticos embustes.
E esse universo, pensava ele ainda, em que se pensava poder entrar pela porta de ENTRADA, atravessar e depois sair pela porta de SAÍDA, em, digamos grosseiramente, dois minutos... esse universo, tal como os cenários nos estúdios moscovitas de Eisenbludt, era interminável, sala atrás de sala; a porta de SAÍDA de uma era apenas a porta de entrada da seguinte.
E agora, se Verne Lindblom tinha razão, se o homem da companhia privada de espionagem, Webster Foote Limited, de Londres, estava bem informado, tinham aberto mais uma porta de ENTRADA, e aberta pela mão que atingia, em toda a sua senilidade tremente, vinda de Genebra... e na mente de Adams, a metáfora, que crescia, tornando-se cada vez mais visual e aterradora; sentia fisicamente essa porta à sua frente, sentia a escuridão que dela exalava ? uma sala sem luz, para onde em breve seria lançada, confrontado com só Deus sabia qual tarefa, que não era um mero pesadelo, não como o nevoeiro negro e interminável de dentro e de fora, mas...
Era perceptível. Enunciado em palavras graficamente não ambíguas, num memorando vindo desse medonho covil de monstros, Genebra. O general Holt, até mesmo o marechal Harenzany, que, em todo o caso, era um oficial do Exército Vermelho e de forma alguma um Bunthome passeando pelos jardins cheirando os girassóis, até mesmo Harenzany por vezes escutava. Mas a velha carcaça bamboleante, cambaleante e de olhos revirados empanturrada de órgãos artificiais ? Brose integrara desapiedadamente um órgão artificial após outro órgão artificial, pescando sempre na pequena e cada vez mais reduzida reserva mundial cada vez mais escassa e reduzida ? , aquela massa não tinha ouvidos.
Literalmente. Há anos que ele havia perdido a audição dessa parte se tinha deteriorado de todo. E Brose não quis que lhe pusessem quaisquer elementos artificiais para os substituir: preferia não escutar.
Quando Brose revia qualquer dos discursos de Yancy na TV não escutava nada; horrivelmente, pelo menos ao que parecia a Adams, aquele organismo gordo e semidefunto recebia a parte auditiva por meio de um fio direto: através dos eletrodos implantados com toda a perícia, há anos, na parte correspondente no seu cérebro envelhecido... no único órgão original que era Brose, uma vez que o resto já era, em termos de latoeiro, uma mera sucessão de sobressalentes de plástico, apartamentos e sempre em bom funcionamento da Arti-Gan Corporation (antes da guerra forneciam orgulhosamente garantias vitalícias, e nesse negócio dos órgãos artificiais o significado da palavra «vitalício», quer dizer, se se aplicava à vida do objeto ou do seu proprietário, era deliciosamente clara), aos quais os outros homens, os homens de Yancy no seu conjunto, tinham um acesso nominal e meramente forma! ? o que significava que, ainda armazenados nos silos de armazenamento no subsolo sob Estes Park, as provisões de órgãos artificiais pertenciam aos homens de Yancy como classe, e não meramente a Brose.
Mas a coisa não funcionava exatamente dessa maneira. Pois quando falhava um rim, como acontecera com Shelby Lane, cujo mansão no Oregon Adams visitara frequentemente ? não havia rim artificial para o Sr. Lane, apesar de se saber que tinha alguns nos armazéns. Dizia-se, e, por qualquer razão especial, deitado no quarto principal do seu mansão, rodeado pelo seu séquito de robôs preocupados, Lane não parecera muito convencido por essa afirmação, que Brose colocara os três rins artificiais no que era legalmente designado por anexação. Anexara os malditos órgãos, atara-os, impedira o seu uso, por meio de uma complexa e quase legal reinvindicação de «prioridade»... pateticamente, em último recurso, Lane levara o caso até ao Recon Dis-In Council, que se reunia permanentemente na Cidade do México, julgando as querelas de demarcação entre os mansões, conselho onde tinha assento um robô de cada tipo; Lane não perdera exatamente a causa, mas era evidente que também não a tinha ganho, pois estava morto. Morrera enquanto esperava que se resolvesse essa questão da anexação. E... Brose continuou a viver, consciente de que poderia sofrer mais três falhas completas de rins e mesmo assim sobreviver. E mais alguém que decidisse recorrer ao Conselho de Reconstrução morreria também, sem qualquer dúvida, como Lane, e a demanda morreria com o demandante.
«Aquele velho asqueroso», pensou Adams, e descortinou lá à frente a cidade de Nova Iorque, os vertiginosos e, altos edifícios do pós-guerra, as rampas e túneis, os transportes suspensos por todo o lado, que como o seu, levavam homens de Yancy até aos seus escritórios, naquele começo de segunda-feira.
E, num momento mais tarde, também ele parecia uma mosca da fruta, suspenso sobre o enorme edifício nº 580 da Quinta Avenida: a Agência.
Claro que toda a cidade era a Agência; os edifícios de ambos os lados faziam tanto parte da mesma maquinaria como este. Mas era ali que se encontrava o seu gabinete particular; era ali que ele se entrincheirava contra os restantes concorrentes, membros da sua própria classe. E desempenhava uma função superior... e na sua pasta, que agora agarrava com expectativa, encontrava-se, sabia-o bem, material de primeira qualidade.
Talvez Lindblom tivesse razão. Talvez os Russos estivessem prestes a bombardear Cartago.
Chegou à rampa de descida do recinto de aterragem do telhado, pressionou o botão de velocidade e desceu rapidamente para o seu piso e para o gabinete.
Ao entrar no gabinete, de pasta na mão, deu imediatamente de cara, sem sequer ter tido direito ao mais ínfimo sinal de aviso, com um monte de chiclete na boca, pestanejando e rebrilhando, remexendo a cauda como uma foca e olhando-o enquanto a boca afiadíssima se abria num sorriso, deliciado com o seu espanto; adorando horrorizar tanto pelo seu aspecto como por ser quem era.
— Sr. Adams. Uma palavrinha consigo, senhor.
Aquela coisa, que não se sabe bem como, conseguira alojar-se na cadeira da sua secretária, era Starton Brose.

6
? Mas certamente, Sr. Brose ? retorquiu Joseph Adams, e sob a língua, as glândulas salivares comprimiam-se com enjoo; virou-lhe as costas então, pousou a pasta e ficou espantado com aquela náusea somática, com aquela reação à presença de Brose ali no seu gabinete. Não estava com medo; e não estava intimidado, nem sequer furioso por Brose ter conseguido entrar apesar das fechaduras complexas, por ter entrado e ter tomado conta daquilo ? nada disso contava, pois a convulsão desagradável do seu corpo eliminava qualquer outra reação.
? Quer um momento para se compor, Sr. Adams? ? disse então a voz, bajuladora, fina como um arame tocado por um qualquer espírito pneumático.
? S... Sim ? respondeu Adams.
? Perdão? Não o ouço, sabe; tenho de lhe ver os lábios.
«Os meus lábios», pensou Adams. Voltou-se.
? Preciso ? disse então ? de um momento. Tive um problema com o transporte. ? E lembrou-se de que deixara os seus quatro leais companheiros, os robôs veteranos do seu séquito, no transporte já estacionado. ? Poderia... ? começou ele, mas Brose interrompeu-o, não propriamente com indelicadeza, mas pura e simplesmente como se ele não estivesse falando.
? Apareceu um novo projeto de alguma importância ? disse Brose na sua voz de corda desafinada.
? Está encarregado de fazer o trabalho de leitura sobre o caso. Consiste nisto... ? Brose fez uma pausa, pegou num enorme lenço sujíssimo, ao qual limpou a boca, como se estivesse a moldar a carne do rosto, qual pasta de plástico viscoso.
? Neste projeto não devem empregar-se quaisquer documentos escritos ou transmissões; não deve haver registros. Tudo apenas será trocado oralmente, cara a cara, entre os participantes; eu, você, e o Lindblom, que vai construir os elementos artificiais.
«Hã? », pensou Adams exultante. Webster Foote Limited, a agência privada investigação de polícia, de âmbito mundial e sediada em Londres, já bisbilhotara a coisa, dera pela existência da notícia. Brose, apesar das suas precauções de segurança quase psicopata, começara a perder desde o princípio. Nada podia agradar mais a Adams; sentiu que a náusea se desvanecia e acendeu um charuto, deu alguns passos pela sala, acenando sobriamente com a cabeça, mostrando o seu interesse em participar naquela empresa certamente vital e secreta.
— Sim, senhor ? disse apenas.
— Conhece Louis Runcible?
— O homem que constrói os apartamentos ? disse Adams.
— Olhe para mim, Adams.
Olhando-o, Joseph Adams disse:
? Passei por cima de um dos seus apartamentos. Os seus calabouços.
— Bom ? prosseguiu Brose. ? Eles é que decidiram vir até aqui acima. E não tiveram a habilidade de se juntarem a nós; não tínhamos nada para eles, portanto que mais queriam senão aquilo que têm? Pelo menos têm xadrez chinês. E os componentes são mais fáceis de construir do que robôs inteiros.
— O que está acontecendo? ? retorquiu Adams ? que entre o meu mansão e aqui há uma extensão de seis mil quilômetros de relva, e que eu tenho de a sobrevoar todos os dias. Duas vezes. E por vezes ponho-me a pensar. E recordo-me do aspecto que aquilo tinha antigamente, antes da guerra e antes deles serem compelidos a irem para aqueles abrigos.
— Se o não tivessem feito, Adams, agora estariam todos mortos.
— Oh sim? Disse lentamente Adams ? , eu sei que estariam mortos; seriam cinzas e os robôs usariam essas cinzas para argamassa. É que às vezes me lembro- - da Estrada 66.
— Que é isso, Adams?
— Uma autoestrada. Que ligava cidades.
— Uma via rápida!
— Não, senhor, apenas uma autoestrada; de passagem. ? E sentiu tamanho cansaço que, por um rápido segundo, pensou estar a sofrer um ataque cardíaco, ou qualquer outro colapso físico igualmente fundamental; deixou cuidadosamente de tragar o charuto e sentou-se numa outra cadeira, de frente para a secretária, pestanejou, respirou, pensando no que teria acontecido.
? Muito bem ? continuou Adams. ? Conheço Runcible; está a se bronzeando em Capetown e realmente tenta, sei que isso é verdade, alojar adequadamente os refugiados do abrigo que sobem à superfície; seus apartamentos estão dotados de calefação elétrica, cozinhas automáticas, TV em Três Dimensões, cada grupo de dez unidades dispõe de um robô que faz tarefas inferiores, tais como limpar... que é que se passa, Sr. Brose? ? E esperou, tentando espantar o medo.
Brose retorquiu:
? Muito recentemente tornou-se habitável um ponto quente no Utah do Sul, perto de St. George, era por aí... os mapas ainda o assinalam. Perto da fronteira do Arizona. Área de montanhas de pedra vermelha. Os geizers de Runcible detectaram a queda da radioatividade antes de toda a gente e ele apanhou o lugar, apresentando a sua reivindicação; o resto...
? E Brose fez um gesto depreciativo, mas com resignação. ? Dentro de poucos dias tenciona mandar para lá os seus bulldozers automáticos para começarem a terraplanar a região para levantar ali um novo conglomerado de apartamentos... Como você já sabe, ele tem todo aquele equipamento pesado que transporta por todo o mundo.
? Essa maquinaria é a melhor ? retorquiu Adams ? para construir esse tipo de estrutura que ela ergue. Esses apartamentos apartamento crescem rapidamente.
? Bem ? interrompeu-o Brose ? , nós queremos essa área.
«Mentiroso», pensou Adams para si. Levantou-se, voltou as costas a
Brose e disse em voz alta:
? Mentiroso!
? Não o consigo ouvir.
Voltando-se de novo, Adams disse:
? Mas aquilo ali é só rocha. Quem é que quer uma mansão ali? Meu Deus, alguns de nós temos mansões com milhão e meio de acres! ? Olhou Brose.
«Ele não pode estar dizendo a verdade», disse de si para si. «Runcible chegou lá primeiro porque mais ninguém se importou o suficiente com a região para fazer a leitura; porque ninguém pagou a Webster Foote para fazer investigações com os seus medidores e técnicos e Runcible ficou com aquilo por exclusão de partes. Portanto, não tente me enganar- - », concluiu ainda para si. Sentia ódio por Brose, naquele preciso momento; a náusea desaparecera e fora substituída por uma emoção autêntica.
Claro que Brose conseguiu ler algo do que se passava no rosto de Adams.
— Parece-me que aquilo lá é terra que não presta ? admitiu Brose. ? Com ou sem guerra.
— Se quer que eu efetue a parte áudio do projeto ? disse então Adams, e era quase espantoso ouvir a sua voz pronunciar aquelas palavras para Brose, para o rosto daquele homem ? , é preferível dizer-me a verdade. Porque não me sinto lá muito bem. Estive acordado a noite toda para escrever um discurso... à mão. E o nevoeiro perturbou-me. O nevoeiro perturba-me; eu nunca devia ter estabelecido a minha mansão no Pacífico a sul de São Francisco. Devia ter procurado para os lados de San Diego.
Brose explicou:
— Eu vou dizer-lhe. Certo; nós não damos muita importância (nenhum homem de Yancy lhe daria importância) a essa terra árida na antiga fronteira de Utah, Arizona. Olhe para isto. ? Conseguiu mover os seus dedos semelhantes a tentáculos, até que estes se colaram a um pacote que transportava; como se se tratasse de uma amostra de papel de parede, estendeu o documento.
Debruçando-se, observou-o cuidadosamente, eram desenhos realmente maravilhosos. Era como se estivesse a observar uma peça de seda oriental vinda diretamente do... futuro? E reparou que os objetos aí representados não eram... naturais. Armas estranhas, com empunhaduras e saliências estranhas. Material eletrônico pesado que ? intuição que lhe vinha da experiência ? não servia para nada.
— Não estou te entendendo ? disse então.
— São peças artificiais ? retorquiu Brose ? , que realizará o Sr. Lindblom; como é um soberbo artesão, não terá qualquer dificuldade.
— Mas para que servem? ? e, de repente, Adams percebeu. «Eram falsas armas secretas .» E não apenas isso; pôde ver muito mais, à medida que as gordas mãos de Brose foram se desenrolando viu mais coisas nelas, mais peças artificiais.
Esqueletos. Caveiras.
Alguns eram Homo sapiens.
Outros não.
— Tudo isto ? comentou Brose ? será para Lindblom fazer. Mas você deve ser consultado primeiro. Pois antes de eles serem encontrados...
— Encontrados!
— Estes objetos, feitos por Lindblom, utilizando os estúdios de Eisenbludt em Moscou, serão colocados nos terrenos que Runcible se propõe terraplanar para erigir seus novos blocos de apartamentos. No entanto, deve estabelecer-se previamente que são de um valor arqueológico incalculável. Isso se dará numa série de artigos na revista científica de anti- guerra Natural World, que como sabe era distribuída por todos os homens cultos no Mundo, deve analisá-los como sendo...
A porta do gabinete abriu-se. Desconfiado, Verne Lindblom entrou.
— Disseram-me para vir aqui ? disse, dirigindo-se a Brose; e depois olhou para Adams. Mas não disse mais nada. No entanto, ambos compreenderam; a conversa por vídeo que tinham travado meia hora antes não devia ser referida.
— Estes ? disse Brose para Lindblom ? são os desenhos à escala das peças artificiais que você tem de fazer para serem enterradas no Utah do Sul. No estrato geológico adequado. ?
E voltou o rolo para que Lindblom o pudesse ver; Veme deitou-lhe um rápido olhar, profissional.
? Há um certo fator tempo, mas estou certo de que os pode ter prontos quando forem necessários. Não é preciso que seja o primeiro bulldozer a apanhá-los. Basta que apareçam quando acabarem as escavações e comecem a construir.
Lindblom retorquiu:
— Tem alguém no pessoal de Runcible que os descubra, se necessário?
Se, de outra forma, passarem despercebidos? ? Parecia evidente que seu amigo já estava percebendo em geral o que se passava; alguém já o havia informado antes. No entanto, ele próprio estava interdito. Mas continuou a estudar aqueles desenhos tão profissionais e arduamente executados.
? Claro ? retorquiu Brose ? , um engenheiro chamado Robert.. ? tentou lembrar-se; e o seu cérebro de oitenta e dois anos falhou? . Hig? disse Brose finalmente.
? Bob Hig. Se ninguém mais os descobrir, ele o fará. Por isso, faz o favor de começar, Lindblom? Eisenbludt já está informado que lhe deve dar acesso a todos os seus instrumentos e estúdios de que necessitar. Mas não sabe para quê, e vamos manter isto reduzido ao menor número de pessoas possível.
? Hig encontre-os ? disse Lindblom ? , avise o Runcible. Entretanto olhou para Adam
? Tu já terás os teus artigos na Natural World do antes da guerra, feitos por um arqueólogo famoso qualquer, sobre objetos deste gênero.
? Estou entendendo? disse Adams, e era verdade que estava mesmo entendendo, agora. Os artigos que ele iria escrever seriam impressos na revista, datados com uma data bastante anterior, os números artificialmente envelhecidos para que parecessem ser genuinamente de antes da guerra; baseando-se neles, como sendo uma opinião cientificamente e universalmente respeitada, o Governo de Estes Park declararia os objetos como sendo descobertas de um valor incalculável. Irão então perante o Conselho de Reconstrução da Cidade do México, o Supremo Tribunal, que estava acima quer das Wes-Dem quer das Pac-Peop ou de qualquer homem de Yancy no mundo, e certamente bem acima do rico e poderoso construtor que era Louis Runcible. E com base nesses artigos falsificados o Conselho daria razão ao Governo de Estes Park. Pois objetos de tamanho valor tomavam esses terrenos automaticamente propriedade do Governo.
Mas... Brose não queria aquelas terras. Portanto, havia ainda alguma coisa que não batia certo.
— Não está percebendo ? disse Brose, lendo-lhe o rosto. ? Diga lhe, Lindblom.
E Verne Lindblom disse:
— A sequência disto tudo. Hig, ou alguém do pessoal de Runcible a supervisionar os robôs e as máquinas automáticas, descobre os objetos e diz a Runcible. E, sem contar com o seu valor, apesar da lei dos E. U. A
— Oh, meu Deus ? disse Adams. Runcible devia saber perfeitamente que, se aqueles objetos chegassem ao conhecimento do Governo de Estes Park, isso lhe custaria a posse daquelas terras. ? Ele vai encobrir tal descoberta ? concluiu Adams.
— Claro ? assentiu Brose com satisfação. ? Pusemos a encargo de Frau Morgen, do Instituto de Pesquisa Psicológica Aplicada, de Berlim, pra analisar de forma independente o perfil psicológico completo do homem, ela concorda com os nossos psiquiatras. Enfim, com os diabos, ele é um homem de negócios... em busca de riqueza e poder. Que podem importar para ele uns tantos objetos deixados numa terra perdida de Utah do Sul por um grupo de extraterrestres que aterrissou há seiscentos anos? Me refiro a estes crânios; que não são do Homo sapiens. Os seus artigos devem mostrar fotografias deste desenho. Deve desenvolver a teoria de que estes extraterrestres aterrissaram, depois deve calcular, a partir desses ossos, qual era o seu aspecto, e que depois, entraram em luta com guerreiros índios, e que os extraterrestres foram derrotados, não conseguiram colonizar a Terra... exponha tudo como uma mera hipótese, e as provas, na altura em que os artigos forem escritos, há trinta anos, não eram completas. Mas estava-se à espera de novas descobertas. Destas, precisamente.
Portanto, agora ? interrompeu Adams ? ficamos com armas e ossos verdadeiramente representativos. Finalmente. As conjecturas de há trinta anos ficam provadas e estamos assim num momento de enorme importância científica. Foi até à janela, fingindo olhar lá para fora. O construtor de apartamentos residenciais Louis Runcible, quando informado dessas descobertas, faria uma dedução inadequada... suspeitaria que esses objetos tinham sido enterrados no seu terreno para que ele os perdesse; e, continuando a calcular mal, ocultaria tais descobertas e continuaria com os trabalhos de escavação e construção.
Daí...
Motivado pelo seu amor pela ciência mais do que pela lealdade para com o seu patrão, mais do que a sua ganância, Robert Hig revelaria, relutantemente, a sua descoberta ao Governo de Estes Park.
O que declararia Runcible criminoso. Pois havia aquela lei criada devido ao fato de que os robôs trabalhando para todos os homens de Yancy nas suas residências privadas continuarem sempre a escavar mais e mais à procura de relíquias de antes da guerra com algum valor tecnológico. Tudo o que se encontrasse ? tudo o que os robôs encontrassem ? lhes pertencia. Se algo não se sobrepusesse, isto é, se não tivessem um valor arqueológico importante.
E uma raça extraterrestre que aterrara há seiscentos anos, tivera um reencontro sangrento com os nativos índios e depois se retiraram, partindo novamente ? seria uma questão de nolo contendere de Runcible perante o Conselho de Reconstrução na Cidade do México; mesmo que ele conseguisse a melhor assistência jurídica da Terra, não tinha sombra de dúvidas.
Mas Runcible não iria perder somente a sua terra.
Seria uma pena de prisão de quarenta ou cinquenta anos, tudo dependendo da habilidade dos advogados do Governo de Estes Park perante o Conselho. E a Lei das Relíquias Preciosas, como se chamava, já fora experimentada por vários homens de Yancy, e por diversas vezes; descobertas de importância deliberadamente encobertas e depois reveladas... o Conselho faria Runcible sentir o peso da lei e ele seria eliminado; o império econômico que erguera, os seus apartamentos residenciais espalhados por todo o Mundo, passariam a ser propriedade pública. Tal era a cláusula punitiva da Lei das Relíquias preciosas, a cláusula que lhe conferia o seu carácter tão temível. A pessoa condenada ao abrigo de tal lei não apenas ia para a prisão, como também perdia os seus bens na totalidade.
Tudo parecia portanto claro a Adams; sabia agora em que deviam consistir os seus artigos para os falsos números da Natural World, datados em 30 anos antes.
Mas, havia uma coisa que ainda lhe escapava: algo que embotava a sua mente e lhe fazia escutar como em sonhos o diálogo entre Brose e Lindblom, sendo óbvio que ambos compreendiam, na realidade de tudo aquilo ? o que não acontecia consigo.
Por que razão o Governo de Estes Park queria a ruína da Runcible? Que, delito havia cometido aquele homem? Ou melhor dizendo que ameaça ele representava para eles?
Louis Runcible, que construía habitações para os ex-habitantes dos abrigos que sairiam até à superfície esperando encontrar aí uma feroz guerra, descobrissem que as hostilidades haviam terminado há anos e que a superfície da Terra era um enorme parque de vivendas e suntuosas mansões destinadas aos privilegiados... «Porque», Adams perguntava-se de si para si, «o que terá este homem, quando é sabido que é mais queevidente que ele desempenha uma função essencial?
Não apenas para com os refugiados que sobem à superfície e que necessitam de alojamento para viver, mas são também para nós, os homens de Yancy. Porque... não nos enganamos porque todos nós sabemos somos confrontados com tal realidade: os infelizes que vivem nos apartamentos de Runcible são prisioneiros e os apartamentos constituem verdadeiras prisões... ou, em palavras mais atualizadas, campos de concentração. Preferíveis cem vezes aos abrigos subterrâneos, mas mesmo assim, campos de onde não podem sair nem por um momento...nem sequer legalmente. E quando um casal ou um grupo consegue sair ilegalmente, eles tem de enfrentar o exército do general Holt aqui em Wes-Dem ou as forças do Ocidente, do marechal Harenzany, nas Pac/Peop qualquer dos casos, é um exército de robôs veteranos e que nunca deixa de capturá-los e efetua a busca e os leva de volta para as suas piscinas e para as suas tvs em três dimensões e para os seus tapetes sintéticos de parede a parede. »
Disse então em voz alta:
— Lindblom, estou de costas para Brose. Portanto ele não pode me ouvir. Você pode. Quero que vire as costas com toda a naturalidade e não venha na minha direção... volta apenas o rosto para mim.
E depois, pelo amor de Deus, diz-me qual é a razão de tudo isso.
Passado um momento reparou que Lindblom estava ansioso. E me disse:
— A razão de quê, Joe?
— Por que é que estão contra Runcible?
Lindblom retorquiu então:
— Você não sabia?
Da secretária, Brose exclamou;
— Nenhum de vocês está voltado para mim; façam o favor de se virarem, para que continuemos a discussão deste projeto.
? Não mas me diga ? pediu Adams, com voz rouca, olhando a janela do gabinete aos demais edifícios da Agência.
— Eles estão convencidos de que Runcible está sistematicamente desativando um abrigo após abrigo ? disse então Lindblom ? , sugerindo que a guerra acabou. O certo é que alguém fez isso. Sabemos com toda a certeza»«»
Webster Foote e os seus detetives descobriram-no durante uma blitz de rotina a um grupo de refugiados que subiu à superfície há um ou dois meses.
Brose queixou-se novamente, desta vez mostrando algumas suspeitas:
— Que se passa? Vocês dois estão conversando.
Adams voltou-se imediatamente, deixando a janela e enfrentando Brose; o mesmo fez Lindblom, ficando face a face com aquele monstro postiço anichado, ninguém sabia como, na cadeira da secretária:
— Conversando, não ? disse Adams a Brose ? , apenas meditando.
O rosto de Lindblom não mostrava qualquer expressão. Apenas um desinteresse vazio e pétreo. Fora-lhe dada uma missão; tencionava cumpri-la. A sua atitude era um conselho para que Joseph Adams fizesse o mesmo.
Mas suponhamos que não era Runcible. Suponhamos que era outra pessoa.
Então todo aquele projeto, os objetos forjados, os artigos no Natural World, a artimanha da descoberta, o caso perante o Conselho de Reconstrução, a destruição do império econômico de Runcible e a sua prisão...
Tudo isso para nada.
Joseph Adams tremia. Pois, ao contrário de Brose, ao contrário de Veme Lindblom e provavelmente de Robert Hig e de todos os outros ligados ao projeto ? tinha a profunda intuição de que se tratava de um erro.
E a sua intuição não iria deter o projeto.
Nem por um momento, nem por um milímetro.
Voltando as costas novamente a Brose, Adams disse:
— Lindblom, eles podem estar enganados. Pode não ser Runcible.
Não obteve resposta. Lindblom não podia responder, pois estava naquele momento cara a cara com Brose, que agora, de pé, abria bamboleante mente o caminho, apoiado na sua bengala de alumínio em direção à porta do gabinete, resmungando.
— Eu seja maldito ? disse Adams continuando a olhar pela janela fixamente.
? Escreverei os artigos, mas, se não for ele, safo-o. ? E voltou-se para Lindblom, tentando decifrar a sua reação. Porém, não havia nada para ler. Mas Lindblom ouvira-o.
Mais tarde ou mais cedo teria uma reação; Joseph Adams conhecia aquele homem, aquele seu amigo pessoal, e trabalhara com ele tempo suficiente para ter a certeza disso.
Seria uma reação forte. Depois de muito exame de consciência, Veme Lindblom provavelmente concordaria, provavelmente ajudá-lo-ia a safar Runcible sem deixar qualquer traço que pudesse ser seguido pelos agentes de Brose; os agentes de Brose e os especialistas de Foote, trabalhando certamente em conjunto. Por outro lado...
Tinha de contar com isso; estava contando com isso.
No fundo, Veme Lindblom era um dos homens de Yancy. Além e acima de toda e qualquer outra consideração.
A sua reação podia também ser revelar as declarações de Adams a Brose.
Então, em poucos minutos, os agentes de Brose apareceriam no mansão de Adams e matá-lo-iam.Com toda essa simplicidade.
E naquele preciso momento não tinha nenhuma indicação segura que lhe permitisse afirmar que direção tomaria o seu amigo Lindblom; Adams não dispunha dos serviços de uma organização internacional de estudos psicológicos, como acontecia com Brose.
Só podia esperar. E rezar.
E as orações tinham desaparecido, pensou sarcasticamente para si mesmo, vinte anos antes, mesmo antes da guerra.
O técnico de campo da corporação de polícia privada Webster Foote Limited agachou-se no seu abrigo reduzido e disse para o transmissor que o ligava ao quartel-general em Londres:
— Senhor, tenho gravada uma conversa entre os dois.
— Sobre o assunto que discutimos? ? disse a voz distante, de Webster Foote.
— Evidentemente.
— Muito bem. Já sabe qual é o contato de Louis Runcible; faça que ele o receba.
— Lamento dizer que isto...
— Mesmo assim transmita-o. Fazemos o que podemos com o que conseguimos.
A voz distante de Webster Foote era autoritária; aquilo, dito por si, era uma afirmação e um julgamento, e ao mesmo tempo uma ordem.
— Sim, Sr. Foote, o farei o quanto antes.
— Certamente ? concordou Foote. ? O mais depressa possível. ? E, de Londres, de onde se encontrava, encerrou a chamada.
O técnico de campo de Webster Foote Limited voltou imediatamente para o seu quadro de detecção e gravação, trabalhando a baixa tensão mas com ótimos resultados; observou os gráficos visuais que apareciam sem cessar para se certificar de que durante o áudio contato com os seus superiores para não lhe escapar nada. Não era altura de perder o que quer que fosse.
Não lhe havia escapado nada.

7
Entretanto, o soberbo discurso manuscrito conservava-se intacto na pasta de Joseph Adams.
Lindblom ficou em pé, acendendo um cigarro com a mão tremula e tentando não se envolver ? por enquanto ? em mais nenhuma conversa. Para ele já fora suficiente; ficara porque estava demasiadamente exausto para partir.
— Tu tens total possibilidade ? disse Adams enquanto se sentava por sua vez à secretária, abria a pasta e tirava o discurso, quer me prendam quer não.
— Eu já sei ? murmurou Lindblom.
Aproximando-se da porta, Adams disse:
— Vou mandar isto. Ponho-o no teclado, em seguida que gravem e depois que vão para o inferno. Entretanto... como é que se chama este novo projeto, esta falsificação de objetos extraterrestres para jogar na prisão um homem cuja vida foi devotada a proporcionar um alojamento decente aos...
— Os nazistas ? interrompeu-o Lindblom ? não contavam com ordens escritas relativas à Solução Final, ao genocídio dos judeus. Era tudo feito oralmente. As ordens passavam de superior a subordinado, de ouvido, se é que me desculpas a metáfora. Talvez não desculpes.
— Vamos tomar um café ? retorquiu Adams.
Lindblom encolheu os ombros:
— Pro inferno. Eles decidiram que é o Runcible; quem somos nós para dizer que não é? Me mostra-... me apresente... outra pessoa que lucrasse tanto com a eliminação dos abrigos.
— Quem me dera eu pudesse dizê-lo? retorquiu Adams, e reparou no olhar admirado de Lindblom.
? Qualquer um de entre os milhares de refugiados enterrados lá em baixo. Bastaria um que tivesse subido e não tivesse sido apanhado pelos agentes de Brose ou pelos homens de Foote, e depois tivesse regressado ao seu abrigo. E, daí, tivesse se comunicado com os abrigos vizinhos, e assim sucessivamente...
— Sim ? concordou Lindblom, estoicamente. ? Claro. Porque não? Só que não sei se os companheiros o deixariam voltar ao abrigo. Não iriam logo pensar que ele estava com radioatividade ou tinha apanhado... qual foi o nome que arranjamos para a chamar... a Praga do Saco. Matá-lo- -iam se mal o vissem. Pois acreditam em tudo o que lhes transmitem pela TV todos os malditos dias da semana e duas vezes nas noites de sábado, iriam jogar nele um míssil ambulante. De qualquer modo, há mais do que tu julgas ver. Devias gastar um pouco de dinheiro de vez em quando à organização Foote; devias saber algumas das coisas que vão por lá. Aqueles refugiados que foram informados sub-repticiamente das condições aqui em cima... não foram informados por ninguém que conhecessem; não foi nenhum dos companheiros regressados.
— Muito bem; o refugiado não conseguiu alcançar o seu antigo abrigo; em vez disso...
— Descobriram a coisa ? interrompeu-o Lindblom ? através do cabo coaxial.
Durante um momento Adams pareceu não compreender; fitou Lindblom.
— É verdade ? disse Limdblom. ? Nas suas televisões. Durante cerca de um minuto, sinal muito fraco. Mas o suficiente.
— Meu Deus ? disse Adams e pensou de si para si.
«Há milhões lá em baixo. O que aconteceria se alguém cortasse o cabo principal, o primeiro, o tronco central que se liga ao Governo de Estes Park a todos os abrigos? O que aconteceria se a terra se abrisse e se milhões de seres humanos, aprisionados no subsolo há quinze anos, acreditando na existência de um inferno radioativo à superfície, com mísseis e bactérias e destroços e exércitos em luta saíssem aqui fora? » O sistema dos mansões ruiria pela base e o enorme parque que sobrevoava duas vezes por dia tomar-se-ia novamente numa civilização densamente povoada, não como antes da guerra, mas suficientemente parecida com ela. Novamente voltariam a usar as estradas. E surgiriam cidades.
E... finalmente, estalaria outra guerra.
Assim era a lógica implacável das coisas. Tinham sido as massas que lançaram seus dirigentes na guerra, quer nas Wes-Dem (ocidental) quer nas Pac-Peop (oriental). Mas assim que as massas tinham sido tiradas do meio, e lançadas para baixo da terra em abrigos anti-sépticos, as minorias dirigentes tanto do Leste como do Ocidente tinham as mãos livres para assinarem um acordo de paz... se bem que, estranhamente, de uma certa maneira não tinham sido nenhum deles, não tinha sido Brose, nem o general Holt.Comandante Chefe das Wes-Dem, nem mesmo o marechal Harenzanv, o oficial mais graduado do estado-maior soviético. Mas o simples fado que quer Holt quer Harenzany saberem quando era a melhor altura para usarem os mísseis (o que fizeram) e quando era a melhor altura para parar com as hostilidades tudo isto era verdade e sem isso, sem a sua responsabilidade conjunta, não teria sido possível a paz; mas por baixo daquela colaboração entro os dois militares mais destacados estava algo mais, algo que para Adams era tão real e estranho e, num certo sentido, profundamente comovente.
O Conselho de Reconstrução que tem sede na Cidade do México/Amecameca. Formada por robôs ajudara na tarefa de forçar a paz no Planeta. E como corpo dirigente, como árbitro de última instância, não se demitira. O homem havia construído uma arma capaz de pensar por si mesma, e que depois de ter pensado um pouco, durante dois anos em que ocorreram as mais atrozes destruições, com os robôs cerrando fileiras uns com os outros, dois enormes exércitos artificiais vindos de ambos os continentes... variedades avançadas de diferentes de robôs, que tinham sido construídos com o intuito de as suas capacidades analíticas na consecução de tácticas e de estratégias globais ? os tipos mais avançados os modelos X, XI e XII, tinham chegado à conclusão de que a melhor estratégia era a que fora descoberta pelos Fenícios mais de cinco mil anos antes. Estava resumido, pensou para si Adams, no Mikado. Se dizer apenas que um homem tinha sido executado fosse suficiente para satisfazer toda a gente, então porque não dizê-lo apenas em vez de o fazer? Na verdade pensaram aqueles robôs avançados ? o problema era simples. Não eram marionetes de Gilbert e Sullivan, e não eram as palavra de Gilbert que povoavam os seus cérebros artificiais; o texto do Mikado não tinha sido programado nos seus cérebros como dados operacionais. Mas tinham chegado à mesma conclusão que o general Holt e o marechal Harenzany ? e tinham agido em conformidade.
Em voz alta, Adams exclamou:
— Mas não alcançaram a vantagem.
— Pardon? ? murmurou Lindblom, ainda trêmulo, ainda sem grande vontade de entrar em mais conversa; parecia cansado.
— Que o Conselho de Reconstrução não viu ? disse Adams ? é que nós podemos ver agora, pois não têm qualquer componente de libido nos seus sistemas mentais, é que a máxima que dizem é que «para quê executar alguém... »
— Ah, cala-te de uma vez? o interrompeu Lindblom, e saiu apressadamente do gabinete de Adams, deixando-o ali especado em pé, sozinho, com o discurso numa mão;e uma ideia e seu cérebro, duplamente frustrado.
Mas não podia culpar Lindblom por estar aborrecido. Porque todos os homens de Yancy tinham aquela característica. Eram egoístas; tinham transformado o mundo no seu quintal particular à custa de milhões de refugiados; aquilo era uma canalhice, e eles sabiam- disso e sentiam-se culpados ? não suficientemente culpados para eliminarem Brose e deixarem os refugiados voltar, mas o bastante para transformar o entardecer numa lenta e longa agonia de solidão, vazio, e ao suicídio. E sabiam que se havia alguém de quem se podia dizer que estava a emendar um pouco o crime cometido, o roubo de um planeta inteiro dos seus donos de pleno direito, esse alguém era Louis Runcible. Eles lucravam em manter os refugiados lá em baixo, e ele lucrava em trazê-los para cima; os homens de Yancy consideravam Runcible como um adversário, mas alguém que bem sabiam, lá no fundo, estar certo. Não era um sentimento sanguinário, pelo menos no que tocava Joe Adams enquanto ali estava sozinho no seu gabinete, agarrando o seu soberbo discurso prestes a ser enviado, passado pelo teclado, gravado e depois castrado pelo gabinete de Brose. Aquele discurso; não dizia a verdade, mas não era um mero pastiche dos clichês, mentiras, frases feitas, eufemismos...
E outros ingredientes mais sinistros ainda que Adams notara nos discursos concebidos pelos seus companheiros de Yancy; na realidade, ele era apenas um construtor de discursos entre muitos outros.
Transportando o seu valiosíssimo discurso ? de qualquer forma era assim que ele o considerava, na ausência de uma qualquer opinião em contrário ? deixou o escritório e, pelo elevador expresso, foi até ao piso onde fervilhava o Mega Megavac 6-V; pisos, para dizer a verdade, pois a estrutura global daquele organismo desenvolvera múltiplas sucursais ao longo dos anos, refinamentos que lhe tinham acrescentado sectores inteiramente novos ocupando andares inteiros. O MegaMegavac 6-V era enorme, mas, em contraste, o teclado tinha o mesmo tamanho que sempre tivera.
Dois calmeirões em uniforme, escolhidos a dedo por Brose pelo seu aspecto dissuasor, olharam-no logo que desceu do elevador. Conheciam-no; sabiam que a sua presença no piso de programação do MegaMegavac 6-V era inerente ao trabalho que fazia.
Aproximou-se do teclado do MegaMegavac 6-V e verificou que estava a ser utilizado; outro homem de Yancy, desconhecido, dedilhava as teclas qual virtuoso do piano no grande final do opus de Franz Liszt, com oitavas duplas e tudo, tudo obedecia ao comando dos seus punhos.
Suspenso por sobre o homem de Yancy o texto em questão, e Adams cedeu ao seu impulso; aproximou-se para o inspecionar.
O homem de Yancy parou imediatamente de escrever.
— Desculpe ? disse Adams.
 ? Vamos lá me mostre a sua autorização. ? Um dos homens de Yancy, bastante escuro, jovem e baixote, com um cabelo quase de mexicano, estendeu peremptoriamente a mão.
Com um suspiro, Adams retirou da pasta o memorando de Genebra, do gabinete de Brose, autorizando-o a programar aquele discurso; o documento tinha um número de código, impresso também no memorando ? o escuro e jovem um dos homens de Yancy inspecionou-o, comparando o selon do documento do discurso com o que mostrava o do escritório pareceu dar-se por satisfeito e devolveu ambos os documentos a Adams.
— Daqui a quarenta minutos está pronto. Disse o jovem continuando o seu trabalho. ? Portanto, vai dar uma volta por aí e me deixe em paz. Ele falava em tom indiferente, mas imperioso.
Adams retorquiu:
— Gosto bastante do teu estilo. ? Analisara rapidamente a página do texto. Era bom material; inesperadamente bom.
O homem de Yancy parou novamente de escrever.
— Você é o Adams. ? E estendeu novamente a mão, desta vez com a intenção de o cumprimentar; e apertaram as mãos a atmosfera perderande parte da sua tensão anterior .Finalmente para um nível aceitável. Mas sempre que todos os outros homens de Yancyse encontravam, pairava sempre no ar aquela atmosfera do tipo eu-sou-melhor-do-que-você , quer ali na Agência, quer em suas residências ou até mesmo em pleno trabalho. Tornava as coisas sempre muito mais difíceis, e, no entanto, Adams adorava... se não, há muito teria abandonado tudo.
? Já fizeste alguns bons discursos; eu vi as gravações finais. ? Observando-o com os seus escuros e profundos olhos de mexicano, lhe disse o jovem:
— Em contrapartida, eu sei que grande parte de seu trabalho havia sido rejeitado em Genebra. Foi isso que me disseram
— Bom ? retorquiu estoicamente Adams ? , ou me cortam ou não. Neste negócio não há meio termo.
— Queres uma aposta? ? O tom do jovem era irritante; incisivo o que desconcertava Adams.
Cauteloso, pois apesar de tudo, os dois estavam essencialmente a concorrer para o mesmo objetivo, Adams retorquiu:
? Suponho que você irá se referir a um discurso aguado e insipido...
— Deixa-me mostrar-te uma coisa. ? E o jovem e moreno homem de Yancy levantou-se, fechou o circuito principal de forma que o computador começasse a processar o que ele tinha programado até aquele momento.
Adams e o jovem homem de Yancy foram juntos observar o teclado.
Ali estava ele sentado, Com sua expressão solene ante a sua enorme mesa de carvalho, com a bandeira americana lá atrás. Em Moscou estava outro teclado, idêntico, com uma réplica do MegaMegavac 6-V, com a bandeira da U. R. S. S. por trás; fora isso, tudo o resto, as roupas, o cabelo grisalho, a expressão competente, paternal, madura mas sólida, o queixo erguido, era exatamente o mesmo simulacro, uma vez que ambos tinham sido construídos simultaneamente na Alemanha, concebidos pelos melhores técnicos existentes de Yancy. E ali por perto, os técnicos de manutenção, sempre à espreita com os seus olhos experimentados, procurando a mais ínfima falha, a mais ínfima hesitação. Qualquer coisa que pudesse ensombrar a qualidade procurada, a autenticidade mais completa; aquele teclado, com o qual todos eles, os homens de Yancy, estavam comprometidos, exigia a maior proximidade possível em relação à realidade que imitava.
Uma avaria aqui ? pensou Adams muito sério? Adams por menor que fosse, equivaleria a uma catástrofe. Como naquela vez em que a mão esquerda, ao estender-se...
Na parede acendeu-se subitamente uma enorme lâmpada vermelha de alerta; e uma boa dúzia de técnicos especialistas do teclado apareceram para o analisar.
Seria catastrófico ? como naquela vez em que a sua mão esquerda entrou num espasmo semelhante ao da doença de Parkinson, um simples tremor do motor neural... que poderia ter indicado, se a gravação tivesse sido enviada para algum canal de tv, o irremediável começo da senilidade; sim, teria sido essa a interpretação dos habitantes dos abrigos, com toda a certeza.
«Está ficando velho», teriam murmurado uns para os outros, sentados nas suas salas comunitárias, vigiadas pelos comissários políticos. «Olhem, está com tremedeira- É a tensão. Lembrem-se de Roosevelt; a tensão da guerra atingiu-o; também vai atingir o Protetor, e depois o que será de nós»
Mas aquilo não fora transmitido, claro; e os refugiados nunca tinham chegado a ver essas sequências. Tinham aberto o teclado, tinham-no analisado cuidadosamente, testado, estudado e re-testado; e tinham detectado um componente causador de tudo aquilo; ao mesmo tempo, numa das oficinas dos apartamentos de Runcible, um dos operários fora silenciosamente afastado do trabalho... e possivelmente da vida, sem talvez saber sequer a razão, pois, para começar, nunca sequer lhe tinham dito para que servia aquele minúsculo díodo que um dia fabricara.
O teclado começou a mover-se. E Joseph Adams fechou os olhos, mesmo ali em pé, fora do alcance das câmaras, escondido por trás daquele homem de Yancy tão jovem, pequeno e moreno, mas ao mesmo tempo tão competente, autor das palavras que iam começar a ser proferidas. «Talvez enlouqueça de vez e comece a cantar canções pornográficas», pensou Adams excitado. «Ou, como um daqueles velhos discos do século anterior: a repetir uma palavra, repetir uma palavra e outra vez a mesma palavra...»
«Todos norte-americanos», disse o simulacro com a sua voz firme e familiar, quase rouca, mas totalmente controlada.
Falando para si, Adams disse:
«Sim, Sr. Yancy. Sim, Senhor. »

8
Joseph Adams escutou o texto parcial do discurso até ao ponto em que um jovem negro do grupo de Yancy parou de introduzir o texto no Megavac, e depois, quando o simulacro ficou novamente rígido e as câmeras ? com perfeita sincronização ? interromperam a tomada, voltou-se para o homem que estava a seu lado, o autor, e disse:
? Eu tiro o chapéu pra você. É um grande discurso. ? Ele próprio tinha sido enfeitiçado enquanto escutava aquele simulacro do Protetor Talbot Yancy haviam sido ditas com a entonação exata, da maneira mais exata e acompanhando-as dos gestos adequados á medida que seus lábios artificiais saíam-o texto corrigido era melhorado e aumentado ? pelo MegaMegavac 6-V a partir da versão original que havia recebido.? Ainda podia vercom seus próprios olhos o MegaMegavac 6-V se bem que seu funcionamento era invisível, sentia verdadeiro fascínio do texto que o gigantesco computador comunicava ao simulacro.
Na realidade notava contemplar a autentica energia que animava aquele objeto puramente artificial, ali sentado na sua mesa de carvalho, com a bandeira dos E. U. A. por trás. «Misterioso», pensou para si. Mas um bom discurso é um bom discurso. Independentemente de quem o profira. Quando uma criança de escola recita Tom Paine... o material é excelente e o recitador não comete a mais ínfima falta ou hesitação, não se engana sequer nas palavras. O computador e todos estes técnicos aqui à volta zelam para que isso seja assim. «E», pensou ainda para si, «também nós fazemos o mesmo. Sabemos muito bem o que estamos a fazendo.
? Quem é você? ? perguntou então àquele jovem homem de Yancy tão estranhamente competente. Dave qualquer coisa. Esqueci ? retorquiu o homem, quase misticamente absorto, mesmo agora que o teclado parara de funcionar mais uma vez. Esqueceste-te do teu nome? ? espantado, esperou e compreendeu finalmente que se tratava meramente de uma forma elíptica pela qual o jovem tentava lhe comunicar algo: que era um homem de Yancy relativamente novo, ainda não completamente estabelecido na hierarquia. ? Lantano ? disse Adams. ? Claro você é David Lantano, que vive na zona quente. Perto de Cheyenne.
— É verdade.
— Agora não me admira a cor da sua pele morena.
? «Claro, Adams então compreendeu que o tom de sua pele se devia as queimaduras da radiação». O jovem, ansioso por conseguir terra para construir sua propriedade, fora para lá cedo demais; isso confirmara todos os boatos que circulavam durante as horas ociosas do entardecer entre a minoria dos eleitos: ocupou sua residência antes do tempo devido e ele havia provocado agudos sofrimentos físicos ao jovem David Lantano.
Filosoficamente, Lantano disse:
— Estou vivo. Ainda estou vivo.
— Sim, mas olha bem para ti. E a sua medula óssea?
— Os testes indicam que há uma baixa excessiva na produção de glóbulos vermelhos. Mas espero recuperar. E minhas terras estão perdendo radioatividade a cada dia que passa. O pior já passou. ? Num tom estranho, Lantano acrescentou. ? porque você não vai lá vir me visitar Adams? Coloquei os meus robôs pra trabalhar dia e noite: a vila propriamente dita está quase pronta.
Adams retorquiu:
— Não poria os pés na zona contaminada de Cheyenne nem por uma montanha de cartões de crédito com 10 quilômetros de altura. Esse teu discurso mostra o quanto podes ser útil; porquê arriscares a tua saúde, e inclusive a sua vida? Podias ficar aqui em Nova Iorque, podias viver num complexo da Agência, até que...
— Até ? interrompeu-o Lantano ? que a zona contaminada de Cheyenne ficasse acessível, dentro de dez, quinze anos... e depois alguém me saltasse à frente. ? «A minha única hipótese», estava ele a dizer por outras palavras, «é ir para lá deliberadamente antes de tempo.» Como, já tinham feito anteriormente outros homens de Yancy nas mesmas condições, com enorme frequência esses investimentos prematuros, essas instalações feita ás pressas em áreas ainda contaminadas significavam... a morte... de seus imprudentes compradores. E não uma morte misericordiosamente rápida, mas uma deterioração lenta e horripilante durante um longo período de anos.
Ao olhar para aquele jovem escuro ? na realidade severamente queimado ? , Adams compreendeu quão grande fora a sua sorte. Por já se encontrar totalmente estabelecido; a sua vila estava construída há muito, os terrenos completamente plantados, relva por todo o lado. E entrara na zona da costa do Pacífico a sul de São Francisco numa altura já segura; confiara nos relatórios dos homens de Foote, a que tivera acesso a muito custo, e podia ver agora como tudo resultara bem. Em comparação com aquilo.
Lantano iria ter certamente a sua bela vila, a sua vasta construção feita com a pedra aproveitada das ruínas de concreto que fora a cidade de Cheyenne. Mas Lantano morreria.
E isso significaria, de acordo com as decisões do Conselho de Reconstrução, colocar esses terrenos novamente a concurso; seria uma corrida desenfreada dos vorazes homens de Yancy para conseguirem tudo o que Lantano deixara. Uma derradeira e, para Adams patética, ironia: a vila do jovem, conseguida a tanto custo ? com o custo da sua própria vida? , iria parar nas mãos de outro, que não teria de construir nada, que não teria o fatigante trabalho de vigiar um interminável grupo de robôs, dia após dia.
— Calculo ? disse Adams ? que deverias ficar longe de Cheyenne o máximo de tempo que te é legalmente possível. ? Doze de cada vinte e quatro horas, de acordo com a lei do Conselho de Reconstrução, tinham de ser passadas na nova zona do mansão.
— Vim pra cá a trabalho. Como vês agora. ? Lantano voltou para o teclado do MegaMegavac 6- V; Adams seguiu-o. ? Como acabas de dizer, Adams, tenho um trabalho a fazer. Espero viver o suficiente para o realizar.
 E Lantano sentou-se de novo ao teclado, olhando para o seu texto.
— Bom, pelo menos não atingiu as suas faculdades mentais ? comentou Adams.
Sorrindo, Lantano respondeu:
— Obrigado.
Durante mais de uma hora Adams ficou ali enquanto Lantano programava o seu discurso no MegaMegavac 6- V, e depois de o ter lido todo, depois de o ter ouvido pronunciar por aquela figura paternal de cabelos grisalhos e grande dignidade que era o simulado de Talbot Yancy, sentiu irremediavelmente a futilidade do seu próprio discurso. O terrível contraste.
O que guardava na pasta era coisa de principiantes. Sentiu uma enorme necessidade de fugir. Para o esquecimento.
«Onde é que um homem de Yancy novato e quase todo queimado pelas radiações como este vai buscar tais ideias? », Adams perguntou-se. «E a enorme habilidade para as exprimir? E... o knowhow de qual será exatamente o tratamento que o computador lhe dará... como emergirá finalmente na sua forma definitiva perante as câmeras, pronunciado pelo simulado? Essas coisas não demoravam anos para se aprender? » Ele levara anos a aprender o que sabia. Escrever uma frase e, depois de a examinar, saber aproximadamente ? isto é, com segurança suficiente ? como ficará naquela fase final. Por outras palavras, como aparecerá nos telas de TV perante milhões de refugiados no subsolo; que viam e acreditavam, e que eram enganados dia após dia, uma e outra vez pelos pomposos textos que lhes preparavam.
«Textos completamente ocos», pensou para si Adams, desprovidos de qualquer substância. » Mas isso não era absolutamente verdade, como por exemplo com o discurso do jovem David Lantano. Aquele texto reforçava a ilusão essencial? de fato, Adams teve de admitir a contragosto? , a fingida realidade de Yancy que saía até bastante exagerada. Mas...
— O teu discurso ? disse para Lantano ? não está apenas inteligentemente construído mas contém autentica sabedoria. Como um dos discursos de Cícero. ? Orgulhosamente comparava o seu próprio trabalho com o de Cícero ou Séneca ou os discursos nas peças de Shakespeare e por último os de Tom Paine.
Enquanto colocava as folhas com o discurso na sua pasta, David Lantano disse tranquilamente:
— Agradeço o teu comentário, Adams; significa muito, especialmente vindo de você.
— Porquê de mim?
— Porque ? retorquiu Lantano pensativo e sério ? eu sei que, apesar das tuas limitações... ? e lançou um olhar rápido e penetrante para Adams. ? Tu tentaste, tentaste sinceramente apesar das suas limitações. Parece-me que você sabe o que eu quero dizer. Há coisas, coisas fáceis e horríveis, que evitaste escrupulosamente. Há alguns anos que eu venho te observando e tenho verificado a diferença entre ti e a maioria dos outros. Brose também conhece essa diferença, e apesar do fato de os teus discursos saírem de lá mais cortados do que realmente transmitidos, eu sei que ele te respeita. Tem de o fazer.
— Bom... ? comentou Adams.
— Não te assusta veres o teu trabalho, o teu melhor trabalho, retalhado ao nível de Genebra? Depois de chegar até aí? Achas que é apenas frustrante ou... ? David Lantano fitou-o. ? Sim, assusta-te.
Depois de uma pausa, Adams retorquiu: ? Chego a assustar-me. Mas só de noite, quando já não estou aqui na Agência, mas sozinho na minha vila com os robôs. Tenho medo enquanto estou escrevendo ou entregando o meu texto para o Megavac e observando a simulação... não tenho medo... ? Fez um gesto largo. ? Estou ocupado. Mas... sempre que me encontro sozinho. ? Ficou caído, depois, ainda admirado por ter revelado os seus sentimentos mais profundos àquele jovem estranho. Normalmente, cada um tinha o máximo cuidado com o que revelava de si próprio a qualquer colega de Yancy; qualquer informação pessoal podia ser usada contra si, algures no decurso da incessante competição para ser o autor dos discursos de Yancy; para ser, de certo modo, o próprio Yancy.
— Aqui na Agência ? disse Lantano com voz sombria ? , em Nova Iorque, podemos competir uns com os outros, mas no fundo somos um grupo. Um corpo unido. Aquilo a que os cristãos costumavam chamar uma congregação... um termo realmente muito especial e significativo. Mas depois, às seis da tarde, cada um parte no seu transporte privativo. Atravessa a paisagem vazia até chegar ao seu castelo habitado por objetos metálicos que se movem e que falam, mas que são... ? e fez também um gesto. ? Frios, Adams; os robôs, até mesmo os tipos mais avançados que dominam o Conselho: são frios. Reúne um grupo do teu séquito, todos os robôs mesmo aqueles que conseguir levar dentro do transporte, e vai de visita. Todas as noites.
— Eu sei muito bem que os homens de Yancy mais sofisticados fazem exatamente isso ? retorquiu Adams. ? Nunca estão em casa. Já tentei; já cheguei ao meu mansão, jantei e voltei a sair imediatamente. ? Pensou em Colleen e depois no seu vizinho Lane. ? Tenho uma menina ? disse habilidosamente. ? Uma das garotas de Yancy, visitamo-nos e nos falamos. Mas a grande janela principal da biblioteca da minha mansão...
— Não volte a olhar para o nevoeiro e para a costa de rochedos ? disse Lantano ? que se estendem para sul de São Francisco por mais de duzentos quilômetros; uma das mais ermas da Terra.
Pestanejando, Adams pensou consigo como é que Lantano percebera tão exatamente o que ele quisera dizer, o seu terror pelo nevoeiro; era como se Lantano conseguisse ler o mais profundo do seu espírito.
— Agora gostaria de ver o teu discurso ? disse Lantano. ? Uma vez que estudaste o meu o mais profundamente que te foi possível... e isso, em ti, Adams, é bastante. ? Deitou novo olhar à pasta de Adams, especialmente atento.
Adams respondeu:
— Não. ? Não podia mostrar o seu discurso, e muito menos depois da declaração forte e significativa que acabava de ouvir e de ver.
A matéria de leitura concebida por David Lantano e que emergira do simulacro de Yancy de uma forma tão eficaz referia-se à «privação». Tocava no ponto mais fulcral dos problemas sentidos por todos os refugiados... pelo menos tal como ele os via e percebia a partir dos relatórios dos comissários políticos recebidos pelo aparelho do Governo de Estes Park ? recebidos e fornecidos aos pelos homens de Yancy como data informativa, especialmente para os autores dos discursos. De fato, era a única fonte de informação de que dispunham sobre a forma como eram recebidas as suas matérias de leitura.
Os relatórios dos comissários políticos sobre este discurso de Lantano, depois de ser transmitido, seriam certamente muito interessantes. Levaria pelo menos um mês, mas Adams tomou bem nota dele, tomou nota da designação em código do discurso, e prometeu a si próprio estar atento às reações, à medida que fossem sendo fornecidas pelos abrigos por todo o Mundo... pelo menos de Wes-Dem, e talvez, se a reação fosse suficientemente boa, as autoridades soviéticas conseguiriam a cópia final do MegaMegavac 6- V que continha o discurso, iriam fornecê-lo ao seu próprio computador em Moscou para a programação do seu próprio simulacro... e mais. Brose, em; Genebra, se assim o desejasse, podia reclamar a gravação, a original e não a cópia transmitida, e podia declará-la oficialmente e formalmente como material de consulta fundamental para todos os homens de Yancy de todo o Mundo, de onde estes seriam obrigados a tirar referências para as suas matérias de leitura. O discurso de Lantano, se era de fato tão bom como Adams o considerava, podia tornar-se numa das raras declarações eternas, incorporadas em toda a política corrente. Que honra. E o tipo era ainda tão novo.
— Como é que consegue ? perguntou Adams ao jovem recém recrutado de Yancy que ainda nem sequer tinha a sua própria casa terminada, e que no entanto, vivia de noite numa zona contaminada e letal, morrendo queimando-se, sofrendo, mas mesmo assim conseguindo aquele feito soberbo com mão habilidosas? , como é que consegue discutir abertamente o fato de que refugiados lá em baixo serem sistematicamente privados daquilo que lhes compete por direito? e foi exatamente isso que disseste no discurso Lembrava-se exatamente das palavras de Lantano tal como as ouviu da boca firme e dura de Yancy. «Aquilo que vocês têm», disse Talbot Yancy, o Protetor sintético e realmente inexistente, aos habitantes dos abrigos, diria, para ser mais preciso, dentro de algumas semanas, depois da gravação ter passado o exame de Genebra como de fato lhe compelia, «não é suficiente. As vossas vidas são incompletas, no sentido referido por Rousseau quando dissera que o homem nascera numa certa condição, nascera livre e que depois fora por todo o lado acorrentado.» Para eles, no preciso momento em que o discurso era proferido, isso significava que, todos tinham nascido para desfrutar da superfície de um mundo e que essa superfície, com o seu ar e luz do Sol e montanhas, oceanos, rios, cores e texturas, odores, lhes fora roubada ao serem enviados para aqueles submarinos de lata, metaforicamente falando, claro, para aqueles abrigos diminutos, onde se acotovelavam, sob uma luz artificial, respirando ar artificial, ouvindo uma música obrigatoriamente uniforme e fabricando dia e noite robôs destinados a... mas nem mesmo Lantano podia ir tão longe. Não podia dizer pura e simplesmente:
— «Destinados a um fim que desconheceis. Para que cada um de nós aqui em cima aumente o seu séquito e o número daqueles que o servem, que cavem para nós, que construam e nos sirvam... fizeram de nós barões em castelos senhoriais, e vocês são os nibelungos, os anões, trabalhando nas minas; trabalhando para nós. E em troca nós damos... matéria de leitura.» Não, o discurso não foi tão longe... como o poderia ir? Mas admitira a verdade, que os refugiados tinham direito a algo de que não dispunham; eram vítimas de ladrões. Roubo este cometido contra milhões, e durante todos aqueles anos não houvera qualquer reparação moral ou legal.
«Queridos concidadãos», dissera o simulacro de Talbot Yancy com a sua voz dura, estoica, militar, paternal e, ao mesmo tempo, autoritária (Adams nunca esqueceria esse momento do discurso), «existe uma certa ideia antiga dos cristãos, que talvez conheçam, segundo a qual a vida na Terra, ou, no vosso caso, por baixo da Terra, é apenas uma transição. Um episódio entre a vida anterior e a próxima vida, uma eterna, uma outra vida que se lhe seguirá. Uma vez, um rei pagão nas Ilhas Britânicas foi convertido ao cristianismo ao confrontar-se com a imagem desta vida como sendo um voo curto de uma ave noturna que entrara pela janela de uma bela sala iluminada do castelo, e que, por um momento, sobrevoara aquele ambiente da vida e conforto, sentindo assim a delícia de estar num lugar habitado por outros. E depois essa mesma ave saíra da sala brilhantemente iluminada, saíra do castelo, por uma outra janela.
De novo para a profunda escuridão noturna do exterior. E nunca mais poderia desfrutar do calor e conforto dessa bela sala quente e aprazível. E...», e aí, Yancy, com toda a sua dignidade e pompa, com toda a autoridade das suas palavras que atingiam milhões, tantos e tantos milhões de seres humanos em tantos abrigos espalhados por todo o Mundo, aí Yancy dissera: «Vós, meus concidadãos, encerrados nos vossos abrigos subterrâneos, nem sequer tivésseis esse breve momento de fugaz comprazimento. Esse breve momento para recordar ou para esperar ou para desfrutar esse breve voo pela bela sala iluminada. Por mais breve, que possa ser, é vosso direito e, no entanto, devido a esta terrível loucura que já dura quinze anos, devido a esta terrível noite infernal, estais condenados; estais a pagar - dia após dia pela loucura que vos expulsou da superfície? da mesma forma que os vossos antepassados foram escorraçados pelos chicotes das fúrias. E isto não está certo. Seja como for, um dia, garanto-vos, que esta alienação terminará. A eliminação da vossa realidade, a privação da vida a que têm direito... com a rapidez que parece acompanhar os primeiros acordes da trombeta final, esta terrível calamidade, esta iniquidade será abolida. Quando tal acontecer não será de forma gradual. Arrastar-vos-á, expelir-vos-á, j mesmo que resistam, de volta para a vossa terra que vos espera aqui em cima, esperando que a reclameis de novo. Concidadãos, a vossa reclamação está registrada e não será esquecida; nós somos os vossos agentes de segurança apenas no presente. Mas tudo desaparecerá aqui em cima e vocês regressarão, E a recordação, até mesmo a simples ideia da nossa existência, de que nós estamos agora aqui em cima, desvanecer-se-á para sempre.» E o simulacro de Yancy terminara assim: «E vós nem sequer podereis nos amaldiçoar- porque nem sequer vos lembrareis de que alguma vez existimos.»
« Meu Deus », pensou para si Adams. «E este homem quer ver o meu discurso. »
Reparando na sua relutância, David Lantano disse-lhe com voz tranquila:
— Mas eu já vinha te observado, Adams. Podes ter a certeza de que você vale a pena.
— Muito pouco ? retorquiu Adams. ? Sabes, tudo o que tenho tentado fazer, e com razão, mas não o bastante... tenho apenas tentado sossegar as dúvidas deles. Quanto à necessidade da situação em que se encontram. Mas: você ... Deus do céu, tu disseste que se tratava não apenas de uma necessidade que os obrigava a viver ali em baixo, mas também de uma maldição injusta e temporária. Há uma enorme diferença entre eu usar o Yancy para os persuadir de que têm de continuar assim, pois aqui à superfície é ainda pior, com os seus germes, radioatividade e morte, e o que tu fizeste; fizeste-lhes uma promessa solene... fizeste um pacto com eles, deste-lhes a tua palavra de que um dia tudo seria justificado.
— Bom ? retorquiu Lantano suavemente ? , é um fato que a Bíblia diz:
— «Só Deus tudo, pode justificar. » Ou qualquer outra frase deste gênero; esqueci-me como está exatamente descrita. ? Parecia cansado, ainda mais do que Lindblom. «Estão todos cansados, todos os da sua classe. Que enorme fardo», pensou para si Adams, «todo este luxo em que vivemos. Uma vez que ninguém nos faz sofrer decidimos nos oferecer como voluntários. » Foi o que viu no rosto de Lantano, como de resto já vira, ou qualquer outra coisa parecida, no rosto de Vere Lindblom. Mas nunca no de Brose, pensou subitamente. O homem que tem mais poder e maior responsabilidade é o que se sente menos oprimido ? se é que seu coração abriga algum sentimento ? Não admirava que todos tremessem, não admirava que as suas noites fossem todas horríveis. Todos eles serviam ? e sabiam perfeitamente? a um amo perverso.

9
Com o discurso ainda na pasta ? ao que parecia para todo o sempre ? e ainda por mostrar a David Lantano e por programar no MegaMegavac 6- V, Joseph Adams dirigiu-se ao anel horizontal do edifício de nº 580 da Quinta Avenida para o enorme reservatório de material de referência da Agência onde se encontravam os arquivos oficiais relativos a todos os dados de conhecimento recolhidos de antes da guerra, registrados e mantidos para a eternidade e, como é evidente, instantaneamente acessíveis a elite de que ele fazia parte, sempre que necessário.
E era-lhe necessário ? pelo menos um fragmento ? naquele momento.
Na enorme estação central entrou na fila e quando se encontrou finalmente diante da combinação do robô tipo XXXV e do MegaMegavac 2-B, que faziam as vezes de mónada dirigente do labiríntico organismo constituído por pilhas e pilhas de tambores de micro gravações ? todos os vinte e seis livros de referência reduzidos ao tamanho de um ioiô, literalmente com a forma e o peso de um ioiô ? disse, de uma maneira bastante lamentosa, pelo menos era o que lhe parecia à medida que ia ouvindo a sua própria voz: «Hum, estou um pouco confuso. Não estou à procura de nenhum fato em particular, como seria por exemplo o De Rerum Natura, de Lucrécio, ou as Lettres Provinçales, de Pascal, ou O Castelo, de Kafka.» Tudo aquilo eram referências do seu passado: fontes que o tinham moldado e instruído, em conjunto com o eterno John Donne , Cícero, Séneca ,Shakespeare, e todos os outros.
— A sua chave de identificação, por favor ? murmurou a mónada dirigente dos arquivos.
Introduziu a chave na ranhura; fez-se o registro e a mónada dirigente, depois de consultar o seu banco de dados, detectou e recordou todas as fontes que ele já consultara, e a respectiva, sequência; compreendia o esquema completo do seu conhecimento formal. Do ponto de vista dos arquivos, ele era conhecido sem limites, pelo que podia declarar ? pelo menos era o que esperava ? qual seria o ponto seguinte no gráfico de crescimento da sua vida mental. Qual seria o seu desenvolvimento enquanto entidade de conhecimento.
Só Deus sabia que ele não fazia a mínima ideia de qual seria o ponto seguinte de tal gráfico; a matéria de leitura de David Lantano tirara-lhe positivamente o tapete de sob os pés e desde então vogava numa confusão horrível ? uma crise, talvez no último e crítico momento da sua carreira profissional. Estava perante, pelo menos potencialmente, aquilo que receavam todos os autores de discursos para Talbot Yancy: a cessação dos seus poderes. A eliminação da sua capacidade para programar o computador, ou, na realidade, para programarem o que quer que fosse.
A mónada dirigente dos arquivos oficiais da Agência retiniu algumas vezes, como que rangendo os seus dentes eletrônicos, e depois disse.
— Sr. Adams, não fique alarmado com isto.
— Muito bem ? disse já bastante alarmado. Atrás de si, na bicha, os seus colegas homens de Yancy esperavam impacientemente. ? Vamos a isso ? disse ele então.
E a mónada dirigente disse:
— É respeitosamente aconselhado a usar como referência a fonte. Os dois documentários de 1982, nas 'duas versões A e B, sem qualquer crítica subjacente; deve dirigir-se ao balcão à sua direita, onde lhe serão dados os bobinas do trabalho original de Gottlieb Fischer.
O fundo, o suporte e estrutura, a forma essencial do mundo de Joseph Adams, desmoronou-se. E, ao dirigir-se ao balcão à sua direita, para receber os rolos, mortificava-se interiormente, e com enorme sofrimento, desprovido do ritmo metabólico fundamental da existência.
Pois se ainda não compreendera os dois documentários feitos em 1982 por Gottlieb Fischer, não compreendera nada de nada.
Pois a própria textura de Yancy, o que ele era e como se tomara tal ? e, portanto, a sua existência, o fulcro dos homens de Yancy como ele e Veme Lindblom e Lantano, e até mesmo do horrível e poderoso Brose ? , tudo isso assentava nos documentários A e B. A para a Wes-Dem e B produzido para as Pac-Peop. Não se podia ir mais além.
Fora obrigado a recuar anos. Até ao auge de sua carreira como homem de Yancy. E se isso lhe podia acontecer a ele, então todo o edifício poderia ruir; sentia o mundo que conhecia começar a desfazer-se sob seus pés.

10
Depois de receber as bobinas, encaminhou-se às cegas para uma mesa, para a tela que se encontrava vaga, sentou-se ? e compreendeu então que num dos momentos anteriores pousara a pasta e não a voltara a pegar, continuará sem ela; por outras palavras, deliberadamente, e por uma excelente razão, perdera para sempre o tão angustiante discurso manuscrito na noite anterior.
O que só vinha provar a sua tese. Estava mesmo em maus lençóis.
Perguntou-se a si próprio qual dos dois documentos teria de enfrentar primeiro.
Honestamente, não sabia. Finalmente, mais ou menos ao acaso, escolheu o documentário A. Pois, apesar de tudo, ele era um homem de Yancy da Wes- -Dem. O documentário A, que fora o primeiro dos dois esforços de Gottlieb Fischer, sempre lhe agradara mais. Pois se era de fato possível afirmar que havia alguma verdade em qualquer um deles, talvez fosse devido a essa versão A. Verdade essa, porém, enterrada em tamanha combinação de fraude e embuste deliberado que o constituía de fato? e isso é que tornava verdadeiramente os dois documentários a fonte primeira e tão venerada por todos os homens de Yancy? uma anormalidade.
No que tocava a «grandes mentiras» pura e simplesmente descaradas, Gottlieb Fischer há muito os ultrapassara a todos. Nenhum ser vivo ou ainda por nascer poderia, com aquele rosto angelical e inocente, dizer tamanhas mentiradas como ele o fizera naqueles dias já distantes. O cineasta alemão Gottlieb Fischer, herdeiro direto da UFA, o consórcio cinematográfico do antigo Reich, que, durante os anos 30, trabalhara de forma tão estreita com o gabinete do Dr. Goebbels ? esse verdadeiramente único fabricante de fantasias tão convincentes visualmente, e tudo isso sem recorrer a lamúrias ou melodramas, mas antes a uma real explosão de criatividade transbordante. Mas claro que Fischer tivera acesso a grandes meios. Qualquer dos dois apartamentos militares então existentes, das Wes-Dem e das Pac-Peop, tinham-lhe fornecido toda a assistência financeira e moral possível? bem como os fabulosos fragmentos de filmes da segunda guerra mundial, cuidadosamente mantidos em segredo nos arquivos secretos das duas potências.
Os dois documentários gêmeos, concebidos para serem emitidos simultaneamente, tinham como tema a Segunda Guerra Mundial, que, para muitas das pessoas vivas em 1982, fazia ainda parte da sua memória mais viva, pois tinha terminado apenas trinta anos antes da emissão dos documentários. Um GI lutando nesse conflito que tivesse vinte anos em 1945 teria apenas cinquenta e sete quando nesse dia se sentasse em algum lugar em Boise, Idaho, a ver o primeiro episódio (primeiro dos vinte e cinco) do documentário.
Enquanto fixava os olhos na tela, Joseph Adams pensava para si que eles ainda seriam perfeitamente capazes de recordar o suficiente para reconhecerem o que lhes era mostrado nos telas de TV: uma perfeita mentira.
Diante dos seus olhos apareceu então a imagem minúscula e claramente iluminada de Adolf Hitler dirigindo-se ao servis lacaios que deviam constituir o Reichtag por finais dos anos 30. Der Führer estava então com o seu ar sarcástico, jovial e zombeteiro. Aquela cena famosa ? que todos os homens de Yancy conheciam de cor? era aquela em que Hitler respondia ao requerimento que lhe fora feito pelo presidente Roosevelt para que garantisse as fronteiras de uma boa dúzia de minúsculas nações europeias. Uma a uma Hitler enunciava as nações que constituíam tal lista, a voz ia num crescendo ao ler o nome de cada uma, e de cada vez, as marionetes articuladas exultavam com o crescendo de troça do seu líder. A emotividade de tudo aquilo ? der Führer, possesso de um divertimento titânico perante aquela lista tão absurda (mais tarde iria invadir, sistematicamente, quase todas as nações então referidas), os rugidos daqueles loucos... Joseph Adams escutava, observava, sentia ecoarem dentro de si esses berros, sentia um divertimento sarcástico em consonância com o de Hitler ? e ao mesmo tempo sentia um receio pura e simplesmente infantil de que aquela cena tivesse alguma vez ocorrido realmente. O que de fato acontecera. Aquele segmento, do primeiro episódio do documentário A, era ? por estranho que tal pudesse parecer, dada a sua natureza de tal modo demoníaca ? autêntico.
Ah, mas agora seguia-se a parte verdadeiramente genial do cineasta berlinense de 1982. A cena passada no Reichstag ia-se desvanecendo a pouco e pouco e seguia-se, cada vez com maior nitidez, outra cena. Mostrando alemães famintos e de olhar vazio, durante a grande depressão dos dias de Weimar, antes de Hitler aparecer. Desempregados. Na bancarrota. Pessoas arruinadas. Uma nação derrotada e sem futuro.
O comentário em off, a voz firme e torrencial de um ator profissional contratado especialmente por Gottlieb Fischer ? Alex Sourberry, ou mais ou menos isso ? , começou a impor a sua presença permanente como interpretação inapelável do que se passava perante os olhos de todos. E visualmente, naquele momento, tratava-se de uma cena marítima. A Royal Navy da Grã-Bretanha, apertando o seu bloqueio durante o ano que se seguiu ao fim da primeira guerra mundial: matando à fome de forma deliberada e eficaz uma nação que já há muito se rendera ? e que estava já quase sem recursos.
Adams parou o aparelho, recostou-se e acendeu um cigarro.
Teria ele de ouvir novamente a voz firme e melada de Alexander Sourberry para compreender a mensagem do documentário A? Teria de se deixar ficar ali sentado durante as vinte e cinco horas de episódios, e depois dessa prova terminada, voltar-se para a igualmente longa e intrincada versão B? Ele já conhecia a mensagem. Alex Sourberry para a versão A; um profissional qualquer da Alemanha Oriental para a versão B. Já conhecia as duas mensagens... pois, da mesma maneira que existiam duas versões distintas, existiam também duas mensagens também distintas.
Sourberry, no exato momento em que o aparelho fora desligado, dando a Adams um momento de descanso tão necessário e tão agradecido, estava prestes a demonstrar um fato notável: a ligação entre duas cenas separadas na história por vinte anos. O bloqueio britânico de 1919 e os campos de concentração com os seus esqueletos famintos e moribundos, quase nus, de 1943.
Tinham sido os Britânicos os causadores de Buchenwald, pelo menos na versão da história apresentada por Gottlieb Fischer. E não os Alemães. Os Alemães eram as vítimas, em 1943, tanto como em 1919. Uma cena posterior desse mesmo documentário A mostraria berlinenses, em 1944, vagueando pelos bosques dos arredores de Berlim em busca de urtigas para fazerem uma sopa. Os Alemães estavam famintos; toda a Europa continental, toda a gente, dentro e fora dos campos de concentração, estava faminta. Por culpa dos Ingleses.
E como tudo isso era claro, à medida que se iam desenrolando os vinte e cinco episódios tão eficazmente montados. Era a história «definitiva» da segunda guerra mundial *? pelo menos para os povos da Wes-Dem.
«Para quê passar tudo aquilo? », perguntou a si próprio Adams enquanto ali estava fumando o seu cigarro, tremendo com uma enorme fadiga tanto mental como física. «Sei já de cor o que eles mostram.» Que Hitler era um homem emotivo, um exuberante, complicado e instável. E isso era a mais pura verdade, mas o filme mentia porque o apresentava como se fosse pura e simplesmente um gênio. Como Beethoven. O Beethoven que todos nós admiramos; e que todos nós temos de perdoar aos grandes génios por suas excentricidades. E, naturalmente, Hitler foi submetido a pressão, e foi levado à mais profunda paranoia psicopática... devida a incapacidade da Inglaterra em compreender, em apreender, em aceitar, em perceber qual era a grande ameaça real desses tempos ? a Rússia de Stalin. As peculiaridades do carácter de Hitler (e depois, durante a Primeira Guerra Mundial entre 1914-18 estivera submetido a grandes e prolongados períodos de depressão e fadiga, e também durante o período da depressão de Weimar, tal como todos os outros alemães) tinham enganado o povo anglo-saxão, bastante fleumático levando-o a pensar que Hitler era «perigoso». Na verdade, episódio após episódio, Alex Sourberry continuava a ronronar a sua mensagem? , o telespectador ocidental continuaria a descobrir que a Inglaterra, a França, a Alemanha e os E. U. A. deviam ter sido aliados. Contra o verdadeiro gênio do mal, Josef Stalin, com os seus planos megalomaníacos de conquista mundial... perfeitamente demonstrados pela sua atuação durante os anos do pós-guerra ? período durante o qual até Churchill tivera de admitir que a Rússia Soviética era o verdadeiro inimigo.
E sempre o fora. Os militantes comunistas, verdadeira quinta-coluna nas democracias ocidentais, tinham, porém, enganado o povo, e até mesmo os Governos... até mesmo Roosevelt e Churchill, e mesmo depois do fim da guerra. Vejam, por exemplo, Alger Hiss... vejam os Rosemberg, que tinham roubado o segredo da bomba e o tinham fornecido à Rússia Soviética.
Por exemplo, a cena que abria o quarto episódio da versão A. Adiantando o rolo, Joseph Adams deteve-o nesse episódio e fixou os olhos no aparelho, aquela moderna e tecnologicamente avançada bola de cristal para onde se tinha de olhar para adquirir conhecimento ? não sobre o futuro ? mas sobre o passado. E...
Nem sequer sobre o verdadeiro passado. Em vez dele aquela mentira que agora aparecia perante a sua vista.
O aparelho mostrou uma sequência cinematográfica, narrada pelo imperturbável Alex Sourberry, com o seu murmúrio melado e habilidoso. Uma sequência vital para o substrato moral de toda a versão A, que de acordo com Gottlieb Fischer, apoiado por todo o establishment militar da Wes-Dem, que quisera veicular para todos ? Disse em outras palavras, que ali estava a verdadeira razão do conjunto de episódios com as suas vinte e cinco horas, que constituía a versão A.
A cena que se desenrolava em miniatura diante dos seus olhos mostrava aquela reunião dos chefes de Estado reunidos: Roosevelt, Churchill e Stalin. Local: Yalta. A fatal e sinistra conferencia de Yalta.
E ali estavam eles sentados, os três líderes mundiais, em cadeiras contíguas, para serem fotografados; era um momento histórico e a sua magnitude era quase intolerável. E nenhum ser vivo o podia ignorar, pois ali ? como enunciava uma vez mais a voz de Sourberry ? tinha sido tomada a decisão final. Todos podiam ver com seus próprios olhos.
Que decisão? A mesma voz suave do ator profissional murmurou aos ouvidos de Josef Adams: «Neste local, neste preciso momento, fez-se o acordo que iria decidir o destino de toda a humanidade por gerações sem fim.»
— Muito bem ? disse Adams em voz alta, dando um susto no inofensivo homem de Yancy que usava outro aparelho à sua frente. ? Desculpe-me ? penitenciou-se Adams, e depois limitou-se a pensar apenas, sem dizer palavra: «Vamos lá, Fischer. Vamos a ver o tal acordo. Como se costuma dizer, não te limites a contar; mostra-nos ensina-nos. Mostra ou cala-te. Prova aqui o verdadeiro cerne deste grande ‘documentário’ ou vai-embora. »
Sabendo perfeitamente, pois já o vira tantas vezes, que o realizador o iria de fato mostrar.
— Joe ? disse uma voz feminina perto de si, perturbando a sua atenção concentradíssima; recostou-se, e reconheceu a Colleen.
? Espera ? disse-lhe então. ? Não fale nada. Espera só um segundo.
E voltou a fixar os olhos na tela, nervoso e assustado, qual pobre refugiado, pensou para si, que, com o seu terror fóbico, tivesse apanhado (ou 1 antes, pensasse ter apanhado) o Stink of Shrink, o odor premonitório da morte. «Mas eu não estou imaginando coisas», Adams sabia-o perfeitamente.
E o terror cresceu dentro de si até se tornar insuportável por mais um momento que fosse; e mesmo assim continuava a olhar, e durante todo esse tempo Alexander Sourberry continuava a murmurar e a sussurrar, e Joseph Adams pensou para si: «Será assim que eles sentem lá em baixo? Terão o pressentimento, o mais ténue pressentimento do que estão realmente vendo? De que o que lhes é fornecido é a nossa adaptação disso tudo?...», e aquilo petrificou-o.
E Sourberry continuava a insinuar-se: «Um leal agente dos serviços secretos americanos tirou esta sequência notável com uma câmera de lentes telescópicas disfarçada de botão de colarinho; é precisamente por isso que estes fragmentos aparecem tão desfocados.»
E, de fato desfocados, como avisara Sourberry, duas figuras deslocavam-se juntas ao longo de um muro. Roosevelt e... José Stalin, este último de pé, era Roosevelt na sua cadeira de rodas com uma manta sobre o colo, empurrado por um homem de uniforme.
«O equipamento especial de captação sonora a longa distância», murmurava Sourberry, «de que dispunha o leal agente dos serviços secretos permitiu-lhe apanhar...»
«Muito bem», pensou para si Joseph Adams. «Parece excelente. Uma câmera do tamanho de um botão de colarinho; quem é que em 1982 se lembrava de que em 1944 ainda não existiam esses dispositivos em miniatura? Portanto aquilo passa sem dificuldades» ? passou, quando aquela coisa terrível fora transmitida para todos os cidadãos do bloco ocidental. Ninguém escreveu para o Governo de Washington D. C. dizendo: «Caros Senhores: relativamente à câmera no ‘botão do colarinho’ do ‘leal agente dos serviços secretos’ em Yalta; venho por meio desta informar-vos de que...» Não, nada disso acontecera; ou se acontecera, a carta tinha sido cuidadosamente enterrada... senão mesmo também a pessoa que a escrevera.
Que capitulo você está vendo aí, Joe? ? perguntou Colleen.
Recostou-se novamente, parando o aparelho.
— A grande cena. Quando Franklin Delano Roosevelt e Stalin combinam de vender e trair as democracias ocidentais.
— Ah, sim! ? exclamou Colleen, reforçando a afirmação com um aceno da cabeça, sentando-se a seu lado. ? A imagem desfocada tirada a grande distância. Quem é que alguma vez pode esquecer uma coisa dessas? Foi-nos metido na cabeça...
— Claro que sabes ? disse ele ? qual é a falha.
— Eles mesmos nos disseram qual era a falha. O próprio Brose, e uma vez que já era vivo, e discípulo de Fischer...
— Agora já ninguém ? continuou Adams ? comete erros destes ao preparar material de leitura. Aprendemos; somos mais habilidosos. Quer ver? Ouvir?
— Não, obrigada. Francamente isso não me interessa em nada.
Adams retorquiu:
— A mim também não me interessa nada. Mas fascina-me o fato de ter passado... e ter sido aceito. ? Voltando a fixar os olhos na tela, pôs o aparelho a reproduzir outra vez.
A banda sonora permitia ouvir as duas vozes algo imprecisas. Um ruído de fundo muito pronunciado ? prova sem dúvida do carácter de captação a longa distância do microfone escondido usado pelo «leal agente dos serviços secretos» ? tomava um pouco difícil compreender o que se dizia, senão mesmo impossível.
Roosevelt e Stalin, naquela versão A, falavam inglês; Roosevelt com a sua pronúncia de Harvard, e Stalin com os grunhidos quase guturais da sua pronúncia pesadamente eslava.
Era, portanto, mais fácil compreender Roosevelt. E o que ele tinha para dizer era importante, tanto mais que estava a dizer, inocentemente, ignorando a existência e sem saber do «microfone escondido», que ele, Franklin Roosevelt, o presidente dos Estados Unidos, era ? um agente comunista. Submetido à disciplina partido. Estava traindo os E. U. A. por ordens do seu patrão José Stalin, e o seu patrão dizia:
«Sim, camarada. Tu compreendes as nossas necessidades; está combinado que tu deves deter os exércitos aliados a Ocidente para que o Exército Vermelho possa penetrar profundamente na Europa Central, até Berlim, para estabelecer o predomínio soviético por pelo menos até...» Até que a voz gutural de pronúncia pesada diminuiu de intensidade até praticamente se desvanecer.
Desligando novamente o aparelho, Joseph Adams disse a Colleen.
— Apesar daquela falha, foi um trabalho perfeito que o Gottlieb fez aqui. O ator que fazia o papel de Roosevelt parecia mesmo Roosevelt. O tipo que faziao papel de Stalin...
— Mas havia a falha ? lembrou-o Colleen.
— Sim ? e era uma das grandes, a pior que Fischer jamais cometera; de fato a única e verdadeiramente séria existente no conjunto das sequências forjadas/falsas da versão A.
José Stalin não sabia falar inglês. E uma vez que Stalin não sabia falar inglês, aquela cena nunca podia ter ocorrido. A cena crucial, que acabara de ver, valia de fato pelo que ele era ? e, sendo assim, desmascarava todo o «documentário» pelo que era de fato. Uma fraude deliberada, cuidadosamente manufaturada, concebida com a finalidade de inocentar a Alemanha do que fora feito, das decisões que tinham sido tomadas na Segunda Guerra Mundial. Pois em 1982 a Alemanha era novamente uma potência mundial e, ainda mais, peça fundamental no conjunto de nações que se intitulava «as democracias ocidentais», ou mais com a abreviatura em inglesa, Wes-Dem, uma vez que a O. N. U. se desintegrara durante a Guerra Latino-Americana de 1977, deixando em seu lugar um vazio de poder que os Alemães tinham habilidosa e vorazmente ocupado.
? Estou enjoado ? disse Adams para Colleen enquanto pegava com a mão trêmula um cigarro.
«Só de pensar», disse de si para si, «que aquilo que somos deriva neste momento de algo tão ardilosamente fabricado e ao mesmo tempo tão frágil...
? Stalin falando descaradamente uma língua que não conhecia. »
Depois de uma pausa, Colleen comentou:
? Na realidade, Fischer poderia ter feito isso de forma bem fácil ...
— Teria resolvido a coisa muito facilmente. Bastava um simples intérprete, em segundo plano Era tudo. Mas Fischer era um artista... adorava a ideia de ambos falando ' tête-à-tête, sem intermediários; sentia que assim teria mais impacto dramático. ? E Fischer estava correto, uma vez que o «documentário» fora universalmente aceito como historicamente correto, como documentando fielmente a «traição» de Yalta, à «incompreensão» de que fora alvo Hitler, que apenas se limitara a tentar salvar as democracias ocidentais dos comunistas... e: até mesmo os campos de extermínio nazistas; até mesmo isso era amplamente explicado. E para tal tinham bastado alguns fotogramas sobrepostos mostrando: navios de guerra britânicos e campos de prisioneiros famintos, algumas poucas cenas forjadas que pura e simplesmente nunca tinham ocorrido, algumas sequências tiradas dos arquivos cinematográficos dos exércitos das Wes--Dem... e aquela voz delicodoce que juntava tudo muito bem. Delicodoce..., mas firme.
Tudo claro e limpo.
— Não entendi ? disse então Colleen ? porque é que isto te per-, turba tanto. É porque o erro é tão evidente? Naquela altura não era tão evidente assim, pois em 1982 quem é que sabia que Stalin não...
— Não sei ? interrompeu-a Adams, falando lentamente, e com o máximo cuidado ? qual é a falha central correspondente na versão B? Já alguma vez descobriste? Porque parece-me que nem sequer o Brose, na minha opinião, conseguiu perceber tão bem na versão B como o fez na versão A.
Ponderando, ela retorquiu:
? Ora vejamos. Na versão B, para o mundo comunista de 1982... ? E continuou a pensar para si, franzindo a sobrancelha, dizendo depois: ? Há já muito tempo que não vejo nada da versão B, mas...
Adams interrompeu-a novamente:
— Vamos partir da hipótese operacional que suporta toda a versão B. De que a U. R. S. S. e o Japão estão tentando salvar a civilização. E de que a Inglaterra e os E. U. A. são aliados secretos dos nazis, de Hitler; tendo-o levado ao poder com a única finalidade de atacar as nações orientais, de preservarem o status quo contra as novas nações despontavam no Oriente. Isto nós já sabemos. Durante toda a Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra e os E. U. A. somente fingiram que lutavam contra a Alemanha; era a autentica guerra por combate terrestre que fez a Rússia na frente oriental; os desembarque na Normandia... como é que lhe chamavam? A Segunda Frente? ... Não teve lugar depois de a Alemanha ter sido derrotada pela Rússia; os Ingleses e os Americanos apressaram-se então a tentar apanhar o máximo de despojos como fazem os abutres...
— Despojos esses ? continuou Colleen? que pertenciam por direito URSS ? Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça. ? Mas onde é que Fischer cometeu o seu erro técnico na versão B? A ideia geral é perfeitamente crível, como de resto a da versão A; e as imagens genuínas do Exército Vermelho em Stalingrado...
— Sim. Tudo é real. Autêntico e perfeitamente convincente. Havia mesmo ganho a guerra em Stalingrado. Mas... ? e apertou o punho, danificando o cigarro; depois deitou-o cuidadosamente num cinzeiro próximo.
? Não penso em passar a assistir o lado B ? disse. Apesar do que a mónada me disse. Portanto, posso ter cometido algum erro, parei de me desenvolver, e isso quer dizer que serei ultrapassado e será o fim... Apercebi-me disso tudo ontem à noite, quando saíste. Apercebi-me disso novamente quando ouvi o discurso de David Lantano e quanto era melhor do que qualquer coisa que eu possa sequer sonhar em fazer. E ele tem mais ou menos dezenove anos. Vinte no máximo.
— David tem vinte e três anos ? retorquiu Colleen.
Levantando os olhos, Adams perguntou: ? Já o conhece?
— Oh, ele está sempre saindo e entrando na Agência; gosta de ir ao seu terreno contaminado para vigiar o trabalho dos seus robôs, para ver se a vila está ficando como ele quer... na minha opinião, está ansioso por vê-la agora, porque sabe que provavelmente não viverá tempo suficiente para a poder vê-la concluída. Gosto dele, mas é tão estranho e enigmático; na verdade, quase um recluso; vem aqui, programa o seu discurso no computador, fica mais um bocado, fala um pouco, muito pouco, depois se vai- outra vez. Mas qual é esse erro na versão B, na versão para os Pac-Peop, que só tu conheces e que mais ninguém, nem mesmo Brose, reparou durante todos estes anos?
Adams respondeu:
— É a cena em que Hitler faz uma das suas viagens secretas a Washington D. C., durante a guerra, para conferenciar com Roosevelt.
— Ah, sim. Fischer tirou essa ideia do voo que Hess fez à...
— A importante reunião secreta entre Roosevelt e Hitler. Em Maio de 1942... Quando Roosevelt, com Lorde Louis Mountbatten, Prinz Batten von Battenberg, em representação da Inglaterra, informa Hitler de que os Aliados adiaram a invasão na Normandia pelo menos por um ano para que a Alemanha possa usar todos os seus exércitos na frente oriental para derrotar a Rússia. E dizem-lhe também que todos os pontos chave dos comboios de abastecimento para a Rússia serão dados a conhecer aos serviços secretos alemães comandados pelo almirante Canaris, de modo que os submarinos nazis possam afundá-los à vontade. Você se lembra das imagens desfocadas captadas à distância feitas por um «camarada do partido ? empregado na Casa Branca»... Hitler e Roosevelt sentados no sofá, com Roosevelt garantindo a Hitler que não tinha nada com que se preocupar; os bombardeamentos aliados seriam feitos de noite, de modo a falharem os alvos, e que todas as informações provenientes da Rússia que diziam respeito aos seus planos militares, colocação de tropas, etc., seriam fornecidas a Berlim nas vinte e quatro horas seguintes ao seu conhecimento pelos E. U. A. e pela Inglaterra, via Espanha.
— Eles falam em alemão ? perguntou Colleen ? , não é verdade?
— Não ? respondeu ele, furioso.
— Em russo? Para que o público o possa entender?
Já faz muito tempo que eu assisti ...
Irritado, Adams disse:
? É na chegada de Hitler à «base secreta da U. S. Air Force, perto de Washington», que ocorre o tal erro técnico, e é incrível que ninguém tenha reparado nisso. Em primeiro lugar, durante a Segunda Guerra Mundial não havia nenhuma Força Aérea Norte Americana.
Ela olhou -o espantada.
— Ainda se chamava Army Air Corps ? continuou Adams. ? Ainda não era um ramo totalmente separado do exército. Mas isso não é nada; isso podia ser um erro menor para a audiência tão concentrada... quase nada.
— Repare. ? rapidamente retirou o rolo do aparelho, pegou no rolo da versão B; de olhos fixos no aparelho deixou correr a fita até chegar à tal cena, no episódio dezesseis, aquela precisamente que ele queria; recostou-se então e fez-lhe um gesto para que se concentrasse.
Durante um momento Colleen ficou olhando silenciosamente.
? Ali vem agora o seu jato ? murmurou ela. ? Para a sua aterragem noturna no... Sim, tens razão, o comandante está a chegar à «U. S. Air Forcebase», e eu lembro-me vagamente...
?O seu jato ? exclamou Adams.
Parando a imagem, Colleen voltou a fitá-lo.j
? Hitler aterra secretamente nos E. U. A., em Maio de 1942 ? disse; Adams? , num jato Boeing 707. Ora esses aviões só entraram a uso em meados dos anos 60. Durante a Segunda Guerra Mundial só existiu um avião a jato, um caça alemão, e que nunca entrou em serviço.
— Oh, meu Deus ? exclamou Colleen, abrindo muito a boca.
— Mas resultou ? disse Adams. ? O público das democracias populares acreditaram... que em 1982 estavam já tão habituadas a ver aviões a jato que se esqueceram de que em 1942 só existiam o que eles chamavam de... ? Não conseguia lembrar-se.
— Aviões a hélice ? completou Colleen.
— Parece-me que estou entendendo por que razão é que a mónada dirigente dos arquivos me remeteu de novo para isto, para estas fontes primordiais de informação. Para os trabalhos originais de Gottlieb Fischer, o primeiro homem de Yancy; o homem que concebeu de fato a ideia de Talbot Yancy. Mas que, infelizmente, não viveu o suficiente para ver o simulacro realmente construído... e a ser usado pelos dois blocos. A mónada queria que eu visse ? continuou ele? que a minha ansiedade relativamente à qualidade do meu trabalho é desnecessária. Excessiva, pois o nosso trabalho, os nossos esforços históricos coletivos desde o princípio, a começar por estes dois documentários, estão todos desfigurados. Quando tu ou eu vamos por aí inventando coisas, todos estamos inevitavelmente sujeitos a, mais tarde ou mais cedo, cometermos uma falha.
— Sim ? e acenou com a cabeça. ? Nós somos apenas mortais. Não somos perfeitos.
— Mas o mais estranho é que ? disse Adams ? não tive essa sensação relativamente a David Lantano. Tive uma primeira reação de medo e agora vejo porquê. Ele é diferente. Ele é ou pode ser... perfeito. Não como nós. Então isso torna-o o quê? Não parece ser um ser humano?
— Só Deus sabe ? disse nervosamente Colleen.
— Não diga isso? ele a repreendeu. ? Por alguma razão não me não gosto de mencionar Deus em relação a David Lantano. ? «Talvez», pensou depois para si, «porque aquele homem está tão perto das forças da morte, vivendo como vive num lugar ainda contaminado, minado dia após dia pelas radiações. Como se, apesar de se estar se queimando totalmente, matando-se, ele retirasse daí uma qualquer força mística. »
Mais uma vez se apercebeu da sua própria mortalidade, da delicada estabilidade de forças que, desde o nível puramente bioquímico e por aí acima, permitiam a existência de um ser humano.
Mas David Lantano aprendera a viver no próprio coração de tais forças, e mesmo a sobrepor-se-lhes. Como o conseguira? «Lantano», continuou ele a pensar para si, «tem o direito de se sobrepor a algo fora do nosso alcance; eu só gostaria de saber como é que ele o consegue; também eu o gostaria de conseguir ser como ele. »
E disse para Colleen:
? Já vi o que tinha a apanhar destas fitas dos dois documentários de Fischer de 1982, portanto parece-me que meu trabalho aqui terminou. ? Levantou-se, pegou os videoteipes. ? O que apanhei foi isto. Hoje cedo vi e ouvi um discurso feito por um jovem homem de Yancy de vinte e três anos, e isso me assustou-, e depois passei estas duas versões do documentário de Fischer de 1982, e o que captei foi isto.
Ela esperava, ansiosa, com uma paciência toda feminina e maternal.
— Nem mesmo Fischer ? disse ele então ? , o maior de todos nós, podia competir com David Lantano. ? Fora isso que percebera, certamente. Mas não estava, pelo menos naquele preciso momento, totalmente consciente do que tal coisa significava.
No entanto, tinha um pressentimento. Um daqueles dias ele e a classe dos homens de Yancy como um todo, incluindo o próprio Brose o iriam descobrir.

11
Um pequeno e sensível aparelho, trabalhando com base em sonar e preso ao casaco, uma espécie de versão geológica do utilizado por um submarino, indicava a Nicholas St. James, enquanto continuava a operar com a sua escavadora manual portátil, que conseguira já chegar a cerca de um metro da superfície.
Parou de escavar, tentando conseguir um breve momento de calma. Pois estava perfeitamente consciente de que dentro de quinze minutos aproximadamente ia saltar lá para fora e seria logo caçado.
Não lhe era nada agradável aquela sensação tão viva de que muito em breve se transformaria numa vítima.
Algo de artificial e complicado, com milhares de componentes em miniatura, com feedback e sistemas de apoio, com extensões de detecção, com fontes de energia autossuficientes e virtualmente eternas, e, pior do que tudo isso, com tropismos que envolviam a principal característica da vida: o fator chamado calor.
O verdadeiramente aborrecido era simplesmente isto: como estava vivo, atraía as atenções; era essa a realidade da superfície da Terra, e ele tinha de estar preparado para tal, pois teria muito em breve de participar numa verdadeira caçada. Não podia lutar. Não podia ganhar de maneira nenhuma. Ou conseguia escapar ou morreria. E a fuga teria de começar no preciso momento em que emergisse à superfície e, ali, na escuridão asfixiante daquele túnel tão estreito, enquanto respirava o seu ar comprimido e se agarrava, qual inseto, aos espeques que fixara às paredes, pensava para si que talvez já fosse tarde demais.
Talvez até mesmo antes de emergir à superfície tivesse já sido detectado. As vibrações da sua escavadora portátil, já desgastada e sobreaquecida, prestes a desintegrar-se. Ou a sua respiração. Ou ainda ? mais uma outra vez, a grotesca maldição da própria base da vida? o seu calor corporal podia detonar uma mina autônoma (como já vira na TV) e talvez até mesmo essa mina já se tivesse desprendido do local onde ficara até se tomar invisível... já se tivesse desprendido e aparecesse agora por sobre as ruínas que cobriam a superfície da Terra como um resto de uma qualquer orgia noturna, gigantesca e psicopata. Aparecesse e o interceptasse, fosse ao seu encontro no ponto exato onde iria emergir. Com uma enorme exatidão, pensou ele para si, na sincronização de tempo e espaço relativamente às coordenadas que os iriam juntar. Entre o que ele estava a fazer e o que esse objeto estava realmente a fazer também.
Ele sabia o que o esperava lá em cima. Já o soubera realmente desde o momento em que entrara no túnel e em que fora, imediatamente depois, impedido de regressar. «Ativistas de uma figa», dissera então, «vocês e mais o seu comitê, vocês é que deviam estar aqui agora. »
A máscara de oxigênio abafava- lhe a voz; que de fato está mal lhe chegava aos ouvidos; pressentia-a mais como uma vibração transmitida pelos seus ossos faciais. «Quem me dera que Dale Nunes tivesse me detido», pensou para si. «Como é que podia saber», continuou a pensar para si, «que iria ficar com tanto medo? »
«Deve ser o mecanismo que desencadeava a paranoia psicótica», pensou ainda para si. Aquela sensação aguda e desagradável de que estava sendo vigiado. Concluiu que era a sensação mais desagradável que já sentira até então; até mesmo o componente medo era irrelevante: o fator dominante era a sensação de ser secretamente e onipresentemente vigiado, era realmente o que tornava aquilo verdadeiramente insuportável.
Recomeçou a trabalhar com a escavadora; esta, com um grunhido essa, recomeçou a sua tarefa; a poeira e a rocha cediam por cima da sua cabeça, pulverizadas, queimadas, transformadas em energia ou qualquer outra coisa do gênero ? um produto semelhante a cinza muito fina filtrada pela parte traseira da escavadora, e nada mais. O metabolismo mecânico da máquina utilizara o resto, o que impedia o túnel pura e simplesmente de se voltar a encher atrás de si.
Portanto... podia regressar.
Com um gemido, O minúsculo alto-falante do seu intercomunicador com o comitê no Tom Mix começou a emitir:
— Ouça, presidente St. James, você está bem? Há quase uma hora que estamos à espera e não recebemos mais notícias suas.
Ao que ele retorquiu:
— A única palavra que tenho para dizer é que? e depois calou-se; para quê dizê-lo? Já a tinham ouvido antes e de resto sabiam perfeitamente como é que ele se sentia. «E, em qualquer dos casos... eu sou o seu presidente eleito», concluiu ele, «e os presidentes eleitos, mesmo os presidentes eleitos de abrigos subterrâneos, não deviam utilizar oficialmente palavras daquelas. » Continuou a escavar. O intercomunicador estava agora silencioso; tinham percebido a sua mensagem.
Dez minutos mais tarde uma luz incidiu subitamente sobre ele; sobre o seu rosto caiu então uma massa complexa de poeira, raízes e pedra, e apesar da sua viseira de proteção e da máscara e da proteção que lhe dava tudo o que envergava, encolheu-se com medo. A luz do Sol. Horrível e cinzenta e tão forte que sentiu um ódio imediato por ela; lançou-se para a frente, tentando lacerá-la como se se tratasse de um olho gigantesco, um olho medonho que não se quisesse nunca mais fechar. A luz do Sol. Novamente o ciclo dia e noite, passados quinze anos. «Se soubesse rezar», pensou para si, «era o que eu devia fazer. Rezar, suponho eu, para que a visão daquilo que era a mais antiga de todas as divindades, a divindade solar, não fosse o presságio da morte; para que eu viva o tempo suficiente para poder ver novamente este ritmo de dia e noite, e não apenas um breve relance ofuscante e quase insuportável. »
— Cheguei á superfície ? disse para o intercomunicador.
Não obteve resposta. Ou a bateria se descarregara ? mas a luz do seu capacete ainda estava acesa, apesar de muito pouco, ali, diante daquele céu do meio-dia. Sacudiu selvaticamente o intercomunicador; pareceu-lhe logo bem mais importante conseguir contatar com o abrigo lá em baixo do que continuar: «Meu Deus», pensou para si, «a minha mulher e a minha gente, o meu irmão; estou sem contato. »
O desejo insuportável de voltar lá para baixo ? era o pânico ? fazia que se debatesse como um escaravelho: expeliu poeira e pedras para a superfície e outras lá para baixo ? libertou-se finalmente do túnel, de um salto ficou de bruços sobre a terra viscosa e lisa que constituía a superfície da Terra. E deixou-se ficar ali deitado, completamente espalmado, como se quisesse imprimir as formas do seu corpo na terra:
«Hei de deixar uma marca», pensou para si com excitação. «Uma pegada do tamanho de um homem; que nunca mais desaparecerá, mesmo que eu desapareça. »
Abrindo depois os olhos olhou para norte ? era fácil saber para que lado era o Norte; estava assinalado nas pedras e na relva, os esqueléticos e sujos tufos de relva espalhados sob o seu corpo e à sua volta; o campo polar dominava tudo, dirigia todas as formas de vida para si ? e depois olhou para cima e ficou admirado pelo céu parecer tão cinzento, nada azul mesmo. Concluiu que devia ser poeira. Claro que provocada pela guerra; as partículas nunca chegaram a pousar completamente. Sentiu-se decepcionado.
Mas o chão. Havia qualquer coisa viva rastejando sobre a sua mão; era uma forma de vida minúscula, que, mesmo assim o espantava, lá bem no fundo da sua memória. A formiga trazia uma pequena partícula branca nas, mandíbulas e continuou a observá-la à medida que se afastava; não eram muito brilhantes como raça, mas pelo menos não desistiam. E... tinham ficado ali em cima; quinze anos antes não tinham fugido; tinham enfrentado o Dies Irae, o Dia do Juízo Final, e ainda ali estavam. Como o testemunhava j aquela amostra, aquela representante; nela ele vira não uma formiga, mas todas as formigas, e a eternidade, como se ela sempre ali tivesse estado, fora do tempo.
? Presidente Saint-James... o senhor conseguiu sair?
? Sim eu saí.
? Por favor nos conte o que vê.
? Em primeiro lugar? disse ele ? vejo um céu cinzento por causa das partículas em suspensão. É algo bem decepcionante.
? Não consigo distinguir grande coisa. As ruínas de Cheyenne estão ali para a minha esquerda; consigo ver alguns edifícios ainda em pé, mas de resto está tudo péssimo. As ruínas estão muito longe, no horizonte. Aqui junto de mim só há pedregulhos. De fato... ? Podia ser pior, e isso espantava-o. Pois um pouco mais longe conseguia distinguir o que pareciam ser árvores. ? De acordo com a TV ? continuou ele ? , deve ser por aqui" aquela grande base militar do outro lado da fronteira do Nebraska; tal como, planejamos, vou encaminhar-me para nordeste para...
— Não se esqueça ? replicou o intercomunicador com excitação ? de que, de acordo com os boatos que ouvimos, os tipos do mercado negro devem estar vivendo nas ruínas, nas cidades e nas crateras dos antigos refúgios antiatômicos. Portanto, se a coisa não se apresentar bem para nordeste, vá diretamente para norte, para as ruínas de Cheyenne, a ver se consegue contatar alguém por aí. Quer dizer, numa cidade tão grande deve haver subterrâneos muito grandes, proteção local, a nível individual, para um ou dois tipos, aqui e ali. E, quer dizer, não se esqueça: eles sabem como fugir ao contato com os robôs; têm mesmo de saber. Certo? Está me ouvindo?
Nicholas retorquiu:
— Sim estou ouvindo. Muito bem; eu...
— E não se esqueça, leve com você essa caixa de dispersão de folha incandescente para ludibriar as máquinas assassinas termotrópicas; certo? Comece a espalhá-las à sua volta à medida que for avançando. Ah, ah. Você se lembra de Hansel e Gretel, não é? Só o que você quer é que lhe comam somente as migalhas de pão.
Cambaleante, ainda inseguro, pôs-se de pé.
E foi nessa altura que o apanharam. Ouviu-os moverem-se; alertados pela sua mudança de posição, aproximaram-se e ele voltou-se de repente ele se virou com a ridícula arma que lhe tinham fornecido os técnicos do abrigo. O primeiro robô elevou-se no ar como se estivesse cheio de hélio, pelo que o raio da sua pistola de laser feita à mão de fabricação caseira lhe passou por baixo; o robô era certamente um veterano e desceu em espiral, ficando assim ligeiramente atrás de si, enquanto o outro se inclinava, dirigindo-se a enorme velocidade na sua direção, estendendo algo que ele não percebia o que era; não estava a disparar contra ele, estava a tentar apanhá-lo. Ele recuou, disparou mais uma vez a miserável pistola de laser, inutilmente, e viu desaparecer uma parte da anatomia do robô, e depois, o outro, que estava atrás de si, caçou-o. «O abraço final, pensou para si; o laço puxava-o por sobre as pedras e por sobre os tufos de ervas, como se tivesse sido apanhado por um veículo que nunca mais parava. Tentou libertar-se do laço; mas este prendias-lhe ao fato e à parte das costas e era evidente que o robô sabia que era inútil a sua tentativa; nem sequer podia se voltar.
E então ele percebeu porquê. Percebeu o que é que eles estavam a fazer.
Estavam a afastá-lo do túnel o mais rapidamente possível, primeiro, com o robô que o agarrara por trás, enquanto o outro, apesar de já não se encontrar intacto, conseguia ainda tapar a entrada do túnel, fechando-a; o robô virou para o solo uma espécie de raio, e o chão, com as suas pedras, ervas e pó parecia ferver; levantou-se um pouco de Vapor e a entrada do túnel desapareceu, desfigurada e obliterada. E nesse preciso momento deixaram de o arrastar. O robô parou, levantou-o, arrancou-lhe o intercomunicador das mãos e rasgou-o com a sua extremidade inferior. Sistematicamente, o robô foi-lhe arrancando tudo o resto, arma, capacete, máscara, garrafa de oxigênio, o traje espacial ? arrancou e o rasgou até que, satisfeito, se deteve. Parou.
— Seriam robôs soviéticos? ? inquiriu Nicholas, de respiração ofegante. Era óbvio que sim. Robôs das Wes-Dem nunca...
E então reparou, estampada no revestimento do robô mais perto de si não uma inscrição em cirílico, não palavras em russo, mas palavras inglesas. Palavras claramente perceptíveis, feitas com um stencil e com uma passagem rápida de tinta ? mas não numa oficina qualquer de qualquer abrigo oficina; aquilo fora acrescentado depois, depois de o robô ter subido à superfície pelo tubo. Talvez aquele até tivesse sido fabricado no Tom Mix, mas tudo estava agora alterado, pois aquela inscrição esquisita rezava assim:
 
PROPRIEDADE DE DAVID LANTANO: IDENTIFICAÇÃO DA AGÊNCIA 3-567-587-1 SE DEVOLVIDO, NÃO DEVEM FAZER PERGUNTAS,
MAS AS CONDIÇÕES DEVEM VARIAR ENTRE BOM E
EXCELENTE

12
Enquanto ele ainda olhava espantado para aquela inscrição incompreensível, o robô mesmo à sua frente disse-lhe:
— Desculpe, senhor, pelo tratamento imperdoável que lhe demos, mas estávamos ansiosos por o afastarmos do seu túnel e ao mesmo tempo, se possível, por fechá-lo. Talvez nos possa informar diretamente, sem termos de recorrer a outros dispositivos de detecção. Há outros indivíduos do seu abrigo preparando-se para o seguir ou que o tenham seguido?
Nicholas murmurou:
— Não.
— Estou vendo? retorquiu o robô, e acenou com a cabeça como se tivesse ficado satisfeito. ? A nossa pergunta seguinte é esta. Que é que o levou a abrir um túnel vertical, em desafio à ordem geral e arriscando-se às graves consequências que tal coisa implica?
O seu companheiro, o robô que ficara parcialmente danificado, acrescentou:
— Por outras palavras, senhor. Podia dizer-nos, por favor, por que razão está aqui?
Passado um momento, Nicholas respondeu hesitante:
— Vim... arranjar uma coisa.
— E podia dizer-nos a natureza dessa «coisa»? ? perguntou o robô intacto.
Era-lhe naquele momento totalmente impossível decidir se devia ou não dizer; todo' aquele ambiente, o mundo que o rodeava e aqueles seus habitantes, metálicos e, no entanto, bem educados, pressionando-o, e, porém, respeitosos, perturbavam-no e desorientavam-no.
? Damos-lhe um momento ? disse então o robô intacto ? para se recompor. No entanto, temos de insistir que tem de nos responder. ? E aproximou-se dele, estendendo na sua direção um dispositivo que segurava na sua extremidade manual. ? Gostaria que se submetesse a uma leitura poligráfica das suas declarações; por outras palavras, senhor, à avaliação por um instrumento perfeitamente neutral da veracidade das suas respostas. Não queremos ofendê-lo, senhor; trata-se apenas de uma rotina.
Antes de saber ao certo o que lhe acontecia, o detector de mentiras estava bem fixo ao seu pulso.
— Agora, senhor ? disse o robô intacto. ? Que descrição do estudo em que se encontra aqui a superfície da Terra é que enviou puni os seus companheiros por meio do sistema de intercomunicação que acabamos de inutilizar? Por favor, dê-nos os pormenores completos e específicos.
Novamente hesitante, respondeu:
— Eu... eu não sei.
Então o robô danificado falou diretamente para o companheiro.
— Não é necessário perguntar-lhe isso; eu estava suficientemente perto para poder gravar a conversa.
— Então reproduza a gravação ? comentou o robô intacto.
Para grande admiração e exasperação de Nicholas, da caixa vocal do robô deteriorado começou a sair a gravação da sua conversa com os companheiros lá em baixo. Da boca do robô saíam as palavras distantes mas perfeitamente claras, como se o robô fosse ele, agora, numa mímica horrível.
Presidente St. James! Já chegou?
E depois a sua própria voz, mas ligeiramente acelerada, ao que lhe pareceu, respondendo:
Já cheguei.
Comece a contar; conte-nos como é.
Primeiro de tudo o céu é cinzento devido a...
E ele tinha de estar ali, ladeado por aqueles dois robôs, a ouvir tudo de novo integralmente; e não parava de se perguntar, uma e outra vez:
«Mas que é que se está acontecendo aqui?»
Finalmente passaram a conversa toda; os dois robôs falaram entre si.
— Ele não lhes disse nada de importante ? concluiu o robô intacto.
— Concordo ? e o robô danificado acenou afirmativamente com a cabeça.
? Pergunta-lhe outra vez se vêm mais. ? E as duas cabeças metálicas rodaram na direção de Nicholas; olharam-no intensamente.? Sr. St. James, vai ser seguido agora, ou mais tarde?
— Não ? respondeu ele grosseiramente.
— O polígrafo ? disse o robô danificado ? confirma a declaração. Agora, mais uma vez, Sr. St. James; a finalidade de ter aberto um túnel até à superfície. Insisto respeitosamente, senhor, para que nos diga; tem de dizer porque está aqui.
— Não ? retorquiu ele.
Então o robô danificado disse para o companheiro:
— Contate o Sr. Lantano e pergunta se devemos matar o Sr. St. James ou entregá-lo à organização Runcible ou aos psiquiatras de Berlim. O teu transmissor está operacional; o meu foi destruído pela arma do Sr. St. James.
Após uma pausa, o robô intacto disse:
— O Sr. Lantano não está na vila; os empregados domésticos informam de que se encontra na Agência, em Nova Iorque.
?Podes entrar em contato com ele lá?
Depois de uma pausa muito longa, o robô intacto disse por fim. j
?Eles contataram com a Agência pela linha vídeo. O Sr. Lantano esteve lá, trabalhando no computador, mas já saiu e ninguém na Agência parece saber onde e quando ele aparecerá novamente; não deixou qualquer; mensagem. ? E acrescentou: ? Vamos ter de decidir sozinhos.
— Discordo ? disse o robô danificado. ? Temos de contatar com o homem de Yancy mais próximo, na ausência do Sr. Lantano, e seguir o seu julgamento, não o nosso. Por meio da linha vídeo, na vila, talvez possamos contatar o Sr. Arthur B. Tauter, mais a leste, na sua mansão. Ou então; na sua ausência, alguém na Agência em Nova Iorque; a questão é que o Sr. St. James não disse aos seus companheiros lá em baixo nada sobre as condições à superfície e portanto a sua morte pode ser considerada como mais uma confirmação de que decorre uma guerra. O que os satisfaria.
— A tua última argumentação está bem feita ? retorquiu o robô intacto. ? Penso, portanto, que o devemos matar, e nem sequer precisamos ir incomodar o homem de Yancy Sr. Arthur B. Tauter, que de qualquer das formas deve estar na Agência e quando nós...
— Concordo ? O robô danificado retirou então um aparelho em forma de tubo, e Nicholas compreendeu que era aquilo que iria causar a sua morte; era o seu fim, sem mais debate: a conversa entre os dois robôs... e ele não parava de pensar: «Fomos nós que os fizemos, nós, lá em baixo nas nossas oficinas; são o produto das nossas próprias mãos...» Esta conversa terminara e a decisão fora tomada.
Ele disse então:
— Esperem.
Os dois robôs, com a sua correção formal, esperaram; ainda não o matariam, por uns momentos.
— Digam-me ? disse ele então ? , por que razão, sendo vocês Wes-Dem e não Pac-Peop... e eu sei perfeitamente que são Wes-Dem; vejo perfeitamente o que ambos trazem escrito... vão me matar? ? Apelando mais uma vez para eles, para os seus equipamentos neurônicos e perceptivos e racionais, para as capacidades cefálicas altamente organizadas que sabia possuírem (eram do tipo VI), disse ainda: ? Vim até aqui acima para arranjar um pâncreas artificial, para que conseguíssemos realizar a nossa quota de material de guerra. Um órgão artificial, percebem? Para o nosso mecânico- -chefe. Esforço de guerra. ? «Mas», pensou então para si, «não vejo quaisquer sinais de nenhuma guerra. Posso ver as ruínas, sinal de uma guerra que pertence ao passado...» Ele via ruínas, mas desativadas; toda aquela paisagem tinha um evidente sinal de antiguidade, e um pouco mais longe conseguia distinguir perfeitamente árvores. E as árvores estavam com um aspecto novo, jovem e saudável. «Então é isso, a guerra acabou. Um dos lados ganhou, ou pelo menos as hostilidades cessaram e estes robôs já não pertencem às Wes-Dem, não pertencem a nenhum exército governamental, são propriedade do indivíduo cujo nome está inscrito em ambos, esse tal David Lantano. E é dele que recebem as ordens... quando o conseguem encontrar. Mas neste preciso momento não está por perto para que possa apelar para ele. E por isso, tenho de morrer. »
— O polígrafo indica uma grande tensão da parte do Sr. St. James. Talvez fosse humanitário informá-lo... ? Parou. Porque se tinha pura e simplesmente pulverizado; no preciso local onde se encontrava restava agora um montículo de elementos desconexos e cambaleantes, uma coluna erguida que rapidamente se desintegrou em mil pedaços. O robô intacto virou-se rapidamente, meia volta completa; como um enorme pião; com a sua experiência de veterano pressentiu a origem da força que desintegrara o companheiro, e enquanto executava esse movimento, o feixe do raio atingiu-o também e o movimento deteve-se. Caiu, partiu-se, desintegrou-se e depois ficou tudo imóvel no chão e finalmente Nicholas apercebeu-se de que ficara sozinho, diante de nada que falasse ou vivesse, nem que fosse artificialmente; o silêncio, por toda a parte, substituíra a fervilhante atividade dos dois robôs que estavam prestes para eliminá-lo, e ficou contente com isso, intensa e absolutamente aliviado por eles terem sido destruídos, mas, porém, continuava a não compreender; olhou em todas as direções, como fizera o robô intacto, e, tal como ele, não viu nada, apenas os pedregulhos, os tufos de erva, e muito, muito longe, as ruínas de Cheyenne.
— Ei ? disse bem alto; e começou a andar para trás e para diante, buscando, como se de um momento para o outro fosse encalhar com alguma coisa, com aquela entidade benevolente, um minúsculo percevejo a seus pés, qualquer outra coisa insignificante que só conseguiria localizar de muito perto. Mas... não encontrou nada. E o silêncio continuava.
Uma voz, amplificada por um megafone, disse então:
— Vá para Cheyenne.
Ele deu um salto, virou-se; por trás de um dos pedregulhos, o homem' espreitava, falando mas tentando ainda esconder-se. Porquê?
— Em Cheyenne ? continuou a voz poderosa ? encontrarás ex-refugiados que vieram antes de ti. Claro que não do teu abrigo. Mas aceitar-te-ão. Mostrar-te-ão as refúgios profundas onde a radioatividade é mínima, onde ficarás em segurança durante uns tempos até poder decidir o que quer fazer.
— Quero um órgão artificial ? disse ele obstinadamente, como se fosse uma qualquer máquina reflexa; mas era tudo em que conseguia pensar. ? O nosso mecânico-chefe...
— Eu já percebi isso ? retorquiu a voz poderosa amplificada pelo megafone. ? Mas ainda assim te aconselho. Vai para Cheyenne. Vai levar horas a pé e esta área está ainda contaminada; não deves ficar aqui por cima muito tempo. Vai para as refúgios de Cheyenne!
— E você pode me dizer- quem é?
— Tem mesmo de saber?
Nicholas disse então:
— Não «tenho de saber». Mas gostava. Seria muito importante para mim. ? Esperou. ? Por favor ? disse por fim.
Depois de uma breve pausa de evidente e genuína relutância vinda de trás do pedregulho, apareceu uma figura... tão perto já que ele deu um pulo; o reforço mecânico da voz fora um artifício técnico para o impedir de localizar a origem do som ? dera com facilidade a impressão de se tratar de algo muito distante quer dele quer dos dois robôs. Tudo engano.
A figura que ali estava diante dele era...
Talbot Yancy !

13
Em pé ao fundo da mesa, Verne Lindblom disse:
— Penso que estes bastam. ? E apontou para vários objetos que pareciam armas e depois para os crânios e ossos cuidadosamente envoltos em plástico. Terrenos e extraterrenos; duas variedades distintas, agora separadas, mas que em breve seriam misturadas no solo de Utah.
Joseph Adams estava impressionado. Lindblom, o artesão, não demorara muito tempo. Até mesmo Stanton Brose, recostado na sua cadeira com rodas, parecia surpreendido. E, claro, imensamente satisfeito.
A outra pessoa ali presente não teve qualquer reação; tal não lhe era permitido: deixou-se ficar esquecido nos bastidores. Adams pensava para si quem seria ele e depois compreendeu, com um acesso de aversão, que se tratava da marionete de Brose que se infiltrara no pessoal de Runcible; era Robert Hig, que viria a encontrar um, ou mais ? iniciaria verdadeiramente todo o processo de busca... daqueles artefatos.
— Os meus artigos ? comentou Adams ? ainda nem sequer estão em rascunho. E já aqui temos os artefatos completos. ? De fato, apenas iniciara a primeira página do primeiro artigo; ainda levaria dias antes de poder acabar o conjunto de três artigos, depois levá-los aos escritórios da Agência para que fossem impressos na sua forma de revista, em conjunto com outros, provavelmente autênticos, artigos científicos escritos há trinta anos, em números da Natural World de antes da guerra.
? Não se aflija ? murmurou-lhe aquela velha massa arqueada na cadeira motorizada, que era realmente Stanton Brose. ? Não precisamos de apresentar os números da Natural World senão quando os nossos juristas levarem o Runcible até ao Conselho de Reconstrução, e isso ainda levará algum tempo; faça-os o mais rapidamente que puder, mas nós, por nossa parte, podemos ir enterrar estes objetos... não precisamos de esperar por você, Adams. E acrescentou gratuitamente:
? Graças a Deus.
— Vou te explicar como nó planejamos tudo ? disse Lindblom para Adams? uns agentes de Foote a serviço deRuncible avisaram-no (ou avisá-lo-ão muito em breve) de que se está a tramando algo. Qualquer coisa mais ou menos deste tipo. Mas o agente de Foote não saberá ao certo o quê. A menos que um de nós quatro que nos encontrámos nesta sala seja um agente de Webster Foote. Na verdade, só nós quatro sabemos.
— Há outra ainda outra pessoa ?lhe corrigiu Brose.
? A garota que fez os desenhos originais, especialmente os espantosos crânios de extraterrestres. Foi preciso uma grande soma de conhecimentos antropológicos e anatômicos para conseguir estes elementos; tinha de saber exatamente que alterações deveria introduzir relativamente ao Homo sapiens... ossos maiores por cima das órbitas oculares, molares indiferenciados, nada de dentes incisivos, queixos menores, mas uma área frontal muito maior como sinal de um cérebro muito mais organizado com muito mais do que 1500 cm3; por outras palavras, uma raça mais avançada em termos evolutivos do que a nossa. E o mesmo para aqueles. ? E apontou para os ossos das pernas. ? Nenhum amador se podia dar ao luxo de desenhar tíbias e fêmures como ela o fez.
— E ela o quê? ? perguntou Adams. ? Não haveria perigde ela informar isto para o Runcible ou os homens de Foote? ? «Como», pensou para si, «talvez eu ainda venha a fazer... como você, Vere Lindblom, você sabe muito bem. »
Brose retorquiu:
— Está morta.
Caiu um silêncio na sala.
— Eu me demito, não contem comigo pra isso ? disse depois Lindblom. Deu meia volta, e começou a caminhar como um sonâmbulo em direção à porta.
Subitamente, dois agentes de Brose, de brilhantes botas altas e rostos duros, apareceram, tapando a porta. «Deus do céu, de onde é que estes aí vieram?» Adams estava espantado; tinham estado na sala desde o princípio, mas sem dúvida devido à ação de um qualquer dispositivo de bruxaria tecnológica, tinham permanecido completamente invisíveis. Camuflados, compreendeu depois; um estratagema de espionagem já muito antigo... camuflados, quais camaleões, se confundiam com o revestimento das paredes.
Brose continuou depois:
— Ninguém a matou; teve um infarto. Certamente a tensão do trabalho, infelizmente excedeu-se, devido certamente ao prazo que lhe demos. Cristo, e como ele era valiosa; olhem para a qualidade do seu trabalho. ? E estendeu um dos seus dedos papudos e médios para a cópia xerox do rolo original de objetos.
Ainda hesitante, Lindblom disse:
— Eu...
— É a mais pura verdade ? disse Brose. ? Pode examinar o relatório médico. Arlene Davison; a sua residência era em Nova Jérsei. Você a conhecia, não é?
? E verdade ? disse finalmente Lindblom falando para Adams. ? É verdade que Arlene tinha um coração muito dilatado e foi avisada pelos médicos para não se exceder no trabalho. Mas eles... ? E apontou furtivamente para Brose. ? Eles pressionaram-na. Tinham de ter o material naquela data certa, mesmo no prazo. ? E dirigindo-se ainda para Adams, continuou: ? É a mesma coisa que fazem conosco. Eu já fiz o meu serviço; consigo trabalhar rapidamente sob pressão; e você? Vai conseguir sobreviver a esses três artigos?
Adams respondeu:
— Não tema, eu sobrevivo. ? «Não tenho um coração dilatado», disse para dentro; «não tive febre reumática quando era criança, como Arlene. Mas mesmo que tivesse tido, eles pressionar-me-iam na mesma, como diz Verne, como fizeram com Arlene, mesmo que isso significasse a minha morte; desde que morresse depois de fornecer o meu trabalho feito. » Sentiu-se fraco, impotente e triste. «A nossa fábrica de falsificações», pensou para si, «exige muito de nós; podemos ser uma minoria privilegiada, mas não somos ociosos. Até mesmo Brose precisa de estar em atividade, na sua idade. »
— Por que é que Arlene não conseguiu um coração artificial? Foi a vez de Robert Hig falar, espantando a todos. O seu tom era de uma grande timidez, mas mesmo assim era uma boa pergunta.
— Já não havia mais corações ? murmurou Brose, desagradado pelo fato de Hig ter entrado na conversa. E daquela maneira.
— Tanto quanto sei, pelo menos dois... ? continuou Hig, mas Brose interrompeu-o bruscamente.
— Não resta nenhum utilizável ? reafirmou Brose.
«Por outras palavras», compreendeu Adams, «eles estão de fato lá, no armazém subterrâneo no Colorado. Mas são para você, meu maldito saco de gordura purulenta e enfatuada, roliça e meio podre; você precisa de todos os corações artificiais existentes, para manter essa carcaça funcionando. Que pena não podermos reproduzir o processo que o único produtor com licença desenvolveu antes da guerra... que pena não podermos produzir coração após coração aqui nas nossas oficinas da Agência, ou mandarmos uma ordem para um dos abrigos maiores para eles nos arranjarem um certo número deles. »
«Oh, inferno, podíamos produzir aqui um coração», pensou para si; «Mas... seria um coração falsificado; pareceria ser real, bateria como tal... mas depois de ser cirurgicamente implantado, daria o mesmo resultado do que tudo o que nós fazemos. O doente não conseguiria obter muita vida dali.»
«Os nossos produtos», continuou a pensar ele realisticamente, «não conservariam a vida nem por um segundo. E viriam logo comentários sobre nós e a nossa eficiência. Meu Deus. » E a sua sensação de tristeza cresceu; aquele vasto e infernal nevoeiro foi invadindo-o e foi-se-lhe colando à pele enquanto ali estava, naquele centro ativo da Agência com o seu colega um homem de Yancy assim como ele. Verne Lindblom, que era também seu amigo, e o seu patrão Stanton Brose, e a nulidade que respondia pelo nome de Robert Hig, que, surpreendentemente, colocara a questão certa. «Um ponto para oHig», pensou para si Adams. «Por ter a coragem de a colocar. Nunca se sabe; nunca se pode menosprezar a ninguém e, por mais servil e vazia que possa parecer. »
Lindblom, com gravidade e relutância, regressou finalmente para a mesa onde estavam os artefatos. O seu tom era baixo e como que ao retardador; falavam mecanicamente, sem emoção.
?Enfim Joe, uma vez que o Runcible vai imediatamente datar estes objetos, não podem aparentar apenas seiscentos anos... têm de ter seiscentos anos.
— Compreenda ? disse Brose para Adams ? que de outra forma não seria necessário que o Verne aqui produzisse estes objetos novinhos em folha? Tal como os seus artigos de revista, têm de ser envelhecidos. Como pode ver, estes não o estão.
Porque o envelhecimento, compreendeu Adams, tal como dizia Brose, não pode ser fingindo; Runcible descobriria logo a coisa.
— Os boatos. Sobre uma máquina do tempo, ou qualquer coisa desse gênero. Todos nós ouvimos falar disso, mas não tínhamos... não podíamos ter a certeza.
— Ela levá-los-á até ao passado ? disse-lhe Brose. ? Pode levar objetos até ao passado, mas não os pode fazer regressar; é apenas num sentido. Sabe porque é que isso é assim, Verne? ? E olhou para Lindblom.
— Não ? retorquiu Verne Lindblom. E para Adams, explicou: ? Era uma arma de guerra, desenvolvida por uma firma relativamente pequena de Chicago. Um míssil soviético destruiu a firma, incluindo todo o pessoal; temos a máquina do tempo, mas não sabemos como é que ela funciona ou como fabricá-la.
? Mas o importante é que ela funciona ? comentou Brose. ? Pode trazer de volta objetos muitos pequenos; vamos pôr lá estes objetos, crânios, ossos, tudo isto que está aqui sobre a mesa, peça por peça; isso será feito de noite dentro dos terrenos de Runcible em Utah do Sul.... teremos lá geólogos para nos dizerem a que profundidade deveremos enterrá-los, e um robô para escavar. Esta parte tem de ser muito exata, pois se ficarem a uma profundidade excessiva, os buldozers automáticos de Runcible não chegarão até lá.
? Estão me entendendo?
? Sim ? retorquiu Adams. «E, no entanto. Que raio de uso iria ser dado a um invento daqueles. Podíamos fazer recuar no tempo dados científicos, objetos e invenções de valor incalculável, para as civilizações do passado: fórmulas para remédios... podíamos fornecer uma ajuda inestimável a sociedades anteriores e povos há muito desaparecidos; bastavam alguns poucos livros de referência traduzidos para latim, ou grego ou inglês arcaico... podíamos impedir guerras, podíamos fornecer tratamentos que impedissem as grandes pestes da Idade Média. Podíamos nos comunicar com Oppenheimer e com Teller, persuadindo-os a não produzirem a bomba A nem a bomba H... para tal bastariam algumas sequências da guerra que tínhamos acabado de atravessar. Mas não. Tinha de ser para isto, para mais uma fraude, mais uma de entre uma série de fraudes através das quais Stanton Brose conseguiria ainda mais poder. E a princípio, a invenção fora ainda pior, era uma arma de guerra. »
«Nós somos», compreendeu mais uma vez Adams, «uma raça maldita. O Genesis tem razão; temos conosco um estigma, uma marca. Pois só uma espécie marcada, amaldiçoada, poderia usar as suas descobertas tal como nós o fizemos. »
? Para falar verdade ? disse Verne Lindblom, e debruçou-se para agarrar outra das bizarras armas «extraterrestres» de cima da mesa ? baseado no que sei da máquina do tempo como arma (a tal minúscula empresa de Chicago chamava-lhe Distribuidor metabólico de Inversão, ou qualquer coisa do gênero), concebi esta aqui. ? E estendeu a Adams o aparelho que se assemelhava a um tubo. ? O distribuidor metabólico de inversão não chegou a ser utilizado durante a guerra ? continuou ? , portanto não podemos saber como é que funcionaria. No entanto, eu precisava de uma pista para...
? Não vejo os seus lábios ? queixou-se Brose; movimentou rapidamente a sua cadeira a motor, de forma que já se encontrava num local de onde podia ver o rosto de Lindblom.
Lindblom continuou:
? Eu estava explicando para o Adams, que precisava de um «modelo» para as armas «extraterrestres»; era evidente que não me podia limitar a fabricar modificações grotescas das nossas armas utilizadas na terceira guerra mundial, pois os especialistas de Runcible poderiam encontrar elementos intactos em número suficiente para detectarem as semelhanças. Em outras palavras...
? Sim ? concordou Brose. ? Seria realmente uma coincidência muito estranha se os «extraterrestres» que invadiram a Terra há seis séculos tivessem material de guerra precisamente semelhante ao da última guerra... com a única diferença residindo no meio em que se encontram e no invólucro em que estavam encerrados; ambas as coisas desenhadas por Arlene.
? Tive de os encher com componentes desconhecidos do nosso tempo continuou então Verne Lindblom. ? E não tive oportunidade de os inventar, portanto recorri aos arquivos de armas mais avançadas que se encontra aqui na Agência e que integra protótipos que nunca foram utilizados. Deitou um olhar para Brose.
? O Sr. Brose facultou-me a entrada. De outro modo nunca teria acesso a tais fontes. ? O arquivo de armas avançadas da Agência era uma das diversas secções de Nova Iorque que Brose «reservara», tal como «reservara» os órgãos artificiais no armazém subterrâneo do Colorado. Tudo o resto estava acessível a qualquer homem de Yancy. Mas as coisas importantes... isso estava reservado apenas para Brose. Ou, como neste caso, por extensão, a um pequeno grupo trabalhando sob a sua direção imediata num qualquer projeto secreto. Desconhecido para a classe dos homens de Yancy como um todo.
— Portanto, temos aqui verdadeiras armas ? disse Adams, absorto numa contemplação quase aterrorizada dos artefatos de formas tão bizarras. «A falsificação chegou até esse ponto. » ? Portanto, eu poderia pegar numa delas e....
— Claro ? disse Brose zombeteiro. ? Mate-me. Pegue numa qualquer, aponte para mim, ou, se já está farto de Verne, aponte para ele e elimine-o.
Foi a vez de Verne Lindblom dizer:
— Esses modelos não funcionam, Joe. Mas depois de terem estado enterradas durante seiscentos anos no solo de Utah... ? E sorriu para Joseph Adams.
? Se eu tivesse conseguido que funcionassem, o Mundo seria meu.
? É bem verdade ? cacarejou Brose. ? E estaria trabalhando para Verne em vez de trabalhar para mim. Tivemos de retirar... como é que eles lhe chamaram? ... o protótipo do Distribuidor Metabólico de Inversão do arquivo de armas avançadas para podermos usar o processo de recuo no tempo, para que Verne tivesse tempo para o abrir e examinar com cuidado, olhando à sua volta... ? corrigiu-se.? Não, é verdade; era proibido fazer barulho, não era, Verne? A minha memória está falhando.
Imperturbável, Veme comentou:
— Podia olhar, mas não tocar.
— Creio que isso dói a um artesão como Verne ? disse Brose para Adams.
— Ter de se limitar a olhar; gosta de sentir as coisas com os dedos. ? E deu mais uma breve gargalhada. ? Deve ter sido doloroso, Verne, aquela vista de olhos que deu aos protótipos de armas de antes da guerra, do material de guerra pesado tão desenvolvido que nunca chegou a ser produzido, nunca chegou às nossas fábricas nem às dos Soviéticos. Enfim, um dia meu cérebro deixará de funcionar... Arterosclerose ou qualquer outra coisa do gênero, um tumor, ou um derrame por exemplo, e então pode passar na frente de todos os outros homens de Yancy e tomar o meu posto. E então, e só então, poderá ter acesso à secção de protótipos avançados do arquivo de armamento e mexer e os tocar com as suas mãos à vontade, durante todo o dia.
Do seu lugar respeitosamente distante, Robert Hig disse:
— Gostaria de me certificar de alguns pontos, Sr. Brose. Bom, eu encontro um ou dois destes objetos, oxidados e quase destruídos em decadência, claro. Devo reconhecê-los imediatamente como de origem extraterrestre? Quer dizer, quando os levar ao Sr. Runcible...
— Diga-lhe ? disse secamente Brose ? que, uma vez que ele é engenheiro, que esses objetos não foram fabricados aqui na Terra. Nenhum índio americano em 1425 podia construir objetos como estes; diabos, qualquer pessoa sabe isso: não tem de apoiar o seu relatório a Runcible em quaisquer dados ou explicações muito científicas; mostra-lhe as armas e diz-lhe que apareceram no estrato de seiscentos anos e olhem bem para eles... são flechas de ponta de pedra, por acaso? Serão machados de pedra polida? Diz isso e depois volta imediatamente para junto dos buldozers para ver se aparecem as caveiras, especialmente das que não são Homo sapiens.
— Claro, Sr. Brose ? respondeu Robert Hig, acenando obedientemente com a cabeça.
Brose continuou:
— Adorava ver a cara de Louis Runcible quando lhe mostrar estes objetos encontrados. ? Os seus olhos envermelharam e humedeceram-se de excitação.
— E verá ? lembrou-lhe Lindblom. ? Uma vez que Hig terá consigo uma daquelas câmeras do tamanho de um botão de camisa, com o respectivo equipamento de captação sonora. Para que, quando começar o litígio, possamos apresentar provas de que Runcible não ignorava nem as descobertas nem o seu valor científico. ? A sua voz estava ligeiramente aguçada pelo desprezo... desprezo por um cérebro envelhecido que já não conseguia reter todos os fatos, que já esquecera aquela parte vital do projeto. Voltando-se para Joseph Adams, Lindblom disse: ? Conhece aquelas minúsculas câmeras. Gottlieb Fischer estava sempre a usá-las nos seus documentários: foi assim que realizou as suas «sequências de imagens desfocadas conseguidas por espiões secretos».
— Oh, sim ? respondeu sombriamente Adams. ? As conheço perfeitamente. ? «Como seria difícil esquecer a existência dessas câmeras de botão de camisa? A que foi usada em 1943, «segundo Fischer». ? Tens a certeza de que não tomaste estes objetos demasiadamente valiosos? -- perguntou então. ? Com um valor tão fantasticamente elevado que até mesmo Runcible?...
— De acordo com os psiquiatras de Berlim ? interrompeu Brose ? , quanto maior for o valor científico, maior será o seu medo de perder os terrenos. Portanto, tanto mais inclinado estará a esconder o que for encontrado.
— Terão tido todo este trabalho para nada ? comentou Adams ? se os psiquiatras de Berlim falharem. ? E dentro de si sentiu esperança de que tal tivesse acontecido. Esperança de que Runcible fizesse o que devia, que anunciasse imediatamente ao mundo o que fora encontrado... em vez de se entregar aos seus inimigos devido à sua fraqueza, aos seus receios e luxúrias, à sua ganância.
Mas tinha a sensação de que os psiquiatras de Berlim tinham razão.
A menos que alguém ? e só Deus sabia quem poderia ser ? fosse em auxílio de Louis Runcible, o homem estava perdido.

14
Recebendo a luz do sol que se filtrava através da janela que cobria o pátio da sua vila em Cidade del Cabo, Louis Runcible estava deitado, imóvel, ouvindo o relatório do agente de Foote, do representante da companhia internacional de polícia com sede em Londres, a Webster Foote Limited. ? Segunda-feira de manhã ? disse o agente de Foote lendo as suas notas ? os nossos aparelhos captaram uma chamada entre dois agentes de Yancy, Joseph Adams, que pertencia a Redação, e Verne Lindblom, que está na seção da Construção, ou seja, que é um construtor para Eisenblundt, em geral, se bem que ultimamente Brose o tenha consigo na Agência em Nova Iorque.
— E essa conversa ? interrompeu-o Runcible. ? Falava de mim?
— Não ? admitiu o agente de Foote.
— Então, por que diabos...
— Nós temos a sensação... quer dizer, o Sr. Foote, tem pessoalmente a sensação de que estes dados lhe deviam ser fornecidos. Permita-me que eu os resuma.
Enfadado, Runcible disse:
— Está bem, resuma lá. ? «Diabos», pensou para si, «sei perfeitamente que me querem apanhar. É bom que comece a receber de vocês algo mais do que essa mera informação. Porque não preciso de Webster Foote para me dizer isso. »
O agente continuou:
— Adams e Lindblom discutiram o próximo projeto visual que deve ser filmado por Eisenbludt em Moscou, nos seus estúdios; será a destruição de São Francisco. Adams referiu-se a um novo discurso que escrevera e que devia ser programado no Megavac e depois levado ao simulacro. «Feito à mão», foi como o descreveu.
— E é para isso que eu estou pagando vocês? ...
— Um momento, por favor, Sr. Runcible ? disse o agente de Foote friamente, com o seu ar todo britânico.
? Vou agora citar as palavras exatas do agente de Yancy. Lindblom, tal como os nossos aparelhos as captaram. «Ouvi um boato. » Estava a falar, como pode compreender, para o amigo. «Tu vais ser retirado da secção de discursos para seres colocado num projeto especial. Não me perguntes o que é; a minha fonte não sabia. Foi um dos homens de Foote que me disse. » ? E o Homem de Foote calou-se.
— Que é que acontece depois?
— Depois ? continuou o agente ? referiram-se a arqueologia.
— Hum...
— Disseram algumas gracinhas sobre a destruição da antiga Cartago e sobre a frota de guerra de Atenas, foi divertido mas sem importância.
»No entanto, permita-me fazer uma observação. O que o homem Lindblom disse não era verdade. Ninguém da nossa companhia o informou sobre qualquer «projeto especial». Sem dúvida disse isso a Adams para que ele não lhe pedisse mais pormenores. Obviamente, a sua fonte estava mesmo no interior da Agência em Nova Iorque. No entanto...
— No entanto ? disse Runcible ? , sabemos que está a ser iniciado um novo projeto e que nele estão envolvidos um perito em ideias e um dos construtores de Eisenbludt, e que é top secret. Mesmo dentro da própria Agência.
— Correto. Isso é indicado pela relutância de Lindblom em...
— E qual é a teoria de Webster Foote sobre isso? ? perguntou Runcible. ? Que é que ele pensa que se está se passando?
— Desde esta conversa na passada segunda-feira, o construtor Verne Lindblom tem estado sempre trabalhando; tem dormido na Agência ou nos estúdios de Eisenbludt em Moscou... nem sequer tem tido tempo para ir a sua residência para alguns momentos de descanso. Segundo: Esta semana não foi programado qualquer discurso de Adams. Por outras palavras, antes de ter podido programar o discurso que...
— E isso ? exclamou Runcible ? é tudo o que vocês descobriram? Tudo?
— Sabemos apenas mais uma coisa que pode interessar. Brose deixou Genebra várias vezes e viajou no seu transporte de alta velocidade até à Agência. E pelo menos uma vez (e possivelmente duas vezes) conferenciou com Adams, Lindblom e possivelmente com mais uma ou duas pessoas; não temos a certeza, francamente. Tal como estava a dizer, o Sr. Foote crê que este «projeto especial» está ligado com a sua pessoa, de qualquer maneira, e, como sabe, o Sr. Foote tem muita confiança nos seus razoáveis mas bastante úteis poderes de pressentimento parapsicológico, na sua capacidade precognitiva para prever acontecimentos futuros.
»No entanto, neste momento, ainda não pode prever nada de concreto e claro. Mas deseja realçar o seguinte: faz favor de o avisar de algo em desuso que ocorra em qualquer das suas operações. Por mais trivial que possa parecer. E contate com o Sr. Foote imediatamente, antes de fazer o que quer que seja; o Sr. Foote está muito preocupado, de uma forma francamente extra-sensorial, com o seu bem-estar. Sarcasticamente, Runcible comentou:
— Quem me dera que a preocupação do Sr. Foote tivesse revelado mais dados sobre este assunto.
Com um gesto depreciativo e filosófico, o agente de Foote retorquiu:
— Sem dúvida que o mesmo acontece com o próprio Sr. Foote. ? Manipulou uma e outra vez os seus documentos, talvez numa tentativa de descobrir mais alguma coisa. ? Oh, outro assunto. Sem qualquer relação, que eu saiba, mas com interesse. Uma agente de Yancy, feminina, chamada Arlene Davison, que tem uma residência em Nova Jérsei. Morreu de um ataque de coração durante o último fim-de-semana. Na noite de sábado.
— Fez-se alguma tentativa de lhe arranjar um coração artificial?
— Nenhuma.
— O canalha ? exclamou Runcible, referindo-se a Brose. Odiando-o... como se fosse possível odiá-lo ainda mais do que já o odiava.
— Todo mundo sabia ? continuou o agente de Foote ? que ela tinha um coração fraco. Dilatado, desde criança, devido a uma febre reumática.
— Em outras palavras...
— Pode ser que lhe tenham dado qualquer prazo para uma coisa importante; excesso de trabalho. Mas é apenas uma conjectura. No entanto, não é habitual que Brose se desloque com tanta frequência de Genebra a Nova Iorque; apesar de tudo, ele já está na casa dos oitenta anos. Este «projeto especial»...
— Sim ? concordou Runcible. ? Deve ser algo grande. ? Ponderou por mais um momento e depois continuou: ? Claro que Brose se infiltrou profundamente na minha empresa.
— Correto.
— Mas eu não sei, e vocês não sabem...
— Nunca conseguimos detectar os agentes de Brose nas suas operações. Lamento. ? Também ele parecia genuinamente aborrecido com esse fato; teria sido um sucesso importante para a Webster Foote Limited conseguir detectar os agentes de Brose entre o pessoal de Runcible.
— O que me faz pensar ? murmurou Runcible ? é Utah.
— Perdão?
— Está tudo preparado para dar o sinal de partida para os meus bulldozers e robôs que se encontram junto do que era St. George. ? Isso todo mundo sabia.
— O Sr. Foote sabe disso perfeitamente, mas não tem qualquer recomendação a fazer; pelo menos não me disse nada.
Erguendo o tronco, depois rodando e pondo-se de pé, Louis Runcible disse:
— Penso que não há qualquer razão para esperar. Vou dar ordem para que comecem a escavar. E ter esperança.
— Sim, senhor ? concordou um dos agentes de Foote.
— Cinquenta mil pessoas ? disse Runcible.
— Sim, vai ser muito grande.
— Que ficam vivendo onde deviam estar de fato vivendo, ao sol. E não num abrigo qualquer antisséptico. Como uma salamandra no fundo de um poço seco.
Ainda arrumando a custo os documentos, tentando descobrir mais alguma coisa com interesse para comunicar, o agente de Foote acrescentou:
— Desejo-lhe boa sorte. Talvez para a próxima vez... ? enquanto se pensava para Runcible que haveria mais algum relatório. Este, tão desinteressante (e era-o evidentemente), podia muito bem ser o derradeiro, a dar crédito aos pressentimentos extra-sensoriais do seu patrão Webster Foote. E geralmente eram dignos de tal.

15
De entre as ruínas disformes e agourentas do que tinham sido os arranha- -céus, as ruas, em suma, a estrutura intrincada e poderosa de uma grande cidade, apareceram quatro homens que interceptaram Nicholas St. James.
— Como é que ? disse o primeiro de entre eles, tão barbudo, forte e ostensivamente saudável ? não foste detectado por nenhum robô?
Extremamente cansado, Nicholas deixou-se ficar inerte por um momento e depois sentou-se numa pedra partida, procurando um cigarro no bolso.
Porque o resto lhe tinha sido arrancada pelo robô ? , e somente respondeu:
— Fui, preso por dois. Quando emergi. Devem ter detectado as vibrações da minha escavadeira.
— São muito sensíveis a isso ? concordou o chefe do grupo. ? De resto, são-no a todo o tipo de maquinaria. E os sinais de rádio, se você, por acaso...
— Sim. Um intercomunicador com o abrigo lá em baixo. Gravaram tudo.
— E porque é, que te soltaram?
— Eles não me soltaram, eles foram destruídos? respondeu Nicholas.
— Os teus companheiros do abrigo vieram atrás de você e os pegaram. Foi o que aconteceu conosco; a princípio viemos cinco, e eles apanharam o primeiro robô que saiu. Não o iam matar; iam metê-lo simplesmente num daqueles...você não deve saber o que é. Um bloco de apartamentos de Runcible. Sim numa daquelas prisões.
E dirigiu um olhar penetrante para Nicholas.
? Mas nós os atacamos por trás. Só que eles conseguiram matar um de nós, ou melhor, o que aconteceu foi que ele morreu quando começamos a disparar contra os robôs. Deve ter sido culpa nossa. ? E o homem fez uma pausa. ? O meu nome é Jack Blair.
Um dos outros barbudos inquiriu então:
— De que abrigo você vem?
— Do Tom Mix ? respondeu Nicholas.
— E fica perto daqui?
— Quatro horas de caminhada. ? Ficou calado. Eles também pareciam não saber o que dizer; estavam constrangidos, e olhavam todos para o chão, até que finalmente Nicholas disse.
? Os dois robôs que me capturaram foram destruídos por Talbot Yancy.
Os barbudos olharam para ele fixamente.
— Estou dizendo a mais pura verdade ? disse Nicholas.
? Sei que é difícil de acreditar, mas eu o vi. Ele não fazia questão de aparecer, mas eu convenci-o. Olhei-o bem de perto. Não podiam restar dúvidas. ? À sua volta os quatro barbudos continuavam a olhá-lo.
? Como é que eu podia deixar de o reconhecer? ? continuou Nicholas.
? Há quinze anos que o vejo na televisão, três ou quatro ou às vezes mesmo cinco vezes por semana.
Passado um momento, Jack Blair disse:
— Mas... a questão é que Talbot Yancy não existe.
E depois um dos outros homens começou a falar, explicando melhor.
— Bem, não passa tudo de uma farsa; um boneco, entendeu?
— O quê? ? inquiriu Nicholas, e, no entanto, sabia; pressentiu a enormidade de tudo aquilo num relampejar; uma farsa tão vasta que nem sequer podia ser descrita. Ultrapassava toda e qualquer descrição possível; era praticamente inútil que aqueles homens o tentassem, e ele teria de o ver, de o experimentar pessoalmente.
Jack Blair continuou depois:
— Aquilo que você vê lá em baixo, todas as noites, no teu... como é que disseste? No Tom Mix... lá em baixo no teu abrigo, aquilo a que chamaste «Yancy», o «Protetor», é um robô.
— Aliás ele nem sequer é um robô ? interrompeu um dos outros homens. ? Nem sequer é independente; é apenas um boneco que está ali sentado à mesa.
— Mas ele fala ? respondeu Nicholas, raciocinando. ? Diz coisas heroicas. Quer dizer, eu não estou pondo em dúvida o que vocês estão dizendo. Só que não compreendo.
— Sim o robô fala ? disse Jack Blair ? porque um enorme computador chamado Megavac 6- V, ou qualquer coisa do gênero, está programado para tal.
— E quem é que programa o computador? ? inquiriu Nicholas. Toda aquela conversa adquirira um ar lento e como que de sonho, como se eles estivessem ali a falar debaixo de água; como se um enorme peso oprimisse a todos. ? Alguém ? continuou ele ? tem de lhe fornecer aqueles discursos; e o computador não pode fazê-lo...
— Têm uma equipe de redatores experts bem treinados ? retorquiu Jack Blair.
? Os chamam de agentes de Yancy. Os Yancy-men, que são especialistas em ideias, escrevem os discursos e os programam no Megavac 6- V, que trabalha as palavras, acrescenta as entonações adequadas e os gestos que o boneco deve fazer. Portanto, parece tudo autêntico. E depois filmam tudo, e em Genebra analisam o filme, o homem de Yancy chefe, é um tipo chamado Brose. E quando ele aprova o filme, este é colocado no cabo coaxial e depois transmitido para todos os abrigos na Wes-Dem.
Um dos outros homens acrescentou:
— Na Rússia há um desses também.
Nicholas exclamou:
— Mas... e a guerra?
— Já acabou há anos ? retorquiu Jack Blair.
Acenando com a cabeça, Nicholas disse:
— Estou entendendo.
— Eles partilham os estúdios cinematográficos de Moscou ? continuou Jack Blair. ? Tal como partilham a Agência de Nova Iorque. Um comuna cineasta talentoso, chamado Eisenbludt; é ele que prepara todas as cenas de destruição que vocês veem nas vossas TV. Geralmente é em miniatura... em escala. Outras vezes, porém, é de tamanho natural. Como quando aquela cena onde mostram os robôs lutando. Faz um excelente trabalho. Bem quero dizer, é convincente; lembro-me de quando estava lá em baixo, e aqui temos um aparelho de TV que de vez em quando conseguimos fazer funcionar. Fomos enganados também, quando estávamos lá em baixo! Ele, esse tal Eisenbludt e todos os Yancy-men; enganaram quase todo mundo, à exceção dos refugiados que vêm até aqui acima. Como tu fizeste.
Nicholas retorquiu:
— Mas eu não subi aqui acima por ter pensado numa coisa dessas.
«Carol começou a pensar», disse de si para si; «Carol tinha razão. Ela é muito mais esperta do que eu»; ela sabia. ? E todo o mundo está assim? ? e abrangeu com um gesto as ruínas de Cheyenne que os cercavam. ? Tudo está radioativo? Há só destroços e ruínas?
— Oh, não, de maneira nenhuma ? respondeu Blair com excitação. ? Isto aqui é ainda um lugar contaminado; mas já não restam muitos assim. Todo o resto é um parque. Transformaram o Mundo num enorme parque dividido, onde eles edificam suas esplêndidas residências; com eles eu estou me referindo aos homens de Yancy... que vivem como senhores feudais cada um tem um séquito de robôs. Como os reis medievais. É muito interessante. ? A sua voz desvaneceu-se. ? Mas quer dizer, não é justo. Pelo menos eu penso que não.
Os outros barbudos assentiram vigorosamente; todos concordavam. Não era justo. Não havia dúvidas sobre tal.
Nicholas disse então:
— E vocês, como é que vivem? ? E apontou para os quatro. ? Onde arranjam comida? ? E depois pensou noutra coisa. ? E há mais iguais a vocês?
— No nosso grupo há duzentos ex refugiados ? respondeu Blair.
? Vivendo aqui nas ruínas de Cheyenne. Todos devíamos estar em prisões, em enormes edifícios de apartamentos por esse cara a que me referi... Runcible; não são ruins de se viver, como os abrigos... bem eu quero dizer que a gente não se sente como ratos apanhados numa ratoeira. Mas nós queremos... ? e fez um gesto. ? Não consigo explicar.
? Queremos poder andar à vontade ? explicou um dos outros barbudos. ? Mas a verdade é que vivendo desta maneira não conseguimos. Mas não nos podemos arriscar a deixar a zona de Cheyenne, pois então os robôs podem nos aprisionar.
— E porque é que eles não vêm até aqui? ? perguntou Nicholas.
— Eles vêm aqui ? respondeu Blair? , mas de uma certa maneira... não se esforçam muito; percebe o que eu quero dizer? Limitam-se a cumprir o expediente. Porque, estás a ver, isto é parte de uma nova mansão que está a ser fundada; uma vila, o edifício, ainda não está concluído, nem nada, porque ainda está muito contaminado. Mas um homem de Yancy mudou-se para cá, tentando a sua sorte. Tentando sobreviver, e se o conseguir, se a radioatividade não o matar, então tudo isto será dele; tomará a sua mansão e ele passará a ser o dominus.
Nicholas acrescentou:
— David Lantano.
— Certo ? e Blair fitou-o estranhamente. ? Como é que sabes?
— Foram dois dos seus robôs ? retorquiu Nicholas ? que me apanharam.
— E iam te matar?
Ele acenou afirmativamente com a cabeça.
Os quatro barbudos trocaram entre si olhares desconcertados e apreensivos.
— E Lantano estava na sua vila? Ele autorizou isso?
— Não ? respondeu Nicholas. ? Eles tentaram contatar com ele, mas não conseguiram. Por isso decidiram sozinhos.
— São máquinas estúpidas imbecis ? exclamou Blair, e praguejou: ? Lantano não os teria deixado; tenho certeza. Teria ficado desolado. Mas aqueles foram construídos para matar; quer dizer, muitos dos robôs são veteranos da guerra: têm o reflexo condicionado de destruírem a vida. A menos que o seu dominus lhes diga o contrário. Mas você teve sorte e se safou; é terrível... quer dizer, fico abismado. Fico mesmo.
— Mas ? disse um dos outros ? aquilo que ele disse sobre Yancy; como é que isso pode ser?
— Eu o vi- ? insistiu Nicholas. ? Tenho a certeza de que era ele.
Jack Blair referiu então, citando de memória um qualquer livro obscuro:
— Eu vi Deus. Duvidas disso? Atreves-te a duvidar disso? Que tipo de arma esse sujeito usou, esse cara que salvou tua vida? Uma pistola de laser?
? Não. Os robôs foram pura e simplesmente pulverizados. Feitos em pó. E tentou deixar bem claro com quanta violência e rapidez tinham desaparecido os dois robôs.
? Apenas dois montinhos ? exclamou ? de flocos velhos e encarquilhados, como de ferrugem. Isso faz algum sentido?
— Na verdade é uma arma das mais modernas dos homens de Yancy? disse Blair acenando lentamente com a cabeça. ? Portanto, foi um homem de Yancy que te salvou; nenhum ex-refugiado tem uma arma dessas; nem sequer sei como se chamam, mas ficou da guerra, parece-me... ainda têm muitas, e de vez em quando dois homens de Yancy entram em disputa sobre as linhas de demarcação entre os terrenos. E lançam-se como loucos para a secção de arquivos de armas da Agência em Nova Iorque (é lá onde está reunido todo o material de leitura) e voltam a correr para as suas mansões tão depressa quanto o permitem nos seus pequenos transportes. E comandam os seus séquitos de robôs para a batalha; é algo realmente divertido, lutam uns com os outros como loucos, destroem uma dúzia ou mais de robôs, e por vezes até mesmo os homens de Yancy são eles próprios eliminados. E depois mandam os robôs danificados para baixo, para o abrigo mais próximo. E passam a vida requisitando sempre ávidos conseguirem robôs novinhos em folha fabricados no abrigo lá em baixo para acrescentarem ao seu pequeno exército.
Outro dos barbudos intrometeu-se também na conversa.
— Alguns dos homens de Yancy têm nas suas propriedades até qualquer coisa aproximada de dois mil robôs. Um verdadeiro exército.
— O homem chamado de Brose, por exemplo ? disse Blair ? , diz-se que tem dez ou onze mil, mas tecnicamente todos os robôs nas Wes-Dem estão sob o comando militar do general Holt; ele pode sobrepor-se às ordens de qualquer homem de Yancy, de qualquer dominus de uma propriedade, e reunir todos os robôs. Com exceção, é claro, de Brose. ?
A sua voz tomou-se num murmúrio.
? Ninguém pode se sobrepor a Brose. Brose está acima de todos, como, por exemplo, pelo fato de ser o único com acesso ao arquivo de armas onde se encontram os terríveis protótipos dos modelos mais avançados, aqueles que nunca sequer chegaram a entrar em ação. De resto, se tal tivesse acontecido, já não haveria planeta nem nada. A guerra acabou mesmo a tempo. Mais um mês e... nada ,mais ficaria em pé. ? E completou a frase reforçando o que disse com um gesto.
— Quem me dera ? disse então Nicholas ? ter um cigarro agora.
Os quatro barbudos trocaram algumas impressões e depois, com evidente relutância, estenderam a Nicholas um maço de Lucky Strihe; cuidadosamente retirou apenas um cigarro, devolvendo-lhes o resto do precioso maço.
— Temos falta de tudo ? comentou Blair em tom de desculpa, enquanto acendia o cigarro de Nicholas.
? Bem vês, este novo dominus, que está construindo a sua mansão aqui, esse David Lantano; não é mau tipo. Parece que, tal como já disse, refreia os robôs, pelo menos quando está por aqui, de modo que eles não nos eliminem ou nos levem para um daqueles apartamentos; como que toma conta de nós. E até nos dá comida. ? Durante um momento, Blair manteve-se silencioso; para Nicholas a sua expressão era perfeitamente impenetrável. ? E cigarros. Sim, realmente tenta ajudar-nos. E comprimidos; aparece por aí em pessoa com comprimidos contra radiações; para auxiliar a recuperação de glóbulos vermelhos, ou qualquer coisa desse gênero. Ele próprio os toma-. Quer dizer, tem mesmo de os tomar.
— Ele está doente ? acrescentou o outro ex-refugiado barbudo.
? Está muito queimado pela radiação; a lei exige que ele deva estar aqui ocupando o seu terreno radioativo a cada doze das vinte e quatro horas do dia; e não pode refugiar-se em refúgios como nós; nós ficamos lá em baixo... só viemos aqui pra cima porque te detectámos. ? Dirigindo-se a Blair, disse, nervoso: ? De fato, é melhor regressarmos para o abrigo imediatamente. Já estivemos expostos durante tempo demasiado para um dia só. ? Fez um gesto para Nicholas. ? Especialmente ele; há horas que ele caminha à superfície.
? Vão me levar-? ? disse Nicholas. ? Posso viver com vocês, é isso que querem dizer?
? Mas é Claro. ? Blair confirmou c om a cabeça. ? Foi assim que se formou a nossa colônia; pensas que te vamos dar um pontapé no traseiro? Por que razão? ? parecia genuinamente aborrecido.
? Para que algum robô te matasse ou... ? Parou...
? Que grande caridade. Pode ficar todo o tempo que quiser. Mais tarde. Depois de saberes mais, quando você quiser se entregar, para viver para num complexo de apartamentos; devem ter centenas de milhares de ex-refugiados vivendo nesses apartamentos... mas isso é inteiramente contigo. Mas não se precipite. Primeiro conheça o ambiente.
E começou a afastar-se por um pequeno atalho entre as ruínas, uma espécie de caminho de cabras; os outros, incluindo Nicholas, seguiram-no em fila indiana.
? Por vezes leva semanas ? disse Blair, por cima do ombro ? para ficarmos realmente preparados, para nos livrarmos daquilo que eles nos impingiram pelo chamado cabo «coaxial» durante quinze anos. ? Fazendo uma pausa, parando e voltando-se, alegou com veemência: ? Intelectualmente talvez o compreendas e aceites, mas, você sabe, emocionalmente isso não te é possível já, é demasiado. Não existe nenhum Yancy; e nunca existiu... nunca existiu, Sr. St. Nicholas...
— Não ? corrigiu-o Nicholas. ? Nicholas St. James.
— Repito nunca existiu nenhum Yancy. Porém, houve de fato uma guerra, pelo menos a princípio; como podes verificar. ? E abrangeu com um gesto as milhas e milhas de ruínas que os rodeavam. Em Cheyenne.
? Mas Yancy foi inventado por Stanton Brose, com base numa ideia de um produtor alemão do século passado; talvez tenhas ouvido falar dele, morreu antes de você nascer, mas ainda aparece em documentários; A Vitória no Ocidente, essa série em vinte e cinco episódios sobre a segunda guerra mundial. Lembro- -me perfeitamente dela quando eu era criança.
— Gottlieb Fischer ? disse Nicholas. ? Claro. ? Ele também vira esse grande clássico do documentário, não uma, mas várias vezes. Estava incluído na mesma categoria de O Anjo Azul, de A Oeste nada de Novo e de The Dizz Man. ? E foi ele quem inventou o Yancy? Gottlieb Fischer? ? Seguiu-os aos quatro, ansioso e impaciente; perplexo.
? Mas porquê? Porquê?
— Para os dominar ? respondeu simplesmente Blair, sem parar; os quatro apressavam-se agora mais, ansiosos por chegarem ao que chamavam o seu recanto, a sua câmara profunda que não fora contaminada pelas bombas H que tinham transformado aquela região no que era agora.
? Para os governar ? disse Nicholas em eco, compreendendo finalmente.
? Estou lembrando.
— Só que, como te deves lembrar, Fischer desapareceu naquela malfadada expedição a Vénus; estava ansioso por ser um dos primeiros viajantes do espaço, tinha mesmo de ir, e acabou, porque...
— Lembro-me muito bem ? retorquiu Nicholas. Aquele acontecimento fizera os cabeçalhos dos jornais no tempo. A morte trágica de Gottlieb Fischer; o combustível da nave incendiara-se durante a reentrada na atmosfera... Fischer morrera com trinta e poucos anos, pelo que não foram produzidos mais documentários, não foram feitos mais filmes semelhantes à Vitória no Ocidente. Depois dele só se seguiram nulidades. A exceção feita, pouco antes da guerra, aos interessantes filmes experimentais de um russo, de um produtor soviético cujo trabalho fora proibido nas Wes-Dem... como é que ele se chamava?
Enquanto se esforçava por acompanhar os outros barbudos, que caminhavam cada vez mais depressa, Nicholas recordou-se do nome do produtor russo. Eisenbludt. Fora o homem agora referido por Blair que realizara as distorções nas cenas de guerra para os refugiados, tanto nas Wes-Dem como nas Pac- Jl -Peop, aquela «confirmação» visual das mentiras que integravam os discursos de Yancy. Portanto, no fim de contas, a gente das Wes-Dem sempre acabara por ver os filmes de Eisenbludt.|
Era óbvio que já não existia qualquer hostilidade entre o Ocidente e o Oriente. Eisenbludt já não era um «produtor» cinematográfico inimigo, como fora nos tempos em que Nicholas St. James, sua mulher Rita e o seu irmão mais novo Stu, tinham sido praticamente obrigados quase á base na ponta da baioneta a descer para o abrigo no Tom Mix, para o que julgaram ser, por, um ano, no máximo... ou, na pior das hipóteses, dois anos de abrigo.
Mas haviam sido quinze anos. E desses quinze...
— Diga-me exatamente ? perguntou Nicholas ? quando é que acabou a guerra. Há exatos quantos anos?
— Vais ficar magoado ? comentou Blair.
— Me diga. Mesmo assim.
Blair concordou com a cabeça:
— Ela terminou há treze anos. A guerra durou apenas dois na Terra, depois do primeiro ano em Marte. Portanto... há treze anos que vocês são enganados. Nicholas, ou seja lá como te chamas; me desculpe, esqueci-me outra vez. Nick. Vou te chamar de Nick. Tudo bem se eu te chamar assim?
— Sim tudo ? murmurou Nicholas, e pensou em Carol, em Rita, no velho Maury Souza, em Stu e nos outros; Jorgenson e Flanders e Haller, Giller e Christenson, Peterson e Grandi e Martino e assim sucessivamente, até Dale Nunes; e até no comissário político Dale Nunes. Saberia Nunes o que se passava? Pensou Nicholas.
«Se Nunes sabe, juro; afirmo; em nome de Deus, matá-lo... fá-lo-ei com as minhas próprias mãos, para o sentir, e nada me deterá.» Mas era impossível, pois o comissário Nunes fora fechado lá em baixo com eles. Mas... Não, durante todo aquele tempo. Apenas desde há...
Sim Nunes já sabia. Só há poucos anos descera pelo tubo, enviado pelo Governo de Estes Park, ou seja enviado por Yancy.
— Escute, St. James ? disse um dos barbudos. ? Estive aqui pensando; se não suspeitaste de nada, porque você veio aqui pra cima? Quer dizer, devias esperar encontrar aqui apenas guerra, me lembro do que eles diziam na TV... diabos, como eu me lembro... eles iriam atirar pra matar se fossem descobertos...
— E foi praticamente o que lhe aconteceu ? disse Blair.
— ... devido à Praga do Saco e ao Stink of Shrink, nenhuma das quais existe na realidade; é outra mentira que eles inventaram, essas duas pragas bacteriológicas, se bem que o tal gás de nervos tenha realmente existido, inventado por nós, pela tal New Jersey Chemical Corporation, ou seja lá como a chamavam; um míssil soviético a destruiu-, tenho o prazer de te informar, destruiu-a toda, com toda a gente que estava lá dentro. Mas este lugar está ainda radioativo, se bem que o resto da superfície...
— Subi até aqui ? retorquiu Nicholas ? para comprar um pâncreas artificial. Um órgão artificial. No mercado negro.
— Não há muitos ? comentou Blair.
Nicholas retorquiu:
— Estou pronto a...
— Não há nenhum. Em parte nenhuma! Nem mesmo os homens de Yancy conseguem arranjá-los; Brose os tem mediante truques legais; é dono de todos, legalmente.
Blair voltou-se, com o rosto que mostrava uma expressão de violenta raiva; distorcida como uma marionete articulada pelas mãos dos que a enchem.
? São todos para Brose, que tem oitenta e dois anos ou oitenta e três anos e está cheio de órgãos artificiais, tudo menos o cérebro. A empresa desapareceu e agora ninguém sabe como fabricá-los; somos uns degenerados, quer dizer, é o resultado da guerra. Os homens de Yancy tentaram replicá-los, mas não conseguiram, estragavam-se em mais ou menos num mês. Dependiam de técnicos altamente especializados, utilizando aquilo a que chamam «equipamento altamente sofisticado», sabe, ferramentas delicadas e tudo isso... quer dizer, a guerra enquanto durou foi de verdade; não te esqueças disso. Os homens de Yancy vivem em suas luxuosas mansões, e vocês lá em baixo fazem robôs para eles, e eles andam por aí a passeando nos seus pequenos aparatos voadores. A Agência em Nova Iorque prepara discursos atrás de discursos e o MegaMegavac 6-V não descansa...Tudo isso é muito triste E permaneceu calado, voltando para o seu silêncio anterior.
Nicholas disse então:
— Tenho de conseguir esse pâncreas.
— Isso é impossível ? retorquiu Blair.
— Então ? continuou ele ? tenho de voltar para o Tom Mix para lhes dizer. Podem voltar todos aqui para cima, esquecerem a quota de produção e a ameaça de verem o abrigo ser destruído
— Claro que podem vir aqui para cima. E serem prisioneiros à superfície.
É bem melhor, concordo. Runcible está começando a construir uma nova constelação de apartamentos no Utah do Sul; bem vês, nós sabemos muitas notícias porque David Lantano nos deu um receptor de rádio de ondas longas, só de áudio, nada de vídeo, mas conseguimos apanhar o que é transmitido, não para os abrigos, mas entre as suas propriedades; estão sempre a tagarelar entre eles durante a noite, pois sentem-se sozinhos. Por vezes vive apenas um homem de Yancy na seu enorme mansão de centenas de quilômetros quadrados com os seus robôs.
— Não tem famílias? ? perguntou Nicholas. ? Nem filhos?
— A maior parte é estéril ? retorquiu Blair.
? Veja bem, eles ficaram aqui em cima durante a guerra. Lembra-te disso. A maior parte na Air Arm Academy, em Estes Park. E sobreviveram; eram a elite dos E. U. A., os jovens cadetes da Air Arm. Mas... não podem se reproduzir. Portanto, de uma certa maneira, pagaram. E bastante caro. Por aquilo que têm. Por terem sido a elite dos cadetes numa enorme estrutura à prova de bomba que ficava nas montanhas Rochosas.
— Nós também pagámos -? comentou Nicholas. ? E olha o que tivemos em troca.
— Espera um pouco ? disse Blair. ? Pense bem nisso tenha paciência antes voltar para o refúgio e dizeres-lhes. Porque, pela forma como o sistema é dirigido aqui em cima...
— Estariam muito melhor ? disse um dos outros barbudos, quase em tom de desafio.
? Já te esqueceste como é aquilo lá em baixo; você está ficando senil como o velho Brose. Runcible faz que tudo seja melhor aqui em cima; é um construtor excepcional, aqui têm pingue-pongue, piscinas e tapetes de parede a parede e aquela imitação em plásticos de...
— Então por que razão é que ? interrompeu-o Blair ? tu estás aqui escondido nestas ruínas em vez de estares a desfrutar das delícias das piscinas num desses tão belos apartamentos?
O homem soltou um grunhido, e fez um gesto:
— Só que eu... não sei, eu gosto de ser livre.
Não houve comentários; não era necessário.
Mas outro assunto pareceu exigir mais alguns comentários, e Blair, pensativo, referiu-se-Ihe. Dirigindo-se a Nicholas, disse.
— Não consigo entender, Nick. Como é que Talbot Yancy pode ter-te salvado se não existe nenhum Talbot Yancy?
Nicholas não respondeu nada. Estava demasiadamente exausto para responder.
E, de qualquer modo, não sabia.

16
A primeira e gigantesca escavadora autônoma tossiu como um velho asmático. E quando lançou para a frente, qual imenso percevejo, de cabeça baixa e cauda erguida, o primeiro monte de terra ? e foi de fato um enorme monte de terra? viu-se, num ápice, arrebanhado, solto e depois lançado displicentemente para o lado; o monte de terra foi lançado diretamente para um conversor já preparado, também automático, operando homeostaticamente, sem qualquer controle humano direto. Dentro do seu campo de ação, a terra era transformada em energia, e essa energia, que não merecia de fato ser desperdiçada, era levada por cabo até a uma meta bateria de armazenagem, alguns metros mais longe. A meta bateria, descoberta feita pouco antes da guerra, podia armazenar energia que, medida em ergons, ascendia a bilhões de unidades. E.... podia armazenar essa energia durante décadas.
A energia armazenada na meta bateria forneceria a eletricidade necessária para o conjunto de edifícios do complexo habitacional depois de construído; seria a fonte de tudo o que se acendesse, aquecesse, refrescasse ou se movesse.
Ao longo dos anos, Runcible tornara aquele processo de trabalho altamente rentável. Nada se desperdiçava.
E em última instância, todo o lucro, pensou Robert Hig, ali junto do bulldozer automático ? ou melhor, junto da primeira escavadora; pois tinham entrado doze em atividade ao mesmo tempo ? seria depois produzido por aqueles que iriam viver nos apartamentos. Pois, da mesma maneira que tinham trabalhado no subsolo fabricando robôs destinados a aumentar os séquitos e os exércitos privados dos senhores das mansões, agora, iriam trabalhar para Runcible.
Os andares inferiores de todos os apartamentos eram oficinas, e nessas oficinas fabricavam-se os componentes dos robôs. E esses componentes eram fabricados manualmente ? uma vez que durante a guerra fora destruída a complexa rede automática. Lá em baixo, nos abrigos, claro que ninguém sabia disso, ninguém fazia ideia de qual era a verdadeira origem dos seus fornecimentos de componentes. Pois se o soubessem, ficariam igualmente sabendo que ? Deus nos livre ? os humanos podiam viver na superfície. E o principal, refletiu Hig, era impedir que alguma vez soubessem tal, pois logo que subissem todos à superfície haveria outra guerra.
Pelo menos fora o que lhe tinham dito. E não o punha em questão; ele não era um homem de Yancy; era apenas um empregado da Agência, um empregado de Brose. Um dia, se não levantasse ondas e fizesse bem o seu trabalho, Brose talvez pusesse o seu nome na lista de candidatos; passaria a ter legalmente o direito de procurar um lugar ainda contaminado para estabelecer a sua residência ... partindo do princípio de que ainda restava alguma.
«Talvez», pensou para si Hig, «como resultado desta missão, deste tão importante projeto da Agência, eu consiga vir a ser um homem de Yancy. E então poderei começar a pagar aos tais terrenos privados de Webster Foote para analisarem pra mim os devidamente lugares contaminados pela radiação ainda existente. Posso iniciar a minha longa vigília, tal como aconteceu até há bem pouco tempo com David Lantano. Se ele é capaz, eu também serei, pois quem é que tinha ouvido falar dele antes?»
— Está tudo bem, Sr. Hig? ? gritou-lhe um trabalhador humano, enquanto os bulldozers continuavam a escavar, a lançarem os montes de terra nos conversores e a escavavam novamente.
— Tudo bem ? respondeu Hig, gritando também.
E aproximou-se para examinar mais de perto a terra castanho-escura que ia ficando a descoberto; os bulldozers já tinham escavado uns bons metros, conseguindo uma cratera plana com uns dez metros quadrados. Não era de modo nenhum um feito fora do comum, pelo menos em termos do que geralmente conseguiam as equipas de construção de Runcible; o problema principal ali a princípio era conseguir uma certa área plana e não escavar muito profundamente. Podiam ver-se aqui e ali algumas equipas de controlo, robôs de tipos mais avançados, utilizando os seus teodolitos em tripé para determinarem o plano horizontal correto. Depois, a escavação propriamente dita não demoraria muito; não era como antes da guerra, quando tinham enterrado os abrigos ? não havia comparação possível.
Portanto, os objetos enterrados deveriam estar a aparecer a qualquer momento. Ou então não seriam encontrados mesmo. Em menos de dois dias todas as escavações ficariam completas.
«Espero», pensou para si Hig, «que não se tenham enganado e que esses malditos objetos não tenham sido enterrados demasiadamente fundo. Porque se isso aconteceu, então o projeto especial vai por água abaixo; e assim que deitem a primeira camada de concreto, assim que lancem os primeiros alicerces verticais; até mesmo assim que comecem a colocar os primeiros moldes de plástico para o concreto, está tudo acabado». E os moldes já estavam a chegar por via aérea. Vindos do local onde se realizara a última construção.
Falando ainda para si mesmo: «Devo ficar em alerta. A qualquer momento, terei de frear as escavadeiras bulldozers; para acabar com toda a recolhida de terra e toda essa coisa. Porque os objetos podem aparecer a qualquer momento. E depois que eu os vir... terei que anuncia-los aos quatro ventos».
Ficando ainda mais tenso. No meio daquelas montanhas de terra castanha começava finalmente a ver brilhar qualquer coisa, qualquer coisa escura e reluzente, qualquer coisa que teria passado desapercebida se ele não estivesse atento. Os robôs não teriam percebido nada; nem mesmo os outros engenheiros humanos teriam reparado ? absortos como estavam nas suas tarefas.
Como ele mesmo estava absorto na sua própria tarefa. Olhou mais atentamente. Seria apenas uma simples pedra ou o primeiro dos...
Sim era, de fato. Uma arma enegrecida por causa da oxidação; era difícil de acreditar,-mas era precisamente a que vira na noite anterior, brilhante e novinha em folha, acabada de sair das mãos habilidosas do homem de Yancy Lindblom. E de que forma seis séculos a tinham transformado; Hig sentiu por momentos fraquejar de forma incômoda a confiança que tinha nos seus sentidos ? não podia ser a mesma que Lindblom fabricara, a mesma que ele, Adams, Brose e Lindblom tinham examinado sobre a mesa. Estava quase irreconhecível... aproximou-se, pestanejando sob os efeitos do sói. Pedra ou objeto? Hig acenou para o bulldozer que se encontrava mais próximo, que recuou automaticamente, deixando a área a descoberto por um momento. Descendo para a pequena depressão, Hig aproximou-se do local, e parou junto do objeto quase disforme que ali aparecia enterrado.
Ajoelhou-se.
— Ei ? gritou, olhando em volta, tentando encontrar outro humano... e não apenas máquinas e robôs. Ali estava Dick Patterson, outro humano, engenheiro a trabalhar para Runcible, como ele. ? Ei, Patterson. ? Hig começou a gritar. E depois descobriu que aquela maldita coisa afinal não era um objeto; avançara cedo demais. Oh, Cristo! Estragara tudo.
Aproximando-se, Patterson disse:
— Que foi?
— Nada ? furioso, Hig recuou, saindo da cova; fez sinal ao bulldozer para que recomeçasse a trabalhar, o que este fez imediatamente; com rugido recomeçou as suas operações e aquele objeto negro (que mais não era nada mais do que uma pedra) desapareceu sob a máquina.
Dez minutos mais tarde o bulldozer expôs algo que brilhou com o seu metal resplandecente ao sol da madrugada, e desta vez não havia qualquer dúvida; no nível dos três metros aparecia portanto o primeiro objeto.
— Ei, Patterson! ? berrou novamente Hig. Mas desta vez Patterson não estava ao alcance da sua voz. Estendendo-se, Hig pegou num walkie-talkie e começou a emitir uma chamada geral. Depois mudou de ideia. Era melhor não se precipitar novamente. Portanto, fez sinal ao bulldozer para que recuasse ? parecia mesmo que obedecia com relutância, quase resmungando ? e, desta vez, quando se aproximou do objeto apercebeu-se, no meio do seu entusiasmo furioso, de que sim; era agora ? uma arma bastante peculiar, profundamente enterrada, conscienciosamente alojada no subsolo. A boca do bulldozer da escavadeira tinha retirado as camadas mais exteriores de poeira, de corrosão, expondo diretamente o metal subjacente.
«Adeus, Sr. Runcible», disse Hig para dentro, exultante. «Agora é que vou ser um homem de Yancy», sentiu-se absolutamente seguro disso, «e tu vais aprender como é estar na prisão, tu, que tens construído prisões para os outros. » Acenando novamente para o bulldozer, desta vez para que parasse completamente, aproximou-se decidido do walkie-talkie; esse era mesmo a sua intençãoemitir o código que deteria todas as operações ? e que traria todos os engenheiros até ali e uma boa metade dos robôs, para saberem o que se passava.
Sub-repticiamente, ligou a sua câmara em miniatura e ao mesmo tempo o gravador. Runcible não estava ali, mas, no último momento, Brose decidira que a sequência devia ser toda gravada, desde o momento em que Hig descobrisse o primeiro objeto.
Inclinou-se para apanhar o aparelho.
Mas um raio laser atingiu-o, arrancando-lhe a parte direita do crânio e do corpo, fazendo-o cair ao chão, com o walkie-talkie a acompanhá-lo nesse movimento ficando em pedaços. E depois ali ficou caído. Morrendo.
O bulldozer automático, que detivera, esperava pacientemente por um sinal para recomeçar a trabalhar. Vindo de outro engenheiro humano mais afastado, esse sinal veio finalmente; o bulldozer, com um grunhido de agradecimento, recomeçou a trabalhar.
Sob as suas mandíbulas, o pequeno objeto metálico reluzente voltou a desaparecer na terra, precisamente ao nível dos três metros, depois de seis séculos de reclusão.
E no momento seguinte desapareceu para dentro do conversor, ao mesmo tempo que a poeira que o envolvia.
Sem qualquer hesitação, o conversor transformou-o, com todos os seus intrincados componentes em miniatura, com todas as pedras e poeiras envolventes, em energia pura.
E, ensurdecedora, a escavação continuou.

17
No seu escritório de Londres, Webster Foote estudava com uma lupa de joalheiro ? aqueles objetos ultrapassados que tanto fascinavam-no ? a fotografia tirada pelo satélite espião 65, propriedade de Webster Foote Limited, de Londres, e que se ia desenrolando à sua frente. Fora tirada durante a passagem 456.765 em Hem-Nort-Oe.
— Aqui ? disse o seu especialista em fotografias Jeremy Cencio, apontando.
— Muito bem, meu rapaz. ? Aproximando-se, Webster Foote deteve o avanço do positivo contínuo; instalou um microscópio de 1200 ampliações, ajustou-o manualmente ? tinha um ligeiro astigmatismo no seu olho direito, pelo que usava o esquerdo ? e viu, na fotografia, aquilo que Cencio queria que ele observasse.
Cencio comentou então:
— Em termos gerais, esta é a região onde se reúnem o Colorado, o Nebraska e o Wyoming. A sul ficava Cheyenne, antes da guerra, uma das maiores cidades dos E. U. A.
— Oh, de fato.
— Posso animar este segmento?
Webster Foote retorquiu:
— Sim, por favor. E projeta-o na parede.
Um momento mais tarde, logo que as luzes da sala se apagaram, apareceu um quadrado de luz na parede, projetando aquele segmento do filme. Cencio pôs em funcionamento o equipamento de animação, que transformava o fotograma numa sequência de vários minutos.
Ampliada pelo microscópio de 1200 ampliações, que se situava entre o filme e o aparelho de animação, podia observar-se perfeitamente uma cena, captada, é claro, de cima para baixo. Um homem e dois robôs.
Continuando a observar, Webster Foote pôde reparar que um dos robôs se preparava para matar o homem; pôde observar o nítido movimento da sua extremidade manual direita em direção ao que ele, como bom profissional, sabia estar situado nesse preciso local da sua anatomia mecânica. O homem estava prestes a ser eliminado.
Então, como um sopro, um erguer de poeira, um dos robôs saltou, enquanto o companheiro rodopiava desesperadamente no que era tecnicamente designado por um movimento circular, com todos os circuitos na velocidade máxima em busca da exata localização da fonte do raio destruidor ? até que também este se desintegrou em múltiplos componentes desconexos, que flutuaram e depois caíram.
— Isso é tudo ? disse Cencio, e voltou a acender a luz da sala.
— Essa zona corresponde ao setor onde está radicada a propriedade de... Foote consultou um dos livros de referência da sua polícia.
? Um tal de Sr. David Lantano. Não, ainda não é uma mansão; está ainda sendo construída. Ainda não passou um ano; portanto, em termos legais, é ainda tecnicamente um lugar contaminado. Mas sob jurisdição de Lantano.
— Presumivelmente são... ou eram... robôs de Lantano.
— Sim. ? Foote acenou distraidamente com a cabeça.
? Digo-te uma coisa, meu rapaz. Examine todos os segmentos contínuos com uma lente de 400 ampliações até descobrir a fonte do raio destruidor que eliminou aqueles dois robôs. Veja quem...
Vindo do intercomunicador vídeo do seu escritório, um ruído chamou- -lhe a atenção; era a sua secretária, Miss Grey, e o aviso, dois sinais de luz ao mesmo tempo que o ruído sonoro, queria dizer que era uma chamada urgente.
— Desculpe ? disse Foote, e voltou-se para a tela onde devia projetar-se a chamada.
Apareceu então o rosto de Louis Runcible, pesado, bastante rude e carnudo, sempre com os mesmos óculos sem aros, já tão antiquados... com o alto da cabeça um pouco mais calvo desde a última vez que Foote o vira; com um pouco menos do seu magnífico cabelo branco penteado de orelha a orelha,
— O agente que eu tenho em minha obra e que trabalha pra você, me disse quem, lhe avisaria imediatamente se ocorresse algo incomum em minha empresa. ? disse Runcible ? Sim me diga! ? Foote debruçou-se avidamente para a tela, e premiu a teclado gravador, para se certificar de que ficava tudo ficasse registrado.
? Diz aí, Louis. O que aconteceu?
— Alguém assassinou um dos meus engenheiros. Com um raio laser na cabeça, quando ele se encontrava na nova zona de construções no Utah do Sul. Portanto, a sua percepção extra-sensorial estava certa; alguém está querendo me caçar. ? Na tela, Runcible parecia mais indignado do que assustado, o que de resto era natural em si.
— E você consegue continuar a sua obra lá sem esse homem? ? perguntou Foote.
— Oh, claro. Já estamos nas escavações. Só encontramos ele uma hora mais ou menos, depois de tudo ter acontecido; ninguém reparou, com toda aquela barulheira. Ele se chamava Hig. Bob Hig. Não era um dos meus melhores homens, mas também não era dos piores.
— Então continue as escavações ? retorquiu Foote. ? Claro que vamos mandar um homem para examinar o corpo de Hig; deve estar lá dentro de meia hora, enviado por uma das nossas agências. Entretanto vamos continuar em contato. Pode ser o primeiro de uma sequência de acontecimentos provocados por eles. ? Não tinha de especificar quem eram «eles»; quer ele quer Runcible já se entendiam perfeitamente.
A chamada terminou. Foote regressou ao exame do filme contínuo captado pelo satélite.
— Conseguiu alguma coisa quanto à origem do raio destruidor? ? perguntou a Cencio. E estava precisamente a pensar se haveria alguma relação entre a morte do engenheiro de Runcible e a destruição dos dois robôs. Adorava, como sempre, ligar acontecimentos aparentemente desconexos; adorava descobrir estruturas que ligavam e tornavam claros diversos acontecimentos. Mas quanto às ligações entre aqueles dois acontecimentos, porém, nem mesmo as suas capacidades extra-sensoriais lhe forneciam qualquer indicação. Talvez com o tempo...
— Nada ? retorquiu Cencio ? , até agora.
— Estarão tentando assustar Runcible para que ele pare os trabalhos em Utah? ? perguntou Foote retoricamente, em voz alta.
? Porque não é de fato esta a melhor maneira; Louis pode perder mais e mais engenheiros e sobreviver. Meu Deus, com as armas que eles têm na Agência, principalmente os protótipos mais avançados a que Brose tem acesso... podiam pura e simplesmente limpar aquilo tudo por ali mesmo, toda a gente, robôs e maquinaria. E não apenas um engenheiro... e ainda por cima, sem ser, sequer, um dos principais. ? Aquilo não fazia sentido.
? Não tem nenhum pressentimento? ? perguntou Cencio.
? Não tem nenhuma previsão psiônica?
? Sim eu tive uma? retorquiu Webster Foote; tinha de fato um estranho pressentimento; crescera-lhe no espírito até se tomar numa verdadeira revelação paranormal. ? Dois robôs foram desintegrados ? disse então. ? Depois um dos empregados de Runcible em Utah foi morto com um laser atrás da nuca, no preciso momento em que começavam os trabalhos... prevejo... ? E deteve-se.
«Outra morte», pensou para si. «E muito em breve. » Examinou o seu antigo relógio de bolso redondo. ? Fora na nuca. Homicídio. Procurem alguém na classe dos Yancy-men.
— Um homem de Yancy... assassinado? ? Cencio olhou-o espantado.
— E muito em breve ? retorquiu Foote. ? Se é que já não o foi.
— E seremos chamados.
— Oh, claro ? retorquiu Foote. ? E desta vez não por Runcible, mas por Brose. Porque... ? e as suas capacidades extra-sensoriais mostravam-lhe, claramente.? Será alguém muito importante para Brose; isto vai perturbar Brose extraordinariamente... vamos receber uma chamada bastante agitada.
— Vamos esperar para ver ? retorquiu Cencio, céptico ? se tem razão.
? Tenho a certeza de que tenho razão quanto ao que vai acontecer retorquiu Foote.
? O problema é... quando? ? Pois as suas capacidades eram bastante reduzidas em questões de tempo, e reconhecia-o perfeitamente; podia ainda demorar dias ou até mesmo uma semana. Mas não muito mais.
? Suponhamos ? disse Foote, pensativo ? que esta morte de Hig não foi dirigida contra Runcible. Não o afeta o suficiente; não pode ser ele o objetivo. ? «Suponhamos», pensou depois para si, «que, apesar de Hig ser um empregado de Runcible, este ato foi dirigido contra Stanton Brose.»
? Seria isso muito grave?
— Você gosta de Brose? ? perguntou então ao seu especialista em fotografias encarregado dos dados fornecidos pelos satélites espiões.
— Nunca pensei no caso ? retorquiu Cencio.
Foote disse depois:
— Pois eu já pensei. Não gosto nada de Brose. Não levantaria um dedo para o ajudar. Se o pudesse evitar, claro. ? Mas como é que o poderia evitar? Brose, através do general Holt e do marechal Harenzany, tinha ao seu dispor um verdadeiro exército de robôs veteranos, mais um arquivo de armas avançadíssimas, lá na Agência. Brose podia eliminá-lo, e mais à, Webster Foote Limited, de Londres, em qualquer altura.
Mas talvez houvesse mais alguém, alguém que não receasse ou temesse Brose.
— Saberemos se existe essa tal pessoa ? disse Foote ? quando, e apenas quando, um homem de Yancy especialmente importante para Brose for eliminado. ? Era o que previa com os seus intuição parapsicológica.
— De um novo tipo.
— Um gênero inteiramente novo ? respondeu Foote. ? De uma espécie que ainda não conhecemos. ? Isso, tanto quanto ele sabia, não existia.
«Vou ficar aqui sentado á minha mesa», disse de si para si Foote, «esperando ansioso por receber finalmente uma chamada do velho e horrível gordo Stanton Brose. Informando-me, nos termos mais sombrios, de que um homem de Yancy importantíssimo, do seu círculo mais próximo, fora eliminado, e não de uma forma cruel e bárbara, mas, antes pelo contrário, de uma forma altamente... tal como eles gostavam de dizer... sofisticada. E quando chegar essa chamada, partirei para a minha farra de duas semanas.
E começou a esperar a partir daquele preciso momento. Segundo o seu antiquado relógio redondo de bolso, eram nove da manhã, hora de Londres.
E ao mesmo tempo, de uma forma amenizada, começou também a comemorar: por cada narina aspirou um pouco do rapé{1} da marca Mrs. Cluny’s Superfine Preferred Mixture.
No corredor público do andar principal da Agência, em Nova Iorque, Joseph Adams, não avistando ninguém, entrou rapidamente para uma cabine de comunicação vídeo fônica. Fechou a porta e conseguiu introduzir a moeda metálica.
— Capetown, por favor. Quero falar com a residência de Louis Runcible. ?
Estava a tremer de tal forma que mal conseguia manter o receptor junto da orelha.
— Sete dólares para os primeiros... ? disse o operador; que era um robô, altamente eficiente e rápido.
— Muito bem. ? Rapidamente, introduziu uma moeda de cinco e duas de um dólar na ranhura, e depois, quando a ligação ficou finalmente estabelecida, Adams, com um movimento desesperado, rápido mas decidido, cobriu a tela com um lenço; bloqueava assim a parte visual da transmissão, deixando apenas o áudio.
Uma voz feminina pronunciou depois aos seus ouvidos:
— Aqui é Miss Lombard, secretária do Sr. Runcible; quem fala, por favor?
Joseph Adams disse depois roucamente, sem necessidade portanto de alterar deliberadamente a voz para a tornar irreconhecível; ela saía assim sozinha:
? Tenho uma mensagem absolutamente urgente para o Sr. Runcible, de caráter estritamente pessoal.
— Quem fala, por favor? Se não...
— Não posso ? exclamou Joseph Adams. ? Talvez a linha esteja sob vigilância. Talvez...
— Quem fala? Pode dizer, faz favor? E o sinal visual parece que não está chegando aqui. Poderia voltar a ligar por um canal melhor?
? Adeus ? disse Joseph Adams aterrorizado, pensando que não podia correr aquele risco.
— Espere, senhor: se esperar um pouco... vou colocá-lo em contato com o sr. Runcible num momento...
Ele desligou o receptor.
Retirando o lenço, ainda a tremer, levantou-se e abandonou a cabine. Bom, quase conseguira. Tentara; tentara de fato, disse para si. Estivera tão perto.
E se eu lhe enviasse telegrama? Ou uma carta registada; sem qualquer assinatura, com as palavras feitas a partir de recortes de jornais.
«Não posso», compreendeu então; «nunca o poderei fazer. Lamento muito, Louis Runcible; os laços são demasiadamente fortes. As ligações são demasiadamente longas, apertadas. Interiorizei-as e agora agem como se fossem parte de mim; vivem aqui bem dentro de mim. Para toda a vida. Agora e para sempre. »
Caminhou sem pressa, sentindo como que uma membrana de torpor a acompanhá-lo, pairando por sobre si enquanto avançava pelo corredor afastando-se da cabine. De volta ao seu escritório. Como se nada tivesse acontecido.
E nada acontecera. Era a pura e límpida verdade: nada, mesmo nada.
Portanto, a coisa avançaria sozinha. Forças que ele não compreendia, substâncias mais remotas, escapando, quais borboletas, à sua percepção; sombras que cruzavam o céu da sua vida sem deixarem rasto, sem deixarem qualquer sensação; sentia-se cego, receoso e impotente. E mesmo assim continuava a avançar. Pois era natural. E pensado para si não havia mais nada a se fazer.
E à medida que ele ia caminhando, aquilo também se movia. Se agitou; ele sentia-o avançar. Avançando de um modo inexorável, em linha reta.

18
A máquina avançava sobre as suas rodas de borracha, abandonando momentaneamente o salão naquele momento, pois era noite e os robôs jardineiros tinham ido para outro lado, para os seus locais de estacionamento e imobilidade, a máquina deslocava-se sobre duras rodas de borracha; não fazia qualquer ruído, orientando-se pelos reflexos dos sinais de radar que emitia numa frequência geralmente não utilizada. Esses sinais tinham começado a refletir-se agora com uma frequência que informava a máquina de que um grande edifício de pedra ? o tropismo da fase um da sua viagem homeostática dividida em numerosas seções? se encontrava devidamente à sua frente, e começou a abrandar de velocidade até que finalmente se chocou silenciosamente contra a parede da casa, onde se deteve um momento enquanto a etapaseguinte de seu programa rodava, com o giro de uma leva até ficar em posição.
Com um (clic)! Começara a fase dois.
Por meio de discos de sucção estendidos a partir de raios rígidos ligados a um núcleo central em rotação perpétua, a máquina subiu a superfície vertical até chegar a uma janela.
Entrou no edifício pela janela, não teve qualquer problema, apesar do fato de a janela, com a sua armação de alumínio, estar fortemente trancada; a máquina limitou-se a sujeitar o vidro a uma súbita onda de calor ? o vidro amoleceu e derreteu-se como mel, deixando livre um enorme espaço vazio no centro, precisamente para onde se orientara o raio de calor. Sem qualquer dificuldade, a máquina deixou a posição vertical e passou por cima da armação de alumínio...
E, por momentos assente sobre essa armação de alumínio, realizou a fase quatro da sua operação total; exerceu a pressão exata que seria exercida por um peso de 100 kg que assentasse sobre o material delicado do alumínio; a armação dobrou-se, inclinou-se até se quebrar ? satisfeita, a máquina voltou a descer verticalmente por meio dos seus raios de sucção até atingir o chão da sala.
Passou-se um breve intervalo durante o qual a máquina se manteve inoperante, pelo menos na sua aparência externa. Mas no interior, as suas ligações seletoides abriam e fechavam continuamente. Finalmente, uma fita de gravação de óxido de ferro passou por uma cabeça de gravação; através de um sistema áudio, a corrente passou do transformador para o alto-falante e a máquina disse então, numa voz abafada, mas perfeitamente perceptível: «Que chatice.» A gravação utilizada caiu num reservatório no interior da máquina e foi incinerada.
A máquina, com as suas pequenas rodas de borracha, voltou a avançar, orientando-se por meio das suas emanações de radar. À direita encontrava- -se uma mesa baixa. A máquina parou junto da mesa e as suas ligações seletoides mais uma vez se abriam e fechavam. Finalmente, a máquina estendeu um tentáculo, pressionando fortemente a sua extremidade contra o rebordo da mesa, como se, por um momento, se quisesse libertar um pouco do seu peso excessivo e descansasse antes de continuar. Agora continuava. Cuidadosamente, pois o seu tropismo fundamental, o homem, não estava já muito longe. O homem estava a dormir no quarto ao lado; a máquina captara o som da sua respiração e as emanações de calor do seu corpo. Atraída por ambos, com os tropismos dos dois tipos operando simultaneamente, a máquina virou-se nessa direção.
Ao passar em frente a porta do armário se deteve, fez alguns ruídos e depois emitiu um impulso elétrico correspondente à onda alfa de um cérebro humano na realidade, de um cérebro humano muito específico.
Dentro do pequeno cubículo um aparelho de registros recebeu esse impulso, depositou-o como registro no interior de uma caixa fechada enterrada bem fundo na parede, inacessível a não ser por meio de uma broca ou com a chave adequada. No entanto, a máquina não sabia de tal, e mesmo que soubesse não se preocuparia; não se tinha de preocupar com tais divagações; não lhe diziam diretamente respeito.
Continuou a avançar.
Ao atravessar a porta aberta para dentro do quarto parou, recuou sobre as suas rodas e lançou um tentáculo, que, silenciosamente ? mas em vários segundos? , deixou um pedaço de tecido de fibra artificial na armação dessa porta. Feito isso, continuou, parando novamente para lançar três cabelos e um pedaço de tecido craniano seco; não tinha qualquer outra razão agora para deter o seu duplo tropismo em direção ao homem que dormia sobre a cama.
Junto à cama parou novamente por completo. A parte mais intrincada do seu ciclo geral ia agora, por meio de uma rápida série de aberturas e fechos de ligações, entrar em operação. O estojo que formava o núcleo da máquina mudou radicalmente de forma à medida que um aquecimento lento e cuidadosamente regulado ia amolecendo o plástico; a máquina tomou-se estreita, alongada, e depois, feito isto, voltou a apoiar-se nas suas rodas traseiras. Se alguém estivesse a ver o efeito seria certamente cômico; agora a máquina ondulava como uma serpente, conseguindo a custo manter o equilíbrio ? estava sempre prestes a cair ou para um lado ou para o outro, pois, estreita e alongada como estava, não conseguia uma base de apoio suficiente. No entanto, estava demasiadamente ocupada para se preocupar com o problema das suas oscilações materiais; o circuito principal que a controlava, o relógio, tal era o nome que lhe tinham dado os técnicos de antes da guerra que a tinham produzido, estava interessado em conseguir algo bastante mais vital do que um equilíbrio perfeito.
Depois de a máquina ter cumprido as suas fases móveis e ambulatórias, baseada nos tropismos duplos de calor e ritmo respiratório, tentava agora localizar exatamente os batimentos do coração do homem que dormia sobre a cama.
O que conseguiu depois de um breve intervalo de minutos; fechou o seu sistema de percepção, focando-o no coração batendo; o efeito estetoscópico dos seus sensores permitia registros bastante profundos, e a fase seguinte iniciou-se rapidamente. Não podia hesitar, agora que o batimento do coração fora localizado; teria de atuar imediatamente ou nunca mais agiria.
Por uma abertura na sua cobertura superior lançou um dardo auto propulsor, com ponta de cianeto. Avançando a uma velocidade extremamente lenta, para que pudessem ser efetuadas correções na sua trajetória no último segundo, o dardo percorreu o trajeto desde a máquina, virou um pouco como resposta a indicações de que devia efetuar uma pequena correção... e depois a sua cabeça de agulha penetrou no peito do homem adormecido.
O dardo expeliu imediatamente o seu conteúdo de veneno.
O homem, sem sequer acordar, morreu.
E, em torno da sua garganta, um fio complicado mas extremamente fino, tão fino como um fio de ouro, mas integrando uma enorme variedade de válvulas e dispositivos eletrônicos, emitiu uma série intrincada de sinais rádio que foram sem demora captados por unidades situadas por baixo da cama. Essas unidades maiores, acionadas pelo finíssimo colar que reagira imediatamente à interrupção de circulação sanguínea e do batimento cardíaco, emitiram logo os seus sinais.
Soou ? bem audível? um alarme; o quarto tremeu com o barulho. Noutras dependências da vila os robôs entraram imediatamente em ação, correndo em grande chinfrim para o quarto no andar superior. Um outro sinal alertou os robôs situados nos terrenos fora do edifício; estes, deixando a sua imobilidade, correram para o edifício, alinhando junto da parede por baixo da janela do quarto.
O alerta de morte do homem acionara cinquenta robôs de diversos tipos que integravam o seu séquito, e cada robô, guiado pelos impulsos emitidos pelas unidades maiores situadas por baixo da cama, convergiram para o local do assassínio.
Depois de ter lançado o seu dardo, a máquina registou a paragem cardíaca; voltou a aquecer a sua estrutura e retomou a sua anterior forma quadrada. Começou a afastar-se da cama, com a sua missão já cumprida.
Até que então... as minúsculas antenas da sua superfície anterior detectaram os sinais rádio emitidos pelas unidades situadas por baixo da cama. E apercebeu-se de que nunca conseguiria escapar.
Lá de fora, por baixo da janela que mostrava a sua abertura derretida, um robô do tipo vi dizia com o amplificador da voz na altura máxima:
— Senhor, sabemos perfeitamente que está aí. Não faça qualquer tentativa para escapar. Um elemento da agência de polícia já vem a caminho; deixe-se estar onde está até que ele chegue.
A máquina rolou sobre as suas pequenas rodas de borracha, afastando- -se da cama onde estava deitado o homem morto; detectou os robôs por baixo da janela do quarto e para lá da porta, esperando na sala, robôs por todo o lado, espalhados de uma forma precisa e especial; voltou a entrar na sala contígua ao quarto, por onde entrara pela primeira vez. Aí, fazendo uma breve pausa, e como se se tratasse de um pérfido pensamento, libertou uma gota de sangue, que caiu no tapete ? a máquina rodopiou então, primeiro avançou numa direção, depois noutra, até que finalmente todas as ligações comandadas pelo relógio no seu interior se desligaram, logo que o circuito principal se apercebeu completamente da situação; as saídas estavam todas vedadas e não era possível efetuar qualquer movimento. Por- tanto, uma derradeira ? e facultativa ? fase do circuito entrou em funcionamento.
Mais uma vez a forma de plástico que continha os componentes da máquina começou a aquecer, a derreter-se e a transformar-se. Desta vez para a figura tão convencional de... um aparelho de televisão portátil, com pega, tela e antena em V.
Atingida essa forma, a máquina quedou-se imóvel; toda a parte ativa da sua anatomia electrónica ficou definitivamente desligada.
Não restava nada; o objetivo fora atingido. Uma oscilação neurótica entre dois impulsos opostos ? o tropismo da fuga e o tropismo da camuflagem ? fora resolvida a favor deste último; a máquina, na escuridão da sala, parecia externamente ser um normalíssimo aparelho de televisão, tal como os seus fabricantes o tinham concebido durante a guerra, em condições como aquelas: quando, devido a uma resposta demasiadamente rápida por parte dos defensores, a máquina, apesar de ter cumprido a sua missão de morte, não pudesse ? como era desejável ? escapar.
Ali, no meio da escuridão, a máquina deixou-se ficar, enquanto por baixo da janela o robô tipo VI que assumira o comando continuava a repetir a sua mensagem, e, na entrada que dava para o quarto do homem que fora morto, a falange de robôs se mantinha atenta, preparada para impedir a fuga de qualquer pessoa ou coisa que tentasse abandonar a cena do crime.
Deixou-se ficar ali ? até que, uma hora mais tarde, Webster Foote, no desempenho das suas funções, foi autorizado a passar pelos robôs que faziam guarda e a entrar no quarto.

19
Fora realmente chamado por uma comunicação desesperada e meio tresloucada vinda do velho Stanton Brose; histericamente, a imagem de Brose na tela agitava-se com movimentos que mais faziam lembrar a doença de Parkinson, apenas possíveis numa estrutura neurologicamente afetada, à beira da senilidade.
— Webster, eles mataram um dos meus homens, o meu melhor elemento! ? À beira dos soluços, Brose olhava para Foote, totalmente descontrolado. Os espasmos dos seus membros fascinavam Foote, que o olhava fixamente, pensando para si: «Eu tinha razão. O meu pressentimento precognitivo. E foi rápido. »
— Claro, Sr. Brose, eu irei pessoalmente. ? Fez um gesto com a caneta suspensa. ? Mas, me diga qual é o nome do homem de Yancy e a localização da sua residência?
Brose balbuciava e espumava.
— Verne Lindblom. Esqueci-me; não sei onde fica a sua residência. Acabaram de me avisar; o alerta de morte; acendeu-se no preciso momento em que o apanharam. Portanto, os robôs cercaram o assassino; ainda está lá na vila... os robôs vigiam todas as portas e janelas, portanto, se você for até lá, pegue-o. E este não é o primeiro assassinato, é o segundo.
— Oh? ? murmurou Foote, surpreendido pelo fato de Brose saber da morte do engenheiro de Runcible, Robert Hig.
— Sim; eles começaram com... ? Brose parou, com o rosto a contorcer- -se, como se a sua carne, revolta, ondulasse para cá e para lá, preenchendo todas as cavidades, todos os buracos do crânio.
? Os meus agentes que tenho infiltrados entre o pessoal de Runcible é que me informaram ? disse depois, mais controlado.
— Hum...
— É tudo o que tem para me dizer? Verne Lindblom era... ?
Brose espirrou; limpou depois o nariz e todo o rosto com os seus grandes dedos húmidos.
? Escute uma coisa, Foote; preste bem atenção. Envie um comando dos seus melhores homens para a Califórnia, para o endereço de Joseph Adams, para evitar que este seja o próximo da lista.
? Mas , porquê Adams? ? Foote sabia perfeitamente disso, mas queria ouvir o que é que Brose iria contar. Todos os participantes no projeto especial (cuja existência conhecia mas cuja verdadeira natureza desconhecia) estavam a ser eliminados um a um; Brose apercebeu-se do esquema, o mesmo acontecendo com Foote; Foote tomou nota com a caneta: « Comando para C. A. Agora. »
— Não me faça perguntas ? disse Brose com a sua voz terrível.
? Não me venha com «porquês», limite-se a fazer o que lhe digo.
Com grande correção e rigidez, Foote retorquiu:
— Imediatamente. Vou já para a residência de Lindblom; vou enviar um comando, o meu melhor, para proteger Adams. Estaremos a seu lado a partir de agora, a menos, evidentemente, que já tenha sido também eliminado. Ele tem, como Lindblom...
? Todos ele têm ? exclamou Brose ? alertas de morte. Portanto, Adams está ainda vivo, mas não por muito tempo, a menos que vão para lá, e depressa; já não estamos preparados... a minha gente já não está preparada... para nos protegermos. Pensávamos que com o fim da guerra ficaríamos todos seguros; sei que os robôs por vezes combatem por causa das fronteiras, mas não é nada igual a isso... agora é guerra... a guerra começou outra vez!
Webster Foote concordou, desligou a chamada, enviou um comando de quatro homens da sua subestação de Los Angeles; depois, subiu até ao telhado do edifício da empresa, seguido por dois dos seus robôs especialmente treinados transportando pesadas malas com equipamento de detecção.
No telhado, um antigo transporte militar ultra rápido estava já à sua espera, ligado por controle à distância a partir do seu gabinete; ele e os dois robôs entraram para o seu interior e um momento mais tarde já estava no ar por sobre o Atlântico.
Por meio do videofone contatou com a Agência de Yancy em Nova Iorque, onde foi informado da localização exata da mansão do assassinado. Ficava na Pensilvânia. Por meio de nova comunicação, desta vez para o seu quartel-general em Londres, pediu e recebeu ? diretamente para a tela ? todas as informações sobre aquele agente de Yancy chamado Verne Lindblom. Não havia qualquer dúvida: Verne Lindblom não fora mais um construtor entre muitos, mas o idealizador e construtor da organização Yancy. O homem que tivera possibilidade de utilização total e indiscriminada das instalações de Eisenbludt em Moscou... claro que Foote já sabia tudo isso desde que começara a investigar o «projeto especial» do qual Lindblom fora uma parte certamente vital. Investigação, pensou para si com sarcasmo, que não dera quaisquer resultados úteis.
Só que a perturbação profunda em que Brose se encontrava, ao ponto de prever o passo seguinte na morte de Joseph Adams, confirmava que os crimes, até àquele momento, primeiro Hig e depois Lindblom, eram resultado do envolvimento de ambos nesse projeto especial; Foote percebia isso claramente, apercebia-se dos laços que ligavam Hig a Lindblom e agora, potencialmente, a Adams ? e, continuava a meditar para si, e que antes se deu com Arlene Davison que morreu no sábado anterior, mas que se dera de uma forma que até àquela altura parecera algo natural. Em todo o caso, Brose esboçara a confissão de que se tratava de uma sequência que envolvia os participantes no projeto especial da Agência ? o projeto de Brose ? , e isso queria dizer que obviamente Hig fora um agente de Brose infiltrado no pessoal de Runcible. Portanto, a previsão de Foote era correta; a morte de Hig não se dirigira contra Runcible, nem fora feita por instigação de Brose; o assassínio de Hig, como vinha provar a morte do homem de Yancy Lindblom, tinha por alvo último o próprio Brose. O chefe supremo dos homens de Yancy em pessoa. Tudo aquilo deixava de ser mera conjectura, tornara-se parte da história real.
E, no entanto, Foote continuava a não fazer a menor ideia do que era o projeto especial... ou fora. Pois agora parecia que o projeto abortara. Era evidente que não envolvia muitos elementos; talvez Adams fosse o último, sem contar com o próprio Brose, claro.
Tudo isso se revolvia violentamente no cérebro de Foote. Adams, parte do projeto, agora sob a proteção de um comando dos agentes de Foote, podia, sob a pressão das circunstâncias, ser levado a revelar a um dos profissionais de Foote a natureza do projeto especial... uma aventura, Foote não alimentava já qualquer dúvida sobre tal, que tinha por alvo Runcible. Runcible deveria ter sido a vítima de tudo, mas... as coisas não tinham corrido bem assim. As escavadeiras continuavam a trabalhar no Utah do Sul; e Runcible não fora molestado. Mas Brose fora-o; e completamente.
De fato, Foote não se lembrava de alguma vez ter visto Brose ? ou alguém ? tão afetado emocionalmente. Tão descontrolado. Foote pensou para si: «Este projeto especial deve ter sido um gesto desesperado. Teria por finalidade última a eliminação completa e absoluta de Louis Runcible? Por outras palavras, teriam sido testemunhas do confronto final entre Brose e o fabuloso construtor de apartamentos habitacionais, dono de um imenso império? Confronto final... rapidamente resolvido! »
«Meu Deus», pensou tranquilamente Foote, «nem os meus informantes no terreno, nem mesmo eu, falando diretamente com ele pelo videofone, tivemos qualquer sensação de que ele estava prestes a dar passos tão firmes para se proteger. » Louis Runcible parecera totalmente desconhecedor ? e até mesmo indiferente? do que se estavam preparando para o destruir... como poderia então ter respondido tão certeiramente, e com tanta rapidez?
E Runcible não se apercebera do significado da morte do seu funcionário Robert Hig; pelo menos fora o que lhe parecera no videofone.
«Portanto», concluiu Foote, «é possível e até provável que nem Hig nem o homem de Yancy Lindblom, e portanto também não soubesse a também agente de Yancy Arlene Davison ? nenhum fora eliminado por instigação de Runcible, nem sequer com o seu conhecimento.»
«A salvaguarda de Louis Runcible fora assegurada», concluiu Foote, «mas não por ele próprio. »
«Um terceiro homem havia passado despercebido por mim, por Runcible e por Brose uma outra terceira figura ? entrara na arena da luta pelo poder.»
Pensou então para si:
«Ainda bem que estou contente com o que tenho. Pois se tivesse começado a desejar mais, como Brose com o seu projeto especial, talvez eu fosse também o alvo do agressor desconhecido? que demostrou uma precisão extraordinária em seus ataques. »

20
Passada uma hora, Webster Foote descia no telhado da vila do homem de Yancy assassinado. Pouco tempo depois, seguido pelos seus dois robôs especializados que transportavam as pesadas malas contendo o equipamento de detecção, Webster Foote chegava ao vestíbulo entapetado do andar superior da vila. Lá à frente descortinou uma imagem de desolação: uma legião de atentos robôs, guardando uma porta fechada. Dentro dela encontrava-se o corpo do seu dominus, o senhor da mansão. E, se o robô do tipo VI que os comandava estava certo ? lá fora na escuridão da noite outros robôs mantinham-se também vigilantes ? , o assassino fora encurralado dentro do quarto, no preciso local onde ocorrera o crime.
«É assim», pensou para si Foote, «que funciona o alerta de morte. A história provou, tragicamente, que ninguém, por mais importante que seja, pode precaver-se totalmente contra o assassínio. Mas pode ameaçar ? e trazer consigo essa própria ameaça ? de que o assassino será irremediavelmente apanhado. » No preciso momento em que Verne Lindblom morrera, o dispositivo de apreensão, cercando o assassino, entrara em funcionamento, eportanto era de presumir, como fizera o robô tipo VI, que, quando ele, Webster Foote, abrisse a porta do quarto de dormir daria de cara não - apenas com um cadáver (esperava que estivesse intacto), mas também com um assas- sino profissional armado ? pronto a lutar para salvar a vida.
Foote deteve-se diante da legião de robôs, que, quais fiéis cães de guarda, esperavam num silêncio compenetrado. Voltando-se para os seus robôs disse:
— Preciso de uma arma. ? Foi pensando, enquanto eles pousavam as pesadas malas e as abriam, esperando por instruções mais precisas.
? Uma de gás de nervos ? decidiu-se finalmente Foote. ? Para lhe provocar uma paralisação temporária. Duvido que o indivíduo que está lá dentro tenha uma máscara de oxigênio em seu poder. ?
Um dos dois robôs estendeu-lhe obedientemente o longo e fino cilindro com a sua ponta complicada.
? Obrigado ? disse Foote, e, passando pela fila dos silenciosos robôs de Lindblom, aproximou-se da porta fechada.
Encostando a ponta do cilindro à superfície de madeira da porta ? era evidente que a porta fora trazida de uma velha mansão ? , ponderou por momentos na fugacidade da vida, no fato de que toda a carne se transformaria em pó, e assim por diante, e depois apertou o gatilho.
A ponta do cilindro começou a rodopiar a alta velocidade, atravessou num instante a porta de sólida madeira, vedou com plástico o orifício aberto, para que não fosse possível que o gás lançado afetasse o atirador e depois, no momento adequado, lançou uma minúscula esfera de gás neurológico desativador ; a esfera caiu na escuridão do quarto e nenhuma força no mundo a poderia ter impedido de se fragmentar; o ruído, perfeitamente reconhecível e propositado, chegou aos ouvidos de Webster Foote e este examinou o seu relógio redondo de algibeira, preparando-se para esperar. O gás produziria os seus efeitos durante cinco minutos e depois, por efeito dos seus próprios componentes, tomar-se-ia benigno. Poderia então entrar com toda a segurança.
Passaram os cinco minutos.
— Agora, senhor ? disse um dos robôs.
Webster Foote retirou então o cilindro e devolveu-o ao robô que estava mais perto, que o colocou novamente na mala. No entanto, havia a possibilidade de que o assassino fosse previdente e estivesse em condições de se precaver contra aquela arma com qualquer elemento neutralizador. Portanto, prevendo tal caso, Foote escolheu uma arma ligeira como arma ofensiva e depois de pensar um pouco pediu um escudo protetor de plástico, que desdobrou e com o qual rodeou grosseira mas conscienciosamente o corpo; foi ajudado por um dos outros robôs de tal modo que, em breve, o escudo, semelhante a uma capa, o cobria totalmente, exceção feita às canelas e às suas meias de lã inglesa e seus sapatos de marca ((Oxford)) de manufatura inglesa. Depois, empunhado uma arma laser, voltou a passar pela legião de robôs de Lindblom. E... abriua porta do quarto.
— Uma lanterna ? ordenou imediatamente. O quarto estava escuro, não havia tempo para procurar (procurar e não encontrar) o interruptor.
Um dos seus dois robôs soberbamente treinados acendeu imediatamente uma lanterna de interior e iluminou o quarto; a lanterna acendeu-se com uma quente luz amarela que não produzia sombras e iluminava claramente cada objeto. Havia a cama; sobre ela, coberto pelos lençóis, estava estendido o homem morto, Verne Lindblom, de olhos fechados. Calmo, como que distraído; como se nunca tivesse sido informado, nunca tivesse conhecido a sua morte instantânea e sem dor. Pois era óbvio para Foote; o estado de indiferença e descontração em que se encontrava o homem morto indicava claramente que fora usado um dos há muito experimentados e também há muito utilizados instrumentos de cianeto. Provavelmente uma seta homeostática diretamente para o cérebro ou para o coração ou nos gânglios superiores da medula espinhal. «Em todo o caso, uma morte piedosa», disse Foote disse para si mesmo, e olhou em volta, buscando o que esperava ansiosamente: um adulto masculino completamente desorientado, incapaz de se mover ou de falar, agitando-se num paroxismo ou com múltiplos reflexos neurológicos arrítmicos; incapaz de se proteger ou de fugir.
Mas o quarto não continha tal homem. Nesse ou em qualquer outro estado. O homem morto, calmo sob os lençóis, estava só no quarto ? ele e Webster Foote; mais ninguém. E enquanto Foote se aproximava cautelosamente da sala contígua, por cuja entrada, pela janela, penetrara alguém, também não viu ninguém. Os seus dois robôs seguiam atrás de si; ele não viu ali ninguém e eles também não, começando imediatamente a abrir portas laterais, espreitando para o banheiro coberta de incríveis azulejos e mosaicos, e depois para os dois guarda-roupas.
— Fugiu ? disse Foote em voz alta.
Os dois robôs não responderam nada; não era apropriado fazer qualquer comentário.
Regressando para junto da falange de robôs que guardava a porta da entrada do quarto, Foote disse:
— Informem o vosso tipo VI lá em baixo de que chegaram tarde demais.
— Sim, Sr. Foote ? respondeu o robô que os comandava, e foi o que fez. ? A resposta ? disse-lhe depois com o seu gracioso tom metálico ? é de que tal é impossível. O assassino do Sr. Lindblom encontra-se na zona do quarto; tudo o mais é totalmente impossível.
— Segundo o vosso tipo de lógica dedutiva de robô, talvez ? concordou Foote.
? Mas os fatos empíricos dizem outra coisa. ? Voltou-se para os seus dois robôs.
? Agora peço-vos ? disse-lhes ele ? que comecem a recolher dados. Partindo do princípio de que o assassino era humano, e não um robô, prestem especial atenção à presença de vestígios orgânicos. Depósitos dérmicos, cabelo.
Um dos robôs de tipo especial de Foote disse então:
— Sr. Foote, dentro da parede encontra-se um aparelho de captação de ondas cerebrais, ao qual temos acesso por meio de uma chave.
— Bom ? disse Foote. ? Eu examino os seus registros.
— Mais um gravador de som. Também em funcionamento contínuo.
— Excelente. ? Se o assassino tivesse sido humano. Se tivesse dito alguma coisa. E se tivesse passado perto das extensões do captador de ondas cerebrais. Pensativo, Webster Foote voltou para o quarto, e depois para a sala contígua, para examinar a janela por onde se efetuara a penetração.
No chão, uma televisão portátil.
Debruçando-se, pegou-lhe pela pega, sem ligar à possível presença de impressões digitais; era improvável que o assassino tivesse andado a transportar a televisão.
O aparelho de televisão era demasiadamente pesado. Conseguia levanta- -lo, mas com dificuldade. Em voz alta Foote disse:
— Aqui está ele.
Dentro de um dos cubículos, ocupado a retirar o aparelho que continha o captador de ondas cerebrais, um dos robôs de Lindblom disse:
— Perdão, senhor?
Foote repetiu:
— Aqui está o assassino. Este aparelho de TV.
— Senhor ? disse o robô de Lindblom abafando uma risada ? , um aparelho de televisão portátil não é instrumento com o qual uma vida humana possa...
— Queres ser tu a descobrir o assassino ? disse Foote ? do teu senhor? Ou deixas que seja eu?
— O senhor, claro, Sr. Foote, é quem manda.
— Obrigado ? retorquiu Foote irritado. E começou a pensar como conseguiria abrir aquele objeto disfarçado (camuflado, como se dizia) de aparelho receptor de TV. Porque, se fosse como ele pensava, resistiria a qualquer tentativa de abertura, e fora de resto construído para suportar todo o tipo de inspeção hostil.
Nesse momento teve um pressentimento pre-cognitivo. Iria levar ainda dias, talvez mesmo semanas, para conseguir penetrar naquele «aparelho de TV». Mesmo usando as capacidades combinadas de todos os seus assistentes nas oficinas.
Tinha ali na sua mão o instrumento da morte. Mas isso só por si não lhe iria servir de grande coisa.

21
Os vestígios. A pista começava junto da janela da sala cujo vidro fora derretido; os dois robôs de Foote vasculhavam a gravação, fotografavam e analisavam a extensão exata da inclinação do metal, registravam o seu desalinhamento, calculavam a pressão, em termos de quilos, que poderia ter provocado tal inclinação e desalinhamento.
Os robôs de Foote recolhiam dados como máquinas aperfeiçoadas que eram. Mas Foote não pareceu se importar, olhava sem ver; não estava interessado, não queria saber.
— Uma marca de sangue, Sr. Foote ? informou-o um dos robôs.
— Bom ? retorquiu ele num tom indiferente.
O robô de Lindblom que abrira o estojo profundamente metido na parede informava-o agora, por sua vez.
— O captador de ondas cerebrais indica, no seu registro contínuo, a presença de...
— Um homem ? interrompeu-o Foote. ? Que passou por ele e emitiu uma onda alfa.
— O registro sonoro gravado apresenta também...
— O homem falou ? continuou Foote. ? Veio aqui para matar uma vítima que estava a dormir e no entanto falou, suficientemente alto para gravar a sua voz na fita de óxido de ferro.
— E não apenas falou alto ? disse ainda o robô ? , mas distintamente. Deseja que lhe passe agora essa sequência da gravação?
Foote murmurou:
— Não, eu espero. Mais tarde.
Um dos seus robôs exclamou com um guincho metálico de triunfo:
— Três cabelos humanos, e não são da vítima.
— Continuem ? disse Foote. «Vão aparecer mais pistas para identificar o assassino», pensou para si. «Temos o seu esquema de ondas cerebrais, a sua voz; sabemos o seu peso, temos cabelos da sua cabeça, uma gota de sangue... se bem que pareça estranho que, por qualquer obscura razão, ele tenha deixado precisamente uma gota de sangue, mesmo no meio do quarto; uma gota e nada mais.»
Nos minutos seguintes encontraram um fragmento de tecido. E depois, numa mesa baixa, impressões digitais, sem serem da vítima.
— Agora podem parar ? disse Foote para os seus dois robôs.
— Mas, senhor! ? exclamou um deles. ? Ainda podemos encontrar...
— Nada mais ? interrompeu-o Foote. ? Isso é tudo o que pode produzir o 2004 Eisenwerk Gestalt-macher. Voz, impressões digitais, cabelos, gotas de sangue, tecidos, indicações de peso e ondas cerebrais... é tudo, e já é suficiente. Com base nessas indicações qualquer computador razoavelmente programado pode determinar uma identificação; já têm os sete fatores de delineamento. ? E, na verdade, seis eram perfeitamente inúteis. Bastava o esquema de ondas cerebrais, para além das impressões digitais, para a identificação.
E era isso precisamente que o irritava naquela invenção alemã do tempo da guerra; excedia-se na sua missão. Noventa por cento dos seus circuitos, das suas aptidões, podiam ter sido dispensadas ? se assim fosse, quando disfarçada de aparelho de TV teria o peso adequado. Mas a mentalidade alemã era assim: a paixão pela Gestalt, e pela completa imagem do todo.
Agora, com aquele conjunto de dados que constituíam a Gestalt em seu poder, o problema que se levantava era o de saber a que computador de população devia recorrer. Realmente tinha três à escolha, e cada um possuía um enorme banco de dados, um arquivo adequado de referências cruzadas; de fato, por uma estranha coincidência, precisamente as referências que o seu grupo de robôs recolhera durante a última hora naqueles dois quartos.
Podia ir até Moscou. O grande B B-7 dar-lhe-ia certamente o cartão de referência a que pertenciam aqueles sete aspectos. Ou então o 109-A3 em
Estes Park. Ou até mesmo o MegaMegavac 6~ V na Agência de Yancy em Nova Iorque; podia muito bem utilizá-lo, mesmo sendo relativamente pequeno e especializado, uma vez que a sua memória integrava apenas Yancy-men passados e presentes. Pois, e era uma profunda intuição de Foote, a Gestalt delineada pertencia a um homem de Yancy e não a qualquer um de entre os milhões de habitantes dos abrigos; não era necessária a existência de cartões de referência para essas pessoas. Portanto, porque não o MegaMegavac 6-V?
E deparou-se lhe imediatamente uma boa razão. O seu cliente, Stanton Brose, no seu Festung em Genebra, ficaria imediatamente informado, e receberia primeiro uma cópia dos dados fornecidos ao computador, e depois da resposta que este daria.
E podia ser do interesse de todas as partes envolvidas que Brose não tivesse essa informação.
Portanto, iria mandá-lo para o grande B B-7 em Moscou, que era o que estava mais fora do controle de Brose.
Enquanto se dirigia com os seus dois robôs, que carregavam novamente as enormes malas, para o transporte, Foote disse para si: «De quem será o cartão que dará o computador... e que, pelo menos teoricamente, ficará sob a alçada da justiça. Que indivíduo, de entre a classe dos Yancy-men, estaria aquele Gestalt-macher programado para incriminar? » Cuidadosamente, enquanto pousava o aparelho de TV no assento a seu lado, apercebia-se mais uma vez do seu peso desproporcionado ? a única característica que não conseguia esconder e que, portanto, o desmascarara... podia imitar qualquer objeto mais ou menos do seu tamanho, mas não se podia furtar aos efeitos da gravidade.
Já tinha uma ideia do cartão que iria aparecer. Mas seria interessante verificar o seu pressentimento precognitivo.
Três horas mais tarde, depois de uma agradável soneca enquanto o transporte voava com o piloto automático, Webster Foote chegou a Moscou.
Lá em baixo estendiam-se as instalações dos estúdios de Eisenbludt qual quarto de brinquedos permanentemente desarrumado; interessado como sempre que colocava o olhar sobre aquela imensa fábrica de mentiras, Foote iniciou a descida, reparando que desde a última viagem os estúdios tinham crescido ainda mais; vários edifícios feitos de ruínas aproveitadas tinham sido edificados pelos robôs e já tremiam certamente sob os efeitos das destruições simuladas de cidades e civilizações que se desenrolavam no seu interior... tanto quanto se podia lembrar, era São Francisco que se seguia na lista da Agência, o que certamente queria dizer pontes, água, colinas ? uma bela construção a ser erguida pelos artífices respectivos.
E ali, onde dantes se erguia o Kremlin, antes de, durante a Terceira Guerra Mundial, o míssil teleguiado americano Queen Dido o ter arrasado até ao último tijolo vermelho ? ali estava a vila do marechal Harenzany, a segunda maior propriedade da Terra.
Claro que a mansão de Brose em Genebra era de longe maior. No entanto, aquele enorme parque com o seu edifício apalaçado de verdadeiro conto de fadas era impressionante. E além disso a mansão de Harenzany não tinha o aspecto sombrio e fantasioso da de Brose, não tinha o seu aspecto de sombra maldita pairando permanentemente de asas abertas. Tal como o seu equivalente nas Wes-Dem, o marechal era acima de tudo um militar, não um mero sibarita comissário político. Era antes do tipo normalmente sibarítico. Em suma, era um homem que gostava de viver.
Mas também, tal como o general Holt, estava, apesar do seu comando nominal sobre um exército de robôs veteranos, sob a alçada de Brose.
Enquanto o transporte aterrava, Foote colocava-se esta questão. «Como é que um tipo de oitenta e dois anos, semi-senil mas ainda esperto, uma verdadeira anormalidade colossal, pesando só deus sabe quantos quilos, ainda consegue manter o seu poder? Será pelo fato dese manter em Genebra ? dispor e utilizar ? um embuste eletrônico, uma marionete infalível, que em momentos de crise se sobrepõe a Harenzany e a Holt na chefia dos robôs de todo o Mundo? Ou haverá algo de mais profundo e menos evidente? »
Concluiu que se podia tratar do que a seita cristã chama de «sucessão apostólica. » O progresso de raciocínio seria este: antes da Terceira Guerra Mundial eram as estruturas militares das Wes-Dem e das Pac-Peop que detinham o poder supremo; todos os Governos civis não eram mais do que relíquias nacionais. Esses reduzidos grupos sempre em concorrência governavam por meio de um semideus, a fábrica de mentiras de Gottlieb Fischer; governavam por meio da manipulação cínica e profissional de todos os meios de informação, mas não eram eles, militares, que sabiam como manipular esses meios; era Fischer. E depois veio a guerra, e depois um novo acordo. E de qualquer modo Fischer já estava morto, mas deixando um pupilo, Stanton Brose.
Mas mesmo para além disso apareceria mais qualquer coisa. Talvez carisma? A aura mágica que os grandes líderes da história, tais como Gandhi, César, Inocêncio III, Wallenstein, Lutero, F.D.R. ostentavam. Ou talvez fosse apenas que «Brose é Brose». Mandara desde o fim da guerra; daquela vez o semideus atuara e usurpara a autoridade suprema. E mesmo antes disso ele já era poderoso; herdara ? literalmente, nos tribunais? os estúdios e os instrumentos que tinham pertencido a Fischer. A fábrica de mentiras, sine qua non.
Estranha, aquela morte de Fischer, tão súbita e trágica, lá em cima, no espaço profundo.
«Quem me dera», desejou ardentemente Foote, «dispor daquela máquina do tempo a que Brose, através do seu arquivo de armas avançadas, tem acesso. Mandaria lá para o passado um grupo de pesquisadores, com medidores e detectores e outros instrumentos... colocaria espiões eletrônicos em Fischer e Brose, aí por volta de 1982; especialmente, poria um monitor a seguir Gottlieb Fischer até ao momento da sua morte, só para ver o que aconteceu realmente quando a nave, ao descer em Vénus, tentou disparar os retro propulsores... os disparou e explodiu. »
Quando ia a sair, o aparelho vídeo da nave fez bip-bip. Uma chamada para si do quartel-general em Londres; provavelmente Cencio, que ficara a tomar conta de tudo na sua ausência.
Voltando para dentro do transporte, Foote ligou o vídeo.
— Sim, meu rapaz.
Cencio, com o rosto em miniatura, disse:
— Tenho já preparada a animação do sector onde teve origem o raio destruidor.
— Qual raio destruidor?
? - O que destruiu aqueles dois robôs do homem de Yancy David Lantano. Não se lembra?
— Agora lembro. Diz aí. Quem ou o quê disparou o tal raio destruidor? Suponho que tenha sido um dos homens de Yancy, mas qual?
Cencio retorquiu:
— Claro que a filmagem é diretamente de cima da vertical. Portanto quase não conseguimos distinguir. Mas... ? Ficou silencioso.
— Diga logo, diabos ? disse Foote. ? Vou a caminho do gabinete do marechal Harenzany e...
— O homem que disparou o raio destruidor ? Cencio balbuciou ? , de acordo com o filme feito pelo nosso satélite, foi Talbot Yancy. ? E ficou à espera. Foote não disse nada. ? Quer dizer ? continuou Cencio ? , parece- -se com Talbot Yancy.
— E parece-se muito?
— Exatamente. Ampliámos para tamanho natural. É exatamente o que nós... quer dizer, eles... veem nos telas de TV. Sem falha.
«E ainda tenho de ir para o gabinete de Harenzany», pensou Foote, «com uma notícia dessa na cabeça. »
— Muito bem, meu rapaz ? disse então. ? Muito obrigado. E a propósito, louvado sejas pelo excelente timing psicológico que tiveste ao dar-me essas notícias precisamente agora. Quando eu mais precisava delas. ? E desfez a ligação, hesitou, depois afastou-se do seu transporte, deixando a bordo os dois robôs.
«Foi Yancy», disse para dentro. «Matou Arlene Davison, depois Bob Hig e finalmente Verne Lindblom, e agora vai assassinar Joseph Adams e depois provavelmente o próprio Brose e possivelmente, por acréscimo, vai- -me assassinar a mim. »
«Um boneco, preso a uma mesa de carvalho programado pelo MegaMegavac 6-V. Escondeu-se por trás de um rochedo em Cheyenne e disparou raios destruidores contra dois robôs veteranos. Para salvar a vida do que mais não era aparentemente senão outro pobre refugiado que subira até à superfície para uma curta golfada de ar puro e para olhar novamente o Sol. Um refugiado habitando agora nas ruínas de Cheyenne com os outros, vivendo e esperando só Deus sabe o quê. E depois, esse boneco, esse simulacro chamado Talbot Yancy, sem que ninguém na Agência reparasse, voltou para a sua mesa de carvalho, para o seu lugar, regressando à sua existência programada por computador de debitador de discursos.»
Resignado ? aceitando a loucura de tudo aquilo ? Webster Foote continuou a descer a rampa que saía da plataforma no telhado do edifício, a caminho do gabinete do marechal Harenzany.
Meia hora mais tarde, com um enorme documento legal que lhe dava autorização para usar o computador, fornecido por um dos assessores de Harenzany, encontrou-se finalmente diante do grande computador soviético B B-7, e, com a ajuda dos simpáticos e prestativos técnicos russos, introduziu os sete dados obtidos pelos seus robôs, ou seja, os indícios deixados pelo Gestalt-macher.
O B B-7. erguendo-se qual edifício à sua frente, começou a processá-los, começou a procurar no seu catálogo humano. E depois, tal como Foote previra, apenas um longo cartão perfurado saiu pela ranhura respectiva, indo cair no recipiente de recolha.
Pegou no cartão e leu o nome que estava escrito.
O seu pressentimento pre-cognitivo estava certo; agradeceu aos técnicos russos, caminhou para a rampa de subida e aproximou-se do seu transporte ali estacionado.
O cartão tinha escrito: BROSE STANTON.
Tal como previra.
Se a máquina, o Gestalt-macher, que agora estava ali a seu lado transformada em aparelho de TV, tivesse escapado ? se Lindblom não tivesse um alerta de morte ? , as provas seriam todas do ponto de vista legal pura e simplesmente na direção que ele indicara. Seria evidente, sem qualquer razoável sombra de dúvida, que Stanton Brose, o homem que contratara Foote para investigar aquele crime, era o verdadeiro assassino. Mas claro que Brose não era tal; o objeto que viajava ao lado de Foote provava-o.
A menos que estivesse enganado. Suponhamos que aquilo não era um Gestalt-macher. Nunca o saberia ao certo ? nunca o poderia provar? até poder abrir a máquina, até ver como ela funcionava realmente.
E, entretanto, enquanto ele e os seus mecânicos estariam a lutar para abrir a máquina, e como seria certamente uma luta longa, Brose não o largaria constantemente no videofone para saber quais eram as suas pistas, as que conseguira na vila de Lindblom, e o que elas indicavam. A quem elas incriminavam?
Parecia estar a ver:
«As provas apontam pra você, Sr. Brose», pensou Foote para si, azedo: «E o assassino e, portanto, acuso-o e prendo-o e farei com que seja apresentado perante o Conselho de Reconstrução. »
Era um pensamento realmente hilariante.
No entanto, não se sentia nada divertido. Nem por isso nem pela luta que tinha pela frente para conseguir abrir o objeto que transportava a seu lado. Havia plásticos tão duros, tão para além do poder das brocas normais e dos campos térmicos usuais...
E lá no fundo, havia sempre um pensamento que o ocupava. Existiria algum Talbot Yancy? E se sim, como se explica a sua existência?
Não entendia nada daquilo.
E, no entanto, o seu trabalho exigia que ele, antes de todos os outros, conseguisse entender tudo aquilo. Se ele não o conseguisse, quem o conseguiria?
«Entretanto», concluiu Foote, «não vou dizer nada a Brose. Ou melhor, vou-lhe dizer o menos possível. »
A sua intuição, os seus pressentimentos precognitivos, mantinham-se; não era vantajoso para ninguém ? nem mesmo para si ? dizer a Stanton Brose quais eram os fatos estabelecidos até aquele momento.
Porque Brose ? e era isso que o afetava tão pessoalmente ? podia saber o que é que eles significavam e podia saber como atuar em conformidade.

22
Dirigindo-se a Nicholas, o barbudo ex-refugiado, Jack Blair disse sombriamente:
— Parece-me que não temos uma cama para você dormir, Nick. Pelo menos por agora, portanto tens de dormir no chão.
Estavam agora na empresa de cimento do que fora antigamente a sede de uma companhia de seguros. A companhia há muito que desaparecera, bem como a sua estrutura de concreto e aço; no entanto, o subsolo ainda se mantinha E eram muito cobiçados.
E em toda a volta, Nicholas pôde ver ex-refugiados, agora residentes, num determinado sentido, à superfície. Mas ainda não completamente, palpavelmente privados de algo; privados, no sentido mais literal e físico, do que era deles.
— Não é lá uma grande maneira de herdarmos a Terra ? comentou Blair ao ver-lhe a expressão do rosto.
? Talvez não tenhamos sido suficientemente dóceis.
— Ou talvez tenhamos sido excessivamente dóceis ? retorquiu Nicholas.
— Já começas a sentir o mesmo ódio que nós ? disse, lúcido, Blair. ? O desejo de te vingares. É uma excelente ideia. Mas como? Se descobrires uma maneira, diz-nos. Entretanto... ? Começou a procurar em volta. ? Um assunto muito mais premente é que necessitas de uma cama. Lantano deu-nos...
— Eu gostaria de ver esse tal Lantano ? disse Nicholas. ? Esse homem de Yancy que parece ter um ou dois genes decentes. ? «E através dele, conseguir o órgão artificial», pensou para si.
Blair retorquiu:
— Já o vais conhecer muito em breve. É mais ou menos por esta altura que ele aparece. Vais reconhecê-lo porque é muito escuro, devido às queimaduras das radiações.
? Olhou para cima e disse tranquilamente. ? Aí está ele.
O homem que entrara no subsolo não estava só; atrás de si, uma fila de robôs vergados ao peso do que transportavam, trazia mantimentos para os ex- -refugiados, vegetando ali em baixo no meio das ruínas. E ele era de fato escuro; a pele de um negro-avermelhado. Mas Nicholas percebeu logo que tal não se devia às radiações.
E, enquanto Lantano atravessava o refúgio, sobre as camas, passando por cima das pessoas, por cima dos seus magros haveres, cumprimentando aqui, dando um sorriso ali, Nicholas pensou para si. «Meu Deus, quando veio pela entrada parecia um velho, ressequido, hirto, mas agora, mais de perto, Lantano parece ser de meia-idade; aquela aura de velhice fora uma ilusão devido ao seu ar esquelético e à forma particularmente rígida como caminhava; era como se receasse permanentemente uma queda, um ferimento. »
Aproximando-se dele, disse Nicholas:
— Sr. Lantano.
O homem, seguido pelo seu séquito de robôs ? que estavam agora a abrir os seus embrulhos, distribuindo o conteúdo ? , parou e olhou para Nicholas.
— Sim? ? disse com um sorriso de saudação, fugaz e algo forçado.
Blair agarrou-se à manga de Nicholas.
— Não lhe tomes muito tempo; lembra-te de que ele está doente. Das queimaduras. Tem de voltar depressa para a vila, para se poder deitar. ? E dirigindo-se ao homem escuro, Blair disse:
? Não é verdade, Sr. Lantano?
Acenando afirmativamente com a cabeça, o homem continuou a olhar para Nicholas.
— Sim, Sr. Blair, estou doente. Se não viria aqui mais vezes. ? Lantano voltou-se depois, para se certificar de que os seus robôs estavam a distribuir os mantimentos tão rápida e eficientemente quanto possível; desviando, portanto, a sua atenção de Nicholas.
— Ficou oprimido e acabrunhado ? disse Nicholas.
Lantano voltou-se imediatamente para ele e olhou-o intensamente; os seus olhos negros e profundos brilhavam de energia, como se o nível de Acenando afirmativamente com a cabeça, o homem continuou a olhar para Nicholas.
— Ficou oprimido e acabrunhado ? disse Nicholas.
Lantano voltou-se imediatamente para ele e olhou-o intensamente; os seus olhos negros e profundos brilhavam de energia, como se o nível de energia no seu interior tivesse ultrapassado o limite de segurança ? a chama parecia consumir literalmente o órgão da visão pela qual se exprimia, e Nicholas ficou aterrorizado.
— Sim, meu amigo. Que é que me pediste? Uma cama para dormires?
— Isso mesmo ? exclamou Blair com força. ? Já não temos tarimbas, Sr. Lantano; faziam-nos falta mais dez, de resto, para estarmos sempre preparados, pois aparece sempre alguém como este Nick St. James. Cada vez mais.
— Talvez ? comentou Lantano ? que a ilusão se esteja a desvanecer. Um erro aqui e outro ali. Um sinal de vídeo, mesmo fraco, que se intromete... foi por isso que subiu aqui em acima, Nick?
— Não ? respondeu Nicholas. ? Eu quero um pâncreas. E tenho vinte mil dólares. ? E procurou o que ainda lhe ficara (depois do incidente com os robôs) no casaco. Mas a carteira desaparecera. Tinha portanto caído, quando o robô o agarrara, ou quando o revistara, ou durante a longa caminhada... desaparecera em qualquer dessas alturas. Não fazia a mínima ideia. E ali ficou, de mãos vazias, sem saber o que fazer ou dizer; ali ficou fitando Lantano em silêncio.
Passado um momento Lantano alegou:
— De qualquer das maneira eu nunca te teria podido arranjar um, Nick. ? O seu tom era fraco, mas pesaroso. E os olhos. Ainda ardiam. Ainda estavam cheios daquela chama que não era apenas de vida; era um arquétipo... iam muito para além do indivíduo, do mero animal-homem enquanto tal. Vinha de uma qualquer energia derradeira e fundamental; Nicholas não fazia a mínima ideia do que se tratava, não compreendia: nunca vira uma coisa daquelas.
— Como já te disse ? lembrou-lhe Blair? , esse tal Brose é que tem...
Lantano interrompeu-o:
— A tua citação estava errada: «Ele foi desprezado e rejeitado pelos homens. » Se referia a mim?? E apontou para o seu séquito de robôs, que já acabara de distribuir a sua carga pelos ex-refugiados.
? Eu não estou indo tão mal, Nick; tenho quarenta robôs, o que não é nada mau para começar. Especialmente não é nada mau considerando que isto aqui é ainda legalmente apenas mais um lugar contaminado, e não uma residência.
— A sua cor ? disse Nicholas. ? A sua pele.
— Pelo amor de Deus! ? exclamou Blair, agarrando-o e arrastando-o para longe de Lantano. Em voz baixa e furioso, disse ao ouvido de Nicholas:
? Que é que você quer? Embaraçá-lo? Ele sabe muito bem que está queimado; meu Deus, ele vem aqui e nos sustenta- e tu...
— Mas ele não está nada queimado ? interrompeu-o Nicholas.
«Ele é um índio», disse depois de si para si. «Um cherokee puro e simples, a julgar pelo feitio do nariz. E no entanto explicou a cor da sua pele recorrendo às radiações, porquê? Haverá alguma lei que o impeça de ser...», não se conseguia lembrar do termo exato, «homem de Yancy. De ser parte dos que mandam; dos de dentro. Talvez fosse só para brancos, como acontecia nos velhos tempos, tão cheios de preconceitos. »
Lantano disse então:
— Sr. St. James. Nick... lamento que tenha tido um encontro tão traumático com o meu séquito, hoje. Aqueles dois robôs; foram tão esquisitos porque... ? A sua voz estava calma; como parecia tranquilo, nada perturbado por aquilo que dissera Nicholas; não tinha qualquer problema com a sua pele; Blair estava totalmente enganado. ? ... outros donos de mansões ? continuou Lantano ? , que têm fronteira com este, querem tomá-lo. Mandam os seus robôs para efetuarem medições de Geiger; esperam que esteja ainda demasiadamente contaminado, e que isso me liquide, e depois que esta área fique novamente aberta. ? E sorriu. Sombriamente.
— E está demasiadamente contaminada? ? perguntou-lhe Nicholas. ? Que é que revelam essas medições?
— As leituras não dizem nada. Porque eles nunca sobrevivem. Os meus companheiros metálicos nos destroem-; a percentagem de contaminação deste lugar é um assunto que só a mim diz agora respeito. Mas... bem vê, isso torna perigosos os meus robôs. Tente compreender, Nick; tive de escolher os melhores veteranos da guerra; precisava da sua dureza, do seu treino e capacidades. Os Yancy-men... já sabe o que isto quer dizer... ligam mais importância aos robôs novinhos em folha, do último modelo, que estão constantemente a chegar lá de baixo. Mas eu tenho um problema tão especial que tenho de me render. ? A sua voz, intensamente metálica, era quase um cântico, como se sussurrasse; Nicholas tinha de fazer um esforço para o ouvir. «Como se», pensou para si», Lantano se estivesse a tornar irreal. Como estivesse desvanecendo. »
E, ao olhar mais uma vez para aquele homem escuro, apercebeu-se novamente dos seus traços de idade, e desta vez, com esses traços, detectou uma configuração que lhe era familiar. Como se, ao envelhecer, Lantano se tivesse tornado... noutra pessoa.
— Nick ? disse baixinho Lantano ? , que é que estava a dizer sobre a minha pele?
Seguiu-se um silêncio, ele não respondeu.
— Diga lá ? insistiu Lantano.
— Você é um... ? Olhava agora intensamente para Lantano, e em vez de velhice via agora... um jovem. Um homem ágil, mais novo do que ele próprio; que não devia ter mais do que dezanove ou vinte anos. «Deve ser das radiações», pensou para si Nicholas; «consomem-no, no cerne dos seus ossos. Definha, calcifica, destrói as paredes das células, dos tecidos, ele está doente... Blair tem toda a razão. »
E no entanto recompunha-se. Visivelmente. Era como se oscilasse; primeiro deteriorava-se, submetendo-se à radioatividade com a qual tinha de viver doze horas por dia... e depois, enquanto ela o devorava, recompunha- -se novamente; refazia-se.
O tempo infiltrava-o insidiosamente, penetrava no metabolismo do seu corpo. Mas... nunca o vencia totalmente. Nunca ganhava.
— Bem-aventurados ? disse Nicholas ? sejam os pacíficos. ? E depois ficou novamente silencioso. Parecia não ter mais nada para dizer. Não podia dizer tudo o que sabia, que é que o seu passatempo durante anos e anos, que é que o seu interesse pelos índios americanos e pelas suas culturas, lhe linha fornecido como base para compreender o que os outros ex-refugiados que o rodeavam não podiam compreender; as suas fobias sobre radiações, fobias adquiridas enquanto ainda viviam lá em baixo nos abrigos, aumentadas agora ali em cima, não lhes permitiam enxergar o que a seus olhos era perfeitamente evidente.
E, no entanto, ainda estava espantado, pois era também evidente que Lantano lhes permitira que continuassem a pensar dessa maneira, como se de estivesse de fato afetado, queimado. E... de fato parecia afetado. Não, talvez tanto pela cor da pele, mas mais profundamente. E, portanto, o ponto de vista dos ex-refugiados era fundamentalmente correta,
— E porque é que ? perguntou Lantano ? os pacíficos devem ser bem- aventurados?
Essa pergunta espantou Nicholas. E, entretanto, fora ele que dissera aquilo.
Não sabia ao certo o que quisera dizer; aquela ideia formara-se ao contemplar Lantano; era tudo o que sabia, tal como um momento antes, uma outra observação absolutamente fora do tempo lhe aflorara espontaneamente ao espírito, aquela que se referira ao homem que fora desprezado e rejeitado. E esse homem fora... lá bem no fundo do seu espírito sabia perfeitamente quem fora esse homem, se bem que a maioria dos habitantes do Tom Mix assistissem à missa do domingo como uma mera formalidade. Para ele, porém, fora real; ele acreditara. Tal como acreditara também ? se bem que a palavra mais correta fosse receara? que algum dia viesse a perceber que os índios americanos tinham sobrevivido, pois mais tarde ou mais cedo talvez viessem a ter necessidade de saber como fazer pontas de setas ou como detectar as tocas de caça.
— Venha me ver- ? disse-lhe Lantano ? na minha vila. Algumas salas já estão arranjadas; consigo viver confortavelmente enquanto os meus barulhentos homens de metal continuam o seu trabalho de erguerem os seus blocos de concreto feitos de restos de edifícios de bancos ou de estradas destruídas e...
Nicholas interrompeu-o:
— Posso ficar lá? Em vez de aqui?
Depois de uma pausa, Lantano respondeu:
? Claro. Poderá zelar para que a minha mulher e os meus filhos estejam ao abrigo dos robôs dos meus quatro vizinhos enquanto eu estou na Agência; pode comandar a minha pequena força de polícia. ? Voltando-se, fez um sinal para o seu séquito; todos começaram a sair do refúgio.
— Pelo que vejo ? disse Blair, invejoso ? , conseguiste uma coisa bem grande.
Perante isso, Nicholas retorquiu:
? Lamento muito. ? Ainda não percebera porque é que Lantano o aterrorizava nem porque queria ir com ele. «Um mistério», pensou para si; «existe um verdadeiro mistério em torno deste homem que, à primeira vista parece velho, depois já não parece assim tão velho, apenas de meia-idade e finalmente quando nos aproximamos o suficiente, já nos parece um jovem. Mulher e filhos? Portanto, não pode ser tão novo como parece agora. » Mas a verdade é que David Lantano, saindo do refúgio mesmo ali à sua frente, se deslocava como um homem com trinta e poucos anos, na força da juventude, antes de ficar quebrado pelas responsabilidades de uma esposa e de uma família; pelas responsabilidades de um casamento.
«O tempo», pensou para si Nicholas. «É como se essa força que nos leva a todos numa viagem de sentido único, com uma força irresistível, se tivesse dividido para ele; ele é afetado por ela e, no entanto, simultaneamente, ou talvez alternadamente, é ele que a controla e a dirige de acordo com as suas próprias necessidades. »
Seguiu Lantano e o seu séquito de robôs para fora do refúgio para a luz difusamente cinzenta do dia.
? Ainda temos alguns pores de Sol mais coloridos ? comentou Lantano, parando e olhando para trás. ? O que compensa um pouco da tristeza do dia. Viu alguma vez Los Angeles nos dias de nevoeiro?
? Nunca vivi na Costa Oeste ? respondeu Nicholas.
E pensou:
«Mas o nevoeiro deixou de perturbar Los Angeles desde 1980; ainda eu nem sequer tinha nascido. »
 ? Mas então? Lantano ? você disse depois ? , que idade você tem?
O homem que ali ia à sua frente não lhe deu qualquer resposta.
Lá no céu, algo passou, muito alto. De leste para oeste.
— Um satélite ? disse Nicholas excitado. ? Meu Deus, há anos que não via nenhum.
Um satélite espião ? comentou Lantano. ? A tirar fotografias; reentrou na atmosfera para tirar fotografias mais de perto. Porque será? Que é que isto aqui pode interessar a alguém? Outros domini concorrentes? Domini que querem ver meu cadáver? Será que eu já me assemelho a um cadáver, Nick? ? E parou.? Responda-me. Eu estou mesmo aqui, Nick, ou estarei morto? Qual é a sua opinião? Será esta carne aqui?... ? E ficou silencioso; de repente, voltou-se e continuou o seu caminho.
Nicholas, apesar da fadiga da caminhada desde o túnel até Cheyenne, conseguiu acompanhá-los. Sempre com a esperança de que não estivessem já muito longe.
— Você nunca viu a mansão, de um dominus, não é mesmo? ? perguntou Lantano.
— Nem sequer sei o que é uma mansão... ? respondeu Nicholas.
— Então vou levá-lo a sobrevoar algumas delas ? disse Lantano. ? Num transporte. Vai interessá-lo certamente; estas vistas de cima; vai pensar que é um parque... sem estradas, sem cidades. Belíssimo, só que os animais estão todos mortos. Foram-se todos. Para sempre.
E continuou a caminhada. Lá em cima, o satélite quase tinha desaparecido para além da linha do horizonte, para aquela zona imprecisa e cinzenta que, tanto quanto Nicholas se podia aperceber, ainda ficaria a pairar mais algumas gerações.

23
Debruçando-se mais uma vez sobre o fragmento de película, Cencio, com a lupa no olho direito, disse:
— Dois homens. Dez robôs. Atravessando as ruínas de Cheyenne na direção da vila incompleta de Lantano. Quer um plano mais aproximado?
— Sim ? respondeu imediatamente Webster. Fora de fato útil levar o satélite da empresa a reentrar por momentos na atmosfera; tinha agora uma imagem muito mais precisa.
A sala escureceu e depois na parede apareceu um quadrado branco, que se foi transformando à medida que se ia ampliando o segmento de película. O animador, essa maquineta tão magnífica, começou a funcionar; as doze figuras em questão começaram a mover-se.
— É o mesmo homem ? disse Cencio ? que estava com os dois robôs destruídos. Mas não é Lantano que o acompanha; Lantano é um jovem, com vinte e poucos anos. Aquele homem ali é de meia-idade. Vou mostrar- -lhe o dossiê dele. ?
E desapareceu.
Sozinho, Webster Foote continuou a observar o episódio agora animado; as doze figuras movendo-se, caminhando, com o ex-refugiado claramente cansado, o homem junto dele.... era certamente David Lantano. No entanto, tal como dizia Cencio, era certamente um homem já avançado na meia-idade. «Estranho», disse Webster de si para si. «Deve ser devido à radiação. Está a matá-lo e é assim que a morte se desenvolve nele; um envelhecimento prematuro. »Lantano devia era sair dali antes que fosse tarde demais; antes que deixasse de interessar.
— Viu isso? ? disse Cencio, voltando com o dossiê de Lantano; acendeu as luzes da sala, parou o segmento filmado. ? Nasceu em 2002; portanto tem vinte e três anos. Como é que aquele homem ali pode... ? Fechou novamente as luzes da sala.
? Aquele não é David Lantano.
— Será o seu pai?
— Segundo este dossiê, o pai morreu antes da guerra. ? Iluminado por uma pequena luz na secretária, Cencio examinava os elementos que a empresa reunira concernentes ao homem de Yancy David Lantano.
? Evidentemente que, isso é interessante, David Lantano é um ex-refugiado. Pelo menos saiu das ruínas de São Francisco um belo dia, e pediu asilo num dos apartamentos de Runcible. Enviado, como de costume, para o Berlin Psychiatric Waffer-Institute, a Sr. Morgen descobriu lhe aptidões impensáveis; recomendou que fosse admitido na Agência à experiência. Começou a escrever discursos; é o que está a fazer agora. Discursos brilhantes, diz aqui.
— É ele ali na tela ? comentou Webster Foote. ? E as radiações estão a matando-o. Portanto, devido à sua ganância em conseguir uma mansão, não vai sobreviver, e a Agência perde assim um brilhante escritor de discursos, e ele a sua vida.
— Tem mulher e dois filhos. Portanto, não é estéril. Saíram todos juntos das ruínas de S. F., uma pequena família. É tocante.
— Provavelmente morrerão com ele. Antes de acabar este ano. Liga outra vez a animação, meu rapaz.
Obediente, Cencio ligou novamente o monitor. O ex-refugiado, já muito cansado, ainda estava para trás. Durante um momento os dois homens desapareceram por trás do interior de um edifício ainda semiereto; depois, mais uma vez, saíram para a luz do dia, com os robôs em fila atrás deles.
Subitamente, Webster Foote exclamou, debruçando-se para a frente:
? Meu Deus, pare a máquina.
Mais uma vez Cencio deteve o filme; as figuras ficaram exatamente como estavam.
— Consegue ampliar apenas Lantano? ? perguntou Foote.
Com grande habilidade, Cencio manobrou os aparelhos de ampliação, as lentes respectivas; a figura na tela, a primeira, do homem mais escuro, foi crescendo, até ocupar todo a tela. Ficou apenas a imagem evidente de um homem jovem e vigoroso.
Tanto Foote como Cencio ficaram a olhar desconcertados, num silêncio agitado.
— Bem, meu rapaz ? disse finalmente Foote.
? Isto destrói a teoria de que ele está a ser seriamente afetado pelas radiações.
? É assim que ele devia aparecer. Como está aqui. Assim está de acordo com a sua idade.
Foote retorquiu:
— Nos arquivos de armas avançadas existente na Agência em Nova
Iorque há uma espécie de arma de viagem no tempo que tem sido aperfeiçoada até se tornar num meio de colocar objetos no passado. Só Brose tem acesso a uma coisa dessas. Mas o que aqui estamos a ver agora sugere que Lantano conseguiu o original ou a arma adaptada feita pela Agência. Acho que seria sensato fazermos vigilância perpetua sobre Lantano, sempre que possível. Será que poderemos usar um dos robôs do seu séquito mais próximo? E arriscado, sei muito bem disso, mas se ele o descobrir a única coisa que pode fazer é destruí-lo; não pode provar quem o pôs lá. E só precisamos de mais algumas imagens; só mais algumas. ? Entretanto, o animador passara toda a sequência até ao fim; incapaz de continuar, ronronava enquanto na tela as imagens estavam mais uma vez imóveis. Cencio abriu as luzes; e os dois homens começaram a caminhar pela sala meditando.
— Quais imagens? ? perguntou Cencio.
— Dele, para vermos até que ponto envelhece nas suas oscilações ? respondeu Foote.
— Talvez o tenhamos visto. Já.
— Mas talvez não. E sabe de uma coisa ? retorquiu Foote, subitamente detido pelos seus pressentimentos extra-sensoriais; era superior às suas forças... nunca o tinham assaltado com tanta força.
? Aquele homem não é branco; é um negro ou um índio qualquer.
— Mas já não há índios ? retorquiu Cencio. ? Lembre-se da teoria que circulou imediatamente antes da guerra; o programa de reagrupamento étnico estabelecido em Marte envolveu virtualmente todos eles e foram todos mortos no primeiro ano, quando a luta ainda se limitava a Marte; os que aqui ficaram na Terra...
— Bom, mas este ainda aqui está ? respondeu simplesmente Foote. ? Portanto, estamos vistos. Não precisamos de vinte índios; precisamos apenas de um... quer dizer, que tenha sido tolerado.
Um dos seus técnicos de laboratório apareceu então na porta da sala e bateu respeitosamente.
— Sr. Foote. Um relatório sobre aquele aparelho de TV portátil. Que queria desmontado.
Foote disse:
— Abriram-no e trata-se de um modelo normal de antes da guerra, marca Philco, a cores e de três dimensões.
— Não o conseguimos abrir.
— E porque não tentam abrir a tv com os fragmentos de rexeroide? ? O rexeroide era um elemento de Júpiter que geralmente conseguia penetrar em tudo. E conservava ainda um nos seus laboratórios de Londres, para ocasiões daquelas.
— O invólucro do objeto é de rexeroide, senhor; o aparelho penetra alguns milímetros e depois... a substância fundiu-se com a ponta e a penetração deteve-se. Por outras palavras, ficámos sem um aparelho de rexeroid. Pedimos mais, mas têm de vir da Luna, onde se encontram os fornecimentos mais próximos. Nenhum dos homens de Yancy dispõe de um, nem mesmo Eisenbeudt em Moscou. Ou pelo menos se os têm não os dispensam; já sabem como são os Yancy-men, cheios de rivalidades entre si. Sempre com receio de emprestarem...
— Não me venha com sermões ? retorquiu Foote. ? Continue a tentar. Eu observei esse invólucro; não é feita de nenhuma liga... é feita de plástico.
— Então é um plástico como nós nunca vimos.
Foote retorquiu:
Trata-se de uma arma muito avançada, sem dúvida vinda dos arquivos mais secretos da Agência, se bem que também seja possível que alguém a tenha descoberto. Em qualquer dos casos, foi desenvolvida antes da guerra e nunca chegou a ser utilizada. Quer dizer que não reconhece o toque dos Alemães quando observa uma coisa daquelas? É uma Gestalt-macher; eu reconheci perfeitamente. ? E bateu na testa. ? É o que me diz este lóbulo extra aqui na frente. Sem provas ainda. Penetra-a bem e verás; ejetores para produzirem sangue, palavras, ondas cerebrais, impressões digitais, etc. ?
«E», pensou depois, «mais um dardo homeotrópico homeostático. O primeiro e o último. » ? Claro que já tentaram aquecê-lo.
— Não muito. Até cerca dos 240; com medo de que, se fôssemos mais além...
— Tentem até aos 350. E digam se mostrou alguns sinais de desintegração.
— Muito bem, senhor ? e o técnico de laboratório partiu.
Dirigindo-se a Cencio, Foote disse:
— Nunca o conseguirão abrir. Não é rexeroid; é termoplástico. Más esse excelente termoplástico alemão que se desintegra num determinado meio grau de aquecimento bem definido; mais acima ou mais abaixo ainda é mais duro que o rexeroid. Temos de conseguir precisamente a temperatura exata; lá dentro tem um núcleo que fluidifica quando quer mudar de forma. Se tentarem o suficiente...
— Ou então ? respondeu Cencio ? , se tentarem uma temperatura demasiadamente alta, talvez não fique nada lá dentro senão cinzas.
Era verdade. Os Alemães nunca tinham pensado nisso; o mecanismo estava construído de forma que as pressões pouco usuais ? tais como calor, brocas e perfuradores de qualquer tipo? detonassem um mecanismo de destruição. E a coisa nem sequer se desintegrava de uma forma visível; os seus aparelhos desintegravam-se pura e simplesmente... pelo que ainda se continuava a tentar entrar no seu interior ? depois desse interior se ter desintegrado, transformando-se em algo disforme.
«Aqueles aparelhos do tempo da guerra», pensou para si Foote, «eram demasiadamente inteligentes. Demasiadamente inteligentes para nós, pobres mortais; só de imaginar o que eles poderiam ter descoberto com mais um ano? Se as fábricas não tivessem sido destruídas, com os laboratórios e os respectivos técnicos... como aquela onde se fabricavam os órgãos artificiais. »
O intercomunicador fez ouvir o seu sinal e apareceu a Miss Grey:
— Senhor, o homem de Yancy David Lantano está na linha. O Sr. atende?
Foote olhou para Cencio:
— Viu o satélite e sabe que conseguimos imagens dele. Vai perguntar- -nos porquê. ? Rapidamente, tentou descobrir porquê. O ex-refugiado? Excelente; por aí havia alguma coisa, pois legalmente, Lantano tinha de entregar qualquer ex-refugiado que aparecesse na sua mansão para este ser enviado para os psiquiatras em Berlim. Falando para o intercomunicador, disse:
— Passe-me para o Sr. Lantano, Senhorita Grey.
E o rosto de David Lantano apareceu na grande tela. Webster Foote verificou, fascinado, que este se encontrava na fase de juventude do seu ciclo de oscilação etária; em qualquer dos casos era um homem de vinte e três anos que ele tinha ali em frente.
— Nunca tive o prazer de o conhecer ? disse Foote delicadamente (os Yancy-men, geralmente, gostavam muito daquele gênero de adulação) ? , no entanto conheço os seus trabalhos. Extraordinários.
Lantano perguntou sem rodeios:
— Gostaríamos de conseguir um órgão artificial, um pâncreas.
— Oh, céus.
— Você pode arranjar um. Pago bem.
— Já não há nenhum. ? E Foote pensou para si. «Porquê? Quem precisará de uma coisa destas? Tu? Será que o teu amigo ex-refugiado veio até à superfície à procura de um? Provavelmente é isso, e estás a ser caridoso ou qualquer outra coisa do gênero. »
? Lamento não há nada a fazer, Sr. Lantano. ?
E então veio-lhe uma ideia.
? Permita-me ? disse-lhe ? que visite a sua vila, nem que seja apenas por uns momentos. Tenho alguns mapas, mapas militares do tempo da guerra, que indicam áreas ainda não investigadas e que talvez possam ter armazéns com órgãos artificiais; são hospitais da U. S. Air Force em lugares distantes. No Alasca, no Canadá do Norte. Nos lugares onde se encontravam as velhas guarnições e na Costa Leste. Talvez nos...
— Excelente ? concordou Lantano. ? Que tal às nove na minha vila? Às nove na minha zona aqui. Para você seriam às...
— Senhor, eu sou capaz de contar o tempo ? disse Foote. ? Aí estarei. E tenho a certeza de que com as suas extraordinárias capacidades, conseguirá descobrir qualquer utilidade nestes mapas. Pode utilizar os seus robôs, ou se quiser a minha empresa pode...
— As nove, esta noite, então ? retorquiu apenas Lantano, e desligou.
— Porquê? ? perguntou Cencio passado um momento de silêncio.
Fbote retorquiu:
— Para poder colocar o monitor de vigilância contínua.
— Claro ? exclamou Cencio.
— Passa novamente essa sequência animada ? disse Foote pensativo ? de Lantano com meia-idade. E para no momento em que ele se encontra mais velho. Reparei numa coisa agora mesmo, na tela...
Enquanto voltava a ligar toda a aparelhagem novamente, Cencio disse:
— Que coisa?
— Pareceu-me ? retorquiu Foote ? que Lantano, à medida que vai envelhecendo, se vai parecendo com alguém. Não consegui perceber bem quem, mas trata-se de alguém que eu conheço.
Quando olhara para o jovem Lantano na tela voltara a sentir a mesma coisa, a mesma sensação de dejà vu.
Um momento mais tarde, na sala novamente às escuras, estava a observar um fotograma de Lantano com meia-idade, mas visto de cima; o ângulo era ruim, e sê-lo-ia sempre, uma vez que o instrumento fotográfico estava orientado verticalmente, como era natural com um satélite. Mas... conseguira mesmo assim uma boa imagem, pois, quando o satélite passara, quer Lantano quer o ex-refugiado tinham parado e olhado para cima.
— Eu sei de quem se trata ? disse subitamente Cencio. ? Talbot Yancy.
? Só que este é mais escuro ? retorquiu Foote. ? Este aqui.
— Mas se se aplicar este clareador de pele. Este dispositivo do tempo de guerra...
— Não, Yancy é consideravelmente mais velho. Quando conseguirmos uma boa imagem de Lantano nos sessenta e não nos cinquenta, talvez tenhamos alguma coisa. ? «E quando eu conseguir entrar na sua vila», pensou Foote, «conseguiremos facilmente colocar o equipamento que nos fornecerá essas imagens. E será esta noite; faltam apenas mais algumas horas. »
«Quem será este Lantano?», perguntou a si próprio.
E não obteve resposta.
Pelo menos... por enquanto.
Mas com o passar dos anos aprendera a ser paciente. Ele era um profissional; conseguiria, uma vez na vila ainda incompleta de Lantano, colocar um vídeo que mais tarde ou mais cedo lhe forneceria dados adicionais, e, finalmente, um belo dia, de preferência muito em breve, apareceria um fato decisivo, e tudo passaria a fazer sentido: a morte de Davison, Hig e Lindblom, a destruição dos dois robôs, o comportamento peculiar de Lantano ? e, quando envelhecia, o fato ainda mais peculiar da sua parecença com o boneco de metal e plástico atado à mesa de carvalho em Nova Iorque... oh, pensou para si Foote; e depois ficaria também explicada a sequência até então estranha que mostrava a origem do raio destruidor que eliminara os dois robôs. Era, precisamente, alguém que se parecia com Talbot Yancy.
Era David Lantano no extremo mais velho da sua oscilação; já o vimos assim. O fato chave já ocorrera.
«Brose», pensou para si, «fizeste um movimento altamente nefasto; perdeste o monopólio do conteúdo do arquivo de armas avançadas. Alguém conseguiu apoderar-se do equipamento de viagem no tempo e está a usá-lo para te destruir. Mas como o conseguiu? Não interessa, tem-no: e isso é que importa. »
Gottlieb Fischer ? disse depois em voz alta. ? Ele foi o criador de Talbot Yancy teve a sua origem nele; portanto, a crise tem lugar no passado. «E aquele que tem capacidade de viajar no tempo tem acesso a esse passado», compreendeu então. «Há uma ligação, uma conexão entre David Lantano, quem quer que ele seja, e Gottlieb Fischer, em 1982 ou 1984 ou até mesmo na altura da morte de Fischer; mas nunca depois da sua morte... provavelmente um pouco antes de Fischer ter começado a era do raio Prinzip de Yancy, variação do Prinzip do Führer: a sua nova solução para a questão de quem devia mandar; uma vez que os homens são demasiadamente cegos paragovernarem a si próprios, como é que se pode confiar neles para que governem os demais? A resposta foi der Führer, como todos os alemães sabem, e Gottlieb Fischer era alemão. Depois Brose roubou-lhe a ideia, como todos sabemos, e tomou-a realidade; os bonecos, um em Moscou e outro em Nova Iorque, atados às suas mesas, programados pelo computador que lhes vai dando discursos feitos por uma elite de homens bem treinados... tudo isso pode ser legitimamente atribuído a Stanton Brose, mas o que não sabíamos era que Gottlieb Fischer roubou também a sua parte, o conceito original e primeiro, de alguém. »
«Por volta de 1982, o produtor alemão viu Talbot Yancy. E retirou esse novo Führer não da sua própria criatividade, do seu gênio artístico, mas da simples observação. Mas quem é que, por volta de 1982, Fischer podia ter visto? Atores. Centenas deles. Reunidos para desempenharem os seus papéis nos dois grandes documentários fraudulentos ? atores escolhidos especialmente com base na sua capacidade para imitarem os grandes líderes mundiais. Por outras palavras, atores com o mesmo carisma do que aqueles, com a mesma mágica. »
Dirigindo-se a Cencio, disse lentamente, pensativo, puxando levemente o lábio inferior:
— Parece-me que se combinar as duas versões A e B, os dois trabalhos de invenção de Fischer, darei de cara, mais cedo ou mais tarde, numa dessas cenas forjadas, com um Talbot Yancy. Claro que ele estará descaracterizado; desempenhando um papel qualquer. ? «Desempenhando o papel de Stalin», pensou para si. « Ou de Roosevelt. Ou nenhum dos dois... ou de todos. O que faltava aos documentários eram as legendas adequadas; quem desempenhava o papel de tal ou tal grande líder mundial; precisamos dessa lista, mas ela não existe nem nunca existiu; a sua realização foi evitada com todo o cuidado. »
Cencio retorquiu então:
— Nós temos cópias dessas duas versões, como sabe.
— Muito bem. Passe-as e extrai todas as cenas forjadas. Separa-as das sequências reais que...
Cencio riu-se com sarcasmo:
? Bom Deus. Salva-nos. ? Fechou os olhos e cambaleou para trás e para diante. ? Quem pode alguma vez conseguir fazer uma coisa dessas? Ninguém soube na altura, sabe agora ou virá alguma vez a saber...
Certo; um bom argumento. O verdadeiro argumento, de fato.
— Muito bem ? retorquiu Foote. ? Começa lá a passá-los. Até conseguir ver o Protetor. Deve ser um dos grandes líderes carismáticos, um dos quatro; não será Mussolini nem Chamberlain, portanto podes ignorá-los. ? «Deus do céu», pensou depois para si; «e se for Hitler que estiver no Boeing 707 em Washington D. C, para as suas conversações com F.D.R? Será esse que governa agora milhões de refugiados, o ator que conseguiu impressionar Gottlieb Fischer com o seu desempenho de Adolf Hitler? »
No entanto, podia também ser um papel menor. O papel de um general qualquer. Até mesmo um daqueles G. I. nas cenas dos abrigos.
— Levarei semanas ? comentou Cencio, apercebendo-se da mesma coisa. ? E teremos nós semanas? Se já estão matando pessoas...
— Joseph Adams já está sob proteção ? disse Foote. ? E Brose... é uma pena se ele for apanhado; mais poder advirá para o seu inimigo desconhecido. Este inimigo desconhecido é obviamente David Lantano. ? Mas essa conclusão apenas o levava de volta para a dúvida original: quem ou o que era David Lantano?
De qualquer das maneira tinha agora uma resposta parcial ? pelo menos ad hoc. Ainda tinha de ser posta à prova. David Lantano, na extremidade mais velha da sua oscilação etária, tinha sido contratado por Gottlieb Fischer para desempenhar um dado papel ? ou pelo menos fora testado para tal? numa das versões dos documentários de 1982; era essa a sua hipótese. E cabia agora testá-la.
E o passo seguinte iria ser difícil: o passo que se seguia à identificação de Yancy ? quer dizer, de David Lantano? num ou em ambos os documentários de 1982.
O passo seguinte, e isso coadunava-se perfeitamente com os múltiplos talentos da Webster Foote Limited, de Londres, consistia em infiltrar equipamentos altamente sofisticados na vila de David Lantano enquanto este se encontrava na Agência em Nova Iorque. E apropriar-se, pelo menos momentaneamente, do instrumento de transporte no tempo utilizado por Lantano.
«Vai ser duro», pensou para si Foote. «Mas nós temos as máquinas para o conseguir; tem sido o nosso trabalho desde 2014. E desta vez não estamos apenas cumprindo uma missão para um cliente; é para nós mesmos. »
«Pois», compreendeu então, «são as nossas próprias vidas que estão agora ? e involuntariamente ? postas em perigo, neste caso; trata-se, como é evidente, da última e decisiva jogada que leva os jogadores a todos os embustes, falsidades e regateios. »
— Uma firma de advogados ? disse em voz alta. ? Embustes, Falsificações, Mentiras, Patranhas e Ciladas, Sociedades Anônimas. Essa firma pode nos representar perante o Conselho de Reconstrução quando processarmos o Brose.
— Com que base?
— Com base ? retorquiu tranquilamente Foote ? no supostamente eleito líder mundial que é o Protetor, Talbot Yancy, como qualquer refugiado já sabe; como o Governo de Estes Park tem afirmado há anos. E se esse homem existe de fato. Portanto... Brose não tem qualquer poder legal. Uma vez que o poder legal é, portanto, na sua totalidade de Yancy, tal como as Pac-Peop e as Wes-Dem têm vindo a reclamar insistentemente.
«E parece-me que Yancy começou a desenvolver ações verdadeiramente tendentes a restabelecer o seu poder», concluiu Foote. Finalmente.

24
Um tanto envergonhado, o rapazinho de pele escura disse:
— O meu nome é Timmy.
A seu lado, a irmã mais nova contorcia-se, sorrindo, e murmurou:
? Eu sou Dora.
Nicholas disse: ? Timmy e Dora. ? Dirigindo-se á Sr.a Lantano, que se deixara ficar de lado, comentou:
? Tem duas belas crianças. ? E, ao ver a esposa de David Lantano, lembrou-se da sua mulher, de Rita, ainda lá em baixo; lembrou-se da maldita vida nos abrigos. Claro que eterna, pois nem mesmo os indivíduos mais decentes que viviam à superfície, homens como David Lantano e, se bem compreendera, o magnata da construção de apartamentos habitacionais, Louis Runcible; nem mesmo esses homens tinham planos, ou esperanças, não tinham nada para oferecer aos refugiados. Exceto, como no caso de Runcible, prisões higiênicas e agradáveis em vez das prisões mais degradantes e imundas lá de baixo. E Lantano...
«Os seus robôs teriam me matado», compreendeu Nicholas.
«Se não fosse a entrada em cena de Talbot Yancy, com a sua arma tão pouco habitual. »
Dirigindo-se a Lantano, perguntou:
— Como é que eles podem dizer que Yancy é uma fraude? Foi o que disse Blair; todos o disseram. Você também o disse.
Enigmaticamente, Lantano retorquiu:
— Todos os dirigentes que governam...
? Mas isto é diferente ? disse Nicholas.
? E parece-me que você o sabe. Não se trata aqui da questão de homens versus a sua imagem pública; trata-se de uma questão nunca antes colocada, tanto quanto eu sei, na história. Trata-se da possibilidade da não existência pura e simples de tal personagem. E no entanto eu o vi-. Ele salvou a minha vida. ? «Vim até aqui acima», compreendeu ele, «para me dar conta de duas coisas; de que Talbot Yancy não existe, como já nos ocorrera e... se existe, de que tem consistência suficiente para destruir dois ferozes robôs veteranos, que, na ausência de qualquer autoridade superior, teriam me eliminado sem muitas dúvidas. Matariam um homem como se se tratasse de um ato perfeitamente natural; como se fosse parte da sua missão. Talvez até mesmo uma parte fundamental. »
— Como componente da sua aparência ? continuou Lantano? , qualquer líder mundial assumiu sempre um certo aspecto fictício. Especialmente neste último século. E claro que no tempo dos Romanos, por exemplo, qual era verdadeiramente o aspecto de Nero? Não sabemos. Eles não sabiam. E o mesmo pode se dizer de Cláudio. Era um idiota ou gênio? O mesmo pode se dizer dos profetas, ou das as religiões...
— Nunca me vai responder ? disse Nicholas. Era óbvio.
Sentada no seu enorme sofá cor de ferro com os dois filhos, Isabella Lantano comentou:
— Tem razão, Sr. St. James; nunca lhe dará uma resposta. Mas ele sabe. ? Os seus olhos, poderosos e imensos, fixaram-se no marido. Eles, ela e David Lantano, trocaram olhares, silenciosos e cheios de significado; Nicholas, deixado de lado, levantou-se e passeou-se pela sala de altos tetos, sem finalidade aparente, sentindo-se dolorosamente impotente.
— Tome uma bebida ? disse Lantano. ? Tequilla. Trouxemos um excelente carregamento da Cidade do México/Amacameca. ? E acrescentou: ? Nessa altura estava eu a falar perante o Conselho de Reconstrução, e apercebendo-me ao mesmo tempo de como eles são realmente desinteressados.
— E o que é isso? ? inquiriu Nicholas.
— O verdadeiro tribunal supremo deste nosso mundo.
— E para que é que se lhe dirigiu? ? perguntou novamente Nicholas. ? Para resolver alguma questão?
Depois de um longo interregno, Lantano respondeu:
— Para a resolução de um pleito bastante acadêmico. Para determinar precisamente o estatuto legal do Protetor. Versus a Agência. Versus o general Holt e o marechal Harenzany. Versus... ? E deteve-se, pois um dos robôs do seu séquito entrara na sala e aproximava-se deferentemente.
? Versus Stanton Brose ? concluiu.
? O que é? ? perguntou depois ao robô.
— Dominus, detectamos um homem de Yancy na periferia das zonas guardadas ? respondeu respeitosamente o robô. ? Com o seu séquito, trinta robôs ao todo; está extremamente agitado e deseja visitá-lo socialmente. A acompanhá-lo vem também um grupo de humanos referidos como footemen, que protegem a sua pessoa contra perigos imaginários, de acordo com ordens emanadas, diz ele, diretamente de Genebra. Parece bastante aterrorizado e disse-me para lhe dizer que o seu melhor amigo está morto e de que «ele será o seguinte». Foram essas as suas palavras, tais como as registrei, Sr. Lantano. E disse mais: «A menos que Lantano...» ? esqueceu-se da referência de cerimônia, tal era a sua agitação. ? «A menos que Lantano possa me ajudar, eu serei o seguinte. » Vai deixa-lo entrar?
Dirigindo-se a Nicholas, Lantano comentou:
— Deve ser o agente de Yancy da Califórnia do Norte chamado Joseph Adams. Um admirador de certos aspectos do meu trabalho. ? Dirigindo-se ao robô, ordenou, depois de refletir por um momento:
? Diz-lhe que entre e se sente. Mas às nove tenho marcado um encontro de negócios. ? Examinou o seu relógio. ? Já são quase nove; certifica-te de que ele compreende bem que não pode ficar muito tempo. ? Enquanto o robô se afastava, Lantano disse, dirigindo-se a Nicholas:
? Este não é totalmente desinteressante. Pode descobrir alguns aspectos com interesse; pelo menos o que faz provoca-lhe conflitos interiores. Mas...? E Lantano fez um gesto decisivo; tomara uma decisão. ? Vai com os outros. Pactua. Depois, e mesmo durante as dúvidas. Tem-nas mas... pactua.? A voz de Lantano baixou sensivelmente, e mais uma vez, de maneira perfeitamente chocante, apareceu novamente o mesmo rosto velho e enrugado, até mesmo mais velho e enrugado do que antes; já não era um homem de meia-idade; era o mesmo que Nicholas conseguira descortinar quando Lantano descera para o refúgio de Cheyenne, só que agora podia ver mais distintamente... mesmo que apenas por alguns momentos. E depois desapareceu novamente. Como se fosse apenas o resultado de uma mudança de luz, e não uma mudança no próprio indivíduo. E no entanto ele sabia, compreendia, que se tratava de algo no próprio homem, e depois, ao olhar para a mulher de Lantano e para os dois filhos, teve uma impressão fugidia, com base neles três; viu, como se apenas pelo canto do olho, como que uma decadência também dentro deles só que para as crianças se tratava mais de um crescimento do que um aumento de maturidade e vigor; pareciam, abruptamente, mais velhos. E depois também isso se desvaneceu.
Mas vira-o. Vira as crianças como... adolescentes, e a Sr.a Lantano de cabelo branco e cabeceando, no meio termo de uma hibernação intemporal, como vestígio de outros poderes originais.
— Aí vêm eles ? disse Isabella Lantano.
Com grande alarido, entrou então uma fila de robôs e deteve-se; de entre eles, saíram quatro seres humanos, que olharam em volta de uma maneira cautelosamente profissional. E depois, saindo finalmente de trás deles, apareceu um homem solitário e aterrorizado. Joseph Adams, percebeu Nicholas; o homem tremia de medo, como se impelido de dentro, já se sentindo ? e não apenas potencialmente ? vítima de uma qualquer força destruidora, imparável e ubíqua.
— Obrigado ? disse Adams roucamente para Lantano. ? Não vou ficar muito tempo. Era grande amigo de Verne Lindblom; trabalhámos juntos. A sua morte... não estou assim muito preocupado comigo. ? E abrangeu com um gesto primeiro o seu corpo de robôs, depois o comando de humanos que o protegiam; o seu escudo duplo. ? É o choque da sua morte. Quer dizer, isto já é uma vida bastante solitária, na melhor das hipóteses. ? Tremendo, sentou-se junto do fogo, não muito longe de Lantano, olhando para Isabella e para as duas crianças, depois para Nicholas, com uma incompreensão algo desorientada. ? Fui até a sua mansão na Pensilvânia; eles conhecem-me por lá, os seus robôs; reconheceram-me por ele e eu costumarmos jogar xadrez quase todas as noites. Por isso me deixaram entrar.
— E que é que encontraste por lá? ? inquiriu Lantano com uma voz estranhamente azeda; Nicholas ficou surpreendido com a animosidade do seu tom.
Adams retorquiu:
O robô tipo VI que mandava... tomou a iniciativa de me deixar examinar os registros dos aparelhos de detecção de ondas cerebrais. Era claramente a onda alfa do assassino. Levei-a até ao MegaMegavac 6-V e introduzi-a; o computador tem cartões de toda a gente pertencente à organização de Yancy.? A sua voz tremia, bem como as mãos.
— E ? perguntou novamente Lantano ? que cartão é que saiu?
Depois de uma pausa, Adams respondeu:
— O de Stanton Brose. Portanto, tenho de concluir que foi Brose que o matou. Que matou o meu melhor amigo.
— Portanto, agora ? comentou Lantano ? , não apenas deixaste de ter o melhor amigo como arranjaste ainda por cima um inimigo.
— Sim; suponho que Brose tenciona me matar agora. Como fez com Arlene Davison, depois com Hig e em seguida com Verne. Estes footemen... ? e apontou para os quatro homens. ? Sem eles já estaria morto.
Pensativo, Lantano meditou um pouco e afirmou depois:
— Muito provavelmente. ? E disse-o como se tivesse a certeza.
— Eu vim aqui ? disse então Adams ? para pedir a tua ajuda. Pelo que vi de ti... mais ninguém tem a tua habilidade. Brose precisa de ti; sem gente assim tão brilhante, sem jovens homens de Yancy como tu, nós acabaremos por cometer um erro, mais cedo ou mais tarde... o próprio Brose ficará cada vez mais senil à medida que o seu cérebro for se deteriorando; mais tarde ou mais cedo passará uma gravação com um erro decisivo. Como os erros nos dois documentários de Fischer; qualquer coisa como o Joseph Stalin falando inglês ou o Boeing 707... já sabes como é.
— Sim, ? retorquiu apenas Lantano. ? Eu sei, e houve mais. Mas geralmente ainda não estão detectados. As duas versões estão minadas de uma forma minuciosa e insidiosa. Portanto, sou essencial a Brose; e depois? ? E olhou para Adams, à espera.
— Diz-lhe ? suplicou então Adams afônico, como se tivesse dificuldade em respirar ? que se eu for morto, tu não trabalharás mais para a Agência.
— E porque havia eu de fazer uma coisa dessas?
— Porque ? retorquiu Adams ? mais tarde ou mais cedo será a tua vez. Se Brose se consegue safar desta.
— E porque pensas que Brose foi levado a provocar a morte do teu amigo Lindblom?
— Deve ter decidido que o projeto especial... ? Adams deteve-se, ficou silencioso, lutando consigo próprio.
— Todos tinham cumprido a sua missão ? continuou Lantano. ? E assim que tal aconteceu, foram sendo eliminados. Arlene Davison, depois de os esquemas cuidadosamente delineados (não propriamente esquemas, mas mais desenhos soberbamente realistas, perfeitos até ao último pormenor) terem sido concluídos. Hig, assim que localizou os objetos no local das escavações de Utah. Lindblom, assim que completou a feitura desses objetos e que estes foram enviados para o passado. Tu, no momento em que terminares os artigos para a Natural World. Já os acabaste? ? E levantou os olhos com intensidade.
— Sim ? disse Adams, concordando com a cabeça. ? Entreguei-os hoje na Agência. Para serem trabalhados. Impressos nas edições falsificadas, envelhecidos, etc. Mas... ? E retribuiu o olhar acutilante de Lantano
? Hig morreu cedo demais. Não chamou a atenção de Runcible para os objetos descobertos, se bem que a câmera e o gravador estivessem a funcionar. Há outros agentes de Brose entre o pessoal de Runcible e eles informaram, bem como a câmera, de que Runcible não sabe de nada; sem dúvida ignora completamente a presença... a presença, nessa altura, dos objetos. Portanto... ? baixou a voz, e ficou mudo de espanto.
? Algo não correu bem.
? Sim ? concordou Lantano. ? Algo correu mal no momento verdadeiramente crítico. Tens razão: Hig foi morto cedo demais. E digo-te mais uma coisa. O teu amigo alemão foi morto por uma invenção bélica alemã chamada Gestalt-macher; desempenha duas missões bem distintas; primeiro assassina instantaneamente as vítimas, e sem provocar qualquer dor, o que, para o espírito alemão, toma o ato eticamente aceitável. E depois deixa os indícios que apontam...
— Indícios ? interrompeu-o Adams. ? Já sei. Ouvimos falar disso. Sabemos que existe nos arquivos de armas avançadas, aos quais, naturalmente, só Brose tem acesso. Então a onda alfa captada no monitor na casa de Verne...? Ficou novamente silencioso, apertando e desapertando as mãos.
Foi falsificada. Produzida deliberadamente pelo Gestalt-macher. Falsificações. É isso que produz a Gestalt, indícios como esse, indicadores de perfil. E os outros indícios...
— Todos apontavam para Brose; todos concordavam. Webster Foote, que deve estar chegando, meteu os sete dados no computador de Moscou e este só indicou o cartão de Brose. Tal como te aconteceu no MegaMegavac 6-V, com base apenas num único dado. Mas um... esse precisamente... foi suficiente.
— Então ? disse Adams com voz rouca ? , Brose não matou Verne; foi outra pessoa. Que não apenas queria matar Lindblom, mas também desejava que pensássemos que tinha sido Brose. Um inimigo de Brose. ? O seu rosto movia-se desesperadamente e Nicholas, observando-o, compreendia que o seu mundo se desintegrara; momentaneamente, aquele homem deixara de ter qualquer base intelectual ou idiossincrática sobre a qual se orientar; psicologicamente estava em plena flutuação, perdido, num oceano fluido e impreciso.
No entanto, Lantano não parecia muito impressionado com a desorientação e desespero de Adams. Disse friamente:
— Mas o Gestalt-macher foi encurralado no local do crime, impedido de fugir pelo pessoal de Lindblom. A pessoa que enviou o macher, que o programou com esses indícios, sabia muito bem que Lindblom tinha um alerta de morte. Não é verdade que virtualmente quase todos os homens de Yancy trazem um? Tu trazes. ? E apontou para o pescoço de Adams, e Nicholas conseguiu ver um fio dourado, fino como um cabelo, um fio de metal qualquer exótico.
— É.... uma verdade ? admitiu Adams, tão invadido pelo espanto que o próprio falar lhe era quase já impossível.
— E, portanto, Brose viu assim surgir uma oportunidade para dar a impressão de que não era ele que comandava o macher. Uma vez que os indícios apontavam na sua direção, e uma vez que é axiomático que os indícios produzidos por um macher são falsos, então Foote, cuja missão é saber tudo isso, como era intenção de Brose, devia verificar que todos os indícios apontavam para Brose e que este estava portanto inocente. ? Fez uma pausa. ? No entanto, Brose não está inocente. Foi Brose quem programou o macher. Para se acusar e, portanto, para provar a sua inocência à polícia.
Adams comentou então:
— Não compreendo. ? E abanou a cabeça. ? Não percebo mesmo nada, Lantano; não repitas tudo outra vez... ouvi tudo o que disseste, sei o significado de todas as palavras. Só que é tudo...
— Demasiadamente complicado ? concordou Lantano. ? Uma máquina que mata, e que ao mesmo tempo deixa pistas falsas; só que neste caso a pista é a verdadeira. Adams, estamos aqui perante o refinamento máximo da falsificação, o último estádio na evolução de uma organização criada com a finalidade de produzir embustes. E convincentes. Aí está Foote. ? Lantano levantou-se e voltou-se para a porta. Esta abriu-se e entrou um único indivíduo, sem qualquer corpo de robôs para o proteger, com uma pasta debaixo do braço.
— Adams ? disse Foote. ? Tenho a alegria de verificar que ainda não o apanharam.
Sombriamente, com um cansaço especial, David Lantano apresentou-os; pela primeira vez fez referência à presença de Nicholas, dirigindo-se ao perturbado e aterrado homem de YancyJoseph Adams.
— Lamento, Adams ? disse Lantano ? , mas a minha conversa com o Sr. Foote é confidencial. Vai ter de sair.
Desesperado, Adams exclamou:
Vai me ajudar ou não? ? Levantou-se, mas não se moveu. E o seu séquito, quer o humano quer o de robôs não se moveu também, mantendo- -se inerte, observando atentamente o que se passava. ? Eu preciso de ajuda, Lantano. Não me posso esconder dele em parte nenhuma; ele vai apanhar-me, pois tem acesso a todas aquelas armas avançadas; só Deus sabe o que há naqueles arquivos. ? E depois foi a vez de apelar para Nicholas, com um longo olhar silencioso, procurando também o seu auxílio.
Nicholas disse:
— Há um lugar onde ele nunca o encontraria. ? Há já alguns minutos que estava a pensar naquilo, desde que conseguira entender bem a natureza da situação em que se encontrava Adams.
— Onde? ? perguntou Adams.
— Num abrigo.
Adams olhou-o, com uma expressão demasiadamente flácida, demasiadamente confusa e dilacerada pelos conflitos internos para poder ser decifrada.
— No meu abrigo ? concluiu Nicholas, sem revelar deliberadamente, pois havia ali tanta gente, o seu nome. ? Tenciono regressar, com ou sem o órgão artificial que vim buscar; você podia vir comigo.
Foote disse então:
— Ah, o órgão artificial, o pâncreas, é para você. ? Sentou-se e abriu a pasta de couro. ? Para alguém muito valioso que se encontre no seu abrigo? Uma tia velhinha? Os órgãos artificiais, como o Sr. Lantano já lhe deve ter dito...
? Vou continuar a tentando? interrompeu-o Nicholas.

25
Quando abria a sua pasta de couro, Foote conseguiu que um molho de papéis se soltasse e caísse para o chão; debruçou-se para os apanhar e, nesse momento, viu que tinha aí a sua oportunidade e usou-a plenamente; enquanto, com a mão esquerda, apanhava os documentos inúteis, com a direita colocava, entre as almofadas do sofá no qual se encontrava sentado um lugar que escolhera deliberadamente ? um monitor de transmissão audiovisual; não apenas captaria e registraria os dados recebidos, como também os transmitiria imediatamente para os Footemen na subestação mais próxima.
Dirigindo-se a Foote, o desesperado homem de Yancy Joseph Adams disse:
— O senhor introduziu os dados no computador de Moscou e teve como resposta o cartão de Brose. Portanto, no seu espírito, Brose está inocente, pois os indícios são falsificados, deixados propositadamente pelo Gestalt-macher; tudo obra de alguém hostil a Lindblom e a Brose.
Olhando-o, sem perceber como é que ele sabia tudo aquilo, Foote disse:
— Hum...
— É verdade ? disse roucamente Adams. ? Eu sei porque introduzi esses mesmos dados no MegaMegavac 6-V e obtive o mesmo cartão. Mas David Lantano... ? E acenou com a cabeça na direção do jovem e moreno homem de Yancy. ? Ele diz que Brose podia ter programado o macher, sabendo já que este iria ser apanhado; e você apanhou-o, de fato.
— Bom ? disse Foote evasivo ? , temos de fato um objeto. Mas ainda não conseguimos penetrá-lo; resiste a qualquer tentativa de penetração. Calculamos que se trata de um aparelho bélico inventado pelos Alemães; sim, é isso. ? Não viu qualquer razão para negar o que quer que fosse sobre isso; no entanto, uma vez que Joseph Adams e David Lantano já sabiam o que se passava, teria de se dizer tudo a Brose. «E logo que possível», compreendeu Foote. «Brose deve saber isto por mim e não por eles. Portanto, o melhor que tenho a fazer é ir-me embora daqui logo que puder, de volta para o meu transporte, onde tenho acesso ao meu satélite de comunicações para arranjar uma chamada direta para Genebra. Porque se Brose toma conhecimento de tudo isto por eles, e não por mim, a minha reputação sofrerá um golpe fatal; não posso permitir uma coisa dessas. »
Sentia-se exasperado, ofendido mesmo.
«Quer dizer», disse de si para si, «que me deixei levar por uma farsa, uma dupla farsa? O crime foi cometido por aquele aparelho de TV portátil pelo menos é essa a sua aparência ? , mas foi Brose quem realmente o enviou, programando-o para o apontar precisamente pra ele? E pensar que eu, mesmo com todas as minhas capacidades extra-sensoriais, nunca pensei numa possibilidade dessas. »
«É este Lantano», compreendeu depois, «esta ideia é sua. Inspirado. Este homem, é perigosamente dotado de inteligência. »
No seu ouvido, um receptor-emissor, colocado sob a peie para ser invisível, fez ouvir o seu som bem nítido:
— Estamos a apanhar perfeitamente os sinais audiovisuais, Sr. F. Está extremamente bem colocado. A partir de agora vamos conseguir apanhar tudo o que se passe nessa sala.
Num gesto reflexo, ainda profundamente mergulhado nos seus pensamentos, Foote desenrolou os seus mapas militares, que mostravam a localização dos mais importantes armazéns militares; tinham sido altamente secretos... informação altamente classificada, como se dizia no velho calão da guerra. Tinham-lhe sido originariamente fornecidos pelo general Holt, por meio da Agência. Fazendo isso parte de um trabalho que levara a cabo para Brose em tempos; os mapas originais tinham sido devolvidos estes eram apenas cópias. Estudava-os agora, meditabundo, preparado para começar a certamente entediante conversa com Lantano... e então, sem qualquer aviso prévio, repentinamente, a sua faculdade extra-sensorial despertou novamente de uma forma fulminante, enchendo o seu espírito de um fulgor insuportável, e aproximou ainda mais os olhos do mapa, examinando-o ainda mais atentamente. Mostrava uma zona junto da costa atlântica da Carolina do Norte. Estavam aí indicados três arsenais do exército dos E. U. A., armazéns no subsolo que há muito tinham sido escavados pelos robôs de Brose, retirando depois tudo o que tivesse algum valor. Isso também estava indicado no mapa. Mas...
A distribuição dos arsenais indicava que estes tinham sido concebidos para servirem de suporte a unidades de superfície tácticas, altamente móveis, provavelmente implicadas ? ou pelo menos era o que se previa ? em luta contra robôs soviéticos desembarcados pelos gigantescos transportes de tropas da U. R. S. S., nos anos 90. E o estatuto quadripartido desses arsenais era coisa comum nesse tempo; três para armas, combustível e peças sobressalentes para os tanques pesados dotados de mísseis terra-terra com cabeça atômica... eram esses três que tinham sido desenterrados. Mas não vinha indicado o quarto armazém, e, no entanto, devia ter existido, sessenta ou setenta quilômetros para a retaguarda; aí deviam estar armazenados os equipamentos médicos ? se é que se tinham previsto alguns para aquelas unidades altamente móveis que deviam ser apoiadas pelos outros três arsenais claramente apontados mais junto da costa.
Com um lápis desenhou as linhas que uniam os três arsenais indicados, depois, com o rebordo de um livro tomado de uma mesa próxima, desenhou uma outra linha que indicava a hipotenusa que transformaria o triângulo anterior num quadrado.
«Dentro de cinco horas», pensou Foote, «posso ter uma equipa de trabalho de robôs a escavar neste sítio; podem começar a trabalhar lá em quinze minutos, podem determinar se aí existe de fato um quarto armazém, desta vez de equipamentos médicos. As hipóteses são...» e fez um rápido cálculo. «De cerca de quarenta por cento a favor. » Mas... já antes a sua empresa tinha tentado levar a cabo escavações, e com muito menos indícios.
Algumas tinham dado resultado; outros não. «Mas teria uma importância incalculável se conseguíssemos localizar um armazém de órgãos artificiais. Mesmo que fossem poucos, três ou quatro... mesmo assim se romperia o monopólio detido por Brose. »
— Neste local ? disse, dirigindo-se a Lantano, que se aproximara e se sentara a seu lado. ? Tenciono escavar aqui. Pode perceber porquê. ? E indicou os três lugares já escavados, depois as linhas que desenhara. ? Um pressentimento extra-sensorial ? referiu depois ? diz-me que aqui conseguiremos encontrar um armazém de equipamentos médicos do exército dos E. U. A., aqui precisamente. E talvez tenhamos sorte. Talvez aí haja pâncreas artificiais.
Joseph Adams disse:
— Eu vou embora. ? Era óbvio que tinha desistido; fez um sinal para o seu séquito de robôs; eles e os quatro footemen incumbidos da sua guarda começaram a formar à sua volta e depois o grupo começou a dirigir-se para a porta, uma verdadeira imagem de derrota.
— Espera ? disse Lantano.
Já junto da porta, Adams esperou, com o rosto infeliz ainda desfigurado; o sofrimento e a confusão, dor pela morte do amigo, incerteza quanto ao verdadeiro responsável por tal, e sobre o que devia fazer ? estava confuso e desorientado.
Lantano perguntou:
— Serias capaz de matar Stanton Brose?
Olhando para ele, Adams retorquiu:
— Eu... ? O seu olhar estava neutro, aterrorizado. Seguiu-se um momento de silêncio.
— Não vai poder escapar dele, Adams. Provavelmente nem sequer descendo para um abrigo; nem mesmo assim. Porque os comissários políticos de Brose estarão aí à tua espera. Se fosses para o abrigo com Nick... com o comissário político lá, trabalhando para Brose, e conhecendo provavelmente o que se passa aqui em cima... ? Lantano deteve-se. Não era necessário dizer mais.
? Tens de ser tu a decidir, Adams. ? Concluiu depois Lantano. ? Podes encontrar dentro de ti qualquer razão válida. Vingança pela morte de Lindblom, ou receio pela tua própria vida... pela própria humanidade. Escolhe. As três, se quiseres. Mas tu tens oportunidade de estares com Brose. Podes eliminá-lo. Se bem que as hipóteses sejam francamente reduzidas. No entanto, trata-se de uma oportunidade real. E vê bem a tua situação agora; repara no teu terror. E vai piorar, Adams; é o que eu prevejo, e penso que aqui o Sr. Foote prevê a mesma coisa.
— Eu... eu não sei ? murmurou Adams finalmente.
— Moralmente ? continuou Lantano ? estaria certo. Tenho a certeza disso. O Sr. Foote sabe-o também. Aqui o Nick também o sabe... já. Tu também o sabes, Adams. Não sabes? ? E ficou à espera; Adams não respondeu? Dirigindo-se a Foote, Lantano disse: ? Ele também o sabe. P. um dos raros homens de Yancy que o sabe, que o reconhece. Especialmente agora, depois da morte de Lindblom.
— Matá-lo com o quê? ? exclamou depois Adams.
Lantano respondeu, olhando intensamente para o mapa militar de Foote:
— Eu forneço-te uma arma. Deixa isso comigo. Parece-me que chegámos ao ponto crucial. ? E colocou o indicador no local apontando por Foote. ? Comece as escavações; eu pago o que for preciso. ? E voltou-se novamente para Adams, que se mantinha junto da porta, completamente cercado pelos robôs e pelos footemen. ? Brose tem de ser eliminado. É apenas uma questão de tempo. E quem o fará? E por meio de que dispositivo técnico? ? Dirigindo-se a Foote, disse: ? Que arma recomendaria? Adams vai-se encontrar com Brose na Agência, para os fins desta semana, no seu gabinete. No gabinete de Adams. Portanto, não precisa de a levar consigo; pode já estar lá, escondida, disfarçada; só precisa ter à mão o dispositivo de disparo
«Extraordinário», pensou para si Foote. «Terá sido para isto que vim aqui? A minha vinda aqui era supostamente um pretexto para poder colocar um aparelho de escuta. Por meio do qual poderia obter mais informação sobre David Lantano. Mas em vez disso... fui levado, ou pelo menos convidado, a participar numa conspiração para matar o ser humano mais poderoso do Mundo. E também o homem que tem ao seu dispor a maior coleção de armas avançadas do Mundo. »
«O homem», compreendeu também Foote, «que todos nós receamos terrivelmente. »
«E esta conversa, devido ao aparelho de escuta que coloquei no sofá foi toda gravada. E, por uma ironia incrivelmente louca, pelos meus próprios técnicos. Pelos meus especialistas, na subestação de escuta mais próxima, e depois pela própria sede em Londres. Já é demasiado tarde para o desligar; os dados, esta mensagem tão importante já foi enviada. E, claro, algures na empresa Webster Foote Limited, Brose tem os seus agentes; decerto, mesmo que não seja imediatamente, virá a tomar conhecimento desta conversa, em todo o pormenor, que chegará rapidamente a Genebra.
E toda a gente que se encontra nesta sala», concluiu Foote, «será eliminada. Mesmo que eu diga não; mesmo que Adams e eu digamos não; isso não será suficiente. Pois o velho Stanton Brose não quererá correr qualquer risco; todos teremos de ser eliminados. Porque se acaso... Para se garantir a sua total segurança. »
Foote comentou depois em voz alta:
— Tem a estrutura de ondas cerebrais alfa de Brose. Registradas no monitor de parede em casa de Lindblom. E pode ter-lhe acesso... ? Falava agora para Adams.
— Tropismo ? disse Lantano, e acenou afirmativamente com a cabeça.
— Pois os robôs de Lindblom conhecem-no como sendo o melhor amigo da vítima... ? Foote hesitou e depois continuou insensivelmente. ? Recomendo, portanto, sim; as ondas cerebrais como tropismo. Um dardo convencional de cianeto, de alta velocidade. Programado para ser lançado de um lugar determinado no seu gabinete na Agência no preciso momento em que o seu mecanismo de detonação capte essas ondas cerebrais.
Seguiu-se mais um momento de silêncio.
— Podia arranjar-se esta noite? ? perguntou Lantano a Foote.
— São precisos apenas alguns minutos para colocar o dispositivo de lançamento do dardo ? retorquiu Foote. ? E para programar o mecanismo de detonação. E finalmente para introduzir o dardo.
Adams perguntou:
— Dispõe... dispõe de uma maquinaria dessas? ? Falava para Foote.
— Não ? retorquiu Foote. O que era verdade. Infelizmente. Não o conseguiria arranjar.
— Eu disponho ? disse Lantano.
Foote comentou depois:
— Há centenas desses dardos de cianeto de alta velocidade dos tempos da guerra, desde os tempos em que os assassinos comunistas por aqui andavam ainda a trabalhar, e restam milhares dos de baixa velocidade que podem ser orientados depois de lançados, como o que matou Verne Lindblom. Mas são antigos. Existem, mas não são de confiança; passaram demasiados anos desde que...
— Eu disse ? afirmou Lantano ? que tinha uma. O conjunto completo; dardo, ponto de lançamento, mecanismo de detonação. E em excelentes condições.
— Então ? disse Foote ? , também deve ter acesso ao equipamento de viagem no tempo. Esse equipamento de que está a falar deve ter para mais de quinze ou vinte anos.
Lantano limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça.
— Pois tenho. ? E apertou violentamente as mãos. ? Mas não sei montar o conjunto. Os assassinos comunistas de antes e de durante a guerra que os usavam estavam especialmente treinados. Mas penso que com o seu conhecimento deste campo... ? E olhou para Foote.? Poderia fazê-lo?
— Esta noite? ? disse Foote.
— Brose ? continuou Lantano. ? Vai visitar o gabinete de Adams possivelmente bem cedo amanhã de manhã. Se a instalação for feita esta noite, Brose pode estar morto dentro das próximas doze ou vinte e quatro horas. Claro que a alternativa, escusado será dizer, será a morte de todos os seres humanos presentes nesta sala. Pois dentro das próximas quarenta e oito horas, Brose terá entre mãos um relatório sobre esta conversa. ? E acrescentou: ? E isso graças a um qualquer aparelho de gravação, Foote, que você próprio trouxe; não sei o que é, nem onde está, como ou quando o instalou, mas sei que se encontra na sala. E a funcionar.
— É verdade ? disse finalmente Foote.
— Portanto, temos de continuar ? disse Adams. ? Esta noite, como ele diz. Muito bem, irei ao mansão de Lindblom e arranjarei o registo das ondas cerebrais alfa de Brose; devolvi-o ao robô tipo vi que estava de serviço. ? Hesitou. ? O Gestalt-macher dispunha desses registos. Como é que os arranjou? A pessoa que o programou dispunha desses registos; só Brose estaria nessas condições. Portanto parece-me que tens razão, Lantano. Só Brose poderia ter programado a máquina.
— Alguma vez chegaste a pensar ? disse então tranquilamente Lantano ? que talvez eu tivesse enviado aquela máquina para matar o teu amigo?
Adams hesitou novamente.
— Não sei. Alguém talvez o tenha feito; só sei isso. Só que o computador me forneceu aquele cartão; pareceu-me que...
— Parece-me que foi mesmo você ? disse Foote.
Olhando-o, Lantano sorriu. Não era o sorriso de um jovem; tinha já aquele ar de maturidade e velhice indesmentível. Uma sabedoria elíptica e imensa que se podia dar ao luxo de ser tranquila, de ser tolerante, depois de ter visto e experimentado tantas coisas.
— Você é um índio americano ? disse Foote, percebendo tudo de repente. ? Do passado. Que, por qualquer razão, conseguiu, nessa altura longínqua, apanhar um dos aparelhos modernos de viagem no tempo. Como é que o conseguiu? Lantano. Foi Brose que enviou uma expedição até à sua era? Foi isso?
Passado um momento, Lantano respondeu: ? Foram os objetos feitos por Lindblom. Para os realizar utilizou os componentes dos aparelhos que constituíam a arma baseada nesse princípio; alguns dos objetos não apareceram enterrados, mas sim à superfície, bem à vista. Eu aproximei-me do local; estava a comandar um grupo de guerreiros. Nessa altura não me teria reconhecido; estava vestido de outra maneira. E todo pintado.
O ex-refugiado Nicholas St. James disse:
— Cherokee.
— Sim ? concordou Lantano. ? Pela vossa contagem, século XV. Portanto, tive muito tempo para me preparar para isto.
— Preparar para quê? ? disse Foote.
Lantano retorquiu:
— Você sabe quem eu sou, Foote. Ou pelo menos quem eu fui no passado, em 1982, para ser mais específico. E quem eu serei. Dentro de muito em breve. Os seus homens estão agora a examinar os documentários. Vou poupar-lhe uma pesquisa longa e certamente penosa; pode encontrar-me no episódio dezenove da versão A. Por alguns momentos.
— E quem é que você representa? ? disse Foote.
— O general Dwight Eisenhower. Naquela cena totalmente falsificada, criada por Gottlieb Fischer, na qual Churchill e Roosevelt (ou melhor, os atores que os representam para efeitos didáticos) conferenciam com Eisenhower e tomam a decisão conjunta sobre exatamente por quanto tempo podem adiar a invasão do continente. O dia D, como lhe chamavam. Eu digo uma frase bastante interessante e estúpida... nunca a esquecerei.
— Lembro-me perfeitamente disso ? interrompeu subitamente Nicholas.
Voltaram-se todos para ele.
— Você disse ? referiu Nicholas ? : «Parece-me que o tempo está suficientemente ruim para prejudicar os desembarques e para justificar a nossa incapacidade em estabelecer a ponte. » Foi isso que Fischer o pôs a dizer.
— Sim ? concordou Lantano. ? Foi essa a frase. No entanto, o desembarque fora um êxito. Pois, como mostra a versão B, numa inspirada cena igualmente falsificada para consumo interno das Pac-Peop, Hitler deteve deliberadamente duas divisões de Panzers na área da Normandia para que pudesse resultar na invasão.
Ninguém disse nada durante um momento.
— Será que a morte de Brose ? disse finalmente Nicholas ? vai significar o fim da era que começou com esses dois documentários? ? E dirigiu-se a Lantano: ? Você diz que tem o acesso às...
— A morte de Brose ? disse firmemente Lantano ? representará o momento em que nós, e mais o Conselho de Reconstrução, com o qual já discuti este assunto, decidiremos, em conjunto com Louis Runcible (que desempenha um papel essencial em tudo isto), exatamente o que deve ser revelado aos milhões de refugiados no subsolo.
— Para que voltem aqui para cima? ? perguntou Nicholas.
— Se é isso o que vocês querem ? disse Lantano.
— Diabos me levem ? protestou Nicholas ? , claro que é o que nós queremos; é até o principal. Não é? ? E olhou para Lantano, Adams e depois para Foote.
Foote retorquiu:
— Penso que sim. Concordo. ? E Runcible também concordaria.
— Mas há só um homem ? disse Lantano ? que fala para os refugiados. E esse homem é Talbot Yancy. Que é que ele decidirá fazer?
Adams, balbuciando, disse:
— Não existe nenhum Tal...
— Existe, sim ? disse Foote. Dirigindo-se para Lantano perguntou:
? O que é que Talbot Yancy faria? ? «Creio que tu podes responder a isso com alguma autoridade», disse para si. «Porque tu sabes; e eu sei porque sabes, e tu compreendes que sim. Já não estamos no reino das falsificações; isto agora é real. Aquilo que tu és, aquilo que eu sei, a partir das fotografias tiradas pelo meu satélite. »
Depois de uma pausa, Lantano disse pensativo:
— Talbot Yancy vai anunciar, num futuro muito próximo, se tudo correr bem, que a guerra acabou. Mas que a superfície ainda está radioativa. Portanto, os abrigos têm de ser desativados de uma forma gradual. Com um planejamento estrito, um de cada vez.
— E isso é verdade? ? perguntou Nicholas. ? Serão realmente trazidos aqui para cima gradualmente? Ou trata-se de mais uma...
Olhando para o relógio, Lantano interrompeu-o:
— Temos de começar a trabalhar. Adams, vai buscar o registro das ondas cerebrais alfa na Pensilvânia. Eu vou buscar a arma de que aqui estivemos a falar; Foote, você vem comigo... encontramo-nos com Adams no seu gabinete na Agência, e depois já pode instalar a arma, programá-la e preparar tudo para amanhã. ? Levantou-se, e depois dirigiu-se agilmente para a porta.
— E eu? ? perguntou Nicholas.
Lantano pegou nos mapas militares que Foote trouxera e os entregou pra eles.
— Os meus robôs estão à sua disposição. E um transporte direto que pode levar oito ou nove robôs até à Carolina do Norte. Devem fazer as escavações neste local. E boa sorte ? disse Lantano sobriamente ? , pois daqui para a frente vai estar em homeo... por sua conta. Esta noite temos outros assuntos para tratar.
Foote comentou:
— Quem me dera que não nos tivéssemos precipitado... nisto; quem me dera que pudéssemos discutir o assunto mais a fundo. ? Sentia medo. ? Se ao menos tivéssemos mais tempo ? disse ele.
Dirigindo-se-lhe, Lantano perguntou:
? Acha que temos tempo?
— Não ? respondeu apenas Foote.

26
Com uma impressionante escolta de humanos e robôs à sua volta, Joseph Adams deixou a sala de estar da vila, seguido depois por Foote e Lantano, juntos.
— Foi Brose quem programou o macher? ? perguntou Fõote ao jovem moreno... jovem agora, mas, tal como pudera observar nas cenas animadas captadas pelo satélite, capaz, ou vítima, de uma oscilação etária para qualquer ponto da sua linha de vida.
Lantano retorquiu:
— Uma vez que a máquina foi equipada com o registro de ondas alfa de...
— As quais podem ser obtidas por qualquer homem de Yancy a partir de qualquer dos três computadores principais ? comentou Foote, numa voz que não chegou a Joseph Adams, rodeado como estava pela sua escolta. ? E, Lantano, vamos a ver as coisas como elas são; você sabe isso muito bem. É responsável pela morte de Lindblom? Gostaria de saber antes de continuar com isto!
— E isso tem alguma importância? Faz realmente alguma diferença?
Foote respondeu:
— Sim. Mas eu continuarei de qualquer forma. ? Devido aos perigos que se avizinhavam, à ameaça que agora pesava sobre as suas cabeças; o problema moral não levantava qualquer dificuldade, pelo menos naquele ponto já tão avançado. Desde que instalara o captador audiovisual. Se tinha havido alguma vez alguém vítima da sua ingenuidade profissional...
— Fui eu quem programou o macher ? disse então Lantano.
— Porquê? O que é que Lindblom tinha feito?
— Nada. Na realidade eu estava profundamente em dívida para com ele; sem ele nunca estaria agora aqui. E antes dele eu...? Uma hesitação curtíssima.
? Eu matei Hig.
— Porquê?
— Matei Hig ? disse Lantano num tom de evidência inquestionável ? para deter o projeto especial. Para salvar Runcible. Para que o projeto especial falhasse. O que consegui.
— Mas porquê Lindblom? Hig ainda compreendo. Mas... ? E fez um gesto.
Ao que Lantano respondeu:
— Para isto. Para acusar Brose. Para provocar uma situação que convencesse Adams de que Brose matara o seu melhor amigo, o seu único amigo, tanto quanto sei. Estava à espera que o macher escapasse; nunca pensei que os robôs de Lindblom fossem assim tão eficientes, que tivessem sido treinados para atuar com tanta rapidez. Claro que Lindblom suspeitava de algo, mas talvez vindo de qualquer outra direção.
— E que propósitos serve isto, a sua morte?
— Obriga Adams a atuar. Brose está de pé atrás; Brose, sem ter realmente qualquer motivo racional ou consciente, não confia em mim e evita- -me. Brose nunca se aproxima de mim à distância de uma arma, nem nunca o fará; sozinho nunca o conseguiria apanhar, sem a ajuda de Adams. Já previ o que se vai passar, Brose, Ou morre amanhã quando for ao gabinete de Adams... que é um dos poucos lugares onde ele ainda vai... ou continua, se lhe é possível conceber uma coisa destas, por mais vinte anos.
— Nesse caso ? disse simplesmente Foote ? , você fez o que devia fazer. ? Se é que isto é verdade. ? E não havia forma alguma de o verificar. Vinte anos. Até Brose ter cento e dois anos. «Um pesadelo», disse Foote para si mesmo.
«E ainda não nos livrámos dele; ainda temos de acordar. »
— O que Adams não sabe ? continuou Lantano ? , nem nunca descobrirá, é um fato deplorável que nunca devia ter ocorrido. Lindblom, na altura em que foi morto, estava angustiado por uma decisão que devia tomar; estava finalmente decidido a revelar as reservas morais que Adams levantara ao projeto especial. Sabia que Adams estava prestes a dar a Runcible informação suficiente para que este não se comprometesse, para que este não caísse na armadilha; com base nas informações de Adams, Runcible tomaria públicas as descobertas arqueológicas. Teria perdido as suas terras no Utah, mas não o seu império econômico. Nem a sua liberdade política. Lindblom... era leal, lá bem no fundo, à Agência. A Brose. E não para com o amigo. Eu vi isto, Foote, acredite em mim. Dentro dos próximos dias Lindblom recorreria aos canais (e ele sabia exatamente quais, sabia exatamente porque meios passar) que o poriam em contacto com Brose na sua Festung em Genebra, e o próprio Adams tinha medo que isso acontecesse; sabia perfeitamente que Lindblom tinha a sua vida nas mãos... a vida de Adams. E tudo devido às suas pouco habituais, pelo menos entre os Yancy-men, tendências, aos seus escrúpulos. À sua percepção sobre o fundo nefasto que sustentava o projeto especial, de uma ponta à outra. ? Calou- -se quando Joseph Adams, no seu transporte supercarregado, conseguiu levantar voo, tomando rapidamente altitude e se perdeu no céu noturno.
Foote comentou:
— Se fosse eu, não o teria feito. Não teria matado Hig nem Lindblom nem ninguém. ? Na sua profissão cansara-se depressa de tanta morte.
— Mas ? acrescentou Lantano ? , agora está disposto a participar nisto. Na morte de Brose. Portanto, até mesmo você, num momento determinado, sente, e reconhece, que não há outra hipótese, exceto a liquidação física. Eu já vivi seiscentos anos, Foote; sei quando é necessário matar e quando não é.
«Sim», Foote pensou para si. «É evidente que sabes. Mas», continuou também pensando si, «mas quando terminará isso? ? se perguntou? .Será Brose o último? Quanto a isto não temos quaisquer garantias. »
A sua intuição dizia-lhe que haveria mais mortes. Uma vez encetada aquela forma de pensar, aquela maneira de resolver os problemas, a tendência era para se desenvolver por si própria.
Lantano ? ou Talbot Yancy, como muito em breve ele se começaria a chamar, e não pela primeira vez ? trabalhara séculos para conseguir aquilo. Era óbvio que depois de Brose se podia seguir Runcible ou Adams, ou, como vinha pensando desde o princípio, ele próprio. Quem quer que fosse, como Lantano dissera, «necessário».
«Esse adjetivo; é o favorito », pensou ainda Foote, «daqueles são levados por uma incontrolável sede de poder. »
A única verdadeira «necessidade» era de ordem interior, a de realizarem os seus intentos. Brose era assim; Lantano também; o mesmo acontecia com inúmeros outros homens de Yancy ou pretendentes a Yancy-men; o mesmo se passava com centenas se não mesmo milhares de comissários políticos lá em baixo nos abrigos, governando como verdadeiros tiranos por meio da ligação especial que tinham com a superfície, por meio da gnosis que possuíam, pelo conhecimento secreto que possuíam sobre a verdadeira situação que reinava ali em cima.
Mas com este homem tal ânsia de poder tem-se prolongado por séculos.
«Portanto», pensou para si Foote, enquanto seguia Lantano para o seu transporte, «qual é a ameaça maior quem é o mais perigoso? Lantano/Yancy/‘Pena Vermelha Corredora’, com os seus seiscentos anos, se é que era mesmo esse o seu nome cherokee, que numa certa fase do seu ciclo se tornará no que é agora apenas um boneco sintético inspirado nele, preso a uma mesa de carvalho ? um boneco que (e isso transtornará bom número de pessoas na Agência, e muitos latifundiários) se tomará ao mesmo tempo móvel e real... isso, ou ser dirigido por um ser em decadência, por uma monstruosidade genuinamente senil que se esconde em Genebra, salpicando de saliva os seus planos para aumentar e reforçar os suportes da sua existência ? como é que um homem no seu perfeito juízo pode escolher entre estas duas opções e manter-se são de espírito como antes?
Somos uma raça verdadeiramente amaldiçoada, isso é indesmentível», concluiu Foote de si para si; «O Genesis tem razão. Se é esta a opção que se nos coloca; se só temos esta escolha, se todos temos de nos transformar em instrumentos de um ou de outro, como meros peões que quer Lantano quer Stanton Brose podem mover à sua vontade, segundo os caprichos dos seus grandes desígnios. »
«Mas será isso tudo? », perguntou-se Foote enquanto, pensativo e automaticamente, entrava no transporte e se sentava ao lado de Lantano, que pôs imediatamente os motores a funcionar; o transporte elevou-se para a escuridão, deixando para trás o local contaminado de Cheyenne, com a sua vila meio construída com as suas luzes resplandecentes... que, afinal de contas, sempre viria a ser terminada.
— O conjunto que integra a arma ? disse Lantano ? está no assento de trás. Cuidadosamente embalada no seu invólucro de origem.
Foote retorquiu:
— Então já sabia qual iria ser a minha opção.
— Viajar no tempo ? respondeu apenas Lantano ? é extremamente valioso. ? A sua resposta limitou-se a isso; depois continuaram a viagem em silêncio.
«Há uma terceira escolha», continuou a pensar Foote.
 «Uma terceira pessoa, com um poder imenso, que não é um mero peão nas movido por Lantano e Stanton Brose. Na sua vila de Capetown, bronzeando-se no seu pátio descoberto: Louis Runcible. E se de fato andamos à procura de alguém são de espírito e de decisões acertadas, encontraremos ambas as coisas em Capetown.»
— Vamos logo com isto, tal como disse ? afirmou Foote em voz alta. ? A colocação da arma no gabinete de Adams em Nova Iorque. ? «E depois», concluiu para si, «vou para Capetown. Para junto de Louis Runcible. »
«Estou fisicamente mal», compreendeu depois, «e isso por causa da aura de ‘necessidade’ que rodeia este homem aqui a meu lado... uma realidade política e moral demasiadamente fácil de invocar; afinal de contas, eu vivi apenas quarenta e dois anos e não seiscentos. »
«E assim que chegue a Capetown», continuou a pensar para si Foote, «vou colar os meus ouvidos a receptores de todos os tipos, esperando notícias de Nova Iorque, para saber se Stanton Brose, esse monte de gordura senil e flácida, morreu ? se o golpe vindo do próprio interior da Agência, levado a cabo pelo seu mais jovem (Deus meu, um homem de seiscentos anos era jovem?) e brilhante ideólogo e escritor de discursos. »
«Depois disso talvez eu, e, assim era de esperar, também Louis Runcible, se chegarmos a um acordo, tenhamos já alguma ideia sobre o que deve ser feito. Veremos qual é então a nossa "necessidade". »
Porque naquele momento, só Deus o sabia, não fazia a mínima ideia.
Falando em voz alta disse:
— Você está pessoalmente pronto para, no momento em que Brose estiver morto, reclamar perante o Conselho de Reconstrução toda a legítima capacidade governativa? Uma autoridade planetária que se sobreponha ao general Holt aqui nas Wes-Dem e ao marechal...
— Mas isso não é já um fato adquirido para todos os milhares ou milhões de refugiados? Será que a autoridade do Protetor não foi já estabelecida há anos?
— E os robôs ? continuou Foote. ? Obedecer-lhe-ão? E não a Holt ou a Harenzany? Se isso acontecer?
— Só está se esquecendo de uma coisa: o meu acesso legal ao simulacro, aquela coisa presa à mesa; sou eu quem a programo... sou eu que lhe forneço matéria de leitura através do MegaMegavac 6-V. Portanto, num determinado sentido, já comecei a preparar a transição; fundir-me-ei pura e simplesmente com ele, não pela sua destruição abrupta, mas por... ? Lantano fez um gesto espasmódico. ? A palavra adequada é... fusão.
Foote retorquiu:
— Não lhe vai agradar nada. Estar ali preso àquela mesa.
— Parece-me que esse aspecto pode ser facilmente eliminado. De fato, Yancy pode começar a visitar alguns abrigos. Como fez Churchill nas áreas mais bombardeadas da Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial. Gottlieb não teve de fabricar essas sequências.
Durante os seus seiscentos anos de existência, você limitou a sua aparição em público àquela cena falsificada no documentário de Gottlieb Fischer? A representação de um general americano da Segunda Guerra Mundial? Ou... ? E a sua percepção extra-sensorial estava novamente desperta; detectara algo. ? Já, por mais de uma vez, deteve o poder... poder de amplitude variável... não como este, não com esta extensão planetária, como Protetor supremo...
— Até certo ponto estive já várias vezes ativo. Várias vezes. O meu papel tem tido uma continuidade evolutiva e histórica.
— Algum nome que eu possa reconhecer?
O homem a seu lado respondeu:
— Sim, vários. ? E mais ele não disse, e era óbvio que mais não diria; manteve-se silencioso enquanto o transporte voava por cima da escura superfície da Terra, em direção a Nova Iorque.
— Não há muito tempo ? disse cautelosamente Foote, sem estar verdadeiramente à espera de obter uma resposta à sua pergunta direta ? alguns dos meus melhores interrogadores, trabalhando com refugiados que tinham subido à superfície, conseguiram estabelecer o fato, para mim extraordinário, de que um fraco sinal de TV, diferente do sinal normal proveniente de Estes Park, tinha feito alusão elipticamente a, digamos, algumas irregularidades nalgumas comunicações oficiais, supostamente autênticas...
— Foi um erro meu ? comentou Lantano.
— Então era você. ? Fique portanto jásabendo a origem daquilo. Mais uma vez se mostrava correta a sua previsão.
— Sim, foi um erro meu ? disse Lantano. ? E isso quase custou a liberdade a Runcible, o que para ele significaria a vida. Era evidente que eu tinha de parar... depois de descobrir que Brose acusava Runcible dessas transmissões. O que estava de fato a promover era a eliminação de Runcible pelos agentes de Brose. E não queria isso. Ainda dirigi a transmissão para um dos cabos periféricos... mas tarde demais. Brose, naquele seu cérebro senil, desgastado e louco, já começara a germinar o projeto especial. Os dentes da engrenagem já tinham começado a rodar e era por minha... minha e só minha... culpa; estava obcecado pelo que desencadeara. E nesse momento...
— Conseguiu ? comentou Foote perfidamente ? resolver isso bastante bem.
— Tive de o fazer; a responsabilidade era claramente minha. Tinha transformado uma suspeita latente em Brose numa crise. Claro, escusado será dizer que eu não podia aparecer. Portanto, comecei por Hig. Pareceu- -me a única forma de resolver a questão numa fase já tão avançada; a única maneira de deter aquilo.... e não apenas de conseguir um adiamento.
— E sem, como se diz, se expor.
Lantano retorquiu:
— Era uma situação difícil e perigosa, não apenas para Runcible... ? Olhou para Foote. ? Mas também para mim. Não tencionava permiti-lo.
«Deus me ajude», pensou Foote, «a afastar-me deste homem. E a apanhar sozinho um transporte que me leve sobre o Atlântico e de onde possa contatar com Runcible por videofone para o avisar que estou a caminho.
«Mas, supondo que Runcible não receba a minha comunicação? »
Aquele pensamento angustiante, com todas as suas ramificações, ocupou o espírito de Foote durante toda a viagem através dos E. U. A. até aos edifícios da Agência e ao gabinete de Adams em Nova Iorque.
O gabinete estava mergulhado na escuridão. Adams ainda não chegara.
— Claro que ainda vai demorar um bocado ? comentou Lantano ? a conseguir os registros das ondas alfa. ? Nervosamente, com um aspecto (o que nele era pouco usual) tenso, olhou para o seu relógio e observou o mostrador que dava a hora de Nova Iorque. ? Talvez seja melhor arranjarmos o registro das ondas alfa directamente do MegaMegavac 6- V. Comece a instalar a arma.Ficaram os dois ali parados por momentos, junto à porta do gabinete de Adams no nº 580 da Quinta Avenida.
? Faça isso enquanto eu arranjo os registros. ? E Lantano começou a afastar-se rapidamente.
Foote disse então:
— Não posso entrar. Tanto quanto sei, Adams e Brose têm as únicas chaves.
Olhando-o, Lantano retorquiu:
— O quê? Você não é capaz de...
— Na minha empresa ? disse Foote ? tenho chaves falsas para abrir qualquer fechadura do mundo, por mais difícil e complicada que seja. Mas aqui... ? Não trazia nenhum consigo; estão todos em Londres ou espalhados pelas estações locais por todo o mundo.
— Então o melhor é ficarmos aqui à espera ? disse então Lantano, irritado, mas rendendo-se à evidência; dependiam, portanto, de Adams, não apenas para conseguirem os registros das ondas alfa de Brose, indispensáveis para prepararem a arma, mas pura e simplesmente para penetrarem no local da operação, no gabinete onde o gordo e enorme Brose entraria bem cedo na manhã seguinte; bem antes do seu batente. Um dos poucos locais fora de Genebra onde aparentemente ainda se sentia em segurança. E em Genebra tudo era impossível; teriam de alterar os planos e tentarem aí algo contra Brose, seria o seu fim.
Esperaram.
— Suponhamos ? disse Foote, ? que Adams mudasse de ideia. E não vem.
Lantano olhou-o intensamente.
— Virá. ? Os seus profundos olhos negros ficaram impassíveis à simples menção daquela possibilidade.
— Só vou esperar mais quinze minutos ? continuou Foote com uma tranquila dignidade, sem recear os olhos furiosos que o fitavam ? e depois vou-me embora daqui.
Continuaram depois à espera, minuto após minuto.
E, a cada minuto que passava Foote pensava para si: «Ele não vem; desistiu. E se desistiu temos de partir do princípio de que contatou com Genebra; não podemos pressupor senão que estamos agora aqui meramente à espera dos esbirros de Brose. À espera da morte. »
— O futuro ? disse ele para Lantano ? , não é mais que uma série de alternativas, não é? Umas mais prováveis do que outras?
Lantano grunhiu simplesmente.
— Não é previsível, como uma dessas alternativas futuras, que Adams tenha informado a Brose e se queira safar à nossa custa?
Lantano comentou, tenso:
— Sim. Mas é impossível. A probabilidade é de uma em quarenta.
— Eu tenho as minhas faculdades de premonição extra-sensorial ? retorquiu Foote. «E», pensou para si, « e elas me dizem- que a probabilidade não é nada disso; há hipóteses muito mais sérias de que estejamos agora aqui encurralados como ratos afogando-se num prato de mel. Prontos para sermos exterminados. »
Era uma espera bastante árdua e psicossomaticamente muito desgastante.
E, apesar do que dizia o relógio de Lantano, muito longa.
Foote começava a duvidar poder aguentá-la por mais tempo. De poder
— ou, no caso de Brose deslocar rapidamente os seus agentes de um local para outro, se isso seria realmente preciso.

27
Depois de ter estado na mansão de Verne Lindblom e de ter conseguido o registro das ondas alfa de Stanton Brose, mais uma vez do robô-chefe tipo VI, Joseph Adams, com o seu séquito de robôs pessoais e a escolta fornecida pelo pessoal de Foote, levantou finalmente voo sem destino certo, não se dirigindo portanto para Nova Iorque.
Mas só conseguiu prosseguir os seus intentos durante alguns minutos. Passado esse breve intervalo de tempo um dos Footemen debruçou-se sobre ele e disse-lhe distintamente ao ouvido:
— Dirija-se imediatamente para a Agência em Nova Iorque. Sem demora. Ou matá-lo-ei com a minha pistola de laser. ? Dito isso encostou o cano frio da sua arma à cabeça de Adams.
— Claro, guarda-costas ? exclamou Adams, azedo.
— Tem um encontro marcado com o Sr. Foote e com o Sr. Lantano no seu gabinete ? acrescentou o comando de Foote.
? Faz favor de ir.
Joseph Adams trazia consigo, sob a forma de uma pulseira presa ao pulso esquerdo ? e isso por causa da morte tão violenta de Verne Lindblom ? um dispositivo de alerta de emergência que o opunha em contato direto e imediato com o seu séquito de robôs, agora empilhados a seu lado no transporte onde viajavam. E começou a pensar no que aconteceria se ligasse esse dispositivo; iria o comando de Foote, como especialista que era, matá-lo primeiro, ou iriam os seus robôs, que eram veteranos de guerra, eliminar os quatro Footemen?
Uma questão interessante.
E da qual dependia nada mais nada menos do que a sua vida.
Mas porque não voar para a Agência? O que é que o detinha?
«Tenho medo de Lantano», compreendeu então. «Lantano sabe demais, dispunha de demasiados pormenores sobre a vida de Verne Lindblom e sobre a sua morte. Mas receio, também, Stanton Brose; tenho medo dos dois. Quer do conhecido, que é representado por Brose, quer do desconhecido, que é representado por Lantano. No entanto, no que me diz respeito, Lantano recorda-me mais o profundo e envolvente nevoeiro que me sugou toda a fibra de vida... e só Deus sabe como Brose tem sido horroroso. O seu projeto especial foi o cúmulo da perfídia e do cinismo, ao que se acrescentara a velha maldade já senil, a sinistra simbiose de embuste, maldade e prepotência, tudo envolvido numa aura de autossatisfação medonha. »
E compreendeu- que com Brose só podia piorar.
«À medida que aquele cérebro se for deteriorando mais e mais, à medida que continuarem a ocorrer as minúsculas obstruções dos seus terríveis vasos sanguíneos. À medida que, zona após zona, o seu cérebro for ficando desprovido de oxigênio e de alimento, libertando cada vez mais a arbitrariedade ética e pragmática. »
Os próximos vinte anos sob o degenerado governo de Brose seriam ainda mais sinistros, à medida que o órgão se deteriorasse cada vez mais profundamente, arrastando o mundo consigo. E ele próprio ? todos os homens de Yancy, todos, sem exceção inclusive ele mesmo, seriam devorados e despedaçados pelos caprichos desse degenerado como bonecos pelas mãos convulsivas de seu dirigente meio louco; à medida que o cérebro de Brose se fosse deteriorando, eles como simples extensões que eram de Brose, deteriorar-se- -iam ao mesmo tempo. Santo Deus, mais que visão infernal!
A força sobre a qual Lantano tinha um controle exclusivo ? o tempo ? era precisamente a força que corrompia o tecido orgânico de Stanton Brose. Portanto aqui se deduzia que...
Com um só golpe, consiste em o lançarum dardo de alta velocidade, homeostático, com controle por ondas alfa, essa força corruptora seria varrida das suas vidas. E não era precisamente esse o único motivo racional que justificava a sua ida a Nova Iorque, até ao seu gabinete, onde Foote e Lantano já o deviam esperar.
Mas o corpo de Joseph Adams, sem se ter convencido, lançava mais e mais ondas de terror por todo o sistema nervoso. Lutando desesperadamente para se libertar: por outras palavras, compreendeu de súbito, para escapar.
«Preciso fugir. »
E o mesmo acontecia com Foote, se é que aquele olhar que lhe detectara no rosto significava alguma coisa. Só que não de uma maneira tão intensa como a que ele sentia naquele momento, pois se fosse assim não estaria em Nova Iorque; já se teria ido embora há muito. «E», continuou a concluir, «eu não; não estou preparado como ele para uma coisa destas. »
— Muito bem ? disse Adams para o foote-man que se encontrava atrás de si e que lhe encostara a pistola de raios laser à sua cabeça. ? Fiquei desorientado por um momento; mas agora já está tudo bem. ? E orientou o transporte em direção a Nova Iorque.
Atrás de si, o comando de Foote desviou a pistola de laser, colocou-a no coldre de ombro à medida que o transporte tomava o rumo noroeste.
Com o pulso esquerdo Adams ligou o dispositivo de alerta de morte. As micro-ondas tornou-se imediata e automaticamente perceptíveis para os seus robôs, se bem que os seus sentidos não captassem absolutamente nada. E o mesmo acontecia com os quatro footemen.
Enquanto Adams olhava fixamente o painel de comando à sua frente, os seus robôs, numa breve escaramuça ? quase totalmente silenciosa ? eliminaram os quatro footemen. O ruído cessou, passado um momento tão curto que Adams quase não podia acreditar ter sido suficiente para que tudo se consumasse; abriu-se uma porta traseira do transporte e, com uma boa dose de barulho, os robôs lançaram os corpos dos quatro footemen para o vazio do espaço e para a escuridão da noite, que, parecia agora a Adams, começara para não mais terminar.
Adams afirmou então:
— Não podia ir de maneira nenhuma para Nova Iorque. ? E fechou os olhos. «In nomine Domini», pensou para si. «Quatro homens mortos; que horror. » Ele traria sempre consigo o estigma desse feito; fora ele que o ordenara ? e sem sequer usar as próprias mãos. O que tomara tudo ainda pior. «Mas eles encostaram- em mim aquela arma na minha cabeça, e com o medo enlouqueci; ameaçaram matar-me se não me dirigisse para Nova Iorque, e uma vez que eu não podia fazer uma coisa dessas... Deus nos ajude», concluiu nos seus pensamentos. «Para sobreviver temos de destruir; é esse o preço que temos de pagar, é essa a troca terrível; quatro vidas em troca de uma. »
De qualquer das maneiras estava feito. Portanto, orientou o transporte para sul; dirigia-se agora para sudeste, para as Carolinas, em vez de para Nova Iorque. Que nunca mais voltaria a ver.
Levou horas até localizar o conjunto de luzes que, lá em baixo, no meio da escuridão, assinalavam o local das escavações.
O transporte, comandado por Adams, começou a sua espiral de descida, em direção ao local onde Nicholas St. James, o ex-refugiado, fazia as suas escavações, com o auxílio dos robôs de David Lantano, à procura do hipotético armazém de material médico do exército dos E. U. A., com os seus órgãos artificiais ? se é que existiam de fato, e se era aquele de fato o lugar exato ? bem abaixo da superfície.
Depois de ter aterrado, Adams aproximou-se das escavações. Um pouco afastado para um dos lados, o ex-refugiado Nicholas St. James estava sentado entre caixas de cartão e Adams compreendeu que a localização se mostrara correta. Tinham localizado o depósito do exército dos E. U. A. Era, no calão dos Yancy-men, Dia de Natal.
Levantando os olhos ao aperceber-se da presença do primeiro robô, Nicholas olhou.
— Quem está aí? ? disse. Ao mesmo tempo, os robôs de Lantano deixaram de trabalhar; sem necessitarem de qualquer ordem, dirigiram-se para Nicho-
Ias, para o protegerem; as suas extremidades manuais movimentaram-se em direção às armas que transportavam na zona central. Tudo isso feito lenta e calmamente, e, claro, simultaneamente.
Adams deu uma ordem e os seus robôs rodearam-no também, num movimento igualmente defensivo. Agora os dois homens estavam separados pelos respectivos robôs; os robôs enfrentavam-se ? nenhum dos homens podia ver o outro.
— St. James... lembra-se de mim? Joe Adams; conhecemo-nos na mansão de David Lantano. Vim ver se tinha tido sorte em encontrar o seu órgão artificial.
— Muita sorte ? gritou Nicholas como resposta. ? Mas para que é que os seus robôs se põem assim? Quem é que está lutando com quem e para quê?
— Eu não quero lutar ? respondeu Adams. ? Posso retirar os meus robôs? Fará o mesmo com os seus e dá-me a sua palavra de que não haverá quaisquer hostilidades?
Parecendo genuinamente espantado, Nicholas disse:
— Mas não há guerra nenhuma; foi o que disse Blair, e eu vi os terrenos. Porque é que haveria quaisquer «hostilidades» entre nós?
— Por nenhuma razão. ? Adams fez sinal aos seus robôs; afastaram-se relutantemente, pois, afinal de contas, todos eram veteranos da guerra, da guerra de verdade, que tinham combatido desde que a guerra acabou há 13 anos.
Sozinho, como simples humano, Adams aproximou-se do antigo morador do abrigo.
— Encontrou o órgão artificial de que estava à procura?
Feliz como uma criança, Nicholas respondeu:
— Sim! Três órgãos artificiais, um coração, um rim, encontrei... um pâncreas artificial, e ainda no seu invólucro original... está selado num invólucro de alumínio. ? E mostrou-o orgulhosamente. ? Revestido de plástico para impedir o contato com o ar; está sem dúvida tão bom como quando foi fabricado. O invólucro foi concebido para proteger os elementos por... aqui diz, por cinquenta anos.
— Então conseguiu ? disse Adams. ? «Conseguiste», pensou para si, «aquilo para que vieste até à superfície. O teu serviço está acabado. És um tipo com sorte», pensou ainda. «Se ao menos as coisas fossem assim tão simples para mim. Se ao menos aquilo de que eu necessito, que me faz falta, pudesse caber numa das mãos, pudesse ser visto e inspecionado, se ao menos fosse um objeto palpável, real e sólido... com os terrores correspondentes, igualmente reais e palpáveis. Se fossem limitados, como aconteceu no teu caso, aos receios de não encontrar o que se procura, de não encontrar um determinado objeto, para depois de encontrado esse objeto se dispor dele como se pode dispor de qualquer objeto neste mundo. Mas olha bem para o que eu perdi», pensou para si, mais intensamente ainda. «A minha mansão, o meu emprego; vou ter de desistir da superfície da Terra. Só para não seguir as pisadas de Verne Lindblom. Porque», disse de si para si, «sei perfeitamente que o culpado foi David Lantano, e soube-o desde o momento preciso em que Lantano admitiu que tinha aquela arma na sua posse. Os componentes que constituem esse terrível agente de morte e que todos nós conhecemos; o dardo de ponta de cianeto, de alta, ou, como no caso de Lindblom, de baixa velocidade. E que não se encontra envelhecido mas em perfeito estado de uso... foi o mesmo que atingiu o coração de Verne Lindblom.»
«Um caso extremo, como diria Lantano. Produzido diretamente pelos anos de guerra, uns bons treze anos antes, e obtido por meio do equipamento de viagem no tempo, que também Lantano dispunha. E que vai ser instalado no meu gabinete para matar Brose exatamente como aconteceu com Verne; admito que seja instantâneo e indolor, mas não deixa de ser homicídio, como o que eu fiz com os quatro homens comandados por Foote. E eu estou a deixar tudo. A descer. Se puder. »
— Vai voltar para o seu abrigo? ? perguntou a Nicholas.
— Imediatamente. Quanto menos tempo o velho Souza estiver em congelado, melhor; há sempre a possibilidade de qualquer afecção no cérebro. Vou deixar aqui os robôs de Lantano para continuarem as escavações, para obterem o resto; calculo que Lantano e Foote possam repartir tudo ou, pelo menos, chegarem a qualquer espécie de acordo.
— Parecem ? retorquiu Adams? em condições de chegar a acordo: Foote forneceu o mapa; Lantano os robôs e o equipamento de escavação. Hão- de encontrar uma forma de repartirem o que for encontrado. ?
«O que mais me espanta», pensou para si Adams, «é que possas levar o teu pâncreas sem quaisquer exigências. Eles não te pediram nada em troca. Portanto, não são maus de todo, pelo menos no sentido tradicional e típico que essa palavra tem; eles dois em conjunto, Lantano e Foote, arranjaram uma maneira de, com dignidade e caritas, tu conseguires aquilo de que Brose te privou, bem como a todas as outras pessoas neste planeta, aquilo que ele reservou exclusivamente para si, Brose... que é totalmente desprovido de caritas. »
— Pensei que você ia encontrar-se com eles em Nova Iorque ? disse Nicholas a Adams.
— Eles se safam-. Podem muito bom conseguir os registros das ondas cerebrais alfa de Brose a partir do MegaMegavac 6-V; e hão de aperceber-se disso mais tarde ou mais cedo, quando eu não aparecer... e é muito provável que já o tenham feito. E, se não conseguirem montar o dardo no meu gabinete, se mesmo usando os utensílios e dispositivos de Foote não conseguirem abrir a difícil fechadura da sua porta e não puderem entrar, podem muito bem (e é o que farão) escolher qualquer local apropriado no corredor, que é o único acesso ao gabinete, e que portanto é o único caminho que Brose terá de seguir para chegar ao seu local de encontro. ? Ele sabia, com uma intuição enraizada bem fundo dentro de si, que Foote e Lantano conseguiriam arranjar as coisas de uma maneira ou de outra.
Nunca esqueceriam, porém, que ele não aparecera. Se não conseguissem eliminar Brose, então aquele monte de gordura meio senil destrui-los-ia, e possivelmente o mesmo lhe aconteceria a si, Adams; se conseguissem... bem, numa qualquer altura posterior, devidamente escolhida, quando Foote e Lantano, especialmente Lantano, tivessem chegado ao poder, substituindo Brose, iriam à sua procura. Teriam tempo de sobra para se vingarem. Mais tarde ou mais cedo a coisa dar-se-ia. Qualquer que fosse o resultado da operação que estava naquele momento a ser levada a cabo no seu gabinete da Agência, no nº 580. da Quinta Avenida em Nova Iorque.
— Alguma vez disse a Lantano ? perguntou a Nicholas ? de que abrigo você vinha?
— Claro que não ? respondeu Nicholas. ? Tenho de proteger o pessoal lá em baixo; tenho mulher e um irmão mais novo no... ? parou. ? Mas disse aos ex-refugiados que estão nas ruínas de Cheyenne. Ao tal Jack Blair. ? E encolheu os ombros estoicamente. ? Mas talvez Blair não se lembre; pareceram-me todos um bocado esquisitos ali vivendo naquelas ruínas há tantos tempo. ? Pausadamente disse depois para Adams:
? Eu sou o presidente eleito do abrigo. Tenho, portanto, uma responsabilidade terrível. Foi por isso que me mandaram a mim à superfície para conseguir o órgão artificial. ? Deu meia volta e encaminhou-se para o transporte.
Adams perguntou então:
— Posso ir com você?
— Para...? Nicholas parecia espantado, mas, principalmente, preocupado; o que lhe interessava era o órgão artificial... aquele objeto que ele tinha por missão transportar intacto até ao abrigo.
? Quer dizer que quer ir lá para baixo comigo? Porquê?
— Quero me esconder- ? retorquiu simplesmente Adams.
Depois de uma breve pausa, Nicholas acrescentou:
— Refere-se a Lantano.
— Refiro-me ? acrescentou Adams ? a todo o mundo. Eles eliminaram o meu único amigo; e eu serei o próximo. Mas se estiver lá em baixo e eles não souberem em qual abrigo, talvez... a menos que o seu comissário político diga alguma coisa...
— O meu comissário político ? comentou Nicholas indiferente ? veio aqui da superfície, de Estes Park, depois do fim da guerra. Sabia de tudo. Portanto, vai deixar de haver comissário político no Tom Mix. Pelo menos esse vai deixar de lá estar.
«Mais uma morte», pensou para si Adams. «E também necessária. Como todas as outras; como seria a minha, eventualmente. E no entanto... esta regra, esta necessidade, sempre existiu, e para tudo o que existe. Só que aqui temos um caso especial, um apressar artificial do processo natural. »
— Claro você pode vir ? concluiu Nicholas. ? Será bem-vindo. Pelo que você disse lá na casa de Lantano, sei que aqui é muito infeliz.
— Muito infeliz ? disse Adams como num eco. Sim, aquele era, literalmente, a origem das mortes e da morte em si; o lugar dos infernos, as refúgios da loucura abertas pela guerra que ocorrera treze anos antes ? e ele vivera ali, primeiro no fragor da luta, depois naquela outra forma, mais fria, de combate e perfídia, e agora naquela fase novamente sanguinária; que o afetava e revolvia, desta vez com um tipo de angústia inteiramente novo: desde o momento preciso em que tomara conhecimento da morte de Verne Lindblom.
— Vai ter de se habituar à vida lá em baixo. ? Disse Nicholas enquanto os dois se dirigiam para o transporte ali estacionado. Os robôs de Adams seguiam-nos.
? E tem mais uma coisa, não vai poder levá-los... ? e fez um gesto para o séquito de robôs. ? ... consigo, tem de ir sozinho. Não há espaço: para lhe dizer a verdade, no nosso cubículo compartilhamos até o banheiro...
— Está muito bem ? respondeu simplesmente Adams. Concordaria com o que quer que fosse, desistiria dos seus robôs, e de boa vontade. E... teria todo o prazer em partilhar a sua casa de banho com os que habitassem o quarto contíguo. Não seria algo que iria suportar, mas sim algo de que iria desfrutar. Porque tudo isso o iria compensar de todos aqueles anos de solidão como dominus do seu vasto domínio coberto de imensas florestas e prados, com o seu nevoeiro oceânico; com aquele peganhento nevoeiro do Pacífico.
Os refugiados não compreenderiam uma coisa daquelas. Talvez até o louvassem pela sua capacidade em se adaptar a uma situação de tão pouca intimidade ? depois de ter sido um funcionário, como lhes teria de dizer, do Governo de Estes Park. Tal como os comissários políticos, descera até ao abrigo para compartilhar com eles das suas privações... pelo menos seria o que eles pensariam.
Era irônico.

28
Viajavam agora pelo ar. O transporte, cortando a escuridão da noite, dirigia-se para noroeste, para o ponto contaminado de Cheyenne. Só havia dois homens a bordo. Todos os robôs, quer os de Adams quer os de Lantano, tinham sido deixados para trás para continuarem as escavações. Adams pensava para si se já se teriam iniciado as hostilidades,- se o antagonismo latente entre as duas facções já tinha explodido abertamente. Provavelmente, sim.
Procuravam o túnel vertical que levava ao Tom Mix, e isso mostrava-se um problema algo difícil. Só perto da alvorada é que conseguiram finalmente, utilizando material trazido por Adams da sua mansão na costa do Pacífico, penetrar na dura crosta implantada pelos robôs de Lantano. E Nicholas e Adams já se podiam ter por muito afortunados só por terem descoberto o sítio preciso; no entanto, aí, a perseverança do trabalho dos robôs tinham-nos ajudado. Aquele sítio seria facilmente identificável, mesmo de noite, pela sua aridez temporária, pela doçura da sua superfície artificial, que ressaltava entre os tufos de vegetação. Mas agora a abertura aparecia novamente. O trabalho tão profissional dos robôs fora superado. Mas isso levara horas.
Programando lhe o piloto automático, desfizeram-se do transporte, o qual finalmente desapareceu na escuridão cinzenta da alva. Deixá-lo ali seria uma pista para os possíveis perseguidores. E mesmo assim ainda continuava o problema de voltar a usar o túnel de forma que não pudesse a ser detectado, mesmo com aparelhagens especiais.
Para o conseguirem, Nicholas e Adams tinham engendrado um estratagema. Um fragmento de poeira solidificada, coberta de vegetação, que se ajustava exatamente à abertura do túnel. De resto, era uma tarefa relativamente simples; ele e Adams, já apertados dentro do estreito túnel, por meio de algumas correntes minúsculas, conseguiram colocar adequadamente a camuflagem; a cinzenta luz do começo do dia desapareceu imediatamente e ficaram apenas com as suas lanternas. Segurando fortemente as correntes, prenderam a camuflagem com toda a segurança.
E depois, com grandes precauções, retiraram todas as peças metálicas da camuflagem, as estacas e as correntes... os aparelhos de detecção possivelmente utilizados nas buscas poderiam registrar facilmente a presença do metal; seria esse o tropismo a revelar a forma de fuga que eles tinham utilizado.
Cinco minutos mais tarde, com as botas, Nicholas bateu com força na base do túnel; o comitê de ativistas do abrigo, agindo sob as ordens estritas de Jorgenson, tinha zelado para que a abertura fosse facilmente ultrapassada a partir de cima ? afinal de contas, se Nicholas regressasse, com o seu órgão artificial, teria de utilizar aquele caminho.
Ali apertados no reduzido armazém do piso um, a direção do comitê, Haller e Flanders e Jorgenson, esperavam todos, com a estranha arma laser de fabricação caseira na mão, arma que de resto tinham feito nas próprias oficinas do abrigo.
— Há uma hora que o estamos tentando ouvir ? disse Jorgenson.
? E o resto escavando lá por cima? Seria para reabrir o túnel. Claro que temos um sistema de alarme permanentemente ligado; que nos acordou exatamente às quatro.
— Como é que conseguiu? ? E viu então nas mãos de Nicholas o cilindro de alumínio.
— Ele conseguiu! ? exclamou Haller.
Nicholas comentou apenas:
— Consegui ? estendeu o cilindro a Jorgenson e voltou-se para ajudar Adams a sair do túnel e a entrar na sala já repleta. ? E Dale Nunes? Fez um relatório para...
— Nunes ? retorquiu Jorgenson ? está morto. Um acidente de trabalho. Nas oficinas do piso inferior; ele estava... enfim, a exortar-nos a aumentarmos a nossa produtividade. E aproximou-se demasiadamente de um cabo de alta tensão. E por qualquer razão, já não me lembro bem porquê, enfim, o cabo não estava devidamente isolado.
Haller continuou:
— E um maluco qualquer empurrou Nunes e ele caiu sobre o cabo. E foi-se.E acrescentou.
? Já o enterrámos. Era isso ou ele fazia um relatório lá para cima informando a sua ausência.
— E em seu nome ? continuou Jorgenson ? , como se você ainda aqui estivesse, enviámos um relatório oficial para a superfície, para Estes Park. Pedindo o envio de outro comissário político para substituir o comissário Nunes, e claro, que lamentávamos o que aconteceu...
Seguiu-se um silêncio.
Nicholas disse então:
— Vou levar o órgão artificial a Carol. ? E acrescentou, dirigindo-se a todos:
? Eu não trouxe isto para que conseguíssemos atingir a nossa quota. Trouxe-o exclusivamente por causa do Souza. Para lhe salvar a vida. Mas a quota de produção acabou-se.
— Como? ? inquiriu Jorgenson, intrigado. ? O que é que se passando lá por cima? ? E então viu Adams e compreendeu que Nicholas não regressara sozinho. ? Quem é este? É melhor explicar-se.
Nicholas retorquiu apenas.
— Quando eu tiver paciência.
— Ele ainda é presidente do abrigo ? Flanders a Jorgenson o lembraram então. ? Pode explicar quando muito bem lhe apetecer; Cristo, ele trouxe o pâncreas; quer dizer, e ainda por cima terá de fazer um discurso?
— Estava apenas com curiosidade ? disse Jorgenson com pouca convicção, recuando.
— Onde está Carol? ? perguntou Nicholas enquanto, acompanhado por Joseph Adams, passava através do grupo constituído pelo comitê, dirigindo- -se para a porta do armazém. Ao chegar à porta agarrou o puxador...
A porta estava fechada.
Jorgenson disse:
— Não podemos sair daqui, Sr. Presidente. Nenhum de nós,
— Quem disse isso? ? perguntou Nicholas, depois de uma breve pausa.
— Foi a própria Carol em pessoa ? respondeu Haller. ? Por sua causa. A Praga do Saco/Stink of Shrink ou qualquer das outras doenças e bactérias que o senhor... ? e fez ainda um gesto para Adams ? e este tipo aqui trazem. E todos nós estamos contaminados também, porque estávamos aqui no fundo do túnel. No caso de não ser Nick que tenha detonado o alarme. E se fosse... ? hesitou.
? Bem, julgámos que devíamos estar aqui. Para, mais ou menos, darmos oficialmente uma ajuda. Para o saudarmos. ? E baixou os olhos com embaraço.
? Mesmo que não tivesse trazido o órgão artificial. Porque apesar de tudo tentou.
— Arriscou a sua vida ? disse Jorgenson, concordando.
Com azedume, Nicholas comentou:
— Sob a ameaça de ir pelos ares, enviado graciosamente por vocês; bem como a minha mulher e o meu irmão.
— Talvez sim ? retorquiu Jorgenson ? , mas foi e conseguiu; não se limitou a tentar um pouco para depois regressar e dizer: «Desculpem lá, rapazes; não tive sorte. » E podia tê-lo feito. Diabos, nós não poderíamos ter dito nada. Não poderíamos provar que não tinha tentado o suficiente.Pareciam agora todos embaraçados. «Com sentimento de culpa», pensou para si Nicholas; era mais o que lhe parecia. Envergonhados com a táctica de terror que tinham utilizado para o obrigarem a ir. Agora, compreendeu então, o presidente voltara, com o órgão artificial; o velho Souza viveria novamente e regressaria para o seu posto. «Retomaremos a nossa produção de robôs e conseguiremos cumprir as nossas quotas. » Só que o presidente do abrigo sabe toda a verdade, o que não acontecia quando deixara o abrigo, abrira o túnel e subira à superfície ? para se aperceber que o comissário Nunes estivera a par de tudo desde sempre.
Não admira que o comissário Nunes sempre tivesse querido que as coisas se fizessem através dos canais competentes ? quer dizer, através de si sem contato direto com a superfície.
Não admirava que fosse essencial um comissário político em cada abrigo.
Sempre fora óbvio que o comissário político desempenhava uma função vital para alguém ? presumivelmente para o Governo de Estes Park. Mas só depois de ele próprio ter subido à superfície ? e depois de regressar novamente ? é que se apercebera de como essa função era realmente vital, e a quem beneficiava.
— Muito bem ? disse Nicholas, dirigindo-se ao comitê; largou o puxa- dor da porta, desistiu.
? E que é que Carol tenciona fazer a seguir? Nos submeter a algum processo de descontaminação? ? Para eliminar ameaças e bactérias que ele sabia agora serem inexistentes; era uma enorme tentação revelar-lhes isso... mas conteve-se. Tinha de ser no tempo certo. «Não pode ser precipitado, pois a reação será demasiadamente importante. Haveria demasiada fúria ? justificada. Irão como loucos por aí acima, pelo túnel dos robôs. Com as suas pistolas de laser feitas em casa... e os robôs veteranos massacrá-los-ão à medida que forem subindo. E tudo terá acabado para nós. »
Jorgenson disse então:
— Já contatamos com Carol por meio do intercomunicador e já a informámos de que era o senhor; deve estar a chegar a qualquer momento. Tenha paciência. Souza está congelado; pode esperar mais uma hora. Ela põe- -lhe o pâncreas por volta ao meio-dia. Entretanto temos de tirar toda a nossa roupa, empilhá-la e depois, a seguir à porta, há uma câmara que construímos nas oficinas; atravessamo-la, nus, um a um, e jatos de produtos de vários tipos irão...
Dirigindo-se a Nicholas, Adams comentou:
— Nunca, nunca me apercebi ou sequer calculei. Como eles aceitam estas coisas tão completamente. É incrível. ? Parecia zonzo. ? Devemos ter pensado que se tratava apenas de uma mera aceitação intelectual. Mas isto.
E fez um gesto largo.
— Tudo ? retorquiu Nicholas. ? A todos os níveis emocionais. Até ao mais rasteiro nível animal; até ao estrato mais profundo. ? Começou a despir-se, resignado. Até chegar o momento de lhes dizer não havia outra coisa a fazer; tinham de aceitar o ritual.
Finalmente, levado por qualquer reflexo vindo das profundezas mais longínquas, Adams começou também a despir-se.

29
À uma da tarde Carol Tight realizou ? com sucesso ? o transplante do pâncreas no ainda congelado Maury Souza e depois, utilizando o equipamento médico mais preciso existente no abrigo, reativou a circulação sanguínea, o batimento do coração e a respiração; o coração começou a bombear sangue sozinho, e depois disso, uma a uma, todas as funções artificiais foram sendo cuidadosamente e eficientemente desligadas.
Os registos de EEG e de ECG, durante as horas seguintes, que foram realmente críticas, indicavam que os processos corporais se estavam a desenrolar normalmente; o velho Souza tinha probabilidade ? muito muito alta ? de se recuperar e poder assim viver mais alguns bons e importantes anos.
Tudo havia ido bem. Nicholas, depois de ter estado de pé a observar o velho mecânico junto da sua cabeceira durante algum tempo, vigiando a maquinaria que deitava cá para fora os seus rolos de registo, decidiu-se a sair, satisfeito.
Já era altura de enfrentar novamente a sua pequena grande família, empilhada nos seus dois cubículos, compartilhando uma minúscula casa de banho. Era tempo de regressar novamente à vida do abrigo.
Durante algum tempo.
«E depois», disse de si para si, enquanto caminhava sozinho ao longo do corredor da clínica até à rampa que levava ao seu piso, ao seu piso de residência, «soarão as trombetas ? e ? desta vez erguer-se-ão não os mortos e sim os enganados. E sua carne não será incorruptível, é triste reconhecê-lo, mas altamente mortais, elimináveis. E ademais, os mortos ficarão loucos.
«Um enorme ninho de vespas atiçadas para o ataque. Primeiro este abrigo; mas antes teremos de estabelecer contato com os abrigos vizinhos, teremos de lhes dizer tudo também. Diremos: passem a palavra», pensou para si. «Até que toda a gente saiba. E, finalmente, uma rede universal de vespas enfurecidas; e se se erguerem todas ao mesmo tempo, não haverá exército algum de robôs que as possa deter. Apenas algumas. Talvez um terço. Mas pouco mais. »
No entanto, tudo dependia das emissões de TV durante as vinte e quatro horas seguintes. Do que Talbot Yancy, o real ou o imaginário, tinha para lhes dizer.
Primeiro esperaria por isso.
E quem seria: Brose ou Lantano? Qual dos dois naquele momento estaria ainda vivo e deteria o poder, e qual dos dois morrera?
O próximo discurso de Yancy, a próxima dose de matéria de leitura daria a resposta. Talvez nas primeiras dez palavras pronunciadas por aquele rosto na tela.
«E qual», perguntou para si próprio ao aproximar-se da porta do seu pequeno cubículo, « nós quereremos que ganhe? Adams deve saber melhor do que eu; David Lantano foi bom para mim, ele me facilitou ao me conseguir este órgão artificial. Mas antes disso, os robôs de David Lantano estavam prestes a matar-me... e tê-lo-iam feito se ele próprio, aquele homem e de pele mais clara, como Yancy, não tivesse intervindo para evitar essa tragédia, « ou talvez qualquer outra coisa tivesse aparecido ou viesse a aparecer» nem Lantano nem Brose, mas uma combinação ? Joseph Adam, tinha falado dessa hipótese.« , um novo alinhamento de forças, de Webster Foote com a sua polícia planetária e Louis Runcible com o seu enorme império econômico. Que atacaria a Agência e o seu exército de robôs, muitos dos quais eram já velhos veteranos, ávidos de guerra e prontos a, ao mínimo pretexto, voltarem á serem comandados por Stanton Brose ou por David Lantano.
Abriu a porta do seu cubículo.
Ali estava Rita, à sua espera.
— Olá ? disse ela tranquilamente.
— Olá. ? Ele permanecia ainda desajeitadamente junto da porta, sem saber bem se devia ou não entrar, tentando decifrar a sua atitude.
Levantando-se, Rita disse finalmente:
— É bom ter você de volta. Ver você. Está tudo bem? ? E aproximou-se dele ainda hesitante, também indecisa como ele. ? Então não apanhaste a Praga do Saco. Era do que eu tinha mais medo. Pelo que tenho ouvido e visto na TV e pelo que disseram sobre o Dale Nunes antes de... desaparecer.
Ele envolveu-a então com os braços e abraçou-a.
— Lindo ? disse Rita abraçando-o fortemente também. ? Mas houve mesmo agora um comunicado; temos de ir todos para a Sala Redonda para ouvirmos o Protetor, mas eu não vou... Nunes, como já sabes, está morto, portanto agora não há ninguém que nos obrigue a ir. Portanto, vou ficar aqui. Contigo. ? E apertou-o ainda mais; no entanto, ele libertou-se cuidadosamente dos seus braços. ? O que foi? ? perguntou então ela espantada.
— Vou até à Sala Redonda. ? E encaminhou-se para a porta.
— Qual é o interesse...
Não perdeu tempo em responder; correu pelo vestíbulo até à rampa.
Um momento mais tarde, juntamente com o que não devia ser mais do que um quinto ou um sexto dos ocupantes do abrigo, Nicholas St. James entrou na Sala Redonda. Avistando Joseph Adams, foi ao seu encontro e sentou-se rapidamente a seu lado.
Oenorme tela de TV que ocupava toda a parede do chão ao teto estava já iluminado e fervilhante; mas não mostrava ainda nada.
Rapidamente, Adams comentou:
— Estamos à espera. Houve o que o locutor chamou mesmo agora de um «atraso». ? O seu rosto estava pálido, rígido. ? Ele, quer dizer, Yancy... começou a aparecer; depois a imagem foi cortada. Como se... ? e olhou para Nicholas ? ... como se o cabo tivesse sido cortado.
— Jesus ? disse Nicholas, e sentiu um baque no coração, que depressa retomou, porém, o seu ritmo normal. ? Portanto, ainda estão em luta.
— Já vamos saber ? disse Adams num tom frio e profissional. ? Nãovai demorar muito tempo. ? A sua tensão parecia deliberadamente técnica. E manteve-se assim.
— Ele estava na sua enorme mesa de carvalho? Com a grande bandeira por trás?
— Não consegui ver bem. Muito fragmentadas as imagens; durou... conseguiram mantê-lo.... só quase um segundo. Parece-me... ? A voz de Adams estava baixa, mas era claramente audível pelos refugiados, que, ali em volta, se continuavam a sentar despreocupadamente, resmungando, murmurando, conversando. Eles não sabiam de nada; não faziam a menor ideia do que tudo aquilo significava para eles, para o seu futuro íntimo e coletivo, para as suas vidas individuais e pessoais: ? ...para dizer a verdade, a confrontação não ocorreu às nove horas, hora de Nova Iorque. Aparentemente está a decorrer neste preciso momento. ? Examinou o relógio. ? São seis da tarde na Agência. Portanto, alguma coisa, só Deus sabe ao certo o quê, tem estado a acontecer durante todo o dia. ? Voltou a dar atenção a grande tela de TV. Depois calou-se. Esperando.
— O dardo ? disse Nicholas ? falhou, portanto.
— Talvez. Mas isso não seria o fim de tudo. Lantano não iria pura e simplesmente desistir e morrer. Vamos por partes. Primeiro de tudo, aquela arma, se falhar o alvo, avisa retorna o feedback pra quem atirou. Portanto, onde quer que se encontre, digamos mesmo a milhares de quilômetros de distância, Lantano ficaria imediatamente a par das más notícias. E Foote... de qualquer maneira também devia estar a tramar alguma; espero bem que em Capetown. Se ele ainda tem um resto de inteligência, tenho a certeza de que está em Capetown. E deve ter revelado a Runcible tudo aquilo sobre o projeto especial. E lembremo-nos' disto; naqueles enormes apartamentos de Runcible há milhares e milhares de ex-refugiados que podem já ter sido treinados por Runcible, armados, preparados para... para lutar.
Finalmente, na tela apareceu o rosto enorme e tridimensional, familiarmente colorido, rosado mas ao mesmo tempo moreno, saudável, vigoroso, de Talbot Yancy.
? A todos os Norte Americanos ? disse Yancy com a sua voz grave e firme, imponente mas ao mesmo tempo controlada, simpática mesmo.
? Aqui estou humildemente perante Deus para vos anunciar algo que de tão importante que só posso rezar e pedir ao Todo-Poderoso, agradecendo-lhe o fato de que nós, vós e eu em conjunto, tenhamos vivido o suficiente para ver chegado este dia. Meus amigos... ? A voz estava agora embargada pela emoção; controlada porém pelo estoicismo militar daquele homem. Sempre másculo, mas agora embargado; assim estava Talbot Yancy naquele instante, e Nicholas não podia compreender totalmente o que se passava perante os seus olhos; era o simulacro que desde sempre lhes tinha sido mostrado naquela tela de TV, ou seria...
A câmara recuou. Via-se agora a mesa de carvalho. A bandeira. Como sempre.
Nicholas disse para Joseph Adams:
— Brose -os pegou. Antes deles o terem apanhado a ele. ? Se sentia abalado, apático. Estava tudo acabado.
Enfim, fora assim.E.... talvez tivesse sido melhor assim. Quem podia dizer? Quem alguma vez poderia saber ao certo? E, no entanto, a tarefa verdadeiramente importante estava ainda pela frente. Nada mais nada menos do que a luta total e até ao fim para tentarem escapar retomar a superfície da Terra.
Na tela, com a sua voz tremendo e embargada, Talbot Yancy disse:
— Posso informar-vos hoje, a vós todos que vos encontrais no subsolo, onde desde há tanto tempo trabalhais, ano após ano...
Adams resmungou:
— Diz logo!
— ... sem queixumes, suportando e sofrendo, e sempre com fé... agora, meus amigos, essa fé que durante tanto tempo foi posta à prova pode justi- ficar-se. A guerra, meus amigos, acabou.
Passado um momento ? a Sala Redonda e todos os que por ela se espalhavam estavam em suspenso? Nicholas voltou-se; ele e Adams trocaram um olhar.
— E muito em breve, meus amigos ? continuou Yancy com o mesmo tom pesado e solene ? poderão regressar novamente para o vosso mundo banhado pelo sol. A princípio ficareis chocados com o que ireis ver; não será fácil, e será lento, tenho de vos confessar; o regresso será lento; terá de ser feito a pouco e pouco. Mas já acabou tudo. Os combates terminaram por completo. A União Soviética, Cuba, todos os países do bloco socialista, como um todo, renderam-se, concordaram em...
— É o Lantano ? disse Adams ainda incrédulo.
Levantando-se, Nicholas subiu pela coxia e saiu da Sala Redonda.
No entanto, sozinho, deixou-se ficar em silêncio, pensando. Evidentemente Lantano, com ou sem Webster Foote, tinha finalmente derrotado Brose, ou bem cedo de manhã, com o dardo de alta velocidade ou, se isso não ocorrera então e com essa arma, mais tarde. De qualquer outra forma igualmente profissional. Com um dispositivo dirigido necessariamente para o cérebro, pois era a única coisa que não podia ser substituída. Destruído esse órgão estava tudo acabado. E acabara tudo.
«Brose», compreendeu então, «está morto. Não há dúvidas sobre isso. Estava ali a prova ? aquilo por que estávamos à espera. O único e exclusivo sinal disso que alguma vez poderíamos receber aqui em baixo. » O reino dos homens de Yancy-, aquela fraude de treze anos, ou de quarenta e três, se se começasse a contar a partir dos documentários de Fischer... tudo acabara.
Para o melhor ou para o pior.
Aparecendo a seu lado, Adams deteve-se um momento; num primeiro momento nenhum deles falou, mas finalmente Adams disse:
— Neste ponto tudo depende de Runcible e Foote talvez consigam encurralar Lantano. Talvez o consigam moderar. Aquilo que no antigo governo dos E. U. A. se chamara «o equilíbrio dos poderes». Possivelmente por meio do recurso ao Conselho de Reconstrução; insistindo em que... ? E fez um gesto. ? Só Deus sabe. Espero bem que o consigam. É uma confusão, Nick; dou-lhe a minha palavra... sei isso perfeitamente, mesmo sem estar lá em cima; é uma confusão terrível e sê-lo-á ainda durante muito tempo.
— Mas ? retorquiu Nicholas ? vamos começar a subir à superfície.
Adams comentou:
— Só estou à espera de ver como é que Lantano ou lá quem está a dirigir o simulacro agora, ou como quer que estejam a transmitir agora a coisa... só quero ver como é que conseguem explicar aqueles milhares de quilômetros de relva e de arvoredo. Em vez de uma imensa planície de desertos calcinados e radioativos. ? E sorriu, com um sorriso amargo que durou um momento; o seu rosto e feições que mostravam estar a ser atravessados por dezenas de ideias e emoções desencontradas à medida que ia antevendo, uma após outra, todas as possibilidades: o especialista ideológico, o homem de Yancy que vivia dentro de si, a pessoa que era na verdade, emergia de sob todas aquelas condições, da excitação, do medo, do cansaço.
? Mas o que diabos ? disse então? , sejam «eles» lá quem forem... podem dizer? Conseguirão arranjar uma história plausível? Meu Deus. Eu não tenho uma. Em todo o caso, neste preciso momento.... Lantano talvez ele tenha uma. Você não sabe, caro Nick; até que ponto esse homem é inteligente. Sim, talvez ele saque uma explicação, convincente da manga.
— Você acha então ? disse Nicholas ? que a maior mentira de todas está ainda por vir?
Depois de uma longa e visivelmente atormentada pausa Adams disse:
— Sim.
— E não se podem limitar a dizer a verdade?
— O quê? A verdade? Escute, Nick; quem quer que sejam, qualquer que sejam de entre as artimanhas e manigâncias que possam ter tramado entre si, qualquer que seja o grupo de pessoas que tenha posto as mãos no naipe vencedor, pelo menos temporariamente, depois deste longo dia de... o que quer que tenha acontecido, eles têm uma tarefa, Nick; eles têm agora a tarefa das tarefas. Têm de explicar a um planeta inteirinho coberto por um parque deslumbrante, cuidadosamente tratado por exércitos de robôs. É isso. E não se trata de o explicarem pra você , ou pra mim, ou a um ou outro grupo de ex-refugiados aqui e ali, mas a centenas de milhões de cépticos hostis e furiosos que vão examinar todas as mais ínfimas palavras que eles proferirem nos seus aparelhos de TV; quem quer que as venha debitar, a partir deste momento e por todo o sempre. Você gostaria de ter esta missão, Nick? Como é que acha que se sentiria exatamente se tivesse de fazer uma coisa destas?
— Não faria ? retorquiu apenas Nicholas.
Adams afirmou:
— Eu faria. ? O seu rosto contorceu-se de dor e com o que pareceu a Nicholas ser uma ansiedade pura e genuína. ? Dava tudo para estar dentro da coisa; quem me dera estar sentado no meu gabinete no nº 580. da Quinta Avenida, em Nova Iorque, e dirigir esta transmissão à medida que está a ser lançada no cabo. Esse é o meu trabalho. Era o meu trabalho. Mas o nevoeiro assustou- -me; deixei-o dominar. Mas agora ele podia regressar, que ele já não me apanhava; eu não deixaria. Porque isto tem tanta importância; estávamos sempre a trabalhar para isto, para este momento em que teríamos de prestar contas de tudo. Mesmo sem sabermos. Sempre para isto, e agora não estou lá em cima; agora que chegou finalmente o momento; estou aqui escondido... fugido da maneira mais vergonhosa.
? O seu sofrimento, o sentimento de derrota, o reconhecimento da irremediável distância crescia obviamente, fazia-o gaguejar como se estivesse a ser agredido brutalmente nas profundidades do estômago; como se estivesse fisicamente em queda de tal maneira que não tivesse mais nada a que se agarrar; Adams agarrava-se ao vazio, caindo com fúteis movimentos desesperados.
— Tudo está terminado? disse-lhe Nicholas, sem tentar ser amável. - Acabou para ele pessoalmente e para todos eles. ? «Porque», disse depois de si para si, «eu vou lhes dizer toda a verdade. » Ele prometeu isso a si mesmo.
Olharam um para o outro silenciosamente, Adams pestanejando e na queda onde se perdia cada vez mais. Ambos sem qualquer compaixão ou simpatia. Separados um do outro. Absolutamente.
E, segundo a segundo, o vazio, o espaço que os separava crescia e alargava-se. E finalmente até Nicholas o sentiu, até Nicholas sentiu o toque do que Joseph Adams sempre chamara de... nevoeiro. O nevoeiro interior e mudo.
— Muito bem ? balbuciou Adams. ? Diga você lá a verdade; constrói um pequeno emissor de rádio de ondas curtas e de dez watts e comunique com o abrigo mais próximo, faça passar a sua sacrossanta palavra, mas eu vou regressar para a minha residência' e me fechar na minha biblioteca onde devia já estar neste momento a escrever um discurso. Sem sombras de dúvidas, sem falsas modéstias, o melhor que jamais escrevi em todos estes anos. O auge da minha carreira. Porque é disso que precisamos. Melhor até do que o que Lantano pode fazer; quando preciso mesmo, até a ele ultrapasso... não há ninguém melhor do que eu no meu trabalho; sei-o muito bem. Portanto, veremos, Nick; esperaremos um pouco para vermos quem ganha, quem acredita em quem e no que; quando isto finalmente acabar; você tem a sua oportunidade Nick eu não vou deixar fugir a minha... Isso eu não vou tolerar. ? E olhou para Nicholas.
Rita, resfolegante e excitada, vinha ao encontro do marido.
— Nicholas, acabo de ouvir tudo... a guerra acabou e vamos poder voltar. Podemos finalmente começar a....
— Mas não imediatamente ? disse Nicholas.
— Eles ainda não têm a coisa bem pronta; as condições à superfície ainda não estão perfeitas. ? E devolveu o olhar fixo, doloroso, excitado de Adams.
? Não é verdade, Adams?
? É, ainda não é hora ? retorquiu Adams num tom mecânico e lento, como se se tivesse já ido embora e restasse agora muito pouco dele ainda para responder.
? Mas as condições ficarão, tal como disse, «perfeitas», com o tempo.
? Mas é verdade ? disse, balbuciante ainda, Rita. ? Ganhamos a guerra; as Pac-Peop; eles renderam-se aos nossos exércitos de robôs. Foi o que disse Yancy; foi transmitido para todos os cubículos do abrigo, ouvi tudo lá em baixo. Vendo a expressão no rosto do marido, ela balbuciou então vacilante.
? Não é um mero boato. Era Yancy em pessoa, o Protetor, pessoalmente, foi ele que disse.
Dirigindo-se a Adams, Nicholas disse:
— O que você acha? Diga pra ela que é uma piada.
— Não ? retorquiu vigorosamente Adams, pensando novamente a alta velocidade, pesando todas as palavras de Nicholas.
? Só isso não basta; não será suficiente.
— O nível de radiação ? disse Nicholas. Sentia-se cansado. Mas não em demasia, tendo em conta o que se passara, e também não muito pessimista, nada desesperado mesmo. Apesar do que ele e Adams tinham visto: era aquela, então, a tarefa que se aproximava, passo a passo, depois de toda aquela espera, e depois de todos aqueles anos improdutivos para ambos.
— A radioatividade ? disse Nicholas.
Ao ouvir aquelas palavras, os olhos de Adams brilharam intensamente.
— A radioatividade ? continuou Nicholas ? , depois de todos estes anos, atingiu finalmente um nível razoável. É isto; que tal? E durante todos estes anos foram forçados a dizer... não tinham outra hipótese, não tinham qualquer outra hipótese; era moral e praticamente indispensável dizê-lo.... que a guerra continuava. De outro modo as pessoas, e bem sabemos que é o que sempre fazem, teriam corrido para a superfície.
— Correriam como loucas ? concordou Adams, acenando lentamente com a cabeça.
— Havia sido cedo demais ? acrescentou Nicholas. ? Tal como fazem geralmente, com toda a sua imensa estupidez, e a radiação teria matado a todos eles. Portanto, pensando bem, tinha sido um sacrifício. O mesmo tipo de responsabilidade moral e inerente a um posto de chefia. O que você acha, concorda?
— Com certeza ? disse Adams tranquilamente ? de que havemos de conseguir alguma coisa. ?
Nicholas comentou:
— Eu sei que você também irá conseguir. ?
Só que há que contar com um pequeno «pormenor», pensou para si enquanto passava o braço na cintura de sua esposa para atraí-la para si.
« Só que você não irá a parte alguma.
Porque nós não vamos deixar você partir ».

 

 

                                                                  Philip K. Dick

 

 

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