Biblio "SEBO"
O nascimento dos gémeos
A vida não corria mal ao tio Barbeau, de Cosse, e a prova disso é que pertencia ao conselho municipal da comuna e possuía dois campos que forneciam a alimentação da família para além dum certo lucro. Colhia dos seus prados bom feno e a forragem era considerada de primeira qualidade.
A casa do tio Barbeau era de boa construção, estava bem situada, com um jardim bem tratado, uma excelente vinha e um belo pomar, onde a fruta abundava.
Era um homem enérgico, boa pessoa, muito dedicado à família e bom vizinho. Tinha já três filhos quando a tia Barbeau, concluindo que sem dúvida possuía bens suficientes para cinco e que era preciso despachar- se, pois a idade avançava, tratou de lhe dar dois ao mesmo tempo; dois belos rapazes tão parecidos, que se tornava quase impossível distingui- los um do outro. Ao primeiro deram o nome de Sylvain, mas em breve se tornou Sylvinet, para o distinguirem dum irmão mais velho, que era seu padrinho; ao segundo chamaram Landry.
O tio Barbeau ficou um tanto surpreendido quando, ao regressar do mercado, viu duas cabecinhas no berço.
- Estás a trabalhar tão bem, mulher, que me dás coragem. Eis mais duas crianças para alimentar; isto significa que não posso descansar e que tenho de continuar a cultivar a terra e a criar gado. Está descansada que trabalharei.
A tia Barbeau, repentinamente, desatou a chorar:
- Oh! Meu Deus! Estou tão preocupada! Disseram-me que não havia nada mais penoso que educar gémeos. Fazem mal um ao outro. E que é necessário morrer um para que o outro passe bem.
- Será verdade? - exclamou o pai. - Quanto a mim, são os primeiros gémeos que vejo. Mas está aqui a tia Sagette, que percebe disso e nos vai dizer ao certo como é.
A tia Sagette, interrogada a esse respeito, respondeu:
- Vão por mim; estes gémeos viverão e não serão mais doentes que as outras crianças. Há cinquenta anos que sou parteira e vi nascer, viver ou morrer todas as crianças desta terra. Não é pois a primeira vez que vejo gémeos. Em primeiro lugar, a parecença em nada lhes prejudica a saúde. O que mais acontece é um ser forte e o outro fraco; o que faz que um viva e o outro não; mas olhem para os vossos, são os dois tão belos e bem feitos como se fossem filhos únicos. São lindos e só pedem que os deixem viver. Anime- se, tia Barbeau, há-de ser um prazer para si vê-los crescer, e, se não mudarem, só vocês e aqueles que os virem todos os dias poderão distingui-los, pois nunca vi gémeos tão parecidos.
- Ainda bem! - exclamou a tia Barbeau. Mas ouvi dizer que os gémeos tomam tanta amizade um ao outro que, quando são separados, não podem viver mais e que um deles se deixa consumir pelo desgosto.
- É verdade - respondeu a tia Sagette -, mas oiçam com atenção e não se esqueçam do que uma mulher de experiência vos diz. Assim que os vossos gémeos se comecem a reconhecer, tratem de não os deixar sempre juntos. Levem um para o trabalho enquanto o outro fica em casa. Quando um for pescar, mandem o outro à caça; quando um guardar as ovelhas, o outro que vá guardar o gado na pastagem. Não castiguem os dois ao mesmo tempo; não os vistam de igual; quando um usar chapéu, que o outro use boné. Enfim, por todos os meios que possam imaginar, impeçam-nos de se confundirem um com o outro e de se acostumarem a não passar um sem o outro. Tenho receio de que o que vos estou a dizer vos entre por um ouvido e saia pelo outro; e se assim for, virão a arrepender-se.
A tia Sagette falara tão calorosamente, que acreditaram nela. Prometeram-lhe fazer como dizia e deram-Lhe um belo presente antes de partir.
Quanto aos gémeos, iam crescendo sem terem mais doenças que as outras crianças, e tinham um temperamento doce e pacífico.
Eram os dois louros. Tinham um aspecto saudável, grandes olhos azuis, ombros largos, o corpo bem desenvolvido, e todas as pessoas das redondezas que passavam pelo burgo de Cosse paravam a contemplá-los e comentavam: Mas que belo par de rapazes!
Assim os gémeos desde cedo se habituaram a ser examinados e interrogados e não eram nem envergonhados nem apatetados. Sentiam-se à vontade com toda a gente e, em vez de se esconderem, como fazem os rapazes quando avistam um estranho, respondiam às perguntas sem baixarem a cabeça nem se fazerem rogados. No primeiro momento, não se notava qualquer diferença entre um e outro. Mas, após observados atentamente, reparava-se que Landry era um pouco mais alto e forte, que tinha o olhar mais vivo e um ar mais decidido.
Landry dava ideia de ser mais alegre e corajoso, mas Sylvinet era tão afectuoso e tão fino de espírito que não era menos amado do que o irmão. Durante três meses ainda se pensou em impedi-los de se habituarem demasiado um ao outro. Mas, não se notando qualquer alteração, a pouco e pouco, foi-se esquecendo o prometido. A primeira vez que lhes tiraram as roupas de criança para os levar à missa, vestiram-nos de igual, pois o tecido de uma saia da mãe serviu para os dois fatos.
Depois, mais crescidos, notou-se que tinham os mesmos gostos e quando a tia Rosette os quis presentear com uma gravata a cada um, ambos esco lheram a mesma gravata lilás ao vendedor ambulante que andava com a mercadoria de porta em porta. A tia perguntou-lhes se era por causa de quererem andar sempre vestidos de igual. Sylvinet respondeu que era a cor mais bonita e Landry garantiu que todas as outras gravatas eram feias.
- E a cor do meu cavalo - perguntou o vendedor, a rir -, como a acham?
- Horrível - respondeu Landry.
- Perfeitamente horrorosa - acrescentou Sylvinet.
No decurso do tempo tudo foi ficando na mesma, e os gémeos vestiam-se de uma maneira tão igual que ainda davam mais motivo a serem con fundidos. Além disso, fosse por malícia de crianças, fosse por força das leis da Natureza, quando um partia a ponta do tamanco, bem depressa o outro quebrava o seu do mesmo pé; quando um rompia o casaco ou o boné, não tardava que o outro imitasse tão bem o rasgão que dir-se-ia ter sido ocasionado pelo mesmo acidente.
A amizade foi aumentando com a idade, e no dia em que souberam raciocinar um pouco, os rapazes concluíram que não se podiam divertir com os outros estando um deles ausente; e quando o pai tentou manter um deles junto de si todo o dia, enquanto o outro ficava com a mãe, ambos ficaram tão tristes e tão moles no trabalho que os julgaram doentes, e quando à noite se encontraram de novo, foram passear de mãos dadas, não querendo regressar a casa, de tão felizes que estavam por se encontrarem juntos, e também porque estavam um pouco zangados com os pais por estes os terem separado. Nunca mais se repetiu a tentativa, pois é preciso notar que os pais, os tios, as tias, os irmãos e as irmãs tinham pelos gémeos uma ternura que se aproximava muito de fraqueza. Orgulhavam- se deles, pois eram duas crianças que não eram nem feias, nem parvas, nem más.
De vez em quando, o tio Barbeau inquietava-se um pouco com o hábito de estarem sempre juntos e, relembrando as palavras de Sagette, tentava arreliá-los para lhes provocar ciúmes. Se cometiam alguma falta, puxava as orelhas a Sylvinet, por exemplo, dizendo a Landry: Por esta vez, estás perdoado, porque és o mais sensato. Mas o ver que o irmão fora poupado consolava Sylvinet e Landry chorava como se tivesse recebido o correctivo. Também tentaram dar apenas a um o que ambos desejavam; mas logo a partilhavam se fosse coisa boa para comer; e se era algum brinquedo ou ferramenta, usavam-no em comum. Se elogiavam o bom comportamento dum, não fazendo justíça ao outro, logo o outro ficava contente e orgulhoso por ver o gémeo encorajado e acarinhado, ficando ele também a lisonjeá-lo. Enfim, era tarefa vã querer separá-los, e como geralmente ninguém gosta de contrariar as crianças amadas, mesmo quando é para o seu próprio bem, rapidamente se abandonou o intento.
A família Barbeau aumentava, graças às duas filhas mais velhas, que não paravam de dar à luz belas crianças. O filho mais velho, Martin, um belo e bravo rapaz, cumpria o serviço militar; os genros trabalhavam, mas o serviço não abundava sempre. E, então, houve no país uma série de anos maus para as colheitas. Como o tio Barbeau não era suficientemente rico para conservar toda a família consigo, tornou-se urgente arranjar colocação para os gémeos.
O tio Caillaud, de Priche, ofereceu-se para ficar com um para lhe tratar dosanimais, pois tinha uma gande propriedade para explorar e os seus filhos eram demasiado grandes ou demasiado pequenos para essa tarefa. A tia Barbeau teve medo e sentiu um grande desgosto quando o marido Lhe falou nisso pela primeira vez. Dir-se-ia que nunca previra que tal aconteceria aos gémeos, e todavia sempre se inquietara com isso. O pai estava preocupado por causa deles, e preparou tudo com antecedên cia. Primeiro, os gémeos choraram e passaram três dias a percorrer bosques e prados, e só os viam à hora das refeições. Lamentavam-se, agarrados um ao outro, como se tivessem receio de serem separados à força. Mas o tio Barbeau nunca o faria. A decisão teria de partir deles. Assim, no quarto dia, os gémeos, vendo que não os contrariavam, encontravam-se mais assustados com a vontade paterna do que se tivessem sido ameaçados ou castigados.
- Temos mesmo de aceitar - disse Landry. Resta resolver qual de nós irá, pois deixaram-nos a escolha e o tio Caillaud disse que não podia aceitar os dois.
- Que me importa partir ou ficar - lamentou-se Sylvinet -, se temos de nos separar? Não é a questão de ir viver para outro sítio; se fosse contigo, não me custava nada.
- Mas, no entanto, o que ficar em casa terá mais consolação e menos tristeza do que aquele que não vir nem o irmão gémeò, nem os pais, nem os outros irmãos, nada do que nos causa prazer.
Landry disse isto com um ar decidido; mas Sylvinet desatou a chorar; a ideia de tudo perder e tudo deixar ao mesmo tempo causou-lhe tanta tristeza que não pôde conter as lágrimas.
Landry também chorava, mas não tanto, e assim percebeu que Sylvinet tinha mais medo do que ele de ir viver num lugar estranho e de se dar com uma família que não fosse a sua.
- Olha, mano - disse-lhe -, se conseguirmos
separarmo-nos, é melhor que seja eu a partir. Sabes que sou mais forte que tu e, quando adoecemos eu resisto mais. Por isso prefiro saber-te com a nossa mãe, que te consolará e tratará de ti. E depois também não ficaremos longe um do outro. As terras do tio Caillaud confinam com as nossas, e ver-nos-emos todos os dias. Eu gosto de trabalhar e isso distrair-me-á, e como corro melhor que tu, virei mais depressa encontrar-me contigo logo que o dia acabe.
Acentuam-se as diferenças
Sylvinet não quis aceitar tal sacrifício por parte do irmão e após longa discussão decidiram à sorte, que, mau grado de Sylvinet calhou a Landry.
- Estás a ver que a sorte assim o quer! - disse Landry. - E bem sabes que não se deve contrariar a sorte.
Sylvinet ainda chorou mas Landry não cedeu. Tinha um pouco mais de amor-próprio que o irmão. Depois de ouvir tantas vezes repetir que nunca passariam de meios homens se não se habituassem a separar-se, Landry, que começava a sentir orgulho nos seus catorze anos, tinha vontade de mostrar que já não era uma criança. Conseguiu pois tranquilizar o irmão e, à noite, ao regressar a casa, declarou ao pai que se submetiam ao dever, e já tinham tirado à sorte e que calhara a ele, Landry, levar a pastar os animais de Priche.
O tio Barbeau abraçou os dois filhos, e falou-lhes deste modo:
- Meus filhos, estão na idade da razão, reconheço-o na vossa submissão, e isso alegra-me imenso. Lembrem-se de que quando os filhos dão prazer aos pais também o dão ao bom Deus e que, mais dia menos dia, serão recompensados.
Em seguida levou os gémeos junto da mãe para que esta os felicitasse, mas a tia Barbeau teve tanta dificuldade em reter as lágrimas que nada conseguiu dizer e contentou-se em os abraçar.
O tio Barbeau sabia muito bem qual dos dois era o mais corajoso e qual era o mais afectuoso. Não quis de modo algum arrefecer a boa vontade de Sylvinet, pois via que Landry estava decidido e que só o desgosto do irmão o poderia fazer vacilar.
Chamou Landry antes do nascer do dia, tendo cuidado em não acordar o outro, que dormia ao lado.
- Vamos, pequeno - chamou baixinho -, temos de partir para Priche antes que a tua mãe desperte, pois sabes como tudo isto a entristece. Vou levar-te a casa do teu novo patrão, com as tuas coisas.
- Não posso dizer adeus ao meu irmão? - perguntou Landry. - Ficará aborrecido se partir e não o fizer.
- Se teu irmão acorda e te vê partir, desata a chorar, e acorda a vossa mãe, que chorará ainda mais, por causa do vosso desgosto. Vamos, Landry, cumpre até ao fim o teu dever, meu filho; parte como se nada fosse. Ainda esta noite levo lá o teu irmão, e, como amanhã é domingo, poderás vir visitar a mãe durante o dia.
Landry obedeceu corajosamente e seguiu o pai sem olhar para trás.
A tia Barbeau não estava tão adormecida nem tão sossegada que não ouvisse o que o marido dissera a Landry. A pobre mulher, entendendo as razões do marido, não se mexeu e afastou apenas um pouco a cortina para ver o filho partir. Sentiu um aperto tão grande no coração que saltou da cama para o ir abraçar, mas parou diante da cama dos gémeos, onde Sylvinet dormia profundamente. O pobre rapaz chorara tanto durante três dias que estava morto de fadiga e parecia um pouco febril.
Então, a tia Barbeau, olhando o único dos gémeos que lhe restava, não pôde impedir-se de reconhecer que era aquele que teria visto partir com maior pena. Era o mais sensível dos dois, talvez por ter um temperamento menos forte. O tio Barbeau tinha um nadinha de preferência por Landry, porque ele era mais trabalhador e corajoso. Mas a mãe tinha preferência pelo mais carinhoso e meigo, que era Sylvinet.
Pôs-se então a observar o filho, pálido e desfigurado, e a pensar que seria uma grande pena empregá-lo tão cedo; o seu Landry tinha mais coragem para suportar o trabalho e a separação. É uma criança que tem um grande sentido da responsabilidade, pensava; <<e, no entanto, se não fosse um pouco duro de coração, não teria partido assim, sem voltar a cabeça e sem derramar uma única lágrima. Não teria tido força para dar dois passos sem cair de joelhos implorando coragem a Deus e ter-se-ia aproximado do meu leito, onde eu fingia dormir, nem que fosse só para me lançar um último olhar ou mandar um beijo com a ponta dos dedos. O meu Landry É mesmo um verdadeiro rapaz. Só quer é viver, mexer, trabalhar e mudar de lugar. Mas este, tem um coração de rapariga; é tão terno e tão meigo, que não podemos evitar amálo com toda a ternura.
Assim pensava a tia Barbeau, ao voltar para a cama, sem mais conseguir adormecer, enquanto o tio Barbeau levava Landry através dos prados em direcção a Priche. Quando chegaram a uma pequena colina, de onde já mal se distinguiam as casas de Cosse, Landry parou e voltou-se. O coração apertou-se-lhe e teve de sentar-se, incapaz de andar. O pai fingiu não notar e continuou. Ao fim de um momento, chamou-o suavemente:
- Começa a fazer dia, meu Landry; temos de apressar- nos, para chegarmos antes do nascer do Sol.
Landry levantou-se, e como jurara não chorar diante do pai, susteve as lágrimas que lhe marejavam os olhos e chegou a Priche sem mostrar o seu desgosto, que não era pequeno.
O tio Caillaud, vendo o mais forte dos gémeos, ficou todo satisfeito por o receber. Sabia bem que tal decisão não fora tomada sem pena, e comó era bom homem e muito amigo do tio Barbeau, esforçou-se por acarinhar e encorajar o jovem rapaz. Mandou servir-lhe uma sopa bem quentinha para Lhe dar ânimo, pois bem via o desgosto dele. Levou-o em seguida consigo para tratar dos animais e mostrou-lhe como o costumava fazer. Na verdade, Landry não era novato nessa tarefa, pois o pai tinha um belo par de bois que ele várias vezes havia tratado. Assim que o rapaz viu os grandes bois do tio Caillaud, que eram os mais bem tratados, os mais bem alimentados e os de melhor raça de toda a região e arredores, sentiu-se satisfeito por ter animais tão belos para cuidar. E também estava orgulhoso por mostrar que não era desajeitado nem medricas e que sabia o que lhe estavam a ensinar. Quando chegou a altura de partir para os campos, todos os filhos do tio Caillaud, rapazes e raparigas, grandes e pequenos, vieram saudar o gémeo, e a mais nova das raparigas prendeu-lhe um raminho de flores com fitas no chapéu, porque era o seu primeiro dia de serviço e um dia de festa para a família que o recebia. Antes de o deixar, o pai fez-Lhe as últimas recomendações em presença do novo patrão, ordenando-lhe que obedecesse a tudo e que cuidasse dos animais como se fossem seus.
Landry prometeu esforçar-se ao máximo e foi para o trabalho, onde mostrou boa vontade e eficiência durante o dia. Regressou com grande apetite, pois era a primeira vez que trabalhava tão duramente - e úm pouco de fadiga, que sempre foi um bom remédio contra a tristeza.
Mas o mesmo não aconteceu ao pobre Sylvinet. Nesse dia reinou grande desolação em casa dos Barbeau.
Mal Sylvinet acordou e não viu o irmão ao lado desconfiou da verdade, mas nem queria acreditar que
Landre tivesse partido sem lhe dizer adeus; e, no meio da sua dor, uma enorme zanga começou a dominar-lhe o espírito.
- Mas que Lhe fiz eu e em que lhe desagradei?
- perguntou à mãe. - Fiz tudo o que me aconselhou; quando me recomendou que não chorasse na sua frente, querida mãe, retive as lágrimas, tanto, que a minha cabeça parecia estoirar. Até me prometeu não se ir embora sem me dizer algumas palavras de encorajamento! Queria arranjar umas coisas e dar-lhe a minha navalha, que é melhor que a dele... Não me diga, mãe, que lhas arranjou ontem à noite, sem me dizer nada, e sabia que ele se queria ir embora sem se despedir de mim?
- Cumpri a vontade de teu pai. - respondeu a tia Barbeau.
E disse-lhe tudo o que conseguiu imaginar para o consolar, embora em vão. Só quando a viu cho rar, também, é que se agarrou a ela aos beijos, pedindo perdão por lhe ter aumentado o sofrimento, prometendo ficar com ela para a compensar. Mas, mal ela o deixou sozinho, Sylvinet desatou a correr em direcção a Priche, sem sequer pensar para onde ia, deixando-se arrastar pelo ins tinto.
Teria ido até Priche se não tivesse encontrado o pai, que regressava e lhe agarrou na mão, dizendo:
- Iremos vê-lo à noite. Não deves distrair teu irmão durante o trabalho; aliás, tua mãe está muito triste, e conto contigo para a conformares.
Chegados a casa, Sylvinet agarrou-se de novo às saias da mãe, como uma criancinha, e não mais a largou durante o dia, falando sem cessar de Landry, passando por todos os sítios e recantos onde costumavam estar juntos.
À noite foi a Priche com o pai. Sylvinet estava como louco, iria abraçar o irmão e nem conseguira jantar, tal a pressa de partir. Contava que Landry viesse ao seu encontro e a todo o momento esperava vê-lo aparecer. Mas Landry, embora cheio de vontade de o fazer, não se mexeu. Receava o escárnio da rapaziada de Priche, por causa dessa afeição de gémeos, considerada como uma espécie de doença. De modo que Sylvinet foi encontrá-lo ainda à mesa, a beber e a comer, como se tivesse passado toda a vida com a família Caillaud.
Contudo, mal Landry o viu entrar, sentiu o coração rejubilar de alegria, e se não se tivesse refreado, teria derrubado a mesa e o banco para mais depressa o poder abraçar. Mas não ousou fazê-lo, em vista de todos o fitarem com curiosidade.
Assim, quando Sylvinet se lançou sobre ele, abraçando-o e chorando, Landry, apesar de se sentir feliz, fez sinal ao irmão para se moderar, o que muito espantou e agastou Sylvinet. Como o tio Barbeau se pusera a conversar e a beber com o tio Caillaud, os dois gémeos saíram juntos, pois Landry queria ficar a sós com o irmão. Mas os outros rapazes observavam-nos de longe, e a pequena Solange, a filha mais nova do tio Caillaud, que era esperta e curiosa, foi atrás deles, rindo com ar embaraçado quando eles olhavam para trás, mas nunca os largando de vista.
Embora Sylvinet tivesse ficado admirado como ar tranquilo com que o irmão o recebeu, não pen sou em censurá-lo, de tal modo se sentia feliz por estar com ele.
No dia seguinte, como o tio Caillaud o havia dispensado de todo o serviço, Landry partiu cedo pen sando surpreender o irmão na cama. Mas, embora Sylvinet fosse o mais dorminhoco dos dois, acordou no momento em que Landry transpôs a cancela da casa e saiu a correr, descalço, ao seu encontro.
Foi para Landry um dia de felicidade: sentiu prazer em rever a família e a casa, pois sabia que não os poderia visitar todos os dias. E Sylvinet esqueceu toda a sua dor. Tratou do gémeo e acarinhou-o com toda a dedicação, dando-lhe o que havia de melhor para comer, a melhor fatia de pão, as mais tenras folhas de alface, e depois preocupou-se com a sua roupa, e o calçado, como se ele fosse partir para muito longe e fosse digno de ser lamentado, sem suspeitar que dos dois era ele o mais digno de lamentar, porque era o mais infeliz.
A semana seguinte passou de modo igual, com Sylvinet a visitar Landry todos os dias e Landry a parar para estar com ele um ou dois minutos quando vinha para os lados de Cosse; Landry, aceitando cada vez melhor a sua situação, e Sylvinet aceitando-a cada vez pior, contando os dias e as horas como uma alma penada.
Só havia uma pessoa no mundo capaz de o chamar à razão: Landry. Por isso, a mãe recorreu a ele para tranquilizar Sylvinet, dado que, dia a dia, a tristeza da pobre criança aumentava. Já não brincava e só trabalhava quando obrigado. Mal tiravam os olhos de cima dele, partia sozinho e escondia-se tão bem que não sabiam onde encontrá-lo. Entrava em todos os campos e em todas as ravinas onde costumava brincar com Landry e sentava-se nos troncos onde se haviam sentado juntos; metia os pés nos riachos onde haviam chafurdado como dois patinhos. Ficava contente quando encontrava algumas aparas de madeira que Landry havia cortado com a navalha, ou algumas pedras de que se sevira como malha. Recordava a todo o momento a felicidade perdida. Em nada o preocupava os tempos que estavam para vir. Só pensava no tempo passado e consumia-se num delírio sem fim.
Por vezes julgava ver e ouvir o irmão; então falava sozinho, julgando estar a responder-lhe. Outras, adormecia onde estava, sonhando com ele; e quando acordava, não conseguia reter as lágrimas, chorando de desespero.
Certo dia, vagueando pelas matas de Champeaux, descobriu à beira do riacho um daqueles pequenos moinhos que as crianças costumam fazer com gravetos, e que giram com a corrente da água. Sylvinet reconheceu-o facilmente, por ser obra do irmão. Ficou radiante por descobri-lo, e logo o levou um pouco mais para baixo, onde o riacho fazia um desvio, para o ver girar e recordar o entusiasmo que o irmão experimentara da primeira vez. Depois, partiu, antevendo a alegria que sentiria por ali voltar no próximo domingo com Landry e mostrar-lhe como o moinho era sólido e bem construído.
Mas, entretanto, não conseguiu resistir e voltou lá sozinho, no dia seguinte, encontrando a margem do riacho toda revolvida e calcada por patas de animais que certamente foram beber ao riacho. Tinham pisado o moinho, reduzindo-o a migalhas. Sylvinet ficou desolado e, cismando que naquele dia algo de mau iria acontecer ao irmão, correu até Priche para se assegurar de que ele estava bem. Aí, sabendo que Landry não gostava de o ver por ali de dia, por recear que o patrão se zangasse, contentou-se em observá-lo de longe, enquanto ele trabalhava. Acabou por regressar sem nada lhe dizer, envergonhado do impulso que tivera.
Como se tornara pálido, dormindo mal e quase não comendo, a mãe andava aflita e não sabia o que fazer para o consolar. Tentava levá-lo ao mercado ou mandá-lo às feiras com o pai ou com os tios, mas nada o interessava nem divertia. O tio Barbeau, sem nada lhe dizer, tentava incessantemente convencer o tio Caillaud a tomar os dois gémeos ao seu serviço. Porém, este respondia sempre da mesma forma.
- Mesmo que aceitasse os dois por uns tempos, isso não poderia durar muito, pois não precisaria sempre dos dois. Ao fim dum tempo, você tinha de o empregar de novo. O certo é que, mais cedo ou mais tarde, eles vão ter de se separar. Assim, é melhor começar já a habituá-los a não andarem sempre juntos. Seja razoável, meu amigo, e não dê tanta atenção aos caprichos de uma criança demasiado mimada. O mais difícil está feito, e pode crer que ele se habituará ao resto, se você não ceder.
O tio Barbeau reconhecia perfeitamente que quanto mais Sylvinet via o irmão, mais vontade tinha de o ver. E prometia a si próprio arranjar-lhe emprego na próxima feira, a fim de que, vendo cada vez menos Landry, ele tomasse o hábito de viver como os outros e não se deixasse arrastar por uma amizade que se estava a transformar em obsessão.
Mas ainda era cedo para falar nisso à tia Barbeau, pois, mal se puxava pela conversa, rompia num pranto interminável dizendo que Sylvinet não resistiria a tal provação, de modo que o tio Barbeau não insistia.
Landry, aconselhado pelos pais, não deixava de chamar à razão o seu infeliz irmão. Sylvinet não se defendia, prometia tudo, mas não conseguia dominar-se. Para além da tristeza havia agora um outro sentimento inexplicável: crescia-lhe no fundo do coração um ciúme terrível em relação a Landry. Se por um lado estava contente por ver toda a gente estimá-lo e os novos patrões tratarem-no amigavelmente, por outro, afligia-o e ofendia-o ver Landry retribuir demasiado, segundo ele, essas novas amizades. Não podia suportar que, a uma palavra do tio Caillaud, ele corresse prontamente a cumprir a sua vontade, abandonando pai, mãe e irmão, mais preocupado em não faltar ao dever do que à amizade pela família.
Então, a pobre criança meteu na cabeça que era o único a amar e que o seu afecto já não era correspondido, pois que o irmão tinha encontrado noutro lugar pessoas que lhe agradavam mais.
A fuga
Landry não fazia a menor ideia do ciúme do irmão, pois jamais tivera ciúmes fosse de quem fosse. Quando Sylvinet ia visitá-lo a Priche, Landry, para o distrair, mostrava-lhe os bois e as vacas, o rebanho de ovelhas e as searas do tio Caillaud, pois gostava e apreciava tudo aquilo, não por inveja, mas pelo amor ao trabalho bem feito e pela beleza e perfeição das coisas do campo. Não podia suportar que tudo o que pudesse viver e prosperar fosse abandonado, desleixado ou desprezado. Sylvinet olhava para tudo com indiferença e arreliava-se pelo irmão levar tão a peito coisas que não lhe pertenciam. Irritadiço, dizia a Landry:
- Estás muito afeiçoado a estes animais! Já nem sequer te lembras dos nossos, tão meigos e tão nossos amigos. Vê lá se pediste notícias da nossa vaca, que dá um leite tão bom e me olha com um ar tão triste, pobre animal, quando lhe dou de comer, como se compreendesse que estou sozinho e quisesse perguntar pelo outro gémeo!
- Sim, é verdade, é um bom animal - dizia Landry -, mas olha para estas! Nunca na tua vida viste tanto leite.
- É possível - continuou Sylvinet -, mas a ser um leite tão bom e uma nata tão cremosa como a da Brunette, aposto que não, porque as pastagens de Cosse são melhores do que estas.
Discutiam, assim, por tudo e por nada. De um lado, uma criança contente por trabalhar e viver onde quer que fosse e como fosse e, do outro, a que não podia compreender que o irmão tivesse momentos de alegria e tranquilidade.
Se Landry o levava ao jardim do patrão e, enquanto conversava com ele, inconscientemente, se interrompia para cortar um ramo morto ou arrancar uma erva daninha, Sylvinet zangava-se por ele ter sempre na ideia o trabalho em vez de estar como ele, atento ao menor gesto, à menor vontade do irmão. Não deixava transparecer porque tinha vergonha de se sentir tão sensível a tudo; mas no momento da partida, dizia-Lhe frequentemente:
- Bom, por hoje já chega! Se calhar, até já estás farto.
Landry não compreendia o significado daquelas censuras que o mortificavam e, por sua vez, repreendia o irmão, que não queria nem podia explicar-se.
Se o pobre rapaz tinha ciúmes das mais pequenas coisas que entretinham Landry, sentia-os mais fortemente ainda com as pessoas por quem Landry mostrava afecto. Não suportava ver Landry em franca camaradagem ou de bom humor com os outros rapazes de Priche, e quando o via tomar conta da pequena Solange, censurava-o por se esquecer da irmã Nanette, que no seu entender era cem vezes mais engraçada, mais limpa e mais amável que aquela desenxabida.
Mas, como um coração devorado pelo ciúme perde todo o sentido da justiça, quando Landry vinha a casa, parecia também, segundo ele, ocupar-se demasiado da irmãzinha. Sylvinet censurava-o por só ligar à pequena, acusando-o de se sentir aborrecido na sua companhia.
Enfim, a sua amizade tornou-se pouco a pouco tão exigente e o seu humor tão triste, que Landry começou a sofrer com isso e a espaçar as visitas. As incessantes acusações começavam a saturá-lo, pois dir-se-ia que Sylvinet se sentiria menos infeliz se pudesse fazer o irmão tão infeliz como ele. Landry tentou fazer-lhe compreender que a amizade, quando demasiada, pode por vezes tornar-se um mal. Sylvinet nem quis ouvir, considerando mesmo uma rudeza o que o irmão Lhe dizia; de modo que começou a amuar, e a passar semanas inteiras sem ir a Priche mas morrendo de desejo de o fazer.
Aconteceu que, de palavras em palavras, de zangas em zangas, Sylvinet levando sempre a mal tudo o que Landry lhe dizia para o chamar à razão, o pobre Sylvinet chegou a sentir tanto despeito, que imaginou por momentos odiar o irmão. E, um domingo, saiu de casa para não passar o dia com ele.
Esta maldade infantil entristeceu sobremaneira Landry. Gostava do prazer e da agitação, porque cada dia se tornava mais forte e desembaraçado. Em todos os jogos era o primeiro e o mais esperto. Era, pois, um pequeno sacrifício que fazia pelo irmão abandonar os alegres rapazes de Priche, todos os domingos, para passar o dia inteiro em Cosse, onde não podia de modo algum falar a Sylvinet em irem brincar para o largo, nem sequer passear até um sítio qualquer. Sylvinet, que ficara mais criança de corpo e espírito do que o irmão e só tinha uma ideia, a de o amar e ser amado de igual modo, queria que fossem sozinhos para os seus sítios, como dizia, para os recantos e esconderijos onde tinham brincado a jogos que já não eram próprios da idade: fazer moinhos, armadilhas para os pássaros, casinhas de pedra, etc...
Estes divertimentos já não eram ao gosto de Landry, que preferia agora conduzir um grande carro de seis bois, a montar uma armadilha para os pássaros, ou ir bater-se com os rapazes mais fortes da terra, jogando o chinquilho, visto que se tornara um hábil jogador. Quando Sylvinet consentia em acompanhá-lo, em vez de ir brincar, mantinha-se a um canto sem falar, pronto a aborrecer-se e a lamentar-se, quando Landry parecia demasiado entusiasmado com o jogo.
Landry também já aprendera a dançar em Priche, e embora este gosto tivesse chegado tardiamente, por causa de Sylvinet nunca o ter tido, já dançava tão bem como qualquer outro. Era considerado bom dançarino de bourréI e embora não sentisse ainda grande prazer em ter de beijar as raparigas, como é costume em cada dança, não se furtava a fazê-lo, pois significava que estava a abandonar o estado de criança.
Sylvinet viu-o dançar uma vez, e isso foi a causa de uma das suas maiores brigas. Ficara tão encolerizado por o ver beijar uma das filhas do tio Caillaud, que chorava de ciúmes e achara a coisa perfeitamente inadmissível.
Assim, cada vez que Landry sacrificava a diversão à amizade do irmão, passava um domingo bem pouco divertido, e, apesar disso, nunca faltava, sabendo quanto Sylvinet lhe ficava agradecido, jamais lamentando o aborrecimento que suportava, pois sabia o prazer que proporcionava ao gémeo.
Por conseguinte, quando soube que o irmão, que durante toda a semana procurara discórdia, saira de casa para não se reconciliar com ele, ficou triste e, pela primeira vez desde que deixara a família, chorou escondido com verdadeiro desgosto, pois tinha vergonha de mostrar a mágoa aos pais, temendo entristecê-los.
(1) Dança popular francesa
Se alguém devia sentir ciúmes, esse alguém seria Landry. Sylvinet era o preferido da mãe, e até o tio Barbeau, embora tivesse uma ligeira preferência por Landry, se mostrava mais complacente para com Sylvinet. Este último, sendo o menos forte e o menos razoável, era também o mais mimado e receavam contrariá- lo mais do que ao outro. Tinha mais sorte, pois estava com a família.
Landry fez pela primeira vez este raciocínio e achou o gémeo injusto para com ele. Até aí, o seu coração havia-o impedido de o julgar ou de o acusar, condenando- se a si próprio por ter boa saúde e demasiado amor ao trabalho e por não saber dizer palavras tão doces como o irmão. Mas desta vez não lhe encontrava qualquer desculpa, pois, para não faltar nesse dia, renunciara a uma bela pescaria com os rapazes de Priche, que até lhe haviam prometido um bom divertimento se fosse com eles. Resistira portanto àquela tentação, o que, naquela idade, era digno de louvar.
Chorava quando também ouviu alguém chorar não longe dali. Landry depressa reconheceu a mãe e correu ao seu encontro.
- Oh Meu Deus! Porque será que esta criança me dá tantos cuidados? - perguntava ela a soluçar. - Qualquer dia ainda se mata.
- Minha mãe, sou eu, que lhe dou tanto cuidado? - interrogou Landry, atirando-se-lhe ao pescoço. - Se sou eu, castigue-me, mas não chore. Se a magoei, peço-lhe perdão.
Aí, a mãe reconheceu que Landry não tinha tão mau coração como frequentemente imaginara. Abraçou-o com força, explicando-lhe que era de Sylvinet, e não dele, que se queixava. Pediu desculpa por às vezes ser injusta com ele, mas Sylvinet parecia estar a ficar louco, e por isso estava preocupada, pois ele partira sem comer, antes da alvorada; o dia estava prestes a terminar e ele não regressava; haviam-no visto para os lados da ribeira, e temia que tivesse decidido pôr termo à vida.
A ideia de que Sylvinet pudesse ter tido vontade de morrer assustou Landry, que imediatamente partiu à procura do irmão. Enquanto corria, sentia enorme desgosto e pensava: Talvez a mãe tivesse razão ao censurar-me o mau coração. Mas, neste momento, o de Sylvinet deve estar bem doente para causar esta dor à nossa pobre mãe e a mim.
Correu por todos os lados sem o encontrar, chamando- o sem obter resposta, perguntando por ele a toda a gente sem qualquer resultado. Parou por fim em frente do prado do Juncal e lembrou-se de que havia ali um lugar muito do agrado de Sylvinet. Era uma grande fenda, que a ribeira fizera nas terras, desenraizando dois ou três troncos que ficaram atravessados na água. O tio Barbeau não os retirara porque, da maneira como estavam caídos, ajudavam a segurar as terras.
Landry aproximou-se da fenda, nome que o irmão e ele davam àquela zona do juncal. Não perdeu tempo a ir até ao canto onde tinham feito umas escadinhas para facilitar a descida. Saltou do ponto mais alto para chegar mais rapidamente ao fundo da fenda, porque havia frente à margem da ribeira tanta ramagem e tantas ervas altas que se o irmão se encontrasse ali não o veria.
Entrou impressionado, pois não lhe saía do pensamento o que a mãe lhe dissera. Revistou e tornou a revistar toda a folhagem e bateu todas as ervas, chamando Sylvinet e assobiando pelo cão, que sem dúvida andava com ele, pois também havia desaparecido.
Mas Landry chamou e procurou inutilmente; estava sozinho na fenda. Como era um rapaz esperto, consciente do que fazia, examinou toda a margem para ver se havia pegadas. Foi uma busca triste e também embaraçosa, pois havia algum tempo que Landry não ia àquele sítio; e, embora o conhecesse bem, havia pequenas mudanças. Toda a margem direita estava arrelvada, o junco havia crescido tão abundantemente que não deixava lugar para procurar uma pegada. Todavia, à força de pesquisar o local, Landry encontrou a pista do cão, e até um lugar com ervas pisadas, como se o Finot ou outro cão qualquer se tivesse aí espojado.
Isto deu-lhe que pensar, tendo ido examinar a margem da ribeira. Pareceu-lhe distinguir um sulco ainda fresco, como uma marca feita por um pé ao saltar, e embora não tivesse a certeza, pois também podia ser obra de uma dessas grandes ratazanas de água, que devastam, escavam e esburacam semelhantes locais, ficou tão triste, tão triste, que, sentindo as pernas a tremerem, caiu de joelhos, como a implorar forças a Deus.
Ficou assim durante algum tempo, sem força nem coragem para contar a alguém a sua angústia, fitando a ribeira com os olhos cheios de lágrimas, como à espera de uma resposta sobre o irmão.
Mas a ribeira corria tranquilamente, agitando-se nos ramos que pendiam e mergulhavam nas águas, deslizando com pequenos gorgulhos, como alguém que ri e goza à socapa.
O pobre Landry começou a desesperar, subjugado por aquela ideia de desgraça, tão forte que o deixava sem forças.
Este malvado rio não fala, pensava, é bem capaz de me deixar chorar um ano inteiro sem me devolver o meu irmão. Meu Deus! O meu pobre gémeo estará talvez no fundo da água, a dois passos de mim, sem que eu o possa ver ou encontrar no meio destes ramos e juncos.
Então desatou a chorar e a repreender ao mesmo tempo o irmão, pois nunca tivera tamanho desgosto.
Veio-lhe por fim à ideia ir consultar uma viúva a quem chamavam tia Fadet, e que vivia ao fundo do prado do Juncal, perto do caminho que levava até ao vau. Essa mulher, que não possuía outra terra nem outros bens que não fossem o jardinzito e a casita, ganhava a vida graças aos seus preciosos conhecimentos sobre as virtudes das plantas; e de todos os lados iam consultá-la. Sabia curar feridas, entorses e qualquer outro mal. Tomava ares de importante, pois libertava as pessoas de doenças como dores de estô mago, de barriga, de cabeça, etc.
E assim, com os bons remédios que conhecia e aplicava no corpo, como os soberbos emplastros que aplicava nos cortes e queimaduras; com as beberagens que fazia para tirar a febre, não havia dúvida de que ganhava bom dinheiro e curava muitos doentes que os médicos não conseguiriam salvar com um tratamento normal. Era pelo menos o que ela dizia, e aqueles que curava preferiam acreditá-la do que arriscar-se.
Como no campo ninguém é sábio sem ter um pouco de feiticeiro, muita gente pensava que a tia Fadet sabia mais do que confessava, e atribuíam-lhe mesmo o poder de encontrar coisas perdidas, até pessoas; enfim, pelo facto de possuir grande clareza de espírito e sensatez, pediam-lhe frequentemente conselhos.
Como as crianças acreditam facilmente em todas as histórias que lhes contam, Landry ouvira dizer em Priche que a tia Fadet, com o auxílio de certa semente, que atirava à água e pronunciando certas palavras, podia encontrar o corpo de uma pessoa afogada. Essa semente boiava e deslizava na água, e onde parasse era seguro encontrar-se ali o corpo.
Landry decidiu então ir até à casa da tia Fadet, contar-lhe a sua desgraça e rogar-lhe que fosse com ele até à fenda, para tentar encontrar com a semente o irmão, vivo ou morto.
Mas a tia Fadet, que não executava os seus talentos sem mais nem menos, zombou dele e mandou-o embora com dureza, pois tinha um certo rancor pela sua família, por terem outrora chamado a tia Sagette, em vez dela, aquando do parto dos gémeos.
Landry, orgulhoso por natureza, noutra altura ter- se-ia talvez queixado ou zangado, mas estava tão acabrunhado que nada disse e partiu direito à fenda, decidido a entrar na água, apesar de não saber nadar. Entretanto ao avançar, cabisbaixo e de olhos fixos no chão, sentiu que alguém lhe batia no ombro e, voltando- se, deu de caras com a neta da tia Fadet, a quem todos chamavam a pequena Fadette(1), e tanto por ser o nome de familia como por pretenderem que ela era também um pouco fei ticeira. Todos sabem que o duende, ou o diabrete, é um espírito muito gentil, mas um pouco travesso. O certo é que toda a gente, ao vê-la passar, pensava ver um duende, de tal modo era pequena, magra, desgrenhada e atrevida. Era uma rapariguinha muito faladora e trocista, viva como uma borboleta, curiosa como um pardalito e escura como um grilo.
(') Fadet: duende
Comparar a pequena Fadette a um grilo é subentender que não era bonita, pois esse pobre bichinho é bem pouco agradável ao olhar. No entanto, se nos recordarmos, em criança, de ter brincado com ele, fazendo-o enraivecer e gritar, sabemos que tem um aspecto bem tolo e que dá mais vontade de rir do que irritar. Assim, as crianças de Cosse, que não são mais patetas do que as outras, sabendo observar as semelhanças e encontrar comparações, chamavam à pequena Fadette grilo quando a queriam fazer zangar, e até às vezes por amizade, pois, embora a temessem por causa da sua malícia, não a detestavam porque ela sabia contar toda a espécie de histórias e ensinava-lhes jogos novos que ela própria inventava.
Mas, fossem quais fossem os apelidos que lhe davam, o nome que ela recebera no baptismo era Françoise; a avó chamava-lhe sempre Fanchon.
Como existia há muito uma desavença entre a família Barbeau e a tia Fadet, os gémeos pouco falavam com a pequena Fadette, e nunca haviam brincado de bom grado com ela nem com o irmão mais novo, o saltão, que era ainda mais espigado e mais travesso que ela, sempre pendurado a seu lado, zangando-se quando ela corria sem esperar por ele, atirando-lhe pedras quando se ria dele, numa raiva desmedida. Certas pessoas, e particularmente a família do tio Barbeau, imaginavam que a tia Fadet, o grilo e o saltão lhes trariam azar se travassem amizade com eles. Isso, porém, não impedia a pequena Fadette de abordar os gémeos com toda a espécie de gracinhas e alcunhas, assim que os via, troçando da sua semelhança.
Assim, Landry ao virar-se, um pouco aborrecido por causa da palmada que acabava de receber no ombro, deparou com a pequena Fadette e, não longe dela, Jeanot, o saltão, a coxear, pois era deficiente de nascença.
O primeiro gesto de Landry foi não prestar atenção e continuar caminho, pois não estava com disposição para brincadeiras, mas Fadette disse, tocando-lhe no ombro:
- Olha o lobo! Olha o lobo! Olha o gémeo parvo, meio rapaz, que perdeu a outra metade!
Nisto, Landry, que não estava disposto a ser insultado nem arreliado, deu uma reviravolta e atirou um soco rápido à rapariga, que lhe teria acertado violentamente se ela não se tivesse esquivado, pois o gémeo ia fazer quinze anos e era bastante vigoroso; e ela, que ia fazer catorze e nem doze aparentava, era tão miudinha e tão pequena que parecia quebrar-se ao menor toque. Só que geralmente estava atenta e alerta para aparar os golpes, e o que perdia em força no jogo de mãos ganhava em rapidez e manha. Saltou para o lado tão oportunamente, que, por pouco, Landry não batia com o punho numa grande árvore que ficou entre eles.
- Malvado grilo! - exclamou o gémeo, irado.
- É preciso não teres coração para vires provocar alguém que sofre como eu. Há muito tempo que
andas a arreliar-me, chamando-me meio rapaz. Hoje tenho grande vontade de te partir em quatro, a ti e ao teu maldito saltão, para ver se os dois fazem um quarto de alguma coisa.
- Ora essa, belo gémeo, senhor do Juncal à beira- rio! - respondeu a pequena Fadette, sempre a rir. - Bem parvo és em te zangares comigo, eu que vinha justamente dar- te notícias do teu gémeo e dizer onde se encontra.
- Bom, assim já é diferente! - reconsiderou Landry, mais calmo. - Se o sabes, Fadette, diz-mo e ficarei contente.
- Não há Fadette nem grilo que tenham von tade de te contentar neste momento - replicou a rapariguita. - Disseste-me palermices e ter-me-ias batido se não fosses tão pesado e tão desajeitado. Procura, pois, sozinho a tua metade, já que és tão esperto para o encontrar.
- Bem parvo sou em te dar ouvidos, malvada
rapariga! - exclamou Landry, virando-lhe as costas e recomeçando a andar. - Não sabes mais do q eu onde está meu irmão e não tens mais conhecimento sobre isso do que a tua avó, que é uma grande mentirosa e matreira.
Mas a pequena Fadette, puxando pelo saltão, que conseguira pendurar-se na sua saia toda rota, seguia Landry, sempre a gracejar, dizendo-lhe que sem ela nunca encontraria o irmão. De modo que Landry, não podendo desembaraçar-se dela e imaginando que através de alguma feitiçaria a avó ou até ela, por meio de algum pacto com o duende do rio, o impediriam de encontrar Sylvinet, resolveu sair do Juncal e regressar a casa.
A pequena Fadette seguiu-o até à paliçada do prado e aí, quando ele começou a descê-la, empoleirou- se numas estacas e gritou:
- Então adeus, belo gémeo sem coração, que abandona o irmão. Hás-de fartar-te de esperar por ele, não o verás hoje, nem amanhã, pois lá onde está nunca o encontrarás. Vem aí a tempestade, e ainda esta noite hão-de cair árvores ao rio, e o rio há-de transbordar e arrastar Sylvinet para longe, tão longe que nunca mais o verás.
Todas estas más palavras, que Landry escutava contrariado, provocaram-lhe um suor frio por todo o corpo. Não acreditava nelas, mas, como ouvira dizer que a família Fadet mantinha pactos com o diabo, não podia ter a certeza que tudo era mentira.
- Vamos, Fanchon - insistiu Landry, parando -, queres ou não deixar-me em paz ou dizer-me se é verdade que sabes alguma coisa do meu irmão?
- E que tenho eu em troca se, antes da chuva começar a cair, te fizer encontrá-lo? - inquiriu Fadette, esticando-se nas estacas, e abanando os braços como se quisesse levantar voo.
Landry hesitava no que prometer-lhe e começava a acreditar que ela o queria enganar para lhe arrancar algum dinheiro. Mas o vento que soprava nas árvores e a trovoada que ameaçava, começavam a inquietá-lo. Não que temesse a tempestade, mas porque viera tão de repente e de uma maneira que não lhe parecia natural. É possível que, no seu tormento, Landry nem a tivesse sentido aproximar. Mas, de facto, só reparara nela quando a pequena Fadette lha anunciara, e imediatamente os seus horriveis cabelos pretos, saindo da touca, que trazia sempre mal apertada e torcida, se ergueram como crinas; o boné do saltão foi levado por uma rajada de vento, e só com grande custo Landry conseguiu impedir o seu de voar também.
E depois o céu, em dois minutos, tornou-se negro, e Fadette, em cima das estacas, parecia-Lhe ter o dobro do tamanho; enfim, numa palavra, Landry teve medo.
- Fanchon! - disse -, entrego-me a ti se me entregares o meu irmão. Talvez o tenhas visto; talvez saibas onde está. Sê boa rapariga. Não sei que satisfação podes ter com a minha aflição. Mostra-me que tens bom coração e acreditarei que vales mais do que esse teu ar gozão.
- E porque hei-de ser eu boa rapariga, se me chamas malvada quando nada te fiz? - perguntou.
- Porque hei-de ter bom coração para com dois gémeos orgulhosos como pavões, que nunca me demonstraram a menor amizade?
- Vá lá, Fadette - insistiu Landry. - Queres que te prometa alguma coisa? Diz-me o que desejas e dar-te-ei. Olha, por exemplo, queres a minha navalha nova?
- Mostra-ma! - disse Fadette, saltando para ao pé dele.
Quando viu a navalha, que não era má e pela qual o padrinho de Landry pagara bom preço, ficou um momento tentada; mas logo, achando pouco, perguntou se não lhe dava antes aquela galinha branca, do tamanho de uma pomba, que tinha penas muito bonitas.
- Não te vou prometer a galinha branca, porque é da minha mãe - respondeu Landry -, mas vou pedi-la para ti. Penso que ela não ta negará, pois ficará tão contente por poder tornar a ver Sylvinet, que nada lhe parecerá demasiado.
- É mesmo? - inquiriu, a pequena Fadette. E se eu quisesse o vosso cabrito com o focinho preto, a tia Barbeau também mo dava?
- Meu Deus! Como levas tempo a decidir-te, Fanchon! Olha, se o meu irmão está em perigo e tu me conduzires já até ele, não haverá em nossa casa nada que o meu pai e a minha mãe não te quererão dar em agradecimento, tenho a certeza.
- Bom, depois veremos, Landry - rematou Fadette, estendendo a mãozita seca ao gémeo, para que ele a apertasse em sinal de acordo, o que ele fez não sem hesitar um pouco, pois, naquele momento, ela tinha uns olhos tão brilhantes que parecia um autêntico diabrete. - Não te digo agora o que quero de ti, ainda não o sei; mas lembra-te bem do que me estás a prometer, e se falhares, toda a gente saberá que não se pode ter confiança na palavra do gémeo Landry. Agora vou-me embora, e não te esqueças de que não te exigirei nada até ao dia em que decidir ir ter contigo para que me dês o que me aprouver.
- Até que enfim, Fadette! Está prometido e combinado - disse Landry, apertando-lhe a mão.
- Muito bem! - exclamou ela, com um ar orgulhoso e contente. - Volta para trás e segue sempre a margem do rio; desce-a até ouvires um balido, e quando vires um cordeiro castanho, logo verás o teu irmão; se tal não acontecer, a tua promessa fica sem efeito.
Então o grilo, levando o saltão nos braços, sem reparar que isso não lhe agradava nada e se debatia como uma enguia, saltou para o meio das moitas e Landry deixou de a ver.
Não perdeu tempo a pensar se a pequena Fadette estava a brincar, e numa rápida corrida chegou ao fundo do Juncal; seguiu-o até à fenda e ia a passar diante dela, sem descer, pois tinha quase a certeza de que Sylvinet não se encontrava ali, quando, ao afastar-se, ouviu um cordeiro balir.
Deus da minha alma, pensou, aquela rapariga avisou-me; ouço o cordeiro, o meu irmão também lá deve estar; mas em que estado, não sei.
Saltou para a fenda, mas o irmão não estava lá. Seguiu o curso da água, e sempre a ouvir os balidos, Landry avistou na outra margem o irmão sentado, com um borreguinho ao colo que, de facto, era castanho, desde o focinho até à ponta da cauda.
Como Sylvinet parecia estar bem, não apresentando sinais anormais, Landry ficou tão contente que agradeceu interiormente a Deus aquela felicidade, sem se lembrar de lhe pedir perdão por ter recorrido à ciência do Diabo para encontrar o irmão. Quando ia chamar por Sylvinet, que ainda não o vira, nem parecia ouvi-lo, por causa do barulho da água que naquele sítio batia com força nas pedras, parou para o observar, espantado por o encontrar como a pequena Fadette previra, no meio das árvores que o vento fustigava furiosamente e imóvel como uma pedra.
No entanto toda a gente sabia o perigo que aquele local representava quando se levantavam fortes ventanias. Todas as margens estavam ocas por baixo e não havia tempestade que não abatesse sempre alguns amieiros, mais curtos de raizes, e que podiam cair muito facilmente em cima de uma pessoa, sem avisar. Mas Sylvinet, sem ser mais tolo nem mais louco que qualquer outro, não se apercebia do perigo. Fatigado de correr todo o dia e de andar à aventura, se, por felicidade, não se afogara na ribeira, mergulhava agora no desgosto e no despeito, quedo que nem um cepo, com os olhos fixos na ribeira, o rosto pálido como cal, a boca entreaberta, os cabelos desgrenhados pelo vento, sem ao menos atentar no borreguinho, que encontrara perdido num prado e do qual tivera pena. Tinha-o enfiado na camisa para o levar a casa; mas, no caminho, esquecera-se de perguntar a quem ele pertencia. Segurava-o nos joelhos e deixava-o berrar sem o ouvir, apesar do balido desolado do pobrezinho e dos olhares que lançava em redor, espantado por não ser ouvido por ninguém da sua espécie e não reconhecendo nada do que o rodeava, naquele lugar sombrio, diante de um grande curso de água que lhe causava medo.
Se Landry não estivesse separado de Sylvinet pelos quatro ou cinco metros de largura da ribeira, que em certos sítios também era tão profunda, teria por certo saltado sem mais pensar, agarrando-se ao pescoço do irmão. Mas como Sylvinet ainda não reparara nele, teve tempo para pensar na maneira como o despertaria daquela prostração e como, pelo convencimento, o levaria para casa, pois, se ele não tivesse vontade de regressar e se afastasse para outro local, Landry iria perder tempo a procurar um caminho para ir ter com ele, sujeitando-se a perdê- lo de novo.
Tendo pensado durante um bocado, Landry perguntou-se como agiria o pai, reflectido e prudente, em semelhante circunstância. Lembrou-se que o tio Barbeau actuaria dum modo suave e sem nada dar a entender, ocultando a Sylvinet a angústia que lhe havia causado e fazendo-o sentir-se arrependido, desencorajando-o de uma nova tentativa.
Landry pôs-se então a assobiar distraidamente como se estivesse a chamar os melros para os fazer cantar, o que fez Sylvinet erguer a cabeça. Ao ver o irmão, ficou todo envergonhado e levantou-se rapidamente, julgando não ter sido visto. Mas aí Landry fez como se tivesse reparado nele apenas naquele momento e disse-lhe num tom de voz despreocupado:
- Eh, Sylvinet, então estás aí? Esperei por ti toda a manhã, e como não havia meio de apareceres, vim dar um passeio por aqui. Até pensava encontrar-te já em casa, mas, enfim, já que aqui estás, voltemos juntos. Vamos descer a ribeira, um de cada lado, e juntamo-nos no vau das Roulettes, em frente à casa da tia Fadet.
- Vamos. - Disse Sylvinet, agarrando o cordeiro.
E os dois irmãos desceram a ribeira não olhando um para o outro, como que receosos de deixarem transparecer a dor que sentiam por estarem zangados e o prazer que tinham por se terem encontrado. De vez em quando, Landry, sempre para parecer que não havia qualquer problema entre ambos, dizia-lhe uma ou duas palavras. Perguntou onde apanhara aquele borreguinho castanho, mas Sylvinet não queria adiantar muita coisa, pois não podia confessar que fora até muito longe, sem saber o nome dos sítios por onde passara. Então, Landry, vendo-o atrapalhado, ajudou- o:
- Contas-me tudo mais tarde, o vento está muito forte e não é bom estar debaixo das árvores perto da água. Olha, louvado seja Deus! Está a começar a chover e assim, talvez o vento não tarde a abrandar.
E pensava para si: É mesmo verdade! O grilo afirmou-me que o encontraria antes da chuva começar. Essa rapariga sabe mais do que nós.
Mas também se lembrou que passara um bom quarto de hora a explicar-se com a tia Fadet, enquanto lhe pedia auxílio e ela lho recusava, a pequena Fadette, que apenas o vira sair de casa, podia muito bem ter visto Sylvinet durante esse tempo. Mas como saberia ela o que o fazia sofrer quando o abordara, se não estava presente enquanto ele falou à velhota? Desta vez não lhe veio à ideia que perguntara pelo irmão a várias pessoas e que alguém pudera falar nisso à pequena Fadette; ou, ainda, que a miúda podia ter escutado a conversa com a avó, escondida como era seu hábito para saber tudo o que lhe podia satisfazer a curiosidade.
Por seu turno, o pobre Sylvinet pensava igualmente na maneira de explicar o seu mau comportamento em relação ao irmão e à mãe. Não sabia o que inventar, ele, que nunca escondera coisa alguma ao irmão. Por isso, sentia- se pouco à vontade passado o vau, pois chegara até ali sem encontrar solução para sair da encrenca.
Assim que chegou à margem, Landry abraçou-o com maior ternura do que era costume, mas evitou interrogá- lo, pressentindo que ele não saberia que responder, e levou-o para casa, falando-lhe de outros assuntos menos daquele que Lhe ia no coração.
Ao passarem pela casa da tia Fadet, Landry tentou avistar a pequena Fadette, pois gostaria de lhe agradecer, mas a porta estava fechada e não se ouvia outro ruído além da voz do saltão, que gritava porque a avó lhe batera, o que sucedia todas as noites, tivesse ele merecido ou não.
Sylvinet apiedou-se ao ouvir chorar o garoto e disse ao irmão:
- Que casa horrível! Só se ouvem gritos e pancadas. Bem sei que o saltão é um traquinas terrível, e o grilo não é melhor, mas aqueles miúdos são infelizes por não terem pais e por dependerem de uma velha feiticeira, que nunca lhes perdoa nada.
- Não é como em nossa casa! - acrescentou Landry. - O pai e a mãe nunca nos bateram, e até quando nos ralhavam, por causa das nossas traquinices de crianças, era com tanta doçura e firmeza ao mesmo tempo, que os vizinhos nada ouviam. Há gente assim, demasiado feliz, que por vezes nem sabe dar o valor ao que teve ou tem. E a pequena Fadette, que é uma criança infeliz e maltratada, está sempre a rir e nunca se queixa seja do que for!
Sylvinet compreendeu a censura e sentiu arrependimento pelo erro cometido. Já de manhã, por várias vezes se sentira invadido pelo remorso e com vontade de regressar, mas a vergonha impedira-o. E nesse momento não conseguiu dominar-se e lacrimejou, mas o irmão pegou-lhe na mão, dizendo:
- Vem aí uma grande chuvada, Sylvinet; vamos depressa para casa.
Desataram então a correr, com Landry a tentar fazer rir Sylvinet, que se esforçava por lhe agradar.
Contudo, quando iam a entrar em casa, Sylvinet mostrou certa hesitação, com temor da reprimenda do pai. Mas o tio Barbeau, que não levava as coisas tão a sério como a mulher, limitou-se a gracejar com a escapadela. A tia Barbeau, a quem o marido tinha dado a lição, tentou esconder o tormento por que passara. Mais tarde, quando ocupada a secar os gémeos diante do lume e a dar-lhes de comer, Sylvinet reparou que a mãe estivera a chorar e que, de vez em quando, o fitava com ar preocupado e desgostoso. Se estivessem sozinhos, ter-lhe-ia pedido perdão, lançando-se-lhe nos braços, e ela acabaria por ficar consolada. Mas o pai não gostava dessas pieguices, e o rapaz viu-se obrigado a ir para a cama, após o jantar, pois a fadiga vencera-o por completo. Não tinha comido nada em todo o dia, e mal acabou de engolir o jantar sentiu-se como que embriagado e teve de se deixar despir e deitar pelo gémeo, que permaneceu a seu lado, sentado na beira da cama e segurando- lhe a mão.
Quando o viu bem adormecido, Landry despediu-se dos pais, não se apercebendo que a mãe o abraçava com mais ternura que das outras vezes. Continuava porém a acreditar que ela não podia amá-lo tanto como ao irmão, o que achava normal, não sentindo por isso ciúmes, em vista do temperamento mais afectuoso do gémeo. Aceitava o facto por respeito à mãe e por amor ao Irmão, que tinha, mais do que ele, necessidade de carinho e consolo.
Na manhã seguinte, Sylvinet correu para a cama
da tia Barbeau, antes de ela se levantar, e, abrindo o coração, confessou o seu arrependimento e a sua vergonha. Disse como se sentia infeliz de há uns tempos para cá, não tanto por estar separado de Landry, mas sim porque imaginava que Landry já não o amava. Mas quando a mãe o interrogou sobre essa injustiça, não soube explicar os motivos, pois resultavam de uma espécie de doença que não podia evitar. A mãe compreendia-o melhor do que desejaria dar a entender, porque ela própria ficara várias vezes ressentida ao ver Landry tão tranquil na sua coragem e virtude. Não podia contudo deixar de reconhecer que os ciúmes são maus conselheiros em todos os amores, mesmo nos que Deus mais abençoa, e não encorajou Sylvinet. Fez- lhe ver o desgosto que causara ao irmão e a bondade deste por não se queixar nem se mostrar chocado. Sylvinet, arrependido, também o reconheceu e concordou que o irmão era muito mais franco que ele. Parecia sincero ao prometer tentar curar-se daqueles ciúmes terríveis.
Mas, apesar de ter apresentado um ar consolado
e satisfeito, de a mãe lhe ter enxugado as lágrimas e respondido a todos os lamentos com palavras reconfortantes, ficou-lhe no coração uma certa amargura. A minha mãe, pensava ele, tem razão ao dizer que o meu irmão é o mais franco e
o mais recto de nós dois, mas se ele me amasse tanto como eu a ele, não reagiria tão calmamente.
E recordava o ar tranquilo e quase indiferente de Landry ao encontrá-lo na margem do ribeiro. Lembrava-se de como o ouvira assobiar aos pássaros, no preciso momento em que pensava realmente em atirar-se à água. Julgava que o irmão nunca lhe perdoaria por ter amuado e ter fugido da sua companhia. Se tivesse sido ele a fazer-me esta afronta, pensava, nunca me consolaria. Estou muito contente por ele me ter perdoado, mas pensava que não seria tão fácil. Continuava, assim, o infeliz rapaz a suspirar e a debater- se com tristes pensamentos.
Porém, como Deus recompensa e ajuda sempre, até os mais pecadores, Sylvinet tornou-se mais razoável durante o resto do ano; absteve-se de provocar ou aborrecer-se com o irmão, passando a amá-lo de uma forma mais calma, e a sua saúde, que sofrera com todas aquelas angústias, melhorou e restabeleceu-se. O pai fê-lo trabalhar mais, apercebendo-se de que quanto menos o filho pensasse em si, melhor andava. É claro que o trabalho em casa dos pais nunca é tão rude como em casa dos outros, de modo que Landry, que não se poupava ao trabalho, tomou mais força e corpo nesse ano do que o irmão. As pequenas diferenças que existiam entre ambos tornaram-se mais evidentes. Depois de terem feito quinze anos, Landry tornou-se num belo rapaz e Sylvinet manteve-se um simpático rapazinho, mais fino e mais pálido do que o irmão. Por isso já não Lhes trocavam os nomes e, embora continuassem a ter vincadas parecenças, já não se assemelhavam do mesmo modo que até ali. Landry, que era considerado o mais novo por ter nascido depois de Sylvinet, parecia mais velho um ano ou dois. E isto aumentava a amizade do tio Barbeau, que, como todas as pessoas do campo, apreciava a força e a robustez acima de tudo.
A promessa de Landry
Nos primeiros tempos que seguiram à sua aventura com a pequena Fadette, Landry ainda se preocupou com a promessa que lhe fizera. Na altura em que ela o ajudou comprometera-se, em nome do pai e da mãe, a dar tudo o que houvesse de melhor em casa; mas, quando viu que o tio Barbeau não levara muito a sério a escapadela de Sylvinet e não mostrara qualquer inquietação, receou que, quando a pequena Fadette viesse reclamar a recompensa, o pai a pusesse na rua, troçando da sua ciência e da promessa que Landry fizera.
Tal temor envergonhava Landry, e, à medida que o desgosto se dissipava, o rapaz julgava ter sido bem tolo por ter acreditado que havia feitiçaria no que lhe acontecera. Não tinha a certeza da pequena Fadette ter feito pouco dele, mas também não encontrava razões válidas para provar ao pai que fizera bem em aceitar um compromisso daqueles; por outro lado, não sabia como romper semelhante promessa, pois jurara por sua honra e fizera-o conscientemente.
Verdade se diga que, para admiração sua, nem no dia seguinte, nem durante o mês, nem durante a estação, ouviu falar da pequena Fadette em Cosse ou em Priche. Nem se apresentou em casa do tio Caillaud a pedir para falar com Landry, nem em casa do tio Barbeau a reclamar alguma coisa, e quando Landry a viu uma vez, ao longe, no campo, ela não foi ter com ele nem pareceu prestar-lhe atenção, o que era pelo menos estranho, pois corria sempre atrás de toda a gente, fosse por curiosidade, fosse para rir e brincar com quem estivesse bem disposto, fosse para arreliar e provocar os que assim não estavam.
No entanto a casa da tia Fadet era próxima de Priche e de Cosse, daí a inevitabilidade, mais dia menos dia, de Landry se cruzar com a pequena Fadette no caminho. E foi o que aconteceu num fim de tarde em que a pequena Fadette recolhia os gansos, sempre com o saltão agarrado a ela, e Landry, que fora buscar os cavalos ao prado e os levava tranquilamente para Priche. Landry ficou vermelho com medo de se ver obrigado a cumprir a promessa, e sem coragem para enfrentá-la, assim que a avistou saltou para cima de um cavalo e picou-o para o lançar a trote. Chegado perto da pequena Fadette não ousou fitá-la, virando a cara, fingindo olhar para os cavalos que o seguiam. Quando olhou de novo, já Fadette o ultrapassara sem lhe dirigir a palavra. Ficou mesmo sem saber se tinha olhado para ele. Só viu o saltão, que, sempre travesso e malvado, apanhou uma pedra para atirar às pernas do cavalo, e Landry sentiu uma grande vontade de Lhe dar um açoite, mas teve medo de parar e ter de encarar a irmã, pelo que fingiu não se aperceber disso, indo-se embora sem olhar para trás.
E de todas as outras vezes que Landry encontrou a pequena Fadette, passou-se mais ou menos a mesma coisa, ainda que, pouco e pouco, se fosse atrevendo a fitá-la, pois, à medida que o tempo passava, já não se preocupava tanto com uma coisa tão sem importância. Mas quando ganhou coragem para a olhar francamente, como que à espera dela se resolver a falar, ficou espantado por verificar que a rapariga virava a cara de propósito para o lado. Essa atitude confundiu-o e interrogou-se se não fizera mal em nunca Lhe ter agradecido a felicidade que, por ciência ou por sorte, lhe causara. Tomou a resolução de a abordar em futuro encontro.
E assim, ao reencontrá-la, caminhou decidido na sua direcção, notando todavia que, à medida que se aproximava, a pequena Fadette assumia um ar orgulhoso, quase arrogante, e decidindo-se finalmente a olhar para ele, mas fazendo-o duma maneira tão desdenhosa que Landry, completamente desconcertado, não ousou dirigir- lhe a palavra.
Foi a última vez que Landry se cruzou com ela, pois a partir desse dia a pequena Fadette, evitou-o tão bem que, assim que o avistava ao longe, afastava-se no sentido contrário ou fazia um grande desvio para não o ver. Landry pensou que ela estava zangada por causa da sua ingratidão; mas sentia uma relutância tão grande que não conseguiu decidir-se a dizer algo para reparar a falta. A pequena Fadette não era uma criança como as outras. Não era medrosa nem acanhada, pois gostava de provocar as injúrias ou as troças, de tal modo sabia ter a língua bem afiada para replicar e ter sempre a última palavra e a mais mordaz. Nunca a tinham visto amuar e censuravam-Lhe a falta de orgulho que convém a uma rapariga de quinze anos. Comportava-se como um rapaz e atormentava constantemente Sylvinet, aborrecendo-o e chegando a fazer-lhe perder a paciência, quando o surpreendia mergulhado nos sonhos que por vezes ainda tinha. Seguia-o quando o encontrava, troçando e martirizando-o, dizendo que Landry não gostava nada dele e que ria do seu desgosto. Assim, o pobre Sylvinet, que, ainda mais que Landry, a julgava feiticeira, admirava-se por ela lhe adivinhar os pensamentos e detestava-a por isso. Sentia desprezo por ela e toda a sua família e, do mesmo modo que ela evitava Landry, ele evitava o malvado grilo, e dizia que mais cedo ou mais tarde ela seguiria o exemplo da mãe, que levara uma má vida, abandonando o marido e fugindo com os soldados. Partira como feirante pouco depois do nascimento do saltão e, desde então, nunca mais se ouvira falar dela. Foi por isso que a velha tia Fadet se vira a braços com duas crianças, das quais cuidava muito mal, tanto por causa da sovinice como por causa da idade avançada que não lhe permitia vigiá-las nem trazê-las bem arranjadas.
Por todos estes motivos, Landry, apesar de menos orgulhoso que o irmão, sentia desdém pela pequena Fadette e, lamentando tê-la contactado evitava que alguém o soubesse. Até o ocultou ao gémeo, não lhe querendo confessar a preocupação que sentira por sua causa.
Por seu lado, Sylvinet escondeu-lhe todas as maldades da pequena Fadette para com ele, tendo vergonha de confessar que ela adivinhava os seus ciúmes.
Mas o tempo passava. Com a idade dos gémeos as semanas são como meses e os meses como anos. Em breve Landry esqueceu a aventura e, após uns tempos angustiado com a recordação de Fadette, deixou de pensar nisso.
Havia já cerca de dez meses que Landry trabalhava em Priche. Aproximava-se o S. João, que era a época do final do seu contrato com o tio Caillaud. O bom homem estava tão contente com ele que preferiu aumentar-lhe o salário a deixá-lo partir. E Landry não desejava mais do que ficar na vizinhança da família e continuar com a gente de Priche, de quem gostava muito. Além de que começava a sentir uma certa amizade por uma sobrinha do tio Caillaud, chamada Madelon, que era uma bela rapariga. Tinha mais um ano do que ele e tratava-o ainda um pouco como a uma criança; mas isso ia diminuindo de dia para dia e, enquanto ao princípio troçava quando ele tinha vergonha de a beijar, nos jogos de dança, agora corava em vez de o provocar e já não ficava sozinha com ele. Madelon não era pobre, e um casamento entre eles poderia ser um caso interessante. As duas famílias eram bem vistas e estimadas em toda a região. O tio Barbeau, vendo as crianças a procurar-se, dizia ao tio Caillaud que fariam um belo casal e que não haveria mal em os deixar travar um bom e longo conhecimento.
Ficou pois combinado, uns dias antes do S. João, que Landry ficaria em Priche e Sylvinet em casa dos pais, pois o tio Barbeau estava acamado com febre, e o rapaz era muito útil no cultivo das terras. Sylvinet temera muito ser mandado para longe, e essa inquietação agira nele como um bem, pois esforçava-se cada vez mais por vencer o excesso de amizade que tinha por Landry, ou pelo menos para não o dar tanto a entender. A paz e a alegria tinham regressado a Cosse, apesar dos gémeos só se verem uma ou duas vezes por semana. O S. João foi para eles um dia de alegria, indo ambos à vila assistir à festa na praça principal. Landry dançou várias vezes com a bela Madelon e Sylvinet, para lhe dar prazer, também tentou dançar. Não se saiu muito bem, mas Madelon, simpaticamente, pegou-lhe na mão e ajudou-o a marcar o passo. Sylvinet, vendo-se assim tratado com tanta deferência, prometeu aprender a dançar, a fim de partilhar um prazer a que até ali se negara.
Não sentia muitos ciúmes de Madelon, porque Landry era comedido com ela. Aliás, Madelon elogiava e encorajava Sylvinet. Estava à vontade com ele e alguém que desconhecesse o caso julgaria que ele era o gémeo preferido. Landry não sentia o menor ciúme. Pensava que Madelon procedia assim para lhe dar prazer e ter mais oportunidades de se encontrar com ele.
Tudo correu de vento em popa durante cerca de três meses, até ao dia de Santo Andoche, santo padroeiro do burgo.
Esse dia, que era sempre esperado com impaciência pelos dois gémeos, pois havia danças e jogos de toda a espécie debaixo dos grandes castanheiros da paróquia, trouxe-lhes novos e inesperados desgostos.
Recebendo autorização do tio Caillaud para na véspera ir dormir a Cosse, a fim de poder assistir à festa logo pela manhã, Landry partiu antes do jantar, todo contente por ir surpreender o irmão, que só o esperava pela manhã. Estava-se em Setembro, mês em que os dias já são mais curtos e a noite cai depressa. Landry não receava nada em pleno dia, mas não gostava de andar sozinho à noite, sobretudo naquela época do ano, em que os bruxos e os duendes começam a divertir-se, graças aos nevoeiros que os ajudam nas suas travessuras e malefícios.
Landry, que costumava sair sozinho a qualquer hora para levar ou guardar o gado, não sentia mais inquietação, nessa noite, do que nas outras, mas caminhava depressa e cantava alto, como costumava fazer quando estava escuro, buscando maior coragem.
Quando chegou ao vau das Roulettes, arregaçou um pouco as calças, receoso de haver água e prestou atenção para caminhar sempre em frente, pois o vau era todo aos ziguezagues e, tanto à direita como à esquerda, havia buracos perigosos. Landry conhecia bem o vau e era ìmmpossível enganar-se. Através das árvores via-se uma pequena claridade que saía da casa da tia Fadet. E, guiando-se por essa claridade, por pouco que andasse nessa direcção não havia hipótese de se enganar no caminho.
Contudo, como estava tão escuro debaixo do arvoredo, Landry foi primeiro tacteando o vau com o cajado antes de avançar. Ficou admirado por encontrar mais água do que era habitual, além de que ouvia o barulho das comportas, abertas há mais de uma hora. Todavia, como avistava a luz da janela de Fadette, arriscou-se. O certo é que ao fim de dois passos já tinha água acima do joelho e retrocedeu, julgando ter-se enganado. Tentou um pouco mais acima e um pouco mais abaixo, e tanto num como noutro, encontrou covas ainda mais profundas. Não chovera, as comportas continuavam abertas... no mínimo, era pois surpreendente.
Devo ter seguido caminho errado, pensou Landry, porque agora, vejo à direita a luz da tia Fadet, que devia estar à esquerda.
Refez todo o caminho e andou à roda de olhos fechados para se desorientar; e só depois de ter observado bem as árvores em volta encontrou o bom caminho e regressou para a beira da ribeira. Mas, embora o vau lhe parecesse conveniente, não ousou dar mais de três passos, porque avistou de repente, quase atrás de si, a claridade da casa de Fadette, que deveria ficar em frente. Voltou para a margem e a claridade pareceu-lhe estar novamente no sítio certo. Retomou o vau noutro sentido e, desta vez, ficou com a água quase até à cintura. Todavia, continuava a avançar, julgando sair em breve do buraco.
Teve porém de parar, pois o buraco era cada vez mais profundo, e já tinha os ombros cobertos. A água estava fria e ele ficou a pensar se devia voltar para trás, pois a luz parecia-lhe ter mudado de lugar e até parecia vê-la agitar-se, a correr e saltitar, a passar de uma margem para a outra e, finalmente, a desdobrar-se ao reflectir- se na água, assinalando a sua presença com ligeira crepitação.
Desta vez, Landry teve medo e ia perdendo a cabeça, pois ouvira dizer que não há nada mais enganador do que esse fogo; que tinha prazer em fazer extraviar os que o viam e em conduzi-los às águas mais profundas, rindo e troçando da sua angústia.
Landry fechou os olhos para não o ver, e dando rapidamente meia volta, saiu do buraco e voltou à margem. Aí, atirou-se para a erva e observou o duende, que prosseguia na sua dança e a rir. Era uma visão diabólica. Ora se afastava como um louco, ora desaparecia completamente. Ou, às vezes, ficava grande como a cabeça de um boi e depois pequeno como um olho de gato; e corria para junto de Landry, girava à sua volta tão depressa que ele ficava fascinado; e, finalmente, vendo que este não o seguia, voltava a agitar- se no canavial, parecendo zangar-se.
Landry não ousava mexer-se, pois voltar para trás não afastava o duende de si. Estava visto, ele obstinava- se a correr atrás dos que correm e atravessava-se no seu caminho até os enlouquecer. Tremia de medo e de frio, quando ouviu atrás de si uma vozinha suave, que cantava:
Duende, duende, duendezinho, Leva a tua candeia e o teu guizo, Eu trouxe a minha capa e o meu barrete, Toda a diabinha tem o seu diabrete.
E logo surgiu a pequena Fadette, que se preparava alegremente para atravessar a água sem mostrar qualquer receio ou surpresa pelo fogo-fátuo. Chocou contra Landry, sentado no chão, e afastou-se praguejando e injuriando como um rapaz mal educado.
- Sou eu, Fanchon - disse Landry, erguendo-se -, não tenhas medo! Não sou teu inimigo!
Falava assim porque tinha quase tanto medo dela como do fogo. Ouvira a canção e percebera que ela estava a esconjurar o fogo-fátuo, dançando e contorcendo-se como um louco diante dela, como se estivesse contente por a ver.
- Estou a ver, belo gémeo! - disse então a pequena Fadette depois de uma breve hesitação. Estás a ser simpático comigo porque estás meio morto de medo; a voz treme-te na garganta, tal qual a de minha avó. Confessa lá, pobre coitado: à noite as pessoas são bem menos orgulhosas do que de dia, e aposto que não tens coragem de atravessar o rio sem mim, é assim ou não é?
- Por amor de Deus! Acabo de sair de ládisse Landry -, e quase me ia afogando. Tu vais arriscar-te a atravessar, Fadette? A sério que não tens medo?
- E porque havia de ter? Mas estou a ver o que te preocupa - respondeu a pequena Fadette, rindo.
- Anda, dá-me a mão, medricas! O duende não é tão mau como julgas, e só faz mal aos que têm medo dele. Já nos conhecemos bem.
Dizendo isto, puxou Landry pelo braço com mais força do que ele esperava duma criatura tão magricela e arrastou-o a correr, cantando:
Eu trouxe a minha capa e o meu barrete, Toda a diabinha tem o seu diabrete.
Landry nem por isso se sentia mais à vontade na companhia da pequena feiticeira do que na do duende. Todavia, como preferia ver o diabo com aparência de gente do que um fogo tão manhoso e fugaz, não opôs resistência e depressa ficou tranquilizado ao sentir que Fadette o levava por bom caminho e que andava em seco sobre as pedras. Em todo o caso, embora avançassem a bom passo, o fogo- fátuo continuava a persegui-los.
Muito provavelmente a tia Fadet tinha ensinado a neta a não recear esses fogos da noite, ou então, à força de os ver, visto que apareciam nas imediações do vau das Roulettes, ainda que Landry nunca visse nenhum de perto, talvez a rapariga tivesse adquirido a ideia de que o espírito que os animava não era malvado e só lhe queria bem. Sentindo que Landry tremia à medida que o duende se aproximava, disse:
- Pateta! Este fogo não queima! Se fosses suficientemente hábil a manejá-lo, verias que nem sequer deixa marca.
Pior ainda, pensou Landry; fogo que não queima, não se sabe o que é; e não pode vir de Deus, pois o fogo de Deus é para aquecer e queimar.
Até ali não deu a conhecer o seu pensamento à pequena Fadette, e quando se viu são e salvo, na outra margem, sentiu enorme vontade de a abandonar ali e fugir para Cosse. Mas, como não era ingrato, não a quis deixar sem lhe agradecer.
- É a segunda vez que me ajudas, Fanchon - disse-lhe -, e eu seria um traste se não te dissesse que me lembrarei disso toda a vida. Via-me completamente transtornado quando me encontraste. o duende tinha-me dominado e encantado. Nunca teria atravessado a ribeira, ou então nunca de lá teria saído.
- Talvez até tivesses passado sem problemas se não fosses tão palerma - acusou Fadette. Nunca pensei que um rapagão de dezasset anos, quase com barba, fosse tão fácil de assustar! E estou contente por te ver assim!
- E porque é que estás contente com isso, Fanchon?
- Porque não gosto nada de ti! - respondeu em tom de desprezo.
- E porque não gostas de mim?
- Porque não tenho consideração por ti - respondeu. - Nem por ti, nem pelo teu gémeo, nem pelo teu pai, nem pela tua mãe orgulhosos de serem ricos, e porque julgam que só cumprimos a nossa obrigação estando às vossas ordens.
Ensinaram-te a ser ingrato, Landre; esse é o pior defeito de um homem depois do de ser cobarde.
Landry ficou fortemente humilhado com a sarabanda da rapariga, mas reconhecia que ela não era completamente injusta, e defendeu-se:
- Se sou culpado, Fadette, atribui-o somente a mim. Nem o meu irmão, nem os meus pais nem ninguém lá em casa, sabe do auxilio que já me prestaste. Mas desta vez vão sabê-lo, e terás a recompensa que desejares.
- Ah, ah, tão orgulhoso que ele é! - continuou Fadette. - Imaginas que com os teus presentes ficarás pago? Julgas que sou como a minha avó, que, desde que lhe dêem algum dinheiro, suporta todas as arrogâncias? Eu não preciso nem tenho vontade das tuas ofertas e desprezo tudo o que vier de ti, uma vez que não tiveste uma palavra de gratidão e amizade para comigo depois de te ter evitado um grande desgosto.
- Sou culpado, já o confessei, Fadette - disse Landry, que não podia abster-se de ficar admirado com a veemência das suas palavras. - Mas também tens algumas culpas. Não deve ter sido através de feitiçaria que me fizeste encontrar o meu irmão, pois já o tinhas visto antes, sem dúvida, enquanto eu falava com a tua avó; e, se fosses verdadeiramente boa, tu, que me acusas de não o ser, em vez de me fazeres sofrer e esperar, em vez de me obrigares a fazer uma promessa, ter-me-ias dito logo: Desce o prado e vê-lo-ás à beira do rio. Isto não te teria custado muito, e preferiste antes divertir-te maldosamente com a minha dor.
A pequena Fadette, sempre com resposta pronta, ficou pensativa mas logo adiantou:
- Bem vejo que fizeste o possível por afastar a gratidão do teu coração e por te convenceres de que não me devias nada. De novo o teu coração é injusto e mau, pois não te fez notar que eu não reclamava nada de ti e nem sequer censurava a tua ingratidão.
- Isso é verdade, Fanchon - respondeu Landry, franco -, vejo que estava errado, e envergonho-me disso. Devia ter-te falado, essa era a minha intenção, mas tu fizeste- me uma cara tão irritada que não soube como actuar.
- Se tivesses vindo no dia seguinte dar-me uma palavra de amizade, nunca me terias visto irritada e logo saberias que não queria paga alguma e seríamos amigos. Em vez disso, agora, tenho muito má opinião de ti, e devia ter-te deixado desembaraçar sozinho do duende. Adeus, Landry, Vai secar essa roupa e diz a teus pais Sem aquele malvado grilo, esta noite teria dado um bom mergulho na ribeira.
Foi assim que a pequena Fadette lhe virou costas e se dirigiu a casa, cantarolando.
Com efeito, Landry sentiu um enorme arrependimento. Não que se dispusesse a qualquer espécie de amizade com uma rapariga que parecia ter mais esperteza do que bondade e cujas más maneiras não agradavam a ninguém, nem mesmo aos que se divertiam com isso. Mas ele tinha uma alma nobre e não queria ficar com tal injustiça na consciência. Correu atrás dela, agarrou-a pelo braço e disse-Lhe:
- Então, Fanchon, é preciso resolver e arrumar este assunto entre nós. Estás aborrecida comigo e eu também não estou contente. Diz-me o que desejas e, o mais tardar amanhã, dou-to.
- Desejo nunca mais te ver - respondeu Fadette severamente -, e tudo o que me trouxeres, podes ficar certo que to atiro à cara.
- Não achas que são palavras demasiado duras para quem te oferece uma reparação? Se não queres uma oferta, talvez haja maneira de te fazer qualquer préstimo e com isso te mostrar que só te quero bem. Anda, diz-me o que tenho a fazer para te agradar.
- És capaz de me pedir perdão e desejar a minha amizade? - inquiriu Fadette, parando.
- Perdão, é pedir muito! - contestou Landry, não conseguindo evitar uma certa altivez em relação à rapariga, que não tinha de modo algum comportamento próprio da sua idade. - Quanto à tua amizade, Fadette, o teu espírito é tão estranho que não sei se conseguiria ganhar-lhe alguma confiança. Pede-me antes uma coisa que te possa dar já e que eu não precise de reaver.
- Pois bem - disse Fadette numa voz clara e seca -, será como desejas, Landry. Ofereci-te o perdão, e não o quiseste. Sendo assim, vou reclamar-te o que me prometeste, que é o de obedeceres à minha vontade, no dia em que to exigir. Esse dia não será mais tarde do que amanhã, no Santo Andoche, e eis o que quero: dançarás comigo três danças, depois da missa, duas depois das vésperas e ainda mais duas depois das trindades. Sete no total. E durante o dia inteiro, do levantar até ao deitar, não dançarás com mais ninguém, seja rapariga ou mulher. Se o fizeres, ficarei a saber que tens três defeitos muito feios: a ingratidão, o medo e a falta de palavra. Boa-noite e espero por ti amanhã para abrir o baile, à porta da igreja!
A pequena, que Landry seguira até sua casa, abriu o ferrolho e entrou tão depressa que o rapaz nem teve tempo de abrir a boca.
O baile
De início, Landry achou a ideia da Fadette tão cómica que se sentiu mais inclinado a rir do que a zangar-se. Está visto, é mais tola do que má e mais desinteréssada do que parece, pelo que a sua exigência não arruinará a minha família, pensou. Contudo, pensando melhor, achou o pagamento da dívida mais duro do que parecia. A pequena dançava muito bem, já a tinha visto aos saltos pelos campos ou na berma dos caminhos, com os miúdos, agitando-se como um diabinho, tão rápida que era difícil seguir-lhe o compasso. Mas era tão pouco bonita e tão burlesca, que nenhum rapaz da idade de Landry dançaria com ela, especialmente em público. Quando muito, achavam-na digna de ser convidada pelos guardadores de porcos ou pelos rapazes que ainda não tivessem feito a primeira comunhão; e as raparigas mais espigadotas da terra não gostavam muito da sua companhia. Landry, sentiu-se portanto humilhado por estar ligado a semelhante dançarina; e ao lembrar-se de que conseguira obter pelo menos três danças da bela Madelon, interrogou-se como iria ela receber a desfeita que ele seria forçado a fazer-lhe.
Como se sentia com frio e fome e continuava receoso de ver outra vez o duende correr atrás de si, andou depressa, sem pensar muito e sem olhar para trás.
Mal chegou a casa, secou-se, contando que não encontrara o vau por causa da noite cerrada e por isso se molhara todo. Teve vergonha de confessar o medo que tivera e não falou nem no fogo-fátuo, nem na pequena Fadette. Deitou-se, pensando que no dia seguinte teria tempo para se preocupar com as consequências daquele mau encontro. Porém, por mais que se esforçasse, dormiu muito mal. Teve pesadelos em que viu a pequena Fadette às cavalitas do duende, que era uma espécie de grande galo vermelho, segurando numa das patas uma lanterna, cujos raios iluminavam todo o juncal. E então a pequena Fadette transformava-se num enorme grilo e gritava-lhe, também numa voz de grilo, uma canção que ele não conseguia compreender. Sentia a cabeça tonta e a luminosidade do duende era tão viva e tão ardente que, quando acordou, ainda lhe parecia ver estrelinhas à sua volta.
Landry ficou tão fatigado por causa dessa noite, quase sem descanso, que adormeceu no decorrer da missa e nem ouviu sequer uma palavra do sermão do padre, louvando e enaltecendo as virtudes do bom Santo Andoche. À saída da igreja, Landry estava tão sonolento que esqueceu a pequena Fadette. E ela lá estava diante do pórtico, mesmo ao pé da bela Madelon, que esperava, certa, de que o primeiro convite seria para ela: Mas quando ele se aproximou para lhe falar, o grilo deu um passo em frente e disse-lhe bem alto, com ousadia sem igual:
- Vamos, Landry, já que me convidaste ontem para a primeira dança, espero que não vás agora faltar ao combinado.
Landry ficou tão embatocado e vermelho que, vendo Madelon também corada, arranjou coragem para enfrentar a pequena Fadette e dirigiu-se a ela, dizendo-lhe:
- É possível que tenha prometido dançar contigo, grilo, mas tinha pedido a outra antes; por isso só depois de eu cumprir o meu primeiro compromisso é que será a tua vez.
- Isso é que não! - respondeu Fadette com firmeza. - A tua memória anda a falhar, Landry. Não prometeste nada a ninguém antes de mim, já que a dívida que reclamo data do ano passado, e ontem limitaste-te apenas a renová-la. Se Madelon tem vontade de dançar contigo, que o faça com o teu gémeo, que é igual a ti e tomará o teu lugar. Tão bom é um como é o outro.
- O grilo tem razão - respondeu Madelon com orgulho, agarrando na mão de Sylvinet. - Já que tens uma promessa tão antiga, terás de cumpri-la, Landry. Também gosto de dançar com o teu irmão.
- Sim, pois claro, é a mesma coisa - disse Sylvinet, ingenuamente. - Dançaremos os quatro.
Não adiantaram mais o assunto, para não chamar a atenção das pessoas, e o grilo começou a rodopiar com tanto orgulho e agilidade que jamais uma dança foi tão bem compassada e tão bem conduzida. Se ela fosse graciosa e simpática, causaria prazer vê-la, pois dançava maravilhosamente e não havia rapariga que não desejasse ter a sua ligeireza e a sua audácia. Mas, coitada, estava tão mal ataviada que parecia dez vezes mais feia do que habitualmente.
Landry, que não se atrevia a olhar Madelon, de tal modo se sentia atormentado face ao que se passou, observou a preceito a sua parceira e achou-a ainda mais feia do que anteriormente. Julgara pôr-se bonita, mas, afinal, a sua indumentária, antes provocava o riso e o desdém.
Trazia uma touca amarelada pelo bolor que, em vez de ser pequena e bem levantada atrás, conforme moda da terra, formava de cada lado da cabeça duas grandes orelhas, largas e chatas; e, na parte de trás, o folho caía até ao pescoço, dando-lhe o aspecto da avó e fazendo-lhe a cabeça larga como uma abóbora, para cúmulo apoiada num pescoço delgado como uma vara. A saia era demasiado curta, pois crescera muito durante o ano; os braços magros, queimados pelo sol, saíam das mangas como patas de aranha. Trazia, contudo, um avental vermelho de que muito se orgulhava, que herdara da mãe, mas do qual se esquecera de tirar o peitilho, fora de moda há anos. Não era daquelas raparigas demasiado coquetes, pobrezinha, nem o era minimamente e vivia como um rapaz, sem se preocupar com a aparência, mas prezando a paródia e a risota. Por isso, com aquele ar de velha endomingada, desprezavam-na talvez mais por causa da sua arrogância e não tanto devido à miséria, esta mais provocada pela sovinice e mau gosto da avó.
Sylvinet achava muito estranha aquela fantasia do gémeo por Fadette, de quem, pela parte que lhe tocava, ainda gostava menos do que Landry. Este último não sabia como havia de explicar o ocorrido e desejava poder desaparecer sem deixar rasto. Madelon andava descontente, e, apesar da animação com que Fadette dançava, as caras de ambos eram tão tristes que pareciam carregar o diabo na Terra.
Assim que acabou a primeira dança, Landry escapou-se e foi esconder-se longe. Mas, ao fim de uns momentos, Fadette, seguida do saltão, foi no seu encalço, para o censurar, e levando atrás de si um grupo de raparigas mais novas, porque as mais velhas não Lhe ligavam. Quando Landry a viu com todo aquele grupo, que ela tomava por testemunha em caso de recusa, cedeu e levou-a para debaixo dos castanheiros, onde desejava encontrar um cantinho mais isolado para dançar com ela sem ser notado. Para seu contentamento, nem Madelon, nem Sylvinet, ou ninguém seu conhecido ali se encontrava; pôde assim aproveitar a ocasião para cumprir a promessa e dançar uma terceira vez com Fadette. Estavam apenas rodeados de estranhos, que não lhes prestavam atenção.
Logo que terminou, correu em busca de Madelon para a convidar a lanchar à sombra das ramadas. Mas ela já tinha dançado com outros, a quem prometera acompanhar, pelo que recusou com certo desdém. Depois, vendo que ele se mantinha a um canto, com os olhos rasos de lágrimas - o despeito e o orgulho tornavam-na ainda mais bonita -, comeu depressa, levantou-se da mesa e perguntou em voz alta:
- Estão a tocar às vésperas, com quem vou dançar agora?
Voltara-se para Landry, contando que ele exclamasse imediatamente: Comigo!. Mas, antes de ele descerrar os lábios, outros se ofereceram e Madelon, sem se dignar lançar-lhe um olhar de censura ou de piedade, seguiu para as vésperas com os seus novos admiradores.
Assim que as vésperas foram cantadas, Madelon começou a dançar com os seus acompanhantes. Landry observava-a pelo canto do olho. A pequena Fadette ficara na igreja, debitando longas orações, umas após outras. Todos os domingos fazia o mesmo. Para uns, prova de grande devoção, para outros, uma forma de esconder o seu jogo com o Diabo.
Landry ficou muito contristado por ver que Madelon não mostrava qualquer interesse por ele, que estava vermelha de prazer como uma papoila e que se consolava lindamente da desfaçatez que ele se vira forçado a fazer- lhe. Veio-lhe então a ideia que ela talvez fosse um pouco vaidosa e arrogante e que não devia ter por ele grande afeição, uma vez que se divertia tão bem sem ele.
Evidentemente que era ele quem estava em falta, pelo menos aparentemente; mas ela vira-o tão triste, debaixo do arvoredo, que podia ter adivinhado que se passava qualquer coisa que ele bem gostaria de lhe explicar. Todavia, isso não a preocupou absolutamente nada e agora andava alegre como um passarinho, enquanto ele sentia o coração a sangrar.
Após ter satisfeito os dançarinos, Landry aproximou- se dela, desejoso de se justificar. Não sabia porém como levá-la a afastar-se, pois ainda estava na idade em que não se tem muito à-vontade para lidar com raparigas; mesmo assim, sem palavras apropriadas, pegou-lhe na mão para ela o seguir; então ela perguntou-lhe, com um ar de meio ressentida e de meio perdão.
- Então, Landry, sempre me vens convidar para dançar?
- Não é para dançar - respondeu, pois não sabia fingir, nem tencionava faltar à palavra -, mas sim para te dizer uma coisa que não podes recusar ouvir.
- Oh! se tens um segredo para me contar, Landry, deixa-o para outra altura! - zombou Madelon, retirando a mão. - Hoje é dia de nos divertirmos e dançarmos. Ainda posso bem com as pernas, e já que o grilo cansou as tuas, vai-te deitar, se quiseres, porque eu fico.
Dito isto, apressou-se a aceitar o convite de Germain Audoux para dançar. E, quando voltou as costas a Landry, este ouviu Germain Audoux dizer, falando dele:
- Não me digas que o tipo estava convencido que esta dança era para ele?
- Talvez! - foi a resposta de Madelon, encolhendo os ombros.
Landry ficou grandemente chocado e permaneceu perto do baile para observar as atitudes da rapariga, tão orgulhosa e desdenhosa que ele se sentiu despeitado. Em certo momento, quando ela passou ao seu lado, vendo que a fitava com olhar meio cínico, disse-lhe, provocante:
- Então, Landry, já não arranjas parceira? Ou será que tens de voltar para o grilo?
- Com muito prazer - respondeu Landry -, pois, se não é a mais bela da festa, é pelo menos a que dança melhor!
E dirigiu-se para os arredores da igreja, buscando Fadette e trazendo-a para o recinto de dança e rodopiando na frente de Madelon, por duas vezes seguidas. Ai, como o grilo estava orgulhoso e contente! Seus olhos negros e maliciosos brilhavam de prazer, e erguia o pequeno rosto e a touca grosseira como uma galinha empertigada.
Lamentavelmente, contudo, o seu triunfo irritou cinco ou seis garotos que costumavam dançar com ela e que, não podendo agora fazê-lo, começaram a criticá-la, a censurar-lhe a sua vaidade e a murmurar à sua volta: Vocês não vêem o grilo, que julga seduzir Landry Barbeau! Grilo, saltão, diabrete, bruxa!, e outras patetices semelhantes.
Além disso, quando a pequena Fadette passava perto deles, puxavam-lhe pela manga ou punham-se à sua frente para a fazer tombar, e havia alguns, ainda mais mal- educados, que lhe puxavam pelo laço da touca, gritando: Puxa a touca, puxa a touca da Fadette.
O pobre grilo distribuiu cinco ou seis estalos à direita e à esquerda, mas isso apenas serviu para atrair a atenção do seu lado e para as pessoas começarem a comentar: Olhem só o nosso grilo, hoje está cheio de sorte! Landry Barbeau não pára de dançar com ela! É verdade que ela dança bem, mas anda toda empertigada.
Alguns, dirigindo-se a Landry, perguntavam:
- Ela lançou-te algum feitiço, pobre rapaz, para só olhares para ela? Ou quererás ser feiticeiro?
Landry estava envergonhado; mas Sylvinet, para quem não havia ninguém mais excelente e mais estimável do que o irmão, ainda o ficou mais ao ver que ele era alvo de troça de tanta gente, e de estranhos, que começavam também a meter-se, a fazer perguntas e a comentar: É um belo rapaz; mas que ideia a dele de só se meter com a mais feia de todo o grupo. Madelon, orgulhosa e triunfante, escutava aquela zombaria e, sem piedade, também se atreveu a algumas indirectas:
- Não percebo a vossa admiração! - exclamou. - Landry é ainda uma criança, e, com a sua idade, desde que se tenha alguém com quem falar, nem se repara se é cabeça de burro ou se tem cara de gente.
Sylvinet, logo que pôde, segurou Landry pelo braço e disse-lhe baixinho:
- Vamos embora mano, senão isto vai a mais, até porque as troças dirigidas à pequena Fadette são mais para ti. Não sei que ideia foi essa de dançares tantas vezes seguidas com ela. Até parece que procuras o ridículo; acaba com a brincadeira, por favor! Ela que se exponha às palavras duras e ao desprezo se isso lhe dá prazer, mas não a nós.
Vamos embora! Voltaremos depois das trindades e dançarás então com Madelon, que é uma rapariga como deve ser. Sempre disse que essa tua paixão pela dança um dia traria problemas!
Landry fez menção de o seguir, mas voltou-se imediatamente ao ouvir um grande alarido. Viu então Madelon e as outras raparigas rodeando a pequena Fadette, a quem os garotos, encorajados pela risota que provocavam, acabavam de tirar a touca. Os seus longos cabelos negros caíam-lhe sobre os ombros, e ela debatia-se, louca de cólera e desgosto, porque desta vez nada fizera para merecer tal tratamento. Chorava de raiva, sem conseguir recuperar a touca, que um malandrim levava na ponta de um pau.
Landry achou aquela acção muito feia e, levado pelo seu coração, revoltou-se contra tal injustiça. Agarrou o rapaz, tirou-lhe a touca e o pau, com o qual lhe aplicou uma pancada no traseiro, pondo-o a fugir com os restantes mariolas. Depois, pegando a mão do pobre grilo, entregou- lhe a touca.
A vivacidade de Landry e o medo dos garotos provocaram gargalhadas na assistência. Landry foi aplaudido, mas, como Madelon decidiu ridiculari zar a situação, houve outros rapazes que desataram a rir à sua custa.
O jovem não hesitou em enfrentar a situação; sentia- se corajoso e forte, e qualquer coisa dentro de si dizia- lhe que cumpria o seu dever, não deixando maltratar uma mulher, feia ou bonita, pequena ou grande, que escolhera por companhia. Apercebeu-se do modo como o grupo de Madelon o mirava e avançou, perguntando:
- Então, têm algo a comentar? Se me agrada dar atenção a esta rapariga, em que é que isso vos ofende? E se isso vos desagrada, porque o dizem baixinho? Estou na vossa frente. Não me vêem? Disseram aqui que eu era ainda um miúdo. mas haverá aqui um hómem que mo diga na cara? Vá lá, falem, e veremos se alguém toca na rapariga que convidei para dançar!
Sylvinet não abandonara o irmão, e embora não o aprovasse por ter suscitado tal discussão, estava pronto a defendê-lo. Havia ali quatro ou cinco rapazes muito mais velhos do que os gémeos; mas quando os viram tão resolutos, não disseram nada e olharam uns para os outros, como que a perguntar quem é que tinha a intenção de se medir com Landry. Este, que não largara a mão de Fadette, disse-lhe então:
- Enfia essa touca, Fanchon, e vamos dançar. Veremos se alguém se atreve a tirar-ta.
- Não! - respondeu a pequena Fadette, limpando as lágrimas. - Já chega de dança por hoje! Cumpriste a tua promessa!
- Oh! Isso é que não! Temos de dançar mais - insistiu Landry, inflamado pela coragem e orgulho. - Não quero que andem por aí a dizer que não posso dançar contigo quanto me apetecer sem que sejas insultada!
Dançaram mais uma vez e ninguém se atreveu a perturbar o par. Madelon e os seus apaixonados fóram dançar para outro lado.
Terminada a dança, a pequena Fadette disse baixinho a Landry:
- Por hoje, chega, Landry. Estou contente contigo e estás quite da tua palavra. Vou para casa. Agora já podes dançar com quem quiseres.
E foi buscar o irmão, que andava na brincadeira com outras crianças, afastando-se tão depressa que Landry nem viu para onde ela seguiu.
Landry regressou a casa com o irmão. Como este continuasse preocupado com tudo o que se passara, contou-lhe o encontro da véspera com o fogo- fátuo e como Fadette o salvara, fosse por ousadia ou por artes mágicas, e lhe pedira em recompensa que dançasse com ela na festa: Não lhe falou no resto, no medo que tivera de o encontrar afogado no ano anterior, e do compromisso que nessa altura assumira...
Sylvinet aprovou o irmão por ter mantido a palavra. Mas, apesar de ficar assustado com o perigo que Landry correra na ribeira, não sentiu qualquer gratidão para com a pequena Fadette.
Sentia tanta aversão por ela que não acreditava que se encontrasse ali por acaso, nem que o tivesse socorrido apenas por bondade.
- Foi ela que ordenou ao duende para te perturbar o espírito e te fazer afogar; mas Deus não o permitiu, porque és um bom cristão. Então esse maldito grilo, abusando da tua gratidão, obrigou-te a fazer uma promessa que sabia ser bem desagradável para ti. Aquela rapariga é muito má e todas as bruxas gostam do mal. Ela sabia perfeitamente que te ias zangar com Madelon e com os teus melhores amigos. Também queria que andasses à luta. Podias ter arranjado sérios problemas e acontecer-te alguma desgraça.
Landry, que via por vezes as coisas pelos olhos do irmão, pensou que talvez ele tivesse razão e não
defendeu Fadette. Conversaram os dois sobre o
duende, que Sylvinet nunca vira e pelo qual sentia muita curiosidade, sem todavia desejar encontrá-lo. Mas não falaram nele à mãe, porque ela tremia de medo só de pensar nele; nem ao pai, porque ele logo troçaria, dizendo que já o vira dezenas de vezes sem lhe ligar importância.
O baile continuou pela noite dentro; mas Landry, que estava muito triste, pois desta vez estava realmente zangado com Madelon, não quis aproveitar a liberdade que Fadette lhe devolvera e decidiu ajudar o irmão a recolher os animais do pasto. Como isto o conduzia até meio caminho de Priche, despediu-se do irmão, no fim do juncal. Sylvinet, preocupado, não quis que ele passasse pelo vau das Roulettes, com medo que o duende ou o grilo lhe pregassem outra má partida. Obrigou-o a prometer que tomaria o caminho mais com prido para evitar o vau.
Landry fez como o irmão pediu, apesar de nada recear porque havia barulho no ar devido à festa. Mesmo fraco, conseguia ouvir a música e a vozearia dos dançarinos do Santo Andoche, e sabia muito bem que os espíritos só fazem travessuras quando toda a gente dorme.
Quando chegou ao sopé da encosta, mesmo em frente à pedreira, ouviu uma voz gemer e chorar. Julgou primeiro tratar-se do barulho da água a correr, mas, conforme se aproximava, pareceu-lhe mesmo gemidos humanos; como não lhe faltava coragem, quando se tratava de enfrentar seres humanos, principalmente em apuros, desceu ousadamente até ao fundo da pedreira.
Contudo, a pessoa que se lamentava daquela forma calou-se ao ouvi-lo aproximar-se. Daí que ele perguntasse firmemente:
- Quem é que aí está a chorar?
Não obteve resposta.
- Está alguém doente? - insistiu.
E, como continuou sem resposta, pensou em regressar, mas não sem dar uma vista de olhos por entre as pedras e os grandes cardos que entulhavam o local. Pouco depois avistou, à claridade da Lua, alguém deitado ao comprido no chão, com o rosto oculto. Não se mexia, parecia um corpo inerte, morto.
Landry jamais tocara um cadáver. A ideia de que talvez fosse um, causou-lhe arrepios; mas dominou-se, porque, para si, estava primeiro auxiliar o próximo. Avançou resolutamente para apalpar a mão do vulto desconhecido, o qual, surpreendido, deu um salto e ficou de pé.
Então Landry reconheceu a pequena Fadette.
A confissão do grilo
Compreensivamente, Landry ficou aborrecido por encontrar mais uma vez a pequena Fadette no seu caminho, e também por ela não lhe responder. Mas superando a contrariedade, compadeceu-se dela:
- Então, grilo, porque choravas assim? Alguém te bateu ou te atacou mais alguma vez?
- Não, Landry! Ninguém me provocou mais desde que me defendeste tão corajosamente; e, aliás, eu não tenho medo nem receio ninguém. Escondi-me para chorar, é tudo! Não há nada mais ridículo que andar a mostrar o nosso desgosto aos outros.
- Mas porque é que estás tão desconsolada? É por causa das maldades que te fizeram hoje? Tu também tiveste alguma culpa; mas o melhor é não pensares mais nisso.
- Porque é que dizes que eu tive culpa? É um insulto por acaso eu querer dançar contigo? Serei a única rapariga que não tem o direito de se divertir?
- Nada disso, Fadette! Não te censuro por teres querido dançar comigo. Fiz o que querias e portei-me bem contigo. A tua culpa é mais antiga, não vem de hoje.
- Não, Landry, sinceramente não conheço essa culpa. Nunca pensei em mim, e se tenho algo a censurar-me foi ter-te causado problemas contra minha vontade.
- Não falemos de mim, Fadette, não me estou a queixar de nada. Falemos antes de ti; e se julgas que não tens qualquer defeito, queres que, como amigo, te diga o teu mal?
- Sim, Landry, quero, e considerarei isso como o melhor castigo ou a melhor recompensa que possas dar-me por todo o mal que te causei.
- Pois bem, Fanchon Fadet, já que estás a falar tão acertadamente e que, pela primeira vez, te vejo calma e razoável, vou dizer-te porque não te respeitam como uma rapariga de dezasseis anos deve ser respeitada. É que tu não tens nada de rapariga e, pelo contrário, tudo de rapaz, no aspecto e nas maneiras; porque não te preocupas com a tua pessoa. Para começar, não tens um ar muito cuidado, nem muito limpo e tornas-te feia com essa roupa e com a linguagem que usas. Achas normal, com dezasseis anos, ainda não te pareceres com uma rapariguita? Trepas às árvores como um esquilo, e quando saltas para cima de um cavalo sem rédeas, sem sela, galopas como se tivesses o diabo no corpo. É bom ser forte e ágil e também é bom não ter medo de nada, mas tudo isso é essencialmente vantajoso quando se é homem. Mas, numa mulher, o que é de mais não presta e parece que queres fazer-te notar. E não há dúvida de que reparam em ti, arreliam-te e gritam, atrás de ti. Tens um espírito vivo e respondes impertinências que provocam o riso naqueles a quem não são dirigidas. Também é bom ter mais espírito do que os outros, mas, de tanto o provar, arranjam-se inimigos. És curiosa e, quando descobres os segredos dos outros, atiras- lhos à cara maldosamente, logo que tens oportunidade. Isto torna-te temida, e as pessoas detestam aqueles a quem temem. Finalmente, bruxa ou não, acredito que tenhas conhecimentos, mas espero que não te tenhas entregue aos maus espíritos; tentas parecê-lo, para assustar os que te irritam, e isso também te cria fama. São estes os teus defeitos, Fanchon, e é por causa deles que as pessoas não te poupam. Pensa bem nisto e verás que, se quiseres parecer-te um pouco mais com as outras, ganharás em apreço de toda a gente.
- Obrigada, Landry - respondeu Fadette, com ar sério, depois de ter escutado o gémeo. Disseste-me mais ou menos o que toda a gente me censura, mas de forma honesta e delicada, sem me magoar. Mas, agora, se não te importas, senta-te um bocadinho a meu lado para te responder.
- Isto aqui não é mesmo nada agradável - protestou Landry, que não tinha grande desejo de se atardar com ela.
- Não achas o sítio agradável - continuou ela -, porque vocês, os privilegiados, são uns esquisitos. Precisam de um bom relvado para se sentarem, e podem escolher nos vossos campos e jardins os melhores lugares e as melhores sombras. Mas os que nada possuem, não exigem tanto e contentam-se com a primeira pedra para repousar a cabeça. Os espinhos não lhes ferem os pés, e onde quer que se encontrem, observam tudo o que há de bonito e agradável. Não há sítios feios ou desagradáveis, Landry, para aqueles que reconhecem todas as coisas boas que Deus fez. Eu, que não sou bruxa, sei para que servem todas essas ervas que esmagas com os pés; e reconhecendo o seu uso, olho para elas e não menosprezo o seu odor nem o seu aspecto. Digo-te isto, Landry, para te provar que se menospreza frequentemente o que não nos parece belo nem bom e que, por essa razão, por vezes, nos privamos do que é útil e salutar.
-Gostaria de entender onde queres chegar - adiantou Landry, sentando-se ao pé dela.
Silenciaram-se por momentos. A pequena Fadette mergulhara em profundos pensamentos. E Landry, embora sentindo a mente um bocado confusa, não podia impedir-se de sentir prazer em ouvir aquela rapariga, pois a voz era-lhe agradável e as palavras pareciam sensatas.
- Ouve, Landry - continuou ela -, eu devia ser mais lamentada do que censurada; e se tenho culpas para comigo, nunca tive nenhumas de grande importância para com os outros. Se este mundo fosse verdadeiramente justo, prestaria mais atenção ao meu bom coração do que ao meu mau aspecto e à minha roupa! Pensa na minha sorte desde que nasci. Não culparei minha pobre mãe, que toda a gente censura e insulta, apesar de ela não estar presente para se defender e sem que eu o possa fazer, eu, que nem sei bem o que ela fez de mal nem o que a levou a fazê-lo. Vê bem: as pessoas são tão funestas, que mal a minha mãe me abandonou e eu ainda a chorava amargamente, logo começaram a lançar-me à cara o seu pecado, para me marcarem para sempre. Talvez no meu lugar, uma rapariga razoável, como tu dizes, se tivesse refugiado no silêncio, capitulando na defesa da mãe e permitindo toda a casta de injúrias para se proteger a si própria. Mas eu não sou desse calibre. Seria de mais para as minhas forças. A minha mãe é minha mãe, e, seja ela o que quiserem, mesmo que a não volte a ver mais, amá-la-ei sempre. Assim, quando me chamam filha de galdéria ou feirante, fico logo com raiva, não por causa de mim, pois isso não me pode ofender, visto que nada fiz de mal, mas por causa dessa pobre mulher que tenho a obrigação de defender. E como não sei como proceder, vingo-a, dizendo aos outros as verdades que merecem e mostrando-lhes que não valem mais do que aquela a quem atiram pedras. É por isso, só por isso, que me acusam de bisbilhoteira e insolente, porque lhes descubro os segredos para os espalhar. Se gostar de descobrir coisas ocultas é curiosidade, então sim, sou curiosa. Mas, se tivessem sido humanitários comigo, eu não me lembraria de satisfazer a minha curiosidade à custa dos outros e ter-me-ia contentado em aprender os segredos que me ensina a minha avó para curar o corpo humano. As flores, as ervas, as plantas, todos os segredos da natureza chegariam para me ocupar e entreter, eu, que tanto gosto de vaguear por toda a parte. Estaria sempre sozinha, sem me aborrecer. O meu prazer é ir para os locais onde ninguém vai e sonhar sobre uma infinidade de coisas ao abrigo das maldades e dos ciúmes. Quando me quis aproximar mais das pessoas, por causa da vontade que tinha de ser prestável através dos pequenos conhecimentos que tinha adquirido, em vez de me agradecerem honestamente o que fiz pelas crianças da minha idade, a quem curava as feridas e as doenças e a quem ensinava alguns tratamentos sem nunca pedir o que quer que fosse em troca, chamaram-me bruxa, e aquelas que mansamente me vinham pedir auxílio, mais tarde, na primeira ocasião, insultaram-me. Toda essa maldade me enfurecia e podia tê- los pre judicado, pois se conheço coisas para fazer bem, também conheço outras para fazer mal; mas nunca as usei. Não sou rancorosa, e se me vingo em palavras, é porque fico aliviada dizendo tudo o que me vem à cabeça. Depois já não penso mais nisso e perdoo, como Deus manda. Quanto a não me preocupar com a minha pessoa, nem com as minhas maneiras, isso só prova que não sou tão idiota ao ponto de me julgar bonita. Sei pelo contrário que sou tão feia que ninguém é capaz de olhar para mim. Já mo disseram bastas vezes. E vendo como as pessoas são más e altivas para aqueles que Deus não favoreceu, fiz questão de lhes desagradar, consolando-me com a ideia de que o meu aspecto nada tinha de repelente para Deus. Não sou dos que, quando vêem algum bicho, exclamam Oh que bicho horroroso! Que feio! É preciso matá-lo! Eu não esmago a pobre criatura, antes pelo contrário, ajudo-a. Por causa disso, dizem que gosto dos bichos maus e que sou bruxa, porque não gosto de fazer sofrer nenhum animal. Se tivesse que se matar tudo o que é feio, eu não teria mais direito de viver do que os bichos.
Landry ficou emocionado como a pequena Fadette falava humilde e tranquilamente da sua falta de beleza. Daí que, recordando a sua cara, na ocasião dissimulada pela obscuridade da pedreira, lhe dissesse, sem pensar em lisonjeá-la:
- Ouve, Fadette, tu não és feia como julgas. Há algumas bem mais feias do que tu e ninguém as critica.
- Posso ser um pouco mais ou um pouco menos, mas não podes dizer, Landry, que sou uma rapariga bonita. Não precisas consolar-me, porque isso não me entristece.
- Quem sabe como serias se te vestisses e penteasses como as outras? Se não tivesses a pele tão escura, serias porventura mais atraente. Mas há uma coisa com a qual toda a gente concorda: não há olhos como os teus, e, se não tivesses um olhar tão trocista, seria agradável ser- se observado por eles.
Landry falava sem se dar muito bem conta do que dizia. Estava a recordar-se dos defeitos e das qualidades da pequena Fadette; e, pela primeira vez, prestava a isso uma atenção e um interesse de que não se julgaria capaz momentos antes.
- Os meus olhos vêem o que é bom e o que não é. Assim, consolo-me de irritar a quem não me agrada. Não compreendo porque é que as raparigas bonitas cortejadas são vaidosas com toda a gente, como se todos fossem ao seu gosto. Por mim, se fosse bela, só gostaria de o parecer para aquele que me agradasse.
Landry pensou em Madelon, mas Fadette impediu- o de se atardar nesse pensamento, continuando a falar:
- Toda a minha culpa para com os outros, Landry, é de não procurar a piedade ou a indulgência com a minha fealdade. É mostrar-me sem qualquer disfarce, e isso escandaliza-os e fá- los esquecer que lhes fiz sempre bem, nunca mal. Por outro lado, mesmo que me aperaltasse, onde arranjaria eu o dinheiro para me vestir bem? Alguma vez mendiguei, embora sem um centavo de meu? A minha avó dá-me alguma coisa mais que comida e dormida? E, se não sei tirar partido dos trapos que minha mãe me deixou, será culpa minha, se ninguém me ensinou e se desde os dez anos vivo abandonada, sem amor nem piedade de ninguém? Bem conheço a censura que me fazem! Dizem que tenho dezasseis anos e que podia muito bem empregar-me, tendo assim possibilidade de me sustentar, mas que a preguiça e a vagabundice me retêm junto de minha avó, que todavia não gosta nada de mim e que tem meios para pagar a uma criada.
- E então, Fadette, não é mesmo assim?perguntou Landry. - Pois é verdade, acusam-te de não gostares de trabalhar, e é a tua própria avó que diz a quem quer ouvi-la que lhe ficaria muito mais em conta se metesse uma criada no teu lugar.
- A minha avó não diz isso do coração. Gosta é de ralhar e de se lamentar. Tanto que, quando falo em deixá- la, retém-me, porque sabe que lhe sou mais útil do que quer confessar. Já não tem os olhos nem as pernas de quando tinha quinze anos para procurar as ervas com que prepara as poções e os pós, e algumas só se encontram bem longe daqui e em locais difíceis. Além de que, como já disse, eu própria descubro nas ervas virtudes que ela desconhece, e fica espantada quando preparo poções das quais vê em seguida o bom efeito. Sobre os nossos animais, estão tão catitas e saudáveis que as pessoas se surpreendem ao saberem que o rebanho pertence a gente como nós. A minha avó bem sabe a quem deve ovelhas com tão boa lã e cabras com tão bom leite! Eu sei que ela não tem vontade nenhuma que a deixe, e eu gosto dela, embora me maltrate e me prive de muitas coisas. Mas ainda tenho outra razão para não a deixar. - e fez uma extensa pausa.
- Então, Fadette?! - despertou-a Landry.
- A minha mãe deixou-me a braços, quando eu tinha apenas dez anos, com uma pobre criança muito feia, tão feia como eu e ainda mais desgraçada, pois é coxa de nascença, enfezada, doente, vivendo sempre no desgosto e na maldade, em contínuo sofrimento! Toda a gente a arrelia e repele, é o meu pobre saltão! A minha avó está constantemente a ralhar-lhe e bater-Lhe-ia também se eu o não defendesse, fingindo bater-lhe no seu lugar.
Tenho sempre o cuidado de o não magoar, e ele bem o sabe. Tanto que quando faz uma asneira, vem logo esconder-se nas minhas saias e pede-me:
Bate-me antes que a avó me apanhe. E eu bato-lhe a brincar, enquanto ele grita a fingir. E depois também trato dele; nem sempre o posso impedir de andar esfarrapado, coitado; mas, quando tenho alguns trapos, arranjo-os para ele vestir; trato-o quando está doente, enquanto a minha avó o deixaria morrer, porque ela não tem jeito para cuidar de crianças. Enfim, tento manter, com vida, aquele enfezadinho, que sem mim seria bem mais infeliz e não tardaria a morrer. Nem sei se estou a ajudá-lo fazendo-o viver, deformado como é; mas é mais forte do que eu, Landry, e quando penso em arranjar alguma coisa para ter dinheiro meu e sair da miséria em que vivo, o meu coração enche-se de piedade, como se fosse sua mãe e o abandonasse, deixando-o morrer por minha culpa. Eis todos os meus defeitos e as minhas culpas! Agora, Deus me julgue; eu perdoo àqueles que não me conhecem!
Uma amizade sincera
Landry escutou a pequena Fadette com o maior dos interesses, e quando, por último, ela falou do irmãozinho, o saltão, sentiu de repente um enorme carinho por ela, desejando tomar o seu partido contra toda a gente.
- Desta vez, Fadette - disse -, quem não te der razão será o primeiro a não ter razão alguma, pois com tudo o que disseste, ninguém pode duvidar do teu bom coração e do teu bom raciocínio. É pena que não te dês a conhecer tal como és. Ninguém falaria mal de ti e muitos te fariam justiça.
- Já te disse, Landry. Não preciso de agradar a quem não me agrada.
- Mas então, se mo dizes a mim, é porque me tens alguma estima? - admirou-se Landry. - A verdade é que eu julgava que me detestavas por causa de nunca ter sido bom para ti.
- Admito que te tenha odiado um poucorespondeu a pequena -, mas, se isso aconteceu, não voltará a suceder e vou dizer-te porquê: Julgava-te orgulhoso, e és; mas sabes dominar o teu orgulho para cumprir a tua obrigação, e isso tem muito mérito; julgava-te ingrato, mas és tão fiel à tua palavra que tudo fazes para a cumprir; enfim, julgava-te poltrão e isso levou-me a desprezar-te, mas vejo que não te falta coragem, quando se trata de defrontar um perig real; e dançaste hoje comigo, apesar disso te humilhar; até foste buscar-me ao pé da igreja, quando já te tinha perdoado e não pensava mais em te atormentar; defendeste-me contra aqueles malvados rapazes e provocaste alguns que, sem ti, me teriam maltratado; finalmente, ao ouvires-me chorar, vieste ajudar-me e consolar-me. Não penses, Landry, que alguma vez esquecerei estas coisas. Terás toda a vida a prova de que te fico reconhecida, e poderás sempre exigir de mim o que quiseres, em qualquer momento.
Assim, para começar, sei que hoje te causei um grande desgosto. Se soubesse que estavas apaixonado por Madelon, não teria provocado uma zanga entre vocês, como fiz ao forçar-te a dançar comigo.
Concordo que me deu gozo ver que, para dançares com uma feiosa como eu, puseste de lado uma bela rapariga, mas julgava que não passava apenas de uma pequena ferroada no teu amor-próprio.
Quando, pouco a pouco, compreendi que sofrias realmente, que, embora sem querer, olhavas continuamente para o lado de Madelon e que o seu desprezo te dava vontade de chorar, também chorei.
É verdade, Chorei no momento em que quiseste lutar com os amigos dela, e tu julgaste que eram lágrimas de arrependimento. Eis a razão por que estava a chorar tão amargamente quando me surpreendeste e chorarei até ter reparado o mal que te causei.
- E supondo, minha pobre Fanchon - perguntou Landry, emocionado com as lágrimas que de novo lhe saltavam -, que tenhas provocado uma zanga com a rapariga por quem estava apaixonado, que poderias então fazer para me reconciliares com ela?
- Confia em mim, Landry. Não sou tão parva que não me saiba explicar como deve ser. Madelon ficará a saber que fui a culpada de tudo. Confessar-me-ei, e se ela não te devolver a sua amizade amanhã, é porque nunca te amou e...
- E que não a devo lamentar, não é, Fanchon? E como, realmente, ela nunca me amou, vais ter um trabalho inútil. Olha, não faças isso. Consola-te antes do pequeno desgosto que me causaste. A mim já me passou.
- Tais dores não passam tão depressa - retorquiu Fadette. - Pelo menos é o que dizem. É o despeito que fala por ti, Landry. Amanhã andarás tão triste que não descansarás enquanto não fizeres as pazes com essa bela rapariga.
- É possível - disse Landry -, mas neste momento não o entrevejo. Parece-me que és tu que me queres fazer acreditar que tenho uma grande amizade por ela. Pois se a tive, era tão pequena que já quase não me lembro dela.
- Então é assim que os rapazes amam?indagou Fadette.
- Ora essa! As raparigas também não são melhores, já que se escandalizam tão facilmente e se satisfazem tão depressa com o primeiro que aparece. Mas estamos a falar de coisas que ainda não compreendemos bem, pelo menos tu, que estás sempre a troçar dos namorados. Tenho a impressão que te estás a divertir à minha custa, querendo reconciliar-me com Madelon. Insisto que não o faças, pois ela poderia julgar que fui eu que te pedi para o fazeres. E depois, talvez fique zangada, porque a verdade é que nunca lhe disse uma palavra de amor, e embora me agrade estar ao pé dela e fazê-la dançar, ela nunca me encorajou. Por isso, deixemos passar o tempo, e se ela quiser, que volte por si própria, mas também, se não voltar, acredita que não morro.
- Acredito-te ao dizeres que nunca manifestaste a Madelon a tua amizade. Mas também seria preciso muita ingenuidade para ela não o perceber nos teus olhos, sobretudo hoje. Uma vez que eu fui a causa da vossa zanga, é justo que seja também a causa do vosso entendimento e é uma boa ocasião para dar a entender a Madelon que a amas. Confia na pequena Fadette, Landry, no malvado grilo que não tem o interior tão feio como o exterior. E perdoa-me por te ter atormentado. Ficarás a saber que, se é bom ter o amor de uma bela, é útil ter a amizade de uma feia, visto que as feias são desinteressadas e nada lhes provoca despeito nem rancor.
- Isso de belezas, não é importante, Fanchon - disse Landry pegando-Lhe na mão. - Importante é ter uma certeza: a tua amizade é uma coisa muito boa; tens um coração generoso, pois fiz-te uma grande afronta, a que não fizeste referência, e quando dizes que me conduzi bem contigo, acho que me comportei grosseiramente.
- Como foi isso, Landry? Não estou a ver...
- É que nem um único beijo te dei no baile, Fadette, e no entanto era meu dever e meu direito. Pois é costume. Tratei-te como se fosses uma miúda de dez anos, e contudo tens quase a minha idade. Isso foi uma ofensa, e se não fosses tão boa rapariga, ter-te-ias apercebido.
- Nem sequer me lembrei disso - respondeu Fadette, que se levantou, pois sentia que mentia e não queria dá- lo a entender. - Escuta - exclamou, tentando parecer alegre - como os grilos cantam e chamam pelo meu nome; e também a coruja, ali, a gritar-me as horas que as estrelas marcam no quadrante do céu!
- Também a ouço e tenho de voltar a Priche; mas antes de partir, Fadette, não me queres perdoar?
- Mas eu não te desejo mal por isso, Landry, e não tenho nada a perdoar-te.
- Sim - disse Landry, agitado desde que ela lhe falara em amor e amizade, numa voz tão suave.
- Sim, deves-me um perdão, deixando-me dar-te o beijo que não te dei quando devia.
A pequena Fadette estremeceu. Depois, retomando o bom humor:
- Tu queres que eu te perdoe o erro com um castigo. Considero-te desobrigado. Já foi muito teres dançado com a feia. e seria demasiado doloroso querer beijá-la!
- Não digas isso - exclamou Landry, pegando-lhe na mão. - Acho que dar-te um beijo não é castigo nenhum. a não ser que isso te desagrade, partindo de mim.
Assim que disse isto, sentiu tal desejo de beijar Fadette, que tremeu com receio de ela não consentir.
- Escuta, Landry - disse-lhe ela, na sua voz suave e meiga -, se eu fosse bela, dir-te-ia que não é sítio nem hora de andarmos aos beijos. Se fosse vaidosa, pensaria, pelo contrário, que são horas e o sítio ideais, porque a noite esconde a minha fealdade e não há ninguém para te envergonhar da tua fantasia. Mas, como não sou vaidosa, nem bela, antes pelo contrário, vamos apenas apertar as mãos em sinal de boa amizade e ficarei contente por ser tua amiga.
- Está bem - respondeu Landry -, aperto-te a mão com todo o gosto. Mas a mais honesta amizade, que é a que tenho por ti, não impede de trocarmos um beijo. Se me negas isso, vou pensar que ainda tens qualquer coisa contra mim.
E Landry tentou dar-lhe um beijo de surpresa; mas ela ofereceu resistência e, como ele insistisse, desatou a chorar, dizendo:
- Larga-me, Landry, estás a ser mau.
Landry parou, espantadíssimo e penalizado com a sua reacção.
- Estou a ver - disse - que não falas verdade quando dizes que a minha amizade é a única que te interessa. Tens uma maior que te impede de me dares um beijo.
- Não, Landry - respondeu ela a soluçar -, mas tenho medo que, se me beijares de noite, sem me ver, me odeies quando me vires de dia.
- Então eu nunca te vi? - perguntou Landry impaciente. - Não te estou a ver neste momento? Olha, aproxima-te mais da claridade da Lua. Agora estou a ver- te bem e não sei se és feia, mas gosto da tua cara porque gosto de ti, pronto!
E em seguida beijou-a, primeiro a tremer, mas depois repetiu-o com tanto gosto que ela assustou-se e disse- lhe, empurrando-o:
- Basta, Landry! Basta! Parece que me abraças com braveza ou que pensas em Madelon. Acalma-te, falarei com ela amanhã, e amanhã poderás beijá-la com mais alegria do que aquela que eu te posso dar.
Dizendo isto, deixou rapidamente a pedreira e partiu no seu passo ligeiro.
Landry ficou como louco, com vontade de correr atrás dela. Hesitou três vezes antes de se resolver a seguir para os lados da ribeira. Depois, desatou também a correr e só parou em Priche.
Ao alvorecer do dia seguinte, quando levou os animais para a pastagem, pensou na conversa que tivera na pedreira com Fadette. Ainda sentia a cabeça um pouco tonta devido aos acontecimentos da véspera. E estava perturbado e quase assustado pelo que sentira pela rapariga, que Lhe aparecia diante dos olhos feia e mal vestida, como sempre a conhecera. Considerou por momentos ter sonhado o prazer que tivera de a beijar, e o contentamento que sentira ao apertá-la contra ele como se, de repente, ela lhe tivesse parecido mais bela e mais amável do que qualquer outra rapariga do mundo.
Deve ser feiticeira, como dizem, pensava, por certo que me enfeitiçou ontem à noite, porque nunca em toda a vida senti pelos meus pais, nem pela bela Madelon, nem mesmo pelo meu querido Sylvinet, um impulso de amizade semelhante ao que, durante dois ou três minutos, essa diabinha me inspirou. Se Sylvinet conseguisse ler o que me ia na mente; de certeza que morria de ciúmes. A afeição que eu tinha por Madelon em nada prejudicava o meu irmão, mas se tivesse de ficar o dia inteiro transtornado e irrequieto como fiquei junto daquela Fadette, dava em doido num instante.
E Landry sentia-se envergonhado, fatigado e impaciente. Sentado junto dos animais, receava que a feiticeira lhe tivesse roubado a coragem, a razão e a saúde.
O pior foi quando os trabalhadores de Priche começaram a troçar por ele ter dançado com o grilo, e a fizeram tão feia, tão mal educada, tão mal ataviada, com as suas zombarias, que ele não sabia onde se meter, tal a vergonha que sentia, não só por aquilo que eles viram, mas também do que guardava só para si.
Contudo, fez por não ligar, porque as pessoas de Priche eram suas amigas e as suas brincadeiras eram sem maldade. Teve até a coragem de lhes dizer que Fadette não era o que julgavam, que valia o mesmo que as outras e que era capaz de ser bon dosa. Foi o bonito, ainda troçaram mais dele:
- A mãe, não digo que não - ouviu-se -, mas ela é uma criança que não sabe nada e, se tiveres algum bicho doente, não te sugiro que sigas os seus tratamentos, pois é uma fala-barato que não tem nenhum segredo para curar. Mas, ao que parece, tem o de seduzir rapazes, já que tu não a largaste no dia de Santo Andoche. Será bom que tomes cuidado, meu pobre Landry, senão, em breve, chamar- te-ão o grilo ou o duende da Fadette.
Mais tarde, quando Landry se ocupava das sementeiras, Fadette passou, ao longe, na estrada. Ia a bom passo, dirigindo-se para uma mata onde Madelon estava a apanhar ervas para as ovelhas. Landry parou a olhá-la, tão ligeira que nem parecia pisar o chão. Lembrou-se, e curioso de saber o que ela ia contar a Madelon, em vez de se apressar a ir almoçar, pois estava na hora, avançou antes silenciosamente ao longo da mata, para escutar a conversa das duas raparigas. Não as conseguia distinguir, Madelon resmungava em voz surda, sem se perceber o que dizia; já a voz de Fadette era perceptível, suave e bem nítida e ele não perdeu nenhuma das suas palavras. Falava dele a Madelon e informava-a de que prometera a Landry, do compromisso feito dez meses antes: estar às suas ordens para qualquer coisa que ela exigisse. Falava de uma forma tão humilde e gentil que era um prazer ouvi-la. E depois, sem falar no duende nem do pavor de Landry, contou como ele quase se afogara, na véspera do Santo Andoche. Enfim, demonstrou que todo o mal viera dela, da fantasia e da vaidade que tivera em dançar com um rapaz, ela, que sempre dançara só com os da sua laia.
Então, Madelon, encolerizada, elevou a voz.
- E que tenho eu a ver com isso? Podes continuar a dançar com os gémeos, pois não julgues, grilo, que com isso me causas qualquer desgosto, ou inveja.
- Não sejas tão cruel para com o pobre Landry, Madelon, pois o seu coração pertence-te e se não quiseres reconciliar-te, ele terá um desgosto que nem podes imaginar.
E continuou a falar, utilizando palavras tão bonitas e num tom tão carinhoso, louvando de tal modo Landry, que ele corava de prazer ao ouvir-se elogiado assim.
Madelon também ficou admirada com a fluência da pequena Fadette. Mas desprezava-a demasiado para lho testemunhar.
- Tens um belo palavreado, não haja dúvida! - disse. - Parece que aprendeste bem a lição com a tua avó para enganar as pessoas. Mas eu não gosto de falar com bruxas, dá azar, por isso faz o favor de me deixares, feiosa. Arranjaste um galã, fica com ele, minha querida, pois é o primeiro e o último a quem a tua cara agradará. Quanto a mim, querida, bem vês, não me ficaria bem tomar os teus restos. O teu Landry não passa de um asno e deve ser um tipo sem interesse para que tu, julgando teres-mo tirado, me venhas já pedir que o receba. Mas que rica prenda para mim, se nem à pequena Fadette interessa!
- Se é isso que te ofende - refutou Fadette num tom que emocionou profundamente Landry -, e se és orgulhosa ao ponto de só seres justa depois de me humilhares, alegra-te e pisa o orgulho e a coragem deste pobre grilo. Julgas que desprezo Landry e que, se assim não fosse, não suplicaria que lhe perdoasses. Pois fica sabendo que o amo há já muito tempo, que é o único rapaz em quem alguma vez pensei. Mas também sou suficientemente sensata e orgulhosa para pensar poder vir a ser amada por ele. Sei o que ele é e o que eu sou. Ele é belo, rico e afamado. Eu sou feia pobre e desesperada. Sei portanto que ele não é para mim. E deves ter visto como ele me desdenhava na festa.
Alegra-te pois, visto que aquele a quem Fadette nem sequer ousa fitar, vê-te com os olhos cheios de amor. Castiga-me recuperando aquele que eu nunca ousaria disputar. Se não for por amizade por ele, pelo menos que seja para castigar o meu atrevimento; e promete-me que, quando ele vier pedir-te desculpas, o receberás bem e o consolarás da melhor maneira.
Em vez de se apiedar com tanta submissão e dedicação, Madelon mostrou- se cruel e despediu a pequena Fadette, continuando a dizer que Landry era exactamente aquilo que lhe convinha e que, quanto a ela, o achava demasiado infantil e já não Lhe interessava. Mas o enorme sacrifício de Fadette deu os seus frutos, apesar do mau acolhimento da bela Madelon. O coração das mulheres é assim feito: um rapaz começa a parecer-lhes um homem assim que o vêem admirado e acarinhado por outras mulheres. Madelon, que nunca pensara muito a sério em Landry, começou a considerá- lo doutra maneira assim que Fadette partiu. Relembrou tudo o que esta lhe dissera sobre o amor de Landry e, ao pensar que Fadette estava apaixonada por ele ao ponto de lho ousar confessar vangloriou-se de poder tirar vingança daquela pobre rapariga.
À noite foi até Priche, pouco distante de sua casa, e fingindo procurar um dos seus animais, que fugira para o mato, aproximou-se de Landry, encorajando-o com o olhar a falar com ela.
Landry apercebeu-se perfeitamente disso, pois, desde que tivera aquela conversa com Fadette, tinha as ideias mais claras. Fadette é mesmo feiticeira, pensou, recuperou-me as atenções de Madelon e fez mais por mim, num quarto de hora, do que eu faria num ano. Tem um espírito surpreendente e um coração de uma bondade rara.
Enquanto pensava nisto, observava Madelon, mas tão calmamente que ela se afastou sem se ter decidido a falar. Não por sentir vergonha diante dela - a vergonha desaparecera sem ele saber como - mas porque lhe desapareceu também o prazer que costumava sentir ao vê- la e o desejo de ser amado por ela.
Assim, logo que acabou de jantar, em vez de ir dormir, saiu para a rua, deslizando ao longo dos muros, na direcção do vau das Roulettes. Passou o vau sem qualquer receio, sem se enganar, e foi até à casa da tia Fadet, olhando para todos os lados. Ficou por ali à espreita, durante tempo infinito, mas não viu luz nem ouviu qualquer ruído. Estavam todos deitados. Esperava que o grilo, como saía muitas vezes à noite depois da avó e do irmão adormecerem, andasse por aí a vaguear. Atravessou o Juncal, foi até à pedreira, assobiando e cantando para ser ouvido. Mas nada mais encontrou a não ser uma coruja, piando numa árvore. Viu-se assim forçado a regressar a casa e gorada a oportunidade de agradecer à boa amiga o que por ele fez.
Uma nova Fadette
A semana passou-se sem que Landry conseguisse encontrar Fadette, o que o preocupou. Vai julgar-me outra vez ingrato, pensava, e, no entanto, se não a vejo, não é por falta de a procurar. Devo tê-la ofendido ao beijá-la quase à força na pedreira, apesar de ser sem má intenção da minha parte.
E durante toda a semana andou pensativo, agitado, confuso, tentando ver as coisas com clareza. Obrigava-se a trabalhar, pois nem os potentes animais, nem a charrua reluzente, nem a boa terra para lavrar, encharcada pela chuva de Outono, eram agora suficientes para lhe preencher os dias.
Foi visitar o irmão na quinta-feira à noite e encontrou-o tão preocupado quanto ele. Sylvinet era de carácter diferente, mas semelhante em muitos pontos. Dir-se-ia que adivinhava que algo perturbava a paz de espírito do irmão, e todavia estava longe de desconfiar do que se tratava. Perguntou-lhe se já tinha feito as pazes com Madelon e, pela primeira vez, ao responder afirmativamente, Landry disse uma mentira. O facto era que Landry não trocara uma palavra sequer com Madelon e pensava ter muito tempo para isso. Não tinha pressa.
Finalmente, chegou o domingo e Landry foi dos primeiros a aparecer na missa. Entrou antes do sino tocar, pois sabia que a pequena Fadette tinha o costume de ir mais cedo, porque fazia sempre longas orações. Viu uma pequena, ajoelhada na capela, que, de costas voltadas, escondia a cara entre as mãos para rezar em recolhimento. Se era exactamente a postura da pequena Fadette, não eram nem as suas roupas, nem o seu aspecto, e Landry saiu para ver se a encontrava debaixo do pórtico. Também ali não a encontrou.
Ouviu a missa começar sem a descobrir, e só no final é que, ao olhar para aquela rapariga que rezava com tanta devoção, na capela, a viu levantar a cabeça e reconheceu, mas vestida de forma bem diferente da habitual. Eram na mesma trajes muito humildes, mas tinham embranquecido e estavam ajustados à sua medida e tudo isso feito durante a semana. O vestido estava mais comprido e caía mais certinho sobre as meias, muito branquinhas, assim como a touca, à qual dera o feitio que agora se usava, graciosamente atada sobre os seus cabelos negros bem penteados; o lenço que trazia ao pescoço era novo, de um lindo tom amarelo, que fazia realçar a sua pele morena. Também alongara o corpete e agora, em vez de parecer uma vara vestida, tinha a cintura fina e flexível, como uma vespa. Além disso, com que mistura de flores ou plantas teria lavado a cara e as mãos? O rosto pálido e as mãos delicadas pareciam tão limpos e suaves como uma manhã de Primavera.
Ao vê-la assim transfigurada, Landry deixou cair o missal, cujo barulho fez a pequena Fadette voltar-se, fitando-o, cruzando-se os olhares. Ela corou ligeiramente, o que a fez parecer mais bonita, tanto mais que os olhos negros, lindos de verdade, deixaram escapar um brilho tão claro que irradiava simpatia. E Landry pensou uma vez mais: É feiticeira. De feia que era, quis e ficou bela, e eis o milagre. Agradavelmente surpreso e até com desejo de se aproximar e de lhe falar, ficou, porém com o coração aos pulos de impaciência.
Mas ela não tornou a mirá-lo, e em vez de se pôr a brincar e a correr com as outras crianças após a missa, foi-se embora tão discretamente que as pessoas mal tiveram tempo de ver aquela brusca mudança. Landry não se atreveu a segui-la, tanto mais que Sylvinet não o largava, mas, ao fim de uma hora, conseguiu escapar-se e foi dar com a pequena Fadette a conduzir tranquilamente os animais num pequeno carreiro.
Ao chegar junto dela já a viu entretida com um passatempo bem conhecido de Landry. Procurava trevos de quatro folhas, muito raros e que as raparigas dizem dar sorte a todos aqueles que lhe deitarem a mão.
- Encontraste algum, Fanchon? - perguntou Landry.
- Já os encontrei muitas vezes – respondeu -, mas nunca me deram sorte, ao contrário do que se julga, e de nada me serve ter três no meu livro.
Landry sentou-se a seu lado, como se fosse conversar. Mas de repente sentiu-se dominado por uma timidez como nunca tivera junto de Madelon, não conseguindo sequer articular palavra, das muitas que tinha para dizer.
Fadette também se sentiu intimidada, pois, embora o gémeo não dissesse nada, fitava-a todavia com olhar estranho. Até que lhe perguntou porque parecia espantado ao oihar para si.
- Surpreende-te o meu novo aspecto? - disse.
- Decidi seguir o teu conselho e pensei que, para ter um ar razoável, era preciso começar por me vestir razoavelmente. Mas receio mostrar-me, pois temo que agora me censurem por causa disso e digam que me quis tornar menos feia sem o conseguir.
- Digam o que quiserem - disse Landry. A metamorfose resultou e a verdade é que estás bonita. Só um cego o não veria.
- Não brinques, Landry - pediu a pequena.
- Dizem que a beleza dá a volta à cabeça das raparigas e que a fealdade faz o desgosto das feias. Não gostaria de tornar-me tola julgando agradar. Mas não era disto que me vinhas falar, e espero que me digas se Madelon te perdoou.
- Não venho para te falar de Madelon. Não sei se me perdoou ou não, e estou pouco interessado nisso. Só sei que falaste com ela, e estou-te muito agradecido por isso.
- Como é que sabes que falei com ela? Então ela disse-to? Nesse caso, fizeram as pazes.
- Não fizemos pazes nenhumas! Mas também não gostamos suficientemente um do outro para andarmos em guerra. Sei que falaste com ela porque ela o contou a alguém que mo contou.
Fadette corou profundamente, o que a tornou ainda mais bonita, pois nunca até esse dia tivera na face essa bonita cor de receio e prazer que compõe as mais feias. Mas, ao mesmo tempo, inquietou-se ao pensar que Madelon poderia ter divulgado as suas palavras e expô-la à zombaria de todos por causa do amor que ela confessar a sentir por Landry.
- Que disse então Madelon de mim?atreveu-se a perguntar.
- Disse que eu era um asno, que não agradava a nenhuma rapariga, nem mesmo à Fadette, a qual me desprezava e fugia e se escondera de mim durante toda a semana para não me ver, enquanto eu a procurava e corria tudo que era sítio na esperança de a encontrar. Sou portanto eu o alvo de troça de toda a gente, Fanchon, porque toda a gente sabe que eu te amo e que tu não me amas.
- Que palavras essas! - respondeu Fadette, muito admirada, pois não descortinou que, naquele momento, Landry estivesse a ser mais fino do que ela. - Não sabia que Madelon era tão mentirosa e tão pérfida. Mas deves perdoar-lhe isso, Landry, pois é o despeito que a faz falar assim, e o despeito significa amor.
- Talvez seja assim - replicou Landry. - É por isso que não te sentes despeitada comigo, Fanchon. Perdoas-me, porque de mim desprezas tudo.
- Não sejas ingrato, Landry. Não mereço isso. Nunca fui suficientemente louca para dizer mentiras como essas. Falei de outro modo com Madelon. O que lhe disse era só para ela, mas não te podia prejudicar, pelo contrário, deveria provar-lhe a estima que tenho por ti.
- Bom, Fanchon - disse Landry -, não vamos agora discutir sobre o que disseste e o que não disseste. Quero-te pedir conselho, a ti, que és sensata. Domingo passado, na pedreira, comecei a tomar por ti, sem saber bem como, uma amizade tão forte que em toda a semana não comi nem dormi de jeito. Não te vou esconder nada, porque a uma rapariga tão ladina como tu não escapa nada. Confesso que tive vergonha desta súbita amizade na segunda-feira de manhã, e desejava ir para muito longe para não tornar a cair na mesma loucura. Mas, à noite, já estava na mesma, de tal forma que passei o vau já escuro, sem me preocupar com qualquer duende. Desde segunda-feira que pareço um imbecil, com todos a troçarem de mim por causa da minha inclinação por ti; e todos os dias esta inclinação é cada vez mais forte. E finalmente hoje, vejo-te tão mudada e com um aspecto tão agradável. Toda a gente vai ficar admirada! E se continuas assim, em menos de quinze dias, não só me perdoarão estar apaixonado por ti, como surgirão outros caidinhos por ti. Mas se te lembrares de domingo passado, dia de Santo Andoche, também te lembrarás que te pedi, na pedreira, permissão para te beijar e que o fiz como se não fosses feia e odiosa. Diz-me se isto não conta e se isso te chateia em vez de te convencer.
Fadette escondera a cara entre as mãos e não deu resposta. Landry, pelo que tinha ouvido da sua conversa com Madelon, estava convencido que era
amado por ela. Mas, ao ver a sua atitude envergonhada e triste, começou a temer que ela tivesse contado histórias a Madelon para, com boa intenção, conseguir a reconciliação. Isso tornou-o ainda mais apaixonado e mais triste. Retirou-lhe as mãos do rosto e viu-a tão pálida que parecia ir desfalecer.
E como a acusava por não responder ao que sentia por ele, Fádette deixou-se cair no chão, suspirando, desmaiada.
Landry ficou muito assustado e bateu-lhe nas mãos para a fazer voltar a si. As mãos estavam frias e rígidas. Aqueceu-as, esfregando-as durante muito tempo nas suas e, quando ela pôde de novo falar, disse:
- Estás a divertir-te à minha custa, Landry. Mas há coisas com que não se deve brincar. Deixa-me tranquila e nunca mais me fales, a não ser que precises de me pedir algo, nesse caso estarei sempre ao teu dispor.
- Fadette, Fadette - exclamou Landry -, o que dizes não é justo. Foste tu que troçaste de mim. Detestas-me, e no entanto fizeste-me crer noutra coisa.
- Eu! - ripostou ela, aflita. - Que te fiz eu crer? Dei-te uma franca amizade, como a que o teu gémeo tem por ti, e talvez até melhor, pois eu não tenho ciúmes e, em vez de te estorvar nas tuas outras amizades, até te ajudei.
- É verdade - concordou Landry. - Foste boa como um anjo e eu comportei-me mal, censurando-te. Perdoa-me, Fanchon, e deixa-me amar-te como puder. Prometo-te nunca mais te beijar, se isso te desagrada.
E Landry convenceu-se de que a pequena Fadette só tinha por ele uma pacífica amizade. Isso deixou-o tão receoso e tão acanhado junto dela como se não tivesse escutado a sua conversa com Madelon.
Quanto a Fadette, era suficientemente esperta para reconhecer, finalmente, que Landry gostava mesmo dela, e fora por causa dessa emoção tão intensa que desmaiara. Mas temendo perder demasiado depressa uma felicidade tão depressa ganha, não queria revelar imediatamente os seus sentimentos a fim de dar tempo a Landry de desejar vivamente o seu amor.
Ficou junto dela até ao anoitecer, e embora já não ousasse dirigir-lhe elogios, estava tão encantado e tinha tanto prazer em olhá-la e ouvi-la falar que não conseguia decidir-se a deixá-la. Brincou com o saltão, que nunca andava muito longe da irmã. Mostrou-se bom para com ele e logo se percebeu que a pobre criança, tão maltratada por toda a gente, não era nem parva, nem má com quem a tratava bem. Ao cabo de uma hora estava tão cativado e tão reconhecido que beijava as mãos do gémeo e lhe chamava meu Landry como chamava à irmã minha Fanchon. Landry enternecia-se pelo pequeno, achando toda a gente e ele próprio grandemente culpados em relação às duas pobres crianças da tia Fadet, as quais só careciam, para serem as melhores de todas, de um pouco de amor como qualquer criança.
Nos dias seguintes, Landry conseguiu ver a pequena Fadette, ora à noite, ora de dia, e então podia conversar um pouco com ela, procurando-a nos campos. E embora ela não pudesse parar muito tempo, sob pena de faltar às suas obrigações, ele ficava contente por lhe dizer algumas palavras e devorá-la com os olhos. E ela continuava a ter modos gentis no falar, a ser cuidadosa no vestir e no tratamento com toda a gente, o que fez que as pessoas se acautelassem e em breve mudassem o seu comportamento para com ela. Aos seus olhos já não fazia nada de condenável, e por isso deixaram de a injuriar. Em contrapartida, ela, como deixou de ouvir insultos, nunca mais teve a tentação de provocar ou arreliar alguém.
Mas, como a opinião das pessoas não muda assim tão rapidamente, ainda iria decorrer algum tempo antes que passassem do desprezo à consideração. De início não fizeram grande caso do aprumo da pequena Fadette.
Quatro ou cinco bons velhinhos, daqueles que gostam de observar o crescimento da juventude cOm indulgência, cavaqueavam por vezes entre si observando todos aqueles jovens fervilhando em seu redor, uns jogando ao chinquilho, outros dançando. E deles se ouviu:
- Este dará um bom soldado, se continuar assim, pois tem boa estatura; aquele será esperto e sabido como o pai; aqueloutro terá o juízo e a tranquilidade da mãe; a jovem Lucette promete ser uma boa trabalhadora; olha para o grande Louis, que bonitão; e quanto à pequena Marion, deixem-na crescer e será como as outras.
E quando chegou a vez dos comentários à pequena Fadette, ouviu-se:
- Anda fugida - dizia um -, nem quer dançar, nem brincar. Ninguém lhe põe mais a vista em cima. Parece que ficou muito zangada por os rapazes lhe terem tirado a touca no baile; por isso modificou aquela enorme coisa e, agora, não parece mais feia do que outra qualquer.
- Repararam como anda com a pele mais branca? - observou por sua vez uma velhota.
A cara parecia um ovo de codorniz, de tanta sarda, mas da última vez que a vi de perto fiquei admirada por a encontrar tão branca e tão pálida, que lhe perguntei se não estava doente. Vendo-a como está agora, parece que tudo se vai compor, e, quem sabe? Há feias que se tornam belas quando atingem a adolescência.
- Também ficam mais atinadas - continuou um outro velhote. - Uma rapariga, ao senti-lo, aprende a tornar-se elegante e agradável. Já era tempo do grilo se aperceber que não era nenhum rapaz. Meu Deus, toda a gente pensava que se iria portar mal, o que seria uma vergonha para a aldeia. Mas há-de ter juízo e emendar-se como as outras. Há-de sentir que tem de se fazer perdoar por ter tido uma mãe tão ingrata, e verão que nunca mais se falará dela.
- Deus queira - disse outro -, pois é feio uma rapariga parecer um bicho selvagem. Mas tenho esperanças nessa Fadette, pois encontrei-a anteontem, e em vez de se pôr, como era seu hábito, atrás de mim a imitar o meu coxear, deu-me os bons-dias e perguntou pela minha saúde com muita delicadeza.
- Essa pequena de que estão a falar é mais louca do que má - interrompeu outro. - Não tem mau coração; a prova é que muitas vezes ficou com os meus netos no campo, por simples gentileza, quando a minha filha estava doente. Tratou tão bem deles, que não a queriam deixar.
- É verdade o que dizem - interrogou uma velhinha -, que um dos gémeos do tio Barbeau ficou maluco por ela na festa?
- Ora, ora! - responderam-lhe. - Não se pode levar isso a sério! Foi uma brincadeira de crianças e os filhos Barbeau não são mais parvos do que os pais, estão a ouvir?
Assim se falava acerca da pequena Fadette e outras vezes nem isso se dizia, pois já quase não a viam.
Mas quem a topava amiudadas vezes e lhe prestava muita atenção era Landry Barbeau. Ficava irritado quando não conseguia falar-lhe à vontade, mas, assim que se encontrava a sós com ela, sossegava e ficava feliz, porque ela consolava-o com a linguagem da razão.
A pequena Fadette, que mantivera durante tanto tempo a aparência de criança, possuía uma razão e uma vontade muito acima da idade. E para isso era preciso ter uma admirável força de espírito, pois o seu coração era muito mais carente que o de Landry. Amava-o loucamente e todavia comportava-se com muito juízo. Embora pensasse nele a toda a hora e morresse de impaciência por o ver e abraçar, assim que o via assumia um ar tranquilo, ocultando as batidas loucas do seu coração, fingindo não conhecer o fogo do amor.
Landry estava de tal modo enfeitiçado, que andava sempre receoso de lhe desagradar e com dúvidas de ser amado.
Para o distrair da sua paixão, ela ensinava-lhe as coisas que sabia e em que o seu espírito e talento natural haviam ultrapassado o ensinamento da avó. Não queria fazer segredo de nada a Landry e, como ele continuava úm pouco receoso da feitiçaria, ela empenhou-se em lhe fazer compreender que o diabo nada tinha que ver com os segredos do seu saber.
- Ora, Landry, a intervenção do espírito do mal não serve para nada. Só há um espírito, e esse é o de Deus. O diabo é invenção dos padres, dos bruxos e também das velhas do campo. Quando era pequena, acreditava, e tinha medo dos segredos da minha avó. Mas ela ria-se de mim e dizia-me que aquele que duvida de tudo, é aquele que faz crer tudo aos outros. E ninguém acredita menos no diabo do que os feiticeiros, que os invocam por tudo e por nada. Nunca o viram, nem nunca receberam qualquer ajuda deles.
- Mas - dizia Landry -, isso de dizeres que o diabo não existe, não é muito cristão, querida Fanchon.
- Eu sei lá disso! - respondeu. - Mas se existe, tenho a certeza de que não tem poder nenhum para vir à Terra enganar-nos e roubar-nos a alma. Não o poderia, uma vez que a Terra é de Deus, e só Deus pode governar as coisas e os homens que nela habitam.
E Landry, acalmados os seus receios, admirava Fadette pela defesa dos seus ideais católicos, mos trando uma devoção bem mais profunda que as outras. Amava a Deus do fundo do coração, e ao falar desse amor a Landry, este surpreendia-se por ter sido ensinado a seguir práticas que nunca tentara analisar, respeitando-as apenas pela ideia do dever, sem que no entanto o coração tenha sentido algo de semelhante ao que Fadette sentia pelo Criador.
Também com ela foi conhecendo as propriedades das ervas e o receituário para a cura das pessoas e animais. Aliás, não tardou que fizesse uma experiência numa vaca do tio Caillaud, que apareceu com uma inflamação por ter comido demasiada erva. O veterinário desistiu de a salvar, não lhe dando mais de uma hora de vida. E Landry às escondidas fez-lhe ingerir uma beberagem que Fadette lhe ensinara a compor. De manhã, quando o lavrador se dispunha a ir buscar a vaca para a enterrar, encontrou-a de pé, e, surpreendentemente, agarrada à comida e de olhar mais vivo e quase sem inflamação.
Outra vez, um potro foi mordido por uma cobra, e Landry, seguindo os métodos de Fadette, salvou-lhe a vida. Quase logo a seguir também experimentou o remédio contra a raiva num cão de Priche, livrando-o da morte e de morder em alguém. Como Landry escondia o seu relacionamento com a pequena Fadette e não se vangloriou do seu saber, as pessoas atribuíam as curas dos animais simplesmente ao extremado cuidado que ele punha no que fazia.
Mas o tio Caillaud, que também percebia do assunto, como bom caseiro que era, andava intrigado e comentava:
- O tio Barbeau não tem jeito, nem sorte com os animais, pois perdeu muito gado o ano passado e, infelizmente, não foi a primeira vez. Já Landry tem boa mão para isso. Afinal, é uma coisa que já nasce com a pessoa. Mesmo que se vá para as escolas, isso de pouco serve se não se tem jeito de nascença. Ele, está visto, recebeu esse dom da Natureza, e ser-lhe-á bem mais útil que o dinheiro para gerir uma quinta.
O tio Caillaud enganava-se ao atribuir aquele dom da Natureza a Landry, sem embargo das qualidades que possuía em ser cuidadoso e competente a aplicar as receitas que aprendera. Mas o dom da Natureza é real, uma vez que a pequéna Fadette o possuía e que, com tão poucas lições que a avó lhe dera procurava, descobria e adivinhava, as virtudes que Deus deu a certas ervas e a maneira de as empregar. Não era feiticeira por causa disso, e tinha razão para protestar. Tinha espírito observador, fazendo comparações, reparos, experiências, e isso sim, era dom da Natureza. O tio Caillaud levava a coisa um pouco mais longe. Pensava que um lavrador tinha a mão mais ou menos boa e que, unicamente pela sua presença, fazia bem ou mal aos animais. No entanto, não deixava de ser inegável que os bons cuidados, a limpeza, o trabalho feito com consciência, tudo isso, tem a virtude de levar a bom êxito o que a negligência ou a estupidez fazem piorar.
A amizade que Landry concebeu por Fadette aumentou com o reconhecimento que lhe devia pelo ensino e seu talento. Por isso ficou gratíssimo por ela ter partilhado os seus conhecimentos, de grande utilidade para ele.
Landry ficou tão apaixonado que esqueceu a vergonha de mostrar o seu amor por uma rapariguita considerada feia, má e mal-educada. Se ainda tomava algumas precauções, era por causa do irmão gémeo, ciumento que já anteriormente aceitara de mau grado a paixoneta que ele tivera por Madelon, incomparável à que agora sentia por Fanchon.
Se Landry estava demasiado animado com o seu amor para agir com prudência, a pequena Fadette, que tinha um espírito aberto ao mistério, queria evitar expor Landry às impertinências das pessoas. Ela amava-o demasiado para lhe causar quaisquer tormentos com a família e exigiu dele um segredo tão grande, que decorreu cerca de um ano a ser descoberto. Landry habituara Sylvinet a não vigiar todas as suas andanças, e a região pouco povoada mais cortada por ravinas e rodeada de árvores, tornava-se adequada aos encontros secretos.
Sylvinet, vendo que Landry já não ligava a Madelon, embora de início tivesse aceitado essa partilha da sua amizade como um mal necessário, regozijou-se ao pensar que Landry não tinha pressa de lhe retirar a sua amizade para a dar a uma mulher e, sem ciúmes, deixou-o mais livre nas suas ocupações e passeios. Landry passava a vida a arranjar motivos para ir e vir e, sobretudo nos domingos à noite, saía de casa dos pais cedo e só regressava a Priche por volta da meia- noite. Dessa maneira, Landry tinha sempre o domingo só para si, até segunda- feira de manhã, porque o tio Caillaud e o filho mais velho, que eram excelentes pessoas, costumavam ficar com o encargo e a vigilância da quinta nos dias de descanso, a fim de que, diziam, todo o pessoal da casa, que trabalhava mais do que eles durante a semana, naquele dia pudesse folgar e divertir-se em liberdade, segundo a vontade de Deus.
No Inverno, em que as noites são frias e dificilmente se pode andar no campo, havia para Landry e para Fadette um bom refúgio na torre de Jacot, um antigo pombal, abandonado pelos pombos há longos anos, bem coberto e bem fechado e pertencente à quinta do tio Caillaud. Serviam-se dele para guardar o excesso de géneros. Landry tinha a chave e situava-se nos confins de Priche, de modo que era de supor que ninguém se lembrasse de ali importunar os jovens namorados.
Passavam naquele refúgio momentos inesquecíveis, falando do futuro e do dia em que, finalmente, poderiam amar-se livremente. Ali, as horas decorriam demasiado rápidas e a separação era-lhes sempre difícil.
Mas, como não há segredo que sempre dure, num belo domingo, ao passar ao longo do muro, Sylvinet ouviu a voz do gémeo a falar do outro lado do muro. Landry falava baixinho, mas Sylvinet conhecia-lhe bem a voz, mesmo naquele tom.
- Porque não queres vir dançar? - perguntava a alguém que Sylvinet desconhecia. - Há tanto tempo que não te vêem por lá, que ninguém achará mal que eu dance contigo. Eu sou suposto quase não te conhecer. Ninguém dirá que é por amor, mas sim por delicadeza, e porque estou curioso de saber se, após tanto tempo, ainda sabes dançar.
- Não, Landry, não! - respondeu uma voz que Sylvinet não reconheceu, pois Fadette andava afastada de toda a gente, particularmente dele. Não, é melhor não dar nas vistas, e se dançasses comigo uma vez, quererias recomeçar todos os domingos, e não seria preciso mais para começarem a falar. Acredita no que sempre te disse, Landry: no dia em que souberem do nosso amor, surgirão problemas. Deixa-me ir embora, e depois de passares uma parte do dia com a tua família, virás então ter comigo ao sítio do costume.
- Mas olha que é triste nunca poder dançar - exclamou Landry. - Tu gostavas tanto da dança e danças tão bem! Que prazer não seria pegar- te na mão e fazer-te girar nos meus braços e ver-te, tão leve e tão gentil, dançando comigo!
- É justamente o que não deve acontecer!replicou ela. - Tens saudades de dançar, meu Landry, e não sei porque renunciaste. Vai dançar um bocadinho, eu ficarei feliz por saber que te estás a divertir e assim esperarei por ti mais resig nadamente.
- Oh! Tu tens mas é paciência de mais - disse Landry numa voz que não a mostrava. - Preferia que me cortassem as pernas a dançar com raparigas de quem não gosto e que não beijaria por todo o ouro do mundo.
- Está bem, mas se eu fosse dançar - replicou Fadette -, também tinha de dançar com outros rapazes e deixar-me beijar por eles.
- Vai-te embora, vai depressa! - exclamou Landry. - Isso não! Não quero que ninguém te beije.
Sylvinet não ouviu mais nada além de passos que se afastavam e, para não ser surpreendido pelo irmão, escondeu-se até ele passar.
Tal descoberta foi como que uma facada no coração de Sylvinet. Não tentou descobrir quem era a rapariga que Landry amava tão apaixonada mente. Bastava- lhe saber que havia uma pessoa pela qual Landry o abandonava e para quem iam todos os seus pensamentos, ao ponto de os esconder do irmão gémeo. Deve desconfiar de mim, pensou, e essa rapariga de quem gosta tanto deve levá-lo a evitar-me e a detestar-me. Não é de admi rar que ande sempre tão aborrecido em casa e tão inquieto quando quero dar um passeio com ele. Eu não insistia, julgando que gostava de estar só, mas
agora evitarei a todo o custo incomodá-lo. Nem lhe direi nada; ficaria zangado se soubesse que descobri o que não me quis confiar. Sofrerei sozinho, enquanto ele se congratulará por se ter desembaraçado de mim.
Sylvinet cumpriu o que prometera e foi até mais longe, pois não só nunca mais tentou reter o irmão a seu lado, mas também, para não o atrapalhar, passou a ser o primeiro a sair de casa e ir passear sozinho à volta da casa, não querendo ir para o campo: Porque, pensava, se por acaso aí o encontro, ele vai imaginar que ando a espiá-lo e dar-me- ia a entender que o incomodo.
E, assim o seu antigo desgosto, do qual estava praticamente curado, voltou tão pesado e tão afincado, que não tardou a reflectir-se-lhe na cara. A mãe preocupou-se, mas, como ele tinha vergonha, aos dezoito anos, de ter as mesmas fraquezas de espírito que aos quinze, nunca quis confessar o que o atormentava.
Foi isso que o salvou de adoecer, pois aquele que tem a coragem de guardar a sua dor é mais forte contra ela do que aquele que se queixa. O pobre gémeo começou a andar triste e pálido, e embora fosse sempre crescendo um bocadinho, manteve-se magro e com um ar frágil. Não era resistente no trabalho, apesar de não fugir a ele, pois sabia que o trabalho era um bom remédio contra a tristeza e não queria prejudicar o pai com a sua indiferença. Deitava então mãos à obra e trabalhava com raiva contra si próprio. Assim, com frequência, realizava mais do que podia suportar, e no dia seguinte estava tão cansado que não conseguia fazer nada.
- Nunca será um trabalhador robusto - dizia o tio Barbeau -, mas faz o que pode e quando pode. É por isso que não o quero empregar longe; com o medo que tem das repreensões e a pouca força que Deus lhe deu, depressa se arruinaria, e eu ficaria para sempre com esse peso na consciência.
A tia Barbeau, obviamente, concordava com essas razões e fazia os possíveis por animar Sylvinet. Consultou vários médicos sobre a sua saúde. Uns disseram- lhe que o deviam tratar com muitos cuidados porque estava fraco. Outros, que deviam obrigá-lo a trabalhar, alimentando-o bem, porque, como estava fraco, precisava de se fortificar. A tia Barbeau não sabia que prescrições seguir, tais os conselhos recebidos.
Felizmente, na dúvida, não seguiu nenhum e Sylvinet prosseguiu a vida que Deus lhe havia traçado, carregando o seu mal sem grandes precalços até ao momento em que os amores de Landry vieram à baila e Sylvinet viu a sua dor aumentada.
Desvendado o segredo
Foi Madelon quem descobriu o segredo, e embora o tenha feito sem maldade, tirou disso mau partido. Resignara-se facilmente de Landry, e não tendo perdido muito tempo a amá-lo, não lhe custou a esquecê-lo. E mais, ficara-lhe no coração um pequeno rancor, que ainda aguardava uma oportunidade para se dar a conhecer.
E aconteceu. Madelon, considerada pelo seu ar assisado, era no fundo bem vaidosa e menos razoável e fiel nas suas amizades que o desafortunado grilo, de quem tão mal falavam. Afinal, Madelon já tivera dois namorados, sem contar Landry, e namoriscava agora um terceiro, que era o filho mais novo do tio Caillaud. Sendo vigiada por este último e temendo algum escândalo, sem saber onde se esconder para conversar à vontade, deixou-se persuadir pelo filho Caillaud a ir para o pombal, onde justamente Landry tinha os encontros com Fadette.
Com essa intenção, o jovem Caillaud rebuscou tudo à procura da chave do pombal, mas não a encontrou. Quem a trazia no bolso era Landry. De modo que desistiu de a pedir a alguém, pois não tinha motivos que justificassem a sua posse. Assim, o pequeno Caillaud, julgando-a perdida ou que o pai a trazia com ele, não esteve com meias medidas: foi-se à porta do pombal e arrombou- a. Mas, no dia em que o fez, Landry e Fadette encontravam-se lá, e os quatro namorados ficaram extremamente embaraçados ao confrontarem-se ali. Claro, nessas circunstâncias, resolveram calar-se e nada divulgar.
Só que Madelon teve um acesso de ciúmes e de raiva ao ver que Landry, então já um dos mais belos rapazes da terra, se mantinha fiel áquela feiosa da Fadette, e decidiu vingar-se. Para isso, sem nada contar ao filho Caillaud, pediu ajuda a duas amigas, indo elas, de si também despeitadas pelo desprezo e indiferença que Landry parecia votar-lhes, por não as convidar para dançar, pôr- se à coca dos dois jovens, para se assegurarem das suas relações. Depois de os verem uma ou duas vezes juntos, fizeram estardalhaço disso por toda a parte, dizendo que Landry andava perdido de amores pelo feioso grilo.
Foi, por conseguinte, dessa forma que todas as raparigas se intrometeram no assunto, pois, quando um rapaz de bom aspecto e com posses se vira para uma pessoa daquelas, é como que uma injúria a todas elas, e havendo possibilidades de criticar ninguém o evita.
Assim, quinze dias depois do encontro na torre de Jacot, sem que fosse questão de Madelon, que tivera o cuidado de não se envolver no assunto e que até fingiu tomar conhecimento do escândalo que fora a primeira a revelar, toda a gente estava a par dos amores de Landry, o gémeo, com Fanchon, o grilo.
Portanto, a notícia chegou aos ouvidos da tia Barbeau, que muito se afligiu e não quis falar nisso ao marido. Mas este soube-o por outras bocas, e Sylvinet, que tão discretamente guardara o segredo do irmão, teve o desgosto de ver que todos o conheciam.
Assim, uma noite em que Landry se preparava para sair cedo de casa, como era hábito, o pai disse-lhe, na presença da mãe e dos irmãos:
- Não tenhas tanta pressa, Landry! Pretendo falar contigo e só estou à espera que o teu padrinho chegue, pois é diante dos membros da familia que mais se interessam por ti que quero pedir-te uma explicação.
E quando o padrinho, tio Landriche, chegou, o pai Barbeau começou o responso:
- O que tenho para te dizer causar-te-á alguma vergonha, meu Landry; também não é sem vergonha, que eu próprio me vejo obrigado a falar-te diante da família. Mas espero que essa vergonha te seja salutar e te cure de uma fantasia que poderá trazer-te desgraças. Diz-se por aí que andas com uns encontros há quase um ano. Logo no primeiro dia me falaram disso, pois acharam inconcebível ver-te dançar toda a festa com a rapariga mais feia, mais desmazelada e de pior fama da nossa terra. Não liguei importância ao caso, pensando que não passava de uma brincadeira, apesar de não aprovar, porque, se não se deve frequentar as pessoas duvidosas, também não se deve aumentar a sua humilhação e a infelicidade de serem odiadas. Não te falei do caso, pensando, ao ver-te triste no dia seguinte, que te censuravas pelo que tinhas feito. Mas eis que, há cerca de uma semana, ouço dizer uma coisa completamente diferente e, embora vindo de pessoas de confiança, não quero acreditar nisso, a menos que tu próprio mo confirmes. Se procedi mal, suspeitando de ti, apenas se deve ao interesse que te dedico e ao dever que tenho de vigiar a tua conduta, pois, se não passa de uma calúnia, proporcionar- me-ás um grande prazer dando-me a tua palavra de honra e declarando-me que te difamaram injustamente.
- Pai - respondeu Landry -, nesse caso diga-me de que me acusa e eu responder-lhe-ei conforme a verdade e o respeito que lhe devo.
- Acusam-te, Landry, e creio que to dei a entender, de manteres relações desonestas com a neta da tia Fadet, que é uma mulher duvidosa, sem contar que a mãe dessa pobrezinha abandonou o marido, os filhos... Acusam-te de passeares por todo o lado com a pequena Fadette, o que me faz recear teres-te envolvido num namoro, do qual virás a arrepender-te durante toda a vida. Entendes agora?
- Entendi muitíssimo bem, meu pai - respondeu Landry -, mas permita- me que lhe pergunte antes de responder: é por causa da família ou apenas por causa dela que vê a Fanchon Fadet como má companhia para mim?
- É sem dúvida por causa de ambas - retorquiu o tio Barbeau com mais severidade do que empregara no começo, pois esperara que Landry ficasse embaraçado e via-o tranquilo e com ar resoluto. - Em primeiro lugar, um mau parentesco é uma nódoa e nunca uma família honrada como a nossa quereria aliar-se à família Fadet. Depois, a pequena Fadette não inspira estima nem confiança a ninguém. Vimo-la crescer e sabemos o que vale. Ouvi dizer, e reconheço-o, que de há um ano para cá se comporta melhor, já não anda na brincadeira com os miúdos, nem responde mal a ninguém... Como vês, não desejo afastar-me da justiça! Mas isso não basta para acreditar que uma criança que foi tão mal-educada possa tornar-se numa mulher honrada, e conhecendo a avó como a conheci, tenho todos os motivos para recear que haja por aí uma armadilha qualquer para te arrancar promessas e causar-te vergonha e embaraço.
Landry, que prometera a si próprio ser prudente e explicar-se com calma, perdeu a paciência. Ficou vermelho como um pimento e, erguendo- se, protestou.
- Pai, quem lhe disse isso, mentiu, e fê-lo com quantos dentes tem na boca. Insultaram de tal modo Fanchon Fadet que, se aqui estivessem, teriam de se haver comigo, até um de nós ficar no chão. Essa gente é cobarde. Que me venham dizer na cara o que andaram a insinuar pelas costas, e veremos o que acontece.
- Não te zangues assim, Landry - disse Sylvinet, abatido pelo desgosto. - O pai não te acusa de teres agido mal com essa rapariga; mas receia que ela ande a preparar alguma para te apanhar.
A voz do gémeo serenou um pouco Landry; mas este não pôde deixar passar as palavras dele:
- Irmão - disse -, não percebes nada disto. Sempre andaste de pé atrás com a pequena Fadette e não a conheces. Ainda não me preocupei com o que dizem de mim, mas não consentirei que digam mal dela, e quero que o meu pai e a minha mãe sai bam, pela minha boca, que não há cá na terra outra rapariga tão honesta, tão ajuizada, tão boa, tão desinteressada, como ela. A infelicidade de pertencer a uma família como a que tem, mais mérito lhe dá em ser como é, e eu nunca julgaria possível que almas cristãs pudessem censurar a infelicidade do nascimento.
O tio Barbeau levantou-se, para mostrar que não consentiria que as coisas fossem mais longe entre eles.
- Vejo, pelo despeito, que estás mais afeiçoado a essa Fadette do que eu pensava. Uma vez que não
te envergonhas nem te arrependes, não falaremos mais nisso. Vou pensar no que devo fazer, para evitar o trambolhão. Agora, segue para o teu patrão.
- Não nos deixes assim - disse Sylvinet, retendo o irmão, que se ia embora. - Pai, Landry sente tanta pena por lhe ter desagradado, que não consegue dizer nada. Conceda-lhe o seu perdão e beije-o, pois está prestes a chorar e o seu descontentamento seria um castigo demasiado grande.
Sylvinet chorava, todos os outros choravam também. Só o tio Barbeau e Landry tinham os olhos secos, mas em desespero. O pai não exigiu nenhuma promessa, pois sabia que nesses casos as promessas são duvidosas, mas deu a entender a Landry que ainda não acabara e que voltaria ao assunto. Landry foi-se embora encolerizado e desolado. Sylvinet pensou em segui-lo mas não ousou, porque desconfiou que ele ia dar conta do seu desgosto a Fadette; foi deitar-se, e, de infeliz, mais não fez durante toda a noite senão suspirar e sonhar com a desgraça da família.
A separação
Landry foi bater à porta da pequena Fadette. A tia Fadet tornara-se tão surda que, uma vez adormecida, nada a acordava, e desde há algum tempo que Landry, após a bronca, só podia conversar com Fanchon à noite e no quarto onde ela dormia com a velhota e o pequeno Jeanet; e mesmo ali se arriscava, pois a velhota não o suportava e seria mais natural desancá- lo à vassourada do que despedi-lo com cumprimentos.
Landry contou a sua mágoa a Fadette, achando-a compreensiva, submissa e corajosa. Ela ainda tentou persuadi-lo de que faria melhor, no seu próprio interesse, em reatar as pazes e não mais pensar nela. Mas, quando viu que ele se afligia e revoltava ainda mais, aconselhou-o à obediência, dando-lhe esperanças no futuro.
- Escuta, Landry - disse-lhe -, já tinha previsto tudo isto e pensei muitas vezes no que faríamos, neste caso. O teu pai não deixa de ter razão e não lhe quero mal, pois é por gostar muito de ti que receia ver-te ligado a uma pessoa tão pouco merecedora como eu sou. Perdoo-lhe o orgulho e a injustiça, pois não pretendo negar que a minha primeira juventude foi louca, e tu próprio ma censuraste no dia em que me começaste a amar. De há um ano para cá emendei-me, mas não é tempo suficiente para que ele adquira confiança. É necessário esperar e, pouco a pouco, as acusações que tinham contra mim desaparecerão e as mentiras de agora de nada valerão. O teu pai e a tua mãe verão que eu sou ajuizada e que não te quero desencaminhar. Acreditarão na sinceridade dos meus sentimentos e poder-nos-emos ver e falar sem nos esconder de ninguém. Entretanto, tens de obedecer a teu pai, que, estou certa, te vai proibir de me veres.
- Nunca terei essa coragem! - exclamou Landry. - Preferia morrer!
- Pois bem, se não a tens, tê-la-ei eu - replicou a pequena Fadette. - Partirei, deixarei a terra por algum tempo. Há dois meses que andam a oferecer-me um bom lugar na cidade. A minha avó está tão surda e tão idosa que já quase não pode vender os remédios. Tem uma familiar muito boa que se oferece para vir viver e cuidar dela, assim como do pobre saltão.
A voz da pequena Fadette falhou um momento à ideia de deixar a criança, que era, com Landry, quem ela mais amava no mundo; mas tomou coragem e continuou melancólica:
- Agora, já é suficientemente forte para passar sem mim. Vai fazer a primeira comunhão e o divertimento de ir à catequese e brincar com as outras crianças distraí- lo-á do desgosto da minha ausência. Os outros rapazes deixaram de o atormentar tanto. Portanto, é preciso, Landry; é preciso que me esqueçam um pouco, pois neste momento há uma grande raiva. Após um ou dois anos longe e quando regressar com boas maneiras e boa reputação, nunca mais nos atormentarão e seremos melhores amigos do que nunca.
Landry discordou daquelas razões. Ficou desesperado e regressou a Priche em estado francamente lastimoso.
Dois dias depois, quando se dirigia para a vindima, o jovem Caillaud dirigiu-se-lhe:
- Vejo, Landry, que estás zangado comigo à algum tempo e não me falas. Julgas porventura que fui eu quem divulgou os teus encontros com a pequena Fadette. Estou chateado por creres nisso, numa vileza dessas. Juro-te por Deus que nunca contei nada e é-me bastante penoso que te tenham causado esses aborrecimentos, pois sempre te considerei e jamais injuriei Fadette. Para ser franco, até estimo essa rapariga, pois ela podia ter comentado o nosso encontro no pombal e nunca ninguém soube de nada. E, em desespero de causa, até o podia ter feito, mais que não fosse para se vingar de Madelon, que se sabe perfeitamente ser a autora de todo o falatório. É verdade, Landry, não nos devemos fiar nas aparências e nas reputações. Fadette, que passava por má, foi boa; Madelon, que passava por boa, foi desleal e intriguista, não só para contigo, mas também para comigo, tendo eu já muitas queixas a fazer da sua fidelidade.
Landry aceitou com prazer as explicações do jovem e recebeu de bom grado as suas palavras de conforto.
- Causaram-te muitos desgostos, meu pobre Landry mas a conduta da pequena Fadette deve consolar-te. Faz bem em se ir embora, para acabar com as inquietações da tua família, e acabo de lho dizer, aliás, ao despedir-me dela no caminho.
- Que estás a dizer, benjamim? - exclamou Landry. - Ela vai-se embora? Partiu?
- Não sabias? - perguntou este. - Pensava que tinha sido combinado entre vocês e que não a acompanhavas para não seres censurado. Mas ela vai-se embora, de certeza; passou pela nossa casa há menos de um quarto de hora e levava um embrulho debaixo do braço.
Landry abandonou a parelha de bois que levava para a vindima e desatou a correr, só parando quando alcançou a pequena Fadette, no caminho. Aí, completamente esgotado pelo desgosto e pelo cansaço da corrida, caiu de joelhos sem conseguir falar, dando-lhe a entender por gestos que não passaria dali.
Quando já quase restabelecido, Fadette disse-lhe:
- Queria evitar-te este desgosto, meu querido Landry, e tu esforças-te por me tirar a coragem. Sê homem e ajuda-me a ter ânimo; é-me necessário mais do que julgas, e quando penso no meu pobre saltão, que, a esta hora, deve andar à minha procura, sinto-me enfraquecer. Ah! suplico-te, Landry, ajuda-me a trilhar o meu caminho; se não vou hoje, nunca mais irei, e estaremos perdidos, meu querido.
- Fanchon, Fanchon, não precisas de grande coragem! - respondeu Landry. - Só tens saudades de uma criança, que em breve se consolará, porque não passa de uma criança. Não te preocupas com o meu desespero. Não sabes o que é o amor. Não sentes nenhum por mim e vais esquecer-me depressa, o que fará com que talvez nunca mais regresses.
- Regressarei, Landry! Deus é testemunha de que voltarei dentro de um ano ou dois o mais tardar, e que não te esquecerei, tão pouco terei outro amigo ou namorado!
- Outro amigo, é possível, Fanchon, porque nunca encontrarás um tão dedicado como eu, mas outro namorado, já não sei, quem sabe?
- Sei eu!
- Tu própria não sabes nada, Fanchon, nunca amaste, e quando sentires o amor nunca mais te lembrarás do teu pobre Landry. Ah! se me amasses como eu te amo, não me deixarias assim!
- Achas, Landry? - perguntou Fadette, fitando-o com um olhar triste e sério. - Eu acho que o amor me obrigaria mais do que a amizade.
- Pois bem, se for o amor que te obriga, não terei tanto desgosto. Oh! sim, Fanchon, acho que quase seria feliz na minha infelicidade! Teria confiança na tua palavra e esperança no futuro Teria á coragem que tu tens, a sério. Mas não é amor, disseste-mo muitas vezes e vi-o na tua grande tranquilidade junto de mim!
- Então achas que não é amor? - perguntou a pequena Fadette. - Tens a certeza absoluta?
E, continuando a fitá-lo, os seus olhos encheram-se de lágrimas, que rolaram pelas faces, enquanto sorria de um modo estranho.
- Oh, meu Deus - exclamou Landry, tomando-a nos braços. - Se eu pudesse estar enganado!
- Eu acho que estás - respondeu a pequena Fadette. - Desde os treze anos, o pobre grilo reparou em Landry e de aí em diante nunca mais olhou para outro. Acho que, quando ela o seguia pelos campos dizendo-lhe tolices e impertinências para o forçar a reparar nela, não sabia ainda o que a impelia para ele. Acho que, quando ùm dia partiu à procura de Sylvinet, sabendo que Landry sofria e o encontrou à beira-rio, mergulhado nos seus pensamentos e com um cordeirinho nos joelhos, armou- se em feiticeira para forçá-lo ao reconhecimento. Acho que, quando o injuriou no vau das Roulettes, fê-lo por despeito e desgosto por ele nunca mais lhe ter falado. Acho que, se quis dançar com ele, foi porque estava louca por si e esperava agradar-lhe com o seu fato para a dança. Acho que, quando estava a chorar na pedreira o fazia por arrependimento e pena de lhe ter desagradado. Finalmente acho que, quando ele a queria beijar e ela o recusou, quando ele lhe falava de amor e ela lhe respondia com palavras de amizade, era com medo de perder esse amor, aceitando-o demasiado depressa. Se ela, angustiada, parte com o coração despedaçado, é na esperança de regressar mais digna dele e aos olhos de toda a gente poder ser sua mulher, sem macular nem humilhar a sua família.
Landry julgou ficar louco. Ria, gritava, e chorava; beijava as mãos, o vestido de Fanchon e ter- lhe-ia beijado os pés se ela tivesse consentido. Mas ela ergueu- o e deu- lhe um verdadeiro beijo de amor, o primeiro que recebia dela. Depois, pegando no embrulho, vermelha e confusa, fugiu proibindo-o de a seguir e jurando voltar.
De retorno às vindimas, Landry ficou surpreendido por não se sentir tão infeliz como pensava, tal a doçura de se saber amado e a confiança que sentia por amar intensamente. Estava tão contente que não pôde impedir-se de falar nisso ao benjamin Caillaud, que louvou a pequena Fadette por ter sabido defender-se tão bem de qualquer fraqueza ou imprudência, desde a altura em que passou amar Landry e era amada por ele.
- Estou contente por saber que essa rapariga tem tantas qualidades - disse- lhe -, pois, pelo que me diz respeito, nunca a julguei mal. E com aqueles olhos, sempre me pareceu mais bela do que feia e, desde há certo tempo, toda a gente poderia ver, se ela tivesse aparecido, que se tornara dia a dia mais atraente. Mas só a ti amava, Landry, e contentava-se em não ser desagradável para os outros. Só lhe interessava a tua aprovação, e digo-te que uma rapariga com tal carácter faria as delícias de muitos rapazes. Aliás, como a conheço desde criança, sempre achei que tinha um grande coração, e se pedissemos às pessoas que dissessem em boa verdade o que cada uma pensa e o que sabe, todas seriam obrigadas a testemunhar em seu favor. Só que o mundo é feito assim, e quando duas ou três pessoas andam atrás de uma outra, todos se intrometem, atirando-lhe pedras e criando-lhe má fama sem saberem bem porquê, talvez pelo prazer mórbido de rebaixar quem não se pode defender.
Landry sentiu um grande alívio ao ouvir o jovem falar daquele modo e, desde esse dia, tornaram-se amigos.
Alguns dias depois Landry fez-lhe uma proposta:
- Não penses mais nessa Madelon, que não vale nada e causou desgostos a ãmbos, meu caro benjamim. Temos a mesma idade e nada te apressa a casar. Ora, eu tenho uma irmã, Nanette, que é linda como uma flor, bem-educada, meiga, graciosa e vai fazer dezasseis anos. Vai visitar- nos mais frequentemente. Meu pai gosta de ti e, quando conheceres bem a nossa Nanette, verás que não te sairá mais da ideia tornares-te meu cunhado.
- Bom, não digo que não - respondeu o outro. - Se ela não estiver já prometida a outro, irei a tua casa todos os domingos.
Na noite da partida de Fanchon, Landry foi ver o pai para lhe dar a conhecer a honesta conduta daquela rapariga que ele julgara tão mal. Sentiu grande tristeza ao passar diante da casa da tia Fadet; mas encheu-se de coragem, pensando que, sem a partida de Fanchon, não teria talvez sabido até que ponto era amado por ela. Viu a tia Fanchette, a parenta, que tinha vindo para cuidar da velha e do miúdo no seu lugar. Estava sentada à porta, com o saltão nos joelhos. O pobre Jeanet chorava e não queria ir para a cama, porque a sua Fanchon ainda não voltara para casa, dizia, e era ela que o costumava deitar. A tia Fanchette reconfortava-o o melhor que podia e Landry ouviu com prazer que ela lhe falava com muita doçura e amizade. Mas, assim que o saltão viu passar Landry, escapou-se das mãos de Fanchette e correu a atirar-se às pernas do gémeo, abraçando-o e interrogando- o sobre a sua Fanchon. Landry tomou-o nos braços e, a chorar, consolou-o como pôde. Quis dar-lhe um cacho de uvas, que levava num cestinho, da parte da tia Caillaud, para a mãe, mas Jeanet, que era habitualmente guloso, não quis nada senão que Landry lhe prometesse ir buscar a sua Fanchon e foi preciso que Landry lho prometesse a suspirar, para ele se tornar máis dócil com a tia.
O tio Barbeau não contava com a grande resolução da pequena Fadette. Ficou contente, mas como era um homem justo e de bom coração, quase lamentou o que ela fizera.
- Estou zangado, Landry - disse -, por não teres tido a coragem de renunciares a vê-la. Se tivesses agido como era tua obrigação, não terias sido a causa da sua partida. Deus queira que essa criança não sofra na sua nova condição e que a sua ausência não prejudique a avó e o irmão; pois se muita gente diz mal dela, também há alguns que a defendem e que me garantiram que era boa e prestável com a família. E eu, pessoalmente, nada tenho contra ela, só que não desejo é que cases com ela.
- Meu pai - respondeu Landry -, cada um de nós vê o assunto de maneira diferente e, de momento, só lhe peço é que me perdoe o desgosto que lhe causei. Falaremos dela mais tarde, como me prometeu.
O tio Barbeau aceitou essa condição, de não insistir mais. Era demasiado prudente para precipitar as coisas e, para já, estava contente com o que havia obtido.
A partir de então a pequena Fadette nunca mais foi assunto de conversa. Até evitaram pronunciar o seu nome, pois Landry tornava-se vermelho, e depois pálido, quando alguém deixava escapar o seu nome diante dele, e logo a seguir ficava contente por verificar que não a esquecera mais do que no primeiro dia.
Sylvinet adoece
Primeiro, Sylvinet sentiu um prazer egoísta ao tomar conhecimento da partida de Fadette, convencendo-se que doravante o gémeo só o amaria a ele e não o deixaria por ninguém.
Mas não foi assim. Sylvinet era de facto aquele que Landry mais amava no mundo depois da pequena Fadette; mas não podia sentir muito prazer na sua companhia, porque Sylvinet não abandonava a sua aversão por Fanchon. Assim que Landry tentava falar-lhe nela, Sylvinet exaltava-se, e repreendia-o por se obstinar numa ideia tão repugnante para os pais e tão penosa para ele próprio. Landry, desde então, nunca mais lhe tocou no assunto; mas, como não podia viver sem falar nisso, dividia o seu tempo entre o benjamim Caillaud e o pequeno Jeanet, a quem levava a passear e instruía, consolando-o o melhor que podia. Quando o encontravam com aquela criança, as pessoas talvez desejassem troçar dele, se ousassem. Mas Landry não se deixava escarnecer no que quer que fosse, e estava mais orgulhoso do que envergonhado em mostrar a sua amizade pelo irmão de Fanchon, sendo assim que demonstrava aos que pretendiam que o tio Barbeau, na sua sensatez, ven cera a resistência do seu amor.
Sylvinet, notando que o irmão não lhe fazia tanta companhia como desejava, achava-se reduzido a dirigir os ciúmes contra o pequeno Jeanet e contra o benjamim Caillaud; apercebendo-se, por outro lado, que a irmã Nanette, que, até então, sempre o consolara e alegrara com cuidados e atenções carinhosas, começava a demorar-se muito na companhia do benjamim Caillaud, e que as duas famílias aprovavam, o pobre Sylvinet, cujo capricho era possuir só para si a amizade dos que amava, caiu num aborrecimento mortal, num torpor singular, e o seu carácter azedou-se tanto que já não sabiam que fazer para o consolar. Já não ria nem se interessava por nada, como não conseguia trabalhar, tal o enfraquecimento. Chegaram a recear pela sua vida, pois a febre já quase não o deixava, e quando era maior, dizia coisas sem razão e cruéis para o coração dos pais. Sustentava que não lhe ligavam, a ele, que sempre haviam acarinhado e mimado mais do que qualquer outro da família. Desejava a morte, dizendo que não servia para nada e que o poupavam por compaixão, sendo um fardo para os pais e que o maior auxílio que Deus lhe poderia dar era levá-lo dali.
Às vezes, o tio Barbeau, ao ouvir tais disparates, repreendia-o com severidade, todavia sem resultado. Outras vezes, o tio Barbeau suplicava-lhe, pesaroso, que lutasse pela vida. Era ainda pior: Sylvinet chorava, arrependia-se, pedia perdão ao pai, à mãe, ao gémeo, a toda a família; e a febre voltava mais forte assim que dava livre curso ao excesso de ternura do seu coração doente.
Consultaram novos médicos, que não aconselharam grande coisa. Via-se, pela atitude, que achavam que o problema era de foro psicológico e por serem gémeos, atacando o mais fraco. Consultaram também a curandeira de Clavières, mulher de nomeada na região, após a morte de Sagette e a tia Fadet começar a ficar senil.
- Só uma coisa pode salvar o vosso filho - declarou a curandeira -, é que ele goste das mulheres.
- De facto, ele não as suporta - respondeu a tia Barbeau. - Nunca vi rapaz tão orgulhoso e tão ajuizado, e no entanto, desde que o amor se meteu na cabeça do irmão, diz mal de todas as raparigas. Culpa-as a todas por causa de uma delas, e infelizmente não é a melhor, Lhe ter roubado, como afirma, o afecto do gémeo.
- É verdade - continuou a curandeira -, quando o vosso filho amar uma mulher, amá-la-á ainda mais do que ama o irmão. É o que eu vaticino. Ele ama em excesso, e por causa de o concentrar no irmão, esqueceu os que o circundam, faltando à lei de Deus, que quer que o homem ame uma mulher mais do que aos pais e irmãos. Descansem, porque é provável que a Natureza actue brevemente; e não hesitem em dar-lhe em casamento a mulher que ele amar, seja pobre, feia ou má, pois tudo indica que não amará duas na vida. O seu coração é excepcionalmente afectivo, do que resulta a necessidade de um milagre da Natureza para que se separe um pouco do gémeo.
A opinião da curandeira pareceu sensata ao tio Barbeau. De modo que os pais inventaram todos os pretextos para levar Sylvinet às casas amigas onde havia raparigas casadoiras. Mas, embora Sylvinet fosse um bonito rapaz e bem-educado, o seu ar indiferente e triste não alegrava o coração de qualquer delas. Por ser muito tímido, imaginava, à força de as temer, que as detestava.
O tio Caillaud, bom amigo e um dos melhores conselheiros da família, propôs então:
- Sempre vos disse que a ausência era o melhor remédio. Vejam Landry! Estava a ficar doido por causa da pequena Fadette, e no entanto, depois desta partir, ele não perdeu a razão nem a saúde, e anda até menos triste do que andava. Agora é um moço razoável e submisso. Aconteceria por certo o mesmo a Sylvinet se, durante cinco ou seis meses, não visse o irmão. Posso dar uma ideia de o separar sem ser bruscamente. A minha quinta de Priche vai bem, o que não acontece com a minha outra propriedade para os lados de Arthon. O caseiro está doente e não há meio de se restabelecer. Não o quero mandar embora, porque é bom homem. Mas se pudesse enviar-lhe um bom trabalhador para o ajudar, ele certamente recuperaria, pois a sua doença não passa de cansaço e excesso de trabalho. Se concordarem, mandarei Landry ajudá-lo até ao final da época. Não diremos a Sylvinet que E por muito tempo. Dir-lhe-emos, pelo contrário, que é por oito dias. E depois, passados esses dias, acrescentaremos mais oito, e por aí fora até se habituar. Sigam o meu conselho, e deixem de encorajar as fantasias de uma criança demasiado mimada e que nunca foi contrariada.
O tio Barbeau anuiu ao conselho, mas a tia Barbeau ficou assustada. Receava que fosse para Sylvinet um golpe fatal. Foi preciso fazer um acordo com ela! Quis primeiro que tentassem conservar Landry quinze dias em casa, para saber se o irmão, vendo-o a toda a hora, não se curaria. Se pelo contrário piorasse, então sim, concordaria com a ideia do tio Caillaud.
Fez-se assim. Landry veio de bom grado passar os quinze dias a casa. Mandaram-no chamar sob pretexto de que o pai carecia da sua ajuda para malhar o resto do trigo, em vista de Sylvinet não poder trabalhar. Landry pôs em tudo o melhor empenho e bondade para fazer o irmão feliz. Via-o a toda a hora, ajudava-o nos mais ínfimos préstimos e cuidava dele como se fosse uma criancinha. No primeiro dia Sylvinet ficou muito contente; no segundo, afirmou que Landry se aborrecia junto dele, e este não conseguia tirar-lhe essa ideia da cabeça; no terceiro dia, Sylvinet encolerizou-se porque o saltão veio ver Landry e este não teve coragem de o mandar embora; finalmente, ao cabo de uma semana chegaram a uma triste conclusão: Sylvinet tornava-se cada vez mais injusto, exigente e ciumento da sua sombra, pelo que decidiram pôr em execução o plano do tio Caillaud, e, embora Landry não tivesse vontade de ir para Arthon, meio que lhe era estranho, aceitou tudo o que lhe aconselharam a fazer no interesse do irmão.
No primeiro dia, Sylvinet ia quase morrendo; no segundo, ficou mais tranquilo; e no terceiro, a febre abandonou-o. Ao fim da primeira semana, reconheceram que a ausência do irmão lhe era mais benéfica do que a sua presença. Encontrava, nos seus raciocínios doentios, um motivo para estar quase satisfeito com a ausência de Landry. Pelo menos, pensava, no sítio para onde foi não conhece ninguém e não fará logo novas amizades; aborrecer-se-á um pouco, pensará em mim e terá saudades, de modo que, quando voltar, ainda gostará mais de mim.
Havia já três meses que Landry se ausentara, e cerca de um ano que a pequena Fadette deixara a terra, quando esta teve de voltar repentinamente, porque a avó paralisara. Tratou dela com grande zelo, mas, como a idade é um flagelo irreversível, ao fim de quinze dias, a tia Fadet sucumbiu, entregando a alma sem dar por isso. Três dias após o enterro e já depois de tér arrumado a casa e deitado o irmão, retirando-se para dormir, a pequena Fadette ouviu lá fora o canto dum grilo dos campos. Fanchon pensava no namorado quando bateram à porta, ouvindo-se uma voz perguntar:
- Fanchon Fadet, estás aí?
Ela precipitou-se a abrir a porta e a sua alegria foi grande quando o seu amigo Landry a apertou de encontro ao coração.
Landry tomara conhecimento da doença da avó e do regresso de Fanchon. Não pudera resistir ao desejo de a rever e viera de noite para regressar ao amanhecer.
Passaram toda a noite a conversar ao canto da lareira, calmamente, imensamente felizes por estarem juntos e reconhecerem que o amor não esfriou.
À medida que o dia se aproximava, Landry começava, no entanto, a não ter coragem de partir e pediu a Fanchon que o escondesse no celeiro, para que pudesse continuar a vê-la no dia seguinte. Como sempre, ela chamou-o à razão, dizendo-lhe nomeadamente que já não iam estar separados por muito tempo, visto estar resolvida a ficar de vez.
- Tenho para isso razões das quais te informarei mais tarde e em nada prejudicarão a esperança que tenho no nosso futuro. Vai acabar o trabalho que o teu patrão te confiou, pois que a tua ausência é necessária à cura do teu irmão.
- Só essa razão me pode decidir a deixar-te - respondeu Landry -, pois o meu irmão causou-me muitos sofrimentos e receio que me cause ainda mais. Tu que és tão inteligente, Fanchon, devias encontrar uma maneira de o curar.
- É o seu espírito que lhe torna o corpo doente. Tem tanta aversão por mim, que é impossível essa oportunidade de falar com ele e o consolar.
- E, contudo, tens tanto espírito, falas tão bem, tens um dom tão particular para convenceres do que queres, que, se falasses com ele, ainda que por pouco tempo, ele seria sensível ao efeito. Tenta, peço-te! Não te deixes desencorajar com o seu orgulho e o seu mau humor! Obriga-o a escutar-te! Faz isso por mim, minha Fanchon, e pelo triunfo do nosso futuro também, pois a oposição do meu pai não será o mais pequeno dos obstáculos!
Fanchon prometeu e eles separaram-se, repetindo vezes sem conta, um ao outro, que se amavam e sempre se amariam.
Fadette em casa dos Barbeau
Ninguém soube, na aldeia, que Landry tinha ido visitar Fadette. Senão, alguém poderia dizê-lo a Sylvinet e este não perdoaria ao irmão que tivesse vindo ver a rapariga e não ele.
Dois dias depois, Fadette vestiu-se a rigor, pois agora já não andava sem dinheiro. Atravessou o burgo, e como crescera muito, os que a viram passar não a reconheceram de imediato. Embelezara consideravelmente na cidade; mais bem alimentada, ganhara cores e corpo, como convinha à sua idade, e já não podia ser tomada por um rapaz disfarçado, de tal modo o seu aspecto era belo e agradável de ver. O amor e a felicidade haviam-se estampado no seu rosto, e na sua pessoa havia um não sei quê que se nota mas não se explica. Enfim, não era a rapariga mais bonita do país, como Landry imaginava, mas a mais graciosa, a mais bem feita, a mais fresca e talvez a mais sedutora que havia por ali.
Levava no braço um grande cesto e entrou na quinta onde pediu para falar com o tio Barbeau. Foi Sylvinet quem a viu primeiro e desviou-se, tal era o desprezo que sentia por ela. Mas ela perguntou- lhe pelo pai com tanta delicadeza que ele foi obrigado a responder e a conduzi-la à granja, onde o tio Barbeau estava ocupado a rachar lenha. Como Fadette lhe pediu para falarem num sítio onde pudessem estar à vontade, ele fechou a porta da granja e disse que podia dizer-lhe ali mesmo tudo o que quisesse.
A pequena Fadette não se deixou intimidar pelo ar frio do tio Barbeau. Sentou-se num fardo de palha, e ele noutro.
- Tio Barbeau, embora a minha família tenha tido queixas contra vocês e vocês queixas contra mim, não é menos verdade que eu o reconheço como o homem mais justo e mais honesto da terra. Afinal tudo isso não passava de pequenos confli tos, e mesmo a minha avó, embora censurando-vos o orgulho, vos fazia a mesma justiça. Além disso, como sabe, tenho uma grande amizade pelo seu filho Landry. Ele falou-me muitas vezes em si e sei por ele, ainda melhor do que por qualquer outra pessoa, o que é e o que vale. É por isso que lhe venho pedir um favor e dar-lhe a minha confiança.
- Fala, Fadette - respondeu Barbeau. Nunca recusei auxílio a ninguém, e se for algo que a minha consciência não me proíbe, podes contar comigo.
- Eis do que se trata - disse a pequena, erguendo o cesto e colocando-o entre as pernas do tio Barbeau. - A minha defunta avó ganhou, durante toda a vida, a dar consultas e a vender remédios, mais dinheiro do que se pensava; como não gastava quase nada, ninguém podia saber o que ela tinha num velho buraco da despensa, que me mostrou várias vezes, dizendo: Quando eu já não existir, é aqui que encontrarás o que eu te tiver deixado. São os teus bens, assim como os do teu irmão. Se eu vos privo um pouco agora, é para ficarem com mais um dia. Mas não deixes os homens da lei tocar nisto, comer-to-iam em impostos. Guarda-o bem guardado, esconde-o toda a vida, para te servires dele na velhice e nunca te faltar. Quando a minha pobre avó foi sepultada, obedeci à sua ordem, e retirei os tijolos da parede no sítio que ela me mostrara. Encontrei lá o que vos trago neste cesto, tio Barbeau, e peço que o empregue como entender depois de satisfazer a lei, que eu não conheço, e me preservar dos grandes impostos, que me assustam.
- Fico-te reconhecido pela confiança, Fadette - disse o tio Barbeau sem abrir o cesto, embora estivesse cheio de curiosidade -, mas não tenho o direito de receber o teu dinheiro, nem de zelar pelos teus negócios. Não sou teu tutor. Sem dúvida, a tua avó deixou algum testamento.
- Não fez testamento nenhum, e a tutora que a lei me dá é a minha mãe. Ora, bem sabe que não tenho notícias dela há anos, nem sei se está morta ou viva. Depois dela, não tenho outro parente além da minha tia Fanchette, que é uma boa e honesta mulher, mas perfeitamente incapaz de gerir os meus bens e mesmo de os conservar. Não conseguiria evitar falár neles e mostrá-los a toda a gente, e daí recear que ela os empregasse mal, pois, coitada, nem sequer os sabe contar.
- Trata-se então de uma coisa importante?perguntou o tio Barbeau.
Realmente, apesar de contrafeito, os olhos não largavam a tampa do cesto; e pegou nele pela asa para o erguer. Mas achou-o tão pesado que ficou admirado e disse:
- Isto é quase uma carga para um cavalo.
Fadette, que tinha um espírito levado do diabo, divertiu-se interiormente com a vontade que ele tinha de espreitar o cesto. Até fez menção de o abrir, mas o tio Barbeau julgava ser falta de dignidade permitir que ela o fizesse.
- Isso não me diz respeito. Se não quero tomar conta dele, também não quero saber o valor.
- Mas é preciso, tio Barbeau - disse Fadette
-, que me preste pelo menos esta ajuda. Não pense que sou mais inteligente que a minha tia, e só posso confiar em si para me dizer se sou rica ou pobre e saber ao certo a quantia da doação.
- Está bem - concordou o tio Barbeau, sem se poder conter mais. - Não quero deixar de prestar-te este serviço.
Então Fadette levantou lentamente a tampa do cesto e tirou dois grandes sacos, cada um deles contendo dois mil francos em moedas.
- Ora, ora! Bem bom! - exclamou o tio Barbeau. - É um pequeno dote que te fará desejada por muitos.
- Não é tudo - respondeu a pequena Fadette. - No fundo do cesto, há ainda uma coisita que não conheço.
E tirou uma bolsa, que despejou no chapéu do tio Barbeau. Havia dentro dela cem moedas de ouro, que fizeram arregalar os olhos do bom omem. Quando ele as contou e as meteu novamente na bolsa, ela tirou uma segunda com o mesmo conteúdo, uma terceira, e depois uma quarta, finalmente, tanto em ouro como em prata; havia, no cesto, perto de quarenta mil francos!
Era cerca de um terço a mais do que todos os bens que o tio Barbeau possuía, e, como a gente do campo tem dificuldade em aforrar, nunca ele vira tanto dinheiro junto.
Por mais honesto e desinteressado que seja um camponês, não se pode dizer que a vista do dinheiro não lhe desperte interesse. Assim, o tio Barbeau, durante um momento, suou frio. Após ter contado tudo, disse:
- Para teres quarenta vezes mil francos, só te faltam meia dúzia de moedas, o que faz de ti o melhor partido da região, Fadette! O teu irmão, o saltão, bem pode ser enfezado e coxo toda a sua vida! E poderá visitar as suas riquezas de carroça! Quanto a ti, ficaste rica e poderás gritá- lo aos quatro ventos se desejas arranjar depressa um marido.
- Não tenho pressa - respondeu a pequena Fadette -, e peço-Lhe, pelo contrário, que guarde segredo desta riqueza, tio Barbeau. Tenho o capricho, feia como sou, de não querer ser desposada pelo meu dinheiro, mas pelo meu coração e pelo meu comportamento, e como nesta terra não sou muito bem vista, quero deixar passar algum tempo para que se apercebam de que se enganam a meu respeito.
- A tua fealdade, Fadette? - perguntou o tio Barbeau, erguendo os olhos, que ainda não haviam largado o cesto. - Posso dizer-te que te transformaste tão bem na cidade, que agora és uma rapariga bem atraente. Quanto ao comportamento, sei que já não mereces essa reserva. Por mim, aprovo a ideia de ocultares por agora a tua riqueza. Não faltariam rapazes a quem ela deslumbraria, ao ponto de te pedirem em casamento, e talvez sem terem por ti o respeito que uma mulher deve esperar do marido. Agora, quanto ao dinheiro que queres depositar nas minhas mãos, seria contra a lei e poderia estar a expor-te mais tarde a suspeitas e incriminações, pois as más-línguas não faltam. E supondo que tens o direito de decidir do que te pertence, já não o tens de dispor do que pertence ao teu irmão menor. Tudo o que eu posso fazer é ir consultar alguém, sem te nomear. Dir-te- ei então a maneira de colocar em segurança a tua herança e dela tirares bom proveito, sem passar por mãos desleais. Levas de volta tudo isso para casa e guarda-o outra vez até eu te ter dado uma resposta.
Era tudo o que a pequena Fadette queria. O tio Barbeau saberia como havia de proceder. Se se sentia um pouco orgulhosa diante dele, por ser rica, era porque ele já não a podia acusar de querer lograr Landry.
O tio Barbeau, vendo-a tão prudente e compreendendo como era esperta, apressou-se a indagar da reputação que ela adquirira na cidade, onde passara um ano. Embora aquele dote o tentasse e o fizesse esquecer a sua péssima família, o mesmo não acontecia quando se tratava da honra da rapariga que desejava ter por nora. Foi portanto ele próprio à cidade tirar as devidas informações. Foi- lhe dito que ela se comportara tão bem que não havia a menor censura a fazer-lhe. Estivera ao serviço de uma velha religiosa nobre, que gostara muito dela pelo seu comportamento, bons modos e inteligência. Tinha muitas saudades dela e dizia que era uma perfeita rapariga, corajosa, limpa, cuidadosa e de um carácter tão amávél que nunca mais encontraria outra igual. Como essa velha senhora era bastante rica, dedicava-se a obras de caridade, no que Fadette a secundava maravilhosamente no tratamento dos doentes e na preparação dos remédios. Por isso, a velha senhora ainda hoje a lamentava.
O tio Barbeau ficou muito satisfeito e voltou para Cosse, decidido a esclarecer a coisa até ao fim. Reuniu a família, encarregou todos os familiares de procederem a um inquérito discreto sobre a conduta que a pequena Fadette tivera desde que atingira a idade de mulher, a fim de que fosse apurado se todo o mal que haviam dito dela só tivesse por causa infantilidades. Ao passo que, se alguém pudesse afirmar tê-la visto cometer uma má acção, ele pudesse manter a proibição que fizera a Landry de a namorar. A investigação foi feita com a prudência desejada e sem que a questão da herança fosse divulgada, pois ele não dissera uma palavra sobre isso, nem mesmo à mulher.
Entretanto, Fadette vivia muito retirada e recatada na sua casinha, onde nada quis mudar, a não ser mantê-la sempre limpa. Vestiu decentemente o pequeno saltão e alterou a alimentação de todos, e que surtiu de imediato bom efeito na criança: recuperou francamente e a sua saúde em breve ficou estável. A felicidade depressa melhora o carácter! Não sendo mais atormentado e castigado pela avó, só recebendo agora afagos e bom trato, tornou-se um rapaz gentil, amável e já não desagradava a ninguém, mesmo sendo coxo.
Por outro lado, operara-se tão radical mudança na pessoa e hábitos de Fanchon Fadet, que a maledicência acabou, e mais de um rapaz, ao vê-la passar, ligeira e graciosa, desejava que ela aliviasse luto, para a poder cortejar e convidá-la a dançar.
Só Sylvinet não mudava de ideias. Desconfiava que alguma coisa se tramava a propósito dela na familia, pois o pai, agora, falava muitas vezes dela, e quando ouvia algum elogio a seu respeito, congratulava-se com isso, no interesse de Landry, alegando não suportar que tivessem difamado o filho por andar com uma jovem tão inocente.
Também se falava do próximo regresso de Landry, e o tio Barbeau desejava que o tio Caillaud concordasse. Enfim, Sylvinet apercebia-se que já não seriam tão contrários ao namoro de Landry, daí que o seu desgosto voltasse. A opinião, era desde há pouco tempo favorável a Fadette. Sylvinet continuava a ver nela a rival do seu amor por Landry.
De vez em quando o tio Barbeau deixava escapar a palavra casamento e dizia que os gémeos não tardariam a estar em idade de pensar nisso. O casamento de Landry sempre fora uma ideia desoladora para Sylvinet, o desfecho final da sua separação. Voltaram-lhe as febres e a mãe consultou uma vez mais os médicos.
Um dia, encontrou a tia Fanchette, a qual, ao ouvi-la lamentar-se, lhe perguntou porque é que ia a consultas tão longe, gastando tanto dinheiro, quando tinha ao alcance da mão a curandeira mais hábil de toda a região, que não exercia por dinheiro, como fizera a avó, mas somente por bondade e piedade para com o próximo. E nomeou a pequena Fadette.
A tia Barbeau falou nisso ao marido, que não se opôs. Ele disse-lhe que na cidade, Fadette tivera grande fama e que de todos os lados a iam consultar. A tia Barbeau pediu então a Fadette que fosse ver Sylvinet, acamado, e lhe prestasse assistência.
Fanchon procurara mais de uma vez ocasião de lhe falar, como havia prometido a Landry, mas ele sempre recusara. De sorte que não se fez rogada e correu a ajudar o gémeo. Sylvinet, febril, dormia. A jovem pediu à família que os deixassem a sós. Como era costume as curandeiras agirem em segredo, ninguém a contrariou.
Fadette pousou uma mão sobre a do gémeo, que pendia na beira da cama; fê-lo tão suavemente que ele nem se apercebeu. A mão de Sylvinet queimava como fogo. Agitou- se um pouco, mas não a repeliu. Então Fadette pôs a outra mão sobre a sua testa, também com suavidade, e ele agitou-se de novo. De verdade, pouco a pouco, foi acalmando, a fronte e a mão foram refrescando, e o seu sono tornou-se calmo como o de uma criança. Então, retirou-se do quarto e antes de partir disse à tia Barbeau:
- Vá ver o seu filho e dê- lhe de comer, que já não tem febre. E, sobretudo, não lhe fale em mim, se quer que o cure. Voltarei de novo à noite.
A tia Barbeau ficou deveras admirada ao ver Sylvinet sem febre, apressando-se a dar-lhe de comer, que ele engoliu com apetite. E como havia vários dias que a febre não o deixava e não conse guira comer nada, todos se admiraram com o saber extraordinário de Fadette, que, sem o acordar, teve dons de o pôr no caminho da cura.
À noite, Fadette voltou. Como de manhã, ficou sozinha com ele, não fazendo outra magia senão segurar- lhe as mãos e a cabeça muito ao de leve e respirar com frescura junto da sua cara em fogo. E como de manhã, tirou-lhe o delírio e a febre. Quando se retirou, voltou a recomendar que não falassem a Sylvinet da sua vinda. Foram dar com ele mergulhado num sono calmo, já não tendo o rosto vermelho nem parecendo doente.
O certo é que, ao fim de três dias, Fadette livrou Sylvinet da febre, e ele nunca teria sabido como isso sucedera se, ao acordar um pouco precipitadamente, não a tivesse visto inclinada sobre ele, exactamente quando retirava suavemente as mãos.
Primeiro julgou que era uma aparição e fechou os olhos para não a ver, mas depois, quando perguntou à mãe se Fadette estivera no seu quarto ou se fora um sonho, a tia Barbeau, a quem o marido revelara finalmente alguma coisa dos seus projectos, desejando ver Sylvinet finalmente renunciar à sua aversão por ela, respondeu que, com efeito, viera três dias seguidos, de manhã e à noite, e que lhe tirara milagrosamente a febre, tratando dele em segredo.
Sylvinet pareceu não acreditar em nada. Disse que a febre se fora por ela própria e que as palavras e segredos de Fadette não passavam de manias e loucuras. Começou a andar mais calmo e de boa saúde durante alguns dias e o tio Barbeau julgou bom aproveitar a ocasião para lhe falar na possibilidade do casamento do irmão, sem contudo nomear a pessoa que tinha em vista.
- Não é preciso esconder-me o nome da noiva que lhe destina - interrompeu Sylvinet. - Sei muito bem que é essa Fadette, que vos enfeitiçou a todos.
Com efeito, a investigação secreta do tio Barbeau fora tão favorável à pequena Fadette, que ele já não estava imbuído da menor hesitação e desejava imenso poder mandar vir Landry. Só receava agora os ciúmes do gémeo e esforçava-se por curá-lo dessa mania, dizendo-lhe que o irmão nunca seria feliz sem a pequena Fadette. Ao que Sylvinet respondia:
- Que assim seja! O meu irmão não pode ser infeliz.
Só que a febre voltou a atacar Sylvinet, apesar dele parecer ter aceite os factos.
No espírito do tio Barbeau instalara-se a dúvida que a pequena Fadette guardasse rancor a Sylvinet das injustiças passadas e que, tendo-se consolado da ausência de Landry, pensasse agora noutro qualquer. Daí que, quando ela veio a casa tratar de Sylvinet, tentasse falar-lhe de Landry; mas ela fingiu não ouvir e ele ficou embaraçado.
Para desfazer a confusão que Lhe ia na alma, uma manhã resolveu-se e foi falar com a pequena Fadette.
- Fanchon Fadet, venho fazer- te uma pergunta à qual te peço que me respondas com toda a sinceridade. Antes da morte da tua avó, fazias ideia da grande fortuna que ela te ia deixar?
- Sim, tio Barbeau - respondeu a pequena Fadette. - Tinha-a visto várias vezes contar o ouro e a prata e ela dizia-me sempre, quando as outras raparigas troçavam de mim: Não te preocupes com isso, pequena, serás mais rica do que todas elas e um dia chegará em que poderás andar vestida de seda dos pés à cabeça, se for esse o teu desejo.
- Falaste nisso a Landry? Não seria por causa do teu dinheiro que meu filho dizia estar apaixonado por ti?
- Quanto a isso, tio Barbeau - respondeu a pequena Fadette -, sempre quis ser amada pelos meus belos olhos, que são a única coisa que nunca ninguém me negou e, portanto não ia ser tão tola ao ponto de contar a Landry. No entanto, tenho a certeza que poderia tê-lo dito sem perigo, pois Landry ama-me tão honestamente e tão sinceramente que nunca se preocupou em saber se eu era rica ou miserável.
- E depois que a tua avó morreu, Fanchon, dás-me a tua palavra de honra que Landry não foi informado por ti ou por outra pessoa do que se passou?
- Dou, sim! - disse Fadette. - Tão verdade como eu amar Deus O senhor é a única pessoa do mundo que tem conhecimento disto.
- E quanto ao amor de Landry, pensas que ele continua a amar-te?
- Oh! Sim! Sem dúvida! - respondeu. - Até lhe confesso que ele veio ver-me três dias depois do funeral e jurou-me que ou casava comigo ou morria de desgosto.
- E que lhe respondeste, Fadette?
- Respondi-lhe que ainda tínhamos tempo de pensar em casar e que não me decidiria facilmente por um rapaz que me fizesse a corte contra a vontade dos pais.
E como a pequena Fadette dizia aquilo num tom bastante orgulhoso e desprendido, o tio Barbeau ficou alertado.
- Não tenho o direito de te interrogar, Fadette - disse. - Não sei se tens intenção de fazer o meu filho feliz ou infeliz para toda a vida, mas sei que ele te ama muito, e se eu estivesse no teu lugar, com a ideia que tens de ser amada por ti própria, diria: Landry Barbeau amou-me quando eu andava vestida de farrapos, quando toda a gente me repelia e quando os próprios pais procediam mal chamando a isso um grande pecado. Ele achou-me bela quando toda a gente me repelia; amou-me a despeito dos sofrimentos que esse amor lhe causava; enfim, amou-me tão bem que não posso desconfiar dele e que não quero outro para marido.
- Há muito tempo que disse isso a mim própria, tio Barbeau - respondeu a pequena Fadette.
- Mas, teria grande repugnância em entrar para o seio de uma família que teria vergonha de mim e só me aceitasse por fraqueza ou compaixão.
- Se é isso que te impede, decide-te, Fanchon
- continuou o tio Barbeau -, pois a família de Landry estima-te e aceita-te. Não julgues que mudou de ideias por seres agora rica. Não era a pobreza que nos repugnava, mas os comentários que faziam de ti. Se tivessem fundamento, nunca, mesmo que o meu Landry morresse, eu consentiria em te chamar minha nora; mas quis saber o fundo de verdade dessas maledicências e fui de propósito à cidade, onde me asseguraram que eras uma pessoa ajuizada e honesta, tal como Landry afirmava com tanto ardor. Assim, Fanchon, venho pedir-te que cases com o meu filho e, se concordares, ele estará aqui dentro de oito dias.
Esta proposta, prevista por ela, deixou Fadette muito contente. Mas, não quis demonstrá-lo, porque queria ser respeitada para sempre pela futura família e respondeu cautelosamente. Então o tio Barbeau retorquiu- lhe:
- Vejo, minha filha, que te ficou no coração alguma coisa contra mim e contra os meus. Não exijas que um homem de idade te peça desculpa; contenta-te com uma boa palavra, e quando te digo que serás amada e estimada em nossa casa, confia no tio Barbeau, que nunca enganou ninguém. Então queres dar o beijo da paz ao tutor que escolheste, ou ao pai que te quer adoptar?
A pequena não se conteve por mais tempo; atirou os dois braços ao pescoço do tio Barbeau, cujo velho coração exultou de alegria.
Sylvinet transforma-se num homem
Os acordos fizeram-se rapidamente. O casamento efectuar-se-ia assim que o luto de Fanchon terminasse. Só faltava mandar chamar Landry. Mas quando a tia Barbeau foi ver Fanchon nessa mesma noite, para a abraçar e lhe dar a sua benção, informou-a de que ao saber da notícia do casamento do irmão, Sylvinet tornara a cair doente e pedira que esperassem mais dias para ele se restabelecer.
- Cometeu um erro, tia Barbeau - disse a pequena Fadette -, ao confirmar a Sylvinet que não sonhara ao ver-me a seu lado naquela noite. Agora o pensamento dele contrariará o meu e já não terei o mesmo poder para o curar durante o sono. Até é possível que me repudie e que a minha presença piore o seu mal.
- Não penso assim - respondeu a tia Barbeau -, pois há pouco, sentindo-se mal, deitou-se e disse: Então onde está essa Fadette? Julgava eu que me tivesse aliviado. Será que volta? Respondi que vinha buscar-te, e pareceu contente e até impaciente.
- Já vou - respondeu Fadette. - Só que desta vez tenho de agir de outra maneira, pois o tratamento resultava quando não me sabia lá.
- E não levas contigo drogas ou remédios?admirou-se a tia Barbeau.
- Não - respondeu Fadette. - O seu corpo não está muito doente. É com o seu espírito que tenho de lutar. Vamos aguardar pacientemente o regresso de Landry sem o prevenir, e antes de tudo tentaremos devolver a saúde ao irmão. Landry recomendou-mo com tanto empenho que sei que me aprovará por ter propositadamente retardado o seu regresso.
Quando Sylvinet viu a pequena Fadette junto do seu leito, pareceu descontente e não quis dizer como estava. Ela quis tomar-lhe o pulso, mas ele retirou a mão e voltou a cara para o lado da parede. Então Fadette fez sinal para que os deixassem a sós. Quando toda a gente saiu, apagou a luz e deixou apenas entrar no quarto a claridade da Lua. Depois voltou para junto de Sylvinet e num tom de comando, ao qual ele obedeceu como uma criança, disse-lhe:
- Sylvinet, põe as tuas mãos nas minhas e responde- me francamente, pois eu não me incomodei por dinheiro, e se me dei ao trabalho de vir curar- te, não é para ser mal recebida e mal agradecida. Presta atenção ao que te vou perguntar e ao que me vais responder, pois não te será possível enganar-me.
- Pergunta o que julgares oportuno, Fadette - respondeu o gémeo, aparvalhado por ouvir falar tão severamente aquela trocista da pequena Fadette, à qual, em tempos, tantas vezes respondera com pedradas.
- Sylvinet Barbeau - prosseguiu -, é verdade que queres morrer?
Sylvinet hesitou um pouco antes de responder e, como a jovem lhe pressionava a mão com bastante força, para lhe fazer sentir a sua grande vontade, disse um tanto confuso:
- Seria o que me poderia acontecer de melhor, morrer, quando vejo que sou um fardo e um embaraço para a minha família, por causa da minha má saúde e por causa...
- Conta tudo, Sylvinet, não deves ocultar nada.
- devido ao meu espírito inquieto, que não posso mudar - concluiu o gémeo, acabrunhado.
- E igualmente por causa do teu mau coração
- acrescentou Fadette num tom tão duro que ele sentiu cólera e medo.
- Porque é que me acusas de ter mau coração?
- perguntou. - Dizes-me inj úrias, quando vês que não tenho forças para me defender.
- Digo-te verdades, Sylvinet - continuou Fadette -, e vou dizer-te muitas mais. Não tenho pena nenhuma da tua doença, porque percebo o suficiente para ver que não é muito séria e que, se outro perigo há para ti, é o de ficares louco, no que te esforças ao máximo, sem saber para onde te leva a maldade e a fraqueza de espírito.
- Censura a minha fraqueza - disse Sylvinet -, mas quanto à minha maldade, é uma censura imerecida.
- Não tentes defender-te - replicou Fadette.
- Conheço-te um pouco melhor do que tu próprio, Sylvinet, e digo-te que a fraqueza gera a falsidade. Por isso, és egoísta e ingrato!
- Se pensas tão mal de mim, Fanchon Fadet, é sem dúvida porque Landry andou a dizer-te mal de mim e te mostrou a pouca amizade que me dedi cava, pois, se me conheces, ou julgas conhecer, só pode ser através dele.
- Era aí que eu queria chegar, Sylvinet! Já sabia que não dirias três palavras seguidas sem te queixar do teu gémeo e sem o acusar, pois a amizade que tens por ele, por ser demasiado abstrusa, tende a transformar-se em despeito e em rancor. Nisso, reconheço-te meio louco e malsão. Pois bem! Eu digo-te que Landry te ama mil vezes mais do que tu a ele; a prova é que nunca te censurou seja no que for, por mais que o faças sofrer, por mais que o tortures, enquanto tu o censuras de tudo, quando ele não faz outra coisa senão ceder e servir-te. Como queres tu que eu não veja a diferença entre os dois? Assim, quanto melhor Landry me falava de ti, pior eu pensava, porque considero que um irmão tão bom só pode ser menosprezado por uma alma injusta.
- Que ódio me tens, Fadette! Está visto, não me enganei! Bem sabia que me havias de roubar o amor de meu irmão, dizendo-lhe mal de mim.
- Também não me surpreendes com essa, caro Sylvinet, e rejubilo por me acusares finalmente. Pois bem! Quero dizer-te que és um mentiroso sem coração, porque desprezas e insultas uma pessoa que sempre te ajudou e defendeu, sabendo no entanto que lhe eras adverso. Uma pessoa que se privou cem vezes do maior e único prazer que tinha no mundo, o prazer de estar com Landry, para que ele estivesse junto de ti, dando-te assim a felicidade que retirava a ela própria. E não te devia nada. Sempre foste meu inimigo confesso, e, tanto quanto me lembro, nunca encontrei criatura tão dura e altiva como tu eras comigo. Podia ter-me vingado disso, e ocasiões não me faltaram. E se não o fiz, se paguei sem saberes o mal com o bem, foi por simples piedade, porque uma alma cristã deve perdoar ao próximo, em atenção a Deus. Mas, está claro, não devo falar-te em Deus, não compreendes, és ateu e perverso.
- Consinto que me digas muitas coisas, Fadette, mas é demasiado. Acusas-me de não amar Deus?
- Não me disseste ainda há pouco que desejavas a morte? Achas que isso é ideia de católico?
- Não disse isso, Fadette, disse que...
Sylvinet parou, assustado, ao pensar no que dissera.
Mas ela não o deixou tranquilo e continuou a admoestá-lo:
- É possível que as tuas palavras não correspondam ao pensamento, pois parece-me que não desejas tanto a morte como te agrada fazer crer, a fim de controlares a família, de atormentares a tua pobre mãe, que anda desolada, e o teu gémeo, que é suficientemente ingénuo para acreditar que queres acabar com a tua vida. Eu não sou parva, Sylvinet. Acho que tens medo da morte como qualquer outro e que brincas com o medo que fazes àqueles que te amam. Agrada-te ver que as resoluções mais sensatas e necessárias cedem sempre perante a ameaça que fazes de morte. É, com efeito, extremamente cómodo e agradável bastar dizer uma palavra para todos se dobrarem à tua volta. Desse modo, és senhor de todos. Mas como isso é contra a Natureza, e logra-lo através de meios que Deus reprova, és pois castigado, tornando-te ainda mais infeliz do que serias se obedecesses em vez de mandar. E estás tu aborrecido com uma vida repleta de facilidades! Vou dizer-te o que te faltou para seres um bom e sensato rapaz: teres tido uns pais máis rudes, muita miséria, e falta de pão todos os dias com pancada muitas vezes. Se tivesses sido educado na mesma escola que eu e o meu irmão, em vez de seres ingrato, estarias agradecido pela menor coisa. Olha, Sylvinet, não te desculpes com o facto de seres gémeo. Sei que se falou bastante dessa amizade de gémeos e de uma lei dita natural, que os faria morrer se a contrariassem, e tu acreditaste obedecer ao teu destino levando essa amizade ao extremo. Fica sabendo que Deus não é assim injusto, que nos marque com uma má sorte no ventre das nossas mães. Isso não passa de superstição. Nunca, a menos que sejas louco, acreditarei que não possas combater os teus ciúmes, se quiseres. E de verdade tu não o queres, porque te mimaram demasiado. Segues a fantasia e renegas o teu dever.
Sylvinet não respondeu. Deixou Fadette repreendê-lo durante muito tempo sem lhe dar réplica. Sentia que ela, no fundo, tinha razão e só não era indulgente num ponto, que era o de estar convencida que ele nunca tentara combater o mal, isto é, que nunca se dera conta do seu egoísmo. Isso penalizava-o e humilhava-o. Ele desejaria poder dar-lhe uma ideia mais agradável da sua consciência. Quanto a ela, sabia que exagerava e fazia-o com o intento de o culpabilizar antes de o cativar pela doçura e consolo. Esforçava-se por lhe falar duramente e parecer encolerizada, quando, na realidade, sentia tanta piedade e amizade por ele que a farsa a deixava quase doente.
A verdade é que Sylvinet não estava tão doente como parecia e se comprazia em fazer crer. A pequena Fadette, ao tomar-lhe o pulso, verificara em primeiro lugar que a febre não era muito forte, e se ele estava um pouco delirante, era porque o espírito estava mais doente e mais enfraquecido do que o corpo. Decidiu portanto dominá- lo pelo espírito, fazendo-o ter receio dela.
De manhã cedo voltou para junto dele. Contou-lhe que não dormira nada, mas estava tranquilo, embora um pouco abatido. Assim que a viu, estendeu-lhe a mão.
- Porque é que me ofereces a tua mão, Sylvinet? - perguntou. - É para ver a febre? Vejo pela tua cara que já não a tens.
Sylvinet, envergonhado por ter de retirar a mão que ela não quisera apertar, disse:
- É para te desejar os bons dias, Fadette, e para te agradecer todo o trabalho que tens por mim.
- Nesse caso, aceito os teus cumprimentos - disse ela, pegando-lhe na mão e conservando-a na sua -, pois nunca rejeito uma cortesia e não te julgo tão falso que mostres interesse por mim sem o sentir.
Sylvinet sentiu um grande bem-estar, e disse-lhe num tom muito suave:
- No entanto, ontem à noite trataste-me com aspereza, Fanchon, e não sei como é que não te tenho raiva. Até acho muita bondade tua vires visitar-me, depois de todas as censuras que me fizeste.
Fadette sentou-se junto da cama e falou-lhe de um modo completamente diferente do da véspera. Empregou tanta bondade, tanta doçura e ternura, que Sylvinet sentiu um alívio e um prazer indescritíveis. Chorou amargamente, confessou todos os erros e pediu-lhe o seu perdão e a sua amizade com tanto amor e honestidade que ela reconheceu que ele tinha o coração melhor que a cabeça. Deixou-o desabafar, e quando quis retirar a mão, ele reteve-a, pois parecia-Lhe que aquela mão o curava da doença e do desgosto ao mesmo tempo.
Ela deixou-o desabafar e depois ordenou:
- Agora vou-me embora e tu vais levantar-te, Sylvinet. Já não tens febre e não deves aceitar mimos, enquanto a tua mãe se fatiga a servir-te e perde tempo a fazer-te companhia. Em seguida vais comer o que a tua mãe te prepara. É carne! Eu sei que não gostas muito e que preferes legumes, mas agora tens de esforçar-te, e mesmo que não te agrade, não o dês a entender. Tua mãe sentirá enorme prazer e alívio nisso. Adeus. Espero que não me mandem chamar tão cedo por tua causa, pois sei que não ficarás doente, se quiseres!
- Então não voltas esta noite? - perguntou Sylvinet. - Eu que julgava que sim!
- Não sou médica, Sylvinet, e, bem vês, tenho mais que fazer do que tratar de ti, que não estás doente.
- Tens razão, Fadette, mas o desejo de te ver, e sem que isso seja egoísmo, é grande! Sinto enorme alívio em falar contigo!
- Não és inválido e sabes onde moro. Não desconheces que vou ser tua cunhada e amiga. Portanto, podes muito bem ir conversar comigo, sem que nisso haja algo de repreensível.
- Irei, visto que aceitas! - disse Sylvinet. Até breve, Fadette! Vou levantar-me, embora esteja com uma grande dor de cabeça, por não ter dormido.
- Vou tirar-te essa dor de cabeça - disse ela -, mas será a última vez e ordeno-te que durmas melhor na próxima noite.
Pôs-Lhe a mão na testa e, passados cinco minutos, ele sentiu-se tão refrescado e tão consolado, que deixou de sentir qualquer dor.
- Ainda bem que te falei na dor de cabeça, Fadette, pois, de verdade, és boa curandeira e sabes lidar com a doença. Se eu te disser que as outras só me fizeram mal com as drogas! Ao menos, tu, é só tocares-me! Se pudesse estar sempre contigo, nunca andaria doente! Mas diz-me, Fadette, já não estás zangada comigo? Acreditas em mim, quando digo que seguirei os teus conselhos?
- Acredito! - respondeu ela. - E, a não ser que mudes de ideias, amar- te-ei como se fosses meu irmão. Bom, e agora vamos, Sylvinet; levanta- te, come, conversa, passeia e dorme. São ordens, ouviste? Amanhã trabalharás.
- E irei ver-te - acrescentou Sylvinet.
- Está bem - anuiu ela, despedindo-se e lançando-lhe um olhar de amizade e perdão, que lhe deu subitamente força e vontade de saltar da cama para fora.
A tia Barbeau estava verdadeiramente maravilhada com a habilidade da pequena Fadette e, à noite, disse ao marido:
- Sylvinet está melhor do que nunca. Comeu tudo o que lhe servi, sem fazer as caretas do costume, e ainda mais extraordinário, fala de Fadette como se fosse um ente superior. Está desejoso do regresso e do casamento do irmão. Que milagre! Até já duvido se estou a dormir ou acordada!
- Milagre ou não - respondeu o tio Barbeau -, essa rapariga tem grandes dons e deve dar sorte tê-la na família.
Sylvinet partiu daí a três dias, indo buscar o irmão a Arthon. Pedira ao pai e a Fadette, como uma grande recompensa, que o deixassem ser o primeiro a anunciar-lhe o seu casamento.
- Que boas notícias me chegam ao mesmo tempo! - exclamou Landry caindo louco de alegria nos seus braços. - És tu que me vens buscar e pareces tão contente como eu!
Regressaram juntos sem pararem no caminho, e em Cosse não houve família mais feliz do que aquela, quando se sentaram à mesa para jantar com a pequena Fadette e o pequeno Jeanet entre eles.
A vida decorreu-lhes agradavelmente durante meio ano.
A jovem Nanette ficou noiva do jovem Caillaud, que era o melhor amigo de Landry. Ficou resolvido que as duas bodas se fariam na mesma altura.
Sylvinet tomara por Fadette uma amizade tão grande, que não fazia nada sem a consultar; e ela tinha sobre ele tanto poder, que ele parecia olhar para ela como para uma irmã. Já não estava doente e os ciúmes haviam desaparecido. Se por vezes ainda parecia triste e sonhador, Fadette reprendia-o e imediatamente ficava sorridente e comunicativo.
Os dois casamentos realizaram-se no mesmo dia. Como os meios não faltavam, as bodas foram fartas e requintadas, de tal sorte, que o tio Barbeau normalmente de sangue-frio, não conseguiu, nos três dias, deixar de se impressionar e até perturbar. Nada estragou a alegria de Landry e de toda a família e até da terra, pois as duas famílias, que eram ricas, e a pequena Fadette, que o era tanto como os Barbeau e os Caillaud juntos, convidaram toda a gente. Fanchon tinha o coração demasiado bom para não pagar o mal com o bem a todos os que a haviam julgado mal. E quando Landry comprou uma bela propriedade, que governava o melhor possível com o seu saber e o da mulher, ela mandou construir uma linda casa, a fim de recolher todas as crianças infelizes da terra, durante quatro horas todos os dias, as quais ela própria, com o irmão Jeanet, se encarregou de instruir e de ensinar a verdadeira religião e até de socorrer os mais necessitados. Recordava-se de ter sido uma criança infeliz e desamparada e as belas crianças que deu à luz foram ensinadas desde cedo a serem amáveis e sensíveis aos que não eram ricos nem acarinhados.
Mas que aconteceu a Sylvinet no meio daquela felicidade familiar? Uma coisa que ninguém conseguiu compreender e deu muito que pensar ao tio Barbeau.
Cerca de um mês após o casamento do irmão e da irmã, quando o pai o aconselhava também a procurar e a arranjar mulher, respondeu que não sentia inclinação nenhuma pelo casamento, mas que queria, desde há algum tempo, ser soldado e alistar-se.
Toda a gente ficou admiradíssima com tal resolução, para a qual Sylvinet não dava outra justificação senão a de um capricho e o gosto por coisas militares, que, com surpresa, nunca ninguém lhe conhecera.
Cada um dos membros da família tentou dissuadi-lo da ideia, e foram até forçados a fazer apelo a Fanchon, a melhor conselheira da família.
Ela conversou duas longas horas com Sylvinet, e quando se separaram, viu-se que os dois haviam chorado. Contudo, pareciam tranquilos e tão resolutos, que não houve mais objecções quando Sylvinet persistiu na sua resolução e Fanchon a aprovou, dizendo que só iria fazer-lhe bem.
Landry ficou desesperado, mas a mulher disse-lhe:
- É a vontade de Deus e o dever de todos, deixar partir Sylvinet. Acredita que sei o que digo e não me perguntes mais nada.
Landry acompanhou o irmão até onde pôde, e quando lhe entregou a trouxa, que quisera levar até ali ao ombro, pareceu-lhe que entregava o seu próprio coração. Voltou para junto da mulher, que teve de tratar dele, pois durante um mês o desgosto tornou-o verdadeiramente doente.
Quanto a Sylvinet, caminhou até à fronteira, pois era o tempo das grandes guerras do imperador Napoleão. E embora nunca tivesse tido o menor gosto pelo estado militar, impôs-se tão bem que rapidamente foi notado como bom soldado, bravo na batalha como homem que procura o ensejo de morrer, mas no entanto brando e obediente à disciplina, ao mesmo tempo que duro com o próprio corpo. De tal modo que, em dez anos de coragem e de conduta exemplar, tornou-se capitão, recebendo a medalha da Legião de Honra.
- Ai se ele pudesse finalmente voltar - exclamou a tia Barbeau para o marido na noite do dia em que haviam recebido uma carta cheia de amor para eles, para Landry, para Fanchon e finalmente para todos os novos e velhos da família. - Está quase general e já era tempo de descansar um pouco.
- O posto que tem já é bem bonito, sem precisar de o aumentar - disse orgulhosamente o tio Barbeau -, e não dá menos honra a uma família de camponeses.
- Fadette bem previra que a coisa aconteceria - continuou a tia Barbeau. - É bem verdade que o anunciou.
- Em todo o caso - disse o pai -, nunca conseguirei perceber como é que a opinião dele mudou tão repentinamente e como se deu semelhante mudança no seu espírito, ele que era tão tranquilo e amigo das suas comodidades.
- Marido - respondeu a mãe -, a nossa nora sabe mais do que quer dizer, mas não se engana uma mãe como eu e creio que sei tanto como Fadette.
- Nesse caso já é tempo de mo dizeres!exclamou o tio Barbeau.
- Pois bem - replicou a tia Barbeau -, a nossa Fanchon é demasiado feiticeira, ao ponto de ter enfeitiçado Sylvinet mais do que desejaria. Quando viu que o feitiço operava com demasiada força, quis refreá- lo, mas não conseguiu. O nosso Sylvinet, vendo que pensava demasiado na mulher do irmão, partiu com grande honra e virtude, no que Fanchon o apoiou e aprovou.
- Se é assim - disse o tio Barbeau, coçando a orelha -, receio bem que nunca venha a casar, pois a curandeira disse um dia que quando ele se enamorasse de uma mulher deixaria de ter tanta amizade pelo irmão, e que só amaria uma na vida, porque tinha o coração demasiado sensível e apaixonado.
George Sand
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