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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PEROLA SECRETA / Mary Balogh
A PEROLA SECRETA / Mary Balogh

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Uma fria noite na Londres Vitoriana, Adam Kent, Duque de Ridgeway, decide contratar os serviços de Fleur, uma jovem prostituta. Depois de fazer o amor em uma sórdida estalagem, separam-se, mas Adam não pode tirar da cabeça a jovem, estranhamente inocente e educada, certamente uma moça de classe alta que caiu em desgraça. Fleur está a beira do desespero, caiu o mais baixo que podia imaginar. Mas depois de seu primeiro e único cliente, tem um golpe de sorte e a contratam para cuidar da filha de uma família nobre. Não imagina que o pai da menina não é outro a não ser o Adam, que decidiu mantê-la perto dele. A relação que começou de forma mais inconfessável se tornou agora em um jogo perigoso de desejos e silêncios.

ELA VENDEU-LHE SEU CORPO...
Fleur havia chegado ao próprio inferno naquela noite em que vendeu sua virgindade a um estranho. Desde que teve que escapar de sua casa acusada injustamente de um crime que não cometeu, o mundo elegante e confortável, na qual ela cresceu se tornou em um pesadelo nas ruas escuras. Sofreu humilhação e fome. Mas o diabo se torna seu salvador, quando o mesmo duque que comprou seus serviços lhe oferece um trabalho digno, protege-a e a acolhe em sua mansão. A jovem não pode evitar que nasça em seu interior uma crescente atração por esse homem rude e sedutor, mas na mesma casa aonde residem sua mulher e sua família, seu amor parece impossível.

...E CONQUISTOU SEU CORAÇÃO.
Adam acreditava que já não havia nada na vida que pudesse lhe devolver a alegria. Certamente, nem sua própria imagem cheia de cicatrizes. Dado como morto na guerra, perdeu todas suas propriedades e também a sua noiva, Sybil, para seu irmão. Conseguiu recuperar ambas, mas jamais pôde ganhar o amor de Sybil. Sua amargura o levou a perder-se entre as prostitutas de Londres, mas, de uma forma inesperada, ali encontrou sua tábua de salvação. Ele conseguiu arrancar Fleur de um destino que não merecia e levá-la para sua própria casa. Mas para poder amá-la, teria que superar uma situação impossível e curar algumas feridas muito profundas.

 

 

 


 

 

 


Capítulo 1

A multidão que havia fora do teatro Drury Lane se dispersou na noite. A última carruagem, com seus dois ocupantes, desapareceu na rua. Os poucos que chegaram a pé há muito tinham abandonado o lugar.
Parecia que só havia um cavalheiro, um homem alto, com casaco escuro e chapéu. Ele não quis ir na última carruagem que partiu. Dissera a seus amigos que preferia ir caminhando para casa.
Mas tampouco era a única pessoa que restava na rua. Ao olhar em volta, seus olhos encontraram uma figura de pé encostada no prédio, em silêncio, e vestida com uma capa um pouco mais escura do que as sombras da noite: uma prostituta de rua que as companheiras mais afortunadas ou atraentes a deixaram para trás e que agora parecia ter perdido qualquer oportunidade de conseguir um cliente elegante naquela noite.
Ela não se movia, e na escuridão era impossível saber se ela estava olhando-o. Poderia ter se aproximado até ele rebolando. Poderia ter saído das sombras e sorrir. Poderia tê-lo chamado, e oferecer-se com palavras. Poderia ter se afastado rapidamente para encontrar alguém mais promissor. Mas não fez nenhuma dessas coisas.
E ele ficou de pé olhando-a, debatendo-se entre empreender a caminhada solitária para casa que tinha em mente ou participar de uma noite de diversão inesperada. Ele não via a mulher com clareza. Não sabia se era jovem, atraente, bonita, limpa... qualquer das qualidades pelas quais valeria a pena mudar de planos. Mas possuía uma quietude silenciosa que era intrigante por si só.
Ao se aproximar ele percebeu que o estava olhando, com olhos que na sombra eram escuros. Usava capa, mas não chapéu. E o cabelo estava cuidadosamente recolhido na nuca. Era impossível saber quantos anos tinha ou se era bonita. A garota não disse nada e não se moveu. Não mostrava nenhuma artimanha, nem palavras sedutoras.
O cavalheiro parou a poucos passos dela. Ele percebeu que lhe chegava ao ombro, era um pouco mais alta que a média, e de que era de compleição magra.
—Quer trabalhar esta noite? — Perguntou ele.
A garota assentiu com a cabeça quase imperceptivelmente.
—E o preço?
Ela hesitou e disse uma cifra. Ele a observou em silêncio por um momento.
—E o lugar é próximo?
—Eu não tenho para onde ir — murmurou ela.
Sua voz era suave, sem a dureza ou o acento cockney[1] que esperava. Olhou-a entrecerrando os olhos. Deveria empreender a caminhada para casa, com seus pensamentos como única companhia tal como planejara.
Nunca foi próprio dele copular com uma prostituta de rua na entrada de uma loja.
—Há uma estalagem na rua seguinte — disse ele, e se voltou para caminhar nessa direção.
Ela começou a caminhar a seu lado. Não pronunciou uma única palavra. A garota não fez nenhum movimento para segurá-lo pelo braço. E ele tampouco se ofereceu.
A jovem o seguiu entre a multidão até a lotada e barulhenta estalagem Bull and Horn e permaneceu em silencio a seu lado enquanto pedia um quarto para passar a noite no andar de cima e pagava adiantado.
A prostituta o seguiu escada acima. Seus passos eram tão delicados que ele virou a cabeça antes de chegar no topo para se certificar que ela estava lá. Ele permitiu que ela o precedesse para o quarto e fechou e trancou a porta atrás de si, colocando a única vela que trouxera em uma arandela, mas o ruído da taverna apenas diminuía na distância.
A prostituta estava de pé no meio do quarto, olhando para ele. Ela era jovem, ele viu, embora não uma menina. Em outra época devia ter sido bonita, mas agora seu rosto estava magro e pálido, os lábios secos e rachados, olhos castanhos cercado por sombras escuras. O cabelo, de um vermelho apagado, não tinha brilho nem corpo. Ela o usava preso num coque simples na nuca.
O cavalheiro tirou a cartola e o casaco e viu que os olhos da garota se deslocavam por seu rosto e ao longo da feia cicatriz que começava no canto de seu olho esquerdo, cruzava sua face até o canto da boca e continuava até o queixo. Ele sentiu toda sua feiura: o cabelo rebelde e quase negro, os olhos escuros, o nariz grande e aquilino. E ficou incomodado por sentir-se feio ante o olhar de uma prostituta comum.
Ele atravessou o quarto, desabotoou o casaco cinza claro, que ela não fez nenhum movimento para tirá-lo e jogou-o de lado. Curiosamente, a garota usava um vestido de seda azul com mangas compridas, decote modesto, cintura alta e sem adornos. Mas, embora limpo, o vestido estava desbotado e amarrotado. O cavalheiro pensou que devia ser um presente de um cliente satisfeito algumas semanas antes, e que ela o usava desde então.
Ela levantou o queixo alguns centímetros, e o olhou, sem desviar o olhar.
—Tire sua roupa— ordenou ele, nervoso com o seu silêncio, tão diferente de outras prostitutas que conheceu em sua juventude e durante os anos que passou no exército.
Sentou-se em uma cadeira dura próximo a lareira vazia e a observou com os olhos entrecerrados.
A jovem permaneceu imóvel por um momento, mas depois começou a despir-se, dobrando cada peça de roupa ao tirar e colocá-la no chão a seu lado. Ela não estava mais prestando atenção nele, mas sim concentrada no que estava fazendo. Só quando chegou a camisa, a última peça restante, titubeou e olhou para o chão. Mas a tirou também, puxando-a por cima da cabeça, dobrando-a como fizera com as outras peças e deixando-a cair no topo da pilha.
Ela colocou os braços livremente ao lado e olhou para ele novamente, seus olhos fixos e inexpressivos como antes. Ela era muito magra. Demasiadamente fina. E ainda havia alguma coisa nas pernas longas e delgadas e na forma de seus quadris, em sua cintura estreita e nos seios túrgidos e firmes que excitou o cavalheiro que a observava. Pela primeira vez se alegrou de ter decidido contratar seus serviços. Havia passado muito tempo sem estar com ninguém.
—Solte o cabelo — ele pediu.
E ela ergueu os braços finos para fazê-lo e inclinou-se para colocar os grampos com cuidado ao lado da pilha de roupas. Seu cabelo caiu em torno de seus ombros, rosto e meio das costas quando ela endireitou-se novamente. Era um cabelo limpo, mas sem vida, nem vermelho nem loiro. Levantou uma mão para afastar uma mecha de cabelo da boca sem deixar de olhá-lo.
Ele sentiu uma invasão de luxúria.
—Deite-se na cama — disse, em seguida, levantou-se e começou a se despir.
A prostituta desfez a cama com delicadeza e se colocou em um extremo, com as pernas juntas, os braços de cada lado, as palmas das mãos contra o colchão. Ela não se cobriu. Ela virou a cabeça e o observou.
Ele se despiu completamente. Desprezou tentar esconder-se de uma prostituta, tentar ocultar as marcas roxas dos ferimentos que desfiguraram o lado esquerdo e perna esquerda, que mesmo em um espelho o repugnavam, e que deviam repelir qualquer estranho que não as esperasse. Os olhos da jovem se dirigiram para as marcas e em seguida voltaram tranquilamente para o rosto dele.
Aquela puta tinha coragem. Ou talvez ela não pudesse dar-se ao luxo de perder até mesmo o mais repulsivo cliente antes que tivesse ganho seu pagamento. Ele ficou furioso. Irritado consigo mesmo por voltar a se prostituir, algo que havia deixado de fazer anos atrás. Zangado por sentir-se complexado e envergonhado diante de uma prostituta. E irritado com ela por controlar tanto seus sentimentos e nem sequer mostrar sua revolta com sua aparência. Se tivesse feito, poderia tê-la utilizado a sua conformidade .
E o pensamento o revoltava e irritou ainda mais.
Ele se inclinou sobre ela e pegou-a pelo braço, movendo-a para que ela ficasse cruzada na cama em vez de ao longo dela. Agarrou-a pelos quadris e a empurrou para frente até que seus joelhos ficaram dobrados de um lado da cama e os pés apoiados no chão.
Deslizou as mãos entre as coxas da garota e abriu-lhe as pernas. Abriu-as ainda mais com os joelhos, flexionando as pernas para apoiá-los na cama. Ele introduziu os dedos entre as coxas e abriu-a com seus polegares.
Ela olhou para baixo, observando o que ele fazia.
Ele posicionou-se e montou-a com um impulso de maneira intensa e profunda.
Sentiu o impacto que produzia no mais fundo da garganta da jovem e viu como mordia ambos os lábios ao mesmo tempo que fechava os olhos. Sentiu todos os músculos da garota tensos, na defensiva.
Ele esperou, situado acima dela, enterrado dentro dela, observando-a com os olhos baixos até que a garota respirou fundo e obrigou seus músculos a relaxar. Seus olhos estavam fixos nos dele. Ele deslizou as mãos por baixo dela, segurando-a contra o colchão enquanto se inclinava sobre ela e desfrutava do prazer para o qual a contratou. Ela permaneceu quieta e relaxada enquanto ele se movia rápida e profundamente em seu interior, com os braços estendidos na cama, aos lados, e o olhar que percorria a cicatriz de seu rosto para então voltar a fixar-se em seus olhos. Em uma ocasião baixou o olhar para observar o que ele fazia.
Seu cabelo estava espalhado sobre o colchão.
Ele fechou os olhos ao descarregar em seu interior, e inclinou a cabeça por cima dela até que sentiu a respiração da jovem contra seu cabelo. E junto com o relaxamento abençoado sentiu a pontada de um arrependimento indescritível.
Ele se endireitou e se separou do corpo da jovem. Virou-se para o móvel colocado aos pés da cama aonde repousava uma bacia e verteu água fria do jarro na bacia quebrada, mergulhou um pano nele, escorreu o excesso de água e voltou para a cama.
—Aqui.— segurando o pano. A prostituta só se moveu, apenas para juntar as pernas. Continuava com os pés apoiados no chão e os olhos abertos. — Se Limpe com isto.
Ele olhou para suas coxas manchadas de sangue.
Ela levantou uma mão para pegar o pano, mas estava tremendo tão fora de controle que ela abaixou-a para a cama novamente e virou a cabeça para um lado, fechando os olhos. Ele pegou a mão dela, colocou-a com a palma da mão voltada para cima e deu-lhe o pano.
—Você pode se vestir quando tiver terminado — disse ele, lhe deu as costas para vestir-se.
Os débeis ruídos que ouviu atrás indicavam que ela havia recuperado o controle e estava fazendo o que lhe dissera. Mas quando finalmente se voltou, encontrou-a tentando abotoar os botões da capa, mas as mãos tremiam muito. Ele percorreu os poucos passos que os separavam, afastou-lhe as mãos e fechou os botões.
Por cima do ombro viu que o lençol da cama estava coberto de sangue. Ele a tinha deflorado.
—Quando você comeu pela última vez? — Ele perguntou.
A garota se concentrou em colocar a capa corretamente.
—Quando eu faço uma pergunta, espero resposta — ele insistiu bruscamente.
—Dois dias atrás — murmurou ela.
—E o que você tem comido então?
—Um pouco de pão.
—E hoje você decidiu se tornar uma prostituta?
—Não. Ontem. Mas ninguém me quis.
—Eu não estou surpreso. Você não tem ideia de como se vender. — Ele disse.
Ele pegou o chapéu, abriu a porta e saiu do quarto. A jovem o seguiu. Ele parou no pé da escada e olhou para a taverna barulhenta. Havia uma mesa vazia na extremidade distante. Ele se virou, pegou a jovem pelo braço e atravessou a sala em direção a mesa. Qualquer cliente que estivesse em seu caminho se fixava nele, em sua roupa elegante e em seu rosto duro e com cicatrizes, e imediatamente se afastava de lado.
Ele sentou a garota de costas para a sala e ocupou uma cadeira em frente dela. Em seguida ordenou a garçonete que os seguiu até a mesa e estava fazendo reverências que trouxesse um prato de comida e duas canecas de cerveja.
—Eu não estou com fome — repôs ela.
—Você vai comer — afirmou ele.
A garota não voltou a falar. A garçonete trouxe um prato que continha uma grande torta de carne e duas fatias grossas de pão e manteiga, e ele indicou que colocasse diante da prostituta.
O homem a observou comer. Era muito óbvio que ela estava faminta, mas ela fez um grande esforço para comer devagar.
Ela olhou em volta, quando os dedos dela, ainda trêmulos, ficaram cobertos de migalhas, carne e massa, mas se tratava de uma estalagem comum e não havia guardanapos. O cavalheiro entregou-lhe um lenço de linho de seu bolso, e, depois de hesitar um momento, ela pegou e limpou os dedos.
—Obrigada — Murmurou ela.
—Qual é seu nome?
A jovem terminou de mastigar o pão que tinha na boca.
—Fleur — acabou dizendo.
—Apenas Fleur? — Ele tamborilava lentamente os dedos na mesa enquanto com a outra mão segurava a caneca de cerveja.
—Apenas Fleur — repetiu ela em voz baixa.
Ele a observou em silêncio até que terminou a última migalha que restava no prato.
—Quer mais? — Ele perguntou.
—Não. — Ela olhou para ele apressadamente. — Não, obrigada.
—Não quer terminar a cerveja?
—Não, obrigada.
O cavalheiro pagou a conta e deixaram a taverna juntos.
—Você disse que não tinha lugar para praticar seu ofício — recordou. — Não tem casa?
—Sim. Tenho um quarto.
—Eu vou acompanhá-la até ali.
—Não. — ela retrocedeu até a entrada do Bull and Horn.
—Qual é a distância daqui?
—Não muito longe. Não chega a dois quilômetros.
—Então eu vou acompanhá-la três quartos desse caminho. Você é uma jovem inocente. Não sabe o que lhe pode acontecer a uma mulher só nas ruas.
A jovem soltou um riso discordante. E começou a caminhar rapidamente para a rua, cabeça baixa. O homem caminhava ao seu lado, experimentando pela primeira vez em sua vida, mesmo que através de outra pessoa, o desespero da pobreza, sabendo que seus próprios problemas, os motivos que o levavam a infelicidade, eram risíveis em comparação com os desta garota, a mais nova prostituta de Londres.
—Por favor, não me siga mais — acabou dizendo a garota, parando em uma esquina aonde se encontrava uma loja lúgubre que se anunciava como agência de emprego.
—Você não consegue encontrar emprego? — Ele perguntou.
—Não.
—Você já tentou?
A moça olhou para ele e riu de novo como antes.
—Você não acha que este é meu último recurso? — replicou. — É difícil forçar-se a morrer de fome, quando você ainda pode vender uma última coisa.
A garota virou-se e estava a ponto de sair correndo. A voz do homem a deteve.
—Você não esqueceu alguma coisa? — Perguntou ele.
Ela se voltou para olhá-lo.
—Eu não te paguei.
—Pagou-me a comida.
—Bolo de carne, duas fatias de pão e meia caneca de cerveja em troca de sua virgindade. Foi um negócio justo?
A jovem não respondeu.
—Um conselho — continuou o homem, tomando-lhe a mão e fechando-a em torno de algumas moedas. — Não se venda barato. O preço que você pediu apenas incentivaria o desprezo e mau trato. E por certo, eu não a tratei mal. Deveria pedir o triplo do que pediu. Quanto mais pedir, mais respeito infundirá.
Ela baixou o olhar para a mão fechada, virou e foi embora sem dizer mais nada.
O cavalheiro ficou ali de pé, olhando preocupado enquanto partia, antes de voltar-se e dirigir-se para ruas mais elegantes e familiares.

Isabella Fleur Bradshaw não saiu de seu quarto no dia seguinte. De fato, nem sequer saiu da cama durante grande parte dele, mas sim olhando distraidamente para o teto com manchas de umidade ou as paredes de um marrom apagado nas quais da pintura velha só restava umas poucas escamas sujas. A garota só usava a camisa. Seu vestido de seda, seu único vestido, estava dobrado cuidadosamente em cima da solitária cadeira quebrada do quarto.
Pela primeira vez em sua vida naquele dia estava começando a sentir-se desesperada e não tinha nem vontade nem energia para se libertar do desespero. Ela esteve a ponto de sucumbir, durante o mês passado, mas a força de vontade permitiu-lhe agarrar-se a esperança, a uma determinação obstinada para sobreviver.
Sally, a ajudante de costureira que vivia no andar de cima, bateu em sua porta ao meio-dia, como costumava fazer. Mas Fleur não respondeu. A garota ia querer conversar, iria querer compartilhar sua comida também escassa. Fleur não queria companhia nem amável caridade. Ela havia sobrevivido. Ela iria sobreviver, talvez. Mas ela descobriu que, afinal, a sobrevivência não era necessariamente uma vitória, mas sim poderia fazer alguém mergulhar nas profundezas do desespero.
Sangrou intermitentemente durante todo o dia. Doía-lhe tanto que às vezes se retorcia pela dor aguda de sua virgindade rasgada. E aquilo não era o final. Era só o princípio. Seu primeiro cliente pagou generosamente: três vezes mais o que havia pedido, além da comida. O dinheiro serviria para pagar o aluguel que devia e para alimentá-la por alguns dias. Mas então ela teria de sair novamente para prosseguir com sua nova profissão.
Ela era uma prostituta. Desviou a vista do teto, e fechou os olhos, esgotada. Já não contemplava a ideia com o horror e a esperança que ela pudesse de alguma forma evitar o inevitável, acreditando em seu coração que algo viesse a salvá-la. Ela era uma prostituta. Concordou em ser contratada por um cavalheiro, entrou para uma estalagem com ele, retirou todas as suas roupas sob seu comando, enquanto ele a olhava, jogou-se nua na cama ao pedir-lhe, viu como ele tirava a roupa, em seguida lhe permitiu abri-la e tomar seu prazer masculino nas profundidades mais recônditas de seu corpo. Ela dera seu corpo para ser utilizado e aceitou o dinheiro como pagamento.
De maneira desumana, enumerou mentalmente os passos que seguiu para entrar na profissão que exerceria até que fosse muito velha, feia e doente para atrair até mesmo o pior cliente. Ou até que alguma coisa pior aconteça. Pertencia a uma profissão que só de pensar sentia horror e asco. Ela era uma prostituta. Uma puta. Uma puta de rua.
Ela engoliu várias vezes e com determinação até que a ânsia de vômito passou.
Em breve, dentro de uma semana, ela estaria fora do teatro, novamente, na esperança de atrair mais cliente, temendo o sucesso.
Aquele cavalheiro sombrio e assustador que foi seu primeiro cliente dissera que não foi duro com ela. Que Deus tivesse piedade dela se algum homem a tratasse alguma vez com rudeza. Sentia calor e suava aterrorizada ao recordar de novo suas mãos, de seus dedos longos e bem cuidados, mãos bonitas que lhe abriram as pernas, que abriram completamente com os joelhos, tocando-a ali com os polegares, abrindo-a, e a visão e a sensação que produziu aquela outra parte dele, grande e dura, contra sua carne interior, penetrando profundamente e rapidamente em seu corpo, de modo que ela pensou que morreria de medo e dor... E esperava morrer.
As imagens daquela noite brotaram de maneira espontânea e inoportuna: as terríveis cicatrizes descoloridas e enrugadas, as feridas do seu lado e a perna, os músculos terrivelmente poderosos de seu peito e ombros e braços, o ombros e braços, o triângulo de cabelo negro que ocupava a extensão de seu peito e se estreitava até debaixo de seu umbigo; seu rosto angular e de feições duras, com um olhar direto e feroz, o nariz proeminente e a cicatriz que o desfigurava; suas mãos tocando-a, agarrando seu traseiro, segurando-o com força para que não pudesse retrair-se da força intensa e a profundidade de suas investidas. Ela não tinha nem energia nem a força de vontade necessárias para livrar-se das lembranças. E de qualquer maneira não havia sentido tentar relegá-los a essa categoria. Sua profissão permitiria homens como aquele a usar seu corpo em troca dos recursos necessários para sobreviver.
Ela devia deliberadamente lembra-se, acostumar-se as lembranças, aprender a esperar o mesmo e talvez o pior - se é que poderia ser pior - dos outros homens.
Era uma troca justa, não foi? Pois não só teve que escolher entre a sobrevivência e a morte, mas entre a sobrevivência e a morte lenta e dolorosa por inanição. Nunca, nem sequer durante aquele dia em que sentia um desespero abismal, considerou o suicídio como escapatória para seus problemas. Assim não restava nenhuma escolha a fazer. Ela precisava alimentar-se da única forma que restava para ela. Não encontraria outro emprego. Não tinha experiência nem referências. A senhora Fleming da agência de emprego dissera várias vezes.
E Não precisava de nenhuma das duas coisas para tornar-se puta, só um corpo de mulher razoavelmente jovem e bem formado. E um estômago forte. Ela era uma prostituta. Vendeu seu corpo uma vez e continuaria fazendo uma e outra vez até que ninguém mais a quisesse. Devia habituar-se a ambos, ao pensamento e a ação. E, de fato, dar-se por satisfeita de ser capaz de viver como puta.
Sempre existia a possibilidade que ocorresse algo pior e mais assustador ainda se a encontrassem. Mudara de nome, e o terror constante que experimentava antes diminuiu comparado com o medo real de ter de viver em um ambiente que não sabia de nada e à beira da inanição. Mas não devia tornar-se confiante. Sempre existia a possibilidade que a descobrissem, sobre tudo se devia passar cada noite fora do teatro Drury Lane e todas as noites e ser vista por todas as pessoas elegante de Londres.
E se Matthew veio para Londres? E a prima Caroline e Amelia vieram inclusive antes dela.
Quando Sally bateu em sua porta tarde da noite, e gritou seu nome através da fechadura, Fleur ficou olhando o teto e não respondeu.

Adam Kent, duque de Ridgeway, apoiou um cotovelo no suporte de mármore da lareira do escritório de sua casa em Hanover Square e bateu nos dentes com os dedos.
—Então? — Seus olhos escuros se estreitaram ao ver seu secretário, que acabava de entrar no aposento.
O homem meneou a cabeça.
—Temo que não tive sorte, Sua Graça. Saber apenas o nome de batismo da garota é muito pouco para começar.
—Mas é um nome incomum, Houghton — protestou o duque. — Você bateu em todas as portas?
—Ao longo de três ruas e cerca de três quadras — explicou Peter Houghton, fazendo um esforço para ocultar sua exasperação. —Talvez ela tenha dado um nome falso, de qualquer maneira, Sua Graça.
—Talvez — concordou o duque. Ele franziu a testa pensativamente. Estaria fora do teatro de novo naquela noite? A agência de emprego em que pararam? realmente foi procurar trabalho?
E procuraria outro trabalho agora que escolheu e começou uma nova profissão? Talvez ela não vivesse naquela parte de Londres. E talvez tivesse dado um nome falso. Ela não respondera sua pergunta imediatamente.
—A vida será menos difícil para você durante os próximos dias — decidiu de repente o duque. — Você vai contratar uma nova criada para mim. Na posição que achar melhor, Houghton. Pode ser preceptora[2]... sim, acredito que preceptora, será capaz de fazer o trabalho. Tenho a sensação que ela pode ser adequada. Há uma agência perto das ruas que esteve percorrendo hoje.
—De preceptora? — O secretário franziu a testa.
—Para minha filha — respondeu o duque. — Ela tem cinco anos. Já é hora que tenha algo mais que uma babá, apesar da relutância de Sua Graça para que comece sua educação.
Peter Houghton tossiu.
—Perdoe-me, Sua Graça, mas eu entendi que a garota é uma prostituta. Acaso deveria permitir estar a menos de quinze quilômetros de Lady Pamela?
O duque não respondeu, e o secretário, que entendia muito bem o que queria expressar o olhar de seu senhor, recordou que não era mais que um humilde empregado a serviço de um dos nobres mais ricos do reino.
—Passará os próximos dias sentado na agência— ordenou o duque, — até que eu diga que já não é necessário. Enquanto isso, irei habitualmente ao teatro.
Houghton fez uma reverência e o duque se afastou bruscamente da lareira e saiu do aposento sem outra palavra. Subiu os degraus para seus aposentos privados de dois em dois.
"Toda puta foi virgem antes." O poeta William Blake havia escrito essa frase em algum lugar, ou palavras semelhantes. Não havia motivo para sentir uma culpa especial por ter sido ele quem a desflorou. Alguém tinha que fazê-lo uma vez que a garota decidiu seu caminho. Se ele tivesse sido o seu segundo cliente ao invés do primeiro, não teria notado a diferença e aquela manhã já teria se esquecido dela.
Ela não possuía habilidade, nem fascínio, nada que o fizesse querer encontrá-la novamente.
Ele não sabia que uma mulher pudesse sangrar tanto. E viu e sentiu a sua dor quando rasgou sua virgindade. Se soubesse, poderia ter feito diferente. Poderia tê-la preparado, acalmado, poderia tê-la penetrado lenta e cuidadosamente, empurrando suavemente através de sua dolorosa barreira.
Mas tal como foi, ele zangou-se com ela e consigo mesmo. Queria a degradar os dois, colocando-se em cima dela, impondo seu domínio. Mas ao mesmo tempo não lhe devia consideração alguma. Ela vendeu-se livremente, e ele a comprou. Pagou-lhe três vezes mais do que havia pedido. E ficou bastante insatisfeito além do alívio momentâneo que veio com a liberação de sua semente.
Não tinha motivos para sentir-se culpado.
No entanto passou o dia e a noite incapaz de tirar a garota da cabeça: seu corpo magro, sua tez pálida, olhos com círculos escuros e seus lábios partidos, sua coragem e calma... Não conseguiu esquecer que a pobreza e o desespero levou aquela garota a tornar-se uma vulgar prostituta de rua. Não podia evitar sentir-se responsável. Não podia esquecer da calma com que ela aceitou seu destino, nem do sangue.
Ele se perguntava se iria encontrá-la novamente. E queria saber por quanto tempo iria continuar tentando: o Duque de Ridgeway em busca de uma prostituta de rua com grandes olhos calmos e gestos e voz refinadas. Fleur.
Apenas Fleur, havia dito.

Capítulo 2

A senhorita Fleming, que era a proprietária e a administradora da agência de emprego perto de onde vivia Fleur, sempre a tratou com uma certa arrogância e condescendência. Sua voz nasal sempre arrastava as palavras como se aborrecesse. Como podia demonstrar a senhorita Hamilton que seria uma dama de companhia competente ou uma vendedora ou uma boa faxineira ou qualquer outra coisa?
Sem alguém que a recomendasse, não existia nenhuma maneira que a senhorita Fleming fosse arriscar sua reputação enviando-a para uma entrevista com um possível patrão.
—Mas como eu posso ganhar uma recomendação até que eu tenha alguma experiência? — Fleur perguntou-lhe uma vez. — E como posso adquirir experiência se ninguém se arriscar comigo?
—Conhece algum médico que pudesse falar por você? — insistira a senhorita Fleming. — A algum advogado? A algum clérigo?
Fleur pensou em Daniel e sentiu uma pontada de dor. Daniel a recomendaria. Mostrou-se disposto a que ela abrisse uma escola no povoado com sua irmã. Mostrou-se disposto a casar-se com ela. Mas estava muito longe, em Wiltshire. Além disso, já não queria casar-se com ela nem contratá-la nem recomendá-la para um emprego, não depois do que aconteceu ali e depois de sua fuga.
—Não — respondera Fleur.
Foi apenas o desespero que a levou de volta a agência, cinco dias depois de tornar-se prostituta. Ao abrir a porta e entrar não tinha nenhuma esperança real. Mas sabia que essa noite teria que voltar para o teatro Drury Lane ou a qualquer outro lugar aonde se reuniam os cavalheiros elegantes em busca de prazer noturno. Acabara o dinheiro.
O sangramento parou e a dor desaparecera. Mas o asco e o terror ante o que fizeram a seu corpo aumentou seus passos, de modo que tinha náuseas quase todo o tempo. Perguntava-se se algum dia chegaria a acostumar-se a vida de puta, se algum dia seria capaz de tratar seu trabalho simplesmente como o que era.
Pensou que provavelmente teria sido melhor que tivesse saído a noite depois da primeira, embora lhe doesse todo o corpo, e que não permitisse que o terror tomasse seu interior.
—Você tem algum emprego adequado para mim, senhora? — ela perguntou a senhorita Fleming em voz baixa, com o olhar fixo e tranquilo.
Ela viveu uma infância e uma juventude difícil que a prepararam para não mostrar nenhum sinal da dor e a degradação que pudesse estar sentindo.
A senhorita Fleming olhou para ela com impaciência e parecia prestes a fazer a réplica de costume, mas a olhou mais firme e franziu a testa. A seguir ajustou os óculos sobre o nariz e sorriu condescendente:
—Bom, senhorita Hamilton, há um cavalheiro na sala ao lado que está fazendo entrevistas para o cargo de preceptora para a filha de seu senhor. Pode ser que queira lhe fazer algumas perguntas, embora você, jovem, não tenha cartas de recomendação, e não conhece ninguém influente. Espere aqui, por favor.
Fleur juntou as mãos com força, enterrando as unhas nas palmas das mãos. Estava sem fôlego, como se tivesse corrido dois quilômetros. Tornar-se preceptora!
Não, não, não. Não devia começar nem sequer a ter esperanças. Provavelmente o homem nem ia querer vê-la.
—Venha aqui, por favor, senhorita Hamilton — indicou a senhorita Fleming em tom de eficiência, da entrada da sala do lado. — O senhor Houghton a receberá.
Fleur estava muito consciente de seu vestido amassado, a capa desbotada, e que não usava chapéu. Ela estava vestida com a roupa que usava há mais de um mês, quando teve que fugir. Era consciente do pouco atraente que estava seu cabelo, das olheiras, dos lábios rachados. Engoliu em seco e entrou na sala.
A senhorita Fleming fechou a porta sem fazer ruído atrás dela.
—A senhorita Fleur Hamilton? — O homem que estava sentado atrás de uma mesa grande a examinou lenta e intensamente, da cabeça aos pés.
Fleur ficou quieta e lhe devolveu o olhar. Era um homem jovem, calvo, magro. Se sua aparência era inaceitável, seria melhor que ele dissesse agora antes de que suas esperanças aumentassem.
—Sim, senhor.
Ele gesticulou para uma cadeira, e ela sentou-se, com as costas retas e o queixo erguido.
—Estou fazendo entrevistas para o cargo de preceptora — explicou o cavalheiro. — Trabalho para o senhor Kent de Dorsetshire. Sua filha tem cinco anos. Você acha que está qualificada para o trabalho?
—Sim — respondeu ela. — Eu fui educada em casa até os onze anos e em seguida na escola Broadridge de Oxfordshire. Era competente em todas as disciplinas. Falo francês e italiano razoavelmente bem, toco piano e alguma habilidade com aquarelas. Eu sempre estive particularmente interessada em literatura e história e os clássicos. Tenho alguma habilidade com a agulha também.
Ela respondeu suas perguntas tão clara e sinceramente quanto pôde. O sangue latejava em suas têmporas, ela apertou as mãos fortemente em seu colo, e tinha os dedos das duas mãos cruzados, aonde ele não poderia vê-los.
"Por favor, Deus", rezou em silêncio, "Oh, por favor, meu Deus."
—Se tivesse que entrar em contato com sua antiga escola, a diretora poderia confirmar o que você me disse? — Ele perguntou.
—Sim, senhor. Tenho certeza disto.
"Mas por favor, não o faça. Não reconheceriam o nome. Negariam que tivesse estudado ali."
—Poderia me dizer alguma coisa a respeito de sua família e suas origens, senhorita Hamilton? — Perguntou finalmente o senhor Houghton.
Ela o olhou fixamente e engoliu em seco.
—Meu pai era um cavalheiro. Morreu endividado. Precisei vir para Londres em busca de emprego.
"Perdoe-me, papai", suplicou a seu pai morto em silêncio.
—O quê? — Perguntou ela.
—Quanto tempo faz? — Repetiu o senhor Houghton. — Quanto tempo faz que veio a Londres?
—Um pouco mais de um mês.
—Que trabalho teve desde então?
Ela ficou um momento em silêncio, olhando-o fixamente.
—Eu tive dinheiro suficiente para aguentar até o momento.
Ela permaneceu imóvel, enquanto os olhos do homem percorria o inadequado vestido de seda que usava sob a capa. Ele sabia. Devia notar. Como poderia ter vivido toda a dor e a degradação da semana anterior e mantê-la invisível aos olhos dos estranhos? Devia saber que mentia. Ele deve saber que ela era uma prostituta.
—Você tem cartas de recomendação? — Perguntou ele. — Você leva qualquer correspondência consigo?
Ela sabia que abrigava uma esperança cruel. Realmente não havia esperança.
—Não tenho, senhor — confessou. — Nunca tive emprego. Vivi como filha de um cavalheiro.
E esperou em silêncio que ele a despachasse.
Mas a esperança foi cruelmente incentivada.
"Por favor, Deus", rezou, "Por favor, Meu Deus. OH, por favor..."
E Fleur desejou não ter ido. Desejou que não tivesse existido essa esperança ilusória.
—O quê? — disse ela novamente.
—O emprego é seu, se quiser.
Ela o olhou fixamente.
—Não desejaria o senhor Kent falar comigo primeiro? — Perguntou.
—Ele confia em meu critério.
—E a senhora Kent? Não gostaria de me entrevistar?
—A senhora Kent está em Dorsetshire com a menina — explicou o homem. — Você quer o emprego, senhorita Hamilton?
—Sim— disse ela, uma unha, finalmente, cortando a carne da palma da mão... — Oh sim, por favor.
—Vou precisar de seu nome completo e endereço — comentou, estendendo um papel. Agarrou uma pena e mergulhando no tinteiro, mostrando sua maneira rápida e profissional. —Nos próximos dias lhe entregarei um bilhete para a diligência que vai para Dorsetshire e farei com que alguém vá buscá-la na localidade de Wollaston e a leve a Willoughby Hall, lar do senhor Kent. Enquanto isso, autorizaram-me a pagar-lhe adiantado para que compre roupa adequada para uma preceptora. — Ele levantou a vista e a percorreu com o olhar uma vez mais.
Ela permaneceu atordoada escutando o impossível, o incrível. Seria preceptora. Viveria no campo e seria responsável pela educação de uma menina de cinco anos. Eles estavam lhe dando dinheiro suficiente para comprar roupas decentes e chapéus e sapatos. Viveria com uma família respeitável em uma casa honrada.
O que diria o senhor Houghton, como a olharia se soubesse a verdade sobre ela? O que aconteceria se chegasse a averiguá-lo? Ou se o senhor e a senhora Kent chegassem a descobrir? Como eles se sentiriam se soubessem que o homem que trabalhava para eles contratou uma prostituta para ensinar sua filha?
—Bom — disse finalmente Fleur, levantando-se da cadeira enquanto o senhor Houghton ficava sentado a mesa. — Se isto for tudo, senhor?
—Eu levarei-lhe o bilhete para a diligência nos próximos dias, senhorita Hamilton — reiterou, e inclinou a cabeça indicando que podia partir. — Tenha um bom dia, senhorita.
Fleur saiu da sala e da agência aturdida, mal percebendo a senhorita Fleming, que acenou cortesmente quando passou.
Na sala, Peter Houghton franziu os lábios e olhou para a porta fechada, pela qual acabava de sair a amante de seu senhor. Ele não podia ver seu atrativo. Era uma garota magra e pálida, com traços comuns e cabelo avermelhado ao que lhe faltava brilho. Quando ganhasse um pouco de peso pode ser que tivesse uma figura bonita, mas afinal de contas, não era mais que uma puta que seu senhor recolheu na saída do Drury Lane algumas noites atrás.
Ele sabia que seu senhor nunca teve uma amante, nem sequer em Londres. E entretanto não entendia pôr que discretamente não colocava aquela garota em uma casa própria, aonde poderia visitá-la e desfrutá-la como gostasse. Pensava enviá-la a Willoughby, para que estivesse sob o mesmo teto da filha e esposa do duque. Para que fosse preceptora de sua filha.
Sua Graça era um homem estranho. Peter Houghton respeitava seu senhor e valorizava seu trabalho, mas mesmo assim havia algo estranho naquele homem. A duquesa era dez vezes mais charmosa do que a sua amante.
Esposa e amante sob o mesmo teto. A vida podia tornar-se interessante. Certamente, Sua Graça decidirá muito em breve que o melhor era voltar para o campo e a felicidade de seu lar. Peter Houghton sorriu levemente e meneou a cabeça. Enfim, uma coisa ficou clara: gostaria de sair daquela sala e livrar-se dos sorrisos tolos e insinuantes da senhorita Fleming após passar quatro dias esperando a que a fraca e ruiva Fleur fizesse sua aparição.

Fleur saiu de Londres na diligência seis dias mais tarde, depois de mais uma breve reunião com o senhor Houghton. Ela levou consigo um baú pequeno, nele dobrou cuidadosamente seu vestido de seda azul, a capa cinza e vários objetos e acessórios novos, simples mas práticos.
Foi uma longa e desconfortável viagem, passou a maior parte do tempo espremida entre grandes, irritáveis e sujos passageiros. Mas não se queixou, nem sequer intimamente. As alternativas eram todas terríveis demais para ela. Se não fosse por este emprego, viveria em um barraco durante o dia e exerceria seu ofício de puta a noite. Até então já teria provado com vários clientes diferentes, e possivelmente teria descoberto a verdade do que dissera o primeiro. Que outros homens a teriam tratado pior. E, talvez, teriam pago menos para ela, de modo que ela seria forçada a trabalhar todas as noites.
Não, ela não iria reclamar. Gostaria que o senhor e a senhora Kent não descobrissem a verdade sobre ela. Mas como poderiam? Apenas um homem na terra sabia a verdade, e nunca o veria novamente, embora habitaria seus pesadelos pelo resto de sua vida.
Claro que o senhor e a senhora Kent também poderiam descobrir outra verdade. E uma vez que Londres e seus terrores ficaram para trás, ela lembrou-se outra vez, com maior intensidade, e se dedicou a olhar nervosa a sua volta não sabia muito bem o quê.
Voltou a ver o rosto morto de Hobson com maior frequência em sua mente, quando voltou a estar no campo: os olhos que a olhavam fixamente, a mandíbula desencaixada, o rosto lívido e surpreso. Ela estava surpresa que não a tivesse assombrado em sonhos como nas últimas sete semanas. Mas é que encontrou com um terror ainda maior, sobreviver nos bairros pobres de Londres. Mas a perseguia agora que estava acordada.
Ela o matou. Além de prostituta, era uma assassina. O que faria ou diria essa gente da diligência se soubesse quem era ou o que era? Havia algo quase hilariante no pensamento. Assustadoramente hilariante.
—O que é tão engraçado, menina? — Perguntou uma mulher muito bem dotada sentada no banco da frente, carregada com uma cesta quase tão grande como ela mesma. Fleur se acalmou imediatamente.
—Eu estava pensando que quando acabarmos de cruzar este trecho de estrada já estaremos todos iguais gelatina — explicou, e sorriu.
Foi uma boa resposta. Todos os passageiros se animaram e começaram a expor suas queixas contra o distrito responsável pela reparação da estrada pela qual estavam passando.
Não, ela não era uma assassina. Não devia colocar esse rótulo em si mesma. Empurrou-o e ele caiu e bateu com a cabeça no canto da lareira e morreu. Foi um acidente. Estava se defendendo. Ele pensava em segurá-la quando Matthew indicasse. Fleur só lutava para libertar-se.
Matthew usou a palavra "assassinato" após examinar o corpo. Foi essa palavra e o impacto de ver o rosto pálido do morto que a fez fugir cegamente sem pensar em nada ao invés de continuar com os planos que fizera.
Ela tentou não pensar nisso. Talvez nunca tivesse qualquer perseguição. Talvez, depois de tudo, Matthew tivesse explicado que foi um acidente. E mesmo que tivesse dedicado a persegui-la, pode ser que já tivesse abandonado a perseguição. Ou possivelmente não a encontrariam jamais. Tudo aconteceu sete semanas atrás. Mas ela se sentia mais segura em Londres.
Ela deu um meio sorriso novamente. Segura?
Tentou imaginar a pequena senhorita Kent, a menina da mamãe e do papai. Imaginou em uma casa acolhedora, uma pequena família unida pelo amor, um pouco como seus próprios pais e ela mesma quando era criança. Tentou se imaginar sendo introduzida no grupo, e que a tratassem quase como alguém da família.
Compensaria-lhes pelo grande engano que estava perpetrando. Não havia respondido com sinceridade a pergunta do senhor Houghton. Quando ele perguntou no que havia trabalhado desde que chegou a Londres, ela fingiu que levava suficiente dinheiro para manter-se. Não falou do único emprego que encontrou.
Mas isso pertencia ao passado. Ninguém precisava saber. A única pessoa que se sentiria obrigada a contar seria a um futuro marido e não se imaginava desejando casar-se. Agora não podia. Pensou durante um instante em Daniel, mas afastou a imagem de seu sorriso bondoso, seu cabelo loiro e seu traje clerical da mente. Se as circunstâncias fossem diferentes, poderia ter se casado com Daniel e sido feliz com ele pelo resto de sua vida. Ela o amava.
Mas as circunstâncias não eram diferentes. Agora já não poderia voltar para ele, mesmo se de repente descobrisse que Matthew não tivesse considerado aquela morte como assassinato. Não poderia voltar atrás. No momento era uma perdida. Fechou os olhos lamentando um instante e os abriu para examinar a paisagem que passava por diante das janelas da carruagem, ou o passado que deixava para trás, para se expressar-com maior precisão.
Estava começando uma nova vida, deveria ser eternamente grata por ter sido possível ter-se apresentado na agência da senhorita Fleming durante a hora exata em que o senhor Houghton se encontrava para realizar entrevistas. Só lamentava que ele não tivesse aparecido por ali cinco dias antes, mas não foi assim, e isso era tudo. Não seria ingrata com o presente de uma nova vida e um novo começo. Mostraria sua gratidão sendo a melhor preceptora que uma família já teve.

Matthew Bradshaw, Lorde Brockehurst, tinha alugado um apartamento de solteiro no St. James Street durante sua estadia em Londres, preferindo não ficar com sua mãe e sua irmã durante toda a agitação da temporada londrina, embora as visitou para contar-lhes as novidades. Sua mãe comentou friamente que não se surpreendia absolutamente. Sempre soube que Isabella acabaria mal.
A princípio, Matthew não previu que ficaria durante muito tempo. Isabella ficou tão assustada que desapareceu dos arredores de sua casa em Wiltshire. E Matthew descobriu quando foi a paróquia que nem sequer foi ver o reverendo Booth. Devia ter vindo a Londres. Era o único destino que poderia ter escolhido. teria se colocado a mercê de sua mãe ou de algum conhecido, embora ela não poderia ter muitos na cidade. Ao longo de sua vida não passou muito tempo longe de casa, exceto os cinco anos que passou na escola em que a mãe de Matthew se empenhou em enviá-la para livrar-se dela.
Ele não encontrou nenhum rastro dela, embora tivesse procurado durante mais de um mês e feito um sem-fim de perguntas. E já estava claro que não recorreu a sua mãe. Foi uma estupidez esperar que o fizesse.
Assim Matthew acabou adotando medidas desesperadas. O homem baixo, atarracado e com o rosto vermelho, que estava em seu quarto duas manhãs depois de Fleur deixar Londres, usava um lenço não muito limpo e com seu chapéu de aparência gordurosa. Ele era membro dos Bow Street Runners, a polícia urbana. Os dois estavam conversando há algum tempo.
—Isto é o que deve ter acontecido, acredite em mim, senhor — assegurou o senhor Henry Snedburg. Ele havia se recusado a sentar-se, explicando que seu tempo era muito valioso.
—Ela está escondida nos bairros mais pobres e procurando emprego.
—A busca será inútil, então, — repôs lorde Brockehurst. — Como a proverbial agulha no palheiro.
—Não, não, não. — O agente levantou uma mão para coçar sua nuca gorda e vermelha. — Eu não diria isso, senhor. Há agências. Como é uma dama, terá pensado tentar em uma ou várias delas. Só preciso de uma lista e já posso começar. Você disse que a buscavam por assassinato, senhor?
—Tentativa de roubo — corrigiu Lorde Brockehurst. — Ela tentou fugir com as joias da família.
—Ah, uma desagradável peça ela parece, senhor. Começarei minha investigação sem demora e com toda cautela. A jovem dama estará desesperada. Vamos tê-la num piscar de olhos, você pode ter certeza.
—Que nomes ela pode assumir, posso perguntar?
Lorde Brockehurst franziu o cenho.
—Você acha que ela mudou de nome? — Perguntou Matthew.
—Se ela tiver um pingo de bom senso, o fará, senhor — explicou o senhor Snedburg. — Mas muito poucas vezes as pessoas inventam um nome totalmente novo. Dê-me seu nome completo, senhor, e o nome de sua mãe, e de algumas das criadas da casa e amigas e conhecidas da jovem.
Lorde Brockehurst começou dar-lhe os nomes.
—Seu nome completo é Isabella Fleur Bradshaw. O nome de sua mãe era Laura Maxwell, o de sua criada pessoal, Annie Rowe, e o de sua melhor amiga, Miriam Booth.
—E o de sua governanta, senhor?
—Phyllis Matheson.
—Os das avós da garota?
—Hamilton por parte de pai — recordou. — Lenora, acredito. Por parte de mãe, não sei.
—E o de seu mordomo?
—Chapman.
—Provarei com estes — disse finalmente o senhor Snedburg. — Eu encontrarei alguma coisa. Não tenho nenhuma dúvida. Bem, agora preciso de uma descrição da jovem.
—Um pouco mais alta que a altura média — começou Lorde Brockehurst. — Magra, olhos castanhos, cabelo avermelhado dourado.
—Você diria que é a sua característica mais proeminente, senhor? — Perguntou o agente, olhando fixamente para seu cliente.
—Sim. — Lorde Brockehurst percorreu o quarto com o olhar, mas sem ver nada concreto na realidade. — O mais destacado. Como a luz do sol e do crepúsculo misturados.
O senhor Snedburg tossiu.
—Muito bem, senhor. Então, diria que é uma beleza?
—Ah, sim. — O cavalheiro lhe devolveu o olhar. — Uma autêntica beleza. Quero que a encontrem.
—Entendo que como juiz de paz, senhor — corrigiu o agente. — Porque, apesar do fato de que ela seja sua prima, ela deve ser julgada pelo assassinato de seu ajudante pessoal.
—Sim, por esse motivo — concedeu Lorde Brockehurst, abrindo e fechando as mãos dos lados. — Encontre-a.
O senhor Snedburg fez uma reverência pouco elegante e saiu do quarto sem mais preâmbulos.

—Senhorita Hamilton?
Fleur virou com surpresa para o jovem de libré azul que pronunciou seu nome quando ela desceu da diligência em Wollaston.
—Sim? — respondeu ela.
—Sou Ned Driscoll, senhorita. Eu vim para levá-la a mansão. Onde estão os seus baús, senhorita?
—Só esse — Fleur disse, apontando.
O jovem estava vestido de um modo realmente elegante. E carregou o baú no ombro como se não pesasse mais que uma pena e atravessou o pátio pavimentado da estalagem onde a diligência parou em direção a uma carruagem fechada com um brasão pintado de um lado. Uma casa acolhedora? Uma família pequena?
—Você é criado do senhor Kent? — Perguntou ela ao moço, seguindo-o. — Esta é sua carruagem?
Ele virou-se e sorriu-lhe divertido.
—O senhor Kent? É melhor que não lhe ouça chamá-lo assim, senhorita. É "Sua Graça" para pessoas como você e eu.
—Sua Graça? — Fleur sentiu que seus joelhos fraquejavam.
—Sua Graça o duque de Ridgeway — explicou o criado, olhando-a com curiosidade. — Você não sabia? — Ele amarrou firmemente o baú na traseira da carruagem.
—O duque de Ridgeway? Deve haver um engano. Contrataram-me como preceptora para a filha do senhor e a senhora Kent — explicou a jovem.
—Lady Pamela Kent, senhorita — esclareceu o criado, oferecendo uma mão para ajudá-la a entrar na carruagem. — Foi o senhor Houghton quem a contratou? Ele é o secretário pessoal de Sua Graça. Ele deve ter feito uma brincadeira.
Uma brincadeira. Fleur se sentou na carruagem enquanto o rapaz subia a boleia, e fechou os olhos por alguns instantes. Seu empregador era o Duque de Ridgeway? Ela já ouvira falar dele. Era considerado um dos pares mais ricos do país. Matthew conheceu seu meio-irmão, Lorde Thomas Kent. Kent! Ela ainda não percebera que era o mesmo nome.
Deveria ter percebido. Deveria estar mais alerta. Matthew conhecia o irmão de seu senhor. Mas ela não conhecia esse homem. Ele não a reconheceria nem seu nome, agora que o trocou. Não devia começar a fazer hipóteses absurdas.
Willoughby Hall. O senhor Houghton deu-lhe esse nome como a casa de seu senhor. Mas a mente é uma coisa estranha. Ela o havia concebido uma imagem tão forte e rápida da família Kent que em seguida imaginou uma casa simples. Mas sabia como era Willoughby. Era um dos maiores imóveis da Inglaterra, e além disso dizia ter uma das mais belas mansões e parques do país.
E naquele momento, muito antes de sua mente se adaptar as novas circunstâncias de sua existência, a carruagem passou diante do muro elevado de um parque coberto de musgos, líquens e hera, e virando-se para passar entre enormes colunas de pedra em direção a uma avenida tortuosa ladeada por árvores.
Fleur podia ver gramados ondulantes, salpicadas por carvalhos e castanheiras de cada lado. Até mesmo viu um grupo de cervos pastando. Logo a carruagem passou retumbando por cima de uma ponte e viu a cascata efervescente por debaixo. Mas quando ela virou a cabeça para ver melhor, sua atenção foi distraída. Os limoeiros não se estendiam para além da ponte. Os pastos abertos e ondulantes não obstruíam a visão de uma mansão cuja magnificência fez com que Fleur ficasse sem folego.
A casa tinha uma fachada ampla. Suas asas inferiores se estendiam de cada lado de uma seção central elevada com um frontão elevado, cujas colunas estavam elaboradas com um design coríntio. Uma grande lanterna central e uma cúpula se elevavam atrás do frontão. Os parapeitos estavam repletos de estátuas de pedra, bustos, vasos e urnas. Uma grande fonte de mármore diante da casa jorrava entre sebes recortados e terraços de flores e plantas .
Ela pensava que Heron House, sua própria casa - a casa de Matthew - era esplêndida. Mas em comparação com aquilo não pareceria mais que uma rústica casinha. E ela que imaginou uma casa acolhedora e uma família pequena! Pensativa, Fleur apoiou um instante a cabeça contra as almofadas atrás dela enquanto a carruagem parava diante dos degraus de mármore em forma de ferradura que conduziam as portas principais e ao "plano nobre", o piso principal.
Mas foram as portas sob os degraus que se abriram para que entrasse, as portas que levavam aos aposentos dos criados. Um criado informou-lhe que a senhora Laycock, a governanta, estaria encantada de receber a senhorita Hamilton em sua sala privada, fazendo meia reverencia antes de virar-se para indicar o caminho.
Para a Fleur, a própria senhora Laycock já parecia uma duquesa. Possuía uma figura esbelta e seu traje era simples mas elegante, de cor negra. Tinha o cabelo prateado recolhido no alto da cabeça. Só o punhado de chaves que levava pendurada na cintura proclamava sua condição de criada.
—Senhorita Hamilton? — Perguntou, estendendo uma mão a Fleur. — Bem-vinda a Willoughby Hall. Deve ter tido uma viagem longa e tediosa de Londres. O senhor Houghton nos informou que chegaria hoje. Me alegro em ver que Sua Graça considerou oportuno contratar a uma preceptora para a Lady Pamela. É tempo que ela tenha mais estímulo para a mente e mais atividade do que pode lhe proporcionar uma babá idosa.
Fleur estendeu a mão para a governanta e recebeu um firme aperto.
—Obrigada, senhora. Farei todo o possível por ensinar bem a menina.
—Não vai ser fácil— comentou a senhora Laycock, conduzindo Fleur até uma cadeira. — Quer um pouco de chá, senhorita Hamilton? Vejo que está esgotada. Terá que enfrentar a duquesa.
Fleur a olhou inquisitiva.
—Armitage, a criada pessoal de Sua Graça, confiou-me que a duquesa não gostou que o duque contratasse a uma preceptora sem nem sequer tê-la consultado — explicou a governanta, vertendo chá em uma xícara e dando a Fleur.
—Por Deus?
—Mas não se preocupe — a tranquilizou a senhora Laycock. — O duque é quem comanda aqui, e Sua Graça achou apropriado preocupar-se com o futuro de sua filha. E agora, senhorita Hamilton, conte-me algo de você. Acredito que nos daremos bem.

Capítulo 3

Peter Houghton estava revisando a correspondência do duque de Ridgeway e separando os convites que achava que seu senhor aceitaria quando o ouviu entrar em casa, e antes mesmo que chegasse ao escritório, soube que ele estava de mau humor. Havia algo em seu tom de voz, embora não pudesse ouvir suas palavras exatas, que traía seu estado de ânimo.
E o secretário, levantando-se e afundando-se outra vez quando o duque fez um gesto impaciente com a mão para que voltasse a sentar-se, viu que além disso coxeava ligeiramente.
Normalmente Sua Graça fazia grandes esforços por não coxear.
—Alguma coisa importante? — Ele perguntou, apontando para a pilha de correspondência.
—Um convite para jantar com sua Majestade.
—Prinny? Peça Desculpas, — pediu o duque.
—É uma entrevista real para jantar e jogar às cartas — insistiu o secretário tossindo.
—Sim, eu entendi. Peça Desculpas. Existe alguma coisa de minha esposa?
—Nada, Sua Graça — respondeu Houghton, olhando para a pilha.
—Partimos para Willoughby — ordenou Sua Excelência de maneira cortante. — Vejamos... prometi acompanhar os Dennington a ópera amanhã a noite com sua sobrinha. Não pode cancelar mais, certo?
Partiremos depois de amanhã.
—Sim, Sua Graça. — Peter Houghton escondeu um sorriso quando seu senhor saiu com longos passos do escritório. Já fazia duas semanas desde que havia enviado sua amante na diligência.
O duque mostrou muita força de vontade ao esperar tanto antes de encontrar uma desculpa para ir atrás dela. O duque de Ridgeway subiu os degraus de dois em dois, tal como estava acostumado a fazer, apesar do lado e a perna que doíam. Distraído, esfregou o olho esquerdo e a face. Era a umidade.
As velhas feridas sempre o incomodavam quando o tempo piorava. Maldita Sybil! Ela recusava-se sistematicamente a acompanhá-lo a Londres há quatro anos, quando ele foi forçado a confrontá-la e acabar com a indiscrição selvagem em que embarcou. E entretanto parecia que cada vez que se instalava em Londres só para ter poucos meses de paz, ela decidia organizar uma grande festa no campo, convidando todos os membros da alta sociedade, homens e mulheres, todos que conseguia convencer a deixar Londres e ir para Dorsetshire. Raramente, ela achava necessário informar-lhe de seus planos.
Ele só ficava sabendo se descobrisse acidentalmente. Em uma ocasião dois anos atrás não soube até que voltou para casa e descobriu que todos os convidados estiveram ali e partiram, exceto um que ficou atrasado. E esse atrasado teve a amabilidade de fazer um favor as criadas deixando livre seu próprio quarto de hóspede e compartilhando o da duquesa. O duque expulsou esse cavalheiro em particular menos de uma hora depois de ter voltado. O homem pareceu levar muito a sério o conselho de não ser visto em Willoughby ou em Londres, pelo menos nos próximos dez anos.
E a duquesa foi repreendida por não mostrar decoro diante dos criados e os que dependiam deles, o que fez com que a duquesa empalidecesse e acabasse em um mar de lágrimas. Sybil sempre parecia mais bonita do que o habitual quando chorava. E ela o acusou de ter o coração de pedra, de abandoná-la, de ser um tirano... todas as acusações habituais.
Desta vez Sua Graça se inteirou da festa de Sybil no White's pela boca de Sir Hector Chesterton. O homem se mostrou agradecido por seu convite.
—Não há muito o que fazer na cidade por estes dias, caro amigo — explicou ele, — exceto comer com os olhos as jovenzinhas. E suas mães se agarram a elas como sanguessugas, assim a única coisa que podemos fazer é olhar. Sybil foi muito amável ao me convidar.
—Sim — o duque sorrira friamente, — ela adora rodear-se de companhia.
E assim devia voltar para Willoughby muitas semanas antes do previsto. Ele tocou o sino e tirou o casaco enquanto esperava que seu valete chegasse. Pelo bem dos criados e pelo bem de Pamela, precisava voltar. Não seria justo permitir-lhes presenciar as libertinagens de Sybil e seus amigos.
Por Deus! Puxou seu lenço e o jogou de lado. Ele a amou. Uma vez, fazia uma eternidade, eu a amei. Amava a doce, frágil, loira e bonita Sybil. Ele sonhava com ela, suspirava por ela durante o tempo que esteve na Bélgica esperando a batalha que se tornou na Batalha de Waterloo. Ele viveu da lembrança de seus sorrisos radiantes, de suas doces declarações de amor, da timidez com que ela aceitou sua proposta de casamento, de seus beijos quentes de donzela.
Por Deus! Ele puxou o botão superior da camisa e viu como saía disparado pelo quarto e batia contra a tigela de porcelana do lavatório.
—Que alguém pregue bem estes botões infernais — ele gritou para seu valete, que teve a infelicidade de entrar pela porta naquele momento.
Mas seu valete estava com ele desde que era menino, e o acompanhou a guerra e foi seu ajudante pessoal na Espanha e na Bélgica. Era um homem resistente.
—Doem-lhe a perna e o lado, hein, senhor? — Ele perguntou alegremente. — Imaginava que sim, com este tempo... Deite-se e me deixe dar-lhes uma massagem.
—E como isso ajudará os botões a não se desprenderem das camisas, maldição? — Retrucou o duque.
—Servirá, confie em mim — o valete o tranquilizou. — Deite-se, agora.
—Eu quero as minhas roupas de equitação — exigiu o duque. — Vou galopar pelo parque.
—Depois de receber a massagem — insistiu o homem, como uma babá conversando com uma criança. — Será que vamos voltar para Willoughby, senhor?
—Houghton se dedicou a espalhar a notícia, não? — Comentou Sua Graça, inclinando-se sobre um sofá obedientemente permitindo que seu valete tirasse sua roupa e colocasse mãos à obra com suas mãos fortes e hábeis, que sempre conseguiam aliviar a dor. — Você se alegrará em voltar para casa, Sidney?
—Sim — afirmou o homem. — E você também, senhor, se decidir admitir. Willoughby foi sempre o seu lugar favorito no mundo.
Sim. Foi. Ele cresceu sabendo que um dia tudo seria seu. E seu amor por Willoughby estava profundamente enraizado nele. O acompanhou durante os anos de escola e universidade e durante os anos que passou no exército. Ele insistira em ocupar um lugar em um regimento de infantaria, embora fosse o filho mais velho e o herdeiro e apesar da oposição de seu pai e quase todos que o conheciam.
Mas Willoughby permaneceu em seu sangue. Foi por aquilo que lutou: por Willoughby, seu lar, Inglaterra em miniatura. E mesmo assim ele odiava voltar ali. Porque Sybil estava lá. Porque a vida nunca poderia ser como imaginou que seria quando ele era jovem. Mas ele precisava ir. E algo em seu interior estava perversamente feliz que tivesse que ir. Willoughby no final da primavera e verão: fechou os olhos e sentiu que invadia essa saudade profunda que sempre sentiu por seu lar quando estava longe e se permitia pensar nele.
E havia Pamela. Apesar de sua atitude protetora, apesar de que não suportasse deixá-lo perto da menina, Sybil não se preocupava muito com ela. Quase não passava tempo com sua filha. Pamela precisava dele. Precisava algo mais que uma babá. E ela tinha algo mais que uma babá. Tinha uma preceptora. Fleur... ele a afastou de sua mente depois de sossegar a voz de sua consciência encontrando-lhe um emprego.
E Houghton assegurou que ela parecia capacitada para o cargo. Houghton a entrevistou a fundo. O duque não queria pensar nela. Não queria voltar a vê-la. Não queria lembrar-se dela. Foi a primeira vez que foi infiel a Sybil, embora houvesse muito pouco de infidelidade. Por que a enviou a Willoughby? Ele tinha outras propriedades. Poderia tê-la mandado a uma delas para que trabalhasse de criada. Por que Willoughby? Para que estivesse na mesma casa que sua esposa. Para que educasse sua filha.
Uma puta educando Pamela.
—Já basta, maldição! — Protestou ele, abrindo os olhos. — Quer que eu durma?
—Tentava isso, senhor — respondeu Sidney, sorrindo alegremente. — Quando está dormindo não tenho que sofrer seu temperamento, senhor.
—Insolente! — Irritou-se o duque, sentando-se e esfregando outra vez o olho. — Vá e pegue a minha roupa de equitação.

Fleur não conheceu a menina que precisava cuidar nem a duquesa no dia que chegou a Willoughby Hall. Aparentemente elas foram fazer uma visita pela tarde, levando a babá com elas.
—A senhora Clement foi a babá de Sua Graça a duquesa — explicou a senhora Laycock. — São muito unidas. Receio que a sua presença irá perturbá-la tanto quanto a Duquesa, senhorita Hamilton. Deve recordar que é Sua Graça o duque quem paga seu salário — ela explicou rapidamente, de modo que deu a Fleur a impressão que não era a única criada que devia recordar esse fato.
Aparentemente Sua Graça estava ausente de casa. Era provável que estivesse em Londres para a temporada, se o senhor Houghton que a entrevistou era seu secretário pessoal.
A senhora Laycock não sabia quando voltaria.
—Embora ele certamente vai se inteirar do fato que Sua Graça está planejando outra festa — explicou a mulher, — um grande baile.
Ela usou um tom de desaprovação, mas não disse mais nada sobre isso. E acrescentou que aproveitaria que a duquesa não se encontrava ali para mostrar a Fleur o andar superior da casa.
A mansão era magnífica e foi construída em uma escala tão colossal que Fleur ia atrás da senhora Laycock, olhando assustada e sem dizer praticamente nada. Todos os aposentos de uso comum da família e os escritórios estavam no andar nobre, enquanto que a sala de estudo, sala de jogos e os aposentos dos criados estavam nas salas menores abaixo. Fleur já virá seu próprio quarto: pequeno, quadrado, luminoso e ventilado, e situado junto a sala de estudo. Com vista para um gramado e árvores na parte de trás. O quarto parecia um paraíso em comparação com o que tinha em Londres.
O circuito pela casa começou no grande salão abobadado da entrada com sua lanterna e com grades na parte superior, logo abaixo da cúpula, que alagavam o ambiente de luz, e a cúpula grafite com anjos voadores.
Uma galeria ocupava o círculo debaixo da lanterna.
—Nas grandes ocasiões este é o sítio da orquestra— explicou a governanta. — Quando há um baile, as portas para a longa galeria e o salão são deixadas abertas para fazer um grande salão de baile. Poderá ver, se não chover no dia do baile de Sua Graça, ele acontecerá ao ar livre à beira do lago, e nos convidaram, senhorita Hamilton, por tratar-se de uma atividade ao ar livre. Mas o transladarão para o interior se o tempo se mostrar inclemente, é claro.
Fleur levantou os olhos e tentou imaginar uma orquestra sentada ali e a reverberação da música na entrada circular com colunas. Imaginou multidões vestidas com seus melhores trajes para a noite, alegres, risonhos e dançando. E sorriu.
Ah, que feliz seria! Apesar do que a senhora Laycock havia insinuado sobre a duquesa e a babá de Lady Pamela, seria feliz. Como poderia não ser?
Ela conheceu o inferno e sobreviveu a ele.
A longa galeria ocupava uma ala inteira na frente da casa. Um de seus lados estava inteiramente formado por janelas largas e antigos bustos romanos colocados em nichos. O friso côncavo e o teto davam a impressão de grande altura e esplendor. A longa parede em frente das janelas estava repleta de retratos com molduras douradas.
—É a família de Sua Graça por gerações — explicou a senhora Laycock. — Necessitaria do senhor mesmo para explicar tudo, senhorita Hamilton. Não há nada em Willoughby que não saiba.
Fleur identificou um Holbein, um Van Dyck, um Reynolds. Pensou que devia ser maravilhoso imaginar antepassados como aqueles. A senhora Laycock explicou também que o duque de Ridgeway era o oitavo duque de sua família.
—Todos nós esperávamos um herdeiro — comentou, com certa dureza. — Mas até agora só teve Lady Pamela.
Indicou a Fleur que as salas e a maioria dos quartos de hóspedes estavam atrás da galeria, mas não ia levá-la ali. O grande salão era o eixo central atrás da entrada. Tinha dois andares e as paredes estavam decoradas com veludo carmesim de Utrecht. O mobiliário pesado foi colocado ordenadamente em torno do perímetro da sala, forrado com o mesmo material. Os grandes marcos das portas a cornija e o suporte da lareira estavam recobertos de dourado, e o teto foi pintado com uma cena mitológica de uma batalha que a senhora Laycock não conseguiu identificar. Havia grandes pinturas de paisagens com molduras pesadas penduradas nas paredes.
A sala de jantar, sala de estar, biblioteca, salas e outros aposentos particulares da família estavam na outra ala, que contrabalançava com a ala da galeria.
Fleur ficou impressionada com tudo. Ela cresceu em uma casa grande. Seu pai foi o proprietário até que morreu no incêndio de uma estalagem com sua mãe quando Fleur tinha oito anos. Tanto a casa como o título foi passado para seu primo, o pai de Matthew, e ela se tornou em uma mera pupila do senhor, que a tratava com amabilidade mas sem lhe prestar muita atenção: sua esposa e sua filha não a queriam e a incomodava, e Matthew a ignorou até poucos anos.
Mas Heron House não era uma das grandes joias da Inglaterra. Evidentemente, Willoughby Hall era. E apesar de lamentar que o sonho de uma casa acolhedora e uma família pequena houvesse desaparecido, estava emocionada. Viveria naquela mansão magnífica. Seria parte de sua vida movimentada, seria responsável pela educação da jovem filha do duque e duquesa.
Depois de tudo, parecia que a sorte a acompanhava. Talvez fosse para conhecer um pouco do céu para compensá-la por outras experiências recentes.
—Eu a levaria para dar um passeio pelo parque— comentou a governanta, — mas vejo que está esgotada, senhorita Hamilton. Você precisa subir e descansar um pouco. Talvez Sua Graça queira falar com você mais tarde e você pode querer conhecer Lady Pamela.
Fleur se retirou feliz para seu quarto. Ela estava um pouco sobrecarregada por tudo aquilo, pelos acontecimentos dos últimos dois meses, pela grande sorte que teve ao encontrar um emprego como aquele quando não tinha ido à agência de emprego durante uma semana, com a descoberta inesperada que posição não era nada comum. A viagem foi longa e exaustiva.
E naquela manhã conseguiu esquecer um de seus maiores medos: não estava grávida.
Sentada junto a janela do quarto e apreciando a paisagem pacífica que se via e da suave brisa que levantava as cortinas e lhe acariciava o rosto, pensou que era muito mais afortunada do que poderia esperar dois meses atrás.
Poderiam tê-la enforcado. Ainda podiam enforcá-la. Mas não queria pensar nisso. Hoje ela havia começado sua nova vida, e seria mais feliz do que foi em qualquer outro momento de sua vida... desde que tinha oito anos. Ela tirou o vestido, dobrou-o cuidadosamente e colocou-o nas costas da cadeira, e deitou-se sobre o cobertor em camisa. Voltou a pensar em como era diferente de seu quarto em Londres enquanto olhava para o dossel coberto de seda que havia em cima da cama, observava o esmero e a limpeza que a rodeavam e escutava somente o silêncio, exceto o gorjeio distante dos pássaros.
Ela fechou os olhos para deixar-se levar pela sonolência, e voltou a vê-lo: voltou a ver seu rosto moreno, angular e duro, a cicatriz lívida que lhe cruzava o rosto da altura do olho até o queixo, inclinando-se de novo sobre ela, com seus olhos escuros e frios olhando diretamente nos seus próprios olhos.
Ele colocou suas mãos sobre ela, primeiro entre as coxas e em seu lugar mais secreto e em seguida por debaixo. E essa outra parte dele abriu caminho, abrasador e implacável, para o mais profundo de seu interior.
Sentiu como se a rompesse em pedaços.
—Puta — sussurrou. — Não pense em escapar desse rótulo. É uma puta agora e será pelo resto de sua vida, por mais que corra rápido.
—Não! — Fleur meneou a cabeça na cama, apoiou os pés com maior firmeza no chão, e tentou escapar de suas mãos poderosas para que não a penetrasse tão profundamente. — Não!
—Isto não é uma violação — insistiu ele. — Você veio a mim de forma voluntária. Você vai receber o meu dinheiro.
—Porque eu estou morrendo de fome — suplicou ela. — Porque estou há dois dias sem comer. Porque tenho que sobreviver.
—Puta — sussurrou ele outra vez. — É porque gosta. Você está gostando, não é?
—Não. — Ela se contorceu para se livrar das mãos fortes que a seguravam enquanto se saciava dela. — Não.
Não. Não. Já não ficava nada. Nenhuma dignidade. Nenhuma intimidade. Nenhuma identidade. Destituída de suas roupas. Com as pernas abertas por seus joelhos e os poderosos músculos de suas coxas.
Invadida até o mais profundo de seu ser.
Não. Não, não, não!
Ela sentou-se na cama, suando, tremendo. Era um sonho corrente. O sonho que a atormentava cada noite. Poderia pensar que seria o rosto morto de Hobson que viria à mente assim que deixasse de controlar sua consciência, mas não era assim. Era o do cavalheiro com a cicatriz feia sobre ela, que arrebatara a última posse que lhe restava para dar... ou vender.
Fleur se levantou cansada da cama e ficou de pé em frente a janela para refrescar o rosto. Será que alguma vez o esqueceria? Não esqueceria de sua imagem? De como a havia tocado? Realmente ele dissera aquelas palavras? Já não se lembrava. Mas seu corpo e seu rosto as disseram embora não as tivesse pronunciado em voz alta.
Pensou que não podia haver um homem mais feio e mais malvado no mundo. E, no entanto, lembrou que ele havia lhe comprado comida e insistiu que a comesse. Pagou três vezes mais o que ela pediu fora do teatro. Não lhe fez nada que ela não tivesse consentido livremente.
E lhe dera um pano úmido para que limpasse o sangue e aliviasse a dor.
Ela apoiou o rosto nas mãos. Devia esquecê-lo. Devia aceitar o presente de uma nova vida que algum poder benevolente lhe concedera.

—Que bonito, querida — exclamou a duquesa de Ridgeway, inclinando-se para beijar a sua filha no rosto e olhando sorridente o que a menina tinha pintado para que examinasse. — Vou vê-la, Nanny. Precisa ficar claro que ela ficará subordinada a você e que não deve obrigar Pamela a fazer nada que não deseje fazer.
—Espera começar a trabalhar esta manhã, milady — comentou a babá. — Eu expliquei que a Lady Pamela gosta de ficar tranquila na sala de jogos pelas manhãs.
—Preciso conhecer minha nova preceptora hoje, mamãe? — Perguntou a menina zangada. — Papai a enviou?
—Ele fez para me provocar, não? — Disse a duquesa a sua babá. — Deve ter tomado conhecimento dos meus planos e lhe ocorreu vingar-se enviando a uma preceptora vulgar e aborrecida para minha menina querida. Mas eu tenho direito de ter companhia, não? Tanto quanto ele. Ele está curtindo a temporada de Londres. Acha que posso viver aqui sozinha e aborrecida? Acha que também não preciso de companhia para que desapareça este aborrecimento interminável? — E então tossiu secamente e procurou um lenço.
—Ontem eu lhe disse que colocasse a capa, querida — admoestou a babá. — Embora o sol brilhe, ainda é primavera. Nunca se livrará do catarro se não se cuidar.
—Não se preocupe tanto, Nanny — cortou a duquesa, zangada. — Eu tenho essa tosse desde o inverno, embora então sempre ia bem agasalhada, como você recomendava. Você acha que ele vai descobrir?
—Imagino que sim, querida — respondeu a babá. — Sempre o faz.
—Ele não gosta que eu tenha prazer ou companhia — protestou Sua Graça. — Eu o odeio, tatu, de verdade.
—Silêncio — espetou a babá, — não diante de lady Pamela, querida.
A duquesa olhou para a menina e lhe tocou suavemente nos cachos escuros.
—Bom, pois envia até minha sala, a senhorita Hamilton. Adam pode tê-la contratado, tatu, mas ela precisa saber que terá que me prestar contas. Afinal de contas, Adam...
—Silêncio, querida — afirmou a babá.
A duquesa beijou outra vez a menina no rosto e saiu do quarto, com seu robe movendo-se em seu caminho.
Sua filha já a olhava partir com expressão de saudade.
—Acha que ela gostou de meu quadro, Nanny? — Perguntou.
—Claro que sim, querida. — A babá se inclinou para abraçá-la. — Mamãe te ama e adora tudo o que faz.
—E papai gostará? — Insistiu a menina. — Ele virá para casa?
—Nós o guardaremos bem até que venha — respondeu a senhora Clement.

Quando pouco depois levaram Fleur até a sala da duquesa, a encontrou vazia. Ela ficou de pé dentro, junto à porta, e esperou em silencio com as mãos juntas diante do corpo. Era uma sala pequena, mas bastante requintada e de forma oval. Tinha uma cúpula grafite como teto e estilizadas colunas douradas. Painéis decorativos sobre uma superfície marfim, pintados em tons vermelhos, verdes, rosas pálidos que faziam com que as paredes fossem delicadas e femininas.
Ela não esperou muito tempo. A porta se abriu do outro lado da sala e entrou uma dama pequena e afetada com um delicado vestido azul de musselina e o cabelo loiro platinado recolhido em suaves cachos.
Fleur pensou que a duquesa era extremamente bonita e parecia mais nova do que ela com seus vinte e três anos.
—Senhorita Hamilton? — Perguntou a duquesa.
Fleur fez uma reverência.
—Sua Graça?
Ela notou que os olhos azuis da duquesa a estavam analisando abertamente da cabeça aos pés.
—Meu marido a mandou para que seja preceptora de minha filha? — Sua voz era suave e sussurrada.
Fleur assentiu.
—Você percebe que ela tem cinco anos e ainda não tem necessidade que a eduquem? — perguntou Sua Graça.
—Mas, mesmo uma criança tão pequena pode aprender muitas coisas sem realmente estar com um livro durante todo o dia, Sua Graça— respondeu Fleur.
A duquesa levantou o queixo.
—Você se atreve a discordar de mim? — Perguntou ela. Tanto sua voz como seu rosto eram agradáveis e um tanto em desacordo com suas palavras.
Fleur permaneceu em silêncio.
—Meu marido a enviou. Que relação tem com ele, se posso perguntar?
Fleur corou.
—Eu não conheço sua Graça — explicou. — Foi o senhor Houghton quem me entrevistou na agência de emprego.
A duquesa voltou a olhá-la de cima abaixo.
—Como terá deduzido — começou, — eu não concordo com o meu marido que minha filha precise de aulas. É uma menina pequena e delicada que só necessita o amor de sua mãe e os cuidados de sua babá. Não lhe encherá o cérebro de conhecimentos inúteis, senhorita Hamilton, e receberá ordens da senhora Clement, a babá de Lady Pamela. Considerara-se como uma das criadas desta casa e ficará em seu próprio quarto ou no salão dos criados quando sua presença na sala de estudo não for necessária. Não espero vê-la neste andar da casa a não ser que eu a chame expressamente. Você entendeu?
Disse tudo aquilo com um tom de voz suave e amistoso enquanto seu rosto frágil e belo a contemplava com grandes olhos azuis. Fleur pensou compassiva que era uma mãe muito carinhosa, temerosa que sua filha deixasse de ser um bebê, apesar da natureza imperiosa das palavras que pronunciou.
—Sim, Sua Graça — respondeu ela.
—Agora você pode ir e passar meia hora com minha filha, sob a supervisão da senhora Clement — ordenou a duquesa.
Mas quando Fleur virou-se para sair, a duquesa voltou a falar.
—Senhorita Hamilton — ela comentou, — parece-me correto o modo em que se vestiu esta manhã e a maneira que arrumou o cabelo. Espero que sua maneira de vestir sempre seja satisfatória.
Fleur voltou a inclinar a cabeça e saiu da sala. E dado que ia vestida com uma de suas novas aquisições, um austero vestido de algodão cinza com uma pequena gola de encaixe branco, e que usava o cabelo totalmente retirado do rosto e preso em um coque grosso na nunca, pensou que entendia perfeitamente a duquesa.
Isso significava que o duque era o tipo de homem que perseguiam suas criadas jovens? Era esse o motivo pelo qual a duquesa perguntou sobre sua relação com ele em Londres?
Esperava fervorosamente que ficasse por lá durante muito tempo.
Ao recordar, com um ligeiro calafrio, as palavras e a atitude da duquesa, Fleur pensou que foi advertida que nem a duquesa nem a senhora Clement se alegrariam em vê-la. E não devia queixar-se. Nenhuma das duas se mostrou abertamente hostil com ela. Estava segura que mudariam de opinião quando percebessem que não tinha nenhuma intenção de passar o dia vigiando Lady Pamela com uma vara em uma sala de aula fechada.

O senhor Snedburg terminara um longo dia de trabalho. Relaxou o suficiente para sentar em um salão de St. James Street e até mesmo para aceitar uma taça de vinho do Porto.
—Muito obrigado, senhor — murmurou, agarrando a taça da mão de seu anfitrião. — Meus pés doem de tanto caminhar e eu tenho a garganta seca de tantas perguntas. Sim, de fato, é a senhorita Fleur Hamilton. Muita coincidência para que não seja a mesma jovem, não lhe parece? E se encaixa com a descrição.
O senhor Snedburg não acrescentou que seus dois informantes, a senhorita Fleming e a caseira da jovem, haviam descrito Fleur Hamilton como uma jovem de aspecto muito ordinário com um cabelo avermelhado muito ordinário também. Entendia que seu cliente gostava muito de sua prima embora fosse uma assassina e uma ladra de joias. E teria que perdoar os homens apaixonados se as vezes ficavam poéticos.
Era como a luz do sol e do crepúsculo juntas, claro que sim. Com isso bastaria para que o agente sentisse vontade de revolver-se.
—E? — Lorde Brockehurst o observava intensamente, com sua própria taça de vinho do Porto a meia altura dos lábios. Apesar de sua reputação, o agente levou mais de uma semana para preparar seu primeiro relatório.
—E a contrataram como preceptora da filha de um tal senhor Kent de Dorsetshire. — Ele fez uma pausa para que tivesse mais efeito — um cavalheiro que a esperou na agência quatro dias inteiros, a ruiva Fleur. A moça já partiu.
Lorde Brockehurst franziu a testa. A taça ainda estava alguns centímetros da boca.
—Não pode haver muitos Kent em Dorsetshire — explicou o senhor Snedburg. — Investigarei o assunto para ver se podemos associar nosso homem com um só ponto do mapa, senhor.
Lorde Brockehurst bebeu, imerso em seus pensamentos.
—Kent? — Perguntou ele. — Não serão os Kent de Ridgeway, certo?
—Como o duque de Ridgeway? — Perguntou o agente, levantando uma mão para coçar a nuca. — É um Kent?
—Conheci seu meio irmão — comentou Lorde Brockehurst. — Viviam em Dorset. Em Willoughby Hall.
O senhor Snedburg meteu o dedo mindinho na orelha.
—Vou ver o que eu posso descobrir que seja sólido, senhor. A encontraremos rapidamente, eu garanto.
—Fleur? — murmurou o outro, observando os redemoinhos que formava o conteúdo de sua taça. — Estava acostumada a ter chiliques quando criança porque minha mãe e meu pai não a chamavam assim. Aparentemente era o nome que usava até que seus pais morreram. Eu tinha esquecido.
—Bom, sim, como você diz, senhor — concordou o senhor Snedburg, terminando o que restava no copo de sua bebida e ficando em pé. — Verei o que posso descobrir desse duque e sua preceptora.
—Quero que a encontre logo — pediu Lorde Brockehurst.
—Muito em breve, hoje mesmo — acrescentou o outro eficiente. — Tem minha palavra, senhor.
—Bem, disseram-me que você era o melhor. Embora tenha demorado muito em descobrir isto...
Snedburg decidiu não comentar nada dos elogios ou críticas. Saudou de um modo quase militar e saiu a toda pressa do salão.

Capítulo 4

A vida de Fleur não foi nada difícil nas duas primeiras semanas que passou em Willoughby. Haviam-lhe dito que seguisse as ordens da senhora Clement, e aparentemente a senhora Clement não estava mais de acordo com as aulas da menina do que estava a duquesa. A nova preceptora tinha sorte se lhe concediam uma hora pela manhã e outra pela tarde com sua aluna.
Ela estava um pouco ansiosa e talvez até um pouco preocupada que a despedissem, porque era uma criada pouco útil, ou porque o duque e o senhor Houghton ao chegar em casa descobrissem que afinal não estava ganhando o seu salário. Mas tentou seguir o conselho da senhora Laycock, que lhe recomendou que se tranquilizasse e assegurou que quando o duque chegasse finalmente em casa, e estava certa de que viria quando se inteirasse da festa que a duquesa havia organizado, tudo seria resolvido.
Enquanto isso, Fleur se familiarizou com seu novo lar e começou a se acomodar nele. Passou longas horas de tranquilidade e paz nas quais teve a oportunidade de deixar que os velhos medos se dissipassem e as velhas feridas se curassem. Às vezes passava um dia inteiro sem sentir a antiga necessidade de olhar ansiosa por cima do ombro para ver se havia alguém perseguindo-a. E às vezes podia dormir uma noite inteira sem ver o rosto duro coberto por uma cicatriz inclinando-se sobre ela e lhe dizendo o que era enquanto a convertia precisamente nisso.
Comia com muito apetite e ganhou parte do peso que perdera. Parecia ter o cabelo mais abundante e brilhante. As marcas das olheiras desapareceram. Ela tinha cor nas faces. Energia nos músculos. Começava a sentir-se jovem outra vez.
Durante essas duas semanas, a senhora Laycock encontrou tempo para passear por parte do enorme parque com ela. E Fleur sempre aprendia mais coisas do seu novo lar e a família para a qual trabalhava conversando tranquilamente com a governanta.
—Ele foi projetado para se parecer com uma beleza natural — comentou a senhora Laycock no parque. —O lago foi escavado, criaram-se as cascatas e cada árvore foi plantada para proporcionar uma perspectiva agradável de quase todos os pontos de vista. Acho um pouco ridículo, senhorita Hamilton, considerando que a natureza funciona muito bem por conta própria sem a ajuda de homens que fazem fortunas na concepção de jardins para os ricos. Eu preferiria jardins simples, com uma boa quantidade de flores. Mas isso é apenas minha opinião. E ninguém nunca me perguntou.
Fleur adorava o parque, seu gramado ondulante e aparentemente interminável e seus arvoredos. Ela adorava os caminhos sinuosos e os templos de pedra e outros caprichos. Sentia que podia passear por ali eternamente e não se cansar nunca da vista ou da sensação de paz que proporcionavam.
A senhora Laycock explicou que Sua Graça, o duque, lutou com o exército inglês na Espanha e na Batalha de Waterloo, embora fosse o herdeiro do duque falecido, e que já tivesse herdado o título quando partiu para a Bélgica.
—Ele nunca evitou nenhuma responsabilidade — contou a governanta. — Claro que houve alguns que disseram que seu dever era ficar aqui são e salvo para assumir suas responsabilidades. Mas ele foi.
—E voltou são e salvo — acrescentou Fleur.
A senhora Laycock suspirou.
—Foi uma época terrível. Estava tão contente antes de voltar a lutar outra vez, quando aquele monstro escapou de Elba. Ele acabara de se comprometer com Sua Graça a duquesa, que naquela época era a Honrada Senhorita Sybil Desford, e era muito feliz. Eles foram feitos um para o outro durante anos, mas durante esses meses esteve totalmente dedicado a ela.
—Mas ele voltou para ela, tudo terminou felizmente.
—Pensávamos que ele tivesse morrido — explicou a senhora Laycock. — Recebemos a notícia de que ele foi morto em batalha, e seu criado voltou para casa destroçado; ele passou anos com Sua Graça. Eu não gosto de recordar essa época, senhorita Hamilton. Primeiro o velho duque e em seguida o nosso menino. O menino! — Ela riu. — Ei, a verdade é que agora ele já tem mais de trinta anos.
Elas se sentaram em uma cadeira de ferro forjado, junto ao caminho que estavam percorrendo e olharam através das árvores em direção ao lago em forma de meia lua com uma ilha e uma cabana abobadada no centro.
—Lorde Thomas assumiu o título — continuou a senhora Laycock. — Esse é o meio-irmão de Sua Graça. Eles se parecem fisicamente, mas são tão diferentes como o dia e a noite. Alguns preferem Lorde Thomas porque é alegre e sorridente. Ele propôs casamento a Sua Graça, a senhorita Desford.
—Tão rápido? —Perguntou Fleur. — Mas certamente tal engano foi descoberto imediatamente?
—Demorou um ano inteiro — suspirou a empregada. — Deram a Sua Graça por morto e enterrado no campo de batalha. Esses franceses, ou belgas, comportaram-se como bárbaros, senhorita Hamilton. Mas um casal decente descobriu que ele ainda respirava e o levaram para casa para cuidar dele e curá-lo. Recebeu umas feridas terríveis. — Ela meneou a cabeça. —Ele esteve inconsciente ou febril durante semanas. E depois ele não conseguia se lembrar grande coisa. Passou meses sem saber quem era, e em seguida custou muito convencer as pessoas quem era. Quando o encontraram estava nu, pobre cavalheiro.
—Assim passaram um ano acreditando que estava morto? — Perguntou Fleur.
—Nunca esquecerei o dia que ele chegou em casa, — recordou a senhora Laycock. — Ainda coxeava e estava tristemente desfigurado, pobre cavalheiro. Eu nunca vou esquecer.
—O que aconteceu a Lorde Thomas? — Perguntou Fleur quando sua acompanhante ficou olhando silenciosamente para o lago.
—Ele partiu. Simplesmente desapareceu sem mais, cerca de três meses depois que Sua Graça voltou para casa. Alguns dizem que eles não poderiam estar juntos na mesma casa e que Sua Graça ordenou que partisse. E outros dizem outras coisas. Eu não sei o que aconteceu. Mas jamais retornou.
—E no fim, a duquesa se casou com Sua Graça? — Perguntou Fleur. — A história teve um final feliz.
—Sim. — A senhora Laycock levantou-se e tocou as dobras de seu vestido preto. — Ela se casou com ele. Embora tenha se lamentado tanto quando veio aqui com seu pai e descobriu que Lorde Thomas partira, que me custou muito para silenciar os criados, senhorita Hamilton. E como estava contente de voltar para casa tão somente três meses antes, que quando desceu da carruagem ele a agarrou entre seus braços e dançou com ela para que todo mundo visse!
Elas continuaram a andar, cada uma perdida em seus pensamentos. Fleur pensou que era estranho o duque passar tanto tempo longe de casa se gostava tanto, e amava a duquesa e tinha um senso de responsabilidade tão grande. Mas Fleur tampouco dispunha de todo o tempo para ela. Tinha duas horas por dia com sua aluna, uma menina pequena, magra e morena que algum dia poderia ser bonita se seu olhar frequentemente
irascível não se tornasse habitual. Não se parecia em nada com sua mãe. Devia ter tudo de seu pai. Ela era uma criança difícil. Não queria olhar para os livros, não queria ouvir histórias, não queria bordar, e quando pintava só queria fazer de maneira despreocupada, desperdiçando papel e tinta e ficando muito teimosa quando Fleur insistia que recolhesse o que havia jogado no chão.
Fleur tentava ser paciente. Afinal, Lady Pamela era pouco mais que um bebê, e devia saber, as crianças geralmente sabe que sua mãe e sua babá estavam de seu lado. Fleur estava tentando despertar na menina o desejo de aprender.
Havia um velho cravo na sala de estudo. Fleur se sentou diante dele e o tocou durante uma tarde quando Lady Pamela se negou a cooperar em todas as atividades planejadas, e continuou tocando quando percebeu que a menina estava de pé ao lado do tamborete.
—Quero tocar — exigiu Lady Pamela quando os dedos de Fleur se detiveram finalmente.
Fleur sorriu.
—Você já estudou alguma coisa?
—Não. Eu quero tocar. Levante-se.
—Por favor — tentou corrigi-la Fleur.
—Levante-se! — Repetiu a menina. — Eu quero tocar.
—Por favor —Fleur voltou a dizer.
—Você é uma criada— retrucou Lady Pamela com altivez.—Levante-se ou eu direi a Nanny.
—Levantarei-me com gosto — acrescentou Fleur, — se me pedir em vez de ordenar.
A menina brigou e bateu em uma boneca velha que trouxera para a sala de estudo.
Fleur afogou um suspiro e continuou tocando tranquilamente. Tudo fazia lembrar e recordava muitas coisas. A prima Caroline e Amelia, que se tornaram arrogante e autoritárias, porque de repente se tornaram na Lady Brockehurst de Heron House e na Honorável Senhorita Amelia Bradshaw depois da morte de seus pais.
E ela foi tratada assim, porque eles foram forçados a oferecer-lhe uma casa, na casa aonde sempre viveu. Amelia ficou com seu lindo quarto chinês e a relegou a um quarto feio nos fundos da casa. Ela teve alguns dias bons com sua aluna. Uma manhã, Lady Pamela estava nervosa porque sua mãe ia levá-la de visita pela tarde, mas na hora do almoço elas foram informadas de que Sua Graça estava com febre e o médico recomendou repouso.
Fleur estava comendo no andar de cima e viu a expressão de desapontamento intenso no rosto de sua aluna. Lágrimas escorriam de seus olhos e o lábio tremia fazendo beicinho. A menina via muito pouco sua mãe.
Mas Fleur sabia que a decepção principal seria não poder ver as crianças dos Chamberlain e seus cães. Lady Pamela tampouco via muito a outras crianças.
—Eu poderia levar Lady Pamela para visitar as crianças? — Ela perguntou a senhora Clement quando a menina não podia ouvi-la.
Esperava que se negasse, mas a babá a olhou pensativa e disse que consultaria Sua Graça. Em menos de meia hora Fleur teve o prazer de ver como o rosto da menina se iluminava de modo que quase parecia bonita.
Ela começou a pular animada até que a babá lhe agarrou o rosto entre as mãos e ordenou que não se excitasse tanto. Fleur pensou que por fim fizera algo que contava com a aprovação de sua aluna. Saíram logo que estiveram preparadas e trouxeram a carruagem. E Fleur sorriu enquanto observava Lady Pamela sentada em frente, olhando a paisagem que passava diante da janela, acenando para a mulher do guarda e falando ocasionalmente sobre os cães dos Chamberlain.
—Mamãe não me deixa ter um cão ou gato — explicou, — nem coelho — acrescentou, momentos depois. — Quase pela primeira vez desde que se conheceram, Fleur sentiu que sua aluna parecia uma criança.
Chamberlain era um viúvo com seus quarenta anos que vivia com sua irmã e seus três filhos em uma casa elegante que Fleur pensou que parecia muito a casa acolhedora dos seus sonhos que teve a caminho de Dorsetshire.
Fleur explicou a senhorita Chamberlain, uma dama elegante em seus trinta anos vestindo uma touca de renda em seu cabelo escuro suavemente penteado, que Sua Graça estava indisposta e que Lady Pamela se mostrou decepcionada com a ideia de perder o prazer de brincar com as crianças. Fleur pediu permissão para permanecer sentada nos aposentos dos criados durante uma hora.
—Nos aposentos dos criados? — Replicou a senhorita Chamberlain rindo. — De maneira nenhuma, senhorita Hamilton. Você é a nova preceptora de Lady Pamela? Disseram-nos que ela tinha preceptora. Tomará o chá com Duncan e comigo enquanto as crianças brincam.
Fleur seguiu sua anfitriã até o salão, aonde em seguida as acompanhou o senhor Chamberlain, que fez uma reverência e não se mostrou nada aborrecido com a perspectiva de ter que tomar o chá com uma simples preceptora.
—Sem dúvida, em breve a nossa conversa vai ser abafada pelos latidos, senhorita Hamilton — explicou o senhor Chamberlain. — Colocarão os pobres cães na sala para brincar com eles. Sempre é assim quando Lady Pamela está aqui. Acredito que ela não tem muitas oportunidades de brincar com outras crianças ou animais.
—E a ensinaram que os cavalos são perigosos — acrescentou a senhorita Chamberlain, dando a Fleur sua xícara e seu prato.
Seu irmão sorriu.
—Eu suponho que seria fácil ser superprotetor com apenas um filho, — opinou ele. — É uma pena que Adam não esteja em casa mais frequentemente. Você sabe se vai voltar para casa?
—Receio não saber, senhor — respondeu Fleur.
—Não será o mesmo sem ele — continuou o senhor Chamberlain. — Mas os bailes de Willoughby são as celebrações mais esplêndidas que existem. Parece que as opiniões estão muito divididas na área a respeito se os melhores som são no interior ou ao ar livre. Emily acredita que ao ar livre são muito mais românticos, não é assim, querida?
—Ah, mais românticos, sim, sem dúvida — afirmou a senhorita Chamberlain. — Não tenho certeza se são mais esplêndidos. Não há nada como um passeio pela galeria, senhorita Hamilton, com a música que vem do grande salão e velas acesas nas arandelas da parede e todos os antepassados dos Ridgeway olhando.
— Você está satisfeita com seu trabalho?
Fleur passou uma hora agradável conversando com irmão e irmã e passeando com eles pelo caramanchão repleto de flores. Pareciam bastante imperturbáveis com o escândalo e as risadas procedentes da parte superior da casa.
—Tenho uma babá que cuida dos ossos quebrados, puxões de cabelos e coisas assim—explicou o senhor Chamberlain quando Fleur comentou que esperava que Lady Pamela estivesse se comportando como devia.
—Não tenho problemas para suportar um pouco de barulho.
—Quando está entre seus livros, Duncan — interveio sua irmã. — Poderia gritar no seu ouvido quando está lendo, senhorita Hamilton, e ele ignoraria.
Durante uma hora, Fleur sentiu-se novamente como uma pessoa real. Embora enquanto levava uma relutante Lady Pamela a carruagem para voltar para casa, pensou que talvez as palavras "novamente" não eram as adequadas. Nunca foi tratada com muito respeito quando vivia em Heron House.
—Uma tarde levaremos as crianças a Hall para retribuir a visita — prometeu o senhor Chamberlain, agarrando a mão de Fleur para ajudá-la a subir na carruagem. — Obrigado por trazer a menina, senhorita Hamilton. Tenho certeza que fez bem a ela sair. E obrigado por nos visitar.
—Desconheço seu horário de trabalho, mas suponho que disporá de tempo livre. Venha quando desejar, senhorita Hamilton. Eu vou apreciar sua companhia — propôs Emily Chamberlain.

—Um dos cães mordeu o traseiro de Randall quando ele estava subindo em uma cadeira — explicou Lady Pamela a Fleur quando a carruagem se pôs em movimento. — A babá disse que foi porque deixamos o cão nervoso — ela riu. — Mas foi muito divertido.
Fleur riu com ela, mas resistiu o impulso de abraçar a menina. Era cedo demais para fazer isso.
Fiel a sua promessa, o senhor Chamberlain levou sua irmã e seus filhos de visita vários dias depois. Enquanto a senhorita Chamberlain permanecia sentada bebendo chá com a duquesa, ele levou as crianças ao andar de cima, mas encontrou Lady Pamela na metade de uma lição de aritmética na sala de ensino.
—Eu imploro seu perdão — disse ele, quando bateu na porta e Fleur respondeu. — Posso provocar sua cólera eterna, senhorita Hamilton, e pedir que dispense Lady Pamela cedo de suas aulas para brincar com meu trio? Tenho certeza que fará o dobro de esforço amanhã, não é, Pamela?
—Sim — gritou ela entusiasmada, ficando em pé.
—Também é uma mentirosa consumada — sussurrou o senhor Chamberlain a Fleur enquanto sorria, — como todas as crianças. Eu posso convencê-la a sair para que eles possam brincar, gritar e lutar, sem destruir nossos ouvidos?
—Que ideia excelente — exclamou Fleur, e desceu a escada e caminhou por uma porta traseira da casa, em direção a um gramado que conduzia até uma longínqua fila de árvores. Ela hesitou quando o cavalheiro ofereceu-lhe o braço enquanto caminhavam. As crianças se adiantaram com uma bola que um dos filhos Chamberlain mantinha firmemente presa. Era um gesto apropriado? Ela era uma criada.
Ele um visitante. Fleur tomou seu braço.
—Se andarmos devagar — comentou ele, — as crianças se afastarão o suficiente para não termos que ouvir palavrões ou insultos desagradáveis. A experiência me ensinou que, para lidar com crianças, senhorita Hamilton, o melhor é torna-se cego, surdo e tolo. E é obvio ter uma babá competente e uma irmã que viva em casa ajuda muito. Fale-me de você. O que a trouxe até aqui?
Fleur sentia-se culpada pelas mentiras e meias verdades que se via obrigada a contar.
—Você participará do baile? — perguntou ele ao despedir-se dela um momento depois e virou-se para chamar a seus três filhos. — Espero dançar com você ali, senhorita Hamilton.
Ela também esperava. Ao levar Lady Pamela pela mão de volta a sala de jogos e suportar o olhar glacial da senhora Clement quando ela notou as faces coradas e o cabelo um tanto despenteado da menina, Fleur o desejou profundamente. Ela voltou para a sala de estudo para guardar os livros que deixou antes e deu um giro, o livro de aritmética pressionado contra o peito.
Era tão agradável sentir-se jovem, feliz e cheia de esperança outra vez! E que um cavalheiro atraente a pedisse que dançasse com ele no baile! Não que a seduziram as expectativas de futuro, é claro. Só estava permitindo o mais leve dos flertes. O casamento estava totalmente descartado. Mas se conformaria com um leve flerte. Seria suficiente.
E finalmente parecia que Sua Graça, o duque, ia voltar para casa. Lady Pamela contou uma tarde em que atravessou correndo a porta da sala de estudo, quando normalmente arrastava os pés e estava acostumada a adotar uma expressão mal-humorada.
—Papai Vem! — Anunciou triunfante. —- Mamãe acaba de receber uma carta dele. Ele deve chegar a qualquer momento. Deve estar aqui antes que os convidados de mamãe cheguem.
A duquesa esperava perto de vinte convidados durante a semana, até o dia anterior ao baile.
Fleur sorriu.
—Que bom — exclamou. — Estará muito contente em ver seu pai.
—Não, não estarei — protestou a menina. — Estarei zangada com ele.
—Sério? E porque não?
—Porque ele se foi e não voltou. E porque ele mandou você.
Fleur sorriu silenciosamente para si mesmo. Ela pensou que havia avançado. Mas, aparentemente, fora da sala de estudo. Teria que recordar que quem algo quer, algo lhe custa.
—Olhamos o alfabeto?
—Eu tenho dor de cabeça — replicou Lady Pamela. — Eu quero pintar.
—Um quadro para seu papai? — Perguntou Fleur. — Muito boa ideia. Mas primeiro dez minutos de alfabeto.
A batalha começara.
—Eu farei com que papai a devolva a seu lugar — ameaçou Lady Pamela.
—Fará isso? — Fleur se sentou ao lado dela e gentilmente a segurou pelo braço quando ela se levantou de seu lugar. — Recorda desta letra?
—A, de árvore — disse Lady Pamela sem olhar. — Essa é fácil. Eu não lembro das outras. Minha cabeça dói.
Sim, Fleur pensou que Sua Graça, o duque, bem poderia despedi-la. Não trabalhava mais de duas horas por dia, e mesmo então, tentar ensinar a Lady Pamela parecia bastante como tentar puxar uma mula. Mas não queria pensar na demissão e em tudo o que significaria para ela. Não voltaria a mergulhar novamente em melancolia. Já era incrível ser feliz e estar viva.

Houghton era um empregado valioso. Estava a serviço do duque de Ridgeway a mais de cinco anos, na verdade, praticamente desde o dia que o duque havia retornado da Bélgica. E Sua Graça chegou a confiar cada vez mais nele para administrar os assuntos cotidianos de sua vida. Era um homem sensato, trabalhador e discreto.
Mas Houghton possuía uma qualidade que o duque valorizava mais que qualquer outra, e era sua habilidade de perceber o humor de seu senhor e adequar seu próprio comportamento a isso. Eles comiam juntos quando estavam em Londres e conversavam frequentemente sobre assuntos variados. Mas quando o duque queria permanecer em silêncio, seu secretário não sentia necessidade de continuar conversando.
Aquele dia, enquanto se aproximavam de Willoughby, Houghton permanecia sentado em silencio na carruagem, olhando a paisagem através da janela, e guardava silêncio.
Sua Graça o agradecia. A dor do amor e a nostalgia haviam tornado a apoderar-se dele. Estavam perto do velho muro do parque. Logo percorreriam os caminhos de limas e estariam realmente em casa. Questionou-se se todos os homens sentiam por seu lar o que ele sentia pelo seu. Era parte de sua identidade, parte de si mesmo.
Lembrou-se que uma vez, seis anos atrás, quando ele retornou após uma ausência prolongada e dolorosa. A mulher do vigilante da entrada levou o avental aos olhos e começou a chorar ao vê-lo: seu rosto enrugado desfazia em sorrisos agora ao lhe fazer uma reverência. O duque ergueu a mão para cumprimentá-la e sorriu. Todos os criados saíram para o terraço para recebê-lo, inclusive o tinham aclamado, e teria jurado que sua felicidade não era fingida.
E pensou em Thomas. A memória perdeu um pouco de seu brilho. Não pensou que... Foi tão estúpido não pensar no que significou para Thomas o ano que acreditaram que tivesse morrido. Ele foi o duque de Ridgeway e agora era apenas Thomas Kent outra vez.
O duque sempre pensou que Thomas o amava, embora tivessem suas diferenças e mesmo que fossem apenas meio irmãos. Thomas era o filho da segunda esposa de seu pai. Pode ser que o tivesse amado. Pode ser que simplesmente o golpe de se ver privado repentinamente de um título e uma propriedade que considerara seus fosse muito para ele.
E o duque pensou em Sybil mais tarde, naquele mesmo dia. Sybil, com quem sonhava semanas antes de retornar, desde que recuperara a memória. Outra vez em seus braços, durante um breve instante. Mais linda do que nunca. Mas ele não se lembraria. Agora, voltava para casa e estava emocionado, apesar do fato que Sybil estava lá.
A senhora Laycock e Jarvis, o mordomo, estavam de pé no alto dos degraus em forma de ferradura, na frente das enormes portas duplas que conduziam a entrada. Tudo era muito familiar e muito querido. A senhora Laycock era a governanta de Willoughby desde que Sua Graça se lembrava, e Jarvis esteve na casa toda sua vida, subindo da categoria de lacaio até seu posto atual, que ocupava há quatro anos.
A senhora Laycock fez uma reverência e Jarvis inclinou seu corpo para fazer o mesmo, embora a postura se tornou muito mais rígida no mesmo dia de sua ascensão. O duque sorriu e os saudou. Sybil não saiu para recebê-lo. A senhora Laycock o informou que ela estava em sua sala.
Transcorreu quase uma hora até que foi vê-la. Sybil não gostaria de receber um marido ansioso com roupas amassadas com a qual viajara. Primeiro se banhou e se trocou.
Sua mulher estava recostada no divã da sala, mas não se levantou quando entrou.
—Adam! — Ela exclamou com voz entrecortada, sorrindo. Era a mesma Sybil linda, frágil e de enormes olhos por quem se apaixonou uma vez na vida. — Você teve uma viagem confortável?
Ele se inclinou para beijá-la e ela posicionou o rosto para receber seus lábios.
—Como está, Sybil? — Ele perguntou.
Ela corou um pouco.
—Bem, — respondeu. — Aborrecida. Sir Cecil Hayward organizou um jantar ontem a noite e entreteve o grupo com histórias de sua recente caçada e louvores para seus cães. Eu saí cedo. Não conseguia parar de bocejar.
—Temo que ele é o típico cavalheiro do campo — comentou ele sorrindo. — Você já se recuperou de seu resfriado?
Ela encolheu os ombros.
—Você não vai se preocupar, certo? Nanny já se preocupa o bastante.
—Então tenho que lembrar-me de agradecê-la. Como esta Pamela?
—Bem. Apesar das circunstâncias, coitadinha. Você tem que demiti-la, realmente, Adam. Por que você a mandou?
—Ela não está fazendo um bom trabalho?
—Pamela é muito pequena para passar horas na sala de estudo. E não gosta da preceptora. Eu gostaria de saber se a conhece, Adam.
—Houghton a contratou. A quem você convidou além de Chesterton?
—Apenas umas poucas pessoas. Eu estava tão entediada quando você saiu...
—Você sabe que poderia ter vindo comigo — replicou ele. — Eu lhe pedi isso. Teria levado Pamela e você. Poderíamos ter-lhe mostrado Londres.
—Mas sabe que teria dado uma de marido ciumento assim que eu tivesse sorrido a outro cavalheiro — protestou ela. — Você sempre faz, Adam. Não suporta ver como me divirto. Você veio para casa para estragar as coisas de novo? Se dedicará a olhar de cara feia para todos meus convidados?
—Por acaso preciso fazer?
—Você é terrível — lamentou-se Sybil. Seus grandes olhos azuis começaram a encher-se de lágrimas. — Você sabia do baile?
—O baile?
—Eu preparei tudo para a noite depois que todos chegarem. E convidei todo mundo, Adam. Não se preocupe, ninguém ficará ofendido.
—Você planejou um baile sem mim? E isso não é estranho para nossos vizinhos, Sybil?
—Por acaso posso evitar se você parte para Londres a cada oportunidade que se apresenta em busca de prazer? Acredito que qualquer um estaria de acordo comigo. É um baile ao ar livre. Contratei uma orquestra para que toque no pavilhão. Instalará-se uma pista de dança no lado oeste do lago, no lugar habitual. E eu pedi as lanternas e lanches. Espero que não chova.
—E tudo isso vai acontecer dentro de quatro dias? — Perguntou ele. — Fico feliz que ocorreu a você mencionar, Sybil. Odeio surpresas.
—E eu odeio esse tom de sarcasmo — espetou ela. — Antes não me falava assim. Era amável comigo. Queria-me... — começou a tossir, e tirou um lenço de um lado. — Faz muito calor aqui dentro — ela se queixou. —Acredito que agora preciso descansar. O médico me disse para descansar mais. E de todas maneiras estará ansioso para sair e cuidar de seus próprios assuntos.
—Deixe-me acompanhá-la ao dormitório —pediu Adam, inclinando-se para ela. — Eu teria trazido um médico da cidade se soubesse que continuava mau. É evidente que Hartley não está servindo muito.
—Você não escreveu para perguntar como eu estava. Vou ficar descansando aqui, obrigada, Adam.
"Não me toque." Ela não disse essas palavras, mas suas ações o disseram por ela. Quando Adam estendeu as mãos ela se encolheu um pouco. Se recusou a deixá-lo a ajudá-la.
Ele teve o descaramento de tentar cumprimentá-la com um beijo. O duque apertou a mandíbula quando ficou de pé do outro lado da porta instantes depois. Conhecia muito bem aquelas palavras, às vezes pronunciadas, e outras vezes apenas insinuadas. Ele se perguntou se Pamela ainda estava na sala de aula. Ou na sala de jogos. Iria ver se a encontrava. Sentira sua falta.

Capítulo 5

Fleur estava lendo uma história para Lady Pamela, embora soubesse que a menina não a escutava. Ela vira seu pai fazia mais de uma hora da janela da sala de jogos, aonde estava com a senhora Clement. Mas a babá não lhe permitiu descer para recebê-lo e pouco depois a enviou para a sala de estudo.
A menina estava dividida entre o entusiasmo impaciente por sua chegada e a teimosa insistência que não se importava, que de todos os modos não queria vê-lo.
Embora fosse uma menina mal-humorada e antipática na maioria do tempo, Fleur às vezes desejava agarrá-la entre seus braços, estreitá-la com força, assegurar que a amavam, que se importavam, que não se esqueciam dela. Ela sabia como era aquilo. Claro que sabia, embora não soube tão jovem. E quando aconteceu e tinha idade suficiente para saber que não deveria culpar seus pais por isso. Sempre se consolava ao saber que eles a amavam, que era tudo para eles.
Pode ser que afinal o caso de Lady Pamela fosse pior que o seu. Sua mãe raramente a visitava, embora a enchesse de amor e palavras carinhosas quando a via. Seu pai estava há várias semanas fora. Mas no final chegara. Elas ouviram firmes passadas masculinas no corredor, fora da sala de estudo, e uma voz profunda falando com a senhora Clement. E Fleur soltou um suspiro de alívio por Lady Pamela, cujo rosto se iluminou adotando uma expressão de entusiasmo pouco habitual nela, mas que a tornava atraente, enquanto a preceptora ficava silenciosamente em pé, atravessava a sala e guardava o livro para deixar um pouco de intimidade entre pai e filha.
A porta abriu-se e se ouviu um gritinho infantil. Fleur sorriu e colocou o livro na sua prateleira com os outros. Na verdade, ela estava nervosa. O Duque de Ridgeway! Sempre o imaginou como um personagem magnífico.
—Papai! Papai! — Gritou Lady Pamela. — Eu fiz um quadro para você, e perdi um dente, veja? O que você me trouxe?
Ouviu-se uma risada masculina profunda, e um sonoro beijo.
—Interesseira — protestou ele. — Pensei que fosse por mim que estava contente, Pamela. O que a faz pensar que eu trouxe alguma coisa?
—O que você me trouxe? —A menina estava gritando.
—Mais tarde — ele a conteve. — Você parece estranha sem o dente.
—Quando mais tarde? — insistiu a menina.
O Duque de Ridgeway voltou a rir.
Fleur virou-se. Sentia-se estúpida por seu próprio nervosismo. Ela era filha de um barão. Viveu na casa de um barão, em Heron House, a maior parte de sua vida. Não havia o mínimo motivo para que um duque a intimidasse. Ela endireitou-se, juntou as mãos na frente no que esperava que parecesse uma atitude relaxada e levantou o olhar.
O duque estava com sua filha em seus braços e ria com a menina abraçando seu pescoço. Metade do seu rosto cheio de cicatrizes voltado para Fleur.
De repente, sentiu-se como se estivesse em um túnel, um longo túnel escuro por onde soprava um vento frio. Ouvia como zumbia, embora estava convencida que não havia suficiente ar para respirar. Os olhos do duque se encontraram com os de Fleur do outro lado da sala, e o frio penetrou pelo seu nariz e subiu-lhe até a cabeça. O som do vento tornou-se um zumbido surdo.
Suas mãos se tornaram frias e úmidas e como se estivessem a um milhão de quilômetros de sua cabeça.
—Senhorita Hamilton? — O duque de Ridgeway deixou a filha no chão e deu alguns passos em direção a Fleur, fazendo uma leve reverencia. — Bem-vinda a Willoughby Hall, senhorita.
Fleur sabia que se conseguisse respirar fundo e de maneira regular durante o tempo suficiente recuperaria a visão e o sangue seria bombeado de volta para a cabeça. Pensou unicamente na respiração.
Inspirar. Expirar. Não acelere. Não force.
—Confio que tenha encontrado tudo a seu gosto. — Ela apontou para a sala de estudo ao seu lado.
"Respira lentamente, Não, não se deixe levar pelo pânico. Não desmaie. Não desmaie!"
—Papai, o que você me trouxe? — Lady Pamela puxava a perna da calça de seu pai.
Aqueles enormes olhos escuros deixaram de olhá-la para fixar-se em sua filha. Ele sorriu, mas o lado da boca que Fleur via, o lado da cicatriz, permaneceu impassível.
Fleur sentiu um terror sombrio, que a deixou sem fôlego por um instante antes de voltar a controlar a respiração.
—Será melhor descermos para ver ou você não me deixará em paz, não é? — comentou ele. — Sidney esteve reclamando por todo o caminho de Londres até aqui. Só espero que você goste.
Ele estendeu a mão para sua filha: uma mão de dedos longos e bem cuidados.
Lentamente. Inspirar. Expirar.
—Sidney é um tolo — disse Lady Pamela.
—Eu tremo só de pensar o que diria Sidney se ouvisse você dizer isso.
—Sidney é um tolo, Sidney é um tolo — gritou a menina, rindo bobamente e agarrando sua mão.
Fleur sentiu novamente o olhar escuro nela, embora ela manteve o olhar fixo em Lady Pamela.
—A senhorita Hamilton descerá conosco — acrescentou o duque, — ela a trará de volta antes que Nanny possa enviar uma equipe de busca.
Fleur saiu antes dele e atravessou o corredor a seu lado, em direção a uma das escadas gêmeas que ladeavam a entrada principal.
—Senhorita? — falou Adam ao chegar as escadas, estendendo seu braço livre.
Mas ela emitiu um som inarticulado, e se afastou ainda mais, até o ponto de que seu vestido roçava a parede enquanto desciam. O duque virou-se para ouvir o falatório de Lady Pamela.
Fleur ouviu o eco de seus passos ao cruzar a entrada principal, fixou-se na elegância com que um lacaio inclinou-se para abrir as portas duplas, sentiu o ar fresco e o sol contra seu rosto, contou os degraus de mármore enquanto descia, e sentiu os paralelepípedos do caminho sinuoso que conduzia ao estábulo sob seus pés.
Ela se concentrou intensamente nas sensações físicas imediatas. Foi a melhor maneira de ocupar os seus pensamentos.
—Para onde vamos? — Lady Pamela caminhava junto a seu pai com passo ligeiro, ainda agarrada a sua mão.
—Logo você vai ver — ele a tranquilizou. — Pobre Sidney.
—Sidney tolo — repetiu ela.
O cachorrinho Border collie de focinho arrebitado tinha o pelo branco no nariz e uma linha torta na parte da cabeça e pescoço. Metade do corpo do animal e a barriga eram brancos. O resto era negro. Ele queixava-se que o tivessem colocado em um cercado improvisado com um monte de palha contra a qual ele tropeçava quando tentava caminhar.
Ele gemia alto chamando pela mãe.
—Aaaah! — Lady Pamela soltou a mão do pai e olhou para ele sem dizer nada até que ele ficou de joelhos junto ao cercado e levantou o filhote agarrando-o entre as mãos. O cachorrinho deixou de chorar imediatamente e lambeu o rosto dela, o que fez com que a menina torcesse o nariz e o afastasse, rindo.
—Sidney viajou de Londres de cara emburrada e os dedos mordiscados — explicou Sua Graça. — E muitas vezes com as calças molhadas.
—Oh! — Lady Pamela olhava seu presente maravilhada. — É meu, papai? Todo meu?
—Tenho certeza que Sidney não o quer.
—Eu vou levá-lo pra meu quarto. Vou dormir com ele.
—É um cachorro — esclareceu o duque. — E pode ser que sua mãe e tatu tenham algo a dizer sobre o que é ter um animal de estimação em casa.
Mas Lady Pamela não estava ouvindo. Ela estava brincando com seu cachorro e rindo quando ele mordiscou seus dedos com os pequenos dentes afiados.
Fleur olhava para menina e o cachorrinho, com os ombros inclinados para trás e a cabeça erguida. Manteve as mãos apertadas quando sentiu que o duque voltou a vista para ela e a percorria com o olhar.
—Por acaso não suspeitava? — Ele perguntou baixinho.
Fleur não conseguia se mover. Se movesse um músculo, desabaria.
—Não suspeitava — afirmou ele, e se ajoelhou ao lado da filha.
Foi decidido que o cachorrinho ficaria no estábulo até que o tivessem educado para estar em casa. Pamela poderia visitá-lo quando quisesse, desde que não interrompesse suas aulas nem seu descanso.
Mais tarde, poderia levar seu mascote para casa, sempre e quando nunca entrasse no piso principal , ou sua mãe teria um ataque de tosse e Sidney ficaria furioso.
O duque permaneceu nos estábulos enquanto Fleur levava Pamela pela mão de volta a casa. A menina falava sem parar. O cachorrinho era lindo. Os meninos Chamberlain iam ficar com tanta inveja quando o vissem... quando a vissem. Ensinaria-lhe a sentar e a obedecer ordens. Não era seu pai, o pai mais maravilhoso no mundo?
Fleur retornou com a menina pelo mesmo caminho que vieram: subiram os degraus, cruzaram a entrada principal e o arco, subiram as escadas e atravessaram o corredor até a sala de jogos onde as esperava a senhora Clement.
O falatório de Lady Pamela aumentou de velocidade e volume para seu novo público.
—As aulas terminaram por hoje, senhorita Hamilton — ordenou a babá em tom desdenhoso.
Fleur foi para seu quarto, sem hesitação, fechou a porta atrás de si e se apoiou contra ela, com os olhos fechados, como isso pudesse mantê-la fora do mundo.
E então ela se trancou no reservado, inclinou-se sobre a cadeira com o urinol e vomitou até que lhe doeu o estômago.

—Sua Graça o duque partiu para sua propriedade no campo — informou o senhor Snedburg a Lorde Brockehurst em um dia abafado de maio — levando seu secretário, o senhor Houghton, com ele. Isso parece confirmar o assunto. Ele foi o homem que contratou a senhorita Hamilton, senhor.
—Tem que ser ela e deve estar ali — comentou seu cliente, observando carrancudo e enojado enquanto o agente secava o rosto com um lenço grande. — Que desculpa eu posso encontrar para ir até lá?
—Você não descobriu o paradeiro de Lorde Thomas Kent por acaso, verdade?
—Eu ainda não comecei a investigar — comentou o senhor Snedburg. — Poderia fazer, mas, é necessário, senhor? Se procura a jovem por assassinato, posso ir ali imediatamente com sua aprovação, com uma ordem de prisão, e trazê-la até aqui. Não me escaparia, você pode ter certeza. Em pouco tempo pode tê-la com a cabeça na forca e os pés balançando no ar, senhor.
Lorde Brockehurst estremeceu ligeiramente.
—Encontre Lorde Thomas Kent — ordenou, — ou encontre uma forma de me apresentar nessa casa sem parecer um completo imbecil, e seu trabalho terá terminado. Eu farei com que volte.
—Então a única coisa que precisa fazer, senhor, é ir até ali para buscá-la — comentou o senhor Snedburg, enxugando o pescoço e observando os decantadores no aparador com uma expressão decididamente nostálgica. —Se a preceptora do duque for uma assassina e uma ladra de joias não precisa de desculpas.
—Obrigado. — Lorde Brockehurst olhou fria e fixamente ao agente. — Eu farei a minha maneira. Traga-me a informação que quero e ajustarei as contas com você.
—Pelo que todos dizem, haverá uma festa em Willoughby Hall, senhor — comentou o agente. — Conseguirei-lhe uma lista de convidados e daqueles que ainda estão em Londres e não partiram.
—Tão rápido quanto possível, por favor — pediu Lorde Brockehurst, animando-se, e a seguir levantou-se para que o policial partisse.
—Pode contar com isso, senhor — afirmou o senhor Snedburg. — E se Lorde Thomas estiver na Inglaterra, eu vou descobrir.
Quando voltou a ficar sozinho, Lorde Brockehurst cruzou a sala para servir uma bebida, e ficou com a garrafa nas mãos, olhando-a fixamente com expressão de desgosto.
Tinha que ser Isabella. Mas como foi trabalhar de preceptora para o duque de Ridgeway? E que seu secretário a tivesse contratado, que tivesse passado quatro dias naquela agência esperando-a?
Que diabos estava acontecendo? Se Ridgeway ou algum outro colocou a mão nela... Fechou a mão ao redor da garrafa. Ele a encontraria. A faria entender as coisas a sua maneira, mesmo que fosse a última coisa que fizesse na vida. Não teria nenhuma outra alternativa que não fosse entender as coisas tal e como ele entendia. Não que ele quisesse ameaçá-la. Ele nunca pensou que fosse necessário.
Que mulher mais estúpida. Ele sempre ficou espantado com sua teimosia. Não foi capaz de entender sua maneira de raciocinar. Claro que as mulheres apaixonadas nunca eram razoáveis. E acreditava que ela estava apaixonada pelo frangote do Daniel Booth.
Embora fosse impossível dizer o que Isabella viu em um padre que era ainda um assistente. Pernas longas, cabelos loiros e olhos azuis... Pensou que tudo aquilo devia bastar a uma mulher que não sabia o que lhe convinha.
Fechou os olhos e pensou no cabelo de Isabella, dourado como o entardecer, sentiu seus dedos enroscado em sua suavidade e cheirou sua fragrância. Maldição, mas agora a tinha aonde queria, e faria com que ela percebesse isso. Se ele tivesse que começar a ameaçá-la, ele o faria. A forca oscilante não era uma imagem muito agradável. Ele a compensaria mais adiante.

No dia seguinte a sua chegada, o duque de Ridgeway estava no terraço superior fora de casa no início da manhã, olhando para o parque que conhecia quase como a palma da sua mão, e ficou furioso ao pensar que dentro de dois dias tudo seria invadido.
Ele gostava de receber convidados em Willoughby. Organizar concertos e grandes bailes quando fosse possível e convidar seus vizinhos para jantar, jogar cartas ou conversar. Ainda gostava de ter algum hóspede ocasional para passar a noite. Mas não gostava de nada de ter uma multidão que não procurava outra coisa que não fosse entretenimento frívolo e superficial, o tipo de gente que Sybil gostava.
Ele vira a lista de convidados. Aquela ocasião não seria uma exceção à regra.
Amava a paz e tranquilidade da sua casa quase mais do que qualquer outra coisa na vida E tudo aquilo duraria Deus sabe quanto tempo. Uma vez que chegassem, os convidados de Sybil nunca sabiam muito bem quando deviam partir.
Percorreu o terraço e a lateral da casa em direção ao gramado da parte de trás, a horta e as estufas. O que não daria por sua liberdade, ele pensou por um momento de descuido, e teve imediatamente uma imagem mental de Pamela e como se emocionou com sua cachorrinha, e insistiu em chamá-la de Pequena, embora tenha lhe explicado que o cachorrinho cresceria. E ele pensou em seu rosto sonolento e o cabelo revolto que tinha quando foi vê-la na noite anterior, não percebendo que já estaria na cama.
Pensou em seus braços agarrando-se a ele com carinho, em seu beijo úmido e em sua pergunta.
—Não irá outra vez, não é, papai?
—Eu estarei aqui por muito tempo — ele assegurou-lhe.
—Promete?
—Prometo — afirmou, abraçando seu corpinho leve e beijando-a. — Agora durma. Eu a verei amanhã.
Não. Uma criança tinha o direito de ter uma casa segura e pai e mãe, mesmo que não fossem exemplares. Foi um erro deixá-la por tanto tempo apenas para sua própria paz.
Ele parou um momento. Havia uma mulher atravessando os enormes canteiros de flores.
Não era a mesma que ele lembrava. De fato, ao olhá-la no dia anterior, sua primeira impressão foi que Houghton havia cometido um engano e contratado a mulher errada. Mas era ela, é claro. Ele a reconheceu ao olhar mais atentamente.
Cada vez que havia pensado nela nas últimas semanas a imaginou magra e pálida, nada bonita, apenas ligeiramente atraente. É verdade que suas pernas eram longas e finas, os quadris marcados e os seios firmes e turgidos. Mas era uma mulher pouco atraente, parecia-lhe que era uma dama que passava uma dificuldade, alguém que se viu obrigado a ajudar por algum motivo desconhecido.
E ele a ajudara.
Ela não era tal e como ele se lembrava. Ganhou bastante peso para que sua figura agora fosse atraente, apesar da barreira da roupa. Seu rosto tinha cor e um brilho saudável. Não estava mais magro e abatido. E o cabelo, que era de um vermelho escuro e sem vida, agora brilhava como um fogo dourado.
No dia anterior descobriu que a senhorita Fleur Hamilton era uma mulher incrivelmente bonita, e o fato o surpreendeu, mas não o deixou exatamente satisfeito. Só em um único sentido ela era do modo em que se lembrava. Era como uma estátua de mármore: fria, distante, indiferente. Ela mal disse uma palavra durante seu primeiro encontro, embora recordava que o observara em todo momento enquanto desfrutava dela. No dia anterior não havia dito uma só palavra. Nem sequer lhe fez uma reverência.
Limitou-se a afastar-se dele: o terror nu e a repugnância refletiam em seu olhar quando ele ofereceu seu braço para as escadas. E mesmo assim, por que ele ofereceu o braço para uma criada?
"Não me toque" murmuravam seus lábios. Provavelmente poderia ensinar a Sybil algumas coisas sobre rebaixar-se.
Continuou avançando em direção a ela, e antes de chegar soube que ela percebera que se aproximava, embora não mostrasse nenhum sinal visível e não o olhasse.
—Bom dia, senhorita Hamilton — murmurou ele, parando a vários passos dela.
Fleur voltou-se olhando-o fixa e diretamente para ele, da maneira como ele se lembrava.
—Você também gosta de caminhar de manhã? — Perguntou o duque. — Eu sempre achei que era o melhor momento para estar ao ar livre.
—Eu não serei sua amante — ela declarou em voz baixa.
—Não será? Perdoe-me, mas por acaso eu pedi?
—É tudo tão claro! Eu entendi perfeitamente quando o vi ontem. Eu não vou ser sua amante.
—E eu entendi que foi contratada para que fosse a preceptora de minha filha. Espero que dedique todas suas energias a tarefa, senhorita.
—É asqueroso — continuou ela. — Você é um homem casado. E me trouxe aqui para viver sob o mesmo teto que sua esposa e filha. Espera que passe várias horas por dia ensinando sua filha. E também espera que eu seja sua puta em tais condições. Por isso me pagou tão bem e me deu comida? Para que estivesse em dívida com você? Voltarei para aonde eu pertenço, mas não permitirei que volte a me tocar. Dá-me asco.
O duque ficou furioso com a garota. Furioso. Como ela se atrevia? Como se atrevia a acusá-lo de trazê-la para sua casa para ensinar Pamela para poder pular com ela entre os bosques e sótão!
—Deixe-me esclarecer uma coisa, senhorita Hamilton — murmurou ele, com as mãos cruzadas atrás das costas. — Ordenei a meu secretário que a empregasse porque você precisava desesperadamente de um emprego diferente do que aquele que escolheu exercer. Acreditei nele quando disse que você era apta para o trabalho. Você é minha criada, senhorita, você ganha bem e a cuidam bem. Acredito que concorda com isso. Eu não tenho o hábito de confraternizar com minhas criadas. E certamente não tenho o costume de dormir com elas. Quando eu preciso de uma prostituta, emprego uma que ofereça seus serviços para isso, e pago em conformidade. Será que ficou claro?
Ela corou e não disse nada. Os olhos do duque se estreitaram.
—Acredito recordar que já disse uma vez que quando faço uma pergunta exijo uma resposta — insistiu. — Responda-me.
—Sim — suspirou ela, e o olhou fixamente, com o queixo erguido. — Sim, Sua Graça.
Ele balançou a cabeça em direção a ela.
—Continue passeando. Tenha um bom dia, senhorita.
O duque partiu dando longos passos pelo mesmo caminho que usou na vinda. A manhã foi marcada pela raiva e confusão que sentia. Mas estava agradecido pelos anos que passou no exército, que lhe ensinou a disciplina para extravasar sua raiva só através de palavras. Experimentou o desejo de agarrar a mulher pelos braços e sacudi-la até partir-lhe a cabeça. Teve vontade de machucá-la.
Se separou do terraço e cruzou o gramado que o conduziria até o lago. E deliberadamente retardou seus passos e sua mente. Suas experiências como oficial o ensinaram a pensar assim, a pensar utilizando a lógica em vez da fúria intensa. Se ela acreditava no que dizia - e era evidente que sim, - então teve que admitir que ela demonstrou coragem notável. imaginava que não devia ser fácil para uma mulher pobre e numa situação precária enfrentar um duque.
Ela mostrou sua indignação diante do que pensava que ele havia planejado. Uma puta com um senso moral? Mas por que não? Havia muitas mulheres respeitáveis que careciam totalmente dele. Ela dissera que era asqueroso. Era só pelo comportamento que imaginava que fosse capaz? Ou era a sua pessoa que ela achava repulsiva?
O duque não tinha nenhuma dúvida de que, pelo menos em parte, era o último. Ele despiu-se diante dela, algo que não fez com nenhuma mulher antes, em todo caso não desde que foi ferido em combate. E ele se colocou na frente dela, permanecendo totalmente a sua vista todo o tempo que passou na cama com ela. Agora, ele percebeu que fizera de propósito para se livrar de toda a dor, inibição e a degradação com a qual viveu durante seis anos.
Queria que uma mulher o visse, uma mulher que não pudesse dar-se ao luxo de mostrar a aversão ou rejeitá-lo. E a corajosa Fleur passou no teste: seus olhos não se afastaram dos dele embora fosse uma ocasião muito mais importante para a garota do que soube o duque até que foi muito tarde.
Bom, pois era repugnante. Estava surpreso? E por acaso importava? Ela era sua criada, uma de muitas. Lhe dera o emprego porque necessitava e ela nunca teria tido êxito como puta.
Ele fez sua contribuição para expiar o pecado da infidelidade e por haver contribuído em pôr à garota no caminho da degradação e perdição. Não importava. Fez sua contribuição e esqueceria dela. Se não fosse uma boa preceptora para Pamela, a enviaria para outra de suas propriedades para lidar com outras tarefas.
Ficou olhando para o lago, desejando que sua terra, sua casa, produzissem esse efeito mágico que produziam sempre em sua alma.

Capítulo 6

Lady Pamela estava a poucos metros de seu cachorrinho e o filhote tropeçou enquanto tentava correr para ela. A menina ria sem poder conter-se ao ver que o cachorrinho tropeçava na grama alta e dava cambalhotas antes de ficar em pé e retomar a tentativa de alcançá-la.
Ela agarrou o cachorrinho e caiu de costas. Segurou-a perto o suficiente para que ele pudesse lamber seu rosto, e continuou a rir.
Fleur não teve a coragem de lembrar a sua aluna que saíram para pintar e que tiveram que implorar a senhora Clement que lhes permitisse estar ao ar livre. Ela lhes concedera apenas uma hora. Eram tão poucas as ocasiões em que Lady Pamela parecia apreciar... exceto com as crianças Chamberlain e na tarde anterior, quando seu pai voltou para casa.
Fleur estremeceu.
—Viu? — indicou quando as risadas cessaram. — Podemos ver o pavilhão na ilha refletido no lago e rodeado de árvores. Você tinha razão. Será um quadro muito bonito.
—Ai! — Lady Pamela riu outra vez. — Não morda, Pequena.
—Ou talvez hoje você gostaria de pintar a Pequena rolando na grama— sugeriu Fleur.
—Sim. — O olhar da menina se iluminou. — Não lhe parece divertida, senhorita Hamilton? Você não acha que papai é maravilhoso?
—Sim, certamente — disse uma voz atrás de Fleur. — Mas o que é isso? Um pedaço de papel em branco e pincéis secos? Você tem grama no cabelo, Pamela! E em todo o vestido! O que dirá a babá?
—Ela vai me repreender— respondeu Lady Pamela. — Papai, veem tocar o nariz da Pequena, que divertido. É frio.
O duque de Ridgeway passou por Fleur e se ajoelhou ao lado da filha.
Fleur ficou aonde estava, em frente ao cavalete, e sentiu-se congelar. Esperava não vê-lo durante muito, muito tempo depois daquela manhã... Sobre tudo depois daquela manhã. Se sentira totalmente humilhada.
O duque ficou furioso: cada palavra que ele disse foi como uma chicotada. Ela foi forçada a lembrar que ele foi um oficial de infantaria dos exércitos do duque de Wellington durante vários anos. E parecia que lhe disse a verdade.
Ele deu-lhe esse trabalho, porque teve pena, não porque a desejasse.
A primeira coisa que disse a ele foi "Eu não serei sua amante"... Dizer isso ao duque de Ridgeway! Seu senhor. Não suportava nem lembrar.
O duque levantou-se e virou-se enquanto Pamela brincava.
—Você a trouxe aqui para pintar? —Ele perguntou.
—Sim, Sua Graça.
—E insistiu para que o fizesse?
—Esta tarde ela está muito emocionada com seu cachorrinho, Sua Graça — comentou Fleur.
—Não combinamos ontem que o cachorro não iria interferir nas aulas?
—Sim, Sua Graça.
Fleur olhou nas profundidades escuras dos olhos do duque e lutou contra o terror que a sua altura, a largura dos ombros, seus cabelos negros e suas feições marcadas ameaçavam transformar em pânico.
E olhou para a cicatriz que o desfigurava e lembrou as outras marcas em seu corpo, que eram muito piores do que as cicatrizes.
—Às vezes, com crianças pequenas, as aulas não precisam ser totalmente rígidas — continuou Fleur. — Esta tarde falamos sobre os dentes do filhote e do motivo pelo qual são tão pequenos e por que caem, como aconteceu com os de Lady Pamela. Falamos do tamanho da cabeça do cão e de como mudará quando crescer. Expliquei-lhe como os moços treinarão o cão para que possa viver na casa. Nós...
—Eu não pensava despedi-la, senhorita — ele a interrompeu, — embora foi uma boa resposta. Qual era o propósito da aula de pintura?
—Eu ia descrever-lhe as colunas coríntias e a fachada — explicou a preceptora, olhando para o pavilhão, — e assinalar que todo se vê ao contrário ao refletir-se. Mas sua filha tem cinco anos, Sua Graça. Minha intenção básica era permitir-lhe aproveitar ao ar livre e experimentar com as tintas.
Fleur ergueu o queixo com orgulho. Que ele a repreendesse se quisesse. A menina aproveitava de muito pouca espontaneidade em sua vida.
—Boa resposta, também. Está especializada nelas?
Não havia resposta para uma pergunta semelhante.
—Suponho que você notou que o templo é uma réplica exata em miniatura do ponto central da casa.
—Exceto os degraus em forma de ferradura — matizou ela, voltando a olhar para o lago que ficava abaixo deles. — Ocorre o mesmo por dentro?
—É muito parecido, até mesmo com a pintura interior da cúpula. Mas no templo não há galeria. Foi construído para que fosse pitoresco, como todo o resto que há no parque, mas é usado como um pavilhão de música nas festas de jardim. E será utilizado pela orquestra no baile que haverá dentro de três dias. Já lhe disseram que você pode participar?
—Sim, Sua Graça.
O duque virou-se para falar com sua filha.
—Vamos caminhando até a beira da água — comentou ele. — O pavilhão é mais imponente dali. E se vê a ponte ao longe, e parte da cascata. Pegue o cachorrinho, Pamela... Ele não pode caminhar tanto.
—Mas é hora de voltarmos para casa — interpôs Fleur.
Os olhos escuros se voltaram para ela. O duque ergueu uma sobrancelha.
—Quem diz isso?
Fleur sentiu-se corar.
—A senhora Clement está nos esperando, Sua Graça.
—A babá? Pois a babá terá que esperar, você não acha?
Pamela desceu a encosta em vez de tomar o caminho que a rodeava até chegar a uma inclinação menos íngreme. O duque deu a mão a Fleur para ajudá-la a descer, e a garota voltou a entrar no túnel.
A escuridão e o ar frio a rodeavam: só via a mão, os dedos longos e bonitos escorregando pela suas coxas, tinham-nas aberta e em seguida se introduziram em seu interior, preparando-a para a penetração.
O duque baixou a mão e se virou para ela.
—Agarre-a devagar, a não ser que tenha pensado em nadar.
De alguma forma Fleur conseguiu sair do túnel e forçou as pernas a mover-se para poder segui-lo pela encosta até o caminho que havia abaixo, onde o cachorrinho saltava em círculo, contente de encontrar-se no chão.
Demoraram uma hora em voltar para casa. Passearam junto ao lago e subiram outra vez pela encosta em outro lugar. O duque descreveu as diferentes vistas a Fleur de um modo muito mais consciencioso do que a senhora Laycock. William Kent, o duque comentou que não tinha nenhum parentesco com ele, havia desenhado o parque para o avô de Sua Graça, substituindo os longos caminhos e os amplos jardins com canteiro que o precederam.
—Acredito que minha avó se escandalizou — comentou o duque. — Era uma dama do século dezoito muito recatada. Acreditava que quanto maior era o jardim de alguém, maior importância tinha.
O duque levou o cachorrinho durante a maior parte do caminho, acariciando-lhe o focinho com um dedo enquanto o cão se aconchegava contra seu peito e dormia. Entregou o cão a Fleur antes de perseguir Pamela através do gramado amplo e jogá-la ao chão, onde a menina ficou rindo e agitando os braços e as pernas.
Ambos, pai e filha estavam um tanto amassados quando subiram o terraço que havia diante da casa.
—Será que os convidados de mamãe virão logo, papai? — Perguntou Lady Pamela.
—Depois de amanhã, a não ser que algum se atrase.
—Eu poderei ver as damas?
—Quer vê-las?
—Eu posso? —suplicou. — Mamãe vai dizer não, sei que vai dizer que não.
—Talvez mamãe tenha razão — explicou ele, soltando sua mão e pegando o cachorrinho que Fleur levava. — Você não gostaria de conhecê-las, Pamela.
—Mas... — murmurou a menina.
—É hora de entrar — ele a cortou, olhando para os olhos de Fleur. Ele olhou-a quando sua mão roçou com a dela por debaixo da barriga do filhote. Fleur a afastou e deu um passo apressado para trás. —Eu vou devolver Pequena ao estábulo.
—Ah — lembrou Fleur, — nós esquecemos o cavalete e as tintas. Eu preciso voltar para pegá-los.
—Enviarei um criado — disse o duque, impaciente. — Não se preocupe, senhorita.
Fleur agarrou Lady Pamela pela mão e a subiu para a sala de jogos. A menina estava cansada e incrivelmente suja e despenteada, fato que a senhora Clement não deixou de observar e comentar.
Dez minutos depois, Fleur estava parada perto da janela de seu quarto. Seus ouvidos ressonavam pela repreensão cáustica que recebera. Aparentemente a senhora Clement pensava informar Sua graça, a duquesa, da terrível insubordinação de ter deixado a menina fora de casa uma hora a mais do que ela permitiu e por devolvê-la como um espantalho, e tão esgotada que sem dúvida no dia seguinte estaria doente.
Fleur permaneceu perto da janela e olhou em direção a área gramada da parte de trás, que produzia uma enganosa sensação de paz. Pensava que era um lugar tranquilo. Pensava que era o paraíso. Havia começado a relaxar e se sentir mais feliz do que sentira desde a infância.
Deveria partir antes que a despedissem? Mas para aonde iria e o que faria? Embora tivesse tudo o que ela poderia necessitar em Willoughby, ainda não a pagaram. O único dinheiro que tinha eram as poucas moedas que restava do adiantamento que lhe foi entregue para comprar roupa nova. Nem sequer tinha o suficiente para voltar para Londres.
Ela estremeceu ao pensar em Londres. Só havia um futuro para ela ali.
Ainda assim reagiu mal ao pesadelo do que aconteceu. O trabalho que o homem que enchia seus pesadelos de terror lhe deu. Não foi uma feliz coincidência em tudo. Ele dera esse trabalho porque teve pena, ou ao menos isso dizia. Ela não sabia se podia confiar nele ou não.
E de repente aquele dia descobriu que haviam voltado todos os seus outros medos. Eles procuravam por ela? Continuavam procurando? A enforcariam se a encontrassem? Mesmo que tivesse sido um acidente? Mesmo que tivesse agido em defesa própria? Podiam enforcar alguém sem importar as circunstâncias que se matava outro ser humano? certamente que não.
Mas Matthew foi a única testemunha. E Matthew era barão e o juiz de paz. Seria sua palavra contra a dele. E ele olhou por cima do corpo morto de Hobson e a chamou de assassina.
Enforcariam-na. Amarrariam suas mãos e pés e colocariam um saco sobre sua cabeça e uma corda ao redor do pescoço. Fleur se afastou bruscamente da janela. Não queria pensar nisso. E decidiu que tampouco queria pensar em Daniel. E não o faria. Mas seu sorriso simpático, olhos azuis e macios cabelos loiros apareceu-lhe de qualquer maneira, e corpo alto e esbelto vestido com o elegante e escuro traje clerical.
Ele nunca a beijou. Só a mão, e apenas uma vez. Ela sempre quis, mas ele se recusou a única vez que pediu. Esboçando o doce sorriso que o caracterizava, lhe dissera que queria que fosse pura no dia do casamento. E por um beijo teria se tornado impura? Fleur fechou os olhos e tirou os grampos que prendiam o cabelo de maneira afetada na nuca.
Se ele soubesse o que ela fez se escandalizaria. Olharia-a com pena. Será que a perdoaria? Sem dúvida sim, como Jesus perdoou à mulher surpreendida cometendo adultério. Mas Fleur não queria seu perdão. Queria seu amor e seus braços protetores. Queria paz. Mas não poderia haver paz, mesmo que por duas semanas se convenceu que poderia ter. Ela matou um homem e nunca poderia voltar para casa. Se a encontrassem a enforcariam.
E fez o que fez com Sua Graça, o duque de Ridgeway. E agora estava presa em sua casa como um pássaro em uma gaiola. Ela escovou os cabelos embaraçados. Por muito tempo que passasse naquela casa, não importa quantas vezes o visse, nunca poderia sentir outra coisa que não fosse um terror profundo e uma repugnância terrível cada vez que o olhava.
Por mais elegante que fosse vestido, sempre o veria tal e como o viu naquele quarto da estalagem: alto, musculoso e nu, com um triângulo de pelo escuro lhe atravessando o peito e baixando até o umbigo e as feridas terríveis arroxeadas, detento uma ereção aterradora que a penetrou e feriu de maneira severa, e que ele a violou de forma irrevogável. Um homem dotado de uma masculinidade que exercia sua implacável supremacia sobre a fraqueza, a pobreza e o desespero.
Em seu interior sabia que era injusto odiá-lo. Ele pagou bem pelo que ela oferecera livremente. Mostrou sua generosidade ao lhe oferecer alimento e o emprego. Mas o odiava com um horror e uma repugnância tal que ainda podia provocar sua expulsão da casa sem aviso e sem ter nada previsto, assim como fugiu de Heron House há mais de dois meses.
Fleur voltou a fechar os olhos. Na mão segurava a escova, e imaginou seu dedo acariciando delicadamente o pelo do cachorrinho. Ela teve que engolir várias vezes para superar a náusea.

Na manhã seguinte, o duque de Ridgeway bateu na porta da sala da duquesa e esperou a que sua criada pessoal o deixasse entrar, fizesse-lhe uma reverência e saísse do aposento em silêncio. Sua esposa o chamara. Raramente entrava em um dos seus aposentos privados sem ser convidado.
—Bom dia, Sybil, como você está hoje?
Ele atravessou a sala para pegar uma das mãos e para beijá-la. Como de costume, ela deu-lhe a face.
—Melhor — respondeu a duquesa. — Esta noite eu tive uma febre ligeira, mas esta manhã eu me sinto melhor.
Afastou as mãos das dele. Ela tinha mãos pequenas e delicadas que antes o duque gostava de agarrar e beijar.
—Você precisa se cuidar — advertiu ele. — Não gostaria que voltasse a ficar doente como no inverno.
—Eu ordenei a Houghton que pague a senhorita Hamilton e a despeça — espetou ela com a respiração entrecortada, olhando-o com seus enormes olhos azuis. — Ele me disse que devia consultá-lo primeiro. O que vai fazer a respeito, Adam?
—Perguntar o motivo pelo qual quer despedir a preceptora, suponho. O que ela fez ou deixou de fazer?
—Eu me refiro a Houghton — explicou a duquesa. As lágrimas começaram a brotar dos olhos. Ela usava um robe ondulante de seda e encaixe branco, e tinha o cabelo loiro solto nas costas. De maneira bastante desapaixonada, seu marido pensou que era impressionante e encantadora. E tão frágil como a jovem em quem depositou seu coração quando partiu a Bélgica. —Você vai permitir que ele fale comigo desse modo?
—Houghton é meu secretário pessoal, e só responde a mim, Sybil. Eu o despediria em um instante se esquecesse até ao ponto de aceitar ordens de qualquer outra pessoa da casa sem me consultar primeiro.
Sybil corou.
—Assim seu secretário é mais importante para você do que eu. Nem sempre foi assim, Adam. Uma vez você me amou, ou isso eu acreditava. Aparentemente me enganei.
—Já deveria saber que precisa falar pessoalmente comigo quando tiver um problema. Se o fizesse não se humilharia tanto. Um secretário eficiente não pode receber ordens de duas pessoas. O que acontece com a senhorita Hamilton?
—Você não deveria ter que me perguntar — protestou ela, retorcendo um lenço nas mãos. — Deveria bastar que eu queira que parta. Não acredito que seja adequada para cuidar de minha filha. Por favor, despeça-a, Adam.
—Você sabe — suspirou ele, — que não demito nem o mais humilde de meus criados sem um bom motivo, Sybil. Eu não sei se você está ciente do quão perto vivem os criados do limite da pobreza. Não despedirei ninguém para satisfazer um mero capricho.
—Um capricho! — Exclamou a duquesa. Abriu os olhos que voltaram a se encher de lágrimas novamente. — Sou sua esposa, Adam.
—Sim. — Olhou-a fixamente. — Você é, não é assim?
Ela olhou para baixo e sentou-se elegantemente no extremo do divã.
—Sou a duquesa de Ridgeway — afirmou em voz baixa.
—Essa descrição se encaixa muito mais a você — comentou Adam. Sua voz tinha um certo tom de cansaço. — Você sempre precisa ter esse tipo de conversa, Sybil? Sempre tenho que parecer o tirano? Lamento o meu sarcasmo. O que há de errado com a senhorita Hamilton?
—Ontem à tarde, saiu com Pamela —se lamentou Sybil, — apesar do vento frio e a luz direta do sol. insistiu até que a babá concordou, mas apenas por uma hora. E voltou mais de duas horas depois. Pamela estava suja e esgotada, e esta manhã está cansada demais para até mesmo levantar-se da cama, a pobrezinha. Ela desobedeceu a babá deliberadamente, Adam. Nem sequer você pode a defender disso.
—Elas estavam comigo — explicou ele. — Não as deixei voltar para casa quando a senhorita Hamilton ia voltar.
Sybil o olhou adotando uma expressão severa.
—Com você ? — Perguntou, levando o lenço aos lábios. — Mais de duas horas?
—Não esteve — ele a corrigiu. — Eu disse que estiveram comigo: Pamela, a senhorita Hamilton e o cachorrinho. Se Pamela estava suja, foi porque estive rolando pela grama com ela. Se estava cansada, foi porque corri e brinquei com ela e dei-lhe mais de duas horas de sol e ar fresco. As crianças devem estar cansadas depois de sair e brincar por aí.
A duquesa estava muito pálida.
—Isto é intolerável. Já lhe adverti antes, Adam: você é muito rude com Pamela. É uma criança delicada e deve permanecer sob meus cuidados e da babá. E o cão! Deus sabe com quantas enfermidades pode contagiá-la. Ah, eu sabia que isso aconteceria quando voltasse para casa. Você não tem nenhuma consideração por minha sensibilidade absolutamente. Você é tão egoísta! Como me enganou!
Ele continuou a olhá-la até que ela voltou a baixar o olhar.
—Continuarei passando tanto tempo com Pamela quanto possível— declarou Adam. — Ela precisa de atenção paterna mais que os mimos de uma babá idosa, Sybil. E precisa de atividade, tanto física como mental. E deixe-me ver se entendi: a senhorita Hamilton recebe ordens da babá?
—Sim, claro que sim. Minha filha é apenas um bebê.
—No futuro, será justamente o contrário. Espero que informe a babá da mudança. Vai fazer beicinho quando você disser, mas você também. Informarei a senhorita Hamilton da nova regra.
Duas lágrimas brotaram dos olhos da duquesa.
—Você é um cruel e desumano. Faz tudo para frustrar meus desejos, não é assim, Adam? Só porque uma vez se portou bem comigo, preciso estar em dívida para sempre?
Ele a olhou sem responder.
—Já sabe que nunca pensei nisso. E nunca pensarei. Só em sua imaginação, Sybil. Às vezes quase chega a me convencer que sou um tirano e um vilão.
Sybil esfregou os olhos com o lenço e o dobrou colocando-o em seu colo.
—Assim preciso suportar que afaste a minha filha de meus cuidados e dos de sua babá e a coloque nas mãos de sua amante. Pois muito bem, Adam. Estou muito fraca para brigar contigo.
—Minha amante? Tenha cuidado, Sybil. Você acha improvável que eu possa desejar os serviços de uma amante. — O lado direito do rosto do duque sorriu fugazmente quando ela levantou a vista para ele, perplexa. —Não, já me parecia que essa ideia não seria atraente para você.
—Às vezes penso que me obrigará a odiá-lo — sussurrou com o fio de voz que brotava de suas lágrimas.
—Ficará muito pesarosa?
Ele observou enquanto ela tossiu e inclinou-se sobre as almofadas do sofá, colocando o lenço sobre os lábios.
—Há meses que deveria ter insistido em que outro médico olhasse essa tosse — acrescentou Adam em voz baixa. — Hartley parece incapaz de curá-la. Deixe-me chamar um médico de Londres, Sybil. Deixe-me fazer algo por você. Permita que haja um pouco de amabilidade entre nós para variar.
—Eu gostaria de ficar sozinha. Preciso descansar.
—Isto eu não previ — comentou ele, cansado. — Não previ que chegaríamos a brigar e a opor nossos desejos. Não previ que chegaria a me considerar um tirano e que às vezes me veria obrigado a agir como tal. Esperava que fosse um bom casamento. Não previ que poderíamos chegar a nos odiar.
—Às vezes— continuou ela, afundando o rosto no lenço e com um fio de voz que refletia seu sofrimento, — eu te odeio por ter fingido que estava morto e voltar vivo. Odeio você por fazer Thomas partir quando sabia o que chegamos a ser um para o outro. Às vezes me custa não odiá-lo, Adam, embora eu tento não fazer isso. Você é meu marido. Tento não fazê-lo.
A duquesa tossiu novamente e não conseguia parar. Pálido, Adam cruzou a sala para ela, tirou seu próprio lenço, plantou um joelho no chão diante da duquesa e quis dar a ela. Mas ela afastou sua mão.
—Sybil? — murmurou o duque, e apoiou delicadamente uma mão na nuca de sua esposa enquanto ela tossia.
Mas Sybil escapou dele, se levantou e fugiu para o vestiário, fechando a porta com um estrondo ao entrar.
O duque de Ridgeway permaneceu com um joelho no chão e a cabeça inclinada para frente. E se perguntava, como ocorreu muitas vezes antes, se o amou alguma vez. Ela dissera que o amava, apenas porque queria ser sua duquesa e a proprietária de uma das casas mais bela do reino? Por acaso todos os beijos, todos os olhares enternecedores e os doces sorrisos, foram um mero artifício?
Adam cresceu sabendo que se esperava que se casasse com ela. E a ideia nunca o incomodou. Mas não se apaixonou por ela até que voltou para casa procedente da Espanha e descobriu que ela se transformou em uma mulher adulta, encantadora e frágil, com uns olhos azuis que gotejavam admiração por ele. Apaixonou-se profunda, totalmente por ela.
E esses sentimentos foram unilaterais? Por acaso suas declarações de amor eram mentiras? Ou talvez ela foi forçada pelas expectativas geradas durante anos. Talvez tenha tentado apaixonar-se por ele, ou pelo menos lhe ter carinho. Talvez tenha tentado. Deveria ter sentido algum carinho por ele, então, quando seu rosto não estava desfigurado, quando talvez ele poderia ser descrito como um homem atraente. Nunca esqueceria a expressão de profunda repugnância no rosto de Sybil, quando a tomou entre seus braços, na primeira vez que se viram depois de seu retorno, e a fez dar voltas e a beijou.
Doera muito. Mas esperava que a expressão de repugnância desaparecesse uma vez que se adaptasse a sua nova aparência. Não foi assim. Mas claro, quando voltou ela se comprometera com Thomas. Em um primeiro momento não deu muita importância a esse fato.
O duque ficou cansativamente em pé e guardou o lenço no bolso. Se alguém dissesse naquela primavera de Waterloo e a primavera seguinte, quando voltou para casa, que seu amor por Sybil chegaria a desaparecer um dia, ele teria rido zombando dele. Um amor como o seu não poderia desaparecer jamais enquanto existisse vida.
E depois falam do amor, pensou com cinismo.
Ele se virou para a porta, sabendo que sua esposa estaria tossindo em seu vestiário. Ao duque não restava nem uma pequena faísca de amor. Só certa compaixão pelo que indubitavelmente ela sofrera, e a vaga esperança que pudesse ter uma certa paz entre eles. A esperança de não parecer sempre o vilão na vida que compartilhavam.
Mas parecia que nem sequer paz ela ia conceder.

Capítulo 7

Foi Peter Houghton quem informou Fleur da nova disposição mais tarde, naquela mesma manhã, aguardava na sala de estudo uma aluna que não vinha porque estava doente de esgotamento dos esforços do dia anterior.
Fleur estava um pouco receosa com Peter Houghton porque sem dúvida ele sabia quem era e o que era. E mesmo assim, a tratou com uma cortesia inquebrável nos dias que passaram desde que ele voltou para Willoughby.
Ambos comiam com os criados no andar de cima na mesa da senhora Laycock. Não havia nada em suas palavras ou em seus gestos que indicasse que lhe desagradava ter que conviver com ela como se fosse seu igual. Não houve sussurros ou insinuação qualquer com nenhum dos outros criados. Ela ficou aliviada com o novo acordo, não porque quisesse controlar a babá de Lady Pamela, mas porque ela queria sentir que estava fazendo alguma coisa para receber seu salário e a manutenção. Nas semanas anteriores havia experimentado a desconfortável sensação de que estava ali e não devia estar.
O próprio duque levou sua filha a sala de estudo naquela tarde. Fleur fez uma reverência e propositalmente evitou olhá-lo diretamente. Mas logo Fleur percebeu que não tinha a intenção de sair imediatamente.
Ele sentou-se calmamente em uma cadeira em um canto da sala, ficou observando.
Elas passaram um tempo com o alfabeto, memorizando as letras através de um jogo: cada uma pensava em alguma palavra absurda que começasse com a letra em questão e logo tentava recordar cada palavra e sua letra em uma sequência.
—Fanfarrão! — Exclamou o duque quando Lady Pamela passou vários segundos refletindo sobre a letra F.
A menina explodiu em uma repentina gargalhada.
Foi a única contribuição do duque naquela aula em particular.
Logo contaram até cinquenta e outra vez até um e fizeram algumas somas simples em um papel. Examinaram uma toalha que Fleur encontrara dobrada em uma gaveta em seu quarto, e nomeou cada ponto bordado para Lady Pamela e lhe prometeu que poderia começar um lenço próprio no dia seguinte e aprender um dos pontos.
—E posso escolher as cores que eu quiser? — Ela perguntou a Fleur.
—As cores que quiser — prometeu Fleur com um sorriso.
—Margaridas vermelhas e caules azuis?
—Margaridas roxas e caules amarelos se quiser — respondeu Fleur.
—Mas todo mundo vai rir.
—Então você precisa escolher as cores que quiser e que riam de você ou escolher as cores esperadas e que não riam de você. É muito fácil. Só depende de você.
Lady Pamela franziu a testa e olhou de soslaio para a preceptora.
Elas falaram sobre o quadro do pavilhão, que ainda não foi pintado, e Fleur baixou uma pintura grande de uma paisagem pendurada da parede para que sua aluna pudesse apreciar quantas cores e tons diferentes utilizaram para criar o efeito geral do céu, a grama e as árvores.
—Mas, veja, a escolha depende de você — continuou Fleur. — Seu trabalho como artista é ajudar a pessoa que ver o que você vê. E ninguém pode lhe dizer exatamente o que vê. Todos vemos as coisas de uma maneira diferente.
—Eu quero que toque o cravo para mim — exigiu Lady Pamela quando o assunto se esgotou.
Fleur estava bem ciente que seu senhor estava sentado em silencio no canto.
—Talvez você gostasse de se sentar no banquinho para que lhe dê uma aula — sugeriu.
Mas Lady Pamela já tentara tocar por sua conta e percebeu que não podia tocar como Fleur. Ela também aprendeu que, mesmo após uma ou duas aulas não havia adquirido a fórmula mágica para tocar uma melodia suave.
—Sente-se e toque para mim — a menina exigiu.
—Por favor — sussurrou Fleur.
Mas, mesmo silenciosamente pedindo sua colaboração, sabia que não a obteria.
—Toque para mim — ordenou a menina zangada.
—Por favor — repetiu Fleur.
—Que tolice! — Exclamou Lady Pamela. — Qual é a diferença em dizer "por favor"?
—Eu sinto que me pede isso, não que ordena— explicou Fleur. — Isso faz sentir-me bem.
—Isso é uma tolice.
—Pode tocar o cravo, por favor, senhorita Hamilton, enquanto Pamela vai deitar-se na cama?
As costas de Fleur enrijeceram. Não ouvira ele se levantar e atravessar a sala.
Sua filha o olhou exasperada.
—Por favor, senhorita Hamilton.
Fleur fechou os olhos por um instante. Preferia fazer qualquer outra coisa a tocar. Suas mãos estavam suadas. Mas ela sentou-se no banquinho sem olhar em volta e tocou Bach, da melhor maneira que sabia.
—Agora é sua vez, Lady Pamela — disse Fleur, quando terminou.
—Você toca muito bem — comentou Sua Graça. — Você já viu os instrumentos do salão e da sala de música?
Fleur os vira durante a visita que fez com a senhora Laycock, embora não se atreveu a tocar em qualquer um deles. Suspeitava que o piano do salão era melhor que o que tinha em Heron House, por muito bonito que fosse, já que era o tesouro prezado de sua mãe. Só foi capaz de contemplar o enorme piano da sala de música com um respeito reverencial.
—Sim, Sua Graça. Eu os vi no dia que cheguei aqui.
—Vamos, Pamela. — O duque estendeu a mão para sua filha. — Vamos escutar a senhorita Hamilton na sala de música. E vamos lembrar de dizer "obrigado", certo?
—Sim, papai — respondeu a menina.
Fleur os seguiu sem reagir pelo corredor superior até a escada mais afastada. Mas também estava emocionada. Permitiriam-lhe tocar o piano!
Quando eles entraram na sala ao lado da biblioteca, se aproximou do instrumento e tocou reverente suas teclas. Gostaria que pudesse estar sozinha.
—Por favor, senhorita Hamilton — pediu o duque em voz baixa, e sentou-se atrás dela com a filha.
Fleur tocou Beethoven. Tinha passado muito tempo. Beethoven não era adequado para o cravo. A princípio tocou sem convicção, até que os dedos se acostumaram as suaves teclas marfim e a fluidez da música e até que sua alma se transportou além de si mesmo e se esqueceu de quem era. A música sempre foi seu grande amor, sua grande válvula de escape. A língua afiada da prima Caroline, os comentários mordazes de Amelia, saber que nunca mais ver seus pais, a disciplina e a rotina monótona de seus anos escolares... tudo deixava de existir quando tocava um teclado.
Inclinou a cabeça sobre as mãos imóveis quando terminou.
—Agora eu posso ir ver Pequena, papai? — Ouviu-se uma voz atrás de Fleur, voltando a introduzir sua alma em seu corpo.
—Sim. Peça a um lacaio que vá com você. E veja se lembra de dizer "por favor".
—Isso é uma tolice, papai — protestou a menina.
Fleur ouviu a porta abrir e fechar novamente.
—Você tem muito talento — disse o Duque de Ridgeway. — Mas faz tempo que não pratica.
—Sim, Sua Graça.
—Se for ensinar minha filha, precisa tocar de uma maneira impecável. Meia hora por dia para a aula da menina, e uma hora para você praticar.
—Aonde, Sua Graça? — Ela ainda não havia se virado.
—Aqui, é claro.
Fleur acariciou uma tecla com o dedo.
—Eu não estou autorizada a estar neste andar, Sua Graça.
—Não lhe permitem? São ordens da babá?
—De Sua Graça, a duquesa.
—Dadas em pessoa?
—Sim, Sua Graça.
—Você passará uma hora e meia por dia aqui — repetiu o duque, — por ordem expressa minha. E vou explicar a Sua Graça, a Duquesa.
Fleur não podia passar o dia todo sentada ali com ele a suas costas. Começou a respirar de maneira regular, levantou-se, e virou-se para olhá-lo. Ele estava muito perto, então, por um momento ela sentiu novamente o terror imposto por seu tamanho.
—Você tocou piano a maior parte de sua vida — comentou o duque. Não era uma pergunta.
Fleur não disse nada.
—Você contou a Houghton que seu pai havia falecido endividado recentemente.
—Sim.
—Foi assim?
Ela o olhou nos olhos.
—Morreu endividado?
—Sim. — Não estava segura que ao afirmá-lo não tivesse notado algo mais.
—E sua mãe?
—Faleceu faz muito tempo.
—E não tem outra família?
Ela nunca foi boa em mentir, embora saiba Deus quanto o fez nos meses anteriores. Pensou na prima Caroline, em Amelia e Matthew e meneou a cabeça rapidamente.
—O que assusta você? Eu?
—Eu deveria estar com Lady Pamela — afirmou Fleur, erguendo o queixo e adotando um tom de voz mais firme.
—Não, não deveria. Minhas ordens têm prioridade sobre a sua, senhorita Hamilton. Pamela é uma aluna difícil?
—Ela não está acostumada a fazer o que não deseja fazer, Sua Graça.
—Você tem minha permissão para insistir. Desde que não transforme sua vida em algo aborrecido.
—É uma criança. Meu maior prazer é vê-la sorrir e ouvi-la rir.
—E essas habilidades podem ser ensinadas, senhorita Hamilton? Eu tampouco a vi nem a ouvi sorrir.
—Eu posso dar-lhe toda a minha atenção— continuou Fleur, — e elogiá-la quando necessário, encorajá-la quando os elogios seriam inapropriados. E eu posso dar-lhe liberdade suficiente para se sentir como uma criança.
Ele a olhou diretamente nos olhos que até sentiu falta de ar, e resistiu a tentação de entrar em pânico. Desejou que ele tivesse dado um passo atrás quando ela se levantou do tamborete, e teria sido muito mais natural fazê-lo que agora. Por estranho que pudesse parecer, sentia que o calor do corpo do duque podia abrasá-la, apesar de encontrar a vários centímetros de distância.
O rosto dele estava muito perto, tão perto como em todos seus pesadelos, inclinando-se sobre seu corpo nu.
—Seu dia de trabalho terminou, senhorita — disse o duque. Sua voz mudou de tom. Era fria, cínica. — Você pode ir. Eu vou unir-me com a minha filha no estábulo.
—Sim, Sua Graça. — Ela se virou para partir.
—Senhorita Hamilton?
Fleur voltou parcialmente a cabeça.
—Estou satisfeito com o trabalho que a vi fazer esta tarde — comentou.
Ela parou por um instante antes de sair da sala e fechar a porta atrás de si. Continuando, respirou muito fundo antes de continuar subindo até seu quarto.

Lorde Brockehurst tirou seu cartão para que o entregassem em um dos quartos do Pulteney Hotel e passeou impaciente pelo vestíbulo.
Sabia que foi questão de sorte, embora o policial tivesse informado dos detalhes no dia anterior cheio de orgulho e dando-se importância, como se tivesse descoberto graças às suas excelentes habilidades de polícia. A lista de convidados a Willoughby Hall foi decepcionante. Só conhecia vagamente uma ou duas pessoas. Sendo realista, não teria nenhuma possibilidade de estabelecer uma amizade bastante estreita com nenhum dos dois para ser convidado as suas casas. Além disso, todos exceto um casal, que não conhecia, já haviam partido de Londres.
Teria que fazer as coisas da maneira em que não queria. Teria que ir a Dorsetshire na qualidade de juiz de paz para prender Isabella e levá-la para casa para que a julgassem.
Não queria forçar tanto as coisas. Não queria ter que reduzir suas opções.
Maldição, não queria ver aquele pescoço encantador rodeado por uma corda.
Mas apenas um dia depois de entregar a lista e afirmar que Lorde Thomas Kent não se encontrava em nenhum lugar da Grã-Bretanha, e depois de ter cobrado, Snedburg havia retornado correndo, dando-se importância como um pavão, para anunciar que sua senhoria atracara em terra inglesa naquela manhã procedente de um navio da Companhia das Índias Orientais.
—Certamente, senhor— ele disse. — Eu sei por experiência própria que quando os nobres desaparece de nossas costas, frequentemente é para empregar-se em uma das companhias. Entenderá que foi fácil fazer as perguntas, mas levou tempo. O que poderia ter sido melhor que descobrir não só que sua senhoria partiu para a Índia mas também estava de volta? — E Snedburg tossiu orgulhoso.
Lorde Brockehurst sentia que havia pago ao homem com maior generosidade do que deveria. Viver na cidade era condenadamente caro. Um funcionário do hotel se curvou diante dele e informou que Thomas Kent ia recebê-lo em sua suíte. Lorde Brockehurst se dirigiu a escada.
Lorde Thomas Kent era poucos anos mais jovem que ele. Nunca foram bons amigos, somente se conheciam e mantinham uma relação cordial por ter frequentado os mesmos antros de jogo e tavernas muitos anos atrás. Lorde Thomas estava em seu salão vestindo um casaco de brocado quando um criado introduziu Lorde Brockehurst, que percebeu que ele havia se tornado mais atraente ao passar a primeira juventude: estava bronzeado e esbelto, tinha o cabelo escuro e era um pouco mais alto que a média.
—Bradshaw! — Exclamou, estendendo a mão direita. Os dentes muito brancos contrastavam com seu rosto bronzeado pelo sol. — Quase não o reconheço pelo título em seu cartão. Seu pai faleceu, não é assim?
—Faz cinco anos — respondeu Lorde Brockehurst. — Tem bom aspecto, Kent.
—Eu nunca me senti melhor. Pensei que ninguém soubesse que retornei. Imaginei que hoje teria que me dedicar a percorrer todos os clubes e deixar meu cartão em cada porta de Mayfair. Que surpresa mais agradável.
—Eu ouvi por acaso. Está a muito tempo fora, verdade, Kent?
—Pois, mais de cinco anos — respondeu o outro. — Desde o descalabro pelo ducado. Saí com o rabo entre as pernas. Tenho certeza que soube.
—Sim. — Lorde Brockehurst tossiu delicadamente. — Um assunto desagradável, Kent. Tem meu apoio.
Lorde Thomas encolheu os ombros.
—Depois de tudo, acredito que a vida sedentária seria ruim para mim. Nem a vida de casado. Muito restritiva. São tão encantadoras as damas como estavam acostumadas a ser, Bradshaw? E igualmente dispostas? Preciso lhe dizer que ardo em desejos de estar com uma beleza inglesa ou duas... ou vinte.
—E são tão caras como sempre — comentou Lorde Brockehurst, — se não mais. Você vai para casa?
—Para Willoughby? — Lorde Thomas riu alto. — Acho que é a pior coisa que poderia fazer na minha vida, considerando algumas das coisas que disseram quando parti. Suponho que não é nada agradável ter por perto alguém que assumiu o seu título, e também foi noivo de sua esposa. Embora tudo isso valeria a pena só para ver a cara de Ridgeway.
—As velhas feridas curam-se rapidamente —interveio Lorde Brockehurst, — especialmente nas famílias. Eu provavelmente estaria feliz em vê-lo.
—O retorno do filho pródigo e a festa de boas vindas? Acho que não. Eu estou com muita fome e odeio comer nos hotéis. Segue White's onde estava?
—Eu adoraria convidá-lo para comer ali — comentou Lorde Brockehurst.
—Sério? — Lorde Thomas voltou a rir. — Vai bem com a propriedade Heron, certo? Lembro-me do tempo em que nenhum dos dois tinha nenhum centavo. Vá em frente, vamos comer, e talvez hoje à noite possamos ir em busca de vinho, mulheres e cartas, embora possa passar sem as cartas. Permita que meu criado lhe sirva uma taça enquanto me visto.
Poucos minutos depois, Lorde Brockehurst tomou um gole de sua bebida e ficou olhando pensativo a porta pela qual desaparecera Lorde Thomas.

Dezesseis pessoas chegaram para ficar em Willoughby Hall, todas no mesmo dia. O duque de Ridgeway permaneceu ao lado de sua esposa na entrada principal para cumprimentá-los, e caminhava entre eles enquanto tomavam o chá no salão um momento depois.
Pensou que, podendo escolher, não seria precisamente o grupo de pessoas com quem teria optado por confraternizar, mas Sybil estava radiante e feliz, e também devia ter direito a um pouco de felicidade. Realmente se alegrava ao ver que ela desfrutava. Desde que se casaram, parecia que foi incapaz de lhe proporcionar algum tipo de prazer.
E cada vez estava mais cansado de compartilhar a mesa com ela, com um em uma ponta e o outro na outra, esforçando-se por conversar através de sua extensão vazia.
—Aqui tem boa caça, Ridgeway? — Perguntou-lhe Sir Ambrose Marvell enquanto sorviam o chá.
—Meu guarda-florestal comentou que a taxa de cervos está aumentando bastante — respondeu.
—E a pesca? — Perguntou o senhor Morley Treadwell.
Já se via quem Sybil convidara como seu "cher ami"; precisava haver alguém, como sempre acontecia em tais ocasiões. Ouvira dizer que era Sir Philip Shaw, que mal precisava ter casa própria já que passava o tempo deslocando-se entre as casas de seus numerosos flertes e amantes. E o rumor atual era que não havia necessidade de atribuir um quarto a Shaw, já que ele estaria encantado de compartilhar um com uma das damas, normalmente sua anfitriã.
Aparentemente, sua atitude indolente, quase efeminado, sua elegância e seus olhos que estavam permanentemente preguiçosos eram irresistíveis para as damas. E Sybil já estava incentivando-o, tinha uma mão fina e branca em seu ombro. Aonde diabos o conhecera? Mas às vezes ela ia de visita sem ele: nunca pedia, e ele nunca lamentava que não o pedisse. Em sua última visita havia passado duas semanas na casa de sua irmã, aparentemente na companhia de outros convidados selecionados.
O duque suspirou interiormente. Esperava não ter que passar outra vez pela ridícula farsa de bancar o marido glacial que defende seus direitos conjugais. Era muito pesado, e bastante humilhante. E, claro, serviu para reforçar a imagem de um tirano sem senso de humor que Sybil tinha dele. Poderia ser apenas isso. Estava quase começando a acreditar.
Ele se perguntava quando poderia escapulir sem ser descortês. E para aonde poderia escapar? A aula no andar de cima devia ter terminado por hoje. Pelo menos se alegrava que a senhorita Hamilton veio praticar pela manhã cedo, já que teve a oportunidade de escutá-la. Abrira a porta entre a biblioteca e a sala de música e se sentou diante de sua mesa para escutá-la.
Mas se assegurou que ela o visse. Ele não queria dar a impressão que estava espionando.
A garota tinha um autêntico talento. A música que tocava com correção era viva, e fluida nas mãos dela. A hora que passou ouvindo-a o aliviou muito mais que a cavalgada que planejara. Ele não entrou no aposento, nem ficou no marco da porta para observá-la. Teria que ser cego para não perceber a profunda repugnância que havia nos olhos dela cada vez que o olhava.
Mas não importava. Não procurava nenhum tipo de relacionamento com ela. Só esperava que fosse adequada para Pamela. E gostava de sua música.
—Adam, querido — ouviu uma voz discreta, cuja possuidora estava provida de um perfume sedutor. Era Lady Vitória Underwood, uma viúva que durante a temporada do ano anterior decidiu que eram amigos o suficiente para esquecer a formalidade desagradável de usar os títulos, e que agora lhe sorria. — Tem uma mansão magnifica como poucos. Por que não me convidou antes?
Ela estava se inclinando levemente em direção a ele. Por algum motivo sua cicatriz nunca foi repulsiva a ela.
—É que você é o homem mais sexy que eu conheço — Ela havia dito no ano anterior em uma das muitas noites quando não conseguiu seduzi-lo e levá-lo para a cama.
Adam se perguntava frequentemente por que não cedeu. Ela não era bonita, mas sua sexualidade era sedutora. Deitar-se com ela teria sido uma experiência mais sensual do que ele teve com Fleur Hamilton.
Mas desejava que não tivesse feito essa comparação. Inconscientemente, dedicou-se a tentar separar em sua mente a senhorita Hamilton, que queria educar e cuidar de Pamela, e de que convertia Mozart e Beethoven em experiências fascinantes para a alma, da prostituta fraca, pálida e sem brilho que tinha tomado há um mês no quarto barato de uma taverna, levado por um arrebatamento de luxúria.
—Eu pensei que você não gostasse de sair de Londres, Lady Underwood — comentou, sorrindo.
—Vitória — corrigiu ela, olhando-o nos lábios. — Acredito que aceitaria um convite às ilhas Hébridas, meu querido Adam, se soubesse que você estaria ali.
—Isso não aconteceria. Parece muito frio para mim.
—Que desculpa mais divina, aconchegar em um cobertor para se aquecer. Com a companhia certa, é claro.
Adam riu e usou a desculpa de uma bandeja de bolos que passava naquele momento para que os Mayberry entrassem no grupo. Podia suportar os flertes e a conversa quando estava em Londres. Até mesmo se divertiam um pouco, embora preferisse as noites de conversas séria e estimulante com seus amigos mais íntimos. Mas quando estava ali sempre podia retirar-se à tranquilidade de sua casa quando tivesse o suficiente. Ali se encontrava em seu próprio lar.
Esse era o eterno problema nas condenadas festas de Sybil.
Felizmente os convidados não ficaram muito tempo. Quase todos tinham viajado muito e ficaram felizes em poder descansar e refrescar-se na intimidade de seus quartos.
A duquesa também se retirou para seu próprio quarto até a hora do jantar.
O Duque foi para o terraço. Ele se perguntava se Pamela estaria visitando seu cachorrinho e ouviu gargalhadas no mesmo momento em que pensava. Voltou-se e caminhou em direção ao estábulo, perguntando-se se Fleur Hamilton também estaria ali ou se Pamela teria trazido um lacaio como fez no dia anterior. Não imaginava que a babá pudesse considerar que uma visita ao estábulo e ao cachorrinho fosse algo digno dela.
Pamela estava sentada no alto da cerca junto ao estábulo, com as pernas balançando enquanto Fleur, no interior do cercado, fazia cócegas na cachorrinha com o pé. Ela estava-rindo, e seu rosto refletia uma beleza tão despreocupada que Sua Graça ficou recuado para evitar ser visto.
Ned Discroll, um rapaz, estava rindo também. Ele tinha um pé apoiado na travessa inferior da cerca, e os braços enroscados nela. E o boné sobre os olhos.
—Acredito que o cachorrinho gosta disso — comentou Fleur.
—Mas quem não, senhorita? — disse Ned com descaramento um momento antes de detectar a seu senhor, de pé e em silêncio, atrás dele. Endireitou-se às pressas, puxou a aba do seu boné, e saiu em direção aos estábulos.
Fleur não olhou para cima e continuou a agradar o cachorro com os pés. Mas o sorriso em seu rosto desvaneceu-se. Sua Graça suspirou interiormente, sabendo que ela notara sua presença.
—Papai! — Pamela o olhou zangada, esquecendo de sua risada. — Mamãe prometeu que me avisaria para o chá. A babá me vestiu, mas mamãe não me chamou, e a senhorita Hamilton insistiu que ficássemos aqui.
O duque olhou para Fleur, que observava como o cachorrinho tentava comer grama.
—Não mandaram procurá-la — comentou a preceptora. — Eu expliquei-lhe que todos os convidados deviam estar cansados e que Sua Graça, a duquesa, deve ter decidido esperar para outro dia. Trouxe-a aqui esperando que esquecesse de sua decepção.
—Mas ela prometeu, papai — protestou a menina. — E a senhorita Hamilton não deixou-me ir. Nanny teria deixado.
—Não acredito — cortou seu pai. — E sem dúvida a senhorita Hamilton tem razão. Mamãe deve ter decidido que será melhor outro dia, Pamela. Eu a lembrarei.
—Você é horrível! — Gritou a menina. — Os dois são horríveis. Mamãe disse que podia. Eu vou dizer a mamãe.
Ela pulou do alto da cerca fora do cercado, arregaçou a saia e caminhou em torno do estábulo a toda pressa até que desapareceu de sua vista.
—Eu vou alcançá-la— decidiu Fleur.
—Deixe-a partir — freou o duque. — Nada vai acontecer, e às vezes é melhor estar sozinho quando dá um chilique.
A porta do cercado estava fechada com correntes. Fleur devia ter entrado pulando a cerca. O duque viu como ela se ruborizava ao olhar para a porta.
Fleur levantou a saia com cuidado ao pôr o pé na travessa inferior da cerca e passar a outra perna por cima. O duque manteve as mãos atrás das costas. Sabia que sua ajuda não seria bem-vinda. Mas a saia enganchou na madeira rugosa da travessa abaixo e atrás dela, e ela ficou presa. Adam foi até ela, inclinou-se para soltar o tecido, agarrou-a pela cintura, levantou-a e a deixou no chão.
Não se lembrava de sua fragrância doce na primeira vez em que estiveram juntos. Mas então ela só devia ter água para lavar o corpo e o cabelo. O sol formava um halo brilhante de ouro ao redor de seu cabelo. E sua estreita cintura era feita de pele cálida e suave.
Fleur estremeceu e se afastou dele, sem o olhar. Emitiu um ruído gutural, semelhante ao que Adam recordava que ela fez quando a penetrou. Fleur levantou uma mão tremula para cobrir a boca e a manteve ali, fechando os olhos a seguir.
O duque não soube o que dizer e estava paralisado.
Fleur abriu os olhos e afastou a mão. Abriu a boca como se fosse falar, mordeu o lábio inferior, e voltou a cabeça para um lado. Abaixou-se apressadamente para pegar o filhote, que tinha saído brincando de correr pela parte inferior da cerca.
—Preciso levá-lo outra vez ao estábulo — assinalou Fleur.
—Sim.
O duque ficou de lado e a olhou enquanto ela ia, com a cabeça dourada inclinada para o cachorrinho. Caminhava rapidamente e muito coibida. E Adam sentiu um forte pesar.
Mas por quê? Tinha uma preceptora, uma prostituta convertida em preceptora, que estremecia e quase vomitava quando ele a tocava. Havia uma convidada em sua casa, a viúva de um baronete, que aceitaria prazerosamente que a tocasse e até mesmo em tê-lo em sua cama, uma mulher que pensava que a cicatriz de seu rosto era excitante e que possivelmente nem sequer se alteraria se ele se despisse e visse as outras cicatrizes.
Por que se deprimia? Talvez ele devesse incentivar Lady Underwood. Talvez fosse o bálsamo que necessitava para sua autoestima ferida. Talvez ele devesse fazer dela sua amante enquanto ela estivesse em sua casa, saciar-se com uma mulher que o desejava.
Só que ao fazê-lo obteria exatamente o que queria evitar que Sybil fizesse: transformar Willoughby em um lugar de libertinagem, e deixar de merecer o privilégio de ser o dono de tudo aquilo.
O Duque ainda estava de pé, apoiado contra a cerca, quando Fleur saiu do estábulo com os braços vazios. Olhou na direção dele, virou a cabeça bruscamente, e caminhou apressadamente em direção à casa.
Que droga. Em que diabos estava pensando quando decidiu enviá-la ali? É certo que naquele momento não previra voltar tão cedo, mas mesmo assim sabia que mais cedo ou mais tarde voltaria para Willoughby. Não podia estar ausente mais que alguns poucos meses.
Por que fez com que a mandassem ali? Havia muitos outros lugares que poderia tê-la mandado. Ou poderia ter-lhe encontrado um emprego com um de seus conhecidos. Em qualquer caso, não precisava voltar a vê-la novamente.
Por que ordenou a Houghton que a mandasse para ali?
Claro que não era demasiado tarde para enviá-la para outro lugar. Sybil ficaria encantada, a babá estaria eufórica, Pamela tampouco se importaria muito, e a própria Fleur se sentiria enormemente aliviada. E ele?
Virou-se para afastar-se da casa e dirigiu-se para um bosquezinho e às ruínas artificiais de uma torre, que seu avô gostava especialmente. Pensaria em outra ocasião. Só estava em casa ha três dias. Não era o momento de tomar decisões precipitadas.
Preferia pensar que, com o tempo, Fleur seria adequada para Pamela.
Além disso, ela precisava do piano na sala de música. Não tinha nenhum outro instrumento que pudesse comparar-se com ele em nenhuma de suas outras propriedades. Aquela ideia o consolou. Teria que recordar aos jardineiros que teriam que recolher os galhos secos das árvores.

Capítulo 8

Além de um passeio pelo parque um dia depois de sua chegada, os convidados não se exercitaram muito. Tudo se estava preparando para o grande baile daquela noite. Com toda probabilidade o evento seria realizado ao ar livre. O tempo quente e seco durou todo o dia.
Os criados estiveram muito ocupados desde a primeira hora da manhã para atender as necessidades e desejos dos dezesseis novos convidados. Os cozinheiros preparavam um grande banquete para eles aquela noite.
Os jardineiros decoravam a área em volta do lago e outros criados preparavam o lanche.
Lady Pamela saltava disposta a observar os preparativos, e estava convencida que sua mãe a deixaria ver todas as damas em seus trajes de noite. Fleur não estava tão convencida disso. A duquesa não foi ver sua filha durante todo o dia, e parecia mais que provável que se esqueceria dela até o dia seguinte.
Fleur decidiu que iria fazer o que pudesse para dar uma alegria a criança. Depois de uma manhã de aula fáceis, que não exigiam muita concentração por parte de sua aluna, levou-a para fora, e se dirigiram ao lugar que foram pintar o pavilhão dias atrás. Dali poderiam observar os preparativos sem ficar no caminho dos criados ocupados.
—Ah, as lanternas! — Lady Pamela exclamou um pouco intimidada, enquanto olhava para as centenas de lanternas que estavam penduradas nas árvores ao redor do lago e na ilha e nos principais caminhos que saíam da casa. —Esta noite parecem mágicas, senhorita Hamilton.
A orquestra tinha chegado e estava descansando e refrescando-se em alguma parte da casa. Transportavam seus instrumentos para a ilha em um barco. Em uma parcela de grama plana a oeste do lago, que estava mais perto da casa, instalaram um grande piso de madeira para o baile. Estavam colocando mesas com toalhas brancas no lado norte, logo abaixo de onde estava Fleur com Lady Pamela.
A senhora Laycock havia dito a Fleur que toda a pequena nobreza das proximidades e da localidade de Wollaston viria ao baile. E todos os criados teriam permissão para participar, sempre e quando não estivessem em serviço.
Em Heron House se celebraram alguns bailes. Fleur sempre os desfrutou. Ficar elegante, ver os conhecidos também elegantes e um salão de baile decorado com flores e repleto de música era maravilhosamente excitante. Dançar produzia uma excitação incrível. Mas estava certa que aqueles bailes não poderiam comparar-se com o esplendor do baile daquela tarde.
Fleur era apenas uma criada, é claro. Não tinha um bom vestido para o baile nem joias que usar. E era improvável que alguém pedisse para dançar com ela. Mas, sim! A agitação dos últimos dias, somada ao feito de descobrir quem era o duque de Ridgeway e o medo de que possivelmente, por alguma estranha coincidência, algum dos convidados fosse alguém que a conhecesse quase a fez esquecer-se disso... quase se esqueceu do senhor Chamberlain e esperava dançar com ele.
Esperava que ele não a tivesse esquecido. Ansiava com todo seu coração. Esperava voltar a vê-lo outra vez. E desejava que chegasse a noite como uma menina a quem concedem algo incomum.
—Mamãe deixará-me ver as damas, certo? — Lady Pamela suspirou ao seu lado.
—Não sei, querida — disse Fleur, apertando a mão da menina e lamentando que não seria assim. — Vamos ver como está Pequena hoje? Ela deve sentir-se sozinha. Você ainda não brincou com ela.
—Sim — respondeu Lady Pamela, afastando reticente a vista dos preparativos do baile. — Deveria ter perguntado a papai quando ele veio esta manhã a sentar-se conosco na sala de estudo. Certamente teria dito que sim.
—Eu vou ver o que posso fazer — comentou Fleur.
Os criados comeram cedo aquela noite. Fleur voltou a subir até que chegasse a hora da menina se deitar e viu que ainda havia luz na sala de jogos. Ela bateu e entrou.
A expressão ansiosa de Lady Pamela se desvaneceu.
—Oh, eu pensei que fosse a mamãe...
—Mamãe está ocupada, querida — explicou a senhorita Clement. — Ela deverá vir passar um longo momento com você amanhã. Você sabe que sua mamãe a ama.
—Talvez — interveio Fleur, olhando para a babá, — se você se agasalhar bem, pode sair comigo agora para ver como as lanternas são acesas. As damas e os cavalheiros ainda estão jantando.
—Ahhh, posso? posso, nanny? — Lady Pamela olhou suplicante para a babá.
—Vou mantê-la longe dos convidados — acrescentou Fleur.
—Provavelmente se esfriará — protestou a senhora Clement. — E sem dúvida Sua Graça, a duquesa, vai ficar brava se ela vir sua filha fora da sala de jogos, depois do jantar, senhorita Hamilton. Mas lembro que Sua Graça, o duque, disse que agora quem manda é você. Faça como quiser.
O tom da babá era hostil, mas Fleur sorriu para Lady Pamela, que saiu correndo a procurar um agasalho. Quando saíram cinco minutos mais tarde, Fleur pensou que na realidade não precisava do casaco.
O ar ainda estava quente. E, infelizmente, só agora começava a escurecer, assim que as lanternas não brilhariam em todo seu esplendor embora já estivessem acesas. Mas faria tudo o que estivesse em suas mãos.
Ficaram fora mais tempo do que previu para que Lady Pamela pudesse ver o lago e seus arredores inundados na magia da escuridão e a luz das lanternas. E a orquestra estava afinando os instrumentos no interior do pavilhão, com as portas abertas de modo que a música flutuava sobre a água. As pessoas que não foram convidadas para o banquete começaram a chegar, e a menina contemplou entusiasmada o esplendor dos vestidos das damas e as jaquetas dos cavalheiros, assim como as joias que brilharam sob as lanternas multicoloridas.
E finalmente, quando já estavam voltando para casa, os convidados ao banquete se aproximavam do terraço todos juntos formando um grupo. Fleur levou Lady Pamela para a sombra de uma árvore.
—Nós vamos olhar, querida — disse ela. — Não diga nada. Mamãe pode ficar zangada se a vir na escuridão.
Mas não tinha por que se preocupar. A menina parecia bastante satisfeita em ser uma espectadora silenciosa. Observou maravilhada como sua mãe chegava de braço dado a um cavalheiro, rindo e olhando-o encantada.
O duque estava mais atrás no grupo, com outra dama.
—Oh! — Exclamou a menina. — Mamãe é a dama mais bonita que existe. Não é assim, senhorita Hamilton? É a dama mais bonita que há.
—Sim, é verdade — Fleur deu-lhe a razão. E parecia que não mentia.
A menina estava muito cansada quando voltaram para a sala de jogos e muito disposta a deixar a babá cuidar dela. Fleur correu para seu quarto para trocar-se e colocar seu melhor vestido: um traje simples, de musselina azul, uma compra um pouco extravagante que tinha pago com o dinheiro que o senhor Houghton lhe dera em Londres.
Agora lhe parecia muito ordinário em comparação com os vestidos que viu lá fora.
Mas não importava. Afinal de contas, era apenas uma criada. E nada poderia diminuir a sua excitação aquela noite. Arrumou o cabelo cuidadosamente, deixando o coque que fazia na nuca um pouco mais solto que de costume e permitiu que uns poucos fios de cabelos caíssem pelas orelhas e o pescoço.
Enquanto descia as escadas e cruzava a entrada para o exterior estava convencida que devia estar tão nervosa como uma moça em seu baile de apresentação. Havia luz, música e risadas procedentes do lago. Claro que ela nunca participou de um baile de apresentação.

O duque de Ridgeway pensou que se pudesse planejar o tempo tão meticulosamente como haviam planejado os outros detalhes daquela noite, não poderia ter feito muito melhor. Mesmo a medida que a noite avançava havia algo quente no ar, embora o frescor que corria de fundo era, é claro, perfeito para quem dançava cada série. E a brisa era suficiente para que as lanternas balançassem nas árvores, para que as sedas ondeassem com elegância e para refrescar as faces acaloradas sem risco de estragar os elaborados penteados das damas.
Ele sempre gostou dos entretenimentos mais elaborados pelo qual Willoughby era famoso. E dessa vez não era nenhuma exceção. É verdade que durante grande parte do dia, a conversa com seus convidados foi um tanto insossa, mas agora, de noite, também vieram seus vizinhos. Ele sempre se preocupou em mostrar-se amigável com os vizinhos. Abriu o baile com sua esposa, que devia ser a dama mais encantadora de todas que participavam, pensou sem parcialidade alguma. Evidentemente que ela percebera que um vestido de seda e encaixe branco muito fino apanharia as cores das lanternas e cintilariam na brisa. Sybil sempre se vestia para provocar o maior impacto possível.
Adam dançou com algumas de suas convidadas e algumas de suas vizinhas e falou com diversos homens. Quando pediu a Lady Underwood que dançasse com ele permitiu que o convencesse para que, em vez de dançar, a levasse ao outro lado da ilha em barco e passeassem pelo pavilhão e entre as árvores, como estavam fazendo alguns dos outros convidados, resistindo a suas insinuações muito diretas de que a beijasse entre as árvores.
E observou como os criados dançavam e se serviam e desfrutavam em geral. Preocupou-se em falar com tantos criados quanto foi possível. E se manteve afastado de Fleur Hamilton. Ela estava encantadora. A simplicidade de seu vestido e seu cabelo fizeram com que todas as demais damas parecessem muito arrumadas. O cabelo brilhava como o ouro à luz das lanternas.
E se sua esposa brilhava, então Fleur resplandecia quando dançou com Houghton, com o vigário, com Ned Driscoll, com Chesterton, com Shaw, e com Chamberlain... duas vezes.
O duque decidiu ficar longe dela, porque se alguma coisa aprendera sobre a garota desde que voltou para Willoughby era que ela o temia e ele a repugnava. E seus sentimentos eram compreensíveis. Só ele podia pô-la em evidencia pelo o que tinha sido num curto período. E as lembranças que Fleur guardava daquela ocasião e do papel que ele desempenhou devia ser muito desagradável, para dizer o mínimo.
Ele foi até a mesa para conversar com Duncan Chamberlain durante uma pausa do baile. Quando crianças nunca foram amigos íntimos, já que Chamberlain tinha quase dez anos mais que ele. Mas se tornaram amigos nos últimos anos, sobre tudo desde que o duque retornara da Bélgica.
—Todos nos temíamos que não voltasse a tempo para celebração — comentou seu vizinho, estendendo a mão direita. — Isto não teria sido o mesmo sem você, Adam.
—Eu já perdi um de meus próprios bailes? — Perguntou o duque. — Como está, Duncan? A senhorita Chamberlain está por aqui? Não a vi.
—Oh, sim, e dançou todas as séries.
—Pensei que a teria deixado em casa com as crianças. Estão todos bem?
—Se destruir um diário de jogos, esgotar a uma pobre babá e torturar nossos ouvidos a cada momento do dia com gritos e berros é um sinal de que estão bem, então teria que dizer que gozam de excelente saúde, Adam.
O duque sorriu.
—Eu me lembro do ano passado, quando a sua outra irmã os levou por um mês, você estava como o famoso peixe... mas fora da água.
O vizinho sorriu timidamente.
—Sim, bom. Suponho que nossos antepassados também jogaram bastante pelo menos quando os Vikings cessaram seus assaltos. Onde você encontrou a preceptora?
O duque lembrou por um momento da imagem de Fleur de pé silenciosamente na sombra, fora do teatro Drury Lane.
—Em Londres — explicou. — Houghton a contratou. Esse homem vale seu peso em ouro. Estou contente com ela. Acredito que é boa para Pamela.
—Eu sei — disse Chamberlain. — Ela trouxe sua filha para visitar-nos quando a duquesa estava doente e nem sequer se alterou quando eu lhe disse que os cães deviam estar pulando sobre as crianças. É claro que então não vira os cães para saber que pareciam mais com pôneis que com seus companheiros de raça.
—Levou Pamela? Me alegro.
—E eu também — sorriu o senhor Chamberlain. — Pode mandá-la quando quiser, Adam. Não tem nem que mandar Lady Pamela de acompanhante a não ser que queira.
—Ah, que maneira é essa?
—Emily diz que eu preciso de uma nova esposa. Não tenho a certeza que tenha razão, e certamente eu não tenho certeza se poderia encontrar uma mulher paciente o suficiente e o bastante louca para ficar comigo e com meu trio incluído no pacote. Mas eu estou pensando. É uma ideia interessante.
—Perder uma boa preceptora não seria bom— comentou Sua Graça.
—Ah, mas para o bem da amizade, você se sacrificaria — comentou seu amigo. — Perdoe-me. A orquestra voltou para a carga, e eu preciso pedir-lhe para dançar comigo novamente.
—Pela terceira vez, Duncan? — O duque ergueu as sobrancelhas.
—Você esta contando, não? — Perguntou seu vizinho. — Isto não é um baile de Londres, Adam. Acredito que a reputação da senhorita Hamilton poderá sobreviver se dançar três vezes com o mesmo parceiro. E agora vamos dançar uma valsa.
O duque ficou onde estava e serviu-se de um pouco de comida. Não via nenhuma dama sem par, assim decidiu fazer uma pausa.
Fleur Hamilton e Duncan Chamberlain? Duncan era bastante atraente: ele ainda era esbelto, e seu cabelo escuro só estava grisalho nas têmporas. Formavam um casal atraente.
O duque se perguntava o que pensava a garota de seu parceiro, mas Fleur havia aceito uma terceira dança com ele. E ela estava sorrindo com um brilho que era muito mais verdadeiro do que o de Sybil. Ele perguntava-se como tomaria uma proposta de casamento de Duncan. Contaria-lhe toda a verdade? Ou encontraria outra maneira de explicar que perdera a virgindade?
O duque se voltou. Lamentava mais do que era capaz de expressar não ter se informado antes de fazer o acordo com ela naquela noite. Deveria ter percebido por seu aspecto e pelo modo discreto em que o abordara ou precisamente como não o fez de que não era uma prostituta experiente. Ele deveria ter percebido o que estava acontecendo e como ela permaneceu de pé no quarto, sem mover-se até que lhe ordenou o que fazer, e pelo modo discreto e delicado que tirou a roupa, sem tentar em nenhum momento excitá-lo enquanto o fazia.
Poderia tê-la salvado antes que sua reputação e seu futuro se arruinasse.
Ele ficou a olhá-los enquanto dançavam a olhar para ela, melhor dizendo, maravilhando-se que pudesse ser a mesma mulher que a puta fraca e sem brilho cujos serviços solicitou e utilizou há pouco mais de um mês.
Por Deus! Ele virou-se novamente, olhando para uma bebida.

Fleur estava gostando imensamente. Havia algo incrivelmente romântico sobre estar em ar livre durante a noite, nas lanternas coloridas que balançavam nas árvores e refletiam junto à água escura, nas pessoas vestidas elegantemente, conversando e rindo alegremente, na música que obrigava os pés a sapatear e nos quadris a menear-se.
Decidira que aproveitaria o baile, e o estava fazendo. A vida foi um pesadelo terrível por seis semanas, e a ameaça de que poderia voltar a ser assim - ou mesmo pior - continuava a pairar sobre sua cabeça e continuaria para sempre. Mas por agora ela recebera um precioso presente de paz: pode ser que não durasse para sempre, pode ser que só durasse uma semana ou um dia, mas não queria pensar na eternidade.
Só queria pensar naquela noite.
Esperava dançar. Afinal, o senhor Chamberlain havia pedido a ela mais ou menos com antecedência. Mas não esperava dançar cada série aquela noite, e também com vários parceiros.
Até mesmo alguns dos convidados ao baile que não se hospedavam na casa dançaram com ela e souberam que era a preceptora. Chamberlain dançou com ela quatro vezes no total, e falou com ela toda vez que as figuras da dança não os separavam.
Tinha uma conversa leve, divertida, apropriada para a ocasião. Ele levou sua mão aos lábios depois da quarta vez, e indicou sorrindo e piscando para ela que precisava conter-se e não dançar com ela novamente para não privar os outros cavalheiros da dama mais encantadora que existia, depois a levou a um lugar um pouco afastado da área de dança aonde o Duque de Ridgeway estava conversando com uma senhora idosa.
Fleur queria que ele a tivesse levado a qualquer outro lugar. A única sombra daquela noite, o único detalhe que sem dúvida ameaçou estragar a sua alegria foi a presença constante de Sua Graça. Não olhou para ele nenhuma só vez, mas mesmo assim descobriu que a cada momento sabia aonde estava e com quem dançava ou conversava.
Parecia um pouco diferente dos outros, vestido em trajes de noite negro e branco como a neve que brilhava à luz das lanternas. E, claro, sua altura e cor de pele e cabelos enfatizavam seu mistério.
Fleur achou que devia estar esplêndido, só se via o lado direito de seu rosto e não a terrível cicatriz no lado esquerdo. Embora não soubesse por que lhe aterrorizava uma ferida que lhe foi infringida na batalha, quando lutava por seu país. Poderia mesmo com a cicatriz ser esplêndido a alguém que não o visse aproximar-se nas sombras do teatro Drury Lane, alto, sombrio e ameaçador com sua capa escura e seu chapéu, para lhe perguntar se procurava trabalho por uma noite. Fleur tentou não se agarrar muito ao braço do senhor Chamberlain, e de manter intacto seu sorriso.
—Senhora Kendall — interveio o senhor Chamberlain na conversa do duque, — conhece a senhorita Hamilton, a preceptora de Adam? Ou suponho que eu deveria dizer Lady Pamela.
Fleur sorriu para a senhora Kendall ao ser apresentada.
—É uma noite esplêndida, Adam — comentou o senhor Chamberlain. — Não me lembro de um baile em Willoughby que fosse melhor que este. Ah, uma valsa, senhora? — Fez uma reverência e estendeu uma mão à senhora Kendall.
Eles partiram antes que a mente de Fleur pudesse expressar a sua consternação.
—Senhorita Hamilton? — Fleur viu que os olhos do duque brilhavam em direção aos seus. — Você gostaria de dançar?
Ela o olhou, e ele estendeu a mão para a dela, essa bela mão e dedos longos. E o pesadelo voltou. Nem sequer aquela noite poderia desfrutar.
Fleur observou como o duque retirava a mão.
—Melhor... vamos dar um passeio — disse o duque com suavidade, e colocou as mãos cruzadas atrás das costas. Ele caminhou até a estrada que contornava a costa do lago e esperou que ela acomodasse seu passo ao dele.
—Você está gostando da noite? — perguntou-lhe enquanto seguia pela margem sul, menos movimentada e mais arborizada que a outra, embora houvesse uma fila de lanternas ao longo.
—Sim, obrigada, Sua Graça.
—Willoughby sempre foi famoso por suas grandes festas. E eu sempre fui orgulhoso dessa reputação. Quando lhe concedem o privilégio de herdar tudo isto, parece apropriado compartilhá-lo um pouco com outros, não acredita?
Ninguém mais seguia esse caminho em particular. Os caminhos mais largos e as áreas gramadas mais abertas do norte e o oeste estavam repletos de convidados. Fleur sentia muito mais medo do que sentiu quando caminhou com ele à saída do teatro Drury Lane. Naquele momento não sentira nada de medo, só resignação ante o que necessitava ser.
—Dança bem — comentou o duque. — Eu a observei várias vezes. Você praticou?
—Um pouco, Sua Graça.
—Mas nunca foi a Londres para a temporada, certo? Eu nunca a vi por ali.
Fleur pensou que só em uma ocasião, quando obviamente não fazia parte da agitada vida social da temporada.
—Não, Sua Graça.
Era consciente de que a olhava enquanto caminhavam, e precisava concentrar todos os seus esforços em pôr um pé depois do outro. Se ela tivesse que gritar, alguém ouviria?
Continuavam ouvindo os sons alegres procedentes da pista de dança e mesas com lanches do outro lado da água.
—Aonde aprendeu a dançar?
—Na escola. Tínhamos um professor de dança francês. As garotas estavam acostumadas rir dele porque gostava de agitar os braços, sempre com um lenço em uma mão. E movia os pés com maior delicadeza que qualquer um de nós. — Ela sorriu com a lembrança. — Mas sabia dançar! Sempre gostei de dançar. Eu sempre amei a música expressa tanto com os dedos sobre o teclado ou com os pés numa pista de dança.
—Você faz bem ambas as coisas.
—Às vezes... — Fleur olhava em direção ao fundo do pavilhão e para os reflexos brilhantes de centenas de lanternas. — Às vezes penso que sem música, a vida não teria nenhum encanto nem beleza.
A música de valsa procedente do pavilhão formava parte da noite, a beleza e a esperança. Por um momento esquecera seu medo e quem era seu acompanhante.
—Vamos dançar aqui — disse ele, e Fleur de repente voltou de repente para a realidade ao virar-se para ficar de frente a ele.
O duque deixara de caminhar. Tinha a mão aberta em direção à sua. Seu rosto estava submerso na escuridão, e a fileira de lanternas ficava atrás dele.
O braço direito de Fleur parecia pesar como chumbo quando o levantou e colocou sua mão na dele. Ela engoliu em seco ao observar e sentir os dedos do duque fechando-se em torno de sua mão e sentiu que seu coração pulsava com uma força terrível contra as costelas e os tímpanos. O duque colocou a outra mão atrás da cintura dela, firme e quente. Fleur ergueu a mão esquerda para a altura do ombro, que, como lembrava era largo e musculoso.
Ela fechou os olhos enquanto dançavam, primeiro lentamente, depois começou a sentir o ritmo da música e se entregou a ela. O homem dançava bem. Ia no ritmo da música e a fez mergulhar no fluxo girando, segurando a sua cintura tão firmemente que a certa altura seus mamilos roçaram seu paletó. Até que não terminou não se recordou com quem estava dançando. Aquele homem se tomou parte da música com ela.
Mas tinham caminhado vários minutos antes de dançar, e a orquestra estava terminando sua interpretação: finalmente terminou, embora muito breve.
—Tem a música no mais profundo de sua alma, Fleur Hamilton — sussurrou uma voz calma e profunda.
E ela voltou a ficar consciente de que ele segurava sua mão e a segurava pelas costas. Voltou a estar consciente da largura de seus ombros, que estava sob sua outra mão e seu calor e perfume.
Ela abriu os olhos e deu um passo para trás, deixando cair os braços para os lados.
—É mais rápido voltar pelo mesmo caminho, que percorrer todo o lago — comentou ele. — Vamos voltar ou seguimos? Tem fome?
—Não. Obrigada, Sua Graça.
—Soube que levou Pamela para visitar os Chamberlain. Foi muito amável de sua parte. Ela vê muito pouco outras crianças.
—Acredito que gostou do passeio, Sua Graça.
—Com certeza que sim. Você dançou com Chamberlain várias vezes esta noite. Acredito que ele gosta de você.
Fleur se tornou fria como o gelo. Mas não havia necessidade de adverti-la. Era bem capaz de perceber por si só.
—Ele mostrou-se amável, como vários dos outros cavalheiros, Sua Graça — comentou Fleur.
—Amável? sim. Vejo que a senhorita Chamberlain está junto ao ponche. Gostaria de ir até ela?
—Sim, Sim, gostaria, obrigada.
Um minuto depois, quando chegou junto a Emily Chamberlain e o duque se afastou, viu-se obrigada a sorrir ao lacaio que estava atrás do ponche e lhe assegurar que não tinha sede, mas na realidade estava com sede. Ela temia que suas mãos tremessem demais para segurar o copo.
—Não é uma noite maravilhosa, senhorita Hamilton? — perguntou sua acompanhante. — Estou tão feliz que o tempo tenha permanecido firme para a ocasião.

Capítulo 9

Desde que voltou para casa, o Duque de Ridgeway estava acostumado a passar parte da manhã na sala de estudo, em silêncio assistindo as aulas ministradas. Muitas vezes, depois levava Pamela ao estábulo para brincar com seu cachorrinho antes de comer. Fleur se forçou a aceitar a situação. Não houve aulas pela manhã, após o baile, já que Lady Pamela se deitou tarde. Na parte da tarde, Fleur acompanhou a menina para o salão superior antes de entrar na sala de estudo, dedicando-se a lhe mostrar alguns quadros e apontar alguns detalhes importantes. Mas o que esperava era que Lady Pamela assimilasse a beleza e a perfeição das pinturas sem ser oprimida por muitos detalhes técnicos, e quisesse esforçar-se mais com as suas próprias. Tinha olho para a forma e a cor, embora sua impaciência natural a fazia precipitar-se muito quando pintava.
O duque apareceu no alto da escada e se dirigiu para elas quando terminaram. Fleur suspirou interiormente. Ela tinha esperança de evitá-lo durante todo o dia, já que sabia que Sua graça, a duquesa, e a maioria de seus convidados saíram para passear pelo parque. Não suportava recordar o encontro da noite anterior com ele, o terror que sentiu ao caminhar a seu lado pelo caminho deserto, as náuseas que sentiu quando se viu obrigada a tocá-lo e permitir-lhe que a tocasse, a estranha e inesperada magia ao dançar com ele, com os olhos totalmente fechados, tentando não pensar que estava dançando com ele.
Apesar de ter tentado durante toda a noite, não pôde deixar de lembrar do baile, de todos os momentos mágicos da noite, até que adormeceu e voltou a vê-lo inclinando-se sobre ela, machucando-a e lhe dizendo que era porque ela gostava.
Lady Pamela sorriu, agarrou seu pai pela mão, e levantou o rosto para que a beijasse.
—A semana que vem é o aniversário de Timothy Chamberlain, papai — ela explicou. — Eu fui convidada com a senhorita Hamilton. Chegou uma carta esta manhã. Mamãe me deixará ir? Você virá também?
—Que prazer tão singular— disse o duque, enquanto Fleur se virou e entrou na sala de estudo. — Eu não tenho certeza se poderei ir, Pamela, já que temos convidados. Verei o que posso fazer.
Ele permaneceu sentado em silencio durante as aulas da tarde até que Fleur deixou Lady Pamela sair mais cedo.
Então o duque levantou-se.
—Você está indo para a sala de jogos com a babá? — Ele perguntou à filha.
—Ela vai me lavar o cabelo — disse a garota, fazendo beicinho. — Eu preferiria ir ver Pequena com você, papai.
—Já fomos antes do almoço. Se a babá diz que é preciso lavar o cabelo, com certeza é. Vamos.
E Pamela partiu arrastando os pés.
Fleur se entreteve guardando livros e ordenando-os na estante. Pensou que o duque ia-se com sua filha, como estava acostumado a fazer.
—No andar de cima há poucas pinturas e tratam poucos temas — comentou. — Deveria mostrar a Pamela as pinturas de baixo se lhe parecer que está interessada.
Fleur não disse nada.
—Você viu a galeria longa? — Perguntou ele.
—Sim, com a senhora Laycock, Sua Graça.
—Ah, com a senhora Laycock. Ela é a primeira a admitir que não sabe muito sobre as obras de arte de Willoughby. Seu talento se concentra em assuntos mais práticos. Os retratos da galeria lhe serviriam de material para uma série completa de aulas de história. E uma menina nunca é muito pequena para aprender sobre sua família. Você tem um minuto?
Fleur simplesmente virou-se. Não pôde mais fingir que a estante estava desordenada.
—Vamos ver agora — propôs o duque. — Vou apresentá-la aos meus ancestrais.
A preceptora caminhou em silêncio junto ao duque pelo corredor, escada abaixo e através da entrada principal. Passaram diante dos lacaios imóveis exceto um que deu um salto para frente quando o duque o saudou com a cabeça, e através das portas até a uma longa ala da galeria, banhada pela luz do entardecer.
—Eu adoro este aposento — disse o duque, parando logo depois de cruzar a soleira da porta. — Acredito que eu adoraria mesmo se não houvesse nenhuma só pintura nela.
Fleur seguiu o olhar do duque até os círculos de folhas e frutas esculpidas de maneira sofisticada no teto.
—É um espaço muito útil quando chove constantemente — continuou. — Pelo menos você pode fazer um pequeno exercício andando por aqui. Meu irmão e eu passamos horas aqui, quando criança. Eu acho que ainda há cordas, piões, e jogos de varetas e damas nos armários inferiores. Minha esposa e a babá sempre preferiram que Pamela ficasse no andar de cima. Pode ser que ela goste se a trouxer aqui de vez em quando.
Eles foram para o outro extremo da galeria, e o duque passou a hora seguinte descrevendo as pinturas, nomeando os pintores, e explicando um pouco a história de cada ancestral pintado.
Ele falava com conhecimento, orgulho e um senso de humor.
—Há algo especial em saber que alguém descende de uma linhagem semelhante. Produz certa sensação de calor, de segurança talvez. Há algo especial em poder se chamar o oitavo duque em vez do primeiro. Meu nariz já existia com o quarto duque, veja... Então eu não posso culpar a minha mãe. Mas o quarto duque usava uma peruca longa e encaracolada.
Sua Graça a olhava. Fleur sentia seus olhos fixos nela e precisava esforçar-se para não ficar tensa, respirando de maneira lenta e regular.
—E sua família? — Perguntou o duque. — É de linhagem?
O foram seus pais. E seus avós, que nunca viu. Havia alguns retratos em Heron House, ninguém parecia capaz de identificar com certeza. Ela cresceu sentindo-se desenraizada, com ânsias de saber. Pensava que se a mãe e o pai soubessem que em breve a deixariam, teriam a ensinado desde pequena, teriam contado algo sobre si mesmos, sobre sua infância, sobre seus próprios pais e avós.
Ou talvez o tivessem feito, mas era muito pequena ou prestava muita pouca atenção, ignorando que chegaria um momento que arderia em desejos de saber tais coisas.
—De onde vem? — Ele perguntou baixinho. — Quem foi seu pai? Quem é você?
—Fleur Hamilton — respondeu, desejando que se concentrassem no próximo retrato.
—Mas Hamilton era o sobrenome de sua avó, não é?
E como soube? Alguém devia ter-lhe dito.
—A preceptora de sua filha, Sua graça.
E uma vez, sua puta, é claro.
—Você teve uma infância infeliz? — insistiu o duque, sem deixar de olhá-la. — Seu pai era cruel com você?
—Não! — os olhos de Fleur brilharam um instante na direção do duque. — Fui muito feliz até que eles morreram quando eu tinha oito anos.
—Seu pai e sua mãe ao mesmo tempo?
—Sim. —E mordeu a língua. Ela nunca foi boa em mentir. Supunha-se que seu pai morreu recentemente endividado.
Finalmente se deslocaram e o duque continuou sua descrição dos retratos. Fleur mal se fixou no do próprio duque no final da fila quando esteve ali com a senhora Laycock.
Provavelmente a governanta estava falando de outra coisa nesse momento.
Ela o teria reconhecido então, antes que voltasse, se tivesse olhado atentamente... Poderia ter tido uma advertência prévia! Olhou-o atentamente nesse momento. Era um homem jovem e esbelto, muito jovem, vestido com roupa de montar, com um chicote em uma mão e um spaniel do lado. Um homem jovem, bonito e despreocupado com a cabeça erguida e o rosto intacto.
Não, não o teria reconhecido.
Por algum motivo que não podia explicar a si mesmo, ela quis chorar.
—Foram meus dias anteriores a Waterloo — explicou o duque. — Quando eu pensava que o mundo era uma ostra com uma pérola de valor incalculável em seu interior. Suponho que todos pensamos isso quando somos muito jovens. Você também?
—Não — respondeu. Embora tivesse Daniel e seu amor por ela e a perspectiva de um futuro interminável no qual seria desejada, no qual se sentiria necessitada. —Ah, pode ser que uma vez, há muito tempo.
Por acaso não foi só uns meses atrás, e não era uma vida?
—Ontem tresnoitou e teve uma tarde ocupada — interveio ele de repente. —Vai querer voltar para seu quarto para descansar um pouco.
O duque abriu a porta e a deixou passar até a entrada principal na sua frente. Mas chegaram no momento em que as portas da entrada se abriam para deixar passar uma grande quantidade de convidados que voltavam de seu passeio.
Fleur voltara para a galeria, mas Sua Graça estava na soleira da porta justo atrás dela.
—Ah, Ridgeway — exclamou Sir Philip Shaw, — e a deliciosa senhorita Hamilton.
—Ridgeway, canalha— espetou um cavalheiro jovial e com o rosto corado. — Enquanto nos assávamos ao sol você estava se divertindo com a preceptora aqui dentro, onde está fresco.
—Às vezes — interveio Sir Hector Chesterton, — quase desejaria ter filhas próprias.
—Posso apresentar à senhorita Hamilton aos que não a conheceram ontem à noite? — perguntou Sua Graça, com uma mão nas costas de Fleur. — A senhorita Hamilton é a Preceptora de Pamela.
—Pode retirar-se, senhorita Hamilton. Sirva o chá no salão imediatamente, Jarvis — ouviu-se a voz suave e doce da duquesa.
Fleur se virou e partiu sem mais preâmbulos, subindo as escadas e atravessando o corredor até seu quarto quase correndo. Que situação mais embaraçosa! Ela ficou ao lado da janela aberta, curtindo a brisa, recusando-se a deitar-se apesar de estar cansada.
O sono só poderia trazer pesadelos.
Ele foi um jovem homem, bonito e despreocupado. Acreditava que o mundo era sua ostra, e a vida uma pérola de valor incalculável. Nos dias anteriores a Waterloo, que foi como os chamou. Mas falou com tristeza, como se aqueles sonhos se revelaram vazios, sem valor algum. Fleur se perguntou por que o duque de Ridgeway não estava satisfeito com a vida. Ele tinha tudo.
De repente, Fleur percebeu que ainda sentia vontade de chorar. O peito e a garganta doíam de um modo indescritível que a fazia sentir-se terrivelmente triste.

—Maldição! — Exclamou o duque. — Eu não irei a um banquete real, Sydney.
—Terminarei em um piscar de olhos, se você parar de mover a mandíbula — tranquilizou o seu valete, dando os retoques finais ao lenço de Sua Graça. — Afinal de contas, tem convidados para jantar, senhor.
—Você é insolente! — protestou Sua Graça. — Já acabou?
—Sim, senhor, graças a Deus — comentou Sidney. — Me afastarei de seu mau humor assim que tiver recolhido tudo isto.
—Não teria que estar perto se aquele projétil tivesse ricocheteado sete centímetros mais perto de você em Waterloo — retrucou o duque.
—Não, não teria — concedeu o valete, afastando-se para recolher a roupa e as escovas espalhadas. —Mas você tampouco teria que se vestir para seus convidados se a bala tivesse ricocheteado um centímetro mais perto de você.
Sabiamente, Sidney ignorou a réplica de seu senhor. Tornou-se imune a blasfêmias e obscenidades muito piores durante os anos que passou no exército britânico. Sua graça olhava irritado seu reflexo e o lenço habilmente atado que ia mostrar aos convidados de sua esposa para que o admirassem. Odiava ser um dandy, em qualquer momento e lugar. Mas ainda mais em sua própria casa! E durante duas noites seguidas. Com o baile da noite anterior já acumulara etiqueta suficiente para um mês.
Desatendera os convidados durante o dia. Muitos deles não se levantaram antes de meio-dia, e se desculpara dizendo que alguns assuntos o mantiveram ocupado em casa durante a tarde em vez de acompanhá-los em seu passeio.
Maldição, tinha direito a ter um pouco de privacidade.
Mas eram seus convidados.
E ele também devia algo a Pamela. Ela era uma criança e tinha o direito de desfrutar de seu tempo e de sua companhia. Lhe dera ambas as coisas enquanto Sybil estava preocupada com entreter os convidados e se divertir.
Pelo menos foi o que ele próprio disse a si mesmo antes.
Teria que passar mais tempo afastado dela, ou do contrário teria que tirá-la mais das aulas: já era hora de que aprendesse a montar, embora sempre se mostrou reticente em fazê-lo.
O que realmente precisava fazer era ficar fora da sala de estudo. Se fosse totalmente sincero consigo mesmo, não era Pamela, nem como motivação única ou principal motivação que o atraía para lá ou para a biblioteca todas as manhãs, ao amanhecer, a não ser que chegasse muito tarde e a perdesse.
Sidney só fizera um comentário aquela manhã, quando o duque se levantou da cama bocejando depois de ter tresnoitado. Lhe dissera que devia estar mal da cabeça para levantar-se tão cedo. Pode ser que Sidney tivesse razão.
E o duque despertou de repente durante a noite e percebeu que sonhava que dançava em um caminho deserto com uma mulher com os olhos fechados e cujo cabelo dourado como o fogo estava solto e estendido como uma cortina de seda sobre seu braço.
Não funcionaria. Simplesmente não funcionaria. Teria que ter feito com que Houghton a enviasse a outro lugar. Foi uma loucura ordenar que a mandassem para Willoughby.
A porta do vestiário abriu-se de repente, sem aviso, e a duquesa apareceu ainda segurando a maçaneta. Estava linda com um vestido de renda rosa e parecia bem mais jovem do que seus vinte e seis anos.
—Oh, você está ocupado? Você pode sair, Sidney? — comentou com sua doçura habitual.
O valete olhou para seu senhor levantando as sobrancelhas, e o duque assentiu.
—Por favor, Sidney — pediu o duque, levantando-se. — O que posso fazer por você, Sybil?
Ela esperou até que a porta fosse fechada.
—Eu nunca fui tão humilhada na minha vida! —Começou ela, olhando para ele com os olhos arregalados e aflitos. — Adam, como você pode fazer isso comigo, e diante de nossos convidados?
Ele a olhou fixamente.
—Imagino que você se refere ao incidente com a senhorita Hamilton.
—Por que a trouxe aqui? — Perguntou, juntando suas mãos esbeltas e brancas no peito. — Foi para me ferir até que não possa mais? Eu nunca reclamei com sua ausência prolongada, em Londres, Adam. E eu sempre soube por que você precisa ir lá. Eu suportei a humilhação sem recriminação. Mas agora eu preciso aturar uma de suas amantes em casa? E em contato estreito com minha filha? Pede-me muito. Não posso suportar.
—É uma pena que não tenha outro público que não seja eu — comentou ele, sem deixar de olhá-la. — Suas palavras são muito comovedoras, Sybil. Quase parece que se importa. Vínhamos da galeria em direção a entrada principal. Não acha estranho que escolhêssemos um lugar à vista de todos para um encontro clandestino?
—Você adora usar o sarcasmo, e pisotear meus sentimentos. Suponho que também você adora mentir. Nega ter uma aventura com a senhorita Hamilton?
—Sim. Mas já decidiu que sou um mentiroso, Sybil, assim que sua pergunta não tem muito sentido, não acha? Você se surpreenderia tanto se eu buscasse uma amante?
—É o que aprendi a esperar e a aceitar de você. Mas embora seu amor por mim esteja morto, Adam, eu pensei que ficaria um pouco de respeito pelo fato de que sou sua esposa.
—Minha esposa? — Adam riu baixinho e deu dois passos em sua direção. — Eu não necessitaria de uma amante se tivesse uma esposa, Sybil. Talvez você gostaria de proteger seus interesses de forma mais ativa.
Ele colocou uma mão sob o queixo de Sybil e a beijou nos lábios. Mas ela voltou a cabeça bruscamente para um lado.
—Não, não — ela suplicou.
—Já imaginava que essa ideia não lhe seria muito atraente — comentou o duque. — Não se preocupe, Sybil. Nunca a forcei e é pouco provável que comece a fazer isso agora.
—Eu não me sinto bem. Eu ainda não me recuperei de todo do resfriado.
—Sim, eu vejo. E você perdeu peso, não é? Você tem algum outro motivo para me visitar?
—Não — respondeu ela. Sua voz suave e doce tremia. — Mas sei que está mentindo, Adam. Sei que estiveste com a preceptora de Pamela. Por mais que negue, sei que é verdade.
De maneira repentina e não desejada, veio à mente de Adam uma imagem de sangue, do sangue nas coxas de Fleur e no lençol em que se deitou.
—Parece que estamos prontos para ir ao salão e sermos simpáticos com nossos convidados — comentou ele olhando fixamente para sua esposa. — Vamos juntos? —E lhe estendeu um braço para que ela apoiasse a mão.
Sybil colocou uma mão em sua manga sem agarrá-lo pelo braço, e começou a caminhar ao lado dele em silêncio. Era uma mulher pequena, frágil e bonita que parecia tão inocente como uma menina.
Sua Graça pensou que às vezes era difícil aceitar o fato de que aquele era seu presente e seu futuro, o casamento com o qual sonhou quando jovem. Só que todos os sonhos se extinguiram e que agora já não poderia haver outros que ocupassem seu lugar... poderia apenas ter sonhos inesperados pelas noites.
Adam voltou a pensar em Fleur, na primeira vez que a viu, de pé e em silêncio, nas sombras que se formavam à saída do teatro Drury Lane, e na maneira inesperada em que a necessitara.
A necessidade de passar uma noite envolvido nos braços e o corpo de uma mulher que o aceitasse sem questionar nada. A necessidade de dormir com a cabeça recostada no peito de uma mulher. A necessidade de ter um pouco de paz. A necessidade de aliviar sua solidão.
E pensou outra vez no sangue e na mão dela, que tremia tanto depois que a violou que precisou segurá-la enquanto colocava o pano úmido nela. E na fome que sentia e na disciplina que a fez conter-se e não engolir a comida diante dele. E na humilhação que sentiu a garota quando colocou as moedas na mão dela, o pagamento pelos serviços prestados.
Deteve-se um instante ao chegar a porta do salão enquanto um lacaio abria, e entrou com sua esposa pelo braço. Sorriu e olhou em como Sybil parecia radiante aos convidados que já se reuniam ali.

Na manhã seguinte, Fleur praticava na sala de música, desfrutando de total privacidade. A porta que havia entre essa sala e a biblioteca permanecia fechada.
E sentia-se muito mais constrangida do que qualquer outra manhã. Talvez ele estivesse lá...? Espreitava atrás da porta fechada, escutando? Estava a ponto de abrir a um golpe, a qualquer momento, para criticar qualquer engano que tivesse cometido tocando ou para lhe dizer que já não podia continuar utilizando aquela sala? Ou talvez não se encontrasse ali? Seria ele realmente tão só como parecia?
Não podia concentrar-se nas peças que estava ensaiando. Não conseguia deixar-se levar pela música que já conhecia e sabia tocar com os olhos fechados. Tinha os dedos duros e pouco dispostos a colaborar.
Sorriu para si pensativa ao sair da sala cinco minutos antes da hora. Por acaso podia relaxar mais sabendo que ele estava perto do que quando estava ausente, quando se encontrava a aquele homem sombrio e de feições duras que a aterrorizava mais que ninguém que tivesse conhecido, Matthew inclusive, cuja proximidade física a fazia querer virar e sair correndo em pânico?
Enquanto ensinava diferentes tema a Lady Pamela, passou a manhã inteira esperando se ouvia o som de passos firmes aproximando-se da porta e girando o trinco.
Mas o duque as deixou em paz. E parecia uma manhã tranquila: Lady Pamela estava quieta e dócil de uma maneira incomum nela até que de repente, enquanto bordavam, agarrou as tesouras e cortou primeiro o fio de seda com o qual esteve costurando e logo depois, em pedaços, o lenço de maneira deliberadamente violenta.
Fleur a olhou assombrada. Sua própria agulha ficou suspensa no ar. Estava lhe contando uma história.
—Disse que poderia descer! — Gritou Lady Pamela. — Ela disse! E ele também, em outro momento. Ele disse que iria lembrá-la. Disse faz muito tempo. Nunca me deixarão descer. E não me importa. Eu não quero descer.
Fleur deixou o bordado e levantou-se lentamente.
—E agora lhes dirá que eu fui má — gritou a menina, fazendo mais um corte com a tesoura, — e virão ao quarto e me repreenderão! Mamãe chorará porque fui má. Mas não me importa. Não me importa!
Fleur agarrou a tesoura e o lenço cortado de suas mãozinhas e se abaixou diante da menina.
—E tudo é culpa sua! — Pamela gritou. — Mamãe disse que podia descer, e você não me deixou. Eu a odeio, e vou dizer a mamãe que a mande embora. Eu vou dizer a papai.
Fleur agarrou a menina entre seus braços e a abraçou forte. Mas Lady Pamela se livrou dela com o braço livre e esperneou com ambos os pés. Lançou gritos estridentes quando Fleur a agarrou entre seus braços e se sentou com ela junto à janela, balançando-a, embalando-a, cantando suavemente.
A porta abriu-se e entrou a senhora Clement.
—O que fez a pobre menina? — Ela espetou Fleur, com o olhar aceso. — O que está acontecendo, senhorita?
Ela estendeu os braços para pegar Lady Pamela. Mas então a menina gritou ainda mais alto e se agarrou a Fleur, com o rosto escondido em seu peito. A senhora Clement voltou a desaparecer.
Lady Pamela estava chorando em voz baixa quando a porta voltou abri vários minutos mais tarde. O duque de Ridgeway a fechou atrás de si sem fazer ruído e ficou de pé olhando alguns instantes.
Fleur tinha uma face apoiada contra a testa da menina. Não levantou a vista.
—O que está acontecendo? — Perguntou ele, atravessando a sala. — Pamela?
Mas ela continuou chorando baixinho nos braços de Fleur.
—Senhorita Hamilton?
Fleur levantou a cabeça para olhá-lo.
—Promessas quebradas — respondeu sem levantar a voz. Ele permaneceu em pé alguns segundos mais e a seguir desabou no assento da janela. Voltou-se parcialmente para elas, e um de seus joelhos roçava contra o de Fleur.
O duque passou um dedo pelo braço nu de sua filha que rodeava o pescoço da preceptora.
E Fleur o olhou e viu que lhe devolvia um olhar sombrio. A cicatriz em seu rosto esgotado era perfeitamente visíveis devido à luz que entrava pela janela. Recordando seu retrato, Fleur pensou que no passado ele foi um homem muito atraente, apesar do negrume de seu cabelo, olhos e nariz proeminente, ou talvez justamente por essas características. Mas continuava sendo atraente.
De alguma maneira, a cicatriz ressaltava em vez de desmerecer a força de suas feições.
Se ela não o tivesse conhecido em circunstâncias terríveis, se pudesse livrar de seus pesadelos a imagem daquele rosto inclinado sobre ela enquanto fazia coisas dolorosas e humilhantes a seu corpo, possivelmente o teria considerado um homem atraente.
O duque desviou seu olhar para a filha.
—O que posso fazer, Pamela? — Ele perguntou. — O que posso fazer para consertar as coisas?
Estremecendo interiormente, Fleur sentiu como se ele se dirigisse a ela.
—Nada — respondeu a menina, deixando de chorar um momento. — Vá embora!
—Mamãe prometeu que algum dia poderia conhecer as damas, certo? E eu prometi de falar com ela e lembrá-la. Mas ainda não o fiz. Desculpe, Pamela. Você me perdoa?
—Não! — Exclamou sem soltar-se do peito de Fleur.
Ele suspirou e colocou a mão no pescoço de sua filha.
—Você vai me dar a oportunidade de corrigir? Vai haver um piquenique nas ruínas esta tarde. Você quer que eu cuide para que você venha também?
—Não. Quero ficar com a senhorita Hamilton e aprender francês.
—Por favor, Pamela, e se convencermos à senhorita Hamilton a adiar para amanhã?
Fleur beijou a têmpora quente da menina.
—Aprenderemos francês amanhã, tudo bem?— Propôs. — Faz um dia lindo para ir a um piquenique. Acredito que todas as damas irão vestidas de musselina e levarão bonitos chapéus e sombrinhas.
—E entendi que haverá bolinho de camarão—acrescentou o duque. — Você vem, Pamela?
—Só se a senhorita Hamilton vier também — respondeu Lady Pamela de improviso.
Fleur e o duque se olharam.
—Mas mamãe e papai vão querer ficar com você — explicou Fleur.
—A senhorita Hamilton vai gostar de ter uma tarde livre — acrescentou Sua Graça. — Não tem muitas.
—Então não irei — afirmou a menina, zangada.
O duque elevou as sobrancelhas e Fleur fechou os olhos.
—Gosta de bolinho de camarão, senhorita Hamilton? — perguntou em voz baixa.
—Sempre foi minha comida favorita nos piqueniques.
Lady Pamela saltou de seu colo e afastou alguns cabelos emaranhados no rosto vermelho e inchado.
—Eu vou procurar tatu. Vou dizer-lhe que me ponha o vestido rosa e o chapéu de palha.
—Peça-lhe, Pamela — recordou-lhe Sua Graça. — É melhor que ordenar-lhe.
O duque levantou-se enquanto sua filha saía rapidamente da sala, e olhou para Fleur.
—Desculpe— disse o duque. — Sinto que teve de enfrentar isso sozinha. Nanny enviou Houghton correndo para me dizer que Pamela estava chorando e gritando e que você a estava estrangulando. Eu me enganei ao esperar que esquecesse seu desejo de encontrar-se com as damas.
Fleur não disse nada e se limitou a recolher os farrapos do lenço.
—Farei os preparativos para esta tarde — comentou o duque. — Se lhe servir de consolo, senhorita Hamilton, diria que sua aluna começa a ter carinho por você.
Ao sair da sala de estudo, Fleur pensou com certa inquietação que não queria ir ao piquenique. Faria quase qualquer coisa para se livrar de ir, exceto quebrar uma promessa feita a Lady Pamela. Assim, precisava ir.
Sentia uma nostalgia considerável por voltar a suas duas primeiras semanas de vida em Willoughby, quando era feliz , apesar de não ter a aprovação da duquesa e da senhora Clement.
Quanto desejava que o duque de Ridgeway não fosse ser quem era. Mas já percebera que não teria seu emprego se não o tivesse conhecido. Estaria em Londres, vivendo em um quarto humilde, e então já seria uma puta experiente.
Pensava que, depois de tudo, devia-lhe certa gratidão. E se fosse verdade que Lady Pamela estava começando a ter-lhe carinho, embora não estava nada convencida disso, então era igualmente certo que ela começava a ter carinho pela menina. Por muito caprichosa e teimosa que fosse, Lady Pamela tinha sentimentos e necessidades muito reais. E necessitava de Fleur, embora não quisesse admitir.
Era agradável sentir que precisavam dela.
Assim, conforme parecia, aquela tarde teria que preparar-se para um piquenique.

Capítulo 10

—É ali. — O cavaleiro atraente e moreno inclinou-se para a janela e apontou para seu companheiro, quando cruzaram a ponte e deixaram para trás o bosque de limas em direção à casa que aparecia diante de seus olhos. —Não diria que é impressionante?
O cavalheiro loiro que viajava com ele olhou na mesma direção.
—Muito — respondeu o outro. — Vejo por que está acostumado a ser tão admirado. E foi sua durante alguns meses, Kent.
—Foi uma experiência divertida— comentou Lorde Thomas Kent. —De repente eu me tornei a propriedade de todos, porque eu era o dono de tudo. Quase como se eu pertencesse a propriedade e não o contrário. Pensei que nunca voltaria a vê-la.
—Você pode ter certeza, — o tranquilizou Lorde Brockehurst, — que seu irmão o proibiu de voltar em um momento de exaltação. Vai recebê-lo de braços abertos.
A ideia parecia ser engraçada para Lorde Thomas.
—Eu não sei, não sei — disse Kent, — mas não lamento que me convencesse a vir, Bradshaw. Ver suas caras será impagável: a de Ridgeway, a dos criados. E será interessante ver minha cunhada uma vez mais. Quando parti não estavam casados, você sabe.
—Magnífico! — Exclamou Lorde Brockehurst quando a carruagem parou, e observava as enormes colunas coríntias e o grande frontão, que ocultava à vista a cúpula daquele ponto estratégico. —É esplêndido. É esplêndido. Estou feliz por você me convencer a acompanhá-lo.
Lorde Thomas riu.
—Desde que foi você quem me convenceu a voltar, pareceu-me justo que fosse testemunha da comovente reunião.
A expressão no rosto do mordomo ao sair para os degraus em forma de ferradura para dar boas vindas aos inesperados visitantes deve ter sido o que Lorde Thomas esperava. A rigidez o abandonou durante três segundos inteiros enquanto observava como o irmão mais novo de Sua Graça descia da carruagem e o olhava sorrindo.
—Jarvis! — Exclamou ele. — Assim afinal o promoveram. Você vai ficar aí boquiaberto, ou vai chamar alguém para levar nossos baús para dentro? Meu irmão está por perto?
Jarvis se controlava. Fez uma reverência formal da cintura para baixo.
—Sua Graça está nas ruínas com a duquesa e seus convidados, senhor. Eu vou cuidar de sua carruagem e bagagem, se fizerem o favor de entrar comigo.
—Não tenho nenhuma intenção de ficar aqui fora até que Sua Augusta Excelência me deixe entrar — afirmou Lorde Thomas entre risadas, voltando-se para Lorde Brockehurst e conduzindo-o escada acima. —Nos Sirva bebidas na sala, por favor, Jarvis. Que diabos estão fazendo nas ruínas?
—Acredito que estejam fazendo um piquenique, senhor — explicou Jarvis, indicando aos convidados o caminho para a sala com uma reverência.
—Quanto tempo faz que partiram? — Perguntou Lorde Thomas, olhando a seu redor. — Vejo que nada mudou.
—A cerca de uma hora, senhor — respondeu o mordomo.
—Uma hora? — Lorde Thomas franziu o cenho. — Então eu vou ter tempo para fazer as honras da casa, lhe mostrar os salões, depois de nos refrescarmos com uma bebida e trocar de roupa, claro. Faça com que preparem meu antigo quarto, Jarvis, e que a governanta prepare outro para Lorde Brockehurst. Ainda está aqui a senhora Laycock?
Jarvis fez uma reverência.
—Já pode se retirar — ordenou Lorde Thomas. —Mas primeiro traga as bebidas. Então, vamos esperar com impaciência por algumas horas e sentir o suspense crescente. Pergunto-me se Ridgeway se engasgaria com o osso do frango e o vinho se soubesse que estou no centro da sala neste mesmo instante — riu Lorde Thomas.
—Fico feliz em estar aqui de qualquer maneira— comentou Lorde Brockehurst. — Faz tempo que eu queria vir a Willoughby Hall.

O duque de Ridgeway observou sua filha se separar do grupo com sua preceptora e dirigir-se ao estábulo para ver seu cachorrinho. E desejou poder ir com elas, tirar o cão para o ar livre, e pular com elas durante meia hora.
Mas levava Lady Underwood pelo braço, e os Grantsham queriam conversar com eles.
Pensou que o piquenique foi muito bem. Sybil se alarmara quando ele anunciou que ia levar Pamela, e olhou desafiante quando Adam lembrou-lhe que ela quebrou a sua promessa de permitir a menina ir para baixo e ver as damas no dia em que chegou. Mas também dissera que não teria que preocupar-se em cuidar de Pamela. Sua preceptora cuidaria, tal e como pediu Pamela.
A menina estava de bom humor e todas as damas e alguns cavalheiros lhe deram muita atenção. Quando chegaram nas ruínas estava vermelha e se pôs a gritar, mas Fleur a pegou discretamente pela mão, e sussurrado algo em seu ouvido, e a levou para dentro para ver a torre. Sir Ambrose Marvell as seguiu até ali.
A própria Fleur conseguiu manter-se em um segundo plano durante toda a tarde e ajudou a servir comida no piquenique, a pedido da Duquesa. Não levantou objeções ao ser tratada como uma serviçal. Na verdade, o duque pensou que provavelmente estava feliz em ter algo para fazer.
Ao chegar em casa, o duque acreditou que com um pouco de sorte ainda teria algumas poucas horas tranquilas para si mesmo antes do jantar, a menos que Lady Underwood conseguisse manter-se a seu lado.
Entraram fazendo bastante ruído. Jarvis os estava esperando e fez uma reverência.
—Tem visitas na sala, Sua Graça — anunciou.
O duque suspirou interiormente. Quem se apresentava a essa hora da tarde? Esperava que não fosse ninguém que ficasse muito tempo. Voltou-se para apresentar suas desculpas a Lady Underwood e se dirigiu para a sala.
—Visitas? — Ouviu o que dizia sua esposa com sua voz suave e agradável. Passou uma tarde excelente, já que Shaw lhe deu bastante atenção o tempo todo.
O duque parou na soleira da porta e cruzou as mãos nas costas. Por estranho que parecesse, não estava particularmente surpreso ao ver a pele bronzeada de seu irmão, roupa da moda, seu sorriso. Sempre soube que Thomas voltaria.
—Parece como se fosses cair de costas, Adam — comentou Lorde Thomas Kent. — Você não vai dar-me boas-vindas?
—Thomas. — O duque estendeu a mão e foi para o seu meio-irmão. — Bem-vindo ao lar.
Lorde Thomas sorria, mas ao dar-lhe a mão, seus olhos se fixaram em uma pessoa atrás do duque.
—Thomas? — a palavra foi pronunciada como um suspiro, mas encheu a sala.
Lorde Thomas soltou a mão de Sua Graça e seu olhar se fixou sobre a figura que apareceu na porta.
—Sybil! — Exclamou, e seu olhar e sua voz suavizaram. Ele foi até ela, estendendo as mãos. — Como você está linda.
—Thomas? — Ela voltou a suspirar, e suas mãos pequenas e brancas desapareceram nas mãos bronzeadas dele.
—Sybil — repetiu Lorde Thomas em voz baixa. — Voltei para casa. — E a seguir voltou a cabeça, sorrindo. — Conhece Bradshaw? — Ele perguntou a seu irmão. — Matthew Bradshaw, Lorde Brockehurst, de Heron House em Wiltshire. Foi o primeiro amigo que me chamou depois que voltei da Índia. E convenceu-me de que devia voltar para casa. Trouxe-me para passar algumas semanas.
Sua Graça apertou a mão de Brockehurst.
—Bem-vindo. Fico feliz em conhecê-lo, Brockehurst.
—A Índia? — A duquesa estava dizendo. Seus grandes olhos azuis estavam fixos em seu cunhado, e ele continuava segurando suas mãos. — Você estava na Índia, Thomas?
—Sim. Com a Companhia das Índias Orientais. Voltei para ver se a boa e velha Inglaterra ainda estava no mesmo lugar. Assim, no final você se tornou a Duquesa de Ridgeway, Sybil? —Thomas apertou-lhe as mãos antes de soltá-la.
—Na Índia — repetiu a duquesa. — Todo este tempo? — E começou a tossir.
—Eu vou acompanhá-la ao seu quarto, Sybil — comentou Sua Graça, observando como ela estava pálida e as manchas de cor que tinha na parte superior das faces. — A saída desta tarde foi exaustiva para você.
Surpreendentemente, ela o agarrou pelo braço sem protestar e partiu com ele depois de que o duque desse instruções a seu meio irmão que entretivesse seus convidados até o jantar.
Sybil não disse nada quando a conduziu pelos corredores até sua sala e chamou a donzela. Limitou-se a jogar os ombros para trás e olhou para frente adotando uma expressão ausente, e tossindo de vez em quando.
—Armitage — chamou quando a donzela entrou no aposento, — quero me despir e que me escove o cabelo. Quero deitar-me.
Parecia uma criança cansada e confusa.
Ao fechar a porta silenciosamente atrás de si, o Duque de Ridgeway não conseguia lembrar-se de um momento na vida em que se sentisse mais furioso.

Lorde Thomas Kent estava assobiando. Era agradável estar de volta. Embora tivesse jurado que jamais voltaria com a mesma veemência com que seu irmão lhe ordenara que não voltasse, afinal de contas, tratava se de Willoughby, o lar de sua infância, o lar de seu pai. E o seu próprio durante os meses nos quais acreditou que Adam falecera em combate.
Sim, era agradável. E tudo valeu a pena para ver o rosto de Adam. Claro que a boa educação proporcionou uma máscara quase adequada. Provavelmente Brockehurst não deve ter percebido que a acolhida do duque a seu irmão não era nada cordial, mas sim Adam estava totalmente furioso. Lorde Thomas conhecia bastante bem seu irmão para desmascarar qualquer disfarce.
Ainda faltava muito tempo para descer para o jantar. Thomas ainda usava sua camisa de seda aberta no colarinho. Seu servo estava escovando seu casaco de veludo e parou seu trabalho para responder a uma batida na porta.
—Pode ir, Winthrop — disse Lorde Thomas, sorrindo para a sua visita. — Chamarei quando quiser que volte.
O homem fez uma reverência e saiu do quarto.
—Enfim, Sybil — sussurrou Lorde Thomas, sorrindo ainda.
—Thomas? — começou ela. Parecia delicada e charmosa com seu vestido de seda azul-céu e o cabelo solto nas costas. — Você voltou para casa.
—Como você pode ver.
—Você teve a coragem de voltar... Embora ele tenha o obrigado a partir.
Thomas sorriu.
—Oh, Thomas, você está de volta!
Ele mostrou as palmas das mãos e ela soltou um grito e correu para seus braços.
—Você acreditava que eu iria para sempre? — Perguntou Thomas com a cabeça apoiada contra seu cabelo.
—Sim. Pensei que teria que se manter afastado porque ele ordenou-lhe isso. Pensei que não poderia voltar nunca mais, Thomas — gemeu, olhando-o horrorizada e com os olhos cheios de lágrimas. —Eu casei-me com ele!
—Eu sei, meu amor. — E uniu sua boca com a dela, explorando-a com a língua enquanto rodeava seu corpo pequeno e flexível com seus braços. —Ah, você é tão bonita! Você está mais encantadora do que nunca, Sybil. Como poderia manter-me afastado de você para sempre?
—Não soube viver sem você — explicou ela. Tinha a voz aguda devido à emoção. — Thomas, estive meio morta sem você. Você foi para a Índia? Não tinha nem ideia. Não sabia onde estava ou nem sequer se estava vivo. E tampouco acredito que ele soubesse, e se soubesse, não teria me dito. Por que não escreveu? Ah, por que não me deu algum sinal?
—Não teria servido. Você sabe, Sybil. Era melhor que pensasse que eu tinha ido para sempre. Até mesmo que estava morto. Esteve meio morta sem mim? — Agarrou-lhe o rosto com as mãos e olhou em seus grandes olhos azuis. —Mas por fim se casou com ele, Sybil. Não esperava isso de você. Pensava que permaneceria fiel a minha lembrança. De qualquer forma, pensei que você o tivesse rejeitado, entre todos os homens.
—Eu não tive escolha quando você partiu. Oh, Thomas! — E escondendo o rosto contra seu peito, abraçando-o ainda mais. — Eu não tive escolha. Pensei que iria morrer. Queria morrer. Mas ele veio um dia atrás do outro para me suplicar. E depois de você partir nada mais me importava. Casei-me com ele. Odiava-o, mas me casei com ele.
—Shh, shh, agora estou de volta, amor. — Thomas a fez calar e beijou-a novamente com cuidado, em seguida mais intensamente. — Estou de volta para o lugar que pertenço, e tudo ficará bem, você vai ver. Já é hora de jantar?
—Ainda falta um tempo. Resta um tempo.
—Sério?
Thomas se separou dela e sorriu. E ela entendeu, mordeu-se a língua, e levantou as mãos tremulas para os botões de seu vestido. Ele a olhou nos olhos adotando uma expressão séria, enquanto deslizava a seda azul por seus ombros, por seus braços, e lhe tocava os seios nus.
—Como Adam a trata?
—Não o faz. — Ela o olhou angustiada. — Thomas, não falaremos sobre isso. Por favor, não. Eu não deveria estar aqui. Deveria ir. Só queria falar com você em particular.
Ele riu baixinho.
—Existe mais de uma maneira de falar. E eu a desejei desesperadamente, Sybil. Não me deixe agora. Não virá a sua procura?
—Não, não virá. Thomas. Não fazemos nada errado, verdade? — Afundou o rosto em seu ombro enquanto ele a levantava em seus braços. — Só quis a você. Acredita, verdade?
—E eu só quis a você — respondeu ele, jogando-a na cama e tirando a roupa. —Por que acha que voltei para casa?
—Por mim? Você veio por mim?
—Mmmm — gemeu ele, inclinando-se sobre ela e esfregando-se contra sua pele suave. — Deus, quão bonita você é, Sybil. Como pôde pensar que não voltaria para vê-la?
Além de seu desejo crescente, Thomas pensou que as portas de seu vestiário e de seu dormitório estavam sem fechar, e se perguntou com certo regozijo que aconteceria se seu irmão entrasse em qualquer um dos aposentos.
—Ah! — Exclamou com a boca junto a dela enquanto a penetrava. Sim, realmente, era muito bom estar em casa.

O duque de Ridgeway não tinha falado com seu irmão além de trocar simples cortesias. Quando o cavalheiro se uniu às damas no salão depois de jantar, percebeu que sua esposa estava ainda mais feliz e animada do que esteve desde que chegaram seus convidados, e a ira voltou a marcar em seu queixo.
Pensou em fazer uma visita ao quarto de seu irmão antes de jantar, mas parou no último momento. Os anos dedicado a se responsabilizar pelo bem-estar de outros e os que passou como oficial os ensinou que, quando fosse possível, era melhor deixar a raiva esfriar antes de fazer qualquer coisa.
Decidira esperar pelo dia seguinte para enfrentar Thomas e exigir uma explicação, antes de decidir o que fazer, se fizessem alguma coisa.
—Eu mandei procurar Pamela — estava explicando a duquesa à senhora Grantsham e a Lady Mayberry, com voz ansiosa e uma expressão luminosa no rosto. Incluiu seu marido no sorriso que mostrou quando percebeu que ele podia ouvi-la. — Deve vir a qualquer momento.
—Pamela? — Disse Adam, franzindo a testa. — Não estará na cama, Sybil? E também muito cansada depois desta tarde?
—Mandei uma mensagem para a Nanny para que a mantivesse acordada e a preparasse — explicou a duquesa. — Quero que conheça seu tio. Como poderia privar minha querida menina do prazer de compartilhar sua volta? —E sorriu resplandecente ao duque.
Claro! Adam rangeu os dentes e ficou muito quieto.
—Então você precisa dizer para a Nanny que a leve para cama depois de cinco minutos.
—Ah, mas é a senhorita Hamilton quem vai trazê-la, Adam.
O que ela estava tramando? O duque franziu o cenho.
Não teve que esperar muito. Vestida com rendas e laços, e com o cabelo penteado em múltiplos cachos, as faces rosadas e os olhos brilhantes de excitação e esgotamento, Pamela apareceu no salão pelas mãos de Fleur, que fez uma reverência e ficou em silencio junto à porta.
A duquesa agarrou a mão de sua filha enquanto as damas davam-lhe atenção como fizeram aquela tarde.
—Queria ver as damas vestidas para a noite, querida. — A duquesa se abaixou e lhe sorriu. — Bom, pois aqui estão. O que acha?
Lady Pamela sorriu e abraçou a duquesa.
—Quero que conheça alguém — ela explicou. — Alguém que você não viu antes, embora já falei muito dele, e me atreveria a dizer que papai também. Um cavalheiro muito importante. —Conduziu Pamela até Lorde Thomas, que sorria ironicamente. — Este é seu tio, querida. Faça-lhe uma reverência.
Lady Pamela fez o que ela pediu e olhou com curiosidade para o rosto de seu tio, que se parecia muito com seu pai exceto pelo fato que suas feições eram mais atraentes e despreocupadas.
—Então você é Pamela — disse ele, segurando com um dedo o queixo erguido da menina. — Não se parece muito com sua mamãe, verdade? Você é igualzinha a seu pai.
O duque virou-se, incapaz de olhar. E seus olhos se centraram em Fleur, que continuava de pé junto à porta. Mas já não estava tão calma e imperturbável. Seu rosto estava tão pálido que seus lábios pareciam azuis. Adam estava prestes a aproximar-se apressado quando a mão da garota se pôs a tremer quase com tanta intensidade como naquela primeira noite, apalpou a maçaneta da porta sem olhar e a fez girar torpemente.
Fleur saiu deixando a porta entreaberta ao sair. O duque ficou olhando em direção ao lugar aonde ela esteve. Mas não era a primeira vez que ela se encontrava em companhia de seus convidados. Esteve no baile duas noites atrás e no piquenique aquela tarde. Por que o súbito ataque de nervos? Foi a presença de Thomas? Será que o conhecia de antes? De Londres, talvez?
Seria Thomas outro de seus clientes? Adam sabia que ele foi o primeiro, mas frequentemente se perguntou se também foi o último. Afinal, houve um período de cinco dias após seu encontro com ela e o momento em Houghton a contratou como preceptora de Pamela.
Por uma estranha coincidência, Thomas também a teria possuído? Sentiu uma fúria terrível ao pensar nisso. Ou talvez fosse Brockehurst? Tampouco o vira até aquela noite. Talvez Brockehurst foi cliente dela e ao vê-lo perdeu o controle?
O duque fechou os olhos por um instante.
—Onde está a senhorita Hamilton? — Estava perguntando alegremente a duquesa. — Não percebeu que precisava esperar Pamela?
—Dei-lhe permissão para partir — encobriu o duque. — Disse que eu mesmo levaria Pamela ao quarto.
A duquesa lançou-lhe um olhar de recriminação.
—Mas eu pensava em apresentar a preceptora de minha filha a Thomas, e a Lorde Brockehurst, é claro. Enfim, ficará para outra vez. — A duquesa deu de ombros. — Vai para a cama, querida, com papai.
Ela virou-se para Lorde Thomas enquanto Lady Pamela dava a mão a seu pai e saía do salão com ele.
—Era ela— sussurrou Sua Graça, a duquesa, — a amante de Adam. Queria que a visse, Thomas, e soubesse da humilhação que me faz passar.
—Já não continuará fazendo. — Thomas levou a mão de Sybil a seus lábios. — Já não deixarei que faça-lhe mal, Sybil.

Fleur pensava que o dia já havia terminado. A senhora Laycock estava cansada depois de passar vários dias atarefada e não havia convidado a preceptora para passar por sua sala como estava acostumada.
Fleur suspirou quando a senhora Clement a mandou chamar para que fosse a sala de jogos e informou-lhe secamente que Sua Graça, a duquesa pediu que levasse Lady Pamela ao salão depois do jantar.
—Mas isso não será mais tarde que a hora que Lady Pamela tem que deitar? — perguntou.
—Lorde Thomas chegou — explicou a senhora Clement. — A duquesa quer que Lady Pamela conheça seu tio.
Fleur pensou que também poderiam ter levado Lorde Thomas Kent a sala de jogos na manhã seguinte, mas não disse nada. Voltou para seu quarto para colocar seu melhor vestido e voltar a fazer um coque.
Ela não se sentia confortável quando levou sua aluna ao salão. Lorde Thomas era amigo de Matthew. Era impossível que a conhecesse, mas sua presença em Willoughby lhe recordava a ameaça constante para sua segurança e sua felicidade. Ela ficou junto à porta, com a cabeça baixa, esperando que ninguém se fixasse nela. Esperava que lady Pamela não ficasse muito tempo. A menina estava muito excitada e muito cansada.
Levantou a vista quando a duquesa conduziu sua filha ao outro extremo do salão, e olhou para Lorde Thomas Kent. Sabia que era meio irmão do duque. Mas qualquer um poderia pensar que eram irmãos completos.
Eram muito parecidos, excetuando o fato que Lorde Thomas não era tão alto, e que seu rosto não tinha uma expressão tão dura e séria.
Fleur olhou a seguir para o duque para observar o contraste entre os dois e viu que contemplava seu irmão falando com Lady Pamela com aquela expressão sombria tão característica dele. Ela estremeceu. Como dois homens podiam se parecer tanto e ao mesmo tempo serem tão diferentes?
E o olhar de Fleur alcançou uma figura além do duque até posar-se em outro cavalheiro, também mais baixo que o duque, com o cabelo loiro e mas forte. Olhava-a diretamente para ela, e um brilho de quê? Prazer? Divertimento? Triunfo? Brilhavam em seus olhos.
Fleur olhou na direção do tapete que estava sob seus pés e sentiu que o coração e cada batida bombeavam o sangue a toda velocidade por seu corpo. O salão em que se encontrava, o estrondo das vozes e as risadas, o motivo pelo qual estava ali... deixou de pensar em todas aquelas coisas e se concentrou exclusivamente em uma rosa de um tom vermelho forte estampada no tapete. Tinha o caule verde escuro e espinhos marrons.
O ambiente do salão se tornou irrespirável. Tinha as mãos pesadas e tremulas, como se o sangue não pudesse circular até elas. Estava perdendo o controle das mãos. Sentia que se sufocava. Mas a seu lado havia uma porta. Estendeu a mão para girar a maçaneta, não a encontrou, bateu-lhe com a mão, agarrou-a, não conseguiu segurá-la, e então, felizmente, conseguiu abrir a porta fechada.
Fugiu pelo corredor, e depois de hesitar quando chegou a escada, dirigiu-se a toda pressa a entrada principal, abriu uma das portas sem sequer olhar para os lacaios, e desceu apressadamente os degraus em forma de ferradura.
Ar livre. Escuridão. Espaço.
Correu.
Já se encontrava entre as limas quando a dor e a dificuldade para respirar a obrigaram a parar. Agarrou-se ao tronco de uma árvore com ambas as mãos enquanto o ar entrava em seus pulmões, e se dobrou pela dor que sentia no lado.
"Deus, Oh, por favor, meu Deus, que não seja assim. Por favor, Deus."
Matthew a encontrou. Ele veio para levá-la.
Começou a assimilar. Quando chegou? Por que não a chamaram e detiveram imediatamente? Por que todos não a olharam com uma expressão acusadora quando levou Lady Pamela ao salão? O que Matthew estava esperando, o que planejava?
Fleur se apoiou contra outra árvore, com a face agarrada a sua casca áspera, e a abraçou com ambos os braços. O que aconteceria? Ele a levaria sozinho, ou haveria alguém mais para custodiá-la? Iria amarrada? Acorrentada? Não tinha nem ideia de como se faziam essas coisas. Quanto tempo passaria na prisão antes que a levassem a julgamento? Quanto tempo passaria na prisão depois do julgamento, antes de...?
"Oh, por favor, Meu Deus, Meu deus."
Não fazia sentido continuar a correr. Ele já a localizara. Não poderia continuar fugindo. Não tinha sentido correr. Ela ficou aonde estava durante muito tempo antes de afastar cansativamente da árvore e caminhar lentamente de volta à ponte. E permaneceu apoiada contra o parapeito, olhando sem ver nada realmente em direção a cascata iluminada pela lua, escutando sem ouvir como corria e salpicava a água.
Durante vários minutos soube que alguém se aproximava, embora não voltasse a cabeça para olhar. Matthew. Seria Matthew. Esperando que voltasse para enfrentar-se com ele? Que tentasse voltar a fugir?
Surpreendia-lhe que estivesse sozinho. A última vez ele não estava sozinho. E então ela matara seu companheiro. Ou talvez tenha visto pela expressão de Fleur no salão que já não restava um ápice de luta em seu interior.
Estava cansada de lutar, cansada de correr. Cansada de viver.
O homem parou no final da ponte.
—O que acontece? — Ele perguntou a Fleur.
Depois de tudo não era Matthew. Era ele. Fleur pensou que em quase todas as circunstâncias teria se aterrorizado, tal e como aconteceu duas noites atrás quando ficou sozinha com ele em plena noite, longe de casa. Mas não havia motivo para sentir terror. Apenas o fim inevitável que continuava aterrorizando-a.
—Nada. Eu queria tomar um pouco de ar.
—E abandonou Pamela no salão sem mais?
Ela virou-se para olhá-lo.
—Desculpe. Não pensei...
—O que está acontecendo? — Ele perguntou outra vez. — Foi por meu irmão? Conhece-o?
—Não.
—Então por Lorde Brockehurst?
—Não.
O duque percorreu lentamente a ponte em direção a ela.
—Foi algum dos dois cliente seu?
—Não. — Fleur abriu os olhos horrorizada.
—Então eu sou o único homem que teme a este respeito?
Ela se virou e ficou olhando em direção à água que formava espuma.
—Então foi por mim? — Insistiu ele. — É de mim que tem medo? Tem medo que eu desse um jeito para provocar um encontro como este? Tem medo que repita o que aconteceu duas noites atrás?
—Eu não estava com medo. Estava cansada e com tonturas. Precisava de ar.
Ele apoiou um cotovelo no parapeito que havia ao lado e a olhou.
—Você é um mistério — sussurrou o duque. — Não a conheço absolutamente, senhorita Hamilton, verdade?
Fleur sentia tanta dor que notava uma opressão no peito.
—Não precisa me conhecer, Sua Graça. — O duque notou como sua voz tremia. — Fui sua puta e agora sou a preceptora de sua filha. Não precisa me conhecer em nenhum sentido.
Só existo para lhe prestar um serviço.
—Eu gostaria que soubesse que não sou seu inimigo. Acredito que precisa de um amigo.
—Os homens não se tornam amigos de suas putas e seus criados.
—Se você é uma puta, então eu sou um adúltero. Nós somos igualmente pecadores. Mas pelo menos você teve uma boa razão para fazer o que fez. Foi prostituta por uma noite. Não estrague sua vida inteira. Sobreviveu. Isso é o que importa.
—Sim — afirmou ela amargamente. — A sobrevivência é tudo.
Fleur sentiu quando o duque apoiou as pontas dos dedos no dorso de sua mão no parapeito. O asco lhe subiu pelo braço e até a garganta. O primeiro impulso de Fleur foi afastar-lhe a mão e afastar-se dele. Mas estava muito só, muito desesperada, a beira do desespero total.
Ela deixou a mão aonde estava, embora soubesse que estava tremendo sob os dedos do duque. Desejava que fosse qualquer outra pessoa em vez dele. Desejava poder dar os dois passos que os separam e apoiar seu corpo contra o dele, e sua cabeça contra o amplo peito do cavalheiro. Ah, desejava-o e lamentava sua fraqueza. Sempre havia aguentado sozinha, desde a morte de seus pais, e desde que percebeu que os estranhos que foram morar em sua casa não a queriam. Sempre se mostrou orgulhosa e independente e nunca permitiu que a compaixão por si mesmo destruísse qualquer chance de ser feliz.
Queria Daniel, e ao pensar fechou os olhos.
O duque deslizou os dedos por sua mão e os fechou em seu interior. Sustentou a mão com afeto, com aqueles dedos longos que a haviam tocado e segurado antes. Ela não pôde reprimir um calafrio profundo, mas mesmo assim não se afastou. Apoiou-se contra o parapeito e manteve os olhos fechados tal e como fez quando dançaram juntos.
E ele ergueu-lhe a mão até que Fleur sentiu os lábios do duque, quentes e firmes, roçando o dorso. "Deus, oh meu Deus."
Uns instantes depois ele virou a mão dela e sustentou a palma, primeiro contra sua boca e logo contra sua face, contra a que não estava marcada.
—Eu sei que sou a última pessoa no mundo capaz de confortá-la. Sei que o que lhe fiz e minha aparência é profundamente repulsiva. Mas se isso vier a acontecer, Fleur, se você não encontrar ninguém mais a quem recorrer, então, por favor dirija-se a mim. Você o fará?
—Posso aguentar sozinha. Sempre fiz.
—Sério, Fleur? Desde a morte de seus pais quando tinha oito anos?
Ela ficou em silêncio. E sentiu dor ao ouvir seu nome. Era a primeira vez que alguém a chamava de Fleur desde que seus pais a chamaram assim.
—Venha para casa. Está gelada.
E Fleur lhe permitiu que a levasse pelo braço e a conduzisse lenta e silenciosamente pelo longo caminho de volta. E ela desejou uma e outra vez que fosse alguém diferente. Desejava apoiar a cabeça contra o ombro largo que estava junto a ela, cair em seus braços, e suplicar que não a deixasse sozinha aquela noite, sua última noite de liberdade. Se fosse Daniel?
E pensou entristecida em como reagiria Daniel a um convite semelhante. ficaria surpreso, magoado e pesaroso. O duque parou quando chegaram ao terraço superior, aos pés da escada em forma de ferradura.
—Pense em tudo o que eu disse— reiterou, colocando a mão sobre a dela que estava sobre seu braço. — Eu fiquei furioso por causa da minha fraqueza, naquela noite, Fleur, e a utilizei de um modo grosseiro e cruel. Tenho muito o que espiar. Eu gostaria de ajudá-la.
—Já fez. Alimentou-me e me pagou mais do que pedi, e deu-me este emprego.
Ele não disse nada mais, mas sim se limitou a olhá-la nos olhos durante um longo instante em silêncio na escuridão até que Fleur voltou a sentir que o terror crescia em seu interior.
Mas então lembrou-se do horror que a esperava dentro de casa e se soltou de Sua Graça para subir os degraus sem ajuda. Pensou que tinha a esperança que não a acorrentasse, e começou a correr. Esperava que não a levassem acorrentada da casa no dia seguinte, caminhando ou arrastada. E esperava...
Abriu uma das portas sem esperar que o duque subisse junto com ela. E atravessou a toda pressa a entrada e o arco até a escada como se todos os cães do inferno a estivessem perseguindo.

Capítulo 11

O Duque de Ridgeway viu-a sair e permaneceu impassível para evitar atrair a atenção dos lacaios da entrada. Era dele de quem fugia? Mas mesmo assim, apesar de ter notado que ela estremeceu quando a tocava, Fleur havia lutado contra a repulsão que lhe provocava e a controlado igual quando dançaram.
Será que temia que ele lhe propusesse levá-la a seu quarto ou no dele? Mas não, precisava saber que ele não planejava seduzi-la, ele estava profundamente preocupado com ela.
Qual era o terror desconhecido que provocou primeiro que saísse fugindo da casa e em seguida voltasse a entrar nela? Ele sentia-se responsável por ela, igual a todos os criados e todos que estavam sob seus cuidados. Mas no caso dela mais. Ele foi o responsável por ter mudado sua vida de forma irrevogável, e de um modo que a aterrorizaria para sempre.
Ele não a beijou nem acariciou. Limitou-se a sentar-se e ordenar que tirasse a roupa, e se dedicou a observar cada movimento. E havia lhe ordenado que deitasse enquanto se despia diante dela. Enquanto a vela ainda queimava na arandela da parede, a colocou na posição que desejava, a posição em que podia demonstrar como a dominava e a todas as mulheres, e em seguida demonstrou seu domínio sem sutileza nem amabilidade.
Mas a levou até aquela estalagem desejando consolar-se com a compaixão e o calor feminino. O silêncio e o autocontrole de Fleur o deixou aceso e zangado. Desejou que lhe chegasse como ninguém chegou há muitos anos, e ela aceitou o que devia fazer para ganhar a vida.
Adam amaldiçoou baixinho e virou-se para unir-se a sua esposa e seus convidados no salão. E ficou olhando com curiosidade para Lorde Brockehurst, que estava conversando tranquila e amigavelmente com um grupo pequeno. O duque se uniu ao grupo.
—Sim, está dormindo — ele assegurou a Lady Mayberry, que lhe perguntou por Pamela.
Passou uma hora antes de ficar quase a sós com Lorde Brockehurst, e sem saber se foi ele ou o outro homem que provocou o encontro.
—Tem uma boa filha, Sua Graça — comentou Lorde Brockehurst sorrindo.
—Sim, assim é — respondeu o duque. — Minha esposa e eu a amamos muito.
—A ideia do casamento é atraente quando se pensa em uma família com criança tão bonita como a sua — acrescentou Lorde Brockehurst.
—Sim, claro. Você está comprometido?
—Não, ainda não — respondeu Lorde Brockehurst rindo. — Claro que ter filhos supõe uma preocupação e a responsabilidade de dar-lhes o melhor. Como escolher uma boa preceptora ou professora, por exemplo? Sua preceptora parece uma dama jovem e tranquila. Está há muito tempo com vocês?
—De fato a contratamos recentemente. Estamos satisfeitos com seu trabalho.
—Deve ser cansativo verificar as referências destes trabalhadores — comentou Lorde Brockehurst, — para garantir de não se enganar de forma alguma.
—Pode ser. Coloquei um secretário contratado para tal propósito. Conhece a senhorita Hamilton?
—Ah, não, não, embora o nome me parece familiar. E a cara um pouco também, agora que mencionou. Acredito que conheço sua família. Parece-me que nos apresentaram uma vez.
—Oh, eu vejo que a senhorita Dobbin vai tocar piano. Aproximarei-me. Desculpe-me, Brockehurst?
O duque atravessou o salão para sentar-se atrás da senhorita Dobbin, pensando que a agitação de Fleur era provocada por Brockehurst. E o homem se mostrava muito fechado em relação à conexão que compartilhava com a própria Fleur. Ou talvez ele estivesse dando uma importância exagerada? E se tudo o que aconteceu foi porque ela se envergonhou e se preocupou ao ver um homem que podia reconhecê-la e vê-la no humilde posto de preceptora?
Quem era ela? Quem e o que havia sido? A princípio não sentira um interesse especial pela garota. Sua história era bastante convincente. Mas ela mentira sobre seus pais. Se seu pai morrera endividado, ficou claro que não foi recentemente. Mas algo aconteceu recentemente.
E por que se importava? Perguntou-se alguma vez sobre o passado de Houghton ou de qualquer um de seus outros criados? O passado de Fleur Hamilton era assunto dela. Mas por que ela mentiu a respeito de seu pai? Por que mentiu dizendo que não conhecia Brockehurst? E o que era igual de intrigante, por que ele mentiu dizendo que não a conhecia?
Sem olhar, o duque soube que sua esposa estava flertando com Shaw e Thomas.

Na manhã seguinte, cedo, Fleur estava na sala tocando Beethoven, mas não o fazia bem. Aquela manhã não tentou nada novo, mas sim se limitou a tentar acalmar-se, a perder-se no passado. Mas a magia a abandonara. Equivocava-se de nota, perdia-se.
Teria batido com as mãos no teclado para expressar sua frustração se a porta que dava para a biblioteca não estivesse aberta, como era de costume embora não na manhã anterior, mostrando, por um momento, a figura de sua Graça.
Fleur não dormira a noite toda. Embora devia ter dormido em algum momento, ou não teria recordado o pesadelo: o rosto morto e o olhar fixo de Hobson, o desconforto de viajar em um carro com os pulsos amarrados com correntes enferrujadas, o alçapão e saber que debaixo dela estava o vazio e o caixão que a esperava, o rosto duro e marcado em cima dela e as mãos de dedos longos sob seu traseiro para segurá-la, Matthew com uma rosa de cor de morango atravessando seu rosto morto, o sangue que brotava da espetada provocada pelo espinho.
Sim, ela devia ter adormecido.
Quanto tempo duraria? Quanto tempo mais lhe restava?
Estava tocando Beethoven ou Mozart?
Ela ouviu a porta da sala abrir pelo corredor, embora mal fez ruído e a porta estava atrás dela. Afastou as mãos do teclado e as apoiou juntas no colo. Sabia quem era. Não teve que virar-se para olhar.
—Ah, Isabella — ouviu uma voz familiar. — Não, desculpe-me. Fleur, não é?
Ela se levantou e virou-se para olhá-lo. Ele estava sorrindo, como Matthew estava acostumado a fazer. Fleur levou um dedo aos lábios e apontou em direção da porta aberta da biblioteca.
Ele assentiu indicando que entendia, e ela foi a primeira a sair da sala.
—Vamos ao gramado atrás da casa — assinalou. — Acredito que parou de chover.
Parecia apropriado que o longo período quente e ensolarado foi interrompido em algum momento da noite. Ao olhar pela janela um momento antes, Fleur tinha visto que havia nuvens baixas e escuras e a grama brilhava com a garoa que caiu sobre ela.
E agora era estranho ouvir sua própria voz e notar que soava como de costume.
—Umas poucas perguntas me ajudaram a conhecer seus hábitos matutinos — comentou ele.
—Sim. Não são nenhum segredo.
Ela o levou à entrada dos fundos, evitando passar pelo salão. Não foi procurar uma capa, embora estivesse frio lá fora. Mal se deu conta.
—Sairei discretamente — disse ela. Passou por ele, atravessou o jardim da cozinha e avançou um pouco mais, para que Lorde Brockehurst a alcançasse enquanto caminhava. — Não sei se você trouxe ajuda. Não sei se você está pensando me acorrentar. Desconheço a lei. Mas não é necessário. Vou sair calmamente.
Até mesmo as nuvens eram bonitas. Até mesmo a grama molhada que umedecia seu sapatos era maravilhosa. E Fleur recordou a primeira vez que viu Willoughby e as primeiras semanas que passou ali. Recordou a sensação otimista de esperança e felicidade que experimentou. Recordou a visita aos Chamberlain e quando eles a devolveram. Recordou ter passeado por aquele mesmo gramado com o senhor Chamberlain, enquanto as criança se adiantavam com uma bola. Lembrou-se as brincadeiras com o cachorrinho no cercado. E lembrou-se ter dançado em um caminho iluminado por lanternas.
—O assassinato é punido com a forca, Isabella — explicou ele.
—Eu sei. — Sem que fosse consciente, acelerou seu passo. — E também sei, igual a você, que não sou uma assassina. O que aconteceu foi um acidente, que ocorreu porque agi em legítima defesa. Mas, claro que isso será irrelevante quando falarmos em um tribunal.
—Pobre Hobson. Apenas deu um passo atrás de você para evitar que caísse na lareira, Isabella. Que desgraça que estivesse furiosa porque eu fui obrigado a repreendê-la para seu próprio bem. Agora estaria vivo.
—Sim. Mesmo agora parece convincente, Matthew. E eu fui o bastante estúpida para me deixar levar pelo pânico e sair fugindo, o qual são ações próprias de uma pessoa culpada. Qual é o procedimento? Vou ser amarrada?
Ele riu.
—Parece que você conseguiu se arrumar muito bem por sua conta, mas poderia ter vindo para casa, Isabella. Não era necessário se rebaixar a ser preceptora. Embora Sua Graça parece satisfeito com seus serviços. E deve estar, se foi capaz de pagar seu secretário para que passasse quatro dias sentado em uma determinada agência de emprego até encontrar uma candidata adequada.
Ela o olhou pela primeira vez. Matthew continuava a sorrir.
—Você é sua amante? Parecia realmente, Isabella.
—Sou a preceptora de sua filha. Ou pelo menos era. Agora suponho que sou sua prisioneira.
—Mas me cortaria o coração ver seu pescoço encantador com uma corda ao redor, Isabella. E talvez seja certo e você interpretou mal a situação e pensou que precisava se defender. Quem sou eu para julgar seus motivos? Pode vir a ser um infeliz acidente.
—O que você está dizendo?
Fleur parou de andar e olhou para ele diretamente.
—Nada mais que a verdade. Eu quero dar a você o benefício da dúvida, se puder. Você sabe que eu te amo, Isabella.
—Poderia jogar este jogo até o final, mas acredito que entendo muito bem, Matthew. Dirá que a morte de Hobson foi um acidente se aceitar ser sua amante. Enganei-me?
Lorde Brockehurst pôs as mãos nos quadris.
—Por que adota esse tom tão duro? Você me vê carregando uma arma? — Perguntou o cavalheiro. — Corrente? Corda? Você vê um policial ou um guarda à espreita nas minhas costas? Você acha que te procurei todo este tempo só para ver como te executam? Me conhece tão pouco, Isabella?
—Fale claro — exigiu ela. — Por uma vez na vida, Matthew, fale claro. Se me negar a ser sua amante, então o quê fará? Responda-me diretamente.
—Isabella — começou, — estou aqui como convidado. Vim com um velho amigo, Lorde Thomas Kent, passar algumas semanas em um imóvel que sempre desejei visitar. É excelente, certo? E você aqui é uma preceptora. Uma feliz coincidência. E, claro, devemos mencionar a lamentável morte, o mistério ainda não foi esclarecido porque você fugiu logo em seguida. Mas é desnecessário dizer tudo o que temos a dizer agora, né? Você não vai a lugar nenhum nas próximas semanas, e eu tampouco.
—Não. Eu sabia que não iria convencê-lo a não falar. Mas entendo muito bem o que quer dizer. Afinal de contas, conheço-o quase a minha vida inteira. Vou viver com uma ameaça na minha cabeça. Eu fico como uma marionete nos cordões.
—Eu acho que você provavelmente já ouviu falar que o Reverendo Booth ficou... mmm... decepcionado contigo? Acredito que agora a velha senhorita Hailsham é a afortunada destinatária de seus sorrisos.
Daniel! Fleur ergueu o queixo.
—Quando em seu devido momento nos partirmos, Isabella, acredito que seria bom fazer sem arejar nossos trapos sujos, por chamá-los assim, diante do duque e da duquesa. O que acha? E também tenho certeza que você não gostaria de provocar uma decepção desnecessária a Sua Graça quando partir, deixando que tenha falsas esperanças nas semanas que restam, verdade? Voltará para casa, é claro, aonde pertence.
—Não se preocupe, Matthew. Não tenho que pôr fim a nenhuma aventura.
Ele sorriu.
—Então o duque tem o hábito de caminhar pelo gramado de trás nas primeiras horas da manhã?
Fleur virou a cabeça bruscamente e viu que realmente Sua Graça estava caminhando em direção a eles.
—Bom dia — saudou Lorde Brockehurst. — Acho que o parque tem uma vista magnífica tanto atrás como na frente de sua casa.
Sua Graça levava uma capa sob o braço. Abriu-a e a colocou sobre os ombros de Fleur sem dizer uma palavra.
—Meu avô contratou os melhores jardineiros de paisagens — explicou o duque. — Acredito que tenha dormido bem, Brockehurst.
—Realmente, sim, obrigado. E como deve ter adivinhado, Sua Graça, ontem a noite estava no certo. A senhorita Hamilton e eu nos conhecemos um pouco e nos dedicamos a nos perguntar sobre a saúde de nossos respectivos parentes.
—Senhorita Hamilton. — Sua Graça se virou para ela. — Vou dar a primeira lição de equitação esta manhã a Pamela, depois do café da manhã. Leve-a ao estábulo, por favor. Pode retirar-se.
—Sim, Sua Graça. — A preceptora fez uma reverência sem olhar para nenhum dos dois e voltou apressadamente para casa.
Então haveria uma espécie de indulto. As coisas não seriam tão ruim como temeu durante toda a noite e nos meses anteriores. Matthew lhe daria a liberdade em troca do que desejou nos três anos anteriores.
Mas no passado conseguiu desdenhar suas atenções. Agora ele devia sentir que a prendera.
E quem era ela para dizer que não era assim? Aliviada ao saber que não pensava acusá-la nesse dia, era muito fácil dizer a si mesmo que iria lançar sua oferta na cara quando ele dissesse que era hora de partir. Conseguia imaginar-se jogando a cabeça para trás, olhando-o com desprezo e dizendo que preferia aceitar a forca que a ele. Mas faria quando chegasse a hora?
E além disso, era uma atuação bastante própria de Matthew. Ela ficou surpresa de não ter levantado essa possibilidade antes. Ele a desejando intensamente. Era provável que estivesse mais disposto a enviá-la a forca que de cedê-la a Daniel? Claro. Era estúpida por não ter pensado nisso.
Desabotoou a capa distraidamente enquanto subia a escada do interior da casa. E a seguir a olhou notando que era sua própria capa. Estava pendurada em seu armário. Ele devia ter mandado uma criada procurá-la. Havia trazido e a colocado em seus ombros.
E ordenou que levasse Lady Pamela ao estábulo depois do café da manhã. Assim transcorreria outro dia. Nenhuma corrente ou uma longa viagem em um carro e uma cela escura no final do dia. Pelo menos ainda não.
Fleur ficou aliviada, reduziu o passo. Transcorreria outro dia.

Ainda era muito cedo para tomar o café da manhã quando o duque de Ridgeway entrou com Lorde Brockehurst. Houve ainda tempo para fazer mais uma coisa antes do café da manhã e sair com Pamela.
Mandou um criado chamar Lorde Thomas Kent na biblioteca, se ele estivesse acordado. Devia falar com seu irmão. Por alguma razão, não podia fugir como um covarde e não dizer nada.
Recordou a noite anterior adotando uma expressão séria. Como ele não conseguia dormir, fez algo que raramente fazia. Ele entrou no aposento de sua esposa. Quase esperava que estivesse vazio e ninguém estivesse dormindo nele. Mas ela estava lá e estava acordada. Estava com febre e tosse, e o observou languidamente quando ele se aproximou da cama.
—Você não está bem? — Ele perguntará, tocando seu rosto e viu que ela estava seca e ardente. Então pegou um pano úmido do lavabo, o dobrou e colocou-o em sua testa.
—Não é nada — ela dissera, desviando o rosto.
O duque ficou olhando-a em silêncio.
—Sybil, quer que ele parta? Será menos doloroso para você se for? — Ele perguntou suavemente.
Sybil tinha os olhos abertos. Manteve os olhos longe dele, mas ele viu uma lágrima deslizar por sua face e nariz cair no lençol.
—Não — dissera ela.
Nada mais. Só aquela palavra. Depois de um tempo ele deixara o quarto.
A criada de sua esposa informou aquela manhã de que Sua Graça, a duquesa, se recuperou da febre. O duque esperava que depois de uma viagem de vários dias seu irmão continuasse dormindo. Mas chegou a biblioteca quinze minutos depois que o mandasse chamar, com sua habitual expressão sorridente nos lábios.
—Isto me traz lembranças — comentou, olhando ao redor. — Muitas vezes fizeram-nos vir aqui, Adam, por fazer travessuras— ele riu. — A mim mais vezes do que você, tenho que confessar. É por isso que você mandou me chamar esta manhã?
—Por que voltou? — Perguntou o duque.
—Terá que matar o bezerro para a volta do filho pródigo — respondeu Lorde Thomas rindo. — Você não aprendeu as lições da Bíblia, Adam?
—Por que voltou?
Lorde Thomas encolheu os ombros.
—Suponho que é minha casa. Quando estava na Índia, a Inglaterra era a minha casa. E quando voltei para a Inglaterra, então Willoughby volta a ser meu lar, mesmo não sendo bem-vindo aqui. Às vezes é bom ser apenas meio-irmão.
—Você sabe que isso não tem nada a ver — Sua Graça falou com dureza. — Nós mal éramos conscientes do parentesco quando criança. Simplesmente éramos irmãos.
—Mas naquela época um dos dois não era duque e temia que o outro esbanjasse parte de sua enorme fortuna.
—Sabe que isso tampouco me preocupava. Eu tentei convencê-lo a ficar. Queria que você ficasse. Queria compartilhar Willoughby contigo. Pertencia a este lugar. Você era meu irmão. Mas quando insistiu em ir embora, eu lhe disse para nunca mais voltar. E eu queria dizer nunca.
—Nunca é um tempo muito longo — interveio Lorde Thomas, dirigindo-se para a lareira e examinando o mosaico de um leão que estava em cima do suporte. —Era estranho que não fosse capaz de recordar completamente desta sala quando estava na Índia. Mas agora me volta tudo. Nada mudou em Willoughby, não é?
—Você não poderia deixá-la em paz, não? — Retrucou o duque.
—Em paz? — Lorde Thomas virou-se, rindo outra vez. — Você acha que esteve em paz casada com você nos últimos cinco anos e meio? Não me parece que seja uma mulher que desfrute da felicidade conjugal, Adam. Será que não o viu? Você ainda está louco por ela?
—Aceitou o fato que você foi embora — continuou o duque, — que não voltaria nunca.
—Bom. — Seu irmão se afundou em uma poltrona de couro e se acomodou passando uma perna sobre um braço. —Tampouco parece que esteja muito triste porque voltei. Não se mostra tão mesquinha ao me dar boas vindas como você.
—E o que ela vai fazer quando voltar a partir?
—Eu disse que estava prestes a partir? — Lorde Thomas estendeu as mãos. —Pode ser que desta vez eu fique. Pode ser que ela não precise fazer nada.
—É muito tarde para que fique. Ela está casada comigo.
—Sim — Lorde Thomas riu. — Ela está, não é assim? Pobre Adam. Pode ser que eu lhe tire isso.
—Não. Isso nunca. Duvido que isso sirva de alguma coisa, Thomas. Limitará a roubar-lhe o coração outra vez. Voltará a convencê-la que a ama, que para você o sol nasce e se põe por ela. E então, quando se cansar do jogo, a deixará. Não protegerá seu coração desse final porque acreditará como fez antes e como acreditou desde que partiu.
—Eu vejo que você assumiu o papel de herói e que você levou toda a culpa sobre o assunto. — Lorde Thomas estava rindo novamente. — Não me jogou a cavalaria como eu quase esperava que fizesse. É um idiota, Adam.
—Acontece que a amava muitíssimo— murmurou o duque. — Teria dado minha vida para aliviar sua dor. Eu sabia que ela não poderia me amar, se é que tivesse me amado alguma vez, assim permiti que pensasse que eu era o vilão. Mas pode ser que já pensasse que era. Afinal de contas, voltei vivo e estraguei tudo.
—E também se casou com ela — acrescentou Lorde Thomas. — Suponho que teve muita sorte que Pamela não nascesse com o cabelo vermelho de minha mãe. Teria sido motivo de chacota. Imagino que agora as pessoas apenas sorriem a suas costas pensando que voltou para casa como um garanhão ansioso para montá-la no estábulo sem parar sequer para trocar a roupa com a qual viajou ou tirar as botas.
—Sim, casei-me com ela — afirmou o duque. — Você não teria feito, então eu o fiz. Não acredito que fosse capaz de vê-la viver semelhante vergonha, embora então já não a queria. Mas nem sequer teve honra suficiente para se manter afastado dela. Talvez eu devesse ter insistido em dizer a verdade. Seria mais capaz de protegê-la de você.
—Bom. — Lorde Thomas levantou-se outra vez, — não o fez porque sempre foi Sir Galahad, Adam. Não teria ido a guerra se não o fosse. Pode ser que faça outro filho a Sybil antes de voltar a partir, se é que partirei. Talvez também tenha sorte e ele não tenha o cabelo vermelho. Você parece incapaz de produzir seu próprio herdeiro. Ou deveria me fixar na preceptora?
O duque deu dois passos para frente, e pôs a Lorde Thomas nas pontas dos pés, agarrando-o pelo lenço e a parte dianteira da camisa com tanta força que quase podia estrangulá-lo.
—Eu poderia expulsá-lo de minha propriedade — ameaçou o duque. — Muitos diriam que sou estúpido e fraco por não tê-lo feito. Mas é meu irmão e esta é sua casa. E me resta suficiente carinho por Sybil para afastá-lo do seu lado antes de você fazer as pazes com ela. Mas lembre-se, Thomas. Ela é minha esposa e Pamela minha filha, e defenderei o que é meu da vergonha e dor desnecessária. E também deveria saber que meus criados, incluindo a preceptora de Pamela, estão sob minha proteção, e os protegerei de qualquer coisa que considere necessário.
Quando o soltou, seu irmão meneou a cabeça para afrouxar o colarinho da camisa, e ajeitou o lenço amarrotado tremendo um pouco.
—Eu vim porque passei mais de cinco anos longe da Inglaterra e de Willoughby — afirmou Lorde Thomas. — Sentia falta de minha casa. Você deve se lembrar do que é isso, Adam. Pensei que teria esquecido e perdoado. Parece que eu estava errado. Talvez eu deva partir sem demora.
Seu irmão o observava intensamente, com os lábios apertados.
Lorde Thomas riu.
—Mas eu esqueci que trouxe Bradshaw. Seria rude arrastá-lo de volta sem ter passado sequer um dia desde a nossa chegada, você não acha? Vou ficar um tempo. — Ele fez uma reverência descuidada a seu irmão e saiu do aposento.
Sua graça se afundou na poltrona que havia atrás da mesa de mogno, apoiou os cotovelos nos braços do assento, e apertou a ponta dos dedos sob o queixo.
Já sabia que falar com Thomas não serviria de nada. Mas esperava apelar para um sentido de honra que lhe faltara quando eram jovens. Embora desde os cinco anos, sempre foram bastante bons amigos. E esperava que a egoísta ausência de senso de responsabilidade que sempre se queixava seu pai, desaparecesse ao chegar a idade adulta e alcançasse a maturidade.
Em qualquer caso, já era muito tarde para que seu irmão se limitasse a virar-se e partir. Era muito tarde para Sybil. Ela já o vira, e todas as velhas feridas deviam estar abertas e em carne viva de novo. O duque era plenamente consciente que Sybil nunca deixou de amar Thomas. Nunca sentira nada por seu marido nem pelos amantes ocasionais que procurou desde que se casaram. Thomas era o amor de sua vida.
Adam não sabia nem suspeitava sequer durante aqueles meses, quando voltou da Espanha, apaixonou-se por ela e ficaram noivos. Ela parecia bastante disposta. Mais ainda, parecia até desejosa e dissera que o amava. Permitira-lhe que a beijasse e a acariciasse. Mas era o duque de Ridgeway e já tinha a reputação de ser uma espécie de herói. E os pais de Sybil tinham ambições postas em sua filha: sempre pensaram que seria para ele.
O duque não suspeitou, embora ela dissesse mais adiante, em uma das múltiplas ocasiões que queria machucá-lo, que já então amava Thomas, e o amava desde o dia em que o conheceu. Só soube quando voltou um ano depois de Waterloo, quando a encontrou noiva de Thomas e ficou horrorizada ao vê-lo. Ela teria se casado com Thomas mesmo que ele já não fosse o duque, ou o dono de Willoughby. Amava-o loucamente.
Mas Thomas, que teria se casado com ela se fosse o duque de Ridgeway, como parte dos troféus que herdara inesperadamente de seu irmão morto, já não a quis quando voltou a ser Lorde Thomas Kent. Mas ele não disse a Sybil. Se tornou seu amante e jurou amor eterno. Deixou-a grávida. E partiu apressadamente depois de que ela o dissesse.
Thomas disse ao irmão que estava partindo e sua razão para ir. Não disse a Sybil.
"Que Deus tenha misericórdia dele", pensou o duque, fechando os olhos e apoiando a testa contra as pontas dos dedos. Ele fez tudo o que podia para convencer Thomas a ficar. Amava tanto Sybil que era incapaz de suportar a ideia da dor que sentiria quando Thomas a abandonasse e do apuro no que se encontraria. Mas Thomas partiu.
Quando Sybil veio com seu pai, dois dias depois, o duque lhes disse que Thomas se fora. Não lhes deu nenhum motivo. E quando ela o acusou de expulsar seu irmão, porque não havia lugar para os dois em Willoughby, ele se limitou a menear a cabeça e não apresentou nenhum outro argumento em sua defesa. Sentia muitíssimo por ela. E desse modo Sybil chegou a acreditar em sua própria teoria.
Uma semana mais tarde, Adam visitou Sybil e lhe propôs casamento. Repetiu a visita por três dias até que ela o aceitou, com o rosto lívido e o olhar mortiço.
Ela estava grávida de três meses, quando se casaram. E então, Adam soube que tinha errado, que deveria ter dito toda a verdade, ter-lhe obrigado a escutá-lo, por mais doloroso que fosse para ela. Tinha o direito de saber a verdade. E só a verdade poderia ter oferecido a seu casamento qualquer chance de sucesso. Mas naquela época estava totalmente apaixonado por Sybil, e sentia muita compaixão por ela. Teria preferido morrer antes de provocar-lhe uma dor desnecessária. E agora permitira que Thomas voltasse para sua vida e a de Sybil.
Por acaso estava louco?
De repente, ele empurrou a cadeira de sua mesa e se levantou. Devia ser a hora de tomar o café da manhã. Teria que entreter aos convidados, dar uma aula de equitação a Pamela e superar mais outro dia. Não conseguiria absolutamente nada ficando sentado e se amargurando.

Capítulo 12

Fleur viu que Sua Graça a olhava mudo e impaciente quando levou uma reticente Lady Pamela ao estábulo depois do café da manhã. O duque tinha a bota apoiada sobre o peitoril dentro da cerca, e batia ritmicamente na perna com o chicote. Estava com a cabeça descoberta e parecia muito sombrio e taciturno, com seu casaco preto de equitação.
—Ah, você finalmente chegou — disse ele, colocando o pé no chão.
Fleur fez uma reverência e soltou a mão de lady Pamela, depois voltou outra vez para casa.
—Posso montar Aníbal com você , papai? — perguntou a menina.
—Tolice — respondeu ele impaciente. — Desse modo nunca aprenderá a montar, Pamela. Tem cinco anos, já é hora de montar sozinha. Aonde vai, senhorita Hamilton?
—Para casa, Sua Graça — respondeu ela, virando-se novamente. — Deseja que faça algo mais?
O duque parecia irritado.
—Aonde está sua roupa de montar? — Perguntou olhando a capa e o vestido de algodão verde claro que ela usava por baixo.
—Não tenho, senhor.
—Botas?
—Não, Sua Graça.
—Então, por hoje terá que se arrumar como está — explicou ele. — Apresente-se no escritório de Houghton amanhã pela manhã. Ele fará os preparativos para que tomem suas medidas em Wollaston para o traje e as botas.
Olhando por cima do ombro do senhor, Fleur viu que havia dois cavalos e um pônei, todos selados, trotando pelo cercado sob o cuidado de um rapaz. Ela também poderia montar?
De repente o dia de seu indulto temporário se tornou em algo novo e maravilhoso. De repente parecia que o sol tinha saído entre as nuvens.
—Não me diga que você também tem medo de cavalos. — O duque mantinha a expressão carrancuda.
—Não, Sua Graça. — Fleur não conseguiu reprimir o sorriso. Ela olhou para as nuvens e sentiu-se banhada pela luz do sol. Teria dado um giro de alegria se estivesse sozinha. — Não, não tenho medo de cavalos.
—Montarei com você, senhorita Hamilton — anunciou Lady Pamela.
—Montará sozinha — afirmou seu pai. — Esse pônei é muito manso e afável para derrubá-la, mesmo se você passar por sua cabeça. Montará a meu lado e eu segurarei a rédea principal. A senhorita montará do outro lado. Estará tão segura como em sua própria cama.
Fleur se abaixou e colocou as mãos frias da menina nas suas.
—Cavalgar é a sensação mais maravilhosa do mundo — explicou. — Estar no alto do lombo de um animal que se move de maneira muito mais segura e rápida que nós... Não existe uma sensação mais forte de liberdade e alegria.
—Mas a mãe diz que eu poderia quebrar o meu pescoço — gemeu Lady Pamela. — Quero ficar aqui com Pequena.
—Você pode quebrar o pescoço se montar de maneira imprudente — explicou Fleur. — Por isso seu pai vai estar com você, para a ensinar a montar como Deus manda. Ele não vai deixar você cair, certo? E eu muito menos, né?
Lady Pamela ainda tinha reservas, mas permitiu que o duque a levasse nos braços ao cercado e a sentasse na sela no lombo do pônei. Fleur fez um gesto ao rapaz para que lhe ajudasse a subir na égua marrom de pelo liso e brilhante.
Os três começaram a se mover lentamente em toda a área do gramado de trás durante quase meia hora. Lady Pamela ia ladeada pelo duque em um lado e Fleur no outro. O terror foi desaparecendo gradualmente do rosto da menina. Pois, quando eles voltaram para o estábulo, estava extremamente contente pela sensação de triunfo, e em voz alta quis saber se o rapaz que seu pai chamou a viu.
—Sim, senhorita — afirmou o rapaz, levantando-a e deixando-a no chão. — Antes de darmos conta, já estará montando para uma caçada.
—Da próxima vez quero um cavalo de verdade — pediu a menina, olhando para seu pai.
—Deixe que Lady Pamela brinque com o cão um momento, Prewett — ordenou o duque, — e em seguida a acompanhe até a casa e leve-a para sua babá, — voltou-se para Fleur e fez um contundente gesto afirmativo com a cabeça. —Vamos cavalgar.
Fleur abriu os olhos. Nem o fato que ele fosse seu acompanhante podia arruinar a beleza e a maravilha inesperada daquela manhã. Com a filha, o pai ia muito devagar.
Agora podia cavalgar livremente.

Enquanto levava seu cavalo a meio galope e ouvia que a égua acelerava o passo, o duque de Ridgeway se perguntou se tinha passado apenas duas noites desde que decidiu deixar de vê-la.
Alguns cavalheiros foram pescar. Muitas damas estavam indo para Wollaston. Dissera a Treadwell e Grantsham que provavelmente os acompanharia na sala de bilhar depois de dar uma lição de equitação para sua filha.
Que estúpido foi de sua parte esperar que ela chegasse ao estábulo com roupa de montar e botas. Quando a contratou, deu instruções a Houghton para que lhe desse dinheiro suficiente para que comprasse o vestuário básico. Houghton teria se encarregado que houvesse dinheiro suficiente só para isso. Não teria lhe dado nenhum extra para roupa de montar ou botas.
Custava adaptar seu pensamento a algumas das circunstâncias da pobreza.
O duque se perguntou se teria permitido essa hora a mais se ela não tivesse sorrido. Claro que na realidade não sorriu para ele, a não ser para a perspectiva de montar. Estava claro que ela o entendeu errado antes e assumiu que a única coisa que precisava fazer era levar Pamela ao estábulo. Foi a primeira vez que ele a viu sorrindo quase diretamente. E foi um sorriso completo, que iluminou seu rosto, e que convertia sua beleza em algo deslumbrante.
Teria jurado que todos os raios do sol se dirigiram para seu rosto quando ela o ergueu em direção ao céu, embora as nuvens ainda fossem baixas e escuras.
Ele ficou ofuscado, pura e simplesmente, e enquanto conduziam Pamela lentamente por uma das áreas gramadas que ficavam entre eles, decidiu já que ela gostava tanto de montar ele a levaria para montar.
O duque olhou para trás por cima do ombro e viu que ela não estava nada alterada pelo ritmo que ele marcou. Era óbvio que a mulher nasceu para a sela. Adam esporeou Aníbal para que fosse a todo galope. Sybil odiava cavalgar. Sempre dizia que preferia que a transportassem de forma segura de um lugar a outro. Ele estava acostumado a cavalgar sozinho.
Fleur o alcançou, e o duque de repente percebeu, surpreso mas animado, de que estava incentivando uma corrida. Fleur mostrou-lhe novamente um sorriso deslumbrante, e desta vez foi direto para ele. O duque aceitou o desafio.
Correram de maneira temerária pela extensão plana do parque. Claro que a égua não poderia ser comparada com Hannibal, mas às vezes lhe permitia ficar a seu nível e adiantar-se antes de voltar a liderar a corrida.
Ela conhecia muito bem seu jogo, mas não se rendia. Estava rindo.
De repente, o duque virou a sua esquerda, dirigindo-se diretamente para o muro coberto de hera que separava o extremo sul do parque de um prado. Sim, aí estava a porta. Era um jogo perigoso. Já sabia quando fez seu próprio cavalo saltar e o de Fleur por cima dela, mas se deixou levar pela intensidade insensata da corrida.
Voltou a afrouxar as rédeas de Aníbal logo que transpassou a porta e viu que a égua saltava com passo firme. Fleur se inclinou sobre o pescoço do animal. Já não estava rindo quando as mãos peritas fez diminuir o passo da égua e a levou para junto de Aníbal, inclinando-se para frente para dar-lhe uns tapinhas no pescoço. Mas seu rosto brilhava de uma maneira tão bonita e animada que fez que a respiração do duque ficasse presa na garganta. Fleur não usava chapéu. Muitos dos alfinetes que sustentavam seu cabelo no coque de sempre pareciam ter caído pelo caminho. A cabeça de Fleur parecia rodeada de um halo dourado.
—Você sofreu uma derrota vergonhosa, admita-o — comentou o duque.
—Mas você escolheu o meu cavalo — protestou ela, —e escolheu deliberadamente uma coxa de três patas. Admita-o.
—Touchet! — exclamou ele rindo. — Devemos cessar as hostilidades. Você monta esplendidamente. Já montou em caçadas?
—Não. Sempre me deu muita pena da raposa ou do cervo. Monto apenas por prazer. Há muito campo aberto ao redor de Her...? — Ela parou abruptamente. — Em torno do local aonde morava antes.
—Isabella? — murmurou ele.
Os olhos dela se dirigiram de repente para seu rosto, e o duque desejou nesse mesmo instante poder retirar aquela palavra. Era como se uma porta se fechasse diante do rosto dela.
A magia... a magia selvagem da ultima meia hora, desaparecera.
—Meu nome é Fleur — ela o corrigiu.
—Hamilton? Isso também é discutível? — Ele a olhava com os olhos entrecerrados.
—Meu nome é Fleur — repetiu ela.
—Dado que conhece muito pouco Lorde Brockehurst, é compreensível que ele não recordasse bem seu nome.
—Sim?
—E bastante surpreendente que o utilizasse se conheciam tão pouco.
O olhar dela refletia angústia, igual na noite anterior quando havia se aproximado na ponte. E o duque ficou furioso consigo mesmo pelo que estava fazendo. Por acaso era assunto dele?
Mesmo que ela tivesse um passado misterioso, mesmo que vivesse sob um nome falso, era assunto dele? Estava fazendo um trabalho excelente como preceptora e parecia preocupar-se com Pamela. Mas, e a Isabella? Não queria pensar nela como outra pessoa que não fosse Fleur.
Os cavalos foram a passo lento seguindo o muro, e giraram quando este discorreu em paralelo ao lago situado a menos de dois quilômetros ao norte.
—Conhece-o muito bem, não é assim? — Insistiu o duque.
—Mal o conheço. Não o reconheci até que se apresentou esta manhã.
—Ele a assediou no passado? Você tem medo dele?
—Não!
—Não tem por que. Está em minha propriedade, é minha empregada e está sob minha proteção. Se ele a assediou ou ameaçou, diga-me agora, Fleur, e ele irá embora antes que escureça.
—Eu mal o conheço — repetiu ela.
Eles haviam chegado a uma outra porteira do muro. O duque desceu de seu cavalo e a abriu. Fechou-a de novo atrás deles quando voltaram a entrar no parque, entre as árvores que se estendiam até a borda sul do lago.
—Viu as ruinas daqui? — Perguntou ele.
—Não.
O duque as assinalou ao passar em frente: um arco de triunfo que não conduzia a nenhuma parte, uma gruta que nunca hospedou nem ninfas nem pastores, um templo em ruínas...
—Todos eles oferecem uma vista pitoresca do lago quando se aproxima — comentou o duque. — O senhor William Kent sabia como obter um efeito espetacular.
Enquanto caminhavam lentamente em direção a casa do lago, ele começou a falar da Espanha e do exército que cruzou os Períneos para o sul da França. Ela fazia perguntas discretas e inteligentes. Ele não tinha certeza de como havia saído o tema.
O duque lamentava mais do que era capaz de expressar que esses momentos mágicos fossem tão breves. Desejava ter reprimido sua curiosidade sobre a identidade e a história dela, ou pelo menos tê-lo deixado para outra ocasião.
Durante essa meia hora se sentira mais feliz e despreocupado do que sentiu-se em anos. E ela era mais bonita e desejável do que qualquer outra mulher que conheceu. O rosto brilhava, o cabelo avermelhado despenteado enquadrava seu rosto e caía parcialmente pelas costas. E todos seus olhares e sorrisos foram para ele.
Enquanto entravam no estábulo e se apressava a chamar um rapaz para que a ajudasse a descer, pensou que melhor que a manhã se desenvolvesse tal como o era antes. Cometeram um erro e fizeram algo perigoso.
Sentia-se tentado como já esteve a primeira vez que a viu fora do Drury Lane.
Agora ela era a preceptora de Pamela, sua criada. Como ele mesmo dissera antes, estava sob sua proteção. Era seu dever protegê-la da lascívia, não dirigir ele mesmo o ataque.
—Eu diria que Pamela desfrutou de suas breves folgas — comentou o duque.
—Sim — afirmou Fleur. — Temos de começar as aulas no início da tarde.
Ela ficou indecisa, observando-o.
—Eu preciso conversar sobre alguns problemas com o chefe dos estábulos — mentiu ele. —Pode voltar para casa, senhorita Hamilton.
—Sim, Sua Graça. — Fleur fez uma reverência e se virou para partir.
O duque ficou olhando-a enquanto partia, perguntando-se se a vida oferecia a felicidade mais do que em pequenas e muito breves doses.

A aula de francês foi muito bem, assim como a de história, ou melhor dizendo a história da história. Quando Fleur pegou o grande globo terrestre de sua prateleira para a aula de geografia,
Lady Pamela quis saber aonde estava a Índia.
—Meu tio Thomas esteve lá — afirmou a menina, e marcou com o dedo seguindo as indicações de Fleur a longa rota marítima que seu tio devia ter tomado para voltar para a Inglaterra. —Eu não gosto de meu tio Thomas — acrescentou Pamela com franqueza.
—Por quê? — Fleur deu a volta ao globo para que a Índia voltasse a ficar diante delas. — Só o conhece há um dia, e estava cansada.
—Não gostei dele — insistiu a menina. — Ele riu de mim.
—Isso deve ser porque ele não está acostumado as meninas — explicou Fleur. — Algumas pessoas não sabem como falar com crianças. Eles ficam um pouco assustados.
—Ele disse que eu não parecia com mamãe. Que era igual a papai. Eu gostaria de me parecer com mamãe. Todo mundo quer a mamãe.
—E acredita que todo mundo não a quer porque é morena como seu papai? — perguntou Fleur. — Acredito que se engana. As pessoas morenas podem ser muito atraentes. Sua tataravó era muito morena e muito bonita. Lembrou-me você quando vi seu retrato no andar de baixo há uns dois dias.
Os olhos escuros a olharam adotando uma expressão crítica.
—Isso você diz — protestou Lady Pamela.
—Assim como você deve ver por si mesma — sugeriu Fleur. — E talvez você deva se familiarizar com a família de seu pai. Ela remonta a centenas de anos, muito antes de seu pai ou mesmo você existir.
Fleur sabia que a maioria das damas, mesmo a duquesa, ainda estavam em Wollaston. Sua Graça, o duque, saíra a cavalo com vários cavalheiros para ver suas propriedades, embora fazia uma hora que começou a chuviscar novamente. Certamente não havia nenhum problema em levar a Lady Pamela a longa galeria, tal e como Sua Graça desejava que fizesse em alguma ocasião.
Primeiro observaram o retrato de Van Dyck da dama morena que foi duquesa de Ridgeway, rodeada por sua família, incluído o duque, e pelos cães da família.
—É muito bonita — exclamou Pamela, agarrando a mão de Fleur. — Eu realmente me pareço com ela?
—Sim. Eu acho que se parecerá muito com ela quando crescer.
—Por que os homens tem cabelos tão estranho? — Perguntou a menina.
Examinaram o cabelo, as barbas e as roupas de seus antepassados para olhar como a moda mudou ao longo dos anos. Lady Pamela riu quando Fleur explicou que até há poucos anos, os homens usavam uma peruca.
—E as damas também — acrescentou a preceptora. — A avó de seu papai usava uma peruca grande e a empoava até que ficasse branca.
Deslocaram-se pela galeria para fixar-se no retrato feito por Reynolds de um antepassado muito mais recente e demonstrar assim o que estava explicando. Era uma aula informal sem nenhum plano nem objetivo particular, mas sem dúvida a menina estava interessada. Fleur notava. Devia levá-la sempre que soubesse que ninguém iria interromper.
Esforçaria-se para garantir que Lady Pamela não crescesse com conhecimentos tão escassos do passado como ela mesma.
Mas a menina logo se cansou de examinar quadros antigos.
—O que há nessas arcas? — Ela perguntou, apontando.
—Acredito que seu pai comentou que havia brinquedos antigos e jogos que seu tio Thomas e ele jogavam nos dias chuvosos.
—Como hoje. — Lady Pamela se abaixou para abrir uma das tampas. Tirou um pião e duas cordas, e voltou a guardar o pião. Ela já tinha um na sala de jogos. Agarrou uma das cordas e a desenroscou de seus pesados cabos de madeira. — O que se faz com isto?
Fleur sentiu-se um pouco desconfortável. Permitiram-lhe levar Lady Pamela para ver as pinturas, mas não disseram nada a respeito de permitir brincar ali.
Mas era hora de terminar as aulas do dia, e não podiam sair outra vez devido ao mau tempo.
—Salta-se com elas — explicou Fleur. — Segura cada extremidade em uma mão e você gira a corda sobre a cabeça. Você precisa saltar por cima quando tocar o chão.
—Mostre-me — exigiu Lady Pamela, entregando-lhe uma das cordas.
—Por favor — disse Fleur automaticamente.
—Por favor, boba — repetiu a menina.
Lady Pamela demorou um momento em captar a ideia de girar os cabos em vez de deter-se cada vez que conseguia pular a corda. Mas, finalmente, conseguiu pular três vezes seguidas antes que a corda enroscasse em seus pés.
—Como você pode fazer tantas vezes? — Perguntou a menina para Fleur zangada.
Fleur riu.
—É uma questão de prática. Tal como acontece com o piano.
Embora, rindo novamente, percebeu que era uma resposta ridícula. Deviam ter passado uns quinze anos desde a última vez que pulou corda.
—Encantador — ela ouviu uma voz fraca vindo das portas, tão afastadas que nem Fleur nem Lady Pamela ouviram quando elas foram abertas. — Duas meninas felizes, não lhe parece, Kent? Ah, mas não, uma delas se transformou na senhorita Hamilton, agora que eu coloquei o monóculo.
Fleur sentiu-se corar. Lorde Thomas Kent e Sir Philip Shaw se dirigiam para elas pela galeria. Sir Philip usava o monóculo preso ao olho. Fleur enrolou apressadamente a corda.
—Eu estou pulando — disse Lady Pamela.
—Eu vi. — Lorde Thomas as observou com uma expressão zombeteira no olhar e piscou para Fleur. — Como está minha sobrinha favorita hoje? Pode pular por toda a galeria?
—Eu acho que não — respondeu Lady Pamela.
Ele tirou uma moeda do bolso e se abaixou diante dela.
—Isto é seu se conseguir.
Lady Pamela respirou fundo e foi deslocando-se a toda pressa pela galeria, tropeçando com a corda a cada poucos passos. Ambos os cavalheiros riam enquanto a viam saltar.
—Eu esqueci de dizer que você precisa fazer sem tropeçar nenhuma vez — assinalou Lorde Thomas, e se aproximou dela rindo.
—Que imagem mais encantadora — comentou Sir Philip a Fleur. — Lamento profundamente ter me precipitado. Há muito tempo não via um par de tornozelos tão formosos.
Fleur se abaixou sem responder e voltou a guardar a corda no armário. Acreditava que o cavalheiro se insinuou quando dançou com ele na noite do baile. Quando se ergueu, Sir Philip se encontrava diante dela, com uma mão apoiada na parede e olhando-a intensamente.
—Onde se esconde quando não está com a menina, querida? — Perguntou Sir Philip. — Acima?
Fleur sorriu um instante ao ver que Lady Pamela voltava a pular outra vez pela galeria.
—Deve sentir-se só lá em cima — sussurrou ele, e se inclinou para lhe beijar o lado do pescoço.
—Não o faça — disse Fleur.
Mas a esperada interrupção chegou de um modo inesperado. Duas damas entraram pelas portas abertas da galeria. Uma delas era a duquesa.
—Ah, querida — exclamou, abaixando-se para beijar sua filha enquanto Sir Philip se afastava para examinar uma das pinturas. — E está se fazendo amiga do tio Thomas, verdade?
—Veja, mamãe? — Lady Pamela levantou a moeda. — Eu posso pular. Eu vou te mostrar.
—Em outro momento, querida — a freou Sua Graça, endireitando-se. — Senhorita Hamilton, pode fazer o favor de levar minha filha para cima para sua babá, e em seguida me espere em minha sala?
—Temo que o dragão se zangou — murmurou Sir Philip sem deixar de olhar o quadro. — Quando sorri e fala tão docemente é quando mais mal fica. Minhas desculpas mais abjetas, querida. Eu a compensarei em outra ocasião.
Fleur percorreu a metade da galeria com o queixo erguido, mas olhava ao chão. Fez uma reverência, tirou a corda de Lady Pamela, pegou a pela mão e a levou da sala.
—Mas mamãe! — Choramingou a menina. — Eu quero te mostrar como faço!
—Era um jogo proibido, Sybil? — A voz zombeteira de Lorde Thomas começou a falar quando Fleur já não podia ouvi-lo. — Que escândalo.

Fleur permaneceu em silêncio atrás da porta da sala de estar da Duquesa durante meia hora, na qual passou cinco minutos ouvindo tosses no vestiário ao lado. Finalmente a porta se abriu e entrou Sua Graça.
Atravessou a sala até uma pequena mesa sem nem sequer olhar em direção a Fleur e agarrou uma carta que havia nela. Fleur permaneceu de pé cinco minutos inteiros mais enquanto ela a lia. Então a duquesa deixou a carta e se voltou para olhar lentamente para Fleur de cima a baixo.
—Puta — sussurrou baixinho.
Fleur a olhou sem perder a calma.
—Quem a autorizou a estar na galeria? — Perguntou a duquesa.
—Sua Graça.
—Desculpe? — Sua voz continuava suave, seu rosto parecia delicado e surpreso.
—Sua Graça, o duque, Sua Graça.
—E quem permitiu minha filha brincar com os brinquedos que estavam lá?
—Eu, Sua Graça.
—Entendo. — A duquesa pegou um livro de um banquinho e sentou-se graciosamente no divã.
Fleur ficou de pé em silêncio por vários minutos, enquanto Sua Graça passava as páginas.
—Você tem o hábito de deixar que a toque qualquer homem que conheça? — perguntou a duquesa, olhando-a finalmente. Sua voz doce expressava curiosidade.
—Não, Sua Graça.
—Não está satisfeita com o salário que recebe?
—Sim, obrigada, Sua Graça — afirmou Fleur. — Estou muito satisfeita.
—Eu pensei que talvez fosse o dinheiro — continuou a duquesa. — Entendo que para algumas criadas deve ser tentador incrementar o salário dessa maneira. Em seu caso parece que simplesmente é uma puta.
Fleur não disse nada.
—Não lhe desejo nenhum mal — esclareceu a duquesa. — Você é o que é, senhorita Hamilton. Talvez teve má sorte ao ter uma senhora tão sensível. Mas não posso suportar pensar que está perto de minha filha e a influencie. Espero que amanhã pela manhã o senhor Houghton me diga que lhe entregou sua demissão. Lamento ter que fazer semelhante pedido. Pode partir.
—As atenções de Sir Philip Shaw não foram solicitadas nem desejadas — explicou Fleur. — Não acredito que tenha motivos para suspeitar de mim com nenhuma outra pessoa.
A duquesa deixou cuidadosamente o livro de um lado e deu uma lenta olhada pela sala, levantando as sobrancelhas.
—Eu imploro seu perdão — começou com um leve sorriso, — mas há alguém mais nesta sala?
—Falo com você, Sua Graça.
—Comigo? — A duquesa a olhou e sorriu. — Tem o mau hábito de não identificar a pessoa com quem está falando, senhorita Hamilton. Informei-lhe que podia retirar-se, não é assim?
Mas a porta do vestiário se abriu antes que Fleur pudesse voltar-se, e Lorde Thomas Kent entrou.
—Continua aqui, senhorita Hamilton? — Comentou ele. — Deve estar a ponto de cair. Não lhe ofereceu assento, Sybil? Que descortês de sua parte.
Seu olhar ainda zombeteiro.
—Pode partir, senhorita Hamilton — repetiu Sua Graça.
—Da sala? — Perguntou Lorde Thomas. — É claro. Mas não da casa, espero. Minha cunhada tem um caráter muito volátil, senhorita Hamilton. Mas não é vingativa uma vez que se acalme. Acredito que seguirá tendo trabalho no final do dia. Mais vale que se mova agora antes de cair. Creio que está há quase uma hora de pé no mesmo lugar.
Lorde Thomas sorriu enquanto ela se virava e saía da sala.
Fleur pensou que talvez devesse se demitir, assumindo que de todos os modos tivesse alguma possibilidade de escolha nesse assunto. Talvez devesse partir antes mesmo de amanhã. Antes mesmo do jantar.
Mas se partisse, Matthew pensaria que estava fugindo dele. E dessa vez iria atrás dela e a acorrentaria e a levaria para a prisão. O indulto temporário seria realmente temporário.
Além disso, mesmo se ele não a apanhasse, o que faria? Não tinha dinheiro nem referências. Encontraria-se em uma situação terrivelmente familiar, só que desta vez saberia como devia terminar. Fechou a porta do seu quarto com chave e caiu de bruços sobre a cama.
Estava tão feliz apenas algumas horas atrás! Sentira o ar fresco, o espaço aberto e a maravilhosa liberdade. E logo o passeio a cavalo e a absurda felicidade que experimentou na selvagem e perigosa corrida.
Apesar de que ele a acompanhava, foi mais feliz do que podia recordar em anos. Até mesmo mais feliz que no baile. Sua felicidade com Daniel era mais tranquila e menos vibrante.
Daniel! Não devia pensar nele. A dor da desesperança reprimida se tornaria insuportável se permitisse pensar nele.

—Thomas! — Exclamou a duquesa de Ridgeway indignada. — Isso foi intolerável! minou minha autoridade, e muitas vezes as pessoas não me levam a sério, porque sou pequena e delicada.
—Está zangada comigo? — Ele se inclinou e a beijou, deslizando a língua em sua boca e jogando-a para trás e colocando-a de lado até que ficou estendida no divã. — Quer brigar comigo? Bata-me! Ora vamos — ele riu dela.
—Estou falando sério — protestou ela, e levantou uma mão para desenhar a linha de sua mandíbula. — Me armei de coragem para ser rigorosa, e você arruinou totalmente o efeito.
—O que fez a pobre garota? Permitiu que um convidado aborrecido provasse seus lábios? Parece-me que Shaw já é bastante lascivo por si mesmo, Sybil. Sem dúvida ele foi o sedutor e ela a seduzida, embora desfrutasse do que estava recebendo. E a gente não pode reprovar o gosto dele. É uma garota bonita. — Thomas riu ao ver a cara de Sybil. — Ou seria para um homem que não estivesse louco por você, claro.
—Você está? — Ela perguntou, passando o braço em volta do seu pescoço.
—Louco por você? — A expressão zombeteira desapareceu de seu olhar. — Sabe que não houve outra que não fosse você, Sybil, e nunca haverá. — E a seguir a beijou longa e profundamente.
—É uma mulher de moral dissoluta — insistiu Sybil. — De verdade que precisa ir. Estou angustiada por ter que demiti-la, mas fiz o que eu sabia que precisava fazer.
—Não me disse que ela é de Adam? — Lorde Thomas sorriu ao lhe baixar o vestido por um ombro. — Deixe que ele se divirta com ela, Sybil. Eu posso te consolar. Ou será que está com ciúmes?
—De Adam? — Sybil o olhou surpreendida. — E de uma preceptora? Acredito que posso ser algo melhor que uma mulher ciumenta, Thomas. Mas não me parece bem que pratique sua libertinagem aqui.
—Deixa-os em paz. E deixa que Shaw a tome também se desejar. E Brockehurst. Os dois estavam passeando pelo gramado de trás esta manhã cedo e pareciam absortos na conversa. Adam interrompeu seu tête-à-tête. — Lorde Thomas riu. — Deixa que Adam se preocupe em proteger sua pequena propriedade. E eu me preocuparei em proteger você.
—Oh, Thomas! — Exclamou ela, jogando os dois braços ao redor de seu pescoço e fazendo que baixasse a cabeça até seu ombro. —Não tem graça. Isto não tem nada de divertido. O que vamos fazer?
—Paciência — Ele a tranquilizou. — Algo acontecerá.
—Mas o que? Eu estou casada com ele. Isso nunca vai mudar. Ah, por que não me levou com você quando partiu? Teria ido até os confins da terra com você. Deveria saber disso. Não teria me importado.
—Não podia — explicou ele com delicadeza. — Eu não poderia tê-la levado para a incerteza do meu futuro, Sybil, especialmente em seu estado delicado. Não podia fazer isso. Teria sido muito cruel.
—E por acaso não foi cruel me deixar tal como estava? — Perguntou ela.
—Sshh — ele a conteve. — Vai ficar tudo bem, você vai ver. Alguma vez passa alguém por alguma destas portas abertas sem aviso prévio?
—Não. Mas não o faça, Thomas. Eu tenho medo.
—Não tenha. — Ele se levantou e a olhou. — Nós fomos feitos um para o outro, Sybil, e você sabe disso. Fecharei as portas e em seguida, você pode se sentir segura.
Uma vez realizada essa tarefa, voltou-se para junto dela no estreito divã e a beijou, levantando a saia de musselina de seu vestido com uma mão enquanto a beijava.
—Thomas! — Gemeu ela, com os dedos enroscados no cabelo dele. — Oh, Thomas, passou tanto tempo! Eu te amo tanto!
Ele beijou-a novamente sem responder.

Capítulo 13

Mais tarde, naquela mesma noite, o duque percebeu que os olhos de sua esposa brilhavam e parecia ter febre, embora estivesse jogando charadas e rindo entusiasmada. O jogo foi subindo de tom à medida que avançava.
A excursão a Wollaston e as atividades constante dos últimos dias, incluído o baile e a excitação pelo retorno de seu irmão, estava sendo demais para a duquesa, embora não quisesse admitir nem sequer para si mesma. Mas Adam a conhecia muito bem para saber que a sua saúde precária não poderia suportar um ritmo tão extenuante muito mais tempo sem entrar em colapso.
O duque se perguntava se estava claro para seus convidados que Sybil e Thomas tinham uma relação muito mais estreita do que se esperava entre cunhados. Ele imaginava que sim. Certamente, Shaw deixara de lhe dar atenção e naquela noite dedicava seus galanteios a Vitória Underwood.
O duque pensou, que, embora notassem, ninguém se escandalizaria especialmente. Como já suspeitava antes de voltar para casa de Londres, os convidados de sua esposa não eram um grupo caracterizado pelo decoro e a compostura. Sidney havia comentado que uma pobre criada ficou perplexa ao encontrar Lady Mayberry na cama de Grantsham naquela manhã, e a senhora Grantsham na cama de Mayberry.
Adam observava a cena que lhe rodeava bastante sério. A boa educação o obrigava a continuar comportando-se como um anfitrião cortês e afável apesar de tudo o que ocorresse. Não podia fazer o que tinha tanta vontade de fazer: levantar-se e anunciar publicamente que o encontro iria terminar na manhã seguinte.
Ao pensar nisso experimentou o único momento de diversão de toda a noite.
Às vezes, só às vezes desejava não ter nascido em uma classe privilegiada e decadente. Mas se perguntava se por acaso alguma classe seria radicalmente diferente se a alguém soubesse realmente como é. Pode ser que as pessoas fossem iguais, olhasse para onde olhasse.
A duquesa, acalorada e ainda rindo, sentou-se em um sofá.
—Você sempre se deu muito bem com charadas, — comentou, sorrindo até que ele se sentou a seu lado. — Estou muito contente de ter estado em sua equipe. Agora precisamos de algo tranquilo e relaxante para nos acalmar.
—Me ocorre algo sem pensar muito — interveio Sir Hector Chesterton.
Sua Graça, a duquesa, lhe deu uma pancadinha no ombro com o leque.
—Eu disse algo calmo e relaxante, palhaço — ela o repreendeu. — Quem sabe cantar? Walter?
—Estou sem fôlego, eu lhe asseguro, Sybil — respondeu o cavalheiro. — Que uma das damas nos toque uma sonata.
—Eu não -—comentou a senhora Runstable. — Estou esgotada.
—Tenho como norma ter perdido a prática quando não estou em casa — comentou Lady Mayberry.
Suas palavras provocaram a risada de outros.
—Talvez a minha sugestão não seja tão estúpida afinal de contas, — Sir Hector falou novamente, sentado no braço da cadeira ocupada pela Sra. Runstable.
—A música é a alma do amor — afirmou a duquesa, sorrindo e erguendo um braço delicado ao ar. — Deem me música, vamos.
—Eu gostaria de saber cantar —suspirou Lorde Thomas, agarrando-lhe a mão e levando-a aos lábios.
—Conheço alguém que toca como um anjo —falou Lorde Brockehurst, — e que não está cansada de jogar charadas toda a noite.
Sua Graça, o duque sentiu uma desconfortável premonição do que ia dizer e se mexeu na cadeira enquanto Sir Philip Shaw bocejou delicadamente atrás de sua mão.
—E quem é esse modelo de energia inesgotável? — Perguntou.
—A senhorita Hamilton, a preceptora — respondeu Lorde Brockehurst.
—Ah. — Sir Philip o olhou languidamente. — Então, você já conhecia a moça, verdade, Brockehurst? Que sorte tem! E ainda conseguiu descobrir que toca como um anjo? Ah, suponho que se refere ao piano. Façamos que desça, é claro, Sybil.
—É tarde— interveio o duque. — A senhorita Hamilton deve estar na cama.
—Está? Diabo! — Protestou Sir Philip. — Sua sugestão é mais atraente a cada minuto que passa, Chesterton.
—Nós não gostamos de manter nossos criados ocupados além das horas de trabalho — comentou a duquesa.
—Mas, Sybil, Sybil! — Lorde Thomas voltou a pegar sua mão. — Se a senhorita Hamilton toca como um anjo e Bradshaw gostaria de ouvi-la tocar, você deveria atender a seus hóspedes. E se já estiver na cama, Adam, cancela as aulas matutinas de Pamela e permita que a preceptora recupere o sono. Não poderia ser mais fácil. Bradshaw, está ao lado da campainha para chamá-la, meu querido amigo. Que vá procurar a preceptora.
Enquanto os aplausos contidos celebravam a ideia de seu irmão, o duque pensou que devia ser perto de meia-noite. Talvez deveria ter protestado com maior firmeza. Mas já era muito tarde.
Thomas estava dando instruções a Jarvis.
Passaram-se quinze minutos antes que voltassem a abrir as portas e Fleur entrasse. Que tivesse demorado tanto tempo indicava que realmente devia estar na cama.
Sua Graça, o duque, ficou em pé ao mesmo tempo que seu irmão, e atravessou a sala até aonde ela estava.
—Senhorita Hamilton, meus hóspedes pediram que toque piano para nós por uma meia hora.
O rosto de Fleur tinha uma expressão sonolenta e o olhar tranquilo. Tinha uma expressão muito similar a que pôs no rosto no quarto da estalagem do Touro e o Corno, só que agora estava saudável e bonita. Então o duque não percebeu, como notava agora, que frequentemente colocava uma máscara para ocultar à autêntica e vital Fleur Hamilton.
E de repente também percebeu que devia pensar que ele a tinha traído, que havia concedido o direito de tocar o instrumento na sala de música e ouvia todos os dias só para usar o seu talento em uma ocasião como esta.
—Você pode fazer isso, por favor? — Perguntou ele.
—Nos disseram que toca como um anjo — comentou Sir Philip Shaw.
"Mas isso não é o que eu disse", disse o duque a Fleur com um olhar intenso que contrastava com a frieza dela. Fleur tinha a mesma expressão que o zangara naquela primeira ocasião e que mudara o curso de seu encontro com ela.
—É tímida — comentou Lorde Thomas, lhe fazendo uma reverência. — Senhorita Hamilton, faria-nos a honra de tocar?
O duque estendeu-lhe a mão, mas ela estava olhando para Lorde Thomas. Fleur passou por diante dele e atravessou o salão em direção ao piano sem virar para olhá-lo. Ela se sentou no banquinho, com as costas muito retas, e olhou friamente para Lorde Thomas.
—Gostaria de alguma música em particular, milorde? — Perguntou-lhe.
Ele continuava a sorrir.
—Algo calmo e relaxante, por favor, senhorita Hamilton — respondeu. — Uma canção de ninar, pelo menos. Algo que nos faça querer...dormir? senhorita Hamilton.
O duque permaneceu onde estava, junto à soleira da porta, observando-a. Ela se sentou olhando as mãos unidas no colo por alguns instantes, totalmente calma, totalmente serena.
E a seguir começou a tocar a Sonata ao Luar de Beethoven. Não tinha partitura. Tocou impecavelmente, muito bem inclusive. Se estava perdendo parte da magia das atuações matutinas, provavelmente só ele saberia. E enquanto o burburinho das conversas começaram a se espalhar ao seu redor, o duque pensou que se ele ficasse onde estava, chamaria a atenção.
Foi se sentar junto a uma das damas que estava escutando a música e observou como Brockehurst se deslocava até ficar atrás do tamborete.
Tocava como um anjo? Se não o fazia, pelo menos estava seguro que parecia. A simplicidade sem adornos de seu vestido azul claro, o mesmo que usou no baile, a suavidade e naturalidade de seu cabelo avermelhado e dourado, a beleza serena de seu rosto... tudo aquilo a distinguia de qualquer uma das outras damas presentes. Sim, parecia um anjo.
Mas quem era ela? Isabella? De sobrenome desconhecido? "Her?" começou a chamar a seu antigo lar. Brockehurst vivia em Heron House, no Wiltshire. Adam pensou em ficar em pé quando terminasse a música e a acompanhar até a porta. Assim poderia voltar para sua cama e a dormir.
Mas seu irmão interveio antes que pudesse fazê-lo.
—Bravo, senhorita Hamilton! — Exclamou ele. — A verdade é que possui uma habilidade superior. Conhece lorde Brockehurst? Tenho certeza que falo em nome de todos se lhe disser que agora pode retirar-se com nosso agradecimento. Na verdade, ambos podem retirar-se. Bradshaw?
Lorde Brockehurst fez uma reverência quando ela fez gesto de voltar-se.
—Esperava poder dar um passeio com a senhorita Hamilton pela galeria — comentou. — Tenho sua permissão, Sua Graça? —- E se voltou para fazer uma reverência a duquesa.
—Tem minha permissão, senhorita Hamilton — assinalou a duquesa, sorrindo, — e por agora pode esquecer da tarefa que lhe tinha encarregado para amanhã pela manhã.
O duque voltou para sua cadeira e contemplou Fleur enquanto partia tão tranquilamente como entrou. Lorde Brockehurst ia há poucos passos atrás dela. Fleur só lhe dedicou um breve olhar inexpressivo ao passar diante dele.
—Bom, vou para a cama — bocejou Sir Philip. — Posso acompanhá-la até a porta, Vitória?
—Acredito que todo mundo quer ir para a cama— comentou a duquesa. — Na vida, nunca me senti tão cansada.
O duque levantou-se para lhe oferecer o seu braço. E se perguntou se trazer Fleur à sala tão tarde e obrigá-la a ter um encontro com Brockehurst foi uma artimanha deliberada tanto por parte dela como de seu irmão.
—Volta a ter febre — ele indicou a sua mulher, quando lhe tocou uma das mãos ao parar na porta de seu quarto minutos mais tarde. — Precisa descansar, Sybil. Por que não fica na cama até ao meio dia? Eu me ocuparei de entreter os convidados.
—Estarei melhor pela manhã — replicou ela. — Só estou cansada. E como eu poderia perder um único minuto com meus convidados? A vida é tão aborrecida quando não estão aqui. E você ou não está ou passa o dia se dedicando a seus assuntos em alguma outra parte.
—Não teria por que ser assim — lamentou ele. — Poderíamos ter feito que fosse um casamento, Sybil. Poderíamos ter sido um pouco amáveis um com o outro, pelo menos.
—Não, não precisava ter sido assim— lamentou ela, olhando-o febril e com os olhos brilhantes. — Eu poderia ter sido feliz. Ele não teria me rejeitado, Adam. Ele não teria me abandonado durante vários meses seguidos e em seguida, se queixado que eu convidasse pessoas para aliviar meu aborrecimento e minha solidão. Mas claro, com ele não teria necessitado de convidados. Não teria estado nem só nem aborrecida. —A duquesa tinha as faces muito vermelhas.
Adam abriu-lhe a porta.
—Se continuar com febre pela manhã farei que venha o médico, e que venha outro médico de Londres se não nos disser nada melhor do que nos disseram no inverno passado quando esteve muito doente.
—Eu só preciso do doutor Hartley— protestou ela. — Por que obrigou Thomas a partir, Adam? Nunca o perdoarei por isso, já sabe. E estou contente que ele tenha retornado. Estou contente!
Sybil foi correndo para o quarto e fechou a porta abruptamente. O duque ouviu que sua mulher tossia no interior.
E voltou suspirando para o quarto.

A princípio, Fleur não se lamentou que a despertassem. O rosto inclinado sobre ela, o corpo que estava-lhe causando uma dor dilaceradora e uma humilhação persistente, eram os de Daniel.
Seus traços bonitos e agradáveis pareciam distorcidos pela crua luxúria carnal, de modo que mal os reconhecia. Mas sabia que eram os de Daniel.
Sonhou que ele a chamava puta enquanto a machucava de novo e de novo.
A criada que enviaram a seu quarto dissera, com uma expressão de surpresa no olhar, que precisava vestir-se imediatamente e apresentar-se ao grupo que se encontrava no salão. Enquanto se vestia a toda pressa e com as mãos tremulas, Fleur pensou que ele dissera a todo mundo, que decidiu contar a todos, e que agora faria que ela reconhecesse seu crime na frente de todo o grupo, para que todos se divertissem.
Seu dia de indulto estava a ponto de finalizar. Realmente a tinha como uma marionete da qual puxava os cordões, e assim estaria até o fim de seus dias. Quando um lacaio abriu as portas que davam ao salão estava tão cansada que lhe doíam até os ossos. Entrou sozinha e se encontrou com a luz, o ruído e a presença de um grupo numeroso de pessoas.
Mas não deixou que se notasse. Se fosse a última coisa que poderia fazer, queria aguentá-la com dignidade. Nem Matthew nem nenhum outro teriam a satisfação de vê-la arrastar-se, suplicar, afundar-se ou chorar.
E então, Sua Graça, o duque estava em pé diante dela e brevemente informou que o motivo que a fez sair da cama a meia-noite era que desejava mostrar seu talento ante seus convidados.
Agora pagaria pelo privilégio de praticar sozinha cada dia na sala de música, ou assim interpretou as poucas palavras que disse o duque. Olhou para seu rosto severo e carrancudo, contemplou a cicatriz que o desfigurava, e sentiu que o odiava. Não só tinha medo e fugia dele fisicamente. Odiava-o. Ela odiava que pudesse lhe conceder favores que parecia ser livre, e, em seguida, pedir-lhe para pagá-los para seu próprio prazer. Odiava-o por afirmar que se preocupava com seus criados e os protegia enquanto os usava como escravos para satisfazer seus caprichos.
Recordou de sua excursão a cavalo, a euforia da corrida, a visão esplêndida do duque galopando junto a ela em seu garanhão negro, adiantando-a, saltando por cima do muro, rindo de Fleur por chegar depois dele. Recordou sua própria risada, sua própria felicidade, sua estranha capacidade de esquecer, igualmente acontecera quando dançou com ele. E o odiava.
Só falou com Lorde Thomas Kent, que sempre sorriu abertamente e com sinceridade, e que falou a seu favor com a duquesa naquela tarde na salinha. Tocaria para ele, já que pedira e porque afinal não tinha outra alternativa.
Sua Graça, o duque, permaneceu na porta um momento e logo se sentou. Ele a traíra. Dera tudo enquanto ele a escutava uma manhã após outra e nunca a incomodou. Sempre deu a impressão que a escutava mas que respeitava sua necessidade de estar sozinha com sua alma. Mas agora a trouxera para que tocasse como um macaco de feira para pessoas que beberam demais e que de qualquer forma não estavam realmente interessado em música.
Algo especial daquelas manhãs, algo que não pensara ou que não identificara antes, desvaneceu-se. Era muito consciente que o duque estava sentado ao lado de lady Woodward, calado, quieto, sombrio e taciturno.
Escutando-a. Observando sua escrava amestrada.
Ela o odiava. E foi surpreendida pela força do seu ódio. Antes só o temia.
Ela não percebera que Matthew se pôs atrás dela. Por incrível que possa parecer, não percebera. Mas estava ali. Sentiu sua presença assim que terminou de tocar e Sua Graça, o duque, ficou em pé.
Mas, de repente, seu único amigo se tornou seu pior inimigo: Lorde Thomas compreendera a situação, e, pensando que estava fazendo um favor, ele sugeriu que lhe fosse permitido escapar da sala com seu conhecido, Matthew. E a duquesa concordou com ele e rescindiu a ordem daquela tarde de que Fleur entregasse sua demissão ao senhor Houghton na manhã seguinte.
E assim, eles a colocaram em uma situação que era inevitável de qualquer maneira. Mas gostaria que não fosse tão tarde, não estar tão cansada e abatida. Poderia ter tido mais tempo.
Mas o tempo se esgotou. Dois lacaios estavam acendendo algumas das velas nos castiçais da parede ao longo da galeria.
—Tome o meu braço, Isabella — ordenou Matthew. — Se vamos passear, façamos de um modo civilizado.
Os dois lacaios fecharam as portas atrás de si ao partir.
—Como conseguiste estar tão bonita, mesmo vestida de um modo tão simples? — perguntou ele.
Ela soltou o seu braço.
—O que quer, Matthew? Se não vai partir imediatamente, se não vai me arrastar ao cárcere, o que quer? Quer que me deite com você aqui, em Willoughby, que me torne em sua amante aqui? Pois não farei isso.
Ele suspirou.
—Faz com que pareça tão primitivo, Isabella... foi ideia sua, não minha.
—Então diga-me o que quer, e deixa de brincar comigo.
—Quero você. Eu te amo a muito tempo, muito tempo. Por acaso é tão censurável?
—E faz muito, muito tempo que venho dizendo que não estou interessada em suas declarações de amor — replicou ela. —Se você me amasse como você sempre disse que me amava, Matthew, teria respeitado meus sentimentos. Não teria se intrometido entre Daniel e eu.
—Daniel Booth — burlou Matthew. — Um criado sorridente e delicado. Não a teria feito feliz, Isabella.
—Talvez não. Mas eu o teria decidido. Por que fez com que as coisas fossem desse modo?
—De que modo? — Ele elevou as sobrancelhas em atitude inquisitiva.
—Sua mãe e Amelia partiram para Londres e me deixaram sozinha com você. Foi tão impróprio, e elas tinham que saber, e teriam feito algo a respeito se sentissem algo por mim. E logo se negou que eu partisse e ficasse com a irmã de Daniel quando ela pediu isso, e se negou que me casasse com Daniel com uma permissão especial. Planejou-o assim, não é? Para que eu ficasse sem alternativas e tendo arruinado minha reputação, não ficasse outra opção salvo me converter em sua amante. E assim teria a oportunidade de me dominar embora me negasse.
Ele parou e segurou as mãos dela, mas Fleur tentou se afastar dele.
—Já tinha chegado a hora de Amelia ir a cidade para sua temporada—explicou ele. — E é obvio, minha mãe queria ir com ela. Seria cruel enviá-la com elas, Isabella. Vocês três nunca combinaram.
—É difícil concordar ou discordar com alguém quando se é ignorada quase completamente desde os oito anos, — afirmou ela amargamente, — exceto quando criticam e zombam de você.
—Seja como for, pensei que fosse melhor que ficasse em casa, no lugar que pertencia, Isabella. E nunca foi ideia minha ser seu guardião, e sabe. Foi a vontade de seu pai e a morte do meu que fez com que fosse assim, até que se casasse ou até que tivesse vinte e cinco anos. Eu não marquei essas condições.
—Até que me casasse! — Exclamou Fleur. — Eu poderia ter me casado com Daniel. Poderia ter se livrado de uma responsabilidade muito pesada.
—Não era pesada. Mas, sinceramente, não podia deixar que se casasse com semelhante frangote, Isabella.
—Era melhor que me tornar sua amante.
—Você é a única que usou essa palavra.
Ela riu.
—Suponho que queria se casar comigo — acrescentou Fleur.
—Não fale no passado — corrigiu ele, apertando as mãos com mais força. — Você é uma dama, Isabella, filha de um barão. Como pode insinuar que pretendia forçá-la?
Ela riu de novo.
—É estranho que se esquecesse de mencionar o quão honestas eram suas intenções — comentou a garota. — Sua mãe ficaria encantada, Matthew. E suponho que a sedução daquela noite servia para indicar que eu era sua antes da cerimônia.
—A sedução?
—Eu ia sair de casa, mas já era tarde e era uma noite fria. Meu baú estava na calesa. Miriam estava esperando na reitoria. Mas não queria me deixar ir e me repreendia por desobedecê-lo. E não ia me mandar para meu quarto, Matthew. Estava a ponto de me tomar no seu. Ou talvez nem isso. Hobson precisava me segurar, não é, na própria biblioteca, enquanto, enquanto me violava.
Ele soltou uma de suas mãos para passar uma mão pela testa.
—Que ideias mais estranhas você tem, Isabella. Gritava e brigava como uma criatura demente porque eu não queria deixar que escapasse com um homem com o qual, acredito com bastante juízo, negava-me que você se casasse. Hobson deu um passo atrás de você para evitar que caísse na lareira e se machucasse. E você se voltou e o atacou também e ele perdeu o equilíbrio. Foi um crime passional, pura e simples.
—Sim. Suponho que um juiz também acreditaria... uma vez que você tivesse explicado.
—É uma pena que as joias fizessem com que tudo parecesse bastante premeditado. Embora sem dúvida eu ia ser sua vítima.
—As joias? — Fleur ficou muito quieta.
—Aquelas que eram muito valiosas para que minha mãe as levasse a Londres. Encontraram-nas em seu baú depois que fugiu em pânico.
Ela o olhou fixamente.
—E a pessoa que as encontrou foi você, suponho — disse finalmente.
—Sua criada.
Fleur sorriu.
—Mas você deve ter feito tudo por impulso — continuou ele. — Deve ter sido duro para você, Isabella, perder seus pais tão jovem, ver que meu pai e nós vínhamos para sua casa e ficávamos com a propriedade e as posses que chegou a acreditar que eram suas. Mas podem voltar a ser suas de novo, e de seus filhos.
—Nossos filhos — corrigiu ela. — Você está falando sério quanto a se casar comigo, Matthew?
—Eu te amo. Você não pode imaginar como eu sofri nos últimos dois meses e meio, Isabella, sem saber se voltaria a vê-la. Deve se casar comigo.
—Deve é a palavra chave, já entendi.
—Nunca a teria forçado. Precisa saber que se enganou nisso.
—Minha resposta é não.
—Mudará de opinião.
—Não, não mudarei. Quando partir daqui, partirá sozinho, Matthew.
Ele levantou as mãos e as pôs sem apertar ao redor do pescoço dela, subiu-as até o queixo de Fleur, apertou ligeiramente e puxou para cima.
—Eu ouvi falar de homens muito hábeis que podem fazer seu trabalho de tal modo que a morte seja instantânea e sem dor — comentou. — Infelizmente, nem todos estão tão qualificados.
O sorriso dela desvaneceu-se.
—Obrigada — disse finalmente Fleur. — Por fim deu-me a resposta. Ou me caso com você, Matthew, ou me enforcam. Quanto tempo tenho para me decidir?
Mas não teve oportunidade de responder. As portas no final da galeria se abriram e entrou o duque de Ridgeway.
—Ainda estão aqui — comentou ele. — É fácil perder a noção do tempo entre muitos quadros, não é? Mas a preceptora de minha filha precisa dormir, Brockehurst. Talvez possam continuar a visita em outro momento. Pode voltar para seu quarto, senhorita Hamilton.
Mas Matthew se pôs a caminhar pela galeria com ela, de modo que em seguida os três se encontraram junto à porta. O duque esquadrinhou Matthew e ofereceu o braço a Fleur.
—Eu a acompanharei até em cima — ele propôs. Fleur apoiou a mão em seu braço e não olhou para trás para ver o que Matthew fazia. Tirou a mão assim que passaram por debaixo do arco que levava a escada, e começou a subir as escadas tão perto da parede interior como foi possível.
Ele não voltou quando chegou no alto da escada tal como Fleur esperava, mas sim percorreu o corredor até o quarto dela. E ele colocou a mão na maçaneta. Ela notou a bela mão de dedos longos que tanto temia.
—Eu sinto muito, senhorita Hamilton — murmurou ele.
—O que sente? — Ela dirigiu o olhar para seu rosto escuro, duro e angular, fracamente iluminado no corredor.
—Tudo isto... tê-la tirado da cama... ter permitido que a convertessem em um peão. Não deixarei que aconteça outra vez.
Ela não tirava os olhos do duque.
—Fez-lhe mal? —- Insistiu ele. — Ou a assediou de alguma forma?
—Não foi ele quem me fez mal.
O duque abriu a boca para dizer algo, e a voltou a fechar. Olhou-a com os lábios rígidos e as mandíbulas muito apertadas. E ela se perguntou, muito cansada para se assustar nesse preciso instante, se logo abriria a porta, faria-a entrar e lhe ordenaria que tirasse a roupa outra vez.
E se perguntou se lhe obedeceria.
—Eu sinto muito — repetiu Adam, e ela observou horrorizada e fascinada ao mesmo tempo que os olhos dele se dirigiam a seus lábios e aproximava a cabeça.
De repente o duque abriu a porta e a fez entrar.
—Não! — Fleur ficou aonde estava e meneou a cabeça lentamente. — Não, por favor, não! Ah, por favor, não!
—Pelo amor de Deus! — Adam atravessou a soleira e agarrou seu ombro com tanta força que doeu. — Mas que ideia tem de mim? Acredita que pensava entrar com você? Pensava que poderia pedir-lhe desculpas em um momento e seduzi-la no momento seguinte?
Ela mordeu o lábio inferior e o olhou fixamente.
—Fleur? — começou o duque. Afrouxou as mãos. — Fleur, aquela vez não a tomei contra sua vontade. Nunca a tomaria contra sua vontade. Nem tampouco tomaria mesmo que você quisesse. Sou um homem casado que teve um deslize em cinco anos e meio de casamento. Não quero que continue temendo por sua segurança estando comigo.
Do interior do lábio superior de Fleur brotava sangue.
Ele olhou para seu rosto, parecia tensa e assustada, gemeu, impaciente e puxou-a em seus braços. Ele segurou-a firmemente, Segurou-a com força, até que deixou de tremer e se inclinou para frente. E ela virou a cabeça e a apoiou contra o coração do duque, que pulsava a um ritmo constante, e fechou os olhos.
—Não deve temer por sua segurança estando comigo — ele sussurrou-lhe ao ouvido. Acariciava-lhe delicadamente a nunca com os dedos. — Você é a última pessoa na terra a quem ia querer fazer mal, Fleur. Por Deus, diga-me que já não pensa o que acaba de pensar.
—Não mais. — Ela se afastou dele, cansada. Por acaso o dia foi tão longo como tinha parecido?
—Pois bem. — Ele a soltou e se afastou, olhando-a hesitante. — Boa noite.
—Boa noite, Sua Graça.
Ela entrou em seu quarto e fechou a porta. Apoiou a testa contra ela e respirou fundo várias vezes consecutivas. Não tinha nada que temer. O duque estava sozinho com ela e poderia tê-la tomado facilmente. Poderia ter afogado seus gritos de modo que nem sequer a senhora Clement teria ouvido. Não a tinha tomado.
Dissera-lhe que não o faria contra sua vontade, e nem sequer se ela quisesse.
Não tinha nada a temer. Mas sentiu quando os braços do duque a puxavam para apertá-la contra seu corpo musculoso. E sentiu quando a acariciava com os dedos na nuca. Ouviu como pulsava seu coração, e sentiu como se inclinava para ele, rendendo-se a sua força e calor, a ilusão de consolo.
Fleur pensou conscientemente em quem era ele e o que lhe fizera, em seu potente corpo masculino e em suas cicatrizes. Em suas mãos.
E sentiu medo. Medo porque quando finalmente a tocou, esqueceu a repulsão que sentia, igualmente quando dançou e cavalgou com ele.

Capítulo 14

Ao entrar em seu escritório na manhã seguinte com cinco minutos de atraso, infelizmente, Peter Houghton percebeu que seu senhor estava de mau humor novamente.
O duque estava de pé olhando pela janela, firme como um militar, e tamborilava os dedos de uma mão sobre o parapeito. Devia ser verdade então o que se comentava sobre Sua Graça, a duquesa, e Lorde Thomas, embora todos soubessem de qualquer maneira que as coisas não iam bem no casamento de Sua Graça.
E depois, claro, havia o boato de que a "amante" do duque esteve passeando depois da meia-noite pela galeria com Lorde Brockehurst no dia anterior. Embora desde que voltou para Willoughby Hall Houghton se perguntava se a preceptora era realmente a "amante" de seu senhor. Ele gostava daquela mulher, apesar que estava predisposto que não fosse assim.
Ela sempre se mostrava discretamente educada no andar de baixo e não se dava ares na mesa da senhora Laycock, embora cada palavra e gesto indicava que ela nasceu e foi criada como uma dama.
—Onde diabos você estava? — O repreendeu Sua Graça, confirmando as suspeitas do secretário.
—Ajudando a senhora Laycock com um pequeno problema para equilibrar as contas da casa, Sua Graça — respondeu ele.
—O que você acha de umas férias? — Perguntou o duque.
Houghton o olhou desconfiado. Estava a ponto de lhe conceder férias permanentes? Por chegar cinco minutos atrasado no escritório?
—Vai a Wiltshire para mim — informou o duque. — A Heron House. Eu não tenho certeza aonde fica, mas sem dúvida você descobrirá.
—A casa de Lorde Brockehurst, Sua Graça? — Seu secretário franziu a testa.
—O mesmo. Eu quero saber tudo o que você puder descobrir sobre uma tal de Isabella que viveu ali até muito recentemente.
—Isabella? — Houghton o olhou inquisitivo. — De sobrenome, Sua Graça?
—Desconhecido. E vai ser invisível e mudo enquanto averigua as respostas. Entendeu?
—Só Isabella, Sua Graça? Não tem nenhuma outra descrição?
—Digamos que se parece muito com a senhorita Hamilton.
Peter Houghton o olhou fixamente.
—Eu posso confiar em sua discrição, Houghton? — perguntou Sua Graça. — Que você está indo para umas merecidas e longas férias?
—Uma visita ao meu primo Tom — acrescentou seu secretário, com uma expressão impassível no rosto, — e a sua esposa, que ainda não conheço. E seu novo filho, de quem vou ser o padrinho.
—Não preciso de um histórico familiar— o duque cortou. — Mais, é melhor você partir hoje, Houghton, ou perderá o batismo.
—Muito obrigado, Sua Graça — comentou Houghton enquanto seu senhor virou-se e atravessou a sala. — Não esquecerei deste favor que me fez.
—Cuidou do outro assunto antes de partir? — Perguntou o duque, olhando para trás da soleira da porta. — Deixei instruções para que fosse a Wollaston esta manhã.
—Encarregarei-me disso, senhor — afirmou Houghton, eficientemente.
O secretário pensou que seu senhor devia ser muito mais discreto que a senhora. Não tinha chegado ainda o menor rumor de escândalo no piso térreo, sobre seu relacionamento com a preceptora, a prostituta de Londres.
Embora, claro, o rapaz dissera que os dois passaram uma hora cavalgando juntos na manhã anterior, uma declaração que foi confirmada pelo fato de que ele havia ordenado que equipasse a preceptora com roupas e botas de equitação.
Assim, afinal, ela era sua "amante". E Sua Graça devia estar realmente apaixonado se pensava espreitar o passado da pobre moça. Ela vivia sob um nome falso, certo? Mas mal se podia culpar o duque quando a duquesa não fazia absolutamente nada por ocultar sua preferência por Lorde Thomas.

Era uma manhã chuvosa. Fleur lamentou não haver a menor possibilidade de uma breve caminhada depois de seus exercícios musicais. Nem que Lady Pamela pudesse receber outra lição de equitação.
Mas seu pesar foi atenuado pelas lembranças do passeio a cavalo na manhã anterior e o modo em que se desenvolveu. E as lembranças da noite anterior e do terror que a levou a fazer uma hipótese das mais embaraçosas. E a lembrança de seus braços em volta dela e do coração do duque pulsando contra seu ouvido e do aroma de seu perfume.
Depois de tudo, ela se alegrava que estivesse chovendo.
Enquanto observava Lady Pamela pintar filas de letras e, em seguida, lhe contava um capítulo de história enquanto ambas bordavam, começou a ter esperança que talvez Sua Graça, o duque, não fosse a sala de estudo aquela manhã. E ficou atenta para ver se o ouvia chegar, e cada som a sobressaltava.
Estavam examinando o globo outra vez quando ele chegou. Mas em vez de sentar em um canto, como sempre fazia depois de beijar sua filha como estava acostumado e desejar a ambas bom dia, levantou-se e entregou uma carta para Fleur.
—Chegou esta manhã, junto com outra para mim. Você tem minha permissão para aceitar o convite, senhorita Hamilton. E eu acho que Houghton a está esperando lá embaixo no seu escritório. Esqueceu-se do que precisava fazer esta manhã?
Fleur não se esqueceu. Mas pensava que talvez ele tivesse esquecido, e não quis mencionar o assunto ao senhor Houghton durante o café da manhã.
—Farei com que tragam uma carruagem dentro de meia hora —comentou o duque. — Pamela, você e eu vamos brincar com Pequena um pouco até que me reúna com uns cavalheiros. Esta tarde você pode ir com mamãe e comigo a reitoria. Alguns de nossos convidados querem ver a igreja. Pode brincar com os meninos enquanto isso.
—Sim, sim! — Pamela começou a pular.
—Vamos, veem — estendeu a mão para agarrar a da menina. — Tenha um bom dia, senhorita Hamilton.
O senhor Chamberlain a convidava a ir com sua irmã, Sir Cecil Hayward e ele, jantar e a visitar o teatro de Wollaston naquela noite. Ia se apresentar uma companhia itinerante de atores. Ela dobrou o papel e o levou aos lábios. E sentiu uma tristeza enorme pela vida que poderia ter vivido em Willoughby. Ela tinha um trabalho que estava começando a ser bastante agradável, uma vida social suficiente para se manter ativa e motivada, e a amizade de um cavalheiro atraente que a fazia sentir-se como uma mulher.
Claro que nunca poderia levar essa relação além da amizade. Fleur sabia e aceitava. Não pedia muito: só que a vida fosse como as duas primeiras semanas que passou ali. Gostaria que o Duque de Ridgeway tivesse permanecido longe de casa. E que Matthew não tivesse seguido sua pista até ali. Sua Graça disse que a carruagem estaria esperando-a em trinta minutos. Fleur foi correndo até seu quarto para se preparar e escrever uma aceitação ao convite.
Peter Houghton deu-lhe uma carta que tinha que apresentar em Wollaston para que as faturas pela roupa de equitação fossem enviadas para casa. Também lhe pagou o primeiro mês de salário, embora não tivesse ainda passado um mês, mas ele me explicou que em uma hora iria sair para o batismo do filho de seu primo, e talvez levaria uma semana ou mais para voltar.
Fleur aproveitou as horas seguintes. Depois de suas experiências há dois meses, era muito agradável se vestir de maneira respeitável, passear em uma carruagem elegante, ser tratada com deferência porque a carruagem levava o emblema do duque de Ridgeway, ter um pouco de dinheiro para gastar com meias de seda que realmente não necessitava, escolher tecidos de veludo suntuoso para a roupa de equitação e couro suave para as botas. E mais tarde pensou que voltar para Willoughby Hall era como voltar para casa, apesar da chuva e as nuvens pesadas. A carruagem passou estralando pela ponte e Fleur voltou a vista para a casa e sentiu um forte amor por ela. E uma grande tristeza porque não seria seu lar durante muito mais tempo.
Ela sorriu para o chofer quando a ajudou a descer da carruagem, e teria atravessado correndo as portas até as dependências sob os degraus em forma de ferradura se alguém não a tivesse chamado.
Matthew se aproximava apressado, procedente do estábulo.
—Eu subi depois de almoçar para te fazer uma visita — explicou enquanto a carruagem se afastava outra vez. — A babá me disse que você foi para Wollaston. Sozinha, Isabella? Por que não me fez saber isso? Eu teria ido contigo.
Ela ficou de pé sob a chuva olhando-o.
—Preciso ir a uma visita infernal a uma igreja normanda dentro de pouco — continuou ele, — mas esta noite preciso vê-la. Aonde? Em seu quarto? Ou em algum lugar do andar de baixo?
—Eu tenho outros planos para esta noite — respondeu ela.
—O que? — Matthew franziu a testa. A água caía formando uma corrente regular da aba de seu chapéu.
—Fui convidada para jantar e ir ao teatro — explicou. — Alguns vizinhos.
—Quem é ele? — Perguntou Matthew. — Será melhor que não o anime, Isabella. Eu não gostaria nada.
—Será que não pode conceber uma relação de simples amizade, Matthew? — Repreendeu-lhe ela. Um rastro de gotas de água fria estava abrindo caminho por suas costas até o interior de sua capa.
—Não no que diz respeito a você. Não se tiver em conta seu aspecto, Isabella. Vamos ficar aqui algumas semanas. Mas espero passar muito tempo com você. E eu espero que não haja oposição a respeito. E isso inclui o duque. Espero que não tenha ficado contigo ontem à noite. Por seu bem, espero que não.
—Estou molhada e o frio me impregna até os ossos, Matthew. Eu vou entrar, se me dá licença...
Ela fez uma breve reverencia e virou-se para subir os degraus de mármore.
Fleur tremia ao entrar pelas portas dos criados. Sim, sempre ficava aquilo... a última decisão que teria que tomar: ou casar-se com Matthew, se é que ele realmente queria casar-se, ou enfrentar um julgamento por assassinato e roubo do qual a única testemunha era o próprio Matthew.

A carruagem do senhor Chamberlain passou para buscar Fleur assim que começou a anoitecer. Fleur olhou com pesar o vestido de musselina azul que usava, já que desejava ter algo mais para vestir.
Mas não deixaria que nada estragasse a noite. Decidira que aproveitaria, sobre tudo depois de sua conversa com Matthew. Se não tivesse aquele convite seria obrigada a passar a noite com ele. Claro que ficava a noite seguinte e a próxima, mas pensaria nisso quando chegasse o momento. Sir Cecil Hayward, um cavalheiro que Fleur recordava ter visto no baile, não sabia falar de outra coisa que não fosse relacionado com cavalos, cães e caça. Mas tanto a senhorita Chamberlain quanto seu irmão eram animados conversadores, e Fleur se divertiu no jantar.
Nunca em sua vida tinha ido ao teatro, o que o senhor Chamberlain achou muito divertido.
—Nunca foi ao teatro, senhorita Hamilton? Incrível! — Exclamou ele. — Como sobreviveriam os Shakespeare de nosso mundo se todas as pessoas fossem como você?
—Mas não digo que não fui porque não me interessasse, senhor — ela riu, recordando uma ocasião em que realmente esteve perto de um teatro.
—Isto será como com as crianças, Emily — comentou o senhor Chamberlain, sorrindo para sua irmã. — Suponho que a senhorita Hamilton estará emocionada e se dedicará a pular de entusiasmo.
—Pelo menos prometo não gritar— brincou Fleur.
—Oh, bem, acho que podemos ir em frente. Você está disposto a prescindir do vinho do Porto esta noite, Hayward?
O teatro era muito menor do que Fleur esperava, e a relação entre o público e os atores muito íntima. O público assobiou para um cantor um pouco desafinado, assobiava cada vez que aparecia uma atriz com um busto particularmente atraente, animava o vilão, vaiava o herói quando se comportava mal com um amor não desejado, e aplaudiu e assobiou insistentemente na cena de amor final.
Fleur gostou de cada instante da experiência, tanto da ação como do público.
—São todos uns cernícalos[3] — sussurrou o senhor Chamberlain em seu ouvido. — Não vieram para que nos entretenham, mas para entreter a si mesmos. Claro que terá que admitir que há atores melhores neste país. Espero que esta experiência não lhe faça repudiar permanentemente o teatro, senhorita Hamilton.
—É claro que não. Foi uma noite encantadora.
A senhorita Chamberlain não parecia concordar. O calor e o barulho constante do teatro provocou-lhe uma dor de cabeça. Assim depois de deixar Sir Cecil em sua casa, perto de Wollaston, a carruagem levou a senhorita Chamberlain para casa antes de continuar até Willoughby Hall. O senhor Chamberlain insistiu em acompanhar Fleur por tratar-se de uma hora avançada da noite.
—Adam não se incomodou que a levasse de sua casa por uma noite inteira? — perguntou ele a preceptora.
—Ele disse-me que podia aceitar o convite.
—Algumas pessoas parecem pensar que seus empregados são suas posses pessoais e que não têm direito a tempo livre — comentou o senhor Chamberlain, — já não digamos, Deus queira que não, certa vida social. Embora teria que saber que Adam se mostraria mais inteligente a esse respeito. Nunca conheci ninguém que tenha conseguido levar nenhum de seus criados, embora conheça alguns que tentam. Conforme parece, ele os trata mais como familiares que como empregados.
—Ele sempre é amável — comentou Fleur.
—Foi um regozijo generalizado nesta parte do mundo quando ele voltou para casa de maneira tão inesperada, depois de um ano no qual se acreditou que estava morto — explicou ele. —Thomas deve ser o único que ficou decepcionado ao descobrir que já não era duque.
—Mas é um cavalheiro muito agradável.
—Ah, sim, claro. — O senhor Chamberlain lhe sorriu na escuridão da carruagem. — Você virá à festa de aniversário de Timmy?
Eles passaram um tempo conversando calmamente antes de mergulhar em um silêncio confortável. O senhor Chamberlain se virou para ela quando sua carruagem cruzou a ponte ao final do bosque de limas.
—Zangarei-me comigo mesmo por ser um covarde, um imbecil e um tolo se não tentar beijá-la ao menos antes que a carruagem se detenha. Posso, senhorita Hamilton?
O que poderia dizer ante semelhante pedido? Não, se não gostasse do cavalheiro. Mas o senhor Chamberlain não lhe desagradava.
—Eu vejo que minha audácia a deixou silenciada. E eu suponho que seja difícil responder a um educado "Sim, senhor" para essa questão. Suponho que não seria tão difícil dizer "Não, senhor", se fosse isso o que queria dizer.
Ela o viu sorrir na escuridão antes de passar-lhe um braço pelos ombros, levantar-lhe o queixo com a mão livre e baixar sua boca até a de Fleur.
Foi um beijo quente, firme, agradável. O senhor Chamberlain não prolongou o abraço.
—Espero humildemente que me dê uma contundente bofetada no rosto — disse ele retirando o braço e a mão e endireitando-se outra vez. — Não? Espero não tê-la ofendido. Sim?
—Não.
—Então espero voltar a vê-la dentro de alguns dias — continuou o cavalheiro. — Podemos até trocar algumas palavras apesar da gritaria das crianças. Os aniversários sempre provocam mais ruído que duas ou três festas juntas. Você já reparou?
Ele esperou que seu chofer colocasse os degraus antes de descer para ajudá-la. Acompanhou-a pela escada até a porta principal, chamou e se inclinou sobre sua mão, levando aos lábios antes de virar-se para partir.
—Obrigado por sua companhia, senhorita Hamilton. Gostei da noite, mais do que posso expressar.
—E eu também. Boa noite, senhor.
Fleur olhou em volta para fechar a porta, esperando, em parte, que Matthew ou o duque saíssem de entre as sombras. Mas não havia ninguém salvo o lacaio solitário que tinha aberto a porta. Fleur subiu correndo a escada até seu quarto, despiu-se rapidamente e foi para a cama, puxando os cobertores até as orelhas.
Só queria pensar naquela noite. Pelo menos por uma noite dormiria feliz. Pensou no senhor Chamberlain e em seu agradável senso de humor. E no beijo. E desejou que a vida pudesse ter começado há menos de um mês. Desejou que não tivesse existido nenhum Matthew nem o corpo de Hobson enterrado em algum lugar perto de Heron House. Desejou que não tivesse existido Londres, nem a necessidade de sobreviver ali. Que não tivesse existido o duque de Ridgeway. Inclusive desejou de algum modo estranho que não tivesse existido Daniel.
Desejou que só tivessem existido Willoughby Hall e o senhor Chamberlain.
Voltou a pensar no beijo, que não devia permitir que se repetisse. E em suas atenções, que não deviam ser incentivadas. E recordou os braços quentes e fortes que a rodearam, o peito musculoso contra sua face, e o coração que pulsava com força contra seu ouvido. E pensou em dançar com um parceiro que a fizesse girar com a mão firmemente presa na cintura e cuja colônia fizesse parte da beleza da noite.
E enterrou ainda mais a cabeça sob os cobertores.

O dia seguinte continuou chuvoso. O duque saiu para cavalgar pela tarde com dois de seus hóspedes mais corajosos para visitar alguns de seus inquilinos. Quando voltaram, muito tarde para tomar o chá, descobriram que já haviam decidido qual ia ser o entretenimento da noite. Lady Underwood saiu para recebê-los na entrada principal e informou que todo mundo estava cansado das charadas.
Dançariam no salão.
—Sério? — Perguntou ele. — E quem vai tocar para nós? A senhorita Dobbin?
—Ela está bastante disposta a fazê-lo— respondeu Lady Underwood, —mas Walter insiste que fique livre para dançar pelo menos uma parte do tempo. Por acaso não percebeu que não estou muito entusiasmada com Philip, mas preciso aguentá-lo para não morrer de aborrecimento, homenzinho cansativo...
—Bem, parece que esta noite vão se divertir dançando. Quem vai tocar quando a senhorita Dobbin estiver dançando?
—Ah, a preceptora. Já está tudo preparado.
—Ah sim? E de quem foi a ideia, pode se saber?
—De Matthew, é obvio. Diz que conhece um pouco à senhorita. Acredito que a conhece muito mais, mas só o tempo demonstrará se estou ou não no certo. Em todo caso, ela vai tocar. Diga-me que dançará todas as valsas comigo, Adam. Você faz isso divinamente...
—Sentirei-me muito honrado de dançar a primeira com você. Desculpe-me, senhorita. Preciso trocar esta roupa molhada.
Ele se perguntou se Fleur saberia o que tinham organizado para a noite. Se foi consultada? Tinham-na avisado ou pedido? E voltaria a acreditar que ele era o responsável por ter que utilizar seu talento? Estremeceu ao considerar que ela pudesse pensar assim. Foi contratada como preceptora de Pamela, não para entreter seus convidados.
Perguntou-se se alguém teria pensado em detalhes como afastar os móveis do salão e enrolar o tapete e trazer as partituras da sala de música. Estava certo de que ninguém o fizera.

Fleur esperava passar uma noite tranquila com seus bordados na sala da senhora Laycock.
Mas justo depois de terminar as aulas pela tarde, foi lhe entregue uma nota rabiscada as pressas, de Sua Graça, a duquesa, onde a convocava para tocar o piano para um baile daquela noite. Não estava especialmente desgostosa. Esperava que talvez Matthew a citasse, e embora possa ter sido o caso, pelo menos estaria na sala com todos os convidados.
Não estaria a sós com ele.
Ainda havia uma fila de lacaios ocupados em enrolar o tapete quando chegou ao salão. Retrocedeu até a entrada para esperar até que estivesse tudo preparado para ela. E olhou ao seu redor, contemplando a magnificência do lugar.
Levantou o olhar para a cúpula, obscurecida pelo anoitecer que se aproximava, e para algumas das talhas douradas que havia nas paredes entre as colunas, e que representavam querubins alados que sopravam finas flautas com as faces inchadas, e violinos cruzados com flautas.
—Ele foi projetado para ser um lugar para a música — comentou o duque a suas costas. — A galeria foi concebida para que utilizasse uma orquestra. Infelizmente faz mais de um ano que não temos um grande concerto ou um baile por aqui.
Fleur virou-se para ele. O rosto do duque parecia obscurecido pelas sombras da entrada: tinha os olhos mais negros, o nariz mais aquilino, a cicatriz mais pronunciada que sob a luz. Estava perto dela, com as mãos para trás. Fleur sentiu que ficava sem fôlego e percebeu que tinha uma sólida coluna coríntia atrás dela.
—Aceitou tocar para nós esta noite? — Perguntou ele.
—Sim, Sua Graça.
—Diga-me: pediram?
—Sua Graça, a duquesa, me mandou uma nota.
Ele fez uma careta.
—Eu prometi que isso não voltaria a acontecer, certo? Esta tarde não estava em casa, senhorita Hamilton. Concederia-nos a honra de tocar? É livre para negar-se se quiser. Isto não é parte de suas obrigações como preceptora.
—Farei com muito prazer, Sua Graça.
"Trata seus empregados mais como familiares que como criados", o senhor Chamberlain disse sobre o duque na noite anterior. A duquesa exigiu que viesse, mas ele pediu.
—Pode ser que deseje dançar quando não estiver tocando — sugeriu o duque. — Acredito que vários dos cavalheiros se alegrarão se o fizer.
—Não. Obrigada, mas não, Sua Graça.
—Mas parece que gostou de dançar algumas noites atrás.
—Isso foi muito diferente.
—Deixe-me acompanhá-la ao salão — propôs o duque, mas não lhe ofereceu o braço.
De alguma forma, o salão parecia maior e magnífico com o tapete enrolado e as cadeiras brancas e douradas de seda estampada afastadas contra as paredes. Também tinham deslocado o piano até um canto.
Olhando a seu redor e sem coibir-se, já que nenhum dos convidados tinham chegado ainda, Fleur pensou que se tratava de uma dos aposentos mais bonito da casa. As paredes eram azuis, e o teto com molduras côncavas era azul, branco e dourado. Os grandes cristais faziam que o ambiente parecesse maior do que era e multiplicavam o efeito do candelabro de cristal.
—Os quadros são do Continente — explicou Sua Graça, ao vê-la interessada, — embora eu tentei coletar trabalhos dos nossos artistas locais em algumas das outras salas. Estes são de Philipp Hackert e Angelica Kauffmann. Gostaria de estudar as partituras?
Fleur se acomodou no piano e folheou a pilha que alguém devia ter encarregado que trouxessem da sala de música. Toda a música era adequada para dançar. Muitas das peças eram valsas. Durante as duas horas seguintes, a preceptora foi relaxando cada vez mais na tarefa que foi encarregada. Exceto por Sir Philip Shaw, que veio até o piano e beijou-lhe a mão ao entrar no salão, todos os outros prestaram-lhe muito pouca atenção, e só se dirigiam a ela quando queriam uma canção ou um tipo de dança em particular. A valsa foi a grande favorita. A senhorita Dobbin pareceu esquecer que ia tocar parte da noite, e Fleur não a recordou.
Mas chegou o momento inevitável no qual levantou o olhar e descobriu que Matthew acompanhava a senhorita Dobbin até aonde se encontrava ela.
—Senhorita Hamilton, toca muito bem! — Exclamou a senhorita Dobbin. — Agora desejaria ter tocado antes de você.
Fleur disse que não era obrigatório que tocasse, mas a senhorita Dobbin insistiu em que dançar não era sua atividade favorita e que já fez o bastante durante a noite do baile e a duas horas anteriores para ter suficiente para um mês.
—Além disso, senhorita Hamilton — acrescentou Matthew fazendo uma reverência, — como vou dançar com você se passar toda a noite sentada ao piano?
—Não vim para dançar, milorde — respondeu Fleur, —mas para oferecer acompanhamento.
—Ah, mas dançará, — insistiu ele, sorrindo para ela. — Por favor, senhorita. Porque estou pedindo.
Fleur se perguntou o que Matthew faria se ela se recusasse. Voltar-se para o grupo e a denunciaria em voz alta? Desmascará-la e dizer que era uma assassina e uma ladra de joias? Pensava que não. Ele ficaria em ridículo com semelhante exibição, e não lhe serviria para atingir seu objetivo. Mas era uma colocação puramente teórica. A verdade é que não queria pô-lo a prova, e Matthew devia conhecê-la o bastante bem para saber que não o faria.
—Uma valsa, por favor, senhorita Dobbin? — Pediu Matthew, estendendo uma mão para Fleur.
Matthew dançava razoavelmente bem. Mas Fleur não pôde se entregar ao prazer da dança. Naquela casa era uma simples criada, e seu rosto estava tão ardente por quão inapropriado era que dançasse com os convidados no salão, apesar da permissão que lhe foi concedida anteriormente pelo duque. Olhou ao redor nervosa para ver como reagia a duquesa ao vê-la, mas a duquesa não estava no salão.
E é claro que não podia esquecer a última vez que dançou, em um caminho deserto ao sul do lago, com os olhos totalmente fechados. Pelo canto do olho viu que o duque estava dançando com Lady Underwood.
A música terminou, mas Fleur não teve oportunidade de sentar-se atrás do piano, como planejou. Sir Philip Shaw começou a pedir sua mão.
—Ah, mas a senhorita Hamilton está esgotada pelos esforços no piano— comentou Matthew sorrindo. — Eu ia levá-la à entrada, Shaw, para que tomasse um pouco de ar.
—Você é muito afortunado, Brockehurst — murmurou Sir Philip, olhando languidamente para Fleur de cima a baixo. — Suponho que não posso lhe recordar que também me conheceu antes, verdade, senhorita Hamilton?
Fleur pôs uma mão no braço de Matthew e ergueu o queixo. Ele a levou para a entrada e até a galeria sob a cúpula. Devia ter encontrado a escada durante o dia. Fleur nunca esteve ali antes.
Parecia ser muito maior do que a galeria parecia ser de baixo, mas, aparentemente, a cúpula ainda permaneceu bem acima. Mas não estavam ali para contemplar a vista. Matthew a apoiou contra a parede interior com seu corpo e a beijou: beijou seu rosto, sua garganta e seus seios através do tecido do vestido. Acariciou-lhe os seios com as mãos, e pôs um joelho entre suas pernas. A seguir, abriu a boca sobre a dela e forçou o caminho entre seus lábios fechados com a língua. Ela permaneceu quieta e passiva.
—Nunca me deu uma só oportunidade, Isabella — sussurrou. —Nunca gostei de ver minha mãe e minha irmã a tratarem mal, e talvez meu pai tenha sido muito vago para intervir. E porque eu não a notei quando você era uma menina. Mas nunca me comportei mal com você abertamente. Fiz?
—Não, até os últimos anos.
—Quando eu me comportei mal? — perguntou ele. — Ah, eu acho que você voltará a me reprovar por causa de Booth. Não quer reconhecer que estava lhe fazendo um favor, Isabella. Esse homem não é para você.
—E você sim?
—Sim, eu sou. Eu te amo, Isabella. Eu adoro você. E poderia te ensinar a me amar se me desse a oportunidade, se não se fechasse a ideia de estar comigo.
—Talvez poderia ter gostado— começou ela, — e poderia ter respeitado se tivesse mostrado um pouco de respeito por mim, Matthew. Mas sempre foi assim, sempre se dedicou a me agarrar e a declarar seu amor por mim. Claro que no passado, sempre pude enfrentá-lo. Agora já não sou livre. Não posso fazer uma cena nesta casa e gritar, como eu gostaria de fazer. Sou uma criada e você é um convidado. E não posso pedir que me deixe em paz. Não tenho nenhum desejo especial de que me enforquem. Mas se me amasse, não jogaria a este jogo cruel comigo. E não me dedicaria atenção que sabe que não são bem-vindas.
—Isso é porque não me dá uma oportunidade?
Mas Matthew olhou atrás dele naquele momento e tampou-lhe a boca com a palma da mão. Ouviram-se passos abaixo, e ambos viram o duque cruzar a entrada lentamente, olhando ao redor.
Deve ter passado alguns minutos lá antes de entrar na galeria e atravessar suas portas.
—Está procurando por você? — perguntou Lorde Brockehurst, voltando-se para Fleur e afastando a mão. — É como se fosse seu cão de guarda, não é, Isabella? O que é bastante estranho em um duque em relação a uma humilde preceptora, não acha? Por acaso entrega a ele o que me nega? Tenha cuidado se o faz. Se descobrir que é assim, pendurarão-lhe pelo pescoço até que esteja morta. Prometo que assim será.
—Isso sim que são palavras de amor!
Ele a beijou agressivamente, de modo que Fleur se machucou no interior da boca com seus próprios dentes.
—São as palavras de um amante ciumento e frustrado — afirmou ele. — Eu te amo, Isabella.
Fleur teria ido para seu quarto quando finalmente ele a levou outra vez até a galeria. Sua boca estava inchada e cabelos emaranhados. Ela sentia-se suja. Mas Matthew a agarrava pelo cotovelo. E ela aceitara tocar em um baile durante a noite, durasse o que durasse. Ao voltar para salão, sentiu-se aliviada a ver que o senhor Walter Penny a requeria com certo entusiasmo: esperava dançar com a senhorita Dobbin, que se mostrava reticente.
Fleur se sentou no piano e continuou tocando. Perguntou-se o quão tarde devia ser. Dava a sensação que o amanhecer devia estar iluminando as janelas. Mas não era assim.

Capítulo 15

O duque de Ridgeway pensou que o baile foi uma boa ideia. A maioria dos convidados pareciam estar se divertindo e, certamente, era preferível a uma outra noite de charadas. A música era animada.
A senhorita Dobbin tocava de uma maneira aceitável e Fleur Hamilton tocava bem. E esta última não parecia ter lamentado absolutamente que lhe pedissem que tocasse. Teria sido uma boa noite a todos, se tivesse ficado na sala para dançar e desfrutar da companhia dos outros. Mas como sempre parecia ocorrer nos bailes e danças, por mais informais que fossem, casais acabavam desaparecendo.
Ele não queria preocupar-se com o fato de Mayberry se retirar com a senhora Grantsham, embora lhe incomodava que as pessoas pudesse se comportar com semelhante falta de decoro na casa de outros e sob o olhar de cumplicidade dos criados. Mas se preocupava com Sybil e Thomas, e também com Fleur e Brockehurst.
Sybil e Thomas haviam desaparecido há meia hora. E o duque ficou dividido entre o desejo de ficar no salão para conversar e sorrir a seus convidados e dançar com as damas e a necessidade de ir atrás deles e trazê-los outra vez ao salão antes que indevidamente se começasse a murmurar sobre eles. Mas pode ser que já tivesse acontecendo. Não ocultavam sua mútua preferência. E aquela era sua preocupação principal, a intriga...
Estaria ele disposto a observar todos os sinais de que havia retomado o caso entre sua esposa e seu irmão desde que fossem discreto?
Então Fleur Hamilton saiu da sala com Brockehurst, e sua preocupação aumentou. O duque prometeu que em sua propriedade estaria segura sob sua proteção. Mas ela estava sendo assediada?
Sorria quando saiu do salão, e não havia provas de que foi coagida. Pode ser que estivesse gostando do fato de poder misturar-se com os convidados, de dançar com um deles, que a tivessem escolhido e estivesse recebendo mais atenções pessoais.
Mas ele também lembrou o terror que ela mostrou na primeira noite que se fixou em Brockehurst. O fato de ambos afirmar que só se conheciam um pouco, mas ele a chamou de Isabella.
E o fato dele ser o proprietário de Heron House e ela ter vivido em um lugar chamado "Her?"
O duque observou os cavalheiros escolher parceiras, assegurou-se de que nenhuma dama que parecia ansiosa para dançar ficasse sem parceiro, e saiu sigilosamente da sala.
Não havia ninguém na entrada principal. Os lacaios se retiraram. Mas ouviu vozes ao entrar. Vinham de detrás de uma das colunas? Do arco que conduziam às escadas? Passeou em silêncio, mas não viu ninguém. E as vozes cessaram. Pode ser que as tivesse imaginado. As portas que conduziam ao salão e à galeria estavam fechadas.
Mas finalmente percebeu de onde procediam, e permaneceu na metade da entrada resistindo o impulso de olhar para cima: vinham do velho esconderijo que Thomas e ele utilizaram incontáveis vezes quando jovens.
Eles dedicavam-se a deitar no chão para observar os que chegavam, zombavam das conversas dos lacaios quando acreditavam que estavam sozinhos e imitavam os sons de corujas tentando assustar os lacaios. Deviam ser Thomas e Sybil. Deveria olhar para cima?
O confronto aconteceria. Mas preferiria postergá-lo até um momento no qual não tivesse que voltar a entreter seus convidados imediatamente depois. E o que aconteceu com Fleur Hamilton e Brockehurst? Eles tinham ido para a galeria da última vez que estiveram juntos, naquela noite que terminou de um modo muito dramático.
Cruzou a entrada até a galeria, abriu a porta e entrou. Um dos candelabros que se encontrava na metade da galeria estava aceso, mas o aposento estava quase às escuras; umas sombras densas se estendiam para fora da fonte central de luz.
Estavam no extremo mais afastado da galeria, fundidos em um estreito abraço. Eles não o ouviram entrar. E naquele mesmo instante ele teve que decidir se partia tão silenciosamente como tinha chegado ou revelava sua presença. Ela não opunha resistência. Pode ser que lamentasse sua intrusão em um momento romântico. Ou talvez o necessitava.
O duque caminhou lentamente pela galeria, sem tentar esconder-se nas sombras ou amortecer o som de seus passos. E quando percorrera apenas meio caminho, separaram-se e se voltaram para olhá-lo.
Eram Sybil e Thomas.
A duquesa afastou bruscamente a vista para olhar pela janela a escuridão. Lorde Thomas olhou nos olhos de seu irmão na penumbra e sorriu.
—Invadiu-me a necessidade de renovar os conhecimentos de meus antepassados — comentou Thomas. — Mas ai, este não é exatamente o melhor momento do dia para olhar quadros. Terei que fazê-lo outra vez à luz do dia.
—Sim — interveio o duque. — Também quero ter umas palavras com você pela manhã, Thomas. Mas agora não. Agora há damas no salão que agradeceriam sua oferta em acompanhá-las em uma dança. Sybil e eu o veremos ali em breve.
Lorde Thomas se voltou para dirigir-se a duquesa.
—Quer voltar comigo, Sybil, ou com Adam?
—Ela voltará comigo — murmurou o duque. A duquesa não disse nada. Lorde Thomas encolheu os ombros.
—Enfim... Sei que quando baixa a voz, Adam, os murros não demoram para chegar se eu começo a argumentar. E não fica bem que os nossos convidados nos vejam com o nariz sangrando, verdade? —Ele tocou o ombro da duquesa. — Você vai ficar bem, Sybil?
Mas a duquesa tampouco disse nada desta vez. Lorde Thomas encolheu os ombros novamente e começou a andar pela galeria. O duque esperou um longo tempo, até que finalmente ele ouviu a porta se fechar ao sair seu irmão.
—Bom, Sybil? — murmurou.
Sybil se voltou para ele. A débil luz procedente das velas fazia resplandecer seu cabelo loiro. Mas a face da duquesa estava sombreada.
—Bom, Adam— começou ela. A voz doce tremia um pouco. — O que vai fazer a respeito?
—O que quer que eu faça? — Perguntou ele. —Até que ponto chegou? Suponho que você voltou a amá-lo... o que realmente significa que você nunca deixou de fazê-lo... certo? São amantes?
Ela riu por um momento.
—Você se divorciaria de mim se eu dissesse que sim? — perguntou a duquesa. — O faria, Adam? Seria um escândalo incrível, não acha? — A voz tremia de maneira quase descontrolada.
—Não — respondeu ele. — Nunca me divorciaria de você. Acredito que já sabe. Mas quando nos casamos você fez algumas promessas. Eu acho que devemos isso a nós dois e a Pamela e todos os que dependem de nós para cumprir essas promessas. Thomas é parte de seu passado, e isso não se pode mudar. Tornou-se irrevogável quando você se casou comigo.
—Que escolha tinha? — Gritou ela apaixonadamente. — Que escolha tinha? Isso teria arruinado a minha reputação para sempre, e você fez com que ele partisse e que não voltasse mais. E não deixava de vir e insistir que eu aceitasse sua proteção antes que papai descobrisse a verdade. Eu não tive nenhuma alternativa. É um homem malvado, Adam.
—Talvez. Mas você não tem sido exatamente a companheira ideal, Sybil. Pegamos tudo o que podemos para coincidir com o que temos feito com nossas vidas.
—Não me culpe por não querer que me toque — gemeu ela, olhando-o com profunda repugnância. — Essas pessoas teriam sido muito melhor com você se o tivessem deixado morrer. Você é só meio homem.
—Será melhor voltarmos para nossos convidados.
—E você fala que eu tenho que cumprir as promessas — continuou Sybil, com o mesmo tom de voz irascível habitual durante suas brigas. — Pode afirmar sinceramente que você cumpriu as suas, Adam? Pode afirmar que nunca foi infiel?
Ele a olhou sem responder.
—Você acha que eu não sei o motivo de suas viagens frequentes a Londres? Acha que não sei por que, de repente, desta vez você pensou que Pamela precisava de uma preceptora? Não me fale de votos conjugais. Se tiver cedido meu amor por Thomas, é porque me vi empurrada por sua dissipação e sua crueldade. — Procurou um lenço a seu redor e finalmente agarrou o que ele lhe estendia.
—Vamos, isso são tolices, como você bem sabe — protestou o duque. — Seque os olhos, Sybil. Já estamos muito tempo separados dos convidados.
Ela virou-se em silêncio e começou a andar pela galeria. Quando chegaram à porta, ele abriu, tirou o lenço da mão dela e passou o braço pelo da duquesa. Olhando o lindo rosto de sua esposa, com o olhar azul agora cabisbaixo e o cabelo loiro platinado, o duque pensou que por muito desagradável e hipócrita que pudesse parecer, ainda teria que guardar certas aparências.
E Sybil, é obvio, também percebeu isso. Voltou a iluminar-se assim que entraram no salão. Quase todo mundo estava dançando. Fleur Hamilton estava tocando o piano.

Fleur foi a última a partir do salão. Todos os que tinham dançado foram partindo para a cama, e uns poucos criados foram desenrolar o tapete e voltar a arrumar o salão. Fleur revisou as partituras e decidiu devolvê-las à sala de música antes de ir dormir também.
Era muito tarde. Estava cansada. Mas não queria ir para a cama. Preferia seus pensamentos quando podia controlá-los de algum modo. Não queria ter pesadelos que tão frequentemente lhe perturbavam o sono. Colocou o candelabro que havia trazido em cima do piano da sala de música, guardou cuidadosamente as partituras e estendeu outra vez a mão para agarrar o candelabro.
Mas o piano, muito maior e de tom mais melodioso que o do salão, atraiu-a como um ímã. Posou os dedos delicadamente sobre as teclas, sem apertar. E tocou lenta e delicadamente uma escala. Ela se sentou no banquinho e tocou uma peça de Bach, uma sonata rápida e enérgica, com os olhos fechados. Tocou bastante energicamente. Talvez se concentrasse com suficiente intensidade, se tocasse com suficiente energia, poderia afogar seus pensamentos.
Talvez pudesse afogar Matthew.
Mas a música inevitavelmente chegou ao fim. Devia abrir os olhos e ir para a cama e aceitar o que lhe proporcionasse o resto da noite. Fleur suspirou. Parecia que havia passado um longo tempo desde a noite anterior com o Sr. Chamberlain.
—Eu gostaria de dominar o teclado o suficiente para poder arejar minhas frustrações dessa maneira — disse uma voz atrás dela.
O duque de Ridgeway! Fleur se levantou de um salto.
—Não pretendia assustá-la. Não pude resistir de me aproximar um pouco mais para ouvir a música.
—Sinto muito, Sua Graça. Eu vim devolver as partituras. Não pude resistir a tocar uma peça a mais.
—Depois de tocar toda a noite? — Perguntou o duque sorrindo. — Preciso lhe agradecer por isso, senhorita Hamilton. Eu lhe sou muito grato.
—O prazer foi meu, Sua Graça.
O duque deu alguns passos em sua direção.
—Era você que estava ali acima na galeria? Com Brockehurst?
Fleur sentiu calafrios.
—Sim, Sua Graça.
—Você foi com ele livremente? Ele a obrigou?
—Não, Sua Graça. — ela o olhou nos olhos escuros. Estaria ele prestes a despedi-la?
—E isso. — Ele apontou para o lábio superior, ligeiramente inchado. — Se cortou?
Ela não respondeu.
—O Fez com seu consentimento?
—Sim. — Ela limpou a voz por não conseguir fazer um som. — Sim, Sua Graça.
O duque apertou os lábios ao olhá-la nos olhos. E passou uma mão pela testa e meneou a cabeça.
—Venha à biblioteca comigo — propôs, — para tomar uma bebida antes de ir dormir.
Ele foi até a porta da biblioteca sem se virar para olhar se ela o estava seguindo. Mas ele se virou quando abriu a porta, erguendo as sobrancelhas. Fleur atravessou a sala e entrou antes dele na biblioteca, onde as velas estavam acesas.
O duque lhe serviu um pouco de xerez, e escolheu brandy para ele. Assinalou a Fleur a confortável poltrona de couro que estava ao lado da lareira e entregou-lhe o copo antes de pegar uma cadeira e instalar-se do outro lado.
—Pela boa saúde, Fleur Hamilton — brindou, levantando o copo para ela — e pela felicidade. Este último é um pouco esquivo, você não acha? — E ele bebeu de seu copo.
Fleur tomou um gole de xerez e não disse nada. Ele se acomodou na cadeira, relaxado, confortável e informal. Ela sentou-se reta e firme na dela.
—Conte-me sobre você — pediu o duque. — Ah, mas sem revelar nada do mistério que gosta de rodear-se. Quem lhe ensinou a tocar?
—Minha mãe. Quando era muito jovem. Meu tutor contratou uma professora de música para seus próprios filhos e para mim mais adiante. E na escola.
—Na escola? aonde foi? Não, isso não me responderá, suponho. Quanto tempo esteve ali?
—Cinco anos. Broadridge School. Já disse ao senhor Houghton.
Ele assentiu.
—Muito tempo? Gostou, além da música e as aulas de dança?
—Acredito que tive uma boa educação. Mas a disciplina era rígida e sem humor. Ali não havia muito carinho.
—Mas passou vários anos ali... havia carinho em sua casa?
Ela olhou para seu copo de xerez.
—Nós éramos uma família muito feliz enquanto meus pais viveram — explicou. —Nada podia ser muito carinhoso quando eles morreram. Eu era muito jovem, e diria que era difícil.
—Você foi a órfã rejeitada, eu entendo. E não tentaram casá-la jovem?
Fleur pensou nos dois agricultores, ambos com mais de cinquenta anos, que foi oferecida a eles antes que tivesse sequer dezenove anos, e na fúria da prima Caroline quando rejeitou ambos.
—Sim.
—Mas você resistiu. Suspeito que você é muito difícil, senhorita Hamilton. Teimosa ao extremo. É assim como descreveu seu tutor e sua família?
—Às vezes.
—Imagino que frequentemente. Alguma vez conheceu alguém com quem desejasse casar-se?
—Não — respondeu rapidamente. E pensou em como Daniel se apresentou ultimamente em seus pesadelos, de maneira que sua imagem aparecia e desaparecia misturando-se com a do duque.
—E ele também queria casar-se com você? — Perguntou ele.
De repente, ela olhou-o e olhou para dentro de seu copo novamente.
—Não estava disponível?
—Não — respondeu ela sem ânimo.
—Então foi uma maldade? Não lhe permitiram casar-se com ele? Você tem dote?
—Sim.
—Mas suponho que não poderá dispor dele até que se case ou chegue a uma certa idade — continuou o duque, — e seu tutor deve ser malvado. Por que fugiu, Fleur? Seu pretendente não quis fugir com você? O dinheiro era mais importante para ele que você mesma?
—Não! — Protestou ela, olhando-o com ferocidade. — Minha fortuna não interessava absolutamente a Daniel.
—Daniel? — Murmurou ele.
Fleur ficou a dar voltas ao líquido escuro no copo. Não pensava que fosse capaz de levá-lo aos lábios.
—Você o amava? — Perguntou ele. — Você o ama?
—Não— respondeu ela. — Isso faz muito, muito tempo. — E realmente parecia como se tivesse pertencido a outra vida.
Ele bebeu o brandy que restava na taça e se levantou.
—Beba — Ele insistiu, e estendeu a mão para pegar o copo dela. — É hora de ir para a cama.
Ela tomou outro gole e entregou o copo meio vazio. Colocou-o junto ao seu em uma mesa ao lado da cadeira e lhe estendeu a mão. Fleur olhou os dedos longos, bonitos e bem cuidados e, decidida, pôs sua mão no interior da palma dele. Observou como os dedos do duque se fechavam em torno dos seus e ficou em pé.
O duque não se moveu.
—Não confia em mim? — Perguntou ele. — Você não vai me deixar ajudá-la? Não foi porque você quis, certo? Não o consentiu absolutamente, certo? — E passou delicadamente um dedo pelo lábio superior dela.
Ela pegou seu pulso e segurou firme.
—Não há nada para contar. Não há mistério.
—E não obstante, preferia sua vida como se tornou em Londres a que deixou para trás? E seu Daniel não foi atrás para resgatá-la?
—Ele não sabia que eu ia — explicou ela, ainda segurando seu pulso. — Não soube para aonde eu ia.
—Fleur, se eu a amasse, e soubesse que você me ama, removeria céu e terra para encontrá-la se desaparecesse.
Os olhos dela percorreram sua cicatriz do queixo até a boca, subindo pela face até o olho. E o olhou nos olhos.
—Não. Ninguém ama tanto — protestou ela. — É um mito. O amor pode ser agradável e doce. Pode ser egoísta e cruel. Mas não é a paixão devoradora da poesia. O amor não pode mover montanhas, nem desejaria fazê-lo. Eu não culpo Daniel. O amor não é assim.
—Mas mesmo assim — continuou ele, com o olhar escuro cravado no dela, — se eu a amasse, Fleur, moveria montanhas com minhas próprias mãos se me mantivessem afastado de você.
Ela riu, um pouco insegura.
—Se eu fosse, se eu fosse... isso é brincadeira de criança. É muito fácil viver imaginando situações. Mas a vida real é diferente.
Fleur soube que ele ia beijá-la vários instantes antes que seus lábios tocassem nos seus. Mais tarde, imaginou que poderia tê-lo evitado. O duque não a aprisionou entre seus braços nem a empurrou contra a parede.
Mas não fez nada para evitá-lo. Estava rígida de susto, e continuava segurando seu pulso como um torno. E também sentia um certo fascínio de ver o rosto duro e profundo, não pairando sobre ela como nos pesadelos, mas inclinando seu rosto até que foi forçada a fechar os olhos.
E para sua surpresa, seu beijo foi tão diferente do de Matthew e do senhor Chamberlain que no momento não pensou em afastar-se. Não se produziu a opressão nos lábios e dentes que se produziu anteriormente na galeria, nem a pressão firme da noite anterior, a não ser um calor ligeiro e delicado, um movimento vivo sobre seus próprios lábios que a fez abri-los de modo que terminaram inundados em uma calidez úmida e com sabor de brandy.
Era apenas o terceiro homem que ela beijou na vida, o que era estranho, considerando que lhe fizera todas aquelas coisas há mais de um mês. Mas não o foi acompanhado de nenhum beijo.
Então ela entrou em pânico e puxou a cabeça para trás e para longe dele.
Captou a expressão do rosto do duque antes que a rodeasse com um dos braços e passasse o outro atrás de sua cabeça para apertá-la contra o peito. O homem parecia perdido, angustiado, e também percebeu em sua voz quando falou.
—Não me rejeite, Fleur. Por favor, Só durante alguns instantes não me rejeite. Não tenha medo de mim.
Mas cada parte do seu corpo estava encostado nele, e recordou o que sentiu ao vê-lo: recordou que era viril e o bastante forte para lhe arrebatar a vida com suas próprias mãos, e que tinha terríveis cicatrizes que desciam pelo lado e a perna esquerda. E lembrou-se seu toque, suas mãos, seus polegares, os joelhos lhe separando as pernas. E o que sentiu quando entrou em seu interior, quando a rasgou, e os empurrões e retiradas sucessivas até que terminou e parecia que a esvaziara de tudo.
Mas também recordou a amabilidade de pagar-lhe mais do que pediu, e o fato de lhe dar aquele emprego, a preocupação por seu bem-estar, o surpreendente calor e suavidade de seu beijo, a vulnerabilidade de seu rosto e em sua voz. E a terrível solidão de Fleur.
E foi difícil agarrar aquela lembrança e a realidade presente e combiná-las na mente. Era difícil de acreditar que fosse o mesmo homem. Era difícil sentir com o corpo a repugnância que sua mente ordenava. Apoiada ainda contra ele, Fleur se obrigou a relaxar-se, a sentir o corpo do duque contra o seu sem retrair-se. E depois de tudo não foi tão difícil de fazer.
—Só estes momentos — murmurou ele. Estava esfregando delicadamente a face contra a testa dela.
Fleur não sentiu que levantasse a cabeça conscientemente. Mas deve ter feito porque voltou a olhá-lo nos olhos e levantou a cabeça em busca de seu beijo. E de novo os lábios quentes dele posaram delicadamente sobre os seus e se deslocaram por cima, e os percorreu suavemente com a ponta da língua até que abriu a boca, lhe concedendo o que Matthew pedira antes e não dera.
O duque esfregou sua língua contra a dela, rodeou-a, explorou a carne suave no interior de sua boca e a carne sensível no paladar.
Fleur se ouviu choramingar, e apaziguou tanto seu corpo como sua mente para que não pensassem no que estava fazendo e com quem estava fazendo. Não deixaria que seus pesadelos interferissem naquele instante.
E só era um instante. Só aquele instante. Ao abraçar o duque, notou que tinha os ombros largos e firmes, e o cabelo grosso e sedoso se enroscou em seus dedos.
O duque separou seus lábios dos de Fleur para lhe beijar as faces, os olhos e as têmporas. E a envolveu com ambos os braços, sustentou-a arqueada contra ele e apoiou a face contra sua fronte.
—Deus! — Suspirou. — Oh, meu Deus! — Seus braços se agarraram como tiras de ferro ao redor de Fleur. — Meu Deus!
Fleur sentiu seu fôlego entrecortado, e ele a soltou.
Ficaram olhando um para o outro.
—Fleur? — murmurou ele. Levantou uma mão, e ela a olhou e voltou a recordar a quem pertencia e o que fez. Tremia quando ele sustentou uma das faces com ela. — Eu gostaria de poder dizer que estou arrependido. Deus, como eu gostaria. Amanhã eu pedirei desculpas. Esta noite não posso me sentir culpado. Que Deus tenha piedade de mim. Vá para a cama. Hoje à noite eu não posso acompanhá-la. Não seria capaz de parar na porta.
Fleur se dirigiu precipitadamente para a porta, procurou a maçaneta e saiu a toda pressa, subiu ruidosamente a escada e correu pelo corredor até seu quarto como se pensasse que ele ainda a seguia.
Mas não era dele de quem fugia. A pessoa de quem fugia estava no quarto com ela, apesar da rapidez com que fugiu, apesar de ter fechado a porta a toda a velocidade com dedos trêmulos. O que fez? O que permitiu que acontecesse? Tinha os mamilos excitados e sensíveis. Sentia uma forte vibração no lugar aonde ele causara uma dor tremenda na última vez.
Notava o sabor de seu brandy. Seu corpo era um torvelinho de sensações. E sua mente estava dizendo de maneira desapaixonada quem era e a maneira precisa em que a convertera em uma puta e quanto dinheiro lhe pôs depois na palma da mão. Era um homem que pagava as mulheres para obter favores sexuais. Ele pagou.
Uma vez dissera que foi infiel a sua mulher em apenas uma ocasião. E quase sentiu-se inclinada a acreditar. Agora se sentia inclinada a acreditar que conseguiu ver a vulnerabilidade em seu rosto e a percebido em sua voz. Queria enganar-se. Não queria interpretar sua atitude como um fato mais sórdido do que na realidade era. Permitiu um homem casado, seu senhor, que tomasse liberdades incríveis com sua pessoa. E não foi só por parte dele: ela também desejava.
Era dela mesma que fugia. Mas estava consigo mesma atrás da porta fechada.

Capítulo 16

O Duque de Ridgeway não tinha ideia se Fleur foi para a sala de música na manhã seguinte, para os exercícios da manhã. Saiu para galopar por um bom tempo e sentindo-se intranquilo no lombo de Aníbal.
Considerou seriamente não voltar para casa. Tinha muitas coisas para fazer em suas outras propriedades, questões que foram um tanto negligenciadas por ter que entreter seus convidados.
Precisava comprovar o estado das colheitas e examinar o gado recém-nascido. E, claro, sempre havia os inquilinos e agricultores com quem conversar, precisava convencê-los que se interessava pelo bem-estar deles e se preocupava com suas queixas.
Ou poderia cavalgar além de suas terras. Poderia passar a manhã com Chamberlain. Ele mal falou com seu amigo desde que voltou de Londres. Os hóspedes que ficaram em casa tendiam a se isolar de seus vizinhos e seus costumes habituais. Mas resistiu ambas as tentações. Tinha duas questões importantes para enfrentar em casa, ambas igualmente desagradáveis.
Desceu mancando e gritou a seu valete que fosse procurar uma roupa decente para que não tivesse que tomar o café da manhã cheirando como um cavalo.
—Espero que não tenha castigado o pobre Aníbal tanto como castigou a si mesmo — comentou Sidney, — ou encontrará com rapazes descontentes da próxima vez que for ao estábulo. Ajudarei-lhe a tirar a roupa de montar, senhor, e farei-lhe uma massagem rápida antes de me preocupar com a outra roupa. Deite-se.
—Guarde sua maldita insolência — disparou Sua Graça. — Eu não tenho tempo para massagens.
—Se você passar o dia todo com essa dor — insistiu Sidney, imperturbável, — rosnará para todos os criados, não só para mim, senhor, e além do mais, todos jogarão a culpa disso em mim, como fazem sempre. Deite-se.
—Maldição! — Protestou o duque. — Sempre trato meus criados com cortesia.
Sidney lançou um olhar eloquente e Sua Graça se deitou. Ele grunhiu quando seu homem colocou as mãos em seu lado dolorido. E ele esfregou o olho esquerdo.
—Aí — indicou Sidney como se falasse para tranquilizar uma criança. O duque não pôde deixar de sorrir. — Se encontrará melhor dentro de um minuto. Está tenso como uma mola, senhor.
Fleur não estava na sala de estudo. E quando o duque foi até ali descobriu que tampouco estava na sala de jogos. Mas Pamela estava acordada e entusiasmada com o prazer inesperado de que ele a acompanhasse enquanto tomava o café da manhã. Ela dava as cascas de pão para o cachorro, que estava no chão ao seu lado, ofegante e com uma expressão esperançosa.
No dia anterior ele declarou que o cão poderia entrar na casa e permanecer dentro dela, em determinadas condições restritas.
—Pensei que tínhamos concordado que Pequena não comeria comida da mesa— repreendeu o pai. —Ela tem sua própria comida especial, não?
—Mas não lhe dou comida boa, papai — protestou a filha, e baixou a voz. — Nanny está furiosa esta manhã. Pequena molhou a cama.
O duque fechou os olhos por um instante.
—Eu pensei que nós também concordamos que Pequena não dormiria na cama, mas ao lado ou debaixo.
—Mas papai, ela não parava de chorar e puxar os cobertores com os dentinhos! Teria sido cruel fazer com que ficasse debaixo.
—Uma só queixa de Nanny a mamãe — ameaçou o duque, — e Pequena voltará para o estábulo. Entendeu, né?
—Nanny não vai reclamar. Limpei o lugar molhado com meu próprio lenço. E elogiei a nova touca da Nanny.
O duque voltou a fechar os olhos. Mas ouviu que a senhora Clement estava se aproximando do outro lado da sala.
—Quero falar com a senhorita Hamilton antes que comecem as aulas da manhã, senhora Clement — exigiu ele, levantando-se. — Você vai ficar aqui com Pamela até que a mande buscar?
—Certamente, Sua Graça — respondeu ela, fazendo uma reverência. — Ontem a noite tivemos um pequeno acidente com o cão. Lady Pamela contou?
—Sim, ela disse. E eu acredito que decidimos que não voltará a acontecer.
Fleur ainda não havia chegado a sala de estudo. O duque ficou dando voltas no globo com dedos nervosos e tocou com um dedo no cravo. Olhou uma pintura que Pamela fez e uma que a própria Fleur pintou.
Ele a pegou e pensou que também tinha talento como pintora.
Deixou-a quando a porta abriu atrás dele, e desejou ter ensaiado algum tipo de discurso, mas não o fez de propósito: ele odiava discursos ensaiados. Só serviam para que lhe travasse a língua. Ele se virou para olhá-la. Ainda tinha o lábio um pouco inchado. As olheiras indicavam que não dormira bem. Mas estava bonita, com seu vestido verde, e como sempre os cabelos em um coque na nuca.
Permanecia muito reta, e parecia alta e esbelta, com agradáveis curvas femininas. Era a mulher mais linda que ele já conhecera. Era difícil de acreditar na primeira impressão que teve dela: que se tratava de uma prostituta fraca com o cabelo sem brilho, a pele pálida, as olheiras marcadas sob os olhos e os lábios secos e rachados.
E com aquele vestido de seda azul com um tom apagado e amarrotado. Era difícil imaginar que era a mesma pessoa.
—Senhorita Hamilton. Eu lhe devo um pedido de desculpas.
—Não — interveio ela, ficando onde estava, junto à porta. — Não é necessário.
—Por quê?
—Na noite passada disse que não estava arrependido. Disse-me que hoje me pediria desculpas. Seriam palavras vazias, Sua Graça.
Ele a olhou e sabia que tinha razão. Não estava arrependido. Pelo menos, não em certo sentido. Aqueles momentos lhe permitiram voltar a provar a felicidade, como os minutos de sua louca corrida a cavalo juntos. E ele sabia que, por muito enganado que estivesse, viveria da lembrança daquele abraço durante muito tempo.
—Lamento a falta de respeito que lhe mostrei, senhorita Hamilton, e a aflição que devo ter-lhe causado. E lamento ter desonrado minha esposa e meu casamento. Por favor, aceite minhas desculpas.
Fleur tinha o queixo erguido, e um olhar de serenidade em seu rosto. Olhou-o como o tinha olhado quando ele se sentou e ordenou-lhe que tirasse a roupa, e ela a tirou exibindo uma calma dignidade, dobrando-a cuidadosamente e colocando-o ao lado dela.
Fleur!
O duque fechou os olhos por um momento.
—Você aceita?
Ela hesitou.
—Sim, Sua Graça— disse finalmente.
"Adam", queria que ela dissesse. "Meu nome é Adam." Queria ouvi-la dizer.
—Não quero atrapalhar — comentou, cruzando a sala para Fleur. — Farei com que tragam Pamela.
Ela deu um passo para trás, longe da porta.
—Obrigada, Sua Graça.
Fleur baixou a vista. O duque percebeu que ainda mancava. Fechou a porta da sala de estudo sem fazer ruído atrás dele. Esse maldito Sydney! Estava perdendo o sentido do tato? O lado e a perna ardiam como uma lacerante dor de dente. Fez esforços para controlar sua dor quando entrou na sala de jogos e se inclinou para beijar sua filha, e ao descer para cumprir com outro encontro.
Lorde Thomas Kent já estava na biblioteca, sentado com um copo na mão, apesar quão cedo que era, e com um pé cruzado sobre o outro joelho.
—Isso, papai também estava acostumado a fazer — comentou sorrindo, levantando seu copo a modo de cumprimento quando seu irmão entrou no aposento. — Você se lembra, Adam? Chamavamo-nos aqui e então nos deixava esperando por uma hora. Não nos atrevíamos a esperá-lo em outro lugar que não fosse diretamente diante de sua mesa, e não nos atrevíamos a mover um músculo nem falar um com o outro porque nunca sabíamos em que momento exato a porta se abriria. Era quase pior que as surras que sabíamos que chegariam no final, não é? — Ele riu.
O duque foi sentar-se atrás da mesma mesa que aterrorizava Thomas e ele quando eram crianças.
—Diga-me — começou Lorde Thomas. — Você fará com que me incline sobre a mesa, Adam? Você vai usar uma bengala?
—Ela esta apaixonada — respondeu Sua Graça, olhando por volta da mesa. — Sempre foi. Teve uma filha sua, Thomas. E agora tem que voltar para brincar com ela e comigo?
—Ah! — Exclamou seu irmão, levantando o copo à altura do olho. — Isto não vai ser um castigo, mas um sermão. Como é chato. E você ainda a adora, Adam?
—Casei-me com ela. É minha esposa. Devo-lhe meus cuidados e proteção.
Lorde Thomas riu.
—Ela te odeia. Você sabe, né?
—Você está deitando-se com ela? — Perguntou o duque olhando diretamente para seu irmão.
—Com a mulher do meu irmão? — Lorde Thomas ergueu as sobrancelhas.—Não pode acreditar que eu seja capaz de semelhante perfídia e de tão mau gosto, não é, Adam?
—Você está fazendo isso? — Seu irmão deu de ombros. —Você está apaixonado por ela?
—Que pergunta mais idiota— respondeu Lorde Thomas, levantando-se e examinando o mosaico acima da lareira. — Como posso estar apaixonado pela mulher de meu irmão?
—Se estiver, talvez eu possa começar a perdoá-lo. Talvez estivesse tão mal que partiu há mais de cinco anos quando eu não insisti que Sybil soubesse a verdade. Às vezes agimos de um modo precipitado e temos que viver para sempre com as consequências. Mas mesmo assim, nada é para sempre.
Seu irmão virou-se surpreso e sorriu.
—Está se oferecendo para mudar de quarto comigo enquanto durar minha estadia? Tenho que dizer que é muito amável de sua parte, Adam.
—Se a ama realmente como ela te ama — o duque ignorou o tom de seu irmão, — então algo precisa ser feito.
—Você está pensando em divórcio— Lorde Thomas continuou sorrindo. — Imagina o escândalo, Adam. Poderia viver com ele?
—Não deve sair o tema divórcio — respondeu o duque. — Eu não faria isso a Sybil. — Ele parou e respirou fundo. — Poderia existir a possibilidade de anulação. Teria que fazer averiguações.
Thomas atravessou a sala para colocar as duas mãos sobre a mesa e inclinar-se sobre ela. Olhou atentamente para o duque.
—Uma anulação? Entendo que só existe uma colocação realmente viável para a anulação?
—Sim?
—Devo entender... — O sorriso voltou a aparecer no rosto de Lorde Thomas. — Devo entender que durante mais de cinco anos não desfrutou dos favores de Sybil, Adam? — ele riu. — É verdade, não é assim? Pelo amor de Deus. Interpretou o papel de amante nobre até o final enquanto ela suspirava por mim? Ou foi ela quem o rejeitou? Não foi tolo o suficiente para mostrar suas feridas, certo? — Ele voltou a rir.
—Você a ama? — Insistiu o duque.
—Eu sempre tive um fraco por Sybil— comentou Lorde Thomas. — É mais encantadora que qualquer outra mulher em que tenha posto os olhos.
—Não foi isso o que perguntei. Você se casaria com ela se tivesse a chance de fazê-lo?
Lorde Thomas levantou-se e olhou para o irmão atentamente.
—Faria isso por ela? — Perguntou. — Ou por você mesmo?
—Faria, ou pelo menos me proponho a fazê-lo, se estiver convencido que Sybil teria a felicidade que você e eu a privamos.
—E Pamela? — Perguntou Lorde Thomas. — Se houver uma anulação, o mundo saberia que Pamela não é sua filha.
Sua Graça estendeu as mãos com as palmas sobre a mesa e olhou para elas.
—Sim. Você poderia me responder?
—Isto é muito repentino. — Lorde Thomas voltou para a lareira e continuou examinando o mosaico do leão. — Eu preciso de algum tempo para pensar.
—Claro. Tome-o. Mas, enquanto estiver nesta casa, nas circunstâncias atuais, Thomas, Sybil é minha esposa e vou punir qualquer comportamento desrespeitoso para com ela.
—Depois de tudo quer ver-me inclinado sobre a mesa com a bengala no traseiro? — comentou sarcástico Lorde Thomas. — Você aperfeiçoou a arte de agitá-la no ar antes de atingir um alvo com ela, Adam? Aquilo me fazia quase perder o controle da bexiga.
—Espero sua resposta para a próxima semana — pediu o duque. — Se for não, espero que parta imediatamente... e para sempre.
—Suponho que posso me retirar — disse Lorde Thomas, voltando-se para olhar novamente para o irmão com expressão sorridente. — Muito bem, Adam, afasto-me da sua presença. De qualquer forma, acredito que me esperam para uma excursão de barco.
O duque continuou olhando fixamente para as mãos depois que seu irmão saiu e fechasse a porta. E uns poucos minutos depois pensou que estava deixando se seduzir por seu próprio blefe.
Sua imaginação elaborou a sequência de eventos que as palavras de seu irmão faziam que parecesse possível: uma anulação rápida, a partida de Sybil, ele mesmo livre? Livre para explorar sua atração por Fleur.
Fechou os olhos e apertou as mãos na mesa.
Tinha sido um blefe, pura e simples. Nem em um milhão de anos Thomas aceitaria casar-se com Sybil. Claro que, se por um momento acreditasse que Thomas poderia fazê-lo, não haveria sequer levantada a louca sugestão que acabava de fazer. Pois, embora tal arranjo seria indubitavelmente satisfatória para Sybil e para ele mesmo, teria que pensar em Pamela.
E Pamela sempre devia vir em primeiro lugar, antes da felicidade de sua mãe e da sua própria. Era uma menina inocente e indefesa.
Não, já conhecia bem Thomas. Gostava quando eram jovens, quando o comportamento travesso de seu irmão e a alegre falta de princípios não trouxe consequências mais drásticas do que um castigo ou um sermão. Mas Thomas nunca cresceu. Nunca superou a irresponsabilidade da juventude. Em seu único ano como suposto duque de Ridgeway tinha exaurido os consideráveis recursos de Willoughby até tal ponto que se tivesse continuado sendo seu dono a estas alturas poderia tê-los perdido totalmente.
Estava convencido de que Thomas era incapaz de ter sentimentos profundos. Sem dúvida teria se casado com a Sybil se tivesse continuado sendo o duque, e talvez, teria sido um casamento razoavelmente bem-sucedido, mas nunca a amaria como ela a ele. Se a tivesse amado, embora fosse só um pouco, não a teria abandonado quando descobriu que estava grávida. O duque sabia que Thomas continuaria assediando Sybil e divertindo-se com ela o tempo que quisesse. E poderia ser muito tempo. O único modo de assustá-lo era fingir que ele podia ficar preso com seu brinquedo pelo resto de sua vida.
Thomas partiria quando terminasse a semana. O Duque tinha certeza. Tão certo que ele havia arriscado o futuro de Pamela em um blefe. Mas, Por Deus, era uma ideia doce, sedutora. Levantou-se e olhou para a lareira e na poltrona que estava ao lado dela, aonde Fleur esteve sentada na noite anterior. Esteve justo aí.
Ela deixou de tremer quando ele pediu. A envolveu com seus braços e seus dedos brincavam com seu cabelo. Pelo menos esqueceu o medo que sentia por alguns minutos. Desejara-o como ele a desejava. E como a desejava.
A culpa o atormentava. Ele indignou-se com a falta de decoro do abraço que Sybil e Thomas compartilharam na galeria, mas ele fez o mesmo duas horas mais tarde com a preceptora.
Fleur. Estava começando a dominar seus pensamentos de dia e a persegui-lo em sonhos de noite. Estava começando a viver para os instantes nos quais poderia vê-la, escutar sua música, ouvir sua voz, ver como o olhava. Fleur estava começando a dar luz e sentido a seus dias.
Nela estava começando a vislumbrar a pérola preciosa que, em uma época, esperou da vida.
O duque se entregou a uma vida difícil, uma vida de celibato durante os últimos seis anos, com exceção de um breve e desapaixonado encontro em Londres... com Fleur. Com uma prostituta magra e pálida, que provou ser virgem, que obedeceu tranquilamente todas suas ordens e sofreu a penetração de seu corpo emitindo somente um pequeno som gutural e mordendo os lábios. Até mesmo em uma situação tão sórdida como aquela, se comportou com dignidade. Era uma vítima que descera ao fundo, mas se recusou a permitir que seu espírito se quebrasse.
E não devia voltar a abraçá-la. Ou beijá-la novamente. O que aconteceu na noite anterior foi um instante único, algo que não foi planejado. Agora que sabia que era possível, teria que evitar que voltasse a acontecer.
Porque embora seu casamento fosse uma carga muito pesada, foi um contrato que aceitou livremente, um contrato ao qual permaneceria fiel na medida em que permitisse a fragilidade humana. Pensou que teria que mudar Fleur para outro emprego em outro lugar. Ele não tinha certeza se era possível viver em uma casa com uma mulher que queria mais do que qualquer outra coisa na vida e com sua esposa, a quem antes amou e com a qual nunca se deitou.
Ela o rejeitou na noite de núpcias, gritando que saísse do quarto. Havia falado de suas feridas, e, claro, a desfiguração de seu rosto era visível a todos. Deixou-a e não tentou de novo estar com ela até que Pamela nasceu. Tentou ganhar sua amizade.
Mas, é claro, ela acreditava que era o vilão que expulsou seu amante e logo a obrigou a casar-se com ele. Foi uma estupidez acreditar que poderia conseguir o que quisesse. O mesmo aconteceu quando foi vê-la dois meses depois do nascimento de Pamela. Houve a mesma histeria e o mesmo olhar de profunda repugnância. O duque tentou falar disso no dia seguinte e ela disse, com sua habitual voz doce e entrecortada e as lágrimas que escorriam por seus grandes olhos azuis, que se tentasse tocá-la novamente voltaria para casa de seu pai.
Provavelmente foi naquele momento que seu amor por ela começou a morrer rapidamente. Por fim ele vira e admitiu a verdade do que viu: o egoísmo frio escondido atrás de sua aparência angelical. Depois que seu amor morreu, ficou só um profundo sentimento de pena por ela. Porque estava claro que seu amor por Thomas era uma paixão monumental que não podia suprimir, mesmo que tentasse.
E é claro, Sybil não aceitou a verdade, e acreditava que só a crueldade de Adam a separou do homem que a amava tanto como ela a ele. O duque suspirou e virou-se para a porta. Pensou que por fim poderia continuar com a jornada que planejou. Por fim poderia deixar para trás seus problemas durante um breve período de tempo e centrar-se em escutar outras pessoas.
Quando se dirigia ao estábulo, percebeu que não tomou o café da manhã.
E não percebeu até muito mais tarde que precisava era esquecer que não devia ir visitar Duncan Chamberlain. Desde que Duncan perguntara a ele o que achava de perder sua preceptora se pudesse convencê-la a aceitar uma proposta de casamento, e ele se viu obrigado a sorrir para seu amigo e apertar-lhe sua mão e garantir que o assunto ficava exclusivamente nas mãos da senhorita Hamilton e dele.
Perguntava-se como se sentiria Chamberlain se soubesse o quão perigosamente perto que ele esteve de dar-lhe um murro entre os olhos.
Peter Houghton voltou de suas férias três dias mais tarde e obsequiou a senhora Laycock, Jarvis, Fleur e aos outros criados do andar de cima com anedotas do batismo quando eles se sentaram para almoçar.
—Com a cabeça cheia de cachos aos dois meses? —Perguntou Jarvis, interrompendo o senhor Houghton. — Não é estranho, senhor Houghton?
—Sim, realmente. A esposa do meu primo diz que vem de sua família.
—Dentes? — A senhora Laycock franziu a testa um minuto mais tarde. — Na idade de dois meses, senhor Houghton?
—Sim. Não parece incomum, senhora?
—Como era a roupa do batismo, senhor Houghton? — Perguntou a senhorita Armitage, a criada pessoal da duquesa.
O secretário do duque decidiu que seria recomendável cortar a refeição apesar de Sua Graça, o duque, não estar em casa. Embora lamentou ter que perder a sobremesa, murmurou que devia ter uma grande quantidade de trabalho acumulado em seu escritório. O duque passou quase o dia todo fora de casa. Levara os cavalheiros convidados para cavalgar por uma de suas fazendas pela manhã antes de dar a sua filha outra lição de equitação, e a levara para visitar a reitoria depois do almoço.
Eles voltaram no final da tarde, e Pamela se adiantou e subiu correndo para cima, ansiosa para contar a Fleur do cavalinho de balanço da reitoria, que estava quebrado na última vez que visitaram o lugar. Tirando o chapéu e as luvas na entrada e entregando a um lacaio, o duque pensou que era interessante notar que era a receptora, e não sua babá, quem se convertia na destinatária das confidências de Pamela.
—O senhor Houghton retornou, Sua Graça — informou Jarvis, fazendo uma reverência muito formal da cintura.
—Bom. Ele está em seu escritório?
—Acredito que sim, Sua Graça.
O duque se dirigiu ao escritório de seu secretário.
—Bom, tomou seu tempo para voltar? — comentou, apoiado na soleira da porta.
—Os batismos, os bebês e os parentes se empenhavam em me entreter. Já pode imaginar como foi, Sua Graça — explicou Houghton.
O duque entrou e fechou a porta.
—Agora estamos apenas você e eu, Houghton. E eu tive noites de charadas suficiente. Bem?
—A dama em questão é a senhorita Isabella Fleur Bradshaw, Sua Graça — começou o secretário, — filha do anterior Lorde Brockehurst, que faleceu junto com sua esposa, a mãe da senhorita Bradshaw.
—O que aconteceu com o atual Lorde Brockehurst? — Perguntou o duque.
—Por seu pai, Sua Graça. Sua senhoria faleceu há cinco anos deixando esposa, um filho e uma filha para chorá-lo.
—E sua relação com a senhorita... Ham? com o pai da senhorita Bradshaw?
—O falecido barão era seu primo irmão, Sua Graça — explicou Houghton.
—O falecido e o atual Lorde Brockehurst foram e são seus tutores? — Perguntou Sua Graça entrecerrando os olhos. —Quais são os termos de sua tutela? Ela deve ter mais de vinte e um anos.
—É difícil obter essa informação quando a gente finge mera curiosidade, Sua Graça — respondeu seu secretário friamente.
—Mas eu tenho certeza que você obteve de qualquer forma... sim, sei que deve ter sido difícil, Houghton. Eu aprecio suas habilidades sem necessidade que me destaque isso. Por que acha que eu o contratei? Por que eu gosto de sua aparência?
Peter Houghton tossiu.
—Ela herdará seu dote e a fortuna de sua mãe quando tiver vinte e cinco anos, Sua Graça, ou quando se casar, sempre e quando seu tutor aprovar sua escolha. Se não o fizer, precisa esperar até completar os trinta para herdar.
—E quantos anos tem agora?
—Vinte e três, Sua Graça.
O duque olhou para seu secretário em atitude reflexiva.
—De acordo, Houghton. Isso são os fatos, e devo elogiá-lo por tê-los descoberto. Agora me conte o resto. Tudo. Vejo pela expressão de sua cara que você está morrendo de vontade de contar. Solta-o, sem esperar que lhe peça.
—Pode ser que não goste, Sua Graça.
—Eu julgarei isso.
—E isso pode afetar o fato de eu tê-la contratado. — continuou Houghton. — Embora — voltou a tossir, — falamos da senhorita Bradshaw, verdade, Sua Graça? E não da senhorita Hamilton.
—Houghton. — Os olhos do duque se estreitaram perigosamente. — Se você prefere contar a história com minha mão em sua traqueia, eu não me importo. Mas eu acho que vai ser mais confortável como está agora.
—Sim, Sua Graça — afirmou Houghton, tossindo outra vez. Mas, ao começar a falar, pensou que a mão na traqueia seria algo leve em comparação com o que poderia acontecer depois que tivesse contado ao duque tudo sobre sua amada.
O Duque tinha apenas um pensamento em mente. Ele percebeu que estava feliz que Fleur fosse seu verdadeiro nome. Seria difícil ter que começar a pensar nela como Isabella. Ela não tinha aspecto de Isabella.
O duque permaneceu de pé junto a janela, de costas para a sala ouvindo.
—Tem uma só fonte de todos esses detalhes? — Perguntou chegado a um determinado ponto.
—Um criado de Heron House, Sua Graça — explicou Houghton, — um cavalheiro que gostava de frequentar o bar da estalagem aonde me hospedei, e o padre e sua irmã. Deduzo que era amiga da senhorita Bradshaw. O irmão se mostrou mais reticente.
—Então tinha uma amiga? — disse o duque, mais para si do que ao seu secretário.
E depois perguntou:
—Qual era o nome do cavalheiro? Do cavalheiro do bar, quero dizer?
—O senhor Tweedsmuir, Sua Graça.
—De nome?
—Horace, Sua Excelência.
—Ah — exclamou o duque. — Conheceu algum cavalheiro chamado Daniel?
—Sim, Sua Graça.
—E bem? — O duque virou-se impaciente para olhar seu secretário.
—O padre, Sua Graça. O reverendo Daniel Booth.
—Um padre? — murmurou o duque. — Então é um homem jovem?
—Sim, Sua Graça. E é um dos filhos mais novo de Sir Richard Booth de Hampshire.
—Sua investigação é tão detalhada que é admirável — comentou o duque. — Deixou algo?
—Não, Sua Graça — respondeu Houghton depois de fazer uma pausa para refletir. — Acredito que recordei de tudo. Você quer que eu cuide para que demita a senhorita Hamilton?
—A senhorita Hamilton? — O duque franziu a testa. — Que diabos tudo isso tem a ver com a senhorita Hamilton?
Peter Houghton revolveu os papéis em sua mesa com as mãos nervosas.
—Nada, Sua Graça — respondeu ele.
—Então sua pergunta não tem muito sentido — disparou o duque. — Deixei bastante trabalho na mesa para entretê-lo o resto da tarde, Houghton?
—Sim, a verdade é que sim, Sua Graça. Encarregarei-me de tudo antes de sair.
—Se fosse você, não gastaria todos meus cartuchos — comentou o duque, abrindo a porta para a entrada. — Tenho certeza que você quer ter uma noite de folga para entreter a senhora Laycock e alguns poucos escolhidos com a narração do batismo no qual acaba de ser padrinho.
Peter Houghton o contemplou enquanto partia. Não pensava em despedir sua "amante" depois de tudo o que acabava de lhe contar? Sua Graça devia estar realmente louco por ela.
E que diabos estava fazendo Brockehurst em sua casa se não pensava em prendê-la? Houghton meneou a cabeça e centrou sua atenção na pilha de papéis em sua mesa.

Capítulo 17

Fleur aguardava com expectativa o aniversário de Timothy Chamberlain por diversos motivos. Lady Pamela estava emocionada com isso, e sempre era um prazer ver a menina feliz. Lady Pamela esperava que sua mãe a acompanhasse, mas como de costume, Sua Graça, a duquesa, estava muito ocupada com seus convidados para dedicar uma tarde inteira a sua filha. A menina ainda esperava que seu pai fosse.
Fleur não compartilhava essa mesma esperança.
Ela pensava que seria agradável passar uma tarde longe de Willoughby. Longe dele. Não que o tivesse visto muito desde a manhã em que pediu-lhe desculpas. Ele não foi sentar-se na sala de estudo uma vez sequer.
Só apareceu brevemente na porta da biblioteca pelas manhãs quando Fleur praticava na sala de música. Pediu-lhe que o acompanhasse quando deu a Lady Pamela outra lição de equitação uma manhã em que não chovia, mas posteriormente não saiu para cavalgar. Além daquilo, não o viu. Mas havia sempre a possibilidade de vê-lo. Embora não quisesse, e embora sempre esperava que não fosse, estava atenta se ouvia seus passos fora da sala de estudo .
E sonhava com ele. Mas os sonhos já não eram o pesadelo de antes. Eram novos, já que nestes sonhos ele a beijava profundamente, como o fez na realidade, e ela também o beijava, tal e como fizera então, e passava as palmas das mãos pelos músculos fortes dos ombros e desabotoava os botões do colete e a camisa para tocar o pelo escuro que sabia que tinha debaixo.
Em seu sonho o desejava como tinha ocorrido em uma ocasião, mas com ternura, com seu corpo em cima e dentro dela, e sua boca sobre a sua. Sempre despertava suando e se escondia ainda mais debaixo das cobertas. E sempre sentia muita vergonha.
Tinha muita vontade de passar uma tarde fora, em companhia das crianças e do tranquilo e divertido senhor Chamberlain. E esperava fervorosamente que o duque de Ridgeway não estivesse ali, e se sentia culpada ao pensar isso porque sua presença seria tudo para Lady Pamela: significaria que se importava o bastante para desejar compartilhar seus prazeres.
E desejava que chegasse tarde porque passaria várias horas livre de Matthew. Ele estava falando sério quando disse que esperava passar muito tempo livre com ela. Se passeava pelo exterior da casa pelas manhãs ou na primeira hora da noite, ele a acompanhava. Uma vez, quando levou a Lady Pamela à ponte para pintar, ele se apresentou ali e foi agradável com ambas durante uma hora inteira.
E na tarde anterior ao aniversário, o dia em que o senhor Houghton voltou para casa de suas férias e Sua Graça saíra com a filha, a duquesa concordou em convidá-la para um passeio ao redor do lago.
—Matthew — murmurou ela nervosa quando a chamaram para que se apresentasse na entrada e o encontrou esperando-a ali. — Não posso ir passear com a duquesa e alguns de seus convidados. Aqui sou uma criada.
—Mas todo mundo sabe que também é uma dama, e conhecida minha. E eu aqui sou um convidado, Isabella, e portanto precisa seguir a corrente. Olhe, faz um dia lindo, para variar, e tem a tarde livre. Que melhor maneira de passá-la que dando um passeio até o lago?
Fleur sabia que não havia nenhuma alternativa, assim voltou para seu quarto para buscar um chapéu. E enquanto caminhavam um pouco atrasados em relação aos outros casais, perguntou aonde terminaria tudo, quando Matthew poria fim a toda aquela farsa.
—Quanto tempo você pretende ficar aqui? — Perguntou ela.
—Quanto tempo nós vamos ficar aqui? — Ele corrigiu. — Não sei, Isabella. Não tenho pressa, e pensava que preferiria chegar a me conhecer outra vez aqui, onde há pessoas diferentes das de casa, aonde só estivéssemos você e eu. Há alguns meses parecia que pensava que era algo indecente, embora sejamos primos de segundo grau.
Fleur pensou que nisso tinha razão.
—Eu gostaria de anunciar nosso compromisso antes de partir — afirmou Matthew.
—Não! — Exclamou ela repentinamente. — Isso não, Matthew!
A maioria dos casais não mostraram nenhuma inclinação a permanecer juntas uma vez que chegaram ao lago. Lorde Thomas Kent e a duquesa subiram em um dos barcos para remar até a ilha. Philip Shaw e Lady Underwood percorreram o caminho que seguia a borda norte; a senhorita Dobbin e o senhor Penny subiram pelo aterro e desapareceram entre as árvores.
Lorde Brockehurst conduziu Fleur até a borda sul do lago e entre as árvores mais frondosas até um dos templos pelos quais passou a cavalo com Sua Graça. Tinha a forma de um templo com um assento semicircular em seu interior, e contemplava o lago.
—Vamos sentar — disse ele.
Fleur se sentou, mas afastou bruscamente a cabeça quando ele quis beijá-la.
—Dê-me uma oportunidade, Isabella. Você é tão bonita... — Matthew tocou o cabelo que lhe caía pelo pescoço com delicadeza. — E não quero fazer nada desonroso. Heron House era de seu pai. E sua mãe era a baronesa. Poderia voltar a ter tudo. Enviaria minha mãe e a Amelia para viver em outra parte se não quiser viver com elas. Dê-me uma oportunidade.
—Matthew — começou ela, virando para olhá-lo, — você não entende? Eu não te amo. Não sinto por você o tipo de carinho necessário para ser a esposa que necessita. Por que não podemos simplesmente voltar e contar a verdade do que aconteceu e continuar sendo primos segundos, a alguma distância um do outro? Por que você não me deixa respeitá-lo, embora não possa te amar?
—O amor pode surgir. Dê-me uma oportunidade.
Ela meneou a cabeça.
Ele pôs as mãos em seu pescoço sem apertar, como fez antes, apertou-as um pouco por debaixo do queixo, e puxou para cima. A seguir baixou sua boca até a dela.
Fleur esperou que ele terminasse antes de levantar-se e sair do templo para ficar olhando para o lago. E pela primeira vez sentiu uma raiva semelhante ao terror habitual, a sensação de estar totalmente cansada de ser uma marionete que Matthew puxava, que não consegue controlar sua própria vida.
—Não me casarei com você, Matthew — afirmou, — nem serei sua amante. E não passarei mais tempo com você aqui em Willoughby Hall. Faça o que você quiser, mas essa é a minha decisão.
Fechou os olhos e recordou suas mãos ao redor de sua garganta, como as estreitava e puxava para cima, e sua respiração acelerou.
"Mas se chegasse a acontecer, dissera isso Sua Graça, se você não encontrar ninguém mais a quem recorrer, então, por favor dirija-se a mim. Você fará?"
Fleur sentia precisamente esse desejo, o desejo de contar-lhe sentindo seus braços fortes ao seu redor, para ouvir o batimento regular do seu coração novamente, de descarregar todos seus pesares em outra pessoa.
Mas logo via seu olhar de desdém, de repugnância, de condenação, e voltava a estar sozinha outra vez, como sempre esteve desde que seus pais morreram. A ideia de que houvesse alguém que se importasse e que a ajudasse era uma ilusão. Sabia que não podia recorrer a Daniel, e agora sabia que não podia recorrer ao duque de Ridgeway. Já era o bastante grande, vivera o suficiente para saber.
As mãos de Matthew seguraram firmemente os ombros de Fleur.
—Mudará de opinião — insistiu ele. — Nós temos mais alguns dias, Isabella.
Esteve a ponto de responder, mas segurou sua língua. Faria? Mudaria de opinião? A alternativa era terrível.
—Devemos voltar para casa — sugeriu Matthew. — Precisa refletir um pouco, não?
Quando um pouco mais tarde entrou na casa através dos degraus em forma de ferradura, resultou que Sua Graça passava por ali. O duque olhou para Fleur e Matthew sem dizer uma palavra.
—Senhorita Hamilton? — Interveio finalmente. — Pensei que estivesse com minha filha.
—Estive passeando com Lorde Brockehurst, Sua Graça.
O duque assentiu rapidamente.
—A menina deseja falar com você. É melhor que suba sem mais demora.
—Sim, Sua Graça. — Ela fez uma reverência e partiu a toda pressa para sala de jogos. As faces ardiam pela expressão de desaprovação que se refletia no rosto do duque.
E se perguntou se Matthew explicaria que a convidara com a permissão da duquesa.
Fleur ardia em desejos que chegasse o dia seguinte e poder passar uma tarde inteira longe de Willoughby.

Timothy Chamberlain comemorava seu sétimo aniversário com seu irmão e sua irmã, Lady Pamela Kent de Willoughby Hall, e outras cinco crianças da área, incluídos os dois do pároco.
O senhor Chamberlain comentou quando Fleur chegou com a menina que, pelo bem de sua prudência, o tempo ficou de seu lado. Sairiam para fora uma vez que Timmy tivesse mostrado para as crianças aonde brincavam, embora todos já tivesse visto antes, e a saca de cubos de construção de madeira de cores que ganhou.
A senhorita Chamberlain recebeu Fleur com um sorriso.
—Falando com Duncan, nunca adivinharia que a ideia da festa foi dele, hein, senhorita Hamilton? — comentou sua irmã. — Ele aproveita de tais ocasiões.
O senhor Chamberlain fez uma careta quando Fleur riu. Já tinha observado que adorava seus filhos no mesmo dia que o conheceu. Fleur se sentia muito feliz. Lady Pamela e ela saíram pouco depois do almoço e não voltariam até quase a hora do jantar. E Sua Graça, o duque, não iria.
—Timothy tem cubos. Pedirei a papai que me compre alguns — anunciou Lady Pamela a Fleur gritando quando os meninos desceram a toda velocidade exigindo que os tirassem para fora.
Eles brincaram de esconde-esconde, policial e bola no grande jardim que havia atrás da casa, e o senhor Chamberlain organizou corrida de vários tipos até que várias crianças caíram na grama, ofegando, enquanto outras gritavam mais alto que nunca.
A senhorita Chamberlain os fez formar um grande círculo para brincar de alguns jogos com canções, "para tranquilizá-los", explicou a Fleur, que tinha ajudado com as corridas.
—Duncan não percebe que esgotar as crianças não implica necessariamente que se acalmem, mas sim frequentemente produz o efeito contrário — apontou sua irmã.
—Bom — interveio o senhor Chamberlain, ignorando a mão que estendia uma menina com um laço quase tão grande como sua cabeça, e beliscando sua face, — o de dançar e cantar em círculo é algo que me supera. A senhorita Hamilton e eu vamos deixá-la com isso, Emily, e depois todos tomaremos chá. Senhorita? — O cavalheiro estendeu um braço a Fleur.
—A humilhação que estou disposto a suportar tem seus limites— explicou ele, passeando com ela em direção a pérgola coberta de flores que ficava junto à casa. — E "O círculo da batata" supera esse limite.
—Acredito que seu filho está passando maravilhosamente bem.
—Sim — reconheceu ele. — Suponho que só se faz sete uma vez. Amanhã voltará a ser escandaloso como sempre. A histeria terá passado.
Fleur riu.
Estavam dentro da pérgola, rodeados do perfume embriagador das rosas. Ele soltou o braço, segurando suas mãos e beijou-a rapidamente e suavemente sobre os lábios.
—Senti sua falta.
Ela sorriu.
—Se não fosse preceptora, e não tivesse que fazer tarefas cotidianas, provavelmente teria me dedicado a rondar Willoughby Hall nos dias posteriores a nossa visita ao teatro — disse o senhor Chamberlain, e tocou-lhe os lábios com os polegares.
Fleur o olhou nos olhos e se lamentou, já que sabia que ela também tinha limites que não se atrevia a transbordar.
—Não o faça — o deteve, enquanto ele tomava ar para voltar a falar, e baixou o olhar até seu queixo. — Por favor, não o faça.
—Não lhe é grato o que estou a ponto de dizer?
Ela hesitou.
—Eu não posso.
—Por que você não quer? Há algo de errado comigo? Ou com os meus filhos?
Ela meneou a cabeça e mordeu a língua.
—Existe algum obstáculo?
Fleur baixou a vista até o lenço do cavalheiro. Pois sim. Estavam os obstáculos de roubo e assassinato que pendiam sobre sua cabeça. O fato dela ter perdido a virgindade. E a profissão que tentou exercer brevemente antes de se tornar uma preceptora.
Ela assentiu.
—Intransponíveis?
—Sim. — Fleur voltou a olhá-lo nos olhos e detectou sua tristeza e seu pesar. — Muito intransponíveis, senhor.
—Pois bem. — Ele sorriu, baixou as mãos até seus braços, e se inclinou para beijá-la uma vez mais. A seguir deu-lhe uns tapinhas nos braços. — Já basta. Esta pérgola era o orgulho e a alegria da minha esposa. Será que Emily explicou? Eu adoro me sentar aqui e ler, quando as crianças estão em um lugar seguro, com suas aulas e seus jogos. Voltamos para tomar o chá?
—Sim, obrigada.
Todo o prazer da tarde desaparecera. Fleur não percebeu que o senhor Chamberlain estava a ponto de declarar-se, mas começou a intuir na pérgola rodeada de rosas. E sentiu que o havia magoado e temeu que apesar do que ele disse, pensasse que ela se negou por algum defeito que ele tivesse.
Quando voltaram da pérgola até a grama da parte de trás, mal se surpreendeu ver o duque de Ridgeway com sua filha nos ombros, falando com a senhorita Chamberlain.
—Ah! — Exclamou, voltando-se, sorrindo e observando-os atentamente. —Duncan? Senhorita Hamilton?
—Eu deveria ter imaginado que seria esperto o suficiente para ignorar os jogos e chegar bem a tempo para o chá — comentou o senhor Chamberlain, e estendeu a mão direita. — Bem vindo a festa de aniversário de Timmy, Adam.
—Eu fiquei em segundo na corrida das garotas, papai — gritava Lady Pamela, — e teríamos ganho a corrida de três pernas se William não tivesse caído.
Fleur ajudou a senhorita Chamberlain a colocar as crianças em casa para o chá.

O duque de Ridgeway voltou a cavalo para Willoughby Hall um momento depois, segurando a filha com um braço diante da sela enquanto escutava distraído sua conversa excitada.
Desejou que Fleur estivesse com eles, mas afastou esse pensamento de sua mente. Era melhor que voltasse para casa em sua carruagem. Realmente Fleur fazia bem a Pamela. O duque sempre conseguira despertar a excitação infantil de sua filha e sempre havia tentado, quando estava em casa, levá-la para visitar outras crianças tão frequentemente quanto possível. Mas passava longos períodos de tempo fora de casa e sempre se sentia culpado ao abandoná-la. Adam pensou que não a teria amado mais se fosse realmente sua filha.
Fleur ajudava Pamela a continuar sendo uma menina. Entre Sybil e a senhora Clement a protegiam muito. E nas raras ocasiões em que Sybil a levava, o fazia para visitar adultos, para que tivesse que ficar sentada em silêncio e que pudesse fazer elogios sobre como se comportava sua filha.
Fleur lhe fazia bem. Deve ter seus próprios filhos.
Pamela estava apontando a cicatriz do duque com um dedinho e cantando em voz baixa.
—Como salvou o olho, papai? — Perguntou ela.
—Alguém cuidou de mim.
—Deus?
—Sim, Deus.
—E você se machucou?
—Sim, suponho que sim. Não me lembro de muita coisa.
Ela continuou cantando baixinho enquanto passava o dedo sobre a cicatriz.
Adam se sentia culpado. Duncan falou brevemente com ele quando partia.
—Parece que afinal não existe o perigo iminente que perca sua preceptora, Adam — comentou ele.
Desde que chegou, ele não deixou de procurar algum sinal do que aconteceu. Eles estavam sozinhos em algum lugar antes justo que chegasse, mas suas expressões e seu comportamento não deixava transparecer nada durante o chá.
—Você mudou de opinião? — Perguntou o duque.
Seu amigo fez uma careta.
—Rejeitaram-me — respondeu.
Duncan Chamberlain era seu amigo. Desejava que fosse feliz. Quatro anos atrás perdeu uma esposa que amava muito. Fleur seria a perfeita esposa para ele e uma boa madrasta para seus filhos. Deveria ter ficado triste ao saber que Duncan foi rejeitado.
Mas ele sentia que ele era culpado, experimentou uma onda de euforia. E então, ainda mais culpado. Havia sentido obrigada a rejeitá-lo pelo que Adam lhe fizera e por aquilo na qual a converteu? É obvio que sim.
Mas também havia algo mais: precisava falar com ela. Ele teria feito aquela manhã, mas não quis arriscar a fazer nada que estragasse um dia tão esperado por Pamela. Precisava falar com ela no dia seguinte.
—Será que você matou alguém, papai? — Perguntou a menina.
—Nas guerras? Sim, receio que sim. Mas não estou orgulhoso disso. Não posso evitar pensar que esses homens tinham mães e talvez esposas e filhos. A guerra é algo horrível, Pamela.
A menina apoiou a cabeça contra seu peito.
—Estou contente de que ninguém o matou, papai.
O duque se agarrou a ela com um braço.
A carruagem estava parando no terraço quando Pamela e ele voltaram do estábulo.
—Senhorita Hamilton! — Adam a chamou quando ela estava a ponto de desaparecer através da porta dos criados.
Ela parou e o olhou inquisitiva.
—Faça-me o favor de esperar-me pela manhã na biblioteca logo após o café da manhã.
—Sim, Sua Graça. — Fleur fez uma reverência e continuou seu caminho.
Olhando para a porta fechada dos criados, o duque pensou que não deveria ter dito nada. Talvez ele devesse simplesmente chamá-la quando o fosse adequado. Provavelmente ela passaria toda a noite preocupada perguntando-se o que fez de errado.
—Pequena ficou triste? —comentou Pamela, puxando-lhe a mão. —Por passar toda a tarde sem mim?
—Vamos ver como ela fica feliz ao vê-la — propôs o duque, sorrindo.

A duquesa se colocou na cama no meio da tarde depois de um acesso de tosse prolongado, com dores no peito e febre. Jogava a culpa ao fato de ter ido montar aquela manhã com vários de seus convidados.
Não montava muito frequentemente, já que lhe parecia uma atividade perigosa e em geral pouco saudável. Lorde Thomas Kent entrou em seu quarto uma hora antes do jantar e fez sair a criada. Sentou-se na beirada da cama e pegou a mão da duquesa.
—Como está, Sybil?
—Ah, melhor — respondeu ela, sorrindo. — Só estou com preguiça de me levantar. Irei ao salão depois do jantar.
Ele levou sua mão aos lábios.
—Você é tão bonita e delicada... — suspirou. — Você parece não ter envelhecido um só dia desde que nos comprometemos. Pergunto-me se estará igualmente jovem da próxima vez que a vir.
De repente, a duquesa olhou para seu rosto.
—A próxima vez? Não irá, não é Thomas? Ah, não! Tem que ficar aqui. Não pode voltar a partir.
—Eu prometi a Adam — disse ele, beijando outra vez a sua mão e sorrindo docemente.
—Você prometeu a Adam? — Ela agarrou a mão dele. — O que você prometeu?
—Que partirei esta semana. Eu não posso culpá-lo, Sybil. Não como da última vez. Afinal, você é sua esposa.
—Sua esposa!— Ela gritou com desprezo, sentando-se e olhando direto nos olhos dele. — Só de nome, Thomas. Nunca deixei que me tocasse. Juro que não. Sou tua. Só tua.
—Mas, perante a lei é dele. E temos que levar em conta Pamela. Não deve saber nunca a verdade. Seria muito duro e não suportaria. Ordenou-me que parta, Sybil, e devo partir. Sinceramente, devo partir.
—Não! — gritou ela, agarrando-lhe a mão com mais força ainda. Voltou a cabeça para tossir. — Ou se você tiver que ir, me leve com você. Eu o deixarei, Thomas. Não posso voltar a estar separada de você. Irei contigo.
Thomas a separou dele e a beijou nos lábios.
—Não posso levá-la — ele sussurrou em seu ouvido. — Não posso expô-la a esse tipo de escândalo, Sybil. E Pamela não poderia ficar sem nenhum de seus pais. Precisa ser corajosa.
Ela colocou os braços ao redor do pescoço dele.
—Não me importa. Só me importa você, Thomas. Nada mais me importa. Eu vou com você.
—Sssh — sussurrou, segurando-a nos braços. — Sssh, agora.
E enquanto a tranquilizava a beijou outra vez e acariciou seus seios por cima do cetim de sua camisola.
—Thomas! — Gemeu, afundando-se outra vez nos travesseiros. — Eu te amo.
—E eu a você — disse ele, deslizando a camisola pelos ombros baixando a cabeça para beijar-lhe a garganta, mas se ergueu quando bateram na porta e a abriram imediatamente: era o duque de Ridgeway, que entrou e fechou sem fazer ruído.
—Você está se sentindo melhor? — Perguntou, olhando para sua esposa. — Armitage acaba de dizer que esta tarde tornou a ficar doente.
—Sim, obrigada — respondeu ela bruscamente, voltando o rosto.
—Você quer se vestir para o jantar, Thomas — indicou o duque. — Você corre o risco de se atrasar.
Seu irmão sorriu e saiu do quarto sem dizer uma palavra.
—Ordenei que chamem o doutor Hartley para que venha vê-la amanhã pela manhã — explicou o duque a sua mulher. — Posso mandar chamá-lo imediatamente se desejar.
—Não necessito de nenhum médico — protestou ela, sem olhá-lo ainda.
—Você deve vê-lo de qualquer maneira. Talvez ele possa dar algum remédio novo que cure essa tosse irritante de uma vez por todas.
De repente, ela virou a cabeça para olhá-lo.
—Eu te odeio, Adam — afirmou ela com veemência. — Como eu odeio você!
—Por me preocupar com sua saúde?
—Por não preocupar-se absolutamente por mim. Por ordenar Thomas a partir outra vez. Sabe que nos amamos. Sabe que sempre foi assim. Eu te odeio por arruinar as nossas vidas.
—Ele te disse que eu ordenei que partisse?
—Por acaso nega? — Perguntou a duquesa com dureza.
O duque a olhou por um longo tempo. Ele olhou para a mulher que ele um dia amou de maneira totalmente apaixonada e que agora só conseguia se compadecer.
—Suponho que isso foi o que significaram minhas palavras para ele.
Ela voltou a afastar a cabeça.
—Eu vou com ele. Deixo-te, Adam.
—Duvido que a leve com ele.
—Conhece-o bem. Sabe que por nada do mundo me faria mal. Mas me levará quando o tiver convencido que serei muito menos feliz conservando a decência com você.
—Duvido que a leve com ele — repetiu o duque. — Acredito que desta vez terá que confrontar a verdade, Sybil. Sinto muito. Apresentarei suas desculpas aos convidados para esta noite. Virei mais tarde para ver como está.
—Não. Eu não quero ver você, Adam, nem esta noite nem nunca mais.
Ele puxou do sino junto à cama e esperou em silêncio até que aparecesse a criada da duquesa.
—Sua Graça precisa de você, Armitage — disse ele, e saiu do quarto.

Capítulo 18

Fleur entrou na biblioteca quando um lacaio abriu a porta sem bater ou anunciá-la. O homem fechou a porta silenciosamente atrás dela.
Sua Graça estava escrevendo em sua mesa, embora deixou imediatamente sua pluma quando ela entrou, secou com cuidado o que havia escrito e ficou em pé. Ele olhou-a daquele modo sombrio e penetrante que Fleur sempre achou muito desconcertante.
Ela ficou muito quieta, com o queixo erguido e os ombros para trás. E se perguntou, o que esteve se perguntando durante toda a noite, que mal conseguiu dormir, se a única coisa que ele ia fazer era repreendê-la por algum erro desconhecido. Mas então, por que precisava convocá-la formalmente na biblioteca? Ou Talvez demiti-la ou tentar seduzi-la outra vez.
Ou talvez naquela ocasião não tinha nada de especial. Fleur esperou.
—A Honorável Senhorita Isabella Fleur Bradshaw — murmurou o duque, — de Heron House, em Wiltshire.
Depois de tudo, Matthew a levou a sério dois dias atrás. Ele contou tudo. Fleur levantou um pouco mais o queixo.
—Ladra de joias e assassina — continuou ele, — ou isso é o que se suspeita. Claro que qualquer pessoa suspeita de um crime é inocente até que prove o contrário.
Ela não desviou o olhar.
—Você é? — Perguntou o duque. — Uma ladra e uma assassina, quero dizer.
—Não, Sua Graça.
—Nenhuma das duas coisas?
—Não, Sua Graça.
—Mas as joias mais caras de sua prima foram encontradas no baú que pensava levar, se pudesse partir exatamente como o planejado.
—Sim, Sua Graça.
—E houve uma morte.
—Sim, Sua Graça.
—Você fugiu quando seu primo a surpreendeu cometendo o assassinato. Fugiu para Londres sem nada, exceto com a roupa que usava. Um vestido de noite de seda azul e uma capa cinza. E em Londres se escondeu e sobreviveu como pôde.
—Sim, Sua Graça.
—Mas ali não roubou? Ou nem sequer mendigou?
—Só vendi o que podia vender.
—Sim.
O duque deu a volta na mesa e atravessou a sala para ficar a poucos centímetros dela.
—Por que não me conta o que aconteceu? Nós podemos passar o dia inteiro aqui, se eu me dedicar a fazer perguntas e você me responder em monossílabos.
Ela continuou olhando para ele.
—Por que não? — Ele perguntou.
—Não acreditarão em mim. Quando se contar tudo isto em um tribunal de justiça, Lorde Brockehurst explicará a versão que lhe contou, e acreditarão, assim como você acreditou. Ele é um homem, e Barão. Sou mulher e uma preceptora... e puta. Não vale a pena gastar saliva inutilmente.
—Brockehurst não me contou nada — explicou o duque. —- Eu descobri tudo o que sei por minha conta. Ouvi que a chamava de Isabella. Você mesma chamou a seu antigo lar "Her?". Enviei Houghton a Heron House para descobrir o que pudesse sobre uma tal Isabella.
—Por quê? — Sussurrou ela.
Ele deu de ombros.
—Porque seu passado sempre esteve rodeado de mistério. Porque descobri, temo que muito tarde, que só circunstâncias extremas poderiam tê-la obrigado a converter-se no que se converteu em Londres comigo. Porque vi o terror refletido em seu rosto na primeira vez que viu Brockehurst em meu salão. Porque está claro que ambos mentiram sobre o quanto se conheciam. Porque me importo.
—Talvez seja melhor assim. Você tenta converter uma mentirosa, ladra e assassina em sua amante.
—É isso que você pensa de mim, Fleur?
—Sim.
—Embora naquela noite a enviei para a cama em vez de acompanhá-la a seu quarto por medo de não ser capaz de deixá-la ir? — comentou. — Embora não me aproximei de você depois, exceto para pedir desculpas? —Ele passou uma mão pela testa e suspirou. — Aproxime-se e sente-se.
—Não.
—Fleur, poderia virar-se e abrir a porta?
Ela o olhou desconfiada e fez o que ele disse.
—Volte-a para fechar. O que você viu?
—O lacaio que me fez entrar.
—Você o conhece?
—Sim. É Jeremy.
—Você o conhece bem? Você gosta dele?
—Ele é sempre amável e cortês.
—Seu trabalho é ficar aqui até você sair ou até que o chamem ou até que lhe diga que parta. Se você gritasse, entraria rapidamente para resgatá-la. Venha e sente-se.
Fleur passou pelo duque muito tensa, dirigindo-se para duas cadeiras de encosto reto que estavam perto da janela e sentou em uma delas. Ao fazê-lo pôs suas mãos juntas no colo.
—O homem que morreu era o criado de quarto de seu primo? — Perguntou ele, sentando-se na outra cadeira. Mas não esperou que ela respondesse. — Você teve algo a ver com sua morte?
—Sim. Eu o matei.
—Mas você não se considera uma assassina. Por quê?
—Era um homem muito forte. Pretendia me segurar enquanto Matthew me violava. Empurrei-o quando se aproximou por trás. Ele deve ter perdido o equilíbrio, já que estávamos muito perto da lareira. Caiu e bateu com a cabeça.
—E morreu?
—Sim. Ele morreu na hora.
—E o seu primo manifestara as suas intenções?
—Ele disse que antes de sair de casa novamente, nenhum outro homem me quereria. Acredito que eu gritava e brigava. Vi que fazia um sinal com a cabeça para Hobson.
—Seu criado de quarto?
—Sim. E então ele ficou atrás de mim. — Fleur olhou para as mãos, que estava retorcendo no colo, e as deixou quietas.
—A mãe e a irmã de Brockehurst haviam ido para Londres? —Perguntou o duque. — Por que a deixaram sem acompanhante?
—Não se importam comigo.
—Você estava indo para a reitoria para ficar com a senhorita Booth. Por que adiou até a noite?
—Está muito bem informado. Parece que sabe tudo.
—Houghton é um bom homem. Mas os porquês continuam a confundir-me.
—Matthew esperava convidados. Eles iam jogar as cartas e embebedar-se. Eu poderia ter escapado sem ser notada. Mas eles não vieram. Foi no dia em que partiram sua mãe e sua irmã. Acho que ele planejava passar uma noite a sós comigo.
—Mas você tentou sair de qualquer maneira?
—Sim. Pegou-me. Acredito que sabia e estava me esperando.
—E não roubou as joias?
—Não. Eu não sabia nada sobre elas, até que ele as mencionou aqui.
—E assim você fugiu sem nada. Sem dinheiro?
—Eu tinha um pouco no bolso da capa. Muito pouco.
—Por que não foi ao reverendo Daniel Booth?
Ela o olhou e mordeu a língua.
—A Daniel? Ele teria ido até lá imediatamente. Além disso, não teria escondido uma assassina.
—Nem sequer se a amasse?
Fleur engoliu em seco.
—Quanto tempo você demorou para chegar a Londres? — Continuou ele.
—Uma semana, talvez um pouco mais.
O duque levantou-se e olhou pela janela vários minutos, virando-se.
—Aposto que Brockehurst está disposto a fazer uma troca. Sua vida em troca de seu corpo. Tenho razão?
—Sim.
—E o que decidiu? Você já tomou sua decisão?
—É fácil ser heroico na imaginação. Eu não estou tão certa se poderia me comportar como uma heroína quando chegar o momento. Dois dias atrás eu disse que não me casaria com ele nem seria sua amante e não teria mais nada a ver com ele, e embora me deu alguns dias mais para tomar a decisão final, não tive coragem de repetir o que disse.
—Embora — ele repetiu, virando-se para olhar sobre seu ombro, — você tem muita coragem, Fleur. Eu fui testemunha disso, se você se lembra... em um certo quarto de uma estalagem em Londres.
Fleur sentiu-se corar.
—Poderia ter me pedido ajuda, você sabe. Eu a teria dado. E embora houvesse dito que não, não poderia tê-la prejudicado mais do que fiz. Mas você teve o orgulho e a coragem, e a insensatez, de vender o que era seu em vez de mendigar.
Fleur baixou o olhar.
—Não é sempre assim, sabe —continuou o duque calmamente. —Quando vai acompanhado com o amor, pode ser uma experiência bonita, Fleur, tanto para o homem quanto para a mulher. Não tenha medo de todos os homens como sei que tem de mim.
Ela só percebeu que estava mordendo os lábios quando sentiu o gosto de sangue.
—Enfim, o que vamos fazer a respeito de sua situação? Não é tão desesperadora como você parece acreditar. Podem apresentar-se várias alegações.
Ela riu.
—Me permitirá ajudá-la? — Insistiu o duque.
—Não há testemunhas, exceto Matthew e eu — respondeu ela. — E foi minha criada que descobriu as joias em meu baú. A única defesa possível é a verdade, Sua Graça, e a verdade soará terrivelmente falsa comparada com a palavra do barão Brockehurst.
De repente, ele inclinou-se e pegou suas duas mãos. Fleur não percebeu o quão fria estavam até que foram envolvidas no calor da mão do duque.
—Não vão enforcá-la, Fleur, nem vai apodrecer na prisão. Eu prometo. Você está há semanas vivendo aterrorizada, não é assim? Por que não veio a mim antes? Mas claro, eu sou a última pessoa a quem você recorreria, não é? Durante o dia de hoje e talvez amanhã, eu quero que fique com Pamela durante as aulas e com a senhora Laycock o resto do tempo. Se Brockehurst tentar falar com você, ordeno-lhe como empregada que se mantenha longe dele. Entendeu?
—Você não pode me ajudar.
O duque se abaixou e olhou para o rosto dela, segurando suas mãos mais firmemente.
—Sim, eu posso, e farei, embora saiba que não confia em mim. Realmente acredita que a trouxe aqui para que fosse minha amante?
—Não importa. — Fleur olhava para as mãos dele segurando as suas. E sentiu que devia soltar-se. E desejou agarrar-se a elas igual a ele as sustentava. E desejou inclinar a cabeça para a frente, até apoiá-la em seu ombro. E desejou confiar nele e esquecer de todo o resto.
Fleur levantou a vista e viu o rosto sombrio, duro e marcado que se havia se pendurado sobre ela em seus pesadelos durante semanas e que ultimamente se dedicou a beijá-la em sonhos e a despertar seu desejo de ternura e amor. Ela voltou a morder o lábio quando o seu rosto começou a girar diante de seus olhos.
—Sim, importa. Fleur, nunca foi minha intenção convertê-la em minha amante. O que aconteceu aqui entre nós aconteceu inesperadamente e contra a minha vontade. Eu sou um homem casado e não posso ter um relacionamento com você. E se não estivesse casado, tenho certeza que não quereria que fosse minha amante.
O sangue começou a fluir novamente no lábio de Fleur quando ele levou primeiro uma mão e em seguida a outra aos lábios, sem deixar de olhá-la em nenhum momento. E ele soltou uma das mãos para enxugar uma lágrima que caiu por sua face.
—Eu farei isto por você — continuou o duque, — talvez para compensar em certa medida o dano que lhe causei. E, em seguida, a enviarei a outro lugar, Fleur. Se tiver que esperar para receber sua fortuna, encontrarei-lhe um bom emprego em uma casa que eu nunca visite. Deixarei-a livre e nunca irei procurá-la. Talvez com o tempo, eu acredito, confiará em mim.
Adam soltou suas mãos e Fleur cobriu o rosto com elas, enquanto respirava profundamente para se acalmar.
—Farei com que Jeremy a acompanhe até em cima — comentou ele, endireitando-se. — Descanse em seu quarto esta manhã. Darei ordens para que ninguém a incomode. Eu ficarei com Pamela.
Fleur se levantou.
—Isso não é necessário, Sua Graça. Tenho aulas previstas.
—Não obstante, fará o que eu disse.
Fleur ficou ereta, ergueu o queixo e virou-se para a porta.
—Não será necessário que Jeremy me acompanhe — ela protestou. — Eu posso ir sozinha, obrigada.
Ele sorriu brevemente.
—Como você quiser.
E então ela subiu sozinha, para o seu quarto. E ficou na janela olhando para o gramado da parte de trás, vazio naquela hora da manhã.
O duque tencionava falar com Lorde Brockehurst em seguida, mas uma série de eventos conspiraram contra ele e frustrou seus planos.
Quando chegou a biblioteca, Jarvis lhe disse que o médico estava com Sua Graça, a duquesa. Adam decidiu que sua esposa e o médico deviam vir primeiro, e dispensou o mordomo dizendo que queria ver o doutor Hartley antes que ele partisse.
Quando apareceu na biblioteca algum tempo depois, o médico disse que um resfriado forte durante o inverno deixou a duquesa com uma fraqueza no peito. Ela sempre teve uma saúde delicada, e provavelmente isso não ia mudar.
—Eu recomendo uma vida calma e sair menos, Sua Graça. Talvez um ou dois meses em Bath as águas provocassem uma mudança importante na saúde da duquesa.
—Ela tosse o tempo todo — explicou o duque. — Tem febre frequentemente, perdeu peso. E tudo isso é o resultado de um resfriado grave que simplesmente não se foi?
O médico encolheu os ombros com eloquência.
—Algumas damas têm uma constituição delicada, Sua Graça. Infelizmente, sua esposa é uma delas.
O duque disse ao homem que podia partir e ficou olhando pela janela por um momento. Ele pensava que deveria ter insistido em chamar um médico de Londres mais qualificado. Mas Sybil sempre se mostrou inflexível e se negava a pensar nesse tema.
Adam tamborilou os dedos no peitoril da janela e se dirigiu para o quarto de Sybil. Na noite anterior ela se negou a deixá-lo entrar, mas desta vez não esperou depois de bater na porta de seu quarto.
Entrou como o fez, quando surpreendeu seu irmão quase a ponto de fazer o amor. Depois de olhar para a criada, ela fez uma reverência e se retirou para o vestiário.
—Bom dia, Sybil. Você está se sentindo melhor?
Sybil virou a cabeça para um lado no travesseiro quando seu marido entrou, e não respondeu. O duque se aproximou um pouco mais.
—Você tem febre? — Ele perguntou, apoiando os dedos delicadamente em seu rosto. — O médico sugeriu que vá a Bath para tomar as águas. Gostaria que eu a levasse ali?
—Não quero nada de você. Eu vou com Thomas.
—Quer que eu traga Pamela por alguns minutos? Tenho certeza que ela está desejando contar-lhe tudo sobre a festa de aniversário de Timothy Chamberlain de ontem.
—Estou muito doente.
—Sério? — Ele afastou-lhe o cabelo loiro prateado do rosto. — Então hoje me encarregarei de entreter a nossos convidados. Deve ficar aqui tranquila e não se preocupar. O médico deu-lhe algum remédio novo? Talvez amanhã você se sinta melhor.
Ela não disse nada, e ele atravessou o quarto até a porta. Mas parou com a mão no trinco e ficou olhando-a pensativo por um bom momento.
—Você gostaria que eu mandasse vir Thomas?
Ela não virou a cabeça para ele nem respondeu. Adam saiu silenciosamente do quarto.
As damas foram para Wollaston com Sir Hector Chesterton e Lorde Brockehurst. Sua Graça se juntou a alguns cavalheiros para jogar bilhar. Lorde Mayberry, o senhor Treadwell e Lorde Thomas Kent foram pescar.
Depois do almoço, quando o duque sugeriu cavalgar e fazer um piquenique nas ruínas, a maioria dos convidados aceitou de bom grado. No entanto, Senhor Brockehurst, juntamente com Sir Hector, expressaram suas intenções de permanecerem em casa, já que encontraram Sir Cecil Hayward em Wollaston aquela manhã e este os convidaram para visitá-lo pela tarde.
Antes de sair para o estábulo, Sua Graça encarregou o lacaio Jeremy que vigiasse o corredor superior da sala de estudo e que acompanhasse a senhorita Hamilton e Lady Pamela aonde decidissem ir ao longo da tarde.
Meia hora depois, teve um encontro que planejava adiar para o dia seguinte.
—Parece que você e eu estamos condenados a cavalgar juntos, Adam, já que os outros estão emparelhados — comentou Lorde Thomas Kent. — Talvez seja melhor assim. Eu provavelmente partirei amanhã ou no dia seguinte.
—Sozinho?
Seu irmão o olhou e sorriu.
—Eu não acredito que fosse sério o que você sugeriu no outro dia.
—Não teria dito se acreditasse por um instante que levaria a sério — disse o duque, olhou para a frente, aonde Sir Philip Shaw estava descaradamente flertando com Lady Underwood.
—Exatamente. Vê o que quero dizer? Claro que não podia levar a sério, Adam. Como poderia levar Sybil, sabendo do escândalo que teria que enfrentar? Ela esteve muito protegida em sua vida e não tem ideia do que lhe esperaria. E além disso as mulheres são umas românticas incuráveis. Elas nunca estão preparadas para a dura realidade.
—Acredito que a deixou com uma boa dose de "dura realidade" no outro dia.
Lorde Thomas encolheu os ombros.
—Além disso, ela não está bem. Não me surpreende nada descobrir que está tísica[4].
Sua Graça não disse nada.
—E a menina, claro, é minha principal preocupação — continuou Lorde Thomas. — Como poderia afastá-la de você e desta casa, Adam? E como poderia levar Sybil e não levar a menina? Partiria o coração de Sybil.
O duque continuou sem dizer nada.
—Sim — afirmou seu irmão. — Claro que a deixarei em paz. Não tenho outra escolha, se quero fazer o correto, certo?
Sua Graça se voltou e olhou para ele friamente.
—A verdade é que é uma pena que ambos nos apaixonássemos pela mesma mulher, isso é tudo — comentou Lorde Thomas. — Tínhamos uma boa relação até que Sybil apareceu em cena.
—Talvez seja uma pena que nenhum dos dois se apaixonasse por ela. Eu poderia ter vivido sem ela sabendo que era feliz com você, Thomas. Eu teria me recuperado porque a amava. Mas o que você conseguiu foi destruir toda sua felicidade e todo meu amor. Sim, tivemos uma boa relação... há um longo tempo.
Lorde Thomas continuou sorrindo.
—Eu deixei uma mensagem dizendo que a veria quando voltasse da pesca esta manhã. Você já foi vê-la?
—Ela está doente — replicou Lorde Thomas. — Tenho certeza que precisa de tranquilidade.
—Sim. Acho que não vale a pena visitá-la se não está o bastante bem para deitar-se com ela.
Seu irmão deu de ombros.
—Eu espero que ela acabe percebendo a verdade — comentou Sua Graça — embora não a ouvirá de meus lábios. Talvez depois de toda a dor, finalmente se livre de você e seja capaz de fazer algo importante com sua vida. É fácil ver depois. Agora eu vejo que deveria ter insistido para que ela soubesse a verdade desde o início.
Lorde Thomas encolheu os ombros novamente e esporeou o cavalo para cavalgar junto à senhorita Woodward e Sir Ambrose Maxwell.
Pouco antes do jantar naquela noite, o duque recebeu uma nota na qual Lorde Brockehurst e Sir Hector Chesterton avisavam que prolongariam a visita a Sir Cecil Hayward e ficariam para jantar e jogar cartas. Sua Graça pensou que assim deixava praticamente para trás um dia bastante desagradável, embora teria que adiar a pauta principal até a manhã seguinte. Ele deixou uma mensagem para o valete de Lorde Brockehurst na qual dizia que Sua Graça estaria encantado que sua senhoria o acompanhasse em um passeio matutino a cavalo no dia seguinte.

Era muito tarde. Fleur sabia que deveria ter ido para a cama mais cedo, considerando que teria que levantar-se antes mesmo que amanhecesse. Mas de qualquer maneira não acreditava que pudesse dormir.
Contou o dinheiro uma vez mais e se amaldiçoou novamente por ter comprado meias de seda que foram mais que uma extravagância. Ela não tinha certeza de ter o suficiente. Não estava nada segura. Mas se tivesse suficiente para o bilhete, não se preocuparia com a comida. Podia passar alguns dias sem comer. Já fez isso antes.
Claro que também podia pedir emprestado uma pequena quantia a Ned Driscoll. Mas provavelmente não voltaria a vê-lo nunca mais para devolver-lhe o dinheiro, e talvez nunca teria dinheiro suficiente para devolvê-lo. Além disso, Ned já estava fazendo um sacrifício por ela. Aceitou levá-la em sua calesa antes do amanhecer até Wollaston para pegar a diligência. Ele mostrou-se muito relutante em fazê-lo, e estava bastante segura que se tivesse oferecido dinheiro, se é que tivesse dinheiro para oferecer, o teria rejeitado categoricamente.
Mas Fleur tinha apenas seu poder de persuasão e o fato de saber que tinha um fraco por ela.
Ele poderia ser demitido por ajudá-la. Mas Fleur não podia suportar uma outra preocupação. Não havia outra maneira de chegar a Wollaston a tempo a não ser roubando um cavalo. E ela nunca roubara nada.
Ela olhou para a pequena trouxa de roupa que guardou dentro de sua velha capa cinza e se perguntou se levar a roupa que comprou com o dinheiro de Sua Graça em Londres podia ser considerado roubo. Mas estremeceu ao pensar em colocar o velho vestido de seda e a capa cinza.
Partiria de Willoughby Hall. Decidiu no decorrer do dia. Passou quase todo o dia sentindo-se como um urso acorrentado a um poste; na verdade, tinha essa mesma sensação a maior parte do tempo durante os últimos três meses. Não podia suportar mais. Se ficasse somente um dia mais perderia uma parte de si mesma, de seu ser mais íntimo, e afinal era tudo o que restava.
Ela iria ao único lugar que podia ir para conservar seu orgulho e sua integridade. Iria para casa, para Heron House. Claro que ao fazê-lo só se dirigia a um desastre certo. Mas, no decorrer de três meses, ela descobriu que havia algumas coisas piores que a perspectiva de enfrentar algumas acusações contra aqueles aos quais não podia defender-se. Havia algumas coisas piores do que o medo do castigo final.
Se a enforcassem perderia a vida. Se ficasse como estava perderia a si mesma.
Ele disse que podia ajudá-la. Que a ajudaria. Como o fez Matthew? A salvaria do cárcere e da morte em troca de certos favores?
Ele negou... e acreditou? Quase acreditou.
Mas como ela poderia acreditar? Como ele poderia ajudar? Por quê? Talvez para ele fosse somente uma puta que lhe dava pena. Ou uma puta que esperava enrolar para ter uma relação mais duradoura. Ela queria acreditar. Queria confiar nele. Mas como poderia? Passou muito tempo sozinha. Até mesmo Daniel, que era amável e devoto, não foi capaz de ajudá-la em seu problema. Ele teria uma crise de consciência se ela tivesse pedido ajuda depois de reconhecer que matou Hobson, mesmo que em legítima defesa.
Ela desejava acreditar. Fleur se sentou na beira da cama e fechou os olhos. E percebeu o que aconteceu nas últimas semanas, de uma maneira tão gradual que mal notou a transição.
Deixou de ser seu pesadelo para tornar-se em seu sonho.
Porque chegou a considerá-lo um homem que merecia seu respeito, que lhe agradava, talvez até mesmo... Não, não.
Porque ele planejou dessa forma? Por que planejou uma sedução gradual seguindo pacientemente os passos, mais hábil que Matthew? Fleur deixou cair a cabeça para frente até apoiar o queixo no peito. Não sabia no que acreditar, mas sabia que devia afastar-se dele. Era um homem casado e talvez malvado.
Tinha uma imagem dele no jardim do senhor Chamberlain, falando com a senhorita Chamberlain, com o Lady Pamela no ombro gritando excitada em seu ouvido.
Fleur foi sua prisioneira durante todo o dia. Jeremy passou a manhã fora da biblioteca e a tarde fora da sala de estudo. A acompanhou até embaixo para jantar e de volta ao seu quarto depois de passar umas duas horas com a senhora Laycock. Ela foi sua prisioneira? Ou simplesmente se dedicou a protegê-la? Jeremy explicara que Matthew subiu aquela tarde e ficou muito aborrecido quando lhe disseram que a senhorita Hamilton recebera ordens de Sua Graça de trabalhar com sua aluna toda a tarde sem interrupção.
Mas se sentira como uma prisioneira. Como uma presa para ambos. Como um urso acorrentado a seus cães. Ela precisava partir. Precisava ir para casa. Matthew a seguiria até ali, e então interpretariam a última cena da obra que começou ali quase três meses atrás.
Não havia nenhum mistério a respeito de como finalizaria. Mas não queria evitar durante mais tempo. Precisava voltar e aceitar de algum jeito o que fez e as consequências que resultaria.
Melhor voltar livremente do que acorrentada. E melhor voltar sozinha e independente que como noiva ou amante de Matthew, despojada de sua integridade para sempre.
Acabou apagando a vela e deitando-se totalmente vestida por cima dos cobertores da cama, olhando para a escuridão.

Capítulo 19

Na manhã seguinte choveu outra vez. Enquanto permanecia de pé junto a janela da biblioteca, o duque de Ridgeway pensou que o período seco e quente parecia tê-los abandonado para sempre. Deveriam enfrentar um verão muito mais britânico do que foi a primavera.
E talvez fosse melhor que chovesse. Teve tempo para planejar sua conversa com Lorde Brockehurst com maior esmero do que teria feito se o sol estivesse brilhando. Inquieto dirigiu-se para a mesa, olhou a carta inacabada que se encontrava em cima dela e a guardou na gaveta. Era inútil tentar se concentrar em escrever.
Ela não descera para praticar na sala de música naquela manhã. Justo no dia em que mais precisava do bálsamo calmante da música, não se apresentara.
E talvez fosse melhor assim. Logo a enviaria a outro lugar. Na verdade, esse era o assunto principal da carta que estava escrevendo para a duquesa viúva de Hamm, uma velha amiga de seu pai. Uma vez que falasse com Brockehurst, faria os ajustes restantes para ela, a não ser que por algum milagre pudesse receber sua fortuna.
O duque acariciava distraído o quadril dolorido com a mão esquerda. Teria que viver sem sua música. E sem vê-la cada dia. Teria que encontrar outra pessoa que fosse tão boa para Pamela como Fleur.
Abriu e fechou a mão. Talvez Sybil não se opusesse que levasse Pamela a Londres durante alguns meses ou semanas. Não podia deixá-la durante outro longo período; e decidira voltar para casa da última vez.
Mas como seria capaz de suportar a solidão e as brigas constantes da vida em Willoughby?
Sobre tudo agora que ela esteve ali.
Vários convidados na noite passada expressou sua intenção de partir em poucos dias.
Bateram na porta e Jeremy abriu para deixar passar Lorde Brockehurst.
—Lamento pelo passeio a cavalo — comentou o duque depois do bom dia. — Sente-se, Eu posso lhe oferecer um drinque? — Olhou para a porta entreaberta que conduzia a sala de música.
—Acabo de tomar café da manhã — respondeu Lorde Brockehurst, afundando-se na cadeira que Fleur ocupou poucas noites antes e recusou com um gesto a oferta de tomar algo. —Faz um tempo infernal, Ridgeway. As damas devem estar subindo pelas paredes de aborrecimento. Elas adoram passear.
—Elas devem fazê-lo na galeria — disse Sua Graça. — Eu entendi que você está pensando em privar-me de minha preceptora, Brockehurst.
O olhar de Matthew adotou uma expressão desconfiada, e riu:
—A senhorita Hamilton é uma dama muito atraente.
—Ouvi dizer que vocês dois estão noivos de maneira não oficial. Você é um homem de sorte.
Lorde Brockehurst ficou um instante em silêncio.
—O que ela contou?
O duque se sentou na frente de seu companheiro e sorriu.
—Espero que o fato de comentar não lhe cause problemas com você, mas tenho certeza que não anunciou para todo mundo. Ela deve ter pensado que, como uma empregada, devia me avisar que partia. Imagino que partirá com você.
Lorde Brockehurst se reclinou tranquilamente na cadeira e devolveu o sorriso ao duque.
—Não me zango absolutamente por ela ter contado. Eu queria anunciar nosso noivado oficialmente aqui, mas ela se mostrou reticente. O fato de ser uma criada a constrangia.
—Ah, então é certo! — Exclamou o duque, apoiando os cotovelos nos braços da cadeira e juntando as pontas dos dedos. — Os parabéns são obrigatórios. Quando é o casamento?
—Obrigado — respondeu Lorde Brockehurst. — Assim que for possível depois de partir daqui. Espero não estar causando muitos problemas, Ridgeway.
O duque encolheu os ombros.
—A senhorita Bradshaw me avisou com uma semana de antecedência.
O outro assentiu, e depois o olhou com grande interesse.
—Explicou por que tem vivido sob um nome falso?
O duque assentiu.
—Se o casamento vai se celebrar imediatamente, é que deve ter decidido não apresentar queixa. Claro que quando se trata de roubo e assassinato, não é algo que deva decidir um juiz de paz? Você deve ter decidido que a morte não foi um assassinato e o fato que levasse as joias não foi um roubo. Estou no certo?
—O que foi que Isabella esteve lhe contando? — Lorde Brockehurst começou a erguer-se agarrando os braços da cadeira.
—Nada, absolutamente — respondeu Sua Graça, cruzando uma perna embutida em uma bota sobre a outra. —Ela não disse nada além de que ia casar-se com você. Tenho uma outra fonte de informação.
Lorde Brockehurst franziu a testa.
—O que está acontecendo aqui, se posso perguntar?
—Parece que contratei uma preceptora que não é quem diz ser, e que pode ser que seja uma assassina e que pode ser uma ladra. A segurança e o bem-estar de minha filha estão em perigo. Quero que você me diga algumas coisas, Brockehurst, se me permitir isso. Preciso de sua ajuda.
O outro voltou a reclinar-se na cadeira.
—Depois de tudo, me viria bem tomar esse drinque.
O duque levantou-se e atravessou a sala.
—A senhorita Bradshaw é uma ladra? — Perguntou ele.
—Não sei de onde tirou essa informação — replicou Lorde Brockehurst, — mas deve saber que encontraram algumas joias de minha mãe em um baú que Isabella estava a ponto de levar da casa. Eram as joias mais valiosas, que ela não levou a Londres.
—Dentro do baú — repetiu o duque. — E como as roubou? Se eram tão valiosas, como é que não estavam cuidadosamente guardadas sob chave? A quem sua mãe confiou a chave quando partiu?
—A mim, é claro. Mas Isabella viveu na casa toda a vida. Devia saber aonde se guardavam as joias. É mais que provável que tivesse uma chave.
—Então havia mais de uma?
Lorde Brockehurst encolheu os ombros.
—Esteve a senhorita Bradshaw com seu baú até o momento em que descobriram as joias? — perguntou Sua Graça.
—Abriu-se o baú e encontraram as joias depois de que ela se foi.
—E onde estava o baú enquanto ela conversava com você e depois que fugisse, antes que alguém decidisse abri-lo? — Perguntou o duque.
—Estava na calesa que planejava tomar, e depois voltaram a levá-lo para seu quarto.
—Sim, entendo. — Sua Graça passou-lhe o copo e voltou a sentar-se. Ele não se serviu. — Quantas pessoas poderiam ter acesso a esse baú desde a última vez que a senhorita Bradshaw o viu? E por certo, estava fechado?
Lorde Brockehurst voltou a franzir a testa.
—Isto se parece muito com um interrogatório, Ridgeway— comentou.
—Meus criados devem ser irrepreensíveis — explicou Sua Graça, — e sobre tudo a preceptora de minha filha. Existe alguma possibilidade de que alguém tivesse posto as joias ali?
—Mas quem teria motivo para fazer algo semelhante? — Perguntou Lorde Brockehurst.
O duque esfregou o queixo.
—Entendo o que quer dizer, mas a própria senhorita Bradshaw tinha um motivo, claro. Acredito que se recusou a deixá-la se casar com o pároco da região, e não herdar sua fortuna, até, pelo menos, dois anos mais tarde. Dispunha-se a empreender sua fuga sem nenhum tostão.
—Sua fonte está bem informada — comentou Lorde Brockehurst.
—Sim — concedeu Sua Graça. — Minhas fontes são e as tenho em consideração. Fale-me dessa morte. Foi assassinato?
—Ela ameaçou matar-me — explicou Lorde Brockehurst. — Estava furiosa, fora de si. Tanto meu criado de quarto como eu estávamos preocupados com ela. Ele tentou evitar que se fizesse mal, mas ela o empurrou e o matou. Ele não teria caído sozinho. Acho que sua ação constitui um assassinato.
—E não existe a possibilidade que interpretasse mal suas ações? — Perguntou Sua Graça. — Entendi que estava sozinha na casa com você, além dos criados. Naquela sala, em especial estava sozinha com dois homens. Poderia ter pensado que você queria lhe fazer algum mal?
Lorde Brockehurst riu.
—Isabella viveu como membro de minha família desde que era uma menina. É como uma filha para minha mãe, e como uma irmã para mim. Só que chegou a significar mais do que poderia significar uma irmã. Sabe há muito tempo que lhe tenho carinho e espero que seja minha esposa. Não houve lugar para mal-entendidos. Infelizmente eu sou o seu guardião e naquele dia tive que me dedicar à dolorosa tarefa de frustrar um desejo que a teria levado a infelicidade.
—Entendo. Então, ameaçou mata-lo, parece que o assassinato foi premeditado, embora chegado o momento, matou o homem errado. Sim, é assassinato. Você está certo. Um pecado capital. Parece que a senhorita Bradshaw está destinada a forca.
Lorde Brockehurst tomou um gole do seu copo e não disse nada.
—Eu suponho que você veio até aqui para levá-la para a cadeia, que é onde deve estar— disse Sua Graça. — Mas há algo que me desconcerta. Se ela é uma assassina e, portanto, uma criminosa perigosa, por que não a prendeu assim que chegou, ou por que não me advertiu que eu estava dando refúgio a uma fugitiva desesperada?
Lorde Brockehurst deixou seu copo cuidadosamente sobre a mesa ao lado dele.
—Eu vim como convidado de seu irmão. Havia outros convidados. Naturalmente, Ridgeway, não quis alarmar todo mundo. Esperava levá-la sem qualquer problema ou escândalo.
—E enquanto isso poderia ter assassinado minha filha e ter matado a todos em nossas camas.
—Não acredito que esteja tão transtornada — replicou Lorde Brockehurst.
—Simplesmente encurralada em um canto — corrigiu Sua Graça, — sabendo que a encontrou e que tudo que faz é esperar o momento certo. Baseado na minha experiência na caça, Brockehurst, teria que afirmar que um animal encurralado é o animal mais perigoso que existe. Claro que você deve acreditar no que diz. Não deve considerar a senhorita Bradshaw perigosa se estiver disposto a casar-se com ela depois de tudo. Apesar do fato dela ter ameaçado tirar sua vida e em seguida matar seu criado de quarto.
—Eu nunca tive qualquer intenção de me casar com ela. Pelo menos não desde que ela revelou ser como é.
O duque franziu a testa.
—Desculpe-me. Devo ter ouvido mal alguns minutos atrás?
—Eu não sabia muito bem o que você descobriu — desculpou Lorde Brockehurst. — pensei que o mais sensato seria concordar com o que você dissesse até que soubesse exatamente o que estava tentando me dizer. Mas como poderia considerar seriamente me casar com uma mulher que roubou minha própria mãe e matou meu valete porque estava furiosa comigo?
—Como poderia, não é? — Repetiu o duque. — Mas você não acha que um juiz iria achar muito estranho o que aconteceu nos últimos dias e o que reconheceu há poucos minutos, Brockehurst? Não acha que pareceria que ofereceu um acordo a senhorita Bradshaw? como trocar seu testemunho em troca de seus favores?
Lorde Brockehurst ficou em pé.
—Essa sugestão é deplorável, Ridgeway. Quando contar os fatos como eles aconteceram, nenhum juiz ou júri hesitará em condená-la.
—E ficará para olhar a execução, claro. Desfrutará vendo como passam a corda pela cabeça e a apertam? Desfrutará vendo como cair pela última vez?
Lorde Brockehurst cerrou os punhos nas laterais.
—Eu a amava. Suponho que ainda a amo. Infelizmente, ela tem que se submeter a justiça.
—Ah, isso espero — disse o duque, estreitando os olhos.— Tenha certeza que vou testemunhar no julgamento, Brockehurst.
—Entendo que é sua amante. Uma vez que tenha demonstrado isso, não acredito que seu testemunho valha muito. Assim depois de tudo o que lhe preocupa não é sua filha, Ridgeway, mas sua satisfação pessoal. Teria que tê-lo adivinhado. E é pela garota que está disposto a inventar mentiras sobre minhas intenções em relação a ela.
—Houghton — chamou Sua graça, sem levantar a voz. — Traga-me um brandy, caro amigo? Dá-me preguiça levantar-me outra vez.
Lorde Brockehurst ficou olhando sem dizer nada quando o secretário do duque apareceu pela porta entreaberta que conduzia a sala de música e procedeu a servir uma bebida para seu senhor.
—Confio que terá tomado notas — comentou Sua Graça, pegando sua bebida. — Embora possua uma memória excelente, inclusive sem tomar.
—Está tudo escrito, Sua Graça — afirmou Peter Houghton.
—Obrigado — disse o duque. — Não quero entretê-lo, Houghton. Quererá voltar para sua cadeira.
O secretário voltou a sair da sala.
—A chuva faz com que o dia seja completamente desolado — comentou Sua Graça. — Mas em certo sentido foi melhor assim: não saberia aonde esconder uma testemunha se tivéssemos dado esse passeio, Brockehurst. Mas acredito que brincar com a justiça é um crime, o que naturalmente é uma maneira educada de dizer que sei o que é um crime. O que vamos fazer a respeito?
—Vamos? — Lorde Brockehurst parecia ter recuperado a compostura. — O que vamos fazer sobre isso? Isabella é uma assassina. Vou levá-la ao juiz.
—Sim. Concordo que pode levar as acusações contra ela. Empurrou um homem e ele morreu. Parece assassinato. E encontraram joias em seu baú. Acredito que alguém tem que entregá-la para que a julguem, Brockehurst. Mas não só você. Vou assegurar-me de que vá acompanhada como é apropriado. E eu mesmo assistirei o julgamento. Pedirei para testemunhar se considerar necessário.
—Para poder brincar você também com a justiça? — Espetou-lhe Lorde Brockehurst, rindo pela primeira vez. —Você está tentando me chantagear, Ridgeway?
—Absolutamente. Quero que diga toda a verdade do que aconteceu. Mas se toda a verdade consiste em dizer que a senhorita Bradshaw roubou as joias de sua mãe e matou deliberadamente seu criado de quarto, então acredito que o juiz e o jurado estarão muito interessados em escutar os detalhes de como chegou aqui convidado e passou algum tempo alternando com a mulher que devia prender. Sem dúvida interessará saber que tinha planejado casar-se com ela "assim que fosse possível". Acredito que essas foram suas palavras exatas. Tenho razão, Houghton?
Houve uma breve pausa.
—Sim, Sua Graça —respondeu Peter Houghton do outro lado da porta que levava a sala de música.
—Pode ser que enforquem a senhorita Bradshaw. Mas a você também podem ocorrer coisas terríveis, Brockehurst. Não tenho certeza do que, não sei tanto da lei como suponho que deveria saber um juiz de paz. Sem dúvida Houghton poderia averiguar qual será provavelmente seu castigo. É inestimável... mmm... como fonte de informação. Gostaria que averiguasse por você?
Lorde Brockehurst franziu a boca.
—Claro que... — continuou o duque, — o juiz e o jurado poderiam absolver a senhorita Hamilton, apoiando-se em que o testemunho da única testemunha de assassinato não é absolutamente confiável. Talvez você caísse só... ah, escolhi mal as palavras. Não acredito que a pena por seu crime seja a morte. Na realidade, diria que não é. A deportação, talvez ? Mas enfim, são apenas conjeturas. Deixaremos que Houghton averigue.
—Partirei daqui imediatamente — disse Lorde Brockehurst friamente. — E não mais o incomodarei com a minha presença, Ridgeway.
—Sem a senhorita Bradshaw? — perguntou Sua Graça. — Você quer que eu me encarregue que a entreguem a justiça? Realmente acredito que devo fazê-lo. Acusou-a de dois delitos capitais. Para estar tranquila têm que condená-la ou absolvê-la. Ou você deve fazer uma declaração pública explicando o engano de suas acusações anteriores. É obvio, ficou consternado por sua desobediência e pela morte acidental de seu valete. As pessoas tende a exagerar em circunstâncias semelhantes. As pessoas iram aplaudir sua coragem ao aceitar um certo ridículo para arrumar as coisas.
—Farei essa declaração — afirmou Lorde Brockehurst entre dentes.
—Esplêndido — exclamou o duque, ficando finalmente em pé. Não havia tocado em nenhuma só gota do brandy. — Esperarei um anúncio oficial de sua declaração dentro de uma ou duas semanas. Está anotando tudo isto, verdade, Houghton?
—Sim, Sua Graça — disse a voz atrás da porta.
—Depois de ter limpado o nome da senhorita Bradshaw — continuou Sua Graça, — voltarei a entrar em contato com você, Brockehurst, para ver o que pode ser feito para mantê-la até seu vigésimo quinto aniversário. Mas não preciso entretê-lo com os pormenores desse assunto por agora. Tenha um bom dia. E tenha boa viagem. Irá para Heron House?
—Ainda não decidi e de qualquer maneira, não me parece necessário compartilhar meus planos com você, Ridgeway — espetou Lorde Brockehurst, dirigindo-se para a porta.
—Ah, de acordo— exclamou Sua Graça. Ele ficou ao lado da cadeira e observou como o outro partia.
O duque afundou visivelmente os ombros quando fechou a porta.
—Entra, Houghton. Você já conheceu um cara mais repugnante que esse?
Fechando a porta da sala de música atrás dele, ao entrar na biblioteca, Peter Houghton considerou que não era necessário responder.
—Estava assustado — comentou Sua Graça,— e eu temia que visse a solução de todas suas dificuldades. Foi tão evidente durante um minuto inteiro que me parece incrível que não desse conta. Imagino que você também viu. Na verdade, com certeza você viu antes de mim.
—Poderia ter argumentado que todas as tentativas de conseguir que a senhorita Hamil... isto é, que a senhorita Bradshaw se casasse com ele, era uma artimanha para conseguir que partisse tranquilamente e para evitar escândalos na casa — opinou Houghton. — Sim, Sua Graça. Mantive os olhos fechados um minuto e meio inteiro esperando que desse conta. Ficará furioso quando pensar e perceber que poderia ter se livrado de sua armadilha.
—E conhecendo você, Houghton, diria que as notas que tomou estão muito bem escritas e meticulosamente organizadas. Mas as repasse, por favor. Não acredito que vamos precisar, mas quero que estejam prontas se por acaso acontecer.
—Sim, Sua Graça.
—Enquanto isso — Sua Graça sorriu, — acredito que subirei para aliviar a mente de uma dama de uma carga pesada que esteve carregando nos últimos três meses.
Peter Houghton não respondeu quando seu senhor saiu da biblioteca caminhando apressadamente. Nem sorriu divertido, nem desdenhou. Ele sacudiu a cabeça muito triste. Era pior do que havia pensado. Depois de tudo, não era a amante de Sua Graça. Era o seu amor.
Mas Sua Graça era um homem honrado.
Houghton sentiu um profundo pesar pelo seu senhor.

Fleur só tinha dinheiro para chegar até um povoado situado a trinta e dois quilômetros de Heron House. Trinta e dois quilômetros eram ainda um longo caminho, especialmente em tempo frio e instável. E a trouxa parecia mais pesada a cada minuto que passava e o estômago vazio não ajudavam a melhorar a perspectiva de uma longa caminhada.
Mas não havia alternativa. Fleur se dispôs a percorrer os trinta e dois quilômetros. Ela Teve sorte que um fazendeiro a recolhesse em um carro tão incômodo e malcheiroso e assim avançou cinco ou seis quilômetros. E a onze quilômetros de casa a reconheceu outro camponês que conduzia um carro e a levou diretamente até a porta de Heron House. Ela só podia agradecer a ele e esperar que não esperasse que lhe pagasse.
Mas quando o homem virou seus cavalos e partiu rapidamente pensou, com um sorriso perturbado, que possivelmente se veria recompensado com a alegria de ser quem daria a notícia na vila de que ela retornara.
Quando entrou em casa, ficou claro que os criados não sabiam o que fazer. Fleur respirou fundo e decidiu tomar a iniciativa.
—Estou cansada, Chapman — disse ao mordomo, como se acabasse de voltar de um passeio pela tarde. — Que levem água quente ao meu quarto para um banho, por favor, e que vá Annie.
—Sim, senhorita Bradshaw — assentiu o mordomo, olhando-a, segundo a opinião de Fleur, como se tivesse duas cabeças. Chapman voltou a falar quando ela se voltou para subir as escadas.
—Annie já não está conosco, senhorita Isabella.
—Ela partiu? — Perguntou a garota, voltando-se. — Lorde Brockehurst a despediu?
—Ofereceram-lhe um trabalho em Norfolk, na casa onde trabalha sua irmã, senhorita Isabella. Deu-lhe pena partir.
—Então me envie outra das criadas.
Enquanto subia as escadas até seu quarto e olhava todos os objetos familiares a seu redor que eram parte de sua identidade durante muitos anos, Fleur pensou que esperava voltar a ver Annie outra vez.
Foi quase uma surpresa descobrir que não haviam tirado nada de seu quarto. Até mesmo a roupa que guardara em seu baú estava em um armário. depois de tudo, não era necessário que trouxesse a roupa nova de Willoughby Hall. E desejava falar com Annie, que aparentemente era a única que descobriu as joias em seu baú. A criada estava sozinha quando as encontrou? Foi correndo contar a Matthew? Pensou Annie que era culpada?
Provavelmente nunca poderia limpar essas incógnitas. Annie foi para Norfolk. Fleur não recordava de tê-la ouvido mencionar que tivesse uma irmã trabalhando ali. Provavelmente Matthew a demitiu porque era a criada de Fleur e já não a necessitava na casa. Era estranho estar de volta, achar que tudo estava normal, excetuando o fato que a prima Caroline, Amelia e Matthew não estavam em casa. Fleur havia fugido de sua vida há apenas três meses.
E supunha que logo voltaria a temer por ela. Alguém faria algo assim que o impacto de vê-la de voltar dissipasse. Alguém mandaria procurar Matthew ou faria alguma outra coisa para detê-la. Sem dúvida o próprio Matthew assim que sentissem falta dela em Willoughby Hall. Na verdade, talvez não o tivesse deixado muito atrás. Possivelmente não teria nem sequer essa noite para si mesma. Mas estava no único lugar no qual podia estar.
Fleur tomou banho e lavou o cabelo quando lhe trouxeram água, e colocou um de seus próprios vestidos. Quase voltou para seu ser enquanto escovava o cabelo e o penteava sem a ajuda da criada que enviaram.
Não queria pensar no retorno de Matthew. Tinha algumas coisas para fazer antes que ele chegasse. E não queria pensar absolutamente em seu passado mais recente. Não queria pensar em Lady Pamela e nos dias que passaram juntas. Não queria pensar na magnífica casa que chegou a considerar quase sua. E não queria pensar nele. Não, não o faria.
Mas pensou em seu cabelo escuro e forte, em seus traços duros, na cicatriz cruel que lhe atravessava o lado esquerdo do rosto. Pensou em suas mãos de dedos longos e bem cuidados, aquelas mãos que a haviam tocado de uma maneira impessoal, no mais íntimo de seu corpo, e a submetera para infligir-lhe dor e degradação. Mas aquelas mesmas mãos a abraçaram carinhosamente e seguraram seu rosto e afastaram as lágrimas.
Não queria pensar nele. Ou se não podia evitar, recordaria-o dizendo que tirasse a roupa e sentando-se para observar o espetáculo. Ou jogado sobre ela, olhando-o enquanto lhe arrebatava sua virgindade. Ou lhe dizendo que era uma puta e que estava desfrutando do que estava fazendo? mas por acaso ele havia dito alguma dessas coisas? Ou apenas foi parte de seus pesadelos?
Não queria pensar nele. Ou se tivesse que fazê-lo, lembraria-se que era um homem casado, que tinha uma esposa bonita e uma filha que amava muito.
Não queria pensar nele.
—Entra — respondeu quando alguém bateu na porta de seu vestiário.
Era uma criada que informava que tinha visita no andar de baixo.
Levantando-se e endireitando-se pensou que parecia que não ia ter nem sequer uma noite de paz. Já começou o drama. Talvez voltar para casa fosse o mais estúpido que fez em sua vida. Mas precisava voltar. Não restava nenhuma outra alternativa que não fosse perder-se. O mordomo abriu a porta para o salão onde recebiam as visitas e Fleur entrou nele.
—Isabella! — Miriam Booth, uma mulher pequena e bastante gordinha que tinha o cabelo loiro e grosso, mal penteado como de costume em um coque no alto da cabeça, correu para ela estendendo os braços. —Ah, Isabella, querida, acabamos de nos inteirar que estava em casa!
As lágrimas turvaram a visão de Fleur ao envolver-se em um abraço com sua amiga, mas não sem antes ver Daniel de pé em silencio diante da lareira, alto, loiro e bonito com seu negro traje clerical.
—Miriam! — Exclamou Fleur, com a voz abafada pela emoção. — Oh, quanto senti saudade de você!

Capítulo 20

O duque de Ridgeway beijou sua filha e o cachorrinho quando a menina o levantou.
—Não tem aula esta manhã, Pamela? — Ele perguntou. —Talvez tem festa porque está chovendo?
Ela riu.
—Eu vou dizer a senhorita Hamilton para levar-me para a longa galeria para brincar com as cordas outra vez — anunciou, — e a olhar a dama morena do quadro parecida comigo.
—Tente — sugeriu o duque. — É mais provável que você consiga o que quer.
—A senhorita Hamilton deve ter ido deitar-se muito tarde —comentou a senhora Clement mostrando sua desaprovação. — Ainda não saiu do quarto esta manhã, Sua Graça.
O duque franziu a testa.
—E ninguém foi acordá-la?
—Eu bati na porta meia hora atrás, Sua Graça. Mas despertar a preceptora não é meu dever.
—Faça-o agora como um favor que lhe peço. Pamela, quem disse que Pequena pode arrastar o cobertor pelo chão?
Sua filha voltou a rir.
—Nanny disse que podia, porque é velho — respondeu. — Olhe, papai. — E puxou de uma ponta do cobertor enquanto o cachorrinho de outra, grunhindo da excitação. Lady Pamela riu.
A senhora Clement voltou ansiosa alguns minutos mais tarde.
—A senhorita Hamilton não está em seu quarto, Sua Graça. E a cama esta feita, embora nenhuma criada entrou no quarto esta manhã.
O duque olhou pela janela e para a chuva lá fora.
—Deve ter se atrasado no andar de baixo — opinou ele.
Poucos minutos depois, o choque tomou conta da cozinha quando o duque entrou procedente da escada de serviço. Informaram-lhe que a senhora Laycock estava ocupada com as contas da casa no escritório que ficava próximo a seu salão.
—Mas a senhorita Hamilton não desceu para tomar o café da manhã esta manhã, Sua Graça — respondeu a governanta em resposta a sua pergunta. Ela levantou-se quando ele entrou.
—Presumi que estava comendo na sala de jogos com Lady Pamela. Como ás vezes ela faz.
—Venha comigo, senhora Laycock, por favor — pediu o duque, e se dirigiu para a escada de serviço, passando pelo piso principal e até o andar da sala de jogos.
Bateu na porta de Fleur antes de abri-la e entrou.
—Alguma criada veio a este quarto esta manhã? — Perguntou ele.
—Duvido muito, Sua Graça — respondeu a governanta.
Não havia escovas na penteadeira. Nem presilhas, perfumes e nenhum dos outros objetos que sempre abarrotavam o vestiário de sua esposa. Cruzou o quarto até o armário e abriu a porta. Havia um traje novo de equitação verde jade pendurado em seu interior, e um vestido de seda azul desbotado e amassado. O duque tocou este último durante alguns instantes.
—Ela se foi — disse ele.
—Partiu, Sua Graça? — A senhora Laycock abriu uma gaveta da penteadeira. Estava vazia. — Aonde poderia ter ido? E por quê?
—Estúpida mulher — murmurou o duque, fechando a porta do armário e ficando diante dele.— Aonde foi? Boa pergunta. E como partiu daqui? A pé? Levaria quase a noite toda para chegar a Wollaston.
—Mas por que teria que partir? — A senhora Laycock franziu a testa, pensativa. — Parecia estar feliz aqui, Sua Graça, e era muito querida.
—Volte para baixo, Senhora Laycock, por favor, — ordenou o duque. — Averigue o que puder com os criados. Qualquer coisa. Irei ao estábulo perguntar aos cavalariços.
—Sim, Sua Graça. — A governanta adotou uma expressão de estranheza e saiu do quarto.
Nenhum dos cavalariços sabia nada. O duque pensou que a insensata devia ter fugido a pé. E se perguntou em que momento da noite começou a chover. E aonde ia. Para Londres, perder-se novamente?
Desta vez seria mais difícil encontrá-la. Sem dúvida manteria distância de agências de emprego e teatros... elegantes.
E se perguntou se Houghton já lhe teria pago.
—Driscoll — chamou, voltando-se para o cavalariço mais jovem, — vá a casa do guarda, por favor. Quero saber se a senhorita Hamilton passou pelos portões e quando o fez.
—Sim, Sua Graça — disse o rapaz, mas ficou onde estava em vez de sair imediatamente.
O duque o olhou fixamente.
—Posso falar com Vossa Graça?
O duque saiu do pátio do estábulo, ignorando a chuva. Ned Driscoll o seguiu.
—Eu levei a senhorita Hamilton a Wollaston esta manhã antes que amanhecesse, Sua Graça, na calesa — ele explicou, e acrescentou sem vir ao caso. — Se molhou.
—Com que propósito?
Nervoso, o rapaz retorceu a boina entre suas mãos.
—Para tomar a diligência, Sua Graça — respondeu ele.
O duque o olhou fixamente outra vez.
—E quem te ordenou pegar a calesa?
Ned Driscoll não respondeu.
—Por que você mentiu para mim há alguns minutos? — Perguntou o duque.
Novamente não houve resposta.
—Um ou mais dos outros rapazes devem saber que você saiu — comentou o duque.
—Sim, Sua Graça.
—Assim eles também mentiram.
Ned Driscoll olhava como sua boina dava voltas em suas mãos.
—Devem imaginar que lhe descobririam — continuou o duque. — Que o despedirão.
—Sim, Sua Graça.
—Pagou-lhes?
—Não, Sua Graça — respondeu o rapaz, indignado.
O duque olhou para o rapaz, de pé com os pés firmes sobre as pedras do pátio do estábulo, de olhos baixos, a boina que dava voltas e mais voltas em suas mãos, o cabelo molhado grudado a cabeça e a camisa nos ombros e no peito. Ele lembrou-se de uma manhã em que o mesmo jovem estava do lado de fora do cercado rindo com Fleur e admirando-a abertamente enquanto ela acariciava o cachorrinho com um dedo do pé.
—Quero que minha carruagem de viagem esteja preparada em frente da porta em uma hora. Informe Shipley que se prepare para assumir as rédeas. Você vai acompanhá-lo. Provavelmente passaremos vários dias fora daqui. Terá que preparar uma bagagem.
—Sim, Sua Graça. — Ned Driscoll o olhou receoso. Ele deixara cair o boné das mãos.
—Se a perdemos e não a encontrarmos— ameaçou Sua Graça friamente antes de virar-se, — farei-te mingau na estrada, Driscoll, e te farei ir a pé e amarrado junto ao Shipley na viagem de volta.
O duque voltou para casa e comprovou aliviado que sua esposa se levantara aquela manhã e parecia estar consideravelmente melhor. Ele sentiria-se culpado se partisse e ela continuasse indisposta. Sybil estava em uma sala jogando cartas.
—Sybil, posso falar com você um momento, por favor? — Ele perguntou depois de ficar atrás de sua cadeira até o final da rodada que estava jogando.
—Jessica a substituirá — comentou o senhor Penny. — Jessica?
O duque tirou sua esposa do aposento e se dirigiram para sua salinha.
—Eu preciso partir por alguns dias por um problema inesperado. Você está bem o suficiente para atender os convidados sozinha?
—Se você lembrar bem, quando eu os convidei, você não estava em casa e não esperava sua volta, Adam. Aprendi a estar sozinha e não esperar sua ajuda.
—Espero voltar dentro de uma semana.
—Não tenha pressa. Todos os convidados partirão logo. Na verdade, Lorde Brockehurst avisou que precisa partir hoje. Provavelmente quando você voltar eu mesma terei ido, Adam. Eu partirei com Thomas.
Ele abriu a porta que dava para a sala de sua esposa e a seguiu para dentro.
—Quando eu voltar — propôs ele, — levarei Pamela e você a Bath por algumas semanas. As águas e a mudança de ares fará bem a você, e Pamela desfrutará de algo diferente. Talvez possamos começar outra vez, Sybil, e transformar nosso casamento em algo pelo menos viável.
—Eu vou ser feliz — comentou ela. — Antes que volte, Adam, vou ser feliz e vou continuar sendo pelo resto de minha vida.
—Sybil. — O duque a agarrou pelos ombros e olhou em direção a seu rosto desdenhoso: era encantadora, frágil e juvenil. — Eu gostaria de poupá-la da dor. Gostaria de poder voltar e fazer tudo muito diferente. Ele não vai levá-la com ele.
Sybil sorriu.
—Isso vamos ver — disse ela.
Ele apertou-lhe os ombros e saiu da sala. Talvez não devesse partir. Deveria mandar Houghton procurar Fleur e ficar com sua esposa. Ela precisaria de alguém nos próximos dias. Mas ele era a última pessoa de quem precisaria. Quando Thomas partisse, ela o odiaria com intensidade renovada. Provavelmente nunca poderia obter nada parecido com paz entre ambos.
Desceu os degraus de dois em dois para despedir-se de Pamela e assegurar-lhe que não passaria muito tempo fora. Mesmo assim, deixou-a chorando depois que a menina lhe golpeasse no peito com os punhos e dissesse que o odiava e que não importava se partisse para sempre.
—Quero a senhorita Hamilton — exigiu ela zangada.
E ele nem sequer podia lhe assegurar que voltaria a trazer Fleur com ele. Acontecesse o que acontecesse, não podia garantir.
O duque partiu de Willoughby antes de Lorde Brockehurst.
Na parada da diligência em Wollaston, descobriu que Fleur comprou um bilhete para uma cidade perto de Wiltshire, e imaginou que não devia estar muito longe de Heron House. Pelo menos ela não foi para Londres. Mas a verdade é que entre tudo o que imaginou nas últimas horas, se agarrou com mais firmeza a crença de que ela foi para Heron House. Se não tivesse encontrado nenhum rastro dela, teria apostado em ir por ali.
Já fugira uma vez, e as consequências foram terríveis. Nunca faria isso novamente. Não Fleur. O duque pensou que estava começando a entendê-la bem.
Estúpida mulher! Continuava sem confiar nele? Ainda acreditava que pretendia fazer dela sua amante? Não percebera o esforço sobre-humano para conter-se que fez naquela noite na biblioteca para enviá-la sozinha para a cama?
Daquela vez em que a desejou muitíssimo e sabia que seria fácil seduzi-la?
Poderia tê-la naquela noite. Poderia ter entesourado essa lembrança.
O duque estava concentrado na chuva, na neblina e nuvens do outro lado da janela. Antes que a carruagem percorresse nem sequer um quilômetro, devia ter claro por que ia fazer essa viagem. Ele o fazia para informar a uma moça inocente que já podia deixar de viver com pesadelos, que era livre. Ia preparar-lhe um futuro provisório até que pudesse herdar sua fortuna e viver de maneira independente.
Ia porque era, ou foi, seu senhor, porque dependia dele, e ele se preocupava com todos seus criados. Não ia porque a amava.
Embora fosse assim.

—Onde você esteve? Ficamos tão preocupados com você! Mas é maravilhoso vê-la novamente! — Miriam Booth colocou as mãos sobre os ombros de sua amiga e se afastou dela.
Fleur riu trêmula e tirou um lenço do bolso para assoar o nariz.
—Eu estava assustada e me comportei como uma estúpida — disse finalmente. — Mas estou feliz por estar de volta.
Ela olhou ao redor da sala para a figura silenciosa do reverendo Daniel Booth.
—Por que você não veio a mim, Isabella? — Perguntou ele.
—Eu estava assustada. Matei Hobson.
—Mas tenho certeza que foi um acidente. Não pensava matá-lo, não é?
—Claro que não pensava em matá-lo — interveio Miriam, colocando um braço protetor em torno dos ombros de sua amiga. — Eu sempre achei que era a ideia mais ridícula que já ouvi na minha vida.
—Queriam evitar que você fosse viver comigo, não é, Isabella?
—Sim— respondeu Fleur. Ela fechou os olhos por um momento e os abriu para olhar para o reverendo Booth.
—Mas ao fugir, fez com que parecesse que era culpada — comentou ele. — Gostaria que tivesse ido ver-me.
—E teria me ajudado?
—Meu trabalho consiste em ajudar as pessoas com problemas — respondeu muito sério. — Em seu caso, Isabella, teria sido mais que um trabalho.
—Ah, não sabia! — Exclamou ela. —Pensei que teria me chamado de assassina e me entregaria a Matthew.
—Acredito que o único pecado de que é culpada é de sentir uma paixão descontrolada — opinou o reverendo Booth. — Isso não é exatamente assassinato.
—Paixão descontrolada! — Miriam zombou. — E o que supunha que ia fazer, Daniel? Lorde Brockehurst foi muito pérfido ao esperar que Isabella ficasse na casa sozinha com ele. Se tivesse tentado deter-me em tais circunstâncias, eu provavelmente teria pego um atiçador e teria enfrentado ele e seu criado.
—Miriam! — Exclamou seu irmão em tom de recriminação.
—Não roubei as joias — continuou Fleur. — Nem sequer sabia que me acusaram disso até que Matthew me contou há duas semanas. Acredita em mim, Daniel? — Ele deu alguns passos na direção dela.
—Claro que acredito, se você diz — respondeu ele com doçura.
—Bom, eu acredito mesmo sem que você diga — acrescentou Miriam com veemência. — Só a ideia já é absurda! Viu Lorde Brockehurst, Isabella? E voltou a escapar dele?
—É uma longa história — resumiu Fleur. Ela cobriu o rosto com as mãos. — Ah, como é bom estar com amigos e não ter que esconder a verdade. Precisava voltar para ver outra vez aonde tudo aconteceu, para preencher algumas lacunas na memória, para fazer algumas perguntas.
Miriam lhe deu reconfortante tapinhas nas costas
—Ajudaremos no que pudermos. Estávamos ansiosos por isso. Não é, Daniel?
—Contarei-lhes tudo — disse Fleur, e levantou os olhos para o reverendo Booth. — Mas, podem fazer algo por mim primeiro?
—O quê? — Perguntou ele.
—Eu preciso voltar a entrar na biblioteca. Preciso ver aonde tudo aconteceu. Tenho medo de ir sozinha.
Miriam voltou a colocar o braço em volta de seus ombros. Mas o reverendo Booth se moveu e estava junto dela, estendendo seu braço. Fleur deslizou prazerosamente o seu ao redor do reverendo e olhou seu rosto sério.
—É de elogiar sua disposição para enfrentar seu passado — comentou o homem. — Apoie-se em mim, Isabella, eu a ajudarei.
A biblioteca era, é claro, nada mais que a biblioteca, como sempre foi. Nada havia mudado. Não havia sangue na lareira, não havia sinal de luta, não havia fantasmas espreitando atrás das cortinas ou entre os livros. Era só a biblioteca, um aposento que ela sempre gostou.
Soltando-se dos braços de seus amigos e esquecendo até mesmo suas presenças, Fleur pensou que era ali aonde estava, a poucos centímetros do fogo, olhando para Matthew furiosa e o acusando de comportar-se como um tutor medieval que só faltava prendê-la para restringir sua liberdade.
E Matthew dissera que não lhe deixaria rebaixar-se a viver com Miriam Booth e que não se casaria com o Daniel Booth com uma licença especial nem fugindo ou de nenhum outro modo. Não sairia dessa casa.
Ficaria ali, já que aquele era seu lugar.
Apesar da raiva que sentia, Fleur entendeu o olhar no seu rosto. E entendeu o que queria dizer quando disse que quando partisse da casa nenhum outro homem a desejaria. Matthew, há vários anos, mostrava-se conflitivo e a lhe desagradar totalmente pelas atenções indesejadas. Mas nunca o temeu. Nunca temeu por sua virtude. Mas imaginava que as circunstâncias o inflamaram. Além dos criados, estava sozinha em casa. Vira em seu rosto que pensava tomá-la... naquela noite e naquela mesma sala. E entendeu que não era uma decisão irrefletida de sua parte. Não era próprio dele vir com o criado ao andar de baixo. Fleur se perguntava por que Hobson estava ali, fingindo que estava ocupado com alguma coisa no outro extremo da sala. Mas finalmente compreendeu.
E o medo se misturou com a fúria. Ela viu o olhar que Matthew lançou a Hobson e sentiu, mais que ouviu, que o homem se aproximava por trás. E soube exatamente o que ia acontecer. Ainda não podia recordar o resto, embora estivesse olhando em direção ao lugar aonde aconteceu tudo. Só recordava que alguém gritou e agitou os braços. E Hobson desabando no chão, como sua cabeça batia na quina da lareira, o rosto lívido, e o olhar dirigido para cima. E Matthew inclinando-se sobre ele, ajoelhando-se junto a ele. E olhando-a.
"Espero que esteja satisfeita — dissera Matthew com um tom de voz estranho e tenso. — Você o matou."
E o pânico se apoderou dela. E a pouca razão que restava advertiu-lhe que não podia recorrer a Daniel, nem a Miriam ou a ninguém que conhecesse... porque era uma fugitiva da lei, uma assassina e a enforcariam se a pegassem.
—Não foi a razão, mas o diabo que lhe aconselhou, Isabella — disse a voz tranquila do Daniel a suas costas, e ela percebeu que falou todas suas lembranças em voz alta.
—Oh, Isabella! — Exclamou Miriam, cheia de angústia. — Como você sofreu! E que vilão é esse Lorde Brockehurst! Eu sempre achei que ele era culpado, mas apenas de ser um tirano. É ele quem merece ser enforcado. Não, Daniel, estou falando sério. Absolutamente. E, em seguida, colocar as joias no baú de Isabella se por acaso a acusação de assassinato não fosse suficiente.
O reverendo Booth lhe ofereceu o braço e voltaram para o salão. Fleur desejou que não se comportasse de um modo tão correto. Ela sentia uma necessidade desesperada de um abraço, de apoiar a cabeça em seu ombro. Mas de qualquer maneira era uma ideia inútil. Embora ele não acreditasse que fosse culpada de assassinato e roubo, agora havia outra coisa que o separava dele para sempre.
Não fazia sentido continuar amando Daniel.
Contou-lhes tudo, omitindo apenas a maneira que ela conheceu o Duque de Ridgeway e a verdadeira razão pela qual Peter Houghton estava na agência de emprego da senhorita Fleming.
—Assim voltei para casa — disse quando chegou ao final de sua história. — Suponho que Matthew estará aqui amanhã, ou talvez até mesmo esta noite. Suponho que amanhã a esta hora estarei presa em algum lugar.
—Tolices — afirmou Miriam. — Mas você precisa vir para a reitoria esta noite, Isabella. Estará mais segura ali.
Fleur meneou a cabeça.
—Não. Eu vou ficar aqui. Mas irei amanhã na primeira hora. Quero ver a tumba de Hobson. Preciso vê-la. Muitas pessoas compareceram ao funeral, Daniel?
—Foi velado aqui. Mas, eles enviaram seu corpo para sua cidade natal.
Fleur fez uma careta.
—Mas onde? Ah, preciso descobrir. Preciso ver seu túmulo. Acredito que não serei capaz de aceitar a realidade de tudo isto até que o faça. Não queria matá-lo, vocês sabem. Estava apavorada, e suponho que quis machucá-lo para poder escapar. Mas nunca quis matá-lo. — Ela fechou os olhos. — Você pode descobrir para onde eles o levaram, Daniel?
—Não sei como. De qualquer maneira, acredito que é melhor você ficar longe do local, Isabella. Se houver membros de sua família lá e vê-la e descobrir quem você é, sofrerão muito.
Fleur olhou para as mãos que tinha apertadas no colo. Miriam deu-lhe uns tapinhas enérgicos.
—Chega por hoje. Você deve estar esgotada, pobre Isabella. E se não vir a reitoria, então viremos o quanto antes possível pela manhã para ajudá-la a enfrentar Lorde Brockehurst, quando ele chegar.
O reverendo Booth ficou em pé.
—Parece-me que é o melhor que podemos fazer, se estiver segura que não vem conosco. Durma bem, e não se preocupe. Eu mesmo falarei na corte se tiver que fazê-lo, e falarei bem de você, — levou um dos dedos dela aos lábios. —Boa noite, Isabella.
—Boa noite, Daniel.
Miriam a beijou e a abraçou.
Pela primeira vez em muito tempo, Fleur dormiu profundamente, sem que os sonhos ou os pesadelos a incomodassem.

O duque de Ridgeway ficou na estalagem da aldeia durante a noite. Poderia ter continuado até a Heron House, mas teria chegado por volta da meia-noite, e decidiu esperar até a manhã seguinte.
Fleur não corria perigo. Sabia que se adiantou a Lorde Brockehurst, embora o cavalheiro tivesse decidido voltar para casa. Além disso, não pensou que Brockehurst fosse tentar nenhuma loucura referente a Fleur Hamilton. Fleur Bradshaw. Isabella Fleur Bradshaw.
Fleur.
Era quase metade da manhã quando sua carruagem o conduziu pelo caminho sinuoso e arborizado para a mansão palladiana de Heron House. Estava ladeada por estufas para cítricos e outros frutos de um lado e estábulo no outro. Na frente da fachada havia vistosos jardins de desenho formal. O sol tentava romper as nuvens, quando a carruagem parou diante dos degraus de mármore que conduziam a porta principal.
—A senhorita Bradshaw, por favor — disse ao mordomo, entregando-lhe o chapéu e bengala.
—Receio que a senhorita Bradshaw esteja em Londres com Lady Brockehurst, senhor — disse o mordomo, inclinando a cabeça.
—A senhorita Isabella Bradshaw — se corrigiu Sua Graça.
—E a quem anuncio? — Perguntou o homem.
—Não diga — respondeu o duque de maneira cortante. —Acompanhe-me até a sala aonde ela se encontra, por favor.
A atitude do duque fez com que o homem virasse e o conduzisse por um corredor de azulejos para uma sala na frente da casa. O duque achou que ela devia tê-lo ouvido chegar. Devia tê-lo visto chegar. Adiantou-se ao mordomo, entrou na sala que obviamente era o salão de dia. A luz do sol estava filtrando-se por suas janelas largas. O duque pensou que de repente por fim sairiam as nuvens.
Ela estava parada em frente a uma cadeira que provavelmente acabava de se levantar, do outro lado do salão. Estava muito reta, com o queixo erguido, mãos entrelaçadas frouxamente em seu colo. Ela usava um lindo vestido de musselina estampado, e o cabelo recolhido para trás com ondas suaves e cachos.
Sua Graça pensou que estava mais bonita do que jamais a tinha visto, embora seus olhos encontraram o rosto pálido e a mandíbula apertada. E então a expressão dela mudou, a tensão quase desaparecendo de seu rosto e do seu corpo.
—Eu pensei que fosse Matthew. Que fosse a carruagem de Matthew. Que tivesse chegado.
Ele deu um passo para ela, pensando que ela estava prestes a desmaiar. Mas em vez disso, gemeu e atravessou correndo o salão em direção a ele com os braços estendidos.
—Ah, eu pensei que fosse Matthew! — Exclamou quando os braços do duque se fecharam em torno de seu corpo tenso, e suas narinas se encheram com a doce fragrância de seu cabelo. — Pensei que fosse Matthew!
—Não — ele sussurrou em seu ouvido. — Sou eu, meu amor. Ele não voltará a machucá-la. Ninguém mais voltará a machucá-la.
Ela olhou para ele, parecendo confusa, e tocou a cicatriz em seu rosto com a ponta dos dedos.
—Eu pensei que nunca mais voltaria a vê-lo — sussurrou.
Ele engoliu em seco quando viu os olhos dela cheios de lágrimas.
—Estou aqui. Você não sente os meus braços ao seu redor? Está a salvo, meu amor.
Ele baixou a cabeça e a beijou.
E ouviu como voltou a gemer.

Capítulo 21

Foi uma manhã frustrante. Fleur acordou com energia e esperança renovada depois de uma boa noite de sono. A chuva tinha parado, mas o céu continuava nublado.
Ela lembrou a visita da noite anterior e sorriu ao pensar que ainda tinha amigos.
Mas, ao descer para tomar o café da manhã, disse a si mesma que tinha muito pouco tempo. Matthew chegaria em casa a qualquer momento. Devia ter adivinhado que voltaria para Heron House em vez de Londres. Ou não?
Talvez pensaria que tivesse fugido outra vez, esperando que não a encontrassem jamais. Londres seria o destino evidente se esse fosse o caso. Talvez a perseguisse até ali. A não ser que lhe ocorresse passar pelo escritório da diligência para averiguar o destino do bilhete que comprou.
Annie partira, isso a incomodava. Havia muitas perguntas em relação as joias que gostaria de fazer a sua antiga criada. Mas não adiantava lamentar-se.
—Chapman, — perguntou ao mordomo no café da manhã, — aonde levaram o corpo de Hobson para enterrá-lo? — E corou ante a necessidade de falar tão abertamente de um tema que devia ter sido a fofoca na ala de serviço.
—Não sei exatamente, senhorita Isabella.
—Então descubra quem sabe.
—Eu não tenho certeza que alguém saiba.
Chapman nunca foi o homem mais falador do mundo.
—Alguém teve que acompanhar o corpo. E talvez alguém assistiu seu funeral. Algum de seus amigos? O próprio Lorde Brockehurst?
—Sua senhoria, sim, senhorita. Flynn conduziu a carruagem. Agora está com sua senhoria.
—O corpo deve ter ido separado — especulou ela. — De carruagem, suponho. Quem o conduziu?
—Yardley, senhorita.
—Então traga-me Yardley, por favor.
—Ele partiu, senhorita Isabella. Foi para Yorkshire, acredito. Arrumou um novo emprego ali.
—Entendo. Suponho que se quiser falar com a pessoa que amortalhou o corpo de Hobson e o colocou no caixão, essa pessoa também partiu.
—Foi Yardley, senhorita, com sua senhoria. Sua senhoria estava muito afetado pelo que aconteceu.
Fleur deixou o guardanapo na mesa. Perdera o apetite.
No estábulo escutou a mesma história. Ninguém sabia aonde levaram Hobson para enterrá-lo. Yardley o levou. E Flynn levou sua senhoria no dia seguinte. Ninguém recordava que Hobson houvesse dito alguma vez de onde veio.
Finalmente Fleur voltou para casa e entrou no salão de dia, que sempre foi o seu favorito. A prima Caroline nunca gostou, alegando que o sol direto lhe causava dores de cabeça. E Amélia geralmente não acordava pela manhã.
Assim Fleur, dirigindo-se até a porta e olhando em direção aos canteiros cuidados de flores e as sebes baixas e recortadas dos jardins, recordou que sempre sentiu como se a sala fosse dela. Parecia que não conseguia descobrir nada. E o que era ainda mais frustrante, não saber o que tinha que descobrir. Ela sabia de quase toda a história. Matou Hobson por acidente. Matthew fez com que levassem o corpo até sua terra natal para enterrá-lo. Matthew também colocou as joias da prima Caroline em seu baú e assegurou que alguém descobrisse que estavam ali. Embora pudesse falar com Annie, não podia fazer nada para demonstrar que não as colocou ela mesma.
Talvez, depois de tudo, foi uma estúpida por não ter fugido para Londres quando teve a oportunidade. As criadas a olhavam como se esperassem baixar a vista e descobrir que brandia um machado em uma mão. Quando Matthew chegasse tudo começaria. Ou melhor tudo acabaria. E apesar do que Daniel e Miriam disseram na noite anterior, duvidava que alguém pudesse salvá-la. Era incapaz de demonstrar sua inocência.
Mas não. Ela não podia correr mais. Estava aonde deveria estar.
O pensamento de resignação silenciosa durou apenas um instante. Uma carruagem surgiu ao longe entre as árvores do caminho e se aproximava da casa. As mãos de Fleur se esfriaram de repente e sentiu o coração bater dolorosamente contra as costelas e nos ouvidos. O rosto também ficou gelado. E um zumbido embotava os ouvidos. Afastou-se da janela e sentou-se na beira da cadeira, com as mãos apertadas no regaço e as costas retas.
Ela se concentrou em não desmaiar e em acalmar-se. Restavam no máximo cinco minutos. Matthew devia vê-la tranquila. Não devia encontrá-la em atitude servil nem suplicante. E não devia aceitar nenhum tipo de proposta dele, mesmo que seguisse disposto a oferecer. Não devia.
"Por favor, Deus — rezou em silêncio, — dê-me a força para não perder a integridade nem perder a mim mesma. Por favor, Deus."
Não voltou a levantar-se nem olhou pela janela, mesmo quando o ruído dos cascos e as rodas da carruagem se aproximaram. Endireitou os ombros, levantou o queixo, e se concentrou em respirar lenta e profundamente. Levantou-se quando a porta se abriu e ele passou por Chapman e entrou na sala.
Fleur levou alguns minutos para perceber que não era Matthew. A princípio seus olhos não eram capazes de transmitir a mensagem a seu cérebro. E então sentiu como perdia o fôlego.
—Eu pensei que fosse Matthew. Que fosse a carruagem de Matthew. Que tivesse chegado.
Mas não era Matthew. Era tudo o que Matthew não era. Era a segurança, o consolo e o carinho. Era sua casa. Era tudo o que no mundo era de esperança e clareza.
Deu um passo para ela e abriu os braços, e ela se deixou estreitar por esses braços sem saber sequer como eliminou a distância entre os dois.
—Ah, pensei que fosse Matthew! — Exclamou Fleur, sentindo os afetuosos braços dele a seu redor, os poderosos músculos de suas coxas contra as dela, e a força de seu peito largo contra os seus, e a fragrância desse perfume genuinamente seu. — Pensei que fosse Matthew.
Ela sentiu o hálito quente contra seu ouvido.
—Não. Sou eu, meu amor.
Ela tocou o ombro dele, e sentiu a sua força e firmeza, enquanto ele murmurava palavras tranquilizadoras. E ela olhou para o rosto sombrio e duro que pensou nunca mais voltar a ver, o rosto no qual tentou não pensar absolutamente. Ela ergueu a mão para tocar a cicatriz que já conhecia muito bem.
—Eu pensei que não voltaria a vê-lo — murmurou. O milagre se encontrava diante de seus olhos, nas pontas de seus dedos, em seu corpo, em seu nariz. Um autêntico milagre. Mas ainda não tinha atingido o cérebro. E mais. O rosto do duque se tornou impreciso diante de seus olhos.
—Estou aqui — disse ele.
Ela contemplou sua boca enquanto falava, escutou sua voz profunda, olhou-o nos olhos escuros e fechou os seus.
E de repente se sentiu segura e mais ainda: envolta em carinho e força. Fleur beijou o duque. E sentiu uma pontada de desejo que descia pela garganta e os seios e chegava até o ventre e entre as pernas.
Manteve os olhos fechados e jogou a cabeça para trás quando a boca dele se afastou da sua e começou a dar-lhe beijos quentes pelo pescoço. O duque jogou os ombros para trás com suas fortes mãos.
—Está a salvo, meu amor — ele sussurrou. — Ninguém voltará a machucá-la.
Meu amor. Meu amor. Era o duque de Ridgeway. Em Heron House. Percorrera todo o caminho desde Willoughby Hall. Fleur o afastou, deu-lhe as costas, e atravessou a sala até uma das janelas. Houve um silêncio.
—Desculpe — veio a voz do outro lado da sala. Ele não foi atrás dela, como, em parte, esperava. — Não queria que acontecesse isso.
—E o que queria que acontecesse? — Perguntou Fleur. — O que está fazendo aqui? Não roubei nada de sua casa, exceto talvez, a roupa que comprei em Londres com seu dinheiro. Pode levá-la agora se quiser.
—Fleur? — falou ele em voz baixa.
—Meu nome é Isabella — interrompeu ela. —Isabella Bradshaw. Só meus pais me chamavam de outra maneira. Você não é meu pai.
—Por que você fugiu? Não confiou em mim?
—Não — disse ela, virando-se para olhá-lo. Obrigou-se a recordar que foi seu cliente na estalagem Touro e o Corno, e olhou para aquelas mãos que sempre a assustaram muito. —Por que teria que confiar em você? E não fugi. Eu deixei de fugir. Voltei para casa. Eu nasci aqui, já sabe. Nesta mesma casa. Este é meu lugar.
—Sim. Por fim a vejo em seu próprio ambiente. Está esperando que seu primo volte para casa? Está esperando o pior?
—Isso não é assunto seu. Por que veio? Eu não voltarei com você.
—Não. Vou levá-la novamente, Fleur. Seu lugar não está na sala de estudo da minha filha e não a levarei para nenhuma de minhas casas nunca mais.
Ela se virou para uma mesa do lado e começou a mover as flores em um vaso que estava lá. Reprimiu uma pontada de dor pouco razoável.
—Nem tentarei colocá-la em outra casa, se isso for o que teme — continuou o duque. — Vim para liberá-la, Fleur.
—Nunca estive submetida a você — replicou Fleur. —Eu ofereci um serviço adequado em troca de todo o dinheiro que me deu. Pode levar a roupa quando partir. Não preciso que me liberem. Nunca estive amarrada a você.
Ele deu outro passo em frente, mas bateram na porta, e ela ficou imóvel quando esta se abriu.
—O reverendo e a senhorita Booth vieram falar com você, senhorita Isabella — anunciou o mordomo, lançando um olhar breve no duque.
—Faça-os entrar, por favor — pediu ela, sentindo-se muito aliviada. E correu ao outro lado da sala para abraçar Miriam e sorrir para Daniel.
O duque se dirigiu até a janela aonde ela esteve antes, e ficou ali de pé.
—Miriam, Daniel — começou Fleur, — posso apresentar-lhes Sua Graça, o duque de Ridgeway? Meus amigos Miriam e o reverendo Daniel Booth, Sua Graça.
Todos fizeram as reverências correspondentes e trocaram olhares de curiosidade.
—Sua Graça veio para assegurar-se de que cheguei em casa em segurança — explicou Fleur. — Agora que fez, está prestes a sair.
—Não estou a ponto de fazer tal coisa— a corrigiu o duque, apertando as mãos nas costas. — Seu reencontro de agora não foi especialmente emotivo. Presumo que já se viram antes, desde que voltou, senhorita Bradshaw?
—Estivemos aqui ontem à noite — interveio o reverendo Booth, dando um passo adiante. — A senhorita Bradshaw está de volta entre as pessoas que se preocupam com ela, Sua Graça. Cuidaremos dela. Não tem que se preocupar mais.
O duque assentiu.
—Alegrara-se então por ela — começou, —ao saber que Lorde Brockehurst fará uma declaração pública nos próximos dias em que informará que a morte de seu criado foi acidental, descartando a ideia de assassinato, e que o alarme que provocou com o desaparecimento das joias foi um alarme falso. Na verdade, não houve roubo absolutamente.
Fleur tinha as mãos fortemente agarradas as de sua amiga, que sorria.
—Se não fizer essa declaração — continuou o duque, — embora não acredito que exista a possibilidade que não seja assim, então haverá um julgamento no qual com toda probabilidade a senhorita Bradshaw ficará absolvida e se apresentarão diversas acusações para levar Lorde Brockehurst a julgamento.
Os braços de Miriam rodeavam Fleur, e estava rindo.
—Eu sabia. Eu sabia que tudo aquilo era ridículo. Isabella, minha querida, você está como um bloco de gelo.
—Espero que não esteja dando esperanças a senhorita Bradshaw sem um bom motivo, Sua Graça — comentou o reverendo Booth.
—Eu não faria semelhante crueldade — se defendeu o duque. Fleur o olhou. — Tive uma longa conversa com Brockehurst e obtive suficiente informação sobre o que aconteceu para que não prossiga com as medidas que estava tomando. E houve uma testemunha de nossa conversa, de cuja presença ele não foi consciente durante a maior parte do tempo.
—Matthew reconheceu a verdade? — Perguntou Fleur.
—Para efeitos práticos — disse Sua Graça. — Não acredito que precise temer nada mais dele, Fl... senhorita Bradshaw.
Ela cobriu o rosto com as mãos e escutou a risada alegre de Miriam. Percebeu que Daniel atravessava a sala para apertar a mão do duque.
—Que manhã mais maravilhosa! — Exclamou Miriam. — Senti-me culpada por fechar a escola, mas agora estou muito contente de tê-lo feito.
Sua voz parecia muito distante.
—Precisa sentar-se— disse outra voz, e as mãos fortes dos homens agarraram a senhorita Bradshaw pelos braços e a sentaram em uma cadeira.
Uma dessas mãos a agarrou pela nuca e a fez baixar a cabeça até quase os joelhos.
— Tudo terminou, Fleur. Eu disse que estava a salvo.

O duque de Ridgeway gostou de Miriam Booth. Parecia o tipo de amiga que Fleur precisava. Era sensata, prática, alegre, carinhosa. Uma vez que Fleur se recuperou depois de estar a ponto de desmaiar, Miriam a levou para o quarto por um momento, apesar de seus protestos.
Mas o duque não tinha certeza se gostava de Daniel Booth. Ele era loiro, atraente, calmo e amável. Sim, possuía todas as qualidades necessárias para fazer as mulheres se apaixonarem por ele. Sua Graça reconheceu que, combinadas com seu traje clerical, devia ser irresistível para a maioria das mulheres.
E Fleur se importava. Assim que as mulheres saíram do quarto, fez perguntas precisas e perspicazes até obter toda a história.
—Um homem como esse não deveria ser o líder social de uma comunidade — comentou o reverendo. — Teriam que processá-lo. Infelizmente, isso causaria mais transtornos para Isabella. Suponho que terá que se conformar com o acordo obtido.
—Eu também cheguei a mesma conclusão — afirmou o duque. — Pessoalmente eu gostaria de esmagar o homem, mas, sim, que não seria o melhor para a senhorita Bradshaw.
O reverendo Booth o olhou diretamente, com olhos que pareciam ver através de sua alma.
—A senhorita Bradshaw não deveria permanecer aqui — observou o duque, — embora eu tenho certeza que seu primo não seja mais um perigo para ela. Não seria apropriado para uma dama de seu status voltar para minha casa para trabalhar como preceptora de minha filha. Tenho intenção de encontrar Brockehurst e convencê-lo a entregar-lhe uma atribuição considerável até que adquira o controle de sua fortuna aos vinte e cinco anos. Se não conseguir, tentarei que trabalhe como acompanhante de uma dama mais velha.
Aqueles olhos de novo voltaram a ver o interior de sua alma e viu tudo.
—Acredito que fez mais do que se supõe que deve fazer um senhor por aqueles que dependem dele — comentou o reverendo Booth. — Isabella teve sorte. Mas agora está entre amigos. Minha irmã e eu falamos de planos possíveis para seu futuro. Agora que sabemos que não irá a julgamento, podemos lhe apresentar esses planos e ver se os aceita.
O duque pensou que um destes planos implicava que o reverendo se casasse com Fleur. E talvez ela também quisesse casar-se com ele, se conseguisse superar um fato do que havia acontecido em sua vida em Londres. E isso poderia ser o melhor que poderia acontecer-lhe. Ela ia casar com esse homem antes que a morte do valete de Brockehurst mudasse tudo. Provavelmente o amava, e ele parecia se importar com ela.
O duque não tinha certeza se gostava de Daniel Booth, e devia partir. Não tinha mais razão para ficar, especialmente se seus amigos estavam dispostos a ajudá-la a estabelecer-se em um lugar que não fosse Heron House. Teria que esperar até que Fleur voltasse a aparecer, despedir-se formalmente dela, em seguida, começar sua jornada de volta para casa. Poderia voltar para Willoughby em menos de uma semana depois de partir. Voltar para Pamela. Antes possivelmente que Thomas partisse, a tempo de oferecer a Sybil algum tipo de apoio na dor que sofreria quando ele partisse. Embora ela não lhe permitiria que se aproximasse dela, é claro.
Teria que voltar e tentar começar a esquecer. Devia fazer logo. Por que adiar?
Mas aceitou um convite para almoçar e voltou a contar sua história a Fleur, que mal falou, e a senhorita Booth, que mostrava uma enorme curiosidade. Fleur não parecia tão aliviada e animada como deveria estar. Mas teria que pensar que acabava de livra-se da tensão dos últimos meses. Devia ser difícil se acostumar com a ideia e reconhecer que tudo acabou, que era livre. E, claro, não havia realmente terminado. As cicatrizes permaneceriam durante muito tempo. E um fato a acompanharia durante toda a vida.
Seus olhos se encontraram com os dele sobre a mesa enquanto Miriam falava, e viu dúvida e a dor neles. E ele queria estender-lhe uma mão e perguntar o que acontecia, como poderia ajudar... Mas não podia ajudá-la.
O duque voltou a olhar seu prato. Quando todos os acontecimentos dos últimos meses fossem esclarecidos, era evidente para ela que ele seria a única pessoa que lhe causara um dano permanente. Talvez já tivesse percebido isso.
Devia partir imediatamente depois do almoço.
—Assim que ficará com a casinha que foi da senhorita Galen, Isabella? — Estava dizendo Miriam Booth. — E vai me ajudar na escola, como planejamos a princípio? Vai ser ótimo por um tempo, você não acha? Até que possa fazer outros planos, quero dizer. Talvez levando em conta as circunstâncias se puder convencer Lorde Brockehurst que aceite... — Miriam sorriu. — Bom, talvez não se comporte como o tirano que sempre foi.
—Vou pensar sobre isso — comentou Fleur. — Sim, acho que seria uma boa ideia. Sempre gostei da casa da senhorita Galen. Com todas aquelas rosas!
—Você não vê que a mente de Isabella não para de girar, Miriam? — interveio o reverendo Booth em voz baixa. — Ela precisa de tempo para pensar em seu futuro. Preciso voltar para o povoado. Esta tarde visitarei os doentes. Vem comigo?
Miriam arrastou a cadeira para trás e se levantou.
—Sim. A menos que você queira que eu fique com você, Isabella...
Fleur meneou a cabeça e sorriu.
O reverendo Booth também levantou-se e olhou inquisitivo para o duque.
—Partirei esta tarde — explicou o duque. — Gostaria de dar um passeio pelo jardim, senhorita Bradshaw?
—Tudo bem — respondeu ela sem olhá-lo.
O reverendo Booth o olhou, e o duque soube que aquele homem não gostava dele absolutamente.

—Que bom que tenha vindo — exclamou Fleur, — e que tenha feito o que fez! Obrigada, Sua Graça.
Passeavam um ao lado do outro pelo jardim, sem se tocar. Eles viram o reverendo Booth e Miriam voltando para a aldeia.
—Mas você não está feliz. O que acontece?
—Claro que estou feliz! — Exclamou ela. — Como poderia não estar? Passei vários meses acreditando que mais cedo ou mais tarde me enforcariam. Não é uma perspectiva muito promissora. Não posso deixar de me perguntar sobre os detalhes. E ontem voltei e todo mundo me olhava como se fosse uma assassina e uma ladra. Ajudará poder limpar meu nome.
—Sim — ele concordou, e caminhou por um momento em silencio ao lado dela, depois acrescentou: — O que acontece?
Ela passou um bom momento sem responder.
—Eu vim para tentar aceitar o que aconteceu — acabou dizendo, — ou talvez encontrar evidências para provar minha inocência. Agora parece que já não preciso dessas provas. Mas há muitas perguntas sem responder. E eu me deparei com um muro.
—Explique-se.
—Minha criada tem outro emprego. Foi ela que descobriu as joias. Queria saber aonde estavam as joias. Esconderam-nas cuidadosamente, ou estavam em cima? Se fosse uma ladra, teria que ser terrivelmente estúpida para colocá-la em cima, certo?
—Seu baú estava fechado?
—Não, claro que não. Eu só ia até a reitoria.
—E o deixaram sozinho em uma calesa fora da casa?
—Sim, sim, claro. Teria que ser muito estúpida para deixar joias caras dessa maneira. As tiraria de outro modo ou as teria levado comigo. Mas não sei que peças eram, se eram grandes. Annie partiu e não posso lhe perguntar.
—O que é um incômodo. Farei com que a encontrem se for importante para você.
—Fará com que senhor Houghton vá? — Fleur sorriu fugazmente. — Não, essa não é a minha maior frustração. O pior é que não encontro Hobson.
—O valete? Não está enterrado a dois metros sob o cemitério?
—O levaram para sua casa para enterrá-lo. Mas ninguém parece saber onde é. O homem que levou o ataúde foi para Yorkshire, e o chofer que conduziu Matthew ao povoado seguiu com ele. Foi Yardley, o homem que agora está em Yorkshire, quem ajudou Matthew a amortalhar o corpo e a colocá-lo no caixão.
—Sério?
—Não sei por que, mas é importante que eu veja o túmulo— comentou ela. — Veja, eu não o assassinei, mas o matei. Se eu não estivesse histérica e o empurrado, ele não teria caído e não estaria morto. Eu o matei. Fui o instrumento de sua morte. De alguma forma preciso aprender a viver com ela em minha consciência. Preciso aceitá-la. Preciso ver seu túmulo...
—E não pode tirar esse peso de cima, pensando que aquele homem foi o causador de seu próprio destino e que seu primo também foi responsável? Não pode pensar que você não teve nenhuma culpa?
—Sim. Posso em minha mente. Mas sempre me acompanhará o fato de saber que o empurrei e que morreu. Sei que é algo estúpido. Não quero entretê-lo, Sua Graça. Deve estar querendo partir, e aproveitar ao máximo a luz do dia.
—Deve existir alguém que saiba de onde procedia o valete— comentou Sua Graça. —Tinha amigos entre os criados? Na aldeia?
—Eu não sei.
—Então, temos de descobrir — disse o duque. — Farei com que meu secretário descubra tudo o que precisa descobrir. Perguntarei pela aldeia. Voltará a perguntar a seus criados?
—Já falei com a maioria. Não sabem nada, e terá que recordar que são criados de Matthew, não meus. Além disso, isto não é assunto seu, Sua Graça. Deve querer partir.
—Eu quero... — disse, agachando-se no caminho de cascalho e pegando as suas mãos. — Quero vê-la feliz, Fleur, e totalmente livre. Não posso deixá-la até que saiba que as duas coisas são verdadeiras.
—Mas, por quê? — Ela perguntou, olhando-o com olhos arregalados.
—Já sabe muito bem o porquê — replicou ele, apertando suas mãos até que doeram, antes de virar-se para dirigir-se ao estábulo.
Ela correu para alcançá-lo.
—Pelo que me fez? Mas eu estava na saída do teatro com esse propósito. Se não fosse você, seria outro. Talvez não naquela noite, mas na seguinte.
Ele parou de repente e pegou suas mãos novamente.
—Graças a Deus que fui eu — exclamou, olhando-a com ardor. — Se tinha que ser alguém, então graças a Deus que fui eu. — Soltou-lhe as mãos. — Voltarei amanhã cedo, e espero trazer-lhe algumas informações.
Afastou-se novamente, e desta vez ela não o seguiu, mas ficou olhando-o.
E havia um pensamento que dominava a mente do duque. Demoraria um dia mais: o dia seguinte se despediria dela e partiria para sempre. Mas hoje não. Ainda não.
Amanhã.

Capítulo 22

—Estamos satisfeitos que você tenha voltado para casa, senhorita, se me permite dizer-lhe. — A criada que foi enviada para ocupar o lugar de Annie estava pendurando no armário o vestido de musselina que Fleur acabava de tirar, e de repente adotou um tom confidencial. — Como disse Ted Jackson, não pode ser culpada das coisas que se supunha fosse culpada se voltou voluntariamente. De qualquer maneira, a maioria de nós não pensávamos que fosse culpada, senhorita.
Fleur saiu de um profundo devaneio.
—Obrigada, Mollie. Você é muito gentil em dizer isso.
Mollie baixou a voz e adotou um tom mais confidencial ainda, embora a porta do vestiário de Fleur estivesse totalmente fechada e provavelmente não haveria nenhum outro criado por perto.
—E se me perguntasse, senhorita, diria que Hobson recebeu o que merecia. Eu nunca gostei dele. Ele sempre pensou que era uma dádiva de Deus para as mulheres. Hobson foi um homem atraente a sua maneira— e não podia descrever Mollie como uma garota bonita. Fleur imaginou que ele devia ter desdenhado a criada em alguma ocasião. —Ele esperava favores a troco de nada — continuou Mollie, confirmando suas suspeitas. — Mas sempre ignorei seus agrados, embora tentasse comigo mais de uma vez.
—Sério? — Desde que o duque de Ridgeway partiu, Fleur passou duas horas frustrante interrogando os criados.
Estava cansada, e desejou não ter dito nada a ele. Então, agora estaria retornando para Dorsetshire e ela seria capaz de começar a pensar no resto de sua vida. Mas como estavam as coisas, voltaria na manhã seguinte, e ela nem sequer era capaz de sentir a euforia que sua revelação deveria ter provocado.
—Alguma vez ele falou sobre si mesmo, Mollie?
—O tempo todo — respondeu a garota. — Era seu tema favorito de conversa, senhorita.
Ela falou com tanta maldade, que, ainda que não fosse sua intenção, Fleur sorriu.
—Seu pai fez fortuna em Wroxford como açougueiro, senhorita — prosseguiu Mollie, — e foi assim que Hobson pôde conseguir um posto tão bom como valete de um cavalheiro. Mas não tinha motivos para dar-se tantos ares.
—Então é dali? De Wroxford?
—Ah! O senhor Chapman vai me matar! — Exclamou a criada. — Ele disse para nos lembrássemos de quem pagava nossos salários e não disséssemos nada.
—Que não me dissessem nada? Não tinham que me dizer nada?
—Devido sua senhoria a mandar para o cárcere assim que voltasse para casa, senhorita — comentou Mollie. — Embora não acredito que mereça ir. Nem tampouco acreditam os outros, senhorita. O senhor Chapman vai me matar, com certeza.
—O mordomo não ouvirá nenhuma palavra de minha boca, Mollie. E obrigada por me contar tudo. Então foi ali aonde enterraram Hobson?
—Suponho que sim, senhorita. Não sei e não me importo. Wroxford está a cinquenta quilômetros de distância. Eu não caminharia nem trinta metros para pôr flores em seu túmulo. Prefiro mil vezes Ted Jackson, embora Ted seja apenas o jardineiro. Ted sabe tratar a uma garota como se fosse especial.
Fleur levantou-se e ajeitou a saia de seu vestido de seda de noite. Realmente não sabia por que se trocou, se ia jantar sozinha. Mas se sentia bem voltando a ser uma dama, rodeada de todos seus objetos familiares.
—Preciso descer para jantar— comentou Fleur. — Obrigada, Mollie. Não preciso de você mais tarde. Pode tirar a noite livre, a não ser que tenha tarefas no andar de baixo. Ted também tem a noite livre? — E sorriu.
A garota sorriu cúmplice.
—Sim, senhorita.
A criada cruzou o quarto na frente de Fleur, mas hesitou. Estava com a mão no trinco. Olhou em volta do quarto como se esperasse ver o mordomo e talvez mais alguns criados escondidos atrás dos móveis.
—Eu era muito amiga de Annie, senhorita. Ela cuidou de mim quando cheguei aqui.
—Sim? — Fleur observou as faces ruborizadas da garota.
—Naquela noite, você deixou um par de luvas em seu vestiário, senhorita. Annie desceu correndo até a calesa com elas e as colocou dentro de seu baú, em cima.
—Fez isso?
—Então não havia nenhuma joia dentro — continuou a garota, — mas quando Annie abriu o baú mais tarde, as joias estavam ali, em cima das luvas. E justo quando abriu o baú, sua senhoria e o senhor Chapman entraram em seu quarto sem bater. Ela disse-lhes o que acabo de dizer a você, senhorita. E no dia seguinte a mandaram para outro lugar. Estava assustada e me contou isso, mas me disse que era melhor não dizer nada. Lhe deram um monte de dinheiro.
—Fizeram isso?
—Se o senhor Chapman descobrir me matará, senhorita.
—Bem, isso não acontecerá. Acredito que dentro de muito pouco, Mollie, o próprio Lorde Brockehurst deixará claro para todo mundo que o assunto das joias foi um mal-entendido. Mas de qualquer maneira, estou feliz de ter alguma prova. Obrigada. Você é a criada mais corajosa desta casa, e não esquecerei.
Enquanto descia para jantar Fleur pensou em Wroxford. Ficava a cinquenta quilômetros. E Mollie tinha razão. Seria muito ter que percorrer trinta metros para ver o túmulo de Hobson.
Mas ela o matou, e Fleur acreditava que nenhum homem, por pior que fosse, merecia a morte nas mãos de outro. Pelo menos devia tentar aliviar sua consciência ajoelhando-se em seu túmulo. Cinquenta quilômetros. Não teria tempo para ir até lá e voltar no mesmo dia.

—Mas Wroxford deve ficar a cinquenta ou cinquenta e cinco quilômetros de distância — protestou o reverendo Booth. — Eu não entendo porque você quer ir, Isabella.
A única coisa que verá ali será um túmulo, e talvez uma lápide. Por que percorrer cinquenta quilômetros para isso? Era muito cedo, na manhã seguinte. Fleur foi incapaz de esperar em casa que alguém a visitasse. Queria se colocar a caminho. Não podia descansar ou ficar quieta até que tivesse ido a Wroxford.
—Quando fugi — disse, — foi como se deixasse para trás uma história inacabada. Tenho a sensação que nada terminou apesar do que Sua Graça disse ontem. E acredito que continuarei com esta sensação mesmo depois que Matthew fizer sua declaração. Estive envolvida em uma morte e não fiquei para o funeral. Acredito que esse é um dos motivos pelo qual existem os funerais, não é? Para ajudar aos que ficam a aceitar a realidade da morte.
—Você já tem bastante sorte porque vão retirar as acusações contra você — repreendeu o reverendo Booth. — Por que não deixa tudo para trás, Isabella? Por que não começa hoje mesmo do zero, e esquece tudo o que aconteceu antes?
—Farei depois de ter ido a Wroxford. Estive pensando, Daniel, e acredito que a sugestão de Miriam é o melhor que posso fazer. Eu vou viver na casinha da senhorita Galen e vou gostar de dar aulas na escola de Miriam. Começarei uma nova vida, mas primeiro preciso ir a Wroxford. Esperava que viesse comigo. Não vem?
O reverendo permanecera de pé atrás de sua mesa desde que sua governante a fez entrar no escritório, e agora deu a volta.
—Ir com você? Você perdeu todo o senso de decoro, Isabella? Nem sequer é apropriado que esteja sozinha comigo enquanto Miriam está ocupada na escola. Demoraríamos dois dias em ir e voltar de Wroxford.
—Sim — reconheceu ela, — mas pensei que não gostaria que eu fosse sozinha.
—E não quero. — Havia exasperação na voz do homem, e ele pegou suas mãos e as apertou. — Você precisa esquecer essa loucura. Está prestes a se livrar de um escândalo. Não quero que nada possa difamá-la. Quero que seja minha esposa. Talvez agora Lorde Brockehurst consinta que nos casemos. Se não for assim, então quero continuar com nosso plano anterior. Casarei-me com você com uma licença especial. Você quer, Isabella?
Os olhos dela estavam fixos em suas mãos.
—Não, Daniel. Isso está fora de questão agora.
—Devido ao escândalo? Mas tudo isso acabou. Não muito tempo atrás, agradava-lhe a ideia de se casar comigo. Disse-me que me amava.
—Eu não posso me casar com você, Daniel— insistiu ela. — Aconteceu muitas coisas.
Ele soltou suas mãos e se afastou dela para revolver uma pilha de papéis em sua mesa.
—Gostaria de te perguntar sobre o duque de Ridgeway, e como é estranho que ele a seguisse até aqui depois de fazer grandes esforços para inocentá-la de todas as acusações que existia contra você. O que está acontecendo, Isabella?
—Ele é um homem amável que cuida de seus empregados. E diria que seus criados o amam e respeitam.
—E você? O ama e o respeita também? — Daniel havia se virado outra vez e seus olhos azuis a olhavam diretamente.
—Claro que não. — Fleur hesitou olhando-o.
—E quais são os sentimentos dele por você? — Continuou ele. — Ele é um homem casado, certo?
—Eu disse a você — repetiu ela. — Ele é um homem bondoso. Leva a sério suas responsabilidades.
—E então, não tem nada a ver com sua relutância em se casar comigo?
Ela balançou a cabeça.
—Então, não direi mais nada sobre esse assunto — concluiu ele um tanto friamente. — Mas estou feliz por você estar sã e salva e em casa, Isabella. E me alegro de que vá trabalhar com Miriam. Ela precisa de ajuda e sei que valoriza sua amizade, como eu.
—Obrigada — disse Fleur, e ficou olhando-o um bom momento. — Daniel, gostaria de dizer toda a verdade.
—Geralmente é melhor. É bom para aliviar sua consciência.
—Quando estive em Londres, morria de fome e não encontrei nenhum emprego. Chegou um momento que passei dois dias sem comer.
Ele ficou de pé olhando-a muito sério.
—Então eu pensei, e acho que tinha razão, existia três caminhos possíveis para sobreviver: poderia mendigar, roubar ou poderia... — Fleur engoliu em seco envergonhada, — ou podia vender meu corpo.
Ele não a ajudou. Eles ficaram em silêncio alguns minutos.
—Vendi meu corpo. Uma vez. E teria feito de novo e de novo se não tivesse encontrado o trabalho de preceptora que me levou a Dorsetshire.
—É uma puta — murmurou ele.
Ela cobriu os lábios com uma mão trêmula e a seguir voltou a baixar a mão.
—No presente? Precisa ser algo que sempre está no presente?
—Isabella? — Daniel virou-se e apoiou ambos os braços na mesa. — Devia haver alguma outra alternativa.
—Os ladrões em Londres são muito bem preparados, desde a infância. Não acredito que pudesse competir com eles. Deveria ter morrido, Daniel? Deveria ter morrido de fome em vez de tornar-me uma puta?
—Oh, meu Deus, meu Deus! — Exclamou ele.
E no silêncio que se seguiu, Fleur sabia que suas palavras não eram apenas uma exclamação.
Finalmente o reverendo levantou a cabeça, embora não se virasse.
—Você está arrependida? — Ele perguntou. — Se arrependeu, Isabella?
—Sim e não — afirmou ela depois de uma pausa. — Lamento o que aconteceu mais do que posso expressar, Daniel, mas não me arrependo de ter feito isso. Sei que voltaria a fazer o mesmo se fosse minha única maneira de sobreviver. Suponho que não tenho jeito para mártir.
Ele baixou a cabeça novamente.
—Mas como pode esperar o perdão de Deus se não se arrepender realmente?
—Eu acho que talvez Deus entenda. Se não, então suponho que tenho uma discrepância com ele.
Daniel não disse nada por um longo tempo.
—Então, como você vê — resumiu ela, — não posso me casar com você nem com nenhum outro homem, Daniel. Porque embora eu não me arrependa do que fiz, sei que sou uma mulher perdida, e estou preparada para viver com as consequências desse fato. Vou para Wroxford. Quando voltar, você terá definitivamente decidido se eu mereço trabalhar com Miriam na escola.
Ela cruzou o escritório em silencio até a porta, até que a voz dele a deteve.
—Isabella, não vá. Não é certo, uma dama sozinha!
—Mas eu não sou uma verdadeira dama, né? Não se preocupe comigo, Daniel. Voltarei em dois dias.
Ela saiu sem fazer ruído do escritório e da casa. Não foi, como tinha pensado, até a escola para visitar a Miriam e as crianças. Ela desamarrou o cavalo, montou sem ajuda e se dirigiu com resolução para Heron House. E recordou seu amor por Daniel como se fosse algo em um passado distante. Uma lembrança doce que ficou em sua mente, mas não podia reviver.

O Duque de Ridgeway havia deixado sua carruagem na estalagem da aldeia e continuou a cavalo até Heron House. Ele não tinha nenhuma informação de valor para dar. Tanto o proprietário da pousada como seus clientes conheceram Hobson. Nenhum deles sabia de onde era e para onde foi levado para ser sepultado. Um homem declarara que era de Londres, mas um coro de vozes zombando dele discordavam.
Parecia que Hobson não tinha sotaque.
A conversa sobre o valete conduziu inevitavelmente a falar sobre Fleur e seu estranho e inesperado retorno. Ninguém parecia acreditar que fosse culpada. Sua Graça concluiu que se Hobson foi um cliente nefasto, o próprio Brockehurst tampouco estava muito bem considerado.
A iminente declaração e a retirada de todas as acusações contra ela não fariam mais que confirmar o que as pessoas já sabiam. O duque desejou ter encontrado a informação que Fleur queria. Ele gostaria de tê-la conseguido, saber que ela poderia ir ver o túmulo e por fim deixar para trás o pesadelo dos últimos meses. Gostaria de voltar a pensar nela e saber que pelo menos estava em paz consigo mesma e com o mundo.
O mordomo de Heron House lhe disse que ela não estava em casa. O duque não sabia se realmente não estava em casa ou se havia se recusado a vê-lo. Em qualquer caso, pensou que não tinha sentido insistir. Não tinha nada a dizer e, portanto, não tinha nenhuma razão para vê-la. Deveria partir sem mais demora.
—Faça-me o favor de dizer a senhorita Bradshaw que não fui capaz de encontrar a informação que ela queria — disse ele ao mordomo, depois de decidir que não esperaria.
Ele iria para Londres. Ali é onde devia ter ido Brockehurst. Seria fácil localizá-lo e assegurar-se que não demorasse a esclarecer tudo. E tentaria obter um acordo a respeito de Fleur até seus vinte e cinco anos.
Também interrogaria o chofer de Brockehurst para poder enviar a Fleur os detalhes da localização do túmulo de Hobson. E depois iria para casa, para Willoughby, deixando Fleur Bradshaw totalmente fora de sua mente e de sua vida. Dedicaria suas energias a ser um bom pai. E talvez pudesse estabelecer algum tipo de relação pacífica com Sybil. Em todo caso, tentaria. Decidiu.
Mas, todos seus propósitos cambalearam ao afastar-se da casa e encontrar-se com Fleur em uma curva do caminho. Ela usava roupas de equitação e um chapéu de veludo preto, uma cor que era bastante chamativa em contraste com o intenso vermelho e dourado de seu cabelo.
—Ah! — Exclamou ela. — Me assustou.
—Bom dia, Fleur. Acabei de voltar de uma visita. Receio que não tenha boas notícias, mas espero poder enviar-lhe algumas. Vou para Londres e pretendo conversar com o chofer de seu primo.
—Trata-se de Wroxford. Ontem a noite a minha criada deixou escapar. Aparentemente todos os criados foram instruídos para manter a boca fechada diante de mim.
—Wroxford? Aonde está isso?
—A uns cinquenta quilômetros. Daniel diz que estou louca por querer ir ali, suponho que tem razão. Mas preciso ir.
—Sim, eu entendo. — E o duque observou a habilidade com que Fleur continha seu cavalo agitado e como estava animada. Ela estava tão linda e tão vivaz, e tão diferente de quando a viu pela primeira vez!
—A senhorita Booth e ele vão com você?
—Ah, não, Miriam precisa atender a escola. Já tirou o dia livre ontem por mim. E Daniel não pode vir. Seria inadequado.
—Mas a deixa ir sozinha? Isso não é mais inadequado?
—Mas, para ser justo — esclareceu ela, sorrindo, — não é que ele me deixe fazer algo ou não deixe. Não tem nenhum direito sobre mim.
—E você vai?
—Sim.
O cavalo bufou, balançou a cabeça e arranhou o chão, impaciente para ir embora.
—E galopou com o cavalo esta manhã? — Perguntou o duque a Fleur.
—Não. Mas estava prestes a fazê-lo.
—Então venha — disse ele, e abriu caminho entre as árvores de faia que ladeavam a estrada para os jardins abertos salpicados de árvores. Ele olhou para trás para Fleur, que o tinha seguido. —Talvez possa me seguir desta vez, já que escolheu seu cavalo e eu não tenho Aníbal.
Ela sorriu e deu o sinal que seu cavalo estava esperando.
O duque pensou que não deveria tê-lo feito. Não deveria ter reservado essa meia hora final de prazer absoluto com ela. E se tratava certamente de um prazer absoluto, como foi da última vez que cavalgaram juntos.
Fleur Bradshaw parecia atingir o máximo de vitalidade ao montar um cavalo. Fleur riu ao passar quando seu cavalo adiantou o do duque, e sorriu quando ele voltou a adiantá-la ao rodear por trás o estábulo e a casa. Deveria ter-se despedido dela quando estavam no caminho e continuado o seu próprio: seu caminho para sair da vida de Fleur.
Nem sequer deveria ter ido. Deveria ter mandado Houghton. Não devia alimentar um amor proibido. Mas nunca voltaria a vê-la. E logo teria partido, e não pensaria nela nem suspiraria por ela. Tinha uma vida para continuar e outras pessoas cuja felicidade devia ocupar-se embora não esperasse uma grande felicidade para si mesmo.
Uma meia hora final. Claro que poderia ser desculpado por ficar com esse tempo para si mesmo. Fleur o adiantou uma vez mais e gradualmente reduziu a velocidade de seu cavalo e se voltou na direção da casa.
—Isso deveria bastar — murmurou ela, inclinando-se para frente para dar uns tapinhas no pescoço do cavalo.
O duque desceu do cavalo e entregou as rédeas a um cavalariço que esperava. Estendeu os braços para levantar Fleur e deixá-la no chão, e esperou até que o rapaz levou ambos os cavalos.
As mãos do duque continuavam na cintura de Fleur.
—Você vai para Dorsetshire agora? — Perguntou ela.
—Primeiro para Londres. Preciso fazer alguns negócios ali antes de voltar para casa.
—Tudo bem. Poderia dar lembranças a Lady Pamela e lhe dizer que sinto saudades?
—Sim — respondeu ele. As mãos dela estavam em seus braços. — Fleur?
Ela sorriu olhando em direção a seu lenço.
—Adeus. Obrigada por vir.
"Eu amo você" queria dizer ele. "Sempre te amarei, embora precise deixá-la."
—Vou a Wroxford com você — acabou dizendo o duque, — se sairmos em menos de uma hora, provavelmente poderemos chegar esta noite. Amanhã pode ver o que deseja ver e podemos estar de volta aqui amanhã a noite. Voltarei para a aldeia para buscar minha carruagem.
—Não— cortou ela, olhando em seus olhos. Os de Fleur estavam totalmente abertos e tinham uma expressão de medo. — Não podemos fazer isso, Sua Graça, você e eu sozinhos.
—E você tampouco pode ir sozinha — replicou ele. — Em nossas estradas há salteadores. E precisa parar para comer e alugar um quarto para passar a noite. De maneira nenhuma pode ir sozinha.
Ela o olhou fixamente. As mãos de Fleur seguiam em seus braços, e as dele em sua cintura.
—Por quê? — Perguntou ela, quase em um suspiro, inclinando-se para ele. — Você tem uma esposa e uma filha que o espera. Por que se atrasar por mim?
—Fleur... — começou. Mas parou e desviou os olhos. Olhou por cima de sua cabeça para o estábulo, aonde o cavalariço levou seu cavalo e parecia engajado na tarefa de tirar a sela. —Eu vou com você. Vá se trocar e a fazer a mala. Estarei aqui em uma hora ou menos.
Ela não disse mais nada, mas o observou enquanto se afastava dela, desatava seu cavalo e montava de um salto.
—Uma hora — disse ele ao passar com seu cavalo diante dela e fazer com que voltasse para o caminho.
Ele havia roubado meia hora e estava convencido que não era nenhum pecado grave contra as responsabilidades que tinha com sua família e as outras pessoas sob sua responsabilidade. Agora ia roubar dois dias. Ele não tinha certeza de ser capaz de aliviar sua consciência nesta ocasião. Mas ela precisava dele. Por algum motivo que só ela podia entender, precisava ver o túmulo do homem que havia matado acidentalmente. Aquele túmulo estava a cinquenta quilômetros de distância. Precisava que a escoltasse.
E ele a amava.

Fleur pensou que se tratava de uma carruagem muito confortável, enquanto se reclinava sobre as suaves almofadas verdes e se fixava nos mananciais que desafiavam aos agrestes caminhos pelos quais circulavam.
Que diferença com a viagem que fez na diligencia poucos dias atrás.
Mas tampouco estava relaxada. O duque de Ridgeway estava sentado a seu lado, ambos em silêncio, e só um pequeno espaço separava seus ombros. Por que tinha ido? Por que tanto interesse em seus assuntos? E por que ela o deixou acompanhá-la? Poderia ter dito que não. Poderia ter defendido sua postura com maior convencimento.
—Por quê? — Ela perguntou, como fizera há mais de uma hora atrás, do lado de fora do estábulo. — Por que está em Wiltshire? Por que me leva a Wroxford?
Ele olhava pela janela. Durante um momento pensou que não responderia.
—Você sabe que não matou o valete de seu primo — falou finalmente, — que em grande medida você não é responsável por sua morte. Mas mesmo assim precisa ir para que cesse a implicação com sua própria consciência. Precisa fazer esta viagem, e isso é algo que ninguém exceto você entende. Eu sinto algo parecido com você.
Ela não disse nada mais por um tempo. Entendia sua resposta. Fazia sentido para ela.
—Não o entendo — acabou dizendo Fleur. — Nunca o entendi, embora em seu caso me é particularmente difícil de entender. A duquesa é linda. Tem uma filha que gosta de seu amor e um lar que deve ser um dos mais encantadores de toda a Inglaterra. Por que os homens como você precisam de mulheres para ter relações superficiais e sórdidas? Não entendo.
Ele continuou olhando pela janela.
—Eu não posso responder por outros homens — começou, — só por mim. Não vou dizer muito sobre o meu casamento, Fleur, porque eu devo intimidade a minha esposa, para não dizer a mim mesmo. Só vou dizer que é um casamento difícil e infeliz e tem sido desde o início. Às vezes é difícil não sentir certos desejos. Mas não fui infiel a meu casamento até aquela ocasião com você.
Fleur olhou seu perfil, o lado marcado de seu rosto. Desejos? Por acaso não tinha um casamento normal?
—Eu não sei o que aconteceu naquela ocasião —continuou o duque.— Eu não tinha planejado e você não fez nada para me provocar. Ficou quieta e em silêncio entre as sombras. Nem sequer a via com clareza. Talvez... — Deixou de falar, e Fleur pensou que não continuaria, mas prosseguiu depois de um momento. — Talvez algo em meu interior a reconheceu. Não sei.
—Reconheceu o quê? — Perguntou ela em um sussurro.
—Minha pérola de valor incalculável — respondeu ele em voz baixa.
Fleur viu como ele engolia em seco.
—E então eu estava com raiva, porque depois de tomar a decisão de ser infiel, quis uma noite em que me esquecesse de tudo. Queria ser capaz de culpá-la depois. Mas você não fez nada, só permitiu que eu a utilizasse. Foi uma experiência terrível para você, Fleur, e foi bastante desagradável para mim. Suponho que obtive o que merecia.
—Por que mandou o senhor Houghton me procurar? Foi só porque se sentia culpado?
Ele se voltou e a olhou pela primeira vez.
—Por muito tempo eu pensei que esta era a razão. Suponho que em minha mente continuo dizendo isso. Não me pergunte mais, Fleur.
Eles se entreolharam por um longo tempo até que ela olhou para sua mão, cuja palma estava apoiada no assento que ficava entre os dois. Não, não queria indagar mais. Não queria saber a verdade. O destino que os uniu era muito estranho, e muito cruel.
Fleur sentiu também os olhos dele em sua mão. E olhou ao lado, na linda mão de dedos longos que em uma ocasião a aterrorizou e que ainda a perturbava e a deixava sem fôlego. Seus mindinhos quase se tocavam.
Eles ficaram sentados assim, quietos e em silêncio, durante um longo momento antes que ele movesse o mindinho para acariciar delicadamente o seu. E ela estendeu o dedo e o dobrou para que os dedos se enroscassem.
Seus olhos observavam suas mãos. Só se tocavam em um ponto. E não diziam nada.

Capítulo 23

Eles pararam e comeram algo que não foi nem um almoço nem um jantar, e continuaram seu caminho.
O duque de Ridgeway pensou que havia uma estranha tranquilidade entre os dois. Estranha porque viajaram várias horas em um silêncio quase absoluto e comeram sem falar muito. Estranha porque estavam juntos, sozinhos, depois de tudo o que passou entre eles. Teria que ser violento, embaraçoso, mas não era.
Quando voltaram a sentar na carruagem e esta saiu do pátio da estalagem para a estrada aberta outra vez, ele pegou a mão dela e colocou as duas mãos fechadas sobre o assento entre eles. Fleur não resistiu, mas sim fechou os dedos ao redor de sua mão.
Desejou que restassem quinhentos quilômetros mais para percorrer, e não apenas cinquenta. Ou cinco mil.
O duque sentiu que ela o olhava, mas não virou a cabeça. Desejou, que no princípio de sua viagem, ter se sentado do outro lado, oferecendo-lhe seu perfil bom.
—Como aconteceu? — Ela perguntou em voz baixa.
—Isto? — O duque apontou sua cicatriz com a mão livre. — Eu mal lembro o que aconteceu. Foi na batalha de Waterloo, é claro. Estava na infantaria. Tínhamos formado em quadrado, e nos dedicávamos a conter uma carga da cavalaria. Mas para alguns dos mais jovens e suponho que na realidade para todos era aterrorizante ver que a cavalaria carregava contra nós, que só tínhamos baionetas e os restantes homens que formavam em quadrado para nos defender. Era uma boa defesa, na verdade, quase impenetrável, mas não nos deixa se sentir seguro. Alguns entraram em pânico e se afastaram de uma vez. Eu pulei para a frente para tentar incentivá-los e me certificar que não quebrasse a formação, e deram-me com uma baioneta no rosto.
Fleur estremeceu.
—Nem sequer era do inimigo — explicou ele, sorrindo. — Que ironia, não? Eu me lembro da dor aguda e a mão vermelha ao tocar meu rosto. Essa é a última coisa que me lembro. Nesse momento devo ter recebido um tiro e as outras feridas.
—Demorou quase um ano para se recuperar. Deve ter sofrido muito.
—Eu acho que sim. Graças a Deus, parece que estive delirando durante a pior parte. Embora foi difícil adaptar-me ao fato que deveria suportar os efeitos visíveis do que aconteceu pelo resto de minha vida.
—E às vezes as feridas ainda doem?
—Não muito frequentemente. — Ele sorriu de novo.
—Eu o vi mancar.
—Quando estou cansado ou sob alguma tensão. Então é quando meu valete Sidney torna-se um tirano e me ordena que se submeta a uma massagem. Ele tem uma língua atrevida e mãos mágicas.
Ela sorriu.
—Por que foi? Sendo duque, era muito estranho fazer parte do exército, sobre tudo como oficial de infantaria. Não teve uma infância feliz?
—Muito pelo contrário. Eu era uma criança privilegiada, feliz e protegida. Nenhum ser humano tem o direito de desfrutar de uma vida assim sem pagar um pouco para ela. Havia milhares de homens lutando por nosso país que realmente não lhe deviam nada exceto o ter nascido nele. E, no entanto, para eles valia a pena lutar. O mínimo que eu podia fazer era lutar ao lado deles.
—Conte-me sobre sua infância.
Ele sorriu.
—É um assunto muito amplo. Você quer que eu fale sobre o bom menino que fui ou do quão moleque eu podia chegar a ser? Infelizmente, às vezes deixava meu pai furioso. E os lacaios. Um pobre rapaz que tinha medo de fantasmas e demônios encontrou dois no salão grande, chamados Adam e Thomas, que viviam na galeria e faziam ruídos estranhos quando estava de serviço a noite. Perseguiram-no durante três semanas até que finalmente os pegaram. Ainda sinto a surra que levei por isso. Acho que depois eu tive que passar pelo menos duas horas deitado na cama de barriga para baixo.
Ela riu.
—Foi uma infância maravilhosa — continuou ele. — Fomos deuses gregos entre os templos e vikings no lago e caçadores de ursos junto a cascata. Nosso pai passava muito tempo conosco, nos ensinando a pescar, a caçar e a montar. Minha madrasta me ensinou a tocar piano, apesar de que eu não ter nenhum talento como você tem. E nos ensinou a dançar. Sempre ríamos muito durante aquelas aulas. Estava acostumado a nos acusar de ter dois pés esquerdos.
—E entretanto, agora dança muito bem.
—Gostaria que a infância de Pamela pudesse ser igualmente feliz. Queria que houvesse outras crianças. Sempre quis uma família grande.
Ele percebeu o que dissera, quando ela o olhou interrogativamente.
—Dedicarei-me a fazê-la feliz quando voltar para casa— comentou o duque. — Ficarei com ela. Não voltarei a deixá-la.
Ele fechou os olhos e apoiou uma das botas no assento da frente. Era a última hora da tarde, a hora da sonolência. Ele nunca tinha falado desse sonho em voz alta: o sonho de ter seus próprios filhos, e também filhas, correndo por Willoughby, e que seus gritos e risadas voltassem a encher de vida o lugar. Não era justo que Pamela estivesse tão sozinha como estava.
Filhos deles e de Fleur. Ele os levariam para cavalgar, fazer piquenique e passear de barco. E a pescar. Ensinaria Fleur a pescar. E ela ensinaria as crianças a tocar piano, e ela mesma tocaria para entretê-los algumas noites. E juntos ensinariam seus filhos a dançar, a dançar a valsa. E de noite a amaria. Dormiria com ela todas e cada uma das noites na grande cama com dossel que pertenceu a seu pai antes dele e que não tinha uma mulher desde a morte de seu pai. E a encheria com sua semente. Veria crescer com seus filhos. E veria nascer esses filhos e ela dando a luz.
Já havia pago por ter uma vida de incríveis privilégios e por ter tido uma infância incrivelmente segura. Seria feliz outra vez e para sempre. Abriria a ostra e encontraria a pérola em seu interior.
Abriu os olhos e percebeu onde se encontrava quando a cabeça dela tocou seu ombro. Fleur respirava profunda e regularmente. Ele voltou a cabeça muito lentamente para não despertá-la e apoiou sua face em seus cachos suaves. E respirou seu perfume. As mãos dos dois continuava fortemente entrelaçadas.
O duque voltou a fechar os olhos.

Wroxford não era exatamente uma cidade, mas uma grande aldeia. A escuridão começava a cair quando chegaram ali, e o cemitério era bastante extenso. Depois de procurar, sem sucesso, o duque a tranquilizou dizendo que era possível que não tivessem encontrado a lápide correta na penumbra. Ou talvez ainda não houvesse lápide. Deveriam perguntar na vicaría.
Mas a esposa do pároco informou que ele não estava em casa, mas no leito de um paroquiano doente. Ela não conhecia esse túmulo. Havia alguns Hobson no cemitério, sim, mas o último que foi enterrado foi a velha Bessie Hobson, sete ou oito anos atrás. E certamente não enterraram nenhum ali nos últimos seis meses. Só houve um funeral nesse período de tempo, e certamente não foi de um Hobson.
—Esse homem era valete de Lorde Brockehurst, de Heron House — explicou o duque. — Eu entendi que seu pai era açougueiro aqui.
A esposa do pároco assentiu.
—Esse deve ser Maurice Hobson, senhor. Ele agora vive na colina. — Ela apontou para o leste. — Uma casa de tijolo vermelho, senhor, com rosas na fachada.
—Que estranho — comentou Fleur quando se afastaram, enquanto a mulher do pároco esperava educadamente na soleira da porta para vê-los partir. —Mollie tinha certeza que era Wroxford, e parece ser o lugar adequado. Seu pai vive aqui. Mas não o enterraram aqui? Preciso falar com o senhor Hobson. Não é muito tarde, né?
—Eu receio que sim — respondeu o duque. — Nos hospedaremos na estalagem esta noite e eu visitarei o senhor Hobson pela manhã. Sozinho, Fleur. Não acredito que seja recomendável que você vá.
—Mas não posso esperar que faça isso por mim.
—Eu vou fazer de qualquer jeito — disse ele, fazendo-a entrar na sua carruagem. — E esta noite será a senhorita Kent, minha irmã.
—Sim, obrigada, mas o que pode significar? Matthew não deixou que Daniel enterrasse Hobson porque queria levá-lo para sua terra natal. Mas este é seu povoado, e o sepultamento não aconteceu aqui.
—Tenho certeza que há uma explicação perfeitamente compreensível. — Sua Graça voltou a pegar sua mão. — Amanhã descobrirei qual é. Esta com fome? E não me diga que não, senhorita. Eu sim, e odeio comer sozinho.
—Um pouco — reconheceu ela, e sorriu rapidamente. — Bom, não muito. Mas o que isso significa? Que percorremos todo este caminho para nada? Será que esse problema nunca vai acabar?
—Amanhã — insistiu o duque. — Vai passar o resto da noite sentada me olhando comer, e vai comer um pouco também, e me falar de sua infância. Esta tarde a entretive antes que nós dois adormecêssemos. Agora é sua vez.
—Não há muito a dizer. Meus pais morreram quando eu tinha oito anos. Não me lembro de muita coisa.
—Aposto que mais do que você pensa. Já chegamos. Espero que esta estalagem ofereça melhor acomodação do que a de sua aldeia. E também melhor comida.
Eles receberam pequenos quartos um ao lado do outro. Nenhum era elegante, mas a estalagem tinha um salão privado, que o duque reservou para a noite. Havia uma dúzia de homens no bar público.
Fleur pensou que deveria se envergonhar. Estava sozinha na escuridão da noite com o duque de Ridgeway. Eles dormiriam em quartos contíguos na estalagem de uma aldeia. Passaram o dia juntos, sozinhos, com as mãos entrelaçadas a maior parte do tempo. E ela despertou um momento depois, pela tarde, com a cabeça apoiada no ombro do duque.
A afastou cuidadosamente, esperando que ele também estivesse dormido e não soubesse. Mas ele estava olhando em silencio pela janela. Sua mão continuava presa na dele, e o duque virou para lhe sorrir. Fleur havia devolvido o sorriso um pouco constrangida, mas não tão confusa como esperava estar.
Pensou que era quase como se, ao partirem de Heron House, tivessem deixado também para trás o mundo, a vida e o decoro habituais. Quase como se existisse um acordo tácito entre eles de viver aqueles dois dias como se fossem os únicos dois dias de suas vidas. E em certo sentido eram. Dentro de uma noite voltariam para Heron House. Na manhã seguinte ele partiria e ela nunca voltaria a vê-lo nem ouviria falar dele.
Dois dias pareciam muito pouco tempo.
Não, não tinham tempo para desconforto entre eles: só ficava o resto da noite e o dia seguinte.
Passaram muito tempo jantando. E ela descobriu que o duque tinha razão. Quando Fleur começou a falar de sua infância, descobriu que recordava de incidentes e sensações nas quais não pensou durante anos.
—Suponho— acabou dizendo —que deveria estar agradecida por aqueles oito anos. Muitas crianças não desfrutam nem sequer de um período de amor e segurança como esse. Estou acostumada a pensar que passei muito mal.
Fez-me bem recordar.
—Fleur — começou ele, — você passou muito mal. Mas é uma pessoa forte, uma sobrevivente. Espero que um dia encontre a felicidade que nem sequer tenha sonhado que fosse possível.
—Conformarei-me estando satisfeita — disse ela, e contou-lhe seus planos.
—As crianças terão sorte — comentou ele. — Sei que é uma boa professora e se preocupa com as crianças, Fleur. E eu aposto que a senhorita Booth também é muito querida. E o reverendo Daniel Booth?
—Que tem ele? — Perguntou Fleur receosa.
—Vocês estavam a ponto de casar-se. Você o amava, não é assim?
—Pensava que sim. Ele foi bom para mim no momento em que eu não desfrutava de muito carinho por parte dos outros. E é um homem atraente.
—E agora, não o ama?
—Acredito que é muito bom para mim. Ele vê uma clara distinção entre o bem e o mal, e se agarra ao que acredita que é justo aconteça o que acontecer. Eu vejo muitos tons de cinza. Não seria uma boa esposa para um clérigo.
—Ele voltou a pedir?
—Sim. Eu disse que não — ela hesitou. — Eu lhe disse tudo. Exceto seu nome.
—Sim. E ele não repetiu sua oferta?
—Eu já havia recusado.
—Não pode amá-la, Fleur. Não a merece. Se eu estivesse no lugar dele, lutaria o resto de minha vida para fazê-la mudar de opinião. E a respeitaria ainda mais por sua coragem e sua sinceridade.
Fleur novamente colocou a colher no prato.
—Um clérigo não merece uma puta. — Ela perguntou, confusa. — Acaso vivemos no mundo ao reverso?
—Ele a chamou assim?
—Sim, empregou essa palavra. — Ela afastou as mãos da colher e as apoiou cruzada no colo. — É a verdade, certo?
—Me alegro que esteja a cinquenta quilômetros de distância. Meus punhos estão dispostos a mudar as características faciais dele. — Ele deixou cair o guardanapo na mesa e se levantou. —Poderia matar aquele estúpido dissimulado.
—Eu devia ter acrescentado — interveio ela, — que pronunciou a palavra mais horrorizado e dolorido que como condenação.
O duque virou-se para a mesa e se inclinou para frente, com uma mão apoiada na mesa.
—Fleur— disse muito sério, —não deixe que esse rótulo a afunde. Prometa-me que não deixará.
—Eu aceitei o fato de que fiz a única coisa que parecia possível, naquele momento, — afirmou ela, levantando a vista. — Está no passado. Como as cicatrizes que você tem, sempre me acompanhará, e sempre afetará a minha vida. Mas não deixarei que me destrua.
—Dobraria minhas cicatrizes e viveria com elas — disse ele olhando-a com ardor nos olhos, — se com isso pudesse tirar as suas, Fleur.
—Não. — Ela levantou a mão e tocou a cicatriz na face. — Não faça isso, por favor. O que aconteceu não foi culpa sua. Nada foi. E eu acho que tudo o que acontece na vida acontece por uma razão. Nós nos tornamos mais fortes, se os problemas da vida não nos destruir.
—Fleur. — O duque apoiou a mão dela contra sua face. — E por acaso isto também tem um propósito? Existe um propósito para que você e eu estejamos sozinhos e no fato de que não devemos nos encontrar de novo a partir de amanhã?
Fleur conteve a língua.
O duque levantou-se e soltou sua mão.
—Vou dar um passeio — comentou. — Venha. Primeiro a acompanharei até seu quarto. Foi um dia longo e muita coisa aconteceu. Amanhã vamos descobrir o que viemos ver, eu prometo.
Ela subiu as escadas antes dele e virou a chave na fechadura. O duque estava a uma certa distância quando Fleur levantou a vista.
—Boa noite, Fleur.
—Boa noite, Sua Graça.
—Adam. Diga, quero ouvi-la dizer.
—Adam — sussurrou. — Boa noite, Adam.
E ele se foi, e ela ouviu suas botas quando ecoaram pelas escadas antes mesmo de fechar a porta atrás de si.

Na manhã seguinte, o duque de Ridgeway saiu da casa vermelha na colina perdido em seus pensamentos. Tão obcecado estava Brockehurst com ela? Devia estar, se fez tantos esforços para consegui-la.
Mas ele havia gostado de protegê-la, mesmo sabendo que ela não gostava, respeitaria e nunca poderia amá-lo. No mundo havia alguns homens estranhos, e havia algo que não era nada normal em Brockehurst. A não ser que tivesse interpretado mal completamente o acontecido. Mas que outra explicação poderia haver?
Fleur estava em seu salão privado da estalagem, aonde o duque a deixou depois de tomar o café da manhã. Embora tivesse lutado um pouco, conseguiu convencê-la a deixá-lo ir sozinho para a casa do senhor Hobson.
—E então? — Ela parou de se mover quando o duque abriu a porta, e o olhou tensa.
—Parece que o enterro foi realizado em Taunton — explicou ele. — É cerca de trinta quilômetros daqui, e sessenta ou mais de Heron House. O senhor Hobson esteve lá e viu o túmulo. Agora, há uma lápide.
Fleur o olhou fixamente.
—Em Taunton? — Perguntou. — Mas por quê?
—Parece que mataram Hobson perto dali, quando Brockehurst e ele voltavam de Londres. Brockehurst o enterrou antes de vir contar a sua família.
Fleur continuou olhando para ele.
—Eu não entendo. Mas se ele morreu em Heron House?
—Claro.
—A única razão pela qual não foi enterrado lá foi por que sua família estava aqui.
—Sim.
Ela franziu o cenho.
—Iremos para Taunton para acabar com este assunto — propôs o duque. — Está pronta para partir?
Ela continuou olhando-o com o cenho franzido. Ainda não havia percebido a verdade, ou do que evidentemente devia ser. E talvez fosse melhor assim. Talvez, depois de tudo, não fosse verdade. O duque não transmitiu suas suspeitas.
—Sim— respondeu ela.
Quinze minutos mais tarde já estavam a caminho.
—Isto não tem sentido — murmurou ela. —- Taunton não está nem sequer em rota direta para Wroxford.
O duque percebeu que Fleur lhe estendia a mão sem se dar conta do que estava fazendo. Ele a pegou e a colocou em sua coxa.
—Relaxe e aproveite a viagem — sugeriu o duque. — Faremos perguntas quando chegarmos ao final de tudo isto.
—Hoje não chegaremos em casa — comentou ela. — Sua viagem se atrasará mais um dia.
—Sim — reconheceu o duque, e levou a mão de Fleur aos lábios antes de voltar a pô-la sobre sua coxa. Fleur olhou-o em seus olhos.
—Sinto muito — disse ela.
—Eu não.
Fleur mordeu o lábio inferior.
—E do que falamos hoje? — Perguntou ele. — Da escola? Conte-me sobre a sua. Não foi uma experiência feliz, certo?
—Bom, em alguns aspectos. Aprendi a amar os livros e a amar a música ainda mais do que antes. Aprendi a viver com minha imaginação. Pôde acrescentar uma dimensão maravilhosa a vida.
—Sim — assentiu o duque. — Você pode fazer uma vida monótona parecer alegre, certo?
Eles sorriram antes que ela continuasse falando.

Taunton era um povoado muito pequeno. Ali não havia nada mais além da igreja, algumas casas, uma loja e uma pequena taberna. Sua Graça havia escolhido uma estalagem decente na estrada principal a poucos quilômetros antes.
Ele dissera que passariam a noite ali, mas Fleur não prestou muita atenção. Eles estavam perto, e ela estava inclinada para a frente em seu assento. Seu coração batia forte.
E daquela vez não havia erro. Lá estava ele, e era um sepulcro novo, proclamava sua grande legenda para que todos vissem: John Hobson, amado filho de John e Martha Hobson, 1791-1822. R.I.P.
Deus. Oh, meu Deus. Fleur estava ao lado do túmulo, e ela também se transformou. Ela o matou. Ele tinha trinta e um anos. Foi o filho querido de alguém. Martha Hobson o teve. John Hobson viu crescer ao filho que se chamava como ele. Ambos devem ter ficado orgulhosos quando ele se tornou valete de lorde Brockehurst de Heron House. Eles deviam ter se gabado aos amigos. E agora ele estava morto e frio no chão.
Ela o havia matado.
—Ai, meu Deus — ela gemeu, e caiu sobre um joelho no chão ao lado do túmulo e tocou a pedra fria.
—Fleur. — Ela sentiu uma mão delicada tocando seu ombro. — Vou um momento a vicaría. Volto logo.
Mas ela não o ouviu. Hobson jazia na terra que ficava sob seus pés. Um homem grande, forte e bonito estava morto. E ela o matou. Não sabia quanto tempo ficou ajoelhada ali, até que duas mãos fortes a agarraram pelos braços e a ajudaram a ficar de pé.
—Vou levá-la de volta para a estalagem— disse ele. — Você pode descansar ali.
E eles se encontraram novamente na carruagem, sem que ela se recordasse como caminhou até ali.
—Não sabia que seria assim — comentou. — A princípio não pensei muito nele. Estava muito preocupada comigo mesma. Nem mesmo tive muitos pesadelos. E então eu pensei que talvez ele merecia o que aconteceu, embora eu estivesse arrependida. E esta última semana percebi que devia vir aqui ver sua última morada. Mas não sabia que seria assim. — Fleur cobriu o rosto com as mãos.
—Em breve, você poderá descansar — a tranquilizou o duque, abraçando-a. Com uma mão soltou as fitas de seu chapéu e o deixou de um lado. A cabeça de Fleur estava apoiada em seu ombro, e ele acariciava-lhe o cabelo, murmurando.
—Eu não queria que ele morresse — gemeu ela. — Não pretendia matá-lo.
O duque tinha conseguido dois quartos na estalagem, maiores e melhor equipado do que aqueles que haviam ocupado na noite anterior. Havia uma sala privada entre eles.
—Quero que descanse por uma hora — sugeriu ele, a levando para um dos quartos, segurando seus braços e sentando-a na cama. — Jantaremos mais tarde. Quero que durma.
Fleur obedeceu a pressão de suas mãos e recostou-se contra os travesseiros. Ele tirou seus sapatos. Ela estava tão atordoada, não retornara totalmente à realidade.
—Talvez queira tirar o vestido quando eu sair — propôs o duque.
—Sim.
—Preciso fazer algumas visitas — disse ele. — Volto logo.
—Sim— assentiu ela. Não lhe ocorreu perguntar quem ele ia visitar em uma parte do país que ele mal conhecia, mas sim fechou os olhos, e sentiu os lábios dele roçarem os seus antes de sair do quarto.
Pensou que devia ter adormecido. Pareceu-lhe que ficou inconsciente por um longo tempo, embora viu que continuava usando o vestido e ele estava parado na frente dela igual quando fechou os olhos.
E havia uma vela acesa no quarto, e escuridão fora das janelas.
—Pensei que teria me dado por perdido há muito tempo — comentou ele. — Pensei que já teria comido e mandado retirar meu jantar frio. Passou todo este tempo dormindo?
Ela o olhou, aturdida. O lado direito da boca do duque formava um sorriso. E seus olhos escuros brilhavam ao olhá-la. Fleur pensou que estava deitada na cama de uma estalagem com o duque de Ridgeway olhando-a.
—Tenho boas notícias para você — anunciou ele. — É melhor não se levantar até que você saiba o que é. Também não se erga, na realidade.
—Boas notícias?
—Você não matou ninguém. Nem deliberadamente nem por acidente nem de qualquer outra maneira. Não matou Hobson. O homem continua vivo em algum lugar, sem dúvida com um monte de dinheiro de Brockehurst nos bolsos.
Fleur olhou para ele, para o estranho sonho que acabava de ter enquanto dormia.
—Tudo o que está enterrado no cemitério é um caixão cheio de pedras — explicou ele. — Parece que nosso homem só ficou inconsciente quando bateu a cabeça na lareira. É livre, querida... livre da forca e de sua consciência.

Capítulo 24

Jantaram muito tarde. O duque não pensava que ia passar tanto tempo fora, e Fleur não pensava que ficaria tão profundamente adormecida.
—Eu realmente não esperava ser capaz de fazer nada até amanhã, na melhor das hipóteses— disse o duque quando se sentaram para jantar na sala privada. — Mas me topei com a curiosidade e o zelo de Sir Quentin Dowd. — Já explicara que Sir Quentin era o juiz da zona. Acredito que teria cavado o cemitério inteiro sozinho se não tivesse criados e se não tivesse sido capaz de mostrar o túmulo exato.
—O que fez você suspeitar? Eu não entendo. — Fleur pensou que repetira várias vezes essa frase no transcurso do dia.
—Por que alguém não ia querer enterrar um homem no lugar aonde morreu e era conhecido ou no lugar aonde vivia sua família? — Perguntou ele.
—Seu primo poderia ter escolhido entre ambos os lugares, mas não escolheu nenhum deles. Na verdade, removeu quase literalmente céu e terra para que o enterro fosse em um lugar estranho, onde nenhum dos dois fosse conhecido.
—Por que alguém iria querer ver o corpo?
—Suponho que sua família teria insistido em vê-lo. E talvez alguns criados de Heron House ou amigos de Hobson na área também iriam querer ver. Seu primo não podia arriscar-se que isso acontecesse. Mas claro, não cobriu bem seu rastro, e contou histórias contraditórias a diversas pessoas. Mas imagino que não esperava que ninguém tivesse a curiosidade suficiente para investigar mais a fundo. Coma.
Fleur olhou para o prato, mas não conseguia se lembrar como chegara a comida a ele.
—Como vou comer? — Perguntou ela.
—Com o garfo e a faca — replicou ele. — Como é a sensação de ser livre?
—Mas, para aonde foi? — Insistiu ela. — E por quê? Porque deixaria sua família pensar que está morto?
—Sem dúvida por dinheiro. Aposto que está em algum lugar da Europa.
—E por que Matthew faria isto? — Fleur franziu o cenho. — Foi um plano diabólico. E tudo isso para que me enforcassem? Ele me odeia tanto?
—Já sabe qual é a resposta. Ele nunca teve a intenção de deixar que a enforcassem. Queria tê-la em seu poder durante o resto de sua vida. Está muito obcecado por você, Fleur.
—Mas nunca gostei dele. Como podia me desejar sabendo disso? E sabendo que eu o odiaria por me obrigar a fazer algo semelhante?
—Alguns homens se contentam em ter poder sobre algo que eles querem — opinou o duque. — Às vezes inclusive parece produzir uma emoção especial ser odiado. Não sei se seu primo é um desses homens. Eu não teria dito pelo que cheguei a conhecê-lo em Willoughby. Não parecia diabólico. Mas certamente suas ações sugerem que é.
—Espero nunca mais voltar a viver na mesma casa com ele novamente.
—Fleur. — O duque tocou-lhe na mão. —Você realmente espera que isso ocorra? Neste momento Sir Quentin está soltando fogo pela boca. Seu primo está em uma situação muito séria, eu prometo. Não acredito que deva temer que volte para casa durante muito tempo.
—Ah — exclamou ela, e voltou a olhar o prato. — Não tenho fome.
O duque levantou-se e chamou um garçom para retirar os pratos. Ambos permaneceram em silêncio até que ele terminou a tarefa.
—Eu continuo esperando acordar — comentou ela. Atravessou a sala e ficou olhando em direção a lareira vazia. — Fui uma estúpida em fugir, verdade? Teria que ter ido à reitoria como tinha previsto.
—Mas ele teria perpetrado o mesmo plano — apontou o duque, — e talvez conseguisse se safar.
—Sim — reconheceu Fleur. — Não sei se alguém mais poderia ter descoberto a verdade. Eu não poderia. Só você. E não o teria conhecido se não tivesse fugido.
Ele ficou a uma curta distância dela, vendo como olhava em direção a lareira.
—Eu gostaria que não tivesse que sofrer tanto — murmurou ele. — Gostaria que tivesse me pedido ajuda, Fleur. Eu gostaria de ter pensado em perguntar se precisava de ajuda. Gostaria que tivesse sido diferente.
—Mas não foi.
—Não.
—Por que fez tudo isso por mim? — Fleur virou a cabeça para olhá-lo. — Diga-me a verdade.
Ele balançou a cabeça lentamente.
—Acredito que não poderia estar mais aterrorizada com o diabo do que estava de você — confessou ela, — quando aconteceu aquilo e em meus pensamentos e pesadelos posteriores. E quando voltou para Willoughby e percebi que o duque de Ridgeway era você, pensei que ia morrer de susto.
O rosto dele não deixava transparecer expressão alguma.
—Eu sei.
—O que mais me assustavam eram suas mãos. Elas são umas mãos bonitas.
O duque não disse nada.
—Quando mudou tudo? — Perguntou Fleur. Ela voltou-se completamente para ele e cortou a distância entre ambos. —Você não se atreve a pronunciar as palavras. Mas são as mesmas palavras que estão em meus lábios, não é?
E viu como ele engolia em seco.
— Lamentarei tê-las dito pelo resto de minha vida, mas acredito que lamentaria muito mais não dizê-las.
—Fleur... — começou ele, e estendeu-lhe uma mão firme.
—Eu te amo — ela o interrompeu.
—Não!
—Eu te amo.
—O que acontece é que passamos alguns dias juntos, e conversamos muito e chegamos a nos conhecer. O que acontece é que eu pude ajudá-la um pouco e você se sente grata a mim.
—Eu te amo — repetiu ela.
—Fleur?
Ela estendeu a mão para tocar sua cicatriz.
—Estou contente de não tê-lo conhecido antes que isso acontecesse. Eu não seria capaz de suportar a dor.
—Fleur? — insistiu ele, segurando seu pulso.
—Você está chorando? — Perguntou Fleur. Ela levantou os dois braços, para colocá-los em volta do pescoço dele e descansou o rosto contra seu ombro. — Não chore, meu amor. Eu não quero sobrecarregá-lo. Não quero ser um fardo. Só quero que saiba que eu te amo e que sempre te amarei.
—Fleur? — murmurou ele, com a voz rouca pelas lágrimas. — Não posso oferecer-lhe nada, meu amor. Não tenho nada para dar. Eu dei a minha lealdade para outra pessoa. Não queria que acontecesse isto. Não quero que aconteça. Conhecerá outra pessoa. Quando eu partir, esquecerá e será feliz.
Ela levantou a cabeça e olhou para seu rosto. Afastou uma lágrima com o dedo.
—Eu não estou pedindo nada em troca — esclareceu ela. — Eu só quero te dar algo, Adam. Um autêntico presente. Meu amor. Não uma carga, mas um presente. Para que leve aonde quer que vá, embora nunca nos vejamos novamente.
Ele tomou seu rosto nas mãos e a olhou.
—Eu quase não reconheci você — explicou o duque. —- Você estava tão terrivelmente doente, Fleur, e tão pálida... seus lábios estavam secos e rachados, e os cabelos opacos e sem vida. Mas assim é como a conheci. Acredito que ainda estaria em Londres procurando por você se não tivesse ido a agência. Mas é muito tarde, amor. Chegamos seis anos tarde.
O duque inclinou a cabeça para beijá-la, e a paixão explodiu instantaneamente.
—Só posso te oferecer esta noite — levantou a cabeça e sussurrou. — Amanhã a levarei para sua casa e continuarei meu caminho até a minha.
—Sim.
—Só esta noite, Fleur.
—Sim.
—Faremos com que seja suficiente.
—Sim.
—Faremos com que dure toda a eternidade.
—E mais além!
—Fleur, querida — exclamou ele. — A pessoa que eu reconheci na saída do teatro Drury Lane foi o amor de minha vida. Você sabe, não é? — Seus lábios estavam unidos.
—Sim, sim!
—Eu te amo. Saiba que eu te amei desde o primeiro momento que a vi de pé nas sombras.
—Sim. — Ela abriu a boca sob a sua, e tocou seus lábios com a língua. — Adam. Me ame. Leve todos os meus medos.
Ele a beijou intensamente. Penetrou no calor de sua boca com a língua, amoldou o corpo dela ao seu com as mãos e esperou que se rendesse totalmente a ele.
—Você ainda tem medo? — perguntou ele sem soltar-se de seus lábios.
—Um medo mortal. — Fleur manteve os olhos fechados. — Do que vem a seguir. Mas quero ter tudo com você, Adam. Quero que me toque, quero o seu corpo. Quero você dentro de mim.
Ele a beijou novamente e a tocou com as mãos. Acariciou os seios redondos e firmes cujos mamilos já estavam duros sob seu vestido, a cintura estreita e os quadris torneados, o traseiro suavemente arredondado.
—Fleur — ele sussurrou seu nome no interior de sua boca. Desejava-a com uma dor intensa.
—Não deixe de me tocar — sussurrou ela. — Dá-me coragem. Suas mãos são tão quente e forte que me dá coragem.
Ele se inclinou e a agarrou entre seus braços e a levou-a através da porta aberta para o quarto, colocando-a na cama. E Fleur soube que ele faria, que não podia retroceder, embora também sabia que ele teria parado a qualquer momento se o pedisse. Amava-o mais que a própria vida e naquele instante desejava mais que nada no mundo que apagasse a lembrança de uma relação sexual suja e substituísse por uma lembrança de amor.
Mas sentia medo. Ela sentia um medo mortal. Sentia medo do olhar intenso e ardente nos olhos escuros dele. Sentia medo a seus traços duros e a cicatriz que cruzava seu rosto. Sentia medo de suas mãos, que cobriam seus seios e acariciavam os mamilos com os polegares e que primeiro se deslocaram até sua cabeça para tirar os alfinetes do cabelo e depois foram até suas costas para desabotoar os botões do vestido.
E sentia medo do corpo de Adam, ainda escondido sob a roupa.
—Podemos fazer que seja suficiente — afirmou ele, olhando para seu rosto, com as mãos ainda em suas costas. — Podemos fazer que nos baste este amor, Fleur. Vou abraça-la por alguns minutos mais para reunir coragem para deixá-la ir.
—Não — sussurrou ela. — Quero tudo, Adam. Quero tudo de você. Quero dar tudo de mim.
Ele deslizou o vestido pelos ombros, pelos braços, pelos quadris e as pernas. Ela observou seu olhar quando a seguir ele tirou a camisa, a roupa interior e as meias. E ela recordou quando esteve nua na frente dele, com a roupa dobrada em uma pilha perfeita no chão do seu lado.
—Faça-me esquecer— pediu ela. — Adam, faça-me esquecer. — E estendeu os braços para ele.
—Você é tão bonita... — suspirou o duque, inclinando-se para enterrar o rosto em seu cabelo. — A mulher mais linda do mundo.
Acariciou seus seios com uma mão, os dedos longos e quentes. Ela começou a desabotoar seu colete e camisa. E ele também sentia medo. Ela era uma mulher tão linda... Queria ser perfeito para ela.
O duque se ergueu para mover-se.
—Eu vou fechar a porta — disse. A luz de duas velas brilhava através da porta e chegava até a cama.
—Não — ela o deteve.
—Fleur! — começou o duque, olhando-a preocupado nos olhos. — Não quero que me veja outra vez. Sou muito feio.
—Não. — Ela o agarrou pelos braços e o atraiu para si. — Eu quero vê-lo. Preciso ver você. Por favor, Adam. Na escuridão terei medo.
Ele ficou ao lado da cama e se despiu lentamente. E viu como ela o olhava, igual tinha feito na ocasião anterior. Exceto que daquela vez estava zangado, e a desafiava a mostrar seu desagrado, enquanto que desta vez esperava que voltasse a dar-se.
—Adam — disse ela quando ele finalmente ficou nu ao lado da cama, — você não é feio. Ah, realmente não é. Mas me alegro tanto de não tê-lo conhecido antes das feridas... não seria capaz de lidar com a dor. —Estendeu uma mão para tocar delicadamente o lado esquerdo, e percorreu com ela o lado e a coxa. — Não é feio.
Ele se deitou junto a ela na cama, olhou-a nos olhos, acariciou o cabelo avermelhado e dourado espalhado. E beijou-a novamente.
Fleur estendeu uma mão através do pelo grosso de seu peito e levantou a outra para explorar os músculos tensos do braço e o ombro de Adam. Percorreu o peito com a mão e chegou até suas costas.
A língua de Adam rodeou a sua, acariciou-a, e por sua vez foi acariciada. E Fleur sentiu as mãos dele por seu corpo, como a tocava, como a explorava e excitava. E já não sentia medo. Seus seios estavam turgidos e sensíveis. As mãos dele enviavam dolorosas vibrações até sua garganta, Fleur notava uma dor muito aguda entre as pernas.
Adam a tinha tomado uma vez, breve e desapaixonadamente. Além dessa ocasião, havia passado muitos anos desde que esteve com uma mulher. Queria ser perfeito para ela. Precisava inundar-se nela e soltar sua semente em seu interior com alguns empurrões rápidos, mas queria ser perfeito para ela.
Ele colocou a mão entre as pernas dela, abriu-as delicadamente com os dedos, tocou-a, acariciou-a um pouco. Estava úmida e quente. Fleur gemeu e se virou para ele.
—Não vou machucá-la—murmurou o duque, com a boca apoiada contra a dela. — Desta vez não vai doer, Fleur. Eu prometo. Você ainda tem medo?
—Sim. — Sua voz era um soluço. — Sim, mas veem para mim, Adam. Venha para mim.
Ele se ergueu ao lado dela e desceu até ficar por cima, com a cabeça voltada para o lado dela. E o terror voltou a surgir quando as pernas dele se colocaram entre as suas e as abriram totalmente, e pôs as mãos por debaixo para levantá-la e incliná-la.
E a seguir começou a penetrá-la. Sua masculinidade quente e dura abria caminho para seu interior. Sem rasgões. Sem dor. Só as vibrações e as ferroadas a seu redor e o fato de que ela esperava para detê-lo. Fleur ouviu alguém gemer.
O duque tirou as mãos de debaixo dela e se levantou apoiando nos antebraços.
Olhou-a. Ela devolveu o olhar. Tinha o cabelo estendido como um halo flamejante em volta da cabeça.
—Quero que seja bom para você — sussurrou ele. — Quero que seja perfeito para você, Fleur. Diga-me o que fazer. Quer que termine rapidamente?
Ele saiu de dentro dela e voltou a empurrar lentamente.
Fleur levantou os joelhos, e colocou os pés firmes na cama a cada lado dele. Fechou os olhos e jogou a cabeça para trás. Voltou a gemer. Ele a acariciou lenta e profundamente, uma e outra vez. Adam abaixou a cabeça para roçar seus lábios com os dela.
—Quero que seja perfeito para você — insistiu. — Diga-me quando quer terminar, Fleur. Diga-me quando quer que eu pare.
Ela abriu os olhos e olhou na direção dos dele. E viu o cabelo escuro, o rosto duro, a cicatriz, os potentes músculos dos ombros, o cabelo escuro do peito. E sentiu suas fortes coxas abrindo as suas e sentiu as ferroadas lentas, profundas e íntimas no mais fundo de seu interior. Não pôde evitar recordar seu primeiro encontro com ele, mas decidiu esquecê-lo, deixou que se deslizasse além da memória consciente.
—Acredito que a dor vai me deixar louca — sussurrou ela para Adam. — E quero que continue para sempre.
Mas quando Adam voltou a descer sobre ela e a rodeou com seus braços e acelerou o ritmo, ela ergueu os joelhos para abraçar-se a seus quadris e soube que devia reter esse instante para sempre. Inclinou-se e esticou-se para ele, e esperou para romper sua prudência.
Ele sentiu que ela chegava ao clímax, embora não disse nada. E deslizou prazerosamente as mãos debaixo dela outra vez e empurrou e se manteve em seu interior várias vezes até que sentiu que a tensão se reduzia e tremia ao redor do centro dela.
—Agora, meu amor — sussurrou em seu ouvido. — Agora. Venha comigo agora.
E escutou o estranho grito que Fleur proferiu ao empurrar em seu interior uma vez mais e sentiu que ele mesmo soltava o fôlego contra a face dela, assim como sua semente foi semeada no mais profundo de Fleur.
Ela estremeceu e tremeu em torno dele e contra ele, e se abandonou ao momento depois do amor, feliz ao sentir que o corpo de Adam a deixava repousar na cama ao relaxar, feliz de apoiar as coxas abertas contra as dele, feliz de sentir suas mãos segurando seus quadris, e de senti-lo no mais profundo de seu interior, na parte que só pertencia a ela e ao homem a que tinha decidido entregar-se. Havia decidido entregar-se a ele.
Só a ele. A ele, aquela única vez e para sempre.
Adam afastou seu corpo do dela, ergueu-se e a colocou de lado, atraindo-a para ele e abraçando-a. A seguir puxou os lençóis por cima.
—Fleur, desapareceram os fantasmas? — Ele perguntou, beijando-a carinhosamente e persistentemente.
—Adam. — Ela tinha os olhos fechados. As pontas dos dedos de uma mão tocaram delicadamente seu rosto. — Você é tão bonito, tão bonito.
Ela não dormiu, e ele tampouco. Adam a abraçou forte, enquanto acariciava seu cabelo com uma mão, e se comunicava com ela sem palavras. Só tinham aquela noite. Não havia tempo para falar. Nem para dormir.
Eles ficaram tranquilamente abraçados até que chegou o momento de voltar a amarem-se.
Fleur adormeceu em algum momento antes que amanhecesse. O duque sustentou sua cabeça no ombro e lhe acariciou a face e a testa. Olhava para cima, para a escuridão. As velas da sala se apagaram há muito tempo.
Adam pensou que seria possível colocá-la em uma casa em algum lugar que não estivesse muito longe de Willoughby, ou talvez perto de Londres. Poderia visitá-la durante dias ou semanas seguidas. Ele se sentirá mais em casa que Willoughby.
Poderiam estar casados em todos os sentidos exceto de nome. Nunca teve um casamento real com a Sybil. Nem sequer foi consumado. Poderia ser fiel a Fleur. Talvez inclusive poderiam ter um filho. Ou vários.
Deveria ser possível. Ele virou-se para beijá-la na testa. Tinha certeza que poderia convencê-la. Ela o amava como ele amava a ela. Não só havia dito, como passou quase toda noite demonstrando. Talvez uma casa à beira-mar. Poderiam caminhar juntos ao longo dos penhascos, açoitados pelo vento. Poderiam andar na praia. Poderiam levar seus filhos para correr e brincar na areia.
Adam voltou a esfregar sua face contra o cabelo dela. Pamela gostaria da praia. Devia levá-la. Willoughby ficava um pouco mais de dez quilômetros do mar. Precisava levá-la antes que terminasse o verão, e talvez ir com Duncan Chamberlain e seus filhos. Pamela apreciaria a companhia de outras crianças.
Nunca poderia aproveitar da companhia dos filhos de Fleur e dele, essas crianças inventadas que viviam na casinha inventada em um mundo de fantasia.
Poderia ter terminado com seu casamento com Sybil após um ano se ele quisesse. Mas não terminou. Comprometeu-se com os votos que fizera embora ela negasse os direitos que o teriam convertido em um casamento autêntico. Comprometeu-se porque naquela época ainda sentia um certo amor por ela. E ele o fez por Pamela. Para que Pamela não fosse uma filha bastarda.
Meio compromisso não era um compromisso absolutamente. Ou pertencia a Sybil e a Pamela ou pertencia a Fleur. Não podia levar uma vida dupla. Ele pelo menos não.
Abraçou-a mais forte e continuou olhando para cima.
—O que acontece? — Perguntou ela, virando-se para ele. Adam beijou-a lentamente.
—Quero dizer-lhe algo antes que o dia amanheça — disse ele.
—Sim?
A iminência do amanhecer estava no quarto.
—A partir de amanhã — começou, — voltarei a me comprometer com meu casamento. Espero ter força para viver com este compromisso durante o resto da minha vida, sem mais deslizes. Espero isso pelo bem de Pamela.
—Sim. Eu sei, Adam. Não há necessidade de sentir que me deve alguma coisa. Nós concordamos que seria apenas esta noite. E eu não seria sua amante se você quisesse que fosse.
Ele colocou um dedo sobre seus lábios e beijou sua testa.
—Isso é o que quero explicar. Em certo sentido, sempre será minha esposa, mais do que Sybil é. E fisicamente sempre serei fiel a você. Não haverá nenhuma outra mulher em minha cama.
Seu dedo continuava apoiado sobre os lábios de Fleur.
—Meu casamento é só de nome, e sempre foi.
Ele ouviu Fleur engolir em seco.
—E Pamela? — sussurrou.
—É de Thomas. Ele abandonou Sybil grávida. Eu acabava de voltar da Bélgica e ainda pensava que estava apaixonado por ela, ou da pessoa que acreditava que era.
Fleur soltou o ar entrecortadamente.
—Desde que Pamela nasceu foi minha — continuou o duque. — Morreria por ela. Se considerasse realmente anular meu casamento para estar com você, eu não o faria por causa de Pamela. Se eu tivesse que escolher entre ela e você, Fleur, e pode ser que seja assim, então escolheria ela.
Ela tinha a testa apoiada contra seu peito.
—Sim, sim — concordou Fleur.
—Odeia-me por isso?
—Não.— Houve uma longa pausa. — É por isso que eu amo você, Adam. Há muito pouco espaço em sua vida para si mesmo. Se preocupa muito pelo bem-estar dos outros. A princípio não sabia nem esperava, mas cheguei a ver cada vez mais.
—E mesmo assim tomei esta noite para mim. É um ato egoísta e um erro moral, Fleur, como diria seu amigo reverendo. — Beijou-a um instante. — Mas não quero falar. Quero te amar uma vez mais. Embora eu queria que você soubesse que permanecerei fiel a você e a considerarei sempre minha esposa.
—Um pedaço de eternidade — murmurou ela, tocando-lhe os lábios com as pontas dos dedos. — Foi tão maravilhoso que não posso explicar com palavras. Não trocaria nem por dez anos de vida, Adam. E ainda resta um pouco.
Fleur deitou de costas e abriu os braços para ele enquanto Adam se erguia por cima uma vez mais.

Capítulo 25

A paisagem que se via pela janela da carruagem se tornava cada vez mais familiar à medida que se aproximavam de casa. Eles passaram toda a viagem sentados um ao lado do outro, com os ombros juntos e as mãos entrelaçadas, sem dizer praticamente nada.
—Só restam alguns quilômetros? — Perguntou ele.
—Sim.
Por um instante, ele apertou a mão dela com mais força.
—Precisa se dirigir a quem se encarrega dos assuntos de Brockehurst — propôs o duque. — Talvez consiga uma parte de seu dinheiro antes dos vinte e cinco anos. Assim poderá viver com certa comodidade.
—Sim.
—E farei com que Houghton investigue também a respeito.
—Obrigada.
Novamente houve um silêncio.
—Não posso voltar outra vez aqui, Fleur. Nem sequer escreverei.
—Não. Eu sei. Nem eu.
—Promete-me que se alguma vez precisar de alguma coisa ou tiver algum problema escreverá para Houghton? Promete-me isso?
—Só em circunstâncias extremas — respondeu ela. — Não, Adam. Provavelmente não.
Ele acariciou-lhe os dedos.
—Fleur, se estiver grávida?
—Não estou.
—Se estiver — disse ele, levando sua mão aos lábios. — Se você estiver, você precisa me deixar saber. Eu sei que o seu instinto fará com que esconda isso de mim. Mas você precisa me deixar saber. Seria o meu filho. O único filho de meu próprio corpo que nunca teria. A enviaria para uma de minhas casas e cuidaria de ambos.
—Não estou grávida.
—Mas você me deixaria saber?
—Sim.
Ele abaixou as mãos e as apoiou em sua coxa.
Estavam a pouco mais de três quilômetros da aldeia, e a seis de Heron House. Fleur se concentrava em respirar tranquila e regularmente, reprimindo o pânico que se agitava em seu interior.
—Vai mudar em seguida para a casa da aldeia? — Perguntou ele.
—Sim. — Fleur centrou sua mente nos planos futuros. — Dormirei em Heron House esta noite pela última vez e amanhã mudarei para o povoado. Começarei na escola no dia seguinte, se Miriam estiver preparada. Eu vou gostar muito.
—Assim será... Vai ensinar música para as crianças, Fleur?
—Canto, sim. Não há instrumentos, mas não importa.
Ele sorriu.
—Me alegro que tenha por perto uma boa amiga.
—Você quer dizer Miriam? Tenho outros amigos na cidade, Adam. Ou conhecidos que serão amigos assim que viver entre eles. Não se preocupe comigo. Vou ser feliz.
—Será? — Ele a olhava de soslaio, olhando para o rosto que estava a alguns centímetros do dele.
—Sim. A dor será intensa por um tempo. Eu sei, e eu espero que sim. Mas se desvanecerá. Não tenho intenção de sofrer, mas sim de viver. Vislumbrei o paraíso, e isso é mais do que muitas pessoas já conheceu. Agora eu vou viver de novo.
—Pamela estava chateada quando saí— comentou o duque. — Não fui generoso no que se refere a ela. Abandonei-a muito frequentemente. Estou ansioso para estar com ela.
—Sim, e é isso o que você deve fazer. Vale a pena viver por ela, Adam.
A carruagem passou retumbando pela ponte de madeira que os conduziria até o povoado. Fleur fechou os olhos e apoiou a face contra seu ombro, e Adam voltou a fechar a mão ao redor da dela.
—Oh, Deus — suspirou ela.
—Coragem. — Ele apoiou a face contra sua testa. — Se eu tivesse que escolher entre sentir essa dor e não sentir, Fleur, eu escolheria a dor, pois sem ela você nunca teria existido.
—Quero muito. — Fleur respirou profunda e sonoramente. — Quero que desapareça a dor. Eu amo você, Adam. Eu não sei se sou forte o bastante para suportá-lo.
Ele segurou sua mão com força.
—Então você quer que eu a leve a algum lugar aonde possamos nos ver de vez em quando? — Perguntou ele.
—Uma vez por ano? Duas vezes por ano? — Ela continuava com os olhos fechados. — Esperar o céu duas vezes ao ano?
—Eu poderia ser mais frequente se você estivesse perto.
—Uma confortável casinha perto de Willoughby? — Ela sorria. — E esperar que venha frequentemente. E não ter que dizer nunca adeus. E filhos talvez. Nossos. Eles seriam morenos ou ruivos, o que você acha? —Acabou dizendo com um fio de voz.
—Se for o que quer, eu lhe darei essa vida.
—Não. Só falamos de sonhos, Adam. Com um pouco de tentação incluída. Nenhum dos dois seria capaz de aceitar como uma realidade.
A carruagem estava saindo da estrada principal para tomar o longo caminho para Heron House.
—Quando chegarmos lá não entre na casa comigo, Adam. Vá sem mais.
Não disseram nada mais, mas continuaram sentados sem mover-se. Ela desejava que ele a agarrasse entre seus braços e esperava que não o fizesse. Não seria capaz de suportar se o fizesse.
Começaria a pensar que os sonhos podiam tornar-se realidade.
Uma curva mais e teriam atravessado a cerca e estavam no caminho que chegava direto até a casa. Restavam dois minutos.
—Não serei capaz de dizer nada — sussurrou ela. — Parte sem mais.
—Eu te amo — disse ele. — Ao longo da minha vida para sempre e por toda a eternidade. Eu te amo, Fleur.
Ela assentiu e virou a cabeça para apoiar o rosto por um instante contra seu ombro.
—Sim — murmurou ela. — Sim?
Duas pessoas desceram os degraus da casa quando a carruagem parou em frente. Fleur viu que eram Miriam e Daniel.
—Isabella! — Gritou Miriam quando Ned Driscoll abriu a porta da carruagem e colocou a escada para descer. — Acabamos de chegar para ver se você já tinha voltado para casa. Nós a esperávamos ontem. Ah, boa tarde, Sua Graça! — Miriam fez uma reverência rápida.
O reverendo Booth estendeu uma mão para ajudar Fleur a descer.
—Isabella — começou, observando o duque que saía atrás dela. — Não levou uma criada? Por que não fez isso?
—Você encontrou o túmulo de Hobson? — Perguntou Miriam. — E sua mente está em paz agora, Isabella? Ontem, havia rumores pelo povoado que não havia nenhuma acusação contra você, que a morte foi um acidente e que o suposto roubo foi um mal entendido. Tudo terminou, todo este assunto horrível. Não é, Daniel?
—Senhorita Bradshaw — ouviu uma voz baixa atrás de Fleur. — Vou partir.
—Não vai entrar em casa, Sua Graça? — Perguntou Miriam.
Fleur virou-se. Seus amigos estavam apenas alguns passos atrás dela. Levantou as mãos e ele as pegou. Adam a olhou intensamente nos olhos ao levar uma das mãos aos lábios.
—Adeus — disse.
"Adam." Os lábios dela formaram seu nome, embora não emitiu nenhum som.
E partiu. Sentou-se no extremo mais afastado da carruagem enquanto Ned fechava a porta, voltou-se para sorrir, inclinou a cabeça para ela e de um salto subiu ao lado do chofer.
E partiu. Percorreu o caminho da entrada, atravessou os portões e virou na primeira curva.
Ele havia partido.
—Bem, parece que ele estava com pressa por partir — comentou Miriam alegremente. — Isabella, que louca mulher e independente parece. Por que não foi a mim e me pediu para ir com você? Sabe que teria fechado a escola por alguns dias. Mas quando Daniel me contou que se negou a acompanhá-la, você já tinha ido. E imagina nossa consternação ao descobrir que foi com o duque de Ridgeway.
—Está feito, Miriam— cortou o reverendo Booth. — Não tem sentido repreendê-la mais. Entraremos com você, se quiser Isabella. Certamente se aliviará nos contando o que aconteceu.
—Você deve estar exausta — comentou Miriam, dando um passo adiante para segurá-la pelo braço. Sorriu-lhe e a seguir se voltou bruscamente para seu irmão. —Leve a bagagem de Isabella para dentro, Daniel. Quero falar um momento com ela antes de nos reunimos contigo.
Esperou até que Daniel desaparecesse no interior da casa.
—Oh, Isabella — ela sussurrou, tocando o braço da amiga e dando tapinhas. —Oh, pobrezinha, minha amiga...
Fleur ficou olhando o caminho como se fosse uma estátua de pedra.

Pelo menos, havia muitas coisas com as quais se entreter. Fleur agradeceu mais que qualquer outra coisa nos dias e semanas seguintes. Pelo menos havia muito o que fazer. Mudou todos os seus bens para a casa que foi da senhorita Galen, e trocou todas as coisas de lugar até ficar satisfeita. A princípio fazia tudo sozinha, incluindo cozinhar, porque não podia se dar ao luxo de contratar uma criada. Passava muitas horas no pequeno jardim, arrumando as sebes e as roseiras abandonadas para que recuperassem seu esmero e esplendor originais.
E lecionava para os vinte e dois estudantes de Miriam junto com sua amiga e descobriu o desafio de ensinar mais de uma criança de cada vez. E estava ciente de um casal de idosos que morava perto de sua casa. Levava-lhes bolos que ela mesma fazia e se sentava para escutar suas intermináveis histórias do passado, incluindo muitas histórias de seus pais. E ela tinha amigos para visitar e que a visitavam.
E sempre tinha Miriam, que passava grande parte de seu tempo livre com ela e que era uma amiga alegre sem ser intrometida. Porque sem dúvida sabia. Teve tato de enviar Daniel para o interior da casa depois que Adam partiu, e ofereceu-lhe palavras simples de apoio e compreensão. Mas se tinha curiosidade, nunca demonstrou. Nunca fazia perguntas. Era uma verdadeira amiga.
E também tinha Daniel. Ele não a evitou, apesar da confissão que fez e apesar do comportamento inadequado que exibiu posteriormente ao ir a Wroxford com Adam. E havia outros habitantes da aldeia e uma parte da aristocracia vizinha que se mostraram resistentes a socializar quando vivia em Heron House com seus familiares mas que agora estavam encantados em serem amigos dela.
Matthew não voltou para casa. Muito menos a prima Caroline nem Amélia, nem sequer quando terminou a temporada de Londres. No povoado se comentava que as damas foram para o norte com amigos. Diziam que Matthew partiu para a Europa continental para evitar uma situação delicada que não se sabia muito bem qual era. Fleur não sabia se algum desses rumores era certo. E não a importava saber aonde estava nenhum deles, sempre e quando se mantivessem afastados dela. Não podia suportar a ideia que a prima Caroline voltasse, e temia o retorno de Matthew.
Falou com o administrador de Heron House, e ele prometeu comunicar-se com o homem que cuidava dos assuntos de Lorde Brockehurst em Londres em relação aos dela. Fleur recebeu sua resposta de um modo inesperado. Uma tarde estava sentada em sua sala tomando chá depois de um dia exaustivo na escola e perguntando-se se restava energia para sair mais tarde e podar uma sebe que crescera muito. Levantou-se suspirando quando bateram na porta. E instantes mais tarde estava olhando boquiaberta para Peter Houghton. Sentiu como se o estômago tivesse dado uma cambalhota completa.
—Senhorita Bradshaw — ele a saudou, fazendo uma educada reverência.
—Senhor Houghton? — Ela virou-se, convidando-o para entrar.
—Enviaram-me a Londres para cuidar de algumas questões para você, senhorita. Pareceu-me melhor visitá-la na volta a Willoughby Hall em vez de escrever uma carta.
—Ah, sim. Obrigada. — Não gostaria nada de receber uma carta de Willoughby e descobrir que era do secretário. — Não quer tomar uma xicara de chá?
Fleur se sentou na beira da cadeira para ouvi-lo, já que o secretário constituía um débil vínculo com Willoughby e com o Adam. E recordou a primeira vez que o viu na agência da senhorita Fleming.
O certo era que Matthew fugiu do país. Alguém devia tê-lo avisado que seu engano foi descoberto e que estavam a ponto de lhe fazer perguntas delicadas e comprometedoras. Aparentemente o senhor Houghton falara com o homem que era encarregado dos assuntos de Matthew, e movera alguns fios entre os altos cargos e conseguiu que seu tutor atual fosse um primo longínquo, o herdeiro de Matthew, o qual só viu uma vez. E aquele homem, a quem o senhor Houghton também foi visitar, mostrou-se muito pouco interessado em encarregar-se da pessoa ou da fortuna de uma parente de vinte e três anos a quem nem sequer conhecia.
Entregariam-lhe uma atribuição muito generosa durante o próximo ano e meio, depois do qual receberia seu dote e sua fortuna tanto se estivesse casada ou solteira.
O senhor Houghton tossiu.
—Acredito que suas palavras exatas foram que no que diz respeito a ele, você poderia se casar com um limpador de chaminés — disse ele. Seus olhos brilharam por um instante.
Sorrindo, Fleur pensou que nunca percebera que o senhor Houghton tinha senso de humor. O homem não quis ficar para jantar nem para tomar uma segunda xícara de chá. Disse que queria percorrer alguns quilômetros mais antes do anoitecer.
Fleur permaneceu de pé e juntou as mãos na frente. Ele partiria dentro de poucos minutos. Fleur resistiria até então. Não faria nenhuma só pergunta sobre ele.
Nenhuma. Peter Houghton voltou a tossir, e parou junto a porta exterior antes de abri-la.
—Sua Graça não pôde ir a Londres. Enviou-me em seu lugar.
—Sim. Eu o agradeço, senhor. E a ele também.
—Está fazendo planos para levar a duquesa e Lady Pamela a Itália no inverno.
—Ah, sim? — As feridas que mal havia começado a fechar abriram novamente.
—Pela saúde de Sua Graça— explicou Houghton. — E acredito que também pela dele. Desde que voltou não é o mesmo.
Uma faca afiada arranhava a ferida.
—O clima da Itália deve ajudar aos dois.
Houghton estendeu a mão para a maçaneta e virou-a.
—Encarregaram-me que fizesse uma compra em Londres, senhorita, e que me assegurasse que chegasse até aqui. Deve chegar dentro de uma semana. Meu dever era informar que esta é mais uma contribuição para a escola do que um presente pessoal.
—E o que é?
—Deve chegar dentro de uma semana — repetiu ele.
E voltou a lhe fazer uma reverência, desejou que tivesse um bom dia e partiu.
Fleur ficou com a dolorosa sensação de saber que o único e mínimo vínculo que tinha com Adam ainda estava saindo do povoado.
E de saber que ele a amava o bastante para enviar seu secretário a Londres em seu nome. E que lhe enviava um presente, supostamente para a escola. Mas na realidade era para ela.
E de saber que logo, dentro de poucos meses, teria ido da Inglaterra. Não que isso importasse. De qualquer forma nunca mais o veria novamente. Mas a Itália! A Itália era muito longe. Às vezes a dor era quase insuportável.
Havia muitas coisas que fazer para mantê-la ocupada, mas desejava poder ter a mente tão ocupada como as mãos e o corpo. Não podia controlar seus pensamentos a respeito dele. E eram terrivelmente dolorosos. Nunca voltaria a vê-lo, e nunca voltaria a ouvir falar dele. Mas precisava saber e acreditar que a amaria durante o resto de sua vida. Vinte anos depois, se ainda estivesse viva, em seguida, e soubesse que ele ainda estava vivo, ela iria acreditar que ele a amava.
Mas não poderia comprovar se efetivamente era assim. Será que se perguntaria, igual ela já se perguntava: "Ainda me ama? Lembra-se de mim?"
Sentia que em certo sentido era quase mais fácil saber que não a amava, que era feliz em outro lugar com outra pessoa. Pelo menos assim poderia empreender a tarefa de viver sua própria vida com um pouco mais de determinação.
Talvez. Mas enquanto se deitava na cama à noite revivendo aquelas noites da viagem com ele, quando falaram com total facilidade e chegaram a tornar-se amigos e as vezes ficavam sem dizer nada em perfeita paz e harmonia, com as mãos entrelaçadas, não estava segura de poder viver sabendo que era feliz em outro lugar, que a tinha esquecido. E ao reviver aquela noite, quando disseram que se amavam uma e outra vez com seus corpos, não se acreditava ser capaz de suportar saber que poderia haver outra mulher em sua vida.
Mas mesmo assim doía saber que ele era infeliz, que estava preso em um casamento que não tinha nada de casamento, vinculado por uma garotinha que nem era dele.
Doía saber que a barreira que os mantinha separados, e que continuaria separando pelo resto de sua vida, eram tão fina e tão pouco resistente como uma teia de aranha. O ápice de sua dor se deu com dois eventos que ocorreram no mesmo dia, um mês depois de mudar para sua casinha.
No início da tarde a avisaram da escola para que fosse receber um piano que havia chegado de Londres. Havia alguns curiosos na rua, e todas as crianças haviam conseguido ficar do lado de fora também, amontoados ao lado do grande carro que transportava o instrumento.
—Um piano! — Miriam reprimiu um pequeno grito, e juntou as mãos sobre o peito. — É para você, Isabella? Você o pediu?
—É para a escola — explicou Fleur. — Um presente.
—Um presente? Para a escola? — Miriam a olhou muito surpreendida. — Mas de quem?
—Devemos fazer com que o levem para dentro — propôs Fleur.
Não soube de onde veio Daniel, mas ele também estava ali.
—É um objeto muito valioso para a sala-de-aula— comentou ele. — Devemos colocá-lo em sua casa, Isabella.
—Mas é para as crianças — protestou ela, — para que possa lhes ensinar música.
—Então precisa levar uma ou duas por vez até sua casa para que recebam lições.
—Oh, sim! — Miriam concordou. — Isso seria o melhor. Que presente mais maravilhoso! — Apertou o braço de sua amiga mas não voltou a perguntar quem o dera.
E assim, Fleur se encontrou com um piano em sua sala e uma caixa inteira de partituras. Quando por fim ficou sozinha, depois de Miriam garantir que não precisava mais dela, estava muito perto de terminar as aulas, sentou-se no banquinho e tocou as teclas com os dedos trêmulos.
Mas não tocou. Baixou a tampa brilhante sobre as teclas, afundou a cabeça entre os braços e chorou sem parar até doer. Eram as primeiras lágrimas que derramou desde que ele partiu. Lembrava dele cedo pelas manhãs abrindo a porta que conectava a biblioteca e a sala de música, permanecendo lá até que ela o visse para que não pensasse que pretendia escutá-la sem que soubesse.
Fleur podia ouvir-se tocar, absorta na música, mas sentindo-o no aposento ao lado enquanto escutava em silêncio. Ela pensou que o odiava por tanto tempo, que o temia. E sentira medo, um medo mortal, à estranha e inesperada atração que sentiu por ele.
Adam lhe enviou um presente muito valioso, sabendo o quanto a música significava para ela. Mas nunca a ouviria tocá-lo. Nunca poderia tocar para ele.
Todas suas lágrimas se esgotaram quando, naquele mesmo dia de noite, descobriu um fluxo de sangue que lhe avisava que tampouco teria um filho dele. Estava com mais de uma semana de atraso. Sabia que foi uma ideia muito estúpida esperar que fosse verdade. Deveria ter passado a semana aterrorizada. Seria catastrófico se isso fosse verdade.
Mas estava descobrindo que o coração não pode dirigir sempre a cabeça. Deitou-se na cama depois de limpar-se e sentia-se tão triste e vazia como no dia que ele partiu. Ela disse a si mesma que não teria se importado. Não teria se importado mesmo com todo o incômodo e escândalo que pudesse ser. Pode-se acumular muita esperança em oito dias, e ela começou a acreditar em sua esperança.
—Adam — sussurrou na escuridão. — Adam, há muito silêncio. Não posso suportar o silêncio. Não posso te ouvir.
As palavras soaram ridículas quando se ouviu dizê-las. Fleur ficou de lado e enterrou o rosto no travesseiro.

Pouco depois da visita de Houghton, Fleur perguntou a Mollie, a criada de Heron House, se queria mudar-se para sua casa e cuidar dela.
Mollie ficou encantada com a perspectiva de ser uma governanta e cozinheira além de donzela. Mas insinuou que Ted Jackson ficaria triste ao tê-la tão longe. Antes que passasse um mês, o senhor e a senhora Jackson estavam vivendo na casa, e Fleur tinha um encarregado dos acertos da casa e jardineiro além de uma governanta.
Quando deixou de estar sozinha em casa, o reverendo Booth começou a visitá-la às vezes sem sua irmã. Dizia que a presença de Fleur lhe era relaxante, ao observá-la enquanto bordava. E gostava de escutá-la tocar o piano.
Fleur gostava de suas visitas e contemplava com certa nostalgia a época em que acreditou que estava apaixonada por ele. Frequentemente pensava que, se não tivesse acontecido tudo aquilo se a prima Caroline e Amélia não tivesse ido a Londres, se Matthew não tivesse evitado que saísse da casa, se Hobson não tivesse caído e ela não tivesse fugido, pensando que o havia matado, sua vida poderia ser muito diferente agora. teria mudado para a reitoria como tinha planejado e viveria ali com Miriam até que Daniel conseguisse uma licença especial.
Agora já estariam a vários meses casados. Teria passado todas as noites sentados como estavam agora. Talvez ela estaria esperando um filho. E teria sido feliz. Já que sem as experiências dos meses anteriores, talvez nunca tivesse detectado a visão estreita de Daniel. Talvez ela mesma teria continuado considerando a moral em sentido estrito de preto e branco. E nunca teria conhecido Adam. Nunca teria conhecido o amor apaixonado e devorador que sentia por ele.
Teria sido feliz com o amor terno que Daniel oferecia. Às vezes desejava poder apagar os meses passados, voltar ao modo como as coisas eram antes. Mas percebeu que nunca podia retroceder, nem desejar verdadeiramente, porque uma vez que ampliava a experiência pessoal já não podia sentir-se satisfeita com a experiência limitada.
Além disso, apesar da dor, do desespero, não queria viver sua vida sem ter conhecido Adam. Sem amá-lo.
—Você está feliz, Isabella? — Perguntou o reverendo Booth uma noite.
—Sim. — Ela sorriu. — Tenho muita sorte, Daniel. Tenho uma casa e a escola e amigos. E me sinto muito segura, o que é maravilhoso depois da ansiedade que passei com Matthew.
—É muito respeitada e querida. Eu pensei que talvez seria difícil estabelecer-se aqui depois de tudo o que aconteceu.
Ela sorriu e baixou a cabeça para concentrar-se outra vez no bordado.
—Às vezes desejaria que as coisas pudesse voltar ao modo que eram antes daquela noite terrível — comentou ele, fazendo eco com os pensamentos de Fleur. — Mas não podemos, certo? Nós não podemos mais voltar atrás.
—Não.
—Eu pensava — começou ele — que só seria possível amar alguém merecedor de meu amor. Pensava que poderia amar outras pessoas de um modo cristão e perdoar seus defeitos se eles se arrependessem deles. Mas não podia imaginar que pudesse amar ou me casar com alguém que tivesse cometido um engano grave. Eu estava enganado.
Ela sorriu em direção a seu bordado.
—Eu sou culpado de ter mostrado um orgulho terrível— lamentou o reverendo. — Foi como se pensasse que uma mulher tivesse que ser digna de mim. Mas eu sou o mortal mais fraco que existe, Isabella. Eu olho para você e me admiro que sua experiência não a tenha amargurado nem endurecido. É muito mais forte e independente do que foi antes, não é?
—Eu gosto de pensar que sim. Acredito que sou mais consciente do que antes que minha vida está em minhas mãos, não posso culpar os outros por algo que dá errado nela.
—Faria-me a honra de se casar comigo? — Perguntou Daniel.
Apesar das palavras que levaram a proposta, Fleur se surpreendeu. Levantou a vista para ele e a agulha ficou suspensa por cima do bordado.
—Oh, Daniel. Não. Desculpe, mas não.
—Mesmo que saiba de seu passado? Mesmo que diga que não muda nada o meus sentimentos por você?
Ela fechou os olhos.
—Daniel, eu não posso. Ah, eu não posso.
—Então é o que eu pensava — levantando-se e tocando seu ombro. — Mas cortou relações com ele, não é? Eu não esperaria menos de você. Ele é um homem casado. Desculpe, Isabella. Sinto muito. Gostaria que você fosse feliz. Vou rezar por você.
Daniel saiu da casa sem fazer ruído enquanto ela olhava fixamente para seu bordado.
Não voltou a apresentar-se sozinho durante várias semanas, embora às vezes ia com sua irmã. E frequentemente ia a escola.
Apareceu sozinho novamente em uma tarde de um dia sem aula, e trouxe-lhe uma carta.
—Se fosse você a devolveria sem abri-la, —sugeriu adotando um tom grave ao entregar-lhe. —Como seu pastor eu recomendaria que o fizesse, Isabella. Você lutou tanto contra a sua fraqueza e está tão perto de ganhar a batalha... Deixe-me devolvê-la por você. Ou destrui-la sem ler.
Ela agarrou a carta de suas mãos e olhou o selo do duque de Ridgeway e a caligrafia que não era a do senhor Houghton. Já tinham passado mais de quatro meses, ou talvez quatro anos ou quatro décadas ou quatro séculos.
—Obrigada, Daniel.
—Seja forte — insistiu ele. — Não ceda à tentação.
Ela não disse nada, mas sim continuou olhando a carta. Ele virou-se e partiu sem dizer mais nada. Ela o odiava. Não esperava voltar a sentir ódio por ele outra vez, mas o odiava. Ele dissera que nunca voltaria a vê-la, que nunca lhe escreveria. E ela acreditou.
Tinha sofrido por ele, embora não pudesse continuar vivendo sem voltar a vê-lo nem voltar a ouvir uma palavra dele. E ele havia escrito. Para abrir novamente a ferida que com muita dificuldade foi cicatrizada. Para obrigá-la a começar de novo. E, no futuro já não seria capaz de confiar que se manteria longe da tentação de sua vida.
Daniel tinha razão. Deveria devolver a carta sem abri-la para que soubesse que era mais forte que ele. Ou deveria destrui-la sem ler. Deveria entregar a Daniel para que a devolvesse ou a destruísse.
Entrou na sala e a colocou, sem abrir, apoiada em um vaso que havia em cima do piano. E se sentou lentamente em sua poltrona favorita, com as mãos no colo, olhando-a.

Capítulo 26

—Bem-vindo a casa, Sua Graça. — Jarvis saudou o duque fazendo sua característica reverencia formal.
O duque de Ridgeway cumprimentou seu mordomo com a cabeça e entregou-lhe o chapéu e as luvas.
—A casa parece muito calma — comentou. — Aonde estão todos?
—Todos os convidados partiram, Sua Graça — explicou o mordomo. — A maioria partiu há dois dias.
—E Lorde Thomas? — Perguntou o duque.
—Partiu ontem, Sua Graça.
—E aonde está a duquesa?
—Em seus aposentos, Sua Graça.
O duque se afastou dele.
—Diga a Sidney que quero vê-lo, e preparem água quente para um banho.
Enquanto percorria os corredores revestidos de mármore para seus aposentos privados, pensou que era um alívio sair por fim da carruagem. Foi tão vazio e silenciosa sem ela... E não teve grande coisa a fazer durante a viagem exceto pensar. E recordar.
O duque não queria fazer nenhuma dessas duas coisas. Tomaria um banho rápido, colocaria uma roupa limpa, subiria para ver Pamela e em seguida Sybil. Thomas havia partido sem ela. E o duque imaginava que ele voltava a ser o vilão, como da última vez.
Pobre Sybil. Estava realmente muito triste por ela, e sabia exatamente como se sentia, magoada, vazia, incapaz de se convencer que a vida voltaria a trazer alguma felicidade. Às vezes era difícil saber com o coração como sabíamos com a cabeça que voltaria a ter um motivo para rir outra vez.
—Onde diabos está essa água? — perguntou impertinente o duque a seu criado ao entrar pela porta do vestiário.
—Em algum lugar entre a cozinha e aqui, senhor — respondeu Sidney. — Se tirar o nó dessa maneira, a única coisa que conseguirá é apertar mais forte e não poder soltar, deixe-me que o desfaça como tem que ser.
—Você é insolente! — zangou-se sua Graça. — Como você pôde viver essa semana sem poder mimar-me como uma galinha poedeira?
—Pois, muito tranquilo, senhor. A verdade é que muito tranquilo. Dói-lhe o lado?
—Não, não me dói — respondeu o duque impaciente. — Ah, por fim. — Voltou-se para observar dois criados que traziam grandes baldes de água quente.
—Eu o massagearei de todos os modos depois do banho, senhor. Sente-se e me deixe que me encarregue desse nó ou só sairá cortando com uma faca.
O duque sentou-se e ergueu o queixo, como um filho obediente.
Estava desejando tomar banho, vestir-se e subir. Ver Pamela. Sim, tinha muita vontade de ver Pamela. Não havia ninguém mais a quem queria ver. Já não sentiria o antigo desejo de subir, sentar-se na sala de estudo e ouvi-la falar e transformar cada aula em uma aventura. A partir de então só estaria Pamela. Mas de qualquer maneira, ele estava ansioso para subir mesmo deixando de lado a vontade de ver sua filha. Talvez tivesse que demonstrar-se que Fleur partiu de verdade. Pensou que em certos aspectos ela teria sorte: viveria em um lugar aonde ele nunca esteve e aonde não haveria fantasmas. Em troca, ele teria que entrar na sala de jogos, na sala de estudo, na sala de música, na biblioteca, na galeria... em todos os lugares associados com ela.
Mas o duque não queria pensar. E não o faria. Ele levantou-se inquieto depois que Sidney desfez o nó do lenço com uma facilidade que beirava a insolência, e puxou impaciente os botões da camisa.
Um deles saltou da mão e soltou um palavrão.
—Alguém deve ter dormido em uma cama com brasas ardentes esta noite — comentou Sidney alegremente a ninguém em particular.
—E alguém está pedindo que o tirem desta casa pelas orelhas — replicou o duque, tirando a camisa e se sentando outra vez para que seu valete pudesse lhe ajudar a tirar as botas.

A duquesa de Ridgeway estava em sua sala. Sua Graça a ouviu tossir ao aproximar-se. Bateu na porta e esperou que sua criada respondesse, fizesse uma reverência e saísse do aposento. A duquesa estava do outro lado da sala, entre as colunas estreitas que seguravam as cortinas. Estava vestida em um vestido branco diáfano, e cabelos soltos desciam por suas costas.
Estava pálida como o vestido, exceto por duas manchas de cor no topo das maçãs do rosto. Parecia magra e raquítica. Ao dirigir-se para ela, o duque achou que perdera peso desde a última vez que a viu.
—Sybil — começou ele, estendendo a mão para pegar a dela e inclinando-se para beijá-la no rosto. — Como está?
As mãos da duquesa estava fria como gelo, e a face fresca.
—Bem. Estou bem, obrigada — respondeu ela.
—Eu a ouvi tossir. Ainda está resfriada?
Ela riu e tirou as mãos das dele.
—Você não parece bem— se lamentou o duque. — Vou levar Pamela e você a Londres, onde você pode se consultar com um médico que sabe o que faz. E depois iremos por um ou dois meses a Bath. A mudança de ares e paisagem fará bem a todos.
—Eu te odeio — disse ela com sua voz leve e suave. — Gostaria de poder usar uma palavra mais forte, porque eu não tenho nada além de ódio para você. Mas não consigo imaginar outra maneira de dizer isso.
O duque deu-lhe as costas e perguntou:
—Ele partiu ontem?
—Você sabe que sim. Você ordenou que partisse.
Ele passou uma mão pela testa.
—Imagino que você suplicou para que a levasse com ele. Por que acha que se negou, Sybil?
—Porque tem muita consideração com minha reputação.
—E antepor sua reputação a sua felicidade? E a dele? Você achou convincente sua rejeição?
—Quero ficar sozinha — ela murmurou, virando-se para o sofá para se sentar. — Quero que você saia. Esperava que não voltasse desta vez. Esperava que os encantos dela fossem mais apetecíveis. Gostaria que ficasse com ela para não ter que vê-lo nunca mais.
Ele suspirou e se virou para encará-la.
—Há seis anos atrás — começou o duque, — teria dado minha vida para salvá-la da dor, Sybil. Acredito que talvez daria mais que isso. Continuo a achar terrível vê-la sofrer. Você é minha esposa e me comprometi a fazer tudo o que estiver em minhas mãos para garantir sua segurança e sua felicidade. Sei que está sofrendo uma dor tão intensa que é quase insuportável. Mas não se pode conseguir nada olhando para trás. Por que não podemos continuar juntos e tentar fazer com que resta da vida seja pelo menos pacífico?
Ela riu novamente, sem olhá-lo.
—O Casamento funciona em dois sentidos— prosseguiu o duque. — Sou seu marido, Sybil. Você também deve fazer tudo o que estiver em suas mãos para garantir meu bem estar. Por acaso tentar me satisfazer não proporcionaria a sua mente alguma coisa na qual se concentrar? E eu não sou difícil de satisfazer, conformaria-me com um pouco de amabilidade, um pouco de companhia!
Daquela vez Sybil o olhou enquanto ria. Mas a risada se tornou em uma tosse prolongada.
Ele se ajoelhou diante de sua esposa, pôs-lhe a mão na nuca e lhe ofereceu seu lenço. Ela afastou a mão.
—Na segunda-feira partiremos para Londres — anunciou ele quando ela deixou de tossir— Dentro de três dias. Diga a Armitage que comece a preparar seus baús.
A duquesa voltou a rir.
—Guarde seus médicos, Adam. Nenhum médico pode fazer nada por mim. Não quero ter nada que ver com eles. — Desdobrou seu lenço e sorriu ao lhe mostrar as manchas vermelhas de sangue nele.
Ele as olhou, ficou lívido e baixou a testa para apoiá-la nos joelhos de sua esposa.
—Você poderia ter imaginado — comentou Sybil. — Se não, então você é incrivelmente estúpido. Vá embora, Adam. Eu não quero nada a ver com você ou com qualquer um de seus médicos.
Ele levantou a cabeça e olhou para seu rosto.
—Sybil, ah, minha pobrezinha — sussurrou. — Por que não disse nada antes? O doutor Hartley sabe? Por que não me disse? Não teria que ter passado por tudo isto sozinha.
—Por quê? Você pretende morrer por mim, Adam? Ou se limitará a segurar minha mão durante todo o processo? Não, obrigada. Eu prefiro fazer isso sozinha.
A duquesa voltou a cabeça bruscamente ao contrair a expressão ante ele. Adam levantou-se imediatamente, e tomou-a nos braços. Abraçou-a forte, balançando-a contra ele, e beijou-a na testa. Mas Sybil se separou de seu marido logo que recuperou um pouco o controle.
—Quero ficar sozinha. Quero morrer sozinha. Se Thomas não está aqui comigo, então morrerei sozinha. Não! — Ela virou-se bruscamente, quando ele moveu a mão em sua direção. —Não há necessidade de ser generoso e mandar procurá-lo. Isso é o que estava prestes a oferecer, não é? Eu conheço você, Adam.
Ele não disse nada.
—Sei que ele não viria. Não viria mesmo que eu estivesse saudável e me oferecesse com um milhão de libras. Acha que viria me ajudar a morrer?
—Sybil... — começou ele, estendendo uma mão para ela. A duquesa riu mais violentamente que antes.
—Você acha que eu não sei a verdade? Acha que não soube sempre, lá no fundo? Mas isso não me faz odiá-lo menos. Eu te odeio por ser tão nobre e tão compreensivo. Eu te odeio por sempre estar disposto a assumir a culpa. Estou contente de estar tísica. Me alegro que vou morrer. — Deu-lhe as costas.
—Eu não a deixarei partir sem lutar — interveio o duque. — Existem tratamentos que podem ajudá-la em sua enfermidade. Se você tivesse me dito antes, ou se o médico tivesse dito, suponho que o obrigou a guardar segredo, já poderíamos ter feito algo a respeito. O clima quente ajuda, ou assim ouvi. Eu a levarei para algum lugar quente. Pode ser Espanha, ou Itália. Nós vamos passar o inverno lá. Quando chegar o próximo verão você já terá se recuperado. Sybil, não perca a esperança. Não perca a vontade de viver.
—Eu quero descansar — gemeu ela. — Puxe o sino para chamar Armitage, Adam. Estou cansada.
Ele o fez imediatamente e se voltou para ela.
—Eu vou cuidar de você até que se cure — prometeu, — goste você ou não. E se você me odeia ou não, vou mantê-la viva e a meu lado. E junto com Pamela. Pense nela, Sybil. Necessita que viva. Ela te adora.
—Pobrezinha — gemeu a duquesa. — Ficará órfã quando eu me for.
—Sempre terá a mim. Seu pai. E terá você também. Farei com que Houghton se encarregue dos preparativos para irmos para a Itália durante o inverno.
A criada entrou na sala nesse momento.
—Sua Graça não se encontra bem e está cansada — explicou o duque. — Ajude-a a ir para a cama, por favor, Armitage.
E contemplou a sua duquesa, frágil e encantadora, apoiando-se no braço de sua criada. O duque resistiu ao impulso de tomá-la nos braços e levá-la para a cama. Sabia que esse gesto não seria bem visto.

Dois dias após seu regresso, o duque enviou Peter Houghton a Londres para consultar seu advogado e o de Lorde Brockehurst e ver o que podia arrumar para Fleur.
E ele planejava comprar um piano para enviar como um presente para a escola. Sua Graça se convenceu que Fleur devia ter um piano.
Um único presente. Isso seria tudo. Um presente e nenhuma outra comunicação mais.
O duque passou parte da manhã do primeiro dia em casa, passeando com a filha e o cão, e prometeu que à tarde iria a cavalo até a casa do senhor Chamberlain para que ela pudesse brincar com as crianças.
—Montarei com você, papai.
—Nem pensar — ele riu. — Montará seu próprio cavalo, Pamela. Pensei que já tinha passado o medo.
—Mas a senhorita Hamilton não estará montando do outro lado.
—Não precisa de qualquer ajuda. Você pode andar muito bem sozinha. Preciso encontrar outra preceptora, e que queira ir para a Itália com a gente.
—Não quero outra preceptora. Quero à senhorita Hamilton — exigiu a menina.
—Mas a senhorita Hamilton mudou de vida, Pamela — disse ele, inclinando-se para pegar o cachorro nos braços e assim entrar em casa e levá-lo escada acima. — Está dando aulas para um grupo inteiro de crianças.
—Eu não gostava dela. — A menina fez uma careta. — Sempre soube que não gostava dela.
O duque pôs a mão na cabeça dela e esfregou vigorosamente.
—Você sabe que não é verdade, Pamela. Ela a amava.
—Então por que partiu? — Perguntou a menina. — E nem sequer se despediu.
O duque suspirou e se alegrou com a distração quando o cão pulou para fora de seus braços no alto da escada e correu para a porta para entrar na sala de jogos. Pamela riu e correu atrás dele.
Ele saiu em direção ao estábulo e fez com que selassem seu cavalo. E passou as horas seguintes cavalgando, esquecendo-se completamente do almoço, cavalgando a meio galope pelo gramado da parte de trás, através das árvores, passando pelas ruínas e evitando o parque na parte dianteira da casa.
Tentou se concentrar em seus planos futuros. Levaria Sybil a Londres antes que partissem da Inglaterra. Averiguariam a opinião do melhor médico que existisse sobre sua doença e suas chances de recuperação. E em seguida iriam para Itália, pelo menos durante os meses de inverno, e ele se asseguraria que Sybil ficasse ao sol todos os dias sem exceção.
Ela tinha apenas vinte e seis anos. Era muito jovem para morrer. O duque pensou que era estranho como uma pessoa era capaz de ser totalmente consciente de algo nos recessos da mente, e ainda não saber de tudo. Sabia ou suspeitava ele que Sybil era tísica? Todos os sintomas tinham aparecido, olhando para seu rosto. Mas ninguém disse nada. Acreditava que pelo menos o médico lhe informaria.
Thomas mencionara que talvez estivesse tísica, mas ele negara essa possibilidade.
Talvez suas próprias negativas fossem semelhantes as de Sybil. No dia anterior ela dissera que sabia a verdade sobre Thomas desde o início. Mas enquanto não soube, ou se recusou a reconhecer até mesmo para seu próprio coração. E já estava tossindo sangue. Isso significava que a doença estava no final, certo? Não havia esperança de sua recuperação.
Mas ele cuidaria dela até que se curasse.
O duque desejou que estivesse disposta a aceitar seus cuidados, sua companhia, o afeto que ainda estava disposto a lhe dar. Mas ela não queria. Adam pensou que Sybil sempre foi o pior inimigo de si mesma. Sem dúvida, sua experiência com Thomas, a gravidez fora do casamento e sentir-se obrigada a casar-se com Adam embora não o amasse a marcaram. Não queria menosprezar a dor que devia ter sofrido. Como podia quando ele mesmo estava sofrendo uma dor muito semelhante? Mas poderia ter feito algo por si mesma.
Se soubesse no mais profundo de seu ser que Thomas a abandonou cruelmente poderia ter feito um esforço pelo menos pelo casamento. Poderia ter dado todo seu amor a Pamela, ou mesmo a ele. Já que lhe foi arrebatada toda a felicidade que possuía, poderia ter se concentrado em dar felicidade a outras pessoas. Mas Sybil não tinha um caráter forte. Se lhe tivessem dado felicidade, sem dúvida teria continuado sendo doce toda sua vida. Mas era uma pessoa que queria receber, não dar, e uma vez que lhe arrebataram tudo o que queria em sua vida, não ficou nada, exceto amargura e ódio e uma busca desesperada pela gratificação sensual.
Ele só podia sentir uma grande pena por ela. E se sentia obrigado a ajudá-la naquela nova crise de sua vida, a pior de todas. Seria muito triste que morresse tão jovem e sem ter descoberto que existia muito que dar à vida. Mas não era fácil dar as costas as dores do passado e entregar todas as energias ao presente e ao futuro; não era nada fácil. Finalmente o duque dirigiu seu cavalo para a fachada da casa e foi a meio galope pela grama ondulante do extenso parque. E então pôs a galopar, imprimindo a Aníbal uma velocidade cada vez maior, sem poder deixar para trás todos seus pensamentos.
Ele virou-se quase que instintivamente para a esquerda uns três quilômetros mais adiante e saltou a cerca em direção ao prado, puxou as rédeas e deu uns tapinhas no pescoço de seu cavalo.
Olhou para trás e a viu em sua lembrança saltando por cima da cerca depois dele, transbordando-a mais de um palmo. O duque inclinou a cabeça para frente e fechou os olhos.
Não, não era fácil. Ele passou uma noite sem dormir: os braços e o corpo doía de pensar nela. E recordou uma vez mais a doçura e a fragrância de seu cabelo, a pele suave e sedosa, os seios turgidos, a cintura estreita e os quadris largos, as pernas longas e magras, a boca quente e ansiosa, as profundidades femininas quente e úmida!
E recordou dela silenciosa, adormecida e quente em seus braços nos interlúdios das vezes que se amaram, sorrindo à luz de velas, de modo que as palavras entre eles eram desnecessárias.
E pegando sua mão na carruagem, com o ombro apoiado justo debaixo do dele.
Fleur! meu Deus! Fleur!
Não pôde evitar pensar que se Sybil morresse poderia casar-se com Fleur.
Meneou a cabeça violentamente e fez seu cavalo virar para o caminho comprido através do prado. Não a deixaria morrer. Era sua esposa, e estava doente e infeliz. Não a deixaria morrer. Não pensaria em Fleur. Não tinha direito em pensar nela. Estava casado com Sybil. Seguiu o caminho que ele tomou em uma ocasião anterior com Fleur, mas depois de passar pela cerca de volta ao parque, tomou uma direção diferente até que seu cavalo entrou no caminho que ficava na margem sul do lago, em frente do pavilhão na ilha.
E dirigiu-se para onde passeou com Fleur durante o baile ao ar livre.
Justo ali. No caminho. Ela estava apavorada, tinha pavor que ele a tocasse. Havia fechado os olhos com força, e depois a música e a atmosfera a prendeu com a magia da mesma forma que prendeu a ele, e dançaram como se fossem feitos para dançar juntos pelo resto de suas vidas.
A bela, a belíssima Fleur com seu vestido azul claro e seu maravilhoso cabelo vermelho dourado. Olhou em direção ao lugar aonde dançaram. Mas não havia música, nem estava sob a luz das lanternas. Nem Fleur. Só um caminho iluminado pelo sol e a brisa nas árvores e o canto dos pássaros.
Adam engoliu em seco duas vezes e levou o cavalo para casa. Sybil fora a Wollaston naquela manhã. Devia ir comprovar que voltara bem e a saída não a fez piorar. Fazia um dia quente e muito bonito. Talvez ela gostasse de dar um passeio curto, apoiando-se em seu braço? Mas não, nem que os anjos descessem do céu a pedir.
Eles partiriam no fim de setembro, mais de três meses depois que Fleur partira de Willoughby Hall. O duque de Ridgeway se alegrava de passar pelo menos uma parte do outono na Inglaterra. Ele passeava por suas terras, às vezes a pé, outras vezes a cavalo, às vezes sozinho, outras com sua filha e o cão, se estivessem a pé, aproveitando as diversas cores das folhas e o tapete multicolorido sob seus pés. Pamela gostava de pisar nas folhas rangentes com ele, as esmagando ao passar.
O duque sabia que mudaria tudo aquilo pelo menos durante o inverno. Recordou os longos meses e anos de campanhas contra Bonaparte e a saudade que sentiu então quando viajava com o exército. Mas deviam partir. Sybil não queria ir, e afirmava teimosamente que não iria. Mas naquele assunto ele podia exercer sua autoridade e insistir que lhe obedecesse. Se não tinha vontade de viver, ele a teria por ela.
Transmitiria-lhe sua própria força e faria que ficasse boa outra vez.
Ela não mostrava muitos sinais externos da doença. Depois de seus convidados partirem, voltou a ficar inquieta e saía o tempo todo para visitar outras pessoas. Em ocasiões levava Pamela, mas a maioria das vezes ia sozinha. Quando convidava alguém para sua casa, o que o duque raramente fazia por medo a cansá-la muito, animava-se e estava contente.
Duncan Chamberlain ficou muito desconfortável uma noite em que o escolheu para flertar.
Mas existia ocasiões, às vezes até mesmo dias inteiros, que a febre alta e a tosse a manteve confinada em seu quarto. O duque ia visitá-la diariamente, interessava-se por sua saúde e tentava conversar. Mas ela o rejeitava. E cada vez que Adam puxava o tema afirmava que não iria para Itália nem ver nenhum médico. E manteve-se encerrada em seus aposentos na véspera da partida programada. Peter Houghton levou o correio na última hora da manhã, incluído uma carta de uma amiga de Londres com a qual estava acostumada a se corresponder.
O dia estava frio e tempestuoso, e ameaçava com chuva o tempo todo.
Ao sair da sala de jogos, onde tudo eram nervos e baús pela metade, e enquanto descia a escada para fazer a visita diária a sua esposa, o duque achou que já tinha chegado a hora que partissem para climas mais quentes.
Mas Sybil não havia descido para comer.
A criada lhe disse que ela havia saído antes do almoço. Armitage achava que Sua Graça, a duquesa, saiu para dar um passeio curto, mas deve ter entendido mal. Devia ter ido na carruagem para a cidade. O duque franziu o cenho. Voltou do estábulo há menos de uma hora. Ninguém comentou que Sybil levou a carruagem.
E além do mais o tempo não era adequado para Sybil passear. E o almoço foi há duas horas antes.
—Obrigado — o duque assentiu rapidamente para a criada.
Cinco minutos mais tarde, no estábulo, descobriu que não levou nenhuma carruagem. A duquesa não esteve ali.
—Mas a vi esta manhã caminhando nessa direção, Sua Graça — disse Ned Driscoll, apontando para o lago. — Mas faz horas isso.
—Obrigado — disse o duque.
Estava começando a chover. Era uma chuva fria e torrencial, que impregnava rapidamente o corpo, mesmo através da roupa e abria caminho pelo colarinho. O duque se dirigiu rapidamente para o lago. Imediatamente viu que um dos barcos estava na água, virado e flutuando sem rumo. Algo escuro estava preso entre os juncos perto da ilha.
Poucos minutos depois, de outro barco, livrou o corpo de sua esposa dos juncos e a subiu ao barco. Remou até a margem, gentilmente levantou sua esposa nos braços e começou a caminhar em direção à casa. Embora estivesse molhada e com a roupa encharcada, não pesava mais que uma pena. Tinha uma mão branca e frágil apoiada no ventre.
Era como se os pés do duque fosse feito de chumbo. Sentia uma dor no peito e na garganta que dificultava sua respiração. Em uma ocasião ele a amou, amou sua beleza e seu passo leve e sua voz doce. Ele a amou com o fervor de um jovenzinho. E se casou com ela e prometeu amá-la e respeitá-la até a morte.
Mas não foi capaz de protegê-la do desespero que a levou ao suicídio.
Estavam alguns rapazes fora do estábulo, observando enquanto ele se aproximava, como se sentissem que algo ia mau. E por algum motivo, Jarvis e um lacaio se encontravam fora, no alto dos degraus enquanto ele subia a carga por entre eles.
—Sua Graça teve um acidente — anunciou o duque, surpreso da firmeza de sua própria voz. — Mande Armitage e a senhora Laycock até seu quarto, por favor, Jarvis.
—Está ferida, Sua Graça? — Por uma vez o mordomo se mostrava surpreso e não se comportava com frieza.
—Morta — respondeu o duque, passando por ele.
Entrou na casa passando por diante de Houghton e do valete de seu irmão, que também estava ali, coberto pelo pó e a lama da viagem.
Adam levou sua esposa até o quarto e a deixou com cuidado na cama. Endireitou-lhes os membros e ajeitou sua roupa úmida, estendeu a mão para fechar os olhos e tocou o belo cabelo loiro platinado, que agora estava úmido e coberto de lama. ajoelhou-se junto a cama, agarrou uma das mãos de sua esposa, apoiou-a contra sua face e chorou.
Chorou pela morte de um amor apaixonado e imaturo que não conseguiu proporcionar nenhum tipo de paz a pessoa amada. E chorou pela mulher que tomou por esposa movido por tais ideais, a mulher que acabava de se matar em vez de enfrentar uma doença fatal contando só com os braços do duque para consolá-la. Chorou por sua própria fragilidade e infidelidade. Chorou por sua humanidade.
Ele acabou levantando-se, sabendo que Armitage e a senhora Laycock estavam atrás dele. Virou-se sem dizer uma palavra e atravessou o quarto até o salão oval. Seus passos o levaram a mesa, na qual havia uma carta aberta. Em algum lugar de sua mente soube que não devia lê-la. Era para sua esposa. Mas sua esposa estava morta.
Assim inclinou-se sem muita curiosidade. E dessa forma descobriu, antes que Houghton e o valete de seu irmão tivessem oportunidade de falar com ele, que Lorde Thomas Kent foi morto em uma briga violenta.

Capítulo 27

Ela sabia que, naturalmente, acabaria abrindo a carta. Soube no instante em que Daniel a colocou em suas mãos. Como podia não abri-la, como podia ficar sem saber sobre sua vida uma vez mais?
Mas a incomodava. E odiava Adam. Já que depois de quatro meses e meio, percebeu que não superou absolutamente a dor, que precisaria viver muitos meses mais no presente para deixar de ter saudades de dia e suspirar por seus braços de noite.
E finalmente reconheceu para si mesma que o motivo pelo qual estava adiando não era tanto seu ressentimento, ou saber que ao ler sua mensagem voltariam a abrir todas as feridas, mas algo completamente diferente.
O motivo pelo qual adiava era que sabia que só demoraria alguns minutos para ler a carta. E depois não haveria nada mais. Voltaria a encontrar-se com o vazio e o silêncio que se estendia até o infinito.
Ela colocou o copo e o prato longe e pegou a carta, segurou em suas mãos, levou-a aos lábios e a pressionou contra seu rosto. Ela pensou que afinal poderia ser uma carta de alguém da casa. Talvez fosse da senhora Laycock. Sentiu que lhe revolvia o estômago ao pensar e começou a abri-la em pânico.
Seu olhar foi diretamente ao final da página, a assinatura. "Adam", escrevera a mão com letra grossa e enérgica. Fleur mordeu o lábio inferior e fechou os olhos por um instante. E voltou a sentar-se na cadeira.
"Minha querida Fleur — dizia. — Estou escrevendo para dizer-lhe de duas perdas que ocorreram em minha família. Meu irmão morreu em uma briga em Londres recentemente, a um pouco mais de um mês. Minha esposa se afogou acidentalmente no mesmo dia em que soube de sua morte em Willoughby. Enterrei a ambos, um junto ao lado do outro, no cemitério familiar."
Fleur apoiou a carta no peito. Fechou os olhos e levou uma mão à boca.
Adam! Oh, pobre Adam!
"Amanhã eu sairei com Pamela de viagem pela Europa — continuava a carta. — Ela está inconsolável. Adorava Sybil. Permanecerei com ela no estrangeiro durante o inverno e talvez durante todo o período de nosso luto. Quando terminar o ano irei a Wiltshire. Não direi mais por agora. Entenderá que o mês passado foi muito doloroso. E lhe devo um ano de luto, Fleur, e a meu irmão também, é claro. Eu queria que você soubesse dessas coisas antes que eu partisse. E acrescentarei que pensava em tudo o que disse quando estive em Wiltshire."
Fleur virou-se para apoiar a carta em seu colo, dobrou-o cuidadosamente e notou sem prestar muita atenção que suas mãos tremiam.
Ela estava morta. Sua esposa estava morta. Dissera que morreu de maneira acidental, mas morreu no mesmo dia que soube da morte de Lorde Thomas. E Lorde Thomas era o pai de Lady Pamela. Sendo assim, ela tirou a própria vida. Devia ter se jogado no lago.
Oh, pobre Adam! Pobre Adam! Como devia culpar-se!
Mas ela estava morta. E ele estava livre. Quando terminasse o ano de luto voltaria para Wiltshire. Dentro de onze meses. No fim de setembro. Não, não devia pensar nisso. Não devia esperá-lo. Onze meses pareciam uma eternidade. Poderia acontecer algo nesse tempo. Um deles podia morrer. Adam poderia mudar de opinião. Poderia conhecer outra pessoa em sua viagem. Poderia gostar tanto da viagem que acabasse passando anos no estrangeiro. Talvez Lady Pamela não quisesse que fosse procurá-la.
Poderia acontecer alguma coisa. Onze meses atrás nem sequer o conhecia. Mas parecia como se o conhecesse sempre. Isso significava que teria que esperar mais que nunca, e que no final pode ser que ele não chegasse.
Ficando em pé, apoiou a carta com cuidado no vaso, Fleur decidiu que não pensaria nisso. Não pensaria nisso. Se voltasse no fim do ano, então escutaria o que tinha a dizer. Se não viesse, então não ficaria decepcionada porque não o teria esperado.
Mas naquela noite e por muitas outras noites sonhou com ele. Teve sonhos estranhos e inquietantes nos quais ele tentava chegar até ela, mas se encontrava do outro lado de um caudal de água largo o bastante para não vê-lo com clareza e gritava palavras que não ouvia bem. E cada vez despertava com os braços vazios e sentindo que o outro lado da cama estava vazio.
Fleur redobrou os esforços para ser uma boa professora e dedicou muitas de suas horas livres a ensinar música. E se dedicou a visitar seus vizinhos, sobre tudo os idosos, que dependiam dos visitantes para aliviar o tédio do dia, e aceitou tudo e cada um dos convites que recebeu. Até mesmo quando a prima Caroline voltou para casa, Amelia se casara e vivia em Lincolnshire, e soube que estariam na mesma festa, também foi.
E se agarrou a amizade com Miriam como se fosse uma corda de salvamento.
Cada vez que se permitia pensar conscientemente no assunto, percebia que tinha razão em algo: onze meses eram mais que uma eternidade.

—Voltaremos para casa logo, papai? — Lady Pamela Kent estava sentada na carruagem em frente de seu pai, acariciando o focinho e a cabeça de seu cão, que fechou os olhos em êxtase.
—Logo — respondeu ele. — Você está feliz? Vimos muitas maravilhas juntos no ano que passou, certo? Talvez se aborreça em casa.
—Tenho muita vontade de chegar. Por que vamos ver a senhorita Hamilton, papai? Será que ela voltará a ser minha preceptora novamente?
—Você gostaria que fosse?
—Sim — disse ela depois de pensar um instante. — Mas eu ficaria com medo que fosse embora outra vez. — De repente olhou para seu pai ansiosa. — Você não vai, né, papai? Quando chegarmos em casa, você não vai voltar para Londres e me deixar sozinha?
Mais uma vez a antiga ansiedade. Ela passou semanas após a morte de sua mãe acordando aos gritos quase todas as noites. Aterrorizava que a abandonassem. O duque de Ridgeway sorriu para consolá-la.
Antes mesmo que partissem de viagem teve que passar quase todos os momentos do dia com ela, todos os dias. Durante muito tempo teve que levá-la para a cama de noite para que sua voz e seus braços estivessem ali quando despertasse.
—Eu não irei a lugar nenhum — respondeu Adam. — De agora em diante, Pamela, onde quer que eu vá, você também irá.
—Pergunto-me se Timothy Chamberlain e os outros terão crescido.
—Eu diria que sim. Ou talvez fosse o ar continental, que a fez crescer.
Ela o olhou e riu.
—E se não levarmos a senhorita Hamilton de volta a Willoughby para que seja sua preceptora? — sugeriu ele. — E se levarmos para que seja sua nova mamãe?
Ela o olhou sem compreender.
—Mas eu já tenho mamãe.
—Sim. — Sabia que deveria ter levantado a questão antes. Mas ele não encontrara as palavras certas e não reunira a coragem necessária. Não tinha certeza de ter encontrado as palavras ainda. —Você tem mamãe, Pamela, e sempre a amará mais que a ninguém em sua vida até que cresça e tenha sua própria família. Mas como mamãe já não pode estar com você, você não gostaria que houvesse outra pessoa que pudesse fazer com você as coisas que teria feito mamãe?
—A senhorita Hamilton? — Perguntou a menina receosa.
—Você gosta dela, não é assim?
Ela hesitou.
—Sim. Mas ela partiu sem dizer adeus, papai.
—Não foi culpa dela. Ela teria dito se pudesse. Mas teve que fugir de um homem mau, Pamela, e não pôde dizer adeus para ninguém... Acreditei que a amava.
—Mas se for ser minha mamãe, então terá que ser sua esposa, papai. O que você acha disso?
Ele a olhou muito sério.
—Acho muito bom.
—E não se incomodaria em fazer isso por mim? — Perguntou a menina, afastando a cabeça e franzindo o nariz quando o cão sentou-se e tentou lamber seu rosto.
—Não. Eu também a amo, Pamela. Veja! Amo a senhorita Hamilton.
Pamela afastou o cão com uma brutalidade inusitada.
—Mas você me ama! — Gritou ela.
—Claro que sim. — Adam levantou-se para sentar ao lado dela e a colocou em seu colo. — Você é minha filha. Minha filha mais velha e sangue de meu sangue. Nada mudará nunca isso, Pamela. Sempre será a primeira garota de minha vida. Mas nós podemos amar mais de uma pessoa. Você amava mamãe e me ama, não é?
—Sim — respondeu ela insegura. — E amo Pequena.
—Pois bem. Eu amo você e a senhorita Hamilton. E se ela se casar comigo e tivermos outros filhos, eu também os amarei. E você sempre será minha filha mais velha, sempre será alguém especial.
—Ela virá conosco em seguida? — perguntou Pamela. — Vou mostrar-lhe Pequena. Ela ficará surpresa de quanto ela cresceu, né? E eu vou dizer que não fiquei doente no barco. Não diga a ela, papai. Me deixe dizer sozinha.
—Tudo bem — ele concordou, descansando seu rosto contra a testa da filha. — Eu ainda não a pedi, Pamela. Pode ser que diga que não. Talvez esteja contente aonde está, ensinando em sua escola e vivendo em sua casinha. Mas a pedirei — ele riu. — Não peça você. Me deixe dizer sozinho.
—Tudo bem — concordou a menina, e pulou do colo dele para incomodar o cachorro, que se colocou pacificamente em outro assento.
O duque se reclinou nas almofadas e os observou. Era possível que dissesse que não. Na verdade, talvez já estivesse casada, com Daniel ou com outro cavalheiro da aldeia. Não devia ter muitas esperanças.
Um ano antes, ou onze meses antes, quando finalmente se livrou da pior parte do pesadelo da dupla morte de seu irmão e sua esposa, tinha certeza de sua resposta, embora se se viu obrigado a manter-se afastado dela durante o ano de luto. Se permitira apenas aquela breve carta.
Mas onze meses pareciam uma eternidade. Pamela e ele passaram todo o tempo viajando e viram muitos lugares e conheceram muita gente. Parecia que se passou mais de um ano desde que saíram da Inglaterra.
Ele lembrou as palavras que disse a ela. Como poderia esquecer? E recordava da paixão e o frenesi com que se entregou a ele naquela única noite antes que partisse.
Reviveu aquela noite muitas vezes em sua imaginação. Naquele momento acreditou que o amor dela, assim como o dele, duraria por toda a eternidade e mais além. Mas agora não tinha tanta certeza. O amor de Fleur não era tão antigo quanto o seu: Ela o odiou e o rejeitou com motivos. Foi nos últimos dias, quando viajaram juntos em busca do túmulo de Hobson, que começou a sentir-se mais confortável com ele, que se tornaram amigos e se tornaram amantes.
Naquelas circunstâncias, era compreensível que tivessem terminado nos braços um do outro. Talvez para ela não fosse mais que isso. Embora seus sentimentos eram verdadeiros naquela ocasião, talvez eles desapareceram nos dias e semanas após sua partida.
Adam devia estar preparado se por acaso ela o recebesse com frieza e ficasse com vergonha de sua visita. O duque fechou os olhos e se deixou embalar pelo movimento da carruagem. Não devia esperar que ela tivesse passado cada momento de todos os dias pensando nele, talvez não conscientemente, mas no fundo, onde se encontram os sentimentos e os significados. Não devia esperar fazer parte de seus sonhos, tanto acordada como dormindo. Não devia esperar que fosse como ele.
Fleur. Ele a veria no dia seguinte se não tivesse mudado.
Finalmente. Ah, finalmente. Mais de quinze meses desde que ele apertou suas mãos, despediu-se e subiu nessa mesma carruagem para afastar-se dela, pareciam mais longos que nunca. Muito mais longos.

Fleur estava ensinando a ler um grupo de criança menores enquanto Miriam dava uma aula de geografia aos outros. Mas ao sorrir para uma criança para que prestasse outra vez atenção na aula, Fleur duvidava que alguém estava aprendendo muito. Havia uma excitação reprimida na sala de aula.
Não precisava grande coisa para excitar aquelas crianças. Eles fariam uma excursão pela natureza assim que terminassem as aulas da manhã, e levariam o lanche. Estavam no fim de setembro, e era a última oportunidade que teriam de fazer uma excursão como aquela antes que ficasse muito frio.
Miriam e ela acompanhariam as crianças, assim como Daniel, que ia frequentemente a escola dar uma aula de religião, e o doutor Wetherald, que mostrava uma notável preferência por Miriam nos últimos meses, apesar de Miriam afirmar com seu tom alegre e direto de sempre que eram somente amigos. Apesar de Fleur ter percebido que sua amiga corava ao falar.
Fleur achava que não precisavam de tantos acompanhantes adultos, mas para os outros também era um prazer sair para tomar ar fresco no campo durante uma tarde inteira.
Quando bateram na porta desapareceu a pouca atenção que as crianças ainda mantinham. Fleur sorriu e meneou a cabeça enquanto os olhos das crianças, e sem dúvida também suas mentes, seguiram Miriam até a porta.
—Está aqui a senhorita Hamilton, por favor? — Perguntou uma voz jovem e educada.
Fleur virou-se em sua cadeira.
—Temo que não há ninguém com esse nome, querida — respondeu Miriam. — Você é?
—Pamela! — Fleur se levantou da cadeira e atravessou correndo a sala-de-aula, estendendo os braços.
— Estou aqui! Oh, como cresceu, e como estou feliz em vê-la! — inclinou-se para abraçar a menina e em seguida percebeu a presença de uma figura alta e sombria a uma certa distância, apoiada na carruagem com escudo.
—Papai diz que o ar do continente me fez crescer — explicou a menina. — Pequena está na carruagem, senhorita Hamilton. Espere para ver como cresceu. Já não é pequena. E não fiquei doente ao voltar no navio da França, embora algumas damas sim.
Fleur se abaixou diante dela.
—Estou muito orgulhosa de você — disse ela. — Está a caminho de casa? — Não foi capaz de olhar para o homem parado a poucos metros de distância.
—Sim —respondeu Pamela. — Eu realmente queria. Mas papai queria vir aqui primeiro. Não posso dizer o porquê. Só direi que não fiquei doente no navio.
Fleur riu. E de repente percebeu o murmúrio de vozes que havia atrás dela. Endireitou-se e virou-se.
—Esta é Lady Pamela Kent — explicou, agarrando a menina pela mão e fazendo-a entrar na sala-de-aula. — Acaba de voltar de um ano de viagem pela Europa. Estes são a senhorita Booth, Pamela, e todas as crianças do povoado.
Lady Pamela sorriu e se aproximou de Fleur. Miriam fez uma reverência a Lady Pamela.
—Bom dia, Sua Graça — saudou. — Crianças, façam uma reverência a Sua Graça, o duque de Ridgeway, por favor.
E Fleur virou a cabeça bruscamente e, finalmente, olhou em seus olhos. Sentiu um impacto imediato. Era mais alto do que recordava, tinha o cabelo mais negro, o olhar mais penetrante e escuro, o nariz mais proeminente, e a cicatriz mais marcada. Tinha suavizado todos aqueles traços em sua lembrança. Sentiu um surto inesperado do antigo medo.
Fez uma reverência para ele.
—Sua Graça? — murmurou.
O duque inclinou a cabeça para ela e para a classe em geral.
—Bom dia — saudou o duque. — Lamento interromper as aulas, mas se conheço os jovens e como suas mentes funcionam, eu diria que sou o homem mais popular do povoado neste momento.
Ouviram-se risinhos das meninas, e gargalhadas dos meninos. Parecia que as aulas haviam terminado. As meninas admiravam abertamente a roupa moderna de Lady Pamela e ela as olhava tímida, mas interessada.
Os meninos olhavam para o duque um tanto intimidados. Adam conversava educadamente com Miriam. E então chegou o doutor Wetherald, e também Daniel, e Lady Pamela olhou suplicante para seu pai.
—Posso, papai? — Dizia. — Por favor! Posso?
—Não está vestida para uma excursão — disse ele sorrindo.
—Mas tenho outros vestidos. Posso trocar. Por favor, papai! Por favor. Senhorita Hamilton, eu posso ir? Por favor?
Miriam olhou para ela. Aparentemente foi ela quem sugeriu que Pamela aproveitaria da excursão da escola, embora Sua Graça precisava saber que pensavam ficar fora durante várias horas.
—Apenas seu pai pode dizer que sim— disse Fleur, sorrindo para o rosto bonito e ansioso de sua antiga aluna. — Mas sei que se divertiria muito.
Um minuto depois, depois de conceder a permissão que tinha suplicado, Lady Pamela saiu a toda velocidade para a carruagem.
—Vou levar Pequena — gritou. — Posso, senhorita Hamilton?
Miriam riu.
—Cuidarei muito bem dela, Sua Graça. E meu irmão e o doutor Wetherald estarão comigo para me dar uma mão. Com três adultos será suficiente. Não há necessidade de vir, Isabella. É melhor você ficar para entreter Sua Graça, uma vez que terá que esperar várias horas.
Fleur abriu a boca para falar e voltou a fechá-la.
Parecia que as crianças eram incapazes de falar de outra maneira que não fosse gritando. A sala-de-aula ficou muito tranquila quando todas as crianças e os três adultos partiram.
—A senhorita Booth é muito amável — comentou o duque de Ridgeway as suas costas. — Pamela falará desta excursão durante semanas.
—Sim. Estou feliz por ela, Sua Graça.
—Sua Graça? — Murmurou ele.
Fleur olhou sobre seu ombro e olhou para o lenço.
—Podemos ir para outro lugar? — Perguntou ele. — A sua casa, talvez?
—Sim. Está perto.
Fleur fechou a escola e caminhou a seu lado pela rua até sua casa. Não se tocaram nem disseram uma só palavra.

Capítulo 28

Ela depositou os livros que levava e o observou enquanto ele deixava o chapéu e as luvas na mesa. Fleur virou-se e dirigiu para uma sala quadrada e acolhedora, tendo o piano no canto e fazendo com que o resto dos móveis da sala parecessem pequenos.
As coisas estavam indo como ele pensou, como chegou a acreditar. Não estava realmente contente em vê-lo: estava desconfortável e envergonhada.
—Não quer sentar-se, Sua Gr... — Ela fez um gesto com a mão em direção a uma cadeira, mas parou e corou.
Estava muito bonita. O duque ficou sem fôlego assim que a viu se baixar para abraçar Pamela. Mais bonita até do que recordava. Tinha elegância, um sentido de dignidade mais pronunciado do que antes. Ele era muito consciente de sua própria fealdade, de sua cicatriz. E precisava resistir conscientemente o impulso de voltar-se de lado para que ela não a visse.
—Vou pedir que tragam um pouco de chá, e alguma coisa de comer. É a hora do almoço. Esteve viajando desde o café da manhã, verdade? Deve estar com fome.
—Não estou — afirmou ele. — Então, você está feliz? A escola parece um lugar alegre. É uma casa pequena e acolhedora, e maior do que eu esperava.
—Sim. — Ela sorriu. — Estou feliz. Estou fazendo o que eu gosto de fazer, e estou rodeada de amigos.
—Me alegro. Precisava vir para me assegurar.
—Obrigada. Foi muito amável por sua parte. Deve estar desejando voltar para casa, depois de passar tanto tempo fora.
—Sim. Tenho muita vontade.
Mas ao mesmo tempo o duque pensou que não se preparou nada bem. Acreditava que sim. Acreditava que estava preparado para o pior. Mas o coração lhe pesava terrivelmente no peito e não conseguia pensar em sua casa ou no Inverno por vir, nem nos anos por vir em seguida.
Não sem Fleur. Willoughby não seria seu lar sem ela, nem valeria a pena viver o futuro assim. Não depois de um ano de esperança no qual ele tentou se convencer de que não o era absolutamente.
Fleur pegou uma almofada na cadeira sem que realmente fosse necessário e se sentou, embora ele não tenha aceitado seu convite para sentar-se. E ela pensou em alguma coisa para dizer e manteve uma expressão cortesmente alegre. Durante um mês inteiro - durante onze meses, - ela se convencera de que ele não viria, que se esqueceria dela, que se lamentaria das precipitadas palavras de amor que dissera.
Mas mesmo assim, durante o mês anterior o esperou uma hora atrás de outra e havia dito a si mesma uma e outra vez que ele não viria. Ele estava de pé em sua sala, com as mãos atrás das costas e uma expressão sombria e taciturna, olhando como se desejasse estar em qualquer outro lugar da terra exceto ali.
Ele veio movido pelo senso de responsabilidade, porque havia dito que viria. Adam e seu maldito senso de responsabilidade! Voltava a odiá-lo, e desejava que estivesse a um milhão de quilômetros de distância.
—Não a incomodaram Brockehurst nem sua família? — Perguntou ele friamente.
—Não. Não, eu não soube nada de Matthew, embora dizem que poderia estar em qualquer parte da América do Sul ou Índia. A prima Caroline está aqui, mas acredito que tem previsto visitar sua filha durante o inverno.
—E o reverendo Booth e sua irmã continuam seus amigos. Me alegro.
—Sim.
Fleur desejou com todo seu coração que Lady Pamela não tivesse ido à excursão. Desejou que partisse sem mais demora. Desejou poder começar a viver o resto de sua vida.
O duque pensou que gostaria de não ter permitido Pamela partir com as outras crianças. Gostaria que houvesse algum modo de partir imediatamente. Pensou que poderia partir para a estalagem do povoado, mas se sugerisse tal coisa ela pensaria que não foi o bastante hospitaleira.
—Obrigada pelo piano — disse finalmente Fleur. — Não tive oportunidade de agradecer-lhe antes. Você queria que ficasse na sala-de-aula, claro, mas tanto Miriam como Daniel pensaram que estaria mais seguro aqui.
—Você sabe que foi um presente para você — comentou ele.
E observou pensativo como ela corava e olhava as mãos cruzadas. Tinha as juntas dos dedos brancos pela tensão.
O duque recordou a sensação de suas mãos, movendo-se suavemente sobre seu lado lesionado. Recordou que ela disse que era bonito. E lembrou-se que dissera que o amava. O duque sentiu uma tristeza quase infinita.
Dirigiu-se para o piano e ficou de pé olhando as teclas. Tocou em uma.
—Está bem afinado? — Perguntou.
—É um belo instrumento. Meu bem mais precioso.
Ele sorriu e olhou para o vaso que estava sobre o piano e a carta apoiada nele. Estendeu a mão e pegou a carta.
—Esta é a carta que enviei.
—Sim. — Ela levantou-se, corando, e estendeu a mão para pegá-la.
—Ela esteve aí quase um ano?
—Sim. — Fleur riu ofegante. — Deve está há quase um ano. Eu não sou muito organizada.
O duque olhou em volta, para a sala arrumada e organizada. E sentiu um novo e injustificado broto de esperança.
—Por quê? — Perguntou ele. — Por que a tem aí?
Ela encolheu os ombros.
—Eu... não sei — disse tolamente. Não lhe ocorria nenhuma explicação razoável. Pensaria que era uma estúpida. Que humilhante seria se adivinhasse a verdade. Fleur sorriu, estendendo ainda a mão para pegar a carta. —Vou guardá-la.
—Fleur?
Ela deixou cair a mão. Lhe dissera há pouco mais de um ano que o amava e sempre o amaria. E deveria estar envergonhada agora por dizer a verdade? Deveria proteger seu orgulho a qualquer custo?
—Porque o meu bem mais precioso não é apenas o piano — acabou dizendo, fixando-se no botão superior do colete dele. — Isto também. Deixo-os juntos.
—Fleur — murmurou ele.
—Não tenho mais nada de você. Apenas duas coisas...
Fleur desejou poder ver o botão com clareza, e desejou que ele não a visse com lágrimas nos olhos. Mas não se envergonhava de amá-lo. Dissera que o amava e assim era.
Observou o borrão branco enquanto ele deixava a carta de lado. Viu que seu colete se aproximava. E sentiu suas mãos emoldurando seu rosto.
Fleur estava com o queixo tenso.
E seu rosto como se fosse feito de pedra. Mas as lágrimas brilhavam nas pestanas. E também as palavras que dissera. E a carta, colocada sobre o piano por quase um ano depois de tê-la recebido.
—Meu amor — sussurrou ele, segurando-lhe o rosto. Se pensava rejeitá-lo, que assim fosse. Mas saberia que ele manteve sua palavra, que ainda a amava mais que a própria vida e sempre a amaria.
O duque a observou como mordia o lábio superior, estendia as mãos trêmulas para tocar seu colete, e voltava a retirar.
—Eu te amo — disse ele. — Nada mudou nos quinze meses que passaram desde que disse isso. E nada mudará nunca.
—Ah! — Exclamou ela. Não conseguia dizer outras palavras e sabia que não seria capaz de pronunciá-las mesmo que as encontrasse.
Estendeu a mão para tocá-lo outra vez e descobriu que suas mãos se tornaram tão incontroláveis como sua voz. Mas não precisava encontrar as palavras. Nem recuperar o controle. Ele inclinou a cabeça para Fleur, seus lábios se tocaram e Adam os abriu sobre os dela. Deixou de acariciar o rosto e passou um braço pelos ombros e o outro ao redor da cintura. Fleur se viu atraída por sua força, e não se importou de estar tremendo.
Fleur. Doce, quente e feminina. Seu corpo se arqueou sem vergonha para o seu, abriu os lábios sob os dele, a boca para sua língua, e passou os braços ao redor de seu pescoço.
Fleur permitiu-se ao luxo de ter esperança.
—Eu também te amo — sussurrou contra seu ouvido. Mantinha os olhos fechados. Não devia pensar mais no orgulho. — Não deixei que te amar nem sequer um instante. E a carta não está sempre apoiada no vaso. Só de dia. De noite está debaixo de meu travesseiro.
—Porque o piano não cabe ali? — Perguntou ele mostrando um humor tão inesperado que Fleur soltou uma gargalhada. Ele se juntou às risadas e a abraçou.
—Fleur — disse finalmente ao seu ouvido, — não acredito que esta seja a primeira vez que rio em um ano, não? Mas parece.
Ela jogou a cabeça para trás e o olhou diretamente pela primeira vez.
—Eu pensei que nunca mais voltaria a vê-lo — disse ela. — Quando quase me quebrou todos os ossos da mão naquela manhã, subiu na carruagem e partiu. Acreditei que não voltaria a vê-lo jamais.
—Bom, isso não deveria representar uma tragédia. — O duque sorriu. — Não sou tão grande coisa, certo?
—Não sei. — Fleur inclinou a cabeça. — Não acha? Para mim você é o mundo.
—Um mundo sombrio e marcado.
—Um mundo bonito. Um rosto com caráter. O rosto que eu mais amo neste mundo.
De repente surpreendeu-a curvando-se e pegando-a nos braços e sentando-se no sofá com ela em seu colo.
—Adivinha o que tenho no bolso — a tentou.
—Eu não sei. — Ela o abraçou e sorriu. — Uma jóia preciosa que me trouxe.
—Não. Tente novamente.
—Uma caixa de rapé.
—Não uso essas coisas. Você não esta nem perto.
—Um lenço de linho.
—No outro bolso. — O duque voltou a rir, e Fleur com ele. — O que tenho no outro bolso?
—Não sei. Como vou saber?
—Você deveria. O que é que entre todas as outras coisas, asseguraria-me de trazer quando por fim viesse vê-la?
Ela balançou a cabeça. O sorriso começou a desaparecer de seu rosto.
—Uma licença especial — ele revelou por fim, ficando também sério de repente. — Uma licença especial, meu amor, para poder fazê-la minha sem esperar mais quando conseguir que você diga sim.
—Adam — murmurou ela, tocando a face com a cicatriz. — Oh, Adam.
—Você quer? Quer se casar comigo, Fleur? Sei que não sou nenhum prêmio, e você sabe de algumas coisas desagradáveis sobre mim. Mas você tem meu amor e devoção incondicional pelo resto da vida. E seria duquesa, se isso servir de estímulo, e senhora de Willoughby, quer, Fleur?
—Adam... — começou ela, repassando a cicatriz do olho até a comissura do lábio. — Pense com cuidado, por favor. Pense no que você sabe de mim, pelo que fui, pelo que sou.
—Uma puta? —Ele disse tão drasticamente que Fleur olhou para ele horrorizada e completamente ruborizada. — Vou explicar uma coisa, Fleur, e eu quero que ouça atentamente. Sybil estava tísica. É muito pouco provável que tivesse sobrevivido este ano. Mas de qualquer maneira, poderia ter vivido este ano, ou parte dele. Poderia ter disposto de meu apoio e até mesmo de meu afeto e de todo o amor de Pamela. Mas sofreu uma decepção cruel em sua vida e outra menor no verão passado. Perdeu a vontade de viver. Negava-se a aceitar o consolo que tentava lhe proporcionar. Ignorava Pamela. E finalmente, quando soube da morte de Thomas, antes de mim, tirou a pouca vida que restava.
—Pobre dama — lamentou Fleur, — sinto muitíssimo por ela, Adam.
—E eu também. Mas me escute, Fleur. Há mais de um ano você se encontrou em uma situação assustadora. Devia escolher entre deixar que a enforcassem ou aceitar um casamento infernal se voltasse para casa, ou morrer de fome se continuasse escondida. Mas acaso cedeu e se compadeceu de si mesma? Não. Lutou, e fez tudo o que precisava fazer para sobreviver. Fez a coisa mais terrível do mundo. Tornou-se puta. Compadeço de minha esposa, mas te admiro mais do que posso expressar.
Ela engoliu em seco.
—Porque você sabe que foi o único — protestou ela. — Como se sentiria se fossem uma dúzia? Duas dúzias? Mais ainda?
—Isso não deveria importar— respondeu o duque. — Antes de me casar, Fleur, deitei-me com mais de uma dúzia de mulheres. Não posso nem contar as mulheres com as quais fui para a cama. O que acha?
Ela ficou em silêncio por um momento.
—Isso não deveria importar — acabou dizendo.
—E isso faz você deixar de me amar? — Perguntou ele.
—Não. — Apoiou uma palma sobre sua face. — Isso foi no passado, Adam. Eu não posso controlar e você não pode mudá-lo. Não me importo com o seu passado.
—E nem eu me importo com o seu. Será minha duquesa, Fleur?
—E Pamela?
—Ela parecia um pouco preocupada que eu estivesse disposto a me sacrificar, tornando-a minha esposa apenas para que ela pudesse ter uma mamãe — explicou. — Tive que lhe assegurar que eu também a amava. —O duque sorriu.
—Ela adorava sua mãe — recordou Fleur.
—Sim, e sempre a amará. Teremos que nos assegurar que nunca esqueça Sybil, Fleur. E esperar que essa lembrança distorça de algum modo a verdade. Esperar que se recorde de Sybil como uma mãe sempre atenta, além de bonita e indulgente. Nunca será sua mãe, mas pode ser sua madrasta. E posso dizer por experiência que é possível amar a ambas. Tenho algumas imagens débeis de minha mãe e sempre associei essas imagens com o amor incondicional. Mas amava muito minha madrasta, a mãe de Thomas.
Fleur baixou a cabeça em seu ombro.
—Quer casar comigo?
—Sim — respondeu ela, e fechou os olhos. Não havia mais nada a dizer. Como expressar em palavras a felicidade que enchia tanto uma pessoa que era quase dolorosa?
O duque apoiou a face na testa de Fleur e fechou os olhos.
Ele sentiu que não havia necessidade de dizer mais nada no momento. Era como, se lembrou, na noite em que fizeram amor. Podiam comunicar-se de maneira mais perfeita através do silêncio do que através da imperfeição das palavras.
—Preciso confessar uma coisa — acabou dizendo ele. — Temia receber uma carta sua dizendo que estava grávida, mas ao mesmo tempo, esperava essa carta e ansiava que chegasse. Vê como poderia tê-la feito sofrer com meu egoísmo?
—Eu chorei quando soube que não estava — acrescentou ela.
Ele riu baixinho e virou seu rosto na direção dele, segurando o queixo com uma mão e beijou-a forte e profundamente.
—Estará grávida logo que seja possível — comentou ele. — Esta noite, possivelmente?
—Esta noite? — Ela riu apoiada em seu pescoço.
—Em nossa noite de núpcias. É muito cedo?
—Esta noite?
—Nós podemos esperar, se quiser. Podemos planejá-la. Podemos celebrá-la em Londres se quiser, e assistiria a metade da aristocracia. Atreveria-me a dizer que até mesmo o rei assistiria se o convidássemos. Mas preferiria celebrá-la hoje, Fleur. Poderíamos passar a primeira noite em nossa casinha. Tem um quarto de hóspedes para Pamela?
—Sim — respondeu Fleur, tocando suavemente seus lábios com um dedo. — Sonhei que tinha você aqui comigo, Adam. Meus braços estavam tão vazios sem você, e a cama tão fria!
—Não estarão vazios esta noite, meu amor — tranquilizou ele, — e a cama estará quente. E não terá que sonhar mais. Tudo será real.
—Não terei que pôr sua carta sob o travesseiro esta noite.
—Nem tampouco o piano — interveio ele, e ambos riram e se abraçaram.
—Oh, Adam! — Suspirou Fleur. — Estive tão só sem você! Pareceu-me uma eternidade.
Ele voltou a segurar-lhe o rosto e sorriu.
—Já não estará mais. Nada mais de solidão, Fleur, para nenhum dos dois. Só nosso casamento, nossos filhos e Willoughby. Envelheceremos juntos. Só nosso amor eterno.
Baixou a cabeça e a beijou suavemente na boca.
—E além da eternidade.

 

 

                                                                  Mary Balogh

 

 

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