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Um encontro no Extremo-Norte
- Treze!... Catorze!... Quinze!... Dezasseis !...
O homem tirara as luvas e sem se importar com as cruéis mordeduras da nortada, contava minuciosamente os fósforos que tinha na caixa. Perto dele erguia-se uma ténue
coluna de fumo agitada sem cessar pelos ataques da nortada...
- Ainda dezasseis! repetiu êle esfregando os palitos de madeira entre os dedos entorpecidos pelo frio... E dizer que isto representa para mim a vida... a possibilidade
de me colocar fora de alcance!
Passeava em redor um olhar cheio de desconfiança; as mãos dele estendiam-se cheias de frio para a fogueira. Um calor bemfazejo acariciava-lhe a epiderme. Sentia-se
reviver, mas a sua fisionomia continuava a exprimir a mais profunda angústia... Na sua frente, a perder de vista, estendia-se a vasta planície do Labrador toda coberta de gelo. Alguns flocos brancos revoluteavam ainda no céu pardo... Em toda aquela vasta extensão não se avistava qualquer vulto, da mesma forma que sobre o tapete
imaculado que cobria o solo nem o menor indício da passagem recente de qualquer ser humano. Em parte alguma os trenós haviam traçado os seus sulcos paralelos.
O viajante meneou lentamente a cabeça... - Santo Deus! talvez que seja melhor assim!... Acerca de duas semanas que se afastara de Fort-Rupert, a estação situada
no litoral da Baía de Hudson, e desde então João-Pedro Roquete apenas encontrara alguns, raros, índios, caminhando solitários pela neve. Fugia assim ao acaso, e
evitava aproximar-se das aglomerações e das vizinhanças dos postos da Companhia, a que até então pertencera. Tão grande era a sua precipitação que nem lhe dera tempo
de organizar uma equipagem, de comprar um trenó e cães de tiro. Seguia, calçado com as suas raquettes (1), a carabina a tiracolo, o boné de pele de castor enterrado
até às orelhas. Por várias vezes no decurso da sua marcha errante, fustigado pelos elementos em fúria, João-Pedro estacara, olhando para trás, a-fim-de ver se era
perseguido.
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Ao cair da noite, depois de ter reunido, não sem dificuldade, o combustível que
(1) Apetrecho em forma de raquette de jogar que se adapta aos pés para caminhar sobre a neve.
podia arranjar, ou de ter acendido o seu fogão de petróleo, derretia na chaleira alguns punhados de neve e preparava o chá, que bebia acompanhado de alguns biscoitos
e fatias de pemmican... (1) Todavia, à medida que se prolongava esta fuga para o norte, os mantimentos começavam a escassear. ..
- Só dezasseis fósforos! murmurou o fugitivo metendo no bolso das calças a preciosa caixa...
Dezasseis fósforos! representavam ainda dezasseis altos em perspectiva, admitindo que eles se não apagassem e que de cada vez um bastasse para acender o fogo...
Depois, como poderia subsistir e lutar contra o frio, evitando sempre escrupulosamente a vizinhança dos seus semelhantes?
João-Pedro Roquete não pôde deixar de estremecer ao pensar no que o esperava num futuro próximo...
- Deus há de proteger-me! murmurou... Conseguirei por certo atingir alguma aldeia esquimó do litoral... Os indígenas estão em boas relações com os pescadores vindos
da Terra-Nova, mas não se preocupam com o que se passa no Labrador,
(1) Comprimidos muito nutritrivos de carne, gordura e chocolate, usados nas viagens onde há dificuldade em se fazer o abastecimento de carne fresca, particularmente
nas regiões polares.
pois só raramente negoceiam com os representantes da Companhia de Hudson! Talvez que entre eles possa encontrar seguro asilo... Algumas das suas tríbus estão disseminadas
ao longo do litoral da baía de Ungava e nas alturas do cabo Chadleigh... Aí deverei poder-me abastecer, sem receio de ser reconhecido!...
Entregue aos seus pensamentos, o viajante não esquecia os múltiplos obstáculos que teria a vencer para atingir a região longínqua onde se propunha ir habitar...
Estava ainda a mais de cinquenta milhas... Os ataques frequentes do blizzard (1) permitir-lhe-iam terminar a viagem antes de esgotar a sua provisão de fósforos e
de mantimentos?
Os lúgubres silvos do vento que varria sem cessar a superfície da neve, o céu, que permanecia uniformemente cinzento, davam a compreender àquele desgraçado que não
poderia contar com melhores condições meteorológicas... Os animais que povoavam ordinariamente estas regiões, acoitavam-se cheios de medo; apenas algumas alcateias
de lobos vagabundeavam na vizinhança.
João-Pedro avistara já alguns destes animais contra os quais fizera vários tiros para os pôr em debandada. A presença dos lobos inspirava-lhe, de facto, sérias apreensões.
Até àquela altura os tiros
(1) Tempestade de neve tão violenta que nada deixa ver em redor.
mantinham-os a respeitosa distância, mas, mais tarde, quando se lhe acabassem as balas? Então não hesitariam por certo em atacá-lo. Uivavam perto dele, naturalmente
cheios de fome, mas não ousavam aproximar-se muito...
Durante alguns minutos, o viajante permaneceu imóvel, acocorado na neve, estendendo para o fogo as suas mãos enregeladas...
- E ainda mais do que as feras me perseguem os meus semelhantes! continuou êle no seu solilóquio. Se prezo a minha vida e a minha liberdade, tenho que os evitar
a todo o custo! Há ocasiões em que pregunto a mim mesmo se não seria melhor terminar com isto! A morte não seria mil vezes preferível a esta interminável odisseia
através daquela maldita terra? Que alegrias, que consolações poderia encontrar naquele deserto gelado? A-final-de contas, que sou eu, João-Pedro Roquete, se não
um criminoso? Os homens da polícia a cavalo devem com certeza andar na minha peugada... De que me servirá lutar e resistir quando a mão da justiça está prestes à.
abater-se sobre mim?
Os silvos incessantes do vento que redobrava de violência vieram interromper o solilóquio daquele desgraçado. Prosseguiu, depois, novamente, nas suas profundas meditações:
- Quem diria, há um mês apenas, que o honrado João-Pedro Roquete caçador ao serviço da Companhia de Hudson, se veria constrangido a
fugir como um malfeitor, a interromper o exercício da sua profissão, a abandonar o seu habitual terreno de caça para vir procurar refúgio nesta zona desolada do
Labrador? Por que seria que num momento de alucinação, um gesto irreflectido liquidara para sempre uma existência até aí honesta e laboriosa?
O homem abanou a cabeça numa atitude de profundo desapontamento. Parecia irresistivelmente esmagado pela sua desgraçada sorte...
Uma barba que não era feita há mais de quinze dias emoldurava-lhe o rosto onde se lia a expressão do mais profundo desespero. A neve que lhe cobria a barba começava
a derreter-se sob a acção do calor. Com as costas da mão enxugou à luva as gotas de água que corriam ao longo do seu rosto queimado. O chiar da água na chaleira,
que veio interromper o seu devaneio, parecia-lhe a mais deliciosa das músicas. Rapidamente tirou do bornal uma pitada de chá com que preparou a reconfortante bebida.
Deitou na chávena de estanho o chá ainda fumegante e bebeu-o com sofreguidão...
O calor deu a João-Pedro uma indizível sensação de bem-estar. O entorpecimento que sentia há tanto tempo e que começava a paralisar os seus membros fatigados dissipava-se
como por encanto... Encheu ainda por três vezes a chávena, ateando o melhor que podia o fogo cujas chamas o vento norte procurava sempre apagar...
Durante alguns minutos ainda o homem imobilizou-se estendendo para o fogo as suas mãos; depois com grande pezar, levantou-se, foi buscar as raquettes que deixara
a dois passos, meio enterradas na neve...
- Vamos! toca a marchar... Assim é preciso...
Rapidamente o fugitivo atou as correias que lhe prendiam as raquettes às botas. Antes de se pôr em marcha, olhou em redor...
A planície continuava, como sempre, deserta; o fugitivo não distinguia o mínimo vestígio da passagem de qualquer semelhante sobre a superfície da neve... Aproximando-se
pela derradeira vez do fogo, que se extinguia lentamente, João-Pedro tornou a aquecer as mãos antes de calçar as luvas. Custava-lhe imenso separar-se do fogo, o
seu único amigo, antes de prosseguir na sua perigosa carreira para o desconhecido... Teria querido demorar-se ainda um pouco mais para repousar da fadiga, mas só
a idea de que poderia ser apanhado bastou para triunfar da momentânea hesitação... Soltando um profundo suspiro, levantou a gola do casaco de peles, a-fim de proteger
o rosto contra as chicotadas do vento gelado, depois, de cabeça baixa, continuou na sua caminhada errante para o norte.
Na frente do caçador o terreno continuava como sempre, uniformemente plano, assim, a fadiga da marcha não era grande.
Acostumado desde a sua mais tenra infância
a caminhar sobre raquetes, continuou a avançar com boa rapidez, detendo-se apenas de vez em quando, para respirar um pouco, e para se certificar de que não era seguido.
Para proteger os olhos, o viajante solitário munira-se de óculos escuros. De tempos a tempos punha-se à escuta para ver se notava qualquer ruído estranho, mas só
os uivos do vento vinham perturbar o silêncio impressionante que pairava sobre aquelas desoladas paragens...
- Já não devo estar longe do Lago de Wagnashf murmurou finalmente João-Pedro, depois de ter caminhado durante uma hora... os dias são curtos neste período invernal
do ano! Naturalmente não chegaria lá antes do anoitecer... Ver-me-ei obrigado a acampar outra vez. Depois de acender a fogueira, não me restarão mais do que quinze
fósforos!...
Não menos do que o receio de ser apanhado o atormentava a idea de ser privado de fogo,.. Por várias vezes, no decurso da sua vida de caçador, ao percorrer as solidões
desoladas do Labrador, descobrira sobre o trail (1) cadáveres enregelados de muitos infelizes, mortos de fome e de-frio... Poderia êle esperar ser mais feliz, assim
privado de trenó e de cães de tiro...
(1) Pista.
Caminhava como um autómato, e avançava sempre, indiferente à neve que lhe fustigava o rosto. O medo de ser descoberto incitava João-Pedro a afastar-se prudentemente
das aglomerações; contudo a solidão contínua a que se votara oprimia-o profundamente... Em certos momentos, quási que desejava ver-lhe aparecer um ser humano com
quem pudesse trocar algumas palavras... É que ainda se não habituara àquela existência de animal perseguido Mas, sempre ia vencendo a depressão de espírito que se apoderava dele e continuava a evitar a aproximação dos postos... O deserto branco que lhe parecia tão feroz, não lhe permitiria, de facto, continuar a usufruir da
sua liberdade?
O viajante continuou ainda a caminhar durante duas horas. Refreou o passo alguns instantes, e enxugou às costas da mão enluvada o suor que lhe gotejava na fronte.
O esforço que acabara de dispender fora bastante rude... Dentro em pouco ser-lhe-ia preciso acampar para passar a noite...
Avistou uma ligeira elevação de terreno junto da qual poderia encontrar abrigo contra a nortada. João-Pedro estacou finalmente. Desembaraçou-se das raquettes, e
fêz uma cova bastante profunda no meio da neve a-fim-de aí instalar uma fogueira. O fugitivo levava ainda no bornal alguns pedaços de madeira que encontrara nessa
mesma manhã nas proximidades de um pequeno bosque de pinheiros; fêz com eles um montículo, riscou um fósforo
e preparou-se para deitar fogo ao papel que colocara por baixo da madeira. Usou de imensas precauções para evitar que o fogo se apagasse, e acabou por verificar,
com imensa satisfação, que os seus esforços tinham sido coroados de êxito... Ligeiras crepitações se sucediam umas às outras, e uma ténue coluna de fumo subia nos
ares.
Os olhos do fugitivo tinham um brilho particular. Ajoelhou-se e soprou por várias vezes para atear o fogo. Deitou alguns punhados de neve na chaleira, e colocou
o recipiente em cima do lume. A atenção do viajante foi porém distraída das suas ocupações por um grito que se fêz ouvir, dominando o ruído do vento. -Eh! homem!
João-Pedro Roquete ficou como petrificado, o seu coração batia apressadamente. Durante alguns instantes julgou-se joguete de uma alucinação, mas o grito fêz-se ouvir
de novo agora mais próximo. O fugitivo não respondeu. Bruscamente deitou a mão à carabina que estava junto dele... A uns cinquenta passos à sua esquerda, distinguia
confusamente o vulto de um indivíduo vestido mais ou menos como êle e que se dirigia para aquele ponto. O recém-chegado havia por certo avistado a fogueira... Caminhava
sobre raquetes e tomava a direcção do fugitivo. Chegado à sua imediata vizinhança, estacou, e depois, estendeu o braço e exclamou:
- Bom dia, camarada! Olá... é sempre agradável encontrar alguém nestas paragens solitárias!...
João-Pedro limitara-se a resmungar qualquer monossílabo ininteligível.
Metendo a arma à cara, apontou-a ao importuno que assim vinha interromper os seus trabalhos...
- Santo Deus! praticas a hospitalidade por uma forma bastante bizarra! protestou o outro. Olha que eu não sou nenhum bandido... que diabo... eu sou...
O desconhecido interrompeu a frase para exclamar:
- Mas, se me não engano!... És tu, és, Roquete? Nem imaginava encontrar-te por estes sítios!. ..
O interpelado resolveu-se finalmente a responder.
- O quê, és tu, Francisco Santerre?
- Deus sabe fazer as coisas, Roquete! Agradece à Providência ter-me colocado no teu caminho... Poderias ter tido um pior encontro, por exemplo qualquer dos agentes
da Royal Moun-ed! (1)
O recem-chegado sublinhara estas palavras com uma gargalhada sarcástica. Por isso, João-Pedro estremeceu e balbuciou:
(1) Polícia montada do Canadá.
- A Royal Mounted? Que queres dizer com isso?
Um sorriso irónico iluminou o rosto de Santerre, o qual acabava de tirar os óculos escuros.
- Vamos, não te faças parvo, Roquete! Bem sabes que me encontrava junto de ti quando se deu o... incidente... Éramos três, Chouque, tu e eu!... Mas, depois falaremos
nisso! Por agora, faz um frio de todos os diabos e era uma grande coisa se me deixasses ficar aqui contigo durante a noite... Brr! julguei que ficava transformado
em gelo!
Sem esperar resposta, Francisco Santerre tirou as raquettes e acocorou-se junto do fogo.
O fugitivo não se mexera, nem largara das suas mãos crispadas a carabina... A presença do recém-chegado não lhe dizia nada de especial. Por isso, depois de ter hesitado
durante alguns segundos, pôs de parte a arma e abandonando a sua atitude ameaçadora inclinou-se para o importuno que parecia não se inquietar com a sua presença.
Interrogou-o:
- Que vieste cá fazer, Francisco Santerre... Que eu saiba, não tens o hábito de andar por estes sítios?
II
O espectro do passado
O interpelado encolheu os ombros.
- Parece-me, João-Pedro Roquete, que te poderia fazer a mesma pregunta... Também tu não costumas andar por estas inhóspitas paragens do Labrador... a região não
é nada abundante em caça e os caçadores não costumam armar por aqui... Em Fort-Rupert sempre é outra coisa!...
Ao ouvir pronunciar o nome do posto que tinha abandonado pouco antes, o fugitivo não pôde reprimir um estremecimento. É fora de dúvida que o recém-chegado percebeu
a sua perturbação, pois voltou à carga:
Vamos, não estejas a armar em esperto... Fizeste bem em seguir o meu conselho, afastando-te quanto antes do posto! Era o único meio de escapares de ser enforcado!
-Escapar de ser enforcado?
- Santo Deus! Não te faças parvo! Lembras-te muito bem que me encontrava junto de ti quando disparaste sobre o Nicolau Chouque.
João-Pedro ao ouvir estas palavras ia a levar outra vez as mãos à espingarda, mas Francisco Santerre deteve-o com as seguintes palavras:
- Para que te estás assim a pôr na defesa? Não te provei já que era teu amigo? Eu não sou o cabo Bentley a quem toda a gente chama em Fort-Rupert o Batedor da Neve!
Não te quero
nenhum mal!...
O rosto do fugitivo tinha uma palidez mortal.
- O quê? ... O cabo Bentley? ...
- Esse estimável defensor da lei lançou-se na tua peugada logo na noite da tua fuga e recebeu dos seus chefes ordens para te agarrar vivo ou morto... Partiu para
estes sítios com um trenó após um exame sumário ao cadáver da vítima.
"Agradece à Providência não o teres ainda encontrado! O teu caso é bem claro! Põem-te imediatamente algemas aos pulsos. Se pensas em resistir-lhe, dá-te cabo do
"canastro"! Quantos assassinos e ladrões, que se julgavam completamente em segurança têm assim sido agarrados pelo Batedor da Neve!... Não há dificuldade que o faça
recuar... O frio, a fome, a fadiga parece que nem o incomodam; tudo suporta com ânimo firme no cumprimento do dever... Mas, tranquiliza-te! Não te denunciarei! Deixarei
o cabo prosseguir às cegas nas
suas diligências. Sou teu amigo, Roquete, já to disse e repito-to. Considero providencial este nosso encontro.
A-pesar-das palavras do seu vizinho, o fugitivo sentia-se inquieto.
Durante alguns instantes, conservou a sua atitude de desconfiança, depois, inclinando-se para o recém-chegado agarrou-lhe na mão e disse:
- Vejamos, Santerre, tens a certeza de que disparei sobre Nicolau Chouque? Não tinha qualquer motivo para lhe querer mal. Parece-me que vivo um pesadelo horrível
desde que parti de Fort-Rupert... Não posso convencer-me de que seja um assassino! Noutros tempos, por várias vezes, aconteceu-me abater alguns desses bandidos que
tantas vezes se encontram no ttrail, mas isso era o caso de legítima defesa.
-- Não, camarada, não tenhas dúvida! Vi-o com os meus próprios olhos... Discutíamos os três no saloon do "Castor". Chouque teve o pouco espírito de afirmar que o
teu "peludo" (1) não era nada bonito e que a Companhia to pagara por um preço excessivo.. Subiu-te a mostarda ao nariz... agarraste no revólver e disparaste à queima-roupa
sobre Chouque... Atingido em cheio no peito, caiu
(1) Provisão de pele que os caçadores entregam nos escritórios da Companhia de Hudson.
como uma massa! Ajoelhei junto dele e verifiquei que estava morto... Acorreu gente de todas as outras mesas, atraída pela detonação... Então dirigi-te algumas palavras
e tu não hesitaste. Antes mesmo que os outros compreendessem o drama que acabava de se desenrolar, saíste do saloon e puseste-te em fuga.
- Não compreendo por que procedi assim! murmurou João-Pedro Roquete, com voz trémula... Estava louco, com certeza! Por mais que procure reunir ideas não me lembro
de ter disparado o meu revólver. Creio rever o nosso vizinho precipitar-se sobre mim, depois ouvir uma detonação... Então Chouque cambaleou e caiu levando a mão
ao peito e arrastou consigo a mesa na queda... Tu gritaste-me: "Mataste-o! Foge!" E parti, semi-louco, de Fort-Rupert, por entre as trevas da noite, sentindo ameaçada
a minha segurança, e, depois. lancei-me por estas solidões, oprimido pelo remorso, mas ainda sem acreditar cabalmente no meu acto. O recem-chegado meneou a cabeça:
- Tu mataste o Nicolau Chouque, não tenhas dúvida! Mas nem por isso deixei de ser teu amigo... O que estranho é que tenhas esquecido assim os acontecimentos! João
Moreau, o proprietário do saloon do "Castor", dera-vos a beber, nessa noite, alguns copos de uma cidra que acabara de receber da Normandia, e que "trepava" muito.
Bebeste demais e daí o resultado. Bem sei que não eras responsável
pelos teus actos. Mas, quem poderá provar essa atenuante? A justiça aqui é inflexível e feroz. Bom, o que está feito, está feito! Em Fort-Rupert todos te consideram
um grande criminoso! Oferecem mesmo um grande prémio a quem te capturar...
Uma indizível expressão de desespero se estampou nesse momento no rosto do fugitivo...
- Um criminoso!... Não é possível! balbuciava Roquete. Pensa bem camarada... Sou filho do velho Roquete, o melhor caçador da Companhia! Tenho apenas vinte-e-cinco
anos, mas até hoje soube sempre provar aos meus chefes que podiam ter em mim uma absoluta confiança! Meu pai morreu há quinze meses, e sempre tenho honrado a herança
de probidade que êle me legou... Chouque era pàra mim um amigo... Mantivemos sempre um com o outro as melhores relações.
- Nada disso impede que êle esteja agora sepultado no cemitério de Fort-Rupert. Vês, camarada, às vezes a cegueira de um momento pode estragar irremediavelmente
uma vida inteira! Julga por ti as consequências do teu acto irreflectido... Agora o cabo Bentley não descansará emquanto te não apresentar aos seus chefes algemado
de pés e mãos.
Durante alguns momentos os dois homens fitaram-se, calados.
- Mas, a-final-de contas, se não estás convencido
de que mataste o Nicolau Chouque porque largaste assim a fugir do saloon?
- Não sei... Sem dúvida por instinto de conservação e por ter receio de que me prendessem! Durante dias inteiros errei ao acaso. Só as palavras que tu pronunciaste
a seguir à queda de Chouque me ocorriam constantemente à memória. Via-te sempre ao pé de mim, a dizeres-me: "Desgraçado! Mataste-o!... Põe-te a fugir!..."
- Como! Aconselhei-te a fugir? exclamou Francisco Santerre, muito admirado...
- Estou a repetir-te as tuas próprias palavras!... Bem vês, recordo-me muito mal do que se passou, as minhas impressões são bastante vagas, mas estou convencido
de que foste tu próprio que me aconselhaste a partir...
Francisco Santerre, que começara por franzir o sobrecenho, esboçou um gesto evasivo:
- A-final-de contas, pouco importa!... Essas palavras provam o grande interesse que tenho por ti. Naquele trágico momento, o meu único interesse era - salvar-te!
Os acontecimentos que depois se desenrolaram justificaram as minhas apreensões! O cabo Bentley, avisado a toda a. pressa, abriu imediatamente um inquérito no "Castor".
Descobriu o teu revólver e pôde verificar sem dificuldade que lhe faltava uma bala, que era a mesma que atingira Nicolau em pleno coração... Além disso todos quantos
presenciaram a cena foram unânimes
em te acusar! Se não tens fugido estarias enforcado já a estas horas. Os representantes da autoridade são inexoráveis, desde que os atentados no trail começaram
a tornar-se mais frequentes. Ninguém acreditaria que tivesses agido em estado de embriaguez...
- Olha também, que o meu futuro não se me afigura mais risonho do que se não tivesse escapado aos rigores dos agentes da autoridade! Vejo-me obrigado a viver a monte
e estou sempre à espera de que me apareça o cabo Bentley, o Batedor da Neve. Se êle me encontra, sou um homem perdido! Há muito que lhe conheço a perspicácia. Ser-me-á
muito difícil senão impossível escapar-lhe.
- É um homem que eu não queria para inimigo! resmungou Francisco Santerre... Conseguiu, por várias vezes, levar a bom termo expedições em que tinham fracassado todos
os seus camaradas da Royal Mounted. Lembras-te do Cree que matou Rigolet, o correio?... O "tipo" conseguiu escapar-se durante meses à perseguição da polícia! O Batedor
da Neve foi encarregado, então, da diligência, e sozinho, com um trenó e os seus cães, agarrou-o no Extremo-Norte, entre os esquimós, onde o assassino se refugiara.
Em Fort-Rupert julgavam já que o polícia tinha morrido vítima do dever, quando numa bela noite êle apareceu trazendo o assassino algemado. As maiores dificuldades
não o tinham impedido de desempenhar a sua missão...
O fugitivo estava absolutamente desmoralizado. Não precisava, por certo, de que o seu companheiro lhe recordasse as proezas da polícia montada. Conhecia-as, há muito.
- Às vezes, pregunto a mim próprio se não seria melhor voltar para trás e entregar-me à polícia... De que me vale esta existência de animal perseguido? Não seria
melhor acabar com isto tudo de uma vez para sempre? Não posso aproximar-me dos postos e das raras aglomerações urbanas do Labrador, sob pena de me prenderem... O
blszzard, o frio, a neve, a fome são os meus eternos companheiros. .. Restam-me apenas alguns fósforos, depois, se Deus me não vale, morrerei para aí! Mas, Deus
amercear-se-á da sorte de um assassino? Ah! Santerre, juro-te, nunca pensei que viesse algum dia a ver-me nesta triste situação! Que loucura a minha, pôr-me a beber
daquela forma! Eu que de meu natural sou tão sóbrio... A velha cidra da França fêz-me perder a cabeça... Se ainda as peripécias da discussão, que se terminou por
forma tão trágica, me ocorressem, talvez que me conseguisse justificar; mas é tudo tão confuso! Apenas conservo da minha saída do saloon a impressão de ter escapado
a qualquer perigo muito grande. Mas, mais nada... Agora não sou mais que um desgraçado!
Francisco Santerre deixara falar o seu vizinho, sem sequer se dar ao trabalho de o interromper.
- Vamos! Não há razão para perderes o moral lá porque o Batedor da Neve anda na tua peugada! É certo que o cabo Bentley não tem teias de aranha na cabeça, mas tu
és um dos melhores caçadores da Companhia... Consideram-te o melhor atirador do Labrador. Nessas condições se o teu perseguidor se aproximar muito de ti, por que
lhe não hás de armar uma cilada? Por mais ágil que seja o homem da polícia montada, a tua bala será ainda mais rápida, e desembaraçar-te-á do inimigo de uma vez
para sempre!
João-Pedro Roquete não pôde deixar de se insurgir contra a sugestão do seu interlocutor:
- Ah! isso não! estás doido, camarada! Não estava bom de cabeça quando disparei sobre Nicolau Chouque... Mas, matar a sangue frio um homem que apenas cumpre o seu
dever? Seria uma cobardia, uma indignidade!... Estava bem longe de que fosses capaz de me fazer uma proposta dessa natureza!
Francisco Santerre, visivelmente embaraçado por esta réplica, esboçou um sorriso que mais parecia um esgar.
- Que mosca te mordeu? Aconselhei-te a que matasses o Batedor da Neve para te evitar maiores sensaborias. A mim, já vês, que me importa que o cabo Bentley te deite
a luva? Faz o que quiseres.
Durante bastante tempo os dois homens sentados ao lado um do outro, muito calados e quietos, procuraram aquecer-se às chamas vacilantes da fogueira. Profundamente
emocionado pelas insólitas propostas do seu interlocutor, Roquete preguntava a si próprio quais os motivos que teriam arrastado Santerre até àquelas planícies geladas
do Labrador! Admirava-se muito que o seu companheiro do saloon do "Castor" tivesse ido ter com ele assim daquela forma e precedendo o cabo Bentley.
- Diz-me cá, porque te encontras tu aqui, também, sem trenó nem cães? Não tens, como eu, motivos sérios que te levem a evitar a sociedade dos outros homens... No
outro dia, em Fort-Rupert, disseste-me que te querias empregar na Companhia?
- É por isso mesmo que me encontro aqui! respondeu Santerre, com uma certa hesitação. No posto de Fort-Rupert pediram-me para me dirigir quanto antes a Fort-Chimno,
a estação situada no litoral de Ungava Bay... Mataram lá recentemente um caçador em consequência de um estúpido acidente, e precisam de alguém para o substituir.
Foi por isso que aceitaram tão facilmente a minha proposta.
- E partiste para o norte sem equipagem? Decididamente não te julgava tão imprudente.
- Meu Deus! tu não trouxeste trenó e mesmo assim chegaste até cá!
A minha situação não é positivamente a
mesma! Fugi de Fort-Rupert num momento de alucinação, receando ser apanhado pela polícia, e por isso não tive tempo de tomar as precauções indispensáveis! Mas, contigo
o caso é diferente, na tua qualidade de novo agente da Companhia podias equipar-te convenientemente. Admiro-me muito de que o não tenhas feito!
- Tive um acidente a umas vinte milhas da South River, apressou-se a explicar Francisco Santerre. Uma volta brusca atirou comigo para fora do trenó... Os cães aproveitaram-se
disso para largarem à desfilada por uma ribanceira... Tentei em vão agarrá-los... Os animais devem ter-se perdido no deserto branco, mas não desespero de os tornar
a encontrar. Andava em busca deles quando fui atraído pela tua fogueira.
Estes pormenores, embora verosímeis, surpreendiam um tanto o fugitivo. Ia fazer-lhe uma objecção, quando Santerre opinou:
- Vamos! Não passa de um simples incidente! Tenho comigo armas e provisões suficientes! Amanhã recomeçarei a minha busca... Entretanto felicito-me por te ter encontrado.
Estava profundamente inquieto a teu respeito, camarada! Receava que tivesses sido apanhado pelo Batedor da Neve... E com a maior satisfação que verifico que lhe
tens conseguido escapar. Agora que já sabemos tudo um do outro não vale a pena perdermos mais tempo com conversas. Sinto a barriga pegada às costas!
A água está quási a ferver... Vamos jantar... Tu és meu convidado... Trago comigo uma lata de salmão de conserva... Depois tenho uma aguardente bastante boa que
servirá para nos aquecermos! Amanhã partimos os dois em busca da minha equipagem !
Esta sugestão pareceu seduzir o canadiano que se apressou a fazer as honras ao frugal repasto que lhe oferecia aquele inesperado companheiro. Emquanto ambos comiam,
a noite desceu rapidamente sobre eles...
Ao longe ouviam uivos.
- Lobos! murmurou Francisco Santerre... A vista da fogueira impedi-los-á de nos virem visitar!...
Depois de terem trocado mais algumas palavras sem importância, os dois homens enrolaram-se nos cobertores... Daí a poucos minutos, vencidos pela fadiga, adormeciam
profundamente...
Quando João-Pedro Roquete se ergueu, ao romper do sol, olhou em redor, o fogo extinguira-se já há algumas horas...
- Olá, camarada! Onde estás tu metido?
Ninguém lhe respondia, porém, por mais que chamasse. Francisco Santerre desaparecera.
III
O "Blizzard"
A neve caía em grandes flocos e por isso a, princípio João-Pedro julgou que o seu companheiro estivesse como êle coberto pelo branco lençol da neve, mas não tardou
em se convencer de que tal não acontecera. Fartou-se de chamar e de procurar sem qualquer resultado. O seu companheiro de algumas horas desaparecera.
- Não percebo, também, porque partiu sem me dizer palavra resmungou o caçador que se sentia cada vez mais estupefacto pela conduta e pelas palavras de Santerre.
Mas, esta estupefacção cedia em breve o lugar a uma amarga desconfiança ao verificar que lhe tinham desaparecido misteriosamente a espingarda e o bornal. Até a caixa
de fósforos que escondera com o maior cuidado dentro do bolso das calças, essa mesma havia também desaparecido.
Durante alguns instantes ficou atónito. - Não é possível!... Não me pode ter abandonado assim!
João-Pedro teve no entanto que se render à evidência. Sem o menor escrúpulo, Santerre abandonara-o na planície gelada do Labrador, desprovido de recursos. A sua
situação já bastante precária antes disso, tornara-se, agora, perfeitamente desesperada.
Aterrado, o caçador compreendeu que estava irremediavelmente perdido. Sem fogo, sem mantimentos, sem munições, sentia-se condenado a uma morte certa. Infringindo
a lei do trail que comina aos viajantes do Extremo-Norte prestar socorro a todo o semelhante necessitado, o miserável despojara-o de tudo quanto lhe restava...
Sacudindo a neve que ainda o cobria, cambaleando como um homem embriagado, o caçador deu alguns passos, chamou ainda por Santerre, julgando-se vítima de um pesadelo
alucinante.
Queria convencer-se de que o desaparecido apenas se afastara para qualquer ponto da vizinhança. Talvez que voltasse dentro em pouco? Mas, nada! Francisco Santerre
desaparecera!...
O abandonado estacou, interdito. Apenas as extremidades das raquettes emergiam no ponto onde as deixara. Então, arrancando-se ao doloroso torpor que o invadia, afivelou
as raquettes e retomou a sua marcha para o norte, esforçando-se por
reconhecer a pista muito vaga que o ladrão deixara atrás de si. A neve fizera desaparecer quási por completo o rastro, e por isso seria tarefa particularmente difícil
descobrir a pista que êle seguira.
Durante cerca de meia milha, João-Pedro avançou na disposição de encontrar Santerre para lhe exigir explicações sobre a sua estranha conduta. De-pressa se convenceu
de que não conseguia nada! Até onde os seus olhos chegavam não se avistava coisa alguma! Francisco Santerre soubera tomar avanço suficiente para não ser alcançado
pela sua vítima!
No entanto, por mais desconcertante que lhe parecesse a sua situação, o caçador não se abandonou ao desespero.
Privado da chaleira, dos seus preciosos fósforos, sem possibilidade de se aquecer, compreendia que lhe não era dado parar um momento. Se queria viver, devia marchar,
lutar até ao extremo limite das suas forças para impedir que os seus membros ficassem paralisados pelo frio. Nunca, no decurso da sua existência aventurosa, se debatera
com uma situação tão angustiosa. Apenas existia para êle uma esperança de escapar ao seu horrível destino. Sabia, há muito tempo, que alguns grupos de índios copis
habitavam nas proximidades do lago Waquash do qual julgava ter-se aproximado bastante durante a sua última etapa. Avançaria agora um pouco para leste, tentando assim
atingir aquele ponto, e, uma
vez chegado lá, pediria auxílio aos indígenas. Não havia outro meio de escapar a uma morte certa senão aquele.
Dentro em pouco, já sem fôlego, João-Pedro teve de interromper a marcha. Olhou com muita atenção para o céu que começava a escurecer. Franziu o sobrecenho; verificara,
de facto, que a velocidade do vento era cada vez maior, e via-se constrangido por isso a diminuir sensivelmente o seu andamento. O vento, varrendo a vasta extensão
do deserto, dispersava a neve em turbilhões. - O blizzard! murmurou o fugitivo, possuído de mortal inquietação! Cá está o blizzard! Se êle se desencadeia, estou
perdido! Não serei capaz de me orientar.
João-Pedro Roquete conhecia de longa data os efeitos terríveis das tempestades de neve. Quantos viajantes atrevendo-se até àquelas paragens tinham sucumbido aos
seus furiosos assaltos?
Aniquilando as energias, paralisando as vontades, o blizzard constrangia os desgraçados a deterem-se. Ai dos que não encontravam então abrigo! O frio dava cabo deles,
sucumbiam em pouco tempo, sepultados sob um imaculado lençol de neve. O caçador sentia-se animado de uma energia a toda a prova; no entanto, pela primeira vez na
vida, começou a recear que a sua situação fosse desesperada. As rajadas cujos efeitos funestos receava, redobravam de violência. A neve cegava-o,
a-pesar-dos óculos escuros com que protegera os olhos.
João-Pedro tinha que parar frequentes vezes devido ao entorpecimento que lhe invadia os membros e friccioná-los para tentar restabelecer a circulação do sangue.
O frio, que era cada vez mais intenso, tornava muito difíceis as suas evoluções. Além disso, era-lhe quási impossível orientar-se por entre os turbilhões de neve
que se deslocavam incessantemente. A pista de Santerre perdera-se por completo. Agora não podia já pensar em recuperar o que o seu camarada lhe havia roubado.
- Meu Deus! murmurou João-Pedro... Ides assim abandonar-me, e deixar-me sucumbir neste deserto gelado?... Não permitis, sequer, que atinja um lugar habitado onde
possa ser socorrido?
Levando a mão ao cinto, o caçador procurava o cantil de rum que costumava trazer sempre consigo.
Tinha desaparecido também... Francisco Santerre desapossara-o de tudo quanto lhe pudesse ser útil.
- Miserável!... Se te chego a encontrar!...
Os silvos lúgubres da rajada cobriam a voz do fugitivo. João-Pedro, completamente desapontado, já não tinha dúvidas de que o patife se encontrava fora do seu alcance.
A sua perturbação não conhecia limites, no seu espírito atropelavam-se os mais contraditórios pensamentos.
Preguntava a si próprio qual teria sido o móbil de Santerre, de quem sempre fora amigo... Há longos meses que os dois mantinham as melhores relações! durante o drama
que se desenrolara no saloon do "Castor", Santerre, em risco de se comprometer, parecia não ter senão um único desígnio: salvar João-Pedro. Nestas condições o que
significava aquela misteriosa fuga?...
O fugitivo, desconcertado por um tal facto, procurava arquitectar hipóteses sem atinar com uma explicação. Tinha de se convencer da triste realidade. Por mais benévolas
que tivessem sido as intenções de Francisco Santerre para com êle, não hesitara a-final-de contas em o abandonar e roubar em pleno deserto gelado.
- Grande bandido! repetia sem cessar João-Pedro... E pensar eu que, naturalmente, nunca poderei infligir-lhe o castigo que merece!
O desgraçado teve de abandonar todo e qualquer projecto de vingança e não pensar noutra coisa senão em lutar desesperadamente contra a tempestade de neve que se
desencadeava com a mais extrema violência em torno dele. Por vezes, interrompendo a marcha, esgotado pelo esforço que acabava de dispender, o canadiano pensava em
descansar um pouco, mas, com medo de que um fatal entorpecimento se apoderasse dos seus membros, lutava ainda, lutava sempre, e resistia à tentação de se estiraçar
no meio do chão. Na sua imaginação exaltada
arquitectava as piores hipóteses, rememorando os trágicos acontecimentos de que tinha sido testemunha e autor. Com mais intensidade do que nunca, vinham-lhe à memória
alguns episódios do saloon... Não era a planície branca onde o blizzard continuava enfurecido o que ele via em torno de si, mas a vasta sala a abarrotar de freguesia
e cheia de nuvens de fumo dos cachimbos... Evocava um perfil, o de Nicolau Chouque que parecia estar ali na frente dele a impedir-lhe o passo. Sentia reviver a cena
que Francisco Santerre lhe relatara poucas horas atrás. Depois via a vítima lançar-se sobre êle e invectivá-lo com violência, e logo a detonação de um tiro de revólver
dominando a algazarra que ia na sala. Ferido mortalmente, Chouque caía no chão e a voz trémula de Francisco Santerre murmurava-lhe: "Mataste-o, Roquete... Safa-te
emquanto é tempo..."
O caçador continuava a avançar como um autómato, sem parecer importar-se com a direcção que seguia. Aproximar-se-ia do Lago Waquash? Ou pelo contrário estar-se-ia
afastando do ponto desejado? Não saberia dizê-lo. O blizzard que continuava a desencadear-se com a maior violência, impedia-o de se orientar.
A perspectiva de um outro perigo que não o de ser apanhado pelos homens da justiça apresentava-se de tempos a tempos ao espírito do fugitivo. Mas, mesmo admitindo
que escapasse aos ataques
do furacão, perseguido como um animal feroz, o fugitivo não tardaria em ser preso. O polícia agarrava sempre a sua presa!
Há quanto tempo avançava o canadiano sob os ataques do furacão? Nem ele mesmo sabia!
Esgotado pelos esforços incessantes que acabava de dispender, João-Pedro deteve-se semi-inconsciente... A-pesar-da fadiga sentia-se sempre animado pela vontade de
resistir ainda e de lutar até ao fim. Evocava agora as horas felizes da sua juventude... Como lhe parecia doce a vida nessa época já longínqua! Por mais desesperada
que lhe parecesse a sua situação, não queria morrer, perseverava em afrontar os elementos, mas as forças humanas têm limites... Pouco a pouco o desgraçado via-se
constrangido a retardar o seu avanço. Lutando desesperadamente contra a morte, marchava sempre.
Por várias vezes, estacou durante alguns instantes e gritou por socorro. Mas, o ruído do blizzard abafava os seus gritos. Então, impotente, calou-se. Quem, de resto,
poderia aventurar-se a prestar-lhe socorro dada a violência do temporal?
O Canadiano avançava, agora, muito mais devagar. .. Sentia zumbidos nos ouvidos. Parecia-lhe que ouvia tocar um carrilhão. Passou a mão pela fronte, quis ainda reagir,
mas em vão. À roda dele tudo dançava. Custava-lhe a conservar o equilíbrio, e as raquettes pesavam-lhe tanto que quási não podia
levantar os pés. A barba levava-a coberta de flocos de neve e o vento continuava impiedosamente a fustigar-lhe o rosto.
- Socorro!... socorro!... gritou mais uma vez João-Pedro...
Só os uivos da tempestade lhe responderam.
Então, sem poder mais, o fugitivo resignou-se. Interrompeu a marcha e deixou-se cair na neve murmurando palavras desconexas.
- Socorro!... socorro!...
Uma breve exclamação respondeu ao infortunado. Lutando energicamente com o blizzard alguém se aproximava do Canadiano. Em pouco tempo chegava ao ponto onde João-Pedro
caíra...
O caçador quis suplicar ao recém-chegado que o livrasse da morte, mas apenas conseguiu soltar alguns monossílabos inarticulados.
O desconhecido ajoelhara-se junto dele.
A gola de peles da sua parka (1) que levantara para se defender dos ataques do vento dissimulava-lhe o rosto...
- O Batedor daNeve!... balbuciou o fugitivo. Vem prender-me!
Depois, incapaz de qualquer reacção, João-Pedro perdeu os sentidos.
(1) Casaco de peles munido de capuz, usado pelos esquimós.
IV
O "Nascopi"
- Onde estou eu?
Meio atordoado, o fugitivo entreabriu os olhos. Um calor bemfazejo apoderava-se agora de todo o seu corpo, contrastando com o frio terrível que lhe aniquilara a
resistência...
Erguendo-se lentamente, o infortunado olhou em redor... Um cheiro acre de fumo chegava-lhe à garganta e obrigava-o a tossir. Finalmente, já mais calmo, João-Pedro
pôde verificar que o haviam transportado para uma cabana de exíguas dimensões e que estava deitado numa pele de urso. Junto dele, ajoelhado, encontrava-se um homem
cujo olhar sombrio o fixava com a maior atenção.
A princípio, o caçador que ia recordando, a pouco e pouco, todas as circunstâncias dramáticas que acabavam de se suceder, receou ter à sua cabeceira
o temível Cabo Bentley, cujo nome pronunciara antes de perder os sentidos, mas de-pressa verificou que o seu vizinho não pertencia à raça branca.
Era um índio que aparentava uns cinquenta anos de idade. Os seus compridos cabelos negros caíam-lhe nos ombros. Trazia à roda do pescoço um colar de dentes de urso.
A sua túnica de pele de gamo tinha manchas de gordura em vários pontos.
- Que foi que aconteceu? preguntou de novo o fugitivo agarrando-se à manga do fato do seu vizinho e fazendo esforços para se levantar...
Com gestos lentos, o indígena fêz sinal ao seu companheiro para observar a mais completa imobilidade.
- Que o meu irmão se tranquilize, murmurou êle... Não corre agora nenhum perigo, mas deve repousar para recuperar as suas forças!
O homem exprimia-se em dialecto nascopí, por isso João-Pedro se convenceu de que se encontrava em presença de um índio dessa tríbu. O fugitivo conhecia suficientemente
o dialecto porque há muito tempo que costumava caçar por aqueles sítios. Estes indígenas mantinham escassas relações com os brancos. Em número de quinhentos a seiscentos,
somente habitavam nas vizinhanças do Lago Waquash... Esta aglomeração compreendia apenas algumas cabanas. Outros viviam à parte, solitários, entregando-se a maior
parte do tempo a caçar peles
que vendiam depois aos agentes da Companhia de Hudson...
A cabana era de lata e forrada com peles de castor. Numerosos trofeus, crânios de renas e de caribús estavam pendurados em vários pontos... Duas espingardas, arpões,
e um arco encontravam-se pendurados na parede junto de peles de lontra, e o fugitivo pôde reconhecer perto delas o seu par de raquettes... Uma fogueira acesa no
meio da casa produzia um fumo espesso que saía por uma abertura bastante estreita praticada no teto.
O nascopi permaneceu ainda bastante tempo junto do fugitivo sem dizer palavra. Continuava sempre a observá-lo com insistência. Finalmente, como João-Pedro o interrogasse
ansiosamente com o olhar, decidiu-se a dirigir-lhe a palavra:
- O meu irmão não é o filho do velho Tomaz Roquete? Perguntou o nascopi.
O fugitivo reprimiu um estremecimento. Uma expressão de indizível desconfiança estampou-se no seu rosto. Sabendo, com efeito, que o Batedor da Neve se lançara em
sua perseguição e que a sua cabeça fora posta a prémio após a trágica morte de Nicolau Chouque, imaginou que o índio estivesse a identificá-lo. As suas apreensões
aumentaram ao pensar que o seu vizinho o fora arrancar ao furor do blizzard para o entregar à justiça, mediante uma boa soma.
- O meu irmão compreendeu-me?... repetiu
o índio que se aproximara mais ainda do fugitivo sem compreender a causa da sua perturbação... Preguntei-lhe se era filho do velho Tomaz Roquete?...
O caçador não podia dissimular por mais tempo a sua identidade...
- Sou de facto, João-Pedro Roquete, caçador ao serviço da Companhia de Hudson! respondeu êle, decidido a não esconder nada ao índio.
Um sorriso furtivo iluminou o rosto do indígena:
- O Grande Caribú não se enganou! declarou o índio... O meu irmão parece-se muito com o seu pai...
Agarrando na mão de João-Pedro, o nascopí levou-a por três vezes à sua testa em sinal de respeito e de submissão.
O Canadiano, confundido com aquelas demonstrações, preguntou:
- Porque me exprimes assim o teu reconhecimento? Se há alguém que deva estar agradecido sou eu! Foste tu que me socorreste quando eu estava perdido no blizzard?
O indígena abanou a cabeça...
- O Grande Caribú está muito contente por ter podido prestar auxílio ao filho de Tomaz Roquete e de o ter trazido são e salvo até à sua cabana! Não fez mais do que
pagar uma dívida que há muito, há muito, contraíra...
O caçador não compreendia:
- Por mais que busque na minha memória não me lembro de ter encontrado...
- Não foi o meu irmão, mas o seu pai, Tomaz Roquete! interrompeu o nascopí.
"Durante uma caçada ao urso, esse caçador intrépido salvou a vida ao Grande Caribú. Por isso o Grande Caribú prometeu testemunhar-lhe mais tarde ou mais cedo o seu
reconhecimento...
"A morte levou Tomaz Roquete já há muitas luas, mas o "meu irmão" está ainda vivo e eu hei de provar-lhe que o Grande Caribú não é nenhum ingrato...
O indígena falava tão devagar que João-Pedro não tinha a mínima dificuldade em o compreender. ..
Agradavelmente surpreendido, teria desejado fazer-lhe preguntas acerca das circunstâncias dramáticas durante as quais seu pai lhe salvara a vida, mas sentia-se extremamente
fraco. A zoeira dos ouvidos ainda lhe não passara, e tão cansado estava que se deixou cair sobre a cama soltando um profundo suspiro.
Que o "meu irmão" continue a repousar, declarou o índio com voz meiga. Tem grande necessidade disso. Quando o Grande Caribú o encontrou estava estendido no meio
da neve... Só um grande sono lhe pode fazer voltar as forças...
O fugitivo não pôde prestar atenção às últimas
palavras que lhe dirigia o nascopi. Tão grande era a sua fadiga que voltou a adormecer profundamente.
O indígena esteve ainda largo tempo junto dele.
Depois resolveu-se a ir até à porta da cabana, a-fim-de verificar o estado do tempo. Correu a tranca de madeira que fechava a porta...
A tempestade de neve continuava a rugir temerosa. O vento sibilava. Prudentemente, o índio voltou a fechar a porta. A seguir aproximou-se da fogueira e lançou-lhe
mais algumas achas...
Passaram algumas horas durante as quais, à luz vacilante de um candeeiro de azeite, o Grande Caribú esteve ocupado na limpeza das suas duas espingardas. De vez em
quando o indígena interrompia-se para olhar para o lado onde João-Pedro estava deitado sobre a pele de urso... Esgotado pela fadiga o fugitivo continuava a dormir.
Quando chegou a noite o nascopi foi também deitar-se.
Estendeu-se a um canto da cabana sobre outra pele de urso...
Quando o caçador acordou era já dia e uma claridade confusa iluminava a cabana. Lá fora tinham cessado os uivos do vento. Ajoelhado junto do fogo o Grande Caribú,
de costas voltadas para o seu hóspede, preparava o almoço...
João-Pedro, já refeito da fadiga, pelo sono salutar a que se entregara durante cerca de quatorze horas, procurava rememorar os acontecimentos dos últimos dias.
- Então, o "meu irmão" vai melhor? preguntou o nascopi voltando-se para o seu hóspede...
- Doi-me já menos a cabeça, camarada... Julgo que me poderei levantar sem grande dificuldade!... Ah! se me não tens aparecido já estaria morto a estas horas!...
- O Grande Caribú muito contente por ter prestado serviço ao filho de Tomaz Roquete! Agora, se quiser, êle será o seu escravo...
O fugitivo protestou:
- Muito obrigado, mas já não estamos no tempo da escravatura. Não te considero como um servo, mas como um amigo...
- O "meu irmão" quere sem dúvida almoçar com o Grande Caribú, não é verdade?...
- Com certeza, estou cheio de fome e tenho necessidade de reparar as forças...
Daí a alguns minutos, o fugitivo, acocorado junto do seu salvador, devorava com excelente apetite. O Canadiano parecia ter já esquecido os sofrimentos suportados
durante o blizzard. A sua robusta constituição e os cuidados que lhe prodigalizara o indígena, permitiam-lhe vencer aquela grande crise.
Era com grande satisfação que o nascopi notava o apetite com que o seu companheiro compartilhava daquele almoço frugal composto quási exclusivamente de peixe seco
e de carne fumada. Valha a verdade que a carne era razoavelmente coriácea,
mas o caçador tinha bons dentes, e a satisfação de ter escapado a uma morte certa fazia-o achar saborosíssima aquela monótona ementa...
O repasto foi regado com algumas goladas de rum velho bebidas de um cantil que lhe estendia o Grande Caribú.
Este decidiu-se a fazer uma pregunta:
- Ora, diga-me cá, "meu irmão", porque é que quando o Grande Caribú lhe ia a prestar socorro mencionou o nome do Batedor da Neve?...
A muito custo João-Pedro dissimulou a perturbação que lhe causava aquela inesperada pregunta do índio. Este repetiu a frase com receio de não ter sido compreendido.
- O Grande Caribú não se enganou! O "meu irmão" falou no Batedor da Neve!
Durante alguns instantes o fugitivo permaneceu interdito sem saber o que havia de responder., Receava que o índio, posto ao corrente da sua identidade, o fosse denunciar
aos agentes da Royal Mounted. No entanto, as manifestações de simpatia que lhe tinha prodigalizado o indígena incitaram-no a dizer-lhe toda a verdade:
- Então, tu também conheces o Batedor da Neve?
O nascopi abanou afirmativamente a cabeça.
- Por várias vezes o Grande Caribú guiou o polícia branco quando êle se dirigia para o Extremo-Norte... Compartilharam juntos dos perigos da
pista... O Batedor da Neve é um branco de grande coração! É amigo dos seus irmãos vermelhos e tem-no provado muitas vezes.
João-Pedro, após esta resposta do indígena, manifestou uma certa hesitação. No entanto foi-se atrevendo a preguntar:
- Que dirias se soubesses que o Cabo Bentley me segue disposto a deitar-me a mão?
- Se assim é, o Grande Caribú diz que, desta vez, o Batedor da Neve anda enganado! O filho de Tomaz Roquete é incapaz de matar ou de roubar...
O caçador encolheu os ombros.
- Mas, olha, camarada, o Cabo Bentley tem razão. Persegue-me porque sou um criminoso! Matei um homem durante uma discussão em Fort-Rupert!
O índio não pestanejou ao ouvir esta confissão. Continuou a fitar João-Pedro, muito atento... Então, este último decidiu-se a relatar as peripécias dramáticas da
ocorrência... Não omitiu qualquer pormenor, nem mesmo o seu encontro com Francisco Santerre em plena planície gelada...
O nascopi escutou com a maior atenção o relato do Canadiano. De vez em quando as suas pupilas iluminavam-se. Por fim, quando João-Pedro terminou a sua narrativa,
comentou:
- As bebidas dos Rostos Pálidos tiram o juízo aos mais sensatos! Outrora quando os da tua raça ainda não tinham invadido os nossos territórios, os
nascopis eram guerreiros altivos que lutavam vitoriosamente com os esquimós, os seus ferozes vizinhos do norte... Vieram então os homens do Oriente... Trouxeram
com eles a água-de-fogo O horrível veneno não tardou em produzir os seus estragos. Agora, os corajosos guerreiros de outros tempos, são escravos... Dentro de pouco
tempo terão desaparecido...
Agarrou na mão do caçador e apertou-a com força, ao passo que murmurava:
- O veneno dos Rostos Pálidos não permitiu ao meu irmão que conhecesse a verdade. O filho de Tomaz Roquete não pode ser um assassino. Foi por certo vítima de qualquer
sortilégio! Conte com o Grande Caribú que o há de defender de todos os perigos. Vai ficar aqui comigo!
A fisionomia do Canadiano iluminou-se fugazmente. ..
Agradeço-te, camarada, por todas as tuas manifestações de simpatia e de gratidão, mas reconheço que me não poderei demorar muito aqui na tua cabana! Dentro de dois
ou três dias estarei completamente restabelecido... Terei então de pensar na partida...
O índio não pôde conter uma exclamação de protesto:
- Duvidará o meu irmão branco da fidelidade do Grande Caribú?
Nada disso, camarada! Bem sei que é sincera
a tua amizade! Se não fora a tua intervenção providencial teria morrido no meio da neve, mas, deves compreender, a minha presença pode comprometer-te! Se o cabo
Bentley descobre que me deste guarida prende-te por cúmplice.
- Hesitou por ventura Tomaz Roquete quando se atirou sobre o urso para me salvar a vida?
- Agradeço-te mais uma vez a tua inexcedível gratidão, mas, tenho que sair daqui logo que me seja possível. Lembra-te das possíveis indiscreções...
- Esteja descansado, Irmão Branco, afirmou o nascopi... A minha cabana está isolada. Fica nas vizinhanças do Lago Waquash... Não haverá perigo, portanto, de que
os vizinhos dêem com a língua nos dentes. O melhor, Irmão Branco, é ficar por aqui. Lembre-se que andando lá por fora pode ser apanhado pelo Batedor da Neve. Aqui,
sempre é mais seguro. Compartilhará da minha existência de caçador e terá garantida a cama e a mesa.
Dito isto agarrou em uma das duas espingardas que estavam encostadas à parede da cabana e preguntou ao Canadiano:
- O meu irmão está desarmado, não é assim? Pois bem daqui em diante esta espingarda passa a ser sua...
O caçador quis recusar o oferecimento do índio. Bem sabia o amor que êles professam pelas armas de fogo...
- Para que te vais assim privar de uma espingarda tão boa, camarada? Não, não posso, não devo aceitar a tua oferta...
O nascopi retorquiu com vivacidade:
- Esta espingarda foi o teu pai quem a deu ao Grande Caribú quando caçávamos juntos na Whale River... Pertence portanto ao meu irmão.
Tão grande era a insistência do indígena que João-Pedro acabou por se decidir a aceitar a arma.
- Agradeço-te, mas não a aceito a não ser a título de empréstimo, mais tarde devolver-ta-ei.
Quebrando a sua habitual impassibilidade o nascopi não escondia já a emoção que o dominava.
- Quando o Grande Caribú examinou à luz do candeeiro o rosto do Homem Branco, que recolhera desmaiado sobre a neve, verificou logo quanto ele se parecia com Tomaz
Roquete... Uma indizível alegria se apoderou então dêle. logo adivinhou que eras seu filho...
O índio cessou bruscamente de falar. Alguém batera à porta com toda a força. Simultaneamente fazia-se ouvir lá fora uma voz rude...
- Grande Caribú! Grande Caribú! Estás lá?..-O índio e o canadiano olharam-se interditos.
Voltaram a fazer-se ouvir novas pancadas na porta de entrada:
- Vamos! Grande Caribú! Abre depressa!.-É o teu amigo, o Cabo Bentley que te quere falar!
V
O cabo Bentley
O fugitivo estremeceu ao ouvir pronunciar o nome de Bentley. Compreendia a natureza do perigo em que se encontrava. O agente da polícia montada iria certamente descobri-lo
e não tardaria em prendê-lo. ..
O Batedor da Neve bateu ainda mais uma vez
- Grande Caribú!... Estás lá?... repetiu ele.
O nascopi não hesitou. Agarrou no braço do canadiano e apontou-lhe uma espécie de fosso que havia cavado ao fundo da cabana e onde tinha o hábito de armazenar a
sua colheita de peles. Dominando o cansaço que sentia, apenas preocupado com a idea de escapar ao seu perseguidor, o canadiano decidiu-se a seguir o indígena; daí
a pouco deslizava até ao fundo do fosso e cobria-se cuidadosamente com as peles que ali se encontravam,
emquanto o seu hospedeiro se dirigia a abrir a porta da cabana...
Em poucos instantes corria a levantar a tranca que fechava a porta.
- Olá, Grande Caribú, ficaste surdo-mudo? Que diabo se passava cá dentro da tua cabana? Nunca me fizeste esperar tanto tempo!
O homem da polícia montada dissimulava mal a impaciência que o dominava.
O indígena não perdeu a sua habitual serenidade.
- É que o Grande Caribú estava a arrumar algumas peles no fosso, respondeu êle. O Batedor da Neve faz favor de entrar, que a sua visita me dá sempre muito prazer...
O recém-chegado não respondeu e pôs-se a sacudir a neve que trazia colada à sola das botas. Deixara lá fora o seu trenó puxado por seis cães huskies e labradors.
Estes manifestavam uma certa impaciência.
- Vê lá se me arranjas por aí algum bocado de peixe seco para matar a fome àqueles diabos que não há maneira de estarem quietos? preguntou o Cabo Bentley apontando
para os cães... Há uma data de horas que não comem! Imagina que acabamos de dar a volta ao lago Waquash! E, depois, ontem, tivemos que aguentar no trail um horrível
blizzard! Cheguei a pensar que desta vez ficávamos enterrados na neve.
- O Grande Caribú tem tudo quanto é preciso para alimentar os cães do seu irmão branco! respondeu o nascopi afastando-se para deixar passar o homem da polícia montada...
Com sinais de manifesta satisfação o recém-chegado introduziu-se ao interior do refúgio. Embora a tempestade tivesse acalmado, o Cabo Bentley sentia-se bem disposto
por ter encontrado emfim um abrigo onde podia repousar à vontade. Descalçando rapidamente as luvas e a parka aproximou-se do fogo e aqueceu as mãos enregeladas ao
calor da chama.
Emquanto o polícia se aquecia, o índio apressava-se em ir buscar alguns peixes secos que colocara no fumeiro... Lá fora os cães uivavam de satisfação... Sentiam
que iam finalmente ter de comer. Sem se deixar trair, o Grande Caribú distribuiu-lhes a apetecida pitança...
Imóvel, acocorado no seu refúgio, João-Pedro Roquete, preso de uma enorme angústia, procurava comprimir as próprias pulsações. Bem sabia quão grave era a sua situação.
A poucos passos dele encontrava-se o seu maior inimigo e nada lhe garantia que êle o não conseguisse descobrir.
Então, adeus liberdade! Acusado de assassínio, algemado, o desgraçado seria levado para Fort-Rupert sem sequer poder esboçar o mínimo gesto de resistência...
No entanto, por maior que fosse o seu desejo
de escapar ao seu terrível adversário, o caçador não pensava em defender-se até à morte se o homem da polícia montada o viesse a descobrir no seu refúgio.
As apreensões que se apossavam do pobre infeliz, quando conheceu a identidade do intruso, foram-se dissipando a pouco e pouco. De momento, ocupado como estava em
desentorpecer os seus membros enregelados pelo frio, o Cabo Bentley nem por um instante supôs que aquele que procurava com tanto ardor se encontrava dissimulado
naquele mesmo refúgio. Vagarosamente foi tirando o boné de pele de lontra, e os seus olhos côr de aço passeavam pelo aposento. As suas mãos, já aquecidas, afagavam
o mento onde a barba crescia desde que se lançara na pista de João-Pedro Roquete...
- Precisava de fazer a barba! pensou êle enquanto dobrava cuidadosamente a parka!
O regresso do índio veio interromper o solilóquio do homem da polícia montada.
- O meu irmão pode estar descansado, anunciou o nascopi, sempre com a maior calma. Os teus cães já têm de comer. O Grande Caribú pôs o teu trenó no alpendre e aí
se poderão abrigar também os cães durante a noite...
João-Pedro Roquete estremeceu ao ouvir estas palavras. O polícia dispunha-se, naturalmente, a permanecer na cabana! Essa eventualidade levava-o a pensar que não
tardaria em ser descoberto. Como
poderia êle permanecer tantas horas naquele espaço exíguo sem acabar por descobri-lo? É verdade que as peles amontoadas pelo nascopi o dissimulavam suficientemente,
mas, a menor imprudência, o mais insignificante movimento que fizesse para mudar de posição, poderiam, evidentemente, denunciá-lo... Mau grado seu, João-Pedro dissimulava-se
o melhor que podia no seu refúgio. Sentia ainda o efeito da fadiga do dia anterior, mas o desejo de escapar ao seu implacável inimigo levava-o a suportar os maiores
sacrifícios.
De ouvido à escuta espiava o mais leve ruído e procurava distinguir o que diziam entre si o nascopi e o Cabo Bentley.
O índio tornara a fechar a porta; depois veio acocorar-se junto do polícia. Nada na sua atitude indicava que fora desagradàvelmente surpreendido pela chegada intempestiva
do cabo...
- Irmão, Grande Caribú, que há de novo? preguntou o homem da polícia montada. Há mais de cinco meses que nos não encontrávamos...
- É verdade! cinco meses!... O inverno foi rude...
De facto, o frio não nos poupa, nestas terras de desolação, mas, no entanto, a colheita de peles deve ter sido apreciável?
O Grande Caribú teria sido muito feliz se uma raposa lhe não tivesse atacado o depósito de Peles e estragado as melhores... Tinha-as escondido
com as maiores precauções, mas, mesmo assim o maldito animal deu com elas...
- A-pesar-disso as que te ficaram ainda te devem valer uma boa maquia quando as fores rebater nos escritórios da Companhia, na próxima primavera! Por alguma coisa
és tu considerado o melhor caçador de peles da região do Lago Waquash!
João-Pedro, dado o rumo que a conversa levava, começava a sentir-se mais à vontade no seu esconderijo. Até aí, as palavras pronunciadas pelo recém-chegado davam-lhe
a entender que este não suspeitava da sua presença dentro da cabana...
O nascopi preparava-se para servir ao cabo alguns nacos de carne fumada quando este o interrompeu com um gesto:
- Como mais daqui a bocado, agora queria ver se tu eras capaz de arranjar um pouco de água quente para eu me barbear. Há quinze dias que não faço a barba e isso
incomoda-me imenso! Depois de me barbear até me hei de sentir mais bem disposto! Imagina, desde que saí de Fort-Rupert tenho dormido sempre no trail... Nem sei como
consegui resistir ao blizzard... Metido num buraco, cercado pelos meus cães, tive que esperar assim que passasse a tempestade... Os animais portaram-se bem, valha
a verdade!...
O nascopi foi, solicitamente, deitar dois punhados de neve na chaleira. Bentley tirou do bornal um estojo de barba; sabão, navalha e pincel. A seguir
agarrou num espelho pequeno que também trazia consigo e Pregou-o na parede mesmo ao pé do esconderijo de João-Pedro...
As apreensões deste atingiam o seu auge, mas, o polícia, com a maior calma, procedia agora muito satisfeito à ensaboadela do rosto. Junto dele, e acocorado ao pé
do fogo, o índio permanecia imperturbável.
--A-propósito, preguntou daí a pouco o polícia, não viste passar ninguém por aqui, nos últimos dias?
- O Grande Caribú viu alguns índios do seu clan que se dirigiam à pesca no Lago de Waquash...
- E nenhum branco? ...
- Nãol nenhum branco!...
O homem da polícia montada pôs-se a assobiar.
- Isso é que me parece muito extraordinário! Imagina que saí de Fort-Rupert na peugada de um tipo que assassinou o Nicolau Chouque durante uma discussão azeda no
saloon do "Castor"... Ter-me-ia sido fácil descobrir a pista do tratante se não fosse o blizzard... Mas, a tempestade fêz-me perder o rastro. De mais a mais êle
levava sobre mim um avanço considerável. Nestas condições ando ao acaso, sem quaisquer elementos de referência! Já lá vão duas semanas e estou como no primeiro dia.
O Grande Caribú não respondeu, limitou-se a encolher os ombros.
- É singular, prosseguiu o Batedor da Neve, imaginei que êle se houvesse aventurado para os lados do Lago Waquash... Fui até Naskopi River, a pouca distância de
Petchikapu Lake. interroguei vários indígenas que encontrei no trail, mas nenhum me soube dar quaisquer informes. O patife volatilizou-se, por certo!...
- Naturalmente os elementos foram mais fortes que o tal indivíduo em busca de quem anda o "meu irmão"! opinou o nascopi. Talvez conheça mal a região. Não se terá
sabido defender e o blizzard deu conta dele.
- A minha opinião é diferente. Penso que êle se terá rido de todas essas dificuldades e se encontra ainda são e salvo! interrompeu o cabo, continuando a barbear-se.
É um tipo que conhece como os seus dedos todo o Labrador, e que já tem trabalhado muitas vezes por conta da Companhia! É um finório, mas outros iguais a êle também
me não têm escapado. Não perde pela demora. Não volto para Fort-Rupert sem o levar comigo e bem algemado. A luta deve ser difícil e demorada mas estou certo de que,
mais uma vez, a vitória pertencerá à lei! Sempre me tenho saído bem das missões que me são confiadas!
Acocorado no seu refúgio, João-Pedro não perdera uma palavra daquela conversa. A princípio receara que o Grande Caribú o denunciasse, mas as palavras breves e decididas
que este pronunciara
tranquilizaram-no a esse respeito. Mais do que nunca o seu hospedeiro parecia resolvido a protegê-lo. No entanto, as palavras do polícia mostravam-lhe bem quão grave
e perigosa era a sua situação. O Cabo Bentley não descansaria emquanto não encontrasse o assassino de Nicolau Chouque...
O caçador sentia-se cada vez mais perturbado, O suor escorria-lhe pelo rosto. O cheiro acre das peles sufocava-o. A posição forçada causava-lhe imensas dores nas
pernas e nos braços. A sua vontade seria sair dali e vir até cá fora para poder estender os membros entorpecidos.
Mas, o menor movimento que fizesse poderia ser-lhe fatal. Por isso se continha, mal respirando, com receio de se denunciar. Barbeado, e depois de proceder a sumárias
abluções, o Batedor da Neve instalou-se junto do nascopi e ambos se puseram a comer com grande apetite.
O grande Caribú, para desviar as atenções do polícia, começou a descrever, com grande loquacidade, e cópia de elementos, as suas últimas caçadas, evocando na sua
linguagem pitoresca os transes mais audaciosos.
Sei bem o que és e o que vales, meu velho! Por várias vezes me serviste de guia até ao litoral do Estreito de Hudson e mesmo para além de Whale River! -comentou
o polícia ao passo que saboreava com satisfação o frugal repasto que o índio lhe servira. Nem o frio, nem a fome, nem a sede te
deitam abaixo! És um rijo companheiro! Além disso, quando se anda contigo, sabe-se sempre que se não passa fome. Não há espécie de animal cujas manhas não conheças!
Durante toda a minha carreira, que já não é muito curta, nunca encontrei um tão precioso auxiliar!...
Os olhos do índio faiscavam de contentamento e de orgulho.
- O Grande Caribú está sempre às ordens do "seu irmão branco", do Batedor da Neve! declarou êle. Quando quiser que o acompanhe tem-me sempre às ordens. Conheço tão
bem os desertos gelados do Norte, como a região do Lago Waquash...
- Sei bem que posso contar contigo! Falas correntemente esquimó e tens um conhecimento perfeito de todo o Labrador; é muito provável que me tenhas ainda de acompanhar
em futuras esplorações; mas, por agora, apenas te queria pedir um serviço...
- O Batedor da Neve não tem senão que mandar, o Grande Caribú obedecer-lhe-á fielmente.
- Olha, é muito simples... Tenho a impressão de que o assassino anda por estas paragens... Entre o Lago Waquash e South River... Nessas condições preciso da tua
cabana! Conto utilizá-la como base das minhas operações.
- O Batedor da Neve dispõe desta casa como se fosse sua! replicou o nascopi... É possível que o
Grande Caribú tenha em breve que partir para o Norte, a-fim-de inspeccionar as armadilhas, mas a cabana fica sempre às ordens do "meu irmão branco" !...
O Cabo Bentley dispunha-se a agradecer a amável oferta do Grande Caribú, quando, subitamente, se deteve, muito espantado... Uma ruga profunda vincou-lhe a testa.
É que o seu olhar acabara de poisar nas duas raquettes de João-Pedro que o índio havia colocado algumas horas antes junto das armas e dos apetrechos de pesca.
VI
A fuga para o Norte
O Grande Caribú percebeu logo a causa do espanto do seu hóspede...
- Ah! viva o luxo! então agora tens dois pares
de raquettes! exclamou o homem da polícia montada...
- É que o Grande Caribú, aqui há coisa de três meses, prestou um serviço importante a um caçador da Companhia, que se encontrava em sérios apuros junto à nascente
do Nascopi River; e, para lhe agradecer, o homem branco deu-lhe essas
raquettes!...
Decididamente cada vez me convenço mais de que és um homem precioso... Talvez que isso te pareça singular, mas, sabes qual foi a idea que há pouco me ocorreu? ...
- O Grande Caribú não é bruxo, não pode adivinhar...
- Pensei que terias abrigado, além de mim, um outro visitante!
O olhar do polícia fixava-se com insistência no índio, mas o nascopi permanecia impassível. O rosto dêle não denotava a mais pequena contracção.
Bem sabia o perigo em que se encontrava, mas, para um índio, a gratidão e a lealdade são os mais nobres sentimentos do homem...
Se o Cabo descobrisse o fugitivo ali escondido na cabana, prendê-lo-ia, também, como cúmplice...
- O Grande Caribú não esconde nada ao "seu irmão branco", o Batedor da Neve... êle bem sabe...
O Cabo Bentley encolheu os ombros...
- Bem sei, Grande Caribú, que és um dedicado auxiliar da polícia e que não tens segredos para mim!
E, dito isto, o polícia, emquanto ia enchendo o cachimbo, prosseguiu:
- Vamos lá a fumar uma cachimbada... Sempre se está melhor aqui do que no traíl... O almoço fêz-me bem... Agora sinto-me cem disposição para bater esse deserto gelado
em busca do assassino, mesmo que tenha de ir até ao Cabo Chudleigh. E, depois, já o cachimbo fumava como a chaminé de um grande transatlântico, o polícia tirou de
um dos bolsos da parka um par de algemas e mostrou-as ao índio.
- Vê-las, são bonitas, não são, Grande Caribú ?
É um presente que já tem o seu destino. O tipo tem andado a fazer pouco de mim, mas não perde pela demora.
E o polícia entretinha-se a abrir e a fechar o cadeado das algemas.
Por fim meteu-as outra vez no bolso da parka depois de ingurgitar uma chávena de chá bem quente foi estender-se em cima da pele de urso sobre a qual o fugitivo passara
a noite.
Muito satisfeito da sua vida, o Cabo fechou os olhos procurando esquecer as atribulações dos últimos dias.
O nascopi começava a convencer-se de que o polícia se sentia bem na cabana e que não tinha pressa de a abandonar. A situação do filho de Tomaz Roquete tornava-se,
por isso, a cada momento, mais delicada.
Contudo, por mais obsediantes que fossem as suas preocupações, o índio não exteriorizava a inquietação que o dominava.
Sem olhar, nem uma vez, para o ponto onde se encontrava refugiado João-Pedro, a-fim-de não suscitar quaisquer desconfianças por parte do Batedor da Neve, agarrou
na espingarda e pôs-se a limpá-la com esmero.
Na cabana pairava agora um silêncio impressionante. Com os membros anquilosados pela prolongada imobilidade a que se via forçado, o canadiano estivera atento às
palavras trocadas entre os
seus dois vizinhos. Esperava ser descoberto de um momento para o outro e não foi sem estremecer que ouviu o telintar das algemas. Chegou mesmo a pensar que o recém-chegado,
conhecedor da sua presença ali, apenas procurava aumentar a sua tortura.
Mas, depois, como nada mais se seguiu às palavras do Cabo Bentley, o infeliz recuperou uma certa serenidade, mas teve de redobrar de precauções para não despertar
a atenção do seu temível perseguidor. O homem da polícia montada, cuja vigilância não esmorecia nem por um segundo, surpreenderia por certo o menor ruído suspeito,
cairia sobre o fosso onde o fugitivo se refugiara e acabaria por descobri-lo, sem grande trabalho.
Felizmente que uma tal eventualidade se não produziu. Passaram assim três longas horas. No entanto, a paciência de João Pedro começava a esgotar-se. Cheio de angústia
preguntava a si mesmo se aquela situação iria eternizar-se. Não podia mais, precisava de mudar de posição, de distender os membros entorpecidos pela imobilidade.
Por seu lado, o Grande Caribú continuava a observar de soslaio o Batedor da Neve, e imaginava as preocupações que alanceariam o espírito do filho de Tomaz Roquete.
O Cabo fechara os olhos e parecia dormir tranquilamente, no entanto o nascopi guardava-se de cometer a menor imprudência, por exemplo, de 66
Se aproximar do seu protegido e murmurar-lhe quaisquer palavras que o sossegassem. Receava que o polícia, desconfiado, fizesse que dormia.
Finalmente o Cabo abriu os olhos, sentou-se na improvisada cama, e espreguiçou-se.
- Este soninho fêz-me um bem imenso, camarada! exclamou êle, dando uma pancadinha fraternal nas costas do índio. Agora, estou fino. Espero, antes de anoitecer, efectuar
um pequeno reconhecimento na direcção de Petchikapu Lake.
O nascopi entreabrira ligeiramente a porta da cabana e examinava o céu com insistência.
- O tempo está mudado I Faz frio, mas está seco! anunciou êle, voltando-se para o homem da polícia montada.
- Então, ajuda-me a preparar o trenó. Vou dar uma volta com os cães! Não quero que esse patife se me escape por entre os dedos!
- O Batedor da Neve não quere ficar esta noite na cabana do Grande Caribú? interrogou o índio, que mal conseguia disfarçar o seu contentamento por uma tão súbita
deliberação.
O Cabo fêz que não, com a cabeça.
- Sim, gostaria muito de passar aqui o tempo, repousadamente, a fumar o meu cachimbo; preferiria também ir contigo inspeccionar as armadilhas, mas o meu dever acima
de tudo. Tenho pressa de pregar com o "tipo" em Fort Rupert. Peço-te apenas a tua hospitalidade para quando, de futuro, no
decorrer das minhas operações policiais eu volte a precisar dela. Já que o tempo está seco aproveitá-lo-ei para dormir ao ar livre com o meu team (1). Em todo o
caso se carecer dos teus serviços...
- O Batedor da Neve sabe com quem pode contar! O Grande Caribú é seu amigo! replicou o indígena, desviando-se para deixar passar o seu interlocutor, já preparado
para sair.
- Belo tempo, não há dúvida! exclamou o polícia, depois de ter inspeccionado os astros. Até nos faz já esquecer o maldito blizzard!...
Dentro em pouco, precedido pelo nascopi, o Cabo chegava ao local onde deixara os cães amarrados ao trenó. Os animais que começavam já a lutar uns com os outros soltaram
uivos de satisfação ao verificarem a aproximação do dono; mas, este, com voz rude, mandou-os calar.
Auxiliado pelo Grande Caribú. o polícia apressou-se a atrelá-los. Daí a cinco minutos, fazendo estalar o chicote, tomou lugar no assento.
- Para a frente, camaradas! ordenou êle.
Huskies e labradors começaram a puxar com força e o trenó singrava para leste a toda a velocidade.
Voltando-se duas vezes para trás, o Batedor da Neve despediu-se do indígena.
(1) Equipagem.
Imóvel, encostado à porta da cabana, o índio via o team afastar-se cada vez mais na direcção de Petchikapu Lake.
Os seus olhos brilharam de satisfação quando o polícia e os cães desapareceram no horizonte. Mais seguro de si, voltou para dentro.
- O "meu irmão" pode sair! gritou êle dirigindo-se ao caçador, que continuava a observar o maior silêncio no seu refúgio, receando ainda que o Batedor da Neve voltasse
para trás...
O índio, porém, afastou as peles, estendeu-lhe a mão e João-Pedro Roquete saltou para fora do esconderijo...
- Então, o que foi que aconteceu, preguntou êle, em voz baixa, com o rosto congestionado mal se segurando ainda nas pernas, devido à má circulação provocada pela
longa imobilidade...
Em poucas palavras, o Grande Caribú explicou ao seu protegido que, de momento, nada tinha a recear da parte do agente da polícia montada.
- Sem dúvida que o "meu irmão" precisa de comer qualquer coisa, preguntou êle...
O canadiano não se fêz rogado... Agora que a emoção se apaziguara, a fome começava a fazer-se sentir por forma dolorosa; por isso comeu abundantemente o frugal repasto
que o nascopi se deu pressa em servir-lhe...
- Ouvi tudo, disse êle. Sei que corro grande perigo se continuar a permanecer aqui. O maldito
Cabo pode aparecer de um momento para o outro... Por outro lado, também, não quero comprometer-te...
Um sorriso furtivo iluminou o rosto do índio...
- O filho de Tomaz Roquete nunca compromete o Grande Caribú! protestou êle. Certamente que se não deve demorar muito tempo nesta cabana, é necessário partir; mas,
desta feita, o Grande Caribú propõe-se a acompanhá-lo e a guiá-lo até ao Norte!...
Ao ouvir estas palavras o caçador exclamou:
- Mas, tu não podes afastar-te daqui, Grande Caribú!... Seria a maior das imprudências! Se me acompanhas arriscas-te a compartilhar da minha sorte! Lembra-te de
que sou um assassino!
O índio encolheu os ombros:
- Para o Grande Caribú o "meu irmão" é, e será sempre, o filho de Tomaz Roquete. Com certeza que ainda se não esqueceu do que há pouco ouviu... O Grande Caribú pôs
a cabana dele às ordens do Terror da Neve, mas anunciou-lhe que se preparava para ir inspeccionar as armadilhas..-Não será isso pretexto bastante que lhe permita
acompanhar o "seu irmão branco" ?
Profundamente sensibilizado pela dedicação do seu protector, o canadiano apertou com toda a força a mão do índio; o nascopi, porém, para não perder tempo preguntou:
- O tempo urge!... Estará o "meu irmão" em condições de prosseguir viagem?
João-Pedro apressou-se em responder afirmativamente a esta pregunta do indígena. Sentia ainda, a falar a verdade, um grande cansaço, mas só a idea de que o Batedor
da Neve rondava por aquelas paragens, cada vez mais decidido a deitar-lhe a mão, lhe insuflava novas energias. Ardia em desejos de se afastar dali o mais rapidamente
possível, a-fim-de se colocar fora do alcance do defensor da lei...
Por isso os dois homens iniciaram imediatamente os seus preparativos para uma longa viagem. O Grande Caribú encheu um saco com mantimentos e o canadiano muniu-se
com algumas caixas de cartuchos. Pôs a espingarda a tiracolo e tratou de calçar as raquettes, aquelas mesmas raquetes que, pouco antes, haviam atraído a atenção
do Cabo Bentley.
Vamos, então! exclamou êle, ao passo que franqueava a porta da hospitaleira cabana do índio. Cá fora, tudo estava deserto...
O Grande Caribu fechou a porta da cabana.
- O Batedor da Neve seguiu para leste, em direcção ao Petchikapu Lake, comunicou o índio ao seu companheiro; para nos afastarmos dele, nós dirigir-nos-emos com rumo
norte,.. Costeamos durante algum tempo as margens do Lago Waquash e descemos depois ao longo de South River;
A seguir obliquaremos à direita e esforçar-nos-emos por chegar a Whale River... Uma vez chegados a esse ponto pensaremos então em respirar um pouco!...
Era uma viagem longa e árdua a que o índio propunha ao seu companheiro; mas, tanto um como o outro estavam já há muito habituados às fadigas do trail. Dentro em
pouco, depois de contornarem a cabana, chegaram junto das margens do Lago Waquash... O imenso tapete de neve espraiava-se na frente dos dois viajantes. Nem o mais
subtil sinal da passagem recente de qualquer ser humano...
Finalmente, depois de terem percorrido uma distância de três milhas, João-Pedro abrandou o passo e disse para o seu companheiro:
- Emquanto é ainda tempo, Grande Caribú, renuncia ao teu insensato e perigosíssimo propósito de me acompanhares! Lembra-te de que conheço bem a região e que não
precisas, não tens mesmo o direito, de te expor inutilmente...
- A decisão do Grande Caribú está tomada, replicou o indígena com a maior firmeza. Emquanto o filho de Tomaz Roquete correr o risco de ser apanhado pelo Batedor
da Neve, estará a seu lado para o proteger! O Grande Caribú tem que saldar uma dívida sagrada! Nem as súplicas, nem as ordens do "meu irmão branco" conseguem nada!...
O fugitivo não voltou a insistir.
Continuaram a caminhar durante o dia todo.
Perto da noite atingiram South River, que estava completamente gelado. O receio de encontrar o Cabo Bentley fazia com que o canadiano esquecesse as fadigas anteriores.
Até àquele ponto a temperatura favorecera o avanço do Grande Caribú e do seu protegido. Fazia um frio muito seco e o vento norte, que soprara nos dias precedentes
com extrema violência, não voltara ainda a prejudicá-los nas suas evoluções.
Já as estrelas cintilavam no céu límpido quando os fugitivos estabeleceram o seu acampamento para passar a noite, junto ao curso de água, agora completamente gelado...
Os lobos uivavam nas vizinhanças do acampamento, convinha por isso que tomassem as suas precauções para evitar a aproximação das feras. Acenderam uma fogueira, para
afugentar os lôbos, e deitando alguns punhados de neve na chaleira decidiram-se a preparar o chá para se aquecerem. O chiar da água parecia-lhe a mais deliciosa
das músicas; beberam deliciados, nas suas chávenas de estanho, a infusão quente que parecia insuflar-lhes uma vida nova...
Finalmente, depois de terem ceado carne e peixe seco, o canadiano e o nascopi abriram um buraco na neve; muito encostados um ao outro, enrolados em espessos cobertores
breve aqueceram as fadigas do dia para cairem num sono profundo e reparador.
João-Pedro dormia já há mais de três horas quando, de súbito, se ergueu sobressaltado. O Grande Caribú deu-lhe um safanão...
- Que há? preguntou o canadiano possuído de uma angústia mortal... será o Batedor da Neve?
O índio tapou-lhe imediatamente a boca com uma das mãos, e a seguir, sem fazer o mais ligeiro movimento, pôs-se à escuta.
A pouca distância deles continuavam a fazer-se ouvir os uivos dos lobos; este concerto nocturno, ao qual já há muito estavam habituados, não os surpreendia, mas,
subitamente, estremeceram ambos: ecoou nos ares um grito agudo, um grito humano, que lhes fêz gelar o sangue nas veias...
- Ouviste, Grande Caribú? murmurou o canadiano, inclinando-se para o nascopi, o qual, sempre imóvel, apertava nervosamente a coronha da espingarda...
VII
A caixa de fósforos
nascopi, sempre à escuta, tinha a imobilidade de uma estátua; João-Pedro distinguia-lhe vagamente a silhueta, que se recortava, confusamente, a seu lado.
O índio decidiu-se então a voltar-se para o companheiro...
- Um grito de mulher! murmurou ele.
- De-pressa! não podemos permanecer assim, na espectativa no momento em que essa desgraçada corre talvez um perigo horrível... Temos de socorrê-la!
Os uivos dos lobos tornavam-se cada vez mais raros, mas os gritos misteriosos sucediam-se, desesperados; assim os dois homens decidiram correr em socorro de fosse
quem fosse que estava gritando; agarraram num bocado de madeira incandescente,
que lhes servia de archote e dirigiram-se para o ponto de onde pareciam partir os gritos... Por mais do que uma vez o índio e o seu companheiro soltaram gritos para
anunciarem à desconhecida que iam em auxílio dela. Era fora de dúvida que se ouviam os seus gritos visto que estes eram correspondidos sempre com maior intensidade...
Enterrados na neve quási até aos joelhos, os dois companheiros avançavam com grande dificuldade. Gastaram mais de dez minutos em chegar ao ponto de onde partiam
os gritos. Os olhos deles, afeitos já à escuridão, puderam distinguir três formas humanas que jaziam por terra, imóveis, no meio da neve. A pequena distância evolucionavam
outras sombras inquietantes; numerosos pontos brilhantes lucilavam nas trevas...
- Atenção aos lobos! murmurou o canadiano aproximando-se do indígena.
Metendo a arma à cara e apontando na direcção dos lobos, ó jovem canadiano disparou... À detonação sucederam-se uivos de terror. Tomados de pânico os animais recuaram...
Sem se importar com o perigo, o nascopi precipitou-se para eles brandindo o facho incandescente. Aterrorizados com a chama, os lobos, em número de trinta, retiraram-se
prudentemente... Convencidos de que as feras os iam deixar em paz durante um certo tempo, o caçador e o
Indígena procuravam agora descobrir a pessoa que gritava. Depois da vigorosa intervenção dos dois homens contra os lobos, os gritos de socorro cessaram bruscamente;
no entanto, ao fim de alguns segundos, o olhar penetrante do Grande Caribú conseguiu avistar outra vez as três formas humanas que jaziam por terra.
- São três! declarou êle dirigindo-se ao seu companheiro.
À luz incerta do facho, João-Pedro Roquete pôde distinguir o corpo de um homem...
Aproximando-se rapidamente, o caçador curvou-se sobre êle, mas teve de se convencer de que os seus socorros seriam inúteis. O infeliz estava morto e fora despojado
de parte do seu vestuário. Os lôbos haviam começado já a sua macabra tarefa. Junto deste cadáver, outro, de uma mulher que aparentava uns quarenta anos e que se
encontrava meio-enterrado na neve...
- Esta desgraçada está morta, também!... murmurou o canadiano dolorosamente impressionado... Chegámos demasiadamente tarde!... Mas, a morte, ao que parece, deve
ter-se produzido já há um certo tempo... Nestas condições quem é que teria chamado por socorro?...
O jovem canadiano interrompeu rapidamente as suas considerações. O Grande Caribú que se ¦ncontrava a uns dez passos de distância chamava-o
e apontava para um terceiro corpo estendido também sobre o solo...
- Deve ter sido esta quem gritou por socorro. De-pressa! Vamos acudir-lhe! Talvez que ainda viva!...
João-Pedro ajoelhou junto do corpo da desconhecida. Descobriu-lhe o rosto e viu que se tratava de uma rapariga de uns vinte anos e de rara beleza.
O índio auscultou-lhe o coração e verificou que a rapariga ainda vivia. Junto dele o canadiano de arma engatilhada estava em guarda contra um possível retorno ofensivo
dos lobos.
Terminado o seu exame, o Grande Caribú exclamou:
- A rapariga branca está viva! O coração dela bate com a maior regularidade.
- Então, de-pressa! Não podemos demorar-nos aqui! replicou o caçador. O facho pode apagar-se de um momento para o outro e os lobos virão sobre nós!
O nascopi não tardou em compreender a iminência do perigo que lhe assinalava o seu interlocutor. Ergueu nos seus braços robustos o corpo inanimado da rapariga e
retrocedeu para o acampamento. João-Pedro seguia-o a pequena distância para lhe proteger a retirada. Os uivos das feras eram cada vez mais intensos. As suas sombras
ameaçadoras
aproximavam-se. Não foi isenta de grandes dificuldades a marcha de regresso ao acampamento.
Uma vez no acampamento deitaram a rapariga junto da fogueira para ver se ela voltava a si. O índio friccionava-lhe vigorosamente as mãos e o canadiano preparava
uma chávena de chá bem quente e forte para reanimar a rapariga. Os uivos dos lobos sucediam-se, sem interrupção, a pequena distância.
Naturalmente, confiados na partida dos dois homens, as feras atreviam-se de novo até junto dos cadáveres, a-fim-de prosseguirem na sua macabra refeição tão abruptamente
interrompida. Durante alguns instantes, o fugitivo pensou em ir disputar os cadáveres dos dois infelizes à voracidade das feras, mas de-pressa compreendeu que se
tratava de uma empresa bastante temerária e praticamente 'tiútil. Mais valia tratar da sobrevivente, emquanto era tempo.
Os dois homens passaram mais de uma hora junto da rapariga esforçando-se por que ela voltasse a si: o Grande Caribú procurava fazer-lhe engulir algumas gotas de
rum. Mas, esforços baldados!
Emquanto cuidavam da rapariga, os dois companheiros efectuaram uma descoberta que muito os surpreendeu. De princípio haviam julgado que a rapariga sucumbira aos
efeitos da fadiga, em consequência da longa jornada, excutada em companhia
do homem e da mulher desconhecidos, através daquela região desolada. Afastando a peliça que cobria a rapariga, tiveram de se convencer de que haviam formulado um
falso juízo: uma mancha escura maculava o corpete de lã.
- Sangue! exclamou João-Pedro, cada vez mais desorientado.
O Grande Caribú não fêz comentários; No entanto a sua surpresa não era menor que a do canadiano. Um exame mais aprofundado permitiu-lhes aperceberem-se que a rapariga
fora ferida por uma bala que a atingira na espádua.
O canadiano, absorto nas suas conjecturas, observava o índio que pensava a ferida da enigmática sobrevivente com arte consumada. Os desconhecidos viajantes não haviam
sucumbido ao esgotamento, como eles a princípio tinham imaginado, mas sim sido vítimas de uma cobarde agressão.
- Quem seria o miserável autor da façanha ? preguntava João-Pedro, indignado. Vamos, Grande Caribú... que pensas de tudo isto?
O nascopi não respondeu. Continuava a lutar para chamar à vida a ferida. finalmente um brilho estranho iluminou-lhe as pupilas. É que a pobre infeliz começava a
recuperar as cores. O corpo dela, também, até aí inerte, acabava de ser agitado por um estremecimento.
A desconhecida soltou um profundo suspiro.
- Salva! Está salva! Vamos tirá-la daqui!
Sem mais detenção, o índio agarrou no frasco de rum e chegou-o aos lábios da rapariga. Esta, fêz uma careta. Estendeu os braços. As suas pálpebras entreabriram-se
e pôs-se a olhar, cheia de ansiedade, para os dois homens.
- Meu Deus! Onde estou eu? balbuciou num tom de voz ligeiramente perceptível.
- Não tem nada que recear da nossa parte, respondeu o canadiano... Somos amigos!...
Durante um certo tempo, a desconhecida, interdita, fixou o seu interlocutor. Uma expressão de indizível desconfiança se estampava no rosto da rapariga...
- O meu pai?... a minha mãi?... preguntou ela, apavorada... Que é feito deles? Por amor de Deus, digam-me qualquer coisa!
João Pedro e o Grande Caribú não tiveram pois dificuldade em estabelecer as relações que existiam entre a rapariga e os dois cadáveres que pouco antes haviam descoberto.
A rapariga compreendeu rapidamente a significação do embaraço que se apoderara dos seus dois companheiros.
"-Percebo!... balbuciou ela. O homem que se nos ofereceu para nos servir de guia, e que encontráramos por acaso, fêz fogo sobre nós.. a nossa equipagem...
Sem se poder conter por mais tempo, começou
a soluçar. Quis erguer-se, mas não pôde; a dor violenta que sentia na espádua obrigava-a a observar a mais completa imobilidade...
- Vamos, não se mexa, aconselhou o fugitivo, com voz amiga... O seu estado não lhe permite que cometa a mais ligeira imprudência... mas, esteja descansada, o meu
companheiro pôde examinar o seu ferimento... Não tem gravidade... A bala não atingiu o pulmão...
A desconhecida não parecia preocupar-se muito com o seu estado. A mão da rapariga crispava-se em torno do punho do caçador...
- Oh! suplico-lhe, insistiu ela, não me oculte a verdade... A minha mãi e o meu pai estão mortos, não é verdade?... Vi-os cair quando o criminoso fêz fogo sobre
eles... Logo a seguir o miserável disparou contra mim... O que se passou, depois?... Voltei a mim já era noite: Os lobos!... Ah!... os lobos!...
Os olhos da pobre infeliz dilatavam-se de pavor. Não podia mais, a comoção possuia-a por tal forma que era incapaz de rememorar os acontecimentos de que fora testemunha
presencial. Imóveis, os seus dois companheiros aguardavam, na esperança que ela conseguisse fornecer-lhes mais pormenores. Mas, calou-se, os soluços impediam-na
de falar...
João-Pedro Roquete dirigiu um olhar interrogador na direcção do seu companheiro. Profundamente intrigado com as palavras que a desconhecida
acabara de pronunciar, esquecia-se já da perigosa situação em que êle próprio se encontrava. Ao evocar o drama que se desenrolara ali perto deles, imaginava que
as duas mulheres e o homem tinham sido traiçoeiramente atacados pelo seu guia, o qual se pusera em fuga depois de cometer o crime e se apoderar do trenó e da equipagem.
O assassino deveria já encontrar-se bastante longe! Tomara um avanço suficiente para escapar a uma eventual perseguição...
Sem dizer palavra ao caçador, o Grande Caribú tornara a debruçar-se sobre a jovem... Com infinitas precauções acabava de pensar sumariamente o ferimento e notara,
após um minucioso exame, que o projéctil depois de rodear a cabeça do húmero tornara a sair...
- A mulher branca não recebeu mais que uma ligeira arranhadura!... decidiu-se êle por fim a declarar ... Dentro de pouco tudo estará cicatrizado!...
A rapariga sentia-se possuída de uma tão grande fraqueza que não foi capaz de articular palavra. Esgotada, inclinara a. cabeça e, de olhos fechados, Parecia dormir
com a maior calma. Agarrando num lenço limpo que encontrou num dos seus bolsos, o canadiano enxugou as lágrimas que corriam pelas faces da rapariga...
--É melhor, agora, deixá-la descansar! murmurou êle. O repouso deve ser-lhe salutar!
Em redor deles, os lobos continuavam a uivar.
O canadiano preparava-se para ir correr com eles, mas, o nascopi, como se lhe adivinhasse os pensamentos, agarrou-o pela manga da blusa.
- Para que vai o "meu irmão" expor inutilmente a sua existência ? ... Deixe os mortos! Que lhes havemos de fazer? Quando fôr dia, antes de partirmos, enterrá-los-emos...
Por emquanto deixe-se ficar por aqui junto do fogo...
Não podendo deixar de concordar com o bom-senso que inspirava os conselhos do seu companheiro, João-Pedro acocorou-se junto dêle, muito calado. O seu olhar fitava
com insistência, curiosidade e pena a rapariga, que parecia ter adormecido, vencida pela emoção...
- Não poderemos, no entanto, abandoná-la assim, disse João-Pedro voltando-se para o indígena. Temos de tomar uma decisão... Logo que seja dia, voltas com ela para
a tua cabana e deixas-me seguir sozinho para o Norte...
O índio abanou a cabeça, num gesto de desaprovação :
- O Grande Caribú tem de acompanhar o seu irmão branco! Não deixará que o Batedor da Neve o agarre! afirmou, com toda a energia...
- Mas para salvarmos esta pobre infeliz não vejo outra solução...
- O ferimento não é grave e dentro de pouco permitir-lhe-á que caminhe como se nada fosse com ela...
- Ora, vamos, reflecte um bocadinho; se a levarmos connosco cometeremos a pior de todas as imprudências... Não é capaz de andar tão depressa como qualquer de nós
e assim o Cabo Bentley não tardará em nos alcançar...
- O "meu irmão" esquece-se de que voltar é o mesmo que nos irmos meter na goela do lobo! O Batedor da Neve não terá dificuldade em descobrir, ao examinar a pista
que deixámos atrás de nós, que o Grande Caríbú lhe mentiu e que na sua cabana se encontrava escondida a pessoa que êle procurava...
O canadiano não pôde conter uma exclamação de desapontamento. Compreendia que o seu companheiro se comprometera sem remissão para lhe facilitar a fuga.
- Se assim é, que remédio há senão partirmos os três? Iremos, pois, com a graça de Deus! Não podemos abandonar esta pobre rapariga!...
Ao pronunciar estas últimas palavras o caçador inclinara-se mais uma vez sobre a desconhecida.
- Quem será ela? É raro que as mulheres brancas se aventurem até estas paragens.
- Olhe, o Grande Caribú, até hoje, só encontrou cinco, que acompanhavam os maridos ou os Pais até aos postos do Extremo-Norte.
- Trata-se sem dúvida de uma dessas infelizes qUe, acompanhada de seus pais, procura atingir uma região mais hospitaleira... Mas, para que havemos
de perder tempo em conjecturas!.". Talvez traga consigo quaisquer papéis que nos permitam identificá-la...
Tão grande era a curiosidade de que estava possuído o canadiano que se decidiu a procurar nos bolsos da peliça da rapariga quaisquer elementos que permitissem a
sua identificação. Retirou de lá um revólver pequeno, cujo tambor continha ainda todas as seis balas; depois descobriu uma caixa de fósforos. Agarrou nela e mostrou-a
ao seu companheiro.
- Santo Deus! exclamou êle. Que quere dizer isto?...
João-Pedro sentia-se extraordinariamente perturbado. O Grande Caribú olhava para êle, muito admirado, sem perceber a causa da sua perturbação.
- Ora esta! Eu não estou doido, com certeza! exclamava o canadiano. Não ha dúvida possível!... É a caixa de fósforos que me foi roubada pelo malandro do Francisco
Santerre!. Como diabo é que ela se encontra no bolso desta pobre rapariga?
VIII
Luísa Rivière
Ao ouvir as palavras que o seu vizinho acabava de pronunciar, o nascopi não pôde deixar de encolher os ombros.
- O "meu irmão" está com certeza enganado, atreveu-se êle a dizer. Deve tratar-se de qualquer caixa de fósforos que a mulher branca comprou em algum ponto aqui do
Norte.
- Não, Grande Caribú, tenho a certeza! Esta caixa já me pertenceu! Entretive-me a marcar nela as minhas iniciais, com a ponta da faca. Olha! Vê!... Cá estão a# rainhas
iniciais!... O malandro do Santerre não foi nada económico; restam apenas dois fósforos!...
O caçador havia posto o índio ao corrente do que se passara entre êle e Francisco Santerre; por isso aquela descoberta lhe parecia também a êle muito extraordinária.
- Tenho visto muita coisa, mas isto ultrapassa tudo quanto eu seria capaz de imaginar, murmurou o caçador...
- A mulher branca fornecer-nos-á todos os esclarecimentos de que carecemos, por isso não vale a pena estar a puxar pela cabeça.
- Sim; espero que, graças a ela, nos seja possível desvendar este mistério; mas, devo confessar-te, nunca me vi a contas com um problema tão complicado.
Depois de ter estendido um dos cobertores de que dispunham sobre a rapariga, que continuava a dormir, o nascopi permaneceu silencioso! Desejoso de tomar um pouco
de repouso que lhe permitisse pôr-se a caminho logo ao romper do dia, estendeu-se ao lado da rapariga, e daí a momentos adormeceu sem sequer se preocupar com os
uivos dos lobos, que não cessavam de fazer ouvir em redor do acampamento.
A-pesar-do cansaço que sentia, João-Pedro Roquete não conseguiu pregar olho durante toda a noite.
Mal o dia começou a despontar no horizonte, o caçador pôs-se a pé. Depois de ter reanimado a fogueira foi acordar o companheiro e verificou que a rapariga continuava
a dormir tranquilamente. - Se fôssemos até lá adiante? propôs êle ao índio emquanto este se erguia. Talvez que fizéssemos qualquer descoberta interessante... Além
disso não é decente deixarmos os cadáveres insepultos.
Os dois homens apressaram-se em preparar o chá: depois de terem ingerido cada um deles uma chávena, encaminharam-se, com as espingardas engatilhadas, para o ponto
onde na noite anterior tinham encontrado a rapariga.
Os lobos haviam fugido assim que a obscuridade desapareceu, mas durante a noite não perderam o tempo; dos dois cadáveres pouco mais restava do que os esqueletos
cobertos, de onde em onde, com alguns fragmentos de carne.
Dolorosamente impressionados, os dois homens prosseguiram nas suas investigações. Embora a presença da alcateia durante uma noite inteira tornasse difícil a descoberta
de uma pista sobre a neve, conseguiram, no entanto, descobrir dois sulcos paralelos que se prolongavam à superfície do solo e que tinham, sem sombra de dúvida, sido
traçados pelos patins de um trenó.
Durante cerca de dez minutos o Grande Caribú e o canadiano estiveram ocupados em estudar as pegadas da neve. Não^lhes foi difícil reconstituir o drama que se desenrolara,
recordando as poucas palavras que a rapariga pronunciara quando recuperou os sentidos... Passara por ali um team depois do blizzard e a profundidade dos sulcos indicava
que o veículo ia muito carregado... Acompanhavam-no dois homens, que calçavam raquettes, mas
os seus vestígios, que atrairam logo a atenção do nascopi, perdiam-se entre as pegadas dos lobos... A uma dezena de metros, um pouco mais adiante, o trenó executara
um brusco colchete, depois tomara a direcção do Norte...
- O guia a quem a nossa protegida fêz referência desembaraçou-se aqui mesmo neste ponto dos três viajantes que acompanhava, opinou João-Pedro... Praticado o seu
feito infame agarrou nas rédeas e largou a toda a velocidade... Não nos será difícil seguir-lhe a pista... A neve não a cobriu ainda, com certeza...
- Lembre-se "irmão" que o Batedor da Neve o persegue a si! interrompeu o Grande Caribú, em cuja fronte se vincava uma ruga de grande preocupação... Não temos tempo
a perder, se queremos evitar que êle nos alcance!...
O canadiano não pôde deixar de se convencer pelos argumentos de bom-Senso empregados contra a sua proposta, pelo nascopi.
Por maior que fosse o seu desejo de castigar aquela malfeitoria, antes de mais nada tinha que pensar na sua própria segurança.
- Voltemos então para o acampamento, almoçamos rapidamente e pômo-nos em marcha, concordou êle... No entanto, antes de nos irmos embora seria conveniente enterrarmos
estes dois desgraçados...
Unindo os seus esforços, os dois companheiros
cavaram na neve, servindo-se das facas de mato, uma cova suficientemente ampla e profunda para nela caberem os restos mortais dos dois companheiros da rapariga.
Cumprido este piedoso dever, e depois de terem orado durante um momento junto do túmulo, voltaram para junto da rapariga, tomando a precaução de levarem com eles
um par de raquettes que descobriram no local do crime... O Grande Caribú tomou a deliberação de acordar a rapariga, logo que voltou ao acampamento. Surpreendida,
abriu os olhos e tentou sentar-se, mas uma dor violenta que sentia na omoplata arrancou-lhe um gemido...
- Quem são os senhores? preguntou ela, muito espantada...
- Não tenha medo, menina, que ninguém lhe faz mal! Nós somos amigos e gente de bem! Fomos nós que lhe acudimos quando gritava... Lembra-se...
--Ah! sim... lembro-me... Os lobos!... Aproximavam-se cada vez rafais de mim!... Se os senhores não têm aparecido com certeza que eles me tinham devorado!... A vossa
intervenção foi providencial!...
No espírito da rapariga começava a reconstituir-se toda a tragédia e não tardou que entrasse novamente a soluçar...
- O meu pai?... a minha mãi?... preguntou
ela cheia de ansiedade agarrando na mão do canadiano...
João-Pedro sentia-se muito embaraçado. Custava-lhe muito dizer a verdade à rapariga...
- Ah! adivinho!... Morreram ambos! O miserável matou-os aos dois!... Vi-os cair aos dois...
- Desculpe, mas nós para a ajudarmos carecíamos de que nos contasse como se tinham passado os factos.
Durante alguns instantes a rapariga permaneceu silenciosa, vencida pela dor.
O nascopi encheu uma chávena de chá e deu-a à rapariga... a bebida quente reanimou-a um pouco; mas, permanecia tão abatida que não podia satisfazer a curiosidade
do caçador.
Emquanto o seu companheiro procurava reanimar a rapariga, o Grande Caribú apressava-se com os preparativos do almoço, que se resumia A carne fumada e biscoito:
- Almoça connosco, não é verdade? preguntou João-Pedro à rapariga, tomando-lhe uma das mãos...
- Não tenho fome! balbuciou ela, cujos olhos negros, de uma rara beleza, estavam inundados de lágrimas...
- Não pode permanecer assim, não se deve deixar enfraquecer, insistiu o caçador... Não queremos abandoná-la nesta solidão... Levamo-la connosco... Temos que partir
dentro em pouco; por
isso ja vê que tem de se alimentar para poder suportar as fadigas da viagem...
A rapariga esboçou um gesto de lassidão...
- Como querem que os acompanhe! murmurou ela... Nem sequer tenho força para me aguentar de pé...
- O Grande Caribú é bastante forte! Êle levará a mulher branca, assegurou o índio, estendendo à rapariga outra chávena de chá bem quente. Entretanto vá comendo e
bebendo!
Quási à força, a rapariga decidiu-se a tomar algum alimento... Em poucas palavras, com todos os rodeios possíveis, o canadiano comunicou-lhe que os pais dela tinham
sido enterrados no próprio local onde haviam sido assassinados...
A fisionomia da órfã exprimia nesse momento o mais profundo desespero...
- Que vai ser de mim? soluçou ela... Sozinha no mundo!...
- Descanse que a não abandonaremos! Somos amigos, repito-lhe que pode contar connosco!...
Depois, já calma, a rapariga sentiu-se bastante forte para relatar as suas aventuras aos seus dois salvadores. Chamava-se Luiza Rivière e nascera no Québec. Tinha
dezanove anos de idade. O pai dela,
Juliano Rivière, fora durante muito tempo representante da Companhia de Hudson em Fort-Chimno, mas, por motivos de saúde o médico mandara-o retirar para o Sul, onde
o clima era bastante mais
favorável... Há três anos que Luiza e a mãi se lhe tinham ido juntar. Acompanhavam-no agora na sua viagem. Juliano Rivière conhecia admiravelmente o Labrador. Não
quisera por isso contratar nenhum guia, e propunha-se regressar a Fort-Rupert o mais rapidamente possível. Comprara cães e um trenó, no qual acumulara armas e mantimentos,
e, acompanhado da mulher e da filha, dirigia-se para o Sul. Durante uma semana a viagem decorrera sem incidente. O trio acampava onde calhava. Há muito familiarizada
com a rude existência do Extremo-Norte, Luiza Rivière afrontava corajosamente os numerosos obstáculos que incessantemente se acumulavam pelo caminho, desprezando
o frio e a fadiga, e animando sempre os cães.
Junto dela seguia a mãi estendida dentro do veículo. Alguns passos mais atrás, munido de raquettes, Juliano Rivière fechava a marcha.
Os viajantes esperavam percorrer em três semanas a primeira etapa, quando o blizzard se desencadeou com uma violência desusada. Durante alguns dias, lutaram com
os elementos, abrigando-se o melhor que podiam para evitar os assaltos da tempestade de neve.
Finalmente, perdidos no deserto branco, com a bússola quebrada, os infelizes não sabiam como se orientar. O desespero começou a invadi-los. Iam ao acaso, não sabendo
se se aproximavam ou se se afastavam de Fort-Rupert, quando, uma bela tarde,
avistaram um indivíduo que avançava rapidamente sobre a superfície da neve, munido de raquettes. As duas mulheres e Juliano Rivière fizeram logo sinais ao desconhecido
e este, assim que os avistou, deu-se pressa em ir ter com eles.
- Porque nos teríamos encontrado com aquele miserável? preguntou a si-mesma a jovem, com voz trémula. Depois de nos ter declarado que era caçador e estava ao serviço
da Companhia de Hudson, ofereceu-se para nos guiar até Fort-Rupert. Meu pai aceitou o oferecimento, persuadido que o acaso daquele encontro tinha sido providencial.
Durante algumas horas prosseguimos juntos a marcha, até que, a certa altura, o tal indivíduo puxou do revólver e disparou à queima-roupa sobre meus pais. Ambos cairam
logo mortos, sem sequer terem dado pelas intenções do criminoso que nos acompanhava. Este quis depois desembaraçar-se de mim. Fustiguei os cães com a maior violência
procurando fugir-lhe, mas a bala foi mais veloz do que eu. Ferida, fui projectada do veículo e perdi os sentidos.
A rapariga calou-se, interrompendo por alguns momentos a sua narrativa e soltou um profundo suspiro:
- Quando recuperei os sentidos estava estendida no meio da neve. Sentia uma dor violenta na espádua. À roda de mim, moviam-se sombras estranhas. Notavam-se também
pontos luminosos... Então, apavorada, ouvindo os uivos das feras, compreendi
que me encontrava cercada por lobos. Gritei por socorro. Foi isso que me salvou, porque tive a sorte de ser ouvida pelos senhores. Depois... não me lembro de mais
nada. Na minha memória subsiste um grande vácuo.
João-Pedro e o Grande Caribú, que ouviram atentos as explicações da sua vizinha, olharam-se sem trocar palavra. Qualquer deles compreendeu, sem esforço, o móbil
que levou o assassino a desembaraçar-se dos viajantes perdidos, em consequência do blizzard. Despertara-lhe a cobiça, os animais de tiro, o trenó e as mercadorias
que transportava. Além disso, Júlio Rivière, devia trazer consigo uma quantia considerável.
- Como era, pouco mais ou menos, o seu agressor, minha menina? interrogou o caçador, depois de reflectir algum tempo.
- Meu Deus! Não tive tempo para lhe fixar os sinais. Tinha a gola da peliça levantada. Era nosso companheiro de algumas horas, apenas... Pude só verificar que tinha
uma elevada estatura e a facilidade com que se orientava, fazia-me acreditar que essas desoladas regiões lhe eram familiares.
O canadiano imobilizou-se e pareceu hesitar; depois, metendo a mão no bolso, tirou a misteriosa caixa de fósforos que descobrira, pouco tempo antes, e mostrou-a
à sua vizinha.
- Reconhece isto, minha menina? preguntou. A princípio, Luiza Rivière parou embaraçada,
Não percebendo onde o seu interlocutor queria chegar.
- Mas, é a caixa de fósforos que pedi emprestada ao assassino de meus pais, no momento em que paramos! exclamou, por fim. Lembro-me de a ter metido maquinalmente
no bolso da minha peliça.
- Está bem certa, insistiu João-Pedro Roquette, que foi o próprio desconhecido que lhe entregou este objecto?
- Tenho a certeza! repetiu a rapariga com firmeza. Mas, porque me pregunta isso?
O fugitivo, inclinando-se para ela, declarou:
- Talvez compreenda melhor o meu espanto, menina, quando lhe disser que esta caixa me pertencia há três dias! Eu próprio a comprei em Fort-Rupert...
- Mas, então... balbuciou Luiza, a quem esta informação causou a mais profunda surpresa, como é que ela estava na posse dessa criatura?
- Esta caixa foi-me roubada por um tal Francisco Santerre, que encontrei também no trail. Esse Patife, que conhecia ha meses e julgava meu amigo até agora, aproveitou-se
da minha prostração para me roubar e abandonar, sem recurso algum, no meio do deserto branco! Certamente, a descrição que me fez desse homem era deficiente, mas
agora não me resta dúvida alguma em identificá-lo! É evidente que Francisco Santerre e o assassino de seus pais, são uma e a mesma pessoa! A descoberta desta
caixa de fósforos é a prova mais concludente da culpabilidade desse miserável!
Um clarão iluminou as pupilas da rapariga.
- É preciso alcançar Fort-Rupert rapidamente e denunciar esse bandido à polícia! Talvez que, com as indicações que o senhor lhe vai fornecer, um dos agentes da Royal
Mounted, lhe possa deitar a mão e dar-lhe o justo castigo dos seus crimes...
Ouvindo essa proposta da rapariga, João-Pedro não pôde deixar de estremecer...
- A-pesar-do meu grande desejo de lhe ser agradável, menina, não me é possível voltar nesta ocasião a Fort-Rupert! Eu e o meu companheiro temos grande urgência em
chegar ao Extremo-Norte...
- Partirei sozinha, visto que não pode ser doutro modo! suspirou a rapariga... É preciso que esse miserável seja punido!... Rogo-lhes que me indiquem o itinerário
que devo seguir para alcançar o litoral da baía de Hudson!
O caçador abanou tristemente a cabeça...
- Mas não vê, menina, que o seu estado a impossibilita, neste momento, de fazer uma caminhada tão longa... Por coisa alguma deste mundo a deixaríamos aqui! Grande
Caribú vai carregar consigo e acompanhar-nos-á. Talvez, durante o caminho, tenhamos ocasião de a fazer alcançar uma região mais civilizada... Doutra maneira, sucumbiria,
se quisesse arriscar-se a fazer sozinha uma caminhada dessas...
Luiza Rivière quis protestar, mas o nascopi não lhe deu tempo para isso. Há um momento que manifestava uma visível inquietação. Passando, bruscamente a mão no ombro
do seu companheiro, disse com voz firme:
- Prepare-se, "meu irmão"! Temos perdido muito tempo! Seria imprudente demorarmo-nos ainda mais... Grande Caribú está pronto a continuar a marcha para o Norte!...
IX
Os caçadores de morsas
Luiza Rivière compreendeu, pela atitude decidida do índio, que os seus salvadores estavam irrevogavelmente dispostos a seguir a sua jornada; apressou-se, pois, a
dizer-lhes:
- Para que vou eu servir-lhes de estorvo? Seria preferível deixarem-me aqui! Eu cá me arranjarei como puder...
O caçador desaprovou, logo, essa sugestão.
- Não íamos salvá-la dos ataques dos lobos, para a deixar morrer de inanição no meio deste deserto branco!... Torno a repetir que nada tem a temer da nossa parte!
Dora-avante deve considerar-nos como seus amigos; mas, por favor, não se demore...
O nascopi interrompeu, subitamente, o diálogo dos dois jovens. Afastando, bruscamente, o seu
companheiro, aproximou-se de Luiza, e, baixando-se, levantou-a nos braços robustos... A infeliz nem procurou resistir.
Verificando que as suas recriminações eram baldadas, passou docilmente as suas mãos ao redor do pescoço do índio e encostou-se-lhe ao peito...
O Grande Caribú parecia não sentir o peso da sua protegida. Dír-se-ia que levava um fardo leve, ao vê-lo caminhar com desembaraço. O índio pertencera, outrora, a
uma tríbu em que a resistência dos guerreiros era submetida a provas duras. De todas as tríbus do Canadá setentrional, os naascopis, eram, certamente, os indígenas
que mais intrepidamente afrontavam as privações e toda a espécie de cansaço. Habituados à fadiga e aos rigores da temperatura, eram dotados duma resistência excepcional.
Em tempos remotos, tinham travado lutas sangrentas com os esquimós do Labrador, seus vizinhos... A chegada dos brancos, terminara com este estado de guerra contínuo,
mas os seus descendentes conservaram todas as qualidades de valentia e de robustez. O Grande Caribú era um dos tipos mais perfeitos dessa velha raça e, frequentemente,
os caçadores do Extremo Norte, admiravam a dureza da sua tenacidade.
João-Pedro amarrou, solidamente, aos ombros, a sacola que continha as provisões e as duas raquettes que se descobriram no local do drama e seguiu o seu companheiro...
Dirigiram-se, então, em direcção ao norte, sem que incidente algum se produzisse. O tempo continuava a favorecer o pequeno grupo. Numa marcha regular, o canadiano
e o nascopi seguiram ao longo de South River, continuando o seu caminho sem distinguir a menor sombra. Caminhavam infatigáveis, parando, às vezes, alguns momentos,
para lançar um golpe de vista investigador, e desejosos de aumentar o mais possível a distância entre eles e o agente da polícia montada, rivalizavam na resistência.
..
Entretanto, se o caçador ia satisfeito pelas pequenas dificuldades que os elementos lhe levantavam, não deixava de se inquietar, pensando que o Batedor da Neve fosse
capaz, dum momento para outro, de lhe encontrar a pista... Se o polícia demorasse as suas investigações na região do Petchikapu Lake, bem iria; os fugitivos teriam
tempo de se por fora do seu alcance, mas, o Cabo podia regressar à cabana e descobrir, sem esforço, examinando os sinais do fugitivo e do índio, que tinha sido ludibriado
pelo Grande Caribú... Com a excelente atrelagem do seu trenó, facilmente os alcançaria...
Todavia, os dias foram-se passando e o canadiano sentia desaparecer as suas apreensões. O trio continuava a afastar-se para o norte, parando duas vezes por dia,
para se alimentarem. Luíza Rivière, ja convalescente, marchava pelo seu pé e o Grande
caribú já não tinha que a transportar tanto tempo ao colo. A ferida da desgraçada, cicatrizava rapidamente e tudo levava a supor que a cura seria rápida.
Os dois companheiros sentiam-se, agora, sossegados com o estado da sua protegida; entretanto um novo e terrível problema se apresentava, agora: a alimentação...
Deixando a cabana, tinham trazido provisões suficientes para prover durante algum tempo às suas necessidades, mas a chegada de Luiza Rivière, com quem eles não contavam,
fizera esgotar mais rapidamente os víveres...
Durante as paragens, o indígena separava-se algumas horas e ia caçar nas proximidades.
A rapariga não deixara de manifestar frequentes vezes, a admiração que a atitude dos seus companheiros lhe provocava... Com espanto, tinha verificado, no decorrer
da viagem, que os seus salvadores, em vez de procurarem os lugares onde havia algumas aglomerações, espalhadas no meio dessas vastas extensões do Labrador, pelo
contrário se esforçavam, prudentemente, por evitar todo o território habitado... Assim, aproveitando um desses dias que o Grande Caribú fora caçar, deixando-a ficar
só com João-Pedro junto do fogo do bivaque, apressou-se a preguntar:
- Porque mantém assim uma reserva tamanha? Preocupa-o a falta de víveres. Seria entretanto fácil passar por Fort-Chimno e, aí, renovar
as suas provisões. A sociedade dos homens, inspira-lhe assim tanta repugnância?
O canadiano apressou-se a repelir essa sugestão... Em Fort-Chimno havia um posto da Royal Mounted, onde o Cabo Bentley, chegaria dum dia para outro... Aventurar-se
por lá, equivaleria a ir meter-se na boca do lobo.
- Tem razão. Preferimos as solidões do Grande Norte à vizinhança dos homens! apressou-se em responder, visivelmente embaraçado... Porém, não se preocupe... O Grande
Caribu conhece a região... Além dum caçador experimentado, é um guia seguro... Levará a bom termo a sua missão, e nós acharemos o meio de a fazer voltar à civilização...
Desde que se encontrara de maneira tão imprevista na presença de Luíza Rivière, o fugitivo tinha tido o cuidado de lhe não descrever os trágicos acontecimentos,
em consequência dos quais, o Batedor da Neve, se lançara na sua pista. Imaginava, naturalmente, que a rapariga teria grande repugnância em se sentir na presença
dum assassino, porque os dados que lhe fornecera sobre o seu passado não bastariam para a satisfazer... Facilmente se convenceria que João-Pedro lhe dissimulava
a verdade; ela queria levantar o véu do mistério que o cercava e que o forçava a atravessar essas regiões Pedidas do Labrador.
Em breve, os viajantes abandonaram o curso do South River, para seguirem para leste.
O céu tinha escurecido e o vento começava a soprar com veemência. Embora temesse o ataque do vento norte, o caçador regosijava-se com essa mudança. Pensava, certamente,
nos sinais que o trio deixara à retaguarda e que seriam apagados pelos turbilhões da neve... O Cabo Bentley ver-se-ia na impossibilidade de os descobrir.
Luíza Rivière, com intrepidez, partilhava das fadigas dos seus corajosos companheiros.
Três semanas se tinham passado desde que deixara o lugar onde sucumbiram seus pais; os vigilantes cuidados que Grande Caribú não cessara de lhe prodigalizar, foram-lhe
salutares... Sentia-se, agora, suficientemente forte para arrostar as fadigas do trail.
Novas dificuldades vieram inquietar o pequeno grupo; quanto mais se aproximava do Whale River que esperava atingir, mais a caça se tornava rara. Grande Caribú, que
tinha abatido algumas lebres, voltava, agora, muitas vezes com as mãos a abanar, não conseguindo prover suficientemente ao sustento dos seus companheiros. Um dia,
o nascopi pressentira a pouca distância um bando de carubús (1) que desciam para o trail... Usando de grandes precauções, o índio tentara aproximar-se dos animais,
mas o vento era-lhe, infelizmente, desfavorável.
(1) Veados.
Os bichos, aterrados, farejando a sua presença, fugiram em debandada. Os dois tiros que lhes mandara furiosamente, não resultaram.
A rapariga e os dois homens foram forçados a diminuir a ração, para seguirem o seu itinerário.
- Para que continuamos a teimar em atravessar estes desertos gelados? não cessava de repetir Luíza Rivière... Se me tivesse escutado, estaríamos, agora, em Fort-Chimno
e não nos preocuparíamos com a nossa alimentação! O que tenciona fazer nas legiões do Extremo Norte?
O canadiano e o Grande Caribú faziam de conta que não ouviam os conselhos da sua companheira" mas ela, cada vez mais intrigada, a si mesma preguntava que imperiosas
razões os levava a afastarem-se obstinadamente das regiões habitadas...
Às vezes, a infeliz, formulava hipóteses perturbadoras, mas jamais lhe ocorreu a idea de que o seu salvador pudesse ser um assassino... Logo de começo, o canadiano
lhe fora simpático e ela adorava a sua natureza franca e leal; a dedicação que por ela manifestara, chocara-a profundamente, e a-pesar-de ver nele uma certa reserva,
estimava-o tanto, que o supunha incapaz de qualquer má acção.
Luíza Rivière, experimentava, porém, um angustioso mal-estar, quando se lembrava que prosseguia para o desconhecido e que o assassino de seus pais continuava a gozar
duma completa impunidade. Ela queria informar a polícia o mais de-pressa possível
do crime abominável que o miserável praticara. .. Além disso, a certeza adquirida por João-Pedro da identidade do criminoso, descobrindo a famosa caixa de fósforos,
levou-a a pensar que o seu salvador podia fornecer preciosas indicações aos auxiliares da Royal Mounted; todavia, a-pesar-da sua insistência, o caçador recusara-se,
sempre, a ir prevenir os representantes da autoridade. Compreendeu, certamente, que êle não desejava manter quaisquer relações com eles e que, iludindo sempre as
preguntas, adiava para mais tarde as passadas necessárias e tão urgentes, para apressar o castigo do criminoso e pôr a justiça na sua pista.
A-pesar-do espanto que lhe provocava a incompreensível atitude de João-Pedro, a desgraçada via-se apenas reduzida a simples conjecturas. Várias vezes tentou interrogar
o nascopi, mas Grande Caribú estava longe de satisfazer a sua curiosidade.
- Esteja certa, "minha irmã branca", disse o índio, finalmente, um dia que Luiza Rivière o interrogava com mais insistência... Estamos próximos do Whale River...
Não tardaremos em encontrar vários grupos de esquimós que poderão aprovisionar-nos... As aldeias indígena são numerosas na costa... Ser-nos-á fácil descansar lá
tanto temPo quanto quisermos...
- Além! Sempre além! exclamou a rapariga impaciente... Não era muito mais natural e mais fácil ter ido a Fort-Chimno!...
- A minha "irmã branca" não nos disse que se encontrava só no mundo, dora-avante? interrompeu o nascopi... Se alguém da sua família a esperasse na Baía de Ungava,
Grande Caribú não hesitaria em se separar, momentaneamente, do companheiro para a conduzir ao seu destino...
- Já declarei que estou pronta a acompanhar-vos... Não são, porventura os meus únicos amigos? Porém, admira-me a insistência com que procuram atravessar as regiões
desertas do Labrador... Dir-se-ia que têm repugnância em se encontrar com os seus semelhantes...
- Fique a minha "irmã branca" tranquila!... Dentro em pouco poderá estar no meio de gente! Grande Caribú espera, daqui a dias, chegar ao fim da viagem!...
Encorajada pelas palavras do seu interlocutor, Luísa Rivière prosseguiu, com firmeza, a caminhada, sem apoquentar mais os dois homens com Preguntas...
Em breve alcançaram o curso gelado do Whale River, que atravessaram sem custo; depois de acamparem uma noite na margem, seguiram a direcção norte, sem se importarem
com os ataques do blizar, que se desencadeava cada vez mais violento, estorvando-lhes a regularidade da marcha...
Uma manhã, aproveitando uma aberta, os dois fugitivos e a rapariga, vencendo o cansaço, continuavam a avançar através da neve, quando,
de-repente, o hascopi que ia, como sempre, à frente, estendeu o braço e soltou esta alegre exclamação: - Olhem! A Grande Água!... O caçador e Luiza Rivière apressaram-se
em olhar na direcção que o seu companheiro indicava. Verificaram que estavam a pouca distância da beira-mar. Aceleraram o andamento, e com o coração ofegante, sem
trocar uma palavra, prosseguiram caminho... As suas fisionomias tornaram-se serenas! A subsistência daí em diante estava assegurada. As focas eram numerosas nessas
paragens e infinitas as colónias das aves estabelecidas ao longo do litoral. Além disso, os viajantes encontrariam, em breve, qualquer tríbu de esquimós que lhes
facilitariam as suas provisões.
A rapariga estava esgotada pelo esforço que acabava de dispender e manifestava alguma fadiga; por isso o trio resolveu parar, para descansar, junto da margem. Luiza,
estafada, estendeu-se no meio da neve e o canadiano não tardou em imitá-la. Este sentia-se agora seguro, por ter atingido esta região longínqua do Extremo-Norte,
persuadido que o Cabo Bentley não iria, certamente, procurá-lo ali. Além de que, depois das borrascas que se tinham desencadeado nos últimos tempos, o polícia devia,
há muito tempo, ter perdido a pista daquele a quem tanto desejava deitar a mão.
Grande Caribú não ficou muito tempo perto dos dois jovens. Fazendo-lhes sinal para esperarem
nesse local, aventurou-se ao longo do litoral, esperando apanhar alguma peça de caça, que permitisse aos viajantes extenuados, reconfortarem-se e acabarem com o
jejum...
O índio seguiu ao longo do litoral, durante dez minutos. Nuvens de pássaros voavam muito próximo, mas, não tentou abater qualquer deles. Sabia que a carne dessas
aves era muito gorda e dum gosto insuportável; esperava, certamente, caça mais apreciável, quando de-repente, parou. Acabava de distinguir a menos de meia milha,
na sua frente, numerosos pontos negros, que se destacavam na superfície da neve...
As pupilas do Grande Caribú brilharam. Percebeu que se encontrava em presença dum bando-de focas e, apressando a marcha, parou, no entanto, várias vezes para se
encobrir com os rochedos sobre à neve que guarneciam a beira-mar...
Quanto mais o indígena se aproximava, mais se convencia que os animais que lhe atraíram a atenção, não eram focas vulgares, mas morsas.
Estendidas numa vasta praia, em número de cinquenta, pouco mais-ou menos, os monstros, de dimensões respeitáveis, pareciam, na sua maior Parte, adormecidos... De
vez em quando um mugido saía do grupo, e um velho macho irritado, atirava-se ao vizinho, mordendo-o. Não eram, certamente, de dóceis características, e entre eles
há frequentemente alguns ferozes...
Atenta e prudentemente o índio aproximava-se com a espingarda preparada, quando teve de parar subitamente e estender-se no chão, de barriga para baixo em cima da
neve. As morsas, que até então não tinham manifestado o menor susto, pareciam, agora, inquietas... Saindo da imobilidade que a maior parte delas mantinha, atiraram-se
umas contra as outras, soltando surdos rugidos...
Profundamente intrigado, Grande Caribú procurava descobrir a causa dessa agitação inesperada, quando viu aparecer de súbito ao longo do litoral e a pouca distância,
quatro homens armados de arpões, que avançavam em fila indiana.
A atitude dos recém-chegados, a sua pequena estatura, o modo de vestir, de-pressa os denunciou esquimós. Cada um deles trazia uma lança e um arpão, e, munidos de
raquettes, evolucionavam com rapidez.
Grande Caribú que por várias vezes frequentara estas regiões, percebeu bem quais eram as intenções dos desconhecidos. Tratava-se apenas de caçadores de morsas, e
manobravam o bando de modo a cortar-lhe a retirada para o mar.
Conscientes do perigo que corriam, com a aparição dos seus irredutíveis adversários, as morsas tentaram precipitar-se para a margem, a-fim-de mergulharem e colocarem-se,
assim, fora do alcance inimigo, mas, os indígenas, soltando gritos agudos
e fazendo grandes gestos, atrapalharam a caça fazendo-a voltar à praia.
Actuando deste modo, os esquimós não contavam, naturalmente, ter à sua discreção o bando inteiro, mas esperavam, sempre, no meio da confusão provocada, abater com
os seus arpões alguns dos animais.
Durante cinco minutos, os esquimós continuaram habilmente a sua manobra.
O nascopi, muito interessado pelas suas evoluções, não procurou manifestar a sua presença, e observando-os com o mais vivo interesse, verificou que eles conseguiam
semear o pânico entre os monstros. Porém, alguns machos velhos, levantaram-se enfurecidos, parecendo quererem fazer frente ao Perigo. Sem dúvida alguma, os caçadores
teriam que contar com a sua resistência... Longe de se deixarem massacrar como focas vulgares, as morsas, quando cercadas, constituem terríveis adversários, e muitas
vezes, os esquimós arriscam a vida, teimando em as enfrentar.
Os caçadores, brandindo os seus arpões e gritando cada vez mais, tinham conseguido fazer recuar o rebanho inteiro para a praia, quando, de-repente, novos clamores
se ouviram. De trás dos rochedos próximos, surgira uma dezena de esquimós que esperavam escondidos que os seus companheiros terminassem a manobra de que estavam
incumbidos. Era a ocasião de iniciarem o ataque, pois que as morsas estavam, agora, cercadas.
Sem perda dum momento, os indígenas precipitaram-se contra os monstros que se lançaram uns contra os outros, adivinhando o perigo que corriam. .. Os arpões sibilaram,
lançados por mãos robustas e foram cravar-se em cerca duma dúzia dos desgraçados animais... Dispuseram-se, então, soltando mugidos de pavor, procurando fugir à morte,
a romper o círculo dos caçadores que nessa altura se ocupavam em enterrar profundamente as hastes das lanças, à volta das quais amarravam solidamente as correias
das armas.
A maior parte do rebanho, apavorada, pôde, atabalhoadamente, alcançar a beira-mar e fazer vários mergulhos, mas os animais que tinham sido arpoados, tentaram, sem
êxito, quebrar as tiras de couro que os retinham prisioneiros.
As lanças dos esquimós mantinham-se firmes, e os ferros dos arpões, enterrados profundamente, dilaceravam, atrozmente, as carnes das suas vítimas.
Durante algum tempo, os caçadores deixaram esgotar as forças às morsas que tinham apanhado. Imóveis, junto das lanças, esperavam, insensíveis aos mugidos dos monstros,
sem suspeitar que Grande Caribú, sempre escondido atrás do seu rochedo, continuava a observá-los com atenção... Por fim, resolveram acabar com as suas vítimas 114
arquejantes... Armando-se de machados que traziam aproximaram-se dos monstruosos animais, alguns desesperados pelas suas feridas, tentando fazer-lhes frente, ameaçando
trucidá-los com as suas terríveis presas.
Travou-se, então, um combate encarniçado... Com risco da própria vida, os esquimós atiraram-se aos monstros, acabando-os a machadadas... Assim triunfaram da resistência
da maior parte das suas vítimas e grandes manchas de sangue sulcaram a neve, onde jaziam os cadáveres dos animais; subitamente um macho grande que se defendia obstinadamente,
atirou-se ao homem que o atacava... Antes que os seus companheiros o pudessem socorrer, o caçador perdeu o equilíbrio e estatelou-se ao comprido no solo.
X
Entre os esquimós do Labrador
O esquimó parecia estar perdido... A morsa cujas feridas não a tinham aniquilado por completo, ia atirar-se-lhe e despedaçá-lo horrivelmente, quando, bruscamente,
dominando a algazarra e os gritos de pavor dos indígenas, se ouviu uma detonação. Atingido na cabeça por uma bala, o monstro rolou sem vida, junto do seu adversário.
Os caçadores, pararam, interditos, a procurar a causa dessa intervenção providencial que salvara o seu companheiro da morte.
Profundamente intrigados, olharam na direcção de onde partira o tiro... Não tardaram em descobrir o atirador. Surgindo do meio dos rochedos que bordavam a praia,
a sombra dum homem desenhava-se no branco tapete da neve... Abandonando a sua espectativa, os esquimós correram ao encòntro
do estranjeiro que acabava de provar a sua destreza.
Era Grande Caribú!... Interessado pelas evoluções e pelas manobras dos caçadores, o índio observava atento; depois, verificando que o esquimó corria um perigo mortal,
meteu a arma à cara, visando a cabeça do monstro... Agora, aparecia, altivo, pela sua proeza...
Em breve, estava junto dos indígenas que o cercaram e observaram com olhares em que se podia adivinhar ao mesmo tempo admiração e desconfiança.
As relações que existiam entre os índios do interior e os esquimós nem sempre eram das melhores. Pertencendo a raças diferentes, entregavam-se, em tempos antigos,
a combates implacáveis, antes da chegada dos brancos a estas regiões. A-pesar-do tempo ter feito esquecer estes conflitos, os antigos adversários, mantínham-se,
prudentemente, afastados uns dos outros, apenas entretendo raras relações.
As ocupações a que se entregavam eram também diferentes; os primeiros, caçavam exclusivamente por conta da Companhia de Hudson, tratando, apenas, de preparar armadilhas
aos animais que fornecem as peles, os segundos, habituados a pescar ou a massacrar as focas, só mantinham relações continuadas com os pescadores que vinham
à Terra-Nova, e que de tempos a tempos desembarcavam nas praias do seu litoral deserto.
Todavia, a atitude amistosa de Grande Caribú, de-pressa desvaneceu a desconfiança dos esquimós. O caçador a quem o nascopi acabara de salvar a vida, apressou-se
a mostrar o seu reconhecimento, com calor. O índio, impassível, deixava-os falar, compreendendo, apenas, algumas palavras da sua linguagem. Fazendo uso duma mímica
hábil, preguntou-lhes se a sua aldeia ficava perto dali... Obtendo uma resposta afirmativa, comunicou-lhes que dois amigos seus o esperavam ali perto e que iria
buscá-los para os levar consigo até ao povoado. Os caçadores quiseram, então, acompanhar Grande Caribú, e, grande foi o espanto de João-Pedro e Luíza Rivière, quando
viram chegar o companheiro, escoltado pelo grupo dos indígenas.
Há já muito tempo, no decorrer da sua estada em Fort-Chimno, que a rapariga conhecera os esquimós. Alguns deles, vinham vender peles de foca a seu pai; assim, a
vista desses homens atarracados, com caras largas, e maçãs do rosto salientes, não lhe causou inquietação alguma. Sabia que eram pacíficos por natureza.
A presença da viajante no litoral, parecia, pelo contrário, ter causado uma grande surpresa aos caçadores de focas. Parecia-lhes. extraordinariamente espantoso que
uma mulher branca se aventurasse por aquelas regiões. Os seus olhos pequenos
fixaram-se nela com insistência. Sorridente, a rapariga sustentava sem impertinência essa curiosidade, verificando que a maior parte deles, calçava botas de pele
de urso, vestindo calças e parkas de pele de foca. Todos se agasalhavam, com um casaco de pele de raposa azul, com capuz que só lhes deixava o rosto a descoberto.
Em poucas palavras, Grande Caribú pôs os seus amigos ao corrente das circunstâncias em que travara relações com os seus novos companheiros. - A minha "irmã branca"
pode estar sossegada! disse o nascopi, dirigindo-se a Luiza Rivière; estes esquimós reconhecerão o serviço que lhes prestei, e dar-nos-ão hospitalidade na sua aldeia...
Poderá, pois, descansar das suas fadigas.
A fisionomia do canadiano iluminou-se. Tinha pressa, igualmente, de terminar essa marcha vagabunda que durava há várias semanas... O fugitivo julgava, agora, que
estava a pouca distância do Cabo Chadleigh, o ponto mais setentrional do Labrador. Havia, pois, todas as probabilidades que o Batedor da Neve não fosse procurá-lo
ali... O blizzard que soprava enfurecido no decorrer da segunda parte da viagem, devia ter varrido a superfície da neve e apagar os traços da passagem do trio.
Foi, pois, com verdadeiro interesse que João-Pedro resolveu seguir os caçadores de morsas.
A sua protegida, manifestava, igualmente, uma viva satisfação ao pensar que poderia descansar
um pouco; todavia continuava profundamente intrigada pela insistência com que o canadiano teimava em se afastar da civilização! preferiria ter ido para Fort-Chimno
ou qualquer outro posto da Companhia da Baía de Hudson. Às preguntas que nessa mesma manhã fizera sobre este assunto, ao caçador e ao nascopi, estes só responderam
com evasivas.
Rapidamente, o trio chegou ao mesmo local onde os caçadores atacaram as morsas. O índio parou uns segundos e mostrou aos seus amigos a posição que ocupava quando
atirou contra o monstro. O corpo do animal jazia inteiriçado, no meio da neve, e Luiza Rivière pôde admirar-lhe as terríveis presas.
O caçador, a quem o Grande Caribú salvara da morte, deixou os seus camaradas proceder ao esquartejamento dos animais abatidos, e, depois, servindo-se duma mímica
inteligente, fez saber aos três viajantes que se chamava Maguak, e que estava à sua disposição, para os guiar à aldeia.
O pequeno grupo andou ainda meia hora ao longo da margem... Numerosas aves marítimas continuavam voando-lhes por cima, soltando gritos agudos. Bandos de pinguins
afastavam-se titubeando à passagem do grupo, não parecendo demasiadamente impressionados com a vizinhança de seres humanos... A pequena distância, emergindo à superfície
do mar, podiam distinguir-se os numerosos
pontos negros que apareciam e desapareciam sem cessar.
- São focas! explicou o canadiano. Brincam alegremente... Não sabia que existia tal quantidade nestas paragens! Estes valentes esquimós podem, com efeito, exercer
com todo o vagar as suas habilidades de pescadores e de caçadores.
Flocos de neve volitavam no ar, mas, o vento, que já há algumas horas deixara de soprar, permitiu aos dois homens e à sua protegida, seguirem, sem dificuldade, o
guia. Só o pensamento de que iam chegar finalmente, lhes fazia esquecer as fadigas, e incutia-lhes novas forças.
Ao cabo de andar ainda alguns minutos, Luíza Rivière soltou uma alegre exclamação, e apontou aos seus companheiros algumas cabanas que se levantavam na sua frente
na profundidade do litoral.
- Vamos, que em breve chegaremos ao fim da nossa caminhada! exclamou, alegremente, João-Pedro.
Latidos furiosos que vinham da vizinhança, interromperam o canadiano. Uma dezena de cães de pêlo ruivo, lançaram-se ao encontro dos recém-chegados e acolheram-nos
ruidosamente. Foi preciso que Maguak interviesse energicamente, para apaziguar esses ferozes animais, que não hesitariam em pregar uma partida de mau gosto aos estrangeiros.
À vista do Grande Caribú, redobraram de furor.
Acabado este desafinado concerto, o grupo continuou o seu caminho. Verificaram que a aldeia se compunha apenas de quinze choças, pouco mais ou menos, cobertas de
neve, mas, devido às suas dimensões, compreender-se-ia facilmente, que cada uma deveria abrigar um certo número de habitantes. Colunas de fumo saíam de algumas delas.
Luíza Rivière ia-se certificando, ao aproximar-se, que a pesca constituía a principal indústria dos esquimós do Labrador. Numerosos peixes secavam, suspensos de
cordas ligadas a altas varas e estendidas a altura suficiente, para que os cães não pudessem chegar-lhes.
Kayaks e umiaks (1), embarcações curiosas utilizadas pelos indígenas do Extremo-Norte, viam-se tombadas, em número de cerca de uma centena, na praia próxima... Algumas
crianças brincavam na vizinhança, mas apenas avistaram a rapariga e os seus companheiros, puseram-se a gritar e correram precipitadamente para as cabanas.
- Eis ali uns patuscos que me parecem menos belicosos que os seus companheiros de quatro patas!
(1) Os umiaks são semelhantes aos kayaks, pequenas embarcações forradas de pele, mas conduzidas em geral por mulheres.
exclamou João-Pedro, que não pôde deixar de rir, percebendo o susto tremendo que se apoderara dos pequenos esquimós.
Grande Caribú, sempre silencioso, seguia com passo firme junto do indígena, que salvara da morte. A-pesar-da satisfação que sentia em ir descansar da extenuante
jornada, o nascopi manifestava uma visível repugnância em frequentar os habitantes desta região perdida. Várias vezes, o caçador de morsas lhe dirigira a palavra,
multiplicando os gestos, para se fazer compreender; êle só respondia com leves acenos de cabeça...
Sem dúvida alguma, os garotos apressaram-se a anunciar a chegada dos estranjeiros aos habitantes do povoado, porque, rapidamente, surgiram. sombras, cada vez mais
numerosas, às portas das cabanas. Os pescadores e as mulheres, vestidos f de maneira idêntica, observavam, curiosamente, a rapariga e os seus companheiros, intrigados
e inquietos com a presença de estranjeiros nesta região. Maguak, pôs rapidamente os seus compatriotas ao corrente dos acontecimentos que se deram durante a caça
às morsas e o serviço incomparável que o índio lhe tinha prestado..,. A atitude dos esquimós transformou-se, como por encanto. " Quanta desconfiança mostraram de
começo, tanto mais se tornaram expansivos... As mulheres agruparam-se ao redor de Luíza Rivière, e examinavam-na soltando pequenos gritos de surpresa.
Algumas atreveram-se a passar as pontas dos dedos na sua parka; em seguida, recuaram, gritando, como se fossem atingidas por um choque eléctrico. Era a primeira
vez que uma mulher branca aparecia na aldeia, por isso não sabiam como deviam estar na presença dela...
A rapariga largou a rir, visto o cómico da situação. Esta sua atitude, encorajou, indubitavelmente, as vizinhas, pois que, de todos os lados, se ouviram gargalhadas;
como Luiza tivesse apertado a mão a uma rapariguinha que lhe estava próxima, todas as esquimós quiseram compartilhar da mesma graça. Foi preciso que Maguak interviesse
com energia, para desembaraçar a pobre rapariga daquele assalto. Tirando o chicote que levava pendurado a cinta, por várias vezes o fez estalar...
O caçador de morsas era, certamente, temido pelo elemento feminino da aldeia, porque as curiosas dispersaram-se rapidamente, pondo-se a respeitosa distância. Voltando-se
para os recém-vindos, o esquimó indicou-lhes uma das cabanas, a vinte Passos de distâncias,, Achavam-se ali cerca de cem Pescadores, alguns dos quais conservavam
os seus arpões e fixavam o trio com olhares de admiração. As espingardas do canadiano e do nascopi prendiam, igualmente, a sua atenção.
Maguak teve ainda de palestrar muito com os seus conterrâneos para lhes relatar as peripécias da
caça, e Luiza Rivière e os seus dois amigos, que estavam de pé, junto dele, soltaram um suspiro de alívio quando findaram as intermináveis apresentações. Precedidos
do caçador, que lhes fizera sinal para o seguirem, penetraram numa estreita abertura cavada na neve, que dava acesso ao interior da habitação.
Os três companheiros, com grande esforço, servindo-se das mãos e dos joelhos, conseguiram enfiar-se pela estreita abertura. Ao fim de alguns momentos estavam num
grande compartimento circular onde havia uma temperatura sufocante. Um forte cheiro a gordura de animais selvagens e azeite rançoso, invadiu-lhes a garganta. A rapariga,
desagradàvelmente surpreendida, não pôde evitar um gesto de mau humor, mas os seus dois companheiros estavam habituados, de mais, a suportar tais inconvenientes,
para que lhes causasse mesmo espanto. Não era a primeira vez que penetravam num igloo (1)...
A habitação, construída unicamente com blocos-de gelo sobrepostos, era iluminada com lâmpadas, de óleo de foca, formadas de conchas de ostras. Peles de urso branco,
de rangífer e boi almiscarado, atapetavam o chão. Uma fogueira onde se amontoavam destroços de toda a espécie como combustível, ardia no meio do abrigo, numa marmita
fervia
(1) Cabana de esquimó.
qualquer coisa que espalhava um cheiro nauseabundo.
Luiza Rivière teve de interromper o seu exame. Os indígenas, que se agrupavam em volta da cabana, entraram no seu domicílio. Eram cerca de cinquenta, entre homens,
mulheres e crianças, que foram acocorar-se em volta da sala, guardando o mais absoluto silêncio.
A estranjeira, que se desembaraçara da sua parka e da sua gorra, despertava cada vez mais a atenção dos indígenas. Os cabelos negros da rapariga, caíam-lhe soltos
nos ombros...
A aglomeração dos indígenas aumentou de tal modo em pouco tempo, que era impossível dar um passo. Encostados uns aos outros, os esquimós continuavam a fixar os visitantes,
discutindo com animação, quando o caçador de morsas lhes dirigiu a palavra.
A rapariga e os seus companheiros, que tinham, descalçado as raquettes, esperavam que se acalmasse um pouco a agitação que se prolongava à sua volta. Por fim, João-Pedro
voltou-se para o grande Caribú que estava à sua direita e disse-lhe:
-Temos fome e desejávamos descansar! Julgas que estes indígenas nos darão hospitalidade durante o tempo que necessitamos?
O índio não respondeu. Soltando uma pequena aclamação, fêz sinal a Maguak para lhe falar.
O esquimó aproximou-se, e imediatamente, emquanto o canadiano e a sua companheira os observavam, muito intrigados, o caçador de morsas e o seu salvador, encetaram
uma conversa muito animada que acompanhavam com grandes gestos para melhor se compreenderem...
XI
A enseada dos Pinguins
Luiza Rivière e João-Pedro, verificaram que a conversa dos dois homens tomava um aspecto favorável.
O esquimó compreendeu as propostas que lhe fizera o nascopi, por meio de mímica, e abanava afirmativamente a cabeça.
- O meu "irmão branco" pode estar contente!
declarou o índio, voltando-se para João-Pedro. Ficaremos aqui o tempo que for necessário! Maguak é o chefe deste povo, e concede-nos hospitalidade!
Fazendo grandes gestos, o jovem apressou-se em agradecer ao indígena; depois, este fêz um sinal à sua mulher que estava agachada junto da marmita, e todos os presentes
se prepararam para comer.
O canadiano e a sua companheira, tiveram que
dominar a repugnância que sentiam, para não magoar os seus hospedeiros. Vieram colocar na frente deles a marmita, que fervia ao lume, e que espalhava um cheiro pouco
convidativo.
A um sinal de Maguak, os recém-vindos a quem se dava a honra de se servirem primeiramente, tiveram de tirar à mão, do meio do cozinhado gordo e negro, alguns pedaços
de foca que sobrenadavam. Luiza Rivière viu-se obrigada, a seu pezar, a dar começo à refeição. Comeu uma carne oleosa com sabor a ranço, logo secundada pelos seus
dois companheiros que afectavam uma viva satisfação. De todos os lados se ouviram grunhidos de alegria. As pupilas dos indígenas brilhavam de cobiça. A um sinal
de Maguak, todos se precipitaram, empurrando-se sobre o grande recipiente. Mãos ávidas mergulharam na marmita. Os mais favorecidos conseguiram apanhar bocados de
carne e gordura que sobrenadavam ainda, outros contentaram-se em sorver gulosamente a sopa, talqualmente como os cães. O chefe teve de intervir várias vezes, para
impedir que a marmita se não entornasse, tal era a sofreguidão dos convivas. Os viajantes estavam cheios de fome, na ocasião que chegaram à aldeia, mas a voracidade
e a porcaria dos que os cercavam, depressa lhes tirou o apetite. Apenas o Grande Caribú parecia não se importar com a refrega que ia junto dele. Mastigava, devagar,
a carne de foca, arriscando,
de vez em quando, um olhar de desprezo a Maguak e à sua gente.
- Julgo bem que, de futuro, teremos de preparar à parte as nossas refeições!
A rapariga acolheu calorosamente esta idea. Quieta, observava os seus vizinhos que continuavam glutonamente o jantar mastigando pedaços, ainda pingando molho, que
despedaçavam com as mãos, limpando-as em seguida, ainda cheias de gordura, às suas botas de pele de urso.
Quando todos se deram por satisfeitos, pensaram em dormir... Enrolando-se nos seus agasalhos, Luiza Rivière, estendeu-se no próprio local que ocupara durante o repasto.
Foi imitada pelos seus companheiros e em breve ficaram na mais completa imobilidade.
A pobre rapariga esteve ainda muito tempo acordada; depois, vencida pela fadiga, adormeceu. Ao clarão mortiço das lâmpadas de azeite, observava as formas dos esquimós
que se imobilizavam, enfiados numa espécie de sacos, em que se meteram e de onde saíam apenas as cabeças. Ressonavam a sua volta, interrompidos de vez em quando
pelo latido dos cães, no exterior.
Um cheiro mau de azeite rançoso e imundície incomodava a rapariga; no igloo continuava a sentir-se um calor sufocante.
Por fim, a rapariga conseguiu adormecer e em
breve, mergulhada num profundo sono, esqueceu as peripécias movimentadas da sua viagem.
Começou para o trio uma vida muito diferente do que até aí tinham levado. No decorrer dos dias que se seguiram, partilharam, cada vez mais, da existência da tríbu.
Dominando a sua repugnância, Luiza Rivière habituou-se ao convívio desses seres primitivos. Emquanto os homens iam caçar nos arredores, ficava longas horas no interior
da cabana, em companhia da mulher e dos cinco filhos de Maguak. Utilizando agulhas fabricadas com espinhas de peixe, a indígena cosia vestuário de pele de foca,
ou preparava alguns despojos dos animais que os caçadores tinham abatido. O mobiliário do ígloo era dos mais primitivos: além das duas lâmpadas de azeite, que serviam
para os alumiar, havia algumas panelas de forma quadrada em que os esquimós conservavam peixes secos.
Às vezes, a rapariga observava, com interesse, as vizinhas acender o lume. Os indígenas faziam lume esfregando em pedaços de granito duro fragmentos de pirito de
ferro. Como isca, empregavam a penugem que cerca os frutos do salgueiro e o musgo seco. O combustível, madeira e desperdícios de gordura, exhalava um fumo acre e
sufocante, que rapidamente se espalhava por toda a habitação. A maior parte das vezes, era preciso alargar
a abertura circular do teto do igloo, obstruída pela neve, para deixar passar o fumo.
Todavia, a estas ocupações sedentárias das mulheres da tríbu, Luiza Rivière preferia as longas caminhadas ao ar livre, em companhia dos seus dois amigos, que tomavam
parte activa nas caçadas dos esquimós. O nascopi fazia-se notar pela sua coragem e pela sua agilidade. Em duas batidas, tinha conseguido matar um urso branco; por
isso, Maguak e os seus acólitos consideravam-no como um grande chefe.
Os plantígrados, constituíam, efectivamente, adversários temíveis; havia-os em grande número na região, vindos, certamente, nos icebergs desligados das regiões polares.
As enormes massas de gelo encalhavam nas costas do Labrador, e as feras, forçadas a tomar contacto com o litoral, viviam, agora, nas proximidades do mar, afastando-se
o mais possível dos homens, que temiam, mas não hesitavam em fazer-lhes frente quando se sentiam cercadas.
João-Pedro aproveitou a sua permanência neste povoado perdido no Extremo-Norte, para aprender a navegar nos curiosos esquifes utilizados pelos indígenas. Em pouco
tempo, sabia manobrar o kayac, a embarcação habitual dos esquimós; com mais facilidade conseguiu dirigir o umiak, que pode acondicionar várias pessoas.
Às vezes, quando o tempo era favorável, e o blizzard apenas soprava com violência durante pequenos intervalos, os caçadores costeavam o litoral e aventuravam-se
em busca das numerosas focas e morsas que abundavam naquelas paragens. Empregavam, então, uma manobra semelhante àquela que empregaram no dia em que o Grande Caribú
tinha, corajosamente, salvado a vida a Maguak. A maior parte das vezes, conseguiam cercar os animais, e massacrar grande número deles. As focas que fugiam apavoradas,
eram mortas à machada e à mocada sem opor grande resistência; mais temíveis eram as morsas, das quais os homens receavam a fúria, mas a agilidade de que dispunham
e a destreza com que manejavam o arpão, permitia aos esquimós evitar, facilmente, os ataques desses terríveis animais e vencer-lhes a resistência
Os indígenas, no decorrer das suas expedições cinegéticas, raro encontravam a caça agrupada em quantidade. O frio tornava-se cada vez mais intenso e os rebanhos
rareavam; cavavam então aberturas circulares na superfície do gelo, à beira-mar, e esperavam agachados, com o arpão na mão, espreitando atentamente pelo orifício
que acabavam de fazer, o aparecimento da caça.
Por vezes, semelhando estátuas, os esquimós esperavam durante muitas horas, e depois, bruscamente, aparecia uma cabeça no cimo da chaminé
que tinham cavado. Se uma foca se atrevia a vir respirar o ar livre, o braço do caçador estendia-se e o arpão, lançado com violência, raramente falhava o alvo. O
animal atingido debatia-se desesperadamente, tentando fugir ao seu agressor. Arqueado, mantendo a tira de couro nas suas mãos robustas, o homem deixava a sua vítima
esgotar as forças, e quando os sacões eram menos numerosos, puxava devagar a tira de couro, e assim arrastava o corpo, ainda palpitante, da sua vítima, acabando-a
em seguida.
Ao ver agir os seus novos companheiros, João-Pedro Roquete, tornara-se tão destro neste género de caça, como em armar ratoeiras e em apanhar a raposa. Sentia uma
alegria infantil, quando, regressando à noite ao igloo, mostrava à sua companheira uma nova vítima. O Grande Caribú, igualmente se mostrava tão bom caçador como
pescador.
Quanto mais se iam passando as semanas, mais os dois amigos se convenciam nada ter a temer, agora, do Batedor da Neve. Há muito tempo que o Cabo Bentley, verificando
a inutilidade das suas investigações, devia ter regressado a Fort-Rupert.
Entretanto, pensando na reputação do agente da Polícia montada, o nascopi temia uma nova ofensiva da sua parte. Conhecia a energia desse homem de ferro e sabia que
as dificuldades, por muito insuperáveis que parecessem, nunca o impediriam
de apanhar o criminoso em cuja pista se lançasse. Talvez que no momento de gozarem uma tranquilidade completa, nesse canto perdido do Labrador, o tenaz representante
da autoridade continuasse a sua marcha através das regiões desertas e geladas, com o seu trenó e os seus cães, procurando obstinadamente a pista do assassino de
Nicolau Chouque.
O canadiano parecia esquecer completamente os trágicos acontecimentos que o forçaram a refugiar-se nessas regiões perdidas do Extremo-Norte. Naturalmente a existência
era mais rude, e êle preferia mais a vizinhança dos da sua raça do que a companhia dos esquimós, mas possuía esse apreciável bem, a liberdade, que tão cara lhe era...
Luiza Rivière, parecia não compartilhar da satisfação do seu jovem companheiro. Quanto mais tempo passava, mais a rapariga sentia o desejo de regressar às regiões
civilizadas
Várias vezes quis conversar com o nascopi e com o canadiano, e rogar-lhes que favorecessem os seus projectos, mas eles continuavam a iludir as preguntas, pedindo-lhe
para deixar para mais tarde O regresso a Fort-Chimno.
A persistência com que os seus companheiros continuavam a querer permanecer tanto tempo nessa região selvagem, não cessava de intrigar a rapariga Via, com tristeza,
que o assassino dos seus pais
gozava da mais completa impunidade. O miserável, devia já estar longe neste momento, e com todo o vagar se poria fora de alcance... Talvez vivesse audaciosamente,
sem ser inquietado, em qualquer ponto isolado do Labrador, visto a polícia não ter conhecimento do crime.
Ao pensar deste modo, Luiza Rivière, apertava nervosamente os pulsos. Como desejaria que esse miserável fosse castigado! Às vezes, em. sonhos, via a sua terrível
sombra levantar-se na sua frente! Frequentes vezes, esboçara o projecto de seguir sozinha para o sul e alcançar o Whale River e Fort-Chimno; mas a idea de se separar
para sempre de João-Pedro e ter de o contrariar, impedia-a de pôr o seu plano em execução...
Por muito incompreensível que lhe parecesse a atitude do canadiano, a rapariga não podia esquecer a dedicação com que êle a tratava. E, agora, que não tinha mais
ninguém no mundo para quem se chegasse, parecia sentir qualquer coisa por aquele que a salvara e que lhe manifestava ininterruptamente um dedicado interesse. A rapariga
adivinhava, sem grande esforço, que não era indiferente ao caçador; surpreendera algumas vezes o olhar de João-Pedro fixar-se nela com. insistência, mas fora sempre
debalde que tentara que êle lhe revelasse a razão da sua inexplicável atitude. Ela não pudera levantar o véu do mistério que envolvia
o passado do seu companheiro, continuando a ignorar os motivos imperiosos que o levavam a refugiar-se nessas paragens desertas e que pareciam levantar entre os dois
uma barreira intransponível. A rapariga sentia um mal-estar profundo, pelo seu salvador insistir tenazmente em ficar entre os esquimós. A vida podia ser-lhes tão
fácil no sul! Além disso, porque continuava a manter uma desconfiança tão obstinada?
Em vão Luiza tentara fazer falar o Grande Caribú. O nascopi guardava uma prudente reserva e furtava-se a todas as preguntas. A rapariga estava convencida que o índio
se encontrava ao corrente de tudo que a poderia ilucidar; muitas vezes surpreendeu os dois em misteriosos conciliábulos, logo interrompidos à sua chegada.
Um dia, porém, ela teria ensejo de conhecer a verdade que ele escondia tão ciosamente. Deixando partir o índio para a caça com os esquimós, João-Pedro saltara para
um umiak, e, ao ver Luiza passar na margem, apressou-se a dizer-lhe:
- Quere vir comigo, Luiza? Poderemos ir até à Baía dos Pinguins!
A rapariga aceitou logo o oferecimento do seu companheiro. Minutos depois, curvados sobre os remos, afastaram-se da praia, abrindo com dificuldade uma passagem através
dos blocos de gelo que flutuavam à superfície da água. Avançaram, assim,
cerca de meia hora sem dizer palavra, a pouca distância da praia... Nuvens de pássaros marinhos-voavam junto deles, executando grandes círculos no céu cinzento.
Grupos de focas que por ali nadavam, fugiam à sua chegada.
Finalmente, o canadiano e a rapariga atingiram o local designado previamente. Com muito custo, conseguiram encalhar o umiak; a seguir, João-Pedro saltou em terra
e estendeu a mão à rapariga, que imediatamente veio para junto dele.
Caminhavam agora numa praia deserta, coberta. de neve, onde se distinguiam numerosas e grotescas personagens.
A rapariga, apoiada ao braço de João-Pedro, lançou um demorado olhar pelos arredores.
- São divertidos os nossos pinguins! exclamou, apontando os animais agrupados aos milhares nesta parte do litoral e que, cobrindo toda a praia, não se mostravam
assustados com a chegada dos dois intrusos...
- Certamente devem ser ainda mais numerosos quando o tempo está bom, afirmou o caçador, muitos deles, emigraram durante alguns meses para
paragens mais hospitaleiras e menos expostas a temporais... Temos aqui, apenas, os sedentários, os que tem disposição para empreender grandes caminhadas! Olhe para
eles! Como são interessantes! Dir-se-ia que estão reunidos em conselho!
Os curiosos animais agrupavam-se, titubeando, e comprimiam-se uns contra os outros. De vez em quando, um deles mais desastrado, escorregava, dava uma cambalhota,
e estatelava-se ao comprido na neve.
- Quere crer, exclamou João-Pedro, que essas avantesmas quando abandonam a praia para se aventurarem ao mar, o fazem com uma agilidade extraordinária? Raramente
tenho visto nadadores tão notáveis!
- Meu Deus! Há quanto tempo aqui permanecemos, para me ter familiarizado com os costumes dos nossos amigos pinguins! respondeu, sorrindo, a rapariga. Sei que são
mergulhadores incomparáveis e que percorrem distâncias consideráveis em pleno mar. De entre os grupos que nos cercam, alguns há que vieram da terra de Baffind; Atravessaram
o estreito de Hudson. Agora invernarão nesta região, fazendo boa companhia às focas que, como pode ver, lá estão a pouca distância!
Pronunciando estas palavras, Luiza Rivière apontava ao seu companheiro uns vinte pontos negros que emergiam à superfície da água.
- Se Maguak e os seus caçadores se tivessem aventurado connosco até à enseada dos pinguins. as senhoras focas estariam, naturalmente, menos sossegadas. Elas se afastariam
prudentemente da praia!
Deixando a imobilidade que mantinham desde
o desembarque, os dois jovens começaram a caminhar juntos. Os palmípedes que ocupavam a praia afastaram-se, sem pressa, para os deixar passar, depois pararam, batendo
as asas, e olhando-os estupidamente.
- Vestiram os seus trajos de gala para nos receber! chalaceou o caçador. São imponentes! Começam a intimidar-me respeitosamente!
Ao cabo de algum tempo, João-Pedro e a rapariga chegaram a uma espécie de promontório que dominava o litoral, subindo-o a passo ligeiro. Já tinham vindo a estas
paragens mais vezes.
Agachados no meio da neve, observavam com atenção as cercanias. Não viram um único ser humano no horizonte que a sua vista podia alcançar. Só os pinguins se premiam,
aos milhares, perto do seu refúgio, e os pássaros marítimos continuavam a ziguezaguear por cima das suas cabeças, soltando gritos agudos, antes de irem pousar, a
pouca distancia, na superfície da água.
- Não pode calcular, Luiza, como aprecio este sossego que nos cerca, suspirou o canadiano.
Depois de tantas semanas de vida em comum, a rapariga ouvia, pela primeira vez, o seu salvador chamá-la pelo seu primeiro nome. Durante momentos ficou quieta, junto
dele, fixando-o com ar
Pensativo.
-Que tem, Luiza? preguntou o rapaz, inquieto
Ainda há pouco parecia contente e agora noto-lhe um não sei quê de contrariedade!...
- Para falar francamente, João-Pedro, preferia não me eternizar neste país! Só a afeição muito sincera que lhe dedico, me força a permanecer ainda nestas praias
perdidas do Labrador, mas sinto que não posso continuar aqui muito tempo. Esta solidão pesa-me horrivelmente! É forçoso que o Grande Caribú me acompanhe, o mais
breve possível, a Fort-Chimno.
Luiza Rivière, verificando que o seu companheiro se mantinha em silêncio, recusando o seu assentimento, acrescentou:
- Porque é tão reservado comigo? Não tem confiança em mim? Pressinto que deve ter um segredo cruel que o tortura! Teria o maior desejo de o consolar, se o senhor
não se obstinasse nesse silêncio. Dir-se-á, com verdade, que sou para si uma estranha! E Deus sabe como desejava vê-lo feliz! A rapariga, acabando de dizer estas
palavras, procurou agarrar a mão de João-Pedro, mas este retirou-a de-pressa; tentou ainda demorar a atroz confissão que iria cavar entre os dois um abismo intransponível,
mas não pôde, entretanto, resistir mais tempo. Os projectos de partida da rapariga mergulharam-no na mais profunda consternação. Com voz trémula João-Pedro murmurou:
- Vai compreender, Luiza, mas, depois, causar-lhe-ei
horror!... Sim, tem razão. Vale mais, talvez, que saiba a verdade atroz! Se aqui estou, longe do convívio dos homens da minha raça, se me vim isolar nestas regiões
perdidas e miseráveis é simplesmente... porque sou... um assassino!
XII
Reaparece o Batedor da Neve
A rapariga não pôde deixar de protestar, ouvindo as palavras que o seu companheiro acabava de pronunciar.
- Um assassino!... Não! não é possível! exclamou... O senhor não é capaz...
João-Pedro não a deixou acabar a frase.
- Infelizmente! é esta a verdade, Luiza!...
Quis conhecê-la. Está satisfeita a sua curiosidade!... O véu do mistério rasgou-se! Agora, está explicada a minha atitude e a desconfiança que eu manifestava. Fugia
com o Grande Caribú, quando a encontrámos no nosso caminho... O Cabo Bentley, um dos homens mais intrépidos da Royal Mounted, foi encarregado da minha captura. A
minha prisão foi posta a prémio... Era preciso, a todo o custo, escapar à sua perseguição! Por isso, temos continuado
sem cessar a nossa marcha para o Norte! E, assim, alcançámos as costas setentrionais do Labrador.
A rapariga estava paralizada, interdita. Ela compreendia, agora, a significação da inquietação que sempre manifestaram os seus dois companheiros, no decorrer da
extenuante correria através da planície deserta e gelada; adivinhava a repugnância que João-Pedro deixava perceber em denunciar o assassino de seus pais, à polícia.
Agindo nesse sentido, comprometia irreparàvelmente a sua liberdade... Entretanto, a-pesar-de lhe ser revelado o terrível segredo, que há tanto tempo queria saber,
Luiza Rivière, duvidava ainda! Revoltava-se contra essa confissão inesperada! Não, não era possível; aquele que a salvara não podia ser um criminoso!... Depois de
ficar embaraçada com a cruel revelação, não se podia habituar a essa idea tremenda: essa criatura tão franca, tão leal, era um assassino! Isso ultrapassava os limites
da verosimilhança!
- Não, não o posso acreditar! declarou ela, por fim, voltando-se para o caçador. O senhor e incapaz de cometer um crime, repito!...
- E, todavia, só lhe disse a verdade, Luiza; sou um assassino, um homem que a justiça pode prender dum momento para outro, para lhe pedir contas do seu crime...
Luiza Rivière abanou tristemente a cabeça:
- Tem uma consciência muito recta! Não é, pois, daqueles que estão fora da lei...
- Infelizmente há circunstâncias em que as pessoas mais honestas se tornam miseráveis... Basta um momento de desvario ou de loucura... Muitas vezes quis duvidar
de mim mesmo, da verdade cruel. Não podia acreditar que o filho de Tomaz Roquete, cuja vida inteira foi um exemplo de trabalho, de honestidade e de lealdade, se
pudesse tornar num assassino. Mas, por desgraça, quanto mais cogito mais me rendo à evidência! Sou um réprobo!... Um homem fora da lei!
- Na verdade, confesso que não compreendo coisa alguma... Afirma que é um criminoso mas, em certas ocasiões, parece não estar bem convencido disso.
- Matei Nicolau Chouque, com um tiro de revólver, no saloon do "Castor" de Fort-Rupert. Eis o meu crime! Parece-me ver ainda o desgraçado tombar na minha frente,
atingido em pleno peito.
- Mas que lhe tinha feito esse homem? Naturalmente, atacou-o?... Nessas condições, trata-se dum caso de legítima defesa!
- Chouque não estava armado... Éramos amigos velhos antes de se dar essa discussão e não tinha razão alguma para lhe querer mal. Desgraçadamente, eu tinha bebido
demasiada cidra de França, nessa noite... A minha cabeça não regulava normalmente... Como é que dei o tiro? Não tenho mais que uma vaga lembrança do drama, que se
desenrolou com uma rapidez desconcertante... Em
todo o caso, adquiri a convicção que era um assassino. O meu vizinho gritou-me: "Mataste-o! Foge!..." Entrevi todas as consequências do meu acto... Ia ser condenado
à prisão!... Talvez à forca... Ah! sei muito bem que vai julgar-me um cobarde! Valia mais ter ficado e pagar a dívida que contraira com a sociedade. A morte não
me causa medo... Tenho-o provado em várias ocasiões. Quantas vezes a tenho afrontado no trail! Mas, que quere, a idea que teria de abandonar, para sempre, a minha
querida liberdade, instigou-me a fugir ao castigo, a evitar a justiça dos homens. Corri, já sem estar transtornado, ouvindo os gritos ameaçadores que levantaram
no saloon, precipitei-me para o exterior e fugi, sem mesmo gastar tempo em me equipar...
Luiza Rivière, escutara com atenção escrupulosa esta narrativa trágica.
- Não pode dar-me informações mais precisas? disse ela. A sua incerteza desconcerta-me" Ainda há pouco, quando me fèz a sua confissão, recusei-me a considerá-lo
um criminoso. A minha opinião continua de pé. As Circunstâncias que se deram na morte de Nicolau Chouque, parecem-me muito confusas... Por favor, trate de coordenar
as suas ideas!
João-Pedro, passou a mão pela testa. Não obstante o frio intenso que fazia, o suor caía-lhe
em bagas. Parecia ver ainda, caído junto dele, o desgraçado que matara.
- Não!... não pode duvidar, disse éle, em voz baixa. Não me é possível reconstituir a cena, mas ainda hoje me parece ouvir os clamores furiosos de todos aqueles
homens e as recomendações constantes do meu vizinho... Além disso, o Batedor da Neve lançou-se na minha peugada! No mesmo dia que precedeu a noite em que a descobrimos,
quási me surpreendia na cabana do Grande Caribú. Sem. esperar mais nada, o rapaz narrou à sua companheira, sem omitir um único pormenor, as circunstâncias dramáticas
em que o nascopi, escondendo-o, lhe assegurou a fuga, e, comprometendo a sua própria segurança, o guiou através das planícies geladas do Labrador.
- O Cabo Bentley não me teria perseguido, se eu estivesse inocente! concluiu... Fiquei surpreendido com as propostas que fizera ao índio... Não há dúvida que, perdendo
as minhas faculdades e a lucidez, disparei contra Nicolau Chouque. Além disso, Santerre também o afirmou. Estava junto de mim...
Ouvindo pronunciar este nome, a rapariga estremeceu.
Como? Que diz? preguntou ela. Quere referir-se ao miserável que suspeita ser o assassino de meus pais?...
- Esse miserável estava, com efeito, sentado
ao meu lado quando sobreveio a discussão. Foi êle quem me aconselhou a fugir o mais de-pressa possível, quando o desgraçado caiu mortalmente ferido no soalho!...
- E acredita, como sagradas, as insinuações dum bandido! protestou Luiza Rivière. Não foi o senhor mesmo que me declarou que esse Francisco Santerre, que encontrou
no trail e que vergonhosamente o abandonou aproveitando o seu sono, que o despojou de tudo que tinha consigo?
João-Pedro Roquete contara à sua protegida o roubo de que fora vítima. Conservara até, no seu bolso, a famosa caixa de fósforos que Santerre lhe roubara, e que voltara
a encontrar, com profundo espanto, no bolso da peliça da rapariga.
- Veja bem que é preciso esclarecer esse assunto tenebroso, insistiu. O senhor tinha as ideas transtornadas quando se produziu o drama. Não se recorda de nada com
precisão. Quanto mais reflito, mais me convenço que o seu vizinho representou um papel indigno neste caso. Vejamos! Procure lembrar-se... Êle voltar-lhe-ia as costas
no decorrer da discussão?
- Ser-me-á muito difícil fornecer o menor indício preciso! Nem sei, com verdade, como peguei no meu revólver. As frases que trocámos com Chouque eram agressivas.
Vi tudo vermelho na minha frente e atirei... Debalde tenho procurado reconstituir a nossa discussão. E para que tentar, por mais
tempo, realizar o impossível? O Batedor da Neve não teria sido lançado em minha perseguição, se eu não fosse culpado!...
- Evidentemente, valia mais a pena ter ficado em Fort-Rupert e ter procurado explicar-se.
- Não reflecti!... Estava aterrado... Fugi o mais de-pressa possível!... Quando recuperei a minha lucidez, já me achava no meio da neve... Esgotado de forças, parei...
Durante um curto momento, pensei em voltar atrás... Mas à idea de ficar preso, um pavor indizível se apossou de mim! Ninguém reconhecera em mim o caçador da Companhia
de Hudson que tantas vezes afrontara os piores perigos... Só a recordação de que era um criminoso, fizera de mim outro homem! Pela primeira vez, na minha vida tão
agitada, conheci o medo, o medo invencível... E parti ao acaso, temendo, a cada momento, ver aparecer na minha frente um dos agentes da Royal Mounted...
"Que mais poderei dizer-lhe? Passei longos dias e noites no trail... Tornei a encontrar Francisco Santerre, que me roubou cobardemente... O Grande Caribú recolheu-me
meio morto de frio; em em memória de meu pai, que em tempo lhe salvara a vida, não hesitou em tornar-se meu cúmplice, aJudando-me a fugir.
João-Pedro Roquete calou-se e baixou a cabeça, imaginava que a sua companheira se afastaria dele
com horror, mas, pelo contrário, ela inclinou-se e agarrou-lhe a mão.
- Não posso acreditar na sua culpabilidade, João-Pedro! afirmou com voz terna... Disse-me que Francisco Santerre se achava junto de si no momento do crime, e isso
faz-me pensar que o senhor foi vítima duma abominável maquinação! Os acontecimentos provam-me que essa infame personagem, não tem escrúpulos de espécie alguma. Não
poderá, pois, evocar exactamente o trágico incidente?
O canadiano encolheu os ombros com desalento :
- Eu era, de ordinário, sóbrio, Luiza, e foi a primeira vez que bebi o bastante para perder o conhecimento das coisas... Estava tão contente por me ter corrido em
boas condições o "negócio"! Mas, meu Deus! De que serve evocar o passado? Agora, não sou mais que um "fora da lei" sob a alçada da justiça. Até há pouco, guardei
obstinadamente este segredo porque temia perdê-la, confessando-lhe o meu delito. Quero-lhe tanto!. Porém, há pouco, deu-me a saber o seu desejo de partir... Então,
senti-me preso de angústia e não quis adiar por mais tempo a minha confissão. Sabe, agora, quem sou!... Faça, pois, o que lhe aprouver. O Grande Caribú acompanhá-la-á,
quando quiser, a Fort-Chimno.
- Mudei de opinião, João-Pedro! Por nada
do mundo farei expor esse índio valoroso e a quem tanto devo, a cair nas garras da polícia, que o pode considerar seu cúmplice! Quando estava cercada pelos lobos,
não hesitaram os dois em me socorrer com grande risco; assim, aconteça o que acontecer, não os abandonarei e partilharei da mesma sorte! Dora-avante, a permanência
nestas regiões perdidas, será mais suave, porque terei que os defender contra aqueles que os atacarem. Daí, quem sabe? Não devemos confiar na Providência? Um dia
chegará, em que a sua inocência seja reconhecida!
Ouvindo estas palavras comovedoras da sua companheira, o canadiano abanou a cabeça com tristeza.
-- Só Francisco Santerre sabe a verdade, balbuciou, por fim. Os acontecimentos provam que esse homem é um miserável. Tudo nos leva a supor que foi o assassino de
seus pais. Deus sabe se o tornaremos a encontrar um dia! Talvez tenha conseguido pôr-se fora do nosso alcance.
Os dois jovens continuaram por algum tempo a sua conversa sem importunar os milhares de pinguins que se comprimiam perto do seu refúgio, quando Luiza Rivière se
levantou bruscamente e exclamou, estendendo o braço na direcção do mar:
- Um kayak! Veja! Dir-se-á que se dirige para o local onde encalhámos o nosso umiak!
O caçador distinguiu imediatamente a embarcação que a sua companheira indicava. Avançava
rapidamente. Em breve, o homem que a tripulava e que manejava habilmente a sua pagaia chegou à margem. Depois de ter hesitado um curto momento viu os dois jovens
agachados no promontório e fêz-lhes sinais com a mão.
- Não me engano! É o Grande Caribú! Que diabo veio ele cá fazer? preguntou a si mesmo o canadiano, cada vez mais intrigado.
- Deve passar-se na aldeia algum acontecimento extraordinário! Julguei que o nosso amigo tinha partido para a caça com os esquimós!
O recém-chegado aproximava-se com rapidez. Em pouco tempo escalou o montículo e alcançou João-Pedro.
- Então, camarada, que aconteceu? interrogou logo o rapaz percebendo que o nascopi estava profundamente agitado.
- De-pressa, "meu irmão", não pode demorar-se aqui mais tempo! O Batedor da Neve está na aldeia!
Um raio que caísse de chofre aos pés de João-Pedro, não o teria surpreendido tanto como esta declaração inesperada do seu fiel companheiro.
- O Batedor da Neve? balbuciou... Não é possível!
- O Grande Caribú não se enganou! Dispunha-se a partir para a caça com Maguak, quando o trenó do homem da polícia foi assinalado pelos esquimós... Então o Grande
Caribú não hesitou...
Tinha visto afastar o seu "irmão branco" nesta direcção e sabia que vinha frequentes vezes à enseada dos pinguins... veio, pois, avisá-lo e recomendar-lhe para fugir
a toda a pressa!
Emquanto os dois homens conversavam, Luiza Rivière conservara-se imóvel junto deles. Presa de cruel inquietação, compreendia o grave risco que corria, neste momento,
o canadiano. O Cabo Bentley, de que ela conhecia, também, a reputação, não deixaria de interrogar os esquimós e saber que o fugitivo se refugiara na aldeia. Naturalmente,
naquele momento achar-se-ia já ao corrente da presença daquele que procurava.
O nascopi pôs termo às reflexões da rapariga.
- "Meu irmão" deve partir o mais de-pressa possível, se não quiser ser preso! afirmou. Afaste-se com o umiak. O Grande Caribú voltará à aldeia e tratará de desviar
a atenção do Batedor da Neve.
Em vão o canadiano quis protestar. O índio foi inabalável...
- O tempo passa! Que o "meu irmão" vá já Para a sua embarcação...
João-Pedro Roquete teve de se resignar em, correr até à beira-mar, seguido logo dos seus dois companheiros. Ajudado pelo nascopi, conseguiu, por o umiak na água...
- Confio-te Luiza, Grande Caribú, disse êle, voltando-se para o indígena... Não quero arrastá-la de novo comigo nestas gélidas solidões... Comtarás
ao cabo Bentley a sua triste odisseia e pedir-lhe-ás para a conduzir a Fort-Chimno!
A rapariga não deixou que o índio respondesse a estas recomendações do seu amigo. Agilmente desviou-o e saltou para a embarcação.
- Acompanhá-lo-ei, João-Pedro! declarou com voz firme... Ninguém poderá, dora-avante, separar-nos.
Ante esta obstinação, o canadiano teve de resignar-se em levar consigo a rapariga. Baldadamente lhe suplicou que desistisse; mas não conseguiu demovê-la dessa decisão...
O índio pôs no barco algumas provisões que trouxera e depois de esperar algum tempo e ter visto afastar-se rapidamente o umiak que conduzia os dois jovens, embarcou
por sua vez.
Alguns minutos depois, tendo posto o kayak na água, o Grande Caribú meteu as pernas na abertura circular do meio do seu barco, e, empunhando a sua pagaia, dirigiu
um último olhar aos seus amigos que se afastavam com rapidez. Deixando, por seu turno, a enseada dos pinguins, voltou à aldeia esquimó, onde o Batedor da Neve acabava
de chegar, mais resolvido que nunca a proceder à captura do assassino.
XIII
Ao serviço da Lei
Emquanto os fugitivos seguiam para o Norte, em penosa e problemática carreira, o Cabo Bentley não descurava as suas obrigações. Mais que nunca, o polícia estava
resolvido a encontrar o assassino de Nicolau Chouque e a não voltar a Fort-Kupert sem o ter capturado.
A princípio, depois de ter passado algumas horas no interior da cabana do Grande Caribú, o agente da Royal Mounted não suspeitara da presença de João-Pedro Roquete,
enroscado a um canto, tão Perto dele. Depois, seguiu para leste, com o seu trenó e os cães, encetando novas investigações, esperando sempre encontrar o culpado nas
cercanias de Ptchikapu Lake. Dispendeu, em vão, os seus esforços, procurando nesta região, uma pista segura, mas nascopis que interrogara ao acaso, pelo 157
caminho, afirmaram não ter visto aquele a quem o Batedor da Neve queria deitar a mão.
Sem se deixar desanimar por esses insucessos constantes, o Cabo Bentley continuou para diante; depois de ter seguido a margem de Nascopi River, chegara aos postos
de North West River e de Rigolet. Os seus camaradas, que mantêm o respeito da lei nessas regiões perdidas, declararam-lhe que nesses dois lugares, não havia indícios
do fugitivo ter aparecido por lá.
Após estes esforços, e compreendendo que já nada tinha a fazer nessas paragens, o Batedor da Neve resolveu regressar. Tendo renovado as suas provisões, dispôs-se
a afrontar o frio e o blizzard, voltando ao retiro do índio, que desejava utilizar como base de operações.
Chegando a esse refugio, o Cabo fêz interessantes investigações. O canadiano, desejoso de se afastar rapidamente com o nascopi que se oferecera para o guiar, não
arrumou como estavam as peles com que se cobrira, e, assim, o polícia pôde verificar que um homem se escondera, durante algum tempo, naquele local.
O implacável perseguidor, ficou ainda mais admirado quando verificou o desaparecimento das famosas raquettes que atraíram a sua atenção da primeira vez que esteve
na cabana. Não duvidava, já, do nascopi lhe ter mentido, afirmando que esses instrumentos lhe pertenciam!
Bentley soltou uma exclamação de despeito quando verificou, após uma nova busca na cabana, que fora ludibriado pelo seu antigo auxiliar. Foi, sem sucesso algum que
procurou, no exterior, qualquer pista. O vento tinha varrido tudo; a neve, caída em abundância nos últimos dias, cobrira todas as pegadas, tornando problemática
toda e qualquer perseguição.
O homem da Royal Mounted sentia-se esgotado pela longa caminhada que acabava de fazer; assim, deixou descansar os cães durante todo o dia e esperou o regresso do
Grande Caribú. Contava que o índio, depois de ter inspeccionado as suas armadilhas, voltasse para a cabana e lhe fornecesse as indicações que ele desejava.
Em breve, porém, se convenceu que o seu antigo auxiliar o enganara descaradamente. Há muito tempo já, que, emquanto o Cabo se demorara em North West River, devia
ter voltado à cabana; era evidente: fugira com o assassino.
O furor do Cabo Bentley não conheceu limites.
- E dizer que esse malandro se encontrava tão perto de mim e que eu o deixei escapar tão estupidamente!... O Grande Caribú pagar-me-á caro a sua traição! Não se
brinca impunemente com o Cabo Bentley!
Todavia, a-pesar-do desengano que sofrera, o Batedor da Neve não desanimou. A atitude incompreensível do indígena instigava-o ainda mais a
procurá-lo. Ao fim de vinte-e-quatro horas dum descanso merecido, seguiu novamente através do deserto branco, em direcção ao Norte.
O Cabo Bentley pensava que o assassino de Nicolau Chouque evitaria regressar a Fort-Rupert; por outro lado, sabia que o fugitivo não fora visto na região de Leste,
que acabava de percorrer em todos os sentidos. Faltava-lhe, pois, alcançar a baía de Ungava e seguir ao longo da costa. João-Pedro devia ter ido procurar refúgio
em Fort-Chimno ou em qualquer outra das aldeias habitadas por esquimós, que se encontram no litoral do Extremo-Norte.
Durante longos dias, o Batedor da Neve prosseguiu na sua jornada. De pé, na retaguarda do seu trenó, fazendo estalar incessantemente o chicote e incitando os cães
com os seus gritos, atravessou o lago Waquash e seguiu ao longo de South River. Em parte alguma destas regiões encontrou qualquer pista importante. Os homens pareciam
fugir da região inhóspita que êle ia atravessando. Só distinguia, de longe em longe, alguns vestígios de raposas e lebres.
Era preciso que o Cabo Bentley fosse dotado duma energia indomável para seguir com perseverança, sem se importar com as dificuldades de toda a ordem acumuladas no
seu caminho. Ao serviço da lei, achava-se decidido a cumprir o seu dever até ao fim. Além disso, já não era a primeira vez que se aventurava nesse país deserto.
Quantas vezes
tinha percorrido o Labrador em todos os sentidos, perseguindo, implacàvelmente, os miseráveis que tinham cometido qualquer delito, o que lhe valeu a alcunha que
os indígenas lhe deram, tão temida por uns e respeitada por outros.
Algumas vezes, quando acampava no trail, o intrépido polícia preguntava a si mesmo por que razão o Grande Caribú fizera causa comum com o assassino. Até então, o
nascopi tinha-lhe prestado sempre uma ajuda preciosa, quando a êle recorria; estava tão convencido de que podia contar com êle, em todas as circunstâncias, que os
últimos acontecimentos vieram desiludi-lo duma forma desconcertante!... Bentley conhecia porém os homens, e nunca a atitude do índio lhe despertara qualquer suspeita.
Por isso, maior era o seu desejo de resolver este enigma angustioso e conhecer as razões imperiosas que levaram o seu antigo companheiro a enganá-lo e a favorecer
aquele a quem tinha de capturar.
As pesquizas a que procedeu, sem descanso, ao longo de souther e de Whale River, foram infrutíferas... Os dois fugitivos pareciam inteiramente fora do seu alcance;
alguns correios que por acaso encontrara no trail, não lhe puderam dar informações que o satisfizessem.
Desesperado, o Batedor da Neve alcançou Fort-Chimno. O sargento Mauser, da Royal Mounted, encontrava-se ali com quatro agentes; Bentley esperava
que os seus camaradas lhe pudessem ser úteis, facilitando-lhe a missão delicada em que se empenhara.
Com satisfação, o polícia chegou ao pequeno povoado, situado na Baía de Ungava...
Depois de semanas inteiras de solidão, estava ansioso por se encontrar no meio dos seus semelhantes e trocar com eles algumas impressões... O seu trenó chegara às
primeiras casas de Fort-Chimno, parando bruscamente em frente da estação. O Batedor da Neve saiu com altivez do trenó e entrou no posto da polícia. O sargento Mauser
e os seus dois auxiliares aqueciam-se junto dum fogão, fumando cachimbo, quando Bentley, com a sua parka coberta de neve, franqueou o limiar do abrigo.
- Olá! Cabo! Até que emfim! Tenho um grande prazer em o tornar a ver! exclamou o sub-oficial levantando-se da cadeira em que se sentava, e indo ao encontro do recém-chegado...
- Também eu, sargento, disse o Batedor da Neve, trocando um grande aperto de mão com o seu interlocutor e com os seus dois camaradas. Mas, sentir-me-ia mais contente
se trouxesse comigo, ligado de pés e mãos, o assassino de Nicolau Chouque! Vocês, têm sem dúvida, instruções a esse respeito ?...
- Recebemos um ofício da estação de Fort-Rupert referente a esse assunto, mas infelizmente,
a-pesar-da vigilância activa que temos exercido, não notamos a presença do culpado em parte alguma do nosso distrito! Se espera capturá-lo em Fort-Chimno, segue
mau caminho! É preciso procurar noutros lugares!
O cabo não pôde deixar de reprimir uma exclamação de desânimo.
- E não viram, pelo menos, o Grande Caribú? preguntou.
O sargento e os seus subordinados abanaram negativamente a cabeça.
- Não compreendo o seu desejo de encontrar esse índio, objectou o sargento Mauser. Habita, creio eu, perto do lago Waquash! Não está no nosso sector! Além de que
nada temos que lhe censurar, pelo menos que eu saiba!...
- Ficará, sem dúvida, tão admirado como eu próprio, quando lhe disser, sargento, que esse nascopi, a quem tantas vezes temos recorrido, facilitou a fuga daquele
a quem procuramos e até mesmo o acompanhou! Lancei-me em perseguição dos dois, mas levam-me muitos dias de dianteira! Volto, pois, com as mãos a abanar!
Naturalmente, conseguiram atingir o Extremo-Norte! Em todo o caso, posso afirmar-lhe que não foram assinalados em Fort-Chimno... É verdade! Pode também fornecer-nos
alguma preciosa informação? Estamos inquietos a respeito de Rivière, da mulher e da filha.
- Como! Rivière, o agente da Companhia de Hudson? Já não está no lugar?...
Ao dizer estas palavras, Bentley sacudia a neve que cobria o seu vestuário e tirava as luvas. O seu interlocutor ofereceu-lhe uma cadeira, sentando-se por sua vez.
- Toma uma chávena de café, cabo? Deve estar tranzido de frio, depois de tantos dias de viagem, com um tempo destes! disse um dos auxiliares, estendendo ao recém-chegado
uma chávena que acabava de encher.
O homem da polícia bebeu com grande prazer a deliciosa bebida. Depois, sentindo-se reconfortado, voltou-se para o seu superior e preguntou:
- Muito bem! O que me quere dizer, a-propósito de Rivière?
- Desde que não nos tornámos a ver, Bentley, o agente da Companhia, bastante doente, pediu para ser substituído, explicou Mauser. O escritório é dirigido actualmente
por uma criatura chamada Règnier, que você deve ter conhecido noutro tempo, em Fort-Rupert; mas, não temos agora que nos ocupar desse... Vamos, pois, direitos ao
fim! Há cerca de um mês, Rivière deixou Fort-Chimno partindo para Fort-Rupert, com a mulher e a filha. Não só os três viajantes não chegaram ao seu destino, como
também os correios de serviço entre os dois postos, não os encontraram... Desapareceram misteriosamente, e foi sem êxito algum que iniciámos
as nossas pesquisas para saber o que foi feito deles.
- O tempo tem estado muito mau, nestes dias, murmurou o Cabo, depois de ter ficado pensativo alguns momentos, mas três pessoas não desaparecem sem deixar vestígios.
Tanto mais que se não devem ter distanciado muito do trail! Além disso, Rivière conhecia a região e devia ter-se equipado como era necessário!
- O desaparecido comprara um trenó e um conjunto de seis cães. Transportava igualmente algumas bagagens...
- E, naturalmente, levava na sua carteira uma farta soma em dinheiro.
- Rivière não nos fêz confidências a esse respeito, mas apostaria, pela certa, que êle deixou fort-Chimno, depois de ter realizado as suas economias,,. Além disso,
êle declarou-me querer ir
viver, daí para o futuro, no Sul, para descansar das suas fadigas... Todos aqui temos saudades dele... Era um homem leal e estimado por todos; a notícia do seu desaparecimento,
provocou uma viva sensação nos habitantes de Fort-Chimno. Quando o vi chegar, há pouco, pensei que nos pudesse trazer alguns esclarecimentos a respeito dos três
viajantes.
- Com grande pezar meu, sargento, não encontrei Rivière. Devo, porém, acrescentar que tomei o caminho dos principiantes, antes de chegar à
Sua estação... Venho de Whale River, e aposto, sem receio de perder, que o agente da Companhia não seguiu esse itinerário para atingir Fort-Rupert.
- Será mais feliz para outra vez Cabo; no decorrer das investigações a que se dedica neste momento não se esqueça, se se apresentar ocasião, de se ocupar do assunto
Rivière. Quem sabe?
Talvez, andando em busca do assassino de Nicolau Chouque, possa encontrar um indício importante ou algumas informações que nos permitam lançar-nos numa boa pista!
Sabemos bem que o Cabo tem a reputação, aliás muito justa, de levar a bom termo todas as expedições!...
- Em verdade, deveria manter melhor essa reputação! resmungou o Batedor da Neve sacudindo raivosamente a cabeça... Há longas semanas que parti à procura desses miseráveis
e os meus esforços têm sido infrutíferos. É insuportável: E que diabo, eles não se volatilizaram!
- Vamos! Cabo, não desanime por tão pouco! O Labrador é vasto! Sabemos que mais cedo ou mais tarde será senhor da situação! Aqui para nós, prefiro mais encontrar-me
neste posto, do que no lugar do indivíduo que procura! Se êle sabe que é o Cabo que lhe segue os passos, não deve encarar o futuro com serenidade...
O sargento Mauser não tardou muito tempo em ordenar a um dos auxiliares que conduzisse os cães e o trenó de Bentley para o abrigo. O polícia executou,
imediatamente, a ordem, e logo os alegres latidos que se ouviam fora, deram a conhecer a Bentley que os seus auxiliares de quatro patas se debatiam com os peixes
secos que lhes foram distribuídos pelo seu colega...
O Batedor da Neve passou uma noite em Fort-Chimno. Mauser insistiu, em vão, na manhã do dia seguinte, para que descansasse mais algum tempo e ficasse ali alguns
dias. Não conseguiu convencê-lo.
- Tenho o pressentimento, afirmou o Cabo, agora que me afirmaram que os dois patuscos se não aventuraram neste distrito, que seguem ao longo da costa do Labrador.
De Fort-Chimno ao Cabo Ohadleigh, encontram-se algumas aldeias de pescadores esquimós e de caçadores de focas; talvez aqueles que eu persigo tenham procurado asilo
nessa região perdida!
Depois de ter feito renovar as provisões e as munições, o Cabo Bentley lançou-se de novo no trail...
- E, sobretudo, se souber qualquer coisa referente a Rivière, não se esqueça de nos prevenir! gritou-lhe o sargento, no momento em que êle se afastava no trenó.
- Não me esqueço! Fique sossegado!...
Sem parecer prestar atenção aos desejos calorosos de bom êxito, que lhe dirigiam os homens da Royal Mounted, o Batedor da Neve fêz estalar o chicote e seguiu como
uma tromba através da
única rua de Fort-Chimno. Os caçadores e alguns índios que passavam no meio da rua, afastaram-se prudentemente para não serem atropelados... Em poucos minutos, o
Cabo deixou o povoado. Os huskies e os labradors que constituíam o seu tiro, descansaram mais que o suficiente, durante a noite; por isso, seguiam, agora, numa carreira
infernal.
O representante da autoridade seguiu, durante dez dias, ao longo das margens da Baía de Ungava, parando nas aldeias de pescadores esquimós, interrogando sempre os
indígenas.
Onze dias após a sua partida de Fort-Chimno, chegou ao grupo das cabanas onde João-Pedro e os seus companheiros estavam refugiados, sem que as suas investigações
sofressem alteração.
Maguak dispunha-se a partir para a caça com o nascopi e uma dezena de companheiros, quando lhe vieram anunciar a chegada do Batedor da Neve. O polícia era bem conhecido
entre os esquimós, que o temiam e admiravam ao mesmo tempo; por isso, o Grande Caribú se apressou, ao saber a má nova, em correr até ao seu kayak, embarcar e ir
prevenir o seu protegido...
Os indígenas não se tinham apercebido da fuga precipitada do nascopi, quando o cabo Bentley parou a sua equipagem em frente dos igloos... Sem esperar mais nada,
o cabo Bentley saltou do trenó e apressou-se a interrogar Maguak. O esquimó, ignorando o perigo que corriam os seus três hóspedes,
em consequência da chegada do polícia, pôs este último ao corrente da sua presença.
Um clarão de triunfo brilhou nas pupilas do Batedor da Neve! Compreendia ter encontrado, emfim, a boa pista. Segundo a descrição que lhe fazia Maguak, não lhe restava
dúvida alguma; os hóspedes dos esquimós eram o assassino de Nicolau Chouque e o índío que lhe prestara auxílio.
As sobrancelhas do cabo carregaram-se, quando Maguak fêz alusão a uma rapariga branca que acompanhava os dois homens. A presença dessa desconhecida, levava Bentley
ao cúmulo do espanto. Como poderiam os fugitivos levar com eles uma mulher através dessas regiões perdidas?
- Poderás indicar-me onde se encontram agora os teus hóspedes? preguntou o cabo, quando já estava suficientemente elucidado.
O polícia falava correntemente o dialecto dos esquimós; por isso, o seu interlocutor não teve grande trabalho em lhe fazer saber que o caçador e a sua companheira
se tinham afastado algum tempo antes, mas que a sua ausência devia ser curta. Quanto a Grande Caribú dispunha-se, ainda agora, a ir à caça das morsas com o seu grupo.
Todavia, debalde o Batedor da Neve procurou o nascopi entre os esquimós que o rodeavam cada vez em maior número, fixando-o curiosamente. Aproveitando a atenção que
prendeu os esquimós,
à chegada do cabo, o índio desaparecera subitamente.
Mais de um quarto de hora gastara já Bentley em procurar o Grande Caribú, secundado por Maguak e pelos indígenas, intrigados com o desaparecimento do índio.
- Recebi ordens para prender esse homem e o branco que o acompanha, declarou o polícia. São criminosos! É preciso, custe o que custar, que os encontremos sem demora.
Ides ajudar-me a capturá-los.
O Batedor da Neve compreendia, agora, que o nascopi, avisado da sua chegada pelos indígenas, tratara de se ir juntar ao cúmplice. Era preciso, pois, agir o mais
breve possível, a-pesar-do cansaço que sentia, a-fim-de apanhar os fugitivos, antes que novamente se fizessem ao largo.
Bentley, voltara para o trenó. Com o chicote na mão dispunha-se a incitar os seus cães a retomarem a carreira louca, ao longo do litoral, quando Maguak, que se conservava
perto dele, soltou um grito agudo, e, estendendo o braço na direcção do mar, apontou para um kayak, que se aproximava cada vez mais.
O homem da Royal Mounted parou intrigado e o seu olhar perscrutador, reconheceu, sem custo, o indivíduo que tripulava o esquife. Era, sem dúvida possível, o Grande
Caribú que remava vigorosamente, parecendo disposto a alcançar a praia.
XIV
O sacrifício do Grande Caribú
O Batedor da Neve, abandonando, bruscamente o trenó e os cães, foi ao encontro do índio, seguido por todos os esquimós que, profundamente intrigados, mantinham um
impressionante silêncio.
O nascopi reconhecera, muito bem, do seu kayak, a alta figura do polícia; todavia, parecia não manifestar a menor apreensão. Ao cabo de alguns minutos, chegou à
praia, e, depois de desapertar as correias que o ligavam à embarcação, saltou em terra.
- Decididamente, grande Caribú, nunca supus que era preciso vires tão longe para inspeccionar as tuas armadilhas! Tens ratoeiras em pleno mar?
O recém-chegado nem pestanejara ao ouvir as Palavras irónicas que lhe endereçara o representante da autoridade. Avançando com passo firme, dirigiu-se ao seu encontro.
- Grande Caribú cumprimenta-te, Batedor da Neve, murmurou sem perder a fleugma. Não esperava encontrar-te aqui!
- Basta de fórmulas de delicadeza! interrompeu rudemente Bentley. Há algumas semanas que te procuro bem como ao teu cúmplice!
A atitude ameaçadora do homem da Royal Mounted, deixava o indígena indiferente.
- Para ser cúmplice dum criminoso, deve-se ter auxiliado a cometer qualquer crime. Grande Caribú não tem nada que lhe acuse a consciência!
- Vamos, é inútil brincar comigo! interrompeu o polícia, impaciente. Reconheces ter prestado auxílio ao miserável que eu estava encarregado de prender e, ter-lhe
facilitado o meio de se pôr fora do meu alcance? O inquérito a que procedi, no regresso à tua cabana, não me deixou dúvida alguma a respeito da tua duplicidade!
Na ocasião em que conversava contigo, tinhas habilmente dissimulado o assassino de Nicolau Chouque no teu esconderijo, a-fim-de obstar à sua captura.
- Grande Caribú não é daqueles que traem vergonhosamente as leis da hospitalidade. Não tentará faltar-te à verdade! Tinha descoberto o indivíduo a quem fazes alusão
meio morto de frio..-
- Percebo!... Mas as leis da hospitalidade que tu invocas não te obrigavam a tornares-te, voluntariamente, o guia desse patife.
- Grande Caribú não esquece jamais um benefício! O pai do homem branco havia-o salvado, outrora, da morte. Tinha, pois, contraído para com êle uma dívida sagrada!
Além disso, se o Batedor da Neve estivesse em situação idêntica, Grande Caribú não hesitaria em o socorrer também. Jamais esquecerá as longas correrias através do
deserto branco e os perigos corridos em comum!
- Temos sido companheiros, efectivamente, e, muitas vezes a tua ajuda foi preciosa para encontrar criminosos; mas, desta vez portaste-te como um malfeitor! Permitiste
que um miserável escapasse ao castigo! Em nome da lei estás preso!
A mão do polícia pousou no ombro do seu interlocutor. Os dois homens, ficaram algum tempo, frente a frente, fixando-se altivamente; depois, mantendo um profundo
silêncio, sem pensar sequer €m resistir, o nascopi estendeu-lhe os punhos.
Bentley pareceu hesitar um instante. Magoava-o tratar assim, impiedosamente, aquele que tantas vezes fora seu guia e partilhara com êle numerosos Perigos; todavia,
por muito penoso que fosse o seu dever, resolveu cumpri-lo até ao fim. Metendo bruscamente a mão no bolso, tirou um par de algêmas e, um segundo depois, as pulseiras
de aço, dando um estalido seco, fecharam-se ao redor dos Punhos do indígena.
Afectando a maior impassibilidade, o Grande,
Caribú, desprezando o próprio destino, procurava demorar o maior tempo possível a acção do polícia; Sabia que no momento em que o cabo procedia à, sua captura, João-Pedro
e a rapariga se afastavam a toda a pressa para Leste com o seu umiak. Talvez que ainda pudessem escapar ao seu implacável perseguidor!
Os esquimós continuavam a cercar os dois homens. Por muito grande que fosse a simpatia que Maguak nutria pelo índio, que o salvara duma morte certa, o chefe nem
sequer pensava em o defender do captor, tal era o temor que provocava na sua gente o nome do Batedor da Neve. Ficaram todos de boca aberta, a olhar para as algemas
que reduziam à impotência o nascopi. Só os cães da aldeia que se pegavam com os huskies e os labradors, do trenó, perturbavam o silêncio com os seus latidos.
Por fim, Bentley, rompendo o silêncio, interrogou:
- Vamos, fala! Onde está o assassino de Nicolau Chouque?
Um indecifrável sorriso iluminou a fisionomia do índio.
- Que o Batedor da Neve procure! Ele encontrará! Haverá quem o suplante em habilidade?
Estas palavras fizeram perder a paciência ao cabo.
- Eu não vim aqui para chalacear, Grande
Caribú! exclamou. Se recusas dizer-me onde se encontra o teu cúmplice, agravas, perigosamente, o teu caso! Vamos, responde! Há quanto tempo estás aqui? O que significa
a presença duma mulher junto de vocês?...
Um clarão brilhou nas pupilas do índio. A alusão que o cabo acabava de fazer a Luiza, dava-lhe a perceber que poderia ainda demorar a partida do polícia, e permitir
aos seus amigos ganharem um avanço maior. Por isso, foi com muito boa vontade que respondeu:
- A mulher branca é filha de Rivière, o agente da Companhia de Hudson.
O Batedor da Neve, não pôde reprimir uma exclamação de espanto, ouvindo pronunciar o nome da desconhecida. Recordava-se dos pormenores que lhe fornecera o sargento
Mauser, a-propósito do desaparecimento dos três viajantes.
- A filha de Rivière! exclamou por fim. Não é possível!
- Grande Caribú não tem interesse algum em te mentir.
- Entretanto, quando passei em Fort-Chimno, afirmaram-me na estação que Rivière acompanhava a sua mulher e a filha...
Viajavam, efectivamente, todos três, mas Grande Caribú e o seu amigo, fizeram uma triste descoberta no trail, pouco tempo depois de terem abandonado a cabana. Encontrámos
estendidos na
neve os dois cadáveres do agente e da mulher, que tinham sido assassinados.
- Assassinados?
Os dedos do cabo, crispavam-se nervosamente contra a cintura de couro, emquanto o índio falava. As declarações que fazia, despertavam a curiosidade do cabo. A comunicação
do assassínio do agente da Companhia de Hudson e da esposa, era para êle de tão grave importância, que esqueceu, momentaneamente, o assassino de Nicolau Chouque.
- Vejamos... explica-me! insistiu. Estás certo de que te não enganas? ...
- Grande Caribú e o seu amigo descobriram os dois cadáveres, repetiu o índio. Depois, conseguiram salvar a filha de Rivière, que estava cercada pelos lobos e que
pudera escapar às balas do assassino.
- Escuta, não podemos chegar a entendermo-nos, no meio destes esquimós, interrompeu o Batedor da Neve. Vamos entrar num igloo. Vou pedir a Maguak para nos deixar
sós durante algum tempo! Mas, previno-te... não tentes enganar-me, porque te arrependerás!
- Grande Caribú contar-te-á tudo o que se passou! retorquiu fleugmàticamente o índio, dissimulando a satisfação que sentia, pela maneira como as coisas corriam...
Na ocasião em que o cabo o arrastava para a
habitação dos indígenas, o índio verificava que essa demora permitiria a João-Pedro afastar-se mais e encontrar um refúgio onde pudesse escapar, mais facilmente,
à perseguição do seu temível adversário. Mais que nunca, o nascopi resolvera demorar a narrativa, e reter o cabo na aldeia, conseguindo despertar-lhe a curiosidade
ao mais alto grau.
Alguns minutos depois estavam em frente um do outro no igloo de Maguak. Agachado à lareira, o nascopi começou a narrar sem omissão dum pormenor, as aventuras que
se sucederam, depois que encontrara João-Pedro Roquete.
O Batedor da Neve não pôde reprimir um salto ouvindo pronunciar o nome do canadiano. Esteve a ponto de interromper o índio e pedir-lhe notícias precisas do seu companheiro,
mas não o fêz e o Grande Caribú continuou relatando a noite trágica que passaram junto dos lobos.
- Notaste no local do crime algumas impressões? preguntou, por fim. Sei que és um bom pesquisador.
A fisionomia do índio iluminou-se. Parecia ter ficado sensibilizado com o elogio que o cabo lhe fizera.
- Grande Caribú não fêz descoberta alguma interessante; só pôde certificar-se que o criminoso fugira levando consigo o trenó e a atrelagem em que viajavam as três
vítimas.
- Nessas condições, nada adiantamos.
- Grande Caribú, conhece, porém, o nome do assassino!
- O nome do assassino?
O cabo levantara-se, bruscamente.
- Já te preveni, camarada! Não tentes brincar comigo. Isso podia custar-te caro! A não ser que tivesses participado no assassínio desses infelizes, como poderias
tu sabê-lo?
- Grande Caribú, sabe, a-pesar-disso, interrompeu o índio, esboçando um sorriso. O homem que matou Rivière e a mulher, chama-se Francisco Santerre! Talvez já ouvisses
esse nome!
Bentley enxugou com as costas da mão a sua testa coberta de suor. Parecia sonhar...
- Francisco Santerre! Disseste, Francisco Santerre? preguntou, apertando fortemente as falanges do nascopi.
O interpelado abanou afirmativamente a cabeça, depois, desejoso de pôr o polícia ao corrente de todos os acontecimentos de que fora o protagonista, contou como,
em consequência de várias peripécias, João-Pedro Roquete descobrira na parka de Luiza Rivière a famosa caixa de fósforos que pouco tempo antes lhe fora roubada pelo
seu antigo companheiro.
O Batedor da Neve escutava sempre com atenção apaixonada a narrativa do seu prisioneiro.
- Tens razão! Não pode haver dúvida! exclamou. Foi esse patife quem praticou o crime... Meu
Deus! Para que me obstinei em querer apanhar-te e ao teu companheiro! O miserável deve ter aproveitado todo este tempo para se pôr a salvo!
Impassível, o Grande Caribú, deixava falar o polícia. O seu olhar sombrio fixava-o com insistência. Certificava-se, sem esforço, que Bentley se sentia profundamente
desalentado. João-Pedro já o não preocupava. A atenção do seu temível adversário concentrava-se unicamente sobre o assassino de Rivière.
- O miserável! rugiu, por fim, o polícia. Como se deve rir de nós, nesta ocasião! Mas, não o deixaremos descansar! É preciso encontrá-lo, custe o que custar! Grande
Caribú, vais-me acompanhar!
O índio respondeu afirmativamente, com a cabeça. O homem da Royal Mounted meteu a mão no bolso e tirou uma chave.
- Dá-me os teus pulsos! ordenou.
O Grande Caribú apressou-se a obedecer. Num segundo ficou com os pulsos livres.
- Segui uma falsa pista, camarada! Estás livre! É para Francisco Santerre, que esta pulseira se destina. .. Para o encontrar, devemos empregar, tanto um como outro,
todas as nossas energias! Esquece as palavras agressivas que há pouco te dirigi... As aparências acusaram-te, mas vou pôr este assunto a claro! Vamos ser de novo
companheiros de luta, como irmãos, unidos para assegurar impiedosamente
o respeito à Lei, no meio das solidões geladas do deserto branco.
Era a vez do nascopi ficar surpreendido. Ao narrar ao polícia as trágicas aventuras que se deram no decorrer da sua fuga com o canadiano, esperava apenas demorar
a partida do agente da autoridade o mais possível; mas, estava longe de prever uma tal decisão. Olhava para as mãos livres, temendo uma armadilha da parte do Batedor
da Neve, que sabia ser tão valente como manhoso...
O polícia não deu tempo ao índio, para reflectir. ..
- Vamos, vem! ordenou. Pega na tua espingarda e alguns víveres! Partimos daqui a pouco!
Os dois homens levantaram-se e saíram do igloo, abrindo a custo passagem por entre o grupo numeroso dos esquimós, que se comprimiam diante da cabana. A admiração
dos indígenas, foi grande quando verificaram que o cabo dera liberdade ao seu prisioneiro.
- De-pressa! gritou Bentley a Maguak, que discutia com os caçadores de morsas. Não temos tempo a perder... Vai distribuir alguns peixes sêcos aos meus cães! Preciso
de partir quanto antes!
Os esquimós apressaram-se a cumprir a ordem do representante da autoridade. Em breve, soltando alegres latidos, os huskies e os labradors se atiraram à comida que
lhes distribuíam.
Os cães da aldeia quiseram disputar-lhes a ração.
Todavia, algumas chicotadas fizeram-os recuar, conservando-os a distância respeitável.
Sem tentar interrogar o seu companheiro, o nas-copi, depois de calçar as luvas, pôs a espingarda a tiracolo...
- Guiarás o trenó, emquanto me instalo no interior! declarou o cabo, que igualmente se preparava para retomar o trail.
Cada vez mais intrigado, Maguak aproximara-se do Batedor da .Neve...
- O homem branco vai em busca do nosso hóspede? preguntou.
- Que me importa agora João-Pedro Roquete! retorquiu bruscamente Bentley, encolhendo os ombros... Temos uma pista mais importante a seguir! Agora, preciso de agarrar
Francisco Santerre, que levarei morto ou vivo para Fort-Rupert!...
Um clarão de alegria brilhou nas pupilas do Grande Caribú. A-pesar-de ignorar os motivos que levavam o polícia a proceder desse modo, o índio sentia uma grande satisfação,
pensando que os seus amigos estariam, por agora, descansados.
- Vamos, estás pronto? inquiriu o cabo, depois duns instantes.
- Grande Caribú acompanhará o Batedor da Neve onde êle quiser! respondeu o nascopi, que apenas lamentava não poder prevenir os seus amigos da sua partida precipitada.
Depois de trocar um aperto de mão com Maguack,
Bentley instalou-se no trenó. O índio sentou-se, tomou as rédeas e fêz girar o chicote por cima da cabeça.
Várias vezes a tira de couro tocou o costado dos cães... seguiram-se os latidos... Os animais, habilmente conduzidos, executaram uma volta brusca; depois, sob os
olhares intrigados de toda a tríbu, afastaram-se da aldeia. Voltando as costas ao litoral, o Batedor da Neve e o seu companheiro meteram a toda a velocidade em direcção
ao Sul...
XV
A ilha sem nome
Logo que o Grande Caribú o avisou da chegada do Batedor da neve, João-Pedro Roquete só pensou em fugir o mais rapidamente possível. Luiza lãvière, que recusara com
energia separar-se dele, remava com vigor. Ansiosos por despistar Bentley, tentaram distanciar-se da aldeia de Maguak. A princípio, quando a órfã resolvera acompanhá-lo,
o rapaz protestou; mas, Luiza Rivière insistira com tanta energia, que teve de ceder. Além disso, o Perigo que o ameaçava- não permitia discussões. Seguiam sempre
para a frente, evitando não abalroar com os blocos de gelo que flutuavam à superfície do mar, provocando o pânico nas colónias de focas e de pinguins.
Dominando a fadiga, continuavam a remar, olhando, de vez em quando, para trás, mas, com
grande satisfação, não viam ninguém, nem trenó algum ao longo da margem...
Por fim, esgotados, os fugitivos pararam para tomar ar. Enxugando com as costas da mão o suor que; lhe corria pelas faces, o caçador pensou com saudade no nascopi
que acabava, talvez, de se sacrificar para lhe assegurar a liberdade.
- Não devíamos ter deixado partir o Grande Caribú! exclamou.
- Para que está tão preocupado? respondeu a rapariga; o índio tem o seu plano. Conseguirá, sem dúvida, satisfazer o cabo Bentley, que não é para êle um desconhecido!
Estou de acordo com êle! Em caso algum deveremos comprometer a sua liberdade, voltando ao nosso ponto de partida.
- Esquece-se, Luiza, que nada teria a recear da polícia. Era preferível ter acompanhado o Grande Caribú e deixar-me só. O cabo não deve ser um inimigo para si, mas,
pelo contrário, um
auxiliar precioso! Pense nisso! Deixou passar, talvez, uma excelente ocasião, obstinando-se em me seguir, para fazer vingar aqueles que tanto amou, e que foram assassinados
tão cobardemente. Logo que tivesse conhecimento de terrível atentado de que foram vítimas seus pais, o Batedor da Neve, pôr-se-ia, rapidamente em campo para agarrar
Francisco Santerre.
- Pensaremos, mais tarde, em Francisco Santerre! Neste momento, só a sua segurança me interessa.
interrompeu a rapariga. Além disso, para
que estamos a perder tempo a discutir? Ainda não nos - afastámos suficientemente! Se o nosso perseguidor tivesse a idea de seguir ao longo da costa com o trenó,
não teria grande trabalho em encontrar-nos e deitar-nos a mão! É mais prudente afastarmo-nos do litoral.
O caçador dispunha-se a responder, lançando ansiosamente uma vista de olhos em redor, quando, bruscamente, parou. A cerca de meia milha da costa, via à sua direita
uma terra que emergia, muito branca, acima das ondas.
Uma ilha! exclamou. Talvez possamos encontrar ali refúgio e escapar à perseguição de Bentley!
A idea do rapaz, agradou a Luiza Rivière. A órfã percebia muito bem que, acampar em qualquer ponto do litoral, seria perigoso. O homem da Royal Mounted não tardaria
em descobrir, na neve, as pegadas deles.
Dominando mais uma vez a fadiga que sentiam, devido aos esforços sobrehumanos que acabavam de dispender, os fugitivos dirigiram-se para a terra misteriosa que acabavam
de descobrir. A ilha destacava-se confusamente através da névoa, cada vez mais espêssa, que os envolvia. Dentro de dez minutos comseguiram abordá-la. João-Pedro
saltou em terra, e estendeu a mão à rapariga para a ajudar. Em redor dos recém-chegados, numerosas sombras
se afastavam soltando gritos estranhos. Os fugitivos não se inquietaram com esse barulho insólito, verificando, em breve, estarem na presença duma numerosa colónia
de pinguins.
Depois de ter varado o umiak na neve, deixando a sua companheira a descansar junto da embarcação, o canadiano resolveu fazer um reconhecimento, para ajuizar da importância
da ilha em que acabava de desembarcar. Pondo a espingarda a tiracolo, que por precaução levara consigo quando saíra da aldeia, arriscou-se a uma digressão distante
do local onde desembarcaram.
João-Pedro pôde verificar que chegara a uma ilha que media, pelo menos, uma milha de comprido por meia milha de largo. Era facilmente abordável pela margem próxima
do continente. Pelo lado oposto, o seu acesso era mais difícil. Altas encostas, com contrafortes escarpados, anichavam uma multidão de pássaros, - paínhos, gaivinas,
mergulhões, cagarras, colimbos, maçaricos, corvos marinhos e albatrozes. Centenas desses animais levantaram vôo, gritando espavoridos, quando o fugitivo se aproximou.
Continuando nas suas investigações, o canadiano encontrou, ao cabo de meia hora, uma caverna cavada na muralha rochosa bastante vasta e de fácil acesso.
"Vamos, não posso esperar mais tempo? pensou. A noite não tarda! Preciso prevenir Luiza!
Temos aqui um abrigo onde podemos acampar admiravelmente e evitar os temíveis ataques do vento norte!"
João-Pedro apressou-se a voltar para junto de Luiza, dando-lhe parte da sua descoberta. A rapariga esperava-o sentada na borda da embarcação, rodeada dum grande
número de pinguins, pelo meio dos quais o caçador teve de abrir passagem para chegar perto dela.
- Então? preguntou a rapariga.
O canadiano fêz um sinal afirmativo com a cabeça:
- Encontrei um lugar, suficientemente abrigado. Poderemos passar lá a noite; mas, antes, convém fazer um inventário das armas e provisões que temos no umiak.
Na ocasião em que deixara a aldeia o fugitivo não pressentira o perigo que o ameaçava. Não pensara, pois, em se equipar convenientemente. Felizmente, os esquimós
são previdentes; o que lhe emprestara o umiak, tinha metido no fundo do depósito dos arpões um saco cheio de peixes secos, Uma panela, uma lâmpada de azeite para
aquecer as refeições e um desses isqueiros rudimentares que tanto intrigaram Luiza Rivière no começo da sua estada na aldeia de Maguak.
- Louvado seja Deus! Temos aqui com que afrontar as primeiras dificuldades! exclamou a órfã. Felicitemos os esquimós pelo seu senso prático!
Esperando ter de partir dum momento para o outro para uma expedição de caça ou pesca, estão sempre prevenidos para isso.
- Teremos, pois, com que nos sustentar alguns dias! disse João-Pedro. Tenho comigo, também, a espingarda, a faca, o machado e cerca de cinquenta cartuchos.
- Eu só tenho comigo o meu revólver! retorquiu a rapariga, mostrando a arma que o canadiano descobrira no bolso da parka, quando a livrara da voracidade dos lobos.
A névoa era cada vez mais densa; temendo não poderem orientar-se, abandonaram a praia, rapidamente, carregando com os objectos mais úteis, Deixaram o umiak na praia
e seguiram para o seu novo refugio.
Quando chegaram à caverna já estava escuro; trataram de se instalar, colocando, com cuidado, a lâmpada de azeite no solo. João-Pedro, procurou acender a mecha mergulhada
em azeite de foca-Não tiveram pouco trabalho em fazer lume conforme os usos do país. Por fim conseguiram alumiar-se o melhor possível.
- Evidentemente, estamos aqui melhor do que no trail! disse a rapariga, depois de lançar uma vista de olhos à sua volta.
- Em todo o caso, teremos muito que fazer, para transformar esta caverna numa habitação confortável.
- Trouxe duas mantas que estavam no umiak. Aquecer-nos-ão um pouco! Creio bem que não nos será possível arranjar um lar durante esta noite.
Depois de arrumar as suas armas e as provisões, comeram um peixe seco cada um, e, depois de escolherem dentro do refúgio o local mais protegido do vento, estenderam-se
a pouca distância Um do outro, tratando de se aquecer, esfregando os membros enregelados. Habituados à rude existência do deserto branco, adaptaram-se às necessidades
do momento, desejando mais que nunca escapar à perseguição do implacável Batedor da Neve.
O canadiano estava satisfeito com o estado do tempo. A névoa opaca que cobria os arredores, não permitiria ao polícia arriscar-se na sua vizinhança sendo forçado
a interromper as suas pesquisas.
Reflectindo dessa maneira, João-Pedro não supunha que nesse momento, o polícia, acompanhado do nascopi, seguia a toda a velocidade do seu trenó, para o Sul, à busca
de Francisco Santerre...
Ignorando todos os acontecimentos que se deram depois do regresso do Grande Caribú à aldeia, os dois jovens começaram a viver, na ilha que lhes servia de abrigo,
uma vida de verdadeiros robinsons. A caça e a pesca asseguravam a sua subsistência. Muitas vezes, armados de arpões, abriam buracos na superfície do gelo e aí esperavam
o aparecimento de uma foca que se afastasse da coloca que existia nas proximidades; outras vezes entregavam-se
à colheita dos mariscos. Os ovos dos numerosos pássaros que ali habitavam, também contribuiam para a sua alimentação.
Passaram-se algumas semanas, verdadeiramente cruéis para os desgraçados, que tinham de lutar para se protegerem do ataque dos elementos. Além disso, continuavam
apreensivos, esperando ver aparecer o homem da Royal Mounted. João-Pedro estava ansioso por saber o que se teria passado na aldeia e o que acontecera ao nascopí,
cuja ausência prolongada o tornava inquieto. O receio da sua segurança e o medo de encontrar o cabo, impediam-no de se arriscar a colher informações. Várias vezes
tinha visto os kayaks e umiaks dos esquimós que se encontravam nas vizinhanças da ilha, mas, receoso de ser traído pelos indígenas, afastava-se prudentemente, com
a companheira
A maior parte do inverno passou-se nesta espectativa. Os dois jovens acostumaram-se a esta rude existência a que pareciam condenados dora-avanie. As focas que abatiam
forneciam-lhes azeite e gordura suficiente para os alumiar e aquecer. Esta vida, por mais selvagem que fosse, nãu era muito desagradável ao caçador, habituado há
muito tempo a sofrer as maiores inclemências. Os dias que vivera no trail, através das planícies geladas, eram bem mais penosos, do que aqueles que passava junto
da sua encantadora companheira. A rapariga,
quando o sentia desanimado, esforçava-se por lhe dar coragem.
- Tenha confiança em Deus, dizia ela, e rezemos-lhe com fervor. Estou certa que nos salvará!
João-Pedro, sentia pela intrépida criatura, que resolvera acompanhá-lo nessas solidões, uma admiração profunda. Não lhe restava dúvida alguma, que estava enamorado
de Luiza, mas não se atrevera, até então, a declarar-lhe o seu amor. As relações continuavam fraternais. Todas as vezes que o canadiano fazia projectos, via levantar-se
entre si e a órfã, uma barreira intransponível! Não era êle um assassino a quem a polícia buscava implacàvelmente? Poderia licitamente esperar casar-se com aquela
que tinha arrancado à morte, e que, em seguida, se lhe sacrificou a ponto de se não separar dele?...
Uma noite, estando acocorados em frente um do outro, junto do fogo que os alumiava, João-Pedro decidiu-se a falar:
- Não pode obstinar-se, Luiza, a ficar mais tempo nesta ilha sem nome!... Porque continua condenada a esta existência selvagem? Não valia mais, para si, voltar a
Fort-Chimno ?
- Eu creio não ter feito, até agora, o mais pequeno queixume, nem manifestado o desejo de deixar o nosso retiro! respondeu a rapariga. Sinto-me infinitamente satisfeita
com a minha sorte.
- Mas todavia, o frio rigoroso que sofremos,
as fadigas sem conta a que está exposta, devem-na ter feito arrepender de não ter acompanhado o Grande Caribú, quando nos veio avisar da chegada de Bentley! Pense
bem! Teria voltado à civilização! O futuro, a-pesar-da tragédia cruel que a feriu, podia ainda sorrir-lhe! Quantos não aspirariam à sua mão?
Um sorriso furtivo iluminou a face da rapariga.
- Vejamos, reflita um pouco, João-Pedro! Admitindo que eu voltasse a qualquer ponto do litoral, acha que poderia ser feliz? Poderia pensar no futuro? Aqueles que
eu adorava, morreram! Além disso, se voltasse agora à civilização, sentir-me-ia mortalmente angustiada, pensando naquele que me salvou a vida. Imaginaria, a seu
respeito, as piores hipóteses!
- Esquece-se, Luiza, que eu estou fora da lei, que sou um réprobo a quem a justiça dos homens quis um dia deitar a mão.
- Engana-se, João-Pedro! A-pesar-das aparências, estou convencida que não é um criminoso. Não quis matar Nicolau Chouque. Foi vítima dum conjunto de circunstâncias
infelizes. Vêm-me à memória, muitas vezes, os acontecimentos confusos que precederam a sua fuga e parece-me que andou mal, obedecendo ao aviso interesseiro de Francisco
Santerre; se tivesse ficado em Fort-Rupert, teria saído de todas as dificuldades!
- Todavia, o encarniçamento com que o Batedor
da Neve me persegue deverá provar-lhe o interesse que a polícia liga à minha captura. Para que serve, pois, acreditar na minha inocência? Admitamos que no meu estado
de embriaguez me julgasse culpado. Vamos mesmo mais longe; que um outro, aproveitando a minha situação, matasse Nicolau Chouque. Se assim fosse, o cabo deixar-me-ia
sossegado; mas, como vê, êle não desiste. Não descansa emquanto me não meter na prisão. Por vezes, pregunto como é que ainda não deu connosco, e penso se não valeria
mais eu entregar-me. Além disso, não sei o que aconteceu a Grande Caribú. Talvez neste momento esse grande amigo expie a sua dedicação por mim! Devo fazer-lhe sofrer
o peso da minha falta? A minha consciência não está tranquila por o ter deixado partir para o sacrifício, a-fim-de cobrir a minha fuga!
Vamos, um pouco de paciência, João-Pedro! Confie em Deus!
Um clarão iluminou as pupilas do canadiano.
- Ah! Luiza, faz-me sempre renascer a esperança! Devo-lhe um reconhecimento sem limites! Poderei um dia pagar-lhe o que por mim tem feito? Para salvar a minha liberdade,
ainda não denunciou o assassino de seus pais, afrontando o desconforto desta vida errante! Não tenho palavras para exprimir toda a minha gratidão!
O canadiano sentia desejos de pronunciar a doce confissão que lhe queimava os lábios, mas uma
força imperiosa forçou-o a calar-se. O passado impedia-o de confessar o seu amor. Contentou-se em apertar afectuosamente a mão que a rapariga lhe estendia, olhando-o
com ternura.
E a existência dos dois fugitivos prosseguiu, na ilha sem nome, sempre difícil e rigorosa. João-Pedro e Luiza continuavam a lutar continuamente, quer para assegurar
as subsistências, quer para melhorar cada vez mais o seu lar em que o calor vinha tão agradavelmente acariciar-lhes o corpo e os membros enregelados pelo frio do
exterior. Desejoso de economizar as suas munições, o caçador fazia quási sempre uso do arpão para abater a caça. No primeiro período da sua permanência nessa terra
desconhecida, temera a vizinhança de lobos e de ursos, mas verificara, em breve, que só animais inofensivos povoavam os arredores. Aventurava-se com frequência à
beira-mar, escondendo-se com cuidado quando distinguia os kayaks dos esquimós, temendo que os indígenas o surpreendessem e denunciassem.
XVI
Os "icebergs"
Luiza Rivière suportava corajosamente os novos rigores que a si mesma se impusera. Acompanhava muitas vezes o canadiano nas suas expedições cinegéticas. Às vezes,
as evoluções tornavam-se delicadas para ambos quando o nevoeiro espesso se espalhava em toda a região.
Conheciam muito bem o seu domínio, que tinham percorrido em todos os sentidos desde o seu desembarque. Os milhares de pássaros que por ali existiam não se assustavam
com a presença deles.
Um dia, verificaram que a temperatura começava a ser menos rigorosa. O vento norte não era tão cortante e a névoa tornava-se menos densa sob os raios bemfazejos
dum sol que aparecia no céu cinzento como uma bola de fogo. Numerosas aves migratórias voavam na direcção do Norte; as colónias
de pinguins aumentavam continuamente em consequência do regresso de novos grupos desses palmípedes que tinham emigrado para o sul.
Em toda a parte da beira-mar acessível, ou-via-se, agora, uma algazarra incessante, parecendo que os animais queriam festejar com os seus gritos ensurdecedores,
a chegada da linda estação.
Muitas vezes, os dois jovens escalavam as encostas que se erguiam como muralhas na parte norte da ilha sem nome. Do alto desse observatório podiam observar o largo,
muito ao longe,
Luiza sentia um grande prazer em seguir a marcha dos numerosos blocos de gelo que derivavam ao sabor das ondas. Os enormes blocos flutuantes atraíram a atenção dos
refugiados. Eram os primeiros icebergs, grandes massas de gelo desligadas das terras polares, que as correntes marítimas arrastavam para as costas do mar.
Quando tinham vagar, vinham sentar-se ali, com as pernas pendentes sobre o abismo. A rapariga soltava gritos de surpresa e alegria vendo derivar os gigantescos blocos
de gelo que por vezes tomavam as formas mais fantásticas...
- Olhe, João-Pedro! Exclamava Luiza alegre como uma criança... Veja aquele! Parece uma catedral com as suas duas torres!... Veja o outro a seguir! Não faz lembrar
uma grande fortaleza?...
- Aposto que os marítimos que se encontrarem no caminho desses icebergs, não partilharão
do seu entusiasmo, Luiza! Está habituada a viver em terra firme e não conhece os riscos do mar...
- Então estes blocos de gelo constituem assim um grave perigo à navegação?
- Esses icebergs quebrariam, como se fosse de vidro, um navio com o qual abalroassem! Note que só a décima parte do seu volume emerge à superfície. Fundem lentamente,
mas continuam a vogar, durante semanas, para o sul! Às vezes, devido ao ataque sucessivo das ondas, deslocam o seu centro de gravidade, e voltam-se, bruscamente!
Desgraçado do barco que se encontrar, nessa ocasião, na sua frente!...
Luiza Rivière escutava com atenção as interessantes explicações que lhe dava o companheiro. Interrompeu-o, no entanto, apontando-lhe dois pontos que se moviam, com
lentidão, na superfície
- Veja, João-Pedro! Os icebergs transportam passageiros!
O canadiano olhou na direcção indicada.
- São ursos brancos! exclamou. Naturalmente encontravam-se nesse pedaço de continente quando, separado pela força da água, êle foi arrastado para o mar; e ficarão
ali prisioneiros até ao momento em que, abandonando a massa de gelo que os conduz, ganhem a nado qualquer litoral desconhecido... Frequentemente acontece aos esquimós
do Labrador receberem a visita destes plantígrados vindos
das regiões polares. Disse-me Maguak, durante o tempo que estivemos na sua aldeia, que os ursos polares aparecem, muitas vezes, nestas paragens. Isso permite aos
indígenas caçá-los com relativa facilidade e realizar negócios vantajosos com a Companhia de Hudson; mas, canfesso-lhe que pela minha parte não tenho prazer algum
em me encontrar com esses animais.
- Julga que alguns deles poderão desembarcar na nossa ilha? preguntou Luiza com o semblante sombrio.
- Por Deus, é muito possível, sobretudo nesta época em que os icebergs vão passar, cada vez em maior número, nas proximidades, arrastados para o Sul pela corrente
do Labrador! Em todo o caso não se inquiete. Prefiro, a-pesar-de tudo, a presença dos ursos brancos do que a do Batedor da Neve. Ainda tenho cartuchos suficientes
tara os poder afrontar com a minha espingarda! Além disso, a chegada desta nova caça, permitir-nos-á abastecer de carne fresca! Talvez nunca comesse presunto de
urso!
- Nunca tive ocasião, meu Deus!
- Pois bem, poderá verificar, se se der ocasião, que é um prato excelente, substituindo com vantagem as nossas omeletes de ovos de albatroz " os nossos insípidos
bifes de foca!
Emquanto os dois jovens conversavam, novos icebergs apareciam ao largo. Um deles seguia, apenas,
à distância dum quarto de milha da ilha sem nome. Uma centena de pontos pretos destacava-se na superfície. Vendo-os, mais uma vez, Luiza interrompeu o companheiro.
- Pinguins! Veja, João-Pedro como são interessantes! Parecem passageiros que se comprimem na coberta dum navio!
Os curiosos palmípedes pareciam aceitar, filosoficamente, a sua sorte, e sentir um certo prazer nessa viagem. Quanto mais o iceberg se aproximava da ilha, melhor
se distinguiam, alinhados e imóveis. Subitamente ouviu-se um estrondo ensurdecedor, semelhando um tiro de peça.
- Abordaram! O bloco de gelo veio de encontro à nossa ilha! exclamou o canadiano.
Abandonando o observatório, João-Pedro e Luiza deixaram-se escorregar pela encosta abaixo, agarrando-se às saliências das rochas. Em menos de dez minutos, chegaram
ao local em que o choque se dera.
O gigantesco bloco de gelo inclinava-se sobre o flanco, rachado por numerosas fendas. O seu centro de gravidade fora deslocado e uma grande parte da superfície que
imergira, aparecia polida como um espelho.
- Vamos! A população da ilha vai aumentar! chalaceou Luiza Rivière, designando ao seu companheiro alguns pinguins que tinham sido brutalmente atirados à costa, e
que se espalhavam no
meio da neve, batendo as asas e observando os arredores.
- Tudo vai bem, emquanto os hóspedes forem desta espécie, disse o caçador. Não são perigosos!
- Decididamente, a recepção não é das mais entusiásticas! disse a rapariga, que assistia muito divertida a este encontro dos palmípedes.
Os milhares de pássaros que povoavam aquela parte da ilha tinham-se assustado com o choque e esvoaçavam em todos os sentidos. Mais fleugmáticos, os pinguins efectuaram
apenas um movimento de retirada, para voltarem, logo que o susto passou, ao encontro dos seus congéneres das regiões polares.
Durante algum tempo, pareciam parlamentar e reunir conselho; os náufragos do iceberg, misturaram-se no meio dos grupos, e em breve os dois robinsons não puderam
mais diferençá-los dos outros.
Nos dias e nas noites que se sucederam, João-Pedro e Luiza, que tinham retomado as suas ocupações, ouviram novos choques; mais blocos de gelo vieram encalhar no
litoral da ilha. A princípio, os jovens procuraram conhecer os pontos em que as enormes massas tinham tocado a terra firme; depois, como esses incidentes se tornaram
cada vez mais frequentes, não mais se importaram com isso.
Todos os dias, espingarda a tiracolo e arpão na mão' o canadiano fazia uma minuciosa inspecção; tinha particularmente o cuidado de conservar em
bom estado o umiak. Às vezes, embarcava com a sua companheira, mas nunca se aventurara no continente. Temia a vizinhança dos esquimós, com receio que estes os denunciassem
ao Batedor da Neve.
Entretanto, as semanas passaram e João-Pedro Roquete sentia-se profundamente admirado que o Cabo Bentley não pensasse em proceder a sérias investigações na ilha,
onde êle se refugiara. Sabia, de há muito, que o polícia nunca abandonava as suas buscas, quando se lançasse na pista dum criminoso. Posto ao corrente dos factos,
pelos naturais, da sua presença nesta região, deveria certamente percorrê-la em todos os sentidos e conhecer, em breve, a existência da ilha sem nome. O umiak que
fora emprestado ao canadiano e que lhe permitiu e à sua companheira afastar-se da costa, não deixava vestígios, mas o caçador imaginava, e com razão, que Bentley
descobriria facilmente o seu refúgio, se persistisse em o querer encontrar.
A reserva, pois, que o homem da Royal Mounted mantinha, desconcertava o fugitivo. Formulava várias hipóteses, cada Vez mais inverosímeis. Quem sabe se o Grande Caribú,
que se apressara a separar-se dêle, para melhor despistar o Batedor da Neve, tivesse conseguido arrastá-lo para outra região, fornecendo-lhe falsas informações?
E se o índio não hesitasse, para salvar o seu amigo da ameaça constante, em desembaraçar-se do cabo?
Formulando semelhante hipótese, João-Pedro estreimeceu. Concebia que o nascopi fosse capaz de cometer esse crime para o salvar! Entretanto, o caçador estava certo
que se essa eventualidade se realizasse, o Grande Caribú viria imediatamente juntar-se com êle e preveni-lo disso.
O fugitivo abstinha-se de pôr Luiza ao facto das suspeitas que alimentava a respeito do seu amigo, mas sentia às vezes contrair-se-lhe o coração, com a idea de que
talvez nessa altura, em-quanto êle estava em liberdade, o índio se encontrasse preso na cadeia de Fort-Rupert ou de Fort-Chimno.
A vizinhança dos esquimós, inspirava igualmente sérias apreensões ao canadiano. Naturalmente, durante a sua permanência entre os indígenas, o fugitivo só tinha que
louvar a maneira como Maguak e os seus companheiros o tinham tratado, mas convencia-se que devia desconfiar sempre dos caçadores de morsas. Não sabiam, porventura,
que a sua captura estava posta a prémio? Todos os dias esperava vê-los desembarcar em qualquer ponto da ilha... Os intrusos não teriam grande trabalho em descobrir
o umiak e os numerosos vestígios que ali existiam, dele e da rapariga. Entretanto, com grande espanto do caçador, os esquimós não procuraram uma só vez tentar invadir
o seu refúgio. Esta terra bastante afastada, não constituía, indubitavelmente, um dos seus costumados
territórios de caça. Em intervalos frequentes, via passar através do estreito que separava a ilha do continente, a flotilha dos kayaks, mas, os indígenas contentavam-se
em seguir o litoral sem tentar ir mais além.
A vida dos dois fugitivos prosseguia numa paz podre. Tinham o suficiente para suprir as necessidades indispensáveis. As focas que rarearam durante o inverno, apareciam
agora em bandos numerosos. João-Pedro, que aprendera muito com. os esquimós, não tinha grande trabalho em abater alguns desses animais. A rapariga prestava-lhe uma
ajuda eficaz e à noite regressavam à caverna, podendo reconfortar-se e descansar das fadigas.
Escalando aquelas muralhas abruptas, agarrando-se às numerosas saliências das rochas, os dois jovens faziam a colheita dos ovos nos milhares de ninhos que existiam
nas cavidades.
Com risco de despedaçar a cabeça, entregavam-se a uma hábil gimnástica, baloiçando-se no abismo a duzentos pés acima do mar, que vinha quebrar-se suavemente contra
os rochedos. Ao seu redor, assustados com a sua presença, os albatrozes, os paínhos e as gaivinas, esvoaçavam, executando numerosos ziguezagues.
Luiza Rivière, sentindo-se forte, não proferia o menor queixume. Em consequência das suas numerosas e difíceis excursões, o vestuário rasgara-se, e ela remendava-o
o melhor que podia, utilizando
as espinhas de peixe como agulhas. Com os cabelos compridos caídos nos ombros, as faces crestadas pelo vento do mar, ela fazia lembrar uma boa fada que presidisse
aos destinos desse reino de pinguins, de focas e de aves marinhas.
A figura do canadiano era mais dura. Os caçadores com quem João-Pedro convivera noutro tempo, em Fort-Rupert, dificilmente reconheceriam o seu antigo companheiro.
Os cabelos e a barba tinham-lhe crescido muito durante a permanência na ilha sem nome. O seu vestuário, e o seu calçado de pele de foca, eram confeccionados por
êle. Adquirira todos os hábitos e manhas dos caçadores e pescadores do Extremo-Norte.
Chegaram os primeiros dias bonitos. Os icebergs continuavam a passar ao largo, em grande número. De vez em quando um choque surdo indicava que algum deles batera
contra a areia.
Certa noite, o caçador que regressava à caverna, fêz uma descoberta que lhe causou a mais viva inquietação. Acabava de desembarcar do seu miak em que fora pescar
a curta distância, trazendo alguns peixes de dimensões respeitáveis, quando a sua atenção foi bruscamente atraída por pegadas que se destacavam na superfície da
neve.
- Deus todo o poderoso! não há engano possível! Por aqui passaram ursos!
O canadiano habituara-se, há muito tempo, a reconhecer no solo as pistas dos animais, por mais
diferentes que fossem, para que se pudesse enganar. Sem dúvida alguma, os plantígrados, tinham chegado à ilha sem nome.
- Devem ser quatro, pelo menos! murmurou João-Pedro, depois de ter examinado atentamente o solo durante um momento. Meu Deus! Oxalá que não tenham ido até à caverna!
Monologando assim, o rapaz sentia a inquietação crescer cada vez mais. Habitualmente, Luiza vinha ao seu encontro quando os cuidados do lar lhe davam tempo para
isso. Em vão lançou o olhar pelos arredores, mas não descobriu a sombra da rapariga; pelo contrário, continuando a observar a superfície da neve, o canadiano verificou
que a pista dos ursos, ziguezagueando, seguia a direcção da encosta, onde a caverna estava situada.
Cada vez mais angustiado, o caçador deitou a correr. Nesse dia não tinha trazido a sua espingarda. Só ia armado com o arpão que levava na sua mão crispada.
Sem se inquietar, com os numerosos grupos dos pinguins que andavam aos encontrões uns aos outros a curta distância, Jõão-Pedro caminhava rapidamente, inspeccionando
o solo. Verificou em breve, com satisfação, que três ursos, tendo feito um desvio, se afastavam para o centro da ilha; apenas o quarto, que devia ser temível, devido
às dimensões das suas pegadas, tinha seguido na direcção da caverna. Abandonando os dois peixes que levava,
o canadiano caminhou de-pressa para o seu refúgio. A pista da fera seguia na sua frente, indicando-lhe que o temível animal continuava as suas investigações nessas
paragens. Certamente, apercebera-se da presença da rapariga.
João-Pedro, com o coração sobressaltado, ia chamar a sua companheira, quando ouviu, subitamente, uma detonação, logo seguida dum grito angustioso:
- João-Pedro!... Socorro!... Socorro!...
XVII
A luta com os ursos brancos
Há quatro horas dentro da caverna, Luiza Rivière dispunha-se nessa tarde a ir ao encontro do seu companheiro, quando, subitamente, parou inquieta; pareçeu-lhe surpreender;
Um movimento suspeito no limiar do seu refúgio.
- É o senhor, João-Pedro? Já de volta? interrogou com voz trémula.
Ninguém respondeu, mas sucederam-se insólitas roçaduras, acompanhadas de grunhidos e fungões intermitentes.
Cada vez mais intrigada, quis ver quem seria esse vizinho importuno que se manifestava de modo tão esquisito, quando viu a sombra dum animal que avançava pesadamente
e que se introduzia através da abertura da caverna, cheirando o solo com insistência.
A órfã sentiu gelar-se-lhe o sangue nas veias. Achava-se na frente dum urso enorme, que caminhava ao seu encontro. A fera, depois de chegar à encosta, fora atraída
pelas emanações que saíam da caverna... Parara, balanceando a cabeça, e fixando os pequenos olhos penetrantes na rapariga que não se atrevia a fazer um movimento.
Durante algum tempo, a rapariga e o seu temível visitante ficaram em frente um do outro.
O espanto paralizava os movimentos da companheira de João-Pedro. Nunca esperara receber tão perigosa visita! Felizmente, saiu daquele torpor. Dominando a emoção
que dela se apoderara, e compreendendo a gravidade do perigo que corria, recuou, lentamente, tentando armar-se com a espingarda, que o canadiano deixara encostada
à parede.
Vendo a sua adversária sair da sua imobilidade, o plantígrado avançou, grunhindo surdamente. O cheiro dos peixes secos e da carne de foca que a órfã cozinhara pouco
tempo antes, incitava o intruso a aproximar-se. Parecia não se importar, de momento, com Luiza, mas esta, desejosa de se desembaraçar do importuno visitante, meteu
a arma à cara para atirar.
Agindo desse modo, a rapariga cometia a pior das imprudências. O urso poderia afastar-se, ao fim de algum tempo sem lhe fazer mal algum... Ferido, poderia tornar-se
um perigoso inimigo, e só com grande custo conseguiria repelir-lhe os ataques.
Durante um curto momento, a órfã visou o animal; depois, premiu com mão trémula o gatilho. Ouviu-se uma detonação seguida dum urro tremendo. Luiza Rivière, violentamente
emocionada, não conseguira atingi-lo mortalmente. A bala, ferindo-o num ombro, enfurecera o urso.
A rapariga quis atirar segunda vez, mas a fera não lhe deu tempo e atacou-a... Fugindo precipitadamente para o fundo da caverna, a-fim-de escapar à ferocidade do
animal, escorregou e perdendo o equilíbrio estatelou-se ao comprido no solo.
Levemente aturdida pelo trambulhão, a companheira de João-Pedro, preparava-se para se levantar quando a fera chegou junto dela. Sentia o hálito empestado do, monstro
que se dispunha a colhê-la nas garras. Apavorada, não se conteve e gritou:
- João-Pedro!... Socorro!... Socorro!...
A desgraçada já sentia as unhas afiadas do monstro nas suas carnes.
Furioso com as dores, o animal ia fazer-lhe pagar caro a sua imprudência, esmagando-a com as suas mandíbulas, quando, bruscamente, se voltou grunhindo... A figura
dum homem aparecia na entrada da caverna. Armado com o arpão e atraído pelos gritos da companheira, o canadiano chegava em seu socorro.
Luiza, que se julgava condenada a uma morte certa, preguntava a si mesma que milagre se dera
naquele trágico momento. João-Pedro, compreendendo o perigo que Luiza corria, procurou atrair a atenção da fera que se aprontava para a despedaçar. Atacando corajosamente,
assentou uma formidável arpoada na espinha do urso, que, surpreendido, soltou um rugido de dor.
Então, uma formidável luta se travou no interior da caverna. A fera endireitou-se nas patas trazeiras. A fauce aberta, formidável, com um sulco de sangue a correr-lhe
pela pele, parecia disposta a castigar o seu intrépido inimigo.
Durante uns momentos, não cessando as pancadas que lhe dava com o arpão, o caçador conseguiu contê-la em respeito. Mas o urso branco, cujos ferimentos o tornavam
cada vez mais furioso, deixou-se cair em peso sobre o homem e abraçou-o com as patas dianteiras.
O desgraçado debatia-se com vigor, procurando escapar ao terrível abraço; mas os seus esforços foram baldados. Largando o arpão, agarrou vigorosamente a fera pelo
pescoço, a-fim-de evitar cair-lhe na bocarra.
Todavia, a-pesar-da sua força hercúlea, João-Pedro sentia-se enfraquecer à medida que se prolongava este corpo-a-corpo. O hálito fétido do animal que o esmagava
com o seu peso, bafejava-lhe a face. A fera ia, sem dúvida, triunfar da sua resistência, quando uma nova detonação se ouviu. Atingido em cheio na cabeça, o urso
vacilou, caindo
pesadamente junto do antagonista. O seu corpo enorme estrebuchou e ficou inerte.
O canadiano, ainda esgotado de forças pela luta que acabava de sustentar, procurou saber a que intervenção providencial devia o escapar a uma morte certa. João-Pedro,
verificou, então, que fora salvo por Luiza Rivière. Liberta da ameaça da fera, em consequência do ataque súbito do seu companheiro, a órfã agarrou de novo a espingarda
que caira ao chão. Metendo-a à cara, visou cuidadosamente a cabeça da fera e dera ao gatilho. Estava agora de pé, encostada à parede, com os olhos esgazeados de
pavor, temendo ainda que a imobilidade da fera fosse fingida, e novamente se levantasse para continuar a luta.
A voz do caçador veio arrancar a rapariga dos seus angustiosos pensamentos.
- Bravo, Luiza! Pode gabar-se de atirar maravilhosamente! A bala penetrou num olho do nosso excelente amigo, despedaçando-lhe o cérebro... A morte foi instantânea!
Inclinado sobre o gigantesco animal, João-Pedro certificou-se que nada mais tinham a temer daquele adversário.
- Uf! Escapamos de boa! continuou, levantando-se e estendendo a mão à sua amiga que vinha ao seu encontro.
- Não está ferido? preguntou.
- Só arranhaduras, sem grande importância...
Podia ser muito pior! Mas, deixe-lhe fazer a mesma pregunta. Também foi vítima dum ataque duro!
- Só me rasgou a parka! Tenho apenas que a concertar!
Agora, que o perigo passara, a rapariga reconquistara o seu sangue frio. Admirava o corpo da sua vítima...
- Que enormidade! Deus guiou os seus passos, João-Pedro! suspirou por fim. Julguei bem que estava irremediavelmente perdida.
- Regressava da margem e admirei-me de não a ver como de costume, quando a minha atenção foi atraída por pegadas suspeitas! Desconfiei logo da natureza do perigo
que a ameaçava, quando os seus gritos vieram confirmar as minhas suspeitas... Então, sem esperar mais nada, corri em seu auxílio. Mas, o meu papel não teve grande
importância nesta ocorrência, pois que é a si a quem devo a vida!
- Isso, tem também pouca importância! Se não desviasse a atenção do urso, eu estava irremediavelmente perdida, não poderia utilizar-me novamente da espingarda.
- Emfim, o principal é que não esteja ferida! Deixe-me, mais uma vez, felicitá-la sinceramente pela sua admirável pontaria!
- Basta de elogios, João-Pedro! A minha pouca habilidade ia deitando tudo a perder! Se não tivesse atirado tão desastradamente, pela primeira
vez, contra o urso, não estaríamos ambos expostos aos perigos que se seguiram!
Emquanto a rapariga falava, o caçador reparava como podia a desordem do seu vestuário. A manga da parka fora rasgada de alto a baixo pelas unhas da fera; mas, felizmente,
os ferimentos eram muito superficiais. O seu corpo estava arranhado em vários pontos.
Luiza apressou-se a lavar, cuidadosamente, as feridas do seu companheiro. Ao cabo de dez minutos, refeitos da emoção, acocoraram-se junto do plantígrado.
- Que magnífica pele! exclamou o canadiano. Seja bemvinda! Poderá estender-se, dora-avante, nos despojos da sua vítima!
Tirando a faca que trazia à cinta, o caçador preparava-se para esfolar o animal. Não era tarefa fácil! e a escuridão que sobreveio, obstou a que o caçador terminasse
o trabalho.
- Agora, é preciso pensarmos em jantar! disse a rapariga.
João-Pedro cortou um pedaço de carne do animal, e entregou-a a Luiza, recomendando-lhe para a assar no lume que acabava de acender; pouco tempo depois, um perfume
apetitoso acariciava-lhes o olfato.
- Vamos hoje melhorar o nosso jantar! exclamou alegremente o canadiano. A nossa despensa vai ficar fornecida para toda a semana!
Luiza Rivière, já esquecida das emoções recentes, comeu com apetite, achando a carne de urso excelente. Durante a refeição, o companheiro pô-la ao corrente das descobertas
que fizera nas proximidades.
- Dora-avante, é preciso ter muito cuidado! acrescentou. O urso que nos visitou inesperadamente não é o único da ilha. Verifiquei as pegadas dos seus outros congéneres.
Estes animais vieram, com certeza, em qualquer iceberg que chocou com a nossa ilha. Emfim, é preciso estar de olho aberto. Durante a noite, faremos turnos de vigilância
para repelir qualquer ataque.
A rapariga concordou com o seu amigo. Quis ser a primeira a ficar de sentinela, prometendo acordá-lo três horas depois para ser rendida. João-Pedro cobriu-se com
a sua manta e a órfã foi agachar-se na entrada da caverna, de espingarda na mão, com o ouvido atento. Apenas o bater das asas dos pássaros vizinhos quebrava o silêncio
e o mesmo aconteceu durante o tempo em que foi revezada pelo canadiano.
Quando o sol se levantou, o caçador deixou a sua companheira a dormitar e acabou a tarefa interrompida na véspera. Estendeu, com cuidado, a pele à entrada da caverna
para secar.
- Como! João-Pedro! Já acabou o trabalho! Não foi gentil da sua parte, deixar-me dormir assim! disse Luiza, levantando-se e espreguiçando-se.
- Dormia tão bem, que seria um crime, Luiza, árrancá-la aos seus sonhos! respondeu o canadiano. Além disso, como vê, pouco trabalho me deu esta tarefa. Resta, apenas,
aproveitar a parte boa da carne da sua vítima para a conservar; os despojos não aproveitáveis, irei deixá-los longe daqui, para que nos não incomode a sua vizinhança.
A-pesar-disso, foi com algum esforço que o caçador conseguiu arrastar aquela massa enorme para fora da caverna.
- Já que nada temos a temer do nosso primeiro visitante, disse João-Pedro, que voltara a acocorar-se junto da lareira para se aquecer, é preciso pensar nos outros
ursos. A presença deles compromete a nossa segurança. É necessário abatê-los! Não teremos muito trabalho em os encontrar.
- Desta vez, acompanho-o! exclamou a rapariga. Não vai deixar-me exposta novamente aos ataques dessas feras!
Luiza falava assim, com certa ironia, da aventura que poderia ter sido trágica.
Passado o perigo, sentia um vivo desejo de acompanhar o caçador e partilhar com êle os riscos da expedição.
- Só procederia mal se recusasse, Luiza. Não pode ficar só, aqui. Partiremos juntos, mas será inútil dizer-lhe que é preciso proceder com extrema prudência! A menor
falta pode causar desconfiança
aos ursos, comprometer os nossos esforços e tornar a caça perigosíssima.
- Pode contar comigo absolutamente.
O canadiano, depois de ter comido alguns bocados de presunto, pôs a espingarda a tiracolo e saiu acompanhado por Luiza armada com o arpão.
Depois de andar alguns passos, parou, olhando para o local onde tinha deixado os restos da sua vítima. O cadáver da fera, era apenas uma massa informe, contra o
qual se encarniçava uma nuvem de pássaros... A chegada dos jovens, não assustou esse mundo alado, que se ocupava em refastelar-se com o festim que lhes fora oferecido.
- Estão nas suas quintas! exclamou a rapariga, observando toda aquela algazarra de corpos brancos e cinzentos que cada vez mais se empurravam uns aos outros.
- Quando regressarmos da nossa expedição não restará mais do que o esqueleto do nosso incómodo visitante! disse João-Pedro. Mas, não nos devemos demorar, que não
temos tempo a perder!
Seguindo ao longo da praia, chegaram à base da encosta que escalavam frequentemente, para observar os arredores. Servindo-se dos pés e das mãos, agarrando-se às
saliências das rochas, começaram a difícil subida... Em menos de cinco minutos, rivalizando em destreza, alcançaram o cimo daquele observatório natural que dominava
as cercanias.
- Naturalmente não tardaremos a ver os nossos ursos! murmurou o caçador que chegara primeiro, e ajudava a sua amiga que logo se lhe juntou... Um óculo de longo alcance
prestar-nos-ia um grande serviço! Mas, não sejamos exigentes! Na guerra como na guerra!
Sentando-se na borda do rochedo, deixando pender as pernas, o rapaz observou os arredores. O nevoeiro leve que se levantara ao romper do dia, acabava de se dissipar,
e João-Pedro podia distinguir muito bem os contornos da ilha... Milhares de pontos negros se destacavam na praia coberta de neve. Os pinguins continuavam em assembleia
e flanavam... Um pouco mais distantes, apenas perceptíveis, as focas estavam estendidas preguiçosamente nos rochedos.
O canadiano parou de contemplar os curiosos animais. Luiza, pousando-lhe a mão no ombro, disse-lhe:
- Olhe, ali!... À direita... Não me engano! Deve tratar-se dos três ursos!
XVIII
João-Pedro intervém
O canadiano olhou na direcção que lhe indicava a companheira, verificando que ela tinha razão. A menos de meia milha da encosta que escalaram, três sombras minúsculas
destacavam-se na praia.
- Tem razão!... São os nossos ursos brancos... Parece que se não preocuparam com a ausência do companheiro.
As três feras vagabundeavam ao longo do litoral e a sua aparição apavorava os grupos dos pinguins e dos pássaros... Dois deles pareciam de estatura tão grande, e
tão temíveis, como o que fora abatido; o terceiro, muito mais pequeno, era um ursinho que sentia um grande prazer em saltar e meter-se entre os rochedos...
- Esses três patuscos andam aqui como em terreno conquistado! disse João-Pedro... Não tardaremos
a ensinar-lhes quanto custa invadir o solo dos nossos domínios!
O caçador dispunha-se a abandonar o observatório para se aproximar dos ursos, quando a rapariga o reteve, apontando-lhe a outra parte da praia situada à esquerda:
- Decididamente, a nossa ilha é hoje muito frequentada! Não vê esse kayak que se aproxima cada vez mais? Parece que intentam abordar as nossas paragens!
João-Pedro voltou-se bruscamente. O aviso da chegada dum ser humano sobressaltava-o muito mais do que a presença dos plantígrados. De-pressa distinguiu o indivíduo
que atraira a atenção de Luiza dirigindo-se para o lugar onde os dois fugitivos encalharam o umiak, parecendo disposto a desembarcar.
O caçador apertou raivosamente os punhos.
- Maldição! praguejou. Que diabo virá fazer aqui esse homem? Não deixará de encontrar a nossa embarcação que está encalhada ali perto e certificar-se-á de que a
ilha é habitada!
O canadiano estava vivamente emocionado. Pela primeira vez, depois que escapara à perseguição do Batedor da Neve, um homem aparecia naquelas paragens.
- Pouco me importam, agora, os ursos! gaguejou. Este importuno parece-me bem mais perigoso para a nossa segurança!
-Talvez se trate de algum esquimó! insinuou Luiza. Serve-se das suas pagaias como um indígena desta região!
Com um gesto, João-Pedro Roquete interrompeu a companheira.
-Depressa, estenda-se no chão! ordenou. É (preciso que esse importuno nos não veja!
Estendendo-se na superfície rochosa da encosta, os dois jovens seguiam com ansiedade as evoluções do desconhecido, cuja chegada inesperada lhes atraíra a atenção.
O kayak acostava à margem e o tripulante, desembaraçando-se rapidamente das correias que o seguravam ao esquife, saltou em terra. Parou, durante uns momentos, olhando
à sua volta.
- Parece que procura alguém! murmurou o canadiano, cada vez mais intrigado com a atitude do recém-chegado.
- Talvez seja o Grande Caribú que se resolveu a vir juntar-se-nos e trazer-nos notícias! arriscou Luiza.
As sobrancelhas do caçador carregaram-se. A hipótese parecia verosímil. Depois de tanto tempo de separação, o nascopi podia tentar vir ter com eles.
- Não é o Grande Caribú! disse o rapaz, desapontado, ao cabo dum momento. Não reconheço o seu modo de andar I Além disso, a estatura desse
homem parece-me mais elevada do que a dos esquimós. Não estamos, julgo, na presença dum indígena!
Emquanto assim falava, o recém-chegado caminhava na margem. Os pinguins, agrupados numerosamente nesses lugares, afastavam-se sem temor" na frente dele. Depois de
ter avançado ao acaso, o intruso voltou-se e parou, parecendo muito intrigado. Acabava de ver o umiak que João-Pedro encalhara a pouca distância.
- Desta vez cumpriu-se o irreparável! murmurou o canadiano, não dissimulando a sua inquietação! Este intruso conhece agora a nossa presença, Vai, sem dúvida, procurar
encontrar-nos!...
Luiza Rivière, não respondeu. Compreendia também que um grave perigo ameaçava a sua tranquilidade futura.
Ao cabo de alguns minutos, o espanto dos dois amigos cresceu, quando ouviram uma detonação.
- Não há dúvida alguma! exclamou o caçador... Esse homem tirou o seu revólver e atirou para o ar!... Dir-se-á que fêz aquele sinal para nos avisar da sua chegada.
Depois de andar para trás e para diante, com indecisão, o desconhecido deu ainda dois tiros. Assustados com as detonações, os pinguins afastavam-se, empurrando-se
uns contra os outros. Não tendo ainda descoberto os dois fugitivos, que continuavam estendidos de barriga para baixo no seu
observatório, o homem baixou-se e começou a inspeccionar a superfície do solo.
- Desta vez não escaparemos! gaguejou o fugitivo, furioso; esse maldito vai descobrir a pista que eu deixei impressa ontem, quando regressei da pesca! Antes de meia
hora chegará à caverna!
Os dois jovens trocaram um olhar de angústia! Acabara de vez o seu sossego... O importuno ia penetrar no refúgio deles; e admitindo mesmo que conseguissem escapar
à sua busca e aos seus olhares, êle iria certamente avisar os esquimós da sua presença na ilha... Seria, pois, preciso, mais uma vez, fugir para o desconhecido,
a-fim-de obstar ser capturado.
O recém-chegado continuava as suas pesquisas, sem suspeitar que era espiado. Parava várias vezes para examinar atentamente o terreno. Vira, sem. duvida, as pegadas
do canadiano e dispunha-se a seguir o mesmo itinerário que o fugitivo seguira na véspera ao regressar à caverna.
Todavia o indivíduo interrompeu a sua marcha. João-Pedro, sempre imóvel, viu-o parar bruscamente, e olhar parà a sua esquerda com inquietação.
- Os ursos brancos! exclamou a rapariga.
O caçador compreendeu, logo, a razão porque o homem parou. As três feras, que pouco tempo antes vagabundeavam a pequena distância, acabavam, de aparecer e dirigiam-se
direitas a êle.
Por muito ocupado que estivesse no reconhecimento
dos traços sobre a neve, o indivíduo ficou inquieto com a presença daqueles temíveis animais. Compreendendo o perigo que o ameaçava, o homem tirou a carabina que
levava a tiracolo e abandonou a pista que seguia com tanta insistência, depois do seu desembarque, e retirou para o interior da ilha, aproximando-se pouco a pouco
da encosta onde Luiza e o canadiano se encontravam, testemunhas invisíveis desse encontro dramático. Os dois ursos maiores não pareciam assustados com a presença
do homem. Seguidos pelo urso mais pequeno, continuaram a sua perseguição balanceando a cabeça. O recém-chegado parecia-lhes ser presa fácil de apanhar.
Esta corrida durou cerca de três minutos; quanto mais o fugitivo apressava o andamento, mais as feras o imitavam, dispostas mais que nunca a atacá-lo.
Esperando alcançar um lugar seguro, não fizera uso da carabina. Queria, sem dúvida, evitar ferir os animais, para não os enfurecer. Batia prudentemente em retirada,
correndo quanto podia e olhando para trás de vez em quando.
João-Pedro observava-o, verificando que ele estava vestido da mesma maneira que os caçadores do norte do Canadá. O homem evolucionava rapidamente no meio da neve,
mas tudo levava a supor que seria atingido pelos ursos, antes de alcançar o fim desejado.
As intenções do desconhecido eram claras. Queria chegar o mais de-pressa possível à base da encosta, onde os dois jovens estavam escondidos com o coração oprimido,
e escalá-la se o pudesse fazer.
O fugitivo verificou, porém, que os seus esforços seriam baldados. Não só os plantígrados ganhavam terreno, como manobravam duma maneira tão hábil que lhe cortavam
toda e qualquer retirada, mantendo-o à sua mercê.
Ennervado, compreendendo que tinha de tomar a ofensiva, o misterioso personagem parou. Queria acabar com aquela situação, custasse o que custasse. Metendo a carabina
à cara, apontou-a à fera que se achava mais próximo. Ouviu-se uma detonação. Atingido em cheio, na cabeça, o urso cambaleou e tombou no meio da neve, tingindo-a
com o seu sangue.
- Que admirável atirador! exclamou João-Pedro. Está ali um mariola que não tem peneiras nos olhos!
Depois de se desembaraçar do seu primeiro e temível adversário, o desconhecido continuou batendo em retirada, quando o segundo urso, enfurecido com a morte do seu
companheiro, apressou o andamento e procurou atacá-lo. Ainda uma vez o desconhecido se voltou e atirou, mas na sua precipitação, não teve tempo de visar com segurança,
conseguindo, apenas, ferir a fera. Soltando um terrível
grunhido, o plantígrado avançou. Num momento estava-lhe em cima.
- Meu Deus! É preciso salvar aquele desgraçado! disse Luiza, arquejante, e inclinando-se para o seu companheiro.
O canadiano não esperara que a rapariga lhe falasse, e ergueu-se dum salto. Do sítio onde estava, não podia atingir mortalmente o urso e arrancar-lhe a vítima.
O homem e a fera rolaram no solo gelado, ferozmente abraçados um no outro.
O caçador não hesitou mais. Depois de aconselhar a rapariga a esperar no local onde estava, deixou-se escorregar pelo declive abrupto, com risco de esmigalhar a
cabeça. Um curto momento durou aquela vertiginosa descida, arrastando consigo uma avalanche de neve sob os olhares angustiosos da rapariga. Finalmente conseguiu
parar a quatro metros do local em que o desconhecido sustentava aquela luta feroz.
Furioso pelo ferimento, o urso branco procurava quebrar os ossos do seu antagonista.
O desgraçado resistia desesperadamente. Conseguira empunhar a faca de caça, mas não conseguia ferir o monstro como desejava, bem defendido com a sua pele espessa.
As garras do temível animal, já se lhe tinham cravado nos ombros, despedaçando-lhe o vestuário e penetrando-lhe profundamente na carne. A pequena distância, imóvel,
perto do cadáver da primeira fera abatida, o urso pequeno gemia dolorosamente, indiferente ao trágico corpo-a-corpo.
João-Pedro Roquete, apenas chegado à base da encosta, levantou-se dum salto; com a espingarda na mão, correu em socorro do desconhecido. Num momento galgou a distância
que o separava do local onde lutavam implacàvelmente os dois adversários.
O desconhecido não deu pela chegada do caçador. Os seus dedos crispavam-se desesperadamente no pescoço do urso, do qual via a fauce sangrenta, armada de presas formidáveis,
aproximar-se cada vez mais da cara dele. Com os olhos esgazeados pelo pavor, o desgraçado sentia-se enfraquecer, e que o monstro iria facilmente dominar a sua vigorosa
resistência. O sangue corria abundantemente dos ombros do homem. Todo coberto pela neve em que rolava, procurava reunir as suas últimas forças, tentando debalde
ferir o terrível carnívoro.
De-repente, dominando os rugidos furiosos da fera, que esta resistência encarniçada impacientava, soou uma detonação.
Durante um momento o canadiano ficara imóvel, temendo ferir aquele que ia socorrer, tão abraçado êle estava ao animal; mas, metendo a espingarda à cara, conseguira
pôr fim àquela luta tão desigual. Atingido numa axila, o monstro desequilibrou-se. Ferida de morte, a fera levantou-se soltando
um rugido feroz. Abandonando o seu primeiro adversário, tentou precipitar-se contra o atirador, mas cambaleou, girou sobre si mesmo, e caiu pesadamente no solo.
Do cimo do seu observatório, Luiza assistia a esta cena intensamente dramática. A rapariga temia que o canadiano não chegasse a tempo de socorrer o desconhecido;
não pôde conter-se, e bateu as palmas quando o urso caiu morto. Depois, seguindo o mesmo caminho que o seu companheiro tomara, foi juntar-se-lhe o mais de-pressa
possível.
Sem se inquietar com a rapariga, João-Pedro, satisfeito por intervir a tempo, ajoelhara-se junto do ferido. O desgraçado, sangrando imenso, estava imóvel, esgotado
pelos esforços que dispendera na luta. Quási inconsciente, viu o canadiano inclinar-se para êle.
- Então, parece que cheguei a tempo! disse o rapaz.
O desconhecido não respondeu, contentando-se em abanar afirmativamente a cabeça. Os seus ferimentos faziam-no sofrer horrivelmente. Cerrava os dentes, procurando
dominar a dor.
- Sente-se muito mal? preguntou o caçador esquecendo as inquietações que sentira com a aparição do desconhecido.
Depois de o ter arrancado às garras do feroz animal, não ambicionava mais do que salvá-lo e pensar-lhe os ferimentos.
O desconhecido deixara cair na neve, durante a luta tremenda que travara, a sua gorra de lontra, mas conservava os óculos pretos que lhe escondiam os traços fisionómicos.
Usando de mil precauções, João-Pedro tirou-lhos; mas, ao reconhecer aquele que salvara da morte, soltou uma exclamação:
- Deus todo poderoso! O Batedor da Neve! Não havia engano possível! Era o Cabo Bentley
em carne e osso que jazia sangrando e inanimado junto dele. Noutros tempos, João-Pedro, tinha visto muitas vezes o homem da Royal Mounted em Fort-Rupert, com quem
conversava de vez em quando. Além disso, sob a parka que estava entreaberta, via-se o uniforme do agente da autoridade.
A surpresa que o caçador acabava de sentir era tão profunda, que ficou durante uns momentos imobilizado, sem poder fazer um só movimento. Assim, o polícia que jurara
prendê-lo, conseguira o seu intento, descobrindo o refúgio dele!
Um amargo sorriso se desenhou na fisionomia do fugitivo. A Providência determinara que êle salvasse da morte o homem que jurara a sua perda, o implacável justiceiro
que o obrigara a refugiar-se naquela ilha deserta do Labrador!
A voz de Luiza Rivière, veio arrancá-lo às suas reflexões.
- Deus seja louvado, João-Pedro! exclamou a rapariga, que corria ofegante, depois de se ter
deixado escorregar pelo declive da encosta. Foi duma coragem maravilhosa! Mas, conseguiu salvá-lo!
O canadiano encolheu os ombros. Estendendo o braço e apontando o ferido, disse:
- Reconhece-o, Luiza?
A rapariga ajoelhara-se junto do desgraçado. A sua fisionomia exprimiu um indisível espanto.
- O Cabo Bentley! Não é possível! exclamou.
- Ah! Luiza, tudo é possível! murmurou João-Pedro, baixinho... Esse homem do diabo, conseguiu apanhar-me!
Luiza Rivière, perplexamente, interrogou-o com o olhar.
- Meu Deus! que vai fazer agora?... inquiriu com ansiedade.
O canadiano nada respondeu. Sem hesitar um só momento, ajoelhou junto do ferido que não retomara ainda a sua lucidez, e depois, tomando-o nos seus braços robustos,
levantou-o.
- Vamos regressar imediatamente à caverna, Luiza; murmurou com voz calma. Este homem precisa dos nossos cuidados; não o podemos abandonar. Foi a Providência que
determinou que o salvássemos da morte!
XIX
A Verdade
Em menos dum quarto de hora, o caçador e a rapariga conduziram o ferido para a caverna. Esgotado de forças pelo terrível corpo-a-corpo que sustentara contra a fera,
o polícia não disse palavra durante o caminho. Com todos os cuidados, os dois jovens estenderam-no numa manta, e João-Pedro, que descobrira um frasco de rhum pendendo-lhe
do cinto,, apressou-se a fazer-lhe engulir algumas gotas.
O efeito do tratamento foi imediato. Abrindo os olhos, fitou longamente aquele que com tanta coragem o socorrera, e, estendendo-lhe a mão, murmurou:
- João-Pedro Roquete, tem um nobre coração! Agradeço-lhe do fundo da alma o que fez por mim.
O canadiano hesitou um momento. Por fim trocou um forte aperto de mão com o seu hóspede. A dois passos, Luiza Rivière parara emocionada. Em breve teve de interromper
essa impressionante atitude.
- Vou ajudá-lo a pensar os ferimentos, João-Pedro!
Meia hora mais tarde, o polícia comunicou que se sentia mais bem disposto; os pensos que lhe aplicaram, tinham feito parar a hemorragia.
Verificando que Bentley já estava em estado de poder falar, João-Pedro inclinou-se para êle.
- Ganhou a partida, cabo! Agora pode colocar-me as algemas nos pulsos. A caça ao homem terminou! Perdi e como bom jogador; não protesto!
Um clarão iluminou as pupilas do polícia.
- Para que eu procedesse à sua prisão, era preciso que o senhor fosse culpado. Dum roubo ou dum assassinato. Actualmente, não é acusado de qualquer má acção. Procuro-o,
efectivamente, há cerca de três semanas, mas simplesmente para o avisar que pode regressar aos seus afazeres quando quiser. É inútil permanecer nestas regiões desertas!
O verdadeiro assassino de Nicolau Chouque já está preso.
Neste momento, se um raio caísse na caverna, teria causado menos surpresa ao caçador do que a declaração imprevista do agente da Royal Mounted. Parecia a João-Pedro
ter ouvido mal, e a órfã
que ficara, igualmente, surpreendida com as palavras do ferido, preguntava a si mesma, se não estaria sonhando! Essa declaração era verdadeiramente extraordinária.
Bentley, percebendo a surpresa que as suas palavras tinham provocado, continuou, sorrindo:
- Admira-se disso, Roquete? Não me acredita? Esteja sossegado, que se não trata de qualquer armadilha para o apanhar! Vou-lhe dizer a verdade! Mas, agora, vai prometer-me
não voltar mais ao saloon de Fort-Rupert. Sei que a cidra de França é excelente, mas faz, muitas vezes, toldar a cabeça dos nossos valentes rapazes, sobretudo quando
são sóbrios como o senhor!... Um momento de desvario pode lançar suspeitas tremendas sobre um homem honesto. O senhor acaba de fazer a mais dolorosa experiência...
O cabo parou alguns momentos para tomar alento. Junto dele, os dois jovens, sempre intrigados, trocavam um olhar desconfiado, preguntando" a si próprios o que significava
esta atitude do Batedor da Neve.
- Eu sei porque o senhor fugia, Roquete! continuou o polícia. O Grande Caribú contou-me tudo! Por isso amaldiçoo as circunstâncias que me impediram de o descobrir,
quando o nascopi o escondeu na cabana dele! Isso teria evitado rudes fadigas a todos nós; além de que não me teria feito seguir imbecilmente uma pista falsa!...
- Confesso que o não compreendo, cabo, objectou o caçador.
- Vou explicar-lhe a solução do enigma, Roquete. O homem que matou Nicolau Chouque chama-se Francisco Santerre!...
- Francisco Santerre?
O canadiano caía de surpresa em surpresa; quis falar, mas o seu interlocutor não lhe deu tempo a que lhe fizesse a menor pregunta.
- Já tentou reconstituir o drama que se passou no saloon do Castor, não é verdade?
- Tenho-me esforçado por isso, várias vezes, mas não consegui coordenar os acontecimentos! Conservo apenas algumas reminiscências incoerentes. Sei que a discussão
que tive com Nicolau Chouque se azedava cada vez mais. Lembro-me bem de ouvir, em seguida, o tiro, e o aviso do meu vizinho que me aconselhava a fugir o mais depressa
possível. Mas, debalde tento compreender como pude fazer uso do revólver e ferir o meu antagonista. Eu estava louco. Não sabia o que havia de fazer. Devo ter atirado,
sem pensar nas terríveis consequências do meu gesto.
- Então, preste a maior atenção às minhas palavras, Roquete! O que lhe vou dizer bastará, sem dúvida, para dissipar o seu equívoco e fazer-lhe compreender que está
inocente!
- Inocente?
- Inocente, sim! Nada tem de que se arrepender
no assunto da morte de Nicolau Chouque. O verdadeiro culpado fêz confissões completas. Eis como se passaram os factos: Naquela noite, o senhor tinha bebido bem dessa
velha cidra, e discutia acaloradamente com Nicolau Chouque, numa mesa próxima da porta. Francisco Santerre estava sentado à sua direita, mantendo-se na espectativa
e não intervindo na disputa. Chouque censurava-o de ter vendido caro demais, a sua carga de peles, depreciando-lhe a qualidade; pelo seu lado, o senhor sem ter a
noção dos factos, insultava-o, cobrindo-o injuriosamente de nomes pouco lisonjeiros, asseguro-lhe. Entretanto, invectivando o seu interlocutor, ignorava, certamente,
que um pequeno saco de oiro pendia do cinto de Chouque, despertando a cupidez de Santerre. Aproveitando o calor da discussão e a forma inquietadora que a disputa
tomara, o miserável apoderou-se furtiva e abusivamente do seu revólver, cuja coronha, saía fora da bolsa, e ficava ao alcance dele... Certo de que ninguém surpreendera
esse gesto, e verificando que o senhor ia precipitar-se contra o seu antagonista para lhe deitar as mãos, Francisco Santerre disparou. Bruscamente, colocando a arma
na mesa, interpelou-o como se o senhor fosse o autor do atentado... Chouque, mortalmente ferido, caiu no chão.
João-Pedro e a sua companheira não tinham perdido uma só palavra da narrativa... Comprimindo o coração, inclinados com ansiedade junto
do polícia, ouviam-no continuar o seu angustioso depoimento sobre os dramáticos acontecimentos.
- O senhor já não estava no uso da razão, Roquete, prosseguiu o Batedor da Neve. Agiu como um louco! Logo que Santerre o interpelou, você acreditou que era, efectivamente,
o culpado. Nem sequer protestou a sua inocência. Os clamores de ameaça de todos aqueles homens que enchiam a sala, fizeram-no perder o sentido das realidades, impelindo-o
para o exterior... Uma força irresistível o instigara a fugir para salvar a sua liberdade comprometida! E caminhou sempre para mais longe, através do deserto branco
do Labrador, esperando escapar à perseguição da justiça.
- Mas, como pôde reconstituir toda essa cena? objectou o canadiano. Só estávamos três sentados à mesa: Santerre, Chouque e eu.
- Nicolau Chouque não morreu logo. Antes de expirar, conseguiu dar algumas indicações da máxima importância, e assim pude certificar-me da sua inocência, vendo claramente
que Santerre utilizara um odioso estratagema para lhe imputar a responsabilidade do crime! Além disso, o famoso saco de ouro, que a vítima trazia, desaparecera.
O criminoso roubou-o, aproveitando a confusão que se estabelecera no saloon, após a sua fuga. Não se demorou muito em seguir-lhe o exemplo. Quando fui prevenido,
dez minutos depois, e me apressei a chegar ao local do crime, procurámos, sem resultado,
apanhar o miserável. Algumas palavras de Nicolau Chouque, ditas antes de morrer, bastaram para me elucidar sobre o patife! Mas, era preciso agarrá-lo, custasse o
que custasse.
- Se assim era, porque se lançou na minha peugada perseguindo-me tão implacàvelmente ?
- Não era a si que procurava, Roquete, mas Francisco Santerre. Soube depois, graças ao nascopi, que o miserável o encontrara no trail. Conseguiu convencê-lo da sua
culpabilidade contando-lhe o drama a seu modo! Agindo dessa maneira, o miserável tentava embrulhar as duas pistas e tornar a minha tarefa mais difícil. E conseguiu-o!
Depois de numerosas e infrutíferas pesquizas, voltei à cabana, e reconheci que um homem se tinha escondido ali no próprio dia que eu lá estivera algumas horas. Julguei
que o Grande Caribú tivesse dado hospitalidade a Francisco Santerre... Lancei-me logo em sua perseguição, pensando que o senhor era o homem que eu desejava... Durante
semanas, percorri as planícies geladas, ignorando que o assassino de Nicolau Chouque era ainda o culpado dum duplo crime de morte, tendo-se apoderado dum trenó inteiramente
aparelhado. Só tive conhecimento disso e me apercebi do erro em que estava, quando cheguei à aldeia esquimó." O nascopi pôs-me ao corrente dos factos. Desde então,
compreendi que não tinha um minuto a perder, se quisesse agarrar o criminoso. Abandonando as pesquizas
que principiara, no seu encalço, regressei ao sul, levando comigo o índio.
Durante alguns instantes, fatigado pelo esforço que acabava de fazer, o Batedor da Neve, calou-se. Agarrando no frasco de rhum que ficara ao seu alcance, bebeu duas
goladas, ageitou-se melhor no lugar em que estava sentado, e continuou a sua narrativa.
- Não pode imaginar as privações que passamos, eu e o Grande Caribú, antes que alcançássemos os nossos desígnios! O índio tem por si, Roquete, uma grande dedicação...
Contou-me como seu pai lhe salvara a vida, e por essa razão resolvera fazer todos os esforços para desmascarar aquele que o tinha ludibriado e tentado fazê-lo passar
por criminoso. Nunca tive auxiliar tão precioso como êle, durante toda a minha carreira. Semanas e semanas errámos juntos, afrontando o frio e a fome, percorrendo
o Labrador em todas as direcções. A-pesar-dos nossos esforços, não chegávamos a resultados satisfatórios, e começávamos a desesperar, convencidos que o criminoso
conseguira pôr-se a bom recato.
"Felizmente, a Providência protegia-nos. Certo dia, já decididos a abandonar as nossas buscas, encontrámos a pista de Francisco Santerre, entre o Cabo Harrisson
e Hamilton Inlet. O miserável tinha ido procurar refúgio ao longo do litoral!...
"Esperava, certamente, conseguir embarcar num
desses barcos de pescadores da Terra Nova, que por vezes fazem escala nestas paragens. As suas esperanças não se realizaram e conseguimos deitar-lhe a mão.
Os dois jovens escutavam atentamente, sem interromper o seu hóspede. A fisionomia do caçador começava a ficar serena. Sentia-se aliviado dum grande peso. Aquele
que lhe causava tanto temor e que êle acabava de arrancar à morte, trazia-lhe as provas irrefutáveis da sua inocência.
- Francisco Santerre estabelecera o seu acampamento na proximidade da costa, continuou Bentley. Persuadido que nada tinha a temer da polícia, mantinha relações com
os esquimós que povoam a região. Esta imprudência foi-lhe fatal, e permitiu, finalmente, que o agarrássemos. O miserável aquecia-se junto da fogueira. Perto dali,
os seus cães esperavam junto do trenó. Ansiosos por surpreendê-lo e pô-lo à nossa mercê, eu e o nascopi separámo-nos; depois, rastejando cautelosamente na superfície
da neve, aproximámo-nos e aparecemos-lhe ao mesmo tempo. Antes que o miserável pudesse lançar mão da espingarda que tinha ao seu alcance, apontei-lhe o meu revólver
e intimei-o a render-se. Durante um segundo, Santerre hesitou. Pensava ainda defender-se, mas quando viu o Grande Caribú a pequena distância, compreendeu que estava
perdido. A caça ao homem terminara. Tirando do meu
bolso as algemas, passei-lhas aos pulsos, e então deixou-se prender sem resistência.
"Eu e o Grande Caribú, só tínhamos agora um desejo. Preso o assassino de Nicolau Chouque, queríamos vir ter consigo, sossegá-lo nos seus temores e na sua consciência,
fazendo-lhe saber a verdade. Seguimos em direcção ao Norte, e durante semanas avançamos com rapidez no trail... Alcançámos, finalmente, a aldeia de Maguak... Contávamos
encontrá-lo entre os esquimós, mas eles disseram-nos que não tinha reaparecido depois da nossa partida. Tivemos de empreender novas pesquizas na região de leste...
Deixando o nascopi a vigiar o prisioneiro, e depois de várias investigações áo longo do litoral, meti-me num kayak e alcancei esta ilha. O resto sabe-o o senhor!
"Apenas desembarcado, encontrei-me na crítica situação causada pelo ataque dos ursos. Estava irremediavelmente perdido se Roquete não me tivesse socorrido tão corajosamente.
Abençoada a Providência que o colocou no meu caminho!...
O Batedor da Neve, parou, esgotado pela longa narrativa que acabava de fazer. Junto dêle, Luiza Rivière e o canadiano estavam silenciosos, custando-lhes acreditar
nas palavras do ferido. Rasgava-se, emfim, o véu do mistério.
- Oh! Como estou contente, João-Pedro! exclamou a rapariga, apertando com força a mão do seu amigo. Deus ouviu as minhas preces! Sabia que
não era culpado, que não tinha assassinado Nicolau Chouque!
À alegria que sentia por saber o canadiano fora de perigo, juntava-se a satisfação imensa, pela prisão do assassino de seus pais...
A voz do cabo Bentley veio arrancar Luiza às suas reflexões.
- Mademoiselle é filha do infeliz Rivière? inquiriu o polícia.
Ela afirmou que sim com a cabeça.
- Eu sei em que circunstâncias eles morreram, continuou o homem da Royal Mounted. O Grande Caribú, pôs-me ao corrente de tudo. Além disso, Francisco Santerre, fêz
confissões terríveis. Contou como, sentindo-se perseguido, procurou apoderar-se do trenó, da atrelagem do mesmo e das suas bagagens. Para assegurar a liberdade,
não hesitou em cometer o mais abominável dos crimes!
Luiza, não pôde conter as lágrimas ouvindo o polícia evocar o terrível drama, de que ela estivera, também, para ser vítima. Voltando-se para o caçador que continuava
silencioso, Bentley acrescentou:
- Santerre hesitou naturalmente, em confessar esse crime, mas, uma certa caixa de fósforos que o nascopi trazia e que o senhor descobriu, confundiu-o... Finalmente,
encontrei nos bolsos do bandido uma carteira cheia de notas de banco, pertencente a Rivière. Desde então, o criminoso não tentou mais negar, resolvendo-se a confessar
tudo. A carga é bem boa! Ao chegar a Fort-Rupert será, com certeza, condenado à morte!
O caçador deixava agora expandir a sua alegria. Sentia-se liberto dum peso esmagador. O pesadelo que o obcecava há tanto tempo, desaparecia por completo. Já não
era um perseguido, forçado a fugir incessantemente dos seus semelhantes, para assegurar a liberdade, e a refugiar-se nas regiões desertas. Podia, finalmente, entrar
de cabeça levantada em Fort-Rupert!...
- E, dizer-se que há tanto tempo vivíamos nesta ilha, sem suspeitarmos que tinha abandonado a minha perseguição e que já não corria perigo algum! Ainda há pouco,
quando o reconheci, depois de lhe tirar os óculos pretos, fiquei convencido que se tinha arriscado nestas paragens para me prender! Como me iludia! Vinha, pelo contrário,
trazer-me a felicidade!
O rapaz, parou um momento, e depois acrescentou:
- Todos estes acontecimentos, por muito terríveis que sejam, não podem fazer esquecer o estado em que se encontra, cabo. Como se sente agora?
Um alegre sorriso iluminou a fisionomia do Batedor da Neve.
- Graças ao seu sangue frio, Roquete, estou compensado das arranhaduras que, felizmente, não são de importância... Confesso, com vergonha, que houve um momento em
que me senti tão fraco
como uma menina, absolutamente incapaz de dizer uma só palavra. Felizmente, que se operou imediatamente a reacção. Se me derem hospitalidade por esta noite, creio
que amanhã mesmo poderei regressar convosco, e sem grande custo, à aldeia esquimó onde o Grande Caribú espera o meu regresso.
Calcule-se com que satisfação os dois jovens acolheram a proposta do polícia. Também eles tinham vontade de voltar de-pressa às regiões civilizadas, agora que nada
tinham a temer.
Aproveitando o descanso do polícia, e recomendando a Luiza para velar por ele com cuidado, João-Pedro dirigiu-se para a entrada da caverna.
- Onde vai, João-Pedro? interrogou a rapariga intrigada.
- Vou ter com os ursos mortos há pouco, respondeu o caçador. Antes de deixar esta ilha para sempre, tenho que tirar-lhes as peles para as levar para Fort-Rupert...
Não devo esquecer que continuo ao serviço da Companhia de Hudson!
Daí a pouco, chegava ao local onde estavam os ursos. O urso pequeno errava nas proximidades, em redor dos dois corpos, gemendo de uma maneira lamentável. À chegada
do caçador, afastou-se assustado. Inúmeros pássaros, que tinham vindo para ali prontos a cevar-se nos despojos, esvoaçaram em debandada.
Com a sua faca de mato, João-Pedro começou
a desembaraçar os cadáveres das suas magníficas peles. Não foi pequeno o trabalho, tendo de o interromper várias vezes para descansar. Durante esse tempo, o ursinho
animava-se e ousava aproximar-se. Nessas ocasiões o canadiano tentou agarrá-lo, mas êle saltava bruscamente e fugia.
Já caía a noite quando Luiza Rivière viu aparecer o seu companheiro, trazendo consigo uma das peles. O caçador teve de voltar segunda vez para trazer a outra e depois,
exhausto, enxugando com a manga da parka, o suor que lhe escorria do rosto, foi agachar-se junto da fogueira.
O Batedor da Neve, que dormira durante uma parte do dia estendido nas mantas, sentia-se muito melhor, devido aos carinhosos cuidados da rapariga; os seus ferimentos
estavam em via de cicatrização rápida.
Luiza serviu-lhes um apetitoso pedaço de urso , assado, que reconfortou excelentemente os dois homens, e a seguir, já noite alta, enrolaram-se nas mantas e assim
adormeceram.
XX
A pista do Sul
O canadiano acordou cedo no dia seguinte. Levantando-se do seu lugar, distendeu os membros cansados, e ao ver o cabo, que continuava a dormir, recordou os acontecimentos
dramáticos sucedidos na véspera. Espantado ainda com a realidade dos factos, compreendia, contudo, que não podia duvidar deles. Era livre, e acabara aquela existência
de réprobo a que fora constrangido tantos meses.
Um rápido sorriso lhe aflorou à face, quando fitou Luiza Rivière, estendida e sossegada perto dele.
A barreira que separava os dois jovens, tinha-se desmoronado definitivamente. João-Pedro Roquete podia, em breve, dizer à sua companheira as doces palavras que há
tanto tempo lhe queimavam os lábios. Sentia-se rejuvenescer e todas as angustiosas peripécias vividas desde a sua partida de Fort-Rupert, pertenciam, agora, ao domínio
do passado.
A voz rude de Bentley, veio interromper os seus pensamentos:
- Então, camarada. Sente-se hoje mais bem disposto?
- Sou eu que devo fazer-lhe essa pregunta, cabo!
- Deus seja louvado! Isto não vai muito mal! Dormi como um preguiçoso e, sinto-me bem disposto para poder regressar convosco à aldeia de Maguak.
A rapariga despertara, entretanto, ao ouvir as vozes dos seus companheiros.
- Então? preguntou, ainda mal acordada; como vai o nosso doente?
- Já não é um doente, mademoiselle, é um ressuscitado! retorquiu o polícia, levantando-se.
Bentley teve, no entanto, de dominar-se para não fazer um gesto doloroso. Os seus ferimentos ainda o faziam sofrer cruelmente. Alguns minutos mais tarde, deixava-se
pensar pela rapariga.
- Vamos lá! dentro de poucos dias tudo desaparecerá! concluiu alegremente. Tenho de oferecer uma grande vela por sua intenção! Quantos pobres de Cristo desejariam
ter assim um anjo da guarda, mademoiselle Rivière!
- Basta de cumprimentos, cabo! Creio que poderá seguir hoje connosco, mas é preciso obedecer escrupulosamente às minhas ordens! Proíbo-lhe que cometa a mais leve
imprudência.
Ameaçando gentilmente, com o dedo, o homem da Royal Mounted, a rapariga sorria. Ela sentia,
também, que ia começar uma nova existência... Já não experimentava essa obcecação que a oprimia e lhe fazia temer as piores eventualidades... O Batedor da Neve representava,
há longos meses, para ela, uma criatura temível, de quem tinha que defender o seu salvador. Dora-avante, só via nele um amigo, e agradecia a Deus o ter resolvido
com tanta felicidade uma situação tão angustiante.
A rapariga não se demorou a tagarelar com os dois homens. Apressou-se a preparar o almoço, e mais uma vez os três habitantes da caverna puderam apreciar a saborosa
carne de urso... Luiza fez em seguida derreter na caçarola alguns punhados de neve, onde o cabo derramou uma parte do seu frasco de rhum. Este grog quente, reconfortou
o pequeno grupo.
- Agora estamos aptos a afrontar as fadigas da nossa viagem, declarou o canadiano com alegria. Estamos ansiosos por tornar a ver o Grande Caribú. Imagine, cabo,
que eu e Luiza, pensávamos que o senhor o tinha metido na cadeia!
- O nascopi não chegou a aquecer na palha húmida do cárcere. Ficou muito contente também em os tornar a rever! afirmou o Batedor da Neve. Quantas vezes me falou
a vosso respeito quando acampávamos no trail! Foi êle, qhe insistiu para que o viesse buscar antes de conduzir o preso a Fort-Rupert! Deve estar impaciente na aldeia
de Maguak, e inquieto por saber o que me teria acontecido
durante a noite! Não percamos, pois, tempo algum! Tenho pressa de o sossegar.
Apoiado à sua carabina, Bentley arriscou alguns passos; verificando que podia caminhar à vontade, deixou a caverna. Luiza Rivière acompanhou-o, ajudando-o como podia.
Depois de ter parado algumas vezes para respirar mais fundo, o homem da Royal Mounted, chegou ao local onde, na véspera, havia encalhado o seu kayak.
Deixando os seus companheiros seguir o caminho da praia, João-Pedro ocupava-se em carregar no seu barco as peles dos ursos. Teve que fazer três caminhadas para conduzir
os pesados despojos até à embarcação.
O Batedor da Neve não esperou pela partida dos seus companheiros. Sempre ajudado pela rapariga, instalou-se solidamente no seu kayak e, tomando as pagaias, afastou-se
para oeste depois de ter dado a Luiza, algumas indicações indispensáveis. Esta, que se instalara no umiak, esperou pacientemente a volta do canadiano, que mais uma
vez se retirara. Profundamente intrigada, preguntou a si mesma a que era devida a demora do caçador. As armas e as bagagens já estavam no barco; sossegou, porém,
quando viu reaparecer João-Pedro. Afastando os pinguins que se amontoavam na praia, o rapaz trazia ao colo o pequeno urso que tentava escapar-se-lhe.
- Fui buscar este órfão ao pé dos corpos dos
pais. Os pássaros marítimos encarniçavam-se sobre os cadáveres, às centenas; e, por isso este pobre animal não sabia onde havia de refugiar-se. Não opôs grande resistência,
e pude agarrá-lo sem dificuldade. Levá-lo-emos à aldeia de Maguak para que o adoptem.
Luiza Rivière e o canadiano demoraram-se uns momentos a olhar essa ilha deserta onde tinham vivido e sofrido. Ainda que sentissem uma imensa alegria por regressar
à civilização, nesse momento foram invadidos por uma melancolia profunda.
- Vamos! Para a frente! ordenou o caçador voltando-se bruscamente. O cabo precedeu-nos. Esse bravo Grande Caribú, deve estar impaciente. Não o façamos esperar!
Manobrando vigorosamente os remos, os dois Jovens afastaram-se da ilha sem nome e tomaram o rumo da aldeia. Durante muitas horas costearam o Labrador. Junto deles,
o ursinho continuava chorando. Por três vezes, Luiza teve de o agarrar para impedir que saltasse à água. Foi preciso amarrá-lo para se manter quieto.
Finalmente, João-Pedro que observava sem cessar a frente do seu caminho, soltou um grito de alegria. Reconhecia aquela p^âia na sua frente. Tinha vindo ali caçar,
com frequência, focas e morsas, com os esquimós.
- Coragem! Estamos perto! gritou à sua companheira, que começava a fatigar-se...
Um quarto de hora ainda os dois companheiros rivalizaram em energia. Diminuíram, por fim, o seu andamento. Inúmeras embarcações apareciam a pouca distância. Tripulando
kayaks e umiaks, Maguak e os esquimós, que tinham sido avisados pelo cabo da chegada dos dois fugitivos, vinham ao seu encontro.
Num abrir e fechar de olhos, a embarcação era cercada por indígenas que soltavam gritos alegres. Arriscando-se a naufragar, chocando-se uns com os outros, os caçadores
de morsas acolheram festivamente os seus hóspedes. A embarcação em que vinham João-Pedro e Luiza, foi rodeada pelos esquimós. De-repente um homem levantou-se no
meio do uirsiak. O Grande Caribú saltara para dentro, não querendo esperar mais tempo para se juntar aos seus amigos, e manifestava ruidosamente a sua alegria!...
Escoltado por toda a flotilha, o canadiano e Luiza Rivière chegaram à aldeia onde a população lhes fêz uma manifestação frenética. Várias vezes o Grande Caribú apertou
João-Pedro contra o peito. O nascopi era, por natureza, pouco expansivo, mas desta vez, não tentou dissimular a grande satisfação que sentia, por tornar a ver, são
e salvo, o filho de Tomaz Roquete.
Por fim, apontando o igloo de Maguak, que já servira em tempo de refugio aos fugitivos, o índio conduziu para lá os recém-chegados. Penetraram no
interior da habitação e viram duas sombras que se destacaram junto da lareira. Exhausto pelo esforço que acabava de fazer, o cabo Bentley deixara-se cair numa pele
de urso. À sua esquerda encontrava-se um homem agachado, com os pulsos algemados.
O canadiano reconheceu imediatamente essa segunda personagem: era Francisco Santerre, o miserável que o ludibriara tão indignamente! O prisioneiro causava, agora,
dó...
O desespero que João-Pedro sentiu ao encontrar-se na sua presença foi tão forte, que quis precipitar-se sobre ele; todavia, conteve-se. Repugnava-lhe bater num homem
desarmado, e demais algemado.
Luiza Rivière acabava de entrar no igloo. A sua face tornou-se de uma palidez mortal ao distinguir o assassino.
- É êle! Reconheço-o! exclamou... Oh! o miserável !
Francisco Santerre, tremia como varas verdes. O Batedor da Neve não lhe dissera que a filha de Rivière fora salva pelo caçador e pelo Grande Caribú, e, por isso,
julgava-se em frente dum fantasma. Os seus olhos, esgazeados pelo pavor, fitavam fixamente a rapariga.
- Não é possível! Balbuciou por fim.
O canadiano interrompeu-o bruscamente:
- Esperavas, sem dúvida, escapar ao castigo!
As tuas pérfidas maquinações não obstaram a justiça de triunfar!... Expiarás implacàvelmente os teus crimes, Francisco Santerre!
O cabo Bentley procedeu a um novo interrogatório do criminoso. Abatido, Francisco Santerre confirmou as suas primeiras confissões, repetindo qual o móbil que o levou
a praticar os crimes.
- Amanhã, concluiu o agente da Royal Mounted, retomaremos o caminho de Fort-Rupert. Já tarda fazer saber aos meus superiores que o Batedor da Neve cumpriu, o melhor
que pôde, a missão delicada que lhe confiaram! A caça ao homem prolongou-se, desta vez, além das medidas costumadas. ..
Os três amigos, o polícia e o prisioneiro passaram a noite no igloo de Maguak. Apenas despontou o dia, levantaram-se.
O cabo, depois duma pequena discussão com os esquimós, apressou-se a comprar dois trenós e doze cães. Não queria expor Luiza Rivière às fadigas da longa viagem.
Os indígenas ajudaram afanosamente os viajantes a terminar os preparativos da partida. O cabo soube recompensá-los generosamente; por isso, faziam tudo que podiam
para o contentar e testemunhar-lhe a sua amizade.
Os cães, impacientes por se lançarem no trail, ladravam furiosamente, e puxavam pelos arreios.
- De-pressa! A caminho! Comandou com voz enérgica o Batedor da Neve.
Depois de se ter despedido dos esquimós e das mulheres, a órfã instalou-se no primeiro trenó, que devia conduzir João-Pedro Roquete; o cabo fêz estender o seu prisioneiro
no segundo veículo e instalou-se no assento; finalmente o Grande Caribú tomou conta do terceiro trenó, onde fizera carregar as armas, as bagagens e os despojos dos
ursos brancos, e preparou-se para seguir os seus companheiros.
Maguak, a quem o canadiano fizera presente do ursinho agarrado na ilha, dirigiu ao grupo os melhores desejos de boa viagem, e a seguir os estalidos secos dos chicotes
abafaram os clamores dos indígenas. Os cães arrancaram vigorosamente, lançando-se a toda a velocidade em direcção ao sul, arrastando os pesados veículos que deixavam
profundos sulcos na neve.
Agrupados em frente dos seus igloos, os esquimós faziam sinais de despedida a Luiza Rivière e aos seus amigos, e em breve a pequena caravana desapareceu no horizonte.
Um sol alegre brilhava, espalhando os seus raios quentes. Os viajantes compreendiam que tinham de se apressar, para alcançarem- Fort-Rupert antes do degelo. Daí
a algum tempo toda a região do Labrador deixaria o manto branco com que se cobrira durante tantos meses. Milhares de ribeiros
correriam através da planície que então se tornaria florida e verdejante. A magia da primavera transformaria aquela sombria decoração de inverno, numa exuberante
paisagem.
- Para a frente! Não cessava de repetir João-Pedro, fazendo girar a ponta do chicote por cima da cabeça. Não temos tempo a perder, se quisermos evitar encalhar num
atoleiro. Coragem, camaradas!
Com a face açoitada pela brisa, a rapariga mantinha-se quieta no fundo do seu trenó. Parecia presa dum lindo sonho. Não esperara nunca uma tal conclusão às suas
dramáticas aventuras.
Todavia, o seu olhar velava-se tristemente, por vezes. O seu pensamento ia para aqueles que dormiam o sono eterno naquelas solidões. O que ia ser dela daí para o
futuro? O caçador retomaria, naturalmente, as suas ocupações e continuaria caçando por conta da Companhia de Hudson, de quem era um dos mais hábeis auxiliares. Talvez
a sua paixão pela caça lhe fizesse esquecer, cedo ou tarde, a amiga que partilhara os seus sofrimentos. O egoísmo faz parte da natureza do homem. Talvez um dia outra
mulher fizesse vibrar o coração de João-Pedro e se tornasse sua esposa.
Luiza Rivière, interrompeu de-repente o curso dos seus angustiosos pensamentos. Uma mão pousara-lhe no ombro. O canadiano, que ia um pouco atrás dela, acabava de
se inclinar para a frente.
A sua voz meiga dominou o leve ruído do deslizar do trenó.
- Há pouco, rodeados pelos indígenas, não pudemos trocar uma só palavra, agora já não posso esperar. Estou livre, dora-avante nenhum obstáculo nos separa. Permite-me
que lhe faça um pedido, Luiza?
A rapariga voltou-se ligeiramente e viu o olhar do caçador fitar-se nela com ansiedade.
- De que se trata, João-Pedro?
- O trail que seguimos conduz-nos a Fort-Rupert, Luiza, mas de si mais que de mim, depende que nos conduza, igualmente à felicidade! O único obstáculo que me impedia
de lhe confessar este meu sentimento, era o supor-me criminoso! Agora que o pesadelo passou, podemos pensar no futuro! Quere ser minha mulher? Far-me-ia feliz!
Durante, um momento, o olhar do canadiano fitou com angústia a face ruborizada da rapariga. A-pesar-dos testemunhos de afeição que ela lhe tinha dado, receava uma recusa, mas as suas suspeitas dissiparam-se quási logo. Um sorriso adorável se desenhou na fisionomia da rapariga. Agarrando na mão do seu companheiro, apertou-lha com ternura.
Albert Bonneau
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