Biblio VT
O consultório quase parecia um quarto de crianças. Uma parede iluminada pelo sol, com vacas a saltar na lua e gatos a tocar violinos. Uma estante funda cheia de brinquedos, jogos, quebra-cabeças e bonecos de peluche. E, no tecto, estrelas de papel coladas.
O homem sentado atrás da secretária olhou através de óculos de lentes grossas. Uma emaranhada barba sal-e-pimenta emoldurava-lhe os lábios rosados. O seu nariz era uma mancha; delicadas orelhas colavam-se a um grande crânio.
O seu corpo curvado estava inclinado para a frente, o pescoço afundado em ombros redondos. Cinzas de charuto amontoavam-se numa gravata atroz e as lapelas de um fato preto amarrotado estavam tão brilhantes que pareciam ter sido oleadas e polidas.
- Sra. Bending-disse ele, em voz rouca. - Sr. Bending, talvez seja melhor sentarem-se ali... e ali. Tenho de começar por confessar que sou viciado em charutos. Claro que se isso vos incomodar, eu não acendo nenhum. Minha senhora?
- Não, não faz mal - disse a mulher nervosamente. - Esteja à vontade, doutor.
- E o senhor?
- Por mim, tudo bem, doe. O meu vício são os cigarros com filtro.
- Obrigado. - Tirou um charuto escuro de uma gaveta da secretária que estava aberta e começou a remover cuidadosamente o celofane. - Chamo-me Dr. Theodore Levin. Escreve-se L-e-v-i-n, mas pronuncia-se Levine, por razões que nunca consegui compreender. A senhora é a Sra. Grace Bending, e o senhor é o Sr. Ronald Bending. O nome da vossa filha é Lucy, e eu fui-vos recomendado pelo Dr. David K. Raskob, pediatra, de Boca Raton. Os meus factos estão correctos?
- Sim, doutor - disse a mulher, rigidamente. Estava a rodar a aliança de casamento no dedo.
Levin acendeu o charuto com um fósforo de madeira de cozinha, que raspou sob o tampo da secretária. Rodou lentamente o charuto nos lábios franzidos. Soprou uma nuvem de fumo para as estrelas pintadas no tecto.
-Vamos ao que interessa... - disse ele. -Acho que será melhor para todas as partes envolvidas se eu explicar desde já quais são exactamente os meus métodos, para que não haja enganos de qualquer espécie. Tal como lhe disse ao telefone, minha senhora, os meus honorários são de cem dólares por hora. Por uma hora profissional; quarenta e cinco minutos, para ser exacto.
- Lindo! - disse Ronald Bending, com um sorriso contrafeito.
- Esta entrevista inicial - continuou ele, delicadamente -, de quarenta e cinco minutos, ao preço normal, serve para vos dar a oportunidade de me explicarem a natureza do problema da vossa filha. No fim desta entrevista, poderei dizer-vos que não vou poder ajudá-los. Por vezes, isso acontece. Nesse caso, poderei sugerir outros psiquiatras que poderiam ajudar-vos.
Os olhos da mulher espelharam angústia.
- Mas o Dr. Raskob recomendou-nos o senhor.
- Eu aprecio isso, minha senhora, mas talvez o problema da vossa filha seja melhor acompanhado por outro. Por favor, deixe-me ser eu a julgar isso.
Calou-se durante alguns instantes, enquanto Ronald Bending acendia um cigarro com um isqueiro Dupont de ouro. Depois, Bending recostou-se na cadeira, cruzou as pernas e ajustou o vinco das calças. Calçava mocassinas de pele de cabra com borla, muito brilhantes.
O Dr. Levin continuou:
- Na eventualidade de eu considerar que poderei ser útil, marcarei uma primeira consulta com a vossa filha, ah...
- Lucy.
- Sim, com a Lucy. Depois de a conhecer e de conversar com ela, estarei em condições de vos dar uma decisão final sobre se poderei ajudá-la e se vou aceitar o caso.
O rosto de Bending ruborizou-se. Ele atirou-se para a frente, zangado.
- Olhe lá...
- Ronnie - interrompeu-o a mulher -, por favor! compreendemos tudo isso, doutor.
- E querem continuar?
- Sim.
- Se aceitar a vossa filha para psicoterapia, dir-vos-ei qual a regularidade das visitas que recomendo no caso dela. Uma vez,,
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ou várias vezes por semana. A primeira consulta regular, e, por vezes, as primeiras duas, serão dedicadas a um exame físico completo, efectuado pela minha sócia, a Dr.- Mary Scotsby. As radiografias e as análises clínicas serão pagas à parte.
- Escute lá - disse Ronald Bending, a apertar os lábios. O Raskob é médico da Lucy desde que ela nasceu. Ele tem todas as análises; ele pode dizer-lhe tudo o que o senhor quiser saber.
- Eu prefiro efectuar os meus próprios exames.
- Valha-me Deus! - disse Bending, desgostosamente, e inclinou-se para a frente, para apagar a beata do cigarro no grande cinzeiro de mármore que estava em cima da secretária do médico.
- Ronnie - disse a mulher, com a voz estrangulada -, por favor, deixas-me tratar disto? Nós compreendemos, doutor, e queremos continuar.
- Um momento... No tratamento psiquiátrico de uma criança de... quantos anos tem ela?
- A Lucy tem 8 anos.
- No tratamento de uma criança de oito anos, por vezes, é necessário falar também com os pais, com os irmãos, se os tiver, e, até, em certas ocasiões, com os professores, com os amigos, com os vizinhos, etc. Estas entrevistas efectuam-se durante a hora profissional e são pagas ao preço normal. Quero que tudo isto seja compreendido sem margem para dúvidas antes de os senhores decidirem continuar.
Bending ergueu as mãos e rolou os olhos numa descrença cómica.
- Grace, isto poderá custar-nos uma fortuna!
- Queremos continuar, doutor - insistiu ela.
Levin observou o marido com um olhar completamente inexpressivo.
- Se o senhor tem alguma objecção, ou se pensa que não pode suportar o... ah... encargo financeiro, eu posso recomendar-lhe instituições que...
- Não! - disse Bending, imediatamente. - Nada de instituições. Continuamos com isto.
- Tem a certeza absoluta?
- Raios, não, não tenho a certeza. Mas continuo.
- E a senhora?
- Sim. Tenho a certeza absoluta.
- Muito bem. Agora, só falta pôr-vos ao corrente de mais um facto... Esta entrevista... tal como todas as consultas no futuro, com a Lucy, com os senhores e com outras pessoas... está a ser registada num gravador.
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Bending pestanejou, surpreendido.
- Para que é que isso serve, doc?
- Serve para manter o historial do tratamento e para proporcionar uma referência fácil a consultas anteriores. Para me permitir analisar o caso quando o paciente está ausente e talvez descobrir coisas que não foram imediatamente aparentes durante a consulta.
Bending voltara ao seu sorriso contrafeito.
- Espero que mantenha as gravações bem guardadas!
- com certeza que sim. Num cofre à prova de incêndio e à prova de roubo. São apenas ouvidas por mim e pela minha sócia, a Dr.B Scotsby. Ainda desejam continuar?
- Sim, doutor, desejamos.
- E o senhor?
- Sim.
-Muito bem. Se decidir aceitar a Lucy como minha paciente, pedir-vos-ei a ambos que preencham questionários que irão dar-me as informações básicas mais necessárias: data e local de nascimento, historial médico da família, educação, emprego, etc. Neste momento, acho que devíamos concentrar-nos unicamente na razão de estarem aqui. Qual é, concretamente, o problema da Lucy?
Marido e mulher olharam rapidamente um para o outro. Ela mexeu-se; ele acendeu calmamente outro cigarro e depois examinou a ponta incandescente.
O silêncio cresceu e encheu o aposento. O médico aguardou pacientemente, com as mãos quadradas negligentemente penduradas no colete. O charuto tinha-se apagado; o toco repousava na extremidade da secretária manchada. Olhou tranquilamente para os Bending e não disse nada. Por fim...
- Ah, Grace - disse Ronald Bending, a olhar para o ar -, conta-lhe tu.
Ela começou impetuosamente:
-A nossa Lucy é uma menina muito bonita, doutor. Quando a vir, acho que vai concordar que ela é simplesmente encantadora e muito inteligente, e... e muito adulta para a idade que tem.
- Esperta como tudo - disse Ronald Bending, lentamente.
- É muito popular entre os amigos, tanto rapazes como raparigas, e os professores adoram-na. Ela não tem nada de mesquinho nem de malicioso. E os irmãos veneram-na.
Calou-se. O silêncio instalou-se de novo. O Dr. Levin aguardou alguns instantes e depois disse:
- E...?
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- Bem, nos últimos três anos, desde que fez cinco, ela... Ronme, não achas que começou há três anos?
- Talvez há mais tempo. Talvez desde os quatro anos.
- Doutor, ela tornou-se cada vez mais, hum, afectuosa. Está sempre a abraçar e a beijar. Cola-se às pessoas. Tornou-se muito... física, e está sempre a tocar e a acariciar. Por vezes, de uma forma ordinária.
- E...?
- Bem... é isso, doutor.
- Estou a perceber... - Levin inclinou-se por cima da secretária, novamente a observá-los, curvado e corpulento. Falou para ambos, mas sempre a olhar fixamente para Ronald Bending. - O que me descreveram foi uma rapariguinha muito amorosa, equilibrada e extrovertida. É essa a impressão que querem dar-me?
- Por amor de Deus, Grace - explodiu Bending -, conta-lhe!
- Doutor, é... - A sua voz apagou-se.
- Oh, meu Deus! - disse o marido, furioso. - É mais do que ser afectuosa,
doc. Ela... bem, ela está sempre a atirar-se. Não aos amiguinhos da idade dela ou aos irmãos. Mas a mim e a todos os homens mais velhos que convidamos para nossa casa. Ela está sempre a segurar-lhes as mãos, a beijá-los e a fazer-lhes festas. A princípio era engraçado. Agora, tornou-se embaraçoso. Ela cola-se aos homens como um lençol molhado. Quer sentar-se no colo deles. Contorce-se entre as pernas deles. Já viu cachorros que se agarram às canelas das pessoas com as patas e se esfregam para cima e para baixo? Ela é exactamente assim.
- Ronnie!
- Grace, é verdade, e tu sabe-lo muito bem. Qual é a vantagem de pagarmos para ter uma ajuda profissional se não lhe contarmos a verdade? A Lucy é uma menina bonita e inteligente, doutor. Essa é a verdade. Mas comporta-se como uma tarada sexual. É isso mesmo. Toca nos homens entre as pernas... acho que percebe o que eu quero dizer. Rebola-se nos colos deles e acaricia-lhes as coxas e quer beijá-los. Homens mais velhos. Sempre homens mais velhos. Às vezes, juro por Deus, ela comporta-se como uma pequena prostituta. A tocar-lhes, a rir-se, tentando realmente excitá-los. E incluo-me a mim próprio, só que agora tento afastá-la. Não a rejeito, compreende, mas tento fazê-la entender que o que está a fazer é errado. Todavia, sempre que temos uma visita do sexo masculino, alguém com mais de, digamos, dezoito anos, começa a atirar-se a ele. É tão óbvio que
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todos os nossos amigos sabem. A princípio brincávamos com o assunto, mas essa fase já passou. Deixe-me contar-lhe o que aconteceu quando...
- Ronnie! Por favor, não contes.
- Sim, tenho de contar. Tínhamos convidado imensos amigos para um churrasco no Dia do Trabalhador. Durou o dia todo... uma festa de piscina. À noite, já estavam todos com uns copos a mais. Eu fui à cozinha buscar mais gelo, e lá estava... lá estava um grande amigo meu encostado ao lava-loiças. A Lucy estava de pé, entre as pernas dele, a esfregá-lo. Ele estava de calções de banho, e ela estava a esfregar-lhe o... pénis através do tecido. com as duas mãozinhas. Escute, ele estava embriagado, admito, e também juro que a culpa não foi dele. Nem sei bem se ele sabia o que estava a acontecer, mas a Lucy sabia. Oh, sim! Ele não estava a seduzi-la; ela estava a seduzi-lo. E quando eu entrei na cozinha, ela brindou-me com um sorriso aberto e encantador, e disse-me: "Olá, paizinho!", como se estivesse a fazer a coisa mais natural deste mundo. O que eu quero dizer é que não havia percepção nenhuma de que o que estava a fazer era errado. Eu empurrei-a dali, dei-lhe uma palmada no rabo e mandei-a para a cama. Talvez não devesse ter feito o que fiz, mas estava tão furioso que nem conseguia pensar bem. Depois, expulsei-o de casa. Mas sei... sei que a culpa não foi dele. A ideia não foi dele; a ideia foi dela. Ela atirou-se a ele. É assim que ela é.
- Compreendo - disse o Dr. Levin. Reclinou-se na sua velha cadeira giratória. Lentamente, deliberadamente, reacendeu o charuto que se apagara. Pousou as duas mãos grossas no tampo da secretária, com as palmas para baixo. Virou os olhos perscrutadores para Grace Bending. - O que o seu marido me contou está correcto, minha senhora?
Ela ergueu o queixo e mergulhou os dedos elegantes nos cabelos aclarados pelo sol.
- Bem, ah... claro que eu não vi esse incidente em particular, mas acredito no que ele contou. Sim, é assim que ela se comporta com os homens. É tão desagradável.
Repugnante. A beijá-los e a acariciá-los e a tocá-los. Já é suficientemente horrível na nossa própria casa, doutor, mas o que me preocupa... o que nos preocupa,
é o que poderá acontecer quando ela estiver fora de casa. Se algum homem a engatar... Não podemos estar sempre com ela.. Não sei...
De repente, começou a chorar, curvada para a frente e a morder o nó de um dedo. Os seus ombros tremiam. Fungava baixinho. Ronald Bending olhou para ela ironicamente.
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- Por favor, minha senhora - disse Levin -, tente controlar-se.
- Nós não estamos a exagerar, doutor-disse Bending, friamente. - É assim que ela se comporta. Tentámos falar com ela, explicar-lhe que ela estava a incomodar as pessoas. Experimentámos bater-lhe e mandá-la para a cama sem jantar. Tentámos tudo o que nos passou pela cabeça. Mas ela parece não compreender que o que está a
fazer é errado. Continua a fazê-lo. E ela é realmente bonita, e tem um corpinho fantástico. Por isso, muitos dos nossos amigos gostavam das... atenções dela... até
compreenderem o que estava a acontecer. Agora, alguns deles já não vêm a nossa casa. É demasiado embaraçoso. Posso fazer-lhe uma pergunta,
doc?
- Sim.
- Já alguma vez ouviu falar de um caso destes? Alguma vez tratou uma menina que se comportasse assim?
- O problema da Lucy, como o descrevem, não é único. Garanto-lhe. Há trabalhos escritos sobre o assunto. E, sim, no passado já tratei um caso semelhante.
- E curou-a? - perguntou Grace Bending, olhando para cima com os olhos marejados de lágrimas.
- Têm de me desculpar, mas não posso discutir outro caso com os senhores, tal como não discutiria o caso da Lucy com mais ninguém.
- Mas pode curá-la?
- Eu não gosto da palavra "cura", como se a vossa filha tivesse alguma doença terrível. Eu não "curo" os meus pacientes; administro-lhes um tratamento psicoterapêutico e tento ajustar o comportamento deles para padrões aceitáveis. Para bem deles, e para bem da sociedade. Se querem que vos garanta sucesso, não. Não posso fazer isso; nenhum médico ou psiquiatra pode. Tudo o que posso dizer-vos é que o comportamento da vossa filha não é tão marginal nem tão repreensível como podem pensar, e a possibilidade de mudança e de melhoras existe.
- Então, vai aceitá-la como sua doente, doutor? - perguntou Grace Bending, esperançosamente.
- Veremos, minha senhora, veremos.
- Bem, qual é o passo seguinte?
- Acho que a seguir irei falar com a Lucy.
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A ventoinha enferrujada rodava a uma velocidade constante, mas o quarto do motel cheirava a insecticida e a paixões passadas. Uma persiana torta na janela a poente não se conseguia fechar completamente; o forte sol da Florida desenhava uma escada nas costas nuas de Jane Holloway. Ronald Bending marcou a sombra e a luz com um dedo suave.
- Como é que consegues um bronzeado integral? - perguntou-lhe ele.
Ela deitou-se de lado e esticou-se por cima dele para pegar no maço de cigarros. As costelas vincavam a pele brilhante.
- Já me perguntaste isso antes - disse ela. - Várias vezes.
- E tu recusaste-te a responder... várias vezes. Eu conto-te coisas.
- Nada importante - disse ela. Deitou-se de costas e soprou uma nuvem de fumo para o tecto estalado. - Tretas.
- Mas tu ouves - disse ele indulgentemente. - Não faz diferença nenhuma, pois não?
- Não.
As paredes manchadas eram um mapa de estranhos mundos. Todas as superfícies planas do quarto tinham uma marca de queimadura de cigarro. Na casa de banho, uma máquina
vendia preservatidos de três cores. Os lençóis eram rijos como serapilheira e as toalhas estavam puidas de anos de lavandaria.
Do exterior, ouviu-se o ruído de uma máquina eléctrica de cortar relva e o zumbido do trânsito na 1-95. Ouviram o estalar de passos no estacionamento de gravilha e o riso estridente de uma mulher. Um rádio tocava algures, demasiado baixo para perceberem qual era a canção, embora ouvissem a batida.
- E quanto ao bronzeado integral? - perguntou Bending, novamente.
Ela virou a cabeça para olhar para ele.
- És um metediço persistente, não és?
- Só tenho inveja. Conto-te uma coisa importante se me contares como é que consegues o bronzeado. Aceitas?
- Depende. Primeiro quero ouvir o que tens para me contar.
- Bem... - disse Bending, acendendo um cigarro para si. Esta manhã, a Grace e eu fomos finalmente a um psiquiatra em Fort Liquordale. Por causa da Lucy.
- Já deviam ter ido há anos.
- Es capaz de ter razão.
- Ele vai aceitá-la?
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- Quer falar com ela primeiro.
- Era de esperar. Como é que ele é?
- O psiquiatra? Parece um tipo absurdo.
- Jovem? Velho?
- Aproximadamente da minha idade - disse Bending. Talvez alguns anos mais velho. Baixo. Corpulento. Barba e óculos grossos. O jovem Dr. Freud. Supostamente, é bom homem.
- Quanto, Turco? - perguntou ela com curiosidade.
- Cem dólares por hora. Que é de quarenta e cinco minutos.
- Jesus. Espero que seja mesmo bom.
- Muito bem, era isto que eu tinha para te contar. E agora quanto ao teu bronzeado?
Ela tocou na linha da cintura, premiu a firmeza da coxa. Sentiu a lisura do abdómen, deu uma pancadinha no ombro. Ele esperou pacientemente. Finalmente, ela disse:
- Tenho um amigo em Plantation que tem um terraço no telhado, acima de tudo o resto. É lá que eu apanho banhos de sol nua algumas vezes por semana. Ninguém pode ver-me.
- Excepto pilotos de helicóptero e as pessoas no dirigível da Goodyear. Quem é o amigo?
Ela não respondeu.
- Homem ou mulher? - perguntou ele.
- Homem.
- Eu conheço-o?
- Não me parece.
- Qual é o primeiro nome dele? Podes dizer-me isso, não podes?
Ela pensou durante alguns momentos.
- O primeiro nome dele é Randolph - disse ela. Ele olhou para ela, a piscar os olhos.
- Meu Deus! - disse ele. - Não é o senador?
- Ex-senador.
- Seja o que for. Ele deve ter oitenta anos, Jane!
- Mais.
- Que é que ele faz... bate-te com as muletas? Ela mostrou os dentes.
- Nada disso. Ele nunca me tocou.
- Então, que é que ele faz?
- Limita-se a olhar. Olhar também pode ser um prazer, sabias? Eu vejo-te a olhar para as beldades na praia com os seus biquinis de fio-dental.
- Sim - disse ele, assentindo -, é verdade. E ele nunca te tocou?
- Nunca.
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- E que é que ganhas com isso?
- Um bronzeado perfeito. Algumas boas informações sobre acções. Mexericos sobre políticos locais importantes. Quem anda a fazer o quê com quem. Sabias que há um pilar da comunidade, não vou dizer o seu nome, que se consola com pretinhos?
- Grande coisa - disse ele. - Eu conheço um pilar da sociedade que se consola com crocodilos.
Ela bateu-lhe no ombro com o punho fechado.
- És impossível! Ele concordou.
Levantou-se da cama e caminhou pesadamente para a cómoda. Tirou duas latas de coca-cola de um saco térmico, com capacidade para conter apenas um pacote de seis. Abriu-as e voltou para a cama.
Ronald Bending era um homem alto e com ar de camponês. O cabelo era castanho-dourado pelo sol. Tez corada. Rugas de expressão nos cantos dos olhos. Uma voz marcada pela ironia. Gestos exagerados, quase teatrais. Olhos azul-claros. O corpo cheio de ângulos e saliências. A pele de um tom bonzeado-avermeIhado acima e abaixo da linha dos calções de banho.
Pousou uma das latas frias de coca-cola em cima do estômago dela. Acenderam novos cigarros e bebericaram e fumaram, fumaram e bebericaram.
- Luther Empt disse alguma coisa ao Bill? - perguntou-lhe ele. - Sobre um encontro esta noite?
- Se disse, não sei de nada. Porquê?
- Luther telefonou-me para o escritório e quer que eu apareça lá em casa para tomar uma bebida. Não me quis dizer porquê, mas parecia excitado. Tão excitado como o Luther consegue ficar.
- Aquele homem é um nojo!
- Um nojo esperto. Presumo que é um que te escapou.
- £ presumes correctamente.
- Eu sei onde é que ele arranja as suas farras.
- Não com a mulher, tenho a certeza disso. Já alguma vez tentaste aquela, Turco?
- Tentei - admitiu ele. - Não consegui nada.
- És velho de mais para ela - avisou ela.
- Velho de mais? - protestou ele. - Só faço 40 anos em Março. Ela deve ter mais alguns anos do que eu.
- Dois, para ser exacta.
Depois calaram-se. Toda aquela conversa sobre idades era perturbadora. Raramente se falava em envelhecer, e a morte era tabu. Bronzeava-se a pele e jogava-se golfe ou ténis. Vestia-se
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roupas jovens, ouvia-se música jovem, dançava-se danças jovens. Tinham de permanecer jovens. O tempo era o inimigo.
- Sabes para quem é que ela tem olhos? - perguntou Jane Holloway. - A Teresa Empt?
- Não pensei que ela tivesse olhos para alguém - disse ele.
- Pensei que ela tinha sumo de lima nas veias.
- Eddie - disse ela.
- Eddie? - explodiu ele. - O teu Eddie?
- Isso mesmo.
- Mas o miúdo só tem dezasseis anos.
- São só vinte cinco anos de diferença. Tu sabes que ele é bem constituído.
- A Teresa Empt e o Eddie? Estás doida!
- Estou? - disse ela preguiçosamente. - Vamos fazer um churrasco na próxima semana. Observa-a. Verás que tenho razão.
- Eddie sabe?
- Provavelmente. Mas Bill não sabe.
- O Bill sabe alguma coisa sobre nós?
- Não sabe e está-se nas tintas.
- Espero que tenhas razão. Ele tem uma arma?
- Não. Tu tens?
- Claro. Tal como toda a gente que conheço. Assim, quanto todos os patifes começarem a dirigir-se para cá, vindos do distrito de Dade, poderemos proteger a santidade dos nossos lares e a castidade das nossas mulheres.
- A primeira vez que tentares usá-la - disse ela -, provavelmente, vais acertar nos teus tomates.
- Provavelmente - disse ele, alegremente. - E depois onde é que estarei?
- Em lado nenhum-disse ela.-Vais acabar numa cadeira de rodas como o senador. Só a olhar.
Ela sorriu ao imaginar a cena e deu-lhe o cigarro e a lata vazia de coca-cola.
O seu cabelo era cinzento-prateado e estava cortado muito curto, com dois centímetros de altura na cabeça. As mulheres da Florida olhavam-na com estranheza, mas ela não se importava, Os seus olhos negros resplandeciam.
Seios pequenos e duros eram patrões. Os ossos da anca esticavam a pele bronzeada. O seu corpo sem pêlos brilhava, braços e pernas como bastões de salgueiro descascados. Tinha feito uma operação plástica ao rosto uma vez.
Tudo nela era firme. Nada era mole ou caído. Ela podia prender um homem com os seus músculos e fazê-lo gritar. Usava
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verniz castanho-avermelhado nas unhas dos pés e dourado nas unhas dos dedos das mãos, longos e preênseis.
Viu Ronald Bending olhar para o relógio de pulso.
- Temos tempo para outra? - perguntou ela.
- Tu és linda! - disse ele com um sorriso apalhaçado.
- Eu sei - disse ela.
O terraço dava para a praia, para o oceano, para as Baamas e, eventualmente, para Marrocos. Uma lua que parecia um melão saltou do mar, subiu rapidamente e desenhou um caminho de luz através da água encrespada. O ar cheirava a calor concentrado. Na obscuridade, páginas brancas voltavam-se eternamente na praia.
William Jasper Holloway, um homem vago e melancólico, saiu para o terraço com dois pequenos cálices de brande. Parou para fechar a porta de vidro, por causa do ar
condicionado. Acercou-se do sogro, que estava sentado à mesa de vime branco, e deu-lhe um dos conhaques.
- Obrigado, Bill - disse o velhote.
- Tive muito prazer, professor.
Lloyd Craner tinha um bigode branco e pêra, um nariz pequeno, sobrancelhas e olhos majestosos. Olhava furiosamente para o mundo de um rosto que devia estar numa caixa de charutos. A sua dentadura postiça estalava.
Entfe os joelhos repousava a sua bengala de pau-rosa com cabo de prata com o formato de um tucano. Estava sentado, muito direito, a perscrutar o mar, a desafiá-lo. Todos os seus movimentos eram precisos e calculados. Estava determinado a não morrer.
- Está uma noite boa - comentou Bill Holloway.
O ex-professor de Geologia encostou os lábios ao cálice, inalou e depois mergulhou a língua.
- Ambrósia - disse ele. - Vi uma rajada de vento lá ao fundo há alguns minutos. Alguma fosforescência.
- Talvez - disse Holloway. - Talvez.
- O mar, o mar - recitou Craner. - Um homem não viveu até ter conhecido o mar, até ter sentido as gigantes fronteiras que a alma solta quando os olhos olham para um mundo sem limites, para a beleza sem fim. Sempre, em todo o lado, o mar rola
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eternamente. Os homens vão e vêm, e o mesmo acontece com as nações e com as civilizações. Mas o mar! Isso é vida, constante, eterna.
- Muito bonito - disse Holloway. - Quem escreveu isso?
- Fui eu-disse o professor.-Quando era jovem e inocente.
- O senhor nunca foi inocente - disse-lhe o genro.
O velhote mostrou os dentes e bebeu um gole de brande.
- O jantar hoje estava excelente - disse ele.
- Estava? - disse Holloway. - Não consigo habituar-me às lagostas da Califórnia. Parecem-me amputadas.
- Porque é da Nova Inglaterra. Elas podem não ter pinças, mas o sabor é refinado.
- Aceito a sua palavra.
- Por que era a discussão?
- com a Maria? A Jane disse que ela tinha colocado demasiado açafrão no arroz. A Maria disse-lhe que em Cuba tinha sido uma grande senhora e até tinha criados a trabalhar para ela. A Jane disse que talvez ela fosse mais feliz se voltasse para Cuba. A Maria disse-lhe, com todos os pormenores, o que ela podia fazer com o arroz de açafrão. É uma pena o senhor não falar espanhol; a conversa perde alguma coisa na tradução.
- É o fim da Maria?
- Provavelmente - disse Holloway, indiferentemente. Esta aguentou três semanas; quase bateu um recorde.
Bebericaram lentamente os brandes. Uma pesada brisa de sudeste abanava as copas das palmeiras que emolduravam o terraço. Ouviam o ruído do mar. Um bando de pelicanos voou para norte iluminado pelo brilho da Lua.
- Montana nunca era assim - disse Lloyd Craner.
-Às vezes, sinto-me como se estivesse a viver num póster de viagens - disse Holloway.
- Pensei que gostava.
- Eu pensava que sim. Agora, começo a interrogar-me. Demasiado mar. Demasiada praia. Demasiado tempo perfeito. Aquele maldito sol... O meu cérebro está a ficar em papas. Eu costumava ler poesia do século XVIII. Agora, leio o National Enquirer.
- Continua a jogar xadrez.
- Mal.
- Quer jogar um jogo esta noite?
- Lamento, professor. Tenho de ir tomar uma bebida com Luther Empt. Uma proposta de negócios que ele quer fazer-me.
- Que é que sabe sobre ele, Bill?
- Sobre o Luther? Veio de Chicago há cerca de doze anos.
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Montou um negócio de produção de apresentações de slides para empresas e agências de publicidade. Depois, voltou-se para os filmes educativos e de formação de oito e dezasseis milímetros. Ultimamente, tem estado a reproduzir anúncios de televisão e cassetes de vídeo. Parece ser um homem muito capaz.
- Ambicioso?
- Oh, sim. Teresa é a sua terceira mulher. Ouvi dizer que foi o dinheiro dela que lhe permitiu expandir-se para o sector da televisão.
- Ela já tinha sido casada?
- Uma vez.
- Indo para Jerusalém - disse o velho.
- O quê?
- Era o que costumávamos chamar ao jogo infantil das Cadeiras Musicais. Ele foi casado três vezes, a mulher duas. Ronald Bending foi casado duas vezes, assim como a Jane. Não sabia que havia tantos viúvos, divorciados e casados mais de uma vez até vir para a Florida.
- Indo para Jerusalém - repetiu Holloway. - bom nome. Florida: a nova Jerusalém. vou encher novamente os nossos cálices.
Levou os cálices de brande para a sala de estar. A sala prolongava-se por toda a largura da casa, e estava decorada em tons de bege e castanho. Ele detestava-a.
Jane estava enrolada a um canto de um sofá de três metros forrado a veludo cor de chocolate. Usava um fato justo de malha cor-de-rosa-vivo até aos tornozelos. Estava a limar as unhas, enquanto via televisão num aparelho gigante.
- O filme é bom? - perguntou ele agradavelmente.
- Uma merda! - respondeu ela.
Ele serviu outro brande para o sogro e para si preparou uma vodca dupla com gelo com um pouco de sumo de lima.
- Onde está a Gloria? - perguntou à mulher.
- A fazer os trabalhos da escola em casa dos Bending. com a Lucy.
- E o Eddie?
- Lá em cima. A não ser que tenha saído outra vez. Arranja-me um martini com gim. com uma casca de limão.
Ele preparou a bebida e levou-lha. Ela tirou-lhe o copo dos dedos sem afastar os olhos da televisão. Ele levou as outras bebidas para o terraço.
A lua estava mais alta, mais pálida, mais pequena. Difusamente, na escuridão, viram duas pessoas a correr na praia. Mais
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longe na escuridão, uma fiada de luzes vermelhas dirigia-se para norte.
- Provavelmente, são barcos de pesca comerciais - disse Holloway. - Dirigem-se para a barra de Júpiter.
- Esse Luther Empt - disse Lloyd Craner. - Acha que ele é um homem honesto?
- Tão honesto quanto tem de ser. Porquê esse interesse repentino em Luther Empt? - Calou-se durante alguns instantes. - Meu Deus, professor, não me diga que é a
mãe dele. Gertrude? É a Gertrude?
- Ela é aquilo a que costumávamos chamar uma bela mulher
- disse o sogro, suavemente.
- Indo para Jerusalém - disse William Jasper Holloway. Duas vodcas depois, ele descalçou os mocassinas, pegou nelas
e, descalço, atravessou a praia dirigindo-se para a propriedade dos Empt, separada da dele apenas por duas casas. A areia áspera e grossa conservava o calor do dia.
Havia ouriços do mar e fragmentos de conchas. Ele não se importou. Por alguma razão que não conseguia compreender, era bom sentir. Até dor.
Sabia que era mais mole e mais atarracado do que devia ser. Queria ser tão elegante e forte como Turco Bending, mas só conseguia ser tão balofo como Luther Empt, mas sem a sua energia e determinação.
Ele era um homem médio, de estatura média, com cabelos e olhos de um castanho médio. Todas as suas roupas eram de tamanho médio. Achava que tinha um cérebro médio e, talvez, uma alma média.
Usava um plastrão de seda no colarinho aberto da sua camisa Izod branca de mangas curtas. Usava sempre um plastrão, uma afectação que divertia os seus vizinhos na Florida. E as suas calças depolyester com um padrão de flores teriam provocado uma gargalhada aos seus amigos maricas de Boston.
Mas isso era outro mundo, noutro tempo.
Chegou à casa dos Empt. Encostou-se ao pontão de cimento para sacudir a areia e os ouriços dos pés descalços e calçar os sapatos. Ouviu murmúrios no terraço e espreitou para as figuras indistintas de Luther e Bending, que estavam sentados perto da mesa de vidro e aço inoxidável.
A casa de William Holloway, bem como a de Ronald Bending, eram construídas em lotes de meio acre. Luther Empt tinha um acre de propriedade à beira-mar-e o que aquilo podia valer era assombroso. Mas claro que Empt a tinha comprado há dez anos. Mesmo assim...
A casa, como a maior parte das outras na praia, era um bloco
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rebocado com lajes, construído numa placa de cimento sustentada por colunas enterradas muito fundo na areia. A maior parte das outras casas tinham telhados de telhas de madeira. A de Empt tinha telhas vermelhas espanholas, montadas numa sequência de espinhas.
O relvado que dava para a estrada era mantido em condições impecáveis. Era um jardim formal, com uma piscina de tamanho olímpico, e um churrasco exterior a gás. A casa em si tinha sido retratada naArchitecturalDigest. O título do artigo era: "A villa da Costa de Ouro da Florida."
- Isso torna-te um vilão - dissera Bending a Empt. Luther tinha forçado uma gargalhada.
Holloway subiu o curto lance de escadas desde a praia. As escadas dele eram de madeira. As de Bending eram blocos de lajes. As de Empt eram de rocha de coral.
Os três homens trocaram apertos de mão e sentaram-se em cadeiras baixas de lona. Luther tinha trazido um balde de cubos de gelo e garrafas de uísque americano, de
uísque escocês e de vodca para o terraço. Havia copos de cristal, rodelas de lima e pedaços de casca de limão.
- Não estou para ser vosso criado, seus vagabundos! - disse Empt. - Sirvam-se.
- Possivelmente, vou ficar bêbado - avisou Bending, deitanto uísque americano em cima de gelo.
- Não faz mal - disse Empt. - Eu levo-te a casa.
-A última vez que me disseste isso - disse Bending -, acabei a dormir na praia.
Os dois homens riram-se, e Bill Holloway sentiu-se posto de parte. Serviu-se de um grande copo de
vodca com gelo e espremeu um canto de lima. Empt estava a beber
uísque escocês morno.
- Qual é a comemoração, Luther? - perguntou Holloway. Ele recostou-se na cadeira com a sua bebida. Conseguia ver
para lá da grande janela panorâmica. Teresa e Gertrude Empt estavam a jogar gamão numa mesa de apoio baixa defronte de uma lareira de tijolos. A única lareira que Holloway alguma vez vira no sul da Florida.
-vou contar-vos algumas coisas passadas - disse Empt. Quando vim de Chicago para aqui, tinha algumas ideias boas, mas não muito dinheiro vivo. Nenhum dos bancos locais teve a coragem de apostar em mim. Incluindo o teu, Bill.
- Não eras conhecido - disse Holloway, calmamente.
- É verdade - disse Empt, sem rancor. - De qualquer forma, acabei por ir parar a um banco a sul de Miami. O nome
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não interessa. Na altura, o seu capital era de cerca de cinquenta milhões e tinha um cash-flow anual de cerca de quinhentos mil. Que é que isso vos diz?
- Dinheiro da mafia - disse Bill Holloway.
- Ou dinheiro de cocaína da Colômbia - disse Turco Bending.
- Ou ambos - disse Empt, acenando. - Mas quem é que se importa, desde que seja verde? Concederam-me um empréstimo. Foi difícil, mas paguei-o até ao último centavo. E foi a única vez que tive negócios com eles. Continuei a progredir, e agora sou cliente VIP em todos os bancos locais. Estou certo, Bill?
- Correcto - disse Holloway, embora não fosse exactamente correcto. Inclinou-se para a frente, para se servir de mais vodca.
- Há cerca de um mês - continuou Empt -, recebi um telefonema de um vice-presidente do tal banco de Miami. Disse-me que um grupo de bons rapazes tinha uma proposta
de negócios para me fazer. Ele podia responsabilizar-se por eles, mucho dinero, mas eu estaria disposto a ouvir o que eles tinham para me dizer? Eu disse que sim, que os mandasse ter comigo. Encontrámo-nos no meu escritório. Falámos durante cerca de três horas, e fomos jantar ao Breakers, em Palm Beach. Ao todo, estive com eles quase seis horas.
- Mafia? - perguntou Holloway.
- Adivinhaste. E o que eles eram, mas não se percebia. Quero dizer, nada de anéis vistosos e fios, ou conversa ordinária. Vestidos de modo conservador. Falavam baixo. Delicados. Nada de ameaças. Muito, muito suaves. Mas não moles, se é que percebem o que eu quero dizer. Era óbvio que me tinham procurado. Conheciam a minha situação financeira e a quem devo.
- Que é que queriam que fizesses? - perguntou Bending. Tráfico de escravas brancas para os árabes?
- Não exactamente - disse Empt. - Para vos explicar o que eles queriam, vou ter de falar de assuntos técnicos. É melhor tomarmos outra bebida.
Serviram-se e voltaram a instalar-se confortavelmente. Empt manteve-se em silêncio durante alguns instantes, de sobrolho franzido. Era um homem que se mexia devagar, falava devagar e pensava devagar.
Tinha o rosto duro e forte de um coronel da Wehrmacht. Cabelos grisalhos cortados curtos. Orelhas pequenas e gordas muito encostadas ao crânio tosquiado. Astutos olhos negros. Uma boca ríspida com rugas desde os cantos até ao queixo.
Vestia uma camisa larga para esconder a barriga. De calções de banho, parecia ter engolido uma bala de canhão. Os ombros,
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costas, braços e peito pesados estavam cobertos por uma espessa camada de pêlos negros.
Curvou-se para a frente na cadeira, com os braços fortes pousados nos joelhos. A camisa branca e as calças brancas brilhavam na escuridão. Ele via-se indistintamente, monumental na sua solidez. As mãos pareciam estar sempre fechadas.
- Estou a mudar gradualmente de fitas para cassetes de vídeo nos filmes de formação e educativos - disse ele na sua voz áspera. - Mais tarde ou mais cedo, estarei a gravar tudo em cassete. É o futuro, não há dúvida. Toda a gente diz o mesmo. Certo? Dentro de um ano, o preço dos gravadores e reprodutores de vídeo deverá ter descido para cinquenta dólares. Neste momento, podem comprar-se velhos filmes em bobinas por trinta a sessenta dólares. Nessa média. Provavelmente, esse preço também vai descer.
"Mas toda a indústria está na maior confusão. Sistemas diferentes, não compatíveis. Cassetes de vídeo e discos de vídeo. Não há regularização. E como os LP s quando apareceram. Todos os tamanhos, formas, velocidades. Agora, os malditos japoneses anunciaram uma cassete de vídeo para além da cassete áudio. Toda a gente quer entrar no negócio dos vídeos. Toda a gente está de acordo em que vai ser um negócio de um bilião de dólares. E sabem que mais? Acho que estão todos cheios de merdas.
Recostou-se para trás a sorrir secretamente, arrogante.
- Que é que isso significa? - perguntou Bending. - Vais à falência?
- Eu não - disse Empt, com uma gargalhada rouca. - Eu tenho um negficio bom. Cassetes e discos educativos e de formação para empresas, para escolas, para o governo.
Não posso falhar. Mas quando as pessoas falam de um negócio de um bilião de dólares, estão a falar de um mercado de massas, como para os discos de longa duração, para as gravações de oito faixas, e para as cassetes de áudio. Por isso, eu pergunto: o quê? O quê? Onde está o mercado de um bilião de dólares? Turco, qual é o melhor filme que já viste?
- ê melhor? Não sei... talvez E Tudo o Vento Levou.
- Certo, E Tudo o Vento Levou. Pagarias, digamos, cinquenta dólares por uma cassete de vídeo para ver o filme no teu pequeno ecrã de televisão? Cinquenta dólares? Por amor de Deus, quantas vezes é que consegues ver E Tudo o Vento Levou? Bill, tu és fanático por música. Pagavas cinquenta dólares para ver a Orquestra Filarmónica de Nova Iorque tocar Beethoven na tua televisão?
- Não... acho que não - disse Holloway, começando por fim
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a interessar-se. - Não há nenhuma vantagem especial em ver uma orquestra a tocar. O som é tudo. De facto, provavelmente, ver a orquestra seria uma distracção. Ouvir um bomLP estéreo é tudo o que se quer, ou que se precisa.
- Certo! - disse Empt. - E quanto à ópera e ao bailei? No ecrã de televisão, os cantores e os bailarinos aparecem com alguns centímetros de altura, e perde-se todo o efeito dos grandes ecrãs. Por isso, que é que sobra do mercado de um bilião de dólares?
- Estrelas individuais? - sugeriu Holloway. - Artistas como a Lisa Minelli ou como o Sinatra. Comediantes de Las Vegas.
- Cinquenta dólares para poderes ver alguns cómicos de terceira a contar anedotas ordinárias? - disse Empt. - Talvez uma vez, mas quantas vezes é que conseguirias ver aquilo? Aprenderias todas as piadas. O que eu quero dizer é quem é que quereria possuir essas fitas e esses discos? Mesmo se o preço descer para dez dólares. Simplesmente, não creio que o mercado esteja aí. Vamos beber mais uma rodada.
Inclinaram-se para encher de novo os copos. Holloway sentia a vodea a fazer efeito. Estava a começar a transpirar. Havia um brilho rosado que suavizava tudo. Já não havia esquinas pontiagudas. Aqueles tipos eram esplêndidos.
- Talvez a resposta esteja numa biblioteca que empresta disse o Turco Bending. - Aluga-se uma cassete de vídeo ou um disco de vídeo. Se quiseres ver um determinado filme ou jogo de futebol, digamos, alugas a cassete por um dia, uma semana, seja o que for. De um catálogo.
- Talvez - concordou Luther Empt. - Talvez seja a resposta. Mas os alugueres não são um mercado de um bilião de dólares. Tudo o que estou a dizer é que não vai haver grande corrida para comprar cassetes ou discos de filmes, peças de teatro, acontecimentos desportivos, orquestras, óperas, ou baileis. Ou haverá mercado talvez para os fãs dos grupos de rock and roll. Mas o potencial não é tão grande como toda a gente pensa. A não ser uma coisa.
- Porno - disse Bending, imediatamente.
- Seu filho da puta! - disse Empt, muito divertido -, ultrapassaste-me. Mas tens razão. Pornografia. Filmes obscenos em cassetes ou discos, que podem ser vistos
nos nossos aparelhos de televisão, na privacidade da nossa casa. Oraai está um mercado.
- E onde entram os teus tipos da mafia - disse Holloway, perversamente.
- Certo-confirmou Empt. - Eles não são nenhuns idiotas.
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Já estão metidos nos filmes de oito e dezasseis milímetros. Para além de livros e fotografias, claro. Agora, querem meter-se nas cassetes e nos discos de vídeo. Já têm uma organização de produção, processamento e distribuição em L. A. Querem fazer a mesma coisa na Costa Leste.
- Porquê a Florida? - perguntou Holloway.
- Porque acham que são donos do Estado. E se calhar até são. Porque o clima é fantástico para a produção de filmes. Porque os impostos são baixos, baixos, baixos, e estes tipos são muito cumpridores da lei. E porque a distribuição de, digamos, Miami, para as grandes cidades a este do Mississipi, é muito mais fácil do que de LA. E também porque o talento para o porno está aqui. Muitas beldades jovens prontas para abrir as pernas. Realizadores e cameramen. Argumentistas e criadores. E, senão estiverem aqui, podem vir de avião de Nova Iorque em menos de três horas. A Florida é perfeita para este negócio. Afinal de contas, Garganta Funda foi feito aqui. E podem levar o material acabado para Long Island ou Boston, de barco, tal como fariam com coca e haxe, se não quiserem transportá-la de camião ou de avião.
- E eles estão convencidos de que o mercado vai ser assim tão grande? - perguntou Holloway.
- Eles sabem que vai ser assim tão grande - disse Empt, convicto. - A pornografia é uma coisa que os tipos que se excitam com ela podem ver vezes sem conta. Por isso, eles vão querer ser donos de filmes. Coleccionam uma filmoteca de material. E estarão dispostos a pagar bem por isso.
- Que é que eles... - começou Holloway a dizer, mas depois Luther Empt rosnou audivelmente de fúria e nojo. Levantou-se desajeitadamente da cadeira de lona e ficou de pé, cambaleante, a apontar para o chão com um dedo trémulo.
- Olha para aquela filha da mãe! - gritou ele. - Olha para ela!
Eles olharam. Um escaravelho gigante tinha trepado pelo cimento, e passara a balaustrada do terraço. A sua carapaça castanha reflectia a luz da janela panorâmica. As antenas mexiam-se languidamente. Corria de um lado para o outro.
- Meer-da - disse o Turco Bending -, é apenas um escaravelho das palmeiras. Não faz mal nenhum.
Ergueu-se graciosamente, moveu-se com rapidez e, com o pé descalço, pontapeou o escaravelho para fora do terraço e de volta para a praia.
- Não vale a pena tentar matar o filho da mãe! - disse ele.
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- É preciso um martelo pneumático para os esborrachar. Deixem-no fugir e ir brincar.
- Detesto esses estupores - disse Empt, estremecendo. São tão horrorosos. vou buscar mais bebidas.
Holloway e Bending sorriram um para o outro na ausência do anfitrião. Era reconfortante descobrir a fraqueza de outro homem.
- Escaravelhos e cobras não me incomodam nada - disse Bending. - E a ti?
- Nem por isso - disse Holloway, esvaziando a garrafa de vodca e tentando recordar-se de quanto é que ela tinha quando começara a beber. - Passo bem sem caravelas,
mas essas são fáceis de evitar.
Bending olhou para ele com mais atenção.
- Não há nada que te incomode muito, pois não, Bill?
- Isso mesmo - disse Holloway, desconfortavelmente, à espera de libertação.
Esta veio com o regresso de Empt. Ele trouxe garrafas fechadas de vodca, uísque escocês e uísque americano, e um balde de cubos de gelo.
-lupie! - disse Bending, suspirando. - Amanhã sou capaz de chegar um pouco atrasado ao escritório.
Serviram-se de bebidas com o cuidado exagerado de homens que sentem a sua coordenação a fugir. Sentaram-se de novo nas cadeiras. Holloway reparou que Luther Empt continuava a olhar nervosamente para o sítio onde Bending tinha pontapeado o escaravelho das palmeiras para fora do terraço.
- Onde é que estávamos? - disse Empt. - Oh, sim... Falaram-me no esquema de produção, processamento e distribuição que querem montar no sul da Florida.
- E que é que queriam que fizesses? - perguntou Bending.
- Que fosses o mandão principal?
- Exactamente - disse Luther, não sem orgulho. - Queriam que gerisse o negócio. Não, não é bem assim. Eles tratariam da distribuição e do marketing. Eu seria o responsável pela produção e pelo processamento. Entregar-lhes-ia o produto acabado, embalado e pronto para colocar nos pontos de venda. Todo o dinheiro que eu quisesse... sem exageros, claro... e toda a ajuda técnica de que necessitasse. Disseram que podiam praticamente garantir que eu não teria problemas com a lei. Mas, se tivesse problemas, eles investiriam um milhão de garantia para cobrir todas as minhas despesas legais se me metesse numa alhada. Foi assim que eles falaram: milhão isto, milhão aquilo. Como se estivessem a falar de pipocas.
- Uau! - disse Bending, com inveja.
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- Que é que lhes disseste? - perguntou Holloway, com curiosidade.
- Eu disse-lhes que obrigado mas não, obrigado. Disse que, em primeiro lugar, não tinha experiência em pornografia, não conhecia o mercado e não sabia distinguir o trigo do joio. Eles disseram que não havia problema, que arranjariam uma equipa para garantir a qualidade da produção. Por isso, depois disse-lhes que não tinha tomates para me meter nisso. Tenho uma reputação por estas bandas e não queria arriscá-la. A Teresa matava-me se descobrisse. Vocês sabem como ela é. A casa, o jardim, as colunas sociais, os chás de caridade, a reportagem na Architectuml Digest e todas essas coisas. A Teresa matava-me. Sem pensar no que a minha mãe diria. Por isso, disse-lhes que nem pensar.
- Como é que eles reagiram? - perguntou Bending.
- Muito bem. Sem pressões. Talvez eu fosse apenas um dos tipos da lista de possíveis. Comportaram-se como se estivessem prestes a ir-se embora, mas eu não queria que eles fossem. Acho que toda aquela conversa de muito dinheiro me estava a subir à cabeça. Turco, tens a certeza de que aqueles malditos bichos não podem morder ou picar?
- Tenho a certeza.
- Pois. Bem, sabem, enquanto estive a negociar segui aquilo a que posso chamar a "Lei Luther K. Empt". Garante sucesso financeiro, mas não é ensinada em Harvard ou em Wharton.
- E o K. é de quê? - perguntou Bending.
- Konrad.
- E qual é essa lei? - perguntou Holloway.
- Tretas, tarrgas, miolos. Sempre. Por isso resolvi cantar uma canção para aqueles tipos da mafia. Disse-lhes que estavam a tentar investir na minha fraqueza, não na minha força. Disse-lhes que não sei absolutamente nada sobre produção porno. Mas quanto à reprodução, sei tanto sobre o assunto como qualquer pessoa a sul de Nova Iorque. Estou a falar na conversão de filme para bobina, na reprodução de bobinas em cartuchos e cassetes, a tecnologia de discos de vídeo, e por aí fora. Então, por que não, disse eu, arranjar outra pessoa para filmar o material, fazer a produção, e eu encarregava-me da parte técnica final.
- Lá se vai o meu sonho de estrelato - disse o Turco Bending.
- Eu pensei o seguinte - continuou Empt. - No caso de a lei interferir, eu estaria numa posição muito melhor se tudo o que tivesse fosse uma fábrica cheia de máquinas automatizadas
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do que se tivesse um estúdio cheio de beldades nuas a chupar todas as pilas à vista, incluindo as de Dobermans e de burros. Faz sentido, não faz? Eu até podia alegar que não sabia o que tinham as fitas; só as recebia para fazer cópias. Quem diabo é que tem tempo para inspeccionar todos os negativos que revela? Que é que achas, Bill?
- Não sei - disse Holloway, lentamente. - Não sei muito acerca da lei de obscenidade. Acho que possivelmente tens razão quando dizes que, meramente como processador, a tua culpabilidade seria menor do que a dos produtores e dos vendedores. Mas, mesmo assim, seria um risco.
- Claro que seria arriscado. Mas o dinheiro!
- É melhor falares com um advogado, Luther - aconselhou Bending.
- Já falei - disse Empt. - Mas isso é adiantar-me na minha história. Vá lá, bebam. Toda esta tagarelice faz-me sede.
A lua agora estava alta, a sul, navegando por um céu sereno. Ocasionalmente, viam as luzes de um avião a descer para o aeroporto de Fort Lauderdale. De vez em quando, uma nuvem, não maior que uma baforada de fumo, vogava, dissipava-se e desaparecia.
Não estavam conscientes do barulho das nuvens a varrer a praia, nem do sussurrar das copas das palmeiras. O mundo tropical estava ali, mas eles não o sentiam, não o pressentiam.
- Olharam uns para os outros - continuou Luther Empt. Os tipos da mafia. Foi quando fomos jantar a Palm Beach. Eles fizeram-me uma lavagem ao cérebro e eu deixei-os. Coisas técnicas. Cassetes de vídeo versus discos de vídeo. Eles queriam saber quais é que eu achava que seriam os mais populares. Disse-lhes que não sabia, e que também mais ninguém sabia. No meu negócio, estou a preparar-me para seguir ambos os caminhos. Disse-lhes que, no negócio deles, era melhor eles rezarem para que fossem discos de vídeo, porque as fitas são muito fáceis de piratear. Qualquer mecânico de automóveis pode copiar uma gravação de TV. Eles riram-se e disseram que tinham tido uma experiência com tipos que pirateavam os seus filmes de oito e dezasseis milímetros, fazendo cópias do original, mas disseram que esses problemas tinham sido solucionados.
- Oh, claro - disse o Turco Bending. - E os tipos que tentaram o golpe estão agora a andar no fundo do oceano Atlântico com botas de cimento nos pés.
- Provavelmente - disse Empt, estremecendo. - Aqueles tipos jogam duro. Mas eu disse-lhes que o grande problema com as gravações de vídeo não residiria nos piratas a tentar vender
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cópias; o problema seria o tipo de pessoa que compra uma cassete porno. Depois, fala com um vizinho que também tem um vídeo, e é facílimo o vizinho fazer uma cópia numa cassete virgem. Percebem? Tu compras um filme porno, e eu copio-o para a minha filmoteca. Depois compro eu, e tu copias a minha cassete. Lá se vai o teu mercado de um bilião de dólares. Por isso, eu disse aos tipos que o melhor era rezarem para que os discos de vídeo vencessem a concorrência, porque é praticamente impossível copiar um disco... pelo menos para a maior parte das pessoas. Agora, já estamos a falar em tecnologia laser e em equipamento dispendioso.
"De qualquer forma, quase só falámos disso ao jantar. Questões técnicas e sobre como eu seria o único fabricante da sua produção da Costa Leste. Eles disseram que
a proposta lhes parecia boa, e que iriam apresentá-la aos associados deles e depois voltariam a entrar em contacto comigo. E foi assim que nos separámos. Eles pagaram o jantar. Eu comi lindamente.
Seguiu-se uma pausa.
- E é o fim da história-perguntou Holloway, esperançoso.
- Oh, raios, não! - disse Luther Empt, violentamente. Enquanto esperava que eles me dissessem alguma coisa, telefonei para Lou Manata... ele trata dos meus assuntos legais... e contei-lhe o que se passava. Ele fez alguns telefonemas e deu-me o nome de um grande advogado em Nova Iorque que é especializado em lei de obscenidade e pornografia. Por isso telefonei-lhe, marquei uma entrevista, e fui de avião para Nova Iorque. Fui frontal com ele e perguntei-lhe qual era o risco.
- Espero que ele te tenha dito para esqueceres o assunto disse Holloway, encorajado pela
vodca.
- Precisamente o contrário - disse Empt, de modo convencido. - Ele disse que qualquer pessoa que diga que compreende a lei de obscenidade e pornografia neste país
é um grande mentiroso. A lei muda sempre que o Supremo Tribunal abre a boca. Cada Estado tem as suas leis, bem como cada distrito, cidade, vila e aldeia. É uma confusão. Mas disse que, na situação que eu lhe descrevi, a sua opinião era de que o risco para o reprodutor seria mínimo. As suas palavras exactas: "O risco é mínimo." Se eu estivesse a produzir as fitas de fode-e-chupa, ou a transportá-las através das fronteiras dos Estados, o risco seria muito maior. Mas, tratando estritamente dos assuntos práticos, reproduzindo apenas um produto existente, o risco legal seria mínimo.
Beberam de novo. Mais lentamente agora porque, quando olharam para cima, as estrelas pareciam estar a redemoinhar,
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o céu a revolver-se, toda a abóbada escura do cosmo a pulsar de uma forma mágica.
- Eles voltaram a falar comigo - disse Luther Empt, numa voz grossa. - Disseram que os sócios deles tinham concordado. Queriam contratar-me. Queriam montar uma empresa de processamento separada. Eles seriam os proprietários; eu trabalharia para eles. Eu disse que se fedesse aquilo. Já era independente há demasiado tempo para voltar à rotina das nove às cinco. Acho que eles estavam à espera disso; estavam preparados com outra proposta. Eu podia ter o meu próprio negócio, e eles trabalhariam numa base contratual. Era o que eu queria, por isso concordei. Depois, mostraram-me os números. Eu quase morri. Não fazia ideia de que a indústria porno era tão grande. Eu precisaria de uma nova fábrica, de máquinas, de mais pessoal. com a produção de que eles estavam a falar, calculei que seria preciso um investimento de pelo menos um milhão para pôr as coisas a funcionar.
- Um milhão? - exclamou Holloway, com a voz a falhar. -Para fazer um contrato com a mafia-perguntou Bending.
- Não, não - protestou Empt. - Para provarem que as suas intenções são sérias, eles estão dispostos a conceder-me um empréstimo de um quarto de milhão de dólares. A dez por cento. Acreditam nisto? Só dez por cento. Estritamente um empréstimo. Não interferem na minha parte do negócio. Agradeci-lhes e disse-lhes que depois lhes dava uma resposta.
Depois, disse Luther Empt, fora para casa, sentara-se com uma calculadora de bolso, e começara a fazer contas. O seu cálculo de um milhão estava praticamente certo. Talvez, disse, estivesse mais perto dos novecentos mil, mas, com a inflação e as despesas inesperadas, um milhão seria uma estimativa mais segura.
Mesmo com o empréstimo da mafia, ele ainda tinha de arranjar setecentos e cinquenta mil dólares. Disse que poderia arranjar aquela quantia se empenhasse tudo o que tinha: o seu negócio, o edifício da fábrica, a casa, as jóias da mulher... tudo. Mas admitiu que já estava a ficar um bocado velho para jogar esse tipo de jogos.
- Foi por isso que vos pedi para virem cá esta noite - concluiu ele. - E se cada um de vocês entrasse com um terço? Isso quer dizer um quarto de milhão cada um. Isso, mais a empréstimo, dá-nos o dinheiro de que precisamos. Cada um de nós será dono de um terço da empresa, ou da sociedade, se for essa a recomendação do advogado. Detesto chamar a isto uma "coisa certa", porque Skid Row está cheio de tipos que apostaram numa
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coisa certa. Mas é a melhor hipótese que já vi desde que geri uma sala de jogo a leste de Chicago.
Holloway e Bending inclinaram-se para a frente para se servirem de novas bebidas. O relato de Luther tinha atingido o clímax tão abruptamente que eles estavam assombrados. Estavam ambos atordoados pela bebida, mas suficientemente sóbrios para saberem que, naquele momento, não conseguiam pensar com clareza.
- Olhem - disse Empt -, não me entendam mal. Não estou à espera de uma resposta neste instante. Só quero que pensem no assunto. Está bem? Sei que vocês dois podem arranjar essa massa sem grandes problemas. Foi por isso que vos propus o negócio. Se resolverem que sim, óptimo. Se não quiserem, não há problema, e continuamos a ser bons amigos. Agora, estou a preparar uma apresentação. Uma para cada um de vocês. com todos os números.
"Da forma como as coisas se apresentam - disse ele -, vamos reaver o nosso dinheiro em vinte meses a dois anos. Depois disso, é a Ilha do Tesouro. Bem, olhem para os números e decidam. Claro que, se decidirem entrar, eu arranjo tudo para conhecerem os tipos da mafia e examinarem a credibilidade deles. Eles disseram que não objectariam a isso. Bem, que diabo, chega de falar de negócios. Agora vamos beber a sério.
Holloway ficou contente por o monólogo ter terminado. Não é que Luther Empt fosse completamente não gramatical ou usasse linguagem ordinária. Mas a sua voz irritante era alta e áspera, a sua pronúncia citadina arranhava o ouvido e a sua energia e impetuosidade eram cansativas.
Para além disso, Empt tinha pedido uma decisão. Nos últimos meses, William Jasper Holloway tinha conseguido reduzir a sua tomada de decisões ao mínimo possível. Jane orientava a casa, e o seu VP executivo administrava quase totalmente o banco.
E era assim que Holloway queria que as coisas se mantivessem. Sentia uma necessidade cada vez maior de simplificar a sua vida, de reduzir a sua existência ao essencial. Era de muito mau gosto. Ele próprio o reconhecia.
A comida tinha perdido o sabor. O sexo perdera o encanto. A cópula suada. Na verdade, quando se analisava o assunto, era ridículo. As alegrias da paternidade eram-lhe desconhecidas. Que é que restava? Não tinha talento para o divertimento.
Mas agora, subitamente, era-lhe atirada à cara uma decisão de alguma importância. Empt tinha razão: ele podia facilmente fazer um investimento de um quarto de milhão de dólares. Não
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era o dinheiro que o perturbava; era a escolha que lhe pediam para fazer. Agora que se estava a dar tão bem a moldar um mundo sem escolhas e neutro.
Por isso, estava contente por a exposição de Empt ter chegado ao fim. Luther e o Turco Bending também - homens como eles íntimidavam-no. Pareciam tão seguros, tão completamente sem dúvidas. Cambaleavam pela vida, transpirados e rindo. Tinha aprendido há muito tempo que nunca seria assim. Tinha parado de tentar.
Pensou pesadamente que estava bastante bêbado, mas confortou-se com a esperança de que os outros dois estivessem nas mesmas condições. Agora, estavam a contar anedotas polacas, e ele ria-se quando eles riam, sem se dar ao trabalho de escutar.
Foi no meio de uma das anedotas do Turco Bending que, num sonho obscuro, Holloway viu as antenas, a cabeça, e depois o corpo brilhante de um escaravelho das palmeiras aparecer no muro do terraço.
Conteve a respiração, observando-o a mover-se cautelosamente na direcção da luz. Movia-se em saltos curtos, parando, abanando a antena e depois correndo em ângulo.
A cadeira de Luther Empt caiu com um estrondo. O homem grande praguejava histericamente, lutava com a lona, e tentava pôr-se de pé. Ficou a arquejar, de boca aberta, com os olhos esbugalhados.
- vou apanhar aquele filho da puta! - gritou ele. - vou apanhá-lo!
Cambaleou para a porta de vidro, abriu-a com estrondo e entrou rapidamente.
- Oh, oh - disse o Turco Bending, divertido. - A noite está a ficar interessante.
Ele e Holloway observaram os movimentos do escaravelho das palmeiras. Ele mexia-se rapidamente, para trás e para a frente, mas dirigindo-se para a porta de vidro.
- Deixa-o ir-disse Bending, rindo. - Ele entra, e o Luther pega fogo à casa.
- Talvez fosse melhor matá-lo - disse Holloway.
- Não-disse Bending. - Vamos dar esse prazer ao Luther. Ele deve ter ido buscar um martelo.
Não era um martelo. Empt voltou a correr para o terraço. Segurava uma lanterna com uma mão. Na outra, brandia um enorme revólver, pesado, brilhante, malvado.
- Santo Deus! - exclamou Turco Bending. Ele e Holloway levantaram-se das cadeiras.
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- Onde é que ele está? - gritou Luther. - Onde? vou mandar aquele filho da mãe para o inferno! Para onde é que ele foi?
Acendeu a lanterna e varreu o chão com o foco de luz. O escaravelho das palmeiras saiu de debaixo da cadeira caída de Empt, correu agilmente e desapareceu no topo do terraço.
- vou apanhá-lo, vou apanhá-lo! - gritou Empt, e desceu as escadas de acesso à praia.
Os outros dois homens correram atrás dele.
- Afasta-o dele - disse Bending para Bill Holloway. Aquele canhão é uma Magnum três-cinco-sete. Vai dar cabo da perna.
-Afasta-o tu dele - disse Holloway. - O homem está louco!
Quando chegaram à praia, Luther andava a vasculhar a areia e as raízes dos coqueiros perto do muro. Estava inclinado, à caça do escaravelho.
- Anda, seu cabrão! - rugia ele. - Anda, seu pedaço de merda! Mostra a tua cabeça horrorosa!
No foco de luz da lanterna viram o escaravelho correr velozmente do molhe para o mar. Luther Empt apontou e disparou. Pareceu uma bomba.
Um jacto de areia espalhou-se à frente do escaravelho que corria. Este mudou de direcção e começou a ziguezaguear para o molhe.
- Luther - gritou Bending -, estás demasiado bêbado para acertar no oceano. Dá-me a merda da arma.
Mas Empt foi a cambalear atrás do escaravelho. Por fim, o animal parou, com as antenas a mexerem-se desenfreadamente. O caçador aproximou-se cautelosamente, baixou a arma até a boca ficar a alguns centímetros do escaravelho. Puxou o gatilho.
A bomba soou novamente. A areia explodiu. O insecto desapareceu. Havia uma pequena cratera na praia.
- Apanhei-o! - guinchou Luther Empt, triunfalmente. Apanhei-o! Viram aquilo? Dei cabo daquele filho da puta!
- Dá-me isso - disse William Jasper Holloway, torcendo o revólver da mão de Empt. - Dá-me essa arma, Luther.
A arma era inesperadamente sólida, pesada. Holloway exibiu a arma acima da cabeça.
- Hem, hem! - gritou ele. - Olhem para mím! Sou o John Wayne. Acautelem-se, seus vermes barulhentos. vou dar cabo de vocês!
Saltitou pela praia, abanando o revólver por cima da cabeça, rindo e soluçando.
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- Oh, por amor de Deus - resmungou Bending, e correu atrás dele.
Holloway correu cerca de quinze metros, depois parou, respirando com dificuldade. Brandiu a arma. Sentiu-se como uma peça de uma boa máquina, oleada e eficaz. Olhou em volta, à procura de um bom alvo.
A sua cabeça começou a inclinar-se. Viu a lua cor de limão ainda a subir no céu nocturno. Ergueu um braço, acenando e tentou fixar aquela esfera brilhante.
- Adeus, Lua - gritou ele, e puxou o gatilho.
O solavanco percorreu-lhe a mão, o pulso, o braço, o ombro. A arma voou, livre, e depois mergulhou na areia.
- Seu estúpido cretino!-gritou-lhe Turco Bending, aproximando-se e apanhando o revólver. - E uma sorte se não afundaste um barco no Canal. Agora, faz um favor a toda a gente e vai para casa. Eu vou meter o Luther na cama.
Afastou-se, levando a arma. Holloway ficou a baloiçar na escuridão, a olhar para o céu, onde a lua passeava calmamente, intocada.
- Adeus, Lua - repetiu ele, suavemente.
Olhou em volta, reconheceu vagamente o sítio onde estava, e dirigiu-se, a cambalear, para sua casa. Caiu uma vez, ficando de gatas na areia.
- Meu Deus! - disse em voz alta. -Estou bêbado!
Na praia, defronte da sua casa, decidiu entrar no mar. Só molhar-se, não nadar. Só ficar molhado e frio e sóbrio. Tropeçou para a água. Competamente vestido, ainda com as mocassinas calçadas, avançou com alguma dificuldade para o oceano Atlântico. Não estava assim tanto frio, mas foi o suficiente para o despertar. Não tentou nadar, nem sequer boiar. Andou com firmeza, tentando manter-se direito, internando-se na água até esta lhe dar pelo pescoço e as ondas lhe rebentarem no rosto.
Piscou os olhos, e.ngasgou-se, tossiu, cuspiu. Abanou a cabeça. Inexplicavelmente, achou que tinha de se certificar se a carteira continuava no bolso de trás das calças.
Abriu os braços, ergueu-se alguns centímetros do fundo de areia, depois voltou a ir para baixo quando as ondas passaram por debaixo de si. Baloiçou várias vezes, contemplando a suave noite tropical, o mar negro que se estendia até à eternidade.
De repente, pensou que podia caminhar para longe. Para Inglaterra, ou para Portugal, ou para África. Andar até ter sal na boca, no nariz, nos olhos, e o seu cabelo flutuaria, livre. Limitar-se-ia a entrar no mar, até este o apanhar.
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Esteve quase a fazê-lo, quase, mas uma onda maior fê-lo girar, e ele viu as luzes de terra, da sua casa.
Fazendo força, inclinando-se para a frente, caminhou até à margem. O recuo das ondas não era forte, mas era suficiente para ele sentir uns dedos a puxarem-no para
trás. Lutou contra a corrente, levantando mais os joelhos.
Saiu da zona da rebentação a arquejar, cambaleou, caiu, pôs-se de pé, correu para diante como aquele pobre e condenado escaravelho. Depois, chegou à areia seca, a pingar, com o peito a arfar. As luzes de sua casa eram uma mancha vista através de uma película de sal. Do mar e das suas próprias lágrimas.
Tentou soluçar, mas só conseguiu dar uma risadinha.
Teresa Empt, contida e glacial, saiu para o terraço pouco depois da meia-noite. Fechou cuidadosamente a porta de vidro que dava para a sala. Levantou e endireitou a cadeira de lona que o marido tinha derrubado.
Parou junto à balaustrada do terraço - uma balautrada de ferro muito ornamentada, aproveitada da varanda de um bordel de Nova Orleães que fora demolido. Um roupão de noite de nylon branco batia-lhe nas pernas longas. O vento nocturno cheirava muito a sal. "
O céu não tinha nuvens. As estrelas brilhavam. Espuma branca emoldurava o oceano. As copas das palmeiras baloiçavam firmemente, um sussurro sibilante. Parecia-lhe que podia ser a última pessoa no mundo.
Tinha sido aquilo a que ela chamava uma noite desajeitada. Definitivamente, desajeitada. Antes, tinha jogado gamão com a sogra. Gertrude insistia em chamar-lhe "queridinha". Teresa não podia fazer grande coisa em relação a isso, mas Gertrude tinha consolidado o seu carácter ofensivo ganhando três jogos.
Teresa Empt não gostava de perder.
Tinha estado consciente dos três homens a beberem no terraço. A vangloriarem-se dos seus negócios, achava ela, e a contar as suas anedotas ordinárias. Uma vez, Luther tinha entrado na sala de estar para ir buscar mais uísque e mais gelo. Não falara com a mulher nem com a mãe.
Depois, mais tarde, quando Gertrude já tinha ido para a
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cama, Teresa tinha-se enrolado no sofá. Bebericou xerez num copo Baccarat e folheou um número da Vogue.
De repente, ouviu-se um estrondo no terraço. Ergueu os olhos e viu que a porta tinha sido aberta de par em par. O marido entrou a correr, com a fúria estampada no rosto.
- Luther... - começara ela, mas ele não lhe tinha prestado atenção.
Reapareceu alguns momentos depois, trazendo uma lanterna e uma arma. Ela sabia que o revólver era guardado na escrivaninha do escritório do rés-do-chão.
- Luther... - disse ela de novo, e de novo ele não lhe prestou atenção.
Ela achou que ele estava com ar de assassino. Ergueu-se elegantemente. Ficou parada, com uma mão pousada sobre o coração. Ouviu gritos e, alguns minutos depois, o ruído de dois tiros. Alguns minutos depois disso, ouviu-se uma terceira explosão, esta mais fraca.
"Está morto!" Foi essa a sua primeira reacção: Luther tinha levado um tiro e estava morto. Pensou imediatamente que teria de comprar roupas pretas. Não tinha vestidos pretos de jeito no guarda-roupa, e sabia que, para comprar alguma coisa elegante, teria de ir fazer compras na Avenida Worth.
Mas, depois, Luther e o Turco Bending apareceram a cambalear, vindos do terraço. Bending trazia a arma e tinha um braço em volta da cintura do marido dela, semiapoiando-o e arrastando-o para a frente. Bending estava a sorrir.
Disse-lhe que estava tudo bem, que ninguém tinha ficado ferido. Luther só tinha estado a caçar um escaravelho das palmeiras. Bending disse que ia pôr o marido dela na cama. Ela ficou a ver os dois bêbados subirem as escadas aos tropeções. Depois, dirigiu-se ao aparador com tampo de mármore e serviu-se de outro xerez.
Quando Bending veio para baixo, disse que tinha despejado Luther na cama, que lhe tinha tirado os sapatos, mas que não o tinha despido. Ela agradeceu-lhe, mas não lhe ofereceu uma bebida. Depois de ele ter saído, tinha apagado as luzes e saíra para o terraço.
Não era a primeira vez que o marido se comportava de uma forma tão bruta. Ela sabia por que é que aturava tudo aquilo. A resposta era simples: aquele sítio era o paraíso. Paraíso.
Ela era de Iron Mountais, no Michigão. Era um lugar horrível e brutalmente árido onde todas as mulheres liam revistas de mexericos, viam o Phil Donahue na televisão e trocavam receitas para o concurso de doces.
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O seu primeiro marido era um homem doce e amoroso, e um amante totalmente imprestável. Quando morreu inesperadamente de ataque cardíaco, aos trinta e oito anos, tinha ficado agradavelmente surpreendida ao saber que era herdeira de quase meio milhão de dólares em obrigações comerciais e em obrigações municipais isentas de impostos.
O seu marido não tinha acumulado aquela fortuna; tinha sido filho único e herdara, e agora era tudo dela. Mudou-se imediatamente para a Florida.
Soube imediatamente que estava no paraíso, no lugar onde queria passar o resto da vida. O único problema era o estatuto dúbio que as mulheres da sua idade sem ligações tinham no sul da Florida; havia tantas viúvas e divorciadas. Ela não tinha o respeito e a admiração a que sentia ter direito por causa da sua beleza e da sua riqueza.
Conhecera Luther Empt num cocktail, depois de um jogo de pólo em Palm Beach. Ele convidara-a várias vezes para jantar e para festas na praia. Ela não o achava fisicamente repulsivo, mas ele não era o seu tipo de homem. Aceitava os convites dele porque estava a gostar da experiência quase esquecida de ser escoltada.
Nunca admitiria para si própria que se sentia sozinha.
Quando se tornou evidente que as atenções dele eram mais do que causais, sensatamente, ela contratara uma agência de detectives particulares especializada em investigações discretas daquela natureza, e ele tinha sido investigado.
Tudo o que ele lhe"tinha dito era verdade: estava a divorciar-se pela segunda vez. Tinha um total de cinco filhos das duas mulheres, e todas as crianças tinham ficado com as mães.
O seu valor líquido era de menos de trezentos mil dólares, mas era dono do seu negócio bem sucedido, que produzia e processava filmes de formação e educativos. Tinha a reputação de ser um homem de negócios duro e esperto, que estava disposto a apostar nos seus palpites.
Falava-se, disse o detective, que Luther Empt esperava expandir o negócio para a produção e o processamento de cassetes e discos. Mas o seu plano requeria mais capital do que os bancos locais estavam dispostos a emprestar-lhe, tendo em conta os seus bens.
No fim, não foi a energia dele, a sua riqueza ou o jeito para os negócios que a persuadiram a aceitar a proposta dele; foi o frondoso acre de propriedade à beira-mar e a casa, quase em ruínas, que ele tinha em Boca Raton.
Ela viu imediatamente o que podia fazer com ela. Podia criar
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uma obra de arte. Aquela casa podia tornar-se uma das glórias da Costa de Ouro da Florida, um palácio onde até os cinzeiros reflectiriam o seu gosto impecável.
Quando ele fez a proposta, ela estava preparada com uma lista de exigências. Foi mais um encontro de
advogados do que de amantes. As condições dela:
Seria um casamento sem sexo; teriam quartos separados. Ele teria liberdade absoluta, com a condição de o seus casos extramatrimoniais serem discretos e não resultarem
em escândalo público.
A reconstrução da casa e dos jardins seriam inteiramente da responsabilidade dela, sem qualquer interferência da parte dele. As despesas de renovação seriam divididas equitativamente entre os dois. Dirigir o governo da casa bem como os empregados seria também tarefa dela.
Em troca, ela concordou em co-assinar as letras dele, dando as suas obrigações como garantia. No entanto, essas obrigações continuariam em seu nome, e o seu rendimento no futuro, aproximadamente cinquenta mil dólares, seria apenas dela. Para além disso, ele daria vinte e cinco mil dólares por ano para as despesas da casa.
Ele aceitou estas condições duras com espantosa boa vontade. Só fez uma exigência: que a mãe, viúva, fosse autorizada a continuar a viver na casa à beira-mar. Depois de vários momentos de reflexão, Teresa concordara.
Globalmente, o contrato de casamento funcionou muito bem. O negócio de Luther expandiu-se e floresceu. A casa foi remodelada com um novo telhado de telhas vermelhas. Foi construída uma piscina olímpica. Lentamente, ao longo de um período de vários anos, a obra de arte foi criada. Teresa estava satisfeita com o resultado do seu trabalho.
A presença da mãe de Luther, embora frequentemente aborrecida, tinha acabado por ser um fardo menos pesado do que ela tinha pensado. Gertrude, uma mulher baixa, gorducha e maliciosa, raramente interferia na redecoração ou na rotina doméstica da casa do filho. Teresa era a senhora incontestada da villa Empt, a não ser na cama.
Nessa área, Luther tinha mantido a sua palavra. Nunca se tinha imposto fisicamente a ela. Em público, o seu comportamento em relação a ela era tão carinhoso e galante quanto a sua natureza bruta permitia.
Pouco depois do casamento, Teresa tinha sabido através de amigos compadecidos que Luther tinha sido visto aqui e ali, sempre com imensas mulheres conhecidas na Califórnia como
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"boazonas": jovens, casadoiras, bronzeadas, viciadas nos reduzidos biquinis fio-dental e em T-shirts obscenas.
Nenhuma dessas ligações parecia durar muito tempo, e à medida que Teresa acumulava o testemunho de quem o via começava a perceber o que Luther estava a fazer: estava a contratar uma sucessão de corpos profissionais e semiprofissionais, pagando pelo seu prazer mas sem criar um relacionamento duradouro.
Teresa aprovou.
A sua vida sexual era um pouco mais complexa. Tinha reconhecido desde a juventude que não era tão intensamente sexual como as outras raparigas da sua idade.
Mas não era completamente desprovida de paixão física. Desde que se tinha mudado para a Florida estava consciente de um degelo crescente. Uma barreira de gelo estava a derreter-se. O sol ardente, o mar cor de safira, a brisa acariciadora, a praia luzente - tudo funcionava subtilmente para libertar o seu apetite reprimido.
Agora, masturbava-se vivamente todas as terças-feiras à tarde depois da visita semanal ao salão de beleza, onde lavava e penteava os longos cabelos loiros. E arranjava as unhas das mãos e dos pés e fazia depilação com cera.
Mais do que isso, sentia-se estranha e fortemente atraída para Edward Holloway, o filho de dezasseis anos de Jane e Bill. Era suficientemente perspicaz para perceber que, na idade dele, ele era provavelmente tão pouco sofisticado sexualmente como ela. E isso era parte do seu fascínio.
Mas o que a atraía rifais era a beleza física dele. Alto e musculado, mas magro, usava os cabelos loiros e queimados pelo sol quase pelos ombros. Movia-se com uma elegância descuidada. A sua pele bronzeada tinha o aspecto de cetim: macia, brilhante. Seria uma delícia senti-la. Prová-la?
Ela tinha-o observado daquele mesmo terraço enquanto ele andava na prancha de surf. O corpo ágil curvado, os cabelos compridos a esvoaçar ao vento, o corpo a brilhar com spray. Pensava que ele devia cheirar a frescura e a juventude, a incorruptibilidade. As fantasias multiplicaram-se.
Por isso, Teresa Empt, de pé no terraço do seu palácio, sozinha na escuridão, sonhava os seus sonhos febris. E à sua volta a terra fértil parecia sufocada com o cheiro de coisas a crescer. O oceano estimulante estava ali, o vento doce, o céu sem fim.
Deixou relutantemente o paraíso para ir para a sua cama vazia. Mas a visão foi com ela. De beleza, juventude e esperança. Nua, no quarto trancado, sentiu os seios firmes e as coxas duras.
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Pensou que poderia estar a florir como uma planta tropical: brilhantemente colorida, perfumada, virando-se para a luz estimulante.
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O Dr. Theodore Levin levantou-se quando Lucy Bending entrou no seu consultório - que era mais do que tinha feito pelos pais dela. Achou que ela era a rapariguinha mais bonita que alguma vez tinha visto. Não, não uma rapariguinha. Uma mulher em miniatura.
Elegante. Alta para a sua idade. Aparentemente, sem gorduras de bebé. Feições límpidas, quase luminosas, com um encantador sorriso inocente. Cabelos compridos e louros sem caracóis ou ondas. A pele era particularmente brilhante.
Tinha um ar tranquilo, mas com um olhar de atenção alerta. Olhos cinzento-azulados. Lábios carnudos e artisticamente curvados: vermelho-fogo. Os seus movimentos eram bem coordenados, quase precisos. Não mostrava quaisquer sinais de perigo, ressentimento ou petulância.
O Dr. Levin deu por si a sorrir abertamente.
- Por favor, senta-te aqui, Lucy - disse, precipitadamente, apontando para a cadeira que estava ao lado da sua secretária.
- Obrigada - disse ela. A voz era clara, baixa, sem hesitações.
- Confortável? - perguntou ele.
- Oh, sim.
Ele inclinou-se para a frente para a observar. Ela usava um vestido de festa de algodão azul com ilhós. Uma faixa azul mais escura rodeava-lhe a cintura. Pulseira de pequenas conchas. Sandálias de tiras de couro branco presas nos tornozelos. Trazia uma pequena bolsa de plástico com uma corrente de metal.
- Gosto do teu vestido, Lucy - disse ele.
Ela olhou para baixo, como se estivesse surpreendida, e tocou na faixa.
- Oh, este trapo velho...
Ele suspirou e recostou-se na cadeira giratória. Estendeu a mão para a gaveta da secretária, que estava aberta, e ligou o gravador.
- Lucy - disse ele -, eu sei que já foste várias vezes a um
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médico. De facto, foi o Dr. Raskob que sugeriu que eu te visse. Gostas do Dr. Raskob? Ela sorriu docemente.
- Ele é tão engraçado. Dá-me um chupa-chupa sempre que vou lá.
- A sério?
- Eu nunca lhe disse, mas detesto chupa-chupas. Fazem os dentes apodrecer. Por isso, quando o Dr. David me dá um chupa-chupa, eu levo-o para casa e dou-o a Harry. O meu irmão mais novo. Ele adora chupa-chupas. Ele é tão gordo!
O Dr. Levin endireitou-se na cadeira.
- Bem, fazes-me sentir-me um pouco melhor porque não tenho chupa-chupas para te da .
- Está bem. Eu sou crescida de mais para chupa-chupas.
- Mas eu sou um médico, um médico especial.
- Eu sei disso. O senhor é um médico da cabeça.
- Onde é que aprendeste isso?
Ela olhou em volta do consultório com curiosidade.
- Oh, não sei... Todos os miúdos dizem isso. Como um médico-bruxo, sabe, que vasculha a cabeça das pessoas. Por isso, é que vos chamam médicos da cabeça.
- Espero que não penses que sou um médico da cabeça e que vasculho a cabeça das pessoas.
- Oh, não. Isso é uma parvoíce. Por amor de Deus, não se pode vasculhar as cabeças das pessoas.
- Claro que não. O quê eu faço, Lucy, é falar com as crianças, só falar, e se elas tiverem alguns problemas, então, às vezes, a conversar podemos resolvê-los.
- Eu não tenho problemas nenhuns.
- Bem, então é um problema que eu tenho, e espero que possas ajudar-me a resolvê-lo. Sabes, os teus pais pensam que há algo que te perturba, e pediram-me que falasse contigo sobre isso.
Ela olhou frontalmente para ele.
- Não há nada a perturbar-me.
- Amas a tua mãe e o teu pai, não é verdade, Lucy?
- Claro que sim.
- E sabes que eles te amam?
- Claro.
- E, como te amam, querem que sejas feliz e que cresças para ser uma mulher bonita, saudável e equilibrada. Sabes o que quer dizer equilibrada, não sabes?
- Quer dizer que não se tem problemas nenhuns.
- Bem... não exactamente. Toda a gente tem problemas. Mas
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ser equilibrada significa que és capaz de encarar os teus problemas, de os resolver sozinha. Mas os teus pais acham que tu tens um problema. Adivinhas qual poderá ser?
Ela franziu o sobrolho, piscou os olhos e mordeu o lábio inferior. Baixou a cabeça e olhou intensamente para os pés. Depois ergueu os olhos e o rosto desanuviou-se. Sorriu radiosamente para ele. Ele pensou que ela podia ser uma actriz consumada, mas não tinha a certeza.
- Oh, eu sei o que é - disse ela. -Aposto que sei. Eles andam sempre a chatear-me por causa disso. Acham que eu amo de mais. Não é uma parvoíce?
- Que queres dizer com amar de mais?
Ela não respondeu. Os seus olhos vaguearam pela parede pintada, pela estante com brinquedos e jogos e pelas estrelas de papel coladas no tecto. O Dr. Levin esperou pacientemente durante um minuto e depois tentou de novo...
- Então, Lucy? Não respondeste à minha pergunta. Os olhos dela voltaram a fixar-se nele. Baixou a cabeça.
- O seu nome é Theodore, não é?
- Sim. O meu primeiro nome.
- Theodore - disse ela, rindo. - É um nome engraçado.
- Concordo! Mas a maior parte dos meus amigos chamam-me Ted.
- Posso chamar-lhe Dr. Ted?
- Claro que sim. Gostaria muito.
- Se os seus amigos lhe chamam Ted, e eu lhe chamo Dr. Ted, isso faz de nós amigos, não é?
- Gostaria muito de ser teu amigo.
- Eu também.
De novo silêncio. Ela ergueu ambas as mãos e alisou os compridos, macios e brilhantes cabelos desde as têmporas. Depois, abanou a cabeça para deixar as tranças cair livremente pelas costas. Os movimentos eram graciosos, encantadores, tão puros que era difícil pensar neles como sedutores ou provocadores.
- Não respondeste à minha pergunta, Lucy - disse ele, suavemente. - Em que é que estavas a pensar quando disseste que os teus pais acham que amas de mais?
- Oh... o senhor sabe - disse ela, vagamente. - Só ser simpática.
- És simpática para toda a gente?
- Oh, não. Não para toda a gente. Algumas pessoas são mesquinhas e malvadas.
- Podes dar-me alguns exemplos... de pessoas que são mesquinhas e malvadas?
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- A Sra. Glower, da catequese... está sempre a gritar connosco e nunca sorri.
- Mais alguém?
-A menina Mackinroydt, da biblioteca. Fica zangada quando nós... sabe, quando sussurramos.
- Conheces algum homem que seja mesquinho e malvado? Ele considerou o assunto.
- Não - disse pensativamente -, nem por isso. Não me lembro de homem nenhum que seja mesquinho e malvado. Só mulheres.
- Então, podes ser simpática para os homens?
- Oh, claro. Gosto mais de uns do que de outros, mas, bem, o senhor sabe...
- Beijas os homens de quem gostas?
- Bem... - disse ela, baixando os olhos e sorrindo secretamente -, alguns são táo engraçados e meigos que não me importaria de os beijar.
- Lucy, ficas embaraçada quando te faço perguntas como esta... sobre beijar?
Ela ficou espantada.
- Claro que não. Por que é que ficaria?
- Por nada. Ainda bem que não ficas. Mas a tua mãe não te falou sobre beijares rapazes?
- Eu não beijo rapazes - disse ela. - A não ser os meus irmãos, claro. Mas esses não contam. Esses são apenas beijos familiares.
- Mas beijas homens?
- Às vezes.
- Os teus pais disseram-te que poderias estar a aborrecer os homens que beijas?
- Disseram, mas não vejo como.
- Tocas nos homens, Lucy? Acaricia-los?
- Quer dizer, fazer-lhes festas? Sim, é tão engraçado; eles ficam muito vermelhos e sorridentes. É como se lhes fizesse cócegas... sabe?
- Achas que os homens gostam.de... cócegas?
- Oh, sim.
- Tu gostas? De fazer cócegas? .
- Eu gosto de amar as pessoas.
- Os homens, Lucy. Principalmente, gostas de amar os homens.
- Sim, Dr. Ted - disse ela, muito séria -, é verdade.
Ele esforçou-se para que o seu rosto parecesse imperturbável, mas não foi muito bem sucedido. A franqueza inocente dela
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tinha um perfume, um cheiro de juventude doce, de flores, e de um mundo intocado. Pela primeira vez, perguntou a si mesmo se a corrupção faria parte do seu trabalho.
- Sabes, Lucy - disse ele -, algumas pessoas... alguns homens não gostam de ser tocados.
- Não vejo por que não.
- Bem, alguns homens são assim; não querem ser tocados. Tens um quarto só para ti, Lucy?
- Claro.
- Que é que achavas se alguém, digamos o teu irmão, entrasse no teu quarto e mexesse em todas as coisas que são só tuas? Não ias gostar, pois não?
- Não me importava.
- A maior parte das pessoas importar-se-ia. Queremos que uma certa parte das nossas vidas seja privada. Queremos guardar um pouco de nós próprios para nós próprios. Nunca queres estar sozinha?
- Sozinha? Sem mais ninguém?
- Sim.
- Não, Dr. Ted, acho que não. Não gosto de estar sozinha.
- Isso assusta-te?
- Só não gosto.
- Ficas assustada quando dormes sozinha?
- Bem, por amor de Deus, isso é dormir. Como é que uma pessoa se pode assustar com isso?
Ele invejou-a. O seu próprio sono era uma luta com o terror. Al Wollman, o seu analista ocasional, tinha sugerido que o seu pavor de dormir era um receio de perder o controlo sobre a sua vida racional e estruturada. Levin pensou que era uma explicação simplista.
Uma das suas preocupações devia-se à alta taxa de suicídio dos psiquiatras. A maior parte dos leigos, supunha ele, acreditavam que os psiquiatras se iam abaixo com o peso dos problemas das outras pessoas.
O Dr. Theodore Levin tinha outra teoria.
Pensava que a força de vida de um psiquiatra se esgotava. Era gasta em compaixão, compreensão, na necessidade obsessiva de curar e ajudar e criar vidas inteiras. As vidas de outras pessoas. Mas sempre do exterior. Sendo sempre o observador. Depois, um dia acordaria e descobriria que ele próprio estava vazio, seco.
Essa era uma das razões por que Levin não gostava de dormir. Persistia o horror de poder acordar e descobrir que era um homem vazio.
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- Alguma vez tens pesadelos, Lucy? - perguntou ele.
- Costumava ter, quando era pequenina, mas já não tenho.
- Estás a ficar cansada disto? Estamos a falar de mais?
- Oh, não. Gosto disto. Gosto do senhor.
- Obrigado. Eu também gosto de ti. Quero realmente ajudar-te, Lucy.
- Tenho a certeza de que quer, mas não sei como. Quero dizer, na verdade eu não preciso de ajuda nenhuma. Ou preciso?
- Vamos voltar àquilo de que estávamos a falar antes... Supõe que um homem vem fazer uma visita a tua casa. Um amigo dos teus pais. Serias simpática para ele?
- Se ele não fosse mesquinho e malvado, sim.
- Far-lhe-ias festas? Beijá-lo-ias?
- Sim... e amá-lo-ia.
- Sentar-te-ias no colo dele?
- Talvez.
- Por que é que farias isso?
- Porque é bom e aconchegante. Eu gosto.
- Tocá-lo-ias entre as pernas?
- Talvez.
- Por que é que farias isso?
- É quando os homens ficam vermelhos e às risadinhas, como eu disse. Eles gostam.
- Como é que sabes?
- Sei.
Ele olhou para ela. Ela tinha uma segurança que o assustava. Nunca antes tinha visto tanta segurança numa pessoa tão jovem. A mãe dissera que ela era "adulta".
Mas ela era mais do que isso; era astuta e segura.
Para além do carácter sedutor, achou que detectava nela uma terrível astúcia. Não era nada tão deliberado como a falsidade, mas vislumbrava-se manha. Nem queria imaginar como a idade e a experiência aumentariam e consolidariam aquele dom de astúcia.
Perguntou:
- Sabes o que os homens têm entre as pernas, Lucy?
- Claro que sim, seu tonto.
- Que é que têm?
- Um pirilau e bolinhas.
- Como é que sabes isso?
- Toda a gente sabe isso. Meu Deus, Dr. Ted, eu não sou uma criança.
- A tua mãe contou-te como nascem os bebés, Lucy?
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-Mais ou menos. E outras coisas aprendi na escola. E alguns dos outros miúdos falaram sobre o assunto.
- E se me contasses, Lucy?... Como é que nasce um bebé?
- Não sabe?
- Gostava que me dissesses.
- Bem, um homem tem o pirilau entre as pernas e põe-no no buraco que a mulher dele tem entre as pernas, e depois sai um bebé.
- Alguma vez um homem tentou meter o seu pirilau no teu buraco, Lucy?
- Que parvoíce! Por amor de Deus, eu não tenho idade para ser uma esposa.
Não conseguia decidir se aquela era a resposta ingénua de uma rapariguinha de oito anos, ou a resposta irónica de uma mulher madura. Não havia nada nos seus olhos azuis muito abertos que sugerisse que ela poderia estar a troçar dele. No entanto...
- Mas gostas de tocar no pirilau de um homem?
- As vezes. Se ele for simpático. Não vejo que mal é que isso tem.
- Eu disse que isso era errado, Lucy?
- Bem... a minha mãe está sempre a dizer que é errado.
- E o teu pai?
- As vezes. Mas principalmente a minha mãe.
- Confias em mim, Lucy?
- Se confio no senhor?
- Achas que eu te mentiria?
- Não...
- Se eu te dissesse que beijar os homens e tocá-los da forma como tu fazes é errado, acreditavas em mim?
- Bem... teria de o provar.
- Compreendo. Acho que vamos terminar agora, Lucy. Quero dizer-te que gostei de te conhecer, e agradeço-te por teres respondido a todas as minhas perguntas com tanta sinceridade.
- vou voltar a vê-lo, Dr. Ted?
- Eu digo à tua mãe. Depois ela diz te.
- Espero voltar a vê-lo. O senhor é muito simpático. A sua barba é tão engraçada!
- Por que é que é engraçada?
- É muito despenteada. Não está zangado comigo, pois não? Porque eu disse que a sua barba era engraçada e despenteada?
- Claro que não estou zangado contigo. Ela é engraçada e despenteada.
- Amo-o, Dr. Ted.
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As suas idades juntas davam mais de um século e meio-mas eram mordazes. Eram ambos uns tratantes.
- bom dia, Gertrude - disse o professor Lloyd Craner, tocando no seu boné branco e de pala grande.
Ela olhou para ele e resmungou.
Ele apoiou-se elegantemente na bengala e enterrou-a na areia seca. Ela andava a revolver a areia junto à água com uma rede de cabo comprido. Tinha as pernas e os pés descalços. A bainha da saia estava molhada, mas ela não se importava.
- Outra vez à procura de conchas? - observou ele.
- Não-disse ela -, deixei cair uma moeda e ando à procura dela. Quer ajudar?
Ele sorriu alegremente e olhou para o mar. Uma manhã deslumbrante. Mas um grande grupo de nuvens de chuva, a cerca de duas milhas de terra, dirigia-se lentamente para sul.
- Temporal ali ao fundo - disse ele.
Gertrude Empt olhou para o céu, protegeu os olhos e observou.
- Não nos vai atingir, professor. Provavelmente, vai atingir Lightouse Point ou Pompano Beach.
Ela saiu pesadamente de dentro de água, transportando a rede e um saco de plástico.
- Alguma sorte? - perguntou ele.
- Meia dúzia de búzios. Quatro azeitonas. Um par de penas. Quando ela se aproximou, ele pegou nos seus sacos de tesouros, espreitando para as conchas molhadas.
- Eu fico com a azeitona castanha - disse ele.
- Nem pense - disse ela, e ele riu-se.
Caminharam ao lado um do outro. Sem sapatos, ela mal lhe chegava ao ombro. Por debaixo do largo vestido às flores, o seu corpo era sólido, bronzeado e firme. Eleja a tinha visto em fato de banho. E tinha reparado.
A pele dela tinha a pureza translúcida que algumas mulheres mais velhas com sorte conseguem: um suave brilho de porcelana. Os seus olhos castanho-escuros eram mordazes.
Cabelos grisalhos, encaracolados, apanhados com uma fita. Os dentes eram todos naturais, e ela mostrava-os frequentemente num sorriso pretensioso.
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- Linda manhã - disse ele.
- São todas bonitas - retorquiu ela.
Pararam para observar dois madrugadores que passaram por eles a correr. A mulher tinha vinte e muitos anos, era alta, direita, flexível e musculada. O companheiro era um homem mais velho com barriga saliente e com pernas tortas. O rosto dele estava vermelho do esforço e o seu peito inchava e sumia quando ele corria.
- Está prestes a ter uma paragem cardíaca - comentou o professor Craner.
- Há imensos estúpidos na Florida - disse Gertrude Empt.
- Tem razão - concordou ele. - Mas há muitos estúpidos em todo o lado. Temos de procurar e escolher as pessoas com quem nos relacionamos.
Ela olhou para ele durante alguns instantes.
- Se o senhor o diz, professor.
Continuaram a passear, detendo-se para observar um peixe morto que tinha sido mordido por barracudas. Havia um pedaço de madeira coberto de lapas; uma bóia de cortiça que em tempos tinha sido pintada de vermelho; um molho de conchas esbranquiçadas que não valia a pena apanhar.
- Parece que no próximo Verão vamos receber um aumento da Segurança Social - disse ele.
- Parece que sim - disse ela. - Quanto mais, melhor.
- Como é que está a sua saúde?
Ela parou, por isso ele parou também. Ela voltou-se para olhar para ele, com um ar de troça.
- Eu conheço-vos bem, seus velhos esquisitos da Florida disse ela. - A seguir vai falar-me sobre o seu BM.
- Eu nunca falaria nisso - assegurou-lhe ele. - Estava apenas a perguntar-lhe delicadamente como se sente.
- Ah! - disse ela. Continuaram a passear.
- Sinto-me bem - disse ela por fim. - Obrigada. E você?
- Óptimo - disse ele. - Sente-se feliz a viver na casa do seu filho?
- Que é isto? - perguntou ela. - O jogo "Vinte Perguntas?"
- Só estou a tentar manter a conversa - disse ele, suavemente.
- Se sou feliz na casa do meu filho? - repetiu ela. Abanou a mão. - Assim-assim. Você sente-se feliz a viver na casa da sua filha?
-Assim-assim - disse ele. - Gosto do Bill. No entanto, não é como ter a minha casa.
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- Eu sei o que quer dizer, professor. - disse ela. - Ena, pá, se sei.
- Eu recebo uma pensão - disse ele, olhando em frente. Quase quatrocentos por mês. Para além da Segurança Social.
- Eu também recebo uma boa quantia - disse ela. - Não muito, mas o suficiente para me fazer sentir independente.
- É como eu gostava ser - disse ele. - Independente. Ela ergueu os olhos para o céu translúcido.
- Por estes lados não há propriedades baratas para alugar
- disse ela, pensativamente.
- Não muitas - disse ele. - Mas se sair da praia, do outro lado do canal, há sítios razoáveis. Alguns não são assim tão maus. E, por vezes, é possível chegar a acordo com um motel e fazer um aluguer anual. Eu tenho andado a investigar.
Ela parou novamente e ele voltou a parar. Olharam um para o outro, desafiadores.
- Onde é que quer chegar? - perguntou ela.
- A si - disse ele. Ela olhou para ele.
- Que é que eu faria com um trapo velho como você?
- Não faço a mínima ideia - disse ele. Ela riu-se e beliscou-lhe levemente o braço.
- Você é fixe, professor. vou pensar no assunto.
- Faça isso.
Antes de se separarem, ela deu-lhe a azeitona castanha.
O dia de sábado amanheceu embotado, o céu nublado, com vento variável a quinze nós. O mar estava encrespado. Nuvens de chuva moviam-se rapidamente no horizonte, e foi noticiada uma tromba de água em Delrey Beach. Houve rumores de que o churrasco dos Holloway seria cancelado.
Mas depois, cerca das dez da manhã, apareceram pedaços de azul e o sol começou a aquecer. A temperatura subiu para os
38º C, e apareceram os pelicanos. O vento continuava a soprar, mas agora era bem-vindo. Alguém disse que tinha sido avistado um tubarão ao largo de Boynton Beach,
mas ninguém saiu de dentro de água.
Os festejos começaram na praia pouco antes do meio-dia, principalmente para as crianças, com cachorros-quentes, coca-
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-colas, e outras coisas pouco saudáveis no terraço dos Holloway. As crianças Holloway e Bending estavam lá, claro, e aproximadamente mais vinte crianças das redondezas. Muitos tinham idades compreendidas entre os oito e os quinze anos. Alguns eram mais novos, outros mais velhos.
Wayne Bending, de 12 anos, foi o primeiro a sair, levando a sua pequena prancha de surf com uma tira de nylon para ser amarrada ao tornozelo. Usava calções de ganga, queimados pelo sol e aclarados pelo mar. Encostou a prancha a uma palmeira e acocorou-se na areia, à espera.
Viu o irmão e a irmã a passearem ali perto. Harold, de 5 anos, trazia o seu mais recente jogo electrónico na mão. Estava programado com melodias de canções, e o
maluco do miúdo estava no meio da praia a carregar desenfreadamente nos botões.
Lucy aproximou-se delicadamente da água e esticou um dedo do pé para verificar a sua temperatura. Virou-se na direcção de Wayne e estremeceu burlescamente. Wayne sabia que não passava de fita; a água ainda conservava a sua temperatura de Verão.
Wayne Bending estava consciente da beleza física da irmã. Também sabia que ela era completamente tarada. E o irmão mais novo, Harry, não lhe ficava atrás. E a mãe e o pai também não. Toda a família Bending, pensou Wayne tristemente, era maluca - e provavelmente ele estava incluído.
Olhou para a parte de cima da praia e viu a Sra. Empt aparecer no terraço. Usava um fato de banho branco de duas peças. Não um biquini, mas via-se o umbigo.
Quando olhou para o outro lado, viu que Eddie Holloway se aproximava dele, seguido pela irmã mais nova, Gloria. Ela era apenas um ano mais velha do que Lucy, mas usava o biquini mais reduzido que se podia imaginar; a parte de baixo era ínfima.
Gloria entrou na água para ir ter com Lucy que, por insistência da mãe, usava um discreto fato de banho verde-claro. As duas rapariguinhas começaram imediatamente a cochichar e a rir. Wayne afastou o olhar, enfastiado.
Edward Holloway chegou junto de Wayne e encostou a prancha de surf ao lado da dele.
- Não parece grande coisa - disse ele, esticando o queixo na direcção do aceano.
- Eu não diria que está incrível - concordou Wayne. Eddie sentou-se ao lado dele e tirou um maço de cigarros do
bolso dos calções de surf. Acenderam cigarros e fumaram com ar
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importante. Wayne virou-se para espreitar para o terraço dos Empt.
- Ela está lá outra vez - informou ele. - A Sra. Empt. A olhar para ti com binóculos.
- Puta estúpida! - disse Eddie Holloway, penteando os compridos cabelos loiros com os dedos.
- Ela é boa como o milho! - assegurou-lhe Wayne.
- Se tivesse o cérebro tão grande como as mamas - disse Eddie -, seria um génio.
Os dois rapazes riram-se e empurraram-se um ao outro. Acabaram os cigarros, observando os outros miúdos que saíam das suas casas ao longo da praia. Inspeccionaram friamente as raparigas.
- De quem é que gostas, Eddie? - perguntou Wayne.
- Barbara Fleming. Aquela saída de praia excita-me. Está a amadurecer muito bem. Dá-lhe mais um ano...
- E a Sue Ann?
- Só cu, nada de mamas. Jesus, vai ser um dia chato com todos estes miúdos por aí.
- Completamente insuportável! - disse Wayne, assentindo.
- Vamos experimentar a bebida - disse Eddie, atirando a beata do cigarro para longe. - Parece estar uma merda, mas nunca se sabe.
Levaram as pranchas para o oceano e afastaram-se. Mas as ondas eram demasiado curtas e revoltas para uma cavalgada decente. Por isso, voltaram para a sua palmeira. Roubaram um disco a alguns dos miúdos mais novos, atiraram-no de um lado para o outro durante algum tempo e depois desistiram.
- Espera aqui - disse Eddie Holloway. - Volto já.
Dirigiu-se para as traseiras da sua casa e voltou alguns minutos depois com quatro latas de cerveja geladas embrulhadas numa toalha.
- Velho amigo-disse Wayne Bending-, foi um bom espectáculo.
- Qualquer ladrãozeco profissional podia ter feito o mesmo
- disse Eddie, encolhendo os ombros. - Os bêbados estão a começar a juntar-se lá atrás.
Abriram as latas e depois bebericaram solenemente as cervejas, arrotando de vez em quando. A maior parte dos miúdos tinham-se juntado no terraço dos Holloway e estavam a devorar cachorros quentes e a encher as bocas com batatas fritas, aperitivos de queijo e bolos com creme.
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- Queres um cachorro? - perguntou Eddie. - Há imensos. Compickles, cebolas, picantes, cheios de tralha.
- Que é que vai haver à noite? - perguntou Wayne.
- Bifes.
- Espero por isso. Agora não tenho fome. A cerveja e isso tudo...
- Pois - concordou Eddie. - A cerveja enche. Normalmente, prefiro um bom uísque comPepsi, mas tenho de o roubar. Escuta, miúdo, este dia vai ser um desastre, sinto-o. Depois do jantar, que tal se eu fanasse alguns charros e ficássemos altos?
- Acho óptimo. Consegues arranjá-los?
- Claro. Quando a minha mãe estiver ocupada com a festa. Ela guarda cerca de uma dúzia no estojo do diafragma. Nunca vai dar por falta de dois. É erva da melhor qualidade, verdadeira. Vamos voar.
- Parece bom - disse Wayne Bending. - Quando?
- Faço-te um sinal e depois piramo-nos.
- Como quiseres, Eddie.
Abriram as segundas cervejas. Observaram Teresa Empt a passear preguiçosamente pela praia com o seu fato de banho de duas peças. Os seus cabelos compridos caíam, soltos, pelas costas. Ela não virou a cabeça para olhar para eles.
- Tens de admitir, Eddie - disse Wayne -, ela não é nada má.
- Boas mamas - admitiu Eddie -, mas quem precisa disso? Será que faz broches?
- Gostavas?.
- Depende - disse Edward Holloway, judiciosamente. Talvez uma vez. Para me divertir.
- Tenho de ir mijar - disse Wayne.
- Vamos nadar um bocado e podes mijar no oceano. Os peixes não se vão importar. Depois vamos até à piscina para ver o que os velhos estão a fazer.
Os adultos começaram ajuntar-se, por volta das três da tarde, na piscina e no jardim que ficava entre a casa dos Holloway e a estrada AIA. Uma sebe de plantas tropicais escondia a festa da estrada. Às quatro da tarde, havia oito carros estacionados na entrada e estavam doze pessoas na piscina.
Maria, que não tinha sido despedida, estava a servir, juntamente com John Stewart Wellington, o mordomo negro dos Empt que tinha sido emprestado para a ocasião e que insistia em ser chamado pelo nome completo.
Cerca das cinco horas, a maior parte dos miúdos tinha saído da praia e vindo para a piscina. Jane Holloway tinha convidado
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vinte adultos e tinha encomendado comida suficiente para trinta, sabendo como os amigos gostavam de trazer amigos. Alguns dos convidados também trouxeram garrafas e alguns trouxeram mangas geladas, melões ou bolos.
O bar, montado no pátio, à sombra de um grande guarda-sol, tinha a selecção habitual de uísques, cocktails e bebidas sem álcool. Também havia cerveja e vinho, e havia um grande recipiente com Pina Colada de morango e um com Daiquiri de banana. Bill Holloway estava a servir as bebidas, e era o seu melhor cliente.
Alguns dos adultos que tinham estado na piscina entraram em casa para vestir calças ou calções e camisas, mas muitos homens e mulheres continuaram em fato de banho. O bar começou a ficar concorrido. Alguns homens colaram-se a um televisor portátil para ver a última parte do jogo dos Hurricane.
Havia tigelas de batatas fritas, de amendoins salgados, de pedaços de queijo cheddar, e um frasco de azeitonas geladas, rabanetes, tiras de cenouras, tomates pequeninos, tiras de pepino, pimentos e talos de aipo. Às seis horas, John Stewart Wellington trouxe uma enorme travessa com três quilos de camarão cozido e descascado numa cama de gelo picado.
Tinha sido contratada uma firma para preparar e servir o jantar, que consistiria de bifes grelhados, puré de batata, e uma salada verde. O camião chegou às sete horas. O chef, usando um grande barrete branco, começou a espalhar carvão na churrasqueira de tijoleira dos Holloway.
Tendo planeado e preparado tudo, Jane Holloway deixou o trabalho para os empregados que tinh a contratado e misturou-se com os convidados no pátio, na piscina e no bar. Detestava tarefas domésticas e pretendia aproveitar a sua festa.
Usava um maillot de nylon preto extensível, muito cavado nas ancas e com um decote muito pronunciado nas costas. A sua pele era lisa e brilhante. Durante a tarde bebeu águaPerrier com um pouco de sumo de limão. Depois, começou a beber vinho branco.
Cerca das cinco e meia, Ronald Bending viu-a e acendeu-lhe uma das finas cigarrilhas castanhas que ela costumava fumar.
- Boa festa - disse ele.
- Achas? - disse ela, olhando em volta. - Também me parece. Obrigada por teres trazido o camarão. Foi ideia da Grace?
- Foi - disse ele, sorrindo. - Eu queria trazer bebidas. E se déssemos um passeio pela praia?
Ela olhou para ele sem pestanejar, com os olhos muito abertos.
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- E por que é que eu quereria fazer uma coisa dessas?
- Quero falar contigo sobre uma coisa - disse ele. - Não demora muito. Só alguns minutos.
Ela pensou durante alguns instantes.
- Está bem. Vai dar à tua mulher alguma coisa com que se preocupar.
Ele seguiu-a pelo carreiro empedrado que rodeava a casa e descia até à praia. Observou os seus quadris moverem-se com leveza sob o suave fato de banho. Observou os músculos da parte de trás das coxas, a forma como as barrigas das pernas se salientavam delicadamente.
"Bonito", pensou ele. "Verdadeiramente bonito." Entraram na água até esta lhes dar pelos joelhos, e contemplaram uma frota de barcos de pesca que navegavam contra o vento. Não havia ninguém perto do mar, ninguém na praia.
- Então? - perguntou ela.
- Escuta, Jane - disse ele com voz rouca -, tens alguns charros?
- Jesus Cristo! - disse ela, furiosa. - Arrastaste-me para aqui para falar nisso?
- Não, não - disse ele, apressadamente. - Não é isso. Mas acabei de me lembrar de que poderia fumar um charro mais tarde e não tenho nenhum.
Ela suspirou.
- Eu tenho alguns lá em cima. Depois do jantar dou-te um.
- Obrigado - disse ele, agradecido. - Eu depois pago-te. Jane, o Bill contou-te alguma coisa sobre a proposta do Luther Empt? Quando fomos a casa dele beber uns copos?
-O tiroteio no O. K. Corral-perguntou ela.-Toda a praia ouviu falar nisso. O Bill vai comprar uma arma.
- Estás a gozar!
- Não, vai mesmo. Foi ele que me disse.
- Para quê?
Ela encolheu os ombros.
- Talvez queira dar mais um tiro na Lua - disse Bending.
- Talvez.
- Ele contou-te o que o Luther queria?
- Balbuciou alguma coisa sobre reproduzir filmes ou cassetes de vídeo. Na realidade, eu não estava a ouvir. O que ele disse não fazia muito sentido. Nunca o tinha visto tão pedrado.
- O Luther recebeu uma proposta de uns tipos da mafia para reproduzir os filmes pornográficos deles em cassetes de vídeo.
- Oh, oh.
- Ele quer formar uma empresa. Ele, eu e o Bill. Em partes
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iguais. Um quarto de milhão cada. Mais um empréstimo da mafia para perfazer um capital de um milhão. O Bill mostrou-te a apresentação que o Luther fez?
- Não.
- Bem, Luther deu-lhe uma cópia. Dá-lhe uma vista de olhos, Jane, é uma mina de ouro. Mais dinheiro do que tu alguma vez imaginaste.
- E quanto à parte legal?
- Risco mínimo - disse Bending. - É o que dizem os advogados. Não estaríamos a produzir o material, nem a distribuí-lo. Apenas a processá-lo. Um trabalho mecânico.
- E? - disse ela. - Por que é que estás a falar-me no assunto?
- Tu conheces o Bill... ele precisa de ser pressionado. Tu podes convencê-lo a entrar. Chateia-o. Jane, eu quero entrar nisto e precisamos do Bill. Meu Deus, ele tem dinheiro para isso. Sem problemas. Tu sabes isso.
Ela chapinhou na água pouco profunda, andando em círculos, com a cabeça baixa. Tinha os braços cruzados. Apertou os cotovelos.
De repente, olhou para ele.
- E que é que eu ganho com isso? - perguntou.
- Jesus, Jane, serás rica!
- Nós já somos ricos.
- Estou a falar em rica, muito rica.
- E eu estou a falar sobre o que é que eu vou ganhar pessoalmente. Estamos a falar sobre o enriquecimento do Bill. Que é que eu ganho de todos esses números grandes? Eu? Pessoalmente? Se convencer o Bill a alinhar?
Ele olhou para ela com admiração.
- Es um bolinho duro. Ela sorriu abertamente.
- Que é que queres? - perguntou ele.
- Uma fatia do bolo, uma fatia da tarte. Não quero um pedaço muito grande; não sou gananciosa. Mas alguma coisa.
- E que tal uma... comissão. Algum dinheiro. Se o Bill alinhar.
- Quanto?
- Não sei. Teria de falar com o Luther para ver se ele concorda.
- Antes de fazeres isso, deixa-me dar uma vista de olhos à apresentação para ver se é tão boa como dizes.
- É melhor. Acredita em mim.
- Depois digo-te.
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- - Na próxima semana? No motel?
- Talvez. Telefona-me. Agora vamos voltar para a festa.
- Não te esqueças do charro - disse ele, e começou a andar atrás dela na areia macia.
Foram colocadas mesas de quatro pessoas em volta da piscina e uma mesa comprida de armar para as crianças. As toalhas eram de papel, mas a comida foi servida em pratos de loiça. Os adultos receberam talheres de aço inoxidável; as crianças usaram talheres de plástico.
Cada mesa tinha tigelas de salada, condimentos, arranjos de hibiscos, coroas de espinhos e aves-do-paraíso. Havia garrafas de vinho para os adultos, refrigerantes para as crianças.
Eddie Holloway e Wayne Bending há muito que tinham aprendido a combater aquele sistema; desapareciam durante alguns momentos, a intervalos regulares, para encher as falsas latas de coca-cola com cerveja roubada. Mantinham as coZas falsas em cima da mesa defronte deles, à vista de toda a gente. Se os miúdos mais novos percebiam o que se passava, nenhum se atrevia a denunciá-los.
Um dos empregados aproximou-se da mesa com um bloco e um lápis para anotar os pedidos: quantos mal passados, médios e bem passados. O perito em churrascos começou a trabalhar enquanto um acordionista contratado passeava por entre as mesas, tocando Lady ofSpain.
Eddie Holloway, primorosamente aborrecido, estava sentado à cabeceira da mesa das crianças. Tinha-lhe sido confiada a tarefa de manter a disciplina entre as crianças mais pequenas, mas ele sabia que era uma tarefa impossível. Não fez qualquer esforço para deter a gritaria, os encontrões, ou os bombardeamentos de comida.
Wayne Bending estava sentado ao lado de Eddie. Ao lado de Wayne estava o seu irmão, Harry, e Wayne tinha prometido à mãe que o ajudaria a cortar o bife. Mas o maluco
do miúdo era tão doido por comida que agarrou no bife e o mordeu como se fosse uma maçã ou outra coisa do género. Wayne desistiu, enojado.
A maior parte dos rapazes sentaram-se num grupo no topo da mesa, e a maior parte das raparigas sentaram-se ao lado umas das outras na outra ponta. Gloria Holloway estava ao fundo da mesa com a melhor amiga, Lucy Bending, à sua direita.
Gloria era uma rapariga arrogante e vaidosa, cujos cabelos castanho-escuros eram sujeitos todos os meses a uma permanente para formar um cacho de caracóis apertados. Tinha uma noção muito rígida de classe social, mas os seus modos arrogantes
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eram de certa forma frustrados pela falta de um dente incisivo.
Era mais magra e mais ossuda que Lucy, e o desenvolvimento do seu corpo tinha-a convencido de que a esperava uma esplêndida carreira de modelo de alta costura. Mas,
enquanto as duas raparigas jantavam, ignorando o tumulto à sua volta, Gloria contou a Lucy que tinha mudado de ideias.
- vou ser uma actriz de teatro, cinema e televisão muito famosa - anunciou ela. - Em primeiro lugar, tem de se viajar pelo mundo inteiro, e pode-se ficar com as roupas que dão para usar em filmes e coisas. Para além disso, tem-se todos os géneros de propostas de tipos ricos, e quando se faz, bem, um anúncio publicitário, bem, sempre que o anúncio aparece na televisão, pagam novamente, por isso ganha-se milhões de dólares.
- Quem é que te disse isso? - perguntou Lucy, com curiosidade.
- O meu pai. E ele deve saber.
- Meu Deus, acho que sim. Sendo banqueiro e tudo isso. Os olhos de Gloria brilharam, e ela inclinou-se mais para
Lucy.
- Escuta - disse ela em voz baixa -, a noite passada passei pelo quarto dos meus pais, e eles estavam lá, e a porta estava fechada. Eu pude ouvir, mas não com nitidez. Quero dizer, não consegui perceber todas as palavras. Eles não estavam a discutir, mas a voz da mãe estava mais alta. Não consegui ouvir o papá. E ouvi a mãe dizer: "Tu és importante, sabes que és importante, por isso por que é que não vais a um médico?" Não é estranho? ,
- Claro que é. Se uma pessoa é importante, por que é que tem de ir a um médico?
- Não sei - confessou Gloria. - É por isso que é tão estranho. Quero dizer, pessoas importantes como o presidente e juizes e estrelas de cinema e assim não têm de ir a médicos... ou têm?
- Acho que não.
- Bem, de qualquer maneira foi o que decidi ser: uma actriz famosa. com montes de roupas e todos os sapatos que quiser. Uma casa maior que esta casa velha. com imensos criados para fazerem o trabalho. Sabes, cozinhar elimpar e tudo isso. Talvez um barco grande.
- E carros - acrescentou Lucy, entusiasticamente.
- Pelo menos dois - disse Gloria. - Talvez mais. Acho que casarei com um homem muito rico. Mais velho, sabes, porque
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está apaixonado por mim. Mas também terei namorados. Queres o resto do meu bife? Não consigo acabá-lo.
- Não, obrigada, estou cheia. Mas dá-o ao meu irmão Harry; ele come-o. Ele acaba a comida de toda a gente.
Gloria passou o bife inacabado a Harry, que agradeceu com olhos brilhantes atrás dos óculos de aros de osso com lentes grossas. As duas raparigas sentaram-se para trás de mãos dadas, à espera que lhes servissem a sobremesa.
Agora já estava suficientemente escuro para acender as lanternas japonesas penduradas nas palmeiras que rodeavam a piscina dos Holloway. Depois de a sobremesa ter sido servida e consumida, as mesas foram levantadas e afastadas. Os empregados da empresa que fornecera a comida arrumaram as suas cadeiras e equipamento e partiram. O acordionista foi para o seu descanso bem merecido.
Bill Holloway trouxe para a rua duas colunas portáteis ligadas por fios compridos à aparelhagem da biblioteca. Pôs uma cassete de música disco, e alguns dos casais mais jovens e crianças começaram a dançar perto da piscina e no relvado que a rodeava.
Turco Bending aproximou-se da anfitriã.
- bom jantar - disse ele. - Eu comi até quase rebentar.
- E agora queres aquele charro - disse Jane Holloway.
- Não, não - disse ele, baixando a voz e inclinando-se mais para ela. - Era o que te queria dizer: não preciso do charro. O tom Janssen trouxe-me um bocado de coca.
A expressão dela iluminou-se:
- bom material?
- Ele diz que sim. Tem-no no carro. O Jaguar branco. Queres snifar um pouco?
- Boa ideia.
- Não podemos ir para lá em grupo. Temos de fingir que vamos passear para aqueles lados, um por um, casualmente.
- Quem vai snifar?
- Tu, eu, o tom, Luther Empt e a namorada do tom.
- A rapariga com o fato de banho vermelho?
- Essa mesma.
- É melhor o tom dizer-lhe que ela precisa de uma depilação.
- Talvez ele esteja a pensar arrancar-lhe os pêlos com os dentes - disse Bending, rindo alarvemente.
Assim, Jane Holloway não foi ao quarto buscar um charro de marijuana. O que foi uma sorte, porque se tivesse ido teria apanhado o filho Edward a vasculhar a sua gaveta da cómoda.
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Eddie tinha feito um sinal a Wayne Bending, esticando a cabeça na direcção da casa dos Empt. Wayne assentira e deslizara para a escuridão. A mãe ou Lucy que levassem Harry para casa. O miúdo tinha comido tanto que estava a dormir sentado numa cadeira, segurando a sua calculadora de bolso preferida. Wayne achou que ele ficaria bem, se não caísse.
Afastou-se lentamente da luz da lanterna que brilhava à superfície da piscina. Depois começou a correr. Chegou ao fim da propriedade e correu ao longo da berma da AIA até chegar ao caminho de gravilha que dava acesso à casa dos Empt.
A entrada estava protegida por dois grandes portões de ferro forjado, mas estes nunca estavam trancados. Wayne esgueirou-se lá para dentro, fechando o portão atrás de si. Deixou-se ficar nas sombras das poincianas reais e das outras árvores enquanto avançava pelo jardim. Suavemente, em surdina, ouvia a música da festa de piscina dos Holloway. Naquele momento, pensou, os crescidos deviam a estar a ficar altos e a atirarem-se às mulheres dos amigos. Alguém completamente vestido cairia na piscina, ou seria empurrado lá para dentro, e todos se ririam histericamente. Era nojento.
Wayne era um rapaz forte, quadrado, com um tronco comprido e pernas curtas. Os seus ombros eram largos, o pescoço grosso. Não tinha grande beleza, mas conseguia atirar uma bola de futebol mais longe do que qualquer dos seus amigos, e apenas Eddie Holloway conseguia vencê-lo ao braço-de-ferro.
Às vezes perguntava a si mesmo se seria filho do seu pai. Era óbvio que não tinha o encanto dele, e parecia muito pouco provável alguma vez conseguir alcançar a sua altura. Para além disso, o pai tinha cabelos loiros, era alegre, e era uma fera com as mulheres. Wayne era escuro e macambúzio, e as raparigas nunca olhavam duas vezes para ele.
Encontrou o lugar de que andava à procura: um mirante de madeira entrelaçada que Teresa Empt mandara erigir no seu relvado bem tratado ao lado de jasmins cor-de-rosa, amarelos e brancos. O mirante era octogonal, encimado por uma cúpula com aberturas trabalhadas. Lá dentro havia dois bancos e duas cadeiras de namorados em ferro com um padrão vitoriano de uvas e folhas de videira, pintados de branco.
O mirante raramente era usado pelos Empt, a não ser que estivessem à espera de fotógrafos de jornais ou de revistas. Mas Eddie Holloway e Wayne Bending utilizavam-no para fumar erva, beber uma cerveja ou apenas conversar. Numa dessas noites, Eddie não parava de dizer que haviam de levar para lá um par de conas e coisar que nem doidos.
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Os bancos de ferro forjado e as cadeiras de namorados podiam ser decorativos, mas sem almofadas eram desconfortáveis como o diabo. Wayne Bending agachou-se no duro chão de areia, olhando para a casa dos Empt. No rés-do-chão via-se uma luz fraca, mas ele supunha que ainda deviam estar todos na festa dos Holloway.
Sentou-se na areia, acocorado e pensativo. Wayne Bending, com 12 anos de idade, estava farto. Era tudo tão mau. Era tudo tão mesquinho. Queria pegar fogo ao mundo. Podia incendiar, roubar, matar; não se importava. Nada fazia sentido.
O que era tão horrível, o que incendiava a sua fúria, era a diferença abissal entre o que as pessoas diziam e o que elas faziam. Era óbvio para si que todos mentiam. Todos trapaceavam. Todos lixavam o parceiro. Ninguém era fiel, a qualquer coisa ou a alguém. As pessoas eram uma merda; ele reconhecia isso, e esse facto enfurecia-o.
Era só olhar para o pai dele... para a mãe dele...
Ouviu um assobio baixo e endireitou-se. Eddie Holloway apareceu, e os seus cabelos loiros cintilavam. Wayne via os dentes dele a brilhar.
- Conseguiste faná-los sem problemas? - perguntou ele.
- Não houve espiga - disse Eddie, sentando-se ao lado de Wayne. - Podia ter surripiado mais alguns, mas ela já só tinha oito.
- Será que ela não vai dar pela falta desses dois?
- Talvez - disse Eddie, encolhendo os ombros. - Se isso acontecer, vai pensar que foi a Maria que lhos fanou. Jesus, que noite. Aquela festa foi uma seca; uma seca. Vamos acendê-los e lá vamos nós.
Ali estava outra coisa que deprimia Wayne Bending.
Já tinha fumado duas vezes marijuana com Eddie Holloway, e não tinha sentido nada. Tinha seguido as instruções de Eddie, inalara profundamente, retivera o fumo nos pulmões e esperara. Nada. Tinha observado Eddie a ficar alto e sentira um vago pânico com a sua falta de resposta.
Porque ele queria que Eddie - o rapaz mais bonito, o mais popular e o mais disputado - pensasse bem dele, que gostasse dele. Porque queria ser o melhor amigo de Eddie Holloway. Por isso, tinha fingido.
Tinha rolado os olhos, deixara-se cair desamparadamente. Murmurara:
- Oh, meu, é baril, é mesmo forte. - Imitara a pedrada de Eddie, fingindo uma euforia que não sentia.
Isso fazia-o tão mau com todas as outras pessoas, não fazia?
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E acenderam os charros, fumaram, sorriram para o vazio, e disseram um ao outro como era bom terem-se escapado da festa. Fumaram lentamente, mas, pouco depois, os charros estavam reduzidos a pequenas beatas que eles não conseguiam segurar sem queimar as pontas dos dedos.
Eddie deitou-se de costas e esticou os braços. Deu risadinhas e bateu levemente com os calcanhares na areia.
- Oh, meu - murmurou ele -, isto é que é. Isto é que é.
Depois Wayne Bending, por razões que não conseguiu entender, rolou de lado. Ergueu-se ligeiramente e inclinou-se sobre Eddie Holloway. Aproximou lentamente o rosto e beijou Eddie nos lábios.
Durou. Não muito tempo mas também não pouco. Em seguida, Eddie afastou a cabeça para o outro lado e olhou para os olhos brilhantes de Wayne.
- És doido! - disse ele, rindo-se. - Que é que pensas que estás a fazer?
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O ex-senador Randolph Diedrickson vivia os seus dias numa casa que se parecia mais com uma mansão de um mercador da Nova Inglaterra do que com uma plantação de antes
da Guerra Civil. Era toda em pedras brancas e ornamentos cor de gengibre, com coruchéus, águas-furtadas, janelas com sacadas curvas e uma clarabóia em vidro pintado
na porta de entrada.
O senador, confinado a uma cadeira de rodas por causa da artrite reumatóide de que sofria, tinha mandado instalar um elevador naquela casa incoerente e de certa forma antiquada. Assim, podia andar facilmente por toda a casa (a cadeira de rodas tinha motor), mas passava a maior parte do tempo no seu estúdio do primeiro andar ou no solário no topo da casa, três andares acima.
Como a casa ficava no centro de uma propriedade de três acres, e os vizinhos mais próximos habitavam em propriedades tipo rancho, o senador tinha privacidade total no seu solário. Afirmava muitas vezes às suas visitas que lá em cima se sentia perto de Deus. Dizia aquilo com ar sério, e as pessoas nunca sabiam se ele estava a falar a sério. A maioria achava que sim.
Passava a maior parte das manhãs a ditar as suas memórias para um gravador. Tinha passado trinta e seis anos no Congresso
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dos Estados Unidos, e acreditava que as suas recordações de acontecimentos durante aqueles tempos agitados seriam do interesse dos historiadores.
As cassetes eram mais tarde transcritas por um secretário a tempo inteiro, que vivia lá em casa (branco, do sexo masculino) e que trabalhava no escritório do segundo
andar. O escriturário também elaborava frases completas e corrigia a gramática das divagações do senador. Já tinha acumulado oitocentas páginas, e ainda só estavam em 1956.
Para além do secretário, uma cozinheira-governanta e um criado, mulher e marido, ambos negros, viviam igualmente na propriedade. Tinham muito que fazer; o senador recebia muito e, frequentemente, tinha convidados para passar uns dias.
O senador conhecera Jane Holloway quando ela e o marido banqueiro tinham ido a um cocktail em sua casa para angariação de fundos em benefício de um candidato local do Partido Democrata. A convite do senador, Jane Holloway tornara-se uma visita regular. Sem o marido banqueiro.
O relacionamento durava há mais de dois anos, e dera mostras de ser mutuamente vantajoso. A maior parte do tempo que estavam juntos era passada no solário, no topo da casa. Durante essas visitas, a porta que dava para o interior era mantida fechada à chave. Apenas o senador tinha essa chave.
O solário tinha uma área de aproximadamente três metros por seis metros e o chão era em madeira. Metade estava coberto por um toldo de lona amovível; o senador evitava a luz directa do Sol pois, para além da artrite, sofria de problemas de pele.
Lá em cima havia cadeiras de descanso com rodas, com colchões de lona e confortáveis cadeirões almofadados. Sob o toldo havia igualmente um bar em verga completamente equipado. Um telefone permitia ao senador fazer e receber chamadas do exterior ou, carregando em alguns botões, comunicar com o secretário no escritório, com a cozinheira na cozinha ou com o criado na sala do rés-do-chão.
Numa segunda-feira de manhã, brilhante como um diamante, o sol forte, Jane Holloway estava deitada, nua, sobre o colchão de lona de uma das espreguiçadeiras do solário. Tinha colocado óleo no corpo todo, incluindo os dedos das mãos e dos pés, e tinha dois pedaços de algodão com vaselina nos olhos fechados.
Debaixo da cadeira, à sombra, estavam o óleo bronzeador, uma toalha, sandálias de couro às tiras, e um copo meio cheio de chá gelado. Também se via um pequeno rádio, mas ela tinha-o desligado quando o anfitrião começou a falar.
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O senador estava sentado na sua cadeira de rodas, à sombra, e tinha uma fina manta de algodão sobre os joelhos. Usava uma camisa cor-de-rosa desportiva, com um casaco de malha a condizer. Na sua cabeça grande tinha um chapéu branco de pesca, de abas largas, com buracos para ventilação.
Ele tinha sido um homem enorme, agora de certa forma encolhido, mas continuava a ter uma presença de respeito. A sua cabeça estava suspensa em rugas pendentes, papadas, barbelas. Um mapa de vasos sanguíneos rebentados passeava pelas bochechas sarapintadas e pelo nariz bolboso. As mãos que apertavam os braços da cadeira de rodas eram espatuladas e manchadas.
Quando falou, a sua voz era forte, musical, com uma textura húmida e agradável. Um repórter de Washington D. C. tinha uma vez escrito que "todas as palavras ditas pelo senador Diedrickson parecem ter sido mergulhadas em mel e penduradas para secar com um alfinete de ouro".
- Há um banco no distrito de Martin - disse ele. - Deveria dizer uma cadeia de bancos. Listado na American Exchange. Em breve, dentro de um ou dois meses, será alvo de uma tentativa de take over.
Jane Holloway mexeu-se.
- Sim? - disse.
-A tentativa vai falhar-continuou o senador-, e as acções vão voltar ao seu preço normal. Mas quando a notícia do take over se espalhar, creio que podemos antecipar uma subida de oito a dez por cento. Sugiro que compre o mais rapidamente possível. Tomei nota de tudo o que precisa de saber. Por favor, use o corretor que lhe recomendei. A discrição dele é garantida.
- Obrigada, senador - disse ela, agradecida.
- De nada, minha querida - disse ele.
-Agora, há uma coisa que queria,perguntar-lhe - disse ela.
- Preciso do seu conselho.
- Claro - disse ele. - Sabe que estou sempre à sua disposição. Nada me dá mais prazer que ajudar os meus amigos.
Ela falou-lhe sobre a proposta de Luther Empt. Enquanto falava, os olhos dele nunca deixaram o seu corpo. Percorriam-na como um esfregão, desde os cabelos curtos e prateados até às unhas dos pés douradas. O olhar deteve-se um pouco na prega do umbigo e, mais abaixo, no suave tufo de pêlos.
Ela disse-lhe que tinha analisado a apresentação que Luther Empt tinha dado ao marido. Falou-lhe dos esforços de Turco Bending para garantir que ela ajudaria a convencer o marido a entrar no negócio, e a exigência que ela fizera de uma recompensa para o caso de o fazer. Contou tudo ao senador.
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- Que acha? - perguntou ela, depois de terminar o relato. Ele não respondeu imediatamente. Ela tirou os algodões
engordurados de cima dos olhos e atirou-os para o chão. Rolou sobre o estômago, virou a cabeça e deitou-a sobre o braço para poder olhar para ele. Abriu as pernas. O sol brilhava intensamente nos mamilos cobertos de óleo.
- Esse Luther Empt - perguntou o senador - é judeu?
- Não sei - respondeu Jane Holloway. - Acho que não. Polaco ou ucraniano... uma coisa assim.
- Sabe os nomes dos homens que lhe fizeram a proposta?
- Os nomes estão na apresentação, mas não me lembro. Recordo-me de que um deles se chama Rocco. O primeiro nome.
O peito forte do senador fez um barulho profundo, meio ronco, meio resmungo.
- Durante a minha ilustre carreira como senador dos Estados Unidos - disse ele, sem ironia na voz -, só tinha uma regra que nunca quebrava: nunca fazer negócios com um homem chamado Rocco. No entanto... Seria útil se pudesse fornecer-me os nomes desses homens, minha querida. Assim, eu poderia fazer umas investigações discretas para saber se eles são de facto quem dizem ser.
- Quando chegar a casa telefono-lhe - disse ela -, e digo-lhe os nomes. Mas, globalmente, que é que pensa da proposta?
Ele suspirou.
- Sabe qual é o rendimento anual da indústria pornográfica nesta nossa grande nação?
- Milhões, suponho. Talvez centenas de milhões.
- O último número que vi - disse ele, lentamente - foi seis biliões. Biliões. Anualmente. Oh, esse negócio dá dinheiro; disso não restam dúvidas. Mas há apenas um ligeiro obstáculo que poderá fazê-la pensar duas vezes.
- A questão jurídica... - começou ela, mas ele interrompeu-a.
- Neste caso, concordo com os advogados que foram consultados: o risco é mínimo. Não, estou a referir-me ao carácter dos homens que fizeram a proposta.
- Os tipos da mafia? - perguntou ela. - Acho que Luther Empt pode lidar com eles. Ele é um homem duro.
O senador riu melancolicamente.
- Um homem duro, é? Minha querida, nem você nem Luther Empt sabem o que é ser duro. Esses representantes daquilo a que se chama "crime organizado"... embora saiba por experiência própria que frequentemente são tão desorganizados como a indústria americana ou o Governo... esses homens são de uma
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dureza para além da sua compreensão. Que pensa que poderia acontecer a Empt, ou a Ronald Bending, ou ao seu marido, se esses homens decidirem que estão a ser enganados, ou roubados ou apenas a pagar de mais?
- Não sei - disse Jane Holloway. - Eles matariam?
- Nada tão grosseiro como isso, minha querida - disse o senador. - Um dia, o homem que eles queriam fora do negócio simplesmente desapareceria. Estaria aqui, e depois ninguém mais o via. Seria como se ele nunca tivesse existido. Não haveria cartas, nem telefonemas ameaçadores. Ele evaporar-se-ia simplesmente e nunca mais se saberia dele. O seu corpo nunca seria encontrado.
Jane apertou os ombros e estremeceu.
- Então, acha que eu devia dizer ao Bill para esquecer o assunto?
- Oh, não - disse o senador. - Grandes lucros exigem grandes riscos. E, neste caso, os lucros podem ser realmente muito grandes. Arranje-me esses nomes e eu vou ver o que consigo descobrir sobre eles.
- Obrigada, senador - disse ela. - E agora acho que é melhor ir andando para casa.
Levantou-se, espreguiçou-se graciosamente, dobrou-se e torceu-se. Sabia que os olhos dele nunca deixavam de a fitar.
Aproximou-se dele e ajoelhou-se na madeira dura defronte da cadeira de rodas. Afastou a manta de algodão. com dedos hábeis, abriu o fecho das calças dele. Meteu a mão lá dentro e tirou o pénis de dentro das cuecas e das calças.
- Olhe para essa coisa - disse tristemente o senador. - É uma antiguidade, minha querida. Está a acariciar uma verdadeira antiguidade.
- Ora, senador - disse ela, inclinando-se para a frente -, não seja sentimentalista.
Os olhos dele fecharam-se. As suas mãos manchadas apertaram com força os braços da cadeira de rodas.
Ela tinha dito a verdade a Turco Bending; o senador nunca lhe tocava.
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A Sra. Grace Bending era uma mulher alta, tão direita que quase parecia uma tábua. Feições agradáveis, compleição sem mácula. Perfil direito. Um sorriso pálido e
distante. Muito controlada, mas com esforço.
Quando entrou no consultório do Dr. Theodore Levin pela segunda vez, usava um fato de linho branco de muito bom corte. A linha do pescoço estava fechada com um lenço esvoaçante com minúsculos malmequeres estampados. Calças justas semiopacas, sapatos de saltos baixos.
Durante a primeira visita, os seus longos cabelos, aclarados pelo sol, estavam firmemente presos no alto da cabeça. Agora estavam soltos, caindo como pálidas cobras.
Naquela altura tinha estado nervosa e insegura, mordendo o lábio inferior em momentos de tensão. Agora estava de certa forma relaxada, descontraidamente sentada na cadeira que o médico indicara. Cruzou a perna. Boas pernas, reparou ele. Não trazia jóias. Aparentemente, não usava perfume.
- Doutor - começou ela -, fiquei muito contente ao saber que o senhor decidiu aceitar a Lucy.
Ele assentiu.
- Espero não ter provocado nenhuma, ah... desavença familiar?
- Não, nem por isso. Por fim, concordámos que era o melhor. E a Lucy disse-me que gosta de si. O doutor acha que ela tem um problema?
- Oh, sim - disse ele, suspirando. - Existe um problema. Mas ainda não posso começar a discutir possíveis causas, ou soluções viáveis, ou sequer a frequência das consultas até termos os resultados dos exames físicos, que serão marcados para a próxima semana... se lhe convier.
- Sim, está bem. Seria melhor depois da escola. Disse que a sua sócia, uma mulher, vai fazer os exames?
-A Sra. Mary Scotsby... exactamente. Somos sócios há vários anos. Obviamente, ela é licenciada,
Sra. Bending. Creio que tenho todas as informações básicas de que
necessito nos questionários que a senhora e o seu marido preencheram. Porém, há mais algumas coisas que preciso de saber sobre a Lucy.
- Sim, doutor?
- Ela faz chichi na cama?
Teve a sensação de que o fraco sorriso dela vacilou e os seus modos aristocráticos sofreram um breve colapso. Recordou os
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adjectivos que ela usara na primeira entrevista para descrever o comportamento da filha: "ordinário... de mau gosto... nojento... horrível."
- Não - disse Grace Bending. - Agora não. Mas.fazia. Antigamente.
- Quando? - perguntou ele. - Em que idade?
- Até há cerca de três ou quatro anos. Nessa altura, fazia chichi na cama regularmente.
- com que regularidade?
- Talvez duas ou três vezes por semana.
- Mas não recentemente?
- Não.
- Nada?
- Não.
- Simplesmente parou?
- Sim.
Ele ponderou naquilo. Supunha que seria possível uma cessação abrupta e completa da enurese, mas não achava provável. No entanto, aquela mãe não teria motivo para mentir - a não ser que achasse todo aquele assunto tão revoltante que se recusasse a discuti-lo.
- Sra. Bending-disse ele -, a Lucy tem essas exibições de... atenção apaixonada com os irmãos?
- Não. Nunca.
- Ou com rapazes da idade dela ou um pouco mais velhos?
- Que eu saiba, não. Só com homens mais velhos.
- Os períodos menstruais dela já começaram?
- Doutor! Ela só tem oito anos!
- Sra. Bending, ficaria surpreendida se soubesse a que idade algumas crianças do sexo feminino começam a ser menstruadas. Sabe se a Lucy se masturba regularmente?
- Claro que não.
- De vez em quando?
- Nunca!
Ficou surpreendido com o calor da resposta dela. Ela era, decidiu, ou mentirosa ou muito má observadora. Aquela mulher viera ter com ele devido à sexualidade anormal da filha, que reconhecia. Mas agora estava a negar a sexualidade normal da criança. Achou aquilo intrigante e, possivelmente, significativo.
- Reparei que a Lucy não rói as unhas. Ela tem alguns hábitos pessoais que eu deva saber? Que pudessem ser úteis para a análise do problema dela?
- Não, não me lembro de nenhum.
- Come bem? Tem bom apetite?
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- Oh, sim.
- Toma alguns comprimidos? Particularmente comprimidos que alterem a disposição, tal como calmantes ou anfetaminas para hiperactividade. Alguma coisa deste tipo?
- Não. Uma aspirina infantil uma ou duas vezes, mas nada mais forte.
- Ela está bem na escola? É boa aluna?
- Sim.
- Lê? Quero dizer, sem ser os livros da escola? Lê por divertimento ou entretenimento?
- Oh, sim. A Lucy lê muito. Muito adiantada para a idade que tem. Traz livros da biblioteca para casa pelo menos uma vez por semana.
- A senhora inspecciona os livros que ela traz para casa?
- Claro.
- Claro. Quanta televisão é que diria que ela vê? Em termos de horas por dia.
- Talvez uma ou duas horas por dia. Mais aos fins-de-semana.
- Notou alguma preferência? No tipo de programas, quero dizer.
- Não, nem por isso. Ela parece gostar de sagas familiares. A Família Walton, Uma Casa na Pradaria. Esse género de coisas. Muito normal.
"Muito normal", pensou ele, mordazmente, "a não ser por um pormenorzinho insignificante: ela gosta de afagar pilas de homens."
Recordou a primeira entrevista. Grace Bending tinha sido a dominante, a líder. No princípio. "Deixa-me tratar disto." Tinha dito duas vezes ao marido. E ele fora quase hostil - no princípio.
Mas, quando chegaram aos pormenores, fora o marido que dissera o que tinha de ser dito; a mulher não conseguira.
E, agora, de novo, estava a bloquear. Oh, ela tinha relaxado um pouco. Estava a abrir-se. Mas não o suficiente. Pressentiu uma reserva, profunda e obstinada. Levaria tempo a vencer aquela resistência.
- Sra. Bending, a Lucy tem amigos especiais? Rapazes ou raparigas da idade dela?
- A Lucy tem muitos amigos - disse ela, rispidamente. Uma menina, que vive na casa ao lado da nossa, Gloria Holloway, é provavelmente a sua melhor amiga.
- E rapazes?
- Muitos, mas nenhum em especial.
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- Alguma paixão? Por professores especiais ou amigos?
- Não, que eu saiba não tem paixões nenhumas.
- A Lucy tem um diário?
- Meu Deus, que pergunta estranha. Não, que eu saiba não. Ele reparou naquele "meu Deus!". Lucy tinha usado a mesma
frase na entrevista. Mas não se podia dizer que fosse estranho. As raparigas imitavam frequentemente os padrões linguísticos das mães, do mesmo modo que os rapazes imitavam os dos pais. Mas, dadas as circunstâncias, "meu Deus!" parecia especialmente inadaptado.
- A Lucy alguma vez usou linguagem que... a senhora tenha achado não apropriada?
- Palavrões, é isso? Não, a Lucy foi muito bem educada.
- Nunca um "raios!"? Nunca um "diabo!"?
- Oh, talvez. Uma ou duas vezes. Mas não frequentemente.
- E nunca outra coisa a não ser "raios" ou "diabo"? Grace Bending corou.
- Uma vez disse "merda!". Mas apenas uma vez.
- Hum. Mas não obscenidades de carácter sexual?
- Não. Nunca!
- Sra. Bending, como é que caracterizaria o relacionamento da Lucy com os irmãos?
- bom... dão-se bem. Por acaso, bastante bem. As vezes há zaragatas, mas isso é de esperar.
- Claro.
- E por vezes os três aliam-se contra o meu marido e eu, mas nunca foi nada sério.
- Pode dar-me um exemplo?
- Oh, podem discordar de um programa de televisão que queremos ver ou de um filme a que queremos assistir. Mas, geralmente, há poucas discórdias. Todos os meus filhos são bem educados.
- A senhora é uma pessoa de sorte.
- Também achava que sim.
- E agora não acha?
- É aquela coisa com a Lucy. Tem-me preocupado muito.
A resposta dela enfureceu-o, embora ele tivesse todo o cuidado para não o demonstrar. Achou que a preocupação dela com o comportamento da filha poderia estar enraizada
na forma como essa conduta a afectava a ela.
Ele queria, se não torná-la mais humilde, pelo menos recordá-la da sua humanidade.
- Sra. Bending - disse, suavemente -, as minhas perguntas sobre a Lucy têm sido uma investigação preliminar. Nas próximas
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sessões... com ela, com a senhora, com o seu marido, com os irmãos... tentaremos aprofundar um pouco mais. Mas, por enquanto, vamos mudar de tema e falar sobre
a senhora.
- Como queira.
- A senhora é uma mulher inteligente e se que compreende que tudo o que eu lhe perguntar será apenas
por uma razão: para ajudar a resolver o problema da Lucy.
- Eu sei disso, doutor.
- Muito bem. Sra. Bending, como é que caracterizaria o seu casamento... feliz, médio ou infeliz?
- Oh, feliz. Eu sou muito feliz. Não quero dizer que seja perfeito. Qual o casamento que é? Mas diria que, feitas as contas, é um casamento feliz.
- Não há divergências, discussões ou conflitos que possam afectar a Lucy?
- Não. Nenhuns.
-A senhora e o seu marido estão casados... há quanto tempo?
- Catorze anos. Quinze em Dezembro.
- O primeiro casamento para ambos?
- Para mim. O meu marido já tinha sido casado antes. Uma vez.
- E vivem na vossa actual casa há quantos anos?
- Quase dez. Viemos para a Florida há dez anos.
- A senhora e o seu marido têm um quarto só para vocês, claro?
- Claro.
- Cama de casal ou camas separadas?
- Doutor, não vejo o que é que isso...
- Por favor, responda à minha pergunta-disse ele, severamente.
Ela amedrontou-se.
- Camas separadas.
- Os quartos das crianças são no mesmo andar?
- Sim.
- Cada criança tem o seu quarto?
- Sim.
- Qual dos seus filhos é que ocupa o quarto mais próximo do vosso?
- A Lucy. Depois o Harry. É o meu filho mais novo. O quarto do Wayne é ao fundo do corredor.
- Cada um tem uma casa de banho individual?
- A Lucy tem uma só para ela. O Wayne e o Harry partilham uma casa de banho. Mas há outra do outro lado do corredor,
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ligada ao quarto de hóspedes. Pode ser utilizada em caso de... emergência.
- Uma casa grande.
- É uma casa maravilhosa!
Ele suspeitou de que devia ser uma casa imaculada. As pratas polidas. Os cinzeiros limpos. Os tapetes perpetuamente aspirados. Ela devia ver os anúncios da televisão com a máxima atenção e ler as revistas dedicadas à família. Nada de manchas de sabonete nos vidros. Nenhum cheiro nas casas de banho. Devia orgulhar-se do brilho do chão da cozinha.
Sentiu-se tentado a perguntar quantas vezes é que ela tomava banho por dia.
Em vez disso, disse:
- Vejamos... a senhora é três anos mais velha que o seu marido?
- Exactamente.
- Como é que se conheceram?
- Fomos apresentados por amigos comuns.
- Mas não cresceram juntos? Não foram namorados quando eram crianças?
- Oh, não. Nada disso.
- A Lucy mencionou a professora da catequese. Ela frequenta as aulas regularmente?
- Sim. Ela e o Harry.
- A senhora vai regularmente à igreja?
- Sim.
- E o seu marido.
- Não. Ele joga golfe.
- E o seu filho mais velho?
- Wayne? Não, ele já não vai regularmente à igreja.
- A recusa do seu marido em ir à igreja é... ou foi motivo de zanga entre vocês os dois? E a falta de Wayne?
- Não foi propriamente uma zanga. Discutimos profundamente o assunto. Depois, apercebi-me de que era escusado tentar forçar o meu marido e o meu filho a aceitar as minhas crenças. Por isso, deixo-os seguir os seus caminhos.
O seu tom de auto-abnegação divertiu-o. Estava a começar a compreender aquela mulher. Achou que ela poderia ter um forte complexo de mártir. Teve pena do marido.
- Como é que caracterizaria as suas relações sexuais com o seu marido,
Sra. Bending?
- Não compreendo o que quer dizer, doutor,
- Diria que são satisfatórias? Extáticas? Insatisfatórias? Repelentes para si?
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- Satisfatórias - disse ela, peremptoriamente. - As minhas relações físicas com o meu marido são satisfatórias.
"- São ambos relativamente novos, aparentemente saudáveis e vigorosos... quantas vezes têm relações sexuais?
- Isto é absolutamente necessário, doutor?
- Sra. Bending, eu ando à pesca, admito. Estou a tentar juntar o maior número de informações possível, na esperança de, algures, encontrar uma pista para o comportamento da Lucy. Não estaria a fazer o meu trabalho se não perguntasse, e a senhora poderia estar a diminuir as nossas hipóteses de sucesso se se recusasse a responder.
- bom... então, está bem. Mas acho tudo isto muito embaraçoso e... de mau gosto.
- Eu percebo. Mas a sua colaboração é essencial.
- Muito bem.
- com que frequência é que a senhora e o seu marido têm relações sexuais? Uma vez por semana?
- Menos.
- Uma vez por mês?
- Talvez. Depende...
Ele queria perguntar: "Depende de quê?" Ela não lhe parecia uma mulher que vendesse os seus favores, de uma forma ou de outra, ao marido ou a outros homens. Era demasiado assexual para isso. Mas, admitiu, ela poderia surpreendê-lo.
Achava-a fisicamente atraente. Seios, ancas, coxas... estava tudo no lugar, envolvido em roupas. Mas estavam todos camuflados pela sua agressiva reserva. Parecia determinada a negar a paixão. Porque esta não existia, perguntou ele a si mesmo... ou porque tinha sido esgotada?
- Como é que caracterizaria o seu marido, Sra. Bending? Afectuoso? Amoroso? Apaixonado? Ou frio, desligado, sem sentimentos?
- Bem, meu Deus, ele pode ser todas essas coisas em alturas diferentes. Ele é humano.
- Claro que sim. Mas qual destes adjectivos escolheria para descrever a sua verdadeira natureza?
- Não se importa de voltar a repeti-los, doutor?
- Afectuoso? Amoroso? Apaixonado? Ou frio, desligado, sem sentimentos?
- Diria que o meu marido é um homem afectuoso.
- Um bom marido e pai?
- Sim.
- Um verdadeiro homem de família?
- Ah... não propriamente.
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- O seu marido é-lhe fiel?
- Acho que é melhor perguntar-lhe isso a ele, doutor.
- A senhora é-lhe fiel?
- Sempre! Para sempre! Desde o dia em que nos conhecemos! Nunca tive amantes.
- Compreendo. Uma última pergunta, Sra. Bending... É de uma natureza especialmente íntima, e se desta vez não quiser responder eu compreenderei a sua reticência. Quando tem relações sexuais com o seu marido, consegue ter um orgasmo?
- Hum... acho que sim.
- Obrigado. E estou a ver que o nosso tempo terminou...
SEGUNDA PARTE
Luther Empt queria fazer a reunião na sala de conferências do banco de William Holloway, mas Bill disse que, em sua opinião, não seria prudente.
Mais tarde, Empt disse a Turco Bending, trocista:
- Prudente, por amor de Deus! Estamos aqui a falar de um negócio de um milhão de dólares para processar pornografia, e este gajo está a falar em prudência! Se não
fosse aquela tipa com quem ele está casado, eu acharia que ele é maricas.
Prudentemente, Bending não respondeu.
Assim, Empt alugou umasuite no Motel Hibiscus, na Estrada Federal. Chegou cedo, com garrafas, e pediu mais copos, misturadores e bastante gelo. A reunião estava marcada para as nove da noite. Luther esperava que acabasse à meia-noite, o mais tardar.
Bending e Holloway dirigiram-se para lá no Mercedes do último. Não falaram muito durante a viagem. Bending estava a pensar em quais os investimentos que teria de liquidar para arranjar um quarto de milhão de dólares. William Jasper Holloway perguntava a si mesmo que diabo estava a fazer ali.
Tinha estado preparado para dar à proposta de Luther Empt uma negação vaga e evasiva - mais uma conversa de treta de um banqueiro que um "não!" directo. No papel, a proposta parecia boa. Mas Holloway não queria, muito simplesmente, complicar a sua vida com novos empreendimentos.
Para além do mais, como dissera à mulher, tinham dinheiro suficiente para as suas necessidades, agora e para o futuro previsível. Aquela afirmação enfurecera-a e ela começara a convencê-lo.
Fizera uma lista das despesas correntes, que não eram insignificantes. Recordara-lhe que os filhos precisariam de educação superior - e quem sabia quanto é que isso poderia custar quando chegasse a altura? Falara com pessimismo da possibilidade e do desfalque financeiro de uma doença catastrófica.
Quando ela começara a falar assim, ele percebera que tinha
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sido derrotado; ela conseguiria aquilo que queria. O seu vigor e determinação desgastá-lo-iam. Ela nunca desistiria. E tinha centenas de maneiras de transformar a vida dele num inferno.
Quando entrou na suite do motel que Luther alugara, todas as objecções de Holloway a este empreendimento estavam mais fortes do que nunca.
Mais tarde, Ronald Bending disse que lhe fazia lembrar O Café Nocturno, de Van Gogh. Ali estavam as mesmas cores horríveis e malvadas: amarelos-sujos e verdes enjoativos, lavados com ácido. Vermelhos mortos. As luzes formavam auréolas: uma miasma girando naquele quarto pavoroso.
Até as sombras eram desmaiadas. E, acima de tudo, um silêncio desanimado, um sossego solitário que tinha o seu próprio cheiro: doce e penetrante. Era, decidiu Holloway quando o viu, um quarto da esperança derrotada. Dirigiu-se imediatamente para as garrafas e serviu-se de um grande vodca.
Os convidados chegaram pouco depois das nove horas. Foram feitas as apresentações, toda a gente se sentou e Turco Bending serviu bebidas para todos. Conversaram
calmamente durante alguns momentos, sobre o tempo, sobre futebol profissional, sobre a Bolsa de valores.
Depois, Luther Empt foi directo aos negócios. Falou em voz alta, rapidamente, na sua áspera voz citadina. Os dois visitantes ouviram com muita atenção, sem revelar, por gestos, movimentos ou expressões, as suas reacções às propostas de Empt.
Rocco Santangelo era o mais alto dos dois. Era imponente, magro, muito bem barbeado, e usava um fato azul-marinho de seda selvagem. Não tinha jóias, mas a camisa, a gravata e o lenço de bolso tinham monogramas. Obviamente, não era estranho a tratamentos faciais e manicures.
Jimmy (não James, mas Jimmy) Stone era mais baixo, mais entroncado. Vestia um fato de três peças, um pouco folgado, de tecido de gabardina cinzento-escuro. A sua cabeça pontiaguda era encimada por um tufo de cabelos loiros, duros como barba curta. Não tinha o verniz de Santangelo, mas tinha uma presença marcante, sentado sem se mexer com as mãos fortes a apertar os joelhos grossos.
William Holloway achou os dois homens perturbadores. Eram os seus rostos fechados, o vazio dos seus olhares. Supunha que eram homens com amigos, famílias, amores. Mas aqueles olhos vazios não reflectiam nada.
Empt começou por dizer que os três estavam dispostos a entrar com setecentos e cinquenta mil dólares para uma nova empresa. Ele esperava que os visitantes continuassem
dispostos
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a adiantar o empréstimo de um quarto de milhão de dólares para o projecto. A dez por cento de juros.
Santangelo disse que o empréstimo estaria disponível imediatamente. E, se problemas ou despesas inesperadas o exigissem, estariam disponíveis mais duzentos e cinquenta palhaços à mesma taxa de juro. "Palhaços" foi a palavra que ele usou.
Nessa altura, Santangelo tirou duas cartas dobradas do bolso de dentro do casaco e entregou-as a Empt. Luther leu as páginas e passou-as para Bending e Holloway.
Eram cartas de recomendação "A Quem Possa Interessar" de presidentes de bancos comerciais em Nova Iorque e Miami. Declaravam que o portador, o
Sr. Rocco Santangelo, e associados, eram conhecidos pessoalmente pelos signatários como homens de confiança e de probidade financeira.
Ambas as cartas diziam igualmente que os signatários teriam o maior prazer em fornecer informações sobre o crédito do Sr. Rocco Santangelo e associados.
William Holloway leu aquelas missivas com alguma preocupação. Reconheceu o nome do banqueiro de Nova Iorque, embora não o conhecesse pessoalmente.
Mas jogara golfe ocasionalmente com o homem de Miami em convenções de bancos estatais. Recordava-se dele como uma pessoa fria, de certa forma distante. Absolutamente nada o tipo que ele teria julgado capaz de lidar com Rocco Santangelo.
Empt disse que as cartas dos banqueiros eram bem-vindas, e que esperava que, uma vez que o alvará da empresa fosse concedido, o Sr. Santangelo estivesse disposto
a assinar um contrato de vendas.
Foi então que o Sr. Santangelo olhou inquisitivamente para o associado.
Jimmy Stone disse "não", numa voz que mal se ouvia.
Então, Santangelo virou-se para os três sócios e explicou que, dada a natureza do negócio, não seria necessário um contrato assinado.
- Se nós vos lixarmos - disse ele calmamente -, que é que vocês vão fazer... levam-nos a tribunal e dizem ao juiz que nós não vos pagámos esta merda pornográfica? Ele expulsa-vos da sala de audiências.
Eles viram a lógica do argumento.
Santangelo disse que não haveria contratos escritos, cartas de encomenda ou correspondência de negócios. Todas as encomendas, acordos, queixas e perguntas seriam feitos verbalmente.
Para além disso, disse Santangelo, o empréstimo inicial de
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um quarto de milhão de dólares e todos os pagamentos subsequentes da mercadoria seriam feitos em dinheiro.
- Assim é mais simples - explicou ele.
Devia ter visto alguma coisa nas expressões deles, porque continuou dizendo que o que eles queriam declarar no IRS era com eles. Mas, disse ele, não haveria facturas, cartas de porte, declarações ou quaisquer outros documentos escritos indicando a natureza ou alcance do negócio.
- Sabem-disse ele na sua voz forte e segura -, o nosso relacionamento tem de ser baseado na confiança mútua. Vocês tratam-nos bem; nós tratamo-los bem. Uma mão lava a outra. Estamos dispostos a demonstrar a nossa boa-fé entregando-vos um quarto de milhão, bingo, de mão beijada. Este acordo poderá ser muito bom para vocês, por isso, é uma parvoíce discutir sobre contratos assinados e todas essas tretas.
Luther Empt disse que, bem, talvez um contrato assinado não fosse absolutamente necessário, mas que ficaria muito mais descansado se o empréstimo pudesse ser-lhes concedido antes de a nova fábrica ser adjudicada a um empreiteiro e o equipamento encomendado,
Santangelo disse que claro que sim, que o dinheiro podia ser entregue imediatamente. No dia seguinte, se Empt desejasse.
- E nem sequer pediremos recibo - disse ele, mostrando os dentes.
Luther disse que por ele estava bem, e todos tomaram outra bebida.
Depois, Luther disse que, logo que a empresa tivesse alvará, e fosse montado um escritório, começariam a construir a fábrica a oeste do distrito de Broward.
Santangelo perguntou em que arquitecto e empreiteiro é que Empt estava a pensar para a fábrica.
Luther replicou que havia várias firmas locais boas com que já tinha trabalhado antes. Rocco Santangelo disse que gostaria de recomendar um construtor sediado em Miami, cujo trabalho conhecia bem. Os seus preços eram razoáveis e cumpria sempre os prazos.
Luther disse que preferia entregar o trabalho a empreiteiros seus conhecidos no distrito de Palm Beach.
Santangelo disse que consideraria um favor pessoal se Empt acedesse em usar o construtor de Miami.
Empt disse que isso estava fora de questão. Disse que ele e os sócios estavam a arriscar três vezes a quantia que ia ser emprestada por Santangelo, e associados, e que tinham de ter autorização
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para tomar decisões de negócios que considerassem ser do seu interesse.
Santangelo disse que era verdade, mas que neste caso particular tinha de insistir para que Empt e os sócios concordassem com o que ele queria. Havia motivos que
ele não podia explicar, mas era essencial empregarem o construtor de Miami.
Empt, começando a ficar irritado, disse que não, nem pensar. Eles escolheriam o construtor.
Depois, fez-se silêncio. Naquele momento, Holloway pensou que o negócio estava prestes a desfazer-se. Os olhos de Santangelo estavam, se possível, mais frios e mais
vazios do que antes. E o rosto de Empt reflectia a sua raiva teimosa.
Mas, depois, Ronald Bending falou arrojadamente. Se não estava enervado e divertido, era a impressão que dava.
- Cavalheiros, parece-me que não estão a dar a devida importância ao que está em jogo aqui.
Os dois visitantes voltaram-se lentamente para ele.
- O sul da Florida não é Nova Iorque - disse-lhes ele. - Há imensas cidades pequenas, e os distritos são tão importantes como elas. Toda a gente se conhece. Todos recebemos a roupa suja uns dos outros. Todas as pessoas de dinheiro se conhecem umas às outras ou têm amigos comuns. Quando se vai construir alguma coisa... uma casa, uma fábrica, uma piscina, seja o que for... recorre-se às gentes locais. A um amigo, ou ao amigo de um amigo. É assim que compramos um carro e fazemos o seguro. É assim que gastamos o nosso dinheiro. Compreende? É tudo local. Assim, não se fazem muitas perguntas. Ninguém fica muito curioso. Ninguém fica com inveja. Estamos a pagar as nossas obrigações. Estou certo, Bill?
- Certíssimo - disse Holloway.
- Mas - continuou Turco Bending suavemente - trazemos um construtor de Miami e as pessoas daqui ficam chateadas. "Qual é o problema, não somos suficientemente bons para vocês?" É isso que eles vão dizer. Depois vão começar a perguntar: "Afinal, que diabo é que vocês estão a construir?" E muitos desses tipos são políticos locais. Vamos precisar de favores... sabem? Licenças e alterações e muito mais coisas. Por isso, que vantagem teremos em irritá-los? Vamos encarar a questão: não estamos a construir uma biblioteca pública; vamos produzir pornografia. Por isso, não faz sentido sermos discretos? E fazemos isso espalhando os dólares localmente. Não queremos que os nossos vizinhos se aborreçam connosco antes mesmo de começarmos.
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Os três sócios olharam para Rocco Santangelo. Ele virou a cabeça para o companheiro.
- Está bem - disse Jimmy Stone numa voz baixa e átona.
Depois disso, todos se descontraíram e tomaram outra bebida. Fizeram-se preparativos para a entrega dos duzentos e cinquenta mil dólares em dinheiro a Empt. Deram-lhes um número de telefone de Miami onde poderiam ser deixadas mensagens para Santangelo. Ele prometeu que retribuiria rapidamente os telefonemas.
Empt sugeriu que, enquanto a fábrica estivesse a ser construída e o equipamento encomendado, podia começar a processar filmes porno na fábrica que já tinha. Isso serviria, segundo disse, de teste e daria uma experiência valiosa para a altura em que iniciassem a produção em pleno.
- Começaremos com cassetes - disse ele. - Depois, se os novos discos tiverem boa aceitação no mercado, acrescentaremos processadores de discos. O mais importante é mantermo-nos no topo do mercado, mas sem pormos todos os ovos num cesto.
Santangelo aprovou aquela abordagem cautelosa e disse que mandaria entregar uma cópia de um novo filme porno na semana seguinte. Era um filme de vinte minutos, a cores, e chamava-se Borrachinhos Adolescentes.
A reunião acabou pouco depois. Todos apertaram calorosamente as mãos e prometeram manter -se em contacto. Passavam apenas alguns minutos das onze da noite.
Eles tomaram uma última bebida depois de os visitantes se irem embora. Empt bateu no ombro de Bending com uma mão forte, chamou-lhe "velho amigo", e disse que tinha tratado do assunto do construtor local de uma forma perfeita.
- Como eu te disse - disse ele, rindo -, tretas, tangas, miolos.
- Luther - disse Bending -, o que eu lhes disse é verdade. Queremos manter-nos discretos nesta coisa, e a forma mais fácil de manter toda a gente feliz é espalhar o dinheiro pelas redondezas para ninguém começar a fazer perguntas.
- Ah - disse Empt com voz grossa -, quem é que quer saber o que esses nabos pensam?
William Holloway levou Bending para casa. De novo, os dois homens mantiveram-se em silêncio, embrenhados nos seus pensamentos.
Era uma noite perfumada, suficientemente fresca para desligar o ar condicionado e abrir os vidros. Enquanto se dirigiam
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para leste, deixaram de sentir os odores fortes e húmidos da terra e cheiraram a frescura pungente do mar.
William Jasper Holloway sentiu uma vaga repulsa por aquela cena melodramática. Era tudo, terra e mar, demasiado exuberante. Ofendia as suas sensibilidades da Nova Inglaterra. Em todo o Estado da Florida, não havia nenhum obstáculo decente.
Ele desejava ordem e tradição. Teria gostado de limites. Disciplina, castigo e culpa. Mas, afinal, era um devasso, um homem envolvido com Borrachinhos Adolescentes, e não conseguia compreender o que o trouxera para aquele lugar.
Dizia-se que, numa nova Idade do Gelo, toda a Florida ficaria submersa. Holloway sentia uma triste satisfação com essa previsão. Não queria pensar que a mesma catástrofe afogaria a sua amada Boston. Era suficiente desejar a chegada do dia em que toda aquela indolência sonhadora desapareceria.
Todas as mulheres de Luther Empt, tanto esposas como putas, eram tão impudentes como ele. Todas regateavam. Ele não era um homem introspectivo; nunca lhe ocorreu que procurava mulheres assim. Mas sentia-se feliz com as profissionais, as mulheres que sabiam fazer um acordo. Respeitava-as.
Isso simplificava as coisas. Livrava-o de coisas intangíveis como afeição, responsabilidade, amor. Levava as suas relações pessoais ao essencial. Números. Lucro ou prejuízo. Algo que ele conseguia compreender.
Estava contente depois da reunião com os tipos da mafia. Ia ser um negócio fácil. E acabara antes da meia-noite. Tinha muito tempo...
Levou o uísque por beber para o seu Cadillac Seville branco. Pagaram a conta na recepção do hotel com cartão de crédito. Seria tudo descontado à nova empresa. Ele não era nada parvo. Pouco antes da meia-noite, dirigia-se para sul na Estrada Federal, com as janelas abertas, e uma cassete a tocar rock suave. Alargou um pouco o nó da gravata e abriu o colarinho.
-Amanhã der Vurld! - gritou, numa pesada pronúncia alemã, e riu-se estrondosamente.
Calculou que já tinha ido a todos os bares de engate rascas em Palm Beach e no distrito de Broward. E, às vezes, ia mesmo até Dade. Agora, dirigia-se para um dos seus retiros preferidos: um
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bar com dançarinas nuas a oeste da 1-95, em Atlantic Boulevard. Normalmente, ali tinha sorte.
Era o tradicional cabaré da Florida. Chãos de madeira estalada. Empregadas de bar em topless. Anúncios de cerveja em néon. Mesas de plástico. Jukebox barulhenta. Criadas de mesa com meias de rede pretas. Uma multidão ruidosa de trabalhadores rurais, turistas, vigaristas, passadores de droga - de tudo. Luther Empt adorava aquilo: o fumo, o barulho, o cheiro - tudo.
Era suficientemente esperto para saber que era um homem de gostos grosseiros e apetites ordinários. Os elegantes salões de cocktails de Palm Beach eram uma treta.
A sua casa - a "villa da Costa de Ouro" - era uma treta. Aquele lugar, onde os homens iam à procura de mulheres com quem pudessem foder, é que era verdadeiro. Tudo o resto era uma treta.
Abriu caminho até ao bar. Pediu um Cutty duplo à empregada do bar cujos seios nus pareciam panquecas mal passadas. Depois, olhou em volta para observar a acção. Nem sequer deu uma olhada à dançarina nua que abanava a cicatriz do apêndice ao ritmo de Want to Love You, Baby.
Havia miúdas nas mesas e ao balcão. Já tinha comprado algumas delas antes. Quando elas olhavam para ele, acenava-lhes negligentemente. Raramente comprava o mesmo
corpo duas vezes. Se Luther Empt soubesse que a mulher considerava o sul da Florida um paraíso, teria concordado com ela - mas por um motivo diferente.
Havia duas mulheres bem vestidas sentadas sozinhas a uma mesa. Trinta e tal anos, calculou ele. Não eram da cidade. Todas aperaltadas, presas em vestidos de brocado
sem ombros. Muito ouro e pérolas. Ali havia dinheiro, pensou ele; estavam a tentar parecer divertidas e superiores.
Empt tinha ido a um cocktail depois de um jogo de ai Alai1 em Dania. Estava lá um britânico com dentes salientes que não saía do balcão do bar. Era um homem alto
e desajeitado, não sóbrio, que parecia ter um interminável rol de anedotas, a maior parte das quais sem interesse para Luther. Mas lembrava-se de uma delas...
O inglês tinha dito que, há alguns anos, havia uma altiva duquesa na Grã-Bretanha que, num grande baile, foi abordada por um conhecido e muito rico dissoluto. O
libertino, de forma bastante séria, perguntou à brazonada senhora se iria para a cama com ele por um milhão de libras.
1 Jogo semelhante à pelota, jogado com cestos de verga grandes. (N. da T.)
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Ela pensou durante alguns momentos, corando, e depois disse:
- Sim.
- E iria por duas libras? - perguntou o homem.
- Senhor! - exclamou ela, levantando-se. - Por quem me toma?
- Já estabelecemos isso, minha senhora - disse o libertino.
- Agora estamos apenas a tentar determinar o preço.
Luther Empt achava que aquela era uma das histórias mais engraçadas e mais verdadeiras que alguma vez ouvira. Acreditava implicitamente nela, pois confirmava aquilo que ele já sabia. Todas as mulheres tinham o seu preço. Casamento ou dinheiro - que diferença é que fazia?
Agora, olhando para as duas turistas elegantemente vestidas, perguntou a si mesmo qual seria o preço delas. Suspeitava de que era o contrário; estavam à procura de rapazinhos de praia, de pilas novas, e pagariam. Bem... por que não? Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Havia mais alguma coisa?
Virou-se de novo para o bar. Ao fundo da sala, dirigindo-se lentamente para onde ele estava, vinha uma jovem mulher, na verdade uma rapariga. Coxeava de uma perna mirrada. Não era uma boazona, oh, não, mas um passarinho com a asa ferida, ansiosa e esperançada.
Ele olhou pelo espelho da parede do bar. Viu a sua figura forte, brutalmente atraente e não desgostou da imagem. Os seus olhos desviaram-se para o reflexo da rapariga aleijada.
Ela arrastava-se lentamente, parando junto de cada homem ou grupo de homens no bar cheio. A maior parte deles bebiam cerveja com gelo. Falava repetidas vezes com um sorriso determinado, e recebia como resposta uma forte gargalhada, um aceno de cabeça ou simplesmente silêncio.
Ela aceitava essas rejeições sem rancor e continuava. Empt viu-a aproximar-se com um interesse moderado. Pensou que talvez ela estivesse a pedir que lhe pagassem uma bebida ou a solicitar fundos para uma obra de caridade falsa. Quando, por fim, ela parou junto ao seu ombro, ele girou no banco alto para inspeccionar aquela vagabunda.
Uma cara em forma de caixão emoldurada por cabelos pretos e brilhantes. com risco ao meio, caindo direito com madeixas brilhantes, a grande massa de cabelos era a sua característica mais atraente, mas fazia o seu rosto pálido parecer ainda mais estreito. O rosto de uma mulher a afogar-se.
Os olhos eram escuros e brilhantes, o nariz pequeno, lábios finos. O corpo era magro, quase frágil. Usava uma camisa branca
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de homem, bastante limpa, e uma saia traçada, de ganga, presa com um cinto barato.
Sandálias em pés ossudos.
E, depois, claro, havia a perna aleijada. Não estava torta, nem com cicatrizes, nem nada do género, mas atrofiada - um osso coberto de pele.
Olhou para Luther com um sorriso corajoso.
- Posso acomodar-te? - perguntou, suavemente.
Ele quase se engasgou com o riso. Achava que já tinha ouvido todos os engates das putas, mas aquilo era algo novo.
- Acomodar-me? - perguntou ele. - Como?
- Como quiseres - disse ela, ainda a sorrir. - Como quiseres.
Ele inclinou-se mais para ela.
- Quanto?
- Vinte. Uma hora.
Tomou imediatamente uma decisão, e durante o resto da sua vida não saberia dizer porquê.
- Espera por mim lá fora-disse, em voz baixa. - Cinco, dez minutos.
Ela assentiu e virou-se para o outro lado. No espelho do bar ele observou-a a coxear para a saída. Tão magra! Um palito. Terminou lentamente a bebida. Nem por sombras ia ser visto a sair com ela.
Já se sentia envergonhado com a sua decisão, e chamou a si próprio louco varrido. Consolou-se com o pensamento de que podia ser divertido, algo diferente, uma história para contar nos vestiários do clube.
Pagou a conta e saiu, casualmente, em passo descontraído. Lá fora, olhou em volta e viu-a na sombra de um grupo de palmeiras. Aproximou-se dela, acendendo um cigarro enquanto caminhava. Ela ficou feliz quando o viu.
- Tinha receio de que me deixasses aqui à espera - disse ela com um sorriso tímido.
- E por que é que eu quereria fazer uma coisa dessas? - perguntou ele, e pegou-lhe no braço frágil. - O meu carro está aqui.
- Podemos ir para minha casa - ofereceu ela. - Em Pompano. Não é longe.
- Não, obrigado - disse ele. Ele nunca ia para as casas ou para os apartamentos delas. Havia muitas hipóteses de um marido ou um namorado sair de um armário com um ferro na mão.
- Conheço um motel aqui perto. Televisão no tecto. - Riu-se sem alegria.
Não estava a mentir sobre aquilo. E, por um preço extra,
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podia-se ter um colchão de água e filmes pornográficos. Ele não alinhava nessas coisas. Tudo o que queria era uma cama simples e dura. Não precisava de ajudas. Nem de fantasia.
- Que carro tão bonito - sussurrou ela, afundando-se no assento forrado a pele.
- Sim - disse ele -, não é mau. Como é que te chamas?
- June - disse ela. - E tu?
- Bill - disse ele, sentindo uma alegria perversa por usar o nome de Holloway.
O quarto do motel tinha poucos móveis, mas estava limpo. O ar condicionado funcionava. As toalhas eram grossas. Havia uma tira de papel no tampo da sanita, provando categoricamente que esta fora desinfectada. Os copos para beber estavam dentro de pequenos sacos de papel.
- Isto é agradável - disse ela, olhando em volta.
- Sim? - disse ele, surpreendido, perguntando a si mesmo a que é que ela estaria habituada.
Certificou-se de que a porta estava fechada à chave e tinha a corrente, e que as persianas estavam bem fechadas. Não estava ninguém escondido na casa de banho ou no roupeiro; ele verificou.
- Queres as luzes acesas ou apagadas, Bill? - perguntou ela.
- Acesas - disse ele. Queria ver aquele esqueleto.
- Queres que tire a roupa?
- Sim.
- Queres que me dispa ou despes-me tu?
-Despe-te tu - disse ele, comovido pela sua obsequiosidade ansiosa.
Tirou uma nota de vinte da carteira e entregou-lha. Pagava sempre adiantado. O negócio estava selado.
- Obrigada, Bill - disse ela, grata.-Tu és muito simpático.
- Sou? - perguntou ele.
Sentou-se na única cadeira que havia no quarto e ficou a vê-
-la despir-se.
"Meu Deus", pensou ele, "ela é uma criança!"
Tinha calculado que a idade dela devia rondar os vinte e cinco,
vinte e sete - por volta disso. Mas, agora, ao ver emergir o corpo
magro, quase sem formas, teve um súbito receio de que ela fosse
menor de idade.
- Quantos anos tens, June?
- Vinte e três - disse ela. - No próximo mês. Ele sentiu-se melhor.
- Tens um corpo bonito - disse ele.
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Ela sorriu, envergonhada.
- Não tenho muito aqui - disse ela, apologeticamente.
- Não faz mal - ouviu-se a si próprio dizer. - Não te preocupes com isso.
Ela era tão branca, tão branca. Uma mancha cor-de-rosa nos mamilos, um triângulo de ébano por debaixo da suave barriga. Mas o resto dela intocado pelo sol e até, podia pensar-se, pelo ar, pois a pele era tão fina como a lactência de tecidos crescidos nas sombras.
Ela aproximou-se e parou diante dele, nua, de cabeça baixa, os braços caídos ao longo do corpo: a criança penitente a pedir perdão. Os cabelos negros cobriam-lhe o rosto e caíam para a frente, escondendo os pequenos seios.
Ele pousou desajeitadamente uma mão naquela anca ossuda. A sua pele era fresca e límpida. A carne rendeu-se, não resistindo aos dedos dele. Ele pensou que ela podia ficar com as marcas dos seus dedos.
- June - disse ele em voz rouca -, tens nluito frio? - E espantou-se com a sua solicitude.
- Não - disse ela -, estou bem. Queres que te dispa?
- Não, eu faço isso - disse ele, pondo-se de pé. - Deita-te
na cama.
Mas ela sentou-se à cabeceira da cama e ficou a vê-lo despir-se com olhos sérios. Quando ele tirou os shorts, estava quase erecto.
- Es muito grande! - disse ela.
Ele não respondeu; aquilo era conversa de puta. Parou defronte dela. Ela pegou-lhe no pénis com uma mão suave.
- Bill - disse ela num tom sério -, posso pôr-me de costas, se é o que queres. A sério que posso. Mas não consigo puxar os joelhos até cima. A minha perna... sabes? Mas posso pôr-me de gatas facilmente e podes fazê-lo à cão. Se não te importas, Bill. Se não, posso deitar-me de costas.
- A cão é, é... - disse ele, e depois sentiu alguma coisa na garganta. Ficou parado, a tentar respirar. Tinha os dedos enredados nos brilhantes cabelos dela.
Ela tocou-lhe levemente. Acariciou-o. Acalmou-o. Olhou intensamente para o que estava a fazer, depois olhou para o rosto dele com os olhos muito abertos.
Devia ter visto alguma coisa neles, porque parou com as carícias, pôs-se de pé, virou-se e ajoelhou-se na cama. Inclinou-se bastante para a frente, pôs os antebraços e a bochecha em cima
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do cobertor. Afastou o cabelo do rosto; os seus olhos rolaram para trás para o ver.
Ele aproximou-se até estar entre os seus tornozelos, um normal e um atrofiado, suspensos ao fundo da cama. Pôs as mãos nas ancas dela e baixou os olhos para o corpo suplicante. O pescoço comprido caía para a frente, humildemente. Os ossos dos ombros estavam espetados. A coluna era uma fila de pedras. Uma cintura que ele podia rodear com as suas mãos grandes. Nádegas frágeis.
Ele passou um dedo pelas costas dela, tocando cada uma daquelas pedras. Ela tremeu.
- Podes afastar os joelhos? - disse ele com voz rouca. - Um pouco?
Ela fez o que ele lhe pedia e ele tocou-a, explorando. Os olhos negros dela fecharam-se um pouco e os lábios pálidos abriram-se.
- Oh - disse ela, sonhadora. - Oh, obrigada.
Era tão pouco comum nele, e ele sabia-o: ser gentil e carinhoso. Antes, fora sempre um homem de usar e deitar fora, atento unicamente ao seu prazer.
Agora estava a ser carinhoso e concentrado, sentindo-a, os seus dedos perscrutadores a explorá-la.
- Aqui? - perguntou ele. - Aqui?
- Um pouco mais acima - murmurou ela. - Oh, sim, Bill. Aí. Sim.
Sentiu humidade, macieza e fez força para a frente. Ela esticou uma mão para o guiar. Ele penetrou-a. Ela respirou um som: meio gemido, meio soluço, tudo felicidade.
- Estás bem? - perguntou ele.
A cabeça dela assentiu no cobertor, agora com os olhos fechados. Ele continuou lentamente, segurando-lhe as ancas, debruçado sobre aquele suave corpo, inclinado em submissão.
Uma vez, quase saiu de dentro dela, mas ela protestou e suplicou:
- Não saias de dentro de mim.
Assim, ele chegou-se mais para ela, apertando-a, e ela mexeu-se em minúsculos balanços. Ele começou, parou, começou, parou, até já não poder parar, e com olhos meio fechados, a boca bem aberta, castigou-a com o seu peso e força.
Quando se veio, empurrou a pélvis para a frente, arqueou as costas e uivou silenciosamente para o tecto. Depois, estremecendo, vazio, caiu para a frente, desmoronando da cintura para cima para a cobrir com o seu pesado tronco e enterrar o rosto naquela massa de cabelos que cheiravam a amêndoas.
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Sentiu o bater frenético do seu coração: um som assustador. Engoliu ar, expeliu-o. O seu corpo queimava de febre e, no fundo da barriga, sentiu um formigueiro quase quente, como se tivesse um dedo a fazer-lhe cócegas naquele sítio.
Alguns momentos depois, disse ansiosamente:
- Estás bem?
Ela assentiu, agora com os olhos abertos, e disse:
- Por favor, não saias de dentro de mim. Ainda não.
- Estou a fazer muito peso em cima de ti?
- Não. És maravilhoso! Deixa-te estar onde estás. Só um minuto. Por favor.
Assim, ele deixou-se ficar desajeitadamente em cima dela, as pernas peludas estendidas atrás de si, as unhas dos pés enterradas no cobertor velho. Pensou que devia estar a esmagá-la, mas ela não se queixou. Em vez disso, estendeu os dois braços e puxou-o mais para si.
Por fim, ele tocou na ponta do nariz dela- com um dedo. Quando os olhos negros se viraram para olhar para ele, ele disse:
- vou levantar-me agora. Ela assentiu.
Ele levantou-se com alguma dificuldade, cambaleou e quase caiu. Foi para a casa de banho e fechou a porta. Olhou para si mesmo no espelho do armário dos remédios. O seu rosto forte estava ruborizado, um pouco, mas não havia nenhum sinal óbvio do que ele tinha sentido, nenhuma transfiguração.
Lavou o rosto, as axilas, os órgãos genitais com um daqueles sabonetes minúsculos de motel. Limpou-se, urinou e saiu da casa de banho. Ela estava de pé, ao lado da cama.
- Não demoro nada - disse ela, sorrindo-lhe sonhadoramente. Quando passou por ele e antes de a poder impedir, pegou-lhe na mão e beijou-lhe os duros nós dos dedos. Depois, foi para a casa de banho.
Ele devia ter-se vestido. Devia ter estado pronto para ir embora quando ela saiu da casa de banho. Devia tê-la levado de volta para o cabaré ou para onde ela quisesse ir. Devia ter-se livrado dela.
Quando ela saiu da casa de banho, ele estava sentado na cabeceira da cama, ainda nu. Estendeu-lhe outra nota de vinte.
- Toma - disse ele, sem olhar para ela. - Mais uma hora. Ela aceitou o dinheiro, hesitante, mas aceitou. Meteu-se na
cama. Ficaram deitados, lado a lado, sem se tocarem.
- Qual é o problema da tua perna? - perguntou ele, asperamente.
- Nasci assim.
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- Não conseguiram curá-la?
- Não. Não sei. Talvez. De qualquer forma, não se fez nada.
- Que pena - disse ele.
Ela virou-se de lado, aninhou-se junto dele e beijou-lhe o ombro carnudo.
- Gostas de mim, Bill? - perguntou ela.
- Sim. Claro.
- Eu gosto de ti. Muito.
- Tenho idade para ser teu pai.
- Eu nunca tive um pai.
O riso dele foi quase um ronco.
- Toda a gente teve um pai.
- O que quero dizer é que nunca conheci o meu. Ele fugiu de casa quando eu ainda era pequenina. Mas eu não podia fugir...
- acrescentou ela tristemente.
Aquela conversa perturbou-o.
- Como é que vives-perguntou-lhe ele. - Quero dizer, em relação ao dinheiro. Consegues aguentar-te?
- Oh, sim. Não preciso de muito.
- Não tens filhos?
- Oh, não. Nunca fui casada.
Ele esteve quase a dizer-lhe que não precisava de ser casada para ter filhos, mas calou a boca. Ela aproximou-se mais dele, pousou os lábios no seu ouvido.
- Sabes o que gostava de fazer? - sussurrou ela.
- O quê?
- Gostava de fazer amor contigo. Por favor?
- Está bem.
- Fica deitado - disse ela. - Fecha os olhos e finge que estás a dormir. Está bem? Sabes, como se eu me tivesse esgueirado para o teu quarto. Tu finges que estás a dormir e que nem sequer sabes que eu entrei no teu quarto. E nem sequer te mexes nem nada, e eu faço amor contigo.
"É doida", pensou ele. "Uma doida encantadora!"
- Está bem - disse ele de novo.
- Fecha os olhos - disse ele. - Não os abras, está bem? Ele fechou os olhos. Deitou-se relaxadamente, com os braços
ao longo do corpo.
Os dedos dela tocaram-lhe na testa, acariciando-o. Percorreram-lhe o rosto, carregaram delicadamente nos olhos fechados. Na boca. Por debaixo do queixo. Um toque
leve. Um toque de borboleta. Atrás das orelhas. No pescoço.
Ouviu um ligeiro chiar das molas do colchão. Depois uma língua húmida e quente entrou na sua orelha, contorcendo-se. Ele
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apertou os punhos para não se mexer. Dentes de gato morderam-lhe levemente o lóbulo, lábios sugaram ferozmente.
Dedos quentes passearam-lhe pelos ombros e pelo peito, puxando suavemente os seus pêlos grossos. Dedos quentes flutuaram por cima do seu estômago, mergulharam no umbigo. Dedos quentes acariciaram-lhe as ancas, escorregaram para as coxas fortes.
E tudo tão lentamente, tão lentamente e tão amorosamente, que ele pensou que era um sonho, e que estava realmente a dormir. Queria que aquele sonho durasse eternamente.
Lábios e uma língua amorosa seguiram os dedos, e sentiu-se começar a endurecer e a ficar erecto. Uma mão suave estava entre as suas pernas, uma boca quente estava em cima dele, molhada e macia.
Manteve os olhos resolutamente fechados. Sentiu o calor a desaparecer, momentaneamente, quando cabelos tão leves como penas varreram para cima e para baixo o seu rosto, os mamilos, o tronco, as virilhas, as pernas. Sentiu-se suspenso no ar.
Depois, a boca perscrutadora voltou, a língua ocupada. Ele não lhe tocou. Não lhe tocou uma única vez. Ouviu os gemidos dela. A sua própria respiração ofegante. Sentiu o aumento de ritmo do seu coração, sentiu o profundo desejo crescer cada vez mais e mais.
Ela era tão lenta, tão deliberada. Era um castigo doce que não se conseguia suportar. E, quando já não conseguia aguentar e ejaculou, ela devorou-o, engolindo ruidosamente, soluçando, gemendo, e ele não podia acreditar que aquilo fosse a paixão fingida de uma puta. Depois:
- Engoli até à última gota! - exclamou ela, triunfalmente.
Mais tarde, movendo-se como se estivessem drogados, lavaram-se novamente. Vestiram-se lentamente, sem falar, mas sorrindo timidamente um para o outro.
Quando voltaram para o Cadillac branco, ele perguntou-lhe onde queria que a deixasse.
- Onde nos conhecemos?
- Oh, não - disse ela. - Gostaria de ir para casa, por favor. Não é longe.
Era a oeste da Federal, alguns quarteirões a norte de Atlantic Boulevard. Havia um supermercado enorme e, atrás, blocos de casas pequenas e em bom estado, com alguns barcos ou atrelados estacionados nos acessos. A casa de June tinha um limoeiro à frente e uma sebe de palmeiras anãs.
- Não tenho a casa toda, claro - explicou ela. - Mas tenho um pequeno apartamento só para mim. Na verdade, é apenas
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uma espécie de quarto-sala de estar, com uma casa de banho só para mim. E o melhor de tudo é que tenho uma entrada independente na parte lateral, por isso posso entrar e sair à vontade.
- E cozinhar? - perguntou-lhe ele.
- A maior parte das vezes como fora - disse ela, e ele calculou que ela estaria a referir-se ao McDonald s, ao Burger King, ao Lum s e ao Long John Silver.
Ele tinha estacionado na berma da estrada e desligara os faróis. Ficaram sentados no meio da escuridão enquanto ela lhe contava tudo aquilo. Ela abraçou-lhe o braço no meio dos pequenos seios.
- vou voltar a ver-te? - perguntou ela.
- Claro. Por que não?
- Eu tenho telefone - disse ela, alegremente. - Queres ficar com o meu número?
- Claro.
Procurou no porta-luvas e escreveu o número do telefone dela no cimo de um mapa de estradas da Mobil.
- Vais telefonar? - disse ela. - Por favor?
- Claro.
- Quero agradecer-te - disse ela com simplicidade -, por uma noite maravilhosa.
"É doida!", pensou ele, novamente. "Uma doida amorosa." Agora estava a trazê-la a casa, depois do baile de finalistas. Girou e sentou-se de lado, tirou a carteira
do bolso das calças, pescou a terceira nota de vinte da noite.
- Toma - disse ele, pondo-lhe a nota na mão. - Compra alguma coisa bonita para ti.
- Obrigada, meu senhor - disse ela, alegremente. - Fico muito agradecida.
Tal como a sua decisão inicial de ir com ela tinha sido irreflectida, também agora se inclinou de súbito para a fente para beijar os lábios da sua puta. E que espécie de idiota fazia uma coisa daquelas?
- Oh! - exclamou ela. - Oh, Bill!
Depois os braços dela rodearam-lhe o pescoço e ela começou a puxar a cabeça dele para perto de si, e a sua boca colou-se à dele. Ele resistiu alguns instantes e depois rendeu-se. Apertou-a com força. Colou-se a ela, provando a sua boca de criança macia e dócil.
Ela afastou-se e contemplou-o na escuridão.
- Telefonas?
Ele assentiu entorpecidamente. Depois, ela saiu do carro. Fechou a porta com cuidado. Inclinou-se e espreitou pela janela
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aberta. Beijou a palma da mão e depois soprou-lhe um beijo. Ele acenou. Ela coxeou lentamente para a parte lateral da casa. Depois desapareceu.
Ele voltou para casa às duas da manhã com uma dor persistente e preocupante, como um espanto dorido depois de levar um pontapé de um estranho. Aqueles olhos luminosos - não conseguia compreender o que acontecera, o que estava a acontecer-lhe.
Nada na sua vasta experiência com mulheres de engate impudentes o preparara para aquilo. Ela podia fazer vinte e três anos no mês seguinte mas era uma criança, uma criança-puta. E era, pensou tristemente, um ano mais nova que a sua filha mais velha.
Uma doida, sem dúvida. Havia ali alguma coisa errada. A capa tinha escorregado. Não muito, mas um pouco. Tinha um modo cuidado de falar. Tinha-lhe chamado "meu senhor" e dizia "por favor". E ele adorara. Por que não admitir - adorara.
Bem... talvez a palavra certa não fosse adorar, mas ficara excitado. Ela excitava-o. Uma coxa. Estava apanhado por uma coxa. Que diabo é que se passava?
Conseguia reconhecer a fraqueza que se mascarava de força e aproveitar-se dela. Mas ali havia uma vulnerabilidade franca e abjecta, uma cachorrinha de barriga para cima, implorando uma carícia. Estremeceu ao recordar aquelas suaves costas brancas curvadas à sua frente como se ela estivesse a rezar, a adorar.
Furioso, abanou a grande cabeça. Não havia nada que ela não fizesse; estava convencido disso. "Chupar os meus dedos dos pés, lamber o meu cu e tudo o resto. E se
trouxesse alguns tipos para uma geral, ela também alinharia."
Evidentemente, que nunca o faria. No entanto...
Ele nunca articulara o princípio do dinheiro como poder, embora o sentisse. Mas, agora, lutando com pensamentos e emoções demasiado complexos para compreender, percebeu que o que ali estava envolvido era mais do que dinheiro. Tinha sido forjada uma cadeia de acontecimentos. Ela apanhara-o pelos cojones e não o deixaria partir.
Resolveu esquecer o que acontecera, deixar tudo acabar. Era, como ele antecipara, um gozo, uma coisa diferente, uma história para contar nos vestiários do clube. Uma noite louca. Uma recordação divertida. Iria ser assim.
Teve de sair do carro para abrir aqueles estúpidos portões de ferro forjado que davam acesso à propriedade. Viu que havia uma única luz fraca numa sala do rés-do-chão. Estacionou o Cadillac
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no grande telheiro , ao lado doLTD preto de Teresa. Trancou-o e começou a encaminhar-se para casa.
Depois voltou atrás e tirou o mapa de estradas da Mobil do porta-luvas.
Teresa Empt e Grace Bending eram ambas criadoras de casas
- mas de formas diferentes.
Teresa via a sua casa como um local de luxo, um espantoso cenário de filmes. Depois de a criar, trouxe a sua visão para a realidade e ficou satisfeita por deixar
a manutenção a cargo dos empregados. Era mais uma curadora do que uma dona de casa.
Para Grace, a sua casa era um ambiente, o castelo da família, uma escola para os seus três filhos. Era um santuário. Quase uma igreja. Ás tarefas domésticas eram um dever reconfortante. Havia um elemento de expiação que ela não reconhecia.
No princípio de Outubro, Grace e uma criada contratada à hora a uma agência de empregos temporários deram a volta à casa como um furacão. De vassoura e esfregona, aspirador e panos de pó, sabão e detergentes, ceras, polimentos, desinfectantes e desodorizantes de ambiente.
Quando terminaram, pouco antes das duas horas da tarde, a casa brilhava, com roupas lavadas, cheirando como um pomar de macieiras. Grace tomou um duche, mudou de roupa interior, vestiu um conjunto de calças e casaco em polyester branco acabado de chegar da lavandaria. Sentou-se para descansar, durante uma hora. Depois, teria de ir buscar Harry e Lucy à escola. Wayne sairia mais tarde e apanharia o autocarro da escola.
A casa dos Bending não era tão luxuosa como a dos Empt nem tão vistosa como a dos Holloway, mas Grace achava que estava decorada com melhor gosto do que as outras duas. Era - bem... talvez mais tradicional, mas era calma, dignificada, e tudo condizia.
Por exemplo, o sofá onde estava sentada tinha sido forrado com um tecido de musselina branco-amarelada. O mesmo tecido forrava uma cadeira de braços e era usado nos longos reposteiros da janela panorâmica e nas portas de vidro que davam acesso ao terraço.
O resto da sala de estar era século XVIII francês, com toques de
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reproduções douradas de anjos e flores por todo o lado. Até o aparelho de televisão estava dentro de um armário branco que a própria Grace decorara com videiras,
rosas e borboletas.
Calmamente sentada naquela estufa artificial, os cabelos loiros presos atrás da cabeça com uma fita azul, Grace Bending saboreou o momento de reflexão silenciosa em que poderia ponderar sobre os problemas dos filhos e sobre os seus problemas com o marido.
Estava convencida de que Ronald não tinha quaisquer problemas; passeava nas ondas como um surfista triunfante.
Quando a campainha da porta tocou, ela fez um pequeno som de descontentamento. Não devido à interrupção das suas reflexões mas devido ao som da própria campainha.
Parecia "Barba e corte de cabelo, duas coisas". Ronald tinha insistido em instalar aquela campainha de mau gosto.
Olhando pelo óculo da porta de carvalho, viu um homem gigante e completamente careca, de cor, mas claro, não mais do que bege, mas inegavelmente negro, de pé, muito direito com uma cintilante mala de cordovão a seus pés. Usava um fato de alpaca preta qu e brilhava ao sol, camisa branca, limpa, e gravata preta estreita como uma fita.
Abriu ligeiramente a porta, com a corrente presa.
- Sim?
- Minha senhora-disse ele, a voz de um diapasão profundo e penetrante -, peço imensa desculpa por vir incomodá-la. Gostaria de falar com a senhora sobre a saúde e o bem-estar da senhora e dos seus entes queridos.
- Sobre quê? - perguntou ela, desconfiada, falando através da abertura da porta com a corrente posta.
- Vitaminas - disse o gigante, mostrando uma boca cheia com trinta e dois dentes brancos. - Suplementos alimentares. O caminho para a boa saúde regenerativa, para uma vida mais feliz e mais recompensadora.
- Lamento - disse ela. - Nós já tomamos vitaminas. Todos nós. Todas as que precisamos.
- Não, minha senhora-disse ele, educadamente.-Não todas as que precisam. Está completamente elucidada sobre as exigências da nutrição? Comprimidos de luzerna? Soja? Ácido fólico? Adições essenciais para a dieta de hoje, que é deficiente em energia. A senhora poderá conceder-me um momento do seu valioso tempo? Por favor, mantenha a corrente na porta. Só queria deixar-lhe algumas brochuras, a quatro cores, em papel brilhante que a senhora poderá estudar nos seus tempos livres.
Quando ela não respondeu, ele inclinou-se rapidamente,
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abriu a exuberante pasta e tirou um molho de panfletos que enfiou pelo espaço aberto da porta, e que ela aceitou.
- São seus, para analisar nos seus tempos livres, minha senhora - repetiu ele naquela voz sensata. - E, se os achar interessantes, poderei pedir-lhe que os entregue
a outras pessoas? Minha senhora, eu represento a Good Life, Incorporated, uma organização não lucrativa, que se dedica a melhorar os hábitos alimentares, o estilo
de vida, e a moralidade nacional, poderia dizer-se, de todos os americanos na face da Terra. Para alcançar estes objectivos, nós...
Enquanto falava sobre deficiência de vitaminas, a impossibilidade de conseguir uma dieta equilibrada com alimentos já confeccionados, e a absoluta necessidade de suplementos para evitar a bilharzíase e outras doenças, Grace observou-o atentamente.
Era um homem confortavelmente balofo, com cerca de cinquenta anos, calculou ela. Tinha uma cabeça em forma de ovo, um corpo com o formato de uma pêra e uma barriga igual a um melão doce e redondo. Mas, apesar daquelas características desconcertantes, a sua dignidade era indiscutível.
Ele louvou as glórias dos comprimidos de luzerna, e os olhos dela desceram para a pasta aberta. Ali, aconchegada entre pacotes de brochuras a quatro cores de papel brilhante, estava um volume preto, com capa de pele, e a lombada tinha uma cruz em ouro e o título: Bíblia Sagrada.
- Como é que se chama? - disse ela rispidamente, interrompendo o seu monólogo.
- Osborn T. Fitch, minha senhora - disse ele, suavemente. Ela soltou a corrente e abriu-lhe a porta.
- Eu sou a Sr.ã Grace Bending - disse ela, severamente. Gravemente, ele fez uma vénia com a cabeça careca.
Na sala de estar, segurando a sua pasta aberta em ambos os braços, olhou em volta com olhos encantados.
- Uma casa esplêndida, Sra. Bending! - exclamou ele numa voz melodiosa. - Simplesmente esplêndida. Vejo amor em todos os cantos.
Ela resplandeceu.
Ele estava sentado e aceitou um copo de água fresca, embora ela lhe tivesse oferecido uma cola.
-Não tomo narcóticos, obrigado, minha senhora - disse ele.
Começou novamente a falar nos comprimidos de luzerna e ela voltou a interrompê-lo.
- Por que é que anda com uma Bíblia na pasta, Sr. Fitch? perguntou ela.
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Ele olhou para ela com um pequeno sorriso.
- A senhora nasceu de novo? - perguntou ele.
- Não. Não sei bem o que isso significa. vou à igreja. Presbiteriana. Ouvi falar de cristãos renascidos, claro. Mas não sei exactamente...
- Descobrir Nosso Senhor Jesus Cristo! - exclamou ele. Dedicar-Lhe a nossa vida, e descobrir nisso riquezas que nunca tínhamos conhecido antes, sonhos que nunca nos atrevemos a sonhar, uma nova vida de humildade, felicidade e glória.
Não eram tanto as palavras como aquela voz penetrante...
- O senhor é um pregador? - perguntou ela.
- Não ordenado - disse ele, humildemente. - Não, Sra. Bending, não sou. Não tenho uma posição oficial, como se poderia dizer. Mas lidero um... um grupo muito informal. Hesito em usar a palavra "igreja".
- Fale-me sobre isso - disse ela.
Ele contou-lhe. Era um encontro de cristãos renascidos que se reuniam duas vezes por semana. Normalmente, em casa de um dos membros, ou, ocasionalmente, num armazém, numa garagem, uma vez num parque de estacionamento.
- É muito informal - disse ele, com um tom de riso na voz.
- Muito pouco estruturada. Pretos e brancos. De todas as idades. Talvez tenhamos cerca de cinquenta numa reunião. Uma noite tivemos três. Podemos cantar um hino. Podemos testemunhar. Se um irmão ou uma irmã desejar testemunhar, podem
fazê-lo.
- Mas que é que o senhor faz, Sr. Fitch? - perguntou ela.
-Apoiamo-nos e confortamo-nos uns aos outros na fé. Aconselhamos e oferecemos amor. Fazemos o que podemos. Visitamos os doentes, os aflitos, os solitários e os desesperados. Não são necessárias ou pedidas contribuições monetárias. Os membros contribuem: dinheiro, roupas, coisas como garrafas de água e frigideiras, o que é preciso. Como disse, é muito pouco estruturada, e pretendemos mante-la assim.
- E o senhor é o ministro ou o pregador?
- Oh, não, minha senhora. Eu não ministro nem prego mais do que os outros membros. Talvez se possa dizer que eu sou um moderador. Sim, é verdade, eu esforço-me por
moderar. É esse o meu papel. De vez em quando leio excertos da Bíblia Sagrada. Para oferecer consolo àqueles de nós que sofrem, e esquecimento àqueles que pecam.
Não fazemos esforço para converter outros, a não ser que eles expressem primeiro esse desejo.
- Há quanto tempo é que este... ah... grupo existe?
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- Há cerca de um ano. Começámos com quatro membros. Agora, como disse, chegamos a ter cinquenta numa reunião.
- Brancos e pretos, disse o senhor?
- Oh sim, minha senhora. O nosso membro mais novo tem nove anos, o mais velho oitenta e seis. Eu digo "membros", mas não há lista, não há registos. Somos todos iguais
no amor de Jesus. É isso que sentimos.
- Sim - disse ela, examinando as unhas das mãos. Seguiu-se um momento de silêncio. Depois:
- Sra. Bending - disse ele suavemente -, gostaria de assistir a uma das nossas reuniões? Gararanto-lhe que seria muitíssimo bem-vinda.
Ela pensou na proposta.
- Seria difícil, Sr. Fitch. Tenho um marido e três filhos pequenos. As vossas reuniões são à noite?
- Sim, minha senhora. A maioria de nós trabalha.
- Seria difícil para mim sair nessa altura. Saio, uma vez por semana, para participar numa noite de orações na minha igreja.
- E em que dia é isso, Sra. Bending?
- Todas as quartas-feiras à noite.
- Na próxima vez que planearmos encontrar-nos numa quarta-feira à noite, eu podia telefonar-lhe. Se quisesse...
- Apenas para observar - disse ela, rispidamente.
- Claro, minha senhora - disse ele. - Apenas para observar.
Antes de sair, ela encomendou uma caixa de cem comprimidos de luzerna.
Ronald Bending, animado, até alegre, atirou-se para a cadeira defronte da secretária do Dr. Theodore Levin. Acendeu um cigarro com gestos teatrais. Olhou com algum divertimento para a estante de bonecos e jogos.
- Para que servem os brinquedos, doc? - perguntou ele. O Dr. Levin ligou o gravador.
- Por vezes, peço aos meus jovens analizandos para escolherem uma boneca, um brinquedo, ou um jogo para brincarem. Ocasionalmente, a escolha deles fornece uma pista
para os seus comportamentos.
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- Quer dizer que se um miúdo pegar numa metralhadora ou num machado de borracha, isso prova que ele é agressivo?
- Uma coisa assim. Bending fez um som abafado.
- Que pena não ter uma Barbie de tamanho real. Eu poderia estar interessado.
- Estaria?
- Estou só a brincar, doc, por amor de Deus.
- Hum-hum - murmurou Levin, ocupado a tirar o celofane de um charuto preto, cheirando-o, acendendo-o lentamente com um fósforo de cozinha.
Bending observou aquele ritual com um leve sorriso, depois, intencionalmente, olhou para o relógio de pulso.
- Quanto tempo é que acha que poderá demorar, doc? Não estou a referir-me a acender o seu charuto nesta sessão de hoje, mas a resolver o caso da Lucy.
- Não se importa que o trate por Ronnie? Bending respirou fundo e soprou o ar, lábios a tremer.
- Sim, importo-me. Não quero fazer um drama disso, mas a minha mulher é a única pessoa que me chama Ronnie. Detesto. Ronnie, por amor de Deus! Faz lembrar um miúdo de sardas e sem dois dentes da frente.
- Gostaria de lhe chamar Ronald, se me chamar doutor em vez de doc.
- Desculpe lá isso. Que raio... vamos chegar a um consenso; os meus amigos chamam-me Turco.
- Turco? Como é que arranjou esse nome?
- Não faço a mínima ideia. Mas tenho sido o Turco desde os meus dias de liceu. Que é que os seus amigos lhe chamam... Ted?
- Sim.
- Bem, por que não ficarmos Ted e Turco?
- Por mim, tudo bem.
Bending recostou-se confortavelmente, como se tivesse vencido um debate. Levin olhou para ele, os olhos esbugalhados atrás de óculos de lentes grossas. Como era costume, inclinou-se para a frente, o pescoço escondido nos ombros redondos. Bending suportou calmamente a inspecção.
- Disse à sua mulher? - perguntou o médico.
- O quê? - exclamou Bending, desmanchando a pose. Disse-lhe o quê?
- O que acha do nome Ronnie!
- Se disse! Mas fazer uma mulher mudar os hábitos é como fazer os Sphinx fraquejar. Por isso, acabei por desistir; dá trabalho de mais discutir sobre isso. Quando deitar terra sobre o meu
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caixão, vai dizer: "Adeus, Ronnie." Bem, chega de falar de nomes; voltemos à minha pergunta: quanto tempo acha que levará o tratamento da Lucy? Levin suspirou ruidosamente.
- Não posso dar-lhe um cálculo exacto.
- E uma estimativa? Uma estimativa por alto?
- O mínimo de um ano. Possivelmente... provavelmente mais tempo.
Bending olhou para o ar enquanto analisava as consequências financeiras.
- A uma sessão por semana, dá aproximadamente cinco mil por ano... certo?
- Mais ou menos.
- Bem... acho que posso aguentar. Vai custar, mas valerá a pena se conseguir voltar a pôr a Lucy no caminho certo. Acha que consegue,
doc... uh, Ted?
- Acho que consigo. Mas, como vos disse na primeira entrevista, não posso garantir sucesso.
- Então, na verdade, estou a arriscar cinco mil?
- Ou mais - disse o Dr. Levin com algum prazer.
- Ou mais. Está bem, vamos a isso. Ela é uma menina tão espantosa que quero que tenha todas as hipóteses possíveis.
- Muito louvável.
- Você é um filho da mãe esperto, sabe, Ted?
- Estou a falar a sério. Sempre achei que as pessoas sarcásticas reconhecem muito rapidamente essas características noutras pessoas.
- Tem razão, e peço desculpa. Tenho uma boca grande. Já me meti em muitos sarilhos por causa disso.
Olharam um para o outro com meios sorrisos. Agora, um pouco mais descontraídos, mas o enfado persistia. Levin perguntou a si mesmo como poderia quebrar o relacionamento adversário que via como estando a bloquear o que ele queria que fosse revelado.
- Turco, vejo pelo seu questionário que é presidente de uma tipografia. Que tipo de coisas imprimem?
- Principalmente relatórios financeiros e relatórios anuais.
- Parece interessante - disse o médico delicadamente.
- Não muito. E não me peça dicas para a Bolsa. É contra a lei divulgar informações internas.
- Não vou perguntar nada disso. Como é que começou a trabalhar nesse ramo?
- Estudei Belas Artes. Queria ser um artista a sério. - Um sorriso contrafeito. - Não é divertido? Mas passei para a ilustração
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comercial e para o desenho gráfico. Daí foi um pequeno passo para a tipografia. Agora tenho uma gráfica. Quem teria imaginado uma coisa dessas?
- Ainda pinta ou desenha... para seu prazer?
- Não. Tenho mulher, três filhos, dois carros, uma casa hipotecada... e agora esta coisa com a Lucy. Quem tem tempo para pinturas? Tive de desistir de todos os meus sonhos parvos. Ah, merda, isso não é justo. A Grace queria que eu continuasse a pintar. O que me aconteceu foi responsabilidade minha. Eu decidi atirar fora a minha caixa de pintura.
- Que é que o decidiu?
- Eu não era bom. Pelo menos não era tão bom como queria ser. Ted, como é essa treta de eu ir ajudar a Lucy?
Levin sentou-se para trás e pousou as mãos abertas no tampo da secretária. Estava a achar aquela entrevista difícil. Não pela primeira vez, reflectiu que era melhor com crianças do que com adultos.
Mas sabia que, frequentemente, os adultos faziam confidências simplesmente porque gostavam de o fazer. Alguém que expressava interesse parecia ser uma nova experiência para eles. O que queria dizer que, mesmo após anos de casamento, eram incapazes de falar com o seu parceiro.
- Tal como expliquei à sua mulher, estou a tentar recolher o maior número de informações possível sobre a Lucy, os pais e os irmãos. Talvez saiba alguma coisa que ajude a explicar o comportamento da Lucy e que me dê uma pista para resolver o problema dela.
- Está bem - disse Bending, assentindo. - Parece-me lógico. Pergunte.
- Turco, diria que o seu casamento é feliz?
- Aguente aí, Ted. Pare! Estou a falar-lhe em completo sigilo, certo? Quero dizer, não repete o que eu lhe digo à Grace, e não me repete a mim o que ela diz?
- Correcto.
- Então, está bem. Agora, quanto ao nosso casamento... Tem os seus altos e baixos. Acho que é médio. Melhor do que alguns, pior do que outros.
- Há quantos anos está casado?
- Hum, vejamos... Treze, acho eu. Por aí.
- Como é que você e a Grace se conheceram?
-Engatei-a no Museu Metropolitan, em Nova Iorque. Numa exposição de Degas.
- Á sua mulher tem um curso superior?
- Isso mesmo. Radeliffe. Eu andei na Brown.
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Por alguma razão que não podia analisar, Levin achava difícil ver este homem como um licenciado que tivera em tempos sonhos de se tornar um artista.
Bending era um sem-fim de contradições. Obviamente, um "homem masculino" - o tipo de homem com que Levin costumava ter dificuldade em relacionar-se - mas com uma inteligência irónica e por vezes amarga.
- Turco, você e a sua mulher têm interesses comuns? Para além dos filhos e da casa?
- Quer dizer, passatempos?
- Passatempos, desportos, talvez ir a exposições de arte ou ao teatro?
- Nãooo. Não me consigo lembrar de nada. Bem, ambos gostamos de receber amigos. Ela joga um ténis bastante razoável, e, de vez em quando, jogamos uns jogos de pares mistos. Mas é só. Normalmente eu trabalho até tarde, por isso não passamos muito tempo juntos.
- A sua mulher discorda das muitas horas que você trabalha?
- Não. Acho que, no íntimo, ela fica feliz por me ter fora de casa.
- Por que é que pensa assim?
- Não sei... é apenas uma impressão.
- Bebe, Turco?
- Claro, bebo uns copos. Porquê... vai oferecer-me um?
- Não. Caracterizar-se-ia a si próprio como bebendo pouco, socialmente ou muito?
- Socialmente, acho.
- A sua mulher bebe?
- Uma ou duas bebidas pouco alcoólicas numa festa. E é só.
O psiquiatra reflectiu lugubremente que aquela linha de interrogatório não estava a levar a lado nenhum. Decidiu avançar arrojadamente, determinar logo que possível os limites da ingenuidade do homem.
- Turco, como é que caracterizaria as relações sexuais com a sua mulher?
- Não existentes.
- Qual é, em sua opinião, a razão para isso?
- Muitas razões. As minhas horas de trabalho, para começar.
- E...?
- Não acho que a Grace esteja particularmente interessada nessa parte da vida de casada.
- Quer dizer que ela o rejeita?
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- Não. Nunca.
- Então, por que é que pensa que ela não se interessa por sexo?
- É casado, Ted?
- Divorciado.
Era uma falsidade deliberada, e não era a primeira vez que Levin a proferia. Nunca tinha sido casado mas, como tinha explicado à Dr.s Mary Scotsby, a mentira ajudava a estabelecer ligações. Um marido ou pai com uma mulher ou um filho em terapia não estavam aptos a aceitar os conselhos de um solteiro.
"Não é ético, bem sei", disse Levin à Dra. Scotsby. "Mas não vamos entrar numa discussão filosófica sobre se os fins justificam ou não os meios. Tudo o que posso
dizer-te é que a minha falsidade serve o fim a que se destina."
- Então - disse Bending -, se foi casado, deve ter percebido que há centenas de formas de saber quando a mulher não está interessada. Ela não tem de dizer que está com dor de cabeça.
- A sua mulher teve sempre falta de interesse nas relações sexuais?
- Meu Deus, não! Ela costumava ser de mais para mim.
- Então a... frieza dela desenvolveu-se recentemente.
- É relativamente recente.
- Até que ponto?
- Digamos cerca de... três ou quatro anos.
- Mas diria que a Grace é uma boa esposa? Para além do afastamento sexual entre os dois?
- Sim, é uma boa esposa. Mantém a casa impecavelmente limpa. Uma cozinheira fantástica.
- É boa mãe?
- Uma mãe maravilhosa. - Bending parecia estar a ser sincero.
- A Grace tem-lhe sido fiel?
- Acho que é melhor perguntar isso a ela.
- E -você tem-lhe sido fiel?
- Ted, tem a certeza de que isso vai ajudar o tratamento da Lucy?
- Tenho a certeza.
- Bem, não vou mentir-lhe; tem havido algumas alturas no nosso casamento em que me perdi.
- Quantas vezes?
- Algumas.
- Mais desde que a sua mulher mostrou falta de interesse em sexo? Mais infidelidade nos últimos três ou quatro anos?
- Você ataca em cheio, não ataca?
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- Não respondeu à minha pergunta.
- Sim, possivelmente mais nestes últimos três ou quatro . anos.
- A Grace está consciente destes casos?
- Não. Acho que não. E, mesmo que estivesse, não creio que se opusesse. Talvez até ficasse aliviada.
- Por que é que diz isso?
- É só um pressentimento que tenho.
Quando o Dr. Theodore Levin começara a ex ercer, sentira-se inclinado a dar peso e importância às declarações dos seus analisandos: "É só um pressentimento que tenho." Ou: "O meu instinto diz-me isso." A experiência ensinara-lhe que "pressentimentos" e "instintos" eram frequentemente palavras para camuflar preconceitos e desejos.
- Turco, acha que os seus filhos estão conscientes da... aversão sexual dos pais?
- Eu não lhe chamaria aversão. Continuo a considerar a Grace uma mulher terrivelmente atraente. E spero que ela ainda pense que eu não sou completamente repulsivo.
- Talvez "aversão" fosse uma palavra mal escolhida. Aceitará "indiferença"? Diria que você e a sua mulher são sexualmente indiferentes um para o outro?
-Acho que sim, Ted. Acho que somos indiferentes, no que diz respeito à cama.
- Acha que os seus filhos estão conscientes disso?
- Claro que não. Como poderiam estar?
O psiquiatra abafou um suspiro. Era inútil tentar convencer os pais de quanto os filhos sabiam da vida "secreta" do quarto principal. Não sabiam intelectualmente, mas pressentiam, sentiam, e eram muito influenciados.
- O seu filho mais velho... Wayne, não é?
- Sim.
- Ele tem 12 anos, não tem?
- Correcto.
- O senhor tem sido responsável pela educação sexual dele?
- Pelo que lhe faltava saber. Acredite, Ted, ele sabe tudo... ou pensa que sabe. Não há dúvida de que sabe muito mais do que eu sabia quando tinha a idade dele.
- E o rapaz mais novo?
- Harry? Ele só tem 5 anos. Ainda não perguntou nada. Está demasiado ocupado a fazer aparelhos de rádio. O raio do rapaz é um génio.
- E quanto à educação sexual da Lucy?
- Deixei isso a cargo de Grace.
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- A Lucy nunca lhe fez perguntas?
- Algumas vezes. Eu disse-lhe que perguntasse à mãe. Tem filhos, Ted?
- Duas gémeas - disse Levin, mentindo descontraidamente. - Estão com a mãe. Vejo-as um mês inteiro por ano.
O que começara como uma simples mentira ("fui casado; estou divorciado") tinha escalado para uma fantasia florescente. com algum prazer, o Dr. Theodore Levin tinha acrescentado e embelezado a falsidade básica.
Agora estava divorciado, com filhas gémeas que visitava todos os anos. Podia descrever a mulher mítica e as filhas míticas. Até a casa em que em tempos tinham vivido, a rotina doméstica, as crises e os piqueniques.
Tinha confessado aquela fantasia ao seu analista, Al Wollman, que ficara a olhar para ele durante muito tempo. "És doido!", dissera por fim.
- Bem, Ted - estava Bending a dizer -, não acreditaria como os miúdos hoje em dia são espertos em relação às questões de sexo. Quero dizer, aprendem nas aulas de
Biologia na escola e por vezes em sessões de educação sexual. E ainda com filmes! No ano passado, Wayne trouxe para casa um panfleto que lhe tinham dado na escola e que tinha tudo: desenhos do material de um homem, a rata de uma mulher... tudo. Por isso, eles não precisam de fazer tantas perguntas como se fazia antes. Graças a Deus!
- Mas quando a Lucy lhe fez perguntas, mandou-a ir perguntar à mãe?
- Isso mesmo.
- Quando a Lucy se tornou, ah, excessivamente amorosa consigo, como é que lidou com a situação?
- Disse-lhe. Tentei não a rejeitar. Não me zanguei nem lhe bati, nem nada disso. Só deixei bem claro que ela me estava a aborrecer, de que não gostava do que ela estava a fazer.
- E ela parou?
- - Sim.
- Como é que isso afectou o relacionamento dela consigo?
- Tanto quanto posso ver, não alterou. Continua carinhosa, mas de uma forma normal. Dá-me um beijo todas as manhãs, ao pequeno-almoço, e abraça-me se ainda está acordada quando eu chego a casa. Mas não tenta apalpar-me nem acariciar-me. E não se senta no meu colo, a não ser que eu lhe peça. O facto de eu a ter afastado não a fez detestar-me, se é o que pensa.
- Mas continua com o seu comportamente hiper-sexual com outros homens? Amigos e visitas?
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- Sim.
Levin pousou cuidadosamente o coto do charuto. Recostou-se na cadeira, com as mãos entrelaçadas em cima da barriga. Baixou os olhos para os dedos interligados, reflectindo na infindável diversidade do animal humano.
- Turco, acha que os seus filhos estão conscientes da... da atitude estranha da Lucy?
- Harry não. Talvez Wayne. Sim, acho que Wayne sabe o que se passa.
- Ele alguma vez disse alguma coisa sobre isso?
- Não a mim.
- Os seus filhos alguma vez viram a Lucy nua?
- Só Wayne, e não desde que ela era um bebé.
- Os seus filhos alguma vez o viram a si ou à sua mulher nus?
- Valha-me Deus, não! Que pergunta! Oh, espere aí... o Wayne e eu jogamos golfe juntos no clube de vez em quando. Ele já me viu nu nos vestiários. Mas não os outros miúdos.
- A Lucy não viu?
- Claro que não! Raios, Ted, onde é que quer chegar?
- Não quero chegar a lado nenhum. Só estou a fazer perguntas.
- Não pensa que eu me exibi para a Lucy, ou pensa?,
- Exibiu?
- Não!
- Nem os seus filhos?
- E melhor que não! Partia-lhes o pescoço!
- Bem, parece-me que o nosso tempo chegou ao fim. Obrigado pela sua paciência, foi uma grande ajuda.
- A sério? vou acreditar na sua palavra.
A partir da meia-noite, uma série de violentos vendavais varreram tudo em direcção a leste desde a Naples-Ft. à região Myers na costa Oeste. Inundaram os Everglades, depois fustigaram as comunidades costa Leste, desde o norte de Miami até Palm Beach oeste.
As estradas pareciam rios, os relvados estavam empapados, a própria praia tinha-se transformado em rios e afluentes em miniatura. O céu estava baixo, turvo e lamacento, com clarões de
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raios que se assemelhavam a longínquos flashes de fotógrafos. O trovão não estourou, mas rolou ao longe durante toda a manhã.
Depois, cerca do meio-dia, a tempestade passou; a chuva parou e o céu começou a clarear. As pessoas aventuraram-se a sair, a princípio hesitantes, depois mais confiantes. Apareceram pedaços de azul, um sol forte queimou através da neblina. As duas da tarde, estava um dia perfeito e o mundo estava a secar.
Wayne Bending, sentado sozinho no banco de trás do autocarro da escola, procurou ansiosamente avistar o mar. Esperava que a tempestade tivesse deixado boas ondas. Se isso tivesse acontecido poderia ir fazer surf ao fim da tarde.
Mas quando avistou o oceano teve uma desilusão. Estava alto, mas encrespado e bravo, ondas pequenas rebentavam várias vezes antes de chegarem à praia. Nada de surf.
nem sequer um mergulho parecia muito atraente.
A mãe, Lucy e Harry estavam na sala de estar, a comer sanduíches de manteiga de amendoim e geleia e a beber leite com tabuleiros no colo. Estavam a ver uma seca de programa na televisão com cachorrinhos e um tipo a sério com uma farda de bombeiro. Wayne acenou friamente em resposta aos cumprimentos deles e foi directamente para a cozinha.
Preparou uma grossa sanduíche de presunto e queijo em pão de centeio e barrou-a com maionese. Pegou na sanduíche, numa lata de coca-cola e numa mão-cheia de bolachas de chocolate e subiu pelas escadas das traseiras para o seu quarto. Lá dentro, trancou a porta, ligdU o rádio numa estação de rock e descalçou os ténis.
Na cama, com as costas encostadas à cabeceira, comeu a sanduíche e as bolachas, engoliu a coca-cola e, sem ouvir a musica, decidiu que o melhor seria estar morto.
Desde aquela noite da festa dos Holloway, não tinha voltado a falar com Eddie. Só o tinha visto uma vez, à distância, e nessa ocasião Eddie voltara-lhe as costas. Wayne estava convencido de que Eddie estava a evitá-lo, enojado com um tipo que beija outro tipo, mesmo depois de ter fumado uni charro.
Por que é que ele tinha feito uma coisa tão estúpida? Tinha sido a erva; tinha a certeza disso; tinha-o pedrado sem ele dar por isso. Toda a gente dizia que a erva
transformava as pessoas em maníacas sexuais. Ele tinha simplesmente sentido uma vontade tremenda, e tinha-o feito, e tinha sorte por Eddie não lhe ter batido.
Mas, agora, Eddie tinha tido tempo para pensar no que tinha acontecido e, provavelmente, ficara enojado. Provavelmente, pensava que Wayne era um maricas histérico e não queria mais
107
nada com ele. Talvez Eddie tivesse contado aos outros o que Wayne tinha feito. Aquele pensamento foi o bastante para fazer Wayne estremecer e sentiu vontade de chorar.
Acabou a comida e escorregou até ficar deitado na cama, com a cabeça na almofada. Olhou para o tecto e pensou na morte. Supunha que era como adormecer, exactamente como adormecer, só que nunca se sonhava e nunca se acordava.
com pensamentos tão sombrios, sentiu-se cada vez mais sonolento. Não lutou contra o sono, deixou-se ir, esperando nunca mais acordar. Mas, pouco antes de estar completamente adormecido, o telefone da mesa-de-cabeceira tocou. Todo o seu corpo estremeceu, como se tivesse sido picado por um daqueles compridos espetos de aço que o pai usava para grelhar pedaços de carne de vaca.
O telefone era só de Wayne, o seu telefone particular de um vermelho-berrante, uma prenda do seu décimo segundo aniversário. Tinha o seu próprio número e o seu nome estava na Lista Telefónica, como a maior parte dos rapazes que conhecia. Pôs-se de lado e pegou no auscultador.
- Tá? - disse numa voz sonolenta.
- Olá, pá - disse Eddie Holloway -, que é que tens feito? Wayne acordou abruptamente, pôs os pés no chão. Sentou-se
na beira da cama, apertando tanto o telefone que viu que a mão tremia.
- Nada de especial - disse ele o mais naturalmente que conseguiu. - E tu?
- Chateado, chateado, chateado - disse Eddie, alegremente. - Pensei que ia dar para fazer surf depois da tempestade, mas não tive sorte. Aonde é que tens estado enfiado?
- Por aí - disse Wayne, descontraidamente. - A dar em doido com a confusão cá em casa.
- Pois - disse Eddie -, estás no mesmo filme que eu. Escuta, pá, a velha recebeu um novo carregamento. Acho que o barco do camarão já atracou. Topas?
- Oh, sim. Claro.
- Então, que tal tu e eu ficarmos altos?
- Por mim, tudo bem. Quando?
- Esta noite. Consegues sair? No mesmo sítio.
- Não há espiga.
- - Eu levo um cobertor velho - disse Eddie Holloway. - O chão ainda está húmido. Escuta, consegues fanar alguma coisa que se beba?
- Hum... talvez. Sim, acho que sim. vou tentar.
- És o meu melhor homem-disse Eddie Holloway. -Hasta
la
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vista, amigo. Aprendi isso hoje. Quer dizer: "Vai levar no cu, Charlie."
- Sim - disse Wayne, rindo. - Eu sei.
Depois foi para o rés-do-chão e entrou na sala de estar, onde a mãe, Lucy e Harry ainda estavam a ver o quadrado estupidificante.
- Olá, pessoal - disse Wayne Bending, alegremente. Como sempre, o pai não chegou a tempo para o jantar. Devia
andar a comer alguma puta, calculou Wayne, mas estava-se completamente nas tintas. Desde que ele pagasse as contas.
Havia carne estufada com vegetais, uma salada com molho cremoso de alho e tarte de limão para a sobremesa. A mãe, como era hábito, insistiu em rezar antes de começarem a comer.
Depois do jantar, ajudou a levantar a mesa. Encheu a máquina de lavar-loiça. Colocou os guardanapos de linho dentro das argolas de plástico om as iniciais de cada um. Até foi pôr o lixo no contentor.
Andou por ali até a mãe levar Lucy e Harry para o andar de cima. Lucy sabia tomar banho sozinha, mas Harry tinha de ser vigiado no chuveiro. Depois, iam para a cama. Wayne calculou que tinha uma hora antes de a mãe voltar novamente para baixo. Agora, se ao menos o pai não aparecesse inesperadamente...
Foi ao armário cfa cozinha onde a mãe guardava os frascos vazios, pedaços usados de folha de alumínio (alisados e cuidadosamente dobrados), caixas de plástico, cordel e velhos fios eléctricos.
Escolheu um frasco de meio litro de maionese vazio. Levou-o para a sala e dirigiu-se para o armário de bebidas do pai. Havia três garrafas de litro de vodca cheias
e seladas e uma de um litro aberta que estava três quartos cheia.
Trabalhando silenciosamente, rapidamente, cuidadosamente, Wayne encheu o frasco de meio litro com a garrafa aberta e fechou a tampa do frasco. Levou a garrafa de
vodca para a cozinha e encheu-a de água fria até ao nível que tinha anteriormente. Colocou a garrafa na posição anterior, no armário das bebidas.
Levou o frasco com meio litro de vodca lá para fora e escondeu-o debaixo de uma palmeira anã. Depois, entrou em casa e instalou-se em frente da televisão. Quando
a mãe veio para baixo, ele estava a ver um filme educativo no Canal 2 de Miami. Era sobre os cães selvagens de África.
Levantou-se e desligou a televisão.
- Que coisa chata! - comentou. Depois espreguiçou-se, deliberadamente casual. - Bem, é melhor ir lá para cima atirar-me aos livros. Temos um teste de Matemática
amanhã.
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- Se ficares com fome - disse a mãe - ainda sobrou alguma tarte. Mas deixa uma fatia para o teu pai.
Lá em cima, confortavelmente trancado no quarto, nem sequer olhou para os trabalhos de casa. Deitou-se na cama, olhou para o tecto, ouviu um programa de canções
country e western. Manteve o rádio baixo para o maluco do Harry não se queixar de que o barulho o estava a manter acordado.
Wayne pensou no encontro que ia ter com Eddie no mirante dos Empt às nove da noite. Desta vez, estava determinado a não repetir o seu comportamento estúpido. Nada
de beijos. Nada desse género.
Limitar-se-iam a fumar um charro, a bebericar um pouco de vodca, a ficar um bocado altos. Falariam, talvez sobre surf, barcos, mulheres - o que quer que se proporcionasse.
Eddie era um tipo fixe para conversar.
Wayne sentiu-se lisonjeado por Eddie o ter escolhido para uma amizade íntima especial. Eddie tinha sempre um monte de rapazes e de miúdas giras à sua volta, mas
escolhera Wayne para aquelas sessões particulares de erva no mirante. Aquilo era de mais.
Pensando assim em Eddie Holloway, Wayne percebeu de repente que estava a ter un a erecção. Saltou apressadamente da macia cama. Caminhou pelo quarto, de mãos enfiadas
nos bolsos. Abalado, tentou respirar fundo, perguntando a si mesmo que diabo estaria a acontecer-lhe.
Quando faltava cerca de um quarto para as nove, pegou no dicionário Inglês-Espanhol e desceu a escadaria principal para a sala. A mãe estava sentada no meio de um
círculo de luz do candeeiro de pé alto. A televisão estava ligada, mas ela estava a espreitar através de óculos de aros de metal para o tricot que tinha no colo,
contando as malhas.
Ela não o tinha ouvido e ele ficou parado durante alguns instantes a olhar para ela. A mãe era uma mulher atraente, percebeu, mas podia fazer muito mais por si.
Mais maquilhagem, por exemplo. Um penteado com mais estilo. Roupas mais bonitas. Ela era uma espécie de desmazelada. Não era como a mãe de Eddie, que sabia arranjar-se.
Ela levantou os olhos do trabalho e sorriu. Ele entrou no aposento.
-Mãe-disse ele, falando rapidamente. - O Eddie Holloway telefonou-me agora mesmo. Ele tem um teste de Espanhol esta semana, e deixou o dicionário no cacifo da escola,
por isso, disse que-lhe emprestava o meu.
- Ele vem cá buscá-lo, querido? - perguntou ela.
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- Ah, não. Eu disse que lho levava e que, a senhora sabe, lhe dava uma ajuda com as palavras e as frases. Quero dizer, ele tem todas as suas coisas espalhadas e
tudo isso, por isso é mais fácil se eu for lá.
- Quanto tempo é que vais demorar?
- Oh, uma ou duas horas. Não deve demorar mais do que isso.
- Está bem, querido-disse ela. - Talvez fosse melhor levares o blusão de nylon.
- Não - disse ele. - Ainda está calor.
Saiu pela porta da cozinha. Foi buscar o frasco de vodca que estava debaixo da palmeira anã. Encaminhou-se rapidamente para a AIA, pronto para mergulhar nos arbustos se os faróis do carro do pai iluminassem o caminho de acesso.
Manteve-se junto à estrada até chegar à casa dos Empt. Os grandes portões de ferro estavam abertos de par em par; o rés-do-chão estava profusamente iluminado. Havia
diversos carros estacionados perto da casa. Wayne calculou que eles deviam estar a dar um jantar. A velha Empt gostava de receber.
Esgueirou-se até ao mirante pelo meio das árvores. Os bancos de ferro forjado estavam secos, ainda quentes do sol da tarde. Baixou-se para sentir o chão de areia. O centímetro de cima estava seco, mas quarfdo mergulhou um dedo sentiu a humidade fria lá em baixo. Por isso, sentou-se num dos bancos duros, segurando o dicionário
e o frasco de vodca. Esperou por Eddie. Ficou ali sentado durante quase dez minutos. Era mesmo típico de Eddie: um tipo fixe, mas nunca chegava a horas. Enquanto
esperava, Wayne contemplou a grande casa e viu figuras movendo-se de um lado para o outro nas janelas iluminadas. Conseguia ouvir, subindo e descendo, o som de música. Uma vez, a brisa do mar trouxe o som de um riso abafado.
Esperava que nenhum convidado com os copos viesse espreitar o mirante. A ideia de que isso pudesse acontecer enfureceu-o. Aquele era o seu esconderijo secreto. Seu e de Eddie.
Holloway acabou por aparecer, nas calmas. Usava calças de ganga e uma T-shirt de algodão rasgada, de forma a ver-se o peito. Era um estilo que muitos rapazes tinham
adaptado das roupas práticas dos jogadores profissionais de futebol. Eddie trazia um cobertor enrolado debaixo de um braço.
- Ei, Bending - disse ele -, que é que estás a fazer aqui às escuras... andas à pesca?
- Quién sabe, madre - disse Wayne, e Eddie riu-se.
- Aquela minha irmã - disse ele, estendendo o cobertor velho em cima da areia. - Aquela Gloria... está outra vez impôssível.
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Agora quer um vestido de noite. Não achas incrível? Uma fedelha de nove anos a querer um vestido de noite?
- Que é que os teus velhos disseram?
- Ah, merda - disse Eddie -, eu pirei-me a meio da discussão. Histeria instantânea. Aos pontapés e a gritar. Quem é que precisa dessa merda? Mas vai conseguir. Só
tem de manter a boca aberta. Trazes alguma coisa que se beba?
- Meio litro de vodca - disse Wayne, erguendo o jarro.
- Lindo! - disse Eddie. - Simplesmente fantástico. Deixa-me beber um gole.
Sentaram-se no cobertor e foram passando o frasco aberto de um para o outro. Eddie bebeu um longo trago e disse:
- Oh, meu.
Wayne provou um pequeno gole e tossiu.
- Está quente - disse. - Devia ter-lhe posto algum gelo. Talvez uma rodela de lima.
- Não - disse Eddie.-Assim como está desce suavemente. Agora, para sobremesa...
Tinha os charros presos no elástico de uma das meias, enrolados em papel higiénico. Desembrulhou-os cuidadosamente.
- Marca nova - anunciou ele. - Têm um fio muito fino colado dentro do papel. Assim, quando se chega à beata pode-se segurar na ponta do fio. A ciência não é uma
maravilha?
Acenderam os charros, deitaram-se e olharam através do telhado rendilhado do mirante para o céu nocturno que não tinha fim. Eddie alternou fumaças com goles do frasco
de vodca, mas Wayne estava satisfeito com a marijuana.
- Sabes quem é o Tony Sanchez-perguntou Eddie, preguiçosamente. - O do boné encarnado? Aquele que trabalha num posto de gasolina em Boca, aos sábados.
- O tipo do futebol?
- Esse mesmo. Atacante, mas não na primeira fila. De qualquer modo, ele tem um Hobie Caí de três metros e meio e quer vendê-lo. Está bastante estafado. Precisa de
ser arranjado, mas as escotas estão em bom estado. Jesus, quem me dera poder comprá-lo.
- Quanto é que ele quer?
- Está a pedir mil, mas acho que é capaz de baixar. Talvez novecentos. Tens algum dinheiro, pá?
- Cerca de cem - disse Wayne, humildemente. - Na minha conta poupança.
Eddie Holloway riu asperamente.
- É mais cem do que eu tenho. Gasto-o tão depressa como o
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recebo. Ahh, merda. Quem me dera ser dono daquele barco. Que máximo que seria.
Desta vez, Wayne estava convencido de que a erva estava a fazer efeito. Agora, não estava a fingir. Perdeu a noção do tempo. O mundo suavizou-se e os cantos bicudos derreteram-se. A noite parecia mais branda, quase fofa e havia um zumbido no ar. Esticou-se por cima de Eddie para pegar no frasco de
vodca e engoliu um trago. Desta
vez não tossiu.
Inclinou-se novamente sobre Eddie e pousou o frasco na areia, enterrando-o ligeiramente para não se entornar. Esticou-se por cima de Eddie, olhando para ele.
Eddie tinha os olhos fechados. A sua mão estava no ar, segurando o charro: um farol brilhante e minúsculo. Eddie era realmente um garanhão espectacular, com os seus cabelos compridos aloirados pelo sol, o seu rosto de estrela de cinema. E a pele brilhante tinha um bronzeado cor de cobre.
Wayne pousou levemente a palma de uma das mãos no peito nu de Eddie, cobrindo o estômago liso, a barriga perfeitamente redonda.
- Ei, meu - disse Eddie, ensonado. - Esta pedrada é diferente... não achas?
Wayne pousou cuidadosamente o seu charro, espetando o arame na areia. Virou-se para Eddie. Inclinou-se sobre ele, colou os lábios à pele das costelas e estômago. Cetim quente. Macio. com cheiro a sol.
- Oh, sim - sussurrou Eddie. - Não pares agora.
Pensamentos assombrosos, desejo incipiente. Wayne desapertou o cinto e o fecho das calças de Eddie com dedos frenéticos. Que... Que...
- Ohh - murmurou Eddie. - Oh, sim. Sim.
Ele sabia o que fazer. Sabia exactamente o que fazer. Sem treino nem experiência. E esse pensamento intrigá-lo-ia durante toda a vida.
Era doce, tão doce. Era conforto, alívio da sua angústia, bálsamo para as suas feridas. Mexeu-se, a transpirar, Eddie a dizer "Sim, sim", com a pélvis a começar
a mover-se no momento em que ele sentiu o seu próprio fluxo de lágrimas e outra coisa.
E quando terminou, tinha a certeza de que Eddie iria escorraçá-lo, mandá-lo desaparecer. "Seu paneleiro nojento." Mas Eddie ficou deitado, relaxado, fumando lentamente a sua beata. E, com uma mão, acariciou os cabelos de Wayne e disse em voz rouca:
- bom. bom. O máximo.
Depois beijaram-se. Beijaram-se! Wayne ficou tão agradecido,
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tão encantado. Não era o fím. Riu-se em voz alta, muito feliz.
- Seu doido! - disse Eddie carinhosamente, e pôs uma mão sobre os testículos de Wayne, apertando suavemente. -
És mesmo um parvalhão... sabias?
Wayne assentiu, rindo. Voltou a acender a beata e partilharam-na porque Eddie já tinha acabado a dele. Depois, beberam o que restava da vodca, passando o frasco
de um para o outro.
Uma vez Eddie bebeu um gole de vodca quente, depois colou os lábios aos de Wayne e cuspiu o líquido quente para a boca do outro rapaz. Wayne pensou que aquela era
a coisa mais importante que jamais lhe acontecera. Era um compromisso, o selar de um pacto.
Finalmente, a vodca acabou, mas nenhum deles se mexeu. Ficaram deitados, lado a lado, a olhar entorpecidamente pelo telhado rendilhado. Ouviram os sons abafados de conversa, riso, os motores dos carros quando os convidados dos Empt saíram.
- Escuta, seu parvo - disse Wayne. - Queres mesmo o Hobie Cat? Aquele que o Tony Sanchez quer vender?
- Claro que quero, seu idiota - disse Eddie. - Já te disse que sim, não disse?
- Bem... - disse Wayne em tom de conspiração -, sabes que a Sra. Empt está sempre a galar-te.
- E depois?
- Depois, ela tem montes de massa. Eles estão forrados. É o que diz o meu pai.
Eddie ficou calado durante alguns instantes. Depois:
- Achas que ela vai pagar dinheiro frio pelo meu corpo quente?
- Por que não? - disse Wayne. - Se fizeres as coisas como deve ser. Sabes, se a levares. Se a fizeres ficar pelo beicinho.
- Como um garanhão - disse Eddie, rindo-se.
- Exactamente como um garanhão - disse Wayne, rindo. Tu consegues. Lança o anzol e pesca-a. Dá-lhe a provar e depois diz-lhe: "Meu Deus, eu gostava mesmo de comprar aquele barco bestial."
- Achas que ela vai alinhar?
- Vá lá, meu - disse Wayne, sentindo-se de repente dominante e superior. -
É claro que ela vai alinhar. Eu alinhei, não foi?
Afastaram-se, tentando abafar as gargalhadas, lutando, rebolando no cobertor. Depois ficaram deitados longe um do outro, a transpirar.
- Mas como é que explico aos meus pais-perguntou Eddie.
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- De repente, apareço com este grande barco. Como é que lhes explico onde é que arranjei o dinheiro para o comprar?
- Quanto é que recebes de mesada?
- Vinte por semana - disse Eddie. -- Tenho andado a tentar convencer o velho a aumentar-me para vinte cinco.
- Está bem - disse Wayne -, eis o que vais fazer... Recebes o dinheiro da velha Empt... certo? Compras o barco. Depois dizes aos teus velhos que o Sanchez concordou
em receber dez por semana. E combinas tudo com o Tony para ele confirmar a tua história. Ele não se vai importar, se lhe pagares os mil que ele quer. E isso também
vai ajudar-te a conseguir que o teu pai te aumente a mesada. Faz sentido ou não?
Eddie inclinou-se sobre ele e apertou-lhe carinhosamente a bochecha.
- Sabes uma coisa, parvalhão-disse ele -, não és assim tão parvo.
6
Algo estranho estava a acontecer a William Jasper Holloway.
E ele estava consciente disso.
Há cerca de um ano, tinha começado a falar sozinho. Acontecera de repente, de um dia para o outro. Surgira gradualmente.
Por exemplo, há um ano, quando estava sentado no seu gabinete privado no banco e precisava de ir ao andar dos caixas por qualquer motivo, limitava-se a levantar-se, a caminhar para a porta e a sair, como qualquer outra pessoa.
Depois, deu por si a planear os seus passos. A comandar-se. "Agora vais levantar-te. Andas até à porta. Rodas o puxador. Agora, abre a porta. Agora vai para o andar." Tudo em silêncio. Tudo na sua mente.
E não apenas no trabalho. Sempre que estava sozinho falava alto:
- Vira à direita no próximo candeeiro. Tira um sabonete novo do armário.
A fase seguinte, recente, era um diálogo consigo mesmo, falado em voz alta, durante o qual ele se debatia e, por vezes, até discutia consigo próprio.
- Luther Empt quer jogar golfe no sábado.
- Não sei se quero ir.
- Talvez devesses.
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- Para quê?
- Para ver o que está a acontecer com a fábrica nova.
- Não me interessa. E não me apetece jogar golfe no sábado. Principalmente com o Empt.
- Precisas de fazer exercício. De apanhar ar fresco.
- vou jogar mal. E depois bebo de mais.
Ele sabia o que estava a acontecer. Sabia que falava em voz alta consigo próprio quando estava sozinho, mas isso não o assustava. Achava a situação quase divertida. Não tentou parar. Qual era o mal?
A sua decisão de comprar uma arma foi o resultado de um desses diálogos em voz alta:
- Para que é que precisas de uma arma?
- Empt tem uma e Turco Bending também.
- Mas por que é que tu precisas de uma?
- O crime está a aumentar. Para proteger a família, a casa.
- Tu não sabes utilizar uma arma.
- Posso aprender. É simples: aponta-se e puxa-se o gatilho. Fiz isso com a arma do Luther naquela noite na praia. Foi uma sensação boa. Talvez não compre uma arma
tão pesada como a de Luther. Apenas uma pequena.
- Vais a uma loja de armas e um empregado em mangas de camisa vai rir-se de ti. Vai perceber que não entendes nada de armas. Vai ser trocista, malcriado.
-; E depois? Eu trato-o com frieza. Eu sou o cliente. vou comprar uma arma boa e insistirei para que ele me mostre como funciona. Serei firme e irredutível.
Assim, convencido, foi a um armeiro na Federal Highway. O empregado afinal não estava em mangas de camisa, mas vestido como um executivo, e falava a linguagem de William Holloway. Nem sequer perguntou ao cliente os motivos que o levavam a pretender comprar uma arma de fogo.
- Caro senhor - disse ele, untuosamente -, se a sua experiência com armas é limitada, permite-me que sugira esta arma verdadeiramente bonita e eficaz? É um revólver Colt Detective Special, uma arma de seis tiros, de calibre .38, toda em aço, com um cano de cinco centímetros. Comprimento total: catorze centímetros. Peso total: apenas seiscentos gramas. Posso chamar a sua atenção para esta mira, para o canhão e para o cabo de nogueira? Segure nesta beleza, meu caro senhor, e aprecie a forma como se adapta à mão.
Obedientemente, embora com um certo cuidado, William Holloway colocou a arma na palma da mão.
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- Está descarregada - disse o empregado de balcão num tom simpático. - Garanto-lhe.
Encorajado, Holloway apertou a arma com mais força. Ergueu-a e fez pontaria para a parede mais afastada.
- É boa - disse ele, confiante.
- Oh, sem dúvida. Leve, mas com peso suficiente para permitir um equilíbrio perfeito. E suficientemente pequena para poder ser facilmente escondida em casa ou transportada no carro, como preferir.
- Muito bem - disse Holloway -, vou levar esta.
- Muito bem, senhor - disse o empregado. - Este modelo está disponível em acabamento azul ou prateado.
- Uh... prefiro prateado. E queria algumas balas.
- com certeza, senhor. E posso mostrar-lhe alguns coldres muito agradáveis para acrescentar protecção e prestígio à sua compra?
Assim, depois de mostrar identificação, assinar documentos e ser elucidado sobre o período de espera, William Jasper Holloway pagou a arma, as balas e o coldre de couro preto. O empregado garantiu-lhe que a arma vinha com um kit de limpeza e um folheto que fornecia informações sobre como carregar, disparar e manter.
Voltou ao armeiro três dias depois e levantou as suas compras. TCram quase três horas da tarde e decidiu não voltar para o banco. A caminho de casa teve um dos seus habituais diálogos:
- Bem, está feito!
- Continuo sem perceber por que é que precisas de uma arma.
- Protecção. Segurança. Confiança.
- Vais ter cuidado com ela?
- Claro que sim.
- Ela pode matar.
- Eu sei.
- Ela pode matar.
- Já disse que sei.
- Ela pode matar.
- Oh, cala-te!
Jane e o sogro tinham saído para algum lado, os miúdos estavam na escola e apenas Maria estava em casa, a bater com as panelas na cozinha e a cantar um lamento espanhol numa voz de cana rachada.
Holloway deitou uma grande dose de vodca num copo com gelo e acrescentou um canto espremido de lima. Levou a bebida
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e as compras para o quarto principal e trancou a porta por dentro. Sentou-se ao cimo da cama e examinou os seus tesouros.
Inspeccionou cuidadosamente a arma. Esta parecia ter uma película leve e suave. Cheirou-a e sentiu o odor de óleo, aço e madeira. Chegou à conclusão de que era uma máquina precisa e brilhante. Enchia-lhe a mão, compacta e sólida. Era uma sensação boa.
Leu as instruções. Certificou-se de que a arma estava descarregada. Apontou para a parede em frente, espreitando pela mira. A sua mão estava firme. Puxou o gatilho. Este resistiu mais do que ele previra, mas depois ouviu-se um clique satisfatório.
- Bang - disse ele suavemente.
Repetiu aquele processo, fazendo pontaria para a porta do quarto e para a almofada da cama da mulher. De cada uma das vezes disse:
- Bang. Bang.
Ficou ali sentado, com o revólver a balançar casualmente numa das mãos, enquanto bebia vários goles da
vodca gelada. Depois, consultando de novo as instruções, carregou o canhão, segurando os cartuchos brilhantes com um cuidado lento e exagerado. Encaixou o cilindro carregado no seu lugar.
- Agora pode matar.
- Eu sei.
Mantendo o dedo indicador cuidadosamente longe do gatilho, voltou a fazer pontaria aos seus três alvos: a parede em frente, a porta do quarto, a almofada da cama da mulher. O seu "Bang! Bang!" repetido era agora mais alto.
- Por que não tu?
- Por que não?
Ainda com o dedo cuidadosamente longe do gatilho, empurrou o cano da arma contra o peito. Contra os órgãos genitais. Depois, com a boca muito aberta, enfiou o pequeno cano da arma entre os dentes.
Tirou-a, e na sua boca ficou um gosto, não a óleo ou a aço polido mas a algo amargo como uma velha moeda. Ficou a contemplar a máquina perfeitamente moldada e manufacturada que tinha na mão. Poder. O seu.
Aproximou-se da janela com um sorriso tolo. Através das copas das palmeiras viu o mar brilhante, a praia resplandecente. Homens, mulheres e crianças a passear em fatos reduzidos e de cores berrantes. Holloway quase conseguia cheirar o sal da água, os bronzeadores, as carnes queimadas pelo sol.
O sul da Florida era uma meretriz pintada, mergulhada em
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perfume barato. Demasiado grosseira, demasiado inoportuna, demasiado espalhafatosa.
Ainda com o dedo longe do gatilho, William Jasper Holloway apontou a sua nova arma pela janela fechada. Às pá meiras. A praia. As pessoas. Ao mar. À Florida. Ao
mundo. Á vida.
- Bang - disse ele voz baixa. - Bang.
- Em relação ao caso Karen J. - disse pontificalmente o Dr. Theodore -, ouvi as gravações e penso que estamos a tratar o caso da forma mais correcta.
A Dra. Mary Scotsby concordou.
- Parece ser um caso típico de cleptomania.
- Concordo. Por acaso não tens mais uma garrafa deste vinho?
- Tenho, mas tenho uma coisa melhor.
- Não, não, este é óptimo. Tu conheces os meus gostos ordinários.
Foi à cozinha e trouxe outra garrafa da barata surrapa californiana que tinham estado a beber. Levin tirou o selo e encheu os copos. Scotsby aninhou-se num canto do sofá forrado a veludo. Levin estava solidamente sentado numa velha poltrona de braços.
Ambos vestiam roupões de banho. O dela era amarelo-pálido. O dele era um antiquado roupão de flanela aos quadrados com um cinto de cordão. Os seus pés gorduchos estavam nus. Ela usava pantufas em forma de sapo, com pompons azuis.
- Este vinho é mesmo ordinário, Ted - disse ela. - Só o compro por tua causa.
- Eu sei - disse ele. - Eu não tenho paladar nenhum. Provavelmente, devido a todos os charutos que fumo. Não consigo sentir o sabor de nada.
- Espero que esta noite tenhas sentido o sabor do caril.
- Isso senti - disse ele, sorrindo vagamente. - Viste-me transpirar, não viste? Mary, podemos falar sobre o caso de Lucy B.?
- Se quiseres.
- Escutaste as gravações? Ela assentiu.
- Algumas reacções imediatas?
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- Acho que estás a lidar muito bem com os pais. Eles estão a abrir-se. Tenho a sensação de que a Lucy está a intimidar-te.
Ele pensou no que ela acabara de dizer.
- És capaz de ter razão - disse ele por fim, suspirando. É uma rapariguinha extraordinariamente bonita. Achei que ela parecia uma mulher em miniatura. Ficaste com essa impressão?
Ela franziu o sobrolho durante alguns instantes, mordendo o lábio inferior.
- Sim, concordo com isso.
- Quando a examinaste, reparaste se os seios dela estão demasiado desenvolvidos?
- Para uma criança da idade dela? Talvez estivessem. Não os seios de uma mulher, compreendes, mas mais como os seios de uma adolescente. Os mamilos estavam bem definidos, quase erectos.
- Uh-huh.
Ela olhou para ele através dos óculos de aros de metal.
- Onde é que queres chegar, Ted?
Ergueu o corpo na macia poltrona. Bebeu um gole de vinho.
- Tenho andado ansioso por causa de uma coisa - disse ele.
- Desde há algum tempo. O caso Lucy B. trouxe-a à superfície. Em resumo, tenho andado a perguntar a mim mesmo se toda a minha abordagem à psicologia será demasiado limitada. Tenho andado a pensar que talvez devesse dar mais importância a outros factores. Sociológicos. Culturais. Fisiológicos.
- Fisiológicos? A Lucy parece estar de perfeita saúde.
- Hum. Mesmo assim...
Ela esperou pacientemente que ele continuasse. Era uma mulher magra, mais alta do que ele, com ombros ossudos. Braços e pernas deselegantes, pés grandes. Os seus seios eram pequenos e musculados; anca e ossos pélvicos faziam pressão sobre uma pele clara e sardenta.
Tinham tomado duche há uma hora. O rosto dela, sem maquilhagem, era claro e brilhante. Os cabelos castanhos estavam esticados para trás desde a testa alta e apertados com um gancho liso de ouro.
Era um rosto aguçado, com o nariz e o maxilar salientes. Os lábios pálidos eram finos. Orelhas pequenas e torcidas abraçavam o crânio. Não tinha rugas nem pés-de-galinha. Os olhos não revelavam nada. Um pescoço alto e depois os ossos duros do peito.
- Quando vim para cá, há cerca de dez anos - disse ele lentamente -, reparei que os casos que estava a ter eram diferentes dos que tinha tratado em Denver. Estava a ver mais desvios e
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perversões. Hábitos sexuais mais aberrantes. Tenho andado a perguntar a mim mesmo por que é que será assim?
- O clima - disse ela, fazendo uma careta. - É tropical, sabias?
- Oh, sim - disse ele em voz séria -, acredito que seja um factor. O ambiente total. Sol quente, praia gloriosa, vida descontraída ao ar livre. É difícil resistir
ao prazer como forma de vida. Mas acho que estão envolvidos outros factores. Por exemplo, desde que vieste para cá, alguma vez conheceste alguém que tivesse nascido na Florida?
- Não.
- Eu conheci. Um velhote. Mas todas as outras pessoas são de outro lugar qualquer. Por isso, tem-se essa sensação de desenraizamento. Ninguém pertence realmente, no sentido de ter família que tenha vivido cá há gerações. Não há raízes. Quando se vai para um país estrangeiro, tem-se a tendência para cortar as amarras. Acho que é uma reacção muito humana, num lugar novo e desconhecido, esquecer as velhas regras, as velhas repressões e constrangimentos.
- Concordo - disse ela, observando-o com olhos firmes e sem pestanejar.
- E outro factor... - continuou ele. - Al Wollman e eu estávamos a falar sobre a razão por que as crianças daqui, e particularmente as crianças pequenas, parecem fisicamente tão maduras para a idade que têm. Tenho a certeza de que já viste crianças de doze e treze anos na praia com corpos de mulheres de dezassete ou dezoito anos. Seios muito desenvolvidos. Altas. Cinturas bem marcadas, coxas, rabos.
- E com maquilhagens pesadas - disse Scotsby. - Algumas parecem jovens prostitutas.
- Sim - disse ele. - O Al pensa que pode dever-se ao facto de muitas começarem a tomar a pílula muito cedo. Todos aqueles estrogénios. Para além do facto de que a maior parte da nossa carne, especialmente o frango, é criada com hormonas para acelerar o crescimento. E não podemos esquecer a moda das vitaminas e dos suplementos alimentares. Tudo isto te parece completamente louco?
- Bem... não - disse ela, cautelosamente. - Não completamente.
- Então, agora, temos diversos factores... ambientais, sociológicos, culturais, fisiológicos... todos eles a acelerar a velocidade da maturação, especialmente entre as crianças durante a infância e a adolescência.
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- E achas que não tens dado importância suficiente a esses factores nos teus diagnósticos e tratamentos?
- Acho que é uma possibilidade muito real. Agora voltemos ao caso da Lucy B. Há dez anos, em Denver, eu tê-la-ia classificado como estando na meia infância.
- Bornstein dividiu a infância em duas fases, Ted. A Lucy podia estar no princípio da infância ou no fim da infância.
- Leste o trabalho de Pandey sobre a pré-infância, a infância e a pós-infância? Assim, agora temos três fases. Mas o que eu quero realçar é que, devido ao crescimento acelerado causado pelos factores que mencionei, a Lucy B., apesar de ter oito anos, pode não estar na fase da infância, mas na primeira fase da adolescência.
- Uma teoria interessante, Ted.
- A infância, segundo Freud, é uma calmaria sexual, um período de anestesia genital com um decréscimo indubitável da actividade masturbatória entre as idades de aproximadamente cinco anos aos dez ou doze. A mãe diz que a Lucy não se masturba. Acreditas nisso?
Ela olhou para ele.
- Se a mãe estiver a falar verdade, e a Lucy não se masturbar, isso não ajuda a tua teoria, pois não? Seria um indicador de que a Lucy está na infância. É por isso
que não queres acreditar na Grace?
- Possivelmente. Mas agora acho que a Grace pode estar a falar verdade, e que a Lucy não se masturba. Não por que é uma criança na fase da infância, mas porque descobriu
uma prática sexual que lhe dá mais prazer que a masturbação. Uma prática adolescente.
- Excitar homens mais velhos?
- Sim.
- No gravador, ela disse que acha que não está a fazer nada errado. Acreditas que ela sente realmente o que diz?
- Errado? Mary, que é que "errado" significa neste caso? Para ela não é "errado"; é prazer.
- Estimulação sexual?
- Claro. E também uma sensação de domínio, de poder. Ela pode fazer os homens ficarem "vermelhos e aos risinhos". E gosta disso. Neste sentido, certo e errado não significam nada para ela. bom e mau seriam conceitos mais adequados. Mas não bom e mau no sentido ético e sim no que resulta em prazer ou dor.
Permaneceram em silêncio durante alguns momentos. Levin inclinou-se para a frente, para voltar a encher o copo de vinho.
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Apetecia-lhe desesperadamente fumar um charuto, mas ela não o deixava fumar no seu apartamento.
-Ted-disse ela -, se o que dizes é verdade... sobre os factores aceleradores do crescimento que tornaram Lucy uma adolescente em vez de uma criança na fase da infância... então, por que é que não há muitas mais raparigas como ela? O caso dela é único, pelo menos que eu saiba.
- Porquê? - disse ele amargamente. - Porquê? Voltamos sempre a isso, não é?
- Numa daquelas gravações... a primeira, acho eu... mencionaste um caso semelhante que trataste. Foi verdade?
- Eu alguma vez minto?
- Queres mesmo que eu responda a essa pergunta?
- Não, não é necessário. Sim, tratei um caso semelhante. Há cerca de sete anos. Está no arquivo. O nome da rapariga era Betty ou Barbara... uma coisa assim.
- Ficou solucionado?
- De certa forma. Acabei por descobrir que era corrupção incestuosa do pai.
- Yuck!
- Yuck... uma observação muito distinta e científica.
- É como me sinto. Que é que aconteceu a essa Betty ou Barbara.
- A família desfez-se. Divórcio.
- Não aquilo que se considera um sucesso completo.
- Foi uma solução. A melhor, dadas as circunstâncias.
- Pensas que a hiper-sexualidade da Lucy pode dever-se a algo semelhante?
- Nesta fase não sei, Mary. Tenho de saber mais sobre os pais e sobre o princípio da infância dela.
- E depois que é que acontece? Os pais dos pais e a infância deles ?
- Possivelmente.
- Nunca tem fim, pois não?
- Bem, é limitado pelo tempo que se pode dedicar a cada análise. Não podemos recuar até Adão e Eva, embora pudesse ser útil falar com eles.
Levantou-se com dificuldade do cadeirão de braços e sentou-se no sofá, junto da
Dra. Mary Scotsby. Pousou um braço pesado sobre os ombros dela.
- Agora, deixa-me fazer-te uma pergunta - disse ele. Achas que é possível a Grace não saber se tem ou não um orgasmo?
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- Sim, acho que é possível, Ted. Não é assim tão raro entre mulheres que só tiveram um homem nas suas vidas.
- Tu já tiveste um orgasmo?
- Claro - disse ela. - Tu sabes e eu sei. Ele riu-se.
- Lá se vai a experiência anterior.
Ela também se riu e beliscou-lhe levemente o joelho.
- Seu filho da mãe, pregaste-me uma rasteira. Achas que a Grace poderá ser uma fanática religiosa, Ted?
- Não me parece. Apenas uma mulher muito convencional, com crenças tradicionais. Aposto que aquela casa deles está a brilhar. Pode lamber-se o chão. Ela é uma verdadeira Sra. Craig.
- Quem é a Sra. Craig?
-Antes do teu tempo, minha querida, e levaria muito tempo a explicar.
- És insuportável. Sabes isso, não sabes?
- Já suspeitava. Beijaram-se.
- Como é que tens andado a dormir ultimamente-perguntou ela.
- Não muito bem.
- Lucy B.?
- Principalmente. Estou convencido de que aqueles factores contributivos que mencionei podem tê-la empurrado para uma adolescência prematura. Mas não explicam o
que estimulou o comportamento hiper-sexual. Como tu realçaste, outras crianças do sexo feminino não agem daquela forma. Alguma coisa causou aquele comportamento.
Alguma coisa.
- Queres dormir cá, Ted?
- Sim. Por favor.
8
A cerca de um quilómetro e meio das casas dos Holloway, dos Bending e dos Empt havia um espaço vazio desde a AIA até ao mar. Era uma alameda, a que chamavam uma
rua de acesso público, que permitia às pessoas de outras zonas terem acesso à água.
Do lado da estrada havia lugares para estacionamento (com parcómetros) para uma dúzia de carros. Depois, o acesso estava
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pavimentado até certo ponto, e essa zona tinha um chuveiro. Depois só havia areia até à beira-mar.
O acesso era o ponto de encontro do grupo de Eddie Holloway. Chamavam a si mesmos "Bando Selvagem", ou, normalmente, apenas "Bando". Reuniam-se quase todos os fins
de tarde, e normalmente aos fins-de-semana à noite. Eram quase todos estudantes liceais, com idades compreendidas entre os quinze e os dezanove anos. Chegavam em
bicicletas, em pranchas de skate, em carrinhas pick-up e alguns em carros desportivos.
A maior parte dos rapazes e algumas raparigas eram surfístas. Bebiam cerveja, quase sempre, mas às vezes bebiam também vinho morangueiro e vodca. Marijuana. Ocasionalmente,
speeds e drunfos. Atiravam Frisbees, e, no Outono, bolas de futebol. Normalmente, limitavam-se a ficar por ali sem fazer nada.
Às vezes, especialmente nas noites de sexta-feira e sábado, o Bando fazia muito barulho e atrapalhava o trânsito na AIA. Pessoas que tinham a infelicidade de morar
perto do acesso chamavam frequentemente a Polícia. Não adiantava muito. A droga era escondida antes de os polícias saírem dos carros e as bebidas alcoólicas pertenciam
sempre àqueles que já tinham atingido a maioridade. Qual era o problema?
As raparigas costumavam usar biquinis ou fatos justos. Os rapazes usavam calças de gangas cortadas e às vezes T-shirts com as mangas rasgadas. Ninguém tinha sapatos
e só calçavam sapatilhas Adidas com riscas às cores.
Naquele ano, a palavra que estava na moda era "estouro". Estás a diverir-te? Um estouro. No ano anterior a palavra fora "gás". No ano antes, era "bomba". O que quer
que lhe chamassem, era o mesmo. Grossos arbustos baixos debruavam a estrada de acesso. As noites de sexta-feira e sábado, já tarde, podiam ser um estouro.
Edward Holloway perdeu os três naqueles arbustos. Uma bomba! E uma noite Sue Kellerman bateu duas punhetas ao mesmo tempo, uma em cada mão. Um gás! E que tal uma
geral
- duas miúdas da claque do liceu e a equipa de basquetebol. Um estouro em grande!
Um sábado à tarde, só para o gozo, e porque o tempo estava uma porcaria, decidiram fazer um concurso: ver quem conseguia roubar a mercadoria mais valiosa. Espalharam-se
para roubar em lojas desde Pompano até Boca. Depois reuniram-se novamente à noite. Tony Jergens ganhou; roubou uma televisão portátil de trinta centímetros. Louco?
Um estouro!
Eddie costumava estar com o Bando Selvagem, a fumar cigarros
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engraçados, a beber vinho doce, a apalpar o cu a todas as miúdas. Todas gostavam muito dele. Diziam que era um garanhão fixe.
- Ei, onde está o garanhão?
Mas de repente o garanhão não estava lá. Estava sozinho, a passear na praia perto de casa. Por vezes, passava os fins de tarde sentado na areia, a olhar pensativamente
para o mar. Mas não era bem isso. Estava a observar as idas e vindas da Sra. Teresa Empt.
Achou que já tinha percebido a rotina dela. Em dias bons, com sol, ao fim da tarde, cerca das 4:30 ou 5:00, ela vinha para o terraço. Normalmente, usava o fato de
banho branco de duas peças, um biquini conservador. Mas via-se a barriga suave e o contorno dos seios grandes.
Passava cerca de dez minutos no terraço colocando protector no corpo, embora àquela hora o sol já tivesse perdido a força. Depois, descia a escadas de rocha de coral
para a praia e começava a andar para sul com a água pelos tornozelos. Passava por Eddie Holloway. Caminhava sempre naquela direcção. Um dia, ele sentou-se a norte
da casa dela e nesse dia ela caminhou para norte.
(Aquele Wayne Bending! Só tinha doze anos, mas era um filho da mãe esperto!)
- Boa tarde, Eddie! - dizia Teresa Empt quando passava por ele.
- Boa tarde, Sra. Empt - respondia ele, e sorria-lhe. Tentava fazer aquele sorriso parecer triste, para ela pensar que ele estava com algum probema.
Enquanto ela se afastava dele, caminhando pela praia, ele ficava a observá-la - e raios o partissem se não começava a ficar excitado. Não só mamas grandes mas também
um cu que nunca mais acabava. Pernas fantásticas. Bonito bronzeado. E não era balofa como tantas senhoras de certa idade. Era sólida. E aqueles compridos cabelos
pretos. Um estouro!
A tarde que ele escolheu estava quente e húmida para Outubro. O sol a oeste parecia estar pendurado no céu, sem querer descer, e rodeava-o uma neblina esbranquiçada. O ar estava pesado e peganhento. Até o oceano parecia ter uma película gordurosa; ondeava e enrolava, mas não rebentava. Não se respirava. O mundo inteiro estava abafado.
- Boa tarde, Eddie! - disse Teresa Empt. Ele levantou-se.
- Sra. Empt - disse ele desesperadamente -, posso acompanhá-la um bocado?
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Ela ficou espantada e depois contente.
- Claro que podes, Eddie - disse ela, sorrindo. - Só estou a fazer o meu passeio higiénico da tarde.
Ele não fazia a mínima ideia a que raio ela estava a referir-se.
- Pois - disse ele, acompanhando o passo dela. - Bem, eu devia andar mais... sabe? Para me manter em forma.
- Em minha opinião, pareces estar numa forma bastante boa, Eddie - disse ela, maliciosamente, olhando para ele de lado. - Calculo que faças bastante exercício.
- Pois - disse ele. - Mas mesmo assim... sabe... Caminharam pela praia, lado a lado. Depois ele apercebeu-se
de como ela era uma mulher grande. Tão alta como ele ou até um pouco mais alta. E movia-se com elegância, andando em passos rápidos com coxas firmes. Chegou à conclusão de que ela era bastante jeitosa. Mantinha-se em boa forma. Uma boazona. Se conseguisse engatá-la, não seria nada chato.
- Gosto dos teus cabelos, Eddie - disse ela, descontraidamente. - Não o aclaras, pois não?
- Ah? - exclamou ele. - Oh, está a referir-se a químicos? Não, nada disso. É só o sol e a água salgada.
- Sim - disse ela -, foi o que eu pensei. Passas imenso tempo na água. Eu tenho-te visto surfar.
- Sim - disse ele -, eu curto surfar.
- E tens um bronzeado delicioso - disse ela.
A palavra "delicioso" assustou-o, agradou-lhe, incentivou-o.
- Bem, a senhora também tem um bronzeado bestial, Sra. Empt - disse ele. - Mais escuro do que o meu.
- Sim - disse ela -, mas não tão...
Não concluiu e ele não conseguiu adivinhar o que ela tinha começado a dizer.
- Não vou até muito longe, Eddie - disse ela. - Só até à barra. Depois volto para trás.
- Como quiser - murmurou ele.
- Eddie - disse ela, virando a cabeça para olhar para ele -, estás preocupado com alguma coisa?
Ele soltou um profundo suspiro.
- Tenho uma confissão a fazer-lhe, Sra. Empt.
- Uma confissão? - disse ela, rindo melodiosamente. Meu Deus, que sério que tu estás.
- Bem, e é sério - disse ele, olhando para o mar. - Pelo menos para mim. Tem estado a incomodar-me, e tenho andado à procura de uma ocasião para falar com a senhora sobre o assunto. Espero que não se ria de mim.
- Eu não me vou rir de ti, Eddie. Prometo. Que é?
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- Bem, sabe aquele, hum... como um abrigo arborizado que tem na sua casa? Ó branco?
- O mirante?
- Sim. Perto da estrada. Bem, a senhora sabe que os seus portões estão sempre no trinco,
Sra. Empt, e eu tenho ido para lá à noite. É como se estivesse a cometer um abuso, e isso tem andado a incomodar-me, por isso achei que era melhor contar-lhe tudo.
Ela ficou em silêncio durante algum tempo. Continuaram a caminhar, pontapeando a água na zona da rebentação. A cabeça dela estava inclinada para a frente e os longos cabelos pretos caíam-lhe pelo rosto. Depois, ela afastou-os com os dedos e eles caíram, soltos, para os ombros fortes e bronzeados.
- Vais para lá sozinho, Eddie? - disse ela em voz calma. Ou vais encontrar-te com alguém?
- Sozinho! - exclamou ele. - Sempre sozinho, Sra. Empt, juro-lhe. Não faço nada lá.
- Mas porquê? - perguntou ela. - Por que é que vais para lá?
Ele tinha as respostas preparadas.
- Sra. Empt - disse ele solenemente -, às vezes tenho uma enorme necessidade de estar sozinho. Quero dizer, com a minha família, e a escola, e tudo o resto, tenho
de desaparecer e ficar sozinho durante algum tempo. Só fico ali sentado a pensar. Mas depois compreendi que não tenho direito nenhum de estar ali, e isso tem andado
a incomodar-me, por isso achei que era melhor contar-lhe tudo. Desculpe,
Sra. Empt.
- Oh, Eddie - disse ela, virando-se para ele -, não precisas de pedir desculpa. Acho que fizeste uma coisa muito certa ao contares-me e respeito a tua honestidade.
- Escute - disse ele em voz rouca -, se quiser que pare de ir para lá, basta dizer-me que eu nunca mais lá vou, juro.
Ela riu alegremente. - Não vejo que mal há nisso. Desde que não faças festas loucas nem nada desse género.
- Nunca estive lá com alguém, Sra. Empt. Quero dizer, é como um esconderijo secreto... sabe? Onde posso estar sozinho e pensar.
- Sim, Eddie - disse ela suavemente -, eu compreendo. Bem, podes continuar a ir para lá. Eu não me oponho.
- Ena, obrigado, Sra. Empt - disse ele, agradecido. -Agradeço-lhe imenso.
Chegaram à barra e voltaram para trás. Ele ficou com a sensação de que ela se tinha chegado mais para si. De vez em
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quando , as costas das suas mãos esfregavam-se uma na outra, os braços nus tocavam-se.
- Oh, olha! - disse ela, pondo os dedos no ombro quente dele e virando-o para o mar.
Ali, a cerca vinte metros, dois mergulhadores vinham a sair da água. Usavam fatos de mergulho pretos, com máscaras, bilhas de oxigénio e barbatanas. Tinham cintos
de pesos em volta da cintura e facas presas às pernas.
Teresa Empt riu-se vagamente.
- Parecem alienígenas das profundidades - disse ela.
- Pois - disse Eddie Holloway, sem saber muito bem o que significava "alienígenas".
- Devem ter ido ao recife. Há lá imensas conchas boas e corais.
A mão dela deslizou casualmente pelo ombro suave dele.
- Vais para o mirante todas as noites, Eddie? - perguntou ela, olhando em frente.
- Quase todas as noites, Sra. Empt.
- A que horas? - perguntou ela, e a sua voz tremeu.
- Por volta das nove horas - disse ele, e pensou exultantemente: "Apanhei-a!"
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- Sabe o que vi a semana passada? - perguntou Lloyd Craner. - No Centro Comercial de Boca? Uma mulher com bócio.
- A sério? - exclamou Gertrude Empt. - Meu Deus, não vejo uma coisa dessas há cinquenta anos. Quando era miúda, havia imenso bócio, paralisia infantil e bexigas. Agora, já não há nada disso.
- Não - disse ele. - Agora todas as doenças estão nas cabeças deles.
- Tem toda a razão, miúdo - concordou ela. - Para onde é que me leva?
- Para um motel - disse ele.
- Oh, seu doido, seu maluco impetuoso - disse ela. - Vamos registar-nos com o apelido de Sr. e
Sra. Smith, depois enfia-me num quarto e tenta meter-se dentro das minhas calçotas.
- Calçotas ? - disse ele, rindo-se. - Não vejo uma coisa dessas há cinquenta anos.
Quando se reformara, e tinha aceite o convite da filha para
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viver com eles no Sul da Florida, o professor Craner tinha vindo do pequeno colégio de Montana no seuBuick antigo, alto e abaulado.
Não tivera pressa - a viagem demorara cerca de três semanas-e calculara que tinha gasto trinta e dois litros em cada cem quilómetros. Mas não se importara; tinha dinheiro e tempo. Achara que estavam os dois a acabar à mesma velocidade e ficou satisfeito com isso.
Ainda tinha o Buick. Estava em perfeitas condições e era frequente algum maluco por carros antigos oferecer-lhe dez vezes mais do que tinha pago por ele. Mas ele
não estava interessado. Considerava-o um transporte bom, de confiança, confortável. Não queria pensar nele como uma peça de museu.
Agora, ele e a Sra. Empt iam confortavelmente sentados no banco da frente, seguindo tranquilamente pela AIA. Não ligaram a mínima importância aos olhares que o seu
antigo meio de transporte atraía. As janelas tinham sido abertas; a brisa do princípio da tarde cheirava a juventude e a esperança.
- Tenho andado a explorar-disse Craner. - Parando aqui e ali para ficar com uma ideia das rendas numa base anual.
- Ainda não decidi - disse ela, rispidamente.
- É claro que não - disse ele, brandamente. - Não estava à espera de que já tivesse decidido. Mas não lhe faz mal nenhum ver, pois não?
- Acho que não.
- Só para ver o que acha da aparência do lugar... É a sul de Lighthouse Point. Perto da Rua Catorze. No lado oeste do canal.
- Mesmo no canal? Imensos insectos e cheiros e doidos a acelerar com os barcos a motor.
- Oh, não - disse ele. - Não no canal. Mais perto da Estrada Federal. Perto da Praça da Moda de Pompano.
-É um lugar agradável-disse ela. - Interesso-me imenso por moda... como se pode ver pela forma como me visto.
- É muito conveniente para comprar calçotas - disse ele, e riram-se ambos. Ela deu-lhe uma cotovelada.
Quando lá chegaram, ele encostou junto ao passeio e inspeccionaram o motel sem saírem do carro. Ele enumerou as características: vinte e dois apartamentos em edifícios de dois andares. Piscina. Campo de shuffleboard1.
Paisagem agradável. Cadeiras de descanso em metal no relvado bem aparado. Tudo parecia ter sido recentemente pintado de cor-de-rosa.
1 Jogo no qual se empurram discos de madeira com uma pá. (N. da T.)
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- Que acha? - perguntou Craner, casualmente.
- Não é mau - disse ela, resmungando. - Passo bem sem o cor-de-rosa, mas penso que podia habituar-me. Parece que é bem cuidado.
- Sem mácula - garantiu-lhe ele. - Os donos são um polícia de Nova Jérsia reformado e a mulher. Têm um preto que faz as reparações, corta a relva e coisas desse
género. Cerca de um terço dos apartamento estão alugados ao ano, e têm bastantes reservas sazonais. As mesmas pessoas continuam a vir para cá ano após ano.
- Isso foi o que eles lhe disseram, professor - disse ela, cinicamente.
- Eu sei - concordou ele. - Foi o que eles me disseram. Ficaram sentados em silêncio, a observar o motel. Pessoas em
fatos de banho foram para a piscina. Um casal iniciou um jogo de shuffleboard. Dois homens folheavam o jornal sentados em cadeiras no relvado.
- Miúdos? - perguntou a Sra. Empt.
- Alguns - disse ele. - Nenhum dos residentes permanentes tem filhos, mas os turistas têm. Parece ser um lugar sossegado.
- Imensos velhos - observou ela.
- Mais novos do que nós - disse ele gentilmente.
- E quanto é que estão a pedir por este palácio?
- Têm dois apartamentos disponíveis para alugar, com características diferentes - explicou ele. - Numa base anual, o apartamento mais pequeno custa cem por mês.
Tem um quarto-sala, kitchenette, casa de banho. Apertado. Não o recomendo. O apartamento maior tem uma pequena sala de estar, quarto separado, também pequeno, casa
de banho, cozinha suficientemente grande para ter uma mesa e cadeiras. Custa quatrocentos e cinquenta por mês.
- Hum - disse ela. - Serviço de limpeza?
- Não para os apartamentos alugados ao ano, a não ser que se queira pagar mais. Gostaria de ver os apartamentos?
- Agora não.
- Está bem - disse ele amigavelmente, ligando o motor. Vamos almoçar alguma coisa. Descobri um sítio agradável no canal, perto de Atlantic Boulevard. Podemos sentar-nos
na esplanada, a uma mesa com chapéu, e observar os barcos a navegar de um lado para o outro.
- Que se lixem os barcos! - disse ela. - Pode-se beber um copo?
- Claro.
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- Apetecia-me uma bebida.
Almoçaram numa doca de cimento, um metro e meio acima da superfície da água. Os seus rostos estavam à sombra, debaixo de um guarda-sol com franjas. O bar-esplanada estava a ficar concorrido, principalmente por ocupantes de barcos atracados. Mas apenas algumas das mesas estavam ocupadas.
Ela bebeu uma cerveja e ele um Gibson com gelo, ambas as bebidas servidas em macios copos de plástico. Depois, comeram hamburgers mal passados, batatas fritas e saladas pequenas. Comeram rapidamente e em silêncio. Entretanto, tomaram outra bebida.
Ficaram placidamente sentados. Observaram os ruidosos frequentadores do bar que pensavam que a juventude era permanente. Contemplaram os barcos a passar no canal. Viram a criada de mesa que os servia conversar com os clientes que estavam sozinhos. Era agradável ver tudo e compreender.
- Quando é que a sua mulher morreu? - perguntou a Sra. Gertrude Empt, quase preguiçosamente.
- Há dez anos - disse ele, tão indolente como ela. -Três anos antes de eu me reformar. Num sábado. Eu estava em casa e ela ia sair para um jogo de brídege. Disse-me:
"Não te esqueças de tirar o assado do forno." Depois foi para o hall e ouvi um ruído terrível. Quando lá cheguei ela já tinha morrido. Coração.
- O meu velho não morreu assim tão de repente. Foi definhando. O fígado. A bebida deu cabo dele. Por fim,
- Que é que ele fazia, Gertrude? Trabalhava em quê?
- Construção. Trabalho de fundações. Trabalhava muito e trazia bastante dinheiro para casa. Quando não estava desempregado. Mas era boa pessoa.
- Luther é o seu único filho?
- Não. Tenho uma filha casada no Texas e outra filha na Califórnia. Só Deus sabe o que ela anda a fazer. Nunca escreve, a não ser para pedir dinheiro.
- Essas coisas acontecem - disse ele. - A Jane é a minha única filha.
- Ah-ah - disse ela. - Ela não se saiu nada mal. Casada com um banqueiro e tudo isso.
- Sim - disse ele. - Que tal outra rodada?
- Por que não? - disse ela. - Vamos a isso.
Ele usava o seu fato branco; panamá branco e bengala numa cadeira vazia. O bigode branco e o cavanhaque branco ressaltavam. Olhos curiosos enrugavam-se com o brilho
do sol que se reflectia na água. Estava sentado, muito direito e as suas costas não tocavam na cadeira.
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- Era professor de quê? - perguntou-lhe ela, indolentemente.
- Geologia. - Ele sorriu brevemente. - Trabalho de fundações.
- Sim - disse ela com um sorriso lento. - Eu apanho-os, não é?
Virou a cabeça para observar uma lancha a motor manobrar ao longo da doca. Ele olhou para ela. Estava solidamente sentada, com o seu vestido solto de algodão estampado,
e ele achou-a uma mulher forte e vital. Já vivera muito, imaginou ele, e não havia muito que a pudesse chocar, assombrar ou assustar.
- Gertrude - disse ele cuidadosamente -, estou a falar muito sério em relação a isto. Em relação a nós dois.
Ela voltou-se para olhar para ele com os seus mordazes olhos castanhos.
- Eu sei que está - disse ela. - Eu sei que está a falar a sério.
- O importante é que saiba - disse ele. - Demore o tempo de que precisar; não estou a apressá-la.
Ela não respondeu. Beberam mais duas bebidas e ele guiou com cuidado redobrado na viagem de regresso para casa. Decidiram que era melhor darem um longo passeio pela
praia, para os efeitos do álcool se dissiparem, e foi o que fizeram.
Nessa altura, o sol estava a descer no horizonte; a luminosidade era cor de alperce. As pernas dela eram da cor do chá, e o rosto dele estava suavizado e brilhava
com os raios do sol. E os Gibson passearam lentamente e conversaram.
De que é que não falaram! Falaram de tudo o que lhes veio à cabeça.
Correram atrás um do outro e riram-se muito. Uma vez, ela deu-lhe uma palmada no rabo.
10
O Dr. Theodore Levin tinha recusado um convite da Dr.ê Mary Scotsby para ir jantar esparguete ao apartamento dela. Em vez disso, trancou-se no seu atravancado apartamento
de cobertura no último piso de um condomínio de dezanove andares no canal.
Tomou um duche e vestiu um roupão de flanela, duplicado daquele que tinha no apartamento de Mary. Depois, pôs uma
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cassete de Isaac Stern a tocar, abriu um pacote de bolachas de hortelã-pimenta Pepperidge Farm e encheu um copo de água com Gálio Hearty Burgundy. Acendeu um charuto.
Concentrou-se no trabalho.
Em casa, era o mais desorganizado dos homens, e sabia-o, desesperava com isso e nunca mudava. Os seus livros, brochuras e papéis estavam periclitantemente amontoados
em estantes de parede a parede, abandonados em cima de cadeiras, empilhados no chão, em mesas, em móveis, na escrivaninha. Demorava mais tempo a procurar o documento
que queria do que a lê-lo.
Cerca da meia-noite, tinha lido tudo o que conseguira encontrar sobre patologia sexual da criança no estádio da infância, incluindo trabalhos de Pandey, Kay, Anthony,
Fraiberg e Kaplan. Não encontrou nenhuma referência de um caso exactamente igual ao de Lucy B. Mas isso não era nada raro; a literatura de psicoterapia raramente
incluía casos que eram "exactamente iguais".
Depois de terminados o vinho, as bolachas, o charuto e Isaac Stern, serviu-se de uma pequena dose de brande e saiu para a varanda, que raramente era usada. Despiu
o roupão. Estendeu-o sobre uma cadeira para que o seu corpo macio não ficasse vincado com um padrão aos quadrados.
A fria brisa nocturna soube-lhe bem na pele nua. Era como tomar um banho de ar. Afundou-se na cadeira, entrelaçou os dedos em cima da barriga peluda e contemplou
as luzes nocturnas de Fort Lauderdale.
Conseguia ver as luzes fortes que rodeavam o aeroporto, o brilho de uma pista de corridas muito distante. E, no espaço intermédio, colares e grinaldas de luzes.
Sinais luminosos em edifícios altos. Luzes firmes. Luzes intermitentes. Luzes que piscavam. E, na cicatriz preta do canal, lanternas verdes e vermelhas de barcos
que se moviam lentamente.
Os ruídos chegavam até ele abafados. Aviões a aterrar ou a descolar. Tráfego na estrada lá em baixo. Ocasionalmente, barcos a apitar para que uma ponte fosse levantada. Mas eram sons de segundo plano, papel de parede auricular. Acima de tudo, estava a calmaria de uma noite clara e gigante, de estrelas eternas e de espaço que murmurava suavemente, se se prestasse atenção.
Estava convencido de que a sua análise de Lucy B. estava correcta. Apesar da sua idade, ela não era de maneira nenhuma uma criança na fase da infância, mas sim nos primeiros estádios da adolescência. O mundo tinha mudado, estava a mudar a uma
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velocidade cada vez maior, desde que o papá Sigmund tinha estabelecido os limites de idade da infância.
Se ele estivesse certo, se Lucy já fosse uma adolescente, isso justificaria o fim da anestesia genital, a sexualidade reactivada. Mas, válida ou não, esta tese não podia justificar aquela aberração em particular.
Aquilo, supôs ele tristemente, tinha sido despoletado por uma experiência quando bebé ou criança que, por enquanto, ele não conseguia imaginar. Viu-a em termos de trauma, uma ferida psíquica, que a tinha levado por aquele caminho.
Resmungou, aborrecido com os seus devaneios românticos, e bebeu um gole de brande. Sabia como era raro a psicopatia poder ser reduzida a um único incidente, um cataclismo que acontecia e determinava uma vida. Normalmente, as pessoas eram quebradas por experiências repetidas, por toda uma juventude corrompida.
No entanto, o momento único e a ferida psíquica violenta não era unicamente material para ópera, mito, novelas e para as peças de Shakespeare. Violações, assassinatos, seduções, traições
- todas essas coisas aconteciam na vida real, e se ele as ignorasse correria um risco.
Baixou os olhos para o seu corpo atarracado de meia-idade, branco, descuidado e com muitos pêlos, e perguntou a si mesmo, não pela primeira vez, por que é que tinha escolhido aquela profissão.
Parecia-lhe que havia determinadas ocupações-psiquiatra, polícia, ginecologista, juiz, e talvez até padre - que desqualificavam automaticamente aqueles que as procuravam. Exigiam uma ambição e uma escolha consciente que garantiam o falhanço. Que homem ou mulher normal escolheria aqueles caminhos?
Era um dilema que Theodore Levin nunca conseguira resolver. Suspirando, e depois bebendo o brande até ao fim, pôs-se de pé. Vestiu o roupão e voltou para dentro. Sentado à escrivaninha, começou a tomar alguns apontamentos sobre a melhor forma de conduzir a sessão da tarde seguinte com Lucy B.
Ela apareceu pontualmente no seu consultório às quatro horas. Ele pensava que tinha fechado o seu coração à atracção da beleza física dela. Mas deu por si a cumprimentá-la com um sorriso de orelha a orelha.
Nessa tarde, ela trazia calças de ganga justas, ténis e uma camisola aos quadrados com as mangas enroladas nos braços flexíveis.
- Olá, Dr. Ted! - disse ela.
- Boa tarde, Lucy - disse ele, o mais sério que conseguiu, e
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levou-a para a cadeira de braços que tinha colocado ao lado da secretária.
Conversaram durante alguns momentos sobre os trabalhos escolares dela e sobre os planos que tinha feito para o
fim-de-semana. Reparou que os olhos dela fitavam os
brinquedos e jogos empilhados na estante. Ligou o gravador.
- Todas essas coisas são para as crianças que vêm cá falar comigo - explicou ele. - Por que não vais espreitá-los?
Obedientemente, ela levantou-se e obsen ou lentamente os brinquedos expostos. Uma vez pegou num ursinho de peluche pela barriga gorda e riu-se.
- Gostas desse? - perguntou-lhe ele.
-Parece-se consigo - disse ela, soltando risadinhas. Depois voltou para a cadeira.
- Não há nada com que gostasses de brincar? - perguntou ele. - Se quiseres, podes.
- Não, obrigada - disse ela, formalmente. - São coisas de miúdos.
- As bonecas também?
- Eu não brinco com bonecas, Dr. Ted. Meu Deus, não sou uma criança!
- Não tens bonecas em casa? - insistiu ele. - Nem sequer uma? Uma velha preferida?
- Tenho um cão Snoopy de que gosto - disse ela. - Mas não brinco com ele. Só está sentado em cima da minha cómoda.
Sabia perfeitamente que a coisa mais importante na sua profissão era aprender a ignorar o inconsequente. Mas a coisa mais difícil era decidir o que era desprovido
de significado. Ele era como um detective a resolver um homicídio com demasiadas pistas.
- Lucy - começou ele -, a última vez que falámos, disseste que amavas os teus pais e que eles te amavam.
É verdade?
- Claro que sim.
- Achas que a tua mãe e o teu pai se amam um ao outro?
- Meu Deus! - disse ela com um sorriso arrasador. - Que pergunta tão parva.
- Por que é que é parva?
- Como é que se pode saber se uma pessoa ama outra pessoa qualquer? Quero dizer, eles podem dizer que sim e comportar-se como se fosse verdade, mas não podemos ter a certeza, não é?
Ele admirou a perspicácia dela.
- Se acreditas nisso, Lucy - disse ele suavemente -, então, como é que podes ter a certeza de que os teus pais te amam?
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- O senhor é mesquinho e malvado - gritou ela imediatamente -, e eu detesto-o.
De repente, estava a chorar. Sentada muito direita, com as mãozinhas a apertar os braços da cadeira, virou o rosto directamente para ele e deixou as lágrimas correr. Chorava em silêncio, sem soluços ou fungadelas, num desgosto discreto e dignificado.
Ele empurrou a caixa aberta de lenços de papel para junto dela e esperou pacientemente. Por fim, a lágrimas esgotaram-se e ela limpou delicadamente os olhos com um lenço.
- Devo estar com um aspecto horrível - disse. - Horrível!
- Estás bem - garantiu-lhe ele. - Mas por que é que choraste?
- Porque disse que os meus pais não gostam de mim.
- Eu não disse que eles não te amam, Lucy. Só te perguntei como é que sabias.
- Bem... - disse ela, lentamente -, se eu lhe contar uma coisa, promete que não conta a ninguém?
- Prometo.
- E principalmente não à minha mãe ou ao meu pai - disse ela, rindo estridentemente. - Se eles descobrissem, matavam-me.
- Eu não lhes conto.
- Bem... sabe... a minha mãe não é a minha verdadeira mãe. A minha verdadeira mãe está morta. Morreu num trágico acidente de viação.
- Quando é que isso aconteceu, Lucy? - Há muito tempo.
- Há quanto tempo?
- Oh, talVez há cinco anos.
- Então, tu eras muito pequenina? Tinhas três anos?
- Sim.
- Mas lembras-te da tua mãe? Da tua verdadeira mãe?
- Claro que sim. Ela era muito bela e amava-me muito. Eu sei que sim, Dr. Ted, porque ela estava sempre a dizer-me isso, e a abraçar-me e a beijar-me e tudo isso. E algumas noites levava-me para a cama dela, para eu adormecer. E dizia-me que me amava mais do que a tudo no mundo. Mas depois morreu num trágico acidente de carro. Bem, o meu pobre pai tem de ir trabalhar todos os dias e tudo isso, por isso casou com esta mulher para, o senhor sabe, ela tomar conta de nós, que somos miúdos. Mas ela não é a nossa verdadeira mãe, e não se esqueça de que prometeu não contar a ninguém uma única palavra do que eu lhe disse.
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- Eu não conto, Lucy - disse ele num tom sério. - Eu nunca conto a ninguém o que tu me dizes nesta sala.
- Óptimo - disse ela. Tirou um espelhinho redondo da pequena bolsa de plástico e examinou-se criticamente, virando a cabeça de um lado para o outro.
Ele observou-a cuidadosamente, percebendo a elegância, o orgulho de uma mulher adulta.
Achou que seria melhor não dar seguimento à fantasia dela naquele momento. Deixaria o assunto para outra sessão em que pudesse determinar quanto é que ela recordava do devaneio, se este estava completamente formado e era recorrente ou apenas algo que ela tinha inventado naquele momento para justificar as lágrimas.
- Lucy - disse ele -, lembras-te de quando falámos anteriormente sobre a forma como os bebés nascem?
- Lembro. O senhor perguntou-me como e eu disse-lhe.
- Isso mesmo. Tu sabes que eu sou um médico, Lucy, e os médicos sabem tudo sobre raparigas e rapazes e homens e mulheres.
Ela olhou para ele, intrigada, durante alguns instantes. Depois o seu rosto iluminou-se.
- Oh, quer dizer nus? Sem roupas vestidas? Ela era tão rápida.
- Correcto-disse ele. - O Dr. David já te examinou quando tu não tinhas roupas nenhumas vestidas, não é verdade?
- Claro.
- Claro que sim. E a Dr.â Scotsby também. Nós somos todos médicos, Lucy, e não há necessidade de te sentires envergonhada ou embaraçada quando um médico te observa.
- Eu não fico envergonhada nem embaraçada, Dr. Ted.
- Óptimo. E por vezes os médicos têm de fazer perguntas bastante pessoais. Para poderem ajudar as pessoas. Compreendes isso, não é verdade?
- Claro.
- Sabes o que significa masturbação, Lucy?
- Masti...?
- Masturbação.
- Acho que já ouvi a palavra, mas não sei bem o que quer dizer.
- Bem, significa darmos prazer a nós próprios. Fazermo-nos sentir-nos bem. Não estou a referir-me a comer ou a nadar ou a diversões nem nada desse género. Estou a referir-me a prazer físico. Fazermo-nos sentir-nos bem dentro do nosso corpo. Tocando-nos.
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- Oh.
- Uma rapariga poderia tocar-se entre as pernas ou...
- Ou pôr o dedo no buraco - disse ela, ofegante. - A Gloria Holloway faz isso. Ela contou-me.
- Tu fazes o quê, Lucy? Pões o teu dedo no buraco? Ela inclinou-se para ele, quase sussurrando.
- Uma vez. Pus uma vez.
- Gostaste?
Ela recostou-se para trás e sorriu intimamente.
- Foi bom, a princípio, mas depois assustei-me.
- Por que é que te assustaste?
- Senti-me tão... tão esquisita. Pensei que talvez estivesse a morrer. Por isso, parei.
- Por que é que pensaste qu, estavas a morrer?
- Bem, comecei a ficar tonta. E não conseguia controlar a respiração. Essa parte assustou-me. E depois não conseguia tirar o dedo. Era como se ele tivesse ficado lá preso, talvez tivesse sido cortado. Foi por isso que fiquei assustada.
- E só fizeste isso uma vez?
- Só essa vez. E nunca mais vou voltar a fazer isso, garanto-lhe. Disse à Gloria, mas ela disse que não se importa. Está sempre a fazê-lo. Ela gosta.
- Alguma vez a viste fazê-lo?
- Não, nunca vi. Mas às vezes ela fá-lo no oceano, sabe, quando estamos a nadar juntas. Depois diz-me: "Estou a fazer aquilo!"
- Ela alguma vez te pediu para lhe fazeres a ela? Para usares o teu dedo? No buraco?
- O meu dedo? Oh, não, nunca fiz isso.
- Se ela ela pedisse, tu fazias?
Ela olhou para as estrelas pintadas no tecto.
Ele esperou um pouco. Quando ela não respondeu, ele não fez qualquer tentativa para forçar uma resposta. Mas quando ela baixou os olhos para os dele e falou, foi uma coisa completamente inesperada.
- Há um livro na biblioteca - disse ela, sorrindo alegremente -, que diz o que significam os nomes.
Há muito tempo que ele tinha aprendido que o melhor a fazer com os jovens era deixá-los falar. Deixá-los divagar. Quando se calavam, ele podia fornecer uma direcção e orientá-los. Mas era mais vantajoso seguir as mudanças de conversas e as alterações de humor. Por vezes, revelava-se um mundo.
- Um livro que diz o significado dos nomes-perguntou ele, pensativamente. - Um dicionário?
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- Não, tonto. Nomes. O que o seu nome significa. Lucy quer dizer "luz". E eu procurei Ted, mas estava em Theodore e sabe o que significa Theodore?
- O quê?
- Dádiva de Deus. Não é bonito?
- Acreditas em Deus, Lucy?
- Bem, claro. Toda a gente acredita em Deus.
- Como é que achas que Deus é?
- Bem, é um homem velho, assim simpático, sabe, e sorridente e tem barba.
- Como a minha barba?
- Oh, não. A barba de Deus é uma barba grande e é branca. E... suave e sedosa. Não como a sua.
- Gostarias de te sentar no colo de Deus, Lucy? Ela olhou para ele com os olhos muito abertos.
- Pode fazer-se isso?
- Se pudesses, sentavas-te? Ela reflectiu.
- Talvez. Acho que sim. Porque Ele é simpático e sabe tudo, não sabe?
Naquele assunto, Levin estava em terra incógnita, e não sabia como proceder. Andava à pesca e estava consciente disso. Mas garantiu a si próprio que nada seria desperdiçado.
- Vais à igreja, Lucy?
- vou à catequese aos domingos.
- Gostas?
- Ohhh... não é mau. Gosto das ilustrações.
- Ilustrações?
- Dos nossos livros. Há um homem com setas espetadas pelo corpo todo. E cortaram cabeças e braços e pernas. Ugh!
Depois disso, ele nunca conseguiria compreender por que é que tinha dito aquilo, já que tinha decidido adiar qualquer referência à fantasia dela para uma sessão futura, mas, agora, de repente, parecia-lhe importante, e ele perguntou...
- Cortaram-lhes as cabeças e braços e pernas? - perguntou ele. - Como a tua mãe, naquele trágico acidente de viação? A tua verdadeira mãe?
- Sim - disse ela, fazendo que sim com a cabeça.
E ali estava: castração. Tão claro como água, e ele perguntou a si mesmo por que é que não tinha adivinhado antes. Estava confundido com as possibilidades. Inveja de pénis, decidiu ele, porque era o tipo de homem que gostava de pôr uma etiqueta em tudo. Tinha de ser inveja de pénis.
E quando ela excitava homens mais velhos, quando se esfregava
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nos colos deles, era a vitalidade priápica que procurava. Cobiçava aquele membro viril, pois tinha sido privada dele à nascença, ou tinha-o perdido. A hiper-sexualidade
dela era um esforço frenético para recuperar a sua.
Mas como justificar a fantasia dela: o sonho da mãe castrada? Acreditaria ela que a mãe tinha um pénis e que ela, Lucy, tinha sido privada do que lhe pertencia por direito: o poder do falo?
- Lucy-disse ele -, alguma vez pensaste no que queres ser quando fores grande?
- Médica - disse ela imediatamente. - Quero ser médica. Mas ela era tão esperta que ele não podia ter a certeza de que
ela estava a dizer a verdade ou a tentar impressioná-lo.
- Por que é que queres ser médica?
- Para poder examinar as pessoas e curá-las.
- Não queres casar?
- Ohh... - disse ela pensativamente -, talvez sim, talvez não.
- Não gostarias de ter um marido, um lar, filhos? Podias fazer isso e mesmo assim ser médica, sabes?
- Acho que não - disse ela de súbito. - Acho que não quero casar. Só quero ser médica e ajudar as pessoas. Como no caso de um homem a morrer de uma doença terrível, e eu observo-o e descubro o que é, e curo-o, porque mais ninguém no mundo pode fazê-lo, e ele vai querer casar comigo, mas eu digo que não porque tenho de ajudar as pessoas. Assim.
- Sim - disse o Dr. Theodore Levin -, é muito louvável.
- Ou - disse ela -, alguém tinha uma cabeça ou um braço ou uma perna cortado e eu podia cosê-lo no sítio e ficava como novo. Pode-se fazer isso. Dr. Ted?
- Bem... - disse ele, cautelosamente. - Dedos, às vezes. Uma mão ou um pé. Acho que já se conseguiu implantar um braço. Mas ainda é experimental, Lucy.
"Que estou eu a fazer?", perguntou a si mesmo, desesperado. "Estou aqui sentado a discutir microcirurgia com uma criança de oito anos com perturbações. É significativo? Para ela ou para mim?"
- Bem, eu podia fazê-lo - disse ela com firmeza. - Eu cosia uma cabeça e a pessoa ficava como nova.
Ele contemplou-a. Estava assombrado com a complexidade daquela menina.
- Lucy - disse ele, hesitante -, como é que te sentes em relação a estas conversas comigo?
- Como é que me sinto?
- Quando falei contigo pela primeira vez, disseste que não
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tinhas problemas, que não havia nada que te preocupasse. Continuas a sentir o mesmo?
Ela olhou para ele - oh, como olhou! Os olhos cinzento-azulados alerta e pensativos. Lábios grossos apertados. Cabeça dourada ligeiramente inclinada. Ela estava a julgá-lo. Ele estava convencido disso.
- Eu gosto de falar com o senhor, Dr. Ted - disse ela calmamente.
- Gosto muito de saber isso, porque também gosto de falar contigo.
Não disse que ela estava a fugir à pergunta que ele lhe fizera, que respondera à sua pergunta directa com um elogio. Ela estava ali e ela não estava ali. De cada vez que se aproximava, ela fugia. De onde vinha aquela esperteza?
- Bem, Lucy, parece-me que o nosso tempo se esgotou. Quando a porta se fechou atrás dela, ele pensou pesarosamente
que Mary Scotsby tinha razão: a criança tinha-o enganado.
TERCEIRA PARTE
Estavam naquele motel ordinário. Chuva intensa batia contra as janelas e matraqueava no telhado. Estavam nus na cama, os corpos transpirados, languidamente entrelaçados. Não era uma forma má de passar aquela tarde húmida de Novembro.
Ronald Bending tirou a boca do mamilo erecto dela.
- Gostas de dinheiro, não gostas? - perguntou ele. Jane Holloway abriu os olhos e olhou para ele.
- Dou-te nota dez em técnica - disse ela -, e para aí três em paixão.
- E tu que pensavas que eu era apenas mais uma cara bonita
- disse ele, sorrindo.
- Bem, a que propósito é que foi a pergunta do dinheiro? Por que é que me perguntaste aquilo?
Ele acendeu cigarros para ambos. Depois sentou-se na cama, abraçando os joelhos ossudos.
- Queres saber como é que eu acho que tu és? - perguntou ele.
- Claro - disse ela, observando-o com curiosidade.
-Algumas coisas sei - disse ele -, e outras adivinhei. Acho que és uma mulher que sabe perceber as grandes oportunidades. Aposto que te livraste daquele teu primeiro marido porque chegaste à conclusão de que ele era um falhado. Nunca ia ser nada para além de um escrivão naquele banco de cidadezinha do interior. No máximo, vinte mil por ano. Depois, conheceste William Jasper Holloway e decidiste mudar de vida. Então, acabaste em Boston, casada com um tipo cheio de dinheiro antigo. Mas Boston é uma cidade demasiado fria e emproada para ti e não gostas dos amigos finos do Bill. Queres estar no meio da acção. Por isso, consegues convencê-lo a mudar-se para a Florida soalheira. Talvez tenha havido aí alguma chantagem de alcova.
- Seu filho da mãe! - disse ela friamente.
- E depois - continuou ele -, estás na terra das palmeiras e do bain de soleil durante todo o ano. Podes usar aqueles teus biquinis obscenos todos os dias do ano,
se te apetecer, toda a
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gente é divertida, tens toda a erva e coca que te apetecer à tua disposição, e para onde quer que te vires há uma maneira nova de ganhar dinheiro. Como conhecer o senador não-sei-das-quantas, jogar na Bolsa, manter um cofre no banco de cuja existência o teu marido nem sequer sonha, em suma, gozar a vida enquanto os dólares se vão amontoando. Não os dólares da tua família, nem os do teu marido, mas o teu dinheiro. E isso. Estou certo?
- Bastante - disse ela, com um sorriso inexpressivo nos lábios. - Pensava que eras um tipo despreocupado. Agora acho que és um parvalhão mesquinho.
- Tão mesquinho quanto é preciso - disse ele, não sem orgulho. - Originalmente, eu era um rapaz das montanhas do Kentucky. É impossível ser mais mesquinho do que
isso.
- Bem - disse ela -, se sabes... ou adivinhas... tudo sobre mim, porquê perguntar se gosto de dinheiro?
- Vamos beber um copo - disse ele.
Foi buscar duas Pepsi geladas ao pequeno saco térmico. Sentaram-se na cama, a beber, a fumar, a ouvir a chuva bater contra as finas paredes do motel.
- Tinha uma ideia - disse ele lentamente -, e queria testá-la em ti.
- Então? Testa-me.
- É só uma ideia em bruto... ainda não planeei os pormenores... mas é assim: aquele negócio que o Bill e eu temos com o Luther parece que vai ser uma verdadeira máquina de fazer dinheiro. Os tipos da mafia entraram com o empréstimo de um quarto de milhão de dólares sem pestanejar. A fábrica para processar os filmes pornográficos em cassetes vídeo está a ficar pronta. Luther já tem um filme e está a fazer estudos para baixar os custos de produção. Estamos a pensar a entrar na área dos discos de vídeo. Os tipos da mafia não param de nos pressionar. Dizem que o mercado está a crescer todos os meses. Há biliões neste negócio.
- E qual é a tua ideia?
- Bem... - disse ele, olhando para a parede em frente -, Bill, eu e Luther temos um terço cada um. De tudo. Luther vai receber cinquenta mil no primeiro ano para organizar a coisa e pôr a linha de produção em funcionamento. Ele nem sequer pediu um contrato de trabalho. Bill e eu controlamos dois terços do capital e...
A voz dele arrastou-se.
- E - disse ela, com uma risada áspera - por que não esperar
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até Luther ter tudo organizado e depois correr com ele? Isso deixa-te a ti e ao Bill como sócios com partes iguais. Ele respirou fundo.
- Sim. Uma coisa desse género. Não sei exactamente como poderia ser feito, mas comigo e com Bill controlando dois terços do capital, não seria muito difícil. Como te disse, é só uma ideia. Que achas?
- Pensava que Luther era teu amigo. Ele virou-se para olhar para ela.
- Um amigo? Quem diabo é que tem amigos nos tempos que correm? Toda a gente tem conhecidos; é só. Então? Que achas?
- Hum - disse ela, fitando o tecto rachado -, é possível. E onde é que eu entro?
- Escuta - disse ele -, tu recebeste uma boa quantia de dinheiro por convenceres o Bill a entrar nisto, não foi? Haveria ainda mais dinheiro para ti se conseguisses levar o Bill a alinhar comigo.
- Nada de dinheiro - disse ela. - Quero fazer parte do negócio. Só para mim, em meu nome.
- Bem... - disse ele cautelosamente -, talvez se pudesse arranjar alguma coisa. Em quanto é que estavas a pensar?
- Digamos, dez por cento - disse ela. - Quarenta e cinco por cento para ti, quarenta e cinco por cento para Bill, dez por cento para mim.
- Isso dar-te-ia a ti e ao Bill a maioria do capital.
Foi então a vez de ela olhar para ele. Pousou a lata de Pepsi. Pegou nos testículos dele com a mão gelada, apertando-os com firmeza.
- Não necessariamente - sussurrou ela, olhando-o nos olhos.
Depois, mais excitada pelo dinheiro do que pela paixão, percorreu-lhe o corpo com os lábios, a língua, os dentes. A lata de Pepsi dele caiu para o chão, entornando-se, enquanto ele tentava aguentar a impetuosidade dela.
- Jesus! - disse ele com voz rouca. - Calma!
- Dez por cento! - murmurou-lhe ela ao ouvido. - Dez por cento!
Ela deitou-o e sugou-o. Esvaziou-o e deixou-o a tremer e a gemer. Depois saiu de cima dele, acendeu outro cigarro e viu-o a transpirar, a tentar controlar a respiração.
- Deixa-me pensar no assunto - disse ela friamente. Não há pressa, pois não?
Ele abanou a cabeça.
- Vais querer esperar até a fábrica estar pronta - disse-lhe
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ela - e Luther ter resolvido todos os problemas de produção. E terás de descobrir alguém que saiba gerir o negócio depois de o Luther desaparecer. Por isso, não é preciso tomar decisão nenhuma durante pelos menos dois meses... certo?
- Sim - disse ele. - Certo. Não és nada parva. Eu não tinha pensado em arranjar alguém para dirigir a fábrica depois de Luther ser afastado, mas isso não deverá ser muito difícil. Então, que me dizes? Alinhas?
- Por dez por cento? - disse ela. - vou pensar no assunto.
Ele assentiu e levantou-se da cama. Cambaleou durante alguns instantes e pousou a mão na parede manchada para se equilibrar. Encaminhou-se para a cómoda e abriu outra lata de Pepsi.
Inclinou a cabeça para cima e despejou meia lata de cola gelada no rosto, pescoço, ombros, tronco suado. O líquido efervesceu nos seus cabelos alourados pelo sol, pingou-lhe pelo queixo, correu em regatos serpenteantes pelas coxas fortes.
- Seu maluco - disse ela, contemplando-o.
Dois passos rápidos, e ele estava novamente em cima da cama. Despejou-lhe o resto da Pepsi em cima dos seios duros, do estômago liso, das coxas firmes. Ela ficou deitada e deixou-o lambê-la, não fazendo qualquer esforço para conter o fluxo.
- E agora? - disse ela, olhando para ele.
Ele empurrou as gotas que restavam para o V depilado entre as pernas dela.
- Agora lambo tudo - disse ele.
- Ao trabalho, rapaz - disse ela, com os olhos escuros a brilhar.
William Jasper Holloway acreditava que alguma coisa acontecia quando se reuniam mais de dois homens. Dois homens, no seu relacionamento e comunicação, podiam ser capazes de demonstrar delicadeza, compreensão, reserva. Mas três homens (ou mais) raramente conseguiam resistir à grosseria, à arrogância, ao entorpecimento da percepção e da compreensão.
E foi o que aconteceu durante uma reunião de fim de tarde no terraço de Ronald Bending. Tinham-se reunido na escuridão para ouvir um relatório dos progressos feito por Luther Empt. Bending tinha trazido garrafas e gelo cá para fora e estavam sentados,
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descalços, a saborear as bebidas e o vento fresco da noite de Novembro.
- Juro por Peus - disse Empt. - Acho que vamos gastar menos do que estava previsto. As madeiras já chegaram e os blocos de cimento estão a chegar. Hoje recebi a
encomenda de todas as portas e janelas. Há um ligeiro atraso no prazo, mas nada sério. Talvez a fábrica fique concluída com uma semana ou dez dias de atraso, mas podemos resistir a isso.
-Talvez-disse Holloway, hesitante-devêssemos ter contratado um empreiteiro geral.
- Na - disse Empt. - Para quê pagar? Eu consigo pôr aquela coisa de pé. É apenas um barracão sofisticado.
Não se referiu aos reveses que estava a ter com o arquitecto, carpinteiro, canalizador, electricista e tudo o resto. Calculou que Bending e Holloway tinham adivinhado que ele estava a enganá-los; não disseram nada porque estavam satisfeitos por deixar o trabalho de escravo para ele.
- Luther - disse Turco Bending, com um tom de sinceridade na voz -, não estás a negligenciar o teu escritório, pois não? Bill e eu sabemos como tens andado a trabalhar nesta coisa e agradecemos-te. Mas não gostaríamos que os teus negócios se ressentissem. Certo. Bill?
- O quê? - exclamou Holloway. - Oh, sim. Certo.
- Não há problema - disse Luther, servindo-se de outra bebida e pensando que aqueles tipos eram fixes. - A minha fábrica está estruturada de tal maneira que praticamente funciona sozinha.
- Oh? - disse Bending, casualmente. - Tens um bom homem Número Dois, é isso?
- O melhor - gabou-se Empt.-Tenho sorte em tê-lo a trabalhar para mim, mas não lhe contem que eu vos disse isso; ele podia cravar-me um aumento.
Bending riu-se cordialmente.
- Quem é ele, Luther?
- Ernie Goldman. E um técnico fantástico. Só tem um problema: adora apostar nos cavalos e está sempre a dever dinheiro aos agiotas. Anda a chatear-me para lhe fazer um adiantamento de quase três meses de ordenado. Mas pode perder a cabeça nas corridas à vontade dele desde que continue a fazer o trabalho como deve ser.
- Ah, bom - disse Bending, descontraidamente, pois já tinha descoberto o que queria saber -, todos nós temos os nossos pequenos vícios.
Depois falaram sobre uma viagem para pescar que talvez
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fizessem nas Keys. Alugavam um barco, apenas os três, não poderiam ir mulheres, forneciam-se bem de bebidas alcoólicas e de cerveja e iam passar um fim-de-semana prolongado a pescar. Talvez tentassem apanhar linguados.
- Nunca consegui apanhar um desses filhos da mãe! - disse Empt, furioso. - Já os tive no anzol uma dúzia de vezes, mas eles fogem sempre.
- Camarão - disse Bending, autoritário. - E o que é preciso para os apanhar... camarão.
- com raio é que pensas que estava a pescar? - resmungou Luther. - com uma luva de boxe?
Calçou as mocassinas e levantou-se. Coçou a cabeça com os dedos, espreguiçou-se, bocejou e arrotou.
- Não terminem a reunião por minha causa - disse para os outros dois -, mas eu tenho de ir andando. Tenho muito que trabalhar.
Acenou-lhes e foi-se embora, caminhando com dificuldade pela praia. Eles ficaram a vê-lo afastar-se.
- Trabalhar, uma ova - disse Bending. - Hoje à noite vai à pesca de miúdas. - Deu uma palmada no ombro de Bill antes de ir a casa buscar mais gelo.
Tinha razão quanto ao trabalho; Luther Empt tinha outros planos.
Tinha resistido durante quase uma semana. Depois telefonara para o número escrito na margem do velho mapa de estradas da Mobil. June tinha gostado de falar com ele;
era perceptível na voz dela; não estava apenas a fazer um frete.
Ele disse bruscamente que gostaria de voltar a vê-la, mas não sabia quando poderia ser. Sem que o sugerisse, ela prontificou-se a ficar no seu apartamento todas as noites até às nove horas, à espera do telefonema dele. Se ele não telefonasse até àquela hora, ela presumiria que ele não poderia ir.
Ele ficou contente.
Tinha-lhe telefonado antes de ir a casa dos Bending tomar umas bebidas. Agora, nem sequer voltou a entrar em sua casa, dirigindo-se directamente para o telheiro dos carros. Conduziu para sul na AIA, no Cadillac Seville branco. Estava tão excitado como um miúdo no seu primeiro encontro.
Chegou quase vinte minutos atrasado, mas ela estava à sua espera no pequeno alpendre do seu apartamento privado. Ele encostou e piscou os faróis. Viu-a dirigir-se rapidamente para o carro com o seu andar quebrado e perguntou a si mesmo que diabo estava a fazer.
Abriu-lhe a porta; ela deslizou desajeitadamente para dentro
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do carro e virou-se para ele. Depois colocou-lhe os braços em volta do pescoço e encostou a face à dele.
- Oh, Bill - disse ela, ofegante, e ele ficou admirado até se lembrar de que era o nome que lhe tinha dito.
- Como tens passado? - perguntou ele, asperamente.
- Bem - disse ela. Pôs-lhe uma mão no rosto. - Pareces cansado. Tens andado a trabalhar muito?
Teresa nunca lhe tinha perguntado aquilo. A preocupação daquela rapariga fê-lo ficar com a garganta seca.
- Escuta - disse ele -, achei que podíamos dar uma volta de carro. Não um motel. - E acrescentou apressadamente: Eu pago-te o tempo que estiveres comigo.
- Está bem - disse ela, feliz. - Não me importo.
- Só quero conversar - disse ele, e ela abraçou-lhe o braço e chegou-se para junto dele.
Ele saiu da ponte Atlantic Boulevard, fez uma curva apertada à direita e estacionou na zona de cimento que ficava ao lado do canal. Havia ali outros carros; pescadores permaneciam pacientemente de pé na orla do canal. Empt não fazia a mais pequena ideia do que poderiam eles apanhar que valesse a pena comer.
Desligou o motor e as luzes; ficaram calmamente sentados na obscuridade. A cabeça dela estava pousada no ombro dele. Ele sentia-se feliz e não sabia porquê.
-Tenho andado a pensar-disse ele com voz rouca-, e queria falar contigo sobre uma coisa...
Sendo como era, tinha planeado tudo como se fosse um contrato de negócios, e segundo os seus cálculos não lhe custaria um tostão. Podia tê-la como empregada da sua própria empresa ou da nova sociedade que tinha formado com Bending e Holloway.
Se o seu contabilista não gostasse do esquema, podia pagar-lhe com dinheiro de despesas da firma. Ou aumentar os seus vales de despesas pessoais. Havia meia dúzia de maneiras de fazer a coisa, mas, fosse da maneira que fosse, o dinheiro não sairia do bolso dele. Nem um tostão.
- Pago-te duzentos por semana - disse ele, rapidamente.
- Dinheiro vivo. Nada de papéis. Se não quiseres, não terás de o declarar. Se fores apanhada, eu pago-te os impostos e as multas. Consegues viver com duzentos por semana? Limpos?
- Sim - disse ela, em voz baixa.
- Em troca - disse ele com voz tensa -, quero que pares de andar no engate. Ninguém a não ser eu. Compreendes?
Sentiu a cabeça dela acenar que sim contra o seu ombro. Esticou
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o braço, tocou-lhe no seio através do tecido fino da blusa e depois afastou rapidamente a mão.
- Agora escuta - disse ele -, isso não quer dizer que não possas sair. Eu não irei ver-te todas as noites. Tahvz duas ou três vezes por semana. E aviso-te com antecedência.
Quero dizer, não quero que fiques sentada em casa à minha espera.
- Eu espero - disse ela.
- Vai sair - disse ele. - Diverte-te. Mas quando eu telefonar e disser que vou, por exemplo, amanhã à noite, quero que estejas lá. Está bem?
- Sim.
- Podemos, hum, encontrar-nos no teu apartamento?
- Oh, sim. As pessoas a quem alugo a casa não se importam. Desde que eu não dê festas barulhentas ou coisas desse género.
- Não vamos fazer nada disso - assegurou-lhe ele. - Mas não quero que andes no engate. Nem no teu apartamento nem noutro sítio qualquer. Está certo?
- Sim.
- Então concordas? Achas bem? Por que diabo é que estás a chorar?
Pois os ombros dela estavam a tremer, a cabeça inclinada. Ela chorava suavemente. Ele rodeou-lhe desajeitadamente os ombros ossudos com um braço e puxou-a mais para si.
- Vais tomar conta de mim? - disse ela numa voz comovente.
- E o que tenho estado a dizer-te-disse ele, quase zangado.
- vou tomar conta de ti.
- Oh - disse ela. - Oh, oh, oh, estou tão feliz, Bill.
- E isso é outra coisa - disse ele, olhando pelo vidro da janela para os pescadores imóveis. - O meu verdadeiro nome não é Bill. É Luther. L-u-t-h-e-r. Luther.
Ela riu-se timidamente.
- O meu nome verdadeiro não é June. É May. Ele voltou-se para olhar para ela.
- Não June mas sim May? Por que não April?1
Ela não compreendeu aquela piada fraca, mas ele abraçou-a.
- Queres que te chame Luther? - perguntou ela.
- Como quiseres.
- Importavas-te se te chamasse "paizinho"?
- Porquê paizinho?
- Porque vais tomar conta de mim e o meu verdadeiro pai nunca o fez.
1 Junho, Maio e Abril. (N. da T.)
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"Arranjei uma doida varrida", pensou ele. "Estou mesmo a pedi-las, andando com esta tarada."
- Chama-me paizinho - disse ele -, se quiseres.
- Paizinho - disse ela suavemente, deslizando lentamente do braço que a rodeava e pondo-se de lado até a sua cabeça estar em cima do colo dele. -Vais ser o meu paizinho e eu serei a tua menina.
- Uma coisa assim - disse ele.
Ficou ali sentado e, de repente, sentiu-se muito triste. A sua mão pesada começou a acariciar a farta cabeleira negra e brilhante, afastando os cabelos das têmporas. Penteou-os com os dedos, tocou o couro cabeludo quente com as pontas dos dedos. Ela gemeu de prazer.
- Eu não tive uma vida muito boa - disse ele, sem se dirigir directamente a ela. - Tive de lutar desde o Dia Um. Por isso, sei bem aquilo por que passaste, May. O meu velho foi ferido num trabalho de construção quando eu tinha dez anos e depois eu fiquei por minha conta, para ajudar a sustentar a família. Oh, fui à escola e tudo isso, mas também me matava a trabalhar. Fazia recados. Vendia jornais. Fazia entregas. Tinha duas irmãs, e elas trabalhavam tanto como eu, sempre à espera do dia em que pudessem sair daquela casa, que cheirava ao meu pai a morrer. Ele era um bêbado. Finalmente morreu, o que foi uma bênção, e as raparigas casaram e foram-se embora. Depois ficámos apenas a mãe e eu. Eu nunca parei de correr. Naquela altura era um hábito... sabes? Tudo e qualquer coisa, qualquer forma de ganhar um dólar. Invejava os miúdos da minha idade que podiam ir para a faculdade e depois ter um bom emprego enquanto eu tinha de subir a pulso. Depois, descobri uma grande verdade: a maior parte das pessoas são estúpidas. São mesmo estúpidas, May. Todos aqueles tipos da faculdade, os que estão nos grandes escritórios, não têm a esperteza que se consegue nas ruas, e eu conseguia passar-lhes a perna. Em qualquer negócio, eu conseguia levar a melhor. Depois de ter compreendido isso, tornei-me muito mais confiante e comecei a mexer-me. Agora, as coisas estão realmente a correr-me bem. Mas ninguém fez nada por mim, ninguém me fez favores. Fui eu que fiz tudo.
- Paizinho - murmurou ela.
- Ah, que se lixe... - disse ele. - Um dia vamos morrer todos... certo? Por isso, o melhor é aproveitar enquanto há tempo. Eu acredito mesmo nisso. Tu e eu vamos dar umas boas gargalhadas juntos, não vamos, May?
Ela aninhou o rosto na virilha dele. Ele afastou-a delicadamente e endireitou-a.
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- É melhor levar-te a casa - disse ele.
- Vens comigo?
- Bem... talvez alguns minutos. Tens alguma coisa que se beba?
- Tenho cerveja.
- Está bem. Vou-te deixar algum dinheiro a mais; compra algum uísque Cutty Sark. É o que eu costumo beber. Tem sempre Cutty em casa.
- Cutty Sark - repetiu ela, decorando o nome. - vou comprar uma garrafa amanhã.
O apartamento dela foi um choque: uma grande sala cheia de plantas de interior. De todos os tamanhos, formas, cores, cheiros. Aloé, fetos, violetas africanas, várias espécies de begónias, hera, filodendro, louro, plantas trepadoras e muito, muito mais.
Nos peitoris das janelas, mesa, cómoda, estante. No chão, em floreiras, em nichos da parede, até no autoclismo da minúscula casa de banho. A atomsfera era quente, húmida, perfumada, enjoativa.
- Jesus Cristo! - disse Luther Empt. - Este lugar é uma maldita selva!
- São as minhas filhas - disse May, olhando carinhosamente em volta. - Eu amo-as e elas amam-me. Falo para elas todos os dias.
- Sim - disse Empt. - Óptimo. E que tal aquela cerveja?
Sentou-se na cadeira de braços, as costas e o assento forrados mas os braços de madeira já sem verniz. Um feto muito frondoso, pendurado do tecto, fazia-lhe cócegas na parte de trás do pescoço.
- Não podes mesmo ficar? - perguntou ela.
- Esta noite não. Tenho umas coisas para fazer.
- Não te importas que me prepare para ir para a cama?
- Claro que não-disse ele. -Vou-me embora logo que acabar isto.
Ela foi para a casa de banho e fechou a porta. Ele sentou-se pesadamente, bebendo a cerveja da lata, olhando em volta do aposento e abanando a cabeça.
Não era, reparou ele, uma cama muito boa. Na verdade, era um sofá com almofadas. Nem cabeceira, nem tábua nos pés. Mas supôs que serviria. A pequena kitchenette estava limpa. Seria um lugarzinho asseado se não fossem todas aquelas plantas malucas.
Ela saiu da casa de banho descalça e vestia uma fina camisa de noite de algodão. Uma das alças dos ombros tinha-se rasgado e estava presa ao corpete com um alfinete-de-ama.
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Ela olhou timidamente para ele.
- A cerveja estava boa?
- Claro - disse ele, pousando a lata vazia no chão ao lado da cadeira. - Acho que estava com sede.
- Queres outra?
- Não, obrigado. Da próxima vez compra cerveja com poucas calorias, está bem? Tenho de perder algum peso.
- A mim pareces-me óptimo, paizinho - disse ela.
Sentou-se no colo dele, aconchegando-se até se sentir confortável. Tinha a cabeça no ombro dele. O braço dele estava em cima dos ombros dela, coberto pelos seus longos cabelos.
Através da camisa de noite sentia o calor do seu corpo de criança. Os ossos salientes. Olhando para baixo, conseguia ver a suavidade dos pequenos seios, os pequenos mamilos cor-de-rosa.
Segurando-a, sentindo-a, sentiu-se especialmente assexual. Mas sentiu uma afeição quente e tímida que não sentia desde que sentava as filhas pequenas nos joelhos, lhes acariciava os cabelos, cheirava o seu perfume fresco e inocente. Tão limpa. Tão doce. Uma faca no coração.
- Queres que faça alguma coisa, paizinho? - sussurrou ela.
- Não - disse ele. - Deixa-me só segurar-te durante alguns minutos.
- Faço qualquer coisa que tu queiras; tu sabes isso. Quero que sejas feliz.
- Eu sou - disse ele, perguntando a si mesmo se seria. Deslizou a mão livre pelo decote da camisa de noite dela.
Segurou levemente um daqueles frágeis seios. Parecia um pássaro, flutuando na sua palma.
- May... - disse ele.
- O quê?
- Não tens família nenhuma?
- Não - disse ela -, desapareceram todos.
- Não tens irmãos nem irmãs? Não tens tios, tias, primos?
- Algures - disse ela. - Não sei onde. Não me importo. Gosto quando me seguras assim, suave e amoroso. Es tão meigo. Eu soube que eras meigo no momento em que te vi. Sabia que nunca me magoarias.
- Não - disse ele. - Eu não faria uma coisa dessas.
- Alguns homens fazem - disse ela, tristemente.
- Eu sei - disse ele.
- Sentes-te incomodado? - perguntou ela. - com a minha perna?
- Claro que não.
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- Quem me dera ser perfeita para ti. Sinto-me mal com isso.
- Não te sintas mal - disse-lhe ele. - Eu gosto de ti como és.
- Será que podíamos sair uma noite? - perguntou ela, ansiosamente. - Podíamos ir a um sítio onde não fôssemos vistos. Sabes?
- Claro - disse ele. - Podíamos fazer isso. Talvez ir de carro até Dania. Hollywood. Talvez mesmo Miami.
Ela suspirou de alegria.
- Eu gostaria muito. E uma noite vou fazer-te o jantar. Não sou muito boa cozinheira, mas sei fazer bifes e frango e coisas fáceis como essas.
- Parece-me bom - disse ele. - Eu não sou esquisito com a comida. Bife ou frango está muito bem.
- Amas-me? - perguntou ela, subitamente. Ele não respondeu.
- Eu sei que não amas - disse ela. - Não faz mal. Não esperava que me amasses. Mas podias dizer que sim? No fundo do coração, eu saberei que não estás a falar verdade, mas gostaria de te ouvir dizê-lo. Nunca ninguém me disse isso.
- Amo-te, May - disse ele, numa voz murmurada. Ela abraçou-o com mais força e sorriu abertamente.
- Oh, como eu te amo, paizinho! Serei sempre tão boa para ti, vais ver. Farei tudo o que tu me disseres. vou obedecer-te e nunca serei má. Vais ver. Amar-te-ei de todas as formas que quiseres.
Ele tirou a mão do seio dela. Ergueu-lhe o queixo. Beijou-lhe os lábios de criança, tão castamente como um pai. As pálpebras dela fecharam-se lentamente. O seu rosto pálido tornou-se claro e sereno. Ficaram sentados, imóveis, as bocas unidas e submetidas.
Teve uma sensação de regresso a casa. Aquele lugar quente e habitado era-lhe familiar. Sentia-se à vontade ali. Podia tirar os sapatos dos pés, se lhe apetecesse, ou desapertar o cinto. E o odor de terra húmida e plantas em crescimento não era muito diferente do cheiro do pai bêbado a morrer. Até May, com a camisa de dormir de algodão rasgado, lhe fazia lembrar a mãe e as irmãs.
Pensou na casa que Theresa Empt montara. Vidro, mármore, aço inoxidável. Quadros abstractos nas paredes e nem uma única cadeira confortável em toda aquela espelunca. Tudo era duro, frio, tão impessoal como um escritório. Ele pertencia àquele lugar, com a velha cadeira de braços, o sofá-cama com almofadas,
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tapete velho no chão lascado. Aquele era o seu tipo de lugar.
Ela afastou a boca da dele e beijou-lhe a ponta do nariz.
- Sabes a coisa que mais quero fazer no mundo, paizinho?
- O quê?
- Dançar. Adorava ir dançar. Claro que não posso, por causa da minha perna, mas adorava. Quando estou sozinha, ando sempre a dançar. Não é mesmo a dançar, eu sei, porque não estou com ninguém, mas adoro fingir. Gostarias de me ver dançar, paizinho?
- Talvez beba mais uma cerveja - disse ele em voz rouca -, e depois vejo-te dançar.
- Não te vais rir de mim?
- Não me vou rir. Prometo.
Ela trouxe-lhe uma cerveja e depois ligou um pequeno transístor numa caixa de plástico vermelho, rachada. Rodou o sintonizador até encontrar uma estação que passava
um instrumental lento: See You Again, de Noel Coward.
Começou a mover-se lentamente pela sala, braços finos estendidos, pulsos erguidos, dedos levemente dobrados. Tinha a cabeça inclinada para trás; as longas madeixas baloiçavam. Tentou torcer-se e deslizar, inclinar-se e virar.
Ele bebeu a cerveja e observou-a gravemente. Ela tinha os olhos semifechados, os lábios entreabertos. Movia-se num sonho só seu, flutuando. Os braços ondulavam como antenas de insectos. Os cabelos brilhavam como chamas negras. Ele viu-a dançar descompassadamente, arrastando a perna e perdida.
Á música terminou. Ela parou. Ele pousou a lata e aplaudiu suavemente.
- Foi maravilhoso - disse ele. - Simplesmente fantástico. Ela acercou-se dele com os olhos brilhantes. Parou defronte
dele e levantou a camisa de noite até à cintura.
- Beija-me, paizinho - disse ela. - Por favor.
Ele inclinou-se para a frente, encostou o rosto à barriga suave. Ela segurou-lhe na nuca e puxou-o mais para si. A camisa de noite caiu por cima dos ombros dele e ele ficou ali escondido, sozinho e em segredo naquela tenda fragrante.
Cheirou-a e provou-a. Ela era jovem, fresca, livre de mácula. Imaginou que era virgem, pura, incorrupta e que era o seu dono.
Não era amor, convenceu-se. Podia suportar a ideia de a perder. Mas se isso acontecesse quereria outra criança-mulher exactamente como ela.
Nunca lhe passou pela cabeça que aquela podia ser a natureza do amor: a imagem mas não o objecto.
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O Dr. Theodore Levin ficava continuamente surpreendido e entristecido pelo número de crianças que tratava e que estavam amarguradas e angustiadas. Ajuventude, pensava ele, devia ser uma época de curiosidade e encanto, com o mundo a revelar-se, a vida alegre e sem limites. Mas grande parte dos seus jovens pacientes já pareciam
velhos, cansados, sem esperança.
Quando Wayne Bending entrou relaxadamente no consultório, Levin adivinhou imediatamente que aquele rapaz fazia parte do grupo dos derrotados. Mal conseguia acreditar que aquele jovem escuro e sorumbático era o filho de Grace e Ronald, irmão de Lucy.
Wayne era baixo para um rapaz de doze anos, forte, com ombros curvados e pernas curtas. Por detrás do seu andar relaxado adivinhava-se truculência. E no seu rosto não um sorriso desdenhoso mas uma implacabilidade cuidadosamente arranjada, uma máscara apresentada a um mundo hostil.
Levin mandou-o sentar-se e ligou o gravador. O rapaz ainda não tinha olhado directamente para ele, e olhava para um ponto por cima da cabeça do médico.
- Wayne - disse ele -, obrigado por teres vindo cá. Tenho a certeza de que sabes que eu sou o Dr. Theodore Levin, e que estou a tratar a tua irmã, Lucy. Espero que possas ajudar-me.
O rapaz não respondeu.
- Estás consciente das razões que levaram os teus pais a trazer a Lucy às minhas consultas?
Wayne encolheu os ombros.
Levin inclinou-se para a frente com as mãos pousadas em cima da secretária. Tivera esperança de que o movimento fizesse que os olhos do jovem se cruzassem com os seus. Mas isso não aconteceu.
- Wayne, a Lucy tem um problema sério. vou precisar da colaboração dela e da ajuda dos pais e dos irmãos para descobrir a melhor forma de... lidar com o problema dela. Tenho a certeza de que queres fazer tudo o que estiver ao teu alcance para ajudar.
- A miúda é doida! - explodiu o rapaz, remexendo-se agastadamente na cadeira.
Levin recostou-se para trás, com os dedos entrelaçados no peito. Olhou solemenente para Wayne.
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- Por que é que dizes isso?
- Ela está sempre a fazer coisas doidas.
- Como o quê?
- O senhor sabe - disse Wayne, quase acusador. - A razão por que os meus pais a trouxeram a um médico de doidos. Ela está sempre a excitar tipos mais velhos.
- Mais alguma coisa?
- Está sempre a contar histórias. Histórias malucas. E jura que são verdadeiras.
- Tu já és suficientemente crescido para não levar as histórias muito a sério, Wayne. Calculo que quando tinhas a idade que a Lucy tem agora também contavas histórias.
Eu sei que eu próprio contava. Mas, à medida que crescemos, aprendemos a não contar às outras pessoas os nossos sonhos e fantasias. Mas isso não significa que não os temos. Só que os guardamos para nós mesmos. Tu não crias histórias ou sonhos ou fantasias que não contas a ninguém?
O rapaz não respondeu.
- Gostaria de ouvir algumas das tuas histórias, Wayne.
- Não tenho nenhuma.
- Por muito selvagens ou loucas que possam ser - persistiu Levin -, gostaria de as ouvir.
Wayne curvou-se para a frente com as mãos crispadas.
- Escute, doutor, a Lucy é problema seu, não meu. Eu não tenho de lhe contar nada.
- É verdade. Mas... e se isso ajudar a Lucy? Amas a tua irmã, não amas?
Ele encolheu de novo os ombros.
- Acho que sim.
- Como é que vocês os dois se dão?
- Bem.
- Passam muito tempo juntos?
- Para quê? Vejo-a em casa, às refeições... coisas assim. Não andamos juntos, se é isso que quer saber.
- com quem é que tu andas, Wayne?
- Amigos.
- Rapazes da tua idade?
- Alguns. Outros um pouco mais velhos. Não ando com miúdos.
- Raparigas? Tens algumas amigas?
- Algumas.
- Alguma especial?
- Não. Como raio é que todas estas tretas vão ajudar a Lucy?
- Não sei - disse Levin, equanimemente. - Estou apenas
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a tentar descobrir o mais que puder sobre a família Bending. Faz sentido, não faz?
O rapaz encolheu os ombros.
- Wayne, em que ano andas?
- No sétimo.
- Gostas da escola?
- Não é má.
- Como são as tuas notas?
- Dão para me safar.
- Não tens nenhum problema especial? O rapaz estremeceu.
- Como o quê? - perguntou, desconfiado.
- Problemas na escola - disse Levin, suavemente.
- Não. Não tenho problemas nenhuns.
- E em casa? Há alguma coisa que te perturbe?
- Não.
- Não tens problemas na escola, não tens problemas em casa, muitos amigos... Tens uma vida maravilhosa, Wayne.
Agora, o jovem estava a olhar para ele.
- E és um aldrabão - rugiu Levin, batendo no tampo da secretária com a palma da mão, o que fez o rapaz dar um pulo. Não me venhas com essa de que é tudo maravilhoso e fácil. Não me venhas com essa treta de que não tens problemas nenhuns. Toda a gente tem problemas. E como tu és teimoso de mais para falar sobre eles, estás a tornar o tratamento da Lucy muito mais difícil. É isso que queres?
- Tenho problemas e depois? - disse o rapaz, quase aos gritos. - Não lhe dizem respeito.
- Dizem-me respeito - gritou também Levin -, se afectam a felicidade da Lucy.
- Eles não têm nada a ver com a Lucy.
- Eu é que sei se têm ou não.
- Vá-se lixar! - exclamou Wayne. Ficaram sentados a olhar um para o outro.
- Por que é que és tão desconfiado? - perguntou Levin. Quem é que te fez alguma coisa?
- Quem? Quem? Toda a gente... é quem! O senhor fica com o seu rabo gordo aqui sentado e pensa que sabe tudo. Merda, o senhor não faz a menor ideia.
- Dá-me uma ideia.
- Por que raio é que eu faria isso? Vai limitar-se a livrar-se de mim como todas as outras pessoas. Por que é que eu deveria confiar em si?
"Boa pergunta", pensou Levin. Por que é que alguém deveria
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confiar nele? Mas como tinha começado aquela charada de fúria e estava convencido de que era a única forma de quebrar a barreira, não tinha outra hipótese a não
ser continuar.
- Bem, por que raio é que eu deveria confiar em ti? - disse ele, acaloradamente. - Tudo o que me disseste até agora não passa provavelmente de um monte de tretas.
Dizes que tens amigos. Talvez seja uma rematada mentira. Talvez sejas tão mesquinho que não tens um único amigo no mundo e...
- Claro que tenho! - gritou Wayne, pondo-se de pé. Tenho um amigo melhor do que você jamais terá, seu molenga gordo. Um amigo que gosta realmente de mim, e é o
único em quem posso confiar e com quem posso falar, mas não você, seu estúpido gordo de merda.
Depois, lutando contra isso, mas sem êxito, começou a chorar. Deixou-se cair na cadeira, a fungar, esfregando os olhos molhados com as costas da mão.
- Está tudo bem - disse o Dr. Levin. - Agora acalma-te.
- Filho da puta! - disse o rapaz amargamente. - Seu monte de merda nojento! Eu não chorava desde os oito anos. Seu filho da mãe horroroso!
- Chorar não é assim tão mau - disse friamente o médico.
- Não é uma coisa assim tão terrível. Quem é o amigo?
- Quem?
- O amigo em quem confias e com quem podes falar.
- É só um tipo. Um tipo que eu conheço.
- Da tua idade? Ou mais velho?
- Mais velho.
- Que idade tem?
- Dezasseis, acho eu. Que importância é que isso tem?
- Gostava que me falasses nele.
- Porquê? Levin suspirou.
- Porque sou um gordo estúpido, mesquinho e horroroso... é por isso.
O rosto de Wayne, alterado pelas lágrimas, abriu-se num meio sorriso.
- E porque também quero ser teu amigo - continuou Levin.
- E quero que confies em mim. Por isso, quero saber que espécie de tipo poderia ser amigo de um idiota como tu.
O rapaz não vacilou e Levin pensou que era a forma de falar com ele: insultos, irreverência, com ternura escondida, sentimento camuflado. Tudo casual, obsceno, cínico.
- É só um tipo que eu conheço - disse Wayne Bending. -
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Chama-se Eddie Holloway. Vive perto de mim. É um tipo louro, grande. Bonito... sabe?
- As raparigas ficam pelo beicinho com ele, não é?
- Um garanhão-declarou o rapaz. - Um verdadeira garanhão. Mas fixe... sabe? Um grande surfista. Passo a vida a surfar com ele. Ele é melhor do que eu, mas eu consigo atirar uma bola de futebol mais longe do que ele.
Levin abanou a cabeça como se estivesse intrigado.
- Não sei - disse ele. - Um garanhão fixe e bonito como ele, com todas as raparigas que quer, por que é que anda contigo?
- Ele gosta de mim - disse Wayne, na defensiva. - E...
- E o quê?
- Eu sou mais esperto do que ele - disse o jovem, erguendo o queixo. - É a mais pura das verdades. Sou mais esperto em muitas coisas. Ele é um idiota em relação à escola. E em outras coisas. Por isso, às vezes dou-lhe alguns conselhos.
- Sobre o quê?
- Oh... várias coisas.
- E ele aceita os teus conselhos?
- Claro.
Levin mudou a abordagem. Por vezes, aquela terapia verbal de choque resultava.
- Costumas beber uns copos, Wayne?
- De vez em quando bebo uma cerveja.
- Fumas erva?
- Fumei uma vez. Não senti nada.
- Tomas outras drogas? Speeds? Drunfos? Coca?
- Não.
- Que é que tu e esse Eddie fazem juntos? Para além de surfar?
- Oh... o senhor sabe. Andamos por aí no gozo.
, - Alguma vez foste sair com ele? com raparigas?
- Não.
- Alguma vez tiveram uma rapariga juntos? Sabes... para o gozo?
- Não.
- Eddie tem alguma namorada especial?
- Não - disse Wayne, mexendo-se pouco à-vontade. Anda com quem calha.
- Hum-hum - disse Levin, observando o rapaz a contorcer-se nervosamente na cadeira.
Aquela conversa acerca do melhor amigo de Wayne e de raparigas estava a perturbá-lo. Isso não era raro. Um rapaz no princípio da adolescência estava dividido entre
os laços masculinos
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e a sexualidade reacordada. Mas Levin perguntou a si mesmo se seria apenas isso: crescimento normal, mudança normal.
- Wayne - disse ele -, alguma vez estiveste com uma rapariga? Alguma vez fodeste uma rapariga?
- Não.
- Alguma vez viste uma rapariga nua?
- Uma vez. As raparigas da minha escola, nos balneários do ginásio, sabe, empurraram uma miúda para a rua e não a queriam deixar entrar. Ela não tinha roupas nenhumas vestidas. Uma anedota, sabe. Eu vi-a. Muitos tipos viram.
- Alguma vez viste a tua mãe nua?
- Cristo, não!
- A Lucy?
- Não... desde que ela era bebé.
Levin pensou que tinha aprendido muito sobre Wayne Bending em pouco tempo. Mas nada que contribuísse para a eliminação do problema de Lucy. O desencanto de Wayne era outro problema. Não sério, ainda, e ele não fora pago para o resolver.
No entanto, sentia-se importunado com a noção de que aquele desencanto do rapaz e a hiper-sexualidade da irmã tinham fortes probabilidades de provir da mesma fonte.
Não era nada raro dois irmãos reagirem de diferentes formas psicopáticas a uma experiência traumática comum.
- Wayne - disse ele -, vejo que tu és um tipo esperto. Não estou a tentar dar-te graxa; acho mesmo que tens inteligência. O facto de Eddie Holloway, outro tipo,
aceitar os teus conselhos, só serve para provar o que estou a dizer. Muito bem, aqui tens uma oportunidade para usares a cabeça. Por que é que achas que a Lucy age
daquela forma?
- Está a referir-se a excitar homens mais velhos?
- Sim.
O rapaz pensou durante muito tempo. Ou fingiu que estava a pensar. Levin não podia ter a certeza. Mas, depois, quando Wayne finalmente falou, olhou directamente para Levin de forma franca e aberta, e o médico teve a certeza de que ele estava a dissimular.
- O que eu acho - disse ele, e depois aclarou a garganta. O que eu acho é que a miúda é nefomaníaca.
- O quê?
- Nefomaníaca.
- Queres dizer ninfomaníaca?
- Sim. Isso mesmo.
- Onde é que ouviste essa palavra?
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- Oh... - disse Wayne, vagamente. - Por aí.
- Sabes o que significa?
- Claro. Uma mulher que quer fazê-lo a toda a hora.
- E achas que a Lucy é ninfomaníaca?
- Claro - disse o irmão, olhando para o médico com os olhos muito abertos. - Que mais poderia ser?
- A Lucy só tem oito anos. Não tem idade suficiente para fazê-lo a toda a hora, mesmo que tivesse oportunidade para isso. O que não acontece.
-Eu sei isso-disse Wayne Bending, sensatamente. - Mas ela quer. Não percebe?
- Hum - disse o Dr. Levin. - Uma teoria interessante. vou ter de a aprofundar. Parece-me que o nosso tempo acabou, Wayne. Obrigado por teres vindo cá falar comigo.
- Sempre às ordens - disse o rapaz com vivacidade. - O senhor vai pôr a Lucy boa, doutor?
- vou tentar.
- Ela é uma parvalhona, não é? - disse o irmão, abanando a cabeça surpreendido.
No momento em que a porta se fechou, o Dr. Levin desligou o gravador e acendeu um charuto. Quinze minutos antes do cliente seguinte, um rapazinho detestável que já tinha posto fogo três vezes na sua própria casa.
Mas Levin não queria pensar nele. Queria pensar em Wayne Bending, um rapaz triste cuja melancolia provavelmente já se tinha transformado em desespero, e depois em frustração e raiva.
Levin conhecia bem a progressão: era a sua própria adolescência. E ele tinha crescido no seio de um ambiente familiar grande, caloroso e carinhoso. E lá se fora a infância feliz. Não era nenhuma garantia de ajustamento nem de auto-estima.
Tal como Wayne, ele tinha sido fisicamente feio. Baixo, desajeitado até às raias da deformidade. Inculto e carrancudo. Uma voz estridente. Uma nulidade nos desportos. Não conseguia entrar num aposento sem chocar contra a mobília. E as raparigas riam-se dele.
Ele passara pela mesma sequência por que Wayne estava a passar: de infelicidade para desespero e para hostilidade. Ele tinha sido salvo por uma professora no nono ano, uma senhora solteirona que reconhecera a sua inteligência e que o convencera de que poderia fazer, ser, qualquer coisa que quisesse.
Por isso ele conhecia Wayne Bending, tal como se lembrava do jovem Teddy Levin, o rapazinho desastrado sem nada a seu favor a não ser um bom cérebro e uma sensibilidade não explorada.
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Wayne Bending estava a esconder alguma coisa; Levin estava convencido disso, recordando-se de como ele próprio escondia os seus terrores mais secretos. Aquela conversa
de uma "nifomaníaca" fora planeada para confundir ou enganar. Wayne sabia, ou adivinhava, a causa do comportamento de Lucy. Mas não ia falar.
O que possivelmente poderia significar que a revelação seria demasiado dolorosa ou poderia representar uma ameaça para o próprio Wayne. Que estaria o rapaz a esconder?
Suspirando, o Dr. Theodore Levin premiu um botão no intercomunicador. Um sinal para a recepcionista mandar entrar o piromaníaco juvenil.
Durante as duas noites que se seguiram ao passeio na praia com a Sra. Teresa Empt, Edward Holloway tinha chegado ao mirante pontualmente às nove horas da noite. Sentava-se no cobertor velho que trazia consigo, abraçava os joelhos e esperava. Nada.
- Estavas completamente enganado, seu parvalhão - queixou-se a Wayne Bending. - Ela não vai aparecer.
- Claro que vai - disse Wayne, confiante. - Ela perguntou-te a que horas é que vinhas para cá, não perguntou?
- Sim.
- Então, vai aparecer. Por amor de Deus, tem um pouco de paciência. Ela só está a tentar provar que não está caidinha por ti, que tu não significas nada para ela. É por isso que está a empatar um bocado. Mas vai aparecer.
- Achas que sim? - perguntou Eddie. Respeitava a sabedoria de Wayne em relação a como as pessoas pensavam e agiam.
- Bem, vamos esperar mais algumas noites. Depois, que se lixe.
- Ela vai aparecer-garantiu-lhe Wayne. - E, por amor de Deus, não lhe atires com o empréstimo para o barco logo na primeira vez. Faz de rapazinho simpático, inocente e carinhoso. Trata-a bem. Quando a apanhares, podes pedir a massa.
- Eu sei o que tenho de fazer - disse Eddie, magoado. - Se aparecer, está feita. Mamma mia, aquelas mamas!
Na quarta noite, Eddie fez os seus preparativos habituais. Lavou as axilas. Vestiu um par de reduzidas cuecas amarelas.
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Penteou cuidadosamente os longos cabelos. Depois, quando eles ficaram no seu lugar, ajeitou-os com os dedos.
Saiu pela janela do quarto, com o cobertor debaixo do braço. Correu suavemente por cima do telhado da cozinha e, depois, saltou para o chão. Poupava-lhe o trabalho de sair pela sala de estar e ter de aldrabar os pais acerca de onde ia.
Ela apareceu. Cerca de vinte minutos depois das nove. Ele viu uma luz brilhar durante alguns instantes nas traseiras da grande casa. Depois apagou-se, e ele viu um vulto a caminhar na direcção do mirante. A caminhar lentamente. Como se andasse a passear.
Eddie Holloway sorriu. Aquele Wayne Bending! Era uma espécie de génio.
Ela aproximou-se dele, de braços cruzados, a segurar os cotovelos. Tinha um casaco de malha branco pousado sobre os ombros. A blusa com folhos e gola subida era branca. A saia de seda pregueada era branca. Estava vestida como uma verdadeira senhora!
- Ora, Eddie-disse ela, rindo timidamente -, vens mesmo para aqui, não vens?
- Eu disse-lhe, Sra. Empt - disse ele com sinceridade. Espero que não se importe.
- Não, não me importo. Mas esta noite não está frio de mais para te sentares no chão?
- Nem por isso - disse ele. - Eu trouxe este velho cobertor para me proteger da humidade. Está uma noite agradável.
- Sim - disse ela, erguendo os olhos para as estrelas. Está, não é verdade? Uma noite divina.
- Os bancos são bastante duros sem almofadas, Sra. Empt. Gostaria de se sentar um pouco aqui?
Afastou-se delicadamente para o lado.
- Ora, obrigada, Eddie - disse ela. - Talvez só um minutinho.
Sentou-se graciosamente no cobertor, aconchegando a saia sobre os joelhos nus. Mexeu no casaco que estava sobre os seus ombros e as mangas vazias caíram para a frente. Sentou-se com os joelhos para um lado, as costas erectas. Ele sentiu o seu perfume.
- Diz-me, Eddie - disse ela, em tom de conversa. - Como estão as coisas a correr na escola?
- Bem - disse ele. - Quero dizer, não sou nenhuma inteligência, nem nada disso, mas não vou chumbar. Estou dentro da média, acho.
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- Talvez tenhas demasiadas actividades fora da escola disse ela, num tom trocista.
- Não.
- Não sais muito com raparigas, Eddie?
- Bem... de vez em quando.
- Não tens nenhuma rapariga especial?
- Nem por isso - disse ele, com a voz perturbada. - vou confessar-lhe uma coisa,
Sra. Empt, a maior parte das raparigas que conheço não me interessa. Quero dizer,
elas só querem conversar sobre bandas de rock e filmes e todas essas mer... coisas assim.
- Bem, elas são jovens, Eddie - disse ela, descontraidamente. - Não são?
- Sim - disse ele. - Jovens de mais para mim. Eu gostaria de conhecer uma rapariga, uma mulher, com quem pudesse falar de assuntos sérios.
- Como o quê?
- Oh... - disse ele vagamente -, a senhora sabe. Por exemplo o que vamos fazer com as nossas vidas e coisas desse género;
- É um problema, não é, Eddie?
- Pode crer.
Ele estava deitado de costas, com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça. Vestia uma camisa de manga curta, com a fralda por fora das calças de ganga, a frente suficientemente desabotoada para mostrar o peito sem pêlos. E em volta do pescoço um longo atacador preto de onde pendia um dente de tubarão, a brilhar em cima da pele bronzeada.
- Está mesmo uma noite agradável - disse ele. - Deve haver um zilião de estrelas.
- Sim - disse ela em voz baixa. - Está bonita.
- Comoveu lhe disse - continuou ele -, é por isso que venho para aqui. É tão secreto. Longe de tudo.
- Não está tanto frio como eu pensava - disse ela em voz rouca, as palavras presas. Desatou as mangas do casaco de malha. Dobrou-o cuidadosamente e pousou-o no chão. Ele olhou discretamente e viu que a blusa de folhos não tinha botões nem fecho. "Filha da puta! De tirar pela cabeça, a não ser que tivesse um fecho nas costas."
Ela mexeu-se, subindo os joelhos. Estava de frente para ele. Se ele virasse a cabeça, estaria pronto a jurar que conseguiria ver-lhe a rata. Ela inclinou-se para a frente para pousar a cabeça nos joelhos. Os cabelos compridos caíam-lhe em cima da saia branca. Ele esticou a mão para lhe tocar nos cabelos, apenas
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por um instante, e depois voltou a entrelaçar as mãos atrás da cabeça.
- Não há dúvida de que a senhora tem uns cabelos bonitos, Sra. Empt - disse ele.
- Ora, obrigada, Eddie. Mas não achas que é uma tolice continuares a chamar-me
Sra. Empt? Podes chamar-me Teresa. Se quiseres...
- Sim - disse ele -, está bem. Mas só quando estivermos sozinhos. Sabe? Quero dizer, quando houver outras pessoas por perto, continuo a chamar-lhe
Sra. Empt. Está bem?
- És muito esperto-disse ela, rindo nervosamente. - Para um rapaz tão jovem.
Ele voltou-se para olhar para ela.
- Eu não sou assim tão jovem - disse ele.
Ela mergulhou nele. Foi assim que, mais tarde, ele descreveu o que acontecera a Wayne Bending: "Á maldita puta mergulhou em mim!"
Num instante, estava calmamente ali sentada, com os joelhos erguidos, a cabeça inclinada e, depois, de repente, desenrolou-se e saltou. O seu longo corpo caiu em cima do dele, cortando-lhe a respiração, e uma boca frenética procurou a dele, uma língua comprida e molhada a empurrar selvaticamente, forçando-lhe os lábios.
Ele nem sequer teve tempo para tirar as mãos entrelaçadas de debaixo da cabeça. Ela estava por cima dele, a afagar-lhe os cabelos, depois uma mão enfiou-se por debaixo da camisa dele para lhe esfregar o estômago, para lhe beliscar os mamilos.
- Ei - conseguiu ele articular. - Ei. Calma.
Ela não queria ter calma. Comportava-se como se quisesse devorá-lo. Mordeu-lhe os lábios, sugou-lhe o pescoço, arranhou-lhe o tronco nu com as unhas. Doeu a sério. E esteve sempre a fazer uns ruídos doidos, pequenos gritos, gemidos, algumas palavras que ele não conseguia perceber.
Ele teve receio de que ela se tivesse passado, e ficou assustado. Soltou as mãos e prendeu-lhe os braços. Segurou-a com toda a força de que foi capaz até ela parar de se debater e ficar quieta, com o rosto longe dele.
Ficaram assim deitados em silêncio durante alguns momentos. As grandes mamas dela estavam apertadas contra o peito dele. Um dos joelhos dela estava entre as coxas dele, carregando-lhe nos testículos. Mas ela não se mexeu. Era como se tivesse desmaiado. Ou morrido. Ele não sabia o que fazer.
- Oh, Teresa - disse ele, tentando fazer a voz rouca. - Teresa, não te preocupes. Não fiques envergonhada. Achas que eu
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não tenho querido... hum... beijar-te? Vejo-te na praia com o teu reduzido fato de banho branco e pele bronzeada e cabelos compridos e tudo isso, e fico doido. Sonho
contigo o tempo todo. É verdade. Sonho que te beijo e tudo isso. Talvez seja por isso que as minhas notas não são grande coisa. Porque pé aso em ti na escola, em
casa, à noite na cama. Todo o tempo.
Sentiu o corpo dela endurecer e depois relaxar em cima dele.
- A sério? - disse ela, sem fôlego. - Semtes-te mesmo assim? A sério?
Ele empurrou-a para o lado, não sem algum esforço porque ela era uma mulher grande. Depois ficaram deitados de lado, a olhar um para o outro, tão perto que os narizes
quase se tocavam.
- Fico todo excitado quanto te vejo - sussurrou ele. - A semana passada tive um sonho molhado por tua causa.
- Tiveste? - disse ela, rindo alegremente. - Oh Eddie, que bom!
Ele beijou-a. Nariz, boca, queixo, pescoço. Depois voltou para os lábios dela, a língua a agitar-se.
- Chama-se linguado - disse-lhe ele.
- Eu sei - disse ela.
Beijaram-se, beijaram-se. A mão dela deslizou para o pénis dele e apalpou-o.
- Ena, pá! - disse ela.
- Vês o que me fazes? - exclamou ele. - Eu disse-te, não disse?
Apertou um seio grande através a blusa de seda branca. Sentiu um soutien. com armação. O mamilo parecia uma pedra. Pousou os lábios no tecido.
- Por favor - gemeu ele, submisso.
Os seus dedos encontraram o fecho nas costas da blusa. Manuseou-o desajeitadamente, mas não conseguiu desapertar a maldita coisa.
- Deixa-me fazer isso - disse ela, tensa.
Afastou-se dele e sentou-se. Esticando o braço para trás com uma destreza que ele admirou, desapertou a blusa e despiu-a. Sacudiu-a para tirar as rugas, dobrou-a cuidadosamente e pousou-a em cima do casaco de malha.
Desceu um fecho lateral da saia. Ergueu as ancas e fez a saia deslizar pelas pernas. Sacudiu-a uma vez, dobrou-a e juntou-a à blusa e ao casaco. Depois deitou-se em cima do cobertor, de braços esticados, a olhar para as estrelas.
Usava um soutien decotado que lhe realçava os seios. Eddie pensou que as mamas dela pareciam o rabo de um bebé. E, mais abaixo, umas cuecas brancas, muito reduzidas.
Tinha fortes
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marcas de bronzeado sobre o abdómen e as coxas, feitas pelo fato de banho. As suas pernas eram compridas e duras. Não tinha tirado os sapatos de cunhas altas.
O soutien era apertado à frente; Eddie não teve problemas com ele. Quando o soltou, aqueles gloriosos apêndices emergiram livres. "Obrigado, meu Deus", disse Eddie em silêncio. Colou a boca aos seios dela. Prendeu os mamilos grandes e doces como rebuçados.
- Oh, meu Deus - murmurou ela. Depois:-Tão bom-não parava de dizer. - Tão bom!
Ele estava a tentar manter-se calmo, mas não era fácil. Ela tinha-o ajudado a tirar a roupa interior. E depois ficou completamente nua, à excepção daqueles loucos sapatos de cunhas altas, mas ele pensou: "Que se lixe..."
Ele começou a desapertar a camisa, mas ela afastou-lhe as mãos.
- Deixa-me fazer isso - disse ela. - Eu quero fazer isso. Assim, ele deitou-se obedientemente e deixou-a despi-lo.
Reparou que ela não teve tanto cuidado com as roupas dele. Limitou-se a despi-las e a atirá-las para o lado. Ela era muito aplicada, determinada, e ele deixou-a
fazer o que ela queria, perguntando a si próprio se todas as mulheres seriam tão chanfradas como aquela.
Quando ficou todo nu, ela puxou-o para cima de si. Recordando a cena mais tarde, ele
apercebeu-se de como ela era forte: limitou-se a erguer, a rolar, a puxar, e
lá estava ele, entre as pernas dela.
Ele tenteou desajeitadamente, e alguns momentos depois os quentes dedos dela guiaram-no. Ele não tinha prática, não tinha experiência. Mas era jovem, imaturo, feroz, duro. Que era, aparentemente, o que ela queria.
Os joelhos dela ergueram-se. Tornozelos e sapatos presos atrás das costas dele.
- Mete, mete, mete! - disse ela.
Nessa altura, Edward Holloway já tinha perdido completamente o sangue-frio, e estava a investir e a mergulhar como um cavalo selvagem enlouquecido. As suas mãos estavam a empurrar o rabo dela, e as mãos dela empurravam o dele, e se o apocalipse tivesse chegado naquele momento ambos teriam gritado: "Espera! Espera um minuto!"
Ele saiu e voltou a entrar. Mastigou aqueles seios de sonho. Ela acariciou-lhe os cabelos e tentou morder-lhe a carótida. Bateram e espremeram, murmurando um para o outro. Arquejaram,
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dizendo ambos: "Ah! Ah!", como se tivessem acabado de assassinar dragões.
Ela não o deixou sair de cima de si, e prendeu-o com tanta força que as suas costelas começaram a doer. Conseguia sentir a pulsação dela, forte, e que diminuiu gradualmente. Ela era tão quente. E húmida. E insondável. Era um poço. Ele podia afogar-se nela.
Finalmente, ela deixou-o sair e soltar-se. Ficou deitado de costas, tentando sobreviver. As estrelas brilhavam através do telhado rendilhado do mirante. Perguntou a si mesmo onde estava, e teve de pensar alguns instantes para se recordar do seu nome, do lugar, da data - de tal forma estava estourado.
- Tens telefone? - perguntou ela.
- O quê? - exclamou ele, surpreendido. - O quê? Oh, sim, tenho um telefone só meu. Em meu nome. Vem na Lista Telefónica e tudo.
- Óptimo - disse ela, friamente. - Passarei a encontrar-me contigo uma ou duas vezes por semana. Talvez mais. Telefono-te com antecedência para te dizer quando.
- Bem... sim - disse ele, fracamente. - Acho óptimo. Mas as coisas não estavam a correr assim tão bem. Estavam
a levar um rumo que ele não tinha antecipado. E nem Wayne Bending, aquele génio.
- Bem, sim - disse ele. - Claro que me podes telefonar. Vai ser uma maravilha.
Ela devia ter percebido qualquer coisa no tom de voz dele, porque rolou de lado, apoiando-se numa anca e inclinou-se sobre ele.
- Gostaste, não gostaste, Eddie?
- Oh, meu Deus, sim-gemeu ele. - Fantástico. O máximo.
- Mais- - murmurou-lhe ela ao ouvido. - Haverá mais. Disse-lhe o que o "mais" poderia incluir. Ele estremeceu.
Aquela velha dama podia matá-lo; era possível. Nunca tinha ouvido uma mulher a sugerir tais coisas. Sentiu-se cheio de medo. Era uma maldita barracuda.
Ela deitou-se para trás, junto dele, segurando-lhe na mão.
- Ohh, não foi bom, Eddie? - perguntou ela, suavemente.
- Oh, sim. bom. O máximo.
- Diferente das tuas meninas?
- Podes crer - disse ele. - Diferente e... e... e... bem, sabes, diferente.
- Vamos divertir-nos juntos, não vamos, Eddie?
- Oh, sim - disse ele. - Vamos divertir-nos.
- O teu corpo é tão bonito - disse ela. - Tão bonito.
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Virou-se novamente para ele e a sua língua ficou ocupada. Ele teria gostado de um pequeno intervalo naquela altura, mas ela não queria. Ele protestou, mas não lhe valeu de nada. Ela queria explorá-lo, como se nunca tivesse encontrado um tesouro daqueles. Apalpou e estimulou, acariciou e beliscou.
- Teresa, Teresa - disse ele, desesperado.
- Adoro a forma como dizes isso - disse ela. - Percebeste aquilo dos telefonemas, não percebeste?
- O quê? - perguntou ele.
- Tenta concentrar-te, Eddie. Eu vou telefonar-te antecipadamente para te dizer quando é que nos podemos encontrar. Tenta trazer outro cobertor; este cheira mal.
Um maldito problema!
- Claro, Sra. Empt - disse t e. - Ah, Teresa.
- Não tens nada para fumar, Eddie?
- Ah, não, não tenho, Teresa. Agora não.
- Não estou a referir-me a cigarros normais. Estou a falar de passa. Erva. Percebes?
- Oh, sim. Claro. Neste momento não tenho nenhuma.
- Mas já fumaste?
- Oh, sim.
- Consegues arranjar alguma? Para nós?
A oportunidade era boa de mais para desperdiçar.
- Acho que sim - disse ele, cautelosamente. - Mas custa dinheiro. Sabes? E eu não posso pagar, porque a minha mesada não dá para isso.
- Não te preocupes - disse ela. - Eu trago-te dinheiro. Achas que vinte chegam? Assim estava melhor.
- Chegam - garantiu-lhe ele. - vou comprar material bom para nós.
Ela tomou-o nos braços. Abraçou-o. Passou uma mão pelo peito dele, pelo abdómen. Enfiou-lhe um dedo no umbigo e empurrou suavemente. Depois ergueu os olhos para o rosto dele.
- Gostas disso, Eddie?
- Gosto de tudo o que tu fazes. És a mulher mais sensual que alguma vez conheci.
- Sensual? - disse ela, rindo suavemente. - Nunca pensei em mim própria como uma mulher especialmente sensual, mas talvez tenhas razão. Só foi preciso aparecer o homem certo para a fazer emergir.
O ego dele inchou. Tinha-lhe dado mesmo uma superfoda. Curta, mas boa.
- O meu primeiro marido não era um grande amante -
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disse ela, encostando-se mais a ele. - Eu adoro carícias, e tu também, não é? Ele fazia tudo, mas percebia-se que não estava verdadeiramente empenhado. Ou talvez não tivesse experiência suficiente. Eu tenho consciência de que não tinha; era virgem quando me casei. Segura na minha maminha, Eddie. E na verdade não estava interessada em sexo. Não me parecia uma coisa assim tão maravilhosa. Mas, quando ele morreu, e eu vim viver para a Florida, comecei a mudar. E, ultimamente, nos últimos anos, tenho pensado cada vez mais nisso. Quando vejo o que se passa, o que todos fazem, penso, por que não eu? Ninguém leva o sexo muito a sério, pois não? Põe a tua mão aqui em baixo, Eddie. Luther não significa nada para mim. Ele segue o caminho dele e eu sigo o meu. É um casamento muito moderno. Podes mexer o dedo, se quiseres. A vida é tão curta. Tu és muito jovem e não acreditas nisso, tenho a certeza, mas é verdade, e vais aperceber-te disso quando fores mais velho. Por isso deve-se aproveitar a vida ao máximo, foi a essa conclusão que eu cheguei. Tu não sabes de que é que eu estou a falar, pois não? Sim, é bom. Só um bocadinho mais acima. Sim, aí mesmo. Por isso, quando te vi na praia e a surfar, tão bonito, com o teu corpo espantoso e os teus cabelos a esvoaçar, soube que tinhas de ser meu. Um dia, de alguma forma, tinha de ter relações sexuais contigo. Não achas que eu sou horrível, pois não? E, depois, quando me contaste que vinhas aqui para o mirante quase todas as noites, eu soube que era a solução. Claro que ninguém, absolutamente ninguém, poderá saber o que se passa aqui, se não a minha reputação ficará arruinada na comunidade. Por isso, conto contigo para seres muito, muito discreto, e não dizeres a ninguém. Oh, sim, adoro isso. Faz um pouco mais depressa. És tão jovem e tão doce. Meu Deus, se as minhas amigas soubessem o que eu estou a fazer, morriam! Mas eu não vou contar a ninguém e também não quero que tu contes. Eddie, espero que não penses que isto é apenas um caso de uma noite, como tenho a certeza de que deves fazer com algumas das tuas amigas. Quero que seja um relacionamento longo e amoroso. Agora beija-me os seios. Oh, como tu és bom amante!
Ele tinha escutado aquele monólogo com um pânico crescente. E, agora, com a cabeça baixa, sugando desesperadamente os mamilos dela, perguntou a si mesmo quanto tempo conseguiria suportar aquilo.
Ergueu o rosto para olhar para ela.
- Algumas noites poderei não conseguir vir - disse ele em voz rouca. - Sabes?, quero dizer, trabalhos de casa e isso...
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Eu compreendo, Eddie - disse ela. - Mas seguramente
conseguiremos encontrar-nos duas ou três noites por semana.
- Acho que sim - disse ele, tristemente.
Ela riu-se, e ele ficou convencido de que tinha sido uma risada louca, ou talvez ela se tivesse passado a sério.
- Oh, vamos divertir-nos tanto juntos - disse ela, quase a murmurar. - Tu ensinas-me e eu ensino-te. Faremos tudo juntos.
Ele poderia ter ficado aterrorizado com aquela perspectiva, mas, enquanto falava, ela estava a brincar com a pila dele, espremendo-a, sacudindo-a, puxando-a como se fosse uma maldita corda ou coisa do género, e ela estivesse a tocar um sino de igreja.
Assim, vacilante, reparou que o seu corpo estava a reagir. Veio-se, e ela espreitou para o líquido esbranquiçado que brilhava na obscuridade.
- E meu - disse ela. - Não é todo meu, Eddie?
- Todo teu - disse ele num tom de voz estranho.
- Não quero dá-lo a mais ninguém. Fui clara, Eddie? Quero-o todo para mim. Prometes?
- Prometo.
- E, agora - disse ela -, acho que vou dar-lhe um beijinho. Só um.
Quando levantou a cabeça, olhou ansiosamente para ele...
- Consegues fazer outra vez, Eddie?
- Claro - disse ele com um riso enlouquecido. - Por que não?
Ronald Bending acordou tarde no domingo de manhã, enrolado num lençol húmido de suor. Piscou olhos peganhentos, provou a língua que sabia a papel de música. Raios
de sol entravam pelas janelas viradas a leste. Fechou os olhos por causa da luz e procurou os cigarros na mesa-de-cabeceira.
Sentou-se, nu, encostado à cabeceira, bocejando e fumando. Dormia nu; outra discussão com Grace, embora tivessem camas separadas.
- E tão grosseiro! - dizia-lhe ela.
Ela usava aquela palavra cada vez mais vezes. O fumo dele era grosseiro. A forma como bebia era grosseira. As suas piadas eram grosseiras.
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Ele recordara-lhe que quando se tinham casado tudo tinha sido descontraído, livre, desinibido, pagão. Disse-lhe que gostaria de saber quando é que todas as coisas que tinham partilhado e amado se haviam tornado grosseiras. Ela não respondera. Porque ambos sabiam.
Ele ergueu um braço e cheirou o bícepes. Sorriu fracamente, recordando a rapariga do banco. O cheiro dela ainda estava nele. Aquela tinha sido mesmo louca. Uma tatuagem, por amor de Deus! Sim, uma pequena borboleta azul mesmo abaixo do umbigo. Aquilo era a Florida para ele: adolescentes tatuadas.
Acabou de fumar o cigarro. Foi para a casa de banho, tomou duche e fez a barba. Esfregou cuidadosamente os cabelos e a pele com óleos e loções. Mantinha o seu corpo jovem, tratando-o bem. Mas quando se inspeccionou ao espelho viu marcas da idade a sorrir para ele.
Vestiu calções de banho, depois calças de ganga brancas e uma camisola pólo de mangas curtas. Foi a cambalear para o andar de baixo, descalço. Sorriu ao olhar para a praia através da janela panorâmica: areia brilhante e uma neblina prateada sobre a água. Turner teria adorado aquela luz reluzente.
Os miúdos não estavam pelas redondezas, mas Grace estava na cozinha, atarefada, com um livro de receitas aberto, panelas, frigideiras e um passador de farinha. Ronald sentiu-se tão bem que lhe beijou a parte de trás do pescoço. Ela afastou-o com uma mão empoeirada de farinha, sem olhar para ele.
- A que horas é que chegaste a noite passada? - perguntou ela, estudando o livro de receitas.
Conhecia uma resposta dissoluta para aquela pergunta, mas ignorou-a.
- Tarde - disse ele, servindo-se de uma caneca de café da cafeteira eléctrica. - Eu disse-te que o contabilista ia ao escritório.
- E o contabilista tinha dezoito ou dezanove anos? perguntou ela, ainda inclinada sobre o livro de receitas. - Uma rapariga de cabelos escuros e uma camisola justa? Foi quem a Myra Webster viu contigo ontem à noite no Julio s.
"Deus abençoe a Myra", pensou ele.
- Era a assistente do contabilista - disse ele, descontraidamente. - Mary Qualquer Coisa. Ele estava ocupado com os livros, por isso eu saí com ela para comer qualquer coisa. Depois voltámos para o escritório.
- Eu não quero saber - disse ela, virando-se para o fogão eléctrico. - Há sumo de laranja ou de tomate. Se quiseres torradas e ovos, vais ter de os fazer.
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- Só quero café - disse ele.
Pegou na caneca com as duas mãos, encostando-se à bancada e observando a mulher a movimentar-se resolutamente pela cozinha. Não pela primeira vez, perguntou a si mesmo quem era ela.
Uma madeixa de cabelos alourados tinha escapado da fita e balançava na sua face. O seu rosto estava sério, concentrado. Tinha uma mancha de farinha no nariz. De vez em quando, mordia o lábio inferior.
O corpo, reparou ele, ainda era bom. Mas rígido e inacessível. Recordou a época em que era macio e ansioso. Ela não envelhecera tanto como endurecera. A carne tinha enrijecido; a coluna tinha gelado.
Nos primeiros tempos que tinham passado juntos, ele fizera alguns esboços dela a lápis de carvão. Nus. Desenhos rápidos que captavam a sua sinuosidade. Eram as melhores coisas que jamais tinha feito. Há cerca de cinco anos, ela encontrara-os numa velha pasta e queimara-os.
- Bem! - disse ele. - Onde estão os miúdos?
- Lá fora - disse ela. - Na praia, acho eu.
- E quais são os teus planos para hoje? - Ele estava a esforçar-se por ser agradável.
- Que é que isso te interessa? - disse ela amargamente. Acabavam sempre assim: alfinetando-se um ao outro com
palavras.
Ele tentou novamente:
- Queres que faça alguma coisa? Hum... compras? Precisas de alguma coisa do Publix?
Por fim, ela olhou para ele. Virou-se para olhar directamente para ele. com uma colher de pau numa mão. A outra mão tinha o punho fechado.
- Sim - disse ela em voz alta -, há uma coisa que quero que faças. vou a uma reunião ao meio-dia. Quero que venhas comigo.
- Uma reunião? - disse ele, cautelosamente. - Que espécie de reunião?
- Um grupo.
- Que espécie de grupo?
Saiu tudo num repelão. Cristãos renascidos. O Senhor Jesus. Brancos e pretos juntos. Salvos. Confissão e perdão. A compaixão e compreensão de companheiros pecadores. Dádiva e absolvição. Arrependimento e vida nova.
- Eu dispenso - disse ele, jovialmente. - Não é o meu género.
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- Tu pecaste - disse ela, sombriamente.
- Não pecamos todos?
- Ronnie, eu não te peço muito, pois não?
- Não - teve ele de admitir.
- Estou a pedir-te agora. Só esta vez... Vem comigo. Vem conhecer o Sr. Fitch. Fala com ele.
- Quem?
- Osborn Fitch. O nosso pastor. Um homem maravilhoso!
- Tenho a certeza de que é, Grace. O ano passado foi aquele swami indiano ou uma coisa assim. E, no ano antes disso, o coreano com o brinco de ouro. Escuta, já passámos por isto antes. Muitas vezes. Tu fazes o que quiseres. Mas não penses que vais conseguir arrastar-me para essa treta.
- Tu vais arder no Inferno! - gritou-lhe ela, tão alto que ele deu um salto e entornou café na mão.
- Sim, talvez - disse ele -, é possível. Mas não vou passar por um verdadeiro inferno enquanto estiver vivo. Não, se puder fazer alguma coisa para o evitar.
Atirou com a caneca de café para o lava-loiça e saiu a passos largos. Estava convencido de que ela estava a ficar mais doida a cada dia que passava, e perguntou a si mesmo quanto mais conseguiria aguentar.
No terraço, despiu as calças de ganga e a camisola. E depois foi a correr para o mar. A água estava razoavelmente limpa, com ondas pequenas e suficientemente fria para arrepiar. Ele entrou a correr, determinado, mergulhou e nadou para longe com um crawl forte.
Os primeiros cinco minutos foram um tormento. Mas depois abrandou, estabilizou; os músculos descontraíram-se. Nadou para longe e virou-se de costas. Boiou, com os braços e as pernas bem abertos, o peito arqueado e deixou as ondas levarem-no. Fechou os olhos ao brilho do meio-dia.
Deixou-se ficar assim, baloiçando, derretendo, até a respiração estar normalizada. Depois voltou para terra, sentindo os músculos a latejar enquanto estendia os braços muito acima da cabeça para avançar no oceano.
Saiu do mar e sacudiu a água dos cabelos e do rosto. Renascido: era assim que se sentia. Lucy e Gloria Holloway aproximaram-se dele a correr.
- Paizinho! - disse Lucy, excitada. - Olhe o que a Gloria tem!
A rapariga Holloway, com nove anos, e que o Turco Bending achava que parecia uma jovem bruxa, exibiu uma caixa de
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cartão profusamente colorida, com a inscrição "Cosméticos de Menina".
- Bâton, rouge, pó-de-arroz e sombra para os olhos - disse ela, autoritariamente. - A minha mãe comprou-me.
- Muito bem - disse Bending, assentindo.
- Vamos pô-las - disse Lucy. - Não vamos, Gloria?
- Primeiro eu - disse Gloria, friamente. - Tu podes ajudar.
- E depois eu?
- Se ainda houver.
- Lindo - disse Bending. - Um par de miúdas deslumbrantes.
Elas riram-se e correram pela praia até à casa dos Holloway. Ronald ficou a vê-las afastarem-se, as pernas bronzeadas a brilhar, pequenos rabinhos firmes a abanar. Pensou que podia apanhar vinte anos de prisão pelo que estava a pensar. Não por fazer alguma coisa, mas apenas por pensar.
Encaminhou-se para a porta lateral da sua casa. Usou a torneira da rua para tirar a areia dos pés. Depois, entrou na cozinha, deixando pegadas molhadas nos mosaicos. Grace tinha-se ido embora e ele ficou agradecido por isso.
Tirou uma garrafa térmica de cerca de meio litro de debaixo do lava-loiças, lavou-a e despejou lá dentro um monte de cubos de gelo. Depois, foi à sala de estar buscar
vodca. Abriu uma garrafa nova e esperou que aquela fosse melhor. A garrafa meio cheia que tinha acabado tinha um sabor estranhamente aguado.
Despejou meio litro de vodca para dentro da garrafa e depois acrescentou uma generosa porção de sumo de lima Roses s. Tapou a garrafa e agitou-o com ambas as mãos.
Um misturador de bebidas gigante.
Encontrou alguns copos de plástico no armário, pegou neles e na garrafa térmica e começou a dirigir-se para a praia. Mas depois teve de voltar atrás para ir buscar
uma grande toalha de praia, cigarros, isqueiro e um chapéu de lona branco.
Por fim, instalou-se na praia, na areia seca mas perto da água. Sentou-se na toalha de praia, pôs o chapéu na cabeça, acendeu um cigarro e deitou umgimlet gelado
num copo de plástico. Já sentia o sol queimar-lhe os ombros e as costas.
Ergueu a bebida para o oceano, para o mundo, para a vida.
- Abençoado - disse em voz alta.
A bebida estava ácida, extremamente gelada, e tão boa que quase soluçou de deleite.
Assegurou a si próprio de que as suas necessidades eram simples. Aquilo era tudo o que precisava: luz quente, bebida gelada,
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um cigarro e a vista. Nem tanto o mar, mas as transeuntes que chapinhavam na rebentação.
As bonecas! A parada de bonecas. De todas as idades, de todas as formas, de todos os tamanhos. Ele amava-as todas. Algumas, era verdade, amava mais do que outras, mas os seus olhos de artista viam mérito em todas. Nos seus fatos de banho de duas peças, fatos justos, biquinis, biquinis fio-dental. Manchas de branco, preto, roxo, vermelho-sangue.
Louras, morenas, ruivas. Andando muito emproadas, vagueando, correndo. Ou passeando, saltitando, quase dançando pela praia. Um friso de mulheres. E quem não gostava daquilo era um morto-vivo.
Item: Uma miúda de doze anos com um fato de banho preto de duas peças preso por argolas douradas. Um soutien mínimo cobria uns seios que pareciam querer saltar. Totós louros presos com fitas pretas.
Item: Uma mulher mais velha, sólida e segura, com um corpo sensual num elegante fato de banho branco muito cavado nas ancas. Seios hemisféricos e cabelos artisticamente penteados em cima da cabeça como um bolo de casamento.
Item: Cerca de trinta anos, alta, magra, com um corpo de atleta. Uma passada decidida, músculos oleados e brilhantes. Um rosto austero e olhos escondidos atrás de óculos de sol espelhados. Barrigas das pernas salientes...
Item: William Jasper Holloway, a chapinhar de pés descalços à beira da água, com as calças enroladas até aos joelhos. Rosto vago e lábios a mexerem-se.
- Ei, Bill - chamou Bending.
Holloway ergueu lentamente os olhos e o seu rosto tornou-se mais expressivo. Aproximou-se lentamente e olhou para baixo. Tentou esboçar um sorriso.
- Turco - disse ele. - Algo de novo?
- Eu sou novo - disse Bending, jovialmente. - Senta aí o rabo e bebe um bocado deste maravilhoso pote.
Holloway sentou-se desajeitadamente a um canto da toalha de praia de Bending. Aceitou o copo de plástico de gimlet com uma mão trémula. Bebeu um grande gole, fechou os olhos, respirou fundo e abriu os olhos.
- Que maravilha - disse ele. - Obrigado. Devia ter feito isto há duas horas. Achei que uma caminhada ajudaria, mas não serviu de nada. Gimlet?
- Sim.
- Óptimo. Simplesmente maravilhoso. Como é que tu estás, Turco?
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Estendeu o copo vazio e Bending voltou a enchê-lo. -vou sobrevivendo - disse Ronald.-A passar a minha habitual tarde de sábado a ver os biquinis.
- Alguma coisa de jeito? - perguntou Holloway sem interesse.
- É tudo bom. Tudo.
Ficaram em silêncio, a ver três raparigas passar ali perto, à beira da água. Uma das três tinha um bronzeado maravilhoso: dourado, brilhante, escuro.
- Amo-te - disse Bending suavemente. - Casa comigo. Bill Holloway virou-se para olhar para ele.
- Nunca te cansas, pois não?
- Não - disse Bending. - Nunca. - Depois, como se sentisse necessidade de explicar: - Sei que toda a gente pensa que eu sou um palhaço e um tarado por mulheres.
Holloway fez um gesto, um aceno com a mão.
- Não é nada disso - disse Bending. - Não a parte do sexo. Eu não ando com uma erecção constante. Não é isso. Eu era artista, tu sabes. Arte. Pintura. Óleo e aguarelas. Estudei na Brown e na Liga dos Estudantes de Arte em Nova Iorque.
- Eu sei. Tu contaste-me.
- Bem, agora não sou artista; admito-o. Mas algumas coisas ficaram. Uma forma de olhar para as coisas. Linha. Cor. Massa e composição. Tensão.
- Claro - disse Holloway.
Sentaram-se em silêncio durante algum tempo. Depois, Bending ofereceu mais umgimlet, mas Holloway recusou. Agradeceu ao Turco pelas bebidas, pôs-se de pé com alguma dificuldade e foi a cambalear para casa.
Bending acendeu outro cigarro e inclinou a garrafa térmica para se servir de outra bebida. Observou as mulheres. "Olá, aí. Amo-te. Casa comigo. Oh, amorzinho. Tu não és a minha fofinha? Vamos lá, querida. Vem viver comigo e sê o meu amor."
Não era sexo. Ele repetia para si próprio que não era sexo. Era o olho do artista. O amor do belo. Era linha, curva, cor, massa, matiz, proporção, tensão, composição. Era a perfeição que lhe virava o estômago.
A neblina prateada abraçava o céu. Ondas cheias de espuma faziam a sua própria música. Ao longe, velas brancas enfunavam-se contra o azul indistinto. E, perto, o brilho da areia. Uma brisa que parecia um beijo. Céu vaporoso com um sol aureolado. O mundo perfumado com luz.
"Olá, querida", disse ele silenciosamente para a parada que desfilava à sua frente. "És linda. Adoro esse fato, queridinha.
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Meu Deus, que temos nós aqui? Oh, meu Deus, não aguento. Sim, tens direito a empertigar-te. Ver-te-ei nos meus sonhos. Olha para mim e conhece o meu coração."
6
O Dr. Theodore Levin, com um sombrio fato de três peças escuro e cinzas de charuto brancas, convidou a
Sra. Bending a sentar-se na cadeira de braços que estava defronte
da secretária. Ligou o gravador. Depois olhou para ela.
Ela vestia um vestido camiseiro num padrão florido em tons pastel. De mangas compridas e abotoado até ao pescoço. Mas as suas bonitas pernas estavam nuas, os cabelos claros soltos, que lhe suavizavam as feições vincadas e acalmavam a expressão de desagrado afectado.
- Doutor - disse ela, inclinando-se rigidamente para a frente -, está a fazer alguns progressos com a Lucy?
Ele ignorou a pergunta.
- Sra. Bending, em casos desta natureza, é frequentemente útil aprofundar um pouco mais a história pessoal dos pais. É isso que eu gostaria de fazer hoje... saber um pouco mais sobre a senhora.
- Se acha que poderá ajudar... - disse ela, duvidosa.
- Acho que sim. E se me contasse a história da sua vida?
- Bem... - disse ela com uma gargalhada nervosa -, tenho
36 anos. Fui filha única. Isso significa alguma coisa?
Ele olhou para ela.
- Significa que foi filha única. Continue, por favor.
- Tive uma infância feliz. Não estou a dizer que agora me lembro dela como tendo sido feliz, mas na altura estava consciente de que era feliz. O meu pai tinha um emprego muito bom numa companhia de seguros. Era executivo no escritório principal em Hartford, Connecticut. Era onde nós vivíamos. Numa casa grande. A mãe do meu pai viveu connosco até morrer, tinha eu nove anos. Depois, ficámos apenas os três. O meu pai era um homem muito bonito. Pelo menos eu achava que sim. E era um homem muito bom. Severo, mas bom. Quero dizer, tinha os seus padrões. A minha mãe, muito bonita, era um pouco doidivanas, mas o meu pai amava-a muito. E eu também, é claro. Vejamos... bem... na verdade eu tive uma infância muito normal. Não me aconteceu nada dramático. Era boa aluna na escola. Fui oradora
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da minha turma de liceu na cerimónia de entrega dos diplomas. Depois fui para Radeliffe. No meu segundo ano, a minha mãe contraiu cancro nas glândulas linfáticas. Morreu seis meses depois. Eu queria deixar de estudar, mas o meu pai nem sequer quis falar no assunto. Por isso licenciei-me. Trabalhei durante dois anos numa firma de advogados em Hartford. Depois, conheci Ronnie, namorámos durante quase um ano e entretanto o divórcio dele foi decretado e casámos. Eleja estava separado da mulher quando eu o conheci. Isto é, não quero que pense que o tirei da primeira mulher, ou uma coisa do género. Vivemos em Nova Iorque durante algum tempo e depois mudámo-nos para a Florida há cerca de nove anos. E... acho que é tudo.
Levin tinha escutado atentamente aquele discurso. Grace Bending tinha começado de forma hesitante, brincando com a aliança de casamento. Mas concluíra o seu relato com a calma restaurada, a voz firme e insensível. Encarou o médico com o queixo erguido, olhos desafiadores.
- O seu pai ainda é vivo? - perguntou ele.
- Não. Morreu há vários anos. Um ataque cardíaco.
- Tem tias, tios, primos?
- Alguns. Enviamos cartões de Boas-Festas uns aos outros, mas não somos íntimos.
- A senhora diz que teve uma infância muito normal. Foi esse o termo que usou. Amigos?
- Claro que tinha amigos.
- Raparigas ou rapazes? Ou ambos?
- Ambos.
- Namorou enquanto andava no liceu?
- Sim.
- E na faculdade também?
- Sim.
- Diria que a sua experiência com homens antes do seu casamento era grande?
- Ah... média.
- Não era virgem quando se casou?
Ela olhou para ele, abriu a boca, aparentemente para dar uma resposta brusca, e depois fechou-a tão abruptamente que ouviu os dentes bater uns nos outros.
- Não, não era - disse friamente. Depois: - O meu marido já tinha sido casado antes.
- Sim - disse o Dr. Levin. - Teve alguns problemas com o lado físico do casamento?
- Problemas? Não, não tenho problemas.
- Numa conversa que tivemos antes, disse-me que você e o
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seu marido tinham relações sexuais cerca de uma vez por mês. Está correcto?
- Sim.
- Está satisfeita com essa frequência?
- Sim.
- Certamente deve estar consciente de que uma vez por mês não é de todo, hum, uma média para casais da vossa idade.
- Na verdade, não percebo como é que se pode estabelecer médias para uma coisa dessas. Meu Deus, doutor, é muito pessoal e todas as pessoas são diferentes.
- A partir daquilo que me disse sobre a sua infância e juventude, fiquei com a impressão de que a senhora era mais íntima do seu pai do que da sua mãe. Diria que a minha conclusão está correcta?
- Eu amava a minha mãe - disse ela rigidamente.
- Tenho a certeza de que amava. Mas diria que se sentia mais próxima do seu pai?
Ela não respondeu, o que em si só era uma resposta.
- Sra. Bending, os seus pais iam à igreja?
- Oh, sim. Regularmente. O meu pai era membro do conselho paroquial.
- E a senhora disse-me que também vai à igreja regularmente?
- Sim, vou.
Após a entrevista anterior, Levin tivera esperança de que ela continuasse a relaxar, a ser mais acessível nas suas respostas. Mas agora ela parecia estar tão tensa e gelada como estivera durante a primeira entrevista. Ele procurou alguma forma de abalar aquela compostura reservada.
- Sra. Bending - disse ele suavemente -, alguma vez teve relações sexuais com uma mulher?
- Uma mulher? - exclamou ela. - Evidentemente que não!
- Que é que sente por mulheres que são fisicamente íntimas umas com as outras?
- É repugnante!
- E homens? Que é que sente em relação ao amor homossexual?
- É tão porco! - explodiu ela. - Eu sei o que se passa hoje em dia. Não se pode pegar num livro ou ver um filme... Até na televisão! É tão horrível e degradante. Não consigo compreender como é que as pessoas podem fazer essas coisas. Como animais! Que é que aconteceu ao amor e à fidelidade entre um homem e uma mulher? Eu tenho ideias muito rígidas sobre isso. Muito rígidas.
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Levin escutou aquela explosão com as mãos fechadas em cima da secretária. Fitou a
Sra. Bending por detrás dos óculos de lentes grossas, vendo as suas feições ruborizadas, a sua agitação desenfreada que se aproximava perigosamente da histeria.
Mas ele não a interrompeu nem tentou acalmá-la. Deixou-a desabafar e depois observou-a a tirar o pequeno quadrado de cambraia da bolsa e limpar cuidadosamente a
transpiração que se acumulava sobre o lábio superior e por debaixo do queixo aguçado.
Podia avaliar até que ponto o comportamento da filha devia parecer-lhe horrendo. Havia lepra em sua casa, a sua própria descendência estava contaminada. Reflectiu tristemente que fora a Dr.B Mary Scotsby quem tinha sugerido que aquela mulher podia ter uma tara religiosa, e ele rejeitara aquela análise. Agora, achava que era um fio da meada.
- Sra. Bending, a que igreja é que pertence?
- Oficialmente, sou presbiteriana.
- Oficialmente?
- Era a igreja dos meus pais, eu sou um membro registado, e ainda frequento os cultos com fé. No entanto, tenho-me interessado por outras crenças e fés, e, por vezes, também frequento os seus cultos.
- Compreendo. E há quanto tempo é que isso acontece?
- O quê?
- O seu interesse por outras crenças e fés fora da Igreja Presbiteriana... quando é que isso começou?
- Oh... talvez há quatro ou cinco anos.
- Que crenças? Que fés?
- Interessei-me muito por religiões e práticas religiosas orientais. Budismo, por exemplo. Ioga. E Zen. Recentemente, aderi a um pequeno grupo fundamentalista. É basicamente baptista, creio eu, mas com uma... uma abordagem à salvação pessoal através da confissão e do arrependimento.
- O seu marido partilha do seu interesse na salvação pessoal?
Ela olhou duramente para ele, pensando que ele estava a troçar de si, mas não era verdade.
- Não - disse ela. - O meu marido tem pouco interesse pela religião.
- Diga-me, Sra. Bending, qual é, em sua opinião, o motivo do seu actual interesse numa igreja fundamentalista?
- Oferece uma esperança de purificação - disse ela, com os olhos pousados nas mãos. - De limpar os verdadeiros crentes, libertando-nos dos nossos pecados.
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- A senhora acha que pecou? Ela ergueu os olhos para ele.
- Doutor, todos nós somos pecadores. Alguns mais do que outros, mas nenhum de nós está livre de pecados. Todavia, há esperança para a alma do renascido, erros passados confessados e perdoados. Há esperança de uma vida nova, de nascer de novo.
- Já tentou explicar isso ao seu marido?
- Ele sabe como eu me sinto.
- E...?
- Ri-se de mim e segue o seu próprio caminho.
- Sra. Bending, gostaria de fazer uma declaração. Na verdade, uma observação. Mas, antes de o fazer, quero garantir-lhe que não é um julgamento. Mas gostaria de lhe expressar a minha impressão, e perguntar-lhe se acha que é razoavelmente certa. Compreende?
- Sim.
- Parece-me que a senhora e o seu marido se afastaram... estão afastados. Estão casados há... há quanto tempo? Catorze anos?... e, aparentemente, é, ou era, um casamento feliz. O seu marido é um homem bem sucedido. Têm três filhos, uma boa casa. Tenho a certeza de que o vosso relacionamento não era perfeito; os relacionamentos humanos nunca o são. Mas tenho a sensação de que houve um afastamento progressivo. Se estiver enganado, por favor corrija-me. Estou enganado?
- Não.
- Obrigado. A razão porque estou a falar tão francamente com a senhora é porque estou a tentar determinar qualquer causa contributiva para o comportamento da Lucy. Poderia arriscar um palpite do motivo para esta crescente animosidade entre a senhora e o seu marido?
- E óbvio - disse ela com uma gargalhada afectada -, não é?
- Para mim não é, Sra. Bending.
- O meu marido é um caçador de mulheres. Qualquer coisa de saias. Ou calças de ganga. Ou biquinis.
- Oh? A senhora suspeita de alguma coisa? Ou sabe?
- Eu sei - disse ela, segura. - Sem sombra de dúvida. Ele tem sido visto com outras mulheres. Na verdade, raparigas. Fica fora de casa até altas horas da noite. Volta para casa a cheirar a elas. Suspeito? Oh, não, doutor, eu sei.
- Há quanto tempo é que isso dura?
- Desde o princípio. Desde o princípio. No começo eu não percebia. Agora, já não posso ignorar os factos. E ele também não faz
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esforço nenhum para esconder. Toda a gente sabe. Todos os nossos amigos.
- Já falou com ele sobre o assunto?
- Tentei. Muitas vezes. Ele nega tudo. Mente, mente, mente!
- Sra. Bending, eu não vou fazer um julgamento sobre a veracidade ou falsidade das suas acusações. Não tenho forma de saber, é claro, e na realidade a minha opinião não é importante. O que é importante é que a senhora se sente assim, e o rancor crescente entre a senhora e o seu marido não pode deixar de afectar os vossos filhos.
- Eles não sabem de nada - disse ela, teimosamente. Levin suspirou.
- Sra. Bending, uma das tarefas mais difíceis que tenho é convencer os pais do quanto os filhos sabem. As crianças são espantosamente sensíveis às correntes de emoção
entre os pais. Olhares, tons de voz, a presença ou ausência de gestos de afeição... todas essas coisas, e mais, afectam as crianças. Normalmente, ao nível do subconsciente. Sem a analisar, ou exprimir por palavras, estão conscientes da atmosfera da sua casa. E a casa representa o seu céu sagrado. O único sítio onde não têm de se preocupar com as correntes estranhas e hostis do mundo exterior. Qualquer coisa que ameace a segurança da casa ameaça-os a eles. Por isso, e frequentemente, quando sentem que a segurança está a diminuir, reagem de formas inesperadas, procurando a segurança noutro lado.
- Doutor - disse ela, tensa -, está a sugerir que a Lucy faz, hum, as coisas que faz por causa da forma como o meu marido se comporta?
- A forma como a senhora acredita que ele se comporta corrigiu ele delicadamente -, e a sua reacção a essa convicção. Não estou a dizer que as relações da senhora e do seu marido são a única causa do problema da Lucy. Pode haver outros factores e mais importantes. Nesta fase, simplesmente não sei. Estou apenas a referir-lhe o que acho que poderá estar a afectar a Lucy e a forma como ela se comporta.
Levin observou-a enquanto ela ponderava no que ele acabara de dizer. E, de repente, no rosto dela, estampou-se uma expressão de pena e culpa que o entristeceu. Já a tinha visto antes nas feições de pais preocupados: a percepção chocante de que podiam ter criado a psicopatia do filho.
- Nós nunca discutimos quando as crianças estão por perto
- disse ela pesadamente.
Ele foi muito paciente.
- Não é necessário as crianças assistirem a uma discussão
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para perceberem o que se passa. Acredite em mim, Sra. Bending, elas são mais perspicazes do que a senhora pensa.
- E nunca esquecem - disse ela inesperadamente. Depois, subitamente, começou a chorar, inclinada, com o
rosto nas mãos. Ele ouviu os soluços, um ocasional "Deus me ajude" ou "Deus me perdoe". Levin pensou que o reconhecimento da sua possível culpabilidade não lhe faria mal. Empurrou a caixa de Kleenex para perto dela.
Por fim, ela acalmou-se e limpou os olhos molhados com um lenço de papel. Abriu a bolsa.
- Desculpe - disse ela em voz rouca, pôs-se de pé e virou-lhe as costas enquanto se inspeccionava num espelho e colocava um pouco de pó-de-arroz nas faces.
O Dr. Levin pensou que era um gesto encantador, mas surpreendeu-se com uma mulher que pensava que retocar a maquilhagem era um acto tão privado e íntimo que tinha de ser escondido dos homens.
- Sra. Bending - disse ele, depois de ela se ter sentado novamente -, peço desculpa se a perturbei. Tentei deixar claro que não estou a acusá-la a si nem ao seu marido de nada.
- Eu compreendo, doutor - disse ela, com a cabeça baixa. Que é que sugere que eu... que nós façamos?
- Nada - disse ele firmemente. - Neste momento. Neste caso, fingir emoções ou uma afeição que não sente verdadeiramente é tão mau como, ou pior que, ser honesta nas suas relações com o seu marido. Talvez a Lucy possa ser persuadida a aceitar as coisas como elas são, e ser convencida de que a sua segurança pessoal e o seu
futuro não estão ameaçados. Estamos apenas no princípio desta terapia,
Sra. Bending. Há quanto tempo é que começámos... dois meses? Tenho de lhe pedir para ter paciência.
- É difícil - disse ela.
- Eu sei - disse ele, compreensivamente. - Mas é o bem-estar da Lucy que está em jogo. E é isso que ambos queremos, não é? O bem-estar da Lucy!
- Sim - disse ela em voz baixa. - E o meu. Ele olhou singularmente para ela.
- Acho que o nosso tempo chegou ao fim - disse ele.
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Era uma cultura que exigia mudança constante. Novos passatempos, novas extravagâncias. Roupas, bebidas, anedotas, carros, restaurantes - qual é a última? Até os velhos gostavam do diferente.
Naquele ano, o mais novo dos pratos servidos em jantares particulares chamava-se Talharim Alfredo, à Las Vegas. Era a massa tradicional, mas com pedacinhos pequeninos de bacon frito e vitela salteada.
A Sra. Teresa Empt escolheu Talharim Alfredo à Las Vegas para prato principal do seu jantar. Seria precedido por uma entrada de cocktail de marisco: pedaços de caranguejo,
camarões e lagosta. Seria acompanhado por um ratatouille e uma salada adstringente de endívias e alface. Gelado de limão e tarde de lima para sobremesa.
Decidiu que o vinho seria branco, um chablis seco da Califórnia. Conhecendo os convidados como conhecia, tinha a certeza de que se lubrificariam bem com cocktails antes de se sentarem à mesa a jantar. Um bom vinho francês seria um desperdício.
Depois de planear a ementa, Teresa contratou pessoas para preparar a refeição; não tinha a menor intenção de passar todo o dia na cozinha. Uma empresa de Palm Beach forneceu um cozinheiro e um assistente. O mordomo negro dos Empt, John Stewart Wellington, serviria a refeição.
Depois de conversar com a Sra. Grace Bending e com a Sra. Jane Holloway, ficou decidido que todos se vestiriam formalmente para aquela ocasião, as mulheres de vestidos compridos e os homens com casacos brancos de cerimónia. Seria aberta uma excepção para o professor Lloyd Craner, cujo fato formal era um velho e gasto fato de cerimónia
preto com lapelas de seda largas.
Luther recebeu as notícias do jantar que a mulher tinha planeado com calma resignação. Como Bending e Holloway eram agora seus sócios, ele podia debitar o custo total da festa como despesa de negócios. Comprou bastante uísque e vinho, de modo a ter o suficiente para a época natalícia.
O jantar efectuou-se na última sexta-feira de Novembro. O tempo estava encantador para aquela época do ano, com dias de céu limpo e temperaturas entre os 25º C e
os 30º C, e noites amenas com cerca de 18º C. Notícias de um temporal a norte punham toda a gente mais feliz.
Na sexta-feira à tarde, a Sra. Teresa Empt foi à sua florista preferida em Boca Raton e escolheu flores para a festa. Escolheu
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ramos altos de gladíolos vermelhos e brancos para a sala de estar e arranjos baixos de margaridas, ervilhas-de-cheiro, botões, de rosa, ásteres e fetos para a mesa de jantar.
Comprou também um rebento de hibisco vermelho para usar nos cabelos.
Voltou para casa e colocou as flores precisamente onde as queria. Visitou a cozinha para verificar os progressos do cozinheiro. Depois foi para o andar de cima para tomar banho e vestir-se.
Escolheu um vaporoso vestido de seda siamesa com um padrão de papoilas selvagens sobre um fundo verde. Deixou os cabelos soltos e prendeu o rebento de hibisco por cima da orelha esquerda. Pôs uma pulseira em forma de cobra no bíceps do braço direito.
Quando se inspeccionou ao espelho, viu uma mulher alta, saudável e bronzeada, resplandecente de vitalidade provocante. Achou que havia algo de primitivo no seu aspecto e isso agradou-lhe. Sentiu-se primitiva como se, por fim, depois de todos aqueles anos, tivesse descoberto a derretida e misteriosa essência da vida.
De cabeça erguida, saiu do quarto com o vestido a arrastar pelo chão e lentamente, orgulhosamente, desceu a larga escadaria para cumprimentar os convidados.
A Sra. Jane Holloway usava um vestido comprido de jersey preto, justo no peito e nas ancas, suspenso dos seus ombros macios por tiras que não eram mais largas que atacadores. Uma gargantilha de diamantes no pescoço sem rugas.
A Sra. Grace Bending usava uma blusa de flores, de gola subida e mangas compridas, com um cinto de palha tecida e uma saia comprida de seda branca plissada. Era a única mulher presente que usava meias.
A Sra. Gertrude Empt vestia o que parecia ser um muu-muu com um horrível padrão havaiano que incluía ananases e canoas de guerra polinésias. Também tinha um colar com duas voltas de conchas e caroços de azeitonas, que ela própria fizera.
O professor Lloyd Craner usava o seu velho fato de cerimónia preto com uma antiquada camisa e um laço de borboleta um pouco torto. Tinha uma pequena flor branca
na lapela e o seu bigode e cavanhaque tinham sido enrolados em pontas que pareciam bicos de agulhas.
William Jasper Holloway, Ronald Bending e Luther Empt usavam casacos de cerimónia brancos. As calças de Holloway
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eram pretas, as de Bending eram axadrezadas em tons escuros e as de Empt eram vermelho-carro de bombeiros. Os três homens usavam camisas de folhos e laços de borboleta muito grandes.
Grace Bending pediu cola de dieta, mas todos os outros aceitaram bebidas do enorme misturador de
vodca-martinis em cristal que Luther Empt tinha preparado na noite anterior e deixara no frigorífico para refrescar e misturar convenientemente sem a adição de gelo.
Havia azeitonas, cebolinhas minúsculas e pedaços de casca de limão para os martinis. E também - muito em voga na Florida naquele ano: uma nova sensação para o paladar
- finas fatias de pepino com casca.
Teresa deixou serviu uma rodada de bebidas. Depois, a um sinal de John Stweart Wellington, enchotou toda a gente para a sala de jantar, dizendo-lhes que levassem os copos. Sentou-os à mesa com a precisão de um sargento, certificando-se de que maridos e mulheres ficavam separados.
- Teresa - disse Grace -, estava tudo delicioso. Uma refeição maravilhosa.
- Sim - disse Luther Empt. - O Tony's Take Out é bom. Da próxima vez vamos experimentar o
Sambo's. Vá lá, pessoal, bebam. A festa ainda não acabou.
Despejaram todas as garrafas de vinho, e Ronald Bending e Luther Empt beberam mais do que a conta. Comeram gelado de limão ou tarte de lima. Depois, a anfitriã sugeriu
que passassem para o terraço da praia para tomarem o café a bebidas digestivas.
Uma noite negra e perfumada, sem lua, mas um céu pintado: roxo raiado com um brilho de estrelas. O ar era acariciante. Ouviram o murmúrio do mar. Havia um perfume penetrante na brisa, algo estranho e assustador.
- Foi para isto que viemos para a Florida - declarou Teresa Empt, e observou John Stewart Wellington a servir o café.
As senhoras, à excepção de Grace Bending, aceitaram Brandy Alexanders. Os homens beberam Brandy Stingers. Aquelas bebidas doces encerraram cerimonialmente o serão: todos os rituais e costumes tinham sido respeitados.
-Agora podemos começar a beber a sério - disse o anfitrião. Trouxe garrafas de
vodca, gim, uísque americano, uísque escocês para o terraço. Misturadores. Um balde
com cubos de gelo. Copos de plásticos de paredes duplas para as bebidas não aquecerem depressa de mais nem pingarem.
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Gertrude Empt e o professor sussurraram durante alguns instantes e depois levantaram-se simultaneamente.
-Vamos dar um passeio na praia-anunciou Gertrude, descalçando os sapatos. - Adeusinho a todos.
- Não façam nada que eu não fizesse - gritou-lhes Turco Bending. - E não há nada que eu não fizesse.
- Oh, Ronnie - disse a mulher -, és impossível.
Ele sorriu na escuridão, recordando-se de que, não há muito tempo, Jane Holloway lhe dissera a mesma coisa.
- Apenas improvável - disse ele.
Sentaram-se em silêncio na suave capa da noite. Apenas Grace Bending estava inquieta, não confiando naquela bebedeira sonhadora. Mas não se iria embora.
- Acredito - disse Jane Holloway preguiçosamente - que se conseguisse encontrar a minha bolsa também encontraria um cigarro muito engraçado.
- Eu vou buscar a tua bolsa - disse Bending.
- Tu ficas aí, Ronnie - disse-lhe a mulher bruscamente.
- Eu vou buscá-la - disse Luther Empt. - Óptima ideia, Jane. Indústria caseira de apoio. A maior fonte de dinheiro da Florida. ,
O charrb foi encontrado, trazido e aceso. Grace não lhe tocou, mas os outros fumaram e passaram-no.
- Óptima - disse Bending. - Uma verdadeira maravilha. Onde é que arranjaste o material, Jane?
- Comprei ao meu ginecologista - disse ela. - Ele diz que é a única maneira de conseguir sobreviver.
- Esse negócio está a olhar para cima - disse Bill Holloway.
- Oh-oh-disse ela. - O meu marido disse uma piada. Mais
ou menos.
Luther Empt voltou a encher os copos.
- Que se lixe - disse ele -, amanhã é sábado; podemos dormir todos até tarde.
- Se acabarmos estas - disse Turco Bending -, podemos nunca mais acordar. Que forma de morrer!
Beberam e fumaram solenemente, embalados pela beleza da noite. Era uma presença palpável. Conseguiam sentir o veludo.
- Bem - disse Grace Bending, tensamente -, acho que são horas de irmos para casa e ver como estão os miúdos. Ronnie...?
- Eu não - disse ele, rudemente. - Se quiseres, podes ir. Eu fico.
Grace voltou a afundar-se na cadeira. Os outros não disseram nada.
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- Desmancha-prazeres - disse Bending. - Não bebe. Não fuma. Vai ganhar o reino do céu, minha querida.
- Tu bebes e fumas o suficiente por nós os dois - atirou-lhe a mulher.
- Ei-ei! - disse Luther Empt, alegremente. - Uma discussão familiar! O que toda a festa devia ter.
- Cala-te, Luther - disse-lhe a mulher.
- Não me mandes calar - retorquiu-lhe ele. - Estou na foda da minha casa.
Os insultos espalharam-se, como bocejos, de uns para os outros.
- Quem me dera ter uma foda em casa - disse Jane Holloway -, mas não tenho. Talvez o Bill consiga levantá-la no Natal.
- Desde quando é que eu sou a tua única fonte? - perguntou-lhe ele.
- Talvez o Bill dê no escritório - disse Bending.
- E talvez os camarões saibam voar - disse Luther. - Bill, devias provar uma carne negra e mudar o teu destino.
- Eu mudei o meu destino - disse ele - quando casei com a Jane.
- Eu fiz de ti um homem - disse-lhe ela -, e tu nunca me perdoaste por isso.
-Jane - disse Luther -, devias experimentar o instituto de beleza onde a Teresa vai. O cabeleireiro maricas dela faz-lhe uma óptima depilação nas virilhas.
- Eu tenho uma coisa melhor do que isso - disse-lhe a mulher, elegantemente.
- Um vibrador de tamanho gigante? - perguntou Bending.
- Estou a pensar comprar uma boneca insuflável de tamanho real para me divertir.
- É mesmo o teu estilo - disse-lhe a mulher friamente. Uma boazona de plástico em biquini.
- Eu sonho com elas - disse ele -, mas quem fica com elas é Luther.
- Se são suficientemente grandes - disse Empt -, são suficientemente crescidas. Por amor de Deus, bebam, pessoal; a noite ainda é uma criança.
Jane Holloway acabou a minúscula beata incandescente. Bebeu a vodca pura de um trago. Levantou-se e tirou a alça de um ombro. Posou, provocante, de anca para a frente.
-vou tomar banho descascada-anunciou ela. - Quem alinha?
- Conta comigo - disse Bending imediatamente.
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- Ronnie! - disse a mulher.
- Bill?
- Não.
- Luther?
- Claro. Por que não? E tu, Teresa?
- Está bem - disse ela, lentamente.
- Isto é nojento! - disse Grace Bending.
Ela e William Jasper Holloway sentaram-se estolidamente nas cadeiras de lona e ficaram a ver os outros despirem-se, soltando risadinhas.
- Tirar tudo - comandou Jane Holloway. - Não são permitidos soutiens, cuecas ou tangas.
Despiram-se os quatro com dedos frenéticos, atirando com as roupas para cima das cadeiras, mesa e balaustrada do terraço.
- Jesus, está frio - disse Luther Empt.
- A água vai estar morna - prometeu Jane Holloway. Meu Deus, Teresa, se tivesse as tuas mamas era dona do mundo.
Depois ficaram nus, a rirem-se, a empurrarem-se e a agarrarem-se uns aos outros. Correram pelos degraus até à praia. Grace Bending e Holloway viram vultos pálidos a correr para a escuridão, dirigindo-se para o mar.
Holloway inclinou-se para a frente, para despejar mais vodca sobre o gelo.
- Sou tímido - disse ele.
- O quê? - exclamou Grace Bending.
- Fui sempre tímido - disse ele. - Toda a minha vida. As pessoas sabem isso, ou sentem, e passam a vida a chatear-me.
- A sério? - disse ela, sem interesse.
- Evidentemente, tu deves sentir-te da mesma maneira? Agora ela estava interessada.
- De que maneira? - perguntou.
- As pessoas a manipularem-te. As pessoas não te manipulam?
- Gostaria de ir para outro sítio qualquer - disse ela, fervorosamente. - Uma classe de pessoas melhores...
Ele engasgou-se com a bebida.
- Nada disso - disse ele com um sorriso fraco. - É isto que nós temos.
- Não acredito nisso. - Ela inclinou-se para a frente e olhou na direcção do oceano. Ouviam gritos abafados, guinchos. - Que estão eles a fazer? - perguntou ela, nervosamente.
- Vai lá abaixo - disse ele, cruelmente - e vê.
- Eles estão bêbados - disse ela. - Não sabem o que estão a fazer.
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- Claro - disse ele, sorrindo secretamente.
- É tudo tão feio - disse ela com um tom de surpresa na voz. Depois ficaram em silêncio, escutando os suaves gritos que
vinham da praia.
- Espero que sejam presos - disse ela, vingativa.
-Vamos despir as nossas roupas - disse ele, rindo baixinho.
- Tu e eu. Quando eles voltarem, nós estaremos aqui sentados, completamente nus, a tomar calmamente uma bebida e a discutir o Fundo Monetário Internacional. Que achas?
- És maluco! - gritou ela, sem perceber que ele nunca faria uma coisa daquelas. - Onde é que queres chegar?
- Não quero chegar a lado nenhum.
- Que é que ouviste a meu respeito? - perguntou ela. Ele estava assombrado.
- Eu não ouvi nada a teu respeito, Grace.
- Não é verdade - explodiu ela. - Não, não, não!
- Vai para casa - aconselhou ele. - Vai ver como estão os teus miúdos.
- Odeio-te! - disse ela. - Odeio-vos todos!
- Sim, bem... - disse ele -, isso é compreensível. Eu também não estou exactamente enamorado de nós.
Ela levantou-se.
- Vai-te foder - disse ela, e ele ficou mais entristecido do que chocado.
Ficou a vê-la afastar-se, descer os degraus e percorrer o areal para a sua casa. Pensou-que ela era uma mulher inconsequente e ficou satisfeito por se ter ido embora.
"Os doentes", pensou ele, "não estão interessados nas doenças dos outros."
Sozinho, deitou-se na cadeira e pôs os pés descalços em cima da mesa com tampo de vidro. Pousou a bebida no peito e olhou de boca aberta para o céu nocturno repleto
de estrelas.
Parecia-lhe que se tinha portado bem. Durante todo o serão tinha feito um grande esforço para parecer alegre. Tinha participado nas conversas, lembrara-se de agradecer à anfitriã. Tinha bebido bem, de verdade, mas não demasiado. Ninguém poderia adivinhar...
- Por que é que - perguntou em voz alta - te recusaste, instintiva e imediatamente, a despir-te e a mostrar o teu corpo aos outros?
"Em parte por modéstia física - respondeu ele em voz alta.
- E pode ter sido um acto simbólico. Uma aversão, ou uma incapacidade, para me revelar completamente. Quem eu sou.
Sentiu saudades, mas não soube explicar de quê. Faltava qualquer coisa na sua vida; ele ansiava por uma estrutura.
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Acima de tudo, não era culpa que sentia, mas sim uma cruel sensação de desperdício.
- É uma necessidade - disse em voz alta. - Algo para ser providenciado...
- Não há coluna vertebral - acrescentou. - Este lugar... Até as palmeiras têm raízes ocas.
A libertinagem despreocupada dos outros não o enfraquecia. Apenas a sua própria anomia. Havia uma resposta, pulsante, mas era incompreensível. Era algo ao mesmo tempo doloroso e justo.
Um coro de rudes gargalhadas ouviu-se vindo da praia. Pareceu-lhe conseguir ver espuma pontapeada e sombras brancas a contorcerem-se. Era uma visão de troncos de mármore a escorrer, apanhados e mantidos numa postura e luxúria frenética, com as gargantas esticadas.
- Impotência - disse ele em voz alta. - Lassidão física. Ansiedade sem motivo. Esterilidade espiritual. Um aborrecimento profundo.
- Os sintomas - respondeu ele. - Mas a causa? E, mais importante... a cura?
Chegou à conclusão de que não existia nas suas relações com a mulher, filhos, ou qualquer outra pessoa. A malignidade instalara-se dentro de si e estava a crescer.
Conhecia os seus dentes afiados e o esgar feroz. Sabia que estava a devorá-lo.
- Está na tua mente... não é isso?
- Sim.
- Bem, tu tens uma mente boa; sabes isso. Usa-a.
Pôs os pés no chão. Pescou pedaços de gelo quase derretidos do balde e encheu o copo de plástico. Deitou mais vodca. Ficou parado junto à balaustrada olhando para
o negrume do mar brilhante.
Clandestinamente, sem convite, o pensamento de que talvez o seu mais profundo desejo fosse viver como um homem virtuoso instalou-se nele.
Esta fantasia, um murmúrio de palavras desconhecidas, era tão estranha para ele que conseguia prová-la mas não determinar o seu sabor. Atormentava-o e comovia-o. Podia andar à volta dela, inspeccioná-la, mas não conseguia reconhecê-la.
- Viver como um homem virtuoso? - perguntou ele em voz alta, intrigado. - Neste dia e idade? Por que motivo?
"Por motivo nenhum - respondeu ele. - Um acto de fé. Uma afirmação.
As estrelas rodavam nos seus cursos ascendentes. Ouviu o
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farfalhar seco das copas das palmeiras. O movimento do mar estava dentro de si; sentia as suas marés.
Nunca tinha sentido tão profundamente a estranheza irónica da vida, a sua inexplicabilidade. O mundo inteiro era terra incógnita, e os seus habitantes estavam condenados a tropeçar. Havia loucura por todo o lado e apenas os mais doidos sobreviviam.
- Que vais fazer? - perguntou ele em voz alta. -Viver uma vida virtuosa?
"Explorar a possibilidade - replicou ele.
Depois, selvagens nus apareceram a correr para ele vindos da escuridão, abraçando-se e gemendo. Ele mostrou os dentes quando eles entraram no terraço e dançaram
à sua volta, como se ele fosse o sacrifício.
8
Todas as pessoas que conheciam Jane Holloway pensavam que ela era uma mulher vaidosa, mas isso não correspondia à verdade. Ela não tinha um amor excessivo pela sua pessoa, nem sentia um prazer sensual por mimar e adornar o seu corpo.
Tinha orgulho no seu corpo, mas da mesma forma que o proprietário de uma casa imponente, de um animal puro-sangue ou de uma máquina bem feita estimava e respeitava o seu bem. Merecia cuidados.
E o mesmo se passava em relação à sua aparência. Quando se tratava de façanhas, Jane Holloway achava que tinha ainda menos motivos para vaidade. Outras mulheres poderiam pensar que a sua vida era cheia, agradável e gratificante. Ela considerava a diferença entre a realidade e os seus desejos terrivelmente irritante.
Gostava de pensar que era ambiciosa e não gananciosa. Sabia que possuía uma mente astuta, uma energia ilimitada e um desejo ardente de dinheiro e poder, que lhe pareciam ser as alavancas que moviam o mundo.
Tinha concluído, sem que o termo lhe fosse familiar, que a vida era um jogo de soma zero e não pretendia ser o lado perdedor. com aquela crença era inevitável que todos os seus relacionamentos, até com o pai, marido, filhos fossem antagónicas.
Na segunda-feira de manhã dormiu até tarde, e depois preguiçou durante algum tempo, ouvindo os sons de Maria a preparar Gloria e Eddie para irem para a escola. Ouviu o marido
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sair para o banco no grande Mercedes. Voltou a adormecer e, finalmente, acordou perto das 10h. 30m.
Antes de tomar duche, telefonou ao ex-senador Randolph Diedrickson. O velhote disse que estava com um ataque especialmente doloroso de artrite reumatóide e pretendia
passar o dia na cama. Mas pediu-lhe que fosse visitá-lo e levar alegria à sua vida.
- Faz-me melhor que uma injecção de cortisona, minha querida - garantiu-lhe na sua voz agradável.
Tomou duche e arranjou-se, aplicando a maquilhagem clara rapidamente e de forma hábil. Como o senador estaria na cama, e ela sentada perto dele, decidiu vestir um
quimono de seda amarelo-claro. Tinha uma gola amarelo-alaranjada e, de um dos lados, uma racha até à coxa.
Não vestiu roupa interior.
Trinta minutos depois dirigia-se para sul na AIA no seu pequeno Alfa Romeo branco descapotável, com a capota descida. Parou num semáforo em Atlantic Boulevard e um motorista de camião na faixa ao lado, olhando para o carro e vendo as suas coxas nuas, atirou-lhe beijos sonoros. Ela fez-lhe um gesto obsceno com os dedos antes de se afastar a grande velocidade.
Virou para oeste no Commercíal Boulevard e parou numa loja de bebidas alcoólicas para comprar uma garrafa de Southern Comfort para o senador, bebida que ele adorava.
Chegou a casa dele pouco depois do meio-dia, e foi recebida por Renfrew, o criado negro.
O senador, com um pijama de algodão amachucado, estava sentado numa cama de carvalho escuro, com quatro colunas. Um lençol e um cobertor fino cobriam-no até à cintura. Espalhadas pela cama estavam páginas manuscritas com as suas memórias que ele estivera a ler com a ajuda de uma lupa.
Aceitou o presente de Southern Comfort com prazer e pediu a Renfrew para servir um pequeno copo para cada um. Depois o criado saiu, fechando suavemente a pesada porta do quarto.
Era um aposento atravancado, imponente com um papel de parede cheio de flores, uma grande colecção de fotografias autografadas e emolduradas e uma ventoinha de tecto com pás de madeira que agitava o ar sem o arrefecer. O sofá e as cadeiras eram de nogueira trabalhada, forrados com veludo gasto. Um lavatório vazio, com um tampo de mármore branco, servia de bar.
Jane Holloway puxou uma cadeira para o lado direito da cama, pois era para esse lado que a racha do quimono se abriria se ela cruzasse a perna. Ergueu o copo.
- À sua saúde, senador.
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- E à sua, minha querida.
Conversaram descontraidamente durante algum tempo sobre política nacional e local. Diedrickson podia já não estar no gabinete, mas não estava nem por sombras inactivo.
Depois, Jane Holloway cruzou a perna. O quimono abriu-se. Os olhos de Diedrickson desceram.
- Senador, sobre aquele negócio com Rocco Santangelo e Jimmy Stone...
- Ah, sim... E como está a correr o projecto?
- Bem, segundo me dizem. A fábrica não está atrasada e aqueles homens fizeram tudo o que tinham dito que fariam.
Ele acenou a grande cabeça.
- Eu não esperava que as coisas corressem de forma diferente. Como lhe disse, minha querida, os dois homens são quem dizem ser. São empregados de um homem muito rico e competente chamado Tio Dom. Eu tive, ah, alguns pequenos negócios com ele no passado e posso assegurar a sua probidade. Não é homem para brincadeiras.
- Mas surgiu uma coisa sobre a qual gostaria de falar consigo.
- Claro.
Ela mudou de posição na cadeira de braços. O pano do quimono caiu para trás. A sua longa e bronzeada coxa ficou exposta. O senador nunca tirou os olhos daquela aparição.
Jane contou-lhe a sugestão de Ronald Bending segundo a qual ele e o marido de Jane conspirariam para afastar Luther Empt da participação activa na empresa de processamento de cassetes vídeo de filmes pornográficos.
- Depois de a fábrica estar pronta e a produzir, claro - disse ela.
O senador suspirou pesadamente.
- Nunca subestime a duplicidade dos seus amigos, minha querida-aconselhou ele. - E qual foi a sua resposta a essa proposta?
Ela respondeu que não tinha dito que sim nem que não, pois não era preciso tomar uma decisão imediatamente. Também contou ao senador que pedira uma quota de dez por cento pelo seu papel a convencer o marido a alinhar.
- Você nunca me desaponta, minha querida - disse o senador com um sorriso afável.
Jane acrescentou que Bending tinha objectado aos seus dez por cento, a princípio, e que realçara que isso daria a maioria do capital aos Holloway. Mas ela acalmara os seus receios insinuando que talvez preferisse unir-se a ele do que ao marido.
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- Muito inteligente - disse o senador, carregando pensativamente no seu carnudo lábio inferior. - Esse Ronald Bending é judeu?
- Não.
- E, ou foi, hum, íntima dele?
- Sim.
- Ele tem dinheiro.
- Não tanto como o meu marido.
O senador abanou tristemente a cabeça.
- Minha querida, em várias ocasiões no passado os meus conselhos foram solicitados por jovens senhoras em situações de certa forma parecidas com a sua. Eu disse-lhes a todas a mesma coisa: "Nunca foda com um homem que tenha menos dinheiro do que você." Todavia, neste caso, o estrago já foi feito e temos de elaborar um plano para você poder lucrar em vez de sofrer com a sua, ah, generosidade. Não se importa de me servir um pouco mais daquele delicioso elixir? Também podia fazer o favor de fechar a porta à chave.
Ela fez o que lhe fora pedido. Estendeu-lhe o copo de Southern Comfort e depois sentou-se de lado em cima da cama dele. O quimono abriu-se. A perna dobrada ficou a descoberto. Olhou gravemente para o senador.
O rosto dela era tão firme e suave como o seu corpo sem rugas. Um rosto perspicaz e em forma de espada, a finura dos lábios pintada de vermelho-forte. As sobrancelhas tinham sido arranjadas e realçadas com lápis preto com uma forma que lhe dava uma aparência vagamente oriental.
Sombra verde tornava-lhe os olhos escuros mais luminosos. Um toque de rouge salientava as maçãs do rosto. As pessoas diziam mais vezes "admirável" do que "bonita". Era a máscara engenhosa de um rosto e não fora criada para sorrir.
-Acho - disse Diedrickson - que, antes de sequer considerarmos quais poderiam ser as nossas opções, seria sensato discutir os motivos e os objectivos fundamentais. Achei sempre que isso aligeira imenso a tarefa da tomada de decisões. Minha querida, que é, exactamente, que quer da vida? Dinheiro? Independência financeira?
Ela inclinou a cabeça para um lado, franzindo ligeiramente o sobrolho.
- Isso, claro - disse ela. - Mas não apenas isso. O que eu quero é controlo.
Umas das hirsutas sobrancelhas dele ergueu-se.
- Não me tinha apercebido - disse ele com uma forte ironia - de que tinha problemas nessa área.
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- Em casa, quer dizer? - disse ela. - É verdade que consigo mais ou menos levar o meu marido a fazer o que quero. Mas continuo a depender dele. Financeiramente e para... para posição social. Tal como dependia do meu pai e do meu primeiro marido. As coisas não mudaram assim tanto. Fico furiosa por não poder controlar completamente a minha vida. Não tem nada a ver com feminismo, senador. Isto sou eu. Conheço as minhas capacidades. Sei o que sou capaz de fazer. Quando digo "controlo", não me refiro simplesmente sobre a minha própria vida, sobre o meu próprio destino. Refiro-me a controlo sobre os acontecimentos.
- E sobre outras pessoas? - disse ele, astutamente.
- Bem... sim, isso também. Suponho que aquilo de que estou a falar é de poder. O poder de tomar decisões significativas.
- Hum - disse ele, bebericando do seu copo. - Eu conheço bem esse sentimento. Toda a gente em Washington está infectada por ele. Estar no sítio certo na altura certa com o poder para tomar decisões significativas. Não há satisfação no mundo que se compare a essa.
- Sim - disse ela excitadamente -, claro que o senhor sabe. Não consigo suportar a ideia de viver a minha vida como esposa e mãe, senador. Não quero ser como a maioria das pessoas que parecem não ter o poder... ou mesmo o desejo... de moldarem as suas vidas. E acabam nas sepulturas a dizer: "Que aconteceu?" E na verdade o que eu quero dizer quando afirmo que quero controlo.
Ele olhou pensativamente para a coxa nua, a abrir e a fechar os lábios como um peixe a comer.
- Poder! - disse ele de súbito na sua voz estrondosa. Poder sobre as pessoas e poder sobre os acontecimentos. Você gosta disso.
- Acho que sim - disse ela, suspirando. - Mas não de poder só pelo poder. Isso não me interessa. Quero poder para fazer coisas.
- Para fazer que coisas?
- Não sei - confessou ela. - A não ser que tem de ser alguma coisa grande, alguma coisa importante. Se não a descobrir, se não afizer, então, a minha vida terá sido desperdiçada. Eu sei.
- Alguma coisa grande - repetiu ele, pensativamente. Alguma coisa importante. Bem, veremos o que se pode fazer em relação a isso. Hum... vou dizer-lhe francamente, minha querida, que achei um pouco perturbador o que me contou sobre a sugestão de Bending. Uma acção dessas levaria muito provavelmente a uma disputa feia que talvez chegasse aos tribunais. Se isso acontecesse, garanto-lhe que o Sra. Santangelo e o Sr. Stone
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não ficariam nada felizes. E nem me atrevo a imaginar a fúria do Tio Dom. Ele é um homem que foge da exposição pública como de uma praga. Mas talvez deste cesto
de ervas possamos, com cuidado e atenção, extrair uma flor perfeita. O que quero dizer, minha querida, é que talvez pudéssemos apanh ar o Sr. Bending na sua própria
armadilha, e, ao fazê-lo, dar-lhe a si uma oportunidade de controlo.
Ela olhou-o com atenção.
- Acha realmente que isso poderia ser feito, senador?
- Talvez - disse ele lentamente. - Talvez fosse possível.
Ela segurou o copo de vinho com a mão esquerda. A mão direita rastejou preguiçosamente debaixo do lençol e do cobertor, tenteou suavemente e encontrou o caminho.
- Há tempo - disse ela. - A fábrica ainda está a ser construída. Por isso, não é preciso fazer nada imediatamente. Mas vai pensar no assunto?
- Claro que sim - disse ele, e os seus velhos olhos contemplavam intensamente a coxa brilhante.
Os seus dedos frios trabalhavam enquanto ela olhava para aquela esplêndida ruína de um homem. As bochechas sarapintadas, a queixada caída, as mãos sardentas pousadas flacidamente em cima da colcha.
Ela pensara sempre nele com respeito. Ele era um gigante rico, astuto e influente que vivera durante muito tempo e aprendera muitas coisas. Ele parecia-lhe fora do comum, um homem que fazia os outros homens parecerem anões, que, pela sua própria existência, revelava a incompetência, a superficialidade e os fracos poderes deles.
Agora, pela primeira vez, ocorreu-lhe que tinha estabelecido um certo controlo sobre aquele velho poderoso. Tinha-o levado a um estado de dependência. Não total, claro. Mas isso, com planeamento e astúcia, poderia ser conseguido.
Para testar a sua força, falou-lhe numa paródia cruel do discurso que ele próprio fizera.
- Senador - disse ela rispidamente -, poderei esforçar-me por aliviar a sua dor?
- Sim - disse ele. - Por favor.
QUARTA PARTE
O mês de Dezembro começou furiosamente, com três dias de tempestades de nordeste que arrancaram telhas dos telhados e esvaziaram as praias. O mar estava perigoso desde o sul de Júpiter até às Keys e apenas os surfistas mais fanáticos desafiavam as ondas de três metros.
Depois, de um dia para o outro, o vento mudou para sudoeste, o céu limpou e nuvens brancas esvoaçavam num céu de lápis-lazuli como se tivessem sido lavadas e penduradas para secar. Nadadores e apanhadores de conchas voltaram para a beira-mar. O sol era uma mancha brilhante e as pessoas esticavam-se.
E, depois, abruptamente, o tempo piorou de novo. As nuvens baixas da Florida amontoaram-se e um vento forte e morno soprou do mar das Caraíbas.
- Não gosta do tempo? - diziam as pessoas. - Espere cinco minutos e ele muda.
E mudava.
Edward Holloway estava-se nas tintas para o tempo. Os velhos estavam sempre a dizer vai chover ou não, o sol vai aparecer, por que é que não aquece? Mas Eddie não se importava nada com isso. Podiam estar a ser fustigados por uma tempestade que ele rir-se-ia. Adorava todos os minutos dela. Acordava com esperança e adormecia com pena: era tudo tão satisfatório.
Continuava a ir às aulas, copiando nos testes como todos os colegas, e os pais estavam tão preocupados com os seus próprios assuntos que tinham parado de andar em cima dele - o que era um alívio. E também tinha crescido mais dois centímetros, e os pêlos em volta dos testículos estavam a ficar mais espessos. Estava tudo a entrar nos eixos.
Mais importante, comia aquela Teresa Empt todas as noites que o tempo permitia que se encontrassem no mirante. Era uma grande experiência para o jovem Eddie Holloway. Tão grande que a única pessoa a quem ele contou foi a Wayne Bending, relatando-lhe, com pormenores lascivos, o que lhe fazia a ela e o que ela lhe fazia a ele.
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- Carne sólida - disse Eddie Holloway com a voz embargada de espanto pela sua sorte. - Podia-se perder uma moeda naquele umbigo. E a rata dela? Se tivesse dentes
podia mastigar-me e cuspir-me por cima da vedação.
- Parece bom - disse Wayne Bending, sucintamente.
- E, ainda por cima - disse Eddie, entusiasticamente -, é boa para os dineros. Temos andado a fumar alguma erva, sabes, que eu
afano do fornecimento da minha velha.
Por isso, digo-lhe que pago vinte por dois charros, e ela dá o dinheiro sem pestanejar.
- Parece bom - disse Wayne, novamente.
- Por isso, esta noite - continuou Eddie -, se o tempo se aguentar, vou encontrar-me com ela no mirante, e vou fazer-me ao barco. Mil dólares. Ouve, ela a de pagar.
E eu acho que ela vai pagar. Quero dizer, ela está presa ao meu instrumento; juro que está. Então, esta noite vamos ao que interessa e podes acreditar que ela vai pagar.
- Parece bom - disse Wayne pela terceira vez.
Nessa noite não choveu, embora o chão sob o mirante continuasse húmido. Edward Holloway estendeu um cobertor limpo, instalou-se e esperou pacientemente. Tinha planeado como conduziria aquele encontro e tinha a suprema autoconfiança dos jovens desmiolados.
Ela apareceu a flutuar pelo relvado como um fantasma ansioso, a saia de pregas a agitar-se atrás de si. Eddie tinha decidido agir friamente. Mas quando ela se deitou ao seu lado, lhe prendeu o rosto nas palmas das mãos quentes e lhe enfiou a língua na boca, ele teve de gemer e de a agarrar. Ela riu-se e deixou-o. Mexeu-se. A forma como ela se mexia deixava-o louco. Ela sabia tanto, rindo-se mansamente.
Naquela noite estava fresco e não despiram as roupas. De certa forma, aquilo tornou tudo mais excitante. Ela não trazia cuecas, e ele apenas desapertou o fecho das calças. Como se estivessem no banco de trás de um carro ou de pé numa cabina telefónica. Pecaminoso, culpado, perigoso. Era o máximo!
Ele não sabia quando tinha começado, ou como é que ela o tinha feito, mas agora ansiava por estar com ela e adorava todos os minutos que passavam juntos. Ela segurou-lhe a cabeça pelas orelhas, como se ele fosse uma espécie de jarro e deu-lhe ordens.
Depois de uma boa meia hora daquilo, ela começou a mexer-se, a gemer, a usar uma linguagem que o surpreendia verdadeiramente porque não lhe tinha passado pela cabeça
que mulheres, especialmente senhoras de idade, soubessem aquelas palavras.
Depois começou a tremer e tremia tão violentamente que, às
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vezes, ele ficava assustado, e perguntava a si mesmo se ela estaria a ter um ataque cardíaco ou uma coisa parecida. Os tremores aumentaram de intensidade até que, de repente, pararam. Manteve-lhe a cabeça presa entre as coxas fortes. Ele mal podia respirar, quanto mais ouvir.
Quando ela o soltou, ele rolou para o lado, suando como se tivesse acabado de correr um quilómetro e meio em quatro minutos. Provou-a na língua e nos lábios. Um pouco como sumo de frutas. Olhou pelo telhado rendilhado do mirante para as nuvens que passavam a grande velocidade e tentou recordar-se do discurso que tinha ensaiado. Levou algum tempo.
- Trouxe um charro - disse ele em voz rouca. - Só um. Podemos partilhá-lo, está bem?
Fumaram o cigarro lentamente, passando-o de um para o outro. Esperaram até que ele começou a sentir que estava a dissolver-se e pensou que ela devia estar a sentir a mesma coisa.
- Quem me dera que pudéssemos encontrar-nos mais vezes
- disse ele em voz baixa. - Quero dizer, não termos de nos limitar a encontrarmo-nos aqui às escondidas.
- Eu sei, Eddie. Eu também gostava que fosse possível.
- Não só para sexo - disse ele gravemente. - Não é a isso que estou a referir-me. Só para estar contigo. Sozinhos. Nós os dois.
- És um amor, Eddie.
- Tu não enjoas no mar, pois não? Quero dizer, gostas de barcos, não gostas?
Ela virou-se para olhar para ele.
- Não, não enjoo no mar e gosto de barcos. Por que é que perguntas isso?
- Tenho andado a pensar - disse ele em tom sério. - Se eu tivesse um barco, seria uma boa forma de estarmos juntos. Sozinhos.
- Que espécie de barco, Eddie? - perguntou ela, tirando-lhe a beata dos dedos.
- Oh, nada grande. Estava a pensar num barco à vela. Suficientemente pequeno para o poder puxar para a praia e prender a uma palmeira. Talvez com espaço para quatro pessoas, mas para duas seria melhor. Para sair num dia bom. Velejar por aí. Alguma vez fizeste isso?
- Não, nunca fiz. Não num barco à vela.
- É o máximo. No meio do oceano. Sozinhos. Não há nada como isso.
- É seguro, Eddie?
- Bem...-disse ele, judiciosamente-, umcatamaran seria
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melhor. É um barco com dois cascos. Raramente se viram. Têm um convés de lona entre os cascos. Um barco divertido.
- Hum - disse ela, casualmente. - Parece giro. Quanto é que custa um barco desses, querido?
- Oh - disse ele -, depende do comprimento. E se é novo, claro. Se assim for, é caríssimo. Mas um amigo meu tem
um floobie Caí de três metros. Está em muito bom estado.
Precisa de alguns arranjos, talvez de uma pintura, mas as velas estão boas. O único motivo por que ele quer vendê-lo é porque pretende comprar um barco maior.
- Quanto é que ele quer pelo barco, Eddie?
- Bem, ele está a pedir mil, mas acho que é capaz de descer cem se lhe pagar a pronto. Ah, não adianta nada falar nisto. Não tenho a mínima hipótese de arranjar
o dinheiro.
Ela ficou calada. Deu uma última passa na beata e pousou o pequeno toco para acabar de arder.
- Estou só a sonhar - continuou Eddie Holloway. - Onde é que vou arranjar esse dinheiro todo? Mas não consigo deixar de pensar como seria bom ter aquele barco, flutuar por aí no meio do oceano. Podia levar-te a dar um passeio, sabes, e estaríamos completamente sozinhos.
- Sabes manobrar um barco, Eddie?
- Claro. Tive aulas e tudo. Sei velejar com um barco. Mas de que serve falar nisso...
Ela pôs-se de lado. Sorriu-lhe e deu-lhe uma palmadinha na bochecha.
- Não desistas, Eddie - disse ela. - Talvez se possa fazer alguma coisa.
- Sim? - exclamou ele, ansiosamente. - Como?
- Oh, não sei - disse ela, vagamente. - Deixa-me pensar no assunto.
- Baril - disse ele -, ia ser o máximo. Tu e eu sozinhos, longe de todos.
Ela começou a acariciá-lo através do tecido das calças, observando o rosto dele.
- Ena pá - disse ela -, que temos nós aqui? É um presente para mim, Eddie?
- Sim - disse ele em voz rouca. - É para ti.
Era nesta fase que ela queria que ele ficasse quieto enquanto ela o despia, os dedos compridos a trabalhar determinadamente. A pedrada desaparecera, mas ainda sentia uma grande languidez e fechou os olhos.
Sentiu-a a fazer-lhe coisas. Tudo estava morno e húmido. Ouviu-a mexer-se. Abriu os olhos, não muito, e viu-a sentada
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em cima dele, inclinada para a frente, com as mãos no cobertor de ambos os lados da sua cabeça.
Dobrou-se por cima dele, os longos cabelos pretos caindo-lhe por cima do rosto. Parecia selvagem e determinada, e ele ficou momentaneamente assustado.
- Eu faço - disse ela firmemente. - Deixa-me fazer tudo.
E lá foi ela, para cima e para baixo como umjockey, atirando de vez em quando a cabeça para trás para afastar os cabelos do rosto. Tinha os lábios afastados dos dentes, por isso parecia que se estava a rir enquanto o montava.
Entretanto, estava a gritar, e às vezes gritava tão alto que ele receava que alguém pudesse ouvi-la em casa. Mas sabia que era impossível tentar para-la, e depois de alguns minutos nem sequer queria tentar.
As ululações de Teresa Empt estavam a ser ouvidas. Mas não em sua casa. O ouvinte era Wayne Bending, e não só conseguia ouvir Teresa como via os seus movimentos frenéticos na obscuridade. E sentia o cheiro do fumo adocicado da erva que tinham fumado.
Desde que Eddie e Teresa tinham começado a encontrar-se, Wayne fora o observador silencioso, sentado ao longe no meio de um grupo de arbustos e árvores com o cheiro adocicado de jasmim. Não conseguia ouvir o que diziam, mas os seus risos indecentes e gemidos de êxtase ouviam-se claramente.
Espiá-los era tão doloroso para Wayne que nem sequer conseguiria explicar por que é que era inexoravelmente arrastado para aqueles encontros. Acocorado na terra húmida e pungente, por vezes apetecia-lhe rir nervosamente, e outras vezes apetecia-lhe chorar.
Sentia-se ferido com o reconhecimento de que as cópulas que via tinham sido ideia sua; tinha empurrado Eddie Holloway para aquela ligação. Mas agora que estava consumada, ele queria que acabasse, que terminasse para sempre.
Pois parecia-lhe que de certa forma eles estavam a troçar de si com aquela intimidade. A sua própria amizade tinha sido relegada para segundo plano. O que ele fizera por Eddie Holloway não contava obviamente nada comparado com aqueles seios, aquela boca sedenta, aquelas coxas fortes.
Eles não estavam a castigá-lo deliberadamente; sabia isso. Eles não diziam: "Vamos lixar o velho Wayne Bending." Não havia intenção. Mas o resultado era o mesmo.
Acreditara que havia algo especial entre ele e Eddie Holloway, uma amizade muito especial. Ele tinha feito amor com
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Eddie, ou deixara-o fazer amor com ele, e havia nisso uma doce rendição que era prova de como ele se sentia.
E agora o seu amigo especial estava a fazer todas aquelas coisas loucas e privadas com aquela velha, e gabava-se depois a Wayne. Sem nunca parar para pensar como as suas palavras estavam a magoar Wayne.
Era a primeira vez que Wayne Bending tinha tentado, realmente, verdadeiramente, tornar-se íntimo de alguém. Revelar-se, expressar os seus sentimentos, dizer a verdade e agir honestamente, sem fingimentos. Tinha tentado ser ele próprio, dar-se. E aquele fora o resultado.
Tremendo no seu esconderijo, observando os amantes a beijarem-se e a tocarem-se, a apalparem-se e a acariciarem-se, Wayne Bending sentiu o seu mundo desmoronar-se. A dor era tão intensa que não adiantava nada chorar.
Queria estar morto e enterrado. Longe de um mundo que o feria.
O Dr. Theodore Levin apercebeu-se de que o caso de Lucy B. estava a ocupar-lhe um tempo desmedido. Passava horas a escutar as fitas acumuladas, lendo literatura relevante, ou apenas sentado na varanda do apartamento, olhando apaticamente para o céu nocturno, e tentando resolver o quebra-cabeças do comportamento daquela menina.
Nenhuma das suas primeiras explicações simplistas complexo de castração, inveja de pénis - lhe parecia agora suficiente. Voltou novamente à possibilidade de trauma físico: um único incidente ou uma série de incidentes que tinham despoletado aquela conduta aberrante.
- Lucy - disse ele lisonjeiramente -, lembras-te de alguma coisa que te tenha acontecido quando eras mais nova e que te tenha causado muita impressão, uma coisa que não tenhas sido capaz de esquecer?
- Quer dizer - disse ela -, como ir à Disney World? Uma vez mais, teve a sensação de que ela estava a brincar
com ele.
- Não - disse ele -, não exactamente. Alguma coisa na tua vida privada. Uma coisa tão importante que nunca contaste a ninguém, que mantiveste em segredo durante anos e anos.
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Ela pareceu estar a considerar seriamente a pergunta dele, de cabeça inclinada, olhando-o seriamente com olhos cinzento-azulados.
- Nãooo, Dr. Ted - disse ela. - Não consigo lembrar-me de nada assim.
Ela usava um colete de ganga por cima de uma T-shirt branca. Os seus cabelos cor de trigo tinham sido penteados em duas longas tranças, atadas com pequenas fitas azuis. As suas feições agradáveis pareciam particularmente luminosas, brilhando de inocência.
- Lucy - disse ele -, disseste-me que a tua melhor amiga era a...?
- Gloria - disse ela. - Gloria Holloway. Ela vive mesmo ao pé de nós.
- Ela é mais velha do que tu?
- Só um ano.
- E quanto a rapazes, Lucy? Há alguém especial de quem gostes?
Ela pensou durante alguns instantes.
- Há alguns rapazes na praia que são fixes. Freddy Dickson. Ele é fixe. Não muito bruto, sabe. E Ben Hamilton. Ele está sempre a gozar. Às vezes brincamos juntos. Como ir nadar, por exemplo. Ou apenas passear.
- Mas nenhum deles é um rapaz especial?
- Nem por isso. Andamos sempre juntos, como num bando. Eu nunca tive uma verdadeiro encontro, se é isso que quer saber. A Gloria já, mas eu não.
- Há algum professor de quem gostes especialmente?
- A menina Carpenter. É a professora da minha sala. Ela tem uns olhos lindos e nunca grita connosco. Ela é mesmo fantástica. Toda a gente gosta da menina Carpenter. Uma vez ela fez uns doces e ofereceu-nos a nós, miúdos. Estavam muito bons. Muito melhores do que aqueles que se compram.
Ela olhou para ela, pestanejando.
- Lucy, quem é que amas mais no mundo?
- O meu paizinho - disse ela imediatamente. - E a mãe. E depois os meus irmãos.
- Amas mais o teu paizinho do que a tua mãe?
- Por que é que diz isso, Dr. Ted?
- Mencionaste-o primeiro.
- Gosto dos dois da mesma forma - disse ela.
- E queres que eles sejam felizes?
- Bem, meu Deus, claro que quero.
- Então, por que é que não fazes o que eles te pedem? Pára
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de aborrecer os homens que vão à tua casa, sentando-te no colo deles e tocando-lhes.
- Porque isso não os oborrece - disse ela com alguma aspereza.
- Como é que sabes?
- Sei.
- Não é importante se os aborreces ou não, Lucy. O que é importante é que os teus pais não querem que o faças, e que isso faz que eles fiquem infelizes quando tu o fazes.
- Não me importo - disse ela, com o rosto subitamente tenso.
- Não vais parar?
Ela não respondeu. Ficaram sentados em silêncio durante um minuto completo, a olhar um para o outro. Finalmente, os olhos dela desceram, lentamente. Pestanas longas pousaram sobre as límpidas maçãs do rosto.
- Eu quero - disse ela numa voz tão trémula que ele mal a ouviu.
- Tu queres - disse ele suavemente -, mas não podes?
- Sim - disse ela, prolongando a palavra num sussurro.
- Por que é que achas que isso acontece, Lucy? Por que é que não podes parar quando queres parar?
- Não sei.
- Adivinha.
- Alguma coisa me faz fazê-lo.
Levin sentiu que agora estava a aproximar-se, que poderia estar perto de uma revelação.
- Que é que achas que te leva a fazê-lo?
- Não sei.
- É uma voz que te diz para o fazeres?
- Não.
- É uma sensação que tens, algo que tens mesmo de fazer?
- Sim, uma coisa assim.
- Porque te faz sentires-te bem?
- Mais ou menos. Mas eles também gostam. Eu sei que gostam.
-Mas não é por isso que o fazes, pois não, Lucy? A verdadeira razão é sentires-te bem.
- Acho que sim - disse ela, suspirando. - Mas está tudo muito confuso.
Ela tinha razão, reflectiu o Dr. Levin. E não apenas os seus motivos, impulsos, sonhos, mas todo o comportamento. Não pela primeira vez, desesperou por não encontrar
explicações adequadas para o enigma humano.
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Parte do problema era vocabulário. A linguagem não era pura e simplesmente subtil e refinada o bastante para identificar as delicadas matizes da psique. As palavras não passavam de rótulos grosseiros que não clarificavam nada.
A outra dificuldade residia na fundação da psicoterapia. Poder-se-ia, pela razão, dar sentido à irracionalidade? Poderia um sistema racional de observação, análise e teorização compreender e explicar o irracional? Ou apenas os loucos conseguiriam interpretar os loucos?
Se acreditasse nisso, pensou o Dr. Levin, deveria estar a exercer outra profissão.
Recostou-se na sua cadeira giratória, com as mãos confortavelmente entrelaçadas em cima da barriga. Olhou para Lucy através das lentes grossas dos óculos, tentando fazer a expressão mais compreensiva de que era capaz.
- Lucy - disse ele -, quando sentes que tens de te sentar no colo de um homem, ou beijá-lo, ou tocar-lhe entre as pernas... bem, gostava que pudesses explicar-me como é essa sensação. Supõe que eu era um desconhecido para ti, mas que o teu pai me levava a tua casa para uma visita. Supõe que eu estava sentado na tua sala de estar e depois tu entravas e vias-me ali sentado, e o teu paizinho apresentava-nos. Que é que...?
- É como uma história? - interrompeu ela.
- Como uma história - disse ele, assentindo. - Agora, gostava que me dissesses o que sentirias e o que farias.
Ela respirou fundo.
- Bem, se gostasse de si, e gostaria porque o doutor é muito simpático e a sua barba é tão engraçada e farfalhuda, nesse caso eu iria amá-lo e quereria que me amasse. E sentir-me-ia, não sei, sentir-me-ia bem. Quente, sabe. Por isso podia começar por lhe pegar na mão. Sim, poderia fazer isso. E se o senhor não retirasse a mão, eu apertava-a e olhava para ver se estava a gostar. Depois, digamos, o meu pai tem de sair da sala porque o telefone tocou e ele tem de ir atender. Depois nós ficávamos sozinhos, e é melhor porque o meu paizinho pensaria que eu estou a aborrecê-lo, mas eu sei que não porque o senhor chama-me "querida" e "fofa". E toca-me nos cabelos. Coisas assim.
Levin observou atentamente, fascinado, enquanto a criança ficava excitada com a sua própria fantasia. Esticou-se na cadeira e debruçou-se para ele. As mãos fortemente apertadas. Rosto ruborizado. Olhos brilhantes. As palavras a fluir...
- É isso que o senhor diria, "querida" e "fofa"... assim. E eu diria: "Não me importo. Não me importo." E o senhor diria: "Tens a certeza de que estamos sozinhos?" E depois eu sentia-o, por
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exemplo, sentando-me no seu colo ou talvez de pé entre os seus joelhos. E estaria a senti-lo, e o seu rosto ficaria muito vermelho e contente. Depois, o senhor tocava-me entre as pernas e debaixo do meu vestido e tudo isso, e eu faria aqueles ruídos engraçados e começaria a desabotoar o vestido e diria: "Depressa. Depressa." E o senhor começaria a despir as calças e depois... e depois...
Levin viu-a a transpirar, lábios húmidos de saliva, testa brilhante de suor. O seu corpo estava rígido. O olhar parecia ter-se interiorizado. Ela estava sentada, imóvel, gelada.
- E depois? - incitou-a ele.
De repente, ela afundou-se na cadeira. Abriu as mãos. Respirou fundo, sentou-se mais para trás na cadeira. Balançou casualmente as pernas. Puxou ligeiramente uma das tranças.
- E depois? -repetiu Levin.
- Oh - disse ela com um sorriso estranho -, depois, suponho que o papá entraria e nós fingiríamos que tínhamos estado apenas a falar de coisas.
- Percebo - disse ele, mas não percebia. Não completamente. - E é assim que te sentes sempre e é o que pensas quando tocas nos homens e te sentas no colo deles?
- Talvez - disse ela, travessa -, e talvez não. O senhor disse que era apenas uma história. A Gloria e eu fazemos isso o tempo todo... inventar histórias. Gostou da minha história, Dr. Ted?
- Foi uma boa história - disse ele.
- A menina Carpenter diz que eu tenho uma imaginação muito boa. Às vezes, temos de escrever histórias para a escola, e a menina Carpenter diz que as minhas histórias são as suas preferidas.
- Acredito. Na tua história tu pões-nos aos dois a falar, Lucy. Eu chamei-te "querida" e "fofa" e disse: "Tens a certeza de que estamos sozinhos?" E tu disseste: "Não me importo. Não me importo." E depois, mais tarde, disseste: "Depressa. Depressa." Inventaste isso, Lucy?
- Acho que sim - disse Lucy, franzindo o sobrolho. - Mas posso ter ouvido na televisão. Sabe como as coisas ficam na nossa mente e depois esquecemo-nos onde as ouvimos.
- Sim - disse Levin -, isso é verdade. Lucy, na tua história o teu paizinho volta para a sala de estar, e nós fingimos que não aconteceu nada. Achas que ele acreditou que não tinha acontecido nada?
Ela olhou para ele com os olhos muito abertos.
- Meu Deus, Dr. Ted, como é que eu posso saber isso?
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- Mas ele comportou-se como se acreditasse que não tinha acontecido nada?
Ela ponderou durante alguns instantes.
- Sim, foi assim que ele se comportou. Como se tivesse acreditado em nós.
Abriu a pequena bolsa vermelha de plástico que trazia, tirou um espelhinho redondo e examinou o rosto, virando-o para um lado e para o outro. Os seus movimentos eram tão parecidos com os da mãe que Levin não conseguiu deixar de sorrir.
Lucy ajeitou o cabelo e ajustou as tranças para estas caírem para a frente. Depois, voltou a arrumar o espelho e fechou bruscamente a bolsa. Cruzou a perna e olhou alegremente para ele.
- Gostaria de ouvir outra história, Dr. Ted?
- Oh, sim. Muito.
- Bem... - disse ela em tom confidencial -, havia este homem que era muito jovem e atraente. Como uma estrela de cinema. E é médico. Não psiquiatra, como o senhor, mas mais como um padre. E está sempre a ajudar as pessoas. Se, por exemplo, alguém não tem comida suficiente, bem, ele dá-lhe comida. E vai visitar pessoas doentes e leva-lhes flores e doces e livros para ler. Compreende?
- É um homem bom.
- Pois é. Ajuda toda a gente. Bem, dá tudo o que tem, por isso é muito pobre. Mas ele não se importa porque só pensa em ajudar as pessoas. E vive debaixo do chão,
como numa caverna, porque é pobre, a ajudar todas aquelas pessoas e tudo isso, e não tem dinheiro para comprar uma casa. Bem, um dia está a caminhar pela rua, e vê um trágico acidente de automóvel. Um carro atropela uma meninna linda e ela fica ferida. Está cheia de sangue e tudo. E este médico leva-a para a caverna dele para tratar dela.
- Não a leva para um hospital?
- Não, porque o sítio onde ele mora fica mais perto, e se esperasse por uma ambulância e tudo, ela poderia morrer. Por isso, leva-a ao colo para a caverna dele porque não tem carro, já que é muito pobre. E fecha uma grande porta de ferro, e ficam os dois sozinhos. E ele lava-a e traz roupas limpas, coisas mesmo bonitas e dá-lhe comprimidos. E ela está muito doente, mas ele é muito bom e carinhoso com ela, por isso ela fica boa.
- Esse homem é casado? - perguntou Levin.
- Não, é pobre de mais para ter uma mulher. Por isso, sente-se muito sozinho. Meu Deus, não se pode andar a ajudar as pessoas o tempo todo. Bem, depois de esta bonita menina estar novamente boa, ela varre a caverna e faz-lhe refeições deliciosas. E ele diz-lhe que ela já está boa e que pode sair da caverna
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e ir para casa. Mas na verdade não quer que ela se vá embora, sabe, porque se apaixonou por ela, ela é tão bonita e tudo isso. Mas ela diz que também se apaixonou por ele e que não quer abandonar a caverna; quer ficar com ele para sempre. E ele diz: "Lamento, minha querida, mas eu sou um homem pobre e não tenho dinheiro para ter uma mulher." E depois, adivinhe o que aconteceu?
Lucy riu-se, feliz.
-Afinal, aquela linda menina é uma princesa de um país estrangeiro, e o paizinho dela tem tanto dinheiro que não sabe o que fazer com ele. Por isso, casam-se e amam-se sempre e arranjam muito bem a caverna, e ela ajuda-o a fazer coisas boas pelas pessoas.
Acabou e olhou expectantemente para ele.
- É uma história encantadora, Lucy - disse ele.
- Oh, bem... - disse ela, modestamente -... o senhor sabe. Acabei de a inventar. Gostaria de ouvir mais uma, Dr. Ted?
- Claro que sim - disse ele, olhando rapidamente para o relógio da secretária -, mas o nosso tempo está mesmo a acabar. Contas-me mais histórias na próxima vez que nos encontrarmos?
- Oh, claro - disse ela. - Eu gosto de contar histórias. Depois de ela se ir embora, ele sentou-se inclinado para a
secretária e tirou lentamente o celofane de um charuto. Estava satisfeito com a sessão que acabara há instantes. Sentia que começava a haver progressos.
Na segunda história, supunha Levin, ele, Sr. Theodore Levin, era o médico-padre que ajudava pessoas. E Lucy B. era a linda menina a quem ele devolvia a saúde e com quem fazia amor numa caverna, por detrás de uma porta de ferro. A fantasia era um apelo levemente velado, quase uma sedução.
Mas era óbvio que ela também lhe tinha contado a segunda história para afastar a sua atenção da primeira. E tinha tentado convencê-lo de que tinha uma imaginação
forte, de que tinha muito jeito para contar histórias, de que tinha propensão para criar personagens e situações a partir do nada.
Mas ele não achava que a sua primeira "história" encaixasse naquela categoria. Os incidentes pormenorizados eram demasiado realísticos, o diálogo demasiado adulto e credível para ser totalmente um produto da sua imaginação. Vinham, calculou ele, das suas recordações.
Depois, tendo revelado uma coisa que considerava secreta, não mencionável, e talvez pecaminosa, tinha accionado um mecanismo de defesa, e tinha-se apressado a mostrar que a sua "história" não passava de um romance superficial.
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O Dr. Levin sabia que era um erro sério presumir que os emocional ou mentalmente perturbados eram pouco espertos ou apáticos. Normalmente, eram precisamente o contrário.
Parecia haver alguma coisa na perturbação comportamental que fomentava uma esperteza tortuosa. Mesmo numa pessoa tão jovem como Lucy B. havia ali astúcia, aguçada por uma disfunção psicológica. Para esconder a culpa, ela tinha construído uma parede de truques que o terapeuta tinha de deitar abaixo.
A mulher insistira em acompanhá-lo - outra derrota para William Jasper Holloway. Tinha a certeza de que nem Grace Bending nem Teresa Empt estavam a par das actividades dos maridos. E, mesmo que estivessem, calculou que não se interessariam por elas.
Mas Jane estava a par de todos os planos da EBH Entreprises, Inc. Fazia perguntas, discutia os pormenores financeiros, e até ia ao distrito de Broward onde a fábrica
estava praticamente construída num isolado terreno de mata.
Assim, quando Luther Empt convocou uma reunião nocturna com os sócios e os representantes da mafia, Jane Holloway anunciou que também iria. Como sempre, conseguiu vencer o marido pela persistência.
O objectivo da reunião era visionar uma cassete de vídeo de Borrachinhos Adolescentes, o filme pornográfico de vinte minutos fornecido por Rocco Santangelo e Jimmy Stone. Tinha sido processado na fábrica de Empt, para desenvolver técnicas que seriam utilizadas quando começassem a produzir em pleno na fábrica nova.
O visionamento foi efectuado no escritório privado de Luther Empt, uma grande sala onde tinham sido dispostas em semicírculo cadeiras de abrir e fechar em frente de um televisor RCA de sessenta centímetros, equipado com um aparelho de vídeo Sony Betamax.
Empt também tinha providenciado um bar bem fornecido e uma caixa de Upmanns. Jane Holloway foi apresentada a Santangelo e a Stone, e todos os visitantes foram apresentados a Ernie Goldman, o assistente de Empt e um óptimo engenheiro electrónico.
Goldman era um homem magro, com ombros curvados, uma
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compleição amarelo-alaranjada e incapaz de parar de piscar os olhos. Depois de todos se terem instalado em volta do televisor, ele fez um pequeno discurso numa voz fina e ansiosa.
- O filme que vão ver - começou ele, e depob parou. Quero dizer, o filme original, Borrachinhos Adolescentes, o que nos foi dado, não tinha uma qualidade muito boa. A maior parte foi filmado em exteriores e tinha luz a mais. Algumas das cenas de interior tinham uma coloração esverdeada. Para além disso, o som era muito mau. Muitas interferências. Conseguia-se ouvir, por exemplo, sons de tráfego, a sirene de um carro da Polícia e outras coisas.
"Por isso, quando o convertemos para cassete, usámos filtros para corrigir a cor o melhor possível e realçadores em algumas partes para fazer sobressair os encarnados. Observem os tons de pele. É a melhor forma de avaliar a reprodução da cor. Se os tons de pele forem realistas, então, provavelmente, o resto estará bem. Também trabalhámos no som para tirar os ruídos de fundo. De qualquer forma, esta é a cassete de Borrachinhos Adolescentes.
Luther Empt apagou a luz do tecto, mas deixou acesos um candeeiro de secretária e um candeeiro de pé alto.
Concentraram-se todos no ecrã do televisor. Ernie Goldman ligou o aparelho.
Viram a cassete de vinte minutos em silêncio. A certa altura, Ernie Goldman começou a dizer:
- Reparem no...
Mas Luther Empt disse:
- Cala-te, Ernie.
E, por sua vez, Jane Holloway disse:
- Como é que eles conseguem que o cão faça aquilo? E Ronald Bending disse:
- Talvez tivessem enchido a rapariga de Aipo. Ninguém se riu.
Quando a cassete chegou ao fim, Luther acendeu a luz do tecto. Dirigiram-se todos para o bar e voltaram a encher os copos. Depois, Ronald Bending levou Ernie Goldman para junto do televisor e passaram novamente a cassete, falando sobre cores manchadas, realce de cor e filtros de som.
Os outros ficaram de pé em volta do bar, de costas voltadas para o televisor.
- Bem, amigos - perguntou Luther Empt na sua voz estridente -, que acham?
Rocco Santangelo olhou brevemente para Jimmy Stone.
- Sr. Empt-disse ele -, eu e o meu associado queremos dizer-lhe
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que o senhor tem ali uma obra de arte. Quero dizer, eu vi o filme original, sabe, e, como o seu homem disse, a cor e o som não eram muito bons. Mas o senhor
transformou-o numa obra de arte. Certo, Jimmy?
- Certo - disse Stone.
- Se puder garantir - continuou Santangelo - que quando começarem a produzir a cem por cento esta é a qualidade de mercadoria que vamos ter, então, posso dizer-lhe, honesta e sinceramente, que nós ficaremos muito, muito felizes, e que vocês terão mais trabalho do que aquele que podem fazer. Estou certo, Jimmy?
Stone assentiu.
De repente, Santangelo virou-se para Jane Holloway.
- E que é que a senhora achou?
- Achei que a qualidade é boa - disse ela. - Mas o filme em si não é grande coisa. Não tem uma verdadeira história, um enredo.
- Bem, pois, claro - disse Santangelo. - Mas tem de ter em conta que a maioria dos tarados por pornografia não estão... não estão interessados numa história, como num filme normal. Tudo o que querem é pele... percebe?
- Discordo - disse Jane Holloway, rispidamente. - Seguramente, os senhores não são os únicos neste negócio. Eu diria que seria sensato da vossa parte tentarem tornar o vosso produto diferente e superior ao dos...
- Não - disse Santangelo. - Isto é estritamente um mercado para tarados e...
- Rocco - interrompeu Jimmy Stone na sua voz baixa e átona -, deixa a senhora falar.
- Obrigada - disse Jane, friamente. - Parece-me que se apenas produzirem os amontoados habituais de pele, então, o vosso produto não é diferente dos vossos concorrentes. O que deviam procurar era um produto de qualidade que ofereça algo melhor, algo único. O Cadillac dos filmes pornográficos. Estabeleçam uma imagem de marca ou um nome atractivo que os vossos clientes não esqueçam. Como o leão da MGM. E certifiquem-se de que os vossos filmes têm uma história ou um enredo que possa interessar os espectadores e com o qual eles se possam identificar, para além de todo o sexo.
- Sim? - disse Santangelo. - E como é que vamos fazer isso?
- Não sou perita na matéria - disse Jane -, mas não me parece que seja muito difícil. Certifiquem-se apenas que o vosso argumentista, se é que têm um, ou o vosso realizador produz
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uma história concreta. Escutem, vejam o exemplo de Música no Coração. Um filme maravilhoso que conta uma história espantosa. Agora, e se tudo aquilo fosse filmado para o mercado porno, com muito nu e todas as coisas que vimos no Borrachinhos Adolescentes? Os tarados gostariam dele de duas formas: as coisas maradas de que eles querem e uma história fantástica que gostariam de ver vezes sem conta. Para além disso, uma boa intriga atrairá novos clientes, que poderão não estar interessados apenas em porno.
Rocco Santangelo olhou para Jimmy Stone.
- Interessante - disse Stone.
Falaram durante mais alguns minutos, principalmente sobre o futuro das cassetes de vídeo e dos discos pornográficos. Depois, a reunião terminou.
Os representantes da mafia saíram primeiro. Depois, os Holloway e Ronald Bending. Empt e Ernie Goldman arrumaram o escritório e guardaram a cassete de Borrachinhos Adolescentes no cofre. Goldman deu as boas-noites e foi-se embora. Empt trancou tudo e dirigiu-se para o parque de estacionamento.
Sentou-se no seu Seville branco, fumando um Upmann novo. Estava satisfeito com a forma como decorrera a reunião. A única coisa que lamentava era ter tido necessidade
de trazer Bending e Holloway para um negócio tão bom. Se tivesse conseguido entrar nele sozinho...
Mas havia mais de uma maneira de esfolar um gato. Depois de começarem a produzir e de o dinheiro começar a entrar, pensaria numa forma de afastar os sócios. com
uns inocentes daqueles não devia ser uma tarefa muito difícil. Ele conhecia o negócio; eles não. Eles precisavam mais dele do que ele precisava deles; isso era certo.
Conduziu lentamente para sul na AIA para Atlantic Boulevard, com a janela aberta. O fresco ar nocturno soube-lhe bem, tal como o sabor e cheiro do charuto. Acima de tudo, soube-lhe bem pensar na mulher - na rapariga - na criança - que o esperava. Tudo o que fazia - o trabalho, a conspiração -, tinha sentido quando pensava nela.
Não saberia dizer exactamente por que é que isso acontecia. As imagens que vira no televisor há uma hora - as raparigas eram mais jovens, mais atraentes, com um corpo melhor do que May. Mas não o excitavam. Eram objectos, sem corpos. Aquele filme pornográfico podia muito bem ter sido feito com personagens de desenhos animados.
Mas May era realidade. Tinha calor e amor por ele. Nem sequer conseguia perceber os seus sentimentos por ela. Havia o
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sexo, claro; ele estava consciente disso. Mas, por amor de Deus, ela era coxa.
Por isso tinha de ser outra coisa - certo? Ainda estava a pensar niso, intrigado, quando parou defronte da casa dela e deu uma pancadinha na buzina.
Ela tinha estado à sua espera. Ele sorriu enquanto ela se aproximava a coxear pelo passeio, movimentando-se como um caranguejo ferido. Atirou-se para o banco ao lado dele, apertou-lhe o rosto e beijou-o nos lábios.
- Olá, paizinho! - disse ela sem fôlego.
Ele descobrira uma espelunca delapidada que servia costeletas na zona negra, e estava confiante de que não encontraria nenhum dos seus conhecidos. Os donos não gostaram muito de o ter por cliente, mas toleravam-no por causa de May; ela encantara-os.
Serviam costeletas de leitão com três molhos à escolha: picante, mais picante ou extrapicante. Também faziam as melhores batatas fritas caseiras que ele jamais tinha comido, com muitas cebolas. Legumes para quem quisesse, mas ele não queria. Uma cerveja gelada Rolling Rock servida nas latas; não se davam ao trabalho de ter copos.
May e Luther gostavam do molho mais picante e cada um bebeu duas latas de cerveja com a comida. Nenhum deles gostava de falar enquanto estava a comer. Abriram guardanapos de papel no peito e morderam ferozmente as suculentas costeletas. Deixaram um monte de ossos brancos e brilhantes.
- Queres sobremesa? - perguntou-lhe Luther. - Eles têm pudim.
Ela abanou a cabeça e depois limpou suavemente os lábios com o guardanapo de papel.
- Estou cheia. Já chega.
- Queres ir dar um passeio?
- O que quiseres, paizinho.
Ele perguntou-lhe o que é que ela queria.
- Vamos para casa.
- Está bem - disse ele.
Deixou uma boa gorjeta para a empregada e à saída deu um Upmann ao dono do restaurante.
- Agradeço-lhe muito - disse o negro. - Volte mais vezes. - Depois, sardonicamente: - Diga aos seus amigos.
- Está bem - disse Luther, rindo-se.
Agora já se habituara à casa quente em que ela vivia, com todas aquelas plantas malucas. Ficou satisfeito ao ver que ela gastara algum do dinheiro que ele lhe dava para embelezar a
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casa: um tapete novo, uma capa alegre no sofá, alguns copos altos de boa qualidade. E lembrara-se de comprar Cutty Sark.
Contemplou-a a coxear pela casa, atarefada na minúscula kitchenette. Ela serviu-lhe um Cutty exactamente como ele gostava: duas doses de uísque em cima de um cubo
de gelo, apenas com um borrifo de água. Quando lhe levou a bebida, ele ergueu os olhos para olhar para o rosto dela.
Ia vê-la com frequência, duas ou três vezes por semana. Mas, quando estava longe dela, esquecia-se de como ela era. Não conseguia recordar-se das suas feições, não conseguia vê-la no olho da mente.
Talvez por ela ser tão indistinta. Os cabelos negros e brilhantes, mais compridos e mais pesados do que os da mulher, engoliam-lhe o rosto magro. As suas feições eram muito pequenas, meio formadas como as de uma criança. Apenas os olhos escuros e expressivos lhe davam vivacidade. O resto era palidez sombria.
Era era não só fisicamente aleijada como, pensava ele, também emocionalmente desequilibrada. Havia ali um altruísmo simples que ele considerava uma incapacidade.
Porque ela tinha vagueado lentamente nas águas paradas da vida, sem direcção e sem determinação.
Ela era uma vítima condescendente e ansiosa. Rendia-se docemente, oferecendo o pescoço fino e as costas pálidas sem oposição ou protestos. Tudo nela - corpo, coração, alma - se rendia de boa vontade, com felicidade, como se ela estivesse a cumprir o seu destino sendo estupidamente obediente.
Nunca antes, com mulheres ou putas, tinha visto tanta docilidade. A submissão total dela era ao mesmo tempo excitante e assustadora. Era excitante saber-se o senhor absoluto. Assustador porque sentia uma enorme curiosidade em explorar os limites da submissão dela.
Ela foi mudar de roupa na casa de banho, deixando a porta aberta. Seguindo as instruções dele, tinha comprado uma camisa de noite curta de fina cambraia branca, com uma infantil fila de botões de rosa na gola.
Enquanto estava na casa de banho, prendeu os cabelos numa longa trança, presa na ponta com um elástico. A trança era tão grossa e dura como um cabo e caía-lhe pelas costas quase até à cintura.
Luther preparou outra bebida para si. Não era impaciente. Quando estava com May, sentia todas as suas fúrias e ansiedades desaparecerem.
Quando ela voltou, sentou-se no colo dele e passou um braço fino pelo seu pescoço. Iniciou um relato longo e risonho de um incidente
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que testemunhara no supermercado. O arrumador de sacos tinha enchido o saco de compras de uma mulher e quando ela pegara nas asas o fundo rasgara-se e caíra
tudo!
Empt sorriu e abanou a cabeça, sentindo o prazer que ela tinha em contar-lhe aquilo. Beijou-lhe o pescoço macio, aninhando-se, cheirando a sua nova fragrância.
Ela ergueu-lhe o rosto com as palmas das mãos e olhou-o nos olhos, subitamente séria.
- Que é que gostarias que eu fizesse, paizinho?
- Oh... - disse ele -, não sei.
Ela encostou os lábios perto do ouvido dele.
-vou dizer-te o que vamos fazer - sussurrou ela. - Eu deito-me na cama e finjo que estou a dormir, à tua espera. Sabes? E depois tu chegas a casa e deitas-te na cama ao pé de mim. E depois és calmo e amoroso para não me acordares. E depois... Queres fazer isso?
- Está bem - disse ele, olhando estranhamente para ela. Se quiseres.
Ela efectuou calmamente os preparativos, sorrindo e cantarolando. Fechou a porta à chave e colocou a corrente. Certificou-se de que as persianas estavam corridas. Apagou todas as luzes, excepto uma na casa de banho e deixou essa porta aberta.
Não pôs lençóis e cobertor no sofá, e em vez disso deitou-se em cima da capa colorida, usando uma das almofadas de serapilheira. Deitou-se de lado e soltou a trança. Estava de costas para ele, curvada. Os joelhos dela estavam encolhidos, a perna mirrada escondida debaixo de si.
Ele olhou pensativamente para ela na suave obscuridade. Não tinha a certeza do papel que devia desempenhar naquela fantasia. Amante? Marido? Pai? Lembrou-se do que Jane Holloway tinha dito aos tipos da mafia sobre a importância da história e do enredo nos filmes de carne. Uma senhora esperta.
Levantou-se cuidadosamente e foi para a kitchenette em bicos de pés para se servir de mais uma bebida. Bebeu um grande gole e ficou parado durante alguns momentos, com as palmas das mãos apoiadas no lava-loiças, a cabeça pendurada. Pensando, pensando...
Levou a bebida para o sofá e debruçou-se para olhar para ela. Olhos fechados. Lábios ligeiramente abertos. Estava a respirar profundamente. Na verdade, poderia estar a dormir.
Pousou o copo, arrumando-o debaixo do sofá para não o entornar com um pontapé. Começou a despir-se, olhando para o braço nu dela, para a perna nua, ambos brilhando palidamente.
Nu, sentou-se suavemente na ponta do sofá. Ela mexeu-se.
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- Paizinho? - disse ela, sonolenta, com voz de menina. És tu?
- Sim - disse ele, tranquilizando-a. - Estou em casa. Vai dormir.
Ela gemeu de contentamento e aconchegou a cabeça na almofada, com os olhos resolutamente fechados.
Apercebeu-se, quase sentindo um choque, de que estava a ficar excitado; aquela história estava a excitá-lo. A criança estava enrolada numa bola fofa, inconsciente com o sono. E desamparada. Será que ela o conhecia melhor do que ele se conhecia a si mesmo?
Cuidadosamente, ternamente, ergueu-lhe a bainha da camisa de noite curta até a anca nua ficar exposta. Esta fazia uma curva de meia lua. Brilho intenso. Sombra escura.
Olhou para aquela pequena parte do corpo dela como se contivesse todos os segredos do universo, as respostas para todas as questões. Era pele, carne, cartilagem, coisas com vida. E muito, muito mais...
Inclinou-se para beijar o osso duro que premia a carne suave. Este pareceu render-se, guardar a marca dos seus lábios. O gosto era adocicado, com um travo forte. Suavemente, com uma precaução infinita, deitou-se ao lado dela, encaixando o seu corpo no dela.
O grande cabo de cabelos entrançados estava entre ambos.
Na ponta, presos com um elástico, cabelos individuais espetavam-se como se fossem uma escova em miniatura. Ele passou aqueles suaves pêlos pelo seu próprio corpo, espreitando para baixo para ver o que estava a fazer e sem compreender.
Ela suspirou - a dormir? - e rebolou para um lado e para o outro algumas vezes enquanto ele lhe subia a camisa de dormir até à cintura. Depois, ficou deitada de costas mas com a cabeça virada para a almofada e um braço em cima dos olhos.
Ele olhou para ela, vendo toda a perna, a perna mirrada e, no meio, o triângulo asseado, um remendo de musgo preto.
Afastou-se dela e levantou-se, trémulo. Procurou cuidadosamente a bebida, encontrou-a e bebeu um grande gole. Andou de um lado para o outro no aposento escurecido, bebericando do copo.
O que ele queria, o que ele queria realmente era... Era o quê? Algo mais do que sexo. Queria uma coisa absolutamente nova, nunca antes sentida ou imaginada. Pensou que, se conseguisse dar-lhe um nome, conseguiria encontrá-la. Mas o nome esquivava-se.
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- Que diabo - murmurou ele furioso, zangado com ela, mas principalmente consigo mesmo.
Quando voltou para o sofá, ela tinha tirado a camisa de noite e estava deitada, nua, com os braços e as pernas esticados. Tinha a almofada debaixo da anca, o que lhe elevava o rabo. A trança preta caía-lhe ao longo das costas, uma cobra gorda que brilhava e se contorcia.
Contemplou a pálida estrela do mar, estendida e à espera. Coxas firmes, costas ossudas, pernas enredadas com tendões. Respirou fundo e pousou o copo.
Quando se baixou sobre ela, ela estremeceu e gemeu comoventemente numa voz de criança:
- Não me magoes, paizinho. Por favor, não me magoes. Ele parou. Nunca a magoaria. Nunca. Ele sabia isso e ela
também sabia. Só podia imaginar que era a fantasia privada dela.
Ou ela era mais sábia do que ele supunha e tinha percebido que aquilo poderia prendê-lo a ela, para toda a eternidade.
Nessa mesma noite, enquanto Luther Empt analisava penosamente o que estava a acontecer-lhe, a mãe, Gertrude, e o pai de Jane Holloway, o professor Craner, estavam placidamente sentados no terraço dos Empt. Estavam protegidos do vento frio da noite e bebiam pequenos balões do brande italiano de Luther.
O professor estava jovialmente vestido com uma calças beges antiquadas de tecido de gabardina, com imensas pregas na cintura. A camisa branca de colarinho aberto estava enfeitada com um plastrão de padrão arrojado. Por cima, vestia uma pesada camisola branca de pescador com decote em V. A bengala de pau-rosa estava presa entre os seus joelhos ossudos.
Gertrude usava uma das suas tendas floridas com o decote ajustável com um cordão. Tinha vestido um casaco de malha roído pelas traças (ao qual faltava um botão) e o tipo de chapéu de palha de abas largas (decorado com um monte de cerejas de plástico) que uma duquesa pelintra usaria numa festa ao ar livre. Como era habitual, as pernas e os pés estavam nus.
Craner olhou serenamente à sua volta.
- Esta noite está tudo muito calmo - observou ele. - Onde é que estão todos?
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- John Stewart Wellington está no quarto dele - disse-lhe ela. - A ler outro livro sobre a batalha de Waterloo. Aquele homem é completamente doido por Waterloo. Luther está num encontro de negócios ou coisa parecida. É o que ele diz.
- E a Teresa? - perguntou ele, casualmente. Ela não respondeu.
- Eu não tive a intenção de ser intrometido - disse ele, apologeticamente.
- Eu sei que não quis, professor. Ela não está muito longe de nós. Na verdade, está dentro da propriedade.
- Oh? A passear?
- Não exactamente. - Gertrude calou-se durante um longo momento. - Está no mirante. A esfregar o presunto.
Ele levou algum tempo a compreender. Depois, cuspiu rapidamente o brande.
- Meu Deus! - disse ele. - Eu nunca teria adivinhado. Ela sorriu-lhe.
- Não quer saber com quem é que ela está a fazê-lo?
- Não, a não ser que queira contar-me.
- Vai ter um ataque quando ouvir - disse ela, rindo bruscamente. - O seu neto.
Engoliram ambos os brandes. Olharam para um mar negro, a afastar-se e a voltar para a praia. Luzes de barcos de pesca moviam-se lentamente. De vez em quando, via-se a espuma brilhante de uma onda. Eles mal se apercebiam da rebentação constante das ondas.
- Jesus Cristo! - explodiu Craner.
- Sim - disse a Sra. Empt -, calculei que a notícia o abalasse.
- Tem a certeza?
- Claro que tenho a certeza. Eu sei o que se passa nesta casa. Para além disso, às vezes, quando o vento sopra na direcção certa, pode-se ouvi-los.
- Aquele diabinho - disse o professor, suavemente.
- Ele ou ela? - perguntou ela, inclinando-se para a frente para servir mais brande para ambos.
- Gertrude - disse ele -, às vezes eu simplesmente não consigo acompanhar a evolução dos tempos.
É um jogo completamente novo.
- Não - disse ela.-As pessoas não andam a fazer nada que não tivessem feito sempre. Á diferença é que já não se esforçam muito por esconder. Ninguém se importa.
- Ninguém se importa - repetiu ele, suspirando. - Infelizmente, acho que tem razão. - Mexeu pensativamente no
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bigode e no cavanhaque. - Acho que no fundo não me oponho a isso.
- Nem eu - disse ela. - Cada um na sua vida.
- O rapaz só tem dezasseis anos - comentou ele.
- Se são suficientemente grandes - disse ela -, são suficientemente crescidos. Para ele, pode ser a melhor coisa do mundo.
- E para ela?
- Para ela também. É óbvio que não está a receber carinhos nenhuns daquele meu filho brutamontes.
Ele contemplou-a com um sorriso apertado.
- Não gosta muito do seu filho, pois não, Gertrude? Ela hesitou um pouco.
- Não - respondeu.
- Eu não gosto muito da minha filha - confessou ele. - Suponho que não deve ser má pessoa, mas é uma estranha para mim.
- Acontece - disse Gertrude, filosoficamente. - Só Deus sabe onde é que Luther arranja a ambição e a motivação que tem. Não de mim e, seguramente, não do pai, disso tenho a certeza.
- As crianças são uma bênção ou uma maldição? - perguntou-lhe ele.
- Ambas - respondeu ela.
Sentaram-se num silêncio confortável. Ela estava relaxada, com as pernas cor de chá estendidas para a frente. Mexeu pensativamente os dedos dos pés. Ele sentou-se muito direito, inclinando-se para a frente para segurar a cabeça de tucano prateada da bengala.
- Pensou sobre aquele lugar que estivemos a ver? - perguntou ele casualmente. - O motel perto de Fashion Square?
- Tenho andado a pensar - admitiu ela.
- Óptimo - disse ele. - Desde que não se tenha esquecido. Mas, com toda a honestidade, devo dizer-lhe que há um problema.
- Que problema?
- Eu - disse ele.
- Ah-ah - disse ela. - Eu sabia. Seja franco, professor. Conte-me tudo.
- Eu ressono - disse ele.
- E?
- E bebo sumo de ameixa - disse ele.
- Grande coisa - troçou ela. - Se eu tivesse a concessão do sumo de ameixa no sul da Florida, estaria milionária. Que mais?
- Os meus pés não estão em muito boas condições. Uso um
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arco especial num sapato e tenho um calo doloroso no outro pé. Tenho de tomar comprimidos para manter a tensão arterial baixa, não como sal e o meu fígado não está exactamente nas melhores condições. Vejamos... que mais... Um pouco de artrite na anca, tenho de usar óculos para ler e a última vez que o pus em pé foi no dia 14 de Maio de 1968.
Ela soltou uma gargalhada.
-Não está assim tão mau para um farrapo velho - disse ela.
- Quer ouvir o meu rol de misérias?
- Encantado - disse ele.
- Fiz um histerectomia, mas continuo a ter problemas com a canalização. E o estômago não está lá muito bom. Arroto que nem uma doida, especialmente de manhã; sou a melhor cliente do Tum s. Também fiz uma mastectomia, por isso não tenho mama no lado esquerdo. Estava bem nos últimos exames de rotina; não havia sinais de propagação. Os meus dentes são comprados, mas os meus olhos estão óptimos e o cabelo é todo meu. O meu rabo está a afundar-se e tenho um pneu Goodyear em volta da cintura. Acho que é tudo. Assustei-o?
-Absolutamente nada-garantiu-lhe ele. - Sentir-me-ia confortável com outro sobrevivente. Talvez devêssemos tentar.
- Talvez - disse ela, indecisa.
Ele observou-a firmemente, quase ferozmente.
- Gertrude, eu gostaria de viver com alguém que se recorda das mesmas canções que eu.
- Veremos - disse ela.
O novo revólver tinha sido limpo três vezes, embora nunca tivesse sido disparado. Um mês depois de o ter adquirido, Holloway tinha decidido que era estúpido mante-lo na gaveta da mesa-de-cabeceira. Resolveu andar com ele, no bonito coldre de cabedal preto que tinha comprado.
O coldre tinha uma tira de segurança que passava por cima da arma, por isso o disparate de praticar um saque rápido era impossível. Nada disso. Era apenas o coldre e o revólver suspensos do cinto que davam a Holloway uma agradável sensação de segurança e confiança.
Mais excitante era o toque da arma quando a limpava ou
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apenas a segurava. Havia algo de sensual no seu brilho oleado, algo emocionante no seu poder.
Numa tarde de quarta-feira, em meados de Dezembro, depois de um almoço de dois martinis e depois três doses sub-reptícias de vodca da garrafa do escritório, Holloway
estava eufórico. Quando estava sozinho, falava alegremente consigo próprio, conseguindo boas respostas para perguntas difíceis.
Mas quando resolveu ir-se embora do banco, um pouco depois das quatro horas, a sua disposição de euforia tinha-se dissipado.
A chuva não ajudou. Começara cerca das duas horas da tarde, com o toar do trovão e o clarão de um raio, como se fosse um sinal para subir o pano. O dilúvio começara. Uma chuva constante e forte que caía sem parar, tornando os jardins do banco um pântano e transformando o parque de estacionamento numa piscina.
Holloway correu para o Mercedes, segurando um exemplar dessa manhã do The Wall Street Journal por cima da cabeça. Depois de entrar no carro, pô-lo a trabalhar e ligou o ar condicionado. Ficou ali sentado, a segurar o volante, consciente de que as suas meias e os seus sapatos estavam encharcados.
Não fez qualquer esforço para guiar, na esperança de que a chuva parasse. O vidro da janela estava embaciado, mas limpou-o um pouco e, olhando para fora, imaginou que poderia estar debaixo de água, afogado e morto. Estava rodeado de cinzento, um cinzento sólido, e olhou para o fundo do carro, quase esperando ver aquela cor a inundá-lo.
Nada tinha seguido aquele estrondo inicial de trovão, mas ao longe, na escuridão, ainda se viam clarões esporádicos, com o brilho de prata baça. Holloway suspirou e começou o seu diálogo:
- Que aconteceu à tua resolução de viver com um homem virtuoso?
"Não foi uma resolução. Apenas uma decisão de explorar essa possibilidade.
"E?
"É difícil.
A dificuldade residia, admitiu ele, não na sua vontade mas na falta quase absoluta de escolha moral na sua vida. O facto de beber ou não beber dificilmente poderia ser considerado uma questão de virtude ou vício. Da mesma forma, o seu envolvimento na indústria pornográfica, embora periférico, era simplesmente negócio que não tinha nada a ver com a salvação da sua alma.
- Ninharias - disse ele em voz alta.
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"Verdade - concordou ele. - Nada significativo ou importante.
Entretanto, continuava a ser um homem mediano, a viver uma vida mediana. Ansiava por drama, um estrondo de trovão e uma cintilação de electricidade que pudesse assinalar um acontecimento de importância moral. Queria suportar uma ferida penosa ou voluntariar-se para um sacrifício extremo.
A chuva continuou a cair. com pavor da viagem para casa, saiu lentamente do parque de estacionamento. As escovas do limpa pára-brisas quase não conseguiam afastar a água; inclinou-se para a frente para espreitar para a meia lua raiada.
As estradas e as vias rápidas estavam inundadas de água. Carros avariados bloqueavam-lhe o caminho. Manobrou receosamente, esperando que os condutores que vinham atrás de si conduzissem com tanta cautela como ele. Os semáforos estavam desligados e ele esperou quase três minutos antes de se atrever a virar para sul na AIA.
Havia uma fila de trânsito na Rua Seis Noroeste: carros parados, à espera de que uma obstrução qualquer fosse removida.
Indistintamente, através da janela do lado do passageiro, que estava a escorrer água, viu um vulto encharcado e desamparado no passeio. O rapaz esticava esperançosamente o polegar na direcção sul. Holloway deslizou pelo banco de couro e abriu o vidro alguns centímetros.
- Wayne! - gritou. - Wayne Bending! Aqui.
O rapaz aproximou-se a correr. Entrou no carro e fechou a porta com força.
- Jesus! - disse ele. - Que bom vê-lo.
- Que aconteceu?
- Perdi o autocarro da escola e não consegui arranjar boleia. Telefonei para casa, mas não estava lá ninguém. Decidi pedir boleia, mas o tipo que estava comigo pirou-se, por isso eu comecei outra vez a pedir boleia. Desculpe, Sr. Holloway, estou a molhar-lhe o assento todo.
- E apenas água - disse Holloway.
A fila de carros deslocou-se alguns centímetros. Holloway esticou-se para espreitar através da escuridão.
- É uma porcaria, não é? - disse Wayne Bending.
Holloway não respondeu. A fila de carros deteve-se novamente. Ele desligou a música e tirou um maço de cigarros do bolso interior do casaco.
- Pode dar-me um desses? - perguntou Wayne. - Por favor.
- Acho que sim - disse Holloway, rindo nervosamente. -
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Desde que não digas aos teus pais que estou a desencaminhar-te.
- Eles nunca ouvirão uma coisa dessas de mim - disse o rapaz.
Holloway segurou um fósforo aceso e acenderam os cigarros. Wayne fumou habilmente, inalando sem esforço. Afastou a cabeça de Holloway, limpou a janela embaciada e olhou para a rua.
- Está a ficar pior - informou ele. - Merda!
Permaneceram em silêncio durante alguns momentos. Depois ouviram o som estridente de sirenes da Polícia. Através do vidro da frente indistintamente, conseguiam ver as luzes vermelhas a piscar.
- Oh, meu Deus - disse Wayne. - Os polícias. Isso quer dizer que há um acidente ou um carro avariado. Vamos ficar aqui sentados para sempre.
Holloway abriu uma frincha da sua janela para o fumo sair e para ajudar a desembaciar os vidros. Wayne Bending observou-o e depois fez a mesma coisa do seu lado.
- Como é que te está a correr a escola? - perguntou Holloway com o maior interesse que conseguia demonstrar.
- Bem - disse o rapaz. - Vou-me safando.
- Não é isso que eu oiço - disse Holloway com uma breve gargalhada. - Ouvi dizer que és um óptimo aluno.
- Sim? Onde é que ouviu isso?
- Por aí. Quem me dera poder dizer o mesmo do Eddie.
- Ele é bom - disse Wayne Bending.
Holloway virou-se para olhar para ele. Wayne estava a examinar a beata incandescente do seu cigarro.
- Há algum problema, Wayne?
- Não. Por que pergunta?
Depois, Holloway foi inundado por recordações. Não abrindo caminho para a sua consciência mas regressando subitamente, com a força de um sopro físico, tão dolorosa que ele quase sufocou.
Uma situação quase idêntica. Um rapaz jovem e um homem mais velho num carro. Um Studebaker. Estacionado sob uma chuva fina. As escovas do limpa pára-brisas a andar de um lado para o outro. A sensação de uma intimidade calma.
Mas este momento não ia terminar como o outro. Holloway tinha a certeza.
- Não sei - disse ele. - Parece que há alguma coisa que te perturba.
- Não tenho problemas - disse Wayne, estolidamente. Holloway não achava o rapaz atraente. Longe disso. A testa
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era demasiado baixa, o maxilar quase proto-humano. Os lábios eram finos, o nariz arrebitado. Os olhos salvavam do rosto: grandes, muito afastados, do mais puro azul-céu.
Olhos chocantemente belos.
Assim, apesar das outras feições toscas e o físico desajeitado, o jovem não era totalmente feio. Irradiava vulnerabilidade e dor.
- Sr. Holloway-disse Wayne subitamente -, posso perguntar-lhe uma coisa? Uma coisa pessoal?
- Bem, uh... - disse Holloway, desconfortavelmente. Talvez devesses falar sobre isso com o teu pai.
O rapaz olhou-o de relance.
- Não posso falar com o meu pai. Ele está sempre a dizer piadas.
- Sim, bem... Está bem, o que é? Seguiu-se uma longa pausa.
- É difícil explicar - disse Wayne, pouco à vontade.
- Não te apresses. Parece que não vamos sair daqui durante bastante tempo.
- Bem, digamos que há um tipo e ele tem um amigo. Um bom amigo... sabe? E esse tipo tem, hum, feito muito pelo amigo. Tudo o que o amigo quis. Por isso, esse tipo pensou, sabe, que deveria receber alguma coisa em troca. Certo? Não estou a referir-me a dinheiro nem nada disso.
- Apenas amizade - disse Holloway, suavemente. - Ele devia receber amizade em troca.
- Sim. Isso mesmo. E o amigo sabe como esse tipo se sente. Porque ele o provou.
- O tipo provou a sua amizade?
- Sim. Como se sente. Mas depois, digamos, o amigo vai-se embora. Quero dizer, fica noutra onda. Encontra, hum, outra pessoa. E, passado algum tempo, não presta atenção nenhuma a esse tipo, nem sequer quer passar algum tempo com ele. Bem, o que eu queria saber é por que é que as pessoas agem assim. Quero dizer, não está certo.
Holloway suspirou.
- Não, não está certo. E quando te digo que as coisas são mesmo assim, isso não melhora a situação. Wayne, as pessoas mudam. Tu, eu, toda a gente. Nada é eterno. A maneira como te sentes em relação a alguém hoje não significa que vás sentir-te da mesma forma amanhã.
- Eu sentiria - disse o rapaz, resolutamente.
- Talvez... mas eu duvido. Toda a gente muda. Os problemas surgem quando amigos, ou familiares, ou marido e mulher mudam em alturas diferentes ou a velocidades diferentes. compreendes
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o que estou a dizer-te? Como o tipo de quem estás a falar e o amigo... O amigo está a mudar e a afastar-se do tipo. Mas, se não o fizesse, talvez o tipo
acabasse por mudar e por se afastar do amigo.
Wayne reflectiu naquilo durante alguns instantes.
- Acha mesmo que sim?
- Acho mesmo. Toda a gente fala de amigos para a vida inteira, mas praticamente ninguém é um nem tem um. As pessoas afastam-se umas das outras.
- Isso é horrível - disse Wayne Bending. - Podia dar-me um cigarro? Por favor.
Acenderam cigarros e observaram um camião passar cautelosamente, com as luzes a piscar.
Ele olhou para Wayne Bending. O rapaz tinha uma expressão tão desanimada que Holloway teve receio de que ele chorasse. Desejou poder fazer alguma coisa, fazer algum gesto físico para acalmar a angústia do rapaz.
- Aquele rapaz de que estavas a falar - disse ele, olhando tensamente pelo vidro fustigado pela chuva -, o que tem o amigo... eu passei por uma situação semelhante quando era, bem, alguns anos mais velho do que tu és agora.
- A sério? - disse Wayne.
- Eu tive um amigo, um bom amigo. Pelo menos, pensei que era. Eu provei realmente a minha amizade e pensei que íamos ser amigos íntimos para sempre. Na altura, não sabia o que acabei de te dizer sobre as pessoas mudarem. Bem, o meu amigo mudou. Eu não mas ele sim. E afastou-se para fora da minha vida. Isso não pareceu incomodá-lo, mas eu senti-me péssimo. Magoou-me de verdade. Durante muito tempo. Mas depois arranjei novos amigos e fui esquecendo aos poucos. É provavelmente o que acontecerá
ao tipo que me contaste. Ele vai fazer novos amigos e vai esquecer.
- Não acredito - disse Wayne Bending, tristemente. William Holloway perguntou a si mesmo que mais poderia
dizer ou fazer.
De repente, ocorreu-lhe que a dor daquele jovem poderia oferecer a escolha moral que ele procurava. Era uma oportunidade para agir como um homem virtuoso, para socorrer uma pessoa que necessitava de ajuda sem esperar outra recompensa para além da certeza de que tinha agido altruistamente numa boa causa.
- Wayne - disse ele -, vivi quase quatro vezes mais tempo do que tu. Isso não me torna necessariamente mais esperto. Mas significa que tive determinadas experiências e que vivi situações
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que tu podes estar a enfrentar agora. O que estou a tentar dizer é que, se alguma vez precisares de ajuda ou quiseres simplesmente falar sobre, hum... coisas, eu sou um bom ouvinte. Não te darei nenhum conselho, a não ser que mo peças. E podes ter a certeza de que tudo o que me disseres será mantido em segredo; ninguém saberá uma única palavra por mim.
- Agradeço-lhe a oferta - murmurou o rapaz.
Algum tempo depois, a obstrução à frente foi removida e o tráfego começou novamente a mover-se. Continuava a chover e Holloway levou o jovem a casa, deixando-o sair debaixo do telheiro para os carros.
Mesmo antes de fechar a porta, Wayne virou-se para trás, sorriu e disse:
- Obrigado, Sr. Holloway. Aqueles olhos!
6
Ainda chovia na quintá-feira de manhã quando Ronald Bending entrou no consultório a dançar.
- Sinto-me óptimo, Ted - disse à laia de cumprimento. Está tudo a correr às mil maravilhas.
- Folgo em saber, Turco - disse o Dr. Theodore Levin com um sorriso de certa forma azedo. - O tempo não o deprime?
-Não. Em todas as vidas tem de cair um pouco de chuva. Isso só faz as pessoas darem ainda mais valor aos dias de sol.
Ele próprio resplandecia como o sol, num fato de três peças de popelina caqui, uma camisa amarelo-dourada com uma gravata larga e com um padrão de flores e um lenço de bolso de seda que era uma paleta de cores primárias. Mocassinas castanho-avermelhados com borlas.
Levin observou inexpressivamente enquanto Bending se instalava na cadeira. Puxou ligeiramente as calças para preservar o vinco, cruzou a perna e depois recostou-se confortavelmente e acendeu um dos seus cigarros com filtro.
- Qual é o motivo para a boa disposição? - perguntou o médico casualmente, tirando o celofane de um charuto. - Os negócios prosperam?
- Não podiam estar melhor - disse Bending alegremente.
- Pela primeira vez na minha vida, as coisas estão a correr como eu quero.
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- Óptimo - disse Levin, exalando o fumo do charuto. - É uma mudança agradável ter alguém sem problemas neste consultório.
- Oh, eu tenho problemas. Mas nada que não possa resolver. E, por falar em problemas, como é que está a dar-se com a Lucy?
- A fazer progressos. Lentamente. Mas avisei-o de que não deveria esperar resultados rápidos.
- Desde que a cure - disse Bending, vivamente. - É tudo o que eu lhe peço. Bem, de que é que quer falar hoje? Se eu fazia chichi na cama aos dezoito anos ou se
queria ir para a cama com a minha mãe?
- Fazia ou queria? - perguntou o médico. - Algumas dessas duas coisas? Ou ambas?
Bending riu-se.
- Não tem grande sentido de humor, pois não, Ted?
- Não, não tenho. Acho que as pessoas, especialmente os homens, recorrem frequentemente ao humor para esconder os seus verdadeiros sentimentos.
- Acha que eu faço isso?
- Acha que faz?
- Bem, que diabo, não podemos andar sempre a mostrar os nossos sentimentos, pois não? As piadas são apenas o combustível para fazer o mundo mover-se um pouco mais suavemente. Sabe onde é que estou a querer chegar?
- Eu sei, Turco. Mas é o facto de tentar tornar as coisas mais suaves e recusar-se a encarar a realidade subjacente que traz tanta gente a este consultório.
- Então, quer que me deixe de tretas. É isso que está a dizer?
- Sim, é isso que estou a dizer.
Sorriram cordialmente um para o outro e deixaram o silêncio crescer.
Levin vestia um dos seus fatos pretos brilhantes e amarrotados, com as lapelas do casaco polvilhadas de cinza de charuto. Havia até partículas de cinza presas na barba. Ele tinha empurrado os óculos de lentes grossas para cima dos cabelos grossos e grisalhos.
- Turco - disse ele finalmente na sua voz rouca -, vamos entender-nos um com o outro. A sua filha está a fazer uma terapia, e essa é a única razão por que estou a falar consigo... para a ajudar. Quanto mais tempo me esconder coisas, quanto mais tempo me contar mentiras ou meias mentiras, mais tempo eu vou demorar a ajudar a Lucy.
- Eu sei disso, doc... Ted.
- Espero que saiba. Eu não estou a tratá-lo. Não tenho qualquer
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interesse pessoal ou profissional pela sua vida, a não ser que afecte a Lucy.
- Tenho esta sensação arrepiadora de que está a querer chegar a algum lado.
- A única coisa a que quero chegar é a um pedido para que seja mais honesto comigo, mais acessível.
Bending franziu o sobrolho.
- Acha que eu tenho estado a esconder-lhe coisas?
- Tem?
- Bem... talvez. Mas só coisas que não poderiam de forma alguma afectar a Lucy.
Levin bateu com uma palma gorda na secretária. O estrondo assustou Bending; ele parecia preocupado.
- Tudo o que o senhor faz afecta a Lucy - disse o médico. Tudo. E especialmente o seu relacionamento com a sua mulher.
- Oh - disse Bending -, isso. Bem, como eu lhe disse, vamos vivendo. O sexo é praticamente nulo, mas nós mantemos as aparências. O casal feliz. Eu contei-lhe tudo isso; fui honesto.
- Eu recordo-me. Acho que "indiferença" era a palavra que seleccionámos. Em vez de "hostilidade".
- Sim - disse Bending. - Indiferença.
Naquele momento, Levin tinha várias hipóteses. Podia continuar a analisar o comportamento de Bending e Grace, podia aprofundar um pouco mais o passado dele, ou podia procurar encontrar pistas nas actividades do homem longe da mulher, filhos, casa.
Olhando para aquela figura afável estirada na cadeira de braços, reparando no sorriso irónico - não exactamente um sorriso malicioso -, Levin admitiu que tinha um desejo quase irracional de entalar o homem. Ninguém devia ser assim tão impassível e trocista.
- Vamos falar sobre os seus, ah, casos extramatrimoniais, Turco. Segundo o que me disse, presumo que têm sido bastante frequentes.
- Bastante.
- Há um tipo específico de mulher que prefira?
- Que pergunta tão doida. A resposta é não. Mas sinto curiosidade em saber por que a fez.
- Ficaria surpreendido se soubesse quantos homens casados procuram satisfação sexual fora de casa e escolhem, inconscientemente, uma mulher que se parece com a esposa. Por vezes, espantosamente parecida.
- A sério? Bem, isso não se aplica a mim. Nenhuma das
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senhoras que me têm concedido os seus favores se parece com a Grace ou age como ela.
- Prostitutas?
Bending mexeu-se irritadamente na cadeira.
- Claro que não! E não tenho de pagar, Ted.
- Acha que há algo de vergonhoso em pagar prazer sexual?
- Só não tenho de o fazer, é tudo. Nunca o farei. Estragaria tudo.
Levin fez deslizar os óculos para os olhos. Inclinou-se para a frente e olhou Bending atentamente.
- Estragar o quê? - perguntou ele.
- Tudo - repetiu Bending.
- Se tudo o que procura é alívio sexual, um orgasmo, não consigo perceber por que é que pagar poderia estragar tudo.
- Você não compreende, Ted. Não faz a mínima ideia.
- Diga-me - disse Levin, gentilmente. - Eu tentarei compreender.
Bending respirou fundo.
- Bem, eu disse-lhe que queria ser artista. Toda a minha educação foi vocacionada para as artes. Composição, harmonia, proporção, cor... assim. Bem, agora não sou um artista, admito, mas penso como um.
Calou-se e as suas feições ficaram subitamente calmas. O Dr. Levin aguardou um momento e depois disse:
- E...?
Ronald Bending ergueu-se. Enfiou as mãos nos bolsos das calças. Começou a andar de um lado para o outro diante da secretária de Levin, de cabeça baixa e voz séria.
- Não é apenas alívio sexual - disse ele. - Não é apenas vir-me. Por amor de Deus, se eu só quisesse isso podia masturbar-me, não
podia? Vê, agora estou a ser honesto.
Não, é mais do que despejar. As mulheres que engato, as mulheres de quem vou atrás, são todas belas. Para mim são. O meu olho de artista. Quero dizer, talvez possa ser a textura da pele. Ou a curva de uma anca. Talvez apenas uma mama. Talvez o contorno de uma perna dobrada. Pode ser uma centena de coisas. Mas é mais, uh, sensual do que sexual.
Ele parou. Tirou as mãos dos bolsos. Cruzou os braços em cima do peito. Baixou duramente os olhos para Levin.
- Não acredita em mim, pois não?
- É importante eu acreditar em si?
- Bem, eu estou apenas a dizer-lhe a verdade. Como eu disse, não é nada sexual. É sensual. O olho do artista. Trata-se
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de uma procura do belo. Um amor pela beleza. Linha, proporção, harmonia e composição. Assim.
O Dr. Theodore Levin pousou cuidadosamente o charuto no cinzeiro. Recostou-se na cadeira giratória e prendeu as mãos no colete salpicado de cinza. Olhou para o outro homem com um sorriso de suave bondade.
- Sr. Ronald Bending - disse ele -, o senhor é um mentiroso.
Bending soltou uma forte gargalhada. Depois voltou a atirar-se para a cadeira. Sentou-se de lado, com um joelho pendurado no braço da cadeira. Procurou cigarros
no bolso do casaco. Levin observou-o a acender o cigarro com dedos ligeiramente trémulos.
- Tem razão - disse ele, mostrando os dentes. - Eu não posso enganá-lo, nem posso enganar-me.
- Então, o que é? - perguntou Levin.
- O que é? - perguntou Bending em voz alta. - O que é? Tirou a perna do braço da cadeira e lançou-se para a frente. E aquele maldito tubo de carne que tenho entre as pernas. Faz-me fazer coisas que eu não quero fazer. Controla-me, por amor de Deus. - Começou a gesticular desenfreadamente. - Quanto é que poderá pesar? Alguns gramas? Não mais de duzentos gramas... certo? E arruinou a minha vida. Escute, às vezes nem sei como consigo conter-me sem violar um daqueles borrachos que vejo na praia. Sim, ali mesmo na areia. Agarrá-las, percebe? Tudo por causa deste maldito tubo de carne. Quero montar todas as mulheres que vejo. Por que é que pensa que me chamam Turco? Puseram-me a alcunha na faculdade e nunca mais a perdi. Turco para sultão turco com um harém. Não há uma que eu não possa amar. São tão bonitas. Até as feias. Têm sempre algo. Não consigo evitar. E este maldito tubo de carne. Muito bem, queria que eu fosse honesto. Agora fui honesto. Contente?
Levin queria que as confissões continuassem. Não queria dar ao homem uma oportunidade para se acalmar.
- Então, tem havido muitas mulheres?
- Sim - disse Bending, assentindo freneticamente. Muitas. Muitas.
- Desde o seu casamento?
- Sim.
.- Em motéis?
- Motéis, hotéis, nos apartamentos delas, no meu carro, no escritório.
- E em sua casa? Quando a sua mulher não estava? Bending olhou-o, ofendido.
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- Nunca. Eu nunca faria uma coisa dessas.
- Hum. Mas violaria uma na praia? Ali mesmo na areia?
- Vá lá, Ted, estava apenas a brincar; sabe isso muito bem. Só disse isso para mostrar como me sinto. Mas nunca faria uma coisa dessas.
- Então, afinal, consegue controlar esse tubo de carne?
- Não o suficiente. Continuo a fazer figura de parvo. A perder tempo. A negligenciar a minha mulher e os meus filhos. Eu tenho consciência disso.
- A Grace está a par desta, hum, desta sua predilecção?
- Até certo ponto. Não sabe tudo.
- Os seus filhos? Acha que eles estão a par das suas actividades?
- Não. Como poderiam saber? Os vizinhos talvez. Bill Holloway e Luther Empt... um par de amigalhaços que costumam beber uns copos comigo... talvez saibam ou calculem.
Levin olhou para o homem, agora de novo afundado na cadeira de braços do outro lado da secretária.
- Turco, você parece ter remorsos por viver da forma que vive. Até agora tem sido muito cooperante; agora, deixe-me perguntar-lhe o seguinte: tem a certeza de que quer mudar? Se pudesse?
Bending atirou a cabeça para trás e contemplou as brilhantes estrelas coladas no tecto do consultório.
- Não - disse ele em voz baixa -, acho que não. Em primeiro lugar, não podia mudar, mesmo que quisesse. E não me parece que quisesse.
- Por outras palavras, está mais ou menos satisfeito com a forma como vive? Reconhece que o que faz é decepcionante, destrutivo, talvez insensato e autodestrutivo, mas está disposto a continuar?
- Ted - disse Bending com um sorriso trocista -, você tem mesmo jeito para as palavras. Mas acho que a resposta é sim. vou continuar. Até estar seis palmos abaixo da terra. E nessa altura vão ter dificuldade em colocar a tampa no caixão.
O Dr. Levin sorriu brevemente.
- Na sua forma mais virulenta, o seu estado pode ser chamado satiríase. Mas prefiro pensar que é simplesmente hiper-sexualidade. A mesma coisa que está a perturbar a sua filha.
Bending olhou para ele.
- Quer dizer que a Lucy herdou isso de mim? Levin riu-se.
- Oh, não. Não, não, não. Nunca encontrei provas de que
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esse estado fosse herdado. Não geneticamente. Mas se a Lucy está consciente da forma como você vive...
- Não está - disse o outro homem, zangado. - Já lhe disse. O médico recostou-se na cadeira. Pegou no charuto apagado
e usou um fósforo de madeira de cozinha para o acender. Fumou com satisfação e depois olhou rapidamente para o relógio da secretária.
- Turco, ainda nos restam alguns minutos. Se me permite, gostaria de esquecer a Lucy por um momento e falar sobre si. Há alguns minutos, eu disse que não tinha interesse pessoal nem profissional na sua vida a não ser na medida em que afectasse a Lucy. Talvez aquilo fosse um exagero. Porque agora estou curioso em relação a si, em relação à forma como vive. Chame-lhe bisbilhotice, se quiser. O que eu gostaria de saber é a razão por que vive tão dissolutamente. Parece ter um apetite sexual insaciável. É só isso?
Bending acendeu outro cigarro. Descruzou as pernas. Começou a bater num joelho com os dedos da mão livre. Examinou atentamente o cigarro incandescente e depois ergueu os olhos.
- Ted - disse ele -, honestamente não sei. Sei que a parte do sexo é muito importante. Quem não gosta de uma boa queca? Mas talvez seja mais do que isso. Aquela treta que eu lhe impingi acerca do olho de artista... bem, isso não é tudo treta. E, para além disso, todos nós temos de comer tanto lixo neste mundo só para sobrevivermos, que dar prazer a uma mulher e tirar prazer dela me parece ser uma espécie de vingança. Sabe? E também a forma como nos faz sentirmo-nos. Como cantar. Como se fôssemos viver eternamente. A vida é complicada.
- Sim - disse o Dr. Theodore Levin baixinho -, isso é verdade.
O ex-senador Randolph Diedrickson adorava intriga. Adorava! Não era uma loucura da velhice, como um velhinho provinciano poderia voltar-se para as rendas de bilros ou para Trollope. Não, era o estudo, hábito e prática de uma vida inteira que lhe fora muito útil na sua carreira política e na sua vida privada extremamente complexa.
Diedrickson encarava a intriga como uma forma sofisticada de xadrez, jogada com peças humanas. Mas enquanto o xadrez
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tinha regras, a intriga era um jogo de instinto, imaginação e invenção que não tinha regras. Todos os grandes jogadores
- Maquiavel, Richelieu, Meyer Lansky-eram essencialmente homens criativos.
Assim, quando Jane Holloway telefonou para lhe relatar os últimos progressos da EBH Enterprises, Inc., e para pedir o conselho do senador, ele escutou atentamente. Interrompeu-lhe o relato apenas uma vez:
- Esse Ernie Goldman... é judeu?
- Sim, creio que sim.
O senador ouviu o que ela tinha para lhe dizer e prometeu pensar cuidadosamente no assunto. Desligou o telefone com um sorriso de agradável antecipação - o gato agachava-se na toca da ratazana.
Ocasionalmente, claro, a intriga era exercida pour lê sport. Mas, regra geral, o princípio que o guiava era o interesse. Naquele caso, Diedrickson desejava manter a afeição e as ministrações de Jane Holloway. Mas reflectiu que, seguramente, poderia haver outras formas de lucrar com a manipulação deste pequeno imbróglio.
Estava sentado, sozinho, à sombra do toldo do solário, com uma garrafa de Mumms Cordon Rouge a gelar num balde a seu lado. Ponderou o problema, puxando suavemente o carnudo lábio inferior. Planeou as jogadas de abertura. Para outros, estas poderiam ser pouco razoáveis, até mesmo ridículas. Para Diedrickson, tinham uma lógica elegante.
Correligionários políticos tinham-no alertado para a existência de um assistente do delegado do Ministério Público muito talentoso no distrito de Okeechobee. Esse jovem tinha julgado recentemente um caso de homicídio - um rico produtor de laranjas tinha contratado um assassino profissional para se livrar do namorado da amante - e tinha garantido uma condenação.
O caso recebera atenção dos órgãos de comunicação social a nível estadual, e o jovem delegado do Ministério Público fora chamado "novato" em vários jornais da Florida. Diedrickson conseguiu conhecê-lo e gostou do que viu. Ele era idealista, mas não demasiado idealista, honesto, mas não demasiado honesto, ambicioso, mas não demasiado ambicioso, ganancioso, mas não demasiado ganancioso.
Diedrickson estava convicto de que o jovem tinha um potencial enorme. Infelizmente, não era um homem rico e ainda não tinha conseguido arranjar uma base monetária para financiar uma carreira política de relevo.
O antigo senador teve várias conversas com membros do seu
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partido na Florida, e foram discutidas formas de fazer subir aquele jovem promissor: presidente da Câmara, talvez, ou senador estadual, e depois a Câmara dos Representantes,
ou governador estadual, e depois... quem sabia? Mas eram precisos fundos elevados.
Agora, pensou Diedrickson, podia muito bem ter encontrado uma árvore de patacas naquele negócio de Jane Holloway. Satisfeito com os seus planos preliminares, abriu a sua garrafa de Mumm's gelado, encantado por descobrir que ainda tinha força para tirar a rolha.
Provou meio copo, estalou a língua grossa, arrotou ligeiramente e pegou no telefone.
O encontro com Rocco Santangelo e Jimmy Stone foi combinado para a quinta-feira seguinte, à tarde, três dias antes da celebração do nascimento de Cristo. O antigo senador recebeu os convidados no escritório do segundo andar, uma câmara escura e atravancada de mobílias de onde o secretário tinha sido temporariamente banido.
Para a ocasião, Diedrickson tinha escolhido um amarrotado fato de linho leve às riscas que parecia um forro de colchão, uma camisa branca com o colarinho gasto e uma fina gravata com laço de borboleta preso com um alfinete de prata e turquesas. Os seus tornozelos inchados e arroxeados estavam nus e calçava chinelos de quarto bordados, que um constituinte agradecido lhe oferecera há vinte anos.
Os seus dois visitantes estavam vestidos de forma cuidada, até mesmo elegante. Santangelo era uma aguarela de cinzentos-pérola e azuis-claros, tudo com monogramas. Era o alto, o que estava cuidadosamente arranjado. Diedrickson perguntou a si próprio há quanto tempo é que não via relógios em meias de homem.
O outro, Jimmy Stone, era o baixo, pesado e, segundo os cálculos do anfitrião, o líder. Não tinha o brilho de Santangelo, mas a sua presença dominava. Usava um fato preto-baço de lã penteada, colete, camisa branca e gravata, meias e sapatos pretos. O fato de um agente funerário, pensou Diedrickson, e provavelmente assentava-lhe que nem uma luva.
O senador convidou-os a sentarem-se e mandou Renfrew servir-lhes bebidas antes de sair. Como ambos quiseram uísque americano, Diedrickson também bebeu, para lhes sugerir que admirava o gosto deles. Por acaso, detestava uísque americano, mas negócios eram negócios.
Os dois homens estavam sentados em pesadas cadeiras de
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braços vitorianas, forradas com veludo cor de alfazema, agora gasto e lustroso.
Diedrickson tirou a cadeira de rodas de detrás da secretária para ficar mais perto dos convidados. Queria que aquele encontro fosse íntimo.
- Digam-me - disse ele, benignamente -, como está o meu muito bom amigo Tio Dom?
- Está bom, senador - disse Santangelo. - A úlcera incomoda-o por vezes, mas, tendo em conta a sua idade, está muito bem. Manda-lhe cumprimentos.
- Bem, digam-lhe que eu lhe mando cumprimentos - disse Diedrickson, calorosamente. - Estava com esperança de poder encontrá-lo durante a feliz época das festas, mas nenhum de nós consegue suportar os rigores de uma viagem. No entanto, pretendo telefonar-lhe para lhe desejar um bom Ano Novo, garanto-vos.
- O presente - disse Jimmy Stone na sua voz baixa e carrancuda.
- Oh, sim - disse Santangelo, estalando os dedos. - O Tio Dom quer que lhe agradeçamos o bonito presente que enviou ao sobrinho dele, o Nick, quando ele se licenciou.
- Tive muito gosto - disse o senador, radiante. - E quais são os planos do rapaz para o futuro?
- Wall Street - disse Stone. - Obrigações.
- Excelente. Uma boa escolha. Se virem o rapaz, poderiam lembrar-lhe que eu tenho muitos verdadeiros e maravilhosos amigos na comunidade da banca, e se puder ser útil de alguma forma, ele só tem de pedir.
Os convidados acenaram delicadamente, bebericaram as bebidas e olharam para ele imperturbavelmente, à espera...
- Bem, cavalheiros, não quero fazer-vos perder o vosso tempo. vou direito ao motivo por que vos pedi para virem aqui hoje. Chegaram-me aos ouvidos algumas informações que, devido à minha longa associação e à afeição que sinto pelo Tio Dom, pensei que deveria contar-vos. Diz respeito aos vossos planos para montarem uma fábrica de processamento no sul da Florida para converter os vossos filmes em cassetes de televisão.
Ou tinham sido avisados da sua omnisciência ou treinados na arte da imperturbabilidade. Olharam para ele com firmeza, inexpressivos. Mas, se pensavam amedrontá-lo com a frieza deles, subestimavam o seu vigor. Já lidara com homens da laia deles antes, muitas vezes, e sabia que a demonstração, ou mesmo a indicação, de ansiedade seria fatal.
Contou-lhes as maquinações de Ronald Bending para afastar
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Luther Empt e, com a ajuda de William Holloway, obter o controlo da EBH Enterprises, Inc. Depois, fez uma pausa no seu relato, olhando alegremente para os dois
homens, ora para um ora para o outro.
- Outra bebida? - sugeriu ele suavemente. - Por favor, sirvam-se no aparador, pois eu estou encarcerado neste transporte ridículo.
Santangelo levantou-se para se servir de mais úisque americano, embora o seu copo ainda estivesse meio cheio. Um sinal de inquietação, pensou Diedrickson. Mas Jimmy Stone permaneceu sentado, olhando pensativamente para o senador.
- Onde é que ouviu tudo isso? - perguntou ele.
- Da mulher de Holloway, Jane. Sei que a conheceram.
- Sim - disse Stone. - Uma tipa esperta.
- Sem dúvida - disse Diedrickson. - E compreensivelmente preocupada com o rumo que as coisas tomaram. Bastante naturalmente, ela sente que os planos de Bending poderão pôr em perigo os investimentos do marido. Um quarto de milhão, creio eu.
Rocco Santangelo tinha voltado a ocupar o seu lugar depois de beber dois goles rápidos do copo cheio. Agora, inclinou-se para a frente, olhando fixamente para o senador.
- Que é que todos estes disparates têm a ver connosco? perguntou ele.
- Por favor, corrija-me se eu estiver errado - disse o senador, afavelmente -, mas, na verdade, não estou a imaginar esse Luther Empt a deixar-se ser lixado pelos sócios sem proferir uma palavra de protesto. Eu arriscaria um palpite de que isso significaria um processo judicial complicado que...
- Não tem nada a ver connosco - disse Santangelo.
- Cala-te, Rock - disse Jimmy Stone, rispidamente. Continue, senador.
- Um processo judicial complicado durante o qual o objectivo e os negócios da EHB Enterprises, Inc., seriam do conhecimento público. Posso imaginar que isso é a última coisa no mundo que os cavalheiros desejam.
- Sim - disse Stone. - Tem razão. Aqueles estúpidos! Vão lixar o negócio todo.
- Precisamente - disse Diedrickson, assentindo. - E esse, claro, é o motivo da preocupação da
Sra. Holloway. Ela é, como o senhor disse, uma tipa esperta, e reconhece
um bom negócio quando o vê. E está contra qualquer coisa que possa pôr em perigo o relacionamento mutuamente lucrativo entre os senhores
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- Merda! - disse Santangelo, furioso. - E estava tudo a correr tão bem e tão calmamente.
- Posso incomodar um dos senhores para me servir um pouco mais desse excelente néctar? - perguntou Diedrickson, estendendo o copo. - É espantoso como é um remédio
excelente para as dores que afligem estas velhas juntas.
O seu humor moderado teve o efeito desejado; os seus convidados acalmaram-se visivelmente. Stone levantou-se para encher o copo do senador e para acabar de encher o seu.
- Na verdade - continuou Diedrickson num tom sério -, não acredito que as coisas tenham chegado a um ponto em que seja preciso agir. Mas é uma situação que, em minha opinião, os senhores devem conhecer. Tem potencial para lesar seriamente os vossos esforços e os vossos planos para o futuro.
- Tem razão - disse Santangelo, pesarosamente. - Nós temos grandes planos para o futuro.
- Tenho a certeza de que têm - disse o senador num tom compreensivo. Dirigiu-se directamente a Stone: - Presumo que vão repetir ao Tio Dom os pormenores desta conversa?
- Sim - disse Stone -, temos de lhe dizer.
- Claro. E, por favor, digam-lhe que eu estou a acompanhar a situação, numa base quase diária, e que certamente os contactarei se ocorrerem alguns pormenores significativos. A Sra. Holloway visita-me aqui e telefona-me com frequência. Tenho a certeza de que ela me vê como um pai sensato, a quem pode recorrer para conselhos e opiniões. Ela é uma senhora muito inteligente, perspicaz e ambiciosa.
- Ela tem algumas ideias boas - disse Jimmy Stone.
- Claro que tem - disse Diedrickson, calorosamente. - Para além disso, sabe muito sobre assuntos financeiros e administração de negócios. Em todo o caso, ela está a manter-me a par de tudo o que se passa na EBH Enterprises. E eu, por minha vez, manter-vos-ei informados.
- Ficamos-lhe muito gratos pelo que está a fazer - disse Stone, olhando para o senador com curiosidade. - E sei que o Tio Dom também vai ficar agradecido. Falando por mim, deixe-me perguntar-lhe uma coisa: que pretende com isto?
Randolph Diedrickson soltou uma gargalhada profunda, estrondosa e ressoante que encheu o aposento.
- Claro - disse ele por fim -, e tenho a certeza de que o Tio Dom perguntará a mesma coisa. Quid pró quo. Uma coisa por uma coisa. Bem, poderia dizer-vos, meus senhores, que estou a prestar-vos este serviço por bondade, e pela minha profunda e duradoura amizade pelo Tio Dom. Mas se dissesse isso receio
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que pensassem que eu era um mentiroso ou um parvo, ou ambas as coisas.
Santangelo sorriu ao ouvir aquelas palavras, e até o carrancudo Jimmy Stone conseguiu torcer os lábios.
- Na verdade, há uma coisa - continuou o senador. - Não uma exigência, mas meramente um humilde pedido que gostaria que levassem ao conhecimento do Tio Dom. Garanto-vos que não resultará num grande lucro amanhã para vocês ou para mim próprio. Mas, dentro de vários anos, poderá vir a ser o melhor investimento que o Tio Dom jamais fez.
Diedrickson falou-lhes sobre o jovem e talentoso delegado do Ministério Público do distrito de Okeechobee.
- Podem ser feitas contribuições de centenas de maneiras diferentes - recordou-lhes ele -, para se manterem dentro da lei. Mas eu prefiro usar a palavra "investimento".
- Esse tipo é prático? - perguntou Stone.
- Eu só me encontrei com ele uma vez, mas a minha impressão... baseada nos meus muitos anos de associação com funcionários públicos... é de que ele é, eminentemente, um homem prático. Tudo o que estou a sugerir ao Tio Dom é que ele faça a sua própria investigação para atestar a lealdade desse homem. Se o Tio Dom desejar, eu poderei combinar um encontro pessoal e discreto. Posso pedir-vos para transmitirem o que acabei de vos dizer?
- Claro - disse Stone -, nós dir-lhe-emos.
- Excelente - disse Diedrickson, sorrindo abertamente. Acho que com a assistência do meu partido e da vossa, hum, organização, este homem poderá ter uma carreira muito bem sucedida, para benefício da nossa grande nação.
Depois, todos descontraíram e tomaram mais uma bebida.
Quando os convidados se levantaram para partir, Diedrickson conduziu a cadeira de rodas para a porta e estendeu uma mão para os deter por alguns instantes.
- Só quero deixar claro - disse ele - que todas as informações que puder dar-vos será graças à perspicácia e à vigilância de Jane Holloway. Ela é sem dúvida uma
jovem senhora notável, e talvez valesse a pena pensarem em como é que a sua ambição, inteligência e capacidade executiva poderiam ser aproveitadas.
Eles assentiram, apertaram as mãos e disseram que se manteriam em contacto. Stone e Santangelo percorreram a mansão sombria e vazia. Saíram para a luz do sol brilhante
e quente. O motorista uniformizado da limusina saiu da frescura do ar condicionado para lhes segurar a porta traseira aberta.
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Antes de entrarem no carro, Jimmy Stone pegou no braço de Santangelo.
- Ela anda a comê-lo - disse ele.
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Os consultórios do Dr. Theodore Levin estavam fechados aos sábados; nem ele nem a Dr.s Mary Scotsby viam pacientes aos fins-de-semana, excepto em casos de necessidade absoluta. Todavia, os dois psiquiatras passavam muitas horas do fim-de-semana a escutar gravações, a analisar casos e a actualizar os seus diários pessoais.
Naquele ano, a véspera de Ano Novo calhou a um sábado. Os médicos planearam passar a noite juntos numa celebração íntima: jantar no Down Under, um restaurante em Fort Lauderdale de que gostavam bastante, e depois talvez uma garrafa de vinho no Pier 66 ou um passeio até à ponte, em Boca Raton.
Levin tinha estabelecido uma rotina para os sábados de manhã. A mulher-a-dias, a
Sra. Lopez, chegava às nove horas e ia-se embora ao meio-dia. O médico usava aquele
período de tempo para as tarefas semanais: levar e ir buscar a roupa à lavandaria e para limpeza a seco, fazer compras de comida, bebidas e diversos, comprar revistas e livros, etc.
Como não tinha carro (não sabia conduzir nem queria aprender), ia às compras a pé, transportando um carrinho de duas rodas. Quando este era insuficiente para as suas compras, levava igualmente um saco castanho de papel com asas de corda.
Nessa manhã passou algum tempo na secção de charcutaria do supermercado Publix, onde habitualmente fazia as suas compras. A reserva para jantar no Down Under tinha sido feita para as oito da noite, mas Mary Scotsby tinha prometido vir buscá-lo às sete horas, por isso ele estava a pensar servir alguns aperitivos para lhes abrir o apetite.
Não era muito bom a receber visitas - nem em nada doméstico - e a enorme escolha de acepipes espantou-o. Por fim, seleccionou umas tostas de trigo, ostras fumadas, bombons de chocolate, caviar preto islandês, pequenas maçarocas de milho em conserva, uma lata da almôndegas suecas, salsichas de cocktail, arrenque em molho de endro, sardinhas portuguesas sem espinhas, pickles de alho, camarões pequenos, um pão escuro pequeno, alcaparras, um frasco de natas azedas, uma lata de
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nozes e cubos de queijo suíço, de cheddar duro e deMuenster. E também um pequeno frasco de mostarda da Luisiana em cujo rótulo se lia "da melhor qualidade".
A caminho de casa, comprou uma caixa de charutos (CuestaRey 95), e depois parou na loja de bebidas. Aí comprou um litro e meio do vinho ordinário de que gostava
e pediu ao empregado que lhe recomendasse um vinho branco seco e um champanhe. Estes dois últimos eram para a Dra. Mary Scotsby.
Lá em cima, o seu apartamento parecia tão desarrumado como sempre. A Sra. Lopez limpava o pó e aspirava e fazia um bom trabalho na cozinha e na casa de banho. Também
mudava todas as roupas de casa. Mas tinha ordens expressas para não tocar nas pilhas de livros, revistas e papéis, por isso os aposentos nunca pareciam limpos.
No aparador da cozinha ela tinha-lhe deixado uma pequena tarte de merengue de limão, caseira, e um cartão de Ano Novo em espanhol, de que ele gostou muito. Provou
uma fatia da tarte antes de a colocar no frigorífico. O sabor era tão ácido que lhe prendeu a boca.
Depois de arrumar as compras, acendeu um charuto e levou um pacote de bolachas e um copo de água cheio de vinho ordinário para a escrivaninha da sala de estar. Tirou o blusão de nylon, alargou o cinto e desapertou os atacadores dos macios ténis de corrida que usava quando descansava aos fins-de-semana. Nunca tinha corrido na
vida e não pretendia começar a fazê-lo.
Tinha um gravador de cassetes portátil, para além de uma sofisticada aparelhagem de alta-fidelidade que abrangia leitores de cassetes, Lp s, bobinas e cartuchos de oito pistas. Usava o pequeno gravador portátil para ouvir cassetes gravadas no consultório: o caso de Lucy B.
Agora já tinha mais de doze horas de gravações em cassetes, começando com a entrevista inicial com o Sr. e a Sra. Bending, e terminando com a mais recente sessão
com Ronald. O Dr. Levin calculou que conseguiria ouvir cerca de metade do material antes de ter de começar a preparar-se para a chegada de Mary Scotsby.
Estava à procura de... de quê? Não sabia ao certo. Uma pista, uma indicação, um sinal, uma intimação... algo que pudesse ter-lhe escapado na primeira audição. E ele sabia bem como era importante para o terapeuta ouvir apenas as palavras sem ser distraído pela aparência, gestos, expressões e movimentos corporais do analisando.
Não tinha grandes esperanças de encontrar alguma coisa de
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valor antes de ouvir as doze horas de gravações. E talvez não uma vez mas duas ou três vezes.
Mas estava a ouvir há três horas e a terminar o segundo copo de vinho (o charuto e as bolachas já tinham desaparecido há muito tempo) quando descobriu. Bateu com a palma da mão na testa, de tal forma estava chateado por não ter percebido antes.
Levantou-se e olhou para o relógio. Tinha cerca de quatro horas antes de a Dr.ê Scotsby chegar. Pensou que talvez conseguisse fazer o trabalho até lá.
Colocou uma cassete virgem no gravador grande e começou a gravar sessões das cassetes do consultório. Trabalhou freneticamente, por vezes passando rapidamente a fita no gravador portátil para encontrar as partes que queria. Enquanto gravava, prefaciava cada sessão com a sua própria voz, identificando o orador e o número da cassete.
Terminou alguns minutos depois das seis horas, e, com os sapatos desapertados, correu para a cozinha para começar a abrir frascos, latas, garrafas, pacotes. Estendeu uma toalha de papel na mesa de nogueira da sala de jantar. Pousou tudo dentro dos recipientes, acrescentando alguns talheres e pratos de papel e afastou-se para admirar o efeito. Um festim!
Tomou apressadamente um duche, passou alguma colónia na barba e estava meio vestido quando a campainha da porta tocou. Correu, descalço, para abrir a porta, com a camisa desabotoada, os fortes pêlos do peito tempestuosamente espetados.
A Dr.ã Mary Scotsby, parecendo alta, magra, angularmente elegante, trazia um vestido até aos tornozelos de veludo cor de vinho. Num braço, com uma corrente, pendia uma bolsa bordada e com franjas, de cerca de 1912. Também trazia uma caixa embrulhada em papel colorido. Saltos altos faziam-na parecer uma torre.
- Feliz Ano Novo, Ted - disse ela, sorrindo.
- Obrigado, obrigado! - exclamou ele, pondo-se em bicos de pés para lhe beijar a bochecha. - Entra, entra!
- Meu Deus! - disse ela, olhando para ele com curiosidade.
- Esta noite estamos muito excitados.
- Vais ver - disse ele, sorrindo ansiosamente. - Ou, melhor, vais ouvir. Mais tarde.
- De que raio estás tu a falar? Não estás bêbado, pois não? Ele levou-a para dentro, fechou a porta e tirou-lhe o xaile de
cachemira, a pesada bolsa e o pacote - que era uma garrafa de champanhe. Depois, levou-a para a sala de jantar.
- Olha - disse ele, orgulhosamente, fazendo um gesto grandioso
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e abrangente para a mesa cheia de coisas. As latas abertas, os frascos, os pacotes, as garrafas. Como ela se riu!
- Oh, Ted - disse ela -, é maravilhoso. Não tereinos de sair para jantar.
- Não digas disparates - disse ele, asperamente. - É só um aperitivo. E agora tenho vinho branco para ti. Está bem? E também comprei uma garrafa de champanhe, mas
beberemos essa e a tua mais tarde. Está bem? vou pôr a tua a refrescar. E vou servir-te um copo de vinho branco agora... o homem disse que é muito bom, muito seco... e eu vou acabar de me vestir. Só demoro alguns minutos. Está bem?
- Ted - disse ela, tocando-lhe no rosto -, não te importas de te acalmar? A noite está apenas a começar.
- Venho já - disse ele por cima do ombro, afastando-se apressadamente para o quarto. - Prova as ostras.
Vestiu o seu melhor fato preto, o mais novo, com uma camisa castanho-avermelhada e uma gravata de malha preta. Vestiu-se à pressa e voltou a correr para a sala de estar, gritando:
- Esqueci-me de te trazer o vinho!
Mas Mary já tinha encontrado a garrafa, tinha-a aberto e servira-se de um copo de vinho.
- É bom? - perguntou ele, ansiosamente.
- Excelente - assegurou-lhe ela. - Muito seco. E já provei tudo. Tens de provar aqueles camarões pequenos, Ted.
- Oh, sim - disse ele, gulosamente, e atirou-se a eles. Comeram demoniacamente, não muito de cada coisa, mas
beliscando aqui e ali. Não tentaram conversar, limitando-se a dizer "Ooh" e "Umm", e sentindo um prazer perverso na estranha mistura de sabores.
- Chega - disse, por fim, Mary Scotsby firmemente. Temos de ir jantar.
- Sim, sim, claro - disse ele. - Não nos podemos atrasar. Ele nunca se atrasava, nem sequer para uma reserva num
restaurante. A pontualidade era um fetiche. Quando tinha de viajar, chegava ao aeroporto duas horas antes da descolagem. E quando tinha um encontro pessoal chegava frequentemente meia hora antes e andava às voltas pelo quarteirão até à hora combinada.
Enfiou uma última almôndega na boca, limpou a barba a um guardanapo de papel, e:
- Vamos!
- Não vais arrumar isto tudo? - perguntou ela. -Vão aparecer baratas - avisou ela.
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- Não faz mal - disse ele, rindo-se. - É véspera de Ano Novo; vamos divertir-nos.
Nunca antes o tinha visto com uma disposição tão excêntrica.
A Dr.s Scotsby tinha um Ford Mustang coupé acastanhado. Conduzia como fazia tudo o resto: friamente, eficientemente, com precisão.
- Muito bem, Ted - disse ela, virando habilmente para a faixa da esquerda na Estrada Federal -, que se passa?
- Que se passa?
-A tua histeria. Ainda não paraste de rir desde que cheguei.
- Por que é que eu não deveria rir? Estou com uma mulher bonita... a propósito, o teu vestido é lindo... e é véspera de Ano Novo, e vamos sair para comemorar.
Ela derreteu um bocadinho.
- És amoroso por dizer isso, mas és um terrível mentiroso, Ted. Verdadeiramente incompetente. Tem alguma coisa a ver com trabalho, não tem?
- Bem... talvez.
Ela ficou calada durante alguns instantes, a pensar, e ocupada a virar para leste, em direcção a Ocean Park Boulevard. Depois...
- O caso de Lucy B. - disse ela, convictamente.
- És tão esperta - disse ele. - És tão diabolicamente esperta que me assustas.
- Conta-me tudo.
- Mais tarde - disse ele. - Vamos ter um jantar bom e descontraído. Não falaremos de trabalho. Depois do jantar, em vez de irmos a outro sítio qualquer, gostaria de ir para casa, para o meu apartamento. Há uma coisa que quero que oiças. Está bem?
- Está bem - disse ela, calmamente. - Temos todo aquele vinho e duas garrafas de champanhe. Isso deve dar-nos até à Passagem do Ano.
A noite estava fresca, mas Levin quis sentar-se na esplanada no canal. Enrolando o xaile de cachemira em volta dos ombros ossudos, a Dr.s Scotsby assegurou-lhe que não teria frio. Assim, foi onde se sentaram, a alguns centímetros da água, observando os barcos a passar de um lado para o outro e ouvindo os gritos festivos e gargalhadas ébrias dos seus ocupantes.
Mary fez o pedido, porque tinha muito mais jeito para isso do que ele. Depois de todos aqueles aperitivos, resolveu que o jantar deveria ser simples: costeletas de borrego e uma salada Caesar para os dois. E rigorosamente mais nada. A não ser uma garrafa de vinho tinto californiano e, com o café, um forte e escuro rum com gelo.
Durante a descontraída refeição, não falaram uma única vez
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de trabalho. Mas a conversa nunca esmoreceu. Falaram principalmente sobre o casamento. Levin tinha-se declarado, não várias vezes, mas continuamente. Scotsby acreditava que ele ficaria mais bem servido com uma empregada a tempo inteiro.
Era uma discussão que se mantinha praticamente desde que se tinham conhecido. Nenhum deles se cansava; ambos gostavam. Sabiam que era um laço de intimidade entre ambos. Eram mais íntimos que muitos casais que conheciam - havia uma perseguição incessante e amorosa.
- Cansavas-te de mim - disse-lhe ela. - Mais tarde ou mais cedo.
- Nunca - garantiu ele.
- Oh, sim. E depois quererias um borracho com um biquini fio-dental. Do tipo que excita o Al Wollman.
- Deus me livre!
- Não sei o que vês em mim - disse ela, francamente.
- Eu sei - disse ele.
E, à luz bruxuleante da vela, ela não era uma mulher feia. Era subtilmente atraente. O brilho difuso suavizava-lhe os ângulos e os cantos e os bicos. Os cabelos castanho-rato ficavam com brilho; a pele pálida e sardenta com lustro.
Aquela luz suave toda a aspereza do seu rosto e corpo era amaciada. Naquele momento, ela parecia-lhe muito desejável. Queria que dormisse em sua casa naquela noite e disse-lho.
- Veremos - disse ela, brindando-o com um sorriso entorpecido.
Voltaram para o apartamento dele sem contratempos, o que os surpreendeu. Estavam ambos conscientes de não estarem a funcionar de uma forma totalmente racional. O vinho, sem dúvida.
Todos os aperitivos na mesa da sala de jantar estavam a endurecer e a ficar acastanhados.
- Vês? - disse Levin. - Não há baratas nenhumas. Taparam tudo e enfiaram todos os recipientes no frigorífico.
Decidiram que uma taça de champanhe gelado seria apropriado. Mary Scotsby abriu a garrafa - Levin era um desastre em tudo o que fosse mais complicado do que um abre-cápsulas - e encheu duas bonitas taças de cristal que lhe oferecera no dia do aniverário.
Ela ergueu a sua taça.
- Feliz Ano Novo, Ted.
- Feliz Ano Novo, Mary - respondeu ele, engolindo, não bebericando.
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- Agora - disse ela vivamente, muito profissional. - Que querias que eu escutasse?
De repente, a confiança e o entusiasmo dele desapareceram. Encheu-se de dúvidas. Pensou, infeliz, que na verdade era um elo muito frágil para se apoiar. Era mesmo ridículo. A Dr.s Mary Scotsby brindá-lo-ia com um dos seus olhares torcidos e irónicos e pensaria que ele era um idiota.
- Provavelmente, não é nada - murmurou ele.
- Se eu achar que não é nada - disse ela - digo-te. Mas pelo menos dá-me a hipótese de julgar.
- Bem... está bem - disse ele. - É só uma cassete que eu montei. Excertos de várias entrevistas do caso Lucy B.
- Vamos ouvir.
- Senta-te aqui no sofá. Eu ponho o champanhe no chão... aqui. Serve-te quando quiseres.
- Está bem.
- Queres descalçar-te? Se quiseres...
- Ted! - explodiu ela. - Não te importas de parar de empatar e de ligar a merda do gravador?
- O quê? Sim. Claro. Agora mesmo. vou ligá-lo agora mesmo. Lá vamos nós...
A voz dele foi a primeira a ouvir-se. Pontifical. Os tons imponentes de um apresentador de televisão.
O primeiro excerto [disse ele] é da primeira entrevista com o Sr. e a Sr.- Bending. Cassete L. B. Um.
Grace: Bem, nos últimos três anos, desde que fez cinco, ela... Ronnie, não achas que começou há três anos?
Ronald: Talvez há mais tempo. Talvez desde os quatro anos.
Grace: Doutor, ela tornou-se cada vez mais, hum, afectuosa. Está sempre a abraçar e a beijar. Colada às pessoas. Tornou-se muito... física, e está sempre a tocar
e a acariciar. Por vezes, de uma forma ordinária.
Depois ouviu novamente a voz do Dr. Levin, com uma entoação de locutor:
O segundo excerto é da cassete L. B. Três: uma consulta com Grace B.
Levin: Ela faz chichi na cama?
Grace: Não. Agora não. Mas antigamente fazia.
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Levin: Quando foi isso? com que idade? Grace: Até há cerca de três ou quatro anos. Nessa altura fazia chichi na cama regularmente. Levin: com que frequência? Grace: Talvez duas ou três vezes por semana. Levin: Mas não recentemente? Grace: Não. Levin: Nada? Grace: Não.
Levin: Simplesmente parou? Grace: Sim.
O excerto seguinte [anunciou cavamente a voz do Dr. Levin], é da cassete L. B. Quatro. Sujeito: Ronald B.
Levin: A sua mulher teve sempre falta de interesse nas relações sexuais?
Ronald: Meu Deus, não! Ela costumava ser de mais para mim.
Levin: Então a sua, hum, frieza é um acontecimento recente?
Ronald: Bastante recente.
Levin: Até que ponto?
Ronald: Digamos, cerca de, oh, três ou quatro anos.
O Dr. Levin introduziu o segmento seguinte:
Da cassete L. B. Seis, uma consulta com Lucy B.
Lucy: Bem... percebe... a minha mãe não é a minha verdadeira mãe. A minha verdadeira mãe está morta. Morreu num trágico acidente de viação.
Levin: Quando é que isso aconteceu, Lucy?
Lucy: Há muito tempo.
Levin: Há quanto tempo?
Lucy: Oh, talvez há cinco anos.
E, agora [disse a voz do Dr. Theodore Levin], um curto excerto da cassete L. B. Sete. O sujeito, Wayrie B., doze anos de idade.
Wayne: Filho da puta! Seu merdas miserável! Não chorava desde os oito anos. Seu miserável filho da mãe!
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O excerto final [disse o Dr. Levin] é da casssete L. B. Oito, uma sessão com a Grace B.
Levin: [...] a que igreja pertence?
Grace: Oficialmente, sou presbiteriana.
Levin: Oficialmente?
Grace: Era a igreja dos meus pais. Sou um membro registado e continuo a frequentá-la fielmente. No entanto, comecei a interessar-me por outras crenças e fés, e, por vezes, também frequento as suas reuniões.
Levin: Estou a perceber. E há quanto tempo é que faz isso?
Grace: Faço o quê?
Levin: O seu interesse noutras crenças e fés fora da Igreja Presbiteriana... quando é que isso começou?
Grace: Oh... talvez há quatro ou cinco anos.
Depois, o Dr. Levin esticou-se e desligou o gravador. Em seguida voltou a recostar-se, fez uma tenda com as mãos e olhou para a Dr.ê Mary Scotsby por cima das pontas dos dedos.
- É isso - disse ele -, por enquanto. Que achas? Ela levantou-se de repente.
- Tenho de ir à casa de banho. Já volto.
Enquanto ela esteve ausente, ele voltou a acender o charuto apagado e encheu os copos de ambos com mais champanhe. Ela voltou, passando pela sala de jantar, para trazer a bolsa bordada. Procurou um cigarro e acendeu-o. Depois, pôs os óculos de aros metálicos e olhou atentamente para Levin.
- Ted, deixa-me ter a certeza se estamos na mesma onda. Tu estás a basear-te em algum cataclismo familiar, numa experiência traumática que afectou pais e filhos... alguma coisa que aconteceu há cerca de quatro anos?
- Tem de ser - disse ele, assentindo. - Há quatro ou cinco anos. Todos são muito vagos acerca da data exacta. O acontecimento foi banido; ninguém se quer recordar disso. Mas aconteceu.
- Não poderia ser coincidência - disse ela, meio declaração, meio pergunta.
- Não - disse ele -, acho que não. Não com seis referências ao mesmo espaço de tempo. Isso ultrapassa os limites da coincidência.
A Dr.s Mary Scotsby bebericou o seu champanhe, contemplando pensativamente Levin por cima dos aros dos óculos.
- Muito inteligente, Ted - disse ela -, teres detectado isso.
- Concordo - disse ele, sorrindo.
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- Um episódio sexual-sugeriu ela. - Testemunhado pela Lucy?
- Creio que sim - disse ele. - Possivelmente, provavelmente na sua própria casa, no quarto dos pais. Mas não, juraria, entre os pais. Ouviste a cassete com a Lucy na qual ela descreve uma fantasia do que gostaria de fazer comigo se o pai dela estivesse ausente?
- Ouvi.
- O diálogo que ela usou era um diálogo de adultos. Muito realista. Muito credível. Acho que estava a repetir frases que escutou, um acontecimento que testemunhou realmente.
- Entre quem?
- Ouviste a gravação da minha última sessão com o pai?
- Não, ainda não cheguei a essa.
- Quero passar uma parte para tu ouvires. Só demora alguns minutos.
Encontrou a cassete L. B. Onze, passou-a rapidamente no gravador portátil até chegar à parte que queria. Queria que a
Dra. Mary Scotsby ouvisse a conversa de Ronald
Bending sobre "o tubo de carne".
Quando acabou, ela riu-se suavemente.
- Um homem sincero - disse ela. - Aparentemente, um dissoluto.
- Sim - concordou Levin. - Noutra parte desta gravação ele nega indignadamente alguma vez ter tido um caso extracurricular em sua casa. Mas acho que podemos ficar com um pé atrás. É um homem que admite desejar ansiosamente as jovens na praia, querendo comê-las ali mesmo na areia.
Ela pensou durante alguns instantes, franzindo o sobrolho.
- Então, Ronald leva um dos seus borrachos para casa?
- Ou é uma festa - sugeriu Levin. - Todos um pouco bêbados. Inibições afastadas. Ronald leva uma das convidadas do sexo feminino para o quarto principal. O quarto
da Lucy é ao lado. A Grace disse-me isso; está gravado. E Ronald e a convidada dão uma queca enquanto a Lucy escuta no quarto ao lado ou espreita pelo buraco da
fechadura. Seja o que for.
- E ouve ou vê a mulher fazer ao pai o que ela, Lucy, tem andado a fazer desde essa altura?
- O que ela quer fazer. Ao pai. Todos os outros homens têm sido substitutos do pai.
Mary Scotsby estava perturbada.
- É terrivelmente claro, Ted.
- Cobre todos os ângulos - argumentou ele. - Presumindo que toda a família soube o que aconteceu: o pai envolvido numa
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experiência sexual com uma mulher estranha no quarto da mãezinha e do paizinho. Justificaria o comportamento subsequente da Lucy, o facto de a Grace procurar formas
alternativas de ajuda espiritual, de o Wayne nunca chorar e tornar-se um misantropo juvenil. Harry, o filho mais novo, tinha apenas um ano na época, e, provavelmente, não tem recordações subconscientes. Mesmo assim, acredito que é possível que também ele tenha sido afectado pelo frio clima de indiferença entre os pais que resultou daquele episódio.
- Uma solução elegante - admitiu ela.
- Então, que é que te incomoda? - perguntou ele.
- Seguramente, Ronald Bending já tinha sido culpado de adultério antes? Quero dizer, não começou com um acontecimento único há quatro anos.
- Correcto. Ele admite que foi infiel desde o dia em que se casou. Mas a injúria física especial à mulher e aos filhos foi causada pelo lugar que ele escolheu para aquela sedução: o lar, o sítio sagrado.
- Hum - disse ela. - Podes ter razão.
Ele levantou-se para esvaziar a garrafa de champanhe no copo dela. Ia a caminho da cozinha para ir buscar a segunda garrafa quando ouviram o súbito soar de buzinas, de apitos de barcos. Foguetes estouraram algures ao longe. Viraram-se para olhar um para o outro.
- É meia-noite - disse ela. - Feliz Ano Novo, Ted. Ainda com a garrafa vazia na mão, ele dirigiu-se para ela. Ela
levantou-se da cadeira para o abraçar.
- Feliz Ano Novo, querida - disse ele. - Casas comigo?
- Não - disse ela -, mas gostaria de foder.
Levaram a garrafa cheia para o quarto. O vinho não estava suficientemente frio, por isso serviram-no sobre cubos de gelo; não se importaram.
Despiram-se lentamente, conversando sobre o que poderiam fazer no dia de Ano Novo: um piquenique, um passeio de carro às Keys, ou apenas um dia caseiro e descansado com os jornais de domingo, beliscando todos aqueles restos de aperitivos.
O acto de fazer amor começava sempre com teatro: protestos e gritos de terror simulados por ambos. Que casal! Ele tão forte e peludo, ela tão magra e sardenta. Aquela disparidade divertia-os. Na verdade, não conseguiam levar-se a sério. Mas ali estavam eles. E partilhavam risadas.
- Sabes - disse ela -, eu nunca contei isto a ninguém a não ser ao meu analista, mas uma das razões, a verdadeira razão por que quis ser psiquiatra foi porque era sexualmente muito frustrada
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e inesperiente. Queria saber tudo sobre o assunto e pensei que, ouvindo os tarados sexuais confessarem-se, poderia aprender algumas boas dicas.
- E aprendeste? - perguntou ele.
- Oh, sim. Como masturbar-me enquanto pegava fogo a um armazém. Como encher a vagina de uma mulher com Hershey Risses.
- Primeiro tira-se a película?
- É melhor dessa forma-disse ela solenemente, e gemeram e abraçaram-se.
Na cama, os seus modos frios, precisos e dominadores dissolveram-se e o seu corpo ossudo e estranho moveu-se sensualmente. A pele pálida e brilhante tornou-se febril,
os seios duros derreteram. Abria-se.
- Transformo-me num cachorrinho - admitira ela uma vez.
Ele gostava de a contemplar durante o orgasmo. Acontecia uma coisa maravilhosa e assustadora. A pele dela parecia ficar translúcida e um esqueleto brilhava através
dela. Ele imaginava que ela se tornava uma essência, dentes expostos, olhos brilhantes. Falava coisas imperceptíveis. Ele pensou que era quase uma excitação religiosa.
Depois, ela bebeu outra taça de champanhe e anunciou, amuada, que queria dormir um pouco. Ele virou-se obedientemente para o seu lado, e ela encaixou-se nas suas
costas, aderindo como uma luva. A mão livre segurou-lhe os testículos com dedos longos.
Passado algum tempo ouviu respirar profunda e regularmente e soube que estava a dormir. Mas ele ficou acordado, a pensar no caso de Lucy B., testando a sua hipótese,
reflectindo sobre o que poderia fazer para a provar.
Talvez fosse de toda aquel a comida suculenta, de todo aquele bom vinho, mas sentiu-se invadido pela depressão pós-coital. Apeteceu-lhe chorar por ele próprio, por Mary Scotsby, e, especialmente, pela pequena Lucy B., aquela pobre e perturbada criança.
"Como todos nós", pensou ele, taciturnamente, "criaturas de sorte e acaso, vítimas de receios que não podemos nomear, guiados por necessidades que não podemos compreender, atravessamos a vida a correr e a cair, chorando de dor e rindo às gargalhadas. Somos todos filhos das trevas, inventando as histórias das nossas vidas."
QUINTA PARTE
No princípio de Janeiro houve uma semana em que as nuvens se dissolveram, o céu parecia cinzelado e o sol era uma rodela cortada de papel cor de limão e colada lá em cima. Turco Bending disse quê parecia um desenho de recortes de Matisse.
O ar era tão puro e transparente que as luzes de Lighthouse Point nunca piscavam e as gaivotas a voar estavam pintadas no azul. Os dias estavam suficientemente quentes para ir à praia e as pessoas falavam de "noites de um cobertor". Toda a gente sabia que não iria durar, mas foi glorioso enquanto se manteve.
Havia algumas pequenas caravelas na areia e muitos pedaços de alcatrão. Mas, mesmo assim, os nadadores iam para a água e os mergulhadores também, e, quando as ondas estavam boas, os surfistas. O dirigível da Goodyear estava no ar quase todos os dias, baloiçando ao vento.
O Ano Novo trouxe um novo desporto - "caça de fardos". "Navios-mãe" de transporte de droga passavam por aquela extensão de costa vindos da América Central. Num ponto de descarga combinado (ou quando perseguidos pela Guarda Costeira), atiravam ao mar os seus fardos de contrabando à prova de água.
A maior parte da marijuana era apanhada por contrabandistas de droga em barcos a motor, que vinham das baías da Florida. Mas alguns dos fardos eram perdidos e davam à costa com a maré. Daí "caça aos fardos". Os miúdos iam para o mar emHobbie Cats ou em pequenos barcos com motores de popa, armados com croques, ansiosos por apanhar os despojos. As vezes conseguiam.
Durante aquela semana, em que o tempo esteve exactamente como era publicitado nas brochuras das agências de viagens, Teresa Empt e Edward Holloway tiveram unicamente um encontro no mirante. E não foi por falta de interesse da parte dele, mas sim porque Teresa andava a passear.
Tinha descoberto um mundo completamente novo no sul da Florida, um mundo de mulheres ricas e maduras e de rapazinhos
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sem dinheiro e viris. Alguns destes últimos trabalhavam como nadadores-salvadores, professores de dança, cabeleireiros ou empregados de bar. Mas muitos eram simplesmente
vadios de praia, à espera de que aparecesse a próxima patrocinadora.
Teresa estava de olho num arrumador de compras de um supermercado local. Tinha aproximadamente mais cinco anos que Eddie Holloway e muitos dos mesmos atributos físicos: cabelos loiros e compridos, pele suave e bronzeada, um corpo alto e esbelto. Tinha mais presença e encanto do que Eddie.
O arrumador de compras chamava-se Mike. Ajudava frequentemente Teresa a levar o carrinho de compras para o parque de estacionamento. Ele aceitava as suas gorgetas generosas com gratidão, um sorriso gracioso (como torrões de açúcar, aqueles dentes) e um desejo fervoroso de que ela tivesse um bom dia. Ela tinha a certeza de que teria sorte com ele.
Mas ainda não estava preparada para dar o passo. Por isso, concordou em encontrar-se com Eddie no mirante, embora a
ganância dele estivesse a ficar cada vez mais descarada. Encontraram-se, como sempre, pouco depois das nove da noite, ambos ainda inconscientes do observador silencioso.
Eddie não perdeu tempo a fazer o pedido. Disse que Tony Sanchez tinha vários possíveis compradores para o Hobbie Caí. Ele achava que Tony talvez aceitasse oitocentos em dinheiro, se o negócio pudesse ser fechado imediatamente.
- E caçar fardos! - disse Eddie, entusiasmado. - Se eu tivesse aquele barco agora, podia ir procurar fardos. Conheço um tipo que apanhou vinte cinco quilos de material a semana passada. Está a fazer uma fortuna a vender o produto na escola.
- Uh-huh - disse Teresa Empt.
- Escuta -disse Eddie, magoado -, eu não estou a tentar pressionar-te. Se não estás interessada, diz-me. Eu arranjo o dinheiro de outra maneira.
- Claro que estou interessada - disse ela, acariciando-lhe ternamente o rosto. - Quero que sejas feliz, Eddie. Tu sabes isso.
- Bem, sim, claro - disse ele, resmungando. - Mas às vezes não parece. Quero dizer, o dinheiro não é assim tão importante para ti... ou é?
- O dinheiro é sempre importante - disse ela, rindo alegremente. - Não é para deitar fora. As pessoas tentam investi-lo de uma forma sensata.
- Bem, este investimento seria sensato. Tu disseste que me amavas. Quero dizer, ouvi-te dizer isso... certo? Por isso,
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Oitocentos não me parecem grande coisa se estás realmente apaixonada por mim.
- Oh, Eddie - disse ela suavemente -, há tantas espécies de amor.
Ela tinha vestido uma saia traçada, não tinha nada por baixo e queria que ele brincasse com ela. Pegou-lhe na mão e colocou-a em posição.
- Sê bom para mim - disse ela, rindo -, e eu serei boa para ti.
Ele não ficou completamente satisfeito com aquele vago negócio, mas não estava preparado para se levantar e afastar-se, indignado.
- Sabes uma coisa? - disse ela, pensativamente. - No outro dia conheci uma mulher que teve vários amantes. Contou-me que diz a todos eles: "Põe-no em pé ou põe-te a andar." Não é engraçado, Eddie?
- Sim - disse ele, pesarosamente -, é engraçado. E redobrou os seus esforços. Algum tempo depois, quando estavam ambos nus da cintura para baixo, ela sentiu curiosidade em saber até onde o levaria a ganância. Deu-lhe ordens e descobriu que esta o levava realmente muito longe.
"Faz isto, Eddie", disse-lhe ela, "ou faz aquilo." E, após uma hesitação inicial, ele obedecia. Aquele domínio sexual absoluto era uma experiência nova. Uma parte
dela conseguia observar objectivamente o processo, intrigada, e outra parte estava excitada e deixava-se ir. "Faz isto, Eddie. Faz aquilo."
No fundo, admitiu ela, não era completamente satisfatório. Na verdade, ela não queria sugerir nem mandar. Desejava um amante demoníaco que soubesse tocar o seu corpo com a forma de um violoncelo como um maestro.
Entretanto, foi dizendo a Eddie Holloway o que devia fazer, sentindo um prazer distante e fugaz, mas sem estar realmente envolvida. Por isso, quando o guiou para
dentro de si e se moveu para acompanhar as investidas frenéticas dele, pensou carinhosamente em Mike, o arrumador de compras, e sentiu-se razoavelmente feliz.
Depois, quando estavam deitados lado a lado, temporariamente cansados, acenderam um charro e fumaram em silêncio durante algum tempo. Depois, ele começou novamente a divagar sobre aquele estúpido barco e ela decidiu que estava aborrecida. Começou a vestir-se.
- Tenho de me despachar - disse ela. - O meu querido maridinho deve estar a chegar a casa e vai ficar admirado se eu não estiver.
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- Ainda temos quase meio charro - disse ele, quase zangado.
- Acaba-o tu, Eddie.
- vou ver-te novamente?
- Claro - disse ela, dando-lhe uma palmadinha no ombro.
- Vamos encontrar-nos e falar sobre esse teu maravilhoso barco.
- Escuta - disse ele em voz rouca -, achas mesmo que podes arranjar a massa? Quero dizer, se não puderes diz-me para eu poder fazer, hum, outros planos.
- Depois falamos nisso, Eddie. Da próxima vez.
Ele soergueu-se, apoiando-se no cotovelo, e ficou a vê-la afastar-se e desaparecer na escuridão. "Puta!" No entanto, tinha de admitir que ela era um pedaço de mulher. Um corpo espantoso para uma velha.
Estava ali deitado, a fumar o resto do charro, quando Wayne Bending apareceu vindo do nada e ficou parado à sua frente, olhando-o.
- De onde raio é que vieste? - perguntou Eddie.
- Estava só a dar um passeio - disse Wayne em voz baixa.
- Tretas! - disse Eddie. - Estiveste a espiar-nos, aposto. Wayne sentou-se ao lado dele, tirou-lhe a beata dos dedos e
fumou.
- Desiste, meu - disse para Eddie. - Ela nunca te vai dar os dólares para o barco.
- Claro que vai - disse Eddie, confiante. - É apenas uma questão de tempo. Estou a convencê-la. Ela está pelo beicinho.
Wayne passou a beata a Eddie. Ficou sentado, a abraçar os joelhos.
- Tu é que estás pelo beicinho - disse ele. - Ela está a brincar contigo.
- Tu tens estado a observar-nos - disse Eddie Holloway. Jesus Cristo!
- Por favor - disse Wayne -, esquece-a.
- A ideia foi tua, parvalhão.
- Eu sei - disse Wayne, tristemente. - Estava enganado. Não resultou. Vamos esquecer tudo.
- Nem penses - disse Eddie Holloway. - Ela é boa para alguns dólares; eu sei.
Wayne inclinou-se sobre ele.
- Ela está a ter o que quer, mas tu não. Não percebes isso? E quanto a nós?
- Bem... - disse Eddie, preguiçosamente -, quanto a nós o quê?
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- Eu pensei que nós, hum, que nós tínhamos alguma coisa.
- Merda, isso foi só para o gozo. Wayne olhou para ele.
- Só isso?
- Claro. Tu sabes. Estávamos os dois pedrados e não sabíamos o que fazíamos. Certo? Se contares a alguém dou-te oima tareia.
- Seu filho da mãe! - exclamou Wayne, e tentou dar um murro na virilha do rapaz.
Eddie virou-se a tempo de levar com o punho na anca. Ambos se puseram de pé. Olharam um para o outro, a tremer.
- Chupador de pilas!
- Filho da puta!
Atiraram-se um ao outro, furiosos. Braços a baloiçar. Pernas a erguer-se. Bateram. Afastaram-se. Pontapearam-se. Abraçaram-se. Dentes a brilhar. Olhos a chispar. Respiração sibilante. Dançaram. Dando murros. Dando murros.
- Comedor de merda!
- Lambedor de conas!
A fúria apoderou-se deles. Faiscaram, dispostos a matar. Agarraram-se um ao outro, tentando atingir olhos e testículos. Resmungando. Ofegando. Batendo com cotovelos e joelhos.
Edward Holloway, mais alto, mais pesado, mais velho, prevaleceu. Tombou o rapaz mais baixo, bateu-lhe no nariz com a testa. Bateu com a cabeça de Wayne no chão duro. Esmurrou-o sucessivamente.
- Idiota! - não parava de resmungar. - Idiota de merda! Por fim, quando Wayne Bending ficou imóvel, Eddie Holloway
pôs-se de pé com dificuldade. Ficou a cambalear, olhando para o inimigo magoado. Deu-lhe um pontapé nas costelas.
- Idiota de merda! - murmurou ele de novo, e afastou-se pesadamente.
A lua estava ali, suspensa, e quando Wayne Bending abriu os olhos inchados pensou que estava a olhar para uma janela, um candeeiro numa janela. Depois focou e viu o telhado rendilhado do mirante. Sentiu dores.
Deixou-se ficar deitado, completamente imóvel, perguntando a si mesmo se seria possível ordenar a si próprio que morresse. Nunca lhe passou pela cabeça que poderia ser melhor que o rapaz que o tinha derrubado. Tudo o que sabia é que tinha sido derrotado. Não ele, fisicamente, mas o seu nobre amor.
Que coisa esplêndida que era morrer. Acabar com tudo. Dissolver-se em nada. Pôr um fim a todo o fingimento e traição. Flutuar para longe e sumir. As pessoas chorariam. Os pais. O
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irmão e a irmã. Durante algum tempo. Depois, seria como se ele nunca tivesse existido. Nenhum cuidado nem atenção.
Uma cobra deslizou-lhe pelo lábio; apercebeu-se de que o nariz estava a sangrar. Sentou-se a tremer e passou as costas da mão pelo rosto. Olhou para a mancha de sangue. Lá se ia o amor e a fidelidade. Tudo acabara numa mancha sangrenta.
Teria chorado, se tivesse permitido isso a si mesmo. Mas não permitiria. Mordeu a língua, apertou os punhos, contraiu os músculos e não chorou. Era uma pequena vitória, mas importante.
Algum tempo depois encolheu as pernas, levantou-se cuidadosamente e tentou esticar o corpo dorido. Olhou para cima e à sua volta. Nada mudara. A lua continuava a navegar. O céu estendia-se eternamente. Um vento soprava de lado nenhum para lado nenhum.
Cambaleou para casa, tentando esconder-se. O nariz tinha parado de pingar sangue, mas havia marcas nas maçãs do rosto, no queixo, nas costelas. Os testículos doíam-lhe muito, mas achou que seria uma dor passageira. Não importava.
Nada importava.
Num dia chuvoso, o céu tão descolorido como a pele de um elefante, Lloyd Craner foi buscar Gertrude Empt e convidou-a para dar um passeio no seu Buick antigo.
- Por que não? - disse ela jovialmente. - Talvez possamos ver melhor aqueles apartamentos do motel onde está a pensar meter-se nas minhas calcetas.
Era a primeira vez que ela manifestava um verdadeiro interesse e ele teve o cuidado de não demonstrar surpresa ou alegria.
- Está bem - disse ele. casualmente. - Vamos ver o sítio e depois talvez tomemos a AIA para irmos almoçar ao Sea Watch.
- Desde que seja você a pagar - disse ela.
Seguiram lentamente para sul, com os limpa pára-brisas a funcionar e os faróis acesos porque estava um dia sombrio e nevoento e o céu granuloso e escuro.
- Lembra-se do outro dia? - perguntou ela. - Estávamos a falar sobre os miúdos?
- Lembro - disse ele.
- Eles têm as suas próprias vidas para viver - disse
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ela -, e podem seguir o seu caminho; não me importo. Mas às vezes tenho pena deles.
- Oh? Porquê?
- Olhe para os seus netos. E para os filhos dos Bending. Eles não parecem estar a receber grande coisa da vida. Oh, merda, bem sei que todos os miúdos se sentem infelizes de vez em quando. Eu senti. Mas a estes miúdos parece que falta toda uma parte da vida.
- Inocência - disse ele. - Não têm inocência, a melhor parte da juventude. Parecem ter nascido velhos.
- Se o diz - disse ela. -Você é que é o professor. Tudo o que eu sei é que eles correm por aí seminus, a fumar os seus charros de marijuana, e se ainda são virgens aos dez anos calculam que têm algum problema. Sabe uma coisa? Ainda bem que sou velha. Não gostaria de ser um miúdo nos dias de hoje. É uma complicação.
O apartamento do motel que inspeccionaram era o apartamento de um quarto com uma cozinha suficientemente grande para uma mesa de refeições. O ex-polícia de Nova Jérsia, ou a mulher, obviamente, tinha uma paixão por cor-de-rosa.
- Podia-se perder um flamingo aqui - comentou Gertrude Empt.
Õ barrigudo dono mostrou-lhes orgulhosamente as instalações.
- Todos os vossos electrodomésticos modernos - disse ele.
- A vossa torradeira, o vosso copo misturador. O vosso aspirador. As vossas camas duplas com colchões anatómicos Sealy e cama de molas. O vosso televisor com comando à distância. O vosso aparelho de rádio no quarto. Despertador, naturalmente, com comando para tocar repetidas vezes.
- E quanto custa este palácio? - perguntou Gertrude.
- Quatrocentos e cinquenta por mês - disse o barrigudo -, com um contrato anual. Aluguer por dois anos. O preço inclui a utilização da piscina, shuffleboard, campo de ténis, pátio, duche exterior e por aí adiante. Pagam a conta da electricidade e do telefone. Estejam à vontade, amigos. Vejam o que quiserem. Eu agora tenho de ir. Fechem a porta quando saírem. Não encontrarão nenhum sítio melhor na Florida, isso garanto-vos.
Eles deambularam pelo apartamento, abrindo gavetas dos roupeiros, inspeccionando os armários da cozinha. O apartamento estava completamente mobilado com roupas de casa e todas as loiças e acessórios para a cozinha.
- Só precisamos de trazer as nossas escovas de dentes disse Craner.
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- Não há muito espaço nos roupeiros - disse Gertrude.
- Eu não tenho lá muitas roupas. E você? - Não - disse ela.
Ela experimentou uma das camas.
- Não é má - admitiu. - Firme. Como eu gosto.
- Bonita casa de banho - disse ele. - Pelo menos tem uma banheira.
- Acha que ele nos deixa mudar a decoração? - perguntou ela. - Livrarmo-nos deste cor-de-rosa repugnante? Se pintarmos a casa de branco, ela parecerá duas vezes maior.
- Tenho a certeza de que ele não se importaria - disse o professor -, desde que fôssemos nós a pagar a pintura.
Ele sentou-se na cama ao lado dela. Pegou-lhe na mão enrugada. Ela deixou-o segurá-la.
- Então? - disse ele. Ela suspirou.
- É uma decisão muito importante.
- Não é assim tão importante - disse ele suavemente. Qual é a pior coisa que poderia acontecer? Não resultar. Nesse caso, podia sempre voltar para casa do seu filho.
- Eu não - disse ela. - Uma vez que corto as amarras, estou solta.
- Eu esforçar-me-ia para as coisas resultarem - disse ele.
- Prometo-lhe. Suponho que somos ambos um pouco velhos para estarmos a falar em amor e paixão eterna. Mas sinto um verdadeiro afecto por si, Gertrude, e espero que sinta o mesmo por mim. Sente?
- Acho que sim - disse ela.
- Então, está bem - disse ele. - com um pequeno esforço e algumas gargalhadas, acho que podemos fazer isto resultar.
- Ah, merda! - disse ela, perturbada. - Não sei.
- Vamos almoçar alguma coisa - sugeriu ele.
Lá fora, observaram o recinto mais atentamente. Naquela chuva tristonha tudo parecia um pouco sujo. Mas não havia dúvida de que a piscina estava limpa, de que o campo de suffleboard fora pintado recentemente, o relvado cortado, as palmeiras aparadas.
- É agradável - disse ela. - Pequeno mas agradável.
- Como nós - disse ele.
- Sim - disse ela, rindo tristemente. - Exactamente como nós.
No restaurante, sentaram-se perto das grandes janelas panorâmicas, observando uma praia deserta e o mar semiencoberto
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pelo nevoeiro. O céu tinha clareado um pouco; algures lá em cima estava um sol. Mas o nevoeiro continuava a cair.
- ...caiu como a suave chuva do céu - disse Lloyd Craner. Gertrude disse:
- Aposto que é de Shakespeare.
- Tem toda a razão - disse ele, sorrindo. - O Mercador de Veneza. E que tal um Gibson puro?
- Essa também é de Shakespeare?
- Não - disse ele, rindo -, essa é minha.
- Bestial - disse ela -, mas prefiro com gelo. Beberam um segundo uísque, e depois pediram hamburgers
e uma salada. Entretanto, olharam para a paisagem bonita. Era elegíaca, pensou o professor. A cortina triste e a pingar. E, na areia molhada, os símbolos do restaurante: bote escavacado, âncora, várias coisas descoloridas. Tudo ferrugem, uso, idade.
Comeram a refeição em silêncio, sorrindo. Por fim, quando chegou a altura do café acabado de fazer e dos morangos frescos, ele observou-a atentamente e disse:
- Quer dizer-me alguma coisa?
- Não sei... Já passou tanto tempo desde a última vez que senti alguma coisa por um homem que é como se tivesse de aprender novamente como é que se faz. Só gostava de saber se acha que é possível. Entre nós, quero dizer.
Ele inclinou-se rigidamente para a frente e olhou-a nos olhos.
- Sim. Acho que é possível. Não há garantias, mas acho que é possível.
Depois, voltou a recostar-se na cadeira.
- E, agora - disse ele -, que tal um brande?
- Não há dúvida de que sabe conquistar o coração de uma rapariga - disse ela.
Ao verificar as marcações para aquele dia, o Dr. Theodore Levin reparou que a
Sra. Bending estava marcada para a três horas da tarde. Fez uma pausa e olhou para as estrelas de papel coladas no tecto do consultório.
Era espantoso como a familiaridade fomentava tantas vezes o respeito. No primeiro encontro tinha ficado com a impressão de que ela era uma mulher formal. Sessões subsequentes tinham
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suavizado aquele julgamento. Agora via-a mais suave, mais vulnerável. A sua busca de orientação espiritual tinha-se tornado comovente.
Que faz uma mulher que está ligada a um devasso sexual? Sobrecarregada com filhos perturbados com a hostilidade dos pais? Imitar o marido, pensou Levin, tornar-se tão devassa como ele. Ou pedir o divórcio. Ou o caminho que, aparentemente, Grace Bending tinha escolhido: o conforto de Jesus e a esperança de redenção.
Ou, pensou com alguma preocupação, enfiar um machado na cabeça do marido.
Avisou-se a si próprio, não pela primeira vez, dos perigos de pôr etiquetas. A sua disciplina, como todas as outras, tinha um vocabulário especial. Era necessário. Mas era perigoso categorizar. No seu ramo, as variações eram infinitas; não havia uma maneira simples de arquivar as coisas. Cada caso era diferente, cada caso era único.
Pousou o charuto no cinzeiro e estava a sacudir as cinzas das lapelas quando se levantou para cumprimentar a
Sra. Bending, às três horas em ponto.
Ele não ligava muito à moda (masculina ou feminina), mas pareceu-lhe que houvera uma transformação na forma de vestir da Sra. Bending desde a primeira entrevista.
Tal como os seus modos e reacções em relação a ele se tinham tornado mais calorosos, também os seus fatos tinham passado a ser mais suaves e delicados.
Naquele dia vestia um vestido camiseiro florido de um material muito fino que ondulava. As suas bonitas pernas estavam nuas e nos pés tinha umas sandálias às tiras. Os cabelos compridos estavam soltos e havia maquilhagem e vitalidade que ele nunca tinha notado antes. Ela parecia-lhe especialmente viva, alerta e ansiosa.
- Então - disse ele com o seu sorriso de grande bondade -, tem havido algumas alterações? Alguns incidentes novos envolvendo a Lucy?
- Absolutamente nenhuns, doutor - disse ela. - Na verdade acho que as, hum, conversas dela consigo têm-lhe feito um bem enorme.
Ele mexeu-se desconfortavelmente na cadeira giratória.
- Gostaria de aceitar os elogios, Sra. Bending, mas, honestamente, não posso.
- Bem, meu Deus, ela não se porta mal desde que começou a tratar-se com o senhor.
Ele suspirou.
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- Vai portar-se mal. Mais tarde ou mais cedo. Ainda não consegui estabelecer a causa da, ah, aberração dela. Até fazermos isso, não posso prometer melhoras. Não deverá ficar muito chocada se ocorrerem mais incidentes. A Lucy é uma criança muito perturbada e muito longe do ajustamento.
"E esta", pensou ele, sombriamente, "era a conversa de treta que tinha de se ter com os pais de miúdos doidos." Que significava "perturbada"? Ou "ajustamento"? Parecia calmo e autoritário. Mas resumia-se a uma pobre e possuída criança impelida por fúrias que ela (e ele) não podia compreender.
- Mas seguramente, doutor - disse Grace Bending, torcendo nervosamente a aliança de casamento -, o senhor fez alguns progressos?
- Talvez - disse ele, sem se comprometer. Que é que aconteceu à sua família há quatro ou cinco anos,
Sra. Bending?
Atirou-lhe a pergunta rapidamente, esperando conseguir provocar uma reacção espontânea. Pareceu-lhe vê-la contrair-se, mas não podia ter a certeza.
- Há quatro ou cinco anos? - perguntou ela. - Não compreendo.
Então, teve a certeza de que ela estava a empatar, a preparar a resposta.
- Há quatro ou cinco anos - repetiu ele pacientemente. Provavelmente, na sua própria casa. Um incidente que a Lucy testemunhou, ou de que teve conhecimento, que poderá ter despoletado o seu comportamento transviado.
Ela olhou fixamente para um ponto por cima da cabeça dele. Passou por todas as expressões de reflexão pensativa: cabeça inclinada, feições intensamente franzidas.
- Não me recordo de nenhum incidente desse género - disse ela. - Meu Deus, a Lucy não poderia ter mais de três ou quatro anos nessa altura. Não se lembraria de nada.
- Hum... - disse ele.
Pensou nos caprichos da memória. A sua primeira recordação era de lhe darem uma chávena de leite quente com um pedacinho de manteiga. Não conseguia lembrar-se de quando é que isso tinha acontecido, nem que idade tinha - quatro ou cinco anos, calculava -, mas ainda podia ver claramente aquela chávena de leite dourado e sentir o seu sabor.
Sabia que a maior parte das pessoas não conseguia recordar-se conscientemente de nada que acontecesse antes do quinto ano de idade. Isso não queria dizer que as recordações não estavam lá, escondidas, incrustadas. Perguntassem ao papá Freud.
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Mas, agora, face à obstinação da Sra. Bending, decidiu tentar outra abordagem.
- A senhora disse-me - disse ele -, que sabe que o seu marido lhe foi infiel em várias ocasiões.
A sua descontracção com a mudança de assunto foi evidente.
- Muitas - disse ela. - Muitas ocasiões.
- Não quero aprofundar assuntos que lhe causam sofrimento, mas há coisas que preciso de saber. Tem a certeza da infidelidade do seu marido?
- Sim.
- Faz alguma ideia de onde ocorreram esses incidentes?
- Onde? - perguntou ela, exaltada. - Onde? Em todo o lado, acho eu. Hotéis, motéis.
No carro dele. No escritório dele. Em qualquer sítio.
Ele calou-se durante alguns instantes, olhando fixamente para ela.
- Na vossa própria casa? - perguntou ele.
A reacção dela foi maior do que ele esperara. Ela sobressaltou-se, ruborizou-se, olhou em volta freneticamente como se estivesse à procura de uma saída.
- Ah... - disse ela. - Ah... Por que é que pergunta isso?
- O seu marido foi-lhe infiel na vossa própria casa? - persistiu ele.
- Não - disse ela em voz baixa, baixando a cabeça. - Não. Que eu saiba, não.
Perguntou a si mesmo por que é que ela teimava em defender o marido e resolveu atacá-la de uma terceira direcção, tentando levá-la a admitir a culpa do marido.
- Sra. Bending, durante a nossa primeira entrevista, o seu marido contou-me um incidente que ocorreu durante uma festa na sua casa. Ele apanhou a Lucy na cozinha com um dos vossos amigos. Um homem. Ele descreveu em grande pormenor exactamente o que a Lucy estava a fazer a esse homem. Lembra-se disso?
- Lembro-me de o Ronnie lhe ter contado, sim. Mas já lhe tinha dito que não testemunhei a cena.
- Mas acredita que esse incidente ocorreu?
- Sim.
- E quando, exactamente, é que isso aconteceu?
- No Ultimo Dia do Trabalhador. Tivemos um churrasco.
- Mas certamente já tinha havido incidentes semelhantes antes desse?
- Sim, mas nenhum tão... tão... tão nojento.
Levin reflectiu durante alguns instantes. Lembrou-se do que
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um professor lhe dissera uma vez: "Não há respostas erradas; apenas perguntas erradas."
- Sra. Bending, o homem que esteve envolvido com a Lucy no incidente da cozinha ainda é considerado um amigo por si e pelo seu marido?
- Bem, ele estava bêbado, sabe. Não sabia o que estava a...
- Ele ainda é considerado um amigo, Sra. Bending?
- Continua a frequentar a nossa casa, sim.
- Está a par de algum outro incidente entre a Lucy e esse homem?
- Não.
- Agora, quero que pense cuidadosamente e que tente recordar-se: quando é que se apercebeu pela primeira vez de que o comportamento da Lucy era anormal?
- Oh - disse ela, vagamente -, talvez há quatro anos. Aproximadamente.
- E houve algum episódio específico que a convenceu de que ela poderia precisar de ajuda?
- Bem... o Ronnie convidou alguns homens para irem lá a casa, e eles estavam sentados no terraço, a tomar umas bebidas. Eu estava na cozinha a fazer sanduíches. A Lucy devia estar na cama há horas. Mas, de repente, apareceu no terraço. Tinha despido todas as roupas.
- Compreendo. E nessa altura tinha cerca de quatro anos?
- Mais ou menos. Talvez um pouco mais velha.
- E que aconteceu então?
- Todos os homens se riram. E o meu marido foi à cozinha buscar-me para eu a levar para a cama.
- Bateu-lhe?
- Não, mas tentei explicar-lhe que as meninas não faziam coisas daquelas.
- Mas, obviamente, o assunto perturbou-a?
- Sim. Era a primeira vez que ela fazia uma coisa assim.
- Diga-me, Sra. Bending-disse Levin, descontraidamente, sem saber muito bem para onde ia, mas querendo mante-la a falar -, um dos homens que estava no terraço era
aquele com quem Lucy se, ah, envolveu no último Dia do Trabalhador na sua cozinha?
Ela permaneceu em silêncio.
- Sra. Bending?
- Sim - disse ela por fim. - Ele estava lá.
- Se isto aconteceu há quatro anos... a Lucy aparecer nua no meio de um grupo de homens... por que é que esperou tanto tempo até procurar ajuda profissional para
a criança?
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Ela baixou os olhos para as mãos, tão apertadas que os nós dos dedos sobressaíam.
- Pensámos que ela ultrapassaria esse comportamento. Que era apenas uma fase.
Ela olhou para ele desamparadamente e ele acenou-lhe de uma forma que esperava parecesse compreensiva. Acreditava naquela parte da história dela. Que pais queriam reconhecer que eram incapazes de curar as angústias dos filhos?
- Presumo - disse ele - que a decisão de procurar ajuda foi sua.
Ela ergueu o queixo e olhou-o desafiadoramente.
- Sim, tomei a decisão e convenci Ronnie. Já o devíamos ter feito há anos.
"A criança estava preparada", reflectiu Levin tristemente, "mas vocês não
estavam.."
- Perguntei-lhe, Sra. Bending, se a Lucy tem um fraquinho por um homem ou uma mulher em especial. A senhora negou. Pelo que a Lucy me disse, parece que está correcta.
Mas gostaria de falar sobre esse homem, o amigo da família, que estava no terraço quando a Lucy apareceu nua e que foi, mais tarde, objecto da sua...
- Por que é que está sempre a voltar a ele? - disse ela, tensa.
- Meu Deus, ele não tem nada a ver com isto. É apenas um homem.
O Dr. Levin ficou surpreendido com o calor da resposta dela. Não achava que a sua questão merecesse uma resposta tão explosiva.
- Sr. Bending, estou unicamente a tentar determinar se poderá haver um relacionamento especial entre a Lucy e esse homem.
- Bem, não há - disse ela, rispidamente. - Não é o único. Ela também se atira a outros homens. Não é só a ele.
Levin abandonou temporariamente aquele assunto. Por vezes era vantajoso dizer directamente ao entrevistado que ele ou ela estava a mentir. Mas naquele caso não achava que o artifício fosse produtivo.
Fez uma abordagem partindo de outra direcção, determinado a provar a sua hipótese do incidente traumático, da ferida psíquica que tinha gerado o problema de Lucy.
- Sra. Bending, aproximadamente na mesma altura em que o acontecimento inicial... a Lucy exibindo-se nua para os homens que estavam no terraço... a senhora começou
a investigar outras crenças e fés religiosas. Não é verdade?
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Ela pareceu genuinamente espantada. Mas Levin não podia acreditar que ela não tivesse, conscientemente, feito a ligação.
- Aproximadamente na mesma altura - admitiu ela. Mas não estou a perceber o que é que uma coisa tem a ver com a outra.
- Vamos falar sobre isso - disse ele suavemente. - A sua filha comporta-se de uma forma que a perturba. De uma forma que a senhora considera, hum, imoral. Achou que a conduta dela era um reflexo do seu valor como mãe? Pensou que o falhanço dela era o seu falhanço?
- Fiquei preocupada - disse ela.
- Claro que ficou preocupada. Uma reacção muito normal e compreensível. Mas, em vez de procurar ajuda para a Lucy, procurou ajuda para si. Consolo espiritual para a ajudar atravessar aquele momento difícil. Acha que é uma avaliação correcta do que sentiu?
- Não sei - disse ela, confusa. - Eu só queria... -A voz falhou.
- Procurar perdão? - sugeriu ele. - Por não ser uma boa mãe? A senhora estava consciente de que algo acontecera, de que algo estava a acontecer à sua filha. Alguma coisa que a senhora considerava... bem, não me parece que "diabólico" seja uma palavra demasiado forte. Foi assim que a senhora se sentiu. E como acreditava que não tinha conseguido proteger a sua filha desta coisa diabólica, sentiu-se culpada. E a única forma de expiar a sua culpa foi devotar-se a uma fé forte que exigia confissão e lealdade a uma nova vida espiritual. Estou perto da verdade, Sra. Bending?
Ela tombou a cabeça.
- Sim - disse ela. - Sim.
Pensou que estava quase a chegar onde queria.
- Um incidente - disse ele. - No santuário da sua própria casa. Envolvendo alguém muito próximo, muito querido da Lucy. Neste momento não precisamos de entrar em pormenores. Mas a sua filha testemunhou-o ou ficou a par dele. Um trauma que a desequilibrou completamente. Ela não consegue suportá-lo. Afinal de contas, é apenas uma criança. E este, hum, acidente é um cataclismo para ela. Perturba o seu mundo. E ela começa a agir de uma forma que pode saber que está errada, mas a que não consegue resistir. Um incidente sexual, Sra. Bending? Poderá ter sido isso?
Ela não respondeu.
- Sim! - disse ele, batendo no tampo da secretária com a palma da pesada mão. - Um incidente sexual! Revela à Lucy um
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mundo completamente novo que ela nunca sonhara que existia. Novos relacionamentos, novas sensações. Uma coisa dessas poderia ter acontecido, Sra. Bending?
Ela ergueu lentamente a cabeça para olhar apaticamente para ele, sem qualquer expressão no rosto, sem brilho nos olhos.
- Não sei de que é que está a falar, doutor. Não houve nenhum acidente ou incidente desse género na minha casa. Talvez possa ter acontecido alguma coisa à Lucy
na escola ou na praia. Alguma coisa como a que está a sugerir. Mas ela nunca me contou nada desse género. - Depois, bruscamente, com os olhos de súbito a brilhar.
- A Lucy contou-lhe alguma coisa assim?
Ele observou-a durante muito tempo.
- Não - respondeu.
- Então, está a imaginar coisas. Tudo isso é apenas a sua teoria.
- Sim - disse ele suavemente -, apenas a minha teoria. Contemplou-a enquanto a vontade e a resolução voltavam.
Ela endireitou-se na cadeira. Afastou os cabelos das têmporas. Puxou a saia mais para baixo nas pernas nuas.
- Não acredito que tenha acontecido uma coisa dessas disse ela, severamente. - O meu marido não teve um encontro na nossa casa... se é isso que pensa. Pelo menos, não que eu saiba. Não aconteceu nada que tenha subitamente feito a Lucy agir da maneira que ela age. Parece-me que o senhor está enganado, doutor.
- Posso estar - disse ele, placidamente. - Mas estamos apenas no princípio da terapia, não estamos,
Sra. Bending? Teremos inúmeras oportunidades para aprofundar
mais este assunto.
- Se quiser-disse ela, uma vez mais composta e controlada.
- E agora - disse ele, olhando de relance para o relógio da secretária - reparo que o nosso tempo chegou ao fim. Obrigado pela sua colaboração, Sra. Bending.
Empt estava sentado na secretária alta do seu escritório equipado com ar condicionado. com Ernie Goldman a espreitar por cima do seu ombro, Luther estava a inspeccionar
um exemplar da capa de venda da cassete de vídeo de Borrachinhos Adolescentes.
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- Verificaste o tamanho? - perguntou ele.
-As dimensões estão certas - disse Goldman, piscando nervosamente os olhos. - Cerca de quinze centímetros de margem em toda a volta. Mas fica uma embalagem muito
pouco interessante, não acha?
- Sim - disse Empt, pesadamente. - Uma verdadeira merda! Eles querem que devolvamos esta?
- O mensageiro disse que não. Disse que o Sr. Santangelo vai telefonar às cinco horas para saber o que achamos.
Luther ficou sentado a contemplar a caixa de cartão vazia. Era fina, de um tom acinzentado, com rótulos a quatro cores colados no cimo e no fundo. Os rótulos tinham a indicação "PORNOGRÁFICO" em corpo grande, depois o título da cassete, a duração do filme e a fotografia de uma jovem em topless, a comer uma banana.
Na capa não se via em lado algum os nomes ou endereços dos actores, realizador, produtor, fabricante ou distribuidor.
- Uma verdadeira merda! - repetiu Empt. Fartámo-nos de trabalhar na porcaria do filme e vai ser comercializado nesta merda de embalagem? Quem me dera poder mostrá-la à Jane Holloway; ela teria alguma ideia de como melhorá-la.
- Por que é que não mostra?
- Sim, vou mostrar. Esta tarde, quando aquele idiota telefonar, vou dizer-lhe para esperar até a Jane ter hipótese de ver. Sabes, Ernie, nós podíamos fazer um trabalho muito melhor que este com as capas. O Scotville, em Margate, podia fazer a caixa, e o Não sei quantos em Boca... o impressor?
- Thomas Associates?
- Sim, esses mesmos. Fazem um trabalho óptimo em rótulos a quatro cores. Talvez fale com o Santangelo para ver se podemos fazer um contrato para a embalagem. Não só conseguiríamos fazer um trabalho melhor, como também poderíamos ganhar um bom par de dólares... certo?
- Certo - disse Goldman.
- Está bem - disse Luther -, eu agora trato do assunto. Mais alguma coisa, Ernie?
- Bem, hum, sim-disse o outro homem na sua voz ofegante e trémula. - Gostava de saber se...
- Jesus Cristo! - exclamou Empt. - Não é outro adiantamento?
- Não uma semana inteira - disse Goldman, apressadamente. - Cem já seria uma ajuda.
Luther empurrou a cadeira giratória para trás e ergueu os olhos para o homem. Ernie estava a piscar freneticamente. A sua
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compleição estava mais amarelada do que nunca. Os seus ombros pareciam descaídos; o corpo forte parecia pronto para estourar.
- Novamente os tubarões? - perguntou Luther.
- Ah... sim - disse Goldman. - Mais ou menos.
-Nunca vais conseguir pagar o que deves-disse-lhe Empt, e a sua voz ríspida era quase compreensiva. - Estás consciente disso, não estás?
- Claro que vou conseguir-disse Goldman, esperançoso. Basta ganhar uma aposta grande.
- Quanto é que deves?
- Quase dez. Dez mil.
- Valha-me Deus! - exclamou Empt. - Como é que te deixas ir tão longe?
- Bem... hum... o senhor sabe... eu tenho um carro e uma casa.
- Sim - disse Empt com um sorriso cruel -, e uma mulher e três miúdos. Alguma vez pensas neles?
De repente, Ernie Goldman começou a chorar e lágrimas lentas deslizaram-lhe pelas maçãs do rosto amareladas.
- Não sei o que hei-de fazer - disse ele, soluçando.
- Está bem, está bem - disse Luther Empt, apressadamente. - vou dizer à Sylvia que podes levantar cem. Para que é? Para os calar... ou uma dica que não pode falhar?
- Para mercearias - disse Goldman, fungando. - Vai todo para mercearias.
- Claro que sim - disse Empt, e observou o homem a cambalear para fora do escritório. Calculou que Ernie demoraria dois minutos a telefonar para o agente de apostas e a perder os cem dólares.
Levantou-se, enfiou as mãos nos bolsos e abeirou-se de uma janela panorâmica de onde se avistava um parque de estacionamento completamente cheio. Ficou a contemplar as filas direitas de carros profusamente coloridos que reflectiam o sol do meio-dia.
Fraquezas como a de Ernie Goldman enojavam-no. Não conseguia compreender como é que um homem podia deixar-se prender a um ponto em que punha em perigo a mulher, os filhos, o emprego, o carro, a casa, tudo. Talvez até mesmo a sua própria vida.
"Deve ser uma doença", decidiu Empt. Como um cancro fatal ou uma sífilis. Apanhava-se e era o fim da pessoa. Estremeceu e fez figas. Era tudo uma questão de sorte; ele sabia. Quando se ia ao âmago da questão era tudo uma questão de sorte.
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Foi ao bar do escritório e serviu-se de uma dose de uísque escocês. Sentia-se deprimido, inquieto, mal humorado. Aquela caixa horrível para a cassete. O vício de Ernie Goldman e os pensamentos que isso lhe tinha engendrado. Precisava de se animar.
Voltou para a secretária, vasculhou os papéis e olhou para a calendário das marcações. Não podia fazer nada a não ser esperar. Só tinha aquele telefonema de Rocco Santangelo. Mas ainda faltavam cinco horas.
Marcou um número na sua linha exterior. A que não passava pela telefonista. Nunca tinha visitado May durante o dia, mas, de repente, apeteceu-lhe vê-la. Tinha de a ver.
Ela levantou o auscultador depois do segundo toque.
- Está? - Uma voz frágil. Tão igual a ela. Hesitante e esperançosa.
- Olá - disse ele com voz rouca. - Sou eu.
- Oh, paizinho!-disse ela, rindo-se, feliz.-Estava mesmo agora a pensar em ti e com esperança de que telefonasses. Desejei. Concentrei-me: "Deus queira que o paizinho telefone, Deus queira que o paizinho telefone." E aí estás tu!
- Sim - disse ele, pensando que ela era completamente doida. - Escuta, posso tirar algumas horas de folga. Tenho de voltar ao fim da tarde. Para um telefonema importante. Mas tenho algumas horas. Que tal comprar uma pizza e uma embalagem de cervejas geladas e ir aí almoçar contigo? Está bem?
- Oh, sim! Sim, sim, sim!
- Está bem. Estou aí dentro de meia hora. Talvez um pouco mais. De que tipo de pizza é que gostas?
- Da que tu quiseres.
Só chegou ao apartamento de May praticamente uma hora depois. Este estava um forno. Não tinha ar condicionado ("As plantas não gostariam", explicara ela), mas ele tinha-lhe comprado uma enorme ventoinha eléctrica e isso ajudava um pouco. Mas, mesmo assim, tirou o casaco, a gravata e a camisa.
Sentou-se na cadeira gasta, a comer pizza da grande caixa que estava no chão. Ela sentou-se ao lado dele, levantando-se ocasionalmente para lhe ir buscar uma cerveja gelada. Não gostava da ideia de ela, com aquela perna aleijada, se levantar e se sentar novamente no chão, obviamente com dificuldade. Mas ela insistia em fazê-lo, por isso, ele deixava-a.
Enquanto devoravam a pizza e bebiam a cerveja, conversaram sobre o que ela tinha feito desde que ele a tinha visto pela última vez. Ele deixou-a falar, sorrindo e acenando, e a
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sensação de inquietação desapareceu gradualmente; uma vez mais, sentiu-se confortável e em casa.
- Tenho de te mostrar um biquini novo que comprei - disse ela, ofegante. - vou passá-lo para ti. Fui a todas as lojas para encontrar alguma coisa de que gostasse e que me ficasse bem. Tu tens de gostar dele, paizinho. Sabes que é muito difícil encontrar uma coisa que me fique bem. Tenho ido à praia de manhã durante algumas horas. Não achas que estou bronzeada? Bem, não exactamente bronzeada, mas já tenho uma cor, não tenho? Quanto tempo é que podes ficar, paizinho?
- Algumas horas. Duas.
- Bem, então vais ver. E levo uma garrafa térmica de chá gelado comigo, e, às vezes, algumas uvas sem grainhas, e de manhã a praia não está nada cheia. E ontem de manhã, quando estava lá, só a apanhar sol e a nadar, sabes em que é que pensei, paizinho?
Ele estava a comer uma fatia de pizza depepperoni e a engolir uma cerveja. Levou algum tempo a perguntar:
- O quê? Em que é que pensaste, May?
- Pensei que a única razão por que posso viver assim e ser tão feliz é o meu paizinho. O meu paizinho querido. Porque ele é tão bom para mim.
Ele sorriu-lhe carinhosamente, pensando que ela podia ter defeitos, mas a ingratidão não era um deles. E logo a seguir àquele julgamento veio o pensamento de que aquela era conversa de puta. Mas afastou aquela maldade da mente.
- Mais uma fatia, paizinho? - perguntou ela.
- Oh, meu Deus, não - disse ele. - Estou cheio. Põe o resto no frigorífico. Talvez queiras comer mais tarde.
- Esta noite podes vir cá?
- Não.
- Está bem-disse ela. - Então, talvez congele o que sobrou para comer um dia destes ao almoço.
- Boa ideia - disse ele, pesadamente. - Dá-me outra cerveja.
Ela abriu outra cerveja. Trouxe-lha. Limpou-lhe os lábios com um guardanapo de papel. Acariciou-lhe os cabelos fortes e encaracolados levemente e com ternura. Tocou-lhe no rosto. Deixou a palma da mão deslizar para os ombros nus.
Brincou com os cabelos do peito dele. Beliscou suavemente os pneus de gordura na cintura. Descontraiu-lhe os pesados músculos do pescoço e das costas.
E durante todo esse tempo não deixou de o olhar nos olhos
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com uma expressão que era suave, doce e de entrega. Ele não sabia; simplesmente não sabia.
- E agora - disse ela, formalmente -, gostaria de passar o meu novo biquini para ti. Espero que gostes dele.
- vou gostar dele - garantiu-lhe ele.
Ela coxeou para a casa de banho e fechou a porta. Ele ficou pesadamente sentado defronte da ventoinha eléctrica, a beber a sua terceira cerveja. Lentamente, arrefeceu e secou. Os receios e as frustrações da manhã esvaíram-se. Sentiu-se de novo optimista e conseguia olhar com um sorriso para aquele apartamento que mais parecia uma selva.
Ela saiu da casa de banho, a soltar risadinhas nervosas. O biquini novo era uma coisa branca pequenina, com tiras e pedaços de tecido. Pouco mais de um biquini fio-dental e dois quartos de lua a tapar os seus pequenos seios.
Ela nunca seria um borracho, nem pensar, e as tiras de pano faziam o seu corpo parecer ainda mais jovem, mais frágil. Uma planta delicada. Uma nova haste. Virou-se para lho mostrar, os cabelos lustrosos a dançar nas suas costas queimadas pelo sol.
- É lindo, querida! - disse ele.
- A sério? Achas mesmo que sim?
- Acho mesmo. É encantador.
- Olha-disse ela. Esticou a mão atrás das costas e desapertou a parte de cima do biquini, tirando-a. Aproximou-se dele, ficando de pé entre as suas pernas abertas.
- Estás a ver? Aqui acima das minhas maminhas. Vês a marca? Estou a ficar queimada. Ainda só está cor-de-rosa, mas daqui a pouco tempo vou ficar toda bronzeada.
- Claro que vais - disse ele. - Mas tem calma. Não tentes fazer tudo de uma vez.
Ele pousou a cerveja. Pôs as mãos nas ancas dela, onde os ossos empinavam a pele. Ela chegou-se para ele. Ele observou aqueles suaves seios brancos. Olhos cor-de-rosa. Ela tinha uma aparência tão frágil que ele achou que, se apertasse as mãos grandes, poderia aleijá-la.
Inclinou-se para a frente para pousar o rosto na suavidade dela. Sentiu que ela lhe acariciava os cabelos. Estava a murmurar alguma coisa, mas ele não conseguia ouvir. Ela afastou-se. Pegou-lhe na mão e puxou-o. Ele levantou-se desajeitadamente e seguiu-a para o sofá;
Ela subiu para cima dele e pôs-se de gatas. Tinha a cabeça pousada nas palmas das mãos. Ele olhou para aquelas costas magras e suplicantes. Esticou-se para acariciar os cabelos
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brilhantes de forma a que estes caíssem como água preta pelo canal da espinal medula.
- Por favor, paizinho - disse ela em voz entorpecida -, sê bom para mim.
Ela ajoelhou-se diante dele e inclinou-se, apresentando-lhe as nádegas bem esticadas. Mas continuava a ser obediência. Rendição abjecta. Uma oferenda. Ele tirou-lhe a parte de baixo do biquini, fê-lo deslizar pelas pernas, joelhos, pés e depois atirou-o para o chão. Pôs a mão por debaixo dela, sentiu-a.
- Obrigada - disse ela, ofegante. - Oh, obrigada.
Ele brincou lentamente com ela, sem ouvir a sua conversa de bebé. A satisfação dela era tão intensa que ele não conseguia assimilá-la.
Tinha uma mente de negócios resoluta e prática. Conseguia fazer um bom negócio ou negociar um contrato. Mas o seu cérebro não era subtil; não conseguia abarcar a permutabilidade de senhor e escravo.
Sabia apenas que estava a sentir uma felicidade intensa e, como não era um homem criativo, não conseguia suportar a ambiguidade do seu papel. Por isso tinha de afirmar o que achava ser o seu "verdadeiro" carácter.
Mas quando desapertou o cinto e deixou as calças e os boxer shorts caírem até aos tornozelos, descobriu, para seu grande desgosto, que o pénis estava tão flácido como massa cozinhada. Olhou para o órgão, mortificado e assustado.
May devia ter sentido a hesitação dele, pois levantou a cabeça e olhou por cima do ombro. Depois ergueu-se, virou-se e sentou-se na ponta do sofá a olhar para ele.
- Deixa-me fazer isso, paizinho - disse ela, suavemente. Ele deixou. Contemplou os dedos ágeis a trabalhar e depois
a cabeça dela a mover-se para baixo e para cima. A potência voltou, e com ela uma ânsia de amor e gratidão para com aquela menina-mulher-puta que estava a fazer dele um homem inteiro.
Quando já não conseguia suportar mais, afastou-se e veio-se nos seios dela, insensato, seguindo o instinto, a vontade, uma necessidade que nunca antes sentira e que não conseguia compreender.
Caiu ao lado dela no sofá. Quando a beijou, com os lábios colados começou a sentir a profundidade do seu compromisso com aquela criança mutilada que olhava para ele com olhos confiantes e lhe chamava "paizinho".
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William Holloway chamava Eric ao revólver, por motivos que não conseguia determinar já que, tanto quanto conseguia lembrar-se, nunca conhecera ninguém chamado Eric. Mas tornava as coisas mais fáceis quando falava para o revólver ou quando estava a falar sozinho sobre a arma.
Reconhecia bem os perigos de um homem que bebia tanto como ele andar por todo o lado com uma arma carregada. Por isso, manuseava a arma com uma precaução extrema, planeando cuidadosamente e avisando-se a si mesmo...
- Agora vais tirar lentamente o Eric do coldre.
"Segura o Eric pelo cabo, mantendo o dedo longe do gatilho.
"Afasta de ti a boca da arma e retira o cilindro.
"Descarrega completamente o Eric e não comeces a limpá-lo antes de teres a certeza absoluta de que não tem bala nenhuma.
Depois começava a tarefa semanal de limpar o pó, esfregar com um pano e, finalmente, recarregar o revólver. Era um trabalho que aguardava com ansiedade, que gostava de fazer, e que efectuava com o mesmo conforto doce que, quando era rapaz, sentia durante as lições de piano.
Estava consciente de que Jane sabia que ele possuía uma arma de fogo e que a mantinha guardada na gaveta da mesa-de-cabeceira. Maria, a criada cubana, provavelmente já a vira ali. Holloway não achava que a filha, Gloria, soubesse, e esperava ardentemente que o filho não fizesse a menor ideia.
O jantar de sexta-feira foi uma correria. As crianças jantaram e foram ter com os amigos à praia. Jane foi para o escritório, para se sentar à secretária com tampo de couro a inspeccionar a amostra de caixa para a cassete de vídeo de Borrachinhos Adolescentes, e escrever algumas sugestões para o seu melhoramento.
Maria levantou a mesa, ligou a máquina de lavar loiça e foi para o seu quarto, onde ouviria uma estação de rádio em língua espanhola e faria inúmeros telefonemas. William Holloway foi para o andar de cima e limpou Eric, oleou-o, poliu-o amorosamente e voltou a colocá-lo no macio coldre de pele.
Depois vestiu umas bermudas (sem roupa interior), sapatos desportivos (sem meias) e uma berrante camisa Izod vermelha (sem camisola interior). Desceu lentamente as escadas, murmurando uma melodia de The Well-Tempered Clavier. Jane estava ao telefone com Luther Empt, dizendo-lhe o que estava errado com a caixa da cassete. Holloway reflectiu que a mulher nunca conversava; dizia.
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Serviu-se de um copo grande de vodea e água, com um canto de lima espremido. Provou-o e acrescentou mais vodea. Depois saiu para o terraço, fracamente iluminado pela luz de um candeeiro que estava perto da janela panorâmica. Er.oostou-se à balaustrada e contemplou a noite.
Parecia uma serra; céu preto e nuvens nacaradas. Tudo estava recortado, mas tudo encaixava. Holloway pensou que a sua própria vida era uma coisa assim: elementos ridiculamente incompatíveis que se juntavam e produziam... o quê?
Toda a sua vida tinha sido uma série de incidentes e acontecimentos incongruentes, e não tinha controlo sobre a maioria. Tinha sido empurrado e puxado, arrastado e apertado. E ali estava ele no sul da Florida, vestindo roupas idiotas, com uma família que não conhecia e, admitiu, não queria conhecer.
- Que desperdício!
"Sim, um desperdício - replicou ele. - Porque sabes, no fundo do teu coração, que começaste com uma grande capacidade.
"Para quê?
"Amor, para começar.
"Oh-ho! Há algumas semanas, a beber neste mesmo local, declaraste que tinhas uma grande capacidade para a virtude. Agora é amor.
"Os dois são assim tão diferentes?
"Espertinho!
Felizmente, não estava a falar sozinho em voz alta quando Jane veio para o terraço e lhe disse que ia levar a caixa da cassete a Luther Empt e que demoraria algum tempo. Ele assentiu e deixou-a ir. Estava a ser dominado pelo idiotismo.
Bebeu durante algum tempo, sonhou um pouco, voltou para dentro para preparar mais uma bebida. Beijou a garrafa de vodca.
- Deus te abençoe! - disse ele.
O céu parecia mais leve quando voltou para o exterior. O ar estava mais quente, mais acariciador. Aquele ar acariciava; sussurrava. Descalçou os sapatos e desceu para a praia, levando o copo alto. Sentou-se na areia, a cerca de quarenta metros da água.
Viu um vulto deambulante, um rapaz a andar em ziguezague junto à água, a dar pontapés em conchas, rochas de coral e algas.
- Wayne? - chamou Holloway. - Wayne Bending? Aqui. Wayne parou e espreitou. Depois aproximou-se lentamente.
Sentou-na na areia.
- Olá, Sr. Holloway - disse ele numa voz amuada.
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- Olá - disse Holloway. - Está uma noite bonita.
- Sim, não está má.
Holloway olhou com mais atenção para o miúdo.
- Que aconteceu à tua cara? Um olho negro?
- Não. Só uma nódoa negra. Caí. Na escola. Agora já está melhor.
- Hum. Como é que tens passado, Wayne?
- Na escola? Bem.
- Não, estava a referir-me ao que me contaste. Sabes... aquele tipo e o amigo. Quando te levei a casa naquele dia de chuva...
- Oh - disse o jovem. - Isso. Bem, acabou tudo, está tudo terminado.
- Lamento saber isso.
Ficaram sentados, em silêncio, Holloway a beber lentamente, o rapaz a pegar em mãos-cheias de areia e a deixar os grãos escaparem-lhe por entre os dedos.
- Posso perguntar uma coisa, Sr. Holloway?
- Claro.
- Pode emprestar-me algum dinheiro? Não muito. Só algum. Eu devolvo-lho, a sério que devolvo.
- Dinheiro para quê, Wayne?
- Quero ir-me embora. Quero sair daqui.
Holloway respirou fundo. O miúdo era um coração aberto, condenado a sentir. O rapaz era ele, William Jasper Holloway. Quando tinha a idade de Wayne, tinha as mesmas fúrias e constrangimentos, as mesmas dores e desejos.
- Estás a colocar-me numa posição delicada - disse ele ao rapaz. - Eu dou-te o dinheiro e tu foges. Talvez a Polícia te descubra, te traga para casa, e depois sabe-se que fui eu que te dei o dinheiro para fugires. Eu gosto dos teus pais; eles são meus amigos. Descobrem que eu te dei o dinheiro para te ires embora, e é o fim da nossa amizade.
- Eu nunca contaria -- disse Wayne.
- Eu sei que não contarias, mas, mais tarde ou mais cedo, estas coisas acabam por se saber... tu sabes bem isso. Escuta, neste momento não direi que sim nem que
não. Só quero que penses bem no assunto. Está bem? Se no fim decidires que queres ir, nesse caso, vem ter comigo que eu dou-te o que tu queres.
- Já pensei no assunto - disse o jovem. - Decidi que tenho de sair daqui.
- Oh? Porquê?
- Porque é tudo uma merda!
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- Claro que é - disse William Holloway, alegremente. - E para onde é que pensas que vais que não seja uma merda?
- Não me importo - murmurou o rapaz. - Algum sítio diferente.
- E a tua família? A tua mãe e o teu pai? Já pensaste como é que eles se sentiriam se tu desaparecesses?
- Não se importariam.
- E os teus amigos?
- Não tenho amigos.
Holloway sentiu uma emoção tão intensa que ficou com dor de cabeça. Mas, apesar da sua dor, também queria assumir o desgosto do rapaz. Ele podia lidar com a situação;
tinha experiência. Não estava certo alguém tão jovem sofrer um castigo daqueles.
- Eu pensei que era teu amigo, Wayne - disse ele.
- Bem... sim... mas o senhor é velho. Sabe?
- Claro - disse Holloway com um sorriso forçado. - Eu sei. Ele virou-se, debruçou-se, e olhou atentamente para o pobre
e triste rapaz. Passou levemente um braço pelos ombros de Wayne. Queria abraçá-lo com força, beijar-lhe as nódoas negras. Mas resistiu heroicamente a essa tentação. "Virtude", disse a si próprio. "Amor."
- Wayne - disse ele -, não vou pregar-te um grande sermão acerca de estares a passar por uma fase, e que tudo vai parecer melhor daqui a algumas semanas. Talvez sim, talvez não; não sei. Mas quero dizer-te que não estás sozinho. Muitos outros rapazes da tua idade já se sentiram como tu te sentes e ultrapassaram a crise. Eu sei que tu achas que é o fim do mundo para ti, mas não tem de ser. Na vida acontecem coisas loucas. Algumas são boas, outras são más, admito. Mas, na tua idade, não te convenças de que a forma como te sentes agora é a forma como vais sentir-te para o resto da vida. Vais mudar. Toda a gente muda. Mantém-te aberto à mudança; é tudo o que quero dizer-te.
- vou na mesma - disse o rapaz em voz baixa. - Vou-me embora daqui. Não há nada para mim aqui.
- Para onde é que irás?
- Não sei.
- Como é que vais viver?
- Não me interessa.
O braço de Holloway tremeu em cima dos ombros do rapaz. Refreou-se de o apertar com mais força.
- Escuta - disse ele gravemente -, vou pedir-te uma coisa como um favor pessoal. Adia a tua decisão mais um mês. Está bem? Só mais algum tempo para reflectires no assunto. Que diferença
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pode fazer um mês? Se continuares a pensar da mesma maneira daqui a um mês, nesse caso vais-te embora.
- Bem... - disse Wayne, hesitante. - Não conta ao meu pai, pois não?
- Claro que não. Isto é unicamente entre nós.
- E se eu decidir pirar-me, dá-me algum dinheiro?
- Sim.
- Como um empréstimo. Eu depois pago-lhe.
- Claro.
- Bem, então está bem. - O rapaz pôs-se de pé. - Mas vou continuar a dizer que é tudo uma merda.
Afastou-se a andar descuidadamente. Holloway ficou a vê-lo ir-se embora, com o braço vazio frouxo, os dedos a mergulhar na areia quente.
Bebeu o copo de vodca e água, trincando os suaves pedacinhos de gelo entre os dentes. Se ao menos conseguisse ganhar tempo. Tempo para conhecer melhor o rapaz. Para
o aconselhar. Para o guiar.
Seria um acto virtuoso e amoroso - salvar aquele rapaz triste e ferido e ensiná-lo a viver. A reconhecer as glórias e os fracassos deste mundo. O que tinha valor e o que era refugo. A rejeitar os encantos de hoje pela felicidade de amanhã.
Todas as coisas que William Jasper Holloway tinha aprendido - tarde de mais.
Levantou-se vivamente e dirigiu-se para casa para preparar outra bebida. Sentia-se invadido por uma forte resolução; salvaria Wayne Bending. E nunca, por um único momento, duvidou de que valia a pena salvar o miúdo.
Ficou encostado à balaustrada do terraço a olhar para o mar preto e trémulo. Perguntou a si mesmo onde estaria Wayne Bending naquele momento.
Em casa, na cama, supôs Holloway. Mas acordado. Talvez deitado, nu, com os lençóis para trás. Mãos entrelaçadas atrás da cabeça. A olhar para o tecto sem ver nada. Desejou poder estar com o rapaz. Para o confortar.
Do pai, não recebia consolo nenhum, tinha a certeza. Turco Bending vivia a vida a dançar sapateado. Os problemas dos filhos diverti-lo-iam. Pagaria para o filho dar uma queca, pensando que isso resolveria tudo. Para ele fora a solução.
Bastava pensar na forma como Bending tinha concordado imediatamente quando Jane sugerira que fossem tomar banho nus na noite da festa dos Empt. O homem não tinha inibições. Não se importava; não se importava absolutamente nada.
- E por que é que não foste com eles?
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"Era tudo um horror. Repugnante!
"Já viste mulheres e homens nus antes.
"Eu não gosto especialmente de exibicionismos.
"Não sejas tão pretensioso. Foi apenas uma diversão inocente depois de uma festa de copos. Que é que há de tão horrível em nadar nu no mar?
"Nada. Mas, hum, casais... Não está, não está certo.
"Achas que foderam uns com os outros na praia? Ou na água?
"Não, não acredito nisso. Só andaram por aí e divertiram-se.
"Então, qual é o mal?
"Nenhum! - gritou William Jasper Holloway. - Nenhum!
Fez deslizar o copo vazio pela balaustrada e pousou-o na areia. com dedos frenéticos desapertou o cinto e o fecho dos calções. Despiu-os com um pontapé. Tirou a camisa pela cabeça. Nu, desceu as escadas para a praia e correu para o oceano Atlântico.
Foi com o vento, sentindo que estava a nadar em ar frio. A pele latejava. A barriga a abanar. Testículos a baloiçar. Corajosamente, mergulhou na água, ofegando.
Avançou na água, depois mergulhou, veio à superfície e nadou com braçadas vigorosas.
- Hoo-hah! - gritou ele.
Nadou para o largo até se cansar. Virou-se de costas. Boiou. Era uma maravilha. O mar levou-o, acariciou-o. Rolou de um lado para o outro, engasgando-se e tossindo. Mergulhou e subiu, rindo às gargalhadas.
Engoliu golfadas de oceano e cuspiu-as imediatamente. Urinou, deixando um rasto-quente e nadou para longe dele. Dançou nas ondas suaves, pulando. "Oh! Oh!" Enrolou-se naquele meio quente, cujo abraço era luxuriante.
Depois nadou de novo para a margem deserta. Procurou a Lua com o olhar, querendo uivar para ela, mas ela tinha desaparecido. Ele começou a correr de um lado para o outro na praia para secar, batendo nos ombros e nas coxas, gritando delirantemente. Estava livre. Livre! O mundo pertencia-lhe.
Tinha acabado de passar pela casa dos Empt quando viu, na obscuridade, o foco de uma lanterna, uma poça branca, a avançar na areia directa a ele. E, atrás, indistintamente, dois vultos enormes.
"Assaltantes! Assaltantes!"
Alarmado, William Jasper Holloway, nu, presidente de um banco, voltou-se e começou a correr desesperadamente para casa. Mas era gordo, estava cansado e a areia era mole. Desequilibrou-se, tropeçou, respirava agora em grandes soluços ofegantes.
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Olhou por cima do ombro. Os assassinos estavam mais próximos, a correr mais depressa do que ele. Sentia uma dor de lado que ameaçava parti-lo ao meio. Sufocou, vacilou
e depois eles estavam em cima dele, pegando-lhe com mãos fortes.
Ele lutou histericamente, dando murros e pontapés. E, quando eles se puseram em cima de si, tentou dar-lhes joelhadas, gritando, mordendo tudo o que se aproximava, gritando a pedir ajuda, dando pontapés, lutando pela sua vida.
Quando o telefone tocou na mesa-de-cabeceira de Ronald Bending, ele foi acordado de um sonho glorioso. Não conseguia lembrar-se dos pormenores, mas sabia que tinha sido glorioso.
Procurou o interruptor do candeeiro e acendeu a luz. Grace estava virada para o lado dela na outra cama, profundamente adormecida. Ronald levantou o auscultador.
- tá?
- Turco?
- Sim. Quem fala?
- Ah, é Bill Holloway. Escuta, Turco, tens de me ajudar. Fui preso.
- Preso? Jesus Cristo! Porquê?
- Mordi um polícia.
6
Levin imaginava que a maior parte dos leigos pensavam que os psiquiatras, os psicólogos e os psicoanalistas (e até os conselheiros matrimoniais!) eram tipos espertos,
simpáticos, comiseradores e compreensivos, um pouco como Lionel Barrymore no seu amuo desarmante. Talvez houvesse terapeutas assim, mas Levin nunca tinha conhecido
nenhum.
Compaixão e compreensão eram boas qualidades, não tinha dúvidas quanto a isso, mas tinham pouco valor quando se estava a tratar um homem adulto que insistia em exibir-se nas secções de talho dos supermercados, ou um rapaz de dez anos que adorava pegar fogo a gatos.
Levin acreditava que o seu trabalho requeria um relacionamento adversário com os pacientes. Havia um elemento de sacerdócio no seu papel. Não pensava que estava a lutar com o Diabo pela alma imortal de um pecador, mas normalmente o seu trabalho tornava inevitável uma luta com o paciente.
Essa luta destinava-se a iluminar o lado escuro da Lua
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(psique) e a esperar que aquela luz pudesse ser o-primeiro passo para a saúde mental e emocional. O paciente resistia à revelação dos seus segredos mais bem guardados, pois isso deixá-lo-ia aberto, ferido, vulnerável. Neste sentido, todos os pacientes eram oponentes.
No caso de Lucy B., Levin continuava convencido de que o seu comportamento aberrante resultava de um trauma psíquico não provocado por ela. Ela estava a esconder a ferida e os pais (um ou ambos) estavam também a enterrá-la. Seria necessário mais do que simpatia e compreensão para a desenterrar.
- Boa tarde, Lucy - disse ele, incapaz, como sempre, de não sorrir perante aquela beleza radiante.
- Õlá, Dr. Ted - disse ela atrevidamente, rodando para ele poder inspeccioná-la. - Gosta do meu vestido? É novo.
- É muito bonito-disse ele, acenando aprovadoramente. Faz-te parecer mais crescida.
- Foi o que eu achei - disse ela, olhando para si mesma. - Estou a ficar crescida de mais para coisas brancas com faixas. Eu queria preto, mas a mãe insistiu em azul. Mas eu acho que me faz parecer mais, hum, sofisticada... não acha?
- Não há dúvida.
- Bem... - disse ela, subindo para a cadeira de braços. Sobre que é que vamos falar hoje? - perguntou-lhe, sorrindo vivamente.
- Gostarias de falar sobre quê?
- Hum... acho que gostava de falar sobre quando um homem e uma mulher se casam, bem, têm filhos... sabe? Mas eles não têm de casar, pois não? Para terem filhos?
- Não.
- Foi o que eu pensei. Mas estava a falar com a Elizabeth McCarthy, é uma amiga minha, e ela acha que as pessoas têm de ser casadas antes de poderem ter filhos. Meu Deus, eu disse-lhe que isso é uma parvoíce. Por isso ainda bem que soube por um médico que tenho razão. Eu podia ter um bebé, Dr. Ted?
- Agora não. Não tens idade para isso.
- Quantos anos é que tenho de ter?
- Depende - disse ele, cautelosamente. - Mas tu não queres ter filhos até terminar a escola e te licenciares na universidade. E, nessa altura, talvez penses de maneira diferente.
- Talvez sim, talvez não - disse ela, afectadamente. - Às vezes penso que gostaria de ter um bebé só meu agora mesmo.
Ele espreitou-a, interessado.
- Um menino ou uma menina?
- Uma menina - disse ela imediatamente. - Só minha. Eu
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dava-lhe banho e punha-lhe pó-de-talco, como as mães fazem, sabe? E vestia-a muito bonita.
- Como uma boneca de carne e osso?
- Sim, exactamente como uma boneca de carne e osso. E eu ia amá-la muito. E estava sempre a beijá-la e a abraçá-la e batia-lhe quando ela fosse má. Mas ela nunca seria má porque eu a amava tanto.
- Como a tua mãe te ama? Pausa.
- Sim. Mas melhor.
- Melhor como?
- Oh... o senhor sabe.
- Não, não sei, Lucy. E se me dissesses? Como é que amarias o teu bebé melhor do que a tua mãe te ama?
- Só mais - disse ela. - Só o tempo todo. Todos os segundos de todos os minutos de todas as horas de todos os dias! -Acabou triunfantemente aquela declaração.
Mas Levin pensou que ela estava deliberadamente a enganá-lo. Tinha de estar constantemente a lembrar a si próprio que ela era muito astuta. Era a sua beleza física que o fazia esquecer-se de que ela era esperta.
- A tua mãe ama-te todos os segundos - disse ele. - Não ama?
- Às vezes - disse Lucy. - Mas ela está terrivelmente ocupada.
- Ela nunca foi má para ti, pois não?
- Está a referir-se a ela chicotear-me? Claro que não.
- E o teu pai?
- Oh, ele nunca faria uma coisa dessas - disse ela, rindo. Ele é tão engraçado.
- Engraçado?
- O senhor sabe. Ele está sempre a dizer piadas e anda sempre a passear. Uma vez fingiu que se tinha esquecido do meu aniversário, e eu estava prestes a chorar, mas ele não se tinha esquecido, claro, e tinha escondido o presente debaixo da minha almofada. Uma pulseira lindíssima com imensas conchas diferentes.
- A mim parece-me que ambos os teus pais te amam muito.
- Acho que sim.
- Então, por que é que dizes que amarias a tua filhinha melhor do que a tua mãe te ama?
Mas não conseguiu fazê-la falar; ela fugiu novamente à pergunta.
- Bem... talvez não melhor. Mas o senhor sabe, diferente.
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Ele tinha uma paciência sem limite. Podia fazer rodeios enquanto ela fizesse.
- Amarias o teu bebé de uma maneira diferente da que a tua mãe te ama?
- Sim.
- Fala-me sobre isso. Como é que amarias o teu bebé de uma maneira diferente?
- Bem, para começar nunca faria nada que o magoasse. Levin não revelou o súbito interesse naquela resposta. O
mais casualmente possível...
- Mas tu acabaste de me dizer que os teus pais nunca te magoaram.
- Bem, isso é verdade. Eles nunca me chicotearam, se é isso que quer dizer.
Ele observou-a com atenção. Achou que havia qualquer coisa significativa nas evasões dela. E ainda mais significativa poderia ser a sua escolha de palavras. Ele tinha a vaga sensação de que ela estava a tentar dizer-lhe alguma coisa sem o dizer.
- Há imensas formas de magoar as pessoas, Lucy-disse ele suavemente. - Uma maneira é bater-lhes, espancá-las, chicoteá-las. Mas nós sabemos que os teus pais não fazem isso, pois não?
Ela ficou calada.
- Outra forma de magoar as pessoas - continuou ele - é magoar os seus sentimentos. Desapontá-las. Fazerem-nas sentir-se tolas.
- Não percebo o que está a dizer.
- Claro que percebes, Lucy. Percebes muito bem. Se o teu pai beijasse outra mulher, por exemplo, ficarias desapontada com ele e sentir-te-ias magoada, não é verdade?
- O meu pai está sempre a beijar outras mulheres - disse ela, desafiadoramente. - Todos os adultos estão sempre a beijar-se, em festas e isso. E só para se divertirem. Meu Deus, isso não me magoaria.
- E se o teu pai fizesse alguma coisa que provasse que não amava a tua mãe? Certamente ficarias magoada com isso, não ficarias?
- O meu pai nunca faria uma coisa dessas.
- Mas se fizesse, ficarias magoada, não é verdade?
- Acho que sim.
- Talvez até chorasses.
- Talvez.
- Então, concordas que podes ser magoada sem te baterem ou te chicotearem. Os teus sentimentos podem ser feridos.
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- Oh, estou a compreender o que quer dizer! - exclamou ela, mexendo-se na cadeira. - Como uma vez, na praia, vi a Menina Carpenter, é a minha professora da escola, bem, ela estava na praia, e eu acenei-lhe, e ela não ligou. E eu pensei que ela estava zangada comigo, ou coisa parecida, sabe, e senti-me muito infeliz. Mas, afinal, ela não tinha as lentes de contacto postas e nem sequer me viu. Por isso ficou tudo bem. Mas fiquei magoada quando pensei que ela estava zangada comigo e que nem sequer queria dizer-me adeus. Era a isso que estava a referir-se, não era?
O Dr. Levin olhou para ela, assombrado, convencido de que ela estava a tentar enganá-lo novamente, e de uma forma muito inteligente. Era espantosa a maneira como ela era escorregadia. Mas estava determinado a não a deixar escapar completamente.
- É, Lucy - disse ele calmamente. - Sabes o que são sentimentos feridos. Agora, vamos voltar ao assunto de que estávamos a falar. O teu pai ou a tua mãe alguma vez magoaram os teus sentimentos?
Ela pensou durante alguns momentos.
- Por exemplo, não me deixarem ver televisão quando eu quero?
- Não. Estou a referir-me a alguma coisa mais importante do que isso. Estou a referir-me a alguma coisa que te magoou de verdade, que te fez pensar se eles te amavam tanto como tu pensavas.
Ela olhou para ele e abriu muito os olhos. Enquanto ele a observava, apareceram lágrimas que lhe encheram os olhos e começaram a correr-lhe pelas maçãs do rosto. Ela não fez qualquer esforço para as limpar, mas os seus lábios suaves tremiam.
- Acho que o senhor é mesquinho e malvado - disse ela. Ele ficou impavidamente sentado e deixou-a chorar. Aquelas
lágrimas pareciam não ter fim; caíam e pingavam do queixo para o corpete do vestido novo.
- Achava que não era - disse ela -, mas agora sei que é.
- Por que é que eu sou mesquinho e malvado, Lucy?
- Por causa do que disse sobre a minha mãezinha e o meu paizinho não me amarem.
Ele apanhou aquele "mãezinha e paizinho". Pensou que talvez fosse a primeira vez que ela usava as palavras. Até então tinha sido "mãe e pai" ou "pais". O "mãezinha e paizinho" parecia uma regressão, o hábito de uma criança mais nova.
- Eu não disse que os teus pais não te amavam, Lucy, e tu sabes isso. Só te perguntei se eles alguma vez tinham ferido os teus
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sentimentos, se alguma vez te tinham feito pensar se te amariam tanto como tu pensavas?!
- Bem, isso nunca aconteceu. Eles nunca feriram os meus sentimentos. Aí tem a sua resposta.
- Então, por que é que estás a chorar?
- Acho que não percebi o que queria dizer, Dr. Ted - disse ela, alegremente. Abriu a bolsa de plástico, tirou um lencinho e limpou os olhos e o rosto. - Meu Deus, devo estar um horror.
Mas ele não estava com disposição para cumprimentos, nem sequer para elogios.
- Lucy - disse ele -, vamos jogar um jogo. Está bem?
- Que espécie de jogo? - perguntou ela, desconfiada.
- Quero que me digas as primeiras coisas que te aconteceram de que te lembras.
Ela pensou na proposta.
- Quer dizer, quando eu era pequenina?
- Correcto. Até onde é que consegues recordar-te?
- Bem... - disse ela, novamente feliz com aquele jogo -, uma vez caí pelas escadas; lembro-me disso.
- Há quanto tempo é que isso aconteceu?
- Oh, há muito, muito tempo. Eu era apenas um bebé.
- Que idade achas que tinhas quando caíste pelas escadas?
- Meu Deus, devia ter uns três anos. Talvez dois.
- Consegues lembrar-te de mais alguma coisa? Ela pensou.
- Lembro-me de quando o Harry era bebé. Ele era tão gordinho e cor-de-rosa e engraçado. Agora tem cinco anos, por isso já foi há mais de quatro anos. Recordo-me de o meu pai a atirar-me ao ar. Atirava-me muito alto e depois apanhava-me. Eu adorava. Mas depois acho que fiquei pesada de mais para ele atirar, porque deixou de o fazer. E eu... - A sua voz enfraqueceu.
- Sim? - instigou-a Levin.
- Acho que uma vez, quando era muito pequenina, tive um pesadelo, ou coisa parecida, e a minha mãe deixou-me ir para a cama dela. Não tenho a certeza disso, mas acho que me lembro. Recordo-me de como ela cheirava bem.
- Muito bem, Lucy. Estás a lembrar-te de coisas que aconteceram há muito tempo. Vejamos, o Harry nasceu há cinco anos; recordas-te da aparência dele quando era bebé. Que é que te lembras de acontecer depois de o Harry ter, digamos, um ano? Lembras-te de coisas que aconteceram há quatro anos?
- Eu estava no jardim infantil; lembro-me disso.
- Lembras-te de alguma coisa que tenha acontecido em casa?
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- Quando tinha quatro anos? Bem, havia festas e coisas assim. Está tudo baralhado.
- As recordações normalmente estão baralhadas - disse ele, encorajador. - Lembras-te de alguma festa em especial?
-Houve uma-disse ela vagamente -, com muitas pessoas.
- Na tua casa?
- Sim.
- Que é que essa festa teve de especial?
- Bem, foi a primeira festa em que me deixaram ficar depois da minha hora de dormir. Pude ir para o andar de baixo e comer à mesma mesa que os adultos.
- Parece ter sido divertido.
- Sim, e eu tinha um vestido novo. Não como este - acrescentou ela, mexendo na saia -, mas um vestido de menina pequena... sabe? E havia música. Agora recordo-me! E o meu pai dançou comigo.
- Vês? - disse ele. - Tu lembras-te.
- Estava lá toda a gente - disse ela, sonhadora. - Uma festa grande, grande, e eu tinha um vestido novo. Um vestido branco. com laços cor-de-rosa. E foi a primeira vez que o meu pai dançou comigo.
- E deixaram-te ficar acordada até tarde - acrescentou ele suavemente.
- Bem, sabe, foi só uma hora depois da minha hora de dormir. Depois tive de ir dar as boas-noites a toda a gente.
- E depois foste para o teu quarto?
- Sim.
- Aposto que estavas excitadíssima - disse ele -, com a festa, o vestido novo, dançar com o teu pai, aposto que demoraste muito tempo a adormecer.
- Sim - disse ela num tom de voz perturbado -, tem razão. Agora recordo-me.
Levin estava consciente de que era ele quem estava a contar a história. Não, estava a criar uma história a partir das recordações obscuras e a partir dos lábios de Lucy. E apercebeu-se de que aquela história podia ser tão fantástica como qualquer uma das histórias que ela inventara para ele.
- Presumo - disse ele com uma pequena gargalhada - que a tua mãe ou o teu pai foram ao andar de cima para te despir.
- Eu sei despir-me - disse ela, zangada.
- Naquela altura? Quando tinhas quatro anos?
- Claro.
- Oh - disse ele. - Então, a tua mãe ou o teu pai foram ao teu quarto dar-te as boas-noites.
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- Eu dancei com o meu pai - disse ela com uma voz distante.
- Toda a gente disse que eu estava muito bonita.
- Sim, sim - disse ele, de certa forma a experimentá-la. - Tu estavas bonita, dançaste com o teu pai e...
- Pela primeira vez - lembrou ela.
- Foi a primeira vez que dançaste com o teu pai. Depois foste para a cama. No teu quarto. Nessa altura, Harry já estava a dormir?
- Acho que sim.
- E Wayne?
- Não me recordo onde ele estava. Talvez algures lá fora. Por exemplo na praia. Se calhar estava na festa.
- Valha-me Deus - disse ele, entusiasmado. - Vês de tudo o que consegues recordar-te quando te esforças? E depois a tua mãe ou o teu pai foram dar-te as boas-noites?
- Acho que sim.
- Mas demoraste muito tempo a adormecer. Disseste-me isso.
- Disse? - perguntou ela. - Acho que não. Talvez estivesse muito excitada. A festa e tudo o resto.
- Claro. É compreensível. Demorou algum tempo até conseguires dormir. - Depois, imaginando: - A música e as vozes e os risos lá em baixo. Todos os adultos estavam a divertir-se. Era difícil adormecer.
- Pois era.
- E que aconteceu depois? - perguntou ele, inclinando-se para ela. - Enquanto estavas deitada na cama, no teu quarto, a tentar adormecer.... que aconteceu, Lucy?
Pensou que diante dos olhos dela estava a passar um filme. Quase conseguia vê-la a fugir dele.
- Não me lembro - disse ela. - Acho que adormeci.
Ele contemplou-a, convencido de que agora ela não estava a enganá-lo conscientemente. Se o incidente que ele imaginava tinha acontecido, ela não se tinha recordado dele. Os frágeis nós da memória tinham sido desfeitos. Ela tinha apagado o acontecimento da sua mente. Porquê? Fácil. A experiência era demasiado dolorosa para ela. Era inexplicável, assustadora. Uma coisa para ser sepultada.
Era em momentos como aquele que Levin desejava que o seu ego fosse monumental. Queria ter uma segurança de granito que lhe permitisse pressioná-la, insistir, amedrontá-la, até arrancar as recordações pela raiz, ensanguentadas e a pingar.
Mas, sendo a espécie de homem que era, não podia fazer isso. Pensou desesperadamente em hipnose, drogas - qualquer coisa
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para conseguir penetrar dentro daquela mente fechada e abri-la. Rejeitou esses artifícios. Não tinha outra alternativa a não ser continuar a cavar, tirando as camadas uma a uma.
- Muito bem! - disse ele, sorrindo o mais alegremente possível. - Deve ter sido uma grande festa para tu te lembrares dela tão bem. O teu vestido e dançares com o teu pai e tudo isso...
Ela olhou para ele, perplexa.
- Eu não me lembrava de nada, Dr. Ted, até o senhor me perguntar.
Foi o melhor elogio que ela podia ter-lhe feito.
- Lucy, recordas-te daquela noite, daquela festa, como sendo feliz? Quero dizer, é uma recordação boa para ti?
- Oh, sim!
- Tens prazer em recordá-la... correcto? O teu vestido. Dançar com o teu pai pela primeira vez. Toda a gente a dizer como estavas bonita. Deve ser uma recordação feliz.
- Claro que é.
Ele montou a armadilha.
- Uma recordação tão feliz. E que estranho não te lembrares até eu te perguntar. Não achas que é estranho, Lucy?
Ele tinha-a encurralado e ela sabia-o. Observou as reacções dela com interesse profissional. Ignorância:
- Não percebo o que quer dizer.
- Claro que percebes, Lucy. Foi uma experiência feliz, não foi? Mas tu não te lembraste dela até eu a fazer vir à superfície.
Bazófia:
- Bem, meu Deus, eu tive imensas ocasiões boas. Não pode esperar que me lembre de todas.
- Mas esta ocasião foi especial. Foi o que lhe chamaste: "especial".
Confissão:
- Oh, esqueci-me, Dr. Ted. Varreu-se da minha mente. Mas afinal que é que tem de tão importante?
Ele sorriu-lhe.
- Bem, se não é importante - continuou ela, torcendo nervosamente o corpo -, não vejo por que é que está sempre a falar dessa festa parva.
A sessão estava quase a terminar. Perguntou a si mesmo se deveria deixá-la ficar durante mais alguns minutos, mas duvidava de que, naquela fase, alguns momentos lhe revelassem mais do que ele já tinha ficado a saber.
Sentiu que, dos "quatro ou cinco anos" mencionados em todas
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aquelas gravações, tinha chegado a uma determinada noite, a uma determinada festa. Não era uma façanha insignificante.
O terapeuta e o paciente eram uma ampulheta viva. A areia corria de um para o outro. O Dr. Levin acreditava piamente que os grãos estavam por fim a vir para o seu lado.
Acompanhou-a à porta, passando-lhe levemente a mão pelos cabelos, tão finos e frágeis como algodão doce.
- Obrigado, Lucy - disse ele.
Ronald Bending precisava tanto de mulheres como outros homens poderiam necessitar de álcool, golfe ou religião. As mulheres eram as muletas que o sustentavam, a única justificação para viver. Bending era incapaz de expressar tais sentimentos; sabia apenas que era, de boa vontade, escravo da sua necessidade.
Saiu directamente do escritório para o parque de estacionamento e deslizou para o banco do condutor do seu Porsche 924 turbo cinzento-prateado. (O carro da mulher era um Volkswagen preto - mas a escolha tinha sido dela). Bending adorava o seu maravilhoso carro e a coisa que mais lamentava era não poder levá-lo para a cama.
Sentou-se no banco de pele suave e inalou profundamente. Já tinha o Porsche há dois anos, mas este ainda cheirava a carro novo, um perfume de dinheiro e poder. Deixou-se ficar sentado durante quase cinco minutos, apenas a saborear. Não pretendia ir para casa; aquela era a melhor parte do dia.
Finalmente, resolveu ir ao Chez When, no Commercial Boulevard. A comida era assim-assim, mas o bar era a melhor espelunca de engate em Fort Lauderdale. Montes de secretárias, professoras, jovens viúvas, divorciadas. Bending pensou que quem não tinha sorte no Chez When era melhor enforcar os tomates.
Conduziu para sul na Federal, resistindo à tentação de acelerar o Porsche para poder ouvir aquele ruído atroador. Nunca tinha levado o carro ao seu limite, mas continuava a dizer: "Um destes dias!"
Entregou as chaves a Jimbo, o arrumador do parque de estacionamento, que o conhecia bem.
- Alguma acção? - perguntou Bending.
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- Parece bom - disse Jimbo. - Há cerca de dez minutos entrou uma loura. Chegou num LTD branco. Cabelos compridos. Vai querer engatá-la.
- Pois vou - garantiu-lhe Bending. - Não risques a pintura.
- Alguma vez risquei? - disse Jimbo, ofendido.
A sala do bar era estreita e escura, com aquários de peixes tropicais iluminados. O balcão do bar era oval e tinha três empregados que pareciam estar sempre ocupados com os misturadores, a fazer daiquiris de banana e margaritas de morango.
Bending aguardou um momento até os seus olhos se habituarem à obscuridade. Depois, inspeccionou as perspectivas. Parecia bom; havia mais mulheres do que homens, numa proporção de quase dois para um, e nem um único cão à vista. Turco sentou-se num banco alto com bancos desocupados dos dois lados; não estava com pressa.
Pediu um Jack Daniel's duplo com gelo, acendeu um dos seus cigarros com filtro e olhou casualmente em volta. Avistou a loura de que Jimbo lhe tinha falado. Era sem
dúvida um borracho, mas um tipo já tinha avançado. Um tipo vinte quilos mais pesado que Turco e com menos dez anos. Não ia desafiar aquilo.
Felizmente, havia muito movimento no bar. Gente a chegar. Engates a irem-se embora. Pessoas a irem jantar para a sala das traseiras. Bending bebericou lentamente a bebida e descontraiu-se. Aquele era o seu mundo. Conhecia-o tão bem como um pigmeu conhece a selva. Ali estava em casa.
Tinha acabado de pedir uma segunda bebida e estava inclinado para a frente, a observar a variedade de garrafas de licor ao fundo do bar, quando se apercebeu de que alguém estava a deslizar para o banco à sua direita. Sentiu uma lufada de perfume. Joy, pensou. Era um homem que sabia identificar os cheiros das mulheres.
Não se virou para olhar, mas viu as mãos: gorduchas mas muito bem arranjadas. Esperou até aquelas mãos tirarem um cigarro de um maço. Depois, Bending entrou em acção com o seu isqueiro de ouro.
- Obrigada - disse ela numa voz baixa e risonha. Depois olhou para ela.
Não era exactamente gorda, mas forte. Jovem. Cerca de vinte anos, calculou ele. Mais engraçada que bonita. Nariz arrebitado. Olhos com um toque de sombra verde. E a pele era tão fina e lisa que parecia de uma tonalidade especial de mel. As suas feições eram muito ligeiramente gorduchas. Cabelos cortados curtos: franja a direito. Um castanho bonito e brilhante.
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Vestia uma blusa de nylon branca, não tinha soutien e usava calças de ganga de marca. O corpo era generoso. Rubens teria adorado aquele corpo. E Ronald Bending também não o achou nada mau.
- Desculpe - disse ele -, mas não pude deixar de admirar a sua pulseira.
Era a sua entrada habitual; se elas não fossem suficientemente espertas para perceber aquela artimanha, não queria nada com elas.
Ela olhou para o pulso nu.
- Oh, esta coisa velha - disse ela. - Uma herança. Está na família pelo menos há um ano. Nem sequer creio que seja latão verdadeiro.
Pensou que ela serviria.
- Chamo-me Franklin Pierce - disse ele
- Não foste presidente?
- Por acaso, vice-presidente. Estava encarregue do vício. Como é que te chamas?
- Florence Nightingale.
- A sério? Não foste queimada na fogueira?
-Não-respondeu ela-, mas uma vez queimei-me com um hamburger.
Desataram ambos a rir, depois acalmaram-se e recomeçaram.
- Em que é que trabalhas? - perguntou ela.
- Sou neurocirurgião de ratos do deserto. E tu?
- Eu dou ervas a piranhas.
- Trabalho melindroso.
- Oh, sim; elas estão sempre a rir. Moras aqui perto?
- Moro aqui. Casa de banho dos homens. Terceiro gabinete à esquerda.
- Que estranho - replicou ela. - Nunca te vi lá.
Meia hora mais tarde estavam a jantar na sala das traseiras. Ele observou, fascinado, enquanto ela devorava um cocktail de camarão duplo, um lombo de meio quilo com esparguete e zucchini frito, uma tarde de natas bávaras para sobremesa e um Brandy Stinger. Também tinha
feiío três incursões à mesa de saladas.
- De que campo de refugiados vieste? - perguntou-lhe ele.
- Acabei de escapar da Dieta Mágica de Trinta Dias do Dr. Slotskin. Vais acabar o teu gelado?
- Acaba-o tu - disse ele, empurrando-o para junto dela. Deus me livre que desmaies por subnutrição.
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- Achas que sou gorda de mais? - perguntou ela, lambendo a colher da sobremesa enquanto o olhava nos olhos.
- De maneira nenhuma - disse ele sinceramente. - Eu definiria o teu corpo como, ah, generoso. Mas gorao? Não. Vejo-te com uma imensidão de montanhas luxuriantes e vales suaves e abrigados.
- Que lindo! - disse ela. - Tens mais de quarenta e cinco anos?
- Claro que não tenho mais de quarenta e cimco anos - disse ele, indignado.
- Óptimo - disse ela. - Nunca vou para a cama com alguém com mais de quarenta e cinco anos sem ver o seu electrocardiograma.
Então estava bem; pagou alegremente a conta.
Quando Jimbo trouxe o Porsche, ela olhou para o carro e disse:
- Ena, pá! Este é o teu carro?
- Meu e do banco. Somos sócios.
- Acho que vou pintar o meu cabelo dessa cor.
- Boa ideia - disse ele.
Ela vivia no mesmo edifício que o Dr. Levin, mas Bendingnão sabia. O apartamento era da comum Renascença da Florida: vagamente Luís XIV com imensos dourados, as pernas das mesas trabalhadas, e sátiros a caçar ninfas por todo o papel de parede.
A casa parecia demasiado grande e cara para uma única ocupante. Perguntou a si mesmo se ela seria uma profissional.
- Divides o apartamento com alguma amiga? - perguntou ele casualmente.
- Agora sim - disse ela, e deitou uma coisa verde num copo.
- Que é isto?
- Licor de melão.
- Oh, meu Deus! - disse ele, e provou.
- Gostas?
- Bem... - disse ele.
O ar condicionado do quarto estava no máximo. Podia-se pendurar carne de vaca naquele aposento.
- Que gostas de fazer-perguntou ela enquanto se despiam.
- Tudo - respondeu ele.
- Eu também - disse ela. - Menos ficar em pé numa rede de descanso.
Quando acabou de se despir, ela examinou-o criticamente.
- Nada mau.
- Não é o tamanho que conta - disse-lhe ele -, é a ferocidade.
Olhou para ela apreciativamente, encantado com o que via.
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Tinha tido razão; ela era um espanto. Toda cor-de-rosa e bege. Pastel. Nem um único defeito naquele esconderijo perfeito. Curvas cheias e ondulantes. Estava cheia de sucos.
- Se te picar - disse ele -, tu esguichas.
- Pica-me - disse ela.
Ela não era das silenciosas. Gemeu, gritou, falou, berrou. E também não atacou suavemente naquela bela noite e investiu, recuou, rolou, saltou. Bending aguentou-se e deu o seu melhor. Deve ter sido suficiente porque, quando acabaram, ela beijou-lhe a bochecha e disse:
- Lá vão quatrocentas calorias.
Foi para a cozinha, nua, e voltou com duas latas geladas de Michelob.
- Plasma - disse Bending, agradecido.
- Quanto tempo é que vou ter de esperar por um encore? perguntou ela.
- Depois do que acabámos de fazer? Pelo menos, quatro anos. Ela riu-se e recomeçou a trabalhar nele cheia de boa vontade. Podia não ser tão experiente como Jane Holloway, mas o que
lhe faltava em perícia era compensado com juventude e entusiasmo. As suas ministrações foram bem sucedidas. Vinte minutos.
- Quero sentar-me em cima de ti - anunciou ela.
- A vontade - disse ele, pensando nela com a Posição Missionária.
Esta levou mais tempo e não teve as acrobacias do primeiro combate. Foi lenta, sonhadora, deliberada, mais uma dança do que uma luta.
Por fim, ela caiu em cima dele, afogando-o na sua carne fragrante. Sentiu o coração dela bater contra o seu peito. A pele dela estava tão quente como a dele, tão húmida. Ele ainda estava rijo dentro dela.
Estavam assim deitados quando ele ouviu os sons inconfundíveis da porta da frente a ser destrancada e aberta. A brasa levantou a cabeça.
- Meu Deus! - diss ela, citando involuntariamente uma farsa de Feydeau que Bending vira há vinte anos na Broadway -, é o meu marido.
A reacção fisiológica dele foi imediata; murchou dentro dela.
"Sou um homem morto!", pensou.
Tirou-a de cima de si e depois saiu da cama, aterrando de gatas no chão. Procurou a tanga de nylon. Vestiu-a, e tinha uma perna das calças vestida quando ergueu os olhos e ali, à porta do
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quarto, estava uma das mulheres mais belas que ele alguma vez vira.
Estava a olhar para a rapariga nua na cama desfeita.
- Sua puta! - disse, selvaticamente. - Estás outra vez na mesma.
A brasa gemeu.
- Só devias vir para casa amanhã.
Bending agarrou nas suas roupas. Saltitando, segurando as calças por uma perna, tentou deslizar por detrás da mulher furiosa que estava agora dentro do quarto.
Ela girou a cintura e bateu-lhe no rosto com a palma da mão. A pancada provocou-lhe um zumbido nos ouvidos. Deixou cair as roupas.
- Ei - disse ele. - Espere aí um...
A seguir, ela saltou para ele, atacando com as unhas e os joelhos. Ele empurrou-a e ela ficou sentada no chão.
- Seu filho da puta! - gritou a rapariga nua, saltando da cama. - Não te atrevas a tocar nela!
Depois, caíram as duas sobre ele, arranhando, batendo-lhe na cabeça, tentando desfazer-lhe as jóias de família. Ele defendeu-se o melhor que pôde, apertando, empurrando. Sabia que tinha o rosto a sangrar e um murro na maçã de Adão dificultava-lhe a respiração.
Por fim, arrumou uma de cada vez. Atirou a rapariga nua para a cama. Ela foi aos tropeções e depois caiu de costas, com as pernas muito abertas.
Ao "marido" deu-lhe um pontapé atrás do tornozelo. Ela caiu num monte de brilhantes roupas de marca. No breve instante em que as mulheres ficaram entorpecidas, Bending apanhou as suas roupas e os sapatos e afastou-se para a porta da frente, ainda a tentar segurar as calças.
Atirou com a porta quando saiu, ignorou o elevador e cambaleou para a saída de emergência. Quase caiu dois lanços de escadas de cimento antes de parar para escutar se havia sons de perseguição. Nada.
Vestiu-se apressadamente com dedos trémulos. Apercebeu-se de que tinha lá deixado a gravata Countess Mara. Que se lixasse a gravata. Desceu pesadamente o resto das escadas e saiu para o parque de estacionamento por uma porta de aço à prova de fogo. Encontrou o Porsche e desapareceu dali.
Quando chegou à Estrada Federal, tinha parado de hiperventilar e as mãos transpiradas estavam descontraídas no volante. No primeiro sinal vermelho inspeccionou o rosto no espelho retrovisor. Uma desgraça. Arranhões. Sangue seco e um sulco
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mais fundo ainda estava a sangrar. Uma nódoa negra na face, já a ficar roxa.
Suspirando, tirou o lenço do bolso, cuspiu nele e, enquanto conduzia com uma mão, tentou limpar o rosto. Esperava ardentemente que Graceja estivesse na cama e a dormir. Mas, para o caso de não estar, começou a engendrar uma história para explicar o seu estado.
Guiou para casa devagar e com cuidado. Agora só lhe faltava ser mandado parar pela Polícia e ter de explicar o álcool no hálito e os arranhões no rosto. Depois, teria de fazer por si próprio o que fizera por Bíll Holloway: mentir como o diabo e distribuir dinheiro suficiente para acalmar os polícias e para conseguir que as queixas fossem retiradas.
Algum tempo depois conseguiu rir. Um riso triste. Perguntou a si mesmo se não estaria a ficar velho de mais para aquele jogo. Os seus cabelos eram penteados e secos com secador num cabeleireiro unissexo. De vez em quando, usava medalhões em pesadas correntes que lhe caíam pelo peito. Tentava manter-se a par de todas as novas bandas de rock. Mas mesmo assim...
Quando chegou a casa, a luz do quarto principal estava acesa. Ele foi directamente para o lavabo do rés-do-chão, lavou-se calmamente e examinou os estragos. Nada fatal, mas não restavam dúvidas de que tinha havido uma luta.
Foi em bicos de pés para a sala de estar e, com a iluminação fraca de uma luz de presença, serviu-se de um grande brande. Engoliu metade de uma vez e depois apertou o estômago quando o líquido lá chegou. Jesus! Que forma de viver.
Levou o resto da bebida para o terraço. E ali estava Grace, calmamente sentada na escuridão, a olhar para o mar encapelado.
- Olá, querida - disse Ronald Bending.
Ela não levantou a cabeça nem disse nada. Aquela atitude preocupou-o. Sentou-se numa espreguiçadeira atrás dela, onde ela não podia ver-lhe o rosto magoado.
- Queres que te prepare uma bebida? - perguntou ele, solícito.
- Não - disse ela. - Preciso de falar contigo, Ronnie.
- Claro - disse ele, corajosamente. - Sobre quê?
- Lucy.
- Que se passa om Lucy? - perguntou ele, sentindo uma onda de alívio por não se tratar de mais um sermão por causa das delinquências dele.
-Acho que ela deve parar de ver o Dr. Levin imediatamente.
- Oh? Por que é que achas isso?
- Bem, ela não, hum, ela não se porta mal há mais de seis
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meses. Por isso talvez lhe tenha feito bem falar com ele. Não vejo qual é a vantagem de continuar a terapia. Está a custar imenso dinheiro.
- Ah! - disse ele, inclinando-se desajeitadamente na espreguiçadeira. - - Escuta, querida, foste tu que me convenceste a levar a Lucy ao Levin. Sabíamos quanto é que ia custar e concordámos em avançar. O dinheiro não é importante. O importante é fazer o que está certo para Lucy.
- Bem, ela está melhor - disse a mulher, rispidamente.
- Está? Achas que ela está curada?
- Ela não, ah, não faz nada desde que começou a ir às consultas dele, por isso acho que podemos parar.
Ele recostou-se e bebeu um gole de brande.
- Conversaste com o Levin sobre a hipótese de a Lucy parar o tratamento?
- Não. Queria falar contigo primeiro.
- Não gostas do Levin?
- Que pergunta! Não gosto dele nem deixo de gostar. Provavelmente, ele é muito competente. Mas não acho que a Lucy precise mais dele, é só isso.
- Achas que és tão competente como o Levin? Ou mais competente?
- Oh, Ronnie, eu conheço a minha filha. Ela está melhor; eu sei que está. Só acho que estamos a deitar dinheiro fora.
- Volto já - disse ele. Levantou-se da cadeira baixa e voltou ao bar da sala de estar. Serviu-se de mais um brande, mas acrescentou um pouco de água mineral a este.
Quando voltou para o terraço, encostou-se à balaustrada, ficando ao lado de Grace. Ela não podia ver-lhe o rosto, e ele esperava sinceramente que ela não reparasse que ele tinha vindo do escritório sem gravata.
Ergueu o olhar para o céu nocturno, girando lentamente o copo. Tentou perceber o que estaria a acontecer.
- Acho que o Levin é um bom homem - disse ele.
- É capaz de ser - disse a mulher em voz baixa.
- Às vezes faz perguntas embaraçosas, mas é o trabalho dele. Pelo menos a mim faz-me perguntas embaraçosas e imagino que também te faça a ti.
- Não muito embaraçosas - disse ela -, mas privadas. Coisas que não têm nada a ver com a Lucy. Ele não tem o direito de perguntar tais coisas.
- É por isso que queres livrar-te dele? - perguntou ele, calmamente.
Ela não respondeu.
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- Escuta - disse ele -, eu contei-lhe imensas coisas que não queria contar, mas se isso contribuir para ajudar a Lucy... que se lixe. Não estás de acordo comigo?
- É tudo tão horrível! - explodiu ela.
- Horrível? Bem... talvez. Mas imagino que eleja ouviu pior. Toda a gente tem segredos. Claro que às vezes é, ah, doloroso falar com ele, mas depois sinto-me sempre melhor. Desabafo. Não te sentes aliviada depois de falares com ele?
- Não - disse ela.
Ele suspirou e bebeu um pouco da bebida.
- Ele disse-nos que demoraria pelo menos um ano. A pôr a Lucy boa. Talvez mais tempo. Se desistirmos agora, foi tudo em vão. Não o dinheiro. O dinheiro que se lixe.
Mas todo o tempo que dedicámos a isto. com o perigo de que a Lucy pode voltar a comportar-se da mesma forma. Levin disse-te que achava que ela estava boa?
- Não lhe perguntei.
- Bem, se achasse tinha-te dito. Parece-me ser um homem honesto. Queres mesmo correr o risco de a Lucy voltar a agir assim?
- Decide o que quiseres! - exclamou ela. - De qualquer forma, fazes sempre.
Levantou-se da cadeira. Abriu a porta de correr e entrou apressadamente na casa às escuras. Bending observou-a, espantado. Depois fechou lentamente a porta. Empurrou a cadeira para a frente, afundou-se nela e pôs os pés em cima da balaustrada do terraço.
Tentou descobrir o motivo da agitação dela. O velho Levin devia ter andado a cortar muito próximo do osso.
Reflectiu que, nos últimos anos, Grace tinha-se tornado cada vez mais reservada. Falava-lhe sobre religião, sobre as transgressões dele, sobre as crianças, sobre a casa. Mas nunca, ou muito raramente, agora lhe falava sobre si própria.
Nem sempre tinha sido assim. Nos primeiros anos apaixonados do casamento, tinham trocado segredos e anseios, fantasias e desejos. O casamento era isso mesmo, não era?
Desejava - oh, como desejava! - ter coragem para ir lá acima naquele momento, abraçar Grace, e perguntar-lhe o que é que a perturbava. Seria suave e meigo e compreensivo e escutaria e assentiria, e nada do que ela dissesse o chocaria ou o faria amá-la menos."
Mas depois, claro, ela veria o seu rosto ferido, e ele teria de começar novamente a mentir. Resmungou.
A vida era uma merda, pensou tristemente. Podia começar-se
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uma coisa com a melhor das intenções, mas, mais cedo ou mais tarde, transformava-se tudo numa merda. Depois acabava-se com um par de gajas doidas a bater
enquanto se fugia para salvar a vida, a tentar segurar as calças.
Teve de se rir com aquela imagem. Era uma loucura. Tudo era uma loucura. Burlesco. E a única maneira de conseguir ter uma coisa parecida com sanidade era alinhar, deixar-se ir, e não ser infeliz tentando ser algo que não se podia ser.
Bebeu outra bebida, desta vez pequena. E, depois, quando achou que a mulher já estava a dormir, foi para a cama.
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- Amadores - disse Jimmy Stone, desgostoso, na sua voz baixa. - São todos uma merda de uns amadores.
-Tens razão, Jimmy-apoiou Rocco Santangelo. - Sempre que tentamos fazer um negócio com amadores, lixamo-nos.
- O esquemas mais bem montados... - citou sonoramente o ex-senador Randolph Diedrickson.
Jane Holloway não disse nada, mas observou atentamente os três homens. Viera àquela reunião com algum temor, impressionada com a riqueza, poder e experiência dos outros. Agora concluía que tinha muito pouco a temer; podia lidar com eles.
Estavam no escritório de Diedrickson. Renfrew, o criado negro, tinha levado as visitas lá para cima e servira a primeira rodada de bebidas. Depois, deixando um balde de cubos de gelo, saíra discretamente. Os homens estavam a beber uísque americano. Jane Holloway bebericava um copo de Perrier com uma rodela de lima.
- É melhor dizer-nos alguma coisa sobre esses tipos - disse Santangelo, dirigindo-se a Jane. - Não sobre o seu marido. Os outros dois. Sabemos quais são os negócios deles e o montante das contas bancárias. Mas quanto à vida pessoal? São bêbados, tomam drogas?
Falando num tom de voz firme e frio, Jane contou-lhes o que sabia sobre Luther Empt e Ronald Bending: as famílias, os hábitos pessoais, fragilidades, ambições. O seu relato foi breve, conciso e completo.
Os dois representantes da mafia olharam um para o outro.
- Manda o Sam vigiá-los, Rock - ordenou Jimmy Stone. Quero saber tudo: onde vão, quem vêem, onde param... tudo.
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- Certo, Jimmy.
Stone virou-se novamente para Jane.
- Esse Ernie Goldman, o téc... Qual é o problema dele?
- É um jogador que aposta forte - disse ela. - Nas pistas. Cavalos e cães. Usa um agente local.
- Está bem - disse Stone -, isso ajuda. Rock, manda o Sam descobrir a quem é que ele deve e quanto é que deve.
Depois ficaram em silêncio. Diedrickson, sorrindo benignamente, deixou-o crescer. Tinha dado instruções rigorosas a Jane antes daquela reunião. Uma das sugestões fora que ela deveria responder honestamente a tudo o que lhe perguntassem, mas para não dizer nada espontaneamente.
- Rock - disse Jimmy Stone, erguendo o copo -, vai-me buscar outra dose, está bem? Não abuses no gelo.
O impecavelmente vestido Santangelo levantou-se imediatamente, encheu o copo de Stone e o seu. Enquanto estava junto do aparador, falou para Jane por cima do ombro:
- Esse Bending, ele quer avançar com a traição?
- Queria - disse ela - da última vez que o vi. Ele já sondou o Ernie Goldman. Diz que Goldman está do nosso lado se nos livrarmos do Empt.
Santangelo levou a bebida a Stone e depois sentaram-se novamente, ajustando os marcados vincos das calças beges de seda selvagem.
- Jimmy - disse ele -, acho que temos de avançar nisto.
- Sim - disse Stone. - Falei com o Tio Dom. Ele diz para assumirmos o controlo.
Silêncio de novo. Os dois mafiosos sentaram-se sombriamente, a segurar os copos. O senador, atrás da secretária na cadeira de rodas, sorria como um buda decrépito. Jane Holloway, fria e resoluta num fato modesto de linho branco, estava sentada, imóvel, pacientemente à espera de acção.
- Rock e eu não temos tempo - queixou-se Jimmy Stone, como se estivesse a falar sozinho. - Isto é apenas uma coisa. Nós temos imensas coisas em andamento. Há aquele
grande empreendimento perto de Sarasota. Talvez jai alai1 em Jacksonville. Há Um tipo, sabem, que quer ter uma cadeia de lares de terceira idade. Não pelos vagabundos
velhos, percebem, mas por causa dos velhos ricos bêbados e malucos. Podia dar dinheiro. Por isso, entre uma coisa grande e outra, estamos atolados de trabalho.
- Ah, sim - disse o senador, acenando compreensivamente.
- O que procuram é gerentes individuais para cada uma das
1 Jogo parecido com a pelota, jogado com grandes cestos curvos. (N. da T.)
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vossas várias empresas. Estou certo nesta presunção? Executivos eficientes, de confiança e discretos para vos tirarem as tarefas diárias de administração dos ombros?
- Sim - disse Jimmy Stone -, uma coisa assim. - Olhou directamente para Jane. - Gosto do seu estilo - disse para ela.
- Você tem classe. E é uma senhora inteligente. Tem algumas ideias boas... sobre melhores filmes e capas. Acha que era capaz de administrar esta organização porno?
- Sim - disse ela.
- vou dizer-lhe o que isso significaria - disse ele. - A princípio, organiza o processamento das cassetes. Depois, quando as coisas estiverem a funcionar normalmente, encarrega-se das caixas. Eventualmente, se as coisas resultarem, assume a produção dos filmes. É um trabalho a tempo inteiro.
- E quanto à distribuição e às vendas? - perguntou ela.
- Não - disse Stone.
- Temos uma organização para isso - explicou Santangelo.
- E complicado... sabe? Ela assentiu.
- Como é que pretendem assumir o controlo da EBH Enterprises? - perguntou-lhes ela.
- Escute - disse Jimmy Stone gravemente -, nós não somos ladrões. Trabalhamos legalmente. Vamos comprar a parte deles. Ninguém vai perder um tostão.
- Acho que o Empt e o Bending não vão concordar com isso
- disse ela.
- Como apreendo a situação - disse Randolph Diedrickson suavemente -, não há contratos escritos e assinados em vigor. Foi um acordo verbal que, creio, teria muito pouca força num tribunal se o Empt e o Bending fossem suficientemente loucos para recorrer à justiça.
- Mesmo assim, acho que eles vão, ah, provocar sarilhos disse Jane.
Rocco Santangelo riu com brusquidão e depois calou-se quando Jimmy Stone olhou para ele.
- Resolveremos ese problema quando ele surgir - disse Stone. - Penso que podemos persuadir o Empt e o Bending a vender. Como eu disse, eles não vão perder um centavo.
Recuperam o dinheiro que investiram, talvez com uma pequena atenção para os deixar felizes, e ficamos com a fábrica nova e com as máquinas. Senador?
- Um acordo muito justo - disse Diedrikson.
- Claro que é - disse Jimmy Stone. - Ninguém fica lesado.
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Agora chegamos ao seu marido, Sra. Holloway. Ele estará disposto a vender?
- Eu convenci-o a meter-se nisto - disse ela -, por isso, posso convencê-lo a sair.
- Sim - disse Stone - , foi o que eu imaginei. Mas quanto a tomar conta de todo o negócio? Como eu lhe disse, é um trabalho a tempo inteiro. Ele vai alinhar nisso? A mulher a administrar uma operação porno, sendo ele um presidente de banco e tudo isso?
O senador tinha avisado Jane sobre aquela pergunta, e ela pensara muito na resposta que daria.
O marido era um fraco e o pai estava velho, por isso não tinha ninguém com quem se aconselhar a não ser ela própria. Mas, enquanto reflectia sobre o que a princípio achara ser uma simples decisão de negócios, começou a ver a necessidade de descobrir o que sentia realmente como pessoa, em contraste com o que era suposto sentir como esposa, filha e mãe.
Não foi um processo fácil - na verdade foi doloroso -, e revelou-lhe quantos dos seus julgamentos eram impostos, quantas opiniões eram emprestadas. Teve de se livrar da bagagem de lixo mental de uma vida inteira que agora considerava aborrecida e desvantajosa. "Propaganda", foi o que lhe chamou.
Como um cirurgião, cortou tudo o que era insignificante na sua vida, tudo o que a tinha prendido e sufocado. Chegou ao auto-reconhecimento, à essência. Examinou-se, desnudou-se, e não ficou assustada com o que viu.
Por fim, soube quem era e o que queria. Tudo o resto era uma parvoíce.
- Se houver algum problema com o meu marido - disse ela firmemente -, eu trato do assunto.
- Sim - disse ele, olhando para ela com admiração. Aposto que trata.
- Que é que estão dispostos a oferecer-me? - perguntou-lhe ela.
- Trinta e cinco mil por ano - disse ele. - Para começar. Depois, à medida que for assegurando outras partes da operação, poderemos falar de mais dólares.
- Não - disse ela, categórica. - Cinquenta mil no primeiro ano. E o que Empt está a receber agora para organizar a coisa, e eu sou mais esperta do que ele.
- Jane - começou Diedrickson -, não acha...
- Desculpe, senador - disse ela, rispidamente -, mas deixe-me resolver este assunto. Quero cinquenta mil no primeiro
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ano. Depois, quando virem aquilo que eu posso fazer, quero cem mil e cinco por cento dos lucros.
- Cinco por cento! - explodiu Rocco Santangelo. - Senhora, você está maluca? O Tio Dom nunca concordaria com isso!
Ela virou-se rapidamente para ele.
- Nunca vai saber se não perguntar, pois não? E que têm vocês a perder? Podem pôr-me a andar quando quiserem... sabem disso. Aceitar este trabalho representará um grande sacrifício pessoal da minha parte, não se esqueçam disso. Não espero que isso influencie a vossa decisão. Mas tenho de sentir que estou a receber alguma coisa para compensar aquilo de que estou a desistir.
- Vamos falar com o Tio Dom - disse Jimmy Stone lentamente.
- Façam isso - disse ela. - E, se ele quiser, terei muito gosto em encontrar-me com ele pessoalmente e, ah, explicar-lhe a minha posição. Mas podem dizer-lhe que, se ele concordar com o que eu peço, eu vou dar o meu melhor para transformar este esquema porco num negócio lucrativo e com classe.
Stone olhou para ela, preocupado.
- Sim. vou transmitir-lhe o que nos disse. Vai ter notícias nossas.
Levantou-se. Santangelo pôs-se imediatamente de pé. Os dois homens apertaram a mão de Jane e depois inclinaram-se sobre a secretária para apertar a grande mão de Diedrickson.
- Obrigado, senador - disse Stone. - Depois damos notícias. - Parou junto da porta e depois virou-se para trás. Quanto àquele rapaz do distrito de Okeechobee. O delegado do Ministério Público...
- Sim? - disse Diedrickson, sem esconder a ansiedade.
- Mandámos um homem investigá-lo. Parece bom. O Tio Dom vai entrar em contacto com o senhor.
- Excelente! - exclamou o senador. - Estou encantado com a vossa novidade! Transmitam os meus cumprimentos ao bom homem.
Quando a porta se fechou atrás dos dois convidados, Diedrickson impulsionou a cadeira até estar frente a frente com Jane Holloway.
Olhou para ela pensativamente.
- Sabe, minha querida, se você fosse um homem, eu diria que tem tomates.
- Acha que vou conseguir o que pedi?
- Não - disse ele, imediatamente. - Darem-lhe tudo seria um sinal de fraqueza da parte deles, um sinal de que precisam
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desesperadamente de si. Eles não querem que fique com essa ideia. Na minha opinião, vão concordar com cinquenta mil no primeiro ano, mas adiarão quaisquer compromissos futuros até poderem avaliar a forma como lida com as suas responsabilidades.
Ela pensou no que ele dissera.
- Está bem. Se oferecerem os cinquenta, eu aceito. Mas vou tornar-me tão indispensável que acabarei por ter o que quero.
Ele soltou uma gargalhada.
- Ah, o optimismo da juventude! Jane, quando aludiu a um sacrifício pessoal da sua parte para aceitar este cargo, estava, talvez, a referir-se a divórcio?
Ela assentiu.
- Acho que vai chegar a esse ponto, senador. Bill é um homem muito decente. Só entrou neste negócio porque eu o chateei até conseguir convencê-lo. Mas é contra a moral dele, eu sei. Nunca suportaria que eu assumisse a liderança de tudo.
- E então vai deixá-lo?
- Sim.
- E as crianças?
- Ele pode ficar com os monstros - disse ela.
Ele respirou fundo, e depois soprou ruidosamente o ar com um borbulhar dos lábios grossos. Brincou com o balão de uísque americano em que não tocara, girando o copo nos dedos gorduchos. Depois, afastou-o para longe. Brindou Jane com um dos seus sorrisos bondosos.
- Minha querida, não se importa de me preparar uma vodca num copo alto com muito gelo, uma rodela de lima e apenas um borrifo de água? Agradeço-lhe muito.
Ela dirigiu-se ao aparador e preparou-lhe a bebida. Ficou surpreendida ao constatar que as suas mãos tremiam ligeiramente, por isso preparou uma vodca com gelo também
para si. Levou as bebidas para a secretária.
O senador ergueu o copo.
- À sua nova carreira - brindou ele. - Desejo-lhe o maior sucesso.
- Obrigada - disse ela em voz fraca. - Mas ainda não é certo que eles me queiram.
- Vão querer - assegurou-lhe ele. - Praticamente, posso garantir.
- Mas eu tenho muito pouca experiência empresarial, e nenhuma neste, hum, ramo. Como é que pode ter tanta certeza?
Ele não respondeu à pergunta dela. Mas o seu sorriso radioso esmoreceu, os olhos estreitaram-se. Quando olhou para ela,
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furioso e ameaçador, ela sentiu uma vaga inquietação e perguntou a si mesma se aquele era o olhar com que ele fulminava os inimigos antes de as suas cabeças rolarem.
Mas, quando falou, a sua voz foi bastante suave. Na verdade, lisonjeadora...
- Falemos sobre nós - disse ele, brandamente. - De você e de mim. Seria bastante natural que, com as suas novas responsabilidades e rendimento independente, começasse a questionar-se sobre se o nosso, ah, relacionamento especial é vantajoso para si.
- Senador - começou ela -, eu juro que...
Mas ele ergueu uma palma carnuda para a interromper.
- Talvez ainda não, mas mais cedo ou mais tarde perguntar-se-á que raio está a fazer, dando prazer a um velho delapidado que, infelizmente, não lhe pode dispensar a mesma cortesia. Seria uma pergunta muito normal para fazer a si mesma. Tendo conseguido alcançar os seus objectivos, para quê perder tempo com uma actividade ocasional que pareceria não ter um lucro discernível?
- Eu nunca pensei...
-No entanto - continuou ele inexoravelmente -, como está prestes a mergulhar os dedos, como se costuma dizer, no mundo do dinheiro e do poder, acho que é uma boa acção da minha parte avisá-la em relação aos costumes que regem esse mundo. Em resumo, minha querida, o seu sucesso, ou falta dele, depende em grande medida do seu prestígio financeiro ou político. Como, de momento, não tem nenhum dos dois, nem pode razoavelmente esperar acumular muito nos tempos mais próximos, continua a ter necessidade de, ah, de um protector.
- Compreendo, senador.
- Claro que compreende - disse ele calorosamente, e depois bebeu um grande trago da
vodca e estalou os lábios. - Como o Sr. Stone realçou numa reunião anterior,
você é uma tipa esperta. E, sendo esperta, aguentará de boa vontade a ignomínia de ser a protegida de um velhinho caquético enquanto sentir que pode beneficiar desse relacionamento.
- Eu envolvi-me neste relacionamento de livre vontade, senador.
- Claro, claro - resmungou ele. - Eu sei, e gosto muito de si por isso. E poderá terminá-lo de sua livre vontade, não é verdade? Mas, antes de o fazer, sugiro-lhe
que considere cuidadosamente os meus comentários sobre a necessidade de prestígio num mundo que venera o dinheiro e o poder. E isso, acabados os
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rodeios, leva-me à sua pergunta original: como poderei ter tanta certeza de que o Tio Dom vai oferecer-lhe o emprego?
- Sim - disse ela -, como é que sabe?
- Esses homens não são estúpidos - declarou ele. - Grosseiros, talvez. Talvez sem educação. Mas são astutos. Tenho a certeza de que eles perceberam que você e eu temos um relacionamento pessoal, e que esse facto foi realçado ao Tio Dom.
É verdade que o querido homem me fez muitos favores. Também é verdade que eu ainda
não estou assim tão desdentado que não possa auxiliá-lo, de diversas formas, quando a necessidade surgir.
- Está a dizer-me que eu só vou conseguir o emprego porque o Tio Dom quer fazer-lhe um favor?
- Oh, não - protestou ele. - Não, não, não. Esse é apenas um factor. Tenho a certeza de que o Sr. Stone lhe transmitiu as suas interessantes ideias para melhorar o, ah, produto deles. E você é uma jovem senhora com personalidade, com uma ambição e uma resolução óbvias. E decidida; eles percebem isso. Todas estas coisas pesarão na decisão final do Tio Dom. O desejo de me agradar será apenas uma das suas considerações. Mas, sem querer vangloriar-me, creio que será um factor decisivo.
- Estou a perceber - disse ela. Ela sorriu-lhe abertamente.
- Eu sabia que perceberia. Queria chamar a sua atenção para tudo isto simplesmente para a alertar para a forma como as coisas se fazem neste novo mundo em que está prestes a entrar.
- Uma coisa em que pensar - disse ela, observando-o -, no caso de me passar pela cabeça terminar o nosso relacionamento?
- Precisamente - disse ele, mostrando-lhe os dentes amarelados. - Como tem pouco ou nenhum prestígio nesta altura, penso que seria muito insensato da sua parte rejeitar um bom amigo.
-Acho que tem razão - disse ela, pensativamente. - Como sempre, o seu conselho é muito prático.
- É muito simpática - disse ele, acenando com a mão. Tento meramente ser útil aos meus amigos. Toda a minha carreira no Senado dos Estados Unidos da América foi
baseada nessa crença. Ajudar os meus amigos e, se eles forem dignos da minha ajuda, ajudar-me-ão.
- Um sentimento nobre - disse Jane Holloway, sem ironia na voz, e esticou a mão, puxando a cadeira de rodas de Randolph Diedrickson para junto de si, até os joelhos de ambos se tocarem.
- Agora, senador - disse ela -, diga-me em que posso ser-lhe útil.
Ele disse-lhe.
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No caso de Lucy B., o Dr. Levin estava a evidenciar uma preocupação que, admitia, se aproximava perigosamente da obsessão. Receava estar a negligenciar outros casos, de tal modo o seu fascínio pelo quebra-cabeças da hiper-sexualidade dela era intenso.
Quando expressou os seus receios à Dra. Mary Scotsby, ela tentou acalmá-lo, com pouco sucesso.
- Ted, já te ocorreu que o teu interesse por esta menina pode ser sexualmente orientado?
- Vá lá!
- Eu já a vi, Ted. Ela é um espanto. É assim tão pouco normal para qualquer homem sentir-se atraído por uma beleza física tão grande?
- Isso é um disparate - disse ele, zangado. - É um problema profissional; não quero ir para a cama com a miúda. Estou convencido de que estou no caminho certo... o trauma psíquico. Mas as coisas não estão a passar-se como eu tinha previsto.
- Vais conseguir - disse-lhe ela.
- Quem me dera ter o teu optimismo - disse ele, sombriamente. - Não paro de pensar que estou próximo, mas preciso de mais tempo. Alguma vez sonhaste que serias capaz de dedicar toda a tua carreira profissional a um caso? A tua vida inteira passada a estudar unicamente um ser humano. Não seria o máximo?
- Todos nós fazemos isso - observou a Dra. Scotsby. - Nós próprios.
Levin voltou a mergulhar nos seus pensamentos, convencido de que a sua premissa estava correcta, mas frustrado no seu desejo de descobrir exactamente o que levara Lucy a ter aquele comportamento tão afastado dos padrões.
Agora, via o seu mundo não muito diferente do de um detective. Tinha sido perpetrado um crime. Pois não era criminoso distorcer a psique de uma criança? Todas as pistas apontavam para a culpa do pai. Não premeditada, evidentemente. Involuntária. Um acidente. Não homicídio, mas homicídio não premeditado. O resultado era o mesmo.
Uma festa em casa dos Bending. Toda a gente a beber, feliz, a rir. A menina a dançar com o pai pela primeira vez. Depois, a
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ida para a cama. E, mais tarde, um pai entontecido a copular com uma mulher desconhecida no quarto contíguo ao dela, no qual a criança estava deitada, de olhos abertos na escuridão, a escutar. Depois, a correr para o corredor para descobrir a font daqueles gritos e gemidos assustadores.
Levin conseguia ver todo o incidente com enorme clareza. Era um filme pornográfico que lhe passava constantemente na mente. Conhecia os actores, ouvia as suas conversas.
Era uma trama credível; todos os actores representavam os seus papéis. Era tão completa que ele não podia duvidar dela.
Mas a sua própria perfeição preocupava-o. Aprendera há muito tempo que os problemas humanos não eram dados a soluções claras. Havia sempre becos sem saída, armadilhas.
Na verdade, não havia soluções para os males humanos; havia acordos, negociações, que ninguém podia apelidar de vitória ou derrota.
Quando Ronald Bending entrou preguiçosamente no consultório de Levin, o médico inspeccionou-o atentamente, como se a observação física pudesse revelar a culpa do
homem. Mas Bending estava entusiástico, como sempre, muito bem vestido, e o seu sorriso torcido e irónico firmemente em posição.
- Como está, Ted? - perguntou ele.
- Estou bem, Turco - disse Levin, indicando-lhe a cadeira de braços. Ligou o gravador, e depois reparou numa nódoa negra quase a desaparecer no rosto de Bending.
Inclinando-se para a frente, a espreitar, viu arranhões meio curados. - Que lhe aconteceu? - perguntou.
- Uma pequena altercação - disse Bending, sorrindo. Um larápio atirou-se a mim no parque de estacionamento. Marcou-me antes de eu conseguir soltar-me e correr que
nem um doido.
- Foi apanhado?
-Não. Quando os chuis lá chegaram eleja se tinha pirado há muito tempo.
Levin sabia que o homem estava a mentir; estava demasiado loquaz. O médico perguntou a si mesmo se teria havido uma briga entre marido e mulher. Duvidava; não acreditava
que Grace fosse capaz de violência física. No entanto...
- Ted - disse Bending, olhando para as janelas -, a minha mulher disse-lhe alguma coisa sobre afastar a Lucy da terapia?
Levin hesitou durante alguns instantes.
- Não - disse, por fim.
- Ela quer - disse Bending. - Disse-me a mim.
- Oh? Deu-lhe alguns motivos?
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-Acha que a Lucy está melhor. A miúda não se comporta mal desde que começou a vê-lo. Por isso, a Grace quer acabar com as consultas.
- Como é que você se sente em relação a isso?
- Eu não quero. E disse-lhe isso mesmo. A não ser que você me diga que a Lucy está completamente curada e que não precisa de o ver mais.
- Não, não posso dizer-lhe isso. Mas não quero ser o motivo de zangas entre pais. Talvez preferissem outro terapeuta?
- Quero ficar consigo. Quando disser que a Lucy pode parar, então paramos. Para além disso, acho que a Grace não estava a dizer-me o verdadeiro motivo por que quer parar.
- Ah? Qual é que acha que será o verdadeiro motivo?
-Acho que você tem andado a cavar um pouco fundo de mais para o bem-estar dela. A minha mulher é uma pessoa muito privada, Ted. Deve ser duro para ela responder
a algumas das suas perguntas. Eu aguento; não quero saber. Mas acho que ela está a ficar perturbada. Ela não me disse isso; é o que eu acho.
Levin suspirou.
- A sua mulher tem sido muito cooperante. Tal como você, claro. Vocês deviam saber que isto não ia ser fácil.
- Oh, claro. Falámos sobre o assunto, a Grace e eu. Sabemos que tudo o que pergunta é para o bem da Lucy... certo?
- Certo. Então, quer continuar?
- Por que não? - disse Bending, incerimoniosamente. - Se isso ajudar a Lucy.
Havia algo inquietante naquilo, e Levin resolveu aprofundar o assunto.
- Corrija-me se eu estiver errado, Turco, mas durante a nossa primeira entrevista eu fiquei com a nítida sensação de que trazer a Lucy às minhas consultas tinha sido ideia da sua mulher, e que você não estava muito entusiasmado com isso. De facto, fiquei com a impressão de que ela o tinha obrigado a vir.
- Certo - disse Bending, sardonicamente. - Foi isso mesmo. Era o dinheiro que estava a preocupar-me.
- Mas o dinheiro já não é importante?
- Para mim não. A Grace mencionou esse facto, mas não é por esse motivo que ela quer parar de o ver.
- Então, o que temos aqui é uma inversão de papéis... certo? Agora, é você que quer ajuda para a Lucy, e a Grace é quem está recalcitrante?
- Sim... se recalcitrante significa o que eu penso.
- E acha que a mudança de atitude da Grace surgiu porque
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eu lhe fiz perguntas que ela considera serem uma invasão da sua privacidade?
- Quase juraria.
Levin sentiu o pulsar de uma ideia, tão fraca que ainda só existia num estado amorfo. Não conseguia agarrá-la nem dar-lhe forma. Flutuava, uma fantasia, e, alguns instantes depois, incapaz de a definir, deixou-a vaguear temporariamente.
- Turco - disse ele, inclinando-se para a frente na secretária -, agora vou fazer-lhe uma série de perguntas que talvez considere extrínsecas aos problemas da Lucy. Mas garanto-lhe que creio serem importantes, e espero que me responda com a máxima sinceridade.
- Claro. Pode perguntar.
- Na zona onde vivem há muitas festas?
- Festas? Oh, diabos, sim. O sul da Florida é um sítio de festas. Bailes, churrascos, jantares formais, festas ao ar livre, reuniões para beber copos. Estamos sempre a divertir-nos.
- com que frequência?
- Oh, meu Deus, nunca parei para pensar. Pelo menos uma vez por semana, acho eu. Provavelmente mais. Quero dizer, estamos sempre em festa.
- Há alguma de que se lembre especialmente? Alguma que lhe tenha ficado na memória por alguma razão?
Ronald Bending ponderou.
- Sim, acho que sim. Talvez se houve uma luta. Ou se alguém bebeu tanto que fez figura de parvo. Ou parva. Ou se todos foram tomar banho nus. São festas assim que nos ficam na memória. Principalmente porque as pessoas ainda falam nelas anos depois.
- Claro - disse Levin. - Muito compreensível. Agora vou perguntar-lhe se se recorda de uma festa em sua casa há cerca de quatro anos. Possivelmente foi um jantar sentado. Muitas pessoas. Música. Mais tarde baile.
- Música? - disse Bending. - Está a referir-se a um grupo ou a uma cassete ou a quê?
- Não sei - confessou Levin -, mas havia música. Uma festa formal, onde todos estavam vestidos a rigor.
- Há cerca de quatro anos? - disse Bending, franzindo o sobrolho. - Não me lembro de nada assim.
Levin jogou a sua última carta.
- Foi a primeira festa em que a Lucy foi autorizada a ficar no andar de baixo e a jantar à mesa dos adultos. E, depois, mais tarde, você dançou com ela. Ela estava muito bem vestida. Um vestido branco. com fitas cor-de-rosa. Foi a primeira vez que você dançou com ela.
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O rosto de Bending aligeirou-se e ele riu.
- Oh, raios, sim. Já me recordo. Quem lhe falou nisso? A Grace?
Levin não respondeu.
- Oh, sim - disse Bending, sorrindo -, foi uma grande festa. Vinte pessoas num jantar sentado. Talvez mais. Encomendámos a comida a uma firma. Custou uma fortuna, mas eu tinha acabado de assinar um grande contrato e decidimos comemorar. Tem razão; havia música. Um trio. E eu dancei com a Lucy. Foi uma grande excitação para aquela menina tão pequenina. Meu Deus, isso foi há quatro ou cinco anos. Agora, ela quer ir à discoteca. Como o tempo passa.
- Pois é - disse o Dr. Levin, impacientemente. - Mas em relação a esta festa... Algum tempo depois a Lucy foi para a cama. E que aconteceu depois?
- Que aconteceu? Ora, a festa continuou. Bebidas, danças, charros a passar de um lado para o outro.
- Tente lembrar-se - pediu Levin. - Tente lembrar-se exactamente do que aconteceu.
Turco acendeu lentamente outro cigarro. Recostou-se na cadeira e cruzou a perna. Olhou para as estrelas de papel coladas no tecto. Quando falou, a sua voz era baixa, reminiscente...
- É engraçado ter mencionado essa festa, Ted. Agora recordo-me de tudo. Acabou por ser uma festa muito húmida. Toda a gente se passou.
- A Grace também?
- Oh, claro. Naquela altura ela bebia. Algumas pessoas foram-se embora. O trio acabou a actuação à meia-noite, acho eu. Mas pus alguns discos e continuámos a dançar. As pessoas começaram a arranjar pares. Não maridos e mulheres, percebe? Muitas trocas. Quero dizer, desapareciam. Para a praia ou para o meio dos arbustos. Depois voltavam, rindo como doidos. Foi uma festa desse género. Jesus, foi divertido.
"Por fim", pensou Levin. "Apanhei-o."
- E você, Turco? - perguntou ele suavemente. - Que é que você fez?
- Eu? - disse Bending, soltando uma pequena risada. Acho que me portei como sempre. Bebi que nem uma esponja, dancei até me doerem as pernas e fiz figura de parvo. Como deve ser.
- E engatou alguém?
De repente, Bending ficou sério. Descruzou a perna e endireitou-se. Depois, inclinou-se para a frente na cadeira de braços, olhando intensamente para o Dr. Levin.
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- Nada de nomes? - perguntou ele.
- Nada de nomes - garantiu-lhe Levin.
- Sim, arranjei alguém. Talvez seja por isso que me lembro tão bem da festa. Foi o começo de uma longa e bonita amizade. Jesus, ainda continua... acredita numa coisa dessas?
- Alguém que conhecia?
- Uma vizinha. Mulher de um amigo meu. Tem dois miúdos, mas isso não interessa. De qualquer forma, eu tinha um fraquinho por ela desde o dia em que nos conhecemos. E, naquela noite, na festa, estivemos na marmelada. Pela primeira vez.
Riu-se de uma forma que Levin considerou ofensiva. Mas teve o cuidado de não deixar a sua reacção transparecer.
- Então, engatou uma amiga da sua mulher - disse ele num tom monótono. - E esse caso durou quatro anos?
- Isso mesmo - disse Bending, complacentemente. - Não é muito importante. Nem para ela nem para mim. Quero dizer, não é uma grande história de amor. Só nos divertimos
um pouco, nada mais.
- com que frequência?
- Oh... talvez uma ou duas vezes por mês. Eu tenho outras, e acho que ela tem outros. Não somos exactamente fiéis um ao outro.
- Então, a atracção é puramente física?
- Bem... a maior parte. Ela é uma fera na cama. E também não precisamos de fingir quando estamos um com o outro. E neste momento estamos ambos envolvidos num negócio. Mas sim, diria que é principalmente física. Ela tem um corpo fantás...
- Está bem, está bem - disse o Dr. Levin com uma certa brusquidão. - Vamos voltar à festa. Você esteve com essa mulher pela primeira vez. Foi ter com ela e perguntou-lhe directamente?
Os lábios de Bending contorceram-se num sorriso bajulador.
- Por acaso, foi isso mesmo que fiz. Já lhe disse que andava de olho nela há muito tempo. Sabia que ela era boa mas, que diabo, era amiga da minha mulher, por isso eu fingia que não estava interessado... percebe? Mas naquela noite, com os copos e a dança e os charros, não me importei. Por isso, disse-lhe: "Vamos foder." E ela disse: "Por que não?"
- Então, saíram da festa juntos?
- Não, não é assim que a coisa se faz. Ela desapareceu... ninguém deu por ela se ir embora... e alguns minutos depois eu fui ao lavabo do rés-do-chão, e depois esgueirei-me lá para fora e encontrei-me com ela na praia.
Levin piscou os olhos.
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- Na praia?
- Claro. Algumas portas abaixo da minha casa. O médico respirou fundo.
- Este, ah, encontro sexual... onde é que teve lugar?
- Onde? Oh, mais ao fundo da praia. Numa casa que pertencia a um casal que eu sabia que ainda estava na festa. Fomos para o pátio deles e usámos uma das cadeiras da piscina. Isso é importante?
- Sim - disse Levin -, é importante. Vocês saíram de casa, seguiram pela praia, deram a volta a uma casa, foram para o pátio e usaram uma das cadeiras da piscina?
- Isso mesmo.
- Ninguém vos viu?
Bending olhou para ele com curiosidade.
- Está a gozar comigo? Claro que ninguém nos viu. Eram cerca de uma ou duas da manhã. Quem poderia ver-nos?
A ideia nebulosa que ocorrera previamente a Levin tomou uma forma mais nítida. Ele ficou sentado em silêncio, a meditar, a deixá-la crescer. Ela começou a ter uma ordem, uma lógica. Ele inspeccionou-a com uma espécie de pavor, excitado com a sua simplicidade e elegância, espantado por não ter pensado nisso antes.
Bending estava a dizer-lhe a verdade; estava absolutamente convencido disso. O homem afirmava ter-se comportado exactamente como seria de esperar. Não havia falsidades no seu relato.
Levin ficou calado durante tanto tempo, perdido nas implicações do que acabara de ouvir, que, por fim, Bending, com uma risada nervosa, disse:
- Ei, Ted, sou eu que estou a pagar este tempo.
- O quê? - exclamou Levin. - Oh, desculpe. E depois de o incidente na cadeira da piscina terminar, que é que fizeram... voltaram para a festa?
- Eu sim; ela não. A senhora foi para casa. Eu voltei para a minha festa. Lembro-me de que o marido dela ainda lá estava, completamente bêbado.
- Não teve mais nenhuma, ah, aventura nessa noite, pois não?
Bending riu-se.
- Completamente impossível. Aquela senhora quase me secou. Não, só bebi mais uns copos e dei umas passas num charro. Depois, a festa acabou. Finalmente, corri com toda a gente e fui-me deitar.
O Dr. Levin baloiçou-se para a frente e para trás na sua cadeira
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giratória, com as mãos em cima da barriga. Estava de sobrolho franzido, a olhar por cima da cabeça de Bending para os bonecos de uma canção de embalar pintados
na parede em frente: vacas a saltar de nuvem para nuvem e gatos a tocar violino.
Depois, parou de se baloiçar, suspirou e tirou um charuto da gaveta da secretária. Tirou-lhe o invólucro de celofane, cortou-lhe a ponta com os dentes e acendeu-o com um fósforo de madeira. Puff, puff, puff.
- Turco, você disse que quando esta festa aconteceu a sua mulher bebia. Correcto?
- Ela nunca bebeu muito, mas sim, naquela festa bebeu algumas bebidas.
- E fumou um charro?
- Não me lembro. Suponho que sim. Havia muitos.
- Agora, ela não bebe?
- Muito raramente. Talvez uma ou duas bebidas numa festa. Normalmente vinho.
- Fuma marijuana?
- Agora? Não, não fuma.
- Quanto tempo é que calcula que esteve longe da festa? com a amiga da sua mulher?
- Meu Deus, Ted, está mesmo interessado nessa festa, não está?
- Sim, estou. Quanto tempo é que vocês estiveram ausentes? Trinta minutos? Uma hora?
- Provavelmente, cerca de uma hora.
- E quando voltaram para a festa a sua mulher ainda lá estava, com os convidados?
Bending pensou um pouco.
- Não me consigo recordar.
- Quando foi para a cama, ela estava lá? No vosso quarto? A dormir?
- Não me lembro, mas devia estar porque já se tinham ido todos embora. Eu fechei a casa e apaguei as luzes. Por isso, acho que a Grace já devia estar na cama.
- Teve relações sexuais com ela nessa noite?
- Nem pensar! Não sei se adormeci ou se desmaiei. Metade de cada, acho eu. Estava completamente estourado. Como lhe disse, a festa foi o máximo.
- No dia seguinte, lembra-se se a Grace mencionou alguma coisa acerca da sua ausência na festa?
- Nem uma palavra. E eu fiquei-lhe profundamente agradecido
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por isso. Acho que ela nem sequer reparou que eu desapareci.
- Provavelmente - disse Levin, assentindo.
Estava convencido de que já tinha extraído tudo o que era possível da mente do homem. Mas fora o suficiente para o obrigar a pensar de outra forma, para lhe provar uma vez mais o perigo de explicações fáceis do comportamento humano.
- Suponho que pensa que sou uma espécie de monstro disse Ronald Bending, tentando falar num tom de voz casual mas sem ser muito bem sucedido.
- Um monstro? Não compreendo, Turco.
- Por foder com a mulher do meu amigo. Por ser infiel à minha mulher sempre que surge uma oportunidade.
- Eu não julgo as pessoas. Não é esse o meu trabalho.
- Se eu lhe dissesse que ainda amo a minha mulher, acreditava em mim?
Levin não respondeu.
- Bem, amo - disse Bending.-Todas essas mulheres... não têm nada a ver com a Grace. Não espero que ela compreenda isso, mas é a verdade.
Levin contemplou-o.
- Que quer de mim, Turco... absolvição? Perdão pelos seus pecados?
- Acha que são pecados?
- São, se achar que sim.
- Não, não acho que sejam. E não quero o seu perdão. Só pensei que, como é um homem, compreenderia.
- Oh... e compreendo. Asseguro-lhe que compreendo.
- Ted, uma vez chamei-lhe filho da puta, e é o que você é... e muito.
- Você não é meu paciente - disse Levin, descontraidamente. - O meu único interesse por si é em que medida o seu comportamento afecta o problema da Lucy. Quando isso for, hum, tratado de forma satisfatória, você pode querer iniciar uma terapia.
Bending soltou uma gargalhada áspera.
- Acha que eu preciso?
- Você é que tem de decidir. Mas tenho de lhe dizer que detecto em si uma certa insatisfação, um certo cansaço pela forma como vive. Acho que está a começar a questionar o significado da sua vida, e talvez esteja assustado... bem, talvez não assustado, mas desalentado com o que vê.
- Eu não, Ted. Eu vivo no melhor dos mundos.
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- Folgo em saber-disse o Dr. Levin duramente. - E, agora, vejo que o seu tempo acabou.
Depois de Bending ter saído, o médico olhou para a agenda e viu que o seu paciente seguinte era um rapaz de doze anos, um masturbador crónico.
Levin só muito raramente bebia no consultório, mas naquele momento dirigiu-se a um armário de arquivo e, da gaveta do fundo, tirou uma garrafa de brande californiano. Deitou cerca de dois centímetros num copo de água. Depois, sentou-se à secretária com os pés em cima do tampo. Bebericou a bebida e acabou o charuto.
Alguns momentos depois ligou para a Dra. Mary Scotsby e perguntou-lhe se poderia levá-la para jantar. Ela aceitou imediatamente, e ele ficou contente. Queria falar
sobre a sua nova teoria no caso de Lucy B.
SEXTA PARTE
O caso com Eddie Holloway tinha libertado Teresa Empt. Ela não podia pensar numa palavra melhor que "libertado", pois sentia-se desembaraçada, livre. Como disse a si mesma, ainda era uma mulher jovem; não havia nada que não pudesse fazer com a sua recém-descoberta energia.
Tinha seduzido o rapaz - não tinha? Mantivera uma ligação sexual durante meses sem ser descoberta. E agora estava preparada para acabar o relacionamento. Tinha confiança na sua capacidade para acabar tudo com rapidez e discrição.
Tomou banho, pôs creme e vestiu-se com um cuidado especial para o seu derradeiro encontro com Eddie no mirante. A experiência ensinara-lhe qual a roupa mais prática para usar: uma blusa que abrisse pela frente, uma saia traçada que não se amarrotasse facilmente e nada de meias.
Levava um pequeno porta-moedas onde tinha enfiado o pagamento: uma nota de cem dólares novinha em folha, muito bem dobrada. Perguntou a si mesma se Eddie alguma vez vira uma nota de cem dólares.
Atravessou o relvado escuro à hora marcada, cantarolando suavemente. Ele esperava-a, ansioso, em cima do cobertor estendido. Quando ela se sentou ao lado dele e lhe acariciou os cabelos longos, pensou que ele era realmente um bonito rapaz. Estúpido, mas bonito.
- Escuta-disse ele, asperamente-, quanto àquele barco... acho que consigo comprá-lo por...
-Mais tarde, Eddie-interrompeu ela brandamente, tocando-lhe no queixo. - Primeiro vamos ver se te recordas do que te ensinei.
com alguma instigação, Eddie lembrou-se. Ela foi-lhe dizendo o que devia fazer.
Deitada de costas, nua, a pele escaldante exposta à brisa nocturna e à língua frenética de Eddie, Teresa pensou que nunca tinha sido tão feliz. Ser amada e controlar a situação - haveria alguma outra combinação que desse tamanho êxtase?
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O rapaz seguiu as suas instruções com boa vontade e com o entusiasmo da juventude. Ela tinha aprendido o segredo de se entregar, de se render completamente às necessidades do seu corpo. Sentiu-se acordada por dentro, excitada, agitada e, por fim, derreteu.
- Em relação àquele barco... - disse Eddie.
- Mais tarde - murmurou ela novamente, e foi trabalhar nele com dedos frios e deliberados, ignorando as risadinhas e os protestos dele. Deitada de lado, a manipular o corpo dele intensamente e por vezes com crueldade, subitamente ocorreu-lhe que devia muito àquele jovem.
Através dele tinha aprendido as fomes escondidas da sua carne e as subtilezas do seu desejo, que transcendiam a necessidade física. Tinha também profundas necessidades emocionais, algumas delas de uma natureza obscura que ela não queria nomear.
Edward Holloway - pele acetinada, ossos duros, músculos bem moldados - tinha sido a sua introdução ao autoconhecimento e a um novo mundo. Inclinou-se sobre ele e deu-lhe prazer por gratidão pelo que ele lhe dera, e como uma espécie de bênção.
- bom - disse ela por fim, sentando-se e olhando para o ofegante rapaz -, infelizmente tenho más notícias para ti, Eddie.
Ele conseguiu sentar-se e olhou cautelosamente para ela.
- Sim? Que é isso?
- Infelizmente, não vamos poder ver-nos mais.
- Por que não? - exclamou ele.
- Chiu. O meu marido tem andado muito desconfiado. Não sei como é que ele descobriu. Talvez a velha lhe tenha dito qualquer coisa. De qualquer forma, é perigoso de mais continuarmos a ver-nos.
- Podíamos ir para algum lado no teu carro - disse ele, esperançosamente. - E estacionar... sabes? Ou talvez um motel. Tens algum amigo que tenha um apartamento que nós possamos usar?
- Não, Eddie - disse ela. - O meu marido é capaz de nos seguir. Ou de contratar um detective particular.
O significado do que ela estava a dizer foi penetrando lentamente. Teresa esperou pacientemente. Eddie Holloway não era o rapaz mais esperto do mundo.
- Jesus - disse ele por fim, com um gemido. - Estás a dizer que temos de nos separar?
- Infelizmente - disse ela, gravemente. - Esta é a última vez que posso ver-te a sós.
321
- Pensei que me amavas - disse ele, numa voz tão implorante que ela ficou comovida.
- E amo, amo. E vou lembrar-me sempre dos tempos maravilhosos que passámos juntos. Não foram maravilhosos, Eddie?
Ele permaneceu em silêncio durante algum tempo e depois...
- Merda! - disse ele, chateado. - Tu dizes que acabou e acabou. Assim sem mais nem menos, ah?
- Não percebes que é para o bem de ambos? - disse ela. Tu és tão mais jovem do que eu. Tinha de acabar, mais cedo ou mais tarde. Tu vais encontrar uma rapariga bonita, alguém da tua idade e vais...
- És mesmo uma puta! - gritou-lhe ele.
- Oh, Eddie - disse ela, pesarosamente.
- Bem, vai-te foder! - disse ele. - Eu tenho uma palavra a dizer sobre isso. E digo que vamos manter-nos como temos estado. Podemos sempre arranjar um sítio seguro.
- Não, Eddie - disse ela. - Acabou.
Ele levantou-se e começou a vestir-se, enfiando a roupa interior, a camisa e as calças com dedos trémulos.
- Isso é o que tu pensas - disse ele, furioso. - Que é que dizias se eu fosse ter com o teu marido e lhe contasse o que nós estivemos a fazer?
Ela viera preparada para aquilo. Vestiu-se lentamente, calmamente.
- Não creio que o meu marido acreditasse em ti - disse ela com uma voz de seda. - Uma mulher da minha idade e tu, um rapaz de... o quê? Dezasseis anos? Ele nunca acreditaria. Mas poderia acreditar se eu lhe dissesse que me violaste. Ou tentaste. Se eu fosse ter com ele, a chorar, e lhe dissesse o que tu tentaste fazer-me enquanto eu andava a passear. O meu marido tem um grande revólver, Eddie.
Viu a boca dele cair, aberta. À fraca luz das estrelas pareceu-lhe que o rosto dele empalidecera.
- Não eras capaz? - disse ele, mal conseguindo respirar.
- Oh, sim, claro que era - disse ela, rindo levemente. - Se insistires em agir como uma criança vingativa em vez de como um homem.
Tinha dito a coisa certa. Ele não podia suportar a ideia de ser considerado menos do que maduro. Sofisticado. O máximo... Bestial. Um gato fantástico.
- Bem... e quanto ao meu barco? - perguntou ele.
- Oh, Eddie - disse ela. - Não poderia tirar tanto dinheiro da minha conta bancária sem o meu marido me perguntar para que tinha sido.
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- Ah, merda - disse ele, desesperado -, eu queria mesmo
aquele barco.
- Eu sei - disse ela. - E quero ajudar-te a comprá-lo.
Toma...
Abriu o porta-moedas e deu-lhe a nota de cem dólares. Observou-o atentamente enquanto ele a desdobrava e a inspeccionava, com os olhos a abrirem-se muito. Depois, virou-a, examinando o verso.
- Uau! - disse ele, espantado. - Cem.
- É para ti, Eddie. Para te ajudar a comprar o teu barco. E para te ajudar a lembrares-te do muito que nos divertimos
juntos.
- Sim - disse ele, encantado -, divertimo-nos, não foi? Um
verdadeiro gás.
Ela sabia que ele iria vangloriar-se disso durante muitos
anos.
- Um beijo de despedida? - perguntou ela.
- O quê? Oh, sim.
O beijo dele foi rápido e mecânico. Depois pegou no cobertor, brindou-a com um dos seus sorrisos radiosos e afastou-se, ainda a olhar para a nota de cem dólares.
Ela ficou a vê-lo afastar-se, sentindo uma angústia inesperada. Mas, disse para si mesma, havia Mike, o arrumador de sacos do supermercado. E centenas, milhares de outros Adónis no sul da Florida, todos com madeixas de cabelos longas e aclaradas pelo sol, pele macia e o fervor selvagem da juventude.
Voltou para casa. Gertrude estava a ver um drama bíblico na televisão. Ergueu os olhos quando Teresa entrou.
- O teu passeio foi bom, queridinha? - perguntou, alegremente.
Teresa assentiu distraidamente. Preparou um copo alto de rum com coca-cola no bar da sala de estar. Levou-o para o terraço. Encostou-se à balaustrada, bebendo lentamente a bebida e olhando para o mar escuro.
Aquela terra tinha-a transformado numa pessoa muito diferente da criatura tacanha e fria que tinha vindo do norte em busca de sol. Era um lugar de crescimento. Plantas e pessoas desabrochavam e cresciam de um dia para o outro. A vida florescia, amadurecia rapidamente e decaía com uma rapidez idêntica.
Pensou que estava a ser paganizada e achou a ideia atraente. Um rebento de hibisco atrás de uma orelha. Cabelos longos e brilhantes a cair, livres. O seu corpo nu... A correr pela beira-mar. Um amante nu à sua espera...
323
Riu alto da sua fantasia. Nesse momento a porta atrás dela abriu-se e Luther saiu para o terraço, de copo na mão.
- Olá, querida - disse na sua voz áspera. - Que estás a fazer?
- Estou apenas a sonhar - disse ela com um sorriso secreto.
2
O encontro efectuou-se na mesma suite de motel onde o acordo original tinha sido feito.
- Não sei de que é que se trata - disse Empt a Turco Bending e a Bill Holloway. - Eles limitaram-se a telefonar e disseram que tínhamos de nos reunir. Talvez tenham medo de que o sítio esteja sob escuta. De qualquer forma, querem-nos todos no motel. Quem sabe que diabo quererão eles?
Não demoraram muito tempo a descobrir.
- O que aconteceu foi o seguinte - começou Santangelo. Arranjámos um consultor muito importante, e ele analisou toda a organização. Produção, processamento, empacotamento, distribuição, vendas... todo o processo. Agora o que ele diz é o seguinte. .. temos de ter uma organização vertical. Como as grandes companhias de petróleo... sabem? Quero dizer, tiram petróleo dos poços que possuem, transformam-no em gasolina em refinarias que possuem e colocam essa gasolina em estações de serviço que possuem. Certo? Por isso, nós temos de fazer a mesma coisa. Produzir o nosso material nos nossos próprios estúdios, processá-lo na nossa fábrica e vendê-lo através dos nossos agentes. Esse tipo tem números para provar que nós...
- Ei, calma aí - disse Luther, começando a ficar indignado.
- Está a dizer aquilo que eu penso?
- Em dólares e cêntimos - disse Santangelo, gravemente.
- Não tem nada a ver com o trabalho que vocês fizeram. Vocês fizeram um trabalho excelente. Estou certo, Jimmy? Mas temos de nos reorganizar como o tipo de negócios importante diz. E isso significa que temos de controlar o processamento das cassetes.
Surpreendido, Empt olhou para Bending e Holloway.
- Isto mete nojo! - disse ele.
- Escutem - disse Santangelo -, vocês não vão perder um centavo no negócio. Nem um centavo. Que é que vocês pensam, que somos bandidos? Todos vocês vão recuperar o vosso investimento inicial. Até ao último tostão.
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- Que se foda isso! - disse Empt, furiosamente. - E quanto a todo o trabalho que nós fizemos? Todo o tempo que investimos nisto? Tudo isso se perde?
- Nós reconhecemos tudo isso - disse Santangelo, suavemente. - Claro que vocês trabalharam muito e tudo isso. Aquela fábrica está montada e pronta para começar a operar. Por isso, talvez nós possamos acrescentar uma pequena quantia pelo vosso tempo e pelo vosso trabalho.
- Não, não e não! - exclamou Empt, apertando um punho.
- Escutem, vocês vieram ter connosco; não fomos nós que fomos ter com vocês. E vocês cantaram-nos bem cantados. Por amor de Deus, vocês tinham as recomendações e tudo, por isso nós confiámos. Agora querem cortar-nos as pernas. Como é que te sentes em relação a isto, Turco?
- Acho um nojo! - disse Bending, que tinha o rosto muito coçado. Voltou-se para o silencioso Jimmy Stone. - Não sei como foi com os outros, mas eu tive muitas dificuldades para conseguir a minha parte. Vendi algumas obrigações e perdi bastante. Achei que valia a pena porque os vossos números eram muito aliciantes. Agora, estão a dizer-nos que foi tudo um erro porque um contabilista muito esperto diz que vocês devem ser como a Standard Oil ou a Exxon. Isso é uma loucura! Que achas, Bill?
- Ah... uma viragem dos acontecimentos muito infeliz disse Holloway.
- Deixem-me ver se estou a perceber isto - disse Empt, furiosamente, com um tom de voz mais áspero do que nunca. Vocês vão correr Connosco, pagam-nos o que nós investimos, atiram-nos com mais alguns dólares pelo nosso trabalho, dão-nos umas palmadinhas na cabeça e mandam-nos passear. É isso?
- Nós vamos assumir o controlo da parte final do processamento do negócio - disse Rocco Santangelo, com o rosto inespressivo. - Sim. É isso.
- Uma merda é que é! - disse Empt. -Vocês estão convencidos de que nós vamos simplesmente deitar-nos no chão e rolar? Nem pensem! Que diabo de tipo de homens são vocês? Procuram-nos, aliciam-nos e agora é adeuzinho, meu? Uma merda é que é! Vocês comprometeram-se connosco. Um contrato verbal. E, juro por Deus, vão ter de o cumprir.
- Tens toda a razão - disse Bending. - Que raio de merda é esta? Acham que nós vamos aceitar isso sem fazer um escarcéu do caraças? Talvez não haja nada no papel.
Mas podem ter a certeza de que poderemos armar um grande escândalo. É isso que querem? Grandes parangonas: "REIS PORNO LEVADOS A TRIBUNAL
325
POR SÓCIOS DE UMA FÁBRICA DE PROCESSAMENTO." É ÍSSO QUe querem?
Jimmy Stone inclinou-se para a frente, saindo da sombra. Falou em voz baixa, inflexiva, difícil de ouvir.
- Não - disse ele -, não é isso que queremos. E não me parece que seja o que vocês querem. São todos homens de negócios responsáveis. Boas reputações na comunidade. Querem realmente que os tribunais e os jornais saibam que planeavam ganhar muito dinheiro a fazer cópias de Borrachinhos Adolescentes?
Durante alguns momentos fez-se silêncio. Quebrado quando Luther Empt se levantou subitamente e começou a andar furiosamente pelo aposento.
- Estou-me completamente nas tintas! - gritou ele. - Trabalhei demasiado tempo e com demasiado empenhamento para deixar um bando de patifes lixarem-me. Que se lixe a minha reputação como homem de negócios responsável. Amanhã de manhã vou falar com o meu advogado. E se ele disser que não posso fazer nada, incendeio a fábrica. Hei-de dar cabo dela antes de vocês, seus vadios, tomarem conta de tudo.
- Eu estou do teu lado, Luther - disse Bending. Billy Holloway não se manifestou.
- Está a ameaçar-nos? - perguntou Jimmy Stone, calmamente.
- Pode ter a certeza de que estou a ameaçar-vos! - berrou Empt. - Mantenham-se fiéis ao vosso acordo inicial, se não nós lixamos-vos tal como vocês estão a tentar lixar-nos.
-Não me parece que estejamos a fazer nada tão mau-disse Jimmy Stone, indulgentemente. - Por vezes os planos mudam. Tenho a certeza de que todos vocês já tiveram de se ajustar quando as coisas não correram como esperavam. Vão receber o vosso investimento. Podemos chegar a um acordo amigável sobre o pagamento do vosso tempo e trabalho. Por isso, para quê gritar e chamar-nos vadios e dizer que vão fazer isto e aquilo?
- Vocês falaram-nos de grandes lucros - acusou Bending -, apenas para que a fábrica fosse construída. Para usarem o nosso dinheiro e a experiência do Luther. Agora que está construída e pronta para funcionar, decidem que já não precisam de nós.
- Não - disse Stone, abanando a cabeça -, isso não é verdade. Quando começámos isto com vocês, cavalheiros, fomos honestos e sinceros. Esperávamos realmente que as coisas corressem pelo melhor. Os números que vos demos estavam correctos. Mas agora as coisas mudaram e nós temos de mudar com elas. - Encolheu os ombros.
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- Nem pensem que vou ficar calado e quieto em relação a isto
- disse-lhes Luther Empt. - Que é que pensam... que somos um grupo de bodes espiatórios? Não param de nos chamar cavalheiros. Eu vou mostrar-lhes o que os cavalheiros podem fazer quando alguém tenta lixá-los.
-Pensem bem no assunto - aconselhou Jimmy Stone no seu tom monótono. - Não façam nada estúpido. Vocês são homens de família, com mulheres bonitas e filhos encantadores. Casas agradáveis. Não se comportem como parvos.
Todos olharam para ele. A ameaça era clara. Não definida. Mas não havia nada que enganar.
- Escutem o Jimmy - disse Santangelo. - Não façam nada de que possam vir a arrepender-se. Que diabo, não vão perder dinheiro nenhum. E a vida é curta... não tenho razão? Viver, rir e amar: é o meu lema.
Olharam todos uns para os outros. Depois, os dois representantes da mafia levantaram-se para sair. Não se despediram. Os três sócios viram a porta fechar-se.
- Bill - disse Ronald Bending -, qual é a nossa posição legal nisto?
- Tão frágil - disse Holloway - que é praticamente inexistente. Acho que o melhor é recebermos o dinheiro e tentarmos esquecer tudo o que aconteceu.
- Eu não - disse Empt numa voz aniquiladora. Ninguém lixa o Luther Empt e fica a rir-se.
- Que podemes fazer? - perguntou Holloway, desanimadamente. - Processar? Não teríamos hipóteses. Pegar fogo à fábrica? Que é que conseguiríamos com isso? Eles iam construir outra noutro lado e nunca mais víamos o nosso dinheiro.
- Eu vou pensar em alguma coisa - disse Empt, sombriamente. - Hei-de lixar aqueles vadios.
Sentaram-se em silêncio. Algum tempo depois levantaram-se, ainda calados e sem olhar uns para os outros. Saíram separadamente, Holloway para a sua vodca, Bending
para o Cnez When e Luther para May, a sua doce menina.
Enquanto conduzia velozmente pela Estrada Federal, a raiva de Empt não arrefeceu. Não era o dinheiro que estava envolvido. Que se lixasse o dinheiro. Teria sentido
a mesma coisa se algum patife tentasse aldrabá-lo numa aposta de cinco dólares. O que fazia aumentar ainda mais a sua fúria era ser tratado como um parvo, como um - como um nada. Bem, eles aprenderiam que Luther Empt não era um nada e que não podia ser tratado como um palhaço.
Não tinha telefonado a May, mas ela estava em casa, à sua espêra.
327
O seu rosto brilhou quando ele entrou. Mas depois devia ter visto alguma coisa, porque lhe pegou ansiosamente no braço.
- Qual é o problema, paizinho?
- Não é nada - disse ele, mal humorado. - Assuntos de negócios. Arranja-me um Cutty. Traz a garrafa.
Sentou-se na cadeira de braços, curvado, e com o copo preso entre as mãos. Bebeu o uísque de um trago e de cou mais da garrafa que estava no chão a seus pés.
May empoleirou-se na ponta do sofá, olhando solicitamente para ele.
- Tens fome? - perguntou ela.
- Não. Já comi. E tu?
- Já jantei. Fiz um óptimo hamburger com puré de batata e uma salada com um molho cremoso.
- Que bom - disse ele. - Arranja uma bebida para ti.
- Não me apetece uma bebida, paizinho.
- Bem, então bebe uma cerveja. Por amor de Deus, bebe alguma coisa. Não fiques aí sentada sem fazer nada.
Obedientemente, ela foi para a kitchenette e encheu um pequeno copo de cerveja, guardando a lata meio cheia no frigorífico.
- Aqueles filhos da puta! - disse ele, selvaticamente. Hei-de lixá-los. - Bebeu. -Acham que podem abusar de mim.
- Bebeu. - Já dei cabo de gajos mais duros do que aqueles palhaços. - Bebeu.
- Paizinho - disse ela -, por que é que não tiras o casaco e o colete e soltas a gravata? Põe-te à vontade e descontrai-te.
- Sim - disse ele. - Boa ideia.
Ele levantou-se, despiu o casaco e o colete e arrancou a gravata. May pegou nas peças de vestuário e pendurou-as. Ele voltou a afundar-se pesadamente na cadeira de braços e deitou mais uísque no copo. Ela ajoelhou-se desajeitadamente no chão, desapertou-lhe os atacadores dos sapatos e descalçou-lhos.
- Já está - disse ela. - Não te sentes melhor?
Ele assentiu, começando a sentir a pressão abrandar. A raiva continuava lá, mas aquele desejo ardente de bater, de destruir, estava a enfraquecer.
- As pessoas são uma merda! - disse ele. - Sabias?
Ela levantou-se. Pôs-se atrás dele e começou a massajar-lhe a parte de trás do pescoço e os ombros. A cabeça dele tombou.
- Sim - disse ele -, isso sabe bem.
- Estás completamente tenso - disse ela. - Não devias chegar a este estado de preocupação.
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- Não posso evitar. Quando alguém tenta lixar-me, eu tenho de atacar. Foi sempre assim.
- Chiu - disse ela. -Acalma-te. Eu vou tomar conta de ti, paizinho. vou ajudar-te a relaxar.
De pé, atrás dele, ela desabotoou-lhe a camisa e fez deslizar as palmas das mãos pelo peito nu.
- Não é bom? - sussurrou ela. - Não gostas disto?
Ele resmungou, não querendo admitir que podia sentir prazer enquanto era consumido pela ira. Mas, gradualmente, as carícias dela embalaram-no. Pelo menos ali, no apartamento dela, estava seguro. Era amado e respeitado.
Mandou-a despir-se. Ordenou-lhe que ficasse de pé à sua frente. Ela obedeceu de boa vontade. E quando se aproximou, a sorrir esperançosamente, um pouco inclinada por causa da perna aleijada, uma criatura magra e nua, de repente ele esticou-se e bateu-lhe.
Já tinha sido bruto na cama com prostitutas. Ocasionalmente, podia ter batido numa das suas esposas, mas fora por irritação, não pelo desejo de infligir dor. Mas aquilo era uma coisa diferente.
Bateu-lhe com a mão aberta: meio estalo, meio soco. A pancada atirou a cabeça de May para um lado, quebrou o seu sorriso num esgar horrorizado. Ela cambaleou para trás. Levou a mão à face. As lágrimas começaram a correr, mais de choque do que de dor.
Ele olhou para ela, de boca aberta. Não podia acreditar no que acabara de fazer. Agira impulsionado por uma amálgama tão frágil de fúria e desejo que não conseguira controlar-se. Não saberia explicar por que é que tinha feito uma coisa daquelas.
Lançou-se para ela com um gemido. Apertou-a contra si, beijou a face que começava a ficar roxa, os olhos húmidos e os lábios trémulos. Pediu desculpa uma centena de vezes e suplicou o seu perdão. Disse-lhe que estava fora de si, que os problemas de negócios estavam a pô-lo doido, que era um animal nojento e reles. Começou a chorar.
E assim ela acabou por confortá-lo. Disse-lhe que o golpe não a magoara; já conhecera pior. Disse que percebera que ele estava terrivelmente perturbado no momento em que entrara, e que, se bater-lhe o fazia sentir-se melhor, então podia bater-lhe, podia chicoteá-la que ela aceitaria o castigo de boa vontade.
- Ainda me amas? - perguntou ela.
Ele assentiu taciturnamente, ainda chocado com o que acabara de fazer e tentando descobrir o porquê daquela reacção. Ela levou-o para o sofá, sentou-o, levou-lhe o copo. Ele engoliu,
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tossiu, engasgou-se. Sentou-se ao lado dele, passando a palma da mão pelos seus cabelos curtos e encaracolados, murmurando-lhe coisas ao ouvido.
- Oh, Jesus - disse ele, suspirando. - Deus seja louvado!
Pousou a bebida e virou-se para ela. Ela mergulhou ansiosamente nos seus braços e ele sentiu o quanto ela era frágil. Conseguia sentir os tenros ossos de criança, a pele fina, os músculos suaves. Abraçou-a cuidadosamente, com receio de a magoar, não confiando em si próprio.
Ela afastou-se do aperto dele. Deitou-se no sofá. Os seus longos cabelos negros enrolavam-se por cima de um ombro e pousavam sobre os seus delicados seios. Estendeu os braços para ele, suplicante. Ele pegou naquelas mãos frágeis e beijou-lhe as pontas dos dedos. Baixou os olhos para o pequeno e pálido corpo.
Ela era a sua menina, a sua virgem. O que tinha sido, o seu: "Posso acomodá-lo?" - tudo isso estava esquecido. Via-a agora como a sua donzela doce e amorosa. O seu hálito era puro, a carne imaculada.
Havia algo quase - quase - "sagrado" era a única palavra que lhe vinha à cabeça para descrever a forma como a via. A sua pele era luminosa, os olhos escuros tinham uma luz adoradora. Ela pertencia-lhe, totalmente, e não a outro homem qualquer.
- Ama-me, paizinho - disse ela. - Por favor.
As lágrimas dele ameaçaram recomeçar a cair. Não apenas de felicidade completa, como também da gratidão que sentia quando comparava a confiança daquela criança incólume com as maquinações e traições dos rufiões com quem acabara de falar.
Aquilo era inocência pura, aberta e saudável. Ela era toda amor, não pedindo mais nada em troca a não ser amor. De certa forma, a castidade dela fortalecia-o, dava-lhe uma esperança que não conseguia definir. Era uma vela acesa, com a chama imóvel, enquanto por todo o lado imperava a escuridão.
Ela despiu-o com dedos preguiçosos e ele deixou. E durante todo o tempo falava-lhe, excitada, sobre o que poderiam fazer. Usou certas palavras e depois riu-se como uma criança.
Quando ficou nua a seu lado, inclinou-se sobre ele, dizendo:
- Deixa-me fazer. Deixa-me fazer. - E, sem saber como, ele soube que só através das lentas e hábeis ministrações dela conseguiria encontrar alívio; já não podia comportar-se como o espoliador raivoso.
Não se surpreendeu com isso, mas submeteu-se sofregamente. De uma forma intrigante, a forma de se amarem preservava a virgindade dela e o relacionamento único que
ele considerava tão
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satisfatório. Comportar-se como um garanhão teria demolido tudo aquilo.
Assim, amaram e sonharam, actores numa peça que tinham criado. Tinham-se virado ambos do avesso e revelaram um ao outro as vísceras abertas, os corações, os glóbulos cinzentos e as almas pulsantes.
O diálogo dos dois foi falado numa linguagem que ambos desconheciam. No entanto, agora havia uma comunicação de desejos, cada um encontrando a resposta ao seu desejo no outro.
Gritando, insensíveis ao mundo à volta deles, uniram-se nos seus desejos escondidos, e abraçaram-se e beijaram-se e disseram um ao outro que se amavam.
A Dra. Mary Scotsby desaconselhou-o:
- Ted, ainda não passa de uma teoria, de uma hipótese. E, se estiveres enganado, vais perder uma paciente.
- Não estou enganado - disse Levin, teimosamente -, e não vou perder uma paciente. Já rodeei esta coisa dui ante muito tempo. O que estamos a fazer é uma arte, não uma ciência; tu sabes isso. Tenho de seguir os meus instintos nisto.
- Boa sorte - disse ela.
Escutou a gravação da última sessão com Grace Bending. Escutou-a de novo. Ficou com a impressão de que se tivesse sido mais duro, mais exigente,mais insistente, poderia ter descoberto a verdade. Ela estivera quase a desmanchar-se, mas ele não a pressionara. Desta vez estava determinado a não a deixar escapar.
Sentiu a hostilidade dela no momento em que ela entrou no consultório. Tinha os ombros para trás, as costas muito direitas. E tinha voltado à sua forma de vestir antiga: fatos com corte masculino, blusa abotoada até ao pescoço, cabelo muito esticado e preso num carrapito.
Os seus modos eram definitivamente frios. O seu sorriso era um fantasma. Respondeu às boas-vindas dele com monossílabos. Adoptou uma posição muito senhoril na cadeira de braços: joelhos juntos e virados para um lado, tornozelos cruzados e as mãos com luvas brancas apertadas no seu colo.
Mas, espreitando atentamente para ela através dos seus óculos de aros grossos, o Dr. Levin teve a impressão de detectar
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sinais de tensão. O queixo erguido rigidamente. Um leve tremor naquelas mãos apertadas. Os olhos de ambos encontraram-se brevemente e depois os dela desviaram-se.
- Sra. Bending-começou ele, suavemente -, preciso da sua ajuda. - Fez uma pausa, mas quando ela não fez qualquer comentário ele continuou. - Estamos agora numa fase
da terapia da Lucy em que a sinceridade absoluta de todos os envolvidos não é apenas desejável, mas sim essencial, se quisermos descobrir a causa do comportamento da Lucy. E, depois de estabelecermos a causa, o ajustamento dela torna-se mais seguro e mais rápido.
- Eu fui sempre honesta com o Sr. Doutor - disse ela numa voz de ferro. .
Ele penteou a barba com os dedos e olhou para baixo, surpreendido, enquanto flocos de cinza de charuto lhe caíam nas lapelas.
-Acho - disse ele - que há coisas que a senhora pensa que eu não tenho necessidade de saber. Sim, acredito que tem sido honesta... mas só até certo ponto. Não me revelou determinadas informações porque achou que não estavam relacionadas com o problema da Lucy.
Esperou de novo, mas de novo ela deu qualquer resposta.
- O que a senhora fez, Sra. Bending, foi seguir o seu próprio julgamento em relação ao que é relevante, em vez de confiar no meu. Como resultado disso, não me foram
facultadas todas as, ah, todas as informações pertinentes que poderiam permitir-me ajudar a Lucy da forma que ela deveria ser ajudada.
- Não percebo o que está a dizer - disse ela, baixando os olhos para as luvas brancas.
- Oh, eu acho que a senhora percebe - disse ele. - A senhora escondeu coisas de mim, não devido a um desejo consciente de prolongar a terapia da Lucy, mas porque diziam respeito a assuntos demasiado dolorosos para revelar. Demasiado doloroso para si.
- Eu respondi a todas as suas perguntas - disse ela, desafiadoramente.
- Verdade - disse ele, assentindo. - Mas eu não fiz as perguntas certas. A senhora podia ter ultrapassado o meu lapso voluntariando as informações, mas não o fez.
- Não percebo onde quer chegar - disse ela, tensa.
- Eu vou informá-la - disse ele, pontificalmente. - Mas primeiro quero assegurar-lhe que não estou aqui para julgar. E muito menos para condenar.
Peço-lhe que seja o mais sincera possível comigo. Tenho consciência de que estou a pedir-lhe
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muito. Por vezes, a confissão pode ser uma experiência agonizante e traumática. Pode também ser uma catarse que poderá ajudá-la tanto quanto poderá ajudar a Lucy.
- Não sei de que é que está a falar. Ele suspirou.
- Sra. Bending, lembra-se de uma festa que a senhora e o seu marido deram em vossa casa há cerca de quatro anos? Um jantar sentado para cerca de vinte pessoas?
- Meu Deus, nós temos dado imensas festas ao longo dos anos.
- Esta era uma ocasião especial. O seu marido tinha feito um bom contrato e vocês decidiram comemorar. Contrataram uma firma para servir o jantar e até contrataram um trio para tocar música de dança.
Ela fingiu que estava concentrada nos seus pensamentos: sobrancelhas franzidas, testa enrugada.
- Acho que me lembro de uma coisa dessas, mas muito mal.
- A sério? A Lucy lembra-se muito bem. Usou um vestido novo. Um vestido branco com fitas cor-de-rosa. Foi a primeira vez que foi autorizada a vir para o andar de baixo e a jantar na mesa dos adultos. A primeira vez que dançou com o pai. E a primeira vez que lhe permitiram ficar acordada mais uma hora do que era costume.
- Bem, suponho que uma criança se lembraria de coisas dessas. Deve ter-lhe parecido uma coisa muito importante e empolgante.
- A Lucy recorda-se, mas a senhora não... é isso?
- Isso mesmo.
Ele recostou-se na cadeira e olhou para ela, muito sério. Havia três possibilidades: 1) Ela não se lembrava realmente; 2) A recordação estava lá, mas bloqueada pelo mecanismo autoprotector da psique; 3) Ela estava a mentir deliberadamente.
Na verdade, percebeu ele, 2) e 3) eram provavelmente um: ela estava a mentir porque estava a bloquear. O reconhecimento seria demasiado devastador; arrasá-la-ia. Pelo menos era o que ela pensava. O Dr. Levin estava disposto a arriscar.
-A senhora não se recorda-repetiu ele. - Estranho. O seu marido lembra-se tão bem daquela festa como a Lucy. Todos beberam muito. Dançaram muito. Fumaram cigarros de marijuana.
Ela encolheu os ombros.
- Isso podia ter sido uma festa qualquer.
- Aconteceu há quatro anos. Naquela altura a senhora bebia?
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- Acho que sim.
- Fumou um charro?
- Talvez tenha fumado.
- As coisas foram ficando cada vez mais soltas, não foi? Casais começaram a juntar-se, a desaparecer na escuridão. Não maridos e mulheres mas...
- Quer parar com isso? - disse Grace Bending em voz alta.
- Quer parar com isso? Acho tudo muito ordinário e, ah, nojento.
- Não, não quero parar - disse Levin, pesadamente. -vou continuar. Nessa festa, homens e mulheres, pares trocados, desapareceram durante algum tempo na praia, nos arbustos, nos carros estacionados. E eles...
- vou sair deste consultório - declarou ela, olhando em volta desvairadamente. - Recuso-me a ficar aqui sentada e a ouvir...
- Entre outros, o seu marido - continuou ele, inexoravelmente. - Limitou-se a desaparecer. Mas a senhora apercebeu-se da ausência dele. E, talvez, olhando em volta para ver quais as mulheres que tinham desaparecido, tivesse adivinhado com quem é que ele...
- Pare com isso! - gritou-lhe ela. - Pare imediatamente!
- Foi vingança, Sra. Bending? Ou apenas os copos, os charros, a excitação sexual daquela noite? Talvez a senhora se estivesse nas tintas para onde o seu marido estava;
eleja lhe tinha sido infiel tantas vezes antes daquela noite. Talvez tivesse simplesmente decidido que lhe apetecia... e por aí adiante. Os seus motivos não são importantes. Mas a senhora...
- Não fiz! - gritou ela. - Juro que não!
- Fez! - disse ele, batendo com uma pesada palma no tampo da secretária. Eu sei que fez. Todos os outros estavam a fazer o mesmo; por que não a senhora? A Lucy já tinha ido dormir há muito tempo. Por isso, acho que seria seguro levar aquele homem...
- Oh, seu filho da puta! - insultou-o a Sra. Bending. - Seu maldito filho da puta!
- Quer que lhe repita o diálogo? - disse ele, cruelmente. Até posso fazer isso. A senhora disse: "Não me importo. Não me importo." E o homem disse: "Tens a certeza
de que estamos sozinhos?" E depois tocou-lhe por debaixo do vestido e a senhora disse: "Depressa. Depressa."
Viu Grace Bending começar a ficar petrificada, baloiçando-se para a frente e para trás na cadeira de braços. Os seus braços caíam, moles, as luvas brancas dançavam.
Ela parecia
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estar a sufocar, o rosto congestionado, os olhos inchados e a língua saliente.
- Eu cometi o erro de pensar que a Lucy tinha visto o seu marido - continuou Levin. Mas agora percebo que só podia ser a senhora com outro homem. O seu marido nunca teria perguntado: "Tens a certeza de que estamos sozinhos?" a uma mulher que tinha levado para o seu próprio quarto. Mas outro homem di-lo-ia a si. E a Lucy, no quarto ao lado, ainda acordada depois de toda a excitação da festa, ouviu as vozes. Ela apareceu lá, Sra. Bending? A senhora esqueceu-se de trancar a porta do seu
quarto? A Lucy abriu a porta, ficou parada, talvez em camisa de dormir, a esfregar os olhos e a observar o que...
- Filho da puta! - gritou a Sra. Bending, histérica. - Seu filho da puta! Oh, seu monte de merda! Você é como todos os outros, seu homem nojento e repugnante. Seu
merdas... e diz que é médico. Seu maldito filho da puta. Detesto-o, seu monstro miserável... nojento. Gostaria de o matar, de lhe arrancar o coração repelente pelas raízes e de o deixar sangrar até...
Ela deixou-a desabafar, observando a histeria dela com objectividade clínica. Reparando na saliva branca que se juntava nos cantos dos lábios dela. Nos olhos inchados. Nas cordas distendidas no pescoço. Na compleição ruborizada. Membros a tremer incontrolavelmente. Viu a cabeça dela descair para trás, a boca em esgares medonhos.
- Ooooh! - uivou ela. - Sim! Sim, sim , sim! Eu fiz! Eu fiz! A culpa é toda minha. A primeira vez. Oh, meu Deus! A primeira vez. E ele... mas eu... Jesus, perdoa-me. Jesus, eu pequei, eu cometi um pecado muito grave. Oh, perdoa os meus pecados, Senhor Jesus. Purifica-me, Senhor Jesus. Dá-me a Tua força. Dá-me o Teu amor. A culpa é toda minha. Senhor Jesus, eu confesso. Sim, sim, tudo. Tira-me este peso da alma. Limpa-me da sujidade e da maldade. Ooooh, oooh... A culpa é toda minha.
Afundou, de olhos fechados. O seu corpo relaxou e ameaçou deslizar da cadeira. De súbito, ficou pálida. A respiração parecia fraca. Gotas de suor perlavam-lhe a testa e o lábio superior. A cabeça descaiu para um lado.
O Dr. Theodore Levin tinha sais para cheirar na secretária, mas proferiu deixá-la recompor-se normalmente. O desfalecimento durou mais de um minuto. Ela esticou-se, piscou os olhos e olhou em volta, entontecida. Endireitou-se lentamente na cadeira.
Encheu um copo de água do jarro que tinha em cima da secretária e empurrou-o para ela. Ela bebeu, agradecida.
- Lamento - disse ela num tom de voz trémulo.
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Ele queria dizer que a única coisa que ela tinha de lamentar era não lhe ter contado aquilo antes. com o seu silêncio, tinha prolongado a terapia da Lucy. Mas ele supunha que ela tinha percebido isso.
- Respire fundo - aconselhou ele. - Aguarde alguns minutos. Se ainda se sentir tonta, incline-se para a frente e ponha a cabeça entre os joelhos. E, acima de tudo, compreenda que o mundo não chegou ao fim. - Sorriu-lhe tristemente.
Ela respirou fundo. Endireitou o vestuário. Abriu a bolsa para espreitar ao espelho. Ajeitou os cabelos. Limpou a testa e o pescoço com um lenço de papel. Depois, fechou a bolsa e assumiu a sua postura muito formal. Olhou para todo o lado excepto para o Dr. Levin.
- Desculpe - disse ela num tom desalentado. - Peço desculpa pela minha linguagem.
Ele encolheu os ombros.
- Não usou palavras que eu nunca tivesse ouvido.
- A Lucy não usa esta linguagem, pois não?
- Não. A Lucy, exceptuando a aberração que tem, é uma criança muito bem comportada.
- Obrigada - disse ela em voz baixa. Depois: - Suponho que o que eu fiz, ah, suponho que é por isso que a Lucy se comporta assim.
- Oh, Sra. Bending- disse ele, acenando com uma mão. O comportamento humano é uma coisa extremamente complexa. Uma lata de minhocas. Quem me dera poder dar-lhe uma resposta categórica. Quem me dera poder dizer que sim, que a Lucy a viu a fazer amor com um homem desconhecido num quarto usado apenas por si e pelo pai dela, e que essa experiência despoletou a sua conduta diferente dos padrões. Seria maravilhoso se a vida fosse assim tão simples, se A levasse inevitavelmente a B. Mas nós não somos seres claros, simples e lógicos. Há sempre C e D e E, e muitas mais no e para além do alfabeto. Tudo o que posso dizer agora é que testemunhar o, hum, incidente foi sem dúvida um factor contributivo para o problema da Lucy. Poderia ser útil se me contasse um pouco sobre o incidente.
Ela olhou para ele, assombrada.
- Pensei que sabia. Descreveu tão bem o que aconteceu. Pensei que a Lucy lhe tinha contado.
- E se me contasse a sua versão? Ela inspirou profundamente.
- Claro que me lembro daquela festa. Como poderia esquecê-la? Foi como o senhor disse: bebida, dança, marijuana. Suponho que as coisas ficaram um pouco descontroladas. Não sei o
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que foi. Mas algumas festas são assim. Eu tenho a consciência de que era atrevida. Não vou pôr as culpas nas bebidas ou na erva; eu sabia o que estava a fazer. A culpa foi toda minha.
- Sabia que o seu marido se tinha escapulido?
- Não o vi ir-se embora, mas sabia que tinha ido, sim. E adivinhei com quem ele estava. E então pensei... por que não eu? Por que é que eu devia ficar de fora?
- Sra. Bending, eu não quero saber nomes nenhuns, mas queria perguntar-lhe o seguinte: o homem com quem, ah, foi para o seu quarto, era o marido da mulher que suspeitava
estar com o seu marido?
- Não. Quer saber se eu queria vingar-me do Ronnie? Oh, não, não foi nada disso. Só o fiz para... para... acho que o fiz porque queria provar que ainda era atraente para os outros homens. Na verdade, não sei porque o fiz.
- E a Lucy testemunhou?
- Sim. Pouco tempo. Aconteceu de uma forma muito semelhante à que descreveu. Devíamos ter fechado a porta do quarto à chave, eu sei, mas não fechámos. Estávamos demasiado excitados, acho eu. Depois, eu olhei para cima e a Lucy estava lá. A propósito, ela tinha um pijama, não uma camisa de dormir.
- O acto foi, ah, consumado? Ela sorriu tristemente.
- Estava a ser. Depois de eu ver a Lucy a observar-nos, nunca foi, como o senhor diz, consumado.
- Que aconteceu depois de a senhora a ver?
- Acho que gritei. Sei que saí da cama. A Lucy correu para o seu quarto e atirou com a porta. Eu queria ir ter com ela, mas o homem com quem eu estava disse que talvez fosse melhor deixá-la sozinha. Disse que talvez ela adormecesse, e que, quando acordasse de manhã, não se lembrasse. Ou que pensasse que tivera um pesadelo. Disse-me para não ligar muito.
Levin não podia dizer-lhe se fora ou não a melhor forma de actuar. Quem poderia prever o que as crianças recordavam ou esqueciam? Quem poderia dizer se isso afectaria ou não o seu comportamento futuro? Indiscutivelmente, outras crianças pequenas tinham testemunhado episódios semelhantes sem danos duradouros.
- Sra. Bending, a senhora disse-me que a primeira manifestação do comportamento anormal de Lucy foi quando ela apareceu nua no terraço quando o seu marido recebia alguns amigos?
- Sim, correcto.
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-A senhora relacionou imediatamente os dois acontecimentos... o que acontecera na noite da festa e o incidente do terraço?
- Não, não imediatamente. Pensei que era apenas uma daquelas coisas parvas que as crianças fazem. Depois, quando ela continuou a portar-se mal, eu comecei a pensar que poderia haver uma ligação.
Ela olhou compreensivamente para ela.
- E culpou-se?
Ela baixou os olhos para as luvas brancas.
- Sim.
- A senhora tem sofrido muito.
Ela ergueu a cabeça para olhar para ele.
- Vivi num inferno. Num verdadeiro inferno!
- E virou-se para a religião para encontrar salvação?
- Sim - disse ela, erguendo o queixo.
- Mas precisou de quase quatro anos para procurar ajuda para a Lucy. - Uma afirmação, não uma pergunta.
- Doutor, não pode acusar-me de nada de que eu não me tenha já acusado uma centena, um milhar de vezes. Já lhe disse que a culpa é toda minha.
- bom, não vamos perder tempo com recriminações. A coisa mais importante, a única coisa é restabelecer a saúde mental e emocional da Lucy.
- Bem - disse ela, suspirando -, a minha parte está concluída. Pensei que contar-lhe me mataria, mas não aconteceu nada disso.
- A confissão raramente é fatal - disse ele, secamente.
- Que vai fazer agora, doutor?
- Não sei - disse ele, francamente. - Tenho de pensar.
- A Lucy lembra-se? Do que viu?
- Oh, acho que a recordação está lá. Ela ainda não consegue verbalizar. Lembra-se de acontecimentos que conduzem lá. Depois a cortina desce. Penso que ela tem de desobstruir todo o incidente. Só depois poderemos começar a falar sobre o seu significado e analisar o que ela sente.
Grace Bending estremeceu.
- Ela vai odiar-me. Eu sei que vai.
O Dr. Levin começou a baloiçar-se lentamente na cadeira giratória. Apetecia-lhe fumar um charuto.
- Essa pode ser a reacção inicial - admitiu ele. - Parte do meu trabalho será resolver esse ódio. A senhora odeia-a, Sra. Bending?
Ela sobressaltou-se, como se ele lhe tivesse batido.
- Como é que pode dizer uma coisa tão horrível?
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- Seria compreensível se a odiasse. Depois de ter de suportar uma angústia tão intensa por causa dela.
- Eu amo a minha filha, doutor.
- Ama? Acho que, quase inevitavelmente, a terapia bem sucedida de uma criança envolve terapia para toda a família. É apenas uma sugestão, Sra. Bending, mas que é
que acha de uma sessão, ou várias, na qual a senhora, o seu marido e todos os vossos filhos estivessem presentes e participassem?
- Terapia de grupo?
- Uma coisa assim. Eu serviria de... oh, uma espécie de mestre-de-cerimónias. Mas caber-vos-ia a vocês alcançarem uma melhor compreensão de quem são e do que são, como uma família. É um procedimento que traria muito possivelmente resultados positivos. Mas, primeiro, temos de ajudar a Lucy. Neste momento, é o nosso primeiro objectivo. Creio que o nosso tempo chegou ao fim, Sra. Bending.
Acompanhou-a à porta, mantendo-se perto dela com receio de que ela pudesse desfalecer depois da explosão emocional. Mas ela parecia bastante forte. Na verdade, quase alegre.
De repente voltou-se e beijou-o ao de leve no rosto.
- Obrigada, doutor - disse ela sem fôlego.
Ele sorriu e acenou-lhe. Quando a porta se fechou atrás dela, ele dirigiu-se imediatamente para a secretária para desligar o gravador e acender um charuto novo.
Pensou que ela era uma mulher extraordinariamente atraente.
No sábado de manhã, William Holloway limpou e oleou o seu revólver. Sussurrou para Eric, manuseando-o com um cuidado excessivo. Como sempre, falou sozinho (ou para a arma) em voz alta, descrevendo o que ia fazer, o que estava a fazer, o que tinha feito.
O sábado de manhã era sem dúvida a melhor altura da semana. Os miúdos estavam na rua, algures, Craner andava provavelmente a passear pela praia com Gertrude Empt, e Jane estava ausente num dos seus vagos "afazeres" que a afastavam de casa cada vez mais frequentemente.
E Maria, que estava de folga, tinha ido para Miami, para uma manifestação anti-Castro. Assim, Holloway tinha a casa só para
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si, o que era um prazer. O dia estendia-se à sua frente, cheio de promessas de solidão.
Depois de terminar o trabalho com Eric, colocou-o no coldre e guardou-o. Em seguida, passeou descalço pelo rés-do-chão, com calças brancas e uma camisa branca. Uma roupa que, admitia, o fazia parecer um barbeiro barrigudo.
Eram aproximadamente 10h. 45m. da manhã. Mas, como todos os alcoólatras, Holloway disse para si mesmo que, algures no mundo, era meio-dia. Por isso, preparou um delicioso Bloody Mary, tendo quase tanto prazer na sua preparação como teria a bebê-lo.
Envolveu o copo num guardanapo de papel e levou a sua primeira bebida do dia para o terraço. Caminhou para
um mundo nacarado.
Uma neblina translúcida enchia o céu, quase tocando o mar. Aquele brilho leitoso parecia grosso e com redemoinhos, atravessado por raios de sol. Reflectia uma luz
sem sombras por cima da água e da terra que suavizava tudo aquilo em que tocava.
O oceano estava agitado e os surfístas andavam na água. Remavam resolutamente em cima das pranchas até desaparecerem no nevoeiro. E, depois, subitamente, apareciam disparados, agachados, numa onda alta. Os seus gritos ouviam-se tenuemente, abafados mas alegres.
Holloway instalou-se confortavelmente numa cadeira de descanso almofadada, depois de ajustar as costas para
uma posição semi-reclinada. Olhou para o dia leitoso, perguntando a si mesmo por que é que a brisa forte não afastava o nevoeiro.
Observou os surfístas.
Havia cerca de vinte, rapazes e homens jovens. Algumas raparigas sentadas na praia esperavam que eles acabassem. Mas os surfístas estavam esquecidos da audiência. Sentavam-se nas suas curtas pranchas da Florida, à espera da onda certa.
Depois, quando viam uma que lhes agradava, levantavam-se, punham-se em posição e apanhavam a onda. Mantendo um equilíbrio precário, conduzindo a prancha com o peso, cavalgavam a onda até esta rebentar, e eles serem cuspidos, perdidos na brisa leitosa.
William Holloway levou a sua segunda bebida para a praia, sentou-se e observou. Levou a terceira bebida para a beira-mar, sentou-se e observou. O seu filho não estava a surfar, mas Wayne Bending estava no mar, com calções curtos e um colete azul.
Mas naquele momento Holloway não se concentrou nele; estava a tentar absorver todo o cenário. A neblina leitosa, um mar agitado, surfístas a explodir do nevoeiro, a grande velocidade, os
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cabelos a voar ao vento, a pele molhada a brilhar, uma agitação violenta...
Eram todos belos, pensou Holloway. Todos eles. O arrojo e o perigo apenas aumentavam a sua beleza e juventude. Que importava se eram ordinários, estúpidos ou pior? Naquele momento, naquele ambiente, via-os como jovens deuses a domesticar o mar e amou-os todos.
Aí vinham eles! Braços esticados. A sorrir e exultantes. A conduzir as suas pranchas. Mergulhando, ziguezagueando. E depois, quando a onda morreu, ficaram erectos. Orgulhosos. Triunfantes. Era tudo tão elegante, tão inocente, que William Jasper Holloway sentiu vontade de chorar. Eles tinham uma alegria que ele podia testemunhar mas que não podia partilhar.
E ele queria partilhar - a sua esperança de viver uma vida virtuosa, de suportar uma ferida, de se sacrificar...
Queria dizer tudo aquilo a Wayne Bending, mas o rapaz voltou sucessivamente para o mar, nunca se cansando. Holloway maravilhou-se com a força jovem daquele corpo desajeitado: ombros largos, pernas fortes, a pele suave a brilhar cheia de espuma.
"Voltaste a pensar no que me contaste, Wayne?"
"Sobre ir-me embora, Sr. Holloway? Sim, já tomei uma decisão. Vou-me pirar."
"Gostava que não fosses."
"Não há nada para mim aqui."
"Eu estou aqui, Wayne. Gostaria de ser teu amigo."
"Sim... bem... obrigado. Mas... o senhor sabe..."
"Eu sou muito mais velho do que tu; bem sei. Mas podia ensinar-te imensas coisas."
"Sim? O quê?"
"A não cometer os mesmos erros que eu cometi. A seguires os teus sentimentos, os teus instintos. À não teres vergonha do que és. A aprender a viver contigo mesmo e a elevares-te..."
Ficou ali sentado o resto da tarde, bebendo lentamente, mas bastante, e abraçando os joelhos. E durante todo esse tempo os bonitos rapazes desapareciam no nevoeiro e depois aproximavam-se dele a grande velocidade, tensos e ansiosos.
Corpos jovens a brilhar. Os cabelos a brilhar como chamas. Braços muito esticados. Saíam do nevoeiro, um pelotão resplandecente a deslizar sobre o mar. Viveriam eternamente. Nunca envelheceriam, nunca morreriam.
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Era a última vez que Ronald Bending ia foder com ela. Ela não achava sensato comunicar-lhe isso, mas estava invulgarmente afectuosa e solícita ao prazer dele durante o derradeiro encontro.
Jane Holloway pensava no sexo como - bem, talvez não como uma arte mas certamente como um ofício especializado. Abençoada com um corpo arrebatador que punha os homens doidos, ela tinha chegado à conclusão, quando era ainda muito jovem, de que seria parva se não o usasse. O sexo tornara-se o seu caminho para a popularidade e para o sucesso.
Nunca fora uma coisa muito importante para ela - assemelhava-se a coçar uma picada de mosquito, pensava ela - mas reconhecia a sua importância como arma na sua guerra com os homens. E tinha a determinação de se tornar perita. Paciência, prática e vontade de aprender - fosse de que fonte fosse.
Turco Bending, ele próprio nada mau no departamento do colchão, reconheceu a perícia dela
- Podias fazer o Errol Flynn ter uma erecção-disse-lhe ele.
- Turco, eleja morreu há imensos anos.
- Eu sei.
Estavam naquele motel rasca, o ar condicionado ainda a chiar, as paredes ainda manchadas com mapas de estranhos mundos. Ela tinha trazido uma garrafa de champanhe gelado e estavam a bebê-lo em copos de plástico.
- Que é que estamos a comemorar-tinha-lhe perguntado ele quando ela desembrulhara a garrafa.
- Oh - disse ela descontraidamente -, apeteceu-me. Ele tinha aprendido a aceitar os caprichos dela e não pensou
mais no assunto. Deram cabo de metade da garrafa e depois deram uma grande queca durante a qual ela os pôs numa posição que ele tinha a certeza de que punha em sério
risco o seu sacro.
- Jesus! - gritou ele. - Tem calma.
Ela acalmou. Ficou tão calma que os seus receios passaram de ferimentos espinais para paragem cardíaca. Depois de ter explodido, implodido e descomprimido, sentaram-se na cama, terminaram o champanhe e fumaram os cigarros sem filtro dele.
- Que é que vais fazer? - perguntou ela.
- Neste momento? Recuperar.
- Tu sabes a que é que eu estou a referir-me. Estou a falar na empresa.
Ele voltou-se para olhar para ela.
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- Que é que o Bill vai fazer?
- Eu conheço o Bill - disse ela, encolhendo os ombros. - Ele não quer ter problemas. Só quer sair. Afinal de contas, ele é presidente de um banco.
- Que sou eu... nada? Bem, o Bill pode fazer o que quiser. O Luther e eu vamos fazer frente a esses estúpidos.
- Vocês não têm nenhum apoio legal.
- Foi o que nos disse o nosso advogado. Mas temos uma coisa melhor... a ameaça de publicidade. Levamo-los a tribunal... mesmo sabendo que vamos perder... e toda a operação deles aparece nos jornais e na televisão. Depois, os beatos começam a gritar... e... quem sabe? Talvez eles tenham de fechar a loja ou pelo menos sejam corridos do Estado. O Luther e eu achamos que eles fazem praticamente tudo para evitar isso. Eles estão atados de pés e mãos.
Ela inclinou-se sobre ele para apagar o cigarro num cinzeiro estalado que tinha as palavras CASA MANANA impressas de lado.
- Gostava de que não se metessem nisso - disse ela.-Acho que estão apenas a pedir sarilhos.
- Que tipo de sarilhos? - disse ele, rindo-se. - Achas que eles vão mandar uma limusina cheia de narizes partidos para nos triturarem com metralhadoras?
- Não, não me parece que eles façam uma coisa dessas. Mas têm dinheiro e poder. Acho que não deviam pensar neles com tanta descontracção.
- Ei - disse ele -, tu és a senhora que estava entusiasmadíssima com este negócio, com o dinheiro que recebeste para convencer o Bill a alinhar, e querendo uma percentagem quando corrêssemos com o Luther. Que é que aconteceu para mudares de ideias?
- Só acho que são fortes de mais para se meterem com eles
- disse ela. - Acho que todos vocês deviam pegar no vosso dinheiro e correr.
- Uma treta! - disse ele. - Vamos ameaçar arrastá-los pela lama e eles vão reconsiderar... vais ver.
- Se tu o dizes - disse ela, pensando que Jimmy Stone tivera razão quando lhes chamara amadores.
- Quando é que vão fazer tudo isso? - perguntou ela.
- Os advogados estão a redigir agora os papéis. Mostraremos cópias a Stone e a Santangelo antes de os processarmos. Quando virem o que vamos fazer, vão ajoelhar-se e implorar.
Ela virou-se para ele, deitando-se de lado. Aproximou-se mais dele.
- Apaga o cigarro - ordenou ela.
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Ele obedeceu.
Ela puxou-o para si até os narizes quase se tocarem.
- Agora o quê? - disse ela.
- Olha para os meus olhos. Nem sequer pestanejes. E não digas uma palavra.
Apenas os seus rostos estavam próximos. Os seus corpos nus estavam afastados e os dedos dela estavam ocupados.
- Onde é que... - começou ele.
- Chiu-disse ela, rispidamente. - Nem uma palavra. Continua a olhar-me nos olhos.
Ela trabalhou lentamente, com cruel deliberação. A boca dele abriu-se; a respiração tornou-se mais rápida. Mas ela não o deixava aproximar o corpo e, em vez disso, afastava-o enquanto procurava os olhos dele.
- Não - disse ela, parando o que estava a fazer -, ainda não.
Depois, observando-o um momento, começou de novo: começou, parou, começou, parou, com uma expressão astuta. Ela era uma prostituta maravilhosa. Apenas lhe faltava paixão.
Quando ele se contorceu, ela mostrou os dentes afiados no que poderia ter sido um sorriso. Só depois é que se colou ao corpo dele, suado e peganhento. Beijou-lhe os olhos fechados, as têmporas, as orelhas, os lábios. Beijos castos e fugazes.
- Meu Deus - respirou ele finalmente -, tu hoje estás extremamente carinhosa.
Ela não disse nada, mas apertou-o muito contra si e não queria soltá-lo. Ele rendeu-se àquele abraço, pensando que era o mais feliz dos homens e regozijando-se. Algum tempo depois:
- Duche? - perguntou ele.
- Ainda não - disse ela, soltando-se lentamente e afastando-se dele.
Ficou deitada de costas e olhou para o tecto estalado. Iniciou o seu exercício usual: sentir o próprio corpo, sondar as coxas macias, o abdómen liso e os seios duros. Acariciou-se com as palmas das mãos, mimando um bem valioso. Bending observou-a, divertido.
- Nunca me farto de ti - disse ele -, e tu também nunca te fartas de ti.
Ela assentiu, concordando.
- Jane, gostava que convencesses o Bill a avançar com o processo judicial com o Luther e comigo. Nós podemos fazer aqueles pulhas implorarem-nos misericórdia.
- Não - disse ela. - O Bill quer afastar-se e desta vez eu acho que ele tem razão.
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- Isso vai mudar as coisas - avisou-a ele. - Nós vamos ganhar, e se o Bill não ajudar, nós livramo-nos dele. Tu sabes isso, não sabes?
- Sei - disse ela -, e suponho que o Bill também sabe. Mas não se importa.
- Está bem - disse Bending. - Desde que tu e eu continuemos a dar umas quecas...
Ela segurou-lhe levemente na cabeça entre as palmas das mãos e esticou-se para chegar à boca dele.
- Meu herói! - disse.
6
Ernie Goldman estava a trabalhar no escritório depois do expediente. Todos os outros funcionários já se tinham ido embora. As cortinas ainda estavam corridas para proteger do sol da tarde. Os aparelhos de ar condicionado continuavam a trabalhar. Por cima da sua cabeça, tubos fluorescentes emitiam uma luz pálida que transformava
a compleição cor de açafrão de Goldman em cor de mostarda.
Não estava a trabalhar nas coisas de Luther Empt; Goldman estava a analisar as suas finanças pessoais. Na secretária à sua frente tinha uma garrafa de plástico de Di-Gel e um copo medidor.
Tinha juntado cópias de todas as dívidas de jogo, das contas domésticas, dos extractos bancários e de cartas indignadas de advogados que representavam a associação de poupanças e empréstimos que detinha a hipoteca da sua casa, da empresa que tinha financiado a compra do carro e um serviço de crédito pessoal que, com efeito, possuía agora a sua mobília, roupas e, tanto quanto sabia, a mulher e os filhos.
com gestos rápidos e nervosos, Ernie Goldman somou valores numa máquina de calcular de bolso. Quando terminou e inspeccionou os resultados, sentou-se para trás e mediu duas doses de Di-Gel.
O suicídio era uma possibilidade. Mas o pensamento de uma dor auto-infligida fê-lo piscar mais depressa do que nunca; tomou mais antiácido. Outra possibilidade era declarar bancarrota pessoal. Baldar-se. Podia imaginar como é que Sammy Brokar, o corretor que detinha as suas declarações de dívida,
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reagiria a isso. Ernie acabaria com as rótulas dos joelhos esmagadas - no mínimo.
Tinha deixado de se questionar sobre como é que tinha cavado uma cova daquelas para si próprio. Começara com um deslize e acabara num trambolhão. Agora, estava tão entalado que nunca conseguiria libertar-se. Naquela tarde, Empt cortara-lhe mais adiantamentos de salário. Os parentes de Goldman tinham-lhe virado as costas.
Varreu todos os papéis para uma gaveta da secretária e ergueu-se pesadamente, um jovem homem velho. Vestiu o casaco (depolyester, já com cinco anos). Passou por todos os gabinetes, apagando as luzes e ajustando os aparelhos de ar condicionado para uma temperatura nocturna. Ernie Goldman era sempre o último a sair; todos sabiam isso.
Quando saiu do edifício, estava lusco-fusco, e o céu tinha um brilho violeta-pálido a oeste. Goldman caminhou com pouca firmeza para o parque de estacionamento, levemente surpreendido por a sua lata com seis anos ainda não ter sido retomada. Estava à procura das chaves quando, de repente, eles apareceram, cercando-o, empurrando-o contra o carro.
Dois tipos jovens e corpulentos, vestindo T-shirts com as mangas enroladas acima dos bíceps e calças de ganga claras tão justas que se podia contar os tomates. Um tinha um bigode louro hirsuto que lhe cobria a boca. O outro precisava de fazer a barba e tinha uma tatuagem no antebraço esquerdo: coração, punhal e "Mãe".
- Olá, Ernie - disse o bigodes, cordialmente. Goldman não os conhecia, mas sabia quem eles eram. Sem-
-pescoço, era como lhes chamava.
- Escutem - disse ele rapidamente, lambendo os lábios. Digam ao Sammy que eu vou pagar-lhe algum. O mais tardar amanhã ao meio-dia. De certeza.
- Não - disse o tatuado, sorrindo. - Não te preocupes. O Sammy está fora disto, Ernie.
- Fora?
- E nós entrámos - disse o bigodes. - Não é bom? Agora o Jimmy é o teu dono.
- Jimmy?
- Isso mesmo - disse o tatuado.-Um tipo chamado Jimmy tirou-te do prego. Isso faz-te feliz, Ernie?
- Bem... hum... sim... claro.
- Toma - disse o bigodes, entregando um cartão profissional a Goldman. - Produções Aristocrat. É para este número que
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ligas quando quiseres acção. Cavalos, cães, futebol, basebol, basquetebol... o que quiseres. Pergunta pelo Jimmy.
- Obrigado - disse Ernie Goldman, fracamente. - Este, hum, Jimmy comprou as minhas dívidas?
- Não te preocupes - assegurou-lhe o tatuado. - Ele é um homem razoável. Vais gostar do Jimmy. Tu fazes alguma coisa por ele, ele faz alguma coisa por ti.
Encorajado pela esperança de que não ia ficar com as rótulas dos joelhos esmagadas, Goldman disse:
- Bem... claro. O que eu puder.
- Assim é que é, Ernie - disse o bigodes. - Cooperação. É o que faz girar o mundo... certo?
O tatuado ergueu um grosso dedo indicador pressionado contra o polegar, depois esticou a mão e torceu a ponta do bolboso nariz de Goldman. Doeu tanto que os olhos de Ernie se encheram de lágrimas.
- Ei - disse ele, protestando sem veemência.
- Porta-te bem - disse o tatuado, torcendo novamente o nariz de Ernie. - Nós vamos manter-nos em contacto e depois eu digo-te como é que podes ajudar o Jimmy.
- Como queiram - disse Goldman, protegendo o nariz latejante com uma mão em concha.
O bigodes afastou-lhe a mão e o tatuado voltou a torcer-lhe o nariz. A dor foi tão aguda, tão intensa, que Goldman cambaleou e caiu contra o carro.
- Não fiques com ideias espertas - disse o bigodes. - Como pirares-te para paradeiro desconhecido ou ir falar com os chuis. Nada disso.
- Oh, não - disse Ernie, e a sua voz era um soluço. - Eu nunca faria uma coisa dessas.
- Óptimo - disse o tatuado, torcendo-lhe o nariz uma última vez. - Continua com a tua vida e comporta-te como se nada se tivesse passado. Vais ter notícias nossas. E não te preocupes com as dívidas.
-Muito obrigado - disse Ernie Goldman humildemente, tocando no nariz.
Ronald Bending não conseguia decidir se admirava e amava o seu Porsche 924 Turbo cinzento-prateado porque este lhe fazia lembrar Jane Holloway, ou se admirava e amava a mulher porque ela lhe fazia lembrar o carro.
Ambos tinham um aspecto suave, elegante e sofisticado. Sem ornamentos espalhafatosos. Nada que não fosse funcional. Ambos
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construídos para a velocidade. Ambos com corpos como o "Bird in Space", de Brancusi.
Na tarde a seguir ao problema que Ernie Goldman teve no nariz, Bending decidiu que podia ir dar uma volta, observar o ambiente de alguns bares, e - quem sabe? - talvez encontrar o grande amor temporário da sua vida. Engendrou uma desculpa plausível e telefonou para casa. Felizmente, foi Wayne quem atendeu.
- Olá, miúdo - disse Bending ao filho. - Como é que estão as coisas?
- Bem - disse Wayne.
- Escuta, diz à tua mãe que não posso ir jantar a casa. Um grande cliente está na cidade e tenho de sair com ele.
- Claro - disse Wayne.
- Este tipo é do norte - continuou Bending com loquacidade. - Montes de dólares. Talvez ele nos dê muito dinheiro. Riu de boa vontade.
- Hum-hum - disse Wayne.
- Então, diz à mãe que não espere por mim. Está bem? Diz-lhe que eu fecho tudo quando chegar.
- Sim - disse Wayne.
Bending desligou, perguntando a si mesmo o que é que se passava com o miúdo. Dores de crescimento, supôs ele, e não pensou mais no assunto.
Tomou duche, fez a barba na casa de banho do escritório e mudou de roupa interior, meias e camisa de uma reserva que tinha para essas ocasiões. Em vez de vestir o casaco do fato, pegou num espalhafatoso blusão de corrida da Porsche e num boné (com emblema) que tinha adquirido recentemente.
Era só a fingir, porque nunca na sua vida tinha corrido com o Porsche nem tinha tinha a intenção de o fazer. Mas o bonito blusão de nylon e o boné debruado a dourado eram mais dois elos que o ligavam àquela maravilhosa máquina. Inspeccionou-se ao espelho da casa de banho e deu ao boné uma inclinação mais atrevida. Louco! Saiu, levando o casaco do fato e a pasta na mão.
Como sempre, antes de entrar no carro, andou à sua volta, inspeccionando ansiosamente a tinta brilhante à procura de riscos, arranhões, mossas. Era o seu bebé e gastava uma fortuna em manutenção, seguindo religiosamente o manual para as revisões periódicas e para as afinações.
Atirou o casaco do fato e a pasta para a parte de trás. Sentou-se atrás do volante com o seu blusão de corrida e o boné e inalou uma vez mais aquele maravilhoso cheiro a carro novo:
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couro, óleo, maquinaria, dinheiro. O tablier iluminado parecia o painel de comando de um 747.
- Piloto à torre - disse ele em voz alta. - vou descolar na pista sul.
Aparentemente, recebeu uma resposta favorável, pois saiu a grande velocidade do parque de estacionamento, fez uma curva apertada e dirigiu-se para o Chez When. Onde estava a acção.
Estava tão feliz com o novo blusão de corrida e com o boné, com a sua liberdade, com o incrível veículo que respondia prontamente ao mais leve toque, que não reparou no Pontiac Grand Prix preto que se colocou atrás dele quando saiu do parque de estacionamento e que o seguiu para sul na Estrada Federal.
- Imensa acção esta noite, Sr. Bendind - disse o arrumador de carros do Chez When, aproximando-se para abrir a porta do carro. Depois, quando Bending saiu: - Uau, o senhor está o máximo!
- Gostas, Jimbo?
- Selvagem - disse o arrumador, assombrado. - Se não conseguir engatar ninguém com essa roupa, é altura de começar a tomar Geritol.
Bending entrou casualmente no bar e não tirou o boné até a maior parte dos borrachos ter olhado para ele. Depois, descobriu um banco vazio no bar, subiu para ele e pediu um uísque americano, sem água.
Ainda só tinha tido tempo para dar um gole e nem sequer tinha inspeccionado a frequência, quando sentiu um puxão na manga do blusão. Virou-se e lá estava a grandalhona.
- Que é que andas a vender esta noite? - perguntou-lhe ele.
- Cancro?
- Escuta - disse ela -, peço desculpa pelo que aconteceu, pá. Ela só devia chegar na noite seguinte. A sério. - Depois, quando o viu a olhar em volta, inquieto... - Não te preocupes, ela vai estar fora da cidade a semana toda.
- Ah! Em que é que ela trabalha? Todas essas viagens... A rapariga olhou-o nos olhos.
- Está no circuito das convenções. Ganha imenso dinheiro.
- Aposto que sim. Ela é uma beleza. Tu dás para os dois lados, ah?
- Para os quatro - disse ela. - Em cima, em baixo, dentro e fora. Deixa me oferecer-te uma bebida... para compensar o que aconteceu.
Ele desceu do banco e ficou de pé ao lado dela. Ela fazia mesmo questão de lhe pagar uma bebida, por isso deixou-a. Mas, depois disso, pagou ele.
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Beberam mais uns copos e esqueceram o que acontecera da última vez que se tinham encontrado. Começaram novamente a desconversar:
- Gosto do teu blusão - disse ela. - És coronel no Exército do Liechtenstein?
- Na verdade - disse ele -, sou almirante na Marinha suíça. Mas tenho uma confissão a fazer: hoje não vesti soutien.
- Não te magoa quando corres?
- Só a descer a montanha. Nunca me disseste como te chamavas.
- Frank - disse ela. - E o nome da minha namorada é Ernest.
- Que coincidência-disse ele. - A minha firma de advogados é a Totter Reel.
E por aí fora...
Bending não estava muito certo de querer investir novamente num jantar. Mas a rapariga era indiscutivelmente deliciosa... e disponível. Vestia uma saia traçada que abriu quando ela subiu para o banco do bar. E aquelas coxas leitosas.
Ela apanhou-o a olhar.
- Já te disse que ela está fora da cidade.
- Não - disse ele, pesarosamente. - Não posso arriscar.
- Na tua casa?
- Impossível. Eu vivo na YMCA.
- E que tal num motel? Ele respirou fundo.
- Vamos jantar - disse.
Uma vez mais observou, assombrado, enquanto ela demoliu uma lagosta com um quilo, batatas fritas, espargos, um pequeno pão de centeio integral - e foi duas vezes ao buffet de saladas.
- É melhor comeres sobremesa - aconselhou ele. - Não quero que a empregada de mesa pense que te mato à fome.
- Eu vou gastar as calorias - garantiu-lhe ela. - Contigo. Aquele bolo de chocolate Floresta Negra parece-me bom.
Pensou que poderia levá-la para aquele motel ordinário para onde costumava ir com Jane Holloway. Era um sítio deserto, muito para lá da 1-95. E seria divertido se ficassem no mesmo quarto. Na mesma cama.
Quando Jimbo trouxe o Porsche, Bending deu-lhe uma gorjeta muito generosa, pôs o boné brilhante e puxou o fecho do blusão para cima. A boazona olhou para ele com admiração.
- E a Terça-Feira Gorda ainda nem sequer começou - disse ela.
Estavam a conversar animadamente quando saíram do parque
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de estacionamento, e claro que não repararam no Pontiac Grand Prix preto que seguiu bastante atrás deles, mas que virava para os mesmos sítios que eles.
No motel, Bending foi pagar adiantado e preencher o livro de registos: Sr. e Sr.a Ben Cellini. Não conseguiu o quarto que queria - estava ocupado -, mas foi-lhe
atribuído outro que o porcino proprietário garantiu que era "tão confortável como o que ele queria".
Bending insistiu em estacionar o Porsche ao fundo do parque de estacionamento de gravilha, nas sombras de um grupo de palmeiras que não eram podadas.
- Não gosto de o deixar perto da luz - explicou ele à boazona.
- Algum espertinho pode tentar fazer uma ligação directa ou arrancar as jantes.
- Ou alguém que tu conheças - disse ela, astutamente pode ver o teu carrinho vistoso e saber que estás aqui enfiado.
- Isso também - disse ele, rindo.
Encontraram o quarto. Ele abriu a porta e acendeu a luz do tecto.
- Sei que não é grande coisa, doçura - disse ele -, mas fica comigo e juro-te que dentro de pouco tempo teremos uma mesa de fórmica e uma torradeira daquelas em que as torradas sobem.
- A única coisa que eu quero que suba és tu, fofura - disse ela. - Fecha a porta à chave. Depois, mostras-me o teu e
cu mostro-te a minha.
Enquanto os preparativos progrediam com muita alegria e gracejos, o Pontiac Grand Prix preto, de faróis apagados, entrou lentamente no parque de estacionamento.
Parou alguns instantes e depois recomeçou a andar e estacionou perto do Porsche de Bending.
O condutor e o passageiro, ambos de T-shirt branca com as mangas enroladas acima dos bíceps, instalaram-se confortavelmente para esperar.
- Damos-lhe quinze minutos - disse o bigodes. - Nessa altura, eleja deve estar em cima da sela.
- Deixa o motor ligado - disse o tatuado. - Só para prevenir.
- Quem é que se diverte desta vez? - perguntou o bigodes.
- Jogamos ao par ou ímpar - disse o tatuado.
Dentro do motel, a boazona estava a fazer tudo o que estava ao seu alcance para compensar o que chamava a "indignidade" sofrida por Ronald Bending no último encontro de ambos.
- Está bem, está bem - disse ele. - Eu perdoo-te, eu perdoo-te.
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Enquanto o divertimento e os jogos prosseguiam, os dois homens saíram do Pontiac. O bigodes fixou de vigia junto à porta do condutor. O tatuado, que tinha vencido o jogo, foi ao porta-bagagem e tirou de lá de dentro uma marreta de quatro quilos.
Começou a trabalhar no Porsche com uma energia feroz.
Ronald Bending parou o que estava a fazer e olhou para cima.
- Que é aquilo?
- Que é o quê? - disse ela, zangada. - E por que é que estás a parar?
- Lá está outra vez - disse ele. - Parece alguém a bater numa caldeira vazia com um taco de basebol. Não ouves?
- Oiço, oiço - disse ela, suspirando. - Que é que isso tem a ver connosco?
Depois, ouviu-se o inconfundível estalar e tilintar de vidros partidos.
- Meu Deus! - disse Bending, nervoso -, estarão a demolir este sítio para reforma a esta hora?
O barulho continuou: a pancada metálica e o chiar de metal torcido, o estrondo de vidros a cair. Bending saiu da cama e começou a vestir as calças.
- Onde é que vais? - perguntou ela.
- vou só dar uma espreitadela - disse ele. Tentou um sorriso que não resultou. - Aquele maldito barulho dá cabo da minha concentração.
Enfiou os pés nus nos sapatos e vestiu o blusão de corrida de nylon.
- Fica aqui - disse-lhe ele. - Tranca a porta quando eu sair. Eu volto logo que descobrir o que se passa.
Quando saiu para a rua, estavam outros homens à porta dos seus quartos, indecisos, a olhar em volta. O gordo proprietário apareceu a correr, tentando passar os suspensórios por cima da camisola interior.
O barulho tinha parado. Não se via nada. Bending começou a caminhar na direcção do Porsche, depois apressou o passo e em seguida começou a correr. Parou a cerca de vinte metros de distância. O proprietário apareceu, ofegante. E outros atrás dele.
- Jesus Cristo - disse alguém, atemorizado.
O corpo do carro tinha sido demolido. Tejadilho, portas, pára-brisas, capot, painéis laterais. Não apenas grandes mossas, mas sítios onde o metal tinha sido deformado,
dobrado e algumas zonas em que a arma utilizada tinha penetrado completamente, deixando buracos recortados e com a tinta lascada. Até as jantes tinham sido castigadas.
Todos os vidros tinham sido partidos: pára-brisas, janelas, o
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grande vidro traseiro. Os faróis da frente, os faróis da retaguarda e as luzes de estacionamento estavam desfeitos. O tecto de abrir tinha sido rebentado com a marreta
e estava agora dentro do carro. Até o espelho retrovisor exterior tinha sido arrancado e jazia, partido, no chão de gravilha.
- Não vi nada - disse o proprietário em voz rouca. - Não sei de nada.
Ronald Bending ficou a olhar para o seu sonho desfeito. Sentiu os olhos marejarem-se de lágrimas. Tentou dizer a si próprio que era apenas uma coisa, mas não resultou. Tinham feito mais do que destruir a sua máquina maravilhosa.
Destruíram a forma como ele via o mundo e a sua própria vida. A farsa tinha acabado. Aquilo era uma crueldade e uma ameaça que passavam todas as marcas. Agora via a escuridão e o perigo. A mensagem era clara: a morte espreitava.
A alegria e os jogos tinham desaparecido. A beleza desvanecera-se. A conversa disparatada acabara. A praia, os borrachos, a acção, as doces fodas. Nada daquilo era real. Isto era real. Fealdade, dor e o vazio frio.
Eles não tinham destruído; tinham criado. Medo. Nunca mais conseguiria olhar para o nascer ou para o pôr do Sol sem perguntar a si mesmo se seria o seu último. Eles tinham-lhe encostado o rosto ao espelho e tinham-lhe mostrado a sua mortalidade. O dançarino de sapateado tinha sido subjugado.
- Quem é que faria uma coisas destas? - perguntou uma voz.
- Os filhos da puta! - disse Luther Empt, irado. - Malditos filhos da puta!
Ronald Bending não disse nada. Estava sentado numa cadeira de braços, no escritório de Luther. Tinha as pernas cruzadas; um pé baloiçava incontrolavelmente para cima e para baixo. Estava a fumar um dos seus cigarros com filtro. O cinzeiro a seu lado estava cheio de longas beatas, esmagadas e partidas.
- Que é que fizeste depois? - perguntou Luther.
- Deixei-o lá-disse Bending.-Fui para casa de táxi. A oficina rebocou-o esta manhã.
- Podem arranjá-lo, Turco?
- Acho que sim - disse Bending, encolhendo os ombros. O chassis está bom. Mas não quero. Para quê?
Empt levantou-se e serviu mais uma dose generosa de uísque americano a Bending.
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- Escuta - disse ele -, se deixares isto afectar-te, eles vão dar cabo de nós.
Bending sorriu-lhe tristemente.
- Tenho de ser franco contigo, Luther. Eles atingiram-me onde me doeu mais.
- Por amor de Deus, era apenas um carro - disse Empt. Depois começou a convencê-lo, garantindo-lhe que se ele se recompusesse depressa poderiam vencer aqueles pulhas. Tinha marcado um encontro com Stone e Santangelo na semana seguinte, e quando aqueles vadios vissem os documentos legais, entrariam em pânico. E...
- Luther - disse Bending, erguendo a palma da mão para interromper o discurso -, podes ter razão. Não estou a dizer que não tens. Mas eu vou sair.
- Não tens tomates! - disse Empt, furioso. Bending não se ofendeu.
- Tens toda a razão. Estou a morrer de medo. Se eles podem fazer aquilo, podem fazer qualquer coisa, E sabes mais uma coisa? Provavelmente, vais pensar que é uma estupidez, mas já não quero andar no engate. Tenho medo de não conseguir pô-lo em pé!
- És doido!
- Possivelmente. Mas é como me sinto. Desculpa, Luther, mas vou sair.
- Eu não - disse Empt, furioso. - Eu não rastejo diante de ninguém. Que é que eles me podem fazer? Seja o que for, eu aguento. Acredita em mim, eles não sabem com
quem se meteram.
Bending suspirou.
- Se o dizes. Mas é melhor desistires. Estas pessoas não são boas, Luther.
Bebeu o copo de uísque americano. Inclinou a cabeça para trás e relaxou. Depois levantou-se lentamente, respirou fundo e alisou o casaco do fato. Olhou vagamente em volta do escritório de Empt.
- Bem - disse ele, soltando uma gargalhada fria -, foi bom enquanto durou. Mas não durou, é tudo. Desejo-te muita sorte!
- Sim - disse Empt. - Vemo-nos na praia no sábado?
- Claro. Não vou enrolar-me e morrer. Escuta, se o tempo se mantiver, talvez pudéssemos fazer um churrasco ou uma coisa do género.
- Conta comigo - disse Empt. - Para o que quiseres. Ficou a ver Bending ir-se embora. O homem não estava
muito direito. Parecia dobrado, amassado e partido. Luther
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praguejou em voz alta e encheu o copo com mais uísque escocês. Andou de um lado para o outro no escritório. Tinha os seus próprios problemas.
Não tinha querido contar a Bending, mas Ernie Goldman, aquele sacana, tinha ido falar com ele ao meio-dia e anunciara que se ia embora. Assim... sem mais nem menos. Chocado, Empt perguntara-lhe porquê.
- Ah, arranjei outro emprego.
Empt perguntara-lhe para quem ia ele trabalhar.
- Hum, é uma empresa nova que está a começar a funcionar. Em Miami.
Empt perguntara quanto é que eles iam pagar-lhe.
- Isso é, bem, é confidencial.
Começando a ficar farto de todas aquelas evasivas, Luther perguntara-lhe que raio é que ele pensava fazer em relação aos adiantamentos de ordenado que já ascendiam a mais de quinhentos dólares.
E não é que o nervoso e trémulo Ernie Goldman tirara uma carteira de plástico do bolso e pagara na hora, até ao último tostão!
Empt perguntara-lhe onde é que tinha arranjado toda aquela massa.
- Tive um dia bom na pista.
Empt sabia que aquilo era uma grande treta. O tipo estava a mentir por alguma razão. Mas não era importante. O que era importante é que Empt ia perder o melhor técnico que já tivera e seria uma complicação substituí-lo.
Parou de andar de um lado para o outro para telefonar a May. Ia dizer-lhe que estaria lá dentro de aproximadamente uma hora, e que iriam à espelunca dos pretos comer uma travessa de costeletas. Mas o telefone tocou e ninguém atendeu. Ele não ficou preocupado; sabia que ela estaria à sua espera.
Tentou despachar alguma papelada, mas não conseguia concentrar-se. O que acontecera ao carro de Bending... E a Bending... A demissão de Ernie Goldman... Luther Empt teve a sensação desconfortável de que estava a perder o controlo, de que estava a ser ultrapassado pelos acontecimentos.
Serviu-se de mais um uísque e recomeçou a andar pelo escritório, de copo na mão. Uma coisa era certa, pensou ele: ia dar luta àqueles vadios. Holloway e Bending podiam desistir, mas ninguém lixava Luther Empt e se ficava a rir disso.
Ele tinha muitos defeitos; estava consciente disso. Mas falta de coragem física não era um deles. Holloway e Bending podiam assustar-se mas nada nem ninguém assustava Luther Empt.
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Conseguia suportar a dor, e se tivesse de morrer - bem, achava que também podia aguentar isso sem choramingar.
No entanto, podia tomar algumas precauções sensatas. Podia andar sempre com o Magnum .357: consigo, no carro, no escritório, em casa. Se queriam jogar duro, ele estava disposto a fazer-lhes frente.
Para além disso, de manhã iria ao escritório do seu advogado e ditaria uma declaração para ser entregue à Polícia ou ao FBI se lhe acontecesse alguma coisa. A declaração forneceria pormenores do negócio porno e apontaria um dedo directamente para Rocco Santangelo e Jimmy Stone, se Luther Empt tivesse um fim violento.
Depois, no encontro da semana seguinte, Empt certificar-se-ia de que Santangelo e Stone sabiam da existência da declaração. Isso abalaria a segurança deles! A declaração seria o seguro de vida de Luter Empt.
Descontraído pelo uísque que bebera e encorajado pelas medidas que estava determinado a tomar, a confiança de Empt voltou em força. Arrumou a secretária, a cantarolar baixinho. Dirigiu-se para o apartamento de May, excitado com a perspectiva de a ver.
A caminho, apenas porque se sentia tão bem, parou numa florista e comprou uma begónia para a sua doce menina num bonito vaso de barro com borboletas pintadas dos lados. Sabia que May adoraria aquilo; podia ver o seu sorriso de surpresa e alegria. Como voaria para os seus braços!
Teve de estacionar quase a um quarteirão de distância e foi a pé para o apartamento de May, levando a planta embrulhada num papel branco e brilhante. Enquanto caminhava, assobiou uma melodia alegre.
Subiu o alpendre para o apartamento dela. A porta estava alguns centímetros aberta. Ele parou de assobiar.
Ela estava nua no chão, com as pernas abertas, as costas encostadas ao sofá. Tinha sangue nas coxas. Um fio de sangue seco escorria do canto da boca. Um olho magoado, arroxeado, uma bola inchada. Nódoas negras nos seios.
Empt observou rapidamente o apartamento. As roupas rasgadas dela estavam no chão. As plantas destruídas, terra espalhada pelo chão. Ele pousou o presente que trazia, fechou e trancou a porta da frente. Ajoelhou-se ao lado dela. Ela ergueu meigamente os olhos para ele, tentando abrir o olho inchado.
- Violação? - disse ele na sua voz rouca.
Ela assentiu.
Ele foi para a casa de banho e ensopou uma toalha em água
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morna. Voltou, ajoelhou-se junto dela e começou a limpar suavemente: a boca, as coxas. O sangue seco teve de ser esfregado.
- Deixa-me fazer isso - disse ela, tirando-lhe a toalha das mãos. Passou-a pelo rosto, pelos seios, pelos braços e pelas pernas. Depois, enfiou a toalha entre as
pernas.
- Estou suja - disse ela.
- Queres ir ao hospital?
- Não.
- Queres um médico? Eu pos,so arranjar um.
- Não.
Ele ficou aliviado com isso e envergonhado por ficar aliviado. Foi à kitchenette, encontrou o Cutty Sark e encheu meio copo. Trouxe-o para ela. Sentando-se no sofá, deu-lhe o uísque em pequenos goles, perguntando a si próprio se estaria a fazer a coisa certa e se ela estaria em estado de choque.
- Quando é que aconteceu? - perguntou-lhe ele.
- Que horas são agora? Ele disse-lhe.
- Saíram há cerca de meia hora. Estiveram aqui quase duas horas.
- Eles? Quantos?
- Dois.
- Brancos ou pretos?
- Brancos.
- Como é que entraram?
- Eu abri-lhes a porta. Eles disseram que tinham um recado teu.
- O quê?
- Bateram, e eu perguntei quem era, e um homem disse que tinha uma mensagem do Luther para mim. Por isso, eu abri a porta e eles forçaram a entrada.
- Ele disse o meu nome? Ele disse Luther? Tens a certeza?
- Sim. E, quando se foram embora, disseram-me para eu dizer ao Luther que eles tinham estado aqui.
Ele bebeu o uísque que ainda estava no copo. Foi hkitchenette e encheu-o novamente. Voltou para junto dela e estendeu-lhe o copo, mas ela afastou-o.
- Não quero mais. Sinto-me enjoada.
- Queres que chame a Polícia?
- Não - disse ela -, não faças isso.
De novo, ele sentiu-se aliviado. Também não queria nada com os chuis.
- Como é que eles eram?
357
- Jovens. Grandes. com T-shirts brancas. Um tinha um bigode louro. Um tinha uma tatuagem.
- Já os tinhas visto antes?
- Não.
- Que é que eles te fizeram?
- Não quero falar nisso.
De repente, era importante para si saber.
- Diz-me - insistiu ele.
Ela contou-lhe. Numa voz fria, as palavras mais repiradas do que faladas. Tinham-lhe arrancado as roupas. Tinham-lhe dado murros. Tinham pontapeado a perna aleijada. Tinham-na violado. Ambos. Tinham-na sodomizado. Outras coisas...
- Conhece-los? - perguntou ela.
- Os dois tipos? Não.
- Como é que eles sabiam o teu nome?
- Consegues levantar-te? - perguntou ele. - Eu ajudo-te. Vais sentir-te melhor se te deitares no sofá.
- Não - disse ela. - Tenho de ir à casa de banho. Tenho de cuidar de mim.
- Oh - disse ele. - Sim. Claro. Eu vou ajudar-te. Pô-la de pé, com as mãos nas axilas dela. Apoiou-a até à
porta da casa de banho, com um braço à volta da cintura dela.
- Vais ficar bem? - perguntou ele.
Ela assentiu apaticamente, entrou e fechou a porta.
Ele dirigiu-se imediatamente para o lava-loiça da kitchenette, lavou meticulosamente as mãos e limpou-as a toalhas de papel. Depois tentou arrumar a casa: apanhou as roupas rasgadas, endireitou as plantas derrubadas e até varreu a terra espalhada pelo chão. Qualquer coisa que o impedisse de pensar.
May ficou na casa de banho durante muito tempo. Ele estava a começar a ficar preocupado, mas depois ouviu-a a mexer-se, escutou o chuveiro a correr, o autoclismo a ser puxado. Sentou-se pesadamente na cadeira de braços, bebeu uísque e esperou.
Ela saiu da casa de banho nua. Ele ficou surpreendido com isso e perturbado. Gostava que ela tivesse vestido uma camisa de dormir ou um roupão. Qualquer coisa para se cobrir.
- Tomei uma aspirina - disse ela. - Estou toda dorida.
- Vais ficar, hum, bem? Sabes...
- Tomei duche - disse ela. - E estou a tomar a pílula. Por isso...
Tinha apanhado cuidadosamente os cabelos e prendera-os com uma fita. O seu rosto e corpo brancos estavam totalmente
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limpos. A sua pele brilhava. As manchas que estavam a escurecer salientavam-se contra a palidez como dedadas gigantes.
- Queres que te arranje alguma coisa para comer? - perguntou ele. - Ou para beber?
Ela abanou a cabeça.
- Não me apetece. Acho que vou deitar-me e tentar dormir. Não precisas de ficar.
- Eu fico por aqui - disse ele. - Um bocado.
Ela tirou a capa do sofá, enrolou-a e atirou-a para um canto.
- Eles foderam-me ali em cima - disse ela friamente.-Por isso, os lençóis estão limpos.
Ele esperou que ela se cobrisse, mas ela não o fez. Deitou-se por cima do lençol, com uma almofada pequena por debaixo da cabeça, braços finos dobrados por cima dos seios magoados: um cadáver pálido à espera de uma mortalha.
- Não te importas de apagar a luz, por favor? - pediu ela.
- Fere-me os olhos.
Ele apagou tudo à excepção da luz da casa de banho e deixou a porta entreaberta para a sala ficar ligeiramente iluminada.
Sentou-se novamente. Bebeu mais uísque sem o saborear. Olhou para ela, deitada tão quieta, tão esgotada. Agora tinha os braços estendidos ao longo do corpo. Os olhos fechados. Não disse nada, e ele não conseguiu impedir-se de pensar.
Ela era uma coisa tão magra. Não era nada o seu tipo de mulher. Ossos salientes. Aqueles seios que pareciam panquecas. Braços finos... e depois aquela perna aleijada. Não tinha carne. Não era verdadeiramente bonita. Ele imaginava que até os seus cabelos tinham perdido o brilho. Perguntou a si mesmo como poderia ter-se sentido fisicamente excitado com aquele pássaro ferido.
A sua doce menina. A sua donzela. A sua virgem. Não queria mais. Ela tinha deixado aqueles dois tipos usarem-na como uma puta reles. "Posso acomodá-lo?" Ela acomodara-os muito bem. Fizera tudo o que eles queriam. Talvez até tivesse pedido mais. Era possível.
Estava tudo estragado para Luther Empt. Não queria lembrar-se do que sentira por ela, porque a vergonha dava-lhe volta ao estômago. Mas agora estava tudo acabado, tudo desaparecera. As coisas nunca mais poderiam ser como tinham sido.
Pensou cuidadosamente em como poderia afastar-se dela. Por fim, decidiu que um rompimento duro e brusco seria a melhor forma de resolver a situação. Tanto quanto sabia, ela não sabia qual era o seu apelido, morada ou número de telefone.
Afastar-se-ia pura e simplesmente dela. Que diabo, ela era
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uma puta quando ele a conhecera; sabia tomar conta de si. Talvez lhe enviasse uma gorjeta generosa pelo correio. Isso fá-la-ia feliz.
Pensou que ela devia ter adormecido. Ouviu ruídos vindos. dela. Pequenos suspiros, leves soluços. Levar tou-se cuidadosamente e dirigiu-se para a porta da frente. Contemplou-a, pronto para voltar se ela abrisse os olhos. Mas ela não se mexeu.
Ele abriu a porta, esgueirou-se para a rua e fechou-a cuidadosamente atrás de si. Respirou profundamente o frio ar nocturno.
Estava profundamente magoado com a crueldade e a injustiça de tudo aquilo. Que é que o Turco Bending dissera? "Atingiram-me onde me doeu mais."
Lucy entrou a saltitar no consultório de Levin, com um sorriso radioso. Para seu espanto, deu por si a recordar uma citação de Cymbeline: "Rapazes e raparigas dourados, todos têm, como limpa-chaminés, de se encher de pó."
Ela vestia umas jardineiras brancas, uma T-shirt azul-turquesa e sapatos de ténis em pés sem meias. As compridas e douradas madeixas estavam presas em duas tranças, amarradas com fitas verdes. Num dos pulsos tinha a pulseira de conchas.
Os seus modos revelavam uma exuberância que o assustou.
- Como estás hoje, Lucy? - perguntou ele, descontraidamente. - Gosto das tuas jardineiras! Muito, ah, diferentes.
- Agora todos usamos, Dr. Ted - disse ela, olhando para a roupa. - É como, sabe, uma moda. Escute, posso perguntar-lhe uma coisa?
- Claro que podes.
- Não fez a minha mãe chorar, pois não?
- Por que é que perguntas isso?
- Bem, a última vez que ela cá esteve, voltou para casa e estava com um ar horrível. Tinha estado a chorar. Meu Deus, eu percebi. Por isso perguntei a mim mesma se o senhor a tinha feito chorar.
- Não, Lucy, eu não a fiz chorar. Mas ela contou-me uma coisa triste e talvez isso a tenha feito chorar.
Ela olhou para ele com os olhos semicerrados e com a cabeça inclinada para um lado.
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- Uma coisa triste, Dr. Ted? Uma coisa que eu fiz?
Ele chegou à conclusão de que podia aprofundar o assunto.
- Não. Não foi uma coisa que tu fizeste. Foi uma coisa que ela fez e de que se arrepende agora. Gostaria que nunca tivesse acontecido. Consegues adivinhar o que
poderia ter sido, Lucy?
Os olhos e a boca arredondaram-se em O's. Ela esticou-se para a frente na cadeira de braços e sentou-se na ponta para que os dedos dos pés tocassem no chão.
- Oh! - exclamou ela, excitada. - Isso lembra-me; eu ia dizer-lhe uma coisa. Recorda-se de como gostou daquelas histórias que eu lhe contei? As que eu inventei?
Bem, inventei uma história nova e disse para mim própria que o Dr. Ted gostaria de...
- Lucy - disse ele, interrompendo-a -, consegues adivinhar o que fez a tua mãe ficar triste? Uma coisa de que ela se arrepende agora?
Ela olhou-o com firmeza.
- Não, não sei por que é que ela chorou. É certamente uma coisa que me ultrapassa.
- Recordas-te daquela festa de que me falaste? Na tua casa. Usaste um vestido novo e dançaste com o teu pai pela primeira vez.
- Eu contei-lhe isso?
- Contaste.
- Bem, claro que me lembro dessa festa, embora já tenha sido há imensos anos. Eu era muito pequena. Foi uma festa muito agradável.
- Tenho a certeza de que foi. Tu foste autorizada a ficar uma hora para além da tua hora de dormir. Estou certo?
- Talvez. Não me lembro bem.
- Mas por fim foste para o teu quarto. Despiste-te e vestiste o pijama. Que aconteceu depois?
- Adormeci - disse ela imediatamente.
- Não foi isso que me contaste, Lucy - disse ele suavemente.
- Disseste que estavas tão excitada com a festa que ficaste acordada durante muito tempo.
- Eu disse-lhe isso? Bem... talvez.
- E depois?
- Depois? Depois adormeci.
- Alguém foi ao andar de cima? Ouviste vozes? Saíste da cama para investigar?
Ela olhou para ele.
- Não - disse ela.
Teria sido fácil de mais, admitiu ele, conseguir ter êxito à
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primeira tentativa. Decidiu fazer a abordagem de um outro ângulo.
- Lucy, quando acordaste na manhã seguinte, na manhã a seguir à festa, lembras-te de ter tido um sonho?
- Um sonho bom? - perguntou ela.
- Poderá ter sido um sonho bom - disse ele cautelosamente -, ou poderá ter sido um pesadelo. Recordas-te de teres tido um sonho qualquer naquela noite?
- Não - disse ela em voz sumida.
Ele recostou-se na cadeira giratória. Perguntou a si mesmo se outros psicoterapeutas teriam as vontades repentinas que ele tinha: de segurar um paciente pelos ombros e abaná-lo selvaticamente até o cérebro chocalhar e os olhos rolarem para o interior do crânio.
Nunca fizera isso, claro. E, mesmo que tivesse feito, reconhecia que provavelmente seria contraprodutivo. Mas, mesmo assim, por vezes pensava saudosamente nos dias em que os padres e os médicos exorcizavam os demónios dos corpos de pacientes recalcitrantes.
- Não te lembras? - perguntou ele suavemente. - Estás a dizer-me a verdade, Lucy?
Ela deslizou da ponta da cadeira e ficou de pé, brincando com uma das tranças. Olhou-o com um sorriso vitrificado que ele não conseguiu entender.
- Dr. Ted... - disse ela. Ele aguardou.
- Eu gosto do senhor. Eu amo-o.
Lentamente, deu a volta à secretária e aproximou-se dele. Ele virou-se na cadeira giratória para ficar de frente para ela. Ela acercou-se e pousou as mãos nos seus joelhos.
- O senhor ama-me? - perguntou ela numa voz sedutora.
- Existem muitos tipos de amor, Lucy-começou ele, pedantemente. - Há o amor que os teus pais...
-Amo-o-repetiu ela, e as suas mãos pequeninas treparam pelas coxas dele.
Ele ouvira a descrição dos pais sobre o comportamento dela e, intelectualmente, podia compreender a preocupação deles. Mas, agora, testemunhando a aberração dela, fazendo parte dela, podia avaliar emocionalmente a intensidade dos receios deles. A sua reacção inicial foi de pavor.
A transferência não era de forma alguma uma experiência nova para ele. Para qualquer psiquiatra. Mas ele sabia que aquela paixão não era para ele. Era para o que ele representava. Poderia ter sido qualquer um dos amigos do pai, um professor,
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um homem que retribuísse o sorriso dela na rua, na praia, em qualquer lado.
Podia ter terminado imediatamente o incidente. Podia ter-se levantado e afastado. Podia ter tocado para a recepcionista. Podia ter afugentado Lucy imediatamente. Mas havia uma hipótese...
Debruçou-se para a frente, aprisionou as mãozinhas dela nas suas patas carnudas. Segurou aquelas mãos com firmeza, puxou-a mais para si.
- Querida - disse em voz rouca. - Querida. - Soltou uma mão brevemente para lhe tocar nos cabelos, seguindo a cena de que ela se lembrara e que lhe descrevera.
- Não me importo - disse ela numa voz cantarolada, os olhos brilhantes. - Não me importo.
A sua macia pele de criança estava ruborizada. Ele conseguia cheirar o seu perfume infantil. As mãos que apertavam não tinham ossos. O corpo dela não tinha força nem oferecia resistência. Ela era toda submissão, vontade, ansiedade.
Ele abriu os joelhos e deixou-a aproximar-se mais.
"Estás seguro do que estás a fazer?", perguntou a si próprio, furioso. "Estás absolutamente seguro de que este é o único caminho?"
- Tens a certeza de que estamos sozinhos? - peiguntou ele, representando o seu papel.
- Depressa - disse ela num tom de voz carregado, os olhos fechados. - Depressa.
Ficou de pé, com as pernas abertas, à espera dele. Mas ele ficou sentado rigidamente, observando a aparência dela, que parecia estar em transe, a respiração acelerada, as gotas de transpiração na testa e no lábio superior. Pareceu-lhe detectar um tremor naquelas mãos presas, uma subida da temperatura da pele.
- Depressa - disse ela. Tentou empurrar as mãos para o meio das pernas dele, mas ele apertou-a com força. O corpo dela contorcia-se entre os seus joelhos. Ela esticou-se para ele, a boca à procura.
- Depressa - disse ela.
Era um animal pequenino e quente a tentar insinuar-se a ele, miando e aninhando-se. Ele manteve-a afastada o melhor que pôde, querendo observar com distanciamento profissional, mas determinado a levar aquilo o mais longe possível.
Inclinou-se para a frente para os seus lábios quase roçarem o ouvido dela.
- E, depois, que é que ela fez? A tua mãe?
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- Ela esticou... - recitou ela numa voz desincorporada. - E tirou as cuecas. Eu vi...
Agora tinha os olhos muito fechados, o sonho girava à sua volta. O corpo estava contraído e vibrava num paroxismo de recordações.
- E depois? - perguntou ele.
- De costas. Ela estava... Na cama. E ele tinha, sabe, a pilinha. Estava a fazer um bebé. No buraco dela. Eu vi.
- Tudo? - perguntou ele duramente. Os olhos dela abriram-se de repente.
- Tudo! - gritou ela. - Eu vi tudo! Depressa, depressa. E ele estava a mexer-se para a frente e para trás. Eu pensei que ele estava.... Mas não estava, porque ela não estava a chorar. Óh! Oh! Era o que ela dizia. Oh! Oh! Mas ele não estava a magoá-la, eu percebi. Uma vez ela riu-se. Eu ouvi-a rir-se. Por isso estava tudo bem. Sabe? Não era mau. Era bom. E depois ela olhou para cima e viu-me. Por isso eu fugi. Voltei para o meu quarto. E eu...
Soltou um soluço convulsivo, afastou-se dele, virou-se e vomitou no chão a seus pés. Ele levantou-se rapidamente e segurou-a quando ela se dobrou e vomitou mais. Sons fortes e horríveis vinham de dentro dela. O seu pequeno corpo era sacudido por espasmos. Ela vomitou em jorro.
- Está tudo bem! - disse Levin calmamente. - Está tudo bem, Lucy.
Ainda a segurar-lhe o ombro com uma mão, conseguiu chegar ao intercomunicador e tocar o sinal de emergência. Dois toques curtos, um longo. A porta abriu-se imediatamente e a recepcionista entrou a correr.
A confusão instalou-se. A recepcionista trouxe jornais para tapar a porcaria que estava espalhada pelo chão. Depois, um empregado de limpeza entrou com uma esfregona e um balde. Depois a recepcionista voltou com uma lata de spray desinfectante que cheirava intensamente a cereja brava.
O Sr. Levin afastou Lucy dali. Sentou-a de forma a ela ficar virada para a janela, a olhar para a rua. Pousou um braço à volta dos seus ombros.
- Queres um copo de água?
- Estou bem, obrigada - disse ela, formalmente.
- Não nos resta muito tempo. A tua mãe está à tua espera lá em baixo?
- Sim. No carro.
- Bem, antes de saíres talvez queiras ir à casa de banho para te limpares.
Ela virou a cabeça para olhar para ele.
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- Não vai contar à mãe, pois não?
- Tu teres estado maldisposta? Claro que não.
- Não é isso. O que eu lhe contei.
- Não, também não lhe vou contar isso.
- Ela matava-me se soubesse. Ele sorriu tristemente.
- Não me parece que ela fizesse isso. Eu acho que ela se sentiria bem por tu me teres contado. Mas não vou repetir, nem à tua mãe nem a mais ninguém.
- Eu nunca contei a ninguém - disse ela, pesarosamente. Nem sequer à Gloria, a minha melhor amiga.
- Eu sei - disse ele. - Foi um segredo muito difícil de guardar, não foi?
Ela assentiu, puxando as tranças. Ele passou pela frente dela e sentou-se no largo parapeito da janela, de frente para ela. Segurou-lhe levemente nos ombros.
- Lucy, quero pedir-te que me faças um favor.
- O quê?
- Sabes o trabalho para casa que trazes da escola? Eles mandam-te trabalhos para casa, não é verdade?
- Claro que sim, seu tonto.
- Bem, eu também gostava de te marcar alguns trabalhos para casa.
- De que género? - perguntou ela, desconfiada.
- Gostava que te recordasses do que viste a tua mãe fazer na noite da festa, e de que forma isso te afectou. Compreendes? Gostava que pensasses no que sentiste enquanto estavas a ver, e como é que te sentiste depois. Depois, quando voltares cá, gostaria de falar contigo sobre isso.
- Está bem - disse ela, jovialmente. - É um trabalho para casa muito simples. Não tenho de escrever nada, pois não?
- Se quiseres escrever, podes. Eu gostaria de ler tudo o que tu escrevesses sobre isso. Ou podemos apenas falar nisso como amigos. Continuamos a ser amigos, não é verdade?
- Oh, claro - disse ela. - Desculpe ter-lhe sujado o chão todo. Comi uma fatia de pizza ao almoço e deve ter-me feito mal.
- Provavelmente-disse ele, concordando. - O nosso tempo acabou, Lucy. Vejo-te na próxima semana.
- Depois posso contar-lhe a minha história nova?
- Claro que sim - disse ele, acompanhando-a à porta. Agora diz à senhora que está à secretária que queres ir à casa de banho. Lava a cara e bebe água e a tua mãe nunca vai descobrir o que aconteceu.
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- Vai ser o nosso segredo - disse ela com um sorriso travesso. - Até à vista, Dr. Ted. - E depois foi-se embora.
Ele voltou para a secretária para desligar o gravador. Acendeu um charuto, não porque lhe apetecesse especialmente, mas para deitar algumas baforadas de fumo para o ar e para apagar aquele cheiro enjoativo a cereja. Depois, deixou o charuto apagar-se.
Atirou-se pesadamente para cima da cadeira giratória, com a cabeça baixa e as mãos entrelaçadas em cima da barriga. Tinha sido uma sessão angustiante. Baixou os olhos para os sapatos salpicados de vomitado. Sabia que tinham sido feitos progressos significativos, mas não estava particularmente orgulhoso de si próprio.
8
Mais tarde as pessoas recordá-lo-iam como um dia estranho, variável e caótico. Sem forma. Moradores da praia passearam, conversaram, beberam, sentaram-se, levantaram-se. Ninguém parecia saber o que vestir, o que fazer. Uma mulher disse: "Um dia de cão", e todos souberam o que ela queria dizer e concordaram.
Talvez a culpa fosse do tempo. Amanheceu bom, ficou mau, e depois seguiram-se tempestades de chuva e vento, um período de céu azul, trovoada, um aguaceiro torrencial,
nuvens ameaçadoras, de novo acalma, muita humidade, um vento gelado, um sol fraco, etc. A natureza exibia todo o seu arsenal de truques.
Aquele sábado não começou de forma auspiciosa para William Jasper Holloway. Estava na casa de banho, a fazer a barba, quando Jane entrou e disse:
- Quero o divórcio.
Holloway pousou cuidadosamente a navalha, agarrou-se com força ao lavatório e olhou para o reflexo da mulher no espelho do armário dos medicamentos.
- Não é coisa que se diga a um homem quando ele está a fazer a barba.
Ela encolheu os ombros.
- Há alguma altura boa para o dizer? Tu sabes que este casamento não está a resultar. Não há sexo há... há quanto tempo? E outras coisas. Eu ficaria mais feliz se nos separássemos... e tu também.
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- Deixa-me ser eu a avaliar os meus sentimentos - disse eleja feliz. Mas ainda a recordar aqueles primeiros impetuosos tempos de casados quando não podiam viver um sem o outro.
-vou sair de casa na segunda-feira-disse ela. - Acho que é o melhor. vou para um hotel. O teu advogado poderá falar com o meu advogado.
- Mas tu não vais falar comigo?
- Não - disse ela. - De que é que serviria? Ando há algum tempo a pensar no assunto e a minha decisão está tomada.
- Eu sei o que isso significa - disse ele, amargamente.
- Lamento, Bill - disse ela suavemente.
- Não lamentas nada - disse ele.
Estava demasiado confuso para limpar o revólver naquela manhã. Não era a perspectiva de perder Jane que o perturbava; era o trabalho. Advogados, discussões, o acordo, as crianças, as idas a tribunal. Tinha de tomar decisões. A sua rotina pacífica ia ser perturbada.
Não se incomodou a tomar o pequeno-almoço, mas encheu um balde de gelo com cubos e dirigiu-se directamente para o bar da sala de estar. Deitou uma grande dose de
vodca, bebeu um gole e olhou em volta. Se ia ficar com a casa, a primeira coisa a fazer era livrar-se de todas aquelas depressivas coisas castanhas.
Foi para a praia com a sua seguna bebida num grosso copo de plástico para as pessoas pensarem que ele estava a beber um café matinal. Naquela manhã havia muitas
pessoas a passear. Toda a gente sem nada para fazer e com um olhar ausente.
Ronald Bending estava de pé na areia molhada. Tinha as mãos profundamente enfiadas nos bolsos nas bermudas axadrezadas. Estava a contemplar o mar revolto, que investia de todos os lados. Holloway aproximou-se dele e Bending virou-se.
- bom dia, Bill - disse ele.
- A Jane quer o divórcio - disse Holloway. Turco olhou para ele.
- A sério? Holloway assentiu.
- Merda! - disse Bending, e depois contou a Holloway o que tinha acontecido ao seu carro. Disse que ia afastar-se do negócio porno.
- Sim - disse Holloway, assentindo. - Acho que é uma atitude muito sensata.
- Que estás a beber? - perguntou Bending, espreitando para o copo do outro homem. - Seven-Up?
- Tu és mais esperto do que isso.
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- Oferece-me uma e vamos procurar o Luther. É melhor ele sair também.
Assim, Holloway voltou a casa, preparou uma vodca com água para si e um uísque com soda para Turco, também num copo de plástico. Os dois homens levaram as bebidas
pela praia até à casa de Empt. Nessa altura estava imenso frio, mas eles não repararam.
- Esse divórcio - disse Bending. - Foi ideia da Jane? . - Sim.
- Lamento, Bill.
- Eu não me importo.
Subiram os degraus de rocha de coral que davam acesso ao terraço de Luther e bateram à porta de vidro. Por fim ele apareceu, com um roupão turco e uma caneca de café. Saiu para o terraço e olhou para os copos de plástico que eles traziam na mão.
- Estão a começar cedo - disse ele.
- Nunca é cedo de mais - disse Holloway. - Luther, viemos dizer-te que é melhor afastares-te do negócio porno.
- Vocês têm razão - disse Empt, inesperadamente. - A noite passada decidi que vou recuperar o meu dinheiro e desaparecer.
Bending olhou para ele com curiosidade.
- Que é que te fez mudar de ideias? Os olhos de Empt pestanejaram.
- O meu advogado convenceu-me de que, com vocês os dois fora disto, eu não tinha hipótese nenhuma.
Eles sabiam que ele estava a mentir.
- Não foste ameaçado? - perguntou Turco Bending. Nada disso?
- Oh, diabo, não! - disse Empt, violentamente. - Ninguém me ameaça. Não, é apenas uma decisão de negócios. Posso aplicar o dinheiro na minha empresa. Posso comprar mais máquinas . Expandir-me.
- É a coisa mais sensata a fazer - disse Bending.
- Acho que também vou buscar um copo - disse Empt. Alguma coisa para acalmar o estômago. Ontem tive uma noite péssima.
Holloway deixou Bending e voltou para casa. Estava chateado e pouco sociável, pensando na sua vulgaridade. As nuvens estavam a abrir; havia pedaços de céu onde o
sol brilhava; algumas pessoas estavam na água, aos gritos.
O professor Lloyd Craner estava no terraço, sentado muito direito, com a bengala de cabeça prateada entalada entre os joelhos. Estava a beber café numa delicada chávena de porcelana.
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- bom dia, professor - disse Holloway, sentando-se numa cadeira do outro lado da mesa de vime.
- A Jane contou-me - disse-lhe o sogro. - Lamento, Bill.
- Bem... - disse Holloway. - Acontece.
- Sim - disse o velhote, e parecia prestes a chorar. Apertou furiosamente o cavanhaque. - Não gosto deste... deste rompimento. As pessoas deviam unir-se, não separar-se. - Suspirou.
- Ah, sou um velho tonto e sentencioso. Há alguma hipótese de resolverem os vossos, ah, problemas?
- Pergunte à Jane - disse Holloway. - Eu acho que não. Quando ela toma uma decisão...
O professor assentiu tristemente.
- Espero - disse Holloway - que, aconteça o que acontecer, possamos continuar a ver-nos.
O senhor ergueu as sobrancelhas brancas, espantado.
- Claro. Compreendido. Você é o único a quem consigo vencer no xadrez.
- Nem sempre - disse Holloway, sorrindo. Levantou-se. vou buscar mais vitaminas. Quer que lhe traga alguma coisa?
O velhote pensou um pouco.
- Talvez um pequeno brande. Para avivar a minha força que já rareia.
- Não se preocupe - disse Holloway. - Tudo passa.
- Infelizmente - disse o professor Craner.
Ao mesmo tempo, Wayne Bending, no seu quarto, com a porta fechada à chave, estava a arrumar uma pequena mochila com as poucas coisas que queria levar quando fugisse. Um par de meias extra, bússola de bolso, faca de mato, um mapa da Florida, um preservativo que Eddie Holloway lhe dera e mais algumas ninharias.
Wayne pensou que jantaria com a família naquela noite, mataria algumas horas e depois iria para o quarto. Esperaria até todos estarem a dormir e depois esgueirar-se-ia para fora de casa. Iria pela AIA e pediria boleia para norte. Talvez tentasse Nova Iorque primeiro. Se isso não resultasse, dirigir-se-ia para oeste, para a Califórnia.
Pouco antes do meio-dia, durante um período de céu infindável e sol brilhante, os três homens encontraram-se novamente na praia. Bending e Holloway ainda estavam vestidos, mas Luther Empt tinha os seus calções de banho castanho-ferrugem, com o elástico preso por debaixo da barriga, que parecia uma bala de canhão.
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- Quero entrar, mas não quero entrar - declarou ele, olhando para as ondas encrespadas. - Parece estar gelado.
- Vai lá - disse-lhe Turco Bending. - Sê um herói. Faz o maior bem do mundo à tua ressaca.
- Sim - disse Empt. - Se calhar. Escutem, que é que vão fazer esta noite? No outro dia estavas a falar num churrasco, ou coisa do género, Turco. A proposta ainda está de pé?
- Por mim, tudo bem - disse Bending. - Que achas, Bill? Holloway endireitou-se e olhou para cima.
- Uma festa? Claro. Por que não? Um churrasco, se o tempo se aguentar, e se não aguentar vamos para dentro.
- Toda a gente traz a sua própria comida e a sua garrafa disse Bending.
- Certo - disse Empt. Ninguém fica com o trabalho todo. Quem vai dar esta festa?
- Eu - disse Holloway. - É a minha vez. - Pensou que Jane ia detestar, detestar, e isso deu-lhe prazer. - vou buscar pratos e copos de plástico, cubos de gelo e todas essas coisas.
- Óptimo - disse Bending. - Muito informal. Ninguém se veste a rigor. As pessoas que venham como estiverem. Por volta das cinco da tarde, Bill?
- Quando quiserem - disse Holloway, encolhendo os ombros. - Vamos deixar as coisas acontecer. Mas precisamos de mais corpos.
- Bem pensado - disse Bending. - Eu vou dar uma de Paul Revere em toda a praia e alertar os nativos. Os Hopkins, os Sanchman, os Stein, Susie Burlingham... semsoutien, os Gardner... toda a gente.
Holloway resplandeceu.
- Umagraaande orgia bêbeda. Ena pá, isso é que é falar. vou comprar as coisas agora mesmo.
Afastou-se a saltitar. Eles ficaram a vê-lo ir-se embora. Uma vez ele parou e tentou saltar lateralmente e bater com os calcanhares um no outro. Não conseguiu e quase caiu na areia.
- Ele está a comportar-se como um doido! - disse Luther.
- Não - disse Bending. - Está apenas chateado. A Jane quer o divórcio.
- Merda! - disse Empt. - É uma pena. Eu tinha a impressão de que eles se davam bem. Mas nunca se conhece as pessoas.
- Não - disse Turco -, nunca se sabe o que elas vão fazer. Escuta, eu vou avisar toda a gente da praia de que vamos fazer a festa.
- Toma um copo em todas as casas.
- Isso também - disse Bending, sorrindo. - Depois volto
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para casa do Bill e vou ajudá-lo a organizar esta coisa. Aparece cedo para podermos beber uns copos antes de a malta aparecer.
- Está bem - prometeu Luther Empt e, depois de o Turco se afastar, entrou resolutamente na água e mergulhou.
Durante os primeiros momentos, a água estava chocantemente fria. Mas, depois, enquanto nadava determinadamente para fora de pé, vencendo as fortes ondas, a temperatura do corpo aumentou, as teias de aranha foram desaparecendo do seu cérebro e ele começou a sentir os benefícios daquela luta de músculos com o mar.
Ficou na água durante quase vinte minutos, nadando vigorosamente de um lado para o outro, paralel amente à praia. Não era um perito; as suas braçadas eram imperfeitas. Mas tinha força nos braços, nos ombros e nas costas. Era bom desafiar todo o maldito oceano e vencer.
Saiu da água, correndo, e andou para cima e para baixo à beira-mar para secar, com os joelhos bem subidos e os cotovelos a abanar. Secou rapidamente e foi a correr para casa, decidindo que merecia um Bloody Mary depois de todo aquele exercício.
Eddie Holloway andava a passear pela praia, usando um fato de banho branco que Empt achou que não era muito maior do que uma tira. Luther acenou-lhe. Depois, quando estava a chegar a casa, encontrou Lucy Bending, que usava um vestido rendilhado e trazia as sandálias na mão.
- Olá, Sr. Empt - disse ela, alegremente.
- Olá, princesa - disse ele. - Estás linda, como sempre. Acho que deves estar apaixonada.
- Tonto! - disse ela, rindo-se deliciada. Ela olhou para ele.
- Meu Deus, o senhor é mesmo forte. Nunca tinha reparado nos seus músculos antes.
Ele encolheu a barriga, flectiu os bíceps e fez uma imitação burlesca de um levantador de pesos.
- Sou eu... o homem forte do circo.
- Não - disse ela com um sorriso curioso. - A sério.
Ele esticou a mão para lhe acariciar os cabelos longos e brilhantes.
- Que princesa! Um destes dias vais fazer um jovem muito, muito feliz.
- Acha que sim? - perguntou ela, brejeiramente.
- Oh, sim. Bem... - De repente ficou tenso e sentiu-se ligeiramente desconfortável. - Bem, tenho de ir vestir-me. Esta noite vamos ter uma grande festa em casa dos Holloway.
- Oh! - exclamou ela. - Uma festa! Adoro festas.
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- Eu também - disse ele. - Encontramo-nos lá. O teu pai anda agora a dar a novidade às pessoas. Diz aos teus amigos.
- Está bem, Sr. Empt - disse ela. Depois, enquanto ele se afastava, chamou-o: - Encontramo-nos na festa!
Enquanto Empt estava a contar a Lucy que ia haver uma festa, William Holloway estava a dizer a Maria, a criada interna. Saiu apressadamente da cozinha para escapar às queixas dela. Meteu-se no Mercedes com um copo de vodca com água.
Preso ao tablier de nogueira do carro havia um apoio para copos (desenhado para barcos) suspenso, para a bebida nunca se entornar. Holloway colocou o copo no suporte
e dirigiu-se para o supermercado, cantando canções de rua napolitanas numa voz de tenor não muito desafinada.
Estava a empurrar o carro das compras para a secção de charcutaria quando colidiu de frente com um carro de compras que estava a ser empurrado por Teresa Empt. O carro dela tinha seis embalagens de peitos de frango.
Riram-se ambos, e ele disse-lhe que ia haver uma festa. Ela deambulou até o ver sair do supermercado, mas ele não fazia ideia do que ela estava a fazer. Depois, levou as compras para a caixa onde Mike estava a trabalhar.
Em casa, Holloway guardou os alimentos e subiu para tomar um duche, não sentindo qualquer dor. Não estava inebriado, note-se, apenas animado e razoavelmente sereno. O tempo estava a passar num sonho rosado, e era isso mesmo que ele queria.
Jane estava em casa e já tinha ouvido falar na festa. Para sua surpresa, era completamente a favor - desde que não tivesse de ajudar. Ele serviu-lhe um copo de vinho branco e depois foi para a cozinha para começar a organizar as coisas.
Turco Bending apareceu para contar que todas as pessoas que tinha contactado tinham aceite o convite de bom grado e trariam comida, bebidas e convidados. Depois, Bending bebeu um copo e desapareceu de novo. Luther Empt mandou John Stewart Wellington com uma melancia inteira - um monstro. Maria começou a falar apenas em espanhol, o que significava que andara a beber rum às escondidas.
Deslocando-se lentamente e não muito metodicamente, Holloway montou mesas e cadeiras, espalhou toalhas de papel, arranjou pratos de papel e talheres de plástico, encheu a grande churrasqueira com carvão. Durante todas aquelas tarefas murmurou ou cantou em voz alta. Era o seu dia italiano; sentia-se particularmente orgulhoso do seu Vesti La Giubba.
Às três da tarde, quando Wayne Bending apareceu, dizendo
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que o pai o tinha mandado para ver se era preciso ajudar com os preparativos, Holloway já tinha tudo bastante adiantado.
Ficou encantado por ver o rapaz. Abriu uma coca-cola para ele. Deu-lhe um saco de Chez-Doodles. Mandou-o sentar-se a uma das mesas que estavam junto à piscina e foi fazer-lhe companhia.
- Então, Wayne - disse no que imaginou ser o mais compreensivo e amigável dos tons -Já pensaste melhor no que vais fazer?
O rapaz olhou-o nos olhos.
- Ainda estou a pensar - disse.
Holloway ficou chocado. Não com a resposta, mas porque sabia, sabia que ele estava a mentir. E se conseguia mentir-lhe tão descaradamente a ele que achava que tinham um relacionamento especial, uma amizade especial, então, talvez afinal de contas nada fosse especial.
Olhou para Wayne, que estava a contemplar o céu. Achou que era impossível que aquele jovem não sentisse nada por si. Ele devia ter ficado comovido pelo interesse e preocupação de Holloway.
- Wayne - disse Holloway calmamente -, eu quero ajudar-te. Já te disse isso várias vezes. Não há nada que possa fazer por ti?
- Eu fico bem. Posso cuidar de mim.
-Não podes! - exclamou Holloway. - Para onde é que vais? Como é que vais viver? Só vais tornar a tua família muito infeliz. E a mim.
- Sim, bem... - balbuciou o rapaz. - Como eu disse, não há nada para mim aqui.
- Dá-me uma oportunidade - implorou Holloway. - De te conhecer melhor. De conversar contigo. De te explicar como as coisas são. Não quero nada. Só não quero ver-te desperdiçar a tua vida.
- Ah, merda! - disse Wayne, aborrecido. - Eu sei o que se passa aqui. Acha que não sei? Quem é que precisa disto? Tem de haver lugares melhores do que este. Onde as pessoas não se atraiçoem umas às outras.
Holloway não sabia bem a que é que ele estava a referir-se.
- Estás a referir-te a mentirem umas às outras? A aldrabar?
- Sim. Isso mesmo. E fingir que são nossos amigos e depois escorraçarem-nos. É tudo uma merda. Estou farto. - De repente, levantou-se. - Escute, há alguma coisa que eu possa fazer aqui?
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- O quê? - perguntou Holloway, pasmado. - Oh, estás a referir-te à festa. Deve haver alguma coisa...
Olhou para Wayne, vendo um rapaz entroncado e com uns olhos lindos. Se, por algum transplante mágico, pudesse ficar com todas aquelas agonias jovens para si, tê-lo-ia feito, e de boa vontade.
Seria simultaneamente o seu acto de virtude, uma ferida, um sacrifício. E, de certa forma, daria importância a uma vida que Holloway percebia agora que não tinha significado nem objectivo.
- A festa, Sr. Holloway? - perguntou Wayne Bending, quebrando o silêncio e olhando estranhamente para ele.
- O quê? - disse ele, confuso. - Oh, sim, a festa. Bem, esqueci-me de comprar cubos de gelo. Podes trazer todos os que puderem dispensar em tua casa?
- Claro.
- Eu ponho-os em sacos de plástico no congelador. Quando esses acabarem, já devemos ter mais.
- Está bem, Sr. Holloway. vou buscá-los.
Viu o rapaz afastar-se. Pensou em todas as coisas que poderia ter dito. Que deveria ter dito. Sobre amizade, consolo, compaixão. Sobre amor. Em vez disso, tinha falado sobre cubos de gelo e sobre guardar sacos de plástico no congelador.
Desgostado consigo próprio, atirou o que restava da sua bebida, incluindo o copo, para dentro da piscina. Depois foi para dentro de casa e preparou outra.
Ao princípio da noite caíram pequenos aguaceiros, mas ninguém pareceu importar-se. Ocasionalmente, as nuvens tornavam-se menos densas e vislumbrava-se uma Lua em quarto crescente. Estava frio suficiente para blusões e camisolas de manga comprida. O vento, soprando de oeste, tinha um perfume adocicado.
- Como insenso - disse alguém.
As pessoas começaram a chegar cedo e pareciam determinadas a ficar eternamente. Havia imensa comida, imenso uísque, cerveja e vinho. Charros passaram de mão em mão. Soube-se que alguém tinha coca, mas Jane Holloway não conseguiu descobrir quem era. Mesmo assim, dançou um charleston endiabrado na beira da piscina.
Se se pudesse dizer que a festa teve uma disposição, esta teria sido desespero. Não houve brigas e ninguém saltou para dentro da piscina. No entanto, os adultos pareciam dispostos a abandonarem-se. À medida que a noite ganhava força, os constrangimentos desvaneceram-se e até a civilidade foi abalada.
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Os jovens apanharam a onda, como se o frenesim fosse uma doença infecciosa e eles tivessem sido contagiados. Vozes finas passaram a guinchos e começaram os arremessos
entre mesas, o atirar de comida e as correrias loucas pela relvadr.
As pessoas comiam quando lhes apetecia e bebiam pela garrafa que estava mais à mão. Juntavam-se, separavam-se, contavam anedotas, namoriscavam, cozinhavam na churrasqueira,
riam às gargalhadas, passeavam, conversavam e garantiam uns ao outros que aquela era a melhor festa de praia de sempre
- e não era divertido?
Holloway e Bending estavam a beber desde manhã, mas tinham atingido um estado de intoxicação que lhes permitia funcionar e aderir ao ambiente de euforia. Não eram mais imoderados ou doidos do que os convidados.
Era Luther Empt que olhava a companhia com um rosto carregado e rabugento. Sentou-se sozinho a uma mesa nas sombras, bebendo uísque escocês puro e, ocasionalmente,
resmungando e carregando o sobrolho. A mulher e a mãe evitaram-no, e o mesmo acabou por acontecer com todos os outros. A novidade espalhou-se:
- Luther está com um dos seus ataques de mau humor. Uma vez, já tarde, Lucy Bending veio ter com ele, pousou uma
mão suave no seu braço e perguntou se ele queria dançar com ela. Ele olhou-a, furioso, até reconhecer quem era e depois o seu rosto iluminou-se.
- Princesa! - gritou ele. - Minha linda princesa!
- Quer dançar comigo, Sr. Empt? - repetiu ela.
- Mais tarde, doçura - disse ele. - Não sei dançar esta música rápida. Quando puserem uma coisa agradável e lenta.
- Promete? - perguntou ela.
-Juro pela minha vida-disse ele, e esticou-se para a frente para lhe beijar a bochecha. Mas ela mexeu o rosto para receber o beijo nos lábios. - Oh, que princesa tão amorosa que tu és! disse ele com a sua voz áspera, abraçando-a.
Quando ela se afastou dele, ele ficou a observá-la. May tinha desaparecido e aquele homem triste e de compreensão lenta estava agora a começar a compreender a enormidade da sua perda. Tudo o que era seguro, acolhedor e agradável na sua vida tinha acabado. Esperava-o um futuro perigoso, frio e triste.
Gertrude Empt e o professor Craner estavam sentados lado a lado a comer em silêncio e com apetite e a olhar com curiosidade para os fanfarrões que os rodeavam. Comeram fatias de melão, olharam um para a outro e levantaram-se em simultâneo.
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- Uma festa agradável - disse Gertrude -, mas um pouco barulhenta. E se fôssemos dar um passeio na praia?
- Nada me daria mais prazer - disse ele galantemente.
- Contenta-se com pouco-disse ela, pegando-lhe no braço. Jane Holloway, como sempre, estava rodeada por um círculo
de admiradores, que tratava com um desprezo zombeteiro. Grace Bending fazia parte de um grupo de sérias matronas que discutiam os problemas de ensinar "os factos da vida" aos filhos pequenos e, entretanto, vigiavam com um olhar frio os movimentos dos maridos bêbados.
Teresa Empt estava a ter dificuldade em livrar-se das atenções de um tonto Eddie Holloway. Os seus olhos de carneiro mal-morto seguiam-na para todo o lado. Por fim, encontrou refúgio junto de um elegante jovem, um convidado, que não falava se não das maravilhas dos saltos de pára-quedas.
Teresa escutou com atenção. Passado algum tempo, deixou o joelho encostar-se ao dele por debaixo da mesa. A expressão dele alterou-se e ele começou a gaguejar. Ela sorriu-lhe encorajadoramente e perguntou a si mesma se seria demasiado cedo para mudar de conversa e começar a falar sobre a arquitectura dos mirantes.
Um pouco antes da meia-noite, deslocando-se com uma precaução exagerada, William Jasper Holloway foi para a cozinha. Levava um balde de gelo vazio. Mas os sacos de plástico do congelador estavam vazios e não havia gelo nos tabuleiros.
Pensou que podia ir rapidamente à cozinha dos Bending sem problemas. Internou-se na escuridão, andando lentamente para evitar chocar contra as palmeiras e as buganvílias que separavam as duas propriedades sem vedações.
Em vez disso, chocou contra Wayne Bending, que vinha apressadamente das traseiras da casa, trazendo uma mochila. Holloway levou algum tempo a compreender o que estava a acontecer. Deixou cair o balde de gelo no chão macio.
- Wayne... - disse o homem numa voz estrangulada.
- Não tente impedir-me - avisou o rapaz. - Ninguém pode impedir-me.
- Mas tu disseste... Eu disse que te daria dinheiro.
- Não quero o seu dinheiro. Não quero nada de ninguém.
- Não fujas - disse Holloway, cambaleando na direcção do rapaz. - Por favor, por favor, por favor não fujas.
-Vou-me embora-disse o rapaz decididamente. - Se quiser, pode dizer ao meu pai. Mas quando disser eu já desapareci; ele nunca me vai encontrar. Eu deixei um bilhete.
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- Um bilhete? - disse Holloway, resmungando. - Ah, Jesus, um bilhete!
Sentiu alguma coisa quebrar-se dentro de si: um estalido, uma ruptura e depois uma separação. Viu o que falhara, não apenas para lidar com aquele rapaz de doze anos, mas também para lidar consigo próprio. A razão não era suficiente.
Pousou desajeitadamente os braços em volta do rapaz. Atirou a cabeça para a frente, os lábios franzidos.
- Amo-te - disse ele. - Amo-te.
- Que raio é que se passa consigo? - gritou Wayne, empurrando-o para longe de si. - Está doido ou quê?
-Amo-te - disse William Jasper Holloway, respirando com dificuldade, de coração aberto. Tentou novamente abraçar o rapaz. -Amo-te.
Praguejando, Wayne afastou-o violentamente. Holloway cambaleou para trás e sentou-se subitamente na terra encharcada.
- Seu patife! - gritou-lhe o rapaz. - É exactamente igual a todos os outros.
Depois, virou-se e correu para a escuridão. Holloway ficou sentado no chão, sentindo a humidade infiltrar-se nas suas calças. Algum tempo depois começou a chorar.
"É exactamente igual a todos os outros." Ele sabia como eram todos os outros.
Começou a falar sozinho em voz alta.
- Então, todas aquelas tretas de viver uma vida virtuosa, de suportar uma ferida, um sacrifício... só conversa.
"Não! Não. Eu sentia mesmo isso.
"Tretas. Uma pila tesa... foi o que sentiste.
"Isso é cruel.
"Essa é a verdade. Tu traíste-o e traíste-te a ti mesmo. Ele tinha razão; és exactamente como todos os outros.
"Nós poderíamos ter sido amigos.
"Deixa-te disso! Pára de te iludires. Tu sabes o que querias. Assume.
"Não posso. Não posso continuar.
"Muito dramático! Mas vais continuar. Como sempre. Será esse o teu castigo.
Ainda a fungar, limpando os olhos com as costas da mão, pôs-se desajeitadamente de pé. Sentiu a parte de trás das calças. Completamente encharcadas e, calculava, manchadas. O toque final de bufonaria na vida de um palhaço.
Apalpou na escuridão, encontrou o balde de gelo e entrou a cambalear pela porta da cozinha dos Bending. Esta estava aberta alguns centímetros. Lá dentro, as luzes brilhavam intensamente. Ouviu vozes e parou, com um pé na soleira.
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Ouviu a voz indistinta de Luther Empt:
- Tens a certeza de que estamos sozinhos?
E depois a voz fina e melodiosa de uma criança:
- Depressa. Depressa.
Holloway abriu a porta e espreitou cautelosamente da ombreira. Olhou. Depois recuou, de boca aberta, andando lentamente de costas até se internar na escuridão. Virou-se, atirou fora o balde de gelo e começou a correr freneticamente para casa.
Chocou contra árvores, tropeçou em arbustos, esmagou plantas. Ramos bateram-lhe no rosto. Uma vez caiu, magoou o joelho, levantou-se e continuou a correr desajeitadamente. Estava novamente a chorar, mas agora ruidosamente, a soluçar e a tossir. Os pulmões queimavam, o coração dilacerado batia desordenadamente.
Subiu pesadamente as escadas, içando-se apoiado ao corrimão. Quando voltou a descer, trazendo Eric, a arma, sem o coldre e apontada com um objectivo, homens e mulheres estavam a entrar na horrível sala de estar castanha, a rir, sacudindo a chuva dos cabelos e dos ombros.
- Ei, Bill, onde é que tu...
- Que é que tu...
- Bill, que é que...
- Pára, Bill!
Mas Bill não parou. Internou-se na chuva intensa, apercebendo-se de que a razão falhara, e querendo unicamente sentir profundamente, intensamente e deixar-se ir até onde isso o levasse.
Ouviu os gritos atrás de si. Sentiu humidade no rosto: chuva e lágrimas. Mas não podia parar agora e, exultante, voltou para a culpa que era dele e de todos.
Abriu a porta com um grito que estava preso na sua garganta. Viu o homem pesado curvado e a gemer. Viu a menina de cabelos loiros ajoelhada entre as pernas dele.
William Jasper Holloway aproximou-se. Apontou o revólver. Despejou-o neles. Viu-os contorcerem-se e o sangue começou a espirrar. As explosões ensurdeceram-no. Depois, só ouviu cliques enquanto continuava a carregar no gatilho.
Atirou a arma para o chão. Saiu novamente a correr, mal se apercebendo das pessoas que se dirigiam para ele, vindas do meio das árvores, cercando-o como lobos. Mas ele despistou-os a todos e deu a volta à casa, correndo depois para a praia.
Cambaleou pela areia molhada até ao mar. Entrou na água sem parar. Mergulhou. Começou a nadar para leste o mais
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depressa que conseguia. Desta vez ia conseguir. Ia chegar a Inglaterra. Portugal. África. A um lugar qualquer.
-Telefonei ao marido - disse o Dr. Theodore Levin, olhando para os animais das histórias infantis pintados na parede do consultório. - Queria dizer-lhe como lamento o que aconteceu. E havia uma pergunta que queria fazer-lhe e que estava a dar cabo de
mim.
- Como é que ele te pareceu? - perguntou a Dr.ê Mary Scotsby.
- Terrível. Bem, a filha dela tinha acabado de ser assasinada, a mulher estava sobre o efeito de fortes calmantes e o filho mais velho, Wayne... o rapaz com quem eu falei... aparentemente fugiu de casa. Por isso é compreensível que o homem não esteja muito bem.
- Que pergunta é que querias fazer-lhe?
- Lembras-te da primeira entrevista em que ele me contou um incidente que ocorrera durante um churrasco no último Dia do Trabalhador? Bending entrou na cozinha... a propósito, acho que é a mesma cozinha onde se deu o assassinato... e encontrou a Lucy a seduzir um homem. As notícias dos jornais diziam que um homem, um vizinho dos Bending, tinha sido morto a tiro ao mesmo tempo que a Lucy. Tive de perguntar ao Bending se o homem assassinado era o mesmo com quem ele tinha apanhado a Lucy no ano passado.
- Que é que ele disse?
- Disse que sim.
Ficaram em silêncio. Ela olhou directamente para ele, mas o olhar dele vagueou: aqui, ali, em todo o lado.
- A culpa não foi tua, Ted - disse ela.calmamente.
- Tu podes dizer isso e eu posso dizer isso, e não ajuda nada. Tempo! Se eu tivesse tido mais tempo, podia ter ajudado aquela criança. Eu sei que sim. E, falando de culpa, voltei a ouvir todas as gravações ontem à noite e descobri um erro de omissão.
- Que erro?
- Quando a mulher me contou a sua, ah, aventura sexual na noite da festa há quatro anos, eu perguntei-lhe se o homem envolvido era o marido da mulher com quem Bending tinha desaparecido. Ela disse que não e eu não aprofundei mais. O que
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devia ter perguntado é se era o mesmo homem com quem a Lucy tinha sido apanhada na cozinha quatro anos depois.
- Por que é que não perguntaste?
-A minha delicadeza será o meu fim - disse ele com um sorriso triste.
- Ted, tu estás apenas a conjecturar. Não tens provas de que o mesmo homem esteve envolvido com a mãe e a filha.
- Não, não tenho provas. Mas faz sentido, não faz? Ajudaria a explicar o comportamento da Lucy, não achas?
- De uma forma muito louca.
- Queres dizer, de uma forma humana. Ela suspirou.
- Tenho uma pergunta, Ted: o marido sabia o que se passou com a mulher?
- O incidente no quarto? Duvido.
- Se tivesse sabido, como é que achas que ele teria reagido?
- Seria fácil dizer que, com o seu historial de infidelidades, ele não se importaria. Mas duvido. Acho que o conhecimento da infidelidade da mulher o destruiria. Ele ama-a, sabias?
- À maneira dele.
- Sim. À maneira dele.
Finalmente, o olhar de Levin pousou nela. O olhar através daquelas lentes grossas era tão intenso que ela se mexeu, inquieta.
- Por que é que estás a olhar para mim?
- Vamos casar, Mary. Silêncio. Por fim...
- Agora não estás a brincar - disse ela -, pois não?
-Não, não estou a brincar. Quem me dera poder dizer-te que é um amor louco e apaixonado, mas tu conheces-me bem de mais.
- Sim - disse ela, com uma curta gargalhada. - Conheço-te muito bem. Então o que é?
- É um termo que é usado em espionagem. "Porto de abrigo." É um lugar completamente seguro onde os agentes podem ficar e onde sabem que estão livres de perigo e
do mal. É um refúgio, um esconderijo. Eu preciso de um porto de abrigo, Mary. O mundo é de mais para mim. Está tudo a ficar escuro e eu estou assustado. Em primeiro
lugar, receio pela minha própria sanidade. Por isso, como podes ver, estou a pedir-te em casamento por motivos muito egoístas. Preciso de um porto de abrigo que
me ofereça refúgio e protecção. Para a loucura. Preciso do teu apoio moral e emocional. Se não o conseguir, não sei se vou aguentar muito mais tempo. A tristeza
de ser humano está a começar a
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afectar-me. Todas as nossas grandes expectativas e terríveis derrotas. A nossa fraqueza! Já não aguento. É-me cada vez mais difícil rir.
- Disseste tudo isso a Al Wollman?
- Ele diz-me para engatar um borracho e dar uma boa queca.
- Sim, é típico do Al.
- Mas escuta - disse ele ansiosamente -, eu não quero que penses que estou a pedir-te em casamento porque preciso de uma psiquiatra a tempo inteiro. Ou enfermeira.
Acho que posso dar-te o mesmo tipo de apoio que quero para mim. O que espero é que, entre nós, possamos fazer uma espécie de... uma espécie de...
- Uma espécie de santuário? - disse ela.
- Exactamente - disse ele, relaxando. - Uma espécie de santuário. Que é que dizes?
- Sim - respondeu ela.
10
O velho Buick do professor Lloyd Craner teve de fazer três viagens para transportar as roupas e bens pessoais dele e da
Sra. Empt para o novo apartamento no motel
perto do canal. Era quase uma hora da tarde quando o trabalho terminou.
Na última viagem, Craner parou numa loja de bebidas e comprou uma garrafa de champanhe gelado.
- Para comemorar - disse ele.
- O quê? - perguntou Gertrude. - Exaustão total?
Mas a disposição dela melhorou quando a mudança ficou concluída, e eles ficaram em segurança, escondidos no seu apartamento de uma assoalhada. O pequeno apartamento estava atravancado com as roupas e os sapatos de ambos, as caixas, a colecção de conchas de Gertrude e os livros de Craner. Mas nenhum deles estava preparado para começar a arrumar as coisas.
Sentaram-se em cima da cama e Craner deitou champanhe em dois copos de água.
- É da Califórnia - disse ele -, mas num teste efectuado pela revista Consumer Reports foi considerado tão bom ou melhor do que a maior parte dos champanhes franceses importados.
Ela olhou para ele com os olhos muito abertos.
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- Essa é a melhor parte de viver com professores; eles sabem tudo.
Ele riu-se.
- Admito que às vezes tenho tendência para ser enfadonho. Dependo de si para me chamar a atenção.
- Pode contar comigo - disse-lhe ela.
Beberam o vinho e concordaram que era precisamente aquilo de que precisavam.
- O pijama do gato - disse a Sra. Empt.
- Os joelhos da abelha - disse Craner. E sorriram ambos, recordando.
- Gertrude, disse à Teresa que se ia embora?
- Sim, disse.
- Que é que ela disse?
- Disse: "Que bom para si!" Depois disse: "Temos de nos manter em contacto." E eu disse: "Claro." Nenhuma de nós estava a falar de coração. Se nunca mais a vir,
será bom de mais. E acho que ela sente o mesmo em relação a mim. Disse à sua filha?
- Ela não estava em casa. Agora, Jane anda muito ocupada com uma espécie de emprego sobre o qual tem muito segredo. Mas deixei um recado ao Eddie. Disse-lhe que
ia mudar-me para um apartamento meu num motel. Ele disse: "Divirta-se!"
- O melhor conselho que ouvi até agora. Aposto que a Jane não está propriamente abalada com o desaparecimento do Bill.
- Não exactamente.
- Nem a Teresa com a morte do Luther.
- Como é que se sente em relação a isso? Ela encolheu os ombros.
- Na minha idade já aprendi a viver com tudo. Especialmente com a morte.
- É assim que eu me sinto. De quem tenho pena é dos Bending. As carapaças deles não são tão grossas como as nossas.
Beberam o champanhe que tinham nos copos e Craner voltou a enchê-los.
- Não está a tentar embebedar-me, pois não? - disse ela. Só para se aproveitar da minha fraqueza?
- É uma ideia - admitiu ele. - Mas, na verdade, estou a tentar arranjar coragem para discutir um assunto de que já devíamos ter falado antes de darmos este passo. Estou disposto a casar consigo, se quiser, mas nós...
- Está doido? - explodiu ela. - Casar? Que ideia tão parva! Somos ambos pensionistas da Segurança Social. Casamos e os
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benefícios são cortados. Os nossos rendimentos são cortados. Não vale a pena, apenas por um pedaço de papel.
- Esperava que a sua opinião fosse essa. É uma pena que as leis desta grande nação tornem, ah, desvantajoso e não económico as pessoas da nossa idade casarem.
- Não pense mais nisso.
- Não a incomoda vivermos em pecado? - perguntou ele, mexendo no cavanhaque branco.
- Não, desde que haja bastante pecado.
- Nesse caso - disse ele, radiante -, prevejo um futuro longo e feliz para esta relação ilícita.
- Vamos brindar a isso - disse ela.
Ele deitou o resto do champanhe nos copos e aproximou-se mais dela na cama. Ela baixou o decote do vestido para expor um ombro castanho. Pestanejou.
- Beija-me, seu tonto - disse ela. E, rindo, ele obedeceu-lhe.
Lawrence Sanders
O melhor da literatura para todos os gostos e idades