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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PÉROLA / John Steinbeck
A PÉROLA / John Steinbeck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A PÉROLA

 

"Contam na vila a história da grande pérola — encontrada e depois perdida. Falam de Kino, o pescador, de Juana, mulher dele, e do garoto Coyotito. E, tantas vezes foi contada esta história que se gravou na cabeça de todos. E como acontece com todas as histórias repetidas que ficam no coração dos homens, há coisas boas e más, coisas pretas e brancas, bens e males sem nada no meio.”

Se esta história é uma parábola, talvez cada um possa tirar dela um sentido pessoal e ver nela a sua vida. De qualquer modo, contam na vila que..."

 

Kino acordou quase com escuro. As estrelas ainda brilhavam e o dia tinha apenas desenhado uma leve mancha de claridade bem embaixo no céu para os lados do nascente. Os galos já haviam começado a cantar desde algum tempo e os porcos madrugadores já andavam no seu incessante fuçar de galhos e pedaços de pau para ver se alguém havia esquecido alguma coisa de comer. Do lado de fora da cabana de varas entre os cactos, um bando de passarinhos chilreava e batia as asas.

Os olhos de Kino se abriram e ele olhou primeiro para o quadrado que ia clareando e era a porta e, depois, para o berço suspenso onde Coyotito dormia. Por último, voltou a cabeça para Juana, sua mulher, que estava deitada ao lado dele na esteira, com o nariz, o peito e as costas cobertos pelo xale azul. Os olhos de Juana também estavam abertos. Kino não se lembrava de uma só vez em que estivessem fechados quando ele acordava. Os olhos negros dela pareciam estrelinhas refletidas. Olhava para ele como sempre olhava quando ele acordava.

Kino ouviu a leve batida das ondas da manhã na praia. Como era bom... Tornou a fechar os olhos para escutar a música dentro dele. Talvez só ele fizesse isso, talvez todos os homens da sua raça também fizessem. Tinham sido em outros tempos grandes fazedores de cantigas, de modo que tudo o que viam, pensavam, faziam ou ouviam virava cantiga. Era assim havia muito, muito tempo. As cantigas haviam ficado e Kino as conhecia, mas não havia cantigas novas. Não era que não houvesse cantigas pessoais. Naquele momento mesmo, havia na cabeça de Kino uma cantiga clara e terna e, se ele pudesse dar voz aos seus pensamentos, iria chamar-lhe a Cantiga da Família.

Tinha o cobertor passado pelo nariz para proteger-se do ar úmido. Voltou os olhos a um farfalhar ao lado dele. Era Juana que se levantava, quase sem fazer barulho. Com os pés fortes descalços, foi até à caixa pendurada onde Coyotito dormia, inclinou-se sobre ele e disse uma palavra tranqüilizadora. Coyotito levantou a cabeça um instante, depois fechou os olhos e dormiu de novo.

Juana foi até ao buraco do fogo, descobriu uma brasa e abanou-a para avivá-la, enquanto quebrava gravetos sobre ela.

Kino então levantou-se e passou a manta pela cabeça, nariz e ombros. Calçou os pés com as sandálias e saiu para ver o dia nascer.

Acocorou-se do lado de fora da porta e juntou as pontas da manta nos joelhos. Viu os farrapos de nuvens do Golfo que chamejavam no alto. Uma cabra chegou perto, cheirou-o e ficou olhando com os frios olhos amarelos. Atrás dele, o fogo que Juana acendia pegou e a chama dardejou luz através das gretas das paredes de varas, lançando um trêmulo quadrado de luz pela porta a fora. Uma mariposa retardatária entrou agitadamente à procura do fogo. A Cantiga da Família vinha agora de trás de Kino. E o ritmo da cantiga era a pedra de moer onde Juana preparava o milho para o café da manhã.

A manhã já se apressava na claridade, no clarão, na luz e depois numa explosão de fogo quando o sol se levantou do Golfo. Kino baixou os olhos para protegê-los da claridade. Ouvia a batida das broas de milho dentro de casa e o delicioso cheiro que tinham na frigideira. As formigas andavam de um lado para outro pelo chão, umas, grandes e pretas de corpo lustroso, outras, pequenas, pardas e rápidas. Kino viu com o alheamento de um deus uma formiguinha que tentava desesperadamente fugir à armadilha de areia de uma formiga-leão. Um cachorro magro e tímido apareceu e, ao ouvir uma palavra mansa de Kino, se enroscou todo, arrumou a cauda sobre as patas e ali pousou delicadamente a cabeça. Era um cachorro preto com manchas de um amarelo-dourado no lugar onde devia ter as sobrancelhas. Era uma manhã como as outras e ainda assim perfeita entre as manhãs.

Kino ouviu o ranger da corda quando Juana tirou Coyotito da caixa, lavou-o e colocou-o como numa rede numa dobra do xale que o aconchegava ao seio. Kino podia ver essas coisas sem olhá-las. Juana cantava uma velha cantiga que tinha apenas três notas, mas uma interminável variedade de intervalos. E isso também fazia parte da Cantiga da Família. Tudo fazia parte. Elevava-se às vezes num emocionante acorde que apertava a garganta, dizendo que ali havia segurança, ali havia calor, ali havia o Todo.

Além da cerca de varas, havia outras cabanas como a sua e delas também a fumaça subia com os barulhos do café, mas essas eram outras cantigas, os porcos eram outros porcos e as mulheres não eram Juana. Kino era moço e forte e os cabelos pretos lhe caíam sobre a testa morena. Os olhos eram quentes, firmes e vivos e o bigode era ralo e áspero. Tirou a manta de cima do nariz, porque o ar negro maligno já havia desaparecido e a luz amarela do sol caía sobre a casa. Perto da cerca, dois galos esticavam o bico um contra o outro e se esquivavam, com as asas abertas e as penas do pescoço arrepiadas. Seria uma luta sem graça. Não eram galos de briga. Kino olhou-os um momento e então voltou os olhos para um bando de pombas do mato que voavam rápidas rumo às montanhas. O mundo já havia acordado e Kino se levantou e entrou em casa.

Quando passou pela porta, Juana estava de pé afastada do braseiro aceso. Tornou a deitar Coyotito na caixa e, depois, penteou os cabelos, negros, dividindo-os em duas trancas, amarrando as pontas com uma fita verde estreita. Kino se agachou perto do braseiro, pegou uma broa quente, enrolou-a, passou-a no molho e comeu.

Bebeu depois um pouco de pulque e isso foi o café. Era esse o café que sempre tivera, menos nos dias de festa e num incrível banquete de bolinhos, que quase dera cabo dele. Quando Kino acabou, Juana voltou para junto do fogo e comeu. Tinha falado em outros tempos, mas não há necessidade de falar quando isso não passa de um hábito. Kino deu um suspiro de satisfação — e isso foi a conversa.

O sol estava esquentando a cabana, entrando pelas gretas em longos raios. Um deles caiu sobre a caixa onde Coyotito estava deitado e sobre as cordas que a sustentavam.

Foi um leve movimento que atraiu os olhos de ambos para a caixa. Kino e Juana ficaram como que paralisados. Pela corda de que o berço do menino estava pendurado do teto descia vagarosamente um escorpião. A cauda com o ferrão estava esticada atrás, mas o bicho era capaz de chicoteá-la num instante.

A respiração de Kino assobiava pelo nariz e ele abriu a boca para acabar com isso. Depois disso, desapareceu-lhe o olhar de espanto e rigidez do corpo. Uma nova música lhe chegava à cabeça, a Cantiga do Mal, a música do inimigo, de qualquer inimigo da família, melodia selvagem, secreta e perigosa no fundo da qual gemia queixosamente a Cantiga da Família.

O escorpião descia lentamente pela corda para o berço. Juana murmurou para dentro um antigo sortilégio para proteger de males daquela espécie e ainda rezou uma ave-maria por entre os dentes cerrados. Mas Kino estava em ação. Moveu o corpo em silêncio pela casa, suave e quietamente. Tinha as mãos estendidas para a frente com as palmas para baixo e os olhos fixos no escorpião. Embaixo dele, no berço, Coyotito ria e estendia a mão para o bicho. Este pressentiu o perigo quando Kino já estava para alcançá-lo. Parou e levantou a cauda em pequenos arrancos, ao mesmo tempo que o ferrão na ponta da cauda brilhava.

Kino ficou absolutamente imóvel. Ouvia Juana murmurar de novo o velho sortilégio e ouvia a música odiosa do inimigo. Não podia mover-se enquanto o escorpião não se movesse e sentisse a fonte de morte que se aproximava dele. Kino estendeu a mão para a frente lentamente, cuidadosamente. A cauda do ferrão se levantou. E nesse momento Coyotito riu, sacudindo a corda e o escorpião caiu.

A mão de Kino deu um salto para agarrá-lo, mas o bicho lhe passou por entre os dedos, foi cair no ombro do menino, bateu e atacou. Com um rugido, Kino agarrou-o e o reduziu a uma massa nas mãos. Jogou-o no chão de terra e ali bateu-o com os punhos, enquanto Coyotito gritava de dor no berço. Kino bateu e pisou o inimigo até que ele não foi mais do que um fragmento e um ponto molhado na terra. Tinha os dentes arreganhados, os olhos cheios de fúria e nos ouvidos o clamor da Cantiga do Inimigo.

Mas Juana já estava com o menino nos braços. Encontrou o ponto atingido de onde a vermelhidão já começava a espalhar-se. Colou os lábios no lugar e sugou com toda a força. Cuspiu e tornou a sugar enquanto Coyotito gritava.

Kino ficou por ali parado. Nada podia fazer e atrapalhava.

Os gritos do menino fizeram aparecer os vizinhos. Derramaram-se das suas cabanas — o irmão de Kino, Juan Tomás, e sua gorda mulher Apolonia com os quatro filhos ficaram na porta obstruindo a entrada, enquanto os outros tentavam olhar e um garotinho passou por entre as pernas para espiar. E os que estavam na frente deram a notícia aos que estavam atrás...

— Escorpião. O menino foi picado.

Juana parou por um momento de chupar o ferimento. O pequeno orifício estava um pouco alargado e com as bordas brancas de ter sido sugado, mas a inflamação vermelha se estendia ainda mais num duro montículo linfático. Todos ali sabiam do escorpião. Um adulto podia passar mal da ferroada, mas uma criança morria com facilidade do veneno. Sabiam que, primeiro, haveria inchação e febre e um aperto na garganta, depois eólicas no estômago e Coyotito podia morrer se tivesse recebido muito veneno. Mas a dor lancinante da picada estava passando. Os gritos de Coyotito tinham virado gemidos.

Kino costumava espantar-se da energia que havia em sua paciente e frágil mulher. Ela, que era obediente, respeitosa, bem disposta e paciente, sabia dobrar o corpo na hora do parto sem um gemido. Agüentava o cansaço e a fome quase melhor do que o próprio Kino. Na canoa, era como se fosse um homem forte. E fez então uma coisa surpreendente.

—    O médico — disse ela. — Vá chamar o médico.

A palavra correu entre os vizinhos amontoados no pequeno quintal dentro da cerca. E repetiam entre si:

—    Juana quer o médico.

Era admirável, memorável querer o médico. Consegui-lo seria notável. O médico nunca aparecia naquele punhado de cabanas. Não podia mesmo aparecer pois o tempo dele era pouco para atender os ricos que moravam nas casas de pedra e cal da vila.

—    Não virá — disseram os que estavam no quintal.

—    Não virá — disseram os que estavam à porta, e o pensamento chegou a Kino.

—    O médico não virá — disse ele a Juana.

Ela o encarou, com olhos frios como os de uma leoa. Era o primeiro filho de Juana e quase tudo o que havia no mundo de Juana. Kino viu então a determinação dela e a Música da Família lhe ressoou na cabeça com um acento forte.

—    Temos então de ir até ele — disse Juana, e com uma mão arrumou o xale azul na cabeça, fazendo de uma ponta dele uma tipóia para carregar o menino que gemia, enquanto a outra ponta foi estendida sobre a cabeça a fim de proteger-lhe os olhos, da luz. A gente que estava à porta empurrou os que estavam atrás para deixá-la passar. Kino seguiu-a. Saí ram do portão para o caminho esburacado e os vizinhos os seguiram.

O caso se tornara um assunto do bairro. Fizeram um cortejo de passos rápidos e macios em direção ao centro da vila. Na frente, iam

Juana e Kino e, atrás deles, Juan Tomás e Apolonia, com o grande estômago a balançar-se com a marcha rápida, vindo depois todos os vizinhos com os filhos correndo ao lado. O sol amarelo lhes projetava as sombras escuras à frente, de modo que caminhavam sobre as suas sombras.

Chegaram ao ponto onde as cabanas terminavam e começava a vila de pedra e cal, a vila de muros externos fechados e frescos jardins interiores onde um fio de água cantava e as buganvílias cobriam as paredes de roxo, vermelho e branco. Ouvia-se de dentro dos jardins secretos o canto dos pássaros nas gaiolas e o murmúrio da água fresca nas pedras ardentes. O cortejo atravessou a praça cheia de sol, e passou por diante da igreja. Já havia engrossado e nas franjas os recém-chegados apressados eram informados em voz baixa de que o menino tinha sido picado por um escorpião e que o pai e a mãe o estavam levando para o médico.

E os recém-chegados, especialmente os mendigos do adro da igreja que eram peritos em análises financeiras, olharam rapidamente para a velha saia azul de Juana, viram os rasgões do xale, avaliaram a fita verde das trancas, calcularam a idade do cobertor de Kino e as mil lavagens das suas roupas e os classificaram como gente de pobreza mas foram também para ver que espécie de drama ia acontecer. Os quatro mendigos do adro da igreja sabiam de tudo o que se passava na cidade. Estudavam as expressões das moças quando chegavam para a confissão, olhavam-nas quando saíam e percebiam a natureza do pecado. Estavam a par de todos os pequenos escândalos e de alguns crimes bem grandes. Dormiam nos seus pontos à sombra da igreja, de modo que ninguém chegava ali em busca de consolo sem que eles soubessem. E conheciam o médico. Sabiam da sua ignorância, da sua crueldade, da sua avareza, dos seus apetites, dos seus pecados. Sabiam dos abortos desajeitados que fazia e das pequenas moedas de cobre que dava somiticamente de esmola. Tinham visto os corpos das suas vítimas chegarem à igreja. E como já fora rezada a primeira missa e o movimento estava fraco, seguiram o cortejo, porque eram lutadores incansáveis por um conhecimento perfeito dos seus semelhantes e queriam ver o que era que o médico gordo e preguiçoso ia fazer com um menino indigente picado por um escorpião.

O apressado cortejo chegou afinal ao grande portão no muro da casa do médico. Podia-se ouvir o murmúrio da água, o canto dos pássaros nas gaiolas e o sussurro das grandes vassouras sobre as lajes. Podia-se ainda sentir o cheiro do bom toucinho que se fritava na casa do médico.

Kino hesitou um momento. Aquele médico não era da sua raça. Era de uma raça que havia quase quatrocentos anos batia, esfomeava, roubava e desprezava a raça de Kino, apavorando-o também de tal modo que era humildemente que o indígena chegava àquela porta. E, como sempre que se aproximava de alguém daquela raça, Kino sentia ao mesmo tempo fraqueza, medo e cólera. A cólera e o terror se juntavam. Podia com mais facilidade matar o médico do que falar com ele, porque todos os homens da raça do médico falavam com todos os homens da raça de Kino como se fossem simples animais. E, quando Kino levantou a mão direita para bater com a argola de ferro no portão, a raiva cresceu dentro dele, a música violenta do inimigo lhe martelou os ouvidos e os lábios se apertaram contra os dentes — mas com a mão esquerda tirou o chapéu. A argola de ferro da aldrava bateu no portão. Kino tirou o chapéu e ficou esperando. Coyotito gemeu um pouco nos braços de Juana e ela falou suavemente com ele. A gente do cortejo chegou mais perto para melhor ver e ouvir.

Um momento depois, o grande portão se abriu alguns centímetros. Kino pôde ver a verde frescura do jardim e a água que caía de uma fonte através do portão entreaberto. O homem que olhava para ele era da sua raça. Kino falou com ele na língua antiga.

—    O menino — o primeiro filho — foi envenenado pelo escorpião — disse Kino. — Precisa do saber do curador.

O portão se fechou um pouco e o criado não quis falar na velha língua.

—    Um momento — disse ele. — Vou falar pessoalmente.

Em seguida, fechou o portão e passou o ferrolho. O sol ofuscante lançava sobre o muro branco as compactas sombras pretas do povo.

O médico estava sentado na grande cama do seu quarto. Estava vestido com o seu robe de seda vermelho-clara que tinha vindo de Paris e que agora já estava um pouco apertado sobre o peito quando era fechado. Tinha no colo uma bandeja de prata com um bule de prata com chocolate e uma pequena xícara de porcelana fina, tão delicada que era um pouco ridículo levantá-la com a mão grande, pegando na asa com as pontas do polegar e do indicador e esticando para o lado os outros três dedos para não atrapalharem. Os olhos descansavam em bolsas gordas de carne e a boca estava descaída de descontentamento. Estava engordando muito e a voz era rouca da gordura que lhe fazia pressão sobre a garganta. Ao lado dele, na mesinha, havia um pequeno gongo oriental e um vaso com cigarros. A mobília do quarto era pesada, escura e triste. Os quadros eram religiosos, até o grande retrato de sua defunta mulher que, se missas determinadas em testamento e pagas com o dinheiro que ela deixara bastassem para isso, já estava no céu. Em outros tempos, o médico fizera brevemente parte do grande mundo e toda a sua vida posterior se cifrava em recordações e saudades da França. "Aquilo é que era vida civilizada. ..", dizia ele, querendo dizer com isso que com pouco dinheiro conseguira manter uma amante e comer em restaurantes. Serviu outra xícara de chocolate e partiu nos dedos um biscoito. O criado chegou do portão e ficou à porta, esperando que ele o visse.

—    Que é? — perguntou o médico.

—    É um indiozinho com um menino. Diz que foi picado por um escorpião.

O médico pousou cuidadosamente a xícara antes de dar vazão à sua raiva.

—    Será que eu não tenho mais nada o que fazer senão curar indiozinhos de picadas de insetos? Sou médico e não veterinário!

—    Sim, patrão — disse o criado.

—    O homem tem dinheiro? — perguntou o médico. — Não, essa gente nunca tem dinheiro. Só eu, só eu no mundo é que tenho de trabalhar de graça... e estou cansado disso. Vá ver se ele tem algum dinheiro!

O criado abriu um pouquinho o portão e olhou para a gente que esperava. Falou dessa vez na antiga língua.

—    Tem dinheiro para pagar o tratamento?

Kino estendeu a mão para um lugar secreto debaixo da manta. Tirou um papel dobrado muitas vezes. Abriu o papel dobra a dobra, até que afinal apareceram oito pequenas pérolas defeituosas, feias e cinzentas como pequenas úlceras, chatas e quase sem valor. O criado pegou o papel e tornou a fechar o portão, mas dessa vez não demorou. Abriu o portão apenas o suficiente para devolver o papel.

—    O doutor não está — disse ele. — Foi chamado para um caso urgente.

E, com vergonha, fechou rapidamente o portão.

Uma onda de vergonha se espalhou então por todo o cortejo. Dispersaram-se todos. Os mendigos voltaram para a escadaria da igreja, os curiosos seguiram o seu caminho e os vizinhos partiram para que a humilhação pública de Kino não lhes ficasse nos olhos.

Durante muito tempo, Kino ficou parado diante do portão, ao lado de Juana. Colocou lentamente na cabeça o seu chapéu suplicante. De repente, deu um soco arrasador no portão. Ficou muito admirado olhando os nós dos dedos esfolados e o sangue que lhe corria vagarosamente por entre os dedos.

 

A vila ficava num vasto estuário, com as suas velhas casas amarelas estendidas à beira da praia. E na praia alinhavam-se as canoas azuis e brancas de Nayarit, que eram conservadas através de gerações por uma massa resistente à água e com uma dureza de concha, cuja fabricação era um segredo dos pescadores. Eram canoas altas e graciosas com proas e popas curvas e um banco no meio onde se podia colocar um mastro para levantar uma pequena vela latina.

A praia era de areia amarela, mas à beira da água uma mistura de conchas e algas substituía a areia. Os caranguejos se moviam nos seus buracos na areia e na água rasa pequenas lagostas apareciam e se escondiam nas suas locas no cascalho e na areia. O fundo do mar era cheio de coisas que rastejavam, nadavam e cresciam. As algas pardas se balançavam ao sabor das correntezas mansas e plantas verdes dançavam como pequenos cavalos-marinhos presos ao caule.

O botete malhado, peixe venenoso, ficava no fundo junto às raízes das plantas e os caranguejos coloridos passavam por cima dele.

Na praia, os cães e os porcos famintos do lugar procuravam incessantemente qualquer peixe ou ave marinha morta que a maré pudesse ter levado à praia.

Embora a manhã ainda não estivesse avançada, a miragem nevoenta já estava presente. O ar incerto que aumentava algumas coisas e escondia outras pairava sobre todo o Golfo de modo que tudo o que se via era irreal e não se podia confiar na visão. Assim, aquele mar e aquela terra tinham as claridades agudas e o jeito vago de um sonho. Podia ser que a gente do Golfo confiasse nas coisas do espírito e nas coisas da imaginação, mas não confiava nos olhos para mostrarem, a distância, os contornos nítidos ou qualquer exatidão visual. Da vila, uma parte dos mangues do outro lado do estuário era perfeitamente clara e telescopicamente definida, mas outra parte era apenas um enevoado borrão verde-escuro. Um trecho da praia distante desaparecia num vapor fervilhante que parecia água. Não havia certeza no que se via, nem prova de que o que se via estava ali ou não. Mas a gente do Golfo pensava que todos os lugares fossem assim mesmo e isso não lhe parecia estranho. Uma névoa acobreada pairava sobre a água e o quente sol matinal batia nela, fazendo-a vibrar ofuscantemente.

As cabanas dos pescadores ficavam além da praia à direita da vila e as canoas estavam encostadas em frente a essa área.

Kino e Juana vieram lentamente pela praia até à canoa de Kino, que era a única coisa de valor que ele possuía no mundo. Era muito velha. O avô de Kino a comprara a Nayarit e a tinha dado ao pai de Kino e, assim, ela fora ter às mãos dele. Era ao mesmo tempo uma propriedade e uma fonte de comida, porque o homem que tem uma embarcação pode garantir a uma mulher que ela comerá alguma coisa. É o baluarte contra a fome. E todos os anos Kino reparava a sua canoa com a massa dura como concha feita pelo método secreto que seu pai também lhe havia transmitido. Naquele momento, chegou à canoa e tocou a proa carinhosamente como sempre fazia. Colocou na areia ao lado da canoa a sua roupa de mergulhar, o seu cesto e as duas cordas. Depois, dobrou a manta e a estendeu na proa.

Juana deitou Coyotito na manta e ajeitou o xale sobre ele a fim de que o sol não lhe batesse no rosto. O menino estava sossegado, mas a inchação do ombro tinha passado para o pescoço e para trás do ouvido e o rosto estava inflamado e febril. Juana entrou na água, colheu algumas algas pardas e fez com elas uma cataplasma úmida que colocou no ombro inflamado do menino. Era um remédio tão bom quanto qualquer outro e talvez melhor do que o que o médico aplicaria. Mas o remédio carecia da autoridade dele, porque era simples e não custava nada. Coyotito ainda não estava sentindo as eólicas. Talvez Juana houvesse sugado o veneno a tempo, mas não conseguia sugar a sua preocupação com o primeiro filho. Não havia rezado diretamente pela cura do menino — tinha rezado para que Kino pudesse achar uma pérola para pagar ao médico a fim de que ele curasse o menino, porque os pensamentos das pessoas são tão insubstanciais quanto a miragem do Golfo.

Kino e Juana empurraram a canoa da praia para a água. Quando a proa flutuou, Juana embarcou, enquanto Kino empurrava a popa e caminhava por dentro da água ao lado dela até que ela flutuou e tremeu ao embate das pequenas ondas que vinham morrer na praia. Depois, Juana e Kino fenderam o mar em coordenação com os seus remos de pá dupla e a canoa deslizou pela água, sibilando com a velocidade. Os outros pescadores de pérolas tinham partido havia muito tempo. Dentro de alguns momentos, Kino os veria amontoados dentro da névoa, navegando sobre o banco de pérolas.

A luz se filtrava por dentro da água até ao banco onde as encrespadas ostras de pérolas estavam presas ao fundo irregular e juncado de conchas de ostras quebradas e abertas. Era aquele o banco de pérolas que tinha dado em outros tempos ao Rei da Espanha um grande poder na Europa, ajudando-o a pagar as suas guerras e a ornamentar as igrejas para o bem da sua alma. As ostras cinzentas com babados como saias nas conchas, as ostras incrustadas de cracas com filamentos de algas presos às saias e pequenos caranguejos subindo por elas. Um acidente podia acontecer a essas ostras, um grão de areia podia pousar nas dobras do músculo e irritar a carne até que como medida de defesa a carne cobrisse o grão de areia com uma camada de macio cimento. Mas, havendo começado, a carne continuava a cobrir o corpo estranho até que este se soltasse em algum movimento violento de marés ou até que a ostra fosse destruída. Durante séculos, os homens haviam mergulhado, arrancando as ostras do banco e abrindo-as à procura dos grãos de areia recobertos. Cardumes de peixes viviam perto do banco para ficar perto das ostras que os homens que procuravam jogavam fora e morder o interior das conchas. Mas as pérolas eram acidentes e encontrar uma era sorte, uma palmadinha nas costas de Deus ou dos deuses.

Kino tinha duas cordas, uma amarrada a uma pesada pedra e a outra, a um cesto. Tirou a camisa e as calças e colocou o chapéu no fundo da canoa. A água estava lisa como se fosse azeite. Pegou a pedra numa mão e o cesto na outra e escorregou com os pés para a frente pelo costado e a pedra o levou até ao fundo. As bolhas subiam atrás dele até que a água clareou e ele pôde ver. No alto, a superfície da água era um espelho ondulante de claridade e ele via os fundos das canoas que o invadiam.

Moveu-se cuidadosamente para que a água não fosse obscurecida pela lama ou pela areia. Enganchou o pé no nó da pedra e trabalhou rapidamente com as mãos, arrancando as ostras, umas isoladamente, outras em cachos. Depositou-as no cesto. Em alguns lugares, as ostras estavam tão agarradas umas às outras que se soltavam numa só massa.

Ora, o povo de Kino havia cantado de tudo o que acontecia ou existia. Tinham feito cantigas para os peixes, para o mar raivoso e para o mar calmo, para a luz e para a escuridão,, para o sol e para a lua, e as cantigas estavam todas em Kino e no seu povo — todas as cantigas que tinham sido feitas, até as esquecidas. E quando ele encheu o seu cesto, havia cantiga em Kino e o compasso da cantiga era o seu coração palpitante que comia o oxigênio da respiração presa, e a melodia da cantiga era a água cinza-esverdeada e os animaizinhos que passavam e os cardumes de peixes que apareciam e iam-se embora. Mas na cantiga havia uma secreta musicazinha íntima, quase imperceptível, mas que estava presente sempre, doce,, secreta e persistente, quase escondida no contracanto, e era a Cantiga da Pérola que Pode Ser, porque toda a ostra jogada no cesto podia conter uma pérola. A chance era contrária, mas a sorte e os deuses eram favoráveis. E Kino sabia que na canoa lá em cima Juana estava fazendo a mágica da oração, com o rosto rígido e os músculos contraídos para forçar a sorte, para arrebatar a sorte das mãos do Deus, porque ela precisava da sorte para o ombro inflamado de Coyotito. E desde que a necessidade era grande e o desejo era grande, a melodia secreta da pérola que podia ser era mais forte naquela manhã. Frases inteiras surgiam claras e macias na Cantiga do Fundo do Mar.

Kino, no seu orgulho, mocidade e força, podia ficar lá embaixo até dois minutos sem esforço, de modo que trabalhou deliberadamente escolhendo as ostras maiores. Tendo sido perturbadas, as ostras estavam fortemente fechadas. Um pouco à direita, uma plataforma de pedra se projetava, coberta de ostras novas que ainda não estavam em ponto de ser tiradas. Kino aproximou-se da plataforma e viu então, ao lado dela, sob uma pequena protuberância, uma ostra muito grande e isolada, que não estava coberta por suas irmãs insistentes. A concha eslava parcialmente aberta porque a protuberância protegia aquela velha ostra e no músculo, aberto como um lábio, Kino viu um brilho fantástico e logo a concha se fechou, ü coração de Kino bateu num ritmo pesado e a melodia da pérola que podia ser lhe cantou nos ouvidos. Despregou vagarosamente a ostra e apertou-a de encontro ao peito. Tirou o pé do nó da pedra e o seu corpo subiu à superfície e os seus cabelos negros cintilaram à luz do sol. Estendeu a mão sobre o costado da canoa e depositou a ostra no fundo.

Juana firmou então a embarcação enquanto ele subia. Os olhos de Kino brilhavam de exaltação, mas a decência fez com que içasse a pedra e, depois, o seu cesto de ostras. Juana sentiu a exaltação dele e fingiu que estava olhando para outro lado. Não é bom querer demais uma coisa. Isso às vezes afugenta a sorte. Deve-se querer tudo na justa medida, porque é preciso ter muito tato com Deus ou os deuses. Mas Juana parou de respirar. Kino abriu deliberadamente a sua faca pequena e forte. Olhou pensativamente para o cesto. Talvez fosse melhor deixar a ostra grande para o fim. Pegou uma ostra pequena no cesto, cortou o músculo, procurou nas dobras da carne e jogou-a dentro da água. Em seguida, pareceu ver a grande ostra pela primeira vez. Agachou-se no fundo da canoa, apanhou a concha e examinou-a. Os sulcos estavam brilhando de preto e marrom e algumas pequenas cracas aderiam à concha. Kino estava relutante em abrir a ostra. Sabia que o que tinha visto podia ser um reflexo, um pedaço de concha que acidentalmente flutuara ou uma completa ilusão. Naquele Golfo e na sua luz incerta, havia mais ilusões do que realidades.

Mas os olhos de Juana estavam fitos nele e ela não podia esperar. Juana colocou a mão na cabeça coberta de Coyotito e disse com voz branda: "Abra".

Kino passou habilmente a faca pela borda da concha. Podia sentir com a faca o músculo enrijecer. Usou a lâmina como uma alavanca e o músculo se relaxou e a concha se abriu. A carne que parecia um lábio se contorceu e depois parou. Kino levantou a carne e lá estava a pérola, perfeita como a lua. Captava a luz, refinava-a e a devolvia numa incandescência prateada. Era do tamanho de um ovo de gaivota. Era a maior pérola do mundo.

Juana perdeu o fôlego e gemeu um pouco. E para Kino a melodia secreta da pérola que podia ser irrompeu clara e bela, forte, quente, resplandecente, ardente e triunfante. Na superfície da grande pérola podia ver formas de sonho. Tirou a pérola da carne que morria e levantou-a na palma da mão. Virou-a e viu que a curva era perfeita. Juana se aproximou para olhar a pérola na mão dele. Tinha sido aquela a mão que se ferira no portão do médico e a pele esfolada dos nós dos dedos fora acinzentada pela água do mar.

Juana foi instintivamente para onde Coyotito estava, deitado no cobertor do pai. Levantou o cataplasma de algas e olhou.

— Kino! — gritou, rouca.

Kino olhou por cima da pedra e viu que a inflamação estava desaparecendo do ombro do menino e que o veneno se retirava do seu corpo. Fechou então a mão sobre a pérola e a sua emoção se desatou. Inclinou a cabeça para trás e gritou. Os olhos rolaram, e ele gritou com o corpo rígido. Os homens das outras canoas olharam espantados e então colocaram os remos na água e correram para a canoa de Kino.

 

Uma vila é como um animal colonial. Tem sistema nervoso, cabeça, ombros e pés. É uma coisa separada de todas as outras vilas ou cidades. E tem sentimentos uniformes. Não é mistério de solução fácil saber como as notícias se espalham através de uma vila. As notícias parecem correr mais depressa do que os garotos que se apressam em contá-las, mais depressa do que as mulheres que falam por cima das cercas.

Antes que Kino, Juana e os outros pescadores tivessem voltado para a cabana de varas, de Kino, os nervos da cidade pulsavam e vibravam com a notícia — Kino tinha encontrado a Pérola do Mundo. Antes que garotos arquejantes pudessem proferir palavras entrecortadas, as mães sabiam de tudo. A notícia varreu as cabanas e foi quebrar-se numa onda espumante nas casas de pedra e cal. Chegou aos ouvidos do padre que caminhava no seu jardim e ele ficou com um olhar pensativo ao lembrar-se de alguns consertos que era preciso fazer na igreja. Pensou em quanto valeria a pérola. E ficou sem saber se havia batizado o filho de Kino ou até, por falar nisso, se o havia casado. A notícia chegou aos negociantes e eles olharam para as roupas de homem que não estavam tendo muita saída.

A notícia chegou ao médico, o qual estava no consultório com uma mulher cuja doença era a idade, embora nem ela nem o médico quisessem reconhecer isso. E quando se apurou quem era Kino, o médico se mostrou severo e judicioso ao mesmo tempo.

— Ele é meu cliente — disse o médico. — Estou tratando o filho dele de uma picada de escorpião.

E os olhos do médico rolaram um pouco nas suas bolsas de banha e ele pensou em Paris. Lembrou-se do quarto em que ali vivera como um grande e opulento palácio e lembrou-se da mulher de rosto duro que vivera com ele como uma mocinha bela e boa, embora ela não fosse nenhuma dessas três coisas. O médico olhou além da sua idosa cliente e viu-se sentado num restaurante em Paris no momento em que um garçom abria uma garrafa de vinho.

A notícia chegou bem cedo aos mendigos do adro da igreja e os fez rir um pouco de prazer, porque sabiam que não há ninguém que dê esmolas no mundo como um homem pobre que de repente tem um golpe de sorte.

Kino encontrou a Pérola do Mundo. Na Vila, sentavam-se em pequenos escritórios os homens que compravam pérolas dos pescadores. Esperavam nas suas cadeiras até que as pérolas chegavam e aí falavam, lutavam, gritavam e ameaçavam até que chegavam ao preço mais baixo que o pescador poderia aceitar. Mas havia um preço abaixo do qual não tinham coragem de ir porque tinha havido uma vez um pescador que, no seu desespero, dera as pérolas à igreja. E, depois de feitas as compras, esses compradores ficavam sozinhos e rolavam agitadamente as pérolas nos dedos, desejando que elas fossem deles. Era porque não havia na realidade muitos compradores — o comprador era um só e ele colocava esses agentes em escritórios separados para criar uma aparência de competição. Esses homens receberam a notícia e piscaram os olhos, sentindo comichão nas pontas dos dedos, pensando que o patrão não poderia viver para sempre e que alguém teria de tomar o lugar dele. E cada qual pensava que com um pouco de capital poderia fazer um começo de vida.

Gente de todas as espécies criou interesse por Kino — pessoas que tinham coisas para vender e pessoas que tinham favores a pedir. Kino tinha achado a Pérola do Mundo. A essência da pérola se misturou com a essência dos homens e então um curioso resíduo negro se precipitou. Todos os homens ficaram de repente relacionados com a pérola de Kino e a pérola de Kino passou a fazer parte dos sonhos, das especulações, das tramas, dos planos, dos futuros, dos desejos, das necessidades, das cobiças, das fomes de todos e o único obstáculo à realização de tudo isso era Kino, de modo que ele se tornou curiosamente inimigo de todos. A notícia fez subir à tona uma coisa infinitamente negra e má na vila; a destilação escura era como o escorpião ou como a fome quando se sente o cheiro de comida ou como a solidão quando o amor é negado. As bolsas de veneno da vila começaram a segregar veneno e a vila ficou repleta e inflada com a pressão desse veneno.

Mas Kino e Juana não sabiam de nada disso. Desde que se sentiam felizes e exultantes, pensavam que todo o mundo participava dessa alegria. Juan Tomás e Apolonia participavam e eles também eram o mundo. À tardinha, quando o sol havia desaparecido por trás das montanhas da península para ir afundar no mar do outro lado, Kino se agachou na cabana com Juana ao seu lado. E a casinha de taipa estava cheia de vizinhos. Kino tinha na mão a grande pérola, quente e viva na sua palma. E a música da pérola se tinha fundido com a música da família, de modo que uma embelezava a outra. Os vizinhos olhavam a pérola na mão de Kino e se admiravam de que um homem pudesse ter tanta sorte.

E Juan Tomás, que estava agachado à direita de Kino porque era irmão dele, perguntou:

— Que é que vai fazer agora que é um homem rico?

Kino olhou para a pérola e Juana baixou os olhos e ajeitou o xale para cobrir o rosto a fim de que não se visse a sua agitação. E na incandescência da pérola tomaram forma as imagens das coisas que o espírito de Kino havia examinado no passado e de que havia desistido por serem impossíveis. Viu na pérola a si mesmo e a Juana e Coyotito ajoelhados diante do altar para se casarem agora que podiam pagar. Disse calmamente:

—    Vamo-nos casar... na igreja.

Viu na pérola como estavam vestidos — Juana com um xale estalando de novo e com uma saia nova muito comprida, por baixo da qual Kino via que ela estava calçada com sapatos. Era o que estava na pérola — o quadro que ali resplandecia. Ele também estava vestido com uma roupa branca nova e tinha um chapéu novo — não de palha, mas de um bom feltro preto — e usava também sapatos, não sandálias, mas sapatos com cordões. Mas Coyotito — era ele mesmo — estava com uma roupinha de marinheiro dos Estados Unidos e um boné de comandante como Kino tinha visto uma vez quando um iate de recreio ancorara no estuário. Tudo isso Kino viu na luzente pérola e disse:

—    Vamos ter roupas novas.

E a música da pérola lhe soou aos ouvidos como uma banda de clarins.

Depois, chegaram à bela superfície cinzenta da pérola as pequenas coisas que Kino queria: um arpão para substituir um que perdera no ano anterior, um arpão de ferro com uma argola na ponta da haste. E também — o seu espírito quase não podia suportar a emoção — um rifle — mas por que não, já que ele estava rico? E Kino viu Kino na pérola, Kino empunhando um rifle Winchester. Era um sonho muito audacioso e muito agradável. Moveu os lábios com hesitação e murmurou:

—    Um rifle. .. talvez um rifle...

Foi o rifle que fez caírem as barreiras. Era uma impossibilidade, mas, se ele podia pensar em ter um rifle, então horizontes inteiros se escancaravam e ele podia entrar impetuosamente por eles. Dizem que os homens nunca se contentam e, quando se lhes dá alguma coisa, pedem sempre um pouco mais. Dizem ainda em justificação que é essa uma das melhores qualidades da espécie e que a tornou superior aos animais, que se contentam com o que têm.

Os vizinhos, apertados e silenciosos dentro da casa, acompanhavam com movimentos de cabeça os saltos da delirante imaginação de Kino. E um homem atrás dos outros murmurou:

—    Um rifle. Ele vai ter um rifle.

Mas a música da pérola estava cantando em triunfo no íntimo de Kino. Juana levantou a cabeça e arregalou os olhos diante da coragem e da imaginação de Kino. E uma força elétrica o animava depois que os horizontes tinham sido removidos. Na pérola, viu Coyotito sentado diante de uma carteira na escola, como Kino vira uma vez ao passar por uma porta aberta. E Coyotito estava vestido de casaco com um colarinho branco e uma gravata larga de seda. E não era só: Coyotito estava escrevendo numa grande folha de papel. Kino olhou orgulhosamente para os vizinhos.

—    Meu filho irá para a escola — disse ele, e os vizinhos ficaram em silêncio.

Juana tomou um grande fôlego. Os olhos lhe brilharam ao olhar para Kino e ela se voltou logo para ver Coyotito nos seus braços, como para convencer-se de que isso era possível.

Mas o rosto de Kino brilhava com a luz da profecia.

—    Meu filho vai ler e abrir os livros. Vai escrever e saber escrever. Meu filho vai fazer também contas e essas coisas nos farão livres — porque ele vai saber e por meio dele nós também saberemos.

E na pérola Kino viu a si mesmo e a Juana acocorados junto ao pequeno braseiro da cabana enquanto Coyotito lia um grande livro.

—    Isso é o que a pérola vai fazer — disse ele.

E Kino nunca dissera tantas palavras juntas em toda a sua vida. E, de repente, teve medo de ter falado. Fechou a mão sobre a pérola e apagou a luz que vinha dela. Kino estava com medo como um homem que jura sem saber.

Ora, os vizinhos sabiam que tinham assistido a um verdadeiro prodígio. Sabiam que o tempo passaria a ser contado da pérola de Kino e que discutiriam o acontecimento durante muitos anos. Se essas coisas se realizassem, contariam como era o aspecto de Kino e o que ele dissera e como os seus olhos brilhavam e acrescentariam:

—    Era um homem transfigurado. Ganhara um grande poder e foi naquele momento que começou. Via-se que grande homem ele passara a ser desde aquele momento. Vi com estes olhos.

E, se os planos de Kino dessem em nada, os mesmos vizinhos diriam:

—    Foi então que começou. A loucura tomou conta dele e Kino principiou a dizer coisas insensatas. Deus que nos guarde de coisas assim. Deus castigou Kino porque ele se revoltou com o jeito das coisas. Viram qual foi o resultado. E eu estava presente no momento em que ele perdeu o juízo.

Kino olhou para a mão fechada e viu que estava esfolada e ferida nos lugares em que batera no portão.

A noite começou a cair. Juana levantou o menino dentro do xale a fim de pendurá-lo na cintura. Foi então até ao fogo, apanhou uma brasa entre as cinzas e quebrou alguns gravetos, abanando depois o fogo para fazê-lo subir. As pequenas chamas dançavam nos rostos dos vizinhos. Estes sabiam que deviam ir tratar do jantar, mas não estavam com vontade de sair.

Já era quase noite e o fogo de Juana lançava sombras nas paredes da cabana quando o rumor apareceu e passou de boca em boca.

—    O padre... o padre vem aí.

Os homens tiraram o chapéu da cabeça e se afastaram da porta, enquanto as mulheres cobriam a cabeça com o xale e baixavam os olhos. Kino e Juan Tomás, seu irmão, se levantaram. O padre entrou — era um homem grisalho e idoso, de pele engelhada mas de olhos vivos. Considerava aquela gente como crianças e tratava a todos como crianças.

—    Kino — disse ele com voz mansa —, você tem o nome de um grande homem e um grande Pai da Igreja. — Disse isso como se fosse uma bênção. — O seu xará domou o deserto e adoçou o espírito de sua gente, sabia? Está nos livros.

Kino olhou prontamente para a cabeça de Coyotito, que estava pendurado nos quadris de Juana. Algum dia, pensou ele, aquele menino saberia que coisas estavam nos livros e que coisas não estavam. A música tinha-se apagado então da cabeça de Kino, mas naquele momento, fraca e lenta, a melodia da manhã, a música do mal, do inimigo, se fez ouvir. E Kino olhou para os seus vizinhos a fim de ver quem havia levado aquela música.

Mas o padre estava falando outra vez.

—    Soube que você encontrou uma grande fortuna, uma grande pérola.

Kino abriu a mão e o padre teve uma exclamação ante o tamanho e a beleza da pedra. Disse então:

—    Espero que se tenha lembrado de agradecer, meu filho, a Quem lhe deu esse tesouro e de rezar para que possa ser orientado quanto ao futuro.

Kino fez um gesto de aquiescência apaticamente e foi Juana quem falou brandamente:

—    Fique descansado, Padre. Nós vamos nos casar, Kino já disse.

Olhou para os vizinhos pedindo confirmação e eles bateram solenemente com a cabeça. O padre disse:

—    É bom saber que os primeiros pensamentos que tiveram foram bons pensamentos.

Deus os abençoe, meus filhos.

Virou-se e saiu em passo vagaroso e o povo abriu caminho para que ele passasse. Mas a mão de Kino se fechou com força sobre a pérola e olhava em torno com desconfiança porque a cantiga má estava em seus ouvidos, lutando com estridência contra a música da pérola.

Os vizinhos começaram a ir para as suas casas e Juana agachou-se ao pé do fogo e colocou a panela de barro de feijão cozido sobre as pequenas chamas. Kino chegou à porta e olhou. Como sempre, podia sentir o cheiro da fumaça de muitos fogos, ver as estrelas dentro da névoa e sentir a umidade do ar da noite, a tal ponto que cobriu o nariz. O cachorro magro se aproximou dele e sacudiu o rabo em saudação, como uma bandeira batida pelo vento. Kino baixou os olhos e não o viu. Havia partido através dos horizontes num frio e deserto mundo exterior. Sentia-se sozinho e desprotegido, e os grilos que cricrilavam, as rãs que guinchavam nas árvores e os sapos que coaxavam pareciam todos executar a melodia do mal. Kino tremeu um pouco e chegou a manta mais ao nariz. Tinha ainda na mão a pérola, fortemente fechada na palma, e sentia na pele o seu calor e a sua maciez.

Atrás dele, ouvia Juana tratando das broas de milho que colocava na chapa do fogão de barro. Kino sentia às suas costas o calor e a segurança de sua família e a Cantiga da Família se elevava por trás dele como o ronronar de um gato. Naquele momento, havendo dito o que ia ser o seu futuro, criara este. Um plano é uma coisa real e as coisas projetadas são experimentadas. Um plano, depois de feito e visualizado, torna-se uma realidade ao lado de outras realidades — não podendo nunca ser destruído, mas podendo facilmente ser atacado.

Desse modo, o futuro de Kino era real, mas, depois de estabelecido, outras forças se levantavam para destruí-lo, e ele, sabendo disso, tinha de preparar-se para enfrentar o ataque. E Kino sabia de outra coisa ainda: os deuses não simpatizam com os planos dos homens e não gostam do sucesso quando vem por acaso. Sabia que os deuses exercem vingança contra o homem que vence pelos seus próprios esforços. Por isso, Kino sempre tivera medo de fazer planos, mas, depois de ter feito um, não poderia mais destruí-lo. E, para enfrentar o ataque, Kino já estava criando um couro duro contra o mundo. Sondava o perigo com os olhos e com a cabeça antes que ele aparecesse.

De pé na porta, viu dois homens que se aproximavam, um deles com uma lanterna que iluminava o chão e as pernas dos dois. Entraram pela abertura da cerca de varas e se dirigiram para a sua porta. Kino viu que um deles era o médico e o outro, o criado que havia falado com ele no portão naquela manhã. Os dedos esfolados da mão direita de Kino arderam quando ele viu quem era.

—    Não estava em casa quando apareceu hoje de manhã — disse o médico. — Mas agora, na primeira folga que tive, vim ver o menino.

Kino continuou na porta, obstruindo-a, e o ódio saltou e tremeu no fundo dos seus olhos, juntamente com medo, porque centenas de anos de sujeição estavam bem profundas nele.

—    O menino já está quase bom — disse ele secamente.

O médico sorriu, mas não houve sorriso nas bolsas enrugadas dos olhos.

—    Às vezes, meu amigo, a picada do escorpião tem um efeito curioso. Parece que há melhoras e, de repente, sem aviso, puff!

Enrugou os lábios e fez uma pequena explosão para mostrar a pressa com que isso podia acontecer, e levou para a frente do corpo a sua maleta preta de médico porque sabia que a raça de Kino gosta dos instrumentos de qualquer profissão e confia neles.

—    Às vezes — continuou o médico com voz ainda mais branda — o resultado pode ser uma perna seca, um olho cego ou as costas aleijadas. Ah! Eu conheço a picada do escorpião e sei curá-la.

Kino sentiu que a raiva e o ódio se dissolviam em medo. Não sabia disso, mas talvez o médico soubesse. Não podia correr o risco de lutar com a sua ignorância contra o possível conhecimento do médico. Estava na armadilha como o seu povo sempre estava e estaria até que, como ele havia dito, pudesse saber que as coisas que dizem os livros estão realmente nos livros. Não podia arriscar a vida ou a firmeza de corpo de Coyotito. Afastou-se e deixou o médico e o seu criado entrarem na cabana.

Juana levantou-se de perto do fogo e recuou quando o médico entrou, cobrindo o rosto do menino com a franja do seu xale. E, quando o médico se aproximou dela e estendeu a mão, apertou mais o menino contra o corpo e olhou para Kino, que estava onde as sombras do fogo lhe dançavam no rosto.

Kino fez sinal com a cabeça e só então ela deixou o médico ver o menino.

—    Segure a luz — disse o médico e, quando o criado levantou bem alto a lanterna, olhou por um momento o ferimento no ombro do menino. Ficou por um instante pensativo e, depois, afastou a pálpebra do menino e olhou para o globo ocular. Bateu com a cabeça enquanto Coyotito esperneava contra ele.

—    Justamente como eu pensava — disse ele. — O veneno foi absorvido internamente e não tarda a se manifestar. Veja dentro do olho. Está azul.

Kino olhou ansiosamente e viu que de fato estava um pouco azul. E não sabia se sempre estava um pouco azul ou não. Mas a armadilha estava preparada e ele não podia arriscar-se.

Os olhos do médico se umedeceram nas suas bolsas.

—    Vou dar-lhe alguma coisa para ver se conseguimos afastar o veneno — disse ele, entregando o menino a Kino.

Tirou então da maleta um vidrinho com um pó branco e uma cápsula de gelatina. Encheu a cápsula com o pó. Depois, colocou outra cápsula em torno da primeira e fechou-a. Trabalhou em seguida com muita habilidade. Pegou o menino e apertou-lhe o lábio inferior até que ele abriu a boca. Com os dedos gordos, colocou a cápsula bem dentro da língua do menino, além do ponto em que poderia cuspi-la fora, e, por fim, apanhou no chão um jarrinho de pulque, deu um gole a Coyotito e pronto. Examinou de novo o olho do menino, franziu os lábios e pareceu que estava pensando.

Devolveu afinal o menino a Juana e voltou-se para Kino.

— Acho que o veneno atacará daqui a uma hora — disse ele. — O remédio que eu dei livrará o menino de sentir dor, mas voltarei daqui a uma hora. Acho que cheguei a tempo de salvá-lo.

Respirou fundo e então saiu da cabana, seguido pelo criado com a lanterna.

Juana cobrira o menino com o xale e olhava-o, cheia de ansiedade e medo. Kino se aproximou, levantou o xale e olhou para o menino. Moveu a mão para olhar embaixo da pálpebra e só então viu que a pérola ainda estava em sua mão. Foi então a uma caixa encostada à parede e pegou um pano velho. Embrulhou a pérola com o pano, foi até ao canto da cabana e cavou um buraco no chão de terra com os dedos. Colocou a pérola dentro do buraco, ao qual encheu de novo e dissimulou. Voltou então para junto do fogo, onde Juana estava agachada, olhando o rosto do menino.

O médico, de volta à sua casa, sentou-se na sua cadeira e olhou para o relógio. Levaram-lhe um pequeno lanche de chocolate, bolos e frutas e ele olhou para a comida com desgosto.

Nas casas dos vizinhos, o assunto que dominaria todas as conversas durante muito tempo foi ventilado pela primeira vez para se ver o rumo que tomava. Os vizinhos mostraram uns aos outros como a pérola era grande e fizeram breves gestos acariciantes para mostrar como era bela. Daí por diante, passariam a olhar de perto Kino e Juana para ver se a riqueza iria virar a cabeça deles como é do hábito da riqueza. Todo mundo sabia por que o médico tinha ido à cabana. O homem não sabia dissimular e era muito bem compreendido.

Lá fora, no estuário, um cardume compacto de peixinhos deslizou e bateu a água para livrar-se de um cardume de peixes grandes que avançavam para comê-los. Dentro das casas, os homens ouviram o borbulhar dos pequenos e o espadanar dos grandes durante o ataque. A umidade se levantou do Golfo e depositou-se nas moitas, nos cactos e nas pequenas árvores, formando gotas salgadas. E os ratos noturnos passaram pelo chão, enquanto os gaviões da noite os caçavam em silêncio.

O cachorrinho preto e magro que tinha manchas amarelas em volta dos olhos chegou à porta de Kino e olhou para dentro. Quase deslocou as patas traseiras numa hora em que Kino olhou para ele, mas parou quando Kino olhou para outro canto. O cachorro não entrou na casa mas ficou olhando com frenético interesse Kino comer o seu feijão no prato de barro, que depois limpou com uma broa de milho. Comeu a broa e lavou tudo com um gole de pulque.

Kino tinha acabado e estava enrolando um cigarro quando Juana o chamou com voz ansiosa:

— Kino!

Olhou para ela e se aproximou rapidamente porque havia visto medo nos olhos dela. Chegando perto, olhou, mas a luz era muito fraca. Jogou com o pé uma pilha de gravetos no braseiro para fazer uma boa chama e então viu o rosto de Coyotito. O rosto do menino estava muito vermelho, alguma coisa subia è descia pela garganta e um fio grosso de saliva lhe corria do canto da boca. As contrações dos músculos do estômago começaram e o menino vomitou muito.

Kino se ajoelhou ao lado da mulher e disse:

—    O médico então sabia.

Mas disse isso para si mesmo e para a mulher, porque a cabeça estava trancada e desconfiada e ele se lembrava do pozinho branco. Juana embalou o menino e cantou a Cantiga da Família, como se isso pudesse afastar o perigo, mas Coyotito vomitou e se contorceu nos braços dela. Houve então incerteza em Kino e a música do mal lhe palpitou na cabeça, quase sufocando a cantiga de Juana.

O médico acabou de tomar o seu chocolate e comeu as migalhas de bolo caídas na mesa. Limpou os dedos num guardanapo, olhou para o relógio, levantou-se e pegou a maleta.

A notícia da doença do menino circulou depressa entre as cabanas, porque a doença só tem pela frente a fome entre os inimigos dos pobres.

Além disse com voz macia:

—    Parece que a sorte anda em companhia de amigas bem ruins.

Todos acharam com um gesto que era assim mesmo e se levantaram para ir à casa de Kino. Os vizinhos atravessaram o escuro com o nariz coberto até se juntarem de novo na casa de Kino. Ficaram olhando e fizeram breves comentários sobre a tristeza que era aquilo acontecer numa hora de alegria e disseram:

"Quem sabe é Deus". As velhas se agacharam ao lado de Juana para ajudá-la, se pudessem, e confortá-la, se não pudessem.

O médico entrou então apressadamente, seguido pelo seu criado. Afugentou as velhas como se fossem galinhas. Pegou o menino, examinou-o e apalpou-lhe a cabeça.

—    O veneno se manifestou — disse ele. — Acho que posso dominá-lo. Vou fazer tudo o que é possível.

Pediu água, jogou no copo três gotas de amônia, abriu a boca do menino e despejou o remédio. O menino tossiu e chorou com o tratamento e Juana observava-o com os olhos aflitos. O médico falou um pouco enquanto trabalhava.

—    É uma felicidade eu conhecer bem o veneno do escorpião. Do contrário... — disse ele e encolheu os ombros para mostrar o que poderia ter acontecido.

Mas Kino estava desconfiado e não podia tirar os olhos da mala aberta do médico e do vidrinho de pó branco que havia nela. Pouco a pouco, os espasmos cederam e o menino se acalmou sob as mãos do médico. Coyotito deu então um profundo suspiro e adormeceu porque estava muito cansado de tanto que havia vomitado.

O médico deitou o menino nos braços de Juana.

— Agora, vai ficar bom, — disse ele. — Venci a batalha.

E Juana olhou-o, cheia de admiração. O médico estava fechando a maleta e disse com voz bondosa:

—    Quando acha que pode me pagar essa conta?

—    Logo que vender minha pérola, irei pagar-lhe — disse Kino.

—    Ah, tem uma pérola? Uma boa pérola? — perguntou o médico, cheio de interesse.

O coro dos vizinhos fez-se ouvir então.

—    Ele achou a Pérola do Mundo! — gritaram, fazendo um circulo com o polegar e o indicador para mostrar o tamanho da pérola.

—    Kino será um homem rico — exclamaram. — Ê uma pérola como nunca se viu!

O médico se mostrou surpreso.

—    Foi mesmo? Eu não sabia disso. Guardou a pérola num lugar seguro? Quer que a guarde dentro de meu cofre?

Os olhos de Kino estavam bem cerrados o as faces bem esticadas.

—    Está num lugar seguro — disse ele. — Vou vendê-la amanhã e então lhe irei pagar.

O médico encolheu os ombros e os seus olhos úmidos nunca se afastaram dos olhos de Kino. Sabia que a pérola devia estar enterrada em algum canto da casa e esperava que Kino olhasse para o lugar onde a havia enterrado.

—    Seria uma pena que alguém roubasse a pérola antes de você vendê-la — disse o médico e viu os olhos de Kino se voltarem instintivamente de relance para o chão, perto do caibro lateral da cabana.

Quando o médico saiu e todos os vizinhos, haviam voltado relutantemente para as suas casas, Kino se agachou ao lado do braseiro e escutou o barulho da noite, o suave murmúrio das ondas na praia e os latidos distantes dos cachorros, o deslizar do vento pelo teto da casa e as vozes dos vizinhos que conversavam nas suas casas. Na verdade, aquela gente não dorme firmemente a noite toda. Acorda de vez em quando, conversa um pouco e torna a dormir. Ao fim de algum tempo Kino levantou-se e foi até à porta da casa.

Sentiu o cheiro do vento, procurou escutar qualquer ruído estranho que viesse em segredo e rastejando e tentou com os olhos penetrar a escuridão porque a música do mal lhe ressoava na cabeça e ele estava agitado e com medo. Depois de haver examinado a noite com os seus sentidos, foi ao lugar perto do caibro onde havia enterrado a pérola, tirou-a de lá, levou-a para a esteira onde dormia e debaixo da esteira cavou outro buraco no chão de terra e ali enterrou a sua pérola e cobriu-a.

E Juana, sentada ao pé do fogo, observou-o com os olhos curiosos e, quando ele acabou de enterrar a pérola, perguntou:

—    De que é que está com medo?

Kino procurou uma resposta exata e por fim disse:

—    De todos.

E sentiu que uma capa de dureza se estendia sobre ele.

Algum tempo depois, deitaram-se juntos na esteira e Juana não deitou naquela noite o menino no seu berço suspenso. Embalou-o nos braços e cobriu-lhe o rosto com o xale. E a última luz se apagou no braseiro.

Mas a cabeça de Kino ardia mesmo durante o sono e ele sonhou que Coyotito sabia ler e que alguém do seu povo poderia dizer-lhe a verdade das coisas. E, no seu sonho, Coyotito lia um livro do tamanho de uma casa, com letras do tamanho de cachorros e as palavras galopavam e brincavam dentro do livro. E então a escuridão caiu sobre a página e, com a escuridão, a música do mal reapareceu e Kino se agitou no seu sono. E quando ele se agitou, os olhos de Juana se abriram na escuridão. E então Kino acordou, com a música do mal vibrando dentro dele e os ouvidos alerta.

Foi então que do canto da cabana veio um ruído tão leve que poderia ser apenas um pensamento, um pequeno movimento furtivo, o toque de um pé no chão, o sopro quase inaudível de uma respiração controlada. Kino prendeu o fôlego para escutar e percebeu que a coisa má que lhe entrara em casa prendia também o fôlego para escutar. Durante algum tempo, não houve ruído algum no canto da cabana. Kino poderia pensar que havia imaginado o ruído, mas Juana pousou a mão nele em sinal de advertência e houve o ruído de novo! O sussurro de um pé na terra seca e um arranhar de dedos no chão.

E um medo feroz se levantou no peito de Kino e, depois do medo, veio a raiva, como sempre acontecia. Levando a mão ao peito de onde a faca estava pendurada de um cordão, Kino deu um pulo de gato zangado em direção à coisa negra que ele sabia que estava no canto da cabana. Sentiu um pano nos dedos e atacou com a faca. Errou, atacou de novo e sentiu a faca enterrar-se no pano e houve então um clarão na sua cabeça e uma explosão de dor. Uma carreira abafada, passos em corrida e, depois, silêncio.

Kino sentia o sangue quente correr-lhe da cabeça e ouvia Juana chamá-lo.

—    Kino! Kino!

E havia terror na voz dela. Então, a frieza o dominou tão depressa quanto a raiva pouco antes e ele disse:

—    Estou bem. O que foi foi-se embora.

Voltou tateando para a esteira. Juana já estava ao lado do fogo. Descobriu uma brasa entre as cinzas e colocou sobre ela tiras de palha de milho, soprando uma chama leve nas palhas de modo que uma luz fraca dançou dentro da cabana. E então Juana foi buscar num lugar secreto uma vela consagrada e acendeu-a na chama, colocando-a de pé numa pedra do braseiro. Os seus movimentos eram rápidos e ela cantarolava enquanto se movia. Mergulhou na água a ponta do xale e limpou o sangue da testa machucada de Kino.

—    Não é nada — disse Kino, mas os olhos e a voz eram duros e frios e um ódio persistente crescia dentro dele.

A tensão que aumentava dentro de Juana chegou à superfície e ela disse, com os lábios apertados:

—    Essa coisa é má. Essa pérola é como um pecado! Vai acabar destruindo a gente. Jogue-a

fora, Kino. Quebre-a com uma pedra. Enterre-a em algum lugar que depois esqueceremos. Devolva-a ao mar. Só nos trouxe mal. Ela vai-nos destruir, Kino, meu marido.

E, à luz do fogo, os lábios e os olhos dela estavam transidos de medo.

Mas havia determinação no rosto de Kino e também no seu espírito e na sua vontade.

—    É essa a nossa única oportunidade — disse ele. — Nosso filho irá à escola. Quebrará a panela dentro da qual estamos presos.

—    A pérola destruirá a todos nós — disse Juana, chorando. — Até a nosso filho.

—    Silêncio — disse Kino. — Não fale mais. Logo que amanhecer, nós venderemos a pérola. O mal irá com ela e só ficará o bem. Cale a boca, mulher.

Olhou sombriamente para o fogo e percebeu então que ainda estava com a faca na mão. Levantando a mão, olhou para a lâmina e viu que havia um filete de sangue no aço. Por um momento pensou em limpar a faca nas calças mas mergulhou-a na terra e foi assim que a limpou.

Os galos começaram a cantar ao longe, o ar mudou e a manhã veio chegando. O vento matinal enrugou as águas do estuário e sussurrou por entre os mangues, enquanto as ondas se quebravam na praia de cascalho cora um ritmo mais acelerado. Kino levantou a esteira, tirou a pérola, colocou-a diante dele e ficou a olhá-la.

E a beleza da pérola, que faiscava e luzia à claridade da pequena vela, lhe seduziu a cabeça com a sua beleza. Tão bela era e tão suave com uma música própria — a sua música de promessa e prazer, a sua garantia do futuro, de conforto e de segurança. A sua quente luminosidade prometia uma cataplasma contra a doença e uma muralha contra o insulto. Fechava a porta à fome. E, enquanto Kino a olhava, os seus olhos se abrandaram e o seu rosto se descontraiu. Viu a pequena imagem da vela benta refletida na lisa superfície da pérola e de novo lhe soou aos ouvidos a linda música do fundo do mar, o tom da difusa luz verde abaixo da superfície. Olhando-o em segredo, Juana viu-o sorrir. E, por que eles eram de algum modo uma só pessoa e uma só intenção, ela sorriu com ele.

E os dois começaram aquele dia com esperança.

 

É espantosa a maneira pela qual uma pequena cidade mantém o controle de si mesma e de todos os seus elementos. Se um homem, uma mulher, uma criança ou um bebê age e se comporta dentro de um padrão estabelecido, não derruba muros, não se distingue de ninguém, não faz experiências de espécie alguma, não cai doente e não põe em perigo a calma, a paz de espírito ou o curso da vida ininterrupto da cidade, esse elemento pode desaparecer sem que nunca mais se fale nele. Mas basta que alguém se afaste do pensamento comum ou do padrão reconhecido para que os nervos dos habitantes vibrem e se estabeleçam comunicações através das linhas nervosas da cidade. Neste caso, todos os elementos entram em contato com o todo.

Foi assim que se soube em La Paz logo às primeiras horas da manhã que Kino ia vender a sua pérola naquele dia. Souberam disso os vizinhos, pescadores de pérolas que moravam nas cabanas. Tiveram conhecimento do fato os chineses que eram donos dos armazéns. A notícia chegou à igreja, porque os coroinhas falaram sobre o caso. Ficaram a par de tudo as freiras, os mendigos do adro falaram sobre a venda porque estariam ali para receber os dízimos dos primeiros frutos da sorte. Os meninos souberam disso com muito interesse, mas, antes de mais nada, inteiraram-se do que ia acontecer aos compradores de pérolas e, quando o dia nasceu, estavam eles nos seus escritórios, cada qual sentado sozinho diante da sua bandeja de veludo preto, rolando as pérolas com as pontas dos dedos e pensando no papel que iriam desempenhar no caso.

Supunha-se que os compradores de pérolas agiam por si mesmos, oferecendo preços em concorrência pelas pérolas que os pescadores levavam. E era outros tempos tinha sido assim. Mas era um método prejudicial porque muitas vezes, na ansiedade de oferecer um bom preço para conseguir uma boa pérola, tinha-se pago dinheiro em excesso aos pescadores. Era uma extravagância que não se podia incentivar. Por isso, passara a haver apenas um comprador de pérolas com muitas mãos e os homens que estavam sentados nos seus escritórios à espera de Kino já sabiam que preço iriam propor, até onde podiam subir e que método cada um deles usaria. E embora aqueles homens não ganhassem senão o seu salário havia grande expectativa entre eles, porque há sempre entusiasmo por uma caçada e, se a função de um homem for baixar um preço, ele encontrará alegria e satisfação em fazer baixar esse preço tanto quanto possível. Assim é porque todo homem no mundo age com o máximo da sua capacidade e não faz menos do que o máximo, pense o que pensar a esse respeito. Independentemente de qualquer prêmio que pudesse receber, de qualquer elogio, de qualquer promoção, um comprador de pérolas era um comprador de pérolas e o melhor e mais feliz dos compradores de pérolas era o que comprava pérolas pelos preços mais baixos possíveis.

O sol estava naquela manhã quente e amarelo e absorvia a umidade do estuário e do Golfo, suspendendo-a no ar em cintilantes lençóis de modo que o ar vibrava e a visão era insubstancial. Uma visão pairava no ar ao norte da vila — a visão de uma montanha que estava a mais de trezentos quilômetros de distância, e as altaneiras encostas da montanha estavam cobertas de pinheiros, e um grande pico de pedra se elevava acima da linha de vegetação.

E, na manhã desse dia, as canoas ficaram alinhadas na praia. Os pescadores não saíram para mergulhar em busca das pérolas porque muito iria acontecer e muito se teria de ver quando Kino fosse vender a grande pérola.

— Aquela boa esposa, Juana — diziam de Kino ficaram sentados depois do café e falaram do que fariam se tivessem encontrado a pérola. Um deles disse que daria a pérola de presente ao Santo Padre, em Roma. Outro disse que pagaria missas pela sua alma e de todos os seus durante mil anos. Outro pensou que poderia pegar o dinheiro e distribuí-lo entre os pobres de La Paz e houve ainda um que pensou em todas as boas coisas que se podia fazer com o dinheiro da pérola, em todas as caridades, todos os benefícios e todos os socorros que seriam possíveis se houvesse dinheiro. Todos os vizinhos esperavam que o dinheiro não virasse a cabeça de Kino, não fizesse dele um homem rico, enxertando nele os galhos maus da cobiça, do ódio e da frieza. Kino era um homem muito estimado; seria uma pena que a pérola o destruísse.

— Aquela boa esposa, Juana — diziam eles —, e o belo menino que é Coyotito com os outros que virão depois. Seria uma tristeza que a pérola destruísse todos eles.

Para Kino e Juana, aquela era a grande manhã da vida dos dois, comparável apenas ao dia em que o menino nascera. Era aquele o dia sob cuja direção todos os outros se arrumariam. Diriam por exemplo: "Foi dois anos antes de vendermos a pérola" ou "Foi seis semanas depois de vendermos a pérola". Em vista disso, Juana mandou a cautela andar e vestiu Coyotito com as roupas que havia preparado para o batizado, no dia em que houvesse dinheiro para batizá-lo. E Juana penteou e trançou o cabelo dela, amarrando as duas pontas com dois lacinhos de fita vermelha, vestindo a saia e a blusa do seu casamento. O sol já estava em metade da sua subida quando afinal se aprontaram. As roupas surradas de Kino estavam pelo menos limpas e aquele era o seu último dia de vestir farrapos. No dia seguinte, ou talvez naquela mesma tarde, teria roupas novas.

Os vizinhos, observando a porta de Kino através das gretas nas paredes das suas cabanas, vestiram-se e aprontaram-se também. Não havia neles nenhuma dúvida sobre o fato de acompanharem Kino e Juana quando fossem vender a pérola. Era uma coisa esperada. Tratava-se de um momento histórico e eles seriam loucos se não fossem. Seria quase um sinal de falta de amizade.

Juana pôs o xale na cabeça e arranjou uma ponta debaixo do cotovelo direito, juntando-a com a mão direita para formar uma rede debaixo do braço e nessa rede colocou Coyotito, bem apoiado no xale, a fim de que ele pudesse ver tudo e talvez lembrar-se. Kino colocou na cabeça o seu grande chapéu de palha e passou a mão para ver se estava no lugar certo, não para trás ou de lado, como o usaria um rapaz solteiro e irresponsável, nem muito enterrado a prumo como o usaria um velho, mas um pouco inclinado para a frente para mostrar agressividade, seriedade e vigor. Muito se pode ver na maneira pela qual um homem usa o chapéu. Kino meteu os pés nas sandálias e puxou as correias para os calcanhares. A grande pérola foi embrulhada num pedaço de couro velho de veado e colocada num saquinho de couro guardado no bolso da camisa de Kino. Dobrou cuidadosamente a sua manta e passou-a numa faixa estreita por sobre o ombro esquerdo. Depois disso, estavam prontos.

Kino saiu de casa cheio de dignidade, seguido de Juana, que carregava Coyotito. E, enquanto marchavam para a cidade pela rua banhada pelo riacho, os vizinhos se juntavam a eles. As casas expeliam gente; as portas vomitavam crianças. Mas, em vista da solenidade da ocasião, só uma pessoa caminhava ao lado de Kino, e era o irmão dele, Juan Tomás.

Juan Tomás advertiu o irmão dizendo:

—    Deve ter cuidado para que não enganem você.

—    Muito cuidado — concordou Kino.

—    Não sabemos quais são os preços pagos em outros lugares — disse Juan Tomás. — Como é que vamos saber se o preço é justo quando não sabemos o que o comprador vai receber pela pérola em outro lugar?

—    É verdade — disse Kino —, mas como é que vamos saber? Estamos aqui e não lá.

Enquanto se encaminhavam para a cidade, a multidão crescia atrás deles e Juan Tomás continuou a falar de puro nervosismo.

—    Antes de você nascer, Kino, os antigos pensaram numa maneira de conseguir um preço melhor para as suas pérolas. Pensaram que seria melhor que tivessem um agente que levaria todas as pérolas deles para a capital e ali as vendesse, ficando apenas com a sua parte do dinheiro.

—    Eu sei — disse Kino, batendo com a cabeça. — Era um bom pensamento esse.

—    Conseguiram um homem assim — continuou Juan Tomás. — Juntaram as pérolas e o homem partiu. Nunca mais se soube dele e as pérolas se perderam. Conseguiram outro homem, que partiu e nunca mais se soube dele. Depois disso, desistiram e voltaram ao jeito antigo.

—    Eu sei — disse Kino. — Ouvi nosso pai contar isso. A idéia era boa mas contra a religião e o padre mostrou isso bem claro. A perda das pérolas foi um castigo para aqueles que procuravam sair da posição que tinham na vida. O padre disse de maneira positiva que cada pessoa é como um soldado mandado por Deus para montar guarda a algum ponto da fortaleza do universo. Alguns ficam nos baluartes e outros bem embaixo, na escuridão das muralhas. Cada um deve, portanto, ficar firme no seu posto e não abandoná-lo, pois do contrário a fortaleza ficará aberta aos ataques do inferno.

— Já ouvi esse sermão — disse Juan Tomás. — O padre diz todos os anos o mesmo.

Enquanto caminhavam os irmãos apertaram um pouco os olhos, como eles e seus avós e bisavós faziam havia quatrocentos anos, desde a primeira vez em que os estrangeiros chegaram com argumentos e autoridade e pólvora para sustentar as duas coisas. Durante esses quatrocentos anos, o povo de Kino só havia aprendido uma defesa — apertar um pouco os olhos, fechar a boca e bater em retirada. Nada poderia romper essa muralha e eles se conservavam Íntegros do outro lado da muralha.

O desfile sempre em aumento era solene, porque todos sentiam a importância daquele dia e as crianças que mostravam tendência a lutar, a gritar, a chorar, a roubar chapéus e embaraçar cabelos eram severamente reduzidas ao silêncio pelos pais. O dia era tão importante que um velho apareceu para ver, apoiado nos ombros fortes dos dois sobrinhos. O desfile deixou a parte das cabanas da praia e entrou na vila de pedra e cal, onde as ruas eram um pouco mais largas e havia estreitas calçadas ao lado dos prédios. E, como da outra vez, os mendigos acompanharam o cortejo quando este passou pela igreja. Os donos dos armazéns olharam o cortejo passar e os pequenos botequins perderam os seus fregueses e os proprietários fecharam as portas e se incorporaram à multidão. E o sol batia sobre as ruas da vila e até as pequenas pedras lançavam sombras pelo chão.

A notícia da aproximação do cortejo ia à frente dele e nos pequenos escritórios escuros os compradores de pérolas aprumaram o corpo e ficaram atentos. Tiraram papéis das gavetas para que estivessem trabalhando no momento em que Kino aparecesse e guardaram as pérolas porque não convém que uma pérola inferior seja vista ao lado de uma excepcional, pois a notícia da beleza da pérola de Kino já lhes havia chegado aos ouvidos. Os escritórios dos compradores de pérolas estavam todos amontoados numa rua estreita e tinham grades e persianas nas janelas que cortavam a luz e só deixavam uma sombra macia entrar nos escritórios.

Um homem gordo e lento estava num escritório, esperando. Tinha um rosto paternal e bondoso e os olhos brilhavam de cordialidade. Gostava muito de dar bom dia, de apertar cerimoniosamente as mãos. Era um homem alegre que sabia todas as anedotas e, apesar disso, dado à tristeza porque podia no meio de unia risada lembrar-se da morte da tia de um dos seus fregueses e de ficar com lágrimas nos olhos de pesar pela perda que o outro sofrerá. Naquele dia, havia colocado uma flor no vaso em cima de sua mesa, um hibisco vermelho, e o vaso estava ao lado da bandeja forrada de veludo preto à sua frente. Tinha feito a barba, escanhoando-a bem e estava com as mãos limpas e as unhas polidas. Tinha a porta aberta à luz da manhã e cantarolava baixinho enquanto praticava truques de prestidigitação. Rolava uma moeda de um lado para outro sobre os nós dos dedos, fazendo-a aparecer e desaparecer, girar e cintilar. A moeda surgia num instante e logo depois sumia e o homem nem sequer olhava o que fazia. Os dedos faziam tudo isso mecanicamente e com precisão, enquanto o homem cantarolava e olhava para a porta. Ouviu então o tropel da multidão que se aproximava e os dedos da mão direita trabalharam cada vez com mais pressa até que, no momento em que o vulto de Kino apareceu na porta, a moeda brilhou e desapareceu.

—    Bom dia, meu amigo — disse o homem

gordo. — Em que posso servi-lo?

Kino arregalou os olhos para a escuridão do pequeno escritório, ofuscado pela claridade que havia lá fora. Mas os olhos do comprador estavam firmes, cruéis e impassíveis como os de um gavião, enquanto o resto do rosto sorria em cumprimento. E, secretamente, por trás da mesa, a mão direita continuava a praticar com a moeda.

—    Tenho uma pérola — disse Kino. E Juan Tomás estava ao lado dele e fez uma careta ante a declaração dispensável. Os vizinhos olhavam da porta e um grupo de garotos subiu às grades da janela e olhou para dentro. Outros, de quatro pés, observavam a cena por entre as pernas de Kino.

—    Tem uma pérola? — disse o homem. — Há homens que trazem mais de uma dúzia. Mas vamos ver a sua pérola. Nós a avaliaremos e lhe daremos o melhor preço.

Enquanto isso, os seus dedos rodavam febrilmente a moeda.

Ora, Kino dispunha também instintivamente dos seus efeitos dramáticos. Tirou vagarosamente o saquinho de couro, desembrulhou mais vagarosamente ainda o couro velho e, então, deixou a grande pérola rolar na bandeja de veludo preto e, no mesmo instante, procurou com os olhos o rosto do comprador. Mas não houve sinal ou movimento algum e o rosto não mudou de expressão embora a mão escondida tivesse perdido a sua precisão. A moeda bateu num dos nós dos dedos e caiu em silêncio no colo do comprador. E os dedos escondidos crisparam-se. Quando afinal o homem estendeu a mão que estivera escondida, o indicador tocou a grande pérola, fazendo-a rolar na bandeja preta. Depois, o comprador pegou-a com o polegar e o indicador e levou-a para perto dos olhos, rolando-a no ar.

Kino prendeu a respiração, os vizinhos também e a informação correu de boca em boca até às últimas pessoas agrupadas em frente à porta.

—    Está examinando a pérola. Ainda não falou em dinheiro. . . Nada ainda sobre preço.

Nesse ponto, a mão do comprador se havia tornado uma personalidade. Jogou a grande pérola na bandeja e com o dedo estendido insultou-a, ao mesmo tempo que no rosto do homem surgia um sorriso melancólico e desdenhoso.

—    Sinto muito — disse ele, levantando um pouco os ombros como para indicar que não tinha culpa do infortúnio.

—    É uma pérola de grande valor — disse Kino.

Os dedos do comprador empurraram a pérola bruscamente de tal modo que ela bateu e voltou várias vezes nas bordas da bandeja.

—    Nunca ouviu dizer que tudo demais é sobra? Pois é o que acontece com essa pérola. É grande demais. Quem poderia comprá-la? Não há mercado para coisas assim. É apenas uma curiosidade. Sinto muito. Pensava que era uma coisa de grande valor e é apenas uma curiosidade.

O rosto de Kino se mostrava perplexo e preocupado.

—    Mas é a Pérola do Mundo! — exclamou — Ninguém nunca viu uma pérola assim!

—    Ao contrário, é grande e inaproveitável. Mas como curiosidade tem algum interesse. Um museu, por exemplo, poderá comprá-la para uma coleção de conchas. Posso dar-lhe por ela coisa de mil pesos.

O rosto de Kino se mostrou sombrio e perigoso.

—    Vale cinqüenta mil. Sabe muito bem disso e está querendo me enganar.

O comprador ouviu um murmúrio surdo percorrer a multidão quando o preço dele foi ouvido e sentiu um pequeno tremor de medo.

— Não me culpe de nada — disse ele, prontamente. — Sou apenas um avaliador. Pergunte aos outros. Vá aos escritórios deles e mostre-lhes a sua pérola — ou, melhor, vamos chamá-los até aqui, para ver que não há nenhuma combinação. — Chamou o seu empregado e disse-lhe: Vá chamar Fulano, Beltrano e Sicrano. Peça que venham até aqui, mas não diga para que é. Diga apenas que tenho muito interesse em vê-los.

A mão direita voltou para trás da mesa, tirou outra moeda do bolso e rolou-a de novo sobre os nós dos dedos.

Os vizinhos de Kino começaram a conversar em voz baixa. Estavam mesmo com receio de uma coisa assim. A pérola era grande, mas tinha uma cor esquisita. Tinham suspeitado disso desde o princípio. E, afinal de contas, mil pesos não eram coisa para se jogar fora. Era uma riqueza relativa para um homem que nada tinha. Por que Kino não aceitava os mil pesos? Afinal, até àquele dia nada tinha de seu.

Mas Kino estava rígido e áspero. Sentiu a aproximação do destino, o círculo dos lobos, os vôos em roda dos abutres. Sentia o mal coagular-se em torno dele e nada podia fazer para proteger-se. Ressoava-lhe aos ouvidos a música do mal. E, no veludo preto, a pérola brilhava tanto que o comprador não podia desviar os olhos dela.

A multidão à porta ondulou, abriu-se e deixou os três compradores de pérolas passarem.

Todos estavam em silêncio, receando perder uma palavra, deixar de ver um gesto ou uma expressão. Kino estava silencioso e vigilante. Sentiu alguém puxar-lhe as roupas atrás. Voltou-se e viu Juana. Olhou para ela e quando se voltou tinha a sua força renovada.

Os compradores não olharam um para o outro, nem para a pérola. O homem sentado à mesa disse:

—    Avaliei essa pérola. O dono da mesma não acha justa a minha avaliação. Peço que examinem. . . isso e façam uma proposta. Note — disse ele a Kino — que não mencionei o preço que ofereci.

O primeiro comprador, seco e nervoso, pareceu ver a pérola pela primeira vez. Apanhou-a, rolou-a rapidamente entre o polegar e o indicador e, depois, jogou-a desdenhosamente na bandeja.

—    Não me metam na discussão — disse ele secamente. — Não vou fazer avaliação de espécie alguma. Isso não é uma pérola — é uma monstruosidade.

E os seus lábios magros se apertaram.

E o segundo comprador, um homem baixo com voz tímida e débil, apanhou a pérola e examinou-a cuidadosamente. Tirou uma lente do bolso e olhou-a, assim ampliada. Riu então maciamente.

—    Há pérolas de massa melhores — disse

ele. — Conheço bem essas coisas. É uma pérola mole e gredosa que perderá a cor e morrerá dentro de alguns meses. Veja. . .

Passou a lente às mãos de Kino e este que nunca vira a superfície de uma pérola ampliada ficou surpreso com o seu aspecto estranho.

O terceiro comprador tirou a pérola das mãos de Kino e disse:

—    Tenho um freguês que gosta de colecionar coisas assim. Darei quinhentos pesos por ela e talvez o meu cliente me dê seiscentos.

Kino estendeu bruscamente a mão e tomou a pérola dele. Tornou a embrulhá-la no couro, a colocá-la no saquinho e guardá-la no bolso.

O homem sentado à mesa disse:

—    Talvez eu esteja sendo imprudente, mas mantenho a minha primeira oferta. Ainda estou disposto a dar mil pesos. Mas que é que está fazendo?

—    Estou sendo enganado — disse Kino, rispidamente. — A minha pérola não está à venda aqui. Vou oferecê-la em outros lugares, talvez até na capital.

Os compradores se entreolharam. Compreendiam que se tinham excedido. Sabiam que seriam repreendidos severamente por isso. O homem sentado à mesa disse então prontamente:

—    Posso ir a mil e quinhentos.

Mas Kino já ia saindo por entre a multidão que estava à porta. Ouvia vagamente o murmúrio das conversas e o sangue lhe latejava nos ouvidos. Saiu às pressas e se afastou, seguido pela mulher que quase corria atrás dele.

Quando a noite caiu, os vizinhos nas cabanas da praia comeram broas de milho e feijão e discutiram o grande assunto daquela manhã. Não sabiam ao certo. A pérola tinha-lhes parecido magnífica, mas nunca tinham visto uma pérola assim e sem dúvida os compradores entendiam mais do que eles do valor das pérolas.

—    E vejam bem — diziam eles — que os compradores não tiveram conversa nenhuma sobre o assunto. Cada um dos três sabia por si mesmo que a pérola não tinha valor.

—    E se haviam combinado tudo antes?

—    Então temos sido roubados toda a nossa vida.

Alguns afirmavam que talvez fosse melhor Kino ter aceito os mil e quinhentos pesos. Era muito dinheiro, mais do que ele já havia visto em sua vida. Talvez Kino fosse um idiota sem remédio. Podia ir à capital e não encontrar comprador para a sua pérola. Se isso acontecesse, ele nunca mais se levantaria.

Outros, de espírito medroso, diziam que depois que Kino os desafiara, os compradores talvez não quisessem mais fazer negócio com nenhum deles. Talvez Kino, perdendo a cabeça, os houvesse destruído.

Outros disseram, porém, que Kino era um homem corajoso e altivo. Tivera razão e todos lucrariam com a sua coragem. Orgulhavam-se de Kino.

Na sua cabana, Kino estava agachado na esteira, pensando. Havia enterrado a pérola debaixo de uma pedra do fogão e olhou para as palhas trançadas da esteira até que os desenhos começaram a dançar na sua cabeça. Tinha perdido um mundo e não ganhara outro. Kino estava com medo. Nunca em sua vida fora até muito longe de casa. Tinha medo de pessoas desconhecidas e de lugares estranhos. Estava aterrorizado com o mundo de estranheza que era a capital. Ficava além da água e além das montanhas por mais de mil quilômetros e cada quilômetro estranho e temível era apavorante. Mas Kino tinha perdido o seu velho mundo e não podia deixar de entrar num mundo novo. O seu sonho do futuro era real e não podia ser destruído. Depois, tinha dito que iria e isso fazia também da sua ida uma coisa real. Resolver que ia e dizer que ia era já meio caminho andado.

Juana observou-o enquanto ele enterrava a pérola e continuou a olhá-lo enquanto lavava Coyotito e o amamentava e, depois, enquanto fazia as broas de milho para o jantar.

Juan Tomás entrou e se agachou ao lado de Kino. Ficou ali em silêncio durante algum tempo, até que Kino perguntou:

—    Que mais posso fazer? São ladrões.

Juan Tomás fez um gesto solene de assentimento. Era mais velho e Kino queria a opinião sábia dele.

—    É difícil saber, Kino. Bem sabemos que somos roubados em tudo desde que nascemos até que morremos, quando cobram demais pelos nossos caixões. Mas vamos vivendo. Você desafiou não apenas os compradores de pérolas, mas toda a armação, a vida toda como é organizada, e eu tenho medo por sua causa.

—    Posso ter medo de alguma coisa senão de morrer de fome? — perguntou Kino.

Mas Juan Tomás sacudiu vagarosamente a cabeça.

—    Disso todos nós temos que ter medo. Mas vamos supor que você tenha razão — que a sua pérola tenha grande valor — acha que o caso está encerrado?

—    Que quer dizer com isso?

—    Não sei mas tenho medo por sua causa. É terreno novo em que você vai pisar sem saber o caminho.

—    Mas irei, irei já — disse Kino.

—    Sim, isso você deve fazer. O que não sei é se as coisas serão muito diferentes na capital.. Aqui, você tem amigos e a mim que sou seu irmão. Lá, não terá ninguém.

—    Que é que eu posso fazer? Isso é uma indecência muito grande. Meu filho tem de ter uma oportunidade. É isso que eles estão atacando. Meus amigos me protegerão.

—    Só enquanto eles mesmos não correrem perigo nem tiverem qualquer inconveniente com isso — disse Juan Tomás. Levantou-se então e disse: — Vá com Deus.

—    Vá com Deus — disse Kino e nem levantou a vista porque as palavras tinham uma estranha frieza.

Muito tempo depois de Juan Tomás ter saído, Kino ficou sentado pensativamente na sua esteira. A letargia dominava-o juntamente com uma desesperança cinzenta. Todos os caminhos diante dele pareciam bloqueados. Só ouvia na cabeça a música negra do inimigo. Todos os seus sentidos estavam ardentemente vivos, mas o seu espírito voltava à profunda participação em todas as coisas, o dom que herdara do seu povo. Ouvia os menores ruídos da noite que avançava, os sonolentos queixumes das aves que se aninhavam, a agonia amorosa dos gatos, a ida e volta das ondas mansas na praia e o silvo simples da distância. O fogo teve um clarão súbito que fez o desenho da esteira saltar diante dos seus olhos arregalados.

Juana olhava-o, cheia de preocupação, mas conhecia-o e sabia que a melhor maneira de ajudá-lo era ficar em silêncio e junto dele. E como se ela pudesse também ouvir a Canção do Mal, lutou contra ela cantando suavemente a melodia da família, da segurança, do calor e da unidade da família. Tinha Coyotito nos braços e cantava para ele, a fim de afastar o mal, e a voz dela era corajosa ante a ameaça da música negra.

Kino não se moveu, nem disse que queria jantar. Juana sabia que ele pediria no momento em que estivesse com vontade. Kino estava com os olhos parados e podia sentir o mal cauteloso e vigilante que rondava perto da casa. Sentia as coisas rastejantes e negras que esperavam que ele saísse para a noite. Era uma coisa torva e temível, mas que o chamava, ameaçando-o e desafiando-o. Levou a mão direita à camisa e sentiu.a faca. De olhos bem abertos, levantou-se e encaminhou-se para a porta.

Juana quis fazê-lo parar. Levantou a mão para que ele se detivesse e abriu a boca cheia de horror. Durante muito tempo, Kino olhou para a escuridão e afinal saiu. Juana ouviu a breve carreira, a luta arquejante e a pancada.

Ficou por um momento paralisada de terror, mas depois arreganhou os dentes numa expressão felina. Deitou Coyotito no chão. Apanhou uma pedra do fogão e correu para fora, mas quando lá chegou tudo estava terminado. Kino estava estendido no chão e lutava por levantar-se, mas não havia ninguém perto dele. Só as sombras, o barulho das ondas e o sibilar da distância. Mas o mal rondava por ali, escondido atrás das moitas da cerca, encolhido na sombra ao lado da casa, pairando no ar.

Juana largou a pedra, passou os braços em torno de Kino e ajudou-o a levantar-se e a voltar para casa. O sangue lhe escorria da cabeça e havia um comprido corte profundo da orelha até ao queixo, que sangrava. Kino estava apenas semiconsciente. Sacudia a cabeça de um lado para outro. A camisa estava dilacerada e as suas roupas meio arrancadas. Juana sentou-o na esteira e enxugou com a saia o sangue do rosto. Deu-lhe pulque para beber numa tigela. Mas Kino, ainda depois disso, sacudia a cabeça para afastar as trevas.

—    Quem foi? — perguntou Juana.

—    Não sei — disse Kino. — Não vi.

Juana trouxe uma vasilha de barro com água e lavou-lhe o talho do rosto, enquanto ele olhava fixamente para a frente.

—    Kino, meu marido, está-me ouvindo?

—    Estou ouvindo.

—    A pérola é perigo. Vamos destruí-la antes que nos destrua. Vamos esmagá-la entre duas pedras. Ou então vamos jogá-la de novo dentro do mar, que é o lugar dela.

E, enquanto ela falava, a luz voltou aos olhos de Kino. Brilharam ferozmente, ao mesmo tempo que os seus músculos e a sua vontade se enrijaram.

—    Não — disse ele. — Vou lutar contra essa coisa. Vencerei. Teremos a nossa oportunidade. — Bateu com o punho na esteira e disse: — Ninguém tomará a nossa sorte de nós.

— Pousou ternamente a mão no ombro de Juana. — Acredite em mim que sou um homem.

E o seu rosto se encheu de malícia.

—    Quando amanhecer, tomaremos a nossa canoa e iremos para a capital do outro lado das montanhas, você e eu. Não seremos roubados. Eu sou um homem.

—    Tenho medo, Kino — disse ela, com voz rouca. — Um homem pode ser morto. Vamos jogar a pérola no mar.

—    Cale a boca. Eu sou homem. Cale a boca. — Ela se calou porque havia autoridade na voz dele. — Vamos dormir um pouco. Partiremos logo que clarear. Não está com medo de ir comigo?

—    Não, marida

Os olhos dele se enterneceram e ele lhe tomou o rosto com a mão.

—    Vamos dormir um pouco.

 

A lua minguante nasceu antes que o primeiro galo cantasse. Kino abriu os olhos na escuridão, porque sentiu algum movimento perto dele, mas não se moveu. Só os seus olhos penetraram a escuridão e a luz pálida da lua que entrava pelas gretas da parede da cabana. Viu então Juana levantar-se em silêncio de junto dele e encaminhar-se para o fogão. Tão cuidadosamente se movia que ele quase não ouviu barulho quando ela levantou a pedra do fogão. Deslizou então para a porta como uma sombra. Parou um instante ao lado do berço de Coyotito e, em seguida, foi para a porta e desapareceu.

A raiva cresceu dentro de Kino. Levantou-se e seguiu-a tão silenciosamente quanto ela havia saído e ouviu-lhe os passos rápidos na direção da praia. Acompanhou-a, sentindo o sangue subir-lhe à cabeça. Ela se afastou das cabanas, galgou cambaleante os pequenos rochedos que havia no caminho da praia. Foi então que o ouviu aproximar-se e começou a correr. O braço dela já estava levantado para o arremesso quando ele de um pulo, agarrou-lhe o braço e tomou a pérola. Ele lhe bateu no rosto com o punho fechado e ela caiu nos rochedos, recebendo então dele um pontapé no lado. À luz pálida, viu as ondas se quebrarem sobre ela e a saia flutuar para depois se lhe colar às pernas quando a água refluía.

Kino olhou para ela e arreganhou os dentes. Silvou para ela como se fosse uma cobra e Juana encarou-o de olhos arregalados sem medo, como um carneiro diante do magarefe. Ela sabia que havia dentro dele a vontade de matar e aceitava isso, sem resistir, nem protestar sequer. E então a raiva o abandonou e um profundo desgosto surgiu em lugar dela. Afastou-se e voltou pela praia para as cabanas. Os seus sentidos estavam embotados pelas emoções.

Ouviu a carreira, tirou a faca e precipitou-se sobre o vulto negro e sentiu a faca cravar-se na carne de alguém e então caiu de joelhos e, depois, no chão. Dedos ansiosos percorreram-lhe as roupas. Os dedos febris davam busca nele, enquanto a pérola, que caíra da mão, brilhava atrás de uma pequena pedra no caminho. Brilhava à branda luz da lua.

Juana arrastou-se dos rochedos à beira da água e levantou-se. Havia uma dor surda no rosto e o lado lhe doía. Firmou-se um momento nos joelhos, com a saia molhada colada à perna. Dentro dela não havia raiva em relação a Kino. Ele tinha dito "Eu sou um homem" e isso significava certas coisas para Juana. Significava que ele era meio louco e meio deus. Significava que Kino investiria com a sua força contra uma montanha e com a sua força enfrentaria o mar. Juana, com a sua alma de mulher, sabia que a montanha continuaria firme enquanto o homem se despedaçaria e que o mar se levantaria fazendo o homem afogar-se. Mas era isso que fazia dele um homem, meio louco e meio deus, e Juana precisava de um homem. Não podia viver sem um homem. Embora não compreendesse bem essas diferenças entre o homem e a mulher, sabia delas, aceitava-as è precisava delas. É claro que ela o seguiria, isso nem se discutia. Às vezes, a sua qualidade de mulher, a sensatez, a prudência, o instinto de conservação podiam penetrar a virilidade de Kino e salvá-los a todos. Ficou penosamente de pé, tomou nas pequenas ondas um pouco de água nas mãos em concha e lavou o rosto machucado com a água salgada que ardia e depois se arrastou pela praia no encalço de Kino.

Um bando de nuvens escamosas viera do sul, cobrindo o céu. A lua pálida entrava e saía dos novelos de nuvens, de modo que Juana caminhava um momento na luz e no momento seguinte, no escuro. Estava com o corpo vergado de dor e a cabeça baixa. Entrou na Unha de vegetação quando a lua estava encoberta, mas, logo que ela brilhou de novo, Juana viu a cintilação da grande pérola no caminho atrás da pedra. Ajoelhou-se e apanhou-a, enquanto a lua se escondia de novo atrás da escuridão das nuvens. Continuou de joelhos enquanto resolvia se devia voltar para o mar e acabar o que começara. Enquanto pensava, a lua reapareceu e ela viu dois vultos escuros estendidos no caminho à frente dela. Correu para lá e viu que um deles era Kino e o outro, um desconhecido de cuja garganta escorria o sangue negro.

Kino moveu-se vagarosamente, os braços e as pernas se agitaram como os de um inseto esmagado e um murmúrio pastoso lhe saiu da boca. Naquele instante, Juana compreendeu que a vida antiga se fora para sempre. Um homem morto no caminho e a faca de Kino com a lâmina ensangüentada ao lado dele convenceram-na disso. Durante todo o tempo, Juana tentara salvar alguma coisa da velha paz dos tempos de antes da pérola. Mas já se havia perdido tudo e não podia mais ser salvo. Sabendo disso, Juana abandonou o passado no mesmo instante. Nada mais restava a fazer senão salvarem-se.

A dor desaparecera e a lentidão também. Arrastou rapidamente o morto do caminho para o esconderijo do mato. Aproximou-se de Kino e limpou-lhe o rosto com a saia. Ele estava recobrando os sentidos e gemeu.

—    Levaram a pérola. Perdi-a. Agora, tudo está acabado — disse ele. — A pérola se foi.

Juana fê-lo calar-se, como faria a uma criança doente.

—    Não fale — disse ela. — Aqui está a sua pérola. Achei-a no caminho Está ouvindo? Aqui está a pérola. Está compreendendo? Você matou um homem. Temos de sair daqui. Virão buscar-nos, compreende? Temos de sair daqui antes que amanheça.

—    Fui atacado — disse Kino, inquietamente. — Tive de atacar também para não morrer.

—    Já se esqueceu de ontem? — perguntou Joana. — Pensa que isso terá alguma importância? Lembra-se dos homens da vila? Acha que a sua explicação adiantará alguma coisa?

Kino deu um grande suspiro e ^procurou reagir à sua fraqueza.

—    Não — disse ele. — Você tem razão.

A sua vontade se fortaleceu e ele voltou a ser um homem.

—    Vá até nossa casa e apanhe Coyotito — disse ele. — Traga todo o milho que temos. Vou puxar a canoa para dentro da água e partiremos então.

Pegou a faca e afastou-se. Marchou ainda trôpego para a praia e chegou à canoa. Quando a luz reapareceu, ele viu que havia um grande rombo no fundo da canoa.. Uma raiva ardente invadiu-o e deu-lhe força. As trevas se fechavam sobre ele e sua família. A música do mal enchia a noite, pairava sobre o mangue e soava no compasso das ondas. A canoa de seu avô, tantas vezes recoberta de massa, com um rombo no casco. Era uma maldade além de tudo o que se podia imaginar. Matar um homem não era tão ruim quanto matar uma canoa. Uma canoa não tem filhos, não pode proteger-se, e uma canoa ferida não tem mais cura. Havia tristeza na raiva de Kino mas aquilo o havia levado a um ponto de tensão que nada mais poderia quebrar. Passara a ser um animal para esconder-se, para atacar, e só vivia dai por diante para proteger-se e a sua família. Não tinha conhecimento da dor na cabeça. Correu da praia e correu através da linha de vegetação para a sua cabana, sem pensar nem por um momento em tomar a canoa de um dos seus vizinhos. Um pensamento assim não lhe passava pela cabeça do mesmo modo que nunca pensaria em danificar uma canoa.

Os galos cantavam e a alvorada não estava muito distante. A fumaça dos primeiros fogões acesos se levantava das paredes de algumas cabanas e sentia-se no ar o cheiro das primeiras broas de milho. Os pássaros madruga-dores já começavam a mover-se no mato. A lua fraca estava perdendo a sua luz e as nuvens engrossavam e se amontoavam para os lados do sul. O vento soprava livremente pelo estuário. Era um vento nervoso, agitado, que trazia no hálito um cheiro de tempestade, espalhando pelo ar mudança e tensão.

Correndo para a casa, Kino sentiu um assomo de satisfação. Não estava mais confuso porque só havia uma coisa a fazer e Kino levou a mão primeiro à grande pérola no bolso da camisa e depois à faca por dentro da camisa.

Viu de repente um clarão à sua frente e, depois, sem solução de continuidade, uma alta chama pulou para o alto da escuridão com tremendo fragor. Uma grande pira de fogo iluminou o caminho. Kino começou a correr. Sabia que era a sua casa e sabia que aquelas casas de varas podiam arder totalmente em poucos momentos. E, enquanto corria, viu um vulto que corria para ele. Era Juana com Coyotito nos braços e a manta de Kino na mão. O menino gemia com medo e os olhos de Juana estavam arregalados e cheios de pavor. Kino viu que a casa estava perdida e não fez perguntas a Juana. Já sabia mas ela disse:

—    Estava tudo revirado e com o chão todo cavado. Até no berço de Coyotito mexeram e, enquanto eu estava olhando, tocaram fogo na casa pelo lado de fora.

A violenta luz da casa incendiada iluminava fortemente o rosto de Kino.

—    Quem? — perguntou ele.

—    Não sei. Os homens das trevas.

Os vizinhos estavam saindo às carreiras das suas casas, olhando as fagulhas que vinham no ar e batendo-as com os pés para salvar as suas casas. De repente, Kino teve medo. A luz era uma fonte de medo. Lembrou-se do homem morto que estava estendido no mato ao lado do caminho e tomou Juana pelo braço, levando-a para a sombra da casa, longe da luz, porque a luz era um perigo para ele. Pensou por um momento e então moveu-se entre as sombras até que chegou à casa de Juan Tomás, seu irmão, e entrou, puxando Juana. Lá fora, podia ouvir as vozes das crianças e os gritos dos vizinhos, porque os seus amigos pensavam que ele podia estar dentro da casa incendiada.

A casa de Juan Tomás era quase exatamente como a de Kino. Quase todas as casas da praia eram semelhantes e deixavam passar a luz e o ar. Por isso, Juana e Kino, sentados num canto da casa do irmão, viam através da parede de varas as labaredas que subiam para o céu. Viram que eram altas e furiosas, viram o teto cair e viram o fogo morrer tão rapidamente quanto um fogo de gravetos. Ouviram os gritos de advertência dos amigos, e o grito trêmulo e lancinante de Apolonia, mulher de Juan Tomás. Sendo a parente mais próxima, emitia um lamento formal pelos mortos da família.

Apolonia compreendeu que estava com o xale velho e correu para casa a fim de pegar o xale novo. Enquanto ela procurava numa caixa junto à parede, Kino disse calmamente:

—    Deixe de choro, Apolonia. Estamos aqui intactos.

—    Como foi que chegou aqui? — perguntou ela.

—    Não faça perguntas, Apolonia. Vá chamar Juan Tomás e não diga senão a ele que estamos aqui. Isso é muito importante para nós.

Ela parou, sem saber o que fazer com as mãos à frente dela, e disse:

—    Sim, cunhado.

Dai a poucos minutos, Juan Tomás chegou com ela. Acendeu uma vela, foi para onde eles estavam encolhidos num canto e disse:

—    Apolonia, vigie a porta e não deixe ninguém entrar. — Juan Tomás era mais velho e havia assumido a autoridade. — E agora, meu irmão?

—    Fui atacado no escuro — disse Kino. — Na luta, matei um homem.

—    Quem?

—    Não sei. Tudo estava escuro.

—    Tudo isso é a pérola — disse Juan Tomás. — O demônio está nessa pérola. Você já a devia ter vendido, passando o demônio para outras mãos. Talvez ainda possa vendê-la e comprar um pouco de paz.

Kino então disse:

—    Meu irmão, sofri um insulto que me dói mais do que a perda de minha vida. Minha canoa está quebrada na praia, minha casa está queimada e no mato está estendido um morto. Toda a fuga é impossível. Tem de esconder-nos, meu irmão.

E Kino, olhando bem, viu profunda preocupação nos olhos do irmão e lhe impediu uma recusa.

—    Não será por muito tempo. Só até o dia passar e a outra noite chegar. Iremos então.

—    Esconderei você — disse Juan Tomás.

—    Não quero trazer o perigo para você. Sei que sou como uma lepra. Mas irei à noite e você ficará em segurança.

—    Protegerei você — disse Juan Tomás e chamou: — Apolonia, feche essa porta. Não diga nem num sussurro que Kino está aqui.

Passaram o dia em silêncio na escuridão da casa e ouviram os vizinhos falarem deles. Pelas paredes da casa podiam ver os vizinhos remexendo as cinzas para ver se encontravam os ossos. Encolhidos na casa de Juan Tomás, ouviram as exclamações escandalizadas dos vizinhos quando souberam da canoa furada. Juan Tomás se misturava com os vizinhos para evitar suspeitas e apresentava hipóteses e opiniões sobre o que havia acontecido a Kino e a Juana e ao menino. Dizia a um: "Acho que foram para o sul pela costa para fugir do mal que estava com eles". E a outro: "Kino não iria deixar o mar. Talvez tivesse encontrado outra canoa". E acrescentava: "Apolonia está doente de tão abalada que ficou".

E, naquele dia, o vento se levantou para fustigar o Golfo e despedaçou as algas e os sargaços que orlavam a costa. O vento uivou através das cabanas da praia e nenhum barco estava em segurança no mar. Juan Tomás disse então aos vizinhos: "Kino está perdido. Se saiu para o mar, deve estar afogado a uma hora destas". E depois de cada viagem entre os vizinhos, Juan Tomás voltava com alguma coisa emprestada. Levou uma pequena sacola de palha cheia de feijão e uma cabaça com arroz. Conseguiu um vidro de pimenta seca, um saco de sal e também um comprido facão, de 45 centímetros de comprimento e pesado como um pequeno machado, servindo de arma e de instrumento. Quando Kino viu o facão, os seus olhos brilharam. Alisou a lâmina e experimentou a lâmina com o polegar.

O vento gemia sobre o Golfo e embranquecia o mar. Os mangues mergulhavam na água como gado assustado e uma fina poeira arenosa se elevava da terra e pairava sobre o mar como uma nuvem sufocante. O vento espalhou as nuvens e limpou o céu e espalhou a areia da terra como neve.

Quando a noite se aproximava, Juan Tomás conversou muito tempo com o irmão.

—    Para onde vai?

—    Para o norte — disse Kino. — Soube que há cidades no norte.

—    Evite a praia. Estão organizando uma patrulha para procurá-lo na praia. Os homens da cidade vão procurá-lo. Ainda tem a pérola?

—    Tenho. E vou ficar com ela. Poderia ter dado a pérola como um presente, mas agora ela é minha desgraça e minha vida e vou ficar com ela.

Coyotito choramingou e Juana murmurou algumas palavras mágicas para que ele ficasse calado.

—    O vento é bom — disse Juan Tomás. —

Não haverá rastros.

Saíram em silêncio no escuro antes que a lua nascesse. A família se despediu formalmente na casa de Juan Tomás. Juana levava Coyotito nas costas, coberto e sustentado pelo xale, e o menino dormia, com o rosto de lado contra o ombro da mãe. O xale cobria o menino e uma ponta estava passada sobre o nariz de Juana a fim de protegê-la do ar perigoso da noite. Juan Tomás abraçou o irmão e beijou-o nas duas faces.

—    Vá com Deus — disse ele e isso era como uma morte. — Não vai-se desfazer da pérola?

—    A pérola é agora minha alma — disse Kino. — Se abrir mão dela, perderei minha alma. Vá com Deus também.

 

O vento soprava rijo e forte e os bombardeava com pedaços de pau, areia e pedrinhas. Juana e Kino apertaram as roupas de encontro ao corpo e se foram pelo mundo. O céu estava limpo graças ao vento e as estrelas brilhavam muito frias num céu escuro. Caminhavam cuidadosamente e evitaram o centro da vila onde alguém que dormisse numa porta poderia vê-los passar. A vila estava toda trancada para passar a noite e qualquer pessoa que se movesse na escuridão seria notada. Kino seguiu o seu caminho pela fímbria da vila e tomou o rumo do norte, guiando-se pelas estrelas, e achou a arenosa estrada esburacada que levava através da savana até Loreto onde está a milagrosa Virgem.

Kino sentia nos tornozelos a areia arremessada pelo vento e isso o alegrava porque sabia que não haveria rastros. A débil luz das estrelas marcava para ele a estreita estrada através da savana. Sentia atrás dele o rumor dos passos de Juana. Estava andando depressa e em silêncio e Juana tinha de apressar o passo para acompanhá-lo.

Alguma coisa antiga se agitava dentro de Kino.Através do seu medo da noite e dos demônios que enchem a noite, levantava-se uma onda de exultação. Alguma coisa animal se agitava dentro dele, que o tornava atento, cauteloso e perigoso. Era alguma coisa do passado do seu povo que continuava viva nele. O vento estava às suas costas e as estrelas o guiavam. O vento gritava e sacudia o mato, enquanto a família seguia monotonamente, horas e horas. Não passaram por ninguém e não viram ninguém. Afinal, à direita, a lua minguante nasceu e nesse momento o vento caiu e a terra ficou em calma.

Podiam ver bem então a pequena estrada que tinham à frente, profundamente sulcada pelas marcas de rodas. Desaparecido o vento, haveria rastros, mas já estavam a boa distância da vila e talvez as suas pegadas não fossem notadas. Kino caminhava cuidadosamente por dentro de um sulco de roda e Juana o seguia. Um grande carro que fosse para a vila na manhã seguinte apagaria todos os vestígios da sua passagem.

Caminharam durante toda a noite e não mudaram o passo uma só vez. Houve uma hora em que Coyotito acordou, mas Juana passou-o para a frente e embalou-o até que ele dormisse de novo. E os males da noite os cercavam. Os coiotes uivavam e riam dentro do mato e as corujas passavam piando e silvando sobre as suas cabeças. Em certa ocasião um animal grande passou, fazendo estalar os galhos da vegetação rasteira. Kino segurava o cabo do facão e sentia-se protegido.

A música da pérola soava triunfantemente aos ouvidos de Kino e a tranqüila melodia da família lhe servia de fundo. Fundiam-se com Manso rumor dos pés calçados de sandálias na escuridão. Caminharam durante toda a noite e ao nascer do dia Kino procurou ao lado da estrada um lugar abrigado onde pudessem passar o dia. Escolheu um lugar perto da estrada, uma pequena clareira que devia servir de pouso a animais e espessamente escondida pelas mesmas árvores, secas e frágeis que marginavam a estrada. Quando Juana se sentou, preparando-se para amamentar o menino, Kino voltou à estrada. Quebrou um galho e apagou cuidadosamente os rastros no ponto em que haviam saído da estrada. Depois, com a primeira claridade do dia, ouviu o barulho de um carro e foi esconder-se ao lado da estrada até que passou um pesado carro de bois de duas rodas, puxado pelos animais tardos. Logo que o carro de bois desapareceu, Kino voltou à estrada e verificou que os rastros tinham sido apagados. Tornou a apagar as suas pegadas e voltou para onde estava Juana.

Ela lhe deu para comer as broas de milho que Apolonia lhes preparara e, ao fim de algum tempo, dormiu um pouco. Mas Kino ficou sentado no chão, olhando a terra à sua frente. Olhou as formigas que andavam numa pequena coluna perto do seu pé e colocou o pé no caminho delas. As formigas subiram pelo peito do pé e continuaram a sua marcha. Kino deixou o pé ali, olhando-as.

O sol nasceu muito quente. Já não estavam perto do Golfo e o ar era quente e seco a tal ponto que o mato se torcia com o calor, desprendendo um cheiro bom de resina.

Quando Juana acordou, com o sol já bem alto, Kino começou a falar-lhe de coisas que ela já sabia.

—    Cuidado com aquela árvore ali — disse ele, apontando. — Não toque nela porque se tocar e depois botar os dedos nos olhos, ficará cega. Tenha cuidado também com a árvore que sangra. Ê aquela que está ali.

Ela fez gestos de aquiescência e sorriu um pouco dele, porque ela também sabia essas coisas.

—    Seremos seguidos? — perguntou ela. — Acha que nos virão procurar?

—    Certo que virão. Quem nos encontrar, ficará com a pérola. Virão, sim.

—    Talvez os compradores estivessem certos e a pérola não tenha valor — disse Juana. — Talvez tudo tenha sido uma ilusão.

Kino meteu a mão por dentro das roupas e tirou a pérola. Deixou o sol bater nela até que os olhos lhe arderam.

—    Não — disse ele. — Ninguém teria tentado roubar a pérola, se ela não tivesse valor.

—    Sabe quem foi que atacou você? Foram os compradores?

—    Não sei. Não cheguei a ver quem era.

Olhou para a pérola a fim de achar a sua visão.

—    Quando nós afinal a vendermos, vou ter um rifle — disse ele.

Mas quando olhou a superfície luzente da pérola para ver o rifle, viu apenas um corpo escuro encolhido no chão com o sangue a escorrer-lhe do pescoço.

Disse então sem demora:

—    Nós nos casaremos numa grande igreja.

E na pérola viu Juana com o rosto machucado arrastando-se para a casa dentro da noite.

—    Nosso filho vai aprender a ler -— disse ele desesperadamente.

E viu na pérola o rosto de Coyotito, contorcido e febril do remédio que havia tomado.

Kino tornou a guardar a pérola dentro das roupas e a música da pérola se tinha tornado sinistra nos seus ouvidos e se misturava com a música do mal.

A quentura do sol batia na terra e Kino e Juana passaram para a sombra rendilhada das árvores, enquanto andavam por perto passarinhos cinzentos que também procuravam a sombra. Com o calor do dia, a tensão de Kino se desarmou. Cobriu os olhos com o chapéu, passou a manta pelo rosto para proteger-se das moscas e dormiu.

Mas Juana não dormiu. Ficou sentada, imóvel como uma pedra e com o rosto parado. Ainda estava com a boca inflamada no lugar onde Kino batera nela e grandes moscas esvoaçavam em volta do talho no queixo. Mas ela estava imóvel como uma sentinela e, quando Coyotito acordou, deitou-o no chão diante dela e viu-o bater os pés e as pernas, sorrindo e resmungando até que ela sorriu também. Pegou um galhozinho no chão e fez-lhe cócegas, dando-lhe depois água da cabeça que levava na trouxa.

Kino se agitava no sono e deu um grito gutural e as suas mãos se moviam como se estivesse lutando. Gemeu e levantou o corpo, sentando-se de repente, com os olhos bem abertos e as narinas dilatadas. Procurou escutar, mas só ouviu o calor e a distância.

—    Que é? — perguntou Juana.

—    Psiu.

—    Você estava sonhando.

—    Talvez. — Estava inquieto e, quando ela lhe deu uma broa de milho tirada da trouxa, parou no meio da mastigação para escutar. Olhou por cima do ombro, pegou o facão e sentiu-lhe o gume. Quando Coyotito resmungou no chão, Kino disse: — Faça-o ficar calado.

—    Que é que há?

—    Não sei.

Tornou a escutar, com um brilho animal nos olhos. Levantou-se então em silêncio e encaminhou-se quase rente ao chão por dentro do mato, em direção à estrada. Mas não saiu para a estrada. Escondeu-se por trás do galho caído de uma árvore espinhosa, olhando a estrada do lado pelo qual tinha vindo.

Viu-os então em marcha. O seu corpo enrijeceu-se e ele esticou a cabeça para olhar por cima do galho caído. Via ao longe três vultos, dois a pé e um a cavalo. Mas sabia o que eram e um arrepio de medo lhe correu pelo corpo. Mesmo a distância, via que os dois homens que estavam a pé caminhavam devagar, curvados para o chão. Num ponto, um deles parou e olhou para a terra, enquanto o outro foi para junto dele. Eram os rastejadores, homens capazes de seguir o rastro de um cabrito nas montanhas de pedra* Eram sensíveis como cachorros de faro apurado. Ali, ele e Juana poderiam ter saído do sulco da roda e aqueles homens do interior, aqueles caçadores podiam seguir o rastro, lendo o que dizia uma palhinha quebrada ou um montinho desmoronado de areia. Atrás deles, num cavalo, vinha um homem escuro com o nariz coberto por uma manta e levando atravessado na sela um fuzil que brilhava.

Kino ficou rígido como o tronco da árvore. Quase não respirava e olhou para o lugar onde havia varrido os rastros. Até isso podia ser uma mensagem para os rastejadores. Conhecia aqueles caçadores do interior. Numa terra onde havia poucos animais, conseguiam subsistir graças à sua habilidade na caça e naquele momento estavam caçando-o. Andavam como animais e quando encontravam algum sinal curvavam-se sobre ele, enquanto o homem a cavalo esperava.

Os rastejadores começaram a se agitar, como cães de caça que sentem esquentar o faro da presa. Kino tirou vagarosamente o facão e esperou. Sabia o que tinha a fazer. Quando os rastejadores encontrassem o lugar varrido, ele correria para o homem a cavalo e, depois de matá-lo, pegaria o rifle. Era a única chance que tinha. E, quando os três se aproximaram pela estrada, Kino cavou pequenos buracos com os calcanhares das sandálias para poder saltar a qualquer momento, sem que os pés escorregassem. O campo de visão de onde estava era muito reduzido.

Juana, no seu esconderijo, ouviu o barulho dos cascos do cavalo ao mesmo tempo que Coyotito resmungava. Pegou-o mais que depressa, colocou-o debaixo do xale e deu-lhe o peito, fazendo-o calar-se.

Quando os rastejadores se aproximaram, Kino só podia ver-lhes as pernas e as patas do cavalo de onde estava, sob um tronco caído. Viu os pés calosos dos homens, os farrapos com que estavam vestidos e ouviu o ranger do couro da sela e o tilintar das esporas. Os rastejadores pararam diante do lugar varrido pelo galho e ficaram examinando-o, enquanto o homem do cavalo parava. O cavalo virou a cabeça contra a rédea e o bocado lhe rolou debaixo da língua, fazendo-o resfolegar. Os rastejadores voltaram-se então, olhando o cavalo e observando-lhe as orelhas.

Kino não estava respirando, mas as costas se arquearam um pouco e os músculos dos braços e das pernas se retesaram, enquanto o suor lhe brotava no lábio superior. Por um longo momento, os rastejadores se curvaram sobre a estrada e depois prosseguiram em silêncio, olhando o chão à frente e seguidos pelo homem a cavalo. Os rastejadores continuaram, parando, examinando e prosseguindo. Kino sabia que iam voltar. Estavam dando voltas, procurando, esquadrinhando e pensando e acabariam mais cedo ou mais tarde voltando ao seu rastro apagado.

Escorregou para trás e não se deu ao trabalho de apagar o seu rastro. Não era possível.

Havia muitos sinais ali, muitos galhos quebrados, muitos pontos em que os pés se haviam arrastado, muitas pedras fora do lugar. E Kino estava tomado de pânico, um pânico de fuga. Os rastejadores deparariam com o seu rastro com toda a certeza. Não havia outro remédio senão fugir. Afastou-se da estrada, indo rapidamente e em silêncio para o esconderijo onde estava Juana. Olhou para ele querendo saber e ele disse:

—    Rastejadores! Vamos!

E então o desespero e o desânimo tomaram conta dele. O rosto ficou sombrio e os olhos se entristeceram.

—    Talvez fosse melhor deixar que me pegassem.

No mesmo instante, Juana se levantou e pôs a mão no braço dele.

—    Você tem a pérola! — disse ela com voz estridente. — Acha que iriam deixar você vivo para dizer que eles a tinham roubado?

Kino levou desanimadamente a mão ao lugar onde a pérola estava escondida debaixo das roupas.

—    Eles vão achar a pérola — murmurou em voz baixa.

—    Vamos! — disse ela. — Vamos! — Acrescentou, vendo que ele não reagia: — Acha que me deixarão viva? Acha que deixarão o menino vivo?

O incitamento penetrou-lhe finalmente o cérebro. Torceu a boca e os olhos brilharam de novo.

— Vamos — disse ele. — Iremos para as montanhas. Talvez nas montanhas não possam encontrar-nos.

Reuniu apressadamente as cabeças e os saquinhos que levavam. Kino levava uma trouxa na mão esquerda, mas o facão se balançava livremente na mão direita. Abria caminho por dentro do mato para Juana e caminharam apressadamente para o lado do poente, rumo às grandes montanhas de pedra. Iam quase correndo por dentro do mato emaranhado. Era uma fuga em pânico. Kino não procurava mais dissimular a sua passagem. Corria, espalhando pedras com os pés e quebrando galhos reveladores nas árvores à sua frente. O sol alto se derramava pela terra seca a tal ponto que até a vegetação estalava em protesto. Mas à frente deles levantavam-se as montanhas nuas de granito, monólitos erguidos para o céu acima dos destroços da erosão. Kino corria para as alturas, como fazem todos os animais quando são perseguidos.

A terra era desprovida de água, mas coberta de cactos que podiam ter reservas de água e dos grandes arbustos de raízes compridas que podiam ir bem no fundo da terra à procura de um pouco de umidade, subsistindo com muito pouco. No chão, já não havia terra, mas pedras quebradas, lascadas em pequenos cubos ou em grandes lajes, mas de modo algum arredondadas pela água. Pequenos tufos de mato seco apareciam entre as pedras. Tinham brotado com alguma chuvarada. Cresciam um pouco, espalhavam as sementes e morriam. Lagartos olhavam a família passar e rodavam as cabeças de dragões. De vez em quando um grande coelho, perturbado na sombra em que estava, saía correndo para esconder-se atrás da primeira pedra. O calor castigava a região deserta, mas à frente as montanhas de pedra pareciam frescas e acolhedoras.

E Kino fugia. Sabia do que ia acontecer. Pouco mais adiante na estrada, os rastejadores perceberiam que tinham perdido o rastro e voltariam, olhando e examinando, e dentro em pouco encontrariam o lugar onde ele e Juana haviam descansado. Dali em diante, seria muito fácil para eles — as pedrinhas, as folhas caídas, os galhos fora do lugar e os lugares onde o pé havia escorregado. Kino podia vê-los, seguindo o rastro, com um pouco de ansiedade, acompanhados pelo homem a cavalo, meio desinteressado e levando o seu rifle. O que ele ia fazer seria depois, porque não pretendia levar ninguém de volta. A música do mal era bem forte naquele momento nos ouvidos de Kino, juntando-se ao gemido do calor e ao chocalhar das cascavéis. A música não era forte e dominante, mas secreta e peçonhenta, ganhando acompanhamento e ritmo com o pulsar do seu coração.

O caminho começou a subir e ao mesmo tempo as pedras ficaram maiores. Mas Kino já tinha colocado alguma distância entre sua família e os rastejadores. E então, depois da primeira ladeira, descansou. Subiu a um grande rochedo e voltou-se para olhar a região que palpitava sob o calor, mas não pôde ver os seus inimigos, nem mesmo o homem a cavalo passando por dentro do mato. Juana se agachara à sombra do rochedo. Levou a garrafa de água à boca de Coyotito que, com a língua seca, bebeu avidamente. Olhou para Kino quando ele voltou. Viu-o olhar para os tornozelos dela, cortados e arranhados pelas pedras e pelo mato, e escondeu-os prontamente embaixo da saia. Depois, estendeu a garrafa de água para ele, mas Kino sacudiu a cabeça. Os olhos dela brilhavam no rosto cansado. Kino umedeceu com a língua os lábios gretados.

—    Juana, irei adiante e você se esconderá. Farei com que me sigam pelas montanhas. Quando eles passarem, você irá para o norte, para Loreto ou Santa Rosália. Depois, se puder me livrar deles, irei para junto de você. Ê o único meio seguro.

Ela o olhou bem nos olhos por um momento e disse:

—    Não. Vamos com você.

—    Posso ir mais depressa sozinho — disse ele asperamente. — Vai fazer o menino correr mais perigo, se for comigo.

—    Não.

—    É preciso. É uma coisa bem pensada e essa é a minha vontade.

—    Não.

Ele procurou então no rosto dela alguma fraqueza, de medo ou de indecisão, mas não encontrou. Os olhos dela brilhavam muito. Kino encolheu os ombros, sabendo que nada podia mais fazer. Mas ela lhe tinha dado força e na fuga não havia mais pânico.

À medida que subiam, tudo mudava rapidamente. Havia grandes projeções de granito com profundas fendas e Kino caminhava sobre a pedra, que não deixava vestígios, sempre que podia, saltando de uma pedra para outra. Sabia que sempre que os rastejadores lhe perdessem o rastro ficariam andando em círculo e perdendo tempo até voltar a encontrá-lo. Por isso, não ia mais em linha reta para as montanhas. Movia-se em ziguezague e às vezes tomava para o sul, deixando ali um sinal, e depois voltava para as montanhas sobre a pedra nua. E o caminho era cada vez mais escarpado, fazendo-o arquejar um pouco.

O sol descia para o cimo denteado de pedra das montanhas e Kino se orientava por uma escura abertura na crista da serra. Se houvesse água nas montanhas, só podia ser ali onde ele via, mesmo de longe, um pouco de verdura. E se houvesse alguma passagem para o outro lado das montanhas só podia ser por ali. Era perigoso, porque os rastejadores poderiam ter a mesma idéia, mas a garrafa de água quase vazia não permitia dar muita atenção a isso. E enquanto o sol baixava, Kino e Juana subiram penosamente a escarpada encosta rumo à abertura.

No alto das montanhas de pedra cinzenta, sob um pico altaneiro, uma pequena nascente borbulhava numa cavidade da pedra. Era alimentada pelas neves conservadas na sombra durante o verão, mas de vez em quando secava por completo deixando no fundo apenas pedras nuas e algas secas. Mas quase sempre jorrava, fresca, limpa e agradável. Nas ocasiões em que caíam pesadas chuvas, a fonte podia virar um riacho e fazer uma coluna de água branca rolar pela abertura nas montanhas, mas quase sempre era apenas um filete de água. Borbulhava dentro de um pequeno tanque e ia cair, trinta metros abaixo, em outro tanque e continuava assim até chegar aos cascalhos do platô, onde desaparecia de todo. De qualquer maneira, quando ali chegava, quase nada restava, pois toda a vez que caia de uma escarpa o ar sedento absorvia-a e ela se espalhava dos tanques para a vegetação seca. Os animais vinham de muito longe beber nos pequenos tanques. Os cabritos e os veados, os pumas e os roedores — todos iam beber água ali. E os pássaros que passavam o dia na savana vinha à noite para os pequenos tanques que eram como degraus na abertura da montanha. Ao lado do pequeno riacho, sempre que havia um pouco de terra para segurar as raízes, cresciam moitas de plantas, uvas silvestres e pequenas palmeiras, fetos, hibiscos e altas ervas que levantavam penachos finos das folhas espinhosas. E nos tanques viviam rãs e pequenos bichos que nadavam nó fundo. Tudo o que gostava de água ia para lá. Os felinos levavam para ali as suas presas e espalhavam penas e lambiam a água por sobre os dentes ensangüentados. Os pequenos tanques eram fontes de vida graças à água e fontes de morte também por causa da água. O degrau mais baixo, onde a água se juntava antes de cair da altura de trinta metros e desaparecer nos cascalhos, era uma pequena plataforma de pedra e areia. Só um fio de água caía no tanque mas era bastante para mantê-lo cheio e para conservar os fetos verdes na borda do penhasco. As uvas silvestres se estendiam pela parede da montanha e toda a espécie de planta achava conforto ali. Os rios temporários tinham formado uma pequena praia de areia à beira do tanque, onde crescia na areia úmida o agrião verde. A praia era cortada, riscada e afundada pelas patas dos animais que tinham ido ali beber e caçar.

O sol já havia passado para o outro lado das montanhas de pedra quando Kino e Juana galgaram a escarpada encosta e chegaram afinal à água. Podiam dali olhar além do deserto batido pelo sol, o Golfo azul ao longe. Chegaram exaustos ao tanque e Juana, ficando de joelhos, primeiro lavou o rosto de Coyotito e, depois, encheu a garrafa e lhe deu um gole de água. Mas o menino estava cansado e nervoso, chorando baixinho. Juana deu-lhe então o peito e ele se aconchegou a ela. Kino bebeu longa e sequiosamente a água do tanque. Depois, estendeu-se por um momento ao lado da água, relaxando todos os músculos e vendo Juana amamentar o menino. Ao fim de algum tempo, levantou-se e foi à beira da escarpa de onde a água caía e examinou cuidadosamente a distância. Firmou os olhos num ponto e ficou rígido. Lá embaixo, muito longe, via os dois rastejadores. Eram pouco mais do que pontinhos ou formigas e atrás deles vinha uma formiga maior.

Juana que o observava viu as costas se aprumarem.

— Estão longe? — perguntou ela, prontamente.

—    Chegarão aqui à tardinha, — disse Kino. Olhou para o alto pela abertura por onde a água descia. — Temos de ir para oeste.

Examinou com os olhos o paredão de pedra atrás da abertura. Dez metros acima, na parede cinzenta, viu uma série de pequenas cavernas abertas pela erosão. Tirou as sandálias e subiu até elas, segurando-se com os pés à pedra nua, e olhou para as cavernas. Não eram muito grandes, mas se abriam um pouco para baixo e para trás. Kino entrou na maior, deitou-se e ficou certo de que não poderia ser visto de fora. Voltou prontamente para onde estava Juana.

—    Você tem de ir para lá. Pode ser que não nos encontrem ali.

Sem discutir, Juana encheu a garrafa de água até à borda e Kino ajudou-a a subir até à caverna. Depois, foi buscar os embrulhos de comida e passou-os para ela. Juana se sentou na entrada da caverna a observá-lo. Viu que ele não procurava apagar os rastros na areia. Em vez disso, subiu pela parte da encosta coberta de vegetação ao lado da água, agarrando-se aos fetos e às uvas silvestres. Quando subiu cerca de trinta metros até à escarpa mais alta, desceu de novo. Olhou cuidadosamente para o liso paredão de rocha perto da caverna e viu que não havia traços da sua passagem. Afinal, subiu e entrou na caverna ao lado de Juana.

—    Quando subirem — disse ele, — fugiremos, voltando para as planícies. Só tenho medo é de que o menino chore. Veja se ele não chora.

— Não vai chorar — disse ela e levantou o rosto do menino para ela e olhou-o bem nos olhos. Coyotito olhou solenemente para ela.

— Ele sabe - disse Juana.

Kino estava deitado na entrada da caverna, com o queixo nos braços cruzados e viu a sombra azul da montanha mover-se pelo deserto lá embaixo até chegar ao Golfo e o longo crepúsculo das sombras cair sobre a terra.

Os rastejadores demoraram a chegar, como se estivessem tendo dificuldade com o rastro que Kino deixara. Já estava quase escuro quando chegaram afinal ao pequeno tanque. E os três estavam a pé porque um cavalo não podia galgar a íngreme encosta. Eram três vultos mínimos perdidos no crepúsculo. Os dois rastejadores correram pela pequena praia e seguiram o rastro de Kino até ao paredão de pedra antes de beberem um gole de água. O homem do rifle sentou-se para descansar. Os rasteja-dores se agacharam ao lado dele e no escuro as pontas dos seus cigarros brilhavam. Kino viu então que estavam comendo. O murmúrio de suas vozes chegava até ele.

Por fim, a noite caiu de todo, profunda e negra na abertura da montanha. Os animais que chegavam ao tanque para beber água sentiam o cheiro de homens ali e voltavam para a escuridão.

Ouviu um murmúrio às suas costas. Juana estava pedindo que Coyotito ficasse calado. Kino ouviu o menino choramingar e pelo som abafado ficou sabendo que Juana cobrira a cabeça dele com o xale.

Lá embaixo, na praia, um fósforo se acendeu e à sua chama breve Kino viu que dois dos homens estavam dormindo encolhidos como cachorros enquanto o terceiro vigiava e viu o brilho do fuzil à luz do fósforo.

Kino recuou em silêncio dentro da caverna. Os olhos de Juana eram duas brasas. Kino rastejou até junto dela e disse com os lábios bem perto do rosto de Juana:

—    Há um meio.

—    Mas eles podem matar você.

—    Se eu chegar primeiro ao homem do rifle, não. Se eu chegar primeiro a ele, tudo estará certo. Os outros dois estão dormindo.

—    Vão ver as suas roupas brancas mesmo na escuridão.

—    Não. E tenho de ir antes que a lua apareça.

Procurou uma palavra de carinho para dizer e desistiu. Murmurou apenas:

—    Se me matarem, fique aqui em cima em silêncio. Quando eles saírem, desça e vá para Loreto.

A mão dela tremeu um pouco, segurando-lhe o pulso.

—    Não há remédio — disse ele. — É o único jeito. Quando amanhecer, eles nos descobrirão.

A voz dele tremeu um pouco.

—    Vá com Deus.

Kino olhou fixamente para ela e Juana viu perfeitamente os seus grandes olhos. Tateou com a mão, encontrou o menino e por um momento descansou a palma da mão na cabeça de Coyotito. Depois, levantou a mão e tocou o rosto de Juana, que prendeu a respiração.

Diante do céu na entrada da caverna, Juana viu que Kino estava tirando as roupas brancas, que, por mais sujas e velhas que estivessem, seriam muito visíveis na noite escura. A sua pele morena lhe daria maior proteção. Viu depois que ele pegava no pescoço o cordão com o amuleto e amarrava nele o cabo do facão, que ficou pendurado à frente dele deixando-lhe as mãos livres. Não voltou mais para onde ela estava. Por um momento, ficou encolhido na entrada da caverna em silêncio e, depois, desapareceu.

Juana se moveu para a entrada da caverna e olhou. Espiava do alto da montanha como uma coruja e o menino dormia sob a manta às suas costas, com o rosto descansando de lado no pescoço e nos ombros dela. Sentia-lhe o hálito quente na pele e murmurou a sua misturo de oração e de magia, lançando ave-marias e pedidos antigos de intercessão contra as coisas negras e inumanas que se escondiam na noite.

A escuridão parecia um pouco menor quando ela olhou e do lado do nascente havia uma leve claridade, no lugar onde a lua iria aparecer. Lá embaixo, via o cigarro do homem de vigia.

Kino descia o paredão de pedra como um lagarto vagaroso. Tinha virado o cordão do pescoço para trás, de modo que o facão lhe pendesse das costas e não batesse na pedra. Os dedos abertos agarravam a montanha e os pés nus procuravam pelo tato um ponto de apoio. Até o peito se colava à pedra para que ele não escorregasse. O menor ruído, uma pedrinha que rolasse ou um suspiro, até um deslizar da carne sobre a pedra daria o alarma aos homens que estavam lá embaixo. Mas a noite não era silenciosa. As rãs das árvores que viviam perto do tanque cantavam como passarinhos e o estridente canto metálico das cigarras enchia aquele ponto da montanha. E Kino tinha na cabeça a sua música, a música do inimigo, baixa e compassada, quase esmaecida. A Canção da Família é que se havia tornado forte, feroz e felina como o rugido de um puma. A música da família era bem viva e o impelia para o torvo inimigo lá embaixo. As cigarras pareciam ter aprendido a melodia e as rãs cantavam frases inteiras delas.

E Kino descia como uma sombra pelo liso paredão da montanha. Um pé nu se movia alguns centímetros e os dedos tocavam a pedra e se firmavam. Então o outro pé se movia alguns centímetros. A palma da mão descia um pouco. Era então a vez da outra mão. E todo o corpo, sem parecer mover-se, tinha-se movido. Kino estava de boca aberta para que nem a sua respiração fizesse barulho, porque ele sabia que não era invisível. Se o vigia, sentindo algum movimento, olhasse para o lugar escuro contra a pedra que era o seu corpo, poderia vê-lo: Kino tinha de mover-se tão vagarosamente que não atraísse o olhar do vigia. Levou muito tempo para chegar embaixo e encolher-se atrás de uma palmeirinha. O coração lhe batia no peito e as mãos e o rosto estavam cobertos de suor. Ficou ali tomando longamente a respiração para acalmar-se.

Apenas uns cinco metros o separavam do inimigo e ele procurou lembrar-se do terreno. Haveria alguma pedra que pudesse fazê-lo tropeçar quando avançasse? Apertou as pernas para impedir as cãibras e viu que os músculos latejavam depois da grande tensão. Olhou para o nascente apreensivamente. A lua não tardaria a aparecer e ele tinha de atacar antes. Podia ver o vulto do vigia mas os homens que dormiam estavam mais abaixo e não era possível vê-los. Era o vigia que Kino tinha de achar — prontamente e sem hesitação. Tirou o cordão do pescoço e desatou o nó com que prendera o cabo do facão.

Era muito tarde porque quando foi levantando o corpo viu a casca prateada da lua elevar-se no horizonte do nascente e teve de voltar para trás da palmeira.

Era uma lua velha e nos seus últimos arrancos, mas iluminava bem a montanha e Kino viu perfeitamente o vigia sentado na pequena praia ao lado do tanque. Olhava para a lua e então acendeu outro cigarro e a luz do fósforo lhe iluminou o rosto por um instante. Não era possível esperar mais. Quando o vigia virasse a cabeça, Kino tinha de pular. As pernas estavam esticadas como molas retesadas.

Ouviu então lá em cima um leve murmúrio. O vigia virou a cabeça para escutar e se levantou. Um dos homens que dormiam acordou e perguntou:

—    Que foi?

—    Não sei — disse o vigia. — Parecia um gemido, um choro, quase humano. .. como de uma criança...

—    Quem sabe? — disse o outro. — Talvez algum coiote fêmea com cria. Filhote de coiote chora como criança.

O suor rolava da testa de Kino, caindo-lhe nos olhos. Ouviu-se de novo o murmúrio e o vigia olhou pelo paredão da montanha na direção da caverna.

—    Talvez seja um coiote — disse ele e Kino ouviu o estalo seco do rifle engatilhado. — Se fôr um coiote, vai ficar calado.

Kino estava no meio do pulo quando o tiro soou e ele viu o clarão do cano. O facão foi brandido com toda a força e acertou com um barulho surdo. Cortou o pescoço e rasgou a carne até ao peito. Kino se transformou então numa terrível máquina. Agarrou o rifle no mesmo instante em que puxava o facão. Era uma máquina pela força, pela precisão dos movimentos e pela velocidade. Virou-se e abriu a cabeça do homem sentado como se fosse um melão. O terceiro homem saiu correndo de bruços como se fosse um caranguejo. Passou por dentro do tanque e começou a subir a montanha no lugar por onde a água caía. Meteu as mãos e os pés nos galhos das uvas silvestres, gritando e gemendo enquanto tentava subir. Mas Kino se havia tornado tão frio e mortífero como uma lâmina de aço. Acionou deliberadamente a alavanca do seu rifle, fez pontaria e atirou. Viu o inimigo dar um salto para trás e cair no tanque. Kino entrou na água. Viu à luz da lua os olhos alucinados de pavor e atirou entre eles.

Depois disso, Kino sentiu-se um pouco incerto. Havia alguma coisa errada. Um sinal estava tentando atingir-lhe o cérebro. As rãs e as cigarras estavam em silêncio. E o cérebro de Kino ficou livre então da sua concentração rubra e ele reconheceu o som — o agudo, triste e desesperado grito que vinha da pequena caverna na encosta da montanha, o grito da morte.

Todo o mundo em La Paz ainda fala no regresso da família. Pode ser que ainda haja algum velho que o tenha visto, mas, os que souberam de tudo por intermédio dos pais ou dos avós, não o esquecem também. Foi uma coisa que aconteceu a todo mundo.

Foi ao fim de uma tarde de sol dourado que os garotinhos começaram a correr agitadamente pela vila dizendo que Kino e Juana estavam de volta. Não houve quem não corresse pára vê-los. O sol estava para desaparecer atrás deles e as suas sombras compridas se projetavam pelo chão. Talvez fosse isso que causou mais forte impressão em todos.

Os dois chegaram à vila pela estrada esburacada que ia para o interior e não estavam caminhando em fila, Kino na frente e Juana atrás, de acordo com o costume, mas ao lado um do outro. Kino tinha um rifle nos braços e Juana carregava o seu xale às costas como se fosse um saco. Havia nele alguma coisa imóvel e pesada. O xale estava manchado de sangue seco e se balançava um pouco ao ritmo do seu passo. O rosto de Juana estava carrancudo de fadiga e do esforço com que ela combatia a fadiga. E os olhos bem abertos olhavam para dentro dela mesma. Estava tão remota e tão afastada de tudo como o céu. Kino tinha os lábios apertados e os maxilares cerrados e todos disseram que levava o medo com ele e era tão perigoso como uma tempestade desfeita. Os que os viram disseram depois que eles pareciam muito longe de tudo o que era humano. Haviam passado através da dor e tinham saído do outro lado. Havia quase uma proteção mágica em torno deles. As pessoas que haviam corrido para vê-los deixaram que passassem e não lhes disseram nada.

Kino e Juana passaram pela vila como se não estivessem ali. Não olhavam para a direita, nem para a esquerda, nem para cima, nem para baixo, com os olhos fitos à frente. As pernas se moviam um pouco em arrancos, como se eles fossem bonecos de madeira. Levavam em torno de si colunas de medo negro. E, enquanto passavam pela vila de pedra e cal, os ricos olhavam para eles das suas janelas gradeadas, os criados olhavam pelos portões entreabertos e as mães seguravam contra as saias os rostos dos filhos assustados. Kino e Juana atravessaram passo a passo a vila de pedra e cal e chegaram às cabanas da praia, onde os vizinhos abriram caminho para que passassem. Juan Tomás levantou a mão para cumprimentar mas não fez o cumprimento e continuou incertamente com a mão no ar.

Aos ouvidos de Kino, a Canção da Família era tão vigorosa quanto um grito. Era imune e terrível e a sua melodia se havia tornado um grito de guerra. Pasaram pelo quadrado incendiado onde tinha estado a casa deles e nem sequer a olharam. Tomaram a direção do mar, atravessaram a linha de vegetação e chegaram à areia e nem olharam para a canoa furada de Kino.

E quando chegaram à beira da água, pararam e olharam para o Golfo. Kino deixou então o rifle no chão, procurou nas suas roupas e tirou a grande pérola. Olhou para a sua superfície e viu que estava cinzenta e ulcerosa. Rostos perversos espiavam-no dentro dela e viu o fogaréu do incêndio. Viu ainda*na pérola os olhos apavorados do homem do tanque. E viu na superfície da pérola Coyotito estendido no chão da caverna com o alto da cabeça arrancado por uma bala. E a pérola era feia; era cinzenta como um tumor maligno. E Kino ouviu a música da pérola, deformada e demente. A mão de Kino tremia um pouco e ele se voltou para Juana e lhe estendeu a pérola. Ela estava ainda ao lado dele, com a coisa morta que levava no xale. Olhou para a pérola na mão de Kino e, depois, voltou os olhos para ele e disse brandamente:

— Não. Você.

E Kino estendeu o braço para trás e jogou a pérola com toda a sua força. Kino e Juana viram-na passar, cintilando aos raios do sol poente. Viram-na cair dentro da água bem longe e ficaram muito tempo lado a lado, olhando para o lugar onde a pérola havia caído.

E a pérola desceu pela água verde e pousou no fundo. Os braços longos das algas ondularam, chamando-a. As luzes refletidas na sua superfície eram verdes e belas. No alto, a superfície da água era um espelho verde. E a pérola descansava no fundo do mar. Um caranguejo que passava levantou uma pequena nuvem de areia. Quando a areia assentou, a pérola tinha desaparecido.

E a música da pérola passou a ser um sussurro e desapareceu.

 

                                                                                John Steinbeck  

 

                      

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