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A PIRAMIDE / Ismail Kadaré
A PIRAMIDE / Ismail Kadaré

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Dois poemas, um deles dedicado à pirâmide de Quéops, testemunham desde 1967 o interesse de Ismail Kadaré pelos símbolos do antigo Egito. Porém, quando ele escreveu A pirâmide, em 1988, acrescentou a sua obra uma nova temática — o totalitarismo e a luta do homem pela liberdade. O que Ismail Kadaré recolhe da história não é a cadeia de fatos e datas, mas o que permanece depois que estes são esquecidos, o que é imutável e emblemático. Por meio de uma alegoria, a construção da Grande Pirâmide, o autor desvenda um monstruoso sistema de dominação do homem. Estávamos na idade da pedra do totalitarismo, mas, em última análise, poucas coisas mudaram desde então. Concebida como uma fábula, A pirâmide, com seu campo léxico, deixa entrever que, por trás do verniz da Antiguidade, refere-se à situação atual. Alguns termos que aparecem no livro evocam o século XX, ou o anterior. Não é a primeira vez que Kadaré joga dessa maneira com um distanciamento entre a época da narrativa e a "época léxica", criando um mosaico de épocas; sob essa ótica, A pirâmide não se afasta muito de textos como O monstro.
A pirâmide, do mesmo modo que A ponte dos três arcos, O palácio dos sonhos ou O grande muro, contém o tema, recorrente na obra de Kadaré, da construção em pedra. Sente-se ao longo da narrativa o peso da pedra: os dois primeiros capítulos constituem, por sua densidade, os alicerces de uma gigantesca construção.
Focalizando a vida cotidiana na IV dinastia dos faraós, Ismail Kadaré lança luz sobre a maneira como qualquer poder é capaz de exaurir os espíritos, reduzi-los a frangalhos, obrigando-os a realizar trabalhos titânicos. O poder priva o homem de todo desejo. A pirâmide dá prosseguimento a outros textos kadareanos sobre o totalitarismo — O nicho da vergonha ou O palácio dos sonhos. Todos os atributos do totalitarismo encontram seu lugar nos dezesseis capítulos — ou escalões — da pirâmide kadareana: os ardis forjados, as campanhas de terror, a magnificência estatal. Nas entrelinhas, descreve-se a sociedade albanesa dos anos 70 e 80 — e Kadaré não esconde que entre as crias da Grande Pirâmide estão as casamatas de concreto construídas na Albânia de Enver Hoxha. Entretanto, voltemo-nos para a história: na época em que Ismail Kadaré escrevia este romance, trabalhadores albaneses da construção civil erguiam em Tirana um museu em formato piramidal que foi inaugurado no octogésimo aniversário do nascimento de Hoxha.
A pirâmide, recusada pelas editoras albanesas em 1988, foi parcialmente publicada pelo jornal de oposição Rilindja Demokratike em 1990, após o exílio do escritor. O romance foi refundido em 1992, em Paris, e lançado na Albânia. A versão aqui apresentada incluiu algumas modificações feitas pelo autor no outono de 1992, depois de a obra ter saído na França.

 

 

 

 

QUANDO, numa manhã de outono, o novo faraó Quéops, entronizado poucos meses antes, disse que talvez não mandasse erguer uma pirâmide para si, aqueles que o ouviram — o astrólogo do palácio e alguns dos ministros mais próximos, o velho conselheiro Uzerkaf e o sumo sacerdote Hemiun, que era também o sumo arquiteto do Egito — franziram o cenho como se houvessem escutado uma maldição.

Por algum tempo, examinaram a expressão do soberano, na expectativa de ali detectar indícios de sarcasmo. A seguir, conforme relataram mais tarde uns aos outros, trataram de se encorajar lembrando a palavra talvez, que o faraó pronunciara a meia voz. Porém, a fisionomia de Quéops permaneceu indecifrável, e a esperança deles de que aquela tivesse sido uma frase dita casualmente, dessas que os jovens monarcas se comprazem em deixar escapar ao se levantar pela manhã, esvaneceu-se. Não ocorrera semanas antes o fechamento de dois dos mais antigos templos do Egito? E, imediatamente depois disso, não fora ordenado que se preparasse o decreto proibindo dali por diante os egípcios de ofertar sacrifícios?

Também Quéops examinava o rosto deles. Os olhos do monarca não emitiam nenhum brilho de escárnio, e quanto mais o silêncio se aprofundava, mais pareciam dizer: "Ficaram tão aflitos assim? Dir-se-ia que estamos falando não da minha pirâmide, mas da de vocês. Oh, céus, eles já estão desfigurados pela bajulação! Como há de ser quando eu envelhecer e me tornar mais implacável?".

Sem dizer nada, sem sequer olhar para eles, Quéops se levantou e os deixou.

Ao se verem a sós, os remanescentes voltaram os semblantes atônitos uns para os outros. "O que foi acontecer conosco?", murmuravam. "Que catástrofe será essa agora?" Um dos ministros, sentindo uma vertigem, apoiou-se na parede. O sumo sacerdote tinha lágrimas nos olhos.

Lá fora, redemoinhos de nuvens formados pelo vento se erguiam em volutas sem fim. Perdidos, os cortesãos contemplavam aquelas torres que se dispersavam nas alturas. Não falavam. Apenas os olhos vazios pareciam dizer: "Por qual escada subirá ao céu, ó soberano nosso? Quando chegar o seu dia, como há de alcançar as estrelas e ali cintilar do mesmo modo que todo faraó? Como há de refulgir?".

Conversaram sobre outras coisas por algum tempo, um tanto atordoados; depois se separaram. Dois deles foram solicitar uma audiência com Khentkause, a mãe do monarca. Uns decidiram se embebedar; outros, mais sábios, desceram aos aposentos onde estavam guardados os arquivos antigos, à procura do velho escriba já meio cego, Ipuur.


Durante todo o outono, ninguém voltou a falar da pirâmide, nem mesmo na recepção aos embaixadores, quando Quéops, estimulado pela embriaguez, disse coisas que um faraó não costuma dizer na presença de estrangeiros.

Os cortesãos ainda alimentavam a esperança de que aquilo havia sido uma brincadeira; às vezes chegavam a pensar que talvez fosse melhor nem mencioná-la, quem sabe dessa maneira a ideia não se extinguiria? Mas a hipótese contrária era tão aterrorizante que, dia e noite, a única preocupação deles era como deviam se preparar para enfrentá-la.

Alguns depositavam suas esperanças na rainha-mãe, embora esta tampouco tivesse dado resposta, enquanto a maioria deles prosseguia as investigações nos arquivos. Quanto mais se debruçavam sobre eles, mais o caso lhes parecia difícil. Parte dos arquivos se extraviara, outros papiros estavam danificados, e mesmo entre os bem conservados havia uma parcela apagada ou arrancada, às vezes com uma anotação lateral — "por ordens superiores" — ou até sem nenhuma anotação.

De qualquer maneira, ainda que mutilados, os papiros forneciam toda sorte de informações de que eles precisavam. Ali se podia encontrar quase tudo sobre as pirâmides: as sepulturas primitivas, as mastabas, que foram seus embriões, a história da primeira pirâmide, a da segunda, a da quinta, suas sucessivas modificações, a ampliação de suas bases, a incorporação do cimo, fórmulas secretas de embalsamamento, tentativas de saque, planos para impedi-los, testemunhos sobre o transporte de pedras, dos blocos de granito dos portais, decretos dos grão-mestres a respeito da decoração, restos de cálculos, condenações à morte, na maioria incompreensíveis e às vezes feitas deliberadamente com esse propósito.

Mas tudo aquilo era mais ou menos claro, enquanto o que eles obstinadamente procuravam lhes escapava por entre os papiros, surgia aqui e ali para no mesmo instante desaparecer, como um escorpião a se mover com fulminante rapidez. Buscavam a ideia oculta das pirâmides, a razão da sua existência, mas esta não parava de escorregar entre os papiros. Negaceando, ela se escondia sobretudo nos pedaços arrancados dos papiros e, quando acontecia de aparecer, era em doses insignificantes.

Os pesquisadores sentiam dor de cabeça, pois jamais tinham sido obrigados a tamanho esforço mental. Ainda assim, embora o objeto de sua busca se esquivasse incessantemente deles, aos poucos conseguiram encurralá-lo. Se não ele próprio, ao menos sua sombra.

Discutiram amplamente sua descoberta, e o que mais os assombrou não foi ela, mas concluir que já sabiam de tudo. Sempre haviam tido conhecimento da ideia fundadora, da origem das pirâmides, do motivo de sua existência. Só que este, embora habitasse a consciência deles, estava fora do alcance da linguagem e do próprio pensamento. Os papiros dos arquivos o haviam apenas revestido de palavras e significado — naturalmente na medida em que é possível revestir uma sombra.

"Mas isso está perfeitamente claro", exclamara o sumo sacerdote, na última conversação que haviam mantido antes da audiência com o faraó. "Nós conhecíamos a essência da questão, do contrário não teríamos nos apavorado tanto quando o monarca pronunciou aquelas palavras que não quero recordar."

Dois dias depois, abatidos pela insônia, apresentaram-se perante Quéops. O faraó não estava menos sombrio. A última esperança que haviam alimentado, de o soberano já ter esquecido aquele assunto e, portanto, de eles estarem se preocupando à toa, desabou no instante em que, à questão introduzida pelo sumo sacerdote — "Viemos conversar sobre a ideia de Vossa Majestade a respeito da construção de vossa pirâmide" —, Quéops não manifestou nem espanto nem surpresa, nem sequer um: "Como disse?".

Ele simplesmente fez um sinal com a cabeça que queria dizer: "Estou ouvindo". E eles se puseram a falar, primeiro o sumo sacerdote, a seguir, pela ordem, todos os demais.

Falaram longa e exaustivamente sobre tudo aquilo que haviam aprendido nos papiros, sempre atormentados pelo temor de estarem contando mais ou menos do que seria conveniente. Recordaram a primeira pirâmide, erguida pelo faraó Djoser, medindo somente vinte e cinco pés de altura; depois a ira do faraó Horus Sekhem-Khet, que açoitou seu arquiteto quando este lhe apresentou o projeto de sua pirâmide, a qual o soberano considerou demasiado baixa. Em seguida fizeram comentários a respeito dos aperfeiçoamentos dos projetos posteriores, efetuados pelo arquiteto Imhotpe, das galerias, do aposento do sarcófago e das passagens secretas que cruzavam a construção, das três pirâmides irmãs erigidas pelo faraó Snefru, uma das quais com a altura de trezentos pés, o que podia de fato se considerar uma loucura, das portas falsas e, naturalmente, das trancas ultrassecretas.

A cada detalhe, esperavam que ele os interrompesse dizendo: "Que tenho eu a ver com isso?"; estavam tão seguros da interrupção que, ao ver que ela não vinha, o sumo sacerdote comentou com voz rouca: "Caso Vossa Majestade venha a dizer: "Que tenho eu a ver com isso?', estará coberto de razão... Talvez na verdade não tenha nada a ver com isso, porém o que dissemos até agora foi apenas uma introdução ao que realmente interessa".

Estimulados pelo silêncio de Quéops, eles se estenderam mais do que haviam planejado ao tratar do que realmente interessava. Sem hesitar sequer uma vez, explicaram que, conforme suas investigações, embora a pirâmide fosse um grande sepulcro, em sua concepção original não tinha nada em comum com a morte e o sepultamento, conotação que adquirira por acaso.

Enfim a fisionomia do faraó deu sinais de vida. Ele moveu a cabeça e, para alegria geral, disse: "Espantoso!".

"De fato, muitas das coisas que temos a dizer parecem espantosas", prosseguiu o sumo sacerdote.

Respirou fundo, até doerem seus velhos pulmões. "A ideia da pirâmide, Majestade, nasceu numa época de crise."

O sumo sacerdote sabia perfeitamente o quanto valiam as pausas entremeando as frases: acentuavam o peso e a projeção do pensamento, tal como a pintura e a sombra acentuam o mistério dos olhos de uma mulher.

"Pois então, numa época de crise", continuou ele, pouco depois. "O poder do faraó, conforme o testemunho das crônicas, debilitara-se. Sem dúvida, não se tratava de nada de novo. Os antigos papiros estão repletos de referências a ocorrências semelhantes. A novidade era outra. O que havia de novo, e espantoso, assombroso mesmo, era a causa da crise. Uma causa pérfida, jamais vista em tempo algum: a crise não advinha da escassez, dos caprichos do Nilo ou da peste, como sempre ocorrera, mas, ao contrário, do bem-estar.

"Do bem-estar", repetiu o sumo arquiteto, "ou seja, da abastança."

As sobrancelhas de Quéops se arquearam. "Quarenta graus", disse consigo o arquiteto. "Cinquenta... Protegei-nos, oh, céus!"

"Não foi fácil perceber isso à primeira vista", prosseguiu. "Muitas pessoas brilhantes, próximas ao faraó, que ousaram exprimir a ideia, pagaram com a cabeça ou com o banimento a apavorante descoberta. Mas aos poucos, depois da colérica rejeição inicial, começou-se a aceitar a explicação que forneceram — de que o bem-estar, ao produzir homens mais independentes e livres de espírito, tornava-os em consequência menos submissos às autoridades em geral e especialmente ao poder do faraó. Com o correr dos dias, todos passaram a enxergar claramente que aquela nova crise era a mais perigosa de todas. Apenas uma coisa permanecia obscura: como achar uma saída?

"O mago e astrólogo que o faraó enviou ao deserto para meditar sobre o assunto na mais completa solidão, retornou após quarenta dias, como acontece com a maioria daqueles que vão consultar o deserto e auscultar seus presságios. E o presságio era ainda mais medonho do que se supunha: seria preciso pôr fim ao bem-estar.

"O faraó e com ele toda a sua corte mergulharam em profundas reflexões. Pôr fim ao bem-estar? Mas de que maneira? Inundações, terremotos, cheias periódicas do Nilo, tudo isso lhes passou pela cabeça, mas se tratava de acontecimentos que não dependiam deles. Uma guerra? Era uma faca de dois gumes, sobretudo numa situação daquelas. Mas, então, o que fazer? Não podiam permanecer de braços cruzados diante da ameaça. Tinham obrigação de dar ouvidos à voz do deserto, do contrário a ruína seria inevitável.

"Diz-se que, para surpresa geral, foi o intendente do harém que lançou a ideia de se encontrar alguma empreitada que consumisse parte das riquezas do Egito. Os relatórios dos embaixadores acreditados no Oriente se referiam às majestosas obras de irrigação da Mesopotâmia, cujas dimensões, segundo se dizia, superavam largamente os benefícios econômicos que trariam. Se assim era — e decerto assim era —, havia que se encontrar também no Egito alguma coisa que consumisse o excesso de energia das pessoas. Havia que se empreender algo extraordinário, tão colossal quanto possível, capaz de estreitar e amesquinhar as condições de vida dos egípcios. Em suma, algo definitivo, que exaurisse corpos e mentes, e ao mesmo tempo de todo desnecessário. Ou, mais exatamente, tão desnecessário para os súditos a ponto de ser indispensável ao Estado.

"O faraó ouviu muitos pareceres de seus ministros: que se perfurasse a terra cavando um buraco sem fim, em busca das portas do inferno; que se erguesse uma muralha defensiva em torno do Egito, ou um canal de irrigação. Porém, descartou todas as ideias sublimes, patrióticas ou místicas. A muralha um dia haveria de ficar pronta, um buraco na terra poderia irritar as pessoas, já que não daria na vista. Ele queria outra coisa, algo com que as pessoas se defrontassem dia e noite, a ponto de se esquecerem de si próprias... Ao mesmo tempo, algo que ficasse pronto mas sem jamais acabar, ou, resumindo, algo que se repetisse incessantemente. E que além do mais tivesse alta visibilidade.

"Assim, passo a passo, conforme o testemunho dos papiros, o faraó e seus ministros chegaram à ideia de uma enorme sepultura. Um megamausoléu.

"O faraó ficou fascinado com isso. A construção mais importante do Egito não haveria de ser nenhum templo ou palácio real, mas uma tumba. Pouco a pouco, o Egito se identificaria com ela, e ela com o Egito.

"Os geômetras do reino apresentaram muitos esboços, de diferentes formas, até que por fim chegaram à pirâmide.

"Ela preenchia todos os requisitos. Apoiava-se numa ideia sublime, o faraó e a morte, ou, mais exatamente, sua divinização. Era visível, mesmo de muito longe. E, em terceiro lugar, o fator determinante: ficava pronta sem jamais acabar. Cada faraó teria a sua pirâmide; dessa forma, quando uma geração de egípcios enlouquecesse de estafa e entorpecimento, surgiria um novo faraó, com sua pirâmide, para subjugar a geração seguinte. E assim para sempre, inexorável e majestosamente, pelos séculos dos séculos..."

O sumo sacerdote Hemiun fez uma pausa mais longa que todas as anteriores.

"Assim, portanto, antes de se dedicar à vida de além-túmulo, a pirâmide tinha a ver com esta vida, ó meu faraó", prosseguiu. "Em outras palavras, antes de dizer respeito ao espírito, ela se referia ao corpo."

Ele silenciou novamente e respirou bem fundo, para imprimir um ritmo mais pausado a seu discurso.

"Ela é, antes de mais nada, poder, Majestade. É repressão, cárcere, dinheiro, ao mesmo tempo que promove o embrutecimento da turba, o estreitamento das mentes, o definhamento das vontades, o tédio e a perda. É o melhor corpo de guarda que Vossa Majestade pode possuir, meu faraó. A polícia secreta. O exército, a armada. Quanto mais alta for, mais insignificantes parecerão os súditos a sua sombra. E quanto menores forem os súditos, mais alto será o lugar reservado a Vossa Majestade."

A voz de Hemiun baixara ainda mais, conforme um segredo que só ele dominava, pois justamente ao se enfraquecer, soava ainda mais ameaçadora.

"A pirâmide é o pilar que sustenta o poder. Caso ela se mova, tudo há de desabar."

Ele fez um movimento indecifrável com as mãos e tinha os olhos fixos diante de si, como se enxergasse de fato as ruínas.

"Nem cogite em quebrar a tradição, meu faraó. Vossa Majestade cairia por terra, e, de cambulhada, todos nós..."

Hemiun, não se sabe bem por quê, ergueu aos céus as palmas das mãos. Depois, deu a entender, pela maneira como cerrou os olhos, que não mais falaria.

Os demais disseram mais ou menos a mesma coisa, no mesmo tom tenebroso. Alguém voltou a lembrar os canais da Mesopotâmia, sem os quais a monarquia acádio-suméria havia muito estaria por terra. Outro acrescentou que a pirâmide era, entre diversas outras coisas, a suprema memória daquele país. Tudo se enevoaria com o tempo e a distância. Os papiros e os objetos de uso diário envelheceriam, as guerras, as fomes, as epidemias, as enchentes do Nilo, as alianças, os decretos, os escândalos palacianos seriam esquecidos. Apenas ela, a pirâmide altaneira, inocultável por coisa alguma, impecável, indestrutível por força alguma ao longo dos tempos, erguer-se-ia sobre o deserto, sempre a mesma, até o fim do mundo. "Assim tem sido, Majestade, e assim deve continuar a ser. Nem sequer o seu perfil foi algo fortuito. É uma forma divina, que os próprios céus indicaram aos geômetras de eras remotas. E ali está Vossa Majestade, no topo, no cimo, no cume, e nas pedras anônimas que o sustentam, uma a uma, ombro a ombro.

Toda vez que chegavam a esse ponto os oradores mencionavam o possível desmoronamento de tudo, e Quéops recordou aquela manhã de novembro, quando pensara que a preocupação deles com a pirâmide não passava de um gesto de bajulação. Agora compreendia que errara e que o desespero de seus cortesãos era mais do que legítimo. Agora estava convencido de que a pirâmide seria tanto da corte como dele próprio, se é que não mais.

Ele ergueu a mão direita para dar a entender que já não queria ouvir.

Com o coração nas mãos, como jamais tinham se sentido, os outros ouviram a decisão que ele expressou com palavras secas e frias: far-se-ia a pirâmide. A mais alta de todas. A mais grandiosa.


2. O início dos trabalhos

Desde o começo a pirâmide se distingue de todas as outras construções

 


A NOTÍCIA de que a pirâmide seria erigida se espalhou com uma rapidez extraordinária, a qual recebeu duas explicações: resultaria do regozijo do povo, que esperava impaciente o anúncio, ou, ao contrário, do desespero nascido de uma desgraça sombria, do tipo que se tinha a ilusão de poder evitar mas que finalmente se efetivara.

A nova chegou aos mais diferentes pontos do reino antes que os arautos ali comparecessem, difundida por todos, tal como as areias levantadas uma noite antes por um vento repleto de inquietações.

"O faraó Quéops, nosso sol, decidiu incumbir o povo do Egito de uma grande e santa obra, maior que todos os empreendimentos e mais santa que todos os deveres: a construção de sua pirâmide."

Os tambores e as trompas assim anunciavam, de aldeia em aldeia, pelas trinta e oito províncias do reino. Nem bem cessavam as vozes dos arautos, os funcionários locais se reuniam reservadamente para decidir a melhor maneira de iniciar os trabalhos, enquanto esperavam instruções de seus superiores. Ostentavam na fisionomia um colorido de júbilo e, ao deixarem a praça principal rumo a suas moradias, repetiam: "Finalmente chegou o grande dia". Desde já, uma nova vivacidade contagiava seus passos, bem como os movimentos das mãos e do pescoço. Uma espécie de véu secreto envolvia o corpo deles, e os punhos se cerravam sozinhos. A pirâmide penetrava tão depressa em suas vidas que mal suportavam o arrastar daqueles poucos dias, e suspiravam: "Oh, Deus, como pudemos viver sem ela?".

Entretanto, sem esperar as diretivas vindas da capital, eles faziam o que haviam feito seus antecessores, em anos passados, com as pirâmides anteriores: reprimiam os descontentes. Enchiam-se de fúria ao pensar nos milhares que, em vez de se alegrar com a notícia, ficavam tristes e gemiam: "Meu Deus, começou de novo!". Perdiam o sono de pura impaciência e a custo se continham para não gritar: "Então, pensaram que tinham escapado? Acharam que tudo seria diferente, não haveria pirâmide e vocês fariam o que bem entendessem? Hein!? Pois, agora, baixem a cabeça! Uivem!".

A tensão foi sentida ainda com mais força na capital. Não só o rosto e o modo de caminhar dos funcionários, mas até os próprios edifícios pareciam se inflar. Os coches iam e vinham apressadamente da Casa Branca, como era chamado o prédio das Finanças, ao palácio do faraó, e dele até a polícia secreta, ou em direções desconhecidas rumo ao deserto.

No grupo de notáveis encabeçado por Hemiun, os arquitetos enfrentavam jornadas de trabalho dilatadas. O projeto se apresentava cada vez mais complexo, e todos acreditavam que, no dia em que o concluíssem por completo, a pressão haveria de explodir o cérebro deles. Os vínculos entre os diversos elementos, acima de tudo, sobrecarregavam-nos. Um detalhe corrigido na altura ou na base condicionava outras modificações, e assim infindavelmente. Componentes que pareciam independentes entre si, das galerias labirínticas, dos sulcos de arejamento, dos portões deslizantes que não levavam a lugar nenhum, dos portões secretos que também não levavam a lugar nenhum, das portas falsas, da compactação das pedras por sobre a câmara mortuária, da obliquidade, dos poços, dos eixos, do número de pedras, do aterrorizante centro da obra, e assim por diante, não podiam ser concebidos desconectados uns dos outros. A célebre fórmula de Imhotpe, o pai das pirâmides, de que "a pirâmide é una", citada por Hemiun desde a primeira reunião, cravava-se na mente de todos como um prego.

Toda vez que era mencionada, parecia mais verdadeira, o que, em vez de causar alívio, afligia ainda mais. Era uma verdade do tipo que, ao se desnudar mais completamente a cada dia, desprende uma claridade ofuscante que lembra a de uma catástrofe iminente.

A pirâmide, portanto, não podia deixar de ser tal como era: total. Afetada no vértice, cindia-se ou se inclinava toda. Fosse isso uma tragédia ou uma felicidade, era-o por inteiro.

Agora eles se davam conta de que a obra ultrapassava seus cálculos iniciais. Os que mal haviam disfarçado um sorriso ao ouvir falar da dimensão "divina" da pirâmide, nesse momento estavam certos de que ela continha um outro enigma em suas entranhas. Pelejavam para descobrir se era aquele o "segredo do centro", perdiam o sono à noite, entristeciam-se, até se envaideciam secretamente de levar uma vida tão atribulada. Foi quando ocorreu algo assombroso. A pirâmide existia apenas em seus papiros, nem uma só pedra fora posta no lugar, nem sequer as pedreiras estavam designadas, e eis que as oficinas de Tebas que fabricavam açoites, sem esperar por uma encomenda estatal, por sua própria iniciativa dobraram a produção.

Quando as carroças a custo se aproximavam de Mênfis, sob o peso dos cestos de açoites, esperava-se que os proprietários das oficinas fossem punidos por difundir o pânico, mas, em vez da condenação, falou-se que receberam uma carta enaltecendo-os como homens que interpretavam corretamente os imperativos de seu tempo.

Os arquitetos da equipe central ficaram ainda mais aturdidos. A ideia de que a pirâmide fosse compreensível a partir de fora, sem qualquer conhecimento aprofundado do projeto, transtornava-os por completo.

Nesse meio tempo, os embaixadores de outros países, embora aparentando menosprezo, a sua maneira haviam igualmente veiculado a notícia. A cada três meses eles modificavam seus códigos secretos; assim, os espiões egípcios, disfarçados de guardas aduaneiros, ficavam em apuros, sem entender se os vasos cheios de cebolas secas, as aves embalsamadas ou as roupas de baixo bordadas com pequenas forquilhas e triângulos que o cônsul fenício enviava alegando serem para sua amante em Biblos, eram de fato cebolas, aves embalsamadas e roupas íntimas, ou não passavam de trechos de mensagens secretas.

Entre todos os embaixadores, apenas o de Canaã insistia em enviar seus relatórios à moda antiga, utilizando-se de sinais entalhados na pedra. Outros, em especial os de Creta, da Líbia e mais recentemente o de Troia, recorriam a estratagemas cada vez mais diabólicos. Os diplomatas gregos e ilírios, recém-chegados da terra dos pelasgos, ainda eram por demais atrasados para saber o que seria uma mensagem, quanto mais uma mensagem secreta; ficavam atônitos diante daquilo tudo, padeciam enxaquecas memoráveis e suspiravam: "Pobres de nós, ignorantes!".

O mais detestado pela polícia secreta era, como de hábito, o embaixador sumério, Suppiliun. Vivendo no país não fazia muito tempo, ele inventara um maldito procedimento a que chamava "escrita". Gravava em placas de argila tracinhos e pontos quase idênticos, semelhantes aos rastos de uma galinha, e parecia que esses traços e pontos tinham a propriedade de embalsamar um pensamento, como a um cadáver humano. Não bastando isso, levava as placas ao forno e depois enviava tais "escritos". "Imaginem o que andam fazendo na capital deles", contava em tom de pilhéria o embaixador egípcio, que estava de licença. Todos os dias, carroças lotadas de placas de argila indo e vindo, de repartição em repartição. Uma única carta requeria duas ou três carroças. Escritos amaldiçoados. Ocorria às vezes de uma das placas se quebrar. Nos aposentos do ministro havia gente que só se dedicava a colar cartas. Metade do dia era isto: carga, descarga, poeira, confusão. Céus, que país maluco!

Correram esses rumores no Ministério das Relações Exteriores até que o faraó em pessoa recriminou os responsáveis. Em vez de falar mal dos vizinhos, melhor seria que decifrassem logo o sentido daqueles sinais.

Desde então a polícia pusera um agente diante da embaixada suméria. Assim que surgiam indícios de fumaça no prédio, o espião notificava: "Relatório". A polícia secreta estava convencida de que o relatório teria algum vínculo com a pirâmide, e cobria de maldições os sinais diabólicos que não tinham nada em comum com os abençoados hieróglifos egípcios. "Viva o embaixador de Canaã", diziam: era um autêntico cabeça-dura, como todos os habitantes das areias, mas, pelos deuses, seria incapaz de uma perfídia daquelas. Martelava a pedra semanas a fio, pam, bam, tal qual uma besta de carga, e as marteladas chegavam até o Ministério das Relações Exteriores, mas não se envolvia com cebolas, roupas de baixo femininas ou argila assada no forno.

Àquela altura já era patente que a notícia sobre a pirâmide se espalhara mais depressa do que seria de se esperar, e não só nos dois Egitos, mas em todos os reinos ao redor. Dir-se-ia que era um acontecimento de proporções mundiais, e os primeiros informes dos cônsules egípcios davam conta de que a novidade causara furor em toda parte. O próprio Quéops leu e releu vários relatórios. O que a princípio parecia um tanto estranho — a aprovação da pirâmide até pelos inimigos do Egito — agora mostrava certa lógica. Eles de fato não gostavam do Egito, desejavam debilitá-lo como Estado, porém um Egito sem pirâmide (Egito apiramidal, diziam) lhes parecia ainda mais perigoso. Temiam que a derrocada e a subsequente rebelião chegassem até eles, do mesmo modo que setenta anos antes, quando mal haviam tido tempo de se alegrar com o enfraquecimento do faraó, pois o vendaval no país vizinho quase derrubara a eles próprios.

A opinião do mago era que, ao contrário do que diziam os cabeças-ocas do Ministério das Relações Exteriores, não havia nenhum motivo para fazer gracinhas com os canais da Mesopotâmia. Embora feitos de água e nada majestosos, insistia, eles eram da mesma estirpe dos monumentos egípcios. Abri-los dava tanto trabalho quanto erguer uma pirâmide, provocando uma canseira comparável, se não pior.

Outros relatórios informavam que no Egito inteiro só se falava da pirâmide: todas as pessoas e todos os acontecimentos se subordinavam a ela. Havia mulheres que davam um muxoxo para tudo o que escutavam, julgando que o problema era dos outros, mas um belo dia ficavam sabendo que seu marido, ou namorado, ou todas as crianças em idade escolar deviam partir para as pedreiras de Abussir, e então caíam no choro, ou na risada.

Cada vez se evidenciava mais o duplo sentido do velho ditado segundo o qual somente a construção das estradas necessárias à edificação de uma pirâmide exigia não menos de dez anos. Na realidade, a construção das estradas compreendia, além de sua abertura e nivelamento, a preparação do povo para a grande obra, a superação das dúvidas e especialmente o rompimento com o ritmo de vida anterior. Não requeria menos esforços alimentar o entusiasmo geral, combater o desânimo, os comentários venenosos, e mesmo reprimir as sabotagens.

Àquela altura já estava claro para todos que, embora não se visse nem poeira de construção, a pirâmide estava em andamento, e com ímpeto. Impalpável como um pressentimento, ela projetava prematuramente, da mesma forma que todos os grandes acontecimentos, uma sombra tão pesada quanto as pedras. Assim, a maioria das pessoas mal podia esperar que as obras começassem, para se livrar da angústia.

Os arquitetos da equipe central sabiam que milhares de pessoas, mesmo sem jamais terem feito uma planta, naquele momento pensavam na pirâmide com a mesma obsessão que os consumia. Depois de um jantar com amigos, já não podiam se orgulhar de ser, como antes, o centro das atenções. "Lá vem você com essa história de pressão das pedras", dissera a um deles um jovem pintor, durante uma festa de aniversário. "Você não sabe a pressão que sinto aqui na boca do estômago... Mil vezes mais insuportável que a sua... Mas é tudo a mesma coisa", interviera um terceiro. "Não percebem que no fundo é o mesmo peso?"

Inspetores foram enviados aos quatro cantos do Egito, como se para estender os fios invisíveis da pirâmide. Antes de se traçar no mapa as estradas por onde viriam as pedras, era necessário designar as pedreiras. Desde antes do amanhecer, rápidas carruagens partiam de Mênfis. Umas iam para o Oriente, rumo às velhas pedreiras de Saqqarah e Abussir, outras para o deserto do Sinai, onde havia depósitos de basalto e malaquita. Porém, a maioria dos inspetores se dirigia ao sul, onde se localizavam as pedreiras mais renomadas. Detinham-se em Illah e El Bersheh, seguiam pela Estrada Real até Hatnub e Harnak, dobravam à esquerda na direção de Tebas e Karnak, retornavam até Luxor, depois desciam mais e passavam como um pé de vento através de Assuan, brancos de poeira, parecendo enlouquecidos. Dir-se-ia que procuravam o fim do mundo, pois chegavam até Jebel Barkal e mesmo mais longe, rumo aos amplos espaços desertos da quinta catarata, ali onde se suspeitava ficarem as portas do inferno.

A ordem de Quéops era taxativa: não se fariam economias, o granito ou o basalto seriam trazidos nem que fosse do fim do mundo.

O mapa das pedreiras se cobria a cada dia dos mais variados sinais. Tudo era marcado ali: as velhas pedreiras, louvadas em verso por poetas que as comparavam à própria mãe, mas havia muito improdutivas; as pedreiras abandonadas contudo passíveis de reabertura, e as ainda virgens, que costumavam despertar a fantasia dos inspetores. Nas conversas que entretinham, e às vezes até nas anotações e nos mapas, eles descreviam as pedreiras com expressões tomadas do mundo feminino. Quanto mais se dilatavam os dias de serviço, mais crescia, juntamente com a saudade das mulheres, a libido dos inspetores. Acontecia mesmo de ela transbordar para os relatórios: pedreiras férteis, gorduchas e sensuais, ou, ao contrário, secas e estéreis. Caso os relatórios não fossem previamente examinados pelo eunuco Tutu, Quéops haveria de pensar que elas provinham não de viagens de inspeção, mas de algum bordel de Luxor.

O faraó controlava tudo. Uma vez por semana, ia à sala do palácio onde trabalhavam os arquitetos mais eminentes. As paredes estavam cobertas por dezenas de papiros repletos de sinais, setas e cálculos, que Hemiun explicava em tom pausado. O monarca não dizia nada, e todos tinham a impressão de que precisava se conter para não ir embora.

Apenas uma vez prolongou sua inspeção: no dia em que lhe mostraram a maquete. Seus olhos se encheram de uma luz fria. Aquele corpo uniforme, calcário, alvejava diante dele, enquanto a pirâmide real ainda se achava dispersa por todo o Egito. Ela era até então um espírito, um sopro, uma nuvem negra, que se inflava tal qual o arquejo de um gênio malvado. Chegaria a se reunir e se condensar, ou escaparia de suas mãos como uma nuvem de vapor?

A cabeça de Quéops doía. Ele estava agitado. Algo fugia de sua mente, depois retornava e escapava de novo. Não era capaz de identificar aquele anão calcário com a pirâmide, que, àquela altura, ainda era uma névoa intelectual, e muito menos com a terceira, a real, que se viria a construir um dia. Às vezes tinha a sensação de ver a primeira em meio às outras duas, saltitando como um garoto.

Hemiun continuava a falar. Explicava por que tinham previsto uma inclinação de cinquenta e dois graus em vez de quarenta e cinco. Citava o pioneiro dos construtores de pirâmides, o legendário Imhotpe, dizia algo sobre se nortear pelas estrelas, mas Quéops não prestava atenção nele. Mostrou uma ponta de interesse quando Hemiun aproximou da maquete uma miniatura de rampa, para esclarecer como as pedras seriam levantadas. "Era exatamente o que eu ia perguntar; uma altura dessas... "Não se preocupe, em absoluto, Majestade", respondeu o arquiteto. "Serão construídas quatro rampas de madeira como esta que Vossa Majestade está vendo, uma para cada face. As pedras, os portais de granito, tudo o mais será içado por elas, com o auxílio de cordas."

Ele encostou a rampa na maquete. "Ela se apoiará na pirâmide, assim. Nos primeiros pavimentos, a inclinação da prancha de madeira será insignificante. Mas depois, à medida que se erguer a obra, a prancha irá ficando cada vez mais íngreme, o que dificultará a elevação das pedras. Para evitar que isso ocorra, a inclinação será mantida abaixo de quarenta e cinco graus, o que levará a rampa a se alongar conforme aumentar a altura da pirâmide. Assim..."

O arquiteto deixou de lado a primeira rampa e apanhou uma segunda, muito mais comprida. "Veja, Majestade, esta alcança quase o meio da pirâmide, e, no entanto, a inclinação permanece praticamente a mesma." Quéops fez um gesto com a cabeça, indicando que tinha entendido. "Procederemos dessa maneira até o vértice", acrescentou o arquiteto, aproximando da maquete uma terceira rampa, enorme. "Agora a pirâmide parece um cometa", disse Quéops e, pela primeira vez, sorriu.

Hemiun suspirou, aliviado. "E essa outra rampa?", indagou Quéops, apontando com seu bastão.

O arquiteto se ergueu um pouco. "É a galeria que conduz à câmara mortuária, Majestade", disse, sem olhar para Quéops.

O faraó passou o bastão por sobre a rampa. "E ela, a câmara mortuária, onde fica?" "Ela não está na maquete, Majestade. A maquete não a indica porque ela se situa fora da pirâmide... Fica profundamente escavada na terra, Majestade, a uma centena de pés, talvez mais... Num ponto fora do alcance da pressão exercida pelo peso da pirâmide..."

O olhar de Quéops se deteve por um momento naquele vazio onde se planejava instalar o seu sarcófago. Vira em sonho, dias antes, sua própria múmia prostrada, pendendo de um gancho como o cadáver de um enforcado.

"Assim foi feito com Gioser, o Grande, e com o inesquecível Snefru, pai de Vossa Majestade", disse Hemiun em voz baixa.

Quéops não respondeu. Dir-se-ia que desaprovava a câmara mortuária, mas não falou nada. O bastão vibrava na mão dele.

"Isso é problema de vocês", sentenciou por fim, e lhes voltou as costas. Suas últimas palavras — "Comecem o trabalho" —, como ele já ultrapassara o umbral da porta e não virara a cabeça, chegaram até os arquitetos envoltas em seu eco: "Comecem-cem o-o trabalho-lho".

Eles ficaram um bom tempo sem falar, tal qual devotos de uma seita mágica. Finalmente a aprovação viera. A maquete, semente da futura pirâmide, que até ontem eles desprezavam e tratavam com brutalidade, agora parecia um tabu. Sua fria luminosidade calcária dava a impressão de zombar não só deles, mas de toda a Terra.


A abertura das estradas teve início, como sempre, a partir de diferentes lugares ao mesmo tempo. As velhas estradas das pirâmides anteriores tinham desaparecido havia muito. A custo se percebiam aqui e ali seus rastos, semelhantes às cicatrizes de feridas fechadas em outras eras. Porém, como se estivessem enfeitiçadas, dificilmente seriam postas a serviço da nova pirâmide. Cada pirâmide tivera suas respectivas estradas. Em parte, isso dependia da localização das pedreiras das épocas passadas, distinta das novas pedreiras, do granito que seria empregado, se o de Assuan ou o de Hatnub, da escolha do alabastro e do basalto para as obras de revestimento interno, ou para o coroamento da pirâmide, o piramidion, e do sítio onde se achava a matéria-prima do sarcófago, que podia ser de pedra, granito vermelho ou basalto. Outros componentes, que viriam já prontos — colunas, portais de granito ou placas com textos entalhados —, podiam ser trazidos por essas mesmas estradas ou então exigir seus próprios caminhos. Tudo dependia do lugar onde seriam confeccionados.

No entanto, embora essas fossem as partes mais finas e elaboradas da pirâmide, o principal continuava a ser, como sempre, as pedras. Sua extração e, sobretudo, seu deslocamento tiravam o sono de dezenas de funcionários. Obrigados a lidar com incontáveis cálculos e registros de quantidades, periodicamente se sentiam mergulhar num perigoso embrutecimento. Imaginavam o rastejar sonambúlico das carretas, enfureciam-se por antecipação com os carregadores, passavam-lhes descomposturas: "Preguiçosos, cadáveres ambulantes, miseráveis fedendo a bode!". Depois de se aliviar um pouco, seguros de que seus impropérios faziam parte do projeto, voltavam a curvar a cabeça sobre os esquemas e cálculos.

O problema não era simplesmente calcular o número exato das pedras que seriam necessárias, ou o tempo médio requerido para cada uma delas ser cortada e despachada pela respectiva pedreira. Depois do despacho, havia o trajeto, e era aí que tudo se complicava. Ainda que estivessem decididos a utilizar o Nilo para o transporte das pedras e do resto do material, precisavam levar em conta o nível das águas e as eventuais cheias. Já ocorrera antes de, para maior segurança, nem envolverem o Nilo no assunto, pois os cálculos demonstravam que o rio duplicava o tempo de transporte, quando não o triplicava; assim (aqui as vozes se reduziam a sussurros), o faraó poderia morrer e sua sepultura ainda estar inacabada.

Como em tudo o mais, o Nilo se mostrava indispensável. Mas era muito difícil prever até qual corredeira podiam chegar as balsas com as pedras, fosse na estação das chuvas ou mais ainda na do estio. Era preciso calcular todas as possibilidades: desbarrancamentos das margens, novos e perigosos redemoinhos, e toda sorte de imprevistos, que nunca faltavam, sobretudo em se tratando de longas viagens, que chegavam até Elefantina e mesmo mais longe, a Dogole e Jebel Barkal.

Mergulhados na tarefa, os funcionários e mestres que cuidavam do transporte consideravam, com razão, que o peso da pirâmide recaía principalmente sobre eles, e caso alguém observasse que outros grupos também passavam noites e dias se esfalfando em prol da pirâmide — os arquitetos, por exemplo, que ainda tinham questões essenciais por solucionar, como a escolha das pedras e a orientação conforme as estrelas, ou a equipe de responsáveis pelos trabalhos internos e a dos entalhadores —, os primeiros haveriam de dar uma risada sarcástica: "Ora, grande coisa!... bordados de senhoritas. A pirâmide está aqui, onde a poeira e o calor nos devoram, e a morte nos persegue a cada passo". Acontece que o mesmo riso de mofa viria dos arquitetos, e mais ainda da equipe dos responsáveis pelos misteriosos trabalhos internos, que, afundada em meio a esquemas de galerias, passagens e portas secretas, mal se lembrava que os carregadores haviam coberto meio Egito de poeira.

Talvez fosse o completo isolamento entre os grupos que levava cada um deles a se julgar o principal. Tomemos os arquitetos, que determinavam a orientação correta: para eles, "trabalhar dia e noite" não tinha um sentido apenas simbólico, pois uma parte do seu trabalho transcorria com efeito em horas tardias, quando se dirigiam ao lugar onde ficaria a pirâmide, olhando, não sem uma ponta de desprezo, para os niveladores. Embora estivesse definitivamente estabelecido que, para afastar qualquer possibilidade de erro, a orientação exata deveria se pautar por uma estrela fixa, por exemplo, uma das que compõem a Ursa Maior, e jamais pela Estrela Polar, eles voltavam quase toda noite ao futuro canteiro de obras, justamente na hora em que os niveladores recolhiam seus utensílios. "Ah!", pensavam estes últimos, "mexer com as estrelas é de fato um trabalhinho tranquilo. uma estrela não mente para você nem o delata. Já esta aqui", e batiam na terra, "venham se entender com ela quando chegar a hora do controle final. Dois dedos acima ou abaixo do devido, e lá se vai nossa cabeça!"

No que se refere ao risco de ficar sem a cabeça, havia outro grupo que tinha razões para chorar mais alto: aquele que projetava os compartimentos internos, as entradas e saídas secretas, que estudava qual a melhor maneira de alcatroar as galerias e a câmara mortuária, de instalar os portões corrediços de granito e as falsas portas para desnortear profanadores. Desde a época das primeiras pirâmides, sabia-se que nenhum dos participantes desse grupo escaparia vivo. Arrumava-se toda sorte de motivos para sua condenação e seu desaparecimento, mas a verdadeira causa era conhecida de todos: o segredo precisava ser enterrado junto com eles.

Também trabalhavam em sigilo os homens do mago Horemheb, em colaboração com os astrólogos. Lidavam com algo de que ninguém tinha conhecimento, algo que ninguém nem sequer imaginava, e nem mesmo eles próprios saberiam dizer do que se tratava caso o indagassem de supetão. Comentava-se que seu trabalho estava relacionado a cifras misteriosas que, combinadas com a orientação da pirâmide, com certos sinais celestes e números do calendário, permitiam a dedução de segredos impronunciáveis, os quais a pirâmide guardaria em seu seio pelos séculos dos séculos.

O único grupo que parecia trabalhar um tanto à margem dos perigos era o que cuidava da pequena pirâmide, a satélite, dedicada ao ka do faraó, ou seja, a sua encarnação. Sem encerrar nenhum sarcófago, câmara de alimentos ou pedrarias, essa pirâmide não possuía entrada nem saída secreta, e portanto os encarregados dela, isentos da guarda do sigilo, trabalhavam com um sorriso nos lábios. Mas isso foi apenas no princípio. Muito depressa eles compreenderam que a inveja de que começavam a se cercar era tão ruim quanto os perigos originários do segredo, se não pior; desse modo, aos poucos ficaram abatidos como os outros.

É preciso levar em conta que a parte pior cabia à equipe central, dirigida por Hemiun. Os mensageiros entravam e saíam dia e noite pelas grandes portas palacianas laqueadas de vermelho. Os que chegavam vinham cobertos de poeira, os que partiam deixavam o palácio sombrios. Todos os dias acontecia alguma coisa, e desde então a metade dos acontecimentos tinha a ver com a pirâmide. O seu formato influenciava as vestes da juventude, havia velhos que ostentavam barbas à moda piramidal, e quem sabe até onde não teriam ido as coisas se as meretrizes de Luxor não tivessem exagerado, tatuando no corpo triângulos que mais pareciam púbis estilizados.

Detiveram-nas certa noite e as conduziram à polícia, enquanto elas gritavam: "Viva a pirâmide!", "Vivam as putas", e seus gigolôs, junto com outros desocupados da cidade, aproveitando a confusão, saqueavam o comércio do centro.

Era o que se comentava nos botequins, ao passo que os assuntos mais tristes se discutiam dentro de casa, após o jantar. Entre eles, o das pessoas que eram enviadas a regiões remotas. Corria o boato de que, ao lado dos funcionários incumbidos das pedreiras ou da extração de basalto, elementos indesejáveis da capital também sofriam esse tipo de internamento. "Isso em bom egípcio é deportação", murmurava-se, mas quem ousaria chamar as coisas pelo nome?

A conversa recaía então nas pedreiras do Sul, no último pronunciamento do vizir do Tesouro, que havia empregado quatro vezes as palavras sacrifício e contenção econômica, para retornarem seguida aos prazos de construção. "No mínimo, quinze anos... Meu Deus do céu, isso é quase uma vida inteira... E pensar que ainda nem começou..."

A pirâmide de fato não dava sinal de si. Parecia que, quanto mais se falava dela, mais distante ela ficava. Chegou o momento em que as pessoas passaram a duvidar se realmente se ergueria uma pirâmide ou se tudo aquilo não passava de falatório oco e poeira.

Às vezes, tinha-se a impressão de que a pirâmide fora semeada na terra e que algum dia iria germinar. Provocava tantos tormentos que a própria terra parecia sofrer, num lamento constante — e quem sabe não seria abalada por um terremoto, caso não a parisse a tempo.


3. A conspiração

 


NA PLANÍCIE de Gizé, perto da capital, as nuvens de poeira se adensavam mais e mais. As pessoas espiavam, boquiabertas, como quem espera por uma assombração. Porém, ao crepúsculo, quando cessaram os trabalhos e a areia e o pó baixaram, o solo, que vinha sendo compactado ("solo sagrado, piramidal", diziam os poetas), tinha a mesma aparência da véspera: um vasto descampado e nada mais.

Nesse meio tempo, nos templos, nas reuniões, por toda parte, falava-se que os trabalhos caminhavam às mil maravilhas. Numa audiência com os embaixadores, o próprio Hemiun dissera que as obras estavam para começar, antes mesmo da estação das cheias. Ficava evidente que os únicos que não perdiam as estribeiras na gigantesca confusão eram os membros da equipe do sumo arquiteto. como quem distingue uma sombra não observada pelos demais, eles tinham condições de captar desde logo o fio condutor de toda aquela barafunda.

Todavia, enquanto os habitantes da capital aguardavam o primeiro sinal da pirâmide, em meio à névoa se apresentou subitamente um outro elemento.

Na noite anterior se comentara alguma coisa, muito vagamente. Mas, ao amanhecer, ouvia-se um barulho inusual de coches oficiais pelas ruas de Mênfis. Os templos permaneceram fechados por toda a manhã. E já ao cair da tarde a terrível palavra estava na boca de todos: conspiração.

A população se viu completamente aturdida. A notícia de que o exército acádio-sumério se encontrava às portas de Mênfis, ou de que o Nilo por algum motivo estava indo embora do Egito, dificilmente provocaria maior terror.

As ruas se esvaziaram antes do anoitecer. As pessoas apertavam o passo pelas vielas, fingindo não se reconhecerem ou não se reconhecendo de fato. Colunas e mais colunas de fumaça se acumulavam por sobre a chaminé da embaixada suméria. O espião de guarda gritou: "Relatório!", e partiu como louco rumo ao prédio da polícia.

A notícia da conspiração se espalhava.

Tudo começara por acaso, como a maioria das grandes desgraças, a partir de um fenômeno aparentemente comum: um bloco de basalto, esquecido no deserto de Saqqarah. Ocorre que viera uma noite de lua cheia, e o basalto deixara escapar reflexos assustadores numa direção maléfica. Conforme se soube mais tarde, tudo fora calculado, ele captava e refletia uma luminosidade de mau agouro, e quando fosse introduzido no interior da pirâmide, traria consigo a desgraça.

Desde o início as suspeitas recaíram sobre o mago Horemheb, mas enquanto este aguardava a prisão, quem acabou encarcerado foi o vizir dos Celeiros, Sahath. Porém, isso era só o começo. Um após outro, foram para o cárcere os conselheiros Hoetp e Dudumesj, e logo em seguida aquele que menos vínculos aparentava ter com o assunto, o intendente do harém, Reneferef. No entanto, apenas quando prenderam os ministros Antef e Mineptah se compreendeu que não se tratava simplesmente de um grupo de sabotadores, e sim de uma autêntica conspiração contra o Estado, como fazia tempo não se via.

O país inteiro estremeceu de pavor. Insatisfeito com a devassa, Quéops exigiu que se apurasse cada uma das ramificações do complô. Investigadores e espiões foram enviados a todo o Egito, e mesmo além-fronteiras, sobretudo ao reino inimigo dos sumérios, com os quais se supunha que os traidores tinham ligações.

Por um longo período, parecia que se deixara tudo o mais de lado e só se pensava na conspiração. Havia inclusive vozes que iam mais longe, insistindo que todo o barulho em torno da pirâmide não teria passado de um embuste, um blefe, como estava na moda dizer. Na realidade, Quéops ainda era jovem e tão cedo não pretendia erguer pirâmide alguma; desde o início, seu objetivo teria sido outro, mais precisamente a descoberta do complô.

"Você perdeu a cabeça, homem? Ficou maluco ou está fingindo? Todas essas pedras, essas estradas novas, todo esse sofrimento e esse dinheiro, você acha que tudo isso não passa de um blefe?"

"Puro blefe, ou até pior que isso, por todos os deuses. É você, e não eu, quem está variando. Reflita um pouco: fizeram aquele barulho todo por causa da construção da pirâmide, mas ninguém viu pirâmide nenhuma. Você acha que uma coisa dessas acontece por acaso? Pois eu lhe digo, seu cabeça-oca: não começaram a construir a pirâmide porque ninguém pretendia construí-la de fato. Eles bradavam pirâmide, mas diziam consigo complô!"

Eram esses os comentários antes que Quéops voltasse a fazer um pronunciamento: o Egito inteiro seria virado pelo avesso até que se arrancassem as raízes da conspiração!

Os cárceres dos órgãos inquiridores e as câmaras de tortura transbordavam de gente. Já se anunciavam as primeiras condenações à morte, por afogamento ou por esmagamento em praça pública utilizando-se pedras. "Queriam sabotar a pirâmide, hein!?", berravam os fanáticos, que não se contentavam com o primeiro monte de pedras a massacrar a alma do condenado. Às vezes o monte se alteava a ponto de formar uma verdadeira pirâmide em miniatura, o que servia de pretexto para macabros jogos de palavras, sobretudo quando os últimos estertores do moribundo movimentavam algumas pedras.

Porém, a maioria das pessoas vivia em intensa aflição. Milhares aguardavam uma ordem de prisão, enquanto outras tratavam de conseguir o seu envio para as pedreiras ou para as obras das estradas. Antes, recorriam a todo tipo de artimanha para evitá-lo: doenças, razões de família, tudo valia. Agora, partiam caladas, na esperança de que ali, em meio ao calor do deserto, ninguém lembraria delas. E com efeito, pouco tempo depois, a poeira, o suor e o medo transfiguravam a tal ponto suas fisionomias que mesmo os investigadores dificilmente as reconheceriam.

Ninguém sabe quanto tempo duraria essa aflição, não fosse a intervenção do próprio Quéops: "Então, vamos construir essa pirâmide ou não vamos?". Comentava-se que fora dessa maneira que ele se dirigira a Hemiun numa manhã fria. Mencionava-se também a resposta do arquiteto, que soava como se a tivessem inventado posteriormente: "Mas isso faz parte da pirâmide, Majestade, talvez seja mesmo sua essência".

Na realidade, ao longo do segundo mês das cheias (as águas do Nilo encobriam cegamente os campos), a equipe de arquitetos voltou a se reunir como antes, soba direção de Hemiun.

A maquete da pirâmide permanecia no lugar onde a haviam deixado depois da última reunião. Ostentava o mesmo tipo de empoeiramento que o abandono provoca. A despeito disso, ainda desprendia uma luminosidade perversa.

O bastão de Hemiun se movimentava em torno dela, mas sem a segurança de outros tempos. Os demais também mal se manifestavam. Algo os travava, a cabeça deles girava como se tivessem vindo de uma orgia. Voltaram a falar da inclinação das faces, de como lacrar as galerias e a câmara mortuária, das pedreiras que forneceriam os blocos para os quatro escalões iniciais, mas, enquanto isso, o que ocupava suas mentes eram as últimas listas de conspiradores, os planos de infiltração no palácio para envenenar Quéops, os seus próprios gemidos e súplicas.

Sacudiam a cabeça para se livrar daquilo, chegavam mesmo a consegui-lo, mas só por pouco tempo. O centro da pirâmide, as principais estradas fornecedoras de pedras, as portas falsas e suas dobradiças imediatamente se embaralhavam com os fios da conspiração, seus líderes e as suspeitas de Quéops sobre os procedimentos para encobri-la.

Havia ocasiões em que duvidavam da possibilidade de sair daquele nevoeiro e construir efetivamente o que planejavam. Mais que uma pirâmide, era uma conspiração em forma piramidal.

Em virtude de sua ingenuidade, apenas depois da terceira reunião é que Hemiun se deu conta de que o chefe dos investigadores, acompanhado por alguns auxiliares, estava assistindo a seus encontros.

Pareceu então ao sumo arquiteto que afinal havia encontrado a causa da confusão. Pálido de ira, ele os interpelou: "Mas o que fazem vocês aqui?". O chefe dos investigadores deu de ombros, como querendo dizer que não tinha entendido a pergunta. "Fora!", bradou o sumo arquiteto, e o chefe bateu em retirada, junto com seus ajudantes, em meio a um silêncio de mau agouro.

Imediatamente depois disso, caiu o ímpeto das condenações e devassas relativas ao complô. As atenções voltaram a se concentrar na pirâmide. A cerimônia de condecoração do sumo sacerdote Hemiun, solenidade que atestou em caráter definitivo o rumor de que ele é que tinha descoberto a conspiração, foi ao mesmo tempo um sinal de certo abrandamento da nova política. Logo em seguida, os trabalhos da pirâmide ganharam por toda parte uma intensidade nunca vista. Um vaivém febril e uma agitação interminável envolveram a todos. Nuvens de poeira pairavam sobre o platô onde trabalhavam os compactadores e onde eram instalados a toque de caixa barracões para abrigar cem mil homens, e pairavam particularmente sobre as áreas já niveladas, onde eram armazenadas as primeiras pedras que começavam a chegar.

Sentia-se a aproximação do dia do início da construção da pirâmide. Agora, a poeira e o calor, em lugar de entorpecer as pessoas, pareciam incutir nelas uma espécie de fervor. "Contanto que aquela aflição se vá, tudo o mais se pode aguentar", diziam-se urnas às outras. Enquanto seus corações se enchiam de comovida gratidão para com o bem-amado faraó, elas iam e vinham freneticamente, faziam mais barulho e levantavam mais areia, convencidas de que assim, em meio à algazarra e à poeira, também seus males acabariam confundidos e desnorteados.

Todavia, as esperanças não duraram muito. Justamente na véspera do lançamento da pedra fundamental, descobriu-se uma nova conspiração, ainda mais perigosa que a primeira.

Dessa vez, para surpresa geral, era o sumo sacerdote Hemiun que caía em desgraça. No seu rasto, tombaram num só dia o chefe de polícia Khadrihotep e o vizir das Relações Exteriores, seguidos por uma penca de altos funcionários. A cada manhã se tinha notícia dos nomes de outros encarcerados, em meio a calafrios de pavor. Esperavam-se a todo momento novas prisões. Agora que o inatingível Hemiun caíra, achava-se natural a derrubada de quem quer que fosse.

Por algum tempo, os parentes dos condenados na primeira conspiração se animaram, julgando que, como Hemiun havia caído, eles seriam perdoados. Porém, mais que depressa ficaram sabendo que suas esperanças jamais se concretizariam. Numa reunião importante, um porta-voz do faraó explicou que, embora Hemiun tivesse desvendado o primeiro complô, isso não queria dizer de maneira nenhuma que o complô não existira de fato. Hemiun sabia havia tempo da primeira conspiração, mas só a denunciara no momento que lhe parecera adequado, para confundir o faraó e afastar qualquer possível suspeita em relação a sua própria traição, mais funesta ainda.

A devassa sobre a nova conspiração se arrastou por semanas a fio. Com frequência, antecipavam-se os nomes dos futuros encarcerados, o que aumentava ainda mais a aflição geral. Estranhamente, ao mesmo tempo que aflição, as pessoas experimentavam uma espécie de satisfação mórbida. Com a alma calejada, repleta de emoções doentias, exaltavam-se, denunciavam inimigos do Estado, numa espécie de embriaguez sincera que elas próprias não saberiam dizer de onde vinha, e com a mesma sinceridade se condoíam da sorte de seu soberano.

Enquanto isso, começaram a circular os mais assombrosos boatos a respeito da pirâmide. Alguns responsabilizavam os conspiradores pela postergação dos trabalhos e pelos escassos resultados destes. Outros diziam que desde o início o projeto continha erros, naturalmente premeditados, e ninguém sabia quanto tempo seria preciso para corrigi-los. Outros, ainda, estavam convencidos de que tudo fora feito com as piores intenções, desde a escolha do terreno; os projetos, a abertura das estradas, até a designação das pedreiras, concluindo que por isso a pirâmide jamais seria construída. Estes, contudo, após mais algumas condenações, tiveram que se calar. Força nenhuma seria capaz de deter a pirâmide. Isso fora dito em outra reunião da maior importância. Os conspiradores haviam de fato tentado prejudicar a construção, mas o prejuízo não atingira proporções que pudessem comprometê-la. Nada podia escapar aos olhos de Quéops; assim, os conspiradores, por mais diabólicos que fossem, não tinham ousado cometer sabotagens grosseiras.

Irremediavelmente abaladas depois de perder as derradeiras esperanças, já bastante vagas, as pessoas retornaram a seus postos de trabalho para afogar tudo na atmosfera então irrespirável por causa do calor, da poeira e do mau cheiro.

O torvelinho provocado pelos últimos acontecimentos consumia todo o grande platô. Comentava-se que o dia do início das obras estava muito próximo, mas ninguém tinha condições de mencionar uma data. Certa manhã, quatro compactadores foram crucificados (não havia memória de nenhuma pirâmide sem a execução de compactadores). Depois, subitamente, logo na manhã seguinte, o troar dos tambores anunciava que o grande dia enfim havia chegado.

Quéops em pessoa compareceu à cerimônia. Um bom número de novos ministros e cortesãos fizeram sua primeira aparição em público. À frente dos outros, pálido e empertigado, vinha o sumo sacerdote Rehotep, que substituíra Hemiun. Os embaixadores estrangeiros e outros convidados, postados de ambos os lados do palanque provisório de madeira erguido especialmente para a ocasião, espicharam o pescoço, cheios de curiosidade, tentando avistar o faraó. Outro grupo de convidados, postado mais atrás, após a segunda coluna de guardas, ondulava, inquieto. Embora estivessem muito distantes do palanque, faziam muito barulho, comentavam maldosamente a tintura exagerada dos cabelos dos novos ministros, ou trocavam as últimas novidades, em sua grande maioria relacionadas com a pirâmide. Corria o rumor de que o velho escriba Sesostrith, ao receber o convite para a cerimônia, havia se admirado: "A pirâmide? Ainda não está pronta?".

Apesar de a anedota ter despertado alguma surpresa, logo deixou de circular, pois com certeza todos atinaram que as palavras do velho escriba não eram tão hilariantes assim. A maioria já tivera, num momento ou noutro, a sensação de que a pirâmide fora erguida, se não por completo, ao menos em sua maior parte. Fazia tempo que a suportavam nos ombros, e até mais profundamente, em seu íntimo. Se alguém proclamasse do palanque que se iniciava ali, diante de seus olhos, não a construção da pirâmide mas a de sua miragem, essas palavras não lhes pareceriam extravagantes.


4. Crônica diária

O segundo estágio, a face ocidental

 


O ASSENTAMENTO da pedra número 11374 aconteceu na segunda lua cheia após o eclipse. Exigiu um pouco mais de tempo que a pedra anterior, porém causou menos mortes. Como se ansiasse por compensar a baixa mortandade conseguida por sua predecessora, a pedra 11375 provocou uma carnificina entre seus transportadores. Morreram um após outro, sem motivo, os pedreiros Mumb, Ru, Thutset e dois ajudantes sem nome; uma apoplexia vitimou o artesão Astik; todos os líbios do segundo turno e os irmãos Tur-Yur — no total catorze pessoas — foram esmagados por um inesperado deslizamento da pedra. Quando ela já estava em seu lugar e parecia que a série de fatalidades se encerrara, ainda morreu o ajudante do mestre, juntamente com um entalhador da Núbia. Haviam se estirado sobre a rocha, como para descansar um pouco, e só se viu que estavam mortos quando o superintendente se aproximou, chicote em punho, por certo para castigá-los pelo descanso exagerado. A pedra 11376, a despeito das esperanças, com tanta frequência desmentidas, de um recuo das mortes imediatamente após tamanho extermínio, foi tão traiçoeira quanto sua antecessora, suprimindo deste mundo quase o mesmo número de almas. A pedra 11377 se mostrou mais comedida, deixando um número de cadáveres que dava para contar nos dedos das mãos. As pedras 11378, 11379 e 11380 poderiam ser consideradas razoáveis no que diz respeito aos acidentes fatais que acarretou. Apenas o mestre Un foi destituído e enviado às pedreiras, por ter permitido que as pernas de dois entalhadores, esmigalhadas durante o assentamento da última pedra, permanecessem ali onde estavam, na louca esperança de que o incidente escapasse aos olhos do superintendente. Contudo, afora essa punição, não ocorreu nada digno de registro. Morreram aproximadamente tantos homens quantos se esperava, pelos mesmos motivos que em geral interrompem a vida humana. Quanto às pernas emparedadas dos dois infelizes (cujos corpos sem vida foram esquecidos no chão), precisou-se empreender um enorme esforço, levantando-se ligeiramente o bloco enquanto se retiravam os pedaços de carne com a ajuda de compridas varas. O mestre recém-nomeado que supervisionou os trabalhos explicou a seus homens que a permanência de membros humanos entre duas pedras poderia gerar uma imperfeição que, por mais imperceptível que fosse, era inaceitável numa estrutura magnífica como a pirâmide. Chegou a pedra 11381, trazendo um miasma pestilento. Correu o rumor de que os homens da distante pedreira de onde ela viera a haviam impregnado de uma enfermidade, e de fato assim devia ter sido, pois quem a tocasse logo se enchia de medonhos vergões e pústulas. A pedra 11 382 foi impacientemente aguardada, pois, ao se superpor à outra, poderia talvez aplacar seus efeitos. Porém, foi um fraco remédio, já que a maior parte do bloco empestado permaneceu a descoberto. Além das vítimas da supracitada moléstia, morreram dessa pedra, um após outro, os ilirios Teut e Bardhyl, ambos alourados, o primeiro picado por uma víbora, o outro de desespero. Nessa mesma pedra aconteceu a morte insólita do babilônio Ninurtakuduriusur, assassinado por um escravo sem nome. Por algum tempo o cativo manteve secreta a causa da morte, até que a arrancaram, numa noite de verão, exatamente quando já iam interrompendo as torturas. O motivo do homicídio tinha sido o nome do babilônio, que o escravo, anônimo como era, invejara intensamente. Julgando que não havia outra maneira de conseguir se batizar e ter com que se chamar, exceto tomando o nome de um outro, e junto com este sua vida (ao que parecia, pensava não haver outro caminho), matou o outro e terminou arruinando também a si próprio. Na realidade, as rixas e até o tráfico de nomes já haviam ocorrido anteriormente entre aqueles que os possuíam e os anônimos, aos quais essa privação abalava, tirava o sono e provocava um suplício espiritual pior que o de um avarento de quem se tirou uma pedra preciosa. No entanto, o assunto jamais chegara ao ponto de resultar num homicídio, a não ser que se tratasse de um caso antigo, anterior à pedra 10000, ou quem sabe ainda mais remoto. Para evitar complicações, o regulamento proibia terminantemente a venda de nomes, seu empréstimo ou concessão a título de herança, mas se fazia tudo isso em segredo. A colocação da pedra 11 383 empalideceu e por fim apagou a lembrança do assassinato. Justamente por ocasião do assentamento dessa pedra, houve um recorde nunca visto de mortes por loucura, e logo depois destas vinham as mortes por insolação. Dizia-se que coisa parecida já ocorrera antes, durante a colocação da pedra 10999, um pedaço de rocha que ficaria gravado por muito tempo na memória por causa do seu calor brutal — uma "pedra que queima", costumava-se dizer. No início, o diagnóstico foi loucura, mas ficou claro que não era nada disso a partir da desgraça que acometeu o infeliz tebano Siptah, o qual começou a fazer rabiscos na areia tentando atinar com as dimensões da obra que estavam erguendo. Quebraram-lhe os ossos numa mó, procedimento habitual para quem fazia perguntas despropositadas. A pedra 11 384 ainda estava longe quando chegaram do deserto os mais agourentos boatos sobre ela: juntamente com outros seis blocos, que viriam mais tarde, perfazendo assim um total de sete, todos da pedreira de Abussir, essa pedra tinha mau-olhado. Houvera um desmoronamento na pedreira quando a cortavam; ao que parecia, um grande desastre. Quanto mais os carregadores se aproximavam (eles próprios estavam persuadidos de que não tinham escapatória, por isso se achavam já quase libertos do medo, a ponto de considerarem cada novo dia um presente), e portanto quanto mais se aproximavam as pedras, mais seca, sufocante e impotente se tornava a angústia reinante. Aqueles que as tinham avistado (sempre havia viajantes ou mensageiros que por diferentes motivos iam e vinham através do deserto), então, aqueles que tinham tido oportunidade de avistá-las, diziam que à primeira vista elas pareciam pedras comuns, exceto por uns veios extremamente escuros que as percorriam, assemelhando-se a sinais que podem marcar a fronte de um homem conferindo um aspecto ameaçador a sua fisionomia. Na realidade, como sempre ocorre quando se espera por muito tempo uma monstruosidade e ao acontecer ela não parece tão terrível, a chegada das pedras trouxe até um tipo de alívio. É verdade que houve mortes, até mais numerosas que as provocadas pelas pedras anteriores; porém, isso se deveu talvez mais às angústias da espera que à presença dos blocos. Foram esses os comentários, embora ninguém pudesse saber ao certo se o mal que acompanha uma coisa reside nela mesma, se vem colado nela, se segue suas pegadas ou caminha a sua frente do mesmo modo que um cão de caça precede o caçador. A pedra 11391, aguardada como apaziguadora, pois encerrava a série das pedras de veios agourentos, trouxe consigo somente uma prostração da qual morreram tal qual moscas muitos trabalhadores braçais, na grande maioria sem nome. A pedra 11392, da pedreira de El Bersheh, estava sendo assentada quando chegou o sumo ministro da Pirâmide, que diante de todos açoitou com uma vara o superintendente da face ocidental. Segundo se falou, o progresso lento dos trabalhos era a causa da surra, que levou o infeliz à sepultura antes do tempo. Logo se ficou sabendo que açoitamentos como aquele tinham tido lugar também nas três outras faces, nas grandes pedreiras e ainda nas quatro estradas do deserto por onde transitavam as caravanas. Acreditava-se que tais punições acelerariam tanto o transporte como o assentamento das pedras, o que de fato ocorreu. Mas o rumor aziago, provocado justamente pela aceleração dos trabalhos, não se tinha previsto de modo algum. Com efeito, o pior e o mais apocalíptico rumor que já se vira. Difundiu-se a versão de que o novo ritmo febril, a impaciência em concluir o jazigo real, apenas evidenciavam aquilo que o Estado até o momento tentara encobrir: a enfermidade do faraó. Empreenderam-se diversas ações em resposta, desde as mais simples, condenações à morte, enforcamentos, torturas, até o envio de mensageiros a toda parte para desmentir o boato, porém este, como é usual em tais casos, em vez de recuar, inflamou-se ainda mais. No decurso do assentamento das pedras nº 393 e nº 394, ambas da pedreira de Elefantina, criou-se uma situação efetivamente inusitada. As pessoas já não sabiam o que fazer: se aceleravam os trabalhos, numa época em que o zelo excessivo podia ser tomado como uma manobra de estímulo aos boatos, ou se afetavam uma solene indolência, a despeito de ainda carregarem no corpo os sinais das vergastadas e torturas que tinham sofrido justamente por isso. Alguns concluíram que o melhor seria prosseguir seu trabalho como se não tivessem escutado nada; outros, ao contrário, julgavam que a desaceleração das obras era o menos perigoso dos dois males. Aparentemente, a maioria deu razão a estes últimos, pois em toda parte se fez sentir uma desaceleração generalizada: o deslocamento das pedras através do deserto e sua armazenagem foram ficando mais lentos a cada dia. A paralisia atacou os movimentos dos construtores, e não só dos que tinham algum trabalho a fazer, mas todos os gestos, as articulações, os movimentos da cabeça e da língua, e inclusive a respiração. A modorra era tão visível que por vezes se tinha a impressão de que as pessoas estavam prestes a cair no sono. A pedra 11395, a terceira a chegar depois disso, seria lembrada como a pedra da tranquilidade. Os mestres e superintendentes evidentemente reparavam em tudo, e se mordiam por dentro, mas ninguém ousava erguer o açoite para exigir rapidez, pois se arriscava a ver o golpe se voltar contra si próprio. E assim continuaram as pessoas, apáticas na aparência, enquanto por dentro iam se inquietando. Falava-se muito, como nunca antes, sobre a pirâmide, sua magnificência, sua forma, a infindável quantidade de pedras que iria requerer. Era difícil perceber se as ideias discutidas se propagavam por meio da boataria geral, que varria as quatro faces da obra como um vento quente, ou se eram conhecidas desde antes mas, em razão do trabalho estafante, do calor e do medo do castigo, haviam se enterrado tão fundo na consciência das pessoas que pareciam inexistir. Que aquelas dezenas de milhares de seres passariam toda a vida construindo uma sepultura, isso qualquer um sabia, dentro e fora do Egito, porém nunca fora expresso em palavras, menos ainda em palavras acompanhadas por melodias que davam a impressão de duplicar seu poder: "Vou findar os meus dias construindo um túmulo, mãe". Outros, tomados pela curiosidade, perguntavam: "E o que se há de fazer depois da pirâmide?", ao que alguém retorquia: "O que você tem com isso, infeliz? Seja o que for que se faça, você já não estará neste mundo". E um outro, ainda, explicava que depois daquela pirâmide se faria uma outra, para o filho do faraó, depois outra, para o filho do filho, e assim por diante, pelos séculos dos séculos. A antevisão da existência como um rosário sem fim de pirâmides despertava na maioria um desespero fatigado, ao passo que alguns, menos numerosos, sentiam um impreciso descontentamento. Sabia-se pelos supervisores antigos, por sua vez informados por seus predecessores, que não era a primeira vez que aconteciam coisas daquele tipo, que houvera um relaxamento semelhante antes da pedra número 7000, talvez mesmo por volta da 4000. Fora de fato o que ocorrera; no entanto, em seguida se adotaram certas medidas repressivas, e logo os espíritos e tudo o mais retornaram a seus lugares, do mesmo modo que as inarredáveis pedras da pirâmide. Convictos de que também aquele relaxamento, mesmo sendo longo, haveria de passar, os mestres e supervisores esperavam pela sua hora, já que tudo na pirâmide sempre se repetia. "Vai chegar um outro tempo, com outras pedras, e tudo voltará a ser como antes." Enquanto isso, comentava-se que os relatórios dando conta dos acontecimentos tinham ido longe, talvez até o faraó; esperara-se inutilmente uma intervenção dele, mas no final tudo fora deixado como estava. Ao que parecia, as pessoas tinham tapado olhos e ouvidos para sublinhar a ideia de que o faraó ainda viveria muito, mas muito mesmo, e portanto não havia motivo para se abalar com a desaceleração das obras de seu sepulcro. Falou-se até que essa ideia se desenvolvera a ponto de um infeliz mais atrevido dentro dos círculos governamentais apresentar a alternativa de se romper a tradição e interromper de vez a construção da pirâmide, para demonstrar que o faraó era imortal. como todo exagero, que com frequência se transforma em seu oposto, a ousadia do alto funcionário lhe custou caro. Serraram-no vivo, a começar pela língua, que pronunciara aquelas palavras, passando depois às faces, aos pulmões, às mãos, cujos gestos haviam acompanhado as palavras, e assim por diante, até que pouco sobrara por serrar. A punição assinalou uma súbita guinada. Descobriu-se o foco de uma nova conspiração. Antes de chegar qualquer proclamação ou diretiva, já se sentia a aragem do medo. Tudo mudou de uma hora para outra. Logo se experimentou uma tensão que parecia atravessar como um calafrio as quatro faces da pirâmide. Simultaneamente com ela, as pedras se moveram mais depressa, as vozes se extinguiram, os olhos baixaram. As intrigas e conversas em geral se reduziram. E não só as conversas: também os pensamentos, que alimentavam as conversas, escasseavam. Foi então que surgiram os sinais de uma grande seca: as roldanas a cada dia puxavam menos água, indicando que os poços estavam secando. Um vento desidratado, que nem soprava de verdade mas chegava às têmporas das pessoas, tratava de varrer as lembranças já confusas. O esquecimento crescia a cada dia, transformando em felicidade maldita o tempo das pedras 11395 e 11396, quando se falara e se sonhara tão pecaminosamente. (Mais tarde, por um longo período, os supervisores, ao açoitar os condenados, rosnariam: "Ah, você pensa que voltou o tempo da 95 e da 96? Pois então veja só! Grite!".) Nesse ínterim chegou a pedra 1397, pesada, sufocante, idêntica a milhares e milhares de outras, ocupando seu lugar na base da pirâmide. Símbolo da ordem restabelecida, da mais grandiosa imutabilidade e monotonia, provocou suspiros nos supervisores e mestres. Os dias retornaram à rotina de antes, até as mortes, as picadas de víboras, os casos de loucura, as insolações e os nomes dos participantes eram praticamente os mesmos. A pedra 11398, da pedreira de Saqqarah, causou um número de mortes e mutilações quase idêntico ao da precedente. Na noite anterior a seu assentamento, uma serpente dormira enrodilhada sobre ela, porém não houve quem dissesse se aquilo era ou não um presságio, nem se, sendo presságio, seria bom ou mau, pois ninguém esperava mais nada. Como todas as outras, também aquela pedra ocupara seu lugar, enquanto, ao longe, uma nuvem de areia anunciava a aproximação de outra pedra, a de número 11399, depois dela uma outra, e assim por diante, sempre, até o fim do mundo, oh, céus.


5. A pirâmide avança rumo ao céu

 


A CONSTRUÇÃO prosseguia, embora demorando mais que o esperado. Sobre o vasto platô onde todo dia perto de cem mil pessoas se agitavam como formigas, pairava permanentemente uma nuvem de poeira. A nuvem era visível a dezenas de quilômetros de distância, e os habitantes das aldeias ao redor, que a cada manhã voltavam os olhos para lá, não se surpreenderiam caso alguém lhes dissesse que parte do canteiro de obras se localizava no céu.

Já haviam se construído pirâmides antes, mas não se tinha lembrança de uma que houvesse causado tamanho desnorteamento. O que entorpecia as pessoas não era apenas o cansaço, o medo dos castigos e do envio às pedreiras. Um retardamento monumental percorria o país inteiro, como um vento. Fazia-se tudo com vagar e já não se podia distinguir o que era bom do que era mau. "A maldição das estrelas se abateu sobre o Egito", diziam todos. "E essa pirâmide, da qual se falou, entre tantas coisas, que iria melhorar as pessoas, tornou os egípcios piores do que nunca."

Certos indivíduos — raros, é verdade — responsabilizavam-na por tudo aquilo. "Uma sepultura desse tamanho bem no meio do país só podia mesmo acarretar retrocessos", diziam, baixinho. E, além do mais, uma sepultura estranha: não com a cova embaixo, como todas as outras, mas com a cova para cima, ou seja, uma sepultura de ponta-cabeça... Era realmente demais. O deus Re tolerara coma pudera as mastabas e as outras pirâmides, na esperança de que quem sabe um dia os egípcios não deixariam de lado aquelas loucuras e enterrariam os mortos no chão, da mesma maneira que os outros povos; todavia, quando constatou que eles, longe de abandonar o mau hábito, elevavam sempre mais a altura dos mausoléus, decidira, ao que parecia, interferir.

O culpado de tudo fora exatamente este último aspecto, a altura da nova pirâmide, segundo alguns que recalcitravam em responsabilizar a pirâmide como um todo.

De fato, a altura era de dar medo: três vezes superior à média. Já com a obra a meio caminho, as pessoas não se sentiam bem ao fitá-la. Imagine-se então o que iria acontecer depois... Dizia-se que, quando as dimensões do túmulo atingissem trezentos pés, todos enlouqueceriam. E quando alcançassem quatrocentos pés, e principalmente quatrocentos e cinquenta, altura definitiva da pirâmide, só Deus sabia o que haveria de ocorrer.

Os sacerdotes se azafamavam pelos templos, tranquilizando as multidões. A voz deles ecoava majestosamente em meio à fumaça dos sacrifícios: "Não deem ouvidos aos insanos e mal-intencionados. Com a pirâmide, seremos mais fortes e mais felizes. O céu e a terra hão de se entender melhor".

Uma após outra, missões estrangeiras, tendo seus embaixadores à frente, visitavam o canteiro de obras. Ao descer dos coches, extasiavam-se. Uns caíam em prantos, outros se punham de joelhos. O mundo inteiro voltara os olhos para o Egito, pois o que aquele país empreendia era a maior maravilha da Terra. Era isso que se dizia.

Apenas os gregos, de uma comitiva que chegou através de Creta, atrasados como eram, não se deram conta da magnificência da obra. Tendo por referência o labirinto, não atinavam que um túmulo pudesse ser tão grande e complicado. (Mais tarde se contou que uma delegação egípcia convidada ao país dos gregos, para responder na mesma moeda, dissera que o labirinto não passava de uma pirâmide com um parafuso a menos.) Entretanto, uma parcela dos estrangeiros que nutria um amor especial pelo Egito era convidada a se pronunciar nos templos. Enchiam de louvores o Egito e o papel orientador da pirâmide. Os egípcios deviam visitar seus países, diziam, para se aperceber da paz e da harmonia que havia no reino do Nilo. Nos outros países fazia frio, as pessoas eram carrancudas e chovia sem parar. A terra e o céu davam a impressão de estar em permanente desacordo. O mau tempo exalava continuamente um vapor pesado, chamado neblina, que dava a impressão de que o fim do mundo estava próximo.

As pessoas saíam dos templos aliviadas. "Sorte nossa, essa pirâmide", diziam. "Sem ela, sabe Deus o que iria acontecer. O céu poderia se enfurecer de repente e nos perseguir com seus raios. Para não falar daquela outra tragédia, aquela, tão medonha que até seu nome arrepia, quando o céu desmorona de uma hora para outra, deixando cair fiapos, flocos, sem parar, enquanto toda a terra embranquece e esfria como um cadáver."

Os discursos comovidos desses estrangeiros não impediam que os cônsules escrevessem coisas bem diferentes em suas cartas secretas. Havia muito já se suspeitava disso, mas as provas só apareceram quando se apreendeu uma mensagem do embaixador sumério. O estilo um tanto prolixo de seus escritos, mais de uma vez censurado por seus superiores, fornecera a brecha para se montar uma armadilha. Quando duas carroças do corpo diplomático, carregadas a mais não poder, conduziam a carta, que não pesava menos que a parede de uma casa (apesar das diligências do embaixador para adelgaçar ao máximo as placas de argila, não fora possível obter um peso menor), o serviço secreto egípcio sem maior dificuldade provocou um acidente, valendo-se de um buraco encoberto na estrada principal. Na confusão que se seguiu, enquanto se prestavam os primeiros socorros aos condutores feridos, foi fácil surrupiar algumas das placas espalhadas pela estrada, em número suficiente para se constatar a força do veneno sumério.

Num almoço oficial, uma semana após a decifração das placas, Quéops pronunciou as célebres palavras: "Nossos inimigos se sentem incomodados com a pirâmide, mas quanto mais eles a difamarem, mais alto nós a ergueremos rumo ao céu".

Os presentes mal conseguiram ocultar o tremor das mãos. A cada dia que passava, mais mal-humorado ficava o faraó. Comentava-se que uma nova conspiração fora descoberta, mas ainda não se sabia nada ao certo.


Durante toda a semana seguinte, esperou-se pela prisão da equipe central de arquitetos. Mas, no lugar da polícia, apareceu um mensageiro do palácio com uma ordem para que eles se apresentassem a Quéops levando a maquete. O sumo arquiteto Rehotep, branco como cera, mal se aguentava em pé. O olhar de Quéops resvalou pela maquete e depois se cravou no chão, como se procurasse alguma coisa debaixo da terra. O bastão em sua mão tremia.

"Estou enterrado muito fundo aqui", disse por fim. O bastão indicava um ponto invisível sob a maquete.

O terror impedia os arquitetos de compreender a que ele estava se referindo. Depois, descobriram. O faraó falava da câmara mortuária. Quantas vezes haviam quebrado a cabeça pensando nela! Sabiam que o soberano não aprovava sua localização subterrânea. E que rejeitava em especial a ideia de situá-la fora do corpo da pirâmide. Talvez temesse a solidão. Mas não havia jeito. Os velhos arquivos, inclusive anotações do próprio Imhotpe, o genial, não admitiam outra solução.

"Não me venham com tagarelices sobre dificuldades técnicas", disse Quéops. "Não quero mais ouvir falar da pressão das pedras. Não quero saber de nada disso. Quero ficar no alto, na pirâmide. Está claro?"

"Sim, Majestade", respondeu Rehotep, com uma voz que parecia vir de sob a terra.

Afastaram-se em silêncio, levando a maquete, e ficaram um bom tempo na sala de trabalho, sem falar. Seu pensamento ora se paralisava ora se descontrolava. Ao que parecia, era assim que as pessoas enlouqueciam.

Haviam concebido a câmara mortuária como uma corrente ligando a pirâmide às trevas infindáveis. Ela representava as raízes da pirâmide.

E, agora, eis que deviam abandonar tudo e erguê-la nas alturas. Introduzi-la no meio das pedras. Era monstruoso. O peso das pedras esmagaria tanto o sarcófago como a múmia, tal qual a uma casca de ovo.

Os arquitetos se sentiam totalmente perdidos. O próprio Rehotep julgava já estar louco. Foi talvez essa crença que o salvou, bem como aos outros. Por dias e noites a fio ele manteve o pensamento concentrado nas pedras. Ia e vinha em meio à tortura e ao desespero nascidos da imobilidade nas trevas. Às vezes, tinha a sensação de se achar mergulhado no vazio, onde tudo estava perdido, e de repente se deparar com uma nova perda. Imaginava, por exemplo, uma pedra esmigalhada pela pressão de outras e, no entanto, impedida de tombar, ali permanecendo, pelos séculos dos séculos, sem que ninguém jamais a visse ou viesse a saber de seu infortúnio.

Um dia, Rehotep chegou à reunião tão animado que todos os demais se convenceram de que ele tinha mesmo perdido o juízo. E provavelmente sentiram inveja do sumo arquiteto, o que acendeu neles pela primeira vez uma ponta de esperança.

Rehotep trouxera consigo um sem-número de esboços. Enquanto ele falava, os outros fingiam prestar atenção, como se faz com as crianças quando não se quer desapontá-las. Porém, subitamente ouviram, de mistura com os despropósitos, algo que os assombrou. Para aliviar a pressão sobre a câmara mortuária, poderiam sobrepor a ela outros compartimentos ocos. Isso não só levaria o peso a recair apenas sobre as paredes, mas diminuiria a distância entre a câmara e o topo da pirâmide.

Eles não acreditavam no que tinham ouvido. Era sem dúvida uma saída genial. E murmuravam: "Como isso não passou pela minha cabeça antes?...". Olhavam para o chefe ora espantados ora enternecidos, e não chegavam a atinar com o que acabara de ocorrer.

No dia seguinte, pediram uma audiência como faraó. Este os escutou taciturno.

"Agora Vossa Majestade ficará aqui", disse Rehotep, apontando na maquete a altura em que se situaria a câmara mortuária.

Quéops, contrariando seus hábitos, deixou escapar um suspiro profundo.

"Mais alto", disse numa voz abafada. "Ainda estou baixo demais."

"Compreendo, Majestade", respondeu o sumo arquiteto.

"E quero ficar no centro." "Compreendo, Majestade." O branco dos olhos do faraó parecia estar fragmentado pelo cansaço.

A conspiração esperada por todos não foi descoberta, nem no décimo terceiro escalão, nem no décimo segundo, após a detecção da rede do ministro Menenré. "O décimo primeiro não escapa", cochichava-se aqui e ali. Mas naturalmente isso valia para o caso de ter havido de fato uma conspiração.

No décimo escalão, criou-se um mal-entendido entre os mestres e os inspetores vindos da capital para orientar a numeração dos escalões. Alguns diziam que estavam no décimo escalão, mas outros teimavam que se encontravam no décimo segundo, se é que não era ainda o décimo terceiro. (Uma portaria do sumo arquiteto determinou que a numeração dos escalões deixaria de ser estabelecida a partir da base, ou seja, do chão, para se iniciar do vértice, ou seja, do céu, o que tornava tais perturbações previsíveis. "Mas como se pode calcular alguma coisa a partir do nada?", bufavam quase todos os construtores. "É o mesmo que tentar cavar um buraco no vento.") A numeração invertida dos escalões, significando sua diminuição enquanto a pirâmide crescia sempre mais, confundia a todos e provocava, assim, uma espécie de mal-estar, de redução da capacidade de discernir. As pessoas partiam em direções despropositadas, detinham-se ali onde não havia nenhum obstáculo ou, ao contrário, não reparavam em obstáculos reais. Atingiu-se um nível tão insuportável que a maioria dos mestres recomeçou a fazer seus cálculos à moda antiga. Mas então chegou uma nova ordem categórica do sumo arquiteto: "Não obstante o fato de que ainda não exista o vértice da pirâmide, a numeração deve ser feita unicamente a partir dele, e qualquer outro tipo de cálculo será considerado um sinal de rebelião". Uma circular tentando esclarecer as coisas enfatizava que, na fase em que se achavam as obras da pirâmide, esta era crescentemente atraída pelo céu; portanto, tornava-se indispensável a acentuação do elemento celestial, que teria inclusive acontecido antes se não houvesse se deparado com certas ideias ultrapassadas.

"Pois nem as ideias ultrapassadas nem as novas me convencem de jeito nenhum", declarara o velho mestre Henk. "Isso é o mesmo que trabalhar de cabeça para baixo, e ponto final." Mais tarde, Henk admitiria que não havia saída: teriam que se acostumar também com aquela nova invenção, e afinal de contas não eram poucas as coisas que andavam de ponta-cabeça no país. ("Nosso Egito está todo revirado de ponta-cabeça, e só a derrubada do regime, e do faraó junto com ele, pode dar um jeito nas coisas", assim haviam chegado suas palavras aos responsáveis pelo inquérito, e estes, sacudindo seus papiros diante do nariz do mestre, berravam: "Admita que você disse isso, não são suas próprias palavras? Pois veja-as, aqui estão". E ele respondia: "Eu estou vendo", embora lhe tivessem arrancado os olhos já na primeira semana de torturas.) No sétimo escalão, um grande medo se apoderou de todos — não só dos que lá trabalhavam, mas também dos que estavam ali apenas de passagem. "O que foi que deu em vocês?", perguntavam, atônitos. "Por quê? O que houve?", indagavam os sétimo-escalonistas, como passaram a ser chamados. "Não... Não... Não é nada. Algo que me ocorreu, mas já vou indo, até logo!"

Os que ficavam acompanhavam por algum tempo o vulto do visitante, que ao descer de escalão em escalão ia diminuindo cada vez mais, até desaparecer na área recoberta pela poeira e pelo vaivém dos homens. Então voltavam os olhos para o ponto onde deveria ficar o vértice da pirâmide, e em seu íntimo tudo se confundia. Estavam perto do céu, e cada um deles, em sua solidão, era assaltado pela ideia de que talvez fosse essa proximidade a razão de se sentirem assim, sem força e inúteis, além de possuídos, sabe-se lá o motivo, por um sentimento de culpa.


Apesar de não ter acontecido nada no sétimo escalão, eles sofreram tanto que, pouco tempo depois de este ter sido concluído (o sexto escalão já fora iniciado), não só estavam convictos de haver escapado a todas as desgraças, mas também, de vez em quando, sobretudo durante as pausas para o almoço, relatavam inocentemente episódios ligados àquela aflição como se estes tivessem, de fato, existido.

Os temores daqueles que tinham falado, mas acima de tudo dos que tinham pensado, foram se dispersando de maneira lenta e inexplicável, como uma poeira, ou mais precisamente como uma antipoeira celeste, até chegar lá embaixo, nas correntezas humanas que ainda circulavam desordenadas aos pés do canteiro de obras.

Quando desciam, à tardinha, seguindo na direção de seus alojamentos, os sétimo-escalonistas sentiam o olhar dos demais acompanhá-los com receio e admiração. Pareciam dizer: "Esses são heróis de verdade, pobres-diabos, quem há de saber o que passaram lá em cima?". Encaravam-nos como se viessem diretamente do céu. E havia até quem se surpreendesse de nenhum deles ter se aproveitado da vizinhança celestial e passado para o lado de lá da vida — o além, dizia-se ultimamente —, como alguém que pulasse do seu telhado para o do vizinho.

A curiosidade que cercou os sétimo-escalonistas era apenas o germe de uma outra bem maior: a curiosidade pelo vértice. Agora que a conclusão da pirâmide estava próxima, seu topo absorvia e concentrava todas as conjeturas. Alguns consideravam que a hora do teste crucial estava chegando. Desconfiavam que a altura da pirâmide excedera os limites e que, assim, seu vértice poderia arranhar e até ferir o céu. "Aí é que vamos ver o que acontecerá", diziam. "Pobres de nós, onde vamos nos meter?"

"Mas que culpa temos nós?", contestavam outros. "Fizemos o que nos mandaram fazer. Se existe um culpado, com certeza não somos nós.

"Todos nós somos culpados", insistiam os primeiros. "De uma forma ou de outra, todos nós estamos envolvidos nessa tramoia."

Ao pronunciar tais palavras, erguiam involuntariamente os olhos para o céu, sentindo que não só a pirâmide mas também o corpo e o destino deles estavam sendo sugados pelo espaço celeste.


6. A poeira real

 


O CÉU estava carregado. Quéops, na antecâmara superior do palácio, andava furioso de um lado para outro. Embora se esforçasse para não ver nada, não conseguia deixar de se voltar para o Ocidente, onde de muito longe se podiam avistar colunas negras de poeira. Ao que tudo indicava, à tarde haveria uma tempestade de areia. Mas mesmo que ela não ocorresse, a poeira da pirâmide estava em toda parte. Quéops tinha a impressão de que sua sepultura saía pelos céus como um cavalo que tomasse o freio nos dentes. Entrava ano, saía ano, e a paisagem não mudava. Ele se consolava lembrando que aquele era o seu destino de.monarca, do qual ninguém pode se queixar. Mas nem por isso seu tormento cessava.

Numa estante de mármore, encontravam-se dois documentos. Um, grosso e pesado, era a biografia de seu pai, Snefru, que uma equipe de historiadores e poetas acabara de concluir. Solicitara-a para, com base nela, decidir sobre o perfil da sua própria biografia, que começaria a ser escrita em breve. O outro era o dos diário dos assuntos de Estado.

Se aquele fosse um dia qualquer, ele se poria imediatamente a folhear a biografia paterna, mas naquela manhã tinha bílis na alma. Ainda assim, forçou-se a parar diante da estante. O manuscrito se dividia em duas partes: a da vida terrestre, encadernada em couro vermelho, e a do além-túmulo, em azul-celeste.

A primeira, ele sabia mais ou menos o que continha. A juventude do faraó, seu coroamento, as primeiras campanhas, as reformas. Depois, as alianças com Estados vizinhos, os grandes decretos, o desmascaramento das conspirações, as guerras, as loas dos poetas. Já a segunda parte o deixava mais curioso. Folheou-a devagar, e seus olhos se detiveram num dos papiros. "O dia de Snefru. Depois do dia, a noite de Snefru. Depois novamente o dia de Snefru. A seguir, outra vez, a noite. Depois, o dia. Seguindo-se ao dia, a noite de Snefru. Passada a noite, outro dia de Snefru. Após o dia, a noite."

"Meu Deus", pensou. Imaginou-se no sarcófago, dentro da câmara mortuária, sozinho. O nome paterno agora lhe aparecia como sendo o seu. "O dia de Quéops. A noite de Quéops." A tristeza lhe tolhia a cólera. Seria assim também a sua biografia do além-túmulo? O papiro inicial assinalava: "Primeiros trezentos anos". Mas se os primeiros trezentos anos eram tão monótonos, dificilmente se poderia esperar alguma novidade mais adiante.

Ele passou para outro trecho, deparou-se mais uma vez com as mesmas palavras, e o nome do pai novamente deu lugar ao seu. "O dia de Quéops. A noite de Quéops. O dia de Quéops após a noite de Quéops. Mais uma noite de Quéops."

"Grandes cretinos", resmungou. Ao que parecia, haviam enumerado os dias e as noites dos trezentos anos iniciais, e pensavam que haveriam de enganá-lo com aquela monotonia.

Agarrou o manuscrito como se agarra uma mulher para atirá-la ao chão, talvez para pisoteá-la, quando de súbito, justamente na página que se abriu, um texto diferente chamou sua atenção.

Consultou a página, e seu espanto foi tão grande que a cólera recuou de imediato. Quis gritar: "Um acontecimento!". Em meio àquele vazio ermo, mais raro que um oásis no deserto, eis que surgira um acontecimento. Percorreu as linhas com avidez: "Pela manhã, compareceram, em fila, os mais altos dignitários do Estado. Depois, o faraó foi saudado pelo sumo sacerdote do Egito, por todos os ministros e no final pela rainha. Concluídas as celebrações, os dignitários se retiraram, e ele se estirou no sarcófago. A tarde de Snefru. Passada a tarde, a noite de Snefru. Em seguida, o dia de Snefru".

Ele folheou arrebatadamente o manuscrito até achar outro acontecimento. Estes eram raros, raríssimos, perdidos em distâncias estelares. Os jubileus de seu coroamento. Festas de aniversário. Alguma cerimônia religiosa. Eis o que seria sua vida de além-túmulo, perto da qual a presente era somente um instante. "Deus", disse consigo. Os eventos apareciam espalhados numa amplidão desértica, e tudo era escasso como as abóbadas de templos recortadas no horizonte. Pareceu-lhe que já em outra ocasião se deparara com uma visão semelhante. Ah, sim, dois anos antes, no relatório da polícia secreta sobre os filósofos de Mênfis, que apresentava em detalhes suas ideias sobre o tempo. Alguns afirmavam que o tempo dos nossos dias não era o que deveria ser, perdera suas virtudes originais. Deixara-se andar, dilatara-se, por assim dizer, relaxara-se; numa palavra, desnaturara-se. O verdadeiro tempo, diziam os filósofos, deveria ser mais denso. Por exemplo, o tempo da passagem de um indivíduo por este mundo deveria ser igual à soma de seus momentos de orgasmo. O resto não passava de vaidade.

Quéops não recordava ao certo os argumentos da ala adversária. Sabia apenas que eles insistiam no contrário, ou seja, na necessidade de distender o tempo. Haviam concluído que, caso as pessoas continuassem a viver com tanta intensidade, perderiam a faculdade de julgar.

"Loucuras", disse consigo Quéops. Ele fizera bem em enviar metade dos filósofos para as pedreiras de Abussir. Os assuntos de Estado andariam melhor se as pessoas não se dedicassem a semelhantes inutilidades. Mas elas insistiam sempre. Os egípcios pareciam ter estragado seus miolos com toda sorte de fábulas, e agora queriam desorientar o mundo inteiro. Era o que mostrava o relatório do seu embaixador em Creta. O ministro das Relações Exteriores o trouxera cheio de orgulho. Os outros vizires se rejubilavam: "Eis aí: a influência do Egito está crescendo no mundo". Toda a ilha de Creta e, mais além, os povos ao norte dela, pelasgos e alguns outros chegados recentemente viviam um drama sem tamanho. Eles haviam aprendido com os egípcios que existia uma outra vida, no além-túmulo, e tinham ficado transtornados. "Oh, Deus", diziam, "se ao menos tivéssemos continuado ignorantes, cegos. Achávamos a vida tão curta, tão simples; como será agora, que ela nunca terá fim?"

O relatório do embaixador descrevia a febre que tomava conta de todos. Os estrangeiros davam graças ao Egito por semelhante milagre, que consideravam, sem dúvida, a maior descoberta da humanidade. Depois dela, tudo haveria de mudar, as ideias, as mentalidades e as dimensões do mundo. Não era uma brincadeira, não era um simples apêndice, um mero detalhe acrescentado à vida. Era sua quintuplicação, sua centuplicação, para não dizer que era o próprio âmago da existência que vinha à luz.

Quéops escutara os ministros em silêncio. No início, nem ele mesmo entendera de onde vinha tamanha frieza. Mais tarde, depois que os outros o deixaram, ele saíra à sacada do palácio e acompanhara longamente com os olhos o movimento da poeira no canteiro de obras. Assaltara-o, mais nítida do que em qualquer outra ocasião, a ideia de que, se o Egito não tivesse feito aquela descoberta, que tanto maravilhava o mundo, não haveria pirâmides. Não haveria pirâmides, repetira. E aquela poeira terrível não enegreceria os seus dias.

Quase vinte anos antes, uma voz em seu íntimo o aconselhara a não construir pirâmide alguma. Porém, tinham-no convencido do contrário. Agora, também ele não abria mão dela.

Por pouco não bradara: "Eu a fiz por vocês! Por vocês iniciei sua construção!". Agora o deixavam frente a frente com ela, enquanto saltavam de banquete em banquete. Ele era o único a encarar sua sepultura, que se dilatava e crescia para ocupar o céu inteiro.

Durante um bom tempo, tratou de não pensar em nada. Depois, involuntariamente, seus passos o levaram de volta aos manuscritos. Achava que o documento azul-celeste o ajudaria a esquecer os pensamentos sombrios, mas era o outro que o atraía de maneira irresistível. Sabia o que ele continha. Apesar disso, precipitou-se para abri-lo, tal qual um sujeito que abre uma porta para desmascarar seus detratores.

Ali estavam eles, como sempre, incansáveis e inumeráveis. A começar pelos ladrões e vagabundas das ruas, até as grã-finas e os almofadinhas escolados, cujo veneno parecia ainda mais insuportável. Os espiões tinham registrado tudo, integralmente, e as frases proferidas sem rodeios, sujas, obscenas, testemunhavam melhor que qualquer relatório as proporções da lealdade ou da felonia dos egípcios para com seu Estado... "Ela nos tritura, por tudo o que é sagrado, tritura a todos, e nunca se sacia, a viúva-negra, deixa-nos esfomeados, massacra-nos, quer sempre mais, todos temos que ir até ela, já não nos resta nenhum prazer, nenhuma diversão, pela alma da minha mãe, que o diabo leve o Egito, quisera nunca mais ouvir esse nome, o dele e o dessa pirâmide desgraçada... Na verdade, andam dizendo, não sem razão, que ela arrasa nossa vida. Desde que sua construção começou, metade das tavernas já fecharam, as moradias escassearam, esmoreceu a vontade de trabalhar e se divertir, tudo se amesquinhou, menos a fila na tenda que vende favas. Agora está claro que a pirâmide tritura não só as pessoas, mas o Egito inteiro. Suas pedras esmigalham as palmeiras e o luar de setembro, e as horas de descontração nas tardes da capital, e as risadas, e os jantares, e o ardor das mulheres... Também nós fomos triturados, pobre Egito, tão sacrificado... Esperem, não há motivo para chorar antes da hora. A pirâmide, do mesmo modo que empedrou nossa vida, pode desempedrá-la, soltá-la, livrá-la das pedras... Coitado, está sonhando acordado! Como isso iria acontecer? Você acha que a bruxa vai soltar tudo o que nos tirou? Seria preciso torturá-la, arrasar escalão por escalão — Vamos lá, bruxa, cuspa o que nos tomou, se não apanha, filha da mãe!. Pura fantasia, meu Deus. Se nós a pegarmos e a apertarmos, o que vai sair? Um grande peido e nada mais..."

Quéops sentiu os maxilares doerem. Por um momento, experimentou uma sensação de vazio. Depois, fechou e reabriu os olhos. "Não gostam de você", disse consigo. Ainda não sentia compaixão, mas, agora que maldiziam a pirâmide, sua indignação se dispersava.

Ele próprio, naturalmente, podia desprezá-la. Podia até odiá-la. Mas eles não tinham o direito... menos ainda de ir tão longe...

Tinha a impressão de ter caído nas engrenagens de um instrumento diabólico, onde nem conseguia distinguir o que devia apreciar do que devia odiar. Às vezes, parecia-lhe que era ele próprio que carregava a pirâmide nas costas, como uma corcunda monstruosa, enquanto os outros apenas se queixavam.

Quéops ergueu a cabeça. Lá estava a sua poeira, por todo o céu. "Meu Deus", gemeu.

De quando em quando se arrependia de não ter encontrado uma outra forma de sacrificar os egípcios. Um daqueles projetos imemoriais que seus ministros haviam descoberto em velhos arquivos, vinte anos antes, naquela inesquecível manhã de novembro... Por exemplo, abrir um ciclópico buraco invisível sob a terra... A contragosto, por várias vezes voltara a cogitar em sua possível arquitetura. A primeira penumbra, a segunda, a quinta treva, a sétima. A treva dentro da treva. A mais tenebrosa... Era o que os egípcios mereciam, e não sua franqueza. Eles sempre haviam preferido as farsas sem fim e a opressão que não dá na vista. Enquanto a pirâmide ali estava, bem no meio do país, como se dissesse: "Eis-me aqui!".

"Não gostam de você", repetiu em voz baixa. Agora, no lugar do ressentimento, experimentava uma espécie de piedade por ela. "Mas eu os farei ... Eu os farei... Não, você não precisa do amor deles..."

Não iria forçá-los a gostar dela, isso até seria mais ou menos simples. Buscaria uma outra vingança. Iria obrigá-los a louvá-la na mesma medida em que a odiavam. Iria pisoteá-los dia e noite, humilhá-los diante dos outros, e das mulheres e dos filhos, e de suas próprias consciências. E assim os aviltaria, até lançá-los por terra de uma vez por todas.

Quéops se deu conta de que andava de um lado para outro como um demente. Conteve-se de pronto e refreou seus passos, embora os joelhos tremessem de impaciência. Ao chegar à estante de mármore, pareceu-lhe natural se tranquilizar abrindo a biografia de além-túmulo de seu pai. Mas, para seu assombro, as mãos, em vez de apanhar o documento azul-celeste, voltaram ao outro dossiê. Ele ouvira dizer que os bêbados, ao acordar de ressaca pela manhã, tratam de beber mais um copo da mesma bebida que provocou o mal-estar, pois ela clareia suas ideias.

De repente, seus olhos deram com a palavra pós-piramidal, que o levou a se arrepiar como em outros tempos quando via uma serpente. Já esperava pela sua reaparição, desde que topara com ela pela primeira vez, no penúltimo relatório. Então não fora uma casualidade... Um novo tempo... A era pós-piramidal. Então não tinha sido apenas ele que quebrara a cabeça pensando no que se haveria de fazer depois de pronta a pirâmide. Outros também haviam pensado, antes dele e até com o mesmo ardor, a ponto de terem inventado uma nova palavra.

Quéops recordou uma bandeja de prata cheia de línguas humanas cortadas, que o sumo sacerdote Hemiun levara certa manhã para seu pai, Snefru. Quéops tinha então treze anos, e o pai lhe explicara que aquelas eram as línguas de pessoas que haviam falado mal do Estado. "Você ficou pálido", observara o pai, "mas vai acabar agindo do mesmo modo. Caso contrário, essas línguas vão derrubar o regime."

Agora talvez fosse tarde. As más línguas cobriam o mundo inteiro, e milhares de bandejas não bastariam para acomodá-las.

Levantou a cabeça, decidido a não ler mais o relatório. Cravou então os olhos na nuvem de poeira. Odiara aquela orgia fúnebre pelos céus, sem refletir que algum dia ela poderia vir a lhe faltar. Agora, contudo, ainda que continuasse a odiá-la, amedrontava-o a ideia de que ficaria sem ela. Haviam imperado os dois juntos por tanto tempo, ele e seu túmulo, e eis que agora, vinte anos depois, o túmulo seria concluído. Em breve cessaria sua animação infernal. Pelo contrário, iria esfriar, dia após dia, revestindo-se de lisas pedras calcárias, até se congelar por completo. O primeiro a se esvaziar seria o céu (desde já Quéops culpava a si próprio por ter praguejado contra a poeira). E, limpo o céu, a pirâmide também se afastaria da vida.

Quéops respirou com dificuldade. Seria abandonado, sozinho, naquele mundo malvado... Uma melancolia fria penetrava no seu estômago, como o gume de uma faca.

Aproximou-se da estante de mármore e fez soar o gongo de bronze para chamar o sumo mago.

Sem olhar para ele, sem sequer se mover, ainda de costas, indagou se o outro ouvira algo a respeito da nova palavra.

"Ah, sim... A era pós-piramidal... É uma palavra feia, como tantas hoje em dia... Tenho conversado com o chefe da polícia secreta..."

A bandeja de prata refletiu lugubremente no cérebro de Quéops antes de se ensanguentar.

"Sei", disse ele. "Conheço também a opinião dele... E, no entanto, gostemos ou não, essa época há de chegar, não é?"

"Hum... Vossa Majestade tem razão...", respondeu o outro. Quéops se sentiu tentado a lhe recordar suas palavras de vinte anos antes, dizendo que a pirâmide era o esteio do Estado, a luz incrustada na pedra etc., mas em seguida lembrou que todos os presentes àquela reunião já estavam debaixo da terra. "Céus, como o tempo passa", disse consigo.

"E então, o que se há de fazer quando chegar a tal... quero dizer... a era pós-piramidal?"

"Hum... Permita-me contestar Vossa Majestade... Não haverá era pós-piramidal, uma vez que a pirâmide permanecerá ali para sempre."

Quéops se voltou bruscamente. "Nada de truques", disse, num tom contido mas que soou pior que um grito aos ouvidos do sumo mago. "Você compreende o verdadeiro sentido da palavra tão bem quanto eu e tão bem quanto aqueles que a empregam pelas tavernas. Você sabe que todo esse clamor do Egito advém do fato de que a pirâmide esta a ponto de ser concluída."

"A pirâmide jamais será concluída, Majestade", respondeu o sumo mago.

"O quê?" Dessa vez, Quéops realmente ergueu a voz. "Não venha me dizer para começar outra, como fez meu pai. Ou então quer que se destrua metade dessa que está aí para reconstruí-la depois? Hein?"

"Não, Majestade. Quando disse que a pirâmide jamais será concluída, eu tinha em mente a pirâmide de Vossa Majestade e nenhuma outra. Ela não necessita de uma irmã, nem de ser reconstruída."

"E, no entanto, está em via de ser concluída", insistiu Quéops, e ergueu a cabeça para procurar no horizonte a sua nuvem de poeira.

"O corpo dela se acaba, mas o espírito jamais", disse o sumo mago. E discorreu por muito tempo, numa voz tão monótona que Quéops por pouco não adormeceu.

"Quantos escalões faltam para atingir o cume?", indagou por fim o faraó, em voz baixa.

"Cinco, Majestade", respondeu o sumo mago. "Porém, o ministro da Pirâmide me explicou ontem que os escalões vão diminuindo ao se aproximar do topo. Falta assentar cerca de duzentas e cinquenta pedras, talvez até menos."

"Duzentas e tantas pedras", disse Quéops. "Então ela está praticamente terminada."

O que deveria ser uma exclamação de alegria soou como um grito de medo. Ele tentou sorrir, mas seu lábio inferior não obedeceu.

"Duzentas e tantas pedras", repetiu consigo. "Que horror!"

No céu, a coluna de poeira começou a se encrespar mais vigorosamente.

"Vai começar uma tempestade de areia", disse Quéops. Dentro do palácio, o ruído das lufadas de vento se abrandava. Porém, assim, abafado, parecia mais intenso, como um burburinho. Se alguém não tivesse tido o cuidado de recolher os documentos que Quéops havia deixado na sacada, os papiros teriam voado para longe. "Que vão para o diabo", pensou ele.

"Areias e falatório, eis o que é o Egito", dissera certa vez seu pai, Snefru, já às portas da morte. "Quem os dominar, dominará este país. O resto não tem importância."

Ele recordava aquelas palavras particularmente quando sobrevinham tempestades de areia. Ouvia distraído o bramido lá fora. Parecia que o Egito inteiro, erguido pelo vento, descomposto, desvairado, uivava. E também ele, o faraó, tinha ganas de bradar uma maldição: "Que a morte o leve! Que o diabo o carregue, reino demente!".


7. Crônica da construção

Crônica da construção. Quinto escalão. Pedras 197 a 100, conforme relatório do superintendente-geral Ises

 


Pedra 197, da pedreira de Assuan. Nada de especial a assinalar. Tempo de elevação nas rampas: normal. Grafites de soldados: sem nenhum sentido político (dois palavrões com menções aos órgãos genitais femininos, uma depreciativa e a outra carinhosa). Veios e outros sinais específicos: nenhum. Pedra 196. Da pedreira de Karnak. Dificuldades na elevação. SPAP (Selo de Permissão para Assentamento na Pirâmide) em ordem. Grafite banal: um pênis. Nada mais a registrar. Boato espalhado pelo pedreiro Seb, de que ouvira um gemido vindo do interior da pedra, sem fundamento. Pedra 195. Pedreira de El Bersheh. Atraso na elevação em razão do suicídio do mestre Hapidj, que se valeu da pedra para pôr fim à vida, ludibriando os transportadores ("Deixem este lado comigo, eu carrego, descansem um pouco"). Conforme as diretivas do mago da face ocidental, a aresta do bloco que provocou a morte ficou virada para fora. A fim de que o sol exorcize o mal. Para o caso de a alma de Hapidj ter passado para a pedra. Pedra 194. Da pedreira de El Bersheh. Matou quatro pessoas no deserto. Circunstancias das mortes extremamente obscuras. Elevação sem problemas. Selo e demais certificados em ordem. Assentamento sem incidentes, exceto pela amputação da mão do pedreiro Thep, no fim dos trabalhos. Este foi responsabilizado. Pedra 193. Da pedreira de Karnak. Selos em ordem. Não obstante, sofreu atraso no assentamento em razão de grafites considerados obscenos por alguns e políticos por outros. As inscrições foram devidamente copiadas e despachadas para baixo (digo, para cima). Cópia para a polícia secreta. Cópia para a Secretaria Central Faraônica. Pedra 192. Da pedreira de Assuan. Embora não apresentasse sinais particulares, teve uma elevação difícil. Provocou indiretamente o esmagamento, seguido de morte, do entalhador Chesh (este, por motivos desconhecidos, escarrou ao passar pelo centésimo escalão). Pedra 191. Da pedreira de Tebas. Uma das faces repleta de manchas negras. Foi devolvida em razão de diretiva especial. Durante a devolução, bloqueou a passagem por meio dia. Mas não matou ninguém. O aplicador do selo insistiu em afirmar que as manchas haviam aparecido durante a elevação. Pedra 191, substituição. Da pedreira de Illah. Alcunhada A Rubra durante a elevação, em razão de pontos e veios avermelhados. Nada de especial a assinalar. Tempo de elevação, habitual. Grafites sem interesse. Pedra 190. Da pedreira de Abussir. Nada de especial.

 

Crônica da construção. Terceiro escalão. Pedras 47 a 44. Do relatório da polícia secreta. Anotações da Repartição-Geral à margem.

 

Pedra 47. Da pedreira de Assuan. Controle duplo, em obediência às últimas instruções. Pragas rogadas durante o transporte: "Ela arrebenta minha alma. Tomara que se esmigalhe. Tomara que afunde". Bênçãos: "Que fique para sempre lá em cima! Viva a pedra!". Selo de assentamento em ordem. Liberação do mago, idem. Nenhum problema durante a elevação. Nenhum grafite. Pedra 46, da pedreira de Karnak. De uma jazida de qualidade. Proporção quase equivalente de pragas e bênçãos. Uma das bênçãos — "Sacrifiquei com alegria meu filho pela pirâmide" — diz respeito a um esmagamento provocado durante a descarga. Nenhum grafite (a desaparição dos grafites, graças ao reforço do policiamento, é considerada altamente satisfatória). Pedra 45. Da pedreira de Karnak. Da mesma jazida de qualidade. Pragas semelhantes às outras ("Tomara que ela caia lá de cima, que afunde" etc.), bênçãos idem. Provocou algum tumulto durante a elevação, por causa do idiota Setk, que sem ser impedido pelos mestres montou na pedra como num cavalo, gritando: "Eia, eia, anda, pangaré!" etc. O incidente foi considerado inofensivo. Tudo o mais conforme o previsto. Anotação à margem: a gritaria do idiota pode ter sido inofensiva, mas algumas de suas palavras eventualmente teriam duplo sentido. Por exemplo, os apelos à pedra, enquanto chicoteava seus flancos: "Vai, diabo! Anda! Você que é feliz, de ser levantada tão alto. Onde está seu pai? e seu irmão? Fundo, bem fundo. Por isso, toca a andar, diabo, o que foi que lhe deu? Só porque não pode chegar na pontinha? Queria ser o piramidion? Maluca...". Mais tarde, depois que enfim o apearam, o idiota pronunciou uma frase misteriosa: "Um dia essa pirâmide vai criar barbas!". Embora severamente interrogado e espancado por um dia inteiro, o homem não forneceu nenhuma explicação. Pedra 44. Da pedreira de El Bersheh. Uma das quatro pedras que caíram no Nilo, e a única recuperada. Daí o seu apelido, Afogada. Tudo mais — selos, segundo controle, tempo de elevação, assentamento — sem nenhum problema.

 

Crônica da construção. Penúltimo escalão. Pedras 9 a 5. Conforme relatório da Repartição Central.

 

Pedra 9. Da pedreira de Abu Gurob, na fronteira com a Líbia. Selos em ordem, porém o assentamento atrasou por causa de uma denúncia. Aventou-se a possibilidade de ela ter sido substituída durante o transporte por outra pedra, extraída não de uma pedreira mas de uma pirâmide antiga. O inquérito desmentiu essa hipótese. Pedra 8, da mesma pedreira. De primeira qualidade, como toda a produção de Abu Gurob. Reside aí a explicação da ciumeira que provocou. O diz-que-diz-que começou já na pedreira. Seguiu-a até Medinet Madi. Pensou-se que cessaria quando ela chegasse ao Nilo e fosse embarcada na balsa, mas não foi o que ocorreu. Ao que parece, acompanhou-a rio acima, para agarrá-la outra vez no desembarque. E assim até que o inquérito desmentisse os boatos. Pedra 7. Ainda de Abu Gurob. Foi apelidada A Bruta, Pedra do Azar, Pedra Má. Recebeu dezenas de outros apelidos, todos depois de ter rolado. Não se descobriram as causas iniciais do deslizamento. Ela se moveu lentamente do penúltimo escalão até o quinto. Julgou-se então que seria possível detê-la. Aumentou a velocidade a partir do nono. No décimo quarto, já avançava como louca. Saiu da rampa de elevação e tombou sobre o escalão produzindo um barulho terrível. Seu deslizar abalou toda a face setentrional. No décimo nono escalão, o medo tomou conta de todos. A pedra se rompeu em duas no centésimo vigésimo quarto escalão, onde a numeração se inverte. Um pedaço foi para a direita, o outro continuou pirâmide abaixo. No total, noventa mortos, sem contar os feridos. Danos incalculáveis. Um dia malfadado. Pedra 6. Da pedreira de Saqqarah. Apesar de ter matado duas pessoas, parecia um anjo em comparação com a anterior. Daí a chamarem de Pedra Boa. Pedra 5. Novamente de Saqqarah. Nada de especial a assinalar.

 

Anexo do enviado do faraó acerca da pedra 7.

 

Com a anotação "ultrassecreto" em vermelho. A descoberta da verdade a respeito do deslizamento da pedra 7 tem a mais alta importância. Descrevemos desde já os acontecimentos sobre os quais não há versões contraditórias ou pontos duvidosos. A comissão de inquérito se concentrou nos seguintes pontos: as causas do deslizamento; se se fizeram esforços para impedi-lo, quando isso ainda era possível, ou se fecharam os olhos; a descrição exata da trajetória da pedra; as reações ao deslizamento; atos heroicos, ou, ao contrário, demonstrações de covardia: "A pirâmide está desmoronando!". Outras opiniões duvidosas, do tipo: "Quanto maior a altura, maior o tombo" etc.

 

Relatório da Comissão de Inquérito.

 

NÃO HOUVE nenhuma advertência no que se refere à pedra 7, seja da pedreira, de onde costumavam vir as denúncias, sobretudo anônimas, seja dos transportadores, tanto em terra como no rio. A princípio o deslizamento foi quase imperceptível, a ponto de os pedreiros, descansando em volta do bloco, não acreditarem que a pedra se movia. Foi o mestre Sham quem falou primeiro: "Meu Deus, que que é isso... A pedra está se mexendo!". Mas os outros não entenderam, e até brincaram: "Só se foi você que empurrou, eu é que não fui" etc. Pouco depois, quando constataram que o bloco realmente estava escorregando, tentaram segurá-lo com as mãos, sem conseguir. Então o mestre Sham reparou que faltavam ganchos de contenção, e foi atrás deles; os outros também foram, mas já era tarde. A pedra escapou e, como se isso a enfurecesse, desembestou rampa abaixo. Pôs-se a dançar sobre a pista a partir do décimo escalão, e no décimo primeiro teve início a carnificina. No décimo terceiro, o superintendente Thut se pôs no seu caminho, gritando: "Viva o faraó!", mas virou uma massa de pastel. Só sobrou sua mão, que voou pelos ares, aumentando o pânico. A pedra estava no décimo quarto escalão quando saiu da rampa, tombou e começou a rolar. Foi nesse momento que o pedreiro Debeh gritou: "A pirâmide está desmoronando!" e, não se sabe por quê, avançou sobre o seu superintendente, cravando-lhe os dentes no pescoço. As pessoas se puseram a fugir, como num terremoto, porém tão apavoradas que algumas, em vez de se afastar, correram para o trajeto da pedra e foram esmigalhadas. No vigésimo escalão, dava para se ver o rasto de sangue, além de pedaços de membros e tufos de cabelo. A pedra de fato se dividiu em duas, mas um pouco antes do centésimo vigésimo quarto escalão. A insistência das testemunhas em afirmar que o rompimento ocorreu ali, onde começa o que chamamos numeração celestial do escalonamento, ou é uma leviandade ou possui tenebrosos significados políticos. O inquérito prossegue.


8. Ao pé do topo

 


ÀS VÉSPERAS da estação das secas, a aparência da pirâmide começou a se modificar rapidamente. As rampas de madeira foram demolidas uma a uma, deixando ver a inclinação, que já então parecia vertiginosa. Fora mantida apenas uma rampa, destinada à elevação dos quatro últimos blocos e da pedra do topo, o piramidion.

O terreno em torno também passava por uma limpeza. Desmontavam-se os alojamentos dos pedreiros já liberados, assim como a parte desativada dos depósitos, refeitórios e barracões. Todos os dias, carroças levavam embora fragmentos de basalto abandonados ao acaso, tábuas, andaimes quebrados, ganchos e toda sorte de sucata.

A nuvem de poeira sobre o canteiro de obras ia se dissipando, mas nem por isso os céus abrandavam. A poeira se espalhava em ondas ao redor, atingia a capital e ia mais além, até as províncias afastadas, onde as boas notícias, ao contrário das más, sempre demoravam a chegar.

Nesse meio tempo, na capital, as primeiras tavernas reabriam, ainda que timidamente. Também reapareciam aqui e ali as placas com os números das casas, retiradas, segundo um antigo boato, para que as pessoas esquecessem os endereços e não mais se visitassem para algum jantar. Multiplicavam-se a cada dia pelos muros os grafites escritos com carvão: "Construímos a pirâmide, agora queremos nos divertir!".

Os passantes balançavam a cabeça. "Agora é tarde", diziam. A alegria, como as chamas de uma fogueira feita com lenha molhada, demorava a crepitar.

O deslizamento de uma única pedra do penúltimo escalão bastara para sobressaltar a todos. Mas não era o inquérito que tornava os dias tristes. Algumas pessoas tinham a impressão de que as tardes de outros tempos, talvez mortas, enxameavam em meio ao povo, cheias de arrependimento. Outros sentiam que viviam uma outra vida naquele estio. Pensavam que, de todo modo, uma vez concluída a pirâmide, a atmosfera se desanuviaria e as coisas voltariam a entrar nos eixos.

Entretanto, a ordem de assentamento das quatro últimas pedras não chegava. Para não falar do piramidion, que, pelo que se dizia, estava sendo revestido de ouro, num templo secreto.

Ao crepúsculo, a rampa por onde ele subiria até seu lugar parecia uma fita delgada por onde só poderia passar um espectro.

Em volta do barracão onde haviam deixado as quatro últimas pedras, agora cercado de guardas não se sabia por quê, as pessoas não escondiam uma risadinha zombeteira. Sem dúvida aquelas pedras eram mais importantes que as outras, já que sustentariam o piramidion, mas, fosse como fosse, tratava-se de pedras e não de ministros para merecer uma guarda daquelas. Outros pensavam o contrário, ou seja, que os ministros vinham e se iam, ao passo que as pedras permaneciam para sempre.

Falava-se das pedras e do piramidion como se fossem gente. De um dos blocos, nem sequer se mencionava a pedreira de origem. Dizia-se que, ao chegar, ele estava manchado do sangue de alguém que esmagara ao longo da estrada. "E daí?", protestavam alguns. "Nós também ficamos esmagados aqui. Não há motivo para tanto falatório. Todo mundo sabe que o trajeto das pedreiras até a pirâmide não é nenhum passeio de grã-finas."

Quem tinha algum assunto para resolver na capital, retornava cheio de novidades. Haviam aberto novas tavernas, e os grafites se espalhavam cada dia mais pelos muros. Comentava-se que os jovens, da geração nascida após o início da construção da pirâmide, não sentiam tanto medo. Como eram crianças quando se ergueram os primeiros escalões, eles não sabiam o que fora a primeira fase, a mais terrível, em que a obra permanecia invisível ainda. Agora, a maioria das pessoas considerava que fora justamente a primeira fase a que mais atormentara seus espíritos. Depois, à medida que saía da névoa, a pirâmide fora se tornando menos aterrorizante. Isso era tão evidente que, quando acontecia de os jovens, não sem um tom crítico, interpelarem os pais sobre se o seu medo não fora exagerado, estes respondiam de imediato: "Vocês dizem isso porque não podem imaginar o que seja uma pirâmide que não se vê". Os jovens balançavam a cabeça, admirados: "Seria mais fácil acreditar no contrário".

Talvez tenha sido esse raciocínio — de que a pirâmide ao se materializar perdia seus poderes opressivos — que provocou nos círculos leais ao Estado, sobretudo entre os veteranos, certa nostalgia da primeira fase. Os jovens costumavam escarnecer da esperança dessa gente de retornar àqueles tempos. "Quero ver como se invisibiliza uma pirâmide", diziam, às gargalhadas. Mas os veteranos retrucavam com uma risadinha irônica.

Os boatos sobre uma nova pirâmide no início pareceram tão insanos que os ligaram não à nostalgia dos veteranos, mas aos disparates do idiota Setk, a quem foi permitido permanecer nas proximidades da pirâmide depois do comentário do mestre de obras: "Nunca se viu neste mundo um canteiro de obras que não tivesse pelo menos um maluco". Porém, em seguida foram evocados velhos acontecimentos cujo significado enigmático só iria se esclarecer mais tarde. Assim, por exemplo, o faraó Gjos, após a conclusão de sua pirâmide, cismara de agregar a ela quatro pavimentos gigantescos, prolongando por sete anos o prazo da sua construção. Já o faraó Snefru erguera três pirâmides, sem revelar qual delas continha o seu jazigo. Não era difícil deduzir daí que, toda vez que uma pirâmide se aproximava da conclusão, imediatamente surgia a ideia de se começar a construir outra.

No entanto, um incisivo pronunciamento do sumo arquiteto dizendo respeito aos rumores sobre uma nova pirâmide esclareceu que o faraó não queria nem ouvir falar naquilo. Duas semanas mais tarde, quando veio a igualmente peremptória condenação dos boatos sobre uma possível demolição parcial da pirâmide (comentava-se nas tavernas o desmonte, ora do cimo, ora de toda uma face, ou ainda uma reforma no acabamento), ficou ainda mais claro que não se tocaria sequer numa de suas pedras.

Só restava aos desencantados veteranos sonhar com a volta a seus tempos de rapazes, quando a pirâmide era apenas pó e caos, uma época cujo retorno parecia agora tão impossível quanto o seu próprio rejuvenescimento.

Entretanto, para seu desgosto, as tavernas que serviam de ponto de encontro dos jovens se tornavam cada vez mais barulhentas e, como se isso não bastasse, reabriam-se as lojas de perfumes, fechadas havia muito.

Certa noite, a chama de uma tocha tremulou por um bons tempo na encosta nordeste da pirâmide. Ora amainava, ora se agitava para a direita e para a esquerda, impalpável como um espírito. As pessoas que a seguiam de longe com os olhos ficariam ainda mais apavoradas se soubessem que era o mago da pirâmide, acompanhado de uma equipe de investigadores, que andava por ali. Eles haviam trabalhado em silêncio até o nascer do sol, aparentemente examinando, à luz da tocha, algo que devia estar oculto nas profundezas da obra, um ogro trancafiado, sabe-se lá quando, ou, pior, um segredo ou um crime que desejavam esclarecer.

Boa parte do que se comentava nas repartições ou nos botequins ultrapassava com incrível rapidez as fronteiras do Egito. Entorpecidos pelo esforço de decorar seus relatórios, os espiões partiam às pressas para seus países, retornando duas semanas depois com novas instruções. Às vezes acontecia de, durante a viagem, esquecerem parte do relatório ou de este se modificar por si próprio na cabeça deles, do mesmo modo que a cerveja azeda quando fica muito tempo no odre, o que não deixava de provocar perplexidade em seus superiores.

O único que não passava por tais apuros era o embaixador sumério. Nem o calor do sol a pino, nem o frio, nem mesmo o enlouquecimento de seus emissários, mudavam uma vírgula nas placas de argila onde entalhava seus relatórios. Tudo marchava às mil maravilhas, com a única exceção daquele assunto da fumaça, que, nos círculos diplomáticos, metamorfoseara o velho provérbio: "Onde há fumaça, há fogo" em: "Onde há fumaça, há relatório".

Em todo caso, e após uma semana de labuta, o embaixador estava por demais satisfeito. Acabara de despachar para a sua capital o último relatório, talvez o melhor de todos os que redigira em sua carreira. Embora já passasse da meia-noite, e duas ou três queimaduras ardessem em suas mãos (o relatório era tão urgente que as placas deviam ser despachadas assim que saíam do forno), ele, finalmente deitado ao lado da esposa, pôs-se a acariciá-la cheio de desejo.

Pouco mais tarde, ao se afastar dela e se deitar a seu lado, como costumava agir depois de fazer sexo, a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi o relatório recém-enviado. "Já deve estar esfriando", pensou, preguiçosamente. Tal qual o corpo de sua mulher. Procurou imaginar como a friagem do deserto penetraria através das arcas até atingir as placas de argila. Elas continuariam esfriando. Pela manhã já estariam geladas.

Sabe-se lá por qual motivo, mesmo após tanta fadiga, o sono parecia fugir dele. Talvez o relatório é que o impedisse de descansar. Tentou pensar em outra coisa, mas logo lhe ocorreu que caso fizesse o contrário, rememorando-o em detalhe, era possível que conseguisse adormecer.

Não fora nada fácil. Cento e vinte e nove placas no total: "Um autêntico monumento", haviam comentado seus assessores. Tratou de evocar as onze primeiras placas, onde fazia, à guisa de introdução, uma descrição genérica da conjuntura, mas, entre a placa 3 e a 7, surgiram-lhe inexplicavelmente as imagens de uma ovelha afogada e de um espelho empoeirado na sala da casa de seu tio, na região de Kyrkyr, perto da capital, na tarde em que o velho se suicidara.

A rigor, a primeira novidade relevante aparecia entre a placa 15 e a 21, quando ele revelava a seus superiores que, ao que tudo indicava, era de se esperar a eclosão de acontecimentos extraordinários no Egito. Ele conseguiu repetir consigo mesmo quase cada palavra da placa 14: "A importância atribuída ultimamente a um incidente banal, o deslizamento de uma pedra, chegando-se a apresentá-lo como obra de inimigos do Estado (na realidade, há observadores convictos de que o deslizamento foi causado pela própria polícia secreta), evidencia que uma nova onda de violência estatal está para acometer o Egito".

A análise das causas da situação era uma verdadeira obra-prima. Desdobrava-se desde a placa 39 até a 72, que constituíam o âmago do relatório... "Cuidado", advertiu silenciosamente o condutor da pesada carroça. O medo de que o veículo quebrasse e as placas fossem para o chão o torturava toda vez que expedia um relatório. Afligia-se em especial como centro da mensagem... Por ali passava o eixo... ali residia, quem sabe... a câmara mortuária.. "Oh, céus!", gemeu. "A pirâmide dos egípcios está acabando com todos nós..." Apesar de seus esforços para esquecer a pirâmide, não podia deixar de fazer a comparação... O sexo de sua mulher nos últimos tempos também lhe parecia, quando ele o penetrava, aterrorizante, repleto de mistério, talvez com uma câmara mortuária nas profundezas...

Reconduziu o pensamento à análise das causas. Empenhara-se em ser tão claro quanto possível ao demonstrar que a conclusão da pirâmide aparentemente trazia consigo certa reanimação da vida. E que esta acarretava uma espécie de détente ou afrouxamento que causava grandes inquietações no Estado egípcio. Por algum tempo, obedientes ao velho mau hábito de culpar o Estado sumério por tudo, os ministros haviam atribuído a indolência à influência da Babilônia. Fora até retomada a antiquíssima analogia entre as pirâmides faraônicas e os canais da Mesopotâmia, à primeira vista duas coisas tão distantes entre si como a água e a pedra, mas, na verdade, ambas pilares de Estado. Tais evocações acabavam levando ao raciocínio, perigosíssimo segundo os egípcios, de que os canais babilônicos ao menos beneficiavam as pessoas, irrigando as terras, ao passo que as pirâmides, ao não fazer nada, fugindo a qualquer compromisso, eram a mais límpida encarnação do poder etc. Pois bem, haviam procurado explicar as coisas dessa maneira, até se verem obrigados a admitir que a tensão não vinha dos sumérios ou de seus canais, mas da própria pirâmide. Agora que se concretizava, ela já não tinha o condão de oprimir o Egito como outrora. O país escapava à pressão. Numa palavra, a julgar por todas as aparências, fugia-lhe. A terceira parte era também o coroamento do relatório: da placa 90 à 122. Abusca de alternativas. Fragmentos de informações colhidas em reuniões secretas. Rumores sobre uma outra pirâmide, cujo projeto já estaria em curso. Sobre a demolição e a reconstrução de uma parte da obra. Sobre investigações acerca de um erro fatal...

O embaixador se ergueu nos cotovelos para não adormecer.

Quantas vezes, quando o sonho se aproximava, parecera-lhe que ela caía por terra! Vinham homens e fantasmas, tomavam pedra por pedra e se iam noite adentro. O sumo mago e o arquiteto a rodeavam, instavam-na a conceber, mas ela era estéril. Tal como sua mulher. Quem sabe não ergueriam outra pirâmide, como uma concubina? E quanto tempo mais iria durar aquilo, de escalão em escalão, de tormento em tormento, meu Deus?!

Ao que parecia, o Egito era incapaz de viver sem aquela corcova. Essa era a frase inscrita na placa 122. Ali ele entalhara a observação de que, mesmo que não construíssem outra pirâmide, ou não cobrissem de mármore a que acabavam de concluir, alguma coisa haveriam de fazer. Alguma coisa, sem falta, haveriam de imaginar... de projetar...

Assim lhe ocorriam as placas 123 e 124, sombrias e repletas de maus agouros. Logo a seguir, como uma falsa esperança, surgia a 125, e em contraste com ela as previsões que a sucediam ficavam ainda mais sinistras. A placa 127, um tanto queimada, tinha o mesmo tom, e a penúltima, a 128, era igualmente impiedosa; parecia até que ele a hasteara a meio pau, como uma bandeira em dia de luto. Acima de todas as outras, qual um verdadeiro piramidion, imperava o raciocínio conclusivo entalhado na última placa, a 129: era de se esperar que um inverno de terror como nunca se vira antes se abatesse sobre o Egito.

O embaixador deitou a cabeça no travesseiro, com cuidado, como se ela fosse de porcelana, mas o sono lhe escapou outra vez. O pensamento retornou à carroça que percorria o deserto do Sinai. Agora, as placas de argila, todo o seu relatório, deviam estar geladas como um cadáver.


9. O inverno da devassa geral

 


EMBORA em qualquer estação pudessem ocorrer devassas, apenas o inverno daquele ano recebeu essa denominação. A devassa se colou de tal forma a ele que, em dado momento, acreditou-se que iria substituí-lo por completo. Tudo apontava nesse sentido. Então, as coisas chegariam a um ponto que, no fim do outono, as pessoas olhariam para o céu e, em vez de dizer: "Olhe só, chegou o inverno", diriam: "Olhe só, chegou a devassa", ou: "Veja como a devassa chegou cedo este ano". As crianças, nas escolas, acompanhando o bastão usado pelo professor repetiriam a frase "O ano tem quatro estações: primavera, verão, outono e devassa", e assim por diante. Sem dúvida, era o que aconteceria, apesar das medidas preventivas apresentadas pelo linguista A. K., o qual, na terceira carta de denúncia de seu desafeto Jaqub Har, insistia que este fora o primeiro a ter a ideia de tal substituição, e até, de acordo com os dados que A. K. tinha em mãos, pretendendo completá-los integralmente para os apresentar ao soberano — grande devasso esse Jaqub Har —, alimentava a ideia maligna de assim chamar não só a estação hibernal mas todo o tempo, ou seja, de substituir a palavra tempo pela palavra devassa. Sempre conforme a terceira carta do denunciante, o renitente Jaqub Har, após sucessivas tentativas fracassadas de engravidar sua esposa, que havia muito deixara de ser uma mocinha, julgava que o tempo tinha se esgotado neste mundo, e a humanidade passara a ficar fora dele; portanto, era preciso tomar emprestado o tempo de um outro mundo, por certo o mundo dos desertos, ou o dos cães, ou o dos chacais. Pois então, era o que se daria, a despeito das medidas profiláticas prescritas por A. K., enumeradas de um a dezenove, entre as quais se incluía a castração de Jaqub Har, não fosse o fato de que a devassa continuou primavera adentro, com um ímpeto ainda maior; desse modo, caso o inverno fosse rebatizado "devassa", a primavera teria que se chamar "hiperdevassa", e no que toca ao verão, até aquele momento não havia uma palavra adequada para ele, tamanho fora o aumento da repressão, e muito menos para o outono, que demorou como nenhum outro, a ponto de se especular se ele chegaria mesmo um dia, especulação esta incitada, sempre segundo A. K., pela famigerada teoria de Jaqub Har.

Assim, apenas o inverno recebeu aquela denominação, pelo simples motivo de que as pessoas mantiveram sua habitual tendência a recordar mais fortemente não o centro das calamidades, mas suas extremidades, ou seja, seu princípio ou seu término, e no caso em questão, como ainda não havia nenhum sinal de fim, todas as lembranças se voltaram para as margens do abismo.

Em geral, as devassas se assemelham as construções: quanto maiores são, mais necessitam de fundamentos sólidos. O peso da sombra que uma devassa projeta depende, entre outros fatores, do tempo e do lugar em que se cometeu o crime. A devassa de um crime ocorrido duas ou três semanas antes, embora, por estar ligada a um caso recente, pudesse ocasionar abalos, justamente por causa dessa proximidade enfrentaria também o risco de ser tomada como um acontecimento fortuito. Já se se tratasse, por exemplo, da devassa de um crime perpetrado quarenta anos antes, embora à primeira vista assumisse proporções majestosas, indicando que nada escapa ao Estado, ainda se coberto por meio século de poeira, correria o perigo inverso de provocar tormentos um tanto amainados, como os de um terremoto de epicentro distante.

A devassa daquele inverno não chegava a tais extremos. Mergulhava numa profundidade temporal média, em torno de sete anos, um prazo mais que suficiente para aterrorizar pelo menos duas gerações.

Quanto ao local do crime, era efetivamente inusitado. Das duas dimensões espaciais mencionadas pelas investigações, as numeráveis (a cova onde se encontrava o cadáver, o lugar do assassinato etc.) e as inumeráveis, também chamadas dimensões do impossível (delírios de uma sogra louca, pesadelos etc.), a nova devassa dizia respeito não a uma em especial, mas a ambas.

Em síntese, conforme os relatos oficiais, a chave do enigma a ser desvendado pela investigação se achava encerrada no interior da pirâmide, em algum ponto entre o centésimo e o centésimo terceiro escalões, à direita do eixo, ali em meio às trevas onde as pedras se comprimem em infindáveis sofrimentos que nem a razão nem a desrazão humana podem conceber.

Dessa forma, o enigma se mostrava a um só tempo indecifrável e decifrável. Inacessível, pois nem em sonhos se aventaria a demolição da pirâmide, ao menos essa era a opinião geral. Contudo, havia quem insistisse em conjeturar: e se um belo dia Quéops, possuído pelo tédio ou pelo calor, fizesse o infactível, o que nenhum faraó jamais ousara, e ordenasse a demolição da pirâmide, escalão por escalão, até atingir o antro do mal?

A ambivalência do enigma apavorava a todos: ali estava ele, a apenas alguns metros de distância, envolto num manto de pedras, tal qual um vivo que repousasse numa cova e matutasse se pertencia a este mundo ou ao outro mas na verdade partilhasse os dois.

Já então estava claro que tudo começara com os uivos de um chacal, em certa noite de lua cheia, sete anos antes. O animal seguira um dos blocos de pedra, passo a passo, desde a pedreira de Abussir, atravessando o deserto de Saqqarah, até os arredores de Mênfis, e tanto esse itinerário como demais pormenores haviam sido comprovados. O mago Djezerkaresneb passara uma noite inteira nos flancos da pirâmide, com um archote, buscando detectar a pedra por meio dos movimentos da chama. Pelo cotejo de suas conclusões com outros testemunhos, e principalmente depois do exame das faturas de entrega da pedreira, das guias de transporte da Diretoria das Balsas e Navegação Fluvial, do primeiro e do segundo controles, assim como graças a outros cálculos complexos, aparentemente sem o mais tênue vínculo com o acontecido, apurou-se que a pedra fatal era a 244903 da face sul, ou, conforme o inventário geral, a pedra registrada sob o número 92 24919596.4.

A cifra soava um tanto esquisita, porém a atenção de todos se concentrava no que havia de estar oculto na pedra, e não na numeração.

A maioria tinha em mente um papiro, ou em outras palavras um dossiê secreto, uma ameaça ou um documento vindo de outro tempo, se é que era verdade que a torrente temporal podia mudar repentinamente de rumo ou de ritmo, como, ao que se dizia, afirmara Jaqub Har.

Não obstante a esquisitice do número da pedra, a determinação de qual era ela serenou um pouco os ânimos. Pelo menos se sabia que se tratava de um bloco extraído de uma simples pedreira, cortado por canteiros, sob o controle dos olhos complacentes ou coléricos de um superintendente, marcado com um selo pelo responsável do depósito, levado até uma balsa de oito remos, instalado a seguir num carro de bois, cujos carreiros haviam gritado e blasfemado o caminho inteiro, como fazem todos os carreiros, tinham se embebedado, cuspido ou violentado alguma felaína bem no meio de um lodaçal onde, depois de muito rolar na lama, todos sujos, não poucos violentadores emporcalhados haviam terminado por se violentarem uns aos outros. Vinham depois os contabilistas das repartições centrais, os controladores, os transportadores (os quais levavam a pedra à plataforma que deslizava pela rampa), os elevadores, os superintendentes e por fim os assentadores.

Somando-se todos, não passavam de quatrocentos, no máximo seiscentos. Ocorria, no entanto, que a pedra fora extraída e assentada sete anos antes; logo, uma boa metade dos ameaçados já não pertencia a este mundo. E mesmo que prendessem a todos, juntamente com suas famílias, seus conhecidos e companheiros de taverna, ou ainda que incluíssem as namoradas e os que haviam se deixado contagiar por suas doenças, por mais que se fizesse, o total não passaria de duas ou três mil pessoas, um punhado de gente, comparado com a enorme população que enxameava no Egito.

Acontece que o alívio durou pouco. E foi o número da pedra que reacendeu a primeira onda de temores. A princípio se afirmou que dois algarismos do número podiam ter sido invertidos, ou sumariamente engolidos pelas cifras vizinhas. Mas isso não era nada perto da desgraça seguinte: a julgar por todos os dados, a numeração da pedra era completamente falsa. Em outras palavras, sabia-se qual era a pedra em questão, porém o seu número (por razões que todos imaginavam, como o sigilo das investigações, a contrainformação para desorientar os inimigos etc.) fora escandalosamente falsificado. O escalão onde se localizara a pedra não correspondia ao número. Nem as coordenadas correspondiam ao eixo.

Bastou isso. Poucos dias depois, parecia que o Egito tinha desfalecido. As chamadas últimas notícias, a custo balbuciadas, arrastavam-se em todos os sentidos. Mencionou-se outra cifra, que situaria a pedra numa profundidade bem maior, o décimo quinto escalão, aproximadamente no mesmo nível da câmara mortuária do faraó. Depois correu o rumor de que a culpa não cabia a uma pedra, e sim a todo um escalão, ao que parecia o centésimo quarto. Em seguida, mencionaram-se outras pedras, outros escalões, ou trechos de escalão; assim, ninguém mais se sentia seguro. Nas tendas que vendiam favas, certas pessoas até pouco tempo gostavam de relembrar o trabalho na pedreira de Abu Gurob, no décimo ou décimo primeiro escalão, ou ainda na manufatura de portas falsas, setores alheios a qualquer suspeita, o que lhes dava o direito de dizer: "Pois é! No nosso tempo o trabalho era correto, as malandragens apareceram depois". Todavia, de súbito, em face da notícia de que a devassa se aproximava justamente de seu escalão, trancavam-se em casa e punham emplastros na cabeça, com medo de enlouquecer.

Entretanto, ao contrário de outras vezes, não ocorria nenhuma prisão, o que tampouco era uma boa notícia. A única coisa que lembrava as devassas anteriores era o esvaziamento das ruas e feiras. As lojas de perfume foram, como sempre, as primeiras a fechar. Depois, uns após outros, deixaram de funcionar os armarinhos, as tavernas e os botequins.

"Estou vendo o Egito, mas onde andam os egípcios?" Dizia-se que fora essa a reação do ministro das Relações Exteriores sumério ao sair para um passeio de carruagem pela capital, depois de ter sido recepcionado por Quéops.

Embora os transeuntes escasseassem, após algum esforço o ministro havia encontrado um sujeito solitário que aceitara conversar: Juju, o beberrão.

"Quer saber onde se enfiaram os egípcios?", dissera Juju, pousando os olhos lacrimosos na fachada de um botequim fechado. "Nos puteiros das mães deles, onde mais?"

A seguir, dirigiu um gesto de cortesia à esposa do ministro, xingou o condutor da carruagem e se afastou num passo incerto.

Pouco a pouco a devassa ia comprometendo a todos, que, mais do que em qualquer outra ocasião, formavam uma multidão enorme. Gente que nunca trabalhara na pirâmide, que por razões de saúde nem sequer pisara numa pedreira ou num escalão, aristocratas cheios de achaques e praticamente entrevados, mulheres da alta sociedade que jamais saíam da cama antes do meio-dia, adolescentes lascivos, padres, eunucos perfumados — agora estavam todos ali, na mesma poeira suja, misturados e confundidos com os que de fato tinham erguido a pirâmide.

Algum fio das investigações sempre enredava alguém, arrancando-o da apatia para transportá-lo até o ponto de partida de seus pecados, sete, quatro ou catorze anos antes. E se por acaso o envolvimento tardava, o próprio sujeito, ansioso por evitar complicações ainda piores, sem querer puxava o fio e terminava enovelado. Assim, deixando o corpo na cama quentinha, os espíritos em pânico partiam antes do raiar do dia para expiar sua culpa, tal qual as legiões de construtores de outrora, sob o açoite e o sol tórrido.

A devassa continuava a se ocupar dos falsos números. Desse modo, à maneira dos cegos, eles procuravam cada qual suas pedras ou escadarias, subiam e desciam sem parar, murmurando: "Não, não é essa, foi na 44 que eu caí". Chamavam uns aos outros aos soluços, consolavam-se, acusavam-se mutuamente, imploravam clemência. Outros batiam às portas falsas, com a voz já irreconhecível: "Tem alguém aí?", indagavam. "Aqui são as trevas, meu Deus! Aqui está gelado!" E tinham estranhas visões.

Já então ficara óbvio para todos que, assim quase concluída, a pirâmide provocava dez vezes mais tortura e sofrimento do que quando era só um canteiro de obras deserto. Ao divisá-la ao longe, pela manhã, lisa, fulgurante e fria em seu silêncio, com as faces e os ângulos impecáveis, as pessoas duvidavam do que viam. Seria possível que aquela forma tão perfeita fosse uma máquina de moer gente, a funcionar dia e noite? Estavam a ponto de acreditar que, ao cair da tarde, seu corpo se transfigurava, e os escalões, os blocos de suporte e todas as pedras, libertando-se de seu eixo, tomados de um impulso selvagem, salpicados de pó e sangue, agitavam-se ruidosa e desordenadamente, apenas para promover matanças.

Enquanto isso, a devassa prosseguia, e as cifras continuavam falsas; portanto, as multidões não cessavam de trepar pela pirâmide, exatamente como antes. Entoavam queixumes: "Você me liquidou, ó sétimo escalão!", ou: "No terceiro, no terceiro, perdi a vida por inteiro". Estes com frequência se misturavam aos gritos durante o sono: "Pedra 10 235,16 vem a 10235, afastem-se!".

A confusão se instalou sobretudo na altura em que a numeração se invertia. Contavam-se às centenas as pessoas que erravam nesse ponto. Sem ter como se orientar, as que estavam em posição normal se sentiam repentinamente virar de ponta-cabeça, e vice-versa, emaranhando-se, agarrando-se umas às outras, espumando e chorando todas ao mesmo tempo.

Tanto os maltratavam a balbúrdia e a poeira que muitos deles sonhavam apenas com ordem e precisão, não importando seu preço. Matutavam, por exemplo, que até que não seria ruim se costurassem na manga ou mesmo atrás da túnica os números dos escalões, das pedreiras e das pedras nas quais eles e seus familiares trabalharam, para que as coisas ficassem bem claras. Não haveria nada de mais se, na tenda que vendia favas, alguém pudesse gritar: "Ei, você, do quinto escalão (ou da pedra 500 000, ou da pedreira Gurnet Murai, ou sabe-se lá de qual diabo), não fure a fila!". Mesmo que o vendedor ou o policial os interpelasse, ao menos poriam fim àquela louca incerteza em que todos desconfiavam de todos, em especial o vigilante do bairro. Nas tardes repletas de tédio, nem bem chegava a notícia de que todo o setuagésimo terceiro escalão era composto de traidores, o vigilante, que já os seguia com o rabo do olho havia uma semana, cravava um olhar despudorado nos suspeitos: "Será que você não era um daqueles espertinhos?". Então seria possível esfregar a manga bem no nariz dele (melhor ainda se fosse uma manga vazia, sem braço): "Alto lá! Eu sou do quarenta e um, entendeu? Vá procurar outro para atormentar com esses olhares de esguelha, comigo isso não pega, pois você ainda estava nas fraldas quando perdi o braço na pedra 302 059, entendeu?!".

Assim falavam, enquanto sentiam que alguma coisa se fazia ou se desfazia em sua alma. E assim alternavam também seus sentimentos em relação à pirâmide. Num dia reverenciavam sua perfeição, só ambicionando pertencer a tamanha harmonia, vinte e quatro horas mais tarde a maldiziam, culpavam-na de tudo, para então culpar a si próprios, depois ao destino, e em seguida se prostrar em adoração, no outro dia arremeter coléricos, e assim por diante.

Os novos tempos haviam modificado a interpretação de velhos provérbios, alguns entalhados em obeliscos mas na maioria transmitidos de boca em boca, segundo os quais a pirâmide era o ponto de encontro entre o céu e a terra, tornava a luz de uns e as trevas de outros, consumava em suas entranhas as relações entre as pessoas, ou talvez os acordos, ou ainda os incestos, ou sabia Deus o quê.

Mas ninguém punha em dúvida que algo ocorria ali dentro. Do mesmo modo que a luz se convertia em treva sob a insuportável pressão das pedras, para a seguir se transmudar de novo em luz, dessa vez sob a aparência de diamantes, também a adoração, depois de se transformar em cinzas de ódio, renascia sob novas formas.

Por mais entorpecidas que estivessem as mentes, todos se davam conta de que, antes de aspirar a luz ou o esperma celeste, a pirâmide facilmente sugaria toda a seiva do Egito. Alguns julgavam que ela devorara o país desde muito antes, já no tempo da construção, enquanto agora apenas o ruminava, tal qual um boi rumina o capim que pastou.

Da mesma maneira que antes, a devoração era vista por uns como uma desgraça e por outros como uma grande sorte. Um novo Egito está nascendo de toda essa canseira e compressão, diziam os últimos, um Egito límpido e luminoso como cristal. — Bendita pirâmide!

Enquanto isso, a devassa prosseguia. Obedecendo a um antigo costume, todo fim de semana as pastas e arcas com o registro dos depoimentos eram transportadas, em cavalos cegos, dos gabinetes que cuidavam da investigação para o templo de Amon, retornando aos investigadores antes do pôr-do-sol. Comentava-se que os objetos mais disparatados se achavam misturados ali, desde relatórios ainda não decifrados dos informantes de Troia, dentes podres, ganchos que a velha Bent Anat usava para provocar abortos em prostitutas, pedras do primeiro escalão, todos os três mil oitocentos e dois nomes dos que trabalharam no décimo segundo escalão, um pedaço da corda usada no suicídio do embaixador dos sumérios, a palavra orfanato, pela qual, segundo o denunciante A. K., seu rival Jaqub Har pretendia substituir o nome do Egito, apresentando-o injustamente como o país dos órfãos, escorpiões esmigalhados, palmas, versos de duplo sentido, areias do oásis de Farafras, onde se suspeitava que o mago Sa Met teria amaldiçoado o Egito na noite anterior a sua fuga, até os restos do célebre chacal, aquele que acompanhara com seus uivos a pedra cujo número e cuja pedreira de origem eram desconhecidos, na fatídica noite de meados de outubro que dera início a todo aquele terror.

Ninguém, nem sequer os investigadores, tinha noção de quais normas haviam orientado o ordenamento dos registros; por isso, era impossível entender, por exemplo, por que a canastra contendo a roda extraída do pântano de Behdet, suspeita de pertencer ao coche do cônsul fenício, o mesmo que fornecera poções de veneno ao vizir traidor Horemuj, guardava também o poema "Velha pedreira", do poeta Nebunenef, assim como a maldosa interpretação de seu colega de profissão Amen Herunemef afirmando que a ternura extremada do autor pela antiga pedreira de Luxor, fornecedora das pedras dos quatro primeiros escalões da pirâmide, não passava de um sinal de descontentamento, para não dizer de rancor, contra o Estado, sentimento que transparecia nitidamente em especial nos versos: Sozinha agora À luz da lua fria, Recorda a juventude E as pirâmides que paria...

Porém, mais difícil ainda era entender por que o mesmo arquivo do poema continha as entranhas da mulher do embaixador dos sumérios, assim como os papiros com o registro do inquérito sobre o idiota Setk, com destaque para suas declarações, julgadas suspeitas, a respeito da barba que a pirâmide haveria de criar, além da pergunta do inquiridor: "E então, agora que lhe arrancamos os pelos, vai confessar ou não vai?", e a resposta do maluco: "Não tenho o que confessar, aquilo que eu disse está dito, ela vai criar não só barba mas também olhos e até dentes", após o quê, subentendia-se que haviam arrancado igualmente os olhos e os dentes do interrogado, o que talvez não ocorresse se ele próprio não o tivesse sugerido.


10. O fim da obra.

A pirâmide reclama sua múmia

 


QUANDO a pirâmide foi concluída, os habitantes da capital, os primeiros a saber, ficaram atônitos. A maioria punha a mão em concha num dos ouvidos para escutar melhor: "A devassa? Acabou?". "Que devassa, meu amigo, foi a pirâmide!" "Ah, a pirâmide..."

Eles ainda traziam os ombros cobertos do pó de um outro canteiro de obras, e em seus ouvidos não haviam cessado de repercutir os gritos dos inquiridores: "E no octogésimo primeiro escalão? Nunca esteve lá? Mas o que você andou conversando com os carregadores da 1502? Diga logo, já sabemos de tudo". Assim, fazia tempo que mostravam total desinteresse pelo que podia estar acontecendo na pirâmide de Gizé.

Entretanto, a pirâmide, como num sonho, de fato estava pronta. Concluíra-se o revestimento de pedras polidas na face norte e em trechos menores, deixados sem acabamento por algum motivo estranho (paulatinamente, as delgadas placas calcárias ocultavam as pedras rudes, as autênticas, vindas de tão longe em meio à poeira e ao mistério); assentaram-se as quatro últimas pedras retardatárias (a ordem do assentamento fora trazida num fim de tarde, por um mensageiro com o rosto envolto num manto negro), e, por fim, acrescentara-se a pedra do cume, o piramidion, revestido de ouro. O brilho deste, antes do nascer da lua, despertava uma espécie de comiseração, ninguém sabia por quê. Depois do assentamento do piramidion, até o amanhecer do dia seguinte, esperara-se que o céu por ele arranhado cobrisse a obra de sangue. Ao se constatar que isso não tinha acontecido, imediatamente, do mesmo modo que se corta um cordão umbilical, retirou-se a última rampa de madeira, derradeiro vínculo do cimo da pirâmide com o chão.

Embora as atenções em geral fossem atraídas pelo que acontecia no exterior e no alto da pirâmide, trabalhos ainda mais vultosos ocorriam embaixo dela e principalmente em seu interior. Foram cerrados os portões de granito preto, depois as portas falsas, cuja falsidade ninguém imaginava, em seguida as outras portas, sobre as quais seria até bom que recaísse a suspeita de que conduziam apenas a corredores sem saída, e assim por diante. Os "pedreiros da morte", como eram denominados os que trabalhavam nas obras internas, sentiam uma permanente dor de cabeça. Comportavam-se como se não desconfiassem das falsas portas deslizantes, nem das portas que eventualmente podiam ser verdadeiras mas seria melhor supor serem falsas, ou justamente o contrário disso tudo. Então, confundiam-se a tal ponto que já não sabiam o que pensar — se seria melhor empreender determinada tarefa ou se entregar nas mãos do destino. Andavam em círculos qual malucos, fingiam gargalhar, suspiravam, continham-se, fingiam não fingir, até se estafarem por completo.

No último dia, ao deixara pirâmide, com as faces macilentas, e dar com os soldados que os aguardavam lá fora, de machado em punho, compreenderam quão tola tinha sido sua movimentação pelos labirintos internos, os fingimentos, os falsos fingimentos diante de portas falsas ou verdadeiras que conduziam a corredores sem saída etc. Perceberam que seu destino estava selado desde aquele dia de novembro, vinte anos antes, em que o sumo arquiteto Hemiun lançara no papiro o primeiro esboço da pirâmide. Assim como a altura da obra, sua orientação pelas estrelas, a inclinação, a distribuição do peso esmagador das pedras etc., em meio a tantas cifras e cálculos houvera com certeza um sinal, talvez um sinal até discreto — a letra M, por exemplo —, decretando a sua sentença de morte. Sem esta, não seria possível efetivar o mecanismo do fechamento, tal como fora concebido, seguro, indecifrável pelos séculos dos séculos, o que queria dizer que sua execução era parte integrante da fórmula da pirâmide.

Já de joelhos diante dos machados dos soldados, até o último instante eles alimentaram a esperança de, quem sabe, constituir o reduzido grupo dos que teriam a vida poupada, aqueles que abririam a entrada secreta no dia em que o corpo do faraó fosse habitar a pirâmide. O sumo arquiteto designou com a mão os agraciados. Doze homens no total. Os outros, agora sem qualquer esperança, curvaram a cabeça, uns tantos dirigiram algumas palavras a suas famílias, a maioria deu vivas ao faraó. Apenas dois deles bradaram: "Morte a Quéops!".

O sangue que se esperara no cimo da pirâmide, onde o céu fora arranhado, jorrou ao pé da montanha de pedras.

Ao amanhecer, os doze subiram em carruagens e partiram com destino ignorado. Enquanto se afastavam, não despregavam os olhos da parte superior da pirâmide, ali onde devia estar a boca do poço por onde sairiam no dia do sepultamento de Quéops, depois de fechar por dentro todas as portas, uma após outra.

Sabiam que morreriam ali, assim que pusessem a cabeça para fora, porém o topo ficava distante, e a multidão que acompanharia o funeral, ao pé da pirâmide, com certeza não veria o sangue manchar as pedras.

No entanto, esse dia ainda demoraria a chegar. A vida deles dali por diante estaria ligada à do faraó por uma corrente de ouro, e essa ideia lhes incutiu subitamente uma alegria tão grande que se puseram a cantar, ou melhor, julgaram que se tinham posto a cantar, pois o que na realidade saiu de sua garganta foi um medonho estertor.


As famílias dos pedreiros cujas vidas foram poupadas esperavam festejos na noite da inauguração, no dia seguinte e também depois, até o fim da semana, mas, em vez de convites para banquetes e eventos, receberam as línguas dos trabalhadores, que haviam sido cortadas.

A capital estremeceu de pavor. Mais que a ablação, que era uma prática comum (havia mesmo certos postos de responsabilidade, no arquivo da polícia ou no palácio do faraó, por exemplo, reservados apenas aos que aceitavam perder a língua), pois bem, mais que a ablação em si, o que aterrorizava as pessoas era ver os arautos espalharem as línguas pela cidade e, acima de tudo, constatar que cada uma delas estava envolta num papiro com as armas faraônicas.

Todos compreenderam: tratava-se de uma advertência. Como era de se esperar, a capital emudeceu ainda mais. O mutismo alcançou tais proporções que o linguista Jaqub Har, segundo uma denúncia recente de A. K., previu que, a continuar naquele ritmo, o vocabulário egípcio seria reduzido à metade em três anos, e no fim de uma década não contaria mais que trezentas palavras, podendo ser aprendido até pelos cães.

Na verdade, o silêncio generalizado não se devia somente ao medo. Já fazia algum tempo que tudo ia emudecendo — fenômeno que atingia até as repartições incumbidas de espalhar boatos aterrorizantes. Não se percebia a sonoridade de antes nem no tambor do arauto do faraó, nem nos inquiridores, nem mesmo no ranger das portas ou no tinir dos grilhões. As pessoas padeciam de sofrimentos mais ou menos remotos. Alguns se agitavam na cama por não suportar o vazio da câmara mortuária. Outros se afligiam com a opressão sem fim a que estavam condenadas as pedras. Queixavam-se demasiadamente, como se algo houvesse prendido suas roupas ali impedindo-os de se afastar.

A exaustão chegara até onde menos se esperava: à devassa. A areia invadia os arquivos, e algumas testemunhas envelheciam tão depressa que se tornavam irreconhecíveis logo na segunda acareação com as vítimas.

Diferentemente dos meses anteriores, crescia o número das pessoas que se dirigiam sozinhas para a pirâmide. Ali, cada uma procurava em silêncio o escalão onde a tinham delatado, ou onde ela delatara alguém; caminhava para um lado e para o outro: "Não é aqui, meu Deus, é mais adiante", e, não encontrando o local do crime, retornava aos órgãos inquiridores, batia com os punhos nas portas de ferro e gritava: "Abram! Intimem-me! Interroguem-me, senão eu enlouqueço". Contudo, as salas de interrogatório também estavam cada vez mais silenciosas. Os próprios encarregados da devassa mal se arrastavam; achavam-se extenuados e perdiam a visão.

Os espíritos mais sagazes tentavam descobrir a causa dessa estafa generalizada. Naturalmente, não era simples explicar tanta fadiga e a luz enganosa que banhava a atmosfera. Tudo se desintegrava e recuava com pavor, como se fugisse de um espectro. Porém, não era fácil explicar o porquê da dormência daquela máquina feita para jamais se deter: a devassa. E mais ainda o silêncio profundo e estranhíssimo que possuíra tanto os interrogados como os interrogadores.

Outros balançavam a cabeça, céticos. "Não busquem explicações, porque elas não existem. É o silêncio dos túmulos, nada mais. Uma sepultura comum silencia sob a terra. Já a pirâmide silencia sobre ela."


11. A tristeza

 


AS PESSOAS faziam semelhantes conjeturas porque não sabiam o que se passava na cabeça do faraó. Quéops andava triste. Já tivera outros momentos de abatimento, até frequentes. Um homem pode se entristecer por mil e um motivos, por exemplo, se sua filha se desencaminhou, mas a melancolia de Quéops era de outra natureza, não um desalento qualquer, mas todo um deserto de consternação, em que cada grão lhe arrancava um gemido.

Por muito tempo fingiu não saber de onde vinha aquilo e até simulou não sentir nada. Mas certa manhã confessou a si mesmo: o mal vinha da pirâmide.

Agora que ela estava pronta, atraía-o como um feitiço. E ele julgava não ter outro caminho exceto o que levava até ela. À noite, sobretudo, despertava banhado em suor e repetia: "Partir, ir embora". Ir embora, mas para onde? Ela era tão alta que poderia vê-la de todos os lugares. Mesmo ao longe, parecia dizer: "Ei! Aonde você vai, Quéops? Volte!".

Ele havia condenado homens por retardarem os trabalhos.

Depois, condenara-os por, ao contrário, acelerá-los. Depois, novamente o inverso. E, por fim, sem nenhum motivo.

No dia em que lhe anunciaram que afinal a tinham concluído, ele permaneceu completamente imóvel, confundindo os portadores da notícia. Estes esperavam uma reação positiva, se não alegre, pelo menos uma frase protocolar de aprovação. Mas ele não abriu a boca, e seus olhos ficaram vidrados. Logo o silêncio envolveu também os outros, e um vazio de deserto se estendeu sua volta.

Ninguém se atreveu a lhe dizer: "Podemos visitá-la". Aos poucos, o palácio se acabrunhou como se chorasse um morto. Por dias e dias não se fez uma só menção à pirâmide.

Quanto a ele, Quéops, nutria por ela um sentimento dúbio: desejava-a e ao mesmo tempo a odiava. Por sua causa, o palácio começara a aborrecê-lo. Mas não queria ir até ela. Era jovem demais para mudar para lá, mas não o bastante para continuar onde estava.

Havia dias em que ela o atraía de maneira ambígua e insidiosa. Várias vezes ele trocara de aposento, porém ela lançava suas emanações por toda parte.

Durante a lua cheia, trancou-se por noites inteiras com o mago Gjed. Este lhe falou em voz pausada, como num acalanto, sobre a reencarnação do homem, o Ka. E sobre o Ba, outra forma de reencarnação, que se apresentava aos mortos como um pássaro. Depois, num tom ainda mais arrastado, discorreu acerca de sombras e nomes. A sombra era a primeira a abandonar seu dono. O nome, o último: era o mais leal.

Quéops tentou ouvi-lo com atenção, mas divagava. A certa altura, murmurou: "Ergui com minhas mãos meu próprio aniquilamento."

"Todos nós o fazemos, meu filho. Temos a ilusão de viver e na verdade o que fazemos é morrer. Você ergueu a maior sepultura do mundo, e se supõe que há de ter a mais vasta das vidas. Nenhum outro túmulo poderia abrigá-lo."

"Estou sofrendo", disse Quéops. A respiração do mago se tornou pesada como o início de um temporal quando ele passou a relatar seus próprios tormentos.

"Nunca esqueço. Lembro coisas que não se devem lembrar. Recordo a escuridão no ventre de minha mãe. E minhas garras quando fui uma fera. Os pelos, em vez de me cobrirem como a todo servo de Deus, cravam-se, ao contrário, dentro de meu corpo. Os abismos me atraem. Só eu sei o que sofro, meu filho, mas não o digo a ninguém. Já os seus sofrimentos pertencem a outro mundo. Desde agora você tem a nostalgia das estrelas. Não sabe, todavia, o que é a nostalgia da terra. E que nunca venha a sabê-lo!"

"Não quero nostalgia nenhuma, nem mesmo a das estrelas", interrompeu-o Quéops. "Aliás, já começo ame zangar com elas."

"Isso não me espanta", respondeu o mago. "A você isso é permitido, meu filho, pois pertence à mesma estirpe delas. Hão de brigar entre si, mas hão de se reconciliar."

Quéops estalava os dedos, impaciente. Voltou a falar, mas sem muita clareza. Prolongou a conversa e contornou o assunto até fazer a terrível pergunta: "Pode-se enganar a pirâmide com outra múmia?".

O mago arregalou os olhos, horrorizado. Mas o faraó foi cauteloso o bastante, esclarecendo que se referia a uma possível substituição de sua múmia perpetrada por inimigos. Entretanto, manteve o olhar turvo, fixo em suas mãos, e o mago teve a impressão de que ele iria avançar sobre seu pescoço, estrangulá-lo e depois envolvê-lo em faixas de linho, conforme as normas do embalsamamento.

Por algum tempo Quéops discorreu sobre os perigos do futuro. E de quando em quando tornava a indagar se era possível iludir a pirâmide. Quanto mais tentava explicar sua pergunta, mais o mago se convencia de que o soberano cogitava matar outra pessoa para ocupar seu posto no sarcófago.

O mago o fitou longamente, enquanto ele próprio recobrava a calma. Depois, num tom baixo e grave, disse: "A pirâmide não tem pressa, Majestade. Ela espera." "Não", gemeu o faraó, começando a tremer, o suor frio a lhe empapar a fronte. "Não, mago. Não espera."

A perturbação do faraó foi um segredo guardado até o fim. Havia dias em que ele jazia, prostrado, sem falar com ninguém, enquanto em outros, especialmente à noite, seu pensamento se dispersava. Numa dessas noites apavorou o mago Gjed, confidenciando-lhe que penetraria na pirâmide. Vivo e sozinho. Para indagar por que ela uivava daquele modo noite adentro, por que se impacientava.

A custo o mago o persuadiu a desistir do projeto. Ainda assim, certa noite, escoltados por uma pequena guarnição, os dois foram efetivamente admirá-la de perto.

A pirâmide estava plácida. O luar incidia sobre seu cume e resvalava por suas faces, inundando o deserto ao redor.

Quéops olhava para ela em silêncio. Parecia tranquilo. Apenas uma vez murmurou para o mago: "Sinto que ela me quer".

Nos dias seguintes ele se entristeceu ainda mais. Falava consigo mesmo por horas e horas. Às vezes gesticulava, como quem se justifica, explicando que não podia fazer nada, absolutamente nada, enquanto seu interlocutor, embora mudo, não acreditava em nada do que ele dizia.


Morreu três anos depois da conclusão da obra. Quando, após o rito fúnebre de sessenta dias, depositaram seu corpo embalsamado no sarcófago, milhares de pessoas se aglomeraram por horas a fio do lado de fora, com os olhos fixos na pirâmide.

Ao receber afinal a múmia que devia abrigar, ela parecia ter alcançado a plenitude. Convulsionara tantos destinos, devorara tantas vidas, e agora, soberba e triunfante, resplandecia ao sol.

Enquanto a contemplavam, as pessoas, particularmente os parentes dos condenados, recordavam sua aflição interminável, a expectativa da prisão, a noite que antecedera o banimento ou o envio para uma pedreira, fora do convívio familiar.

Parte do que ocorrera era sabido: interrogatórios, confissões sob tortura, casos de demência. Ainda assim, surpreendentemente, não odiavam a pirâmide. Sentiam confusamente que enquanto ela estivesse ali, no horizonte de suas vidas, nunca sentiriam ódio, tampouco amor. Apenas uma mistura doentia, um nostálgico mal-estar, que tomava o lugar dos demais sentimentos do mesmo modo que as indigestas favas havia muito tinham substituído a comida saborosa de outros tempos.

O que eles haviam perdido já não passava de uma pálida lembrança: alegres jantares entre amigos, histórias de amor, escândalos ou poetas excêntricos declamando nas tavernas o que lhes vinha à cabeça. Tudo havia desaparecido de suas vidas, dissipando-se como uma sombra. Quanto mais alto se erguia a pirâmide, mais tudo se distanciava. Agora tudo aquilo estava tão longe, perdido em anônimos areais e brejos cobertos de juncos, que jamais poderia achar o caminho de volta.

Certa manhã de inverno, o novo faraó, Didufri, anunciou aos ministros e conselheiros mais íntimos a construção de sua pirâmide. Estava presente o outro filho de Quéops, Quéfren, além de sua única filha, Hetéferes, que havia tempo não pisava no palácio por causa de sua fama de libertina.

Todos ouviam, tensos, as palavras do faraó. Didufri não deu instruções específicas quanto às dimensões das faces da pirâmide, nem mesmo quanto à altura desta, e ninguém sabia dizer se isso era bom ou ruim.

Sua irmã observava tudo com desprezo ostensivo. Comentava-se que ultimamente, aproveitando a demência do pai, ela se dedicava a um novo capricho: uma pirâmide para si própria. Diziam que solicitava a cada amante certa quantidade de pedras, e logo ficavam imaginando de quantos amantes iria precisar para concluir a pirâmide.

Boa parte da capital só falava disso. Chamavam-na pirâmide fêmea, a sombra do sexo de Hetéferes, sua cava, sua projeção, o falo, o vaginomonumento etc. Ela sabia de todos esses comentários, mas não lhes dava importância. Diziam inclusive que havia declarado: "Se as mulheres do Egito preferiram a frigidez e abriram mão do amor, hei de fazê-lo por todas. E que minha pirâmide seja a prova de que não sou de falar à toa".

O faraó se aproximava da conclusão do discurso. Seu irmão menor, Quéfren, que usava um penteado esquisito, mordia-se de inveja. "Deixe estar que o meu dia chegará", repetia consigo, transbordando de fel. "Deixe estar!"

Pensava no dia em que seria o faraó, com aquela amargura de quem pensa em coisas impossíveis, quase chorando.

Quando chegasse o dia da sua pirâmide, aí saberia o que fazer. Havia achado uma antiga esfinge entalhada que guardava como o mais sagrado talismã. Se alguém lhe indagava que penteado era aquele, onde o descobrira, retrucava com um sorriso enigmático. Era o penteado da Esfinge.

Desde já pressentia que o penteado possuía estranhos poderes. Haveria de usá-lo a vida inteira, mesmo quando os cabelos escasseassem. E depois, assim que erguesse a sua própria pirâmide, mandaria construir bem em frente uma esfinge colossal: um leão deitado, com o seu próprio rosto. "Quem é?", perguntariam milhares de visitantes, ao longo de milhares de anos. "É Quéfren? E como chegou a ser faraó? O que foi feito de Didufri?"

Mas a Esfinge, como é sabido de todos, jamais responderia.


12. A violação

 


COMO REZAM os antigos papiros, as pirâmides exercem seu papel de intermediárias entre a terra e o céu sobretudo nas noites de lua cheia. Elas recolhem o perturbador luar outonal para inoculá-lo na terra, bem fundo, até as negras pedras sem nome, as covas, os lamaçais e os diamantes, cuja visão se consumiu em suas próprias entranhas, já que nunca puderam cintilar. Impregnam o crânio dos mortos, iluminando por um átimo suas órbitas, que em seguida regressam às trevas. Na direção do céu, os vértices das construções, com seus escuros piramidions de granito, deixam escapar não se sabe qual horror, desses que a terra contém em excesso e precisa expelir periodicamente para se aliviar. Ali estavam elas, vizinhas umas às outras, tal qual nos tempos em que reinavam sobre a terra na cidade proibida: a pirâmide de Quéops; ao pé desta, a pirâmide da encarnação de Quéops, bem menor; a pirâmide de Quéfren com a Esfinge diante de si; a pirâmide fêmea, e além, um pouco mais isolada, a pirâmide inacabada de Didufri.

A pirâmide fêmea foi a primeira a ser violada por profanadores. Aconteceu numa noite bastante escura, quente e úmida. Os pés-de-cabra tremiam nas mãos dos assaltantes, pois era a primeira vez que tentavam entrar numa pirâmide. Por noites e noites eles haviam matutado qual escolheriam. Hesitavam entre a de Didufri e a fêmea, nas quais não houvera grande esmero em disfarçar as portas falsas, uma vez que a primeira, como qualquer sepultura de monarca falecido precocemente, ficara inconclusa, e a segunda fora erigida pelos amantes de Hetéferes, e estes, por mais satisfeitos que estivessem, não podiam ter sido muito meticulosos, ainda mais porque tinham enviado metade das pedras depois de dormir com ela, e se sabe que nessas horas mesmo os mais fogosos caem numa espécie de modorra.

Vacilaram, portanto, longo tempo, já que os prós e os contras se igualavam, até optarem enfim pela violação da pirâmide fêmea, pois na última hora tiveram a impressão de que a sombra que esta projetava não era tão sinistra quanto a das outras, e, além do mais, pareceu-lhes a escolha mais natural, porque eram gente escolada nisso de violentar mulheres.

Achar e abrir a galeria principal não foi tão difícil como tinham imaginado, e a manhã deu com eles já perto da câmara do sarcófago. Extenuados, estenderam-se ali mesmo, sobre as lajes frias, esperando pelo anoitecer.

Quando julgaram que escurecera, Má Queixada — era esse o apelido do mais velho deles — foi o primeiro a forçar a entrada com seu possante pé-de-cabra. O granito preto não se moveu.

"Sua puta!", esbravejou ele, tentando novamente. Os esforços para abrir e por fim remover a porta lhes custou tanto que, quando por fim penetraram no aposento, mal se aguentavam em pé.

O primeiro a se levantar foi outra vez Má Queixada, seguiu por Tudhali e Cegueta. Sabiam por experiência própria que os adereços vistos à luz das tochas sempre pareciam mais valiosos, por isso não comemoraram antes da hora. Má Queixada os apalpou um a um, repetindo sem parar: "Ah, sua puta maldita!". Depois, deu umas voltas no lugar até que seus olhos se fixaram no sarcófago. Os outros o rodearam enquanto ele introduzia o pé-de-cabra numa fenda.

Como tinham previsto, os adornos mais preciosos se achavam dentro do sarcófago. Quando estavam reunindo os objetos para guardá-los em seus sacos de couro, o sarcófago e sua múmia lhes pareceram pobres e cinzentos.

"Pare de balançar esse archote", gritou Tudhali ao profanador que segurava a tocha, pois já não suportava ver o rosto da múmia. Experiente saqueador de sepulturas, sabia que não poucas múmias se desintegravam logo que sua sepultura era aberta,' mas ainda assim nunca se acostumara ao espetáculo.

Enquanto ele e Má Queixada vasculhavam a sua volta em busca de alguma outra porta, quem sabe a da câmara dos presentes, Cegueta se inclinou sobre o sarcófago aberto.

"O que foi?", perguntou Má Queixada. Cegueta tinha um brilho nos olhos. "Quero tirar a faixa para ver o sexo dela", disse, baixinho. "Quantas vezes perguntei aos meus botões: como será esse sexo de que tanto se falou?"

"Uma boceta de puta e nada mais", cortou Má Queixada, sem se voltar. "Anda, ajude a achar a outra porta."

"Ei, o que é que você está fazendo?", gritou Tudhali, alarmado, concluindo que Cegueta, debruçado sobre a múmia, ia realmente lhe arrancar as faixas.

"A cara dela está escurecendo aos poucos", disse Cegueta. "Eu pensava que isso não acontecia com as múmias da realeza."

"Por Deus, largue essa múmia e venha até aqui!", falou Tudhali, seguindo o outro com o rabo do olho, pois tinha a impressão de que a qualquer momento ele se atiraria sobre a múmia. Mas Cegueta havia encontrado um toco de archote e começara a rabiscar palavras e desenhos obscenos nas paredes.

"Seu maluco", disse Má Queixada, enquanto prosseguia o exame das paredes. Quando chegaram àquela onde Cegueta fizera seus desenhos, deram com duas fileiras de hieróglifos tendo por baixo o esboço grosseiro de um órgão masculino, meio falo, meio pirâmide.

"O que está escrito?", indagou Má Queixada, que não sabia ler.

Tudhali se aproximou para ver melhor. "Hum... Diabo de Cegueta!" "Primeiro leia, depois xingue." "Ha-ha", fez Tudhali. "Na verdade, só palavrões. Diz que a filha do faraó gostava de paus do tamanho de uma pirâmide."

"Ficou maluco mesmo", disse Má Queixada. "Essa já é velha", disse o saqueador do archote. "Vocês lembram do Shatabak, que inventava essas coisas em troca de uns cobres? Acho que isso é coisa dele."

"Ficaram todos malucos!", exclamou Má Queixada. "Agora, deixem os grafites e piadas, e vamos trabalhar. Não podemos ficar mofando aqui dentro."

Ao se voltarem, viram que Cegueta apoiava as mãos no sarcófago como quem ia vomitar. Seu rosto pálido parecia cera.

"O que aconteceu?", indagou Tudhali. Cegueta balançou a cabeça. "Não estou me sentindo bem."

"Saia daí", disse Má Queixada. "Você sabe que cheiro de múmia dá enjoo. Eu também não estou me sentindo bem."

"Talvez seja melhor irmos embora", disse Tudhali. "Isso. Só que não sabemos se lá fora é dia ou noite." "Vamos pelo menos dar o fora desta sala. Podemos esperar na galeria."

"Tem razão. Vamos, pessoal, recolham as ferramentas." Pouco depois eles saíam, um atrás do outro. Cegueta ainda lançou um último olhar para o sarcófago.

"Puta maldita", rosnou, cheio de raiva. "Por pouco você não viu o que era bom..."

Os passos solitários dos violadores ecoaram por um bom tempo nas galerias.


Haviam jurado nunca mais entrar numa pirâmide, mas menos de meio ano depois se deram conta de que não pensavam em outra coisa. Do mesmo modo que os tigres, tendo provado carne humana, não aceitam outra caça, eles já não se contentavam em saquear sepulturas comuns.

Dessa vez, além de outros preparativos, como amolar os pés de cabra, eles costuraram diversos panos em forma de máscara e os embeberam em vinagre para usá-los quando fossem abrir o sarcófago. Era a única maneira de escapar dos males provocados pelo cheiro de múmia.

Até então ninguém percebera a pilhagem da pirâmide fêmea, ou pirâmide-puta, como a chamavam entre eles, e isso os apressou. Talvez jamais viessem a saber da violação, já que os últimos amantes de Hetéferes, mesmo aqueles de sua velhice, havia tempo se converteram em pó. Também os guardas estavam mortos, e muitos tinham abandonado o ofício ainda em vida, quando acabara o dinheiro destinado a remunerá-los. Não obstante, algum imprevisto poderia levar à descoberta da profanação, o que dificultaria uma segunda investida.

Na noite anterior eles procuraram criar coragem lembrando que fazia muito tempo que ninguém cuidava da pirâmide de Didufri (pois era ela que tinham em vista dessa vez). Se assim não fosse, ela não estaria inacabada. Eles vinham de muitas gerações de ladrões de sepulturas e nunca haviam se metido com política, apenas escutavam às vezes algum comentário nas tavernas. Tinham ouvido, por exemplo, que o faraó fulano era mais prestigiado que o faraó sicrano, ainda que os dois estivessem havia muitos anos reduzidos a múmias, cada qual em sua pirâmide. Porém, com a passagem do tempo as coisas se invertiam: o faraó prestigiado era deixado de lado, enquanto o outro, o esquecido, recebia honrarias e estátuas. Dizia-se que as mudanças se deviam à política, mas para eles, ladrões de túmulos, tudo aquilo parecia tão incompreensível e ridículo como duas múmias que se engalfinhassem disputando suas faixas em farrapos.

Assim, encontraram-se ao pé da pirâmide, numa impenetrável meia-noite, e sem perder tempo introduziram os pés-de-cabra entre as pedras que, segundo sua intuição, escondiam a entrada secreta. Estafaram-se a valer, até que, quando já haviam deslocado vinte e tantas pedras e o dia clareava, finalmente toparam com a galeria.

Foi a parte mais difícil do trabalho. Depois disso, tudo correu tal qual na outra pirâmide. Apenas, antes de abrir o sarcófago, trataram de cobrir o rosto com as máscaras de pano embebido em vinagre, nas quais tinham feito orifícios para os olhos, e por algum tempo brincaram de meter medo uns nos outros.

Enquanto os demais juntavam os ornamentos que enfeitavam os nichos, Cegueta, como de costume, demorou-se junto ao sarcófago.

Má Queixada foi o primeiro a se virar para ele. "O que você está fazendo aí com a múmia?" "Venham ver só uma coisa", disse Cegueta. Quando chegaram perto, viram que Cegueta havia afastado as faixas de linho do pescoço do cadáver. Tudhali e o ladrão do archote fizeram uma careta de nojo.

"Espiem estas marcas aqui", disse Cegueta, "logo se vê que são sinais de estrangulamento."

"Hum...", fez Má Queixada, debruçando-se sobre a múmia. "Que diabo, você tem razão. Torceram o pescoço dele como se fosse um frango."

"Como? Como?", quis saber o do archote. "Como?", repetiu Tudhali. "Torceram o pescoço dele? De um faraó?"

Má Queixada assumiu um ar sério. "Escutem aqui: nós somos ladrões e não temos nada a ver com isso." Seu tom de voz se tornou imperioso. "Isso é assunto da política e não diz respeito a nós, entenderam? E você", dirigiu-se a Cegueta, quase gritando, "sai dessa! Você não tem nada que ficar espiando pescoços de múmia. Ninguém pediu para nos intrometermos nisso, entendeu?"

"Tudo bem, tudo bem", disse Cegueta. "Do jeito que você está gritando, vai derrubar a pirâmide."

"Eu grito quanto quiser, entendeu? Você não sabe que uma coisa dessas põe em perigo os nossos pescoços? Não foi isso que aconteceu com o Tut Perneta? E com o Vermelho e o irmão dele? Arrombaram portas a vida inteira e ninguém ligava, mas bastou falarem um pouquinho de política numa taverna e foram todos para o diabo. Comigo, não tem política, certo? Os que quiserem que mexam com ela, bom proveito, mas eu não vou mais querer saber deles. Entendeu?"

"Tudo bem, tudo bem", disse Cegueta outra vez. "Entendi." Ele se debruçou de novo sobre a múmia e recolocou descuidadamente as faixas sobre o pescoço dela.

Ainda era noite quando se aproximaram da saída. Mas as estrelas já empalideciam. Arrancaram as máscaras na galeria e deixaram a pirâmide, um após outro. Fazia frio. Tudhali, que era especialista em andar sem deixar rastos, apagou as pegadas dos companheiros. Ainda estava atordoado pelo que escutara: um faraó com o pescoço torcido... "Esses malandros", resmungara Cegueta, "devem brigar entre eles mais do que nós para repartir um roubo."

Ao amanhecer, passaram diante da pirâmide de Quéfren. A Esfinge ainda estava imersa na sombra. Aos primeiros raios do sol, só se distinguia o penteado, que dera tanto o que falar.

Todos apertaram o passo, como se não suportassem o olhar da estátua. Diziam que, à luz da lua, ele podia levar as pessoas à loucura.

Cegueta era o último da fila. Sentia a cabeça estourar. Os sinais de estrangulamento no pescoço da múmia não saíam do seu pensamento. Com toda a certeza ainda lhe apareceriam em sonho.

Voltou-se uma última vez para a Esfinge. A claridade da manhã enfim alcançara seus olhos. Aquele olhar vazio o enregelava como nunca. Ele quis gritar: "O que fez com o seu irmão, Esfinge? Como deu fim a ele?". Mas a voz não saía de sua garganta.


13. A antipirâmide

 


O PRIMEIRO ataque às claras aconteceu numa tarde de dezembro. Um relâmpago isolado, por certo vindo de outros céus, setentrionais, resplandeceu subitamente, mas, no último instante, por razões desconhecidas e inalcançáveis, mudou de rumo, revoluteou e, com um fragor apocalíptico, penetrou o areal.

Esse primeiro testemunho de que o pacto com o espaço celeste era realmente inquebrantável provocou euforia em todo o Estado. Pois ninguém sabia que aquilo que o céu não pudera realizar fora feito pelos homens, a partir de baixo, de modo traiçoeiro.

Fazia anos que a pirâmide fora profanada, porém os rastos da violação tinham sido tão magistralmente apagados que não se descobrira nada. E talvez nunca se viesse a descobrir, se a verdade não tivesse aflorado ali onde menos se esperava, num julgamento de letrados.

Quando se efetuou a prisão de um grupo de escribas havia tempo tidos como defensores de certas ideias inovadoras acerca da história, todos esperavam um processo especial, daqueles que usualmente atraíam a nata da sociedade e até o corpo diplomático, e nos quais, quase sempre, julgavam-se e se condenavam não tanto os réus, mas sobretudo suas ideias.

Esperava-se, portanto, uma fase difícil para os homens cultos em geral, quando se espalhou como um raio a notícia de que o caso dos historiadores não tinha nenhuma ligação com questões intelectuais, mas dizia respeito a um simples roubo, só que um roubo monstruoso, sem precedentes...

Os que ouviam a notícia pela primeira vez ficavam com as faces afogueadas e as pernas bambas. Tratava-se, nada mais, nada menos, da pilhagem e profanação de múmias. A maldade humana alcançara um novo patamar, invadindo o reino das sombras.

Um pavor inefável se apossou de todos. Haviam roubado, por assim dizer, a própria morte.

A gravidade do caso era tamanha que quase impedia que se acreditasse nele. Então os historiadores do Egito tinham se rebaixado ao ponto de trocar o estilete pelo pé-de-cabra e se dedicar à pilhagem pelo deserto afora?

No entanto, após os primeiros rumores, confusos e bombásticos, veio a segunda leva, mais clara e precisa. Os investigadores tinham encontrado sinais de violação não só nas entradas secretas das pirâmides mas também nos sarcófagos. Até as máscaras que os bandidos haviam embebido em vinagre ainda se achavam ali, ao que parecia, abandonadas por ocasião da fuga.

As múmias, graças a Deus, estavam em seu lugar, mas apenas por mera casualidade. Eram justamente elas o objeto do furto. As pessoas se arrepiavam só de escutar isso.

Ninguém tinha condições de saber o que se pretendia fazer com as múmias. Havia quem dissesse que seriam cremadas, conforme o costume dos povos bárbaros. Outros insistiam que o plano era levá-las a distantes países do Norte, onde seriam vendidas e expostas às multidões. Já as esferas da elite julgavam que o caso era bem mais sério do que aparentava ser.

O que despertava maior curiosidade era a maneira como se descobrira o grupo.

Na realidade, um manto de indefinição encobria todo o caso. Os indiciados, como ocorria com a maior parte dos homens cultos, eram franzinos e de saúde precária; logo, não era fácil imaginá-los de pé-de-cabra em punho, a deslocar blocos de pirâmide.

Provavelmente incomodada com semelhantes boatos, a polícia secreta deixou vazar uma parte do mistério, em especial no que se referia às circunstâncias da descoberta.

Tudo havia começado de forma bastante corriqueira. Fazia tempo que a polícia possuía um dossiê sobre certas ideias novas, um tanto esquisitas, que figuravam em escritos duvidando da concepção oficial acerca da história do Egito. Apesar de a polícia ter prevenido o palácio, ao que parecia a questão não fora considerada muito urgente, já que a puseram de lado. Contudo, uma carta anônima (graças a Deus que tinham inventado o papiro, onde se podiam escrever tais cartas que, acima de tudo, era fácil enviar, pois para um sumério a empreitada exigiria pelo menos dez ou quinze placas de argila, para não falar dos povos que ainda se utilizavam de inscrições em pedra, os quais teriam que atrelar no mínimo uma junta de bois para puxar sua carta anônima, isso sem levar em conta outras dificuldades, como o barulho da marreta, que teria tirado o sono de um bairro inteiro durante uma semana), então, uma carta anônima advertira o faraó Miquerinos desse novo perigo.

Bastou isso para que o caso fosse resolvido em dois tempos. Dois agentes infiltrados, ou provocadores, como eram chamados ultimamente, haviam se introduzido no grupo e recolhido as informações necessárias, até que, numa certa madrugada, aconteceu o que se esperava: a prisão.

As investigações transcorreram em completo sigilo e sem delongas. O objetivo principal era descobrir como havia nascido a ideia de pôr em dúvida a história do Estado. Quando, ao cabo de muitas sessões de tortura, os historiadores por fim confessaram que a conversa com um ladrão de sepulturas é que tinha modificado totalmente o ponto de vista deles sobre a história, o depoimento foi tomado como uma pilhéria. Voltaram a ser inquiridos, tendo sido até os primeiros a experimentar um novo tipo de tortura, recém-aprovado pela comissão responsável, mas, embora pronunciando mal as palavras por causa dos dentes quebrados e da língua inchada pelas picadas de escorpião, repetiram o que haviam dito, ou seja, que a ideia de reescrever a história lhes fora sugerida, casualmente, por um ladrão de sepulturas, bêbado, na taverna Ao Caranguejo. Mesmo depois de mais uma sessão de torturas, empacaram como mulas em sua primeira versão (agora em declarações por escrito, já que mais pareciam sumérios, pois ninguém entendia o que falavam), inclusive fornecendo o nome do ladrão, um certo Abd el-Gourna, conhecido pela alcunha de Cegueta.

Localizaram o malfeitor, já idoso, que, apesar de meio bêbado, ao ser acorrentado teve a cautela de dizer que realmente vira sinais de estrangulamento no pescoço da múmia de Didufri, mas apenas em sonhos.

Porém, ao amanhecer ele confessou tudo. E, naquele dia mesmo, os investigadores o arrastaram pelos cabelos e pelas correntes até a pirâmide violada. Já tinham removido a pedra que ocultava a entrada de granito, já tinham penetrado na galeria onde as máscaras de pano estavam atiradas num canto e fitavam com olhos arregalados o sarcófago aberto quando chegou, apressado, o sumo mensageiro do palácio com uma ordem do faraó proibindo terminantemente o exame da múmia.

A partir daquele instante, um novo manto de mistério encobriu as investigações. Ainda assim, como ocorre frequentemente com segredos cercados de cuidados especiais, logo se conhecia em linhas gerais o plano dos historiadores. Era algo sem dúvida sinistro: eles pretendiam roubar as múmias de todas as pirâmides, levá-las a um esconderijo dentro ou fora do Egito e ali submetê-las a um exame minucioso, órgão por órgão. Com os sinais que encontrassem — de estrangulamento, facadas, envenenamento etc. —, lançariam uma nova luz sobre muitos episódios, cuja explicação se projetaria em outros acontecimentos, anteriores ou posteriores, pondo em xeque toda a história egípcia até aquele momento. Esta passaria a ser escrita de modo totalmente distinto, chegando a haver quem dissesse que durante as investigações se acharam anotações dos culpados contendo expressões que soavam como títulos de livros ou palavras de ordem, por exemplo, "A história revista pelas múmias", ou simplesmente "A mumistória".

Uma brisa insalubre soprava em toda parte. Embora os historiadores e o ladrão el-Gourna estivessem fazia muito tempo debaixo da terra, as turbulências que tinham causado perduravam. Opiniões nunca imaginadas eram manifestadas onde menos se esperava. Gente com o rosto coberto de cal percorria as cidades à noite, não se sabia por quê. Multiplicavam-se os videntes e os desvairados, que falavam a mais não poder em cada encruzilhada e só se calavam ao avistar as forças de manutenção da ordem.

Tudo era posto em dúvida, a começar pelas próprias pirâmides. Agora que tinham sido violadas, parecia mais fácil questioná-las. Desconfiava-se de sua orientação pelas estrelas, de sua localização, do ângulo das faces. Ia-se mais além, suspeitando-se até das misteriosas cifras e mensagens contidas em seu interior. Se estas eram de fato o que deviam ser, por que irradiavam uma sensação de vertigem?

"Caiam em si", diziam outros, aqueles que sempre e em tudo tinham escolhido o lado do Estado, mesmo quando este os atingia. "Como pôr em dúvida as pirâmides? Elas são a encarnação do próprio Egito. Sem elas, o Egito não seria Egito. Talvez nem sequer se chamasse Egito."

"Bobagens", contestavam os primeiros, "o Egito já existia antes de haver pirâmides. E o que aconteceu com os babilônios, os gregos ou os troianos, que não têm pirâmides?"

"Basta, cale a boca, então você quer comparar o nosso Egito com esses primitivos gregos e troianos?"

Houve um momento em que o falatório foi tamanho que se chegou a questionar se as pirâmides existiam de fato. Elas podiam ser apenas sombras, alucinações coletivas, miragens que um belo dia se desvaneceriam. Outros sofisticaram ainda mais a teoria. Diziam que elas existiam de fato mas que projetavam uma imagem inverídica, em que ou faltava ou sobrava alguma coisa.

Por mais insensato que pudesse soar esse burburinho, as pirâmides assumiam uma feição cada vez mais nebulosa, e não só ao pôr-do-sol ou aos primeiros clarões da alvorada, mas em pleno dia. O fenômeno se tornara tão frequente que muitos adquiriram o hábito de, toda manhã, ao abrir os olhos, voltá-los para o horizonte, como se duvidassem de que ainda as encontrariam em seu lugar.

Como é sabido, a ideia de transitoriedade é o prenúncio de outra ideia, mais grave, a de destruição. E esta despontava aqui e ali, embora confusa, hesitante, como se tivesse medo de si mesma: "Pode o Egito viver sem pirâmides?". E, mais tarde: "Não poderíamos demoli-las, livrando o horizonte dessas corcovas medonhas?".

As pessoas diziam "pirâmides", mas se sabe que pensavam "faraós", até que passaram a falar abertamente do soberano, não do vivo, Miquerinos, é claro, mas de um morto.

A princípio, não se sabia ao certo de quem se tratava, até que os murmúrios, como era de se esperar, convergiram para o dono da pirâmide mais alta, Quéops. Os primeiros grafites, por exemplo, "Abaixo a corcunda de Quéops!", não eram nem um pouco criativos. Quando se verificou que a polícia demorava cada vez mais para chegar ao muro grafitado, e também os faxineiros, com seus baldes de cal, a multidão criou coragem e passou a pichar insultos mais pesados. Ficou evidente que, por razões que só o próprio Estado poderia explicar, era inevitável uma revisão do papel de Quéops. A maioria acreditava que isso se devia a imperativos da política externa; outros, que o objetivo era canalizar o descontentamento para um cadáver, mas eram bem poucos os que identificavam uma causa bem mais simples: inveja da altura de sua pirâmide.

Aquela altura desmesurada era alvo de mais falatório que o próprio Quéops. Uma agitação febril e nunca vista sacudia os dois Egitos. Pessoas até pouco tempo antes tranquilas e bonachonas, padeiros e alfaiates prudentes, um belo dia despertavam com os olhos cheios de cólera e se faziam ouvir: "Quando a pirâmide começou a ser construída, eu ainda era novinho, mas, credo, tive que cortar com estas mãos a pedra 12 803 do octogésimo primeiro escalão...". Outros relatavam suas proezas: como haviam amaldiçoado o quadragésimo nono escalão, mijado no quinquagésimo terceiro, chegando inclusive, certa noite, a dizer: "Vá para o inferno" etc. Os poetas declamavam seus versos nas tavernas do centro de Mênfis, chamando atenção para as passagens em que afirmavam haver um sentido oculto de oposição a Quéops e discorrendo sobre os tormentos daí derivados. Amen Herunemef, com a voz alquebrada pela idade provecta, rememorava, por exemplo, as torturas que enfrentara, especialmente por causa de dois versos:

 

Andorinhas vão-se em bando

Eu as vi, fiquei chorando.

 

"Só eu sei o que passei, Deus me livre, quase enlouqueci, com a mulher que me atazanava: "Largue disso ou vai nos desgraçar a todos. Não vê que os outros estão todos de bico calado? Olhe só para Nebunenef."

Alguém entre os ouvintes podia lembrar que Nebunenef fora justamente um dos condenados, e em consequência de uma denúncia de Amen Herunemef. E podia até abrir a boca para fazer o comentário. Mas no mesmo instante sentia os miolos amolecerem, a ideia escapulia, e em seu lugar eram ditas outras coisas, como: "Estou com os ossos moídos", ou: "Passei três dias de cama". Depois, ao ouvir a palavra andorinhas, recordava tudo, mas sentia uma enorme preguiça de falar e, entre bocejos ruidosos, dizia só para si: "Os egípcios que se danem".

Nas outras tavernas e nas praças em frente aos templos, só se falava nisso. Os primeiros condenados a trabalhar nas pedreiras tinham gritado: "Somos inocentes, sempre fomos leais súditos do faraó!", mas agora berravam: "Sim, éramos culpados, queríamos derrubar a pirâmide, mas não nos deixaram, o que vocês querem mais?". Havia os que vinham de províncias remotas, de Ajshaj, de Jebel Barkal e até da quinta catarata: indicavam as pedreiras onde seus parentes tinham trabalhado como condenados, davam o número dos escalões e os nomes de seus delatores. Esfregando os papiros no nariz dos sacerdotes, bradavam: "Não aceitamos conciliação, queremos a abertura dos arquivos e indenização em dinheiro, ou vingança, ou as duas coisas".

"Ai, meu Deus, essa pirâmide nunca nos deixa em paz", suspiravam os veteranos. Ali estavam outra vez, tal qual no passado, a escalar os seus flancos, chorando, dando socos no peito, recordando torturas ou façanhas imaginárias, até que algum beberrão lhes cantava no ouvido:

 

Quando você me viu,

Lá no sétimo escalão,

Algo em mim se partiu,

Puta do meu coração!

 

O faraó estava a par de tudo. Os relatórios sobre aquele clamor público eram cada vez mais sombrios. Os delatores já estavam com dor de ouvido de tanto escutar, mas nem por isso as coisas mudavam.

Certa manhã, levaram à presença do faraó um homem que tivera um sonho importante: vira a pirâmide de Quéops coberta de neve!

Ninguém se atrevia a avançar uma interpretação. Temiam a neve. O próprio Miquerinos levou as mãos à cabeça. Não havia sequer quem dissesse se aquilo era um bom ou mau sinal.

Muita gente recordou então o relâmpago recente, que talvez, mais que um raio, fosse uma mensagem a decifrar. Aparentemente, em vista do mal-entendido anterior, os céus dos países frios iriam enviar a nevasca.

Àquela altura, era evidente que a pirâmide estava ligada ao mundo inteiro. Se ela chegara a atrair a tenebrosa neve das regiões setentrionais, isso queria dizer que fora até lá, por meio de pensamentos, sonhos e outros caminhos que ninguém poderia imaginar.


14. A velhice

O fingimento

 


QUANDO vistas de perto, especialmente por seus contemporâneos, as gerações humanas parecem muito ruidosas e originais, porém para quem as observa de longe, com aqueles olhos que só as estátuas possuem, não apresentam mais diferenças que as dunas do deserto.

Dezenas e dezenas de gerações haviam se sucedido e se extinguido, sempre dominadas pelas pirâmides. Estas eram a coisa mais importante que encontravam ao nascer e a essência do que deixavam atrás de si. Os sentimentos que as pirâmides lhes inspiravam também se repetiam, por ciclos. Da admiração passavam à indiferença, desta ao ódio, ao ímpeto destruidor, para então retornar à indiferença, seguida da adoração, e assim por diante, indefinidamente. Tais sentimentos podiam ser divididos em dois grandes grupos, um pró, outro contra, e seria lícito dizer que, no fim do combate milenar entre ambos, não havia nem vencedor nem vencido. Assim ocorria com a pirâmide de Quéops. Se o falatório contra ela não impedira a construção de outras pirâmides, ao menos contivera o crescimento destas, chegando até a reduzir suas proporções. Como quem evita um tema delicado, nenhum dos faraós subsequentes cogitara construir uma sepultura da mesma altura da de Quéops. Era em torno dela que o bem e o mal se defrontavam, como aconteceu na noite de 14 de fevereiro, quando um homem andrajoso, depois de errar durante dias pelo deserto, deteve-se justamente diante dela.

Mais tarde, os inquiridores encheram folhas e folhas com os delírios do sujeito, mas ninguém chegou a apurar ao certo quem ele era: um vagabundo anônimo, desses que se deslocam e se perdem como as areias? um faraó destronado? um eunuco? um matemático epilético? um astrólogo enlouquecido?

Ele passou muito tempo gritando em frente à pirâmide, golpeando o chão com os punhos e a cabeça, rindo, fazendo caretas; depois alisou a areia com a mão e se pôs a desenhar freneticamente linhas e figuras geométricas. Ao lado delas, começou a fazer cálculos infindáveis.

Contestou firmemente a acusação de que pretendia danificar a pirâmide, dizendo que só queria enterrá-la: "Ela está morta, entenderam? Vê-se de longe que não passa de um cadáver. E, como todo defunto, deve ser enterrada".

Ele próprio relatou que passara horas a fio calculando as dimensões do buraco que devia ser aberto, a quantidade de terra a remover, o número de escavadores, a duração dos trabalhos etc. A empreitada requereria mais tempo e suor que a construção da pirâmide; assim, uma nova ditadura poderia tirar grande proveito do enterro, como os antigos ao erguê-la.

Nunca esclareceu aos inquiridores o sentido dessas últimas palavras, ou qual seria a tal nova ditadura. Tampouco explicou o que entendia por "pirâmide morta", nem como chegara a semelhantes conclusões.

"Pare de rir!", vociferavam os responsáveis pela investigação, embora ele não estivesse rindo, mas apenas com a face desfigurada pelas torturas. "Qualquer um logo vê que a pirâmide já morreu", insistia o homem. "Basta olhar, mesmo de longe, para saber que há muito ela entregou a alma."

Voltou a fazer seus cálculos nas paredes da prisão, dessa vez se concentrando no tempo que seria necessário para que a pirâmide desaparecesse naturalmente. Era uma tarefa muito mais difícil, pois devia levar em conta a lenta erosão provocada pelo vento, que soprava com intensidade diferente em cada face, as mudanças da temperatura diurna e noturna, a umidade vinda do Nilo e a do mar etc., até os dejetos dos pássaros ou a passagem de répteis, que, embora sendo ocorrências mais raras, desempenhavam algum papel na deterioração das pedras, ao longo do prazo estimado para a completa ruína da obra, de quase um milhão de anos.

"O tempo", murmurava, quando tombava, exausto, ao pé da parede. "Só ele há de varrê-la da face da Terra!"


De fato, a pirâmide só envelhecia muito lentamente. As mudanças que sofria não eram perceptíveis aos olhos humanos, exceto a metamorfose da cor, do branco para um tom rosado. Suas rugas só apareceram oitocentos anos depois. Foi uma pedra da face ocidental a primeira a se partir de alto a baixo, numa tarde de dezembro. Antes dela, seis outras haviam rachado sob a forte pressão, mas em seu interior. Talvez outras também tivessem sucumbido, mas se achavam nas profundezas da pirâmide, sem nenhuma face dando para alguma parede interna; desse modo, nenhum olho humano pôde ver o que acontecera. Mesmo nos casos em que se ouviu o som abafado da rachadura, jamais foi possível definir o lugar exato em que se dera, e menos ainda a pedra atingida.

Antes mesmo da primeira rachadura, catorze pedras da aresta nordeste se tingiram de um cinza doentio. O desgaste era claramente visível duzentos e setenta anos mais tarde, nelas e em suas vizinhas. Aquele era o lado em que batia o vento do deserto; portanto, embora tivesse sido feito com pedras escolhidas por sua resistência, vindas da pedreira de Assuan, a erosão era esperada e não espantou ninguém.

Cento e vinte anos depois, apareceram em muitas pedras da face meridional sinais acinzentados, puxando para o malva, além de pequenas manchas em forma de pústulas, porém distribuídas aleatoriamente, o que dificultava a identificação de suas causas.

Ao cabo de mil e quinhentos anos, passou-se a enxergar de longe as marcas da erosão, e não só na face norte, onde o vento corroía as arestas como uma pedra de amolar, mas também na face leste e até na face sul. Eram as mais diversas: porosidades, fissuras, pequenos sulcos, furos e, aqui e ali, esboroamentos. No entanto, a maior parte delas era imperceptível à primeira vista. Só quem concentrasse a atenção na pirâmide notaria os rastos da passagem do vento sobre a pedra, tão variados quanto as relações entre os seres vivos. Assim, ficou célebre uma pedra da face norte em que a erosão esculpira feições humanas, insinuações de malares e algo semelhante a sobrancelhas. Dir-se-ia que um rosto ali imerso vinha pouco a pouco à tona. O caso chegou ao palácio, e houve longas discussões sobre a atitude a tomar: intervir (com uma talhadeira ou com instrumentos mais sofisticados) para ajudar o rosto a emergir, como se faz num parto, ou aguardar que ele emergisse por si só.

O faraó era partidário da intervenção, ou porque atribuía mais importância ao presságio ou por impaciência de ver o que surgiria, ao passo que o sumo sacerdote pensava que uma violência em tais circunstâncias poderia ter consequências fatais. Decidiram então esperar a evolução natural das coisas e puseram sentinelas para vigiar a pedra noite e dia. Todavia, com o correr do tempo a fisionomia começou a se dissolver, como se o rosto desconhecido tivesse se arrependido e mergulhado outra vez nas entranhas da pedra, o que suscitou desespero em alguns e, em outros, um suspiro de alívio.

A despeito de todos esses fenômenos, não passava pela cabeça de ninguém que a pirâmide envelhecia. Os primeiros a percebê-lo foram os membros de uma missão de filósofos gregos. Logo que a avistaram, antes mesmo de se aproximar e distinguir os detalhes, exclamaram a uma só voz: "Ah, ela está envelhecendo!".

Não se pôde apurar se disseram essas palavras com tristeza, alegria ou maldade. O essencial foi o forte abalo que elas provocaram. Súbito, inúmeras pessoas tiveram a sensação de enxergar nitidamente aquilo que nunca tinham reparado antes: vista em seu conjunto, a pirâmide já não tinha nada da polida brancura que as antigas gravuras mostravam. As faces estavam cobertas de deformações, como as produzidas por um eczema na pele de seres humanos.

Porém, essa sensação não foi passageira. Muito tempo depois, tal qual uma mulher que concebe um filho pensando que assim rejuvenesce, a pirâmide, já então com quatro milênios, começou a projetar sua imagem à distância.

As primeiras e instáveis projeções, algumas vezes cintilantes como coroas, outras, como que arrancadas de um medo por vir, empurravam-se e se agitavam por toda parte. Então alguém lembrou do antigo sonho com a pirâmide coberta de neve, o primeiro a predizer que um dia sua imagem alcançaria todo o planeta.


15. O caveiral

 


COMO QUEM projeta uma imagem através do espelho, ela lançara sua primeira cria a milhares de quilômetros de distância e em outra época. No âmago da Asia, na estepe que circunda Ispahan, o soberano denominado Timur, o Coxo, ou Tamerlão, erigira, do mesmo modo que Quéops, a sua pirâmide. Embora feita de cabeças decepadas, parecia irmã da pirâmide de pedra.

Assim como a egípcia, ela seguiu um projeto. Tinha o mesmo número de faces que a primeira. E tal qual os blocos de sua antecessora, extraídos de diferentes pedreiras, suas setenta mil cabeças, na impossibilidade de provirem de uma única guerra ou de um só qatl i amm (massacre total), foram recolhidas nos campos de batalha de Tus e Kara Turgai, e nas matanças de Aksrai, Tabriz e Tatch Kurgan. Como outrora com as pedras, os superintendentes controlavam as cabeças uma por uma, pois a pirâmide deveria conter apenas cabeças de homens, apesar de os fornecedores, ávidos de lucros, às vezes terem tentado introduzir também cabeças femininas, cortando seus cabelos e mergulhando-as na lama para que ficassem irreconhecíveis. Se os pedreiros usavam argamassa, o arquiteto Kara Huleg, receando as tempestades hibernais e as feras da estepe, além de utilizar argamassa, perfurava e amarrava as cabeças de cada escalão com um fio de ferro, tornando-as imunes ao ataque das intempéries e dos lobos. Assim foram se erguendo, uns após outros, no início os doze primeiros escalões, depois outros vinte e dois, seguidos por mais dez, novamente mais dez, e os sete últimos. Uma vez que toda vida humana desaparecera em torno do reino mas ainda faltavam cabeças para o cimo da pirâmide, recorreu-se à denúncia de um grupo cuja ação ainda não podia ser chamada de conspiração. Sem esperar sentença alguma, decapitaram os prisioneiros como se colhem frutas verdes e concluíram a obra. O arquiteto Kara Huleg conhecia seus predecessores e o próprio Imhotpe melhor do que se poderia supor, como ficou comprovado quando ele explicou ao soberano a necessidade de respeitar a tradição colocando no cimo da pirâmide um piramidion. Rindo às gargalhadas, saíram à procura de uma cabeça que merecesse a honraria. Não a encontraram, mas alguém se lembrou de Mongk, um débil mental cabeçudo, desses que seguiam atrás dos soldados. Chamaram o idiota, prometeram fazer dele um príncipe, cortaram-lhe o pescoço, sempre às gargalhadas, derramaram chumbo derretido dentro do crânio dele e o instalaram em seu lugar.

Quando o exército deixou Ispahan, a estepe, com aquela monstruosa construção no meio, ficou ainda mais deserta. Gralhas e corvos a sobrevoavam e em seguida caíam sobre ela para lhe arrancar os olhos, que os pedreiros, instruídos por Kara Huleg, tinham tido o cuidado de deixar voltados para fora.

Naquele ano, o frio chegou cedo. As chuvas havia muito tinham lavado as manchas de sangue, e a geada começou a recobrir as faces da pirâmide, especialmente a setentrional. As tempestades do inverno em nada afetaram a obra, exceto um raio que, ao que parecia, fora atraído pela plúmbea cabeça do idiota. Ainda assim, a descarga não danificou o crânio, limitando-se a derreter o chumbo, que escapou pelas têmporas em veios com o formato de asas e sobretudo, tendo escorrido pelas órbitas, deu ao conjunto aquela vacuidade enevoada própria das divindades.

Por duas vezes a pirâmide foi coberta pela neve. No fim do inverno, quando os ventos de março trouxeram o degelo, o que mais se destacava eram a barba e o cabelo dos mortos. Os viajantes que cruzavam aquele trecho da Ásia ficavam aterrorizados, mas aqueles que sabiam das coisas explicavam que não se tratava de pelos nascidos ao acaso, pois, quatro mil anos antes, um profeta e mártir predissera que um dia a pirâmide criaria barba. O assunto foi muito comentado, inspirou até canções, sem que ninguém imaginasse que a origem da lenda fora um simples papiro registrando o interrogatório do idiota Setk.

Entretanto, as feras da estepe rondavam a pirâmide à noite, enquanto o vento uivava, e corriam com tufos de cabelos entre os dentes, ganhando os descampados turcomanos, em meio às areias de Kandahar e, ainda mais longe, através das estepes da Mongólia.

Tamerlão se afeiçoou àquela imagem e em cada novo acampamento logo mandava erguer o seu monte de cabeças. Mais tarde, como os faraós, deixou que seus filhos e netos também erguessem pirâmides, permissão que acabou se estendendo a todos os generais do exército. As pirâmides agora se contavam às centenas, e o terror que infundiam era tão grande que nenhuma campanha militar podia prescindir delas. Logo que as erigiam, e elas ainda dispunham de milhares de olhos, chamavam-nas "cabeçais". Passados dois ou três anos, transformavam-se em "caveirais". Dos olhos, que se iam, restavam as órbitas, e além disso caíam os dentes, igualmente lembrados na profecia citada.

Nas inúmeras tendas do exército das estepes, e mais ainda nas cidades e nos Estados que este ameaçava, a pirâmide de Ispahan adquiriu tão horrenda fama que, embora suas dimensões e antiguidade fossem bem mais modestas que as da sepultura de Quéops, a maioria das pessoas a considerava a autêntica pirâmide, enquanto a pedraria dos egípcios não passava de uma pálida réplica hipertrofiada.

Era ela, a pirâmide de Ispahan, em tudo a mais rápida, direta e limpa. Espalhava o terror qual um raio, sem se enredar em mesuras e espertezas, suprimindo as vidas sem rodeios, em algumas horas de qatl i amm, e não em anos ou décadas, dispensando arquivos e devassas sem fim, cortes na ração, angústia, desaparecimentos e desespero. Era a sua densidade de diamante que a tornava tão visível, como se fosse a alma, a essência das pirâmides, a ponto de os menestréis, e mais tarde também os sábios de Samarcanda, proclamarem que a primeira pirâmide autêntica nascera na estepe de Ispahan, enquanto sua homóloga egípcia não passava de uma imitação tardia e grosseira. Mesmo que a afirmação causasse espanto à primeira vista, quem escutasse atentamente as baladas dos xamãs compreenderia que, uma vez que não se sabia dizer ao certo em qual sentido corria o tempo, ninguém podia jamais garantir a idade dos seres e acontecimentos, e menos ainda a ordem em que haviam chegado a este mundo, quem era o pai, quem o filho, e assim por diante.

Durante uma marcha militar, Tamerlão recordou que Ispahan não estava longe e, impelido por um pressentimento, quis rever mais uma vez sua pirâmide. Ela parecia ter encolhido um pouco, a cabeça plúmbea do idiota estava um tanto rachada, e as pilosidades dos escalões inferiores haviam desaparecido por completo. Mas os dentes se achavam mais cerrados do que nunca. A pirâmide dava a impressão ora de ameaçar ora de ridicularizar o resto do mundo. Melancólico, ele observou os primeiros sinais de ruína, e deixou escapar um suspiro quando lhe disseram que ela poderia permanecer de pé por quatro ou cinco anos, não mais. A casca morta lá do Egito contava quatro mil anos, e talvez ainda durasse mais quarenta mil, enquanto a sua joia teria uma vida tão breve como seu filho Djahangjir: não alcançaria sequer mais quatro mil dias neste mundo.

Ele olhou na direção onde devia estar o Egito, depois balançou lentamente a cabeça. "Esperem só", disse consigo. Um dia desses haveria de marchar até lá para varrer da face da Terra o Egito e suas pilhas de pedras, especialmente a mais alta, a de Quéops, e erguer em questão de dias a sua montanha de crânios, no lugar daquela corcunda grotesca. Para mostrar ao mundo inteiro qual delas era a verdadeira pirâmide e qual não passava de um cenário.

Mas por ora não podia partir. Tinha pela frente a campanha da China, e o inverno começara cedo. Aquele era o ano do Cão, de que ele jamais gostara. O rio Saihun estava semienregelado, e ele próprio não se sentia bem. Seu pensamento escapava rumo a empreendimentos impossíveis, como alguns anos antes, durante a campanha da Sibéria, quando, apesar das preces aterrorizadas dos magos, a noite teimava em não chegar, pois se iniciara aquilo a que chamavam aurora boreal. Fora no ano do Rato. A mente de Tamerlão lutava para penetrar nos mistérios do calendário, enquanto os dias e também as noites surgiam malformados como os frutos de um incesto.

Ele se sentia febril, tal qual naquela vez. Desejava concentrar o pensamento em coisas mais simples, por exemplo, na necessidade de evitar a todo custo uma primeira batalha em tempo chuvoso, para não acontecer como em Sijabkir, quando os arqueiros, encharcados, tinham perdido por completo a pontaria. Queria pensar em dezenas de outros temas, concretos e visíveis, mas a pilha de cabeças não o largava. Perturbava-se profundamente, não tanto com o brilho opaco do chumbo na cabeça do idiota, mas com o fio de ferro atravessando os crânios, e sobretudo com o raio que, conforme os relatos, serpenteara entre elas mais rápido que uma víbora...

Uma ideia tentava tomar forma em sua mente. Era algo relacionado ao fio unificador, ao raio e a suas próprias ordens. Tentava, mas não conseguia, exatamente como durante a campanha da Sibéria.

Com certeza, estava com febre. Pensara que a morte o esperava em Orsha, mas aquela devia ser apenas a sua máscara. A morte que ele temia era outra, aquela que costumava persegui-lo nos contornos de seu império, ali onde os descampados se enlameavam e os juncos, como os monges mongóis, tornavam-se mais e mais raros.


16. Epílogo vítreo

 


DEPOIS dos funerais de Tamerlão, ninguém mais pensou em cuidar de suas montanhas de crânios. Elas eram mais de novecentas, feitas de cerca de um milhão de cabeças, porém se deterioraram completamente em poucos anos. A decomposição das partes moles das cabeças começou por atacar a argamassa, depois enferrujou e rompeu o fio que as amarrava, e foi o bastante para que toda a pilha viesse abaixo. As ventanias do inverno, mas sobretudo as feras, demoliram escalão após escalão, até que nada restou deles. Contudo, embora desaparecidas, elas se faziam ainda mais altas e medonhas na memória dos homens. Foi quando se compreendeu o quanto perdera a pirâmide-mãe, a de Quéops, ao ser poupada.

Sob o sol tórrido do deserto, esta permanecia fecunda. Mas suas crias eram de tal modo indiscerníveis, surgindo em outras terras e outros tempos, sob a forma de governos e de monumentos históricos, que a custo seriam atribuídas ao deserto. Sempre protegidas pela invisibilidade, apenas em duas ocasiões cometeram o erro de se exibir, como se arrancassem a máscara apavorante ou a deixassem cair sem querer. Findas as pilhas de crânios de Tamerlão, a segunda aparição aconteceu seiscentos anos depois, na antiga terra dos ilírios, habitada por seus descendentes, chamados albaneses. Foi tal qual um coito cósmico, como aqueles imaginados pelos antigos, em que a aspersão descuidada de esperma ou de óvulos engendrava legiões de seres ou corpos celestiais. A velha pirâmide pariu não milhares, mas centenas de milhares de crias. Chamavam-nos de bunkers, e cada um deles, por minúsculo que fosse se comparado à mãe, trazia em si todo o seu terror e toda a sua loucura. Havia fios de ferro dentro do concreto, como no velho projeto de Kara Huleg, e a palavra unidade, com frequência inscrita em suas costas, testemunhava que eles se relacionavam não só com a pirâmide-mãe, mas também com as pilhas de crânios, e que o velho sonho de unir todos os cérebros por uma única ideia só podia se concretizar penetrando-se os crânios com um ferro.

As aparições piramidais se manifestavam por ciclos, sem que se pudesse determinar jamais em qual época aconteceriam, já que ninguém nunca poderia saber se a visão era de fato do futuro ou se se tratava apenas do passado andando para trás como um caranguejo. Mais fácil seria acreditar que nem um nem outro eram realmente o que se pensava, pois ambos teriam a faculdade de mudar de direção, como os trens do metrô quando chegam ao terminal.

Certa manhã, um turista louro que fotografava a pirâmide foi possuído pelo desejo de que ela fosse transparente, deixando ver através de suas faces de vidro o que havia no interior — múmias, sarcófagos e enigmas indecifráveis. A tarde caía, a pirâmide ia ficando mais e mais nebulosa, e a cada momento ele sentia um arrepio, como alguém que, durante uma sessão espírita, esperasse fotografar um fantasma.

O turista revelou o filme na mesma noite, e a pirâmide lhe pareceu de fato vítrea, exceto num dos cantos, mais ou menos na altura do nono escalão da face nordeste, onde havia algo semelhante a um arranhão. Ele tirou o filme do banho, voltou a mergulhá-lo, mil anos mais fundo, dois mil anos, quatro mil anos, e, ao reexaminá-lo, a marca ainda estava lá. E não era um defeito do filme, como ele pensara a princípio, mas uma mancha de sangue, que nenhum fluido poderia jamais apagar.

 

 


Posfácio

 


Dois poemas, um deles dedicado à pirâmide de Quéops, testemunham desde 1967 o interesse de Ismail Kadaré pelos símbolos do antigo Egito. Porém, quando ele escreveu A pirâmide, em 1988, acrescentou a sua obra uma nova temática — o totalitarismo e a luta do homem pela liberdade. O que Ismail Kadaré recolhe da história não é a cadeia de fatos e datas, mas o que permanece depois que estes são esquecidos, o que é imutável e emblemático. Por meio de uma alegoria, a construção da Grande Pirâmide, o autor desvenda um monstruoso sistema de dominação do homem. Estávamos na idade da pedra do totalitarismo, mas, em última análise, poucas coisas mudaram desde então. Concebida como uma fábula, A pirâmide, com seu campo léxico, deixa entrever que, por trás do verniz da Antiguidade, refere-se à situação atual. Alguns termos que aparecem no livro evocam o século XX, ou o anterior. Não é a primeira vez que Kadaré joga dessa maneira com um distanciamento entre a época da narrativa e a "época léxica", criando um mosaico de épocas; sob essa ótica, A pirâmide não se afasta muito de textos como O monstro.
A pirâmide, do mesmo modo que A ponte dos três arcos, O palácio dos sonhos ou O grande muro, contém o tema, recorrente na obra de Kadaré, da construção em pedra. Sente-se ao longo da narrativa o peso da pedra: os dois primeiros capítulos constituem, por sua densidade, os alicerces de uma gigantesca construção.
Focalizando a vida cotidiana na IV dinastia dos faraós, Ismail Kadaré lança luz sobre a maneira como qualquer poder é capaz de exaurir os espíritos, reduzi-los a frangalhos, obrigando-os a realizar trabalhos titânicos. O poder priva o homem de todo desejo. A pirâmide dá prosseguimento a outros textos kadareanos sobre o totalitarismo — O nicho da vergonha ou O palácio dos sonhos. Todos os atributos do totalitarismo encontram seu lugar nos dezesseis capítulos — ou escalões — da pirâmide kadareana: os ardis forjados, as campanhas de terror, a magnificência estatal. Nas entrelinhas, descreve-se a sociedade albanesa dos anos 70 e 80 — e Kadaré não esconde que entre as crias da Grande Pirâmide estão as casamatas de concreto construídas na Albânia de Enver Hoxha. Entretanto, voltemo-nos para a história: na época em que Ismail Kadaré escrevia este romance, trabalhadores albaneses da construção civil erguiam em Tirana um museu em formato piramidal que foi inaugurado no octogésimo aniversário do nascimento de Hoxha.
A pirâmide, recusada pelas editoras albanesas em 1988, foi parcialmente publicada pelo jornal de oposição Rilindja Demokratike em 1990, após o exílio do escritor. O romance foi refundido em 1992, em Paris, e lançado na Albânia. A versão aqui apresentada incluiu algumas modificações feitas pelo autor no outono de 1992, depois de a obra ter saído na França.

 

 

                                                                  Ismail Kadaré

 

 

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